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Aristófanes e As Vespas: o desencanto com

o Direito na Literatura Ática

Arnaldo Moraes Godoy

O mundo ático sedimenta as origens do


ocidente. Política, Filosofia , Medicina,
Direito, Te atro, Literatura, Química,
Matemática, História, Física, sempre há
um referencial helênico: Platão, Xenofonte,
Hipócrates, Aristófanes, Hesíodo, De-
mócrito, Tales, Heródoto, Arquimedes,
Aristóteles.
Oliver Taplin, entusiasta da cultura gre-
ga, anotou:
“Os gregos formularam e explo-
raram muitas das questões que ainda
hoje tornam o terreno instável debai-
xo de nossos pés. Por que ser bom?
Qual a melhor organização da socie-
dade? Serão as relações interna-
cionais essencialmente egoístas?
Devem os médicos preservar sempre
a vida? Qual a origem do mundo?
Será o universo feito de uma subs-
tância de base? Será que os ganhos
da vitória compensam sempre as
perdas? Serão os interesses dos
homens e das mulheres inevita-
velmente conflituosos? Como pode-
mos encarar a aparente injustiça e o
desequilíbrio da vida?” 1
A essas tantas questões podemos acres-
centar que foram também os gregos quem
indagaram acerca dos contornos da Justiça
Arnaldo Moraes Godoy é Procurador da
Fazenda Nacional, especialista em Filosofia no (e nesse sentido o Livro V da Ética a
Brasil: aspectos éticos e políticos pela UEL- Nicômaco, do Estagirita, é muito expres-
Londrina e mestrando em Filosofia do Direito sivo) e do funcionamento dos tribunais.
pela PUC-São Paulo. Inerente a qualquer abordagem sobre o
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mundo ático encontra-se o estudo do dade e um desencanto para com a vida
poder 2 , da ocupação profissional das judiciária. Porém, antes de sua análise,
pessoas3, do modelo jurídico4, das sanções 5, vejamos algo da justiça ateniense, para-
do monopólio da violência6, dos julga- digma no mundo ático.
mentos 7, do aparecimento da lei escrita 8, da O Direito Grego é menoscabado em face
posição jurídica da mulher9 , das relações de outros direitos antigos, especialmente
jurídicas decorrentes da questão do cré- do Direito Romano, esse último muito
dito10, dos magistrados 11. importante na formação do jurista 14. Não
A produção literária grega não deixou nos esqueçamos, porém, a advertência de
de manifestar-se sobre os efeitos das Luiz Fernando Coelho, para quem:
questões atinentes ao Direito na vida das “A civilização grega é o ponto de
pessoas. Há resíduos dessa preocupação na partida para o estudo e compreensão
epopéia (Homero, Hesíodo), na lírica da cultura ocidental”.15
(Safo), na filosofia (Platão, Aristóteles), na Os gregos publicizaram a administração
tragédia (Ésquilo, Sófocles), na comédia da Justiça, vencendo uma primitiva fase
(Aristófanes), na historiografia (Heródoto, de justiça familiar, como indicado nos
Tucídides, Xenofonte, Políbio, Plutarco), na estudos de Fustel de Coulanges16, de A.
oratória (Lísias, Isócrates, Demóstenes). Em Jardé17, de Gernet18 e de Gustave Glotz 19 .
cada um desses gêneros literários, os Réu e acusador se reuniam em local
gregos imprimiram a marca de sua origi- determinado, levando parentes e amigos,
nalidade. Nos dizeres de Donaldo Schüler, que atestariam as boas intenções da parte.
historiador da Literatura Grega: A solidariedade jurídica elevaria o número
“A literatura grega repete, com de votos, garantindo a vitória de um dos
variações, a tentativa de recuperar o litigantes. Na época clássica, teriam nascido
mundo que, ao recuar, faz-se mis- os tribunais, como centro de encontro para
tério. A epopéia explora as origens do desempate das solidariedades religiosas e
universo e do homem, procurando familiares sob a tutela do Estado, o que, na
compreender a ação sobre o mundo, lição de Mário Curtis Giodani20, indica o
projeto que é desenvolvido pelos espírito democrático que animara a orga-
historiadores. Enquanto os autores nização das instituições atenienses, como
épicos se voltam ao que se passa em preocupação de se assegurar harmoni-
torno deles, os líricos devassam a camente a soberania e os direitos do
subjetividade. Insatisfeitos com as indivíduo.
respostas fornecidas pela tradição, os Entre os tribunais, havia o Areópago, o
filósofos abrem trilhas em que se mais antigo, que, de acordo com a lenda,
locomove a razão. A insegurança do fora instituído pela deusa Atena por
homem diante de um mundo amea- ocasião do julgamento de Orestes. Esse
çador aparece na tragédia. A neces- último, irmão de Ifigênia, filho de Aga-
sidade de atuar na vida social e mêmnon e de Clitmnestra, vingou o pai,
política desenvolveu a oratória”.12 assassinando a mãe, que tinha traído
Podemos acrescentar que a comédia Agamêmnon, entregando-se a Egisto. Para
castiga e satiriza as instituições. É o Ridendo Plutarco, o Areópago fora criado por
dicere verum, o rindo dizer a verdade, de Sólon 21 . Também havia o Tribunal dos
que Horácio nos dá conta, Sátiras, 1,1, 24513. Éfetas, criado por Drácon, dividido em
Aristófanes, o mais famoso comediógrafo câmaras especiais.
da antigüidade grega, deixou-nos As Para os fins do presente estudo, o mais
Vespas, peça escrita por volta de 422 a.C. A importante era o Tribunal dos Heliastas,
comédia é uma sátira ao sistema ateniense um dos principais elementos da vida
de tribunais do júri. Revela uma mordaci- ateniense, que fora criticado na comédia de
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Aristófanes. Anualmente, sorteavam-se Bdeliclêon demonstra que na reali-
seis mil jurados (dikastaí, heliastaí) entre os dade os jurados são meros instru-
cidadãos inscritos, maiores de trinta anos. mentos dos governantes, que desvi-
Os sorteados eram designados juízes am em benefício próprio o grosso da
heliastas e nessa qualidade prestavam arrecadação destinada a alimentar o
juramento (hórkos heliastikós). Eram divi- povo necessitado. O coro se deixa
didos em dez seções (dikastéria) de quinhen- convencer e persuade Filoclêon a
tos membros: os restantes mil jurados eram julgar somente os casos ocorrentes
suplentes. O Tribunal dos Heliastas tinha em seu próprio lar, começando pelo
competência para acompanhar e julgar as de Labes, o cão de guarda da casa,
causas em geral, de âmbito público e que furtou um queijo na despensa.
privado, e muitos de seus membros eram Graças a um ardil do filho, Filoclêon
pessoas de idade, de pequena e média é induzido sem perceber a absolver
condição, que eram pagos para o desem- o criminoso, o primeiro réu que ele
penho da função. Como o juiz recebia três
deixava em liberdade em toda sua
óbulos por dia para participar das sessões
longa vida de jurado. Bdeliclêon
do tribunal, a judicatura transformou-se no
então resolve reeducar o pai para a
principal meio de vida para muitos cida-
vida social, e melhorar suas roupas e
dãos atenienses. É aí que se centra a
maneiras, passando a levá-lo a jan-
comédia que vamos comentar, e que
tares. Os resultados são desastrosos,
identifica o desencanto literário para com
pois Filoclêon embriaga-se, insul-
o modelo judiciário ateniense.
Aristófanes fez estrear As Vespas em 422 tando os demais convidados, pondo-
a.C. Mário da Gama Kury, que traduziu a se afinal à frente dos componentes do
comédia do grego para o português, coro para dançar indecentemente”.22
resume o enredo: O debate entre pai e filho centra-se na
“Filoclêon (que significa amigo de oposição das idéias em relação ao tribunal.
Clêon, orador, general, político Para o pai, o tribunal é bom porque lhe traz
controvertido, demagogo corrupto) é vantagens pessoais. Para o filho, o tribunal
fanático pelas sessões do tribunal. é ruim porque os jurados são meros
Seu filho Bdeliclêon (inimigo de instrumentos dos governantes. De qual-
Cléon) tenta curá-lo de sua mania quer forma, tomando-se uma ou outra opi-
judicatória e, como último recurso, nião, a conclusão é a mesma: o desencanto.
segrega-o em sua própria casa. Os A comédia começa com um diálogo
componentes do coro (velhos jurados entre Sosias e Xantias, escravos de Filo-
como Filoclêon) chegam em frente à clêon. Incumbidos de guardar o velho, não
sua casa, fantasiados de vespas, antes deixando com que ele vá para o Tribunal,
do amanhecer para levá-lo com eles os dois personagens explicam aos espec-
ao Tribunal, e o ajudam como podem tadores a doença que ataca Filoclêon.
em sua tentativa de escapar da prisão Diz Xantias:
domiciliar a que o filho o sujeita. Há “Se vocês estão curiosos por saber,
uma escaramuça entre os jurados e façam silêncio: vou dizer qual é
os escravos de Bdeliclêon, seguindo- mesmo a doença de meu senhor: é a
se uma discussão entre Filoclêon e paixão pelos tribunais. A paixão dele
Bdeliclêon quanto aos méritos e é julgar; ele fica desesperado se não
defeitos da instituição do júri, na consegue ocupar o primeiro banco
qual Filoclêon a defende alegando dos juízes. A noite ele não goza um
os benefícios que obtém pessoalmen- instante de sono. Se por acaso fecha
te graças ao sistema. Rebatendo, os olhos, o próprio espírito fica
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olhando para a clepsidra. A paixão O conceito que Filoclêon fazia da justiça
dele pelo voto no tribunal é tão é diverso do externado pelos filósofos
grande que faz ele acordar apertando clássicos, exceto pelos cínicos, embora a
três de seus dedos, como se ofere- visão do personagem de Aristófanes seja
cesse incenso aos deuses, em dia de ainda mais pessimista. Se para um pensa-
lua nova. (...) Logo depois do jantar mento mais rebelde a justiça poderia ser a
ele pedia as sandálias, corria para o lei do mais forte, para Filoclêon a justiça
tribunal em plena noite e adormecia era palco para seu prazer ou para suas
lá, colado a uma coluna como uma arengas pessoais. Quanto a esse último
ostra à concha. (...) Com receio de não aspecto, Filoclêon desafia seu filho:
ter a pedrinha para o voto, ele tinha “Se vocês não me deixarem em
no jardim de sua casa um canteiro de paz, vamos brigar na justiça.” 27
pedrinhas, que renovava sem parar. O filho responde ao pai, e a resposta
Esta era a sua loucura.” 23 denota pouquíssimo respeito:
O texto traz um personagem de com- “Você é um trambiqueiro sem-
portamento patológico. Sua obsessão com vergonha e atrevido, mas pouco
o tribunal, com o poder de julgar, subsume inteligente.” 2 8
algo não revelado. Sutilmente, Aristófanes Porém, centrando seus valores no
nos questiona acerca dos motivos determi- critério dinheiro, responde Filoclêon:
nantes que levam o julgador à corte. Na “Trambiqueiro, eu? De jeito ne-
visão do teatrólogo grego, certamente não nhum! Você não me dá agora o valor
é o amor à justiça... que eu tenho; só vai dar quando
Mais a frente, Filoclêon exige que possa provar o gosto delicioso da herança
sair. Diz: de um velho juiz.” 29
“Que é que vocês estão querendo Todos os outros juízes, travestidos de
fazer? Vocês não vão mesmo me vespas (que têm embaixo da barriga um
deixar julgar? Dracontidas vai ser ferrão penetrante e picam todo mundo com
absolvido!”24 ele) vão até a casa de Filoclêon, para
Fica claro que, mesmo sem ouvir as convocá-lo para mais uma sessão do
partes, Filoclêon já pensara em condenar o tribunal. Com a chegada das vespas, em
réu. Filoclêon tinha ganas de condenar, passagem muito substancial, diz o escravo
sempre. E diz logo em seguida: guardião da casa:
“O deus de Delfos me respondeu “Não se preocupe; com apenas
um dia que eu morreria no momento algumas pedras vou obrigar todo
em que um acusado escapasse de esse enxame de juízes a debandar.” 30
minhas mãos.” 25 Comparar juízes a um enxame de
Aristófanes nos indica que seu perso- vespas é atitude que indica destemor e até
nagem julgador nada julgava. Ele apenas certo atrevimento por parte de Aristófanes,
condenava. E as condenações sugerem um que continua a comédia, com o coro dos
certo prazer, sem o qual Filoclêon não juízes-vespas, que se incitam para o
poderia viver. Discutindo com o filho, julgamento. Dizem as vespas:
que queria prendê-lo em casa, mais uma “Hoje é o julgamento de Laques.
vez Filoclêon manifesta seus desvios Todos dizem que seu cofre ficou
patológicos: recheado de dinheiro. É por isso que
“Sou mesmo um infeliz! Se eu ontem Clêon, nosso sustentáculo, nos
pudesse matar você! ... Mas, com disse para irmos cedo, com raiva para
quê? Depressa! Uma espada ou uma três dias, para punir um malandro
sentença condenatória!”26 pela roubalheira dele.” 31
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A “raiva de três dias” e a predisposição desejo de percorrer os bancos do
para condenar são evidentes. Essa evidên- tribunal para dar meu voto.” 35
cia é potencializada quando os juízes- Os juízes continuam tentando ajudá-lo
vespas, falando em direção à casa, dirigem- e Filoclêon, em desespero, faz importante
se para Filoclêon: observação acerca de seu destino:
“Vamos, caro amigo! Levante-se! “Está bem, assim seja! Estou nas
Não se deixe devorar assim pelo mãos de vocês. Se me acontecer
ressentimento! Hoje temos que julgar alguma desgraça, lembrem-se de me
um desses ricaços que entregaram a enterrar por baixo do tribunal depois
Trácia. Vamos mandá-lo ao suplício!” 32 de me terem banhado com suas
Filoclêon tenta explicar por que não lágrimas.” 36
consegue sair de casa: Externando seu lado corrupto, Filoclêon
“Meus amigos! Estou secando de pede ajuda de réus que deverá julgar. Assim:
impaciência depois de ouvir vocês “Vocês, Smicítion, Tisiades, Crê-
dessa janela, mas não posso ir cantar mon, Feredipno, todos que têm
com vocês. Que é que vou fazer? A processos durante este ano, não vêm
minha gente toma conta de mim por- me socorrer? Quando, afinal, vocês
que estou pegando fogo para ir com me ajudarão, se não for agora, antes
vocês, juntar nossas urnas e pronun- de eu ser trancado outra vez?”37
ciar alguma sentença condenatória.” 33 As vespas-juízes, já no tribunal, man-
Que diferença, por exemplo, entre dam meninos tentar convencer Bdeliclêon
Filoclêon (que só pensava em condenar) e a libertar o pai, mandam também recados
a prosaica figura do chamado bom juiz para Filoclêon:
Magnaud, capitão da jurisprudência “Digam a ele para vir combater
sentimental, julgador de primeira instância um inimigo do governo, merecedor
na França, no início do século XX, que nas sem dúvida alguma da morte, pois
palavras de Carlos Maximiliano: ele se atreve a pretender que não deve
“Imbuído de idéias humanitárias haver processos nem julgamentos!”38
avançadas, o magistrado francês Aristófanes traz personagens que
redigiu sentenças em estilo escor- identificam um total descrédito do come-
reito, lapidar, porém afastadas dos diógrafo para com as coisas, fatos e temas
moldes comuns. Mostrava-se cle- da justiça, traduzindo desencanto entre
mente e atencioso para com os fracos Literatura e Direito. Aristófanes nos dá
e humildes, enérgico e severo para conta de juízes vingativos. Por exemplo,
com os opulentos e poderosos. (...) Na assim se dirigem aos escravos que pren-
esfera criminal e correcional, e em diam Filoclêon:
parte na civil, sobressaiu o bom juiz, “Vocês não tardarão a receber o
com exculpar os pequenos furtos, castigo merecido; os três vão apren-
amparar a mulher e os menores, der a conhecer os homens de caráter
profligar erros administrativos, rancoroso, justo e sereno.” 39
atacar privilégios, proteger o plebeu Os juízes ameaçam o filho de
contra o potentado.” 34 Filoclêon:
Filoclêon é a antítese do bom juiz “Muito bem; você ainda não está
Magnaud, e ambos se afastam de um no jardim e nem saiu da rua, como
modelo imaginário e desejável de juiz. diz o provérbio. O que você sofre
Voltando ao texto de Aristófanes, hoje não é nada; você vai ver quando
Filoclêon quer fugir, quer ir para o tribunal: o promotor denunciar os seus
“Que meio? Procurem! Faço qual- crimes e intimar os seus cúmplices
quer negócio, tão grande é o meu na conspiração.” 40
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Interessante a tradução, no uso da poder nenhum; apenas vive dos restos, das
expressão “promotor”. Em Atenas, não ha- sobras dos advogados nas negociatas:
via Ministério Público 41 . Qualquer um “Então ouça: você poderia ser tão
poderia denunciar (eisangelía ). Daí a rico quanto todos os outros colegas
proliferação de acusadores e denunciantes, seus; mas esses eternos aduladores
os sicofantas. Esses objetivavam os cidadãos do povo lhe tiram os meios. Você
ricos e a fúria acusadora só era refreada reina sobre uma porção de cidades,
pelo temor das multas, decorrentes das desde o Mar Negro até a Sardenha, e
denúncias infundadas. Aristóteles via nos sua única satisfação é esse salário
sicofantas bajuladores danosos e vis42. miserável; e eles ainda lhe pagam
Filoclêon insiste com o filho. Quer avarentamente e gota a gota, como o
continuar julgando: óleo na mecha de um lampião; na
“Você bem merece; por mim, realidade eles querem que você seja
prefiro a vida que você quer que eu pobre, e vou lhe dizer a razão disto: é
abandone, em vez da maior prospe- porque você conhece a mão que te
ridade. Um processinho recheado é alimenta, e ao menor sinal você se
um prato que me agradaria muito lança sobre o inimigo que ela escolhe
mais.” 43 para ser atacado por você.” 47
O filho tenta chamar o pai para a Finalmente, filho e pai chegam a um
realidade. E a rudeza de Aristófanes é acordo. Bdeliclêon deixará o pai em casa,
impressionante. Diz Bdeliclêon: julgando os escravos. Diz:
“Você não percebe que é um “Está bem! Está bem! Se você gos-
joguete desses homens que você ta tanto de ser juiz, não é necessário
reverencia como se estivesse num sair de casa para isto; fique aqui e jul-
culto? Você é um escravo e não gue seus escravos.” 48
percebe.” 4 4 E continua:
Filoclêon insiste, ainda com mais “Você vai fazer tudo como no
veemência : tribunal. Se sua escrava abrir a porta
“Que criatura é mais feliz, mais da despensa sem você ver, você
afortunada do que um juiz? Que vida aplicará a ela uma simples multa,
é mais gostosa do que a dele? Que como você faria no tribunal. Tudo se
animal é mais temível, principalmen- passará na ordem conveniente; se o
te na velhice?”45 sol estiver de fora desde cedo, você
Filoclêon está seguro do seu múnus. julgará em pleno sol; se estiver
Diz: chovendo ou nevando, você instruirá
“E este salário me serve de prote- o processo em frente à sua lareira; se
ção contra todos os males, e de por acaso você se levantar ao meio-
armadura contra todos os projéteis; dia, não precisa ter receios de ser
(...) Isto não é uma verdadeira sobe- excluído pelo juiz-presidente.” 49
rania, igual à de Zeus? Falam de nós Também, os poderes de Filoclêon
como do próprio Zeus. Se fazemos seriam aumentados:
barulho em nosso tribunal, todos os “Além disto, se o advogado esti-
parentes gritam: ‘Ah! Zeus! Que tem- ver falando demais e você sentir
pestade desaba sobre o tribunal!’“46 fome, você não terá de sofrer por isto;
Bdeliclêon afirma que o pai é, na vingue-se do advogado.” 5 0
verdade, um servo do Estado, que ganha O advogado era uma figura interessante
pouco, mas que tem a impressão de ter no mundo ático. Os litigantes usavam a
muito poder. Para Bdeliclêon, o pai não tem palavra e aqueles que não confiavam em
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seus talentos oratórios valiam-se da reda- fazendo, abusando desta falta de
ção de profissionais (logógrafos) que prepa- vergonha de mocinho pretensioso.
ravam os discursos. Os logógrafos recebiam Viremos todos nós, os juízes, intimar
por suas peças. Havia também o socorro você a comparecer no tribunal!”59
da redação de amigos (synégoros). Réu e A resposta de Filoclêon demonstrava
autor podiam pedir ao tribunal que os um novo homem:
ajudassem na escolha de amigos com mais “Essa não! Me intimar! Isto é
facilidade de expressão. A autorização era velhacaria! Vocês sabem que já não
raramente recusada, exigindo-se apenas, no posso nem ouvir a palavra ‘proces-
caso do advogado amigo, que ele não so’? Não! Não! Agora tenho outros
cobrasse pelos serviços. passatempos; joguem fora as urnas!
É o caso da famosa defesa feita por Afinal, vocês irão embora? Onde está
Demóstenes, em prol de Ctesifonte, que o juiz? Que ele vá se enforcar!”60
propusera ao conselho uma moção em Aristófanes satirizou os tribunais do júri
favor de uma coroa de ouro para Demós- em Atenas, imaginando a figura de um
tenes. Ctesifonte foi processado por Ésqui- velho que fazia as vezes de juiz e que,
nes, e Demóstenes teve de defendê-lo. A trancado por seu filho, foi chamado a
defesa de Demóstenes torna-se sua pró- participar do tribunal pelos outros juízes,
pria defesa51. A defesa pessoal era comum simbolicamente equiparados às vespas. As
na época e o exemplo de Sócrates é recor- falas indicam uma visão cética e irreverente
rente, segundo Platão52, além dos comen- para com o mundo do Direito. Aristófanes
tários de Stone 53, de Mossé 54 e de René se propunha a divertir, e o final de suas
Kraus55 . Frise-se, pois, que o advogado comédias era sempre inusitado61.
surge do trabalho do logógrafo. Ao imaginar um juiz irresponsável,
Voltando ao texto, Filoclêon está preo- Aristófanes se adiantava quase dezesseis
cupado com seus rendimentos: séculos em um problema colocado por
“Você me leva a tomar uma deci- Mauro Cappelletti, que anotou:
são, mas ainda não disse quem vai “A exigência de limites à respon-
me pagar o meu salário de juiz.” 56 sabilidade judicial só pode ser escla-
Filoclêon julgará um cachorro acusado recida à luz do valor ou valores que
de roubar pedaço de queijo. O cachorro foi tais limites pretendam proteger”.62
absolvido... É que Filoclêon estava indis- Seria muito exigirmos criatividade de
posto, nem ele mesmo acreditava na Filoclêon. Foi o mesmo Cappelletti quem
absolvição, dizendo: observou:
“Me diga: ele foi mesmo absol- “Embora a interpretação judiciá-
vido?”57 ria seja e tenha sido sempre inevita-
Ele não aceitou o que fez. Perguntava: velmente em alguma medida criativa
“Como vou suportar a idéia de ter do direito, é um dado de fato que a
absolvido um acusado? Que será de maior intensificação da criatividade
mim? Deuses veneráveis! Me perdo- da função jurisdicional constitui
em! Fiz isso tudo sem querer; este típico fenômeno de nosso século.” 63
não é o meu hábito”.58 Ao invectivar um julgador corrupto,
Com o tempo, Filoclêon perdeu o gosto uma justiça de chicanas, Aristófanes
pelo tribunal. Embriagado, insultou um adiantou-se na imagem de Piero Cala-
juiz num banquete. A resposta veio em mandrei, para quem:
forma de bravata. Disse o convidado: “Aquele que entra num tribunal
“Você pode ter certeza de que trazendo na sua pasta — em vez de
amanhã pagará por tudo isso que está boas e honradas razões — mani-
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gâncias secretas, solicitações ocultas, 17
JARDÉ, A. La Grèce Antique et la vie grecque. p.
suspeitas sobre a corruptibilidade 199 e ss.
18
GERNET, Louis. Droit et institutions em Grèce
dos juízes e esperanças na sua par- Antique. p. 157 e ss.
cialidade, não se admire, ao aperce- 19
GLOTZ, Gustave. La cité grecque. p. 241 e ss.
ber-se de que em vez do templo 20
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia.
seguro da Justiça, se acha numa p. 201.
alucinante barraca de feira.” 64
21
PLUTARCO, Vidas paralelas. v. 1, p. 189.
22
KURY, Mário da Gama. Introdução em As
A perspectiva de Aristófanes, que se vespas, de Aristófanes. p. 7 – 8.
projeta nas civilizações mais recentes (e na 23
ARISTÓFANES, As vespas. p. 17–18.
nossa própria), sintetiza aquela herança 24
Idem, ibidem, p. 20.
helênica, que nos dá conta A. J. Toynbee65, 25
Idem, ibidem, p. 20.
cujo sentido cosmopolita também foi
26
Idem, ibidem, p. 21.
27
Idem, ibidem, p. 23.
apreendido por outros historiadores da 28
Idem, ibidem, p. 23.
cultura, como M. Rostovtzeff66 , Antonio 29
Idem, ibidem, p. 23.
Freire67 , André Bonnard 68 e A. R. Burn 69 . 30
Idem, ibidem, p. 25.
Nesse sentido, a comédia de Aristófanes 31
Idem, ibidem, p. 25.
ganha foros de universalidade ao traduzir
32
Idem, ibidem, p. 27.
33
Idem, ibidem, p. 28 – 29.
um sentimento comum, de desconfiança, 34
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplica-
para com certos aspectos da vida dos ção do Direito. p. 95.
tribunais. 35
ARISTÓFANES. As vespas. p. 30.
36
Idem, ibidem, p. 31.
37
Idem, ibidem, p. 33.
38
Idem, ibidem, p. 33.
Notas 39
Idem, ibidem, p. 35.
40
Idem, ibidem, p. 37.
1
TAPLIN, Oliver. Fogo grego. p. 3 – 4. 41
CROISET, Maurice. La civilisation de la Grèce
2
LIMA FILHO, Acacio Vaz de. O poder na Antique. p. 129.
Antigüidade: aspectos históricos e jurídicos. 42
ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. p. 77.
3
CROISET, Maurice. La civilisation de la Grèce 43
ARISTÓFANES. As vespas. p. 38.
Antique. p. 225 e ss. 44
Idem, ibidem, p. 38.
4
MAC DOWELL, Douglas M. The Law in Classical 45
Idem, ibidem, p. 40.
Athens, p. 41 e ss. 46
Idem, ibidem, p. 42.
5
HALL, Margaretha Debrunner. Even dogs have 47
Idem, ibidem, p. 45.
erinyes: sanctions in athenian practice and thinking, 48
Idem, ibidem, p. 48.
In: Greek Law in its political setting. p. 73 e ss. 49
Idem, ibidem, p. 48.
6
COHEN, David. Law, violence and community in 50
Idem, ibidem, p. 48.
Classical Athens. p. 119 e ss. 51
DEMÓSTENES. Oração à Coroa. p. 21 e ss.
7
CAREY, Cristopher. Trials from Classical 52
PLATON. Apología Socratus. I dikí tou Socratou.
Athens. p. 102 e ss. 53
STONE, I. F. O julgamento de Sócrates.
8
GAGARIN, Michael. Early Greek Law. p. 51 e ss. 54
MOSSÉ, Claude. O processo de Sócrates.
9
SEALEY, Raphael. Women and Law in Classical 55
KRAUS, René. Sócrates.
Greece. p. 12 e ss. 56
ARISTÓFANES. As vespas. p. 48.
10
MILLETT, Paul. Lending and borrowing in Ancient 57
Idem, ibidem, p. 63.
Athens. p. 24 e ss. 58
Idem, ibidem, p. 63.
11
MOSSÉ, Claude. Les institutions grecques. p. 59
Idem, ibidem, p. 76.
113 e ss. 60
Idem, ibidem, p. 76.
12
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