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The Beginning After The End – Capítulo 400

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CAERA DENOIR

Os passos suaves da Foice Seris não emitiam som algum sobre os degraus de
pedra à minha frente, e os de Cylrit deixavam um leve som abafado para trás,
fazendo os meus soarem como tambores de guerra na longa e sinuosa escada
sob sua propriedade de Sehz-Clar.

As paredes eram de uma pedra cinza escura, o que fazia a escadaria estreita
parecer ainda mais apertada e claustrofóbica. Era como se eu pudesse sentir o
peso do penhasco pairando acima de nós, toneladas e toneladas de rocha, solo
e arenito, todos apoiados no topo dessas escadas impossivelmente longas e
apertadas…

“Seu silêncio me surpreende”, disse a Foice Seris por cima do ombro. “Tenho
certeza de que tem perguntas.”

Sua presença composta parecia desacordar com a natureza apressada e furtiva


da minha visita a Sehz-Clar, o que só aumentou o nervosismo e preocupação
em mim.

“Muitas.”

Apesar de não ter nada além de perguntas girando feito um bando de halcyons
na minha cabeça desde o Victoriad, as omiti, e achei difícil desembaraçar uma
da outra para perguntar a eles.

O que é que preciso saber? Quais das minhas perguntas são mais do que mera
curiosidade?

“Grey é mesmo do outro continente?” Enfim questionei.

“Sim”, respondeu indiferente.

Mordi o lábio ao considerar esse fato. Era a resposta que esperava depois de
tudo o que meu sangue descobriu, mas só serviu para confundir ainda mais
minhas muitas outras perguntas.

“Você sabia o tempo todo?”

“Sim.”
“Isso não coloca você e todos nós, em perigo?” Não era de fato o que pretendia
saber, porém escapou com um tom de descrença.

“Sim.”

Mal consegui conter um suspiro cansado. “Você vai responder a alguma das
minhas perguntas com mais de uma palavra?”

“Vamos ver.” Uma ponta de humor era presente em sua voz.

Atrás de mim, Cylrit sufocou uma risada, e lhe lancei um olhar aborrecido.
Apesar deste diálogo não estar oferecendo quase nenhuma informação nova,
era claro que, apesar de suas provocações, ela não tinha intenção alguma de
dizer tudo ainda.

Só podia assumir que eu estava presente em Sehz-Clar por uma razão, e então
escolhi ficar quieta e paciente até que ela revelasse o propósito.

Não houve mais interrupções quando chegamos às profundezas. Após um


tempo, a escada terminou em um grande quadrado de ferro inserido na parede
em sua base. Parecia uma porta, mas sem maçanetas ou dobradiças, somente
um cristal de mana incandescente na parede. A Foice Seris não perdeu tempo
e levantou uma mão para o cristal azul-petróleo e empurrou mana nele antes
que Cylrit e eu descêssemos o último degrau.

A parede zumbiu antes de fazer um barulho parecido mais com um impacto do


que ruído, e a porta começou a se levantar do chão para uma lacuna acima
dela.

Me aproximei da minha mentora e olhei para a sala além.

Uma série de tubos de vidro do chão ao teto preenchiam um enorme espaço


industrial, cada um deles emitindo um azul elétrico que refletia nas paredes
brancas, o chão e o teto, o que dava à câmara um ar surreal.

Ela entrou e se aproximou do tubo mais próximo. Conforme seguia, vi que, em


um vão ao redor da base do tubo, era aquecido por pilhas de pedras laranja
brilhantes que emitiam um fedor sulfuroso e calor suficiente para me manter
bem para trás. Bolhas translúcidas surgiam através de qualquer líquido que
estivesse dentro.

Tubos de vidro tão finos quanto meu dedo mindinho deixavam o artefato em
uma dúzia de lugares diferentes; alguns se conectando a artefatos adjacentes
idênticos, outros correndo ao teto ou paredes; alguns indo ao longo de uma
parede em direção a um painel de dispositivos no meio da sala: medidores,
painéis de projeção e cristais de mana, cujo propósito era um mistério para
mim.

No entanto, uma coisa era certa.

“Tanta mana…” O líquido azul brilhante irradiava mana mais intensamente do


que as rochas laranja irradiavam calor. “É algum tipo de… Dispositivo de
armazenamento? Como… Cristais líquidos de mana?”

“Sim, é exatamente isso” disse sem uma gota de orgulho. “Só que essas
baterias são infinitamente mais expansíveis e podem ser fabricadas em massa
com os recursos apropriados.”

Fechei os olhos e deixei meus sentidos vagarem, aproveitando o brilho da


mana compactada nadando dentro dos dispositivos. “É incrível.”

“É… Importante.” Uma nota de hesitação estava presente em sua voz.

Meus olhos saíram do pequeno transe e a encarei, preocupada. Nos olhamos


por um momento, e depois ela lançou um olhar para Cylrit, fazendo um
pequeno gesto de mão. Ele se curvou, virou-se e saiu da sala.

Um momento depois, a porta devagar desceu de volta ao seu lugar.

A Foice Seris apertou as mãos atrás das costas e começou a andar sem pressa
ao redor da lateral da sala. A segui, a observando com cuidado, o nervosismo
arrepiante que sentia desde que cheguei à cidade de Aedelgard retornando de
repente.

“Você sabe o que são as Assombrações, Caera?”

“Guerreiros Vritra meio-sangue protegendo Alacrya em segredo dos outros


clãs asura” respondi de imediato. “Sempre assumi que eram apenas uma
história assustadora para as crianças.”

Ela me deu um sorriso raro. “Receio que sejam bastante reais. O exército
secreto de Agrona, os filhos de Basiliscos do clã Vritra e alacryanos de meio-
sangue. A reputação deles de ‘bichos-papões’ é intencional da parte de Agrona.
Não para assustar os alacryanos; ele não precisa disso para manter a ordem
neste continente, mas para construir um muro de incerteza entre ele e os
asuras.”

No início, não entendi de que forma essas Assombrações causariam medo nos
asuras de sangue puro, que nem os Soberanos ou o próprio Agrona. Mesmo
uma Foice como Seris não era párea para um Soberano — ela mesma me
dissera —, então, quão fortes poderiam ser essas Assombrações?

E aí assimilei suas palavras. “Um muro de incerteza? Você está sugerindo que
de fato são ‘espantalhos’? Bichos-papões, como você disse. Uma força
destinada a assustar os outros asuras, não necessariamente combatê-los.”

“Até pegaram o nome de uma antiga lenda asura” contou, observando as


bolhas rolando através dos tubos de contenção de mana azul. “Um pouco óbvio
por parte de Agrona, se me perguntar, mas eficaz. No entanto, não confunda
com falta de força. Eles são assassinos de asura treinados. Um esquadrão forte
é capaz de derrubar até mesmo um guerreiro asura talentoso.”

Senti arrepios subindo na parte de trás do meu pescoço.

A Foice Seris parou em frente ao painel de dispositivos e tubos de vidro. “E


Agrona enviou um desses esquadrões para Dicathen, a fim de caçar e capturar
Grey, se possível, ou matá-lo, caso não houvesse alternativa.” Meu coração
afundou e olhei para ela, apavorada, porém antes que pudesse responder, ela
acrescentou: “Mas eles falharam. E então, já que ele não é nada mais além de
um exibicionista, surgiu pelo portal no coração de Vechor, destruindo toda
uma base militar, matando algumas centenas de grupos e batalhões de
guerra.”

Me inclinei na parede e descansei minha cabeça nela, chegando à conclusão de


que superestimei toda a minha compreensão do mundo em que vivia. Parecia
quase impossível Grey derrotar não só uma, mas duas Foices, até que ele fez
isso e escapou do próprio Alto Soberano. Entretanto, matar cinco
Assombrações…

“Se Agrona está tentando capturá-lo, ele deve querer respostas de algum tipo.
Sobre o éter.” Esse pensamento foi confirmado na hora pelo olhar terrível no
rosto dela.

“Mas ele não vai deixar que sua ganância por conhecimento interrompa seus
outros planos” disse, sacudindo um dos pequenos tubos e as bolhas indo junto.
“Ele está cansado do conflito em Dicathen e está pronto para abandonar seus
planos iniciais para subjugar e utilizar a população do continente.”

“Ele vai acabar com todos eles” falei, olhando para os meus pés. “E Grey.”

Havia uma coisa que não conseguia descobrir por mim mesma. Era uma
pergunta que tinha medo de fazer, contudo precisava saber o propósito dela.
“Por que arriscar a pior das mortes escondendo a identidade de Grey,
trabalhando com ele? Você está se opondo diretamente ao próprio Alto
Soberano. Isso não é… Traição? Trair Alacrya?”

Ela soltou uma risada amarga que me assustou. “Estamos salvando Alacrya,
criança. É por isso que você está aqui.”

Dei a ela um olhar questionador, e ela pegou a minha mão.

“É minha vez de fazer uma pergunta para você, Caera. Sabendo agora quem é
Grey, ainda pode apoiá-lo? Se ele estivesse aqui agora e pedisse, você
ofereceria lealdade?”

Eu hesitei. A verdade era que ainda não possuía certeza. Meus sentimentos em
relação a ele já eram complicados, e saber que ele mentiu sobre quem era o
tempo todo que o conhecia não ajudou nisso. Mas… Também não tinha certeza
do que mudou.

“Minha lealdade é a você, Foice Seris” disse depois de uma longa pausa.

Alguma emoção difícil de analisar passou por seu rosto — gratidão, orgulho,
surpresa, não sabia —, e ela apertou minha mão. “Então preste atenção. Se
esperamos ajudar Grey e Dicathen, devemos manter a atenção de Agrona em
Alacrya. Muito em breve, o Soberano Orlaeth de Sehz-Clar chegará para
inspecionar esta máquina que construí. Porém não é o que prometi a ele.

Senti a cor sumir do meu rosto enquanto meu coração batia forte contra
minhas costelas.

“O sistema de entrada de mana para o dispositivo é uma armadilha” afirmou,


uma luz escura piscando em seus olhos. “Isso vai tirar sua mana,
enfraquecendo-o o suficiente para que eu possa lidar com ele. Tenha cuidado
com seus pensamentos, no entanto. Orlaeth é poderosamente empático, e
sentirá se você não controlar suas emoções.”

Meu estômago afundou. “Você espera que eu esconda minhas emoções de um


Soberano?” Perguntei, o tom agudo da minha voz revelando meu medo.

Ela me soltou e deu um passo para trás. “Eu não te trouxe aqui sem razão.
Você e Cylrit, o que sentem fornecerá um barulho muito necessário para
impedir que Orlaeth se concentre somente em mim.”

Olhei de volta para a porta. “Seu Retentor não sabe dessa parte do plano, não
é?”

“Inteligente.” Assentiu em aprovação. “Ele está propositalmente sendo


mantido cego a minhas verdadeiras intenções, para que o que ele sente
contradiga o que você sente.”

“E…” Hesitei, não querendo questionar seu julgamento, todavia incapaz de


superar meu medo.

“E se falharmos?” Questionou, captando meu raciocínio. “Há uma segunda


opção. Orlaeth é um gênio. Minha armadilha está bem escondida, mas se ele
sentir a sua ansiedade e medo, pode não morder minha isca.” Pensei ter
sentido uma pitada de oscilação na maneira que a voz dela se contraiu, o que
só aumentou a minha. “Mas tudo o que preciso que ele faça é usar mana,
mesmo que não diretamente na máquina. Já será o suficiente.”

“Foice Seris, eu…”

“Por favor, Caera. Meu nome é Seris. Depois de hoje, ninguém vai me chamar
de Foice.” Segurou meu olhar, o peso de sua presença tanto um alívio quanto
um fardo.

Pulei quando uma forte batida veio da porta de metal, e ela ergueu uma
sobrancelha.

“Está na hora. Venha.”

Assim, passou por mim e nos conduziu para fora da câmara, apenas parando
brevemente para abrir e depois fechar de novo a porta. Cylrit estava esperando
na base da escada, e juntos começamos a longa subida de volta à propriedade
dela.

Sob circunstâncias diferentes, ficaria feliz em explorar a sua propriedade. Só


havia vinto antes uma vez, e me lembrava apenas de uma mansão esparramada
que ofuscava até a casa do Alto-Sangue Denoir. Agora, não tinha mente para os
detalhes, seguindo-a que nem um robô enquanto lutava para ordenar meus
pensamentos e sentimentos, uma tarefa dificultada somente por uma aura que
se aproximava rápido e parecia sombrear toda a cidade de Aedelgard.

Nossa marcha nos levou das escadas por uma série de corredores e aberturas
arqueadas, passando por um átrio esparramado e entrando em um espaço
grande e quase vazio que se abria para varandas gêmeas com vista aos
penhascos que circundavam o Mar Vritra.

Dezenas e dezenas de tapetes de todas as formas, tamanhos e cores


imagináveis foram dispostos por cima do piso de arenito, e uma cadeira fofa,
quase um trono, estava no centro contra a parede traseira, oposta ao estreito
espaço entre as duas varandas.
Ao lado do trono havia outra série de dispositivos e artefatos semelhantes aos
da instalação de armazenamento de mana abaixo, embora em vez de
medidores, houvesse uma série de cristais de mana de diferentes formas e
tamanhos, e várias bobinas bem enroladas de um metal azul prateado que não
reconhecia.

Afastei minha atenção do painel, tentando nem pensar e nem sentir nada a
respeito de sua existência. Não tinha nada a ver comigo, e não sabia nada
sobre.

Com certeza não sabia se minha mentora ao longo da vida estava tentando
usar esse dispositivo para dominar um Soberano, pensei, incapaz de esmagar
por completo meus pensamentos.

Havia pouco tempo para as preocupações aumentarem, no entanto, a


crescente pressão logo atingia o pico. Apenas uma vez antes senti uma
presença tão completa e avassaladora, e foi o próprio Agrona nos momentos
após o desaparecimento de Grey do Victoriad.

Cylrit me segurou firme por um braço, e percebi que estive parada congelada
no meio da sala. Ele me deixou ao lado do trono longe dos artefatos estranhos,
e não podia pensar em nada além de deixá-lo.

Seris se moveu com uma elegância despreocupada para a varanda e esperou


que a fonte dessa presença chegasse.

Quando ele parou na varanda em frente a ela, no entanto, não caiu como um
meteoro, mas mal tocou na sacada antes de entrar na sala, a irritação tão
palpável que senti como um chicote nas costas.

Nunca vi o Soberano Orlaeth em carne e osso. Retratos que via nos estudos
obrigatórios que toda criança alacryana fazia eram as únicas coisas que me
faziam ter uma noção da sua aparência.

Isso não me preparou para vê-lo.

O homem — se um termo tão simples era apropriado para um dos asura — era
alto, mas não desumano, e magro até demais. Entretanto era difícil registrar
qualquer coisa além de suas cabeças, pois ele tinha duas delas.

Apesar do medo, que parecia estar borbulhando de algum lugar profundo


dentro de mim em um poço sempre agitado de incerteza e dúvida, não pude
deixar de ficar fascinada pela visão.

As duas cabeças estavam cobertas por um cabelo escuro, e cada uma possuía
dois chifres. Os chifres inferiores apontavam para os lados; o par superior,
para cima, antes de se curvar de leve. Por trás do cabelo despenteado da
cabeça esquerda, estavam os tocos de mais dois chifres, e não pude deixar de
me perguntar se de alguma forma havia os usado para criar a outra cabeça.

As duas faces pareciam quase idênticas, embora fossem deslocadas, sugerindo


ainda que a cabeça à direita foi anexada depois. As expressões, contudo, não
podiam ser mais diferentes. A da direita nos observava de uma maneira fria e
calculista. Os dois olhos vermelhos, um pouco mais escuros do que os outros,
permaneciam em mim, e tudo o que senti no Victoriad surgiu com tanta força
que me engasguei.

Do nada, algo fez sentido. O poder, a dúvida e ansiedade… Não era


inteiramente eu. Senti essa sensação desde que desci as escadas ao
laboratório; um efeito do Soberano. Ele estava, no sentido literal da palavra,
colocando minhas emoções para fora.

Assim, as lia com mais facilidade. Engoli em seco e tentei endireitar a postura
e acalmar o coração. Seris confiava em mim. Não falharia. Não com ela.

A cabeça esquerda não olhava para nenhum de nós, e a carranca furiosa focou
no painel de artefatos do outro lado do trono.

“Soberano Orlaeth,” disse a Foice em respeito, “obrigada por…”

“Você disse que os sistemas estavam prontos para examinar, Seris” A cabeça
mais à esquerda grunhiu. Então, como se falasse com a cabeça da direita,
acrescentou: “A situação em Vechor é tênue. Primeiro o Victoriad, agora
aquele ataque. Kiros parece fraco. Ele pode atacar Sehz-Clar de novo se o Alto
Soberano abandonar o outro continente. Com o tratado com Epheotus
quebrado, é só questão de tempo até atacarem. Se esse reencarnado menor
pode atacar no meio de nossos Domínios, então Indrath com certeza pode.
Podem até decidir nos atacar em vez do Alto Soberano, para enfraquecê-lo
antes da guerra de verdade.”

“O Alto Soberano tem superado Indrath a cada instante” respondeu a cabeça


direita. “Com nosso presente, provaremos nossa lealdade e utilidade. Ele ficará
do nosso lado contra Vechor, se necessário, e garantirá que sejamos
protegidos dos outros clãs.”

“Supondo que a menor tenha tido sucesso em sua tarefa.” A da esquerda


estalou mais uma vez. Ambas se viraram para Seris, uma irritada e sem
paciência, e a outra erguendo as sobrancelhas com curiosidade.
Ela se curvou profundamente. “Perdoe o atraso, Soberano. Descobrimos que o
componente que precisávamos estava escondido sob o deserto em Dicathen:
um mineral peculiar que reúne e condensa mana de atributo de fogo. Com
isso…”

“Comece a demonstração” rugiu a cabeça esquerda, e não pude evitar o


gemido baixo que escapou dos meus lábios com sua raiva.

A mandíbula de Seris apertou por um meio segundo. Ela se recuperou quase


que instantaneamente e deu vários passos até mim. “Caera, talvez você ficasse
mais confortável no átrio…”

Notei que ela duvidava de mim, e parecia que um punho esmagou meu
coração. Nós mal começamos, o plano dela ainda nem começou, e já falhei.

“Não”, falou firme a cabeça direita. “Ela fica.”

Embora tenha falado com Seris, seu olhar se fixou em mim de novo, e senti seu
poder forçando minhas emoções à superfície. De propósito afastei meus
pensamentos do Soberano, de Seris, da máquina, da armadilha, do plano, de
tudo isso.

Fingindo indiferença com o olhar, olhei para dentro em busca de outra coisa
para me concentrar. Então, deixei minha mente prestar atenção no que mais
pensava desde o Victoriad: Grey. Fiquei quase surpresa com a força
esmagadora das emoções que responderam esse pensamento, como a traição.
Ele mentiu, de novo e de novo. Sobre tudo.

No fundo, permaneci um pouco ciente do movimento de Seris e do Soberano.

“Claro, Soberano”, disse Seris antes de marchar para a série de dispositivos e


artefatos que notei ao entrar pela primeira vez na sala. “Isso marcará o
primeiro teste em grande escala do sistema, embora todos os testes anteriores
de pequena escala tenham sido bem-sucedidos…”

“Seris,” grunhiu a cabeça esquerda “eu entendo o protocolo que desenvolvi e a


defesa em questão, que ordenei que você criasse.”

“Sua verbosidade desnecessária é para o benefício dos menores” observou a da


direita. “Seu Retentor está confuso e preocupado com a falta de informação
que lhe deu, e a de sangue Vritra não manifestado está lutando para restringir
as emoções, concentrando-se em…” o nariz se enrugou de desgosto “um
homem.”

Me afastei de seu olhar desumanamente penetrante. Ao meu lado, Cylrit estava


estoico e imóvel feito uma estátua. Como se fosse olhado por um Soberano
todos os dias. Apesar do meu coração parecer me martelar por dentro, tentei
imitá-lo.

Pensei nele de novo, a melhor tentativa de distração. Lógico, não era justo
ficar com raiva por causa das mentiras. Claro que mentiu, não podia me dizer a
verdade de sua identidade. E nem foi ele quem quis uma parceria; eu o
persegui, até o rastreei após nosso encontro casual nas Relictombs. E também
não menti sobre minha identidade? Se alguém entendia sobre mentir por
proteção, era eu. Quanto tempo teria mantido Haedrig se as próprias
Relictombs não tivessem intervindo?

Não entendi em tudo que me meti ao fazer parceria com ele, mas sabia que ele
tentava me manter distante e de chegar muito perto. Eu o aceitei, apesar de
não saber os detalhes de sua vida. O fato dele ter nascido em outro continente
não mudou nada.

A magia de Seris explodiu ao enviar pulsos de mana em vários cristais


diferentes. As luzes brincavam através dos cristais e tubos de vidro que nem o
brilho de estrelas de muitas cores, refletindo nas paredes brancas e enchendo
a sala de cor. Um zumbido profundo ressoou quando o mecanismo que
acionava o gerador de escudo ganhou vida muito abaixo de nós, e a borda de
uma ondulação transparente surgiu.

Prendi a respiração, esquecendo por um momento de todo o resto.

“A flutuação da mana parece estar de acordo com as expectativas” murmurou


a cabeça esquerda de Orlaeth. “A potência está enfraquecendo, entretanto. A
densidade do escudo está em menos da metade do que calculei.”

Era lindo em seu poder bruto. E como uma bolha de sabão, a borda em
expansão do escudo refratou a luz do sol e girou com todas as cores do
espectro visível, dando a impressão de que aproveitava a energia do próprio
sol.

E aí… O zumbido baixo se tornou áspero, e a superfície do escudo derreteu em


uma súbita vibração líquida, grandes e irregulares manchas se dissipando
antes que toda a estrutura enfim desmoronasse com um estalo.

Voltei a respirar.

A cabeça esquerda do Soberano soltou um suspiro irritado de julgamento, e ele


cruzou os braços. “Tem um problema com a saída. O conjunto de baterias está
produzindo muito menos do que deveria. Uma falha da matriz de ativação para
alinhar do jeito certo todas as baterias de mana.”

A cabeça direita estava quieta, a expressão pensativa. Os olhos vermelhos


escuros estavam desfocados e não respondiam às reflexões do outro.

“Perdoe-me, Soberano”, falou Seris, e a voz carregava uma súplica que nunca
ouvi dela antes. “Você deve estar certo, é claro. Talvez algum erro de cálculo
no alinhamento…”

“Quieta” ordenou a cabeça direita, o que forçou a boca dela a se fechar forte.

Estrelas explodiram atrás dos meus olhos quando a intenção do Soberano


pressionou minhas têmporas.

Inundada em um banho de minhas próprias emoções, decidi naquele momento


perdoar Grey. Minhas razões para lutar ao lado dele nunca foram patrióticas, e
nunca vi sentido na guerra dicathiana. Não era uma ferramenta do clã Vritra.
Grey era a fonte do poder que eu procurava. Ele conquistava o éter de uma
maneira que nem os dragões conseguiam. Forçadas ou não, não podia permitir
que emoções — aquela sensação simplista de “sentimentos feridos” — me
distraíssem do que importava de verdade.

Se precisássemos de um dicathiano para proteger Alacrya dos Vritra, que


assim fosse. Havia até uma espécie de sentido nisso. Os alacryanos foram
criados como animais de estimação do clã Vritra, como wogarts e como
armas. Quem entre nós seria capaz de revidar? De quebrar o domínio de
Agrona sobre o continente?

Seris, percebi. Ela estava arriscando tudo para fazer exatamente isso.
E ela apoiou Grey.

Abafei um suspiro devido ao trem de pensamentos e arrisquei olhar para as


duas grandes potências deste Domínio. Orlaeth passava o dedo indicador ao
longo de várias partes do dispositivo, o rosto à esquerda apertado em uma
carranca pensativa. Seus lábios se moviam rapidamente enquanto murmurava
em silêncio para si mesmo. Uma mão puxou o mais baixo de seus chifres
incompatíveis.

A cabeça direita dele me encarava.

De repente, todo o pensamento de Grey sumiu, e tudo o que pensava era nas
pontas dos dedos do Soberano traçando ao longo da matriz de ativação.
Quando Seris ativaria a armadilha? Era capaz de enfraquecer mesmo um
asura? E se falhasse? Senti uma insistência intensa de que, naquele momento,
não estava pronta para morrer…
“Pare” disse a direita, e por um momento, pensei que falava comigo. A
esquerda parou, seus dedos se afastando da matriz de ativação. “É uma
armadilha.”

Não, pensei desesperada, o pânico roubando o fôlego dos meus


pulmões. Entreguei tudo, falhei, eu…

Meus olhos se arregalaram de horror quando as lágrimas embaçaram minha


visão antes de escorrer pelas minhas bochechas. Congelada, não pude fazer
nada além de murmurar: “Eu… Ssinto muito, S-Seris. Muito…”

A frustração se misturou com o terror desenfreado que me alcançava, o


entendimento de que o Soberano estava forçando esse derramamento de
emoção em mim claro na parte lógica da minha mente, e ainda assim era
incapaz por completo de me proteger contra isso.

Amargura brotou quando considerei que Seris pelo menos se preparou para o
meu fracasso, tendo um plano alternativo em vigor.

Orlaeth se levantou e deu um passo para trás. “Sim, claro. Na minha pressa,
quase não notei. Vê? As bobinas de aquisição de mana foram adulteradas, e
estes cristais aqui. Uma vez que extraíssem minha mana, criaria um circuito de
alta pressão em conjunto com baterias de mana vazias para extrair com força
toda a minha mana e armazená-la.”

“Deixando-nos impotentes para nos defender”, confirmou a direita, o tom


ficando sombrio.

Virando-se sem pressa, levantou uma mão, e me senti relaxada com o fato de
que pelo menos a segunda parte do plano ainda aconteceria, seja lá o que
fosse.

“Alívio? Espere…” A mão congelou. Devagar, a esquerda se virou para olhar


para a direita. “Tem mais uma coisa.”

Ambos os conjuntos de olhos varreram o espaço, traçando cada superfície,


curva e linha. Então Orlaeth chutou um tapete para o lado, revelando uma rede
de metal azul-prateado correndo entre os azulejos abaixo. “Como esperado.
Olhe. O sistema de aquisição de mana foi espalhado por toda a sala. Se
usarmos mana aqui, o processo será iniciado.”

A expressão da cabeça esquerda suavizou, ficando curiosa, porém o olhar da


direita era feroz, o rosto tão perigoso e ameaçador que não suportava vê-lo.
“Você sempre mirou muito alto para seu posto, Seris. É uma pena que sua
esperteza não tenha conseguido acompanhar sua ambição.”
De repente, se virou, arrancou a cadeira pesada do chão e jogou na matriz.
Vidro quebrado, metal dobrado e cortado, e cristais de mana estourando e
enviando faíscas pela sala.

Me afastei tarde, liberando mana no instinto para revestir a pele enquanto me


preparava para me defender, porém Orlaeth não percebeu nada, e eu sabia o
porquê.

Eu era um inseto para ele, não mais perigoso do que uma mosca de mana…

“É uma fachada.” A esquerda contou à direita, seus dedos se contorcendo no


ar, parecendo seguir as trilhas de mana pela sala. “Todos os mecanismos
necessários para a armadilha ser ativada ainda estão abaixo de nós.”

A cabeça direita zombou. “Você tem praticado sua capacidade de encobrir as


emoções, Seris. Claramente, se esforçou muito nessa armadilha. Por mais que
eu gostaria de quebrar seus ossos com as mãos, parece que você também
contava com isso.” O escárnio se tornou um sorriso cruel. “Mas considerando
tudo, seria mais apropriado que seus servos fizessem isso por mim.”

Enquanto tudo acontecia, ela recuou e agora estava de pé perto do meio do


chão coberto de tapete. Apesar da fúria fria dele destruindo o ar da sala, ela
passava uma imagem calma. “Você viu através de cada uma das minhas
armações, Soberano. Eu deveria saber que não poderia superar seu intelecto.
Mas não vou me desculpar por tentar. Vocês, asuras, são a doença do mundo e
merecem tudo o que está vindo para vocês.”

“Falou com a verdadeira língua de um menor.” A cabeça direita dele olhou por
cima do ombro para Cylrit e para mim. Quando falou, foi de novo com um tom
comandante semelhante à força física. “Menores, tragam-me os chifres dela.”

Me levantei e peguei minha espada. Não podia fazer nada. De repente, todas
as emoções conflitantes que ele forçou a emergir estavam submersas sob uma
casca de vidro de subserviência.

Cylrit foi mais rápido. A sua lâmina gravada em runas sibilou ao cortar o ar.

Orlaeth rosnou quando estendeu a mão e a pegou. A confusão interrompeu


meus movimentos, e só pude olhar.

Ele atacou o Soberano. Mas isso estava errado. O Soberano tinha ordenado…
Que os chifres de Seris… Fazer qualquer outra coisa era errado.

O pulso dele se torceu, arrancando a espada da mão de Cylrit. No mesmo


movimento, a balançou feito um taco, acertando o Retentor no peito e fazendo-
o cair do outro lado da sala, depois atravessando e indo para fora de vista.

A direita olhou em meus olhos. “Traga. Os. Chifres. Dela.”

Todo o meu corpo tremia conforme tentava separar quem eu era e quem era o
fantoche que ele procurava fazer de mim. Uma perna deu um passo à frente
por conta própria, e uma mão soltou o aperto na lâmina.

“Você não vai fazer isso com ela.” A voz de Seris parecia distante. “Ela é uma
das pessoas mais fortes que já conheci. Mesmo vocês, Vritra, não podem
transformá-la em algo que ela não é.”

Essas palavras ecoaram em minha mente quando meu corpo meio que se
arrastou em sua direção.

Em qualquer outro momento da minha vida, teria chorado de alegria ao ouvir


tais palavras, contudo, agora, sentia apenas a amarga realidade de que ou ela
seria forçada a me matar pela própria vida, ou me deixaria derrubá-la, porque,
apesar de suas palavras, não me sentia forte o suficiente para resistir ao
comando.

Mesmo vocês, Vritra, não podem transformá-la em algo que ela não é.

Meu caminho para frente abrandou ainda mais. O que essas palavras
significavam? Ela queria me dizer algo? Alguma dica de como quebrar o feitiço
e resistir?

Ela me deu a opção de ter uma vida própria. Quando todo o aparato alacryano
foi projetado para criar, promover e fazer uso de pessoas que nem eu, ela abriu
a porta para escolher meu próprio caminho. Sem ela, toda a minha existência
teria sido gasta fazendo o que ordenassem.

Me recusei ser a ferramenta de qualquer um.

Meu corpo parou, preso entre os sinais conflitantes que recebia, incapaz de
avançar, incapaz de resistir.

“É o que parece, Seris. Interessante.”

A cabeça direita me observou, os traços magros suavizando quando a


curiosidade venceu. A esquerda pareceu assumir o controle. O disfarce de
cientista gênio irritado e calmo desapareceu ao erguer a arma de Cylrit, e vi o
verdadeiro poder do asura. Eles não eram apenas uma coisa, definível por um
único traço, e sim graça, força, autoridade e divindade, nunca sacrificando um
aspecto por outro, incorporando cada um ao mesmo tempo.
Se não estivesse paralisada pela resistência aos poderes dele, teria rido. A
morte nos faz menos filosóficos, pelo jeito.

“Então suponho que terei que lidar com você sozinho”, afirmou a esquerda de
Orlaeth, cansado, se aproximando de Seris, empunhando a lâmina.

Várias coisas aconteceram de uma vez, e demorou muito para minha


percepção lenta acompanhar a cena.

A espada passeou sem esforço pela clavícula dela, saindo de suas costas e
manchando os tapetes sob ela com um respingo de sangue quente.

Usando um pé, ela chutou um canto de um tapete de cor de ameixa, revelando


uma placa azul prateada no chão abaixo. Um pequeno espinho saltou da placa,
e ela pisou com força nele para que atravessasse seu pé, derramando sangue.

Certa do que fazer, ela agarrou o pulso dele com as mãos e puxou a espada
mais fundo para dentro dela. O vermelho jorrou entre os lábios dela,
manchando-os de carmesim enquanto se curvavam para cima: um leve sorriso.

Uma esfera de mana cinza escura envolveu suas mãos unidas. Sentia em meu
núcleo a forma que sua magia de anulação lutava contra a onda esmagadora
de mana saindo do Soberano.

“Pare!” A direita gritou, porém tarde demais.

O efeito era instantâneo.

A força do comando me levou à frente, e caí esparramada no chão, minha


cabeça girando de repente. Mana começou a sair do Soberano, passando em
uma rede de canais que corriam ao chão sob nós.

Houve uma hora que ele tentou retirar a mana, todavia o rebote só se
fortaleceu.

“Tire suas mãos de mim!” sibilou de ambas as cabeças, lutando para ir para
trás, porém a lâmina resistiu, alguma força de tração própria mantendo-a
firmemente alojada no corpo de Seris, a esfera negra parecendo prender a sua
mão.

Ela sorriu com sangue sob os dentes. “Falou com a verdadeira língua de um
asura.”

As costas da mão dele bateram na bochecha dela, e por um instante achei que
sua força falharia quando sua magia cintilou e o corpo tremeu. Ele ergueu o
braço para um segundo golpe, entretanto antes que pudesse, Cylrit apareceu.
O Retentor lutou para prender o braço de Orlaeth com todo o peso do corpo, os
olhos piscando entre Seris e eu, determinados, procurando respostas.

Tentei me levantar, mas minha cabeça não tinha forças. Tudo o que podia fazer
era assistir, à medida que mais e mais mana era tirada do Soberano. Ele
aparentava estar enfraquecendo, incapaz de se livrar de Cylrit ou quebrar sua
conexão com Seris. O conflito se arrastou sem parar, e pensei com certeza que
um lado ou o outro iria falhar, contudo percebi uma coisa.

Ela não precisava derrotá-lo, somente durar mais do que ele até que…

A maquinaria debaixo do complexo voltou à vida e, além da varanda, os


escudos começaram a subir sobre o penhasco de novo.

“Olha, Soberano, os escudos estão funcionando” disse, fazendo com que


sangue vazasse do canto da boca.

“O Alto Soberano… Arrancará seu… Núcleo… Por isso.” A esquerda grunhiu


fraco. Com o próximo suspiro, a última gota de mana deixou seu corpo.

Seris saiu da lâmina de Cylrit e tropeçou para trás, o pé deixando o espinho


com um estalo molhado, e uma mão pressionada contra o peito manchada com
o sangue saindo.

O Retentor torceu os braços do Soberano, forçando-o a largar a espada e


depois bateu com a cara no chão.

Seris cedeu sem Orlaeth ou lâmina a segurando, e notei sua assinatura de


mana insubstancial, vacilando que nem uma vela em uma brisa forte.
Entretanto ela não caiu.

Seus olhos miraram em mim. “Onde está sua lealdade, Caera? E… O que você
está disposta a fazer para provar isso?”

“Tem que ser agora!” Cylrit rosnou, tremendo de esforço enquanto o asura
lutava em seu aperto.

Avistei em silêncio a lâmina escarlate, sem brilho contra o tapete azul


brilhante abaixo dela.

Empurrando mana em minhas extremidades para me dar força, não pensei


sobre a maneira que segurava o cabo da espada, ou quantos passos seriam
necessários a fim de fechar a distância até a asura, ou o peso da lâmina ao
levantá-la sobre mim.
“Pegue… A cabeça esquerda.” Seris soltou um suspiro trêmulo.

O instinto empurrou o fogo da alma na minha lâmina para fortalecer o golpe.


Não liguei para o jeito que a lâmina entrou na carne dele, ou o som da cabeça
pousando em um tapete roxo real.

A segunda cabeça soltou um grito gargarejado, e seus olhos rolaram de volta


para sua cabeça. O corpo espasmou, jorrando sangue da ferida aberta, e Cylrit
o liberou.

Orlaeth caiu, imóvel, porém ainda vivo, a mana ambiente sendo puxada como
fôlego para seu corpo.

Coloquei a ponta da lâmina no chão e me inclinei contra ela, respirando


pesadamente. Houve um leve zumbido em meus ouvidos quando a súbita onda
de adrenalina passou e minhas emoções se acalmaram devagar. Os efeitos da
presença do Soberano estavam desaparecendo, me deixando estranhamente
calma, considerando o momento.

Cylrit, já de joelhos, rolou para se deitar de costas ao lado do asura e deixou


seus olhos se fecharem.

“O que fazemos agora?” perguntei desanimada.

A Foice — ex-Foice — limpou o sangue dos lábios. “Agora… Nos preparamos


para a guerra.”

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