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Ecos e Acusações
Não parecia real quando eu pensava assim. Cada pedaço era mais absurdo do
que o outro. Talvez fosse apenas uma visão, disse a mim mesmo, embora
soubesse que não era verdade. Quer fosse algum aspecto da magia da relíquia
ou minha própria intuição, eu sabia que o que tinha visto era real, que tinha
acabado de acontecer.
Tinha que estar. Eu não poderia aceitar um mundo onde ela não estivesse.
Regis esperou com expectativa, quase sem jeito, e eu podia sentir seu desejo
por respostas também.
Embora eu tivesse decidido que Ellie tinha que estar bem – como se minha
própria força de vontade pudesse fazer isso, se eu apenas acreditasse nisso
com força suficiente – eu nem tinha começado a aceitar o que isso significava
para Dicathen, pra guerra… pro mundo.
Olhando mais de perto, notei uma leve rachadura ao longo de um lado, mas
minha mente estava muito pesada para refletir sobre os mistérios da relíquia,
então eu a guardei em minha runa de armazenamento dimensional.
Caera estava parada ansiosamente entre mim e o portão cintilante, seu corpo
tenso e o olhar piscando para trás enquanto ela bloqueava meu caminho. Seus
chifres haviam desaparecido novamente, escondidos pela relíquia que ela
usava, que não estava mais sendo suprimida pelo deserto nevado da última
zona. “Grey, espere.”
Eu estava com raiva, ansioso, cansado e com medo, e uma parte de mim só
queria rastejar em um buraco e negar tudo que a relíquia havia me mostrado.
Mas havia trabalho a ser feito. Eu precisava voltar e me encontrar com Alaric.
Eu precisava de recursos, um plano e precisava voltar para as Relictombs.
Por causa do que vi na relíquia, agora tinha certeza de uma coisa. Os Vritras
não eram o único clã de asuras que era uma ameaça para Dicathen.
Caera saiu do portal ao meu lado. “Droga, Grey, por que você não esperou-”
‘Que baita comitê de boa-vindas,’ Regis refletiu. ‘Acha que isso é tudo para a
senhora demônio aqui, ou…’
“Lady Caera!” Uma mulher com cabelo laranja brilhante amarrado no topo da
cabeça em um coque solto correu através da fila de soldados vestidos de
branco, praticamente deslizando até parar diante de minha companheira.
“Você se machucou? Sofreu? Está com dor?” Ela divagou, seus olhos
arregalados examinando cada centímetro do corpo de Caera.
Apesar de seu cansaço, Caera esboçou um sorriso. “Estou bem, Nessa, de
verdade.”
A voz ressonante ecoou pelo terraço e todos os olhos se voltaram para a fonte.
Eu encarei um alacryano idoso que se adiantou do resto de seus colegas de
túnica.
Memórias dos irmãos Granbehl vieram à tona em minha mente, suas mortes
se repetindo tão claramente quanto no momento em que aconteceram.
Merda.
‘Parece que Caera estava certa,’ refletiu Regis. ‘Deveria ter apenas matado a
garota.’
Isso não é o que Haedrig – não o que Caera disse, e também não ajuda, Regis.
Caera deu um passo à frente, o braço levantado na minha frente. “Grey não foi
o único que os matou.”
O ancião olhou para cima, seus punhos cerrados traindo o respeito forçado
em sua voz. “Temos o depoimento de uma testemunha ocular importante que
diz o contrário, Lady Denoir.”
“Eu mesma sou uma testemunha ocular, assim como Lady Ada do Sangue
Granbehl,” ela rebateu.
A raiva escoou de Caera quando ela deu um passo ameaçador para frente. “Por
direito de quem?”
Caera continuou a discutir, mas estava claro que ela estava perdendo a
batalha.
Minha mente cansada tentou examinar as opções disponíveis para mim. Era
bastante óbvio que eu provavelmente não teria um julgamento justo,
considerando que eles estavam dispostos a renunciar a Caera como
testemunha, e eu não tinha nenhum desejo de me submeter a qualquer tipo
de questionamento por parte dos oficiais alacryanos que pudesse levá-los a
perceber que eu não era quem eu dizia ser.
‘Você não está realmente pensando em seguir com toda essa merda,
certo?’ Regis perguntou, sua irritação crescendo. ‘Apenas me deixe sair e eu
abrirei o caminho.’
Uma voz brilhante e prateada cortou meus pensamentos. “Caera, chega.” A voz
silenciou todos os outros nas proximidades, chamando minha atenção para
uma mulher luxuosamente vestida com cabelos brancos brilhantes. “Estamos
indo embora, querida. Deixe isso para os administradores.”
“Mas, mãe-”
“Agora, Caera.” A autoridade na voz da mulher era absoluta, e Caera desabou
sob a pressão.
“Grey, eu estou-”
Caera se encolheu e correu para seguir sua mãe adotiva, que conduziu os
cavaleiros de armadura branca para longe do portal. Ela lançou um olhar
furtivo para mim, e fiquei impressionado com o quanto ela parecia diferente e
agia na presença de seu sangue.
‘Famílias são estranhas,’ disse Regis. ‘Quer dizer, olhe para toda essa merda
maluca em que você me meteu.’
O orador pigarreou e fez uma careta. “Sangue Granbehl tem todo o direito de
garantir que você seja julgado por seus crimes. Se você fosse membro de um
Sangue Nomeado ou Alto Sangue, poderia ser liberado sob a custódia de seu
sangue para aguardar o julgamento, mas-”
“Bem, uma baita encrenca em que você se meteu, hein, garoto bonito?”
Capítulo 323
Aprisionado
Meus olhos se abriram e me virei para olhar para o “guarda”. Sentado ao meu
lado estava um velho de rosto vermelho, seu cabelo grisalho emaranhado e
saindo em ângulos estranhos. Ele soltou um arroto, enchendo a pequena
carruagem com o fedor de seu hálito alcoólico.
‘O cavalheiro sabe como fazer uma entrada,’ brincou Regis, rindo dentro da
minha cabeça.
Alaric me deu um sorriso meio torto. “Você não achou que eu simplesmente
deixaria você ser preso sem pagar o que me deve agora, não é?”
“Mas você conseguiu alguns elogios lá, certo?” Ele perguntou, seus olhos
injetados de sangue se arregalando. “Sem querer dizer muito bem, mas você
está metido numa merda, lindo garoto – e um pouco de ouro ajudaria muito a
virar as orelhas certas. Ou muito ouro, se você tiver.”
‘Mas o que esse bêbado pode realmente fazer para nos ajudar aqui?’ Regis se
perguntou.
“Agora,” eu disse sobriamente, “o que você sabe sobre este julgamento? Tem
que haver mais nisso do que o que eles estão dizendo.”
Esse garoto Kalon era a estrela em ascensão do Sangue Granbehl, pelo que
ouvi. Bonito, talentoso, bons instintos dentro e fora das Relictombs… você
entendeu.”
“Então, eles estão com raiva por perderem seu herdeiro aparente, mas como
me culpar pelo assassinato dele ajuda?” Eu perguntei, franzindo a testa
através da carruagem para Alaric.
“Não tenho certeza ainda, para ser honesto, mas isso” – ele bateu em seu anel
dimensional, indicando a bainha de joias – “vai ajudar a fazer as línguas
balançarem. Você está certo, no entanto. Não faz sentido à primeira vista.
Provar assassinato nas Relictombs… bem, é muito complicado, especialmente
com apenas uma testemunha ocular.”
“Duas,” eu disse, minha frustração passando para meu tom, “mas eles estão se
recusando a deixar Caera agir como testemunha em meu nome.”
“Caera, não é?” Alaric balançou as sobrancelhas grossas para cima e para
baixo, uma expressão que me lembrou de Regis por algum motivo. “Passou
algum tempo de qualidade com a beleza Alto Sangue nas Relictombs, certo?
Compartilhou algumas noites românticas abatendo feras e, em seguida,
aconchegou-se ao fogo, ainda com a crosta de sangue da luta do dia…” Ele
estremeceu sob o peso do meu olhar fulminante. “Tudo bem, não perca a
razão, garoto. Tudo o que estou dizendo é que sei como fica quando você
enfrenta a morte todos os dias. Ninguém iria culpar você—”
“Alaric,” eu disse, minha voz baixa e calma, mas cantarolando com uma ameaça
óbvia que nem ele poderia perder. “Vá direto ao ponto.”
“Vamos pensar nisso então, vamos?” Ele disse rapidamente. “Alto Sangue
Denoir é mais poderoso que o Sangue Granbehl, mas o último está faminto e
socando acima do seu peso. O que os Denoirs ganhariam ao permitir que sua
preciosa princesa se envolvesse em todo este fiasco de julgamento?”
Ele fez uma pausa, olhando para mim com olhos desfocados. “Qual era a
pergunta?” Ele coçou o cabelo bagunçado. “Ah, claro. Nada, é isso. Eles não
querem que se espalhe que a filha adotiva do nobre Alto Sangue Denoir
escapuliu para as Relictombs com um novato sem sangue. Parece ruim. Tudo
o que eles precisam fazer é deixar os Granbehls comerem você vivo e, pelo
menos para eles, toda a situação vai embora.”
“Mas o que…”
A carruagem deu uma guinada e nosso motorista trocou gritos de insultos com
alguém. Alaric sorriu.
Isso fazia sentido. Seria uma chance de obter algo em troca da morte de Kalon,
pensei.
‘Mas eles ainda precisam provar que foi assassinato, certo?’ Regis apontou. ‘O
que eles não podem fazer, porque, sabe, não foi.’
Você estava me dizendo para lutar para sair há menos de dez minutos, pensei
incrédulo.
‘Ei, não sou nada se não inconsistente,’ respondeu ele, deixando escapar uma
risada latida.
“Você nunca me contou como arranjou isso,” eu disse, acenando com a mão
em sua armadura preta e a carruagem ao nosso redor.
Não consegui ver seu rosto, mas percebi que ele estava sorrindo por baixo do
capacete. “Amigos em lugares baixos, filhote. Não se preocupe, o velho Alaric
vai tirar você disso. Não estou permitindo que você evite me pagar o resto dos
meus quarenta por cento…”
‘Esta pode ser sua última chance,’ sugeriu Regis. ‘Pense em como seria foda se
você quebrasse essas algemas ao meio e colocasse todos esses magos de
joelhos com seus “olhos zangados” antes de simplesmente desaparecer com
God Step.’
Você quer dizer minha intenção etérica? Lutei para evitar que meus olhos
rolassem enquanto eu estava cara a cara com Lord e Lady Granbehl. Seus olhos
estavam vermelhos e eu podia ver anéis escuros sob eles através da
maquiagem que ela usou para pintar o rosto.
A mandíbula de Lord Granbehl se apertou quando ele olhou para mim da beira
da varanda. Eu vi o golpe vindo muito antes de ele desferir, mas não vacilei
quando seu punho pesado desceu, acertando um soco sólido contra minha
têmpora.
“Leve este cão assassino para as celas,” ele ordenou, sua voz crescendo
através do pátio. Os cavaleiros atrás de mim bateram suas lanças contra o solo
duas vezes enquanto meu guarda me puxava pelas algemas para dentro da
casa, ao longo de um corredor bem decorado e descendo um conjunto de
degraus de pedra que levava primeiro a um porão e depois a uma espécie de
masmorra .
Havia quatro celas, todas vazias. Runas foram gravadas ao longo do chão e nas
barras das portas das celas. Eu não conseguia lê-las, mas tinha certeza de que
eram para impedir que as pessoas usassem mana, talvez um backup para as
algemas de supressão de mana.
Em seguida, ele puxou minha capa e camisa para examinar as falsas formas de
feitiço de runas nas minhas costas.
Quando ele terminou, ele me virou bruscamente e olhou para minhas mãos
antes de me dar um olhar enrugado, que – junto com sua construção maciça –
me lembrou do guarda-costas de Caera, Taegan.
“Estava tudo no meu anel dimensional,” menti, “que perdi na última zona que
passamos.”
O grande guarda deu de ombros antes de sair da cela e bater a porta. “Lord
Granbehl descerá em um minuto. Espero que você não se perca aqui.” O guarda
riu estupidamente de sua própria piada enquanto se afastava.
A cela era de pedra sólida sem janelas. Uma cama estreita – pouco mais do
que um pedaço fino de tecido esticado sobre uma moldura de madeira – foi
empurrada contra uma parede. Havia um ralo no canto em vez de um penico.
Era isso.
Peguei a relíquia quebrada, mas ela ainda estava maçante e não reagiu quando
a examinei levemente com éter.
Talvez…
Era pesado e quente, e emanava uma fome dele. Quanto tempo se passou
desde que tentei encher o reservatório com éter? Muito tempo… mas fazer isso
era exaustivo e me deixaria indefeso – e se eu não tivesse éter suficiente, não
iria libertar Sylvie de qualquer maneira.
Mais uma razão para eu voltar às Relictombs o mais rápido possível. Com três
semanas para descansar e planejar, eu deveria estar mais do que preparado
para minha próxima ascensão… embora houvesse uma pequena dúvida
incomodando no fundo da minha mente.
‘Não é exatamente produtivo para nós apenas nos jogarmos de cabeça nas
Relictombs repetidamente procurando por essas outras “ruínas”,’ disse Regis,
dando voz às minhas próprias dúvidas.
Regis ficou em silêncio. A perigosa verdade era que não sabíamos. Havia
muitas perguntas e nenhuma resposta. Apesar de duas ascensões cada vez
mais difíceis, eu não estava mais perto de aprender como controlar o Destino…
ou mesmo o que esse “édito superior” realmente era.
Capítulo 324
Laços de Sangue
CAERA DENOIR
“Sangue Granbehl foi longe demais.” Eu fervi de malícia e mana vazou de mim,
fazendo minha mãe adotiva estremecer. Estávamos nos aproximando do
portão externo do Alto Sangue Denoir feito de pedra branca imaculada e
mármore dentro do segundo nível das Relictombs. “Certamente você não vai
deixar esse insulto assim,” eu disse, minha voz ficando mais baixa e mais
ameaçadora. “Certo?”
“Seria sábio segurar sua língua até que estejamos dentro e longe de ouvidos
curiosos, Caera,” ela respondeu antes de me estudar com um olhar curioso.
“Não é normal você ficar tão emocional por causa de outra pessoa.”
“Corbett, eu-”
“Pai, Caera,” disse ele com firmeza, apontando para a cadeira novamente.
Atravessei a sala em silêncio e me sentei. Corbett olhou para mim. Ele era um
homem imponente: uma imagem clássica do nobre perfeito com cabelo cor de
oliva cortado na moda para emoldurar seu rosto severo e indiscutivelmente
bonito.
Lauden, um clone mais jovem e musculoso do Alto Lorde, cruzou a sala para
se servir de uma bebida em uma garrafa de cristal. Pelas costas de Corbett, ele
ergueu o copo e fez uma saudação sarcástica.
Você sabe tão bem quanto eu o que aconteceria com Alto Sangue Denoir se
você fosse ferida nas Relictombs, especialmente viajando sozinha, sem
qualquer tipo de guarda. Cumprimos seus desejos impróprios de testar a si
mesmo nessas ascensões para, talvez, manifestar seu sangue Vritra, mas isso
foi uma traição direta à nossa confiança.”
Eu deixei meu olhar deslizar para frente e para trás entre eles. Corbett estava
se preparando para me dizer algo, mas eu já conseguia adivinhar o que era.
“Eu entendo que traí sua confiança, e estou disposta a aceitar qualquer
punição que você achar conveniente, mesmo que você decida me banir das
Relictombs,” eu disse em um tom profissional. No entanto, é essencial que eu
continue a me desafiar se vou manifestar completamente minha
ancestralidade Vritra, algo que você deseja tanto quanto eu, se não mais.”
Talvez isso pareça um pouco conveniente demais, percebi, mas tarde demais.
“Se você realmente se preocupa com minha segurança e bem-estar” – fiz uma
pausa, as palavras seguintes ficaram presas na minha garganta – “por favor,
ajude-o.”
“Pelo amor de Vritra, é só nisso que você pensa?” Eu vociferei, minha mana
vazando apesar do meu aperto firme sobre ela. Isso me rendeu uma carranca
de Corbett, mas também havia um toque de cautela, até mesmo medo. Lenora
soltou um tsk desaprovador. “Como se parece se o Alto Sangue Denoir recuar
e deixar um mero sangue nomeado falsamente acusar e aprisionar o homem
que salvou minha vida?”
“Não é tão ruim quanto pareceria ter nossa filha adotiva arrastada diante de
um painel de juízes em uma disputa mesquinha entre casas inferiores,” Corbett
rebateu, sua voz profunda em um grunhido. “Além de que -”
Parado na porta estava meu mentor. Seu cabelo cor de pérola estava
elegantemente puxado para cima entre seus chifres de obsidiana, e ela estava
vestindo um manto de batalha preto esvoaçante e uma expressão imperiosa.
“Foice Seris Vritra, não estávamos esperando por você,” disse ele, sua voz
alguns passos mais aguda do que o normal.
Sempre gostei de ver Corbett lutar para manter seu porte real enquanto se
dirigia à Foice, especialmente quando outros estavam assistindo. Até o Alto
Lorde e Lady Denoir não puderam deixar de se curvar sob o peso de sua
presença.
“Alto Lorde Denoir,” disse ela friamente, interrompendo-o de modo que sua
boca se fechasse com um estalo audível. “Enviarei Caera ao seu escritório
assim que ela e eu terminarmos.”
“Como desejar… Foice Seris Vritra.” Corbett fez uma reverência profunda e
fugiu da sala, arrastando Lenora atrás dele.
Foice Seris voltou seu olhar pesado para Lauden, que ainda estava de pé ao
lado do armário de bebidas com um copo cheio na mão. Ele recuou quando
percebeu que já deveria ter ido, então rapidamente entregou o copo dela
antes de praticamente se teletransportar para fora da sala em sua ânsia de
fugir.
Minha mentora devia estar esperando que eu voltasse e teria sido informada
imediatamente quando eu saísse do portal das Relictombs. Eu dei a ela um
sorriso caloroso, algo que reservei para poucos.
“Não fique tão feliz em me ver, garota,” ela disse, mas seu comportamento
relaxado foi o suficiente para me dizer que ela não estava aqui para
repreender sua pupila. “Sente-se. Acho que temos muito o que conversar.”
Eu balancei a cabeça, ansiosa para contar a ela tudo sobre isso, mas
entendendo que havia um ritmo em nossas conversas. Seria altamente
inapropriado começar minha história antes de permitir que ela guiasse a
conversa lá, o que eu sabia que ela faria em seu próprio tempo.
“Grey, não é?” Ela perguntou, girando sua bebida pensativamente. “Você
descobriu o sangue dele?”
Eu abri minha boca para deixar escapar a primeira coisa em minha cabeça,
mas me parei e levei um momento para organizar meus pensamentos em
algum tipo de ordem sensata.
“Ele é intenso, quase como uma força da natureza… e ainda mais estranho e
poderoso do que eu te disse. Era óbvio que, apesar de suas demonstrações de
força na zona de convergência onde nos conhecemos, ele estava se segurando.
Exceto, ele estava se segurando muito mais do que eu poderia ter imaginado.”
Fiz uma pausa, considerando suas habilidades incomuns – e sua falta de mana.
Seria de alguma forma uma traição contar isso à minha mentora? (NT do
tradutor: JAMAIS, CAERA!) A qual deles devo minha lealdade, realmente?
Minha mentora não ficou zangada nem surpresa com minha declaração
ousada. Ela ficou ainda mais intrigada.
“Ele… não usa mana para controlá-la,” eu disse hesitantemente. “E ele pode
fazer coisas que dificilmente fazem sentido. Eu o vi se teletransportar e
regenerar membros – até mesmo voltar no tempo, de certa forma.”
Foice Seris se inclinou para frente, o dedo em forma de haste na frente dos
lábios. “Fascinante. Então, como ele faz isso se não com mana?”
“Éter,” eu disse, sentindo uma pontada de culpa agora. Ele tinha me contado
essas coisas em segredo, mas… eu não podia mentir para Foice Seris. Sobre
coisa nenhuma.
“Talvez ele pudesse ser… algo como eu?” Foi um pensamento estranho e
emocionante. Embora houvesse outros alacryanos de sangue Vritra, eu os
encontrei raramente e certamente nunca senti qualquer tipo de afinidade com
eles. “Um humano de sangue Indrath?”
“Não,” disse ela, dispensando a ideia sem pensar um segundo. “Os dragões
nunca permitiriam que isso acontecesse. Eles são puros demais para cruzar
sua linhagem com meros seres menores.” Ela se inclinou para frente
novamente, seus olhos escuros cavando em mim. “Conte-me sobre sua
ascensão. Não deixe nada de fora.”
“Sim, mesmo nas coisas mais simples. Como já mencionei, quando nos
conhecemos, ele fez todo tipo de perguntas estranhas, mas soou quase como
se ele estivesse nos testando. Conversamos muito em nossa jornada e fiquei
continuamente surpresa com o que ele não sabia.”
“E quando ele descobriu sobre sua identidade? Quando ele soube como você
o rastreou?”
“Eu pensei que ele fosse me matar no começo, mas… bem, ele obviamente não
me matou. Ele parecia apavorado de que alguém pudesse rastreá-lo… mas
então o medo desapareceu com a mesma rapidez, uma vez que ele entendeu
que só eu poderia usar isso.”
“Eu estava apenas curiosa sobre sua aparência física, mas se você deseja
divulgar seus sentimentos por ele, eu ouvirei.”
Soltei uma risada assustada. “M-meus sentimentos? Achei que você estaria
interessada em saber que tipo de pessoa ele é.”
Eu franzi minhas sobrancelhas, fazendo beicinho. “Não sei o que fiz para
merecer tamanha provocação, Foice Seris.”
A Vritra de cabelos perolados soltou uma risada melódica, um som que poucos
tiveram a honra de ouvir, antes que ela erguesse a mão de forma apaziguadora.
“Independentemente de seus sentimentos por este ascendente, ele parece
estar trilhando um caminho de adversidades e tragédias.”
Eu queria discutir, mas suas palavras soaram verdadeiras. Grey era claramente
perito em colocar ele mesmo, e aqueles ao seu redor, em problemas, no
mínimo. “Ainda, ao mesmo tempo, você encontrará poucos que podem igualar
a sua mente ou suas habilidades mágicas, Caera. Talvez possamos ajudar seu
misterioso amor.”
“Ele não é meu amor,” gaguejei, mas meu coração disparou no peito. Se alguém
podia ajudar Gray a escapar do Sangue Granbehl, era Foice Seris. Ela poderia
acabar com essa farsa de julgamento com um estalar de dedos.
“Mas esse misterioso ascendente… por que esse ‘Grey’ soa cada vez mais
como-” Os olhos penetrantes de minha mentora se arregalaram de repente, e
um sorriso conhecedor floresceu em seu rosto perfeito. “Então você realmente
não caiu…”
Capítulo 325
Sem dor
O grande punho de Lorde Granbehl atingiu meu lado. Seus guardas ficaram ao
meu redor, me segurando pelos braços com minhas mãos ainda algemadas. O
próximo golpe foi em meu rosto, depois uma série de socos em minhas
costelas novamente.
Fazia três dias desde que eu saí do portal e entrei direto nesta confusão
política. Todos os dias, o pai de Kalon me visitava para fazer uma pergunta: eu
matei seus filhos? E todos os dias, quando eu dizia que não, ele passava alguns
minutos me batendo antes de sair. O resto do meu tempo foi gasto sozinho
com Regis e meus pensamentos.
Não foi ruim, de jeito nenhum. Meu novo corpo de asuran era mais do que
capaz de absorver alguns socos, e até agora também não houve interrogatórios
demorados. A pior parte foi a expectativa… não do julgamento, mas sobre Ellie.
O velho que havia liderado minha prisão, que eu descobri como mordomo de
Lorde Granbehl, apareceu na porta apenas o tempo suficiente para acenar
para os guardas me soltarem, e em instantes eu estava sozinho de novo.
‘Por mais divertido que seja vê-lo fingir ser um saco de pancadas, estou
entediado,’ pensou Regis no momento em que os guardas fecharam a
porta. ‘Vamos mesmo fazer isso por três semanas inteiras?’
Depois de olhar para fora da porta gradeada para ter certeza que o guarda no
final do corredor não poderia ver minha cela, eu deitei na cama e retirei o
brinquedo duro de fruta da minha runa dimensional. O barulho da semente
chacoalhando dentro dele imediatamente me levou de volta à vila no topo da
montanha nevada onde eu havia treinado com Three Steps.
‘Você esteve fazendo isso por horas,’ resmungou Regis. ‘Você não se cansa
disso?’
Não exatamente. Isso me dá algo para focar… para ocupar minha mente, eu
acho.
Eu revirei os olhos. Sim, Regis. Manipular o éter em uma arma sólida e mortal
é exatamente como tricotar. Eu pretendia voltar à minha prática, mas passos
na escada me disseram que alguém estava vindo.
O mordomo apareceu mais uma vez. Ele me deu um sorriso malicioso quando
percebeu meu óbvio desconforto. “Oh, sinto muito, Ascendente Grey, eles se
esqueceram de mencionar a porta? As barras são fortemente encantadas
contra o contato físico – para garantir que nossos hóspedes não tentem se
libertar, é claro.
Eu fiz o que ele pediu. O ancião acenou com a mão e a parede atrás de mim
começou a se mover. As restrições apareceram, crescendo fora da pedra e ao
redor de minhas pernas e braços, prendendo-me na parede.
“Não se preocupe em lutar,” disse ele com segurança. “Essas algemas foram
projetadas pelos melhores Instiladores no Domínio Central. As correntes e
suas amarras são inquebráveis.”
Testei sua força, flexionando meus braços e ombros até que a pedra
começasse a tremer.
Seu sorriso vacilou. “Eu percebo, Ascendente Grey, que seu tempo nas
Relictombs provavelmente o inoculou contra o medo básico, e você já se
mostrou um adepto de resistir à dor. Admito que Lorde Titus está muito
frustrado com sua falta de expressividade. Ele gostaria de ver você se
contorcer, para usar a palavra dele.”
O ancião se afastou para que outro homem pudesse abrir a porta e entrar na
cela. Este homem era alto e esguio. Ele usava uma armadura de couro escuro
com tachas de ouro que cheiravam fortemente a óleo, que combinava com seu
cabelo preto oleoso e o anel de ouro em sua orelha.
“Por onde devo começar, Mestre Matheson?” Ele perguntou em uma voz alta e
afetada enquanto seus olhos negros percorriam meu corpo.
O velho torceu o nariz para o torturador. “Oh, eu não teria a pretensão de dizer
a você como fazer seu trabalho. Basta fazê-lo falar.” Matheson encontrou meus
olhos por trás do torturador. “Estarei de volta em, digamos, vinte minutos para
o interrogatório.”
‘Ugh, isso foi tão estranho que fez meus dedões do pé inexistentes se
curvarem,’ Regis gemeu.
Minha falta de resposta não pareceu incomodar Petras. Ele sacou uma adaga
de aparência perversa com um floreio e, no mesmo movimento, passou a
lâmina pelo meu braço. Estava tão afiada que quase não senti.
Meu companheiro flutuou através do meu corpo até o meu pé, e o gotejar lento
do éter redirecionou, puxado em sua direção por qualquer força gravitacional
que ele tinha sobre ele.
O segundo corte foi mais lento para cicatrizar. Petras não fez um terceiro
imediatamente, em vez disso observou com interesse enquanto o éter restante
costurava minha carne novamente. Para mim, a cura foi lenta, mas comparada
a uma pessoa normal, ainda era incrivelmente rápida.
Ele passou um dedo áspero sobre onde o corte havia desaparecido sem nem
mesmo uma cicatriz.
Franzindo a testa, o torturador segurou a parte plana de sua lâmina nas costas
da minha mão. A adaga começou a brilhar em brasa, minha pele chiando e
estourando e enchendo a cela com o fedor de carne queimada.
Eu deixei minha mente escapar da dor, meditando sobre meu núcleo e o éter
girando dentro dele, o qual eu segurei o mais forte que pude. Um pequeno
riacho estava vazando, meio puxado em direção a Regis, mas alguns viajando
ao longo de meus canais de éter em direção à minha mão.
Quando Petras ergueu sua adaga brilhante, a marca de queimadura que ela
havia deixado era uma cicatriz profunda em minha carne imaculada. Em vez
de doer, porém, eu só senti uma espécie de formigamento quando o éter
começou a reparar o dano, mas estava trabalhando ainda mais lentamente
agora no ferimento maior.
Ele jogou a adaga, a lâmina ainda brilhando, no canto e estalou os nós dos
dedos.
“Normalmente eu guardo isso para mais tarde, mas…” Ele me deu um sorriso
malicioso. “Posso dizer que você precisa de… tratamento especial.”
‘Ooh Arthur, tratamento especial. Acho que ele gosta de você,’ provocou Regis.
A sugestão de um sorriso cruzou meu rosto. Petras fez uma careta furiosa em
resposta.
“Acha que isso é engraçado, Ascendente Grey?” Ele perguntou, sua voz ficando
ainda mais alta. “Para a dor, então!”
Seus dedos ossudos se agarraram com força aos meus, e uma espécie de
alegria selvagem tomou conta dele. Eu poderia dizer pela concentração em seu
rosto que ele estava lançando um feitiço, mas nada aconteceu, mesmo quando
o suor começou a escorrer por seu rosto e cada respiração se tornou um
suspiro desesperado.
A queimadura nas costas da minha mão ainda estava curando e Petras não
parava de olhar para ela, sua expressão se tornando mais frustrada a cada
segundo.
Ele segurou minhas mãos assim por mais um minuto antes de jogá-las no chão
com nojo. “Isso não é possível!” Ele gritou, indo e voltando pela pequena cela.
“Totalmente impossível!” Ele se virou para mim, olhando ferozmente. “O que
diabos você é?”
Sibilando, Petras agarrou sua adaga do chão, deu dois passos rápidos em
minha direção e cravou a arma em meu lado, logo abaixo das minhas costelas.
Embora não estivesse mais brilhando, ainda estava muito quente e eu podia
sentir isso queimando dentro de mim.
Seus olhos negros como um besouro procuraram os meus por qualquer indício
de dor ou medo com que ele pudesse se consolar, mas eu não dei nada a ele.
Ele arrancou a adaga e olhou para o ferimento. Eu deixei o éter fluir livremente.
Metade ainda se filtrou para baixo em direção a Regis, mas o resto foi para o
corte profundo na minha lateral. Lentamente, começou a cicatrizar. Por fim,
Petras desabou na minha campa esfarrapada e se afundou nela. Ele ficou
assim por alguns minutos, silenciosamente olhando para o teto baixo.
“Eu nunca vi ninguém curar tão rápido quanto você, e ainda assim sua mana
não reage ao meu brasão. Meu toque deve colocar todos os nervos do seu
corpo em fogo, se você tiver qualquer mana em você. Não entendo.” Ele virou
a cabeça para me encarar. Sua fúria se transformou em uma curiosidade
cautelosa. “É um emblema? Uma… uma regalia? Disseram-me que suas runas
eram vagas, mas nada incomum.”
“Um homem misterioso…” Petras disse baixinho, olhando para o teto. “Nada a
fazer, então, a não ser ver o quão forte é essa habilidade.”
O torturador rolou para fora da cama e sacudiu sua adaga com um sorriso
maldoso.
***
O velho, Matheson, pareceu surpreso com meu estado. Ele olhou para Petras,
mas o magro alacryano apenas encolheu os ombros se desculpando. “Você
pode se retirar. Espere no corredor.”
“Ascendente Grey,” ele começou, “Eu gostaria que você me explicasse por que
você assassinou Lord Kalon do Sangue Granbehl, Lord Ezra do Sangue
Granbehl e Lady Riah do Sangue Faline. Por favor, não poupe detalhes.”
Falando o mais calma e francamente que pude, disse, “Eu não matei ninguém.
As Relictombs provaram ser muito mais difíceis do que Kalon havia previsto, e
eles caíram nas mãos dos monstros lá dentro.”
Ele deu um passo mais perto. “Este ataque foi de natureza política? Você é um
assassino enviado por um sangue rival?”
“Se eu fosse, fiz um péssimo trabalho vendo que deixei uma testemunha
ocular.”
Finalmente, Matheson se virou para sair da cela, mas parou na porta. “Ah, sim.
Mais uma coisa, Ascendente Grey. Onde você escondeu seu anel dimensional?”
“Eu o perdi,” respondi em tom de pesar, “junto com todos os meus pertences.
Mas eu já disse isso ao guarda.”
“Entendo. Muito bem então.” Matheson saiu sem dizer outra palavra, fechando
a porta da cela com um barulho forte atrás de si.
Regis, que tinha estado estranhamente quieto durante a tortura e a entrevista
seguinte, despertou dentro de mim. ‘Você está bem?’
Está recarregada!
Não havia dúvida. Cerrando a relíquia em meu punho, pensei no nome de Ellie.
A névoa branca girou pela superfície da pedra, e eu não fui imediatamente
atraído como antes. Fechando meus olhos, me concentrei mais, imaginando
seu rosto e entoando seu nome em minha mente: Eleanor Leywin, Eleanor
Leywin… Ellie…
Mesmo que meus olhos estivessem fechados, eu senti minha percepção mudar
repentinamente. A presença de Regis se foi, assim como a sensação de pedra
fria sob meus pés.
Capítulo 326
Repercussão
ELEANOR LEYWIN
Eu cerrei os dentes, tentando manter o foco através da dor latejante que cobria
cada centímetro do meu corpo, enquanto o Comandante Virion se dirigia a
todos os presentes. Mamãe foi muito teimosa em seus esforços para me
manter em casa na cama, mas eu não poderia perder a reunião do conselho.
Eles estavam esperando que eu melhorasse para que eu pudesse dizer a eles
o que aconteceu depois que todos os outros se teletransportaram de volta
para o santuário de Elenoir… e por que Tessia nunca havia retornado.
“—Leanor?”
Virion pigarreou. Ele parecia …velho. Velho e cansado. “Você gostaria de contar
ao conselho sobre sua missão em Elenoir?”
Houve um leve estalo atrás de mim e um coro de gritos encheu a sala. Kathyln,
que estava sentada bem ao meu lado, respirou fundo surpresa. Seu irmão
tinha metade da espada fora da bainha antes de perceber o que estava
acontecendo.
Lord Bairon estalava com uma energia estrondosa, mas recuou quando me
virei e descansei a mão na criatura peluda que se manifestara atrás de mim.
Ele grunhiu de uma forma que me disse que não sentia muito, então se deitou
na frente da porta em arco.
Helen Shard deu a volta na mesa para colocar a mão no meu ombro. “Ninguém
poderia ter feito mais, Eleanor. O que você conquistou… francamente, é
incrível.”
Eu ainda podia imaginar claramente como os servos élficos olharam para mim
enquanto eu tentava e falhava em ativar o medalhão de Tessia e levá-los todos
comigo. Eles sabiam que eu não poderia fazer isso. Eles sabiam que iam
morrer. Então a parede de luz passou por mim e tudo ficou rosa.
Por alguns segundos, eu pude ver o mundo sendo despedaçado ao meu redor
através da concha de azulejos rosa de energia conjurada pelo pingente de
fênix wyrm. Os alacryanos, os elfos, as arquibancadas, o pequeno palco, a
mansão… tudo desapareceu em um piscar de olhos. E então eu também.
“Nós sabemos – quão grande foi a explosão?” Uma voz trêmula perguntou. Foi
um dos elfos que resgatamos, o homem que conhecia Tessia e Kathyln: Feyrith.
“Como assim ‘se foi’? Um país não pode simplesmente desaparecer!” Feyrith
argumentou.
“Bem, desapareceu.” A Lança olhou atentamente para o elfo. “Nada resta entre
as Clareiras da Besta e a costa norte, a não ser uma terra devastada queimada
e retorcida.”
O jovem elfo tinha ficado pálido como um fantasma, mas parecia congelado,
sua boca entreaberta, os nós dos dedos brancos de agarrar a borda da mesa.
Uma mulher élfica, cujo nome eu não conseguia lembrar, embora ela estivesse
no santuário desde o início, começou a soluçar.
“Mas os asuras-” Curtis começou a dizer, sua voz baixa e cheia de energia
crepitante.
“Foram e ainda são nossos aliados,” Virion disse com firmeza. “Apesar das
aparências, não acreditamos que a maior parte da destruição foi causada pelo
ataque dos asuras, que pretendia apenas destruir os alacryanos reunidos em
Eidelholm.”
Da porta atrás de mim, uma voz suave disse, “Como você poderia saber disso?”
Ele se segurou sem jeito, inclinando-se para o lado direito. Ele havia se
machucado gravemente durante a luta contra o retentor; Fiquei meio surpreso
ao vê-lo já de plantão.
Albold continuou, sem esperar por uma resposta à sua pergunta. “Ellie viu o
asura conhecido como Aldir iniciar o ataque com seus próprios olhos.”
Eu não conseguia ver o rosto de Virion, mas podia ouvir o rosnado baixo de
raiva em sua voz. “Esta é uma reunião fechada do conselho, Albold. Volte para
o seu posto. Nós vamos discutir isso mais para a frente.”
Abaixei-me para coçar Boo antes de girar lentamente de volta para encarar os
outros.
Feyrith se levantou. Suas pernas estavam um pouco trêmulas e ele teve que se
apoiar com uma das mãos na mesa. “Comandante Virion, se o General Bairon
estiver correto, então nossa terra natal… a vasta maioria do povo élfico…” Ele
fez uma pausa e respirou fundo. “Alguém tem que responder por esta
atrocidade. Sabemos que os alacryanos são nossos inimigos, mas que prova
temos de que os asuras ainda são nossos aliados?”
A raiva que subitamente tomou conta de Virion com a intrusão de Albold foi
embora com a mesma rapidez. Ele acenou para Feyrith se sentar. “Eles têm
sido desde o início, Feyrith. Não se esqueça de que eles nos salvaram da
traição do Rei e da Rainha Greysunders. Eles guiaram o esforço de guerra nos
primeiros dias, antes que soubéssemos contra o que estávamos lutando. Eles
tentaram acabar com a guerra antes que ela começasse.”
“Essa é uma maneira estranha de dizer que eles nos traíram quando atacaram
os Vritra pelas costas do Conselho, um ato que os forçou a um acordo para
parar de nos ajudar totalmente e resultou na queda de Dicathen,” disse Curtis.
Embora ele mantivesse a voz calma, as bochechas do príncipe ficaram
vermelhas e ele estava olhando fixamente para Virion.
Virion acenou com o argumento de Curtis de lado. “Um ato que, se tivesse sido
bem-sucedido, teria salvado Dicathen. Os líderes tomam decisões, Curtis, você
sabe disso tão bem quanto eu, e nem todas essas decisões terminam da
maneira que esperamos.”
Madame Astera se inclinou para frente, sua perna falsa estendida de forma
não natural para um lado da cadeira. “Mas como os alacryanos fizeram isso,
então? Se você está me dizendo que nosso inimigo tem o poder de varrer
países inteiros, por que não fizeram isso antes? E que esperança temos de
derrotá-los?”
Virion acenou com a cabeça. “Essa é uma pergunta melhor. Para a primeiro,
ainda não sabemos, mas acho que podemos adivinhar o motivo de não fazê-
lo antes. Afinal, eles queriam dominar Dicathen, não queimá-la até o chão.”
“De fato, o quê?” Virion disse, e eu não pude deixar de notar que ele nem
mesmo tentou responder à pergunta.
“Não fale comigo como se eu fosse um espectador, garoto. Eu, também, sou
um elfo! Aquele que acaba de perder o próprio país em que cresceu, pelo qual
lutou duas guerras!”
“Os asuras são agora nossa única esperança de recuperar Dicathen. Eles
correram um grande risco para atacar os alacryanos em Elenoir, um ato que
teria quebrado o controle de Agrona sobre nossa terra natal, mas os Vritra
sabiam disso. Em vez de permitir que Elenoir fosse retomada, os Vritra a
destruíram totalmente.”
Como se estivesse lendo meus pensamentos, ele disse, “A anciã Rinia veio até
mim com uma visão.” A voz de Virion era afiada e decidida, como se aquelas
palavras explicassem tudo. “Ela me disse que os asuras de Epheotus viriam em
nosso auxílio, mas que o Clã Vritra esperava que seu acordo fosse quebrado e
voltaria o ataque contra nós. Ela disse que eles tentariam fazer parecer que os
asuras eram nossos inimigos, mas não são.”
Até Bairon pareceu surpreso ao ouvir essa notícia. Curtis e Kathyln trocaram
olhares, enquanto os elfos se apoiavam uns nos outros.
Isso não é justo, eu queria dizer. Sem a vidente, Tessia, minha mãe e eu
teríamos sido capturados pelos alacryanos há muito tempo. Mas eu mordi meu
lábio e segurei porque Madame Astera não era a única que se sentia assim.
Era parte do motivo pelo qual a Anciã Rinia escolheu se isolar tão
profundamente nas cavernas. Porque quando as pessoas descobriram o que a
Anciã Rinia sabia – e o que ela poderia ter feito -, nunca mais olharam para ela
da mesma forma.
Eu pensei – esperava – que Virion pudesse ficar chateado com Madame Astera,
mas ele apenas balançou a cabeça e parecia ainda mais cansado. “Não é culpa
dela, Astera, embora eu saiba que pode ser difícil confiar nela. Rinia tem se
sacrificado muito para nos ajudar no que puder, e isso tem cobrado um preço
terrível para ela.”
Percebi com uma pontada de culpa que tinha esquecido inteiramente esse
aspecto das habilidades mágicas da Anciã Rinia; ela trocava sua própria força
vital para ver nossos possíveis futuros. “Ela está bem?” Eu perguntei, minha
voz soando muito baixa.
Virion segurou meu olhar por vários segundos antes de responder. “Ela está
perto do fim de seu poder, eu temo.”
Ela parecia muito saudável para mim. Não duvidei das palavras de Virion, mas,
ao mesmo tempo, tive dificuldade em imaginar a saúde da elfa idosa piorando
tão rapidamente.
E o que ela estava procurando quando teve essa visão? Quando perguntei a ela
sobre nossa missão, ela me deu um vago aviso sobre o custo ser mais do que
Virion queria pagar. Eu pensei que ela estava falando sobre Tessia… mas ela já
tinha visto o ataque asuran em Elenoir, e significava perder o país inteiro em
vez disso? Mas se fosse esse o caso, por que ela não me disse mais na época?
Ela acabou de ver mais tarde?
Odeio esse lixo de visões do futuro, pensei miseravelmente. Isso nunca fez
sentido.
Decidi ir vê-la novamente e voltei minha atenção para a reunião, mas a reunião
parecia ter acabado. Todos os outros pareciam tão pegos de surpresa pela
dispensa repentina quanto eu.
Seguimos pelo corredor e passamos pela pesada aba de couro que servia de
porta. Albold não estava em seu posto quando saímos, mas a outra guarda,
Lenna, me deu um aceno firme enquanto passávamos.
“Não olhe para mim. Eu disse para você esperar lá fora,” eu disse, esperando
que ele me alcançasse. Quando ele o fez, enrosquei meus dedos em seu pelo
denso e o deixei me apoiar enquanto caminhávamos.
“Eu sei que você não se sente assim, Ellie, mas… você fez bem,” disse Helen
quando voltamos a conversar.
“Uma coisa que eu realmente não entendo”, disse Helen, seu tom coloquial.
“Como o Boo escapou? O pingente que Arthur deu a vocês trouxe vocês dois
de volta?”
Eu não respondi de imediato. A verdade era que tudo depois que Aldir e
Windsom apareceram em Elenoir foi uma espécie de borrão. Boo estava
escondido na floresta ao redor de Eidelholm e deveria ter sido morto, mas…
quando voltei para o santuário, ele estava bem ao meu lado.
Eu balancei minha cabeça, permitindo um leve sorriso. “Eu não acho que era o
amuleto da fênix wyrm, e isso definitivamente não era algo que eu estava
escondendo de todos. Para ser honesta, eu nunca realmente descobri que tipo
de besta de mana ele é, então não temos certeza de quais são seus poderes.”
Ele gemeu atrás de nós. “Sim, estamos falando de você. Desde que voltamos,
sempre que fico… estressada ou com um pouco de medo, ele
simplesmente pula bem ao meu lado. Então deve ser assim que ele escapou.
No entanto, ele tira minha própria mana e quase me matou com a reação…”
Desde Elenoir, eu sentia que havia um tipo de rachadura que percorria todo o
meu interior, e ficava um pouco maior com cada coisa legal que alguém me
dizia. Eu não me sentia como Arthur. Eu não era heróica, ou corajosa, ou
talentosa, ou poderosa… se eu fosse, então poderia ter feito algo. Eu poderia
ter resgatado Tessia, ou salvado aqueles elfos ou…
Arthur poderia tê-los impedido de destruir Elenoir? Eu pensei.
“Ei, olha pra mim.” Helen segurou meu queixo firmemente em sua mão e puxou
minha cabeça para que nossos olhos se encontrassem. “Não se culpe por tudo
que deu errado e não se recuse a aceitar onde você ajudou as coisas a darem
certo. Sua missão – você, Ellie – salvou muitas pessoas.”
“Eu sei,” eu disse, mas as palavras saíram meio engasgadas quando minha
garganta apertou e meus olhos começaram a transbordar de lágrimas. “Eu só
– eu…”
“Por que eu não levo você para conhecer algumas daquelas pessoas que você
salvou?” Helen disse suavemente. “Lembre-se para o que tudo isso foi.”
Capítulo 327
Suficiente por Agora
ARTHUR LEYWIN
Forcei minha mão a relaxar em torno da relíquia, com medo de que ela se
espatifasse dentro do meu punho cerrado, e retirei minha consciência. Meus
olhos se abriram para revelar a pequena cela na mansão dos Granbehls
enquanto um largo sorriso se espalhava pelo meu rosto.
O quê?
‘Nada’ disse Regis com um encolher de ombros. ‘Só sinto pena do pobre
coitado que tentar realmente se casar com sua irmãzinha no futuro.’
A tensão e o medo que agarraram meu peito como uma garra de ferro se
afrouxaram e eu fui capaz de respirar plena e profundamente de novo agora
que sabia que minha irmã estava bem.
Como ela pode ser tão imprudente a ponto de fingir ser de uma raça de pessoas
sobre as quais ela nada sabe e se infiltrar em sua base de operações? Eu pensei
com um suspiro.
‘Você está sendo deliberado aqui ou está apenas cego para a hipocrisia?’ Regis
perguntou.
Já era ruim o suficiente que o nome de Elijah tivesse aparecido dos lábios de
Ellie. A memória daquela última batalha com meu amigo reencarnado e a
Foice, Cadell, estava confusa, mas sua animosidade beirando o ódio por mim
era clara, e me deixou doente sabendo que ele tinha estado tão perto de minha
irmã.
Mas não foi até que Virion começasse a falar que as coisas ficaram confusas.
Mesmo que eu não tenha conseguido entender cada palavra que ele disse, seu
relato do ataque foi claramente diferente do que eu tinha testemunhado.
‘Huh. Bem, eu acho que você não pode culpar um cara por querer negar que
não é apenas um clã asuran que quer todos vocês mortos.’ Regis interrompeu.
Não acho que era tão simples quanto estar em negação. Ele parecia tão seguro
por algum motivo.
Talvez, respondi, mas não estava convencido. Rolei para a posição sentada e
descansei meus cotovelos nos joelhos. Ele poderia ter entendido mal o aviso
de Rinia, ou talvez ele apenas esteja errado. Não tenho certeza se teria
acreditado também, se eu não tivesse visto Aldir fazer isso.
A segurança e a saúde de Ellie tiraram um peso enorme dos meus ombros, mas
também me senti agridoce. Um país inteiro, que eu visitei várias vezes, foi
destruído completamente.
Quantos morreram no ataque dos asuras? Quantos elfos não puderam ser
evacuados durante o ataque inicial dos alacryanos?
E quanto a Tessia?
A batalha de Tess contra Lorde Aldir e Windsom, lado a lado com Nico, se
repetiu em minha mente. Eu imaginei a maneira como ela lutou, como ela se
moveu tão desajeitadamente, como se ela estivesse tendo problemas para
controlar seu próprio corpo, e como Nico a defendeu, colocando-se entre ela
e os ataques de Windsom.
Nos últimos momentos antes de Sylvie se sacrificar por mim, a memória que
eu estava enterrando tão desesperadamente, ressurgiu:
“Você disse que pegar Tess não vai trazer Cecilia de volta, certo? Bem, e se
for?” Nico tinha me perguntado.
Assistindo isso acontecer, vivendo com aquela raiva, medo e culpa enquanto
me tornava rei e me desligava da minha antiga vida… Eu não poderia culpar o
ressentimento de Nico.
Culpar Agrona pelo estado atual de Nico era fácil, mas também fui eu tentando
transferir a culpa. Provavelmente, o Vritra só poderia manipulá-lo por causa
de nossos laços em nossa vida anterior.
Agora, Nico queria Cecilia de volta… mas tinha que haver mais em toda essa
coisa de reencarnação do que apenas isso. Agrona era calculista e
manipulador – eu não conseguia imaginá-lo sem fazer nada que não fosse um
benefício para si mesmo ou para seu objetivo. Ele não teria prometido
reencarnar Cecilia apenas para fazer Nico feliz.
Claro, ele pretende usá-la. Assim como Vera me usou. Tudo que Cecilia queria
era paz, por isso ela tinha…
A Anciã Rinia havia dito que precisávamos manter Tess longe de Agrona, que
tudo dependia disso. Não se trata de Nico. É sobre Cecilia.
Quão forte seria Cecilia – este assim chamado “legado” – neste mundo?
Mas nada disso responde à pergunta, por que Indrath escolheria atacar agora?
A menos que – eu engoli um caroço na minha garganta – Agrona tivesse
sucesso.
Mesmo se Tess fosse agora… Cecilia, isso não mudava o fato de que eu
precisava fazer esse teste para me mover livremente em Alacrya. Eu não podia
correr o risco de enfrentar Agrona e os Vritra e Foices antes de estar pronto.
O que você acha, Regis? Eu perguntei, ansioso para ouvir qualquer pensamento
além do meu.
‘Que a resposta que vou dar não é a que você quer ouvir,’ respondeu ele
rispidamente.
‘Bem, há uma boa chance de sua amada ter sido apagada e substituída pela
garota superpoderosa que você assassinou em uma vida anterior. É isso?’
Eu mordi de volta minha resposta irritada imediata. Sim, Regis, como você
disse com tanta eloquência, mas o que posso fazer a respeito?
‘Um burro gnorte que passa pode lhe dizer que não há absolutamente nada que
você possa fazer a respeito disso agora’ interrompeu meu companheiro. ‘Você
está tentando resolver um quebra-cabeça com metade das peças. Nesse ritmo,
você receberá a resposta errada ou terá um colapso mental ao tentar.’
Passei meus dedos pelo meu cabelo, mais uma vez me lembrando de quão
longe eu tinha ido – o quanto havia mudado – desde que vim a este mundo.
‘Então você perde,’ disse ele categoricamente. ‘Mas lembre-se do que o djinn
disse, Agrona não tem percepção do éter como você, e é por isso que você ainda
tem a chance de vencê-lo. Por que desistir disso para tentar fazer exatamente
o que Agrona vem fazendo há séculos para tentar vencer?’
A raiva veio de meu companheiro ‘Não, não, você não está me ouvindo. Você –
espere, você acabou de dizer que estou certo?’
Balancei a cabeça.
‘Obrigado… não, quero dizer, claro que estou certo,’ continuou Regis. ‘Além
disso, enquanto você está realmente me ouvindo, para variar, não acho que
aquela relíquia vá fazer bem para sua saúde mental, se é que você me entende.
Não fique viciado em espionar sua irmã.’
Cecilia.
Não, está absorvendo o meu éter, mas não está me mostrando Tessia ou Cecilia.
‘Bem… tente outra pessoa, talvez? Para ter certeza de que ainda está
funcionando.’
Do outro lado do riacho, minha mãe estava sentada em um tronco cinza com
os pés batendo na água. Seu rico cabelo ruivo – uma característica que eu não
compartilhava mais – tinha mechas de cinza por toda parte, e novas rugas
formaram vincos sob seus olhos e sobre suas sobrancelhas.
Eu não sabia o que eu tinha esperado – o que eu tinha esperanças – enquanto
observava minha mãe, mas aguardei em silêncio.
No entanto, ficou cada vez mais difícil observá-la assim, pequena e sozinha.
Memórias de seu sorriso, sua risada, suas lágrimas enquanto eu navegava em
meu caminho por este mundo ressurgiram, me lembrando que eu nunca estive
sozinho – pelo menos, não neste mundo.
Naquele momento, eu não queria nada mais do que dizer a ela que ainda
estava vivo e que continuaria lutando.
Um breve sorriso apareceu em seu rosto, apenas uma pequena curva para cima
de seus lábios antes que o peixe voasse rio abaixo.
Capítulo 328
Cara a Cara
Petras se inclinou sobre mim, seu hálito rançoso uma forma de tortura por si
só.
“Bem,” ele disse finalmente, sua voz estridente mais baixa e sombria do que o
normal, “você ouviu Mestre Matheson. Podemos passar um tempo extra juntos
hoje.”
Você sabe que não podemos fazer isso agora, eu disse a ele pela décima vez.
O éter segurou por um momento antes de se dobrar e perder sua forma como
argila úmida.
Quando Three Steps e eu treinamos God Step juntos, ela foi capaz de me
mostrar como mudar meu foco e ver o mundo de forma diferente. Eu tinha
certeza de que também devia haver algum tipo de “truque” mental para usar
o éter para tomar uma forma física, mas me senti preso no mesmo padrão,
fazendo a mesma coisa indefinidamente.
‘Aí está aquele sorriso bobo de novo. Você está pensando na sua irmã de novo,
hein?’ Regis perguntou, invadindo meus pensamentos.
Sim. Ela está se tornando uma maga muito talentosa, sabe? E corajosa…
‘Mesmo assim, você ainda se preocupa com a vida amorosa dela,’ resmungou
Regis.
‘Diga isso para a cama que você acabou de dobrar com a mão nua.’
Eu olhei para baixo para ver que o tubo de metal usado para sustentar a cama
estava amassado.
A pessoa que estava do outro lado era familiar, mas ela mudou muito desde a
última vez que a vi.
O fato de ela ter vindo me ver não foi tão surpreendente; Eu estava esperando
por isso. A morte de seus irmãos e de sua melhor amiga nas Relictombs foi
horrível, mas – embora ela tivesse me culpado na época – ela sabia que eu não
matei Kalon, Ezra ou Riah.
‘Ela só vai, tipo, ficar olhando para você, ou o quê?’ Regis perguntou. ‘É meio
assustador.’
“Ada, ouça—”
“Não,” ela disse, sua voz rouca. “Não quero ouvir nada que você tenha a dizer!”
“É sua culpa…”
Eu respondi com um aceno suave de minha cabeça. “Eu não os matei – nenhum
deles. Você sabe disso, Ada.”
“Mas você matou!” Sua voz falhou, e eu não pude deixar de me perguntar se
ela não a tinha usado muito desde que voltou das Relictombs. “Você nos levou
para aquele lugar. V-você sabia que isso iria nos matar!”
Kalon e Ezra provavelmente seriam tão ruins quanto seu pai, com o tempo.
‘Ou talvez eles tivessem mudado as coisas no sangue deles, sabe?’ Regis
concordou descaradamente. ‘Quero dizer… se eles tivessem sobrevivido.’
‘Qual é o sentido de ter uma voz na sua cabeça se isso não lhe dá uma
perspectiva?’
“Cale a boca!” Ela retrucou, sua voz áspera presa na garganta. “Você é um
monstro… pior do que aquelas criaturas nas R-Relictombs…”
“Se você não estivesse lá, Kalon teria mantido todos nós seguros! E-e se eu
não tivesse tocado naquele espelho idiota…” Ada ficou em silêncio, suas mãos
pequenas e pálidas cerradas em punhos e ombros trêmulos.
Soltei um suspiro, apenas sendo capaz de vê-la como uma criança ferida e não
como a horrível alacryana que teria tornado essa conversa muito mais fácil.
“Não, mas é por isso que você veio aqui, certo? Porque em algum ponto de
tudo isso, você parou de acreditar em suas próprias palavras.” Meu olhar caiu
quando me lembrei de ter visto tudo de dentro da pedra angular… preso e
incapaz de ajudar.
“E toda vez que alguém que eu amava morria apenas para que eu pudesse
viver, eu não me concentraria em mais nada além de procurar os responsáveis.
Mesmo que isso significasse correr atrás das sombras.”
Ada bateu o pé no chão de pedra. “Porque você está me dizendo essas coisas?
Qual é o ponto disso?”
Dei de ombros. “Porque espero que me punir pela morte de seus irmãos pelo
menos ajude você a se sentir menos culpada por sobreviver.”
Ada segurou uma das mãos com força na outra. “Não estou fazendo isso por
culpa! Estou fazendo isso para me vingar por eles. Pelo que você fez a eles!”
“Porque eu estive onde você está agora, e não é algo que eu gostaria que
alguém tivesse que passar,” eu disse calmamente.
Eu escutei seus passos apressados enquanto ela corria pelo corredor subindo
e subindo as escadas, e senti um entorpecimento preocupante tomar conta de
mim.
Capítulo 329
Um Pedido de Ajuda
CAERA DENOIR
“Então você pode tentar dizer isso para sua perna?” Nessa perguntou,
engolindo outra risada. “Porque com o quanto você está se contorcendo, eu
temo que você vá se contorcer para fora da banheira, Lady Caera.”
“E é mais uma semana inteira até o julgamento. O que, é claro, eu nem tenho
permissão para comparecer,” eu continuei, afundando um pouco mais
profundamente na banheira para que as bolhas subissem pelo meu queixo e
boca.
“Todos nós devemos seguir os desejos do Alto Lorde e Lady, afinal,” Nessa
disse simplesmente.
Eu abri meus olhos e soprei para fora com minha boca, enviando bolhas pelos
ares. “Talvez pudéssemos-“
“Só se você prometer não pular nua e correr para as Relictombs, Lady Caera,”
minha assistente pessoal disse com um sorriso.
Depois que ela se foi, deslizei para baixo da superfície da água e me forcei a
relaxar, deixando meus braços flutuarem naturalmente enquanto meu corpo
descansava levemente no fundo da banheira de mármore excessivamente
grande.
As palavras de Foice Seris sobre Grey continuavam voltando para mim. Ela
parecia saber mais do que estava me dizendo, mas eu não conseguia entender,
e ela foi firme em me negar mais informações. Minha mentora não cedia uma
vez que ela tomava uma decisão sobre algo, e eu sabia que era melhor não
forçar muito. Tudo ficaria claro em seu devido tempo.
Grey…
Tentei imaginar seu rosto, mas foi a memória de seu corpo pressionando
suavemente contra o meu enquanto dividíamos seu saco de dormir para nos
aquecer que veio à minha mente.
Supondo que fosse minha assistente, disse: “Não estou decente, Nessa. Um
momento.”
“Há dois homens aqui para vê-la, Lady Caera,” disse Nessa baixinho através da
porta. “Eles querem falar com você. Sobre… ele. Eles estão com seu pai na sala
de recepção.”
Meus olhos se arregalaram com sua menção e corri para me secar e me vestir.
Alguém que conhece Grey. Eles devem estar aqui para ajudá-lo, pensei
enquanto vestia um manto branco bordado. A ideia de que Grey tinha amigos
foi inesperada. Ele parecia tão distante e isolado…
Ansiosa para saber mais, corri para fora do banheiro, mas uma Nessa frenética
se jogou no meu caminho.
“Ah, não, você não! Você terá que passar por cima do meu cadáver se achar
que vou deixá-la entrar parecendo que acabou de ser pega tendo um amante
ilícito, Lady Caera.”
Ela sorriu enquanto mexia no meu cabelo, penteando-o com os dedos, então
levou um momento para endireitar a barra das minhas vestes.
Dentro da sala, encontrei meu pai adotivo encarando os dois homens. Os três
estavam de pé e a lareira estava fria e vazia. Embora a postura de braços
cruzados e a carranca arrogante de Corbett Denoir não fossem incomuns para
o Alto Lorde, nossos visitantes não eram o que eu esperava.
Ele certamente não era o tipo de homem que costumava visitar o Alto Lorde
Denoir.
Seu companheiro, por outro lado, era seu oposto em quase todos os sentidos.
Apesar do olhar frio de Corbett, o estranho parecia perfeitamente à vontade.
Alto e de ombros largos, com a graça agradável de um guerreiro treinado, ele
tinha o ar de nobreza, mas eu não conseguia me lembrar de tê-lo visto antes.
Seu terno era finamente cortado, um verde oliva discreto que destacava seus
olhos verde-esmeralda e exibia seu físico atlético.
“-entendo sua posição, Alto Lorde Denoir, com certeza,” ele estava dizendo, “e
meu companheiro e eu não temos nenhum desejo de colocar você ou sua filha
em uma posição politicamente desconfortável, é claro, mas a vida e o sustento
de um homem inocente estão pendurados na balança.”
O homem percebeu que eu entrei pelo canto do olho e deu um passo para trás
e para o lado, virando-se para me cumprimentar sem dar as costas para
Corbett, o que seria considerado rude em círculos nobres.
Meu pai adotivo olhou para mim, seus penetrantes olhos verde-acinzentados
demorando-se em meus pés descalços.
O homem mais velho, que estava observando meu pai adotivo com atenção e
não percebeu imediatamente minha chegada, grunhiu e se virou. Sua
reverência era tardia e desajeitada, o que me divertiu ainda mais por causa da
irritação que causou a Corbett.
“Lady Caera,” disse ele, sua voz um grunhido rouco. “Eu sou Alaric, o tio do…
uh… Ascendente Grey, e este é Darrin Ordin. Esperávamos falar com você—”
Eu encontrei os olhos do Alto Lorde. “Ainda bem que eu tropecei então, Pai, se
eu tivesse convidados.” Para Darrin, eu disse, “Por que acho que já ouvi seu
nome antes?”
O homem sorriu e passou a mão pelos finos cabelos loiros. “Eu sou um
ascendente. Principalmente aposentado, agora, mas alcancei um pouco de
fama—”
“Com todo o devido respeito, Alto Lorde Denoir,” Darrin respondeu, “Lady
Caera é, pelo que fui levado a acreditar, a única testemunha além de Grey e a
jovem Lady Ada Granbehl, cujo testemunho acreditamos ser suspeito. Justiça
exige—”
Certamente eu não concordei com tal coisa, pensei, minhas unhas cravando-se
nas palmas das mãos enquanto fechava os punhos.
“Não se precipite em dispensar nossos convidados, Pai”, eu disse, forçando um
sorriso. “Darrin Ordin é um ascendente famoso. Ele liderou um grupo de muito
sucesso de ascendentes de sangues não identificados. Certamente podemos
nos dar alguns momentos para ouvi-lo.”
Corbett torceu o nariz, como se eu tivesse acabado de dizer que Darrin era um
fazendeiro de wogart. “Sim, bem, seja como for, infelizmente não podemos
ajudar com seu pedido atual.”
“Pelo contrário, acho que poderíamos ser muito úteis,” rebati, com o cuidado
de manter a voz firme. “Honestamente, é quase como se você
tivesse medo desses Granbehls… mas eles são apenas um sangue nomeado,
então tenho certeza que não é verdade.”
A mandíbula de Corbett apertou, mas fora isso ele não demonstrou a raiva que
eu sabia que estava crescendo dentro dele. “Nós discutimos isso, Caera, e você
sabe onde eu estou. Se você sentir necessidade, podemos continuar com
nossa discussão depois que nossos convidados forem embora.”
Darrin Ordin pigarreou. “Pedimos desculpas pela intrusão. Nós nos veremos
fora, Alto Lorde Denoir.”
O estalo de um painel do outro lado da sala de recepção fez com que todos se
virassem de repente, mas era apenas Lenora.
Ela sorriu calorosamente para nossos convidados. “Com licença, sinto muito
por me intrometer. Você não se importaria se eu compartilhasse uma breve
palavra com meu marido, é claro?”
Soltei uma risada de sua brincadeira. “Desculpe-me. Não quis ser rude.”
“Não, ser rude é o forte desse velho,” respondeu Darrin. “Mas, voltando ao
assunto. Você deve saber, Lady Caera, que o sobrinho deste homem não-”
“Não,” eu concordei, “Ele não faria. Grey pode ser… frio, quando precisa, mas
não é um assassino. Os outros morreram lutando, sem nenhuma culpa de Grey.
Na verdade, ele salvou a vida de Ada.” O que eu disse a ele que era uma má
ideia, pensei friamente.
Darrin Ordin deu uma cotovelada no lado do homem mais velho com força.
Eu tinha ouvido a acusação em seu tom. “Acontece que eu concordo com sua
avaliação dos sangues nobres. E eu gostaria de nada mais do que atuar como
testemunha em seu nome, mas o Alto Lorde Denoir não vai permitir isso,”
rebati defensivamente.
Darrin Ordin pousou a mão no ombro do velho. “Nós entendemos, Lady Caera,
e não pediríamos que você fosse contra os desejos de seu sangue.”
Alaric revirou os olhos, mas não disse mais nada. Havia tantas coisas que eu
queria saber, perguntas que esperava fazer, mas naquele momento Corbett
voltou para a sala de recepção, com Lady Lenora ao seu lado, o braço
levemente enfiado no dele.
“Depois de mais considerações, Alto Lorde Denoir decidiu oferecer nossa ajuda
na questão do julgamento de Ascender Grey,” ele anunciou, a própria imagem
de um senhor magnânimo concedendo uma bênção.
Olhei para meus pais adotivos, tentando entender por que eles mudaram de
ideia repentinamente, e Lenora encontrou meus olhos com um sorriso
estranho e conhecedor de que não gostei.
Alaric se remexeu, franzindo a testa ligeiramente sob a barba, mas Darrin fez
uma reverência profunda e abrangente a Corbett. “Obrigado, Alto Lorde
Denoir. É tudo o que poderíamos pedir.”
Minha assistente, que estava pairando do lado de fora no corredor, correu para
a sala de recepção, os olhos no chão de mármore cortado.
Darrin Ordin curvou-se mais uma vez, seguido desajeitadamente por Alaric, e
então os dois homens seguiram Nessa para o corredor.
Quando ficamos sozinhos, enfrentei meus pais adotivos. “O que foi aquilo?”
Corbett acenou com a mão para que o fogo ganhasse vida, queimando um
escarlate profundo e sangrento que se refletiu nas paredes brancas e no chão.
Virando as costas para mim, ele atravessou a sala e se serviu de um copo
d’água de um recipiente de cristal.
Tendo falado longamente com Foice Seris sobre Grey, isso não era exatamente
novidade para mim. Mas não entendi imediatamente o que minha mãe adotiva
quis dizer.
“Parece que seu relacionamento com este homem pode ter algum valor para
Alto Sangue Denoir, afinal,” Corbett proclamou seriamente.
“Mas quando ele era apenas valioso para mim?” Eu disse friamente, minha
garganta apertando em torno das palavras. “Então você ficou feliz em deixar
os Granbehls ficarem com ele?”
“Oh, não seja assim, Caera,” disse Lenora, acenando como se minhas palavras
fossem um cheiro ruim que ela pudesse soprar para longe. “Você consegue o
que quer, no final – e seus benefícios de sangue também.”
Eles não sabiam com que tipo de fogo estavam brincando. Estremeci ao me
lembrar da fúria gelada que se instalou sobre mim como uma presença física
quando Grey descobriu minha verdadeira identidade. Ele poderia ter me
matado em um segundo, eu sabia disso tão claramente quanto sabia que havia
sangue Vritra correndo em minhas veias.
Nós ficamos confortáveis juntos, mas eu tinha certeza de que ainda não tinha
ganhado totalmente sua confiança. Se ele pensasse que eu estava de alguma
forma o manipulando…
“Você deveria ser mais grata a sua mãe,” disse Corbett, largando o copo
pesadamente para que a água espirrasse na borda. “Enquanto você fica
deprimida pela casa, ela soube que a Casa Granbehl parece ter algum tipo de
negociação em andamento para garantir o veredicto de culpado desse
ascendente.”
Ele ergueu a mão para me manter em silêncio. “Eu preciso que você entenda
seu papel nisso, Caera. Se Alto Sangue Denoir vai despender tempo e capital,
tanto financeiro quanto político, para ajudar esse ascendente, devo ter certeza
de que ele apreciará totalmente de onde veio sua ajuda.
“Você terá permissão para contatá-lo… após o julgamento, e convidá-lo para
nossa propriedade no Domínio Central. Então, podemos discutir os planos de
nosso sangue para o futuro e onde Grey se encaixa nesses planos.”
Embora eu estivesse fervendo por dentro, por fora sorri como Lenora havia
sugerido. “Como você desejar, é claro.”
Capítulo 330
O Alto Salão
Ada, felizmente ou não, não tinha vindo me visitar novamente, mas imaginei
que a veria em breve no julgamento.
“O que é aquilo?”
Meus olhos se abriram para encontrar Matheson olhando para mim através
das barras. Eu estava tão focado em manter a forma da garra de éter que não
o ouvi chegar.
Eu agitei minha mão, rolando o brinquedo fora de vista antes de armazená-lo
em minha runa dimensional, então coloquei uma mão em concha sobre a
outra.
Matheson fez uma careta e deu um passo para o lado para que quatro
cavaleiros Granbehl pudessem abrir a porta da minha cela e marchar para me
cercar. O mais alto dos quatro puxou meus braços para trás e colocou algemas
em meus pulsos.
‘Que jeito de chutar um homem quando ele está pra baixo,’ disse Regis
acusadoramente.
Eu revirei os olhos. Perdoe-me por falta de simpatia para com o cara que
passou as últimas três semanas me abrindo.
‘Bem, se julgássemos apenas por sua reação, eu diria que o pobre Petras não
fez nada além de dar-lhe uma massagem rigorosa,’ observou Regis. ‘Mas isso
está fora de questão. Você está terrivelmente animado para um cara a caminho
de seu próprio julgamento por assassinato.’
Senti uma curiosidade genuína irradiando da pequena bola de calor que era
meu companheiro..
Estou quase pronto para queimar este maldito lugar até o chão. Veremos como
as coisas vão se desenrolar com o que Alaric está planejando, mas aconteça o
que acontecer, não pretendo voltar aqui.
Lorde Granbehl estava parado ao lado da porta, as mãos cruzadas atrás das
costas. Ele ergueu o queixo quando me aproximei. “Esta será sua última
oportunidade de confessar seus crimes, Ascendente Grey. Admita sua culpa e
pedirei clemência em seu nome. Se você se apresentar a um painel de juízes e
confessar sua inocência, isso estará fora de minhas mãos.”
Desta vez, havia dois cavaleiros sentados lá dentro, cada um com uma lâmina
nua apontada para mim. Mesmo que um dos guardas fosse Alaric, não havia
como ele me deixar saber sem se entregar, então fiquei quieto. Na maior parte
do tempo.
“Eu acho que vocês, cavalheiros, ainda são uma visão melhor do que minha
cela sombria e o sempre atraente Petras,” eu continuei com um encolher de
ombros.
O outro guarda sufocou uma risada enquanto o primeiro erguia sua lâmina de
modo que a ponta pressionasse minha garganta. “Fique quieto.”
‘Você acha que todo mundo que trabalha para os Granbehls é treinado para ser
burro ou precisam de experiência anterior como idiota para se
qualificar?’ Regis perguntou.
Eu sorri enquanto corria minha língua pelo corte que já havia começado a
cicatrizar, sentindo o gosto de sangue.
“Vritra, ele é tão estranho quanto dizem,” disse o segundo guarda. Ele parecia
jovem e mais do que um pouco nervoso.
“Você ouviu os rumores, Roffe? Dizem que alguém está criando todos os tipos
de problemas em torno deste ascendente. Alguns dos guardas pensam que ele
é secretamente de uma casa de Alto Sangue, e eles são…”
Então, alguém está soltando rumores? Deve ser Alaric, pensei, franzindo a
testa. O que aquele velho bêbado pensa que está fazendo, cara a cara com um
sangue nomeado?
Vamos apenas esperar que ele saiba no que está se metendo, pensei,
inclinando-me ligeiramente para o lado e tentando ficar confortável, o que
não foi fácil considerando que minhas mãos ainda estavam acorrentadas atrás
de mim.
Olhando além deles, observei o prédio para o qual eles estavam me levando.
Mesmo sem qualquer referência cultural para compará-la, a enorme estrutura
foi imediatamente reconhecível como um tribunal.
O prédio de pedra escura era coberto por uma decoração ornamentada: vidro
colorido enchia as janelas em arco, gárgulas com chifres debruçadas nas
paredes e olhando para todos que se aproximavam, e centenas de finas torres
de metal preto alcançavam o céu azul sem sol.
Matheson apareceu entre dois dos muitos guardas de armadura que estavam
em volta da carruagem. “Lindo, não é?” Disse ele, olhando para o tribunal.
“Como a própria justiça dos Soberanos esculpida em pedra.”
Fui empurrado e cutucado com as armas para a frente, sob uma entrada em
arco e em um grande salão. O interior do tribunal era tão ornamentado quanto
o exterior: o piso era de mármore, a grande escada que levava ao patamar do
segundo andar era feita do mesmo ferro escuro das torres e um enorme
afresco(1) cobria todo o teto.
‘Você acha que a parte em que Agrona torturou e fez experimentos com os
alacryanos por um bilhão de anos está desenhada na parte de trás?’ Regis
perguntou.
“’Sob o olhar vigilante do Alto Soberano, todos os seres são julgados,’” disse
Matheson, lendo as runas curvas.
O que é?
‘Lembre-se de que você é um alacryano. Não pareceria bom para você rebaixar
Agrona em público, especialmente aqui, agora.’
Uma figura curvada em uma túnica preta e grossa com um símbolo dourado
no peito se aproximou e trocou algumas palavras com Matheson. Eu não
conseguia ver o rosto dele(2), que estava escondido nas sombras sob o capuz
do manto, mas podia sentir olhos sondadores em mim.
O símbolo mostrava uma espada com escamas penduradas na guarda cruzada
e deve tê-los rotulado como algum tipo de oficial da corte.
A figura de manto escuro nos conduziu por um corredor entre os bancos, todos
vazios no momento, e gesticulou para a cadeira. Dois dos cavaleiros me
empurraram nele, e pesadas correntes pretas ganharam vida e envolveram
meus pulsos, tornozelos, cintura e pescoço. As correntes eram terrivelmente
frias ao toque.
O oficial de manto escuro se inclinou para frente para que ficássemos cara a
cara. Sob o capuz sombreado, uma jovem com olhos escuros me encarou de
volta. “Quanto mais você luta, mais fortes as correntes ficam, ascendente.
Fique quieto e deixe apenas a verdade passar por seus lábios neste lugar.
Apenas os homens culpados temem a justiça do Alto Salão.”
Mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, relaxei para ver se as
correntes afrouxariam. Elas afrouxaram.
Escutei com atenção, tentando captar trechos das muitas conversas que
aconteciam atrás de mim.
“-meu primo ouviu de um dos guardas que ele nem mesmo piscou quando
Lorde Granbehl bateu nele-”
“Grey,” disse ele, sua voz um barítono (3) estrondoso. Ele me deu um sorriso
alegre. “Confortável?”
“Na verdade não,” eu admiti. Outro homem estava atrás dele, vestido com um
terno cor de carvão mal ajustado.
O ex-ascendente ergueu uma sobrancelha. “Quem você acha que vai te tirar
dessa bagunça senão eu, sobrinho?”
“Bem, se eu fosse apostar apenas nas aparências, iria com o cavalheiro que
não parece estar ainda com uma ressaca,” eu disse com um sorriso fraco.
“Meu querido sobrinho, de fato.” Alaric revirou os olhos antes de acenar com
a cabeça em direção ao companheiro. “Grey, este é Darrin Ordin. Ex-
ascendente como eu, e uma vez um aluno meu. Ele tem o hábito de ajudar
outros ascendentes menos afortunados.”
Principalmente, porém, era a maneira como ele se portava que tornava sua
riqueza óbvia: confiante, com as costas retas, mas não rígidas, e um ar
despreocupado. Alaric, por outro lado, parecia tão deslocado no Alto Salão que
era quase cômico.
Darrin estava examinando os assentos atrás de mim, a sugestão de uma
carranca em seu rosto. “Tive sorte, isso é verdade,” disse ele, voltando sua
atenção para mim. “Eu apenas tento ter certeza de que outros que escolhem a
vida de um ascendente – aqueles que não têm o apoio de um Alto Sangue ou
Nomeado – tenham alguém cuidando deles… mas podemos falar sobre mim
mais tarde,” acrescentou ele, sua atenção voltada para as mesas altas que
olhavam para a minha cadeira.
Cinco figuras vestidas com túnicas entraram por uma porta que eu não podia
ver, e cada uma se moveu para ficar atrás de uma mesa, elevada vários metros
acima de mim. Eles usavam túnicas pretas combinando, semelhantes às da
mulher que nos guiou para o tribunal, mas seus capuzes estavam abaixados,
revelando cinco magos magros e sem humor.
NOTAS DE TRADUÇÃO:
(1) – ‘Afresco’ é uma pintura feita em um teto, como aquelas que existem na
Capela Sistina, por exemplo
(2) – o ‘Dele’ aqui usado foi traduzido de ‘theirs’, que é um pronome neutro na
língua inglesa, usado pra quando você não sabe o gênero do ser em questão,
sim, o ‘they’, além de significar ‘eles/elas’, também é utilizado como pronome
neutro
(3) – ‘Barítono’ é um termo usado pra designar uma voz grave, mas baixa, isto
é, firme, voz de ‘machão’
Capítulo 331
O Julgamento
“Este julgamento será feito pelo Alto Juiz Blackshorn, Juiz Tenema, Juiz Falhorn,
Juiz Harcrust e Juiz Frihl,” disse o juiz central, aparentemente o Alto Juiz
Blackshorn, enquanto os cinco Alacryanos vestidos de preto tomavam seus
assentos.
“E,” acrescentou ele após uma curta pausa, “para decidir sobre uma punição
apropriada, caso o ascendente seja considerado culpado.”
“Parece que ele pode cair morto a qualquer segundo,” disse Regis.
Tenema era ainda mais velha do que Blackshorn, com cabelos brancos e finos
que pareciam flutuar ao redor de sua cabeça e óculos grossos que
aumentavam seus olhos para proporções de desenho animado.
Ela tentou falar, tossiu, e tentou novamente. “Este painel ouvirá declarações
de abertura tanto do Conselho do Sangue Granbehl quanto do Conselho do
Ascendente Grey, após o qual testemunhas serão chamadas.” Sua voz falhou e
enfraqueceu enquanto ela falava, o altura da voz oscilando. “Se houver
evidências físicas dos crimes, elas serão fornecidas, seguidas das declarações
finais e da deliberação deste painel.”
O juiz Harcrust, o mais jovem dos juízes, estava olhando para a velha com o
nariz franzido de desgosto. Seu cabelo preto-azulado e cavanhaque refletiam
a luz fria dos artefatos de iluminação e davam a seu rosto uma aparência
severa e sem humor.
Ele deu um passo à frente dentro da minha visão periférica antes de continuar,
sua voz projetada para que as pessoas atrás de nós pudessem ouvi-lo
claramente. “Como todos sabemos, os ascendentes são os punhos que
brandem as espadas do nosso progresso. Aqueles que se arriscam a procurar
relíquias de nosso passado – escondidas nas Relictombs pelos desonestos
magos antigos – sempre foram tratados com respeito em Alacrya, até mesmo
com amor e adoração.
“É por isso que é tão raro haver violência entre ascendentes nas Relictombs…
e por que é tão trágico estar aqui hoje, discutindo a infeliz perda de três jovens
magos, todos de Sangues Nomeados, pilares do povo comum. Suas famílias
ascenderam à nobreza para lhes dar um futuro brilhante,” Matheson apontou
um dedo trêmulo para mim. “Futuros que foram tirados deles por este
homem!”
Matheson olhou suplicante para os cinco juízes. “Tenho visto com os meus
próprios olhos a insensibilidade, a falta de empatia demonstrada por este
homem nas últimas três semanas. Apesar da súplica de meu senhor, Grey se
recusou a reconhecer seus próprios crimes, ou a mostrar até mesmo um
lampejo de arrependimento pelas mortes que causou.”
Regis soltou uma gargalhada. ‘Huh… não sabia que as palavras’ torturar ‘e’
implorar ‘ eram sinônimas.’
Meu olhar seguiu o mordomo enquanto ele voltava para seu assento. Sua
fachada vacilou quando nossos olhos se encontraram, e ele se encolheu antes
de desviar o olhar nervosamente.
Blackshorn se virou para Falhorn, sentado à sua direita. “Isso está certo?”
O juiz Falhorn era um homem grande, com cabelos ruivos ficando grisalhos e
rosto marcado pela bexiga. Ele se inclinou para frente e sussurrou algo para
Blackshorn, que olhou para baixo e à minha direita, seu rosto se contraindo.
Darrin se virou e deu um pequeno aceno para o público antes de se dirigir aos
juízes. “Minha contraparte gostaria que você acreditasse que eles têm provas
de alguma intenção maliciosa no lado do Ascendente Grey, de que ele partiu
para matar esses três jovens ascendentes. Ele pintou Grey como um assassino
de coração frio, privado de quaisquer qualidades redentoras.”
“Mas os Granbehls têm alguma prova de suas acusações?” Ele perguntou, sua
voz soando através do tribunal. “Mesmo depois de ser autorizado por este
tribunal a manter o Ascendente Grey em sua própria masmorra privada, sem
supervisão do Alto Salão e sem acesso ao seu próprio conselho, durante o qual
os Granbehls o torturaram todos os dias, eles não têm nem mesmo uma
partícula de evidência para mostrar isso.”
Darrin se aproximou e pousou a mão no meu ombro. “Se Grey pretendia matar
esses jovens ascendentes, por que ele resgatou Lady Ada? Certamente se ele
fosse capaz de assassinar o famoso Kalon Granbehl, então sua irmã mais nova
não teria representado um desafio. E como um ascendente pela primeira vez
saberia como as Relictombs reagiriam à sua presença, mesmo se os Granbehls
pudessem provar que a suposta dificuldade dessas zonas foi diretamente
influenciada pela presença de Grey?”
Frihl tinha ficado quieto até agora, mas agora parecia estar falando sozinho
em uma diatribe silenciosa, mas furiosa. (TL: Diatribe é começar a falar muito
mal e ferozmente sobre algo ou alguém, como o Turtle usou essa palavra,
preferi deixar, já que ela é a mesma em português) Os outros juízes o estavam
ignorando, e a voz de Darrin facilmente ultrapassava a de Frihl, mas era um
pouco perturbador de assistir.
“A triste verdade é,” Darrin continuou, “as Relictombs são um lugar perigoso,
mesmo para aqueles de nós que já entraram em um portal de ascensão
dezenas de vezes antes. Basta um momento de excesso de confiança, um único
passo em falso… e às vezes nem isso. Cada ascendente tem uma história sobre
acabar em uma zona para a qual não estava preparado. Pelo menos, aqueles
que conseguem sair vivos.
“Não há evidências que sugiram que isso foi qualquer coisa além de uma
tragédia. Sem jogo sujo, sem trama de assassinato, apenas uma ascensão
preliminar que deu errado. Para o Sangue Granbehl fazer reivindicações
infundadas contra Gray, ameaça a própria instituição em que as ascensões são
baseadas: a confiança e a fé mútua que todo ascendente deve ter.”
Darrin voltou ao seu lugar enquanto os juízes trocavam olhares que variavam
de exasperado a completamente hostil.
‘Esse Ordin mijou nos túmulos das mães deles ou algo assim?’
Presumi que alguém pediria para eu falar ou fazer uma declaração minha,
especialmente porque eu nunca tinha conhecido o homem que agora estava
me defendendo antes do julgamento, mas até agora ninguém havia se dirigido
a mim diretamente.
A juíza Tenema se encolheu com um pequeno tapinha em seu ombro de
Blackshorn. Seus olhos turvos e ampliados se arregalaram e ela folheou
rapidamente as anotações em sua mesa.
“Onde eu estava…” A velha juíza ficou quieta por um tempo antes de soltar um
“Aha!” e continuou. “Convocamos nossa primeira testemunha, Gytha do Sangue
Algere.”
A oficial que checou nossas informações antes de nos deixar entrar nas
Relictombs…
Falhorn se inclinou para frente, olhando para ela por cima da borda de sua
mesa alta. “Você é Gytha, do Sangue Algere?”
“E você está familiarizada com o réu, Grey?” A voz de Falhorn estava rouca e
ofegante ao mesmo tempo, como um sapo-boi que acabara de ser pisado.
Não pude deixar de notar como ela e o juiz evitavam totalmente a menção a
Haedrig, ou Caera. Não pode ser coincidência, pensei.
Outro nome que não reconhecia, até que vi o homem entrar em minha linha
de visão enquanto caminhava em direção aos juízes. Ele havia trocado sua
armadura de couro escuro por calças pretas e uma túnica larga e mancava
ligeiramente enquanto caminhava.
Quinten…
Eu zombei em voz alta enquanto me lembrava dos meus primeiros momentos
no segundo nível das Relictombs, quando um jovem ascendente amigável me
levou para um beco e tentou me assaltar.
‘Por que diabos eles o chamariam como testemunha?’ Regis perguntou com
raiva.
“Você é Quinten, sangue sem nome, e ascendente?” Foi Harcrust quem fez as
perguntas desta vez. Sua voz nasalada praticamente exalava auto-
importância.
“Ascendente aposentado, juiz,” disse Quinten, a voz fraca e cansada. “Mas sim,
sou o Quinten. Sangue sem nome, já que sou apenas um ninguém de uma
pequena vila em Vechor.”
“E por que, posso perguntar, um homem jovem e robusto como você foi
forçado a se aposentar?” Harcrust continuou.
Ele respirou fundo e soltou um suspiro. “Eu acreditei nele, é claro, e mostrei-
lhe um pouco – sem esperar nada em troca, apenas sendo amigável – mas
quando estávamos fora da estrada principal, ele me nocauteou, me deixou…
nu… e me amarrou.”
Não pude ouvir as palavras abafadas do oficial por causa do sangue latejando
em minha cabeça.
Harcrust pigarreou antes de perguntar, “E por que você acha que Grey queria
saber sobre os Granbehls?”
Quinten fez uma reverência rígida e se virou para sair. Por um instante, nossos
olhos se encontraram, e houve um brilho divertido lá, e uma contração nos
cantos de sua boca que poderia ter sido um sorriso malicioso, mas foi apagado
pelo meu brilho frio. Ele se esqueceu de mancar novamente enquanto se
afastava apressado.
Darrin deu um passo à frente mais uma vez. “Eu gostaria de pedir um breve
recesso para falar com Grey, para que possamos refutar apropriadamente as
afirmações desta testemunha,” disse ele, sua voz retraída com uma calma
forçada.
O Alto Juiz Blackshorn zombou. “Você teve três semanas para organizar suas
refutações. Por uma questão de tempo, não entraremos em recesso até a
deliberação, e somente então, se necessário, para que os juízes dêem sua
decisão final.”
Ada apareceu à minha esquerda, mas ela não estava sozinha. Sua mãe e seu
pai caminhavam ao lado dela, o braço grosso de Lorde Granbehl em volta de
seus ombros, enquanto Lady Granbehl a segurava pela cintura, apertando a
garota entre eles.
Foi Blackshorn quem se dirigiu a eles. “Lorde e Lady Granbehl, Ada, deixe-me
começar dizendo o quanto todos nós sentimos pela perda de Kalon e Ezra, e
obrigado por comparecer a este julgamento pessoalmente.”
Alaric bufou, então tardiamente disfarçou como uma tosse. Blackshorn lançou-
lhe um olhar de advertência.
A voz de Lorde Granbehl ecoou pela sala do tribunal quando ele falou.
“Estamos aqui para garantir que a justiça encontre o monstro que assassinou
nossos filhos, Alto Juiz Blackshorn. Embora a dor ainda esteja recente, minha
filha insistiu em estar aqui para olhar em seus olhos e condená-lo em sua
frente.”
Ada olhou nos meus olhos então, mas não vi condenação, apenas confusão. Eu
vi uma garota assustada e sozinha sem seus irmãos. Então Lady Granbehl a
puxou com força, quebrando nosso contato visual.
“Lady Ada poderia, por favor, recontar as ações do Ascendente Grey nas
Relictombs?” Blackshorn disse.
Havia horror genuíno em sua voz quando ela contou como Riah foi ferida, mas
quando Blackshorn tentou guiá-la para me culpar, ela tropeçou na pergunta
sem jeito.
“E foi Grey quem nos tirou daquela zona…” ela estava dizendo, descrevendo
nossa fuga através do rosto de uma estátua que se parecia comigo.
“A fim de poupar tempo,” disse Darrin Ordin, ainda mais alto do que Lorde
Granbehl, “e pelos procedimentos do Alto Salão, a testemunha deve ter
permissão para prestar seu depoimento sem interrupção. A menos, é claro,”
ele acrescentou com um largo sorriso, “o painel de juízes está abrindo esta
testemunha para perguntas, porque eu tenho algumas.”
Blackshorn olhou para ele. Depois de um tenso impasse, o Alto Juiz voltou-se
para Ada. “Por favor, continue, mocinha.”
Ada não foi muito longe em sua história antes de Harcrust e Falhorn
começarem a pressioná-la para obter detalhes de como eu atravessei o
abismo. Eles a fizeram percorrer, em detalhes, tudo o que eu disse ou fiz, e
ficaram circulando para ver se eu havia ativado uma relíquia para fazer isso.
Ada não conseguiu responder, é claro, não tendo ideia de que eu usei uma
runa divina, mas eles continuavam voltando para a mesma linha de
questionamento.
‘Se eles acham que você tem uma relíquia, ou relíquias, esse seria o dia de
pagamento de quem quer que seja que vai receber suas coisas quando você for
decapitado,’ brincou Regis, mas eu ainda podia sentir a tensão e a
preocupação que emanavam dele.
Quando ficou claro que Ada não poderia dar a eles nenhuma outra informação,
eles a deixaram prosseguir com os eventos dentro da sala do espelho. Aqui,
sua história divergia ligeiramente da verdade. Ela pulou seu aprisionamento
dentro do espelho e a possessão de seu corpo pelo fantasma de éter,
descrevendo a cena como se ela simplesmente estivesse sentada em um canto
assistindo.
“Sinto muito, Alto Juiz, minha filha está sofrendo com o estresse desses
eventos e perdeu um detalhe importante. Ezra realmente liberou este
ascendente para— ”
Darrin virou o ombro para o juiz, sua atenção pousada em Ada. “Ada, você
realmente acredita que Grey queria que seus irmãos morressem? Que ele é
culpado de assassinato?”
O martelo de Blackshorn desceu várias vezes enquanto ele rugia sem palavras.
A multidão ficou mais barulhenta. Seus gritos de indignação ecoavam uns nos
outros até que suas palavras se misturaram em um coro ininteligível.
“Não!” Ada gritou, sua voz de dor cortando o caos como uma sereia.
Capítulo 332
Correntes Quebradas
A mão de Titus Grandbehl se estendeu para cobrir a boca de sua filha. “Ada! O
que você está-”
Escorregando das mãos de seus pais, ela deu um passo em direção aos juízes.
As palavras começaram a jorrar dela enquanto seu rosto ficava cada vez mais
vermelho. “Eu estava presa em um espelho e Grey estava tentando me salvar,
mas Ezra não quis ouvir e libertou o ascendente chifrudo do espelho mágico
enquanto Grey estava trabalhando com essa coisa de artefato, e o outro
ascendente matou meus irmãos, e eu teria ficado presa lá para sempre, mas
Grey me salvou.”
A garota escondeu o rosto nas mãos enquanto seus pais ficavam rígidos, cada
um do lado dela.
“Lorde Granbehl,” Blackshorn disse, falando sobre meu conselho, “está claro
que sua filha está incrivelmente angustiada. Embora apreciemos a bravura de
seu sangue em comparecer a este julgamento pessoalmente, é a opinião deste
painel que não podemos aceitar o testemunho de Ada neste momento e, em
vez disso, usaremos o relato por escrito dos eventos que já recebemos.”
Ada olhou boquiaberta para o juiz supremo enquanto seu pai assentia, sua
bochecha se contraindo quando ele reprimiu um sorriso.
Alguém atrás de mim gritou como isso não era justo, envolto em uma série de
maldições e, em segundos, todo o tribunal explodiu em um coro de gritos e
insultos dirigidos aos juízes.
Harcrust voltou-se para um funcionário que estava meio escondido atrás das
escrivaninhas. “Limpe a sala. Faça. Agora!”
Na minha frente, Darrin assistia com horror enquanto os guardas do Alto Salão
escoltavam a multidão através das enormes portas duplas e para o longo
corredor. Os juízes exibiam olhares de nojo e satisfação misturados.
Além dos cinco juízes e um punhado de guardas do Alto Salão com armaduras
pretas, apenas Darrin, Alaric, Matheson e eu permanecemos na sala.
“Nenhum,” Blackshorn rosnou, olhando com o rosto sombrio para nós quatro.
Darrin e Blackshorn se olharam, mas depois de alguns segundos meu conselho
submeteu-se ao juiz, olhando para o chão da plataforma.
Alaric se moveu para ficar do meu outro lado, enquanto Matheson mantinha
distância. Alaric se abaixou um pouco e sussurrou, “Eu sei que isso parece
ruim, garoto, mas não vá fazer nada estúpido. Ainda temos alguns truques na
manga… Espero,” ele acrescentou em um tom um pouco hesitante.
Blackshorn pigarreou, um som úmido e áspero como uma lâmina sendo afiada.
“Está claro para mim que alguém trabalhou para hostilizar essa ralé e
atrapalhar esses procedimentos. Felizmente, fomos avisados de que esse
poderia ser o caso.”
Frihl deixou escapar um forte “Hah!” que silenciou o Alto Juiz e fez com que o
resto do painel se voltasse para ele com expectativa.
‘Eu me pergunto quantos burros com chifres ele teve que beijar para se tornar
um juiz?’ Regis perguntou em um tom de admiração e horror mesclado.
“Obrigado, juiz Frihl,” disse Blackshorn apaziguadoramente. “Como eu disse,
esperávamos essas táticas, mas não vamos permitir que esse julgamento se
transforme em uma espécie de circo.”
“Ou, melhor ainda, talvez vocês tenham encontrado meu diário secreto que eu
convenientemente coloquei em um lugar público em algum lugar, detalhando
meu plano maligno para matar todos os Granbehls, exceto, é claro, aquele
que eu salvei.”
Frihl levantou-se de repente, seu dedo nodoso apontado para mim. “Como
você ousa proferir tal blasfêmia na frente de-”
O rosto de Frihl estava vermelho de raiva fervente, mas ele segurou a língua,
assim como Falhorn e Harcrust. Tenema foi a única que parecia
desinteressada, parecendo achar mais interesse em um fio solto em seu manto
do que eu.
O rosto de Darrin caiu quando ele olhou para as portas principais. Em frente a
ele, Matheson deixou um sorriso de auto-satisfação rastejar em seu rosto.
‘A esta altura, é difícil dizer quais são corruptos e quais são simplesmente
estúpidos,’ disse Regis com um suspiro.
“Nenhuma deliberação necessária. Culpado,” cuspiu o juiz Harcrust, o dedo
girando novamente o cavanhaque oleoso.
Blackshorn se inclinou para frente sobre sua mesa alta. “Culpado,” ele disse
lentamente, saboreando a palavra.
“Não se esqueça, Alto Juiz,” disse Matheson com um sorriso afetado, “todos os
artefatos ilícitos que o ascendente possuía.”
Ele fez uma pausa, seus olhos fixos em mim enquanto esperava pela minha
resposta.
‘Agora vamos matar todos esses palhaços?’ Regis implorou. ‘Eu fico com burro
de cavanhaque.’
Não. Aqui não, respondi friamente.
“Esse poderia ser nosso trunfo,” Alaric sibilou. “Precisamos manter sua bunda
naquela cadeira, garoto.”
Darrin e Alaric foram forçados a se afastar de mim e ficar fora de vista. Mesmo
quando a dúzia de guardas com armaduras pretas avançou em minha direção,
armas em punho, eu permaneci sentado, imparcial e composto.
“Eu gostaria de caminhar até a cela com meus próprios pés,” eu disse, minha
voz uniforme e suave apesar do número de armas afiadas carregadas de mana
apontadas para mim.
“Você ainda acha que tem direito a essa liberdade?” Blackshorn respondeu.
“Não. Você será despido e amarrado até o momento de sua morte.”
Os juízes estavam todos pálidos, seus olhos procurando por alguma resposta
para explicar exatamente o que estava acontecendo. Afinal, eu era um
prisioneiro preso e privado de qualquer acesso à mana. Normalmente, algo
assim nunca aconteceria.
Normalmente.
“Eu e-exijo saber o que você está fazendo!” Frihl conseguiu gritar.
“Deve ser uma relíquia, meritíssimo! Eu sabia que ele estava escondendo de
alguma forma.” Matheson reuniu força suficiente para rastejar para cima de
seus joelhos, sua expressão tensa quando ele se virou para mim. “Exijo que
você entregue a relíquia imediatamente!”
Meu olhar caiu para o mordomo, fazendo-o recuar de surpresa. “Por que você
não vem aqui e pega?”
O tempo parou na sala, pois nenhuma das pessoas presentes foi capaz de
reunir coragem para dar um passo mais perto de mim.
Foi só quando as portas do tribunal se abriram que libertei a pressão
sufocante que estava segurando na sala. Torcendo contra as correntes
apertadas, olhei por cima do ombro para ver alguns rostos familiares.
“Pela Graça dos Vritra… Blackshorn, por que eu tive uma dúzia de pessoas
diferentes martelando para entrar em meu escritório nos últimos quinze
minutos? Explique-se imediatamente.”
“Oh, céus”, disse o homem de cabelo cor de azeitona por trás da mulher,
apontando para a sala do tribunal com uma pilha de pergaminhos em uma das
mãos. “Parece que chegamos bem a tempo de evitar um grave erro judiciário.”
“A questão é,” disse o homem de cabelos cor de azeitona, “que estamos aqui
em nome do criminoso demente.
O herdeiro Denoir… Então Caera convenceu seu sangue a ajudar, afinal. Eu não
pude evitar o lampejo de um sorriso que cruzou meu rosto.
“Juíza Suprema, não quero desrespeitar quando digo isso,” Blackshorn reuniu,
endireitando seu manto. “Mas, por questão de tempo, não podíamos seguir
estritamente o protocolo padrão. Nós apenas procuramos manter nossos
cidadãos protegidos deste assassino.”
“Isso está certo?” Um sorriso divertido se espalhou pelo rosto do Alto Juiz
quando ela recebeu uma pilha de pergaminhos do homem Denoir. “Então,
suponho que esta extensa lista de seus muitos negócios ilegais, promessas
antiéticas e ações fraudulentas que levaram a este julgamento, foi tudo em
nome de manter nossos cidadãos seguros, Blackshorn?”
“Como Juíza Suprema, principal árbitra do Alto Salão das Relictombs, declaro
este julgamento nulo e liberto Ascendente Grey, com efeito imediato.”
“Mas-”
“Guardas, cuidem para que os juízes deste painel não vão a lugar nenhum e,
pelo bem dos Vritra, alguém tire essas correntes desse homem,” ela retrucou.
Capítulo 333
Atenção
‘Isso foi muito foda,’ disse Regis com aprovação quando saímos.
De pé sob o céu azul vibrante, respirei fundo o ar fresco e não pude deixar de
sorrir. As gárgulas e os espinhos de ferro do Alto Salão pareciam muito menos
imponentes agora que meu julgamento havia acabado.
“Presuma imaginar que minhas ações foram para o benefício de seu sangue,”
a mulher interrompeu com um leve movimento de seu cabelo de fogo. “Este é
um lugar de verdade e justiça, não um antro de jogos de azar onde pessoas
mesquinhas podem tentar trapacear para ganhar uma fortuna.”
Eu levantei uma sobrancelha. “Você tem um jeito bom de pedir um favor, Juíza
Suprema.”
Ouvi alguns aplausos e alguns gritos por minha atenção, mas os ignorei, em
vez disso me concentrando em Lauden Denoir, cujo sorriso cortês bem
treinado parecia estampado em seu rosto.
“Eu ouvi Lady Caera murmurando o nome do Efeminado em voz baixa mais de
uma vez,” Taegan grunhiu.
Antes que o herdeiro Denoir pudesse refutar, meu “tio” já estava me puxando
para longe. Eu olhei para trás para ver Lauden, flanqueado por Arian e Taegan,
com seus braços cruzados e sobrancelhas franzidas em uma carranca.
Surpreso, examinei a multidão até encontrar a origem da voz, que era uma
jovem com uma armadura de couro laranja vibrante.
– Eu também te amo, sua deusa bronzeada e esculpida – gritou Regis, sua voz
ecoando em minha cabeça.
“Se você acha que um simples ‘obrigado’ é tudo pelo que o Alto Sangue Denoir
está fazendo isso, você pode muito bem colocar uma coleira em volta do seu
pescoço e entregar a coleira a eles,” disse Alaric, virando para um largo bulevar
que reconheci como levando em direção à saída para o primeiro nível. “Não
seja estúpido, garoto. A única razão pela qual aqueles nobres egocêntricos se
envolveriam é porque eles querem fazer de você seu filhotinho leal para
buscar elogios e relíquias das Relictombs.”
‘Sem querer lançar dúvidas sobre sua adorada amante com chifres, mas é
possível que Caera tenha dito a eles o quão poderoso você é para tentar
convencer a família dela a ajudar,’ acrescentou Regis.
Não importa , disse eu, tanto para mim como para Regis. Duvido que tenhamos
algum motivo para nos cruzarmos novamente.
Meu companheiro estalou a língua. ‘Que pena, se nosso amigo alcoólatra aqui
tivesse metade da beleza de Caera.’
Voltei minha atenção para Alaric, percebendo que, sem saber, estive contando
com o velho bêbado. Sem ele, teria sido muito mais difícil voltar para as
Relictombs… mas ao mesmo tempo, ele era fácil de entender.
Alaric me via como seu tíquete de alimentação – ou melhor, álcool – e ele não
estava interessado em quem eu realmente era ou de onde vinha. Não precisei
me preocupar com suas motivações e apreciava isso no homem.
Alaric deu de ombros, mas sua barba se contraiu de uma forma que me
preocupou. “Eu posso ter espalhado alguns rumores sobre você. Despertou
algum interesse e encorajou algumas pessoas a virem assistir ao seu
julgamento.”
Resisti ao desejo de enterrar meu rosto em minhas mãos. “Por favor, me diga
que você está brincando.”
Darrin havia assistido a essa troca com um sorriso de boca fechada. “Essa parte
não foi ideia minha,” ele disse se desculpando antes de seguir Alaric.
“Vamos chegar a algum lugar um pouco menos lotado,” disse Darrin, olhando
ao redor para as dezenas de pessoas que passavam em ambas as direções. A
maioria delas não estava prestando atenção em nós, mas algumas ficaram
surpresas quando viram Darrin, e mais do que alguns pares de olhos também
me seguiram.
Olhando para trás, através do segundo nível em direção aonde eu pensei que
o enorme portal para as zonas mais profundas das Relictombs estava, notei
um grupo de homens – todos vestidos com couro escuro e armadura de
corrente – desviar o olhar ao mesmo tempo, como se estivessem olhando para
mim apenas um segundo antes.
Surgiram perguntas, mas eu as mantive para mim, confiando que Alaric tinha
seus motivos para nos afastar das Relictombs, e não querendo deixar Darrin
desconfiado perguntando o motivo errado.
Um homem vestido com a pele de alguma besta de mana estava gritando com
um dos guardas do portal sobre sua passagem. O guarda uniformizado estava
com os braços cruzados e um músculo em sua ampla mandíbula se contraiu.
Pouco antes de ela estar ao alcance do meu braço, girei nos calcanhares e
agarrei-a pelo pulso, esmagando a braçadeira de corrente em sua carne.
“Você achou que eu não notaria?” Eu perguntei, meu olhar perfurando o dela
enquanto torcia seu pulso. “Por que você está me seguindo?”
“Eu s-sinto muito!” ela gritou, seus olhos cor de mogno arregalados e seu rosto
pálido. “Eu só queria seu autógrafo!”
Olhei para o chão onde o item que ela havia deixado cair pressionado contra
minha bota: uma caixa de aço em forma de pirâmide, gravada com correntes
que se enrolavam nas bordas. Enquanto eu observava, o pé da mulher tateou
para frente e bateu no topo pontudo.
O artefato aos meus pés se desdobrou, deixando escapar uma luz dourada
brilhante.
Essa coisa toda tinha sido uma armação – e havia apenas um grupo que teria
esse tipo de problema.
“Lorde Granbehl manda lembranças,” rosnou a ascendente de armadura
laranja, enfiando a lâmina em meu abdômen.
“Bem, maldito seja, eles realmente têm uma gaiola de força.” Mesmo com sua
voz abafada pela camada de energia que a gaiola de força havia envolvido em
torno dele, Alaric estava mais surpreso do que chocado enquanto tentava
mexer seu corpo. “E uma muito boa nisso.”
Pelo canto do olho, vi dois homens lutarem para colocar a mulher de armadura
laranja de pé. Pelo jeito que ela estava segurando seu braço, eu sabia que o
tinha deslocado. Isso não a impediu de sorrir vitoriosamente para mim.
“Bastante problemático, não é?” ela disse enquanto colocava o braço de volta
no lugar. A mulher caminhou mais perto de nós. “Uma pena ter que entregá-lo
aos Granbehls. Muitos usos melhores para um rosto bonito como o seu.”
Capítulo 334
Última Misericórdia
“Bem, então você poderia nos deixar ir,” Darrin arriscou, o charme em sua voz
arruinado pelo abafamento do campo de força dourado.
“Ainda planejando uma maneira de sair disso?” A mulher perguntou com uma
sobrancelha levantada. “Admiro sua compostura, mas não adianta.”
“O astro de cinema aqui acha que é invencível depois de ser solto,” disse um
dos homens mais próximos dela com uma risada. Seu cabelo ruivo tinha sido
raspado nas laterais e cicatrizes marcavam seu rosto, os lados de sua cabeça
e a pele nua de seus braços.
“Essa é uma jaula de força de nível superior, idiota,” disse ele com um sorriso
malicioso. “O legal sobre essas coisas caras é que, embora custem tanto
quanto uma propriedade nas Relictombs, elas drenam sua própria mana para
usar contra você, reforçando a barreira.”
“Já ouvi muito isso,” respondi casualmente, tirando o pó dos cacos dourados
de mana solidificada de meu ombro.
Minha forma ficou borrada quando usei Burst Step para diminuir a distância
entre nós, pegando-a desprevenida. Eu chutei seus joelhos e bati seu rosto no
chão com um golpe rápido na nuca.
Meu olhar varreu os vinte homens e mulheres em apatia fria. Eu tinha dado
chances suficientes aos Granbehls.
Levei um momento para olhar para trás para Alaric e Darrin, cujas expressões
perplexas indicavam que eles ainda estavam processando o que exatamente
estava acontecendo. Embora a ideia de libertá-los para obter ajuda adicional
tenha passado pela minha cabeça, não parecia necessário… e eu queria que
eles tivessem um vislumbre de que tipo de pessoa eles estavam realmente
ajudando.
Regis atacou como um meteoro, espalhando sangue onde quer que suas garras
e presas escuras fossem, mas depois de matar alguns de seus camaradas,
nossos atacantes foram capazes de cercá-lo com escudos de mana enquanto
seus Conjuradores o bombardeavam com feitiços.
Meu punho nu colidiu com a frente de seu martelo de metal, criando uma onda
de choque de força que rasgou o ar.
Com outra série de explosões etéreas canalizadas pelo meu corpo, passei pelo
conjurador, com meu braço ensanguentado abrindo um buraco em seu
estômago. Sua risada se dissolveu em um grito histérico enquanto ele olhava
para seu ferimento fatal.
Voltando para a batalha, vi Regis que havia se movido para outra vítima, o
enorme lobo das sombras rasgando armadura e carne com facilidade.
Finalmente, o inimigo começou recuar e dois dos homens tentaram fugir. Regis
já havia matado um deles e ia atrás do segundo quando um dos discos brancos
o atingiu no ombro.
A raiva emanou de meu companheiro quando ele ignorou isso e decidiu matar
o fugitivo primeiro.
Quando acabei com alguns de nossos atacantes restantes, Regis tinha voltado
sua atenção para o conjurador que o feriu com os discos brancos brilhantes.
Ele estava se escondendo atrás de uma mulher grisalha em uma armadura de
placas de aço sobrepostas.
Enquanto os dois tropeçavam de volta para um beco longe do lobo sombrio
que os perseguia, a mulher conjurou uma caixa de mana cintilante ao redor
dela e do conjurador. Uma segunda e uma terceira caixa se manifestaram ao
redor da primeira, e ela respirou fundo, os olhos duros fixos em Regis
enquanto o conjurador aliviado atrás dela começou a invocar mais discos
brancos brilhantes. A cada passo que meu companheiro dava em direção aos
dois mercenários restantes, suas garras ficavam mais brilhantes e mais
sinistras até a destruição cintilar silenciosamente, derretendo sem esforço
cada uma das três barreiras conjuradas. Pode-se dizer que meu companheiro
estava saboreando suas duas últimas presas.
Deixando Regis para encerrar tudo, fui até onde Darrin e Alaric estavam me
observando com olhos arregalados sob a aura dourada que os restringia.
“Teria sido mais rápido se vocês dois tivessem se juntado a nós,” eu disse com
um encolher de ombros.
“Você parecia ter as coisas… sob controle,” Darrin murmurou, seus olhos
verdes esmeralda ainda absorvendo a visão ao nosso redor.
Alaric e Darrin olharam para mim, mas eu balancei minha cabeça. Eu a deixei
se recuperar enquanto ela se levantava do chão com um gemido abatido. A
armadura outrora laranja estava tingida de carmesim, mas a maior parte do
sangue não era dela. Além de um arranhão em seu rosto e o que parecia ser
uma terrível dor de cabeça, ela não estava gravemente ferida.
Eu caminhei em direção a ela e esperei em silêncio até que ela finalmente
pudesse ver o cenário que a rodeava.
“Eu não te deixei viva apenas para te mostrar essa bagunça,” eu respondi, em
tom uniforme. “Eu tenho um trabalho para você.”
Ela acenou com a cabeça ferozmente. “Qu-qualquer coisa que você quiser.”
“Diga ao homem que a contratou que este” – eu varri meu olhar através da
plataforma do portal agora cheia de cadáveres – “foi meu último ato de
misericórdia.”
A mandíbula da mercenária cerrou, mas ela acenou com a cabeça mais uma
vez em compreensão.
“Se ele escolher ignorar qualquer resquício de sanidade que ele tem e vier
atrás de mim novamente, vou me certificar de que Ada será a única Granbehl
que vai sobrar para chorar por seu sangue,” eu disse, dando a ela um sorriso
triste. “Afinal… eu sei onde eles moram.”
Com um último aceno de cabeça, ela se afastou, mal conseguindo passar pelo
portal.
Fui até Darrin e Alaric, que observaram minha interação com a mulher em um
silêncio carrancudo.
“O método, bem…”
“O resultado teria sido melhor se você pudesse nos arrancar da gaiola de
força sem quebrá-la,” Alaric resmungou, segurando os pedaços quebrados do
artefato com ternura. “Você tem alguma ideia de quanto isso vale?”
“Se você o vendesse, ele simplesmente voltaria para as mãos de alguém como
os Granbehl,” respondi, impassível.
“Bem, claro,” ele gaguejou, “mas eu ficaria significativamente mais rico nesse
meio tempo!”
Regis escolheu aquele momento para reaparecer do beco. Ele pulou ao meu
lado, sua boca vermelha de sangue, e não pude deixar de notar a maneira
como Darrin o olhou desconfortavelmente.
“Estou mais curioso para saber como você escapou da gaiola de força,” Alaric
admitiu enquanto tentava forçar o fechamento de um dos painéis triangulares.
Capítulo 335
Paz Assombrada
A estrutura principal tinha dois andares, mas se expandia em alas baixas que
se abriam para os dois lados. Toda a mansão era feita de tijolos vermelhos
claros destacados por colunas de pedra branca. A casa era cercada por um
jardim bem cuidado de grama verde e arbustos densos e floridos, e um
caminho conduzia para o leste, onde eu podia ver algum tipo de área murada
no alto da colina.
“Embora eu esteja um pouco surpreso por você não viver nas Relictombs,” eu
disse enquanto passava um dedo ao longo da borda de uma flor roxa brilhante.
“Considerando o que você faz.”
Darrin colocou a mão no ombro de Alaric. “Nunca teria conseguido tudo isso
sem meu mentor aqui. Você está em boas mãos, Grey, mesmo que ele de fato
finja ser casca grossa.”
Alaric bufou, escurecendo suas bochechas já rosadas, e seu olhar passou por
todos os lugares, exceto por Darrin. “E isso me fez muito bem, considerando
que você acabou só tendo uma única propriedade no meio do nada…”
Um momento depois, ela se abriu e uma jovem, de não mais que sete ou oito
anos, se jogou em seus braços. “Tio Darrin!” Ela gritou, apertando os braços
em volta do pescoço dele e sorrindo por cima do ombro.
Quando ela percebeu que Alaric e eu estávamos lá, seus olhos, verdes como
esmeraldas, se arregalaram, e ela gritou e se contorceu para se livrar do abraço
de Darrin e esconder atrás dele, olhando pra nós.
“Pen, estes são meus amigos, Alaric e Grey,” Darrin disse, gentilmente tirando
ela de trás dele e despenteando o cabelo loiro escuro dela. “Está tudo bem,
eles são amigáveis. Bem, Grey é.”
A garota deu uma risadinha e olhou para Darrin. “Seus amigos são
engraçados!”
“Eles pensam que são, pelo menos,” Darrin respondeu, revirando os olhos para
Alaric. Ele pegou a garota e a carregou pela soleira, acenando para que o
seguíssemos.
“Alguma notícia sobre sua mãe enquanto eu estive fora?” ele perguntou a ela
enquanto nos conduziam ao saguão de entrada, onde duas escadas curvas
levavam ao andar superior.
Darrin puxou-a para outro abraço e afagou suas costas, consolando-a. “Tudo
bem, tenho certeza que ela voltará em breve.” Ele a colocou no chão de
ladrilhos de granito. “Por que você não vai contar aos outros que temos
convidados?”
Assentindo seriamente, a menina desapareceu por uma porta à nossa direita,
que deve ter levado para uma das outras alas da casa.
“Oh, não”, disse Darrin, passando a mão pelo cabelo. “A mãe dela é uma das
minhas companheiras de equipe de antigamente. Ela ainda está ativa. Pen fica
comigo às vezes, quando a mãe dela está em uma ascensão.”
Meus olhos seguiram Pen para fora do saguão de entrada, captando uma figura
encostada na parede no canto. Era uma jovem com cabelo laranja brilhante
que desbotava para um loiro ensolarado e terminava logo abaixo dos ombros.
Ela estava vestindo uma blusa branca com botões de prata e calças de couro
justas, e uma espada longa e fina pendurada em seu cinto.
Mas foram seus olhos castanhos que se destacaram, ou melhor, foi a maneira
como eles viajaram lentamente por mim, da ponta das minhas botas até meu
cabelo loiro claro, antes de girar em um revirar de olhos desdenhoso.
Antes que eu pudesse fazer mais do que trocar olhares, a jovem saiu da sala e
minha atenção foi novamente redirecionada.
“Senhor Darrin!” Uma voz feliz veio de uma sala atrás da escada. Uma mulher
rechonchuda com cabelo castanho escuro apareceu dela, enxugando as mãos
com uma toalha. “Sinto muito, não ouvi a porta sendo aberta.”
Balançando a cabeça em negação para o amigo, Darrin disse, “Por que você
não mostra a sala de banho para Grey primeiro?” Virando-se para mim, ele
acrescentou, “Suponho que já faz algum tempo que você não toma um banho
quente, certo?”
Apertar o botão fez com que água salgada quente vazasse das laterais da
banheira rochosa, e ela estava cheia antes que eu terminasse de tirar as
roupas simples que usei no julgamento.
E de Regis. ‘A Cidade de Maerin não era tão ruim, mas parece que foi há uns
cem anos, certo?’
Soltei uma risada antes de jogar um pouco da água em meu rosto. Depois de
enxugá-la, respondi, ‘Parece que sim. Você quer sair um pouco?’
Regis saltou do meu corpo para ficar do lado de fora da banheira. Ele se
espreguiçou, empurrando as patas dianteiras para a frente e bocejando
amplamente. “Sabe, às vezes me esqueço de como é tranquilo quando não
tenho seus pensamentos melancólicos passando pela minha cabeça o tempo
todo.”
Eu deixei meus olhos se fecharem. “Nesse exato momento? Vamos nos dar
alguns minutos para relaxar, então vamos descobrir o que Alaric e seu amigo
têm na manga.”
Senti a forte névoa do sono se abatendo sobre mim logo em seguida. Embora
eu realmente não precisasse dormir, apreciei a ideia de adormecer por um
tempo e não lutei contra a sensação.
Fiz uma reverência a Cecilia, mas ela apenas me olhou carrancuda antes de se
lançar sobre a plataforma, sua arma deixando um rastro de luz no ar. Eu
levantei a Canção do Amanhecer (Dawn’s Ballad) para bloquear o ataque, mas
a lâmina azul-petróleo se quebrou em minha mão e eu senti uma dor clara e
quente quando a arma de Cecilia atingiu meu ombro profundamente.
Cecilia puxou sua lâmina livre e girou ao redor, uma luz verde-ouro emanando
para fora, manchando as bordas da minha visão e brilhando nos rostos
congelados na platéia. Um puro feixe de luz a ergueu da plataforma de duelo,
sua lâmina apontada para meu peito como uma lança, então ela disparou com
a espada em minha direção.
E a história se repete…
Minha lâmina brilhava com uma violenta luz ametista que vinha de onde tinha
perfurado peito de Cecilia. Mas foi Tess, não Cecilia, que caiu para frente, seu
corpo caindo em mim, o sangue de sua vida correndo pelas minhas mãos,
manchando rapidamente a plataforma de duelo com vermelho.
Minha boca se abriu para falar… algo – qualquer coisa – mas as palavras
estavam presas na minha garganta, como se uma mão gigante tivesse em volta
do meu pescoço e estivesse me sufocando. Tudo o que pude fazer foi assistir,
paralisado, enquanto a luz desaparecia de seus olhos.
As pontas dos dedos dela roçaram meu rosto, descendo pela minha bochecha
e pelos meus lábios.
Soltando uma respiração tensa e meio sufocada, me puxei para fora do banho
de sal e rolei para deitar no chão, ofegante.
“Ei!” Regis latiu, quando eu mandei uma onda de água do banho espirrando
pelo chão da caverna. “O que eu fiz dessa – Ei, você está bem?”
“Quer falar sobre isso?” Ele perguntou, apoiando o queixo nas patas.
“Na verdade, não,” eu disse enquanto me levantava, as imagens do sonho já
ficando turvas e distorcidas em minha mente, exceto pelo sangue de Tess
manchando minhas mãos.
Lá fora, encontrei não apenas Alaric e Darrin, mas também a garota Pen, a
jovem com o cabelo loiro alaranjado e três outras crianças de várias idades.
Alaric ergueu os olhos e fez uma careta fingida. “Eu estava começando a me
preocupar que você tivesse se afogado na banheira, garoto. Teria enviado
Sorrel para verificar você, mas Darrin disse a ela para não fazer nada que eu
pedisse.”
“Você me culpa, depois do que aconteceu da última vez que você esteve aqui?”
Darrin perguntou, batendo levemente nas costas de Pen.
Darrin chamou minha atenção e piscou. “Eu disse, e não vamos. Grey, venha se
juntar a nós!”
“E estes,” disse Darrin, “são meus aprendizes, Katla, Ketil e Briar. Os pais dos
gêmeos são fazendeiros aqui em Sehz-Clar e estão tentando colocá-los em
uma das academias para ascendentes. Briar é a filha mais velha do Sangue
Nadir e está aqui para treinar em preparação para seu segundo ano na
Academia Central.”
Briar do Sangue Nadir estava rolando o que parecia ser uma ponta de flecha
de prata brilhante em sua mão, exceto que não estava em sua mão, mas
pairando cerca de uma polegada sobre ela. Ela não ergueu os olhos nem
reconheceu a introdução.
Olhando para as crianças, não pude deixar de pensar na diretora Wilbeck, seu
rosto ainda vívido do meu sonho. Eu sabia que era parcialmente o
sentimentalismo que sobrara do estranho pesadelo, mas não pude deixar de
gostar de Darrin Ordin. Ele me lembrava a diretora e até um pouco meu pai
quando Reynolds era jovem…
Katla murmurou sua saudação em resposta, embora seu irmão tenha falado
mais alto.
Adem a fulminou com o olhar enquanto voltava para seu assento, mas não
respondeu.
Alaric assobiou em apreciação. Para mim, ele disse, “A maioria das academias
com foco em ascensões avaliam pelas mesmas métricas que a Associação de
Ascendentes usa. É mais fácil acompanhar o progresso dessa maneira.”
“Não seja má!” Pen disse, fazendo beicinho para a menina mais velha.
“Briar,” disse Darrin com firmeza. A jovem enrijeceu, virando-se para ele, mas
focando em um ponto acima do ombro dele em vez de fazer contato visual.
“Ser grosseira com meus convidados significa grosseria comigo. Se você não
consegue conter sua frustração, eu recomendo que vá até as salas de
treinamento e suar até acabar com ela.”
Darrin soltou um suspiro enquanto passava a mão pelo cabelo loiro. “Vou me
desculpar em seu nome. Briar tem… orgulho de sua criação e de suas
realizações pessoais.”
“Que estrelinha, aquela lá,” Alaric disse enquanto tomava um gole generoso
de sua taça de vinho.
“Eu já vi piores,” eu disse com um encolher de ombros, meu olhar ainda fixo
onde Briar havia saído.
Os gêmeos trocaram um olhar aliviado enquanto corriam para dentro, mas Pen
teve que ser enxotada pela governanta. Adem demorou, olhando para Darrin
esperançoso, seu rosto caindo quando o ex-ascendente acenou para que ele
entrasse também.
Darrin assentiu e deu um gole em uma caneca de madeira. “Seus pais foram
mortos nas Relictombs. Eu não os conhecia, mas a mãe de Pen sim. O menino
não tinha mais ninguém, e ele teria acabado nas favelas em algum lugar, ou
dado a alguma academia de merda que o treinaria apenas pela metade antes
de enviá-lo para morrer na guerra.”
Darrin franziu a testa para mim em confusão. “Adotou? Não, claro que não.
Apenas os sangues nomeados ou Altos Sangues têm permissão para adotar
formalmente. É… diferente, lá de onde você vem?”
Eu balancei minha cabeça rapidamente. “Eu não quis dizer uma adoção formal,
não, é só que você o recebeu. Isso é muito gentil.”
Darrin lançou a Alaric um olhar significativo antes de se virar para mim. “Briar
está apenas um pouco chateada por eu estar preocupado com o seu
julgamento, em vez de estar aqui, treinando-a. Seus pais me pagaram um bom
dinheiro para ser seu mentor, mas ela acredita que tudo o que você precisa
para sobreviver às Relictombs é de proezas físicas e mágicas.”
“Definitivamente não dói ser mais forte,” argumentei, meu olhar ainda na porta
que as crianças tinham saído.
O olhar de Darrin ficou distante. “Sim, mas sair das Relictombs vivo também é
um esforço de equipe.”
‘Você ouviu isso? Aparentemente, estamos fazendo errado,’ disse Regis com
uma risada.
“Além de você ser ‘um molenga’, como Alaric disse, eu ainda não tenho certeza
porque você escolheu me ajudar,” eu respondi, estudando o ascendente
aposentado. “Não tenho certeza do que Alaric prometeu a você, mas não tenho
muita riqueza.”
“Eu só… não gosto de ver o garotinho sendo pisado pela nobreza. E eu
realmente não gosto quando os ascendentes são jogados fora, só porque eles
não têm o apoio de Alto Sangue.”
“Isso explica por que aqueles juízes odiavam tanto você,” observei,
lembrando-me de sua hostilidade clara.
Darrin riu baixinho. “Sim, não foi a primeira vez que entrei em conflito com
Blackshorn e Frihl.”
“Então… você espera que eu acredite que você me ajudou com a bondade do
seu coração?” Inclinei-me para a frente em minha cadeira, observando o
Alacryano de perto.
Eu o observei com cuidado, sem saber aonde ele queria chegar com isso.
“Eu invisto nas pessoas, Grey. Pessoas como Adem, Katla e Ketil. Pessoas como
uma dúzia de outros ascendentes que foram levados a julgamento, por direitos
sobre os espólios, ou morte acidental ou distintivos expirados.”
Alaric bufou. “Isso é exatamente o que eu disse a ele para fazer, garoto! Mas
ele não tem minha visão de negócios.”
Darrin lançou-lhe um olhar inexpressivo. Para mim, ele disse, “Espero que você
se lembre de que as pessoas podem ser gentis, e quando você vir alguém que
está com pouca sorte, ou que não é tão afortunado quanto você, ou que
precisa de ajuda, você vai fazer o que pode.”
Pisquei, esperando por uma piada ou um “e” depois, mas Darrin apenas ficou
sentado em silêncio.
Darrin deu a Alaric um olhar rápido antes de se virar para mim, seus olhos
brilhando e um sorriso infantil reaparecendo em seu rosto. “Ok, pode ser que
tenha uma coisa a mais…”
Capítulo 336
Proteção
O que nos saudou no final da curta jornada foi uma porta grossa com
inscrições de runas que se abriu para uma grande área de treinamento. Meu
olhar varreu a ampla sala, e as memórias dos campos de treinamento no
castelo voador, onde eu treinei com Hester, Buhnd, Camus e Kathyln depois de
me tornar uma Lança, ressurgiram.
Com o pesadelo sobre Tess e Cecelia ainda fresco em minha mente, o passado
parecia que estava flutuando mais perto da superfície do que o normal.
Parece que foi em uma vida passada, pensei com um suspiro, parando na
porta.
‘Isso me traz uma boa pergunta: exatamente quantas vidas você tem, afinal?’
Regis perguntou, sua forma incorpórea irradiando diversão e curiosidade
genuína. ‘Sete, como um gato, ou você é mais como um Nix do rio, apenas se
livrando de seu corpo antigo e criando um novo?’
Um Nix do rio?
‘É uma pequena besta de mana em forma de tubo que vive nas rochas debaixo
d’água. Ele perde seu exoesqueleto cristalino todas as manhãs, saindo novo
em folha, e se você o cortar em dois, as duas metades se regeneram.’
Regis praguejou em minha cabeça. ‘Por favor, esqueça que eu disse alguma
coisa. Essa cena é horrível.’
“Sério? Eu acho que é normal para um lutador querer sempre se testar,” Darrin
respondeu enquanto se espreguiçava no chão.
“A quantidade de álcool que você já inalou das minhas prateleiras deve ser o
suficiente para nos deixar quites até mesmo para este favor,” disse Darrin com
uma piscadela.
Eu balancei minha cabeça, jogando no chão o manto externo que Sorrel havia
fornecido para mim.
“Eu posso criar uma barreira ao meu redor,” eu disse, sabendo que ele estava
prestes a descobrir de qualquer maneira.
“Bom,” disse ele. Se ele pensou que era estranho, ele não revelou. “A
especialização se tornou popular desde que os simuladores permitiram que
os ascendentes escalassem as Relictombs juntos, mas acredito firmemente
que a versatilidade tem muito mais mérito quando as coisas dão errado.”
“Pare de dar uma de professor,” Alaric vaiou. “Nenhum desses idiotas quer
suas opiniões desatualizadas.”
‘Sim, mostre um pouco mais de criatividade do que “imbuir o corpo com éter,
e socar coisas”, princesa. Você não era um mago quadra elemental?’
‘…Touché.’
“Eu normalmente não mencionaria isso, mas diria, para você, evite grandes
ataques na direção das crianças,” acrescentou Darrin com um sorriso irônico.
“Essa barreira é resistente, mas depois do que vi contra aqueles mercenários,
não estou tão confiante nela.”
Caramba, valeu…
Darrin acenou com a cabeça, indicando que ele estava pronto, e eu retribuí o
gesto.
Mas a maioria das pessoas não tinha sido treinada por um asura.
Desta vez, quando ele deu um soco, seu punho parou bem aquém do meu
corpo, mas uma ligeira mudança na pressão do ar me fez desviar de qualquer
maneira. Algo duro e pesado passou roçando minha bochecha esquerda,
cortando minha orelha.
“Você conseguiu se esquivar até disso, hein?” Darrin notou atrás de sua guarda
rígida. “Isso é um pouco desanimador.”
Percebendo o que ele pretendia, corri em direção a ele, mas fui recebido por
uma enxurrada de ataques de todas as direções diferentes. A direção dos
ataques não parecia se correlacionar com seus movimentos físicos, e ele era
bom em mascarar suas intenções ao se concentrar em qualquer lugar exceto
de onde os golpes viriam.
‘Você não pode simplesmente … não sei, avançar que nem um louco? Regis
perguntou, entediado. ‘Ou você está exibindo seus movimentos de dança
extravagantes?’
Um sorriso se formou na borda dos meus lábios. Eu posso, mas onde está a
diversão nisso?
‘Ah, o foco aqui é a diversão. Entendi.’ Regis pigarreou antes de gritar como um
locutor de uma luta de prêmios. ‘Eeeeeee o ascendente aposentado está
mantendo Arthur Leywin nas rédeas! O caipira de Ashber pode se recuperar
disso?’
Lutando contra a vontade de revirar os olhos, corri para frente, meus pés me
levando para frente em um caminho em zigue-zague em direção ao meu
oponente enquanto eu trançava no meio de seu bombardeio.
Darrin ergueu os antebraços em uma proteção rígida para bloquear meu soco.
Enquanto o ascendente aposentado derrapava com o impacto, a eletricidade
em torno de meus braços apenas se espalhou como uma teia de luz amarela
bruxuleante em seu corpo coberto de mana antes de se dissipar.
Uma das crianças gritou de pura emoção, mas a atenção de Darrin estava em
minhas mãos, que tinham manchas de pele queimada que se ramificavam em
meus braços.
Ele não podia fazer nada mais do que olhar, de queixo caído, enquanto eu
passava a lâmina da minha mão em seu peito. Com o éter condensado e
moldado em um único ponto sobre minha mão esticada, meu ataque perfurou
a mana impregnada em sua pele e rasgou uma única linha limpa em sua
camisa, sem nem mesmo tocar sua pele.
“Sim,” disse Pen, pisando forte atrás do menino mais velho, com os braços
cruzados. “Tio Darrin sempre vence.” Sorrel pegou a menina por trás, fazendo-
a gritar de surpresa.
“Adem está chateado por ter perdido sua aposta com o senhor Alaric,” Briar
disse, ficando atrás de todos os outros com os braços cruzados.
“Você está bem, tio Darrin?” Pen perguntou em sua voz baixa, olhando para o
ex-ascendente com olhos grandes e lacrimejantes.
Ele soltou uma risada bem-humorada. “Claro, foi apenas uma luta amistosa.”
Ele enfiou os dedos no buraco que eu rasguei em sua camisa e balançou-os
para a garota. “Vê? Nem um arranhão. Nunca se esqueça, Pen, seu tio era o
líder dos Sem Sangue.”
“Essa foi a coisa mais louca que eu já vi na vida!” o menino loiro, Ketil,
exclamou. “Como você se moveu tão rápido?”
“É assim que todos os ascendentes lutam?” sua irmã perguntou, seus olhos
grudados no chão.
“Não,” Alaric disse, andando de onde eu havia usado o Burst Step até onde
estávamos agora, seu velho rosto enrugado pensativamente.
Darrin estava franzindo a testa e olhando para minhas mãos até que percebeu
que eu estava prestando atenção, e levantou rapidamente sua cabeça. “Grey é
rápido e forte, mas não deixe isso intimidar vocês,” disse ele a Katla e Ketil.
“Vocês não precisam ser capazes de fazer o que Grey ou eu podemos fazer para
ser ascendentes bem-sucedidos, mas vocês podem ser tão bom quanto nós,
se trabalharem duro.”
Katla e Ketil compartilharam um olhar cético sobre isso. Briar ergueu o queixo,
olhando ao redor ferozmente como se para nos dizer que ela seria tão boa
algum dia.
“Bem, estou faminto,” anunciou Darrin. “Por que não vamos todos comer
aquela refeição?”
“Posso fazer algumas perguntas a Grey?” Adem perguntou, ficando pra trás
enquanto Sorrel conduzia as crianças mais novas para longe. “Isso foi tão legal.
Eu quero-”
Atrás dele, Briar hesitou por alguns segundos, mas quando Darrin pigarreou,
ela girou e seguiu os outros. Não pude deixar de notar quando Briar parou na
porta, me dando uma última olhada inquisitiva antes de desaparecer.
Enquanto o grupo era conduzido pra fora da área de treinamento, Alaric puxou
a parte esfarrapada da camisa de Darrin. O homem loiro deu um tapa na mão
dele, brincando, mas Alaric estava sério.
Darrin nos guiou escada acima até uma sala de jantar surpreendentemente
pequena com mesa para quatro pessoas.
“O que foi aquele movimento que você usou lá na luta, Grey?” Darrin perguntou
em tom de conversa, virando a cadeira para que pudesse descansar os
antebraços nas costas. “Você usou algo semelhante contra aqueles
mercenários, certo? Foi muito impressionante, mas ver tão de perto assim foi…
bem, foi algo totalmente diferente.”
Forcei uma risada estranha e esfreguei minha nuca. “Não haveria muito
sentido em manter minhas runas escondidas se eu fosse me gabar delas para
todos que eu encontrasse, certo?”
“Verdade,” ele acenou com a cabeça. “Eu também sou contra exibir minhas
runas – alguns olhares boquiabertos e olhares de inveja não significam tanto
para mim quanto significariam para a maioria dos magos.”
“É porque suas runas não são muito para se ver em primeiro lugar,” Alaric
apontou enquanto tomava um gole generoso de seu copo.
“De qualquer forma,” Darrin disse, desistindo de bisbilhotar mais sobre minhas
runas, “eu pedi para as crianças comerem com Sorrel na sala de jantar
principal. Temos alguns negócios mais sérios para discutir.”
Darrin coçou o queixo pensativo. “Você planeja ficar dentro dos níveis mais
profundos das Relictombs indefinidamente? Porque o primeiro e o segundo
andares das Relictombs estão sob vigilância constante, tornando sua
localização muito óbvia para pessoas de alto poder.”
“Mas isso não significa que eles não vão contar a seus amigos próximos de
Sangues Nomeados sobre você,” Darrin continuou. “E isso sem levar em
consideração os Denoirs, muito mais ricos e poderosos, que também esperam
ser compensados.”
“E eles têm uma cenoura bastante cheia de curvas para balançar na sua frente
assim que te encontrarem,” Alaric acrescentou balançando as sobrancelhas.
“Se você está se referindo a Caera Denoir, espero que não pense que nós dois
saímos juntos para uma escapadela romântica nas Relictombs,” eu disse, com
um toque de verdadeiro aborrecimento em minhas palavras. “Foi ela que se
disfarçou e me rastreou para me observar.”
“Independentemente disso,” Darrin interrompeu. “Pelo que eu entendi entre
você e Alaric, parece que você quer a liberdade de poder se mover como
quiser.”
“Ok.” Alaric avançou. “O que você precisa é de proteção. Proteção política, não
do tipo de combate. Nós sabemos que você pode cuidar de si mesmo. O
problema é que só existem algumas instituições – e menos ainda pessoas que
não sejam as Foices e os próprios Vritras – que ofereceriam a você o tipo de
imunidade que impediria até mesmo o Alto Sangue Denoir de se intrometer. E
acontece que eu conheço um cara do escritório de admissões na Academia
Central—”
“Academia?” Eu falei de uma vez. “Onde Briar estuda? Você não espera que
eu—”
Alaric franziu a testa com os olhos vesgos e tomou outro gole direto da garrafa.
“Isso vai nos levar muito tempo se você continuar interrompendo a cada sete
palavras.” Ele fez uma pausa, me fixando com um olhar penetrante, mas eu
permaneci em silêncio. “Sim, a mesma Academia Central.”
“Não, garoto, espero que você dê aula,” Alaric anunciou, um brilho de diversão
em seus olhos.
Capítulo 337
Camadas
Alaric bufou com divertimento. “Vamos lá, garoto. Não mude de assunto.”
“Vida boa, nem mesmo precisa ensinar magia aos pequenos wogarts,” Alaric
acrescentou com um sorriso. “Apenas brandir espadas e praticar exercícios
militares, esse tipo de coisa.”
“Você só terá aulas alguns dias por semana,” continuou Darrin, “então, uma
vez que você esteja acomodado, terá tempo para—”
‘Eu sei o que você está pensando, obviamente,’ Regis interrompeu enquanto
esperávamos Sorrel arrumar a mesa e colocar alguns utensílios, ‘mas você e eu
sabemos que, logicamente, este é um plano bastante sólido.’
O que nesse plano parece lógico para você, Regis? Eu retruquei, incapaz de
suprimir uma onda de aborrecimento.
‘Em troca de ter carta branca para continuar fazendo nosso esquema sem
interferência, ensinar alguns ricos pirralhos alacryanos como bater uns nos
outros com gravetos parece um pequeno preço a pagar, princesa.’ O tom de
Regis era presunçoso, já que ele sabia que estava tirando pensamentos direto
da minha cabeça para argumentar contra mim.
‘Já não superamos isso de tratar todo alacryano que encontramos como um
inimigo mortal por agora?’ Regis perguntou, deixando o tom cortante de sua
voz se transformar em algo quase simpático. ‘Inferno, diferente de você, eu só
conheci alacryanos… e não estou sendo simpático, estou sendo convincente.’
Assim que a porta se fechou atrás dela, Alaric começou novamente. “Lembra
onde eu te encontrei pela primeira vez, garoto? Naquela pequena biblioteca
na Cidade de Aramoor? Se você for para a Academia Central, terá acesso a uma
das maiores bibliotecas de Alacrya. E com informações um pouco mais
próximas da fonte, se é que você me entende. Não tão… cuidadosamente
filtradas como o que você encontrou em Aramoor.”
Eu ignorei o velho bêbado e preferi espetar uma fatia de uma fruta vermelha
rubi com um garfo antes de dar uma mordida.
Eu fiz uma careta enquanto mastigava a fruta, que tinha uma textura
semelhante a borracha e carne seca. Minha preocupação mais imediata era
voltar para as Relictombs. Se fingir ser um professor nesta academia não fosse
uma barreira para isso…
“Não, todas as relíquias vão para o Alto Soberano, que provavelmente tem
algum covil supersecreto onde seus instiladores fazem seus experimentos” –
senti meu rosto afundar quando as palavras de Alaric apagaram a breve
excitação que senti – “mas eles de fato têm bastantes relíquias mortas em
exibição lá!” Ele terminou com pressa.
Qual o nome que devemos dar pra esta coisa, afinal? Perguntei a Regis,
pensando na pedra multifacetada que me permitia ver minha irmã e minha
mãe.
Apenas… não, respondi. Mas como quer que o chamemos, ter mais algumas
relíquias à nossa disposição não faria mal.
“Tudo bem,” eu disse em voz alta, “digamos, para fins de argumentação, que
eu concorde com seu plano. Como isso vai funcionar?”
Por mais que eu não quisesse admitir, a ideia de Alaric e Darrin tinha algum
mérito. A diretora Goodsky me fez professor quando eu tinha apenas 12 anos,
e eu treinei minhas habilidades de combate corpo a corpo por anos dentro do
reino da alma com Kordri.
As Relictombs…
Em algum lugar, mais três ruínas antigas estavam esperando por mim para
encontrá-las. Eu não tinha certeza se as zonas que Caera e eu havíamos
ascendido juntos eram as mesmas ruínas ou diferentes, mas senti
instintivamente que não tinha tido sucesso em minha segunda ascensão.
Balançando minha cabeça, eu me deixei inclinar para trás até que eu deitasse
no chão frio. “O que quer que Agrona e Nico tenham feito para Tessia, sejam o
que forem essas tatuagens ou feitiços… Eu tenho que salvá-la, Regis.”
“Para uma garota que você enrolou toda a sua vida – segunda vida, tanto faz –
estou percebendo muitos sentimentos confusos aqui.” Regis fez uma pausa
para considerar suas palavras. “Você a está salvando por amor ou culpa?”
O lobo das sombras bocejou e apoiou o queixo nas patas. “Vindo do cara que
descobriu como voltar no tempo para trazer objetos de volta à vida.”
Soltei uma risada ausente, minha mente vagando por todos os estágios do meu
relacionamento com Tess. Alguém que salvei, que virou uma irmã mais nova,
depois uma amiga e colega de classe, e eventualmente algo mais. Sempre
houve alguma forma de amor em meio a tudo isso, mas não da maneira que
Regis queria dizer. A culpa por ser um homem muito mais velho do que meu
corpo físico me impedia de examinar meus sentimentos em profundidade,
afastando-os. Até mesmo os poucos beijos que compartilhamos foram
hesitantes, experimentais…
E então eu desapareci para Epheotus, e Tessia foi para a guerra. Mal tínhamos
nos visto durante a guerra, e o romance estava tão longe da minha mente…
“Então, como sua vida aqui teria sido diferente da anterior?” Regis perguntou,
sem se preocupar em levantar a cabeça.
Abri a boca para falar, mas não consegui formar uma resposta. Eu me culpava
por muitas coisas, mas ficar próximo de todas as pessoas que passei a amar
neste mundo não era uma delas.
“Eu sei,” disse ele sonolento, sua mandíbula rachando com um enorme bocejo.
“Se eu pudesse usar a relíquia para vê-la… talvez pudéssemos descobrir o que
realmente está acontecendo. Eu saberia se ela ainda fosse… ela mesma.” Havia
uma parte de mim que estava feliz por eu não poder, no entanto. Tive medo
do que veria se a pedra funcionasse.
Quando eu imbuí éter na runa de armazenamento extradimensional, Regis
levantou a cabeça novamente. “Você vai tentar mesmo assim?”
Eu apenas balancei minha cabeça, forçando minha mente para longe do poço
profundo de culpa e medo que eu sentia sempre que pensava em Tessia. Ela
não era minha única preocupação agora. Havia outra velha amiga que
precisava ser salva também, e eu sentia tanta falta dela – talvez até mais –
quanto da princesa élfica.
Regis levantou a cabeça do chão e olhou por cima do ombro para mim. “Já faz
um tempo que você não tenta fazer isso aí… quebrar o ovo ou algo assim.”
“E aí?” Régis cutucou, coçando atrás da orelha com a pata. “Você vai tentar ou
o quê?”
Eu me perguntei, não pela primeira vez, se ela seria a mesma Sylvie que esteve
ao meu lado desde que eu era criança. Ela ficaria com raiva de mim? Será que
ela se lembraria de tudo que aconteceu, de tudo que fizemos juntos?
Virei-me para perguntar a Regis se ele vinha, mas já podia sentir a resposta.
Isso era algo privado, algo que eu precisava fazer por conta própria.
Eu mantive meu olhar nele, acenei com a cabeça, então me virei e pulei para
fora da janela, passando por cima de uma fileira de arbustos decorativos e
uma pequena cerca antes de pousar na grama alta. As colinas eram
fantasmagóricas no escuro, a grama clara sem cor à luz das estrelas.
Imbuindo éter por todo o meu corpo, corri em direção a uma colina alta a cerca
de um quilômetro da casa de Darrin, o ovo suavemente brilhante em meu
punho.
Apesar de meus melhores esforços para me manter calmo, meu coração batia
forte no meu peito quando me sentei de pernas cruzadas na grama dura. A
última vez que tentei imbuir éter no ovo de Sylvie, parecia que estava jogando
baldes cheios de água em um reservatório de drenagem rápida. Mas isso foi
muito melhor do que minha primeira tentativa, logo depois de formar meu
núcleo de éter.
Com base no meu melhor palpite – era muito mais difícil para mim apontar a
clareza do meu núcleo de éter comparado ao meu antigo núcleo de mana –
meu crescimento entre a cidade de Maerin e agora era significativamente
maior do que o que eu havia alcançado durante a primeira ascensão.
Não custou muito éter para fazer a curta corrida até a colina, mas mesmo assim
decidi absorver todo o éter que pudesse da atmosfera antes de começar. O
processo foi significativamente mais lento do que nas Relictombs, onde a
atmosfera era rica, mas continuei até meu núcleo estar completamente cheio.
Para ter certeza de que estava maximizando minha chance de sucesso, liberei
um pouco do éter do meu núcleo, deixando-o se mover naturalmente por todo
o meu corpo e não exercendo nenhuma influência consciente sobre ele. A
maior parte do éter moveu-se em direção às minhas mãos – ou, mais
precisamente, em direção ao ovo de Sylvie – e parte do excesso foi perdida,
mas depois de trinta minutos ou mais de meditação, meu núcleo estava
transbordando e meu corpo estava nadando com partículas flutuantes de éter.
Era importante que todo o éter fluísse para o ovo, mas também era importante
que eu canalizasse o éter rápido o suficiente para encher o reservatório dentro
dele. Claro, se eu apenas enviasse uma rajada descontrolada de éter, a maior
parte se dissiparia na atmosfera em vez de fluir para o ovo.
Dessa vez, mais do éter purificado estava sendo drenado para a pedra, com
apenas um fio de energia impura escapando novamente – uma melhoria
significativa.
O caminho em espiral lá dentro, onde o éter era atraído para o coração do ovo,
começou a brilhar com uma luz ametista vibrante. À minha volta, o topo da
colina estava banhado em luz roxa, salpicado de sombras verdes, vermelhas e
azuis.
A luz se apagou quando a pedra vibrante e brilhante ficou turva, depois escura.
Então, do fundo da pequena pedra que carregava desde que despertei nas
Relictombs, houve uma rachadura. Foi algo que senti mais do que ouvi, como
pisar em um gelo muito fino e senti-lo se mexer sob meus pés.
Não havia mais éter descendo pelo ovo. Ele tinha devorado tudo que eu tinha
dado, mas não tinha sido—
Eu congelei. Algo estava diferente. Eu podia sentir isso, mesmo que não
pudesse ver.
Embora meu núcleo doesse por ter sido drenado, passei alguns minutos
juntando éter, apenas o suficiente para enviar um pulso experimental na
pequena pedra. O ovo de Sylvie o recebeu com fome, mas ao contrário de
antes, o éter não espiralou para o centro do ovo.
Minhas mãos tremiam quando um escárnio amargo escapou dos meus lábios.
Ter minha excitação se transformando tão abruptamente em decepção me
deixou atordoado, olhando fixamente para o ovo até que minha visão ficou
turva.
“Mesmo que custe todo o éter das Relictombs, vou tirar você daí, Sylv.”
Capítulo 338
Uma Arma Contra Ele
CAERA DENOIR
Mas eu já sabia que ele não apareceria, o que eu tentei explicar ao Lorde e à
Dama. Grey deve ter lido as reais intenções por trás da indelicada tentativa de
manipulá-lo. Afinal, eles enviaram Lauden, de todas as pessoas, ao Alto Salão
para pôr fim ao falso julgamento.
Chutando uma grande vagem de semente que havia caído dos galhos acima,
observei enquanto ela quicava no caminho antes de cair na grama mais
espessa sob as árvores. Algo pequeno e rápido se moveu na escuridão do
crepúsculo, correndo pela vegetação rasteira para inspecionar a comoção.
Embora eu soubesse que Grey não viria, ainda assim me senti desapontada,
uma emoção que me frustrava mais do que a própria causa. Fazia três
semanas, mas eu ainda estava lutando para entender como me sentia em
relação ao homem, ou o que eu queria dele.
Minha própria espada escarlate estava em minha mão e queimando com fogo
espiritual negro em um instante, mas eu não conseguia sentir mais ninguém
no pomar, nem determinar a origem da lâmina negra que quase arrancou
minha cabeça.
Girando, eu trouxe minha longa lâmina em um amplo arco sobre minha cabeça,
chamas negras se espalhando em uma nova destrutiva. Houve uma ondulação
nas chamas apenas à minha direita, mas no momento em que eu disparei um
golpe curto e afiado, ela se foi, e um fragmento fino como uma navalha da mais
pura mana negra foi pressionado contra a lateral do meu pescoço.
“Tsk, tsk,” disse Foice Seris, aparecendo como se fosse de sua própria sombra.
“Se eu fosse um assassino, você estaria—”
“Seu controle sobre o fogo da alma está progredindo bem,” ela disse, seus
lábios se contraindo nos cantos. “Parece que o misterioso Grey te fez ir além
de seu auge mais recente.”
Guardei minha arma, voltando meus olhos para o cascalho aos nossos pés.
“Você me dá muito crédito,” respondi uniformemente, ignorando o rubor de
minhas bochechas com a provocação de Foice Seris. “É graças ao seu
treinamento e orientação que cheguei a este nível.”
“Sim,” ela disse, sua voz baixa e pesada com intenção. “Para ambas as
perguntas. Mas agora não é a hora, Caera.”
O tempo acabou provando que foi uma decisão sábia, por mais que eu odiasse
admitir. Teria quebrado o coração de meus pais adotivos se Lauden estivesse
ocupado estabelecendo uma propriedade para os Denoirs quando os asuras
atacaram. Não que eu me importasse terrivelmente…
“Deveria ter sido um problema simples de resolver,” eu disse com uma pitada
de amargura. “É uma vergonha, honestamente, saber que nosso sistema legal
pode falhar de forma tão dramática.”
Foice Seris respondeu com uma risada elegante. “Os Altos Sangues passaram
gerações manipulando o sistema pra benefício deles, tanto que a maioria de
vocês quase não percebe mais. Sua surpresa é prova suficiente disso.”
Apressando meu passo para andar ao lado dela, encontrei os olhos de minha
mentora. “Por que os Soberanos não intervêm?”
“A melhor pergunta é, por que fariam isso?” ela perguntou, uma sobrancelha
erguida. “Eles criaram cuidadosamente um sistema pelo qual a pureza do
sangue é fundamental, não é? Eles deixam os Altos Sangues escaparem
impunes do assassinato, desde que isso não interrompa as próprias
maquinações deles.” “Não, a verdade é, garota, que os Soberanos pouco se
importam com o que os menores fazem uns aos outros, contanto que seja feito
com a quantidade apropriada de reverência ao suserano de cada domínio.”
Foice Seris abriu a boca para continuar falando, então me lançou um olhar
astuto. “Pequena meio-sangue inteligente. Você me fez mudar de assunto.”
Isso provocou outra risada delicada em minha mentora. “Se você quer que ele
confie em você – realmente confie em você – este é o conhecimento que você
precisa ganhar por conta própria, Caera. Não vou te dar nenhum atalho.”
“Mas você quer que eu fique perto dele? Você insinuou isso.” Eu mantive minha
atenção em frente, mas podia senti-la me examinando. “Devo ser sua espiã,
Foice Seris?”
“Você deve,” ela confirmou. “Mas não pense que o está traindo. Afinal, o
menino me deve muito.”
Trêmula, minha assistente se pôs de pé. “Lady Caera, novamente, eu não tinha
ideia, peço desculpas por minha—”
Eu acenei para seu pedido de desculpas. “Não importa. Só posso presumir que
meus pais adotivos enviaram você, certo?”
A respiração rápida e trabalhosa de Nessa desacelerou, e ela cruzou as mãos
na frente dela e reorganizou seus traços faciais em uma expressão menos
apavorada. Finalmente, depois de pigarrear, Nessa falou novamente. “Sim,
senhora, você… você deve ir ver seus pais no escritório do Lorde
imediatamente. Levei alguns minutos para te encontrar, então é melhor você
ir.”
Um barulho alto de pios vindo de perto fez Nessa pular, e ela deu um passo
para perto de mim. “É melhor nós duas irmos,” ela murmurou, olhando para
as árvores escuras.
“De fato,” disse Corbett, a única palavra fria e afiada como vidro quebrado.
“Alguém poderia pensar que Ascendente Grey não tem nenhum senso de
propriedade ou decoro.”
“Talvez Caera não seja tão importante para ele quanto pensávamos,” Lenora
continuou. “Se soubéssemos o que Foice Seris Vritra queria com o
ascendente…”
“E, mais uma vez, sua rede de informações se mostrou inestimável,” disse
Corbett, suavizando um pouco o tom. “A culpa não é sua, meu amor, mas dele.
Pelos Vritra, se este ascendente não fosse tão valorizado por nossa patrona,
eu o lançaria no Monte Nishant.”
Tendo ouvido o suficiente, bati de leve na porta antes de entrar. Lenora, que
andava de um lado para o outro na frente da mesa ornamentada de Corbett,
parou e endireitou-se quando entrei. Corbett estava sentado atrás da mesa,
uma das mãos em volta de um copo de cristal vazio. Ele estava olhando para
a distância, como se ainda imaginando Grey sendo lançado na caldeira de um
vulcão ativo.
“Caera, querida,” disse Lenora, exibindo seu sorriso deslumbrante para mim.
“Temos algumas notícias sobre o seu amigo, Grey.”
Lenora soltou uma risada tilintante. “Não, infelizmente não tivemos notícias
do próprio Gray, mas recebi uma carta de um velho amigo meu — um
administrador da Academia Central — com algumas notícias estranhas.”
Minhas sobrancelhas baixaram em uma carranca leve. “O que isso tem a ver
com Grey?”
Considerei meus pais adotivos. Eles o queriam em dívida com Alto Sangue
Denoir por nenhum outro motivo além de que Foice Seris estava interessada
nele, embora eles não tivessem ideia do motivo. Eu sabia que poderia usar
isso.
“Lenora… Mãe,” eu disse, sabendo que meu uso do termo iria encantá-la,
“como você planeja ficar de olho em Grey se ele está envolto pela academia?”
Como eu havia previsto, Lenora sorriu para mim com alegria. “Ora, é aí que
você entra.”
Eu pisquei. “O quê?”
Eu dei a ela um sorriso de lábios apertados e dei um passo para trás, me dando
um pouco de espaço para respirar. Embora eu estivesse emocionada por
deixar a propriedade Denoir para passar um tempo na Academia Central com
Grey – e sem nem mesmo uma discussão de meus pais adotivos – eu também
sabia o que eles esperavam de mim.
“Foice Seris não… disse nada para você, disse?” Lenora perguntou
timidamente. “Sobre este ascendente?”
“Claro que não,” eu disse, me arrepiando. “Vocês sabem tudo que eu sei.” Isso
era mentira, é claro, mas não muito significativa. Eu não tinha contado ao Alto
Lorde e à Dama sobre o uso do éter por Grey, mas, por outro lado, disse a eles
tudo o que sabia sobre ele.
O que, ao que parece, não é muito, pensei, considerando novamente sua
estranha contratação na academia.
“Ele é especial,” continuei, “mas não tenho ideia do que Foice Seris quer com
ele, se é que quer algo com ele.” Essa era a verdade, embora talvez não toda
ela. Seris conhecia Grey, de alguma forma, mas ela não estava disposta a me
fornecer mais informações depois de nossa última conversa.
“Tudo bem,” eu disse, encontrando os olhos da minha mãe adotiva. “Eu farei
isso.”
Mas não vou deixar vocês me usarem contra ele, acrescentei silenciosamente.
Capítulo 339
O Domínio Central
ARTHUR LEYWIN
O velho alacryano estava de pé com suas mãos dentro dos bolsos de um manto
púrpura — uma roupa mais parecida com os mantos de banho de meu mundo
anterior do que com os mantos de batalha que eram normalmente usados por
magos aqui — que estava esticado um pouco demais na região da barriga.
“Você sabe,” ele respondeu enquanto ponderava, “eu não sei se odeio isso ou
não.”
“Pelo Alto Soberano, nós vamos ou não?”
Alaric, Darrin, e eu nos viramos para olhar Briar, que estava recostada na
parede da câmara de tempus warp de Darrin. Ela tinha se vestido com uma
armadura de couro branco novo e mantinha sua mão no cabo de sua espada
longa.
A jovem mulher insociável encontrou nossos olhares sem nem mesmo vacilar.
“Eu gostaria de voltar à academia antes que eu tenha a mesma idade de vocês
três.”
Alaric soltou uma risada e deu um tapa forte nas costas de Darrin. “Não
importa quanto dinheiro o Sangue Nadir está te pagando, faça-os pagarem o
dobro,” ele provocou.
A garota apenas bufou, mudando sua linha de visão para o tempus warp, que
ficava no centro da plataforma de pedra elevada. O artefato, que era
remotamente parecido com uma bigorna, era feito de um metal cinza fosco, e
estava com dezenas de runas gravadas nele.
“Quão longe isso pode chegar?” Eu perguntei, fingindo não estar muito
interessado.
Então nem está perto de ser capaz de me levar de volta à Dicathen, eu pensei,
contendo minha decepção. Era um pensamento tolo, de qualquer maneira. Por
mais que eu quisesse dizer a minha irmã e mãe que eu estava vivo, retornar à
Dicathen agora poderia, na verdade, colocá-las em mais perigo do que elas já
estavam.
‘Ei, você ainda tem a Pedra do Assediador.’ Regis disse com o que ele pensava
que era um tom consolador.
“Eu vou mandar vocês para a Biblioteca dos Soberanos.” Darrin estava dizendo.
“Briar, você pode levar o Grey ao—”
Embora eu pudesse ter aberto um caminho para fora da cela dos Granbehls ou
do Alto Salão a qualquer momento, isso provavelmente teria feito com que
qualquer coisa a mais que eu precisasse fazer fosse muito mais difícil — até
mesmo impossível, se eu atraísse a atenção de uma Foice ou duas. Graças a
Alaric e seu amigo — e Caera — eu tinha evitado isso.
“O que você encarou foi uma terrível injustiça,” ele respondeu. “Estou feliz que
fomos capazes de ajudar.”
“Meu herói,” eu respondi, sem uma expressão no rosto. “Então, antes de você
ir, é melhor nós acertarmos as coisas.”
Darrin franziu o cenho com vergonha para o velho, mas manteve sua opinião
de nossa transação para ele mesmo.
“Mais 10% pelos meus serviços como seu conselheiro legal.” ele adicionou com
uma piscadela.
Quando eu tirei a primeira peça – uma coroa prateada incrustada com joias de
um vermelho-sangue que giravam com tanta mana de fogo que era visível a
olho nu – Alaric brilhou com uma felicidade descontida.
Os olhos brilhantes de Briar ficaram cada vez maiores com cada peça que saía
da minha runa de armazenamento extradimensional, e até Darrin falhou em
esconder sua surpresa com o tamanho do pagamento, composto de uma
ampla variedade de artefatos brilhantes e levemente mágicos.
“Eu pensei que você tinha dito que não tinha riqueza alguma?” Darrin
perguntou, levantando uma sobrancelha em minha direção.
“Eu não tenho. Eu tenho um bocado de coisas. Não é ‘riqueza’ de verdade até
que eu tenha a chance de vender isso, tecnicamente,” eu disse enquanto
retirava outro item de minha runa dimensional.
Alaric fez questão de inspecionar cada peça antes de jogá-las para dentro de
seu próprio anel dimensional, tentando manter um ar de maturidade, mas, no
fim, ele estava praticamente babando, e suas mãos tremiam de alegria.
“Faça-me um favor e não use isso pra beber até a morte,” eu disse, encarando-
o com um olhar severo.
O velho ascendente testou o peso do anel como se ele pudesse sentir o peso
físico de todo o tesouro que agora estava ali. “Quando você chegar a Cargidan,
a Associação de Ascendentes local vai comprar tudo que você tiver e vai
colocar direto no seu cartão rúnico,” ele disse distraidamente. “E eles podem
imprimir um emblema oficial também, agora que você completou sua
preliminar.”
Darrin foi rápido em responder. “Não fique com as expectativas altas, Briar.
Isso definitivamente não é um ganho normal para uma única ascensão — nem
mesmo pra várias delas.”
“Eu que o diga,” Darrin respondeu. “De qualquer maneira, é melhor que vocês
se apressem. Grey, Briar vai te ajudar a encontrar seu caminho por lá.” Ele
olhou sua aprendiz e passou a mão pelo seu cabelo loiro. “E Briar, não esqueça
que Grey vai ser um professor na academia. Você pode não estar em sua aula,
mas eu não consigo imaginar que ele vai aceitar gentilmente qualquer outra
grosseria da sua parte.”
“Te vejo por aí, Grey.” Darrin disse conforme eu me juntava à jovem na
plataforma.
“Apresse-se e resolva o que precisar para que você possa voltar a me fazer
dinheiro.” Alaric adicionou rispidamente, girando o anel dimensional ao redor
de seu dedo cheio de calos.
“Tchau, tchau!” uma voz fina disse da porta quanto Pen apareceu no canto,
acenando.
A transição foi perfeita, sem nenhum enjoo chocante ou bagunça nos meus
intestinos. A plataforma sob meus pés havia mudado de pura pedra para
madeira escura, enquanto o espaço ao meu redor era simultaneamente
cavernoso e claustrofóbico.
Dando uma olhada rápida nas fileiras das estantes de livros, cada uma
carregada com livros encapados em couro, eu imaginei a enorme quantidade
de informação contida dentro dessa biblioteca. Dezenas de milhares de livros
sobre cada assunto imaginável. Entretanto, se é tão cuidadosamente filtrada
como a da biblioteca em Aramoor, provavelmente não há nada de importante
ou útil aqui, eu pensei, acalmando minhas expectativas.
Ainda assim, eu estava ansioso por alguns momentos quietos para gastar
estudando Alacrya, os Soberanos, e as Relictombs. Ainda havia muito que eu
não sabia, muitas maneiras que eu poderia cometer um deslize sem nem
mesmo perceber. Eu esperava que a biblioteca tivesse algumas respostas.
Briar já tinha a sua em mãos, mas eu tinha que tirar a minha da runa
dimensional, fingindo ativar meu anel inútil. Os olhos do guarda dispararam
pelo emblema de identificação dela antes de devolvê-lo sem falar nada.
Quando ele pegou a minha, entretanto, ele a examinou por alguns longos
momentos, uma profunda carranca se formando em seu rosto. Seus olhos
dispararam para mim, depois de volta. Briar bufou novamente, mas ele a
ignorou.
Deixando meu olhar passar por ele preguiçosamente, eu disse, “Muito bem,
mas eu espero que você esteja preparado para lidar com as consequências de
assediar um professor da Academia Central.”
Parecendo achar graça, o guarda voltou seu olhar incerto para Briar, que
apontou seu polegar para mim e disse, “Não olhe pra mim, cara. Ele é o
figurão.”
Ele deu um rápido passo para trás, falando sem entusiasmo, “Bem-vindo à
Biblioteca dos Soberanos, Cidade de Cargidan, Domínio Central,” enquanto nós
passávamos.
Briar me deu um olhar de avaliação com o canto de seus olhos. “Talvez você
vá se encaixar na academia, afinal.”
“Não tão mal pra um caipira da roça, né?” eu falei com uma piscadela, antes
de deixar meu olhar vagando pela construção novamente. Os pisos e paredes
eram de um mármore branco brilhante, que se destacavam em forte contraste
à madeira negra das plataformas, grades e estantes de livros.
Um espaço amplo de portas de vidro levava à grama verde, além da qual estava
uma rua movimentada tumultuada com pessoas. Embora houvesse algum
tráfego de pedestres aqui, parecia mais comum para esses Altos Sangues
viajarem por carruagem, algumas das quais estavam passando pela rua
enquanto eu assistia, puxados por uma variedade de bestas de mana. O boi
vermelho-sangue que eu havia visto sendo usado nas Relictombs eram os mais
comuns, mas eu também vi alguém sendo levado por um cavalo reptiliano, e
outra pessoa por um pássaro enorme.
Briar se moveu com propósito, nos guiando para longe da biblioteca com uma
velocidade de marcha.
“Você parece conhecer seu caminho por aqui muito bem,” eu comentei, meu
olhar se espalhando pelas construções ao nosso redor. Os becos eram limpos,
sem lixo e nem pessoas ociosas, e todos os pedestres se moviam com
propósito, assim como nós.
Por cima do ombro, ela disse, “É um requisito. Estudantes que não podem se
mover rapidamente pela cidade tem mais probabilidade de perderem prazos
ou falharem em tarefas.”
‘Sim, princesa!’ Regis cantou. ‘Pare com sua vida fácil e sem dificuldades e saia
do lugar.’
Eu me desculpo por viver tal vida fácil e sem provações, oh grande e poderosa
arma dos asuras, eu pensei, impassível.
Bem alto, eu disse, “Nem todo mundo aprende bem sob esse tipo de pressão.”
Briar enrugou seu nariz. “Os estudantes da Academia Central não são todo
mundo. Nós somos a elite, mesmo entre sangues nomeados e altos sangues.”
Sem esperar por uma resposta, ela girou, fazendo com que seu cabelo claro
rodopiasse, e começou a marchar novamente.
“Você não quer essas aí,” Briar disse quando eu diminuí o passo para ler o
letreiro fora da Espólios do Andvile. “Essas lojas são todas suspeitas, e a
maioria das pessoas que negociam com elas também são. Ótimas se você tem
um espólio roubado para se livrar com pressa, mas não tão boas para manter
sua reputação como professor da Academia Central. Se você vai vender as
coisas que Alaric não roubou de você, leve-as para a Associação de
Ascendentes. A construção fica bem próxima à entrada para o campus de
qualquer forma.”
Quase que como para enfatizar o ponto dela, a porta se abriu e um homem de
olhos ligeiros em um manto de batalha cinza sujo saiu. A atenção dele estava
em uma pedra vítrea em sua mão de forma que ele quase trombou comigo. Ele
se encolheu enquanto eu aparecia em sua visão periférica, me deu um olhar
suspeito, depois puxou seu capaz e se misturou à multidão de transeuntes.
Briar sorriu. “Essa realmente é sua primeira vez em uma das cidades grandes,
não é?”
“É alguma espécie de artefato de projeção?” eu perguntei, dando um passo
mais perto. “Mostrando imagens gravadas?” Assim que eu estava a alguns pés
do artefato, uma voz masculina grossa preencheu minha cabeça.
“Além disso, todos nós vamos nos juntar para oferecer graças ao Alto
Soberano, para que ele continue a nos proteger com toda—”
Ela concordou, saindo do alcance ela mesma. “Meus pais pensavam que eles
estavam sendo realmente inteligentes, imaginando que a guerra estava
acabando e apostando nas ascensões no lugar disso. Eu acho que a guerra não
está tão acabada quanto eles pensavam.”
“Mesmo que isso tenha sido muito divertido, aqui é onde eu te deixo,
Professor.” Ela já estava saindo quando ela disse, “Eu presumo que você possa
achar o caminho daqui, certo?”
“Aquele é seu namorado? Você disse que não podia socializar porque você
estava em treinamento, Bee! Mas, invés disso, você esteve passeando com—”
“Ele não é, e você pode calar a boca agora mesmo, Valerie, antes que eu te
mostre exatamente quão duro eu estive treinando,” Briar disse em um rosnado
baixo que só fez as outras garotas sorrirem mais.
“Você sabe, eu meio que estou surpreso que elas sejam tão… normais,” eu
disse, observando as estudantes se enfileirarem nos portões. Uma memória
de Ellie brincando com as outras garotas da Escola para Damas surgiu,
trazendo um sorriso aos meus lábios.
Capítulo 340
Fardos e Riscos
Diversão – e algo a mais, algo faminto – brilhou nos olhos do homem quando
ele acenou com a cabeça respeitosamente e gesticulou para que entrassem no
prédio. Virando nos calcanhares, ele se moveu pra longe com a passada leve e
confiante de um guerreiro, me deixando na pequena câmara de entrada com
guardas ao redor.
Embora a entrada não fosse nada excepcional, a visão do amplo salão depois
dela era completamente diferente. Eu tinha achado que o prédio da
Associação de Ascendentes de Aramoor era impressionante, mas esse lugar
tinha mais em comum com um templo ou palácio do que um simples salão de
guilda.
As paredes, teto, e chão eram de pedra branca – mais brilhante e mais limpa
que mármore – e colunas esculpidas marcavam a sala a cada 7 metros. Haviam
runas douradas embutidas no chão formando caminhos que levavam de uma
seção do salão até outra, e eu também podia ver as formas de bestas dispostas
em jade em vários lugares.
Apesar da falta de conversação durante nosso trajeto, estava claro que ele
estava confortável com o silêncio, ou talvez com sua posição. A maneira com
que ele se esgueirou para seu assento, que ficava atrás de uma mesa enorme
esculpida em ébano com filigrana em ouro, sugeria a segunda opção. Ele
indicou uma cadeira macia na frente da mesa, e eu me sentei, sem tirar os
olhos dele.
“Então, aqui está você.” O homem deu um sorriso, mas eu conseguia ver o lobo
cinzento rosnando atrás da máscara afável.
Não querendo entregar nada sobre mim, eu finalmente disse, “Eu não tenho
certeza do que você quer dizer.”
“Essa pode ser a maneira mais prazerosa que alguém já me ameaçou,” ele
sorriu, apontando seus dedos pra mim. “Eu gostei de você, Grey! Puta merda,
eu gostei de você.”
“Pelo nome dos Vritra, onde estão minhas maneiras? Meu nome é Sulla do
Sangue Nomeado Drusus, mas todos por aqui me chamam de Sul. Eu sou o alto
mago deste pequeno estabelecimento.” O mago gesticulou para o salão
abaixo.
“Não,” ele disse, recostando-se em sua cadeira. “Certamente não. Mas também,
não são muitos os ascendentes que recebem um emblema de diretor depois
de uma única ascensão, ou se tornam professores na mais prestigiosa
academia de Alacrya” — eu não achei que era possível, mas seu sorriso ficou
ainda mais afiado — “Eu queria ver você por mim mesmo.”
Eu cerrei meus dentes. Esse era exatamente o tipo de atenção que queria
evitar.
‘Talvez você não devesse sempre fazer um espetáculo de si próprio então,’ Regis
comentou zombando.
“Eu gostaria de pegar meu emblema, trocar meus espólios, e pegar meu rumo,”
eu disse com finalidade, deixando claro que eu gostaria de encerrar essa
interação. “Eu ainda preciso fazer o check-in nos Escritórios de Administração
Estudantil e me acomodar. Foi uma longa jornada até aqui.”
‘O cabelo dela não é a única coisa que desafia a gravidade…’ Regis disse
sugestivamente. ‘Se você morrer, ela pode ser minha nova mestre?’
Por que esperar? Eu respondi, empurrando com meu éter como se eu quisesse
expulsar o lobo das sombras de meu corpo.
A mulher fez uma reverência rasa quando nos aproximamos. “Roupas simples,
olhos lindos, jovem demais… você só pode ser nosso novo professor de Táticas
de Aprimoramento Corpo a Corpo de nível um, certo?” Ela sorriu para mim e
pulou nas pontas dos pés. “Eu sou Abby do Sangue Redcliff. Eu ensino em
alguns cursos de nível superior de especialização em vento para
Conjuradores.”
“Hmm, olá,” eu disse, pego com a guarda baixa pela sua precocidade. “Eu não
estava esperando—”
“Um comitê de boas-vindas?” ela disse com uma risada feliz. “Bom, um cara
tímido como você pode não querer ouvir isso, mas você já é praticamente uma
celebridade por aqui.”
Uma mão surpreendentemente forte agarrou meu cotovelo. “Pode ser meio
opressor aqui no começo. Eu ficaria feliz de te mostrar como as coisas
funcionam, Grey. É só me avisar, ok?”
‘Você está pensando em vazar disso tudo.’ Não era realmente uma pergunta já
que ele podia ler minha mente.
Regis soltou uma risada em minha mente. ‘Você acabou de ficar 3 semanas em
uma jaula.’
Pedra e barras não estavam me segurando. Eu escolhi ficar, deixar aquilo rolar.
Eu estava tentando evitar atrair atenção demais.
‘Eu me sinto pessoalmente atacado. Quer saber de uma coisa? Eu vou dar um
cochilo. Me acorde quando você estiver se sentindo menos venenoso, beleza,
princesa?’
Apesar de minha conversa com Regis — ou talvez por causa dela — eu me senti
melhor no momento que eu estava batendo na porta do escritório do homem
chamado Edmon do Sangue Scriven, um escriturário intermediário dentro do
escritório da administração.
“Edmon, eu —”
“Eu sei muito bem quem você é,” o homem magro e pálido retrucou enquanto
limpava o nariz com a manga de seu manto marrom. “O que que aquele filho-
de-um-verme-escondido pensava que estava fazendo, te forçando a entrar
aqui, eu juro aos Vritra que eu não tenho ideia…” O homem resmungou por
baixo de sua respiração, como se não soubesse que eu ainda poderia ouvi-lo.
Nós nos encaramos sobre a superfície de sua mesa por um momento antes
que eu soltasse um longo suspiro. “O que eu preciso saber, Edmon?”
Pegando a caneta de pena oferecida, escrevi meu nome falso, minha mão
traçando automaticamente as mesmas letras que eu havia usado para assinar
documentos oficiais como um rei. Edmon puxou o contrato no instante em que
terminei e ele o substituiu por um único pedaço plano de pergaminho e dois
longos pergaminhos amarrados com anéis de ferro.
“Isso” — ele apontou para o pergaminho — “tem seu horário nele, enquanto
esses” — ele acenou para os outros dois — “são seu currículo para Táticas de
Aprimoramento Corpo-A-Corpo e uma lista das regras da Academia. Leia-os
bem, bem minuciosamente, porque eu juro pelos Vritra, eu não vou ser preso
por causa do seu tio criminoso…”
“Eu fico igualmente feliz quanto você em fingir que essa conversa não
aconteceu,” eu disse, minha voz quieta e sem emoções. “Mas eu não vou ser
ameaçado.” Para enfatizar meu ponto, eu fortaleci minha aura, assistindo
enquanto a respiração do homem pálido parava pela pressão. “Eu não sei por
quê você está com medo do Alaric, mas recomendo ter esses sentimentos por
mim também… Pelo menos.”
“Não, eu tive uma longa jornada aqui e eu apenas gostaria de ver meu quarto,”
eu respondi, reciclando a desculpa que eu havia dado ao alto mago na
Associação de Ascendentes. “Alguém pode me mostrar o caminho?”
“Hm?” Uma jovem distraída olhou pra cima, tirando seu nariz de um
pergaminho em outra mesa.
“Hm,” ela disse em afirmação enquanto seus olhos saltavam de volta à sua
leitura.
Foi apenas quando estávamos passando por um prédio sombrio, que parecia
ameaçadoramente pairar sobre o caminho, que eu vi algo que realmente me
interessou.
Eu esperei.
Que pena, eu pensei. Mas mesmo que o portal ainda operasse normalmente,
talvez não alcançasse Dicathen, e conectá-lo até minha casa seria muito
perigoso de qualquer forma.
“Isso mesmo. A Academia Central costumava ser uma cidade em si mesma. Ela
ainda opera separadamente de Cargidan, e o diretor responde diretamente à
Taegrin Caelum,” ele respondeu, com ar de importante. “Tenho certeza que
você já sabe disso, mas os Soberanos valorizam muito a educação e a melhoria
de jovens soldados e ascendentes, que é o motivo pelo qual escolas como a
Academia Central tenham seu próprio lugar na política, fora do governo
padrão e da estrutura dos sangues.”
Eu relaxei quando percebi que esse jovem me diria qualquer coisa que eu
quisesse saber enquanto ele continuava a explicar alegremente o que
deveriam ser fatos básicos e bem conhecidos sobre a academia e seu papel na
sociedade Alacryana. Suprimindo um esgar, eu imaginei como esse fluxo
constante de informações seria irritante para um verdadeiro professor
Alacryano.
Para mim, no entanto, sua conversa infindável fazia dele o guia perfeito, e me
permitia sondar informações sem me preocupar muito em cometer algum
deslize.
Finalmente, quase uma hora depois, eu me arrastei até o sofá estofado no meu
aposento particular, num prédio chamado Windcrest Hall. Aparentemente ele
tinha sido nomeado em agradecimento a alguma família pelas suas
contribuições à academia, mas eu já tinha filtrado a maior parte da
improvisada lição de história que eu havia recebido do meu jovem guia
tagarela.
Havia uma estante de livros vazia e uma pequena mesa de escrita, assim como
o sofá no qual eu estava sentado, e uma grande janela de sacada que dava
vista pro campus. Um quarto confortável e um banho luxuoso eram acessíveis
da sala de estar.
Eu tinha ficado surpreso que não havia uma cozinha ou alguma forma de
preparar refeições dentro dos meus aposentos, mas o guia tinha me garantido
de forma risonha que eu podia ter comida ou qualquer livro da biblioteca
entregue no meu quarto.
“Não é tão ruim,” Regis disse de onde ele estava aconchegado no chão. “Teria
sido legal se eles tivessem nos dado uma segunda cama para você usar, mas
acho que você vai ficar de boa no sofá, certo?”
ALDIR
Pó e cinzas.
Tudo — cada árvore, cada animal, cada ser menor — por centenas de
quilômetros, se tornou em cinzas e poeira. Isso era o poder dos asuras. Eu
vasculhei a paisagem estéril procurando qualquer coisa, qualquer sinal de
vida ou partícula de mana, que pode ter escapado do meu ataque.
Quando eu fui enviado para matar os Greysunders, eu assim fiz sem hesitar.
Não havia orgulho — porque ninguém se sente orgulhoso em matar um
mosquito — mas não havia nem pena ou remorso. Havia sido meramente um
momento necessário na guerra, a eliminação de dois importantes agentes do
inimigo.
“O que nós vamos fazer é mandar uma mensagem que Agrona não pode
ignorar. Até agora, ele usou menores como um escudo, mantendo suas vidas
como reféns para proteger a sua própria. Não mais. Se a escolha é entre dar a
ele o poder para se mover contra nós ou destruir o mundo, então nós vamos
ver isso tudo queimar.”
Windsom foi o primeiro a dar um passo à frente, curvando-se tanto que ele
poderia ter beijado os pés de Lorde Indrath. “Eu me voluntario para essa honra,
Meu Lorde. Eu darei o primeiro golpe.”
Lorde Indrath não sorriu, mas havia uma luz vitoriosa em seus olhos. “Você vai
continuar a servir seu papel como guia e protetor, Windsom, mas você não vai
balançar o machado que está para cair. Não, há apenas um entre nós que é
capaz de usar a técnica Devoradora de Mundos.”
O que me fazia o único membro vivo do clã Thyestes com o conhecimento que
Lorde Indrath precisava.
“Essa técnica é proibida, Lorde Indrath,” um dos líderes do clã Thyestes insistiu
com raiva. “Conhecimento da Devoradora de Mundos é mantido vivo para que
nosso clã nunca se esqueça dos horrores do poder sem limites—”
Embora houvesse resmungos do meu clã, ninguém mais desafiou Lorde Indrath
quando ele me convocou para ficar ao lado de Windsom.
“General Aldir, eu te convoco agora para provar sua lealdade. Você e Windsom
vão viajar para Dicathen, para a terra florestada de Elenoir, e localizarão a
Foice Alacryana Nico e a princesa elfa Tessia Eralith — ou seu corpo físico — e
vão ativar a técnica Devoradora de Mundos. Deem minha mensagem para
Agrona, e tirem dele sua nova arma no processo.”
Naquele momento, eu senti algo dentro de mim quebrar, algo que eu pensei
que tinha sido inabalável: a fundação na qual minha identidade completa
como servo do clã Indrath foi construída.
Ajoelhando-me, eu corri meus dedos pelo vazio cinza e seco que eu havia
criado quando eu segui o comando de meu lorde — um comando que eu sabia
que era errado no momento que ele foi dado, mas recusar teria riscado o
futuro de meu clã inteiro. Lorde Indrath não hesitaria em promover um dos
outros — mais servis — clãs do panteão para os Oito Grandes, e rotularia o clã
Thyestes como herege…
Mesmo assim, nossa falha em destruir os reencarnados havia atraído a ira dos
Indrath. Nós não tínhamos antecipado que eles tinham qualquer método para
se teleportarem tão rápido para longe, e Windson havia se deixado levar ao
brincar com a criança raivosa de cabelos pretos. E ainda assim, a ira do lorde
caiu sobre mim.
Contudo, a técnica Devoradora de Mundos não deixava nada, sem sinal de que
esse lugar algum dia foi uma floresta linda habitada por milhões de elfos. A
combustão de mana destruía absolutamente.
“De volta novamente, Lorde Aldir?” a voz confiante e fria disse. “Você tem vindo
aqui frequentemente desde… bem, você sabe.” Embora me irritasse saber que
eu estava sendo vigiado, eu não estava surpreso. Meu ato havia resetado a
balança de poder em Dicathen, enviando um tremor de terror através de cada
Alacryano no continente.
“É com confiança ou ingenuidade que você ousa se revelar pra mim aqui,
Foice?” Minhas palavras não continham ameaça, meramente uma observação.
Eles sabiam que eu poderia me mover através deles sem mais esforço do que
limpar uma teia de aranha; não havia necessidade de ameaças.
“Eu sei que o genocídio o deixa um pouco irritado, Lorde Aldir, mas não
fui eu quem ordenou a morte de milhões de elfos inocentes,” ela respondeu,
zombando gentilmente, desprovida de qualquer medo. “Você acha que ele
considerou o que o ato faria com você, asura? Talvez ele tenha feito isso, mas
de qualquer forma, se uma espada quebrar, você simplesmente forja outra,
você não lamenta a perda de aço.”
Então, voltei meus olhos para ela. Para seu crédito, ela não vacilou, embora o
mesmo não pudesse ser dito para seu retentor. “O que você quer, Seris?”
“Mas quem você pensa que matou mais pessoas de Dicathen nessa guerra?”
Seris continuou, inclinando a cabeça para o lado e tocando os lábios com um
dedo. “As forças de Agrona mataram, o quê? 20 mil? 50? Mas Kezess, bem…”
“Você parece ele quando fala,” Seris disse quietamente, cravando a ponta da
bota nas cinzas.
Eu levantei meu queixo e fiquei de pé, deixando minha forma se expandir até
que tivesse quase o dobro da altura dela. O retentor tentou ficar na frente de
sua Foice, mas ela o parou com uma mão em seu ombro. “Eu fico orgulhoso de
parecer como o grande Lorde Indrath, e eu não vou ser criticado por gente
como você, mestiça.”
Ela balançou sua cabeça. “Eu não quis dizer Kezess. Você parece com Agrona.”
“Você já deu um jeito nisso, não deu, Aldir?” ela perguntou ironicamente. O
retentor deu a ela um olhar com medo, como se ele pensasse que ela estava
forçando sua sorte. “Mas isso é tudo que vocês todos são agora, panteão? Um
executor? Assassino? Um robô fiel, desprovido de empatia ou da habilidade de
pensar por si mesmo?”
Porque ela sabe que você já está farto da morte, a resposta ressoou das
profundezas da minha mente.
Eu cerrei meus dentes e liberei Silverlight. “Se você espera que eu abandone
Lorde Indrath por Agrona, você está—”
“Você fala como se eles fossem os únicos dois seres no mundo, como se não
houvesse escolha a não servir um ou o outro.”
“Arthur Leywin…”
SERIS VITRA
Eu sabia que era arriscado vir até Elenoir sem a aprovação do Alto Soberano e
me revelar para o asura, e até me senti um pouco mal por entregar a
sobrevivência de Arthur aos asuras também. Mas o garoto precisava de um
empurrão. Agrona tinha seu novo bicho de estimação, e só seria uma questão
de tempo até que ele decidisse usá-la. Se Arthur demorasse muito correndo
pelas Relictombs brincando de fazer um bolinho com a jovem Caera Denoir, ou
se escondendo sob o disfarce de “Professor Grey” na Academia Central, o
conflito crescente entre os Vritra e Epheotus arruinaria tudo.
Uma respiração aguda escapou dos meus pulmões enquanto eles esvaziavam.
Eu olhei para minha mão trêmula, então fechei em um punho apertado em
frustração. Recusei-me a tremer de medo, apesar da lacuna de poder entre o
asura e eu.
“Ele vai contar a Indrath sobre Leywin?” Cylrit perguntou enquanto estendia a
mão para atrair as poucas partículas de mana remanescentes do feitiço de
Aldir.
“De imediato, não,” respondi, analisando minhas palavras da mesma forma
que analisava meu conhecimento sobre o asura. “Ele vai refletir sobre o que
dissemos, agonizando sobre o motivo de termos compartilhado essas
informações, com medo de que possa ser um truque ou uma armadilha. Então,
eventualmente, seu senso de dever vai superar sua preocupação, e ele vai
contar a Indrath. Exatamente como nós queremos.”
“Agrona vai nos matar se ele descobrir sobre esse encontro,” Cylrit disse
quietamente.
“Agrona não consegue ver atualmente além das paredes do Taegrin Caelum,
Cylrit,” eu respondi suavemente, dando uma cutucada no ombro do meu
retentor. “Ele só tem olhos pra ela agora, pelo menos até que ele decida se
toda essa aposta de reencarnação valeu a pena.”
“Eu imagino que ele vai ficar significativamente menos cuidadoso com suas
Foices e seus retentores,” eu respondi.
“Isso,” eu disse, colocando meu braço entre o dele, “é como nosso mundo vai
se parecer se Agrona e Kezess fizerem o que querem. Agrona ficará feliz em
receber Epheotus em troca de Alacrya e Dicathen, e Kezess está disposto a
reconstruir a vida aqui das cinzas, se for necessário.”
Um arrepio percorreu meu retentor com minhas palavras enquanto ele olhava
ao redor da devastação vazia. “Agrona não deixaria isso acontecer de verdade
com Alacrya, deixaria?”
“Foi a mana que me disse, Cylrit. A maneira que parecia ser atraída para ele,
como se estivesse esperando seu comando, como se ele estivesse mudando a
realidade sem mesmo tentar. Ele não apenas se moveu pelo mundo, o mundo
mudou para acomodar sua passagem.”
Capítulo 342
Dualidade
TESSIA ERALITH
Estava frio. Muito frio. Mas a sensação do ar frio cortando minha pele – minha
pele, como eu tinha que me lembrar – era estimulante. Isso me lembrava de
que…
Eu estou viva.
Descansando minhas mãos nuas na grade gelada que corria ao redor da minha
varanda de três metros de largura, olhei para a cadeia infinita de montanhas
nevadas, quilômetros e quilômetros de picos irregulares que se erguiam da
terra como os dentes de um enorme dragão.
Não, não da Terra, não mais. Apesar de me lembrar desse fato surpreendente
pelo menos uma centena de vezes, ainda não tinha conseguido aceitar isso.
Quem imaginaria que havia outros mundos? E que você poderia… renascer em
um.
Meu olhar foi atraído para a série de runas marcando meus braços nus,
brilhando fracamente com uma luz morna. Esses braços eram mais delgados
do que os que eu tinha antes…
Antes do que?
Fechei os olhos com força contra a névoa em minha cabeça, apertando até ver
estrelas antes de abri-los novamente.
Foi pior – muito pior – a primeira vez que vi os braços magros e as runas
tatuadas. Nico estava lá, em pé acima de mim – embora eu não o tivesse
reconhecido, é claro. Seus olhos estranhos estavam fixos nos meus por baixo
de suas novas sobrancelhas escuras. Eu imediatamente vomitei em toda a sua
camisa antes de desmaiar…
À distância, uma criatura alada do tamanho de um avião girava em torno de
um dos picos, caçando. Qual era o nome com que Nico tinha chamado a
criatura?
Voar, porém, me fez pensar em minha primeira batalha neste novo mundo, na
força impossível de nossos inimigos, e um calafrio que não tinha nada a ver
com o frio percorreu meu corpo, arrepiando meus braços.
Até que eu voei, pensei vertiginosamente. Eu nunca tinha feito isso antes.
Virando-me de repente, voltei rapidamente para o meu quarto e fechei a porta
contra o frio e a paisagem estranha. Uma sensação tortuosa de vertigem
ameaçou tomar conta de mim, então me joguei em uma cadeira em frente à
lareira acesa, esfregando o dorso do meu nariz com força, meu corpo inteiro
rígido contra a náusea.
Essa sensação vertiginosa de algo errado era comum no início. Nico disse que
era apenas minha mente se acostumando à minha nova forma física, mas-
Uma batida na porta me assustou.
Desdobrando-me da cadeira, olhei para a parte de trás da porta. “Sim?” Eu
perguntei depois de alguns segundos.
Nico parecia tão diferente, e não apenas suas características físicas. O que
quer que tenha acontecido com ele nesta nova vida foi difícil para ele. Isso o
deixou com uma casca grossa.
Mentirosa.
“Não, Cecilia, está tudo bem. Está tudo bem, sério.” A mágoa óbvia que isso
causou nele brilhou de volta para mim de dentro daqueles olhos
desconhecidos, mas ele tirou a mão do braço da minha cadeira. “Eu sei que
tudo isso é tão confuso.”
“Enfim.” Nico se levantou e deu um passo hesitante para trás. “Agrona gostaria
que nos juntássemos a ele para jantar em uma hora, em seus aposentos. Quer
que eu espere você se vestir?”
Eu balancei minha cabeça desta vez, então coloquei uma mecha de cabelo cor
de bronze atrás da minha orelha. “Não, eu… te vejo lá.”
Como o frio, a sensação das chamas muito quentes lambendo meus pés
descalços me fez sentir…
Viva?
Lembrando-me do que Nico disse sobre o jantar, pulei e corri por uma porta
do outro lado da minha cama que levava ao meu próprio camarim particular.
Lá dentro, havia uma escrivaninha com gavetas cheias de perfumes e
maquiagem, vários espelhos, três cômodas para diferentes tipos de roupas, e
um armário que ocupava toda a extensão do cômodo.
Era, pensei com um pouco de culpa, meu lugar favorito em Taegrin Caelum.
Eu nunca tive minhas próprias coisas antes, não realmente minhas. Ou, pelo
menos, acho que não. Muito da minha vida anterior ainda era um borrão,
embora Nico e Agrona me garantiram que tudo voltaria com o tempo. Mas me
lembrei do orfanato e da diretora Wilbek, e me lembrei do teste…
Minhas pontas dos dedos roçaram um vestido simples cor de ônix com runas
pretas nas costas que eu pensei que faria meu novo cabelo se destacar, mas o
rejeitei por um vestido verde até o tornozelo com folhas douradas bordadas
na lateral.
No início, tentei falar com alguns desses servos, mas eles não falavam comigo,
exceto para responder a perguntas diretas, e eles nunca fizeram contato
visual. Na verdade, além de Nico e Agrona, eu não tinha ninguém com quem
conversar.
Eles querem que você fique isolada, para ver apenas o que estão mostrando a
você.
Eu balancei minha cabeça, sabendo que esta não era uma observação justa.
Muito estímulo me sobrecarregaria, especialmente após o ataque… Eles
tiveram que apresentar este novo mundo aos poucos, e mesmo assim eu me
encontrei tendo dificuldade em reter informações.
Foi quando eu passei pela forma de uma besta felina com duas cabeças e três
caudas pela segunda vez que percebi que havia dado voltas enquanto estava
perdida em pensamentos.
“Era o segundo logo após essa coisa de gato, ou o terceiro?” Murmurei para
mim mesma, espiando corredor após corredor.
Em vez de uma escada, encontrei uma suíte grande e mal iluminada. Surpresa,
eu congelei na porta, meus olhos rastreando lentamente através da câmara
enquanto eu tentava descobrir onde eu estava.
“Quem está aí,” uma voz fina e cansada disse das profundezas da câmara.
“Apenas deixe o que quer que seja pela porta e vá embora!”
Eu voltei para o corredor, meu coração de repente batendo forte no meu peito,
embora eu não tivesse certeza do porquê.
“Sinto muito,” eu murmurei, sem saber por que a mulher me enojava tão
completamente.
“Sinto muito por sua perda,” eu cuspi, oprimida por uma sufocante colisão de
emoções que eu não poderia explicar. “Perdoe minha intrusão.”
“Espera!” ela gritou, mas eu não parei, virando a esquina e quase colidindo
com uma criada.
“Cecilia?”
Assustada, me virei apenas para perceber que Nico estava parado perto da
porta da escada, admirando um escudo de ouro e prata pendurado na parede.
Sua expressão ficou séria quando ele percebeu minha respiração ofegante, e
o que eu assumi ser meu olhar selvagem e em pânico. “Algo de errado? O que
aconteceu?”
“Você está perfeitamente na hora, na verdade”, disse uma voz profunda vinda
do salão, o estrondo passando pelas pedras e vibrando até a sola dos meus
pés. “Não precisa se preocupar, Cecilia querida.”
Voltando-me para a voz, fiz uma reverência profunda, mas o movimento fez
minha cabeça girar quando uma onda de vertigem se abateu sobre mim e eu
tropecei para frente. Um poderoso braço cinza-mármore me pegou, e eu me
senti sendo levantada como uma criança e colocada firmemente de pé.
Parada na minha frente, com as mãos nos meus ombros, estava Agrona, seus
vibrantes olhos escarlates olhando diretamente pra mim. O senhor do clã
Vritra, e de minha nova casa Alacrya, era bonito, com pele lisa e uma
mandíbula afiada que me lembrava um ator. Seu corpo era ágil e gracioso, e
ele se movia com uma confiança fácil que atraia seus olhos para ele.
Chifres enormes brotavam dos lados de seu cabelo preto como os chifres de
um alce, exceto que eram brilhantes e pretos, e cada dente terminava em uma
ponta afiada como lança. Vários anéis de ouro e prata enrolados nos muitos
dentes e correntes com joias traçavam as linhas dos chifres. Em qualquer outra
pessoa, teria parecido extravagante, mas para Agrona, isso apenas aumentava
a sensação de poder que pendia dele como uma capa.
Então Agrona estava dentro minha cabeça, na minha mente, remexendo como
um oleiro moldando argila. A confusão de memórias e pensamentos que não
eram meus começou a diminuir, assim como a avalanche de emoções em
cascata.
Nico, apenas um menino, me convidando para brincar com ele e seu amigo,
embora eu fosse muito tímida até para falar.
Nico me entregando um medalhão que ele fez apenas para mim, para me
manter segura, seu sorriso nervoso falando mais do que suas palavras jamais
falaram.
Nico me salvando de homens violentos em um beco, homens que queriam me
levar embora, que estavam dispostos a matar para me pegar.
Meus olhos se abriram e dei um passo rápido para trás do imponente Vritra,
que me deu um sorriso conhecedor antes de se endireitar. “Pronto, tudo
melhor agora, não é Cecilia.”
“Eu sei que você quer sair e ver o mundo, Cecilia querida. Tudo isso ainda
parece muito estranho e sobrenatural, e não quero que você se sinta como um
pássaro preso em sua gaiola. É por isso que estou enviando Nico – com você
ao lado dele, como deveria ser – para investigar alguns acontecimentos
estranhos no Salão Principal dentro das Relictombs.”
Sorrindo para o senhor Vritra, Nico e eu o seguimos até sua sala de jantar
privada, ansiosos pela oportunidade de provar meu valor ao Alto Soberano.
Capítulo 343
Professor Princesa
“Este deve ser o token que ativa o portal de ascensão,” eu murmurei, brincando
com a runa de jade enquanto lia a nota.
O segundo item era um anel aberto feito de ébano, tomando a forma de uma
cobra intrincada que se ajustava ao meu dedo para caber melhor.
“Muitas vezes é a mente mais afiada que vence a guerra, não a lâmina mais
afiada.”
Sem resposta.
Regis soltou uma risadinha, fazendo-me virar para ele com uma sobrancelha
levantada. “Basta dar um pequeno pulso de mana para ligar. Ele desliga
novamente quando o cristal de mana embutido está sem mana ou quando
você retira toda a mana.”
“Oh,” eu disse, percebendo meu erro. Era uma coisinha tão estúpida, mas se
outra pessoa observasse eu me atrapalhar assim, seria imediatamente óbvio
que eu não era um alacryano.
“Sabe,” Regis disse com o ar de alguém prestes a declarar algo muito óbvio,
“toda essa coisa de ‘sem mana’ parece um negócio sério agora que estamos
na civilização. Você vai precisar ser mais cuidadoso.”
“Então você deve saber que estou entediado,” disse Regis, sentando-se na
frente do sofá e olhando para mim com seus olhos escuros, e sua cauda de
fogo batendo suavemente no chão.
“Dez minutos muito longos e muito chatos,” o lobo retrucou, movendo-se para
descansar o queixo na beirada do sofá ao lado da minha cabeça. “Vamos pelo
menos dar uma olhada por aí, aonde existam garotas lindas que eu possa
admirar.”
Soltei um suspiro. “As meninas aqui são todas adolescentes, Regis. Não seja
nojento.”
“E eu tenho poucos meses de idade, e nem sou da mesma espécie. E daí? Além
disso, provavelmente existem professoras bonitas para você, velhote.”
“Regis. Você chama ainda mais atenção do que eu. Pra dentro.”
Eu balancei minha cabeça enquanto sentia sua forma etérea fundir-se em mim,
vagando perto do meu núcleo de éter. Avise-me se sentir que estou prestes a
fazer algo que vai chamar a atenção, eu disse a ele.
‘Sim, tenho certeza que você está,’ Regis confirmou para mim.
A runa, quando ativada, enviaria um choque de dor pela espinha de quem quer
que estivesse sentado nela. “Bárbaro.”
Seguindo as escadas até o ringue de duelo, eu andei ao redor dele até o outro
lado, onde havia um painel de metal com uma série de botões e alavancas
nele. Curioso, eu ativei um botão, e um escudo brilhante e transparente vibrou
no lugar ao redor da plataforma.
Isso não era diferente dos anéis de treinamento em Xyrus, mas o resto dos
controles eram mais interessantes. Descobri que, com o toque de um botão,
eu poderia ativar um amortecedor de força que conteria todos os impactos
dentro dos limites da plataforma de combate, e havia um disco que me
permitia controlar até mesmo a força da gravidade, tornando-a mais pesada
ou mais leve para desafiar os alunos.
Outra porta se abriu na parede logo atrás do ringue de duelo. Usando a runa
de jade, destranquei-a e entrei em um pequeno escritório com uma mesa, três
cadeiras, algumas prateleiras e um grande baú com runas gravadas no metal.
A pedra rúnica abriu também o baú, que fornecia armazenamento para itens
mais sensíveis. Atualmente, estava cheio de material de treinamento para a
turma. Reconheci coletes que permitiriam uma análise detalhada do fluxo de
mana, força física, aceleração e provavelmente uma dúzia de outras métricas.
Era semelhante ao equipamento de treinamento que Emily tinha inventado
para testar minhas habilidades no castelo, mas obviamente muito mais
avançado.
‘Quarto chato, pronto. Escritório chato, pronto. Podemos fazer algo mais
interessante?’ Régis implorou, dando o equivalente mental de olhos de
cachorrinho.
‘Não era exatamente isso que eu tinha em mente,’ disse Regis quando entramos
na Biblioteca da Academia Central. Uma placa ao lado da entrada agradecia ao
Alto Sangue Aphelion por doar este prédio da biblioteca, que foi construído há
várias décadas.
Você achou que estaríamos criando confusão com uma garota seminua em
cada braço ou algo assim? eu respondi.
‘Parece que aquele cara seria ótimo para se ter numa festa,’ Regis observou
sarcasticamente enquanto passávamos pelo retrato.
“Qual matéria você vai lecionar?” ela perguntou enquanto começava a mexer
em um dispositivo estranho ao lado de sua mesa.
“Oh, bem…” ela começou hesitante, “é que ensinar magos de alto sangue a
socar e chutar coisas nunca foi exatamente… uma posição altamente
respeitada entre os alunos.”
Isso fez com que sua sobrancelha levantada rastejasse a todo o vapor para se
esconder atrás de sua franja. “Saber que os alunos assustaram o último
professor depois de dois dias fez você se sentir melhor?” Ela piscou várias
vezes antes de adicionar baixinho, “Retiro tudo que disse. Você é obviamente
louco.”
“Tópico, autor ou título,” disse ela com orgulho, dando tapinhas na máquina
como se fosse um animal de estimação obediente. “Quer tentar?”
Sentindo meus lábios formarem uma carranca pensativa enquanto olhava para
a tela, eu disse, “Os magos antigos,” pensando que perguntar sobre as
relíquias poderia causar algumas suspeitas.
A tela mudou, a lista mudando para mostrar um grande número de livros sobre
os magos antigos, as Relictombs e vários outros tópicos relacionados. Eu
memorizei as localizações de um par deles aleatoriamente.
“Claro, professor…?”
Uma fileira continha pelo menos duzentos livros sobre runas alacryanas, de
marcas a regalias. Outra continha biografias de Alto Sangue, cada uma das
quais parecia estar competindo com suas vizinhas para ser a mais espessa ou
ter a capa mais ornamentada. Encontrei uma seção inteira de poesia exaltando
as virtudes de Agrona e os Soberanos.
Por fim, encontrei a fileira que procurava e peguei um volume pesado com
capa de couro que parecia interessante na prateleira. Afirmava ser um exame
completo da adaptação alacryana da tecnologia dos magos antigos ao longo
dos tempos.
‘Por favor, diga que não vamos ficar rondando essa biblioteca lendo o dia todo.
Pelo menos me leve de volta para os quartos chatos para que eu possa sair de
você,’ Regis gemeu.
“Espere,” gritei, fazendo com que o menino quase tropeçasse antes de se virar
para mim.
“Você deveria estar aqui?” eu perguntei, mais por surpresa do que por
qualquer desejo autoritário de ter certeza de que ele não estava invadindo a
biblioteca sem permissão.
Eu acenei para ele ficar em silêncio. “Isso não importa. O que você estava
dizendo sobre isso aqui?”
Ele olhou com medo entre mim e o livro antes de responder baixinho, “É só
que… bem… não há muita informação nele. É tudo teórico e gasta muito tempo
agradecendo aos Soberanos por—”
Timidamente, como alguém caminhando sobre o gelo fino, ele disse, “Sim. Há
uma resposta de Crenalman que aborda diretamente os problemas com esse
livro. Deve estar” — ele deu alguns passos para dentro da fileira, examinando
as prateleiras rapidamente — “aqui.”
“Você parece saber como se virar neste lugar. Sou novo aqui e, honestamente,
não sou alguém que leu muito. Posso pedir algumas recomendações?” Eu
pausei, pensando por um momento. Ousaria revelar meu principal interesse a
esse jovem estudante? Parecia mais seguro pedir ajuda a um aluno nervoso
do que à bibliotecária, então decidi arriscar. “Meu principal interesse é em
relíquias.”
Ele acenou para que eu o seguisse, então praticamente correu pelo labirinto
de prateleiras, me levando por uma escada escondida perto do fundo da
biblioteca, e depois serpenteando por várias outras fileiras. Perto do centro
do segundo nível, com vista para o salão principal, havia uma pequena seção
dedicada a livros relacionados com relíquias.
Ele pegou três e os estendeu para mim. “Comece com estes,” disse ele com
orgulho, depois acrescentou rapidamente, “se ainda não os leu.”
Talvez eu tenha dito algo muito invasivo, porque seu rosto, já pálido, parecia
perder a cor. “Eu… hum… não…” Ele parou e respirou fundo. “Eu realmente não
quero ser um ascendente, senhor. Ou um soldado,” ele acrescentou culpado.
“Mas eu sempre quis ser um mago, e minha irmã—”
Ele se interrompeu, sacudindo levemente a cabeça. “Sinto muito, senhor. Não
quero aborrecê-lo com isso. Apenas… obrigado por pedir minha ajuda.”
Capítulo 344
Olhar Fixo
O sol da tarde aqueceu minhas costas, seus raios brilhantes refletindo nas
páginas amareladas do livro que eu estava lendo. Do meu canto isolado no
café do campus, que ficava perto do prédio da administração, o barulho dos
alunos e professores conversando enquanto aproveitavam suas bebidas e
sobremesas era uma agradável mudança de ritmo comparado ao meu quarto.
“Eu não pedi a comida,” eu disse enquanto pegava a caneca e soprava o vapor
sobre a superfície do chá quente.
“Por conta da casa”, ela disse, saltando na ponta dos pés enquanto
desaparecia de volta pra cozinha.
Na minha cabeça, Regis soltou um gemido. ‘Essa aparência é um desperdício
em você. Se eu fosse você, eu-‘
Devo dizer, no entanto, que fiquei um pouco desapontado. Mas é culpa minha.
O conhecimento de que eu – e apenas eu, pelo que eu saiba – poderia reviver
e usar qualquer relíquia de djinn me permitiu imaginar várias fantasias. Lendo
as descrições, porém, lembrei-me de que os djinn eram pessoas pacíficas.
‘Obrigado por reconhecer que não sou uma arma nem sua posse’, comentou
Regis com um bufo. ‘Mas nem tudo aí é ruim, sabe? Tá vendo essas Correntes
de Aprisionamento? Só pensar em alguém, ativá-las e bam! As correntes
envolvem o alvo e vão aonde você for! Posso pensar em vários usos para elas.’
De acordo com o autor, a relíquia rotulada de Correntes de Aprisionamento
também tinha outras funções, incluindo habilidades de supressão de mana e
éter, impedimento da fala e até mesmo colocar a pessoa ou criatura afetada
em um estupor paralisado, se necessário.
Não sei o quanto confio nas deduções do autor aqui, salientei. Tipo, olha aqui.
Diz: ‘Embora os Imbuers não tenham sido capazes de confirmar esta teoria, é
possível que as Correntes de Aprisionamento possam procurar um alvo em
qualquer lugar do continente.’ É só encheção de linguiça.
Rotulada de Rede de Mana, a relíquia pode “pegar” mana no ar como uma rede
de pesca pega um peixe. O autor teorizou que era um dispositivo defensivo
destinado a absorver ataques de feitiços.
‘Talvez a verdadeira questão seja: por que a gente simplesmente não leva
tudo?’
Eu sabia que Regis estava perguntando só porque essa ainda era uma dúvida
em minha mente também. Já que eu poderia usar o Requiem de Aroa para
reativar todas as relíquias mortas da academia, eu poderia apenas pegá-las e
me preocupar com o quão úteis elas seriam mais tarde. Mas não conseguia
imaginar um cenário que me permitisse roubar a coleção inestimável e manter
meu disfarce na academia, ou mesmo continuar em Alacrya.
Você não precisa me lembrar do por que estamos aqui ou o que está em jogo, eu
comentei, pousando minha xícara.
Com os livros debaixo do braço, levantei-me e saí do pátio do café. Ler sobre
as relíquias mortas era uma coisa, mas parecia uma boa hora para vê-las com
meus próprios olhos.
O campus estava fervilhando pra todo lado, mas a atmosfera havia mudado
desde quando cheguei. Em vez de perambular e conversar, os alunos que vi
estavam todos concentrados na preparação para as aulas. A maioria estava
treinando ou fazendo exercícios, mas também havia alguns alunos lendo em
silêncio ao ar livre.
Ouvi passos rápidos atrás de mim, e me virei. A expressão em meu rosto devia
estar séria, porque o jovem que se aproximava parou, sua mandíbula
trabalhando silenciosamente enquanto ele lutava para encontrar algo para
dizer.
Forçando minha expressão a mudar pra algo mais plácido, eu assenti com a
cabeça. Era o balconista que me guiou pelo campus e mostrou meus aposentos
no primeiro dia. Percebi que não sabia seu nome.
“Não, obrigado, eu só estava indo visitar o Relicário depois que eu deixar esses
livros na biblioteca”, respondi, dispensando o jovem.
Meu olhar seguiu o do aluno até um homem em vestes pretas sedosas. Linhas
azuis desciam das mangas até os punhos, e do pescoço traçando a abertura
ao longo de sua coluna. Ele tinha seis tatuagens rúnicas nas costas expostas.
‘Não achei que Briar fosse fisicamente capaz de rir’, Regis disse sem
emoção. ‘Talvez ela esteja possuída.’
Como se sentisse nossa atenção, o professor parou e se virou. Ele tinha cabelos
castanhos lustrosos que caíam em cachos soltos até os ombros e um rosto
jovem e bem barbeado. Olhos de jade brilhantes e inteligentes me viram de
relance e seus lábios se curvaram em um meio sorriso.
O professor olhou ao redor para seu grupo. Uma rodada de risadinhas passou
pelos rapazes e moças, a maioria deles balançando a cabeça em negação. Briar
estava olhando para os pés dela, e não para mim, e estremeceu quando outra
garota deu uma cotovelada nela e sussurrou algo em seu ouvido.
“Não, suponho que vocês não farão, não é?” Ele deu ao grupo um sorriso
conhecedor. “É claro que há tópicos de estudo mais importantes para esses
alunos talentosos do que aprender a bater uns nos outros como uns bêbados.”
“O que você quis dizer foi grosso como limpar a bunda com lixa,” concluiu Regis
para o jovem balconista.
“Espero que você esteja mais apto para o dever de ensinar do que o
último professor que deu aquela matéria.” Ele me deu um sorriso afetado. “É
uma vergonha para a academia quando empregamos tais magos inúteis.”
Mantendo meu rosto inexpressivo, disse: “Prazer em conhecê-lo”, e comecei a
me afastar, mas o homem agiu rapidamente para me interromper. Fiz uma
pausa e encontrei seus olhos com expectativa.
“Há uma certa hierarquia entre professores e alunos aqui”, ele me informou.
“É melhor descobrir isso rapidamente, ou você não se sairá melhor do que seu
antecessor.”
‘Pelo menos você não pode ser racista sobre o comportamento dele’, pensou
Regis.
“Sinto muito por ele, senhor”, disse o funcionário, lembrando-me que ele
ainda estava lá.
“Hum, não.”
“Então por que se desculpar,” eu disse com firmeza. Parando, dei outra olhada
pra ele. Ele era alto, com cabelos loiros sujos e um sorriso fácil. Seu uniforme
estava um pouco amassado e ele tinha cabelos bagunçados saindo em ângulos
estranhos da sua cabeça. “Qual é seu nome?”
“Oh, caramba, tão rude da minha parte… Tristan, senhor. Do Sangue Severin.
Somos de Sehz-Clar, sangue pequeno, só estou aqui porque tive a sorte de…”
‘Por que você precisa ler livros quando você tem a mim?’ Regis perguntou,
entendendo minha intenção.
Sem querer ofender, mas você não foi particularmente oportuno ou confiável
com seu conhecimento cultural, pensei enquanto caminhávamos pela seção
“Poesia épica”.
Tive a sorte de encontrar pessoas ansiosas por ajudar, como Mayla e Loreni
em Maerin Town e, mais tarde, Alaric e Darrin. Na academia, entretanto, eu
estava cercado por alacryanos que estariam prestando mais atenção em mim,
e de repente era muito mais importante ter algum conhecimento básico dos
termos e costumes de Alacrya. Para tanto, estava procurando um ou dois livros
que pudessem me ajudar a contextualizar as simples normalidades diárias da
vida alacryana com as quais eu não estava familiarizado.
Também pareceu que não era da nossa conta, rebati com indiferença.
Uma voz baixa e ameaçadora reverberou pelas prateleiras vinda de uma seção
próxima, distraindo-me da minha busca.
“… pare de fingir que você é um de nós. Só porque sua família foi exterminada
na guerra, isso não faz de você um verdadeiro alto sangue.”
“Eu nunca disse is— ugh!”
Fiz uma pausa depois de ouvir a voz conhecida antes que ele fosse
interrompido por outro golpe.
Regis soltou uma risadinha. ‘O que aconteceu com cuidar da nossa própria
vida?’
Cale a boca.
Dois deles seguravam Seth, o garoto magricela que me ajudou a escolher meus
livros, contra a parede. Um era muito alto e mais magro, o que lhe dava uma
aparência esticada. Mechas trançadas de cabelo vermelho, preto e loiro
pendiam de sua cabeça. O outro era mais baixo, mas com ombros largos de
urso, e uma cabeleira ruiva desgrenhada.
O último jovem, cuja pele era de ébano escuro e seu cabelo de um preto mais
escuro, estava alguns metros para trás, com os braços cruzados. Ele tinha uma
aparência de nobreza mais clássica do que os outros e a exibia abertamente,
nos ombros, na postura, e na paciência cuidadosa do rosto, o nariz
ligeiramente levantado e os lábios separados em um sorriso experiente.
“Um órfão sem-teto como você não tem lugar aqui”, resmungou o garoto
corpulento.
“Você não tem uma casa, tem?” perguntou o estudante magro, enquanto
empurrava a cabeça de Seth para trás na parede.
Aproximando-me dele, levantei a mão. Ele recuou e fez uma careta quando
passei por ele para pegar um livro da prateleira mais próxima. Ao abri-lo para
ler o título, certifiquei-me de que meu anel em espiral estava bem visível.
Sua tentativa de uma carranca ameaçadora estremeceu. Seu amigo olhou além
de mim para o terceiro menino, fazendo uma careta. Eu deixei minhas
sobrancelhas franzirem em uma pequena carranca.
“Você deve ser o novo professor de combate,” o garoto de cabelo preto disse
atrás de mim. “Para a aula sem magia.” Quando olhei para ele por cima do
ombro, ele acenou levemente com a cabeça em uma reverência que teria sido
considerada desrespeitosa em qualquer ambiente formal. “Professor Grey?”
Seus lábios finos se curvaram em um sorriso divertido. “Demonstrem algum
respeito pelo professor, senhores. Afinal, vamos vê-lo com frequência.”
Com alguns livros novos em mãos, deixei a biblioteca alguns minutos depois e
fui para o Relicário.
O homem de sangue Vritra era colossal. Ele tinha mais de 2 metros de altura e
tinha o físico de um titã. Seus chifres se projetavam dos lados da cabeça
raspada e se curvavam para apontar para a frente como os de um touro.
Durante toda a guerra, pensei essa palavra com medo e expectativa. Todo o
exército Dicathiano tremia com a menção do título, aterrorizados com o dia
em que um deles apareceria no campo de batalha e nos mostraria o que eles
realmente poderiam fazer como generais de elite Alacryanos.
Mesmo no auge da minha força, eu quase me matei para lutar até um empate
contra Nico e Cadell – e eu teria morrido, se não fosse por Sylvie.
Era raiva.
‘Art! Sua intenção assassina, ele pode sentir!’ Regis parecia em pânico, mas
distante, e percebi com um sobressalto que inadvertidamente havia
impregnado meu corpo inteiro com éter.
Piscando, retirei minha intenção – que acabara de vazar e ainda estava envolta
pela própria aura opressiva da Foice – e a multidão de alunos se levantou,
mais uma vez me ocultando.
“Foice Dragoth Vritra!” uma voz profunda anunciou das portas da sombria
Capela. “É com grande honra que te recebemos!”
O orador era exatamente igual ao retrato: cabelos curtos e grisalhos que
contrastavam fortemente com sua pele de ébano e uma expressão
permanentemente severa em seu rosto que não se desfez nem mesmo diante
do Foice.
Alívio se misturou com pesar quando Dragoth se afastou de mim para encarar
o diretor. “Augustine”, ele respondeu em um tom de barítono caloroso. Ele
passou a mão pela barba espessa. “Trouxe a relíquia conforme combinado.
Pessoalmente, como Cadell exigiu.”
Cerrando os punhos, forcei a raiva para baixo e segurei com força minha
intenção. Enquanto eu olhava para os chifres negros da Foice, porém, a
imagem da forma demoníaca de Cadell parada sobre a moribunda Sylvia
passou pela minha mente. E depois Alea, com seus olhos se apagados, seus
membros nada além de tocos de sangue. Então Buhnd, de costas nos
escombros, queimando de dentro para fora.
Dragoth disse algo para a multidão, mas eu não ouvi. A Foice e o diretor
estavam caminhando em direção à entrada da Capela enquanto seus guardas
formavam uma linha na base da escada.
Capítulo 345
Socialite
Mas havia outra parte também: o irmão, amigo e filho. Eu era um cidadão de
Dicathen, deslocado e rodeado de inimigos, sendo solicitado para treinar
soldados que um dia poderiam usar essas habilidades contra as pessoas que
eu mais amo, apenas para me manter seguro. Embora tivessem se passado
apenas dois dias, estava ficando cada vez mais difícil me concentrar enquanto
aquela parte de mim continuava fazendo a mesma pergunta.
Pra que? Eu me perguntei pela décima vez desde que a Foice, Dragoth, tinha
aparecido na Academia Central. Essa raiva se apegou a mim desde então,
invadindo cada interação, envenenando cada pensamento.
Eu queria fazer algo mais do que apenas examinar papéis atrás de uma mesa.
“Apenas admita que você está com medo de ver esses alacryanos como
pessoas reais em vez de encarnações do diabo,” disse ele com um sorriso
malicioso. “Eu imagino que humanizar seus inimigos não alivia a sua bússola
moral já bagunçada.”
Eu abri minha boca para responder, mas uma batida suave na porta me
interrompeu.
“O que é?” Eu disse em voz alta, as palavras saindo mais abruptamente do que
eu pretendia.
“Oh, você precisa de ajuda para se preparar para a aula? Tenho certeza que
você tem muito a fazer.” Ela saltitou pela sala e encostou seu quadril na minha
mesa para olhar para os materiais espalhados na minha frente. “Esta é a
terceira temporada em que dou aulas em ambas as minhas matérias, então
estou preparada. Eu ficaria feliz em passar algum tempo com você – ajudando
você, quero dizer.”
“O-o que é isso?!” ela exclamou, seus olhos âmbar arregalados de medo.
“Uau, uma invocação?” Abby perguntou sem fôlego, suas bochechas coradas
de medo. “Eu nunca vi uma como esta antes.” Dando alguns passos hesitantes
para longe de Regis, que estava tendo dificuldade em manter uma expressão
séria, ela subiu na minha mesa, uma perna cruzada sobre a outra. “Isso é
realmente impressionante. Mas você se importa se eu perguntar” — seus lábios
se curvaram em um sorriso provocador — “conjurar sua invocação, você se
sente em perigo ou algo assim?”
‘Gosto da vista daqui, se não se importa,’ disse ele com um sorriso satisfeito. ‘E
ver você se contorcer torna tudo ainda melhor.’
Após uma breve pausa, dei uma piscadela para ela. “Estou apenas brincando,
Srta. Redcliff. Porém, tenho certeza que você está bem acostumada a ignorar
pretendentes maliciosos.”
“Você é demais,” disse ela com uma risadinha, suas orelhas queimando de
vermelho quando ela desviou o olhar. “E, por favor, me chame de Abby.”
“Muito bem.” Eu me levantei e dei a volta na minha mesa, encostando-me nela
ao lado dela.
Eu estendi minha mão e esperei que ela pegasse. Seus dedos mal tocaram os
meus quando ela retribuiu meu gesto. “É um prazer vê-la novamente, Abby.”
“Não, eu também prefiro assim, quer dizer — eu não sou uma estudante,
afinal,” ela disse, balançando a cabeça.
“Bom, estou feliz,” eu dei uma risada feliz antes de deixar meu sorriso
desaparecer. “Embora talvez tenhamos que ser breves na conversa de hoje.”
Abby manteve sua expressão imparcial, mas seus ombros caíram com minhas
palavras. “Oh? Imagino que você fez planos para o resto do dia?”
“Como eu disse antes, ficaria feliz em ajudá-lo a se preparar para sua aula,
Grey,” ela disse.
“Não é exatamente sobre a minha aula, por assim dizer.” Eu cocei minha
bochecha enquanto desviava o olhar, fingindo vergonha. “Esqueça, fico com
um pouco de vergonha se disser em voz alta.”
O rosto de Abby iluminou-se. “Oh! Você não poderia ter contado pra ninguém
melhor!”
Ela olhou para nossos ombros antes de olhar para trás. “E um tópico comum
de fofoca que todos nós compartilhamos é sobre os alunos aqui,
especialmente com os Altos Sangues que temos que estar atentos.”
“Estou com inveja.” Eu deixei escapar uma risada. “Eu realmente quero fazer
deste lugar um lar e me encaixar, mas pedir para você compartilhar tanto
comigo seria apenas um fardo para você.”
“Não seria um fardo de jeito nenhum!” Ela se iluminou como Xyrus durante a
Aurora Constelada. “Oh, por onde eu começo?”
Eu andei atrás dela, levando-a em direção à minha porta com um leve toque
na parte inferior de suas costas e um sorriso junto. “Deixe-me acompanhá-la
para fora.”
Assim que fechei a porta atrás de Abby e seu cabelo, que ondulava com o vento
que ela obviamente estava conjurando em torno de si mesma, meus ombros
caíram e um fôlego escapou de meus pulmões. A raiva persistente finalmente
se extinguiu, mas eu fiquei me sentindo frio e desapegado.
“O quê?” Eu rosnei.
“Quem é você e o que fez com meu proprietário anti-social e tão charmoso
quanto um tronco apodrecido?” Ele perguntou com uma mistura de suspeita e
admiração vazando para minha cabeça.
“Só porque escolho ser discreto, não significa que não posso ser charmoso
quando necessário,” argumentei, afundando de volta na minha cadeira.
Regis me seguiu até meu assento e colocou o focinho na minha mesa. “Você
não está preocupado que a Srta. Boca Solta ali contará a outros professores
tudo sobre a conversa dela com você?”
“Estou contando com isso,” respondi, cansado, inclinando a cabeça para trás.
“Minha história falsa será muito mais verossímil se vier da boca de outra
pessoa.”
“Você faz parecer que eu acabei de me vender para ela ou algo assim,” eu
zombei.
“E a maneira como você evitou a última pergunta dela colocando a mão nas
costas dela… você aprendeu isso em um livro ou algo assim? Porque eu
gostaria de ler também,” disse ele, balançando a cabeça.
“Você não deveria estar trabalhando nisso tudo, afinal?” Regis apontou.
Regis cambaleou atrás de mim. “Ooh, uma batalha pela gostosona que desafia
a gravidade?”
“Pare de pensar como um tarado. Ela não é um objeto,” eu retruquei. “E, além
disso, pensei que você tivesse uma queda por Caera.”
“Vou lhe mostrar uma virilha etérea,” brincou Regis, saltando para a
plataforma e tropeçando imediatamente sob o peso de seu próprio corpo. “Ei,
espere um maldito segundo!”
Quando ele passou voando, minha outra mão agarrou uma de suas patas
traseiras. A simples perturbação de seu impulso, combinada com o aumento
da gravidade, foi o suficiente para fazê-lo girar de modo que ele caiu
pesadamente no tatame, caindo de costas e tropeçando dolorosamente nos
escudos.
A tensão de seu corpo foi ainda mais pronunciada em seu segundo ataque,
mas ao invés de se lançar diretamente em mim, ele fintou para frente apenas
alguns metros, esperando que eu me afastasse, então redirecionou seu
ataque.
Eu levantei minhas mãos revestidas de éter, com a intenção de pegar Regis no
ar, mas sua forma mudou e se tornou etérea, e ele desapareceu em meu corpo.
Eu girei, esperando o que se seguiu, mas com meu corpo pesado não fui rápido
o suficiente, e sua mandíbula agarrou minha panturrilha e puxou a perna
debaixo de mim, jogando-me pesadamente no chão.
A cabeça envolta em fogo do lobo das sombras sorriu para mim. “Estamos
empatados, chefe.”
Regis estufou o peito. “Eu sou uma arma literal projetada por uma divindade,
pelo bem de Vritra. Você acha que eu—” Regis parou, olhando para mim com
os olhos arregalados.
Eu devolvi seu olhar com um sorriso irônico, uma sobrancelha levantada. “Pelo
bem de Vritra?”
É por isso que eu pensei que ele seria pego desprevenido quando eu usei o
Burst Step pelo ringue de duelo para suas costas, mas antes que suas pernas
pudessem desabar com o fardo adicional, o lobo das sombras desapareceu,
flutuando com segurança em meu corpo enquanto eu batia no chão forte o
suficiente para sacudir toda a plataforma.
‘Temos companhia,’ a voz de Regis soou dentro da minha cabeça. ‘Você cuida
desse cara. Vou tirar uma soneca longa e agradável em seu núcleo de éter.’
Assim que ele me viu olhar para cima, ele deu um pequeno aceno, que eu não
devolvi imediatamente. Sua mão foi para seu cabelo ruivo, despenteando-o de
forma que parecesse ainda mais desgrenhado pelo vento do que já estava,
mas minha atenção estava na outra mão – ou na falta dela, pois terminava em
um toco em seu cotovelo.
Eu dei a ele um único aceno de cabeça, o que enviou uma nova onda de suor
escorrendo pelo meu rosto e nariz. Na minha cabeça, Regis disse, ‘Até Uto tinha
ouvido falar dos Aphelions. Altos Sangues, família militar.’
Uma carranca passou por seu rosto por menos de um segundo, mas foi
suavizada tão rapidamente assim que ele mancou em direção ao ringue de
duelo. “Você é tão curto e grosso quanto dizem os rumores, o que é uma
mudança bem-vinda por aqui.”
“Seu tom sugere uma aversão a fofoca, mas parece que você também está
bastante interessado em rumores,” eu respondi com uma sobrancelha
levantada.
“Eu escolho ouvir em vez de participar, mas vou admitir minha pequena
hipocrisia,” disse ele com uma risada, continuando a descer as escadas com
cuidado. “De qualquer forma, consegui pegar seu último movimento e devo
dizer… sua velocidade é quase tão impressionante quanto seu controle de
mana. Mesmo agora, não consigo sentir nem mesmo uma gota de mana
vazando de você.”
Ignorando Regis, que estava gargalhando, pulei para o piso e apertei o controle
para redefinir todas as configurações. O escudo de mana estalou ao
desaparecer, e o Alto Sangue alacryano foi capaz de se sentar em uma posição
estranha.
“Pelos chifres de Vritra, como você estava de pé aqui?” Ele perguntou,
boquiaberto. Então ele soltou uma risada surpreendentemente genuína. “É
claro que o homem que quebrou as correntes de detenção bem na frente do
painel de juízes que tentavam executá-lo treinaria assim.”
“Eu… não duvido disso,” respondi, olhando para o coto de seu braço.
“Nada, não é nada.” Ele acenou com a mão, ainda sorrindo. “É só que, já vi
muita gente olhar para o que sobrou do meu braço esquerdo, mas você é o
único cuja expressão não se transformou em pena.”
“Quem sou eu para ter pena quando isso poderia ser sua medalha de honra
ou símbolo de sacrifício,” eu disse simplesmente.
Usando minha camisa para enxugar meu rosto suado, avaliei o homem
enquanto ele se sentava e estendia suas pernas pela beirada da plataforma
de duelo. Ele retirou um pacote branco brilhante de seu artefato dimensional,
que parecia ser uma pulseira de ouro simples em torno de seu pulso restante.
Ele estendeu o pacote com uma indiferença cuidadosa. Quando eu hesitei, ele
me deu um sorriso malicioso. “Não se preocupe, não tenho o hábito de dar
presentes que possam prejudicar o destinatário.”
Eu puxei o presente da sua mão. Era macio ao toque. Eu balancei para que o
pacote se desdobrasse, revelando uma capa branca brilhante com um capuz
forrado de pelo branca. A finalização da costura era em prata sutilmente
brilhante que parecia metálica ao toque.
Esfreguei meus dedos sobre o fio branco sobre branco que formava as runas.
“Algum tipo de feitiço de ocultação?”
Kayden acenou com a cabeça, suas sobrancelhas se contraindo para cima.
“Especificamente, a capa irá ocultá-lo da atenção dos outros, fazendo com que
seus olhos se desviem de seu rosto. Somente quando o capuz estiver
levantado e somente quando eles não olharem muito de perto.” Ele pigarreou
e se mexeu ligeiramente. “Espero não ter interpretado mal a situação…”
A expressão de Kayden suavizou, mas ele não se moveu para pegar de volta.
“Eu entendo por que você pensa isso, mas não é nada, honestamente. Quer
você decida usá-lo ou jogá-lo fora, faça o que quiser com ele.”
‘Cara esquisito,’ observou Regis. ‘Mas ele trouxe presentes, então vou perdoá-
lo.’
“A maioria das pessoas não verá os seus além dos delas,” eu ecoei, me
consolando com essas palavras.
‘Sim, pare de ser tão paranóico. É basicamente isso que venho dizendo a
você,’ retrucou Regis.
Eu olhei para o manto branco refinado. “Quantos dias até o início das aulas?”
“E você tem certeza que quer entrar sozinho?” a mulher perguntou novamente.
Ela era de meia-idade, com um toque de cinza em seu cabelo castanho. Uma
cicatriz de queimadura cobria o lado esquerdo de seu rosto. “Há muitos grupos
procurando—”
“Ei, desculpe incomodá-lo,” ele disse, dando um sorriso tímido, “mas você se
importaria de tirar uma foto nossa? É a nossa primeira ascensão sem um
diretor—”
Capítulo 346
Faísca Escura
Bastaram alguns passos para cruzar a ilha em que eu estava. Eu olhei para a
escuridão abaixo antes de olhar para o telhado acima; as paredes curvas, o
piso e o teto dessa estrutura cavernosa eram feitos de enormes cristais roxos.
Estruturas semelhantes pontilhavam as muitas ilhas também, algumas do
tamanho de pequenos arbustos, enquanto outras cresciam como enormes
rochas denteadas.
A forma de lobo das sombras de Regis se aglutinou ao meu lado, olhando para
baixo enquanto ele lambia os lábios. “Imagine quanto éter está armazenado
em todos esses cristais.”
Meus olhos se concentraram em uma torre negra que se erguia de uma ilha no
centro da zona. Fortalecendo minha visão com éter, pude apenas distinguir os
entalhes que cobriam toda a estrutura de três andares. Também era a única
coisa na zona que não continha éter. “O que é aquilo?”
Meu companheiro conseguiu desviar seu olhar faminto dos cristais de éter
para dar uma olhada na torre negra. “Sei lá…, mas conhecendo as Relictombs,
provavelmente vai tentar nos matar.”
“Sinta-se à vontade para dar uma de sapo por conta própria.” Comecei a
mapear os caminhos etéreos até o portal antes de dar uma piscadela para meu
companheiro. “Vejo você do outro lado.”
“O qu—”
A zona caiu na escuridão, exceto pelo obelisco. Agora contendo cada partícula
do éter dentro do geodo – incluindo o meu – o obelisco brilhava como uma luz
de néon, queimando com uma força impossível. Eu estava atordoado.
Amaldiçoei novamente. Os seis metros até a ilha mais próxima pareciam muito
mais distantes agora que eu não poderia fortalecer meu corpo com magia, mas
não havia outra escolha a não ser pular.
Meu peito bateu no penhasco de pedra com um estalo. Lutei por algo para me
agarrar entre a pedra nua e a sujeira solta enquanto deslizava para o lado, mas
falhei. Assim que minha metade inferior foi lançada ao ar livre, minha mão
esquerda fechou-se em torno de algo duro e afiado: um caco de cristal
parecido com uma faca crescendo da terra.
Fiquei pendurado assim pelo espaço de uma única respiração antes que o
obelisco brilhasse. Uma esfera de fogo etérico irrompeu dela, engolfando
rapidamente as ilhas mais próximas do centro. Um grito de dor saiu da minha
garganta enquanto eu me erguia – o cristal cortando profundamente minha
palma – até eu poder lançar uma perna para o lado da ilha.
Por puro instinto, me joguei atrás do monte de cristal e me curvei como uma
bola, minhas costas pressionadas contra ele pouco antes da explosão me
engolfar.
Em vez de queimar minha carne, o éter foi atraído para o monte de cristal nas
minhas costas. A explosão continuou a se expandir passando por mim, mas a
pequena área logo atrás da barreira estava protegida.
Sem nenhuma maneira de saber quanto tempo tínhamos, lutei para ficar de
pé, cada respiração um suspiro de dor, e pressionei minha mão cheia de
sangue no cristal do tamanho de uma rocha. Meu núcleo devorou avidamente
o éter armazenado dentro, e finalmente fui capaz de respirar. Não foi muito,
mas o suficiente para curar minha mão e fortalecer meu corpo para evitar o
ricochete.
Não havia caminho para o portal de saída. Pelo menos, não havia caminho que
eu pudesse seguir. Os pontos ramificados e interconectados – que geralmente
formavam uma espécie de mapa rodoviário de um espaço para o outro –
estavam emaranhados em um nó complicado.
Sem outro recurso, me joguei para trás do escudo de cristal e torci para que
ele me protegesse novamente. Quando o obelisco foi ativado, todo o éter em
meu núcleo foi arrancado pela segunda vez. Tudo o que consegui manter foi
uma fina camada que envolvi ao redor de Regis para mantê-lo seguro.
A dor era imensurável. Enquanto meus olhos rolavam para trás em minha
cabeça e minha boca se abria em um grito silencioso, concentrei cada grama
de minha força restante em permanecer consciente.
A segunda explosão passou por mim, uma onda visível de fogo roxo escuro que
lavou a série de ilhas, iluminando grupos de cristais de éter um por um até
atingir as paredes distantes. A caverna explodiu em luz novamente.
Eu não posso morrer assim. Tem que haver algo que eu possa fazer, eu declarei
pra mim mesmo sobre o som de meus dentes rangendo uns contra os outros.
Minha mente fraca lutou para ordenar tudo que eu sabia e o que eu poderia
usar.
O tempo entre a primeira onda e a segunda haviam sido diferentes por vários
segundos, então parecia provável que houvesse alguma aleatoriedade
envolvida. Infelizmente, isso significava que eu não podia confiar inteiramente
no tempo para me mover através da zona.
Desta vez, porém, foi diferente. A luz ametista brincando dentro dos cristais
claros esmaeceu quando as partículas de éter foram removidas, mas eu não
senti nada. O minúsculo pedaço de éter que eu reti, enrolado protetoramente
em Regis, tremeu com a vibração, mas não foi puxado para longe de mim.
Antes de me dirigir para a próxima ilha flutuante, voltei minha atenção para
Regis. Custou um quarto da minha reserva de éter, imbuída diretamente na
minúscula faísca, para trazer de volta quaisquer sinais de vida. Uma confusão
lenta vazou dele antes de rapidamente se transformar em pânico enquanto
voava para dentro do meu núcleo, consumindo o resto das minhas reservas
com pressa.
Regis não respondeu. Em vez disso, senti um medo frio e entorpecido… algo
que nunca senti vindo dele antes.
Você está bem agora? Eu perguntei timidamente. Ele não tinha estado tão
fraco desde que se formou do aclorito dado a mim por Wren Kain.
‘Como foi que… eu quase…’ Regis deixou escapar um suspiro. ‘Isso é ruim pra
cacete.’
Nós vamos superar isso, eu assegurei a ele. Apenas fique perto do meu núcleo
e concentre-se na recuperação quando eu absorver mais éter.
E Regis?
‘O quê?’
Que bom que você não está morto, pensei de forma inexpressiva, suprimindo
o medo e a preocupação que me atormentaram quando ele quase se
desintegrou.
Meu companheiro soltou um gemido. ‘Não fique todo emocionado comigo
agora.’
Eu só estava preocupado que todo o éter que lhe dei teria sido desperdiçado se
você tivesse morrido lá atrás, eu menti.
‘Ah, aí está meu adorável mestre,’ disse Regis, sua voz fraca ainda
transbordando sarcasmo.
Agora que eu tinha uma melhor compreensão da minha situação geral nesta
zona, eu queria testar a força da rajada enquanto tentava absorver o éter
diretamente da explosão. A parede de luz em chamas queimou meu éter
protetor, depois minha mão junto com ele, não deixando para trás nada além
de um coto cauterizado.
O fogo-fátuo desceu pelo meu braço até o coto queimado do meu pulso, e eu
liberei quase todo o éter do meu núcleo. A energia correu pelos meus canais
de éter, condensados ainda mais por Regis, e começou a reconstruir minha
mão, tricotando carne, sangue e osso com as partículas roxas.
Finalmente, explodiu com o som de mil canhões. Esperei que a onda de fogo
etéreo passasse, então rapidamente tirei a energia presa dentro da minha
barreira protetora e me preparei para pular para a próxima ilha.
O escudo de cristal nesta ilha era o maior que eu tinha visto até então e se
curvava para dentro criando uma pequena caverna. Enquanto eu me arrastava
para a depressão rasa, um barulho como vidro se quebrando encheu a zona
em rajadas curtas.
Usando a maior parte do meu éter armazenado para ativar o Burst Step, me
impulsionei por várias ilhas.
Sem tempo ou energia mental para colocar meu plano em palavras, tentei
projetar a ideia diretamente na mente de Regis.
O obelisco estava escuro e vazio, mas não acho que eu tinha muito tempo
antes de a próxima onda começar. Correndo em sua direção, pressionei
minhas mãos nas laterais lisas. Tinha uma textura vítrea e era fria ao toque.
Ter meu núcleo súbita e forçosamente drenado pela terceira vez em trinta
minutos fez minhas pernas tremerem e minhas palmas suarem. Eu respirei
fundo, tentando forçar meus pulmões a funcionarem novamente, mas parecia
que um urso titã estava sentado no meu peito.
Enquanto meu núcleo se enchia até a borda, continuei a extrair éter da torre –
eu não tinha escolha. Se parasse, ela explodiria e me mataria – mas parecia
que eu estava tentando beber o oceano. Meu núcleo estava tão cheio que
começou a chacoalhar e tremer. Um raio de dor radiante disparou e eu senti o
gosto de bile no fundo da minha garganta.
A luz do obelisco ficou cada vez mais forte através de minhas pálpebras
fechadas. Eu nem ao menos tinha certeza de quanto tempo havia se passado.
Tentei expelir a maior parte do éter do meu núcleo, assim como fiz quando
comecei a traçar minhas passagens do éter, mas quando abri os portões em
torno do meu núcleo, os fluxos ainda correndo de todo o meu corpo
sobrepujaram minha tentativa de empurrar para fora, criando um refluxo que
causou uma inundação descontrolada de éter purificado que eu não conseguia
parar.
Minha visão turvou. Fogos de artifício explodiram atrás dos meus olhos. Uma
lâmina branca e quente de dor cortou através de mim.
Não.
Não!
Respirando irregularmente, dobrei cada grama de minha formidável vontade
na tarefa de moldar o éter à minha vontade. Com outro lugar para ir, ele parou
de transbordar para o meu núcleo enfraquecido, e eu relaxei em um equilíbrio
delicado entre os esforços contínuos do obelisco para explodir e minha
absorção inescapável e reforma do éter purificado.
Capítulo 347
Um Passeio com Deuses
ALDIR
Era quase como se alguém pudesse navegar no rio selvagem de nuvens para
longe do castelo Indrath e para os confins de Epheotus, onde a política e as
intrigas da guerra eram uma sombra distante e sem sentido.
Meus dedos traçaram a história esculpida na parede onde parei para pensar.
Contava a história de um antigo príncipe Indrath e como ele desafiou Geolus,
a montanha viva. Centenas de quilômetros foram dilacerados pela ferocidade
de sua batalha, mas no final, Arkanus Indrath partiu Geolus quase em dois, e
a montanha ficou imóvel.
Seu olhar pousou em mim com o peso do céu noturno. “Quando falamos pela
última vez…”
Ele deixou o resto sem dizer, mas nós dois entendemos bem o suficiente. Eu
havia expressado preocupação que nossas ações tivessem levado a mais
mortes de pessoas de Dicathen do que as de Agrona já tiveram ou
provavelmente iriam ter, um momento de fraqueza que agora me arrependi.
“Não carreguei bem o fardo das minhas ações, mas a distância amplia a
perspectiva de uma pessoa,” respondi.
Windsom endireitou seu uniforme. “Farei o que Lorde Indrath ordena, agora e
sempre. Mas a verdade é que foi fácil para você, velho amigo. Os menores
tornaram-se mais enfadonhos a cada dia. Pelo menos o menino, Arthur, era
interessante. O resto são apenas vaga-lumes.”
“Eles não aceitaram nossa versão dos eventos tão prontamente quanto os
asuras,” ele respondeu, seu tom acusatório. “Menores são desconfiados por
natureza e anseiam por esperança acima de tudo, mesmo que isso signifique
abandonar a lógica.”
Parei para assistir por um momento. Eu testemunhei mil – talvez até dez mil –
exibições desse tipo em minha vida, mas agora não pude deixar de ver isso
como muito mais do que a lenta perfeição da forma, velocidade e entrega que
ensinamos aos nossos jovens. Com cada ataque e bloqueio praticado, eles
aprendiam um golpe com a intenção de desarmar ou matar um oponente. Se
os asuras continuassem em seu caminho atual, esses jovens guerreiros teriam
motivos para usá-los em breve.
A cabeça do menino tinha sido raspada, como era a tradição entre a classe
lutadora dos panteões. Seus olhos, antes castanhos – dos quais havia apenas
dois, uma raridade entre os panteões – escureceram e se tornaram negros
como um besouro.
Ficou claro ao vê-lo treinar que ele não estava em busca de exercícios físicos
ou mentais. Não, para Taci, tratava-se de dominar a arte da morte. Eu quase
podia ver a imagem que ele tinha em sua mente: um inimigo quebrando a cada
soco e chute, um exército caindo diante dele.
Eu entendi o que ele sentia, porque eu tinha sido muito parecido, há muito
tempo atrás.
O panteão jovem e feroz curvou-se mais uma vez e correu de volta para seu
parceiro de treinamento.
“Se ele continuar como tem sido nos últimos anos, ele pode ser o próximo
portador da técnica Devoradora de Mundos,” comentou Windsom.
“Eu tinha mais de duzentos anos antes de ser escolhido,” apontei. “Se ele fosse
escolhido, ainda demoraria muitos anos.”
Deixando Taci e os outros para trás, continuamos em nosso passeio lento pelo
interior do castelo. Caminhamos em um silêncio confortável por um minuto
antes de Windsom falar novamente.
“Por que você acha que ele escolheu usar desta vez? Mesmo com os” —
Windsom olhou ao redor do corredor, certificando-se de que estávamos
sozinhos – “djinn, Lorde Indrath nunca considerou usar essa técnica.”
“Seus ouvidos estão mais perto da boca de nosso senhor do que os meus,” eu
apontei. “Mas não vejo razão para termos precisado dela. Os djinn eram
pacifistas. Eles não possuíam um exército e tinham pouca magia de combate.
Aquilo foi um abate, não uma guerra.”
“Foi uma guerra,” ele rebateu, me observando com o canto do olho. “Nós
simplesmente atacamos preventivamente.”
Havia poucos, mesmo entre os asuras, que realmente entendiam o que havia
acontecido com os djinn. A maioria dos asuras nunca olhou além de Epheotus
e não se importava com os menores. Aqueles que se preocupavam receberam
uma mentira muito convincente. Aqueles que viram através da mentira e se
importaram, nós lidamos com eles.
“Nosso senhor fez o que achou que precisava ser feito, tanto naquela época
quanto agora,” eu me acobertei.
Windsom riu. “E você diz que não tem cabeça para política. Você é tão
cuidadoso com suas palavras quanto qualquer bajulador.”
“Não há necessidade de cautela quando palavras são compartilhadas entre
velhos amigos, não é?” Eu perguntei, parando para refletir sobre uma tapeçaria
que pendia do chão ao teto. “Veja esta imagem, por exemplo.”
A tapeçaria retratava uma jovem Kezzess Indrath no conselho com seu melhor
amigo, Mordain, um membro da raça fênix. Uma placa dourada embaixo estava
gravada com o título: “Deixe Descansar.”
Dos poucos que sabiam sobre o extermínio dos djinn, menos ainda sabiam que
Mordain e Kezzess haviam se desentendido. A discussão deles foi mantida em
segredo para que nenhum asura pudesse suspeitar de que Lorde Indrath
desempenhou um papel no desaparecimento de Mordain. Mais tarde, circulou
o boato de que o Príncipe Perdido, como as pessoas começaram a chamá-lo,
deixou Epheotus para se juntar a Agrona.
“Foi apenas um acaso que nos trouxe a esta tapeçaria, velho amigo, e minha
mente não estava na história mais ampla entre esses dois.” Eu descansei a
mão no ombro de Windsom. “Eu não sou Mordain e você não é Indrath.”
“Claro que não,” Windsom disse em resposta, virando-se para começar a andar
novamente. “Você me perguntou sobre a situação em Dicathen, mas minha
resposta foi irreverente. A verdade é que eles não têm mais grandes líderes ou
magos entre eles. A menos que eu esteja errado, vai haver guerra contra o Clã
Vritra e seus vira-latas.”
Viramos por um curto corredor e saímos para um terraço aberto com vista para
a ponte multicolorida. Uma brisa constante ia contra as paredes do castelo.
“Esse é o meu medo também.”
Eu não podia ter certeza se era enervante ou reconfortante que Windsom não
mostrasse surpresa com minha pergunta, respondendo apenas, “Claro, Aldir.”
Não fomos para a sala do trono. Em vez disso, entramos para as profundezas
do castelo. Os corredores esculpidos e cheios de histórias deram lugar a túneis
naturais à medida que descíamos. Musgo luminescente enchia os rochedos e
ficava pendurado, amontoado no telhado, e em vários lugares haviam fontes
naturais que mandavam riachos de água límpida escorrendo pelas laterais dos
túneis.
Não havia esculturas aqui, nem tapeçarias ou pinturas. Esses túneis, as veias
da montanha, foram deixados intocados por uma dúzia de gerações de asura.
Passamos por vários guardas na forma de golens de terra conjurados, mas eles
não nos incomodaram. Acima, em uma sala de guarda mais confortável, os
dragões que os controlavam nos reconheceram e nos deixaram passar.
De pé, o Lorde dos Dragões saiu da piscina e acenou com a mão, convocando
um manto branco.
“Você tem algo em mente, Aldir,” ele disse facilmente, mudando de posição
para que suas mãos ficassem cruzadas atrás das costas. Ele sorriu suavemente,
mas seus olhos eram duros e afiados como obsidiana. “Você veio me dizer o
que é.”
“Sim, meu senhor,” respondi, abrindo meus dois olhos inferiores para
encontrar os dele, o que era um sinal de respeito esperado. “Tenho notícias
que podem afetar nosso curso na guerra.”
Para não ficar olhando, deixei meu olhar pousar logo acima do ombro de Lorde
Indrath, focalizando a parede de trepadeiras de ouro e prata atrás dele. Flores
roxas desabrochavam inconsistentemente sobre as vinhas. Muito raramente,
uma pequena fruta azul safira também crescia.
“Um enviado do inimigo veio até mim, procurando tirar vantagem de alguma
fraqueza percebida e me virar contra meu senhor,” eu disse claramente. “Para
esse fim, ela me trouxe esta informação, embora o simples fato de ela ter
pensado que poderia influenciar minha lealdade diga mais sobre ela do que
sobre mim, eu acredito.”
“De acordo com a Foice Alacryana, Seris Vritra, Arthur Leywin ainda está vivo,”
eu anunciei formalmente. “Ele está atualmente em Alacrya e desenvolveu um
novo poder. Eu acredito que ele testemunhou meu uso da técnica Devoradora
de Mundos contra a terra natal dos elfos.”
Lorde Indrath ergueu a mão para silenciar Windsom. “Devemos verificar a força
e a atitude do humano. Ele ainda pode ser uma ferramenta útil contra Agrona
e este… Legado.”
“E se ele não estiver mais disposto a trabalhar ao lado dos asura, meu senhor?”
Eu perguntei.
O olhar de meu senhor manteve-se fiel, seu tom impassível. “Então ele vai
morrer.”
Capítulo 348
Táticas de Aprimoramento Corpo a Corpo
“Senhor?” Ele perguntou timidamente. “Você está bem? Onde está seu grupo?”
Eu balancei minha cabeça e passei por ele. “Tudo bem. Ascensão solo.”
Eu estendi minha mão, mostrando a ele o anel dimensional. Ele acenou com a
varinha passando por ela, então ao longo do comprimento do meu corpo. Ele
estalou a língua. “Sem espólios, como você diz.” Em seguida, ele voltou sua
atenção para um pergaminho que carregava. “Ascendente Grey… Ascendente…
Oh, um professor!” Ele rabiscou algo, murmurando baixinho. “Minhas
desculpas. Você é tão jovem, eu não percebi…”
“Sim, senhor, claro. Obrigado pela sua paciência.” Ele me deu um aceno de
cabeça e começou a se virar, então parou.
Fechando meus olhos, esfreguei dois dedos contra minha têmpora, descendo
até a altura dos olhos. “Sim?”
“Bem,” ele começou hesitantemente, “eu só pensei que você gostaria de saber
que as aulas na Academia Central começaram há três dias.” Com um sorriso
estranho, ele voltou ao seu posto.
“Merda,” eu resmunguei, e comecei a arrastar meu corpo cansado pelo
segundo nível em direção às plataformas de teletransporte.
—Disse-me que o novo professor não é nem mesmo um sangue nomeado. Deve
ser fácil de—”
“—matéria é uma piada. Eu não posso acreditar que Atacantes têm que perder
tempo com—”
“O professor não está aqui de novo,” disse um menino de óculos sem tirar os
olhos do livro.
“Ele é o professor, Deacon,” disse outro aluno. Era o garoto de cabelo preto
que havia dado ordens aos dois valentões na biblioteca.
Voltando minha consciência para dentro, a primeira coisa que notei foram
meus canais de éter. A inundação de éter puro do obelisco os alargou e limpou
todas as imperfeições de dentro deles.
Senti uma dor profunda quando manifestei uma garra e comecei a cavar
dentro do fruto seco, mas me concentrei em manter a forma. Embora eu não
tivesse muito éter para extrair, descobri que o próprio éter estava se movendo
ao longo de meus canais mais rapidamente, o que significa que eu poderia
manifestá-lo em um ponto específico do meu corpo quase que
instantaneamente.
Ainda levava tempo para condensar o éter em uma garra fina pra fora meu
dedo indicador, no entanto, e minha mente cansada lutou para se concentrar
na forma. Em vez disso, concentrei-me no meu núcleo.
Eu havia forjado meu núcleo de éter por pura força de vontade. No meu ponto
mais fraco e desesperador, eu tinha transformado a perda total em uma vitória
impossível, fazendo algo que talvez ninguém na história deste mundo tivesse
feito.
Quando meu núcleo de éter começou a rachar, percebi que precisava ir além
da minha perspectiva limitada atual. Eu tinha seguido o mesmo caminho de
um mago usuário de mana, na expectativa de crescer o núcleo através do uso,
meditação e combate.
Mas meu núcleo de éter não era natural. Não houve progressão biológica
definida.
Percebi que precisava ser mais intencional. Se meu núcleo de éter não
evoluísse por conta própria, eu teria que encontrar uma maneira de forçá-lo.
Agora que tinha feito isso, não pude deixar de me perguntar: Será que posso
fazer de novo? Com éter suficiente, eu poderia continuar a adicionar camadas
ao meu núcleo, ficando exponencialmente mais poderoso com cada uma?
Era possível. O maior obstáculo era encontrar uma fonte de éter forte o
suficiente para forjar a camada em uma única sessão, quase o contrário de
manter éter suficiente em meu núcleo para se infiltrar na pedra de Sylvie e
romper uma camada.
“Mas você me disse para aprender a me defender,” Seth disse calmamente. “Eu
pensei que você quisesse dizer — que você queria que eu…”
“Não, assim não, órfão. Quando você se curva, você perde de vista o seu
oponente e” — houve outro baque mais forte — “fica vulnerável a golpes na
cabeça.”
Ele estendeu um pergaminho. “Esta é uma lista atualizada da turma, que você
precisa porque vários alunos já abandonaram este curso.”
Sua carranca suavizou um pouco. “Garanta que isso não aconteça. Não
precisamos de mais problemas como esse no Salão Supremo, Professor Grey.”
Girando nos calcanhares, Rafferty saiu pela porta aberta. Do outro lado, uma
dúzia de alunos estavam todos imóveis, obviamente tendo ouvido cada
palavra do meu castigo.
Sem palavras, fechei a porta e voltei para a bagunça da minha mesa. Não me
preocupei em olhar a lista de turmas que recebi em minha papelada original,
então abri o novo pergaminho e examinei a lista – muito mais curta.
Milview, pensei, o nome soando familiar por algum motivo. Eu já tinha ouvido
isso, mas onde? Algum soldado da guerra? Não foi do homem que eu torturei…
Vale… então onde-
Não havia muitos soldados alacryanos importantes o suficiente para ter seus
nomes registrados em nossos relatórios, mas foi exatamente onde eu li o nome
antes. A sentinela que traçou um caminho pela Floresta de Elshire – a pessoa
responsável pela queda de Elenoir – se chamava Milview.
“Portrel,” disse ele, com o queixo erguido e o peito estufado. “Do Alto Sangue
Gladwyn.”
“Se você planeja lutar, faça isso lá,” eu disse, apontando para o ringue de
treinamento.
A garota com o cabelo dourado curto, uma das duas já treinando no ringue, fez
uma careta para eles, realmente mostrando os dentes. “Já estamos usando.”
Eu senti o medo que atingiu Seth quando ele percebeu que eu não tinha
intenção de ajudar. No entanto, ele ainda ficou em uma posição defensiva ao
enfrentar o garoto de Gladwyn.
Eles eram um par tão incompatível quanto eu poderia imaginar. Portrel tinha
o dobro do peso de Seth, mesmo que ele não fosse mais alto, e provavelmente
era um Atacante. Pela maneira como ele se acomodava confortavelmente em
uma posição de combate, ambas as mãos para cima e o pé direito ligeiramente
para trás, eu tinha certeza que ele havia treinado combate corpo a corpo.
Seth, por outro lado, era de altura média, mas parecia mais baixo por causa da
forma como ele se curvava. Ele era magro a ponto de parecer doente, uma
impressão aumentada por sua pele pálida, e claramente nunca havia sido
ensinado a dar um soco.
Talvez se ele não passasse todo o seu tempo na biblioteca, pensei, ignorando
a memória dele me ajudando que estava arranhando meu cérebro.
Uma confusão ainda maior crivou seus rostos quando olharam para mim.
Portrel se recuperou primeiro, sorrindo maliciosamente ao erguer os punhos.
“O que você disser, professor.”
Seu primeiro soco foi preguiçoso, acertando Seth na parte interna do ombro,
mas o golpe seguinte acertou diretamente no queixo de Seth, jogando a
cabeça do menino despreparado para trás e jogando-o no chão.
“Eu sei que não estamos usando mana, mas espero que você pelo menos tente
dar um golpe decente,” eu disse, meu nível de voz, quase entediado. “Você
soca como se Milview aqui fosse abraçar seu soco.”
“Alguém que estava com medo de te dizer o quão merda você realmente é,” eu
terminei por ele. “Essa é a fraqueza nascida de muito poder. Agora, vá de
novo.”
“Você retraiu seu punho e deixou seu pulso ficar mole,” eu apontei.
O Alto Sangue atarracado rangeu os dentes e olhou para fora do ringue para o
garoto de cabelos escuros que parecia ser seu líder. Pelo canto do olho, eu o
vi balançar a cabeça.
Percebendo que deveria ter lido toda a lista de nomes de alunos, pensei sobre
os diferentes sangues que Abby havia mencionado durante nossa conversa, e
com quais alunos ela me disse para ter cuidado. Embora ela tivesse falado
sobre ele de forma diplomática, ela mencionou que o neto do Diretor
Ramseyer frequentava a academia. Olhando para o garoto de cabelos escuros,
pude ver a semelhança.
Fazia sentido, então, por que ele era o líder, mesmo entre os Altos Sangues.
Ela acenou lentamente e apontou para uma porta aberta no canto da sala.
Sua expressão caiu em uma careta de descrença, mas ela não se moveu. Sua
parceira de treinamento me lançou um olhar desconfortável e disse, “Eu-eu
vou pegar…” antes de correr pela sala de aula para recuperar as espadas de
treino. Quando ela voltou com eles, ela me deu um sorriso torto de desculpas.
As espadas de combate eram pedaços simples de madeira leve e flexível. Eu
as entreguei aos combatentes. Seth, que finalmente se arrastou de volta para
seus pés, olhou para a arma como se fosse uma cobra prestes a mordê-lo,
enquanto Portrel girava a sua com conforto praticado.
Portrel adotou uma postura mediana, o pé esquerdo para trás com a espada
segura à sua frente com as duas mãos, apontada para o rosto de Seth.
Olhei para o garoto Milview, que o copiou sem jeito, parecendo como se nunca
tivesse segurado uma espada na vida, e senti uma pontada de aborrecimento.
O aborrecimento aumentou a partir do fato de que eu sentia mais pena de
Seth do que raiva. Ele era irmão da soldada responsável não apenas pela
conquista de Elenoir, mas também por sua destruição.
Vendo que Portrel havia ajustado sua postura de repente e parecia muito mais
focado, eu sabia, mesmo sem ser capaz de sentir a magia, o que ele estava
fazendo.
“Você tem medo de treinar sem?” Eu perguntei com uma ligeira inclinação de
minha cabeça.
Portrel inchou. “Eu não tenho medo de nada! Meu sangue tem—”
O garoto alto com cabelos multicoloridos soltou uma gargalhada. “Boa, Port!”
Eu pisquei estupidamente. “Bem, isso foi divertido. Vocês dois praticaram essa
pequena cena de comédia ou foi improvisada?”
“Como você ousa, seu lixo sem nome!” O Atacante corpulento se levantou e
apontou sua espada de combate para mim. “Eu não sei o que você fez, mas
meu pai vai—”
“Portrel, você se esquece,” disse uma voz firme e autoritária. Fiquei surpreso
ao ver o menino Ramseyer de pé. “Suas ações trazem desrespeito ao seu
sangue.”
O chão sob os pés de Portrel tremeu quando o Atacante avançou com uma
velocidade que não era possível sem magia.
Dei o menor passo para o lado para evitar a espada de madeira apontada para
meu ombro. E com um leve estalo do meu pulso, eu dei um tapa no rosto do
garoto com as costas da minha mão.
A cabeça de Portrel sacudiu com o impacto antes que ele perdesse o equilíbrio
e rolasse para fora do ringue de duelo, que estava com o escudo desativado.
“Você não teria rolado com tanta força se não tivesse usado mana,” eu disse
com naturalidade, prendendo o anel de ébano de volta em meu dedo.
Portrel, por outro lado, olhou carrancudo para seus pés, com cuidado para não
olhar na minha direção, mas seus punhos estavam cerrados enquanto seu
amigo o provocava durante todo o caminho escada acima.
“Não espere que a aula fique mais fácil do que isso, Milview,” eu disse
desapaixonadamente, a intenção de minhas palavras mais uma ameaça do que
um aviso. Estar em Alacrya, fingir ser professor… isso era uma coisa. Mas
ensinar o membro da família da mulher que deixou o exército alacryano tomar
Elenoir?
Quando Seth passou por mim, minha atenção foi atraída para a saída, onde os
alunos estavam começando a se acumular. “Eu disse que a aula acabou! Por
que a demora?”
Capítulo 349
Esperança e Mentiras
ELEANOR LEYWIN
“Eu só precisava ter certeza de que ela não estava se metendo em problemas,”
Jasmine disse, indicando a Camellia.
A aventureira séria não mudou muito desde que eu era criança. Eu gostava de
todos os Chifres Gêmeos, mas secretamente tinha um pouco de medo de
Jasmine. Quando Helen, Durden e Angela Rose foram trazidos originalmente
para o santuário, Jasmine não tinha vindo com eles. Camellia tinha me contado
tudo sobre como Jasmine a salvou, então eu estava feliz por ela ter voltado.
Fiquei muito feliz quando ela chegou com os Chifres Gêmeos e Gideon. Não
éramos melhores amigas nem nada, mas Emily sempre foi legal comigo, e ela
até fez um arco personalizado naquela época que aproveitou minhas técnicas
de mana pura.
Ela era um gênio total, então não era exatamente surpreendente que ela
tivesse encontrado uma maneira de sobreviver. Ela e Gideon foram capturados
pelos alacryanos e forçados a trabalhar para eles, mas os Chifres Gêmeos
ajudaram a salvá-los. Ou eles ajudaram a salvar Jasmine? Eu ainda estava um
pouco confusa com os detalhes.
Ela ficou quase tão chateada quanto eu ao saber que meu arco foi destruído.
Infelizmente, não tínhamos nenhuma das ferramentas ou recursos de que ela
precisava para fazer outro no santuário, então tinha que me contentar com um
arco de treinamento.
Ainda era muito bom ter as duas de volta. E ver mais rostos familiares tinha
sido bom para mamãe também. Ela começou a voltar à vida um pouco quando
percebeu que muitos de nossos amigos ainda estavam vivos lá fora, apenas
esperando por ajuda.
“Outra princesa? Justo o que precisávamos…” Jasmine disse, e ela parecia tão
séria que eu não pude dizer se ela estava brincando ou não.
“Não ligue para ela,” Camellia disse, franzindo o nariz. “Ela simplesmente não
é muito boa em se expressar.”
“Tudo bem então,” disse Hornfels, rindo alto. “Com a garota Watsken eu estou
familiarizado, mas você terá que me mostrar suas habilidades, Srta.
Flamesworth…”
Tínhamos escolhido uma crista plana com vista para a maior parte da caverna
para ser nosso campo de treinamento. Estava longe o suficiente para que não
quebrássemos algo acidentalmente no processo. Também gostei porque dava
para o vilarejo e quase todas as casas daqui, além da maioria dos túneis que
saiam da cidade.
O único que não parecia interessado em conversar conosco era o guarda élfico,
Albold. Aparentemente, ele queria voltar para a floresta quase imediatamente
quando Tessia e eu não voltamos, mas Virion não o deixou. Então, quando
Bairon confirmou que Elenoir havia sumido totalmente, bem…
Acenando para os outros, me virei e comecei a longa descida até a cidade, sem
saber o que fazer comigo mesma. Eu estava cansada, mas também estava…
Eu não tinha ideia, na verdade. Eu nunca sabia como me sentir mais, então
comecei apenas a empurrar tudo para o fundo.
Suspirando, chutei uma pedra na rampa natural pela qual estava descendo.
Ela foi rolando até a borda, eventualmente caindo com um respingo no riacho.
O fato de eu estar cercada de pessoas que haviam perdido tudo não ajudava.
Eu perdi meu pai e meu irmão – e minha infância – para a guerra, mas então
pensei em Camellia… sua família inteira foi morta durante a invasão, sua casa
havia sumido, a maioria das pessoas que ela conheceu estava morta…
Albold era o único outro membro élfico de nosso grupo. Talvez tenha sido
egoísta da minha parte, mas parecia que ele era minha conexão com o que
aconteceu. Eu queria que ele me ajudasse a entender o que ele estava
sentindo, mas ele praticamente se escondeu.
Rinia disse que estava fraca demais para receber visitantes, mas não havia
voltado para o santuário. Tive a sensação que algo estava acontecendo entre
Virion e ela. Eu só não conseguia adivinhar o quê. E como nenhum dos dois
estava falando comigo, bem…
A presença de Camellia foi uma coisa boa, pelo menos. Havia algumas outras
crianças no santuário, mas ninguém que entendia o que eu passei do jeito que
ela entendeu. Talvez fosse porque éramos tão parecidas que ambas lutamos
para realmente entender o que havia acontecido. Antes de Jasmine salvá-la,
ela já havia perdido toda a sua família e parecia meio entorpecida quando se
tratava do ataque à sua terra natal.
Embora eu tivesse certeza de que ele não estaria lá, fui primeiro para a
prefeitura. Albold não tinha estado em nenhum de seus turnos regulares de
guarda desde que dei meu relatório ao conselho, mas eu realmente não sabia
onde mais procurar.
Acontece que eu sabia que minha mãe cuidou pessoalmente das feridas do
elfo momentos depois que ele se teletransportou de volta para o santuário.
Embora houvesse algum desconforto persistente por um tempo, ele havia
voltado às suas funções quase imediatamente. Ainda assim, não adiantava
discutir com a chefe da guarda. Eu também sabia o que ela diria quando eu
perguntasse onde ele estava agora, mas tentei mesmo assim.
“Como eu disse antes, Albold recebeu uma caverna particular fora da cidade e
pediu para não ser incomodado. Tenho certeza que ele vai te avisar quando
estiver se sentindo melhor.” A maneira como ela disse isso deixou muito claro
o quão provável ela pensava que Albold iria me procurar para qualquer coisa.
Eu queria ficar brava com a atitude dela, mas então pensei em Elenoir
novamente e meu estômago embrulhou. “Desculpe incomodá-la. Obrigado
pelo seu tempo e” — eu me esforcei para dizer algo, sentindo-me ficar mais
estranha a cada palavra — “seu serviço,” terminei com um estremecimento.
“—artefatos que nos foram prometidos. Essa mentira que você me fez contar
só vale a pena se nós—”
Embora eu não tivesse ouvido essa segunda voz em muitos anos, eu soube
imediatamente quem era. Não havia como esquecer o homem – ou divindade
– que me deu Boo.
“Você está correto,” Windsom disse, sua voz fria e sem emoção. “Você não tem
escolha, Comandante Virion. Se você deseja liderar seu povo – elfos, humanos
e anões – nesta guerra, é essencial convencer a todos de que a destruição de
Elenoir foi um ato do clã Vritra.”
“A história funcionou bem em Epheotus,” Windsom continuou. “Até mesmo os
clãs de basiliscos restantes começaram a aparecer. Em breve, Lorde Indrath
terá apoio suficiente para prosseguir com uma guerra em grande escala.”
“Você tem minha palavra,” Windsom respondeu com firmeza. “Lorde Indrath
deseja ardentemente que Dicathen não seja prejudicada por esta guerra.
Quanto à população alacryana, bem, é lamentável…”
“E minha neta?” Virion atirou de volta. “Ela será mais dano colateral para sua
guerra? Você me disse que a encontraria, asura.”
“Receio não ter nada de novo para relatar sobre este assunto,” Windsom
confirmou. “Nós sabemos apenas que o recipiente de Tessia – seu corpo – está
atualmente em Alacrya, mas os clãs de Epheotus não têm conhecimento desta
técnica de reencarnação que Agrona usou. No caso de não ser reversível, você
deve estar preparado para—”
Reencarnação? Meu coração batia tão forte em meu peito que abafou as
palavras de Windsom. Como meu Irmão?
Um leve estalo me fez pular e, de repente, tudo que pude ver foi o corpo
grande e peludo do meu elo. Sua cabeça girava em busca de perigo e, ao se
virar, seu grande traseiro me derrubou. Minha concentração em manter minha
besta ativa quebrou e os sentidos aprimorados desapareceram.
“Bem, sinto muito ter interrompido sua caça, mas eu não pedi para você—”
Para minha surpresa, o asura sentou-se em uma grande pedra do lado de fora
do jardim e ergueu a mão na direção de Boo. Meu vínculo se aproximou dele
com cautela, farejando a mão estendida. Então o comportamento do meu
vínculo pareceu mudar, e ele deu uma lambida no asura.
Ficamos sentados em silêncio por alguns segundos. Minha mente estava vazia
de medo.
Sua cabeça se virou para mim, e eu praticamente pude sentir seus olhos se
enterrando em mim, olhando para o meu núcleo. “Fascinante,” ele murmurou.
“Você completou a fase de assimilação e pode utilizar a vontade de sua besta.
E você conseguiu isso sem ajuda?”
Minha língua parecia inchar até o tamanho da boca de Boo, e eu não pude
responder. Seria algum truque elaborado para que eu revelasse que os estava
espionando?
“Estou deixando você nervosa,” Windsom observou. “Eu falo com tão poucos
de sua espécie. Minhas desculpas.”
Boo se virou para mim e cutucou meu braço com sua cabeça larga. Quando ele
me tocou, o calor derramou do meu núcleo, afastando o medo. Soltei um
suspiro profundo.
Olhei para as costas das minhas mãos e meus braços, onde os pelos finos
estavam arrepiados. “Que… que tipo de besta de mana o Boo é, afinal?”
“O que mais ele pode fazer?” Eu perguntei sem fôlego, meus olhos fixos nos de
Boo, meu medo esquecido. Eu sabia que ele não era uma besta de mana
normal, mas nunca imaginei que ele fosse algum tipo de super besta de mana
de Epheotus.
“Oh,” eu disse suavemente, passando a mão pelo pescoço de Boo. “Não tenho
certeza se gosto muito disso.”
“Isso dá a você uma visão dos próprios sentidos da besta, sim,” Windsom disse,
pegando minha linha de pensamento. “Pode ser bastante poderoso. A segunda
fase deve então manifestar um pouco da força do seu vínculo e habilidade de
luta, mas difere de asura para asura, e eu honestamente não posso te dizer
como um humano vai se adaptar à segunda fase. É possível – muito
provavelmente mesmo – que você nunca passe a fase de integração.”
Ele olhou para mim e, em vez de ser atraída por seus olhos cósmicos estranhos,
senti meu corpo tentando se afastar dele. Só levou mais um segundo para
descobrir o porquê.
O céu noturno sobre Elenoir, era assim que seus olhos pareciam… Antes que
ele e Aldir destruíssem o país inteiro, me lembrei com um tremor de medo.
“Saiba que seu irmão não é esquecido entre os asuras, Eleanor. Você era
importante para ele e, portanto, é importante para nós. É por isso que eu dei
a você uma besta guardiã.”
Fiquei sentada no jardim por muito tempo depois disso, pensando. Eu ainda
não tinha certeza se Windsom de alguma forma percebeu que eu entreouvi ele
e Virion ou não. Foi por isso que ele decidiu me contar sobre Boo agora? Eu
pensei. Para me distrair? Ou talvez me mostre que ele não era uma ameaça,
que ainda se importava conosco?
Então pensei em Albold, que queria saber a verdade mais do que qualquer
coisa. Ele e o resto dos sobreviventes não merecem saber a verdade? Eu
perguntei para mim mesma.
Capítulo 350
Colegas
CAERA DENOIR
Eu mantive meu rosto impassível, meu tom nivelado e minha postura reta
enquanto eu entrava em sua sala de aula. Afinal, eu deveria ser vista pelos
outros apenas como uma colega, nada mais.
Então, por que, pela graça de Vritra, deixei escapar seu nome, anunciando o
fato de que já nos conhecemos?
Ela me fez uma reverência treinada antes de falar alto o suficiente para seus
colegas ouvirem. “Lady Caera do Alto Sangue Denoir, minha mãe e meu pai
pediram que eu transmitisse votos de boa sorte a você e ao seu sangue, se nos
encontrássemos na escola.”
Eu dei a ela um aceno de cabeça. “Neste caso, seria bom pra você se tomasse
anotações desta aula.”
Grey ficou em silêncio, seu rosto ilegível, mesmo quando travamos os olhares.
Eu temia que ele já soubesse o que havia me trazido para esta escola. Mas pior
do que isso, temi que ele não soubesse mas presumisse naturalmente.
“Peço desculpas pela grosseria dos meus colegas,” uma voz soou, me tirando
dos meus pensamentos.
“Eu tenho negócios com o seu professor,” eu interrompi, ignorando sua mão
estendida enquanto varria um olhar frio através da multidão de alunos. “E
como ele mencionou… a aula acabou.”
O queixo do herdeiro Ramseyer cerrou quando ele recuou a mão antes de sair
andando de uma maneira arrogante. Os sussurros e murmúrios só
aumentaram enquanto o resto da classe seguia o exemplo. Apenas o último
aluno a sair ficou sem palavras, seu corpo magro curvado para frente enquanto
ele lutava para subir as escadas, seu olhar grudado em seus sapatos.
Endireitei minha blusa quando comecei a descer em direção a ele. Agora que
éramos apenas nós dois, minha mente começou a correr, tentando pensar nas
próximas palavras para quebrar essa tensão.
Mais uma vez, fui recebida com silêncio, a única mudança em sua expressão
sendo uma sobrancelha levantada de suspeita.
Eu levantei minhas mãos em um gesto apaziguador enquanto também
mostrava meu anel a ele. “Eu apenas vim dizer ‘oi’ e conversar com um amigo.”
Eu balancei a cabeça seriamente. ”Ah, sim. Porque ansiava por sua presença
mal-humorada e vagamente ameaçadora.”
A menor contração perturbou o canto de seus lábios. “Eu não sou mal-
humorado.”
Uma forte pontada de dor subiu pela minha parte traseira e nas minhas costas,
fazendo-me gritar e pular do assento.
Ele teve a boa graça de parecer envergonhado, esfregando a nuca – mas ainda
sorrindo como um idiota. “Eu estava terminando aqui. Quer dar uma
caminhada? Devíamos conversar sobre o que aconteceu.”
“Não,” eu rebati.
Depois que ele trancou seu escritório e guardou a esmo alguns implementos
de treinamento, saímos do prédio, caminhando lentamente na direção do
Salão Windcrest, onde estávamos ambos hospedados.
“É. Parece…”
O ritmo de Grey gaguejou e suas sobrancelhas franziram. “Você está muito bem
informada.”
“Lady Caera,” uma voz nítida anunciou atrás de nós. Grey e eu paramos e nos
viramos, e vi o rosto de Grey se achatar em uma máscara impassível pelo canto
do olho.
“Lady Caera,” ele repetiu com uma reverência. Seus olhos permaneceram nos
meus, nem mesmo reconhecendo a presença de Grey. “Uma honra finalmente
conhecê-la. Eu sou Janusz do Sangue Graeme, professor de…”
Eu me virei para Grey, curioso para ver sua reação, mas o ascendente sem
coração já havia me deixado.
“Eu não sabia que estar em sua mera presença iria chamar tanta atenção,” Grey
disse, seu tom carregando apenas uma pitada de humor provocador. “Perdoe-
me por não saber o quanto isso é uma honra.”
“Talvez ter algum drama entre nós faça esses Altos Sangues se esquecerem de
mim.” O canto dos lábios de Grey curvaram-se levemente enquanto ele olhava
preguiçosamente para frente.
Eu zombei. “Você age como se a única coisa que valorizássemos fosse uma
fofoca interessante.”
“Já nos encontramos,” declarou Grey, antes de voltar seu olhar para mim. “Mas
eu gostaria de saber mais sobre ele.”
Grey voltou a esconder suas emoções por trás de um rosto inexpressivo. Ele
poderia muito bem estar usando uma máscara.
“Ele estava,” eu disse, sem saber por que isso iria surpreendê-lo, ou mesmo se
ele estava surpreso. “O boato é…” Eu me segurei e deixei as palavras sumirem.
“Na verdade, não cabe a mim dizer. Mas é do conhecimento geral que ele foi
capturado e torturado pelos cidadãos de Dicathen.”
De repente, tudo fez sentido. Sua insistência em fazer as coisas sozinho e evitar
os outros, a maneira como ele parecia se afastar de si mesmo sempre que
Dicathen ou a guerra eram mencionados, como ele nunca falava sobre sua vida
antes das Relictombs…
Eu hesitei. Parecia claro como o dia, agora que fiz a conexão, mas também era
o interesse de minha mentora por ele. Mas eu não tinha certeza se poderia –
ou deveria – confirmar que Foice Seris era minha mentora ainda.
“Esquece,” disse ele com uma única sacudida afiada de sua cabeça. “Isso não
importa. Sim, estava, mas prefiro não falar sobre isso.”
Grey não seria o único soldado que ficou marcado na guerra. Quando ele
recusou o convite dos Denoirs, eu atribuí isso à sua individualidade frustrante,
mas agora podia ver como ele evitava intensamente qualquer uma das redes
políticas tecidas na sociedade alacryana. Eu não insisti no assunto, apesar da
curiosidade feroz que eu tinha por este misterioso ascendente e seu passado.
Eu nunca ansiei pelo tipo de glória que a guerra traz. Não tinha interesse em
matar aqueles que nunca me fizeram mal, independentemente de onde
nasceram ou a quem juraram fidelidade.
E por causa dos ensinamentos de Foice Seris, eu sabia que a expansão do Alto
Soberano para Dicathen era egoísta, na melhor das hipóteses, e que não
beneficiava o povo de Alacrya, nobreza ou não. Eu não conseguia imaginar ser
forçada a lutar por uma causa que não apoiei.
Se minha vida tivesse sido diferente, entretanto, se Foice Seris não tivesse
escondido a manifestação de meu sangue, eu poderia muito bem ter sido
treinada para o massacre e lançada contra os habitantes de Dicathen.
E então? Eu teria retornado como Grey, quieta, fria e muitas vezes ilegível? Ou
eu teria me tornado mais como Kayden, indisposto e agindo como se nada no
mundo importasse mais?
Obriguei-me a me concentrar na copa das árvores e nos pássaros cantando ao
meu redor, afastando quaisquer pensamentos sobre a guerra. Não havia
benefício em pensar sobre tudo isso agora.
Quando finalmente alcançamos o salão Windcrest, segui Grey até seu quarto.
Enquanto ele segurava a porta aberta para mim e eu via o interior, não pude
deixar de rir.
Grey me olhou com uma sobrancelha levantada. “Isso é meio rude. Como é o
seu quarto então? Você trouxe toda a sua coleção de bonecos de pelúcia com
você?”
Eu fiquei boquiaberta com ele, então estreitei meus olhos e cruzei os braços
defensivamente. “Para que você saiba, eu só trouxe um, e seria um insulto
chamá-lo de mero ‘boneco de pelúcia’, considerando o quão feroz ele parece.”
“Fique com eles,” eu disse, minha voz tremendo levemente. “Sevren ficaria feliz
em saber que sua adaga continua a ser usada nas Relictombs.”
“E você não quer sacrificar seu poder para me rastrear, se necessário,”
acrescentou. As palavras não eram cruéis ou raivosas, apenas prosaicas.
“Eu já perdi a capa do seu irmão,” ele interrompeu. “Se esta adaga é tudo que
você tem para se lembrar dele, então você deve ficar com ela. Quanto ao
medalhão, não vou precisar da proteção do Alto Sangue Denoir.”
O cabo de prata escovado era frio ao toque. Pressionei meus dedos nas
ranhuras, mas elas eram grandes demais para mim. Puxando a bainha para
examinar a lâmina, minha respiração ficou presa na minha garganta. Inscrito
na base da lâmina estava um símbolo: um hexágono com três linhas paralelas
esculpidas dentro dele.
“Sim. Eu disse que tinha estudado éter um pouco.” Grey acenou com a cabeça
enquanto se inclinava para frente em sua cadeira. “Foi principalmente Sevren
quem estudou éter. Isso é o que a insígnia é: uma runa antiga que significa
éter. Três marcas para tempo, espaço e vida, e o hexágono como um símbolo
de conexão, ligação e construção. Ele o usou como uma espécie de…
assinatura, suponho. Algo que ele começou quando criança, marcando coisas
com o símbolo do éter para dar a elas ‘poder’. Ele nunca parou de fazer isso.”
Eu não tinha certeza se ele queria jogar ou estava apenas se mexendo, mas
rebati pegando um conjurador ao longo da borda direita para ameaçar
qualquer peça que passasse da linha. “Bem, eu te conheci nas Relictombs, e
você pode empunhar éter, então…”
Enfiei uma mecha de cabelo azul atrás da orelha enquanto enviava outro
lançador ao longo do lado esquerdo da placa para forçar sua sentinela no
meio.
“Nós dois sabemos que você estar aqui não é coincidência,” Grey disse
enquanto fazia seu próximo movimento.
Decidindo que uma ação ousada era necessária, movi um atacante para o
centro do campo. “Quando você não se jogou aos pés dos meus pais adotivos
após o julgamento, eles arranjaram para que eu ajudasse o Professor Aphelion
a fim de espioná-lo e… conquistá-lo, se eu pudesse. Minha mentora” — segurei
o nome de Foice Seris, ainda hesitante em revelar essa conexão — “me pediu
para ficar de olho em você também, separadamente.”
O foco de Grey nunca saiu do tabuleiro. Ele não vacilou, franziu a testa ou
piscou. Trocamos alguns movimentos antes que ele falasse novamente.
Eu fiz beicinho e olhei para ele com raiva. “Você é uma aberração com a qual
ninguém parece saber o que fazer e, por minha própria imprudência, fui
algemada com a responsabilidade de ter notícias sobre você.”
Grey piscou surpreso, ao que respondi com uma risada genuína. “Eu só estou
brincando… pelo menos parcialmente. Acho que forçar a me tornar uma
assistente do Professor Aphelion também foi a maneira de meus pais me
punirem por fugir.”
O misterioso ascendente coçou desconfortavelmente o cabelo louro-trigo e
seus olhos perderam o foco por um instante.
Sorrindo, me abaixei para acariciar a cabeça dele. “Sinto muito. Você fica muito
mais grandioso quando está em tamanho completo.”
Eu me virei para Grey, que estava olhando para o filhote de lobo das sombras
daquela maneira que ele fazia quando eles estavam se comunicando
mentalmente. “É rude excluir convidados da conversa, sabe?”
Grey fez uma careta e coçou a nuca. “Eu estava apenas o mantendo atualizado.
Ele esteve fora por um tempo.”
Esperei que Grey dissesse mais alguma coisa, para retomar nossa conversa
anterior — me perguntar coisas, me dizer para sair, qualquer coisa — mas ele
permaneceu em silêncio. Cansada do jogo, decidi que uma verdadeira vitória
não estava nas cartas naquele dia. Usando um conjurador que permiti ficar
isolado perto de sua propriedade, matei um escudo encalhado e parei alguns
espaços de sua sentinela.
“Você planeja seguir em frente com o que os Denoirs e esta Foice mentora
misteriosa pediram?” Ele disse finalmente, deslocando sua sentinela para
frente.
“Se você acha que eu iria espioná-lo mesmo depois de informá-lo de que fui
enviada para espioná-lo, então um de nós não merece estar moldando jovens
alacryanos, embora eu não possa ter certeza se esse alguém é você ou eu.”
“Por que você está aqui, de verdade?” Ele perguntou, seu olhar firme me
prendendo à minha cadeira.
A pergunta não deveria ter me pegado desprevenida, mas eu ainda me debatia
para formar uma resposta.
Eu queria ver o que ele iria realizar. Não para desfrutar da glória refletida de
suas realizações, mas para fazer parte de qualquer mudança que ele causasse
no mundo, para ter o poder de fazer minha voz ser ouvida.
“Porque eu confio em você, Grey. Não há muitas pessoas nesta vida sobre
quem eu possa dizer isso, mas confio em você e ainda espero ganhar sua
confiança pra mim mesma.”
Ele encontrou meus olhos. Por um momento, sua máscara caiu. Eu vi surpresa
e dúvida nas linhas de sua testa, apreciação na curva de seus lábios,
admiração e medo em seus olhos… Seu rosto carregava um mundo de emoções
conflitantes, na duração de batimento cardíaco, e quando a máscara voltou a
subir no momento seguinte, eu entendi.
“Bom,” disse ele com firmeza, seus olhos no tabuleiro em vez de mim. “Porque
pessoas dignas de confiança são raras, e eu também gostaria de poder confiar
em você.”
Como se não estivéssemos falando de nada mais urgente do que o clima, Grey
agarrou uma peça de atacante e a deslizou pelo tabuleiro, através de uma
lacuna em minhas defesas que eu não tinha notado, e a acertou contra minha
sentinela. A peça caiu na mesa com um barulho.
Regis balançou a cabecinha para seu mestre. “Ele diz coisas tão assustadoras
com tão poucas emoções…”
“Bem, agora que todos nós nos encontramos e concordamos em confiar uns
nos outros…” Grey se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos na mesa, um
brilho de fogo em seus olhos dourados como mel. “O que você acha de me
ajudar a roubar uma relíquia morta?”
Capítulo 351
Minimamente Catastrófico
Com um floreio, ela ativou seu anel dimensional e retirou uma orbe cor de
estanho do tamanho de meus dois punhos unidos. A parte externa, de metal,
tinha marcas de bolhas e era coberta por saliências e fendas, fazendo com que
parecesse uma esponja metálica redonda.
“É pesada”, comentei, movendo-a para cima e para baixo na minha mão para
sentir o peso. “Isso vai fazer diferença?”
Ela retirou a capa ensopada e pendurou-a na porta. “Espero que não. Não vi
nenhuma runa que indicasse a sensibilidade à pressão gravada no pedestal
do mostruário, e você?”
Embora o curador não dissesse por que o Foice Dragoth trouxera o orbe para
a Academia Central, ele ficou entusiasmado ao discutir seus poderes – o pouco
que se sabia sobre eles – com Caera.
De acordo com o velho, a relíquia morta era única porque sua forma não
fornecia pistas sobre sua função. A superfície marcada por pequenos furos não
era seu estado natural, mas sim uma consequência do desgaste; quando a
relíquia foi descoberta pela primeira vez, estava sem mácula, uma perfeita
esfera de prata, mas quando removida das Relictombs ela se decompôs
rapidamente. Os Instiladores presumiam que era algum tipo de ferramenta –
talvez algo usado na construção das próprias Relictombs – e a repentina
degradação era uma espécie de mecanismo de defesa para evitar que os
segredos dos magos antigos fossem descobertos. O curador não possuía mais
informações pra oferecer à Caera, no entanto.
A ideia de ter uma ferramenta dos djinn, algo que me permitisse manipular as
Relictombs diretamente, era boa demais para deixar passar.
“Não é incomum que Altos Sangues mandem fazer relíquias falsas para
impressionar seus amigos – e rivais.” Caera indicou a orbe falsa com um sorriso
malicioso. “Ela ficará quieta sobre isso, já que lábios soltos, neste caso,
provavelmente resultariam em sua morte.”
Caera acenou para que não me preocupasse. “Eu estava disfarçada, como você
sabe, e fingia representar um sangue diferente. Então, mesmo se ela falasse,
eu não seria envolvida.”
O brilho malicioso nos olhos de Caera voltou. “Ah, eu acho que você sabe qual.”
Regis latiu de tanto rir, quase caindo para trás em sua forma diminuta. Bem
feito praqueles idiotas dos Granbehl. Quase me faz querer que essa artesã
obscura se volte contra eles – ou melhor, contra nós, algo assim.”
Joguei minha própria capa branca sobre os ombros, dando a Caera um sorriso
divertido. “Se as coisas correrem mal, pelo menos haverá lado positivo.”
Haedrig jogou o quadril e piscou para mim. “Qual é o problema, Grey?” ele
disse em sua voz rouca. “Já não sou atraente pra você?”
Regis deu uma volta lenta em torno de Haedrig, farejando suas botas. “Eu não
sei como me sentir sobre isso, para ser honesto. Por exemplo, o que acontece
com os seus peit—”
“Será que podemos levar isso um pouco mais a sério?” Eu interrompi enquanto
subia meu capuz. “Estamos prestes a cometer um crime grave.”
“Vamos indo”, eu disse, gesticulando para que Regis voltasse para o meu
corpo. “O Relicário deve ter acabado de fechar.”
Eu não conseguia ver Haedrig, mas podia ouvir uma melodia cadenciada e
bêbada de algum lugar à frente, abafada pelo barulho da chuva torrencial.
‘Nunca imaginei que a bela senhorita Caera soubesse uma canção tão
sugestiva…’ Disse Regis, cantarolando ele mesmo a melodia.
Haedrig fez uma pausa enquanto o guarda se dirigia a ele, mas eles estavam
muito longe e a tempestade era muito barulhenta para eu ouvir. Presumi que
o guarda estava simplesmente informando-o de que o Relicário estava
fechado, mas já sabíamos disso. Haedrig assentiu e entrou no prédio,
tropeçando na soleira.
Subindo pelos os degraus de pedra três de cada vez, parei para ouvir do lado
de fora.
“… disse, está tudo bem“, Haedrig estava quase gritando do corredor. “Eu só
quero entrar e dar uma olhada na minha velha” – Haedrig arrotou alto –
“armadura”.
Uma voz clara e autoritária respondeu. “E, como eu disse a você, não está tudo
bem, senhor. Você terá que voltar amanhã, quando o relicário estiver aberto.”
Vá.
Regis, em sua forma de fiapo preto sombrio, saiu do meu peito e passou
diretamente pela porta fechada.
Embora eu não pudesse ver através de seus olhos, eu podia sentir as emoções
de meu companheiro e ouvir seus pensamentos enquanto ele examinava o
interior da sala em busca de defesas adicionais.
‘O chão atrás de cada porta estava marcado com outra runa. Ela…’ Regis parou
em um silêncio pensativo enquanto tentava ler as runas. ‘Qualquer um que
passar por cima desta coisa terá seu núcleo de mana drenado. A runa captura
a mana… provavelmente para que eles possam identificar quem era. ‘
‘Não tão fácil,’ disse Regis, sua preocupação visível em suas palavras. “Não há
alça ou maneira de liberar a trava do interior.”
Tive uma ideia, mas não tinha certeza se funcionaria. Regis, preciso que você
imagine os arredores o mais claramente possível e me envie esse
pensamento. O mais claramente possível, certo?
E apareci do outro lado da porta, estalando com energia etérica. Além do fato
de que tinha funcionado – acabei de me teletransportar por uma porta sólida,
percebi com prazer – a sensação mais emocionante era o quão pouco éter a
runa divina havia consumido. Embora eu ainda não tivesse sido capaz de
absorver éter atmosférico suficiente para preencher meu núcleo recém-
fortalecido, God Step consumiu apenas uma fração de minhas reservas
etéricas.
A emoção de usar a runa divina pela primeira vez desde que forjei a segunda
camada do meu núcleo de éter foi interrompida por uma sensação de
formigamento por todo o meu corpo.
Sob meus pés, a armadilha rúnica foi ativada e estava tentando sugar toda a
minha mana. Dei um passo pra fora da armadilha, com meu núcleo de éter
imperturbado pela magia. Eu presumia que a runa teria tirado alguma mana
ambiente de meu corpo – os traços de mana de água ou de terra que
naturalmente permaneciam perto de mim – mas sem nenhum núcleo de mana
para manipulá-la, os pequenos traços de mana não carregariam qualquer
assinatura da minha identidade.
Eu sabia que não tinha muito tempo antes que a situação entre Haedrig e os
guardas piorasse, então me forcei a concentrar novamente na missão.
Movendo-me rapidamente para o meu objetivo, examinei o pedestal que o
sustentava, procurando por quaisquer proteções ou runas que Caera e eu não
tínhamos notado antes.
Ao contrário das runas de proteção atrás das portas, que não estiveram lá
durante o dia, a base de pedra na qual a relíquia morta estava em exibição
não revelava nenhuma nova proteção. Mas isso não significa que estava
desprotegido.
Ela subiu pelo meu braço, pelo meu peito e desceu pelo meu outro braço. Se
eu deixasse a corrente elétrica supercarregada voar para dentro da sala,
provavelmente faria um buraco na parede ou destruiria uma das outras
relíquias mortas. Em vez disso, pressionei minha mão firmemente sobre o
restante das runas para que o relâmpago viajasse em um círculo, batendo de
volta nas mesmas runas que o conjuraram.
Merda.
A relíquia também era protegida por uma caixa de vidro, que por sua vez, era
resguardada por uma série de runas que a fortaleciam e protegiam de ataques
mágicos, mas ela não reagiu quando a levantei do pedestal e coloquei
cuidadosamente no chão. Antes de tocar na relíquia real, retirei a falsa da
minha runa dimensional e a segurei ao lado da original, que estava sobre um
travesseiro de veludo quadrado. Elas eram idênticas.
Muito bem, Caera, pensei enquanto pegava a relíquia morta com a outra mão.
Era leve como uma pena e não parecia pesar nada em comparação com a cópia
de estanho pesado.
‘Art, alguém está vindo!’ Regis gritou mentalmente enquanto pulava em torno
de meus pés.
Ao mesmo tempo, houve um baque surdo quando um corpo bateu contra uma
das paredes. “Tire suas mãos de mim!” Haedrig gritou.
A segunda sensação que senti foi meu coração pulando várias batidas quando
percebi que uma figura estava surgindo na escuridão, vindo direto para mim
com a cabeça baixa contra a chuva forte.
Seus olhar estava arregalado e perscrutador, indo do meu rosto para a mão
segurando seu braço para a entrada da capela atrás de mim, onde eu já podia
ouvir o barulho dos guardas lutando com Haedrig.
Eu não tinha certeza do que o professor tinha visto, ou por que ele estava lá.
Se ele tinha me visto aparecer do nada envolto em um raio de ametista, então
ele era um risco. Eu considerei simplesmente quebrar seu pescoço e usar o
God Step pra me afastar novamente, mas isso definitivamente complicaria a
situação. Além disso, eu realmente não sabia o que ele tinha visto, e assassinar
um homem inocente – mesmo um alacryano – não me pareceu bem.
Uma comoção na entrada da capela atraiu nossa atenção quando três guardas
apareceram, meio arrastando, meio empurrando um Haedrig semi-desmaiado.
“Vocês dois aí!” um dos guardas gritou. “O que vocês estão fazendo aqui?”
Haedrig estava pendurado nos braços dos guardas, seus olhos semicerrados,
mas eu peguei o olhar furtivo que ele me lançou, e o aperto de sua mandíbula
quando ele notou o Professor Aphelion. Outro guarda apareceu na porta
aberta da capela, com o lábio sangrando e as sobrancelhas voltadas para baixo
em uma carranca trovejante.
O professor puxou o braço do meu aperto e mancou passando por mim
enquanto eu canalizava o éter em minha mão e me preparava para eliminar
todas as testemunhas, se necessário.
“Que nós éramos seus cúmplices, vindo para ajudar em suas travessuras?”
Professor Aphelion riu alto. “Não, mas vocês três têm a honra de maltratar…
uh-”
“Não, senhor”, respondeu o guarda, mas ainda segurando com firmeza o braço
de Haedrig. “No entanto, eu seria negligente em meu dever se não relatasse
isso à segurança do campus. Eles decidirão o que fazer com… ”
“Vão atrás dele!” o chefe da guarda exclamou, fazendo com que os outros dois
saíssem correndo. Suas botas blindadas escorregaram no pavimento molhado
pela chuva, e ficou imediatamente óbvio que não teriam chance de pegar o
sangue-alto ligeiro.
“Bem… uh… boa sorte,” Professor Aphelion disse aos guardas restantes, que
nos lançaram olhares irritados.
Ele acenou para mim enquanto subia o capuz. “Até mais tarde, Professor Grey.”
Eu retribuí o aceno, observando seu rosto e olhos cuidadosamente em busca
de qualquer sinal de que ele tivesse visto o que tinha acontecido ou
adivinhado o motivo de minha presença perto da capela, mas seu rosto estava
sem expressão, exceto pela sombra de um sorriso sarcástico.
“Sim, até mais tarde…” Eu disse com cautela, levantando meu capuz e me
virando.
Capítulo 352
Relíquia, Revivida
CAERA DENOIR
O grito de comando quase foi apagado pela chuva. Mesmo sem o aguaceiro, eu
sabia como evitar atenção indesejada e olhares curiosos, então não tinha
medo de ser pega. Não, era outra coisa que fazia meu pulso trovejar em meus
ouvidos.
Kayden…
O que diabos ele estava fazendo lá? Quanto ele tinha visto?
Eu sabia que faria o que fosse necessário para evitar que isso acontecesse.
Virando em um beco largo entre dois edifícios da academia, usei o parapeito
da janela de um para me lançar na janela do segundo andar do outro, então
pulei de volta através do beco para o telhado do primeiro. As telhas estavam
escorregadias, mas consegui rastejar pelo topo do telhado e escorregar pelo
outro lado. Quando cheguei à borda, pulei do telhado, subindo mais de três
metros para pousar na borda de uma janela do segundo andar que levava ao
Salão Windcrest.
Eu congelei quando percebi que alguém estava parado do lado de fora de sua
porta, seu corpo balançando nervosamente. Ela não parecia ter notado o
barulho da minha entrada no prédio.
Seu cabelo loiro pendia liso e úmido, e as vestes de batalha brancas que ela
usava grudavam em sua figura, encharcadas pela metade por conta da
tempestade. Eu poderia dizer pela poça que se formou ao redor dela que ela
estava ali por pelo menos alguns minutos.
Aproximando-se, ela viu minha aparência e a janela fechada atrás de mim. Sua
mão se levantou de forma que sua palma estava apontando para o meu peito,
os dedos abertos e sua expressão endureceu. “Por favor, note que eu sou uma
professora desta academia e mais do que capaz de me defender e defender a
propriedade de quem vive aqui.”
“Fico feliz em ouvir isso, considerando que eu moro aqui,” eu disse, apontando
para o teto do corredor. “Terceiro andar, na verdade, mas a janela do segundo
andar foi um salto mais limpo.” Eu dei a ela um aceno superficial, em seguida,
coloquei para trás as mechas molhadas de cabelo que haviam caído no meu
rosto. “Caera do Alto Sangue Denoir. E você é?”
Sua mão desceu para o lado dela enquanto suas sobrancelhas se ergueram.
“Oh. Oh! Oh, Vritra, sinto muito!”
Eu dei de ombros, gesticulando para mim mesma com um aceno de mão. “Eu
não te culpo. Parece que estávamos no mesmo barco.”
A mulher agarrou um punhado de suas vestes e jogou água no chão. “Nem me
fala. Eu só fui lá fora uns dois segundos.”
Ela congelou, uma mão ainda enrolada em suas vestes, seus grandes olhos
âmbar demorando-se na porta dos quartos de Grey. “N-não, eu só – a
tempestade e – pensei que…”
A mulher fez uma pausa e forçou um sorriso. “Sinto muito, sou Abby do Sangue
Nomeado Redcliff. Posso te ajudar com isso?” Ela gesticulou para minhas
roupas, que pingavam água no chão em um fluxo constante.
Sem esperar por uma resposta, ela acenou com as mãos e conjurou uma rajada
de vento quente que soprou em minhas roupas e cabelos. Eu estreitei os olhos
contra a corrente de ar e agarrei as pontas da minha capa para evitar que
balançasse. Depois de vários segundos, eu estava seca e quente novamente.
“Obrigada,” eu disse. “Por que você ainda não fez isso com você mesma?”
O sangue Redcliff era bem conhecido no domínio central por seus constantes
esforços para ascender na escala social. No entanto, algo me disse que Abby
não seria capaz de acompanhar Grey, mesmo se o alcançasse.
Ele franziu a testa para minhas roupas. “Como você ficou seca tão rápido?”
“Oh,” foi tudo o que ele disse. Ele puxou sua runa e mostrou na porta, que se
abriu com um clique.
Elas eram estranhas e não tradicionais, mas apenas alguém que viajou com ele
e o viu lutar muito, ou talvez um estudioso das runas Alacryanas, iria
questioná-las.
Em resposta, algo bateu no meu ombro. Sem olhar para trás, peguei a esfera.
Era leve, praticamente sem peso. “O peso não foi um problema, foi?”
“Ela fica de um jeito diferente no travesseiro, mas eu não acho que alguém vá
notar já que a relíquia não estava aqui por muito tempo,” a voz de Grey veio
de seu quarto de dormir.
Joguei a relíquia morta para ele e ele a arrancou do ar. “Depressa! Estou
morrendo de vontade de ver do que essa coisa é capaz.”
Grey se concentrou na esfera. Ele deve ter ativado sua runa divina, porque um
brilho dourado se espalhou pela sala e partículas de ametista brilhantes
começaram a dançar ao longo de seu braço em direção à relíquia. Quando
chegaram lá, as partículas deslizaram pela superfície de prata polida e
desapareceram nas fendas e buracos.
Por alguns segundos, parecia que nada estava acontecendo. Tentei chamar a
atenção de Grey, mas sua atenção estava inteiramente na relíquia. Eu respirei
fundo quando o desgaste começou a desaparecer, as marcas se enchendo, as
rugas se suavizando, o cinza polido ficando mais brilhoso. Em seguida, o fluxo
de partículas diminuiu para um fio e finalmente parou, e a última partícula de
ametista desapareceu.
Grey ergueu a esfera perfeitamente lisa, girando-a para que brilhasse como
uma lua prateada. Na luz, notei uma linha dividindo as metades superior e
inferior da esfera, tão fina que era quase invisível. Grey também deve ter visto,
porque pegou uma metade em cada mão e torceu levemente.
A relíquia se desfez.
“O quê…” Grey exclamou quando aquela metade da esfera saltou de sua mão
e flutuou até o chão a seus pés.
Regis filhote estremeceu ao erguer uma pata para cobrir os olhos. “Tenho
certeza de que é assim que os lordes demônios são invocados!”
Olhando pelo canto do olho para ter certeza de que o brilho tinha parado,
deixei escapar um suspiro de espanto. “Chifres de Vritra…”
A nuvem havia se aglutinado em um oval opaco pairando no ar, e Grey andava
lentamente em círculos ao redor dele. Tinha um brilho oleoso na superfície e
irradiava uma luz roxa fraca.
“Então esta pode me trazer de volta?” Grey estava assentindo e seu olhar sério
se voltou para o portal. “Caera, espere aqui.”
Eu pulei da minha cadeira, quase fazendo o filhote Regis cair. “O quê? Você
está indo agora? Sem qualquer tipo de pesquisa ou teste?”
“Este será o teste”, afirmou ele, com os olhos ainda colados no portão
cintilante.
Eu abri minha boca para discutir, mas tudo o que saiu foi um bufo frustrado.
“Muito bem. Vou ficar de olho no caso de alguma outra mulher que você
conseguiu seduzir decidir fazer uma visita noturna.”
Ele me olhou com diversão óbvia. “Vamos, Regis.” O diminuto lobo das
sombras olhou para mim e encolheu os ombros antes de seguir o comando. “E
não esqueci nossa promessa.”
“Acho que você ficará agradavelmente surpreso com o quanto me tornei mais
forte desde a nossa última ascensão,” eu disse com confiança.
“Espero que o treinamento não seja sua desculpa para perder para mim na
Disputa de Soberanos,” ele sorriu antes de desaparecer através do portal.
Eu encarei, de boca aberta, o portal suspenso no ar antes de deixar escapar
uma risada. “Que imaturo.”
Não muito depois de Grey ter partido, o portão pairando acima da metade da
relíquia começou a desvanecer-se, a superfície oleosa opaca ficando
transparente, como a névoa se dissipando de um espelho. Depois de alguns
segundos, era apenas uma forma fantasmagórica no meio da sala.
Muito inquieta para ficar sentada, comecei a andar pela pequena suíte.
Quebrou meu coração pensar nele agora, morrendo sozinho nas Relictombs,
uma vítima de algum monstro horrível. Achei que seria ele que desvendaria os
segredos das Relictombs. Eu estava errada.
Quando meus pensamentos se voltaram para ele, percebi que Grey já havia
partido há alguns minutos. Considerando como o tempo funcionava de forma
diferente nas Relictombs, ele já deveria ter sido capaz de ativar a relíquia e
voltar.
Mesmo que o portal o levasse para uma zona, era possível que ele estivesse
em perigo e não tivesse sido capaz de ativar a outra metade da relíquia… ou
talvez estivéssemos errados e ele não pudesse retornar imediatamente. Ele
poderia ficar preso lá, forçado a limpar a zona e encontrar um portal de
descida antes de retornar. A segunda metade não continha um cristal, o que
poderia significar—
Eu apertei os olhos contra uma luz ametista brilhante quando o portal ganhou
vida novamente, o contorno fantasmagórico se solidificando em um tom
perolado opaco. A figura que apareceu parecia muito com Gray, mas suas
roupas finas estavam em farrapos e seu rosto estava coberto de sangue e
fuligem.
Quando ele saiu do portal, este se dissolveu em uma nuvem que lentamente
desceu, condensando-se novamente em um cristal dentro da relíquia.
“O quê…?”
Capítulo 353
Mudança de Paradigma
ARTHUR LEYWIN
Ainda era de manhã cedo e o campus estava quase todo escuro, com um toque
de rosa e laranja destacando o horizonte distante. Apesar da hora, os alunos
já estavam ativos no campus, fazendo exercícios ou treinando. Flashes de
magia ocasional iluminavam o campus como fogos de artifício, mas no topo da
torre estava um calmo silêncio. Perfeito para pensar.
“Então, você realmente acha que devemos ficar, hein?” disse Regis, farejando
o vento. “Agora que temos a relíquia…”
Eu inclinei minha cabeça para trás e olhei para o céu preto-azulado. “A metade
de ascensão da Bússola permanece no lugar quando entramos nas Relictombs.
Mesmo que possamos ir e vir à vontade, ainda precisamos de um lugar seguro
para ativá-la.”
Regis olhou para mim com curiosidade, seus olhos brilhantes eram
inteligentes. “E este lugar é realmente tão seguro? Poderíamos voltar para
Darrin Ordin, ou inferno, apenas encontrar uma caverna nas montanhas em
algum lugar ou algo assim.”
“Aí teríamos outro conjunto de variáveis que não posso calcular. Aqui, eu sei o
que esperar. Estamos em risco, não importa aonde vamos em Alacrya, mas pelo
menos temos uma história aqui, uma identidade.”
Mas ele estava certo. Enquanto uma metade da relíquia criava um portal para
as Relictombs, a outra me permitia retornar, embora não criando um segundo
portal. Levei algum tempo para entender como funcionava, já que a segunda
metade da relíquia não havia reagido de forma alguma quando entrei nas
Relictombs, me forçando a concluir a zona. No entanto, quando eu coloquei
éter nela perto do portal de saída, a segunda metade da relíquia ganhou vida,
delineando o portal com uma luz brilhante. Quando o brilho diminuiu, pude
ver meus aposentos do outro lado, Caera esperando impacientemente que eu
voltasse.
Ser capaz de entrar e sair das Relictombs à vontade mudava tudo. Após o teste
original, Caera, Regis e eu voltamos juntos para explorar ainda mais as
capacidades da relíquia, absorvendo uma quantidade significativa de éter no
processo.
“Então, exatamente quanto suco de uva seu núcleo consegue conter agora?”
Regis perguntou, obviamente lendo meus pensamentos.
Apesar de explorar a zona por uma hora ou mais e absorver o éter das feras
que matei e da atmosfera, ainda não havia atingido o limite do núcleo de duas
camadas. “Não vamos dar um nome assim,” eu disse com um bufo divertido,
“e eu realmente não sei. Pelo menos dez vezes mais do que antes.”
Ansioso por qualquer desculpa para usar esse poder, retirei o brinquedo de
semente da minha runa dimensional. Meu companheiro mudou de posição
para deitar de lado, me observando trabalhar com um ar um pouco entediado.
Quando canalizei o éter para minha mão para formar a garra, pude sentir a
diferença imediatamente. Primeiro, a drenagem no meu núcleo nem era
perceptível. A forma da garra era mais estável e sólida, e parecia
inerentemente mais fácil me concentrar. E embora essa garra fosse
simplesmente um passo em direção ao meu objetivo real, era bom finalmente
estar fazendo um progresso tangível.
Eu zombei. “Exibido.”
Pegando a casca dura em uma mão, deslizei uma garra na fenda e pesquei em
busca da semente dentro. Quando se acomodou no buraco deixado pela haste,
puxei para baixo, tentando forçá-la a sair, exatamente como havia feito
dezenas de vezes antes. A garra manteve sua forma, puxando
automaticamente o éter do meu núcleo para se manter estável.
Soltando uma respiração lenta e estável, imaginei a forma da garra se
estendendo e se curvando mais profundamente, quase envolvendo a pequena
semente para que se encaixasse perfeitamente na curva. O éter respondeu
rapidamente à minha intenção.
Eu sorri.
Então eu puxei. Não muito forte, mas com uma pressão constante que
aumentei lentamente até que as bordas do buraco estalassem e se
projetassem para fora, e pude sentir a semente deslizando.
Fiquei olhando para ela, imaginando que os Shadow Claws teriam alguma
cerimônia para celebrar quando um de seus filhos completasse este rito de
passagem. Se eu tivesse passado mais tempo nas Relictombs com Three Steps,
talvez ela tivesse tido alguma memória encorajadora para compartilhar
comigo para me parabenizar, mas…
“Bom, se você realmente não quiser, posso fazer o esforço de ficar com a
semente” disse Regis, farejando ansiosamente a pequena esfera marrom.
Seguindo seu olhar, olhei mais de perto para a semente e notei um corte em
sua superfície marrom lisa. Um sutil vislumbre roxo estava brilhando onde
minha garra havia cravado na semente. Usando uma garra de éter, raspei mais
do marrom, revelando um orbe sólido de éter condensado dentro, sua
assinatura totalmente escondida pelo exterior orgânico.
Pensando na fruta rica em éter que crescia na zona da selva onde eu lutei
contra a centopeia, coloquei a semente em minha boca e engoli.
Meu plexo solar queimava como uma estrela. Comecei a brilhar quando uma
barreira sólida de luz ametista cintilou em minha pele, o éter ameaçando
escapar. Flexionando minha intenção, senti a torre gemer enquanto suas
pedras fortificadas e argamassa se esforçavam contra a pressão. O éter
ambiente ganhou vida, girando como flocos de neve pelo telhado.
“Sobrou um pouco, se você quiser”, falei, tirando Regis de seu torpor perplexo.
Balançando minha cabeça, fechei meus olhos e voltei minha atenção para
dentro, explorando meu núcleo resplandecente. “Faça como preferir. Vou
pegar tudo então.”
“Liso como cascalho,” eu sorri quando a forma imaterial do lobo das sombras
se fundiu com o meu corpo e começou a absorver do oceano de éter.
Fiquei no telhado da torre até o meio da manhã, observando o campus
despertar enquanto Regis estava ocupado sugando o éter restante da semente
em mim.
Briar estava por perto com algumas outras garotas de sua idade. Uma delas
me viu e deve ter dito algo, porque Briar se virou e deu um pequeno aceno,
fazendo com que suas amigas rissem e a provocassem. Revirando os olhos
para elas, ela se afastou e caminhou rapidamente em minha direção.
“Ei, professor”, disse ela, saltando na ponta dos pés com as mãos cruzadas
atrás das costas. “Acabei de saber. Parabéns. Eu estou um pouco chateada por
já ter feito aquela aula idiota, caso contrário, eu me inscreveria. Vritra sabe
que você precisará de bons lutadores.”
Seu rosto refletia minha própria confusão. “Espere, você não… Oh. Desculpe,
eu presumi…” Uma de suas amigas a chamou, e sua carranca se aprofundou.
“Esqueça. Tenho certeza que você descobrirá em breve. Se cuida. E… boa
sorte.”
Não tenho certeza. Eu tinha visto a jovem e séria alacryana algumas vezes pelo
campus desde que ela me guiou pela primeira vez em Cargidan, mas ela nunca
fez questão de ter uma conversa amigável.
Alguém esbarrou em mim por trás. Quando olhei atentamente para a pessoa –
um jovem vestindo uma armadura de aço escura sobre o uniforme – ele
estremeceu. “Desculpe, professor.”
“Mayla?”
Quase não reconheci a jovem maga da cidade de Maerin. Lá ela era apenas
uma menina, em partes iguais nervosa e excitável, mas aqui, ela parecia
transformada.
“Eu não percebi quando vi seu nome na lista da minha turma… mas onde você
estava na última sessão?”
Ela chutou o chão e me deu um sorriso tímido. “Desculpe, alguns dos outros
alunos estavam mexendo com os sem nomes, sabe, e um garoto legal tentou
nos defender, mas eles também zombaram dele, então acabei saindo quando
vi que o professor — que você não estava lá. Imaginei que fosse ajudar o
menino também.” Ela deu de ombros. “Está tudo bem, honestamente. Já
aprendi muito, é difícil acreditar que só se passaram alguns meses.”
Um pequeno grupo se reuniu ali, todos tentando espiar pela pequena janela,
tentando ver algo lá dentro.
Kayden se aproximou e sussurrou: “Não deixe que eles te derrubem sem lutar,
certo?”
Fiz uma pausa, novamente imaginando Cadell, Dragoth, ou até mesmo Agrona
em pé na minha sala de aula, esperando por minha chegada. As foices
finalmente me rastrearam?
O quarto homem era magro e musculoso. Seu cabelo escuro estava preso em
um topete, e ele tinha vindo vestido com uma armadura de couro tingida de
preto e azul da Academia Central. Ele tinha um sorriso largo que mostrava
muitos dentes e acenou com a cabeça junto com o que Valen estava dizendo.
“Fique onde está”, instruí Mayla, só lembrando agora que ela ainda estava lá.
Eu fiquei em uma posição mais ereta, meus ombros soltos enquanto minhas
mãos se cruzavam atrás de mim. “E por que isso, se você não se importa que
eu pergunte?”
Abri a boca para perguntar o porquê, mas Regis rosnou um rápido aviso mental
para me impedir.
Antes que eu pudesse falar, a porta da sala de aula se abriu e Enola entrou,
parecendo extremamente irritada. Quando ela viu o diretor e o chefe do
departamento, no entanto, ela congelou. O diretor Augustine ergueu a mão e
disse: “Por favor, espere lá fora um momento, Srta. Frost.”
“Vamos lutar,” eu disse, direcionando meu olhar ao tutor atrás. “Você precisa
de alguém que tenha estado em combate real e possa mostrar aos alunos o
quão importante é ser capaz de se defender sem magia.”
“Deixe-os assistir nosso duelo. Isso lhes dará confiança em quem quer que
ganhe.”
“Sim, uma excelente ideia, Professor Grey.” Para Drekker, ele disse: “Estou
confiante em suas habilidades, mas mostrá-las aos alunos criará entusiasmo
para a transição”.
Fiz um gesto para os alunos que esperavam do lado de fora no corredor para
entrar. Enola desceu lentamente as escadas enquanto o resto da classe
entrava, incluindo Mayla. Houve algumas conversas confusas quando as
pessoas viram o diretor e o chefe do departamento, mas ao meu sinal, todos
encontraram seus lugares e se aquietaram.
A maior parte de sua atenção estava voltada para o tutor de Valen enquanto o
Diretor Ramseyer gesticulava para que ele desse um passo à frente. “Eu sei
que não é tradicional para a academia intervir e mudar um professor no meio
da temporada, e por esta razão, eu gostaria de apresentar Drekker do Alto
Sangue Vassere de forma mais completa. Vindo de Sehz-Clar, Drekker passou
sua vida inteira aperfeiçoando a arte do combate como um atacante.
‘Você age como se se importasse com o que eles pensam de você,’ observou
Regis. ‘A verdadeira questão é… o que diabos você está fazendo?’
Acabei de encontrar outro motivo pelo qual preciso continuar como professor.
Eu podia sentir meu companheiro revirar os olhos, mas nenhuma outra palavra
foi dita.
A voz do diretor Ramseyer ecoou pela sala de aula. “Que o duelo comece.”
Meus olhos brilharam para o diretor, esperando por ele para acabar com o
duelo. Drekker se debateu, mas só conseguiu acertar minha canela com a testa.
“Eu acho que isso já é o bastante, Professor Gray. Parece que há mais de você
do que me foi dito.” O diretor Ramseyer lançou ao neto outro olhar penetrante.
O menino teve bom senso o suficiente para parecer envergonhado.
“Eu poderia ter refutado se achasse que tinha uma chance”, ele reconheceu
humildemente.
Permitindo um leve sorriso, eu soltei sua mão áspera e calejada. “Você tem
uma guarda forte.”
Ainda assim, foi Valen quem me surpreendeu. O garoto de sangue elevado não
sorriu desdenhosamente ou fez cara feia como eu esperava. Em vez disso, ele
calmamente se sentou ao lado de Portrel e Remy, silenciando-os quando
começaram a sussurrar freneticamente, e esperou.
Capítulo 354
Ensinando, de Certa Forma
“Eu o chamaria de cavalheiro, mas sei que você está me usando como um rato
de laboratório para seu novo brinquedo”, disse ela com um sorriso malicioso
antes de desaparecer pelo portal, tornando-se imediatamente visível
novamente do outro lado.
Passar por ele foi tão fácil quanto passar por uma porta. Não houve
desconforto ou sensação de vertigem, como as pessoas às vezes sentiam ao
usar os portões de teletransporte em Dicathen. Parecia estranho passar tão
suavemente das Relictombs para meus aposentos limpos e praticamente
vazios na academia.
Caera estava parada no meio da sala, seus olhos escarlates rastreando cada
movimento meu enquanto eu me abaixava para desativar o portal de
ascensão. Quando ambas as peças foram pressionadas uma contra a outra,
elas fizeram um leve clique e se reconectaram, formando uma esfera perfeita.
Eu armazenei a Bússola na minha runa dimensional.
“Lamento que não tenha funcionado, Grey,” ela disse finalmente, seu olhar se
suavizando.
Caera olhou para o teto como se traçasse um caminho do meu quarto ao dela.
“Bem pensado.”
Com minhas reservas etéreas tendo crescido dez vezes ao fortificar meu
núcleo com uma segunda camada de éter, eu tinha certeza de que poderia
quebrar o segundo selo dentro da pedra de Sylvie. Eu estava errado. Em vez
disso, observei enquanto todo o poder que havia reunido – tanto das próprias
Relictombs quanto da semente do brinquedo de fruta seca – desapareceu nas
vastas profundezas da estrutura rúnica, drenando como areia por uma
peneira.
Caera veio do banheiro alguns minutos depois, limpa de toda sujeira e vestida
com roupas limpas. “Enquanto eu estava no banho acabou me ocorrendo que
eu sair do seu quarto nas primeiras horas da manhã, recém-banhada, tem
potencial pra começar tantos rumores como se eu estivesse coberta de
sangue”, disse ela com naturalidade.
Ela franziu a testa para mim, uma sobrancelha levantada. “Talvez para você.”
Já que você não é uma nobre senhorita de sangue elevado com uma reputação
a manter.”
Inclinei minha cabeça, devolvendo seu olhar. “Você quer que eu abra o portal
para que você possa se cobrir de sangue novamente?”
‘Como você pode ser tão bom e tão ruim com as mulheres ao mesmo tempo.’
Seus socos e chutes eram fracos, como se estivessem brincando de luta com
uma criança. De toda a classe, apenas Valen, Enola e Marcus do Alto Sangue
Arkwright pareciam estar realmente lutando.
“Professor Grey!”
Virei meu olhar para ver Mayla subindo as escadas correndo na minha direção,
as sobrancelhas cheias de suor.
“Você vai ensinar hoje, certo? Seth tem me mostrado alguns dos exercícios que
leu em um livro para nos ajudar a aquecer para sua aula!”
Eu tinha colocado o Seth bem no fundo da minha mente. Era mais fácil ignorar
sua existência do que tentar continuamente me convencer de que eu tinha
razão em desprezá-lo pelas ações de sua irmã durante a guerra.
‘Mesmo que tenha sido Seth pessoalmente quem traçou o caminho para Elenoir
em vez de sua irmã, não vamos esquecer que você também fez coisas terríveis
como soldado na guerra,’ disse Régis, a voz cheia de aborrecimento.
Enola estava com os braços cruzados, os olhos fixos em mim friamente, mesmo
enquanto o suor escorria por seu rosto.
“Algum problema?”
Ela abaixou os braços e soltou um escárnio. “Já se passaram dias desde que
foi anunciado que nossa classe estaria no Victoriad, e você não fez nada além
de nos dizer para exercitar nossos corpos.”
Enola cerrou as mãos com força enquanto dava um passo à frente. “Porque
estaremos lutando no Victoriad pelo bem de Vritra! Temos de fazer algo!”
“E você é livre para fazer o que quiser”, respondi friamente. “Esta instituição
está à sua disposição. Eu não estou prendendo você.”
“Não… não foi isso o que eu quis dizer.” A herdeira do sangue Frost abaixou a
cabeça, os ombros caídos. “Treine-nos. Mostre-nos como podemos lutar como
você fez contra o tutor de Valen.”
Quem disse que eu fiz uma escolha, respondi, retirando delicadamente a mão
de Enola.
‘Esse seu cérebro teimoso,’ respondeu meu companheiro com uma risada.
Fui em direção ao grupo, coçando a nuca e tentando não pensar se havia feito
a escolha certa ou não.
Dentro do ringue, Enola sentou-se com Laurel enquanto Valen, Remy e Portrel
estavam logo atrás. Um por um, meus olhos examinaram o resto dos alunos,
lembrando como eles lutaram entre si.
Levantando minha mão direita, apontei meu dedo para a classe. “Vocês.”
Essa declaração foi recebida com uma mistura de respostas, que iam desde
confusão a aborrecimento e até raiva.
“Dar um soco requer todo o seu corpo, não começando com o balanço dos
braços, mas com a planta dos pés.” Girei meu pé direito lentamente e apontei
para meus quadris. “Como um tornado, você gera impulso com a perna,
girando o quadril e permitindo que o poder se acumule conforme vira o ombro
e explode o punho para frente. Alguma dúvida?”
Para minha surpresa, foi a mão de Valen que subiu primeiro. “Você pode nos
mostrar uma demonstração usando um alvo?”
Dois dias depois, quando entrei em minha sala para a aula seguinte, fiquei
surpreso ao encontrar metade dos alunos já esperando por mim. Rafferty,
chefe do Departamento de Combate Corpo a Corpo, também estava lá, sentado
na fileira mais próxima da plataforma de treinamento.
Enola estava parado na frente dele, dando o mesmo soco que eu havia
mostrado na aula anterior.
“- começa no pé, pernas e quadris, assim…” Ouvi ela dizer enquanto eu descia
as escadas. Seus olhos brilharam, e ela veio até mim.
“Tenho praticado o soco que você nos ensinou e você estava certo! A
pontuação de força em meu artefato de medidor de impacto foi mais que o
dobro, e continua a melhorar,” ela disse animadamente enquanto me
mostrava seus dedos machucados.
“Só estou aqui para uma inspeção padrão, nada para se preocupar, Professor
Grey. A senhorita Frost estava me contando sobre sua última lição,” disse o
chefe do departamento com uma tosse.
Eu dei a ele um sorriso vazio antes de descer para a frente das poltronas estilo
arquibancada. Enquanto esperava o resto dos alunos chegarem, ouvi o barulho
da conversa vindo da classe. Mayla estava sentada na fileiras do meio, entre
Seth e Linden, o único outro estudante em Táticas de Melhoria Corporal que
era de Etril.
“Você acha que obterá uma segunda runa durante a concessão?” Linden estava
perguntando a Mayla. “Ainda é difícil acreditar que você recebeu um emblema
como sua primeira runa…”
“Eu realmente não sei muito,” ela finalmente respondeu. “Todo mundo que
ouve sobre como eu consegui a… runa fica sempre surpreso. Ninguém nunca
ouviu falar de algo assim.”
Marcus se recostou na cadeira e olhou por cima do ombro para o par. “Minha
primeira runa foi um brasão. Pessoalmente, estou na expectativa por outro
durante esta concessão. Não é tão impressionante quanto um emblema”- ele
deu um pequeno aceno de cabeça para Mayla, que corou – “mas se eu
conseguir um segundo em breve, é possível que eu pudesse receber uma
terceira runa ainda na academia.”
“De acordo com meu avô,” Valen interrompeu de vários assentos de distância,
chamando a atenção de quase todos na sala, “menos de dez por cento dos
alunos conseguem três runas antes de se formarem, mas isso ainda é mais alto
do que quase qualquer outra academia em Alacrya.”
“Já tenho o meu segundo”, disse Enola, sentando-se na primeira fila. “Um
brasão durante minha primeira concessão na academia.”
Meus olhos percorreram os alunos que esperavam que eu falasse. “Na última
aula, eu ensinei como dar um soco adequado. Desta vez, vocês trabalharão em
como se esquivar adequadamente.”
“Não. Pergunte aos seus colegas, faça alguns amigos,” eu respondi enquanto
Yanick deslizava pela porta, o último a chegar. Antes que ele pudesse dar mais
do que alguns passos, acenei para que ele descesse. “Yanick, boa hora. Você é
o primeiro.”
Ele franziu a testa com preocupação, mas desceu as escadas para ficar ao meu
lado.
“Eu vou dar dois socos em você. Um de direita em seu rosto, então um gancho
de esquerda em suas costelas,” eu o informei.
“Huh?”
Dando um passo à frente, joguei meu punho direito direto em seu rosto. Apesar
de sua surpresa inicial, Yanick ainda foi capaz de se afastar do meu alcance.
“Mais rápido.”
Repeti o exercício e a resposta de Yanick foi a mesma, se inclinar pra trás antes
de aparar o gancho. Na terceira vez, sua inclinação brusca para trás o forçou a
dar um passo não planejado, e ele mal conseguiu abaixar a mão a tempo de
interceptar meu gancho.
Meu punho acertou firmemente em seu lado na quarta repetição, com força
suficiente para deixá-lo sem fôlego.
O menino tossiu enquanto me virei para o resto da classe. “Aprender a se
esquivar de forma eficaz significa que você não apenas faz com que seu
oponente erre, mas também cria uma oportunidade para você atacar ao
mesmo tempo.”
Os alunos olharam para mim com interesse renovado; até mesmo Deacon
largou seu livro para prestar atenção.
Portrel deu um grito de alegria, mas o olhar frio de Valen acalmou o garoto
maior.
Valen acenou com a cabeça enquanto fazia uma postura que reconheci como
sendo da guarda Vechoriana, baseado no meu curto duelo com seu tutor,
Drekker.
Quando joguei meu cruzado com a direita, ele se inclinou para frente e seu
cotovelo caiu para bloquear o gancho.
Eu levantei meus punhos. “Vamos ver se ele consegue fazer isso mais rápido.”
Valen e eu fizemos várias outras rodadas, com cada combinação vindo cada
vez mais rápido. Finalmente, seu passo inicial foi muito raso, e meu cruzado o
acertou na bochecha, quase o derrubando no chão.
Apesar de ver o neto do diretor ser atingido, Rafferty não parecia afetado, e
sua caneta continuava a borrar no pergaminho enquanto ele fazia anotações.
“Obrigado pela lição,” Valen disse com uma reverência antes de ir embora.
‘É tão chato agora que as crianças são tão obedientes,’ reclamou Regis.
Minhas lições são muito básicas para a poderosa arma divina da destruição? Eu
perguntei com uma risada.
‘Sim, além de anatomicamente inútil para mim. Então, a menos que você
comece a ensinar seus alunos a lutar de quatro, vou tirar uma soneca,’ ele
respondeu enquanto sua presença desaparecia.
“Eu estava um pouco chocada vendo você limpar,” ela disse com a mão sobre
a boca. “Não estou acostumada com você parecendo tão doméstico.”
Suspirei. “Se você vai fazer piada, pelo menos ajude enquanto faz isso.”
“Estou aqui para outra coisa”, disse Caera, endireitando-se. “Com a cerimônia
de concessão começando amanhã, as aulas estarão suspensas pelos próximos
dias…”
“Eu sei,” eu disse, fingindo indiferença. “Finalmente terei tempo para resolver
uns assuntos que deixei de lado, junto com algumas outras tarefas
domésticas.”
TESSIA ERALITH
Minha pequena audiência assistia em silêncio. Nico estava lá, é claro, junto
com outras três Foices. Draneeve, o assistente de Nico e algumas outras figuras
da fortaleza também tinham vindo. Agrona não estava, mas eu nunca o vi sair
do castelo antes.
A mana de fogo subia das pedras aquecidas pelo sol e se fundia em raios
brancos e quentes que caíam de volta, quebrando pedras e lançando
estilhaços em meu campo de treinamento. A água condensou-se em gelo, que
começou a cair como pedras lançadas por catapultas, formando crateras no
solo duro da montanha.
Mesmo no auge da minha força na Terra, nunca fui capaz de fazer algo assim
com o ki.
Minhas memórias têm estado muito mais estáveis nessas semanas, desde que
Agrona prometeu que eu poderia deixar sua fortaleza. Ele disse que eu
começaria a me sentir mais eu mesma quanto mais tempo estivesse neste
corpo. As runas que cobriam minha carne me ajudaram a manter a lucidez,
manter a outra voz em silêncio.
Nico…
Eu olhei para onde ele estava, me observando lançar feitiços, seu cabelo
escuro chicoteando seu rosto. Eu não pude deixar de notar como ele ficou bem
longe dos outros. Pobre Nico, um excluído até mesmo aqui.
Draneeve bateu palmas e gritou contra o vento, sua máscara dando à sua voz
uma qualidade áspera que eu achei desconfortável de ouvir. Nico acenou para
que Draneeve fizesse silêncio, e o mascarado parou de gritar, embora
continuasse com um aplauso lento e inconsistente.
Estendendo a mão, puxei os cantos da enorme tempestade até que ela pairou
um pouco acima de mim, quase do tamanho de uma macieira. A criação,
momentos atrás, uma manifestação mortal de poder bruto, agora era algo
totalmente diferente. Minúsculas criaturas aladas feitas de ar giravam dentro
das nuvens, enquanto pequenos golfinhos aquáticos saltavam e espirravam
abaixo delas.
Foi bonito. A mana era linda. Ki era energia, capaz de ser reunida e liberada,
mas nunca realmente tomando forma, não da mesma forma que a mana
poderia tomar. Esta foi a verdadeira magia.
Seus tons variados de pele cinza, chifres pretos e olhos vermelhos serviam
para defini-los como algo diferente. Seus olhares continham curiosidade e
inquietação, como uma plateia assistindo a um domador de leões em um circo.
Isso me fez acreditar no que Nico vivia me dizendo: eles sabiam que eu seria
mais forte do que eles eventualmente.
“Muito, muito bem feito!” Draneeve saltou com sua voz propositalmente
áspera. “Você cresceu muito mais rápido do que Lorde Nico. Apenas semanas
no corpo da garota elfa magrinha e você está… ”
Dragoth era enorme, maior que qualquer homem que eu já vi, mas fora isso,
ele era de um tipo familiar. Quando eu estava subindo na classificação no
torneio da Coroa do Rei, havia muitos como ele. Guerreiros arrogantes e
egocêntricos. Rápidos para rir de suas próprias piadas e rápidos para lutar
contra qualquer insulto recebido.
Cadell era o mais estranho e assustador. Ele tinha um rosto frio e cruel, como
o lado afiado de um machado, mas era profissional em suas maneiras. Eu não
gostava dele.
Mas foi a terceira Foice que achei mais interessante. Eu só a encontrei uma vez
antes, e foi breve. Embora parecesse jovem – vinte no máximo – havia uma
sabedoria profunda e curiosa em seus olhos e uma inteligência mundana. Eu
senti como se ela estivesse me dissecando com seus olhos escuros, tanto
naquela época quanto agora. Ao contrário de suas contrapartes, ela ainda
estava me observando. Não o meu feitiço, com suas gaivotas de vento idiotas
e golfinhos aquáticos, mas eu.
“Nico,” Cadell disse, seu tom cheio de gelo e fogo, “seja legal com seu animal
de estimação. Afinal, foi Draneeve quem o trouxe de volta daquele continente
horrível.” Draneeve ficou inquieto, sua atitude ilegível por trás de sua máscara
feia. “Ele seria um general agora, talvez até um retentor, se ele não tivesse se
retirado de Dicathen para salvar sua pele ingrata.”
Dragoth sorriu, seus dentes brilhando brancos como o luar através de sua
barba. “Você está certo, pequeno Nico. Você é uma Foice. E o nome Foice
passou a ter um pouco menos de significado a partir do dia em que o
consideramos parte do nosso grupo.” Ele riu alto de sua própria piada, mas
não parou por aí. “Talvez Bivrae devesse ser uma Foice, ou mesmo Draneeve!”
ele disse, praticamente gritando, seu sorriso se tornando ameaçador.
Nico zombou. “E onde estava o poderoso Dragoth durante a guerra? Diga-me,
Titã de Vechor, por que seu servo foi para Dicathen e morreu enquanto você
estava seguro e… ”
“Cuidado com suas próximas palavras,” Dragoth rosnou, seu sorriso caindo
rapidamente. Ele deu um passo em direção a Nico, inchando seus enormes
músculos.
Dragoth se inclinou para frente, apoiando os dois braços nas vinhas cobertas
de espinhos. “Você é jovem e pequeno, mas já está no auge de seu poder,
reencarnado.”
A cabeça de Nico se inclinou para o lado. Seus olhos estavam frios como carvão
morto. “Todos que podem ter esperança de me desafiar já estão aqui,” ele
disse suavemente antes de se virar para mim. “Está claro que você já está
pronta para ir. Já esperamos o suficiente – por insistência de Lorde Agrona, é
claro,” acrescentou ele rapidamente, lançando um olhar azedo para Cadell.
Minha primeira experiência neste mundo foi a terra natal do povo élfico na
floresta. Não reparei na sua estranheza. Eu estava muito confusa e surpresa
com minha própria reencarnação para prestar muita atenção na floresta
encantada. Mesmo a aparência do gigante de três olhos – um asura, eu me
lembrei – não foi o suficiente pra estabelecer o quão sobrenatural era minha
nova casa.
Foi em Taegrin Caelum quando comecei a entender como esse lugar realmente
era diferente da Terra. Mas lá, tudo que aprendi era filtrado pelo Agrona. Só
foi depois que Nico me levou para as Relictombs que apreciei toda a dimensão
das estranhas e maravilhosas diferenças entre os dois mundos.
Eu sabia logicamente que o próprio céu era uma construção mágica, mas não
conseguia entender. Parecia incompreensível que alguém pudesse criar tal
coisa. Quando eu comentei isso com Nico, ele me ignorou, focando em
intimidar a multidão para nos abrir um caminho entre os homens e mulheres
com armaduras ao nosso redor.
“Nós temos um lugar para ir,” ele retrucou. Ele deve ter me visto franzir a testa
com o canto do olho, porque diminuiu um pouco a velocidade. “Sinto muito,
Cecil. Estou… um pouco agitado. Lorde Agrona deu a entender que o que
encontraremos aqui pode ser importante para mim, mas ele deixou de fora
qualquer tipo de detalhe e…” Ele parou, estremecendo. “Sinto muito, não é sua
culpa. Estou impaciente para falar com esses juízes.”
Eu seguia em silêncio enquanto Nico nos guiava direto como uma flecha, em
direção a uma grande e intimidante construção de pedra escura e espinhos
negros. Parecia um pouco com um porco-espinho enorme com um exército de
gárgulas agarrado às suas costas.
Uma mulher com cabelos vermelhos como uma tocha estava esperando por
nós na frente do prédio. Ela estava envolta em um manto escuro bordado com
uma espada dourada e escamas. Seus olhos permaneceram olhando seus
sapatos enquanto nos aproximávamos e, mesmo quando ela começou a falar,
não ergueu os olhos.
Nico passou por ela e ela se virou para segui-la, mantendo-se um pouco mais
longe dele do que eu. “O Alto Soberano tem pouco tempo para coisas
insignificantes como alguns juízes corruptos. Ainda não tenho certeza de
porquê uma Foice é necessária,” Nico disse rapidamente.
Eu queria olhar ao redor, mas estávamos andando rápido demais para eu
realmente apreciar o lugar. Quase ri quando vi um afresco gigante de um
homem que presumi ser Agrona. Parecia que os artistas nunca o tinham visto,
mas percebi rapidamente que era uma possibilidade. E rapidamente passamos
pelo afresco, sem Nico nem a mulher ruiva darem atenção.
Não era exagero dizer que meu antigo noivo estava sempre ansioso, mas ele
tinha ficado rígido, cada movimento rijo e desajeitado, e ele nem olhava para
mim. Ele não estava apenas ansioso; ele estava temendo o que estava por vir.
“Eles conspiraram com uma casa nobre para condenar um homem inocente
por um crime que ele não cometeu,” disse a juíza com firmeza. “Diante do
flagrante de abuso de autoridade para seu próprio ganho pessoal, eles
merecem isso e pior.”
Eu dei um passo em direção à cela, apesar de não ter certeza se queria, mas
Nico me impediu. Ele estendeu a mão para tocar meu braço, mas parou. “Acho
que seria melhor se você esperasse aqui.”
Fiquei quase aliviada. Dando um passo para trás, eu acenei com a cabeça.
Assim que ele e a suprema juíza entraram, as portas começaram a se fechar.
No último momento, quando seus olhos se desviaram dos meus, seu rosto
mudou, endurecendo como se fosse esculpido em mármore branco. Então ele
se foi e observei as partículas amarelas de mana correrem pelas ranhuras
entre as portas, teto e o chão.
Depois que esse pensamento invadiu meu cérebro, não pude escapar. Eu
estava tão curiosa para saber o que estava acontecendo dentro daquela sala
quanto hesitante em entrar nela. Eu escutava atentamente, mas havia uma
camada de mana de vento criando uma barreira de som ao redor da cela.
“…conte-me cada coisa que você lembra sobre ele. Não deixe de lado o menor
detalhe.” A voz de Nico era profunda e oca, como se ele estivesse falando do
fundo de um desfiladeiro.
Um coro de vozes grasnadas respondeu, cada uma mais desesperada para ser
ouvida do que a outra.
“—sentou como uma estátua, como se ele nunca temesse por um—”
“—pode ser um sem adornos, porque nunca sentimos sua mana ou—”
“Parem. Parem!” Nico rosnou. A cela ficou em silêncio. “Se vocês continuarem
gritando uns com os outros, vou queimar suas línguas para que apenas um
possa falar.” Recuei de sua ameaça horrível, mas disse a mim mesma que ele
estava apenas fazendo o que tinha que fazer. “Você, diga-me como este
ascendente chamou sua atenção.”
Houve alguns gemidos e gargantas limpas antes de uma voz fina e nasal
responder. “Um servo do Sangue Granbehl nos trouxe uma história estranha…
de um ascendente sem laços de sangue, que parecia inexplicavelmente
poderoso, e que não projetava nenhuma assinatura de mana.” O orador fez
uma pausa, respirando pesadamente. “Eles suspeitaram que o Ascendente
Grey havia contrabandeado uma relíquia-”
A voz sufocou quando pedra e ossos racharam. Eu podia sentir o peso da raiva
de Nico através das portas protegidas.
Quando Nico falou novamente, sua voz estava tensa. “Por que não fui
informado do nome deste ascendente?”
“Não faz nenhum sentido,” Nico rosnou baixinho, e ouvi passos suaves quando
ele começou a andar.
“Ele está morto”, disse Nico com firmeza. Ele girou sobre os calcanhares,
recuando na direção oposta. “Mas ele é como uma maldita barata. Se alguém
pudesse sobreviver…” Ele girou novamente. “Mesmo se ele tivesse sobrevivido,
ele não poderia ter vindo para Alacrya sem que víssemos.”
“Nico, o que—”
Ele estalou os dedos e apontou para mim antes de continuar a falar consigo
mesmo. “Ele poderia ter encontrado um portal antigo, ainda ativo… mas
mesmo ele não seria egocêntrico o suficiente para usar esse nome… como
acender um sinal de fogo no escuro…”
Eu tremi quando a vertigem subiu pelo meu corpo, começando atrás dos meus
olhos, então sacudindo em minhas entranhas. Eu agarrei seu pulso com uma
mão trêmula. “Nico, o que você fez?”
Ele arrancou o braço do meu aperto, mostrando os dentes para mim como um
animal. “Cale-se!”
A luz na sala assumiu o verde salpicado da floresta sob uma copa espessa, e
uma única videira esmeralda enrolada em volta do meu braço alcançou Nico.
“Cecil, você está bem? Sinto muito, estou…” Se afastando, ele passou as mãos
pelo cabelo flácido.
A gavinha recuou e a luz voltou ao normal. Mas eu ainda podia sentir a vontade
da besta vibrando de raiva. “Estou bem.”
Nico pigarreou e encarou os quatro prisioneiros. A velha desmaiou e o gordo
vomitou no chão. Eles foram pegos desprotegidos entre a súbita onda de força
de Nico e eu.
Isso não importa. O espírito de Nico foi despedaçado. Ele não era ele mesmo.
Mas isso não significa que ele não poderia ser curado com o tempo.
Nico franziu a testa, seus olhos perdendo o foco enquanto ele tentava imaginar
o misterioso ascendente.
Nico zombou, um som vicioso que arranhou o ar. “Como um rei, você disse?” O
corpo de Nico entrou em erupção, sua raiva repentina não mais capaz de ser
contida por mera carne e osso. Chamas negras o envolveram, saltando de seu
corpo como cinzas quentes.
“Velhos idiotas inúteis!” Nico gritou, sua voz falhando. A carne do velho
começou a formar bolhas e rachar, e pequenas chamas negras saltaram das
feridas enquanto o fogo da alma os devorava.
“Isso não foi necessário,” eu disse, suave, mas firme. Eu não queria atrair a
fúria de Nico, mas também não estava com medo. “Eles não mereciam ser
queimados por seu medo e raiva.”
“Grey novamente…” eu disse, minha voz quase um sussurro. “Por que esse
homem tem tanto poder sobre você que o mero nome dele pode causar uma
reação tão forte? Quem é Grey?”
Nico, de costas para mim, parecia encolher sobre si mesmo. “Ele era nosso
amigo…”
Ele se virou e, por um momento, não vi o rosto do estranho que Nico exibia. Eu
só vi seus olhos, avermelhados e brilhando com lágrimas. Eu conhecia a
tristeza neles. Ele estava olhando para mim agora da mesma maneira que
costumava olhar para mim, indefeso. Desesperado.
Capítulo 356
Conclusão
ARTHUR
A lâmina etérea em minha mão – não maior do que uma simples adaga, e
nebulosa nas pontas – atingiu uma criatura alada feita de pedra antes de se
estilhaçar parcialmente, ainda incapaz de suportar o impacto.
Segurando a gárgula para trás com uma mão, conjurei a lâmina novamente na
minha outra mão e a mergulhei na cabeça da fera, que se partiu com
um estalo retumbante.
Olhei para trás para ver Caera estendendo o braço, revelando a braçadeira de
prata que ela havia tirado da sala do tesouro dos Bicos de Lança. Parecia fino
em relação a seu pulso, pouco mais do que uma pulseira decorativa coberta
com gravuras intrincadas.
Dois fragmentos estreitos de prata giravam defensivamente ao redor dela,
brilhando com luz negra. No momento seguinte, eles começaram a escurecer
enquanto voltavam para a braçadeira e se reconectavam a ela, encaixando-se
no padrão de gravuras.
“Eu admito, mas não foi ruim depois que as coisas começaram a rolar,” Caera
respondeu, cuidadosamente mantendo uma expressão séria, exceto pelo leve
tremor de seus lábios. “Na verdade, eu diria que… me diverti pra cascalho.”
“Fica mais divertido lutar quando você tem conhecimento de causa” Regis
respondeu com voz trêmula enquanto tentava desesperadamente não rir.
Eu encarei o portal de saída com um suspiro profundo. “Estou tão feliz por ter
trazido vocês dois.”
Caera se aproximou de mim. “Oh, não seja tão coração de pedra, Grey.”
“Sim, princesa. Você tem que botar mais firmeza na gente.” Regis explodiu,
latindo de tanto rir.
Ela tinha que ser mais do que só um gerador de portal que nos levava para
dentro e para fora das Relictombs à vontade. Minha mente continuava
voltando para os djinn. Por mais difícil que fosse acreditar, eles projetaram e
construíram este lugar. Eles devem ter tido uma maneira de viajar por ele, e
eu já sabia que a Bússola poderia interagir com um portal das Relictombs.
Uma imagem passou pela minha mente, a falsa memória implantada pela
Sylvia com sua última mensagem para mim. A clareza da memória havia
desaparecido com o tempo, mas eu sabia que era uma das zonas que levava à
próxima ruína dos djinn.
Até agora, eu tinha andado cegamente pelas Relictombs, sabendo que este
lugar estava me guiando em direção aos meus objetivos… ou assim parecia,
pelo menos. Mas confiar incondicionalmente nas maquinações de uma raça de
detentores do éter, que já estava morta há muito tempo, não atendia às
minhas necessidades. Não se eu quisesse algum dia dominar o Destino.
Eu olhei para cima para ver Caera segurando uma bisnaga fechada, cheia de
rações nutritivas.
“Acho que estou feliz por não precisar comer,” eu disse, franzindo o nariz.
“Eh, ele faz isso o tempo todo,” disse Regis, encolhendo os ombros de lobo.
“Quando canalizei mana pela primeira vez para o artefato, eu pensei que era
apenas um item de defesa por causa da forma como os fragmentos mal
pairavam no lugar ao redor da braçadeira. Levei dias de experimentação
constante para perceber que os fragmentos eram capazes de ser controlados
de forma independente,” ela explicou, traçando as ranhuras gravadas na
pulseira de prata. “E se a função de retorno da Bússola for o padrão e para
você fazer mais, ela precisa de mais orientações?”
Eu deixei um pequeno sorriso aparecer em meu rosto. “Eu sou bom em ler as
pessoas, mas não é mágica.”
“Sim,” ela confirmou com um suspiro de alívio. “Eu estive me perguntando por
um tempo agora… será que a zona em que você encontrou a adaga e a capa
dele em algum lugar…”
“Sem a sua habilidade do ‘God Step’ (Passo de Deus).” Ela me lançou um olhar
avaliador. “Regis chamou assim, não foi?”
Soltei uma risada alta que ressoou nas paredes do cânion. “Como você sabia?”
Ela sorriu ironicamente. “Algo me diz que você não seria tão… grandioso ao
nomear suas habilidades.”
“É alguma coisa, pelo menos. Estou feliz que ele teve uma chance de lutar,
mesmo que ele não tenha conseguido.” Caera forçou um sorriso antes de se
virar e ir embora.
Regis permaneceu ao meu lado enquanto eu voltei meu foco para a relíquia
semiesférica em minha mão. Como Caera havia dito, talvez a Bússola
precisasse de mais direcionamento. Fechando os olhos, visualizei a zona que
causou o maior impacto em mim, aquela de que me lembrava com maior
clareza.
Eu abri um olho para ver o piso de mármore liso, o teto alto em arco e as portas
cobertas de runas cobrindo as duas extremidades… junto com as estátuas
armadas alinhadas em ambos os lados do corredor.
“Eu não posso acreditar que você realmente conseguiu isso tão rápido,” ela
murmurou.
“Bem, este definitivamente não é o seu quarto,” Caera observou. “Então, esta
é uma das zonas que você precisa visitar nesta sua misteriosa busca?”
“Não,” eu disse baixinho, virando-me para ela. “É onde seu irmão morreu.”
A cabeça da nobre alacryana girou em minha direção, seus olhos vermelhos
inteligentes arregalados e trêmulos antes de ela se virar, deixando seu cabelo
cair para proteger seu rosto. “Obrigado, Grey.”
‘Por que você está tão tenso? Somos muito mais fortes do que éramos quando
chegamos aqui,’ observou Regis com escárnio.
Eu sei, mas é difícil deixar de lado o tipo de medo que cresce em você quando
está fraco. Ele cresce junto com você.
Chegamos à entrada da toca sem ver nenhum sinal de vida. Caera se ajoelhou
e olhou para o túnel escuro. Ela fungou e franziu o nariz. “O que é esse fedor
nojento?”
Eu fiz o mesmo que ela e quase engasguei com o cheiro de carne podre. Senti
Regis estremecer por dentro. ‘É nojento o suficiente só de ler seus
pensamentos. Vou ficar de fora dessa.’
O túnel irradiava uma luz roxa fraca, como antes, mas parecia maior, e a sujeira
do chão tinha um tom vermelho abaixo do brilho roxo.
Nós nos movemos furtivamente ao longo do túnel até que ele se alargou e se
abriu à nossa esquerda. Cristais de éter estavam espalhados pelo chão do
túnel, e alguns tinham sido amassados até virar cascalho, já não brilhando
mais. O túnel eventualmente se abriu na enorme caverna onde lutamos contra
a primeira centopeia.
“Grey…” Caera parecia que ia estar doente, mas não achei que fosse só pela
visão diante de nós.
Onde antes havia o ninho, o solo foi escavado e pisoteado, o único local
desprovido de cristais e cadáveres. Quando me aproximei do fosso estéril, meu
pé bateu em algo sob os cristais e puxei o cabo de uma espada quebrada. Era
a que eu tinha imbuído com éter e esmagado, antes de encontrar a adaga e a
capa de Sevren. Eu joguei de volta na bagunça.
“Desculpe,” eu disse quando Caera veio para ficar ao meu lado. “Eu pensei que
isso seria mais… sentimental.”
A mão de Caera pousou momentaneamente no meu ombro. Ela não disse nada,
mas não precisava.
Meu humor ficou melancólico quando pensei em meu pai. Eu gostaria de ter
feito mais para homenageá-lo. Reynolds Leywin foi um grande homem – um
herói – e mereceu mais do que uma morte repentina lutando contra feras
estúpidas. E provavelmente Caera se sentia da mesma forma em relação a
Sevren.
“Grey?” Eu olhei para dentro do poço, onde estava Caera. Ela franziu a testa.
“Você ouviu isso?”
“Merda, está aqui,” eu disse, dando a ela minha mão para ajudá-la a sair do
buraco. “Regis!”
‘Preciso mesmo?’ Ele resmungou, mas o lobo apareceu ao meu lado, suas
chamas tremeluzindo em agitação.
‘Oh. Merda.’
Imbuindo a perna decepada com éter, tentei enfiar para cima na barriga da
centopeia, mas outra perna bateu no meu ombro e o golpe deslizou para longe
da quitina revestida de éter.
Caera se preparou quando a centopeia voltou sua atenção para ela. Soltou um
grito sibilante e avançou em sua direção.
Juntando o máximo de éter que pude rapidamente, dei um soco direto para
cima. O baixo-ventre quitinoso rachou e o corpo da centopeia estremeceu, as
pernas arranhando a terra coberta de cristal. Eu soquei novamente e
novamente, criando uma série de crateras quebradas ao longo da parte
inferior de seu corpo, mas não foi o suficiente para desacelerar ou recuperar
sua atenção.
A fina barreira floresceu em uma parede de fogo negro um instante antes que
a centopeia a atingisse. Os olhos de Caera se aguçaram quando ela se inclinou
para frente, concentrando-se em manter a barreira defensiva no lugar. O
impacto sacudiu a toca, e o corpo da centopeia se dobrou como um trem
descarrilado quando a frente parou repentinamente, mas a traseira continuou
indo para frente.
Ela estava se segurando, mas eu sabia que ela não conseguiria aguentar por
muito tempo.
A centopeia recuou com os golpes, sua cabeça saindo de baixo de mim tão
rápido que girei no ar antes de cair de pé. A cabeça balançou para frente e
para trás e as mandíbulas estalaram juntas ameaçadoramente. Por um único
instante, as coisas na caverna ficaram quase imóveis.
Caera respirava com dificuldade por trás do escudo, mas quando encontrei
seus olhos, ela inclinou a cabeça apenas alguns centímetros, garantindo-me
que estava bem.
Toda a nossa atenção – até a da centopeia gigante – foi atraída para Regis. As
sombras desapareceram dele, revelando toda a extensão de sua forma de
Destruição. Assim como quando lutamos contra as chamadas “Coisas
Selvagens,” ele estava enorme. Seu peito e pernas dianteiras cresceram com
músculos tensos, suas costas ligeiramente inclinadas para baixo e em chamas
roxas irregulares e sobrenaturais. Chifres como aríetes afiados curvavam-se
para a frente como os de um touro, enquanto sua boca rosnava cheia de
adagas serrilhadas.
Quando ele falou, sua voz profunda reverberou pela sala, mais um grunhido
primitivo do que um discurso. “Tente me espancar agora, puta!”
Mesmo assim, tentei. A adaga se alongou, mas a ponta ficou indistinta. A forma
vacilou, enrolando-se como o corpo enorme da centopeia, que se retorcia e se
espatifava ao meu redor. Eu fortaleci minha vontade e a lâmina se endireitou.
As bordas estremeceram e dançaram, mais como fogueira do que aço
temperado, mas a forma se manteve.
O Burst Step puxou o mundo sob meus pés, e então eu estava de pé do outro
lado da toca, nada sobrando em minhas mãos além de um tênue fio de éter.
Atrás de mim, houve um ruído constante e contínuo de colisão à medida que
o corpo da centopeia caía no chão. Um dilúvio de lama vermelha jorrou de um
corte que marcava metade de seu corpo, transformando o solo em uma sopa
sangrenta de cristais, restos meio comidos e a gosma ensanguentada.
Você está bem? Pensei para Regis, que eu não pudia ver entre as dobras do
cadáver da centopeia. A pressão exercida por sua forma de Destruição havia
diminuído.
‘Tô tranquilo. Vou ficar deitado aqui nesta sopa fedorenta da morte por um
minuto,’ ele pensou, cansado.
Com uma risada cansada, voltei minha atenção para Caera, que estava
encostada na parede oposta. Eu tinha prometido trazê-la nessas ascensões em
troca de sua ajuda para roubar a Bússola. No entanto, ao ver a nobre alacryana
se manter firme nessas últimas zonas, tê-la como companheira de equipe
parecia menos por compromisso e mais como uma parceria genuína.
Agora de pé no centro de um anel de terra nu, ela retirou algo que brilhou
prateado na luz fraca, então o mergulhou no chão. A adaga de seu irmão.
Capítulo 357
Relíquia de Sangue I
O éter percorreu meu corpo, acendendo meus canais com fogo líquido antes
de se fundir no âmago do meu núcleo. Apesar de meus pensamentos estarem
em outro lugar e do fato de eu ter feito isso inúmeras vezes antes, a sensação
ainda era embriagante. Este poder profundo e evasivo que nem mesmo asuras
podiam controlar totalmente estava dentro de mim, esperando para ser
libertado.
Eu abri meus olhos e fui saudado pelo cadáver quitinoso da centopeia gigante,
na qual eu estava sentado enquanto absorvia seu éter.
“Estou bem,” respondeu ela, lançando um olhar para trás. Embora ela não
tenha dito isso, eu sabia que ela estava pronta para sair dessa zona.
‘Arthur,’ Regis latiu dentro de mim no momento em que mais duas silhuetas
surgiram de cada lado dela.
Fique dentro por enquanto, eu ordenei, focando na luz vermelha opaca que
refletia em suas armas.
Ele soltou uma maldição antes de rolar e puxar inutilmente a lança, seu feitiço
esquecido.
“Por que você nos atacou?” Eu perguntei com calma, inclinando-me para
encontrar seus olhos.
“Nosso líder,” ele ofegou, seus olhos em pânico focados no sangue jorrando
de sua ferida. “Qualquer… qualquer pessoa que passar por esse portal
pertence a ele.”
Caera se ajoelhou para verificar o homem que eu empalara com sua própria
ponta de lança, mas agora ela se levantou e lançou um olhar feroz para o
ascendente sobrevivente. “Por que algum ascendente ‘pertenceria’ a ele?”
O mago estava ofegante, seus olhos perdendo o foco. Avaliando pela lama
ensanguentada embaixo dele, ele não tinha muito mais tempo. “A relíquia
precisa de sangue,” disse ele. “Então nós … nós—”
Eu me virei para ver mais uma dúzia de ascendentes amontoados mais adiante
no túnel. Um homem estava na vanguarda do grupo. Ele estava tão sujo quanto
o resto deles, mas sob as camadas de sujeira, eu podia ver uma rede de
cicatrizes cruzando seu rosto, braços e mãos. Seu cabelo era fino, e parecia ter
sido raspado com uma adaga em vez de uma navalha, e uma barba loira cheia
de nós cobria seu rosto. Ele usava uma armadura incompatível que parecia ter
sido retirada de uma dúzia de lugares diferentes.
“Você se importaria de nos dizer o que diabos está acontecendo nesta zona?”
Caera perguntou enquanto ela calmamente limpava o sangue de seu rosto com
um lenço.
Caera deu um passo confiante para frente, seu cabelo azul escuro esvoaçando
enquanto ela apontava sua lâmina fina para a garganta do homem. O
ascendente correspondeu, uma pequena cratera se formando sob seus pés
quando ele deu um passo à frente e pressionou o pescoço contra a ponta da
lâmina de Caera.
“Não há como sair daqui,” ele continuou, seus olhos escuros arregalados e com
um sinal de loucura. “Exceto pelo sangue. Todo mundo dá ou recebe, mas
ninguém que permanece neutro sobrevive por muito tempo.”
Kage bateu seu dedo sujo contra sua têmpora. “Eu posso dizer que seu sangue
não é do tipo de deixar passar. Você tem gosto de carne fresca” — seus
capangas riram sombriamente disso — “que nós precisamos aqui. Entenda,
mentes, corpos e espíritos envelhecem neste purgatório.” Enquanto Kage
falava, um olho começou a se contorcer. “Quanto mais você fica, pior fica, mas
a única saída é esvaziando o sangue da vida de seus amigos e camaradas.
Crueis, aqueles demônios antigos…”
“Acredito que pedimos que você fosse menos enigmático,” disse Caera,
impaciente.
Ele agraciou Caera com seu sorriso de dente vazio. “Eu posso dizer que vocês
são pessoas que tem maneiras. Wyverns, não wogarts, como diz o ditado. E
então eu vou ser sincero com vocês. Vocês estão presos em uma zona sem
saída. A única saída é reivindicar uma relíquia mantida no centro deste
labirinto de túneis, mas isso só pode ser feito com sacrifício de sangue. E até
agora, ninguém conseguiu derramar o suficiente para passar pelas proteções.”
“Gostaríamos de ver esta relíquia,” eu disse gentilmente. “Você pode nos levar
até lá?”
“Cai fora, magrelo!” Um dos homens vociferou, apontando sua espada para
mim.
Kage soltou uma risada áspera e deu um passo para trás, em seguida, girou
sobre os calcanhares como se estivesse em uma procissão militar. Uma lança
estreita de pedra explodiu do chão e espetou a mão do ascendente ofensivo,
fazendo a espada voar. Kage chutou o joelho do homem, fazendo-o rachar e
dobrar para trás, então o pegou pela garganta e o jogou no chão.
“Não me lembro de ter dito para você falar!” Kage rugiu em seu rosto, saliva
voando. As runas em suas costas brilharam quando ele levantou uma mão
sobre a cabeça, e uma crosta de pedra preta e laranja brilhante se formou de
seu cotovelo para baixo, irradiando um calor tão intenso que eu podia sentir
a vários metros de distância.
Quando não havia mais nada do rosto do ascendente além de uma polpa
queimada, Kage se endireitou. Ele estava ligeiramente ofegante, e gotas de
fogo fumegante piscavam ao redor da manopla conjurada. Com um estalo de
pescoço e um suspiro, ele encarou Caera. “É preciso uma mão firme, você
sabe”, disse Kage, rindo. “Mão firme, entendeu?”
A boca de Caera se abriu, e eu poderia dizer pelo olhar em seu rosto que ela
estava prestes a rejeitar a oferta de Kage. Eu agarrei sua manga e dei um
pequeno puxão. “Senhora, nada de bom pode advir de rejeitar a oferta deste
homem. Veja o que ele fez com seu próprio aliado. Devíamos ir com ele e ver
o que ele tem a dizer.”
“É um ajudante esperto que você tem aí,” Kage grunhiu. “Não pode ser um sem
adornos. Deve ser um Sentinela irritado escondendo sua mana, hein?” Ele me
olhou nos olhos e cuspiu no chão. “Ou talvez a dama mantenha você por perto
para outros fins, hein?”
Eu estremeci com seu olhar, o que só fez ele e seus homens rirem.
A zona era formada inteiramente por túneis de terra, como eu tinha visto na
falsa memória. Eles se contorciam e giravam continuamente, como se algum
verme gigante tivesse comido o solo aqui, deixando um labirinto de caminhos
para trás. Veias de alguma pedra em brasa rompiam a sujeira em alguns
lugares, lançando uma luz enferrujada pelos túneis.
“Deve haver mais do que isso,” disse Caera. “Os ascendentes não são animais
selvagens.”
“Era pior quando cheguei aqui,” disse Kage com orgulho. “Um banho de sangue
total, cada homem determinado a matar pra chegar até o topo.”
Eu não perdi a ameaça sutil em seu tom quando ele disse isso.
“Se você pensar em como menos pessoas morreram desde que cheguei aqui,
na verdade sou um herói. Um salvador, não um açougueiro como você pode
estar pensando.”
Eu lancei um olhar para trás. Kage estava balançando a cabeça, sorrindo como
se estivesse satisfeito consigo mesmo.
Saber que a relíquia estava no centro do labirinto era algo, mas eu não tinha
nenhuma referência de onde nós estávamos ainda. Mas, por mais interessante
que fosse a presença de outra relíquia, minha curiosidade estava focada em
outro lugar.
“Se este lugar for tão grande, talvez você apenas não tenha encontrado o
portal de saída ainda—”
Eu balancei a cabeça, dando um passo tímido para trás. Meu pé bateu contra
uma videira que deslizou ao longo da lateral do túnel e me atingiu como uma
cobra. O estrangulador se enrolou na minha perna e recuou para o chão,
tentando me puxar com ele.
A lâmina de Caera brilhou, cortando a raiz logo acima do solo. A raiz se soltou,
se contorcendo como um verme moribundo aos meus pés. Eu me arrastei para
trás na terra para me afastar dela enquanto Kage e os outros explodiram em
uma gargalhada selvagem.
Regis deixou escapar um suspiro. ‘Isso é divertido. Posso ver você ser
intimidado e, ao mesmo tempo, ficar ansioso para vê-lo esmagar as gônadas
deles.’
Ao contrário dos caminhos esculpidos naturalmente que nos levaram até aqui,
o acampamento dos ascendentes trazia sinais óbvios de ter sido escavado por
magia. Enquanto os túneis eram baixos, pouco mais do que o suficiente para
eu andar em pé na maioria dos lugares, o teto aqui tinha 5 metros de altura.
Pelo menos cem pequenos artefatos de iluminação estavam suspensos acima
de nós, lançando uma pálida, mas brilhante, luz branca sobre os homens ali.
Caera respirou com surpresa ao ver isso, mas se segurou e mordeu a língua no
momento.
“Ah, bem, qualquer coisa de valor é rara neste poço de desespero,” Kage
grunhiu sem humor. “Comida, água, entretenimento…”
“Oh, pare com isso!” Ele uivou de tanto rir. “Há muito tempo atrás, eu era um
Alto Sangue, assim como você. Aqui, porém, o sangue de todos é vermelho e
maduro para ser colhido.”
Ele passou por nós, com os braços bem abertos ao entrar no acampamento.
“Seu salvador voltou!” Ele gritou, sua voz crescendo. “E eu trago novos
recrutas!”
Kage nos levou para a maior das cavernas, embora chamá-la de uma simples
caverna não lhe fizesse justiça. Um mago talentoso havia esculpido um espaço
grande o suficiente para uma família de quatro pessoas. Os pisos foram
endurecidos em algo parecido com mármore, enquanto as paredes
avermelhadas foram esculpidas para parecerem tijolos. Móveis de pedra eram
cobertos com peles e cobertores – significativamente mais do que um homem
poderia ter trazido com ele para as Relictombs.
Uma cama enorme ocupava o centro de uma das paredes e estava empilhada
com mais peles e cobertores amarrados com cordas de seda.
“Pelo menos você não teve que desistir de seu luxuoso estilo de vida de Alto
Sangue,” Caera disse sarcasticamente enquanto olhava para casa improvisada
dele.
Kage sorriu para ela como um tubarão sem dentes. “Isso presumindo que
algum dia escapemos, minha senhora. E se escaparmos, isso significa que
reivindicamos a relíquia. Ninguém vai dar a mínima para o que fizemos para
consegui-la.” Ele colocou as mãos atrás da cabeça e olhou para o teto.
“Imagine isso. A primeira relíquia viva voltou em quantos anos? Duas décadas?
Três? Riqueza suficiente para todos nós mantermos nosso sangue forte por
gerações.”
Eu poderia dizer pela expressão azeda de Ceara que ela sabia que Kage estava
certo.
“Ah, Rato, chegou na hora certa. Essa é a Cerveja Preta Truaciana?” Kage
perguntou, lambendo os lábios. Quando ele viu meu olhar questionador, ele
piscou. “Algum idiota tinha meia taverna enfiada em seu dispositivo
dimensional. Melhor para nós.” Seu rosto ficou triste. “Quase pronto agora, não
é, Rato?”
Kage bufou. “É quase a mesma coisa que beber o mijo do Rato.” Ele cuspiu no
chão.
O Rato usava uma camisa e calças simples de linho, mas não usava armadura.
Ele não estava equipado com algemas como os outras que vimos. Ele evitou
olhar para Kage, mantendo sua cabeça desviada de forma servil, e quando ele
falou, suas palavras foram suaves e não ameaçadoras. Ele imediatamente me
lembrou de seu homônimo, correndo ao redor da borda da sala como um
roedor tentando evitar ser pisado.
Estranhamente, ele estava bastante limpo. Quase não havia uma partícula de
sujeira em suas roupas ou rosto, e seu cabelo, embora desgrenhado, não
estava cheio de tufos de lama como os de todo mundo. Apenas suas mãos
mostravam algum sinal da sujeira que se agarrava ao resto deles como uma
segunda pele.
Seus olhos velozes me pegaram olhando para ele, mas pularam para longe
imediatamente.
Kage pegou uma caneca de argila do Rato e a inclinou para trás, engolindo
vários goles e pingando pelo menos metade em sua barba e no pescoço de sua
placa peitoral. “Ah, isso é bom. Todos os vinhos finos podem vir de Etril, mas
aqueles desgraçados truacianos sabem fazer cerveja.”
“Você quer ver a relíquia. Você precisa encontrar um lugar para você nesta
zona, porque você não vai sair tão cedo.” Aquele sorriso feio e predatório
dividiu seu rosto. “Eu tenho meus próprios desejos e necessidades. Então, o
que você está disposta a negociar por suas vidas?”
“Se você já tivesse tudo o que queria, teria apenas nos matado no portal.”
Caera se inclinou para ficar cara a cara com o ascendente cicatrizado. “Não,
acho que você precisa de ajuda e espera que possamos ajudá-lo.”
“Você acha que eu preciso de ajuda? Eu sei como sair. Eu desvendei! Tudo que
eu preciso é de mais sangue.” Kage se levantou de repente, derrubando o
apoio para os pés antes de apontar um dedo imundo para minha companheira
imperturbável. “E eu posso fazer com que você e seu homem-donzela sejam
mortos a qualquer momento que eu quiser.”
“Então não deve haver problema em nos mostrar a relíquia,” Caera respondeu
friamente.
Kage olhou para Caera. “O Rato levará seu servo ao santuário para ver a
relíquia. Mas você fica aqui comigo, entendeu?”
“Com medo de ficar sem sua dama protetora, princesa?” Kage perguntou,
tocando a alça de sua cimitarra.
“Sua oferta não é aceitável,” disse Caera categoricamente. “Eu veria com meus
próprios olhos, para julgar melhor a situação por mim mesmo.”
“Você se confundiu. Esta não é uma oferta. É uma ordem.” Ele disse com um
sorriso dentuço afiado. “Ele pode ir, mas você vai ficar bem aqui. Do meu lado.”
“Tudo bem,” disse ela, meio resignada, meio irritada. Ela se aproximou do
senhor de guerra, que era apenas alguns centímetros mais alto que ela. “Mas,
me toque, e eu cortarei a parte do corpo que fizer isso.”
“Um brinde a isso.” Kage levantou a caneca para Caera enquanto balançava as
sobrancelhas lascivamente.
Capítulo 358
Relíquia de Sangue II
‘Eu meio que me sinto mal por deixar Caera com todos aqueles bandidos
assassinos’, disse Regis, a sensação de sua presença como uma bola etérea
quente em volta do meu núcleo.
Eu sei, eu concordei. Não consigo imaginar o que ela fará com eles sem ter a
gente para mantê-la sob controle.
Viramos à direita duas vezes em uma curta distância, a fim de passar por baixo
do túnel que tínhamos atravessado. Haviam muitos outros pedaços soltos de
parede que sugeriam que alguém viajava por ali com frequência, e os veios de
rocha vermelha que iluminavam as passagens ficavam mais grossos e
brilhantes quanto mais progredíamos.
O éter na atmosfera também ficou mais denso, enchendo o ar como uma névoa
roxa. Eu estava confiante de que Rato estava me guiando no caminho certo, e
que eu poderia encontrar o santuário mesmo sem ele, ao usar o éter ambiente.
Eu expandi meu foco para sentir os caminhos etéreos conectando cada ponto
no espaço ao meu redor. No entanto, com o tamanho dessas redes de túneis
e cavernas, era impossível fazer um mapa preciso com as informações que
recebi.
‘Por mais chato que tenha sido assistir você agir como um woggart bunda mole,
admito que foi a decisão certa.’
“É por isso que você serve… ao Kage?” Eu perguntei, alterando minha inflexão
para soar como se eu tivesse medo de dizer o nome do maníaco.
“Você… não acha que ele vai machucar Lady Caera, acha?”
Os ombros de Rato afundaram ainda mais com a minha pergunta. Quando ele
falou, foi pouco mais que um sussurro. “Kage e seus homens… não são gentis
com as mulheres. Não vou defender, mas…” Ele fez uma pausa, enquanto eu
fingia um ruído assustado do fundo da minha garganta, e acabou se virando
para me encarar. Seus olhos negros me perscrutaram profundamente.
“Devemos seguir em frente. Ainda estamos a alguma distância do santuário.”
“Um ano… talvez mais.” Seus ombros balançaram para cima e para baixo, num
gesto de impotência. “Lutei por um tempo, como os outros. Então me escondi.
E aí, o Kage veio. Pelo menos com ele temos algum tipo de ordem enquanto
descobrimos como reivindicar a relíquia.”
“Acho que somos quase iguais”, continuou ele com cautela, com apenas um
toque de esperança em suas palavras. “Podemos não ser feitos para
derramamento de sangue e batalha, mas nosso valor é maior do que nossos
mestres julgam ser.” Ele hesitou, depois balançou a cabeça com um sorriso
nervoso. “Meu tempo aqui me deixou sem modos. Eu nem perguntei o seu
nome.”
“Grey,” eu disse, devolvendo um sorriso sem jeito. “Você tem outro nome além
de…” Eu parei, esfregando minha nuca.
Ele franziu a testa com tristeza, mas disse: “Amand. Mas aqui… me chame de
Rato. Todo mundo me chama assim.” Ele se endireitou. “Grey, acho que juntos
podemos terminar este ciclo terrível. Estou pronto para ir para casa, para ver
meus… ” Ele pausou novamente, sua carranca se aprofundando. “Eu tenho uma
mãe… e um irmão… que provavelmente pensam que estou morto…”
Eu abri minha boca, e fechei novamente, não tendo que fingir minhas emoções
enquanto pensava em Ellie e minha mãe, escondidas sob o deserto de Darvish,
sem ter ideia de que eu estava vivo.
Limpando a garganta, ele continuou. “Espero que você entenda o risco que
estou correndo ao lhe dizer isso, mas… há algum tempo, tenho passado
informações sobre o Kage para as outras facções nesta zona.”
Regis deu uma risadinha. ‘Quem diria, nosso Rato é um rato mesmo.’
“Já fazem meses desde que alguém, além de Kage e seu pessoal, teve
permissão para ver a relíquia, ou a proteção em torno dela. Embora Kage
mantenha uma certa ordem por aqui, ele não é particularmente… inteligente.”
“Quem é esse?” uma mulher alta com tranças apertadas perguntou, apontando
sua lança dourada para o meu peito.
“Por que ele está aqui?” Seus olhos castanhos me avaliaram com desconfiança,
parecendo permanecer em torno do meu esterno. Sua carranca se aprofundou.
Rato coçou atrás da orelha. “Pelo mesmo motivo que você, T’laya.”
Ela estalou a língua, mas abriu passagem. Rato se esgueirou entre as mulheres,
cada uma vários centímetros mais alta do que ele, seus olhos demorando em
suas armas.
Eu imitei sua cautela enquanto eu também passava entre elas, paradas como
sentinelas dos dois lados, me olhando com frieza.
Como uma cortina sendo puxada para os lados, a parede se abriu, revelando
uma câmara completamente isolada do resto da zona. Três homens, todos
esfarrapados e imundos – obviamente parte da gangue de Kage – brandiram
suas armas, então recuaram ao ver o Rato.
Um homem corpulento, cuja barba caía quase até a barriga, colocou a haste
de seu maciço machado de duas mãos no chão e apoiou as mãos nele. Ele
olhou para as três mulheres, mostrando a boca cheia de dentes tortos e
manchados, mas sua expressão mudou quando ele me notou.
“Você não disse nada sobre outro homem,” ele disse rispidamente. “O Kage-”
“Eu estaria aqui se nosso mestre não desejasse?” Rato resfolegou. “Kage está
ficando impaciente pela relíquia. Este homem é um poderoso Sentinela a
serviço de uma poderosa Alto Sangue. Kage instruiu que ele teria permissão
para ver o santuário junto com T’laya e suas mulheres.”
“Você algum dia quer sair daqui, seu idiota sem sangue?” Rato estalou,
afastando os três guardas de uma enorme escultura que ocupava a maior
parte da câmara.
O homem pensou sobre isso por um momento, então ficou de lado, dando
passagem para o Rato. Rato gesticulou para que entrássemos, apontando para
o chão.
No entanto, meus olhos foram atraídos para além dele, em direção ao que só
poderia ser a relíquia pela qual tantos mataram e morreram.
O traje, que pendia suspenso em um feixe de luz dourada, era melhor descrito
como um manto blindado. (NT: há uma inconsistência no original sobre se
existe 1 manto ou vários. Vou supor que existe apenas 1). Ele era grosso e
volumoso, o tecido de um marrom acinzentado suave, com ombreiras de couro
escuro, braçadeiras e um gorjal. Runas foram bordadas nas costuras e
esculpidas ao longo das bordas das peças de armadura de couro.
‘Ah, não sei. Parece bastante apropriado,’ disse Regis, pensativo. ‘Um vestido
machão para uma princesa machona.’
‘Isso é…?’
Acho que sim, confirmei, extasiado pela forma como o éter parecia girar em
torno da armadura, sendo atraído de todas as partes da zona. É por isso que o
éter atmosférico é muito mais espesso aqui.
‘Não me admira que ninguém tenha descoberto como obtê-la. Esse glifo está
uma bagunça,’ disse Regis, prestativo.
Eu reli a mesma seção pela terceira vez, fazendo um esforço para entender a
construção das runas.
“Começa aqui”, disse Rato, apontando para uma quebra nos círculos
concêntricos perto da luz dourada e da relíquia. “Talvez ajude se você ler do
começo ao fim.”
Mudei-me para onde ele havia indicado e comecei a traduzir com a ajuda de
Regis.
Ele tinha razão. Quando Kage e Rato revelaram o motivo da violência que
infestava esta zona, eu esperava descobrir que eles estavam sendo tolos ao
interpretarem mal as instruções do djinn, mas o glifo estava cheio de
referências a sangue.
“Os antigos magos eram um povo de paz,” eu disse, meio para mim mesmo. “A
dedicação deles a este ideal era tão grande que eles não se defenderam
mesmo quando outra raça os destruiu. Em vez disso, eles construíram as
Relictombs para manter seu conhecimento vivo. Eles não forjaram armas ou
armaduras. É por isso que esta relíquia foi trancada.” Eu apontei um pedaço
do glifo. “Eles até chamam de ‘um santuário para a futilidade’.”
Voltei minha atenção para o glifo, murmurando para mim mesmo enquanto
trabalhava em volta dele em um círculo, traduzindo-o novamente do
zero. “Sangue do nosso sangue… cheio de propósito… aquele que…”
“De quê, Grey?” Rato ficou inquieto, dando um passo para mais perto de mim,
com uma expressão que misturava antecipação e frustração.
“Por Vritra, sou o pior servo de Alacrya,” gemi, olhando para ele com pavor.
“Quase me esqueci de Lady Caera. Acha que ela está bem? Eu… eu estou
disposto a lhe dizer como conseguir a relíquia, mas primeiro precisamos ter
certeza de que ela está segura.”
Rato recuou para longe da saliva que voou dos lábios do enorme ascendente.
Antes que o homem pudesse vir atrás de nós, no entanto, uma lança dourada
atravessou seu pescoço. Os outros dois caíram ao mesmo tempo, igualmente
empalados quando T’laya e suas companheiras os atacaram.
“O sangue tem que… que…” Eu engoli em seco. “O sangue precisa ser de alguém
com descendência dos asuras”, terminei apressado.
Esfreguei minha garganta, onde uma gota de sangue escorria pela minha pele.
A ferida já estava curada, mas ninguém parecia notar.
Rato estava me olhando fixamente. Eu fiz uma careta. Ele semicerrou os olhos.
“O que é isso, Grey?”
Hesitei até que T’laya soltou uma bufada de raiva, então disse: “Lady Caera…
ela é do Alto Sangue Denoir, mas não de nascimento. Ela tem sangue Vritra.”
Os olhos de Rato brilharam, seu olhar era tão intenso que era quase físico, até
eu perceber que realmente havia uma sensação física, como dedos
massageando meu cérebro. O rosto de Rato se abriu em um sorriso largo e
satisfeito, e ele ergueu a mão.
‘É uma regalia,’ disse Regis ao se dar conta. ‘Algum tipo de feitiço de paralisia
baseado em som. É bem forte.’
Ele deu um toque na sua têmpora. “Apenas mais uma das minhas runas muito
úteis. Posso ouvir o fluxo do seu sangue, as batidas do seu coração, o ar
soprando em seus pulmões. Eu consigo dizer quando alguém está mentindo. E
como eu sei que você estava dizendo a verdade agora, felizmente não há mais
necessidade de continuar com esse joguinho. Foi um duelo interessante –
quem pode fingir ser mais fraco e patético – mas estou cansado disso.
“Agradeço, Grey, pela sua ajuda.”
Meu corpo desabou no chão e Rato se inclinou sobre mim. Embora eu não
pudesse me mover, eu ainda podia sentir quando a adaga penetrou nas
minhas costelas, minhas costas e, finalmente, meu coração. Meus olhos se
fecharam e minha respiração parou.
RATO
“Parece que você foi útil, no fim das contas.” Limpei a lâmina com a manga do
braço de Grey antes de me levantar e me virar para encarar T’laya.
Foi uma verdadeira surpresa descobrir o segredo da mulher. Embora ele não
tivesse dito a parte mais importante, eu tinha ouvido as variações sutis de seu
tom que o traíam. Lady Caera não só tinha sangue Vritra, mas seu sangue
também havia se manifestado. Sem a ajuda de Grey, eu poderia ter cometido
o erro de perfurar seu núcleo e jogá-la pro Kage. Saber que ela carregava
sangue Vritra, entretanto… isso mudava as coisas.
Kage chegou um ou dois minutos depois, arrastando Lady Caera atrás dele. Ela
avistou o corpo de seu companheiro no chão, e sua mandíbula se enrijeceu.
“Foi realmente necessário matá-lo?”
“Lady Caera do Alto Sangue Denoir,” eu disse, dando a ela uma leve reverência.
Sua boca se fechou. “Sangue do Vritra.” Sua boca se formou em uma linha
tensa e seu rosto empalideceu. Regozijei de alegria com a visão. Movendo-me
para ficar bem na frente dela, ajustei as correntes que prendiam seus pulsos.
“Você tem alguma ideia de como restrições que cancelam mana são úteis em
uma ascensão? E essas são variações particularmente de alto nível. Você nunca
sabe quando precisará desabilitar um inimigo – ou aliado – quando há
espólios a serem reclamados.”
Seu queixo se ergueu, enfatizando seu olhar superior. “Se você conhece meu
sangue, então você não ousaria colocar um dedo em mim…”
Rindo, eu estendi a mão e tateei em volta do pescoço dela pelo artefato que
eu sabia que deveria estar lá. Quando minha mão envolveu a corrente fina, dei
um puxão forte, arrancando-a de seu pescoço.
Chifres apareceram dos lados de sua cabeça, se desenhando para frente e para
cima, com pontas secundárias apontando para trás, emoldurando sua cabeça
como um louro negro. Passei um dedo ao longo da superfície dura e lisa,
momentaneamente fascinado por eles. Ela estremeceu com uma raiva
reprimida, mas não se afastou. Em vez disso, ela falou com uma calma forçada,
seus olhos escarlates se estreitaram em duas adagas ensanguentadas.
“Quando sairmos daqui, terei tanto uma relíquia viva quanto alguém de
sangue Vritra. Imagine isso, Lady Caera. Chego com a história de te descobrir
nesta zona de convergência, meio morta, traída por seu servo mais fiel… Você
não seria a mesma, é claro, não depois de tudo que viu, mas está viva. E com
a riqueza adquirida com a relíquia, talvez os Denoirs até me considerem um
marido adequado para o seu eu despedaçado?” Eu dei a ela um sorriso
zombeteiro. “Em um único dia, eu me tornarei o ascendente mais famoso de
Alacrya. Aposto que até conseguirei uma audiência com o Alto Soberano.
Talvez, para o descobridor da relíquia, ele se dignasse a oficializar nossa
cerimônia?” Meu sorriso vacilou quando tive um pensamento curioso. “Por que
você fez isso? Por que esconder este lindo dom?”
“Bem, depois teremos tempo suficiente para uma conversa tão íntima. Por
ora…” Puxando pelo chifre, arrastei a mulher que se debatia – certificando-me
de que ela teria que passar por cima do corpo de seu companheiro morto no
caminho – e chutei a parte de trás de sua perna para que ela caísse de joelhos.
Puxando suas mãos pelas algemas que as prendiam, eu desenhei uma linha
sangrenta em sua palma com minha adaga, então a empurrei para o chão,
onde sua mão ensanguentada bateu na pedra esculpida do chão, manchando
o glifo.
Para minha decepção, ela nem mesmo engasgou de dor, mas isso era
insignificante em comparação com o que estava para acontecer.
Soltando um suspiro pesado, senti um pouco do meu bom humor sumir. “Eu
realmente esperava poder receber meus dois prêmios, mas, enfim… Nem
sempre conseguimos tudo o que desejamos, não é, minha senhora?”
Mais uma vez, segurando-a pelo chifre, girei Lady Caera para me encarar,
dando-lhe a honra de não cortar sua garganta por trás. Seus olhos focaram em
algo atrás de mim, se alargando, e um sorriso se espalhou em seu rosto, em
vez do terror que eu deveria ter visto.
Virando-me lentamente, encontrei Grey de pé, suas feridas curadas, sua pele
sem marcas da minha lâmina. Mas eu sabia que o tinha esfaqueado… cortei
sua garganta, perfurei seu coração… o sangue que encharcava suas roupas era
prova disso!
Kage amaldiçoou e sacou sua cimitarra, mas não teve a chance de atacar. Uma
sombra negra explodiu para fora do corpo de Grey, jogando Kage no chão. Eu
mal percebi, incapaz de desviar o olhar de seus orbes dourados.
Tudo fazia sentido agora: aquela confiança impossível que o homem não
conseguia esconder. Mesmo agora eu não conseguia sentir sua mana de jeito
nenhum. Não porque ele fosse algum pequeno Sentinela estranho, capaz de
mascarar sua presença… não. Era porque ele era muito mais forte do que eu…
mas eu já havia derrubado bastardos maiores e mais fortes do que eu antes.
Meu núcleo doeu enquanto eu empurrava mana para minha runa novamente,
lançando a paralisia sônica. Um zumbido baixo vibrou de mim, a frequência
exata necessária para interromper o sistema nervoso, impedindo todo
movimento.
“Eu preciso separar sua cabeça de seu pescoço para garantir que você não se
levante novamente? Talvez, depois de fazer isso, eu vou te queimar só para
garantir.”
Ele balançou a cabeça, por mais impossível que isso deveria ser. “Eu preferiria
que você não fizesse isso.”
No instante seguinte ele estava ao meu lado, o cabo de uma adaga de ametista
serrilhada brilhando entre seus dedos, a lâmina em minha barriga. Em meu
núcleo. Minha magia foi liberada com uma explosão de estática raivosa que
fez meus ouvidos zumbirem. Eu podia ouvir a respiração estável da mulher e
o rosnado de Kage quando a besta o prendeu no chão.
A força deixou meu corpo enquanto eu afundava no chão aos pés de Grey. Meu
sangue fluiu livremente, preenchendo as ranhuras do glifo.
Acima de mim, a luz dourada começou a piscar. Com minhas últimas forças,
me estiquei para ver a relíquia.
Capítulo 359
Potenciais
ELEANOR LEYWIN
Embora a Anciã Rinia tivesse dito que ela estava muito doente para receber
visitas, eu não podia simplesmente ficar longe depois do que ouvi entre Virion
e Windsom. Eu tinha que conversar com alguém, mas estava com muito medo
pra contar pra qualquer outra pessoa. Já que Rinia já saberia – ela era uma
vidente afinal – pelo menos eu não a colocaria em perigo ao revelar o que
descobri.
Quando chegamos em frente à estreita fenda que servia de entrada para a casa
de Rinia, cocei Boo embaixo do queixo e atrás da orelha. “Você espera aqui,
garotão. Já volto.”
“Parece que me lembro de ter dito que não estava com humor para receber
visitas,” Rinia murmurou, de costas para mim. “E, no entanto, a maldição do
vidente é que eu não posso nem ficar surpresa que você não me ouviu.”
“Forte como um touro,” ela brincou, puxando o cobertor com mais força ao seu
redor.
“Rinia…” Eu comecei, mas minha garganta apertou e eu tive que fazer uma
pausa e me recompor. “Por quê? O que você tem-”
“Olhando, criança,” ela disse, sua voz baixa e coaxando. “Sempre olhando.”
Fiquei de joelhos na frente dela e peguei sua mão com as minhas, inclinando-
me para descansar minha bochecha contra ela. Sua pele estava seca como um
pergaminho e desconfortavelmente fria, considerando o calor escaldante na
caverna. “Pelo que? O que poderia justificar esse sofrimento?”
“Está tudo em jogo, agora. Minha casa… Elenoir…” Rinia parou, sua mão se
contraindo fracamente contra minha bochecha. “Foi só o começo. Dicatheanos,
Alacryanos… humanos, elfos ou anões… queimando. Nossas casas – nosso
mundo inteiro – vão queimar a menos que eu veja…”
“Veja o quê?” Eu perguntei depois de uma longa pausa. “O que você está
procurando?”
Meu coração estava martelando no meu peito. Odiava esses jogos, mas o que
eu sentia era mais pena pela mulher idosa do que frustração. Estava mais claro
do que nunca que ela realmente estava tentando ajudar. “Isso tem algo a ver
com o que Virion e Windsom estão escondendo, não tem?”
Ela se virou, ajustando seu corpo sob o cobertor e causando uma sinfonia de
estalos e rangidos. “Não se envolva, criança. É uma situação… delicada. Seus
instintos estavam certos: não se envolva. Independente da nossa opinião
sobre o que foi feito, bater cabeça com o Virion agora só leva à catástrofe. Nós
dois sabemos que você não precisava vir me ver para confirmar isso.”
“Você…” Lutei contra o desejo de pressioná-la sobre o que ela sabia e quando.
Parecia que sempre acabava me sentindo amargamente desapontada. Mas a
tensão cresceu dentro de mim até que as palavras meio que saíram. “Você
sabia o que aconteceria com Tessia – comigo – quando eu lhe perguntei sobre
a missão?”
“Estava destinado que Tessia cumpriria seu papel como recipiente para a arma
de Agrona,” ela disse, fechando os olhos e afundando de volta em sua cadeira.
“Tudo o que pude fazer foi tentar providenciar as circunstâncias mais positivas
em que isso aconteceria.”
“Você poderia ter dito. Você poderia ter me dito que Tess não deveria ir. Virion
a teria impedido, ele—”
“No futuro que você descreve”, ela retrucou, “a caravana de escravos seria
salva, mas Curtis Glayder opta por não ir a Eidelholm e resgatar o resto dos
elfos detidos lá. Uma dessas jovens, enquanto implora a seu novo mestre para
não a profanar, oferece informação, a única coisa que ela tem de valor: o nome
de um homem que ajudou outros a escapar dos Alacryanos.”
“Então e quanto a Arthur? Por que dizer a ele para não deixar os Alacryanos
ficarem com ela?” Eu perguntei, minha voz falhando um pouco quando eu disse
o nome do meu irmão. “Por que ele teve que… teve que…” Eu engasguei com a
frase, afastando-me da anciã para esconder minhas lágrimas.
“Eu sei, criança.” Ela estendeu a mão trêmula em minha direção, mas eu me
afastei alguns centímetros e, eventualmente, sua mão caiu lentamente. “Eu
sei.”
Rinia estremeceu, um tremor lento que pareceu começar em seu peito e ir para
fora até passar pelos dedos dos pés. “Como diabos eu vou saber? Uma peça
de quebra-cabeça que não cabe, é o que seu irmão era. Eu nunca pude
realmente ver seu futuro, não como o de outras pessoas.”
Ela balançou a cabeça. “Não é fácil, criança. A nossa vida se resume em mover
um pequeno graveto flutuando em um lago, de um lado para o outro da água.
Mas você só pode movimentá-lo jogando pedras no lago e deixando que as
ondas o levem. E a questão é: você está com os olhos vendados. Às vezes, o
vento sopra forte e sopra o graveto. Eu não sou diferente. Mas talvez eu esteja
com um olho aberto, e eu posso ver todos os seus gravetos e as ondulações
que os movem, mas todos estão sempre interrompendo o fluxo jogando suas
pedras ao acaso, bagunçando ainda mais…”
Trazendo meus joelhos até o peito, me enrolei em torno deles. Meus olhos
ardiam, minha garganta estava inchada, mas não deixei mais lágrimas caírem.
Eu cerrei meus dentes e me belisquei. As lágrimas reprimidas não eram pelo
meu irmão, pela Tessia, ou mesmo por mim… eram por todos, por tudo. Uma
tristeza vinda do meu âmago se apoderou de mim, fria e de alguma forma
reconfortante, como um manto de neve. Eu senti como se a pressão, a
motivação de fazer alguma coisa, de revidar e mudar as coisas, estivesse se
esvaindo. Os problemas do mundo eram tão grandes que não havia mais nada
que eu pudesse fazer para salvá-lo.
Mas eu não queria perder as esperanças. Eu não queria desistir, deixar todo
mundo lutar para ter de volta nosso futuro enquanto eu me escondia,
confortável em minha desilusão.
Uma onda de calor saiu do meu núcleo, limpando minha mente e queimando
o manto frio da apatia.
“Não ache que você pode me dizer o que eu devo ou não devo fazer, criança,”
ela retrucou.
Eu ajudei a guiá-la da melhor maneira que pude, até que ela estivesse
descansando no chão ao meu lado, se recostando no Boo, assim como eu.
“Esperança nem sempre é uma coisa boa”, disse ela, ofegando ligeiramente.
“Quando perdida, pode quebrar o espírito de uma pessoa. Quando falsa, pode
impedir as pessoas de cuidarem de si mesmas.”
Rinia se inclinou para o lado de forma que sua cabeça estava descansando no
meu ombro. “Há um lugar certo e uma hora certa. E eu sei quando e onde é.”
Fiquei com a Vovó Rinia por mais algumas horas, eventualmente ajudando ela
a se sentar na cadeira, servindo uma tigela de sopa e relembrando a época em
que mamãe, papai e eu tínhamos nos escondido junto dela em uma outra
caverna secreta. Mas eventualmente o cansaço tomou conta dela, então eu a
ajudei a ir para a cama e fui embora.
Outro grunhido.
ANCIÃ RINIA
Assim que a criança Leywin e sua besta finalmente partiram, voltei ao meu
trabalho.
Deitada na cama, encarei o nada, meus olhos físicos agora inúteis. Mas isso
dificilmente importava. Apenas meu terceiro olho era necessário, aquele que
podia ver além do aqui e agora para o que poderia ser.
Meu núcleo doeu quando ativei a mana e me esforcei para reunir força
suficiente para lançar o feitiço. Maldito corpo velho, amaldiçoei a mim mesma.
Mas eu sabia que, na verdade, meu corpo físico tinha resistido por muito mais
tempo do que deveria.
Foi minha irmã quem aprendeu a poção que pôde fortalecer nossos corpos,
mesmo enquanto nossa força vital se esvaia. Tarde demais para que ela
mesma se beneficiasse – mas, mesmo em meio a seus esforços ardorosos para
salvar a vida de Virion, ela nunca se forçou como eu estou fazendo.
Quando não gostei do que vi, encontrei um fio ramificado e me deixei levar.
Eu sabia onde precisava estar e quando. Mas havia mais do que apenas estar
no lugar certo na hora certa, independentemente do que eu tinha dito a Ellie.
A viagem era tão importante quanto o destino.
O que só tornava ainda mais frustrante saber que meu tempo estava
acabando.
Dando um suspiro trêmulo, peguei o próximo fio, depois o próximo e o próximo
depois disso.
ELEANOR LEYWIN
O túnel estava enevoado e o ar tinha um cheiro forte e enjoativo que fez meu
estômago apertar e minha cabeça girar.
Minha mente estava lenta por causa do cochilo e eu estava com dificuldades
pra me manter acordada, mas tinha certeza de que havia algo errado com Boo.
Ele estava andando devagar, respirando fundo, bufando, com dificuldade…
Boo tropeçou mais uma vez, enviando uma sacudida desconfortável no meu
estômago.
Tentei alcançar meu arco, mas não consegui tirá-lo das minhas costas. Uma
das pernas de Boo cedeu e eu caí pesadamente no chão. Eu sabia que deveria
ter doído, mas tudo que podia sentir era o desejo irresistível de fechar os
olhos.
“Boo…?”
Soltei uma risadinha estúpida ao som da minha própria voz, arrastada e boba.
Eu sabia que deveria estar com medo, mas realmente, eu só senti vontade de…
ir… dormir…
“Calma, garotão”, disse uma das silhuetas, com a voz abafada pelo pano.
Boo rugiu e se lançou, sua enorme pata embriagada golpeando as figuras. Eles
se esquivaram, mas ouvi uma respiração sibilante e uma maldição.
“Leywin…”
“Desculpe, Eleanor.”
Meus olhos se abriram, ou pelo menos foi minha impressão. Tudo estava cinza
e confuso. Minha cabeça parecia estar cheia de teias de aranha, e minha boca
e garganta estavam tão secas que doíam. Pisquei novamente várias vezes,
lentamente.
“Mamãe?”
Eu ri ao som da minha própria voz, que coaxou como um sapo velho e gordo.
O barulho morreu instantaneamente quando minha respiração ficou presa no
meu peito, e eu percebi com clareza que algo realmente ruim havia acontecido.
“Mamãe? Papai?”
Uma sombra se moveu pela minha visão turva e vozes distorcidas invadiram a
teia de aranha dentro do meu cérebro. Eu não conseguia entende-las.
“I-irmão? Irmão!”
As vozes falavam coisas sem sentido e uma das figuras se aproximou. Levantei
minhas mãos para afastá-los e fiquei chocado com um tilintar metálico e a
sensação de frio em meus pulsos.
“Irmão—”
Tudo voltou de uma vez, forçando um suspiro sufocado. Meu pai e meu irmão
estavam mortos. Rinia, o gás… Boo!
“Boo!” Eu gritei, sem tentar esconder meu pânico. Ele deveria estar comigo, eu
sabia. Ele deveria se teletransportar para mim, estar bem ao meu lado. “O que
você fez com o Boo?” Comecei a soluçar.
“Albold…?”
“Por favor, acalme-se, Ellie”, disse ele com firmeza, soltando meus ombros.
“Boo está ileso, embora eu não possa dizer o mesmo de nós. Nós o deixamos
nos túneis. Eu teria preferido fazer isso de uma maneira diferente,
mas devemos saber o que você sabe.”
“Nós… o quê?” Eu balancei minha cabeça, tentando limpar a última das teias
de aranha. “Você… você me atacou!” Eu olhei para ele acusadoramente.
Uma segunda figura apareceu para descansar sua mão no ombro de Albold. O
capuz do elfo magro ainda estava levantado, mas o pano que cobria seu rosto
havia sido removido. “Precisamos da verdade, Eleanor. Não pensamos que
você nos contaria, a menos que não tivesse escolha.”
“Feyrith, você… seu… seu idiota!” eu rosnei. Inclinando-me para trás, gritei:
“Boo! Boo, socorro!”
Pop!
Um rugido como terra e pedra sendo rasgada explodiu bem ao meu lado, e
Albold foi arremessado para trás da caverna, batendo com força na pedra
dentada. Uma parede peluda se moveu na minha frente, respirando
pesadamente e rosnando de raiva e medo.
Uma barreira espessa de água apareceu com um whoosh e dividiu a caverna
ao meio, separando Boo e eu de Albold e Feyrith, embora eu só pudesse ver as
bordas ao redor do enorme corpo de Boo.
A voz de Feyrith foi abafada quando ele gritou, “Eleanor, por favor, ouça! Não
vamos te machucar, só precisamos conversar.”
Albold estava se limpando, e notei que sua calça estava rasgada e ele tinha
uma bandagem em volta da perna, encharcada de sangue. Ambos os elfos
estavam observando meu vínculo com cautela. Eu dei um tapinha no ombro
de Boo.
Feyrith liberou seu feitiço e a parede de água caiu, drenando para o chão e
deixando pedra seca para trás. Suas mãos estavam levantadas em um gesto
de paz quando ele deu um passo à frente. “Nós sabemos que Virion está
mentindo, Eleanor. Sua história não faz sentido. E sabemos que você falou com
o asura, Windsom, e que visitou a velha vidente.” Suas mãos caíram para os
lados e agarraram as pontas de sua capa desesperadamente.
Albold rangeu os dentes audivelmente. “Não tenho ideia de por que uma
menina de doze anos está tão envolvida em tudo isso, mas precisamos saber
o que você sabe.”
Eu dei a língua, agindo como a idade que eles pensavam que eu tinha e
atraindo olhares chocados de ambos os elfos. “A verdade é uma merda! Sabê-
la não ajuda, confie em mim.”
Albold tinha uma expressão séria e desesperada, mas Feyrith parecia estar se
encolhendo. “Você não é uma elfa, Eleanor. Você não tem como saber como é
isso.”
Eu abri minha boca para responder que eu sabia o que era perder pessoas,
mas as palavras morreram na minha garganta.
“Eu sei que você também perdeu pessoas, Eleanor…” Feyrith disse, dando meio
passo à frente, mas congelando quando Boo soltou um rosnado baixo. “Eu não
conhecia seu pai a fundo, mas… Arthur Leywin era meu maior rival e um amigo
próximo. Sua perda afetou a todos nós.” A voz de Feyrith estava tremendo.
“Mas eu perdi todo mundo, você entende? Minha…”
O elfo cedeu, seu rosto se contorceu enquanto as lágrimas corriam por suas
bochechas e soluços chacoalhavam seus ombros. Ele pressionou a mão sobre
os olhos, curvando-se ainda mais. Em meio aos soluços, ele disse: “Minha
família inteira… eles… eles se foram.” Ele afundou no chão, e Albold ajoelhou-
se desajeitadamente ao lado dele, sua expressão ilegível.
Feyrith enxugou o rosto com a manga e respirou fundo, trêmulo. “Eu tentei
salvá-los… mas fui pego… nem cheguei perto. Deixei-os contra a vontade deles
para frequentar a Academia Xyrus… para ser mais do que apenas o quarto filho
de uma família nobre, mas falhei com eles, entende? E agora eles… se foram…”
Eu me inclinei contra Boo, correndo meus dedos pelo seu pelo e ouvindo seu
coração martelando em meus ouvidos, mais alto do que o o som de meus
dentes rangendo. “Ok. Eu vou dizer.”
Capítulo 360
Relíquia de Sangue III
CAERA DENOIR
Meu olhar estava fixo nas costas de Grey enquanto andávamos pelo labirinto,
em silêncio, exceto pela bajulação constante de Kage. Apesar de que agora o
Grey parecia perfeitamente bem, era difícil ignorar a memória dele deitado
imóvel, com a sua garganta cortada…
Eu fechei meus olhos com força, piscando para esquecer essa imagem, e me
concentrei na tagarelice constante vindo de Kage enquanto ele nos guiava em
direção ao portal de saída que tinham escondido.
“… não é realmente minha culpa, entende? Quando o Rato viu como as pessoas
apenas iriam embora depois de um tempo, depois de decidirem que a relíquia
não poderia ser reivindicada, ele apareceu com a ideia de fechar o portal e
forçar as pessoas a ficar. Eu simplesmente concordei… o que mais eu poderia
ter feito?”
A forma grande e bruta de Kage se encolheu sob o meu olhar apesar do fato
de que nós não tínhamos nos incomodado em restringi-lo com algemas de
contenção de mana. Mesmo assim, ele ainda estava com espírito de luta, e eu
podia sentir sua mana queimando em fúria.
Meus olhos se fixaram novamente nas costas de Grey enquanto ele se movia
quietamente atrás de Regis, deixando o lobo das sombras conduzir Kage até o
nosso destino.
Ele sabia que Kage não era uma ameaça pra mim, mas a verdade era que Grey
ainda tinha silenciosamente pedido sua completa confiança. Eu fui deixada
pra trás como garantia, como uma donzela em perigo — um estereótipo de
fraqueza e fragilidade contra o qual eu estive lutando minha vida inteira — e
Grey esperava que eu me colocasse em um estado de vulnerabilidade sem
mesmo a oportunidade de questionar ou entender o que ele estava fazendo.
“É bem aqui, certo,” ele murmurou, dando a Regis um sorriso banguela, como
um servo espancado procurando pela aprovação de seu mestre arrogante.
Kage ficou pálido antes de levar as mãos para a parede de pedra. A terra
tremeu e ruiu para os dois lados, escorregando como lama em um deslize de
terra repentino, e revelando um túnel escondido. Regis guiou nosso
prisioneiro relutante para a passagem, que levava a um beco sem saída. Kage
repetiu o feitiço, abrindo uma segunda passagem secreta, que levava a uma
terceira, a uma quarta até finalmente chegar numa caverna redonda.
Regis o observou ir com uma expressão de leve diversão em sua face de lobo.
Sem nem mesmo olhar pra trás, Grey disse, “Livre-se dele,” e Regis saiu em
uma disparada.
Grey parecia já ter tirado Kage de sua mente e sua atenção estava inteiramente
no portal. Ele deu duas voltas em torno dele, encarando a profundeza opaca
como se ele pudesse ver o que estava esperando do outro lado.
Suas roupas estavam rasgadas onde ele havia sido apunhalado, e manchadas
com sangue. Eu não entendia ainda completamente o que havia acontecido.
Grey não tinha explicado como ele havia desativado o escudo, apenas como
ele havia pego a relíquia e ordenado Kage a nos liderar até o portal. Ele esteve
calado quase o caminho inteiro.
Balançando minha cabeça, eu perguntei, “Então? Você vai dar uma olhada na
relíquia ou trapos esfarrapados são uma parte de sua nova imagem agora?”
Ele revirou os olhos, mas ativou sua runa dimensional e pegou a relíquia.
A roupa de batalha desapareceu, deixando para trás uma nuvem vaga de luz
roxa que sumiu um momento depois.
Com os cantos de sua boca se contorcendo, Grey fez algo — um tipo de força
mental que aumentou a pressão do ar ao nosso redor e deixou os cabelos da
minha nuca em pé — e os mantos reapareceram, envolvendo seu corpo. Ele
estendeu seus braços para os lados, examinando o efeito.
Ele estava ridículo. Eu abri minha boca para dizer a ele isso, mas congelei. Os
mantos estavam se movendo, o tecido seco ondulando como água lamacenta,
escolhendo-se para se adaptar ao corpo dele.
ARTHUR LEYWIN
“Wow,” a voz familiar de Regis disse enquanto ele galopava de volta para a
pequena caverna. “Que diabos aconteceu enquanto eu estava fora?”
“Ayy! Xarás de chifres!” Regis deu uma risada gutural. “Nós podemos ser o trio
de cornos.”
“Uma manifestação de éter,” eu finalizei por ele. “Como energia ligada à uma
forma física.” Curioso, eu estendi meu braço. “Regis, me morda.”
Regis soltou e deu patadas na sua língua. “Urghh. É como passar minha língua
numa bateria. Minha boca tá toda formigando agora.”
“Eu não quero dar ainda mais motivos pra pensarem que fomos nós que
pegamos a relíquia,” eu respondi. “O túnel que leva até aqui é óbvio o
suficiente agora, e eles vão inevitavelmente começar a procurar de novo, agora
que Rato e Kage se foram. Eles vão encontrá-lo.”
Caera pareceu incerta, mas se moveu para ficar de pé ao meu lado em frente
ao portal. “Faça sua coisa com a Bússola, então.”
Assim que Regis voltou pra dentro do meu corpo, nós entramos na cortina
escarlate juntos.
E, então, nós nos encontramos em uma paisagem dos sonhos bizarra que
minha mente lutava para aceitar. Era como o corredor de branco estéril que
Regis e eu tínhamos navegado para alcançar a primeira ruína djinn, só que…
Com cuidado, eu dei um passo para frente e minha perspectiva mudou. Caera
estava lá, encostada contra uma seção incompleta de parede. O chão abaixo
de nossos pés estava girando lentamente, trazendo à nossa visão outra parte
do corredor desunido e, bem longe, um vórtex de cristais negros esmagados,
que estava pulsando conforme as peças se recombinavam para formar um
portão, depois se quebravam de novo, repetindo isso a cada alguns segundos
de uma maneira que era difícil de olhar.
“Está tudo bem,” eu disse, pegando o braço dela. “Eu estou aqui.”
Os olhos de Caera tremeram e se abriram, e ela deslizou seu braço para fora
do meu e se endireitou. Ela estava pálida e suando levemente, mas se segurou
contra a desorientação nauseante da zona em colapso. “Que lugar horrendo…”
“Eu não acho que é pra ser—” olhando para Caera, eu percebi com uma
surpresa de pânico que os seus chifres estavam visíveis.
Quando eu abaixei minha cabeça para olhar através da aura estreita — uma
zona de um centímetro ao meu redor onde o espaço era forçado de volta ao
formato correto — eu podia ver o corredor inteiro, não quebrado, se
envolvendo ao nosso redor.
Com Caera ao meu lado — ela desembainhou sua espada para ajudá-la a
manter o equilíbrio conforme ela caminhava por um corredor que não poderia
ver totalmente — eu nos guiei pela passagem, usando a imagem filtrada
através da aura nebulosa que cercava minha armadura, navegando até que
ficássemos de pé diante do portal de cristal negro.
A voz de Regis soou meio difusa quando ele disse, ‘Nós precisamos fazer algo,
chefe. Eu não acho que Caera vá durar muito aqui.’
Caera cambaleava levemente, seus olhos fechados com força contra a
dolorosa visão surreal do portão, que se quebrava e se refazia. “O que está
acontecendo, Grey? Eu não aguento abrir meus olhos…”
Apenas dois halos continuavam suas revoluções lentas. A julgar pela massa de
pedra esmagada na base do pedestal, estava claro o que havia acontecido com
os outros dois.
Como antes, um pequeno cristal passava bem por cima do pedestal, pulsando
com uma luz inconsistente de lavanda. E como antes, algo dentro do cômodo,
algo além do cristal, continha uma quantidade monstruosa de éter.
Uma mulher saiu de trás do pilar. Caera levantou sua lâmina defensivamente,
mas eu pus minha mão em seu ombro, tranquilizando-a. Ela me deu um olhar
questionador antes de abaixar a arma lentamente.
Ela mal tinha 1,5m de altura, e era tão fina que parecia frágil. Sua pele era de
uma cor rosa-lavanda discreta, seu cabelo cortado curto era ametista, e ela
usava apenas shorts brancos e um top, o que deixava à mostra os padrões
entrelaçados de runas de feitiço que cobriam cada centímetro de seu corpo.
Ao contrário da primeira projeção de djinn que conheci, que era serena tanto
em movimento quanto em atitude, o olhar inabalável e a graça nobre dessa
mulher carregavam uma intensidade furiosa que parecia irradiar dela como o
calor de uma fogueira.
Ela me deu um sorriso fraco e triste. “Então alguém recuperou minha criação
afinal. Na verdade, eu esperava que seu templo ficasse imperturbável até o
fim dos tempos.”
“Sua criação?”
Ela inclinou sua cabeça, gesticulando para a armadura que eu vestia. “Quando
ficou claro que o Clã Indrath preferiria destruir nosso povo do que aceitar que
nós não daríamos a eles nosso conhecimento de éter, eu tentei formar uma
resistência contra eles. Os muito poucos que estavam dispostos a revidar me
ajudaram a forjar essa armadura, mas era pouco demais, e tarde demais. Invés
de vesti-la eu mesma e avançar sozinha em uma batalha perdida, eu designei
a zona onde você a encontrou, nas esperanças que ela poderia um dia ser
reivindicada por alguém disposto a lutar contra os asura.”
Caera me deu um olhar incerto. “Grey, o que está acontecendo? Essa é uma…
uma maga antiga?”
“Eu tenho algum eco da memória dele, e eu sabia que você estava vindo. Eu
tinha esperança que você chegasse antes que o artefato que abriga minha
consciência falhasse completamente.” Com o pé, ela cutucou um pedaço dos
halos de pedra quebrados. “Meu senso de tempo é… inexato, mas eu sei que o
tempo que eu tenho restante é limitado. Nós deveríamos começar o teste em
breve.”
“Nós vamos lutar um contra o outro?” Eu perguntei à mulher djinn, que havia
nos observado curiosamente enquanto eu explicava.
Ela sorriu ironicamente. “A ironia de ter sido designada aqui é que minha
tarefa é administrar um tipo diferente de teste. Uma punição por declarar que
nossa ociosidade contra os dragões resultaria em loucura e fracasso, ao
contrário de paz.”
Ela estendeu uma mão para prevenir as perguntas já se formando nos meus
lábios. “Entretanto, o fato de que eles não me proibiram de passar adiante as
artes marciais que desenvolvi em vida diz muito sobre a sua passividade, sua
incapacidade de compreender o desejo de lutar — de se defender. Ao me dar
uma tarefa com um teste mental invés de um físico, eles presumiram que eu
simplesmente faria o instruído e nada mais.”
“Como eu disse: mente pequena.” Então uma segunda lâmina apareceu em sua
mão direita. Ela cruzou as duas na sua frente, suas pontas afiadas marcando
linhas gêmeas na pedra em seus pés, e quando se tocaram, faíscas voaram
sibilando e estourando no ar.
“Você mostrou que tem força para revidar, para atacar e derramar o sangue de
nossos inimigos. Você é exatamente por quem eu estive esperando, e eu vou
treiná-lo para manipular o éter não apenas como uma ferramenta de criação,
mas como uma verdadeira arma de destruição.”
Capítulo 361
A Segunda Ruína
Meus olhos permaneceram fixos nos sabres gêmeos de éter brilhando nas
mãos da mulher djinn. Admiração, excitação e inveja circularam por mim
enquanto eu examinava suas criações quase perfeitas até que me forcei a
desviar o olhar. “E quanto à sua tarefa de me julgar?”
“Ela já começou,” ela respondeu com confiança. “Vou julgar o seu valor
enquanto lutamos.” Ela girou nos calcanhares e a sala desapareceu,
derretendo minha armadura e tudo ao nosso redor em um espaço vazio
branco. “Não perca tempo agora.”
Eu girei, aparando seus ataques com um golpe em suas mãos antes de forçar
o éter a assumir a forma de uma lâmina nebulosa. Aproveitando o curto
instante enquanto ela levantava suas espadas, eu me lancei em sua lateral
com minha adaga.
Faíscas queimaram com o impacto, mas a única arma remanescente era a dela.
A djinn mal esperou por mim e partiu pro ataque, suas lâminas gêmeas se
tornando uma enxurrada de golpes cruzados, decididos a me despedaçar.
Eu invoquei lâmina após lâmina, cada vez forçando mais para manter a forma
unida, para segurá-las enquanto redirecionava seus ataques, mas nenhuma
durou mais do que um único golpe.
Caí sobre um joelho com a força e, no momento em que olhei para cima, seu
cajado havia se tornado um martelo de guerra.
“Se você tivesse escolhido atacar com o punho, eu provavelmente não teria
sido capaz de bloqueá-lo,” ela admitiu, seus olhos afiados parecendo olhar
através de mim ao invés de para mim. “Sua mente parece ter associado esta
runa divina com o elemento relâmpago de mana. Explica muito sobre suas
tendências ao usar éter.”
Eu congelei antes de responder, percebendo que ela havia usado meu nome
verdadeiro.
O cabelo curto da djinn balançou enquanto ela inclinava a cabeça para o lado.
“Você já está se sentindo incomodado com esse nome?”
Seus olhos brilhantes vagaram por mim como holofotes. “O que você quer,
Arthur?”
Isso faz parte do teste? Eu pensei, mas em voz alta, disse, “Não tenho certeza
se essa é a pergunta certa. O que eu preciso é aprender como controlar o
Destino.”
“Se o Destino fosse algo que pudesse ser simplesmente ensinado, passado de
pessoa para pessoa, então nosso universo poderia muito bem caber dentro de
um globo de neve.” Ela apoiou o queixo nas costas da mão enquanto
continuava a me devorar com os olhos. “Não. O que você quer é poder. O poder
pra proteger todos os seus entes queridos e derrotar seus inimigos.”
Eu cruzei meus braços. “Mas isso não é a mesma coisa? Mesmo com todos os
quatro elementos base à minha disposição, não consegui derrotar nem uma
única Foice. Eu quero — preciso — de algo mais forte. Pelo que me disseram,
esse algo é o Destino.”
Ela se ergueu mais uma vez, arrancando sua lâmina de éter do chão. “Então
você terá que abrir sua mente para novas ideias. Você está se restringindo ao
tentar ver o éter pela perspectiva da mana, equiparando um ao outro. Só
depois de entender o éter por si só é que você pode começar a entender o
Destino. Agora forme sua lâmina. Mostre-me que você entende.”
Eu não hesitei, me lançando para frente e fintando para a direita. Quando sua
lâmina se moveu para interceptar, conjurei uma segunda adaga e empurrei em
suas costelas pela esquerda.
“Porque não sou forte o suficiente para manter uma forma tão complicada,”
respondi honestamente.
Ela franziu a testa para mim como se eu fosse uma criança tola. “Errado. Você
é mais forte do que o necessário. Mais forte do que eu – pelo menos, esse resto
de mim, contida no cristal de memória. Mesmo assim…”
Ela olhou para mim com raiva, e todas as quatro lâminas apontavam para meu
rosto. “Não é poder que falta. É perspectiva. Como humano, sempre se esperou
que você construísse a partir do que já sabe. Engatinhar, andar e depois correr,
certo? Para manejar o éter, você deve esquecer que existem regras para as
coisas. Restringir-se a um sistema que já existe ao seu redor apenas te atrasa.
Não tente andar ou correr. Ignore a gravidade e simplesmente voe.”
Eu não pude deixar de jogar para ela um sorriso divertido. “Já aprendi a voar—
”
Uma das lâminas voadoras acertou meu pescoço. Eu a desviei com uma lâmina
de éter minha, mas ela se estilhaçou. A segunda espada voadora passou pela
lateral do meu joelho, enquanto as duas que ela segurava apunhalaram meu
peito e quadril. Lembrando-me das lições de Kordri, assumi uma posição
defensiva e usei movimentos curtos e rápidos de ambas as mãos e pés para
interceptar ou evitar cada golpe, conjurando várias adagas etéreas, uma após
a outra, cada uma evaporando sob a pressão de seus ataques.
“Isso é porque você está esperando que eu diga o que fazer, como se
estivéssemos aprendendo manipulação de mana naquela sua academia,” ela
disse brevemente. “Mas eu não posso.”
Eu franzi o rosto para ela. “Você alega que quer me ensinar, mas também que
eu deveria simplesmente puxar esse conhecimento do ar, manifestando-o
como se fosse mágica.”
Ela fez uma pausa, seus olhos perscrutadores olhando profundamente nos
meus. “Eu mencionei suas tendências antes. Você não consegue formar uma
verdadeira arma de éter porque trata o éter da mesma forma que trataria a
mana. Você sente uma necessidade constante e cada vez maior de estar no
controle, Arthur Leywin. Do seu corpo, da sua magia, da sua vida. Com mana,
esse desejo, juntamente com a profundidade de sua confiança, permitiu que
você progredisse a uma velocidade notável. Mas com o éter, isso só resulta em
uma barreira entre você e o que deseja.”
“Sim,” eu disse lentamente, sem saber aonde ela queria chegar com isso.
“Você controla seus pulmões?” Perguntou ela. “Você força cada respiração,
absorvendo apenas a quantidade certa de oxigênio em seu corpo? Você para
de respirar se não se concentrar?”
Ela estalou os dedos e apontou para mim. “Sim, pode. Mas se você se
concentrar em cada respiração que faz ao longo de um dia, uma semana, um
ano, isso de alguma forma o tornaria melhor em respirar?”
Eu fiz uma careta e comecei a bater meus dedos no meu tornozelo. “Não,
embora praticar o controle sobre a respiração ajude a…”
Ela estendeu a mão e deu um tapa na lateral da minha cabeça. “Não seja
espertinho. Mantenha o foco.”
Mas…
“Então você está dizendo que o éter que absorvo e purifico dentro do meu
núcleo… posso exercer uma influência tão forte sobre ele porque é… o quê?
Ligado a mim?”
A mulher djinn riu e balançou a cabeça quando uma única lâmina apareceu em
suas mãos. “Não. Mas com mais prática e menos conversa, você vai.” Seu rosto
tão sem emoção quanto pedra, ela avançou, sua lâmina apontada para o meu
núcleo.
Depois do que pareceram dias, nossa luta continuou inabalável. Eu fui forçado
a me lembrar de meu tempo no treinamento de orbe de éter com Kordri
enquanto a djinn e eu lutávamos um contra o outro até um impasse, nossas
batalhas durando horas seguidas. Nenhum de nós se conteve, nem cedemos
um centímetro ao outro. A djinn poderia invocar várias armas ao mesmo tempo
e mudar suas formas com uma precisão instantânea e imprevisível, mas eu era
o melhor espadachim.
E pela primeira vez desde que a Canção do Amanhecer se espatifou, eu tinha
uma espada de verdade novamente.
Levou algum tempo para que a mensagem forçosa da djinn fosse absorvida,
mas não foi a primeira vez que tive que reaprender algo que achava que sabia
bem. Lentamente, ao longo de horas ou dias, pratiquei deixar minha intenção
moldar a lâmina de éter.
Na prática, o conceito era semelhante ao que aprendi com a Three Steps para
perceber os caminhos etéreos do Passo de Deus sem primeiro ter que “vê-los”.
Enquanto antes a sensação era de tentar moldar água com minhas próprias
mãos, depois tornou-se tão confortável e natural quanto fechar minha mão
em um punho, embora manter a lâmina ainda exigisse quase toda a minha
concentração.
Sempre que minha lâmina de éter cruzava com uma das muitas armas da djinn,
um zumbido profundo e ressonante enchia o ar, e o espaço ao redor delas
parecia deformar, flexionando levemente para fora e causando uma distorção
visível. Dava a impressão de que nosso combate estava alterando a própria
estrutura do mundo ao redor, e eu tive que me perguntar se isso era
meramente devido ao fato de estarmos em um reino inteiramente mental –
alguma representação de minha mente crescendo com o uso da lâmina – ou
se esta simulação mental estava retratando com precisão o verdadeiro
impacto físico das armas de éter.
Eu dei um Passo de Deus para atrás dela, mas não conseguia manter a
concentração na lâmina etérea durante aquele espaço intermediário. O tempo
que levou para reformar a lâmina me custou a vantagem que eu tinha, dando
à djinn tempo suficiente para girar para me encontrar e então saltar sobre meu
golpe apontado para sua cintura. Eu redirecionei o ímpeto do meu movimento
para um golpe sobre a cabeça, forçando-a a levantar sua própria arma – uma
espada novamente – para se defender.
Acionando o Passo de Deus, eu fui para o lado dela, então imediatamente dei
outro Passo de Deus para o lado oposto e formei minha lâmina, empurrando-
a em seu peito, mas ela já estava se movendo, suas muitas lâminas girando
para se defender de vários ângulos possíveis.
Repeti isso várias vezes, a cada vez tentando pegá-la desprevenida, atacando
de uma direção diferente, mas ela me acompanhava passo a passo, e nenhum
de nós foi capaz de desferir um golpe sólido contra o outro.
Então, de repente, suas armas desapareceram e ela piscou – não seus olhos,
mas seu corpo inteiro, como se ela tivesse ficado momentaneamente invisível.
Eu deixei minha própria espada desaparecer.
Ela acenou com a cabeça, mas eu não pude deixar de pensar que sua forma
não era tão brilhante quanto antes. “Temo que nosso tempo esteja se
esgotando. Devemos” — o vazio branco desapareceu, e estávamos mais uma
vez nas ruínas de pedra dilapidadas — “voltar para seus companheiros.”
“Tava sem pressa, amigão?” disse ele, mal-humorado. “Isso durou muito mais
do que da última vez.”
“Oh,” eu disse, já que não parei pra pensar na passagem do tempo enquanto
eu estava treinando com a djinn. “Quanto tempo faz?”
O cristal pulsou ao intervir, dizendo, “É uma pena que não tive energia para
continuar, mas manifestar o reino do pensamento é cansativo. No entanto,
acredito que você fez progresso suficiente para continuar treinando sua
técnica de lâmina de éter por conta própria.”
Eu não fiquei desapontado, já que esperava por isso. Além disso, eu tinha
muitas outras coisas com que me preocupar. O mistério das runas divinas teria
que ser resolvido algum outro dia.
“Há mais alguma coisa que você gostaria de me dizer antes de partirmos?”
Havia uma centena de perguntas que eu gostaria que o resto da djinn
respondesse, mas se estivéssemos com pouco tempo, eu não queria
desperdiçá-lo perguntando coisas que ela não poderia me dizer.
A luz lilás do cristal piscou silenciosamente por um minuto. “Não tente forçar
o mundo a se adequar às suas necessidades, mas você também não deve
aceitar as limitações deste mundo como ele é. Seu caminho é apenas seu, e só
você pode percorrê-lo. Eu sinceramente espero que minha criação o ajude
neste caminho. Ela atrairá o éter para você, tornando-o mais fácil de ser
absorvido, e o protegerá de quase qualquer ataque, mas não é impenetrável.
Um oponente forte o suficiente, com controle potente sobre mana ou éter,
ainda será capaz de feri-lo. Não os permita fazer isso.”
Uma parede da biblioteca era dominada por um portal sombrio, cuja moldura
era um arco de prateleiras repletas de cristais. A biblioteca estava cheia de
pequenos movimentos, já que pequenas imagens passavam pelas muitas
facetas das centenas de cristais, mas achei impossível focar nelas, e quando
fui pegar um, minha mão passou como se não estivesse realmente lá.
De frente para o portal, perguntei, “Será que conseguiremos usar isso?” Mas
não houve resposta do cristal.
“Isso é muito estranho,” disse Caera, passando diretamente por uma mesa
ampla. Ela moveu a mão pelas costas de uma cadeira. “Uma ilusão?”
“Acho que nós somos a ilusão,” disse Regis, farejando ao redor. “Não há
nenhum cheiro aqui. Apenas uma leve insinuação de algo como ozônio… como
se não houvesse nada neste lugar. Ou como se não estivéssemos realmente
aqui.”
Eu retirei a Bússola. “A djinn vinculou e moldou a realidade com éter aqui, mas
está começando a entrar em colapso. Este lugar é como três quartos diferentes
empilhados um em cima do outro… mas os limites entre eles não são estáveis.
Precisamos ir embora.”
Com muito em que pensar e ainda mais a fazer, deixei meu parceiro sozinho
enquanto me lembrava da armadura de relíquia. O traje preto etéreo de
escamas evaporou, mas eu ainda podia senti-lo, esperando que eu o chamasse
novamente.
Capítulo 362
Destino Entrelaçado
NICO SEVER
A outra Foice pressionou a mão contra o coração e deixou sua boca aberta
zombeteiramente. “Isso é jeito de falar com aquele que o treinou e cuidou de
você depois que trouxemos você de volta daquela ilhota de lixo, irmãozinho?”
“Eu não sou seu irmão,” eu disse irritadamente. “O que está fazendo aqui
mesmo?”
Ela me deu uma risadinha afetada, que ela sabia que eu odiava e fazia apenas
para me irritar. “Apenas alguns negócios de Victoriad. Viessa também esteve
aqui, mas saiu há poucos minutos, lamento dizer.” Seus olhos vermelho-
escuros, da cor de sangue coagulado, desviaram-se para se concentrar em
Cecilia. “Ah, o famoso Legado. A pele da garota élfica coube bem em você, devo
dizer. Esse cabelo é de morrer.”
Rosnei, me colocando entre Melzri e Cecilia. “Cale a boca e deixe-a fora disso.”
Senti Cecilia se mexer ao meu lado. “Nico, está tudo bem. Por que não vamos
apenas esperar em nossos quartos?”
“Não me importo com o que você tem a dizer, Melzri,” eu disse, tentando soar
como se estivesse falando sério. Sem pensar, peguei a mão de Cecilia, mas ela
se esquivou e a raiva correu para fora de mim como o ar expelido de meus
pulmões.
Melzri viu, mas em vez de zombar de mim, ela franziu a testa desapontada e
deu um passo para trás para bloquear o caminho à frente. “O Alto Soberano
não está disponível para falar com você neste momento. Você pode esperar
aqui ou voltar para o seu quarto.”
“É urgente—”
Melzri não se preocupou em responder, então eu virei minhas costas para ela
e caminhei até o canto mais distante da sala, próximo à porta da escada, onde
eu parei e olhei para um par de lâminas de rubi combinando, cruzado sobre a
crista do algum alto sangue extinto há muito tempo.
Os membros desse sangue ancestral viram o fim chegando para eles? Pensei
comigo mesmo. Sentiam-se seguros em sua nobreza, como se tivessem cavado
um lugar para si neste mundo, ou estavam sempre esperando que alguém
colocasse uma faca em suas costas?
Cecilia tinha me seguido, ficando ao meu lado, mas nunca me tocando, nunca
oferecendo conforto…
Precisando olhar para qualquer lugar, menos para Cecilia ou Melzri, deixei
meus olhos vagarem até o teto, onde um enorme afresco se estendia por todo
o corredor.
“Nico…?” Cecilia perguntou do meu lado. Eu podia sentir seu olhar em minha
bochecha, mas não me virei para olhar para ela. Eu não podia. Se eu virasse,
estava preocupado que eu podia quebrar.
Não deveria ter sido assim. Eu passei uma vida inteira tentando protegê-la,
primeiro de seu próprio ki monstruoso e depois de muitas pessoas que
procuraram usá-la, e esta nova vida foi dedicada a completar o ritual de
reencarnação e dar a ela uma segunda chance, mas quando eu finalmente
consegui, parecia que tudo havia dado errado para mim.
Agrona uma vez me bajulou da mesma maneira que agora tratava Cecilia… mas
ele se tornou desdenhoso e sarcástico em relação a mim. Ele tinha me enviado
para o Salão Principal sabendo quem este Ascendente Grey realmente era. Ele
deve ter feito isso, ou por que mais me escolheu para ir, e com tão poucas
informações? Mas não entendi suas motivações. Não foi nada mais do que um
jogo cruel?
“Como…” Ela parou, mordendo o lábio. Depois de vários segundos, ela respirou
fundo e tentou novamente. “Eu quero saber sobre minha morte.”
Minha mandíbula cerrou e eu cerrei meus dentes. Embora eu quisesse que ela
entendesse — queria que ela odiasse Grey tanto quanto eu — não consegui
falar.
“Você realmente—” Minha boca se fechou com um olhar do Alto Soberano, meu
argumento rejeitado antes que pudesse deixar minha boca.
Eu queria envolver meu braço em volta de Cecilia, puxá-la para perto de mim
para que eu pudesse confortá-la e protegê-la, mas em vez disso, não fiz nada
quando Agrona se aproximou. Ele afastou seu cabelo cinza metálico e colocou
os dedos contra suas têmporas. Ela fechou os olhos enquanto seu corpo ficava
rígido.
Ela se lembraria.
Essa memória, porém, a memória de sua morte… mesmo eu não queria isso na
minha cabeça, e eu desejei, não pela primeira vez, que Agrona me ajudasse a
esquecer isso. Cecilia não deveria ter que se lembrar também, mas ela tinha
que ver, ela tinha que saber o que tinha acontecido. Com Grey vivo, era apenas
uma questão de tempo até que eles se cruzassem. Ela precisava saber quem
ele realmente era. Não importava quantos nomes ele tivesse assumido ou
quantas vidas tivesse vivido… por dentro, ele ainda era o mesmo Grey frio e
egoísta. O homem que escolheu a realeza em vez de seus únicos amigos –
família – no mundo.
Cecilia estava caindo, caindo para trás, mas ele a segurou, pegando-a e
segurando-a nos braços como uma criança. “Calma, Cecil. Eu sei, e lamento
sobrecarregá-lo com a verdade sobre sua morte. Descanse agora.” Agrona
abaixou a testa até tocar a de Cecilia. Houve uma faísca de magia e sua
respiração tornou-se uniforme e lenta, e os gemidos cessaram.
Melzri estava ao lado deles, e Agrona entregou Cecilia – minha Cecil – para a
Foice. “Leve-a para o quarto dela. Proteja-a até que ela acorde, depois volte
para Etril.”
“Como você comanda, Alto Soberano.” Então ela estava marchando e levando
Cecilia com ela.
Depois que minha tosse acalmou, ele disse, “Você se esquece. Você está com
tanto medo de perder sua noiva pela segunda vez que o medo está rasgando
você por dentro.”
Mas agora, aqueles com quem eu me importava ainda estavam indo além de
mim e me deixando para trás. De novo.
“Você sabe por que foi reencarnado?” Agrona perguntou, afastando-se de mim
para olhar para um dos enfeites pendurados na parede. “Você reencarnou
porque era próximo a ela. Ambos Você e Grey. Para maximizar o potencial da
reencarnação – para garantir que o Legado fosse capaz de se integrar
totalmente a este mundo – uma espécie de matriz tinha que ser formada entre
suas vidas. Eu precisava de âncoras para segurar e amarrar o espírito do
Legado. Isso é tudo que vocês são.”
“Você vê e incentiva as mentiras que conto a Cecília, mas não acha que eu faria
o mesmo com você?” Agrona sorriu, uma expressão indiferente e desarmante
que não mostrava culpa ou arrependimento. “Utilizando o que aprendi com as
Relictombs, olhei através dos mundos até encontrar o Legado e, ao lado dela,
você e o Rei Grey.”
“Eu tentei a reencarnação em Grey primeiro, isso é verdade, mas sua alma
nunca chegou no receptáculo escolhido. Um simples erro de cálculo, pensei.
Ele ainda estava vivo, de volta ao seu mundo natal, a Terra, enquanto meus
preparativos para o Legado tinham assumido que uma alma havia passado de
sua bainha mortal.” Agrona inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, sua
língua passando por seus caninos afiados. “Nada disso importa agora, você
percebe? Há pouco ou nenhum ponto em discutir isso. Mas… suponho que
posso agradá-lo, Nico, nem que seja para vê-lo lutar para entender.”
Agrona encolheu seus ombros largos. “Embora eu possa explicar, não posso
fazer você entender. Pegando o que eu aprendi tentando despertar a
reencarnação do Rei Grey, comecei o processo de sua própria reencarnação a
seguir, no corpo de uma criança recém-nascida de uma família mágica
proeminente com algum sangue Vritra remanescente. Você chegou, como
planejado.”
“Mas eu precisava de duas âncoras,” continuou ele, “e Cecilia não era próxima
de mais ninguém. Tentamos alguns outros, mas nenhuma de suas almas era
forte o suficiente para reencarnar, então, por fim, deixei o experimento de
lado. Sem as âncoras apropriadas, a reencarnação do Legado era muito
arriscada; um vaso adequado não poderia ser forjado.”
“E quanto a mim, então? Minha infância? Tudo o que você fez comigo?”
“Nós não sabíamos quais benefícios sua reencarnação poderia trazer, então
eu o mantive aqui, ordenei que você fosse criado e treinado entre os Vritra.
Nós testamos você, experimentamos em você, e você provou que uma alma
reencarnada era de fato extraordinariamente potente. Isso manteve minha
esperança de que, algum dia, eu pudesse voltar ao meu plano, e o Legado seria
meu para controlar. E então…”
“Não foi até que Cadell a encontrou que descobrimos a verdade. Tenho certeza
de que Sylvia pensou que tinha escondido o menino, mas no instante antes de
usar sua maldita arte de éter para congelar o tempo, ele viu. Quem mais
poderia ser? Que criança humana poderia ser tão importante que Sylvia
drenaria suas energias e se revelaria aos meus caçadores para salvá-la? Assim
que soube o que tinha acontecido, eu soube.”
Acho que não. Agrona roubou esse potencial de mim, tudo apenas para me
trazer para perto de Grey.
“Você não poderia ter me enviado como um espião? Por que…” Eu engoli em
seco. “Por que pegar minhas memórias? Por que tirar esse tempo de mim?”
“Você acha que poderia ter evitado atacar Arthur no momento em que o viu?”
Ele perguntou com um sorriso zombeteiro. “Você poderia ter forjado uma
amizade e um vínculo verdadeiros nesta vida, se carregasse o preconceito de
sua antiga vida?”
“Sua raiva era uma variável indesejada. Por que eu correria um risco
desnecessário só por você? Tirando suas memórias – seu conhecimento de sua
própria reencarnação e nascimento em Alacrya – eu poderia trazê-los juntos
com mais segurança, as duas âncoras para a reencarnação do Legado.”
Uma mão pesada pousou no topo da minha cabeça e fechei os olhos. “Vocês
dois estavam presos pelo destino. Você, Grey e Cecilia formaram os três pontos
da matriz. Eu tinha certeza de que vocês encontrariam o caminho um para o
outro. Mas coloquei meus espiões em movimento, independentemente disso,
e eles expandiram nossa rede em Dicathen, e eu esperei.
“Passaram-se anos antes que ele ressurgisse em Xyrus. Mas nosso povo estava
bem posicionado ali para encontrá-lo, e uma vez que ele se revelou, não havia
como confundir os sinais: esgrima impecável, um mago quadra elemental,
despertado com apenas quatro anos de idade. E ele usava uma pena de
dragão em volta do braço.”
Ele me soltou e começou a se afastar pelo corredor, mas eu não tinha acabado
com ele ainda.
“E quanto a Grey?”
Agrona parou e se virou, franzindo a testa confuso, como se ele não pudesse
entender por que eu perguntaria sobre meu arquiinimigo. “Rei Grey… Arthur
Leywin… Ascendente Grey… seu nome não importa mais, porque ele não
importa mais. O papel dele está completo, assim como o seu. Eu suspeito que
ele sobreviveu porque minha filha de alguma forma se sacrificou usando as
artes do éter de sua mãe dragão, o que me serve muito bem. Sylvie sempre foi
o perigo maior do que seu pequeno amigo quadra elemental.”
“Mas como você sabia que este ascendente era o mesmo Grey? Por que…”
Respirei fundo, me segurando na imagem de Agrona profanada aos meus pés.
“Por que me mandar para o Salão Supremo se você já sabia?”
Senti a base que sustentava toda a minha nova vida mudar e começar a
desmoronar sob meus pés. Em ambas as vidas, Grey foi meu amigo mais
próximo e o inimigo mais odiado. Ainda mais do que Cecilia, sua própria
existência mudava completamente o curso de minhas vidas. Eu não iria
simplesmente permitir que ele vivesse, sabendo o que ele tinha feito.
E o que ele ainda pode fazer, pensei. Enquanto Grey viver, Cecilia não estará
segura.
E ainda assim Agrona o dispensou, dispensou a nós dois. Por que ele não
entendeu a ameaça que Grey representava?
O sorriso de Agrona se transformou em algo azedo, quase com pena. “Eu não
te devo nada. Mas se você deseja fugir e reconstituir sua vingança, fique à
vontade. Talvez matá-lo ajude a saciar seu eterno complexo de inferioridade.
Supondo que ele não te mate primeiro.” Agrona encolheu os ombros como se
ele realmente não se importasse de qualquer maneira. “Primeiro, porém,
retorne ao Legado e substitua Melzri. E não se esqueça. Cecilia é o futuro.
Certifique-se de que ela tenha tudo o que precisa.”
Agrona girou nos calcanhares e moveu-se com rapidez não natural pelo
corredor, deixando-me remoendo em minha decepção e raiva. Eu não preciso
de sua aprovação. Vou encontrar Grey. Eu vou encontrá-lo e vou matá-lo, e
desta vez, ele não vai voltar.
Capítulo 363
Resultados e Atenção
ARTHUR
“Quem diria que essa coisa simples contém uma percepção capaz de
reescrever o mundo,” eu pensei. Mesmo sabendo de tudo o que eu fazia, ainda
achava difícil acreditar que algo tão pequeno e… tangível continha os segredos
que poderiam permitir que alguém obtivesse uma percepção sobre o próprio
Destino.
Regis saltou do meu corpo e cheirou a relíquia. “Podia haver pelo menos
algumas runas brilhantes ameaçadoras ou algo para lhe dizer o quão
importante é.” Virando-se de costas para mim, ele cruzou o telhado e colocou
as patas no parapeito. “De qualquer forma, divirta-se com isso.”
Ele respondeu ainda de costas para mim, “Eu tenho meu próprio treinamento
para fazer.”
Regis enrijeceu, mas se recusou a olhar para mim. “Porque. Fui trazido a este
mundo para ser sua arma — seu protetor — mas ultimamente parece que não
estou fazendo nada disso. Devíamos ser parceiros, mas você fica cada vez mais
forte aprendendo novos editos do éter. Eu não quero apenas assistir enquanto
a lacuna entre nós aumenta.”
Pela primeira vez em algum tempo, não sabia o que dizer ao meu companheiro.
“Bem, você pode agradecer a Sylvie por essa atividade irritante de manter sua
bunda viva,” Regis zombou.
Soltei uma pequena risada e cutuquei o lobo das sombras. “Tudo bem, apenas
tome cuidado lá fora. O mundo é um lugar assustador para um cachorrinho.”
Ele virou seus olhos brilhantes para mim zombeteiramente. “Ha. Ha. Hilário.”
Então, em uma manobra que eu nem tinha certeza de que ele conseguiria,
Regis saltou da lateral da torre. Eu assisti enquanto ele despencava em direção
ao chão, chamas roxas se arrastando atrás dele como uma bandeira antes que
ele se tornasse incorpóreo e afundasse ligeiramente no chão.
Assim que ficou sólido novamente, Regis disparou para o norte, saindo do
campus em direção às montanhas. Ele, é claro, fez um esforço extra para
passar por uma pequena multidão de alunos, causando um coro de gritos,
antes de desaparecer de vista atrás de outro prédio.
Eu segui seu progresso por um tempo, ainda capaz de senti-lo mesmo
enquanto a distância entre nós aumentava. Ele parecia estar indo para as
montanhas. Eu me perguntei brevemente se a energia que nos unia o
permitiria ir tão longe, mas nós dois sentiríamos se ele começasse a alcançar
a distância máxima que ele poderia estar longe de mim. Já que não tínhamos
testado esse aspecto de nosso relacionamento desde a zona da ponte que
atravessei com os Granbehls, eu realmente não sabia até onde ele poderia ir.
Eu tenho certeza que ele vai ficar bem, eu disse a mim mesmo, me
concentrando de novo na razão pela qual eu havia subido nessa torre em
primeiro lugar.
O cubo preto caiu pesadamente em minhas mãos enquanto eu olhava para ele.
Um minuto se passou e depois outro enquanto eu analisava a pedra angular.
Um nó se formou em meu peito quando notei minha mãe, Helen, e o resto dos
Chifres Gêmeos sentados ao redor de uma fogueira na beira do riacho,
observando com sorrisos cansados. Atrás de todos eles, Boo estava agachado
protetoramente sobre uma pilha de peixes brilhantes.
Isso bastava.
O cubo preto do tamanho da palma da mão era muito menos denso em éter
do que a relíquia anterior, mas fora isso quase idêntico. “Tudo bem, vamos ver
o que você tem para mim.”
Liberando o éter do meu núcleo, canalizei-o pelo braço até a pedra angular.
Minha consciência parecia segui-lo enquanto eu era puxado para fora do meu
próprio corpo e para dentro da relíquia dos djinn. Primeiro, encontrei uma
parede de nuvens roxas, como esperado. A parede estremeceu com a minha
abordagem e passei facilmente.
Escuridão.
Desta vez, a súbita ausência de qualquer coisa, exceto eu, foi menos
surpreendente, mas o interior da pedra angular não era menos assustador. Eu
vaguei por um tempo, sem saber se estava realmente me movendo ou apenas
tentando, nunca batendo em uma parede ou qualquer tipo de objeto mental,
como o mar de formas geométricas que eu tive que manipular dentro da pedra
angular de Requiem de Aroa.
Era esquecimento.
Mesmo o tempo não tinha significado dentro da pedra angular, e eu não tinha
como saber por quanto tempo fiquei à deriva. Em algum momento, comecei a
me preocupar se poderia perder minha aula, mas quando parei de canalizar
éter e deixei o espaço escuro, apenas alguns minutos se passaram. E então eu
me empurrei de volta e continuei a vagar pelas profundezas vazias.
Era como nadar no fundo do oceano, onde a luz não alcança. Para cima, para
baixo, para a esquerda, para a direita… a direção perdeu sentido, embora eu
continuasse a experimentar a sensação de movimento. Tentei empurrar com o
éter em direções aleatórias, ou ao meu redor, mas nada aconteceu. Eu tentei
me imbuir – ou o que quer que eu existisse naquele espaço – com éter, mas
novamente, isso não resultou em nada.
“Valen?” Eu disse rigidamente, olhando para o jovem alto sangue, que estava
parado emoldurado na porta escura, uma mão ainda na porta. Seus olhos
permaneceram na pedra angular enquanto eu a devolvia à runa de
armazenamento extradimensional. “Você se perdeu?”
Valen olhou rapidamente para trás, para a escada da porta atrás dele, respirou
fundo e se afastou da porta, deixando-a fechar.
Ele limpou a garganta novamente antes de falar. “Acontece que encontrei Seth
no caminho para a sua sala de aula… acho que ele estava procurando por você
também, e ele mencionou que viu você vir aqui algumas vezes, então pensei…”
Ele estremeceu, deixando o pensamento morrer.
O jovem alto se recostou sobre a porta pesada, deixando sua cabeça descansar
contra ela com um baque sólido. Seus olhos escuros olharam para o céu claro.
Quando eu estava prestes a repetir minha pergunta, ele disse, “Recebi um
emblema.”
Um emblema era o segundo nível mais alto de runa para um mago alacryano.
Pelo que eu entendi, receber uma runa tão poderosa em uma idade jovem era
uma mudança de vida, mesmo para os altos sangues.
Valen soltou uma gargalhada sem humor. “Meu pai está em êxtase, é claro.
Meu sangue parece pensar que sou algum tipo de prodígio agora…”
Soltei um suspiro impaciente enquanto me recostava no parapeito em frente
a ele. “Bem, tenho certeza de que você não veio até aqui só para se gabar,
então diga logo.”
Ele coçou a sua nuca. “Eu simplesmente não tinha ninguém com quem
conversar. Meu sangue… eles não entendem. E meus associados—”
Eu não quero ser um prodígio,” Valen balbuciou com sua cabeça baixa. “Desde
que eu era um bebê, fui criado como um guerreiro, estudioso e líder, com a
expectativa colocada sobre mim desde o nascimento de que me tornaria o
Lorde Supremo do Alto Sangue Ramseyer. Nunca — nem mesmo uma vez na
minha vida — alguém me perguntou o que eu quero fazer ou me tornar.”
Valen desinflou e, pela primeira vez, parecia a criança que era, não alguém
tentando fingir que era um lorde supremo. “Não sei, mas… gostaria de ter a
chance de descobrir. Isso é tudo que quero dizer. Talvez… talvez o que meu
sangue deseja de mim seja exatamente o que eu quero fazer, a longo prazo.
Mas nunca vou me sentir assim, a menos que eu tenha algum tipo de escolha
no assunto.
“Eu quero explorar o mundo fora dos limites estreitos que meus tutores e
sangue estabeleceram para mim. Mas receber este emblema apenas parece ter
cimentado meu destino, em vez de me dar poder sobre ele.”
“Sabe, Valen,” eu disse a suas costas, minha voz suave, “só vai ficar mais difícil
ir contra a vontade deles conforme você envelhece. Se você realmente deseja
viver sua vida sem arrependimento, pode ser melhor decepcionar seus pais
agora do que mais tarde.”
Ele congelou, meio que se virando para olhar para mim, seu rosto inescrutável.
Finalmente, com um sorriso curioso, ele saiu, e a porta se fechou entre nós
novamente.
Eu sabia que era injusto ao extremo culpar Valen ou seus colegas de classe por
qualquer coisa que tivesse acontecido em Dicathen. Eles eram tão vítimas da
guerra quanto meus amigos e família no meu lar, e ainda assim tinham
sido seus amigos e família matando os meus. Eles eram súditos de Agrona,
seus servos e ferramentas, cada um deles uma arma potencial contra mim. Ou
pior, contra minha mãe ou minha irmã.
Mas, cada vez mais, eu detectava uma hesitação nos alacryanos em seguir seu
suserano, especialmente entre os estudantes. No começo, eu presumi que a
falta de respeito de Caera pelos Vritra era algo único para ela — uma
manifestação de sua existência como uma Alacryana de sangue Vritra se
escondendo — mas meu tempo na academia me mostrou que isso não era
verdade. Além do desdém mal disfarçado do professor Aphelion pela guerra,
os sentimentos dos alunos ficavam bem claros em seus rostos toda vez que
Elenoir era mencionada.
Muitos jovens alacryanos poderosos perderam tudo naquele dia. E eu não acho
que todos eles culparam os asuras por isso.
Com um suspiro de frustração, saí da pedra angular e a coloquei de lado.
Estava claro que eu não iria chegar a lugar nenhum enquanto estivesse tão
distraído ou enquanto minha mente estivesse cheia de incertezas.
Da Torre Oca, eu vaguei pelo campus por um curto tempo antes de ir até a
minha sala de aula. Eu estava relativamente adiantado, mas meus
pensamentos se recusaram a se acalmar e eu não conseguia me concentrar
em nada, então aumentei a gravidade várias vezes no ringue de treinamento e
comecei a trabalhar o meu corpo. Embora eu teria aproveitado a chance de
invocar a lâmina de éter, não queria explicar a ninguém que acontecesse por
aparecer na sala de aula.
A garota da cidade de Maerin estava pulando na ponta dos pés quando disse,
“Sim! É doido demais. Inacreditável! Acabei de ser adicionada a todas essas
aulas de Sentinelas de alto nível e, aparentemente, as chances são tão baixas
que a Academia Central não tem nenhum registro de que isso tenha acontecido
antes, e eles estão se oferecendo para me isentar de minhas taxas de
participação e enviar este pagamento gigante para minha família em Etril se
eu concordar em fazer algum estudo individual com o chefe do departamento
de sentinelas aqui, e…”
Seu sorriso desapareceu e ela olhou para mim com óbvia preocupação. “O que
há de errado? Eu… pensei que você ficaria orgulhoso de mim. Eu disse algo
que não deveria, Professor?” De repente, ela deu um passo para trás e curvou-
se tão baixo que seu cabelo roçou o chão. “Eu peço desculpas.”
Enquanto ela falava, minha mente saltou dela para Valen, e depois de volta
para a cidade de Maerin, onde Mayla e o menino Belmun – as únicas duas
crianças com quem eu interagia intimamente – receberam runas
extraordinariamente poderosas. Eu suspeitava antes que minha presença
tivesse algo a ver com isso, mas não havia razão para pensar profundamente
sobre o processo de concessão. Eu não sabia o suficiente sobre como os
alacryanos alocavam magia para fazer suposições, além de supor que o éter
estava envolvido de alguma forma.
“Professor?”
Minha atenção voltou para ela, e eu percebi que estava com uma carranca
profunda e pensativa. Eu deixei minhas feições relaxarem. “Sinto muito, Mayla,
estava apenas pensando… mas tudo isso é uma grande mudança para você.
Como você está se sentindo?”
Quando Mayla recebeu sua runa original, ela foi recebida com emoções
conflitantes. Sua irmã não tinha runas e provavelmente passaria o resto de sua
vida na cidade de Maerin. Dois emblemas praticamente garantiam que Mayla
seria atraída para uma vida de aventura e perigo. Se ela não se tornasse uma
ascendente, ela certamente acabaria sendo convocada para a guerra.
“Eu estava com medo, no começo,” ela admitiu. “Eu não queria sair de casa,
mas agora que estou aqui há um tempo…” Ela se virou em direção à porta,
onde o som de vários conjuntos de passos rápidos e várias vozes estavam se
aproximando. “Nunca me senti especial antes. Sempre achei que passaria o
resto da minha vida na cidade de Maerin, como Loreni.” Seu rosto caiu. “É
errado eu não me sentir culpada?”
Eu acenei para ela sentar-se sem dizer nada. Ela se mexeu, depois se
aproximou. Eu pensei em pará-la novamente antes que ela pudesse envolver
seus braços em volta de mim, mas apenas suspirei, devolvendo o abraço com
um braço enquanto eu acariciava o topo de sua cabeça sem jeito.
Regis teria zombado tanto de mim se estivesse aqui…
Atrás de Briar estava outro rosto familiar, embora tenha demorado mais para
reconhecê-la. Uma garota de cabelos escuros, altura e constituição
semelhantes às de Briar. Seus olhos rastrearam a sala de aula antes de se fixar
em mim, e então me lembrei: Aphene de Sangue Mandrick. Ela era neta do
Ancião Cromley, da Academia Stormcove. Tínhamos “brigado” durante a
cerimônia de concessão em Maerin.
Houve alguns gritos e uma salva de palmas dos alunos, aos quais Irongrove
respondeu com um sorriso bem-humorado. Quando a classe se acalmou, ele
encontrou meus olhos. “Professor Grey, desculpe me intrometer, mas eu
estava esperando uma conversa rápida antes de sua aula começar hoje?”
“Não vou mantê-lo ocupado já que você está se preparando para o Victoriad,”
Rafferty começou, seu tom profissional. “Na verdade, é por isso que estou aqui.
Como você não tem um assistente de sala de aula, o diretor queria garantir
que você recebesse ajuda. Um pouco de descuido que não foi visto antes,
honestamente…” Ele limpou a garganta e seu olhar caiu para o chão por um
instante. “Essas duas jovens muito capazes se ofereceram para acompanhá-lo
como professoras assistentes antes e durante o Victoriad. Mais alguns pares
de olhos – e punhos – para manter os alunos concentrados, se é que você me
entende.”
Rafferty olhou entre nós. “Pelo que entendi, você treinou ao lado de Briar do
Sangue Nadir antes. Ela é uma excelente aluna, garanto-lhe—”
Eu levantei minha mão. “Só brincando, professor. Ela é bem-vinda para ser
minha assistente.” Minha atenção se voltou para Aphene. “Estou mais curioso
sobre esta.”
Aphene ergueu o queixo e não pôde deixar de notar o leve tremor que a
percorreu. Quando nos encontramos pela última vez, eu tinha derrotado ela e
seu amigo – eu não conseguia lembrar o nome dele – em um duelo dois contra
um.
Eu acenei com a cabeça em afirmação. “As duas estão bem. Ficarei feliz em ter
algumas babás por perto, enquanto me concentro nas coisas importantes.” Eu
reprimi um sorriso quando Briar e Aphene me lançaram olhares iguais. “Agora,
Professor Irongrove, tenho certeza que você tem coisas para fazer, porque eu
sei que eu tenho.”
O vazio estava sem nada e parado ao meu redor. A escuridão não ondulava
mais, e eu não senti mais nada – nenhuma presença, nenhuma energia –
dentro da pedra angular comigo.
Pulsos intermitentes de éter eram emitidos do meu corpo enquanto eu vagava
pela escuridão. Não houve resposta. Eventualmente, minha mente se afastou
do vazio e voltou para o mundo real.
Uma batida na porta mais uma vez me interrompeu, mas eu ignorei, focando
nas ondulações que perturbavam o reino etéreo dentro da pedra angular. A
batida veio novamente, mais alta e mais insistente dessa vez.
Ainda recostado no assento, recebi o olhar firme de Kayden. Seus olhos eram
afiados e vigilantes, não correspondendo exatamente ao sorriso irônico que
ele tinha. “Fale livremente, Kayden.”
O sorriso de Kayden se aguçou. “Você deve saber tão bem quanto eu que cada
instante do Victoriad – cada nomeação, cada jogo, inferno, cada aperto de mão
ou a falta dele – é observado de perto, porque o próprio evento pode mudar a
face política de domínios inteiros. A mudança de retentor ou Foice pode fazer
com que sangues ascendam e caiam… a oportunidade perfeita para um
ascendente de um sangue desconhecido fazer uma ascensão violenta e
repentina pelos ranks de poder.”
Seu sorriso sumiu enquanto ele falava. “Mas não estou aqui para obter
respostas, nem mesmo para compartilhar minhas conjecturas. Só desejo que
você saiba – como seu auto-proclamado amigo – que está sendo observado de
perto e de muitos ângulos. Quer você busque a posição de retentor de Vechor
ou não, certamente gerou um turbilhão de boatos.”
Não pude evitar a risada surpresa que explodiu em mim, atraindo um sorriso
incerto de Kayden. “Esse é o rumor?” Eu disse, praticamente engasgando com
alegria. “Oh, perfeito. Perfeito.”
Kayden deve ter achado minha risada contagiante, porque ele começou a rir
também. “Então você não pretende desafiar para ser o retentor de Dragoth?”
Eu balancei minha cabeça e enxuguei uma lágrima do canto do meu olho. “Não,
nem um pouco.”
“Bem, lá se vai a aposta que planejei fazer. De qualquer forma, não vou prendê-
lo por mais tempo, só pensei—”
Eu ainda não estava totalmente convencido de que ele não tinha visto nada
na noite em que Caera e eu roubamos a Bússola, mas se ele viu, ele a estava
mantendo isso escondido. Parecia mais provável que ele não tivesse visto
nada, considerando a escuridão e a chuva, e ele não trouxe aquela chance de
se encontrar novamente, ou mesmo perguntou como “Haedrig” tinha se saído.
Ela olhou ao nosso redor para os alunos que passavam. “Sim e não. Era… um
convite para jantar. De novo. Já recusei, mas meus pais adotivos são
persistentes…”
Estendi um braço para Caera segurar, o que ela fez com um olhar desconfiado.
“Vou precisar de ajuda para escolher minha roupa se quiser estar na presença
de altos sangues tão renomados e poderosos como o Lorde Supremo e a Lady
Denoir.”
Capítulo 364
Plantando Sementes
Um caminho pavimentado de pedras vermelhas conduzia à propriedade dos
Denoir, flanqueado por arbustos de um metro de altura, que mesmo com o frio
das montanhas estavam florescendo com botões azuis. A mansão em si era
enorme, facilmente três vezes o tamanho da propriedade dos Helstea onde eu
morei em Xyrus, e os terrenos ao redor dela rivalizavam com os quintais do
palácio real da minha vida anterior.
Nessa corou ainda mais e pareceu ficar sem saber como responder. Caera a
salvou pegando o braço da mulher e indo em direção à casa.
Depois de alguns passos, Caera lançou um olhar para trás por cima do ombro
mostrando uma expressão brincalhona e repreensiva.
De pé, ao lado do bar, estava Lauden Denoir, que conheci no auge do meu
julgamento. Uma mulher com um vestido marrom largo com cabelos brancos
brilhantes que caíam sobre os ombros estava recostada em uma poltrona – a
mãe adotiva de Caera, Lenora Denoir. O espadachim loiro, Arian, estava em um
canto.
Nessa curvou-se e deu um passo para o lado. “Senhora Lenora do Alto Sangue
Denoir. Senhora Caera voltou. Ela traz consigo um convidado, o ascendente
Grey.” Então ela se endireitou e recuou até ficar quase pressionada contra a
parede ao lado da porta da sala de estar, ainda como uma estátua.
“Por favor,” Lenora disse, apontando para o sofá mais próximo. “Junte-se a
mim e ao meu filho para uma bebida enquanto esperamos pelo meu
marido. Ele deve descer a qualquer momento.”
Lauden levou dois copos do bar, um dos quais entregou à mãe, depois se virou
e estendeu a mão para mim. Eu peguei com firmeza, encontrando seus
olhos. “Que bom ver você de novo, ascendente Grey. Ou você prefere
professor, agora?” Suas maneiras eram impecáveis, mas não podiam esconder
completamente a tensão óbvia que ele carregava em seus ombros e
sobrancelhas.
Lauden entregou o segundo copo para Caera. Assim que seu irmão adotivo deu
as costas para ela, ela torceu o nariz e pousou o copo disfarçadamente. Lauden
não pareceu notar quando ele voltou para o bar. “Bem, então, Grey, o que você
gostaria de beber? Meu pai tem muito orgulho da qualidade de nossa
coleção. Aqui você encontrará apenas as melhores e mais potentes bebidas,
feitas sob medida para serem apreciadas por aqueles com o metabolismo
elevado proporcionado pela força da magia.”
“É apropriado que eu espere pelo Lorde. Como manda a tradição, ele deve
tomar o primeiro drinque quando estiver bebendo com os convidados,” eu
respondi corretamente antes de piscar para ele. “Mas eu gostaria da
oportunidade de provar sua bela coleção, é claro.”
Lauden deu uma risada. “Um homem de cultura. Meu pai sem dúvida apreciará
sua adesão às normas sociais, embora eu espere que você me perdoe por
começar sem você.”
Todos nós nos levantamos quando o Lorde entrou na sala de estar, sem
demonstrar qualquer preocupação em me fazer esperar, uma tática comum
entre a nobreza. Seus olhos inteligentes pularam para cada um de nós, por sua
vez, embora tenham permanecido em mim por mais tempo. Seu terno branco
e azul marinho parecia custar tanto quanto as casas de algumas pessoas, e ele
usava um sabre de punho dourado ao lado.
Cruzando um braço sobre o peito com o punho logo abaixo do ombro e o outro
atrás das costas, me curvei ligeiramente, apenas uma inclinação suave das
minhas costas. Era o tipo de reverência que alguém fazia para mostrar
respeito, mas não subserviência. Esse simples gesto – que deixava claro que
eu considerava nossas posições iguais – acendeu as perguntas em sua mente,
uma vez que os Denoirs já suspeitavam que eu era secretamente um Alto
Sangue.
“De fato,” ela respondeu, sorrindo para ele. Para mim, ela disse: “Você nos
proporcionou uma experiência tão nova, já que nenhum de nós está
acostumado a ver nossos convites rejeitados”.
“Você tem minhas desculpas”, respondi com um sorriso cansado. “Era meu
desejo egoísta de expressar aos outros professores da Central Academy que
eu havia merecido um cargo lá por meu próprio mérito.”
“Vamos lá, nós só estamos brincando,” Lenora disse com uma risada. “Apesar
de tudo, Corbett e eu estamos bastante curiosos sobre você. Por que não
vamos para a sala de jantar, e você pode nos contar sobre si durante um
maravilhoso jantar que nossos cozinheiros prepararam em sua homenagem?”
Levantando-me, estendi o braço para a matrona Denoir, que o segurou com
um sorriso curioso. “Mostre o caminho, Senhora Denoir,” eu disse
educadamente.
Ela o fez, com o resto dos Denoirs nos seguindo. Corbett falou baixinho com
Lauden sobre alguns negócios enquanto Lenora exibia a mansão, me contando
sobre os muitos itens em exibição por toda a propriedade, incluindo várias
pinturas e tapeçarias muito finas, e pelo menos uma dúzia de artefatos
diferentes recupereados das Relictombs.
Uma longa mesa dominava a sala de jantar, com capacidade para pelo menos
trinta pessoas. Haviam três lustres pendurados em um teto alto, enchendo o
espaço com uma luz brilhante. Outro pequeno bar corria ao longo de um lado
da sala, enquanto o outro estava coberto por armários e prateleiras cheias de
pratos finos e talheres em dezenas de estilos diferentes. Era claramente uma
coleção valiosa e provavelmente algo de que Lenora tinha muito orgulho, um
fato que arquivei para nossas conversas.
Só quando a salada chegou é que a conversa mudou para algo mais sério.
“Uma sábia decisão. Muitos outros não foram tão sábios.” Eu me virei para
Lauden. “Você perdeu pessoas em Elenoir?”
Ele inclinou o copo, terminando sua bebida em um gole. “Muitos dos que foram
a Elenoir para se estabelecer eram herdeiros de sangue, ou segundos filhos. Eu
conhecia muitos deles. Alguns sangues inteiros – aqueles que mais se
dedicaram a este empreendimento – foram exterminados, privando Alacrya de
muitas vozes poderosas e acabando com muitas linhagens potentes. E me
pergunto o que nós realizamos—”
Depois de comermos tanta carne assada e tortas de frutas quanto era educado
– deixando a última mordida em nossos pratos para mostrar que estávamos
bem alimentados e não éramos gulosos – a mesa foi tirada e Lenora levou
Caera embora.
Lauden recostou-se na cadeira e me lançou um olhar curioso. “Sua fama
parece estar subindo rapidamente, Grey,” ele disse com a fala apenas
levemente arrastada, mesmo após vários copos de licor âmbar forte. “Boa
sorte no Victoriad. É o lugar para cimentar sua posição entre a nobreza – ou
para ver a si mesmo cair a toda velocidade de volta ao chão.”
“Fale com sua mãe e irmã antes de se retirar,” disse Corbett com firmeza,
olhando fixamente para o filho. Ele estendeu a mão para uma porta lateral da
sala de jantar. “Grey?”
Sem dizer nada, segui Corbett pela casa e subi até um escritório. Eu conhecia
pessoas cujas casas inteiras caberiam neste escritório de dois andares, e havia
tantos livros quanto a biblioteca da cidade de Aramoor. A lareira já estava
acesa.
“Sente-se”, disse Corbett, apontando para uma cadeira de couro muito fina
apoiada ao lado de uma mesa de mármore esculpida, que tinha um tabuleiro
de jogo gravado na superfície e peças já dispostas. “Presumo que você joga?”
A expressão de Corbett não mudou quando ele serviu mais uma bebida para
nós dois e se sentou à minha frente. Tomei um gole do copo
oferecido. Queimava ao descer, mas se acomodou quente e pesado em meu
estômago. Um pouco da minha surpresa deve ter passado para o meu rosto
porque os lábios de Corbett se contraíram em um sorriso vazio.
“Bafo do Dragão,” ele anunciou. “Não estou surpreso que você nunca tenha
tomado. É feito com uma especiaria rara que só cresce ao longo das margens
do Redwater perto de Aensgar. Os guerreiros de Vechor costumam beber antes
de uma batalha.”
“Embora, para ser justo, muito mais vidas de dicatheanos devam ter sido
perdidas no ataque do que as de alacryanos,” eu apontei, continuando a
avançar com meus escudos.
“Mais uma razão para abraçarem o Alto Soberano”, grunhiu ele, de olho no
jogo. Mesmo assim, havia algo nas rugas ao redor de seus olhos e em sua
postura rígida que me dizia que ele achava o assunto Elenoir e todas aquelas
mortes incômodas.
Ele franziu a testa profundamente, o que destacou suas rugas e o fez parecer
cerca de uma década mais velho. “Você quer dizer retirar as forças de lá e
abandonar o continente?” Ele esfregou o queixo pensativamente. “Essa é uma
proposta arriscada. O golpe para a moral—”
“Você teve muito sucesso, e muito rápido”, disse Corbett, afastando as mãos
do tabuleiro e recostando-se na cadeira. “É evidente na maneira como você
fala, como se você não tivesse nenhuma experiência com os níveis mais altos
da política em Alacrya. Você deveria ter cuidado, Grey. A palavra errada no
ouvido errado pode fazer com que você morra.”
Como se para enfatizar seu ponto, ele passou um atacante por uma fresta em
meus escudos e matou um de meus conjuradores. Isso deixou a peça do
atacante aberta para um contra-ataque, mas enfraqueceu o círculo interno de
defesa em torno da minha sentinela. “Ir com pressa, ser ousado… foi isso que
aqueles sangues que morreram em Elenoir fizeram. E agora muitos deles são
menos do que os mais baixos sem nome.”
Quando respondi matando o atacante, notei que os nós dos dedos de Corbett
estavam brancos quando ele pegou a peça, apertando-a entre os dedos como
se pudesse esmagar a pedra esculpida em pó.
Corbett largou a peça com um tilintar agudo e olhou nos meus olhos. “Talvez
os Soberanos não achassem que os asuras tinham coragem de quebrar o
tratado…” Mas a verdade estava lá, brilhando como fogo em seus olhos. Ele
não acreditava que os Vritra — as próprias divindades — pudessem ser pegos
tão desprevenidos. O que significava…
“Você acha que foi uma armadilha,” eu disse categoricamente, uma declaração
de fato. “Isca, para fazer os asuras quebrarem o tratado.”
Corbett ficou tenso. “Você está ciente da relação entre Caera e os Denoirs,
correto?”
“Você sabia que, se falharmos em nosso dever para com os Vritra e Caera, o
Alto Sangue Denoir poderia ser despojado de todos os títulos e terras? Lenora
e eu podemos ser executados.”
“Somos um dos Altos Sangues mais influentes no domínio central, até mesmo
em toda Alacrya,” disse ele, embora não houvesse presunção na declaração.
“E, no entanto, um passo em falso significaria nosso fim repentino e violento.
Não servimos reis ou rainhas, como fazem os dicatheanos. Nossos senhores
são os próprios deuses, e todos nós estamos sujeitos inteiramente à sua
vontade, desde o mais baixo sem nome até o mais rico alto sangue. Você faria
bem em não esquecer esse fato, Grey. Não se considere intocável porque
encontrou algum sucesso.”
Ponderando isso, fiz uma série de movimentos rápidos para encerrar o jogo.
Embora eu tivesse certeza de que poderia ter terminado com uma vitória
verdadeira, levando minha sentinela até a fortaleza de Corbett, meu gosto e
paciência para o jogo haviam desaparecido. Além disso, duvidava que
ganhasse mais alguma coisa de Corbett ou de sua família naquela noite.
Quando meu lançador finalmente matou sua sentinela, ele deu um suspiro
resignado e ergueu o copo para mim. “Diga-me, Grey, geralmente é depois que
você a derrota que Caera o lembra das aulas particulares dela neste jogo?”
“Por favor, me chame de Corbett,” disse ele, seu tom mudando visivelmente
para algo que se aproximava de amizade. Ele me deu um tapinha no ombro e
disse, “Gostei do nosso jogo, embora tenha medo de que você tenha me
distraído com uma conversa — intencionalmente, eu imagino”, disse ele,
lançando-me um olhar penetrante. “Você me deve uma revanche, o que, é
claro, significa que você e Caera terão que voltar para jantar em uma data
posterior.”
Caera olhou para mim como se um terceiro olho tivesse acabado de crescer na
minha testa. “Ok, nós vamos indo, então… tchau.”
Com isso, os Denoirs se despediram de nós, e Lady Lenora abriu a porta pra
nós, ao invés de Nessa. Caera deu uma despedida superficial antes de nos
conduzir rapidamente para fora da propriedade e para a rua, onde poderíamos
fazer sinal para uma carruagem nos levar de volta ao terreno da academia.
“O que, em nome do Vritra, você fez com Corbett?” ela disse, quando
estávamos bem longe das portas.
“Eu juro, você é como uma linda e misteriosa cebola,” ela disse ironicamente.
“Cada desafio que enfrentamos juntos revela mais uma camada sua. Como
exatamente que um auto-proclamado ninguém, vindo da periferia de Sehz-
Clar, aprende a se socializar com altos sangues?” Antes que eu pudesse
responder, ela continuou. “Não, esquece. Sinceramente, não quero saber.”
“E sua língua é afiada como uma espada,” ela zombou quando uma carruagem
puxada por um lagarto laranja brilhante parou para nós.
Um vazio escuro.
A runa dourada ganhou vida nas minhas costas, brilhando através da minha
camisa, e partículas de ametista de energia dançaram e saltaram ao longo do
meu braço, fluindo para a pedra angular até que enxamearam sobre ela como
vaga-lumes roxos.
Não havia rachaduras para entrar, nenhum dano para consertar. Mais
frustrante ainda, eu não sabia se a runa divina não estava funcionando porque
não havia nada para consertar, ou porque ela não poderia consertar o dano –
tipo o portal de saída na zona da Três Passos.
Vários minutos depois, eu ainda estava sentado lá olhando para o cubo preto
quando a porta do meu escritório se abriu de repente, e Enola marchou para
dentro e se sentou na cadeira do outro lado da minha mesa.
“Eu recebi uma regalia,” ela disse, sua voz rouca com emoção contida. “A única
na academia a receber uma nesta cerimônia, mesmo entre os alunos mais
velhos.”
Enola ergueu o queixo com orgulho. “Não tenho medo de ir nem nada. Sou
uma guerreira. Mas…” Ela engoliu em seco. “Será que ainda é uma guerra, se
estamos lutando contra Asura? Parece mais um extermínio para mim. Com
regalia ou não, como soldados podem fazer alguma diferença em tal conflito?”
Eles não podem, eu queria dizer. Aldir havia queimado uma nação inteira como
se Elenoir havia sido construído na cabeça de um palito de fósforo.
“Meu… Ela fez uma pausa e deu a volta ao redor da cadeira, sentando-se
novamente. “Meu irmão foi morto em Dicathen. Nos primeiros dias, em um de
nossos primeiros ataques. A mesma batalha em que Jagrette, a retentora
Truaciana, foi morta.” Ela sorriu amargamente, olhando para além de mim em
vez de encontrar meus olhos. “Eu me lembro porque eles anunciaram isso
como se morrer ao lado de uma retentora fosse algum tipo de honra.”
Eu não pude evitar, mas estremeci. Eu tinha lutado e matado a bruxa venenosa
Jagrette em um pântano perto de Slore, e uma percepção repentina me atingiu.
Enquanto eu estava zangado, preocupado com o que as famílias desses alunos
haviam feito, nem sequer parei para considerar o fato de que eu poderia ter
matado seus parentes em uma batalha.
“Eu quero ser um soldado, ou talvez uma ascendente poderosa.” Ela cruzou os
braços e recostou-se na cadeira. “Mas eu não quero ser jogada fora ou
queimada como lenha em uma batalha entre seres maiores.” Seus olhos se
fixaram nos meus, como se ela estivesse me desafiando a discutir com ela.
Apoiando meus cotovelos na mesa, suspirei. Meu olhar vagou até a pedra
angular, e Enola fez o mesmo. “Qualquer soldado pode mudar o curso de uma
batalha”, declarei. “O guerreiro mais forte pode cair inesperadamente,
enquanto o mais fraco e covarde pode cambalear até a vitória.” Peguei a pedra
angular e virei-a na mão, lembrando das palavras da projeção da djinn. “Mas
o seu caminho é o seu, e só você pode percorrê-lo. Você pode escolher desistir
de sua vida, se necessário, mas ninguém pode jogar sua vida fora como se ela
não significasse nada.”
Enola ficou tensa, sua mandíbula visivelmente apertada enquanto seus olhos
me perfuravam. “Você realmente acredita nisso?”
Ela me deu um único aceno de cabeça afiado e olhou novamente para a pedra
angular. “O que é isso?”
Capítulo 365
Ódio não resolvido
“Muito bem, vocês dois,” Aphene estava dizendo, e eu voltei minha atenção
para os papéis na minha frente com um suspiro.
Eu estava mais forte agora do que quando era uma Lança de núcleo branco,
mesmo que tivesse perdido algumas das armas do meu arsenal. Ainda assim,
eu queria usar este evento para medir minha força contra a de meus inimigos
– sem revelar minha identidade, se possível.
Com a reputação que construí aqui como professor e ascendente, queria testar
minha força – se não contra uma Foice, pelo menos contra um retentor. Tanto
Caera quanto Kayden mencionaram que era incomum, mesmo para retentores,
receber um desafio, mas depois de ler este documento, ficou cada vez mais
claro o quão raro era.
Normalmente, é aqui que Regis teria interferido com alguma avaliação direta,
mas irritantemente precisa, dessa situação, mas essa resposta não veio.
Eu tinha me acostumado a ter minha mente só para mim, mas isso não
significava que era pacífico. Eu tinha esquecido o quanto meu cérebro girava
sem Regis para me interromper.
Aphene trouxe mais dois alunos para treinar enquanto Briar conduzia o resto
da classe em uma série de exercícios. Marcus e Sloane estavam trocando uma
série de socos e chutes brutais quando as portas da sala de aula se abriram e
vários homens blindados entraram.
Então, e aí?
E então eu não resisti, mas deixei que eles me levassem para fora do prédio e
pelo campus. Eles tomaram posições ao meu redor, mas ninguém sacou uma
arma ou preparou qualquer feitiço – pelo menos que eu pudesse detectar. A
maioria dos alunos estava em aula, mas ainda passamos por muitas dezenas
de pessoas em nosso caminho para fora do campus, e eu já podia sentir meu
nome no meio de uma centena de conversas sussurradas atrás de mim.
Segui Sulla até seu escritório, que dava para o andar principal do prédio. Os
outros ascendentes postaram-se do lado de fora das portas, que Sulla fechou
atrás de nós.
Sentei-me sem ser convidado e esperei. Sulla pegou uma bolsa de couro atrás
de sua mesa, observando-me com atenção. Então, com uma onda repentina de
raiva frustrada, ele bateu a bolsa em sua mesa e caiu em sua cadeira.
“Droga, Grey, você ao menos entende o quão perto da morte você ficou?”
Virei minha cabeça ligeiramente para o lado e fiz um show ao olhar ao redor
do escritório. “Parece que não estou com uma faca no pescoço, então não,
realmente não tenho.”
Sulla deu uma zombaria sem humor. “Parece improvável que você se preocupe
com pequenas coisas como facas.” Agarrando o fundo da bolsa, ele a virou,
derramando uma pilha de pergaminho sobre a mesa. “Você sabe o que essas
coisas são?”
Ainda observando Sulla, peguei uma página solta que flutuou sobre a mesa na
minha direção. Ele continha um colchete com cada um dos meus próprios
alunos emparelhados com um nome desconhecido. O torneio Victoriad, eu
percebi.
Seu olho esquerdo estremeceu. Com os dentes cerrados, ele disse, “Então, por
favor, permita-me educá-lo, professor.” Ele teve que esperar um momento
antes de continuar, durante o qual folheou as páginas. Quando ele encontrou
o que estava procurando, ele o ergueu para que eu visse. “Este é um relatório
sobre os combatentes Victoriad da Academia Bloodrock em Vechor – ou pelo
menos, aqueles que estarão competindo especificamente nos duelos não
mágicos e desarmados.” Ele a largou com força e pegou outra página. “Isso
fornece alguns detalhes muito específicos sobre um dos melhores lutadores
de Bloodrock. Listas de runas, tipo de mago, estilos de combate preferidos…
Pelos chifres dos Vritra, Grey, até nomeia quais membros de seu sangue podem
ser ameaçados ou subornados para influenciar seu desempenho.”
Ele passou por mais algumas páginas, que continham detalhes semelhantes
sobre outros lutadores de alto desempenho de uma variedade de academias.
Sulla suspirou e esfregou a ponta do nariz. “Então, por que uma testemunha
confiável se apresentou e afirmou que você está tentando trapacear no
Victoriad, usando esses documentos como prova.”
“Se meus alunos tiverem uma vantagem, será porque trabalharam para isso,
não porque eu intimidei a mãe de uma adolescente,” retruquei, irritado por ter
sido incomodado com esse absurdo. “Não, eu realmente tenho coisas mais
importantes para fazer—”
Eu estava ouvindo com mais seriedade agora, mas algo no que Sulla estava
dizendo não fazia sentido. “Você disse que tinha uma testemunha? Alguém que
alegou estar trabalhando comigo ou para mim ou algo assim?”
Sulla fez uma pausa. “Você deve saber, um punhado de pessoas está
corroborando essa afirmação, confirmando que receberam cartas
ameaçadoras suas para fornecer tudo isso.” Ele gesticulou para os papéis. “O
melhor cenário é que você está proibido de frequentar o Victoriad. O pior, bem,
eu já disse a você.”
Sulla hesitou, parecendo pouco à vontade. “Eu poderia – mas se você matá-lo,
isso estará fora de minhas mãos. No momento, só foi relatado à Associação de
Ascendentes. Se a Academia Central ou qualquer um desses altos sangues se
envolver…”
Eu não pude evitar o sorriso de surpresa que surgiu no meu rosto ao ouvir o
Lorde Supremo falar. Embora ele mantivesse um ar nobre, havia uma sutil
ameaça em suas palavras também.
“Os Granbehls estão por trás disso,” disse Corbett com firmeza. “Eles já fizeram
falsas alegações contra Grey antes, e estão de volta. Acredito que um
interrogatório completo de Janusz de Sangue Graeme, atualmente professor
da Academia Central, revelará que ele foi pago – e muito bem – para fornecer
evidências falsas contra Grey. Agora, confirme que Grey será libertado
imediatamente, ou serei forçado a visitar pessoalmente a Associação de
Ascendentes.”
Quando o artefato esmaeceu, sua atenção se voltou para mim. “Então, você
realmente tem amigos em lugares importantes…”
“Ah, não se preocupe. Eu não vou matá-lo.” De pé, eu dei a ele um olhar
questionador. “Estou livre para sair?”
“No momento, sim,” disse ele com um sorriso sem humor. “Mas essa situação
precisa ser resolvida, Grey.”
Eu balancei a cabeça, um certo tio bêbado vindo à mente. “Então você poderia
entrar em contato com alguém por mim?”
***
“Estou aqui para encontrar o Lorde Supremo Denoir,” disse eu, sentindo a
atenção de um punhado de clientes do café se voltando em minha direção.
“Ele já chegou?”
A mulher apontou para a direita, seu olhar ainda abaixado. “A sala privada do
Lorde Supremo Denoir está localizada na esquina, terceira porta.”
“Entre outras coisas. Goldberry não faz sucesso com os Altos Sangues
simplesmente pela decoração pretensiosa,” disse ele, apontando para uma
cadeira em frente a ele.
A sala não era grande, mas seu teto alto dava uma sensação de grandeza. Uma
mesa baixa feita de madeira escura e gravada com uma representação realista
das montanhas Presa de Basilisco ocupava o centro, com um sofá envolvente
de um lado e duas poltronas do outro. Sentei-me em uma delas, afundando
no amortecimento macio.
“Bom para pensar ou ter uma conversa que não deveria ser ouvida,” ele disse
significativamente. “Você conseguiu localizar o professor Graeme?”
“Graeme ainda está vivo, embora eu não possa dizer o mesmo sobre sua
dignidade,” respondi com indiferença. “Mas isso está fora de questão.”
O senhor supremo assentiu. “Eu percebi isso, e é por isso que gostaria que nos
encontrássemos aqui.”
“Preciso saber com que tipo de retaliação posso me safar,” disse eu, sem
preâmbulos. “Que tipo de problema eu poderia ter se fosse atrás dos
Granbehls?”
Corbett bateu na lateral do nariz. “Eis a questão, não é? Mas nem toda pergunta
vem com uma resposta. Neste caso, tenho apenas especulações baseadas em
boatos. No entanto, parece que eles de alguma forma adquiriram o patrocínio
de um poderoso benfeitor, alguém cuja proteção lhes permitiu manobrar de
forma mais ou menos desinibida.”
Quando uma pessoa como Corbett Denoir chamava alguém de poderoso, isso
realmente encurtava a lista de suspeitos. Apenas outro alto sangue de alta
hierarquia poderia oferecer esse tipo de proteção – ou mesmo alguém acima
dos constructos normais da sociedade alacryana, como uma foice.
“Isso não muda o que eu preciso fazer,” respondi, minha expressão escondida
de Corbett.
“Você tem algum plano em mente, então?” Ele perguntou. Sua mão se moveu
para a almofada do sofá ao lado dele, e notei uma bolsa de veludo que estava
meio escondida em sua sombra.
O metal preto estava manchado e, quando me inclinei sobre ele, percebi que
havia sido queimado pelo fogo. O próprio emblema parecia ser uma videira
colocada diante de um sol nascente, uma vez de cores vivas, mas agora
enegrecida e sem os pequenos detalhes.
Os olhos de Corbett brilharam com cálculo frio. “Se seu emblema foi plantado
como uma bandeira de vitória nos destroços da propriedade de seu inimigo?
O que você faria no lugar deles?”
“Bem, seja o que for que eu decida fazer, eu não teria sido capaz de fazer sem
a sua ajuda,” eu disse, segurando o emblema como se estivesse fazendo um
brinde. “Então, aqui está um vínculo duradouro construído a partir da
destruição mutuamente assegurada, Corbett.”
Ele acenou com a cabeça, sua expressão inalterada. “Totalmente, mas mesmo
se eles morrerem, eles o fariam com orgulho sabendo que seu sangue foi
vingado. Você oferece a redenção de sangue deles, evitando qualquer
envolvimento pessoal, legal ou de outra forma.”
Eu não concordo com a visão dos Altos Sangues de orgulho acima da vida, mas
ter empatia não era difícil. Diante dos deuses como governantes, às vezes, o
orgulho era a única coisa que ficava sob seu controle.
Um sorriso frio puxou os cantos dos meus lábios enquanto eu esticava meu
pescoço. Regis, volte aqui. É hora de um pequeno reencontro com os Granbehls.
Capítulo 366
Promessa Impiedosa
TITUS GRANBEHL
“Ah, quase esqueci de mencionar,” disse minha esposa do outro lado da mesa.
Com um sorriso no rosto, ela deixou de lado o pedaço de carne rosa que estava
prestes a levar à boca. “O Sangue Vale concordou com os nossos termos. Um
mensageiro chegou há apenas uma hora atrás com sua carta.”
Terminei de mastigar e abaixei o garfo e faca para cortar outro pedaço. “Sim,
eu pensei que depois de verem o que aconteceu com o Sangue Rothkeller,
talvez os de Sangue Vale ficassem incomodados…”
Os olhos frios de Karin se voltaram para Ada, mas a garota não estava
prestando atenção em nós enquanto mexia em seu prato sem pensar.
Pensei em Kalon e Ezra. Meu filho mais velho era muito orgulhoso e hipócrita
para entender o que fazemos agora, mas se ele tivesse sobrevivido, talvez
ações tão extremas não tivessem sido necessárias. Mas o Erza, ele era muito
parecido comigo.
Com meu apetite me deixando, eu empurrei o prato inacabado.
Observei Karin alimentar nossa filha como se ela não tivesse braços, mas não
disse mais nada. Por mais que seja difícil admitir, muito do que conquistamos
neste curto período de tempo teria sido impossível sem minha esposa.
Ela era astuta, carismática e implacável. Mas ela também era uma mãe que
havia perdido dois filhos. Com Kalon e Ezra mortos, Ada se tornou o mundo
para a mulher. Embora isso a tenha levado a extremos que eu nunca teria
imaginado possível, em sua mente, tudo foi feito por Ada.
O sol estava se pondo quando comecei minhas rondas noturnas para revisar a
segurança aprimorada da propriedade. Havíamos transformado muitos rivais
em inimigos ferrenhos, e em um curto período de tempo. Embora eles tivessem
sido covardes demais para nos atacar diretamente, graças em grande parte ao
boato do envolvimento de nosso benfeitor, eu estava totalmente preparado
para tal eventualidade de qualquer maneira.
Apesar do meu bom humor, coloquei uma carranca tempestuosa em meu rosto
enquanto marchava lentamente passando por cada grupo de mercenários,
guardas e ascendentes que eu havia contratado como segurança para nossa
propriedade em Vechor. Afinal, eles precisavam me temer se eu quisesse que
ficassem na linha.
Quando passei pelos portões principais, o chefe dos guardas saiu da guarita e
prestou continência. “Lorde Granbehl.”
“À vontade, Henrik.”
Eu, por outro lado, corri para dentro, ansioso para ler o relatório do professor
Graeme. Fiquei surpreso quando notei Petras parado na entrada. Ele se
encolheu ao me ver.
Com nossa aversão mútua pelo Ascendente Grey, parecia natural usar Janusz,
mas aquela desculpa lamentável que se dizia um Alto Sangue não pôde nem
mesmo manter Grey detido pela Associação de Ascendentes por um dia.
Meus pensamentos foram até meu benfeitor, que havia deixado os detalhes
desta parte do plano inteiramente por minha conta. Se eu não conseguisse
cumprir minha parte…
“Pai?” Eu me virei ao som da voz de Ada. “Está tudo bem? Você estava
murmurando para si mesmo.”
Eu inclinei minha cabeça, ouvindo com atenção. Quase soou como um-
“Ada, vá até o porão”, falei, sem olhar para minha filha. Ela choramingou,
hesitando, então eu gritei, “Pelos Chifres de Vritra, garota, agora!”
O pátio brilhou com feitiços como balas de fogo, raios em arco e lanças de gelo
cortando a escuridão do início da noite. Tudo que eu podia ver de seu alvo era
uma sombra que parecia piscar dentro de uma mortalha de eletricidade roxa,
aparecendo e desaparecendo mais rapidamente do que eu poderia seguir.
Grey…
Amassei a carta na mão antes de jogá-la no chão. Meu rosto estava quase
pressionado contra o vidro enquanto eu procurava qualquer sinal de que meu
palpite estava certo.
Uma forma bestial envolta em chamas roxas passou correndo pela janela, me
fazendo ofegar e dar um passo para trás rapidamente.
Através da distorção do fogo azul, pude ver apenas uma silhueta grosseira
onde antes estava minha porta, o cadáver de Henrik a seus pés.
Uma mão firme agarrou meu ombro e começou a me puxar, o escudo de fogo
movendo-se conosco. Dois Atacantes com armaduras pesadas passaram por
mim, suas armas estavam em chamas e a magia imbuía suas armaduras. Uma
roda giratória de vento e chamas cortou o ar entre eles, apontando para o
intruso, mas ele não estava mais lá.
Uma silhueta escura luziu ao nosso lado, atacando meu protetor. O Escudeiro
foi arremessado para trás com som agudo, rápido demais para ajustar seu
lançamento de feitiços. Seu grito foi interrompido quando seu próprio fogo
azul queimou o ar de seus pulmões e o que atingiu a parede não era mais
reconhecível como um homem.
Grey simplesmente ficou lá, olhando para mim, enquanto minha barreira
vermelha que defendia minha propriedade cintilava inutilmente ao fundo.
Meus punhos cerrados, meu corpo tremendo – não de medo, eu disse a mim
mesmo, mas de fúria.
“V-você foi longe demais,” eu disse, minha voz falhando. “Os Granbehls estão
protegidos. Estamos sendo” – engoli em seco, minha boca de repente muito
seca – “elevados. Você não tem propriedade, nem autoridade enquanto
estamos sendo protegidos por uma Foice. Você entende? Você vai morrer por
isso. Você vai-”
Grey deu um passo à frente e eu recuei tão rapidamente que quase tropecei
no braço estendido do conjurador morto.
“Não!”
Ela deveria ter corrido, escapado por uma das entradas dos fundos ou descido
para a masmorra para se esconder, mas em vez disso veio correndo para
defender a casa de nosso sangue. E ao contrário de mim, ela não tinha
congelado. Suas mãos subiram e eu senti sua mana aumentando quando o
vento começou a dançar no ambiente.
Eu abri minha boca, tentando dizer algo – dizer qualquer coisa – mas eu só
pude ficar olhando, congelado no tempo, enquanto a luz deixava os olhos de
minha esposa.
O tempo voltou quando seu corpo começou a cair sem vida para frente,
rolando grotescamente escada abaixo para pousar aos meus pés.
Eu caí de joelhos ao lado dela, arrastando sua forma inerte para o meu colo.
Meu corpo estava tremendo, até mesmo a respiração em meus pulmões
parecia tremer, e eu não pude fazer nada além de olhar para o cadáver de
Karin enquanto os fragmentos de seu feitiço caíam no chão ao meu redor.
Passos pesados e desajeitados quebraram o silêncio e vi Petras aparecer da
escada dos criados. Grey estava parado no topo da escada, seu olhar distante
sem emoção, ilegível.
Eu cuspi no chão. “Você acha que pode se safar com isso? Você é a razão pela
qual meus filhos estão mortos. Você—”
“Mesmo agora, você tenta usar sua família para justificar sua ganância.”
O medo primitivo correu por mim como veneno em minhas veias, mas me
recusei a mostrar a este bastardo qualquer aparência de fraqueza. Eu projetei
meu queixo e tórax para que a insígnia dos Granbehl, estampada em minha
gola, pudesse olhar de volta para o sem sangue. “Vá pro inferno—”
Eu ouvi, em vez de sentir, a lâmina violeta deslizar em meu peito. Frieza crua
se espalhou por mim, infiltrando-se em cada centímetro do meu corpo
enquanto eu caía para frente. O chão me apoiou enquanto eu olhava para
cima, através de meu assassino e na direção da minha casa.
Tudo pelo que trabalhamos para superar todos os outros, para nos tornarmos
um Alto Sangue, foi em vão. Só Ada ficaria como minha herdeira, a mais fraca
dos Granbehls, um pobre elogio pelo qual seríamos lembrados.
ARTHUR
A espada etérica se dissipou quando eu liberei meu controle sobre sua forma.
Lorde e Lady Granbehl estavam aos meus pés, seus cadáveres entrelaçados.
“Bem, está feito.” Regis fungou, olhando para o cadáver de Titus Granbehl
antes de se virar para mim. “Então… você quer comer um shawarma no
caminho de volta?”
Regis abriu a boca, fez uma pausa e baixou lentamente a cabeça. “Quer dizer,
sim, claro, acho que você está tecnicamente certo, mas parece apropriado.” Ele
torceu o nariz. “Ou talvez o cheiro esteja apenas me deixando com fome.”
“Olá, Ada.”
Ada enxugou o rosto com a mão, esfregando as lágrimas meio secas com
sujeira. “Você os matou.” As palavras não eram uma acusação, apenas uma
declaração. “Sabia que o faria.”
“Talvez se seu pai soubesse…” Afastei-me dos cadáveres de seus pais. “Não
precisaria chegar a este ponto.”
“Hm?” Ela murmurou, olhando para os corpos além de mim. Embora ela
olhasse, não fez nenhum movimento para se aproximar.
Ada se encolheu com o barulho, mas não fez nenhum outro movimento.
“As pessoas vão ver isso e presumir que o sangue Rothkeller vingou-se contra
sua família. Entendeu?”
Ela deu alguns passos hesitantes ao redor para que ela pudesse ver o símbolo
chamuscado dos rivais de sua família. “Vou dizer a todos que não vi nada—”
“Então,” Alaric disse quando o alcancei, “ouvi dizer que você mais uma vez
precisa de aconselhamento jurídico.”
“Eu sei que você está com problemas,” disse ele zombando. “E que, como
sempre, você mordeu o dobro do que pode mastigar.” Ele olhou para mim com
olhos instáveis. “Os Granbehls tentaram terminar o trabalho, mas você acabou
com eles, né?”
Ele começou a andar rapidamente para frente e para trás, descuidado ao pisar
em uma das plantas cuidadosamente mantidas por Darrin. Ele estava falando
rapidamente em um murmúrio baixo que eu não pude acompanhar. Em vez de
estressá-lo ainda mais interrompendo-o, deixei o velho continuar assim por
um minuto.
‘Acho que você acabou de tirar o fôlego do pobre bêbado,’ observou Regis, com
um toque de preocupação na voz.
Alaric parou de repente e olhou para mim. “Como diabos você ficou contra uma
Foice, afinal?”
“Nós temos história,” eu disse, impassível. “Quanto ao motivo que ele está
atrás de mim agora…”
“Seja lá o que for que te meteu nisso,” disse ele depois de um minuto, “não
será fácil se esconder. Não com tanto poder farejando atrás de você.”
Ele olhou para mim com um sorriso irônico. “Agora, eu sei que você está
brincando, porque apenas um idiota pensaria em fazer uma coisa dessas.” Os
olhos dele se estreitaram. “Você não está brincando. Seu idiota! Que diabos
você está pensando?”
Capítulo 367
O Victoriad I
SETH MILVIEW
Foi uma coisa tão pequena e estúpida de se fazer, mas mesmo ser capaz de
fazer isso significava muito para mim. Há apenas alguns anos, alguns ventos
frios vinham até mim enquanto brincava com Circe, nós dois fingindo ser
dragões espalhando fogo em vez de vapor, foi o suficiente para me deixar de
cama.
Havia muitos alunos indo para Vechor, muitos para usar o tempus warp de uma
vez, e nossa classe foi a última da fila a ser teletransportada. Lá dentro, a
Professora Abby do sangue Redcliff estava encarregada de teletransportar
cada classe por vez.
“Olha quem tá aí, e aí, Laurel.” disse a Mayla, dando à outra garota um aceno
alegre. “Tá muito frio, né?”
“Agora que estamos todos aqui”, o professor dispensou Laurel com um aceno,
“Eu tenho algumas coisas que cada um de vocês precisa ter.”
Cada aluno recebeu dois itens. O primeiro era uma capa feita de veludo azul e
preto da Academia Central. A segunda era uma meia-máscara branca que
cobria meu rosto da linha do cabelo até abaixo do meu nariz. Um padrão de
linhas azuis escuras foi pintado sobre ele, nítidas e angulares como runas,
embora mais artística. Chifres pequenos projetavam-se do topo de cada
máscara.
Mayla ergueu o dela contra o rosto. Era idêntico ao meu, exceto pelos padrões,
que eram mais naturais e suaves, como rajadas de vento ou correntes de onda.
Ela mostrou a língua e fez um barulho bobo de rosnar.
“Eu não deveria ter que lembrar você.” Briar disse em desaprovação, seu foco
em Mayla. “Que o Soberano Kiros Vritra estará presente no Victoriad. Já que
esta é provavelmente a primeira vez para todos nós, estar na presença de um
Soberano, você precisa entender algumas coisas.
Suas vitórias não são suas, mas dele. Você não faz isso para sua própria glória,
mas para a do Alto Soberano. Qualquer insulto que você fizer, proposital ou
inadvertido, como ficar sem sua máscara ou olhar o Soberano Kiros nos olhos,
também refletirá no Alto Soberano e será punido severamente”.
Marcus, que estava parado bem na nossa frente, estava olhando para sua
própria máscara com uma expressão estranha e distante. Seus dedos traçaram
ao longo das linhas azuis pesadas e angulares pintadas nele.
Mayla também deve ter notado sua expressão. “O que você acha que suas
marcações representam?”
Ele olhou para ela, seu rosto se contraindo nervosamente por apenas um
segundo antes de se suavizar em seu tipo usual de expressão pronta. “Não
consigo imaginar que os padrões correspondam a nós pessoalmente de
alguma forma, você consegue? Afinal, eles devem limitar nossa identidade
pessoal perante o Soberano, não nos fazer destacar como indivíduos.”
“Oh”, disse Mayla, franzindo a testa. “Eu realmente não tinha pensado nisso.”
Olhei para o professor, que se afastou de nós para observar uma mulher de
cabelo azul se aproximando.
Eu realmente não entendi. Mesmo que ele sempre parecesse relutante, ele nos
ensinou como ser lutadores aceitáveis. Eu sabia que ele realmente não gostava
de nós, especialmente de mim. Na verdade, isso é um eufemismo muito
grande. Às vezes, pela maneira como ele me olhava, achei que ele devia
me odiar. Mas eu não tinha ideia do porquê.
Mayla me deu uma cotovelada forte nas costelas. “Então quer dizer, que você
tem uma quedinha por alguém?”
“Você não para de olhar para a Lady Caera.” Ela brincou, e eu percebi que devia
estar olhando para o professor Grey por um tempo, perdido em pensamentos.
“Ela é muito bonita, mas é um pouco velha para você, não é?”
A professora assistente Caera olhou para trás dela, então de volta para ele,
uma mão em seu peito. “Como é que é? Você já chegou em Vechor, professor
Grey? Porque senão, parece que estou perfeitamente na hora.”
“Além disso.” Mayla murmurou, inclinando-se na minha direção, “Acho que ela
já está comprometida.”
Uma vez que estávamos todos dentro, a professora Abby nos arrumou em um
círculo ao redor do dispositivo, que estava zumbindo suavemente e emitindo
um brilho quente. Alguns alunos se aproximaram, colocando as mãos para
aquecê-las.
Uma brisa soprou do nada e percebi que alguém estava lançando magia do
vento. Mayla riu e apontou: o cabelo da professora Abby estava dançando
levemente ao redor dela enquanto ela conduzia o professor Grey pelo braço
para um lugar aberto no círculo. “Estou realmente ansioso por isso, não é,
Grey?” ela perguntou, sua voz brilhante chegando na pequena câmara. “O
Victoriad é emocionante demais e há muito o que fazer! Devíamos tomar
alguma coisa durante nossa estadia lá.”
Alguns dos outros alunos explodiram em risadas abafadas, de modo que não
pude ouvir a resposta da professora.
Fosse o que fosse, a professora Abby fez beicinho enquanto se movia para o
artefato tempus warp em forma de bigorna e começava a ativá-lo.
Antes que eu pudesse levar um segundo para olhar em volta, um homem com
uma máscara vermelho-sangue, que parecia ser algum tipo de demônio
monstruoso, entrou no centro do nosso grupo. “Bem-vindo a Vechor e à cidade
de Victorious. Professor Grey da Academia Central e da classe Táticas de
Aprimoramento Corpo a Corpo, correto?”
“Certo.” O professor Gray respondeu, não olhando para o homem, mas olhando
para os fluxos de alunos em diferentes estilos e cores de máscaras que
estavam se movendo continuamente.
“Por favor, dirija-se à área de teste”, disse o homem, apontando para a trilha
de alunos de toda Alacrya. “Área de preparação quarenta e um, no lado sul do
coliseu. De lá, você poderá assistir as outras competições, bem como se
preparar para a sua própria.”
Atrás de mim, Valen bufou. “Tudo aquilo para um ‘uau, é grande’ é o melhor
que você pode fazer?”
Enola riu disso, esticando o pescoço para ver o topo das paredes do coliseu.
“Algo assim… pode roubar as palavras de qualquer um de nós.”
Tentei pensar em algo espirituoso para atirar em Valen, mas demorou muito e
o momento passou.
Nossa fila se dividiu em duas, um grupo indo para a esquerda enquanto nossa
classe seguia o riacho mais à direita, que nos levou por um largo bulevar entre
duas fileiras de barracas de mercadores. Todos foram imediatamente
distraídos pela enorme variedade de produtos e lembranças em exibição.
Todos nós engasgamos quando passamos por uma besta pesada de seis
pernas com uma cabeça achatada como uma pedra e bolsões de cristais
brilhantes crescendo por todo o corpo. Ele ergueu sua cabeça desajeitada para
nós e soltou um grito estridente, quase fazendo Linden tombar para trás.
Um mago que engoliu o fogo de um graveto e o fez sair pelos ouvidos dançou
ao lado do nosso grupo por várias baias antes que o assistente Briar o
espantasse, arrancando uma boa risada da classe.
Pouco depois disso, fomos todos forçados a parar quando uma procissão dos
Altos Sangue de Sehz-Clar passou à nossa frente usando ofuscantes lobos de
batalha e máscaras de joias. Um em particular chamou minha atenção, ou
melhor, o medalhão de prata pendurado em seu cinto.
“O que significa ‘No sangue existem lembranças’?” Eu perguntei a ninguém em
particular. Algo sobre a frase era familiar, mas não conseguia identificar o que
era.
“É usado por tolos que são teimosos demais para esquecer a última guerra
entre Vechor e Sehz-Clar.” Alguém disse sussurrando.
“Oh,” eu disse, percebendo que devo ter lido em um dos muitos livros sobre
conflitos entre domínios que li. “Você é de Sehz-Clar, certo?”
Cada nova visão era algo que eu nunca tinha visto antes, quanto mais eu via,
mais animado ficava. Meus olhos ficaram cada vez mais arregalados à medida
que marchamos, e vi uma centena de coisas que gostaria de comprar: penas
que usavam magia sonora para traduzir sua voz e escrever tudo o que você
dizia; elixires que aguçaram sua mente e permitiram que você memorizasse
grandes quantidades de informações em pouco tempo; uma adaga que
continha seu próprio feitiço do vento e voltaria para a sua mão quando
lançada…
Na verdade, decidi que o último provavelmente não era uma boa ideia…
Por fim, fomos direcionados para uma entrada separada apenas para
participantes. Enquanto os muitos alunos de outras escolas desciam uma
longa encosta que conduzia a um túnel abaixo do próprio coliseu, nosso grupo
foi forçado a fazer uma pausa. Algumas dezenas de espectadores estavam
reunidos aqui, aplaudindo e acenando para os competidores do Victoriad
enquanto marchávamos.
“É um pouco opressor, não é?” Enola disse enquanto olhava ao redor e acenava
para várias crianças pequenas pressionadas contra a mureta perto do início
do túnel de descida.
Portrel riu, tendo se esgueirado pela fila para ficar ao lado de Valen. “Pelo
menos se você se cagar, sua capa esconderá o pior, Enola.”
Mais do que alguns dos outros lançaram olhares ansiosos para os mercadores
enquanto mergulhávamos no túnel de entrada, onde pedras sólidas cortavam
grande parte do barulho acima. A enorme estrutura acima parecia nos
pressionar, fazendo com que todos ficassem quietos.
“Tenho certeza de que haverá tempo para gastar o dinheiro dos seus pais mais
tarde.” Disse o professor Grey no silêncio pesado, ajustando sua máscara e
olhando ao redor do túnel escuro. Portas grossas de madeira e túneis que se
cruzavam se abriam para a esquerda e para a direita em intervalos irregulares,
sugerindo uma grande rede subterrânea sob o chão do coliseu. “Por enquanto,
lembrem-se do que vocês estão fazendo aqui.”
Todos nós lentamente serpenteamos pelo interior do coliseu até que outro
caminho inclinado conduziu até a borda do campo de combate, e todos nós
demos nossa primeira olhada no quão grande a estrutura realmente era.
Ainda assim, o livro nem chegou perto de fazer jus ao lugar. Não havia como
os números expressarem o quão grandioso era o Coliseu Vitorioso.
A entrada do túnel surgiu na frente da área de teste trinta e nove, e mais uma
vez os grupos de alunos se separaram para a esquerda ou para a direita.
Encontramos a seção rotulada como quarenta e um facilmente e o assistente
Briar abriu o caminho para o que era em parte um camarote e em parte sala
de treinamento.
A sala em si era espaçosa o suficiente para cinco vezes mais alunos do que
havia em nossa classe, mas nenhum de nós reclamou enquanto nos
espalhamos e começamos a explorar avidamente.
Tudo o que minha irmã fez, ela fez por mim. Ela foi para a guerra por mim. Ela
morreu por mim. Mas ela nunca seria capaz de ver os resultados de seus
esforços. A guerra vencida. Seu irmão, completamente curado.
Se Circe não tivesse feito essas coisas, ela estaria viva. Mamãe e papai podiam
estar vivos. Mas eu não faria isso, pelo menos, não de qualquer maneira que
importasse.
Gostava de pensar que mamãe e papai estavam com Circe agora em algum
lugar do além, esperando que eu me juntasse a eles algum dia.
Eu poderia fazer uma lápide para ela… não, uma estátua! Não haveria—
Eu fiz uma careta, meu humor azedando. Supondo que nem todos se
transformem em pó entre os Vritra e os asuras.
“Não me diga que você já está se sentindo mal.” Disse o professor Grey,
aparecendo ao meu lado.
Uma buzina soou, me fazendo pular. O campo de batalha estava vazio. Quatro
enormes bolas de fogo voaram para o ar e explodiram, enviando faíscas
multicoloridas que choveram sobre o coliseu.
Ouviu-se um ruído surdo, tão profundo que mais senti do que ouvi e uma
enorme rampa no centro da arena começou a baixar. Quatro guardas
apareceram, marchando pelas rampas para a luz do sol e arrastando pesadas
correntes atrás deles. Presa à outra extremidade das correntes por algemas
em seus pulsos e tornozelos estava uma multidão de pessoas.
Quatro bestas de pelo escuro subiram as rampas. Cada uma parecia um lobo,
exceto pelas pernas longas e com olhos laranja ardentes. Seus dentes tinham
o formato de pontas de flecha e brilhavam uma cor escura à luz do sol.
“Eu não acho que eles vão precisar de pedras esta noite.” Alguém murmurou.
A cautela dos lobos das presas negras não durou muito. Assim que perceberam
que suas presas estavam totalmente indefesas…
Professor Grey…
Parado ao meu lado, ele parecia, apenas por um instante, uma pessoa
totalmente diferente. Ele estava imóvel como uma estátua e seu rosto
normalmente inexpressivo estava afiado como uma lâmina. Seus olhos
dourados, escuros e implacáveis, olhavam para o campo de combate com tal
ferocidade que até me queimava internamente.
Apenas Lady Caera parecia ter notado. Quando ela estendeu a mão e enrolou
os dedos em torno de seu pulso, eu recuei, instintivamente com medo de que
a intenção de matar que eu sentia fosse atacá-la.
Então o feitiço foi quebrado e eu fiquei com uma sensação de vazio, como se
alguém tivesse escavado minhas entranhas com uma pá congelada.
Antes que eu pudesse criar coragem para dizer qualquer coisa, uma presença
ainda mais avassaladora instalou-se na área de palco. Imediatamente me senti
como se estivesse de volta à sala de treinamento, o aumento da gravidade me
esmagando contra o chão.
Como um, nos viramos para encarar a figura que tinha acabado de aparecer
em nossa área de teste. Laurel soltou um gemido e caiu de joelhos e logo o
resto dos alunos seguiram o exemplo. Percebi com uma pontada de pânico
que apenas o professor Grey, Lady Caera e eu ainda estávamos de pé, mas
minhas pernas estavam travadas retas e eu não conseguia me mover.
“Foice Seris.” Disse o professor Grey acima de mim. “Que prazer em revê-la.”
Capítulo 368
O Victoriad II
Meu estômago se revirou com a visão, enquanto o resto de mim não queria
nada mais do que usar o God Step no campo e matar aquelas bestas.
O poder de moldar a realidade em minhas mãos, mas eu não pude nem mesmo
salvar aquelas pessoas.
Me convenci de que me conter agora era para um bem maior, que era o preço
que todos tínhamos que pagar por perder a guerra.
Mas isso não tornou mais fácil de sentar e assistir aos meus colegas
Dicatheanos serem massacrados. E então houve os aplausos, que rolaram
como um trovão odioso de dezenas de milhares de espectadores enquanto se
fartavam da visão, assim como os lobos se fartavam de inocentes…
Seris estava observando Seth como se ele fosse uma criaturinha divertida. Seja
qual for a razão dela para vir aqui, eu não precisava que meus alunos fossem
envolvidos nisso, então coloquei a mão no ombro de Seth e o coloquei de
joelhos.
Ela girou, sua capa fluindo como um líquido ao redor dela, e desapareceu
através da única porta fixada na parede de pedra na parte de trás da área de
preparação. Caera saltou para segui-la, mas eu fiquei onde estava.
‘Sim, porque o que toda esta situação realmente precisava era outra camada
de complicação’, pensou Regis, nosso link transmitindo claramente sua
resignação hesitante.
O fato de Seris também ter descoberto minha identidade não foi exatamente
uma surpresa, já que Nico obviamente sabia, mas eu tinha que me perguntar
por que ela iria me contatar agora, e tão abertamente.
Mesmo com a saída de Seris, os alunos ainda estavam petrificados. Seu choque
e espanto eram tangíveis, flutuando no silêncio viscoso que o súbito
aparecimento e partida da Foice havia criado. Até o barulho da multidão havia
sido abafado, como se não fosse bem-vindo neste lugar.
“Briar, Aphene.”
“O que foi?” Eu perguntei, minha voz soando oca nos túneis subterrâneos, mas
ela apenas balançou a cabeça em resposta.
Eu estava desconfiado, mas não com medo. Embora Seris fosse muito distante
e misteriosa para considerá-la uma aliada, também não a considerava uma
inimiga. Se ela quisesse me machucar, houve muitas oportunidades de fazê-lo
antes do Victoriad.
“Fiquem à vontade”, disse Seris, seu tom leve em desacordo com sua presença
dominadora. Quando eu não fiz nenhum movimento para fazer isso, ela acenou
com a mão para afastar minha cautela. “Eu não te trouxe aqui para te
machucar, Grey, mas você já sabe disso. Você parece bem, por falar nisso.
Olhos dourados… muito sutis. Por que você não remove essa máscara para que
eu possa ver seu rosto propriamente?”
“Obrigado pela hospitalidade”, respondi, fazendo o que ela pediu. “Lugar legal,
embora um pouco solitário. Onde está Cylrit? Escondido no armário,
esperando para pular e me dar um aviso terrível?”
Seris riu. “Meu Retentor está cuidando de outra coisa para mim no momento.
Não há avisos terríveis hoje, mas isso não significa que não temos negócios a
discutir. Tenho certeza de que não vai te surpreender saber que tenho estado
te vigiando de perto desde que apareceu tão convenientemente nas
Relictombs.”
Enquanto ela falava, notei Seris procurando meus olhos por trás dela e me
dando um sorriso tímido. Quando retornei a expressão, Caera vacilou, sua
preocupação dando lugar a uma carranca confusa.
“Está tudo bem, Caera. Quero dizer, você tem uma poderosa Foice como sua
mentora com um interesse incomum por mim?” Fiz um gesto para Seris,
incapaz de suprimir um sorriso culpado. “Eu nunca te pressionei por mais
detalhes, porque eu não precisava. Não foi tão difícil descobrir.”
Caera respirou fundo e passou uma mecha de cabelo azul entre os dedos.
“Obrigada por compreender. Vocês dois podem parar de se olharem como
bobos agora.”
“Caera de Alto Sangue Denoir, isso é jeito de falar com sua mentora?” Seris
perguntou com um leve ar de zombaria. “Sua mãe adotiva ficaria chocada.”
‘Muito elegante, a maneira como você lidou com isso. Mas acho que seria muito
infantil da sua parte, ficar todo irritado com ela por não ter contado a você,
considerando o número incontável de mentiras que você contou sobre sua
própria identidade.’ Regis zombou.
“A mesma coisa que sempre quis.” Ela se virou para a janela. Abaixo, uma dúzia
de escravos estavam limpando o que restava da bagunça deixada pelos lobos
com presas negras. “Ver o seu potencial crescer.”
‘A mana de Uto não foi desperdiçada, se você quer saber’, pensou Regis com o
equivalente de deixar sua língua sair da boca com satisfação.
“Sim, bem, isso certamente é algo que eu não poderia ter previsto”, disse ela
em voz baixa, mais para si mesma do que Caera ou eu.
“O que é que você quer comigo?” Eu perguntei de novo, com mais firmeza
dessa vez. Uma suspeita repentina me ocorreu e acrescentei: “Você me trouxe
aqui… Para o Victoriad?”
Os lábios pintados de Seris se curvaram. “Eu admito, me doeu ver você sentado
de mãos abanando naquela universidade por tanto tempo. Um professor,
sério?” Ela me lançou um olhar de desaprovação, como se eu me importasse
com o que ela pensava sobre minhas ações em Alacrya. “Como eu disse,
previsível. Mas você também está certo, eu providenciei para que sua classe
estivesse aqui.”
“Por quê?” Eu perguntei, tentando juntar essa nova informação a tudo o mais
que eu já sabia.
“Porque eu queria te lembrar quem você é e o que está em jogo,” ela disse,
sua voz carregada de autoridade, uma mudança brusca de tom em relação ao
resto de nossa conversa. “Para esse fim, arranjei sua presença neste local, para
pedir algo a você. Pense nisso como cobrar uma dívida que você me deve.”
“Dívida?” Eu perguntei, sem saber se gostaria para onde isso estava indo.
“Então você não me ajudou simplesmente por causa da bondade do seu
coração? Chocante…”
Caera se virou lentamente, olhando para mim com olhos do tamanho de luas
cheias. Sua mandíbula estava cerrada com tanta força que pensei que ela fosse
quebrar um dente.
Seris, porém, apenas se ajustou para ficar mais confortável. “Eu quero que
você desafie Cylrit para ser meu retentor.”
Isso parecia ser demais para Caera, cuja boca se abriu de surpresa. Ela
arrancou a máscara, rompendo a corda e a deixou cair no sofá ao lado dela.
“O que está acontecendo aqui?”
“Presumo que seja uma pergunta retórica, porque ambos sabemos o motivo
real de você estar aqui”, disse ela, seu tom era o de um juiz dando seu
veredicto.
‘Diga pra ela que é foice ou nada.’ brincou Regis. ‘Não planejamos ficar na
sombra de ninguém.’
Ela acenou com a cabeça. “Ao derrotar Cylrit e recusar o papel de retentor,
você estará enviando uma mensagem muito clara.”
Agrona sabe que estou aqui, percebi com absoluta certeza, me perguntando se
Seris poderia ter contado a ele, ela mesma. Afinal, para quem mais ela
precisaria enviar uma mensagem. Mas ele já tem o que quer e não se importa
mais comigo.
Mas descobri que Agrona descobriu que eu não apenas tinha sobrevivido, mas
estava morando em suas próprias terras, e mesmo assim ele não se importou…
‘Se Agrona não acha que somos uma ameaça, esse é seu próprio erro de cálculo
idiota,’ Regis pensou com um grunhido. ‘Mas se a deusa com chifres ali quer
que nós nos exponhamos…’
“Oh, vamos, coloque essa sua mente inteligente para trabalhar,” ela insistiu, a
autoridade esmagadora desapareceu de sua voz, que era mais uma vez leve e
provocante. “Quanto tempo você planeja correr e se esconder?”
Seris se endireitou e se levantou. Mesmo que ela fosse um pouco mais baixa
do que eu, quando ela olhou nos meus olhos parecia que ela estava me
subestimando. “Eu preferiria que você me dissesse exatamente o que vai fazer.
Talvez possa ajudar.”
O olhar de Caera estava no chão aos meus pés, o pouco de suas feições que
eu podia ver por trás de sua máscara, deprimida.
“Trilby comeu sua língua?” Eu perguntei, sem tentar adivinhar que parte da
minha conversa com Seris fez sua cabeça girar. Eu não conseguia nem imaginar
que tipo de história selvagem ela estava criando em sua mente.
Fazendo alguns cálculos rápidos sobre quanto tempo tínhamos antes do início
do torneio, sorri e estendi meu braço. Caera olhou para mim com incerteza
antes de deixar sua mão descansar na dobra do meu cotovelo.
“Vamos dar uma volta e limpar nossas cabeças um pouco, antes de nos
sujeitarmos às milhões de perguntas que provavelmente estão se formando
na cabeça dos meus alunos”, eu disse com uma risada suave.
“Não tenho certeza se eu, uma humilde Alto Sangue nascida com sangue Vritra,
mereço ser vista caminhando de braços dados com uma figura tão bem
conectada e misteriosa como você”, ela brincou.
“Talvez não, mas vou conceder-lhe esta honra apenas desta vez,” eu me lancei
rapidamente, levando-a em direção à saída.
“Ei, senhor com os olhos dourados, pare aqui para ganhar um belo prêmio para
sua bela dama”, cantou um homem com uma máscara de prata brilhante,
acenando para que nos encaminhassem para seu carrinho.
Eu consertei meu rosto. “Nada, apenas… me perguntando como você ficou sob
a tutela de Seris.”
“Ah, sério?” Ela perguntou, seu olhar seguindo a linha de carrinhos coloridos,
lonas e tendas. “Você já sabe mais sobre mim do que talvez qualquer outra
pessoa no mundo, embora você seja um livro trancado com páginas fora de
ordem, codificadas e provavelmente escritas em tinta invisível…” Ela parou,
me lançando um olhar irônico, então suspirou. “Mas, sem dúvida, vamos falar
sobre mim.”
“Crianças com sangue Vritra, aqueles de nós com sangue puro o suficiente para
potencialmente manifestar a magia Vritra, não são comuns, mas não somos
tão raros ao ponto de cada um de nós termos sua própria Foice também.” Uma
mulher que reconheceu Caera, uma vendedora de artigos de couro
extremamente caros, gritou, e Caera deu-lhe um pequeno aceno enquanto
continuávamos. “Ela alegou ter me escolhido por causa da posição de Alto
Sangue Denoir, que é claro, só cresceu depois de ser designada uma filha
adotiva de sangue Vritra, mas eu sempre me perguntei…”
“Se ela soubesse de alguma forma? Que você…” Fiz um gesto para sua cabeça,
onde seus chifres foram mantidos invisíveis pelo pingente de lágrima que ela
usava ao redor do pescoço.
“Certo,” ela respondeu. “Eu tinha… oito, talvez nove anos quando ela começou
a me treinar, me tornando não apenas um sangue Vritra e um Alto Sangue
adotado, mas também protegida de uma Foice. Isso contribuiu para uma…
infância conturbada.”
“Por que você acha que ela ajudou a mantê-la escondida?” Eu perguntei,
baixando minha voz enquanto um grupo de Alto Sangue passava
vagarosamente, vestidos tão brilhantemente que poderiam ter sido
confundidos com pavões. “O que ela quer com você?”
Mas ela não me pediu, sério. Ela só quer que eu lute contra ele, lembra?”
Apontei.
“O que só torna tudo mais confuso, pelo menos para mim”, disse Caera,
parecendo confusa. “Eu não vou pressioná-lo a explicar nada — embora eu
fique feliz em ouvir, quando você decidir explicar — e prometo não usar isso
contra você se você decidir esconder algumas coisas” — Regis soltou um bufo
mental — “mas por que ela iria querer que você chamasse atenção para si
mesmo? De quem? Com qual objetivo?”
“Eu sei”, eu disse, parecendo repentinamente cansado, até mesmo para meus
próprios ouvidos, “mas um dia você saberá.”
“Isso vai ter que ser bom o suficiente então, eu acredito.” Ela disse com um
sorriso envergonhado. “De qualquer forma, é melhor voltarmos para a sua
turma. Suas lutas devem começar em breve.”
Capítulo 369
O Victoriad III
SETH MILVIEW
“Eles saíram já tem tempo,” Pascal murmurou para Deacon, que estava de pé
ao lado dele. Estávamos todos alinhados enquanto a Assistente Aphene nos
conduzia por uma série de movimentos e posturas para aquecer nossos
músculos. “O que, em nome do Alto Soberano, a Foice de Sehz-Clar iria querer
com nosso professor, afinal?”
“Talvez ele tenha ofendido ou irritado ela de alguma forma?” Deacon sugeriu,
mexendo nervosamente com sua máscara.
Como eu, Deacon geralmente usava óculos, mas não era possível usá-los com
as máscaras. Felizmente, minha visão estava melhorando lentamente desde
que minha doença debilitante foi embora, mas Deacon constantemente tinha
que parar e olhar de soslaio para a Assistente Aphene para ver em que posição
ela havia torcido seu corpo atlético.
“Não seja estúpido,” Valen zombou. “Uma Foice não viria pessoalmente para
isso. Ela enviaria seu retentor, ou talvez apenas um bando de soldados. Com
quase todas as Foices presentes no Victoriad, é de se esperar que eles
apareçam pessoalmente em algum momento.”
“Talvez o professor seja o amante secreto da Foice Seris Vritra!” Laurel deu
uma risadinha, escondendo a boca atrás de uma de suas longas tranças.
“Ou ele está treinando para substituir o retentor dela,” Marcus sugeriu. “Todos
nós vimos o quão assustador ele pode ser quando quer. Você conhece mais
alguém, até mesmo professores, que pode treinar tão facilmente em gravidade
máxima na plataforma de luta da escola? Ele nem sequer suava.”
“Teorias interessantes,” Valen continuou, sua voz mais baixa, “mas poderia ser
mais mundano do que isso. Eu já conheci pessoalmente as Foices Cadell Vritra,
Dragoth Vritra e Viessa Vritra. É…”
“Só que o Professor Grey não é um nobre de alto escalão, até onde sabemos,”
Deacon apontou, levemente ofegante por falar e se alongar ao mesmo tempo.
“E além disso, a Foice Seris Vritra é conhecida por ser uma reclusa. Ela
não faz visitas sociais.”
E é claro que Mayla escolheu aquele momento para se inclinar para mim
novamente e perguntar: “Ei, você está bem? Você parece um pouco abalado.”
“Tá mais para congelado”, disse Pascal, iniciando outra rodada de risadas mal
reprimidas. Mayla lançou um olhar de advertência, e ele ergueu as mãos,
balançando levemente. “Brincadeira, calma.”
A assistente Aphene limpou a garganta novamente, mas antes que ela pudesse
repreender alguém por conversar, todos os olhos se voltaram para a frente da
área de preparação, onde um oficial do evento usando uma máscara de
demônio vermelho tinha acabado de aparecer, marchando até nosso espaço e
olhando ao redor.
“Você está aqui por causa do torneio?” o professor perguntou. “Espero não ter
feito você esperar muito.”
“Tenho certeza que não preciso lembrá-los, mas a magia não é permitida
sob nenhuma circunstância. Qualquer uso de mana, além do fortalecimento
latente do corpo causado pela presença de runas, resultará na perda imediata
da partida e na expulsão do Victoriad. Além disso, atacar com intenção de
mutilar ou matar também é proibido.”
Eu suspirei de alívio. Pelo menos eu não era um dos primeiros a lutar, então
não seria o primeiro a ser eliminado do torneio. Provavelmente.
O professor Grey verificou com os quatro alunos nomeados para garantir que
eles tinham entendido seus respectivos ringues, então agradeceu ao oficial.
Ele assentiu de volta. “Também pedimos que o líder da equipe – neste caso,
você, professor – permaneça presente caso surja algum problema.” Girando
nos calcanhares, o homem se apressou para fora de nossa área de preparação,
em direção à próxima.
Laurel se inclinou para perto de Mayla. Em uma voz cantante, ela sussurrou:
“Amante secreto”.
Deacon, por outro lado, andava como se estivesse sendo enviado para o
escritório do diretor, seus pés arrastando no chão, sua cabeça girando
constantemente para olhar para nós.
Quando Portrel fez o mesmo, bufei com um sorriso. Depois de toda a sua
conversa fiada sobre eu estar nervoso, lá estava ele, constantemente olhando
por cima do ombro para olhar para Valen, mesmo quando ele estava no ringue
em frente ao seu oponente.
Foi caótico tentar acompanhar todas as quatro lutas ao mesmo tempo, sem
mencionar todas as outras batalhas acontecendo na nossa frente que não
eram da Academia Central. Eu vi Deacon mal se esquivar quando uma garota
de pele escura com um moicano verde-musgo pulou e tentou dar uma
joelhada no peito dele, mas ao mesmo tempo Sloane acertou um soco que
derrubou seu oponente no chão, e minha atenção se voltou para sua luta.
Mayla agarrou meu cotovelo e apontou para Portrel, e senti uma pontada
distinta de inveja vendo o garoto maior agarrar o punho de seu oponente no
ar. “Ele é tão forte”, eu murmurei.
“É, loucura. Ah, essa doeu!” Mayla estremeceu quando Portrel jogou o garoto
com quem estava lutando no chão antes de nocauteá-lo com três socos
rápidos no rosto.
“Isso aí! Nocaute nele!” Remy gritou, seus punhos erguidos no ar acima de sua
cabeça.
Várias outras lutas também já haviam terminado, tornando mais fácil ver os
ringues de trás, onde Enola ainda lutava de igual para igual com uma garota
que era pelo menos dez centímetros mais alta e quinze quilos mais pesada
que ela.
Mas isso não importava. Enola lutou como um demônio louco. Ela era tão
talentosa que era difícil acreditar que eu estava competindo no mesmo torneio
que ela. Mesmo que a outra garota fosse maior, Enola era uma lutadora muito
melhor.
Ouvindo a ovação de uma torcida em outra área de preparação, inclinei-me
sobre o corrimão e apontei os alunos da outra escola para Mayla. “Você sabe
de que academia eles são?”
“Não tenho certeza”, disse ela com um encolher de ombros, sem tirar os olhos
arregalados da luta de Enola.
Nosso canto continuou até que a luta acabou, que foi vários minutos depois
das outras. Eu me envolvi tanto que me vi mergulhando e me abaixando,
acompanhando os movimentos de Enola sem pensar.
Mayla riu, me cutucando nas costelas. “Você é tipo um nerd de luta, Seth.”
Eu mostrei minha língua para ela, mas depois voltei minha atenção para a luta.
Ficou bem claro quando a garota maior começou a se cansar, e quando isso
aconteceu, Enola se aproximou para terminar com uma das combinações
especiais que o Professor Grey nos ensinou.
Ela deu vários socos e chutes em rápida sucessão, cada um cronometrado para
tirar vantagem da ação defensiva mais provável de sua oponente, levando a
garota ao desespero. Cada esquiva ou bloqueio era mais selvagem e
imprevisível que o anterior, e ela terminou com uma cotovelada giratória na
menina indefesa. Ou pelo menos foi assim que o professor explicou.
“Tanto faz, pelo menos agora eu posso apenas sentar e relaxar”, ele murmurou,
me dando um sorriso agradecido. “E ver o resto de vocês apanharem, é claro.”
Uma mão me agarrou e apertou. “Boa sorte, Seth!” Mayla disse animadamente.
“Vamos mostrar a todos o quanto aprendemos, ok?”
Então estávamos todos marchando para o campo de combate junto com uma
dúzia de outros alunos de outras escolas. Eu imediatamente apaguei e esqueci
para qual ringue eu deveria ir, e acabei andando em círculo antes que um
oficial me pegasse pelo braço e me arrastasse para o ringue onze. Meu rosto
queimou quando ouvi risos da área de preparação mais próxima, mas não me
virei para olhar de qual academia era.
Ele não era muito mais alto do que eu, mas era atlético, muito diferente de
mim. Eu tinha braços pálidos e finos, mas os dele eram bronzeados e
musculosos. Minhas pernas tremiam, mas as dele eram fortes como troncos de
árvores. Seu uniforme era vermelho e cinza, e ele usava uma máscara preta
com runas escarlates pintadas.
“Não é justo!” alguém por perto gritou. Desta vez eu me virei para olhar e
percebi que estava bem ao lado da área de preparação da Academia
Bloodrock. Um menino enorme — se é que era um menino, e não um ogro da
montanha disfarçado — estava encostado no parapeito e balançando a cabeça.
“Como você teve tanta sorte, Adi? Eu não sabia que eles estavam deixando
criancinhas competir neste evento.”
O oficial disse algo que não entendi, então um gongo pesado anunciou o início
da luta.
Meu oponente nem mesmo adotou uma postura, apenas passeou pelo ringue
em minha direção. Com um ar casual, ele deu um chute na direção da minha
barriga, olhando para mim com uma mistura frustrante de pena e desdém.
Meu treino me fez reagir. Dei um passo para o lado e para a frente enquanto
mirava um chute baixo em seu tornozelo, tirando seu pé do chão. Ele caiu
direto com um grunhido de dor, suas pernas indo em direções opostas, mas
eu já havia invertido minha postura e chutado para trás com a outra perna,
meu calcanhar conectando solidamente com a têmpora do meu oponente.
Ele caiu de lado, a máscara torta e os olhos rolando para trás em seu crânio.
E acabou. Pares de alunos ainda estavam lutando ao meu redor, mas o juiz que
julgou minha luta pulou no ringue e gritou minha vitória acima do barulho,
então me instruiu a esperar ao lado do ringue até que todas as lutas
terminassem. O garoto atordoado se mexeu, então parei e ofereci minha mão
para ajudá-lo a se levantar, mas ele a afastou e se esforçou para se endireitar.
“Boa sorte, woggart”, disse o garoto grande atrás de mim, cruzando os braços
enquanto se levantava. Ele era tão alto quanto Remy, mas musculoso como
Portrel. Seus olhos eram de um vermelho sangue escuro por trás de sua
máscara. “É melhor você torcer para não acabar no ringue comigo. Eu vou
quebrar sua bunda magrela em duas.”
Fazendo o meu melhor para não parecer tão assustado quanto eu me sentia –
qualquer alegria pela minha vitória esquecida – eu tentei observar Mayla, mas
minha cabeça parecia estar cheia de alcatrão, e eu só pensava no grande e
furioso ogro me encarando na área da Bloodrock, e me perguntava se ele ia
pular em mim como um animal selvagem.
Vários minutos se passaram em um transe antes que eu fosse instruído a voltar
para a área de preparação com Mayla, Laurel e Remy. Com uma pontada de
culpa, percebi que nem tinha visto se Mayla ganhou.
Pelo jeito que ela estava sorrindo, no entanto, eu achei que sim. “Eu perdi toda
a sua luta!” ela disse animadamente enquanto caminhávamos lado a lado.
“Tipo, eu pisquei e acabou. O que aconteceu?”
“Ele ganhou!” Yannick gritou, pulando o corrimão e correndo para nós, seguido
por Marcus. Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, eu estava
sentado em seus ombros sendo balançado enquanto eles começavam a gritar:
“Se-e-th! Se-e-th! Se-e-th! Se-e-th!”
Eu tive que me abaixar para evitar bater com a cabeça quando entramos na
área de preparação, que estava em alvoroço.
“Vitória mais rápida até agora”, disse outra pessoa, e continuou assim por um
minuto ou mais, com todos gritando e me parabenizando.
Bati o olho no Professor Grey, e meu humor se neutralizou. Ele não disse uma
palavra, mas me deu um aceno de cabeça antes de se virar para dar as boas-
vindas ao oficial do evento, que estava de volta mais uma vez.
Por mais que eu queira dizer que minha segunda luta foi tão legal quanto a
primeira… não foi. Minha oponente era uma garota de alguma academia em
Etril, e ela ficou para trás e saltou ao redor do ringue como se estivéssemos
em um baile formal em vez de um torneio de combate. Nossa luta na verdade
foi a mais longa, e só terminou quando eu corri pra agarrá-la e jogá-la para
fora do ringue.
Ainda assim, fiquei feliz por não ter tirado o grande ogro de Bloodrock, pelo
menos até Mayla ser chamada para o ringue onze…
Gregor trovejou pelo ringue e deu um grande golpe com as costas da mão em
Mayla. Ela rolou por baixo e chutou a parte de trás do joelho dele, mas ele
girou com uma velocidade assustadora e tentou pisar nela. Ela mal se jogou
para fora do caminho, mas tinha sido uma armadilha. Usando a perna que ele
pisou, ele se lançou na outra direção, seguindo-a.
Quando o joelho dele atingiu o peito dela, Mayla foi levantada do chão e
jogada no ar. Meu próprio peito e estômago se contraíram como se eu tivesse
sido chutado, mas meu primeiro pensamento foi que pelo menos a luta havia
acabado, e ele não tinha machucado ela tanto assim.
Eu engasguei com esse pensamento quando seu punho enorme envolveu seu
tornozelo, puxando o corpo em pleno ar de volta para a plataforma ao invés
de deixar sair do ringue.
“Ei!” Eu gritei, minha voz falhando um pouco. Parecia muito claro para mim que
Gregor tinha toda a intenção de machucar Mayla, não apenas vencê-la, mas a
arbitragem oficial da luta não reagiu.
Por dentro, eu estava implorando para ela desistir, mas eu não conseguia nem
gritar, apenas assistir com horror enquanto Gregor afastava suas defesas e a
agarrava pela garganta. Mayla foi levantada do chão até ficar cara a cara com
ele. Gregor parou ali, as mãos de Mayla em volta de seu pulso, lutando
debilmente para se libertar.
“Oh, merda,” alguém amaldiçoou, e eu percebi que a maioria dos meus colegas
estava assistindo a luta de Enola e não tinha visto o que aconteceu.
“Ele vai…”
Gregor virou-se para nossa área de preparação, sorrindo sob sua máscara.
Então sua mão avançou como um aríete no estômago de Mayla, o som audível
mesmo de onde eu estava. Ele a socou novamente, então novamente, então a
deixou cair. A bile subiu no fundo da minha garganta enquanto ela se enrolava,
obviamente ainda consciente, mas gravemente ferida.
O professor encontrou meu olhar, seu rosto impassível… exceto por um aperto
ao redor de seus olhos e no canto de sua boca. Minhas mãos se fecharam em
punhos, o que o professor deve ter notado, porque ele perguntou: “Você está
com raiva, Seth?”
“Bom. Use isso.” Então ele se afastou novamente enquanto o resto das lutas
terminava.
Mayla deu uma risadinha, então gemeu por baixo de seus embrulhos. “Não me
faça rir,” ela resmungou, suas palavras mal discerníveis. “Mas… não vá embora,
ok?”
Houve uma agitação estranha no meu estômago e peito com suas palavras.
“Sim, beleza. Estou bem aqui. Você apenas descanse.”
Ouvi a voz do Professor Grey na minha cabeça: Você está com raiva, Seth?
Sim, eu estava com muita raiva, mas existiam mais camadas de sentimento. E
eram camadas profundas. Desespero, motivação, ânsia… tudo estava
queimando sob a névoa do medo em minha mente e espírito.
E por isso não corri. Entrei no ringue e olhei para Gregor. Ele sorriu de volta.
Todo o resto ficou desfocado.
Meu corpo começou a se mover antes que eu tivesse qualquer tipo de plano
ou pensamento sobre o que fazer. Eu me senti como apenas mais um
espectador enquanto dei um passo rápido para frente e mergulhei para a
direita, logo abaixo da abertura que eu sabia que Gregor lançaria. Eu o acertei
com dois socos rápidos no rim, em seguida, recuei para fora do alcance do
chute nas costas que se seguiu.
Gregor era mais forte do que eu. Ele era mais rápido do que eu, também, e
tinha uma postura melhor. Eu nunca tive que lutar contra ninguém que tinha
o mesmo poder bruto em seus ataques. Mas o professor Grey não tentou me
fazer tão forte quanto Enola ou tão eficiente quanto Valen. Ele sabia que eu
não poderia ganhar apenas com talento. Em vez disso, ele me ensinou a
desenvolver meu próprio estilo, a me apoiar em meus talentos naturais.
Ele lançou uma série de socos, cotoveladas e joelhadas dos quais eu mal
consegui escapar, embora eu tenha acertado um chute forte na parte interna
de sua coxa em troca. Toda vez que eu acertava um golpe, ele inchava e ficava
ainda mais vermelho, como um tomate cheio de água prestes a estourar.
Mas o verdadeiro problema era que eu não o estava machucando. Meus chutes
e socos apenas ricocheteavam em seu corpo musculoso, como se ele estivesse
vestindo uma armadura.
O som das minhas costelas quebrando cortou minha mente como uma adaga,
rasgando meu foco. Meu torso inteiro se iluminou com uma dor quente. O ar
em meus pulmões saiu em um grunhido sem som, e eu não conseguia
recuperar o fôlego.
“Espero que você tenha gostado daquilo enquanto durou”, disse ele, sua
respiração quente no meu ouvido. “É a minha vez de me divertir agora.”
Minha cabeça caiu para trás quando ele bateu com a testa na ponte do meu
nariz com força suficiente para quebrar minha máscara, que caiu aos meus
pés. O mundo saltou, mudando de posição quando meus olhos perderam o
foco.
Três Gregors riam na minha cara. “Ficar sem máscara na frente do Soberano?
Seu verme. Você deve ser punido!”
Enfiei um pé entre seus braços estendidos e chutei com força, meu calcanhar
atingindo seu nariz com um estalo molhado. Chutei de novo, depois de novo,
então me preparei.
Senti algo se mover e quebrar na minha perna ou talvez no meu quadril. Tudo
doía enquanto eu era esmagado sob Gregor, então era difícil dizer. A arena
brilhou em preto, então lentamente apareceu de volta, borrada nas bordas,
mas ainda lá. Estava muito tranquilo. Quase pacífico, como um bom lugar para
se deitar e morrer.
Gregor rolou de cima de mim, se deitando de lado. Sua boca estava abrindo e
fechando rapidamente, seus olhos esbugalhados. Então ele engasgou e um
fluxo de vômito espirrou na plataforma entre nós.
Um golpe suficientemente forte no núcleo de mana era como levar um chute
entre as pernas. E eu tinha acabado de aplicar força suficiente em seu esterno
para quebrar meu quadril, eu tinha certeza.
Ele tossiu, balançando a cabeça. Juntei o máximo de força que pude e dei um
soco no plexo solar, dando a seu corpo mais um monte de dor e convulsões.
Gregor tossiu baba com vômito e cuspiu no chão. Um único e superficial aceno
de cabeça, e então seus olhos se fecharam.
Uma mão firme mas cuidadosa me puxou para longe de Gregor. Eu gritei
quando algo se moveu no meu quadril, e a mão me soltou, me deixando cair
de costas. O oficial estava falando rapidamente, mas as palavras não tinham
sentido.
Eu ganhei.
Capítulo 370
Um Breve Indulto
ARTHUR
‘Claro, claro, vamos culpar essas crianças pelo que Agrona forçou seus amigos
e familiares a fazer. Totalmente justo, porque eles definitivamente poderiam
ter resistido a sua vontade, certo? Que bando de covardes.’
‘Não me bajule como se eu fosse uma de suas princesas, Princesa,’ disse Regis
com uma bufada.
Não havia nada que eu pudesse fazer por Seth, então voltei para a área de
preparação, onde deixei Briar e Aphene no comando. Assim que abri a porta,
dei de cara com Briar gritando por cima da cacofonia da minha turma
superexcitada.
Briar olhou pra mim e depois para o diretor Ramseyer, que acabara de vir do
campo de combate, parecendo incomumente relaxado, até um pouco
perplexo. “Não seja muito dura com nossa equipe campeã”, disse ele. “É
natural que eles estejam animados, considerando os eventos. É por isso que
estou aqui, claro, para dizer algumas palavras. Se importa, Professor Grey?”
E assim, em vez de dar a esses garotos o reforço positivo que eles precisavam,
eu recuei, focando meus pensamentos no meu plano para o Victoriad,
eventualmente me retirando completamente, usando o ferimento de Seth
como uma desculpa para ficar alguns minutos sozinho na relativa calma da
sala de espera enquanto minhas emoções misturadas esfriavam.
O diretor fez questão de apertar minha mão ao sair, os alunos zumbindo com
uma conversa cansada ao fundo. “Para você, Professor Grey, também devo
estender meus parabéns. A classe de Táticas de Aprimoramento Corpo a corpo
nunca foi exatamente a prioridade da nossa escola, receio, mas veja o que
você conseguiu com ela.” Sua expressão normalmente severa deu lugar a um
largo sorriso. “E pensar que quase te substituí. Hah!”
“Escutem!” Briar gritou. “Estamos indo para nossos quartos. Sem enrolação,
sem desvio. Parece que todos vocês se afundaram até o pescoço na merda
depois de apanhar tanto, mas não pensem nem por um segundo que eu não
enfiaria a cabeça inteira de qualquer um que queira dar uma de espertinho.
Segurando pra não rir, eu segui atrás deles, sem prestar muita atenção no
grupo à frente.
Regis imediatamente pulou para fora do meu corpo e farejou ao redor. “Não é
exatamente um castelo, é?”
Não seria até o terceiro e último dia do Victoriad que os retentores e Foices
aceitariam desafios pelas suas posições. Se Nico iria morder minha isca, seria
no terceiro dia. Até lá…
“Pode entrar.”
Passei alguns minutos explicando o que eu queria que ela fizesse, depois ela
ajustou a cadeira e ficou um pouco mais confortável.
“Então apenas…?”
“Exatamente”, eu respondi.
Ela fechou os olhos. Calor irradiava de seu corpo e, embora eu não pudesse
sentir sua mana, ainda podia sentir os efeitos físicos que causava. Um leve
movimento no ar deslocou uma mecha de seu cabelo, que caiu na frente de
seu rosto. Seus lábios pressionaram em uma linha fina enquanto ela se
concentrava. Seus olhos se moveram sob as pálpebras fechadas, que estavam
levemente maquiadas de uma cor cinza esfumaçada para o Victoriad.
Por algum tempo – quinze minutos, supondo que Caera seguisse minhas
instruções, apesar de que o tempo parecia durar muito mais dentro da relíquia
– o movimento assumiu estrias verticais que saltavam e se contorciam como
chamas em um tronco.
Isso não durou muito antes que a forma do movimento mudasse novamente,
agora fluxos sutis, fluindo e irradiando para fora, como um rio de lava e o
intenso calor que emitia.
A cada passo, eu praticava a formação do éter de várias maneiras, tentando
causar algum tipo de reação no movimento incolor do reino da gema. Chicotes,
arcos cortantes, rajadas moldadas e até uma forma etérea áspera em forma
de pá que arrastei pela escuridão, mas nada afetou meus arredores.
Nada funcionou.
Saí da minha posição sentada e me movi para o final da cama. Tomando a mão
dela na minha, coloquei a gema em sua palma, então envolvi as suas mãos
com as minhas, segurando a pedra chave no meio.
“Vou canalizar o éter para a gema”, expliquei. “Eu preciso que você me diga o
que você vê… supondo que isso funcione.”
“Hum, tudo bem, você está—” Suas palavras foram cortadas em um suspiro de
surpresa quando eu comecei.
Os olhos de Caera se fecharam e seu corpo enrijeceu. “Eu vejo… uma parede
enorme e etérea… como se eu estivesse me aproximando da borda do mundo.”
Pulei para fora da cama, andando rapidamente a curta distância até a parede,
meu estômago apertado desconfortavelmente.
A pedra chave tem algo a ver com mana, já sabíamos disso. Só que… Caera
pode ver partículas de mana dentro da pedra, mas parece um vazio negro para
mim, o que significa… o quê?
Eu não tenho um núcleo de mana, mas a presença de um não permite que um
mago veja partículas de mana. Senti-las, sim, mas eu precisava ativar a
vontade de besta de Sylvia e o poder de Realmheart para ver a mana
diretamente, mesmo antes de meu núcleo ser destruído.
‘Talvez seja como quando você vê uma névoa de calor subindo de uma pedra
queimada pelo sol. A mana está se movendo, causando uma mudança no
ambiente e, você sabe, interrompendo a informação sensorial que você
recebe.’ Regis rolou, enterrando o rosto no travesseiro da minha cama, que ele
deve ter roubado quando eu não estava olhando. ‘Mas o fato de você sentir
alguma coisa lá dentro, qualquer coisa, é um bom sinal, certo?’
O próprio reino da pedra chave é etéreo por natureza, apenas abrigando mana.
Não consigo ver a mana, mas de alguma forma minha conexão com o éter está
me deixando sentir seu movimento. Pelo menos quando está reagindo a
estímulos externos, que devem causar flutuações mais fortes.
“Grey?” A voz de Caera era um sussurro calmo e nervoso, fazendo-me perceber
que eu estava quieto já há algum tempo.
“Você está de brincadeira?” Caera sorriu. “Isso é incrível. É… lindo. Imagine ver
o mundo assim o tempo todo?”
TESSIA ERALITH
O vento frio acariciou minha bochecha e jogou uma mecha perdida do meu
cabelo platinado atrás da minha orelha. Ele dançou ao meu redor, carregando
uma pequena rajada de neve que girava a cada torção e mergulho na descida
até à fortaleza de Taegrin Caelum abaixo.
“Fraca.”
O vento rodou para dentro, puxando minha blusa como se quisesse que eu
dançasse também. Tão alto acima da fortaleza de Agrona, o ar estava frio e
claro, e ansioso para sentir o toque de mana.
“Se eu tiver que deixar você e Nico para trás para alcançar meu objetivo, eu
deixo.”
Essas foram suas últimas palavras reais para mim, essa pessoa que deveria ser
minha amiga. Antes que ele tivesse enfiado sua espada no meu peito. E Nico
tinha visto isso acontecer.
Essa era minha última lembrança. Virando a cabeça para ver Nico, cercado por
um feixe de luz, meio obscurecido por nuvens de poeira, seu rosto congelado
em uma máscara de tortura quando ele chegou tarde demais para ajudar…
Afastei o pensamento. Não foi culpa de Nico. Tudo que eu tive que fazer foi
morrer e acordar, mas Nico… seu caminho tinha sido muito mais longo, muito
mais doloroso.
Ser forçada a lembrar da minha própria morte me colocou em uma fuga por
dias, e mesmo depois disso levei mais dias para voltar a mim mesma. Depois
de demorar tanto para me ajustar ao meu novo corpo – meu corpo, estar presa
em meus aposentos novamente parecia uma prisão, uma tortura. Eu já tinha
vivido uma vida de prisão, na qual nunca me permitiram ser eu mesma, viver
por mim mesma, fazer escolhas por mim mesma.
“Vou fazer com que não seja,” eu disse ao vento dançante. “Vou controlar meu
próprio destino.”
Virei-me de repente, meu corpo doendo com a força, e voei pelas portas da
minha varanda aberta com velocidade suficiente para que elas se fechassem
atrás de mim. A porta para o labirinto de corredores se abriu pouco antes de
eu a ter arrebentado, respondendo à minha vontade, e eu me precipitei pelos
corredores do castelo com uma velocidade perigosa.
Quando eu parei, a súbita explosão de vento que minha passagem criou enviou
uma besta de mana empalhada pra fora de seu pedestal largo, caindo no
corredor. Estremeci, não querendo causar nenhum dano, mas também havia
uma pequena parte de mim que sentia prazer vingativo no ato.
Bati na porta de Nico, mas não houve resposta. A mana da terra permaneceu
na fechadura de metal pesado, e pulou para o lado ao meu comando,
permitindo que a porta se abrisse.
Meus pés saíram do chão e eu voei para o quarto. Estava escuro, vazio e sem
calor…
Havia apenas uma outra pessoa em Taegrin Caelum com quem eu podia
conversar, pra falar a verdade, então saí do quarto de Nico, voando de sua
varanda e contornando a fortaleza. Eu parei, pairando no ar, enquanto um
conjunto de portas na sacada do alto da parede da ala privada de Agrona se
abria para fora, como se fosse me dando as boas vindas.
Cada vez que nos encontrávamos, era como se eu estivesse vendo Agrona pela
primeira vez.
“Se sente melhor?” ele perguntou, fingindo um ar casual. “Eu estava pensando
em você. Draneeve disse que você faltou à sua última avaliação. Eu…” Sua
cabeça inclinou ligeiramente para o lado, sua língua saindo para molhar seus
lábios. “O que se passa tanto em sua mente, Cecil?”
Encontrei seus olhos brilhantemente escarlates – esse ser que estava mais
perto de Deus do que do homem – e levantei meu queixo. “Eu tive muito tempo
para considerar tudo o que você me mostrou, Agrona, e preciso te dizer uma
coisa.”
“Eu não serei sua arma,” eu continuei, minha voz carregada pelo vento. “Ou
sua ferramenta. Quero poder fazer minhas próprias escolhas, ter uma vida, não
apenas estar viva.”
Agrona deu um passo largo para a varanda. Seus olhos se fecharam e ele
respirou fundo, enchendo seus pulmões com o vento que soprava. “Poder,” ele
disse, sua voz um sussurro retumbante. “Cru e impossível.”
Abrindo os olhos, ele estendeu a mão para pegar alguns dos flocos de neve.
“Acha que eu repetiria os erros daqueles tolos que te enjaularam em sua vida
passada? Suprimindo seu potencial, restringindo você, tentando controlá-la?
Espero não parecer tolo aos seus olhos.”
“Mas você fez algo parecido com Nico,” eu apontei, segurando o tremor que
teria destruído meu corpo com a menção casual de Agrona dos muitos anos
de prisão e tortura – sob o disfarce de treinamento – pelos quais passei na
minha última vida. “Ele…”
“Não é o Legado,” Agrona disse facilmente. “Embora… o que ele suportou por
você, apenas pela chance de ficar ao seu lado novamente… Nico estava fraco
e impotente enquanto observava Grey tirar sua vida. Incapaz de fazer qualquer
coisa, por menor que fosse. Ele estava disposto a suportar qualquer dor para
trazê-la de volta e mantê-la segura, não importa o custo para ele.
Agrona me inspecionou de perto. “Mas não é sobre Nico que você veio falar,
ou é? Não estou mentindo quando digo que suas escolhas são suas, mas há
algo que você precisa saber.”
Ele parou quando um pássaro passou voando por mim e pousou no parapeito
da varanda. Ele bateu o bico no metal, emitindo um tinido oco, e eriçou suas
penas pretas e vermelhas. Agrona estendeu a mão, que de repente estava
cheia de sementes. A criatura saltou da amurada para a palma da mão e
começou a comer, abanando as quatro asas.
Sua mão fechou. O pássaro deu um grito abafado, que foi imediatamente
substituído pelo esmagamento de pequenos ossos ocos. Quando a mão de
Agrona se abriu novamente, a bela criatura era pouco mais que penas
dobradas e asas quebradas.
“Mas minha guerra com os outros Asura não é por sua causa,” Agrona disse,
sua voz pesada com intenção. “Eles não são apenas um perigo para você, mas
também para todos os serem inferiores. E as pessoas de Alacrya e Dicathen
merecem uma existência sem medo de sua tirania. Posso governar os seres
inferiores, guiar sua evolução, mas não tenho interesse em construí-los
apenas para quebrá-los e começar de novo como Kezess fez.”
Ele estendeu a mão para mim, palma para cima, como se esperasse que eu a
pegasse. “Se você lutar comigo na guerra que está por vir, você pode proteger
a si mesma e as pessoas de dois continentes do perigo que os Asuras
representam. Afinal, eles já mostraram a profundidade de seu desprezo por
vidas inferiores em Elenoir quando cometeram genocídio apenas
pela chance de impedir que você desenvolvesse seu poder total.”
“Mas eu entendo que este mundo nunca será sua casa,” Agrona continuou,
como se estivesse puxando pensamentos direto da minha cabeça. “E então eu
prometo a você isso. Quando derrotarmos os Asuras e derrubarmos o Clã
Indrath, usarei o conhecimento que ganhei das Relictombs para devolver a
você sua antiga vida, seu antigo mundo, mas como deveria ter sido.”
“Imagine isso, Cecil. Imagine exatamente como seria essa vida, o que você
quiser. Agora, o que você faria para reivindicá-lo?”
Mas seu tratamento em relação a mim já estava mudando. Seu tom era
respeitoso, até mesmo cauteloso. A maneira como ele olhou para mim, eu
podia ver em seus olhos, como se ele me visse como uma parceira, não uma
ferramenta, e isso era exatamente o que eu vim aqui para exigir. Havia uma
confiança e uma pergunta naquele olhar, e eu sabia com absoluta certeza que
ele poderia fazer o que disse.
Mas o que eu faria nesta vida por uma chance de voltar à vida que deveria ter
tido?
Capítulo 371
O Victoriad IV
SETH MILVIEW
Fiquei na cama durante todo o segundo dia do Victoriad, o que foi uma droga.
Enquanto todo mundo estava torcendo pelos jogos de guerra ou gastando sua
mesada no mercado, eu estava enrolado sob cerca de quatro cobertores,
tremendo e suando enquanto meu corpo fazia hora extra para se curar.
Ainda assim, a médica estava otimista ao explicar que uma pelve fraturada era
relativamente fácil de juntar novamente, e como eu teria uma recuperação
muito mais longa e dolorosa se meu quadril estivesse quebrado e não apenas
deslocado. E a maioria da turma vinha em grupos para me ver, com Mayla
voltando várias vezes ao longo do dia para dar uma conferida na minha
situação e deixar bolos e doces para me fazer sentir melhor.
Toda vez que ela entrava pela porta eu me lembrava daquele momento
palpitante em que ela me pediu para ficar com ela, e através da confusão
induzida pela dor, percebi algo.
Eu gosto dela. Tipo, gosto, gosto dela. Eu nunca tive alguém que eu gostasse
antes. Eu nunca estive perto o suficiente de uma garota para me apaixonar…
“Seth?”
Eu me assustei, sentindo meu rosto ficar quente enquanto eu olhava para ela
com o canto do meu olho. Mayla estava segurando meu braço enquanto me
ajudava a andar, e eu tinha congelado por cerca de trinta segundos. “Desculpe,
eu, uh…”
“Não, está tudo bem”, eu assegurei a ela, começando a subir as escadas. “Vou
ficar bem.”
Com um sorriso agradecido para meus amigos, passei por algumas outras
pessoas – as arquibancadas estavam quase totalmente cheias agora – e
deslizei para o banco ao lado de Linden. “Então, eles já anunciaram os
desafios?”
“Não”, disse Yanick, fazendo beicinho para o campo de combate vazio, de onde
todas as plataformas de combate menores tinham sido tiradas. Porém logo ele
se animou. “Mas, o boato é que Ssanyu, o Comedor de Pedras, está desafiando
pra substituir Bilal como retentor da Foice Viessa Vritra.”
Pascal grunhiu. “Ssanyu pode ser um ascendente lendário, mas todos sabem
que a Foice Viessa Vritra prefere um certo tipo de retentor.”
“Oh, já!” Deacon disse com entusiasmo, arrancando risadas de todos os outros.
Ele parecia ofendido, pressionando a mão no peito enquanto dizia: “Bem,
desculpem-me por ler bastante, seus bárbaros”.
“Na versão mais recente, Tenebrous menciona que a Foice Viessa Vritra prefere
treinar seus retentores pessoalmente”, continuei, me ajustando no banco duro
para tentar ficar confortável. “Seu último retentor, Bilal, foi uma
recomendação de guerra, mas ele era seu pupilo desde criança.”
“Certo!” disse Deacon. “Ele e seus irmãos. Bilal, Bivran e… Bivrae, certo? Os Três
Mortos?”
Estremeci quando me virei para ela. O sol brilhava em seu cabelo ruivo, que
emoldurava seu rosto e acentuava a leve redondeza de suas bochechas. Ela
era…
Linden se inclinou para frente, entrando na conversa pela primeira vez. “Eu me
pergunto se—”
Mas ele foi imediatamente interrompido por uma série de ruídos mágicos de
gongos ecoando por todo o estádio. Era como se alguém tivesse criado uma
barreira de som quando o público de repente ficou completamente em
silêncio.
Não houve nenhum anúncio para nos dizer seu nome ou listar suas realizações.
Todos já sabiam quem ele era: Cylrit, retentor de Sehz-Clar.
Quando chegou ao meio do campo, virou-se para a tribuna de honra, sua
postura reta como uma espada, e então curvou-se profundamente. Eu mal
conseguia ver a Foice Seris Vritra se mover para a frente da varanda, mas eu
estava feliz por já estar sentado. A visão dela – seu cabelo brilhando como
pérola líquida à luz do sol, suas vestes de batalha brilhando como diamantes
negros – fez meus joelhos tremerem.
Ela voltou para as sombras no camarote de honra pouco antes de uma segunda
figura aparecer, marchando em direção a Cylrit.
Outra mulher veio até a sacada, levantando a mão em direção à sua retentora.
Ela era muito parecida com a Foice Seris Vritra e, ao mesmo tempo, quase o
oposto dela. A pele cinza-prateada da mulher não estava pintada e ela não
usava ornamentos em seu cabelo branco brilhante. Ao contrário dos chifres
delicados de Seris, esta mulher tinha dois pares de chifres pretos grossos que
se curvavam para longe de seu couro cabeludo, escuros e pesados.
Ela não estava usando um vestido ou traje de batalha, mas sim uma armadura
feita de escamas brancas: placas maiores e ligeiramente mais escuras em seus
ombros, pescoço e quadris tinham uma aparência orgânica, quase como osso,
enquanto menores, em forma de flecha e escamas entrelaçavam-se sobre o
resto de seu corpo.
O toque dos gongos fez toda a platéia pular. Yanick amaldiçoou e Linden quase
caiu de seu assento. Soltei um gemido de dor, tendo estremecido com tanta
força que parecia que eu tinha quebrado uma costela novamente.
Uma voz profunda falou, vindo do ar ao nosso redor. “Nenhum desafiante deu
um passo à frente para enfrentar Cylrit de Sehz-Clar. Algum pretendente
ofereceria agora um desafio?”
Quando ela se foi, a voz falou novamente. “A Foice Cadell Vritra do Domínio
Central optou por recusar todo e qualquer desafiante ao retentor Lyra de Alto
Sangue Dreide, que permanece na terra de Dicathen, ajudando a estabelecer
nosso novo continente irmão e trazer paz aos seus cidadãos.”
“Em tempos de guerra, até o soldado mais forte pode cair seguindo a vontade
do Alto Soberano. O mundo é vasto e seus perigos são muitos, e é por isso que
Alacrya precisa do Alto Soberano para cuidar de nós, nos proteger e nos
fortalecer. Honramos os mortos por seu sacrifício. Retentores Uto de Vechor,
Jaegrette de Truacia e Bilal de Truacia. Seus nomes, como suas ações, serão
lembrados enquanto um único coração Alacryano ainda bater.
“Mas onde um cai, outro se levanta. Quatro dos campeões de Alacrya deram
um passo à frente para disputar o cargo de retentor de Truacia sob o comando
da Foice Viessa Vritra. O Soberano Kiros Vritra dá as boas-vindas e convida
para o campo: Ssanyu, o Devorador de Pedras—”
Uma presença sufocante tomou conta do coliseu. Parecia que alguém tinha
virado o mundo de cabeça para baixo e eu estava sob o peso de todo o
continente, esperando que ele caísse e me esmagasse até virar nada.
Então a força de sua presença se foi. Esperei, com medo de olhar para cima e
encontrar acidentalmente o olhar do Soberano. Mas a multidão começou a se
mexer, e eu podia ouvir algumas conversas sussurradas, e finalmente a mão
de Mayla estava descansando no meu antebraço.
Olhei para cima, encontrando seus olhos. “Isso foi…” Mas eu parei, sem saber
como descrever o que eu tinha acabado de sentir.
“Eu sei.”
A voz projetada do locutor invisível veio de novo, desta vez irritando ainda
mais meus nervos em frangalhos, fazendo parecer que alguém estava bem
atrás de mim, gritando no meu ouvido. “Desafiadores Kagiso e Aadaan, por
favor, permaneçam em campo. Todos os outros, retornem à sua área de
preparação.”
Aadaan era alto e magro, com braços e pernas que pareciam ter sido esticados
em uma prateleira. Ele estava vestido com uma armadura de couro com
inscrições rúnicas, o marrom escuro quase da mesma cor de sua pele. Ele
usava um sorriso inteligente, e seus olhos nunca deixaram Kagiso.
“Só que ele foi criado pelo Alto Sangue Gwethe e ele é um ascendente solo,”
Deacon respondeu. “Ele parou de aparecer ao público quando manifestou seu
sangue Vritra.”
Pascal grunhiu e coçou sua bochecha cheia de cicatrizes. “Ouvi dizer que eles
fazem todos os tipos de experimentos malucos em qualquer um que manifeste
sangue de Vritra. É por isso que há tão poucos deles.”
“Não seja estúpido”, disse Brion, ganhando um olhar de Pascal. “Há tão poucos
deles porque é super raro até mesmo alguém com muito sangue Vritra ser
capaz de usar suas artes de mana asuran. Para os poucos que são capazes, o
Alto Soberano leva todos para Taegrin Caelum e os treina para lutar contra os
outros asuras.”
Linden riu. “Cara, mesmo os fodões não podem lutar contra asuras. Foices
talvez, mas só depois de terem sido fortalecidos com elixires e outras coisas.
Aposto que o Alto Soberano tem alguma arma secreta contra os outros asuras.
É por isso que ele nunca teve medo deles. Olha, pense nisso. Eles decidiram
explodir metade do outro continente em vez de nos atacar aqui. Por que eles
fariam isso se não tivessem medo de Alacrya?”
“O que eles estão fazendo?” Mayla perguntou, sua voz quase um sussurro.
Inclinando o braço para trás, ele deixou sua lança voar em direção a Kagiso. O
ar se distorceu ao redor da lança, movendo-se como gelo derretido enquanto
se aglutinava em uma enorme lança de vento com a lasca de prata no centro.
Ao mesmo tempo, vários redemoinhos ganharam vida, circulando Aadaan e
girando protetoramente ao redor dele.
“O que acabou de acontecer?” Brion perguntou sem fôlego. “Eu nunca vi magia
assim.”
Todos nós rimos por um momento, mas o estádio estava tão quieto que não
pareceu natural, e rapidamente voltamos nossa atenção para o campo de
combate.
Mas Kagiso não estava apenas parado chupando o dedo enquanto Aadaan
corria. Em vez disso, o ascendente de sangue Vritra estava canalizando mana
para outra runa, enviando gavinhas de mana da terra por todo o campo de
combate. Eu não conseguia dizer o que ele estava fazendo, mas—
Uma torrente de vento empurrou a nuvem de poeira para fora do estádio. Nos
poucos segundos em que não pudemos ver o que estava acontecendo, o chão
da arena se tornou um campo minado de pequenas partículas pretas de
Kagiso. Aadaan estava preso. Não havia como ele usar o Atleta do Vento para
se locomover em locais tão apertados.
Mayla suspirou e agarrou minha mão, apertando com força, e meu estômago
se agitou. Olhei para ela com o canto do olho, mas seu olhar estava na arena,
e sua expressão não dava nenhum sinal de que ela estava pensando em
segurar minhas mãos. Linden me deu uma cotovelada do outro lado, suas
sobrancelhas subindo e descendo quando ele me deu um sinal de positivo
com a mão.
Envergonhado, pensei em puxar minha mão, mas… percebi que não queria. Era
um sentimento… bom. Bem estranho, mas reconfortante também.
Então Aadaan sorriu e empurrou para fora com a tempestade que se formava.
Inclinei-me para falar sem gritar. “Eu sei, eles estão realmente em outro nível.
Eu…”
Ssanyu entrou na arena primeiro. Ele era alto com músculos salientes, e usava
uma placa no peito que deixava seu abdômen e a crista de sua espinha
exposta, junto com placas de aço cobrindo a maior porção da sua parte inferior
do corpo. Uma espécie de coroa de ferro rodeava sua cabeça raspada.
Depois que Ssanyu chegou ao centro, uma névoa verde começou a ferver do
chão, formando uma mulher com membros finos e afiados e uma postura
grotesca e retorcida, como se seus ossos tivessem se colado da forma errada.
Como se para acentuar a grosseria de sua figura, as vestes pretas que ela usava
eram transparentes e cortadas em alguns lugares para revelar suas costelas e
coluna, que saiam da pele cinzenta e doentia.
Ssanyu se ajoelhou, sua cabeça abaixada para olhar para o chão sob os pés
com garras de Bivrae. Ela puxou os lábios para trás como um animal, exibindo
seus dentes afiados. As névoas flutuaram de uma forma agitada antes de
serem atraídas de volta para seu corpo.
Ela se virou para o camarote, endireitando-se da melhor maneira que sua
estrutura torcida permitia.
Deacon bufou. “Teremos que esperar um pouco para descobrir. Ele fará uma
pausa para descansar e se recuperar, então veremos as batalhas para
substituir o retentor de Dragoth a seguir.”
Brion deu um tapinha nas costas de Yanick. “Todo mundo sabe que a Foice
Dragoth Vritra é a Foice mais popular. Tenho certeza de que haverá um—ooph!”
Brion agarrou seu estômago quando Yanick lhe deu uma cotovelada, e todos
os outros riram.
Mas antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita, o locutor começou a falar
novamente. “Mais doze campeões de Alacrya desafiaram a posição de retentor
de Vechor sob o comando da Foice Dragoth Vritra. O Soberano Kiros Vritra dá
as boas-vindas e convida para o campo…”
A voz fez uma pausa. Olhei para Linden, depois para Mayla. Ela parecia tão
confusa quanto eu me sentia. Alguma coisa estava… errada.
“Ei… o que é aquilo?” Pascal perguntou, apontando para o ar. “Vocês estão
sentindo isso?”
Pela enésima vez desde o início do Victoriad, minha respiração foi esmagada
do meu peito pela súbita presença de uma aura poderosa.
Ele saiu da cratera que havia feito no chão da arena, seus olhos escuros
varrendo o coliseu ao seu redor. Espigões de ferro preto se projetavam do chão
a cada passo, e chamas escuras envolviam seu corpo. A visão daquela magia
negra de Decadência – muito mais forte que a de Kagiso – me encheu de pavor.
A Foice Viessa Vritra falou primeiro, sua voz sendo transmitida sem esforço
pelas arquibancadas silenciosas. “Nico. Explique-se! O que, em nome do Alto
Soberano, você acha…”
Foice Dragoth Vritra sorriu para a outra Foice. “Você passou dos limites,
pequeno Nico. Não é assim que nós…” Sua cabeça de repente se voltou para
uma das muitas entradas no campo de combate, seu sorriso se transformando
em uma carranca raivosa.
Eu sabia quem ele era, mas algo em meu cérebro não aceitava que essa
pudesse ser a mesma pessoa que eu conhecia, que eu encontrei pela primeira
vez na biblioteca antes do início o semestre, que passara tanto tempo
tornando um garoto magro, fraco, doentio em um lutador meio decente,
apesar de olhar para mim como se quisesse torcer meu pescoço…
Mesmo as outras Foices não interviram mais quando o professor Grey e a Foice
Nico se encararam até quase se tocarem.
“Nico,” disse o Professor Grey, com um sorriso que não estava de acordo com
seus olhos. “Você está um lixo, velho amigo.”
Capítulo 372
Não Autorizado
ARTHUR
Nico deu um meio passo até mim, com a mandíbula tensa e uma veia pulsando
visivelmente em sua testa. Estacas negras se lançavam do chão a cada
movimento, e sua pele estava impregnada com fagulhas das chamas negras.
“Mesmo depois de duas vidas, você não mudou nada.”
O sorriso falso sumiu de meu rosto com as palavras dele, e eu evitei palavras
mais provocativas. O resto de orgulho que eu tinha sentido ao atrair Nico para
esse confronto — no qual ele não poderia escapar ou pedir por ajuda — sumiu
agora que ele estava diante de mim. Seu rosto, no qual restava apenas um
resquício da similaridade com o Elijah, me enchia de emoções conflitantes.
Ele foi o meu melhor amigo em duas vidas, afinal de contas. Primeiro como
Nico, e então como Elijah. E eu o decepcionei em ambas. Foram esses
fracassos, em parte, que levaram ele a se tornar quem ele era agora.
Eu não poderia.
Eu não podia nem o culpar pelo que ele fez nessa vida… Por mais fácil que isso
teria sido. Ele foi reencarnado aqui apenas para ser manipulado e usado como
uma ferramenta pelo Agrona. O Destino não deu a ele a oportunidade de
aprender com os erros de sua vida passada. Ao invés de uma segunda chance,
o medo, insegurança e ódio de Nico foram manipulados e usados como uma
ferramenta e arma desde os primeiros momentos de sua vida.
Apesar de saber o quanto a Tessia significava para mim, Nico ajudou Agrona
na reencarnação da Cecilia, usando o corpo de Tess como um receptáculo — e
eu ainda não entendia quais consequências isso teria. A mesma Cecilia que
queria tanto evitar ser usada como arma a ponto de se jogar em minha espada
para fugir desse destino…
“Diga algo!” Nico rosnou, quase gritando. Uma onda de chamas espirituais
corroeu o chão abaixo dele, e ele passou a flutuar.
“Eu só levei de volta o que me pertencia!” ele gritou, seus olhos queimando
com um ódio negro. “O que eu deveria ter. Isso é destino. Assim como você
morrer também é. Novamente.”
Não sei porque, mas a finalidade da declaração de Nico causou uma dor
profunda dentro de mim. Eu desejei, naquele momento, que eu pudesse
desfazer tudo que tinha acontecido. Que Cecilia tivesse sobrevivido, e que eles
tivessem fugido juntos como estavam planejando. Que eu não tivesse me
afastado deles para treinar com a Lady Vera, e que eu tivesse me esforçado
mais para ajudar Nico a encontrar Cecilia, quando ela desapareceu.
Mas eu não fiz. E apesar de que eu podia olhar para trás, para o caminho que
eu percorri, eu não podia mudar seu formato. Nem podia mudar o destino para
onde ele me trouxe. Mas eu podia olhar para frente, e fazer novas escolhas –
escolhas diferentes – para mudar minha direção.
Desde que eu acordei nas Relictombs, eu tinha sido frio e indiferente. Era
necessário, eu sabia disso. Eu não me culpava por essa necessidade.
A persona de Grey era como um escudo, que usei para cercar a minha mente,
mantendo de fora pensamentos sobre aqueles que eu não podia ajudar agora:
Tessia, Ellie, minha mãe, todos que estavam em Dicathen… Ao invés disso, eu
foquei nas Relictombs e em procurar as ruínas que a Sylvia me instruiu em sua
última mensagem, além de tentar entender minhas novas habilidades e o novo
mundo no qual eu me encontrava.
Mas era hora de seguir em uma direção diferente. E isso começaria com o Nico.
Eu não pude evitar que minha expressão suavizasse, exibindo a minha tristeza
e pena sem filtros.
“Não faça isso. Não me olhe assim,” Nico disse, balançando a cabeça em
desafio. “Eu não quero a sua compaixão.”
Meu corpo relaxava à medida que eu aceitava o que estava prestes a
acontecer. “Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes.”
SERIS VRITRA
Eu friccionava uma unha na outra até ouvir um estalo, que era um hábito de
infância do qual eu tinha me curado há tempos, ou pelo menos achava que
sim.
Ainda assim, eu não tinha chegado até onde cheguei sendo estúpida, e depois
de considerar por um momento, eu percebi que o plano de Arthur tinha sido
bem simples, e mesmo assim eficaz.
Nico precisaria ter mais autocontrole, para poder crescer a força de seus
aliados o suficiente, para então ser uma ameaça ao Arthur. Sua natureza
impulsiva ia contra o uso de subterfúgios. Quando seu golpe mal planejado
falhou, Arthur sabia que ele teria um chilique.
Ao ver Nico e Arthur — ou Grey, que de várias maneiras era uma pessoa
diferente do garoto que eu salvei em Dicathen — se encarando no campo de
batalha, eu senti uma empolgação repentina.
“Uma interrupção não programada, mas talvez essa seja uma oportunidade
para o pequeno Nico provar a si mesmo,” disse Dragoth com uma risada
despreocupada.
“Provar a si mesmo?” perguntou Viessa, sua voz era apenas um assobio baixo.
“Apenas por lutar contra esse — o que ele é mesmo? Um professor de
escolinha? — Nico se envergonha, e por consequência, a nós também.
Cadell deu um passo para fora das sombras e se curvou perante Kiros. “Perdoe
a impudência da Foice Nico, Soberano. O Alto Soberano o deixou sem coleira
por muito tempo, eu temo.”
“Quem é esse Grey, afinal?” Dragoth perguntou, olhando para o resto de nós.
“Ele me parece familiar.”
Cadell, novamente de pé, estava observando das sombras ao invés de vir para
a varanda, como o resto de nós. “Um homem morto,” ele disse simplesmente,
encontrando meus olhos ao falar.
Abaixo de nós, Arthur puxou a capa branca dos seus ombros e a fez sumir com
um floreio. Não houve nem um sinal de mana saindo dele, um fato que os
outros foram rápidos em comentar.
“Seu controle sobre a mana é perfeito,” disse Viessa, apertando seus olhos
totalmente pretos ao olhar para Arthur.
Não tentei ocultar meu divertimento com essa declaração, e ela se virou para
mim. Já havia algum tempo desde que eu tinha conversado com a Foice de
Truacia. Enquanto trocávamos olhares, eu reparei em sua expressão, postura
e características.
Sua pele era tão pálida quanto seus olhos eram negros, e um mar de cabelos
roxos se derramavam sobre seus ombros e pelas suas costas. Ela era mais alta
do que eu, e ficava ainda mais evidente por conta das botas de couro que
usava, que eram de uma cor azul esverdeada, que combinava com as runas
costuradas em seu rico manto de batalha branco e cinza. Os vazios negros de
seus olhos eram sempre ilegíveis, e seu rosto de porcelana raramente deixava
escapar alguma emoção.
Mas eu não pensei muito nela nesse momento. Tinham coisas mais
interessantes para me concentrar. “Eles vão lutar.”
Com um grito raivoso, Nico avançou. O chão se desfez abaixo dele, sendo
destruído quando espigões negros cresciam como erva daninha onde quer que
sua sombra tocasse. Um redemoinho de chamas negras se enroscava em volta
dele, e se estendia à sua frente, à medida que ele se preparava para derramar
o fogo negro em Arthur.
Mas Arthur nem piscou diante da fúria de Nico. Eu teria achado que ele era
louco, se eu não tivesse mais informações.
“Ah, agora isso está interessante,” disse Kiros, se inclinando para frente em
seu trono. “Você aí, Melzri, saia da frente, está bloqueando minha vista.”
Estacas negras saíram do chão ao redor de Arthur, mas elas colidiram contra
uma camada de éter brilhante que envolvia sua pele como uma luva.
O corpo de Nico atingiu o chão da arena com um impacto que abriu uma
cratera na metade do estádio atrás de Arthur.
“Espera, o que aconteceu?” Dragoth perguntou, sua voz grave carregada com
confusão.
Ela estava certa. A mana já estava abandonando Nico. Eu podia sentir ela
saindo de seu núcleo arruinado e se dispersando na atmosfera em volta.
“Oh,” Dragoth grunhiu. “Eu acho que eu estava errado sobre ele provar a si
mesmo.”
“Cale a boca, seu tolo,” disse Melzri, pulando da sacada e atingindo o chão
abaixo com força suficiente para rachá-lo.
“Eu peço perdão pelo atraso que este duelo causou nos eventos de hoje, mas
temo que uma interrupção adicional seja necessária,” ele gritou, garantindo
que sua voz fosse ouvida não só no camarote, mas por todo o coliseu.
“Este duelo foi um desafio não autorizado,” Viessa respondeu friamente, sua
voz se projetando sem esforço pelo estádio. “Qualquer que tenha sido a razão
para seu ataque contra nosso colega Foice, saiba que derrotá-lo não te garante
nada do Soberano Kiros, ou do Alto Soberano, e não te dá direitos para exigir
a posição da Foice Nico, ou nos pedir por qualquer coisa.”
Arthur encarou os olhos negros de Viessa sem piscar. A linha definida de seu
maxilar estava relaxada, seus lábios firmes e retos, e sua postura atenta, mas
calma. Era como se ele fosse a pessoa no comando aqui.
Quando Arthur continuou a falar, ele encontrou meus olhos por um momento,
então direcionou o olhar para Cadell, falando com uma certeza tranquila que
contradizia a natureza extraordinária do seu pedido: “Eu só peço por coisas
que ganhei. Quero desafiar a Foice Cadell do Domínio Central.”
Ao lado dela, Dragoth fez um gesto na direção do campo de batalha. “Nós não
temos que entreter desafios de professores de escolas.”
Abaixo, Melzri estava segurando um frasco de elixir, sua mão estava parada
antes de administrar o remédio na boca de Nico, seus olhos estavam
arregalados e sua boca parcialmente aberta.
Apenas cinco minutos antes, eu presumiria que qualquer conflito entre Arthur
e Cadell seria uma vitória unilateral. Se Arthur tivesse explicado seu plano
completo para mim — de não apenas atrair Nico para uma luta onde ninguém
iria intervir a favor dele, mas também para desafiar o Cadell diante do
Victoriad inteiro — eu o teria dissuadido ou removido ele do torneio, se
necessário.
Agora, qualquer recurso que eu poderia ter usado para removê-lo — ou para
ajudá-lo a escapar — se foi. Com meu olhar em Melzri e Nico, eu percebi que
não tinha mais certeza das habilidades de Arthur. Apesar de Nico não ser o
Cadell, ele ainda era uma Foice… Mas ele se deixou ser atraído para uma
situação desconhecida, caindo na armadilha de Arthur. Cadell não seria tão
tolo.
Olhei nos olhos de Cadell. Sua carranca se transformou em uma careta. Minhas
sobrancelhas se ergueram. As dele se franziram.
“Não,” ele disse finalmente, apenas alto o suficiente para que só nós o
ouvíssemos. “Foices não podem começar a entreter todo desafio que aparece.
Fazer isso nos diminuiria e daria uma plataforma para que qualquer tolo que
se acha importante pudesse…”
“É…” Dragoth disse com uma risada baixa. “Não me diga que o Cadell, matador
de dragões, está com medo de um professor de academia?”
“Devemos mostrar ao povo que não somos tão fracos quanto Nico nos fez
parecer,” Viessa comentou.
Os olhos de Cadell brilharam. “Esse desafio está abaixo de mim. Ele não é—”
Kiros era alto e largo como Dragoth, apesar de não ser tão esbelto. Chifres
grossos cresciam a partir de sua cabeça, se curvando para cima e para frente,
até virarem pontas afiadas. Anéis dourados de várias espessuras
ornamentavam seus chifres, alguns cheios de gemas, outros gravados com
runas pulsantes. Seu cabelo dourado estava raspado na lateral e próximo aos
chifres, e atrás estava amarrado em um rabo de cavalo. Roupas vermelhas
brilhantes complementavam sua aparência.
Ele jogou uma fruta roxa e suculenta em sua boca, e começou a falar enquanto
mastigava, escorrendo polpa pelo queixo. “Vá. Esse homenzinho estranho
despertou meu interesse. Eu gostaria de ver mais do que ele é capaz, então
não acabe com as coisas muito rapidamente.”
Foi com uma sensação cada vez mais profunda de apreensão que eu observei
Cadell flutuar até o campo de batalha enquanto olhava para Arthur. Ele
esperou até que Melzri pegasse Nico — ou o corpo do garoto, já que pela falta
de mana eu não conseguia dizer se estava vivo ou não — e saiu da arena.
“Eu aceito.” A voz de Cadell estava marcada com amargura. “Mas essa batalha”
— ele pausou, deixando as palavras flutuarem — “vai ser até a morte.”
“É…” Arthur respondeu, dando vários passos para trás na direção do centro da
arena semidestruída. “Certamente será.”
Cadell não perdeu tempo, e não deu nenhum aviso. Uma aura de chamas
negras se acendeu no ar, ao redor de Cadell, formando um cone que se
estendia até o chão. A plataforma da arena onde Arthur se encontrava foi
obliterada, e a terra foi queimada deixando uma cratera do tamanho do campo
de batalha, com Arthur sumindo dentro dele.
Arthur não havia se movido, mas agora ele estava na base de uma cratera
profunda. Seu corpo estava intacto, e não havia fogo espiritual queimando
nele, consumindo sua força de vida como deveria.
Tinha sido um bom truque. De onde Cadell estava, com sua visão obscurecida
pelo próprio ataque, ele provavelmente não tinha visto e o movimento foi
muito rápido para alguém da plateia seguir, mesmo com a visão reforçada por
magia. Por um instante, apenas por tempo suficiente para que a onda de fogo
passasse, Arthur desapareceu com um brilho de luz púrpura.
Seu uniforme tinha sido rasgado do seu estômago até as costelas. Fogo negro
dançava na ferida, consumindo sua carne. Ele continuaria, incendiando seu
sangue e destruindo seus canais de mana, até que chegasse em seu núcleo.
Eventualmente, consumiria sua força vital, o matando de dentro para fora.
Mas Cadell não era o único que estava se curando. O fogo espiritual queimando
na lateral de Arthur diminuía à medida que ondas de uma luz roxa passavam
sobre a ferida, e aos poucos era extinguido. Então, como se a ferida não tivesse
sido nada mais que uma linha desenhada na areia, as mesmas ondas a levaram
para longe, deixando a pele de Arthur sem marcas.
Minha mente tentou voltar até a última guerra entre Vechor e Sehz-Clar, como
acontecia com frequência quando eu considerava o passado e o futuro, mas
eu pus esses pensamentos de lado, concentrando-me na cena diante de mim.
Arthur tinha virado para encarar Cadell, que estava flutuando lentamente em
sua direção, seu nariz torcido em uma expressão amarga, enquanto ele tentava
esconder a surpresa de ver Arthur vivo.
Então ele se moveu, com um brilho dourado entre suas escamas, e eu fui
surpreendida novamente — uma sensação com a qual eu não estava
acostumada, e ainda assim parecia acontecer com frequência quando se
tratava de Arthur. Sua armadura era magnífica, sua manifestação era
maravilhosa, carregando a mesma elegância e prestígio que os próprios
asuras.
Arthur ajustou sua posição e conjurou uma espada, que projetou sua luz roxa
sobre o chão enegrecido. “Eu aprendi alguns truques novos desde a última vez
que nos encontramos,” disse Arthur, sua voz ressoando no silêncio etéreo. “Eu
espero que você também tenha aprendido, caso contrário isso vai acabar
muito mais rápido do que eu gostaria.”
Capítulo 373
O Victoriad Chega ao Fim
ARTHUR
Cadell se enrijeceu quando viu a relíquia de armadura, surpreendido pela
minha transformação. Eu podia ver sua mandíbula se apertando, e sentir sua
frustração emanando dele como o calor de uma chama.
“Seus truques são uma zombaria para os asura, garoto,” ele disse, cheio de
ódio, enquanto sua postura crepitava com energia.
Mas sua voz estava abafada, sufocada pelo som de sangue subindo à minha
cabeça. O mundo era apenas um borrão, e meus olhos se travaram em Cadell
– o primeiro monstro que eu tinha visto nesse mundo.
Uma onda de fogo escuro saiu de sua mão. Eu contra ataquei com uma
explosão de éter antes de golpear na direção de sua garganta com minha
lâmina etérica. No entanto, o corpo de Cadell dissipou como fumaça, sumindo
nas chamas que ainda enchiam o céu.
Mas quando Cadell reapareceu, foi atrás de mim. Sua mão, envolta em garras
flamejantes, se afundaram em minha lateral, através da armadura e do éter, e
envolveram minhas costelas. Ignorando a dor, eu reverti a lâmina de éter e
golpeei pra trás e pra baixo, por pouco não acertando seu peito quando ele
voou pra longe.
A morte não seria suficiente pra ele. Eu precisava esmaga-lo, fazer com que se
sentisse fraco e desamparado, assim como eu tinha me sentido. Aqui, diante
de toda Alacrya, Cadell tinha que sofrer.
Emitindo uma explosão etérica pra me proteger, eu corri pelo chão antes de
me jogar até ele, com minha arma em punhos.
Faíscas negras e roxas voaram conforme o éter impactava suas armas envoltas
em fogo espiritual. Eu cortava e perfurava, mas cada golpe era desviado. Uma
dúzia de novas feridas se abriram em meu corpo, mas elas pouco importavam.
De repente uma frieza como gelo estava emanando do meu núcleo, limpando
a raiva quente, e submergindo-a em uma indiferença cheia de foco.
Regis flutuou acima de mim, para me proteger, e eu podia ver seu duelo com
Cadell, usando a Destruição pra se defender de outro ataque.
‘Depois de ter sido condescendente com Nico… olhe pra você.’ Sua voz era um
inferno em minha cabeça. ‘Retome o controle.’
Qual era o sentido de ter ficado mais forte, ter aprendido as artes etéricas,
obtido as relíquias, se tudo o que eu ia fazer era atacar sem pensar?
Seu poder era mais versátil que o meu, mas a mana não oferecia proteção forte
contra o éter. Tudo que eu precisava era de um único golpe decisivo para
derrotar Cadell, assim como eu tinha feito com Nico.
Ele fez um gesto com a mão, e uma chuva de estacas negras e fogo espiritual
desceu como uma torrente de virotes de balista. Linhas preto-carvão de um
vento infernal ia atrás das estacas em chamas, acelerando-as cada vez mais.
Mas sobre Regis e eu, um escudo de Destruição devorava tudo que entrava em
contato com ele, nos mantendo em segurança.
‘Eu sei que você tem suas feridas físicas e psicológicas pra lidar, mas eu tenho
um limite, sabe,’ Regis pensou com um urro mental de exaustão.
Espigões de metal negro surgiram do chão entre nós. Minha espada os cortou
sem dificuldade, mas deu a Cadell tempo suficiente pra recuar e puxar sua
própria espada. “Seu novo vínculo é só um projeto mal feito de besta.”
“Eu acho que a palavra que você está procurando é ‘majestoso’,” eu respondi,
me lançando pra frente e liberando uma enxurrada de cortes e estocadas,
pressionando-o mais pra trás. Ele tentou subir ao ar, mas usei o God Step para
impedi-lo e puxa-lo de volta ao chão, onde ficaríamos mais equilibrados.
Cadell podia até ser mais versátil, mas eu era um espadachim melhor.
Os seus braços se abriram, e fogo negro começou a ferver de dentro dele. Sua
magia corrupta derramou como piche fervente no que sobrou da arena, e
espirrou contra os escudos que protegiam a área de preparação, fazendo com
que esses piscassem ao chegar no fim da sua capacidade de proteção.
Eu senti uma garra gelada apertando o interior do meu corpo ao me lembrar
dos últimos momentos ansiosos da minha batalha contra Nico e Cadell,
fugindo dessa mesma conflagração infernal com Tessia, desesperadamente
exaurindo minhas últimas forças. Só que dessa vez, Cadell não estava se
segurando.
Regis surgiu ao meu lado, com penugens em chamas, mas incapaz de manter
sua forma por muito tempo.
Com a inundação de fogo quase nos alcançando, Regis fechou os olhos, e seu
corpo lupino se tornava transparente e nebuloso à medida que ficava
incorpóreo. Eu segurei a lâmina de éter em minha mão, mas ao invés de atacar,
eu a puxei e…
Seu corpo se acendeu antes de invadir minha espada até a lâmina etérica
crescer e ficar envolta em chamas violeta.
“Não importa quantos truques você vai inventar, menor!” Cadell gritou
enquanto sua forma demoníaca de sombra se aproximava.
A lâmina desceu, passando pelas estacas como se não fossem nada além de
névoa. Eu o acertei com a força total do meu corpo reforçado, enchendo cada
músculo com éter. Ele foi esmagado no chão e uma onda de choque saiu de
nós, derrubando o espigão de 10 metros que tinha se formado atrás de Cadell.
Cadell se levantou com dificuldade. Seus braços estavam oscilando entre fogo
espiritual e Destruição. Ele se movia desesperadamente, como se pudesse
apagar as chamas roxas. Seu corpo alternava entre corpóreo e incorpóreo, mas
a Destruição estava grudada nele, e sua própria torrente de mana era a única
coisa que o impedia de ser consumido.
O rosto da Foice ficou pálido conforme ele tremia, e as sombras que estavam
apegadas a ele se desfaziam à medida que ele retornava à sua forma normal.
Seus olhos escarlates estavam cheios de medo, e sua arrogância tinha se
transformado em uma máscara de desespero. Se virando para o outro lado,
ele olhou na direção da tribuna de honra, talvez na expectativa que outras
Foices ou até mesmo o Soberano viessem salva-lo.
As chamas violetas se agitaram ainda mais quando dei uma estocada com a
lâmina etérica. Ela penetrou seu peito e explodiu por suas costas. A Destruição
o consumiu, devorando Cadell a partir do peito. Não teve sangue, nem órgãos
caindo pra fora de seu corpo, apenas as chamas de Destruição que o
purificavam como se nunca tivesse existido.
“Me desculpe por demorar tanto tempo,” eu disse, revendo em minha mente o
portal me puxando enquanto a Sylvia me direcionava seus olhos dracônicos
cheios de lágrimas, e suas últimas palavras ecoavam em minha mente:
“Obrigada, minha criança.” Minha culpa pelo que não pude fazer diminuiu, mas
eu sabia que nunca me deixaria completamente.
Eu puxei a espada do peito de Cadell e cortei acima de sua cabeça, decepando
ambos os chifres. Regis, entendendo minha intenção, conteve a Destruição,
deixando-os intactos.
Então ele se fora, deixando pra trás nada além dos chifres.
Dúzias de magos corriam para a seção que havia desabado, trabalhando para
puxar sobreviventes dos escombros. Os escudos que sobraram estavam
oscilando. O resto da plateia estava em choque, e seus olhos estavam fixos em
mim ou no lugar onde Cadell esteve.
Eu mantive meus olhos levemente desviados, não pra baixo nem em uma
reverência como aquelas dezenas de milhares de alacryanos ao meu redor,
mas eu não olhei diretamente em seus olhos.
“Incrível!” disse Kiros, sua voz se projetando sem esforço pelo coliseu e
silenciando o aplauso fraco. “Uma bela demonstração de poder. E uma morte
tão inesperada! E entregue com tal–”
Uma forma oval perolada apareceu sobre o chão da arena, 6 metros à frente
da tribuna.
Apesar de que ela parecia a mesma – cabelo cinza correndo pelas suas costas
e sobre seus ombros, as tranças puxadas por trás de suas orelhas pontudas,
os olhos de um azul brilhante – ela imediatamente e inequivocadamente não
era a Tessia.
Tessia…
Tessia era uma princesa. Ela havia crescido no palácio real em Zestier, tinha
sido ensinada nas maneiras e costumes da nobreza élfica, anã e humana. Esses
ensinamentos se aplicavam na maneira com que ela se portava, na expressão
de seu rosto, na cadência de seu andar…
Ao invés disso, essa pessoa que se mascarava como minha amiga mais antiga
movia com uma confiança agressiva – não era a Cecília da minha infância, mas
não estava muito longe da jovem que eu havia batalhado no Torneio do Rei.
Qualquer mal que aquela experiência tinha causado em sua mente, claramente
tinha sido carregado até essa vida, sem dúvidas incentivado por Agrona, assim
como a raiva mal direcionada de Nico.
Mas o olhar desconfiado e frio que a Cecília me lançava pelos olhos da Tessia
enfiava uma faca em meu peito.
Regis cutucou meu núcleo. ‘Isso é perigoso, Art. Se nós nos forçarmos ainda
mais…’
Eu deveria estar com medo. Não tinha nenhum jeito de eu lutar contra Agrona.
Eu nem tinha certeza se eu conseguiria lutar contra Cecilia, sem saber nada
dos seus poderes neste mundo. Mas eu não estava assustado. Eu sentia era
que a aparição de Agrona em pessoa tinha simplificado grandemente tudo pra
mim.
“Eu acho que eu finalmente atraí sua atenção,” eu disse no silêncio que se
seguiu.
Agrona deu um sorriso. Ele descansou uma mão nas costas da Cecilia, e os
braços dela fizeram um gesto complicado.
Pra testar, eu segurei as barras. Elas eram frias como gelo e vibrando com
energia. Eu puxei. Elas não quebraram.
O sorriso de Agrona ficou mais afiado. “Isso tudo foi feito apenas pra mim?
Estou lisonjeado, Grey. Para um menor, seu sentimento de auto importância é
incrível. Mas você parece ter se esforçado muito para atrair minha atenção.
Bom, agora você a tem.” A cabeça de Agrona se inclinou levemente para o lado,
enviando o tilintar de correntes pelo coliseu silencioso. “Eu estou
positivamente ansioso para ver como suas novas habilidades funcionam. Vou
obter muito prazer em te desmontar em pedaços pra descobrir.”
Eu olhei em volta para o estádio. Primeiro, meu olhar pousou em Mayla, Seth,
Deacon e nos outros. Apesar de que ainda prostrados, Seth estava olhando pra
mim, e seus olhos estavam cheios de confusão e medo. Eu repentinamente
desejei ter sido mais gentil com ele. Ele tinha o coração de um guerreiro, e não
merecia o lado da moeda que a vida tinha forçado pra ele.
Eu tinha esperanças que ela não me odiaria pelo que eu estava prestes a fazer.
Eu me arrependia em não ter dito a ela quem eu era, mas mesmo agora eu
ainda não conseguia dizer qual seria sua reação. Existia a possibilidade de que
ela se voltasse contra mim, e eu teria me arrependido de dizer a ela então.
Ela tinha sido uma boa amiga, se uma amizade verdadeira pudesse ser
construída em cima de mentiras. Eu só esperava que meu olhar expressasse
apropriadamente esse sentimento.
Uma coisa era consistente em todas as suas expressões, até mesmo a de Seris
– um indício de incerteza que abalava a confiança natural deles.
Eu tinha que decidir. Era hora de ir embora. Eu poderia ir sem ela, dando as
costas completamente pro problema, confiando que ainda haveria uma
chance de resolve-lo no futuro.
Ou…
Mas era o caminho mais claro adiante, a medida mais decisiva. Eu poderia
garantir que Agrona não usasse nem Tessia nem Cecilia, e que qualquer poder
que o Legado possuísse não pudesse ser controlado.
Me perdoe, Tessia.
Seu corpo tremeu, e sua mão subiu, não na direção da lâmina – não pra se
defender – mas na direção do meu rosto. Um carinho. “Art, por favor…”
As veias verdes recuaram, os seus olhos voltaram à cor natural, e uma mão
subiu até o rasgo em suas vestes onde minha espada tinha quase perfurado
ela. Tess – Cecilia deu um passo pra trás, e me lançou um olhar de ódio
profundo.
“Oh, essa foi quase, não foi?” Agrona disse, achando graça. “Você realmente
pensou por um instante que você conseguiria, não?” O braço de Agrona
deslizava em volta do ombro de Cecilia e a puxava para o seu lado. “Você só é
coração frio e calculista quando é fácil, Grey. Na realidade, você é fraco,
emotivo e suscetível a afeição.”
Eu olhei para minha mão vazia, e minha mente estava em branco a não ser
pelas palavras de Agrona.
O que deveria ter sido um momento de vitória se tornou amargo, com uma
sensação vazia e o gosto de cinzas na boca.
Capítulo 374
Depois
TESSIA ERALITH
Eu quase havia deixado ele me perfurar. Não, isso não estava certo – ela quase
tinha deixado ele me perfurar.
E ela tinha tomado o controle. Apenas por um segundo, mas foi tempo
suficiente para me mostrar que ela era mais do que apenas memórias.
Mas isso estava errado. Este corpo… Nico e Agrona disseram que tinha
pertencido a uma combatente inimiga, uma princesa, que tinha sido ferida em
batalha, e seu corpo continuou a viver com a mente ausente…
Agora que eu podia senti-la completamente, agora que eu sabia o que ela era,
eu reconhecia esse pensamento como dela, e não como meu, e a silenciei. Eu
lembrei da sensação de quando Agrona abafou as memórias que tinham me
atormentado constantemente nos primeiros dias depois da minha
reencarnação. Procurando sentir o mesmo, eu instintivamente envolvi a
vontade da besta em mana, criando uma barreira atenuante entre a mente
dela e a minha.
Agrona olhou em minha direção, com uma leve carranca. Atrás dele, eu vi, nas
arquibancadas, fileiras e fileiras de pessoas, ainda ajoelhadas, e algumas
estavam desacordadas por causa da pressão que Agrona emitia. As faces que
eu conseguia ver – daqueles corajosos o suficiente pra levantarem a cabeça
na presença do Alto Soberano – eram máscaras cansadas de medo e
admiração.
O olhar dele se voltou para os céus. “Você nunca esteve em perigo. Eu sabia
que ele ia tentar, e sabia que ele iria falhar.”
Fechando a cara, eu me livrei da mão de Agrona. “Ele tem valor para mim,
Agrona, então ele deveria ter para você também.”
Flutuando, eu passei por cima das estacas e terra queimada, então me ajoelhei
ao lado de Nico. Sua respiração estava descompassada, e seu cabelo escuro
totalmente bagunçado. Seu rosto pálido e sujo estava cheio de gotas de suor.
Mas não ela não entrava em suas veias de mana, e nem energizavam seu corpo
através de seus canais. As runas marcadas em sua pele estavam vazias e sem
mana também, em nada diferentes das simples tatuagens de tinta no meu
mundo anterior.
Suas palavras eram vazias aos meus ouvidos. Uma ferida que nem mesmo
matava o corpo não deveria ser capaz de roubar a magia de um mago. Dar esse
presente apenas para rouba-lo depois? Era um destino pior que a morte.
Meu corpo começou a se mover como se em transe, atraído por algum instinto
profundo. Minha mão foi até o esterno de Nico, e meus dedos penetraram na
sua ferida que ainda se curava. Eles se moveram pelo seu interior quente até
que eu senti algo rígido: seu núcleo.
O núcleo em si – esse órgão estranho que existia neste mundo, mas não no
meu anterior – não reagia à presença de mana. Era como se ele estivesse
morto, apesar dos outros órgãos de Nico que continuavam a funcionar.
Normalmente, a falência de um órgão causaria uma cascata de outras falhas,
eventualmente resultando em morte. Mas humanos eram capazes de
sobreviver sem um núcleo de mana…
Este era um processo mais lento, então eu parei quando seu núcleo ainda era
de uma cor amarelo ocre. Por enquanto, eu só precisava saber que iria
funcionar.
Mas apenas a presença do núcleo limpo e da mana não pareciam ter iniciado
nada dentro dele. Ele estava inquieto, com suas sobrancelhas franzidas e a
boca curvada pra baixo em um esgar desconfortável.
Eu o ignorei.
Ele começou a tossir. Eu soltei seu núcleo e cuidadosamente puxei minha mão
de dentro do seu peito, limpando seu sangue em meus robes de batalha. “Eu
fiz a minha parte, Nico. Eu preciso da sua ajuda agora. Puxe a mana, controle
ela. Você… você pode fazer isso?”
Nico respirou fundo, engasgou e tossiu mais um pouco. “Eu não consigo senti-
la.”
Segurando sua mão, eu apertei forte o suficiente pra doer. “Crianças no outro
continente podem manipular a mana em seus corpos antes de formar um
núcleo. Com certeza você também pode.” Vendo a confiança deixando seu
olhar, eu cuspi as últimas palavras, tentando acender um fogo dentro de Nico.
“Grey conseguiu isso no corpo de uma criança de três anos, não foi?”
Ele ficou tenso, e eu sabia que tinha conseguido. Nico me encarou, então
fechou seus olhos. Um momento se passou, então dois, então… houve uma
ondulação na mana que eu tinha concentrado em seu corpo. Um pequeno
movimento a princípio, mas foi o suficiente para trazer um sorriso ao meu
rosto.
“Mais uma vez, seu controle sobre a mana surpreende até a mim,” Agrona
disse, num barítono cheio de elogios. “Eu realmente acredito que não há limite
para suas habilidades, Cecil. E eu peço perdão pelo que eu disse mais cedo.
Me apressei ao desistir de Nico.”
“Como?”
Algum dia, Nico e eu teríamos nossas vidas de volta. Nossas vidas reais –
incluindo o relacionamento um com o outro. Mas por agora, neste corpo… a
intimidade parecia um tipo de profanação. Eu quase dei uma risada com a
infantilidade desse pensamento. Um limite bobo, eu disse a mim mesma. Tudo
bem lutar uma guerra com o corpo de outra, mas compartilhar um beijo era
errado?
Esta não seria uma vida de verdade, eu tinha decidido. Estava mais para um…
purgatório. Apesar de que eu não seria apenas uma arma no arsenal de Agrona,
eu também não seria eu mesma, não exatamente, enquanto eu vestisse essa
pele. Nico também não seria. Mas nós trabalharíamos juntos, mudando este
mundo para os propósitos de Agrona, e quando vencêssemos a guerra, nós
poderíamos ir embora. Juntos. Pra ser nós mesmos novamente.
Juntos.
Ficando de pé, eu puxei Nico junto de mim. Ele fez uma careta, alongando os
ombros e o pescoço. Os seus olhos pularam até Agrona e piscaram pra longe,
se focando na distância. “O que aconteceu com…”
O olhar de Nico foi ao chão, mas eu o peguei pelo queixo e o forcei a olhar em
meus olhos.
ARTHUR
Por alguns segundos, apenas olhei para cima. As copas cheias das árvores altas
bloqueavam o céu. Troncos marrom acinzentados se erguiam até as alturas, e
grossos membros se espalhavam até que eles se enroscavam em seus vizinhos.
Minha mão agarrou um punhado de terra abaixo de mim. Eu bati com meu
punho no chão, e golpeei novamente enquanto um grito frustrado escapava
da minha garganta.
Eu sabia que tinha cometido um erro. Mas eu ainda não tinha certeza se eu
havia errado em não conseguir matar a Cecilia, ou em simplesmente ter
tentado.
Era óbvio agora que ela não era a mesma pessoa que havia morrido pela minha
espada no Torneio do Rei. Agrona tinha feito algo com ela durante sua
reencarnação, ou depois. O olhar de desprezo que ela me deu… não era o olhar
de uma garota torturada que se jogou na espada de um amigo para acabar
com a própria vida.
Mas havia algo a mais. Eu só não sabia ainda se isso era bom ou ruim.
Tessia ainda estava lá. Ela tinha tomado controle de seu corpo, apenas por um
instante, longo o suficiente pra me dizer.
Obrigado, eu pensei, incapaz de juntar energia para dizer em voz alta ainda.
‘Pelo quê, salvar sua pele?’ Regis pausou, levantando uma minúscula
sobrancelha lupina. ‘Não foi a primeira vez. Não será a última.’
Eu parei para reunir meus pensamentos. Por isso também, mas por me deixar
ter minha batalha contra o Cadell. Foi egoísta, até mesmo perigoso, mas foi
algo que eu precisava fazer.
Uma visão de Regis sentado numa rocha, com os olhos fechados, as patas nos
joelhos, banhado pela fria luz do sol da montanha fez meus lábios
tremerem. Meditando, hein?
‘Ei, não se engane com meus dentes maravilhosos. Eu sou um intelectual. Mas
o que quero dizer é, eu pensei muito sobre como eu podia nos manter sãos
quando você utiliza os seus conhecimentos do éter…’
Um velho enrugado, com uma barriga mais encorpada, mas com ombros largos
que ainda não tinham perdido toda a definição, saiu de trás de uma das
enormes árvores, com suas sobrancelhas levantadas. “Eu achei que você tinha
dito que seria uma operação quieta, garoto. Cair do céu e gritar como um louco
não é exatamente o conceito de quieto, é?”
Eu me forcei pra me colocar de pé, e dei a ele um aceno cansado. “Mais razão
ainda pra eu sair daqui.”
“Mais ou menos.” Eu fiz uma careta e acariciei meu esterno que doía. “Você
pegou tudo?”
Alaric soltou um bufo. “Direto ao assunto, né?” Ele pegou um anel simples de
pedra polida, e depois o jogou pra mim. “Tudo está aí.”
Alaric olhou diretamente em meus olhos e soltou um arroto. “Que todo mundo
vá pro inferno. Eu sou só um ascendente antiquado mesmo. Muito burro e
muito bêbado pra recusar um dinheiro fácil quando um estranho me paga pra
guiar ele por aí, e fingir que sou seu tio.”
“Eu, ummm…” Alaric limpou a garganta, e seus olhos inflamados passaram por
mim, e depois foram pra longe. “Eu tive um filho, sabe. Nascido Vritra.”
Pego de surpresa, eu olhei pra cima com a testa franzida enquanto ele
continuava.
“Ele foi levado, é claro, no instante que ele foi identificado. Tirado de nós e
colocado sob a guarda de algum alto sangue.” Alaric se inclinou em uma das
árvores próximas e fechou seus olhos. “Não descobri até muitos anos depois
o que eles fizeram, mas aparentemente eles tinham a mentalidade de que,
para o sangue se manifestar, eles tinham que pegar pesado com ele. Muito
pesado.”
“Eles… o mataram.”
“Me inscrevi pra ir em uma ascensão com um pessoal deles. Trouxe um bocado
de álcool, e deixei eles falarem. Mas nem teria precisado da bebida.” Os olhos
dele estavam distantes agora, penetrando o abismo de suas memórias.
“Orgulhosos em falar sobre como eles o tinham forçado. Forçado e forçado.
Eles já tinham cuidado de três nascidos Vritra, e ele teria sido o quarto. Mas…”
Alaric parou um momento para limpar sua garganta. “Ele quebrou. Morreu
quando tinha apenas oito anos. Foi levado pra Taegrim Caelum pra ser
dissecado e pesquisado. Impactou muito o nome deles. Foram rebaixados para
um sangue nomeado apenas. Por matarem o meu filho.”
Uma brisa fresca soprou por entre as árvores, e uma besta de mana uivou na
distância… ainda assim, um silêncio pesado pairava no ar enquanto palavras
de consolação falhavam em se formar.
Afinal de contas, eu tinha sido aquele garoto. Tirado da minha família, criado
primeiro pela Sylvia, depois pelos Eraliths, e meus pais não tinham ideia do
que havia acontecido comigo…
Ele limpou as palavras do ar com uma mão, enquanto abria uma garrafa com
outra. “Não precisa. Estou te dizendo isso para que você não saia daqui
preocupado comigo, pensando que você bagunçou a minha vida. Além disso…”
Alaric formou um sorriso. “Onde seria melhor pra soltar os meus demônios
interiores do que em um garoto que eu talvez nunca mais veja?”
Alaric a apertou. “Você pagou bem e me ofereceu algum tipo de… droga, eu
não sei, um tipo de propósito ou algo assim, mesmo já velho.” Sua voz grave
ficou embargada. “Bom, é melhor você ir, Grey, antes que uma Foice desça aqui
e faça com que essa história triste tenha sido pra nada.”
“Certo.” Alaric soltou uma risada forçada, se atrapalhando com o token de runa
em sua mão antes de tocar o mármore com ele. Com um zumbido suave, um
portal opalescente apareceu no arco. “Você vai voltar de… onde quer que você
esteja indo agora?”
“Bom, quando você voltar, procure seu velho tio Al.” Ele se inclinou na moldura
do portal e cruzou os braços em cima da barriga. “A não ser que eu já tenha
morrido de tanto beber, e nesse caso você demorou demais.”
Regis deu uma voltinha, mordiscou o dedo de Alaric, e depois pulou de volta
pra dentro de mim.
‘Eu vou sentir falta desse velhote,’ ele disse, com uma pitada de choro em sua
voz.
Capítulo 374.5
Por Outros Olhos
SETH MILVIEW
Uma bolha translúcida de mana cobria nosso grupo. Mayla estava grudada em
meu braço. Eu estava vagamente consciente do sangue que pingava em volta
de suas unhas, onde elas penetravam minha pele, mas eu não conseguia sentir
nada.
Deacon estava no chão, com a cabeça entre as mãos. Yannick estava caído em
seu assento, inconsciente. Pelo menos, eu esperava que ele estivesse apenas
inconsciente.
Apenas Pascal não parecia que estava fora de si, mas então eu segui seu
olhar…
Várias das primeiras fileiras estavam cheias de cadáveres. Projeteis que eram
do tamanho de virotes de besta penetravam tanto pedra quanto carne, tendo
quebrado o escudo que deveria nos proteger de um combate até mesmo entre
retentores e Foices. Alguns deles devem ter usado seus próprios escudos para
se proteger, mas, contra o poder completo de uma Foice…
Houve uma explosão e uma seção inteira do coliseu desabou, do outro lado
de onde estávamos. Eu assisti milhares de pessoas serem engolidas por uma
nuvem de poeira marrom. Sumiram, em um instante…
O professor Grey estava com as costas retas, emitindo uma força inegável,
inescapável, uma presença… física. Revestido em uma armadura de escamas
pretas, e assim como um Vritra, haviam chifres ônix se curvando pra fora de
sua cabeça. Ele parecia uma divindade.
Ele havia voado pela arena com uma velocidade impossível. Sua arma aparecia
e desaparecia instantaneamente sem esforço aparente. Sua besta conjurada
havia mudado de uma criatura-lobo, que já era intimidadora, para um monstro
gigante e voador, que podia destruir todos os ataques do atributo de
Decaimento apenas com um sopro!
Isso não tinha lógica nenhuma. Eu não havia sentido mana saindo dele em
momento algum. A pressão da Foice Cadell Vritra era esmagadora e sufocante,
mas o poder do professor era… algo completamente diferente.
“O que diabos foi isso?” Pascal murmurou, e sua cabeça balançava como se ele
não pudesse acreditar no que estava vendo. “Eu nunca vi magia como essa
antes.”
“O jeito com que ele apunhalou sua besta…” A voz de Mayla estava cheia de
horror.
O professor havia derrotado uma Foice. Mas não, não era exatamente isso. Eu
quase havia esquecido sobre a Foice Nico, graças à minha mente e memória
estarem sobrecarregadas por tentar processar tudo que tinha acabado de
acontecer.
Pascal arregalou os olhos. “Cara, talvez seja por isso que todo mundo na sala
acabou recebendo runas tão fortes na última concessão…”
Havia algo errado. Estava muito, muito além dos limites do que normalmente
acontecia no Victoriad. Um desafio já era raro, mas matar uma Foice, talvez até
duas… isso poderia ser uma declaração de guerra.
Ela me deu um olhar de lado. “Estou com medo, Seth. O que está
acontecendo?”
“Eu não sei,” eu respondi, sentindo o peito apertado. “Mas eu também estou.”
SERIS VRITRA
Imediatamente, comecei a planejar como que eu iria tirar Arthur vivo dessa
situação.
Eu tinha certeza, agora mais do que nunca, de que este garoto humano era a
chave para tudo, e eu não podia deixar ele cair nas mãos de Agrona de forma
alguma.
Mas esta vitória… era muito grandiosa, e muito adiantada. Agrona havia banido
todos os pensamentos sobre o garoto, se focando completamente no Legado,
não mais preocupado com as âncoras que haviam trazido ela até aqui. Isto era
útil. Não duraria pra sempre, é claro, mas se eu tivesse apenas mais alguns
meses para trabalhar…
Se eu não encontrasse alguma forma de leva-lo pra longe daqui, então Agrona
iria desmonta-lo até que só sobrasse o essencial, e pesquisar como os poderes
de éter de Arthur funcionavam. Eu já tinha visto o suficiente dos calabouços e
laboratórios abaixo de Taegrim Caelum para saber exatamente qual destino
que o aguardava. E mais aterrorizante do que perder Arthur era a possibilidade
de que Agrona pudesse, de alguma forma, descobrir uma maneira de controlar
o éter a partir do corpo dissecado de Arthur.
Apesar de ter acompanhado seu progresso, eu não tinha visto essa habilidade
antes. Um feitiço desses poderia, teoricamente, derrotar até mesmo uma
Foice, se ela exercesse um controle forte o suficiente sobre a magia. Não, não
apenas uma Foice. Considerando que os asura infundiam mana em seus
corpos, dependendo dela pra existir, uma magia dessas talvez fosse capaz de
neutralizar até mesmo os seres mais fortes deste mundo, separando-os do seu
próprio poder.
Eu ouvi Agrona falar, não prestando muita atenção às suas palavras até que os
outros se moveram para capturar Arthur. Talvez eu pudesse agir durante o seu
transporte para Taegrin Caelum, e me oferecer para escolta-lo até os
calabouços…
Arthur tinha parado. Ele poderia ter dado o golpe final, e sua lâmina estava tão
perto que tinha feito um corte nas vestes do Legado, mas ele havia se contido.
Por causa do seu relacionamento com Tessia Eralith, ele não tinha a coragem
para fazer o que era necessário.
A ideia de mata-la eu mesma passou pela minha mente pela enésima vez, mas
eu não poderia arriscar tornar tanto Agrona quanto Arthur meus inimigos de
uma vez só. Se Arthur desse o golpe, no entanto…
Mas eu sabia que não havia esperança de que isso acontecesse quando Agrona
começou a zombar e insultar Arthur. Então, sem tirar seus olhos do garoto,
Agrona deu a ordem. “Levem ele.”
Eu sabia que era agora ou nunca, mas eu hesitei. Apesar de pálido e da mão
trêmula ao seu lado, Arthur não tinha o olhar de derrotado. Eu voei até ele,
mantendo o mesmo ritmo dos outros, sem saber como proceder.
E de repente, ele sumiu. Simples assim, e tão rapidamente que até mesmo
Agrona, com a face contorcida em fúria, pôde apenas olhar para a imagem
residual de eletricidade roxa que Arthur deixou pra trás.
Eu comecei a rir.
CAERA DENOIR
Remorso.
O que poderia significar apenas uma coisa. Ele estava indo embora.
Eu tinha certeza de que ele não tinha usado suas artes etéricas apenas para
escapar do estádio. Ele pretendia desaparecer.
Eu sabia que deveria estar furiosa – deveria me sentir traída. Mas eu não
estava. Grey sempre me avisou sobre me aproximar demais… sobre saber
demais. Isto tinha confirmado. O que ele pretendia fazer estava além da minha
imaginação.
Então, apesar de ter sido alguma força maior que nos uniu – éter, destino, ou
a vontade de alguma divindade além dos asura – eu sabia que era eu quem
deveria decidir meus próximos passos. Independente de Grey me incluir ou
não em suas aventuras, eu deveria escolher o que fazer de agora em diante.
“O que quer que isso seja,” eu disse em voz alta, me apertando contra a parede,
que estava tremendo sutilmente.
Era fato conhecido em Alacrya que a Foice Cadell não era apenas uma Foice –
ele era o lacaio particular de Agrona, lidando com assuntos que requeriam a
atenção particular do Alto Soberano. De acordo com Foice Seris, ele tinha sido
nomeado Foice quando Agrona começou a se preparar para a guerra com
Dicathen há quase 15 anos atrás, mas mesmo antes disso ele já era mais
poderoso e mais perigoso que outras Foices.
Mas qual era o seu relacionamento? Porque Grey fez esses desafios? Quem era
Grey, de verdade? E o que ele estava tentando fazer?
Será que eu estava certa quando eu sugeri para a Foice Seris que ele era
nascido asura? Talvez algum descendente dos dragões que juraram vingança
contra Agrona? Se eu não tivesse me aventurado ao seu lado nas Relictombs,
eu quase acreditaria que ele fosse um asura completo. Pelo menos isso
explicaria o seu controle sobre o éter.
Ou – eu senti uma emoção crescer dentro de mim – ele poderia ser um dos
magos antigos? Um djinn, que sobreviveu dentro das Relictombs e se escondeu
de nós desde que os dragões os exterminaram. Era verdade que ele tinha uma
relação com as Relictombs, muito além de qualquer outro ascendente que eu
conhecia. Até onde eu sabia, nenhum ascendente na história havia descoberto
uma dessas ruinas antigas antes, muito menos conversado com um
remanescente djinn.
Minhas bochechas ficaram vermelhas. Até mesmo pensar sobre essas coisas
fazia com que eu me sentisse como uma garotinha. Mas a verdade era que eu
não conseguia pensar em uma explicação razoável para como que Grey estaria
no centro desse poder todo. Tendo atraído a atenção do próprio Alto
Soberano, que raramente saia dos confins de Taegrin Caelum, lá nas alturas
das montanhas da Presa do Basilisco…
Eu percebi com uma certeza repentina e absoluta que Grey era um dos seres
mais poderosos do mundo. Se ainda não fosse, ele seria. Eu sabia com igual
certeza que eu não estaria contente em retornar para minha velha vida,
sabendo que ele estava lá fora, em algum lugar.
Minha mimada vida de nobreza, meus esforços para estar à altura do legado
do meu irmão como ascendente, até mesmo a realidade de que eu era uma
nascida Vritra cujo sangue havia se manifestado, tudo isso parecia
completamente sem importância diante de quaisquer inovações que o Grey
havia feito e que continuaria a fazer.
Isso era poder real, o tipo que poderia redesenhar o nosso mundo.
Eu ri. “Você pode fazer com que chova caramelo para nós então? Lenora disse
aos cozinheiros que eles não podiam fazer mais depois que eu peguei alguns
escondida.”
Mas Sevren nem sequer sorriu. “A primeira coisa que eu faria é garantir que
ninguém te leve pra longe da nossa família. Eu criaria um mundo onde você
estaria segura contra o clã Vritra.”
Talvez a coisa certa a se fazer fosse sair e ajudar. Dúzias de magos ainda
estavam procurando por sobreviventes nos destroços da seção desmoronada
do estádio. Os oficiais precisariam de toda a ajuda para gerenciar as multidões
correndo para as plataformas de tempus warp.
Capítulo 375
Vozes
ELEANOR LEYWIN
Eu oscilava de um lado pra outro à medida que as costas de Boo balançavam
com cada passo lento. Sua respiração era pesada e regular, quase sonolenta
depois de ter se empanturrado de peixe brilhante. Estávamos no nosso ritmo,
retornando do ponto favorito de pesca do Boo, e indo vagarosamente até a
praça na frente da prefeitura.
Agora a ideia de tantas pessoas – e cada uma delas havia passado por uma
perda terrível, sobrevivendo ao pesadelo destes últimos meses – me deixava
desconfortável. Constrangida. Mas, apesar desse sentimento que se alojava em
mim, uma luz dourada irradiava do meu núcleo, me enchendo de confiança e
bravura.
Ainda em cima de Boo, eu estendi a mão pra baixo, e apertei a mão dela
levemente. “O que está acontecendo?”
“Eu achei que você ia conseguir me dizer,” ela disse, e seus olhos estavam
escaneando a multidão, inquietos.
Seguindo seu olhar, eu percebi o porquê. Haviam mais elfos olhando pra mim
agora. Alguns encaravam abertamente, e outros tentavam disfarçar enquanto
me olhavam de canto e cochichavam com amigos e família. E apesar de que
alguns pareciam curiosos, ou até mesmo – eu tinha esperança – amigáveis,
outros nem tanto.
Eu me perguntei o que exatamente ele e Feyrith tinham dito a estes elfos. Será
que tinha sido tudo que eu compartilhei com eles da conversa de Virion e
Windsom? Isso parecia imprudente, mas eu não sabia exatamente o que eu
estava esperando que eles fizessem com a informação. Mas pela maneira que
as pessoas estavam olhando pra mim, parecia ser o caso.
Não que eu estivesse com medo. Sentada nas costas de Boo, e com a mão da
minha mãe confortavelmente em volta da minha panturrilha, eu tinha a mesma
sensação quente de quando, na infância, o Art dormia ao meu lado enquanto
me colocava na cama. Uma sensação de estar protegida.
Mas eu não podia deixar de pensar que toda essa infelicidade e frustração que
eu via ao meu redor era culpa minha.
Umas duas semanas haviam se passado desde que eu contei para Albold e
Feyrith sobre as mentiras de Virion e Windsom. Rinia havia me avisado para
não me envolver, mas eu ainda sentia que eles deveriam saber. Eu sabia muito
bem como era quando mentiam e escondiam coisas para me “proteger”. Meus
pais sempre estavam escondendo de mim as coisas relacionadas ao Arthur.
Mesmo quando as Lanças o levaram, eles inventaram muitas desculpas para
que eu não me preocupasse.
Como se eu fosse estúpida demais para entender que quando minha mãe se
trancava em algum cômodo e chorava, havia algo de errado.
Mas eu queria que me dissessem a verdade, para que eu pudesse crescer com
ela, reagir ao mundo real, e não só ao que meus pais decidiam me mostrar.
Ainda assim… eu sabia que os elfos talvez não sentissem o mesmo. Talvez em
tempos assustadores como esse, algumas pessoas preferissem se manter
ignorantes, alheios e se segurando nas palavras esperançosas de nossos
líderes.
Porque, se algo ruim acontecesse, eu sabia que seria por minha causa.
“Obrigado por vir, Ellie,” alguém disse, vindo de trás. Eu me virei e sentei de
costas em Boo. Feyrith e Albold tinham acabado de sair de um beco estreito.
Ambos curvaram a cabeça pra ela, e Feyrith disse, “Graças à sua filha, nós elfos
finalmente soubemos da verdade sobre o que aconteceu à nossa terra natal.
E descobrimos que nossos líderes mentiram sobre isso, para proteger uma
aliança com falsos amigos.”
“Nós vamos fazer com que Virion explique a si mesmo e as suas ações,” disse
Albold assertivamente.
Feyrith me deu um sorriso discreto. “Nós queríamos que você estivesse aqui,
Ellie, para ouvir o que Virion tem a dizer e… dar a sua perspectiva, se
necessário.” Ele rapidamente levantou a mão quando minha mãe fez menção
de reclamar. “Você foi guiada pela própria profeta Rinia. Você estava em
Elenoir quando a destruição ocorreu… e foi a única sobrevivente do ataque.
Foi você que ouviu as mentiras que Virion compartilhou com o asura.
Precisamos de você aqui, Ellie.”
Então eu não estou aqui para ser questionada, eu pensei aliviada. Mas o que
Virion vai dizer – ou negar – quando pedirem a ele uma explicação? De
qualquer forma, essa reunião de elfos só estava acontecendo por minha causa
e da informação que eu escolhi compartilhar.
Mamãe soltou um suspiro, dando um passo pra trás e olhando pra mim. Boo
estava meio virado, para poder olhar os elfos, suas sobrancelhas apertavam
seus olhos e seus dentes enormes estavam à mostra.
“Está tudo bem,” eu disse. “Nós já estamos aqui. Eu só… Você precisava ter
contado pra todo mundo que foi eu?”
Um leve rubor apareceu nas bochechas de Feyrith, e ele olhou pro chão. “As
pessoas precisavam ser convencidas de alguma forma só para virem aqui. Nós
tivemos que dizer a elas exatamente como descobrimos a verdade.”
Eu acho que não vou saber se o que eu fiz foi o certo ou errado até que eu veja
como tudo isso vai acabar. Espero que a maioria das pessoas esteja feliz em
descobrir a verdade, mas aposto que um bocado deles vai achar que estou
mentindo, ou me culpar por causar problemas.
Eu olhei em volta novamente. Tinha mais gente olhando pra mim, agora que
eu estava conversando com Feyrith e Albold. Uma velha elfa com uma bengala
– membro do conselho, eu imaginava – estava vindo na nossa direção, mas
atrás dela eu vi um rosto genuinamente amigável.
O resto dos Chifres Gêmeos estavam com eles, e quando eles se viraram em
nossa direção, as pessoas abriram caminho para permitir passagem.
Helen me deu um sorriso acolhedor e acariciou o lado de Boo. “Ellie. Eu deveria
saber que eles iam te arrastar pro meio disso.” Ela olhou friamente para Feyrith
e Albold, e seu sorriso sumiu.
Durden, que se destacava na multidão por ser pelo menos 10 centímetros mais
alto que todo o resto, fechou a cara de forma exagerada, destacando as
cicatrizes que cobriam metade de seu rosto. “Ellie, você sabe que você está
montada no seu urso de costas, né?”
Camellia deu uma risada apreciativa depois da piada, mas parou rapidamente.
Ela olhou pra baixo, deixando que uma trança de seu cabelo claro caísse sobre
seu rosto. “Me desculpem, acho que essa não é uma boa hora para risadas.”
“Sempre há espaço para que a gente se lembre que estamos vivos ainda,”
Angela Rose respondeu enquanto dava um abraço apertado em minha mãe.
A velha elfa finalmente veio até nós. Ela hesitou, olhando para os Chifres
Gêmeos e pra mim. “Desculpem a interrupção, mas…” Seu olhar pousou em
Feyrith. “Eu gostaria de uma palavrinha antes de começarmos.”
Feyrith acenou, parecendo todo sombrio e sério. Mas quando ele olhou pra
mim, havia uma suavidade em seu rosto que parecia ter desfeito um pouco do
dano feito enquanto era cativo dos Alacryanos. “Obrigado novamente por estar
aqui, Ellie.”
E eles se foram.
“Vamos torcer para que não,” disse Helen. “Mas se esquentar, se lembrem que
nosso papel aqui é evitar que as pessoas machuquem uns aos outros.”
Durden pulsou com mana, e um braço de pedra se formou no lugar do que ele
tinha perdido durante a batalha na Muralha. “Estamos com você, como
sempre, Helen.”
Albold e Feyrith andaram pela multidão até que eles subiram as escadas que
levavam até o prédio do conselho. Os guardas que deveriam estar lá estavam
ausentes, e as portas estavam fechadas.
Albold tentou gritar alguma coisa, mas sua voz se perdeu no ruído. Feyrith
atirou algum tipo de magia de água pra cima, onde ela estourou com um
barulho sibilante, e as pessoas se aquietaram.
“A maioria de vocês já sabe por que estamos aqui,” ele disse quando a
conversa acabou. “Alguns de vocês já abriram os olhos para as mentiras do
comandante e estão aqui para nos apoiar, mas eu sei que muitos de vocês
ainda estão céticos. Eu não os culpo por isso.”
A voz dele ficou mais alta enquanto ele falava, se tornando um grito que
encheu a caverna. “Mentiram para nós. Nos trataram como crianças. Nos
pediram para que ficássemos ao lado dos nossos destruidores. Traídos pelos
nossos próprios líderes!”
“Provas!” um elfo de cabelos cinzas gritou, cortando os aplausos. Ele tinha sido
marcado no pescoço, e a queimadura ainda estava recente e com crosta.
“Como você ousa acusar Virion Eralith, um homem que lutou por nós a vida
toda, de nos trair sem nenhuma prova!”
“Nós devemos dar mais ouvidos às palavras de uma garota humana do que do
nosso comandante?!” uma elfa gritou, com olhos verdes brilhantes tão cheios
de amargura e desdenho que senti a bile subindo na minha garganta.
“Eu espero que você não esteja levando as palavras deles pro pessoal, El,”
disse uma voz, e Emily Watsken veio de dentro da multidão. Cabelo
encaracolado emoldurava o rosto sujo de cinzas dela, e havia uma rachadura
em uma de suas lentes.
“Em!” Escorregando pra fora do Boo, eu dei um grande abraço nela. “O que
aconteceu com você?”
Ela esfregou sua bochecha, sujando ainda mais sua pele com cinzas. “Uma
explosão no laboratório, um dos projetos novos do Gideon… mas não se
preocupe com isso. O que eu perdi?”
Todo mundo disse seus olás, apesar de que os Chifres Gêmeos estavam mais
focados na multidão fervendo. Eu subi de volta no Boo, me reclinando em
Camellia, que descansou seu queixo em meu ombro.
Minha mãe apertou minha perna e me deu um sorriso. “Se ver no meio de
eventos que alteram o mundo aparentemente é a maldição de meus filhos.”
“Vão embora,” ele ordenou, sua voz cheia de um poder que eu raramente havia
testemunhado de perto. Mesmo com 20 metros nos separando, eu podia sentir
a descarga estática arrepiando minha pele, e pequenos arcos de eletricidade
pulavam entre os pequenos pelos em meus braços. “O comandante não vai ser
arrastado da sua casa por uma turba. Se você quiser conversar, agende um
compromisso.”
“Já basta, Bairon,” uma voz áspera saiu de dentro da prefeitura. A multidão –
que quase ficou louca com as ameaças do Lança – ficou quieta e parada como
um campo de rochas. “Eu vou falar com o meu povo.”
A Lança deu um olhar feroz em volta, antes de sair pra fora e se mover para o
lado. Virion veio atrás dele.
Apesar de que o velho elfo estava com as costas retas, e dava cada passo com
firmeza e confiança, eu senti imediatamente que algo estava errado. Ele estava
vestido em vestes de batalha verde-floresta, bordadas com folhas e vinhas
douradas, e usava o cabelo amarrado para trás em um rabo de cavalo, fazendo
com que ele emitisse uma poderosa aura de realeza… Mas isso não era o
suficiente para esconder o cansaço profundo que pairava sobre ele como uma
nuvem negra.
Ele não falou imediatamente, mas deixou que seus olhos afiados passassem
pelos refugiados reunidos. Onde ele olhava, os elfos abaixavam a cabeça.
Alguns estavam chorando, e seus fungos suaves eram o único som que se
ouvia.
“Meus irmãos e irmãs, ele começou, e sua voz era tanto firme quanto suave, de
alguma forma. Com um tom experiente de comando, mas também uma
projeção de avô compreensível. “Vocês chamaram por mim, então aqui estou.”
Virion acenava com a cabeça enquanto Feyrith falava. Antes dele responder,
ele respirou profundamente. “Não, eu não nego.”
“Foi uma mentira necessária, que eu contei para que os trapos da nossa
civilização não se desfizessem no desespero.” Enquanto ele falava, ele ergueu
a cabeça, encarando as acusações sem vacilar. “Eu posso lamentar a
necessidade dela, mas numa situação similar, eu tomaria a mesma decisão
novamente.”
“Você protegeria os asura ao invés do seu próprio povo?” Feyrith perguntou,
descrente.
Virion se endireitou, e o olhar que ele direcionou ao jovem elfo estava cheio
de fogo. “Você está vendo um asura diante de você, ou estas orelhas não são
prova da minha linhagem?”
“Você realmente acha que o meu luto por Elenoir não é tão profundo quanto
o de vocês, mesmo que eu tenha vivido tanto tempo e lutado tanto por ela? Os
asura destruíram Elenoir? Sim! E no ato, eles eliminaram um ponto estratégico
inimigo neste continente, além de cortar as cabeças de muitas das famílias
mais poderosas em Alacrya. Eles queimaram os acampamentos inimigos e
laboratórios de magia. Eles destruíram muitos dos dispositivos de
teletransporte de longo alcance que conectavam Dicathen a Alacrya.”
“Mas eles não tomaram nosso lar.” Virion apertou uma mão em seu peito,
gesticulando para a multidão com a outra. “Onde quer que formos, o que quer
que aconteça com o povo élfico, nós carregaremos nosso lar conosco. Árvores
podem ser replantadas. Casas reconstruídas. Magia recuperada. Ninguém
pode tirar isso de nós.”
“Mas as pessoas que eles mataram não podem nascer de novo!” alguém gritou
com a voz cheia de emoção.
“Isso é guerra!” A voz áspera de Virion falhou, e a palavra “guerra” desceu como
uma árvore caindo na multidão. “Sacrifício é necessário, mesmo quando o
preço parece ser alto demais.”
O fogo, que brilhou tanto que por um instante pareceu que ia irromper dele,
morreu, deixando pra trás um elfo muito velho e muito cansado. “Não deixem
que esta tragédia nos coloque em uma situação ainda pior. Não podemos
lamentar apropriadamente aqueles que perdemos até que consigamos salvar
todos os que ainda faltam…”
Eu não concordava com Virion. Mas… eu o entendia. Seu povo estava tão frágil,
e já havia passado por tanta coisa. Ele só estava tentando os poupar de mais
dor.
Depois de uma longa pausa, Virion fez um gesto pra trás. “Foram os alacryanos
que atacaram nosso continente, invadiram nossas casas, assassinaram nossos
amigos e famílias… executaram nossos reis e rainhas…” Uma lágrima solitária
desceu do olho de Virion, viajando em zigue zague pelo seu rosto austero.
“Essa guerra termina quando eles forem expulsos de nossas terras.”
Ele se virou para pegar algo da chefe da guarda, Lenna Aemaria, que se curvou
e recuou de volta para a prefeitura. Quando ele se virou pra nós, estava
segurando uma caixa longa e decorada. Ela era feita de uma madeira escura,
de um preto profundo, e ornada com um metal prateado luminescente. Com
uma mão, ele abriu a tampa, revelando o conteúdo para todos.
Era uma vara, de mais ou menos 1 metro, com uma empunhadura vermelha
enrolada com anéis dourados a cada poucos centímetros. Na ponta da vara,
havia um cristal que brilhava com uma luz lavanda difusa. Era linda, mas olhar
pra ela me deu arrepios.
“Agora vocês sabem dos artefatos que eram usados para empoderar as Lanças,
que foram mantidos em segredo da população, e usados para garantir a
segurança de nossos reis e rainhas ao criar e vincular os magos mais
poderosos do continente sob seu serviço,” Virion disse para a plateia
encantada.
Vários dos espectadores gritaram com medo, mas Bairon gesticulou para que
fizessem silêncio, com eletricidade correndo entre seus dedos.
“Ao invés disso, eles nos deram artefatos novos,” disse Virion, elevando a voz,
cada vez menos cansado e mais poderoso. Ele segurou a caixa no alto, fazendo
a gema lavanda brilhar na luz suave da caverna subterrânea. “Este é um dos
três artefatos capazes de elevar um mago para núcleo branco ou além, o que
poderia ser a nossa melhor chance de lutar contra os alacryanos. Cada artefato
foi especialmente ajustado para uma das três raças de Dicathen, e não podem
ser usados por ninguém com sangue Vritra, tornando-os inúteis para os
alacryanos.”
“Isso é… muito bom, não é?” Camellia perguntou, ainda sentada atrás de mim.
As pessoas estavam gritando perguntas ou elogios, mas uma voz subiu acima
de todas as outras. “A quem vai ser dado este presente, Comandante Virion?”
Ainda há muito o que ser decidido,” ele admitiu, dando o primeiro passo para
descer as escadas. “A maneira de antes – selecionar apenas dois guerreiros de
cada raça – não será mais suficiente. Com estas novas relíquias, nós
poderíamos criar um destacamento inteiro de Lanças, e –”
“ – causar uma devastação nunca antes vista ao mesmo tempo que prendemos
os nossos defensores mais poderosos ao Clã Indrath,” uma voz rouca
interrompeu de algum lugar no público.
A multidão se abriu para dar espaço a ela. Alguns dos elfos se curvaram em
respeito, mas a maioria lançou olhares cuidados ou até mesmo hostis.
Ela não se importou, e se andou trêmula até Virion. “Estes artefatos são feitos
para nos prender no poder. Garantir a nossa subserviência. Eu sei o que vai
acontecer se usarmos eles.”
A carranca de Virion fez rugas profundas em seu rosto. Mas ao invés de raiva,
eu achei que sua expressão mostrava mais tristeza e arrependimento. “Rinia.
Por favor, venha pra dentro para que possamos discutir isso mehor.”
Ignorando Virion, a Anciã Rinia olhou para os lados, encarando aqueles que
estava perto dela. “Se forem usadas, estas relíquias realmente ajudarão os
nossos magos a ficarem mais fortes, o suficiente para lutar contra as Foices
alacryanas. Juntos, em número, fortes até mesmo para lutar contra os asuras
do Clã Vritra.”
“– destruir os artefatos –”
“Eu me pergunto como eles funcionam?” Eu ouvi Emily dizer baixinho. “Vou ter
de perguntar para o Gideon…”
Depois de alguns minutos assim, uma pressão intensa, como uma tempestade
chegando, encheu a câmara e fez meus ouvidos estralarem.
Virion olhou para Rinia como se procurando por algo. “Temos uma escolha
diante de nós então. Mas…”
A velha vidente apertou mais seu cobertor em volta dos ombros. “Não posso,”
ela respondeu rudemente. “Você não me ouve mais como você costumava.”
Ela se retirou, com muitos elfos a seguindo, e Virion me pegou olhando para
eles. Ele inclinou sua cabeça levemente em minha direção, e suas emoções
eram ilegíveis atrás da fadiga e renúncia que eram óbvias em cada pequeno
movimento.
Capítulo 376
Escolhas
VIRION ERALITH
Quando cheguei até meus aposentos, eu me virei para fechar a porta, e reparei
que Bairon tinha me seguido, e estava agora no corredor me observando com
cuidado. Sua presença era reconfortante, e eu não pude deixar de lembrar do
caminho pelo qual nosso relacionamento havia progredido. Eu nunca tinha
gostado do humano Lança, e o considerava interesseiro e egocêntrico. Muitas
vezes eu o teria dispensado, se tivesse poder pra isso, ou talvez o enviado para
algum tipo de purgatório, fazendo alguma tarefa humilhante e sem
importância.
Agora, ele estava ao meu lado no conselho, e tinha uma cabeça fria e mãos
firmes. Ainda orgulhoso, talvez, mas não presunçoso como era antes.
“Comandante?”
A Lança hesitou, com uma careta, e então disse, “Você tem certeza disso,
Comandante?”
Eu só pude oferecer a ele um gesto incerto com os ombros. “Nós não tivemos
um rei ou rainha que não tentaram jogar seu povo para as feras, em seu
próprio benefício. Não nessa guerra. Talvez… Talvez o tempo para governantes
esteja no passado. As pessoas precisam escolher por si mesmas como elas irão
morrer.”
Bairon, pouco depois de recuperar suas forças, tinha ido até o que sobrou de
sua família, esperando que pudesse ajuda-los a fugir de Xyrus até o santuário.
Com o seu nível de poder, teria sido uma tarefa fácil, mas ele não estava
preparado para o que viu em Xyrus.
Os Wykes eram uma casa poderosa e renomada. Eles poderiam ter convocado
as outras casas e organizado uma defesa da cidade. Ao invés disso, eles foram
uns dos primeiros a jurar serviço a Agrona, provavelmente em algum esforço
imediatista para cair nas graças dos invasores. Bairon foi pra ajudar sua família
a escapar, mas ao invés disso, os encontrou trabalhando ativamente com os
alacryanos para suprimir quaisquer grupos de resistência que sobreviveram.
Saber que os asura, nossos aliados, haviam destruído Elenoir tinha sido um
golpe pesado para nosso moral. Eu sabia que aceitar a proposta de Windsom
seria arriscado, mas concordei com ele ao considerar que a verdade teria
quebrado completamente nosso espírito. Eu ainda considerava que isso
estava certo, apesar de que não podia deixar de questionar minha decisão,
agora que a verdade havia sido revelada através de fofocas e sussurros.
Por entre meus dedos, eu olhei para as três longas caixas que estavam em
cima da mesa. Cautelosamente, eu estendi a mão e destranquei a primeira
caixa, então abri sua tampa. A gema lavanda do bastão brilhava, e eu corri
meus dedos pelo couro rico da empunhadura. Houve um estalo de energia, e
os pelos no meu braço ficaram em pé.
Talvez tinha sido um erro não prever o envolvimento de Rinia. Mas, no fim das
contas, eu não era o vidente.
Rindo sombriamente, pressionei as palmas das mãos com força nos olhos para
aliviar a pressão que aumentava ali. Eu já estava me perguntando se a minha
oferta para permitir uma votação sobre o uso dos artefatos tinha sido um ato
de sabedoria ou de fraqueza.
Essa era uma pergunta que eu havia me feito muitas vezes antes, e era quase
reconfortante pensar que eu nunca saberia a resposta.
Essas pessoas não deveriam ter o poder de escolher o seu próprio fim? Eu
tinha comandado por muito tempo, havia enviado muitas pessoas para a
morte, e já estava muito velho para suportar o peso dessa decisão por conta
própria.
Pegando uma chave do meu cinto, destranquei a única gaveta da mesa e a abri
com um barulho áspero de pedra sobre pedra. Empurrando itens para fora do
caminho até que encontrei o que estava procurando, eu cuidadosamente
retirei uma esfera de cristal com cerca de vinte centímetros de diâmetro.
O artefato, apesar de valioso para mim, era algo que usava com moderação,
tentando seguir em frente. Mas eu me vi cada vez mais dependente dele,
usando-o para escapar de volta para um momento melhor em minha vida.
A esfera girou com uma luz enevoada, que parecia ficar agitada quando a
coloquei na mesa, segurando-a com uma mão para garantir que não rolasse e
se despedaçasse.
Minha esposa sorriu para mim de dentro da esfera da memória. “O rei dos elfos
não deveria parecer tão triste. Qual é o peso que arrasta os cantos de seus
adoráveis lábios para baixo?”
A voz na esfera era dela, mas continha um eco sutil, como se estivesse
ressoando ao longo dos anos e estivesse me alcançando de longe e há muito
tempo.
Minha própria voz, embora muitas décadas mais jovem, soou da esfera em
resposta. “Sinto muito. A guerra… durou muito tempo. Tempo demais. Comecei
a questionar o preço que pagamos. Estou com medo, Lania. Com medo de que
isso me deixe fraco.”
“Não, meu amor. Você não é uma pessoa fraca. Você é corajoso e bonito.”
“Bonito, é?” meu eu mais jovem respondeu com um bufo. Embora a memória
fosse do meu próprio ponto de vista, eu podia imaginar o elfo que falava, um
homem mais jovem, com rosto ainda não enrugado, e ombros não dobrados
pelos fardos do comando. Uma lágrima percorreu o caminho das linhas de riso
que ela me deu. “Esse não é exatamente o tipo de elogio que os reis esperam
ouvir.”
“Mas é verdade, agora e sempre. Por dentro e por fora, você é um homem
bonito, e você viveu uma vida linda. E eu sempre te protegerei.”
Outro bufo saiu do meu eu passado, mas me lembrei da maneira como meu
rosto se suavizou enquanto olhava para ela com carinho. “Você não quer dizer
que eu sempre vou te proteger?”
“Não, meu amor.” Sua mão se levantou para acariciar minha bochecha, e eu
podia praticamente sentir a suavidade das pontas de seus dedos contra minha
pele.
Quer fosse um dom ou uma maldição, eu pensava, como eu tinha feito muitas
vezes antes, que era melhor que fossemos deixados para nossos próprios
meios, navegando nossas vidas da melhor maneira possível dentro do alcance
de nossa própria visão e previsão, em vez de confiar em imagens de futuros
que podem ou não acontecer. Mesmo o mais sábio de nós poderia enlouquecer
tentando decifrar os caminhos ramificados impossíveis que estavam à frente
de cada elfo, humano ou anão.
Mas eu tinha visto em primeira mão o quão pesada tal visão era naqueles que
a possuíam. A responsabilidade do conhecimento é, em muitos aspectos,
ainda mais pesada do que a do comando. Não importa quantas vezes eu
implorei para minha esposa parar de olhar para frente, e tentar me proteger
às custas de sua própria vida, ela não podia. Se algo tivesse acontecido comigo
quando ela estava em posição de evitar, isso a teria quebrado.
O arrependimento formigou no meu peito. Ver Rinia, que parecia ainda mais
velha e desgastada do que eu me sentia, realmente demonstrou o quanto de
si mesma ela havia sacrificado nos últimos meses. Ela estava seguindo o
caminho da minha esposa, sua irmã, mas eu não a agradeceria por isso. Ainda
assim, eu tinha que acreditar que ela tinha feito isso com propósito, e tinha
escolhido aparecer novamente com um objetivo.
Eu me perguntei o que ele fazia antes de vir para este santuário. Ele tinha sido
um soldado? Ou um lenhador? Talvez ele tenha sido um cozinheiro. Eu estava
curioso em saber o que ele pensava sobre os artefatos, e ainda mais sobre se
ele queria ou não ser responsável pela decisão que seria tomada em três dias.
Não quando ficamos sozinhos entre os grandes poderes dos clãs Vritra e
Indrath.
WINDSOM
A mentira nunca foi feita para durar para sempre, mas simplesmente para
ganhar tempo para o próximo estágio do plano de Lorde Indrath começar. Uma
Dicathen sem esperança era inútil para o meu senhor. Eu até ofereci a Virion
várias sugestões sobre quais entre seu povo deveriam ser os primeiros a serem
ungidos pelos novos artefatos. Ele poderia ter começado esse processo a
qualquer momento nos últimos três dias, e magos como os Glayders,
Earthborns ou mesmo a Lança Bairon Wykes já estariam desfilando na frente
dessas pessoas como faróis de esperança.
Foi decisão de Aldir colocar Virion como comandante das forças conjuntas de
Dicathen, quando a guerra começou a sério. Aldir o via como um homem digno
de tempo e treinamento, mas esse fracasso era um grande lembrete de que
todos os menores tinham limites, e parecia que Virion estava atingindo o dele.
Com vida curta e visão ainda mais limitada, os menores não tinham nenhum
conceito da verdadeira passagem do tempo ou do que estava em jogo além de
suas próprias vidas.
Como emissário em Dicathen, muito da minha vida havia sido gasto cuidando
do continente, garantindo que a civilização dos menores não implodisse antes
de ser totalmente estabelecida. Embora eu não tivesse expressado o
pensamento ao meu mestre, eu estava ansioso para que essa guerra
finalmente terminasse, para que eu pudesse buscar um cargo mais alto na
corte.
Claro, dependendo do que Virion e seu povo decidissem, meu serviço a eles
poderia acabar mais cedo do que eu imaginava.
Talvez eu devesse ter lidado com a vidente anos atrás, pensei, frustrado com
a intervenção de Rinia Darcassan. Ela foi a única entre os menores que
entendeu o propósito de Lorde Indrath claramente, embora estivesse cega
pelo sacrifício pedido a Dicathen em vez de ver o bem que fariam cumprindo
seu papel.
A praça estava cada vez mais lotada com menores, então deslizei entre as
pernas deles e pulei em uma pequena borda saliente do lado de um edifício
de pedra moldada. Imediatamente me arrependi do meu lugar de escolha
quando uma criança tentou agarrar minha cauda. Não houve tempo para ir
para outro local, porque senti algo mudar na multidão.
Do outro lado da praça, as portas da Prefeitura se abriram e Virion apareceu,
carregando um dos artefatos em forma de vara que Lorde Indrath havia
presenteado. A Lança humana caminhava logo atrás dele, segurando um
segundo, com a joia azul e prata, enquanto um anão loiro agarrava o terceiro,
que foi forjado em ouro e tinha uma joia vermelha, como se fosse uma
serpente venenosa.
“Nós não aceitaremos a ajuda daqueles demônios!” uma mulher elfa gritou.
Faltava-lhe um olho, e havia um buraco medonho à vista de todos. “Você é tão
ruim quanto eles! Traidor.”
“Além do núcleo branco, tolos!” gritou uma voz profunda que eu não conseguia
localizar. “Poderíamos retomar nossas casas, seu orgulho que se dane!”
Examinei a Lança. Bairon Wykes poderia ter sido uma mão firme para dirigir os
dicateanos em diferentes circunstâncias, mas ele estava muito alinhado com
Virion.
Ainda havia o resto das Lanças, é claro. Varay Aurae, em particular, teria sido
uma poderosa líder. Ela se mostrou totalmente leal a Dicathen, no entanto, e
era improvável que se aliasse a nós ao invés de Virion e o conselho menor.
Uma hora ou mais se passou enquanto eles iam e voltavam como crianças
brincando de atirar pedras. Mais do que tempo suficiente para eu considerar
a ironia de sentir os minutos da minha vida se afastando inutilmente, apesar
de ser mais velho do que até mesmo o mais antigo dos elfos. Quando eu
finalmente me convenci que eles devem ter esquecido a razão dessa conversa,
Virion pediu silêncio.
“Vamos agora votar. Amigos, peço que qualquer um que seja a favor de usar
esses artefatos levante a mão.”
Mãos se levantaram por todo o agrupamento, mas havia muitas pessoas para
ter certeza se era mais ou menos do que a metade. Ao lado de Virion, uma
maga levantou as mãos e enviou um pulso de mana de atributo de vento que
se espalhou pela multidão como uma ondulação em uma lagoa, puxando
minha pele enquanto passava. Ela se inclinou para Virion e sussurrou um
número no ouvido dele.
Ele assentiu. “Os que se opõem a usar as relíquias, por favor, levantem a mão.”
Mais uma vez, um pulso de vento flutuou pela caverna. A maga se inclinou para
o ouvido de Virion. Ele não se dirigiu imediatamente à multidão, mas quando
o fez, foi com um tom claro de resignação.
“A sabedoria prevalece!”
Tão tolos, pensei, pulando do meu poleiro e tecendo meu caminho por entre
pés.
Por tanto tempo eles consideraram a nós, asura, como divindades. Eles
deveriam ter ficado mais gratos pelo que fizemos, nos considerado com mais
respeito.
Ou, por outro lado, eles deveriam ter se lembrado de ter medo.
Capítulo 377
Hora de Ir
ALDIR
Uma das baías largas dedicadas a voos de entrada e saída estava destruída.
Eu me direcionei para lá, passando pela fina camada de mana que continha a
atmosfera do castelo e parando do lado de fora dele. A porta tinha sido
esmagada para dentro, e o chão abaixo dela estava cheio de corpos.
O castelo estava quieto. Não havia sons de batalha pelos corredores, nem
brados de comando ou gritos de morte. À distância, eu podia detectar apenas
três assinaturas de mana em toda a estrutura. Parecia que todo o resto estava
morto.
Melhor assim. Haveria menos distrações para o que estava por vir.
Nas escadas que levavam até o próximo andar, vários outros alacryanos
estavam jogados nos degraus, com suas próprias armas perfurando uns aos
outros, e seus rostos congelados em expressões de terror absoluto.
Meus passos ficaram mais leves à medida que me aproximava da minha presa.
Suas vozes vagavam para fora das câmaras do Conselho, carregando a
respiração pesada da alegria da batalha.
“Talvez, mas isso não poderia ser desfeito, Aya. Nós faríamos muito mais dano
ao futuro de Dicathen do que às forças alacryanas.”
Mica Earthborn parecia não ter mudado nada desde o tempo sob meu serviço,
sorrindo como uma criança e coberta com o sangue de seus inimigos. Seu
martelo desnecessariamente grande descansava ao seu lado.
A elfa, Aya, por outro lado, parecia apenas uma sombra do seu passado. Seus
olhos estavam escuros e fundos, sua pele pálida, e cada músculo em seu corpo
parecia estar tenso. Seu olhar se demorava em um cadáver sentado numa
cadeira no canto. Pelo olhar do homem, ele tinha sido brutalmente torturado
antes da morte.
“Isso não será necessário,” eu disse, antes que qualquer uma delas me
notasse.
As três lanças pularam, com armas em mãos e magia circulando em volta delas.
A cor sumiu de seus rostos, e seus feitiços vacilaram e quase se desfizeram
quando o pânico quebrou o seu foco. Apesar de serem as guerreiras mais
poderosas de Dicathen, elas não estavam à minha altura, e elas sabiam.
“General Aldir,” disse Varay, e a ponta de sua espada de gelo, que estava
apontada para mim, tremia levemente. “O que você está fazendo aqui?”
“A Foice, Cadell, não vai retornar,” eu disse, com as costas retas, e uma mão
levantada de forma não ameaçadora.
Mica e Varay trocaram um olhar, mas Aya não tirou os olhos de mim.
“Como você sabe disso?” Varay perguntou. “Na verdade, como você sabia que
estávamos aqui?”
Os olhos de Aya foram ao chão. Sua voz estava fria como um cadáver quando
ela falou. “Foi você?”
Tanto Varay quanto Mica viraram na direção dela, mas antes que elas
pudessem interceder, Aya me olhou nos olhos e deu um passo à frente, e uma
rajada de vento jogou seu cabelo negro em seu rosto. “Você destruiu meu lar?
Eu senti… o seu poder…”
Abrindo meus dois outros olhos, eu dediquei a ela toda a minha atenção. “Eu
destruí, Aya Grephin. E agora eu fui enviado aqui para matar você e suas irmãs
de arma também.”
Varay deu um passo na direção da Lança élfica, mas Aya já estava se movendo.
Suas mãos se levantaram na minha direção, com os dedos espalhados, e
gavinhas de vento visíveis se formaram ao seu redor, empurrando as outras
para trás. Sua boca se abriu, soltando um grito fantasmagórico de fúria e
frustração, e uma lança de vento foi disparada de cada gavinha.
Usando a técnica do clã Thyestes, Mirage Walk, eu fortaleci meu corpo com
mana e me movi em um pulso quase instantâneo até onde Aya estava. Minha
mão envolveu um de seus punhos, e eu liberei minha mana em uma onda que
se chocou contra todas as células do seu corpo de uma só vez.
Eu olhei nos olhos de Mica. Ela meu deu um sorriso tímido. Então a gravidade
da sala aumentou várias vezes e o chão cedeu. Mobília e pedra caíram no vazio
abaixo, junto com o corpo inconsciente de Aya, que caía muito mais
rapidamente por causa do campo gravitacional.
“Mica não vai cair sem lutar, três olhos!” Ela gritou, com suor pingando de sua
sobrancelha enquanto tentava amplificar ainda mais a força da gravidade. Os
três muros que ainda restavam começaram a tremer.
“Você vai derrubar esta seção inteira do castelo,” eu comentei, com a voz firme.
“Isso danificaria muitas estruturas importantes e não causaria nada a mim.”
“Você tem certeza disso, asura?” Mica gritou. “Mica acha que jogar o castelo
inteiro em cima de você talvez cause alguma coisa.”
Mica encarou sua companheira Lança por um bom tempo antes de desfazer
seu feitiço. Algumas pedras ainda caíram ruidosamente nos escombros na sala
abaixo, e então tudo se aquietou. De repente, seus olhos se arregalaram e ela
começou a procurar na nuvem de poeira abaixo. “Aya!”
“Ela vai viver,” eu comentei quando a anã mergulhou em busca de sua amiga.
Varay estava me olhando com cuidado, e seu rosto era uma máscara
impassível. “Porque você está aqui se não for para fazer o que foi ordenado?
Eu sempre tive a sensação de que sua lealdade era direcionada ao seu mestre,
e não a nós menores.”
“Se minha vida fosse representada numa peça de tapeçaria, a de vocês seria
apenas um fio,” eu disse. “E enquanto o seu mundo pode mudar de repente, e
frequentemente, como uma serpente trocando de pele, o meu permanece tão
estático quanto essa mesma tapeçaria. Epheotus é como um lugar preso no
tempo, imutável, sem evolução.”
Eu pausei, sem saber o que dizer, e incerto até mesmo quanto à minha
intenção. Eu era um soldado, e nunca tinha sido bom nisso. Mas antes eu nunca
tinha tido motivo para duvidar do caminho pelo qual meu lorde nos trouxe.
Lorde Indrath havia me enviado para matar estas Lanças como um teste da
minha lealdade, sabendo como o uso da técnica Devoradora de Mundos havia
abalado ela. Enquanto isso, em Dicathen, um garoto do meu clã enfrentaria um
teste diferente. Se eu falhasse e ele fosse bem-sucedido, não havia dúvidas de
que a técnica Devoradora de Mundos seria passada para ele.
Mica zombou, dando uma olhada incrédula na direção de Varay. “Mica acha
que o asura pretende nos entediar até morrermos.”
Varay assobiou para silenciar a anã, então acenou com a cabeça para que eu
continuasse.
Os olhos de Varay se estreitaram, mas antes que ela pudesse falar, os olhos de
Aya se abriram, e seu corpo se enrijeceu. “O q– O que você disse?”
Cruzando meus braços no peito, eu me curvei. “Centenas de seu povo estão lá,
evacuados de Elenoir pouco antes de…”
“De ser destruída por você,” ela engasgou, se libertando dos braços de Mica e
voando instavelmente até que estivesse em minha frente. “Onde? Onde eles
estão?”
Um vento frio passou pela sala, levantando mais poeira. “Nós teremos uma
chance de salvar essas pessoas se formos?” A voz de Aya fez com que mais
pedras se soltassem, enviando tremores até as fundações do castelo.
“Vocês terão.”
A elfa esperou impacientemente enquanto eu explicava como chegar até o
santuário escondido, então deu as costas e voou até o andar destruído e saiu
por uma porta como o vento.
Mica me deu apenas uma olhadela antes de correr atrás de sua companheira,
deixando Varay e eu sozinhos na câmara de conferência destruída.
“Se Virion e Bairon ainda estão por aí, por que não os encontramos antes?” ela
perguntou. “Nós procuramos por sinais, e deixamos alguns também.”
Voando até a sala abaixo, eu puxei uma cadeira inteira dos destroços e sentei
nela. Apesar de olhar para o chão, eu estava vendo as montanhas e vales
distantes do meu lar. “As Lanças foram mantidas separadas de propósito, para
manter seu povo em desespero. O Lorde Indrath pensou que talvez pudesse
usar vocês, mas os eventos recentes o fizeram mudar de ideia.”
Eu fechei meu olho e descansei o queixo em minha mão. “Nós não somos mais
generais, somos, humana?”
Sem pressa para voltar para Epheotus, eu deixei minha mente vagar de volta
à conversa que tive com Seris. O que foi que ela disse mesmo?
“Indrath, Agrona. Agrona, Indrath. Você fala como se eles fossem os dois únicos
seres no mundo, como se não houvesse escolha a não ser servir um ou o outro.”
VIRION ERALITH
“Está na hora,” Lania estava dizendo, e sua voz era ao mesmo tempo jovem e
velha. Seus olhos brilhavam como pedra água-marinha sob o sol, e seus lábios
pálidos tremiam e se curvavam em um sorriso gentil. “Virion, é hora de ir.”
Eu fiz uma careta no sonho, e a dureza da minha cama fez pressão contra mim,
e eu percebi que estive dormindo. Meus olhos piscaram, com dificuldade para
se focar na sala escura.
“Está na hora, Virion,” uma voz diferente disse, mais velha e mais áspera. “A
evacuação já começou.”
“O-O quê?” Eu me levantei nos cotovelos, com dificuldades para sair do sonho.
“O que você quer dizer? Qual evacuação?”
“Me diga o que está acontecendo,” eu disse com mais firmeza, saindo da cama
e ficando de pé.
“Tem algo vindo? O que você quer dizer?” A frustração estava começando a
queimar a névoa do sono. “Como você entrou aqui, Rinia? O que você está—”
Minha velha amiga me encarou com tal ferocidade que fiquei em silêncio,
fechando lentamente a boca.
“Se você quiser salvar seu povo — não todos eles, não, isso seria impossível,
mas muitos deles — então por favor, cale a boca e me ouça.”
Rinia tomou um gole de sua caneca, o que fez ela tossir. Ela bebeu novamente,
e disse, “Albold e os outros estão guiando as pessoas pelos túneis enquanto
conversamos. Alguns estão relutantes, esperando ouvir de você. Eu vi um lugar,
muito abaixo de nós, e posso nos levar até lá. Se chegarmos a tempo, alguns
de nós talvez sobrevivamos ao que está vindo.”
O que o lorde asura poderia ganhar ao enviar um dos seus atrás de nós, para
nos destruir? Não éramos nenhuma ameaça a ele, e provavelmente não
sobreviveríamos aos alacryanos sem a sua assistência. “Então por quê?” Eu
disse, vocalizando esse último pensamento.
Eu sei que ela não queria responder mais perguntas, mas minha mente estava
cheia delas. “O que vai acontecer nesse lugar? Como que chegar lá vai nos
salvar?”
“Às vezes você só precisa estar no lugar certo, na hora certa,” ela disse com
uma calma irritante.
O único sinal da surpresa de Bairon foi um pequeno tremor em seu olho. Ele
considerou as minhas palavras por meio segundo antes de agir. “É claro,
comandante!”
Ele se virou para sair correndo, mas Rinia o chamou, gesticulando para suas
pernas trêmulas. “Na verdade, é melhor você me carregar, ou todos iremos
morrer.
Capítulo 378
Última Resistência
BAIRON WYKES
A elfa anciã pesava quase nada em meus braços enquanto corríamos entre as
casas até o limite da caverna. As ruas ainda estavam cheias de pessoas,
algumas delas sem tomar nenhuma ação apesar de confusas, mas a maioria
estava correndo na mesma direção que nós.
A entrada do túnel estava lotada com uma multidão de pessoas. Pelo menos
metade do santuário estava lá, ocupando o buraco estreito que levava para a
rede de cavernas e túneis.
Rinia se contorceu pra sair dos meus braços, batendo em meu cotovelo
quando seus pés estavam no chão. “Obrigado pelo seu serviço à Dicathen,
General Wykes. Eu preciso que você organize um grupo de guardas e procure
no vilarejo. Nós precisamos garantir que todo mundo escape dessa caverna.
Virion e eu vamos liderar enquanto você nos dá cobertura.”
Eu olhei pra Virion esperando confirmação, e ele acenou. “Estou contando com
você pra garantir que estas pessoas tenham tempo pra fugir da caverna.”
Virando nos meus calcanhares para sair, uma mão firme segurou meu braço.
Virion me olhou nos olhos e disse, “Não enrole. Eu vou te aguardar quando
isso tudo terminar, entendeu?”
“Você, volte até o vilarejo e procure por algum remanescente. Todos precisam
evacuar.” Os homens deram olhares incertos na direção da saída lotada.
“Agora!” eu gritei, fazendo eles se assustarem.
Nada que eu tinha tentado com a Foice tinha machucado ele. E agora, algo
ainda mais forte e perigoso estava vindo.
Meu olhar passou pela multidão enquanto o medo crescia. Eu odiava ele, o
impulso pra fugir, o questionamento que corria em minha mente. Eu deveria
ter ficado com minha família, abandonando Virion e todas essas pessoas ao
destino? Eu deveria ir embora agora, salvando a mim mesmo? Eu devia a minha
vida a essas pessoas?
Eletricidade pulava da minha pele e corria pela minha armadura. Ela estava
entre as pontas dos meus dedos, ansiosa por direcionamento.
Eu foquei nessa sensação. Essa vontade de atacar. Eu deixei que o seu brilho
me cegasse, e tentei não ver meus impulsos vulneráveis. Como Virion, apesar
de tudo que ele tinha encarado e todas as perdas que ele sofreu, eu me
tornaria um farol para inspirar e fortalecer.
Eu desci para o chão, entre o portal e aqueles que ainda tentavam fugir. Os
guardas estavam gritando instruções para que andassem mais rápido.
Duas figuras apareceram. O primeiro estava no mesmo uniforme imaculado
que ele sempre usou, e seus olhos inumanos absorviam tudo ao redor.
O segundo era mais jovem, mais feroz. Ele era magro e tinha a barba feita, sua
cabeça batia nos ombros de Windsom, e seus olhos negros não refletiam luz
nenhuma. Ao invés de um uniforme elegante ou armadura, ele usava roupas
vermelhas folgadas, como se ele estivesse aqui para um simples duelo de
treino.
“Asuras!” Eu gritei, e minha voz rebateu nas pedras como trovão. “Vocês não
são mais bem vindos neste lugar. Saiam agora, ou –” Uma pressão intensa
apertou meu peito, me interrompendo.
“Nossa aliança falhou.” Estas palavras vibraram pelas pedras e pelo ar, e
pareciam estar vindo de todas as direções ao mesmo tempo, até mesmo
ecoando de volta da entrada do túnel. Gritos temerosos se seguiram. “Vocês
se mostraram sem capacidade de julgamento e fracos na fé. Vocês são um
perigo para sua própria nação, para o futuro de suas próprias raças. Por isso,
o Lorde Indrath julgou necessário eliminar este santuário e todos os que
residem aqui.”
Eu dei um passo à frente, com o queixo erguido, e uma lança longa feita com
eletricidade estalando em minhas mãos. “Seu lorde não tem autoridade aqui.
Voltem para suas casas e deixe nosso lar para cuidarmos. Nós vamos vencer
essa guerra sem vocês.”
O asura mais jovem fez um a careta, e seu nariz se torceu como se ele tivesse
pisado em alguma coisa imunda. Mas foi Windsom que falou. “Você sabe o que
fazer, Taci. Lorde Indrath espera muito de você.”
O mundo pareceu ficar mais lento quando a eletricidade correu pelos meus
nervos, elevando meus reflexos e percepção – algo que eu tinha aprendido do
garoto Leywin antes de sua morte. Finas gavinhas de eletricidade saíam de
mim em arco, como extensões do meu sistema nervoso, me permitindo sentir
ataques de qualquer direção, até mesmo antes de chegarem a mim.
Mas mesmo através dos escombros, eu podia ouvir os gritos de morte dos
guardas.
Raios saíram de mim como uma explosão, e peso que me pressionava e cegava
foi jogado longe. Eu me envolvi em uma capa de eletricidade e voei com toda
velocidade para a entrada do túnel. Pedras voavam por todo o lado, vindas da
construção que eu destruí.
Os corpos mutilados dos meus soldados estavam espalhados pelo chão, e seu
sangue manchava as pedras cinzas. Parecia que um exército tinha passado por
cima deles, massacrando-os ali mesmo.
Taci estava de pé sob Lenna Aemaris, chefe dos guardas de Virion desde que
escapamos para o santuário. Ela se virou em minha direção, tossindo sangue,
com os olhos esbugalhados, incrédulos. Então, o Taci a golpeou com o pé,
eliminando seu último fio de vida.
Houve uma explosão de energia azul e branca, seguida por um trovão que
abalou a caverna, ressoando a partir das paredes e construções até se tornar
uma onda de choque ensurdecedora.
Tarde demais, eu ouvi o barulho suave de suas roupas cortando o ar. Mesmo
com meus reflexos elevados, eu não consegui levantar meus braços a tempo,
e seu golpe me acertou no peito, me lançando pelo chão quando ele apareceu
bem na minha frente. Eu golpeei pra baixo com minha lança, prendendo-a à
pedra, que rachou e guinchou em protesto quando eu parei de repente, com
meus músculos gritando e reclamando.
Passos suaves atraíram minha atenção de volta para Taci, que estava me
observando cuidadosamente enquanto aproximava. “Eu pensei que Lorde
Indrath tinha dito que isso deveria ser um teste da minha força…”
Eu bufei e soltei minha lança da pedra. “Indrath deveria ter esperado até que
você tirasse as fraldas antes de te mandar aqui, garoto.”
“Tempo que não é suficiente,” eu grunhi, movendo meu braço pra tentar
analisar quão ruim era o ferimento. “Nós temos que o segurar aqui.”
Voltei minha atenção pra dentro de mim, tentando entender o que havia de
errado. O asura só tinha me golpeado duas vezes, e nem havia usado magias,
mas toda a parte ao redor do meu núcleo estava inchada e com hematomas.
No mínimo, minha clavícula estava quebrada, e talvez mais ossos, além de que
havia uma dor irritante que subia pelo meu pescoço até a base do crânio,
sugerindo que meu pescoço também estava fraturado.
Até mesmo de onde eu estava, eu podia sentir o frio das magias da Varay
enquanto ela congelava o próprio ar, fazendo com que grossos flocos de neve
caíssem nas construções antigas. Gelo se formou nos braços e pernas de Taci,
e apesar de ter se estilhaçado quando ele avançou contra a Varay, isso o
atrasou o suficiente para que ela pudesse evitar o ataque, conjurando uma
parede de gelo opaco entre eles e recuando a todo vapor.
Um calafrio correu pela minha coluna ao ver essa expressão passiva e quase
curiosa. Sua boca era apenas um risco escuro em seu rosto, e uma sobrancelha
estava levemente erguida em consideração. Não era o olhar de um homem
lutando uma batalha de vida ou morte, e parecia mais com a expressão de uma
besta de mana que brincava com sua presa e testava seus limites…
Apesar de sua falta de foco, Taci repeliu facilmente uma séria de magias antes
de se focar novamente na batalha. No entanto, independentemente da direção
que ele olhasse, pilares de gelo apareciam para interromper sua linha de visão,
e um vento forte soprava em seu rosto para o distrair.
Porém, no mesmo instante, ele foi jogado pra trás. Apenas meio metro, mas o
suficiente para que não pudesse lançar outro ataque. Então, a gravidade
mudou novamente, e ele desceu quase um metro na direção do chão, e depois
alguns centímetros na direção do teto, tirando o seu equilíbrio.
Por um instante, eu não pude ver o que aconteceu. Então o bloco de gelo se
despedaçou, e eu observei enquanto Aya deslizava da ponta da lança e caía.
Um pulso de força elétrica pulou dos meus dedos para o martelo dela, e
quando o próximo golpe caiu, uma explosão de raios empurrou Taci para o
lado. Logo atrás dele, um orbe preto como o vazio – uma esfera escura da qual
a luz não podia escapar – apareceu, e ele cambaleou na direção do orbe.
Mas eu tinha que recuar e me preocupar com o corpo em queda de Aya. Houve
um boom baixo quando eu atingi minha velocidade máxima, tirando ela do ar
um pouco antes de ter caído nos destroços de um dos inúmeros prédios
destruídos na luta.
Eu voei pra trás de uma casa, com uma frágil esperança de que Varay e Mica
pudessem o segurar por um momento para que eu inspecionasse a ferida de
Aya. Mas quando a coloquei no chão e comecei a examina-la, ela me empurrou
de lado.
“Estou ótima, Bairon. Aquela lança fez algo, interrompeu minha mana, mas não
estou muito machucada,” ela disse, indicando uma ferida que sangrava em sua
lateral.
Enquanto Aya falava, eu olhei pra ela com calma. Haviam se passado meses
desde a última vez que eu vi outras Lanças. Aya estava esquelética, e seus
olhos estavam escuros. Já não existiam mais os lábios com beicinho, nem a
mana que fazia sua voz vibrar com um toque de sedução, que ela costumava
exibir como um tipo de armadura.
Não havia tempo para imaginar pelo que os outros passaram desde a batalha
em Etistin e a queda do castelo, mas eu também sabia que todos nós
poderíamos morrer aqui. “Aya, você tem certeza de que está bem?”
“Nós não podemos lutar com ele de igual pra igual. Mesmo estas táticas para
atrasa-lo só vão durar mais um tempo. Essa não é uma luta pra ele, é algum
tipo de jogo de guerra maldito,” eu comentei, arrancando um olhar bravo de
Aya pela interrupção. “E sobre as suas ilusões? Talvez –”
Ela bufou, começando a flutuar e encarando ferozmente Taci, com olhos cheios
de ódio, e a necessidade desesperada por vingança esculpida em cada traço
do seu rosto. “Talvez – talvez – algo assim pudesse funcionar uma vez antes do
asura perceber o que estava acontecendo, e que diferença isso faria? Não, eu
não vou brincar com essa divindade.”
O vento chicoteava ao redor dela enquanto voltava para a luta, e tudo o que
eu podia fazer era segui-la.
O buraco negro que Mica havia conjurado já tinha desaparecido. Varay estava
coberta com uma armadura de gelo, mas as duas Lanças estavam na defensiva
e não podiam se afastar do turbilhão de ataques de Taci.
Eu segui logo atrás dela, enviando arcos de eletricidade dentro dos mísseis de
vento, moldando os raios em algo mais sutil enquanto eu conjurava Nerve
Fracture. Quando os projeteis imbuídos com raios acertaram, os impulsos
elétricos se espalharam pela pele dele como teias de aranha, vibrando pela
sua barreira de mana e penetrando seu sistema nervoso para paralisa-lo.
A figura dele pareceu que estava piscando pelo ar, se movendo com tamanha
precisão que era como ele estivesse se teletransportando um centímetro por
vez, usando apenas o movimento e esforço absolutamente necessário para
evitar um ataque ou deixa-lo se despedaçar em um braço ou ombro. Com cada
movimento, sua lança vermelha atacava, cortando e penetrando todas as
direções ao mesmo tempo, rasgando magias que ele não conseguia desviar,
quebrando outras para reabsorver a mana para alimentar sua própria força.
Taci chutou pra trás, fazendo a Mica sair girando, então rodou sua lança ao
redor de si em um círculo. Quando ele segurou com menos força, eu puxei. O
ferro se tornou um imã gigante, arrancando a lança das mãos surpresas de
Taci. Ela voou em linha reta pelo ar e bateu no teto com um estrondo.
Eles se moveram ao mesmo tempo. A lâmina dela moveu para o lado quando
ele girou, usando a mão como a ponta de uma lança para acerta-la no
estômago, quebrando sua barreira de mana.
Com uma nitidez horrível, eu observei quando seu braço atravessou a barriga
dela e saiu pelas costas. Estava pingando com o seu sangue, e segurava com
punho firma uma seção do que parecia ser sua coluna vertebral.
Meus olhos acompanharam seu movimento até que ela sumiu, então focaram
novamente na batalha justo quando Taci virou um borrão antes de esmagar a
Mica contra a parede com as costas da mão sangrenta.
Uma camada grossa de cristal se formou ao redor de Mica, mas quando o asura
golpeou, houve um som como de vidro estilhaçando, e rachaduras apareceram
na superfície. Ele golpeou novamente, e pedaços de cristal negro voaram pelo
ar. No seu terceiro golpe, a magia do Cofre do Diamante Negro se quebrou, e
seu braço penetrou até o ombro.
Eu quase soltei uma risada. “Voltou não tem 10 minutos e já quer dar ordens.”
Sob o peso combinado de nosso feixe de mana, Taci estava sendo empurrado
para trás, e uma camada de gelo induzido por eletricidade se formava sobre
sua pele. Por um instante, eu senti uma faísca de esperança.
O ar ao meu redor estava cheio de uma névoa vermelha. Com horror, me virei
lentamente para Varay. O braço esquerdo dela, com o qual ela tinha me
empurrado, tinha sido vaporizado, deixando apenas uma ferida vermelha e
preta fumegando no seu ombro.
Eu estava caindo. Acima de mim, Varay estava segurando a lança vermelha com
um braço feito de gelo semitransparente. Taci girou a lança, quebrando o
braço, e a lâmina longa cortando Varay.
Eu puxei o ar, tremendo, enquanto meus olhos se fixavam onde cada uma das
minhas companheiras havia caído. Meu peito se apertou. Uma pressão intensa
se acumulou atrás de meus olhos. Grunhindo no fundo da minha garganta, eu
me virei de lado e me forcei a levantar, brevemente consciente de que minhas
entranhas não tinham caído ainda.
Taci já estava se movendo para o túnel destruído para começar sua caçada.
Ele parou e me olhou, com os olhos pesados e sem interesse. Uma única gota
de sangue brilhante estava espalhada na lateral do seu pescoço onde Aya
havia o cortado, apesar da ferida em si já ter se curado.
Apertei os punhos, a pedra abaixo de mim tremia e uma chama intensa de fúria
acendia dentro de mim. As lágrimas secaram quando minha determinação se
firmou. Eu estava preparado para a morte, mas saber que as Lanças – os
maiores magos de Dicathen – tinham se juntado pra tirar uma única gota de
sangue deste asura era insuportável.
“Fúria do Senhor Trovão,” eu proferi. O feitiço exigiu todo o meu foco, minha
raiva e minha mana.
Meu sangue se tornou em eletricidade nas minhas veias. Uma luz branca
começou a sair das feridas em meu torso, queimando em meus olhos e dentro
da minha pele. Mana divergente imbuiu cada partícula do meu corpo.
O asura mudou a lança para uma posição defensiva, e seus olhos negros sem
vida me penetravam.
Meu grito de guerra foi como um trovão quando deixei sair minha fúria. Um
rastro de eletricidade me seguiu quando voei pra cima, me transformando em
uma arma na direção de Taci. Eu me movi como o raio que eu canalizei,
irregular e imprevisível, e eu cheguei até ele em um instante. A eletricidade
que saía de mim e esfaqueou de todas as direções, e mil adagas em chamas
elétricas penetraram cada centímetro quadrado dele.
Sua lança me penetrou, mas a eletricidade correu pela haste até a sua mão.
Quando ele removeu a arma, um raio atingiu o seu peito.
Ondas de choque começaram a sair do longo corte em meu peito, e cada uma
atingia o asura, removendo suas defesas. Eu envolvi uma mão ao redor de seu
pescoço para garantir que ele não poderia escapar, e quando a sua lança me
penetrou novamente, isso só permitiu que mais do meu poder fluísse.
Uma brisa fresca passou pela minha bochecha, e eu fechei os meus olhos. Eu
estava pronto. Eu tinha segurado o tempo que podia. Essa era uma morte da
qual eu poderia ficar orgulhoso.
À medida que eu perdia a concentração, a luz que saía de mim foi diminuindo.
A lança de Taci subiu, quebrando nosso contato, e desceu novamente no meu
ombro já estilhaçado. Eu mal notei quando eu cai no chão como um meteoro.
Taci limpou cinzas do seu uniforme vermelho. Mesmo o tecido que ele usava
estava ileso, eu reparei com amargura.
Eu lutei para colocar meus cotovelos abaixo de mim, pra me levantar, e lançar
meu feitiço final, fazendo o dano que eu pudesse no asura, mas a voz veio
novamente, cheia de ar e muito real no meu ouvido. “Não se mova. Não
importa o que ver. Não se mova.”
Taci caiu ao meu lado. Ele não sorriu com a vitória, ou me ofereceu alguma
banalidade sobre nossa batalha. Havia uma careta em seu rosto quando ele
levantou a lança uma última vez.
Capítulo 379
Lugar Certo, Hora Certa
ANCIÃ RINIA
O leito de rocha ancestral tremia sob meus pés. Eu sentia a mana atmosférica
se agitando com a liberação de um enorme poder. Não demoraria muito agora.
Alguém colocou uma mão no meu ombro. “Temos tempo suficiente?” Era a voz
de Albold. “Devemos preparar uma emboscada em algum lugar, e atrasar um
pouco mais o asura?”
Uma outra voz, vindo do final da fila. “Você poderia se juntar a mim em cima
da besta.” Era a Madame Astera, a quem Eleanor Leywin havia permitido
montar seu vínculo, dado que ela estava sem uma perna. Foi uma oferta gentil,
vindo de alguém que me odiava profundamente.
“Eu conheço o caminho usando meus pés e sentidos, e não um urso. Vou
andar.” Eu apertei o braço de Virion enquanto ele me guiava. “Precisamos ir
mais rápido.”
Eu senti o seu olhar preocupado, apesar de não conseguir ver, mas ele fez
como pedi e eu empurrei meu velho corpo para acompanhar.
Meu pé direito passou por uma pedra afiada. “Vire à direita na próxima
bifurcação,” eu disse a Virion, e depois de mais cinquenta passos ele me guiou
para a direita, e o caminho se inclinou para baixo sob meus pés.
Uma explosão de algum lugar muito atrás e acima de nós fez cair poeira do
teto da caverna. Alguém suprimiu um grito.
No final do declive, o túnel fez uma curva acentuada à esquerda. “Todos vocês
vão sentir uma forte sensação de desencorajamento à frente. Este é um truque
dos magos antigos para prevenir que este lugar seja descoberto.
Vocês precisam persistir.
Nós continuamos por várias outras bifurcações antes que a sensação ruim
começasse. A princípio ela era moderada, apenas um alerta na mente que
dizia: ‘Algo está errado aqui. Tenha cuidado.’ A sensação aumentava
rapidamente enquanto progredíamos, se transformando em um sentimento de
terror esmagador.
“Albold, leve todos os guardar para a retaguarda. Garanta que essas pessoas
continuem se movendo. Não deixei ninguém se virar,” eu disse.
“V-Você não pode nos forçar!” alguém disse, se engasgando. “Você está nos
levando para nossas mortes!”
“Todos vocês podem sentir o perigo atrás de nós. Ele é bem real, mas essa
magia funciona apenas na nossa imaginação. Se a Rinia diz que a salvação está
adiante, então nós continuaremos.”
Era quase suficiente para motivar até mesmo os refugiados mais assustados a
continuarem insistindo contra o terror mágico que procurava nos manter
afastados.
Eu sabia que teríamos que cruzar esta barreira. Eu pensei que estivesse pronta.
Eu estava errada.
Meus pés pararam de se mover. Virion me cutucou, e quase dava para ouvir
sua careta. Ele estava dizendo algo, mas eu não conseguia ouvir graças ao
bombear do sangue em meus ouvidos.
Tudo tinha sido em vão. Eu forcei demais meu corpo, e agora eu não tinha
forças para continuar.
Um braço fino envolveu o meu, e Virion soltou meu outro braço, se afastando.
Outro alguém, mais baixo e ainda mais fino do que o primeiro, o substituiu.
Mana fresca e calmante fluiu através de mim. A maior parte do meu corpo já
tinha se tornado uma dor unificada, tão constante que eu já havia me
esquecido de que estava lá, mas ao toque da mana, essa dor desapareceu.
Minha respiração ficou mais leve. Eu me endireitei.
Vinda do outro lado, uma luz dourada movia por mim, aquecendo meu núcleo
e afastando a escuridão e o desespero.
Alice riu ao meu lado, mas Ellie apenas me segurou mais forte. “Nós vamos
conseguir. Lugar certo, hora certa?”
Uma intenção virulenta entrou pelos túneis atrás de nós, se movendo mais
rapidamente do que eu podia imaginar.
Mas não havia tempo. Nem para explicar para eles, nem para puxar o fôlego
necessário para correr, então eu apenas empurrei os outros para frente.
Os passos leves de Virion pararam adiante, mas eu insisti. “Vá, nós precisamos
de todos lá dentro.”
A aura que se aproximava era como uma névoa vermelha na mana, agitando-
a.
Apesar de meus olhos cegos não conseguirem ver a sala, eu a conhecia bem
pelas minhas visões. Um batente arqueado se abria em um grande espaço
hexagonal, com uns 30 metros de diâmetro. Bancos íngremes de pedra,
parecidos com degraus, desciam até uma plataforma no centro, onde um
batente retangular de pedra se erguia.
Outros se juntaram a ela, suplicando para que houvesse algo a mais nesse
lugar, qualquer coisa que pudesse salvá-los. Alguém bateu na estrutura, como
se o batente fosse uma porta, esperando que alguém os deixasse passar. A
maioria foi para a parte de trás da câmara, se afastando o máximo da aura que
se aproximava.
“Eu trouxe vocês até onde precisam estar para sobreviver,” eu disse, deixando
que meu cansaço e frustração permeassem as palavras. “Se o plano fosse
permitir que vocês morressem, teria sido mais simples ficar onde estávamos.”
“Se afastem da porta,” Virion estava dando ordens. “Todo mundo, para a parte
de trás da sala!”
Eu acenei em sua direção. “Este povo vai precisar de líderes capazes quando
isso acabar. Faça como ele disse, Astera. Sobreviva.”
Uma figura humana, tão rica com mana que a sua forma brilhava em meus
sentidos, passou pelo batente acima. Sua intenção de matar era como um
punho assassino envolvendo meu coração, espremendo a vida para fora de
mim.
Virion deu um passo à frente. Tolo corajoso, eu pensei, apesar de que não
tentei pará-lo. Nós precisávamos de cada segundo agora.
Mana surgiu de Virion quando ele ativou sua vontade da besta. Sua voz era um
rugido baixo quando ele disse, “Aliados falsos e traidores. Os Indraths não são
melhores do que os Vritra.”
Ele correu para frente, se movendo como um raio. Eu ouvi a sua espada sair da
bainha e cortar o ar, e observei a forma radiante de Taci se mover para
defender, e então a câmara se acender com magia quando uma dúzia de magos
jogavam os feitiços que podiam para ajudar Virion.
Eu prendi a respiração.
O asura passou pela sala como um clarão, fundindo sua assinatura de mana
com a atmosfera num piscar de olhos, e quando ele reapareceu houve um som
afiado e molhado de lâmina cortando carne. Então, ele despareceu
novamente, e novamente, e para todo lugar que ele ia uma assinatura de mana
se apagava.
“Pare!” Eu gritei mais alto que o ruído. Eu dei um passo à frente, me libertando
dos braços que tentavam me segurar. “Taci do Clã Thyestes, eu, Anciã Rinia
Darcassan de Elenoir, te ordeno que pare!”
O asura parou, e eu tive que ouvir a sua lâmina deslizar para fora de um corpo,
que caiu ao chão.
Ele riu. Um som simples, incrédulo e cruel. “Eu fui treinado desde que era uma
criança, passando décadas no orbe de éter, para me tornar a arma de meu
Lorde. É o meu propósito, vidente.”
“Eu nunca entendi porque nós nos importávamos com vocês menores,” Taci
continuou, focando sua aura pela sala, e observando as pessoas impotentes e
aterrorizadas que ele estava prestes a assassinar. “Epheotus não precisa, e
nunca precisou de nada de vocês. Então por que — por que — um dos seus, um
garoto, uma criança idiota, foi treinado entre nós?”
“Isso foi uma desonra ao Ancião Kordri. Foi uma afronta contra mim, e contra
todos que tiveram que treinar com o garoto. Eu —”
“Você acha que sou um tolo,” ele disse, com a respiração como um vento
quente de verão em meu rosto. “Eu fui avisado sobre vocês, estudante do
príncipe perdido. Agora, no entanto, eu não entendo o porquê. Quaisquer que
sejam as artes etéricas que você tiver roubado, você já foi consumida por elas.
Você não é nada além de uma folha ao vento.”
ELEANOR LEYWIN
O corpo dela caiu ao chão, sem movimento. Eu estava gritando. Minha mãe
estava me segurando, tentando me puxar para longe, me proteger com seu
corpo, mas eu lutei para me libertar, para puxar meu arco. Era como se eu
tivesse assistindo a tudo de um ponto de vista acima de nós, sem controle
nenhum de mim mesma.
Vários dos guardas já estavam mortos. Boo estava jogado em um canto, imóvel,
e sua respiração curta era o único movimento perceptível. Durden estava
sangrando de uma ferida na cabeça, apesar de pensar — tinha esperança,
talvez — que eu ainda conseguia sentir sua mana. Jasmine e Angela Rose
estavam protegendo Camellia e Emily na parede dos fundos. Eu não conseguia
ver Helen, e não tinha certeza de que ela estava bem, mas o fato do arco dela
não estar atirando não era um bom sinal.
Eu ouvi os gritos de minha mãe mais altos do que os meus quando a lança
vermelha foi levantada como o rabo de uma manticora. Eu não estava com
medo, não de verdade. Eu sempre soube que iria morrer lutando, como meu
Pai, como Arthur. Eu queria ser forte e corajosa como eles. Mas neste mundo,
os fortes e corajosos sempre morriam lutando.
Seu rosto se fechou ainda mais. “Você deve ser a irmã do Arthur.” Seus olhos
puramente pretos se fixaram em minha mãe. “E a mãe dele?” A lança se
abaixou. “É uma pena que Arthur não esteja aqui agora. Tem sido uma honra
cumprir esta tarefa para meu Lorde, mas eu teria gostado muito de enfrentar
seu irmão novamente, e mostrar a ele o quão pequeno seu potencial
realmente é comparado com a raça do panteão.”
Ele se fez de surdo para as súplicas de minha mãe, e levantou a ponta da lança,
perfurando minha lateral abaixo das costelas. Meus joelhos começaram a
tremer quando eu a senti subindo pelo meu corpo, cortando tão facilmente
quanto bolo de aniversário.
Eu fiz questão de não gritar. Eu tinha decidido, no meio dos meus pensamentos
delirantes, que eu não morreria gritando.
A lança saiu de mim tão facilmente quanto tinha entrado. Minhas pernas
instáveis falharam, e eu caí ao chão.
Minha mãe se jogou sobre mim, com lágrimas descendo pelo seu rosto e me
molhando. Minhas costas estavam quentes e molhadas, mas eu podia sentir
uma frieza por dentro, se espalhando lentamente para fora. As mãos da minha
mãe estavam brilhando com uma luz pálida. “Está tudo bem, meu neném, está
tudo bem. Estou bem aqui. Estou junto de você, e vou levar a dor embora,
minha linda Ellie. Eu vou cuidar de você.”
Acima dela, a lança de Taci estava pronta para golpear a sua nuca, mas todo o
seu foco estava em mim.
Não, Mãe, corra. Vá embora, eu queria gritar, mas não conseguia puxar ar para
meus pulmões.
Taci hesitou novamente. Seu olhar se fixou onde a moldura de pedra se erguia
no centro da plataforma, e eu percebi que havia luz saindo dela. Eu tive que
me esforçar apenas para virar minha cabeça, mas dentro do que tinha sido um
retângulo vazio de pedra, agora havia um portal roxo brilhante, cheio de
redemoinhos etéreos.
A cortina de líquido roxo ondulou como se uma brisa tivesse soprado, e duas
silhuetas apareceram.
Não consegui ver suas características, mas havia algo na figura e postura que
me eram tão familiares. Quase como…
ANCIÃ RINIA
O som de soluções vinha de perto, passando pelo tinido em meu crânio. Era
um som familiar. Alice. Eu tentei sentir a Ellie. Ela estava por perto, mas
desvanecendo. O asura estava de pé sobre elas, mas o seu foco estava em
outro lugar…
O que eu senti estava além do escopo do meu entendimento, mas eu sabia que
não era a minha mente pregando peças. Meu corpo estava quebrado, e minha
vida estava esvaindo. Este era o momento que eu tinha previsto, onde todas
as linhas se acabavam, mas eu nunca tinha conseguido entender como nós
seríamos salvos, apenas o onde e o quando. Mas agora, eu sabia o porquê.
“Arthur…”
Agora eu conseguia ver ele tão claramente quanto eu via Taci, uma nuvem
radiante de luz ametista, e seu calor se espalhava pela câmara como o sol do
meio dia de verão.
Taci deu um passo para trás, mudando a sua arma, que queimava aos meus
olhos, para uma posição de defesa. “Quem… Arthur Leywin?” Sua confusão e
incerteza era palpável, audível em seu tom de voz, e costurada em sua postura.
A aura de Arthur ficou mais escura, e sinais de um vermelho apareceram no
meio do roxo. Um feixe de puro éter no formato de uma espada passou a
existir, distorcendo a malha da realidade.
“Fico feliz que você esteja aqui,” Taci rosnou, sua voz áspera aos meus ouvidos.
“Você não deveria,” Arthur respondeu, com a voz como uma chama fria de ódio.
Eu senti o éter inchando dentro de Arthur, e ele avançou contra seu inimigo,
formando um arco ametista no ar com sua espada. A lança de Taci novamente
se ergueu para defender.
A colisão emitiu uma onda de choque que quase me fez rolar para fora da
plataforma. Meu corpo reclamou me dizendo que eu estava morrendo, como
se eu não soubesse disso ainda.
Arthur pausou e olhou em volta. Alice tinha sido mandada para trás. Ellie tinha
saído rolando. Gritos encheram a câmara quando muitos outros saíram
voando pela colisão desses dois titãs.
Taci rodopiou sua lança para trás em um arco largo e eu senti uma onda de
mana cortante passar acima de nós. Alguns dos gritos pararam, interrompidos,
e várias assinaturas de mana foram extintas.
Eu tentei gritar, mas meus pulmões não conseguiram emitir mais do que um
sussurro abafado. Ao invés disso, eu reuni as últimas gotas de meu poder. Não
era muito. A mana se acendeu dentro de mim, e eu tentei reformá-la,
transformá-la em uma mensagem e enviar diretamente para a mente de
Arthur, mas… Não havia o suficiente de mim restante.
Pela primeira vez, a possibilidade de falha, apesar de tudo o que eu tinha feito
para chegar até esse ponto, parecia terrivelmente real. O mundo já havia, em
tantas ocasiões, pedido mais de mim do que eu conseguia entregar, e ainda
assim eu tinha doado, mas agora, no fim de tudo, me faltavam as forças para
garantir o que eu tinha visto.
O fogo fátuo etérico que eu tinha sentido antes emergiu do corpo deitado de
Ellie, se jogando contra as pedras para proteger um grupo amontoado de
sobreviventes.
Arthur, use o portal! Leve Taci para longe daqui. Eu olhei com olhos urgentes,
incerta se ele podia me ouvir e entender.
Eu senti a frieza dura como granito de sua mente através de nossa conexão.
Este não era o garoto que eu tinha conhecido. Ele tinha sacrificado tanto para
retornar para nós, deixando algo de si para trás onde quer que ele estava.
O éter se acendeu ao redor de Arthur, e ele girou a lança acima de sua cabeça,
se virando de forma que ele e Taci estavam de costas um para o outro, cada
um segurando a lança no alto. Os dois brigaram, e nenhum deles foi capaz de
se impor, mas então Arthur piscou em um clarão de relâmpago etérico,
reaparecendo no mesmo lugar, mas virado para a outra direção.
Taci tropeçou para a frente como resultado de sua própria força. Os braços de
Arthur envolveram ele por trás, empurrando-o para frente.
“Não fale. Você está machucada. Mas… Nós temos — onde está…?” Sua voz
grave foi interrompida, e eu pude sentir, pelo seu esforço, que ele estava
gravemente ferido. “Eu preciso de um emissor! Alice?”
Sua voz estava desaparecendo, e eu senti algo molhado pingar em minha pele.
A dor que inundava meu corpo enfraqueceu… E sumiu, deixando apenas o
calor de sua mão ao redor da minha.
Capítulo 380
O Vazio Além
ARTHUR
A raiva queimava o medo que eu deveria ter sentido ao lutar contra um asura.
A única coisa que a limitava era a presença de meus amigos e família. Mesmo
com a nuvem caótica de emoções, eu sabia que Rinia estava certa. Seria
impossível derrotar Taci enquanto eu me preocupava com a segurança de
todos em volta.
A superfície do portal se distorceu e nos envolveu, ondulando perigosamente.
Eu podia sentir o éter tentando não se distorcer, simultaneamente procurando
aceitar a mim e rejeitar ao Taci.
Vai quebrar. Eu hesitei, e minha mente tentou achar outra solução. Regis, nós
–
O mundo se despedaçou.
Eu pude sentir uma dor aguda de algo faltando, como se eu tivesse perdido
um membro, mas não conseguia identificar essa dor.
Eu estava vagando, flutuando ou talvez caindo, mas eu não sabia onde e nem
em quê.
Eu estava com raiva? Pelo menos parecia que antes eu estava. Agora eu me
sentia apenas… deslocado.
Instintivamente, minha cabeça se inclinou pra frente quando tentei voar para
as dunas, mas não senti nenhum movimento, e a paisagem familiar-mas-nem-
tanto não se aproximou.
“O-onde estamos?” uma voz tensa veio de trás, de algum lugar acima de mim.
Me virando sem pensar, meu corpo começou a girar, e a figura de um jovem
careca entrou em minha visão.
Minhas memórias se colidiram com o meu estado mental confuso como dois
icebergs se chocando em mar aberto.
Mas eu sabia que deveria haver pelo menos um portal de Relictombs em algum
lugar de Dicathen. Eu só não entendia como procurar sem usar um mapa de
memória como os que Sylvia havia deixado para mim.
Alaric havia ajudado com as preparações. Ele adquiriu a chave rúnica de portal.
Comprou ou roubou uma coleção de itens que eu queria caso eu não
conseguisse retornar à Alacrya.
O que é –
E de repente ele estava na minha frente, e sua lança escarlate – ainda mais
vermelha agora, com o sangue de minha família e amigos – empurrou pro lado
a minha arma e entrou em meu ombro. Eu peguei a haste da lança com minha
mão livre e a usei como apoio para chutar Taci no peito, mandando-o girando
pelo espaço.
Sua lança foi arrancada da ferida, deixando uma abertura sangrenta abaixo da
minha clavícula. O sangue saiu em pequenos glóbulos, e apesar do perigo que
Taci representava, eu não pude deixar de observa-las flutuar pelo espaço vazio
etérico.
Puxando da atmosfera pela primeira vez desde que eu apareci aqui, o éter
invadiu meu núcleo. A atmosfera não era apenas rica em éter. Era éter. Toda
ela. Tudo. A presença devoradora que eu tinha sentido era um oceano infinito
de éter ansioso para reabsorver a minúscula fração que havia sido
transformada no Portal das Relictombs.
Sem ter um chão para se firmar, ele podia voar mas não podia usar a técnica
de Mirage Walk para se reposicionar. Ainda assim, sua mobilidade excedia em
muito a minha, que parecia estar limitada a girar no mesmo lugar enquanto eu
vagava lentamente pra longe do lugar onde nós tínhamos aparecido. Se eu
quisesse ter alguma esperança contra ele, eu precisava descobrir como me
mover.
Isto é éter…
Taci veio para cima de mim, e sua lança pulava e golpeava tão rapidamente
que não era nada mais do que um borrão vermelho. Os golpes vinham em uma
sequência quase instantânea, já que o Mirage Walk acelerava não só o seu
movimento, mas também os seus ataques.
Ficando de pé, eu defendi cada golpe do asura com um próprio. Nós voltamos
aos padrões que foram ensinados a nós há muito tempo atrás pelo Kordri, mas
rapidamente ficou claro que o treinamento de Taci tinha ido muito além do
meu, e cada golpe dele contra-atacava com eficiência brutal. Se não fosse
minha constituição asura, ele rapidamente estaria em vantagem.
Apesar da dor da minha ferida, o medo desapareceu, e foi substituído por uma
fúria gélida enquanto eu golpeava sua garganta com a lâmina da minha mão.
O éter estava correndo até mim. Meu núcleo estava cheio dele, e a ferida em
meu peito já estava curada.
Com um grito cheio de raiva, Taci fez força e arremessou sua lança em minha
direção. Ela voou como um relâmpago vermelho pelo céu roxo. Eu dei um
passo curto e a deixei cortar o ar a menos de cinco centímetros do meu rosto.
Com a lança na mão, Taci voou para mais longe, apenas parando quando havia
trinta metros ou mais entre nós. “Seja lá qual for a besta mestiça na qual você
tenha se transformado, Arthur Leywin, saiba que é minha honra desfazer você”,
ele gritou através do vazio.
Finalmente, quatro olhos, dois em cada lado de sua cabeça, se abriram, suas
íris brilhantemente brancas parecendo olhar para fora em todas as direções.
“Veja do que um panteão – do que eu – sou realmente capaz, menor.”
Uma pequena plataforma de éter apareceu sob o meus pés, e eu carreguei meu
corpo com éter antes de empurrá-lo com Burst Step novamente, mirando em
Taci. Mas ele se moveu tão rápido quanto eu. Desviando o golpe em seu
coração com uma mão, o asura agarrou meu pulso com outra e aproveitou a
força do meu impulso para me golpear com o joelho no meu estômago.
Usando-o como âncora, eu me virei e plantei meus pés contra seu peito, depois
empurrei para fora, novamente ativando o Burst Step.
Ele me soltou, mas minha perna gritou de dor na coxa quando sua lança
perfurou minha armadura e quebrou meu fêmur. No final do Burst Step, fui
deixado flutuando no vazio, girando e derramando um rastro grosso de sangue
da minha perna retalhada.
Doía como o inferno, mas o éter já estava inundando a ferida, puxando a carne
de volta, a armadura selando sobre ela com a mesma rapidez. Enquanto eu
girava, vi Taci lutando para recuperar o controle de seu voo, já que ele fora
catapultado para longe de mim pela força do Burst Step.
Então minha rotação trouxe a zona de dunas de volta à minha linha de visão.
Minha pele ficou subitamente úmida com um suor frio enquanto observava as
plumas violetas serem reabsorvidas na atmosfera. Inspirei uma respiração
surpresa e encantada, meu coração batendo como um tambor ao perceber.
Pedra de Sylvie…
Quase peguei antes que a realidade da minha situação desabasse sobre mim
– um instante antes que o próprio Taci fizesse o mesmo.
A cabeça de Taci recuou, então a placa de chifre sobre seus olhos bateu na
ponte do meu nariz com um estalo. Estrelas explodiram em minha visão,
depois piscaram em estrias roxas-pretas de dor quando Taci me bateu com a
cabeça novamente. Eu mais senti do que vi ele se preparar para um terceiro
golpe, mas algo colidiu conosco de lado, nos afastando um do outro.
Ainda cambaleando com o último ataque de Taci, foi preciso me esforçar para
emitir uma explosão de éter, destruindo a duna em que eu havia afundado.
Encontrei Taci me esperando, flutuando na fronteira onde a zona ainda em
colapso encontrou o vazio.
O mar de areia outrora interminável agora parecia pouco mais do que uma ilha
no vazio roxo. A casca era visível de dentro da zona agora, o céu não mais azul
vibrante mas um azul púrpura escuro com rachaduras brilhantes correndo
através dele. O desfiladeiro contendo o hidra e o portal de saída já havia se
dissolvido, deixando apenas este trecho de dunas e a moldura do portal de
entrada da zona, que ficava em um vale no centro.
Não havia muito tempo, mas eu não podia ativar o portal e arriscar que ele
passasse por ele comigo.
“Você deve ter realmente me odiado naquela época para nos levar a esse
ponto”, eu disse, me dando um segundo para pensar.
Taci zombou, um som que parecia o de pedras quebrando. “Você não tem nada
a ver com minha missão atual. Embora este tenha sido um encontro
interessante, e matá-lo trará uma certa redenção para o insulto de ser forçado
a treinar ao seu lado quando criança, você não me impediu de fazer o que meu
senhor ordenou.
A lança de Taci brilhou e eu usei o Burst Step, subindo ao topo de uma duna
vizinha. A colina que deixei para trás explodiu em uma chuva de areia, cortada
completamente em dois. A lança brilhou novamente, e eu me esquivei, depois
de novo e de novo, cada golpe esculpindo o pouco que restava da zona.
A lança subiu e girou, mas o God Step me levou atrás dele. As escamas
douradas mudaram novamente, parecendo me seguir, seus quatro olhos
oferecendo-lhe uma linha clara de visão em todas as direções.
Meu joelho golpeou sua parte inferior das costas, meu cotovelo desceu na base
do pescoço, e eu usei o God Step novamente, aparecendo logo atrás do arco
de sua lança. Éter correu para o meu punho, soltando como uma explosão
quando o atingi logo abaixo das costelas, a força disso me afastando.
Uma parede vertical se formou para me pegar, e eu bati nela com força
suficiente para quebrá-la.
Eu me virei, procurando por Taci. Ele estava olhando para o lado direito, onde
todos os três braços flutuavam ao lado dele, conectados ao corpo apenas
pelas correntes de sangue que jorravam das articulações e membros cortados.
Mas depois dele, vi o que restava da zona. A moldura do portal ficava no centro
de uma ilha de apenas nove metros de diâmetro, areia dourada derramando
das bordas quebradas e se transformando em partículas de éter roxo.
Mãos fortes agarraram meu tornozelo e eu quase parei. Olhando por cima do
ombro, percebi que estava rebocando Taci atrás de mim, duas de suas mãos
restantes segurando-me enquanto a terceira espetava com a lança. Ela
deslizou pelo quadril, depois novamente pelas minhas costas, minha
armadura queimando com éter enquanto absorvia os impactos e virava a
lâmina para o lado.
Golpeei na direção dos pulsos dele, e ele recuou para evitar perder mais
membros. Voltando para o portal, corri para a frente novamente, voando pelo
éter como se tivesse asas.
A ilha encolheu diante dos meus olhos. 5 metros de largura, 3 metros. Éter fluiu
para a minha runa de armazenamento, a Bússola aparecendo na minha mão.
Dois metros e meio. Infundindo a bússola com éter e vontade, eu a torci em
dois. Dois metros de terra permaneceram sob a estrutura do portal, que estava
crescendo distorcida em torno das bordas, o éter lutando para manter sua
forma.
Estávamos presos no vazio, nada além de nós dois, pelo que pude ver.
“Você vai ficar aqui comigo, menor”, disse Taci, suas três mãos restantes
segurando os tocos cortados em seu corpo.
Eu balancei a cabeça, desejando que o éter me levasse ao nível dele para que
eu pudesse olhá-lo nos olhos. “Não há mana aqui, não é? E você gastou toda
a que você tinha mantendo essa forma. Não tenho que lutar com você para
sempre, Taci. Na verdade, eu não tenho que fazer nada.” Eu olhei para ele de
cima a baixo. “Sem maneira de reabastecer sua mana, seu corpo se consumirá.
Você já está morto, e sabe disso.”
Uma grande plataforma de éter se formou sob nós. Coloquei meus pés nela.
Vendo minha intenção, Taci fez o mesmo, sua lança pressionada e para a
esquerda. Eu conjurei uma lâmina na minha mão direita e posicionei meus pés.
“Pelo Lorde Indrath, que ele reine para sempre sob o sol dourado”, disse Taci
com orgulho.
Éter inundou todos os pontos do meu corpo, preparando-o para Burst Step. Os
olhos de Taci se estreitaram. Então eu estava me movendo.
Taci não havia se adiantado para me encontrar. Em vez disso, ele recuou, seus
olhos me rastreando mesmo no meio do Burst Step, sua lança se movendo
para me pegar.
Soltei minha lâmina de éter e ativei o God Step. Não havia caminhos, nem
tempo para procura-los, mesmo que eles existissem, mas o espaço ao meu
redor se deformava, puxando-me para dentro e através da distorção, e eu
apareci atrás de Taci, um relâmpago etérico envolvendo meus membros.
Infundindo a lâmina da minha mão com éter, eu me virei e bati em Taci na base
de seu pescoço, exatamente onde ele encontrava seu ombro. Houve
uma estalo alto quando seu corpo se dobrou para dentro.
A lâmina de éter, que eu havia liberado enquanto ainda avançava, voou por
cima de Taci. Peguei na minha mão livre e mergulhei-a entre as omoplatas
dele. Seu corpo estava girando, a lança rodando para golpear para trás, mas
ela escorregou de seus dedos quando ele caiu em um joelho, seus olhos negros
olhando para mim em desespero.
A lança carmesim flutuava por perto, com sua lâmina alada delineada em uma
névoa cintilante, e o éter no meu sangue era reabsorvido na atmosfera. Eu a
tirei do vazio e enviei para a minha runa dimensional, sabendo que uma
inspeção adequada teria que esperar.
Depois disso, não pensei mais em Taci ou sua arma, afastando-se de seu corpo
para examinar o vazio infinito ao meu redor.
Corri para ele, estendendo a mão e apenas deixando as pontas dos meus
dedos escovarem a superfície. Uma sensação de formigamento como
eletricidade estática percorreu meu braço e fez meus dentes coçarem.
‘-thur. Você… merda, é melhor você não estar morto ou eu mesmo vou te
matar.’
Um sorriso cansado se espalhou pelo meu rosto quando ouvi o som da voz de
Regis na minha cabeça, ecoando ao longo da cicatriz.
Um pico de pânico surgiu em mim. Não vinha de mim, mas do Regis. Ele não
conseguia segurar a cicatriz do portal no lugar por mais tempo.
Não havia palavras, mas uma projeção mental do que ele estava vendo: uma
dúzia de magos trabalhando para tirar outros de escombros, dezenas mais
apenas olhando para Regis, bocas abertas e lágrimas escorrendo por seus
rostos.
Uma presença calorosa flutuou nas minhas costas e se instalou perto do meu
núcleo. ‘Bem-vindo de volta. Você pode cuidar das coisas daqui, certo?’
Minha irmã estava olhando para mim da borda do estrado que apoiava a
moldura do portal. Seu rosto manchado de sangue e poeira se contraiu de uma
emoção para outra, a confusão afastando a dor persistente e uma tristeza
perturbada. Sob tudo isso, porém, havia um vislumbre esperançoso.
Senti minha expressão amolecer e meu corpo relaxar. “Ei, El. Já tem um tempo
que não te vejo.”
Então ela me deu um soco no braço o mais forte que pôde. “Pensei que estava
morto!”
Meu sorriso vacilou, e eu a puxei de volta para um abraço, uma mão dando
tapinhas na nuca dela. Olhei por cima dela até onde minha mãe tinha ficado.
Ela estava pálida e tremendo, os olhos arregalados, a boca aberta. Ela parecia
magra e fraca, como se tivesse murchado nos meses desde que a vi. Mas ela
ainda era minha linda mãe.
Eu sorri para ela do jeito que o papai fazia. “Oi, mãe. Estou de volta.”
Como se as palavras tivessem roubado o resto de sua força, ela caiu de joelhos,
as mãos indo para o rosto enquanto soluçava.
A Anciã Rinia, seu corpo rígido e obviamente desprovido de vida. Ela tinha
esgotado o resto de sua força vital para trazer essas pessoas aqui, onde eu
poderia protegê-las.
“Estou de volta.”
Capítulo 381
Epílogo
O asura!
Eu não conseguia ver nada através da camada grossa de poeira. Mas também
não conseguia sentir a presença insuportável do asura.
A reação fez meu estômago virar e bile subir até minha garganta.
Eu me virei quando ouvi pedras caindo das paredes ou tetos distantes. Meus
sentidos estavam entorpecidos, meus pensamentos se arrastavam como
lesmas em meu crânio, e havia um rugido baixo em meus ouvidos como se eu
estivesse debaixo d’agua. Apenas meu olfato ainda estava funcionando
decentemente; a caverna fedia a enxofre e solo queimado.
Minha boca se abriu sozinha, mas eu evitei gritar. Eu não sabia quem ou o quê
estava por lá. Poderia ser o asura, ou sobreviventes retornando dos túneis –
ou alacryanos, alertados pela perturbação que a nossa batalha sem dúvidas
havia causado no deserto acima. E eu não estava em condições de me
defender caso a presença fosse hostil.
O chão da caverna estava arruinado. Os destroços das rochas, que tinha sido
alvo de raios ou despedaçadas como gelo, me forçava a tomar cuidado ao
andar, e eu tinha que navegar por várias fendas feitas pelos golpes de Taci.
Uma parede parcialmente intacta de um dos vários edifícios destruídos havia
sido lançada por vários metros e estava agora apoiada contra uma rocha
enorme que havia sido deslocada do teto.
Cuidadosamente, eu me esgueirei pela lateral da parede, e depois para um
pedaço de rocha que se curvava na direção de onde eu havia visto a luz. A
poeira foi abaixando enquanto eu me movia para a borda mais distante da
caverna, e eu apertei os olhos procurando por algum sinal de quem ou o que
havia usado mana.
A Lança anã levantou os olhos para mim de onde ela estava ajoelhada ao lado
de uma segunda pessoa. O lado direto de seu rosto estava manchado com
trilhas de lágrimas no barro seco. Dúzias de marcas de cortes longas se
cruzavam no lado esquerdo de seu rosto, e um buraco preto e sangrento era
tudo o que restava do seu olho esquerdo. Todo o lado esquerdo estava
encharcado de sangue seco e algum tipo de lama molhada que ela havia
compactado sobre suas costelas.
Havia sangue pingando de suas palmas, onde ela tinha apertado as unhas, e
seu olhar normalmente brincalhão encontrou o meu com um vazio que me
fazia questionar se ela estava realmente viva ou era apenas um aspecto
sombrio do meu subconsciente.
Quando ela virou o olhar inquieto para a segunda figura, meus olhos seguiram,
relutantemente.
O rosto de Aya estava pálido, e seus olhos escuros sem visão encaravam o teto
da caverna. Seu abdômen estava em uma ruína sangrenta onde Taci havia
dado o golpe fatal.
“Eu…” Eu tive que parar para limpar minha garganta, e então continuei. “Eu
pensei ter ouvido ela, logo antes do fim. Ela… ela disse…”
As seis Lanças haviam se tornado apenas duas, e – olhei para Mica – já não
restava muito de nós dois. Isso também era algo para se lamentar. Nós
deveríamos ter sido os maiores defensores de Dicathen, mas isso foi o que nos
tornamos.
O som de uma bota raspando contra a pedra rígida me fez pular. Minhas pernas
imediatamente fraquejaram, e eu cai dolorosamente em um joelho, grunhindo
com os dentes cerrados. Mica cambaleou quando se levantou, mas se manteve
de pé, e até mesmo conseguiu conjurar um pequeno martelo de pedra
enquanto seu olho remanescente penetrava a escuridão.
Uma silhueta torta mancava na nossa direção, oculta pelo véu de poeira, com
uma mão pressionada na lateral do pescoço. Ela parecia um fantasma.
O fantasma de…
Varay coalesceu diante de nossos olhos, como se ela tivesse voltado direto da
terra dos mortos.
Seu braço esquerdo, que não estava mais lá, havia sido cortado no ombro, e a
ferida estava congelada. Um rastro de gelo escarlate marcava seu pescoço
abaixo de sua mão, mas o sangue estava correndo livremente por entre os
espaços.
“Droga!”
Mica se apressou para pegar um punhado de terra solta. Ela se focou, fechando
seu olho, e a face dela se contorceu com o esforço enquanto eu via a terra se
transformar em uma lama grossa, que ela espalhou rapidamente sobre a
ferida. Quando terminou, houve um outro clarão de mana, e o solo argiloso se
endureceu, parando o sangramento.
Eu tinha visto ela morrer, tinha visto Taci golpear sua cabeça e arranca-la dos
ombros. “Uma ilusão,” eu murmurei, me virando para o corpo de Aya. Mas a
ferida dela definitivamente não era uma ilusão. “Ela… ela disse que as ilusões
não enganariam um asura mais de uma vez… e usou os últimos momentos de
sua vida para nos salvar. Sobrepondo ilusões de nossas mortes por cima de
nossos corpos.”
Ela estava usando as últimas reservas de sua força, se sacrificando para salvar
o resto de nós, até mesmo me impedindo de usar a Fúria do Senhor Trovão e
queimar até a morte.
Eu estava deitado aos pés de Taci, e sua lança estava preparada acima de mim.
Mica acariciou o cabelo e Varay, mas seu olhar se voltou para o corpo de Aya.
“Eu senti a mana sair do seu núcleo. Eu pensei… Eu pensei que ela havia
morrido instantaneamente, mas –” Um soluço sufocado interrompeu suas
palavras, e ela rangeu os dentes, frustrada.
“Ela precisava que o asura acreditasse no que ele via e sentia,” eu comentei,
considerando cada uma de nossas feridas, e quão perto do limite do nosso
poder nós tínhamos chegado. Nossa assinatura de mana deve ter sumido até
virar quase nada naqueles momentos finais. “Era a única maneira dele não
perceber.”
“Mas foi o suficiente?” Mica perguntou, com a voz áspera. “Para as pessoas nos
túneis?”
“Aquelas vidas já não estão mais em nossas mãos…” Eu respondi. Nós não
tínhamos a força nem mesmo para caminhar, muito menos para ir atrás do
asura. “Mas a vida de Aya… Nós podemos nos lembrar e velar nossa amiga.
Enquanto esperamos por qualquer que seja o fim que nos espera.”
Mica irrompeu em soluços irregulares. Varay forçou as pálpebras a ficarem
abertas, deixando que lágrimas fluíssem pelas suas bochechas, mas sem tirar
os olhos de nossa companheira caída.
Nota do Autor:
Bom, isso encerra o volume 9 de TBATE. Escrever isso durante o último ano foi
uma jornada incrível, mas eu não posso esperar pelo Volume 10. Como eu
anunciei há algum tempo atrás, a novel de TBATE vai estar em pausa por duas
semanas enquanto eu me preparo para o Volume 10. Para aqueles que
continuam apoiando pelo patreon apesar do breve hiato, obrigado pela sua
lealdade <3
Espero que vocês estejam ansiosos pelo Volume 10! Tenho muitas coisas
planejadas ^^