Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
https://lightnovelbrasil.com/the-beginning-after-the-end-capitulo-400/
CAERA DENOIR
Os passos suaves da Foice Seris não emitiam som algum sobre os degraus de
pedra à minha frente, e os de Cylrit deixavam um leve som abafado para trás,
fazendo os meus soarem como tambores de guerra na longa e sinuosa escada
sob sua propriedade de Sehz-Clar.
As paredes eram de uma pedra cinza escura, o que fazia a escadaria estreita
parecer ainda mais apertada e claustrofóbica. Era como se eu pudesse sentir o
peso do penhasco pairando acima de nós, toneladas e toneladas de rocha, solo
e arenito, todos apoiados no topo dessas escadas impossivelmente longas e
apertadas…
“Seu silêncio me surpreende”, disse a Foice Seris por cima do ombro. “Tenho
certeza de que tem perguntas.”
“Muitas.”
Apesar de não ter nada além de perguntas girando feito um bando de halcyons
na minha cabeça desde o Victoriad, as omiti, e achei difícil desembaraçar uma
da outra para perguntar a eles.
O que é que preciso saber? Quais das minhas perguntas são mais do que mera
curiosidade?
Mordi o lábio ao considerar esse fato. Era a resposta que esperava depois de
tudo o que meu sangue descobriu, mas só serviu para confundir ainda mais
minhas muitas outras perguntas.
“Sim.”
“Isso não coloca você e todos nós, em perigo?” Não era de fato o que pretendia
saber, porém escapou com um tom de descrença.
“Sim.”
Mal consegui conter um suspiro cansado. “Você vai responder a alguma das
minhas perguntas com mais de uma palavra?”
Atrás de mim, Cylrit sufocou uma risada, e lhe lancei um olhar aborrecido.
Apesar deste diálogo não estar oferecendo quase nenhuma informação nova,
era claro que, apesar de suas provocações, ela não tinha intenção alguma de
dizer tudo ainda.
Só podia assumir que eu estava presente em Sehz-Clar por uma razão, e então
escolhi ficar quieta e paciente até que ela revelasse o propósito.
Tubos de vidro tão finos quanto meu dedo mindinho deixavam o artefato em
uma dúzia de lugares diferentes; alguns se conectando a artefatos adjacentes
idênticos, outros correndo ao teto ou paredes; alguns indo ao longo de uma
parede em direção a um painel de dispositivos no meio da sala: medidores,
painéis de projeção e cristais de mana, cujo propósito era um mistério para
mim.
“Sim, é exatamente isso” disse sem uma gota de orgulho. “Só que essas
baterias são infinitamente mais expansíveis e podem ser fabricadas em massa
com os recursos apropriados.”
A Foice Seris apertou as mãos atrás das costas e começou a andar sem pressa
ao redor da lateral da sala. A segui, a observando com cuidado, o nervosismo
arrepiante que sentia desde que cheguei à cidade de Aedelgard retornando de
repente.
Ela me deu um sorriso raro. “Receio que sejam bastante reais. O exército
secreto de Agrona, os filhos de Basiliscos do clã Vritra e alacryanos de meio-
sangue. A reputação deles de ‘bichos-papões’ é intencional da parte de Agrona.
Não para assustar os alacryanos; ele não precisa disso para manter a ordem
neste continente, mas para construir um muro de incerteza entre ele e os
asuras.”
No início, não entendi de que forma essas Assombrações causariam medo nos
asuras de sangue puro, que nem os Soberanos ou o próprio Agrona. Mesmo
uma Foice como Seris não era párea para um Soberano — ela mesma me
dissera —, então, quão fortes poderiam ser essas Assombrações?
E aí assimilei suas palavras. “Um muro de incerteza? Você está sugerindo que
de fato são ‘espantalhos’? Bichos-papões, como você disse. Uma força
destinada a assustar os outros asuras, não necessariamente combatê-los.”
“Se Agrona está tentando capturá-lo, ele deve querer respostas de algum tipo.
Sobre o éter.” Esse pensamento foi confirmado na hora pelo olhar terrível no
rosto dela.
“Mas ele não vai deixar que sua ganância por conhecimento interrompa seus
outros planos” disse, sacudindo um dos pequenos tubos e as bolhas indo junto.
“Ele está cansado do conflito em Dicathen e está pronto para abandonar seus
planos iniciais para subjugar e utilizar a população do continente.”
“Ele vai acabar com todos eles” falei, olhando para os meus pés. “E Grey.”
Havia uma coisa que não conseguia descobrir por mim mesma. Era uma
pergunta que tinha medo de fazer, contudo precisava saber o propósito dela.
“Por que arriscar a pior das mortes escondendo a identidade de Grey,
trabalhando com ele? Você está se opondo diretamente ao próprio Alto
Soberano. Isso não é… Traição? Trair Alacrya?”
Ela soltou uma risada amarga que me assustou. “Estamos salvando Alacrya,
criança. É por isso que você está aqui.”
“É minha vez de fazer uma pergunta para você, Caera. Sabendo agora quem é
Grey, ainda pode apoiá-lo? Se ele estivesse aqui agora e pedisse, você
ofereceria lealdade?”
Eu hesitei. A verdade era que ainda não possuía certeza. Meus sentimentos em
relação a ele já eram complicados, e saber que ele mentiu sobre quem era o
tempo todo que o conhecia não ajudou nisso. Mas… Também não tinha certeza
do que mudou.
“Minha lealdade é a você, Foice Seris” disse depois de uma longa pausa.
Alguma emoção difícil de analisar passou por seu rosto — gratidão, orgulho,
surpresa, não sabia —, e ela apertou minha mão. “Então preste atenção. Se
esperamos ajudar Grey e Dicathen, devemos manter a atenção de Agrona em
Alacrya. Muito em breve, o Soberano Orlaeth de Sehz-Clar chegará para
inspecionar esta máquina que construí. Porém não é o que prometi a ele.
Senti a cor sumir do meu rosto enquanto meu coração batia forte contra
minhas costelas.
Ela me soltou e deu um passo para trás. “Eu não te trouxe aqui sem razão.
Você e Cylrit, o que sentem fornecerá um barulho muito necessário para
impedir que Orlaeth se concentre somente em mim.”
Olhei de volta para a porta. “Seu Retentor não sabe dessa parte do plano, não
é?”
“Por favor, Caera. Meu nome é Seris. Depois de hoje, ninguém vai me chamar
de Foice.” Segurou meu olhar, o peso de sua presença tanto um alívio quanto
um fardo.
Pulei quando uma forte batida veio da porta de metal, e ela ergueu uma
sobrancelha.
Assim, passou por mim e nos conduziu para fora da câmara, apenas parando
brevemente para abrir e depois fechar de novo a porta. Cylrit estava esperando
na base da escada, e juntos começamos a longa subida de volta à propriedade
dela.
Nossa marcha nos levou das escadas por uma série de corredores e aberturas
arqueadas, passando por um átrio esparramado e entrando em um espaço
grande e quase vazio que se abria para varandas gêmeas com vista aos
penhascos que circundavam o Mar Vritra.
Afastei minha atenção do painel, tentando nem pensar e nem sentir nada a
respeito de sua existência. Não tinha nada a ver comigo, e não sabia nada
sobre.
Com certeza não sabia se minha mentora ao longo da vida estava tentando
usar esse dispositivo para dominar um Soberano, pensei, incapaz de esmagar
por completo meus pensamentos.
Cylrit me segurou firme por um braço, e percebi que estive parada congelada
no meio da sala. Ele me deixou ao lado do trono longe dos artefatos estranhos,
e não podia pensar em nada além de deixá-lo.
Quando ele parou na varanda em frente a ela, no entanto, não caiu como um
meteoro, mas mal tocou na sacada antes de entrar na sala, a irritação tão
palpável que senti como um chicote nas costas.
Nunca vi o Soberano Orlaeth em carne e osso. Retratos que via nos estudos
obrigatórios que toda criança alacryana fazia eram as únicas coisas que me
faziam ter uma noção da sua aparência.
O homem — se um termo tão simples era apropriado para um dos asura — era
alto, mas não desumano, e magro até demais. Entretanto era difícil registrar
qualquer coisa além de suas cabeças, pois ele tinha duas delas.
As duas cabeças estavam cobertas por um cabelo escuro, e cada uma possuía
dois chifres. Os chifres inferiores apontavam para os lados; o par superior,
para cima, antes de se curvar de leve. Por trás do cabelo despenteado da
cabeça esquerda, estavam os tocos de mais dois chifres, e não pude deixar de
me perguntar se de alguma forma havia os usado para criar a outra cabeça.
Assim, as lia com mais facilidade. Engoli em seco e tentei endireitar a postura
e acalmar o coração. Seris confiava em mim. Não falharia. Não com ela.
A cabeça esquerda não olhava para nenhum de nós, e a carranca furiosa focou
no painel de artefatos do outro lado do trono.
“Você disse que os sistemas estavam prontos para examinar, Seris” A cabeça
mais à esquerda grunhiu. Então, como se falasse com a cabeça da direita,
acrescentou: “A situação em Vechor é tênue. Primeiro o Victoriad, agora
aquele ataque. Kiros parece fraco. Ele pode atacar Sehz-Clar de novo se o Alto
Soberano abandonar o outro continente. Com o tratado com Epheotus
quebrado, é só questão de tempo até atacarem. Se esse reencarnado menor
pode atacar no meio de nossos Domínios, então Indrath com certeza pode.
Podem até decidir nos atacar em vez do Alto Soberano, para enfraquecê-lo
antes da guerra de verdade.”
Notei que ela duvidava de mim, e parecia que um punho esmagou meu
coração. Nós mal começamos, o plano dela ainda nem começou, e já falhei.
Embora tenha falado com Seris, seu olhar se fixou em mim de novo, e senti seu
poder forçando minhas emoções à superfície. De propósito afastei meus
pensamentos do Soberano, de Seris, da máquina, da armadilha, do plano, de
tudo isso.
Fingindo indiferença com o olhar, olhei para dentro em busca de outra coisa
para me concentrar. Então, deixei minha mente prestar atenção no que mais
pensava desde o Victoriad: Grey. Fiquei quase surpresa com a força
esmagadora das emoções que responderam esse pensamento, como a traição.
Ele mentiu, de novo e de novo. Sobre tudo.
Pensei nele de novo, a melhor tentativa de distração. Lógico, não era justo
ficar com raiva por causa das mentiras. Claro que mentiu, não podia me dizer a
verdade de sua identidade. E nem foi ele quem quis uma parceria; eu o
persegui, até o rastreei após nosso encontro casual nas Relictombs. E também
não menti sobre minha identidade? Se alguém entendia sobre mentir por
proteção, era eu. Quanto tempo teria mantido Haedrig se as próprias
Relictombs não tivessem intervindo?
Não entendi em tudo que me meti ao fazer parceria com ele, mas sabia que ele
tentava me manter distante e de chegar muito perto. Eu o aceitei, apesar de
não saber os detalhes de sua vida. O fato dele ter nascido em outro continente
não mudou nada.
Era lindo em seu poder bruto. E como uma bolha de sabão, a borda em
expansão do escudo refratou a luz do sol e girou com todas as cores do
espectro visível, dando a impressão de que aproveitava a energia do próprio
sol.
Voltei a respirar.
“Perdoe-me, Soberano”, falou Seris, e a voz carregava uma súplica que nunca
ouvi dela antes. “Você deve estar certo, é claro. Talvez algum erro de cálculo
no alinhamento…”
“Quieta” ordenou a cabeça direita, o que forçou a boca dela a se fechar forte.
Seris, percebi. Ela estava arriscando tudo para fazer exatamente isso.
E ela apoiou Grey.
De repente, todo o pensamento de Grey sumiu, e tudo o que pensava era nas
pontas dos dedos do Soberano traçando ao longo da matriz de ativação.
Quando Seris ativaria a armadilha? Era capaz de enfraquecer mesmo um
asura? E se falhasse? Senti uma insistência intensa de que, naquele momento,
não estava pronta para morrer…
“Pare” disse a direita, e por um momento, pensei que falava comigo. A
esquerda parou, seus dedos se afastando da matriz de ativação. “É uma
armadilha.”
Amargura brotou quando considerei que Seris pelo menos se preparou para o
meu fracasso, tendo um plano alternativo em vigor.
Orlaeth se levantou e deu um passo para trás. “Sim, claro. Na minha pressa,
quase não notei. Vê? As bobinas de aquisição de mana foram adulteradas, e
estes cristais aqui. Uma vez que extraíssem minha mana, criaria um circuito de
alta pressão em conjunto com baterias de mana vazias para extrair com força
toda a minha mana e armazená-la.”
Virando-se sem pressa, levantou uma mão, e me senti relaxada com o fato de
que pelo menos a segunda parte do plano ainda aconteceria, seja lá o que
fosse.
Eu era um inseto para ele, não mais perigoso do que uma mosca de mana…
“Falou com a verdadeira língua de um menor.” A cabeça direita dele olhou por
cima do ombro para Cylrit e para mim. Quando falou, foi de novo com um tom
comandante semelhante à força física. “Menores, tragam-me os chifres dela.”
Me levantei e peguei minha espada. Não podia fazer nada. De repente, todas
as emoções conflitantes que ele forçou a emergir estavam submersas sob uma
casca de vidro de subserviência.
Cylrit foi mais rápido. A sua lâmina gravada em runas sibilou ao cortar o ar.
Ele atacou o Soberano. Mas isso estava errado. O Soberano tinha ordenado…
Que os chifres de Seris… Fazer qualquer outra coisa era errado.
Todo o meu corpo tremia conforme tentava separar quem eu era e quem era o
fantoche que ele procurava fazer de mim. Uma perna deu um passo à frente
por conta própria, e uma mão soltou o aperto na lâmina.
“Você não vai fazer isso com ela.” A voz de Seris parecia distante. “Ela é uma
das pessoas mais fortes que já conheci. Mesmo vocês, Vritra, não podem
transformá-la em algo que ela não é.”
Essas palavras ecoaram em minha mente quando meu corpo meio que se
arrastou em sua direção.
Mesmo vocês, Vritra, não podem transformá-la em algo que ela não é.
Meu caminho para frente abrandou ainda mais. O que essas palavras
significavam? Ela queria me dizer algo? Alguma dica de como quebrar o feitiço
e resistir?
Ela me deu a opção de ter uma vida própria. Quando todo o aparato alacryano
foi projetado para criar, promover e fazer uso de pessoas que nem eu, ela abriu
a porta para escolher meu próprio caminho. Sem ela, toda a minha existência
teria sido gasta fazendo o que ordenassem.
Meu corpo parou, preso entre os sinais conflitantes que recebia, incapaz de
avançar, incapaz de resistir.
“Então suponho que terei que lidar com você sozinho”, afirmou a esquerda de
Orlaeth, cansado, se aproximando de Seris, empunhando a lâmina.
A espada passeou sem esforço pela clavícula dela, saindo de suas costas e
manchando os tapetes sob ela com um respingo de sangue quente.
Certa do que fazer, ela agarrou o pulso dele com as mãos e puxou a espada
mais fundo para dentro dela. O vermelho jorrou entre os lábios dela,
manchando-os de carmesim enquanto se curvavam para cima: um leve sorriso.
Uma esfera de mana cinza escura envolveu suas mãos unidas. Sentia em meu
núcleo a forma que sua magia de anulação lutava contra a onda esmagadora
de mana saindo do Soberano.
Houve uma hora que ele tentou retirar a mana, todavia o rebote só se
fortaleceu.
“Tire suas mãos de mim!” sibilou de ambas as cabeças, lutando para ir para
trás, porém a lâmina resistiu, alguma força de tração própria mantendo-a
firmemente alojada no corpo de Seris, a esfera negra parecendo prender a sua
mão.
Ela sorriu com sangue sob os dentes. “Falou com a verdadeira língua de um
asura.”
As costas da mão dele bateram na bochecha dela, e por um instante achei que
sua força falharia quando sua magia cintilou e o corpo tremeu. Ele ergueu o
braço para um segundo golpe, entretanto antes que pudesse, Cylrit apareceu.
O Retentor lutou para prender o braço de Orlaeth com todo o peso do corpo, os
olhos piscando entre Seris e eu, determinados, procurando respostas.
Tentei me levantar, mas minha cabeça não tinha forças. Tudo o que podia fazer
era assistir, à medida que mais e mais mana era tirada do Soberano. Ele
aparentava estar enfraquecendo, incapaz de se livrar de Cylrit ou quebrar sua
conexão com Seris. O conflito se arrastou sem parar, e pensei com certeza que
um lado ou o outro iria falhar, contudo percebi uma coisa.
Ela não precisava derrotá-lo, somente durar mais do que ele até que…
Seus olhos miraram em mim. “Onde está sua lealdade, Caera? E… O que você
está disposta a fazer para provar isso?”
“Tem que ser agora!” Cylrit rosnou, tremendo de esforço enquanto o asura
lutava em seu aperto.
Orlaeth caiu, imóvel, porém ainda vivo, a mana ambiente sendo puxada como
fôlego para seu corpo.