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AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

1a LIÇÃO: VIDA REFLETIDA EM SÓCRATES

Um dos aforismos mais famosos da história, “conhece-te a � mesmo”, estava


inscrito no pór�co de entrada do templo do deus Apolo, na cidade de Delfos
na Grécia, no século IV a. C. A frase foi compreendida como um oráculo (men-
sagem do deus) de Apolo para todas as pessoas. O deus Apolo era conhecido
por ser o deus da beleza, da perfeição e da razão. Por esse mo�vo, era um dos
deuses mais cultuados da Grécia An�ga. A razão, relacionada a Apolo, foi pri-
mordial para o desenvolvimento da filosofia. O caráter reflexivo da filosofia e
a busca pelo conhecimento e pela verdade encontram em Apolo um referen-
cial.

O filósofo Sócrates é quem tornou mais evidente essa ligação entre o deus
Apolo e a filosofia nascente. Foi Querofonte, seu amigo, que em uma visita ao
oráculo de Delfos, perguntou à pitonisa (sacerdo�sa que recebe a mensagem
dos deuses e transmite aos mortais) se havia no mundo alguém mais sábio que
Sócrates. A resposta do oráculo foi nega�va, pois não havia ninguém mais
sábio que Sócrates. Ao receber essa mensagem de Querofonte quando regres-
sou a Atenas, Sócrates passou sua vida tentando contestar o oráculo.

O filósofo não compreendeu como ele poderia ser o mais sábio. Julgava não
ser detentor de nenhum conhecimento. O filósofo considerava-se apenas uma
pessoa comum com o di�cil propósito de buscar o conhecimento verdadeiro.
Essa contestação teria levado Sócrates a proferir a famosa frase: “Só sei que
nada sei.”

Intrigado com a mensagem do oráculo, o filósofo procurou todos os sábios de


Atenas para que esses pudessem mostrar-lhe o que era o conhecimento. Só-
crates fazia-lhes perguntas sobre temas morais como a virtude, a coragem e a
jus�ça, na esperança de que essas pessoas, reconhecidas pela sabedoria, pu-
dessem ajudá-lo na busca pela verdade. No entanto, ele sen�u-se frustrado ao
perceber que essas autoridades gregas possuíam uma visão parcial da realida-
de, sendo capazes, apenas, de dar exemplos de alguém virtuoso, corajoso ou
justo.

A par�r desses encontros, Sócrates percebeu que esses sábios não passavam
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de pessoas com uma interpretação errada sobre o conhecimento, repletas de


preconceitos e falsas certezas. O filósofo compreendeu que a mensagem do
oráculo dizia respeito ao fato dele possuir um autoconhecimento e compreen-
der a sua própria ignorância, tornando-o mais sábio que os outros.

Sócrates dá origem ao período antropológico da filosofia grega. Ou seja, a


par�r da ideia de que o autoconhecimento, o conhecimento de si, é a base
para todos os outros conhecimentos sobre o mundo. Essa frase faz uma refe-
rência ao oráculo e sua inscrição “conhece-te a � mesmo”. O autoconhecimen-
to e a tomada de consciência da própria ignorância são as bases do método
socrá�co. Somente após abandonar os seus preconceitos que o sujeito está
apto para buscar o conhecimento verdadeiro.

A frase “Conhece-te a � mesmo”, portanto, não é de Sócrates. Ela estava inscri-


ta no templo de Apolo, onde ficava o Oráculo de Delfos. A versão de Sócrates,
presente na Apologia de Sócrates, de Platão é: “uma vida não examinada não
vale a pena ser vivida”. É um erro interpretar essa frase dizendo que os outros
modos de ser não merecem ser vividos, mas apenas os dedicados ao autoco-
nhecimento. O que Sócrates quis dizer é que independentemente do modo de
ser que escolhemos, precisamos nos perguntar: você sabe por que o esco-
lheu? O modo de vida, seja ele qual for, sem autoexame, não é para ser vivido.

A única vida que vale a pena viver é uma vida virtuosa. Só posso viver uma vida
virtuosa se souber o que é “bom” e o “mau”. Assim, moralidade e conheci-
mento estão ligados. Uma vida inques�onada é uma vida na ignorância. Logo,
a vida irrefle�da não vale a pena ser vivida.

Na primavera de 399 a.C., três cidadãos atenienses (o poeta Melito, o polí�co


Ânito e o orador Lícon) instauraram um processo contra Sócrates (que na
época �nha 70 anos). Condenado à morte e rodeado por um grupo de amigos
desolados, prepara-se para beber uma taça de cicuta. De acordo com Platão,
Sócrates foi acusado de “corromper a juventude” (ins�gava a juventude a se
ins�gar contra seus pais) e de “impiedade para com os deuses” (não adorava
os deuses). A primeira acusação é vaga e não nos são dados detalhes. O pró-
prio Sócrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado
apenas de ensinar os jovens a colocar questões. A segunda acusação também
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parece forçada. Sócrates não era an�rreligioso e no seu julgamento alegou ser
fiel nas suas prá�cas religiosas. Porém, aparentemente �nha opiniões que não
eram ortodoxas. Talvez o mo�vo do julgamento foi por “empurrá-las para as
ruas de Atenas” (daí o seu apelido: “a mosca de Atenas”).

Sócrates reagiu com serenidade absoluta. Durante o julgamento, lhe foi dada
a oportunidade de renunciar às suas ideias, mas ele preferiu manter-se fiel à
busca da verdade. Ele disse: “Enquanto eu puder respirar e exercer minhas
faculdades físicas e mentais, jamais deixarei de praticar a filosofia, de elucidar
a verdade e de exortar todos que cruzarem meu caminho a buscá-la [...]. Por-
tanto, senhores [..] seja eu absolvido ou não, saibam que não alterarei minha
conduta, mesmo que tenha de morrer cem vezes.”

Os julgamentos começavam com um discurso da acusação, seguido de outro,


proferido pela defesa. Em seguida, o júri, integrado por um número de pesso-
as que podia variar de duzentas a 2,5 mil, deveria indicar onde estava a verda-
de, marcando o veredito em cédulas ou votando com as mãos. Havia quinhen-
tos cidadãos no júri no dia do julgamento de Sócrates. Era chegada a hora de o
Júri dos Quinhentos tomar uma decisão. Depois de uma breve deliberação,
220 jurados decidiram que Sócrates não era culpado; 280 optaram em votar
que sim (56%).

Uma opinião medíocre emi�da com autoridade, embora sem provas de como
foi formada, pode provisoriamente carregar todo o peso de uma opinião abali-
zada. Os jurados que ocupavam os bancos do Tribunal não eram especialistas.
Havia velhos e feridos de guerra, que buscavam uma renda extra (três óbolos
por dia: quan�a menor que a recebida por um trabalhador braçal. Os únicos
requisitos eram cidadania, sanidade mental (= andar em linha reta e saber
dizer o próprio nome) e ausência de dívidas. Os membros do júri cochilavam
durante os julgamentos e não �nham qualquer experiência em casos seme-
lhantes ou leis. O júri encarregado de julgar Sócrates era movido por violentos
preconceitos: eram influenciados pela caricatura de Aristófanes e achavam
que o filósofo exercera alguma influência nos acontecimentos desastrosos
(Guerra do Peloponeso) que haviam assolado a cidade.

Sócrates percebeu que não �nha chance. Ele poderia ter renunciado à sua
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filosofia e salvado sua vida (Galileu fez isso). O final do discurso do filósofo foi
emocionante: “Se os jurados me condenarem à morte, não encontrarão com
facilidade alguém capaz de me substituir. O fato é que, se é que posso me
expressar de uma maneira um tanto cômica, fui literalmente ligado por Deus à
nossa cidade, como se ela fosse uma enorme égua puro-sangue que, devido ao
seu tamanho, apresentasse uma propensão à preguiça e precisasse do estímu-
lo de um mosquito [...] Se os senhores seguirem meu conselho, poupar-me-ão
a vida. No entanto, suspeito de que dentro em breve irão despertar do torpor
em que se encontram e, aborrecidos, seguirão o conselho de Ânito e desfecha-
rão sobre mim o golpe final; em seguida, voltarão a dormir.”

Quando o juiz convocou uma segunda votação para o veredito final, 360 mem-
bros do júri votaram a favor da pena de morte. Após a sua morte, os ânimos se
inverteram e eles perceberam o que fizeram: mataram o grande filósofo Sócra-
tes. Claro que a impopularidade não é sinônimo de verdade. Mas algo fica:
nem sempre a opinião pública está certa. Precisamos seguir sim os ditames da
razão.

É comum escolhermos a simpa�a em detrimento da sinceridade. Não ques�o-


namos publicamente as ideias adotadas pela maioria. Buscamos a aprovação
dos outros e desejamos sempre causar uma boa impressão. Sócrates não
havia se curvado perante a impopularidade e a condenação do Estado. Não se
retratou ou renunciou às suas ideias por ter sido alvo de reclamações. A maté-
ria da qual o filósofo grego era o símbolo supremo parecia ser um convite a
adotar uma prá�ca ao mesmo tempo profunda e risível: tornar-se sábio por
intermédio da filosofia.

A frase “conhece-te a � mesmo”, do Oráculo de Delfos ou a frase “uma vida


não examinada não vale a pena ser vivida”, da Apologia de Sócrates, nos convi-
da ao autoexame do nosso modo de vida.

Pensar em “modo de vida” é pensar “numa vida que vale a pena ser vivida”.
Que vida vale a pena para você? Não existe um ideal único. O que há é um
palco de modos de vida. Para muitos, pode ser uma vida de engajamento (fa-
mília, amigos, ideais); para outros, uma vida egoísta, voltada apenas para a
carreira; para outros ainda, ter uma vida dentro de uma zona de conforto (aco-
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modado) etc.

Esta�s�camente, se �vermos sonhos muito elevados e distantes de nossas po-


tencialidades, não é uma boa dica correr atrás deles, porque na maioria das
vezes não dá certo. Vale a pena quando não é pelo sucesso, mas pelo caminho,
pela vocação (a maioria das pessoas não tem vocação, mas algum talento).
Vale a pena correr atrás quando há congruência nos seis elementos que
iremos analisar e quando você está disposto a pagar o preço.

A vida vale a pena quando você disser: “eu não trocaria de lugar com nin-
guém”. Mas se trocaria, você deve pensar: “o que eu devo fazer para poder
dizer: ‘não vou trocar de lugar com ninguém’?”

É di�cil medir a vida que vale a pena (a felicidade), pois ela depende de um
conjunto de indicadores. Há três grupos de pessoas: há um pequeno grupo de
pessoas que tem muita sorte: tudo dá certo na vida delas; há um outro grupo
que tem muito azar: tudo dá errado; mas a maioria das pessoas não está
nesses extremos: as pesquisas em psicologia posi�va e neurociência indicam
que para a maioria das pessoas há dois picos de felicidade: dos 12 aos 18 anos
e dos 50 aos 70 anos; e que entre os 20 aos 40 anos, eles tem um pico de an-
siedade. Para essas pessoas, grande parte de sua felicidade (bem-estar) é uma
conquista, uma aprendizagem.

A felicidade possível (e não para os “sortudos”, pois esses nem precisam se


preocupar com isso) ocorre quando as seis dimensões abaixo tem um grau
mais elevada de combinações (A Ciência da Felicidade, de Sonja Lyubomirsky;
O que nos faz felizes: o futuro nem sempre é o que imaginamos, de Daniel Gil-
bert; Rápido e devagar: Duas formas de pensar, de Daniel Kahneman...):

1. Biologia (nossas caracterís�cas que vem de fábrica), como a aparência �sica


(bonito ou feio, alto ou baixo, loiro ou moreno: a par�r de cada cultura) e o
temperamento, ou seja, como sou internamente (extrover�do ou introver�-
do). Assim como há golfinho há tubarões... Assim também há pessoas com
caracterís�cas para serem gestores, outros para serem atletas, outros monges,
outros professores... Querer que o monge se torne um triatleta pode gerar
incongruência. Você pode fazer alguma coisa em relação a isso, mas na sua
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maioria é sorte ou azar de nascimento.

2. Formação da personalidade (aprendizagem): a criança tem 1) experiências


pré-verbais (anterior à fala; ex.: se há amor ou comunicação no ambiente); 2)
formação de crenças centrais de si, do outro e do mundo (crenças arcaicas,
mas já verbais; ex.: “eu não presto / eu presto”; “o outro é hos�l / o outro não
é hos�l”; “o mundo é acolhedor / o mundo não é acolhedor”); 3) mecanismos
de defesa (ex.: “sou �mido, numa família agressiva e como resposta me torno
inseguro”; “sou agressivo, numa família agressiva e como resposta me torno
mais agressivo ainda”).

3. Ideais de si / valores (aprendizagem): há certos “ideais de si” que criamos a


par�r da cultura que estamos inseridos (até os anos 50, o ideal era dar conta
das obrigações e dos ciclos de vida; nos anos 60 e 70, o ideal era ser feliz; nos
anos 80, surge com força a ideia do sucesso); quando não os a�ngimos, nos
sen�mos mal. A saída é “trocar os ideais”, mas isso não é nada simples, porque
vemos o mundo a par�r dos ideias de si, dos valores. Posso ser infeliz porque
tenho certos “ideias de eu” que são de um “falso eu”. Somente trocando esses
ideias, me torno mais feliz.

4. Hábitos (aprendizagem): comportamentos adquiridos através da repe�ção,


que são realizados frequentemente sem a necessidade de consciência ou
esforço deliberado. Eles podem influenciar significa�vamente nossas ações,
pensamentos e es�lo de vida. Cul�ve hábitos bons e saudáveis.

5. Habilidades (aprendizagem): competências adquiridas através da prá�ca e


do aprendizado, que permitem a uma pessoa realizar tarefas. Elas podem ser
adquiridas e aprimoradas ao longo do tempo. Cul�ve habilidades que torna-
rão sua vida melhor.

6. Ambiente (local em que as coisas acontecem): “Água? Que diabo é isso?”


(David Foster Wallace)

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se


inú�l, pergunto-me: se eu fosse eu e �vesse um papel importante para guar-
dar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressio-
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nada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária,
e começo a pensar. Diria melhor, sen�r. (Clarice Lispector, A descoberta do
mundo, 1984). Quem é você? Pense nisso sem pensar no seu nome, estudo,
hobbie, trabalho, nacionalidade, etnia e gênero!

2a LIÇÃO: DICOTOMIA DO CONTROLE EM EPICTETO

O texto que segue é composto de excertos da obra Para entender o estoicismo,


de M. J. V. Na�a. É comum associar o estoicismo com pessoas frias e sem emo-
ções. O termo “estoico” é usado para descrever o indivíduo que mantém pleno
controle diante da adversidade. Isso está errado. Se nos limitarmos a reprimir
as emoções, contendo nossa agitação interior sem lidar de verdade com
nossos problemas interiores, o resultado pode ser devastador. A filosofia estoi-
ca não é nada disso. Ser estoico não é transformar-se em uma estátua insensí-
vel.

Outro equívoco diz respeito à passividade. Pode parecer paradoxal, mas a


aceitação estoica nos dá a força necessária para superar os desafios. A passivi-
dade tem origem com mais frequência no medo que na aceitação. Quando
uma pessoa rude faz exigências de forma agressiva, quantas vezes você cede,
preocupado com a possibilidade de que tentar se defender tornaria as coisas
ainda piores? O estoico aceita o fato de que a pessoa na frente dele está sendo
hos�l, mas é capaz de escolher a forma como vai responder a ela. Se as exigên-
cias da pessoa com uma a�tude hos�l são injustas, o estoico vai trabalhar pela
jus�ça. O estoicismo nos ensina a ter uma clareza de visão que nos permite
fazer as melhores escolhas possíveis. Conforme você aprende a confiar em sua
capacidade de enfrentar os desafios, a inação e a indecisão deixam de ser obs-
táculos. Quando concentramos nossa atenção no que podemos controlar,
nossas ações se tornam bem direcionadas e eficientes.

Os estoicos acreditavam que a razão é o que nos caracteriza como seres huma-
nos. Assim, devemos nos guiar racionalmente, buscando nos tornar sábios,
livres e felizes. Aqui está o problema: nem sempre isso ocorre. Somos levados
por emoções. E essas emoções são chamadas pelos estoicos de paixão.
Páthos, do grego, significa: estado perturbado da alma, emoção violenta.
Tomados pelo páthos, não pensamos direito. Os estoicos defendiam a apa�a
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(a + páthos): não ser escravo de emoções violentas. Não significa: não sen�r
nada ou não ter emoções. Somos humanos. Temos emoções. Significa: ter as
emoções e a razão em harmonia, de modo que você não perca a cabeça com
os acontecimentos do seu dia a dia. Ser estoico é viver em harmonia consigo,
tendo emoções, pensamentos e ações alinhadas.

Um princípio básico do Estoicismo de Epicteto é a Dicotomia do Controle:


saber diferenciar o que podemos controlar (nosso estado mental: desejos e
aversões, impulsos e opiniões) daquilo que não podemos (as coisas externas).
Todas as prá�cas estoicas requerem que separemos o que controlamos de
tudo o mais, e “tudo o mais” é muita coisa! Epicteto lista quatro categorias de
elementos que controlamos diretamente: nossas opiniões sobre a vida, o que
buscamos na vida, o que queremos e o que não queremos. Tudo mais está fora
de seu controle e cai na categoria do indiferente. Você deve se concentrar nas
coisas que pode controlar, de forma que as suas ações sejam produ�vas e você
deve parar de perder tempo com coisas que não tem o poder de mudar. Ao
fazer isso, desenvolvemos uma perspec�va mental saudável.

Par�ndo de um ponto de vista estoico, observe a lista abaixo e defina o que


está sob seu controle e o que está fora de seu controle:
1) Você está preso em um engarrafamento (não controla).
2) Você está com raiva porque está atrasado para o trabalho (controla).
3) Seu amigo está triste por causa de uma separação recente (não controla).
4) Você está ansioso por causa de uma palestra que terá de fazer (controla).
5) Seu filho está doente (não controla).
6) Ocorreu uma tragédia em sua comunidade (não controla).
7) Você se sente culpado por algo que fez ontem (controla).
8) Seu voo está atrasado (não controla).
9) Você está indignado com algo que acabou de ler (controla).
10) Seu braço está quebrado (não controla).

Marco Aurélio, em Meditações (7:54) diz: “em todos os lugares, a cada mo-
mento, você tem a opção: contentar-se com o que te acontece, tratar os
outros com jus�ça e lidar com tuas ideias para que nada de irracional entre de
forma sorrateira.” Uma das grandes lições do estoicismo é nos oferecer ferra-
mentas e treinamento para trabalharmos a nossa mente. Tendo uma vida
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mental saudável, nos tornamos mais fortes para enfrentarmos os problemas


co�dianos. Na citação acima de Marco Aurélio, há as três disciplinas estoicas:

1) Disciplina do Desejo (querendo o que você tem):

Epicteto achava que a prá�ca mais importante para um novo estoico era a Dis-
ciplina do Desejo. Aconselhava seus alunos a se concentrarem nesta área,
porque o avanço futuro do estoicismo requeria a a�tude saudável que emergi-
ria da prá�ca da Disciplina do Desejo. O desejo é a expansão de sua mente
para algo que você quer; trata-se do oposto da aversão (ou medo), que é uma
contração de algo. Epicteto explicou a questão do controle do desejo e da
aversão com uma verdade simples: se você nunca conseguir o que quer, nunca
será feliz e, caso se depare com aquilo que está tentando evitar, perderá qual-
quer felicidade que �ver. Para desenvolver uma felicidade consistente, você
deve treinar a si mesmo para desejar apenas o que sempre pode ter e temer
apenas o que sempre pode evitar. A a�tude estoica envolve a compreensão do
que podemos e do que não podemos controlar. Para administrar nossos dese-
jos e nossas aversões, devemos nos concentrar no presente. As coisas que
controlamos estão aqui, neste momento. Como disse Sêneca: “Duas coisas
devem ser eliminadas: o medo do futuro e a memória de sofrimentos passa-
dos. O passado já não me diz respeito, enquanto o futuro ainda não me diz res-
peito”. Muitos de nossos desejos e medos existem lá no futuro, e ainda assim
encontram uma maneira de nos incomodar por meio dos nossos pensamentos
presentes. Logo você vai aprender a “cercar” o presente para que possa con-
centrar sua energia no aqui e agora. Disciplinar o desejo também significa
aprender a aceitar o momento presente. Se queremos agir de forma decidida
em um determinado momento, temos de reagir ao que se encontra diante de
nós. Desejar que as coisas fossem diferentes do que são é um desperdício de
energia. A expressão Amor Fa�, amor ao des�no, vem de um filósofo mais mo-
derno, Nietzsche. A ideia, no entanto, permeia a filosofia estoica. Se somos
capazes de aceitar o mundo como ele é, não desejaremos coisas que nunca
acontecerão. Isso não significa desencorajar a pessoa a lutar pelo melhor;
afinal, como teríamos a virtude coragem se assim fosse? Mas se não consegui-
mos chegar a um acordo sobre o que está acontecendo diante de nós, nossa
felicidade será sempre descon�nuada. Colocar sua vida pessoal em um con-
texto mais amplo, até mesmo universal, pode ajudar a conter o pensamento
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nega�vo, pondo seus desafios em perspec�va. Eis algumas prá�cas que vêm
da Disciplina do Desejo:

i) isole o presente: “Então lembre-se de que nem o passado nem o futuro têm
poder sobre você. Somente o presente tem – e mesmo isso pode ser minimi-
zado. Apenas marque seus limites.” (Marco Aurélio, em Meditações) “Marque
seus limites” faz referência a uma prá�ca chamada isolar o presente. Ela pro-
porciona um meio de aliviar o estresse, o pensamento catastrófico e outras an-
siedades. Para fazer isso, basta que você se permita habitar no presente, dis-
tanciando-se do futuro e do passado.

ii) oportunidade infinita: quando seus desejos e suas aversões são coisas ou
situações, você vai pensar em momentos que não proporcionam o que você
quer ou momentos que o confrontam com coisas que você evitaria como
“ruins”. Se parar de se concentrar em desfechos – mas desejar ser o que você
tem de melhor em cada momento – vai compreender que todas as situações
oferecem oportunidades para pra�car a virtude. Quando enfrentar um desa-
fio, pergunte a si mesmo: como posso me beneficiar disso? A que virtude
posso recorrer para dar conta deste momento?

iii) faça uma pausa e compare: todos temos prazeres que são pouco saudáveis
para nós. Pode ser di�cil resis�r ao que desejamos num determinado momen-
to. Às vezes podemos simplesmente evitar a situação em questão, para não
ficarmos tentados, mas os estoicos sempre nos lembram de que não podemos
entregar nossa felicidade ao acaso. Vamos enfrentar situações em que precisa-
remos tomar uma decisão. É aí que fazemos uma pausa e comparamos. O pri-
meiro passo é encontrar um modo de retardar nossa escolha. Não podemos
nos afastar por um momento? Não podemos dar uma parada para respirar?
Dê a si mesmo tempo para pensar. Compare, em seguida, duas possibilidades:
optar pelo prazer versus optar pela excelência (virtude). Lembre-se de que o
prazer inclui o momento durante o qual você o desfruta mas também seus
sen�mentos sobre si mesmo após o fato. Essa prá�ca irá ajudá-lo a dominar os
impulsos iniciais e a tomar uma decisão mais fundamentada.

iv) a visão de cima: sente-se em um lugar confortável, feche os olhos e imagine


como é ver a si mesmo olhando de cima. Sempre olhando para si mesmo,
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recue e veja seu bairro. Recue mais e veja sua cidade, seu país, o mundo, talvez
até o Universo. Enquanto faz isso, exponha, em cada estágio, seus desafios
com relação ao que vê. Repare que há outros indivíduos que também estão
enfrentando desafios. Constate que o mundo não está tão concentrado em
você a ponto de fazer que seus erros sejam vistos por todos. Deixe que, por
ora, seus problemas desapareçam na distância. Encontre paz no mundo e em
sua pequena parte dele.

2) Disciplina da Ação (o que você faz):

Temos de tomar decisões e assumir alguns riscos nesta vida, mas agir não
garante que venhamos a obter o que queremos. Como podemos, então, nos
sen�r em harmonia se o fracasso é uma possibilidade?

i) cláusula de reserva: a cláusula de reserva de Epicteto é em si um an�doto


para a obsessão de controlar tudo. “Hoje à tarde vou �rar as ervas daninhas do
meu jardim, se não houver nada que impeça isso de acontecer.” Esse final de
frase, “se não houver nada que impeça isso de acontecer”, é poderoso.

ii) duas missões: essa a�tude estoica permite que você desfrute a vida, com
seus desafios e tudo o mais, e con�nue feliz. Por ex.: pense no ato de guiar um
carro. Pode haver trânsito pesado, você pode levar uma fechada ou errar
numa conversão. Lembre-se de que você quer dirigir, mas também quer con�-
nuar vivendo a vida contente. Sempre que es�ver pronto para fazer alguma
coisa, pense no que vai enfrentar e que obstáculos novos poderão surgir. Adi-
cione, então, uma frase a seu obje�vo maior: “Também quero estar contente”,
“Quero estar em harmonia com a vida” ou “Quero proteger o que tenho de
melhor”.

iii) duas alças: “Tudo tem duas alças: uma pela qual pode ser carregado e outra
pela qual não pode. Se seu irmão age de maneira injusta, não tente controlar
a situação usando a alça da injus�ça, pois a situação não poderá ser conduzida
por ela; procure a outra alça, sabendo que ele é seu irmão, que é parte da sua
família e que você conduzirá tudo de modo sa�sfatório.” (Epicteto, Manual,
43). A metáfora das duas alças irá lembrá-lo de que o modo de abordagem de
um desafio é uma escolha. No exemplo de Epicteto, você pode retribuir injus-
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�ça com injus�ça ou pode optar por colocar em prá�ca o que tem de melhor.
Isso é sempre uma escolha sua. Em qualquer situação, em par�cular nas situa-
ções desafiadoras, lembre-se de que há duas maneiras de interagir e escolha a
melhor entre elas.

iv) orientação ma�nal e revisão noturna: sobre a orientação ma�nal, Marco


Aurélio, em Meditações (2:1), disse: “Comece sua manhã com esses pensa-
mentos e, quando se sen�r esgotado, lembre-se novamente deles. ‘Quando
acordar pela manhã, diga a si mesmo: as pessoas com quem vou me relacionar
no dia de hoje serão introme�das, ingratas, arrogantes, desonestas, ciumentas
e mal-humoradas. Elas são assim porque não conseguem dis�nguir o bem do
mal. Mas eu vi a beleza do bem e a feiura do mal e percebi que o malfeitor tem
uma natureza parecida com a minha – não vinda do mesmo sangue e nasci-
mento, mas da mesma mente, e possuindo uma parcela do divino. E assim
nenhum deles pode me ferir. Nenhum pode me envolver na feiura. Nem posso
eu sen�r raiva desse meu parente ou odiá-lo. Nascemos para trabalhar juntos
como pés, mãos e olhos, como as duas arcadas dentárias, a superior e a infe-
rior. Obstruir-nos uns aos outros não é natural. Sen�r raiva de alguém, virar-
-lhe as costas: essas coisas não são naturais.’” A revisão noturna permite que
eu avalie de forma honesta e me ajuda a melhorar a cada dia.

3) Disciplina do Consen�mento (aceitando a si próprio):

“As pessoas não se sentem incomodadas com as coisas, mas, sim, com a opi-
nião que têm sobre elas.” (Epicteto, Manual, 5). A Disciplina do Consen�mento
treina você para prestar atenção ao seu processo de pensamento e cul�var
uma mente saudável. Consen�mento, no estoicismo, significa dizer sim às
informações que recebemos. O estoicismo pede que você pare e pense sobre
suas respostas à vida, em vez de permi�r que o ins�nto e o hábito as contro-
lem. Há uma história sobre um professor estoico (menção a Zenão de Cí�o)
que estava viajando de barco quando uma enorme tempestade ameaçou virar
a embarcação e afogar os tripulantes. Um dos passageiros notou que o estoico
ficou pálido, assim como todo mundo, mas, ao contrário dos demais, não mos-
trava medo. Depois que a tempestade acabou, o passageiro ques�onou o
estoico. “Parecia que você estava assustado, vi seu rosto ficar pálido. Isso não
vai contra o que ensina?” O estoico explicou que nossas reações iniciais não
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dependem de nós, são reações naturais a um evento repen�no. O que o pro-


fessor aprendera com o estoicismo fora a aceitação do fato de que uma tem-
pestade estava acontecendo. Ele nunca admi�a outros pensamentos, como
“isso é perigoso” ou “vamos afundar”, preferindo se concentrar em manter
todos a salvo. Aprender a guiar nosso processo de pensamento dessa maneira
vai nos permi�r colocar as tensões de lado e focar nossa energia naquilo que
podemos controlar. A Disciplina do Consen�mento requer sua atenção. Os
estoicos veem o consen�mento como um processo de três etapas: primeiro,
algo acontece com você (impressão inicial); em seguida, você reconhece o que
aconteceu (representação obje�va); finalmente, você acrescenta sua própria
visão sobre os acontecimentos (juízo de valor). É um processo simples, mas
que, sem treinamento, muitas vezes nos desorienta.

i) você é apenas uma aparência: “Você é apenas uma aparência, e de modo


algum é aquilo que parecer ser.” Essa frase nos foi dada por Epicteto especifi-
camente para ajudar com a Disciplina do Consen�mento. Sempre que um juízo
de valor irresis�vel se forma em sua mente, faça uma pausa e repita essa frase.
Diga não ao juízo de valor até que o tenha examinado melhor.

ii) pondo entre parênteses: outro método de aplicação da Disciplina do Con-


sen�mento é pôr entre parênteses a impressão inicial, o que significa separá-
-la de qualquer outra coisa com o obje�vo de suspender o julgamento. Olhe
com clareza para o evento, admita o que ele aparenta ser. Depois disso, você
pode “dizer mais alguma coisa”. Faça perguntas estoicas básicas como: “Está
sob meu controle?”. Isso permite uma orientação mais clara e um julgamento
mais fundamentado.

iii) isole a si mesmo: o exercício é similar ao “isole o presente” da Disciplina do


Desejo. Agora estamos trazendo à mente o que é mais importante sobre nós –
nossa capacidade de controlar nossos pensamentos, ações, desejos e aver-
sões. Separe mentalmente este seu aspecto do resto do mundo, lembrando-se
de que só esta parte de você está plenamente sob seu controle. Pare um mo-
mento e pense apenas nesta parte de você; sua vontade, que direciona seus
pensamentos e ações. Liberte-se de influências externas para que possa esco-
lher a melhor ação para você.
14
AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

Acabamos de ver as ferramentas úteis para ajudá-lo a realizar o trabalho de


levar a vida. Agora você vai descobrir o �po de trabalho que está des�nado a
fazer. Que �po de vida vale a pena para você? Ao desvendarmos a virtude,
você começará a visualizar o que significa a excelência pessoal para você.

A virtude significa excelência, o melhor exemplo de quem você pode ser. Os


estoicos �nham muitas metáforas para descrevê-la. Uma de minhas favoritas
vem de Cícero, que disse que os estoicos se referiam à virtude como “amadu-
recimento”. Frutas maduras são frutas no seu melhor momento, mas a fruta só
fica madura por pouco tempo. Amadurecimento é uma metáfora notável para
a visão estoica da virtude. A virtude moral, como o amadurecimento, não é
algo que pode ser depositado em uma conta bancária – você não pode aplicar
uma virtude na segunda-feira e re�rá-la mais tarde naquela semana. Só pode-
mos ser virtuosos, ou excelentes, em cada momento presente. No minuto
seguinte, podemos a�ngir de novo a excelência ou podemos fracassar. Temos
infinitas oportunidades para exercer a virtude.
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AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

Não esqueça: sua cabeça é sua - e de mais ninguém. Se você se concentra em


pensamentos saudáveis e desenvolve opiniões equilibradas sobre sua situa-
ção, cul�vará emoções posi�vas e despertando um entusiasmo duradouro
para viver sua vida da melhor maneira. Encarará a nega�vidade pelo que ela
de fato é: um desperdício de energia. Você vai aprender a não permi�r mais
que o medo, a raiva e outras ansiedades cresçam dentro de você. Vai descobrir
que, além de ser capaz de enfrentar desafios, muitas vezes você vai achá-los
diver�dos. Quando nos movemos nesta direção, o trabalho de sermos nós
mesmos se tornará uma alegria.

3a LIÇÃO: SAPERE AUDE EM KANT

“Sapere aude” é um lema la�no que significa “atreva-se a conhecer” ou “ouse


saber”; também é vagamente traduzido como “ouse ser sábio”, ou ainda como
“tenha coragem de pensar por si mesmo”. A u�lização original está na Epistu-
larum liber primus de Horácio, livro 1, carta 2, verso 40: “Aquele que começou
já tem metade do caminho andado: ouse saber”. A frase “Sapere aude” tor-
nou-se associada à Era do Iluminismo, durante os séculos XVII e XVIII, depois
que Immanuel Kant a usou no ensaio Resposta à pergunta: que é Esclareci-
mento? Kant reivindicou a frase “Sapere aude” como um lema do período do
Iluminismo e usou-a para desenvolver suas teorias da aplicação da Razão na
esfera pública dos assuntos humanos.

No início da obra Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? (1783), Kant sin-


te�za que esclarecimento (Aufklärung) seria “a saída do homem de sua meno-
ridade, da qual ele próprio é culpado”, menoridade essa que seria a própria
incapacidade do indivíduo de usar o seu entendimento sem ser auxiliado por
outra pessoa. “O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa
dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e cora-
gem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”.

Para o esclarecimento, o homem teria que ser corajoso e fazer uso de seu pró-
prio entendimento. Eis a famosa frase que Kant emprega: Sapere Aude (“atre-
va-se a saber”, “ouse saber”). Ou seja, a razão sendo um exercício da autono-
mia, e sendo esta autonomia livre. A�ngir a “maioridade” seria pra�car o uso
livre da razão. Mesmo mostrando os bene�cios de se pra�car o uso livre da
16
AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

razão em busca do esclarecimento, Kant explicita que alguns passarão pela


“menoridade” em algum momento de sua vida e muitos ali permanecerão por
oportunismo, medo, preguiça e covardia.

“É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendi-
mento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um método que
por mim decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso esforçar-me
eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente
pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.”

“É di�cil portanto para um homem em par�cular desvencilhar-se da menori-


dade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor
a ela, sendo por ora realmente incapaz de u�lizar seu próprio entendimento,
porque nunca o deixaram fazer a tenta�va de assim proceder. Preceitos e fór-
mulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de
seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles
se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estrei-
to fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito
poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito,
emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.”

As principais causas que impedem o esclarecimento estão no comodismo, na


preguiça e na covardia. Isto está tão enraizado em sua vida, em seu co�diano,
em todos seus trabalhos, que se torna natural, cômodo. Por isso é que os
homens não sabem como lidar com a liberdade quando a têm e os impede de
u�lizar seu entendimento. Há pessoas, no entanto, que são o contrário às pes-
soas preguiçosas e covardes. São aqueles “indivíduos capazes de pensamento
próprio”. Esses indivíduos devem espalhar o espírito de avaliação racional de
cada homem. Todavia, existem pessoas que acabam �rando proveito da situa-
ção, obrigando as demais pessoas a viverem sob seu domínio.

O “não” uso da razão em busca do Aufklärung abriria caminho para que outro
tomasse as rédeas da vida do indivíduo, manipulando-o (embora com seu pró-
prio consen�mento), mas impedindo-o (por preguiça ou inação) de pensar e
se conduzir por si mesmo. Neste sen�do, sapere aude seria o conselho de Kant
para este indivíduo. Sair da inação (menoridade) e conduzir a sua vida em
17
AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

busca da maioridade, mesmo que sofra atropelos no início de seu caminhar.


Cair e levante-se sem se deixar in�midar.

A verdadeira revolução deve ser a mudança de pensamento das pessoas. Essa


mudança traz bene�cios muito maiores que a de uma revolução polí�ca, em
que apenas se trocam algumas pessoas do poder, mas a dominação con�nua.
Uma revolução assim, que derruba um governo despó�co, “nunca produzirá a
verdadeira reforma do modo de pensar”.

O esclarecimento anda de mãos dadas com a liberdade, ele exige liberdade,


embora a limitação da liberdade seja uma constante, e por isso, existe tanta
escassez de esclarecimento. O ques�onar obedecendo não conduz ao esclare-
cimento. Deste modo, para se chegar ao Aufklärung, faz-se necessário o uso
público da razão (uso com liberdade), já que o uso privado é limitado (e usado
sob constrangimento). Uso público da razão: uso com liberdade, ilimitado, au-
tônomo, beneficia toda a sociedade. Uso privado da razão: uso limitado, sob
constrangimento, vinculado às paixões, heterônomo, não a�nge o bem
comum (mais restrito). Esse uso, apesar de ser limitado, pode ajudar conside-
ravelmente no progresso do esclarecimento.

“Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele
que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do
mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua
razão em um certo cargo público ou função a ele confiado.”

Kant constrói o conceito de direito individual por meio do uso público da razão
pela possibilidade do uso da razão livre (direito de livre pensar). Embora o
ques�onamento com obediência não conduza ao esclarecimento, esta obedi-
ência faz-se necessária para o convívio em sociedade, em especial, quando
eivada de uma obrigatoriedade hierárquica.

“Seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem,
quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência
ou da u�lidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas razoavelmente, não se lhe
pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre
os erros do serviço militar, e expor essas observações ao seu público para que
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AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

as julgue. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu


sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com
o credo da Igreja a que serve, pois foi admi�do com essa condição. Mas, en-
quanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conheci-
mento ao público de todas as suas ideias cuidadosamente examinadas e bem-
-intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas pro-
postas no sen�do da melhor ins�tuição da essência da religião e da Igreja.”

Sendo assim, para Kant é salutar que se obedeça, porém, é necessário que
também se faça o uso público da razão, pois somente desta forma, o esclareci-
mento é alcançado, ou seja, um homem pode pessoalmente e por algum
tempo apenas adiar este esclarecimento, mas “renunciar a ele, quer para si
mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés
os sagrados direitos da humanidade”.

Kant pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida?” E responde: “não,


vivemos em uma época de esclarecimento (Aufklärung). Falta ainda muito
para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já
numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa
sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem
serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes
foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento (Aufklärung)
geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados.
Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento”.

A época relatada por Kant é um período apenas de passagem, não sendo ainda
“esclarecida”, mas em processo de “esclarecimento”. O texto de Kant é essa
explicação do esclarecimento. Com ele e nele, temos a ansiedade de buscar,
inspirado por Hume, “acordar do sonho dogmá�co” em que vivemos. Só assim
é que o homem se redimirá de sua culpa e sairá de sua tão deplorável menori-
dade. Kant constrói o conceito de direito individual por meio do uso público da
razão pela possibilidade do uso da razão livre (direito de livre pensar).

Para concluir, cito Harari e a importância dos 4 Cs. Diz ele: “Muitos especialis-
tas em pedagogia alegam que as escolas deveriam passar a ensinar “os quatro
19
AUTENTICIDADE E APRIMORAMENTO PESSOAL

Cs” – cri�cidade (pensamento crí�co), comunicação, colaboração e cria�vida-


de. Num sen�do mais amplo, as escolas deveriam minimizar habilidade técni-
cas e enfa�zar habilidades para propósitos genéricos na vida. O mais impor-
tante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas
novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhe são familia-
res. Para poder acompanhar o mundo de 2050 você vai precisar não só inven-
tar novas ideias e produtos – acima de tudo, vai precisar reinventar a você
mesmo várias e várias vezes.” (Harari, 21 lições para o século 21, cap. 19 in
Cathy Davidson).

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