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Capítulo 322

Ecos e Acusações

A visão de Ellie desaparecendo em uma onda de destruição passou pela minha


mente, de novo e de novo. Minha irmã… vestida como um soldado alacryano
… apanhada em um ataque asuran na terra natal dos elfos… onde Nico e Tessia
lutaram lado a lado, como velhos amigos…

Não parecia real quando eu pensava assim. Cada pedaço era mais absurdo do
que o outro. Talvez fosse apenas uma visão, disse a mim mesmo, embora
soubesse que não era verdade. Quer fosse algum aspecto da magia da relíquia
ou minha própria intuição, eu sabia que o que tinha visto era real, que tinha
acabado de acontecer.

Ellie está viva.

Tinha que estar. Eu não poderia aceitar um mundo onde ela não estivesse.

“Como está se sentindo?” Caera perguntou, suas sobrancelhas franzidas com


preocupação.

Soltando um suspiro profundo – como se isso fosse de alguma forma aliviar o


peso do que eu acabara de testemunhar em Dicathen – eu acenei para a nobre
alacryana. “Eu vou ficar bem.”

“O que aconteceu? A pedra em sua mão estava brilhando, e então, de repente,


seus olhos estavam vidrados e você congelou como uma estátua.” Caera estava
segurando meu braço, seu olhar voltado para cima em busca de respostas em
meu rosto.

Regis esperou com expectativa, quase sem jeito, e eu podia sentir seu desejo
por respostas também.

Respostas que eu não estava pronto para dar.

Embora eu tivesse decidido que Ellie tinha que estar bem – como se minha
própria força de vontade pudesse fazer isso, se eu apenas acreditasse nisso
com força suficiente – eu nem tinha começado a aceitar o que isso significava
para Dicathen, pra guerra… pro mundo.

Era simplesmente demais.

Tirando os dedos quentes de Caera do meu braço, dei um passo à frente


atordoado em direção ao portal de volta ao segundo nível das Relictombs. A
ponta da minha bota atingiu a relíquia, que rolou pelos ladrilhos brancos até
a borda da poça de água no centro da sala.

Resisti ao impulso de chutá-la para dentro da banheira e deixá-la lá,


escolhendo pegar a pedra multifacetada e examiná-la. A superfície limpa e
brilhante estava novamente opaca, sem brilho. Não exatamente a mesma
textura de pedra lisa de quando ganhei, mas parecia morta e sem vida em
minha mão.

Olhando mais de perto, notei uma leve rachadura ao longo de um lado, mas
minha mente estava muito pesada para refletir sobre os mistérios da relíquia,
então eu a guardei em minha runa de armazenamento dimensional.

Caera estava parada ansiosamente entre mim e o portão cintilante, seu corpo
tenso e o olhar piscando para trás enquanto ela bloqueava meu caminho. Seus
chifres haviam desaparecido novamente, escondidos pela relíquia que ela
usava, que não estava mais sendo suprimida pelo deserto nevado da última
zona. “Grey, espere.”

Eu estava com raiva, ansioso, cansado e com medo, e uma parte de mim só
queria rastejar em um buraco e negar tudo que a relíquia havia me mostrado.
Mas havia trabalho a ser feito. Eu precisava voltar e me encontrar com Alaric.
Eu precisava de recursos, um plano e precisava voltar para as Relictombs.

Por causa do que vi na relíquia, agora tinha certeza de uma coisa. Os Vritras
não eram o único clã de asuras que era uma ameaça para Dicathen.

Eu podia ouvir os ecos maçantes de meus passos soando em meus ouvidos,


abafando as palavras de Caera enquanto cambaleava pelo portal.

Fui saudado por uma massa de soldados alacryanos posicionados ao meu


redor em uma formação de meia lua.

À minha esquerda, cavaleiros em armaduras de aço enegrecido seguravam


suas armas para frente, prontos para a batalha, cada figura individual vibrando
com magia. À minha direita, cavaleiros vestindo armaduras de prata branca
cintilante formavam a outra borda da meia lua, mas, ao contrário de suas
contrapartes mais escuras, sua postura não era agressiva.

Diretamente à minha frente, preenchendo o centro do semicírculo, estavam


vários indivíduos vestidos com túnicas de cores variadas, tensos e quietos.

Caera saiu do portal ao meu lado. “Droga, Grey, por que você não esperou-”

Um som cortante de aço na pedra a interrompeu quando os cavaleiros em


prata branca bateram suas lanças contra o chão e se ajoelharam em uníssono.

‘Que baita comitê de boa-vindas,’ Regis refletiu. ‘Acha que isso é tudo para a
senhora demônio aqui, ou…’

“Lady Caera!” Uma mulher com cabelo laranja brilhante amarrado no topo da
cabeça em um coque solto correu através da fila de soldados vestidos de
branco, praticamente deslizando até parar diante de minha companheira.
“Você se machucou? Sofreu? Está com dor?” Ela divagou, seus olhos
arregalados examinando cada centímetro do corpo de Caera.
Apesar de seu cansaço, Caera esboçou um sorriso. “Estou bem, Nessa, de
verdade.”

A mulher de cabelo laranja franziu a testa ao dar um tapa no braço da nobre


alacryana. “Como você pôde escapar em outra ascensão?! E sem seus
guardiões! Você sabe quantos problemas eu tive com o Alto Lorde e a Alta
Lady? Meu Deus, e, como se isso não bastasse, pensar que você se misturou
com…”

A mulher chamada Nessa soltou um grito assustado, como se só agora


percebesse minha existência. Ela puxou Caera alguns passos para longe e se
escondeu atrás dela.

“V-você! Você é o assassino!” Ela gaguejou, apontando um dedo trêmulo para


mim.

“Você terminou, assessora?”

A voz ressonante ecoou pelo terraço e todos os olhos se voltaram para a fonte.
Eu encarei um alacryano idoso que se adiantou do resto de seus colegas de
túnica.

Foi quando notei a coroa estampada no peito de seu manto escuro. Na


verdade, agora que eu estava prestando mais atenção, percebi que todos os
soldados de armadura escura também tinham uma coroa dourada gravada em
seus peitorais.

Memórias dos irmãos Granbehl vieram à tona em minha mente, suas mortes
se repetindo tão claramente quanto no momento em que aconteceram.

Merda.

‘Parece que Caera estava certa,’ refletiu Regis. ‘Deveria ter apenas matado a
garota.’

Isso não é o que Haedrig – não o que Caera disse, e também não ajuda, Regis.

Estendendo uma mão pálida e ossuda em suas vestes, o ancião de cabelos


dourados puxou e desenrolou um pergaminho antes de começar a lê-lo. “Grey,
sangue sem nome. Você é acusado pelo assassinato de Kalon e Ezra do Sangue
Granbehl, e Riah do Sangue Faline.”

Caera deu um passo à frente, o braço levantado na minha frente. “Grey não foi
o único que os matou.”

O ancião olhou para cima, seus punhos cerrados traindo o respeito forçado
em sua voz. “Temos o depoimento de uma testemunha ocular importante que
diz o contrário, Lady Denoir.”
“Eu mesma sou uma testemunha ocular, assim como Lady Ada do Sangue
Granbehl,” ela rebateu.

Os olhos do ancião de cabelos dourados se estreitaram. “Seu testemunho e


envolvimento neste assunto foram revogados, Lady Denoir. Por favor, se
afaste.”

A raiva escoou de Caera quando ela deu um passo ameaçador para frente. “Por
direito de quem?”

“Pelo Alto Lorde Denoir, minha senhora,” o ancião respondeu imediatamente.


“A seu pedido, com o reconhecimento do Sangue Faline e Sangue Granbehl, a
Associação de Ascendentes sancionou isso para que você não seja
questionada e enviada a julgamento também.”

Caera continuou a discutir, mas estava claro que ela estava perdendo a
batalha.

Minha mente cansada tentou examinar as opções disponíveis para mim. Era
bastante óbvio que eu provavelmente não teria um julgamento justo,
considerando que eles estavam dispostos a renunciar a Caera como
testemunha, e eu não tinha nenhum desejo de me submeter a qualquer tipo
de questionamento por parte dos oficiais alacryanos que pudesse levá-los a
perceber que eu não era quem eu dizia ser.

Apesar do número de magos prontos para a batalha ao nosso redor, eu sabia


que não seria muito difícil escapar agora que estávamos de volta ao segundo
andar das Relictombs. Mas lutar para escapar, me tornar um fugitivo
procurado com minha aparência revelada, tornaria qualquer ascensão futura
difícil e certamente chamaria a atenção. Talvez até mesmo atenção suficiente
para envolver uma Foice.

‘Você não está realmente pensando em seguir com toda essa merda,
certo?’ Regis perguntou, sua irritação crescendo. ‘Apenas me deixe sair e eu
abrirei o caminho.’

Por enquanto, seguir o roteiro parece ser a melhor opção. Um pensamento


estranho me ocorreu. Quem sabe, talvez possamos até mesmo transformar isso
em nosso benefício de alguma forma. No mínimo, sabemos que nenhum de seus
artefatos de supressão de mana funcionará em mim, e podemos escapar mais
tarde se for necessário.

Uma voz brilhante e prateada cortou meus pensamentos. “Caera, chega.” A voz
silenciou todos os outros nas proximidades, chamando minha atenção para
uma mulher luxuosamente vestida com cabelos brancos brilhantes. “Estamos
indo embora, querida. Deixe isso para os administradores.”

“Mas, mãe-”
“Agora, Caera.” A autoridade na voz da mulher era absoluta, e Caera desabou
sob a pressão.

Eu não conseguia me lembrar de ter visto a maga alacryana de sangue Vritra


parecer tão miserável antes, mesmo quando eu estava prestes a matá-la
quando ela revelou sua verdadeira identidade pela primeira vez.

Ela se virou, seus olhos escarlates encontrando os meus.

“Está tudo bem,” eu disse. “Apenas vá. Eu vou ficar bem.”

“Grey, eu estou-”

“Caera!” A mulher de cabelos brancos disse novamente, sua voz soando


através do terraço como um sino.

Caera se encolheu e correu para seguir sua mãe adotiva, que conduziu os
cavaleiros de armadura branca para longe do portal. Ela lançou um olhar
furtivo para mim, e fiquei impressionado com o quanto ela parecia diferente e
agia na presença de seu sangue.

‘Famílias são estranhas,’ disse Regis. ‘Quer dizer, olhe para toda essa merda
maluca em que você me meteu.’

Percebi que o ancião de cabelos dourados estava falando novamente. “…e


assim é que o suspeito, Grey, deve ser levado para a mansão Granbehl para
interrogatório antes de um julgamento ser realizado. Este julgamento está
atualmente definido para”- ele verificou o pergaminho novamente -“ três
semanas a partir de hoje.”

Eu zombei. “É procedimento padrão que o acusado seja preso pelos


acusadores? Dificilmente parece justo e imparcial, não é?”

O orador pigarreou e fez uma careta. “Sangue Granbehl tem todo o direito de
garantir que você seja julgado por seus crimes. Se você fosse membro de um
Sangue Nomeado ou Alto Sangue, poderia ser liberado sob a custódia de seu
sangue para aguardar o julgamento, mas-”

Eu afastei suas explicações, sabendo que não passavam de palavras. A verdade


é que os poderosos sempre obedecem a regras diferentes de todos os outros.
“Vamos apenas acabar com isso, vamos?”

Eu continuei a encarar o homem até que ele se encolheu e desviou o olhar.


“Algemem este homem e coloque-o na carroça,” disse ele, com uma pitada de
amargura e cautela em seu tom.

Três cavaleiros avançaram. Um puxou meus braços na minha frente, enquanto


outro ajustou meus pulsos com um par de algemas de supressão de mana. O
terceiro manteve sua lança pressionada contra minhas costas.
Terminados esses procedimentos, fui conduzido a uma pequena carroça
puxada por uma besta que havia sido deixada na beira do alpendre e colocado
dentro dela sem palavras. Era pequeno, com espaço apenas para mim e um
outro soldado Granbehl que já estava sentado lá dentro.

As feições do guarda estavam escondidas atrás de um capacete fechado. Uma


espada curta repousava em seu colo, cuidadosamente colocada na curva de
seu braço para que, se necessário, um golpe curto perfurasse meu núcleo.

Um momento depois, a carroça balançou quando a besta que a puxava


avançou ao comando de nosso motorista. Eu descansei minha cabeça contra
a parte traseira do carrinho e fechei meus olhos. Meus pensamentos estavam
confusos, uma mistura indecifrável de memórias, medos e planos para o que
estava por vir.

Eu estava absorto o suficiente em minha própria mente para não notar o


guarda tirar o capacete, e fiquei surpreso quando uma voz familiar
interrompeu minha contemplação cansada.

“Bem, uma baita encrenca em que você se meteu, hein, garoto bonito?”

Capítulo 323
Aprisionado

Meus olhos se abriram e me virei para olhar para o “guarda”. Sentado ao meu
lado estava um velho de rosto vermelho, seu cabelo grisalho emaranhado e
saindo em ângulos estranhos. Ele soltou um arroto, enchendo a pequena
carruagem com o fedor de seu hálito alcoólico.

“Alaric, como…” Eu parei, afastando a fumaça do meu rosto.

‘O cavalheiro sabe como fazer uma entrada,’ brincou Regis, rindo dentro da
minha cabeça.

Alaric me deu um sorriso meio torto. “Você não achou que eu simplesmente
deixaria você ser preso sem pagar o que me deve agora, não é?”

Eu balancei minha cabeça maravilhada. “Você não pode me enganar, velho.


Você não correria o risco de se espremer naquela armadura apenas por alguns
pedaços de tesouro…”

“Mas você conseguiu alguns elogios lá, certo?” Ele perguntou, seus olhos
injetados de sangue se arregalando. “Sem querer dizer muito bem, mas você
está metido numa merda, lindo garoto – e um pouco de ouro ajudaria muito a
virar as orelhas certas. Ou muito ouro, se você tiver.”

Revirei os olhos, mas senti em minha runa de armazenamento dimensional um


dos itens que Caera e eu tínhamos tirado do tesouro dos Spear Beaks. Era uma
bainha para uma espada curta, feita de couro vermelho escuro e incrustada
com pedras preciosas, algumas das quais estavam faltando.

Mal olhando para o “elogio”, como os alacryanos chamavam os tesouros


desenterrados das Relictombs, eu o joguei no colo de Alaric. “Considere como
um pagamento inicial, mas você não receberá o resto até que eu saia desta
confusão.”

O velho correu os dedos avaliando o couro, parando avidamente nas pedras


preciosas. “Bem, então, isso vai servir muito bem.” Alaric me lançou um olhar
disfarçado com o canto do olho. “E você tem mais assim?”

Eu segurei uma risada divertida, não querendo que o motorista ouvisse. “O


suficiente para mantê-lo bêbado até o dia da sua morte.”

Os olhos de Alaric se fecharam e ele se recostou, uma paz serena caindo em


seu rosto. “Exatamente o que eu sempre quis ouvir…”

Pelo menos ele é fácil de agradar.

‘Mas o que esse bêbado pode realmente fazer para nos ajudar aqui?’ Regis se
perguntou.

“Agora,” eu disse sobriamente, “o que você sabe sobre este julgamento? Tem
que haver mais nisso do que o que eles estão dizendo.”

O rosto de Alaric caiu e ele me lançou um olhar sujo, como se eu tivesse


acabado de acordá-lo de um sonho agradável. “Os Granbehls estão entre os
melhores para sangue nomeados; Eles não agem tão duramente quanto os
Altos Sangues, mas vêm lutando pelo status de Alto Sangue há anos –
patrocinando ascendentes, comprando propriedades nos primeiros dois
níveis, ganhando o favor dos Soberanos, esse tipo de coisa.

Esse garoto Kalon era a estrela em ascensão do Sangue Granbehl, pelo que
ouvi. Bonito, talentoso, bons instintos dentro e fora das Relictombs… você
entendeu.”

Eu estava concordando com o que Alaric estava dizendo. “Provavelmente será


o futuro chefe da casa?”

Alaric acenou com a cabeça em retorno enquanto guardava a bainha em seu


anel dimensional e descansou sua espada curta contra a lateral da carruagem
para que ele pudesse ficar mais confortável. “Com certeza, sim. Sua morte é
um golpe duro para o Sangue Granbehl.”

“Mas os ascendentes morrem nas Relictombs o tempo todo,” eu disse, meio


para mim mesmo. “Eu vi em primeira mão na zona de convergência. A maioria
dos magos que entraram naquele lugar não saiu.”
“Sim, mas um ascendente experiente que não quer assumir muitos riscos pode
fazer alguma boa vontade e um nome para si mesmo liderando ascensões
preliminares para pirralhos nobres,” Alaric disse sabiamente.

Por um momento, lembrei-me de por que havia concordado em trabalhar com


o velho bêbado. Apesar de sua falta de elegância, Alaric era muito perspicaz.
Então ele arrotou alto e eu me perguntei, não pela primeira vez, se não era
apenas sorte cega e excesso de confiança inspirado no álcool.

“A maldita armadura é muito apertada,” ele resmungou, puxando as bordas do


peitoral de aço enegrecido.

“Então, eles estão com raiva por perderem seu herdeiro aparente, mas como
me culpar pelo assassinato dele ajuda?” Eu perguntei, franzindo a testa
através da carruagem para Alaric.

“Não tenho certeza ainda, para ser honesto, mas isso” – ele bateu em seu anel
dimensional, indicando a bainha de joias – “vai ajudar a fazer as línguas
balançarem. Você está certo, no entanto. Não faz sentido à primeira vista.
Provar assassinato nas Relictombs… bem, é muito complicado, especialmente
com apenas uma testemunha ocular.”

“Duas,” eu disse, minha frustração passando para meu tom, “mas eles estão se
recusando a deixar Caera agir como testemunha em meu nome.”

“Caera, não é?” Alaric balançou as sobrancelhas grossas para cima e para
baixo, uma expressão que me lembrou de Regis por algum motivo. “Passou
algum tempo de qualidade com a beleza Alto Sangue nas Relictombs, certo?
Compartilhou algumas noites românticas abatendo feras e, em seguida,
aconchegou-se ao fogo, ainda com a crosta de sangue da luta do dia…” Ele
estremeceu sob o peso do meu olhar fulminante. “Tudo bem, não perca a
razão, garoto. Tudo o que estou dizendo é que sei como fica quando você
enfrenta a morte todos os dias. Ninguém iria culpar você—”

“Alaric,” eu disse, minha voz baixa e calma, mas cantarolando com uma ameaça
óbvia que nem ele poderia perder. “Vá direto ao ponto.”

“Vamos pensar nisso então, vamos?” Ele disse rapidamente. “Alto Sangue
Denoir é mais poderoso que o Sangue Granbehl, mas o último está faminto e
socando acima do seu peso. O que os Denoirs ganhariam ao permitir que sua
preciosa princesa se envolvesse em todo este fiasco de julgamento?”

Ele fez uma pausa, olhando para mim com olhos desfocados. “Qual era a
pergunta?” Ele coçou o cabelo bagunçado. “Ah, claro. Nada, é isso. Eles não
querem que se espalhe que a filha adotiva do nobre Alto Sangue Denoir
escapuliu para as Relictombs com um novato sem sangue. Parece ruim. Tudo
o que eles precisam fazer é deixar os Granbehls comerem você vivo e, pelo
menos para eles, toda a situação vai embora.”
“Mas o que…”

A carruagem deu uma guinada e nosso motorista trocou gritos de insultos com
alguém. Alaric sorriu.

“— os Granbehls tem a ganhar me colocando em julgamento?” Eu terminei.

“Estamos andando em círculos agora,” disse ele. “Talvez eles tenham se


esquivado de que há mais coisas para você do que você disse aos três irmãos
Granbehl. Você é assustadoramente poderoso, o suficiente para alterar a
dificuldade de qualquer nível em que você entre. Dependendo do que a jovem
Ada disse, eles podem estar esperando que você seja secretamente um Alto
Sangue disfarçado de que eles possam recuperar as perdas, forçando a
questão na frente de um painel de juízes.”

Isso fazia sentido. Seria uma chance de obter algo em troca da morte de Kalon,
pensei.

‘Mas eles ainda precisam provar que foi assassinato, certo?’ Regis apontou. ‘O
que eles não podem fazer, porque, sabe, não foi.’

Eu ecoei esse pensamento para Alaric.

“É isso que me preocupa,” ele resmungou. “E por que eu estarei fazendo


algumas escavações. O Sangue Granbehl deve ter alguma coisa nas mangas de
seda, se eles estão tendo todo esse trabalho.”

Ficamos sentados em silêncio por um minuto, ouvindo as rodas de madeira da


carruagem esmagando as ruas de pedra. “Então,” disse Alaric, “por quantas
zonas você passou?”

“Três,” eu disse, um pouco amargamente. Eu deveria apenas ter continuado.

‘E ser morto porque se distraiu com o genocídio de toda a raça de sua


namorada?’ Regis perguntou. ‘Relaxar em uma cela de prisão provavelmente
não é uma coisa ruim para você agora.’

Você estava me dizendo para lutar para sair há menos de dez minutos, pensei
incrédulo.

‘Ei, não sou nada se não inconsistente,’ respondeu ele, deixando escapar uma
risada latida.

Alaric assobiou em resposta à minha resposta. “Você ficou lá alguns dias a


mais do que eu esperava, mesmo depois que se espalhou a notícia sobre os
Granbehls. Deve ter sido semanas para você.”

Eu apenas balancei a cabeça. Os Granbehls estariam me forçando a contar


todos os detalhes dolorosos da ascensão em breve, e eu não estava ansioso
para passar por isso com Alaric também.
A carruagem diminuiu a velocidade até parar e ouvi pesados portões de ferro
se abrindo do lado de fora. “Deve estar lá,” Alaric disse enquanto erguia o
capacete do colo e o colocava cuidadosamente sobre a cabeça.

“Você nunca me contou como arranjou isso,” eu disse, acenando com a mão
em sua armadura preta e a carruagem ao nosso redor.

Não consegui ver seu rosto, mas percebi que ele estava sorrindo por baixo do
capacete. “Amigos em lugares baixos, filhote. Não se preocupe, o velho Alaric
vai tirar você disso. Não estou permitindo que você evite me pagar o resto dos
meus quarenta por cento…”

A carruagem avançou, mas parou novamente apenas alguns segundos depois.


Eu me preparei para o que quer que estivesse por vir, mas um pensamento me
ocorreu quando alguém começou a destrancar a porta da carruagem pelo lado
de fora.

“Alaric, pegue o anel dimensional,” eu disse, segurando minhas mãos


algemadas com meus dedos abertos. “Vai levantar suspeitas se eles
verificarem e não virem nada armazenado lá.”

Ele o arrancou do meu dedo e o enfiou na braçadeira de sua armadura. “Bem


pensado.”

Um segundo depois, a porta do meu lado da carruagem se abriu e um dos


cavaleiros de armadura negra agarrou meu braço e me puxou rudemente para
um amplo pátio em frente a uma grande casa senhorial. Era uma residência
imponente feita principalmente de pedra escura com telhados de inclinação
acentuada, com arcos pontiagudos nas janelas e portas.

Pelo menos vinte dos cavaleiros Granbehl estavam no pátio, flanqueando a


carruagem. Um homem e uma mulher esperavam sob a varanda da mansão,
que tinha uma espécie de hera de folhas azuis crescendo em vinhas grossas.

Eu poderia dizer imediatamente que eles eram Senhor e Senhora Granbehl.


Ambos tinham cabelos loiros e usavam roupas escuras finas com detalhes
prateados. Lorde Granbehl tinha a mesma constituição de ombros largos de
seus filhos, enquanto Lady Granbehl era como uma versão mais velha e bonita
de Ada.

O cavaleiro me agarrou pelas algemas e me arrastou em direção ao senhor e à


senhora. Três outros cavaleiros se posicionaram ao lado e atrás de mim, com
as armas prontas.

‘Esta pode ser sua última chance,’ sugeriu Regis. ‘Pense em como seria foda se
você quebrasse essas algemas ao meio e colocasse todos esses magos de
joelhos com seus “olhos zangados” antes de simplesmente desaparecer com
God Step.’
Você quer dizer minha intenção etérica? Lutei para evitar que meus olhos
rolassem enquanto eu estava cara a cara com Lord e Lady Granbehl. Seus olhos
estavam vermelhos e eu podia ver anéis escuros sob eles através da
maquiagem que ela usou para pintar o rosto.

A mandíbula de Lord Granbehl se apertou quando ele olhou para mim da beira
da varanda. Eu vi o golpe vindo muito antes de ele desferir, mas não vacilei
quando seu punho pesado desceu, acertando um soco sólido contra minha
têmpora.

“Leve este cão assassino para as celas,” ele ordenou, sua voz crescendo
através do pátio. Os cavaleiros atrás de mim bateram suas lanças contra o solo
duas vezes enquanto meu guarda me puxava pelas algemas para dentro da
casa, ao longo de um corredor bem decorado e descendo um conjunto de
degraus de pedra que levava primeiro a um porão e depois a uma espécie de
masmorra .

Havia quatro celas, todas vazias. Runas foram gravadas ao longo do chão e nas
barras das portas das celas. Eu não conseguia lê-las, mas tinha certeza de que
eram para impedir que as pessoas usassem mana, talvez um backup para as
algemas de supressão de mana.

O guarda me empurrou pela porta gradeada para uma das celas e me


empurrou contra a parede. Ele começou a me revistar, sentindo meus bolsos,
ao longo das laterais do corpo e para cima e para baixo em minhas pernas.

Em seguida, ele puxou minha capa e camisa para examinar as falsas formas de
feitiço de runas nas minhas costas.

Quando ele terminou, ele me virou bruscamente e olhou para minhas mãos
antes de me dar um olhar enrugado, que – junto com sua construção maciça –
me lembrou do guarda-costas de Caera, Taegan.

“Onde estão todas as suas coisas?” Ele perguntou.

“Estava tudo no meu anel dimensional,” menti, “que perdi na última zona que
passamos.”

O grande guarda deu de ombros antes de sair da cela e bater a porta. “Lord
Granbehl descerá em um minuto. Espero que você não se perca aqui.” O guarda
riu estupidamente de sua própria piada enquanto se afastava.

Eu estava muito cansado e mentalmente esgotado para me incomodar em


oferecer ao homem qualquer tipo de reação, em vez disso, voltei minha
atenção para as acomodações.

A cela era de pedra sólida sem janelas. Uma cama estreita – pouco mais do
que um pedaço fino de tecido esticado sobre uma moldura de madeira – foi
empurrada contra uma parede. Havia um ralo no canto em vez de um penico.
Era isso.

Bem, dormimos em lugares piores, disse a Regis enquanto me sentava na cama.

‘E agora, afeminado?’ Regis perguntou, aprofundando sua voz para imitar


Taegan.

Eu deixei escapar um escárnio enquanto vasculhava minha runa


dimensional. Primeiro, preciso ter certeza de que Ellie está bem.

Peguei a relíquia quebrada, mas ela ainda estava maçante e não reagiu quando
a examinei levemente com éter.

‘Está quebrado?’ Regis perguntou, e pude senti-lo tentando ser consolador.


Embora eu não estivesse com humor para piedade, não pude evitar que suas
emoções se infiltrassem em mim, e isso ajudou a aliviar minha mente.

Talvez…

Eu ativei a runa divina que canalizava o Réquiem de Aroa. Partículas violetas


de éter rodopiantes dançaram ao longo da minha pele e sobre a relíquia,
concentrando-se na pequena fenda antes de desaparecer. A rachadura ainda
estava lá, e a pedra ainda opaca e sem vida.

Minhas esperanças caíram por um momento, mas eu me preparei contra a


decepção. Concentrando-me no éter no ar – que era muito menor do que nas
zonas mais profundas – examinei a relíquia com cuidado. O éter estava
vagarosamente se aproximando da relíquia, onde se reunia ao redor da fenda
e, eu vi com surpresa, acabou sendo atraído para dentro dela.

Está recarregando, percebi. Embora eu esperasse procurar Ellie


imediatamente e provar a mim mesmo que ela estava viva, saber que a relíquia
ainda era funcional foi um alívio.

Guardei o dispositivo e puxei uma pedra diferente da runa de armazenamento


extradimensional: o ovo da cor de arco-íris onde Sylvie ainda dormia.

Era pesado e quente, e emanava uma fome dele. Quanto tempo se passou
desde que tentei encher o reservatório com éter? Muito tempo… mas fazer isso
era exaustivo e me deixaria indefeso – e se eu não tivesse éter suficiente, não
iria libertar Sylvie de qualquer maneira.

Virei a pedra iridescente em minhas mãos enquanto considerava o que viria a


seguir. Levariam três semanas até o julgamento, e eu certamente seria
questionado, possivelmente até torturado. Entretanto, isso não importava.

A visão de Elenoir sendo destruída passou pela minha mente.


A realidade estava começando a se estabelecer em meus ombros como um
peso pesado. Eu sempre soube que teria que lutar contra Agrona e o Clã
Vritra… mas eu também teria que defender Dicathen do resto dos asuras
também?

Mais uma razão para eu voltar às Relictombs o mais rápido possível. Com três
semanas para descansar e planejar, eu deveria estar mais do que preparado
para minha próxima ascensão… embora houvesse uma pequena dúvida
incomodando no fundo da minha mente.

‘Não é exatamente produtivo para nós apenas nos jogarmos de cabeça nas
Relictombs repetidamente procurando por essas outras “ruínas”,’ disse Regis,
dando voz às minhas próprias dúvidas.

Só temos que deixar as Relictombs nos guiarem, como fizeram quando


alcançamos a primeira. A mensagem de Sylvia dizia que ela gravou os locais
em minha mente. Talvez isso atue como uma espécie de… chave quando
estivermos nos movendo de uma zona para outra.

Regis ficou em silêncio. A perigosa verdade era que não sabíamos. Havia
muitas perguntas e nenhuma resposta. Apesar de duas ascensões cada vez
mais difíceis, eu não estava mais perto de aprender como controlar o Destino…
ou mesmo o que esse “édito superior” realmente era.

Meus ombros afundaram com o peso de meus pensamentos e papel em tudo


isso. E com a escala das coisas muito maior do que mesmo quando eu era um
rei, não pude deixar de me sentir sozinho… agora mais do que nunca.

Eu segurei o ovo de Sylvie perto do meu peito, tentando sentir alguma


aparência de vida dentro. Eventualmente, meus pensamentos vagaram e meu
mundo escureceu.

Eu me enrolei em torno do ovo de Sylvie e o segurei perto do meu peito.

Capítulo 324
Laços de Sangue

CAERA DENOIR

“Sangue Granbehl foi longe demais.” Eu fervi de malícia e mana vazou de mim,
fazendo minha mãe adotiva estremecer. Estávamos nos aproximando do
portão externo do Alto Sangue Denoir feito de pedra branca imaculada e
mármore dentro do segundo nível das Relictombs. “Certamente você não vai
deixar esse insulto assim,” eu disse, minha voz ficando mais baixa e mais
ameaçadora. “Certo?”
“Seria sábio segurar sua língua até que estejamos dentro e longe de ouvidos
curiosos, Caera,” ela respondeu antes de me estudar com um olhar curioso.
“Não é normal você ficar tão emocional por causa de outra pessoa.”

Soltei um suspiro enquanto olhava inexpressivamente para minha mãe


adotiva. Lady Lenora do Alto Sangue Denoir, sempre tão preocupada com as
aparências. Vritra proíbem que alguém nos veja abaixo do nosso melhor…

Nossa procissão passou pelos portões da parede externa, que estavam


entalhados com proteções rúnicas que vinham com uma variedade de funções,
alimentadas por várias toneladas de cristais de mana. Várias pessoas estavam
esperando no pátio meticulosamente bem cuidado, incluindo Taegen e Arian.
Os olhos dos meus guardas pessoais estavam baixos, seus rostos contraídos e
um pouco pálidos.

Embora eu pouco me importasse com a turbulência emocional de meus pais


adotivos, me sentia culpada por essas pessoas. Embora eu estivesse
acostumada a guardar segredos, até de Taegen e Arian, desaparecer nas
Relictombs sem eles só poderia ser considerado um insulto, e eu sabia que
minha mãe e meu pai adotivos teriam dificultado as coisas para eles nas
últimas semanas – embora suponho que tenha sido menos tempo para eles.

A verdade é que cada homem lutou destemidamente e lealmente ao meu lado


várias vezes, e mesmo que eu não pudesse contar a eles a verdade sobre a
manifestação do meu sangue Vritra, confiei neles com tudo o mais, e até
pensei neles como meus amigos – algo que eu tive poucos o suficiente. Além
de Nessa, eles eram os únicos membros do Alto Sangue Denoir em quem eu
podia confiar.

Haverá tempo para consertar esse relacionamento depois que eu descobrir


como ajudar Grey.

Lenora e Nessa escoltaram-me para a mansão enquanto a procissão de


guardas desembarcava no pátio. Alto Lorde Corbett, meu pai adotivo e
guardião, estava de pé em um terno branco e marinho que destacava sua
constituição atlética ao lado de seu filho mais velho, Lauden Denoir.
Infelizmente, ao contrário de Sevren – meu falecido irmão, caído nas
Relictombs – Lauden havia puxado seu pai, tornando-o um fanático arrogante
que preferia pisar em outros para elevar a si mesmo e à preciosa linhagem
Denoir.

“Nessa, você está dispensada,” Pai disse friamente antes de gesticular em


direção a uma cadeira. “Caera, sente-se.”

“Corbett, eu-”

“Pai, Caera,” disse ele com firmeza, apontando para a cadeira novamente.
Atravessei a sala em silêncio e me sentei. Corbett olhou para mim. Ele era um
homem imponente: uma imagem clássica do nobre perfeito com cabelo cor de
oliva cortado na moda para emoldurar seu rosto severo e indiscutivelmente
bonito.

Lauden, um clone mais jovem e musculoso do Alto Lorde, cruzou a sala para
se servir de uma bebida em uma garrafa de cristal. Pelas costas de Corbett, ele
ergueu o copo e fez uma saudação sarcástica.

Finalmente, Corbett falou. “Sua mãe e eu estamos profundamente


desapontados com sua falta de consideração pelo seu próprio bem-estar e
pelo bem-estar deste sangue. Não,” ele disse enquanto eu abria minha boca
para responder, “Eu ainda estou falando.

Você sabe tão bem quanto eu o que aconteceria com Alto Sangue Denoir se
você fosse ferida nas Relictombs, especialmente viajando sozinha, sem
qualquer tipo de guarda. Cumprimos seus desejos impróprios de testar a si
mesmo nessas ascensões para, talvez, manifestar seu sangue Vritra, mas isso
foi uma traição direta à nossa confiança.”

Lenora deslizou o braço pelo de Corbett e deixou seu olhar de decepção


matronal tomar conta de mim como o luar frio. Aperfeiçoado por muitas longas
horas permanecendo em silêncio ao lado do Alto Lorde…

Eu deixei meu olhar deslizar para frente e para trás entre eles. Corbett estava
se preparando para me dizer algo, mas eu já conseguia adivinhar o que era.
“Eu entendo que traí sua confiança, e estou disposta a aceitar qualquer
punição que você achar conveniente, mesmo que você decida me banir das
Relictombs,” eu disse em um tom profissional. No entanto, é essencial que eu
continue a me desafiar se vou manifestar completamente minha
ancestralidade Vritra, algo que você deseja tanto quanto eu, se não mais.”

Várias emoções conflitantes guerreavam no rosto de Corbett: frustração, raiva,


cautela e reconhecimento. Eu sabia que não havia linha mais direta em sua
ganância do que a menção ao meu sangue Vritra. Os Denoirs ainda mantinham
alguma esperança de que pudesse se manifestar totalmente dentro de mim,
completamente ignorantes do fato de que já havia acontecido.

Lenora respondeu em vez disso, sua cabeça ligeiramente inclinada e um


sorriso doce e enjoativo estampado em seu rosto. “Caera… Querida Caera.
Temos apenas a sua segurança e bem-estar em mente. Embora você não
compartilhe nosso sangue, você ainda é um membro de nosso sangue, e nós
cuidamos de você e sempre a tratamos como nossa própria filha. Se sua…
linhagem Vritra se manifestar, bem, então é claro que ficaremos animados –
por você. Mas simplesmente não podemos permitir que você morra em sua
ânsia de aventura.”

“O homem com quem eu estava viajando, o homem que você acabou de


permitir que fosse preso por um assassinato que não cometeu, tem alguma
compreensão dessas coisas.” As sobrancelhas grossas de Corbett franziram
enquanto ele me olhava com desconfiança.

Talvez isso pareça um pouco conveniente demais, percebi, mas tarde demais.

“Se você realmente se preocupa com minha segurança e bem-estar” – fiz uma
pausa, as palavras seguintes ficaram presas na minha garganta – “por favor,
ajude-o.”

Os olhos de Lenora se arregalaram de surpresa e ela trocou um olhar com


Corbett. Atrás deles, Lauden olhou para o copo como se estivesse chocado e
murmurou a palavra ‘por favor?’ Como se ele não pudesse acreditar no que
tinha ouvido.

“Não permitiremos que você se envolva neste negócio com o Sangue


Granbehl,” respondeu Corbett após um momento. “A melhor coisa para Alto
Sangue Denoir – e isso inclui você também, Caera – é deixar isso rolar. Você
tem que ver que ficaria muito ruim se-”

“Pelo amor de Vritra, é só nisso que você pensa?” Eu vociferei, minha mana
vazando apesar do meu aperto firme sobre ela. Isso me rendeu uma carranca
de Corbett, mas também havia um toque de cautela, até mesmo medo. Lenora
soltou um tsk desaprovador. “Como se parece se o Alto Sangue Denoir recuar
e deixar um mero sangue nomeado falsamente acusar e aprisionar o homem
que salvou minha vida?”

“Não é tão ruim quanto pareceria ter nossa filha adotiva arrastada diante de
um painel de juízes em uma disputa mesquinha entre casas inferiores,” Corbett
rebateu, sua voz profunda em um grunhido. “Além de que -”

Alguém pigarreou delicadamente da porta da sala de estar, e nós quatro nos


viramos para ver quem era impertinente o suficiente para interromper uma
conversa em família.

Uma forte sensação de alívio tomou conta de mim.

Parado na porta estava meu mentor. Seu cabelo cor de pérola estava
elegantemente puxado para cima entre seus chifres de obsidiana, e ela estava
vestindo um manto de batalha preto esvoaçante e uma expressão imperiosa.

Corbett, Lenora e Lauden se curvaram profundamente e aguardaram,


esperando que ela falasse. Ela encontrou meus olhos com uma sobrancelha
ligeiramente levantada. Eu me levantei e fiz uma reverência também, embora
talvez não tão profundamente quanto os outros.

“Levante-se,” ela disse simplesmente. “Lauden, sirva-me uma bebida antes de


ir.”
Lauden correu para fazer o que ela mandou. Lenora deu alguns passos
hesitantes à frente para recebê-la na sala de estar, mas parou quando Corbett
começou a falar.

“Foice Seris Vritra, não estávamos esperando por você,” disse ele, sua voz
alguns passos mais aguda do que o normal.

Sempre gostei de ver Corbett lutar para manter seu porte real enquanto se
dirigia à Foice, especialmente quando outros estavam assistindo. Até o Alto
Lorde e Lady Denoir não puderam deixar de se curvar sob o peso de sua
presença.

“Estou ciente de que estou interrompendo,” disse a Foice suavemente. “No


entanto, desejo falar com Caera. Sozinha.”

O olhar de Corbett se voltou para mim antes de pousar novamente na Foice


Seris. “Talvez pudesse esperar até depois-”

“Alto Lorde Denoir,” disse ela friamente, interrompendo-o de modo que sua
boca se fechasse com um estalo audível. “Enviarei Caera ao seu escritório
assim que ela e eu terminarmos.”

“Como desejar… Foice Seris Vritra.” Corbett fez uma reverência profunda e
fugiu da sala, arrastando Lenora atrás dele.

Foice Seris voltou seu olhar pesado para Lauden, que ainda estava de pé ao
lado do armário de bebidas com um copo cheio na mão. Ele recuou quando
percebeu que já deveria ter ido, então rapidamente entregou o copo dela
antes de praticamente se teletransportar para fora da sala em sua ânsia de
fugir.

Minha mentora devia estar esperando que eu voltasse e teria sido informada
imediatamente quando eu saísse do portal das Relictombs. Eu dei a ela um
sorriso caloroso, algo que reservei para poucos.

“Não fique tão feliz em me ver, garota,” ela disse, mas seu comportamento
relaxado foi o suficiente para me dizer que ela não estava aqui para
repreender sua pupila. “Sente-se. Acho que temos muito o que conversar.”

Sentei-me, descansando levemente na cadeira com minhas costas retas e


meus olhos na Foice. Ela deu um gole em sua bebida, deu ao copo um olhar de
aprovação e sentou-se mais perto de mim.

“Então,” ela começou, “você encontrou o ascendente incomum novamente – e


passou semanas dentro das Relictombs se aventurando ao lado dele?”

Eu balancei a cabeça, ansiosa para contar a ela tudo sobre isso, mas
entendendo que havia um ritmo em nossas conversas. Seria altamente
inapropriado começar minha história antes de permitir que ela guiasse a
conversa lá, o que eu sabia que ela faria em seu próprio tempo.
“Grey, não é?” Ela perguntou, girando sua bebida pensativamente. “Você
descobriu o sangue dele?”

Balancei a minha cabeça em negação.

“Me fale sobre ele.”

Eu abri minha boca para deixar escapar a primeira coisa em minha cabeça,
mas me parei e levei um momento para organizar meus pensamentos em
algum tipo de ordem sensata.

“Ele é intenso, quase como uma força da natureza… e ainda mais estranho e
poderoso do que eu te disse. Era óbvio que, apesar de suas demonstrações de
força na zona de convergência onde nos conhecemos, ele estava se segurando.
Exceto, ele estava se segurando muito mais do que eu poderia ter imaginado.”

Fiz uma pausa, considerando suas habilidades incomuns – e sua falta de mana.
Seria de alguma forma uma traição contar isso à minha mentora? (NT do
tradutor: JAMAIS, CAERA!) A qual deles devo minha lealdade, realmente?

Ela percebeu minha hesitação. “Continue.”

“Sua esgrima é impecável, perfeita, simplesmente… brilhante. E junto com sua


magia única, tenho quase certeza de que ele seria capaz de se manter firme
contra você, Foice Seris.”

Minha mentora não ficou zangada nem surpresa com minha declaração
ousada. Ela ficou ainda mais intrigada.

“O que há de tão único em sua magia?” Ela perguntou.

“Ele… não usa mana para controlá-la,” eu disse hesitantemente. “E ele pode
fazer coisas que dificilmente fazem sentido. Eu o vi se teletransportar e
regenerar membros – até mesmo voltar no tempo, de certa forma.”

Foice Seris se inclinou para frente, o dedo em forma de haste na frente dos
lábios. “Fascinante. Então, como ele faz isso se não com mana?”

“Éter,” eu disse, sentindo uma pontada de culpa agora. Ele tinha me contado
essas coisas em segredo, mas… eu não podia mentir para Foice Seris. Sobre
coisa nenhuma.

Os olhos de minha mentora brilharam e ela se recostou na cadeira e tomou


um gole de seu copo. “Apenas os asuras do Clã Indrath podem empunhar o
éter como uma arma. Mas um dragão não poderia entrar nas Relictombs.”

“Talvez ele pudesse ser… algo como eu?” Foi um pensamento estranho e
emocionante. Embora houvesse outros alacryanos de sangue Vritra, eu os
encontrei raramente e certamente nunca senti qualquer tipo de afinidade com
eles. “Um humano de sangue Indrath?”
“Não,” disse ela, dispensando a ideia sem pensar um segundo. “Os dragões
nunca permitiriam que isso acontecesse. Eles são puros demais para cruzar
sua linhagem com meros seres menores.” Ela se inclinou para frente
novamente, seus olhos escuros cavando em mim. “Conte-me sobre sua
ascensão. Não deixe nada de fora.”

Foice Seris ouviu por meia hora, ocasionalmente pedindo a confirmação de


algum detalhe, ou para eu ser mais específica, mas, fora isso, apenas ouvindo
enquanto eu contava a ela sobre meu tempo com Grey, desde me disfarçar de
Haedrig até nosso encontro mortal com o Sangue Vritra aprisionado no
corredor dos espelhos, todo o caminho até que estivéssemos saindo da sala
do santuário e de volta ao segundo nível.

Ela estava particularmente interessada em nossas conversas e sondou para


ter certeza de que eu tinha me lembrado de cada palavra. “E ele parecia
ignorante sobre a cultura alacryana?” Ela perguntou.

“Sim, mesmo nas coisas mais simples. Como já mencionei, quando nos
conhecemos, ele fez todo tipo de perguntas estranhas, mas soou quase como
se ele estivesse nos testando. Conversamos muito em nossa jornada e fiquei
continuamente surpresa com o que ele não sabia.”

“E quando ele descobriu sobre sua identidade? Quando ele soube como você
o rastreou?”

“Eu pensei que ele fosse me matar no começo, mas… bem, ele obviamente não
me matou. Ele parecia apavorado de que alguém pudesse rastreá-lo… mas
então o medo desapareceu com a mesma rapidez, uma vez que ele entendeu
que só eu poderia usar isso.”

Seris parecia pensativa, girando a bebida no copo distraidamente. “Então,


nosso misterioso ascendente é incrivelmente poderoso, ignora nossos
costumes e tem medo de ser descoberto. Ele empunha éter como um mago
antigo, mas é incapaz de canalizar mana.” Ela esvaziou o copo e o pousou com
um tilintar delicado. “Descreva o homem. Com o máximo de detalhes possível.”

Eu me senti ficar com as bochechas vermelhas quando imaginei o rosto bonito


e severo de Grey, e esperava que Foice Seris não tivesse notado. “Ele é alto e
magro, com um… físico atlético. Ele tem feições marcantes e pele branca como
leite. Seu cabelo loiro-trigo claro cai desordenadamente em torno de seu
rosto, e ele tem aqueles olhos dourados penetrantes que parecem ver através
de mim. Ele parecia muito frio e distante, mas depois de passar um tempo com
ele, é fácil dizer que ele é muito atencioso…” Eu parei depois de ver os lábios
de Foice Seris se contorcerem em um sorriso.

“Eu estava apenas curiosa sobre sua aparência física, mas se você deseja
divulgar seus sentimentos por ele, eu ouvirei.”
Soltei uma risada assustada. “M-meus sentimentos? Achei que você estaria
interessada em saber que tipo de pessoa ele é.”

Minha mentora permaneceu em silêncio, um sorriso ainda puxando o canto de


seus lábios.

Eu franzi minhas sobrancelhas, fazendo beicinho. “Não sei o que fiz para
merecer tamanha provocação, Foice Seris.”

A Vritra de cabelos perolados soltou uma risada melódica, um som que poucos
tiveram a honra de ouvir, antes que ela erguesse a mão de forma apaziguadora.
“Independentemente de seus sentimentos por este ascendente, ele parece
estar trilhando um caminho de adversidades e tragédias.”

Eu queria discutir, mas suas palavras soaram verdadeiras. Grey era claramente
perito em colocar ele mesmo, e aqueles ao seu redor, em problemas, no
mínimo. “Ainda, ao mesmo tempo, você encontrará poucos que podem igualar
a sua mente ou suas habilidades mágicas, Caera. Talvez possamos ajudar seu
misterioso amor.”

“Ele não é meu amor,” gaguejei, mas meu coração disparou no peito. Se alguém
podia ajudar Gray a escapar do Sangue Granbehl, era Foice Seris. Ela poderia
acabar com essa farsa de julgamento com um estalar de dedos.

“Mas esse misterioso ascendente… por que esse ‘Grey’ soa cada vez mais
como-” Os olhos penetrantes de minha mentora se arregalaram de repente, e
um sorriso conhecedor floresceu em seu rosto perfeito. “Então você realmente
não caiu…”

Capítulo 325
Sem dor

O grande punho de Lorde Granbehl atingiu meu lado. Seus guardas ficaram ao
meu redor, me segurando pelos braços com minhas mãos ainda algemadas. O
próximo golpe foi em meu rosto, depois uma série de socos em minhas
costelas novamente.

O nobre de ombros largos estava suando, e alguns de seus cabelos estavam


soltos do rabo de cavalo que descia por suas costas, dando-lhe uma aparência
ligeiramente desgrenhada. Depois de mais alguns golpes, ele recuou e ajeitou
o terno escuro.

Um jovem correu para enxugar o suor do rosto de Lorde Granbehl. O garoto


tinha o mesmo cabelo claro de todos os outros Granbehls que eu conheci, mas
ele não tinha a constituição de Kalon e Ezra.

Alguém pigarreou de fora da minha cela. “Lorde Titus?”


Meu anfitrião se virou e saiu para o corredor de pedra sombrio sem nem
mesmo um segundo olhar em minha direção.

Fazia três dias desde que eu saí do portal e entrei direto nesta confusão
política. Todos os dias, o pai de Kalon me visitava para fazer uma pergunta: eu
matei seus filhos? E todos os dias, quando eu dizia que não, ele passava alguns
minutos me batendo antes de sair. O resto do meu tempo foi gasto sozinho
com Regis e meus pensamentos.

Não foi ruim, de jeito nenhum. Meu novo corpo de asuran era mais do que
capaz de absorver alguns socos, e até agora também não houve interrogatórios
demorados. A pior parte foi a expectativa… não do julgamento, mas sobre Ellie.

A relíquia ainda não havia recarregado. Eu estava verificando a cada poucos


minutos, mas em algum momento durante o segundo dia, Regis observou que
eu parecia uma pessoa maluca, então eu estive me contentando com uma vez
por hora.

O velho que havia liderado minha prisão, que eu descobri como mordomo de
Lorde Granbehl, apareceu na porta apenas o tempo suficiente para acenar
para os guardas me soltarem, e em instantes eu estava sozinho de novo.

‘Por mais divertido que seja vê-lo fingir ser um saco de pancadas, estou
entediado,’ pensou Regis no momento em que os guardas fecharam a
porta. ‘Vamos mesmo fazer isso por três semanas inteiras?’

Vá tirar uma soneca então, eu rebati.

‘Rude,’ resmungou ele de volta.

Depois de olhar para fora da porta gradeada para ter certeza que o guarda no
final do corredor não poderia ver minha cela, eu deitei na cama e retirei o
brinquedo duro de fruta da minha runa dimensional. O barulho da semente
chacoalhando dentro dele imediatamente me levou de volta à vila no topo da
montanha nevada onde eu havia treinado com Three Steps.

Imaginando os picos subindo e os vales cada vez mais profundos, e deixando-


me escorregar para o estado meditativo que usei enquanto treinava com as
Shadow Claws, liberei uma pequena quantidade de éter do meu núcleo e
empurrei em direção à ponta do dedo indicador.

A energia roxa zumbia suavemente enquanto se formava em uma extensão fina


e ligeiramente curva do meu dedo. Eu deslizei a “garra” etérica na fenda e
pesquei ao redor pela semente do tamanho de uma ervilha. Embora eu
pudesse levar a semente até o buraco, quando tentei puxá-la, o éter perdeu
sua forma e se dissipou.
Respirando fundo, conjurei a garra uma segunda vez e tentei novamente com
resultados semelhantes. Continuei na semente por mais uma ou duas horas
antes de Regis interromper minha prática.

‘Você esteve fazendo isso por horas,’ resmungou Regis. ‘Você não se cansa
disso?’

Não exatamente. Isso me dá algo para focar… para ocupar minha mente, eu
acho.

‘Oh. É mais ou menos como tricô?’

Eu revirei os olhos. Sim, Regis. Manipular o éter em uma arma sólida e mortal
é exatamente como tricotar. Eu pretendia voltar à minha prática, mas passos
na escada me disseram que alguém estava vindo.

Armazenando rapidamente a semente, levantei-me, caminhei até a porta da


cela e descansei minha mão nas barras. Um abalo de mana saltou em minha
mão, subindo pelo meu braço como um raio. Eu grunhi e me afastei,
flexionando meus dedos formigando.

O mordomo apareceu mais uma vez. Ele me deu um sorriso malicioso quando
percebeu meu óbvio desconforto. “Oh, sinto muito, Ascendente Grey, eles se
esqueceram de mencionar a porta? As barras são fortemente encantadas
contra o contato físico – para garantir que nossos hóspedes não tentem se
libertar, é claro.

“Agora, se você pudesse voltar para a parede…”

Eu fiz o que ele pediu. O ancião acenou com a mão e a parede atrás de mim
começou a se mover. As restrições apareceram, crescendo fora da pedra e ao
redor de minhas pernas e braços, prendendo-me na parede.

“Não se preocupe em lutar,” disse ele com segurança. “Essas algemas foram
projetadas pelos melhores Instiladores no Domínio Central. As correntes e
suas amarras são inquebráveis.”

Testei sua força, flexionando meus braços e ombros até que a pedra
começasse a tremer.

Oops, pensei. Quase as quebrei.

O ancião de cabelos dourados ainda estava sorrindo, aparentemente não


tendo notado. Eu devolvi o olhar com um olhar inexpressivo, quase entediado.
“Legal,” eu disse categoricamente.

Seu sorriso vacilou. “Eu percebo, Ascendente Grey, que seu tempo nas
Relictombs provavelmente o inoculou contra o medo básico, e você já se
mostrou um adepto de resistir à dor. Admito que Lorde Titus está muito
frustrado com sua falta de expressividade. Ele gostaria de ver você se
contorcer, para usar a palavra dele.”

O ancião se afastou para que outro homem pudesse abrir a porta e entrar na
cela. Este homem era alto e esguio. Ele usava uma armadura de couro escuro
com tachas de ouro que cheiravam fortemente a óleo, que combinava com seu
cabelo preto oleoso e o anel de ouro em sua orelha.

“Por onde devo começar, Mestre Matheson?” Ele perguntou em uma voz alta e
afetada enquanto seus olhos negros percorriam meu corpo.

O velho torceu o nariz para o torturador. “Oh, eu não teria a pretensão de dizer
a você como fazer seu trabalho. Basta fazê-lo falar.” Matheson encontrou meus
olhos por trás do torturador. “Estarei de volta em, digamos, vinte minutos para
o interrogatório.”

O torturador sorriu, revelando dentes pretos e podres. “Sim, Mestre


Matheson.” Para mim, ele disse, “Gray, não é? Sou Petras. Eu diria que é um
prazer, mas”- seu sorriso se alargou – “Eu prometo que não será.”

‘Ugh, isso foi tão estranho que fez meus dedões do pé inexistentes se
curvarem,’ Regis gemeu.

Eu não disse nada, mas mantive minha expressão nivelada e desinteressada.

Minha falta de resposta não pareceu incomodar Petras. Ele sacou uma adaga
de aparência perversa com um floreio e, no mesmo movimento, passou a
lâmina pelo meu braço. Estava tão afiada que quase não senti.

A ferida deixou escapar um fio de sangue antes de cicatrizar.

O sorriso de Petras desapareceu. Ele me olhou com cautela antes de cortar no


mesmo local, mais lento e mais profundo desta vez. Percebi que minha cura
extrema atrairia atenção indesejada e tentei fechar o filete de éter do meu
núcleo. Foi apenas parcialmente bem-sucedido.

Regis, vá para o meu pé esquerdo.

‘Se isso é sobre o meu comentário anterior, eu estava apenas sendo’

Eu preciso limitar meu fator de cura. Vá em frente.

Meu companheiro flutuou através do meu corpo até o meu pé, e o gotejar lento
do éter redirecionou, puxado em sua direção por qualquer força gravitacional
que ele tinha sobre ele.

O segundo corte foi mais lento para cicatrizar. Petras não fez um terceiro
imediatamente, em vez disso observou com interesse enquanto o éter restante
costurava minha carne novamente. Para mim, a cura foi lenta, mas comparada
a uma pessoa normal, ainda era incrivelmente rápida.
Ele passou um dedo áspero sobre onde o corte havia desaparecido sem nem
mesmo uma cicatriz.

Ele verificou minhas algemas de supressão de mana para se certificar de que


estavam bem fechadas, então deu um passo para longe de mim. “Como você
está fazendo isso?”

“Fazendo o quê?” Eu respondi, meu rosto perfeitamente em branco.

Franzindo a testa, o torturador segurou a parte plana de sua lâmina nas costas
da minha mão. A adaga começou a brilhar em brasa, minha pele chiando e
estourando e enchendo a cela com o fedor de carne queimada.

Eu deixei minha mente escapar da dor, meditando sobre meu núcleo e o éter
girando dentro dele, o qual eu segurei o mais forte que pude. Um pequeno
riacho estava vazando, meio puxado em direção a Regis, mas alguns viajando
ao longo de meus canais de éter em direção à minha mão.

Quando Petras ergueu sua adaga brilhante, a marca de queimadura que ela
havia deixado era uma cicatriz profunda em minha carne imaculada. Em vez
de doer, porém, eu só senti uma espécie de formigamento quando o éter
começou a reparar o dano, mas estava trabalhando ainda mais lentamente
agora no ferimento maior.

O torturador enfiou o polegar na queimadura crua e pressionou com força,


seus olhos negros absorvendo cada contração, cada lampejo de movimento de
mim, mas a dor não era nada. Seu rosto frouxo se curvou em uma carranca
exagerada.

“Habilidades de cura menores, mesmo com mana suprimida,” ele murmurou


para si mesmo. “Alta tolerância à dor, provavelmente devido à mesma
habilidade. Sim, é hora de tentar outra coisa.”

Ele jogou a adaga, a lâmina ainda brilhando, no canto e estalou os nós dos
dedos.

“Normalmente eu guardo isso para mais tarde, mas…” Ele me deu um sorriso
malicioso. “Posso dizer que você precisa de… tratamento especial.”

‘Ooh Arthur, tratamento especial. Acho que ele gosta de você,’ provocou Regis.

A sugestão de um sorriso cruzou meu rosto. Petras fez uma careta furiosa em
resposta.

“Acha que isso é engraçado, Ascendente Grey?” Ele perguntou, sua voz ficando
ainda mais alta. “Para a dor, então!”

Seus dedos ossudos se agarraram com força aos meus, e uma espécie de
alegria selvagem tomou conta dele. Eu poderia dizer pela concentração em seu
rosto que ele estava lançando um feitiço, mas nada aconteceu, mesmo quando
o suor começou a escorrer por seu rosto e cada respiração se tornou um
suspiro desesperado.

A queimadura nas costas da minha mão ainda estava curando e Petras não
parava de olhar para ela, sua expressão se tornando mais frustrada a cada
segundo.

Ele segurou minhas mãos assim por mais um minuto antes de jogá-las no chão
com nojo. “Isso não é possível!” Ele gritou, indo e voltando pela pequena cela.
“Totalmente impossível!” Ele se virou para mim, olhando ferozmente. “O que
diabos você é?”

“Inocente,” eu disse categoricamente. “E um pouco faminto.”

Sibilando, Petras agarrou sua adaga do chão, deu dois passos rápidos em
minha direção e cravou a arma em meu lado, logo abaixo das minhas costelas.
Embora não estivesse mais brilhando, ainda estava muito quente e eu podia
sentir isso queimando dentro de mim.

Eu já tive piores dores.

Seus olhos negros como um besouro procuraram os meus por qualquer indício
de dor ou medo com que ele pudesse se consolar, mas eu não dei nada a ele.

Ele arrancou a adaga e olhou para o ferimento. Eu deixei o éter fluir livremente.
Metade ainda se filtrou para baixo em direção a Regis, mas o resto foi para o
corte profundo na minha lateral. Lentamente, começou a cicatrizar. Por fim,
Petras desabou na minha campa esfarrapada e se afundou nela. Ele ficou
assim por alguns minutos, silenciosamente olhando para o teto baixo.

“Eu nunca vi ninguém curar tão rápido quanto você, e ainda assim sua mana
não reage ao meu brasão. Meu toque deve colocar todos os nervos do seu
corpo em fogo, se você tiver qualquer mana em você. Não entendo.” Ele virou
a cabeça para me encarar. Sua fúria se transformou em uma curiosidade
cautelosa. “É um emblema? Uma… uma regalia? Disseram-me que suas runas
eram vagas, mas nada incomum.”

Encolhi os ombros sem jeito, preso à parede como eu estava.

“Um homem misterioso…” Petras disse baixinho, olhando para o teto. “Nada a
fazer, então, a não ser ver o quão forte é essa habilidade.”

O torturador rolou para fora da cama e sacudiu sua adaga com um sorriso
maldoso.

***

Quando o ancião de cabelos dourados voltou, minhas roupas estavam em


farrapos e manchadas de vermelho com meu sangue. Petras não tinha pressa,
infligindo ferimento após ferimento com foco lento e deliberado. Meus
ferimentos estavam fechando um pouco mais devagar agora, então me lembrei
de Regis do meu pé, mas não havia recompensado os esforços do torturador
nem com o piscar de uma pálpebra.

O velho, Matheson, pareceu surpreso com meu estado. Ele olhou para Petras,
mas o magro alacryano apenas encolheu os ombros se desculpando. “Você
pode se retirar. Espere no corredor.”

Os ombros de Petras caíram e ele saiu da cela de mau humor. Matheson


esperou até que ele saísse para começar a fazer perguntas.

“Ascendente Grey,” ele começou, “Eu gostaria que você me explicasse por que
você assassinou Lord Kalon do Sangue Granbehl, Lord Ezra do Sangue
Granbehl e Lady Riah do Sangue Faline. Por favor, não poupe detalhes.”

Falando o mais calma e francamente que pude, disse, “Eu não matei ninguém.
As Relictombs provaram ser muito mais difíceis do que Kalon havia previsto, e
eles caíram nas mãos dos monstros lá dentro.”

As sobrancelhas de Matheson se juntaram em uma pequena carranca. “Você


deve entender, Ascendente Grey, que temos uma testemunha ocular desses
atos. Todos sabem o que aconteceu. Meu Lorde e Lady Granbehl agora desejam
entender o porquê.”

Ele deu um passo mais perto. “Este ataque foi de natureza política? Você é um
assassino enviado por um sangue rival?”

“Se eu fosse, fiz um péssimo trabalho vendo que deixei uma testemunha
ocular.”

As coisas não melhoraram a partir daí. Matheson me pressionou para explicar


os detalhes de nossa ascensão, de como eu encontrei os Granbehls, até as
formas que as feras dentro das Relictombs assumiram, até pequenos detalhes
como o que todos nós comemos enquanto estávamos presos na sala do
espelho, e o que as figuras nos espelhos pareciam.

Eu disse o máximo de verdade que pude confortavelmente, mas tomei nota de


todas as omissões que fiz quando eles inevitavelmente me pediram para
repetir tudo o que eu disse.

Finalmente, Matheson se virou para sair da cela, mas parou na porta. “Ah, sim.
Mais uma coisa, Ascendente Grey. Onde você escondeu seu anel dimensional?”

“Eu o perdi,” respondi em tom de pesar, “junto com todos os meus pertences.
Mas eu já disse isso ao guarda.”

“Entendo. Muito bem então.” Matheson saiu sem dizer outra palavra, fechando
a porta da cela com um barulho forte atrás de si.
Regis, que tinha estado estranhamente quieto durante a tortura e a entrevista
seguinte, despertou dentro de mim. ‘Você está bem?’

Tudo bem, respondi, sentando-me na cama. Eu me coloquei em situações


muito piores ao forjar meus canais de éter e treinar nas Relictombs.

O hábito me fez retirar a relíquia multifacetada da minha runa dimensional


para verificar, e eu senti uma onda de adrenalina e me sentei rapidamente
quando percebi que a pedra era quente ao toque e zumbia suavemente com
uma fraca energia etérica.

Está recarregada!

‘Já era tempo. Então, o que fazer primeiro?’

Não havia dúvida. Cerrando a relíquia em meu punho, pensei no nome de Ellie.
A névoa branca girou pela superfície da pedra, e eu não fui imediatamente
atraído como antes. Fechando meus olhos, me concentrei mais, imaginando
seu rosto e entoando seu nome em minha mente: Eleanor Leywin, Eleanor
Leywin… Ellie…

‘Arthur,’ pensou Regis consoladoramente, ‘sinto muit-‘

Mesmo que meus olhos estivessem fechados, eu senti minha percepção mudar
repentinamente. A presença de Regis se foi, assim como a sensação de pedra
fria sob meus pés.

Lentamente, abri meus olhos.

A primeira coisa que vi foi Ellie. Minha irmã, viva e segura.

Capítulo 326
Repercussão

ELEANOR LEYWIN

Eu cerrei os dentes, tentando manter o foco através da dor latejante que cobria
cada centímetro do meu corpo, enquanto o Comandante Virion se dirigia a
todos os presentes. Mamãe foi muito teimosa em seus esforços para me
manter em casa na cama, mas eu não poderia perder a reunião do conselho.
Eles estavam esperando que eu melhorasse para que eu pudesse dizer a eles
o que aconteceu depois que todos os outros se teletransportaram de volta
para o santuário de Elenoir… e por que Tessia nunca havia retornado.

Mas agora que eu estava sentada na sala de conferências principal da


Prefeitura – a mesma onde Tessia me trouxe pela primeira vez para uma
reunião do conselho – com cada figura importante em Dicathen me encarando,
eu meio que gostaria de ter ouvido minha mãe.
Eu já tinha contado a Virion e Bairon sobre a maior parte disso de qualquer
maneira, mas eu estava meio que perdendo a consciência nos últimos dias,
então não achei que tivesse sido muito útil.

“—Leanor?”

De repente, percebi quanto tempo fiquei quieta. “Desculpe, o quê?”

Virion pigarreou. Ele parecia …velho. Velho e cansado. “Você gostaria de contar
ao conselho sobre sua missão em Elenoir?”

Levantei-me devagar, me arrependi rapidamente e caí de volta na cadeira.


“Hum, bem, você vê, eu… uh…”

Houve um leve estalo atrás de mim e um coro de gritos encheu a sala. Kathyln,
que estava sentada bem ao meu lado, respirou fundo surpresa. Seu irmão
tinha metade da espada fora da bainha antes de perceber o que estava
acontecendo.

Lord Bairon estalava com uma energia estrondosa, mas recuou quando me
virei e descansei a mão na criatura peluda que se manifestara atrás de mim.

“Boo, eu disse para esperar lá fora. Você não pode simplesmente


pular para mim toda vez que eu ficar um pouco nervosa,” eu o repreendi, mas
foi apenas com metade da minha vontade. Sua presença me dava força.

Ele grunhiu de uma forma que me disse que não sentia muito, então se deitou
na frente da porta em arco.

“Desculpe,” eu murmurei, olhando para Virion. Se o velho elfo estava irritado,


ele não demonstrou.

“Não se preocupe, Ellie. Vá em frente, se você estiver pronta.”

Eu respirei fundo, estremecendo antes que as palavras começassem a sair de


mim. Expliquei minha parte em nosso plano para libertar os prisioneiros
élficos da pequena cidade de Eidelholm, repassando minha luta contra o irmão
do retentor. Eu disse a eles como dei meu medalhão a Albold para que os elfos
que sobraram pudessem escapar, e como Tessia finalmente matou Bilal.

A parte mais difícil foi descrever a chegada de Elijah, mas ninguém


interrompeu enquanto eu gaguejava para passar por isso. Kathyln me lançou
um olhar chocado quando cheguei à parte em que fingi ser um estudante-
soldado alacryano e até Bairon soltou um assobio baixo, o que achei que
significava que ele estava impressionado.

Finalmente, eu disse a eles como Tessia reapareceu ao lado de Elijah, e sobre


o ataque, e como eu tentei salvar os escravos élficos… mas…
Era demais, e deixei a história terminar com a explosão que me arrancou de
Elenoir, então me inclinei para frente para descansar minha testa na mesa fria.

Helen Shard deu a volta na mesa para colocar a mão no meu ombro. “Ninguém
poderia ter feito mais, Eleanor. O que você conquistou… francamente, é
incrível.”

Kathyln apertou minha mão. A princesa normalmente composta tinha lágrimas


brilhando nos cantos dos olhos. Atrás dela, Curtis estava abatido e pálido.

“Como no mundo você escapou?” a velha soldada, Madame Astera, perguntou.

Sentando-me ereta, puxei o pingente de fênix wyrm de debaixo da minha


camisa. Era branco leitoso e todo rachado, vazio de mana. “Isso.”

Eu ainda podia imaginar claramente como os servos élficos olharam para mim
enquanto eu tentava e falhava em ativar o medalhão de Tessia e levá-los todos
comigo. Eles sabiam que eu não poderia fazer isso. Eles sabiam que iam
morrer. Então a parede de luz passou por mim e tudo ficou rosa.

Por alguns segundos, eu pude ver o mundo sendo despedaçado ao meu redor
através da concha de azulejos rosa de energia conjurada pelo pingente de
fênix wyrm. Os alacryanos, os elfos, as arquibancadas, o pequeno palco, a
mansão… tudo desapareceu em um piscar de olhos. E então eu também.

Eu tinha acordado gritando, minhas pernas balançando no pequeno riacho


que corria pelo santuário subterrâneo. Boo estava lá, fumaça subindo de seu
pelo chamuscado, de alguma forma vivo. A última coisa que ouvi foi seu rugido
profundo enchendo a caverna antes que eu desmaiasse com a reação.

“Nós sabemos – quão grande foi a explosão?” Uma voz trêmula perguntou. Foi
um dos elfos que resgatamos, o homem que conhecia Tessia e Kathyln: Feyrith.

Virion e Bairon trocaram um olhar sombrio. “Assim que Eleanor voltou, o


General Bairon voou direto para a Clareira das Bestas e subiu em direção a
Elenoir,” disse Virion, acenando com a cabeça para a Lança humana.

“Elenoir se foi,” disse a Lança rispidamente.

“Como assim ‘se foi’? Um país não pode simplesmente desaparecer!” Feyrith
argumentou.

“Bem, desapareceu.” A Lança olhou atentamente para o elfo. “Nada resta entre
as Clareiras da Besta e a costa norte, a não ser uma terra devastada queimada
e retorcida.”

A respiração de Kathyln estremeceu quando suas mãos cobriram a boca.

O jovem elfo tinha ficado pálido como um fantasma, mas parecia congelado,
sua boca entreaberta, os nós dos dedos brancos de agarrar a borda da mesa.
Uma mulher élfica, cujo nome eu não conseguia lembrar, embora ela estivesse
no santuário desde o início, começou a soluçar.

Atrás de mim, Helen apertou meu ombro novamente em um gesto de apoio.

“Mas os asuras-” Curtis começou a dizer, sua voz baixa e cheia de energia
crepitante.

“Foram e ainda são nossos aliados,” Virion disse com firmeza. “Apesar das
aparências, não acreditamos que a maior parte da destruição foi causada pelo
ataque dos asuras, que pretendia apenas destruir os alacryanos reunidos em
Eidelholm.”

Da porta atrás de mim, uma voz suave disse, “Como você poderia saber disso?”

Pequenas ondas de dor percorreram todo o meu corpo enquanto eu me virava


na cadeira para olhar para a pessoa que falava. Albold, o guarda élfico, estava
em pé enquadrado na entrada em arco do outro lado da forma corpulenta de
Boo.

Ele se segurou sem jeito, inclinando-se para o lado direito. Ele havia se
machucado gravemente durante a luta contra o retentor; Fiquei meio surpreso
ao vê-lo já de plantão.

Albold continuou, sem esperar por uma resposta à sua pergunta. “Ellie viu o
asura conhecido como Aldir iniciar o ataque com seus próprios olhos.”

Eu não conseguia ver o rosto de Virion, mas podia ouvir o rosnado baixo de
raiva em sua voz. “Esta é uma reunião fechada do conselho, Albold. Volte para
o seu posto. Nós vamos discutir isso mais para a frente.”

Albold fez uma careta, mas se virou e marchou fora de vista.

Abaixei-me para coçar Boo antes de girar lentamente de volta para encarar os
outros.

Não é apenas Albold. Os outros também não estão exatamente entusiasmados


com a explicação de Virion. Curtis Glayder estava carrancudo profundamente,
seu olhar nivelado na mesa em vez de Virion. A elfa continuava a chorar
baixinho.

Feyrith se levantou. Suas pernas estavam um pouco trêmulas e ele teve que se
apoiar com uma das mãos na mesa. “Comandante Virion, se o General Bairon
estiver correto, então nossa terra natal… a vasta maioria do povo élfico…” Ele
fez uma pausa e respirou fundo. “Alguém tem que responder por esta
atrocidade. Sabemos que os alacryanos são nossos inimigos, mas que prova
temos de que os asuras ainda são nossos aliados?”

A raiva que subitamente tomou conta de Virion com a intrusão de Albold foi
embora com a mesma rapidez. Ele acenou para Feyrith se sentar. “Eles têm
sido desde o início, Feyrith. Não se esqueça de que eles nos salvaram da
traição do Rei e da Rainha Greysunders. Eles guiaram o esforço de guerra nos
primeiros dias, antes que soubéssemos contra o que estávamos lutando. Eles
tentaram acabar com a guerra antes que ela começasse.”

“Essa é uma maneira estranha de dizer que eles nos traíram quando atacaram
os Vritra pelas costas do Conselho, um ato que os forçou a um acordo para
parar de nos ajudar totalmente e resultou na queda de Dicathen,” disse Curtis.
Embora ele mantivesse a voz calma, as bochechas do príncipe ficaram
vermelhas e ele estava olhando fixamente para Virion.

Virion acenou com o argumento de Curtis de lado. “Um ato que, se tivesse sido
bem-sucedido, teria salvado Dicathen. Os líderes tomam decisões, Curtis, você
sabe disso tão bem quanto eu, e nem todas essas decisões terminam da
maneira que esperamos.”

Madame Astera se inclinou para frente, sua perna falsa estendida de forma
não natural para um lado da cadeira. “Mas como os alacryanos fizeram isso,
então? Se você está me dizendo que nosso inimigo tem o poder de varrer
países inteiros, por que não fizeram isso antes? E que esperança temos de
derrotá-los?”

Virion acenou com a cabeça. “Essa é uma pergunta melhor. Para a primeiro,
ainda não sabemos, mas acho que podemos adivinhar o motivo de não fazê-
lo antes. Afinal, eles queriam dominar Dicathen, não queimá-la até o chão.”

“E o que mudou?” Ela atirou de volta.

“De fato, o quê?” Virion disse, e eu não pude deixar de notar que ele nem
mesmo tentou responder à pergunta.

“Estamos falando sobre a destruição completa de nossa casa!” Feyrith gritou,


seus olhos grandes e furiosos saltando de Virion para Madame Astera e vice-
versa. “Nada do que você está dizendo faz sentido! É como se você nem se
importasse—”

O punho de Virion bateu na mesa, fazendo todos pularem. Boo se sentou e


olhou por cima do meu ombro para o comandante.

“Não fale comigo como se eu fosse um espectador, garoto. Eu, também, sou
um elfo! Aquele que acaba de perder o próprio país em que cresceu, pelo qual
lutou duas guerras!”

“Escutem a si mesmos!” O rosto de Virion ficou selvagem e desesperado


enquanto sua fachada calma rachou. “Como se ter um asura como inimigo não
fosse ruim o suficiente, você quer ir para a guerra com todos os de Epheotus?
Não, se os asuras fossem realmente nossos inimigos, então não temos chance
de vencer esta guerra.”
A explosão de Virion foi recebida com um silêncio chocante. Eu não tinha
certeza do que dizer ou mesmo o que pensar. Parecia mais que ele estava
apenas esperando que os asuras não tivessem destruído Elenoir do que que
ele tivesse descoberto qualquer tipo de prova…

Mas o que aconteceu? Eu tinha visto o asura, elevando-se muito acima da


cidade e irradiando uma pressão tão forte que paralisou a todos, disparar uma
rajada de mana que rasgou Eidelholm… mas poderia realmente ter sido forte
o suficiente para destruir o país inteiro?

Eu balancei minha cabeça, embora ninguém estivesse olhando para mim. Eu


estava lá e nem mesmo sei o que aconteceu.

Apesar de suas palavras duras, quando o olhar de Virion viajou ao redor da


sala, encontrando os olhos de todos por sua vez, sua expressão não era dura
ou zangada, apenas cansada. “Mas temos que colocar a culpa onde é devida,
não nos envolver em alguma caça às bruxas contra nossos aliados. Foram os
alacryanos que nos atacaram e nos expulsaram de nossas casas. Foram os
alacryanos que assassinaram nossos reis e rainhas do Conselho e colocaram
nosso povo nas correntes. Foram os alacryanos que roubaram nossas terras e
queimaram nossa floresta.

“Os asuras são agora nossa única esperança de recuperar Dicathen. Eles
correram um grande risco para atacar os alacryanos em Elenoir, um ato que
teria quebrado o controle de Agrona sobre nossa terra natal, mas os Vritra
sabiam disso. Em vez de permitir que Elenoir fosse retomada, os Vritra a
destruíram totalmente.”

O resto do conselho olhou com cautela para Virion. A pergunta de Albold e


Feyrith ainda estava presa na minha cabeça. Mas como você sabe?

Como se estivesse lendo meus pensamentos, ele disse, “A anciã Rinia veio até
mim com uma visão.” A voz de Virion era afiada e decidida, como se aquelas
palavras explicassem tudo. “Ela me disse que os asuras de Epheotus viriam em
nosso auxílio, mas que o Clã Vritra esperava que seu acordo fosse quebrado e
voltaria o ataque contra nós. Ela disse que eles tentariam fazer parecer que os
asuras eram nossos inimigos, mas não são.”

Até Bairon pareceu surpreso ao ouvir essa notícia. Curtis e Kathyln trocaram
olhares, enquanto os elfos se apoiavam uns nos outros.

Madame Astera bufou, seu rosto velho se enrugando em um sorriso de


escárnio. “A velha adivinha que afirma ter visto tudo isso vindo, mas nada fez
para impedi-lo? É muito conveniente que sempre haja alguma visão que só
aprendemos depois que é tarde demais para fazer qualquer coisa.”

Isso não é justo, eu queria dizer. Sem a vidente, Tessia, minha mãe e eu
teríamos sido capturados pelos alacryanos há muito tempo. Mas eu mordi meu
lábio e segurei porque Madame Astera não era a única que se sentia assim.
Era parte do motivo pelo qual a Anciã Rinia escolheu se isolar tão
profundamente nas cavernas. Porque quando as pessoas descobriram o que a
Anciã Rinia sabia – e o que ela poderia ter feito -, nunca mais olharam para ela
da mesma forma.

Eu pensei – esperava – que Virion pudesse ficar chateado com Madame Astera,
mas ele apenas balançou a cabeça e parecia ainda mais cansado. “Não é culpa
dela, Astera, embora eu saiba que pode ser difícil confiar nela. Rinia tem se
sacrificado muito para nos ajudar no que puder, e isso tem cobrado um preço
terrível para ela.”

Percebi com uma pontada de culpa que tinha esquecido inteiramente esse
aspecto das habilidades mágicas da Anciã Rinia; ela trocava sua própria força
vital para ver nossos possíveis futuros. “Ela está bem?” Eu perguntei, minha
voz soando muito baixa.

Virion segurou meu olhar por vários segundos antes de responder. “Ela está
perto do fim de seu poder, eu temo.”

Madame Astera parecia não se importar menos com a saúde debilitada da


Anciã Rinia, mas teve a boa graça de não compartilhar o que estava pensando.

Peguei a ponta solta de minha unha ao me lembrar de quando visitei a Anciã


Rinia.

Ela parecia muito saudável para mim. Não duvidei das palavras de Virion, mas,
ao mesmo tempo, tive dificuldade em imaginar a saúde da elfa idosa piorando
tão rapidamente.

E o que ela estava procurando quando teve essa visão? Quando perguntei a ela
sobre nossa missão, ela me deu um vago aviso sobre o custo ser mais do que
Virion queria pagar. Eu pensei que ela estava falando sobre Tessia… mas ela já
tinha visto o ataque asuran em Elenoir, e significava perder o país inteiro em
vez disso? Mas se fosse esse o caso, por que ela não me disse mais na época?
Ela acabou de ver mais tarde?

Odeio esse lixo de visões do futuro, pensei miseravelmente. Isso nunca fez
sentido.

Decidi ir vê-la novamente e voltei minha atenção para a reunião, mas a reunião
parecia ter acabado. Todos os outros pareciam tão pegos de surpresa pela
dispensa repentina quanto eu.

Feyrith já estava ajudando a elfa a sair da sala, nervosamente contornando


Boo, que ocupava a maior parte da porta. Virion estava tendo uma conversa
sussurrada com Bairon, enquanto Curtis e Kathyln esperavam por uma palavra
em particular com o Comandante.

Helen me ajudou a ficar de pé e me guiou em direção à porta.


“Obrigada,” eu disse agradecida.

Seguimos pelo corredor e passamos pela pesada aba de couro que servia de
porta. Albold não estava em seu posto quando saímos, mas a outra guarda,
Lenna, me deu um aceno firme enquanto passávamos.

As laterais de Boo arranharam as paredes do corredor atrás de nós, e ele teve


que se espremer para passar pela porta. Meu vínculo me deu um grunhido
resmungão miado quando ele finalmente conseguiu subir os degraus.

“Não olhe para mim. Eu disse para você esperar lá fora,” eu disse, esperando
que ele me alcançasse. Quando ele o fez, enrosquei meus dedos em seu pelo
denso e o deixei me apoiar enquanto caminhávamos.

“Eu sei que você não se sente assim, Ellie, mas… você fez bem,” disse Helen
quando voltamos a conversar.

“Sim…” Você está certa, eu realmente não me sinto assim…

“Uma coisa que eu realmente não entendo”, disse Helen, seu tom coloquial.
“Como o Boo escapou? O pingente que Arthur deu a vocês trouxe vocês dois
de volta?”

Eu não respondi de imediato. A verdade era que tudo depois que Aldir e
Windsom apareceram em Elenoir foi uma espécie de borrão. Boo estava
escondido na floresta ao redor de Eidelholm e deveria ter sido morto, mas…
quando voltei para o santuário, ele estava bem ao meu lado.

“Ou você tem mantido essas habilidades poderosas e misteriosas em segredo


de sua professora?” Ela perguntou, me dando um olhar de surpresa fingida.

Eu balancei minha cabeça, permitindo um leve sorriso. “Eu não acho que era o
amuleto da fênix wyrm, e isso definitivamente não era algo que eu estava
escondendo de todos. Para ser honesta, eu nunca realmente descobri que tipo
de besta de mana ele é, então não temos certeza de quais são seus poderes.”

Ele gemeu atrás de nós. “Sim, estamos falando de você. Desde que voltamos,
sempre que fico… estressada ou com um pouco de medo, ele
simplesmente pula bem ao meu lado. Então deve ser assim que ele escapou.
No entanto, ele tira minha própria mana e quase me matou com a reação…”

Os olhos de Helen se arregalaram até que suas sobrancelhas se ergueram fora


de vista por trás da linha de seu cabelo. “De qualquer forma, eu acho que você
é mais parecida com aquele seu irmão do que qualquer um já tenha dito.”

Desde Elenoir, eu sentia que havia um tipo de rachadura que percorria todo o
meu interior, e ficava um pouco maior com cada coisa legal que alguém me
dizia. Eu não me sentia como Arthur. Eu não era heróica, ou corajosa, ou
talentosa, ou poderosa… se eu fosse, então poderia ter feito algo. Eu poderia
ter resgatado Tessia, ou salvado aqueles elfos ou…
Arthur poderia tê-los impedido de destruir Elenoir? Eu pensei.

“Ei, olha pra mim.” Helen segurou meu queixo firmemente em sua mão e puxou
minha cabeça para que nossos olhos se encontrassem. “Não se culpe por tudo
que deu errado e não se recuse a aceitar onde você ajudou as coisas a darem
certo. Sua missão – você, Ellie – salvou muitas pessoas.”

“Eu sei,” eu disse, mas as palavras saíram meio engasgadas quando minha
garganta apertou e meus olhos começaram a transbordar de lágrimas. “Eu só
– eu…”

Fiquei sem palavras. Os braços de Helen estavam em volta de mim e eu me


deixei afundar nela. Cada soluço devastador enviou uma onda quente de dor
por mim. O calor pesado de Boo pressionou contra minhas costas quando ele
se juntou ao nosso abraço.

“Por que eu não levo você para conhecer algumas daquelas pessoas que você
salvou?” Helen disse suavemente. “Lembre-se para o que tudo isso foi.”

Capítulo 327
Suficiente por Agora

ARTHUR LEYWIN

Forcei minha mão a relaxar em torno da relíquia, com medo de que ela se
espatifasse dentro do meu punho cerrado, e retirei minha consciência. Meus
olhos se abriram para revelar a pequena cela na mansão dos Granbehls
enquanto um largo sorriso se espalhava pelo meu rosto.

Ellie estava viva!

Coloquei a mão sobre a boca com medo de cair na gargalhada, interrompida


por um suspiro alto dentro da minha cabeça.

O quê?

‘Nada’ disse Regis com um encolher de ombros. ‘Só sinto pena do pobre
coitado que tentar realmente se casar com sua irmãzinha no futuro.’

Sufoquei outra risada, na verdade achando o senso de humor de Regis


divertido pela primeira vez, o que pegou até meu companheiro de surpresa.
“Obrigado” eu sussurrei para a relíquia enquanto a segurava contra minha
testa. Eu repeti isso de novo e de novo enquanto o alívio continuava a me lavar
como um bálsamo calmante.

A tensão e o medo que agarraram meu peito como uma garra de ferro se
afrouxaram e eu fui capaz de respirar plena e profundamente de novo agora
que sabia que minha irmã estava bem.

Ainda era frustrante tentar juntar as peças da conversa que testemunhei na


minha cabeça, mas o importante era que Ellie estava segura.

Isso foi o suficiente por agora.

Eles ainda estavam escondidos no santuário subterrâneo, pelo menos isso


estava claro pela arquitetura do prédio enquanto Ellie contava o que havia
acontecido com ela em Elenoir. A relíquia não me permitiu ouvir a conversa,
mas continuei lendo seus lábios o melhor que pude.

Uma mistura de emoções borbulhou quando percebi que minha irmãzinha


havia lutado sozinha com um mago Alacryano totalmente treinado. Eu estava
com raiva dela, com medo e preocupado por ela – e ainda, orgulhoso da
guerreira que ela se tornou.

Minhas sobrancelhas franziram enquanto eu considerava a descrição de Ellie


de seu tempo no acampamento alacryano.

Como ela pode ser tão imprudente a ponto de fingir ser de uma raça de pessoas
sobre as quais ela nada sabe e se infiltrar em sua base de operações? Eu pensei
com um suspiro.

‘Você está sendo deliberado aqui ou está apenas cego para a hipocrisia?’ Regis
perguntou.

Cale a boca, eu rebati, ignorando a sensação quase tangível de Regis revirando


os olhos dentro de mim.

Já era ruim o suficiente que o nome de Elijah tivesse aparecido dos lábios de
Ellie. A memória daquela última batalha com meu amigo reencarnado e a
Foice, Cadell, estava confusa, mas sua animosidade beirando o ódio por mim
era clara, e me deixou doente sabendo que ele tinha estado tão perto de minha
irmã.

Mas não foi até que Virion começasse a falar que as coisas ficaram confusas.
Mesmo que eu não tenha conseguido entender cada palavra que ele disse, seu
relato do ataque foi claramente diferente do que eu tinha testemunhado.

‘Huh. Bem, eu acho que você não pode culpar um cara por querer negar que
não é apenas um clã asuran que quer todos vocês mortos.’ Regis interrompeu.

Não acho que era tão simples quanto estar em negação. Ele parecia tão seguro
por algum motivo.

‘Então talvez ele saiba e só queira a atenção de seus soldados em um inimigo


que eles possam realmente lutar’ meu companheiro sugeriu. ‘Uma tática
temporária, mas talvez necessária.’

Talvez, respondi, mas não estava convencido. Rolei para a posição sentada e
descansei meus cotovelos nos joelhos. Ele poderia ter entendido mal o aviso
de Rinia, ou talvez ele apenas esteja errado. Não tenho certeza se teria
acreditado também, se eu não tivesse visto Aldir fazer isso.

A segurança e a saúde de Ellie tiraram um peso enorme dos meus ombros, mas
também me senti agridoce. Um país inteiro, que eu visitei várias vezes, foi
destruído completamente.

Quantos morreram no ataque dos asuras? Quantos elfos não puderam ser
evacuados durante o ataque inicial dos alacryanos?

E quanto a Tessia?

De pé, comecei a andar de um lado para o outro na minúscula cela.

A batalha de Tess contra Lorde Aldir e Windsom, lado a lado com Nico, se
repetiu em minha mente. Eu imaginei a maneira como ela lutou, como ela se
moveu tão desajeitadamente, como se ela estivesse tendo problemas para
controlar seu próprio corpo, e como Nico a defendeu, colocando-se entre ela
e os ataques de Windsom.

E aquele olhar que compartilharam, no final…


Sentei-me novamente e rolei a relíquia distraidamente entre meus dedos.

‘Embora eu normalmente encoraje esse tipo de momento sentimental para uma


lata como você, não acho que Nico dando em cima da sua garota deva ser-‘

Não é tão simples assim, interrompi, a minha mandíbula cerrada.

Nos últimos momentos antes de Sylvie se sacrificar por mim, a memória que
eu estava enterrando tão desesperadamente, ressurgiu:

“Você disse que pegar Tess não vai trazer Cecilia de volta, certo? Bem, e se
for?” Nico tinha me perguntado.

Tess era o receptáculo de Cecilia. Eles queriam reencarnar Cecilia no corpo de


Tessia. Nico me disse isso.

Eu estreitei meus olhos, focando em uma rachadura específica no teto.


Respirando fundo, me forcei a me acalmar. Eu precisava dar um passo para
trás mentalmente para que pudesse pensar com clareza.

Eu sabia que minha própria reencarnação tinha sido de alguma forma o


catalisador para Agrona descobrir como trazer Nico a este mundo. Nico amou
Cecilia e dedicou toda a sua vida a ela… e eu a matei bem na frente dele.

Assistindo isso acontecer, vivendo com aquela raiva, medo e culpa enquanto
me tornava rei e me desligava da minha antiga vida… Eu não poderia culpar o
ressentimento de Nico.

Ou Agrona fez algo para deixá-lo assim?

Culpar Agrona pelo estado atual de Nico era fácil, mas também fui eu tentando
transferir a culpa. Provavelmente, o Vritra só poderia manipulá-lo por causa
de nossos laços em nossa vida anterior.

Agora, Nico queria Cecilia de volta… mas tinha que haver mais em toda essa
coisa de reencarnação do que apenas isso. Agrona era calculista e
manipulador – eu não conseguia imaginá-lo sem fazer nada que não fosse um
benefício para si mesmo ou para seu objetivo. Ele não teria prometido
reencarnar Cecilia apenas para fazer Nico feliz.
Claro, ele pretende usá-la. Assim como Vera me usou. Tudo que Cecilia queria
era paz, por isso ela tinha…

Eu balancei minha cabeça, me afastando dos pensamentos da minha vida


passada e me forçando a focar no presente.

A Anciã Rinia havia dito que precisávamos manter Tess longe de Agrona, que
tudo dependia disso. Não se trata de Nico. É sobre Cecilia.

Talvez sempre tenha sido.

Quão forte seria Cecilia – este assim chamado “legado” – neste mundo?

‘Bem, dado que um mago de núcleo branco quadra elemental e um Vritra


vomitando escuridão são necessários até mesmo para invocá-la…’ Regis
começou, ‘Eu diria que é forte pra cacete.’

Não está ajudando.

Meus pensamentos estavam dispersos, pulando de um fio para o outro antes


que eu pudesse decidir por qualquer ideia.

Sentei-me novamente e esfreguei meu rosto.

Mas nada disso responde à pergunta, por que Indrath escolheria atacar agora?
A menos que – eu engoli um caroço na minha garganta – Agrona tivesse
sucesso.

“Droga!” Eu dei um soco, parando apenas perto da parede mais próxima. A


última coisa que eu precisava era escapar acidentalmente desta cela e piorar
as coisas.

Mesmo se Tess fosse agora… Cecilia, isso não mudava o fato de que eu
precisava fazer esse teste para me mover livremente em Alacrya. Eu não podia
correr o risco de enfrentar Agrona e os Vritra e Foices antes de estar pronto.

O que você acha, Regis? Eu perguntei, ansioso para ouvir qualquer pensamento
além do meu.
‘Que a resposta que vou dar não é a que você quer ouvir,’ respondeu ele
rispidamente.

Você já me deu uma resposta que eu queria ouvir? Soltei um suspiro


profundo. Você tem minhas memórias e uma parte da minha personalidade,
junto com algumas das de Sylvie e Uto. Seja honesto.

‘Bem, há uma boa chance de sua amada ter sido apagada e substituída pela
garota superpoderosa que você assassinou em uma vida anterior. É isso?’

Eu mordi de volta minha resposta irritada imediata. Sim, Regis, como você
disse com tanta eloquência, mas o que posso fazer a respeito?

‘Um burro gnorte que passa pode lhe dizer que não há absolutamente nada que
você possa fazer a respeito disso agora’ interrompeu meu companheiro. ‘Você
está tentando resolver um quebra-cabeça com metade das peças. Nesse ritmo,
você receberá a resposta errada ou terá um colapso mental ao tentar.’

Passei meus dedos pelo meu cabelo, mais uma vez me lembrando de quão
longe eu tinha ido – o quanto havia mudado – desde que vim a este mundo.

Então o que acontecerá se Agrona puder resolver o quebra-cabeça antes


mesmo que eu possa juntar todas as peças?

‘Então você perde,’ disse ele categoricamente. ‘Mas lembre-se do que o djinn
disse, Agrona não tem percepção do éter como você, e é por isso que você ainda
tem a chance de vencê-lo. Por que desistir disso para tentar fazer exatamente
o que Agrona vem fazendo há séculos para tentar vencer?’

Eu ponderei sobre as palavras de Regis por um momento antes de


responder. Você está certo.

A raiva veio de meu companheiro ‘Não, não, você não está me ouvindo. Você –
espere, você acabou de dizer que estou certo?’

Balancei a cabeça.

‘Obrigado… não, quero dizer, claro que estou certo,’ continuou Regis. ‘Além
disso, enquanto você está realmente me ouvindo, para variar, não acho que
aquela relíquia vá fazer bem para sua saúde mental, se é que você me entende.
Não fique viciado em espionar sua irmã.’

Eu deixei escapar uma risada. Obrigado, Regis.

A relíquia ainda estava descansando em minha mão, lisa e afiada. Olhando


para ele, tive uma ideia repentina.

Eu só esperava que a relíquia tivesse energia suficiente para um segundo uso.

Segurando-a com cuidado entre o indicador e o polegar, empurrei o éter


dentro dela e pensei, Tessia.

A névoa rodou pela superfície da pedra, mas nada mais aconteceu.

Cecilia.

As nuvens escureceram e a relíquia começou a emitir uma luz roxa suave ao


absorver meu éter, mas não recebi uma visão.

‘Morta de novo?’ (NT: é a relíquia, ok? AIOSDJIASD)

Não, está absorvendo o meu éter, mas não está me mostrando Tessia ou Cecilia.

‘Bem… tente outra pessoa, talvez? Para ter certeza de que ainda está
funcionando.’

Sentindo-me mais calmo agora, parei um momento para considerar minhas


opções, mas havia apenas uma outra pessoa em quem eu poderia pensar que
eu queria ver, então pensei em seu nome.

A névoa branca rolou ao meu redor, e de repente eu estava de volta ao


santuário subterrâneo sob o deserto em Darv. A enorme caverna se abriu ao
meu redor, e havia um pequeno riacho aos meus pés.

Do outro lado do riacho, minha mãe estava sentada em um tronco cinza com
os pés batendo na água. Seu rico cabelo ruivo – uma característica que eu não
compartilhava mais – tinha mechas de cinza por toda parte, e novas rugas
formaram vincos sob seus olhos e sobre suas sobrancelhas.
Eu não sabia o que eu tinha esperado – o que eu tinha esperanças – enquanto
observava minha mãe, mas aguardei em silêncio.

Foi um estranho momento de realização quando pensei comigo mesma que


Alice não era realmente minha mãe – não de uma forma convencional, pelo
menos. Eu era adulto muito antes de nascer neste mundo, com memórias e
experiências anteriores que deveriam ter me impedido de ver essa mulher
como uma figura materna.

No entanto, ficou cada vez mais difícil observá-la assim, pequena e sozinha.
Memórias de seu sorriso, sua risada, suas lágrimas enquanto eu navegava em
meu caminho por este mundo ressurgiram, me lembrando que eu nunca estive
sozinho – pelo menos, não neste mundo.

De repente, minha mãe ergueu os olhos e soltou um suspiro. Seus lábios se


moveram e, mesmo sem som, pude ouvir claramente o que ela disse.

“Como você está aí com nosso filho, Rey?”

Senti um nó na garganta e, no momento em que tentava me afastar da visão,


um peixe cintilante do tamanho de uma grande truta nadou e mordiscou os
dedos dos pés de minha mãe.

Naquele momento, eu não queria nada mais do que dizer a ela que ainda
estava vivo e que continuaria lutando.

Um breve sorriso apareceu em seu rosto, apenas uma pequena curva para cima
de seus lábios antes que o peixe voasse rio abaixo.

Mas foi o suficiente para mim.

Capítulo 328
Cara a Cara

Petras se inclinou sobre mim, seu hálito rançoso uma forma de tortura por si
só.

“Esfaqueie, esfaqueie, esfaqueie,” ele cantou, seguindo cada palavra com um


golpe rápido de sua faca em uma parte diferente do meu corpo.
Fazia uma semana que Caera e eu tínhamos deixado as Relictombs, e todos os
dias eram quase exatamente iguais.

“Isso está se tornando tedioso, Ascendente Grey” Matheson disse atrás do


torturador. “Certamente você pode ver a escrita na parede. Salve-se de mais
duas semanas de dor e admita os assassinatos dos Senhores Kalon e Ezra.”

Embora o mordomo dos Granbehls mantivesse o rosto passivo, ele


repetidamente se atrapalhava com os punhos das mangas. Na última semana,
decidi que essa era o sinal de Matheson para quando ele estivesse ficando
frustrado.

“Ou”, eu respondi calmamente, batendo meus cílios enquanto olhava para o


velho com olhos de corça, “você poderia ser um querido e me deixar ir.”

Dentro de mim, Regis soltou uma gargalhada.

Matheson retribuiu meu olhar com um brilho próprio, ajustando as mangas


mais uma vez antes de se voltar para Petras. “Passe mais algum tempo com
ele. Lord Granbehl tem estado muito… desapontado com o seu serviço
ultimamente. Ele espera resultados.”

Ele se virou e saiu da cela, deixando-me acorrentado à parede. Petras, que


estava tão perto que praticamente encostava em mim, ficou olhando para o
mordomo por um longo tempo.

“Bem,” ele disse finalmente, sua voz estridente mais baixa e sombria do que o
normal, “você ouviu Mestre Matheson. Podemos passar um tempo extra juntos
hoje.”

Depois de mais uma hora de queimaduras, cortes e o fedor do hálito de Petras,


o magro alacryano pareceu desistir. Ele saiu sem dizer uma palavra ou mesmo
olhar para trás, os braços caídos ao lado do corpo e seus passos lentos e
pesados.
‘Na verdade, estou começando a me sentir mal por ele,’ disse Regis, depois que
o torturador foi embora. ‘Jogue um osso para ele… dê a ele um grunhido ou um
estremecimento, pelo menos.’

Eu estiquei meus braços e pernas enquanto as feridas cicatrizavam


rapidamente. Ao passar algumas horas todos os dias concentrando-me em
absorver o éter da atmosfera, fui capaz de compensar o custo de curar as
muitas feridas deixadas pelo torturador dos Granbehls.

‘Então, mais um dia estimulante gasto olhando para aquele seu


brinquedo? Regis perguntou enquanto eu reclinava em minha cama e puxava
o brinquedo parecido com uma fruta seca. ‘Estou morrendo de vontade de sair
e esticar as pernas.’

Você sabe que não podemos fazer isso agora, eu disse a ele pela décima vez.

Uma garra violeta cresceu do meu dedo e eu a deslizei na fenda na base da


fruta seca. Depois de sacudir a semente por dentro até que descansasse sobre
o buraco deixado pelo caule da fruta, puxei com a garra.

O éter segurou por um momento antes de se dobrar e perder sua forma como
argila úmida.

Suspirei antes de reformar a garra e tentar novamente.

Quando Three Steps e eu treinamos God Step juntos, ela foi capaz de me
mostrar como mudar meu foco e ver o mundo de forma diferente. Eu tinha
certeza de que também devia haver algum tipo de “truque” mental para usar
o éter para tomar uma forma física, mas me senti preso no mesmo padrão,
fazendo a mesma coisa indefinidamente.

Ainda assim, isso acalmou minha mente para me concentrar inteiramente em


invocar a garra de éter. Passei horas tentando arrancar a semente e, embora
todas as tentativas falhassem, não fiquei frustrado com isso. Parecia certo de
alguma forma, como se isso fosse o que Three Steps pretendia.

Eventualmente, entretanto, eu tive que admitir quando fiz o suficiente por um


dia e guardei o brinquedo de volta na runa dimensional.
Os pensamentos sobre Tessia começaram a flutuar no momento em que parei
de me concentrar. Não tinha intenção de confrontar esses pensamentos agora
e procurei outra coisa para me manter ocupado.

O hábito me fez retirar a relíquia da visão. Estava enfadonha e sem vida; eu a


usei novamente apenas um dia atrás para verificar minha irmã e minha mãe.
Primeiro, tentei encontrar Tessia novamente, mas falhou, como antes. Depois
disso, observei Ellie treinar com Helen até o poder da pedra desaparecer.

‘Aí está aquele sorriso bobo de novo. Você está pensando na sua irmã de novo,
hein?’ Regis perguntou, invadindo meus pensamentos.

Sim. Ela está se tornando uma maga muito talentosa, sabe? E corajosa…

‘Mesmo assim, você ainda se preocupa com a vida amorosa dela,’ resmungou
Regis.

Soltei um gemido. Já chega de todo o rótulo de irmão superprotetor. Eu ficaria…


feliz se ela encontrasse um cara legal que a fizesse feliz.

‘Diga isso para a cama que você acabou de dobrar com a mão nua.’

Eu olhei para baixo para ver que o tubo de metal usado para sustentar a cama
estava amassado.

Isso não diz nada, retruquei, endireitando a grade densa.

‘Apenas prometa não forçar os aspirantes a pretendentes de sua irmã a vencê-


lo em um duelo ou alguma merda assim…’

Isso realmente não é uma ideia ru-

Passos hesitantes na escada interromperam nossa conversa, e rapidamente


guardei a relíquia e me levantei, de frente para o corredor sombrio.

A pessoa que estava do outro lado era familiar, mas ela mudou muito desde a
última vez que a vi.

“Olá, Ada,” eu disse, mantendo meu tom e expressão plana e calma.


A irmã mais nova dos Granbehl tinha cortado seu longo cabelo loiro, então era
mais curto que o meu. Ela havia perdido peso também, tornando seus traços
de menina mais nítidos e maduros, mas também magros e meio…
assombrados, de certa forma.

O fato de ela ter vindo me ver não foi tão surpreendente; Eu estava esperando
por isso. A morte de seus irmãos e de sua melhor amiga nas Relictombs foi
horrível, mas – embora ela tivesse me culpado na época – ela sabia que eu não
matei Kalon, Ezra ou Riah.

A garota alacryana não respondeu, apenas me observou com seus olhos


brilhantes e frios.

‘Ela só vai, tipo, ficar olhando para você, ou o quê?’ Regis perguntou. ‘É meio
assustador.’

Dei um passo lento em direção à porta, tentando parecer o menos ameaçador


possível. Ada recuou de qualquer maneira.

“Ada, ouça—”

“Não,” ela disse, sua voz rouca. “Não quero ouvir nada que você tenha a dizer!”

“Então, por que está aqui?” Eu perguntei simplesmente. Se eu pudesse falar


com Ada, então o sangue dela teria que abandonar as acusações.

“É sua culpa…”

Eu respondi com um aceno suave de minha cabeça. “Eu não os matei – nenhum
deles. Você sabe disso, Ada.”

“Mas você matou!” Sua voz falhou, e eu não pude deixar de me perguntar se
ela não a tinha usado muito desde que voltou das Relictombs. “Você nos levou
para aquele lugar. V-você sabia que isso iria nos matar!”

O rosto magro de Ada se contorceu em uma careta enquanto ela suprimia as


lágrimas que cresciam em seus olhos. “Você sabia…” ela repetiu, sua voz quase
um sussurro.
Respirei fundo. A verdade é que eu sabia que minha presença tornava as
Relictombs mais perigosas para os ascendentes regulares. E talvez eu
realmente não tenha me importado com o que isso significava na época. Esses
alacryanos eram – são, eu me lembrei – meus inimigos. Realmente importava
se alguns morressem no caminho porque não conseguiram me acompanhar?
Meu objetivo não era fazer amigos ou cuidar de um bando de magos que
imediatamente tentariam me matar se descobrissem quem eu realmente era.

Eu pensei no sorriso amigável de Kalon e na postura protetora de Ezra e no


olhar desconfiado. Sua família – seu sangue – era o tipo de pessoa que
mantinha um torturador na equipe e nas celas do porão.

Kalon e Ezra provavelmente seriam tão ruins quanto seu pai, com o tempo.

‘Ou talvez eles tivessem mudado as coisas no sangue deles, sabe?’ Regis
concordou descaradamente. ‘Quero dizer… se eles tivessem sobrevivido.’

Obrigado por isso, eu atirei de volta.

‘Qual é o sentido de ter uma voz na sua cabeça se isso não lhe dá uma
perspectiva?’

Ada, que estava me observando em silêncio enquanto eu ia e voltava com


Regis, respirou fundo, estremecendo. “E a pi-pior parte é que você nem liga.
Minha me-melhor amiga, meus irmãos morreram por sua causa, e você não
se importa.”

Eu encarei de volta, a expressão fixa. “Você teria se importado com a minha


morte? Um completo estranho que você conheceu poucos dias antes?”

“Cale a boca!” Ela retrucou, sua voz áspera presa na garganta. “Você é um
monstro… pior do que aquelas criaturas nas R-Relictombs…”

“Você pode estar certa sobre isso.”

“Se você não estivesse lá, Kalon teria mantido todos nós seguros! E-e se eu
não tivesse tocado naquele espelho idiota…” Ada ficou em silêncio, suas mãos
pequenas e pálidas cerradas em punhos e ombros trêmulos.
Soltei um suspiro, apenas sendo capaz de vê-la como uma criança ferida e não
como a horrível alacryana que teria tornado essa conversa muito mais fácil.

“Não é sua culpa,” eu finalmente disse.

A cabeça de Ada se ergueu, seus olhos avermelhados brilhando. “Ninguém


disse-”

“Não, mas é por isso que você veio aqui, certo? Porque em algum ponto de
tudo isso, você parou de acreditar em suas próprias palavras.” Meu olhar caiu
quando me lembrei de ter visto tudo de dentro da pedra angular… preso e
incapaz de ajudar.

As sobrancelhas de Ada franziram quando ela abriu a boca para responder,


mas as palavras ficaram presas em sua garganta.

Encostei-me na parede ao lado da porta e deslizei até sentar na pedra dura.


“Ao contrário do que você pode acreditar depois de me ver nas Relictombs,
consegui viver tanto tempo e chegar tão longe apenas por causa dos sacrifícios
que outros fizeram por mim.”

Pensei em Sylvia me empurrando pelo portal quando criança, e em Sylvie


sacrificando sua vida para me curar.

“E toda vez que alguém que eu amava morria apenas para que eu pudesse
viver, eu não me concentraria em mais nada além de procurar os responsáveis.
Mesmo que isso significasse correr atrás das sombras.”

Ada bateu o pé no chão de pedra. “Porque você está me dizendo essas coisas?
Qual é o ponto disso?”

Dei de ombros. “Porque espero que me punir pela morte de seus irmãos pelo
menos ajude você a se sentir menos culpada por sobreviver.”

Ada segurou uma das mãos com força na outra. “Não estou fazendo isso por
culpa! Estou fazendo isso para me vingar por eles. Pelo que você fez a eles!”

Eu esperei, deixando-a gritar.


“Por que você está me olhando assim?” As lágrimas começaram a escorrer
livremente por suas bochechas. “Por que você está me olhando assim?!”

“Porque eu estive onde você está agora, e não é algo que eu gostaria que
alguém tivesse que passar,” eu disse calmamente.

Eu escutei seus passos apressados enquanto ela corria pelo corredor subindo
e subindo as escadas, e senti um entorpecimento preocupante tomar conta de
mim.

Permanecendo no chão, eu me inclinei contra a parede fria enquanto seus


passos ficavam mais fracos. Uma parte de mim esperava que ela voltasse, mas
outra parte achou realmente mais fácil ser torturado.

Os últimos passos ecoaram pelos corredores antes que um silêncio solitário


preenchesse seu lugar.

O que, nenhum comentário sarcástico, Regis?

‘E interromper sua merecida auto-aversão?’ Regis respondeu. ‘Até eu sei


quando não é um momento apropriado para fazer uma observação
inadequada.’

Eu levantei uma sobrancelha. Existe um momento apropriado para fazer uma


observação inadequada?

‘Claro, se você for tão inteligente e engraçado quanto eu.’

Capítulo 329
Um Pedido de Ajuda

CAERA DENOIR

“Então, suponho que sua estada prolongada na propriedade Denoir nas


Relictombs foi especialmente… desagradável,” disse Nessa enquanto
gentilmente colocava minha cabeça para trás.

“Foi… bom,” eu disse calmamente, deixando meus olhos fecharem.

Eu ouvi uma risadinha fraca. “Tem certeza?”


“Claro que tenho certeza,” rebati, tentando me concentrar no cheiro sufocante
de flores e especiarias que emanava da infinidade de velas “calmantes” no
banheiro.

“Então você pode tentar dizer isso para sua perna?” Nessa perguntou,
engolindo outra risada. “Porque com o quanto você está se contorcendo, eu
temo que você vá se contorcer para fora da banheira, Lady Caera.”

Eu espiei com um olho aberto, só agora percebendo a grande poça de água e


bolhas perfumadas que se formaram em volta da minha banheira.

Soltando um suspiro, eu parei minha perna. “O tempo parece estar se


movendo muito rápido nos dias de hoje, Nessa.”

Fechei os olhos mais uma vez, tentando relaxar me concentrando na


combinação de água escaldante, suor e minha pele morta coberta lindamente
com espuma aromática.

Enquanto isso, Nessa sentou-se na cabeceira do banho, passando sabonete


perfumado no meu cabelo e massageando meu couro cabeludo entre meus
chifres, que eram mantidos imperceptíveis pela minha relíquia, mesmo que ela
esbarrasse em um deles.

“O banho é um dos métodos mais potentes para aliviar o nervosismo e acalmar


a fadiga muscular,” Nessa me informou enquanto continuava a trabalhar no
meu cabelo.

“Parece mais ensopado do que banho,” resmunguei de volta.

“M’hm,” ela dispensou, continuando com seu trabalho.

A frustração borbulhava quanto mais eu pensava nisso. “Pelos Vritra, eu juro


que pularia daquela janela e correria pelada pelas ruas por outra chance de
entrar nas Relictombs.”

“Bem, isso certamente chamaria a atenção do Alto Lorde e da Lady,” respondeu


Nessa, e pude ouvir o sorriso em sua voz.

“E é mais uma semana inteira até o julgamento. O que, é claro, eu nem tenho
permissão para comparecer,” eu continuei, afundando um pouco mais
profundamente na banheira para que as bolhas subissem pelo meu queixo e
boca.

“Todos nós devemos seguir os desejos do Alto Lorde e Lady, afinal,” Nessa
disse simplesmente.

Eu abri meus olhos e soprei para fora com minha boca, enviando bolhas pelos
ares. “Talvez pudéssemos-“

O barulho forte da campainha da porta da frente me interrompeu. Nessa parou


de massagear meu cabelo enquanto nós duas ouvíamos.

O som abafado de vozes desconhecidas veio do saguão principal.

“Vá ver quem é, Nessa.”

“Só se você prometer não pular nua e correr para as Relictombs, Lady Caera,”
minha assistente pessoal disse com um sorriso.

Eu juntei um sorriso. “Vai logo.”

Ela se levantou rapidamente e saiu rapidamente do banheiro, fechando a


porta silenciosamente atrás dela.

Depois que ela se foi, deslizei para baixo da superfície da água e me forcei a
relaxar, deixando meus braços flutuarem naturalmente enquanto meu corpo
descansava levemente no fundo da banheira de mármore excessivamente
grande.

Minha mente também flutuou, vagando na confusão de pensamentos


conflitantes que eu estava tentando resolver há duas semanas.

As palavras de Foice Seris sobre Grey continuavam voltando para mim. Ela
parecia saber mais do que estava me dizendo, mas eu não conseguia entender,
e ela foi firme em me negar mais informações. Minha mentora não cedia uma
vez que ela tomava uma decisão sobre algo, e eu sabia que era melhor não
forçar muito. Tudo ficaria claro em seu devido tempo.

Grey…
Tentei imaginar seu rosto, mas foi a memória de seu corpo pressionando
suavemente contra o meu enquanto dividíamos seu saco de dormir para nos
aquecer que veio à minha mente.

Eu me levantei, espirrando ainda mais água com sabão no chão de mármore e


olhando para mim mesma. Eu era Caera Denoir. Eu não ansiava por ninguém.

Levantando-me, saí cuidadosamente da banheira e enrolei uma toalha pesada


em volta de mim no momento em que ouvi uma pequena batida na porta.

Supondo que fosse minha assistente, disse: “Não estou decente, Nessa. Um
momento.”

“Há dois homens aqui para vê-la, Lady Caera,” disse Nessa baixinho através da
porta. “Eles querem falar com você. Sobre… ele. Eles estão com seu pai na sala
de recepção.”

Meus olhos se arregalaram com sua menção e corri para me secar e me vestir.

Alguém que conhece Grey. Eles devem estar aqui para ajudá-lo, pensei
enquanto vestia um manto branco bordado. A ideia de que Grey tinha amigos
foi inesperada. Ele parecia tão distante e isolado…

Ansiosa para saber mais, corri para fora do banheiro, mas uma Nessa frenética
se jogou no meu caminho.

“Ah, não, você não! Você terá que passar por cima do meu cadáver se achar
que vou deixá-la entrar parecendo que acabou de ser pega tendo um amante
ilícito, Lady Caera.”

“Você tem lido muitos desses romances, Nessa,” eu a repreendi.

Ela sorriu enquanto mexia no meu cabelo, penteando-o com os dedos, então
levou um momento para endireitar a barra das minhas vestes.

Bufando, eu esperei impacientemente que ela terminasse, então corri


passando por ela para a sala de recepção, meus pés descalços pisando
silenciosamente no tapete vermelho grosso que corria pelo centro do
corredor.
Tive a boa vontade de me recompor antes de passar pela porta aberta, no
entanto.

A sala de recepção era menos confortável do que a sala de estar, destinada


apenas a membros de nosso sangue, mas era mais opulenta, cuidadosamente
projetada para instigar um sentimento de admiração e reverência nos
convidados do Alto Lorde.

Não que já tivéssemos convidados ou visitantes aqui.

Retratos de homens e mulheres de aparência severa – Altos Lordes e Ladies


anteriores, principalmente – desciam das paredes, e várias cadeiras de
encosto alto cercavam uma lareira aberta que queimava em azul ou escarlate
quando era acesa.

Dentro da sala, encontrei meu pai adotivo encarando os dois homens. Os três
estavam de pé e a lareira estava fria e vazia. Embora a postura de braços
cruzados e a carranca arrogante de Corbett Denoir não fossem incomuns para
o Alto Lorde, nossos visitantes não eram o que eu esperava.

O primeiro homem era mais velho e de constituição robusta, talvez um dia um


soldado ou até mesmo ascendente, mas ele claramente deixou isso para trás.
Seu cabelo e barba grisalhos tinham sido fortemente oleados e brilhavam na
luz quente da sala de recepção, e suas roupas finas pendiam dele
desajeitadamente. Ele observou o Alto Lorde inquieto enquanto seu
companheiro falava, e suas mãos continuaram acariciando algo dentro de sua
jaqueta.

Ele certamente não era o tipo de homem que costumava visitar o Alto Lorde
Denoir.

Seu companheiro, por outro lado, era seu oposto em quase todos os sentidos.
Apesar do olhar frio de Corbett, o estranho parecia perfeitamente à vontade.
Alto e de ombros largos, com a graça agradável de um guerreiro treinado, ele
tinha o ar de nobreza, mas eu não conseguia me lembrar de tê-lo visto antes.
Seu terno era finamente cortado, um verde oliva discreto que destacava seus
olhos verde-esmeralda e exibia seu físico atlético.
“-entendo sua posição, Alto Lorde Denoir, com certeza,” ele estava dizendo, “e
meu companheiro e eu não temos nenhum desejo de colocar você ou sua filha
em uma posição politicamente desconfortável, é claro, mas a vida e o sustento
de um homem inocente estão pendurados na balança.”

O homem percebeu que eu entrei pelo canto do olho e deu um passo para trás
e para o lado, virando-se para me cumprimentar sem dar as costas para
Corbett, o que seria considerado rude em círculos nobres.

Meu pai adotivo olhou para mim, seus penetrantes olhos verde-acinzentados
demorando-se em meus pés descalços.

“Minha Lady Caera Denoir,” disse o estranho, curvando-se profundamente


antes de me dar um largo sorriso e se fixar em meu olhar.

O homem mais velho, que estava observando meu pai adotivo com atenção e
não percebeu imediatamente minha chegada, grunhiu e se virou. Sua
reverência era tardia e desajeitada, o que me divertiu ainda mais por causa da
irritação que causou a Corbett.

“Lady Caera,” disse ele, sua voz um grunhido rouco. “Eu sou Alaric, o tio do…
uh… Ascendente Grey, e este é Darrin Ordin. Esperávamos falar com você—”

Corbett deu um passo à frente, os braços se abrindo e o peito inchando. “O


que é algo que ainda não concordei em permitir.” Meu pai adotivo olhou
imperiosamente para mim, quase como se ele estivesse me desafiando a
discutir com ele.

Meus pensamentos, porém, estavam nas palavras do velho. Tio de Grey? Eu o


encarei, procurando por qualquer indício de semelhança familiar, mas não
havia nenhum. Embora ele se vestisse bem, Alaric não teria parecido
deslocado desmaiado no canto de algum bar decadente em algum lugar.

Pela expressão de desgosto de Corbett, pude perceber que ele estava


pensando algo semelhante.

Eu encontrei os olhos do Alto Lorde. “Ainda bem que eu tropecei então, Pai, se
eu tivesse convidados.” Para Darrin, eu disse, “Por que acho que já ouvi seu
nome antes?”
O homem sorriu e passou a mão pelos finos cabelos loiros. “Eu sou um
ascendente. Principalmente aposentado, agora, mas alcancei um pouco de
fama—”

“É claro!” Eu disse, interrompendo-o e ganhando outro olhar furioso do meu


pai adotivo, que ignorei. “Você foi o atacante principal do grupo dos Sem
Sangue, não foi?”

Suas sobrancelhas se ergueram de surpresa, mas o sorriso que Darrin me deu


parecia genuinamente satisfeito. “É uma honra ser reconhecido por um
membro do Alto Sangue Denoir, Lady Caera. Eu não esperava-”

“Esses homens,” a voz de Corbett ressoou, interrompendo nossa conversa,


“vieram implorar por seu testemunho a respeito dos eventos de sua ascensão
mais recente.”

Todos ficaram em silêncio enquanto nossa atenção se voltava para o Alto


Lorde. “Mas, como eu já disse a eles,” ele continuou, “é nosso desejo que você
não seja arrastada para este julgamento.”

Eu abri minha boca para responder, mas ele rapidamente continuou, se


dirigindo a Alaric. “Embora a posição do seu… sobrinho seja infeliz, senhor,
Alto Sangue Denoir não é responsável por suas ações ou pelas do Sangue
Granbehl. Talvez seja melhor gastar seu tempo falando diretamente com eles.”

“Com todo o devido respeito, Alto Lorde Denoir,” Darrin respondeu, “Lady
Caera é, pelo que fui levado a acreditar, a única testemunha além de Grey e a
jovem Lady Ada Granbehl, cujo testemunho acreditamos ser suspeito. Justiça
exige—”

A sobrancelha de Corbett se ergueu e ele lançou ao homem um olhar


fulminante. “Mesmo a justiça não pode exigir demandas de mim aqui, sob meu
próprio teto. Nosso sangue já discutiu esse assunto e a decisão foi tomada.
Você desperdiçou seu tempo e o meu.”

Certamente eu não concordei com tal coisa, pensei, minhas unhas cravando-se
nas palmas das mãos enquanto fechava os punhos.
“Não se precipite em dispensar nossos convidados, Pai”, eu disse, forçando um
sorriso. “Darrin Ordin é um ascendente famoso. Ele liderou um grupo de muito
sucesso de ascendentes de sangues não identificados. Certamente podemos
nos dar alguns momentos para ouvi-lo.”

Corbett torceu o nariz, como se eu tivesse acabado de dizer que Darrin era um
fazendeiro de wogart. “Sim, bem, seja como for, infelizmente não podemos
ajudar com seu pedido atual.”

“Pelo contrário, acho que poderíamos ser muito úteis,” rebati, com o cuidado
de manter a voz firme. “Honestamente, é quase como se você
tivesse medo desses Granbehls… mas eles são apenas um sangue nomeado,
então tenho certeza que não é verdade.”

A mandíbula de Corbett apertou, mas fora isso ele não demonstrou a raiva que
eu sabia que estava crescendo dentro dele. “Nós discutimos isso, Caera, e você
sabe onde eu estou. Se você sentir necessidade, podemos continuar com
nossa discussão depois que nossos convidados forem embora.”

Darrin Ordin pigarreou. “Pedimos desculpas pela intrusão. Nós nos veremos
fora, Alto Lorde Denoir.”

“Muita gratidão pelo seu tempo,” Alaric resmungou, já se arrastando de lado


em direção à porta.

O estalo de um painel do outro lado da sala de recepção fez com que todos se
virassem de repente, mas era apenas Lenora.

Minha mãe adotiva estava vestida confortavelmente com túnicas verdes


escuras bordadas com runas douradas. A roupa não era realmente mágica,
mas as runas faziam com que parecesse poderosa e autoritária de qualquer
maneira.

Ela sorriu calorosamente para nossos convidados. “Com licença, sinto muito
por me intrometer. Você não se importaria se eu compartilhasse uma breve
palavra com meu marido, é claro?”

Darrin curvou-se profundamente e deu a Lenora um sorriso encantador. “Claro


que não, Lady Denoir, mas temo que já estávamos indo…”
“Isso não será necessário, pelo menos, não neste exato instante. Só vai levar
um momento.” Com essas últimas palavras, ela lançou a Corbett um olhar
significativo e estendeu o braço para ele.

O Alto Lorde moveu-se rigidamente, um músculo se contraindo em sua


mandíbula enquanto ele passava por Lenora e desaparecia através do painel
no fundo da sala, que funcionava muito como uma entrada de empregados.

Ela lançou aos nossos convidados um sorriso deslumbrante enquanto deixava


seu braço cair ao seu lado antes de seguir seu marido para fora da sala.

Sabendo que só teria um ou dois minutos antes de eles voltarem, me


aproximei de Darrin e Alaric. “Você é mesmo o tio de Grey?” Perguntei ao velho,
que estava me olhando com cautela.

“Não é óbvio pelas minhas feições agudas e cinzeladas?” Ele perguntou, um


sorriso puxando a borda de seus lábios secos.

Darrin revirou os olhos com isso, abandonando seu comportamento formal. “É


tão óbvio quanto um filhote de caça às sombras se escondendo no escuro.”

Soltei uma risada de sua brincadeira. “Desculpe-me. Não quis ser rude.”

“Não, ser rude é o forte desse velho,” respondeu Darrin. “Mas, voltando ao
assunto. Você deve saber, Lady Caera, que o sobrinho deste homem não-”

“Não,” eu concordei, “Ele não faria. Grey pode ser… frio, quando precisa, mas
não é um assassino. Os outros morreram lutando, sem nenhuma culpa de Grey.
Na verdade, ele salvou a vida de Ada.” O que eu disse a ele que era uma má
ideia, pensei friamente.

O tio de Grey tirou um frasco do bolso da camisa e desatarraxou a tampa com


facilidade antes de tomar um gole. Seus olhos turvos dispararam para o painel
aberto do outro lado da sala antes que ele pegasse mais um. “Certamente teria
nos salvado de todos esses problemas se meu sobrinho não tivesse, mas ele é
um bloco de gelo de bom coração.”

Eu balancei a cabeça, um sorriso se formando em meus lábios enquanto eu me


relembrava de todos os momentos de alta de Grey. “Isso ele é.” Parei por um
momento, hesitante em fazer a pergunta que estava na ponta da minha língua
há um tempo. “Você tem estado perto de Grey desde que ele era jovem?”

Como ele era quando criança? Na verdade, eu queria perguntar.

“Ele tem sido minha responsabilidade desde que se tornou um ascendente,”


Alaric respondeu, tomando outro grande gole de seu frasco. “É uma pena que
ele tenha tido problemas com sangues nomeados, especialmente
sanguessugas como os Granbehls, nobres que estão dispostos a fazer qualquer
coisa para subir mais alto, não importa em quem pisem. O que, eu percebo,
descreve a maioria dos sangues nomeados e Altos Sangues-”

Darrin Ordin deu uma cotovelada no lado do homem mais velho com força.

Ele coçou a barba. “Sem querer ofender.”

Eu tinha ouvido a acusação em seu tom. “Acontece que eu concordo com sua
avaliação dos sangues nobres. E eu gostaria de nada mais do que atuar como
testemunha em seu nome, mas o Alto Lorde Denoir não vai permitir isso,”
rebati defensivamente.

Darrin Ordin pousou a mão no ombro do velho. “Nós entendemos, Lady Caera,
e não pediríamos que você fosse contra os desejos de seu sangue.”

Alaric revirou os olhos, mas não disse mais nada. Havia tantas coisas que eu
queria saber, perguntas que esperava fazer, mas naquele momento Corbett
voltou para a sala de recepção, com Lady Lenora ao seu lado, o braço
levemente enfiado no dele.

“Depois de mais considerações, Alto Lorde Denoir decidiu oferecer nossa ajuda
na questão do julgamento de Ascender Grey,” ele anunciou, a própria imagem
de um senhor magnânimo concedendo uma bênção.

Olhei para meus pais adotivos, tentando entender por que eles mudaram de
ideia repentinamente, e Lenora encontrou meus olhos com um sorriso
estranho e conhecedor de que não gostei.

“Um agente trará a declaração de Caera e qualquer outra documentação que


possamos descobrir que seria benéfica para o seu caso, no dia do julgamento,”
continuou Corbett. “Até então, seria melhor que você não chamasse mais
atenção para Alto Sangue Denoir voltando aqui novamente.”

Alaric se remexeu, franzindo a testa ligeiramente sob a barba, mas Darrin fez
uma reverência profunda e abrangente a Corbett. “Obrigado, Alto Lorde
Denoir. É tudo o que poderíamos pedir.”

“Tanto e muito mais,” Corbett respondeu com desdém, já se virando. “Nessa!”

Minha assistente, que estava pairando do lado de fora no corredor, correu para
a sala de recepção, os olhos no chão de mármore cortado.

“Acompanhe nossos convidados para fora.”

Darrin Ordin curvou-se mais uma vez, seguido desajeitadamente por Alaric, e
então os dois homens seguiram Nessa para o corredor.

Quando ficamos sozinhos, enfrentei meus pais adotivos. “O que foi aquilo?”

Corbett acenou com a mão para que o fogo ganhasse vida, queimando um
escarlate profundo e sangrento que se refletiu nas paredes brancas e no chão.
Virando as costas para mim, ele atravessou a sala e se serviu de um copo
d’água de um recipiente de cristal.

Lenora caminhou até a porta e olhou para o corredor, certificando-se de que


nossos visitantes tinham ido embora. Quando ela voltou, ela estava com um
sorriso alegre. “Parece, querida Caera, que sua mentora e nossa patrona, Foice
Seris Vritra, expressou algum interesse neste seu ascendente.”

Tendo falado longamente com Foice Seris sobre Grey, isso não era exatamente
novidade para mim. Mas não entendi imediatamente o que minha mãe adotiva
quis dizer.

“Parece que seu relacionamento com este homem pode ter algum valor para
Alto Sangue Denoir, afinal,” Corbett proclamou seriamente.

Eu olhei entre eles, sua mudança repentina de mente começando a fazer


sentido. “Você quer que ele fique em dívida com Alto Sangue Denoir… por sua
ajuda em libertá-lo,” eu disse lentamente.
Lenora moveu-se para o lado de Corbett e passou o braço pelo dele. “Se ele é
valioso para Foice Seris, então pode valer a pena a confusão, sim.”

De valor para Foice Seris…

“Mas quando ele era apenas valioso para mim?” Eu disse friamente, minha
garganta apertando em torno das palavras. “Então você ficou feliz em deixar
os Granbehls ficarem com ele?”

“Oh, não seja assim, Caera,” disse Lenora, acenando como se minhas palavras
fossem um cheiro ruim que ela pudesse soprar para longe. “Você consegue o
que quer, no final – e seus benefícios de sangue também.”

Eles não sabiam com que tipo de fogo estavam brincando. Estremeci ao me
lembrar da fúria gelada que se instalou sobre mim como uma presença física
quando Grey descobriu minha verdadeira identidade. Ele poderia ter me
matado em um segundo, eu sabia disso tão claramente quanto sabia que havia
sangue Vritra correndo em minhas veias.

Nós ficamos confortáveis juntos, mas eu tinha certeza de que ainda não tinha
ganhado totalmente sua confiança. Se ele pensasse que eu estava de alguma
forma o manipulando…

“Sorria, querida,” Lenora disse, exibindo seus próprios dentes brancos e


brilhantes. “Isso pode acabar funcionando maravilhosamente para nós.”

Eu encarei a mulher com um olhar mortal.

“Você deveria ser mais grata a sua mãe,” disse Corbett, largando o copo
pesadamente para que a água espirrasse na borda. “Enquanto você fica
deprimida pela casa, ela soube que a Casa Granbehl parece ter algum tipo de
negociação em andamento para garantir o veredicto de culpado desse
ascendente.”

Ele ergueu a mão para me manter em silêncio. “Eu preciso que você entenda
seu papel nisso, Caera. Se Alto Sangue Denoir vai despender tempo e capital,
tanto financeiro quanto político, para ajudar esse ascendente, devo ter certeza
de que ele apreciará totalmente de onde veio sua ajuda.
“Você terá permissão para contatá-lo… após o julgamento, e convidá-lo para
nossa propriedade no Domínio Central. Então, podemos discutir os planos de
nosso sangue para o futuro e onde Grey se encaixa nesses planos.”

Embora eu estivesse fervendo por dentro, por fora sorri como Lenora havia
sugerido. “Como você desejar, é claro.”

A conversa se voltou para os esquemas dos Granbehls e o que Foice Seris


poderia querer com Grey. Eu fiquei e ouvi, não querendo que meus pais
adotivos fizessem planos pelas minhas costas. Eu precisaria saber exatamente
o que eles estavam fazendo, se quisesse ajudar Grey a evitar a troca de uma
prisão por outra.

Capítulo 330
O Alto Salão

As três semanas até meu julgamento passaram em um borrão de repetição e


monotonia.

Quando amanheceu, fui poupado da habitual sessão de tortura com Petras e


Matheson, e até permitiram uma ducha fria para limpar o sangue e a sujeira
de minha estada de três semanas na masmorra dos Granbehls. Eu acho que
eles não queriam que fosse muito óbvio que eu fui privado e torturado.

Ada, felizmente ou não, não tinha vindo me visitar novamente, mas imaginei
que a veria em breve no julgamento.

Eu estava sentado no chão com as pernas cruzadas, o brinquedo de frutas


secas de Three Steps seguro com firmeza em uma das mãos. O dedo indicador
da outra mão brotou uma garra curva de éter violeta, que estava atualmente
enrolada em torno da semente dentro da fruta, puxando-a desesperadamente.

Eu já tinha conseguido materializar a forma da garra por dez segundos, mas a


semente não estava se mexendo. Vinte segundos se passaram. Depois trinta.
Meu dedo começou a doer e tremer, e eu podia sentir a garra perdendo sua
forma.

Finalmente, depois de quase quarenta segundos, a garra de éter se dissipou


com a semente ainda alojada firmemente dentro da fruta seca.

“O que é aquilo?”

Meus olhos se abriram para encontrar Matheson olhando para mim através
das barras. Eu estava tão focado em manter a forma da garra de éter que não
o ouvi chegar.
Eu agitei minha mão, rolando o brinquedo fora de vista antes de armazená-lo
em minha runa dimensional, então coloquei uma mão em concha sobre a
outra.

“Oh… você quer dizer isso?” Eu disse inocentemente enquanto lentamente


levantava o dedo médio da mão que estava escondendo na palma da minha
mão.

Regis soltou uma risada.

Matheson fez uma careta e deu um passo para o lado para que quatro
cavaleiros Granbehl pudessem abrir a porta da minha cela e marchar para me
cercar. O mais alto dos quatro puxou meus braços para trás e colocou algemas
em meus pulsos.

“Revistem-no,” ordenou Matheson, e o mesmo cavaleiro começou a me dar


uma revista completa, mas é claro que não encontrou nada. Ele encolheu os
ombros blindados para o administrador.

“Espero que você esteja se divertindo, Ascendente Grey,” ele disse


calmamente. “Eu mesmo estou muito ansioso para ver aquele sorriso irritante
tirado de seu rosto presunçoso.”

“Podemos ir então?” Eu perguntei. “Tenho certeza que eu não gostaria de


chegar atrasado para isso.”

Matheson ajustou os punhos das mangas e passou marchando, liderando o


caminho escada acima e pelos corredores bem decorados da mansão acima.
Alguns criados da mansão nos espiavam de vários cômodos enquanto saíamos
da propriedade Granbehl, mas o único rosto familiar que notei foi Petras, que
estava sentado em alguns barris perto da porta dos fundos pela qual fui
conduzido para fora.

Eu dei a ele um sorriso alegre enquanto eu passava. “Derramamos tanto


sangue, suor e suas lágrimas juntos que quase vou sentir sua falta.”

Minhas palavras fizeram o torturador praticamente se dobrar de vergonha,


enquanto Matheson gargalhou de desgosto.

‘Que jeito de chutar um homem quando ele está pra baixo,’ disse Regis
acusadoramente.

Eu revirei os olhos. Perdoe-me por falta de simpatia para com o cara que
passou as últimas três semanas me abrindo.

‘Bem, se julgássemos apenas por sua reação, eu diria que o pobre Petras não
fez nada além de dar-lhe uma massagem rigorosa,’ observou Regis. ‘Mas isso
está fora de questão. Você está terrivelmente animado para um cara a caminho
de seu próprio julgamento por assassinato.’
Senti uma curiosidade genuína irradiando da pequena bola de calor que era
meu companheiro..

Estou quase pronto para queimar este maldito lugar até o chão. Veremos como
as coisas vão se desenrolar com o que Alaric está planejando, mas aconteça o
que acontecer, não pretendo voltar aqui.

‘Matty é todo meu.’

Vários outros guardas Granbehl fortemente armados e blindados nos


encontraram do lado de fora da casa, e eu fui escoltado até outra carroça como
aquela em que fui trazido aqui.

Lorde Granbehl estava parado ao lado da porta, as mãos cruzadas atrás das
costas. Ele ergueu o queixo quando me aproximei. “Esta será sua última
oportunidade de confessar seus crimes, Ascendente Grey. Admita sua culpa e
pedirei clemência em seu nome. Se você se apresentar a um painel de juízes e
confessar sua inocência, isso estará fora de minhas mãos.”

Eu fechei meu olhar com o nobre alacryano. “Obrigado por


sua maravilhosa hospitalidade, Titus.”

Ele rangeu os dentes enquanto nós nos olhávamos fixamente, mas


eventualmente ele acenou com a mão, e eu fui empurrado para dentro da
carruagem.

Desta vez, havia dois cavaleiros sentados lá dentro, cada um com uma lâmina
nua apontada para mim. Mesmo que um dos guardas fosse Alaric, não havia
como ele me deixar saber sem se entregar, então fiquei quieto. Na maior parte
do tempo.

Soltei um suspiro, recostando-me na cadeira. “Eles poderiam ter me dado pelo


menos uma carruagem com janelas.”

Um dos guardas se mexeu desajeitadamente no banco estreito à minha frente,


que obviamente era para bagagem, não um cavaleiro totalmente armado.

“Eu acho que vocês, cavalheiros, ainda são uma visão melhor do que minha
cela sombria e o sempre atraente Petras,” eu continuei com um encolher de
ombros.

O outro guarda sufocou uma risada enquanto o primeiro erguia sua lâmina de
modo que a ponta pressionasse minha garganta. “Fique quieto.”

‘Você acha que todo mundo que trabalha para os Granbehls é treinado para ser
burro ou precisam de experiência anterior como idiota para se
qualificar?’ Regis perguntou.

Desta vez, foi a minha vez de abafar uma risada.


“Você acha que isso é engraçado?” O guarda segurando sua lâmina contra
minha garganta torceu a espada curta e atacou com o punho, cravando-a no
canto da minha boca. “Faça outro som, e eu darei a você a outra extremidade,
escória.”

‘Sim. Esse cara definitivamente gosta de chutar filhotinhos.’

Eu sorri enquanto corria minha língua pelo corte que já havia começado a
cicatrizar, sentindo o gosto de sangue.

“Vritra, ele é tão estranho quanto dizem,” disse o segundo guarda. Ele parecia
jovem e mais do que um pouco nervoso.

Nenhum dos dois é Alaric, então, pensei, considerando o cavaleiro friamente.

“Você ouviu os rumores, Roffe? Dizem que alguém está criando todos os tipos
de problemas em torno deste ascendente. Alguns dos guardas pensam que ele
é secretamente de uma casa de Alto Sangue, e eles são…”

“Quer calar a boca?” O guarda que me bateu, Roffe, rosnou. “Devemos


proteger, não bater papo como duas garotas da academia.” NT: Academia aqui
refere-se ao âmbito acadêmico, provavelmente falando daquelas academias
de atacantes/escudos, etc em Alacrya

O segundo cavaleiro ficou em silêncio.

Então, alguém está soltando rumores? Deve ser Alaric, pensei, franzindo a
testa. O que aquele velho bêbado pensa que está fazendo, cara a cara com um
sangue nomeado?

‘Garantindo o investimento dele, imagino,’ sugeriu Regis.

Vamos apenas esperar que ele saiba no que está se metendo, pensei,
inclinando-me ligeiramente para o lado e tentando ficar confortável, o que
não foi fácil considerando que minhas mãos ainda estavam acorrentadas atrás
de mim.

O resto da viagem passou rapidamente. Em alguns minutos, paramos e alguém


bateu três vezes do lado de fora da porta. Roffe bateu de volta duas vezes e a
porta se abriu.

Sem esperar que eles me empurrassem ou puxassem para fora, eu pulei no


chão sozinho, fazendo com que as figuras blindadas mais próximas recuassem
e brandissem suas armas.

Olhando além deles, observei o prédio para o qual eles estavam me levando.
Mesmo sem qualquer referência cultural para compará-la, a enorme estrutura
foi imediatamente reconhecível como um tribunal.
O prédio de pedra escura era coberto por uma decoração ornamentada: vidro
colorido enchia as janelas em arco, gárgulas com chifres debruçadas nas
paredes e olhando para todos que se aproximavam, e centenas de finas torres
de metal preto alcançavam o céu azul sem sol.

Matheson apareceu entre dois dos muitos guardas de armadura que estavam
em volta da carruagem. “Lindo, não é?” Disse ele, olhando para o tribunal.
“Como a própria justiça dos Soberanos esculpida em pedra.”

Eu bufei, atraindo um olhar irritado do mordomo.

“Traga este criminoso para dentro,” ele estalou.

Fui empurrado e cutucado com as armas para a frente, sob uma entrada em
arco e em um grande salão. O interior do tribunal era tão ornamentado quanto
o exterior: o piso era de mármore, a grande escada que levava ao patamar do
segundo andar era feita do mesmo ferro escuro das torres e um enorme
afresco(1) cobria todo o teto.

Ele mostrava um homem musculoso, de peito nu, com pele acinzentada e


chifres extensos que se curvavam ao redor de sua cabeça como uma coroa de
pé entre dezenas de pessoas muito menores e menos detalhadas. Partículas
coloridas de luz estavam caindo dele e sendo absorvidas pela multidão
reunida, cujos rostos estavam voltados para cima alegremente. Um anel de
runas circundava a pintura.

Agrona, dando magia aos alacryanos…

‘Você acha que a parte em que Agrona torturou e fez experimentos com os
alacryanos por um bilhão de anos está desenhada na parte de trás?’ Regis
perguntou.

“’Sob o olhar vigilante do Alto Soberano, todos os seres são julgados,’” disse
Matheson, lendo as runas curvas.

Eu estava prestes a dizer algo irreverente, mas um choque de Regis me


interrompeu.

O que é?

‘Lembre-se de que você é um alacryano. Não pareceria bom para você rebaixar
Agrona em público, especialmente aqui, agora.’

Eu pensei por um momento. Hum…Boa.

Uma figura curvada em uma túnica preta e grossa com um símbolo dourado
no peito se aproximou e trocou algumas palavras com Matheson. Eu não
conseguia ver o rosto dele(2), que estava escondido nas sombras sob o capuz
do manto, mas podia sentir olhos sondadores em mim.
O símbolo mostrava uma espada com escamas penduradas na guarda cruzada
e deve tê-los rotulado como algum tipo de oficial da corte.

Eles acenaram para que os seguíssemos e lideraram a procissão de guardas,


Matheson e eu, por um longo corredor de pico alto que terminava em duas
portas de pedra sólida, cada uma com pelo menos três metros de altura e um
metro de largura.

Conforme nos aproximamos, as portas se abriram sozinhas, revelando uma


sala de tribunal com capacidade para algumas centenas de pessoas, pelo
menos.

Foi projetado como um anfiteatro: em forma de meia-lua, com uma série de


bancos de ébano subindo em degraus ao redor de uma plataforma ao longo
do lado plano, onde cinco escrivaninhas altas, cada uma com o mesmo
símbolo dourado das vestes do oficial, olhavam para um cadeira única de
metal preto retorcido.

A figura de manto escuro nos conduziu por um corredor entre os bancos, todos
vazios no momento, e gesticulou para a cadeira. Dois dos cavaleiros me
empurraram nele, e pesadas correntes pretas ganharam vida e envolveram
meus pulsos, tornozelos, cintura e pescoço. As correntes eram terrivelmente
frias ao toque.

Flexionei com cuidado, mantendo o movimento sutil para que ninguém


pensasse que eu estava tentando me libertar. As correntes se apertaram ao
meu redor como uma cobra, sua superfície fria e ardente mordendo minha
carne e ameaçando me sufocar.

O oficial de manto escuro se inclinou para frente para que ficássemos cara a
cara. Sob o capuz sombreado, uma jovem com olhos escuros me encarou de
volta. “Quanto mais você luta, mais fortes as correntes ficam, ascendente.
Fique quieto e deixe apenas a verdade passar por seus lábios neste lugar.
Apenas os homens culpados temem a justiça do Alto Salão.”

Mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, relaxei para ver se as
correntes afrouxariam. Elas afrouxaram.

“Bom,” disse ela, endireitando-se. “O julgamento começará em breve. O resto


de vocês podem encontrar assentos ou ficar ao longo da parede traseira.”

Houve muitos tilintares e chacoalhados enquanto os guardas com armaduras


pesadas manobravam para o fundo da sala. Pelo menos trinta deles tinham
escoltado minha carruagem, e Matheson trouxe todos eles para o tribunal.

Virei ligeiramente a cabeça e avistei o mordomo dos Granbehls sentado no


banco mais próximo à minha esquerda. Ele estava me inspecionando
cuidadosamente, seus olhos seguindo a rede entrecruzada de correntes.
O murmúrio de vozes e o trovão baixo de dezenas de passos no mármore atraiu
sua atenção para o fundo da sala. Ele franziu o cenho, aparentemente não
gostando do que viu ali.

Escutei com atenção, tentando captar trechos das muitas conversas que
aconteciam atrás de mim.

“—para provar o assassinato nas Relictombs. O que os Granbehls estão— ”

“-emocionante, não é? Eu nunca estive no Alto Salão antes—”

“-é ele? Oh, uau, ele é tão bonito, eu—”

“-meu primo ouviu de um dos guardas que ele nem mesmo piscou quando
Lorde Granbehl bateu nele-”

Eu me virei, olhando cautelosamente para a minha direita enquanto passos


pesados se aproximavam. Um homem grande e loiro em um terno cinza estava
se movendo propositalmente em minha direção. Seus olhos verdes brilhantes
se estreitaram em um sorriso quando encontraram os meus.

“Grey,” disse ele, sua voz um barítono (3) estrondoso. Ele me deu um sorriso
alegre. “Confortável?”

“Na verdade não,” eu admiti. Outro homem estava atrás dele, vestido com um
terno cor de carvão mal ajustado.

“Alaric,” eu disse surpreso. “Tem certeza de que deveria estar aqui?”

O ex-ascendente ergueu uma sobrancelha. “Quem você acha que vai te tirar
dessa bagunça senão eu, sobrinho?”

“Bem, se eu fosse apostar apenas nas aparências, iria com o cavalheiro que
não parece estar ainda com uma ressaca,” eu disse com um sorriso fraco.

“Meu querido sobrinho, de fato.” Alaric revirou os olhos antes de acenar com
a cabeça em direção ao companheiro. “Grey, este é Darrin Ordin. Ex-
ascendente como eu, e uma vez um aluno meu. Ele tem o hábito de ajudar
outros ascendentes menos afortunados.”

Eu dei uma segunda olhada no homem. Suas roupas eram perfeitamente


cortadas e feitas de uma lã fina que deve ter custado uma fortuna. Ele não
tinha a aparência de atleta arruinado como Alaric, e eu não pude deixar de me
perguntar o quão aposentado ele realmente era.

Principalmente, porém, era a maneira como ele se portava que tornava sua
riqueza óbvia: confiante, com as costas retas, mas não rígidas, e um ar
despreocupado. Alaric, por outro lado, parecia tão deslocado no Alto Salão que
era quase cômico.
Darrin estava examinando os assentos atrás de mim, a sugestão de uma
carranca em seu rosto. “Tive sorte, isso é verdade,” disse ele, voltando sua
atenção para mim. “Eu apenas tento ter certeza de que outros que escolhem a
vida de um ascendente – aqueles que não têm o apoio de um Alto Sangue ou
Nomeado – tenham alguém cuidando deles… mas podemos falar sobre mim
mais tarde,” acrescentou ele, sua atenção voltada para as mesas altas que
olhavam para a minha cadeira.

Cinco figuras vestidas com túnicas entraram por uma porta que eu não podia
ver, e cada uma se moveu para ficar atrás de uma mesa, elevada vários metros
acima de mim. Eles usavam túnicas pretas combinando, semelhantes às da
mulher que nos guiou para o tribunal, mas seus capuzes estavam abaixados,
revelando cinco magos magros e sem humor.

O homem na mesa central bateu um martelo, fazendo com que a sala se


calasse repentinamente. Eu podia ouvir os ruídos abafados de pessoas
correndo para se sentar atrás de mim, depois o estrondo retumbante das
enormes portas duplas se fechando.

“Assim começa o julgamento do Ascendente Grey, sangue sem nome, sob a


acusação de assassinato,” o juiz anunciou em uma voz áspera.

NOTAS DE TRADUÇÃO:

(1) – ‘Afresco’ é uma pintura feita em um teto, como aquelas que existem na
Capela Sistina, por exemplo

(2) – o ‘Dele’ aqui usado foi traduzido de ‘theirs’, que é um pronome neutro na
língua inglesa, usado pra quando você não sabe o gênero do ser em questão,
sim, o ‘they’, além de significar ‘eles/elas’, também é utilizado como pronome
neutro

(3) – ‘Barítono’ é um termo usado pra designar uma voz grave, mas baixa, isto
é, firme, voz de ‘machão’

Capítulo 331
O Julgamento

“Este julgamento será feito pelo Alto Juiz Blackshorn, Juiz Tenema, Juiz Falhorn,
Juiz Harcrust e Juiz Frihl,” disse o juiz central, aparentemente o Alto Juiz
Blackshorn, enquanto os cinco Alacryanos vestidos de preto tomavam seus
assentos.

“O propósito deste julgamento,” ele continuou em sua voz lenta e clara, “é


determinar a verdade de se o Ascendente Grey” – ele gesticulou para mim,
acorrentado na cadeira preta – “assassinou Lorde Kalon do Sangue Granbehl,
Lorde Ezra do Sangue Granbehl e Lady Riah do Sangue Faline. ”

“E,” acrescentou ele após uma curta pausa, “para decidir sobre uma punição
apropriada, caso o ascendente seja considerado culpado.”

Conversas em sussurros surgiam dos espectadores atrás de mim, mas meu


foco estava nos juízes enquanto eles começavam a mexer em documentos
dispostos em suas mesas. O Alto Juiz Blackshorn era um homem mais velho,
pelo menos na casa dos setenta. Havia manchas escuras sob seus olhos fundos
e manchas cinza mosqueadas em seu couro cabeludo enrugado.

“Parece que ele pode cair morto a qualquer segundo,” disse Regis.

Conhecendo minha sorte, eles provavelmente me culpariam por isso também,


respondi.

Regis bufou, sua forma incorpórea irradiando diversão.

Blackshorn pigarreou. “A juíza Tenema nos fará um briefing processual.” (TL:


briefing é uma rápida apresentação de informações a algum
espectador/leitor)

Tenema era ainda mais velha do que Blackshorn, com cabelos brancos e finos
que pareciam flutuar ao redor de sua cabeça e óculos grossos que
aumentavam seus olhos para proporções de desenho animado.

Ela tentou falar, tossiu, e tentou novamente. “Este painel ouvirá declarações
de abertura tanto do Conselho do Sangue Granbehl quanto do Conselho do
Ascendente Grey, após o qual testemunhas serão chamadas.” Sua voz falhou e
enfraqueceu enquanto ela falava, o altura da voz oscilando. “Se houver
evidências físicas dos crimes, elas serão fornecidas, seguidas das declarações
finais e da deliberação deste painel.”

A velha respirou fundo e agitou-se ao terminar, como se o esforço de dizer


aquelas poucas frases a tivesse exaurido.

O juiz Harcrust, o mais jovem dos juízes, estava olhando para a velha com o
nariz franzido de desgosto. Seu cabelo preto-azulado e cavanhaque refletiam
a luz fria dos artefatos de iluminação e davam a seu rosto uma aparência
severa e sem humor.

Blackshorn acenou com a cabeça para Tenema. “Agora, o representante do


Sangue Granbehl pode se apresentar e fazer sua declaração de abertura.”

Sem surpresa, foi Matheson quem se levantou e se dirigiu aos juízes.


“Obrigado, Alto Juiz.”

Ele deu um passo à frente dentro da minha visão periférica antes de continuar,
sua voz projetada para que as pessoas atrás de nós pudessem ouvi-lo
claramente. “Como todos sabemos, os ascendentes são os punhos que
brandem as espadas do nosso progresso. Aqueles que se arriscam a procurar
relíquias de nosso passado – escondidas nas Relictombs pelos desonestos
magos antigos – sempre foram tratados com respeito em Alacrya, até mesmo
com amor e adoração.

“Ascender através das Relictombs é uma tradição de nosso povo consagrada


pelo tempo , um papel que atende diretamente à vontade de nosso próprio
Alto Soberano. Quando a Associação de Ascendentes testa os possíveis magos,
eles não estão apenas garantindo sua força corporal, mas também o poder de
sua vontade e a pureza de seus corações.”

Matheson deixou sua voz cair, dando à multidão silenciosa um olhar


desanimado por cima do ombro.

“É por isso que é tão raro haver violência entre ascendentes nas Relictombs…
e por que é tão trágico estar aqui hoje, discutindo a infeliz perda de três jovens
magos, todos de Sangues Nomeados, pilares do povo comum. Suas famílias
ascenderam à nobreza para lhes dar um futuro brilhante,” Matheson apontou
um dedo trêmulo para mim. “Futuros que foram tirados deles por este
homem!”

“Ascendente Grey mentiu para os jovens Granbehls, garantindo-lhes que


estava em sua ascensão preliminar para ganhar sua confiança e acesso às
Relictombs – mas dentro, eles encontraram uma zona de um pesadelo infernal
cheia de criaturas muito além de suas expectativas para uma mera ascensão
preliminar, o que, claro, era exatamente o que Grey queria.”

Matheson olhou suplicante para os cinco juízes. “Tenho visto com os meus
próprios olhos a insensibilidade, a falta de empatia demonstrada por este
homem nas últimas três semanas. Apesar da súplica de meu senhor, Grey se
recusou a reconhecer seus próprios crimes, ou a mostrar até mesmo um
lampejo de arrependimento pelas mortes que causou.”

Regis soltou uma gargalhada. ‘Huh… não sabia que as palavras’ torturar ‘e’
implorar ‘ eram sinônimas.’

“Seja por malícia, hostilidade ou crueldade vil, podemos mostrar a este


tribunal com certeza que Ascendente Grey levou Kalon, Ezra e Riah para a
morte, propositalmente e com motivo.”

Matheson girou em direção à multidão, suas vestes girando dramaticamente.


“É por esta razão,” disse ele, praticamente gritando, “que o Sangue Granbehl
pede a sentença mais dura possível para este crime terrível: execução pública!”

Várias vozes irromperam em resmungos surpresos, mas a sala do tribunal foi


rapidamente silenciada pelo barulho do martelo de Blackshorn.
“Silêncio!” O velho ordenou para a sala já silenciosa, a palavra ressoando como
o eco do martelo. Seus olhos caídos examinaram a sala do tribunal antes de
falar novamente, virando-se para o mordomo. “Obrigado, Mestre Matheson,
pode sentar-se.”

Meu olhar seguiu o mordomo enquanto ele voltava para seu assento. Sua
fachada vacilou quando nossos olhos se encontraram, e ele se encolheu antes
de desviar o olhar nervosamente.

“Em seguida, ouviremos a declaração de abertura do Ascendente Grey, a ser


feita por…” O Alto Juiz se inclinou em direção a um pergaminho que estava
lendo, sua testa enrugada se enrugando ainda mais enquanto ele fazia uma
carranca para o que lia.

Blackshorn se virou para Falhorn, sentado à sua direita. “Isso está certo?”

O juiz Falhorn era um homem grande, com cabelos ruivos ficando grisalhos e
rosto marcado pela bexiga. Ele se inclinou para frente e sussurrou algo para
Blackshorn, que olhou para baixo e à minha direita, seu rosto se contraindo.

“Chamamos Darrin Ordin para fazer as declarações iniciais de Grey.” Eu podia


estar errado, mas havia algo claramente mal-humorado sobre a maneira como
o Alto Juiz disse o nome do amigo de Alaric.

O homem deu um passo à frente com confiança, endireitando seu terno ao


ficar do meu lado direito, e uma explosão de barulho ondulou pelas pessoas
nas arquibancadas, levando a outra martelada de Blackshorn.

“Este é um tribunal, não uma arena de combate,” disse ele, carrancudo.

Darrin se virou e deu um pequeno aceno para o público antes de se dirigir aos
juízes. “Minha contraparte gostaria que você acreditasse que eles têm provas
de alguma intenção maliciosa no lado do Ascendente Grey, de que ele partiu
para matar esses três jovens ascendentes. Ele pintou Grey como um assassino
de coração frio, privado de quaisquer qualidades redentoras.”

“Mas os Granbehls têm alguma prova de suas acusações?” Ele perguntou, sua
voz soando através do tribunal. “Mesmo depois de ser autorizado por este
tribunal a manter o Ascendente Grey em sua própria masmorra privada, sem
supervisão do Alto Salão e sem acesso ao seu próprio conselho, durante o qual
os Granbehls o torturaram todos os dias, eles não têm nem mesmo uma
partícula de evidência para mostrar isso.”

Darrin se aproximou e pousou a mão no meu ombro. “Se Grey pretendia matar
esses jovens ascendentes, por que ele resgatou Lady Ada? Certamente se ele
fosse capaz de assassinar o famoso Kalon Granbehl, então sua irmã mais nova
não teria representado um desafio. E como um ascendente pela primeira vez
saberia como as Relictombs reagiriam à sua presença, mesmo se os Granbehls
pudessem provar que a suposta dificuldade dessas zonas foi diretamente
influenciada pela presença de Grey?”

A sala do tribunal ficou mortalmente silenciosa enquanto meu conselho falava,


e eu poderia dizer que o público estava absorvendo cada palavra. Os juízes,
por outro lado, pareciam tudo menos compelidos.

O mau humor natural de Blackshorn se transformou em uma carranca. Tenema,


por outro lado, tinha uma expressão sonhadora enquanto seus olhos
percorriam lentamente os rostos na multidão. Ao lado dela, Harcrust girava
seu cavanhaque como um bruxo malvado de contos de fadas, seus olhos
escuros fixos em Darrin. O rosto gordo de Falhorn estava curvado sobre um
documento, ignorando totalmente nossa declaração inicial, mas foi o juiz Frihl
que realmente chamava minha atenção.

Frihl tinha ficado quieto até agora, mas agora parecia estar falando sozinho
em uma diatribe silenciosa, mas furiosa. (TL: Diatribe é começar a falar muito
mal e ferozmente sobre algo ou alguém, como o Turtle usou essa palavra,
preferi deixar, já que ela é a mesma em português) Os outros juízes o estavam
ignorando, e a voz de Darrin facilmente ultrapassava a de Frihl, mas era um
pouco perturbador de assistir.

“A triste verdade é,” Darrin continuou, “as Relictombs são um lugar perigoso,
mesmo para aqueles de nós que já entraram em um portal de ascensão
dezenas de vezes antes. Basta um momento de excesso de confiança, um único
passo em falso… e às vezes nem isso. Cada ascendente tem uma história sobre
acabar em uma zona para a qual não estava preparado. Pelo menos, aqueles
que conseguem sair vivos.

“Não há evidências que sugiram que isso foi qualquer coisa além de uma
tragédia. Sem jogo sujo, sem trama de assassinato, apenas uma ascensão
preliminar que deu errado. Para o Sangue Granbehl fazer reivindicações
infundadas contra Gray, ameaça a própria instituição em que as ascensões são
baseadas: a confiança e a fé mútua que todo ascendente deve ter.”

Darrin voltou ao seu lugar enquanto os juízes trocavam olhares que variavam
de exasperado a completamente hostil.

‘Esse Ordin mijou nos túmulos das mães deles ou algo assim?’

Há claramente algum tipo de história aí, concordei, me perguntando se isso


acabaria sendo uma coisa boa ou ruim para mim.

Presumi que alguém pediria para eu falar ou fazer uma declaração minha,
especialmente porque eu nunca tinha conhecido o homem que agora estava
me defendendo antes do julgamento, mas até agora ninguém havia se dirigido
a mim diretamente.
A juíza Tenema se encolheu com um pequeno tapinha em seu ombro de
Blackshorn. Seus olhos turvos e ampliados se arregalaram e ela folheou
rapidamente as anotações em sua mesa.

“Sim, sim, testemunhas, é claro.” A velha pigarreou e olhou para um


pergaminho. “Como a primeira testemunha, o painel chama…”

Darrin já estava de pé novamente. “Com todo o respeito ao estimado painel de


juízes, acredito que o testemunho escrito deve ser lido antes de chamar
testemunhas—”

O som do martelo interrompeu Darrin. “Nós, de fato, conhecemos nossas


próprias regras,” Blackshorn disse friamente. “No entanto, não há declarações
por escrito para ler, Ordin. Por favor, Juíza Tenema, continue.”

A mandíbula de Darrin Ordin cerrou-se e eu o peguei dando outra olhada


rápida ao redor da sala antes de se sentar.

“Onde eu estava…” A velha juíza ficou quieta por um tempo antes de soltar um
“Aha!” e continuou. “Convocamos nossa primeira testemunha, Gytha do Sangue
Algere.”

‘Quem diabos é essa?’ Regis perguntou enquanto eu vasculhava meu cérebro


para lembrar de uma Gytha.

Não conseguia lembrar o nome, mas reconheci a mulher magra de cabelos


negros imediatamente quando ela se colocou na frente dos juízes.

A oficial que checou nossas informações antes de nos deixar entrar nas
Relictombs…

Falhorn se inclinou para frente, olhando para ela por cima da borda de sua
mesa alta. “Você é Gytha, do Sangue Algere?”

“Eu sou,” ela respondeu. A mulher estava de pé sem jeito, as mãos


entrelaçadas na frente dela, olhos arregalados olhando para os juízes.

“E você está familiarizada com o réu, Grey?” A voz de Falhorn estava rouca e
ofegante ao mesmo tempo, como um sapo-boi que acabara de ser pisado.

“Eu sou uma escriturária e peguei as informações do grupo Granbehl antes de


eles entrarem nas Relictombs, incluindo do Ascendente Grey.” Os olhos da
mulher se voltaram para mim enquanto ela dizia meu pseudônimo. Ela parecia
absolutamente apavorada.

“E qual foi sua impressão deste ascendente na época?” Falhorn tentou um


sorriso amigável, mas pareceu agressivamente faminto, apenas fazendo-o
parecer mais um sapo gigante.
A oficial das Relictombs olhou para mim novamente, torcendo as mãos. “Achei
estranho que alguém sem sangue estivesse viajando em tão alta companhia.
O irmão mais velho, Kalon… bem, ele parecia confortável o suficiente, mas o
irmão mais novo continuava atirando o que eu pensei serem olhares de raiva
para Grey, e eu tive a nítida impressão de que ele realmente não o queria lá.”

Não pude deixar de notar como ela e o juiz evitavam totalmente a menção a
Haedrig, ou Caera. Não pode ser coincidência, pensei.

“E o que dizer do próprio Grey?” Falhorn sondou.

“Ele estava quieto, reservado. Talvez até um pouco desconfortável. Como…


como se ele estivesse escondendo algo.”

Fechei meus olhos e soltei um suspiro.

“Entendo. Obrigado, Gytha. Pode se retirar.”

Darrin saltou de pé. “Juiz Falhorn, gostaria da oportunidade de questionar o…”

“A fim de poupar tempo,” Blackshorn interrompeu, “apenas os juízes terão a


oportunidade de fazer perguntas a essas testemunhas.”

Eu peguei o olhar de confusão do meu conselho com o canto do meu olho.


Claramente, normalmente não era assim que um julgamento alacryano
ocorreria.

As correntes se apertaram em torno de mim, me fazendo perceber que eu


estava inconscientemente me flexionando contra elas, e minha intenção
etérica estava vazando para a sala de modo que os juízes, Matheson e até
mesmo meu próprio conselho me olhavam com cautela.

“Verifique essas amarras,” rebateu Harcrust, e uma figura vestida de preto


correu para examinar a cadeira e as correntes. Ela assentiu e voltou ao seu
posto ao lado da fileira de escrivaninhas altas.

Obriguei-me a respirar fundo e soltei os braços da cadeira, segurando minhas


mãos soltas e relaxadas enquanto me recostava no ferro frio.

No momento em que voltei minha atenção para o processo, Gytha havia


desaparecido e a juíza Tenema estava chamando uma segunda testemunha.
“Poderia Quinten, sangue sem nome, se apresentar?”

Outro nome que não reconhecia, até que vi o homem entrar em minha linha
de visão enquanto caminhava em direção aos juízes. Ele havia trocado sua
armadura de couro escuro por calças pretas e uma túnica larga e mancava
ligeiramente enquanto caminhava.

Quinten…
Eu zombei em voz alta enquanto me lembrava dos meus primeiros momentos
no segundo nível das Relictombs, quando um jovem ascendente amigável me
levou para um beco e tentou me assaltar.

‘Por que diabos eles o chamariam como testemunha?’ Regis perguntou com
raiva.

Ignorando meu companheiro, observei o vigarista com diversão e


aborrecimento enquanto ele se apresentava diante dos juízes.

“Você é Quinten, sangue sem nome, e ascendente?” Foi Harcrust quem fez as
perguntas desta vez. Sua voz nasalada praticamente exalava auto-
importância.

“Ascendente aposentado, juiz,” disse Quinten, a voz fraca e cansada. “Mas sim,
sou o Quinten. Sangue sem nome, já que sou apenas um ninguém de uma
pequena vila em Vechor.”

“E por que, posso perguntar, um homem jovem e robusto como você foi
forçado a se aposentar?” Harcrust continuou.

Quinten esfregou a perna e deu ao juiz um olhar de dor. “Algumas semanas


atrás, eu tive um encontro com outro ascendente – este homem, Grey – bem
aqui no segundo nível. Ele me fez pensar que era um woga – um, uh, novato, e
precisava de ajuda para se orientar.”

Ele respirou fundo e soltou um suspiro. “Eu acreditei nele, é claro, e mostrei-
lhe um pouco – sem esperar nada em troca, apenas sendo amigável – mas
quando estávamos fora da estrada principal, ele me nocauteou, me deixou…
nu… e me amarrou.”

A carranca de Harcrust se aprofundou enquanto Quinten falava. “Desprezível.


O que aconteceu depois?”

Quinten me lançou um olhar furtivo, como se tivesse medo de estar na mesma


plataforma, e engoliu em seco teatralmente. “Ele me ameaçou… me torturou.
Quebrou minha perna, então não posso arriscar voltar para as Relictombs…”

“E por que ele torturou você? O que Grey queria?”

“Ele queria saber sobre os Granbehls, juiz-”

O som de metal sendo rasgado interrompeu os procedimentos enquanto eu,


sem querer, arrancava um braço de ferro da cadeira. As correntes se apertaram
ao meu redor, prendendo meus braços com ainda mais força e queimando
minha pele com seu frio.

Quinten saltou para longe de mim, não mancando mais, e Harcrust


empalideceu ao perceber o estrago na cadeira.
Virando-se, ele fez uma careta para o oficial encapuzado. “Tem certeza de que
a supressão de mana está funcionando corretamente?”

Não pude ouvir as palavras abafadas do oficial por causa do sangue latejando
em minha cabeça.

‘Chefe…’ A preocupação ansiosa de Regis vazou para mim, puxando-me de


volta do precipício de minha própria raiva.

Eu examinei os rostos assustados e preocupados dos juízes antes de deixar


cair o pedaço quebrado da cadeira. Ele bateu pesadamente contra o chão,
ressoando pela câmara.

Finalmente, as correntes afrouxaram quando parei de empurrar de volta


contra elas, me deixando respirar novamente.

Harcrust pigarreou antes de perguntar, “E por que você acha que Grey queria
saber sobre os Granbehls?”

Quinten olhava boquiaberto para o pedaço de metal retorcido no chão.


Harcrust pigarreou novamente, fazendo o ascendente pálido e suado se
encolher. “E-eu estava com muito medo de pensar direito na hora”, ele deixou
escapar, tropeçando nas palavras, “mas… ficou claro depois que ele tinha algo
mal planejado para eles. Eu gostaria de ter falado isso antes de tudo, mas…
ele ameaçou me matar se eu contasse a alguém sobre isso.”

Harcrust concordava com a cabeça, como se a história de Quinten fizesse todo


o sentido. “Ninguém te culpa, Ascendente Quinten. Mas agradecemos por você
estar aqui hoje. Ficar na frente de seu agressor e falar a verdade exigiu grande
coragem, mas encontrar justiça sempre exige. Pode ir agora.”

Quinten fez uma reverência rígida e se virou para sair. Por um instante, nossos
olhos se encontraram, e houve um brilho divertido lá, e uma contração nos
cantos de sua boca que poderia ter sido um sorriso malicioso, mas foi apagado
pelo meu brilho frio. Ele se esqueceu de mancar novamente enquanto se
afastava apressado.

Darrin deu um passo à frente mais uma vez. “Eu gostaria de pedir um breve
recesso para falar com Grey, para que possamos refutar apropriadamente as
afirmações desta testemunha,” disse ele, sua voz retraída com uma calma
forçada.

O Alto Juiz Blackshorn zombou. “Você teve três semanas para organizar suas
refutações. Por uma questão de tempo, não entraremos em recesso até a
deliberação, e somente então, se necessário, para que os juízes dêem sua
decisão final.”

Darrin cerrou os punhos e fez uma reverência superficial antes de retornar ao


seu lugar. Eu podia ouvir ele e Alaric sussurrando para frente e para trás, mas
não conseguia entender o que estava sendo dito. Houve alguma conversa da
multidão também, mas foi silenciada por um olhar duro de Blackshorn.

Tenema pigarreou. “A testemunha final, Lady Ada Granbehl, por favor, dê um


passo à frente.”

Ada apareceu à minha esquerda, mas ela não estava sozinha. Sua mãe e seu
pai caminhavam ao lado dela, o braço grosso de Lorde Granbehl em volta de
seus ombros, enquanto Lady Granbehl a segurava pela cintura, apertando a
garota entre eles.

Foi Blackshorn quem se dirigiu a eles. “Lorde e Lady Granbehl, Ada, deixe-me
começar dizendo o quanto todos nós sentimos pela perda de Kalon e Ezra, e
obrigado por comparecer a este julgamento pessoalmente.”

Alaric bufou, então tardiamente disfarçou como uma tosse. Blackshorn lançou-
lhe um olhar de advertência.

A voz de Lorde Granbehl ecoou pela sala do tribunal quando ele falou.
“Estamos aqui para garantir que a justiça encontre o monstro que assassinou
nossos filhos, Alto Juiz Blackshorn. Embora a dor ainda esteja recente, minha
filha insistiu em estar aqui para olhar em seus olhos e condená-lo em sua
frente.”

Ada olhou nos meus olhos então, mas não vi condenação, apenas confusão. Eu
vi uma garota assustada e sozinha sem seus irmãos. Então Lady Granbehl a
puxou com força, quebrando nosso contato visual.

“Lady Ada poderia, por favor, recontar as ações do Ascendente Grey nas
Relictombs?” Blackshorn disse.

Ada falou pausadamente quando começou a contar a história de como nos


conhecemos e nossa jornada para a zona da ponte. Eu esperava uma versão
embelezada, ou mesmo mentiras descaradas, como o bandido Quinten havia
contado, mas Ada se manteve perto da verdade.

Havia horror genuíno em sua voz quando ela contou como Riah foi ferida, mas
quando Blackshorn tentou guiá-la para me culpar, ela tropeçou na pergunta
sem jeito.

“E foi Grey quem nos tirou daquela zona…” ela estava dizendo, descrevendo
nossa fuga através do rosto de uma estátua que se parecia comigo.

A essa altura, o sorriso estóico de Lady Granbehl parecia tenso, e Lorde


Granbehl estava lançando olhares frustrados para Ada. “É claro,” disse ele em
voz alta, fazendo Ada pular, “que a intenção de Grey desonesto era levar minha
família mais fundo nas Relictombs antes…”

“A fim de poupar tempo,” disse Darrin Ordin, ainda mais alto do que Lorde
Granbehl, “e pelos procedimentos do Alto Salão, a testemunha deve ter
permissão para prestar seu depoimento sem interrupção. A menos, é claro,”
ele acrescentou com um largo sorriso, “o painel de juízes está abrindo esta
testemunha para perguntas, porque eu tenho algumas.”

Blackshorn olhou para ele. Depois de um tenso impasse, o Alto Juiz voltou-se
para Ada. “Por favor, continue, mocinha.”

Ada não foi muito longe em sua história antes de Harcrust e Falhorn
começarem a pressioná-la para obter detalhes de como eu atravessei o
abismo. Eles a fizeram percorrer, em detalhes, tudo o que eu disse ou fiz, e
ficaram circulando para ver se eu havia ativado uma relíquia para fazer isso.

Ada não conseguiu responder, é claro, não tendo ideia de que eu usei uma
runa divina, mas eles continuavam voltando para a mesma linha de
questionamento.

‘Se eles acham que você tem uma relíquia, ou relíquias, esse seria o dia de
pagamento de quem quer que seja que vai receber suas coisas quando você for
decapitado,’ brincou Regis, mas eu ainda podia sentir a tensão e a
preocupação que emanavam dele.

Quando ficou claro que Ada não poderia dar a eles nenhuma outra informação,
eles a deixaram prosseguir com os eventos dentro da sala do espelho. Aqui,
sua história divergia ligeiramente da verdade. Ela pulou seu aprisionamento
dentro do espelho e a possessão de seu corpo pelo fantasma de éter,
descrevendo a cena como se ela simplesmente estivesse sentada em um canto
assistindo.

Lorde Granbehl começou a relaxar quando Ada descreveu a crescente tensão


e frustração conforme os dias se estendiam na zona e a comida acabava. Mas
quando ela alcançou a parte onde o ascendente de sangue Vritra, Mythelias,
foi libertado de seu espelho por Ezra, Lorde Granbehl falou novamente por ela.

“Sinto muito, Alto Juiz, minha filha está sofrendo com o estresse desses
eventos e perdeu um detalhe importante. Ezra realmente liberou este
ascendente para— ”

“Quem exatamente é a testemunha aqui, Alto Juiz?” Darrin disse, exasperado.


“Eu não sabia que Titus Granbehl tinha conhecimento de primeira mão do que
aconteceu nesta expedição. Se for esse o caso, por que ele não foi chamado
para ser uma testemunha?”

Um sussurro de consentimento mudo veio das pessoas nas arquibancadas,


fazendo com que o martelo de Blackshorn caísse novamente. Eu não pude
deixar de notar que não acalmou imediatamente a multidão desta vez.

Blackshorn se ergueu de modo que se ficava acima da sala do tribunal de sua


mesa alta. “Vou lembrar a todos os presentes,” disse ele, praticamente
gritando, “que o procedimento é decidido pelo Alto Juiz – neste caso, eu- e
farei o que for necessário para fornecer justiça oportuna para os assassinados.
Não é o lugar do conselho questionar os procedimentos do Alto Salão, ou
minhas decisões.”

Darrin virou o ombro para o juiz, sua atenção pousada em Ada. “Ada, você
realmente acredita que Grey queria que seus irmãos morressem? Que ele é
culpado de assassinato?”

“Como você ousa se dirigir à minha filha,” Lorde Granbehl trovejou.

O martelo de Blackshorn desceu várias vezes enquanto ele rugia sem palavras.

“Ada!” Darrin forçou. “A vida desse homem pode depender de-”

“Eu exijo que você se sente!” Blackshorn rosnou.

Falhorn e Harcrust acenavam vigorosamente com a cabeça, enquanto Tenema


levava as mãos aos ouvidos e olhava com raiva para o martelo que Blackshorn
continuava a martelar. Frihl recostou-se na cadeira, de braços cruzados, e
estava olhando mortalmente para Darrin Ordin.

A multidão ficou mais barulhenta. Seus gritos de indignação ecoavam uns nos
outros até que suas palavras se misturaram em um coro ininteligível.

“Não!” Ada gritou, sua voz de dor cortando o caos como uma sereia.

Então, a sala ficou mortalmente silenciosa, todos os olhos focados na figura


trêmula da criança Granbehl. Seu olhar caiu, sua franja loira cobrindo a maior
parte de seu rosto enquanto ela falava em um sussurro baixo.

“Grey não matou meus irmãos.”

Capítulo 332
Correntes Quebradas

“Grey não os matou,” disse Ada, mais alto desta vez.

A mão de Titus Grandbehl se estendeu para cobrir a boca de sua filha. “Ada! O
que você está-”

Escorregando das mãos de seus pais, ela deu um passo em direção aos juízes.
As palavras começaram a jorrar dela enquanto seu rosto ficava cada vez mais
vermelho. “Eu estava presa em um espelho e Grey estava tentando me salvar,
mas Ezra não quis ouvir e libertou o ascendente chifrudo do espelho mágico
enquanto Grey estava trabalhando com essa coisa de artefato, e o outro
ascendente matou meus irmãos, e eu teria ficado presa lá para sempre, mas
Grey me salvou.”
A garota escondeu o rosto nas mãos enquanto seus pais ficavam rígidos, cada
um do lado dela.

Darrin me lançou um olhar vitorioso antes de se virar para Blackshorn. “Bem,


aí está você-”

“Lorde Granbehl,” Blackshorn disse, falando sobre meu conselho, “está claro
que sua filha está incrivelmente angustiada. Embora apreciemos a bravura de
seu sangue em comparecer a este julgamento pessoalmente, é a opinião deste
painel que não podemos aceitar o testemunho de Ada neste momento e, em
vez disso, usaremos o relato por escrito dos eventos que já recebemos.”

Ada olhou boquiaberta para o juiz supremo enquanto seu pai assentia, sua
bochecha se contraindo quando ele reprimiu um sorriso.

“Vocês podem ir, todos vocês,” acrescentou Blackshorn.

As correntes começaram a apertar mais uma vez enquanto eu falhava em


suprimir minha crescente irritação. Eu pressionei minha mão no metal afiado
e retorcido onde eu havia rasgado o braço da cadeira, deixando a dor queimar
de maneira clara em minha mente enquanto cortava minha pele.

Alguém atrás de mim gritou como isso não era justo, envolto em uma série de
maldições e, em segundos, todo o tribunal explodiu em um coro de gritos e
insultos dirigidos aos juízes.

“-deve estar brincando-”

“—mesmo ouvindo o que a garota disse—”

“—Uma farsa, uma fraude total—”

“—Melhor deixar Ascendente Grey ir ou—”

Todos os juízes estavam de pé – exceto Tenema, cujo velho rosto enrugado se


contraiu de desgosto – enquanto Blackshorn martelava com o martelo de novo
e de novo, mas a sala do tribunal estava em plena revolta atrás de mim. Ouvir
a multidão ansiosa se voltar contra os juízes corruptos ajudou a acalmar meus
nervos apenas o suficiente para que as correntes simplesmente me
prendessem e não tentassem arrancar minha cabeça.

“Silêncio!” o Alto Juiz estava urrando. “Silêncio! Silêncio!”

Harcrust voltou-se para um funcionário que estava meio escondido atrás das
escrivaninhas. “Limpe a sala. Faça. Agora!”

De repente, soldados em armaduras pretas estavam entrando no tribunal, mas


tudo estava acontecendo atrás de mim. Virei-me no assento para ver melhor,
mas as correntes cravaram-se com força, fria e duramente, mantendo-me
preso à cadeira de ferro.
Regis deixou escapar um escárnio. ‘Eles estão expulsando todo mundo.’

Um grito de pânico ressoou pelo tribunal.

‘Droga, um dos soldados acabou de nocautear alguém. E é claro que os guardas


Granbehl os estão ajudando.’

Na minha frente, Darrin assistia com horror enquanto os guardas do Alto Salão
escoltavam a multidão através das enormes portas duplas e para o longo
corredor. Os juízes exibiam olhares de nojo e satisfação misturados.

As portas se fecharam, e os gritos e passos pesados e retumbantes foram


abafados, então lentamente se dissiparam, até que a sala do tribunal foi
deixada em um estado de silêncio assustador.

Além dos cinco juízes e um punhado de guardas do Alto Salão com armaduras
pretas, apenas Darrin, Alaric, Matheson e eu permanecemos na sala.

“Faz sentido lembrar ao Alto Juiz que um julgamento perante um painel de


cinco deve ser aberto ao público?” Darrin perguntou, sua voz um grunhido de
fúria reprimida.

“Nenhum,” Blackshorn rosnou, olhando com o rosto sombrio para nós quatro.
Darrin e Blackshorn se olharam, mas depois de alguns segundos meu conselho
submeteu-se ao juiz, olhando para o chão da plataforma.

Alaric se moveu para ficar do meu outro lado, enquanto Matheson mantinha
distância. Alaric se abaixou um pouco e sussurrou, “Eu sei que isso parece
ruim, garoto, mas não vá fazer nada estúpido. Ainda temos alguns truques na
manga… Espero,” ele acrescentou em um tom um pouco hesitante.

Blackshorn pigarreou, um som úmido e áspero como uma lâmina sendo afiada.
“Está claro para mim que alguém trabalhou para hostilizar essa ralé e
atrapalhar esses procedimentos. Felizmente, fomos avisados de que esse
poderia ser o caso.”

Frihl deixou escapar um forte “Hah!” que silenciou o Alto Juiz e fez com que o
resto do painel se voltasse para ele com expectativa.

“Quando soube que alguém estava espalhando histórias, irritando as


pessoas, soube que devia ser o ‘homem do povo’, Darrin Ordin, sujando este
julgamento com seu senso de justiça de homem inferior. Bah!”

O rosto de Frihl se transformou em uma carranca exagerada. “Você se tornou


previsível, Ordin. Mas seus jogos não vão funcionar desta vez.”

‘Eu me pergunto quantos burros com chifres ele teve que beijar para se tornar
um juiz?’ Regis perguntou em um tom de admiração e horror mesclado.
“Obrigado, juiz Frihl,” disse Blackshorn apaziguadoramente. “Como eu disse,
esperávamos essas táticas, mas não vamos permitir que esse julgamento se
transforme em uma espécie de circo.”

Eu ri, frio e sem humor. Darrin me lançou um olhar de advertência e Alaric


balançou a cabeça, mas eu estava acabado.

“Parece que Ascendente Grey está finalmente revelando sua verdadeira


natureza,” disse Blackshorn, levantando a sobrancelha. “Sua capacidade de rir
depois que tais eventos terríveis ocorreram fala muito.”

“Honestamente, eu sinto que este foi um julgamento para minha paciência, e


não as acusações ridículas dos Granbehls,” eu disse com naturalidade. “Qual
é o próximo? Talvez os jurados honrados revelem que os cadáveres de Kalon,
Ezra e Riah foram magicamente recuperados das Relictombs, e seus
ferimentos provem sem sombra de dúvida – de alguma forma – que eu sou o
assassino?

“Ou, melhor ainda, talvez vocês tenham encontrado meu diário secreto que eu
convenientemente coloquei em um lugar público em algum lugar, detalhando
meu plano maligno para matar todos os Granbehls, exceto, é claro, aquele
que eu salvei.”

Frihl levantou-se de repente, seu dedo nodoso apontado para mim. “Como
você ousa proferir tal blasfêmia na frente de-”

Blackshorn levantou a mão, acalmando seu colega antes de se recostar na


cadeira. Em vez de ficar com raiva do meu sarcasmo não tão sutil, ele apenas
me estudou, seus dedos entrelaçados diante dele.

O rosto de Frihl estava vermelho de raiva fervente, mas ele segurou a língua,
assim como Falhorn e Harcrust. Tenema foi a única que parecia
desinteressada, parecendo achar mais interesse em um fio solto em seu manto
do que eu.

“A ausência de evidências físicas dificilmente é um problema, considerando as


declarações convincentes das testemunhas que recebemos,” respondeu
Blackshorn com um leve encolher de ombros. “O que nos leva à parte de
deliberação deste julgamento, eu acredito.”

Tenema, franzindo ligeiramente a testa, puxou o fio e o deixou cair na mesa.


“Culpado, eu diria. Eu posso ver isso claro como o dia.”

O rosto de Darrin caiu quando ele olhou para as portas principais. Em frente a
ele, Matheson deixou um sorriso de auto-satisfação rastejar em seu rosto.

‘A esta altura, é difícil dizer quais são corruptos e quais são simplesmente
estúpidos,’ disse Regis com um suspiro.
“Nenhuma deliberação necessária. Culpado,” cuspiu o juiz Harcrust, o dedo
girando novamente o cavanhaque oleoso.

A papada de Falhorn balançava e gingava enquanto ele balançava a cabeça.


“Uma exibição lamentável. Culpado.”

O olhar penetrante de Frihl travou em Darrin enquanto ele sibilava, “Culpado,


três vezes.”

Um leve movimento no canto do meu olho chamou minha atenção: Lorde


Granbehl, parado nas sombras de uma alcova na outra extremidade da
câmara. (TL: Alcova é um aposento, adjacente a uma sala e de dimensões
reduzidas, destinado a servir de dormitório.) Mesmo na escuridão, seus dentes
brancos e brilhantes brilhavam enquanto ele sorria vitoriosamente.

Blackshorn se inclinou para frente sobre sua mesa alta. “Culpado,” ele disse
lentamente, saboreando a palavra.

Alaric estava balançando a cabeça, como se não pudesse acreditar no que


estava ouvindo. “Eles não vieram, malditos,” disse ele em um sussurro rouco.

“Quanto à questão da punição,” disse Blackshorn, repentinamente


profissional. “Primeiro, todas as posses materiais e riquezas de Ascendente
Grey são confiscadas imediatamente e serão transferidas para Sangue
Granbehl em recompensa pela perda sofrida nas mãos de Grey. Ascendente
Grey, você deve entregar todos os bens, incluindo todos os itens que foram
trazidos de volta com você das Relictombs, para este tribunal imediatamente.
A localização de qualquer riqueza ou posses que você possua, mas não esteja
carregando você neste momento, deve ser divulgada, incluindo a propriedade
parcial de quaisquer posses de sangue.”

“Não se esqueça, Alto Juiz,” disse Matheson com um sorriso afetado, “todos os
artefatos ilícitos que o ascendente possuía.”

“É claro,” acrescentou Blackshorn. “No caso, Ascendente Grey, de você se


recusar a divulgar a localização de seus bens, então sua mente será separada
por nossas sentinelas mais poderosas antes de sua execução.”

Ele fez uma pausa, seus olhos fixos em mim enquanto esperava pela minha
resposta.

Eu dei a ele um sorriso encantador. “Mal posso esperar.”

“Guardas,” disse Blackshorn, com o nariz franzido como se tivesse acabado de


pisar em algo sujo, “coloque este bandido assassino na menor e mais profunda
cela disponível.”

‘Agora vamos matar todos esses palhaços?’ Regis implorou. ‘Eu fico com burro
de cavanhaque.’
Não. Aqui não, respondi friamente.

O barulho de gritos alcançou meus ouvidos do lado de fora da sala do tribunal;


houve algum tipo de comoção no corredor além das enormes portas duplas.

“Esse poderia ser nosso trunfo,” Alaric sibilou. “Precisamos manter sua bunda
naquela cadeira, garoto.”

Enquanto eu examinava os guardas lentamente nos rodeando, uma calma


gelada se espalhou por mim. De certa forma, era uma espécie de consolo frio
saber que a decisão deles havia sido tomada e meu julgamento havia
terminado.

Darrin e Alaric foram forçados a se afastar de mim e ficar fora de vista. Mesmo
quando a dúzia de guardas com armaduras pretas avançou em minha direção,
armas em punho, eu permaneci sentado, imparcial e composto.

“Eu gostaria de caminhar até a cela com meus próprios pés,” eu disse, minha
voz uniforme e suave apesar do número de armas afiadas carregadas de mana
apontadas para mim.

“Você ainda acha que tem direito a essa liberdade?” Blackshorn respondeu.
“Não. Você será despido e amarrado até o momento de sua morte.”

Eu deixei uma onda de intenção etérica emergir de mim, crescendo através


dos guardas e os deixando imóveis. Alguns dos mais fracos caíram de joelhos,
os olhos arregalados e ofegando.

Os juízes estavam todos pálidos, seus olhos procurando por alguma resposta
para explicar exatamente o que estava acontecendo. Afinal, eu era um
prisioneiro preso e privado de qualquer acesso à mana. Normalmente, algo
assim nunca aconteceria.

Normalmente.

“Eu e-exijo saber o que você está fazendo!” Frihl conseguiu gritar.

“Deve ser uma relíquia, meritíssimo! Eu sabia que ele estava escondendo de
alguma forma.” Matheson reuniu força suficiente para rastejar para cima de
seus joelhos, sua expressão tensa quando ele se virou para mim. “Exijo que
você entregue a relíquia imediatamente!”

Meu olhar caiu para o mordomo, fazendo-o recuar de surpresa. “Por que você
não vem aqui e pega?”

Matheson, com as sobrancelhas finas marcadas de suor, engoliu em seco.

O tempo parou na sala, pois nenhuma das pessoas presentes foi capaz de
reunir coragem para dar um passo mais perto de mim.
Foi só quando as portas do tribunal se abriram que libertei a pressão
sufocante que estava segurando na sala. Torcendo contra as correntes
apertadas, olhei por cima do ombro para ver alguns rostos familiares.

“Já era hora,” Alaric respirou.

– Nossa cavalaria chegou, Efeminado – disse Regis com um sorriso.

O primeiro homem que notei foi o Atacante musculoso e de cabelo carmesim


chamado Taegan, e ao lado dele estava seu companheiro elegante, o
espadachim Arian. Os dois ascendentes flanqueavam um homem musculoso
de cabelos cor de oliva que eu não reconheci, que por sua vez estava seguindo
uma mulher furiosa com cabelos ruivos e olhos azuis brilhantes. Os quatro
pararam no topo da escada, olhando para o impasse entre os guardas e eu.

“Pela Graça dos Vritra… Blackshorn, por que eu tive uma dúzia de pessoas
diferentes martelando para entrar em meu escritório nos últimos quinze
minutos? Explique-se imediatamente.”

O Alto Juiz se encolheu ante o estrondo de autoridade dentro da voz da mulher,


e sua boca começou a abrir e fechar como um peixe se afogando na praia.

“Oh, céus”, disse o homem de cabelo cor de azeitona por trás da mulher,
apontando para a sala do tribunal com uma pilha de pergaminhos em uma das
mãos. “Parece que chegamos bem a tempo de evitar um grave erro judiciário.”

O rosto de Harcrust se iluminou quando as portas se abriram, mas caiu


novamente ao ver a mulher ruiva e sua comitiva. “Juíza Suprema! E… o herdeiro
Denoir, aqui, pessoalmente. Você, hum, nos trouxe a declaração de Lady
Caera?” ele perguntou, seu ar de elevada superioridade desaparecendo. “Você
não precisava ter se incomodado, é claro, estamos quase terminando com esse
criminoso louco. Juíza Suprema, não havia necessidade de você…”

Quando os olhos azul-gelo da mulher se voltaram para Harcrust, foi como se


o congelassem até o núcleo de mana. “Não se atreva a me dizer o
que preciso fazer em meu próprio salão, Harcrust.”

“A questão é,” disse o homem de cabelos cor de azeitona, “que estamos aqui
em nome do criminoso demente.

O herdeiro Denoir… Então Caera convenceu seu sangue a ajudar, afinal. Eu não
pude evitar o lampejo de um sorriso que cruzou meu rosto.

“Fique quieto, Denoir,” a mulher disparou.

Harcrust começou a bufar, finalmente tendo recuperado um pouco da


compostura, mas a mulher estalou os dedos, silenciando-o.

“Se metade do que me disseram é verdade, você zombou da justiça do Alto


Salão, desrespeitando todas as regras que consideramos sagradas.” Seu olhar
cortante varreu os cinco juízes. “Proibindo o interrogatório? Remoção forçada
de observadores públicos? Posicionando soldados terceirizados dentro dessas
paredes sagradas?”

Com base na intensidade do olhar da mulher, fiquei surpreso que Blackshorn


e os outros não explodiram em chamas naquele momento.

“Juíza Suprema, não quero desrespeitar quando digo isso,” Blackshorn reuniu,
endireitando seu manto. “Mas, por questão de tempo, não podíamos seguir
estritamente o protocolo padrão. Nós apenas procuramos manter nossos
cidadãos protegidos deste assassino.”

“Isso está certo?” Um sorriso divertido se espalhou pelo rosto do Alto Juiz
quando ela recebeu uma pilha de pergaminhos do homem Denoir. “Então,
suponho que esta extensa lista de seus muitos negócios ilegais, promessas
antiéticas e ações fraudulentas que levaram a este julgamento, foi tudo em
nome de manter nossos cidadãos seguros, Blackshorn?”

A pele manchada do velho juiz empalideceu. “Is-isso… Juíza Suprema, permita-


me explicar-”

“Como Juíza Suprema, principal árbitra do Alto Salão das Relictombs, declaro
este julgamento nulo e liberto Ascendente Grey, com efeito imediato.”

“Mas-”

Um olhar feroz da Juíza Suprema forçou a boca de Blackshorn a se fechar.

Eu relaxei, deixando as correntes fazerem o mesmo, e examinei as alcovas


escuras ao redor da sala do tribunal procurando por Titus Granbehl. Ele deu
um passo para trás ainda mais nas sombras com a chegada da Juíza Suprema.
Nossos olhos se encontraram brevemente – os dele brilhando furiosamente,
os meus semicerrados de diversão – antes de ele se virar e desaparecer.

“Guardas, cuidem para que os juízes deste painel não vão a lugar nenhum e,
pelo bem dos Vritra, alguém tire essas correntes desse homem,” ela retrucou.

“Não há necessidade,” eu disse simplesmente.

Um gemido agudo e metálico encheu a sala do tribunal enquanto as correntes


que me prendiam se rompiam. Fragmentos de metal voaram pela sala
enquanto os olhares dos guardas se alargaram em choque e espanto e eles
cambalearam para trás, metade deles apontando suas armas para os juízes, a
outra metade para mim.

Blackshorn e os outros juízes estavam olhando incrédulos para as correntes,


qualquer aparência de equilíbrio que eles tinham desapareceu.

Esfregando meus pulsos, me virei para Blackshorn, cuja mandíbula estava


frouxa.
“Minhas desculpas por arruinar seu artefato, mas…” Eu abri um sorriso para
ele. “Você sabe… Pra poupar tempo.”

Capítulo 333
Atenção

‘Isso foi muito foda,’ disse Regis com aprovação quando saímos.

De pé sob o céu azul vibrante, respirei fundo o ar fresco e não pude deixar de
sorrir. As gárgulas e os espinhos de ferro do Alto Salão pareciam muito menos
imponentes agora que meu julgamento havia acabado.

Da entrada em arco, a Juíza Suprema pigarreou para chamar nossa atenção.

Lauden Denoir deu um passo à frente e fez uma reverência profunda.


“Obrigado por sua ajuda hoje, Suprema Juíza. Alto Sangue Denoir não vai…”

“Presuma imaginar que minhas ações foram para o benefício de seu sangue,”
a mulher interrompeu com um leve movimento de seu cabelo de fogo. “Este é
um lugar de verdade e justiça, não um antro de jogos de azar onde pessoas
mesquinhas podem tentar trapacear para ganhar uma fortuna.”

O sorriso aristocrático de Lauden Denoir vacilou por um instante, mas foi


estampado com firmeza em seu rosto novamente quando ele deu um passo
para trás.

“Seria melhor,” a Juíza Suprema continuou em sua voz afiada e autoritária,


“que os eventos de hoje e as ações tomadas contra você nas últimas três
semanas, ficassem no passado, Ascendente Grey. Afinal de contas, o Alto Salão
tem uma… reputação a ser considerada, e os Soberanos podem se envolver
pessoalmente se a violência aumentar entre você e o Sangue Granbehl.”

Eu levantei uma sobrancelha. “Você tem um jeito bom de pedir um favor, Juíza
Suprema.”

A tensão estalou no ar enquanto meu olhar perfurou seus olhos azul-gelo. Eu


considerei todas as leis que os Granbehls haviam violado e que a Juíza
Suprema estava me pedindo para simplesmente perdoar e esquecer.
Finalmente, soltei um suspiro. “Enquanto o Alto Salão – e os Granbehls –
ficarem fora do meu caminho, não farei nenhum esforço para causar
problemas.”

A juíza suprema deu-me um único aceno de cabeça rápido. “Então, eu


recomendaria que você ficasse sumido, pelo menos por um tempo.”

Eu continuei a encarando por mais um momento antes de me virar, com a


emoção momentânea do fim do julgamento manchada pelo lembrete afiado
da mulher.

Vários pequenos grupos de pessoas ainda estavam esperando ao redor das


bordas do pátio, mas eles não ousaram se aproximar da pressão opressiva que
irradiava de Taegan e Arian, que estavam lançando olhares de advertência ao
redor do espaço aberto.

Ouvi alguns aplausos e alguns gritos por minha atenção, mas os ignorei, em
vez disso me concentrando em Lauden Denoir, cujo sorriso cortês bem
treinado parecia estampado em seu rosto.

“Obrigado por sua ajuda inesperada,” eu disse, observando o herdeiro Alto


Sangue cuidadosamente. “Embora eu admita que estou um pouco surpreso
que Alto Sangue Denoir saiu de seu caminho para ajudar um ascendente
humilde e sem nome.”

“Para um amigo da minha querida irmã? Honestamente, qualquer problema


vale a pena se acalmar a mente de Caera. Ela está muito preocupada com você,
de fato, mas tenho certeza de que ficará incrivelmente aliviada ao saber de sua
absolvição. Um sorriso genuíno deslizou pela máscara cortês que ele estava
usando.

“Eu ouvi Lady Caera murmurando o nome do Efeminado em voz baixa mais de
uma vez,” Taegan grunhiu.

“Vamos continuar com esse apelido, não é?” Eu perguntei, impassível.

Arian, tirando seus olhos penetrantes da multidão por apenas um momento,


lançou-me um sorriso envergonhado. “Meu companheiro anormalmente
grande e denso acha mais fácil chamá-lo apenas por suas características
físicas, em vez de se preocupar em lembrar seu nome.”

Taegan lançou ao magro espadachim um olhar de advertência. “Eu sinto a


zombaria por trás de suas palavras embelezadas, pequena espada.”

“De qualquer forma,” Lauden interrompeu, aquele sorriso forçado se


contraindo novamente, “Eu adoraria estender um convite para jantar esta
noite para que você possa ver Caera. Meus pais já voltaram para nossa
propriedade no domínio central, mas espero que um homem com o seu talento
óbvio possa encontrar o caminho, certo? O Alto Lorde e Lady Denoir estão
ansiosos para conhecê-lo, especialmente depois do investimento que
acabaram de fazer para vê-lo libertado.” Seu tom ficou mais sério, quase
agudo, ao dizer isso. A implicação era clara.

Antes que eu pudesse responder, Alaric passou um braço em volta do meu


ombro e disse, “Muito obrigado a você e a seu Alto Sangue, mas receio que
meu sobrinho tenha passado por uma provação significativa. Afinal, ele foi
torturado por três semanas seguidas e precisa descansar um pouco. Tenho
certeza de que Grey adoraria vir em algum outro momento, é claro. Enviaremos
uma nota.”

Antes que o herdeiro Denoir pudesse refutar, meu “tio” já estava me puxando
para longe. Eu olhei para trás para ver Lauden, flanqueado por Arian e Taegan,
com seus braços cruzados e sobrancelhas franzidas em uma carranca.

Abri a boca para perguntar a Alaric se seria sensato dispensar o herdeiro


Denoir tão repentinamente, quando um grito me interrompeu.

“Ascendente Grey, eu te amo!”

Surpreso, examinei a multidão até encontrar a origem da voz, que era uma
jovem com uma armadura de couro laranja vibrante.

– Eu também te amo, sua deusa bronzeada e esculpida – gritou Regis, sua voz
ecoando em minha cabeça.

Meus olhos permaneceram nela, curiosos, até Alaric me dar um tapinha no


braço.
“Não há tempo para se misturar com as fanáticas,” Alaric disse, acelerando
nosso passo. “Precisamos levar você a algum lugar com menos olhos,
independentemente de quão grandes e azuis eles possam ser.”

“Por que parece que estamos tentando fugir?” Eu perguntei, mantendo um


ritmo vagaroso. “Lauden tem uma poker face terrível, mas não faria mal visitar
a casa dele e apenas dizer obrigado…”

Alaric bufou sem humor e apressou-se a seguir em frente. Ao lado dele, a


cabeça de Darrin girava para frente e para trás, como se ele esperasse que
seríamos atacados a qualquer momento.

“Se você acha que um simples ‘obrigado’ é tudo pelo que o Alto Sangue Denoir
está fazendo isso, você pode muito bem colocar uma coleira em volta do seu
pescoço e entregar a coleira a eles,” disse Alaric, virando para um largo bulevar
que reconheci como levando em direção à saída para o primeiro nível. “Não
seja estúpido, garoto. A única razão pela qual aqueles nobres egocêntricos se
envolveriam é porque eles querem fazer de você seu filhotinho leal para
buscar elogios e relíquias das Relictombs.”

“Isso é fácil de dizer,” eu respondi de volta. “Mas, ao contrário dos Granbehls,


a família de Caera não tem nada para me chantagear além de eu talvez
devendo um favor a eles.”

“Um favor geralmente é mais valioso do que uma carruagem de ouro,


especialmente se for devido por um indivíduo com tanto potencial quanto
você,” Darrin respondeu enquanto seus olhos continuavam a examinar nossos
arredores.

‘Sem querer lançar dúvidas sobre sua adorada amante com chifres, mas é
possível que Caera tenha dito a eles o quão poderoso você é para tentar
convencer a família dela a ajudar,’ acrescentou Regis.

Não importa , disse eu, tanto para mim como para Regis. Duvido que tenhamos
algum motivo para nos cruzarmos novamente.

Meu companheiro estalou a língua. ‘Que pena, se nosso amigo alcoólatra aqui
tivesse metade da beleza de Caera.’
Voltei minha atenção para Alaric, percebendo que, sem saber, estive contando
com o velho bêbado. Sem ele, teria sido muito mais difícil voltar para as
Relictombs… mas ao mesmo tempo, ele era fácil de entender.

Alaric me via como seu tíquete de alimentação – ou melhor, álcool – e ele não
estava interessado em quem eu realmente era ou de onde vinha. Não precisei
me preocupar com suas motivações e apreciava isso no homem.

No entanto, era difícil dizer o mesmo sobre Darrin Ordin. Eu me perguntei o


que Alaric poderia ter dito a ele, e que tipo de promessas foram feitas em meu
nome para a ajuda de Darrin.

‘Não que ele tenha ajudado muito…’ reclamou Regis.

Quando meus pensamentos se voltaram para o julgamento, um em particular


que estava incomodando no fundo da minha mente se destacou. “Alaric, por
que exatamente eu tenho fãs? Quem eram todas essas pessoas no
julgamento?”

Alaric e Darrin trocaram um olhar. “Minha ideia, na verdade,” o amigo de Alaric


disse por cima do ombro, passando a mão pelo cabelo loiro. “Embora eu deixe
Alaric fazer a maior parte do trabalho sujo.”

Mudamos para o acostamento da estrada para evitar uma enorme carruagem


puxada por dois bois vermelho-sangue.

Alaric deu de ombros, mas sua barba se contraiu de uma forma que me
preocupou. “Eu posso ter espalhado alguns rumores sobre você. Despertou
algum interesse e encorajou algumas pessoas a virem assistir ao seu
julgamento.”

“Que tipo de boatos…?” Eu perguntei, observando Alaric com o canto do olho.

O velho pigarreou. “Nada que comprometa seu manto de mistério e intriga.”

Parei de andar de repente e dei a ele um olhar penetrante. “Alaric…”

“Apenas a história de um jovem ascendente sendo intimidado por um


determinado sangue,” disse ele, coçando a barba. “Se eu sugerisse que o
ascendente era tão bonito e… talentoso… que chamou a atenção até de uma
certa senhora de Alto Sangue-”

Resisti ao desejo de enterrar meu rosto em minhas mãos. “Por favor, me diga
que você está brincando.”

‘Isso certamente explica a proporção de mulheres para homens na


multidão,’ provocou Regis.

Alaric encolheu os ombros e começou a andar novamente, passando pela


multidão crescente de pessoas enquanto nos aproximávamos do portal de
saída para o primeiro nível.

Darrin havia assistido a essa troca com um sorriso de boca fechada. “Essa parte
não foi ideia minha,” ele disse se desculpando antes de seguir Alaric.

Fiquei olhando para os ladrilhos cintilantes da rua, esperando que esses


rumores nunca chegassem a Caera.

Corri para alcançar os outros, eu me atrapalhei em busca de algo mais para


falar. “Então qual é o plano?” Eu perguntei finalmente. “Já perdi muito tempo
aqui-”

“Vamos chegar a algum lugar um pouco menos lotado,” disse Darrin, olhando
ao redor para as dezenas de pessoas que passavam em ambas as direções. A
maioria delas não estava prestando atenção em nós, mas algumas ficaram
surpresas quando viram Darrin, e mais do que alguns pares de olhos também
me seguiram.

Nós contornamos as muitas estalagens e bares para ascendentes alinhados


em ambos os lados da rua larga enquanto Alaric foi direto para o portal para
o primeiro nível. Uma vez que os portais estavam à vista – como duas peças
de vidro pairando sobre um bloco de ladrilhos de mosaico colorido – nós nos
juntamos a uma fila de ascendentes que estavam deixando o segundo nível.

“Onde estamos indo?” Eu perguntei.

“Acho que é melhor deixarmos as Relictombs por enquanto,” respondeu


Darrin. “Primeiro, vamos para minha propriedade no interior de Sehz-Clar.”
“Sehz-Clar?” Eu me perguntei em voz alta, tentando lembrar o que tinha lido.
“Isso é meio rural para um ascendente famoso, não é?”

“Eu gosto assim,” disse ele com indiferença.

Considerei o tamanho de Alacrya e onde entramos nas Relictombs de Aramoor,


que ficava no domínio oriental de Etril. Teríamos que voltar por Etril antes de
ir para Sehz-Clar? Era um longo caminho a percorrer só para conversar, visto
que estávamos rodeados de pousadas onde um quarto privado podia ser
alugado por um punhado de ouro.

Olhando para trás, através do segundo nível em direção aonde eu pensei que
o enorme portal para as zonas mais profundas das Relictombs estava, notei
um grupo de homens – todos vestidos com couro escuro e armadura de
corrente – desviar o olhar ao mesmo tempo, como se estivessem olhando para
mim apenas um segundo antes.

Eu rapidamente examinei o resto da fila. A mulher de armadura laranja estava


com várias pessoas atrás de nós. Nossos olhos se encontraram, e seu queixo
caiu ligeiramente antes de ela abaixar a cabeça, deixando seu cabelo escuro
cair em seu rosto. Além deles, ninguém mais parecia estar prestando atenção
em nós três.

Surgiram perguntas, mas eu as mantive para mim, confiando que Alaric tinha
seus motivos para nos afastar das Relictombs, e não querendo deixar Darrin
desconfiado perguntando o motivo errado.

Demorou apenas alguns minutos para chegarmos ao portal de saída, onde um


funcionário uniformizado acenou para que passássemos. Era como viajar dia
e noite do segundo nível para o primeiro. Enquanto o segundo era claro e
arejado, o primeiro era úmido e pesado com o cheiro de ferro e excremento.

Um homem vestido com a pele de alguma besta de mana estava gritando com
um dos guardas do portal sobre sua passagem. O guarda uniformizado estava
com os braços cruzados e um músculo em sua ampla mandíbula se contraiu.

Atrás dele, uma dúzia de ascendentes aguardavam na fila para entrar no


segundo nível, a maioria resmungando sobre a espera.
Eu estava observando a comoção com o canto do olho quando notei a mulher
com a armadura laranja brilhante passando pelo portal. Ela examinou a área,
e quando seus olhos me encontraram, ela fez um caminho mais curto em nossa
direção enquanto retirava algo de seu anel dimensional.

Com sentidos e reflexos aguçados, os segundos que levaram para a mulher


bronzeada me alcançar passaram em um rastejar.

Pouco antes de ela estar ao alcance do meu braço, girei nos calcanhares e
agarrei-a pelo pulso, esmagando a braçadeira de corrente em sua carne.

A mulher engasgou e tudo o que ela estava segurando caiu no chão.

“Você achou que eu não notaria?” Eu perguntei, meu olhar perfurando o dela
enquanto torcia seu pulso. “Por que você está me seguindo?”

“Eu s-sinto muito!” ela gritou, seus olhos cor de mogno arregalados e seu rosto
pálido. “Eu só queria seu autógrafo!”

Olhei para o chão onde o item que ela havia deixado cair pressionado contra
minha bota: uma caixa de aço em forma de pirâmide, gravada com correntes
que se enrolavam nas bordas. Enquanto eu observava, o pé da mulher tateou
para frente e bateu no topo pontudo.

Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo.

O artefato aos meus pés se desdobrou, deixando escapar uma luz dourada
brilhante.

Houve um flash da mão livre da mulher, e uma adaga escura e lustrosa


apareceu em suas mãos.

Ao redor da plataforma do portal, a multidão de ascendentes que estavam nos


observando com cautela ou nos ignorando em favor de resmungar sobre a fila
parada sacou suas armas e se virou como um só para mim e meus
companheiros. Atrás deles, três funcionários nervosos desapareceram pelo
portal de volta ao segundo nível.

Essa coisa toda tinha sido uma armação – e havia apenas um grupo que teria
esse tipo de problema.
“Lorde Granbehl manda lembranças,” rosnou a ascendente de armadura
laranja, enfiando a lâmina em meu abdômen.

Ainda segurando-a pelo pulso, tirei a mulher bronzeada do chão e a joguei em


um grupo próximo de ascendentes armados. Ela soltou um grito antes de
colidir com eles, mas minha atenção estava de volta no artefato, que se abriu
como uma flor e estava brilhando mais intensamente a cada instante.

Levantando uma perna, comecei a descer em direção ao artefato, com a


intenção de esmagá-la sob meu calcanhar, mas… Eu congelei, incapaz de me
mover. A luz dourada que emanava da pirâmide aberta me envolveu, brilhando
sobre cada centímetro de mim como uma segunda pele. Eu podia apenas
distinguir a forma etérea de correntes dentro da luz, envolvendo-se em torno
de mim e meus companheiros.

“Bem, maldito seja, eles realmente têm uma gaiola de força.” Mesmo com sua
voz abafada pela camada de energia que a gaiola de força havia envolvido em
torno dele, Alaric estava mais surpreso do que chocado enquanto tentava
mexer seu corpo. “E uma muito boa nisso.”

Suas palavras foram recebidas por um coro de risadas de muitos ascendentes


que agora nos olhavam perigosamente.

“Merda,” Darrin praguejou, parecendo que estava falando com a cabeça


debaixo d’água. “Isso não é bom.”

Pelo canto do olho, vi dois homens lutarem para colocar a mulher de armadura
laranja de pé. Pelo jeito que ela estava segurando seu braço, eu sabia que o
tinha deslocado. Isso não a impediu de sorrir vitoriosamente para mim.

“Bastante problemático, não é?” ela disse enquanto colocava o braço de volta
no lugar. A mulher caminhou mais perto de nós. “Uma pena ter que entregá-lo
aos Granbehls. Muitos usos melhores para um rosto bonito como o seu.”

Capítulo 334
Última Misericórdia

Meu olhar passou da mulher com a armadura laranja para a formação de


ascendentes em torno dela se aproximando de nós. Suas expressões sérias,
postura, andar – tudo sobre eles reforçava minha impressão de que os
Granbehls haviam feito um investimento significativo para orquestrar esse
último esforço desesperado.

Parando na frente de Darrin, nossa agressora colocou a mão na aura dourada


que o continha. “Lamento que você tenha se envolvido nisso, Ordin. Sei que
falo por todos esses homens quando digo que você conquistou nosso respeito
ao longo dos anos.”

“Bem, então você poderia nos deixar ir,” Darrin arriscou, o charme em sua voz
arruinado pelo abafamento do campo de força dourado.

A mulher balançou a cabeça, olhando-nos seriamente. “Não, temo que não


posso fazer isso.”

Observei os mercenários, suas mãos agarradas firmemente em torno de suas


armas, apesar de suas vantagens. Meus olhos se voltaram para onde havíamos
cruzado para este andar. Deveria existir um fluxo constante de ascendentes
entrando e saindo, mas ninguém novo passou pelo portal do segundo nível, e
a rua que conduzia ao primeiro nível também estava vazia.

“Ainda planejando uma maneira de sair disso?” A mulher perguntou com uma
sobrancelha levantada. “Admiro sua compostura, mas não adianta.”

“Planejando?” Eu ecoei, levantando uma sobrancelha. “É isso que parecia que


eu estava fazendo?”

“O astro de cinema aqui acha que é invencível depois de ser solto,” disse um
dos homens mais próximos dela com uma risada. Seu cabelo ruivo tinha sido
raspado nas laterais e cicatrizes marcavam seu rosto, os lados de sua cabeça
e a pele nua de seus braços.

Aparentemente, mesmo o mais profissional dos mercenários não estava imune


à doença de ser arrogante porque outro homem – este um usuário mais gordo
de machado – inclinou-se preguiçosamente contra sua arma.

“Essa é uma jaula de força de nível superior, idiota,” disse ele com um sorriso
malicioso. “O legal sobre essas coisas caras é que, embora custem tanto
quanto uma propriedade nas Relictombs, elas drenam sua própria mana para
usar contra você, reforçando a barreira.”

“Então, de qualquer maneira,” zombou o ruivo com cicatrizes, sacudindo um


pouco os ombros, “lute o quanto quiser.”

A mulher de armadura laranja soltou uma risadinha e os mercenários atrás


dela viram isso como um sinal para gargalhar de diversão.

Então, quando a barreira dourada de mana supostamente inquebrável se


estilhaçou ao meu redor, suas expressões não poderiam ter mudado mais
rápido. ‘Puahaha! Olha pros rostos deles!’ Regis gargalhou, praticamente
rolando de costas dentro de mim.

“I-isso é impossível…” A mulher gaguejou, sua pele bronzeada um tom mais


pálida.

“Já ouvi muito isso,” respondi casualmente, tirando o pó dos cacos dourados
de mana solidificada de meu ombro.

Recuperando-se rapidamente de sua descrença, a mulher de laranja soltou um


rugido gutural enquanto ela disparava para frente, sabres gêmeos aparecendo
em suas mãos, brilhando em um fogo vermelho dourado.

Minha forma ficou borrada quando usei Burst Step para diminuir a distância
entre nós, pegando-a desprevenida. Eu chutei seus joelhos e bati seu rosto no
chão com um golpe rápido na nuca.

No momento em que o resto dos mercenários despertou de seu choque e


terror, sua líder já estava sob meus pés.

Meu olhar varreu os vinte homens e mulheres em apatia fria. Eu tinha dado
chances suficientes aos Granbehls.

Regis, mate o resto, eu pensei.

Um lobo sombrio engolfado em chamas violetas apareceu repentinamente,


provocando uma tempestade de maldições e gritos de surpresa. Sendo os
mercenários durões que eram, no entanto, nossos oponentes reagiram com
eficiência treinada, mantos brilhantes de todos os diferentes elementos
irrompendo ao redor deles. Os escudos de mana também ganharam vida,
banhando a plataforma com uma luz colorida.

Levei um momento para olhar para trás para Alaric e Darrin, cujas expressões
perplexas indicavam que eles ainda estavam processando o que exatamente
estava acontecendo. Embora a ideia de libertá-los para obter ajuda adicional
tenha passado pela minha cabeça, não parecia necessário… e eu queria que
eles tivessem um vislumbre de que tipo de pessoa eles estavam realmente
ajudando.

Envolvendo-me em uma camada de éter, concentrei-me em meus oponentes,


pronto para enfrentar sua enxurrada de feitiços.

Regis atacou como um meteoro, espalhando sangue onde quer que suas garras
e presas escuras fossem, mas depois de matar alguns de seus camaradas,
nossos atacantes foram capazes de cercá-lo com escudos de mana enquanto
seus Conjuradores o bombardeavam com feitiços.

O ascendente com cicatrizes e cabelos ruivos em chamas foi o primeiro a se


aproximar de mim, avançando com um martelo de guerra gigante na mão,
criando uma cratera no chão a cada passo infundido de mana dele.

“Que se foda levar você vivo!” Ele rugiu. “Morra!”

Com os olhos injetados de sangue cheios de vingança, o Atacante brandiu seu


martelo de aço enegrecido que parecia pulsar.

Eu cavei meus calcanhares no chão, direcionando uma explosão de éter do


meu núcleo através do meu braço e em meu punho, mantendo um fluxo
constante por todo o resto do meu corpo para me manter estável.

Meu punho nu colidiu com a frente de seu martelo de metal, criando uma onda
de choque de força que rasgou o ar.

Os mercenários próximos foram lançados ao ar, atingidos pela energia cinética


enquanto o martelo do ruivo se estilhaçava exatamente como a jaula de força
em que eles tentaram me prender.
Antes que meu oponente de olhos arregalados pudesse se recuperar, eu
continuei com um soco revestido de éter em seu peito que me assegurou de
que ele nunca se recuperaria.

Enquanto isso, Regis estava com suas mandíbulas treinadas na cabeça do


usuário gordo de machado. Seu grito agonizante se transformou em um estalo
angustiante quando meu companheiro fechou a boca antes de passar para sua
próxima vítima. Enquanto os painéis protetores de mana foram capazes de
deter o lobo sombrio por um momento, as garras de Regis eram infundidas
com destruição, desintegrando lentamente tudo o que os mercenários
pudessem conjurar. Ao meu redor, os mercenários se mexiam caoticamente,
talvez agora percebendo o quão mais fracos eles eram.

Um Atacante veio da minha esquerda, levantando uma enorme espada cercada


por uma forte torrente de vento, mas eu evitei a arma pesada facilmente,
ignorando os arranhões de sua aura cortante. Quando a lâmina atingiu o chão,
dei um chute para a frente contra a borda plana. Houve um rompimento de
metal quando a lâmina serrilhada se soltou de seu cabo e deslizou pelo chão
pra longe. O Atacante teve apenas um momento para olhar pasmo para sua
arma quebrada antes que meu segundo chute o acertasse na lateral, fazendo-
o bater na parede de um dos prédios ao redor.

Girando, me esquivei de um arco crepitante de eletricidade que deixou um


rastro de terra destruída em seu caminho.

O conjurador de túnica soltou uma risada maníaca enquanto movia o braço,


controlando o fluxo de mana elétrica de volta para mim.

Com outra série de explosões etéreas canalizadas pelo meu corpo, passei pelo
conjurador, com meu braço ensanguentado abrindo um buraco em seu
estômago. Sua risada se dissolveu em um grito histérico enquanto ele olhava
para seu ferimento fatal.

Enquanto o ascendente desabava, com sangue escorrendo de sua boca,


segurei seu corpo e girei, usando-o como escudo para pegar uma série de
pontas de gelo que voavam em minha direção. Senti o corpo do homem tremer
com o impacto dos espinhos, mas logo ele ficou inerte em minhas mãos.
Eu deixei o cadáver cair no chão.

Sacudindo o sangue do meu braço, examinei o campo de batalha; um dos


mercenários havia fugido para o portal. Uma poderosa rajada de vento
distorceu sua forma, e ele estava a apenas um passo de escapar, um braço já
dentro da janela brilhante do portal.

O mundo mudou conforme minha percepção se estendia e as correntes de éter


surgiam ao meu redor. Deixando que os fios de spatium me trouxessem
informações, consegui encontrar a rota que me levava ao fugitivo.

E aí, dei um passo.

Gavinhas de relâmpago violeta crepitaram ao meu redor quando minha visão


mudou para logo atrás do mago de vento. Agarrando-o pela parte de trás do
colarinho blindado, puxei-o na minha direção.

“Onde você pensa que está indo?” Eu perguntei.

Apesar do meu sorriso gentil, o rosto do ascendente se contorceu em uma


expressão de horror.

“C-como…” ele resmungou antes de seu crânio bater no chão.

Sentindo a ausência da rica atmosfera de éter das zonas mais profundas da


Relictombs, percebi a queda em minhas reservas com aquele único God Step
e sabia que tinha que ser mais cuidadoso quanto ao gasto de éter.

Voltando para a batalha, vi Regis que havia se movido para outra vítima, o
enorme lobo das sombras rasgando armadura e carne com facilidade.

Enquanto eu voltava em direção ao restante dos combatentes inimigos, uma


sombra se moveu pelo ar bem na minha frente. Eu levantei meu braço
esquerdo bem a tempo de pegar a mão segurando uma adaga, que brilhou
enquanto se movia, assim como sua, portadora. A inimiga, uma garota de
cabelo curto, de alguma forma camuflou a si mesma e suas armas, tornando-
a quase invisível contra o cenário caótico que nos cercava.
“Você deveria ter escapado quando teve a chance,” eu disse, agarrando seu
pulso. “Foda-se!” A ascendente camuflada gritou enquanto ela girava nos
calcanhares e balançava a segunda adaga que segurava na outra mão.

A adaga nunca me alcançou. A ponta do meu dedo, estendida em uma garra


afiada, rasgou sua garganta.

Com um jato de sangue e um gorgolejo ininteligível, ela caiu de joelhos. Atrás


dela, observei Regis saltar sobre um Atacante que empunhava uma lança,
prendendo a haste da lança entre as mandíbulas e partindo-a em duas antes
de arrastar o homem para baixo. Discos giratórios de luz branca passavam por
Regis, em sua forma de Lobo das Sombras, vindos de trás da esquina de um
prédio próximo, pra onde uma dupla de mercenários estava recuando.

O movimento trouxe minha atenção de volta para a ascendente empunhando


a adaga, que – enquanto segurava sua garganta rasgada com uma mão –
conseguiu reunir forças para enfiar uma de suas adagas na minha perna.

Eu estremeci, mais por aborrecimento do que por dor, enquanto arrancava a


adaga.

A ascendente camuflada congelou, incapaz de fazer qualquer coisa além de


olhar enquanto a ferida que ela havia infligido desesperadamente começou a
cicatrizar visivelmente na frente dela, antes de sucumbir ao seu ferimento
fatal.

Finalmente, o inimigo começou recuar e dois dos homens tentaram fugir. Regis
já havia matado um deles e ia atrás do segundo quando um dos discos brancos
o atingiu no ombro.

A raiva emanou de meu companheiro quando ele ignorou isso e decidiu matar
o fugitivo primeiro.

Quando acabei com alguns de nossos atacantes restantes, Regis tinha voltado
sua atenção para o conjurador que o feriu com os discos brancos brilhantes.
Ele estava se escondendo atrás de uma mulher grisalha em uma armadura de
placas de aço sobrepostas.
Enquanto os dois tropeçavam de volta para um beco longe do lobo sombrio
que os perseguia, a mulher conjurou uma caixa de mana cintilante ao redor
dela e do conjurador. Uma segunda e uma terceira caixa se manifestaram ao
redor da primeira, e ela respirou fundo, os olhos duros fixos em Regis
enquanto o conjurador aliviado atrás dela começou a invocar mais discos
brancos brilhantes. A cada passo que meu companheiro dava em direção aos
dois mercenários restantes, suas garras ficavam mais brilhantes e mais
sinistras até a destruição cintilar silenciosamente, derretendo sem esforço
cada uma das três barreiras conjuradas. Pode-se dizer que meu companheiro
estava saboreando suas duas últimas presas.

Deixando Regis para encerrar tudo, fui até onde Darrin e Alaric estavam me
observando com olhos arregalados sob a aura dourada que os restringia.

O artefato da gaiola de força brilhava no chão onde havia sido jogado,


projetando correntes douradas fantasmagóricas que serpenteavam ao redor
de meus companheiros. Sem preâmbulos, pisei com força na pirâmide
desdobrada e ela – junto com o chão – esmagou sob meu pé.

Quando a luz dourada se apagou, os dois homens cambalearam para frente.


Massageando seus joelhos, o olhar de Alaric varreu o campo de batalha
ensanguentado antes de perceber minha presença.

Limpando a garganta desconfortavelmente, ele lançou um olhar para Darrin


antes de olhar para mim. “Você… uh… está machucado?”

“Teria sido mais rápido se vocês dois tivessem se juntado a nós,” eu disse com
um encolher de ombros.

“Você parecia ter as coisas… sob controle,” Darrin murmurou, seus olhos
verdes esmeralda ainda absorvendo a visão ao nosso redor.

Uma figura se mexeu no chão à esquerda de onde estávamos.

Alaric e Darrin olharam para mim, mas eu balancei minha cabeça. Eu a deixei
se recuperar enquanto ela se levantava do chão com um gemido abatido. A
armadura outrora laranja estava tingida de carmesim, mas a maior parte do
sangue não era dela. Além de um arranhão em seu rosto e o que parecia ser
uma terrível dor de cabeça, ela não estava gravemente ferida.
Eu caminhei em direção a ela e esperei em silêncio até que ela finalmente
pudesse ver o cenário que a rodeava.

“Não…” ela sussurrou, os olhos vermelhos e marejados de lágrimas.

A ascendente virou seu corpo trêmulo para onde eu estava.

“Por favor… apenas me deixe viver,” ela implorou.

“Eu não te deixei viva apenas para te mostrar essa bagunça,” eu respondi, em
tom uniforme. “Eu tenho um trabalho para você.”

Ela acenou com a cabeça ferozmente. “Qu-qualquer coisa que você quiser.”
“Diga ao homem que a contratou que este” – eu varri meu olhar através da
plataforma do portal agora cheia de cadáveres – “foi meu último ato de
misericórdia.”

A mandíbula da mercenária cerrou, mas ela acenou com a cabeça mais uma
vez em compreensão.

“Se ele escolher ignorar qualquer resquício de sanidade que ele tem e vier
atrás de mim novamente, vou me certificar de que Ada será a única Granbehl
que vai sobrar para chorar por seu sangue,” eu disse, dando a ela um sorriso
triste. “Afinal… eu sei onde eles moram.”

Com um último aceno de cabeça, ela se afastou, mal conseguindo passar pelo
portal.

Fui até Darrin e Alaric, que observaram minha interação com a mulher em um
silêncio carrancudo.

“Vocês discordam de como eu lidei com isso?” Eu perguntei.

“O resultado? Não, nem um pouco,” Darrin respondeu antes de olhar para


longe.

“O método, bem…”
“O resultado teria sido melhor se você pudesse nos arrancar da gaiola de
força sem quebrá-la,” Alaric resmungou, segurando os pedaços quebrados do
artefato com ternura. “Você tem alguma ideia de quanto isso vale?”

“Se você o vendesse, ele simplesmente voltaria para as mãos de alguém como
os Granbehl,” respondi, impassível.

“Bem, claro,” ele gaguejou, “mas eu ficaria significativamente mais rico nesse
meio tempo!”

Eu bufei e Darrin deu de ombros, sem resposta.

Regis escolheu aquele momento para reaparecer do beco. Ele pulou ao meu
lado, sua boca vermelha de sangue, e não pude deixar de notar a maneira
como Darrin o olhou desconfortavelmente.

Sacudindo-se, Regis lançou um jato fino de gotas vermelhas quentes no ar,


espirrando em Alaric, Darrin e em mim com pequenas manchas de sangue.
Darrin recuou, cobrindo o rosto com o braço, enquanto Alaric olhava para
longe, desanimado e com o rosto manchado de vermelho.

‘Estou me sentindo muito melhor’, pensou ele, com a língua pendurada no


canto da boca. ‘Vou tirar uma soneca agora.’

Darrin e Alaric assistiram, pasmos, enquanto Regis desaparecia, voltando para


o meu corpo.

“Sua magia e… invocações…” Darrin fez uma pausa, como se procurasse as


palavras certas. Ele abriu a boca, hesitou e fechou-a novamente. No final, ele
apenas balançou a cabeça, impotente.

“Estou mais curioso para saber como você escapou da gaiola de força,” Alaric
admitiu enquanto tentava forçar o fechamento de um dos painéis triangulares.

“Isso deveria ser impossível.”

“Você realmente quer saber?” Eu perguntei, encontrando os olhos de Alaric.


Ele olhou para a terra compactada por um segundo antes de chutar uma pedra
solta. “Não, acho que não.”
Por cima do ombro, Darrin disse, “Bem, eu certamente gostaria de saber, e
espero que um dia você confie em mim o suficiente para me contar seu
segredo, Grey.” ‘Qual deles?’ Regis bufou divertidamente.

Quando eu não respondi imediatamente, o rosto de Darrin se contraiu com um


sorriso hesitante, e ele se virou, levando nosso grupo para fora das Relictombs.

Capítulo 335
Paz Assombrada

“Uau,” eu disse, genuinamente surpreso com a visão na minha frente.

A casa de Darrin na zona rural de Sehz-Clar tinha o dobro do tamanho da


mansão dos Helsteas em Xyrus e era cercada por campos verdes e dourados
que se estendiam até onde eu podia ver. Uma pequena cidade estava
localizada entre duas colinas a alguns quilômetros de distância, e um punhado
de outras propriedades semelhantes enchiam a paisagem circundante.

A estrutura principal tinha dois andares, mas se expandia em alas baixas que
se abriam para os dois lados. Toda a mansão era feita de tijolos vermelhos
claros destacados por colunas de pedra branca. A casa era cercada por um
jardim bem cuidado de grama verde e arbustos densos e floridos, e um
caminho conduzia para o leste, onde eu podia ver algum tipo de área murada
no alto da colina.

A serenidade rural da propriedade acalmou os nervos de todos, que ainda


estavam à flor da pele pelo ataque nas Relictombs. Olhando para a cena que
parecia uma pintura ao nosso redor, eu realmente comecei a ansiar por pelo
menos um pequeno descanso, sem qualquer tortura ou atentado contra minha
vida.

“A vantagem de viver no campo,” disse Darrin, radiante. “A propriedade custa


um quarto do que você pagaria nos domínios mais densamente povoados, e
essas colinas têm solo pobre, então você também não precisa lutar contra os
fazendeiros pelos direitos à terra.”

“Embora eu esteja um pouco surpreso por você não viver nas Relictombs,” eu
disse enquanto passava um dedo ao longo da borda de uma flor roxa brilhante.
“Considerando o que você faz.”

Darrin começou a nos conduzir pelo amplo gramado, no meio do qual


tínhamos acabado de aparecer, em direção às portas duplas brancas e
brilhantes de sua casa. “Eu não podia pagar um imóvel lá, então o melhor que
poderia fazer seria alugar uma suíte de dois quartos em uma das melhores
pousadas, e isso ainda custaria uma pequena fortuna.” Ele fez uma pausa,
observando as colinas e o céu claro e amplo. “Não, acho que prefiro morar
aqui e pagar as taxas de teletransporte.”
Eu segui seu olhar, olhando para a paisagem novamente. “Eu acho que não
posso te culpar. É uma bela vista.”

Darrin colocou a mão no ombro de Alaric. “Nunca teria conseguido tudo isso
sem meu mentor aqui. Você está em boas mãos, Grey, mesmo que ele de fato
finja ser casca grossa.”

Alaric bufou, escurecendo suas bochechas já rosadas, e seu olhar passou por
todos os lugares, exceto por Darrin. “E isso me fez muito bem, considerando
que você acabou só tendo uma única propriedade no meio do nada…”

Sorrindo, Darrin bateu suavemente na porta.

Um momento depois, ela se abriu e uma jovem, de não mais que sete ou oito
anos, se jogou em seus braços. “Tio Darrin!” Ela gritou, apertando os braços
em volta do pescoço dele e sorrindo por cima do ombro.

Quando ela percebeu que Alaric e eu estávamos lá, seus olhos, verdes como
esmeraldas, se arregalaram, e ela gritou e se contorceu para se livrar do abraço
de Darrin e esconder atrás dele, olhando pra nós.

Dando à garota o que eu esperava ser um sorriso amigável, acenei. Ela


imediatamente se abaixou atrás de Darrin, que riu.

“Pen, estes são meus amigos, Alaric e Grey,” Darrin disse, gentilmente tirando
ela de trás dele e despenteando o cabelo loiro escuro dela. “Está tudo bem,
eles são amigáveis. Bem, Grey é.”

O rosto de Alaric se contorceu em um rosnado ameaçador e ele rosnou baixo


em seu peito. “Mas eu sou o malvado, e assei tortas deliciosas com crianças
pequenas!”

A garota deu uma risadinha e olhou para Darrin. “Seus amigos são
engraçados!”

“Eles pensam que são, pelo menos,” Darrin respondeu, revirando os olhos para
Alaric. Ele pegou a garota e a carregou pela soleira, acenando para que o
seguíssemos.

“Alguma notícia sobre sua mãe enquanto eu estive fora?” ele perguntou a ela
enquanto nos conduziam ao saguão de entrada, onde duas escadas curvas
levavam ao andar superior.

Ela balançou a cabeça e fez beicinho. “Não.”

Darrin puxou-a para outro abraço e afagou suas costas, consolando-a. “Tudo
bem, tenho certeza que ela voltará em breve.” Ele a colocou no chão de
ladrilhos de granito. “Por que você não vai contar aos outros que temos
convidados?”
Assentindo seriamente, a menina desapareceu por uma porta à nossa direita,
que deve ter levado para uma das outras alas da casa.

“Sua?” Eu perguntei, observando-a pular para longe.

“Oh, não”, disse Darrin, passando a mão pelo cabelo. “A mãe dela é uma das
minhas companheiras de equipe de antigamente. Ela ainda está ativa. Pen fica
comigo às vezes, quando a mãe dela está em uma ascensão.”

Meus olhos seguiram Pen para fora do saguão de entrada, captando uma figura
encostada na parede no canto. Era uma jovem com cabelo laranja brilhante
que desbotava para um loiro ensolarado e terminava logo abaixo dos ombros.
Ela estava vestindo uma blusa branca com botões de prata e calças de couro
justas, e uma espada longa e fina pendurada em seu cinto.

Mas foram seus olhos castanhos que se destacaram, ou melhor, foi a maneira
como eles viajaram lentamente por mim, da ponta das minhas botas até meu
cabelo loiro claro, antes de girar em um revirar de olhos desdenhoso.

Antes que eu pudesse fazer mais do que trocar olhares, a jovem saiu da sala e
minha atenção foi novamente redirecionada.

“Senhor Darrin!” Uma voz feliz veio de uma sala atrás da escada. Uma mulher
rechonchuda com cabelo castanho escuro apareceu dela, enxugando as mãos
com uma toalha. “Sinto muito, não ouvi a porta sendo aberta.”

Darrin deu-lhe um sorriso caloroso, embora a direção de seu olhar


permanecesse na passagem onde a jovem havia desaparecido. “Sem
problemas, Sorrel. Temos convidados para a noite.”

A mulher fez uma reverência, seu cabelo ruivo e encaracolado balançando ao


redor de seu rosto redondo. “Um prazer! Vocês três estão com fome, Sr.
Darrin?”

O estômago de Alaric roncou audivelmente em resposta, onde ele deu um


tapinha apreciativo. “Não se importe com isso, onde você está escondendo o
que tem de bom e melhor?” Sem esperar por uma resposta, o velho afastou-
se decididamente.

Balançando a cabeça em negação para o amigo, Darrin disse, “Por que você
não mostra a sala de banho para Grey primeiro?” Virando-se para mim, ele
acrescentou, “Suponho que já faz algum tempo que você não toma um banho
quente, certo?”

A governanta de Darrin me conduziu ansiosamente mais pra dentro da mansão


até que me vi dentro do que, à primeira vista, parecia ser uma caverna. As
paredes da sala de banho eram de pedra escarpada, e a banheira em si estava
na depressão situada na rocha lisa do chão da “caverna.” Depois que Sorrel
me deixou lá, gastei algum tempo examinando o lugar.

Além da banheira, havia um espelho embutido na parede, uma série de


prateleiras e ganchos onde as roupas podiam ser penduradas e um nicho do
tamanho de uma pessoa que eu não entendi imediatamente, até que encontrei
um pequeno botão de cobre ao lado dele.

O botão clicou quando o pressionei e uma onda de calor surgiu. Eu coloquei


minha mão; o ar era seco e quente.

Clicar no botão novamente desligava a saída de ar.

‘Ooh, chique,’ disse Regis com admiração.

Voltando minha atenção para a banheira, encontrei uma fileira de botões ao


longo da borda. Durante minha vida como Rei Grey, comecei a desfrutar de
banhos quentes em água carregada de sais. Era um luxo que eu não tinha
desfrutado desde que renasci em Dicathen. Então, quando vi o botão
denominado “Banho de sal,” soube que precisava testar aquele primeiro.

Apertar o botão fez com que água salgada quente vazasse das laterais da
banheira rochosa, e ela estava cheia antes que eu terminasse de tirar as
roupas simples que usei no julgamento.

Afundando na água, um arrepio percorreu minha espinha apesar do calor.

Quando foi a última vez que desfrutei de um conforto tão simples? Eu me


perguntei, deixando minha cabeça cair para trás para que a água salgada
cobrisse meus ouvidos, abafando todo o ruído, exceto os meus próprios
pensamentos.

E de Regis. ‘A Cidade de Maerin não era tão ruim, mas parece que foi há uns
cem anos, certo?’

Soltei uma risada antes de jogar um pouco da água em meu rosto. Depois de
enxugá-la, respondi, ‘Parece que sim. Você quer sair um pouco?’

Regis saltou do meu corpo para ficar do lado de fora da banheira. Ele se
espreguiçou, empurrando as patas dianteiras para a frente e bocejando
amplamente. “Sabe, às vezes me esqueço de como é tranquilo quando não
tenho seus pensamentos melancólicos passando pela minha cabeça o tempo
todo.”

“Eu não sou melancólico,” respondi defensivamente, olhando para meu


companheiro com as minhas pálpebras semicerradas.

Regis bufou enquanto caminhava lentamente em círculos antes de se deitar.


“Ok, princesa.”
Com um movimento da perna, enviei uma onda de água salgada quente por
cima da borda da banheira para ensopar meu companheiro. Ele saltou,
cuspindo com indignação. “Eu tinha acabado de ficar confortável!”

As chamas sombrias que tremeluziam ao redor de sua crina aumentaram,


secando-o instantaneamente, e ele encontrou outro local para se estabelecer.
Ele soltou um bocejo e esticou seus longos membros antes de perguntar, “E
agora?”

Eu deixei meus olhos se fecharem. “Nesse exato momento? Vamos nos dar
alguns minutos para relaxar, então vamos descobrir o que Alaric e seu amigo
têm na manga.”

Senti a forte névoa do sono se abatendo sobre mim logo em seguida. Embora
eu realmente não precisasse dormir, apreciei a ideia de adormecer por um
tempo e não lutei contra a sensação.

O som de uma multidão cantando me envolveu de todas as direções, como o


barulho das ondas batendo contra um penhasco; estava distante e abafado,
como se eu estivesse ouvindo de muito longe.

Abrindo meus olhos lentamente, olhei ao redor. Eu estava em uma plataforma


quadrada de duelo, cercada por arquibancadas cheias de rostos familiares:
Claire Bladeheart e o resto do Comitê Disciplinar, as Lanças, Jasmine e os
Chifres Gêmeos, Virion, os reis e rainhas do Conselho de Dicathen, os anciãos
que me treinaram nos quatro elementos, Lady Vera, Diretora Wilbeck, Caera,
Ellie, com a pequena raposa branca de Sylvie em seu colo, minha mãe… meu
pai.

Alguém também estava na plataforma de duelo: Cecilia. Ela estendeu a mão e


uma espada de lâminas duplas ganhou vida em seu punho, com um feixe de
luz branca quente que zumbia com energia mortal.

Fiz uma reverência a Cecilia, mas ela apenas me olhou carrancuda antes de se
lançar sobre a plataforma, sua arma deixando um rastro de luz no ar. Eu
levantei a Canção do Amanhecer (Dawn’s Ballad) para bloquear o ataque, mas
a lâmina azul-petróleo se quebrou em minha mão e eu senti uma dor clara e
quente quando a arma de Cecilia atingiu meu ombro profundamente.

Por um momento, ficamos cara a cara, seus olhos turquesa brilhando


malevolamente.

Ela arrancou a lâmina do meu ombro e girou, dirigindo a outra ponta em


direção ao meu estômago. Procurei os caminhos etéreos para sair do lugar
com God Step, mas não havia nada.

A lâmina afundou em meu estômago e explodiu nas minhas costas.


Atrás de Cecilia, alguém corria por um longo túnel em nossa direção. Embora
ele parecesse estar a quilômetros de distância, meus olhos se cruzaram com
os de Nico, que estavam cegos de ódio, retorcidos de medo, e senti uma
espessa camada de gelo crescer sobre meu coração, e o distanciamento frio
que aprendi quando eu era o Rei Grey se espalhou a partir dele.

Cecilia puxou sua lâmina livre e girou ao redor, uma luz verde-ouro emanando
para fora, manchando as bordas da minha visão e brilhando nos rostos
congelados na platéia. Um puro feixe de luz a ergueu da plataforma de duelo,
sua lâmina apontada para meu peito como uma lança, então ela disparou com
a espada em minha direção.

A cena congelou. Levantando, cerrei meu punho, segurando a Canção do


Amanhecer (Dawn’s Ballad), a lâmina verde-azulada translúcida, agora inteira
novamente, refratando a luz e enviando raios azul-esverdeados que dançavam
pela plataforma de duelo. À distância, Nico ainda estava correndo em nossa
direção, a única coisa se movendo além de mim.

E a história se repete…

Cecilia estava se movendo novamente, caindo sobre mim como um cometa.


Quando nossas lâminas colidiram, uma onda de choque surgiu, obliterando a
plataforma, as arquibancadas, a arena e varrendo o público – todos aqueles
rostos familiares de minhas duas vidas – em uma nuvem de poeira.

Minha lâmina brilhava com uma violenta luz ametista que vinha de onde tinha
perfurado peito de Cecilia. Mas foi Tess, não Cecilia, que caiu para frente, seu
corpo caindo em mim, o sangue de sua vida correndo pelas minhas mãos,
manchando rapidamente a plataforma de duelo com vermelho.

Minha boca se abriu para falar… algo – qualquer coisa – mas as palavras
estavam presas na minha garganta, como se uma mão gigante tivesse em volta
do meu pescoço e estivesse me sufocando. Tudo o que pude fazer foi assistir,
paralisado, enquanto a luz desaparecia de seus olhos.

As pontas dos dedos dela roçaram meu rosto, descendo pela minha bochecha
e pelos meus lábios.

O punho gelado agarrando meu peito se quebrou e meus olhos se abriram.

Soltando uma respiração tensa e meio sufocada, me puxei para fora do banho
de sal e rolei para deitar no chão, ofegante.

“Ei!” Regis latiu, quando eu mandei uma onda de água do banho espirrando
pelo chão da caverna. “O que eu fiz dessa – Ei, você está bem?”

“Estou bem,” eu murmurei, esfregando meu rosto com força. “Apenas um


sonho ruim.”

“Quer falar sobre isso?” Ele perguntou, apoiando o queixo nas patas.
“Na verdade, não,” eu disse enquanto me levantava, as imagens do sonho já
ficando turvas e distorcidas em minha mente, exceto pelo sangue de Tess
manchando minhas mãos.

Eu vou te encontrar, Tess. Eu prometo.

Sorrel me encontrou no corredor fora do banheiro depois que eu coloquei um


conjunto limpo de roupas da minha runa dimensional. Uma sobrancelha se
ergueu enquanto ela me olhava de cima a baixo, mal reprimindo um sorriso.
“Não é que você se limpou bem, hein…,” disse ela. “O senhor Darrin e os outros
estão compartilhando uma bebida na varanda dos fundos. Eu vou te mostrar
o caminho.”

A governanta caminhou pela mansão até chegarmos a uma marquise


totalmente cercada por vidro. Havia plantas de uma centena de variedades
diferentes e estava repleta de cheiros ricos, doces e terrosos de flores e ervas.
Inspecionei a coleção conforme passávamos, mas reconheci apenas um
punhado de espécies de plantas. Uma porta dava para uma varanda aberta
com vista para as infinitas colinas verdes e douradas.

Lá fora, encontrei não apenas Alaric e Darrin, mas também a garota Pen, a
jovem com o cabelo loiro alaranjado e três outras crianças de várias idades.

Pen foi a primeira a me notar e imediatamente abaixou o rosto no ombro de


Darrin.

Alaric ergueu os olhos e fez uma careta fingida. “Eu estava começando a me
preocupar que você tivesse se afogado na banheira, garoto. Teria enviado
Sorrel para verificar você, mas Darrin disse a ela para não fazer nada que eu
pedisse.”

“Você me culpa, depois do que aconteceu da última vez que você esteve aqui?”
Darrin perguntou, batendo levemente nas costas de Pen.

As bochechas de Alaric, já avermelhadas pelo álcool, ficaram com um tom mais


brilhante de vermelho. “Você disse que não íamos falar sobre isso de novo.”

Darrin chamou minha atenção e piscou. “Eu disse, e não vamos. Grey, venha se
juntar a nós!”

Sentei-me em uma cadeira de madeira vazia e todos os olhos se voltaram para


mim, até mesmo os de Pen, que estava olhando por trás da franja de seu
próprio cabelo.

“Hooligans, este é o Ascendente Grey, outro aluno de Alaric,” Darrin disse na


introdução. “Grey, este é meu pupilo Adem.”
O menino indicado parecia estar no início da adolescência, em torno da idade
da minha irmã, talvez um pouco mais velho. Seus olhos azuis escuros
encontraram os meus sem um pingo de medo ou intimidação. Nós nos
olhamos por um momento antes de ele me dar um aceno superficial.

“E estes,” disse Darrin, “são meus aprendizes, Katla, Ketil e Briar. Os pais dos
gêmeos são fazendeiros aqui em Sehz-Clar e estão tentando colocá-los em
uma das academias para ascendentes. Briar é a filha mais velha do Sangue
Nadir e está aqui para treinar em preparação para seu segundo ano na
Academia Central.”

Os gêmeos compartilhavam o mesmo cabelo loiro brilhante, quase tão claro


quanto o meu, mas mais vibrante, e eram sarados e musculosos,
provavelmente por terem crescido em uma fazenda. Katla assentiu, mantendo
os olhos dela no chão. Ketil, por outro lado, ajustou sua postura para ficar mais
ereto enquanto se interpunha entre ela e os outros de forma protetora.

Briar do Sangue Nadir estava rolando o que parecia ser uma ponta de flecha
de prata brilhante em sua mão, exceto que não estava em sua mão, mas
pairando cerca de uma polegada sobre ela. Ela não ergueu os olhos nem
reconheceu a introdução.

Olhando para as crianças, não pude deixar de pensar na diretora Wilbeck, seu
rosto ainda vívido do meu sonho. Eu sabia que era parcialmente o
sentimentalismo que sobrara do estranho pesadelo, mas não pude deixar de
gostar de Darrin Ordin. Ele me lembrava a diretora e até um pouco meu pai
quando Reynolds era jovem…

Afastando-me de meus pensamentos, dei a eles um leve sorriso. “É um prazer


conhecer todos vocês.”

Katla murmurou sua saudação em resposta, embora seu irmão tenha falado
mais alto.

Adem se levantou e fez uma reverência rígida. “Bem-vindo à nossa casa,


Ascendente Grey. Estamos honrados em receber você.”

Os lábios de Darrin se contraíram quando ele escondeu um sorriso com a


saudação adequada do menino, mas caiu para uma carranca quando Briar
soltou um bufo zombeteiro.

Adem a fulminou com o olhar enquanto voltava para seu assento, mas não
respondeu.

“Então, Briar,” Alaric disse no silêncio constrangedor que se seguiu, “você


sobreviveu um ano na Academia Central, sim? Bom para você, garota.”

A jovem jogou seu cabelo multicolorido enquanto sustentava um olhar


desafiador para o velho. “Claro. Apesar da Academia Central ser uma das
melhores e mais difíceis academias de treinamento militar e ascendente em
Alacrya, eu tive uma pontuação acima da média em todos os critérios de
avaliação.”

Alaric assobiou em apreciação. Para mim, ele disse, “A maioria das academias
com foco em ascensões avaliam pelas mesmas métricas que a Associação de
Ascendentes usa. É mais fácil acompanhar o progresso dessa maneira.”

Eu balancei a cabeça, dizendo apenas, “Entendo.”

“Você entende?” Briar perguntou incisivamente, sua sobrancelha levantada em


ceticismo óbvio. “Duvido muito, visto que meu professor teve que pagar sua
fiança por fazer seus companheiros de equipe serem mortos em uma
preliminar miserável.”

“Não seja má!” Pen disse, fazendo beicinho para a menina mais velha.

“Briar,” disse Darrin com firmeza. A jovem enrijeceu, virando-se para ele, mas
focando em um ponto acima do ombro dele em vez de fazer contato visual.
“Ser grosseira com meus convidados significa grosseria comigo. Se você não
consegue conter sua frustração, eu recomendo que vá até as salas de
treinamento e suar até acabar com ela.”

Eu pude ver sua mandíbula cerrar de frustração, mas a jovem cedeu,


inclinando a cabeça em direção ao seu professor antes de marchar de volta
para a casa.

“Ela nem se desculpou,” Adem murmurou baixinho.

Darrin soltou um suspiro enquanto passava a mão pelo cabelo loiro. “Vou me
desculpar em seu nome. Briar tem… orgulho de sua criação e de suas
realizações pessoais.”

“Que estrelinha, aquela lá,” Alaric disse enquanto tomava um gole generoso
de sua taça de vinho.

“Eu já vi piores,” eu disse com um encolher de ombros, meu olhar ainda fixo
onde Briar havia saído.

O ascendente aposentado soltou uma risada enquanto levantava Pen de seu


colo. “Agora então, nós três temos algumas coisas para discutir.”

Os gêmeos trocaram um olhar aliviado enquanto corriam para dentro, mas Pen
teve que ser enxotada pela governanta. Adem demorou, olhando para Darrin
esperançoso, seu rosto caindo quando o ex-ascendente acenou para que ele
entrasse também.

Darrin observou o menino voltar para casa de mau humor.


“Ele é seu pupilo?” Eu perguntei, curioso sobre por que um ex-ascendente rico
parecia estar administrando sua própria casa de recuperação para a juventude
alacryana.

Darrin assentiu e deu um gole em uma caneca de madeira. “Seus pais foram
mortos nas Relictombs. Eu não os conhecia, mas a mãe de Pen sim. O menino
não tinha mais ninguém, e ele teria acabado nas favelas em algum lugar, ou
dado a alguma academia de merda que o treinaria apenas pela metade antes
de enviá-lo para morrer na guerra.”

“Então, você o adotou?”

Darrin franziu a testa para mim em confusão. “Adotou? Não, claro que não.
Apenas os sangues nomeados ou Altos Sangues têm permissão para adotar
formalmente. É… diferente, lá de onde você vem?”

Eu balancei minha cabeça rapidamente. “Eu não quis dizer uma adoção formal,
não, é só que você o recebeu. Isso é muito gentil.”

Obrigado pelo aviso, pensei para Regis.

‘Huh? O quê? Eu não estava prestando atenção.’

Resistindo à vontade de revirar os olhos, me concentrei em Darrin. “E a garota?


Briar?”

“Você quer dizer Srta. Superioridade?” Alaric bufou.

Darrin lançou a Alaric um olhar significativo antes de se virar para mim. “Briar
está apenas um pouco chateada por eu estar preocupado com o seu
julgamento, em vez de estar aqui, treinando-a. Seus pais me pagaram um bom
dinheiro para ser seu mentor, mas ela acredita que tudo o que você precisa
para sobreviver às Relictombs é de proezas físicas e mágicas.”

“Definitivamente não dói ser mais forte,” argumentei, meu olhar ainda na porta
que as crianças tinham saído.

O olhar de Darrin ficou distante. “Sim, mas sair das Relictombs vivo também é
um esforço de equipe.”

‘Você ouviu isso? Aparentemente, estamos fazendo errado,’ disse Regis com
uma risada.

“De qualquer forma, embora minha vida esteja definitivamente perdendo


aquele glamour que já teve, é muito mais seguro para mim treinar crianças do
que ascender nas Relictombs.” Ele coçou a bochecha, parecendo quase
envergonhado. “Embora ele não compartilhe do meu sangue, eu não poderia
deixar Adem sozinho e simplesmente partir em ascensões quando cada uma
poderia ser a minha última. Se algo acontecesse comigo… bem, então ele
realmente não teria ninguém.”
“Sim, o Darrin aqui tem um verdadeiro coração mole. É por isso que eu sabia
que ele iria te ajudar,” Alaric disse com um sorriso torto antes de cutucar seu
ex-aluno com o cotovelo. “Lembra daquela vez em que—”

Observei em silêncio enquanto Darrin massageava a ponte de seu nariz,


deixando escapar um suspiro profundo enquanto Alaric relembrava os velhos
tempos. Estar perto do adorável jovem ascendente – ou ex-ascendente –
tornava-se cada vez mais desconfortável para mim. Não porque eu tivesse
medo que ele descobrisse quem eu era, mas porque estava ficando cada vez
mais difícil vê-lo como um inimigo. Sua preocupação com Briar, sua simpatia
depois de adotar Adem, e até mesmo tomar conta da filha de sua ex-
companheira de equipe… Eu simplesmente não conseguia relacioná-lo com as
mesmas pessoas contra quem eu tinha ido para a guerra.

“Sinto muito, Grey. Alaric e eu tendemos a nos divergir um pouco quando


conversamos,” Darrin disse com uma risada. “Agora, onde estávamos…”

“Além de você ser ‘um molenga’, como Alaric disse, eu ainda não tenho certeza
porque você escolheu me ajudar,” eu respondi, estudando o ascendente
aposentado. “Não tenho certeza do que Alaric prometeu a você, mas não tenho
muita riqueza.”

Darrin se levantou e atravessou a varanda, encostado no parapeito. “A maioria


das pessoas que ajudo não tem. Não, eu não preciso de dinheiro. Eu ainda
ganho um pouco visitando as academias e contando histórias assustadoras
para os alunos para mantê-los na linha e, claro, por aceitar alunos particulares
como Briar, mas fiz minha fortuna nas Relictombs, e isso vai me manter
confortável até eu ficar velho.

“Eu só… não gosto de ver o garotinho sendo pisado pela nobreza. E eu
realmente não gosto quando os ascendentes são jogados fora, só porque eles
não têm o apoio de Alto Sangue.”

“Isso explica por que aqueles juízes odiavam tanto você,” observei,
lembrando-me de sua hostilidade clara.

Darrin riu baixinho. “Sim, não foi a primeira vez que entrei em conflito com
Blackshorn e Frihl.”

“Então… você espera que eu acredite que você me ajudou com a bondade do
seu coração?” Inclinei-me para a frente em minha cadeira, observando o
Alacryano de perto.

Ele virou de costas para as colinas e encostou-se na amurada, encontrando


meu olhar com uma intensidade que eu não tinha visto antes, mesmo no
julgamento. “Não exatamente.”

Eu o observei com cuidado, sem saber aonde ele queria chegar com isso.
“Eu invisto nas pessoas, Grey. Pessoas como Adem, Katla e Ketil. Pessoas como
uma dúzia de outros ascendentes que foram levados a julgamento, por direitos
sobre os espólios, ou morte acidental ou distintivos expirados.”

“Você espera uma porcentagem, como Alaric?” Eu disse, sem surpresa.

Alaric bufou. “Isso é exatamente o que eu disse a ele para fazer, garoto! Mas
ele não tem minha visão de negócios.”

Darrin lançou-lhe um olhar inexpressivo. Para mim, ele disse, “Espero que você
se lembre de que as pessoas podem ser gentis, e quando você vir alguém que
está com pouca sorte, ou que não é tão afortunado quanto você, ou que
precisa de ajuda, você vai fazer o que pode.”

Pisquei, esperando por uma piada ou um “e” depois, mas Darrin apenas ficou
sentado em silêncio.

“É isso?” Eu finalmente disse. “Você só espera que as pessoas… passem a ideia


adiante?”

Darrin deu a Alaric um olhar rápido antes de se virar para mim, seus olhos
brilhando e um sorriso infantil reaparecendo em seu rosto. “Ok, pode ser que
tenha uma coisa a mais…”

Capítulo 336
Proteção

Passos rasos ecoavam pelas paredes fortificadas enquanto Darrin conduzia


Alaric e eu por uma longa escada sinuosa que nos levava ao subsolo.

O que nos saudou no final da curta jornada foi uma porta grossa com
inscrições de runas que se abriu para uma grande área de treinamento. Meu
olhar varreu a ampla sala, e as memórias dos campos de treinamento no
castelo voador, onde eu treinei com Hester, Buhnd, Camus e Kathyln depois de
me tornar uma Lança, ressurgiram.

Com o pesadelo sobre Tess e Cecelia ainda fresco em minha mente, o passado
parecia que estava flutuando mais perto da superfície do que o normal.

Parece que foi em uma vida passada, pensei com um suspiro, parando na
porta.

‘Isso me traz uma boa pergunta: exatamente quantas vidas você tem, afinal?’
Regis perguntou, sua forma incorpórea irradiando diversão e curiosidade
genuína. ‘Sete, como um gato, ou você é mais como um Nix do rio, apenas se
livrando de seu corpo antigo e criando um novo?’

Um Nix do rio?

‘É uma pequena besta de mana em forma de tubo que vive nas rochas debaixo
d’água. Ele perde seu exoesqueleto cristalino todas as manhãs, saindo novo
em folha, e se você o cortar em dois, as duas metades se regeneram.’

Entrando na sala de treinamento, imaginei como seria gerar um clone de mim


mesmo toda vez que um de meus membros fosse decepado.

Regis praguejou em minha cabeça. ‘Por favor, esqueça que eu disse alguma
coisa. Essa cena é horrível.’

Como na porta, as runas foram inscritas no chão, ao longo das paredes e no


teto. Segui uma linha das runas, tentando determinar para que serviam.

“Runas de proteção,” Darrin confirmou. “Para manter a casa segura. Isso


significa que posso me soltar com tudo aqui embaixo sem nem mesmo acordar
Sorrel de sua soneca.”

Era uma sala de treinamento impressionante, embora não tão grandiosa


quanto a do castelo voador.

“Então, depois de ir contra os principais juízes e um sangue nomeado para


mim, isso é tudo o que você queria?” Eu perguntei, ainda navegando na sala
sem enfeites. “Uma sessão de treinamento?”

Alaric cutucou preguiçosamente sua orelha. “Ele é estranho assim.”

“Sério? Eu acho que é normal para um lutador querer sempre se testar,” Darrin
respondeu enquanto se espreguiçava no chão.

“Com licença, senhor Darrin!” Sorrel entrou na conversa da porta. As crianças


estavam agrupadas ao redor dela e espiando ansiosamente para a sala de
treinamento. “Senhor, as crianças estavam se perguntando se elas podem vir
assistir!”
Darrin olhou para mim e, embora eu não estivesse interessado em mostrar
minhas proezas de combate a ainda mais alacryanos, eram apenas crianças.
“Eu não me importo.”

O ascendente aposentado sorriu de alegria ao acenar para elas. “Será uma


grande experiência para elas!”

“Eu deveria ter cobrado de você por isso,” Alaric reclamou.

“A quantidade de álcool que você já inalou das minhas prateleiras deve ser o
suficiente para nos deixar quites até mesmo para este favor,” disse Darrin com
uma piscadela.

Quando as crianças se acomodaram no canto oposto da sala, Briar entrou pela


porta. Com uma toalha enrolada nos ombros e o suor brilhando em seu rosto,
ela se sentou com o resto do público.

Enquanto Adem e as outras crianças estavam obviamente ansiosas pelo show,


Briar me observou ainda mais criticamente do que os juízes do Alto Salão.

“Você precisa de algum tempo para se aquecer?” Darrin perguntou,


levantando-se novamente.

Eu balancei minha cabeça, jogando no chão o manto externo que Sorrel havia
fornecido para mim.

“Algumas regras, então,” ele continuou, alongando um braço sobre o peito.


“Sem matar ou mutilar, obviamente.” Darrin seguiu essa declaração com um
sorriso para deixar claro que ele estava brincando. “Já que não temos Escudos-

“Eu posso criar uma barreira ao meu redor,” eu disse, sabendo que ele estava
prestes a descobrir de qualquer maneira.

A maioria dos alacryanos que eu lutei na guerra não eram capazes de se


proteger com mana, em vez disso, contavam com seus grupos de batalha,
especificamente os magos conhecidos como Escudos, para protegê-los. Minha
experiência com outros ascendentes nas Relictombs sugeria que nem todos os
magos Alacryanos eram tão limitados, mas eu não queria que minha
habilidade se destacasse muito.

“Bom,” disse ele. Se ele pensou que era estranho, ele não revelou. “A
especialização se tornou popular desde que os simuladores permitiram que
os ascendentes escalassem as Relictombs juntos, mas acredito firmemente
que a versatilidade tem muito mais mérito quando as coisas dão errado.”

“Pare de dar uma de professor,” Alaric vaiou. “Nenhum desses idiotas quer
suas opiniões desatualizadas.”

“Você provavelmente experimentou por si mesmo, Grey,” Darrin continuou,


ignorando o comentário do velho bêbado e as risadinhas das crianças. “As
Relictombs requerem flexibilidade e criatividade se você quiser sobreviver.”

Eu simplesmente balancei a cabeça quando a voz de Regis soou em minha


cabeça.

‘Sim, mostre um pouco mais de criatividade do que “imbuir o corpo com éter,
e socar coisas”, princesa. Você não era um mago quadra elemental?’

Verdade, mas eu não conseguia regenerar um braço naquela época, pensei


levianamente.

‘…Touché.’

“Alguma outra regra antes de começarmos?” Eu perguntei.

“Eu normalmente não mencionaria isso, mas diria, para você, evite grandes
ataques na direção das crianças,” acrescentou Darrin com um sorriso irônico.
“Essa barreira é resistente, mas depois do que vi contra aqueles mercenários,
não estou tão confiante nela.”

Eu permiti uma pequena risada. “Vou manter isso em mente.”

Além da barreira, um coro de gritos de apoio ecoou de Pen e Adem,


encorajando Darrin. Ele acenou graciosamente para eles antes de voltar a
assumir uma postura de combate, com os punhos erguidos como um
boxeador.
Nenhum grito de apoio do meu companheiro geralmente tagarela? Perguntei
a Regis, cutucando-o mentalmente.

‘Uuuuuuu, vá Arthur,’ ele respondeu alegremente.

Caramba, valeu…

Darrin acenou com a cabeça, indicando que ele estava pronto, e eu retribuí o
gesto.

Instantaneamente, a forma de Darrin borrou quando ele se lançou para frente,


seu punho mirando no meu queixo. Pegando o ataque no meio da investida,
redirecionei o golpe para longe enquanto girei meu pé para a frente atrás de
mim, invertendo minha postura.

Ele cuidadosamente evitou se desequilibrar ou deixar uma abertura para um


contra-ataque, fintando e lançando um gancho nas minhas costelas em vez de
me dar um outro soco. Eu dei um passo à frente, dentro do soco, e bati meu
cotovelo em seu peito, fazendo-o tropeçar alguns passos para trás.

Os gritos das crianças diminuíram enquanto Darrin esfregava o local onde eu


o havia atingido. “Isso foi… rápido,” ele disse apreciativamente.

“Pegue ele, tio Darrin!” Pen gritou.

Estalando o pescoço, Darrin voltou a sua postura de combate antes de lançar


uma enxurrada de socos e chutes. Ele atacou com uma eficiência brutal,
movendo-se entre os ataques com uma graça fluida nascida de longa prática.
O atlético ex-ascendente teria facilmente superado a maioria das pessoas na
luta corpo a corpo, mesmo sem sua magia.

Mas a maioria das pessoas não tinha sido treinada por um asura.

Evitei os golpes do meu oponente sem contra-atacar por um punhado de


trocas, deixando-o me conduzir pela sala de treinamento enquanto tentava
me prender contra a parede, então, quando ele estava totalmente em seu
ritmo, eu inverti o curso, respondendo a cada golpe com um dos meus.

Em instantes, eu tinha o alacryano recuando, se debatendo para se defender


de ataques que eram mais fortes e mais rápidos que os dele. Quando ele
estendeu a perna de trás longe demais para manter o equilíbrio, varri a perna
da frente, fazendo-o cair no chão.

Gemidos e gritos de descrença vieram de nosso pequeno público. Ketil estava


de pé, seu rosto praticamente pressionado contra o interior do escudo de
mana, e até mesmo o olhar crítico de Briar tinha mudado.

A experiência de Darrin como ascendente brilhou quando ele imediatamente


rolou para trás por cima do ombro para ficar de pé em um único movimento,
seu rosto agora com uma máscara de determinação. Ele acenou com a cabeça
novamente, esperando que eu fizesse o mesmo.

Desta vez, quando ele deu um soco, seu punho parou bem aquém do meu
corpo, mas uma ligeira mudança na pressão do ar me fez desviar de qualquer
maneira. Algo duro e pesado passou roçando minha bochecha esquerda,
cortando minha orelha.

A camada de éter agarrada à minha pele absorveu o ataque, mas eu tinha


certeza de que o ataque teria derrubado um oponente desprotegido se tivesse
acertado em cheio.

“Você conseguiu se esquivar até disso, hein?” Darrin notou atrás de sua guarda
rígida. “Isso é um pouco desanimador.”

“Você me pegou desprevenido,” eu admiti, observando seus olhos


cuidadosamente para seu próximo movimento.

“Talvez, mas parece que sua velocidade e reflexos monstruosos conseguiram


compensar isso,” ele respondeu antes de dar alguns passos para trás,
colocando mais distância entre nós.

Percebendo o que ele pretendia, corri em direção a ele, mas fui recebido por
uma enxurrada de ataques de todas as direções diferentes. A direção dos
ataques não parecia se correlacionar com seus movimentos físicos, e ele era
bom em mascarar suas intenções ao se concentrar em qualquer lugar exceto
de onde os golpes viriam.

Embora eu não pudesse sentir a formação de mana pelo atributo do vento,


havia uma leve rajada de ar antes de cada ataque. Eu me abaixei e me torci,
usando meus sentidos aprimorados para rastrear cada soco estendido por
aquele woosh sutil, mas a barragem de ataques foi o suficiente para impedir
minha aproximação de Darrin para contra-atacar.

‘Você não pode simplesmente … não sei, avançar que nem um louco? Regis
perguntou, entediado. ‘Ou você está exibindo seus movimentos de dança
extravagantes?’

Um sorriso se formou na borda dos meus lábios. Eu posso, mas onde está a
diversão nisso?

‘Ah, o foco aqui é a diversão. Entendi.’ Regis pigarreou antes de gritar como um
locutor de uma luta de prêmios. ‘Eeeeeee o ascendente aposentado está
mantendo Arthur Leywin nas rédeas! O caipira de Ashber pode se recuperar
disso?’

Lutando contra a vontade de revirar os olhos, corri para frente, meus pés me
levando para frente em um caminho em zigue-zague em direção ao meu
oponente enquanto eu trançava no meio de seu bombardeio.

Assim que o alcancei, o ar na minha frente se iluminou com arcos crepitantes


de relâmpagos, saltando nas bordas de outro – muito maior – ataque de vento.

Envolvendo meus braços em éter, girei no meu pé da frente. Passando pelo


ataque de Darrin enquanto usava meus braços revestidos de éter como um
canal para redirecionar a mana, eu revidei com um ataque carregado de raio.

Darrin ergueu os antebraços em uma proteção rígida para bloquear meu soco.
Enquanto o ascendente aposentado derrapava com o impacto, a eletricidade
em torno de meus braços apenas se espalhou como uma teia de luz amarela
bruxuleante em seu corpo coberto de mana antes de se dissipar.

Uma das crianças gritou de pura emoção, mas a atenção de Darrin estava em
minhas mãos, que tinham manchas de pele queimada que se ramificavam em
meus braços.

‘Isso parece divertido,’ Regis brincou.


Darrin baixou a guarda, a preocupação em seus olhos enquanto olhava para
minhas mãos. “Isso parece muito ruim. Talvez devêssemos te levar—”

Eu levantei uma mão que já estava se curando, e seus olhos se arregalaram


enquanto a carne voltava à sua tez naturalmente pálida. “Não há necessidade.”

Embora ainda estivesse com a testa franzida de preocupação, Darrin deu


alguns passos para trás e indicou que estava pronto mais uma vez.

Desta vez, eu mergulhei ansiosamente no redemoinho de golpes de vento


impregnados de relâmpagos, aprimorando meu foco até que eu não visse nada
além dos arcos de relâmpagos e ouvisse apenas o sopro do vento. Darrin podia
lançar dois ou três golpes por segundo, supondo que ele estava dando tudo
de si – e eu ainda não tinha certeza se ele estava – e eu senti uma adrenalina
pelo desafio enquanto girava, mergulhava e me esquivava, evitando golpe
após golpe.

“Sua velocidade é incrível,” gritou Darrin – que parecia um boxeador das


sombras, chutando e socando o nada – do lado de fora da tempestade. “Mas
se você está tentando me cansar, você terá que fazer algo melhor. Eu já lutei
por dias sem descanso nas Relictombs, eu vou…”

Canalizando o éter em meus músculos, nervos e tendões, eu sincronizei o Burst


Step com a lasca de uma abertura dentro da nuvem de golpes e apareci ao
alcance dos braços de Darrin.

Ele não podia fazer nada mais do que olhar, de queixo caído, enquanto eu
passava a lâmina da minha mão em seu peito. Com o éter condensado e
moldado em um único ponto sobre minha mão esticada, meu ataque perfurou
a mana impregnada em sua pele e rasgou uma única linha limpa em sua
camisa, sem nem mesmo tocar sua pele.

Tarde demais, Darrin ergueu os braços para se defender e, em seguida,


cambaleou para longe de mim. Desta vez, ele não se levantou imediatamente.

Recompondo-se, Darrin inspecionou as ruínas de sua camisa. “Bem, acho que


já vi o suficiente.”
“O quê?” Adem gritou, correndo para fora da barreira. “Aquele ataque nem
acertou! Você não pode desistir agora.”

“Sim,” disse Pen, pisando forte atrás do menino mais velho, com os braços
cruzados. “Tio Darrin sempre vence.” Sorrel pegou a menina por trás, fazendo-
a gritar de surpresa.

“Adem está chateado por ter perdido sua aposta com o senhor Alaric,” Briar
disse, ficando atrás de todos os outros com os braços cruzados.

“Briar!” Adem reclamou, ficando vermelho.

Alaric cruzou o andar de treinamento em nossa direção, um largo sorriso sob


sua barba. “Você realmente deveria ensinar sua pupila a não apostar, Darrin.
Especialmente contra homens quatro vezes mais velhos e infinitamente mais
sábios.”

“Infinitamente mais sábio,” Adem rebateu irritado.

“Você está bem, tio Darrin?” Pen perguntou em sua voz baixa, olhando para o
ex-ascendente com olhos grandes e lacrimejantes.

Ele soltou uma risada bem-humorada. “Claro, foi apenas uma luta amistosa.”
Ele enfiou os dedos no buraco que eu rasguei em sua camisa e balançou-os
para a garota. “Vê? Nem um arranhão. Nunca se esqueça, Pen, seu tio era o
líder dos Sem Sangue.”

Adem e Briar gemeram simultaneamente.

“Essa foi a coisa mais louca que eu já vi na vida!” o menino loiro, Ketil,
exclamou. “Como você se moveu tão rápido?”

“É assim que todos os ascendentes lutam?” sua irmã perguntou, seus olhos
grudados no chão.

“Não,” Alaric disse, andando de onde eu havia usado o Burst Step até onde
estávamos agora, seu velho rosto enrugado pensativamente.

Darrin estava franzindo a testa e olhando para minhas mãos até que percebeu
que eu estava prestando atenção, e levantou rapidamente sua cabeça. “Grey é
rápido e forte, mas não deixe isso intimidar vocês,” disse ele a Katla e Ketil.
“Vocês não precisam ser capazes de fazer o que Grey ou eu podemos fazer para
ser ascendentes bem-sucedidos, mas vocês podem ser tão bom quanto nós,
se trabalharem duro.”

Katla e Ketil compartilharam um olhar cético sobre isso. Briar ergueu o queixo,
olhando ao redor ferozmente como se para nos dizer que ela seria tão boa
algum dia.

“Bem, estou faminto,” anunciou Darrin. “Por que não vamos todos comer
aquela refeição?”

A governanta assentiu com a cabeça educadamente e passou um braço em


volta dos ombros de Katla, segurando Pen na outra. “Vamos, crianças, vocês
podem me ajudar a pôr a mesa.”

Ao contrário de antes, na varanda, os gêmeos loiros pareciam desanimados


por serem afastados dos adultos, seus olhares de entusiasmo e admiração
desaparecendo, enquanto murmuravam, “Sim, senhora.”

“Posso fazer algumas perguntas a Grey?” Adem perguntou, ficando pra trás
enquanto Sorrel conduzia as crianças mais novas para longe. “Isso foi tão legal.
Eu quero-”

“Adem,” disse Darrin suavemente, e a boca do menino se fechou.

“Claro, desculpe. Vou ajudar com o jantar.”

Atrás dele, Briar hesitou por alguns segundos, mas quando Darrin pigarreou,
ela girou e seguiu os outros. Não pude deixar de notar quando Briar parou na
porta, me dando uma última olhada inquisitiva antes de desaparecer.

Enquanto o grupo era conduzido pra fora da área de treinamento, Alaric puxou
a parte esfarrapada da camisa de Darrin. O homem loiro deu um tapa na mão
dele, brincando, mas Alaric estava sério.

“Aquele ataque poderia ter matado você,” ele disse suavemente.


“Eu sei.” Darrin estalou o pescoço e liderou o caminho para fora da sala. Por
cima do ombro, ele disse, “Foi como se minha mana tivesse derretido onde o
ataque tocou…”

Darrin nos guiou escada acima até uma sala de jantar surpreendentemente
pequena com mesa para quatro pessoas.

Ele puxou uma garrafa ornamentada de líquido âmbar de uma prateleira e a


largou pesadamente, dando um tapinha nas costas de Alaric. “Estava
guardando isso só para você.”

Os olhos do velho alacryano brilharam como os de uma criança abrindo


presentes em seu aniversário, e ele se jogou em uma cadeira antes de rasgar
o lacre de cera ao redor da rolha com os dentes.

Eu deslizei na cadeira em frente a Alaric e olhei ao redor. Além de alguns


armários e estantes, havia também uma estante alta e estreita em um canto,
carregada de livros encadernados em couro. Ao lado da prateleira, uma janela
ocupava a maior parte da parede oposta, com vista para as colinas.

“O que foi aquele movimento que você usou lá na luta, Grey?” Darrin perguntou
em tom de conversa, virando a cadeira para que pudesse descansar os
antebraços nas costas. “Você usou algo semelhante contra aqueles
mercenários, certo? Foi muito impressionante, mas ver tão de perto assim foi…
bem, foi algo totalmente diferente.”

Forcei uma risada estranha e esfreguei minha nuca. “Não haveria muito
sentido em manter minhas runas escondidas se eu fosse me gabar delas para
todos que eu encontrasse, certo?”

“Verdade,” ele acenou com a cabeça. “Eu também sou contra exibir minhas
runas – alguns olhares boquiabertos e olhares de inveja não significam tanto
para mim quanto significariam para a maioria dos magos.”

“É porque suas runas não são muito para se ver em primeiro lugar,” Alaric
apontou enquanto tomava um gole generoso de seu copo.
“De qualquer forma,” Darrin disse, desistindo de bisbilhotar mais sobre minhas
runas, “eu pedi para as crianças comerem com Sorrel na sala de jantar
principal. Temos alguns negócios mais sérios para discutir.”

O ascendente aposentado trocou um olhar significativo com seu mentor


bêbado antes de se voltar para mim. “Grey, qual é o seu plano agora?”

“Agora que mais ou menos terminei minha ascensão preliminar, pretendo


voltar sozinho para as Relictombs,” respondi. “Pelo menos lá, eu só preciso me
preocupar com as bestas de mana tentando me matar.”

Darrin coçou o queixo pensativo. “Você planeja ficar dentro dos níveis mais
profundos das Relictombs indefinidamente? Porque o primeiro e o segundo
andares das Relictombs estão sob vigilância constante, tornando sua
localização muito óbvia para pessoas de alto poder.”

“Como os Granbehls?” Eu perguntei em um tom desafiador. “Se eles tentarem—


Alaric ergueu a mão apaziguadora. “Olha, tenho certeza que os Granbehls


receberam sua última mensagem em alto e bom som. Duvido que até mesmo
eles sejam estúpidos o suficiente para tentar outro ataque contra você
diretamente.”

“Mas isso não significa que eles não vão contar a seus amigos próximos de
Sangues Nomeados sobre você,” Darrin continuou. “E isso sem levar em
consideração os Denoirs, muito mais ricos e poderosos, que também esperam
ser compensados.”

“E eles têm uma cenoura bastante cheia de curvas para balançar na sua frente
assim que te encontrarem,” Alaric acrescentou balançando as sobrancelhas.

‘Cheia de curvas, de fato,’ concordou Regis.

“Se você está se referindo a Caera Denoir, espero que não pense que nós dois
saímos juntos para uma escapadela romântica nas Relictombs,” eu disse, com
um toque de verdadeiro aborrecimento em minhas palavras. “Foi ela que se
disfarçou e me rastreou para me observar.”
“Independentemente disso,” Darrin interrompeu. “Pelo que eu entendi entre
você e Alaric, parece que você quer a liberdade de poder se mover como
quiser.”

Pensei em todos os recursos disponíveis que poderiam ajudar em Alacrya, bem


como até na possibilidade de voltar a Dicathen para ver minha família. “Sim.
Isso seria o ideal.”

“Bom. Então estamos na mesma página,” disse Darrin. Houve um momento de


silêncio enquanto os dois ex-ascendentes alacryanos compartilhavam aquele
olhar novamente antes que ele continuasse. “Ok, a próxima parte pode
parecer estranha no início, mas a melhor coisa para você agora seria ter um
patrono ou patrocinador de algum tipo.”

Eu inclinei minha cabeça. “Eu não entendi o raciocínio.”

“Ok.” Alaric avançou. “O que você precisa é de proteção. Proteção política, não
do tipo de combate. Nós sabemos que você pode cuidar de si mesmo. O
problema é que só existem algumas instituições – e menos ainda pessoas que
não sejam as Foices e os próprios Vritras – que ofereceriam a você o tipo de
imunidade que impediria até mesmo o Alto Sangue Denoir de se intrometer. E
acontece que eu conheço um cara do escritório de admissões na Academia
Central—”

“Academia?” Eu falei de uma vez. “Onde Briar estuda? Você não espera que
eu—”

Alaric franziu a testa com os olhos vesgos e tomou outro gole direto da garrafa.
“Isso vai nos levar muito tempo se você continuar interrompendo a cada sete
palavras.” Ele fez uma pausa, me fixando com um olhar penetrante, mas eu
permaneci em silêncio. “Sim, a mesma Academia Central.”

“Então, o quê, você espera que eu… vá à escola?” Eu perguntei, a descrença


escorrendo de cada palavra.

“Não, garoto, espero que você dê aula,” Alaric anunciou, um brilho de diversão
em seus olhos.

Capítulo 337
Camadas

Eu apenas encarei o velho alacryano, sem ter certeza de tê-lo ouvido


corretamente.

“O corpo docente da Academia está além das fileiras normais da sociedade,”


disse Darrin, rapidamente dando continuidade à fala de Alaric. “Pelo menos
nas prestigiosas academias. Mesmo um Alto Sangue poderoso não poderia
tirá-lo de um posto de ensino, e os Granbehls perderiam seu nome
imediatamente se fossem pegos planejando um ataque nos terrenos da
Academia Central.”

Recostei-me na cadeira, os braços cruzados, incapaz de evitar que uma


sobrancelha se erguesse. “Você disse que eles não atacariam de novo de
qualquer maneira.”

Alaric bufou com divertimento. “Vamos lá, garoto. Não mude de assunto.”

“A vaga é para um instrutor de combate corpo a corpo de nível iniciante,”


Darrin continuou, tamborilando os dedos na mesa. Ele estava me observando
atentamente.

“Vida boa, nem mesmo precisa ensinar magia aos pequenos wogarts,” Alaric
acrescentou com um sorriso. “Apenas brandir espadas e praticar exercícios
militares, esse tipo de coisa.”

“Você só terá aulas alguns dias por semana,” continuou Darrin, “então, uma
vez que você esteja acomodado, terá tempo para—”

Uma batida leve na porta o interrompeu.

Um momento depois, a porta se abriu e Sorrel entrou com duas bandejas


cheias de comida. “Todas essas idas e vindas são um trabalho que dá fome,”
disse ela, sorrindo docemente enquanto colocava as bandejas na mesa.

‘Eu sei o que você está pensando, obviamente,’ Regis interrompeu enquanto
esperávamos Sorrel arrumar a mesa e colocar alguns utensílios, ‘mas você e eu
sabemos que, logicamente, este é um plano bastante sólido.’

O que nesse plano parece lógico para você, Regis? Eu retruquei, incapaz de
suprimir uma onda de aborrecimento.

‘Em troca de ter carta branca para continuar fazendo nosso esquema sem
interferência, ensinar alguns ricos pirralhos alacryanos como bater uns nos
outros com gravetos parece um pequeno preço a pagar, princesa.’ O tom de
Regis era presunçoso, já que ele sabia que estava tirando pensamentos direto
da minha cabeça para argumentar contra mim.

Quer dizer ensinar crianças alacryanas como matar crianças de Dicathen?


‘Era isso que você estava fazendo quando ajudou o pequeno Belmun da cidade
de Maerin a conseguir um brasão? Ou que tal Mayla e seu emblema?’

Eu não tinha nada para—eu me interrompi, afastando o pensamento. A


verdade é que eu suspeitava que a razão pela qual as duas crianças receberam
runas tão poderosas em Maerin tinha algo a ver comigo. Eu não sabia o quê,
mas era uma coincidência muito grande para ignorar.

‘Já não superamos isso de tratar todo alacryano que encontramos como um
inimigo mortal por agora?’ Regis perguntou, deixando o tom cortante de sua
voz se transformar em algo quase simpático. ‘Inferno, diferente de você, eu só
conheci alacryanos… e não estou sendo simpático, estou sendo convincente.’

Eu me concentrei em Sorrel organizando o que restava do nosso jantar


enquanto considerava o argumento de Regis. Ele estava certo, mas eu tentei
muito impedir que esse pensamento vazasse para ele. Ela sorriu para nós três
antes de voltar para fora da sala.

Assim que a porta se fechou atrás dela, Alaric começou novamente. “Lembra
onde eu te encontrei pela primeira vez, garoto? Naquela pequena biblioteca
na Cidade de Aramoor? Se você for para a Academia Central, terá acesso a uma
das maiores bibliotecas de Alacrya. E com informações um pouco mais
próximas da fonte, se é que você me entende. Não tão… cuidadosamente
filtradas como o que você encontrou em Aramoor.”

Eu ignorei o velho bêbado e preferi espetar uma fatia de uma fruta vermelha
rubi com um garfo antes de dar uma mordida.

“Os ascendentes se dão bem nos círculos da academia,” acrescentou Darrin,


espalhando manteiga de cheiro doce em um pedaço grosso de pão fumegante.
“E a Academia Central em particular é muito prestigiada. Um professor pode
facilmente conseguir entrar e sair do portal de ascensão principal das
Relictombs quando quiser… ou fazer acomodações para obter acesso a um
portal secundário, ou até mesmo a um portal privado em algum lugar. Muitos
professores ainda vão em ascensões, então você não se destacará.”

Eu fiz uma careta enquanto mastigava a fruta, que tinha uma textura
semelhante a borracha e carne seca. Minha preocupação mais imediata era
voltar para as Relictombs. Se fingir ser um professor nesta academia não fosse
uma barreira para isso…

“Você estaria cercado por especialistas em uma dúzia de campos diferentes,”


Alaric continuou. “O tipo de pessoa que adora mostrar a todos como são
inteligentes e talentosos. Magos que sabem tudo que há para saber sobre
como funcionam as runas, sobre as Relictombs, sobre as relíquias dos magos
antigos…”

Engolindo em seco, inclinei-me para frente e peguei um pedaço de queijo duro


de uma das bandejas. “Eles estudam relíquias nesta academia?” Eu perguntei,
tentando não parecer interessado demais. Pela forma como o rosto de Alaric
se iluminou, eu sabia que não tinha sido totalmente bem-sucedido.

“Não, todas as relíquias vão para o Alto Soberano, que provavelmente tem
algum covil supersecreto onde seus instiladores fazem seus experimentos” –
senti meu rosto afundar quando as palavras de Alaric apagaram a breve
excitação que senti – “mas eles de fato têm bastantes relíquias mortas em
exibição lá!” Ele terminou com pressa.

Darrin estava balançando a cabeça com entusiasmo. “Isso é verdade. Fui


palestrante convidado há cerca de um ano, e eles mostraram o que chamam
de ‘relicário’, uma espécie de pequeno museu para relíquias mortas que eles
conquistaram ao longo das décadas.”

Uma sala inteira cheia de relíquias mortas? Eu considerei as possibilidades. Se


eu pudesse colocar minhas mãos em mais relíquias como o –

Qual o nome que devemos dar pra esta coisa, afinal? Perguntei a Regis,
pensando na pedra multifacetada que me permitia ver minha irmã e minha
mãe.

‘O Orbe de Assédio de Longo Alcance,’ disse Regis, desenhando o nome


teatralmente. ‘Já estou chamando assim na minha cabeça há semanas.’

Apenas… não, respondi. Mas como quer que o chamemos, ter mais algumas
relíquias à nossa disposição não faria mal.

“Tudo bem,” eu disse em voz alta, “digamos, para fins de argumentação, que
eu concorde com seu plano. Como isso vai funcionar?”

Alaric bateu na mesa e sorriu, cuspindo algumas migalhas de comida na barba,


e Darrin iniciou uma explicação mais detalhada.

Naquela noite, eu estava sentado de pernas cruzadas no chão em um dos


quartos de hóspedes confortavelmente decorados de Darrin, considerando
minha situação, enquanto Regis cochilava na minha cama, seu corpo enorme
afundando no colchão macio.

Por mais que eu não quisesse admitir, a ideia de Alaric e Darrin tinha algum
mérito. A diretora Goodsky me fez professor quando eu tinha apenas 12 anos,
e eu treinei minhas habilidades de combate corpo a corpo por anos dentro do
reino da alma com Kordri.

A academia me daria proteção política tanto dos Denoirs quanto dos


Granbehls, e parecia que eu seria capaz de voltar às Relictombs quase
imediatamente.

As Relictombs…
Em algum lugar, mais três ruínas antigas estavam esperando por mim para
encontrá-las. Eu não tinha certeza se as zonas que Caera e eu havíamos
ascendido juntos eram as mesmas ruínas ou diferentes, mas senti
instintivamente que não tinha tido sucesso em minha segunda ascensão.

Embora eu tenha feito um progresso significativo com o God Step – graças a


Three Steps – eu não tive uma grande descoberta, ou encontrei algo que me
guiou em direção a uma nova runa divina, uma vez que a pedra angular
contendo o insight do Requiem de Aroa tinha sido tecnicamente da primeira
ruína.

Não pude evitar o pensamento de que, para dominar o aspecto do Destino,


teria que encontrar mais zonas como a sala em ruínas onde falei com o cristal
mágico falante. Por que outro motivo o djinn teria deixado um resquício de si
mesmo lá, apenas esperando para entregar a pedra angular para o primeiro
“descendente” digno que viesse?

Limpei minha mente e procurei as localizações das quatro ruínas antigas,


como Sylvia as havia descrito. As memórias implantadas passaram pela minha
cabeça, mas não encontrei orientação ali; nenhum dos lugares que eu podia
ver era familiar, exceto aquele que eu já tinha estado, e eu não tinha como me
guiar até eles dentro das Relictombs.

“Estamos apenas andando sem rumo aqui em Alacrya,” eu disse suavemente.


“E se Agrona obtiver um insight sobre o Destino primeiro?”

A cabeça de Regis se ergueu da cama, inclinando-se ligeiramente para o lado.


“Então… nós perdemos, eu acho. Sua namorada lidera o exército para
Epheotus, e Agrona usa o Destino para – eu não sei – transformar todos os
outros asuras em flores ou algo assim.”

Balançando minha cabeça, eu me deixei inclinar para trás até que eu deitasse
no chão frio. “O que quer que Agrona e Nico tenham feito para Tessia, sejam o
que forem essas tatuagens ou feitiços… Eu tenho que salvá-la, Regis.”

“Para uma garota que você enrolou toda a sua vida – segunda vida, tanto faz –
estou percebendo muitos sentimentos confusos aqui.” Regis fez uma pausa
para considerar suas palavras. “Você a está salvando por amor ou culpa?”

Eu deixei suas palavras impregnarem o ambiente antes de, eventualmente,


deixar escapar um suspiro. “Eu não tenho certeza, talvez ambos? É
complicado…”

O lobo das sombras bocejou e apoiou o queixo nas patas. “Vindo do cara que
descobriu como voltar no tempo para trazer objetos de volta à vida.”

Soltei uma risada ausente, minha mente vagando por todos os estágios do meu
relacionamento com Tess. Alguém que salvei, que virou uma irmã mais nova,
depois uma amiga e colega de classe, e eventualmente algo mais. Sempre
houve alguma forma de amor em meio a tudo isso, mas não da maneira que
Regis queria dizer. A culpa por ser um homem muito mais velho do que meu
corpo físico me impedia de examinar meus sentimentos em profundidade,
afastando-os. Até mesmo os poucos beijos que compartilhamos foram
hesitantes, experimentais…

E então eu desapareci para Epheotus, e Tessia foi para a guerra. Mal tínhamos
nos visto durante a guerra, e o romance estava tão longe da minha mente…

Então, de repente, nos encontramos juntos novamente na Muralha. A Tess que


conheci lá era uma jovem linda e talentosa que uma vez prometeu esperar por
mim…

Naquela noite, naquele momento nas montanhas com a visão da Muralha…


aquela foi, talvez, a primeira e única vez que nosso relacionamento se
aproximou do rótulo do amor. Não que eu fosse muito bom nele. Mesmo com
duas vidas, ainda havia algumas coisas em que eu não era bom…

Assim como Tess disse…

“Eu nunca deveria ter me aproximado dela?” Eu perguntei no quarto, minha


voz quase um sussurro.

“Então, como sua vida aqui teria sido diferente da anterior?” Regis perguntou,
sem se preocupar em levantar a cabeça.

Abri a boca para falar, mas não consegui formar uma resposta. Eu me culpava
por muitas coisas, mas ficar próximo de todas as pessoas que passei a amar
neste mundo não era uma delas.

Vendo-me tão em conflito, meu companheiro soltou um suspiro e saiu da


cama. Girando em um círculo, ele se deitou no chão ao meu lado, suas costas
pressionadas contra meu braço esquerdo.

Eu dei um tapinha em seu peito que subia e descia lentamente, em seguida,


afundei meus dedos em seu pelo.

“Você é estranhamente macio,” eu disse, reunindo uma risada fraca.

“Eu sei,” disse ele sonolento, sua mandíbula rachando com um enorme bocejo.

“Obrigado,” eu disse, sabendo que ele entenderia o que eu quis dizer.

Regis ficou em silêncio, mas eu o senti afundar com um calor contente.

“Se eu pudesse usar a relíquia para vê-la… talvez pudéssemos descobrir o que
realmente está acontecendo. Eu saberia se ela ainda fosse… ela mesma.” Havia
uma parte de mim que estava feliz por eu não poder, no entanto. Tive medo
do que veria se a pedra funcionasse.
Quando eu imbuí éter na runa de armazenamento extradimensional, Regis
levantou a cabeça novamente. “Você vai tentar mesmo assim?”

Eu apenas balancei minha cabeça, forçando minha mente para longe do poço
profundo de culpa e medo que eu sentia sempre que pensava em Tessia. Ela
não era minha única preocupação agora. Havia outra velha amiga que
precisava ser salva também, e eu sentia tanta falta dela – talvez até mais –
quanto da princesa élfica.

Retirando o ovo iridescente, virei-o na mão, preocupado com a Sylvie dentro


dele. Ao contrário de Regis, eu não conseguia deslizar minha mente para
dentro do ovo, não conseguia me consolar tocando sua consciência
adormecida.

Eu não poderia fazer nada sobre Tessia agora, mas talvez…

Regis levantou a cabeça do chão e olhou por cima do ombro para mim. “Já faz
um tempo que você não tenta fazer isso aí… quebrar o ovo ou algo assim.”

Muito tempo, pensei, considerando os aumentos de poder que eu tive desde a


Cidade de Maerin. Fiquei tentado a tentar durante os longos e cansativos dias
que passei preso pelos Granbehls, mas… Eu também estava preocupado com
o que poderia acontecer se eu conseguisse.

“E aí?” Régis cutucou, coçando atrás da orelha com a pata. “Você vai tentar ou
o quê?”

“Acho que estamos seguros o suficiente aqui…”

Olhei nervosamente para a pedra, que me drenaria cada gota de éter se eu


começasse a preenchê-la. E se Sylvie reaparecer de repente na minha
frente? Será que meu vínculo voltaria como uma raposa, ou uma garota… ou
um dragão adulto, demolindo a casa de Darrin Ordin?

Eu me perguntei, não pela primeira vez, se ela seria a mesma Sylvie que esteve
ao meu lado desde que eu era criança. Ela ficaria com raiva de mim? Será que
ela se lembraria de tudo que aconteceu, de tudo que fizemos juntos?

E se ela reaparecer, e ela nem souber quem eu sou…?

“Só há uma maneira de descobrir, princesa”, disse Regis, espreguiçando-se


enquanto se levantava.

Com minha mente decidida, eu me levantei em um salto e dei três passos


rápidos através da sala, abrindo a grande janela de vidro que dava para as
colinas. Já que eu não sabia exatamente o que aconteceria, eu não queria
arriscar a casa de Darrin ao imbuir éter no ovo aqui.

Virei-me para perguntar a Regis se ele vinha, mas já podia sentir a resposta.
Isso era algo privado, algo que eu precisava fazer por conta própria.
Eu mantive meu olhar nele, acenei com a cabeça, então me virei e pulei para
fora da janela, passando por cima de uma fileira de arbustos decorativos e
uma pequena cerca antes de pousar na grama alta. As colinas eram
fantasmagóricas no escuro, a grama clara sem cor à luz das estrelas.

Imbuindo éter por todo o meu corpo, corri em direção a uma colina alta a cerca
de um quilômetro da casa de Darrin, o ovo suavemente brilhante em meu
punho.

Apesar de meus melhores esforços para me manter calmo, meu coração batia
forte no meu peito quando me sentei de pernas cruzadas na grama dura. A
última vez que tentei imbuir éter no ovo de Sylvie, parecia que estava jogando
baldes cheios de água em um reservatório de drenagem rápida. Mas isso foi
muito melhor do que minha primeira tentativa, logo depois de formar meu
núcleo de éter.

Com base no meu melhor palpite – era muito mais difícil para mim apontar a
clareza do meu núcleo de éter comparado ao meu antigo núcleo de mana –
meu crescimento entre a cidade de Maerin e agora era significativamente
maior do que o que eu havia alcançado durante a primeira ascensão.

Não custou muito éter para fazer a curta corrida até a colina, mas mesmo assim
decidi absorver todo o éter que pudesse da atmosfera antes de começar. O
processo foi significativamente mais lento do que nas Relictombs, onde a
atmosfera era rica, mas continuei até meu núcleo estar completamente cheio.

Para ter certeza de que estava maximizando minha chance de sucesso, liberei
um pouco do éter do meu núcleo, deixando-o se mover naturalmente por todo
o meu corpo e não exercendo nenhuma influência consciente sobre ele. A
maior parte do éter moveu-se em direção às minhas mãos – ou, mais
precisamente, em direção ao ovo de Sylvie – e parte do excesso foi perdida,
mas depois de trinta minutos ou mais de meditação, meu núcleo estava
transbordando e meu corpo estava nadando com partículas flutuantes de éter.

A sensação me deixou um pouco zonzo, como se eu tivesse bebido alguns


drinques e estivesse à beira de ficar bêbado.

“Tudo bem, Sylv,” eu sussurrei. “Vamos ver se isso funciona.”

Segurando a pedra incandescente com firmeza, fechei os olhos e senti o brilho


quente do meu núcleo de éter dentro do meu esterno. Imaginando os canais
de éter que corriam por todo o meu corpo conectando-se ao meu núcleo como
pequenas rodovias, cada um com seu próprio portão segurando o éter até que
eu o liberasse, eu tomei o controle desses portões em minha mente.

Era importante que todo o éter fluísse para o ovo, mas também era importante
que eu canalizasse o éter rápido o suficiente para encher o reservatório dentro
dele. Claro, se eu apenas enviasse uma rajada descontrolada de éter, a maior
parte se dissiparia na atmosfera em vez de fluir para o ovo.

De repente, abri os portões e empurrei. Meu corpo ficou quente enquanto a


torrente de éter corria pelos meus canais forjados por lava. No começo eu
estava muito focado em evitar que o éter escapasse ou fosse absorvido pelo
meu corpo físico para apreciar completamente o que estava acontecendo com
o ovo, mas conforme mais e mais do meu éter era imbuído na pedra, percebi
com um choque que estava funcionando.

Dessa vez, mais do éter purificado estava sendo drenado para a pedra, com
apenas um fio de energia impura escapando novamente – uma melhoria
significativa.

O caminho em espiral lá dentro, onde o éter era atraído para o coração do ovo,
começou a brilhar com uma luz ametista vibrante. À minha volta, o topo da
colina estava banhado em luz roxa, salpicado de sombras verdes, vermelhas e
azuis.

Meu núcleo começou a doer intensamente, como um músculo esticado demais,


enquanto o resto do meu éter era puxado para dentro do ovo.

A luz se apagou quando a pedra vibrante e brilhante ficou turva, depois escura.

Então, do fundo da pequena pedra que carregava desde que despertei nas
Relictombs, houve uma rachadura. Foi algo que senti mais do que ouvi, como
pisar em um gelo muito fino e senti-lo se mexer sob meus pés.

Esperei que algo acontecesse. A pedra explodiria quando o éter se aglutinasse


de volta na forma do meu vínculo, assim como ela havia se desvanecido para
o nada diante dos meus olhos? Ou ela renasceria do próprio ovo, rastejando
para fora do tamanho de um gatinho recém-nascido?

Alguns segundos se passaram e comecei a ficar nervoso. Depois que um


minuto se passou, eu sabia que algo estava errado.

Não havia mais éter descendo pelo ovo. Ele tinha devorado tudo que eu tinha
dado, mas não tinha sido—

Eu congelei. Algo estava diferente. Eu podia sentir isso, mesmo que não
pudesse ver.

Embora meu núcleo doesse por ter sido drenado, passei alguns minutos
juntando éter, apenas o suficiente para enviar um pulso experimental na
pequena pedra. O ovo de Sylvie o recebeu com fome, mas ao contrário de
antes, o éter não espiralou para o centro do ovo.

A linha de partículas roxas seguiu um caminho geométrico de ângulo agudo à


medida que eram absorvidas.
Eu deixei minha cabeça pender, o cabelo loiro trigo que herdei de Sylvie caindo
em cascata sobre meu rosto. “Outra camada.” As palavras caíram como folhas
mortas, secas e finas como papel.

Se eu levasse em consideração a complexidade do novo caminho, tinha certeza


de que essa nova camada do reservatório exigiria ainda mais éter do que a
primeira.

E podia não ser a última.

Minhas mãos tremiam quando um escárnio amargo escapou dos meus lábios.
Ter minha excitação se transformando tão abruptamente em decepção me
deixou atordoado, olhando fixamente para o ovo até que minha visão ficou
turva.

Soltando um suspiro trêmulo, me recompus e enxuguei minhas lágrimas antes


de pressionar a pedra iridescente contra minha testa.

“Mesmo que custe todo o éter das Relictombs, vou tirar você daí, Sylv.”

Capítulo 338
Uma Arma Contra Ele

CAERA DENOIR

Os pássaros noturnos gorjeavam suavemente nas copas das árvores enquanto


eu vagava pelo pomar fora da propriedade de Corbett e Lenora no Domínio
Central, tendo sido liberada para um breve momento de lazer após o jantar –
este que foi estranho e tenso devido ao fato de Grey não aparecer.

Mas eu já sabia que ele não apareceria, o que eu tentei explicar ao Lorde e à
Dama. Grey deve ter lido as reais intenções por trás da indelicada tentativa de
manipulá-lo. Afinal, eles enviaram Lauden, de todas as pessoas, ao Alto Salão
para pôr fim ao falso julgamento.

Chutando uma grande vagem de semente que havia caído dos galhos acima,
observei enquanto ela quicava no caminho antes de cair na grama mais
espessa sob as árvores. Algo pequeno e rápido se moveu na escuridão do
crepúsculo, correndo pela vegetação rasteira para inspecionar a comoção.

Embora eu soubesse que Grey não viria, ainda assim me senti desapontada,
uma emoção que me frustrava mais do que a própria causa. Fazia três
semanas, mas eu ainda estava lutando para entender como me sentia em
relação ao homem, ou o que eu queria dele.

Talvez eu devesse estar me perguntando: o que Grey quer de mim?

Soltei um suspiro profundo no ar quente da noite enquanto ponderava a


questão.
Passos suaves esmagando o caminho de cascalho me avisaram que alguém
estava se aproximando. Eu conjurei uma camada de mana para se agarrar
firmemente à minha pele e espiei através da escuridão. Era improvável que eu
fosse atacada aqui de todos os lugares, mas apenas o Alto Soberano não teme
traição, como diz o ditado.

Assim que terminei esse pensamento, o ar se moveu atrás de mim, e uma


extensão de sombra sólida se fundiu do nada, balançando em direção ao meu
pescoço. Eu me abaixei sob o ataque, deixando o movimento me levar a uma
cambalhota de lado enquanto a sombra sibilava passando por minha orelha.

Minha própria espada escarlate estava em minha mão e queimando com fogo
espiritual negro em um instante, mas eu não conseguia sentir mais ninguém
no pomar, nem determinar a origem da lâmina negra que quase arrancou
minha cabeça.

O que significava que só poderia ser uma pessoa.

Girando, eu trouxe minha longa lâmina em um amplo arco sobre minha cabeça,
chamas negras se espalhando em uma nova destrutiva. Houve uma ondulação
nas chamas apenas à minha direita, mas no momento em que eu disparei um
golpe curto e afiado, ela se foi, e um fragmento fino como uma navalha da mais
pura mana negra foi pressionado contra a lateral do meu pescoço.

“Tsk, tsk,” disse Foice Seris, aparecendo como se fosse de sua própria sombra.
“Se eu fosse um assassino, você estaria—”

O fogo da alma saltou da minha carne e correu ao longo da ponta de sua


lâmina. Com um suspiro divertido, ela deixou a arma conjurada desaparecer,
mas o fogo da alma ainda pairando no ar entre nós se condensou em uma
flecha bruxuleante que se lançou em direção a sua garganta.

No espaço de uma batida do coração, uma névoa de energia escura estava


ondulando ao seu redor. Meu ataque se dissipou enquanto a aura devorava
avidamente minha mana.

“Seu controle sobre o fogo da alma está progredindo bem,” ela disse, seus
lábios se contraindo nos cantos. “Parece que o misterioso Grey te fez ir além
de seu auge mais recente.”

Guardei minha arma, voltando meus olhos para o cascalho aos nossos pés.
“Você me dá muito crédito,” respondi uniformemente, ignorando o rubor de
minhas bochechas com a provocação de Foice Seris. “É graças ao seu
treinamento e orientação que cheguei a este nível.”

Ela revirou os olhos incisivamente e se virou, seu cabelo – normalmente cor


de pérola, mas agora uma ametista profunda na luz fraca – girando atrás dela.
“Você nunca foi uma baba ovo, Caera. É uma das coisas que mais gosto em
você. Não comece a ser uma agora.”
Mordendo meu lábio para não sorrir, eu segui minha mentora enquanto ela
caminhava mais fundo no pomar. “Eu não estava esperando você esta noite,
Foice Seris.”

“Vou estar fora por um tempo. Eu queria te deixar alerta.”

“Para o outro continente de novo?” Eu perguntei, juntando minhas mãos atrás


das costas. “Será que algum dia você vai —”

“Sim,” ela disse, sua voz baixa e pesada com intenção. “Para ambas as
perguntas. Mas agora não é a hora, Caera.”

Caminhamos em silêncio por um ou dois minutos enquanto meus


pensamentos se voltavam para a guerra. Os Denoirs eram um dos poucos Alto
Sangues que não haviam reivindicado terras na floresta encantada em
Dicathen. A estrela de Corbett e Lenora subiu ainda mais conforme tantos
outros sangues sofreram, alguns totalmente destruídos pela devastação
inesperada ali.

Meus pais adotivos enviaram um bom número de soldados para a guerra, é


claro. Ficar fora da luta teria feito com que parecessem fracos, mesmo quando
era uma opção. Mas quando Corbett viu os sangues nomeados, e mais do que
alguns Altos Sangues, correrem para reivindicar terras e escravos escolhidos
em Dicathen, ele apenas observou sua empolgação com um sorriso silencioso,
insistindo que “Alacrya já tem tudo que os Denoirs precisam.”

O tempo acabou provando que foi uma decisão sábia, por mais que eu odiasse
admitir. Teria quebrado o coração de meus pais adotivos se Lauden estivesse
ocupado estabelecendo uma propriedade para os Denoirs quando os asuras
atacaram. Não que eu me importasse terrivelmente…

“Aparentemente, o julgamento do Ascendente Grey foi um espetáculo e tanto,”


disse Foice Seris para quebrar o silêncio.

“Deveria ter sido um problema simples de resolver,” eu disse com uma pitada
de amargura. “É uma vergonha, honestamente, saber que nosso sistema legal
pode falhar de forma tão dramática.”

Foice Seris respondeu com uma risada elegante. “Os Altos Sangues passaram
gerações manipulando o sistema pra benefício deles, tanto que a maioria de
vocês quase não percebe mais. Sua surpresa é prova suficiente disso.”

Apressando meu passo para andar ao lado dela, encontrei os olhos de minha
mentora. “Por que os Soberanos não intervêm?”

“A melhor pergunta é, por que fariam isso?” ela perguntou, uma sobrancelha
erguida. “Eles criaram cuidadosamente um sistema pelo qual a pureza do
sangue é fundamental, não é? Eles deixam os Altos Sangues escaparem
impunes do assassinato, desde que isso não interrompa as próprias
maquinações deles.” “Não, a verdade é, garota, que os Soberanos pouco se
importam com o que os menores fazem uns aos outros, contanto que seja feito
com a quantidade apropriada de reverência ao suserano de cada domínio.”

Foice Seris abriu a boca para continuar falando, então me lançou um olhar
astuto. “Pequena meio-sangue inteligente. Você me fez mudar de assunto.”

Eu me endireitei, praticamente marchando como se estivesse em uma parada


militar. “Você está apenas me provocando de novo. Nós duas sabemos que
você não vai me dizer o que sabe sobre Grey, então não vou perguntar.”

Isso provocou outra risada delicada em minha mentora. “Se você quer que ele
confie em você – realmente confie em você – este é o conhecimento que você
precisa ganhar por conta própria, Caera. Não vou te dar nenhum atalho.”

“Mas você quer que eu fique perto dele? Você insinuou isso.” Eu mantive minha
atenção em frente, mas podia senti-la me examinando. “Devo ser sua espiã,
Foice Seris?”

“Você deve,” ela confirmou. “Mas não pense que o está traindo. Afinal, o
menino me deve muito.”

Fiz uma pausa ao som de passos pesados movendo-se rapidamente ao longo


do caminho atrás de nós. Na verdade, minha conversa com Foice Seris só me
deixou mais confusa e em conflito em relação a essa situação, de modo que
quase fiquei aliviada com a interrupção.

Minha mentora e eu observamos enquanto a figura de minha assistente, Nessa,


aparecia na escuridão.

“Lady Caera, eu—”

Os olhos de Nessa se arregalaram comicamente quando ela percebeu a foice


com chifres ao meu lado, e a pobre garota se jogou no cascalho aos nossos
pés. “Por favor, me perdoe, Foice Seris Vritra! Eu não percebi!”

Minha mentora olhou imperiosamente para a criada aterrorizada. “Esteja mais


atenta no futuro.” Apesar de seu tom, eu pude ver a mesma contração quase
invisível no canto de seus lábios. Então, sem outra palavra para mim, ela se
virou e desapareceu na noite.

“Você pode se levantar agora, Nessa,” eu disse.

Trêmula, minha assistente se pôs de pé. “Lady Caera, novamente, eu não tinha
ideia, peço desculpas por minha—”

Eu acenei para seu pedido de desculpas. “Não importa. Só posso presumir que
meus pais adotivos enviaram você, certo?”
A respiração rápida e trabalhosa de Nessa desacelerou, e ela cruzou as mãos
na frente dela e reorganizou seus traços faciais em uma expressão menos
apavorada. Finalmente, depois de pigarrear, Nessa falou novamente. “Sim,
senhora, você… você deve ir ver seus pais no escritório do Lorde
imediatamente. Levei alguns minutos para te encontrar, então é melhor você
ir.”

Um barulho alto de pios vindo de perto fez Nessa pular, e ela deu um passo
para perto de mim. “É melhor nós duas irmos,” ela murmurou, olhando para
as árvores escuras.

Quando cheguei à porta do escritório de Corbett, encontrei-a entreaberta.


Lenora estava falando rapidamente, sua voz baixa e cheia de frustração. “A
ousadia, Corbett, você pode imaginar? Os ascendentes estariam fazendo fila
para lutar nas ruas apenas pela chance de um jantar privado conosco, e ainda
assim este homem tem a coragem de ignorar nosso convite?”

“De fato,” disse Corbett, a única palavra fria e afiada como vidro quebrado.
“Alguém poderia pensar que Ascendente Grey não tem nenhum senso de
propriedade ou decoro.”

“Talvez Caera não seja tão importante para ele quanto pensávamos,” Lenora
continuou. “Se soubéssemos o que Foice Seris Vritra queria com o
ascendente…”

“E, mais uma vez, sua rede de informações se mostrou inestimável,” disse
Corbett, suavizando um pouco o tom. “A culpa não é sua, meu amor, mas dele.
Pelos Vritra, se este ascendente não fosse tão valorizado por nossa patrona,
eu o lançaria no Monte Nishant.”

Tendo ouvido o suficiente, bati de leve na porta antes de entrar. Lenora, que
andava de um lado para o outro na frente da mesa ornamentada de Corbett,
parou e endireitou-se quando entrei. Corbett estava sentado atrás da mesa,
uma das mãos em volta de um copo de cristal vazio. Ele estava olhando para
a distância, como se ainda imaginando Grey sendo lançado na caldeira de um
vulcão ativo.

Eu olhei ao redor do escritório. Prateleiras de livros ocupavam quase cada


centímetro do espaço da parede, envolvendo toda a sala, com intervalos
apenas para a porta, uma grande janela atrás de sua mesa e uma lareira de
tijolos. Em muitas famílias de Altos Sangues, essa coleção de conhecimento
teria sido apenas para exibição, mas Corbett era um homem culto, apesar de
todos os seus outros defeitos.

Acima de mim, um corrimão de ferro preto contornava uma passagem estreita,


onde havia outro conjunto de estantes. Além dos livros, as prateleiras exibiam
uma grande variedade de tokens e tesouros que Corbett havia coletado ao
longo dos anos.

“Caera, querida,” disse Lenora, exibindo seu sorriso deslumbrante para mim.
“Temos algumas notícias sobre o seu amigo, Grey.”

Fiquei rígida, minhas mãos entrelaçadas na minha frente. Usando um truque


que me foi mostrado por um dos muitos tutores que tive ao longo dos anos,
respirei duas vezes antes de responder para não parecer ansiosa demais.

“Oh? Ele enviou suas desculpas por faltar ao jantar?”

Lenora soltou uma risada tilintante. “Não, infelizmente não tivemos notícias
do próprio Gray, mas recebi uma carta de um velho amigo meu — um
administrador da Academia Central — com algumas notícias estranhas.”

Minhas sobrancelhas baixaram em uma carranca leve. “O que isso tem a ver
com Grey?”

“Essa é a notícia,” Corbett anunciou com os dentes cerrados. Recostando-se


na cadeira, ele girou o copo vazio em sua mão. “Aparentemente, houve uma
contratação bastante incomum na academia.”

Lenora estava balançando a cabeça junto com as palavras de Corbett. “Três


dias atrás, alguém forçou a contratação de um ascendente sem nome e sem
experiência para um posto de nível iniciante. Muito incomum, você não
concorda?”

“Sim,” respondi lentamente. Apesar de entender a sugestão que Lenora estava


fazendo, suas palavras não faziam sentido. “Especialmente se o mesmo
ascendente estiver sendo julgado por assassinato…”

“É muito inteligente, na verdade,” disse Lenora, recostando-se na mesa e


pousando a mão levemente na superfície polida. “Uma reforma total da
imagem e ainda proteção contra os Granbehls. Embora eu me confesse
surpresa que ele tenha o tipo de conexões que seria necessário.”

Resisti ao impulso de andar de um lado para o outro no escritório.


Endireitando-me, segurei minhas mãos atrás das costas para esconder a
agitação nervosa dos meus dedos. A verdade é que eu estava tão surpresa
quanto Lenora. Primeiro, o famoso ascendente, Darrin Ordin, apareceu para
defendê-lo, e agora Grey tinha sido subitamente contratado em uma das
academias de maior prestígio no domínio central?

Quem é você de verdade? Eu me perguntei, imaginando os olhos dourados de


Grey olhando por trás de uma cortina de cabelo loiro claro.

Parei de me inquietar quando um pensamento me atingiu. Se Grey estivesse


na Academia Central, eu poderia facilmente falar com ele – e sem rastreá-lo
pelo medalhão, que jurei a mim mesma usar apenas em caso de uma
emergência terrível.

Só preciso escapar de Corbett e Lenora primeiro.

Considerei meus pais adotivos. Eles o queriam em dívida com Alto Sangue
Denoir por nenhum outro motivo além de que Foice Seris estava interessada
nele, embora eles não tivessem ideia do motivo. Eu sabia que poderia usar
isso.

“Lenora… Mãe,” eu disse, sabendo que meu uso do termo iria encantá-la,
“como você planeja ficar de olho em Grey se ele está envolto pela academia?”

Se eu pudesse convencê-los a me deixar ir para Grey…

Como eu havia previsto, Lenora sorriu para mim com alegria. “Ora, é aí que
você entra.”

Corbett pigarreou e pousou o copo em um quadrado de cortiça sobre a mesa.


“Já combinamos para que você assuma seu próprio papel na Academia Central.
Você será a assistente do Professor Aphelion. Tenho certeza que você se
lembra dele.”

Eu pisquei. “O quê?”

Lenora se afastou da mesa, caminhando até mim e apoiando as mãos nos


meus ombros. “Isso é importante, Caera. Eu sei que você não gostou da
academia enquanto estudava, mas isso é sobre sangue.”

Eu dei a ela um sorriso de lábios apertados e dei um passo para trás, me dando
um pouco de espaço para respirar. Embora eu estivesse emocionada por
deixar a propriedade Denoir para passar um tempo na Academia Central com
Grey – e sem nem mesmo uma discussão de meus pais adotivos – eu também
sabia o que eles esperavam de mim.

“Vocês vão querer um relatório sobre as atividades dele, é claro,” eu disse,


meu sorriso inabalável. “E para eu convencer Grey a… fazer o que,
exatamente?”

“É preciso mais do que imaginação para virar do avesso a cabeça de uma


Foice,” disse Corbett, levantando-se para contornar sua mesa e ficar diante da
lareira, apesar de não estar acesa.

“Foice Seris não… disse nada para você, disse?” Lenora perguntou
timidamente. “Sobre este ascendente?”

“Claro que não,” eu disse, me arrepiando. “Vocês sabem tudo que eu sei.” Isso
era mentira, é claro, mas não muito significativa. Eu não tinha contado ao Alto
Lorde e à Dama sobre o uso do éter por Grey, mas, por outro lado, disse a eles
tudo o que sabia sobre ele.
O que, ao que parece, não é muito, pensei, considerando novamente sua
estranha contratação na academia.

“Ele é especial,” continuei, “mas não tenho ideia do que Foice Seris quer com
ele, se é que quer algo com ele.” Essa era a verdade, embora talvez não toda
ela. Seris conhecia Grey, de alguma forma, mas ela não estava disposta a me
fornecer mais informações depois de nossa última conversa.

Lenora se aproximou de Corbett, deslizando o braço pelo dele, e meus pais


adotivos me observaram em silêncio por vários longos segundos.

Finalmente, Corbett falou. “Esperamos que você transmita a este ascendente


o quanto gostaríamos de conhecê-lo – talvez até de trabalhar com ele no
futuro. Se você o lembrar do papel que desempenhamos em sua libertação” —
senti um músculo em minha têmpora se contrair enquanto não revirava os
olhos – “será ainda melhor.”

“E é claro,” acrescentou Lenora, apoiando a cabeça no ombro de Corbett, “você


deve nos avisar se descobrir alguma coisa… interessante enquanto trabalha
com Grey.”

“Tudo bem,” eu disse, encontrando os olhos da minha mãe adotiva. “Eu farei
isso.”

Mas não vou deixar vocês me usarem contra ele, acrescentei silenciosamente.

Capítulo 339
O Domínio Central

ARTHUR LEYWIN

“Certo, você se lembra de tudo que eu disse?” Alaric me perguntou pela


terceira vez, apesar de já ter explicado duas vezes naquela manhã.

O velho alacryano estava de pé com suas mãos dentro dos bolsos de um manto
púrpura — uma roupa mais parecida com os mantos de banho de meu mundo
anterior do que com os mantos de batalha que eram normalmente usados por
magos aqui — que estava esticado um pouco demais na região da barriga.

“Sim, tio Al,” eu disse sarcasticamente, enquanto ajeitava as minhas próprias


roupas simples de viajar.

Darrin tinha oferecido me deixar pegar emprestado algumas roupas de luxo,


as quais ele disse que se adequariam melhor ao Domínio Central, mas ele tinha
medidas significativamente maiores no peito e ombros, e não havia tempo
para alterar nada.

“Você sabe,” ele respondeu enquanto ponderava, “eu não sei se odeio isso ou
não.”
“Pelo Alto Soberano, nós vamos ou não?”

Alaric, Darrin, e eu nos viramos para olhar Briar, que estava recostada na
parede da câmara de tempus warp de Darrin. Ela tinha se vestido com uma
armadura de couro branco novo e mantinha sua mão no cabo de sua espada
longa.

A jovem mulher insociável encontrou nossos olhares sem nem mesmo vacilar.
“Eu gostaria de voltar à academia antes que eu tenha a mesma idade de vocês
três.”

‘Considerando todas as forças do mal organizadas contra você.’ Regis disse


solenemente. ‘Quem iria pensar que você seria assassinado por uma
adolescente de 16 anos.’

Alaric soltou uma risada e deu um tapa forte nas costas de Darrin. “Não
importa quanto dinheiro o Sangue Nadir está te pagando, faça-os pagarem o
dobro,” ele provocou.

A garota apenas bufou, mudando sua linha de visão para o tempus warp, que
ficava no centro da plataforma de pedra elevada. O artefato, que era
remotamente parecido com uma bigorna, era feito de um metal cinza fosco, e
estava com dezenas de runas gravadas nele.

Um rápido olhar nas fileiras de runas me disse que era baseado em um


princípio similar ao dos portões de teletransporte em Dicathen, mas esses
eram muito mais compactos e complexos.

“Quão longe isso pode chegar?” Eu perguntei, fingindo não estar muito
interessado.

Darrin se ajoelhou sob o artefato, tirando qualquer poeira não existente de


sua superfície. “É poderoso o suficiente para chegar à costa oeste de Sehz-
Clar, ou apenas além da borda sul de Truacia.” Vendo eu franzir o cenho, Darrin
adicionou. “Mais do que o suficiente para chegar à cidade de Cargidan no
domínio central.”

Então nem está perto de ser capaz de me levar de volta à Dicathen, eu pensei,
contendo minha decepção. Era um pensamento tolo, de qualquer maneira. Por
mais que eu quisesse dizer a minha irmã e mãe que eu estava vivo, retornar à
Dicathen agora poderia, na verdade, colocá-las em mais perigo do que elas já
estavam.

‘Ei, você ainda tem a Pedra do Assediador.’ Regis disse com o que ele pensava
que era um tom consolador.

Desculpa, o quê? Eu perguntei, minha linha de raciocínio completamente


atrapalhada.
‘Eu decidi que “Orbe de Assédio de Longo Alcance” era longo demais. Pedra do
Assediador é mais fácil de falar — figurativamente falando.’

Forçadamente enxotando os pensamentos de Regis para o fundo de minha


mente, eu voltei minha atenção para Darrin, que estava começando a calibrar
o tempus warp para viagem.

“Eu vou mandar vocês para a Biblioteca dos Soberanos.” Darrin estava dizendo.
“Briar, você pode levar o Grey ao—”

“Escritório de Administração de Estudantes, sim.” Quando Darrin ergueu a


sobrancelha para a garota, ela se endireitou e disse, “Quer dizer, sim, senhor.”

Sorrindo para si mesmo, Darrin terminou de calibrar e se afastou. “Tudo pronto


pra vocês irem.”

Eu estendi minha mão ao Alacryano e ele a apertou. “Obrigado por sua


hospitalidade e ajuda,” eu disse sinceramente.

Embora eu pudesse ter aberto um caminho para fora da cela dos Granbehls ou
do Alto Salão a qualquer momento, isso provavelmente teria feito com que
qualquer coisa a mais que eu precisasse fazer fosse muito mais difícil — até
mesmo impossível, se eu atraísse a atenção de uma Foice ou duas. Graças a
Alaric e seu amigo — e Caera — eu tinha evitado isso.

“O que você encarou foi uma terrível injustiça,” ele respondeu. “Estou feliz que
fomos capazes de ajudar.”

“Você me deve muito, moleque.” Alaric disse ironicamente enquanto eu


estendia minha mão para ele também. “O Darrin aqui nunca vai me deixar em
paz, e nem estou incluindo todos os outros favores que eu tinha que listar.”

“Meu herói,” eu respondi, sem uma expressão no rosto. “Então, antes de você
ir, é melhor nós acertarmos as coisas.”

Pensando que ele estava brincando, eu revirei exageradamente os olhos para


ele, mas então ele retirou meu antigo e vazio anel dimensional de um bolso e
o estendeu pra mim. “Quarenta por cento, eu acho?”

Briar fez uma carranca. “Quarenta por cento é um assalto.”

Darrin franziu o cenho com vergonha para o velho, mas manteve sua opinião
de nossa transação para ele mesmo.

“Mais 10% pelos meus serviços como seu conselheiro legal.” ele adicionou com
uma piscadela.

Fiz um show deslizando o anel pela minha mão e o “ativando” enquanto eu


vasculhava através da coleção de espólios que eu havia trazido de volta das
Relictombs. Poucos itens eram de meu interesse, já que as armas se
degradavam muito rápido quando imbuídas com éter, e eu não conseguia usar
nada que tinha sido designado para canalizar ou usar mana.

Quando eu tirei a primeira peça – uma coroa prateada incrustada com joias de
um vermelho-sangue que giravam com tanta mana de fogo que era visível a
olho nu – Alaric brilhou com uma felicidade descontida.

Um por um, eu comecei a entregar metade do tesouro que eu havia coletado.

Os olhos brilhantes de Briar ficaram cada vez maiores com cada peça que saía
da minha runa de armazenamento extradimensional, e até Darrin falhou em
esconder sua surpresa com o tamanho do pagamento, composto de uma
ampla variedade de artefatos brilhantes e levemente mágicos.

“Eu pensei que você tinha dito que não tinha riqueza alguma?” Darrin
perguntou, levantando uma sobrancelha em minha direção.

“Eu não tenho. Eu tenho um bocado de coisas. Não é ‘riqueza’ de verdade até
que eu tenha a chance de vender isso, tecnicamente,” eu disse enquanto
retirava outro item de minha runa dimensional.

Alaric fez questão de inspecionar cada peça antes de jogá-las para dentro de
seu próprio anel dimensional, tentando manter um ar de maturidade, mas, no
fim, ele estava praticamente babando, e suas mãos tremiam de alegria.

“Faça-me um favor e não use isso pra beber até a morte,” eu disse, encarando-
o com um olhar severo.

O velho ascendente testou o peso do anel como se ele pudesse sentir o peso
físico de todo o tesouro que agora estava ali. “Quando você chegar a Cargidan,
a Associação de Ascendentes local vai comprar tudo que você tiver e vai
colocar direto no seu cartão rúnico,” ele disse distraidamente. “E eles podem
imprimir um emblema oficial também, agora que você completou sua
preliminar.”

“Você conseguiu aquilo tudo na sua ascensão preliminar?” Briar perguntou em


choque, seus olhos saltando de mim para o meu anel dimensional e vice-versa.

Darrin foi rápido em responder. “Não fique com as expectativas altas, Briar.
Isso definitivamente não é um ganho normal para uma única ascensão — nem
mesmo pra várias delas.”

Eu simplesmente encolhi os ombros para a jovem mulher. “Meu companheiro


de viagem e eu tivemos sorte.”

“Eu que o diga,” Darrin respondeu. “De qualquer maneira, é melhor que vocês
se apressem. Grey, Briar vai te ajudar a encontrar seu caminho por lá.” Ele
olhou sua aprendiz e passou a mão pelo seu cabelo loiro. “E Briar, não esqueça
que Grey vai ser um professor na academia. Você pode não estar em sua aula,
mas eu não consigo imaginar que ele vai aceitar gentilmente qualquer outra
grosseria da sua parte.”

Briar demorou em desviar o olhar de mim antes de subir na plataforma


próxima ao tempus warp, ficando de pé com precisão militar enquanto
aguardava eu me juntar a ela.

“Te vejo por aí, Grey.” Darrin disse conforme eu me juntava à jovem na
plataforma.

“Apresse-se e resolva o que precisar para que você possa voltar a me fazer
dinheiro.” Alaric adicionou rispidamente, girando o anel dimensional ao redor
de seu dedo cheio de calos.

“Tchau, tchau!” uma voz fina disse da porta quanto Pen apareceu no canto,
acenando.

Eu acenei de volta, então a mansão desapareceu ao meu redor, e eu me


encontrei de pé em uma diferente plataforma, muito longe do domínio rural
de Sehz-Clar.

A transição foi perfeita, sem nenhum enjoo chocante ou bagunça nos meus
intestinos. A plataforma sob meus pés havia mudado de pura pedra para
madeira escura, enquanto o espaço ao meu redor era simultaneamente
cavernoso e claustrofóbico.

Dando uma olhada rápida nas fileiras das estantes de livros, cada uma
carregada com livros encapados em couro, eu imaginei a enorme quantidade
de informação contida dentro dessa biblioteca. Dezenas de milhares de livros
sobre cada assunto imaginável. Entretanto, se é tão cuidadosamente filtrada
como a da biblioteca em Aramoor, provavelmente não há nada de importante
ou útil aqui, eu pensei, acalmando minhas expectativas.

Ainda assim, eu estava ansioso por alguns momentos quietos para gastar
estudando Alacrya, os Soberanos, e as Relictombs. Ainda havia muito que eu
não sabia, muitas maneiras que eu poderia cometer um deslize sem nem
mesmo perceber. Eu esperava que a biblioteca tivesse algumas respostas.

Retirando meu olhar dos livros, eu vi Briar em pé em uma plataforma pequena


a poucos metros à minha esquerda. Ela estava me observando com cuidado,
mas sua atenção foi interrompida quando um homem em um manto de
batalha preto e cinza se aproximou.

“Identificação?” ele perguntou em um tom de tédio, estendendo sua mão.

Briar já tinha a sua em mãos, mas eu tinha que tirar a minha da runa
dimensional, fingindo ativar meu anel inútil. Os olhos do guarda dispararam
pelo emblema de identificação dela antes de devolvê-lo sem falar nada.
Quando ele pegou a minha, entretanto, ele a examinou por alguns longos
momentos, uma profunda carranca se formando em seu rosto. Seus olhos
dispararam para mim, depois de volta. Briar bufou novamente, mas ele a
ignorou.

Eventualmente, ele voltou sua atenção para mim, me inspecionando de perto,


seu olhar demorando em minhas roupas simples. “Eu temo que você tenha que
vir comigo, Senhor Grey, para que nós possamos verificar a validade dessa
identificação.” Embora as palavras do guarda fossem profissionais, seu tom de
voz me disse claramente o que ele pensava da “validade” de minha presença
no domínio central.

Deixando meu olhar passar por ele preguiçosamente, eu disse, “Muito bem,
mas eu espero que você esteja preparado para lidar com as consequências de
assediar um professor da Academia Central.”

Parecendo achar graça, o guarda voltou seu olhar incerto para Briar, que
apontou seu polegar para mim e disse, “Não olhe pra mim, cara. Ele é o
figurão.”

“Um, hmm, professor?” ele perguntou, repentinamente nervoso enquanto


olhava para o emblema de identificação novamente. “Mil perdões, Ascen
— Professor Grey, eu não percebi—”

Estendendo minha mão, eu puxei minha identificação de volta. “Homem


sábio,” eu falei friamente, marchando para além do homem.

Ele deu um rápido passo para trás, falando sem entusiasmo, “Bem-vindo à
Biblioteca dos Soberanos, Cidade de Cargidan, Domínio Central,” enquanto nós
passávamos.

Briar me deu um olhar de avaliação com o canto de seus olhos. “Talvez você
vá se encaixar na academia, afinal.”

“Não tão mal pra um caipira da roça, né?” eu falei com uma piscadela, antes
de deixar meu olhar vagando pela construção novamente. Os pisos e paredes
eram de um mármore branco brilhante, que se destacavam em forte contraste
à madeira negra das plataformas, grades e estantes de livros.

Um domo de vidro de um branco prateado acima permitia que a luz fria da


manhã entrasse na Biblioteca para cintilar e se espalhar pelo mármore, e todo
canto sombrio era iluminado por artefatos de luz, fazendo com que todo o
interior da construção parecesse brilhar.

Comparada à pequena livraria suja em Aramoor, este local era um palácio. As


pessoas sentadas lendo livros ou vagando entre as prateleiras pareciam
pertencer a uma classe diferente também. Elas vestiam sua riqueza e se
comportavam casualmente, sem a pomposidade que eu havia visto nos
Granbehls, e pareciam ainda mais ricas e poderosas por causa disso.
Na minha vida anterior, eu havia conhecido muitos outros nobres de toda a
Terra que possuíam uma centena de títulos diferentes. Eram aqueles que mais
estavam confortáveis nos ornamentos de seus poderes que eu sabia que tinha
que ficar alerta, e as pessoas ao meu redor pareciam muito confortáveis.

Um espaço amplo de portas de vidro levava à grama verde, além da qual estava
uma rua movimentada tumultuada com pessoas. Embora houvesse algum
tráfego de pedestres aqui, parecia mais comum para esses Altos Sangues
viajarem por carruagem, algumas das quais estavam passando pela rua
enquanto eu assistia, puxados por uma variedade de bestas de mana. O boi
vermelho-sangue que eu havia visto sendo usado nas Relictombs eram os mais
comuns, mas eu também vi alguém sendo levado por um cavalo reptiliano, e
outra pessoa por um pássaro enorme.

“Vamos lá então, Professor,” Briar disse, já marchando rapidamente pela


grama da biblioteca.

Eu a segui, ficando perto, mas a maior parte de minha atenção estava na


cidade ao meu redor.

Pisos de pedra de um cinza sombrio compunham as estradas, fazendo um forte


contraste com a pedra branca da maioria das construções, as quais se
arqueavam, espalhavam e se elevavam em direção ao céu na forma de prédios,
pilares e torres, que eram realçados com vermelhos, azuis e verdes. Por toda
a parte, havia um agressivo metal negro entremeado nas construções,
contribuindo pra coesão no meio da infinidade de formas e cores.

Atrás disso tudo, visível ocasionalmente através dos espaços entre as


construções, elevava-se uma série de grandes montanhas, perfurando o céu
como as presas de algum animal capaz de engolir o mundo.

Briar se moveu com propósito, nos guiando para longe da biblioteca com uma
velocidade de marcha.

“O campus da academia fica a quase 2 km da biblioteca,” ela disse por cima do


ombro enquanto nós nos afastávamos da rua principal e entrávamos em uma
série de becos. “Mais distante se você seguir a Avenida do Soberano
continuamente até a Central, a rua principal que divide a cidade.”

“Você parece conhecer seu caminho por aqui muito bem,” eu comentei, meu
olhar se espalhando pelas construções ao nosso redor. Os becos eram limpos,
sem lixo e nem pessoas ociosas, e todos os pedestres se moviam com
propósito, assim como nós.

Por cima do ombro, ela disse, “É um requisito. Estudantes que não podem se
mover rapidamente pela cidade tem mais probabilidade de perderem prazos
ou falharem em tarefas.”

“O currículo é tão intenso assim?” Eu perguntei com genuíno interesse.


Briar parou e se virou para me olhar nos olhos. “Academia Central é uma das
mais prestigiadas academias em Alacrya, mas você já deveria saber
disso, Professor. Pessoas não se tornam ascendentes de sucesso ao viverem
vidas fáceis e sem dificuldades.”

‘Sim, princesa!’ Regis cantou. ‘Pare com sua vida fácil e sem dificuldades e saia
do lugar.’

Eu me desculpo por viver tal vida fácil e sem provações, oh grande e poderosa
arma dos asuras, eu pensei, impassível.

Bem alto, eu disse, “Nem todo mundo aprende bem sob esse tipo de pressão.”

Briar enrugou seu nariz. “Os estudantes da Academia Central não são todo
mundo. Nós somos a elite, mesmo entre sangues nomeados e altos sangues.”

Sem esperar por uma resposta, ela girou, fazendo com que seu cabelo claro
rodopiasse, e começou a marchar novamente.

Nós caminhamos em silêncio por mais alguns minutos antes de voltarmos a


uma rua principal. A rua estava lotada com tráfego pedestre e era repleta de
negócios que provavelmente atendiam aos estudantes da academia:
restaurantes e tavernas, lojas de armadura, lojas de roupas chiques, e algumas
lojas que anunciavam comprar e vender espólios.

“Você não quer essas aí,” Briar disse quando eu diminuí o passo para ler o
letreiro fora da Espólios do Andvile. “Essas lojas são todas suspeitas, e a
maioria das pessoas que negociam com elas também são. Ótimas se você tem
um espólio roubado para se livrar com pressa, mas não tão boas para manter
sua reputação como professor da Academia Central. Se você vai vender as
coisas que Alaric não roubou de você, leve-as para a Associação de
Ascendentes. A construção fica bem próxima à entrada para o campus de
qualquer forma.”

Quase que como para enfatizar o ponto dela, a porta se abriu e um homem de
olhos ligeiros em um manto de batalha cinza sujo saiu. A atenção dele estava
em uma pedra vítrea em sua mão de forma que ele quase trombou comigo. Ele
se encolheu enquanto eu aparecia em sua visão periférica, me deu um olhar
suspeito, depois puxou seu capaz e se misturou à multidão de transeuntes.

Briar me deu um olhar que dizia, “Tá vendo? Eu avisei.”

Eu comecei a me virar quando eu notei uma imagem em movimento sendo


reproduzida na superfície de alguma espécie de cristal ligado ao lado de uma
construção com suportes pretos. Quando eu me aproximei, percebi que a
imagem estava retratando uma paisagem destruída e acabada.

Briar sorriu. “Essa realmente é sua primeira vez em uma das cidades grandes,
não é?”
“É alguma espécie de artefato de projeção?” eu perguntei, dando um passo
mais perto. “Mostrando imagens gravadas?” Assim que eu estava a alguns pés
do artefato, uma voz masculina grossa preencheu minha cabeça.

“—imagens realmente aterrorizantes capturadas no país mais ao leste de


Dicathen, Elenoir. A perda de vidas, tanto para os nativos de Dicathen
conhecidos como elfos, e para os bravos alacryanos que tinham se
voluntariado para a realocação para florestas distantes, é incalculável. O Alto
Soberano Agrona pede calma, e exige que todos os Alacryanos entendam que
esse ataque dos vis asuras de Epheotus não vai passar sem resposta.”

“Além disso, todos nós vamos nos juntar para oferecer graças ao Alto
Soberano, para que ele continue a nos proteger com toda—”

Eu dei um passo para trás, e a voz foi cortada. “Telepatia de proximidade?” eu


olhei para Briar esperando confirmação.

Ela concordou, saindo do alcance ela mesma. “Meus pais pensavam que eles
estavam sendo realmente inteligentes, imaginando que a guerra estava
acabando e apostando nas ascensões no lugar disso. Eu acho que a guerra não
está tão acabada quanto eles pensavam.”

“A ideia de ir para a guerra contra seres capazes de obliterar um país não te


assusta?” Eu perguntei, levemente surpreso pela sua falta tanto de empatia ou
medo com as imagens ainda sendo reproduzidas silenciosamente pelo
artefato de projeção.

Briar encolheu os ombros e começou a caminhar novamente. Por cima do


ombro, ela disse apenas, “Os Vritra protegem Alacrya.”

Eu fiz uma nota mental dos mercantes que se enfileiravam na Avenida do


Soberano, mas não parei novamente. Dentro de alguns minutos, nós
estávamos de pé entre dois complexos em torre, e à nossa frente um portão
preto de ferro bloqueava a entrada para o que só poderia ser a Academia
Central.

Um punhado de garotas parou repentinamente quanto elas notaram Briar e


eu, e deram um grito feliz. Briar sorriu e acenou de volta.

“Mesmo que isso tenha sido muito divertido, aqui é onde eu te deixo,
Professor.” Ela já estava saindo quando ela disse, “Eu presumo que você possa
achar o caminho daqui, certo?”

“Eu acho que eu vou conseguir,” eu gritei por trás dela.

Tentando tirar a garota alacryana da minha mente, eu me virei para examinar


o prédio da Associação de Ascendentes – ou melhor, os prédios. Os gigantes
prédios brancos flanqueando a entrada para a Academia Central eram na
verdade conectados por pontes de pedra em alturas variadas acima de mim.
“Oh, meu Vritra, Briar. Quem é aquele homem belo?”

Apesar da distância para o grupo, o barulho da rua, e minha própria distração,


minha audição aprimorada era o suficiente para ouvir tudo que o grupo de
garotas estava falando.

“Aquele é seu namorado? Você disse que não podia socializar porque você
estava em treinamento, Bee! Mas, invés disso, você esteve passeando com—”

“Ele não é, e você pode calar a boca agora mesmo, Valerie, antes que eu te
mostre exatamente quão duro eu estive treinando,” Briar disse em um rosnado
baixo que só fez as outras garotas sorrirem mais.

Eu dei um olhar discreto na direção delas e encontrei três garotas encarando


— muito menos discretamente — em minha direção, enquanto Briar já estava
a caminho dos portões da academia. Diferente de Briar, que estava em sua
armadura branca, as outras três vestiam uniformes azuis e pretos combinando.

Elas demoraram apenas um momento antes de seguirem a estudante de Darrin


para longe, mas não sem mandar um punhado de olhares curiosos de volta em
minha direção.

“Você sabe, eu meio que estou surpreso que elas sejam tão… normais,” eu
disse, observando as estudantes se enfileirarem nos portões. Uma memória
de Ellie brincando com as outras garotas da Escola para Damas surgiu,
trazendo um sorriso aos meus lábios.

‘Honestamente, eu estou mais surpreso que Briar tenha amigas,’ Regis


comentou.

Sorrindo, eu voltei minha atenção para os prédios da Associação de


Ascendentes. Letreiros de metal preto indicavam que a entrada à minha direita
era para “Teste & Teleporte” e a outra entrada à esquerda levava para
“Administração & Instalações.”

Escolhendo a entrada da esquerda, eu segui o curto caminho até as portas


duplas — tão largas que uma carruagem poderia passar por elas — e puxei a
maçaneta de metal preto. A porta não abriu, mas um momento depois um
pequeno painel por volta da altura do rosto se abriu, revelando um guarda
com capacete.

“Emblema?” Ele disse em um tom de tédio.

Eu retirei o emblema que eu recebi em Aramoor e o estendi para a fenda


estreita. O homem a pegou da minha mão e o painel se fechou novamente,
deixando Regis e eu a esperar. Um minuto ou dois passaram, longos o
suficiente para dois outros ascendentes — os dois baixos e magros vestidos no
estilo dos mantos de batalha preferidos por Conjuradores — se alinharem
atrás de mim, murmurando mal-humorados.
Depois de outro minuto, a fechadura finalmente foi aberta com
um thunk pesado e a porta se abriu para dentro.

Um homem em um manto de batalha prateado com ombreiras, braçadeiras e


botas cor de ébano que capturavam e desviavam a luz de uma maneira líquida
e incomum deu um passo à frente. Ele tinha cabelo preto curto e uma barba
bem feita, com um toque de cinza nas suas têmporas e queixo.

“Bem-vindo ao Salão da Associação de Ascendentes da cidade de Cargidan,


Ascendente Grey. Nós já ouvimos bastante a seu respeito.”

Capítulo 340
Fardos e Riscos

De cada lado do homem barbudo e bem vestido, os guardas da Associação de


Ascenders estavam me olhando com curiosidade, e os dois Conjuradores na
fila atrás de mim murmuraram algo sobre “o alto mago”.

Diversão – e algo a mais, algo faminto – brilhou nos olhos do homem quando
ele acenou com a cabeça respeitosamente e gesticulou para que entrassem no
prédio. Virando nos calcanhares, ele se moveu pra longe com a passada leve e
confiante de um guerreiro, me deixando na pequena câmara de entrada com
guardas ao redor.

Embora a entrada não fosse nada excepcional, a visão do amplo salão depois
dela era completamente diferente. Eu tinha achado que o prédio da
Associação de Ascendentes de Aramoor era impressionante, mas esse lugar
tinha mais em comum com um templo ou palácio do que um simples salão de
guilda.

As paredes, teto, e chão eram de pedra branca – mais brilhante e mais limpa
que mármore – e colunas esculpidas marcavam a sala a cada 7 metros. Haviam
runas douradas embutidas no chão formando caminhos que levavam de uma
seção do salão até outra, e eu também podia ver as formas de bestas dispostas
em jade em vários lugares.

As paredes continham dúzias de tapeçarias penduradas, que ilustravam


ascendentes dentro das Relictombs batalhando contra bestas etéricas. Uma
tapeçaria grande me chamou a atenção; ela mostrava três homens em
armadura dourada cercados por uma horda de caralians – as criaturas com
garras e aspecto de bebê, contra as quais eu lutei na zona de convergência.

Eu segui o homem através do salão em silêncio enquanto passávamos


rapidamente pelas tapeçarias e decoração. Meu olhar se demorou nas obras
de arte extravagantes, imaginando se essas representações eram contos
comuns que qualquer alacryano reconheceria.
Depois de passar por uma série de escrivaninhas e áreas de descanso
confortáveis, nós subimos uma escadaria estreita escondida em um canto do
salão principal. Ela nos trouxe até uma varanda cercada por corrimões de ferro
preto, e que levava a um escritório com vista para o ambiente no andar de
baixo.

Apesar da falta de conversação durante nosso trajeto, estava claro que ele
estava confortável com o silêncio, ou talvez com sua posição. A maneira com
que ele se esgueirou para seu assento, que ficava atrás de uma mesa enorme
esculpida em ébano com filigrana em ouro, sugeria a segunda opção. Ele
indicou uma cadeira macia na frente da mesa, e eu me sentei, sem tirar os
olhos dele.

“Então, aqui está você.” O homem deu um sorriso, mas eu conseguia ver o lobo
cinzento rosnando atrás da máscara afável.

“Eu completei minha ascensão preliminar,” eu disse, profissionalmente. “Eu


preciso de meu novo emblema.”

“Ah, eu já a providenciei. Meu assistente vai chegar a qualquer momento.” Seu


sorriso se transformou em algo mais astuto. “E eu acho que você também deve
ter um artefato de armazenamento dimensional cheio de espólios pra vender,
certo?” Seus olhos foram diretamente para o anel no meu dedo. “Você foi
esperto, escondendo isso dos Granbehls.”

Eu me ajeitei na cadeira, meu lábio se curvando em zombaria. “Essa questão


está resolvida,” eu disse friamente.

Ele levantou suas mãos inocentemente. “Não me entenda mal, Ascendente


Grey. Aquele caso inteiro foi ruim para negócios — nossos negócios.” Seu
sorriso adquiriu aquela qualidade astuta novamente. “Aquele pequeno sangue
nomeado não tem nenhum poder aqui no Domínio Central, de qualquer
maneira. Eu estava falando muito sério: você se mostrou ser bastante
inteligente.

“Então, como você conseguiu isso?”

Eu deixei a questão pairar no ar enquanto eu considerava minha resposta. Não


ajudava que eu não tinha certeza de qual ‘isso’ ele estava falando.

Não querendo entregar nada sobre mim, eu finalmente disse, “Eu não tenho
certeza do que você quer dizer.”

Ele tirou seu pé da mesa e se inclinou sobre ela, me olhando avidamente.


“Como você assegurou o posto na Academia Central? Um ascendente sem
nome, saindo fresquinho de sua preliminar… não tem precedentes.”

Eu soltei um suspiro. “Complicações surgem frequentemente pelo excesso de


conhecimento.”
Era a vez do homem deixar minhas palavras no ar por um momento antes que
ele se inclinasse pra trás e risse, uma gargalhada alegre e solta.

“Essa pode ser a maneira mais prazerosa que alguém já me ameaçou,” ele
sorriu, apontando seus dedos pra mim. “Eu gostei de você, Grey! Puta merda,
eu gostei de você.”

‘Você conseguiu atrair outro esquisito,’ Regis riu.

Ignorando meu companheiro, eu escaneei a mesa para ver se o homem na


minha frente tinha uma placa de identificação em algum lugar. “Eu temo que
eu não—”

“Pelo nome dos Vritra, onde estão minhas maneiras? Meu nome é Sulla do
Sangue Nomeado Drusus, mas todos por aqui me chamam de Sul. Eu sou o alto
mago deste pequeno estabelecimento.” O mago gesticulou para o salão
abaixo.

“Você dá boas-vindas a todos os novos ascendentes assim, Sulla?” Eu


perguntei com dúvidas.

“Não,” ele disse, recostando-se em sua cadeira. “Certamente não. Mas também,
não são muitos os ascendentes que recebem um emblema de diretor depois
de uma única ascensão, ou se tornam professores na mais prestigiosa
academia de Alacrya” — eu não achei que era possível, mas seu sorriso ficou
ainda mais afiado — “Eu queria ver você por mim mesmo.”

Eu cerrei meus dentes. Esse era exatamente o tipo de atenção que queria
evitar.

‘Talvez você não devesse sempre fazer um espetáculo de si próprio então,’ Regis
comentou zombando.

“Eu gostaria de pegar meu emblema, trocar meus espólios, e pegar meu rumo,”
eu disse com finalidade, deixando claro que eu gostaria de encerrar essa
interação. “Eu ainda preciso fazer o check-in nos Escritórios de Administração
Estudantil e me acomodar. Foi uma longa jornada até aqui.”

“Ah, é claro,” Sulla respondeu profissionalmente, mas o desleixo em seus


ombros e a maneira que ele se inclinou para trás sugeriram que ele estava
levemente desconcertado. “Novamente, eu deixei meu entusiasmo se
sobrepor ao meu bom senso. Mas prometo que você vai estar de volta em
breve, Professor Grey. Eu vou me certificar que sua viagem não será
desperdiçada.”

Depois de vender a maior parte do tesouro que eu peguei da tribo Bico de


Lança, eu escapei do prédio da Associação de Ascendentes e as perguntas de
sondagem do alto mago, e depois prossegui direto para o campus da Academia
Central, ansioso para conhecer meu contato e encontrar meus aposentos, os
quais eu esperava que fossem quietos e livres de quaisquer outros olhos
curiosos.

Os portões de metal negro se abriram por conta própria quando eu me


aproximei. No outro lado, o ambiente apertado das ruas da cidade foi deixado
para trás em troca de calçadas largas delimitadas por cercas curtas.

Uma parede de 5 metros de pedra branca envolvia o campus, cercando-o e o


separando da cidade. Os portões se abriam para uma praça semicircular, da
qual três caminhos se ramificavam em direção ao grupo de prédios escolares.

Dezenas de jovens em uniformes preto e azul da Academia Central estavam


andando ao redor da praça, alguns conversando animadamente enquanto
outros estavam sentados silenciosamente em bancos ou nas terras gramadas
entre as cercas. Alguns me deram olhares curiosos, e eu percebi que Briar
estava certa: Eu me destacava em minhas roupas simples de viagem, ainda
mais do que se eu tivesse vindo à academia em um traje de batalha completo.

Depois da praça, opostos aos portões, ficavam os Escritórios de Administração


Estudantil, um complexo semelhante a um castelo com uma dúzia de picos e
torres que pareciam pairar sobre a entrada do campus. O caminho central da
praça ia direto para esse prédio, sob um túnel arqueado iluminado por esferas
brilhantes que estavam penduradas no teto.

Uma mulher em trajes de batalha apertados estava de pé na porta do túnel,


seus olhos olhando ao redor como se estivesse procurando alguém.

Conforme eu me aproximava, indo em direção ao caminho de entrada para os


escritórios, os olhos âmbar dela pararam em mim, correndo de cima a baixo
várias vezes. Seu cabelo loiro caía em ondas sobre os ombros, saltando de uma
forma que parecia desafiar a gravidade quando ela pulou no lugar antes de
dar alguns passos em minha direção.

‘O cabelo dela não é a única coisa que desafia a gravidade…’ Regis disse
sugestivamente. ‘Se você morrer, ela pode ser minha nova mestre?’

Por que esperar? Eu respondi, empurrando com meu éter como se eu quisesse
expulsar o lobo das sombras de meu corpo.

‘Hey!’ Regis lamentou. ‘Não precisa ficar estressadinho.’

A mulher fez uma reverência rasa quando nos aproximamos. “Roupas simples,
olhos lindos, jovem demais… você só pode ser nosso novo professor de Táticas
de Aprimoramento Corpo a Corpo de nível um, certo?” Ela sorriu para mim e
pulou nas pontas dos pés. “Eu sou Abby do Sangue Redcliff. Eu ensino em
alguns cursos de nível superior de especialização em vento para
Conjuradores.”
“Hmm, olá,” eu disse, pego com a guarda baixa pela sua precocidade. “Eu não
estava esperando—”

“Um comitê de boas-vindas?” ela disse com uma risada feliz. “Bom, um cara
tímido como você pode não querer ouvir isso, mas você já é praticamente uma
celebridade por aqui.”

Maldito seja, Alaric, eu pensei de maneira rabugenta.

“De qualquer forma, eu só realmente queria ser a primeira a te conhecer,


depois de tudo que eu ouvi.” Ela me deu um sorriso cativante, enrolando uma
mecha de seu cabelo dourado ao redor de seu dedo. “Você realmente quebrou
as correntes de contenção em seu julgamento?”

“Me perdoe, mas estou atrasado para encontrar meu contato na


administração,” eu disse rigidamente, desviando dela e indo em direção à
porta.

Uma mão surpreendentemente forte agarrou meu cotovelo. “Pode ser meio
opressor aqui no começo. Eu ficaria feliz de te mostrar como as coisas
funcionam, Grey. É só me avisar, ok?”

Com uma piscadela, minha companheira professora me soltou e se virou.

Eu estava distraído conforme eu caminhei em direção aos escritórios da


administração e me apresentei para um dos jovens balconistas na recepção.
Ele me disse para ir ao escritório do quarto andar onde o contato de Alaric
poderia ser encontrado, me dando um sorriso perplexo quando eu admiti que
precisava ouvir as instruções novamente.

‘Tudo certo, chefe? Por que você tá tão abalado?’

Primeiro o chefe da Associação de Ascendentes, depois essa outra professora…


Nós estamos ganhando atenção demais, Regis.

‘Você está pensando em vazar disso tudo.’ Não era realmente uma pergunta já
que ele podia ler minha mente.

Não… Sim… Eu não sei, eu admiti. Eu não gosto de me sentir aprisionado.

Regis soltou uma risada em minha mente. ‘Você acabou de ficar 3 semanas em
uma jaula.’

Pedra e barras não estavam me segurando. Eu escolhi ficar, deixar aquilo rolar.
Eu estava tentando evitar atrair atenção demais.

‘E como isso funcionou pra você?’


Quase tão bem quanto o pedaço de acclorite que Wren Kain me deu, eu
respondi com um sorriso, subindo 3 degraus de uma vez na escada para o 4°
piso.

‘Eu me sinto pessoalmente atacado. Quer saber de uma coisa? Eu vou dar um
cochilo. Me acorde quando você estiver se sentindo menos venenoso, beleza,
princesa?’

Apesar de minha conversa com Regis — ou talvez por causa dela — eu me senti
melhor no momento que eu estava batendo na porta do escritório do homem
chamado Edmon do Sangue Scriven, um escriturário intermediário dentro do
escritório da administração.

Uma voz esganiçada e nervosa me convidou para o escritório, que não


pareceria deslocada em um dos velhos filmes de detetive do meu mundo
anterior. O artefato de iluminação suspenso no teto estava trêmulo e sombrio,
lançando uma névoa cinzenta sobre o pequeno escritório, incluindo uma mesa
simples cheia de pergaminhos e rolos com o homem curvado atrás dela.

“Feche a porta,” ele disse impacientemente, seus olhos marejados me


seguindo conforme eu fechava a porta antes de sentar na cadeira gasta do
outro lado dele.

“Edmon, eu —”

“Eu sei muito bem quem você é,” o homem magro e pálido retrucou enquanto
limpava o nariz com a manga de seu manto marrom. “O que que aquele filho-
de-um-verme-escondido pensava que estava fazendo, te forçando a entrar
aqui, eu juro aos Vritra que eu não tenho ideia…” O homem resmungou por
baixo de sua respiração, como se não soubesse que eu ainda poderia ouvi-lo.

Nós nos encaramos sobre a superfície de sua mesa por um momento antes
que eu soltasse um longo suspiro. “O que eu preciso saber, Edmon?”

Ele fungou e enxugou o nariz novamente enquanto mexia em alguns dos


pergaminhos em sua mesa. “Uma vez que você assinar seu contrato, você pode
pegar seu horário e currículo, e seguir seu caminho. Depois que você deixar
esse escritório, eu sinceramente espero não te ver novamente até o final de
seu emprego aqui.”

Baseado na hostilidade clara do homem, eu só poderia presumir que seu


acordo com Alaric não havia sido completamente justo.

Edmon empurrou uma pilha de pergaminhos para fora do caminho e


desenrolou um documento explicando os detalhes do meu emprego na
Academia Central no jargão jurídico. Eu fiquei surpreso ao notar o pagamento,
que não havia nem cruzado minha mente.
“No caso de você não entender alguma parte de seu contrato…” Edmon
encolheu seus ombros curvados. “Não é meu trabalho explicar isso tudo para
você.”

Pegando a caneta de pena oferecida, escrevi meu nome falso, minha mão
traçando automaticamente as mesmas letras que eu havia usado para assinar
documentos oficiais como um rei. Edmon puxou o contrato no instante em que
terminei e ele o substituiu por um único pedaço plano de pergaminho e dois
longos pergaminhos amarrados com anéis de ferro.

“Isso” — ele apontou para o pergaminho — “tem seu horário nele, enquanto
esses” — ele acenou para os outros dois — “são seu currículo para Táticas de
Aprimoramento Corpo-A-Corpo e uma lista das regras da Academia. Leia-os
bem, bem minuciosamente, porque eu juro pelos Vritra, eu não vou ser preso
por causa do seu tio criminoso…”

“Ouça,” eu disse, começando a perder minha paciência com as observações


sarcásticas do homem, “Eu não sei que tipo de acordo você e—”

“Acordo?” ele chiou, seus olhos arregalados. “Aquele bêbado malvado me


intimidou e me forçou a contratar seu sobrinho wogart, e você chama isso de
um contrato? Só porque ele pensa que você vale o risco, não significa que eu
acho. Agora saia da porra do meu escritório, e não volte, ou eu—”

A boca do homem se fechou rápido quando minha intenção etérica tomou


conta dele, empurrando-o de volta em sua cadeira. Seus olhos se
esbugalharam, que nem os de um inseto, e seus dedos arranharam a superfície
da mesa, rasgando vários dos pergaminhos.

“Eu fico igualmente feliz quanto você em fingir que essa conversa não
aconteceu,” eu disse, minha voz quieta e sem emoções. “Mas eu não vou ser
ameaçado.” Para enfatizar meu ponto, eu fortaleci minha aura, assistindo
enquanto a respiração do homem pálido parava pela pressão. “Eu não sei por
quê você está com medo do Alaric, mas recomendo ter esses sentimentos por
mim também… Pelo menos.”

Agarrando os papeis de sua mesa, eu liberei minha intenção etérica e saí do


escritório dele.

‘O que eu perdi?’ Regis perguntou, a projeção mental de sua voz prolongada


como se ele estivesse bocejando.

Só fazendo mais amigos, eu brinquei. Você me conhece.

Meu companheiro bufou, e eu senti sua consciência indo para longe


novamente conforme ele foi “dormir,” o que, pra ele, era mais uma atitude
meditativa enquanto ele absorvia éter do meu núcleo.
De volta ao andar térreo, o balconista da recepção olhou pra cima quando eu
pisei no salão de entrada. “Terminou tudo aqui na administração? Posso
arrumar alguém pra te dar um tour do campus ou te apresentar ao resto do
corpo docente?”

“Não, eu tive uma longa jornada aqui e eu apenas gostaria de ver meu quarto,”
eu respondi, reciclando a desculpa que eu havia dado ao alto mago na
Associação de Ascendentes. “Alguém pode me mostrar o caminho?”

O jovem sorriu em compreensão. “Com certeza, Professor Grey. Vamos


acomodá-lo. Adelaide?”

“Hm?” Uma jovem distraída olhou pra cima, tirando seu nariz de um
pergaminho em outra mesa.

“Você pode vigiar a recepção enquanto eu mostro ao Professor Grey seus


quartos?”

“Hm,” ela disse em afirmação enquanto seus olhos saltavam de volta à sua
leitura.

Balançando sua cabeça e me dando um olhar de desgosto, o jovem me levou


para fora do prédio e virou à direita. Nós passamos entre duas fileiras de
cercas que separavam áreas grandes e gramadas onde estudantes estavam
descansando e conversando, lendo pergaminhos e lutando por aí.

“As aulas não começaram ainda, obviamente, mas espera-se que os


estudantes cheguem cedo, e a administração mantém as coisas mais ou menos
abertas para que todos que estão voltando do recesso possam se divertir por
um momento antes de o trabalho começar.”

Meu guia continuava a tagarelar, aparentemente sentindo a necessidade de


me dar o tour apesar de minha insistência de não ser necessário. Ele me disse
o nome dos prédios, jardins e praças, assim como a história das famílias as
quais eles haviam sido nomeados.

Embora eu tivesse perguntas, eu não estava confortável em fazê-las, e, em vez


disso, mantive o ar de cansado, com uma indiferença levemente entediada.
Sem necessidade de dar ao jovem falante alguma razão para suspeitar de mim.

Foi apenas quando estávamos passando por um prédio sombrio, que parecia
ameaçadoramente pairar sobre o caminho, que eu vi algo que realmente me
interessou.

“Aquilo é um portal?” Eu perguntei, olhado para o arco de pedra esculpida de


runas. Parecia exatamente com os portais de teleporte em Dicathen.

“Com certeza!” meu guia falou sarcasticamente. “Como eu estava prestes a


falar, a Capela” — ele apontou com seu dedão para o prédio em pedra negra
taciturno — “foi um presente do próprio Alto Soberano, e abriga a coleção da
Academia Central de relíquias e artefatos. Foi colocada aqui exatamente
porque o Alto Soberano queria que vigiasse e guardasse o portal das
Relictombs.”

Não havia nenhum portal cintilante de energia pairando no ar dentro da


moldura no momento, mas eu podia ver uma série familiar de controles
próximos a ele. “Esse portal pode ser programado para ir em qualquer lugar,
ou apenas as Relictombs?” Eu perguntei, fingindo uma leve curiosidade
enquanto pensava em Dicathen e minha família.

“Ah, na verdade, isso é o que é interessante,” meu guia disse. “Aparentemente,


há muito, muito tempo atrás, esses tipos de portais estavam por todos os
lugares, conectando toda a Alacrya. Mas por conta de alguma guerra antiga, a
maioria deles foi destruído ou desativados. A Academia Central foi construída
nesse local – que costumava ser muito longe do centro da cidade de Cargidan
– exatamente porque esse portal ainda existia.”

Eu esperei.

O jovem atendente me deu um sorrisinho por um segundo antes de se


sobressaltar. “Ah, certo. Qualquer que tenha sido a mágica que fazia o portal
funcionar no passado já não funcionava mais, mas os Soberanos o
modificaram para que fosse usado como um tempus warp que leva
diretamente ao segundo nível das Relictombs. Você precisa de um token para
ativá-lo, mas o seu deve estar esperando nos seus aposentos.”

Que pena, eu pensei. Mas mesmo que o portal ainda operasse normalmente,
talvez não alcançasse Dicathen, e conectá-lo até minha casa seria muito
perigoso de qualquer forma.

‘Talvez você possa usar a… coisinha de Aroa para consertá-lo?’ Regis


sugeriu. ‘Como você fez com o portal dentro das Relictombs.’

Se nós algum precisarmos deixar Alacrya sem planos de voltar, vou


tentar, respondi. Mas por agora, preciso de acesso às Relictombs para obter
controle sobre o aspecto do Destino.

“Então a academia foi construída ao redor dessa coisa?” Eu perguntei


enquanto continuávamos a andar.

“Isso mesmo. A Academia Central costumava ser uma cidade em si mesma. Ela
ainda opera separadamente de Cargidan, e o diretor responde diretamente à
Taegrin Caelum,” ele respondeu, com ar de importante. “Tenho certeza que
você já sabe disso, mas os Soberanos valorizam muito a educação e a melhoria
de jovens soldados e ascendentes, que é o motivo pelo qual escolas como a
Academia Central tenham seu próprio lugar na política, fora do governo
padrão e da estrutura dos sangues.”
Eu relaxei quando percebi que esse jovem me diria qualquer coisa que eu
quisesse saber enquanto ele continuava a explicar alegremente o que
deveriam ser fatos básicos e bem conhecidos sobre a academia e seu papel na
sociedade Alacryana. Suprimindo um esgar, eu imaginei como esse fluxo
constante de informações seria irritante para um verdadeiro professor
Alacryano.

Para mim, no entanto, sua conversa infindável fazia dele o guia perfeito, e me
permitia sondar informações sem me preocupar muito em cometer algum
deslize.

Finalmente, quase uma hora depois, eu me arrastei até o sofá estofado no meu
aposento particular, num prédio chamado Windcrest Hall. Aparentemente ele
tinha sido nomeado em agradecimento a alguma família pelas suas
contribuições à academia, mas eu já tinha filtrado a maior parte da
improvisada lição de história que eu havia recebido do meu jovem guia
tagarela.

A suíte de três quartos era significantemente melhor do que eu esperava.


Aparentemente a Academia Central tratava até mesmo seus novos professores
com as melhores acomodações. Não era grande, mas a área de estar continha
um cristal de projeção, como aquele que eu tinha visto fora da loja de
artefatos, assim como uma pequena mesa feita especificamente para o jogo
que Caera tinha me ensinado a jogar nas Relictombs.

Havia uma estante de livros vazia e uma pequena mesa de escrita, assim como
o sofá no qual eu estava sentado, e uma grande janela de sacada que dava
vista pro campus. Um quarto confortável e um banho luxuoso eram acessíveis
da sala de estar.

Eu tinha ficado surpreso que não havia uma cozinha ou alguma forma de
preparar refeições dentro dos meus aposentos, mas o guia tinha me garantido
de forma risonha que eu podia ter comida ou qualquer livro da biblioteca
entregue no meu quarto.

“Não é tão ruim,” Regis disse de onde ele estava aconchegado no chão. “Teria
sido legal se eles tivessem nos dado uma segunda cama para você usar, mas
acho que você vai ficar de boa no sofá, certo?”

Eu soltei um sopro cansado. Apesar do fato de que era ainda no começo da


tarde, minha jornada desde Sehz-Clar parecia ter levado dias. Eu podia lutar
por dias, até mesmo semanas sem parar, mas lidar com todo esse drama e
subterfúgio tinha me deixado exausto.

Era difícil acreditar que eu me encontrava de alguma forma de volta à escola,


novamente como um professor. Mas dessa vez, havia muito mais coisa em jogo.
Capítulo 341
Pó e Cinzas

ALDIR

Pó e cinzas.

Tudo — cada árvore, cada animal, cada ser menor — por centenas de
quilômetros, se tornou em cinzas e poeira. Isso era o poder dos asuras. Eu
vasculhei a paisagem estéril procurando qualquer coisa, qualquer sinal de
vida ou partícula de mana, que pode ter escapado do meu ataque.

Mas não havia nada.

Meus passos estralavam a superfície quebrada do chão enquanto eu vagava


pela terra devastada que um dia havia sido Elenoir. Até o chão não era mais
estável, ameaçando colapsar abaixo de mim a qualquer momento.

Eu era um soldado, cumprindo meu dever e seguindo as ordens de meu lorde.


A floresta chamuscada deveria ter me enchido com uma sensação de orgulho,
sabendo que eu tinha dado um golpe terrível em nossos inimigos. Orgulho,
contudo, não era a emoção que eu senti com a visão dessa paisagem sinistra.
Nem perto de ser.

Quando eu fui enviado para matar os Greysunders, eu assim fiz sem hesitar.
Não havia orgulho — porque ninguém se sente orgulhoso em matar um
mosquito — mas não havia nem pena ou remorso. Havia sido meramente um
momento necessário na guerra, a eliminação de dois importantes agentes do
inimigo.

Quando Lorde Indrath explicou o que ia acontecer com Elenoir, entretanto…

“Eu não posso mais me permitir a sentar preguiçosamente enquanto Agrona


expande seu controle sobre os menores. Alacrya era um sacrifício que eu estava
disposto a fazer, permitindo que ele se mantivesse ocupado com seus vira-latas
e experimentos, mas sua expansão contínua para Dicathen não vai ser
permitida, especialmente agora que ele, de alguma maneira, teve sucesso em
criar uma arma de poder incalculável através da reencarnação.

“Dicathen é apenas um trampolim em direção a Ephetous, e eu me recuso a


deixar aquela cobra traidora trazer essa guerra para cá. Por gerações, nós
trabalhamos para ter certeza que Dicathen pudesse revidar contra Agrona, mas
eles falharam. Nós não vamos nos sacrificar para mantê-los vivos.

“O que nós vamos fazer é mandar uma mensagem que Agrona não pode
ignorar. Até agora, ele usou menores como um escudo, mantendo suas vidas
como reféns para proteger a sua própria. Não mais. Se a escolha é entre dar a
ele o poder para se mover contra nós ou destruir o mundo, então nós vamos
ver isso tudo queimar.”

Windsom foi o primeiro a dar um passo à frente, curvando-se tanto que ele
poderia ter beijado os pés de Lorde Indrath. “Eu me voluntario para essa honra,
Meu Lorde. Eu darei o primeiro golpe.”

Lorde Indrath não sorriu, mas havia uma luz vitoriosa em seus olhos. “Você vai
continuar a servir seu papel como guia e protetor, Windsom, mas você não vai
balançar o machado que está para cair. Não, há apenas um entre nós que é
capaz de usar a técnica Devoradora de Mundos.”

A técnica secreta do clã Thyestes é o Passo da Miragem, uma habilidade que


nos fazia combatentes sem rivais, mas tempos atrás, quando os asuras
frequentemente guerreavam entre si, nós tínhamos outra técnica, tão
poderosa e devastadora que seu uso foi proibido quando os Oito Grandes se
formaram, e não foi mais ensinada, exceto a um estudante em cada geração.

O que me fazia o único membro vivo do clã Thyestes com o conhecimento que
Lorde Indrath precisava.

A técnica Devoradora de Mundos permitia ao conjurador canalizar uma


quantidade incrível de mana, compactando-a até que as partículas individuais
começassem a explodir, causando uma reação em cadeia que se espalharia
para a mana atmosférica e continuaria até que não sobrasse nenhuma
partícula da própria mana purificada do conjurador, causando destruição sem
precedentes.

“Essa técnica é proibida, Lorde Indrath,” um dos líderes do clã Thyestes insistiu
com raiva. “Conhecimento da Devoradora de Mundos é mantido vivo para que
nosso clã nunca se esqueça dos horrores do poder sem limites—”

“Esse momento é exatamente a razão pela qual a técnica foi ensinada a um


membro jovem talentoso de seu clã desde o tempo imemorável, sendo que eu
mesmo comandei isso, como vocês podem se lembrar.”

Embora houvesse resmungos do meu clã, ninguém mais desafiou Lorde Indrath
quando ele me convocou para ficar ao lado de Windsom.

“General Aldir, eu te convoco agora para provar sua lealdade. Você e Windsom
vão viajar para Dicathen, para a terra florestada de Elenoir, e localizarão a
Foice Alacryana Nico e a princesa elfa Tessia Eralith — ou seu corpo físico — e
vão ativar a técnica Devoradora de Mundos. Deem minha mensagem para
Agrona, e tirem dele sua nova arma no processo.”

Naquele momento, eu senti algo dentro de mim quebrar, algo que eu pensei
que tinha sido inabalável: a fundação na qual minha identidade completa
como servo do clã Indrath foi construída.
Ajoelhando-me, eu corri meus dedos pelo vazio cinza e seco que eu havia
criado quando eu segui o comando de meu lorde — um comando que eu sabia
que era errado no momento que ele foi dado, mas recusar teria riscado o
futuro de meu clã inteiro. Lorde Indrath não hesitaria em promover um dos
outros — mais servis — clãs do panteão para os Oito Grandes, e rotularia o clã
Thyestes como herege…

Mesmo assim, nossa falha em destruir os reencarnados havia atraído a ira dos
Indrath. Nós não tínhamos antecipado que eles tinham qualquer método para
se teleportarem tão rápido para longe, e Windson havia se deixado levar ao
brincar com a criança raivosa de cabelos pretos. E ainda assim, a ira do lorde
caiu sobre mim.

Não se lamente, Aldir, eu disse a mim mesmo. É inapropriado para um membro


dos Thyestes.

Meus dedos continuaram a correr pela grossa camada de um cinza vazio, e eu


me encontrei examinando os ressaltos e dobras da paisagem em busca de
alguma lembrança do que esse lugar havia sido: uma árvore caída, a ruína de
uma casa colapsada, até os ossos carbonizados de um dos milhões de vidas
que eu extingui.

Contudo, a técnica Devoradora de Mundos não deixava nada, sem sinal de que
esse lugar algum dia foi uma floresta linda habitada por milhões de elfos. A
combustão de mana destruía absolutamente.

Não, ainda há algo aqui, eu pensei, olhando para o ar nebuloso como se


esperasse ver as partículas de ametista de éter suspensas nas nuvens de
cinzas fumegantes. Embora eu não pudesse ver, eu sabia que estavam ali, ao
meu redor, imperturbadas até mesmo pela técnica Devoradora de Mundos. O
pensamento me deu um pouco de paz, que foi perturbada imediatamente de
novo.

Duas figuras estavam se aproximando à distância, me tirando de meus


pensamentos sem saída. Mesmo quando eles me alcançaram, eu não me
levantei, não me virei para olhá-los. Em vez disso, eu peguei um punhado de
cinzas e deixei correr pelos meus dedos para ser levada pelo vento.

“De volta novamente, Lorde Aldir?” a voz confiante e fria disse. “Você tem vindo
aqui frequentemente desde… bem, você sabe.” Embora me irritasse saber que
eu estava sendo vigiado, eu não estava surpreso. Meu ato havia resetado a
balança de poder em Dicathen, enviando um tremor de terror através de cada
Alacryano no continente.

É claro que alguém foi encarregado de vigiar a terra devastada, mas


escolheram aparecer agora? Eu me perguntei, ainda de costas para eles.
“Dizem que 10 mil alacryanos morreram aqui,” ela continuou, seu tom
impossível de ser lido. “Mas nós dois sabemos que é apenas uma fração das
vítimas.”

Os dois estavam de pé à uma certa distância atrás, só perto o suficiente para


falar sem gritar. A mana deles se destacava como um oasis no deserto, já que
a atmosfera aqui ainda estava sem.

“É com confiança ou ingenuidade que você ousa se revelar pra mim aqui,
Foice?” Minhas palavras não continham ameaça, meramente uma observação.
Eles sabiam que eu poderia me mover através deles sem mais esforço do que
limpar uma teia de aranha; não havia necessidade de ameaças.

“Eu sei que o genocídio o deixa um pouco irritado, Lorde Aldir, mas não
fui eu quem ordenou a morte de milhões de elfos inocentes,” ela respondeu,
zombando gentilmente, desprovida de qualquer medo. “Você acha que ele
considerou o que o ato faria com você, asura? Talvez ele tenha feito isso, mas
de qualquer forma, se uma espada quebrar, você simplesmente forja outra,
você não lamenta a perda de aço.”

Então, voltei meus olhos para ela. Para seu crédito, ela não vacilou, embora o
mesmo não pudesse ser dito para seu retentor. “O que você quer, Seris?”

“Eu meramente quero conversar, Aldir. Compartilhar algumas palavras, na


esperança que você vai ouvi-las.” Ela sorriu, mas não era zombaria ou diversão,
apenas… tristeza? “Se eu estou certa, nesse momento Kezess está bem
ocupado girando sua rede de mentiras, convencendo os cidadãos de Dicathen
que foram os Vritra que fizeram isso” — ela acenou com uma mão para a
desolação — “fazendo com que os pobres tolos nem mesmo saibam quem está
realmente os matando.”

Estrategicamente seria o movimento certo, embora arriscasse quebrar a pouca


força de vontade que os Dicatheanos haviam restante. Para prevenir isso,
Windsom estaria trabalhando com seu Comandante Virion — um dos poucos
menores que eu pensei que tinha qualquer habilidade de liderança de verdade
— para ter certeza que isso não aconteceria.

“Mas quem você pensa que matou mais pessoas de Dicathen nessa guerra?”
Seris continuou, inclinando a cabeça para o lado e tocando os lábios com um
dedo. “As forças de Agrona mataram, o quê? 20 mil? 50? Mas Kezess, bem…”

“Mortes que se tornaram necessárias pela traição contínua de Agrona,” eu


disse, repetindo as palavras de Windsom quando compartilhei esse mesmo
pensamento em confiança após a destruição de Elenoir. Era irritante ter aquela
vira-lata Vritra jogando as mesmas palavras em mim agora. “E é Lorde Indrath
para você.”

“Você parece ele quando fala,” Seris disse quietamente, cravando a ponta da
bota nas cinzas.
Eu levantei meu queixo e fiquei de pé, deixando minha forma se expandir até
que tivesse quase o dobro da altura dela. O retentor tentou ficar na frente de
sua Foice, mas ela o parou com uma mão em seu ombro. “Eu fico orgulhoso de
parecer como o grande Lorde Indrath, e eu não vou ser criticado por gente
como você, mestiça.”

Ela balançou sua cabeça. “Eu não quis dizer Kezess. Você parece com Agrona.”

Com desdém, convoquei Silverlight, que parecia um florete longo e fino


brilhando com a luz da lua, e apontei para o coração de Seris. “Você exauriu
minha paciência, Seris. Eu posso cortar vocês dois agora mesmo, e não há uma
alma em centenas de quilômetros para arriscar danos colaterais.

Eu me arrependi de minha escolha de palavras imediatamente quando Seris


me deu um olhar sarcástico.

“Você já deu um jeito nisso, não deu, Aldir?” ela perguntou ironicamente. O
retentor deu a ela um olhar com medo, como se ele pensasse que ela estava
forçando sua sorte. “Mas isso é tudo que vocês todos são agora, panteão? Um
executor? Assassino? Um robô fiel, desprovido de empatia ou da habilidade de
pensar por si mesmo?”

Por que ela não teme você, Aldir? Eu me perguntei.

Porque ela sabe que você já está farto da morte, a resposta ressoou das
profundezas da minha mente.

Eu cerrei meus dentes e liberei Silverlight. “Se você espera que eu abandone
Lorde Indrath por Agrona, você está—”

“Indrath, Agrona. Agrona, Indrath.” Seris passou a mão ao longo do


comprimento do chifre curvo.

“Você fala como se eles fossem os únicos dois seres no mundo, como se não
houvesse escolha a não servir um ou o outro.”

Eu zombei. Então esse era o plano da vira-lata? Estabelecer-se como algum


tipo de rainha da oposição ao lorde Vritra? “Essa é uma guerra de dois
lados. Todos devem escolher um lado, até você, Seris.”

“Será mesmo?” Uma tempestade assolou os olhos escuros da Foice enquanto


ela retribuía meu olhar. “Se o mundo é uma moeda, Agrona está de um lado,
Kezess no outro, então outra pessoa girou a moeda, e não importa como ela
caia no chão — qualquer que seja a face que fica pra cima — vai ser aquela
outra pessoa que estará olhando pra baixo.”

“De quem você está falando com tamanha reverência?” Eu perguntei, de


alguma maneira irritado pelo seu comportamento. “Quem você acredita que
poderia rivalizar esses dois, que são considerados grandiosos mesmo entre os
asuras?”
A Vritra meio-sangue sorriu timidamente. “Oh, você o conhece bem, Aldir,
talvez até melhor do que eu. Um certo mago humano com uma tendência para
morder mais do que pode mastigar.”

Meus olhos se arregalaram — todos os três — conforme minha mente voltou


aos momentos antes de eu finalizar a conjuração da Devoradora de Mundos,
quando eu senti uma presença extraterrestre me observando, quase como se
uma divindade maior — um deus verdadeiro — tivesse chegado para
testemunhar meu momento mais miserável e me julgar por ele. Eu não sabia
quem podia ter sido na hora, mas agora…

“Arthur Leywin…”

SERIS VITRA

Eu estava cuidadosamente otimista enquanto eu devolvia o estranho olhar de


três olhos do asura. Cylrit estava de pé de forma protetora ao meu lado, se
preparando com mais força do que uma mola, mais do que pronto para dar
sua própria vida por mim se fôssemos atacados.

Embora a conversa tivesse ocorrido exatamente como eu esperava, eu ainda


não estava pronta para virar as costas para Aldir. Em vez disso, ficamos assim
por algum tempo, ele olhando para mim com uma expressão que eu esperava
que fosse pensativa, eu olhando de volta tão placidamente quanto eu poderia,
dada sua aura paralisante.

Eu sabia que era arriscado vir até Elenoir sem a aprovação do Alto Soberano e
me revelar para o asura, e até me senti um pouco mal por entregar a
sobrevivência de Arthur aos asuras também. Mas o garoto precisava de um
empurrão. Agrona tinha seu novo bicho de estimação, e só seria uma questão
de tempo até que ele decidisse usá-la. Se Arthur demorasse muito correndo
pelas Relictombs brincando de fazer um bolinho com a jovem Caera Denoir, ou
se escondendo sob o disfarce de “Professor Grey” na Academia Central, o
conflito crescente entre os Vritra e Epheotus arruinaria tudo.

Finalmente, Aldir soltou uma respiração pesada — metade zombaria irritada,


metade suspiro cansado do mundo – e encolheu de volta às proporções
normais. Sem palavras, ele ergueu a mão, conjurando um portal de opala
negra, e desapareceu com uma onda repentina de mana.

Uma respiração aguda escapou dos meus pulmões enquanto eles esvaziavam.
Eu olhei para minha mão trêmula, então fechei em um punho apertado em
frustração. Recusei-me a tremer de medo, apesar da lacuna de poder entre o
asura e eu.

“Ele vai contar a Indrath sobre Leywin?” Cylrit perguntou enquanto estendia a
mão para atrair as poucas partículas de mana remanescentes do feitiço de
Aldir.
“De imediato, não,” respondi, analisando minhas palavras da mesma forma
que analisava meu conhecimento sobre o asura. “Ele vai refletir sobre o que
dissemos, agonizando sobre o motivo de termos compartilhado essas
informações, com medo de que possa ser um truque ou uma armadilha. Então,
eventualmente, seu senso de dever vai superar sua preocupação, e ele vai
contar a Indrath. Exatamente como nós queremos.”

Um sorriso lento se espalhou pelo meu rosto enquanto eu considerava nossa


situação atual. Meus planos continuavam avançando, mantendo-me um pouco
à frente da guerra, mas o reaparecimento de Arthur Leywin como o misterioso
Ascendente Grey foi um curinga bem-vindo. E com minha protegida tão
convenientemente colocada ao seu lado, bem…

“Agrona vai nos matar se ele descobrir sobre esse encontro,” Cylrit disse
quietamente.

“Agrona não consegue ver atualmente além das paredes do Taegrin Caelum,
Cylrit,” eu respondi suavemente, dando uma cutucada no ombro do meu
retentor. “Ele só tem olhos pra ela agora, pelo menos até que ele decida se
toda essa aposta de reencarnação valeu a pena.”

“E se ele decidir?” A voz de Cylrit carregava uma pitada de nervosismo que eu


não estava acostumada do retentor robusto.

“Eu imagino que ele vai ficar significativamente menos cuidadoso com suas
Foices e seus retentores,” eu respondi.

Houve um breve silêncio. Então, Cylrit xingou. “Pelos chifres do Soberano. É


assustador aqui, não é? Sem mana, sem barulho, sem uma pitada de vida…”

“Isso,” eu disse, colocando meu braço entre o dele, “é como nosso mundo vai
se parecer se Agrona e Kezess fizerem o que querem. Agrona ficará feliz em
receber Epheotus em troca de Alacrya e Dicathen, e Kezess está disposto a
reconstruir a vida aqui das cinzas, se for necessário.”

Um arrepio percorreu meu retentor com minhas palavras enquanto ele olhava
ao redor da devastação vazia. “Agrona não deixaria isso acontecer de verdade
com Alacrya, deixaria?”

Eu bufei indelicadamente. “Se, em troca, ele pudesse governar todos os outros


clãs Asura – ou destruí-los e tomar Epheotus para os Vritra – então você sabe
bem pra cacete que ele faria. O que é um mundo mortal em troca da terra das
próprias divindades?”

“Mas há uma coisa que eu nunca entendi,” Cylrit admitiu, diminuindo um


pouco para que eu tivesse que soltar seu braço. Eu virei para encontrar seu
olhar estável e sério. “Por que o humano? Ele é forte, sim, mas ele apenas viveu
tempo o suficiente para crescer em força por sua causa. O que é tão importante
sobre ele?”
Eu flutuei para o ar e me dirigi para o sudoeste, em direção a Darv. “Mesmo
agora, eu não consigo dizer qual vai ser a parte de Arthur Leywin em tudo isso.
Ele é uma anomalia, uma força de mudança. Eu senti isso no momento que
coloquei meus olhos nele. Em um mundo que divindades tem a força para
varrer países inteiros do mapa, um humano não deveria importar. Até você e
eu somos uma onda no mar de poder ao lado de seres como os asuras.

“Foi a mana que me disse, Cylrit. A maneira que parecia ser atraída para ele,
como se estivesse esperando seu comando, como se ele estivesse mudando a
realidade sem mesmo tentar. Ele não apenas se moveu pelo mundo, o mundo
mudou para acomodar sua passagem.”

Capítulo 342
Dualidade

TESSIA ERALITH

Estava frio. Muito frio. Mas a sensação do ar frio cortando minha pele – minha
pele, como eu tinha que me lembrar – era estimulante. Isso me lembrava de
que…

Eu estou viva.

Descansando minhas mãos nuas na grade gelada que corria ao redor da minha
varanda de três metros de largura, olhei para a cadeia infinita de montanhas
nevadas, quilômetros e quilômetros de picos irregulares que se erguiam da
terra como os dentes de um enorme dragão.

Não, não da Terra, não mais. Apesar de me lembrar desse fato surpreendente
pelo menos uma centena de vezes, ainda não tinha conseguido aceitar isso.
Quem imaginaria que havia outros mundos? E que você poderia… renascer em
um.
Meu olhar foi atraído para a série de runas marcando meus braços nus,
brilhando fracamente com uma luz morna. Esses braços eram mais delgados
do que os que eu tinha antes…

Antes do que?

Fechei os olhos com força contra a névoa em minha cabeça, apertando até ver
estrelas antes de abri-los novamente.

Foi pior – muito pior – a primeira vez que vi os braços magros e as runas
tatuadas. Nico estava lá, em pé acima de mim – embora eu não o tivesse
reconhecido, é claro. Seus olhos estranhos estavam fixos nos meus por baixo
de suas novas sobrancelhas escuras. Eu imediatamente vomitei em toda a sua
camisa antes de desmaiar…
À distância, uma criatura alada do tamanho de um avião girava em torno de
um dos picos, caçando. Qual era o nome com que Nico tinha chamado a
criatura?

Uma besta de mana.

Enquanto eu observava, deixando minha atenção se mover inteiramente para


longe do meu próprio corpo e das runas brilhantes que marcavam minha pele
agora clara, a magnífica monstruosidade de repente dobrou suas asas e
mergulhou, desaparecendo nas depressões e vales. Eu gostaria de poder me
juntar a ele, voando pelas montanhas, com nada entre mim e as rochas
irregulares além da magia que eu herdei com este corpo.

De todas as coisas incríveis que eu tinha visto e aprendido, voar era


definitivamente a minha favorita.

Voar, porém, me fez pensar em minha primeira batalha neste novo mundo, na
força impossível de nossos inimigos, e um calafrio que não tinha nada a ver
com o frio percorreu meu corpo, arrepiando meus braços.

Não esperávamos um ataque… Eu mal sabia o que estava acontecendo ainda,


só que meu novo amigo Agrona – aquele que deu a Nico e a mim outra chance
na vida – precisava da minha ajuda. Eu simplesmente fiz o que eles me
disseram para fazer, até…

Até que eu voei, pensei vertiginosamente. Eu nunca tinha feito isso antes.
Virando-me de repente, voltei rapidamente para o meu quarto e fechei a porta
contra o frio e a paisagem estranha. Uma sensação tortuosa de vertigem
ameaçou tomar conta de mim, então me joguei em uma cadeira em frente à
lareira acesa, esfregando o dorso do meu nariz com força, meu corpo inteiro
rígido contra a náusea.

Uma memória indesejada veio à tona. Eu estava andando pelo campus da


escola em um dia como qualquer outro, quando meu corpo começou a doer e
tremer, o ki inchado passando por mim como ondas em um oceano
tempestuoso, e quando essas ondas de ki chegaram à terra… Eu estava deitada
no chão, meu corpo sacudindo e torcendo dentro de um casulo de trepadeiras
escuras com pontas de lanças, a presença furiosa escondida dentro de mim
atacando, rugindo com ódio e confusão…

Balançando a cabeça violentamente, recuei das imagens, dobrando minhas


pernas até meu peito e envolvendo meus braços em torno delas.

Respire, apenas respire, Cecilia.

Essa sensação vertiginosa de algo errado era comum no início. Nico disse que
era apenas minha mente se acostumando à minha nova forma física, mas-
Uma batida na porta me assustou.
Desdobrando-me da cadeira, olhei para a parte de trás da porta. “Sim?” Eu
perguntei depois de alguns segundos.

“Cecilia, é o Nico. Posso entrar?”

Voltei-me para o fogo, que dançava em tons de laranja e amarelo, e respirei


fundo para afastar a tontura que persistia. “Sim, claro.”

A pesada porta de madeira abriu suavemente para dentro, revelando uma


figura um pouco mais alta que eu, com pele de alabastro e cabelo preto
azeviche. Ele entrou e deixou a porta fechar suavemente antes de cruzar o
quarto para se sentar rigidamente na minha cama.

Nico parecia tão diferente, e não apenas suas características físicas. O que
quer que tenha acontecido com ele nesta nova vida foi difícil para ele. Isso o
deixou com uma casca grossa.

“Como está se sentindo?” ele perguntou, seus olhos penetrantes queimando


em mim como se ele estivesse tentando ver minha alma, escondida sob a pele
que eu estava vestindo.

“Tudo bem,” eu respondi, muito rapidamente.

Mentirosa.

“Tive um ataque de vertigem agora há pouco”, admiti. “Mas estou bem.”


Nico estava fora da cama e ajoelhado ao meu lado em um instante. Quando
sua mão pousou na minha, eu me afastei quando algo dentro de mim recuou.

“Desculpe,” eu sussurrei, mas não coloquei minha mão de volta.

“Não, Cecilia, está tudo bem. Está tudo bem, sério.” A mágoa óbvia que isso
causou nele brilhou de volta para mim de dentro daqueles olhos
desconhecidos, mas ele tirou a mão do braço da minha cadeira. “Eu sei que
tudo isso é tão confuso.”

Confuso nem começa a descrever.

“Faça o exercício,” Nico sugeriu.

Assentindo, fechei meus olhos e comecei a me concentrar no brilho laranja do


fogo brincando dentro das minhas pálpebras. Então, respirando
profundamente, meu foco seguiu a respiração pelo nariz e até os pulmões,
onde a segurei.

Enquanto eu expirava, meu foco permaneceu em meus pulmões, na forma


como meu esterno mudou quando meu peito subiu e meu estômago se
expandiu, causando uma interação intrincada de músculos, ossos e órgãos
internos. Lá, procurei meu núcleo de mana, tentando senti-lo e estar
consciente dele.
Demorou um minuto, mas acabei encontrando perto do meu plexo solar. Assim
que visualizei ele, parecia impossível não o perceber: uma bola de poder
quente branco, esperando que eu utilizasse energia contida nela como rajadas
de um furacão. Mais ou menos como meu centro ki, mas… mais.

Mas havia algo a mais ali.

Dentro do núcleo, eu podia sentir outra vontade, separada da minha, assim


como na memória. Tentáculos verdes de raiva se contorceram, fazendo meu
estômago revirar.

A Vontade Bestial do Guardião de Elderwood…

Meus olhos se abriram quando fui desconcentrei da meditação pela sensação


nauseante que a besta me deu. Pelo canto do olho, vi Nico me observando de
perto.

“Melhor?” ele perguntou quando eu abri meus olhos.

Eu apenas balancei a cabeça em resposta.

“Enfim.” Nico se levantou e deu um passo hesitante para trás. “Agrona gostaria
que nos juntássemos a ele para jantar em uma hora, em seus aposentos. Quer
que eu espere você se vestir?”

Eu balancei minha cabeça desta vez, então coloquei uma mecha de cabelo cor
de bronze atrás da minha orelha. “Não, eu… te vejo lá.”

Com um aceno de cabeça, Nico tateou atrás dele em busca da maçaneta da


porta, então recuou para o corredor, não tirando os olhos de mim até que a
porta se fechou.

Suspirando profundamente – algo que não me lembrava de ter feito muitas


vezes em minha vida passada, mas sentia a necessidade de fazer com
frequência agora – afundei na cadeira e movi meus pés para mais perto do
fogo, perto o suficiente para ser desconfortável.

Como o frio, a sensação das chamas muito quentes lambendo meus pés
descalços me fez sentir…

Viva?

Lembrando-me do que Nico disse sobre o jantar, pulei e corri por uma porta
do outro lado da minha cama que levava ao meu próprio camarim particular.
Lá dentro, havia uma escrivaninha com gavetas cheias de perfumes e
maquiagem, vários espelhos, três cômodas para diferentes tipos de roupas, e
um armário que ocupava toda a extensão do cômodo.

Era, pensei com um pouco de culpa, meu lugar favorito em Taegrin Caelum.
Eu nunca tive minhas próprias coisas antes, não realmente minhas. Ou, pelo
menos, acho que não. Muito da minha vida anterior ainda era um borrão,
embora Nico e Agrona me garantiram que tudo voltaria com o tempo. Mas me
lembrei do orfanato e da diretora Wilbek, e me lembrei do teste…

Afastando-me das memórias para evitar outro episódio, comecei a separar as


roupas penduradas dentro do armário. Continha principalmente vestidos e
túnicas estranhas de uma centena de cores e designs diferentes, e tudo só
para mim.

Minhas pontas dos dedos roçaram um vestido simples cor de ônix com runas
pretas nas costas que eu pensei que faria meu novo cabelo se destacar, mas o
rejeitei por um vestido verde até o tornozelo com folhas douradas bordadas
na lateral.

Conforme me trocava rapidamente, preparei-me para uma conversa com


Agrona, ordenando meus pensamentos e preparando as respostas para o
bombardeio de perguntas que eu sabia que receberia.

Assim que me vesti, comecei a longa caminhada pela fortaleza até os


aposentos privados de Agrona, sem nem mesmo olhar nos espelhos para
verificar minha aparência; olhar para o corpo coberto de runas e o rosto
desconhecido me olhando de volta só me causaria vertigem novamente.

Os salões de Taegrin Caelum estavam sempre fervilhando de atividade:


centenas de criados corriam de um lado para outro, atendendo às
necessidades dos muitos soldados, aristocratas e líderes militares que
frequentavam a fortaleza na montanha. O castelo era como uma cidade em si,
contida dentro das altas muralhas de pedra escura.

Cada corredor estava alinhado com pinturas e retratos, ou artefatos


pendurados em caixas de vidro marcadas com runas. Bestas de mana
empalhadas eram comuns, cada uma posava como se estivesse prestes a se
lançar e atacar os transeuntes. Eu estava fascinada pelas formas grotescas e
estranhas, e mapeei grande parte da fortaleza pela localização dos muitos
monstros empalhados, mas não havia tempo para me demorar e examiná-los
hoje.

Sempre que eu cruzava com um criado que estava polindo um artefato ou


esfregando manchas do tapete vermelho que descia pelo centro do corredor,
eles pressionavam as costas contra as paredes e se curvavam profundamente
até eu passar.

No início, tentei falar com alguns desses servos, mas eles não falavam comigo,
exceto para responder a perguntas diretas, e eles nunca fizeram contato
visual. Na verdade, além de Nico e Agrona, eu não tinha ninguém com quem
conversar.

Eles querem que você fique isolada, para ver apenas o que estão mostrando a
você.
Eu balancei minha cabeça, sabendo que esta não era uma observação justa.
Muito estímulo me sobrecarregaria, especialmente após o ataque… Eles
tiveram que apresentar este novo mundo aos poucos, e mesmo assim eu me
encontrei tendo dificuldade em reter informações.

Como onde as coisas estavam na enorme fortaleza.

Foi quando eu passei pela forma de uma besta felina com duas cabeças e três
caudas pela segunda vez que percebi que havia dado voltas enquanto estava
perdida em pensamentos.

“Era o segundo logo após essa coisa de gato, ou o terceiro?” Murmurei para
mim mesma, espiando corredor após corredor.

Virando no terceiro corredor, aumentei o passo, correndo para a porta no final,


que pensei que se abria em uma escada estreita em espiral que me levaria
vários andares até o nível em que Agrona mantinha seus aposentos privados.

Em vez de uma escada, encontrei uma suíte grande e mal iluminada. Surpresa,
eu congelei na porta, meus olhos rastreando lentamente através da câmara
enquanto eu tentava descobrir onde eu estava.

“Quem está aí,” uma voz fina e cansada disse das profundezas da câmara.
“Apenas deixe o que quer que seja pela porta e vá embora!”

“Sinto muito”, respondi. “Eu estou um pouco perdida. Você…”

Algo estava arranhando o chão perto do canto, e eu pude apenas distinguir


uma silhueta ágil se desdobrando de onde estava e espreitando em minha
direção para o anel de luz da porta aberta.

Eu voltei para o corredor, meu coração de repente batendo forte no meu peito,
embora eu não tivesse certeza do porquê.

A mulher parecia preencher a porta, apesar de sua estatura magra como um


palito. Ela apoiou as mãos na moldura de cada lado da abertura e fez uma
careta por trás da franja fina e preta-esverdeada. Fiquei surpreso com o quão
doente e… desumana ela parecia.

Suas bochechas estavam afundadas sob os olhos escuros e avermelhados, e


quando ela respirou sibilante por seus lábios finos e cinzentos, vi que seus
dentes tinham sido serrados em pontas afiadas. As vestes pretas que ela usava
expunham seus braços e flancos, que eram esqueleticamente finos.

“Está…” Eu parei, minha voz falhando enquanto eu lutava para superar


qualquer instinto que me incitava a fugir da mulher. Engolindo em seco, tentei
novamente. “Está tudo bem?”
“Estou? Estou bem?” ela sibilou, olhando para mim como se de repente eu
tivesse crescido um terceiro braço.” Você fala com Bivrae, a última de seu
sangue… e pergunta se ela está bem?”

“Sinto muito,” eu murmurei, sem saber por que a mulher me enojava tão
completamente.

Ela se parece com ele.

Esse pensamento me pegou de surpresa, mas no momento em que o tive,


soube o que significava. Eu podia imaginar o homem, inchado e esquelético ao
mesmo tempo, com cabelos verdes como algas marinhas e poços afundados
no lugar dos olhos…

Bilal. O retentor. O… irmão dela?

“Sinto muito por sua perda,” eu cuspi, oprimida por uma sufocante colisão de
emoções que eu não poderia explicar. “Perdoe minha intrusão.”

Curvando-me levemente, eu fugi de volta para o corredor.

“Espera!” ela gritou, mas eu não parei, virando a esquina e quase colidindo
com uma criada.

Eu me esquivei dela e estava na metade do caminho para o próximo corredor


antes de ouvir sua exclamação de surpresa, então aumentei meu passo ainda
mais, praticamente voando pelos corredores, batendo em uma porta e
subindo uma escada em espiral.

Só depois de irromper por outra porta em um amplo corredor com um telhado


elegantemente curvo coberto por um afresco longo e detalhado, foi que eu
deslizei até parar, respirando com dificuldade.

“Cecilia?”

Assustada, me virei apenas para perceber que Nico estava parado perto da
porta da escada, admirando um escudo de ouro e prata pendurado na parede.
Sua expressão ficou séria quando ele percebeu minha respiração ofegante, e
o que eu assumi ser meu olhar selvagem e em pânico. “Algo de errado? O que
aconteceu?”

“N-nada,” eu gaguejei, tentando me recompor. “Acabei de… me perder um


pouco – e não queria chegar atrasada.”

“Você está perfeitamente na hora, na verdade”, disse uma voz profunda vinda
do salão, o estrondo passando pelas pedras e vibrando até a sola dos meus
pés. “Não precisa se preocupar, Cecilia querida.”

Voltando-me para a voz, fiz uma reverência profunda, mas o movimento fez
minha cabeça girar quando uma onda de vertigem se abateu sobre mim e eu
tropecei para frente. Um poderoso braço cinza-mármore me pegou, e eu me
senti sendo levantada como uma criança e colocada firmemente de pé.

Parada na minha frente, com as mãos nos meus ombros, estava Agrona, seus
vibrantes olhos escarlates olhando diretamente pra mim. O senhor do clã
Vritra, e de minha nova casa Alacrya, era bonito, com pele lisa e uma
mandíbula afiada que me lembrava um ator. Seu corpo era ágil e gracioso, e
ele se movia com uma confiança fácil que atraia seus olhos para ele.

Chifres enormes brotavam dos lados de seu cabelo preto como os chifres de
um alce, exceto que eram brilhantes e pretos, e cada dente terminava em uma
ponta afiada como lança. Vários anéis de ouro e prata enrolados nos muitos
dentes e correntes com joias traçavam as linhas dos chifres. Em qualquer outra
pessoa, teria parecido extravagante, mas para Agrona, isso apenas aumentava
a sensação de poder que pendia dele como uma capa.

Perdido na vertigem torturante, eu não pude deixar de olhar enquanto sua


presença me oprimia.

“Oh, essas memórias irritantes,” ele disse suavemente. “Te incomodando de


novo, não é? Deixe-me te ajudar.”

Não! Por favor, não –

Então Agrona estava dentro minha cabeça, na minha mente, remexendo como
um oleiro moldando argila. A confusão de memórias e pensamentos que não
eram meus começou a diminuir, assim como a avalanche de emoções em
cascata.

Enquanto seus dedos mentais massageavam meu cérebro, respirei fundo e me


permiti relaxar. Primeiro, ele removeu as memórias dela, empurrando-as para
longe e enterrando-as bem fundo, então ele começou a vasculhar as minhas,
dando um puxão aqui ou ali para me ajudar a lembrar de coisas da minha vida
anterior.

Uma série de imagens passou pela minha mente, passando rapidamente em


sucessão:

Nico, apenas um menino, me convidando para brincar com ele e seu amigo,
embora eu fosse muito tímida até para falar.

Nico se esquivando entre rajadas de energia ki, movendo-se mais rápido do


que sua idade deveria permitir, para pressionar a mão enluvada em meu
estômago, salvando a mim e a todos no orfanato do ki instável que ameaçava
explodir de mim.

Nico me entregando um medalhão que ele fez apenas para mim, para me
manter segura, seu sorriso nervoso falando mais do que suas palavras jamais
falaram.
Nico me salvando de homens violentos em um beco, homens que queriam me
levar embora, que estavam dispostos a matar para me pegar.

Nico, seus braços me envolveram em parabéns depois que fomos aceitos no


instituto de treinamento militar que frequentamos juntos.

Nico, seus braços me envolveram em…

Meus olhos se abriram e dei um passo rápido para trás do imponente Vritra,
que me deu um sorriso conhecedor antes de se endireitar. “Pronto, tudo
melhor agora, não é Cecilia.”

“Sim, Senhor Agrona,” eu respondi calmamente, o barulho na minha cabeça


finalmente se acalmando. “Agradeço pela ajuda.”

Ao meu lado, os dedos de Nico estavam remexendo ao seu lado, e eu sabia


que ele queria estender a mão e pegar minha mão, mas ele se conteve. Não fiz
nenhum esforço para encorajá-lo, apreciando a distância. Por algum motivo, o
contato físico com Nico, por mais inocente que fosse, sempre provocava uma
sensação nauseante de vertigem.

“Agora, eu tenho uma refeição requintada preparada para nós,” Agrona


continuou, virando-se e gesticulando para que o seguíssemos. “Carambola e
bois lunares de Elenoir – uma iguaria rara agora, considerando todas as coisas
– mas não é por isso que quero falar com vocês dois.

“Eu sei que você quer sair e ver o mundo, Cecilia querida. Tudo isso ainda
parece muito estranho e sobrenatural, e não quero que você se sinta como um
pássaro preso em sua gaiola. É por isso que estou enviando Nico – com você
ao lado dele, como deveria ser – para investigar alguns acontecimentos
estranhos no Salão Principal dentro das Relictombs.”

Sorrindo para o senhor Vritra, Nico e eu o seguimos até sua sala de jantar
privada, ansiosos pela oportunidade de provar meu valor ao Alto Soberano.

Capítulo 343
Professor Princesa

Depois de uma rápida olhada em meus aposentos, afundei em uma das


cadeiras almofadadas em frente a uma pequena mesa e soltei um suspiro.
Manter uma conversa civilizada com estranhos tinha se tornado cada vez mais
exaustivo – ainda mais por causa do quanto eu tinha que tomar cuidado com
o que falava.

Acordando de meu torpor, dois itens chamaram minha atenção, ambos


descansando no centro do pequeno tabuleiro de jogo com uma nota.

“Este deve ser o token que ativa o portal de ascensão,” eu murmurei, brincando
com a runa de jade enquanto lia a nota.
O segundo item era um anel aberto feito de ébano, tomando a forma de uma
cobra intrincada que se ajustava ao meu dedo para caber melhor.

Meu olhar se fixou no anel pálido enrolado em meu dedo médio,


internalizando o fato de que eu tinha me tornado oficialmente um professor
no mesmo continente contra o qual estava em guerra.

Voltando minha atenção para a mesa à minha frente, li a pequena placa de


latão que dizia:

Disputa dos Soberanos

Peças em vermelho e cinza do Sangue Nomeado Hercross

“Muitas vezes é a mente mais afiada que vence a guerra, não a lâmina mais
afiada.”

Um presente para a Academia Central de Lorde Leander

Ao contrário das “peças” toscas com as quais Caera e eu jogamos, as que


estavam posicionadas no tabuleiro hexagonal de mármore eram
primorosamente esculpidas, representando Atacantes, Conjuradores e
Escudos em pedra vermelha profunda de um lado e cinza forte do outro.

“Chique,” disse Regis, farejando o tabuleiro e derrubando várias das peças.

Empurrando sua cabeça para longe, eu recoloquei as peças e me levantei da


mesa.

Em seguida, voltei minha atenção para o dispositivo de projeção. O cristal oval,


que era ligeiramente áspero, como se tivesse sido esculpido à mão a partir de
uma peça maior, estava montado na parede com suportes de metal.

“Ligar,” eu ordenei, incapaz de encontrar qualquer controle perto do


dispositivo.

Sem resposta.

“Ativar,” eu disse hesitante, enquanto acenava minha mão na frente do cristal


oval para ver se ele reagia a gestos físicos.

Regis soltou uma risadinha, fazendo-me virar para ele com uma sobrancelha
levantada. “Basta dar um pequeno pulso de mana para ligar. Ele desliga
novamente quando o cristal de mana embutido está sem mana ou quando
você retira toda a mana.”

“Oh,” eu disse, percebendo meu erro. Era uma coisinha tão estúpida, mas se
outra pessoa observasse eu me atrapalhar assim, seria imediatamente óbvio
que eu não era um alacryano.
“Sabe,” Regis disse com o ar de alguém prestes a declarar algo muito óbvio,
“toda essa coisa de ‘sem mana’ parece um negócio sério agora que estamos
na civilização. Você vai precisar ser mais cuidadoso.”

“Se ao menos eu tivesse alguém – algum tipo de companheiro – que tivesse


um conhecimento mais detalhado da tecnologia e dos costumes alacryanos,”
eu disse sarcasticamente. “Alguém que poderia me ajudar apontando
possíveis erros antes de eu cometê-los.”

Regis parou de farejar e me lançou um olhar afrontado. “O que eu pareço, um


leitor de mentes?”

“Podemos literalmente ler a mente um do outro, Regis,” eu disse, passando


pelo enorme lobo das sombras antes de me jogar no sofá.

“Então você deve saber que estou entediado,” disse Regis, sentando-se na
frente do sofá e olhando para mim com seus olhos escuros, e sua cauda de
fogo batendo suavemente no chão.

Eu deixei meus olhos fecharem. “Nós só estamos aqui há dez minutos.”

“Dez minutos muito longos e muito chatos,” o lobo retrucou, movendo-se para
descansar o queixo na beirada do sofá ao lado da minha cabeça. “Vamos pelo
menos dar uma olhada por aí, aonde existam garotas lindas que eu possa
admirar.”

Soltei um suspiro. “As meninas aqui são todas adolescentes, Regis. Não seja
nojento.”

“E eu tenho poucos meses de idade, e nem sou da mesma espécie. E daí? Além
disso, provavelmente existem professoras bonitas para você, velhote.”

“Tudo bem,” eu suspirei, cedendo à sua insistência implacável e rolando para


ficar de pé. O ar fresco poderia ser bom para mim. “Eu tenho que descobrir
onde fica meu escritório de qualquer maneira. Meu material de ensino deve
estar lá.” Eu parei na porta. “Mas você terá que ver os pontos turísticos de
dentro de mim.”

“Mas eu—” meu companheiro balbuciou.

“Regis. Você chama ainda mais atenção do que eu. Pra dentro.”

O lobo das sombras bufou em aborrecimento, mas fez o que eu pedi.

Eu balancei minha cabeça enquanto sentia sua forma etérea fundir-se em mim,
vagando perto do meu núcleo de éter. Avise-me se sentir que estou prestes a
fazer algo que vai chamar a atenção, eu disse a ele.

‘Sim, sim, Professor Princesa.’


Foi uma curta caminhada pelo campus até o prédio onde eu estaria ensinando,
uma grande estrutura que me lembrava das universidades de minha vida
anterior. O prédio estava praticamente vazio, já que as aulas ainda não haviam
começado, e vaguei pelos corredores espaçosos em paz até encontrar a sala
certa.

A porta única se abriu para um espaço em forma de semicírculo, como uma


pequena arena com um ringue de duelo no nível do chão. Era menor do que
eu esperava, com capacidade para no máximo trinta alunos.

Quando dei o primeiro degrau raso escada abaixo, artefatos de iluminação ao


longo da parede externa e do teto se acenderam automaticamente, enchendo
o espaço com luz fria. Algo chamou minha atenção, e parei para me curvar
sobre um dos assentos, que tinha uma runa gravada nele.

“Estou lendo certo?” Eu murmurei.

‘Sim, tenho certeza que você está,’ Regis confirmou para mim.

A runa, quando ativada, enviaria um choque de dor pela espinha de quem quer
que estivesse sentado nela. “Bárbaro.”

‘Bem-vindo ao sistema escolar de Alacrya,’ meu companheiro disparou de


volta.

Seguindo as escadas até o ringue de duelo, eu andei ao redor dele até o outro
lado, onde havia um painel de metal com uma série de botões e alavancas
nele. Curioso, eu ativei um botão, e um escudo brilhante e transparente vibrou
no lugar ao redor da plataforma.

Isso não era diferente dos anéis de treinamento em Xyrus, mas o resto dos
controles eram mais interessantes. Descobri que, com o toque de um botão,
eu poderia ativar um amortecedor de força que conteria todos os impactos
dentro dos limites da plataforma de combate, e havia um disco que me
permitia controlar até mesmo a força da gravidade, tornando-a mais pesada
ou mais leve para desafiar os alunos.

Embora eu não estivesse mais ansioso para ensinar combatentes inimigos em


potencial do que quando Alaric explicou pela primeira vez seu plano cabeludo,
tive que admitir que os alacryanos tinham alguns brinquedos sofisticados.

Outra porta se abriu na parede logo atrás do ringue de duelo. Usando a runa
de jade, destranquei-a e entrei em um pequeno escritório com uma mesa, três
cadeiras, algumas prateleiras e um grande baú com runas gravadas no metal.

Uma pilha de pergaminhos, papéis velhos, e livros já estavam esperando por


mim na mesa. Retirando os dois pergaminhos que recebi do contato de Alaric,
coloquei-os sobre a mesa, decidindo me aprofundar nos aspectos mais
detalhados da aula mais tarde.

A pedra rúnica abriu também o baú, que fornecia armazenamento para itens
mais sensíveis. Atualmente, estava cheio de material de treinamento para a
turma. Reconheci coletes que permitiriam uma análise detalhada do fluxo de
mana, força física, aceleração e provavelmente uma dúzia de outras métricas.
Era semelhante ao equipamento de treinamento que Emily tinha inventado
para testar minhas habilidades no castelo, mas obviamente muito mais
avançado.

Se Gideon e Emily pudessem colocar as mãos em algumas dessas tecnologias


Alacryanas…

Fechei a tampa, que se trancou automaticamente, e olhei ao redor do pequeno


escritório, incapaz de manter a carranca longe do meu rosto.

‘Quarto chato, pronto. Escritório chato, pronto. Podemos fazer algo mais
interessante?’ Régis implorou, dando o equivalente mental de olhos de
cachorrinho.

Passei meus dedos pela capa de um livro na minha mesa. Claro.

‘Não era exatamente isso que eu tinha em mente,’ disse Regis quando entramos
na Biblioteca da Academia Central. Uma placa ao lado da entrada agradecia ao
Alto Sangue Aphelion por doar este prédio da biblioteca, que foi construído há
várias décadas.

Você achou que estaríamos criando confusão com uma garota seminua em
cada braço ou algo assim? eu respondi.

O curto salão de entrada era decorado com pinturas de diretores anteriores


da academia e terminava com um grande retrato de um homem severo com
cabelos curtos e grisalhos e sobrancelhas estrondosas franzidas em sulco. De
acordo com a placa de latão na parede abaixo dela, este homem – Augustine
do Sangue Nomeado Ramseyer – era o atual diretor da academia.

‘Parece que aquele cara seria ótimo para se ter numa festa,’ Regis observou
sarcasticamente enquanto passávamos pelo retrato.

Independentemente de sua personalidade, o diretor Ramseyer era alguém


com quem eu devia ficar atento.

Quando passamos do saguão de entrada para o salão principal, uma mulher


mais velha ergueu os olhos de uma pilha de livros e franziu a testa. Ela
arrumou a pilha momentaneamente antes de seguir em nossa direção.
“Sinto muito, jovem, a biblioteca ainda não está aberta para alunos,” ela
anunciou em uma voz que parecia muito mais jovem do que sua aparência.

“E os professores?” eu perguntei calmamente, levantando minha mão para


mostrar o anel de ébano.

“Ah! Minhas desculpas,” ela disse, olhando-me brevemente de cima a baixo


antes de acenar para que eu entrasse. “Vocês ficam cada vez mais jovens a
cada ano, eu juro.” Girando, ela rapidamente caminhou para uma grande ilha
redonda no centro do saguão. “Mas, foi esperto, jovem, vir à biblioteca
primeiro.”

“Qual matéria você vai lecionar?” ela perguntou enquanto começava a mexer
em um dispositivo estranho ao lado de sua mesa.

“Táticas de Aprimoramento de Corpo a corpo,” respondi, seguindo a


bibliotecária até a mesa circular que a envolvia.

Ela estremeceu e me lançou um olhar simpático. Que se transformou em um


sorriso provocador quando ela disse, “Talvez eu tenha que retirar o que disse
sobre a sua inteligência? Achei que você estava aqui para revisar o material do
curso antes do início das aulas, mas…”

Inclinei-me para frente, apoiando meus cotovelos na mesa, e a observei


manipular o dispositivo. “A matéria é realmente tão ruim assim?”

“Oh, bem…” ela começou hesitante, “é que ensinar magos de alto sangue a
socar e chutar coisas nunca foi exatamente… uma posição altamente
respeitada entre os alunos.”

“Entendo. Quanto tempo durou o último professor?” eu perguntei, meu


emprego na academia de repente fazendo mais sentido.

“Duas sessões,” a bibliotecária admitiu, franzindo a testa para mim. “Então a


matéria foi cancelada pelo resto da temporada.”

Eu não pude deixar de rir disso, ganhando uma sobrancelha levantada da


bibliotecária. “Para ser honesto, eu estava um pouco nervoso com toda essa
coisa de ensino, mas você me tranquilizou.”

Isso fez com que sua sobrancelha levantada rastejasse a todo o vapor para se
esconder atrás de sua franja. “Saber que os alunos assustaram o último
professor depois de dois dias fez você se sentir melhor?” Ela piscou várias
vezes antes de adicionar baixinho, “Retiro tudo que disse. Você é obviamente
louco.”

Sorrindo, tamborilei meus dedos na mesa. “Isso só ajuda a acalmar minha


mente, só isso.” Para Regis, acrescentei, Porque parece que não terei de ensinar
nada a essas crianças.
Balançando a cabeça, a bibliotecária voltou ao seu estranho dispositivo, que
era feito de uma versão menor do display de cristal do meu quarto, colocado
no topo de um pedestal de ferro, e tocou a tela. Pela maneira que acendeu,
presumi que ela havia imbuído mana nele.

“Táticas de Aprimoramento Corpo a corpo,” disse ela, aparentemente para o


dispositivo. O cristal de projeção exibia um punhado de livros, incluindo o que
parecia ser um local dentro da biblioteca.

“Impressionante,” eu murmurei, examinando os títulos. “E isso funciona para


qualquer tópico?”

“Tópico, autor ou título,” disse ela com orgulho, dando tapinhas na máquina
como se fosse um animal de estimação obediente. “Quer tentar?”

Sentindo meus lábios formarem uma carranca pensativa enquanto olhava para
a tela, eu disse, “Os magos antigos,” pensando que perguntar sobre as
relíquias poderia causar algumas suspeitas.

A tela mudou, a lista mudando para mostrar um grande número de livros sobre
os magos antigos, as Relictombs e vários outros tópicos relacionados. Eu
memorizei as localizações de um par deles aleatoriamente.

“Tudo bem se eu olhar por aí?” eu disse.

“Claro, professor…?”

“Grey,” eu respondi educadamente.

“Dehlia,” respondeu a bibliotecária. “Existem mais desses consoles por aí. Se


a tela estiver desligada, basta dar uma cutucada com um pouco de mana.”

“Obrigada de novo, Dehlia,” eu disse com um aceno de cabeça antes de entrar


mais a fundo na biblioteca.

Por todo o saguão, prateleiras e mais prateleiras de livros se espalhavam para


preencher o enorme edifício, que se estendia por dois andares adicionais
acima. Dezenas de recantos de leitura foram dispostos ao redor da borda
externa da biblioteca, dando aos alunos um lugar para se esconderem para
estudar.

‘Ou outras coisas menos acadêmicas,’ observou Regis.

A Biblioteca da Academia Central não era tão espaçosa ou grandiosa quanto a


biblioteca da cidade, mas devia conter dezenas de milhares de livros e
pergaminhos. Eu li os títulos ao acaso enquanto caminhava entre as
prateleiras altas, curioso sobre o que os alacryanos considerariam importante.

Uma fileira continha pelo menos duzentos livros sobre runas alacryanas, de
marcas a regalias. Outra continha biografias de Alto Sangue, cada uma das
quais parecia estar competindo com suas vizinhas para ser a mais espessa ou
ter a capa mais ornamentada. Encontrei uma seção inteira de poesia exaltando
as virtudes de Agrona e os Soberanos.

Por fim, encontrei a fileira que procurava e peguei um volume pesado com
capa de couro que parecia interessante na prateleira. Afirmava ser um exame
completo da adaptação alacryana da tecnologia dos magos antigos ao longo
dos tempos.

‘Por favor, diga que não vamos ficar rondando essa biblioteca lendo o dia todo.
Pelo menos me leve de volta para os quartos chatos para que eu possa sair de
você,’ Regis gemeu.

Ignorando meu companheiro, abri o livro e comecei a folhear as páginas


quando uma voz suave e nervosa disse, “Seria melhor ler a resposta de
Crenalman.”

Virando-me, vi um jovem tímido me encarando por baixo de seus óculos


grossos. O olhar do menino caiu para minha mão enquanto ele coçava seu
cabelo castanho-escuro, seus olhos se arregalando depois de ver meu anel.
“D-desculpe, senhor, eu só… deixa pra lá.”

Ele girou nos calcanhares e rapidamente marchou para longe.

“Espere,” gritei, fazendo com que o menino quase tropeçasse antes de se virar
para mim.

“Você deveria estar aqui?” eu perguntei, mais por surpresa do que por
qualquer desejo autoritário de ter certeza de que ele não estava invadindo a
biblioteca sem permissão.

“D-desculpe, senhor, estou aqui por algumas semanas, e tenho especial—”

Eu acenei para ele ficar em silêncio. “Isso não importa. O que você estava
dizendo sobre isso aqui?”

Ele olhou com medo entre mim e o livro antes de responder baixinho, “É só
que… bem… não há muita informação nele. É tudo teórico e gasta muito tempo
agradecendo aos Soberanos por—”

A boca do menino se fechou quando seus olhos se arregalaram. “Não há nada


de errado com… eu só quis dizer que… hum…”

Tentei não sorrir enquanto observava o menino se debater. Quando ele


finalmente parou em silêncio, levantei a mão. “Está tudo bem. Entendo o que
você quer dizer. Então você sugere algo melhor?”

Timidamente, como alguém caminhando sobre o gelo fino, ele disse, “Sim. Há
uma resposta de Crenalman que aborda diretamente os problemas com esse
livro. Deve estar” — ele deu alguns passos para dentro da fileira, examinando
as prateleiras rapidamente — “aqui.”

O menino tirou um livro um pouco mais fino da estante e me entregou com um


sorriso tímido.

“Você parece saber como se virar neste lugar. Sou novo aqui e, honestamente,
não sou alguém que leu muito. Posso pedir algumas recomendações?” Eu
pausei, pensando por um momento. Ousaria revelar meu principal interesse a
esse jovem estudante? Parecia mais seguro pedir ajuda a um aluno nervoso
do que à bibliotecária, então decidi arriscar. “Meu principal interesse é em
relíquias.”

Os olhos do menino se iluminaram e seu comportamento se transformou


rapidamente. Ele empurrou apressadamente o livro de Crenalman para trás e
fez o mesmo com o que estava em minhas mãos. “Eu li tudo sobre relíquias.
Histórias, catálogos, tratados teóricos — mas esta biblioteca tem centenas de
livros sobre elas, a maioria das quais eu nunca tinha ouvido falar até chegar à
academia!”

Ele acenou para que eu o seguisse, então praticamente correu pelo labirinto
de prateleiras, me levando por uma escada escondida perto do fundo da
biblioteca, e depois serpenteando por várias outras fileiras. Perto do centro
do segundo nível, com vista para o salão principal, havia uma pequena seção
dedicada a livros relacionados com relíquias.

Ele pegou três e os estendeu para mim. “Comece com estes,” disse ele com
orgulho, depois acrescentou rapidamente, “se ainda não os leu.”

Aceitando a coleção oferecida, examinei cada um: uma história de recuperação


de relíquias e a evolução das leis que as cercam; uma exploração dos poderes
das relíquias e como eles eram; e um catálogo de relíquias mortas descobertas
nos últimos cem anos, incluindo uma seção inteira do relicário da Academia
Central.

O menino observou meu rosto com atenção, e o que encontrou em minha


expressão deve tê-lo levado a explicar suas escolhas. “Eu sei que a lei das
relíquias não parece interessante, mas o autor faz um ótimo trabalho tornando
o material acessível. É o melhor do tipo, eu prometo, e realmente útil para
entender os pequenos detalhes. Existem várias maneiras pelas quais os
ascendentes podem ter problemas se não entenderem a lei.”

Segurando os livros debaixo do braço, dei ao menino um olhar pensativo.


“Você quer ser um Ascendente pra aprender mais sobre as Relictombs?”

Talvez eu tenha dito algo muito invasivo, porque seu rosto, já pálido, parecia
perder a cor. “Eu… hum… não…” Ele parou e respirou fundo. “Eu realmente não
quero ser um ascendente, senhor. Ou um soldado,” ele acrescentou culpado.
“Mas eu sempre quis ser um mago, e minha irmã—”
Ele se interrompeu, sacudindo levemente a cabeça. “Sinto muito, senhor. Não
quero aborrecê-lo com isso. Apenas… obrigado por pedir minha ajuda.”

“Sem problemas. Obrigado pelas recomendações…” fiz uma pausa, esperando


que o menino fornecesse seu nome.

“S-Seth, senhor,” ele disse após um momento de hesitação.

“Obrigado pelas recomendações, Seth.”

Com um sorriso estranho e um aceno, ele se virou e desapareceu de volta na


ampla biblioteca.

‘Parece ser um bom garoto,’ disse Regis.

Eu apenas dei de ombros enquanto reorganizava os livros em meu braço e


voltava para a recepção para assinar minha saída.

Capítulo 344
Olhar Fixo

Nota do autor: Um pouco mais de construção de mundo e aprimoramento de


algumas coisas em preparação para o resto do arco escolar que eu prometo
que não ter adicionado sem motivo. Pra compensar, tornei este capítulo um
pouco mais longo, com quase 4 mil palavras, então aproveite o capítulo desta
semana e não se esqueça de sintonizar no Tapas para o novo episódio dos
quadrinhos!

O sol da tarde aqueceu minhas costas, seus raios brilhantes refletindo nas
páginas amareladas do livro que eu estava lendo. Do meu canto isolado no
café do campus, que ficava perto do prédio da administração, o barulho dos
alunos e professores conversando enquanto aproveitavam suas bebidas e
sobremesas era uma agradável mudança de ritmo comparado ao meu quarto.

E embora isso fosse um pouco mais de socialização do que eu gostaria, ainda


era melhor do que ouvir Regis reclamar de estar entediado.

“Aqui está, Professor,” uma jovem garçonete de uns 16 anos colocou um


pequeno prato de comida e uma xícara de chá na minha mesa.

“Eu não pedi a comida,” eu disse enquanto pegava a caneca e soprava o vapor
sobre a superfície do chá quente.

“Por conta da casa”, ela disse, saltando na ponta dos pés enquanto
desaparecia de volta pra cozinha.
Na minha cabeça, Regis soltou um gemido. ‘Essa aparência é um desperdício
em você. Se eu fosse você, eu-‘

Achei que tivéssemos concordado que você não me incomodaria se eu viesse


aqui, respondi enquanto meu olhar varria o café.

A academia já estava muito mais movimentada do que há dois dias. Os alunos


estavam chegando regularmente, alguns com suas famílias e acompanhantes,
enquanto mais professores começaram a aparecer pelos corredores.

Bebericando o chá fermentado de urtiga, continuei a folhear as páginas do


meu livro, passando por várias seções até encontrar a que procurava e, em
seguida, comecei a examinar as informações. Eu já havia dado uma olhada no
livro de leis e no tratado sobre os poderes das relíquias, mas nenhum dos dois
continha o que eu procurava.

Felizmente, o terceiro livro que peguei emprestado da biblioteca era um pouco


mais interessante: um catálogo de relíquias trazidas das Relictombs. Eu já
sabia que o próprio Agrona mantinha todas as relíquias que eram funcionais,
mas fiquei surpreso com o quanto os alacryanos sabiam sobre as relíquias
mortas que recuperaram.

Através de uma combinação de entrevistas com os ascendentes


descobridores, e o trabalho de Instilores dedicados que se especializaram em
relíquias – todos os quais operavam em Taegrin Caelum, a fortaleza de Agrona
– a maioria das relíquias mortas foram identificadas, incluindo os poderes que
uma vez continham. Nem todas as relíquias mortas foram completamente
compreendidas, mas com as Relictombs à sua disposição, os Alacryanos
fizeram muito mais progresso em seu estudo da tecnologia mágica antiga do
que os Dicatheanos ou mesmo os asuras de Epheotus.

Embora o livro contivesse detalhes sobre mais de cem relíquias mortas, eu


estava mais interessado em um grupo específico: aquelas alojadas no Relicário
da Academia Central. Ao longo dos séculos, eles conseguiram obter onze, e li
a descrição de cada uma com atenção.

Devo dizer, no entanto, que fiquei um pouco desapontado. Mas é culpa minha.
O conhecimento de que eu – e apenas eu, pelo que eu saiba – poderia reviver
e usar qualquer relíquia de djinn me permitiu imaginar várias fantasias. Lendo
as descrições, porém, lembrei-me de que os djinn eram pessoas pacíficas.

Não que as relíquias fossem inúteis, necessariamente, mas eu não estava


procurando por ferramentas e bugigangas. Eu queria uma arma.

‘Obrigado por reconhecer que não sou uma arma nem sua posse’, comentou
Regis com um bufo. ‘Mas nem tudo aí é ruim, sabe? Tá vendo essas Correntes
de Aprisionamento? Só pensar em alguém, ativá-las e bam! As correntes
envolvem o alvo e vão aonde você for! Posso pensar em vários usos para elas.’
De acordo com o autor, a relíquia rotulada de Correntes de Aprisionamento
também tinha outras funções, incluindo habilidades de supressão de mana e
éter, impedimento da fala e até mesmo colocar a pessoa ou criatura afetada
em um estupor paralisado, se necessário.

Embora a ideia de arrastar Agrona por toda Alacrya – amarrado, amordaçado


e impotente – para que seu povo pudesse testemunhar seu fim tivesse um
apelo sombrio, eu tinha minhas dúvidas sobre o quão poderosa uma única
relíquia morta realmente seria.

Não sei o quanto confio nas deduções do autor aqui, salientei. Tipo, olha aqui.
Diz: ‘Embora os Imbuers não tenham sido capazes de confirmar esta teoria, é
possível que as Correntes de Aprisionamento possam procurar um alvo em
qualquer lugar do continente.’ É só encheção de linguiça.

‘E essa aqui então?’ Regis perguntou, concentrando-se no desenho de uma


rede estilo gladiador.

Rotulada de Rede de Mana, a relíquia pode “pegar” mana no ar como uma rede
de pesca pega um peixe. O autor teorizou que era um dispositivo defensivo
destinado a absorver ataques de feitiços.

Certamente parecia útil, especialmente porque eu não podia mais usar a


habilidade de cancelamento de feitiço que desenvolvi utilizando Realmheart
e minhas habilidades quadra elementais. Mas quão eficaz seria contra os
Foices ou mesmo asuras? Será que pelo menos me ajudaria a encontrar as
ruínas restantes dentro das Relictombs?

‘Talvez a verdadeira questão seja: por que a gente simplesmente não leva
tudo?’

Eu sabia que Regis estava perguntando só porque essa ainda era uma dúvida
em minha mente também. Já que eu poderia usar o Requiem de Aroa para
reativar todas as relíquias mortas da academia, eu poderia apenas pegá-las e
me preocupar com o quão úteis elas seriam mais tarde. Mas não conseguia
imaginar um cenário que me permitisse roubar a coleção inestimável e manter
meu disfarce na academia, ou mesmo continuar em Alacrya.

E é claro, havia outra questão que me incomodava constantemente.

Por quanto tempo vou manter esse disfarce?

Fechando o livro, distraidamente coloquei uma fruta vermelha brilhante na


boca. A rica doçura foi uma surpresa agradável. Eu perdi o hábito de comer
refeições no dia a dia, já que o éter mantinha meu corpo vivo, mas percebi que
sentia falta dos sabores e texturas dos alimentos.

Comi mais algumas frutas, mastigando devagar para saborear melhor.


Havia algo tão… normal em sentar no pequeno café aproveitando uma
refeição ao ar livre. Não conseguia me lembrar da última vez que tirei um
tempo para mim mesmo.

Recostando-me na cadeira, respirei fundo o aroma agridoce de ervas do meu


chá e afastei meus pensamentos.

‘Estamos ficando bem confortáveis, não é mesmo?’ Regis perguntou,


provocando. ‘Espero que você não se acostume muito com esse estilo de vida.’

Você não precisa me lembrar do por que estamos aqui ou o que está em jogo, eu
comentei, pousando minha xícara.

Com os livros debaixo do braço, levantei-me e saí do pátio do café. Ler sobre
as relíquias mortas era uma coisa, mas parecia uma boa hora para vê-las com
meus próprios olhos.

O campus estava fervilhando pra todo lado, mas a atmosfera havia mudado
desde quando cheguei. Em vez de perambular e conversar, os alunos que vi
estavam todos concentrados na preparação para as aulas. A maioria estava
treinando ou fazendo exercícios, mas também havia alguns alunos lendo em
silêncio ao ar livre.

Ouvi passos rápidos atrás de mim, e me virei. A expressão em meu rosto devia
estar séria, porque o jovem que se aproximava parou, sua mandíbula
trabalhando silenciosamente enquanto ele lutava para encontrar algo para
dizer.

Forçando minha expressão a mudar pra algo mais plácido, eu assenti com a
cabeça. Era o balconista que me guiou pelo campus e mostrou meus aposentos
no primeiro dia. Percebi que não sabia seu nome.

“Professor Grey,” ele murmurou finalmente. “Desculpe se interrompi, eu estava


apenas-”

“Está tudo bem,” eu disse, dispensando seu pedido de desculpas. “Esse é só o


rosto natural de professores. Do que você precisa?”

A pequena piada arrancou uma risada do balconista, e ele se acomodou ao


meu lado enquanto começamos a andar novamente. “Ah, nada não! Estou de
folga esta manhã, mas vi você vagando e pensei em verificar se você precisava
de alguma coisa. Eu sei que a academia pode ser um pouco difícil de navegar
quando você chega aqui.”

“Não, obrigado, eu só estava indo visitar o Relicário depois que eu deixar esses
livros na biblioteca”, respondi, dispensando o jovem.

“A Capela é um edifício fascinante! E aquelas relíquias mortas… Você sabia que


a Academia Central tem oficialmente a maior coleção de todas as escolas em
Alacrya? O próprio diretor Ramseyer supervisionou muitas das aquisições.”
Seus olhos vagaram com entusiasmo até que avistou outro professor sendo
seguido por um grupo de alunos.

“Oh, e aquele ali é o Professor Graeme. Ele é um dos principais pesquisadores


da academia”, disse ele em um sussurro nervoso.

Meu guia ficou em silêncio enquanto seu rosto se transformou em uma


carranca pensativa. Falando baixinho, ele acrescentou: “Ele também é um
pouco… severo.”

Meu olhar seguiu o do aluno até um homem em vestes pretas sedosas. Linhas
azuis desciam das mangas até os punhos, e do pescoço traçando a abertura
ao longo de sua coluna. Ele tinha seis tatuagens rúnicas nas costas expostas.

Um grupo de alunos o seguia, ouvindo atentamente enquanto ele falava. Uma


cabeça conhecida de cabelo laranja que desbotava para amarelo perto das
pontas se destacava entre as outras. O professor disse algo que eu não pude
ouvir, fazendo Briar rir e sacudir o cabelo.

‘Não achei que Briar fosse fisicamente capaz de rir’, Regis disse sem
emoção. ‘Talvez ela esteja possuída.’

Como se sentisse nossa atenção, o professor parou e se virou. Ele tinha cabelos
castanhos lustrosos que caíam em cachos soltos até os ombros e um rosto
jovem e bem barbeado. Olhos de jade brilhantes e inteligentes me viram de
relance e seus lábios se curvaram em um meio sorriso.

“Alunos!” ele anunciou, levantando ambos os braços para gesticular em minha


direção. “Parece que temos a sorte de ser apresentados ao mais novo membro
do corpo docente da Academia Central. Algum de vocês fará a disciplina de
Táticas de Aprimoramento Corpo a Corpo nesse semestre?”

O professor olhou ao redor para seu grupo. Uma rodada de risadinhas passou
pelos rapazes e moças, a maioria deles balançando a cabeça em negação. Briar
estava olhando para os pés dela, e não para mim, e estremeceu quando outra
garota deu uma cotovelada nela e sussurrou algo em seu ouvido.

“Não, suponho que vocês não farão, não é?” Ele deu ao grupo um sorriso
conhecedor. “É claro que há tópicos de estudo mais importantes para esses
alunos talentosos do que aprender a bater uns nos outros como uns bêbados.”

Meu guia se remexeu nervosamente do meu lado. “Quando eu disse severo…”

“O que você quis dizer foi grosso como limpar a bunda com lixa,” concluiu Regis
para o jovem balconista.

“Espero que você esteja mais apto para o dever de ensinar do que o
último professor que deu aquela matéria.” Ele me deu um sorriso afetado. “É
uma vergonha para a academia quando empregamos tais magos inúteis.”
Mantendo meu rosto inexpressivo, disse: “Prazer em conhecê-lo”, e comecei a
me afastar, mas o homem agiu rapidamente para me interromper. Fiz uma
pausa e encontrei seus olhos com expectativa.

“Há uma certa hierarquia entre professores e alunos aqui”, ele me informou.
“É melhor descobrir isso rapidamente, ou você não se sairá melhor do que seu
antecessor.”

“Vou fingir que mantenho isso em mente”, eu disse educadamente, arrancando


alguns olhares esbugalhados dos alunos.

Com um aceno de cabeça, eu contornei o professor atordoado e me afastei,


ignorando seu olhar quase tangível nas minhas costas.

‘Pelo menos você não pode ser racista sobre o comportamento dele’, pensou
Regis.

Eu segurei um sorriso malicioso pensando no professor que venci no meu


primeiro dia de aula em Xyrus. Seja aqui ou em Dicathen, ou mesmo na Terra,
sempre tem esse tipo de pessoa.

“Sinto muito por ele, senhor”, disse o funcionário, lembrando-me que ele
ainda estava lá.

“Você pessoalmente o transformou de uma pessoa normal em um burro de


mula?”, eu perguntei, sem olhar para o jovem.

“Hum, não.”

“Então por que se desculpar,” eu disse com firmeza. Parando, dei outra olhada
pra ele. Ele era alto, com cabelos loiros sujos e um sorriso fácil. Seu uniforme
estava um pouco amassado e ele tinha cabelos bagunçados saindo em ângulos
estranhos da sua cabeça. “Qual é seu nome?”

“Oh, caramba, tão rude da minha parte… Tristan, senhor. Do Sangue Severin.
Somos de Sehz-Clar, sangue pequeno, só estou aqui porque tive a sorte de…”

“Tristan”, interrompi antes que ele pudesse se perder em um discurso


autodepreciativo. A boca do menino se fechou. “Agradeço sua companhia, mas
posso encontrar a biblioteca sozinho.”

Mergulhando em uma reverência, ele me lançou um largo sorriso, mas não


disse mais nada enquanto girava nos calcanhares e se afastava rapidamente.

Parece um animal de estimação de um professor, mas parece útil para se


manter por perto,” comentou Regis enquanto Tristan ia embora.

Tecnicamente, você seria o animal de estimação do professor, respondi com


um leve sorriso.
‘Se você ainda está pensando em uma maneira de tirar todas aquelas garotas
de cima de você, continue contando piadas como essa,’ retorquiu Regis.

Dehlia, a velha bibliotecária, não estava de serviço quando chegamos na


biblioteca, então deixei os livros sem cerimônia na recepção com um de seus
muitos assistentes.

Antes de partir para o Relicário, havia mais um tópico de pesquisa do qual eu


sabia que não poderia continuar fugindo. Como não conseguia ativar o sistema
de catálogo, comecei a vagar pela biblioteca aleatoriamente em busca da
seção certa.

‘Por que você precisa ler livros quando você tem a mim?’ Regis perguntou,
entendendo minha intenção.

Sem querer ofender, mas você não foi particularmente oportuno ou confiável
com seu conhecimento cultural, pensei enquanto caminhávamos pela seção
“Poesia épica”.

‘Estou ofendido,’ bufou Regis.

Tive a sorte de encontrar pessoas ansiosas por ajudar, como Mayla e Loreni
em Maerin Town e, mais tarde, Alaric e Darrin. Na academia, entretanto, eu
estava cercado por alacryanos que estariam prestando mais atenção em mim,
e de repente era muito mais importante ter algum conhecimento básico dos
termos e costumes de Alacrya. Para tanto, estava procurando um ou dois livros
que pudessem me ajudar a contextualizar as simples normalidades diárias da
vida alacryana com as quais eu não estava familiarizado.

Ao passar pela seção de “Contos Folclóricos”, ouvi um forte barulho de um


punho atingindo a carne e um suspiro de dor.

‘Ei, isso pareceu muito interessante,’ Regis animou-se.

Também pareceu que não era da nossa conta, rebati com indiferença.

Além das fileiras de contos populares alacryanos, encontrei uma seção


intitulada “Costumes e tradições”. As prateleiras estavam cheias de livros
encadernados detalhando as tradições diferentes dos cinco domínios de
Alacrya. Alguns abordavam o assunto de uma maneira mais histórica,
explorando como essas tradições surgiram, enquanto outros funcionavam
mais como guias para viajantes ou a nobreza.

Uma voz baixa e ameaçadora reverberou pelas prateleiras vinda de uma seção
próxima, distraindo-me da minha busca.

“… pare de fingir que você é um de nós. Só porque sua família foi exterminada
na guerra, isso não faz de você um verdadeiro alto sangue.”
“Eu nunca disse is— ugh!”

Fiz uma pausa depois de ouvir a voz conhecida antes que ele fosse
interrompido por outro golpe.

“Não fale sem permissão na presença de seus superiores.”

Soltando um suspiro, me movi lentamente e virei a esquina.

Regis soltou uma risadinha. ‘O que aconteceu com cuidar da nossa própria
vida?’

Cale a boca.

Movendo-me ao longo da longa estante de livros, encontrei uma lacuna que


se abria em um canto isolado.

Quatro meninos se amontoavam no recanto coberto. Todos eles usavam os


uniformes preto e azul da Academia Central, mas a disparidade entre eles era
clara.

Dois deles seguravam Seth, o garoto magricela que me ajudou a escolher meus
livros, contra a parede. Um era muito alto e mais magro, o que lhe dava uma
aparência esticada. Mechas trançadas de cabelo vermelho, preto e loiro
pendiam de sua cabeça. O outro era mais baixo, mas com ombros largos de
urso, e uma cabeleira ruiva desgrenhada.

O último jovem, cuja pele era de ébano escuro e seu cabelo de um preto mais
escuro, estava alguns metros para trás, com os braços cruzados. Ele tinha uma
aparência de nobreza mais clássica do que os outros e a exibia abertamente,
nos ombros, na postura, e na paciência cuidadosa do rosto, o nariz
ligeiramente levantado e os lábios separados em um sorriso experiente.

“Um órfão sem-teto como você não tem lugar aqui”, resmungou o garoto
corpulento.

“Vá para casa”, sibilou o outro, envolvendo a mão na nuca de Seth.

“Ah, espera,” o garoto largo torceu o braço de Seth, fazendo-o soltar um


gemido lamentável.

“Você não tem uma casa, tem?” perguntou o estudante magro, enquanto
empurrava a cabeça de Seth para trás na parede.

Entrando no corredor, eu silenciosamente passei pelo estudante de cabelos


escuros e me aproximei dos outros três.

“Como assim?” ele perguntou incrédulo, enquanto eu me colocava entre ele e


seus amigos.
O aluno mais magro me olhou de cima a baixo, sua mão ainda prendendo a
cabeça de Seth na parede. “Você precisa de algo?”

Aproximando-me dele, levantei a mão. Ele recuou e fez uma careta quando
passei por ele para pegar um livro da prateleira mais próxima. Ao abri-lo para
ler o título, certifiquei-me de que meu anel em espiral estava bem visível.

Soltando o braço de Seth, o garoto grande esticou o peito e deu um passo em


minha direção.

Eu ergui os olhos do livro. E esperei.

Sua tentativa de uma carranca ameaçadora estremeceu. Seu amigo olhou além
de mim para o terceiro menino, fazendo uma careta. Eu deixei minhas
sobrancelhas franzirem em uma pequena carranca.

O grande garoto desinflou, dando um passo para trás novamente.

“Você deve ser o novo professor de combate,” o garoto de cabelo preto disse
atrás de mim. “Para a aula sem magia.” Quando olhei para ele por cima do
ombro, ele acenou levemente com a cabeça em uma reverência que teria sido
considerada desrespeitosa em qualquer ambiente formal. “Professor Grey?”
Seus lábios finos se curvaram em um sorriso divertido. “Demonstrem algum
respeito pelo professor, senhores. Afinal, vamos vê-lo com frequência.”

“Foi mal”, o grande estudante grunhiu.

Seu companheiro me deu um sorriso jovial enquanto endireitava o uniforme


de Seth para ele, fazendo Seth recuar. “Desculpe, professor.”

Ambos os meninos contornaram ao meu redor o melhor que puderam


enquanto seguiam seu líder para fora da alcova.

“Obrigado,” Seth disse enquanto se desdobrava de sua postura defensiva.

Eu examinei a estante distraidamente, sem realmente reparar nenhum dos


títulos dos livros. “Gostar de ler é bom, mas você provavelmente deveria
aprender a se defender se planeja ficar nesta academia.”

Ele ficou em silêncio enquanto eu me afastava, deixando minhas palavras


pairarem no ar.

Com alguns livros novos em mãos, deixei a biblioteca alguns minutos depois e
fui para o Relicário.

Fiquei surpreso ao encontrar uma dúzia de alunos reunidos ao redor da Capela


– o prédio de que Tristan tinha falado tão bem antes – assistindo a uma
procissão de magos marchar para fora do portal. Dois a dois, os magos
armados e com armaduras formaram uma barreira que conduzia do arco do
portal aos degraus de pedra escura da capela.
Quando uma figura com chifres desconhecida saiu do portal, meu sangue
gelou em minhas veias.

O homem de sangue Vritra era colossal. Ele tinha mais de 2 metros de altura e
tinha o físico de um titã. Seus chifres se projetavam dos lados da cabeça
raspada e se curvavam para apontar para a frente como os de um touro.

‘Dragoth,’ sussurrou Regis em minha mente. ‘Um Foice.’

Durante toda a guerra, pensei essa palavra com medo e expectativa. Todo o
exército Dicathiano tremia com a menção do título, aterrorizados com o dia
em que um deles apareceria no campo de batalha e nos mostraria o que eles
realmente poderiam fazer como generais de elite Alacryanos.

Esse medo só foi amplificado quando as Foices finalmente apareceram. Eu


tinha visto Seris Vritra arrancar o chifre infundido de mana da cabeça de Uto
tão facilmente quanto uma criança puxando as asas de uma borboleta. Eu
tinha testemunhado as consequências da destruição de Cadell no castelo,
onde ele dominou uma Lança e o comandante dos exércitos de Dicathen sem
nem piscar.

Mesmo no auge da minha força, eu quase me matei para lutar até um empate
contra Nico e Cadell – e eu teria morrido, se não fosse por Sylvie.

Esses pensamentos passaram por minha mente entre um batimento cardíaco


e o outro, e eu percebi algo.

Não era medo o que eu estava sentindo.

Era raiva.

Como um só, o corpo de alunos se ajoelhou e, de repente, fui exposto ao Foice.

A grande cabeça de Dragoth girou até que seus olhos vermelho-sangue se


fixaram nos meus. Ele franziu a testa, parando por um momento, e eu senti
como se ele estivesse olhando através dos meus olhos e dentro da minha
mente, vendo minha hostilidade tão claramente como se eu tivesse apontado
uma espada para seu coração.

‘Art! Sua intenção assassina, ele pode sentir!’ Regis parecia em pânico, mas
distante, e percebi com um sobressalto que inadvertidamente havia
impregnado meu corpo inteiro com éter.

Piscando, retirei minha intenção – que acabara de vazar e ainda estava envolta
pela própria aura opressiva da Foice – e a multidão de alunos se levantou,
mais uma vez me ocultando.

“Foice Dragoth Vritra!” uma voz profunda anunciou das portas da sombria
Capela. “É com grande honra que te recebemos!”
O orador era exatamente igual ao retrato: cabelos curtos e grisalhos que
contrastavam fortemente com sua pele de ébano e uma expressão
permanentemente severa em seu rosto que não se desfez nem mesmo diante
do Foice.

Alívio se misturou com pesar quando Dragoth se afastou de mim para encarar
o diretor. “Augustine”, ele respondeu em um tom de barítono caloroso. Ele
passou a mão pela barba espessa. “Trouxe a relíquia conforme combinado.
Pessoalmente, como Cadell exigiu.”

Cerrando os punhos, forcei a raiva para baixo e segurei com força minha
intenção. Enquanto eu olhava para os chifres negros da Foice, porém, a
imagem da forma demoníaca de Cadell parada sobre a moribunda Sylvia
passou pela minha mente. E depois Alea, com seus olhos se apagados, seus
membros nada além de tocos de sangue. Então Buhnd, de costas nos
escombros, queimando de dentro para fora.

Dragoth disse algo para a multidão, mas eu não ouvi. A Foice e o diretor
estavam caminhando em direção à entrada da Capela enquanto seus guardas
formavam uma linha na base da escada.

A conversa começou entre a multidão ao meu redor, mas eu só conseguia olhar


para a Foice. Ele estava bem ali. Eu poderia matá-lo. Eu poderia privar Agrona
de um de seus soldados mais poderosos. Eu poderia…

‘… me ouvindo?’ A voz de Regis estava gritando de repente em minha


cabeça. ‘Nós não podemos simplesmente…’

Eu sei, pensei, afastando minhas emoções e me me virando. Agora não é a


hora.

Capítulo 345
Socialite

Abaixando o pergaminho detalhando as matérias que eu deveria lecionar,


suspirei e recostei-me na cadeira. Acabei me lembrando da academia militar
que frequentei na minha vida anterior, e não foi uma lembrança boa.

O guerreiro dentro de mim – o homem que tinha sido um mestre espadachim,


um rei, uma Lança – olhou para esses exercícios, que se concentravam em
dominar movimentos repetidos e aperfeiçoar as minúcias de postura e o
posicionamento de mãos e pés, e viu que era o tipo de controle obsessivo no
treinamento que eliminava a criatividade em batalha. Esta parte de mim sabia
que eu poderia fazer mais do que somente forçar um molde nos estudantes.

Mas havia outra parte também: o irmão, amigo e filho. Eu era um cidadão de
Dicathen, deslocado e rodeado de inimigos, sendo solicitado para treinar
soldados que um dia poderiam usar essas habilidades contra as pessoas que
eu mais amo, apenas para me manter seguro. Embora tivessem se passado
apenas dois dias, estava ficando cada vez mais difícil me concentrar enquanto
aquela parte de mim continuava fazendo a mesma pergunta.

Pra que? Eu me perguntei pela décima vez desde que a Foice, Dragoth, tinha
aparecido na Academia Central. Essa raiva se apegou a mim desde então,
invadindo cada interação, envenenando cada pensamento.

Eu queria fazer algo mais do que apenas examinar papéis atrás de uma mesa.

Todos os argumentos de Alaric e Darrin pareciam tão distantes agora que eu


estava aqui, sentado em um escritório na Academia Central, me preparando
para dar aula. Não havia realmente uma maneira melhor de escapar do nó
político no qual eu estava amarrado, preso entre a hostilidade dos Granbehls
e a manipulação dos Denoirs?

Tudo isso vale a pena?

“Tudo o que vale a pena?” Regis interrompeu de onde estava no canto. “A


proteção política, o acesso gratuito e sem perguntas pra entrar e sair das
Relictombs? Ou talvez o tesouro de relíquias mortas e livros didáticos aos
quais temos acesso?”

Fechei os olhos. “Você sabe o que eu quero dizer.”

“Apenas admita que você está com medo de ver esses alacryanos como
pessoas reais em vez de encarnações do diabo,” disse ele com um sorriso
malicioso. “Eu imagino que humanizar seus inimigos não alivia a sua bússola
moral já bagunçada.”

Abrindo um olho, joguei um pergaminho no grande monte de pelo e fogo. Logo


quando deveria ter ricocheteado nele, seu corpo acendeu em chamas roxas,
engolindo o projétil.

O sorriso malicioso de Regis apenas se alargou quando seu rabo abanou


irritantemente. “Espero que não seja nada de que você precise.”

Eu abri minha boca para responder, mas uma batida suave na porta me
interrompeu.

‘Você quer que eu volte pra dentro?’ Regis perguntou.

Balancei a cabeça. A essa altura, acho que não tem problema.

“O que é?” Eu disse em voz alta, as palavras saindo mais abruptamente do que
eu pretendia.

A porta do escritório se abriu e uma mulher entrou, suas ondas flutuantes de


cabelo loiro arrastando ligeiramente atrás dela como se ela estivesse rodeada
por uma brisa suave. “Grey! Eu espero que você não se importe que eu venha
aqui.”

Eu a reconheci com um aceno conciso. “Sinto muito, estou um pouco


ocupado—”

“Oh, você precisa de ajuda para se preparar para a aula? Tenho certeza que
você tem muito a fazer.” Ela saltitou pela sala e encostou seu quadril na minha
mesa para olhar para os materiais espalhados na minha frente. “Esta é a
terceira temporada em que dou aulas em ambas as minhas matérias, então
estou preparada. Eu ficaria feliz em passar algum tempo com você – ajudando
você, quero dizer.”

Franzindo a testa, ponderei a melhor forma de me livrar da mulher sem entrar


em um caminho sem volta, mas Regis se mexeu, suas chamas queimando, e
Abby gritou e recuou através do pequeno escritório.

“O-o que é isso?!” ela exclamou, seus olhos âmbar arregalados de medo.

“Minha invocação,” respondi com indiferença.

“Uau, uma invocação?” Abby perguntou sem fôlego, suas bochechas coradas
de medo. “Eu nunca vi uma como esta antes.” Dando alguns passos hesitantes
para longe de Regis, que estava tendo dificuldade em manter uma expressão
séria, ela subiu na minha mesa, uma perna cruzada sobre a outra. “Isso é
realmente impressionante. Mas você se importa se eu perguntar” — seus lábios
se curvaram em um sorriso provocador — “conjurar sua invocação, você se
sente em perigo ou algo assim?”

Regis balançou as sobrancelhas enquanto observava Abby se inclinar para


mais perto de mim, obviamente gostando do meu desconforto. Fiquei tentado
a chamá-lo de volta com o sinal verbal que Regis e eu havíamos combinado de
antemão para casos como esse, mas meu companheiro balançou a cabeça
agora que Abby não estava olhando para ele.

‘Gosto da vista daqui, se não se importa,’ disse ele com um sorriso satisfeito. ‘E
ver você se contorcer torna tudo ainda melhor.’

Eu balancei minha cabeça, travando meu olhar com o de Abby e retornando


um sorriso suave. “Talvez eu só quisesse impressionar uma colega.”

“O-oh,” os olhos da professora loira se arregalaram, surpresa. Os olhos de


Regis fizeram o mesmo.

Após uma breve pausa, dei uma piscadela para ela. “Estou apenas brincando,
Srta. Redcliff. Porém, tenho certeza que você está bem acostumada a ignorar
pretendentes maliciosos.”

“Você é demais,” disse ela com uma risadinha, suas orelhas queimando de
vermelho quando ela desviou o olhar. “E, por favor, me chame de Abby.”
“Muito bem.” Eu me levantei e dei a volta na minha mesa, encostando-me nela
ao lado dela.

Eu estendi minha mão e esperei que ela pegasse. Seus dedos mal tocaram os
meus quando ela retribuiu meu gesto. “É um prazer vê-la novamente, Abby.”

“O prazer é meu,” ela respondeu com um leve aperto na minha mão.

Afastando-me, dei uma olhada em meu companheiro, que estava de queixo


caído, antes de voltar minha atenção para a minha visita. “Espero não estar
sentado muito perto. Falar com você por de trás da minha mesa faz com que
pareça que estou falando com meus alunos.”

“Não, eu também prefiro assim, quer dizer — eu não sou uma estudante,
afinal,” ela disse, balançando a cabeça.

“Bom, estou feliz,” eu dei uma risada feliz antes de deixar meu sorriso
desaparecer. “Embora talvez tenhamos que ser breves na conversa de hoje.”

Abby manteve sua expressão imparcial, mas seus ombros caíram com minhas
palavras. “Oh? Imagino que você fez planos para o resto do dia?”

“Eu pretendo desfrutar de um encontro adorável com essas pilhas de papéis


aqui,” eu disse com um sorriso cansado.

“Como eu disse antes, ficaria feliz em ajudá-lo a se preparar para sua aula,
Grey,” ela disse.

“Não é exatamente sobre a minha aula, por assim dizer.” Eu cocei minha
bochecha enquanto desviava o olhar, fingindo vergonha. “Esqueça, fico com
um pouco de vergonha se disser em voz alta.”

“O que é?” os olhos âmbar de Abby brilharam de curiosidade quando ela se


aproximou de mim. “Eu prometo que não vou contar.”

Soltei um suspiro. “Bem, eu sou de uma área bastante isolada de Sehz-Clar,


então estou terrivelmente desinformado sobre muito do que todos aqui
considerariam como conhecimento comum.”

O rosto de Abby iluminou-se. “Oh! Você não poderia ter contado pra ninguém
melhor!”

Eu levantei uma sobrancelha, lançando-lhe um olhar tímido para cima. “Como


assim?”

Minha colega me deu um sorriso malicioso. “Sabe, eu conheci a maioria dos


outros professores aqui muito antes de eu mesma assumir um cargo de
professora, e muitos de nós gostam de conversar.”
Inclinei-me para mais perto de Abby, apenas o suficiente para deixar nossos
ombros se tocarem. “Sério?”

Ela olhou para nossos ombros antes de olhar para trás. “E um tópico comum
de fofoca que todos nós compartilhamos é sobre os alunos aqui,
especialmente com os Altos Sangues que temos que estar atentos.”

“Estou com inveja.” Eu deixei escapar uma risada. “Eu realmente quero fazer
deste lugar um lar e me encaixar, mas pedir para você compartilhar tanto
comigo seria apenas um fardo para você.”

“Não seria um fardo de jeito nenhum!” Ela se iluminou como Xyrus durante a
Aurora Constelada. “Oh, por onde eu começo?”

Eu deixei minha mão descansar suavemente em seu braço por um momento


enquanto dava a Abby um sorriso melancólico. “Você é uma salva-vidas, Abby.
Isso foi muito útil.”

Radiante, ela deslizou da minha mesa e se curvou em uma reverência,


segurando suas vestes de batalha brancas como a bainha de um vestido. “Ao
seu serviço, Professor Grey. Por favor” — aqueles olhos cor de mel focaram os
meus com uma atenção feroz — “não hesite em me chamar de novo, ok? Talvez
para um drink na próxima vez?”

Eu andei atrás dela, levando-a em direção à minha porta com um leve toque
na parte inferior de suas costas e um sorriso junto. “Deixe-me acompanhá-la
para fora.”

“É um verdadeiro cavalheiro para alguém que se diz tão pouco inclinado


socialmente,” disse a Conjuradora com um sorriso tímido antes de sair do meu
escritório.

Assim que fechei a porta atrás de Abby e seu cabelo, que ondulava com o vento
que ela obviamente estava conjurando em torno de si mesma, meus ombros
caíram e um fôlego escapou de meus pulmões. A raiva persistente finalmente
se extinguiu, mas eu fiquei me sentindo frio e desapegado.

Virando-me, me deparei com um Regis estupefato, seus olhos confusos me


encarando.

“O quê?” Eu rosnei.

“Quem é você e o que fez com meu proprietário anti-social e tão charmoso
quanto um tronco apodrecido?” Ele perguntou com uma mistura de suspeita e
admiração vazando para minha cabeça.

“Só porque escolho ser discreto, não significa que não posso ser charmoso
quando necessário,” argumentei, afundando de volta na minha cadeira.
Regis me seguiu até meu assento e colocou o focinho na minha mesa. “Você
não está preocupado que a Srta. Boca Solta ali contará a outros professores
tudo sobre a conversa dela com você?”

“Estou contando com isso,” respondi, cansado, inclinando a cabeça para trás.
“Minha história falsa será muito mais verossímil se vier da boca de outra
pessoa.”

“Devo ter medo da sua proficiência fantástica na arte da sedução?”

“Você faz parecer que eu acabei de me vender para ela ou algo assim,” eu
zombei.

“E a maneira como você evitou a última pergunta dela colocando a mão nas
costas dela… você aprendeu isso em um livro ou algo assim? Porque eu
gostaria de ler também,” disse ele, balançando a cabeça.

Eu ignorei meu companheiro enquanto coloquei um pé na mesa, descansando


o salto da minha bota no meio da pilha de pergaminhos.

“Você não deveria estar trabalhando nisso tudo, afinal?” Regis apontou.

“Sim, presumindo que eu tivesse algum interesse em realmente ensinar essas


crianças.” Levantando-me novamente, saí do escritório. “Vamos lá, vamos
fazer algum uso deste centro de treinamento antes do início das aulas.”

Regis cambaleou atrás de mim. “Ooh, uma batalha pela gostosona que desafia
a gravidade?”

“Pare de pensar como um tarado. Ela não é um objeto,” eu retruquei. “E, além
disso, pensei que você tivesse uma queda por Caera.”

“Por que eu preciso gostar de apenas uma?” Regis perguntou sério.

Revirei os olhos enquanto eu caminhava para o painel de controle. “Apenas vá


se alongar ou algo assim, para não culpar a perda numa virilha etérea
distendida.”

Depois de mexer em alguns interruptores, a barreira de proteção ganhou vida


com um zumbido baixo. Em seguida, aumentei a gravidade dentro do anel
tanto quanto o sistema conseguia, reprimindo um sorriso malicioso.

“Vou lhe mostrar uma virilha etérea,” brincou Regis, saltando para a
plataforma e tropeçando imediatamente sob o peso de seu próprio corpo. “Ei,
espere um maldito segundo!”

Eu gargalhei enquanto pulei ao lado dele. A força da gravidade aumentada era


opressiva – talvez sete vezes o normal – mas nada que eu não pudesse lidar
com éter infundido nos meus músculos e ossos.
“Qual é o problema, cachorrinho?” Eu provoquei, começando a pular na planta
do pé enquanto me acostumava com a mudança no ambiente.

Regis soltou um rosnado baixo e andou de um lado para o outro em sua


extremidade da plataforma enquanto ele também tentava se ajustar. “Oh-ho.
Você tem sorte que eu provavelmente deixaria de existir se eu explodisse você
com Destruição agora.”

Segurando um sorriso, comecei a dar socos e chutes no ar, sentindo o peso


extra de meus golpes, então mudei para uma série de movimentos que aprendi
enquanto estudava com Kordri. O movimento minucioso e cuidadoso
necessário para implementar a maioria das habilidades marciais asuran
tornou-se significativamente mais difícil devido ao intenso peso dos meus
membros.

Regis torceu o pescoço com um estalo retumbante e todo o seu corpo


estremeceu de antecipação – ou talvez fosse o esforço de ficar em pé na
gravidade aumentada. “Você está pronto para isso, princesa?”

Concentrando, foquei minha atenção no lobo das sombras, bloqueando o


zumbido sutil do escudo e o som das vozes dos alunos que ocasionalmente
vinham do pátio externo.

As ancas de meu companheiro ficaram tensas e, no instante seguinte, ele foi


arremessado pelo ar como uma flecha de balista, mas eu já tinha dado um
passo para o lado, a palma da minha mão subindo para desviar de sua
mandíbula.

Quando ele passou voando, minha outra mão agarrou uma de suas patas
traseiras. A simples perturbação de seu impulso, combinada com o aumento
da gravidade, foi o suficiente para fazê-lo girar de modo que ele caiu
pesadamente no tatame, caindo de costas e tropeçando dolorosamente nos
escudos.

“Pelo menos poderia ter… ligado o amortecimento de impacto?” Regis bufou


enquanto lutava para ficar de pé.

“Já terminou?” Eu perguntei em um tom de decepção fingida.

As chamas ao redor do corpo de lobo de Regis brilharam, pintando a sala de


aula com respingos de luz roxa. Assim que se pôs de pé novamente, ele se
preparou para outro salto, aparentemente sem ter o que dizer pela primeira
vez.

A tensão de seu corpo foi ainda mais pronunciada em seu segundo ataque,
mas ao invés de se lançar diretamente em mim, ele fintou para frente apenas
alguns metros, esperando que eu me afastasse, então redirecionou seu
ataque.
Eu levantei minhas mãos revestidas de éter, com a intenção de pegar Regis no
ar, mas sua forma mudou e se tornou etérea, e ele desapareceu em meu corpo.
Eu girei, esperando o que se seguiu, mas com meu corpo pesado não fui rápido
o suficiente, e sua mandíbula agarrou minha panturrilha e puxou a perna
debaixo de mim, jogando-me pesadamente no chão.

A cabeça envolta em fogo do lobo das sombras sorriu para mim. “Estamos
empatados, chefe.”

Levantando-me sobre um cotovelo, inspecionei meu companheiro


pensativamente. “Foi muito esperto utilizar sua forma etérea para me enganar
assim.”

Regis estufou o peito. “Eu sou uma arma literal projetada por uma divindade,
pelo bem de Vritra. Você acha que eu—” Regis parou, olhando para mim com
os olhos arregalados.

Eu devolvi seu olhar com um sorriso irônico, uma sobrancelha levantada. “Pelo
bem de Vritra?”

“Ugh, perdão. Um parte do Uto escapou aqui.” Ele se recostou e sorriu


maliciosamente. “Que inclusive gostou muito de te fazer cair de bunda.”

Eu me levantei. “Vamos ver se você consegue fazer isso de novo.”

Continuamos a treinar e disputar até que nossas pernas tremeram com o


esforço e meu núcleo doeu com a quantidade de éter necessária para
fortalecer meu corpo contra a gravidade elevada. Regis estava me rodeando,
ganhando tempo antes de outro ataque. Embora ele estivesse tentando
proteger seus pensamentos, eu sabia que ele estava no fim de suas forças
físicas no momento.

É por isso que eu pensei que ele seria pego desprevenido quando eu usei o
Burst Step pelo ringue de duelo para suas costas, mas antes que suas pernas
pudessem desabar com o fardo adicional, o lobo das sombras desapareceu,
flutuando com segurança em meu corpo enquanto eu batia no chão forte o
suficiente para sacudir toda a plataforma.

‘Temos companhia,’ a voz de Regis soou dentro da minha cabeça. ‘Você cuida
desse cara. Vou tirar uma soneca longa e agradável em seu núcleo de éter.’

Lembre-me de começar a trancar a porta enquanto estivermos aqui, reclamei.

Pulando pra fora do tatame, examinei a sala e vi que um homem estava


descendo lentamente as escadas em minha direção, mancando ligeiramente a
cada degrau. Ele parecia uns dez anos mais velho do que eu, mas algo – talvez
a maneira como ele se comportava, as linhas ligeiramente suaves de seu rosto,
ou a expressão de diversão juvenil que ele tinha – me dizia que ele era mais
jovem do que parecia.

Assim que ele me viu olhar para cima, ele deu um pequeno aceno, que eu não
devolvi imediatamente. Sua mão foi para seu cabelo ruivo, despenteando-o de
forma que parecesse ainda mais desgrenhado pelo vento do que já estava,
mas minha atenção estava na outra mão – ou na falta dela, pois terminava em
um toco em seu cotovelo.

“Olá. Grey, certo?”

“Sim,” eu disse sem fôlego. “Posso te ajudar?”

Ele inclinou a cabeça com curiosidade antes de me dar um sorriso educado.


“Não, não exatamente. Minha sala de aula fica no final do corredor, e eu queria
dar uma passada e me apresentar. Sou Kayden do Sangue Aphelion.”

Eu dei a ele um único aceno de cabeça, o que enviou uma nova onda de suor
escorrendo pelo meu rosto e nariz. Na minha cabeça, Regis disse, ‘Até Uto tinha
ouvido falar dos Aphelions. Altos Sangues, família militar.’

Uma carranca passou por seu rosto por menos de um segundo, mas foi
suavizada tão rapidamente assim que ele mancou em direção ao ringue de
duelo. “Você é tão curto e grosso quanto dizem os rumores, o que é uma
mudança bem-vinda por aqui.”

“Seu tom sugere uma aversão a fofoca, mas parece que você também está
bastante interessado em rumores,” eu respondi com uma sobrancelha
levantada.

“Eu escolho ouvir em vez de participar, mas vou admitir minha pequena
hipocrisia,” disse ele com uma risada, continuando a descer as escadas com
cuidado. “De qualquer forma, consegui pegar seu último movimento e devo
dizer… sua velocidade é quase tão impressionante quanto seu controle de
mana. Mesmo agora, não consigo sentir nem mesmo uma gota de mana
vazando de você.”

Só foi quando ele ultrapassou o limite da plataforma que eu percebi…

“Pessoalmente, não passo tanto tempo quanto eu – oof!”

Como se ele tivesse caído da beira de um penhasco, Kayden desabou, sua


perna ferida cedendo imediatamente ao contato com a plataforma enquanto
seu peso aumentava sete vezes.

Ignorando Regis, que estava gargalhando, pulei para o piso e apertei o controle
para redefinir todas as configurações. O escudo de mana estalou ao
desaparecer, e o Alto Sangue alacryano foi capaz de se sentar em uma posição
estranha.
“Pelos chifres de Vritra, como você estava de pé aqui?” Ele perguntou,
boquiaberto. Então ele soltou uma risada surpreendentemente genuína. “É
claro que o homem que quebrou as correntes de detenção bem na frente do
painel de juízes que tentavam executá-lo treinaria assim.”

“Desculpe,” eu disse, embora no fundo da minha mente eu estivesse me


perguntando quantas pessoas aqui sabiam sobre o julgamento. “Você está
bem?”

“Nada grave,” disse ele com um sorriso. “Eu já estive pior.”

“Eu… não duvido disso,” respondi, olhando para o coto de seu braço.

Após uma breve pausa, Kayden sufocou uma risada.

Minhas sobrancelhas franziram. “Algum problema?”

“Nada, não é nada.” Ele acenou com a mão, ainda sorrindo. “É só que, já vi
muita gente olhar para o que sobrou do meu braço esquerdo, mas você é o
único cuja expressão não se transformou em pena.”

“Quem sou eu para ter pena quando isso poderia ser sua medalha de honra
ou símbolo de sacrifício,” eu disse simplesmente.

A leveza de Kayden desapareceu quando ele olhou para mim como se eu


tivesse acabado de abrir asas antes de se segurar e balançar a cabeça
enquanto murmurava, “Estou muito feliz por ter trazido isso.”

Usando minha camisa para enxugar meu rosto suado, avaliei o homem
enquanto ele se sentava e estendia suas pernas pela beirada da plataforma
de duelo. Ele retirou um pacote branco brilhante de seu artefato dimensional,
que parecia ser uma pulseira de ouro simples em torno de seu pulso restante.

Ele estendeu o pacote com uma indiferença cuidadosa. Quando eu hesitei, ele
me deu um sorriso malicioso. “Não se preocupe, não tenho o hábito de dar
presentes que possam prejudicar o destinatário.”

Eu puxei o presente da sua mão. Era macio ao toque. Eu balancei para que o
pacote se desdobrasse, revelando uma capa branca brilhante com um capuz
forrado de pelo branca. A finalização da costura era em prata sutilmente
brilhante que parecia metálica ao toque.

Um olhar mais atento revelava runas quase invisíveis bordadas no capuz.


“Magia?” Eu perguntei desconfiado.

O homem sorriu. “Pensei que talvez você apreciasse um pouco de anonimato


ao viajar para fora dos terrenos da academia, considerando tudo.”

Esfreguei meus dedos sobre o fio branco sobre branco que formava as runas.
“Algum tipo de feitiço de ocultação?”
Kayden acenou com a cabeça, suas sobrancelhas se contraindo para cima.
“Especificamente, a capa irá ocultá-lo da atenção dos outros, fazendo com que
seus olhos se desviem de seu rosto. Somente quando o capuz estiver
levantado e somente quando eles não olharem muito de perto.” Ele pigarreou
e se mexeu ligeiramente. “Espero não ter interpretado mal a situação…”

Franzindo a testa, olhei para o homem, que estava me observando de perto.


Percebi que estava olhando para as runas enquanto pensava sobre o que seu
presente – e suas palavras – implicavam. “Este é um presente caro,” eu disse,
dobrando a capa de volta. Eu estendi para ele. “Não posso aceitar isso.”

A expressão de Kayden suavizou, mas ele não se moveu para pegar de volta.
“Eu entendo por que você pensa isso, mas não é nada, honestamente. Quer
você decida usá-lo ou jogá-lo fora, faça o que quiser com ele.”

Depois de um momento de hesitação, eu balancei a cabeça, aceitando a capa


mágica. “Você tem meus agradecimentos,” eu disse formalmente, dando ao
outro professor uma pequena reverência.

Kayden dispensou meu gesto antes de sair desajeitadamente da plataforma.


“Foi um prazer conhecê-lo, Grey.” Ele começou a mancar em direção à escada,
então parou e olhou para trás por cima do ombro. “Todos por aqui têm seus
demônios, Grey. A maioria das pessoas não será capaz de ver o seu além dos
delas.”

Sorrindo para si mesmo, o homem subiu delicadamente as escadas e saiu da


minha sala de aula.

‘Cara esquisito,’ observou Regis. ‘Mas ele trouxe presentes, então vou perdoá-
lo.’

“A maioria das pessoas não verá os seus além dos delas,” eu ecoei, me
consolando com essas palavras.

‘Sim, pare de ser tão paranóico. É basicamente isso que venho dizendo a
você,’ retrucou Regis.

Eu olhei para o manto branco refinado. “Quantos dias até o início das aulas?”

‘Sim. Apenas sim,’ disse Regis, lendo meus pensamentos.

“E você tem certeza que quer entrar sozinho?” a mulher perguntou novamente.
Ela era de meia-idade, com um toque de cinza em seu cabelo castanho. Uma
cicatriz de queimadura cobria o lado esquerdo de seu rosto. “Há muitos grupos
procurando—”

“Tenho certeza,” eu disse com um sorriso imóvel.


A balconista finalmente cedeu com um encolher de ombros enquanto marcava
algo no pergaminho à sua frente. “Professor Grey da Academia Central,
ascensão solo. Sua identidade foi verificada. Todas as relíquias e espólios
devem ser registrados em sua saída. Que sua ascensão seja frutífera.”

Afastando-me da cabine, puxei novamente o capuz forrado de pele para


esconder minhas feições e olhei em volta.

Algumas dezenas de ascendentes estavam reunidos em frente ao enorme


portal de ascensão, alinhados atrás de mim ou se preparando para entrar. Eu
examinei os estandartes que mostravam os símbolos de muitos Altos Sangues
e Sangues Nomeados pendurados nas paredes brancas e sufoquei uma risada
quando vi que alguém havia desfigurado o estandarte dos Granbels.

Um grupo de rapazes e moças, não mais velhos do que no final da


adolescência, estava parado por perto, e um deles tentou chamar minha
atenção. Ele estava segurando um artefato que parecia uma caixa preta
simples com um cristal de mana afixado nela.

“Ei, desculpe incomodá-lo,” ele disse, dando um sorriso tímido, “mas você se
importaria de tirar uma foto nossa? É a nossa primeira ascensão sem um
diretor—”

“Não,” eu disse simplesmente, passando pelo grupo surpreso e diretamente


para a luz branca dourada do portal.

Capítulo 346
Faísca Escura

Meus olhos levaram um momento para se ajustar à escuridão repentina


conforme eu saía do portal de ascensão.

Eu respirei fundo com o ar carregado de éter, e parecia a primeira vez que


respirei de verdade em semanas. A tensão desapareceu de meus músculos, e
havia um sacudir ávido vindo do meu núcleo conforme ele reagia ao denso
éter atmosférico.

Eu estava em uma pequena ilha flutuante. O portal havia desaparecido,


deixando para trás apenas uma moldura vazia coberta de cristais roxos
afiados. Dezenas de outras ilhas flutuantes pairavam no centro do que parecia
ser…

Regis soltou um assobio apreciativo. “Uau.”

Bastaram alguns passos para cruzar a ilha em que eu estava. Eu olhei para a
escuridão abaixo antes de olhar para o telhado acima; as paredes curvas, o
piso e o teto dessa estrutura cavernosa eram feitos de enormes cristais roxos.
Estruturas semelhantes pontilhavam as muitas ilhas também, algumas do
tamanho de pequenos arbustos, enquanto outras cresciam como enormes
rochas denteadas.

Era como estar no centro de um geodo, enorme e brilhante.

A forma de lobo das sombras de Regis se aglutinou ao meu lado, olhando para
baixo enquanto ele lambia os lábios. “Imagine quanto éter está armazenado
em todos esses cristais.”

Meus olhos se concentraram em uma torre negra que se erguia de uma ilha no
centro da zona. Fortalecendo minha visão com éter, pude apenas distinguir os
entalhes que cobriam toda a estrutura de três andares. Também era a única
coisa na zona que não continha éter. “O que é aquilo?”

Meu companheiro conseguiu desviar seu olhar faminto dos cristais de éter
para dar uma olhada na torre negra. “Sei lá…, mas conhecendo as Relictombs,
provavelmente vai tentar nos matar.”

“Suposição razoável.” Eu balancei a cabeça em concordância antes de me virar


para o arco cintilante com luz opalescente na extremidade do geodo. “Pelo
menos a saída está à vista.”

“Parece fácil demais,” disse Regis, farejando a borda da plataforma.


“Deveríamos apenas brincar de pular de ilha em ilha até chegarmos ao portal?”
Regis saltou pela lacuna de seis metros até a ilha mais próxima, depois voltou
para provar seu ponto.

“Sinta-se à vontade para dar uma de sapo por conta própria.” Comecei a
mapear os caminhos etéreos até o portal antes de dar uma piscadela para meu
companheiro. “Vejo você do outro lado.”

Regis praguejou quando comecei a usar o God Step através da zona.

Quando eu pisei na próxima ilha, no entanto, os caminhos começaram a


tremeluzir antes de se torcer e derreter em uma névoa difusa. A atmosfera
tremia com uma vibração nauseante.

Repentinamente tonto, cambaleei sobre um dos joelhos.

“O qu—”

O uivo de um vento forte encheu toda a zona. Nuvens de partículas roxas


voaram a partir dos milhares de cristais brilhantes, sendo atraídas para o
obelisco no centro do geodo. Meus instintos tomaram conta e forcei os portões
ao redor do meu núcleo a se fecharem, mas foi inútil; meu reservatório foi
esvaziado, o éter que eu havia coletado desde nossa sessão de treinamento
foi arrancado de mim e puxado para longe na maré vazante de éter.

Uma voz fina e tensa gritou acima do vento uivante.


Meus olhos se arregalaram em horror com a visão de Regis, desmaiado, sua
forma física diminuindo rapidamente conforme o éter que lhe unia era
arrancado. O lobo das sombras se tornou um filhote, depois um fogo-fátuo,
antes de se transformar em uma faísca fraca.

Estendi a mão trêmula enquanto os fios brilhantes de sua forma negra e


violeta desapareciam. Meu punho se fechou assim que a faísca final começou
a se dispersar, e sua forma incorpórea flutuou para dentro de mim, sua mente
escura e fria.

O vento diminuiu, bem como a vibração horrível, embora a sensação


permanecesse atrás dos meus olhos e no fundo do meu núcleo dolorido. O
coice causou espasmos em meu peito e estômago, mas resisti à vontade de
vomitar e, em vez disso, me forcei a ficar de pé para descobrir o que diabos
tinha acontecido.

Cada centímetro do meu corpo doía enquanto eu me movia. Dragões


precisavam de éter para sobreviver; seus corpos se consumiam se não
tivessem o suficiente – e minha forma física era basicamente a de um asura
agora. Eu não tinha certeza do quanto eu possuía, mas parecia que até meu
sangue havia secado e virado areia. E não existia uma única partícula de éter
restante na atmosfera.

Regis estava em silêncio, sua minúscula centelha flutuando perto do meu


núcleo vazio.

A zona caiu na escuridão, exceto pelo obelisco. Agora contendo cada partícula
do éter dentro do geodo – incluindo o meu – o obelisco brilhava como uma luz
de néon, queimando com uma força impossível. Eu estava atordoado.

Mesmo quando minha cansada e dolorida mente tinha problemas para se


concentrar, meus olhos estavam fixos na torre brilhante como se fosse um
oásis no meio de um deserto.

Mas o obelisco continuava a ficar ainda mais brilhante.

Amaldiçoei, desviando meu olhar e examinando as outras ilhas. A maioria


delas possuía saliências de cristal, mas a minha não. Se os cristais estiveram
todos impregnados de éter quando chegamos, fazia sentido que—

Amaldiçoei novamente. Os seis metros até a ilha mais próxima pareciam muito
mais distantes agora que eu não poderia fortalecer meu corpo com magia, mas
não havia outra escolha a não ser pular.

Recuando até posicionar meu calcanhar contra a moldura do portal silencioso,


reuni todas as minhas forças antes de explodir em uma corrida com carga
máxima. Eu bati na borda da ilha a toda velocidade e dei o pontapé inicial, me
lançando no ar em direção à massa de terra vizinha, mas meus músculos
enfraquecidos pela reação resistiram, e eu soube no momento em que pulei
que não seria o suficiente.

Meu peito bateu no penhasco de pedra com um estalo. Lutei por algo para me
agarrar entre a pedra nua e a sujeira solta enquanto deslizava para o lado, mas
falhei. Assim que minha metade inferior foi lançada ao ar livre, minha mão
esquerda fechou-se em torno de algo duro e afiado: um caco de cristal
parecido com uma faca crescendo da terra.

Fiquei pendurado assim pelo espaço de uma única respiração antes que o
obelisco brilhasse. Uma esfera de fogo etérico irrompeu dela, engolfando
rapidamente as ilhas mais próximas do centro. Um grito de dor saiu da minha
garganta enquanto eu me erguia – o cristal cortando profundamente minha
palma – até eu poder lançar uma perna para o lado da ilha.

Por puro instinto, me joguei atrás do monte de cristal e me curvei como uma
bola, minhas costas pressionadas contra ele pouco antes da explosão me
engolfar.

Em vez de queimar minha carne, o éter foi atraído para o monte de cristal nas
minhas costas. A explosão continuou a se expandir passando por mim, mas a
pequena área logo atrás da barreira estava protegida.

Pude observar com relativa segurança enquanto a esfera de luz em expansão


se chocava contra as paredes distantes, infundindo-lhes éter e iluminando
toda a zona novamente.

Sem nenhuma maneira de saber quanto tempo tínhamos, lutei para ficar de
pé, cada respiração um suspiro de dor, e pressionei minha mão cheia de
sangue no cristal do tamanho de uma rocha. Meu núcleo devorou avidamente
o éter armazenado dentro, e finalmente fui capaz de respirar. Não foi muito,
mas o suficiente para curar minha mão e fortalecer meu corpo para evitar o
ricochete.

Lutei contra o desejo de verificar Regis e me concentrei em sair da zona. Meu


estômago se revirou e agitou enquanto eu procurava por estradas etéreas.

Não havia caminho para o portal de saída. Pelo menos, não havia caminho que
eu pudesse seguir. Os pontos ramificados e interconectados – que geralmente
formavam uma espécie de mapa rodoviário de um espaço para o outro –
estavam emaranhados em um nó complicado.

Para piorar as coisas, eu já podia sentir a vibração nauseante se acumulando


novamente, tremendo através de cada partícula de éter na zona
simultaneamente.

Sem outro recurso, me joguei para trás do escudo de cristal e torci para que
ele me protegesse novamente. Quando o obelisco foi ativado, todo o éter em
meu núcleo foi arrancado pela segunda vez. Tudo o que consegui manter foi
uma fina camada que envolvi ao redor de Regis para mantê-lo seguro.

A dor era imensurável. Enquanto meus olhos rolavam para trás em minha
cabeça e minha boca se abria em um grito silencioso, concentrei cada grama
de minha força restante em permanecer consciente.

A segunda explosão passou por mim, uma onda visível de fogo roxo escuro que
lavou a série de ilhas, iluminando grupos de cristais de éter um por um até
atingir as paredes distantes. A caverna explodiu em luz novamente.

Eu não posso morrer assim. Tem que haver algo que eu possa fazer, eu declarei
pra mim mesmo sobre o som de meus dentes rangendo uns contra os outros.
Minha mente fraca lutou para ordenar tudo que eu sabia e o que eu poderia
usar.

O obelisco na ilha central absorvia todo o éter da zona e o utilizava em algum


tipo de ataque explosivo. Não sabia o que aconteceria se fosse atingido pela
explosão, mas sem éter para me defender, tinha certeza de que não seria nada
legal. Além de qualquer efeito destrutivo que tenha, a explosão também
redistribuía o éter por toda a zona.

O tempo entre a primeira onda e a segunda haviam sido diferentes por vários
segundos, então parecia provável que houvesse alguma aleatoriedade
envolvida. Infelizmente, isso significava que eu não podia confiar inteiramente
no tempo para me mover através da zona.

Mas as protrusões de cristal nas ilhas agiam como escudos devido à


reabsorção de parte do éter. Era uma pena que elas também não protegessem
contra a parte na qual meu núcleo era drenado repetidamente. Se eu não
conseguisse encontrar uma maneira de contornar isso, o ricochete me mataria
antes que qualquer outra coisa tivesse a chance.

Quando minhas células cerebrais e o sangue em minhas veias começaram a


tremer novamente, cerrei os dentes e me preparei para o pior. Desta vez, a
onda chegou pelo menos quinze segundos mais cedo, e eu ainda não tinha
absorvido nenhum éter da protuberância onde eu me abrigava.

Desta vez, porém, foi diferente. A luz ametista brincando dentro dos cristais
claros esmaeceu quando as partículas de éter foram removidas, mas eu não
senti nada. O minúsculo pedaço de éter que eu reti, enrolado protetoramente
em Regis, tremeu com a vibração, mas não foi puxado para longe de mim.

O quebra-cabeça de repente fez sentido.

Sabendo que precisaria me mover rapidamente, me levantei sobre um joelho,


certificando-me de que meu corpo ainda estava totalmente bloqueado da
explosão que veio logo depois. Eu já estava absorvendo o éter da barreira de
cristal antes que o resto da explosão atingisse as paredes externas. Depois de
absorver todo o reservatório, fortaleci meu corpo e corri para a borda da ilha,
limpando a lacuna de sete metros e meio com espaço de sobra.

Eu mal tive tempo de mergulhar atrás de um curvo monte de cristais


transparentes antes que as vibrações de advertência estremecessem em meu
núcleo novamente. Quando as pedras nas minhas costas escureceram e as
paredes liberaram fluxos de partículas ametistas, meu próprio éter deu um
leve puxão, mas permaneceu seguro em meu núcleo.

Uma respiração trêmula escapou dos meus lábios.

“É isso…” Eu arfei em alívio.

Ao me esconder atrás de pedras ainda cheias de éter enquanto o obelisco o


atraia e, em seguida, absorvendo-o para mim mesmo após a explosão
seguinte, eu poderia pular de ilha em ilha enquanto recarregava meu núcleo e
evitava a armadilha dos djinn. A única variável tornando se o tempo.

Antes de me dirigir para a próxima ilha flutuante, voltei minha atenção para
Regis. Custou um quarto da minha reserva de éter, imbuída diretamente na
minúscula faísca, para trazer de volta quaisquer sinais de vida. Uma confusão
lenta vazou dele antes de rapidamente se transformar em pânico enquanto
voava para dentro do meu núcleo, consumindo o resto das minhas reservas
com pressa.

Não tome muito! Eu avisei rapidamente. Preciso de tudo que puder se


quisermos sair daqui.

Regis não respondeu. Em vez disso, senti um medo frio e entorpecido… algo
que nunca senti vindo dele antes.

Você está bem agora? Eu perguntei timidamente. Ele não tinha estado tão
fraco desde que se formou do aclorito dado a mim por Wren Kain.

‘Como foi que… eu quase…’ Regis deixou escapar um suspiro. ‘Isso é ruim pra
cacete.’

Nós vamos superar isso, eu assegurei a ele. Apenas fique perto do meu núcleo
e concentre-se na recuperação quando eu absorver mais éter.

Outra explosão passou. Esta tinha se passado quarenta segundos depois da


anterior e dez segundos depois do processo de absorção.

E Regis?

‘O quê?’

Que bom que você não está morto, pensei de forma inexpressiva, suprimindo
o medo e a preocupação que me atormentaram quando ele quase se
desintegrou.
Meu companheiro soltou um gemido. ‘Não fique todo emocionado comigo
agora.’

Eu só estava preocupado que todo o éter que lhe dei teria sido desperdiçado se
você tivesse morrido lá atrás, eu menti.

‘Ah, aí está meu adorável mestre,’ disse Regis, sua voz fraca ainda
transbordando sarcasmo.

Enquanto eu estava verificando Regis, mais três explosões haviam disparado.


O intervalo mais curto entre a explosão e a absorção seguinte foi de sete
segundos, o que não deixou muito tempo para me mover por aí. Na próxima
vez que uma onda de choque emanou do obelisco, eu rapidamente drenei o
escudo de cristal e saltei para a ilha mais próxima. Era um pequeno pedaço de
pedra estéril sem protuberâncias, então segui em frente imediatamente,
deslizando para a cobertura por dez segundos inteiros antes de todo o éter
ser sugado novamente.

Eu esperei, recuperando o fôlego e permitindo que outra fase passasse. O


pináculo negro como azeviche brilhou em ametista enquanto a energia
aumentava antes de ser liberada novamente. Envolvendo minha mão em uma
grossa barreira protetora, a estendi na direção da explosão que se aproximava.

Agora que eu tinha uma melhor compreensão da minha situação geral nesta
zona, eu queria testar a força da rajada enquanto tentava absorver o éter
diretamente da explosão. A parede de luz em chamas queimou meu éter
protetor, depois minha mão junto com ele, não deixando para trás nada além
de um coto cauterizado.

‘Isso acabou bem,’ observou Regis.

“O sarcasmo… eu não sinto falta,” eu sibilei sem fôlego. “Mão. Agora.”

O fogo-fátuo desceu pelo meu braço até o coto queimado do meu pulso, e eu
liberei quase todo o éter do meu núcleo. A energia correu pelos meus canais
de éter, condensados ainda mais por Regis, e começou a reconstruir minha
mão, tricotando carne, sangue e osso com as partículas roxas.

A destruição do meu membro me fez perceber que, em algum momento, parei


de temer as Relictombs. Cheguei a pensar nisso como um campo de
treinamento pessoal, como o castelo voador ou Epheotus, e esqueci que foi
projetado para me matar; sua dificuldade sempre aumentaria para
corresponder à minha força.

Quando recuperei minha mão, quase todas as minhas escassas reservas de


éter haviam se esgotado.

‘Já disse que você é masoquista?’


“Uma vez ou outra.” Eu reuni um sorriso fraco conforme me inclinava contra a
barreira brilhante e fria.

Quando a vibração voltou, sinalizando o início de outra fase, entrei em


movimento.

Várias ilhas passaram rapidamente, cada uma da mesma maneira, e quando


cheguei na metade do caminho para o portal de saída, já me sentia melhor.
Meu núcleo estava rico em éter absorvido e meu corpo estava curado. Meu
companheiro não teve tanta sorte.

‘Isso é o pior’, queixou-se ele de dentro de mim. Embora eu tivesse absorvido


éter mais do que suficiente para compartilhar, era impossível para Regis
utilizá-lo tão rapidamente. Depois de experimentar algo semelhante à atrofia
muscular, ele precisaria gastar um tempo reconstruindo sua força.

“Apenas fique aí e absorva o que puder,” eu disse enquanto também contava


o tempo desde que o obelisco havia absorvido o éter da zona. Passou-se mais
de um minuto, mas a espiral negra ainda estava ficando mais brilhante,
crescendo em direção à explosão inevitável.

Finalmente, explodiu com o som de mil canhões. Esperei que a onda de fogo
etéreo passasse, então rapidamente tirei a energia presa dentro da minha
barreira protetora e me preparei para pular para a próxima ilha.

O obelisco explodiu uma segunda vez.

Meu trajeto me levou na direção da supernova que se aproximava, então por


um momento fiquei suspenso no ar, observando o incêndio ultrapassar uma
ilha após a outra enquanto se expandia em minha direção.

Eu bati no chão encolhido, atingindo com força em um pequeno aglomerado


de cristais apenas grande o suficiente para cobrir todo o meu corpo. Quando
a explosão atingiu os cristais, já queimando com uma luz roxa, eles tremeram
e começaram a se estilhaçar com sons de rachaduras agudas.

Sem me preocupar em absorver o éter da protuberância em ruínas, me joguei


na próxima ilha flutuante no momento em que o obelisco explodiu pela
terceira vez.

O escudo de cristal nesta ilha era o maior que eu tinha visto até então e se
curvava para dentro criando uma pequena caverna. Enquanto eu me arrastava
para a depressão rasa, um barulho como vidro se quebrando encheu a zona
em rajadas curtas.

As barreiras de cristal, eu percebi assim que a onda de fogo etéreo passou


rugindo pelo meu abrigo. Pressionando as duas mãos contra as paredes
brilhantes, comecei a absorver o éter o mais rápido que pude, drenando os
cristais para evitar que se partissem.
Ao meu redor, aglomerados de cristais violentamente brilhantes se
estilhaçaram, espalhando pequenos fragmentos nas outras ilhas.

Olhando ao redor da borda do meu escudo, vi que a única barreira protetora


sobrevivente era aquela atrás da qual havia me escondido. Eu rapidamente
tracei um caminho para o portal de saída, mas era muito longe para chegar
antes da próxima explosão.

Usando a maior parte do meu éter armazenado para ativar o Burst Step, me
impulsionei por várias ilhas.

‘Uh, esse é o caminho errado!’ Regis apontou enquanto corríamos e saltávamos


em direção à ilha central e ao obelisco.

Sem tempo ou energia mental para colocar meu plano em palavras, tentei
projetar a ideia diretamente na mente de Regis.

‘Você… tem certeza disso?’ Regis perguntou.

“Não,” eu grunhi quando pousamos na ilha central, a torre de três andares


erguendo-se bem no alto. “Mas não pode ser pior do que nadar na lava, certo?”

O obelisco estava escuro e vazio, mas não acho que eu tinha muito tempo
antes de a próxima onda começar. Correndo em sua direção, pressionei
minhas mãos nas laterais lisas. Tinha uma textura vítrea e era fria ao toque.

Eu esperei. Os pensamentos correram em uma confusão pela minha mente. Se


isso falhasse, provavelmente eu morreria.

Quando a vibração começou, meus olhos se fecharam e meus pulmões se


fecharam em meu peito. Era muito mais intenso perto do obelisco. Eu me
preparei para o coice.

Ter meu núcleo súbita e forçosamente drenado pela terceira vez em trinta
minutos fez minhas pernas tremerem e minhas palmas suarem. Eu respirei
fundo, tentando forçar meus pulmões a funcionarem novamente, mas parecia
que um urso titã estava sentado no meu peito.

Comecei a absorver o éter da torre antes mesmo de tê-lo completamente


tirado de mim. Eu precisava utilizar cada segundo possível antes da próxima
explosão etérea.

O fluxo compensatório de éter me manteve de pé, apesar da dor do ricochete.


Eu suguei o edifício de éter dentro do obelisco – como um homem meio
afogado em busca de ar. Minhas mãos já estavam pressionadas contra a pedra
que esquentava rapidamente, mas eu me inclinei para frente e também
descansei minha testa contra ela, absorvendo a energia que crescia o mais
rápido que pude.
O éter era puro. Muito mais do que qualquer fonte que eu tinha encontrado
antes. Era como respirar oxigênio puro; minha cabeça girava com o poder
disso, queimando como uma fogueira em meu plexo solar.

Meu núcleo de éter sequer conseguia condensá-lo ou refiná-lo mais um pouco.


Em vez disso, o éter purificado estava raspando as impurezas restantes do meu
núcleo e meu peito começou a doer.

Enquanto meu núcleo se enchia até a borda, continuei a extrair éter da torre –
eu não tinha escolha. Se parasse, ela explodiria e me mataria – mas parecia
que eu estava tentando beber o oceano. Meu núcleo estava tão cheio que
começou a chacoalhar e tremer. Um raio de dor radiante disparou e eu senti o
gosto de bile no fundo da minha garganta.

A luz do obelisco ficou cada vez mais forte através de minhas pálpebras
fechadas. Eu nem ao menos tinha certeza de quanto tempo havia se passado.

Tentei expelir a maior parte do éter do meu núcleo, assim como fiz quando
comecei a traçar minhas passagens do éter, mas quando abri os portões em
torno do meu núcleo, os fluxos ainda correndo de todo o meu corpo
sobrepujaram minha tentativa de empurrar para fora, criando um refluxo que
causou uma inundação descontrolada de éter purificado que eu não conseguia
parar.

‘Estou me afogando aqui!’ Regis gritou, sua forma de fogo-fátuo totalmente


inundada com éter.

Flashes de luz difusos perfuraram minhas pálpebras. Afastei meu rosto do


obelisco e abri os olhos; o pináculo tremulou, lutando para liberar a expulsão
pretendida de energia destrutiva, mas sem força para fazê-lo. Eu estava agindo
como uma válvula de escape, dando ao éter uma saída que impedia a pressão
de atingir o nível necessário.

Houve um estalo retumbante no meu esterno.

Olhando para dentro, vi uma fissura escura aparecer na superfície do meu


núcleo de éter.

Minha visão turvou. Fogos de artifício explodiram atrás dos meus olhos. Uma
lâmina branca e quente de dor cortou através de mim.

Não.

Uma segunda rachadura se ramificou na primeira, estremecendo como um


relâmpago em câmera lenta ao redor da circunferência da minha esfera, quase
quebrando-a em duas.

Não!
Respirando irregularmente, dobrei cada grama de minha formidável vontade
na tarefa de moldar o éter à minha vontade. Com outro lugar para ir, ele parou
de transbordar para o meu núcleo enfraquecido, e eu relaxei em um equilíbrio
delicado entre os esforços contínuos do obelisco para explodir e minha
absorção inescapável e reforma do éter purificado.

Apesar da natureza precária da minha posição, um sorriso se formou nos


cantos dos meus lábios ensanguentados.

Regis pairou dentro do meu núcleo, me observando trabalhar. ‘Nem a pau.’

“Sim,” eu bufei, meu sorriso se alargando mais. “Definitivamente melhor do


que tomar banho de lava.”

Capítulo 347
Um Passeio com Deuses

ALDIR

Um mar de névoa se movia no ritmo inconsciente da terra e do ar, rodopiando


ao redor da base da montanha e sob a ponte multicolorida que guardava o
Castelo Indrath. Rios largos e brancos fluíam mais longe, longe das correntes
tumultuadas perto dos penhascos de pedra.

Era quase como se alguém pudesse navegar no rio selvagem de nuvens para
longe do castelo Indrath e para os confins de Epheotus, onde a política e as
intrigas da guerra eram uma sombra distante e sem sentido.

Eu havia carregado o conhecimento da sobrevivência de Arthur Leywin por


vários dias, mas a compreensão do que fazer com isso me faltava. Como
soldado, eu tinha a obrigação de informar ao meu senhor imediatamente, e
ainda assim…

Meus dedos traçaram a história esculpida na parede onde parei para pensar.
Contava a história de um antigo príncipe Indrath e como ele desafiou Geolus,
a montanha viva. Centenas de quilômetros foram dilacerados pela ferocidade
de sua batalha, mas no final, Arkanus Indrath partiu Geolus quase em dois, e
a montanha ficou imóvel.

Eras depois, os descendentes de Akranus construíram sua casa nas costas da


montanha. Como um sinal de respeito, eles proíbem o uso de mana ao escalar
ou descer Geolus, uma tradição que permaneceu até os dias de hoje.

Um fio de mana de terra escorria das runas e ao longo de meus dedos


estendidos, transmitindo-me a essência impassível da rocha antiga. Minha
mente se aquietou enquanto meu espírito se acalmava. Essa história era uma
das minhas favoritas; transmitia a passividade da rocha e da pedra, permitindo
um pensamento mais racional.
“Eu imaginei que poderia te encontrar aqui, velho amigo,” a voz de Windsom
veio do corredor. “Sua mente ainda está atormentada por dúvidas?”

“Não,” eu respondi, virando um pouco para ver o dragão que se aproximava.


Ele usava seu uniforme como sempre, o que denotava sua posição como um
servo de Lorde Indrath. O tecido azul meia-noite era bordado com fios de ouro
nos punhos, ombros e gola, e uma corda de ouro trançado pendia de seu
ombro direito até o botão do meio de sua jaqueta. Eu tinha me permitido mais
conforto, vestindo um manto de treinamento cinza simples amarrado com um
cordão de seda.

Seu olhar pousou em mim com o peso do céu noturno. “Quando falamos pela
última vez…”

Ele deixou o resto sem dizer, mas nós dois entendemos bem o suficiente. Eu
havia expressado preocupação que nossas ações tivessem levado a mais
mortes de pessoas de Dicathen do que as de Agrona já tiveram ou
provavelmente iriam ter, um momento de fraqueza que agora me arrependi.

“Não carreguei bem o fardo das minhas ações, mas a distância amplia a
perspectiva de uma pessoa,” respondi.

Windsom olhou para a história na parede. “São palavras de Aldir ou de


Geolus?”

“Eu sou um guerreiro,” eu respondi simplesmente. “Minha mente está cheia de


táticas e batalhas, e às vezes requer calma.” Afastando-me da parede,
gesticulei para o corredor. “Caminha comigo? Estou gostando do castelo esta
manhã.”

Windsom acenou com a cabeça e caminhou ao meu lado, as mãos cruzadas


atrás das costas, os olhos fixos à frente. “Estou feliz que você aceitou a
necessidade do que foi feito. Pelo menos sua parte está desempenhada, por
enquanto.”

Demos um passo para o lado quando dois guardas blindados passaram


marchando. Eles pararam para fazer uma reverência profunda antes de
continuar a patrulha. “É por isso que você foi tão rápido em se voluntariar para
liderar o ataque? Para acabar com o seu papel de guia para os menores, com
o qual você sofreu por tanto tempo?”

Windsom endireitou seu uniforme. “Farei o que Lorde Indrath ordena, agora e
sempre. Mas a verdade é que foi fácil para você, velho amigo. Os menores
tornaram-se mais enfadonhos a cada dia. Pelo menos o menino, Arthur, era
interessante. O resto são apenas vaga-lumes.”

Eu não tinha certeza se o dragão falava por ignorância ou se ele estava me


testando com sua sugestão de que minha tarefa tinha sido de alguma forma
“fácil.” Era possível que ele estivesse tentando me irritar para que eu pudesse
revelar algum ressentimento oculto. Eu deixei suas palavras sem resposta.

“A situação em Dicathen é recuperável?” Eu perguntei.

“Eles não aceitaram nossa versão dos eventos tão prontamente quanto os
asuras,” ele respondeu, seu tom acusatório. “Menores são desconfiados por
natureza e anseiam por esperança acima de tudo, mesmo que isso signifique
abandonar a lógica.”

Eu balancei a cabeça solenemente quando viramos uma esquina. À nossa


direita, uma sala de treinamento estava aberta para o corredor, separada
apenas por uma série de colunas esculpidas na forma de dragões serpentinos.
Quatro alunos praticavam uma série coordenada de movimentos e golpes,
cada um em uníssono quase perfeito com os outros.

Parei para assistir por um momento. Eu testemunhei mil – talvez até dez mil –
exibições desse tipo em minha vida, mas agora não pude deixar de ver isso
como muito mais do que a lenta perfeição da forma, velocidade e entrega que
ensinamos aos nossos jovens. Com cada ataque e bloqueio praticado, eles
aprendiam um golpe com a intenção de desarmar ou matar um oponente. Se
os asuras continuassem em seu caminho atual, esses jovens guerreiros teriam
motivos para usá-los em breve.

“Taci parece forte,” Windsom comentou, seus olhos em um panteão jovem e


alto.

A cabeça do menino tinha sido raspada, como era a tradição entre a classe
lutadora dos panteões. Seus olhos, antes castanhos – dos quais havia apenas
dois, uma raridade entre os panteões – escureceram e se tornaram negros
como um besouro.

Taci, o único panteão entre os que treinavam, estava na adolescência, mas o


tempo gasto treinando no reino do éter – um privilégio, especialmente para
aqueles que não eram do clã Indrath – o havia deixado mais intenso e maduro
do que sua idade poderia sugerir.

Ficou claro ao vê-lo treinar que ele não estava em busca de exercícios físicos
ou mentais. Não, para Taci, tratava-se de dominar a arte da morte. Eu quase
podia ver a imagem que ele tinha em sua mente: um inimigo quebrando a cada
soco e chute, um exército caindo diante dele.

Eu entendi o que ele sentia, porque eu tinha sido muito parecido, há muito
tempo atrás.

Os jovens guerreiros terminaram seu exercício e pararam para dar a Windsom


e a mim uma reverência profunda. Enquanto os outros começaram a se
preparar para continuar o treinamento, Taci correu até nós e curvou-se
novamente.
“Mestre Windsom. Mestre Aldir. Por favor, aceitem minha gratidão novamente
por me permitirem treinar no Castelo Indrath,” ele disse em um tom seco e
sério.

“Kordri viu uma grande promessa em você,” Windsom respondeu. “Não o


decepcione, Taci.”

O panteão jovem e feroz curvou-se mais uma vez e correu de volta para seu
parceiro de treinamento.

“Se ele continuar como tem sido nos últimos anos, ele pode ser o próximo
portador da técnica Devoradora de Mundos,” comentou Windsom.

“Eu tinha mais de duzentos anos antes de ser escolhido,” apontei. “Se ele fosse
escolhido, ainda demoraria muitos anos.”

Por dentro, porém, não pude deixar de me perguntar: quando os anciões


inevitavelmente me pedissem para passar a técnica para outro guerreiro, eu
faria isso? Eu poderia dar este fardo a outro membro do meu clã, sabendo que
um dia eles podem ser forçados a usá-la?

Deixando Taci e os outros para trás, continuamos em nosso passeio lento pelo
interior do castelo. Caminhamos em um silêncio confortável por um minuto
antes de Windsom falar novamente.

“Por que você acha que ele escolheu usar desta vez? Mesmo com os” —
Windsom olhou ao redor do corredor, certificando-se de que estávamos
sozinhos – “djinn, Lorde Indrath nunca considerou usar essa técnica.”

“Seus ouvidos estão mais perto da boca de nosso senhor do que os meus,” eu
apontei. “Mas não vejo razão para termos precisado dela. Os djinn eram
pacifistas. Eles não possuíam um exército e tinham pouca magia de combate.
Aquilo foi um abate, não uma guerra.”

“Foi uma guerra,” ele rebateu, me observando com o canto do olho. “Nós
simplesmente atacamos preventivamente.”

Havia poucos, mesmo entre os asuras, que realmente entendiam o que havia
acontecido com os djinn. A maioria dos asuras nunca olhou além de Epheotus
e não se importava com os menores. Aqueles que se preocupavam receberam
uma mentira muito convincente. Aqueles que viram através da mentira e se
importaram, nós lidamos com eles.

“Nosso senhor fez o que achou que precisava ser feito, tanto naquela época
quanto agora,” eu me acobertei.

Windsom riu. “E você diz que não tem cabeça para política. Você é tão
cuidadoso com suas palavras quanto qualquer bajulador.”
“Não há necessidade de cautela quando palavras são compartilhadas entre
velhos amigos, não é?” Eu perguntei, parando para refletir sobre uma tapeçaria
que pendia do chão ao teto. “Veja esta imagem, por exemplo.”

A tapeçaria retratava uma jovem Kezzess Indrath no conselho com seu melhor
amigo, Mordain, um membro da raça fênix. Uma placa dourada embaixo estava
gravada com o título: “Deixe Descansar.”

“Mesmo após a formação dos Oito Grandes, os dragões e a raça da fênix


carregavam sua animosidade ancestral abertamente, mas Kezzess e Mordain
falavam verdadeiramente um com o outro, cada um abrindo os olhos do outro
para as atrocidades de sua guerra sem fim.”

Windsom parou ao meu lado e estava passando os dedos pelo queixo,


pensativo. “E nessa comparação, quem sou eu?”

Eu fiz uma careta para a tapeçaria. “Eu não quis sugerir—”

“Porque, é claro,” Windsom disse casualmente, “Mordain mais tarde discordou


de nosso senhor sobre a questão dos djinn, não foi? Como príncipe do Clã
Asclépio, ele ameaçou revelar as ações do Senhor Indrath antes de
desaparecer de Epheotus.”

Dos poucos que sabiam sobre o extermínio dos djinn, menos ainda sabiam que
Mordain e Kezzess haviam se desentendido. A discussão deles foi mantida em
segredo para que nenhum asura pudesse suspeitar de que Lorde Indrath
desempenhou um papel no desaparecimento de Mordain. Mais tarde, circulou
o boato de que o Príncipe Perdido, como as pessoas começaram a chamá-lo,
deixou Epheotus para se juntar a Agrona.

Era uma parábola quase perfeita, se eu quisesse comunicar tal coisa a


Windsom. Mas eu não fiz isso.

“Foi apenas um acaso que nos trouxe a esta tapeçaria, velho amigo, e minha
mente não estava na história mais ampla entre esses dois.” Eu descansei a
mão no ombro de Windsom. “Eu não sou Mordain e você não é Indrath.”

“Claro que não,” Windsom disse em resposta, virando-se para começar a andar
novamente. “Você me perguntou sobre a situação em Dicathen, mas minha
resposta foi irreverente. A verdade é que eles não têm mais grandes líderes ou
magos entre eles. A menos que eu esteja errado, vai haver guerra contra o Clã
Vritra e seus vira-latas.”

Viramos por um curto corredor e saímos para um terraço aberto com vista para
a ponte multicolorida. Uma brisa constante ia contra as paredes do castelo.
“Esse é o meu medo também.”

“É uma pena,” Windsom continuou. “Tanto trabalho desperdiçado…, mas


também, sempre achei que dar a eles aqueles artefatos era uma má ideia.”
E ainda assim, você os entregou e ensinou os menores a exercerem seu poder,
pensei, mas guardei isso para mim.

“Os cidadãos de Dicathen ficaram preguiçosos,” continuou ele, desatento.


“Com um mago de núcleo branco com um contrato de alma para protegê-los,
as famílias reais nunca precisaram se defender, e sua força mágica vacilou.
Quanto aos magos que se beneficiaram com os artefatos…” Windsom zombou
irritado. “Eles nunca aprenderam a ser fortes. Eles se tornaram fortes. Não é a
mesma coisa.”

Um nadador do céu ergueu-se das nuvens, suas escamas iridescentes


brilhando à luz do sol. O longo corpo semelhante a um peixe era sustentado
por asas triangulares que se dobravam e se desdobravam para navegar nas
correntes de ar. Observei enquanto a besta de mana deslizava ao longo do
topo das nuvens por um momento antes de dobrar as asas para os lados e
mergulhar invisivelmente de volta às profundezas.

Os olhos de Windsom permaneceram em mim, sem se importar com a vida


selvagem.

“Você visitaria Lorde Indrath comigo?” Eu perguntei, finalmente chegando a


uma decisão sobre o garoto Leywin.

Eu não podia ter certeza se era enervante ou reconfortante que Windsom não
mostrasse surpresa com minha pergunta, respondendo apenas, “Claro, Aldir.”

Não fomos para a sala do trono. Em vez disso, entramos para as profundezas
do castelo. Os corredores esculpidos e cheios de histórias deram lugar a túneis
naturais à medida que descíamos. Musgo luminescente enchia os rochedos e
ficava pendurado, amontoado no telhado, e em vários lugares haviam fontes
naturais que mandavam riachos de água límpida escorrendo pelas laterais dos
túneis.

Não havia esculturas aqui, nem tapeçarias ou pinturas. Esses túneis, as veias
da montanha, foram deixados intocados por uma dúzia de gerações de asura.

A mana da Terra pesava no ar e só ficava mais pesada à medida que


avançávamos para baixo. Ela se agarrava a nós enquanto nos movíamos, como
lama grudada em nossas botas. Os asura mais fracos achariam essas
passagens desconfortáveis para navegar enquanto a mana os empurrava para
baixo, e os menores desmoronariam rapidamente com a força dela.

Passamos por vários guardas na forma de golens de terra conjurados, mas eles
não nos incomodaram. Acima, em uma sala de guarda mais confortável, os
dragões que os controlavam nos reconheceram e nos deixaram passar.

O túnel terminou em uma parede desabada. Pedra quebrada entremeada com


raízes grossas barrava o caminho. Ou parecia assim, pelo menos.
Eu atravessei a ilusão primeiro.

E eu saí em uma pequena caverna. Um espesso tapete de musgo cobria o chão,


enquanto joias brilhavam como estrelas no teto, refletindo a luz da piscina
brilhante que ocupava a maior parte da caverna.

Lorde Indrath estava sentado imóvel no centro da piscina, com as mãos


apoiadas nos joelhos, os olhos fechados. Ele não tinha mudado durante toda
a minha vida. Seu cabelo cor de creme colava-se úmido à cabeça, enquanto
sua forma nada intimidante gotejava com a condensação da piscina.

Windsom e eu ficamos de lado e esperamos.

Lorde Indrath gostava de expressar seu descontentamento de maneiras sutis.


Por exemplo, ele era conhecido por deixar seus conselheiros fora das reuniões
quando estava descontente com eles, ou por pedir aos enviados de outros clãs
que esperassem dias – ou até semanas – se ele discordasse do senhor do clã.

Depois de várias horas, Lorde Indrath finalmente se mexeu. O brilho azul


refletiu em seus olhos roxos, dando-lhes uma cor anil anormal. A simples
mudança em seu olhar transformou seu rosto, e eu tive que resistir à vontade
de recuar.

De pé, o Lorde dos Dragões saiu da piscina e acenou com a mão, convocando
um manto branco.

“Windsom, Aldir. Obrigado por esperarem.”

Cada um de nós se curvou, permanecendo curvado até que Lorde Indrath


falasse novamente.

“Você tem algo em mente, Aldir,” ele disse facilmente, mudando de posição
para que suas mãos ficassem cruzadas atrás das costas. Ele sorriu suavemente,
mas seus olhos eram duros e afiados como obsidiana. “Você veio me dizer o
que é.”

“Sim, meu senhor,” respondi, abrindo meus dois olhos inferiores para
encontrar os dele, o que era um sinal de respeito esperado. “Tenho notícias
que podem afetar nosso curso na guerra.”

Eu podia sentir o olhar de Windsom queimando o lado da minha cabeça, mas


mantive meus olhos em nosso senhor. Ele ficou contemplativo por um
momento, então deu outro aceno com a mão.

A caverna desapareceu ao nosso redor. Em vez disso, estávamos em um solar


régio: um dos aposentos privados de Lorde Indrath. “Sente-se,” ele ordenou
simplesmente.

Afundando na almofada grossa de uma poltrona de cor púrpura real, coloquei


meus braços desajeitadamente no descanso. Lord Indrath sentou-se à minha
frente, enquanto Windsom foi colocado de lado, mais como testemunha do
que como participante da conversa.

Para não ficar olhando, deixei meu olhar pousar logo acima do ombro de Lorde
Indrath, focalizando a parede de trepadeiras de ouro e prata atrás dele. Flores
roxas desabrochavam inconsistentemente sobre as vinhas. Muito raramente,
uma pequena fruta azul safira também crescia.

Lorde Indrath acenou com a cabeça, indicando que eu deveria começar.

“Um enviado do inimigo veio até mim, procurando tirar vantagem de alguma
fraqueza percebida e me virar contra meu senhor,” eu disse claramente. “Para
esse fim, ela me trouxe esta informação, embora o simples fato de ela ter
pensado que poderia influenciar minha lealdade diga mais sobre ela do que
sobre mim, eu acredito.”

Os dois dragões esperaram que eu continuasse.

“De acordo com a Foice Alacryana, Seris Vritra, Arthur Leywin ainda está vivo,”
eu anunciei formalmente. “Ele está atualmente em Alacrya e desenvolveu um
novo poder. Eu acredito que ele testemunhou meu uso da técnica Devoradora
de Mundos contra a terra natal dos elfos.”

Não houve contração de sua pálpebra ou endireitamento de costas, nenhuma


dificuldade em sua respiração indicando que meu senhor estava surpreso. Mas
houve uma leve ondulação em sua aura, e isso foi o suficiente: ele não sabia.

“Então Lady Sylvie ainda pode—”

Lorde Indrath ergueu a mão para silenciar Windsom. “Devemos verificar a força
e a atitude do humano. Ele ainda pode ser uma ferramenta útil contra Agrona
e este… Legado.”

“E se ele não estiver mais disposto a trabalhar ao lado dos asura, meu senhor?”
Eu perguntei.

O olhar de meu senhor manteve-se fiel, seu tom impassível. “Então ele vai
morrer.”

Capítulo 348
Táticas de Aprimoramento Corpo a Corpo

Quando eu voltei para o segundo nível das Relictombs, praticamente


arrastando meus membros, um balconista de óculos correu enquanto seus
olhos disparavam pelo meu corpo cheio de lama.

“Senhor?” Ele perguntou timidamente. “Você está bem? Onde está seu grupo?”
Eu balancei minha cabeça e passei por ele. “Tudo bem. Ascensão solo.”

O homem manteve o ritmo, suas mãos mexendo em um pergaminho que ele


carregava cuidadosamente à sua frente. “Entendo. Sim, a ascensão solo é
notoriamente difícil, senhor. Nome, para que eu possa registrar seu retorno?
Algum espólio para relatar?”

Ainda caminhando, eu disse, “Grey. Apenas Grey. E não.”

O balconista estremeceu, fazendo seus óculos escorregarem até a ponta do


nariz. “Lamento ouvir isso, Ascendente Grey. Posso fazer a varredura—”

Parei de repente, forçando o homem a parar e se virar para me encarar.


Lançando um olhar irritado em sua direção, eu disse, “Estou exausto e gostaria
de ir embora. O que você precisar, apenas faça.”

O balconista pigarreou e consertou os óculos antes de puxar algum tipo de


varinha. “Se você estiver carregando um artefato de armazenamento
dimensional, por favor, apresente-o,” disse ele, com certa rigidez.

Eu estendi minha mão, mostrando a ele o anel dimensional. Ele acenou com a
varinha passando por ela, então ao longo do comprimento do meu corpo. Ele
estalou a língua. “Sem espólios, como você diz.” Em seguida, ele voltou sua
atenção para um pergaminho que carregava. “Ascendente Grey… Ascendente…
Oh, um professor!” Ele rabiscou algo, murmurando baixinho. “Minhas
desculpas. Você é tão jovem, eu não percebi…”

“Já terminamos?” perguntei impaciente.

“Sim, senhor, claro. Obrigado pela sua paciência.” Ele me deu um aceno de
cabeça e começou a se virar, então parou.

Fechando meus olhos, esfreguei dois dedos contra minha têmpora, descendo
até a altura dos olhos. “Sim?”

“Bem,” ele começou hesitantemente, “eu só pensei que você gostaria de saber
que as aulas na Academia Central começaram há três dias.” Com um sorriso
estranho, ele voltou ao seu posto.
“Merda,” eu resmunguei, e comecei a arrastar meu corpo cansado pelo
segundo nível em direção às plataformas de teletransporte.

Do corredor fora da minha sala de aula, eu já podia ouvir as risadas e gritos


dos adolescentes não supervisionados lá dentro.

Eu ouvi trechos de conversa quando entrei pela porta.

—Disse-me que o novo professor não é nem mesmo um sangue nomeado. Deve
ser fácil de—”

“—ouviu sobre a nova assistente gostosa do Professor Aphelion?”

“—matéria é uma piada. Eu não posso acreditar que Atacantes têm que perder
tempo com—”

” –brincando comigo? O resto das minhas matérias são terrivelmente difíceis,


estou ansioso para não fazer nada aqui.”

Eu olhei rapidamente ao redor enquanto descia as escadas. Duas jovens


lutavam brutalmente no ringue de duelo, enquanto outro aluno brincava com
os controles. Alguns outros haviam puxado bonecos de luta e os estavam
socando desajeitadamente. O resto dos alunos estava vadiando sem fazer
nada.

“O professor não está aqui de novo,” disse um menino de óculos sem tirar os
olhos do livro.

“Ele é o professor, Deacon,” disse outro aluno. Era o garoto de cabelo preto
que havia dado ordens aos dois valentões na biblioteca.

“Você está atrasado,” seu companheiro largo resmungou, cruzando os braços


grossos sobre o peito.

“E faltou no primeiro dia,” acrescentou o amigo alto, colocando as longas


pernas em cima do encosto da cadeira à sua frente.
“Muito perspicaz,” eu disse quando abri a porta do meu escritório e meio que
passei por ela. “Vocês parecem ter as coisas sob controle por hoje. Eu vou estar
no meu escritório.” Fechei a porta antes que alguém pudesse responder, me
isolando dos olhos curiosos.

A sala de aula começou a tagarelar novamente no momento em que minha


porta se fechou.

“Boa! Dia livre.”

“—vai ser exatamente como na temporada passada—”

“—ideia estúpida de treinar sem mana de qualquer maneira.”

Suspirando, desliguei-me deles e afundei na cadeira do escritório, inclinando-


me para frente para descansar minha cabeça nos meus braços. Apesar da
minha exaustão, porém, senti meu rosto se abrir em um sorriso largo.

Eu realmente tinha conseguido.

Minha mente zumbia enquanto considerava os resultados de meu experimento


nas Relictombs. Eu queria conversar sobre isso, mas Regis parecia estar
hibernando como ele fez enquanto eu treinava com Three Steps nas
montanhas acima de sua aldeia isolada. Eu esperava que isso significasse que
ele se recuperaria mais rapidamente.

Retirando o quebra-cabeça que Three Steps havia me dado, eu o bati contra a


mesa, ouvindo a semente dentro do chocalho. Eu não tinha sido capaz de repor
muito éter em minha jornada através do segundo nível das Relictombs, e meu
núcleo parecia estar no limite da minha resistência, mas ter algo para ocupar
minhas mãos tornaria mais fácil pensar.

Voltando minha consciência para dentro, a primeira coisa que notei foram
meus canais de éter. A inundação de éter puro do obelisco os alargou e limpou
todas as imperfeições de dentro deles.

Senti uma dor profunda quando manifestei uma garra e comecei a cavar
dentro do fruto seco, mas me concentrei em manter a forma. Embora eu não
tivesse muito éter para extrair, descobri que o próprio éter estava se movendo
ao longo de meus canais mais rapidamente, o que significa que eu poderia
manifestá-lo em um ponto específico do meu corpo quase que
instantaneamente.

Ainda levava tempo para condensar o éter em uma garra fina pra fora meu
dedo indicador, no entanto, e minha mente cansada lutou para se concentrar
na forma. Em vez disso, concentrei-me no meu núcleo.

O próprio núcleo estava maior e mais transparente. A tonalidade avermelhada


havia desaparecido totalmente, e o éter interno havia se transformado em um
tom violeta rico e profundo. Me concentrando mais, pude ver a delimitação
clara entre duas camadas separadas do meu núcleo: a casca original
suportando e segurando os pedaços do meu núcleo de mana, e uma segunda
camada mais espessa.

Eu havia forjado meu núcleo de éter por pura força de vontade. No meu ponto
mais fraco e desesperador, eu tinha transformado a perda total em uma vitória
impossível, fazendo algo que talvez ninguém na história deste mundo tivesse
feito.

Quando meu núcleo de éter começou a rachar, percebi que precisava ir além
da minha perspectiva limitada atual. Eu tinha seguido o mesmo caminho de
um mago usuário de mana, na expectativa de crescer o núcleo através do uso,
meditação e combate.

Os núcleos de mana ficavam mais claros à medida que se tornavam mais


puros. Isso era um mecanismo puramente biológico, natural para sua função.
Embora exigisse meditação intencional para aproveitá-lo ao máximo, mesmo
alguém que nunca se concentrou em refinar seu núcleo de mana o veria
progredir lentamente com o uso, como o fortalecimento de um músculo.

Mas meu núcleo de éter não era natural. Não houve progressão biológica
definida.

Por meio de um esforço significativo e do conhecimento nascido de meu


tempo, tanto como mago de núcleo branco quanto como usuário do ki, fui
capaz de remover muitas das impurezas e imperfeições contidas nele. Embora
isso tenha me permitido absorver o éter mais facilmente, e em maiores
quantidades, não trouxe estágios significativos de progressão, como avançar
pelos estágios laranja, amarelo e prata.

Percebi que precisava ser mais intencional. Se meu núcleo de éter não
evoluísse por conta própria, eu teria que encontrar uma maneira de forçá-lo.

Utilizando o vasto reservatório de éter da armadilha do obelisco, formei uma


segunda camada ao redor do meu núcleo – de forma muito lenta e dolorosa.

Infelizmente, o processo exigiu quase todo o éter canalizado no obelisco, de


modo que, quando terminei, não sobrou nenhum para absorver para mim,
deixando meu corpo fraco e dolorido.

Agora que tinha feito isso, não pude deixar de me perguntar: Será que posso
fazer de novo? Com éter suficiente, eu poderia continuar a adicionar camadas
ao meu núcleo, ficando exponencialmente mais poderoso com cada uma?

Era possível. O maior obstáculo era encontrar uma fonte de éter forte o
suficiente para forjar a camada em uma única sessão, quase o contrário de
manter éter suficiente em meu núcleo para se infiltrar na pedra de Sylvie e
romper uma camada.

Em meu momento de necessidade, quando eu não tinha escolha a não ser


fazer algo drástico ou arriscar prejudicar meu núcleo de éter, foi exatamente
esse pensamento que me inspirou. O modo como a pedra, ou ovo, de Sylvie
utilizava múltiplas camadas para capturar e segurar o éter tinha servido como
base para minha própria tentativa.

Obrigado, Sylv, pensei. Mesmo dormindo em seu ovo, você continua


encontrando maneiras de me fazer continuar.

Alguém bateu na porta. Eu ignorei.

Outra batida. “Professor Grey?”

Suspirei e liberei a garra de éter. “Entre.”

A porta se abriu e um rosto familiar espiou pela moldura. Seth, o garoto da


biblioteca, estava pálido e suado, e seu uniforme grudava no peito e nos
braços. “Senhor, você vai dar aula hoje?”
Minha surpresa ao ver o menino durou cerca de um segundo antes de eu
acenar para ele ir embora. “Você não ficou sabendo? Esta não é uma aula de
verdade.”

“Mas você me disse para aprender a me defender,” Seth disse calmamente. “Eu
pensei que você quisesse dizer — que você queria que eu…”

“Você pensou que eu ia te ensinar?” Eu levantei uma sobrancelha. “Você é um


Alto Sangue, certo? Seria melhor você contratar um professor particular.”

Um coro de risadas veio da sala de aula, e Seth, parecendo desanimado, olhou


para seus pés enquanto fechava lentamente a porta do escritório, mas eu
apenas ativei a garra de éter e tentei novamente.

“Não se preocupe, podemos ajudar a ensinar-lhe uma ou outra,” zombou


alguém.

Houve um baque e um grunhido de dor do lado de fora da porta.

A garra etérea em meu dedo desaparecia e desaparecia enquanto eu lutava


para ignorar a distração. Sem perceber, puxei a semente para a abertura
redonda e a segurei lá, perfeitamente equilibrada dentro do buraco do caule,
por trinta segundos ou mais. Fechei meus olhos e foquei novamente na garra,
puxando firmemente enquanto segurava a forma do éter.

“Não, assim não, órfão. Quando você se curva, você perde de vista o seu
oponente e” — houve outro baque mais forte — “fica vulnerável a golpes na
cabeça.”

As bordas do buraco se dobraram ligeiramente e a garra escorregou, mas fui


capaz de ajustar meu aperto e manter a semente segura. Tão perto, pensei. Só
mais um pouco…

Uma série de batidas fortes e intensas na porta quebrou minha concentração,


e eu ouvi o barulho da semente batendo no fundo da fruta seca.

Levantando-me, cruzei rapidamente o escritório e abri a porta. “O quê?”

O homem uniformizado do outro lado da porta torceu o nariz e me encarou


com uma carranca de desaprovação. “Professor Grey, sim?”
“Esse sou eu. Posso te ajudar?” Eu perguntei com uma ligeira inclinação de
minha cabeça.

“Ainda não tivemos oportunidade de nos conhecer. Meu nome é Rafferty.” O


homem era de meia-idade, com cabelos grisalhos nas têmporas e rugas
começando a aparecer ao redor dos olhos. Ele estava vestindo um terno preto
e azul e um olhar que me disse que ele não estava exatamente feliz em me
conhecer. “Eu, caso você não saiba, sou o chefe do seu departamento.”

Ele estendeu um pergaminho. “Esta é uma lista atualizada da turma, que você
precisa porque vários alunos já abandonaram este curso.”

Peguei o pergaminho e joguei na minha mesa. “Entendo. Tem mais alguma


coisa que eu possa fazer por você?”

O chefe do departamento ficou carrancudo. “Sim, de fato, você pode. Olhando


para suas qualificações e recomendações, não estou totalmente certo de como
você começou a trabalhar aqui na Academia Central, meu jovem, mas não
aceitarei nada menos do que o máximo esforço dos professores deste
departamento. Certifique-se de comparecer às aulas pontualmente no futuro
e de seguir o regime de treinamento fornecido pela academia.”

Seu tom deveria ter me incomodado, considerando minha situação, mas eu


estava muito preso entre a exaustão e a excitação para me preocupar com as
ameaças deste magro alacryano.

Forçando uma carranca arrependida, fiz uma reverência superficial. “Peço


desculpas, houve uma confusão nas Relictombs. Não pretendo perder aula de
novo.”

Sua carranca suavizou um pouco. “Garanta que isso não aconteça. Não
precisamos de mais problemas como esse no Salão Supremo, Professor Grey.”

Girando nos calcanhares, Rafferty saiu pela porta aberta. Do outro lado, uma
dúzia de alunos estavam todos imóveis, obviamente tendo ouvido cada
palavra do meu castigo.
Sem palavras, fechei a porta e voltei para a bagunça da minha mesa. Não me
preocupei em olhar a lista de turmas que recebi em minha papelada original,
então abri o novo pergaminho e examinei a lista – muito mais curta.

Não reconheci a maioria dos nomes: Brion do Sangue Nomeado Bloodworth,


Diácono do Sangue Favager, Enola do Alto Sangue Frost… blá, blá, blá… Mayla
do Sangue Fairweather, Pascal do Sangue Bancroft, Portrel de Alto Sangue
Gladwyn, Remy do Alto Sangue Seabrook… blá blá … Seth do Alto Sangue
Milview…

Milview, pensei, o nome soando familiar por algum motivo. Eu já tinha ouvido
isso, mas onde? Algum soldado da guerra? Não foi do homem que eu torturei…
Vale… então onde-

Meus olhos se arregalaram com a descoberta.

Não havia muitos soldados alacryanos importantes o suficiente para ter seus
nomes registrados em nossos relatórios, mas foi exatamente onde eu li o nome
antes. A sentinela que traçou um caminho pela Floresta de Elshire – a pessoa
responsável pela queda de Elenoir – se chamava Milview.

Um escárnio escapou dos meus lábios enquanto eu colocava o pergaminho na


mesa. Isso foi coincidência ou alguma reviravolta doentia do destino?

Levantando-me, atravessei meu escritório, abri a porta e me inclinei contra o


batente para assistir.

Seth estava encolhido entre os mesmos dois alunos que o encurralaram na


biblioteca, tentando desajeitadamente proteger seu estômago e cabeça. O
valentão largo e atarracado estava com os punhos erguidos preguiçosamente.
Ele encontrou os olhos de seu companheiro, piscou e então ergueu uma
joelhada no rosto desprotegido de Seth.

Quando Seth atingiu o chão, o resto da classe parecia se concentrar em mim.


A garota de cabelos curtos que lutava na plataforma de treinamento fez uma
careta, obviamente desconfortável, e outro jovem estava inclinado para frente
em sua cadeira, franzindo a testa para o espetáculo. Outros estavam rindo
baixinho ou simplesmente esperando curiosamente para ver o que eu faria.
Avancei em direção ao garoto Milview, empurrando os outros rapazes para fora
do meu caminho. Eu encontrei os olhos do estudante encorpado, olhando para
ele por cima do meu nariz. “Nome?”

“Portrel,” disse ele, com o queixo erguido e o peito estufado. “Do Alto Sangue
Gladwyn.”

“Se você planeja lutar, faça isso lá,” eu disse, apontando para o ringue de
treinamento.

O rosto achatado de Portrel se contorceu em confusão enquanto eu puxava


Seth do chão pelas costas de seu uniforme e o empurrava em direção ao
ringue. “Eu falei grego?”

Soltando uma risada, Portrel caminhou propositalmente para o ringue de


duelo enquanto Seth o seguia hesitante, enxugando seu nariz que sangrava
com a manga.

A garota com o cabelo dourado curto, uma das duas já treinando no ringue, fez
uma careta para eles, realmente mostrando os dentes. “Já estamos usando.”

“Não mais,” eu disse sem emoção. “Saia.”

Ela soltou uma risada de escárnio, mas saltou da plataforma de treinamento.


Sua companheira, uma garota magra com olhos castanhos e cabelos escuros
que desciam em tranças gêmeas pelas costas, estremeceu quando ela desceu
da plataforma, com a mão pressionando as costelas.

Os dois meninos subiram na plataforma e se posicionaram a alguns metros de


distância antes de eu mesmo subir na plataforma.

Eu senti o medo que atingiu Seth quando ele percebeu que eu não tinha
intenção de ajudar. No entanto, ele ainda ficou em uma posição defensiva ao
enfrentar o garoto de Gladwyn.

Cruzando os braços, fiquei entre os dois combatentes, os braços cruzados,


ignorando o resto da classe. “Continuem.”

Eles eram um par tão incompatível quanto eu poderia imaginar. Portrel tinha
o dobro do peso de Seth, mesmo que ele não fosse mais alto, e provavelmente
era um Atacante. Pela maneira como ele se acomodava confortavelmente em
uma posição de combate, ambas as mãos para cima e o pé direito ligeiramente
para trás, eu tinha certeza que ele havia treinado combate corpo a corpo.

Seth, por outro lado, era de altura média, mas parecia mais baixo por causa da
forma como ele se curvava. Ele era magro a ponto de parecer doente, uma
impressão aumentada por sua pele pálida, e claramente nunca havia sido
ensinado a dar um soco.

Talvez se ele não passasse todo o seu tempo na biblioteca, pensei, ignorando
a memória dele me ajudando que estava arranhando meu cérebro.

“Bem? O que você está esperando?” Perguntei ao corpulento Atacante. “Você


não vai bater nele?”

Uma confusão ainda maior crivou seus rostos quando olharam para mim.
Portrel se recuperou primeiro, sorrindo maliciosamente ao erguer os punhos.
“O que você disser, professor.”

Seu primeiro soco foi preguiçoso, acertando Seth na parte interna do ombro,
mas o golpe seguinte acertou diretamente no queixo de Seth, jogando a
cabeça do menino despreparado para trás e jogando-o no chão.

“Eu sei que não estamos usando mana, mas espero que você pelo menos tente
dar um golpe decente,” eu disse, meu nível de voz, quase entediado. “Você
soca como se Milview aqui fosse abraçar seu soco.”

Suas bochechas ficaram vermelhas. “Eu sou um dos melhores lutadores da


minha idade em Vechor!” Ele argumentou. “Eu treinei com—”

“Alguém que estava com medo de te dizer o quão merda você realmente é,” eu
terminei por ele. “Essa é a fraqueza nascida de muito poder. Agora, vá de
novo.”

Houve algumas risadinhas de surpresa do público, incluindo seu amigo de


cabelos coloridos, o que fez Portrel corar ainda mais. Ele fez uma careta e se
posicionou em frente a Seth, que estava me observando ao invés de seu
oponente. Portrel não se conteve, desencadeando uma série de socos
poderosos dos quais Seth não poderia ter esperança de se defender.
O menino magrelo estava deitado de costas em segundos. Portrel chutou seu
oponente indefeso com força nas costelas uma vez, depois recuou por um
segundo, mas pareceu se dar conta de algo. Ele me lançou um olhar
desafiador, como se me desafiasse a criticá-lo.

“Seus pés estavam cruzados, e em um ponto você tinha os dois punhos


estendidos,” eu disse categoricamente.

O lábio de Seth se abriu e ele demorou a se recuperar. Na próxima vez que


Portrel o atingiu, ele caiu imediatamente.

“Você retraiu seu punho e deixou seu pulso ficar mole,” eu apontei.

O Alto Sangue atarracado rangeu os dentes e olhou para fora do ringue para o
garoto de cabelos escuros que parecia ser seu líder. Pelo canto do olho, eu o
vi balançar a cabeça.

Percebendo que deveria ter lido toda a lista de nomes de alunos, pensei sobre
os diferentes sangues que Abby havia mencionado durante nossa conversa, e
com quais alunos ela me disse para ter cuidado. Embora ela tivesse falado
sobre ele de forma diplomática, ela mencionou que o neto do Diretor
Ramseyer frequentava a academia. Olhando para o garoto de cabelos escuros,
pude ver a semelhança.

Fazia sentido, então, por que ele era o líder, mesmo entre os Altos Sangues.

Voltando-me para a classe, apontei para a garota de cabelo curto. “Você.


Existem espadas de treinamento em algum lugar?”

Ela acenou lentamente e apontou para uma porta aberta no canto da sala.

“Bem?” Eu perguntei, dando a ela um olhar de expectativa. “Você pode


ir buscá-las?”

Sua expressão caiu em uma careta de descrença, mas ela não se moveu. Sua
parceira de treinamento me lançou um olhar desconfortável e disse, “Eu-eu
vou pegar…” antes de correr pela sala de aula para recuperar as espadas de
treino. Quando ela voltou com eles, ela me deu um sorriso torto de desculpas.
As espadas de combate eram pedaços simples de madeira leve e flexível. Eu
as entreguei aos combatentes. Seth, que finalmente se arrastou de volta para
seus pés, olhou para a arma como se fosse uma cobra prestes a mordê-lo,
enquanto Portrel girava a sua com conforto praticado.

“Posição de combate,” eu ordenei.

Portrel adotou uma postura mediana, o pé esquerdo para trás com a espada
segura à sua frente com as duas mãos, apontada para o rosto de Seth.

Olhei para o garoto Milview, que o copiou sem jeito, parecendo como se nunca
tivesse segurado uma espada na vida, e senti uma pontada de aborrecimento.
O aborrecimento aumentou a partir do fato de que eu sentia mais pena de
Seth do que raiva. Ele era irmão da soldada responsável não apenas pela
conquista de Elenoir, mas também por sua destruição.

Se os alacryanos não tivessem conquistado o país, os asuras nunca teriam…

Uma mudança na sala me tirou dos meus pensamentos. Os alunos ao nosso


redor, muitos dos quais estavam apenas metade prestando atenção um
segundo atrás, estavam agora olhando para o ringue com excitação tensa. Os
olhos de Seth se arregalaram quando ele se concentrou na lâmina cega da
espada de treino de seu oponente.

Vendo que Portrel havia ajustado sua postura de repente e parecia muito mais
focado, eu sabia, mesmo sem ser capaz de sentir a magia, o que ele estava
fazendo.

“Sem mana,” eu disse com firmeza.

Ele zombou. “Uma regra tão estúpida. Qual é o sentido de—”

“Você tem medo de treinar sem?” Eu perguntei com uma ligeira inclinação de
minha cabeça.

Portrel inchou. “Eu não tenho medo de nada! Meu sangue tem—”

“Comece,” eu vociferei, pegando os dois garotos desprevenidos. Seth puxou


sua lâmina de treino para baixo, acertando Portrel na ponte do nariz com
um estalo. O sangue respingou na frente de seu uniforme.
Rosnando, Portrel se lançou para frente, balançando a espada como uma
clava. Os olhos de Seth se fecharam e ele tropeçou sob o estranho ataque
puramente por acidente. Ele deixou sua espada ceder de modo que acabou
entre as pernas desequilibradas de Portrel, e o Alto Sangue enfurecido
tropeçou e caiu no chão aos pés de Seth.

O garoto alto com cabelos multicoloridos soltou uma gargalhada. “Boa, Port!”

Eu pisquei estupidamente. “Bem, isso foi divertido. Vocês dois praticaram essa
pequena cena de comédia ou foi improvisada?”

Seth desviou o olhar, envergonhado, enquanto coçava a nuca. Portrel, por


outro lado, estava praticamente vibrando de raiva.

“Como você ousa, seu lixo sem nome!” O Atacante corpulento se levantou e
apontou sua espada de combate para mim. “Eu não sei o que você fez, mas
meu pai vai—”

“Portrel, você se esquece,” disse uma voz firme e autoritária. Fiquei surpreso
ao ver o menino Ramseyer de pé. “Suas ações trazem desrespeito ao seu
sangue.”

Portrel se encolheu, olhando de seu líder para mim e vice-versa. “Desculpe,


Valen.”

O neto do diretor, Valen, deu um sorriso diplomático. “Peço desculpas em


nome do Alto Sangue Ramseyer e Alto Sangue Gladwyn, professor. Portrel é um
excelente lutador, mas tem um temperamento ruim.” Houve um brilho nos
olhos de Valen e uma torção irônica em seu sorriso que foi inquietante, mas
eu não poderia dizer o que ele estava fazendo.

“É uma pena que você escolheu colocá-lo contra um oponente tão


desanimador. Talvez suas lições sejam melhor transmitidas por meio de uma
demonstração pessoal.” Aquele brilho aumentou. “Tenho certeza de que
Portrel ficaria honrado em treinar com você, professor.”

“Muito honrado,” ele repetiu, tentando e falhando em manter um sorriso


vingativo fora de seu rosto.
“Muito bem,” eu disse enquanto lentamente retirava o anel em espiral do dedo
médio da minha mão direita.

O chão sob os pés de Portrel tremeu quando o Atacante avançou com uma
velocidade que não era possível sem magia.

Dei o menor passo para o lado para evitar a espada de madeira apontada para
meu ombro. E com um leve estalo do meu pulso, eu dei um tapa no rosto do
garoto com as costas da minha mão.

A cabeça de Portrel sacudiu com o impacto antes que ele perdesse o equilíbrio
e rolasse para fora do ringue de duelo, que estava com o escudo desativado.

O silêncio se apoderou da sala enquanto os alunos observavam Portrel se


levantar das poltronas em que havia se chocado.

“Você não teria rolado com tanta força se não tivesse usado mana,” eu disse
com naturalidade, prendendo o anel de ébano de volta em meu dedo.

“A aula acabou,” eu anunciei, focando em Valen. “Dê o fora daqui.”

Risos e conversas animadas estouraram do resto da classe quando eles


começaram a recolher suas mochilas e subir as escadas para fora da sala de
aula.

“Ajude Portrel a se levantar, Remy,” Valen disse secamente. Enquanto o garoto


alto ajudava seu companheiro que lutava a se desvencilhar dos assentos, o
olhar de Valen permaneceu em mim, aquele sorriso irônico nunca escapando
de seu rosto.

Portrel, por outro lado, olhou carrancudo para seus pés, com cuidado para não
olhar na minha direção, mas seus punhos estavam cerrados enquanto seu
amigo o provocava durante todo o caminho escada acima.

Atrás de mim, quase um sussurro, ouvi, “Professor?”

Seth ficou congelado no canto da plataforma durante minha conversa com


Portrel, e agora ele estava olhando para mim com uma expressão esperançosa
que fez meu estômago se contorcer de desconforto. Seu lábio estava muito
inchado e eu podia ver o início de um hematoma escuro aparecendo ao redor
de seu olho esquerdo.

“Não espere que a aula fique mais fácil do que isso, Milview,” eu disse
desapaixonadamente, a intenção de minhas palavras mais uma ameaça do que
um aviso. Estar em Alacrya, fingir ser professor… isso era uma coisa. Mas
ensinar o membro da família da mulher que deixou o exército alacryano tomar
Elenoir?

Eu não tinha certeza se conseguia fazer isso.

“Obrigado pelo conselho, senhor,” ele respondeu resolutamente, mesmo


enquanto seu olhar estava abaixado. “Eu… vou manter isso em mente na sua
próxima aula.”

Quando Seth passou por mim, minha atenção foi atraída para a saída, onde os
alunos estavam começando a se acumular. “Eu disse que a aula acabou! Por
que a demora?”

Relutantemente, os garotos boquiabertos deram um passo para o lado,


revelando uma mulher de cabelos azuis e olhos escarlates.

“Já faz um tempo, Grey.”

Capítulo 349
Esperança e Mentiras

ELEANOR LEYWIN

Minha flecha de mana atingiu o torrão de terra no ar, fazendo-o explodir em


uma nuvem de areia. A flecha continuou a trajetória até o golem que acabara
de lançar o ataque de terra, acertando-o na têmpora direita. Embora parte da
cabeça do golem tenha desmoronado, aparentemente não foi o suficiente para
contar como uma morte, porque a pilha animada de terra e pedras se arrastou
para o lado, preparando outro ataque.

Ao mesmo tempo, um segundo golem apareceu, crescendo do solo como se


estivesse derretendo ao contrário. Ele tinha um enorme machado de pedra
apontado para minha cabeça. Eu soltei um bufo.
“Torrões de terra e machados cegos? Eu treinei com uma Lança, Hornfels,” eu
disse levianamente enquanto evitava um golpe desajeitado do golem
empunhando o machado.

O machado veio em um movimento lateral apontado para meu quadril, mas


rolei para trás por cima do ombro. Reforçando meu arco com mana, dei uma
rasteira no golem, depois coloquei duas flechas brilhando na corda do meu
arco élfico antes de ficar de pé novamente. Dividindo as flechas de mana com
meu dedo, lancei-as em trajetórias ligeiramente diferentes, de modo que uma
perfurou o peito do golem que empunhava o machado, enquanto a segunda
acertou o arremessador de torrões na garganta.

“Belo tiro, Ellie!” Minha nova amiga Camellia gritou.

Eu dei à jovem elfa um sorriso cheio de dentes, então gritei de surpresa


quando o chão embaixo de mim se transformou em lama. Enquanto eu caia de
joelhos, mais três golens cresceram do chão e me encararam.

Eu me joguei na lama para evitar um golpe esmagador de um punho de pedra.


O solo endureceu novamente, prendendo metade de mim no chão rochoso da
caverna. Eu cuspi um bocado de lama.

“Eca,” eu gemi, tentando ajustar minha posição, mas completamente presa.

“Não se esqueça, eu também treinei com uma Lança, sua magrela


superconfiante,” disse Hornfels jovialmente.

Passos suaves dispararam em minha direção. “Está tudo bem?” Camellia


perguntou.

Hornfels soltou uma risada baixa e a pedra se transformou em areia, me


libertando. “Ela ficará bem. Não a bajule, garota. A moça já se acha demais.”

Saí do buraco de areia e me limpei. “Eu não sou arrogante!”

Alguém bufou sarcasticamente, e me virei para ver duas figuras familiares


caminhando em nossa direção.

“Jasmine! Emily!” Eu gritei com entusiasmo. “Vieram ver o quão incrível eu


fiquei?”
“Não, nem um pouco arrogante…” Camellia brincou. Empurrei de brincadeira
seu ombro e ela me cutucou nas costelas, depois saltou antes que eu pudesse
pegá-la de volta.

“Eu só precisava ter certeza de que ela não estava se metendo em problemas,”
Jasmine disse, indicando a Camellia.

A aventureira séria não mudou muito desde que eu era criança. Eu gostava de
todos os Chifres Gêmeos, mas secretamente tinha um pouco de medo de
Jasmine. Quando Helen, Durden e Angela Rose foram trazidos originalmente
para o santuário, Jasmine não tinha vindo com eles. Camellia tinha me contado
tudo sobre como Jasmine a salvou, então eu estava feliz por ela ter voltado.

“Na verdade, estávamos procurando por Hornfels,” Emily interrompeu. “Helen


sugeriu que também fizéssemos algum tempo de treinamento.”

Ao contrário de Jasmine, Emily havia mudado muito em um período de tempo


muito curto. Havia um tom endurecido nela que ela definitivamente não tinha
antes, e às vezes eu a notava ficar meio vazia e fria. Ela cortou o cabelo depois
que foi queimado em uma explosão, mas pelo menos suas sobrancelhas
estavam crescendo novamente.

Fiquei muito feliz quando ela chegou com os Chifres Gêmeos e Gideon. Não
éramos melhores amigas nem nada, mas Emily sempre foi legal comigo, e ela
até fez um arco personalizado naquela época que aproveitou minhas técnicas
de mana pura.

Ela era um gênio total, então não era exatamente surpreendente que ela
tivesse encontrado uma maneira de sobreviver. Ela e Gideon foram capturados
pelos alacryanos e forçados a trabalhar para eles, mas os Chifres Gêmeos
ajudaram a salvá-los. Ou eles ajudaram a salvar Jasmine? Eu ainda estava um
pouco confusa com os detalhes.

Ela ficou quase tão chateada quanto eu ao saber que meu arco foi destruído.
Infelizmente, não tínhamos nenhuma das ferramentas ou recursos de que ela
precisava para fazer outro no santuário, então tinha que me contentar com um
arco de treinamento.
Ainda era muito bom ter as duas de volta. E ver mais rostos familiares tinha
sido bom para mamãe também. Ela começou a voltar à vida um pouco quando
percebeu que muitos de nossos amigos ainda estavam vivos lá fora, apenas
esperando por ajuda.

“Estou quase terminando com a Princesa Leywin de qualquer maneira,”


Hornfels zombou, fazendo Camellia rir.

“Ei!” Eu disse indignada.

“Outra princesa? Justo o que precisávamos…” Jasmine disse, e ela parecia tão
séria que eu não pude dizer se ela estava brincando ou não.

“Não ligue para ela,” Camellia disse, franzindo o nariz. “Ela simplesmente não
é muito boa em se expressar.”

Jasmine ergueu uma sobrancelha para a garota élfica. “Cuidado, Chata.”

Camellia cruzou os braços e mostrou a língua para Jasmine.

“Tudo bem então,” disse Hornfels, rindo alto. “Com a garota Watsken eu estou
familiarizado, mas você terá que me mostrar suas habilidades, Srta.
Flamesworth…”

Minha atenção se desviou dos outros quando Jasmine e Hornfels começaram


a discutir a luta.

Tínhamos escolhido uma crista plana com vista para a maior parte da caverna
para ser nosso campo de treinamento. Estava longe o suficiente para que não
quebrássemos algo acidentalmente no processo. Também gostei porque dava
para o vilarejo e quase todas as casas daqui, além da maioria dos túneis que
saiam da cidade.

Curtis e Kathyln Glayder estavam marchando rapidamente em direção ao túnel


que conduzia ao portão de teletransporte. Depois do que aconteceu em
Elenoir, a maioria de nós nunca mais deixou o santuário, mas os Glayders,
junto com alguns outros magos fortes, ainda estavam em missão para procurar
mais refugiados.
Os membros de nossa expedição a Elenoir ficaram bem próximos depois que
todos voltamos de Elenoir. Kathyln descreveu isso como uma “culpa
compartilhada”. Cada um de nós pensou que poderíamos – deveríamos – ter
feito mais para garantir que Tessia estivesse segura.

O único que não parecia interessado em conversar conosco era o guarda élfico,
Albold. Aparentemente, ele queria voltar para a floresta quase imediatamente
quando Tessia e eu não voltamos, mas Virion não o deixou. Então, quando
Bairon confirmou que Elenoir havia sumido totalmente, bem…

Balancei a cabeça. Eu tentei considerar como seria a sensação de saber que


Sapin simplesmente… se foi, mas…

“Ellie, você está bem?” Camellia perguntou, me cutucando com o cotovelo.

“Claro,” eu disse enquanto pendurava meu arco no ombro. “Estou muito


cansada… Vou encerrar o dia, ok?”

Acenando para os outros, me virei e comecei a longa descida até a cidade, sem
saber o que fazer comigo mesma. Eu estava cansada, mas também estava…

Eu não tinha ideia, na verdade. Eu nunca sabia como me sentir mais, então
comecei apenas a empurrar tudo para o fundo.

Foi assim que você lidou com isso, irmão? Eu pensei.

Suspirando, chutei uma pedra na rampa natural pela qual estava descendo.
Ela foi rolando até a borda, eventualmente caindo com um respingo no riacho.

O fato de eu estar cercada de pessoas que haviam perdido tudo não ajudava.
Eu perdi meu pai e meu irmão – e minha infância – para a guerra, mas então
pensei em Camellia… sua família inteira foi morta durante a invasão, sua casa
havia sumido, a maioria das pessoas que ela conheceu estava morta…

Eu queria entender isso. Eu queria ajudar Camellia e Virion e todos os outros,


mas eu simplesmente não conseguia entender o que eles tinham
experienciado.

Albold era o único outro membro élfico de nosso grupo. Talvez tenha sido
egoísta da minha parte, mas parecia que ele era minha conexão com o que
aconteceu. Eu queria que ele me ajudasse a entender o que ele estava
sentindo, mas ele praticamente se escondeu.

Havia outros elfos com quem eu poderia conversar, é claro. O comandante


Virion estava em reuniões o tempo todo, e, por mais que eu quisesse falar com
ele, não tinha permissão há semanas.

Rinia disse que estava fraca demais para receber visitantes, mas não havia
voltado para o santuário. Tive a sensação que algo estava acontecendo entre
Virion e ela. Eu só não conseguia adivinhar o quê. E como nenhum dos dois
estava falando comigo, bem…

A presença de Camellia foi uma coisa boa, pelo menos. Havia algumas outras
crianças no santuário, mas ninguém que entendia o que eu passei do jeito que
ela entendeu. Talvez fosse porque éramos tão parecidas que ambas lutamos
para realmente entender o que havia acontecido. Antes de Jasmine salvá-la,
ela já havia perdido toda a sua família e parecia meio entorpecida quando se
tratava do ataque à sua terra natal.

Havia outros também, mas ninguém com quem eu pudesse conversar. Se


Tessia ainda estivesse aqui, ela poderia-

Será que poderia? Eu me lembrei daquele momento na pequena cidade élfica,


com Tessia, linda, parada acima de seu povo chocado e confuso…

Balançando a cabeça, deixei esse pensamento de lado. Em vez disso, minha


mente voltou para Albold. Eu tinha procurado por ele algumas vezes nas
últimas semanas, mas não o tinha encontrado. Ainda assim, tentar de novo
não faria mal, eu disse a mim mesma, e talvez ele precisasse falar comigo tanto
quanto eu precisava falar com ele.

Embora eu tivesse certeza de que ele não estaria lá, fui primeiro para a
prefeitura. Albold não tinha estado em nenhum de seus turnos regulares de
guarda desde que dei meu relatório ao conselho, mas eu realmente não sabia
onde mais procurar.

Como eu esperava, dois guardas desconhecidos flanqueavam a porta,


enquanto a elfa chamada Lenna estava parada ao pé da escada. Ela estava me
observando se aproximar.
Eu não tinha chegado a menos de dez metros dela quando ela disse, “Desculpe,
Srta. Leywin, o Comandante não está disponível.”

“Na verdade,” eu comecei nervosamente, “eu estava procurando pelo guarda,


Albold. Você—”

“Albold ainda está de licença devido ao ferimento,” ela me interrompeu,


falando com firmeza.

Acontece que eu sabia que minha mãe cuidou pessoalmente das feridas do
elfo momentos depois que ele se teletransportou de volta para o santuário.
Embora houvesse algum desconforto persistente por um tempo, ele havia
voltado às suas funções quase imediatamente. Ainda assim, não adiantava
discutir com a chefe da guarda. Eu também sabia o que ela diria quando eu
perguntasse onde ele estava agora, mas tentei mesmo assim.

“Como eu disse antes, Albold recebeu uma caverna particular fora da cidade e
pediu para não ser incomodado. Tenho certeza que ele vai te avisar quando
estiver se sentindo melhor.” A maneira como ela disse isso deixou muito claro
o quão provável ela pensava que Albold iria me procurar para qualquer coisa.

Eu queria ficar brava com a atitude dela, mas então pensei em Elenoir
novamente e meu estômago embrulhou. “Desculpe incomodá-la. Obrigado
pelo seu tempo e” — eu me esforcei para dizer algo, sentindo-me ficar mais
estranha a cada palavra — “seu serviço,” terminei com um estremecimento.

Virando na esquina da prefeitura, pretendia entrar em um dos becos e apenas


caminhar um pouco, mas um barulho vindo de dentro do grande edifício me
interrompeu.

Enquanto eu ouvia com mais atenção, percebi que havia um feitiço de


amortecimento de som, mas alguém gritou alto o suficiente para meus ouvidos
sensíveis perceberem.

Olhando em volta para me certificar de que ninguém estava olhando, me


aproximei do lado da prefeitura onde ficava a grande sala de conferências,
mas havia algo lá, como uma carga elétrica na atmosfera ou uma pressão
esmagadora, o suficiente para fazer meus ouvidos estalarem. Mesmo que eu
não tivesse certeza do que estava causando isso, confiei em meus instintos o
suficiente para não chegar mais perto.

Havia um pequeno jardim comunitário ao lado da prefeitura. Só crescia raízes


e cogumelos e outras coisas, então eu normalmente não passava muito tempo
lá, mas era o disfarce perfeito agora.

Sentando-me no meio do jardim, fingi estar examinando as plantas. Em vez


disso, eu ativei a primeira fase da minha vontade bestial. Os ruídos de toda a
caverna inundaram meus ouvidos enquanto meus sentidos se aguçavam
dramaticamente, de modo que tive que levar alguns segundos para filtrar tudo
com cuidado. Eu me concentrei na prefeitura, ouvindo a voz rosnando de
Virion.

“—artefatos que nos foram prometidos. Essa mentira que você me fez contar
só vale a pena se nós—”

Outra voz interrompeu o comandante. “A mentira que você concordou em


contar é melhor para todos, Virion, como discutimos longamente. Eu entendo
que você está ansioso para retomar seu continente, mas os artefatos ainda
não estão prontos. Nem, por falar nisso, estão os asuras.”

Embora eu não tivesse ouvido essa segunda voz em muitos anos, eu soube
imediatamente quem era. Não havia como esquecer o homem – ou divindade
– que me deu Boo.

Mas do que eles estavam falando? Mentiras? Artefatos? Não entendi.

A voz de Virion era um grunhido quando ele respondeu, “Malditos jogos,


Windsom. Não pense que perdoei seu crime contra meu povo. Só divulgo sua
mentira porque não tenho outra escolha. Saber o que os asuras fizeram
destruiria a pouca esperança que resta em Dicathen.”

“Você está correto,” Windsom disse, sua voz fria e sem emoção. “Você não tem
escolha, Comandante Virion. Se você deseja liderar seu povo – elfos, humanos
e anões – nesta guerra, é essencial convencer a todos de que a destruição de
Elenoir foi um ato do clã Vritra.”
“A história funcionou bem em Epheotus,” Windsom continuou. “Até mesmo os
clãs de basiliscos restantes começaram a aparecer. Em breve, Lorde Indrath
terá apoio suficiente para prosseguir com uma guerra em grande escala.”

“Mas Dicathen será protegida?” Virion perguntou – um tanto nervoso, reparei.

“Você tem minha palavra,” Windsom respondeu com firmeza. “Lorde Indrath
deseja ardentemente que Dicathen não seja prejudicada por esta guerra.
Quanto à população alacryana, bem, é lamentável…”

“E minha neta?” Virion atirou de volta. “Ela será mais dano colateral para sua
guerra? Você me disse que a encontraria, asura.”

“Receio não ter nada de novo para relatar sobre este assunto,” Windsom
confirmou. “Nós sabemos apenas que o recipiente de Tessia – seu corpo – está
atualmente em Alacrya, mas os clãs de Epheotus não têm conhecimento desta
técnica de reencarnação que Agrona usou. No caso de não ser reversível, você
deve estar preparado para—”

Reencarnação? Meu coração batia tão forte em meu peito que abafou as
palavras de Windsom. Como meu Irmão?

Um leve estalo me fez pular e, de repente, tudo que pude ver foi o corpo
grande e peludo do meu elo. Sua cabeça girava em busca de perigo e, ao se
virar, seu grande traseiro me derrubou. Minha concentração em manter minha
besta ativa quebrou e os sentidos aprimorados desapareceram.

“Boo!” Eu resmunguei enquanto tentava me sentar, mas não consegui por


causa da parede de pelo pairando sobre mim.

Ele soltou um resmungo que sacudiu o chão.

“Não, não estou em perigo! Eu só estava—”

Outro estrondo, desta vez acompanhado por um gemido.

“Bem, sinto muito ter interrompido sua caça, mas eu não pedi para você—”

A enorme fera mana parecida com um urso recostou-se com um grunhido,


esmagando uma porção de cogumelos brilhantes.
“Olá, Eleanor,” disse uma voz próxima, fazendo-me gritar. Boo se levantou
novamente em um instante, seu tamanho obscurecendo a pessoa que falava.

Agarrando um punhado do pelo do meu elo, me levantei e dei a volta nele.


Windsom estava parado do lado de fora do jardim, com as mãos atrás das
costas.

“Hum, olá… senhor?” Eu disse nervosamente. Ele de alguma forma percebeu


que eu estava escutando sua conversa? O que ele faria comigo se soubesse
que eu ouvi…?

Para minha surpresa, o asura sentou-se em uma grande pedra do lado de fora
do jardim e ergueu a mão na direção de Boo. Meu vínculo se aproximou dele
com cautela, farejando a mão estendida. Então o comportamento do meu
vínculo pareceu mudar, e ele deu uma lambida no asura.

Fiquei boquiaberta quando Windsom soltou uma pequena risada.


“Aparentemente, ele se lembra de mim.” Ele começou a coçar a testa de Boo
entre as marcas brancas acima de seus olhos, e a pata traseira dele começou
a bater no chão de prazer.

Ficamos sentados em silêncio por alguns segundos. Minha mente estava vazia
de medo.

“Você sabe, eu pretendia retornar para você eventualmente,” Windsom disse,


seu olhar na cabeça larga de Boo. “Você precisa saber mais sobre o seu vínculo,
se quiser começar a fase de assimilação de…”

Sua cabeça se virou para mim, e eu praticamente pude sentir seus olhos se
enterrando em mim, olhando para o meu núcleo. “Fascinante,” ele murmurou.
“Você completou a fase de assimilação e pode utilizar a vontade de sua besta.
E você conseguiu isso sem ajuda?”

Minha língua parecia inchar até o tamanho da boca de Boo, e eu não pude
responder. Seria algum truque elaborado para que eu revelasse que os estava
espionando?

“Estou deixando você nervosa,” Windsom observou. “Eu falo com tão poucos
de sua espécie. Minhas desculpas.”
Boo se virou para mim e cutucou meu braço com sua cabeça larga. Quando ele
me tocou, o calor derramou do meu núcleo, afastando o medo. Soltei um
suspiro profundo.

Windsom sorriu, e eu pude ver seus olhos rastreando o movimento do brilho


quente enquanto ele se movia por todo o meu corpo. “Você realmente fez bom
progresso com seu vínculo. Mais uma vez, peço desculpas por não ter tido essa
conversa antes. Eu não imaginei que você completaria sua assimilação sem
minha ajuda.”

Olhei para as costas das minhas mãos e meus braços, onde os pelos finos
estavam arrepiados. “Que… que tipo de besta de mana o Boo é, afinal?”

“Nós os chamamos de apenas bestas guardiãs,” Windsom respondeu,


mudando seu assento para que ficasse de frente para mim. “Eles são gerados
– ou talvez criados seja um termo melhor – pelo Clã Grandus da raça titânica.
Todo o propósito de uma besta guardiã se torna a proteção de seu vínculo.”

“O que mais ele pode fazer?” Eu perguntei sem fôlego, meus olhos fixos nos de
Boo, meu medo esquecido. Eu sabia que ele não era uma besta de mana
normal, mas nunca imaginei que ele fosse algum tipo de super besta de mana
de Epheotus.

“Seus poderes se manifestam de maneira diferente com base em sua forma,”


Windsom continuou, “mas todas as bestas guardiãs são feitas para proteção,
e então eles podem sentir quando seu vínculo está em perigo e se
teletransportar para eles a uma grande distância, se necessário.
Eventualmente, este urso guardião será capaz de protegê-lo de outras
maneiras também, como absorvendo danos físicos ao seu corpo e tomando as
feridas ele mesmo.”

“Oh,” eu disse suavemente, passando a mão pelo pescoço de Boo. “Não tenho
certeza se gosto muito disso.”

Windsom me lançou um olhar curioso. “Esse é o propósito de uma besta


guardiã. Um urso de guarda também pode inspirar grande coragem em seu
vínculo, permitindo que você supere seu medo quando necessário, como
acredito que você acabou de experimentar.”
“Quando eu canalizo a vontade da besta de Boo, eu posso… hum…” Eu parei,
percebendo que realmente não queria falar sobre meus sentidos aprimorados.

“Isso dá a você uma visão dos próprios sentidos da besta, sim,” Windsom disse,
pegando minha linha de pensamento. “Pode ser bastante poderoso. A segunda
fase deve então manifestar um pouco da força do seu vínculo e habilidade de
luta, mas difere de asura para asura, e eu honestamente não posso te dizer
como um humano vai se adaptar à segunda fase. É possível – muito
provavelmente mesmo – que você nunca passe a fase de integração.”

Eu assenti lentamente. Virion havia dito algo semelhante quando perguntei a


ele sobre minha vontade de fera. Aparentemente, era muito comum que
domadores de bestas parassem na fase de assimilação, e alguns não
conseguiam nem mesmo assimilar corretamente.

“Por que você me deu Boo?” Eu perguntei, incapaz de suprimir o pensamento.


Agora que eu sabia a verdade sobre o que Boo era, parecia bastante
improvável que uma divindade decidisse apenas me entregar uma de suas
bestas guardiãs especiais.

Windsom ficou em silêncio por um tempo, ponderando. Uma carranca franziu


lentamente sua testa, e eu senti sua aura estranguladora vazar por um
instante. Então ele se levantou. “Receio que devo voltar para Epheotus.”

Ele olhou para mim e, em vez de ser atraída por seus olhos cósmicos estranhos,
senti meu corpo tentando se afastar dele. Só levou mais um segundo para
descobrir o porquê.

O céu noturno sobre Elenoir, era assim que seus olhos pareciam… Antes que
ele e Aldir destruíssem o país inteiro, me lembrei com um tremor de medo.

“Saiba que seu irmão não é esquecido entre os asuras, Eleanor. Você era
importante para ele e, portanto, é importante para nós. É por isso que eu dei
a você uma besta guardiã.”

Antes que eu pudesse responder, o asura havia desaparecido.

Fiquei sentada no jardim por muito tempo depois disso, pensando. Eu ainda
não tinha certeza se Windsom de alguma forma percebeu que eu entreouvi ele
e Virion ou não. Foi por isso que ele decidiu me contar sobre Boo agora? Eu
pensei. Para me distrair? Ou talvez me mostre que ele não era uma ameaça,
que ainda se importava conosco?

Eu queria ficar louca, mas se o comandante Virion estava disposto a seguir


com essa mentira para salvar Dicathen, então que direito eu tinha de
questioná-lo?

Então pensei em Albold, que queria saber a verdade mais do que qualquer
coisa. Ele e o resto dos sobreviventes não merecem saber a verdade? Eu
perguntei para mim mesma.

Envolvendo os joelhos com os antebraços, me enrolei e desejei, não pela


última vez, que Arthur ou Tessia estivessem ali comigo.

Capítulo 350
Colegas

CAERA DENOIR

Eu mantive meu rosto impassível, meu tom nivelado e minha postura reta
enquanto eu entrava em sua sala de aula. Afinal, eu deveria ser vista pelos
outros apenas como uma colega, nada mais.

Então, por que, pela graça de Vritra, deixei escapar seu nome, anunciando o
fato de que já nos conhecemos?

À minha volta, os alunos começaram a sussurrar chocados enquanto tentavam


determinar a relação entre nós. Minha mente já estava girando, tentando
imaginar quais deveriam ser minhas próximas palavras para, com sorte,
apagar quaisquer rumores em potencial que pudessem se espalhar a partir
desta sala. Grey não gostava de atenção e preferi não começar com o pé
esquerdo mais uma vez.

Tentei caminhar através da onda de adolescentes mimados quando uma


jovem feroz com curtos cabelos dourados entrou no meu caminho.

Ela me fez uma reverência treinada antes de falar alto o suficiente para seus
colegas ouvirem. “Lady Caera do Alto Sangue Denoir, minha mãe e meu pai
pediram que eu transmitisse votos de boa sorte a você e ao seu sangue, se nos
encontrássemos na escola.”

“Você deve ser a mais nova do Alto Sangue Frost,” afirmei.


“Enola,” disse a loira com orgulho. “Eu sou uma fã sua desde que suas
ascensões anteriores vieram a público. Eu me esforço para um dia me tornar
uma ascendente tão distinta quanto você, Lady Caera.”

Eu dei a ela um aceno de cabeça. “Neste caso, seria bom pra você se tomasse
anotações desta aula.”

A garota Frost, junto com os alunos ao seu redor, franziram a testa em


confusão e ofensa enquanto eu passava. A garota à direita de Enola, que se
apegava a ela de uma forma servil que a marcava como sendo do sangue
Redcliff, fez uma rápida reverência antes de escoltar sua mestra para fora da
sala.

Os sussurros ficaram mais altos enquanto os alunos agora tentavam deduzir o


que minhas últimas palavras significavam, mas minha atenção estava no
professor de olhos dourados em pé com os braços cruzados no ringue de
treinamento.

Grey ficou em silêncio, seu rosto ilegível, mesmo quando travamos os olhares.

Eu temia que ele já soubesse o que havia me trazido para esta escola. Mas pior
do que isso, temi que ele não soubesse mas presumisse naturalmente.

“Peço desculpas pela grosseria dos meus colegas,” uma voz soou, me tirando
dos meus pensamentos.

O dono da voz, um jovem magro com pele de ébano e olhos penetrantes,


passou por alguns dos outros e estendeu a mão. “Eu sou Valen do Alto Sangue
Ramseyer. Nunca tivemos o prazer, mas—”

“Eu tenho negócios com o seu professor,” eu interrompi, ignorando sua mão
estendida enquanto varria um olhar frio através da multidão de alunos. “E
como ele mencionou… a aula acabou.”

O queixo do herdeiro Ramseyer cerrou quando ele recuou a mão antes de sair
andando de uma maneira arrogante. Os sussurros e murmúrios só
aumentaram enquanto o resto da classe seguia o exemplo. Apenas o último
aluno a sair ficou sem palavras, seu corpo magro curvado para frente enquanto
ele lutava para subir as escadas, seu olhar grudado em seus sapatos.

Endireitei minha blusa quando comecei a descer em direção a ele. Agora que
éramos apenas nós dois, minha mente começou a correr, tentando pensar nas
próximas palavras para quebrar essa tensão.

Soltando um suspiro, parei no meio da escada e me conformei com as


palavras, “É bom ver você de novo.”

Mais uma vez, fui recebida com silêncio, a única mudança em sua expressão
sendo uma sobrancelha levantada de suspeita.
Eu levantei minhas mãos em um gesto apaziguador enquanto também
mostrava meu anel a ele. “Eu apenas vim dizer ‘oi’ e conversar com um amigo.”

“E aqui estava eu preocupado que você estivesse me perseguindo,” ele


respondeu, inabalável em sua impassividade.

Eu balancei a cabeça seriamente. ”Ah, sim. Porque ansiava por sua presença
mal-humorada e vagamente ameaçadora.”

A menor contração perturbou o canto de seus lábios. “Eu não sou mal-
humorado.”

Soltei um escárnio quando me sentei no assento mais próximo. “Certo…”

Virando as costas para mim, Grey começou a mexer nos controles da


plataforma de treinamento. A sala de aula de Kayden tinha algo semelhante,
então eu deveria ter adivinhado o que estava para acontecer, mas—

Uma forte pontada de dor subiu pela minha parte traseira e nas minhas costas,
fazendo-me gritar e pular do assento.

Gray sufocou uma risada, finalmente abandonando seu comportamento frio


enquanto eu olhava para ele. “Pena que Regis está dormindo,” disse ele. “Ele
teria adorado isso.”

Esfreguei no local onde a runa indutora de dor havia me chocado. “Tão


infantil…”

Ele teve a boa graça de parecer envergonhado, esfregando a nuca – mas ainda
sorrindo como um idiota. “Eu estava terminando aqui. Quer dar uma
caminhada? Devíamos conversar sobre o que aconteceu.”

“Não,” eu rebati.

Depois, soltei um suspiro. “É, suponho que sim.”

Depois que ele trancou seu escritório e guardou a esmo alguns implementos
de treinamento, saímos do prédio, caminhando lentamente na direção do
Salão Windcrest, onde estávamos ambos hospedados.

“Então…” Comecei depois de um minuto de silêncio constrangedor. “Professor


Grey, hm?”

“É. Parece…”

“Cauteloso?” Eu terminei por ele.

Ele me deu um aceno rígido.


“Foi uma jogada inteligente,” afirmei com um leve sorriso. “O que você fez com
aqueles mercenários nas Relictombs… bem, é um segredo aberto que era você,
mas depois do seu julgamento, o Alto Salão não tinha interesse em persegui-
lo, e os Granbehls deixaram sua propriedade das Relictombs e voltaram para
Vechor, onde eles têm estado muito quietos.”

O ritmo de Grey gaguejou e suas sobrancelhas franziram. “Você está muito bem
informada.”

“Sim, bem, eu tenho meus recursos,” eu disse, observando um grupo de alunos


passar correndo.

A atividade constante e a agitação do campus sempre foram empolgantes e,


de certa forma, exaustivas para mim. Eu tive professores particulares
enquanto crescia, e quando Sevren, Lauden e eu nos socializávamos, era por
causa de jantares formais em nossa propriedade — ou na de algum outro Alto
Sangue. Só muito mais tarde, quando era adolescente, consegui frequentar a
academia, e mesmo assim apenas por duas temporadas. Embora muitos dos
alunos aqui fossem de Altos Sangues, meu sangue Vritra me garantiu que eu
sempre seria tratada como uma estátua cristalina ao invés de uma pessoa real.

Mesmo nas Relictombs, eu sempre fui protegida pelo disfarce de Haedrig e


pela presença de meus guardas, Taegan e Arian. A academia era diferente,
especialmente porque meu sangue adotivo junto com minhas próprias
realizações trouxeram uma boa quantidade de atenção indesejada.

“Lady Caera,” uma voz nítida anunciou atrás de nós. Grey e eu paramos e nos
viramos, e vi o rosto de Grey se achatar em uma máscara impassível pelo canto
do olho.

O dono da voz era um mago com cabelo excessivamente estilizado e um manto


vistoso. Eu não o reconheci.

“Lady Caera,” ele repetiu com uma reverência. Seus olhos permaneceram nos
meus, nem mesmo reconhecendo a presença de Grey. “Uma honra finalmente
conhecê-la. Eu sou Janusz do Sangue Graeme, professor de…”

“Com licença,” eu disse em um tom educado que ainda conseguia transmitir


minha rejeição. “Temo que você tenha interrompido minha conversa com o
professor Grey. Talvez possamos falar mais tarde, em um momento mais
apropriado.”

Com um breve aceno de cabeça, afastei-me do homem, que parecia como se


eu o tivesse esbofeteado.

Eu me virei para Grey, curioso para ver sua reação, mas o ascendente sem
coração já havia me deixado.

Idiota, pensei com uma carranca antes de alcançá-lo.


Eu me vi lançando olhares furtivos para Grey, observando seu perfil afiado
enquanto caminhávamos em silêncio. “Peço desculpas se algum boato se
espalhar porque você foi visto comigo.”

“Eu não sabia que estar em sua mera presença iria chamar tanta atenção,” Grey
disse, seu tom carregando apenas uma pitada de humor provocador. “Perdoe-
me por não saber o quanto isso é uma honra.”

“Você está perdoado,” respondi sabiamente antes de deixar escapar uma


risada suave.

“Talvez ter algum drama entre nós faça esses Altos Sangues se esquecerem de
mim.” O canto dos lábios de Grey curvaram-se levemente enquanto ele olhava
preguiçosamente para frente.

Eu zombei. “Você age como se a única coisa que valorizássemos fosse uma
fofoca interessante.”

“Não é?” Grey retrucou.

Balancei a cabeça. “Eu terei que apresentá-lo ao Professor Aphelion. Vocês


dois deveriam ser amigos rápido, dado o seu ódio mútuo pela classe nobre.”

“Já nos encontramos,” declarou Grey, antes de voltar seu olhar para mim. “Mas
eu gostaria de saber mais sobre ele.”

“Kayden do Alto Sangue Aphelion era um mago distinto,” eu respondi


enquanto passávamos entre a Capela e o portal das Relictombs. A moldura do
portal zumbia com energia, indicando que alguém acabara de usá-lo. “Uma
regalia em sua terceira runa, filho principal de sua casa, e na fila para ser o
próximo Alto Lorde antes de ser ferido na guerra.”

“Ele estava na guerra?”

Grey voltou a esconder suas emoções por trás de um rosto inexpressivo. Ele
poderia muito bem estar usando uma máscara.

“Ele estava,” eu disse, sem saber por que isso iria surpreendê-lo, ou mesmo se
ele estava surpreso. “O boato é…” Eu me segurei e deixei as palavras sumirem.
“Na verdade, não cabe a mim dizer. Mas é do conhecimento geral que ele foi
capturado e torturado pelos cidadãos de Dicathen.”

Gray franziu a testa e pareceu se concentrar ao longe. Eu não pude deixar de


me perguntar que memória havia surgido. Ele havia perdido pessoas na
guerra?

“Eu falei algo errado?” Eu perguntei.

“Não. Estou apenas… pensando na guerra,” disse ele.


Eu parei, mordendo meu lábio enquanto pensava sobre o que Grey havia dito.

De repente, tudo fez sentido. Sua insistência em fazer as coisas sozinho e evitar
os outros, a maneira como ele parecia se afastar de si mesmo sempre que
Dicathen ou a guerra eram mencionados, como ele nunca falava sobre sua vida
antes das Relictombs…

“Você estava na guerra, não estava?”

Gray congelou antes de virar em minha direção, seus olhos normalmente


apáticos agora frígidos e afiados. “O que te faz pensar isso?”

Eu hesitei. Parecia claro como o dia, agora que fiz a conexão, mas também era
o interesse de minha mentora por ele. Mas eu não tinha certeza se poderia –
ou deveria – confirmar que Foice Seris era minha mentora ainda.

“Esquece,” disse ele com uma única sacudida afiada de sua cabeça. “Isso não
importa. Sim, estava, mas prefiro não falar sobre isso.”

“Sinto muito. É claro,” respondi.

Grey não seria o único soldado que ficou marcado na guerra. Quando ele
recusou o convite dos Denoirs, eu atribuí isso à sua individualidade frustrante,
mas agora podia ver como ele evitava intensamente qualquer uma das redes
políticas tecidas na sociedade alacryana. Eu não insisti no assunto, apesar da
curiosidade feroz que eu tinha por este misterioso ascendente e seu passado.

Ainda assim, não pude deixar de pensar na guerra enquanto caminhávamos


em silêncio. A guerra em si era um tópico regular de conversa entre os sangues
nomeados e os Altos Sangues, mas eu nunca me imaginei lutando contra
Dicathen, muito menos pensei em como isso poderia ter me mudado.

Eu nunca ansiei pelo tipo de glória que a guerra traz. Não tinha interesse em
matar aqueles que nunca me fizeram mal, independentemente de onde
nasceram ou a quem juraram fidelidade.

E por causa dos ensinamentos de Foice Seris, eu sabia que a expansão do Alto
Soberano para Dicathen era egoísta, na melhor das hipóteses, e que não
beneficiava o povo de Alacrya, nobreza ou não. Eu não conseguia imaginar ser
forçada a lutar por uma causa que não apoiei.

Se minha vida tivesse sido diferente, entretanto, se Foice Seris não tivesse
escondido a manifestação de meu sangue, eu poderia muito bem ter sido
treinada para o massacre e lançada contra os habitantes de Dicathen.

E então? Eu teria retornado como Grey, quieta, fria e muitas vezes ilegível? Ou
eu teria me tornado mais como Kayden, indisposto e agindo como se nada no
mundo importasse mais?
Obriguei-me a me concentrar na copa das árvores e nos pássaros cantando ao
meu redor, afastando quaisquer pensamentos sobre a guerra. Não havia
benefício em pensar sobre tudo isso agora.

Quando finalmente alcançamos o salão Windcrest, segui Grey até seu quarto.
Enquanto ele segurava a porta aberta para mim e eu via o interior, não pude
deixar de rir.

Ele checou o quarto, carrancudo. “O quê?”

“Desculpe, é exatamente como eu imaginei. Totalmente desprovido de


pertences pessoais ou confortos caseiros. Parece que você está pronto para
partir a qualquer momento.”

Grey me olhou com uma sobrancelha levantada. “Isso é meio rude. Como é o
seu quarto então? Você trouxe toda a sua coleção de bonecos de pelúcia com
você?”

Eu fiquei boquiaberta com ele, então estreitei meus olhos e cruzei os braços
defensivamente. “Para que você saiba, eu só trouxe um, e seria um insulto
chamá-lo de mero ‘boneco de pelúcia’, considerando o quão feroz ele parece.”

Sua fachada de gelo rachou momentaneamente, deixando passar um sorriso


breve, mas brilhante, que me lembrou de nosso tempo nas Relictombs. As
coisas sempre foram mais fáceis sem as distrações da vida “normal”.

Ajudando-me a sentar no tabuleiro de Disputa dos Soberanos, li a inscrição e


corri os dedos ao longo de uma das peças de pedra vermelha. “Eu gosto do
Hercross vermelho e cinza,” eu disse distraidamente. “É mais impressionante
do que as peças simples em preto e branco que tenho.”

Sem preâmbulos, Grey retirou alguns itens de seu armazenamento


dimensional. “Já era hora de eu devolver isso.”

Ele estendeu a adaga de lâmina branca do meu irmão, punho primeiro. O


medalhão Denoir pendia dele, refletindo a luz enquanto girava lentamente.

Eu resisti ao impulso de seguir a localização de Grey usando o medalhão


depois que ele foi liberto do Alto Salão. Mesmo quando meus pais e mentora
insistiram para que eu espionasse pra eles, não ativei a função de
rastreamento. Eu queria ganhar a confiança do homem, e persegui-lo com
magia parecia uma maneira ruim de fazer isso.

Ainda assim, havia um certo conforto em saber que eu poderia encontrá-lo se


realmente precisasse. A ideia de desistir dessa capacidade me deixava
inquieta.

“Fique com eles,” eu disse, minha voz tremendo levemente. “Sevren ficaria feliz
em saber que sua adaga continua a ser usada nas Relictombs.”
“E você não quer sacrificar seu poder para me rastrear, se necessário,”
acrescentou. As palavras não eram cruéis ou raivosas, apenas prosaicas.

“Não foi o que eu—”

“Eu já perdi a capa do seu irmão,” ele interrompeu. “Se esta adaga é tudo que
você tem para se lembrar dele, então você deve ficar com ela. Quanto ao
medalhão, não vou precisar da proteção do Alto Sangue Denoir.”

Eu tive um nó na garganta quando pensei em Sevren. Lenora e Corbett


decidiram que ele devia estar morto e decidiram seguir em frente antes
mesmo de eu receber a confirmação de Grey, mas eu sempre mantive
esperanças. Ver Grey com aquela adaga e o manto azul-petróleo que Sevren
preferia tinha frustrado essa esperança, mas falhou em fornecer qualquer
fechamento real.

“Você está certo,” eu disse depois de respirar fundo. “Obrigada.”

O cabo de prata escovado era frio ao toque. Pressionei meus dedos nas
ranhuras, mas elas eram grandes demais para mim. Puxando a bainha para
examinar a lâmina, minha respiração ficou presa na minha garganta. Inscrito
na base da lâmina estava um símbolo: um hexágono com três linhas paralelas
esculpidas dentro dele.

“O que é?” Grey perguntou, estudando minha expressão cuidadosamente


enquanto se sentava na minha frente.

“Nada, é só que…” Deslizando a bainha de volta ao lugar, guardei a adaga e o


medalhão em meu novo anel dimensional. “Antes, na sala dos espelhos,
enquanto eu ainda era…”

“Haedrig?” Grey perguntou quando eu hesitei.

“Sim. Eu disse que tinha estudado éter um pouco.” Grey acenou com a cabeça
enquanto se inclinava para frente em sua cadeira. “Foi principalmente Sevren
quem estudou éter. Isso é o que a insígnia é: uma runa antiga que significa
éter. Três marcas para tempo, espaço e vida, e o hexágono como um símbolo
de conexão, ligação e construção. Ele o usou como uma espécie de…
assinatura, suponho. Algo que ele começou quando criança, marcando coisas
com o símbolo do éter para dar a elas ‘poder’. Ele nunca parou de fazer isso.”

“Entendo.” A atenção de Grey permaneceu no anel onde a adaga estava agora


armazenada. “Eu não percebi. Eu não tinha visto essa runa em particular
antes.”

Girei o anel em volta do meu dedo enquanto as animadas conversas com


Sevren sobre magia e as Relictombs voltavam para mim. “Ele achava que havia
mais nas Relictombs do que os Soberanos nos contaram. Que, ascendendo,
poderíamos aprender como fazer o que eles fizeram… manipular a estrutura
da realidade por meio do éter.”

Grey começou a mexer no tabuleiro do jogo, movendo um escudo central para


a frente. “É isto que você acha?”

Eu não tinha certeza se ele queria jogar ou estava apenas se mexendo, mas
rebati pegando um conjurador ao longo da borda direita para ameaçar
qualquer peça que passasse da linha. “Bem, eu te conheci nas Relictombs, e
você pode empunhar éter, então…”

Grey estava impassível enquanto movia um segundo escudo para apoiar o


primeiro.

Enfiei uma mecha de cabelo azul atrás da orelha enquanto enviava outro
lançador ao longo do lado esquerdo da placa para forçar sua sentinela no
meio.

A chave para a verdadeira vitória na Disputa dos Soberanos era garantir um


caminho através do tabuleiro. Isso exigia premeditação, mas também
criatividade. Era um jogo lento e cauteloso. Alternativamente, ao focar apenas
na destruição do Sentinela inimigo, era possível terminar o jogo rapidamente,
mas muitas vezes deixava os dois jogadores insatisfeitos.

“Nós dois sabemos que você estar aqui não é coincidência,” Grey disse
enquanto fazia seu próximo movimento.

“Não,” eu admiti, pesando meu movimento – e minhas palavras –


cuidadosamente. “Não é.”

Decidindo que uma ação ousada era necessária, movi um atacante para o
centro do campo. “Quando você não se jogou aos pés dos meus pais adotivos
após o julgamento, eles arranjaram para que eu ajudasse o Professor Aphelion
a fim de espioná-lo e… conquistá-lo, se eu pudesse. Minha mentora” — segurei
o nome de Foice Seris, ainda hesitante em revelar essa conexão — “me pediu
para ficar de olho em você também, separadamente.”

O foco de Grey nunca saiu do tabuleiro. Ele não vacilou, franziu a testa ou
piscou. Trocamos alguns movimentos antes que ele falasse novamente.

“Acho que sou muito popular.”

Eu fiz beicinho e olhei para ele com raiva. “Você é uma aberração com a qual
ninguém parece saber o que fazer e, por minha própria imprudência, fui
algemada com a responsabilidade de ter notícias sobre você.”

Grey piscou surpreso, ao que respondi com uma risada genuína. “Eu só estou
brincando… pelo menos parcialmente. Acho que forçar a me tornar uma
assistente do Professor Aphelion também foi a maneira de meus pais me
punirem por fugir.”
O misterioso ascendente coçou desconfortavelmente o cabelo louro-trigo e
seus olhos perderam o foco por um instante.

“Oh, então você escolheu acordar agora,” ele disse asperamente.

Eu levantei uma sobrancelha para ele, não entendendo até um momento


depois, quando a pequena e feroz forma de cachorrinho de Regis saltou de seu
lado e caiu no chão com um tropeço.

“De novo?” Eu perguntei enquanto ele se virava, sua cauda de fogo


balançando. “Seu mestre está abusando de você?”

O filhote se jogou de costas e olhou para Grey, o focinho enrugado


condescendentemente. “Meu estado atual foi devido à negligência grosseira
dele, sim.”

Sorrindo, me abaixei para acariciar a cabeça dele. “Sinto muito. Você fica muito
mais grandioso quando está em tamanho completo.”

O peito peludo de Regis inchou. “Eu sei, ok?”

Eu me virei para Grey, que estava olhando para o filhote de lobo das sombras
daquela maneira que ele fazia quando eles estavam se comunicando
mentalmente. “É rude excluir convidados da conversa, sabe?”

Grey fez uma careta e coçou a nuca. “Eu estava apenas o mantendo atualizado.
Ele esteve fora por um tempo.”

Esperei que Grey dissesse mais alguma coisa, para retomar nossa conversa
anterior — me perguntar coisas, me dizer para sair, qualquer coisa — mas ele
permaneceu em silêncio. Cansada do jogo, decidi que uma verdadeira vitória
não estava nas cartas naquele dia. Usando um conjurador que permiti ficar
isolado perto de sua propriedade, matei um escudo encalhado e parei alguns
espaços de sua sentinela.

“Você planeja seguir em frente com o que os Denoirs e esta Foice mentora
misteriosa pediram?” Ele disse finalmente, deslocando sua sentinela para
frente.

Eu senti o sangue subir no meu rosto. Isso é exatamente o que mais me


preocupava: que, mesmo depois de tudo que passamos juntos nas Relictombs,
ele ainda não confiasse em mim.

“Se você acha que eu iria espioná-lo mesmo depois de informá-lo de que fui
enviada para espioná-lo, então um de nós não merece estar moldando jovens
alacryanos, embora eu não possa ter certeza se esse alguém é você ou eu.”

“Por que você está aqui, de verdade?” Ele perguntou, seu olhar firme me
prendendo à minha cadeira.
A pergunta não deveria ter me pegado desprevenida, mas eu ainda me debatia
para formar uma resposta.

A verdade é que eu não conseguia afastar a sensação de que Grey era de


alguma forma a chave para desvendar os segredos das Relictombs. Ele era um
enigma, uma pessoa diferente de todas as que eu já conhecia, e não pude
deixar de me sentir atraída por ele. Sentada em frente a ele agora, sentindo o
peso de sua atenção me esmagando, eu sabia que era tolice chamar meus
sentimentos por ele de românticos. Era um fascínio, e eu sabia que isso levaria
a algo perigoso para nós dois.

Eu queria ver o que ele iria realizar. Não para desfrutar da glória refletida de
suas realizações, mas para fazer parte de qualquer mudança que ele causasse
no mundo, para ter o poder de fazer minha voz ser ouvida.

Pegando minha peça de de conjurador, fiz meu movimento final.

“Porque eu confio em você, Grey. Não há muitas pessoas nesta vida sobre
quem eu possa dizer isso, mas confio em você e ainda espero ganhar sua
confiança pra mim mesma.”

Ele encontrou meus olhos. Por um momento, sua máscara caiu. Eu vi surpresa
e dúvida nas linhas de sua testa, apreciação na curva de seus lábios,
admiração e medo em seus olhos… Seu rosto carregava um mundo de emoções
conflitantes, na duração de batimento cardíaco, e quando a máscara voltou a
subir no momento seguinte, eu entendi.

Ninguém conseguia suportar o peso de todos aqueles sentimentos


contraditórios o tempo todo, então ele os enterrou.

“Bom,” disse ele com firmeza, seus olhos no tabuleiro em vez de mim. “Porque
pessoas dignas de confiança são raras, e eu também gostaria de poder confiar
em você.”

Como se não estivéssemos falando de nada mais urgente do que o clima, Grey
agarrou uma peça de atacante e a deslizou pelo tabuleiro, através de uma
lacuna em minhas defesas que eu não tinha notado, e a acertou contra minha
sentinela. A peça caiu na mesa com um barulho.

Eu fiquei boquiaberta. Embora Grey tenha me derrotado por acaso quando


jogamos nas Relictombs, foi apenas porque eu tinha sido gananciosa, muito
focada na verdadeira vitória. Desta vez, ele armou e colocou a isca na
armadilha, então esperou que eu caísse nela.

Grey recostou-se na cadeira e cruzou os braços. “Vamos continuar deixando os


Denoirs pensarem que você está fazendo o que eles querem. Envie um
relatório, diga a eles o que quiser.”
Eu arrastei meu olhar para longe do tabuleiro, onde eu estava absorta
refazendo os últimos movimentos. “O quê? Tem certeza?”

O ascendente de olhos dourados apenas balançou a cabeça. “A maneira mais


certa de perder uma guerra é com um mensageiro traidor.”

Regis balançou a cabecinha para seu mestre. “Ele diz coisas tão assustadoras
com tão poucas emoções…”

“Bem, agora que todos nós nos encontramos e concordamos em confiar uns
nos outros…” Grey se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos na mesa, um
brilho de fogo em seus olhos dourados como mel. “O que você acha de me
ajudar a roubar uma relíquia morta?”

Capítulo 351
Minimamente Catastrófico

“Pegou?” Eu perguntei enquanto Caera abaixava o capuz de sua capa e fechava


a porta. Seu cabelo azul estava úmido e grudento, e a água que gotejava dela
formava uma poça nos ladrilhos.

“Claro”, disse ela com confiança, um brilho malicioso em seus olhos.

Com um floreio, ela ativou seu anel dimensional e retirou uma orbe cor de
estanho do tamanho de meus dois punhos unidos. A parte externa, de metal,
tinha marcas de bolhas e era coberta por saliências e fendas, fazendo com que
parecesse uma esponja metálica redonda.

Caera segurou a relíquia, e eu cuidadosamente a peguei de suas mãos.

“É pesada”, comentei, movendo-a para cima e para baixo na minha mão para
sentir o peso. “Isso vai fazer diferença?”

Ela retirou a capa ensopada e pendurou-a na porta. “Espero que não. Não vi
nenhuma runa que indicasse a sensibilidade à pressão gravada no pedestal
do mostruário, e você?”

“É verdade, não vi”, respondi. “E parece improvável que as relíquias mortas


sejam removidas de seus estojos com frequência. Quando alguém descobrir a
que a peça foi trocada—”

“O professor Grey e a professora assistente Denoir já terão saído há muito


tempo da Academia Central”, concluiu ela.

Caera foi surpreendentemente receptiva à minha ideia. Eu sabia, por nossas


aventuras nas Relictombs, que ela tinha uma tendência rebelde e um tanto
imprudente, mas imaginava que seria mais difícil convencê-la. Sempre
perceptiva, ela entendeu minha intenção imediatamente e concordou
rapidamente. Então, passamos o resto da tarde e da noite formulando um
plano.

Juntos, discutimos os pontos fortes de cada relíquia – ou pelo menos o que


poderíamos aprender sobre elas nos livros e com questionamento cuidadoso
de Caera ao curador. Pessoalmente, eu queria levar duas ou três, mas Caera
sugeriu, com razão, que isso acrescentaria uma camada desnecessária de
risco. Depois de discutir o que o roubo exigiria, finalmente decidimos por uma
única relíquia morta para “libertar” do Relicário. De todas as relíquias
disponíveis, eu não via como que apenas uma poderia me dar um aumento
considerável de poder, então acabamos escolhendo aquela que os Alacryanos
menos conheciam, que também era a adição mais recente da Academia
Central.

Embora o curador não dissesse por que o Foice Dragoth trouxera o orbe para
a Academia Central, ele ficou entusiasmado ao discutir seus poderes – o pouco
que se sabia sobre eles – com Caera.

De acordo com o velho, a relíquia morta era única porque sua forma não
fornecia pistas sobre sua função. A superfície marcada por pequenos furos não
era seu estado natural, mas sim uma consequência do desgaste; quando a
relíquia foi descoberta pela primeira vez, estava sem mácula, uma perfeita
esfera de prata, mas quando removida das Relictombs ela se decompôs
rapidamente. Os Instiladores presumiam que era algum tipo de ferramenta –
talvez algo usado na construção das próprias Relictombs – e a repentina
degradação era uma espécie de mecanismo de defesa para evitar que os
segredos dos magos antigos fossem descobertos. O curador não possuía mais
informações pra oferecer à Caera, no entanto.

A ideia de ter uma ferramenta dos djinn, algo que me permitisse manipular as
Relictombs diretamente, era boa demais para deixar passar.

“E você tem certeza que a artesã-”

“Não é incomum que Altos Sangues mandem fazer relíquias falsas para
impressionar seus amigos – e rivais.” Caera indicou a orbe falsa com um sorriso
malicioso. “Ela ficará quieta sobre isso, já que lábios soltos, neste caso,
provavelmente resultariam em sua morte.”

“Ainda assim, se ela…”

Caera acenou para que não me preocupasse. “Eu estava disfarçada, como você
sabe, e fingia representar um sangue diferente. Então, mesmo se ela falasse,
eu não seria envolvida.”

Imbuindo minha runa de armazenamento extradimensional com éter, eu


guardei a falsa relíquia. “Que sangue você personificou?”

O brilho malicioso nos olhos de Caera voltou. “Ah, eu acho que você sabe qual.”
Regis latiu de tanto rir, quase caindo para trás em sua forma diminuta. Bem
feito praqueles idiotas dos Granbehl. Quase me faz querer que essa artesã
obscura se volte contra eles – ou melhor, contra nós, algo assim.”

Joguei minha própria capa branca sobre os ombros, dando a Caera um sorriso
divertido. “Se as coisas correrem mal, pelo menos haverá lado positivo.”

Caera puxou o pingente de lágrima que ela sempre usava e sussurrou um


encantamento. Seus traços borraram de uma forma que fez meus olhos se
contorcerem de desconforto, então ela se transformou no familiar ascendente
de cabelos verdes, Haedrig.

“Isso é realmente estranho de se ver,” eu disse, examinando o rosto e o corpo


em busca de qualquer indício de Caera por baixo.

Haedrig jogou o quadril e piscou para mim. “Qual é o problema, Grey?” ele
disse em sua voz rouca. “Já não sou atraente pra você?”

Regis deu uma volta lenta em torno de Haedrig, farejando suas botas. “Eu não
sei como me sentir sobre isso, para ser honesto. Por exemplo, o que acontece
com os seus peit—”

“Será que podemos levar isso um pouco mais a sério?” Eu interrompi enquanto
subia meu capuz. “Estamos prestes a cometer um crime grave.”

Haedrig, que acabara de conjurar um manto verde imundo de seu anel


dimensional, franziu a testa e coçou a barbicha no queixo. “Não sei do que
você está falando. Eu só vou dar um passeio até o Relicário…”

“Não ligue para ele”, disse Regis. “Apenas nervosismo pré-furto.”

“Vamos indo”, eu disse, gesticulando para que Regis voltasse para o meu
corpo. “O Relicário deve ter acabado de fechar.”

Caera – ou Haedrig – foi na frente no caminho para o corredor que conectava


as muitas suítes em Windcrest. Haedrig foi para a esquerda, seguindo um
caminho mais direto até a saída, enquanto eu virei à direita, pra dar a volta.

O tempo estava ruim. A chuva caía do céu e relâmpagos ocasionais revelavam


um campus enlameado. O clima foi uma coincidência de sorte; isso significava
que haveria muito menos pessoas andando por aí.

Puxando o manto branco brilhante mais perto de mim, eu mergulhei na


tempestade. A chuva estava implacável, mas, seja por sua natureza mágica ou
pela qualidade do trabalho artesanal, a capa me manteve quente e
relativamente seco.

Eu não conseguia ver Haedrig, mas podia ouvir uma melodia cadenciada e
bêbada de algum lugar à frente, abafada pelo barulho da chuva torrencial.
‘Nunca imaginei que a bela senhorita Caera soubesse uma canção tão
sugestiva…’ Disse Regis, cantarolando ele mesmo a melodia.

Aos poucos, as lanternas brilhantes que iluminavam a entrada da capela se


tornaram visíveis entre as grossas cortinas de chuva. Haedrig já estava subindo
as escadas para as portas duplas ainda abertas e o guarda que estava ao lado
delas.

Haedrig fez uma pausa enquanto o guarda se dirigia a ele, mas eles estavam
muito longe e a tempestade era muito barulhenta para eu ouvir. Presumi que
o guarda estava simplesmente informando-o de que o Relicário estava
fechado, mas já sabíamos disso. Haedrig assentiu e entrou no prédio,
tropeçando na soleira.

Um corredor externo formava um retângulo ao redor de um grande espaço


central onde as relíquias mortas e outras contribuições mais valiosas foram
exibidas. Enquanto o salão de entrada foi deixado aberto – mas não
desprotegido – o próprio Relicário foi fechado e trancado após o expediente.

O guarda estava observando Haedrig de perto. Após um momento de suposta


indecisão, ele abandonou seu posto para seguir o suposto bêbado.

Movendo-me rapidamente, com minhas costas curvadas e minha capa ainda


bem puxada ao meu redor, eu me dirigi para as portas da capela. Para qualquer
um que estivesse assistindo, eu pareceria apenas alguém pego na tempestade
e procurando abrigo.

Subindo pelos os degraus de pedra três de cada vez, parei para ouvir do lado
de fora.

“… disse, está tudo bem“, Haedrig estava quase gritando do corredor. “Eu só
quero entrar e dar uma olhada na minha velha” – Haedrig arrotou alto –
“armadura”.

Uma voz clara e autoritária respondeu. “E, como eu disse a você, não está tudo
bem, senhor. Você terá que voltar amanhã, quando o relicário estiver aberto.”

Haedrig respondeu com um bufo e o nariz congestionado. “Eu tenho amigos,


sabe! Amigos poderosos. Eu conheço quase todo mundo. Tenho certeza que
alguém vai me deixar entrar. ”

“Senhor!” o guarda insistiu. Se você não…”

Um longo estrondo de trovão cortou o resto da ameaça do guarda. Espiei o


corredor bem a tempo de ver Haedrig virando a esquina com dois homens
armados e blindados seguindo logo atrás.

Eu sabia que haveria mais dois guardas no corredor externo. Focalizando o


éter em meus ouvidos, escutei atentamente seus passos: parecia que eles
estavam do outro lado do prédio, circulando de volta para a origem do
alvoroço. Estremeci quando Haedrig começou a gritar sobre ter todos eles
jogados no mar antes de cortar o fluxo de éter para meus ouvidos, permitindo
que minha audição voltasse ao normal.

Antes de entrar no prédio, deixei meus olhos se reorientarem para ver os


caminhos etéreos conectando todos os pontos ao meu redor. Eu não
conseguia ver além da parede oposta e da porta do Relicário, mas observei
cuidadosamente os caminhos da porta de volta para a chuva.

Correndo pelo corredor até a porta do Relicário, examinei a maçaneta de ferro


preto. Assim como era costume na academia, a porta estava trancada com uma
runa. Ao contrário das portas do meu quarto ou escritório, no entanto, havia
uma runa brilhante colocada na base desta maçaneta. Ela combinava símbolos
do atributo de fogo e de transferência de mana, sugerindo que tocá-lo
resultaria em uma experiência ruim.

Vá.

Regis, em sua forma de fiapo preto sombrio, saiu do meu peito e passou
diretamente pela porta fechada.

Embora eu não pudesse ver através de seus olhos, eu podia sentir as emoções
de meu companheiro e ouvir seus pensamentos enquanto ele examinava o
interior da sala em busca de defesas adicionais.

No corredor mais distante, Haedrig começou a gritar sobre “respeito” e “honra”


e “os bons e velhos tempos.”

‘O chão atrás de cada porta estava marcado com outra runa. Ela…’ Regis parou
em um silêncio pensativo enquanto tentava ler as runas. ‘Qualquer um que
passar por cima desta coisa terá seu núcleo de mana drenado. A runa captura
a mana… provavelmente para que eles possam identificar quem era. ‘

Eu dei um sorrido na direção da porta. Fácil. E a fechadura? Você pode abri-lo


desse lado?

‘Não tão fácil,’ disse Regis, sua preocupação visível em suas palavras. “Não há
alça ou maneira de liberar a trava do interior.”

Em nosso reconhecimento do Relicário, Caera e eu passamos quase duas horas


inteiras inspecionando o prédio e as vitrines o mais de perto que podíamos,
sem levantar suspeitas. Embora estivesse claro que as portas tinham
maçanetas apenas do lado de fora, não tínhamos certeza se elas poderiam ser
abertas de alguma outra maneira de dentro da sala.

Tive uma ideia, mas não tinha certeza se funcionaria. Regis, preciso que você
imagine os arredores o mais claramente possível e me envie esse
pensamento. O mais claramente possível, certo?

‘Sim, sim, entendi.’


Eu dei um passo para trás e me concentrei nos caminhos etéreos novamente,
até onde eles paravam na porta fechada. Quando a imagem mental do interior
do Relicário começou a se formar em minha mente, conectei-a aos caminhos
fractais roxos que eu podia ver, formando um mapa mental de onde
eu imaginava que eles continuassem.

Três Passos me ensinou não apenas a procurar os caminhos, mas a senti-los e


deixar que me guiassem. Isso tornou a habilidade muito mais rápida e eficiente
de utilizar, mas também – teoricamente – significava que eu poderia usar o
God Step para me mover para algum lugar que não pudesse ver diretamente.

Ativando a runa divina, desapareci com um flash de luz ametista.

E apareci do outro lado da porta, estalando com energia etérica. Além do fato
de que tinha funcionado – acabei de me teletransportar por uma porta sólida,
percebi com prazer – a sensação mais emocionante era o quão pouco éter a
runa divina havia consumido. Embora eu ainda não tivesse sido capaz de
absorver éter atmosférico suficiente para preencher meu núcleo recém-
fortalecido, God Step consumiu apenas uma fração de minhas reservas
etéricas.

A emoção de usar a runa divina pela primeira vez desde que forjei a segunda
camada do meu núcleo de éter foi interrompida por uma sensação de
formigamento por todo o meu corpo.

Sob meus pés, a armadilha rúnica foi ativada e estava tentando sugar toda a
minha mana. Dei um passo pra fora da armadilha, com meu núcleo de éter
imperturbado pela magia. Eu presumia que a runa teria tirado alguma mana
ambiente de meu corpo – os traços de mana de água ou de terra que
naturalmente permaneciam perto de mim – mas sem nenhum núcleo de mana
para manipulá-la, os pequenos traços de mana não carregariam qualquer
assinatura da minha identidade.

Eu sabia que não tinha muito tempo antes que a situação entre Haedrig e os
guardas piorasse, então me forcei a concentrar novamente na missão.
Movendo-me rapidamente para o meu objetivo, examinei o pedestal que o
sustentava, procurando por quaisquer proteções ou runas que Caera e eu não
tínhamos notado antes.

Ao contrário das runas de proteção atrás das portas, que não estiveram lá
durante o dia, a base de pedra na qual a relíquia morta estava em exibição
não revelava nenhuma nova proteção. Mas isso não significa que estava
desprotegido.

Uma série de runas complexas foram gravadas ao redor da base do mostruário


para evitar que alguém a tocasse. Um leve toque recompensaria o agressor
com um choque, e o mostruário tremeria para alertar o curador. Qualquer
coisa além de um leve toque – por exemplo, tentar levantar o vidro e acessar
a relíquia morta dentro – liberaria um choque paralisante de eletricidade
antes de emitir um alarme estridente que metade do campus provavelmente
ouviria.

Eu só tinha pensado em uma maneira de burlar as runas sem acionar o alarme.

Manifestando éter em minha mão, formei uma única garra. Eu também me


envolvi em uma barreira de éter protetora antes de me ajoelhar ao lado do
pedestal. Alinhando a garra com as runas – começando com aquelas
responsáveis por criar o efeito de alarme – eu cortei a pedra.

Quando a garra cravou no mármore, um raio de um azul vibrante saltou para


minha mão, queimando a camada de éter e queimando meus dedos antes que
eu pudesse reagir. Reforçando o éter, concentrei-me em redirecionar e
canalizar a eletricidade, forçando-a a deslizar e pular pela superfície da
barreira.

Ela subiu pelo meu braço, pelo meu peito e desceu pelo meu outro braço. Se
eu deixasse a corrente elétrica supercarregada voar para dentro da sala,
provavelmente faria um buraco na parede ou destruiria uma das outras
relíquias mortas. Em vez disso, pressionei minha mão firmemente sobre o
restante das runas para que o relâmpago viajasse em um círculo, batendo de
volta nas mesmas runas que o conjuraram.

O mármore se partiu com um estalo alto.

Eu congelei, meu coração disparado, ouvindo atentamente por qualquer


indicação de que o barulho tinha sido notado.

Trovões estavam ressoando ao fundo, e eu podia ouvir a discussão de Haedrig


com os guardas através das paredes.

Eu esperava que fosse o suficiente para encobrir o som de pedra quebrando.

“… nome de Vitra, o que foi isso?”

“Vá dar uma olhada,” a mesma voz autoritária de antes ordenou.

Merda.

‘É melhor se apressar’ Regis avisou, sua forma de cachorrinho me observando


com olhos arregalados.

Eu ignorei a queimadura com padrão de raio já se curando em meus braços e


torso, focando em vez disso na relíquia diante de mim.

A relíquia também era protegida por uma caixa de vidro, que por sua vez, era
resguardada por uma série de runas que a fortaleciam e protegiam de ataques
mágicos, mas ela não reagiu quando a levantei do pedestal e coloquei
cuidadosamente no chão. Antes de tocar na relíquia real, retirei a falsa da
minha runa dimensional e a segurei ao lado da original, que estava sobre um
travesseiro de veludo quadrado. Elas eram idênticas.

Muito bem, Caera, pensei enquanto pegava a relíquia morta com a outra mão.

Era leve como uma pena e não parecia pesar nada em comparação com a cópia
de estanho pesado.

Tomando muito cuidado, lentamente coloquei a peça substituta no


travesseiro. A relíquia falsa afundou no tecido macio, e fiquei com a sensação
imediata de que havia algo errado, mas antes que eu pudesse pensar em algo
mais para fazer, ouvi o barulho pesado de uma fechadura mágica sendo
acionada.

‘Art, alguém está vindo!’ Regis gritou mentalmente enquanto pulava em torno
de meus pés.

A porta mais próxima de onde Haedrig estava gritando se moveu quando


alguém puxou a maçaneta.

Ao mesmo tempo, houve um baque surdo quando um corpo bateu contra uma
das paredes. “Tire suas mãos de mim!” Haedrig gritou.

A porta parou, aberta apenas em uma fresta de alguns centímetros.

Eu observei a relíquia falsa afundar no travesseiro. Com algum tempo… mas


isso era uma coisa que eu não tinha.

Amaldiçoando novamente, rapidamente peguei o invólucro de vidro e coloquei


ele com cuidado sobre o topo do pedestal.

Colocando a mão sobre as runas queimadas pelo raio, eu ativei o Réquiem de


Aroa, enchendo o museu com uma luz dourada enquanto a runa iluminava sob
minha túnica. Partículas roxas cintilantes dançavam ao longo do meu braço e
através do pedestal, limpando as rachaduras, queimaduras e marcas de garras
e deixando para trás mármore imaculado. As runas de proteção ao longo da
base brilhavam fracamente na luz sombria, indicando que estavam
funcionando novamente.

A porta começou a se abrir novamente. Do outro lado estava um jovem guarda.


Uma mão estava em sua espada, a outra na maçaneta da porta, mas sua cabeça
estava voltada para olhar o corredor, seu foco ainda, por aquele instante, em
Haedrig.

Eu conjurei um mapa dos caminhos etéreos em minha mente ao mesmo tempo


em que Regis saltava e desaparecia em meu corpo. No espaço de um único
batimento cardíaco, conectei os caminhos que pude ver com minha imagem
mental àqueles do outro lado da porta.

Respirando fundo, eu ativei o God Step.


A primeira sensação que tive foi da chuva fria batendo contra todas as partes
do meu corpo ao mesmo tempo. O raio etéreo que saltou e dançou em minha
pele formou um arco na chuva, fazendo o ar ao meu redor estalar e chiar.

A segunda sensação que senti foi meu coração pulando várias batidas quando
percebi que uma figura estava surgindo na escuridão, vindo direto para mim
com a cabeça baixa contra a chuva forte.

O éter fluiu para cobrir meu corpo enquanto eu me preparava para me


defender, mas a pessoa curvada parou tão de repente que quase caiu no chão
quando seus pés escorregaram nas pedras molhadas.

Estendendo a mão instintivamente, agarrei-o por baixo do braço para evitar


que caíssem.

“Pelos chifres sangrentos de Vritra!” uma voz masculina exclamou debaixo de


seu capuz.

Olhamos um para o outro.

“Professor Aphelion…” Eu disse, enquanto ainda segurava o braço dele.

“Professor Grey, eu…”

Seus olhar estava arregalado e perscrutador, indo do meu rosto para a mão
segurando seu braço para a entrada da capela atrás de mim, onde eu já podia
ouvir o barulho dos guardas lutando com Haedrig.

Minha mente disparou.

Eu não tinha certeza do que o professor tinha visto, ou por que ele estava lá.
Se ele tinha me visto aparecer do nada envolto em um raio de ametista, então
ele era um risco. Eu considerei simplesmente quebrar seu pescoço e usar o
God Step pra me afastar novamente, mas isso definitivamente complicaria a
situação. Além disso, eu realmente não sabia o que ele tinha visto, e assassinar
um homem inocente – mesmo um alacryano – não me pareceu bem.

Uma comoção na entrada da capela atraiu nossa atenção quando três guardas
apareceram, meio arrastando, meio empurrando um Haedrig semi-desmaiado.

“Vocês dois aí!” um dos guardas gritou. “O que vocês estão fazendo aqui?”

Haedrig estava pendurado nos braços dos guardas, seus olhos semicerrados,
mas eu peguei o olhar furtivo que ele me lançou, e o aperto de sua mandíbula
quando ele notou o Professor Aphelion. Outro guarda apareceu na porta
aberta da capela, com o lábio sangrando e as sobrancelhas voltadas para baixo
em uma carranca trovejante.
O professor puxou o braço do meu aperto e mancou passando por mim
enquanto eu canalizava o éter em minha mão e me preparava para eliminar
todas as testemunhas, se necessário.

“Olá, amigos”, disse ele amigavelmente, dirigindo-se aos guardas. “Eu


perdoarei sua grosseria devido ao que parece ser uma situação bastante
tensa, mas você está falando com dois professores da Academia Central.”
Simplesmente notamos a ausência de um guarda na porta da capela e viemos
investigar. ”

“Minhas desculpas, senhores”, disse o guarda rapidamente, fazendo uma


reverência rasa e forçando Haedrig a fazer o mesmo. “Este bêbado estava
causando uma confusão, e pensamos…”

“Que nós éramos seus cúmplices, vindo para ajudar em suas travessuras?”
Professor Aphelion riu alto. “Não, mas vocês três têm a honra de maltratar…
uh-”

“Ascendente Haedrig,” eu sussurrei em resposta ao seu tom inquisitivo.

“O outrora grande ascendente, Haedrig, que parece estar passando por


tempos difíceis. Tenha pena dele e coloque-o sob nossa supervisão, o que
acha? Não há necessidade de envergonhar seu sangue por causa de um leve
caso de embriaguez em público, não é mesmo?” Quando os guardas franziram
a testa e compartilharam um olhar incerto, ele acrescentou: “Não seria muito
bom se o Sangue dele fizesse um estardalhaço para o diretor, não é?”

“Não, senhor”, respondeu o guarda, mas ainda segurando com firmeza o braço
de Haedrig. “No entanto, eu seria negligente em meu dever se não relatasse
isso à segurança do campus. Eles decidirão o que fazer com… ”

Enquanto o guarda falava, Haedrig continuou a se agachar ainda mais nas


mãos dos guardas. O ascendente aparentemente desmaiado de repente saltou
do chão, escapando das mãos dos guardas e girando graciosamente pelo ar
para pousar na base da escada. Ele fez uma continência meia boca antes de
fugir, sua velocidade aprimorada pela mana levando-o para fora da vista além
do véu da chuva.

“Vão atrás dele!” o chefe da guarda exclamou, fazendo com que os outros dois
saíssem correndo. Suas botas blindadas escorregaram no pavimento molhado
pela chuva, e ficou imediatamente óbvio que não teriam chance de pegar o
sangue-alto ligeiro.

“Bem… uh… boa sorte,” Professor Aphelion disse aos guardas restantes, que
nos lançaram olhares irritados.

Ele acenou para mim enquanto subia o capuz. “Até mais tarde, Professor Grey.”
Eu retribuí o aceno, observando seu rosto e olhos cuidadosamente em busca
de qualquer sinal de que ele tivesse visto o que tinha acontecido ou
adivinhado o motivo de minha presença perto da capela, mas seu rosto estava
sem expressão, exceto pela sombra de um sorriso sarcástico.

“Sim, até mais tarde…” Eu disse com cautela, levantando meu capuz e me
virando.

Eu não pude evitar sentir um desconforto permanente em relação ao


envolvimento inesperado do Professor Aphelion no roubo, mas dentro das
coisas que poderiam ter dado errado, parecia minimamente catastrófico.

Era difícil ficar muito preocupado, considerando o prêmio que me aguardava


em minha runa dimensional.

Capítulo 352
Relíquia, Revivida

CAERA DENOIR

A chuva torrencial bloqueava todos os sons, exceto as batidas molhadas de


minhas botas nos paralelepípedos e os batimentos rápidos do meu coração.

“Vão atrás dele!”

O grito de comando quase foi apagado pela chuva. Mesmo sem o aguaceiro, eu
sabia como evitar atenção indesejada e olhares curiosos, então não tinha
medo de ser pega. Não, era outra coisa que fazia meu pulso trovejar em meus
ouvidos.

Kayden…

O que diabos ele estava fazendo lá? Quanto ele tinha visto?

O que Grey vai fazer com ele?

Minha garganta apertou quando me lembrei da sensação da mão poderosa de


Grey em volta do meu pescoço, me levantando do chão. Eu não tinha dúvidas
de que Grey mataria Kayden se achasse necessário.

Dependendo do que o professor tinha visto, eu nem tinha certeza se poderia


discordar. Eu provavelmente não seria punida no sentido tradicional; eu ainda
era uma Denoir e sabia tão bem como qualquer pessoa que a lei alacryana
funcionava de maneira diferente para os altos sangues. Ainda assim, muita
atenção poderia resultar na descoberta da manifestação do meu sangue Vritra.

Eu sabia que faria o que fosse necessário para evitar que isso acontecesse.
Virando em um beco largo entre dois edifícios da academia, usei o parapeito
da janela de um para me lançar na janela do segundo andar do outro, então
pulei de volta através do beco para o telhado do primeiro. As telhas estavam
escorregadias, mas consegui rastejar pelo topo do telhado e escorregar pelo
outro lado. Quando cheguei à borda, pulei do telhado, subindo mais de três
metros para pousar na borda de uma janela do segundo andar que levava ao
Salão Windcrest.

As venezianas estavam fechadas e trancadas contra a tempestade, mas usando


a adaga de lâmina branca do meu irmão, eu destravei a tranca. Antes de abrir
as venezianas, retirei minha mana da relíquia pendurada em meu pescoço,
deixando minha aparência voltar ao normal.

Escorregando do parapeito, me encontrei no final de um dos muitos longos


corredores esculpindo o prédio em vários quartos e suítes. A suíte de Grey
ficava a algumas portas do corredor.

Eu congelei quando percebi que alguém estava parado do lado de fora de sua
porta, seu corpo balançando nervosamente. Ela não parecia ter notado o
barulho da minha entrada no prédio.

Seu cabelo loiro pendia liso e úmido, e as vestes de batalha brancas que ela
usava grudavam em sua figura, encharcadas pela metade por conta da
tempestade. Eu poderia dizer pela poça que se formou ao redor dela que ela
estava ali por pelo menos alguns minutos.

“Oi,” eu disse enquanto fechava cuidadosamente as venezianas atrás de mim.

A mulher deu um grito assustado e escorregou na poça. Ela estendeu a mão e


soltou uma rajada de vento para não cair. “Onde no mundo você…”

Aproximando-se, ela viu minha aparência e a janela fechada atrás de mim. Sua
mão se levantou de forma que sua palma estava apontando para o meu peito,
os dedos abertos e sua expressão endureceu. “Por favor, note que eu sou uma
professora desta academia e mais do que capaz de me defender e defender a
propriedade de quem vive aqui.”

“Fico feliz em ouvir isso, considerando que eu moro aqui,” eu disse, apontando
para o teto do corredor. “Terceiro andar, na verdade, mas a janela do segundo
andar foi um salto mais limpo.” Eu dei a ela um aceno superficial, em seguida,
coloquei para trás as mechas molhadas de cabelo que haviam caído no meu
rosto. “Caera do Alto Sangue Denoir. E você é?”

Sua mão desceu para o lado dela enquanto suas sobrancelhas se ergueram.
“Oh. Oh! Oh, Vritra, sinto muito!”

Eu dei de ombros, gesticulando para mim mesma com um aceno de mão. “Eu
não te culpo. Parece que estávamos no mesmo barco.”
A mulher agarrou um punhado de suas vestes e jogou água no chão. “Nem me
fala. Eu só fui lá fora uns dois segundos.”

Eu deixei um sorriso conhecedor aparecer no canto da minha boca. “Então,


você e o Professor Grey…”

Ela congelou, uma mão ainda enrolada em suas vestes, seus grandes olhos
âmbar demorando-se na porta dos quartos de Grey. “N-não, eu só – a
tempestade e – pensei que…”

A mulher fez uma pausa e forçou um sorriso. “Sinto muito, sou Abby do Sangue
Nomeado Redcliff. Posso te ajudar com isso?” Ela gesticulou para minhas
roupas, que pingavam água no chão em um fluxo constante.

Sem esperar por uma resposta, ela acenou com as mãos e conjurou uma rajada
de vento quente que soprou em minhas roupas e cabelos. Eu estreitei os olhos
contra a corrente de ar e agarrei as pontas da minha capa para evitar que
balançasse. Depois de vários segundos, eu estava seca e quente novamente.

“Obrigada,” eu disse. “Por que você ainda não fez isso com você mesma?”

“Hum…” A mulher alisou suas roupas encharcadas, recusando-se a olhar nos


meus olhos. “Bem, parece que o Professor Grey não está em casa agora de
qualquer maneira. Uh, prazer em conhecê-la, Lady Caera.”

Girando tão rapidamente que um arco de gotas de água espirrou pelo


corredor, a mulher começou uma marcha rápida pelo corredor. Quando ela
virou uma esquina na extremidade oposta, ela lançou um olhar cauteloso na
minha direção. Seus lábios se apertaram quando ela me viu ainda olhando
para ela, e então ela se foi.

Não deveria ter me surpreendido. Um homem tão impressionante e misterioso


como Grey faria com que as mulheres se reunissem ao seu redor como
pássaros. Mesmo sem um nome de sangue, o fato de ter atingido o nível de
professor em uma academia tão prestigiosa sugeria que ele tinha conexões e
riqueza. Esperava-se que muitas mulheres de sangue nomeados se casassem
por conexão política e aprimoramento de seu sangue, geralmente criando um
vínculo mais forte entre dois sangues nomeados de status semelhante.

O sangue Redcliff era bem conhecido no domínio central por seus constantes
esforços para ascender na escala social. No entanto, algo me disse que Abby
não seria capaz de acompanhar Grey, mesmo se o alcançasse.

Na verdade, era extremamente difícil imaginá-lo com qualquer mulher. Eu não


conseguia ver como romance ou amor – mesmo o tipo que acontecia em uma
única noite – se encaixaria em seu estilo de vida de “ascendente solo.” Eu me
peguei tentando imaginar Grey fazendo algo tão simples como andar de mãos
dadas com alguém pelo parque, ou preparar chá e café da manhã para sua
amante na cama. Eu não consegui visualizar isso.
Passos molhados nas escadas atrás de mim me trouxeram de volta à realidade.
Eu me virei a tempo de ver um Grey muito sujo aparecer no corredor atrás de
mim.

Ele franziu a testa para minhas roupas. “Como você ficou seca tão rápido?”

“Encontrei uma amiga sua,” respondi, encostando-me na porta. “Você acabou


de perdê-la, eu temo. Professora Redcliff, acho que ela disse.”

“Oh,” foi tudo o que ele disse. Ele puxou sua runa e mostrou na porta, que se
abriu com um clique.

Lá dentro, ele imediatamente desamarrou sua luxuosa capa branca e a jogou


no canto, então começou a tirar sua túnica molhada. Embora eu soubesse que
a coisa educada a fazer era desviar meu olhar, minha atenção foi atraída para
as runas em sua coluna. Ao contrário da maioria dos alacryanos, Grey
mantinha as suas cobertas. Mesmo nas profundezas das Relictombs, eu nunca
as tinha visto.

Elas eram estranhas e não tradicionais, mas apenas alguém que viajou com ele
e o viu lutar muito, ou talvez um estudioso das runas Alacryanas, iria
questioná-las.

As outras runas, aquelas que canalizavam suas poderosas habilidades de éter,


não eram visíveis.

Percebendo que estava me distraindo, desviei o olhar. “Então? Você conseguiu


a relíquia morta?”

Em resposta, algo bateu no meu ombro. Sem olhar para trás, peguei a esfera.
Era leve, praticamente sem peso. “O peso não foi um problema, foi?”

“Ela fica de um jeito diferente no travesseiro, mas eu não acho que alguém vá
notar já que a relíquia não estava aqui por muito tempo,” a voz de Grey veio
de seu quarto de dormir.

Sentei-me e girei a esfera em minhas mãos enquanto esperava o retorno de


Grey. Quando voltou, ele estava vestido com calças pretas e uma túnica azul
com bordados pretos. Combinava com ele, fazendo seu cabelo e olhos
parecerem ainda mais brilhantes.

Joguei a relíquia morta para ele e ele a arrancou do ar. “Depressa! Estou
morrendo de vontade de ver do que essa coisa é capaz.”

“Sim, senhora,” ele murmurou, segurando a esfera em uma das mãos.

A forma de cachorrinho de Regis surgiu do lado de Grey e, em seguida, pulou


no sofá ao meu lado. Eu dei uma coçada em sua cabeça quando ele se
encostou em mim.
“Vá em frente, princesa,” disse ele, pressionando a cabeça na minha mão. “Se
apresse com os brilhos bonitinhos.”

Grey se concentrou na esfera. Ele deve ter ativado sua runa divina, porque um
brilho dourado se espalhou pela sala e partículas de ametista brilhantes
começaram a dançar ao longo de seu braço em direção à relíquia. Quando
chegaram lá, as partículas deslizaram pela superfície de prata polida e
desapareceram nas fendas e buracos.

Por alguns segundos, parecia que nada estava acontecendo. Tentei chamar a
atenção de Grey, mas sua atenção estava inteiramente na relíquia. Eu respirei
fundo quando o desgaste começou a desaparecer, as marcas se enchendo, as
rugas se suavizando, o cinza polido ficando mais brilhoso. Em seguida, o fluxo
de partículas diminuiu para um fio e finalmente parou, e a última partícula de
ametista desapareceu.

Grey ergueu a esfera perfeitamente lisa, girando-a para que brilhasse como
uma lua prateada. Na luz, notei uma linha dividindo as metades superior e
inferior da esfera, tão fina que era quase invisível. Grey também deve ter visto,
porque pegou uma metade em cada mão e torceu levemente.

A relíquia se desfez.

“Uau,” Regis disse suavemente.

O interior da esfera era uma estrutura orgânica, sustentando um cristal que


lançava uma luz rosada pela sala. O cristal estava derramando uma poeira fina
que pairava no ar, vagando sem rumo em torno de sua mão.

“O que seria?” eu perguntei, sem respirar de tão animada.

Grey se moveu ligeiramente e abaixou a metade vazia da relíquia enquanto


seu foco no cristal se intensificava. O cristal, que até então brilhava sutilmente,
de repente acendeu com uma forte luz roxa.

“O quê…” Grey exclamou quando aquela metade da esfera saltou de sua mão
e flutuou até o chão a seus pés.

Minha mão foi involuntariamente para minha boca, e nós assistimos,


atordoados, enquanto o cristal começava a se desintegrar diante de nossos
olhos. Uma nuvem de partículas cintilantes se ergueu para pairar acima da
meia-relíquia, cada grão carregando um pouco da luz do cristal. Quando a
última peça desapareceu, a nuvem emitiu um flash de luz estroboscópica que
fez minha cabeça girar, e me forcei a desviar o olhar.

Regis filhote estremeceu ao erguer uma pata para cobrir os olhos. “Tenho
certeza de que é assim que os lordes demônios são invocados!”

Olhando pelo canto do olho para ter certeza de que o brilho tinha parado,
deixei escapar um suspiro de espanto. “Chifres de Vritra…”
A nuvem havia se aglutinado em um oval opaco pairando no ar, e Grey andava
lentamente em círculos ao redor dele. Tinha um brilho oleoso na superfície e
irradiava uma luz roxa fraca.

“É um portal de ascensão, tem que ser,” eu disse, afundando ainda mais no


sofá. “Mas um que você pode ativar em qualquer lugar… Isso significa…”

“Eu posso ir para as Relictombs sempre que eu quiser,” Grey terminou. De


frente para mim, ele ergueu a outra metade. “Para que você acha que é esse
então?”

Considerei a semiesfera prateada e a matriz de suportes orgânicos dentro


dela. “Bem, se a outra te leva pra dentro…”

“Então esta pode me trazer de volta?” Grey estava assentindo e seu olhar sério
se voltou para o portal. “Caera, espere aqui.”

Eu pulei da minha cadeira, quase fazendo o filhote Regis cair. “O quê? Você
está indo agora? Sem qualquer tipo de pesquisa ou teste?”

“Este será o teste”, afirmou ele, com os olhos ainda colados no portão
cintilante.

“Então vamos pelo menos ir juntos,” argumentei. “Mesmo se você acabar


dentro das Relictombs, o que acontecerá se aquela metade da relíquia o levar
para um dos portões principais? Comigo lá, será mais fácil passar por qualquer
tipo de questionamento.”

As sobrancelhas de Grey franziram enquanto ele pensava, e ele voltou seu


olhar calmo para mim. “Eu agradeço, mas prefiro ter você aqui para manter os
olhos curiosos longe deste quarto.”

Eu abri minha boca para discutir, mas tudo o que saiu foi um bufo frustrado.
“Muito bem. Vou ficar de olho no caso de alguma outra mulher que você
conseguiu seduzir decidir fazer uma visita noturna.”

Ele me olhou com diversão óbvia. “Vamos, Regis.” O diminuto lobo das
sombras olhou para mim e encolheu os ombros antes de seguir o comando. “E
não esqueci nossa promessa.”

A menção do nosso acordo trouxe um leve sorriso ao meu rosto. Eu não


esperava qualquer tipo de compensação por ajudar Grey, então fiquei
surpresa quando ele disse que iria em uma ascensão comigo.

“Acho que você ficará agradavelmente surpreso com o quanto me tornei mais
forte desde a nossa última ascensão,” eu disse com confiança.

“Espero que o treinamento não seja sua desculpa para perder para mim na
Disputa de Soberanos,” ele sorriu antes de desaparecer através do portal.
Eu encarei, de boca aberta, o portal suspenso no ar antes de deixar escapar
uma risada. “Que imaturo.”

Não muito depois de Grey ter partido, o portão pairando acima da metade da
relíquia começou a desvanecer-se, a superfície oleosa opaca ficando
transparente, como a névoa se dissipando de um espelho. Depois de alguns
segundos, era apenas uma forma fantasmagórica no meio da sala.

Aproximei-me do portal adormecido e cuidadosamente estendi a mão em


direção a ele. Quando meus dedos roçaram o oval transparente, eles passaram
sem problemas e não senti nada. Eu acenei minha mão para frente e para trás,
mas o movimento não perturbava a forma.

“Pelo menos ninguém pode persegui-los,” eu murmurei.

Muito inquieta para ficar sentada, comecei a andar pela pequena suíte.

Memórias do Sevren vieram à mente. Eu me lembrava tão claramente de


quando ele partiu em sua ascensão preliminar após somente uma temporada
na Academia Central. Eu havia sentido a mesma coisa então: o entusiasmo
misturado com a decepção de não poder segui-lo ou lutar ao lado dele.

Retirando a adaga de lâmina branca do meu anel dimensional, eu a


desembainhei para revelar o símbolo na base da lâmina. Esta adaga foi seu
primeiro espólio. Ele esculpiu a runa de éter nela enquanto me contava tudo
sobre sua ascensão, ainda tão animado com sua aventura que ele estava
praticamente vibrando.

Quebrou meu coração pensar nele agora, morrendo sozinho nas Relictombs,
uma vítima de algum monstro horrível. Achei que seria ele que desvendaria os
segredos das Relictombs. Eu estava errada.

Mas eu não acho que estava errada sobre Grey.

Quando meus pensamentos se voltaram para ele, percebi que Grey já havia
partido há alguns minutos. Considerando como o tempo funcionava de forma
diferente nas Relictombs, ele já deveria ter sido capaz de ativar a relíquia e
voltar.

“E se não fosse realmente um portal de ascensão?” eu murmurei, mexendo


com a ponta da lâmina da adaga. Abaixando-me, olhei para a meia relíquia,
mas ela não me disse nada.

Mesmo que o portal o levasse para uma zona, era possível que ele estivesse
em perigo e não tivesse sido capaz de ativar a outra metade da relíquia… ou
talvez estivéssemos errados e ele não pudesse retornar imediatamente. Ele
poderia ficar preso lá, forçado a limpar a zona e encontrar um portal de
descida antes de retornar. A segunda metade não continha um cristal, o que
poderia significar—
Eu apertei os olhos contra uma luz ametista brilhante quando o portal ganhou
vida novamente, o contorno fantasmagórico se solidificando em um tom
perolado opaco. A figura que apareceu parecia muito com Gray, mas suas
roupas finas estavam em farrapos e seu rosto estava coberto de sangue e
fuligem.

Quando ele saiu do portal, este se dissolveu em uma nuvem que lentamente
desceu, condensando-se novamente em um cristal dentro da relíquia.

“O quê…?”

O rosto coberto de sujeira de Grey se abriu em um sorriso e ele ergueu o chifre


preto de alguma besta. Uma gota de sangue escuro gotejou e se espalhou no
chão. “Funciona.”

Capítulo 353
Mudança de Paradigma

ARTHUR LEYWIN

Eu joguei minha perna sobre a beirada íngreme do telhado, recostando-me no


muro com ameias e deixando minha atenção vagar pelo campus da Academia
Central. Regis, de volta à sua força total na forma de um grande lobo das
sombras, colocou as patas dianteiras sobre o merlão de pedra vermelha e
deixou a brisa fresca soprar as chamas de sua crina.

Ainda era de manhã cedo e o campus estava quase todo escuro, com um toque
de rosa e laranja destacando o horizonte distante. Apesar da hora, os alunos
já estavam ativos no campus, fazendo exercícios ou treinando. Flashes de
magia ocasional iluminavam o campus como fogos de artifício, mas no topo da
torre estava um calmo silêncio. Perfeito para pensar.

“Então, você realmente acha que devemos ficar, hein?” disse Regis, farejando
o vento. “Agora que temos a relíquia…”

Eu inclinei minha cabeça para trás e olhei para o céu preto-azulado. “A metade
de ascensão da Bússola permanece no lugar quando entramos nas Relictombs.
Mesmo que possamos ir e vir à vontade, ainda precisamos de um lugar seguro
para ativá-la.”

Regis olhou para mim com curiosidade, seus olhos brilhantes eram
inteligentes. “E este lugar é realmente tão seguro? Poderíamos voltar para
Darrin Ordin, ou inferno, apenas encontrar uma caverna nas montanhas em
algum lugar ou algo assim.”

“Aí teríamos outro conjunto de variáveis que não posso calcular. Aqui, eu sei o
que esperar. Estamos em risco, não importa aonde vamos em Alacrya, mas pelo
menos temos uma história aqui, uma identidade.”

Como professor, eu tinha não só o disfarce e proteção política, mas também


percebi que o respeito inerentemente oferecido à minha posição era uma
espécie de escudo. Qualquer que fosse a curiosidade ou dúvida que meus
alunos e co-professores pudessem ter sobre mim, era improvável que eles
suspeitassem que eu era um espião dicathiano. Havia uma série de explicações
mais simples para qualquer erro que eu pudesse cometer, e os ricos e
poderosos sempre assumiriam que qualquer mistério se encaixava em suas
próprias intrigas domésticas.

“Além disso, ainda não entendemos totalmente a Bússola.”

Regis se espreguiçou antes de se deitar preguiçosamente. “Não entendemos?


Parece bastante simples para mim.”

Tirei a metade de descida da Bússola da minha runa de armazenamento e olhei


preguiçosamente para sua superfície curva e sem manchas, como se esperasse
que ela refutasse Regis.

Mas ele estava certo. Enquanto uma metade da relíquia criava um portal para
as Relictombs, a outra me permitia retornar, embora não criando um segundo
portal. Levei algum tempo para entender como funcionava, já que a segunda
metade da relíquia não havia reagido de forma alguma quando entrei nas
Relictombs, me forçando a concluir a zona. No entanto, quando eu coloquei
éter nela perto do portal de saída, a segunda metade da relíquia ganhou vida,
delineando o portal com uma luz brilhante. Quando o brilho diminuiu, pude
ver meus aposentos do outro lado, Caera esperando impacientemente que eu
voltasse.

Ser capaz de entrar e sair das Relictombs à vontade mudava tudo. Após o teste
original, Caera, Regis e eu voltamos juntos para explorar ainda mais as
capacidades da relíquia, absorvendo uma quantidade significativa de éter no
processo.

“Então, exatamente quanto suco de uva seu núcleo consegue conter agora?”
Regis perguntou, obviamente lendo meus pensamentos.

Apesar de explorar a zona por uma hora ou mais e absorver o éter das feras
que matei e da atmosfera, ainda não havia atingido o limite do núcleo de duas
camadas. “Não vamos dar um nome assim,” eu disse com um bufo divertido,
“e eu realmente não sei. Pelo menos dez vezes mais do que antes.”

Ansioso por qualquer desculpa para usar esse poder, retirei o brinquedo de
semente da minha runa dimensional. Meu companheiro mudou de posição
para deitar de lado, me observando trabalhar com um ar um pouco entediado.

O tamanho do meu reservatório de éter nunca foi o principal obstáculo me


impedindo de completar o desafio de Three Steps, mas o aumento de pureza
do meu éter armazenado e a eficiência dos meus canais de éter apenas
tornaram mais fácil focar na tarefa.

Quando canalizei o éter para minha mão para formar a garra, pude sentir a
diferença imediatamente. Primeiro, a drenagem no meu núcleo nem era
perceptível. A forma da garra era mais estável e sólida, e parecia
inerentemente mais fácil me concentrar. E embora essa garra fosse
simplesmente um passo em direção ao meu objetivo real, era bom finalmente
estar fazendo um progresso tangível.

Regis deu um bocejo exagerado, chamando minha atenção. Inclinando-se


preguiçosamente de lado, ele fez questão de estender e retrair suas próprias
garras, mais afiadas e mais longas.

Eu zombei. “Exibido.”

Pegando a casca dura em uma mão, deslizei uma garra na fenda e pesquei em
busca da semente dentro. Quando se acomodou no buraco deixado pela haste,
puxei para baixo, tentando forçá-la a sair, exatamente como havia feito
dezenas de vezes antes. A garra manteve sua forma, puxando
automaticamente o éter do meu núcleo para se manter estável.
Soltando uma respiração lenta e estável, imaginei a forma da garra se
estendendo e se curvando mais profundamente, quase envolvendo a pequena
semente para que se encaixasse perfeitamente na curva. O éter respondeu
rapidamente à minha intenção.

Eu sorri.

Então eu puxei. Não muito forte, mas com uma pressão constante que
aumentei lentamente até que as bordas do buraco estalassem e se
projetassem para fora, e pude sentir a semente deslizando.

Em seguida, a pressão diminuiu.

A semente marrom opaca se soltou e pousou na minha palma.

Fiquei olhando para ela, imaginando que os Shadow Claws teriam alguma
cerimônia para celebrar quando um de seus filhos completasse este rito de
passagem. Se eu tivesse passado mais tempo nas Relictombs com Three Steps,
talvez ela tivesse tido alguma memória encorajadora para compartilhar
comigo para me parabenizar, mas…

Uma rajada de vento bateu no telhado da torre e mexeu a semente, forçando-


me a fechar minha mão com força em torno dela. Foi um pensamento estranho
e preocupante, perceber que o resultado de meus longos esforços com a
semente poderia ser destruído em um instante, não deixando nada para trás.

Eu olhei ao redor para o telhado vazio e as ruas ociosas abaixo. Montanhas


cobertas de neve erguiam-se roxas à distância. As estrelas desconhecidas
acima estavam desaparecendo, absorvidas pelo nascer do sol.

Para um filhote de Shadow Claw, recuperar a semente significaria garantir um


lugar em sua tribo. Para mim, porém, foi simplesmente um lembrete de que eu
não tinha um.

“Bom, se você realmente não quiser, posso fazer o esforço de ficar com a
semente” disse Regis, farejando ansiosamente a pequena esfera marrom.

Seguindo seu olhar, olhei mais de perto para a semente e notei um corte em
sua superfície marrom lisa. Um sutil vislumbre roxo estava brilhando onde
minha garra havia cravado na semente. Usando uma garra de éter, raspei mais
do marrom, revelando um orbe sólido de éter condensado dentro, sua
assinatura totalmente escondida pelo exterior orgânico.

Enquanto eu olhava para o meu prêmio, imaginando quanto éter a semente


continha, o queixo de Regis pousou no meu joelho. Seus olhos brilhantes
estavam fixos na semente e sua cabeça se aproximou.

Pensando na fruta rica em éter que crescia na zona da selva onde eu lutei
contra a centopeia, coloquei a semente em minha boca e engoli.

Ela desceu queimando a garganta, e se acomodou no meu estômago como uma


pedra derretida enquanto o núcleo etéreo da semente era quebrado e
absorvido. Meu núcleo vibrou ao aceitar a onda de energia, e estava cheio em
um instante.

Meu plexo solar queimava como uma estrela. Comecei a brilhar quando uma
barreira sólida de luz ametista cintilou em minha pele, o éter ameaçando
escapar. Flexionando minha intenção, senti a torre gemer enquanto suas
pedras fortificadas e argamassa se esforçavam contra a pressão. O éter
ambiente ganhou vida, girando como flocos de neve pelo telhado.

“Sobrou um pouco, se você quiser”, falei, tirando Regis de seu torpor perplexo.

Meu companheiro virou a cabeça para longe, franzindo o focinho em um


beicinho. “Uma arma de destruição feita por um deus não deveria se contentar
com restos de segunda mão.”

Balançando minha cabeça, fechei meus olhos e voltei minha atenção para
dentro, explorando meu núcleo resplandecente. “Faça como preferir. Vou
pegar tudo então.”

Regis colocou uma pata apaziguadora em meu joelho enquanto me olhava


inexpressivamente. “Mil perdões, senhor.”

“Liso como cascalho,” eu sorri quando a forma imaterial do lobo das sombras
se fundiu com o meu corpo e começou a absorver do oceano de éter.
Fiquei no telhado da torre até o meio da manhã, observando o campus
despertar enquanto Regis estava ocupado sugando o éter restante da semente
em mim.

Banhando-me no brilho quente do sol e no meu sucesso, desci a torre e me


dirigi para a minha sala de aula. Meus passos pareciam leves, como se eu
tivesse me movido debaixo d’água por toda a minha vida até agora; a semente
continha significativamente mais éter do que parecia possível, considerando
seu tamanho.

Demorei para cruzar o campus, relutante em enfrentar uma sala cheia de


adolescentes alacryanos mimados. Em vez disso, concentrei-me em controlar
o poder que estava se esforçando para explodir dentro mim. A segunda
camada do meu núcleo não era um crescimento aditivo às minhas reservas de
éter, mas sim, exponencial. Provavelmente levaria algum tempo para me
ajustar ao peso disso em meu peito.

Eu tinha acabado de passar pela biblioteca quando avistei uma conhecida


cabeça de cabelo laranja que desbotava em um amarelo brilhante.

Briar estava por perto com algumas outras garotas de sua idade. Uma delas
me viu e deve ter dito algo, porque Briar se virou e deu um pequeno aceno,
fazendo com que suas amigas rissem e a provocassem. Revirando os olhos
para elas, ela se afastou e caminhou rapidamente em minha direção.

“Ei, professor”, disse ela, saltando na ponta dos pés com as mãos cruzadas
atrás das costas. “Acabei de saber. Parabéns. Eu estou um pouco chateada por
já ter feito aquela aula idiota, caso contrário, eu me inscreveria. Vritra sabe
que você precisará de bons lutadores.”

Eu fiz uma careta, pego desprevenido. “Desculpe, o que você está…?”

Seu rosto refletia minha própria confusão. “Espere, você não… Oh. Desculpe,
eu presumi…” Uma de suas amigas a chamou, e sua carranca se aprofundou.
“Esqueça. Tenho certeza que você descobrirá em breve. Se cuida. E… boa
sorte.”

Simples assim, e Briar já retornava para o grupo de meninas. Suas cabeças se


inclinaram juntas quando começaram a sussurrar, e Briar me lançou um último
olhar incerto antes de se virar como um grupo e desaparecer em um dos
muitos edifícios da academia que eu ainda não tinha explorado.

‘O que foi aquilo?’ Regis perguntou.

Não tenho certeza. Eu tinha visto a jovem e séria alacryana algumas vezes pelo
campus desde que ela me guiou pela primeira vez em Cargidan, mas ela nunca
fez questão de ter uma conversa amigável.

Ignorando o comentário enigmático de Briar, me virei em direção ao complexo


de Atacantes, onde ficava minha sala de aula. Não fui muito longe antes de ser
interrompido por outro rosto familiar, um que eu nunca imaginaria ver na
Academia Central.

‘Estou vendo coisas?’ Eu perguntei a Regis.

Alguém esbarrou em mim por trás. Quando olhei atentamente para a pessoa –
um jovem vestindo uma armadura de aço escura sobre o uniforme – ele
estremeceu. “Desculpe, professor.”

Tive que procurá-la no meio da multidão, pois ela estava se movendo


rapidamente, mas ela parecia se manter um pouco afastada do fluxo de
alunos, o que a fazia se destacar.

Caminhando ainda mais rápido para alcançá-la, estendi a mão e coloquei a


mão em seu ombro.

A jovem deixou escapar um grito de surpresa e se virou, com os olhos


arregalados e uma das mãos cobrindo a boca.

“Mayla?”

Quase não reconheci a jovem maga da cidade de Maerin. Lá ela era apenas
uma menina, em partes iguais nervosa e excitável, mas aqui, ela parecia
transformada.

Sua surpresa floresceu em deleite quando ela me reconheceu. “Ascendente


Grey! É você! Quando eu vi você listado como professor da aula de Táticas de
Melhoria Corporal, eu tive esperanças, mas você não apareceu nos primeiros
dias, então pensei – eu não sei – foi apenas um erro ou coincidência ou algo
assim…” Ela falou sem parar até suas bochechas ficarem vermelhas, o que me
lembrava sua irmã, Loreni, na primeira vez que nos conhecemos. Colocando
uma mecha de cabelo ruivo atrás da orelha, ela disse “Desculpe. Estou
divagando.”

“Mayla, o que você está fazendo aqui?” Eu perguntei. “Depois da cerimônia de


concessão —”

“Passei por muitos testes com a Associação de Ascendentes”, respondeu ela,


“e eles me enviaram aqui para ser treinada, por causa do meu emblema. No
começo eu fiquei assustada e desanimada, porque é muito longe da cidade de
Maerin, mas na verdade está tudo bem.” Ela olhou para alguns dos alunos que
passavam com o canto do olho. “Exceto que alguns dos alunos de alto sangue
não são muito legais.”

“Espera,” eu disse, enquanto suas palavras apressadas me tiravam da minha


surpresa. “Seu nome de sangue é Fairweather?”

“Uh-hum, essa sou eu.” Ela me deu uma pequena reverência.

“Eu não percebi quando vi seu nome na lista da minha turma… mas onde você
estava na última sessão?”

Ela chutou o chão e me deu um sorriso tímido. “Desculpe, alguns dos outros
alunos estavam mexendo com os sem nomes, sabe, e um garoto legal tentou
nos defender, mas eles também zombaram dele, então acabei saindo quando
vi que o professor — que você não estava lá. Imaginei que fosse ajudar o
menino também.” Ela deu de ombros. “Está tudo bem, honestamente. Já
aprendi muito, é difícil acreditar que só se passaram alguns meses.”

Comecei a andar novamente, gesticulando para que ela caminhasse comigo


enquanto nos dirigíamos para a aula. “Você é uma Sentinela, certo? Então, por
que fazer uma aula de luta não mágica?”

Sua expressão se iluminou novamente. “Estou aprendendo tudo que posso.


Posso ser uma Sentinela, mas se vou para as Relictombs, quero ser capaz de
me defender. Além disso, tem sido totalmente fascinante até agora.”
Mayla manteve um diálogo constante, me contando sobre suas outras aulas e
professores, bem como sua irmã e outras pessoas de Maerin. Aparentemente,
a cidade recebeu um influxo de recursos, bem como interesse de academias
de toda Alacrya, depois que Belmun e ela receberam essas runas avançadas.

“A Associação de Ascendentes até votou para expandir os serviços no portal


de descida em Maerin, o que levará a um enorme boom no comércio e nos
mercadores, então minha família está—”

Eu levantei a mão, acalmando-a enquanto nos aproximávamos do final do


corredor em frente à minha sala de aula.

Um pequeno grupo se reuniu ali, todos tentando espiar pela pequena janela,
tentando ver algo lá dentro.

Caera foi a primeira a me notar, seus lábios pressionados em uma expressão


severa.

Meus olhos se estreitaram quando percebi que Kayden Aphelion também


estava lá. Não falei com ele desde a noite em que ele quase me pegou me
teletransportando para fora do Relicário. Meu primeiro pensamento era que
ele tinha contado a alguém, e um grupo de guardas armados – ou talvez até
uma Foice, como Dragoth ou Cadell – estava esperando por mim, mas então
me lembrei dos parabéns de Briar.

Quando eu vi o sorriso de satisfação no rosto do Professor Graeme, entretanto,


eu fiquei inseguro de novo. “Foi um prazer, Grey. Má sorte, na verdade. Embora,
na minha humilde opinião, eu diria que aumentar a qualidade do corpo
docente desta instituição nunca é ruim”, ele tagarelou antes de trocar risadas
com seus associados próximos.

O resto dos professores abriu espaço, se afastando da minha porta, suas


expressões variando de pena a curiosidade, e um senhor até me deu um aceno
firme antes de dar um passo atrás. Caera apertou meu ombro, olhos sérios,
mas reconfortantes.

Kayden se aproximou e sussurrou: “Não deixe que eles te derrubem sem lutar,
certo?”
Fiz uma pausa, novamente imaginando Cadell, Dragoth, ou até mesmo Agrona
em pé na minha sala de aula, esperando por minha chegada. As foices
finalmente me rastrearam?

‘Como se tivéssemos tanta sorte’ disse Regis, agora bem acordado e


praticamente cantarolando de ansiedade. ‘Você acha que precisaríamos
mesmo usar a Destruição para chutar a bunda de Dragoth neste momento?
Quero dizer, com aquele seu núcleo de camada dupla–’

Como os outros professores fizeram, olhei pela pequena janela da minha


porta. E embora não fosse uma foice esperando por mim, o que vi não acalmou
exatamente meus nervos.

Quatro figuras estavam de pé na parte inferior das cadeiras do estádio, perto


da plataforma de treinamento. Valen do Alto Sangue Ramseyer estava falando
com o diretor, seu avô, que compartilhava a mesma tez escura de Valen, mas
exibia sua nobreza menos pomposamente. O chefe do Departamento de
Combate, Rafferty, estava um pouco afastado para o lado. Presumi por sua
postura – ainda como uma estátua com o olhar voltado para os sapatos – que
ele se sentia desconfortável com alguma coisa.

O quarto homem era magro e musculoso. Seu cabelo escuro estava preso em
um topete, e ele tinha vindo vestido com uma armadura de couro tingida de
preto e azul da Academia Central. Ele tinha um sorriso largo que mostrava
muitos dentes e acenou com a cabeça junto com o que Valen estava dizendo.

“Professor? Será que eu devo—”

“Fique onde está”, instruí Mayla, só lembrando agora que ela ainda estava lá.

Quando entrei na sala de aula, Valen encerrou seu monólogo em favor de


estreitar o olhar e projetar o queixo. O estranho imediatamente voltou sua
atenção para mim, seus olhos cinza-ardósia me estudando avidamente.

O diretor Ramseyer quebrou o silêncio. “Professor Grey. Pode entrar. Não


pretendíamos emboscá-lo em sua sala de aula, mas um mensageiro enviado
para sua suíte privada nesta manhã não conseguiu encontrá-lo.” Embora as
palavras fossem educadas, seu tom era cortante e cheio de reprovação. “Agora
que você está aqui, no entanto, temos um assunto muito sério para discutir.”
“Que seria?” Eu perguntei, permitindo que minha preocupação transparecesse
em minha voz.

“Chegou ao meu conhecimento” – o Diretor Ramseyer lançou a Valen um olhar


aguçado – “que seu comportamento em relação a esta classe tem sido menos
do que atencioso, Professor Grey. Isso é inaceitável na melhor das hipóteses,
mas agora, mais do que nunca, é essencial que um professor competente
esteja disponível para orientar os alunos de Táticas de Aprimoramento Corpo
a Corpo.”

Eu fiquei em uma posição mais ereta, meus ombros soltos enquanto minhas
mãos se cruzavam atrás de mim. “E por que isso, se você não se importa que
eu pergunte?”

O diretor, que se mantinha totalmente ereto, me inspecionou de perto antes


de responder. “Em circunstâncias diferentes, eu estaria aqui para parabenizá-
lo.” Ele fez uma pausa, deixando o momento se prolongar. “Como você
provavelmente já sabe, Vechor será a sede do Victoriad este ano. Táticas de
Aprimoramento Corpo a Corpo foi selecionada como uma das classes para
competir.”

Abri a boca para perguntar o porquê, mas Regis rosnou um rápido aviso mental
para me impedir.

‘O Victoriad é um grande torneio que traz alacryanos de todos os domínios para


competir, principalmente em combate. O tipo ou classe de combate é escolhido
por sorteio, então o combate intermediário não mágico deve ter sido uma das
classes escolhidas.’

“Entendo,” eu disse em voz alta. Mas que azar para nós.

‘É pior do que isso. O torneio se concentra principalmente nas Foices e seus


retentores’, continuou Regis. ‘Os desafios são sancionados pelos Soberanos,
permitindo que um mago suficientemente poderoso ou conectado desafie uma
velha Foice ou retentor por seu lugar. Uto sobreviveu a uma dúzia de desafios
ao longo dos anos. O Victoriad é o último lugar que queremos estar.’

Eu respondi com o olhar fixo nos olhos do Diretor Ramseyer, cruzando os


braços e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado. “Eu entendo o porquê
de você querer fazer uma mudança. Devo presumir que esse homem” —
balancei a cabeça na direção do estranho — “vai tomar o meu lugar?”

“De fato,” o diretor confirmou com naturalidade. “Este é Drekker do Alto


Sangue Vassere. Ele foi tutor particular de Valen por vários anos e é um
excelente lutador. Ele se ofereceu para liderar esta classe em sua preparação
para o Victoriad, e eu aceitei. Ele começará imediatamente, e você receberá —

“Eu gostaria de uma chance de defender meu posto,” eu disse uniformemente.

Regis suspirou resignado. ‘Minhas palavras são basicamente um peido no


vento para você.’

O diretor semicerrou os olhos para mim, franzindo a testa ligeiramente. Ele


parecia mais intrigado do que zangado. “Por favor, explique.”

Antes que eu pudesse falar, a porta da sala de aula se abriu e Enola entrou,
parecendo extremamente irritada. Quando ela viu o diretor e o chefe do
departamento, no entanto, ela congelou. O diretor Augustine ergueu a mão e
disse: “Por favor, espere lá fora um momento, Srta. Frost.”

“Deixe-a ficar,” eu disse, gesticulando para a porta. “Na verdade, deixe-os


entrar e assistir.”

“Assistir o quê?” Rafferty perguntou, embora sua atenção estivesse no diretor,


não em mim.

“Vamos lutar,” eu disse, direcionando meu olhar ao tutor atrás. “Você precisa
de alguém que tenha estado em combate real e possa mostrar aos alunos o
quão importante é ser capaz de se defender sem magia.”

“Com licença?” meu suposto substituto estalou, sua pomposa indiferente


desaparecendo. “Eu quero que você saiba que eu—”

“Deixe-os assistir nosso duelo. Isso lhes dará confiança em quem quer que
ganhe.”

O Diretor Ramseyer esfregou o queixo, seu olhar passando rapidamente para


a porta onde os alunos estavam começando a se reunir.
“Vô, isso é absurdo. Você não pode esperar que Drekker…” O diretor acenou
pedindo silêncio, fazendo com que a boca de Valen praticamente se fechasse.

“Sim, uma excelente ideia, Professor Grey.” Para Drekker, ele disse: “Estou
confiante em suas habilidades, mas mostrá-las aos alunos criará entusiasmo
para a transição”.

Drekker fez uma reverência. “Estou ao seu serviço, Diretor Ramseyer.”

‘Sabe, ser capaz de ler sua mente só me deixa mais confuso.’

Fiz um gesto para os alunos que esperavam do lado de fora no corredor para
entrar. Enola desceu lentamente as escadas enquanto o resto da classe
entrava, incluindo Mayla. Houve algumas conversas confusas quando as
pessoas viram o diretor e o chefe do departamento, mas ao meu sinal, todos
encontraram seus lugares e se aquietaram.

O diretor deu um passo à frente e se apresentou para o benefício de todos os


alunos que nunca o conheceram antes, então explicou o que estava para
acontecer. Uma tensão nervosa caiu sobre eles, mas não achei que era por
preocupação comigo.

A maior parte de sua atenção estava voltada para o tutor de Valen enquanto o
Diretor Ramseyer gesticulava para que ele desse um passo à frente. “Eu sei
que não é tradicional para a academia intervir e mudar um professor no meio
da temporada, e por esta razão, eu gostaria de apresentar Drekker do Alto
Sangue Vassere de forma mais completa. Vindo de Sehz-Clar, Drekker passou
sua vida inteira aperfeiçoando a arte do combate como um atacante.

“Um ascendente, um soldado, um treinador, um tutor… vocês estarão em muito


boas mãos com o Professor Vaserre.”

‘Mas ele já teve seus membros estourados e crescendo novamente, já foi


banhado em lava ou cagado do reto de um inseto como nós?’ Regis perguntou
em um tom cortante. ‘Creio que não.’

Bem colocado, pensei, contendo um sorriso enquanto observava os alunos.


A maioria deles tinha se inscrito em Táticas de Aprimoramento de Corpo a
Corpo para brincar, não para aprender a lutar, e eu poderia dizer pelos olhares
nervosos que vários deles já estavam pensando em abandonar a classe.
Aqueles que estavam mais animados — Enola, em particular, parecia prestes a
explodir de sua pele — estavam dando olhares de avaliação para seu novo
professor em potencial.

‘Você age como se se importasse com o que eles pensam de você,’ observou
Regis. ‘A verdadeira questão é… o que diabos você está fazendo?’

Acabei de encontrar outro motivo pelo qual preciso continuar como professor.

Eu podia sentir meu companheiro revirar os olhos, mas nenhuma outra palavra
foi dita.

“Agora, se nossos combatentes pudessem entrar no ringue”, anunciou o


diretor, ficando de lado para permitir uma visão clara para os alunos. “Vamos
ver quem está mais apto para preparar esta aula para o Victoriad.”

Drekker e eu subimos na plataforma elevada de lados opostos. O homem tinha


parado de sorrir no momento em que entrei pela porta, mas agora ele estava
me dando um sorriso confiante. Garantindo que eu estava observando, ele
rapidamente mudou de postura, seus pés praticamente dançando na
plataforma. “Você é um defensor da postura da guarda Vechoriana ou da
postura do basilisco avançado?”

Ignorando sua pergunta, eu respiro lenta e regularmente, certificando-me de


que minha força está contida e de que estou no controle.

A voz do diretor Ramseyer ecoou pela sala de aula. “Que o duelo comece.”

Os pés de Drekker piscaram enquanto seu corpo balançava. Pude vê-lo


levantar as sobrancelhas de curiosidade por trás dos punhos erguidos. “Eu
imploro que você tome uma posição adequada. Melhor ainda, eu dou a você o
primeiro movimento.”

Eu acenei com a cabeça enquanto colocava força em minhas pernas. “Minhas


desculpas, isso não é pessoal.”
A distância entre nós desapareceu, e meu punho bateu no meu oponente de
olhos arregalados, que mal foi capaz de defender a tempo. Girando para
frente, coloquei meu pé direito entre as pernas de Drekker e coloquei meu
cotovelo na lateral de sua cabeça. Dois golpes no queixo e um no ouvido, e o
tutor de Valen foi ao chão. Eu prendi um joelho sob sua clavícula enquanto
meu outro pé travava um braço no lugar.

Meus olhos brilharam para o diretor, esperando por ele para acabar com o
duelo. Drekker se debateu, mas só conseguiu acertar minha canela com a testa.

“Eu acho que isso já é o bastante, Professor Gray. Parece que há mais de você
do que me foi dito.” O diretor Ramseyer lançou ao neto outro olhar penetrante.
O menino teve bom senso o suficiente para parecer envergonhado.

Soltando Drekker, me levantei e ofereci a mão a ele.

Cabelo desgrenhado e rosto já começando a inchar, o tutor de Valen me


encarou antes de aceitar minha mão e se levantar.

“Eu poderia ter refutado se achasse que tinha uma chance”, ele reconheceu
humildemente.

Permitindo um leve sorriso, eu soltei sua mão áspera e calejada. “Você tem
uma guarda forte.”

Saltando da plataforma de treinamento, voltei minha atenção para os alunos.


A maioria estava assistindo boquiabertos de surpresa. Mayla sorriu para mim,
enquanto Enola estava olhando para mim com uma centelha de respeito
recém-descoberta. Seth, eu percebi, não estava me observando, mas estava
olhando para seus próprios punhos cerrados.

Ainda assim, foi Valen quem me surpreendeu. O garoto de sangue elevado não
sorriu desdenhosamente ou fez cara feia como eu esperava. Em vez disso, ele
calmamente se sentou ao lado de Portrel e Remy, silenciando-os quando
começaram a sussurrar freneticamente, e esperou.

Eu esfreguei minha nuca. “Então, vamos começar.”

Capítulo 354
Ensinando, de Certa Forma

Segurando a relíquia semiesférica, eu imbuí uma pequena quantidade de éter


nela. A relíquia ganhou vida, queimando com um brilho de mercúrio aglutinado
em torno do portal de saída da zona. O opaco campo de energia ondulou e
tornou-se transparente como vidro. Era como olhar por uma janela para meus
aposentos na Academia Central.

Fiz um gesto para que Caera fosse primeiro.

“Eu o chamaria de cavalheiro, mas sei que você está me usando como um rato
de laboratório para seu novo brinquedo”, disse ela com um sorriso malicioso
antes de desaparecer pelo portal, tornando-se imediatamente visível
novamente do outro lado.

Passar por ele foi tão fácil quanto passar por uma porta. Não houve
desconforto ou sensação de vertigem, como as pessoas às vezes sentiam ao
usar os portões de teletransporte em Dicathen. Parecia estranho passar tão
suavemente das Relictombs para meus aposentos limpos e praticamente
vazios na academia.

Caera estava parada no meio da sala, seus olhos escarlates rastreando cada
movimento meu enquanto eu me abaixava para desativar o portal de
ascensão. Quando ambas as peças foram pressionadas uma contra a outra,
elas fizeram um leve clique e se reconectaram, formando uma esfera perfeita.
Eu armazenei a Bússola na minha runa dimensional.

“Lamento que não tenha funcionado, Grey,” ela disse finalmente, seu olhar se
suavizando.

“Está tudo bem,” eu grunhi. “Vai funcionar, eventualmente.”

Caera me deu um sorriso de boca fechada e gesticulou indicando seu corpo,


que estava coberto com respingos de sangue seco e coagulado. “De qualquer
forma, é melhor eu ir me limpar.” Ela olhou pela janela, onde a luz já estava
invadindo o campus. “Parece que passamos a maior parte da noite lá. A aula é
daqui a pouco.”

“Você provavelmente deveria se limpar aqui,” eu apontei, gesticulando em


direção ao banheiro conectado ao meu quarto. “Pode ser que levante
suspeitas se alguém te ver vagando pelo prédio coberta de sangue.”

Caera olhou para o teto como se traçasse um caminho do meu quarto ao dela.
“Bem pensado.”

Depois de entregar a ela uma toalha limpa, sentei-me diante do tabuleiro de


Disputa dos Soberanos e cutuquei as peças sem pensar.
‘Talvez não funcionou porque Sylvie é uma asura e nós estávamos nas
Relictombs?’ Regis perguntou, interceptando meus próprios pensamentos
meio formados.

Não, eu pensei. A sensação era a mesma de antes, logo depois de formar o


núcleo de éter. Só que agora, em vez de colocar baldes de água em um lago,
estou jogando lagos no oceano.

Com minhas reservas etéreas tendo crescido dez vezes ao fortificar meu
núcleo com uma segunda camada de éter, eu tinha certeza de que poderia
quebrar o segundo selo dentro da pedra de Sylvie. Eu estava errado. Em vez
disso, observei enquanto todo o poder que havia reunido – tanto das próprias
Relictombs quanto da semente do brinquedo de fruta seca – desapareceu nas
vastas profundezas da estrutura rúnica, drenando como areia por uma
peneira.

Mas você está certo, continuei, fechando os olhos e me deixando afundar no


colchão macio. Não deveríamos tentar nas Relictombs novamente. Não
sabemos o que acontecerá se um asura puro-sangue emergir de dentro.

Caera veio do banheiro alguns minutos depois, limpa de toda sujeira e vestida
com roupas limpas. “Enquanto eu estava no banho acabou me ocorrendo que
eu sair do seu quarto nas primeiras horas da manhã, recém-banhada, tem
potencial pra começar tantos rumores como se eu estivesse coberta de
sangue”, disse ela com naturalidade.

“Rumores menos prejudiciais”, eu disse.

Ela franziu a testa para mim, uma sobrancelha levantada. “Talvez para você.”
Já que você não é uma nobre senhorita de sangue elevado com uma reputação
a manter.”

Inclinei minha cabeça, devolvendo seu olhar. “Você quer que eu abra o portal
para que você possa se cobrir de sangue novamente?”

Caera murchou e ignorou minhas palavras com um gesto cansado. “Tenha um


bom dia de aula, Gray.”

Quando ela se foi, a voz de Regis encheu minha cabeça. ‘É impressionante,


sabe?’

O quê? Eu perguntei, sentindo uma armadilha em suas palavras.

‘Como você pode ser tão bom e tão ruim com as mulheres ao mesmo tempo.’

Era óbvio o quanto o clima dentro da aula de Táticas de Melhoria Corporal


havia mudado enquanto eu descia as escadas íngremes da sala.
Depois que foi estabelecido que eles iriam competir no Victoriad – na frente
de lacaios, Foices e Soberanos – os alunos começaram a chegar cedo, e mesmo
aqueles que zombaram da ideia de aprender a lutar sem magia há alguns dias
atrás estavam esperando ansiosamente com seus colegas.

Enola e sua amiga subserviente, Laurel do Sangue Nomeado Redcliff – que eu


descobri que era sobrinha da Professora Abby – ocuparam a maior parte da
plataforma de treinamento, enquanto o resto tinha se formado em pares e
estavam espalhados pela sala de aula, lutando desajeitadamente.

‘O que… eles estão fazendo?’ Perguntou Regis, perturbado e inquieto.

Minhas sobrancelhas franziram em confusão enquanto eu observava os


alunos.

A maioria deles eram vindos de casas poderosas – incluindo vários de Vechor,


onde rapazes e moças eram treinados para serem soldados desde o momento
em que podiam andar – mas apenas alguns deles pareciam ter alguma ideia
do que estavam fazendo.

Seus socos e chutes eram fracos, como se estivessem brincando de luta com
uma criança. De toda a classe, apenas Valen, Enola e Marcus do Alto Sangue
Arkwright pareciam estar realmente lutando.

Eu deixei escapar um suspiro de ridículo. “Eles não estão usando mana.”

Alacryanos despertaram como magos antes de Dicathians, então fazia sentido


que a maioria de seu treinamento antes de ingressar na Academia Central
dependia de mana para alimentar seus movimentos e ataques, ao invés de
músculos e técnicas.

“Professor Grey!”

Virei meu olhar para ver Mayla subindo as escadas correndo na minha direção,
as sobrancelhas cheias de suor.

“Você vai ensinar hoje, certo? Seth tem me mostrado alguns dos exercícios que
leu em um livro para nos ajudar a aquecer para sua aula!”

“Seth?” Senti um pequeno aperto no peito com o nome, meu rosto se


contraindo involuntariamente em uma careta.

Eu tinha colocado o Seth bem no fundo da minha mente. Era mais fácil ignorar
sua existência do que tentar continuamente me convencer de que eu tinha
razão em desprezá-lo pelas ações de sua irmã durante a guerra.

Afinal, isso levou à escravidão de inúmeros elfos e, eventualmente, à


dizimação de Elenoir.

Quem se importa se não foi diretamente culpa dele.


Sua família teve o que merecia…

‘Mesmo que tenha sido Seth pessoalmente quem traçou o caminho para Elenoir
em vez de sua irmã, não vamos esquecer que você também fez coisas terríveis
como soldado na guerra,’ disse Régis, a voz cheia de aborrecimento.

Eu sei disso… Eu sei. É só que…

Esfreguei minhas têmporas, passando por Mayla. Meus olhos se desviaram de


Seth, que estava lutando para fazer flexões. Eu fui em direção ao escritório,
ignorando os olhares dos alunos por quem passei até que fui interrompido por
uma figura parada na frente da minha porta.

Enola estava com os braços cruzados, os olhos fixos em mim friamente, mesmo
enquanto o suor escorria por seu rosto.

“Algum problema?”

Ela abaixou os braços e soltou um escárnio. “Já se passaram dias desde que
foi anunciado que nossa classe estaria no Victoriad, e você não fez nada além
de nos dizer para exercitar nossos corpos.”

Eu levantei uma sobrancelha, jogando minha cabeça por cima do ombro.


“Parece que todos vocês já estão fazendo mais do que isso. Eu não acho que
duelos eram parte do programa.”

Enola cerrou as mãos com força enquanto dava um passo à frente. “Porque
estaremos lutando no Victoriad pelo bem de Vritra! Temos de fazer algo!”

“E você é livre para fazer o que quiser”, respondi friamente. “Esta instituição
está à sua disposição. Eu não estou prendendo você.”

“Não… não foi isso o que eu quis dizer.” A herdeira do sangue Frost abaixou a
cabeça, os ombros caídos. “Treine-nos. Mostre-nos como podemos lutar como
você fez contra o tutor de Valen.”

Hesitei, desviando o olhar de sua exibição lamentável quando meus olhos


avistaram Seth mais uma vez.

Aborrecimento e ressentimento queimaram quando virei minha cabeça para


trás e contornei Enola. Abri a porta quando senti um pequeno puxão no meu
cotovelo.

“Por favor,” sussurrou Enola, com a voz trêmula.

Eu aguardei, silenciosamente esperando que Regis contasse uma piada ou


apenas me lembrasse das justificativas que eu tinha feito antes, e que agora
me fugiam. E pela primeira vez, ele não tinha nada a dizer.
Eu olhei para trás, me arrependendo imediatamente. Arrependido de ter que
ver como todos os alunos me olhavam com olhos esperançosos, e o Valen até
chegou a se inclinar levemente junto com seus amigos. Seth se levantou e
olhou pelo canto do olho, com muito medo de olhar diretamente para mim,
enquanto Mayla sorria mansamente.

‘Você fez a escolha certa’, pensou Regis.

Quem disse que eu fiz uma escolha, respondi, retirando delicadamente a mão
de Enola.

‘Esse seu cérebro teimoso,’ respondeu meu companheiro com uma risada.

Eu balancei minha cabeça e encarei a classe. “Todos na plataforma de


treinamento!”

Os garotos largaram tudo e correram para a plataforma elevada, Enola de


alguma forma sendo a primeira a chegar, apesar do fato de que ela estava ao
meu lado há poucos segundos.

Fui em direção ao grupo, coçando a nuca e tentando não pensar se havia feito
a escolha certa ou não.

Dentro do ringue, Enola sentou-se com Laurel enquanto Valen, Remy e Portrel
estavam logo atrás. Um por um, meus olhos examinaram o resto dos alunos,
lembrando como eles lutaram entre si.

Marcus e Sloane, ambos Vechorianos, vinham treinando juntos com estilos


semelhantes, uma forma de combate corpo-a-corpo utilizando joelhos e
cotovelos fortes. Outro dos alunos de Vechor, Brion do Sangue Nomeado
Bloodworth, esteve lutando com o garoto que ele estava sentado ao lado
agora, um menino loiro bronzeado de Etril chamado Linden.

Linden parecia mais um fazendeiro do que um lutador e seus golpes eram


confusos e largos em comparação com Brion, que obviamente tinha algum
nível de treinamento.

De todos os alunos me olhando ansiosamente como pintinhos, apenas Deacon


parecia desinteressado, sentado ao lado de Yanick no fundo, seu rosto
escondido atrás de um livro.

Soltei um suspiro. “Qual seria o resultado se injetasse os músculos de um


guerreiro veterano em bebês?”

Levantando minha mão direita, apontei meu dedo para a classe. “Vocês.”

Essa declaração foi recebida com uma mistura de respostas, que iam desde
confusão a aborrecimento e até raiva.

‘Belo jeito de incentivá-los para a aula,’ respondeu Regis.


“Simplificando, vocês podem muito bem estar socando com os pulsos,” eu
disse, demonstrando com um movimento do meu próprio pulso. “E a única
razão de estar funcionando é porque você tem mana suficiente para fazer até
mesmo isso doer.”

Enola levantou-se com um salto, a boca já aberta, mas eu a interrompi. “Não


estou aqui para acariciar seu ego ou tornar a aula divertida e empolgante”, eu
disse. “Vou ensinar uma coisa hoje. Se querem ouvir ou não, depende de
vocês.”

“Dar um soco requer todo o seu corpo, não começando com o balanço dos
braços, mas com a planta dos pés.” Girei meu pé direito lentamente e apontei
para meus quadris. “Como um tornado, você gera impulso com a perna,
girando o quadril e permitindo que o poder se acumule conforme vira o ombro
e explode o punho para frente. Alguma dúvida?”

Para minha surpresa, foi a mão de Valen que subiu primeiro. “Você pode nos
mostrar uma demonstração usando um alvo?”

“Não,” eu disse impassível. “Formem pares e demonstrem em vocês mesmos.”

Dois dias depois, quando entrei em minha sala para a aula seguinte, fiquei
surpreso ao encontrar metade dos alunos já esperando por mim. Rafferty,
chefe do Departamento de Combate Corpo a Corpo, também estava lá, sentado
na fileira mais próxima da plataforma de treinamento.

Enola estava parado na frente dele, dando o mesmo soco que eu havia
mostrado na aula anterior.

“- começa no pé, pernas e quadris, assim…” Ouvi ela dizer enquanto eu descia
as escadas. Seus olhos brilharam, e ela veio até mim.

“Tenho praticado o soco que você nos ensinou e você estava certo! A
pontuação de força em meu artefato de medidor de impacto foi mais que o
dobro, e continua a melhorar,” ela disse animadamente enquanto me
mostrava seus dedos machucados.

“C-Certo,” eu respondi, pego de surpresa por sua excitação. Virando-me para


Rafferty, fiz uma pequena reverência, dando uma olhadela para a pilha de
pergaminho em sua mão.

“Só estou aqui para uma inspeção padrão, nada para se preocupar, Professor
Grey. A senhorita Frost estava me contando sobre sua última lição,” disse o
chefe do departamento com uma tosse.

Eu dei a ele um sorriso vazio antes de descer para a frente das poltronas estilo
arquibancada. Enquanto esperava o resto dos alunos chegarem, ouvi o barulho
da conversa vindo da classe. Mayla estava sentada na fileiras do meio, entre
Seth e Linden, o único outro estudante em Táticas de Melhoria Corporal que
era de Etril.

“Você acha que obterá uma segunda runa durante a concessão?” Linden estava
perguntando a Mayla. “Ainda é difícil acreditar que você recebeu um emblema
como sua primeira runa…”

Mayla baixou os olhos timidamente. Embora ela fosse confiante e enérgica em


relação às aulas, ela parecia ter dificuldades quando se tratava de se
comunicar com os outros alunos.

“Eu realmente não sei muito,” ela finalmente respondeu. “Todo mundo que
ouve sobre como eu consegui a… runa fica sempre surpreso. Ninguém nunca
ouviu falar de algo assim.”

Linden estava balançando a cabeça, a boca ligeiramente aberta. “Você é tão


sortuda. No limite de ficar sem adornos, então bum! Emblema.”

Mayla enrolou uma mecha de cabelo em volta do dedo distraidamente. “Sim…”

Marcus se recostou na cadeira e olhou por cima do ombro para o par. “Minha
primeira runa foi um brasão. Pessoalmente, estou na expectativa por outro
durante esta concessão. Não é tão impressionante quanto um emblema”- ele
deu um pequeno aceno de cabeça para Mayla, que corou – “mas se eu
conseguir um segundo em breve, é possível que eu pudesse receber uma
terceira runa ainda na academia.”

“De acordo com meu avô,” Valen interrompeu de vários assentos de distância,
chamando a atenção de quase todos na sala, “menos de dez por cento dos
alunos conseguem três runas antes de se formarem, mas isso ainda é mais alto
do que quase qualquer outra academia em Alacrya.”

Marcus encolheu os ombros com indiferença, como se não visse o mínimo


problema nesses números.

“Já tenho o meu segundo”, disse Enola, sentando-se na primeira fila. “Um
brasão durante minha primeira concessão na academia.”

Rafferty pigarreou, e todos os olhos se voltaram para ele. “Lembrem-se de que


a cerimônia de concessão é um momento de introspecção e sua concessão é
um reflexo de seu esforço para dominar a mente e a mana. Concentre-se
menos no que você receberá e mais no que você fez para merecer. Professor
Grey, por favor comece.”

Meus olhos percorreram os alunos que esperavam que eu falasse. “Na última
aula, eu ensinei como dar um soco adequado. Desta vez, vocês trabalharão em
como se esquivar adequadamente.”

Uma mão subiu. Era Mayla.


“Sinto muito, professor, mas é possível revisar sua lição da última aula? Quero
ter certeza de que estou fazendo isso corretamente,” ela perguntou com a mão
ainda no ar.

“Não. Pergunte aos seus colegas, faça alguns amigos,” eu respondi enquanto
Yanick deslizava pela porta, o último a chegar. Antes que ele pudesse dar mais
do que alguns passos, acenei para que ele descesse. “Yanick, boa hora. Você é
o primeiro.”

Ele franziu a testa com preocupação, mas desceu as escadas para ficar ao meu
lado.

“Eu vou dar dois socos em você. Um de direita em seu rosto, então um gancho
de esquerda em suas costelas,” eu o informei.

“Huh?”

Eu levantei meus punhos. “Esquive.”

Dando um passo à frente, joguei meu punho direito direto em seu rosto. Apesar
de sua surpresa inicial, Yanick ainda foi capaz de se afastar do meu alcance.

Girando ao redor do meu pé direito, eu joguei meu punho esquerdo em um


gancho largo.

Yanick deu mais um passo para trás para se esquivar.

Voltei-me para a classe, que estava assistindo da arquibancada. “O que Yanick


fez de errado?”

“Ele desperdiçou muito movimento,” Valen respondeu prontamente.

“Correto.” Eu me virei para Yanick mais uma vez. “De novo.”

Meu pequeno parceiro de treino assentiu seriamente, se preparando desta vez.

Eu soquei novamente, limitando minha velocidade e força. Desta vez, o jovem


Alacryano se inclinou para longe do soco de direita em vez de pular para trás,
e então defendeu o gancho.

“Mais rápido.”

Repeti o exercício e a resposta de Yanick foi a mesma, se inclinar pra trás antes
de aparar o gancho. Na terceira vez, sua inclinação brusca para trás o forçou a
dar um passo não planejado, e ele mal conseguiu abaixar a mão a tempo de
interceptar meu gancho.

Meu punho acertou firmemente em seu lado na quarta repetição, com força
suficiente para deixá-lo sem fôlego.
O menino tossiu enquanto me virei para o resto da classe. “Aprender a se
esquivar de forma eficaz significa que você não apenas faz com que seu
oponente erre, mas também cria uma oportunidade para você atacar ao
mesmo tempo.”

Os alunos olharam para mim com interesse renovado; até mesmo Deacon
largou seu livro para prestar atenção.

“Quem gostaria de ser o próximo?” Eu disse, dispensando Yanick. As tranças


do menino balançaram enquanto ele pulava da plataforma antes de se sentar.

Algumas mãos se levantaram, com Enola praticamente acenando com a mão


para ser escolhida.

“Valen,” eu disse, virando-me para o alto sangue.

Portrel deu um grito de alegria, mas o olhar frio de Valen acalmou o garoto
maior.

“Você entende o que fazer agora?” Eu perguntei, adotando minha postura.

Valen acenou com a cabeça enquanto fazia uma postura que reconheci como
sendo da guarda Vechoriana, baseado no meu curto duelo com seu tutor,
Drekker.

Quando joguei meu cruzado com a direita, ele se inclinou para frente e seu
cotovelo caiu para bloquear o gancho.

Recuei um passo. “Observem como os movimentos de Valen são pequenos. Ao


se inclinar na minha direção, Valen está se preparando para bloquear o gancho
com um movimento menor do que a defesa de Yanick, e para estar dentro da
minha guarda para um contra-ataque.”

Eu levantei meus punhos. “Vamos ver se ele consegue fazer isso mais rápido.”

Valen e eu fizemos várias outras rodadas, com cada combinação vindo cada
vez mais rápido. Finalmente, seu passo inicial foi muito raso, e meu cruzado o
acertou na bochecha, quase o derrubando no chão.

Apesar de ver o neto do diretor ser atingido, Rafferty não parecia afetado, e
sua caneta continuava a borrar no pergaminho enquanto ele fazia anotações.

“Formem pares, todo mundo. Alternem, trocando as posições de atacante e


defensor. Atacantes, comecem com metade da velocidade e vão aumentando.”

“Obrigado pela lição,” Valen disse com uma reverência antes de ir embora.

‘É tão chato agora que as crianças são tão obedientes,’ reclamou Regis.
Minhas lições são muito básicas para a poderosa arma divina da destruição? Eu
perguntei com uma risada.

‘Sim, além de anatomicamente inútil para mim. Então, a menos que você
comece a ensinar seus alunos a lutar de quatro, vou tirar uma soneca,’ ele
respondeu enquanto sua presença desaparecia.

O resto da sessão passou rapidamente, e a maioria dos alunos pareceu


genuinamente surpresa quando anunciei o fim da aula.

“Saiam daqui,” eu disse impacientemente.

“Obrigado, professor”, disse Marcus enquanto subia as escadas. Alguns dos


outros assentiram. Mayla me deu um sorriso largo e acenou enquanto subia os
largos degraus dois de cada vez.

Rafferty estava de pé, seus papéis dobrados debaixo do braço. Ele


rapidamente ajustou seu terno preto e azul. “Seus ensinamentos são…
incomuns, mas eficazes. Parece que não terei que me preocupar muito,
Professor Grey.”

“Agradecido,” eu disse enquanto o chefe do Departamento de Combate Corpo


a Corpo subia as escadas e saía da minha sala de aula.

Eu me ocupei colocando as coisas no lugar e fechando tudo. Eu estava quase


terminando quando senti alguém me observando.

“Você ia se anunciar, ou apenas ficar aí agindo de forma assustadora?” Eu


comentei, fechando e trancando a porta do meu escritório.

Caera estava encostada no batente da porta.

“Eu estava um pouco chocada vendo você limpar,” ela disse com a mão sobre
a boca. “Não estou acostumada com você parecendo tão doméstico.”

‘Doméstico, de fato,’ riu Regis.

Suspirei. “Se você vai fazer piada, pelo menos ajude enquanto faz isso.”

“Estou aqui para outra coisa”, disse Caera, endireitando-se. “Com a cerimônia
de concessão começando amanhã, as aulas estarão suspensas pelos próximos
dias…”

“Eu sei,” eu disse, fingindo indiferença. “Finalmente terei tempo para resolver
uns assuntos que deixei de lado, junto com algumas outras tarefas
domésticas.”

Caera revirou os olhos. “Não banque o espertinho. Vamos entrar, certo?”

Um sorriso se formou na borda dos meus lábios. “Claro.”


Capítulo 355
Apenas o Seu Nome

TESSIA ERALITH

Levantando minha mão, me alegrei com a resposta da mana. As partículas


vermelhas estavam pulando e dançando cheias de energia. As amarelas
estavam perto do chão, rolando como se fossem pequenas pedras. A mana
azul invadiu-me como uma maré e agarrou-se à minha pele como orvalho. As
verdes eram minhas favoritas, no entanto. Elas possuíam aspecto cortante,
como uma lâmina afiada, chicoteando e estalando como o vento que
representavam, mas elas também possuíam algo fresco e limpo. A mana de
vento era forte e suave ao mesmo tempo.

Eu estava em um platô sem nome, no alto das montanhas das Garras do


Basilisco. Não muito longe de Taegrin Caelum. Não havia nada ao redor por
quilômetros que eu pudesse destruir acidentalmente… mas eu não estava aqui
porque Agrona temia que eu pudesse perder o controle. Em vez disso, ele
conhecia a extensão do meu poder e queria que eu o liberasse.

Estendendo a mão para o céu, concentrei-me na mana, puxando-a para um


ponto específico no alto. Água e vento se condensaram, colidindo um com o
outro para formar uma enorme nuvem negra de tempestade que escureceu as
montanhas por quilômetros ao nosso redor.

Minha pequena audiência assistia em silêncio. Nico estava lá, é claro, junto
com outras três Foices. Draneeve, o assistente de Nico e algumas outras figuras
da fortaleza também tinham vindo. Agrona não estava, mas eu nunca o vi sair
do castelo antes.

A mana de fogo subia das pedras aquecidas pelo sol e se fundia em raios
brancos e quentes que caíam de volta, quebrando pedras e lançando
estilhaços em meu campo de treinamento. A água condensou-se em gelo, que
começou a cair como pedras lançadas por catapultas, formando crateras no
solo duro da montanha.

Mesmo no auge da minha força na Terra, nunca fui capaz de fazer algo assim
com o ki.

Minhas memórias têm estado muito mais estáveis nessas semanas, desde que
Agrona prometeu que eu poderia deixar sua fortaleza. Ele disse que eu
começaria a me sentir mais eu mesma quanto mais tempo estivesse neste
corpo. As runas que cobriam minha carne me ajudaram a manter a lucidez,
manter a outra voz em silêncio.

A mana de vento se aglutinou em amplas e cortantes correntes que


serpenteava ao meu redor como um dragão, me separando dos outros. Vento,
ao mesmo tempo suave e forte…
Minha vida – minha vida anterior – exigiu que eu me endurecesse para suportar
o treinamento constante e torturante que recebi. Mas sempre houve um
pedaço de mim que guardei no meu coração, aquele pedaço onde senti um
calor afetuoso pela primeira vez na minha vida, e foi esse calor que me
manteve até…

Eu me concentrei na mana, recuando dos resquícios despedaçados dessas


memórias. Eu ainda não conseguia me lembrar da minha morte, e Nico só disse
que eu saberia sobre isso com o passar do tempo.

Nico…

Eu olhei para onde ele estava, me observando lançar feitiços, seu cabelo
escuro chicoteando seu rosto. Eu não pude deixar de notar como ele ficou bem
longe dos outros. Pobre Nico, um excluído até mesmo aqui.

Draneeve bateu palmas e gritou contra o vento, sua máscara dando à sua voz
uma qualidade áspera que eu achei desconfortável de ouvir. Nico acenou para
que Draneeve fizesse silêncio, e o mascarado parou de gritar, embora
continuasse com um aplauso lento e inconsistente.

Estendendo a mão, puxei os cantos da enorme tempestade até que ela pairou
um pouco acima de mim, quase do tamanho de uma macieira. A criação,
momentos atrás, uma manifestação mortal de poder bruto, agora era algo
totalmente diferente. Minúsculas criaturas aladas feitas de ar giravam dentro
das nuvens, enquanto pequenos golfinhos aquáticos saltavam e espirravam
abaixo delas.

Foi bonito. A mana era linda. Ki era energia, capaz de ser reunida e liberada,
mas nunca realmente tomando forma, não da mesma forma que a mana
poderia tomar. Esta foi a verdadeira magia.

Minha atenção se desviou para os três que se destacavam do resto: as Foices.


Tecnicamente, Nico era um deles, mas eles o mantinham à parte, ou ele
mantinha distância. Ou ambos.

Seus tons variados de pele cinza, chifres pretos e olhos vermelhos serviam
para defini-los como algo diferente. Seus olhares continham curiosidade e
inquietação, como uma plateia assistindo a um domador de leões em um circo.
Isso me fez acreditar no que Nico vivia me dizendo: eles sabiam que eu seria
mais forte do que eles eventualmente.

“Muito, muito bem feito!” Draneeve saltou com sua voz propositalmente
áspera. “Você cresceu muito mais rápido do que Lorde Nico. Apenas semanas
no corpo da garota elfa magrinha e você está… ”

Houve um estalo alto.


Draneeve endireitou a máscara – uma coisa branca simples com pequenos
buracos no lugar dos olhos e um sorriso grosseiramente desenhado – e
esfregou o lado da cabeça onde Nico o havia acertado com as costas da mão.
Eu fiz uma careta para Nico, que teve a boa graça de pelo menos parecer
envergonhado. Ele odiava Draneeve, eu sabia, mas ele não me disse por quê.

Cadell e Dragoth estavam observando Nico.

Dragoth era enorme, maior que qualquer homem que eu já vi, mas fora isso,
ele era de um tipo familiar. Quando eu estava subindo na classificação no
torneio da Coroa do Rei, havia muitos como ele. Guerreiros arrogantes e
egocêntricos. Rápidos para rir de suas próprias piadas e rápidos para lutar
contra qualquer insulto recebido.

Cadell era o mais estranho e assustador. Ele tinha um rosto frio e cruel, como
o lado afiado de um machado, mas era profissional em suas maneiras. Eu não
gostava dele.

Mas foi a terceira Foice que achei mais interessante. Eu só a encontrei uma vez
antes, e foi breve. Embora parecesse jovem – vinte no máximo – havia uma
sabedoria profunda e curiosa em seus olhos e uma inteligência mundana. Eu
senti como se ela estivesse me dissecando com seus olhos escuros, tanto
naquela época quanto agora. Ao contrário de suas contrapartes, ela ainda
estava me observando. Não o meu feitiço, com suas gaivotas de vento idiotas
e golfinhos aquáticos, mas eu.

Olhando em seus olhos, era quase como se eu pudesse ver as engrenagens


atrás deles girando, tentando me entender. Ela me via como uma ameaça?
Uma ferramenta? Eu não tinha certeza.

“Nico,” Cadell disse, seu tom cheio de gelo e fogo, “seja legal com seu animal
de estimação. Afinal, foi Draneeve quem o trouxe de volta daquele continente
horrível.” Draneeve ficou inquieto, sua atitude ilegível por trás de sua máscara
feia. “Ele seria um general agora, talvez até um retentor, se ele não tivesse se
retirado de Dicathen para salvar sua pele ingrata.”

Meu feitiço desapareceu, a nuvem se dissolvendo em névoa e depois em nada


enquanto eu esperava a resposta de Nico. Ele cerrou os punhos e deu um
passo para longe de Draneeve. “Não fale comigo como se eu fosse inferior,
Cadell. Eu também sou uma Foice, lembra?”

Dragoth sorriu, seus dentes brilhando brancos como o luar através de sua
barba. “Você está certo, pequeno Nico. Você é uma Foice. E o nome Foice
passou a ter um pouco menos de significado a partir do dia em que o
consideramos parte do nosso grupo.” Ele riu alto de sua própria piada, mas
não parou por aí. “Talvez Bivrae devesse ser uma Foice, ou mesmo Draneeve!”
ele disse, praticamente gritando, seu sorriso se tornando ameaçador.
Nico zombou. “E onde estava o poderoso Dragoth durante a guerra? Diga-me,
Titã de Vechor, por que seu servo foi para Dicathen e morreu enquanto você
estava seguro e… ”

“Cuidado com suas próximas palavras,” Dragoth rosnou, seu sorriso caindo
rapidamente. Ele deu um passo em direção a Nico, inchando seus enormes
músculos.

O solo se avolumou quando uma trepadeira coberta de espinhos surgiu entre


os dois, rapidamente se expandindo em uma cerca de espinhos. Eu não tive a
intenção de lançar um feitiço, mas estava agitada com a luta deles. Meu
instinto defensivo sempre pendia para a magia das plantas, mesmo quando
outros elementos fariam mais sentido.

Dragoth se inclinou para frente, apoiando os dois braços nas vinhas cobertas
de espinhos. “Você é jovem e pequeno, mas já está no auge de seu poder,
reencarnado.”

A cabeça de Nico se inclinou para o lado. Seus olhos estavam frios como carvão
morto. “Todos que podem ter esperança de me desafiar já estão aqui,” ele
disse suavemente antes de se virar para mim. “Está claro que você já está
pronta para ir. Já esperamos o suficiente – por insistência de Lorde Agrona, é
claro,” acrescentou ele rapidamente, lançando um olhar azedo para Cadell.

“Sua capacidade de moldar a mana é impressionante,” disse Foice Seris, seu


olhar afiado me cortando aos poucos, “mas não se confunda com o que está
diante de você. Mantenha os olhos e os ouvidos abertos e não vá além do seu
alcance.”

“Ela é o Legado,” Nico respondeu sombriamente. “As próprias estrelas não


estão além de seu alcance.”

Minha primeira experiência neste mundo foi a terra natal do povo élfico na
floresta. Não reparei na sua estranheza. Eu estava muito confusa e surpresa
com minha própria reencarnação para prestar muita atenção na floresta
encantada. Mesmo a aparência do gigante de três olhos – um asura, eu me
lembrei – não foi o suficiente pra estabelecer o quão sobrenatural era minha
nova casa.

Foi em Taegrin Caelum quando comecei a entender como esse lugar realmente
era diferente da Terra. Mas lá, tudo que aprendi era filtrado pelo Agrona. Só
foi depois que Nico me levou para as Relictombs que apreciei toda a dimensão
das estranhas e maravilhosas diferenças entre os dois mundos.

O portal privado de Agrona poderia se conectar a qualquer outro em Alacrya,


permitindo que nos teletransportássemos pra muito perto de nosso destino.
Eu teria gostado de explorar, de passar um tempo absorvendo tudo enquanto
vagávamos pelo segundo nível das Relictombs. O céu em si quase me tirou o
fôlego quando eu olhei para a vasta extensão azul. Eu pensei que minha
tempestade tinha sido uma demonstração impressionante de magia, mas
isso…

Eu sabia logicamente que o próprio céu era uma construção mágica, mas não
conseguia entender. Parecia incompreensível que alguém pudesse criar tal
coisa. Quando eu comentei isso com Nico, ele me ignorou, focando em
intimidar a multidão para nos abrir um caminho entre os homens e mulheres
com armaduras ao nosso redor.

“Você é totalmente imune às maravilhas deste mundo?” Eu perguntei,


mantendo o ritmo ao lado dele. “Você pode ter se acostumado com tudo isso,
mas eu só cheguei aqui recentemente.”

“Nós temos um lugar para ir,” ele retrucou. Ele deve ter me visto franzir a testa
com o canto do olho, porque diminuiu um pouco a velocidade. “Sinto muito,
Cecil. Estou… um pouco agitado. Lorde Agrona deu a entender que o que
encontraremos aqui pode ser importante para mim, mas ele deixou de fora
qualquer tipo de detalhe e…” Ele parou, estremecendo. “Sinto muito, não é sua
culpa. Estou impaciente para falar com esses juízes.”

“Não, me desculpe,” eu disse, me sentindo imediatamente culpada por minha


escolha de palavras. Ele me contou longamente sobre suas vidas, como foi
para ele depois de minha indução involuntária ao torneio da Coroa do Rei e
sua vida dividida aqui. “Eu não tive a intenção de fazer pouco caso do que você
passou.”

“Eu sei”, foi tudo o que ele disse.

Eu seguia em silêncio enquanto Nico nos guiava direto como uma flecha, em
direção a uma grande e intimidante construção de pedra escura e espinhos
negros. Parecia um pouco com um porco-espinho enorme com um exército de
gárgulas agarrado às suas costas.

Uma mulher com cabelos vermelhos como uma tocha estava esperando por
nós na frente do prédio. Ela estava envolta em um manto escuro bordado com
uma espada dourada e escamas. Seus olhos permaneceram olhando seus
sapatos enquanto nos aproximávamos e, mesmo quando ela começou a falar,
não ergueu os olhos.

“É uma grande honra receber um representante do Alto Soberano.” Seu tom


era autoritário, mesmo quando ela tentava ser subserviente. “Embora, devo
admitir, esperávamos que você chegasse antes.”

Nico passou por ela e ela se virou para segui-la, mantendo-se um pouco mais
longe dele do que eu. “O Alto Soberano tem pouco tempo para coisas
insignificantes como alguns juízes corruptos. Ainda não tenho certeza de
porquê uma Foice é necessária,” Nico disse rapidamente.
Eu queria olhar ao redor, mas estávamos andando rápido demais para eu
realmente apreciar o lugar. Quase ri quando vi um afresco gigante de um
homem que presumi ser Agrona. Parecia que os artistas nunca o tinham visto,
mas percebi rapidamente que era uma possibilidade. E rapidamente passamos
pelo afresco, sem Nico nem a mulher ruiva darem atenção.

Nico parou em frente a uma porta de ferro preto, batendo os dedos


impacientemente enquanto esperava que a juíza a abrisse. Acenando com a
mão envolta em mana na frente da porta, ela nos indicou uma escada mal
iluminada feita de pedra escura e ladrilhos cinza. Nico assumiu a liderança
novamente, descendo as escadas rapidamente. Quando chegamos ao fundo,
ele estava marchando a uma velocidade desconfortável, forçando a juíza e eu
a praticamente correr para acompanhá-lo.

Um labirinto de túneis estreitos se abria pra esquerda e direita, ladeados por


portas de celas gradeadas. Na cela mais próxima da escada, uma mulher
esfarrapada se inclinou para frente sob a luz da tocha, viu Nico, e
imediatamente se escondeu nas sombras, seu rosto se contorcendo como se
ela tivesse acabado de ver um demônio.

Nico ignorou os túneis ramificados enquanto nos conduzia direto pelo


caminho do meio.

Então, a ficha caiu.

Seu distanciamento, a maneira como ele estava praticamente me ignorando


depois de passar as últimas três semanas trabalhando incansavelmente para
provar a Agrona que eu estava pronta, seu mau humor… Nico estava ansioso
com esse interrogatório.

Não era exagero dizer que meu antigo noivo estava sempre ansioso, mas ele
tinha ficado rígido, cada movimento rijo e desajeitado, e ele nem olhava para
mim. Ele não estava apenas ansioso; ele estava temendo o que estava por vir.

O corredor terminava em um par de portas largas de ferro, pretas como a noite


e inteiramente cobertas por runas prateadas. Elas pareciam que poderiam
segurar um rinoceronte furioso do lado de dentro. Apesar de seu tamanho,
elas se abriram sozinhas quando a juíza se aproximou, revelando uma grande
sala circular do outro lado.

Meu estômago embrulhou.

“O que essas pessoas fizeram para merecer isso?” Eu perguntei, desviando


meus olhos.

Dentro da cela, cinco figuras estavam como águias abertas, penduradas no


teto pelos pulsos e tornozelos. Faixas de bronze cobriam suas bocas. Embora
houvesse mana nas correntes e mordaças, não pude sentir nada dos
prisioneiros. Ou sua mana estava sendo suprimida ou – engoli em seco – seus
núcleos de mana foram destruídos.

“Eles conspiraram com uma casa nobre para condenar um homem inocente
por um crime que ele não cometeu,” disse a juíza com firmeza. “Diante do
flagrante de abuso de autoridade para seu próprio ganho pessoal, eles
merecem isso e pior.”

Eu dei um passo em direção à cela, apesar de não ter certeza se queria, mas
Nico me impediu. Ele estendeu a mão para tocar meu braço, mas parou. “Acho
que seria melhor se você esperasse aqui.”

Fiquei quase aliviada. Dando um passo para trás, eu acenei com a cabeça.
Assim que ele e a suprema juíza entraram, as portas começaram a se fechar.
No último momento, quando seus olhos se desviaram dos meus, seu rosto
mudou, endurecendo como se fosse esculpido em mármore branco. Então ele
se foi e observei as partículas amarelas de mana correrem pelas ranhuras
entre as portas, teto e o chão.

Havia um banquinho de madeira próximo às portas, então me sentei. Minha


mente não parava de voltar às figuras sem mana na sala. Eu tive meu próprio
núcleo de mana por um período tão curto de tempo, mas ainda assim a ideia
de perdê-lo me amedrontada e sem palavras. Descobrir que a mana existe – e
aprender como reestruturar o mundo físico com um pensamento – apenas
para perder esse poder…

Os alacryanos não conseguiriam entender. Até Agrona, até mesmo Nico…

Na Terra, eu aprendi desde cedo que, embora eu tivesse um centro do ki


relativamente grande, esse poder nunca seria meu para exercer. Eu era a arma.
Isso é o que eles pensaram que o Legado era.

Agrona não é diferente.

Pressionei a palma da mão na órbita do olho, afastando o pensamento


irritante. Talvez fosse verdade que Agrona esperava que eu usasse minha força
para ele, mas ele tinha me reencarnado sabendo que seria meu poder. Ele
sabia o que eu realmente era. E ele queria me mostrar do que eu era capaz.

Eles estão constantemente escondendo coisas. Como agora mesmo. O que


Nico está fazendo que ele não quer que você veja?

Depois que esse pensamento invadiu meu cérebro, não pude escapar. Eu
estava tão curiosa para saber o que estava acontecendo dentro daquela sala
quanto hesitante em entrar nela. Eu escutava atentamente, mas havia uma
camada de mana de vento criando uma barreira de som ao redor da cela.

Ao me concentrar na mana, ela ondulou e o som de uma conversa abafada


chegou aos meus ouvidos. Lembrei-me de ter nadado na academia, aprendido
a focar meu ki em diferentes ambientes e como a água distorcia a voz de quem
estava fora da piscina. Soou exatamente assim. Eu nadei perto da superfície
metafórica e a voz ficou ainda mais clara. Eu atravessei a barreira do som e de
repente eu podia ouvir Nico como se ele estivesse parado ao meu lado.

“…conte-me cada coisa que você lembra sobre ele. Não deixe de lado o menor
detalhe.” A voz de Nico era profunda e oca, como se ele estivesse falando do
fundo de um desfiladeiro.

Um coro de vozes grasnadas respondeu, cada uma mais desesperada para ser
ouvida do que a outra.

“—cruel inteligência em seus olhos enquanto ele—”

“—sentou como uma estátua, como se ele nunca temesse por um—”

“—pode ser um sem adornos, porque nunca sentimos sua mana ou—”

“—exercia uma pressão tão terrível—”

“Parem. Parem!” Nico rosnou. A cela ficou em silêncio. “Se vocês continuarem
gritando uns com os outros, vou queimar suas línguas para que apenas um
possa falar.” Recuei de sua ameaça horrível, mas disse a mim mesma que ele
estava apenas fazendo o que tinha que fazer. “Você, diga-me como este
ascendente chamou sua atenção.”

Houve alguns gemidos e gargantas limpas antes de uma voz fina e nasal
responder. “Um servo do Sangue Granbehl nos trouxe uma história estranha…
de um ascendente sem laços de sangue, que parecia inexplicavelmente
poderoso, e que não projetava nenhuma assinatura de mana.” O orador fez
uma pausa, respirando pesadamente. “Eles suspeitaram que o Ascendente
Grey havia contrabandeado uma relíquia-”

A voz sufocou quando pedra e ossos racharam. Eu podia sentir o peso da raiva
de Nico através das portas protegidas.

Quando Nico falou novamente, sua voz estava tensa. “Por que não fui
informado do nome deste ascendente?”

“E-estava no relatório que enviamos para Taegrin Caelum”, disse a suprema


juíza rapidamente, com a voz trêmula.

“Não faz nenhum sentido,” Nico rosnou baixinho, e ouvi passos suaves quando
ele começou a andar.

De pé, me movi timidamente em direção às portas. Os ferrolhos de aço se


retraíram quando me aproximei e as portas se abriram. Lá dentro, a suprema
juíza encolheu-se contra a parede curva, mantendo a cabeça baixa. Nico
andava de um lado para o outro na frente dos quatro prisioneiros restantes. O
quinto, um homem com cavanhaque, foi empalado por três pontas pretas. Seu
sangue corria em jatos escuros pelas pontas antes de se infiltrar nas
rachaduras do chão.

“Ele está morto”, disse Nico com firmeza. Ele girou sobre os calcanhares,
recuando na direção oposta. “Mas ele é como uma maldita barata. Se alguém
pudesse sobreviver…” Ele girou novamente. “Mesmo se ele tivesse sobrevivido,
ele não poderia ter vindo para Alacrya sem que víssemos.”

“Nico, o que—”

Ele estalou os dedos e apontou para mim antes de continuar a falar consigo
mesmo. “Ele poderia ter encontrado um portal antigo, ainda ativo… mas
mesmo ele não seria egocêntrico o suficiente para usar esse nome… como
acender um sinal de fogo no escuro…”

Este é o homem que você ama?

Eu tremi quando a vertigem subiu pelo meu corpo, começando atrás dos meus
olhos, então sacudindo em minhas entranhas. Eu agarrei seu pulso com uma
mão trêmula. “Nico, o que você fez?”

Ele arrancou o braço do meu aperto, mostrando os dentes para mim como um
animal. “Cale-se!”

Um monstro rugiu dentro de mim. A vontade da besta guardiã estava toda


distorcida em uma fúria fervente. Era a besta engaiolada, gritando contra as
correntes que a prendiam, mas também era a grama, as vinhas e as árvores
que ocupariam o mundo quando os humanos o abandonassem. Isso me
assustou, essa coisa selvagem dormindo dentro de mim. Era muito parecido
com o meu ki na minha última vida: incontrolável, explosivo, implacável…

Tinha aprendido a tocar em todo tipo de mana. Mesmo os chamados


desviantes, o uso dos quais parecia simples como bolas de neve no inverno…
mas Agrona havia me alertado para ficar longe da vontade da besta. Talvez um
dia eu consiga domá-la, mas por enquanto…

A luz na sala assumiu o verde salpicado da floresta sob uma copa espessa, e
uma única videira esmeralda enrolada em volta do meu braço alcançou Nico.

A fúria derreteu em seu rosto, deixando-o pálido e com um tom esverdeado.


Ele tirou seu braço de mim como se tivesse se queimado.

“Cecil, você está bem? Sinto muito, estou…” Se afastando, ele passou as mãos
pelo cabelo flácido.

A gavinha recuou e a luz voltou ao normal. Mas eu ainda podia sentir a vontade
da besta vibrando de raiva. “Estou bem.”
Nico pigarreou e encarou os quatro prisioneiros. A velha desmaiou e o gordo
vomitou no chão. Eles foram pegos desprotegidos entre a súbita onda de força
de Nico e eu.

Ele vai te machucar.

Isso não importa. O espírito de Nico foi despedaçado. Ele não era ele mesmo.
Mas isso não significa que ele não poderia ser curado com o tempo.

“Como era esse ascendente?” Perguntou Nico, dirigindo-se ao prisioneiro


central, um velho frágil.

“Cabelo loiro claro…” o velho disse asperamente. “Olhos dourados, mais


felinos do que humanos. Vinte anos de idade, talvez, com traços marcantes e
orgulhosos…”

Nico franziu a testa, seus olhos perdendo o foco enquanto ele tentava imaginar
o misterioso ascendente.

“E régio”, acrescentou o velho. “Ele se portava como a realeza… como um rei.”

Nico zombou, um som vicioso que arranhou o ar. “Como um rei, você disse?” O
corpo de Nico entrou em erupção, sua raiva repentina não mais capaz de ser
contida por mera carne e osso. Chamas negras o envolveram, saltando de seu
corpo como cinzas quentes.

“Quem é um rei!” ele rugiu. “Temos apenas Soberanos aqui!”

Eu podia ver a mana, enegrecida pela influência decadente dos basiliscos,


agitando-se em um frenesi dentro da carne dos prisioneiros. Todos eles
estavam queimando por dentro. Do lado de fora, eles se contorciam em
tormento silencioso, a dor muito grande para até gritar.

Nico estava ofegando pesadamente e, a cada expiração, o ar ao seu redor


parecia distorcer. A suprema juíza já havia recuado para fora da cela para
evitar o fogo negro. Ela só podia assistir, incapaz de falar em defesa da justiça
que afirmava representar.

“Velhos idiotas inúteis!” Nico gritou, sua voz falhando. A carne do velho
começou a formar bolhas e rachar, e pequenas chamas negras saltaram das
feridas enquanto o fogo da alma os devorava.

Não demorou muito.

“Isso não foi necessário,” eu disse, suave, mas firme. Eu não queria atrair a
fúria de Nico, mas também não estava com medo. “Eles não mereciam ser
queimados por seu medo e raiva.”

Nico fechou os olhos. Sua respiração desacelerou, e as chamas delineando-o


como um halo mortal recuaram em sua carne e desapareceram. “Eles não são
ninguém. Eles são totalmente insignificantes.” Sua voz estava totalmente
desprovida de emoção.

“Grey novamente…” eu disse, minha voz quase um sussurro. “Por que esse
homem tem tanto poder sobre você que o mero nome dele pode causar uma
reação tão forte? Quem é Grey?”

Nico, de costas para mim, parecia encolher sobre si mesmo. “Ele era nosso
amigo…”

Ele se virou e, por um momento, não vi o rosto do estranho que Nico exibia. Eu
só vi seus olhos, avermelhados e brilhando com lágrimas. Eu conhecia a
tristeza neles. Ele estava olhando para mim agora da mesma maneira que
costumava olhar para mim, indefeso. Desesperado.

“E foi ele que assassinou você, Cecilia.”

Capítulo 356
Conclusão

ARTHUR

A lâmina etérea em minha mão – não maior do que uma simples adaga, e
nebulosa nas pontas – atingiu uma criatura alada feita de pedra antes de se
estilhaçar parcialmente, ainda incapaz de suportar o impacto.

Minha mão envolveu a garganta da criatura. Parecia um morcego com um rosto


achatado de pedra e uma boca enorme. Suas mandíbulas largas mordiam
loucamente a apenas alguns centímetros do meu rosto enquanto suas garras
dentadas se cravavam em meus braços, num esforço desesperado para chegar
mais perto.

Segurando a gárgula para trás com uma mão, conjurei a lâmina novamente na
minha outra mão e a mergulhei na cabeça da fera, que se partiu com
um estalo retumbante.

A lâmina quebrou e desapareceu, deixando-me com os braços vazios para me


defender quando duas outras gárgulas desceram em minha direção.

Raios gêmeos de fogo escuro atingiram as gárgulas que desciam e as bestas


explodiram. Seus escombros caíram no chão como granizo e espalharam
pequenos respingos quando pousaram no riacho que dividia a zona.

Olhei para trás para ver Caera estendendo o braço, revelando a braçadeira de
prata que ela havia tirado da sala do tesouro dos Bicos de Lança. Parecia fino
em relação a seu pulso, pouco mais do que uma pulseira decorativa coberta
com gravuras intrincadas.
Dois fragmentos estreitos de prata giravam defensivamente ao redor dela,
brilhando com luz negra. No momento seguinte, eles começaram a escurecer
enquanto voltavam para a braçadeira e se reconectavam a ela, encaixando-se
no padrão de gravuras.

Regis correu em nossa direção, cuspindo um pedaço de rocha da boca.

Atrás dele, a zona se estendia ao longe, coberta pelos destroços de nossa


passagem.

Estávamos em um desfiladeiro com penhascos íngremes e rochosos dos dois


lados. Eles eram tão altos que apenas um pedaço do céu podia ser visto acima
de nós, como um reflexo do riacho fino e claro que corria ao longo do fundo
do cânion. Pedras soltas e escombros – os restos das gárgulas – cobriam o
chão do cânion.

“Isso foi uma pedra no sapato,” disse Regis, impassível.

“Eu admito, mas não foi ruim depois que as coisas começaram a rolar,” Caera
respondeu, cuidadosamente mantendo uma expressão séria, exceto pelo leve
tremor de seus lábios. “Na verdade, eu diria que… me diverti pra cascalho.”

“Fica mais divertido lutar quando você tem conhecimento de causa” Regis
respondeu com voz trêmula enquanto tentava desesperadamente não rir.

Eu encarei o portal de saída com um suspiro profundo. “Estou tão feliz por ter
trazido vocês dois.”

Caera se aproximou de mim. “Oh, não seja tão coração de pedra, Grey.”

“Sim, princesa. Você tem que botar mais firmeza na gente.” Regis explodiu,
latindo de tanto rir.

Ignorando meus companheiros, concentrei-me no portal, minha mente


trabalhando em uma pergunta que carregava comigo desde que adquiri a
Bússola.

Ela tinha que ser mais do que só um gerador de portal que nos levava para
dentro e para fora das Relictombs à vontade. Minha mente continuava
voltando para os djinn. Por mais difícil que fosse acreditar, eles projetaram e
construíram este lugar. Eles devem ter tido uma maneira de viajar por ele, e
eu já sabia que a Bússola poderia interagir com um portal das Relictombs.

Uma imagem passou pela minha mente, a falsa memória implantada pela
Sylvia com sua última mensagem para mim. A clareza da memória havia
desaparecido com o tempo, mas eu sabia que era uma das zonas que levava à
próxima ruína dos djinn.

Até agora, eu tinha andado cegamente pelas Relictombs, sabendo que este
lugar estava me guiando em direção aos meus objetivos… ou assim parecia,
pelo menos. Mas confiar incondicionalmente nas maquinações de uma raça de
detentores do éter, que já estava morta há muito tempo, não atendia às
minhas necessidades. Não se eu quisesse algum dia dominar o Destino.

Sentando-me, concentrei-me na memória desbotada que Sylvia tinha me


deixado enquanto eu ativava a relíquia semiesférica. Ela vibrou com éter à
medida que uma luz cinza nebulosa englobava o portal, substituindo o brilho
escorregadio de óleo que pendia como uma cortina dentro da moldura de
pedra por uma visão clara de meu quarto na Academia Central.

“Droga,” amaldiçoei, cortando o fluxo de éter na relíquia, fazendo com que o


portal voltasse à sua aparência original.

“Pasta de proteína para te ajudar a pensar?”

Eu olhei para cima para ver Caera segurando uma bisnaga fechada, cheia de
rações nutritivas.

“Só estou pensando em como usar a Bússola de maneira adequada,” respondi,


me afastando do cheiro forte que a comida emitia. “Como você come essas
coisas? O cheiro é horrível.”

Ela encolheu os ombros antes de espremer o conteúdo do tubo em sua boca.


“Ao contrário de você, eu realmente tenho que comer para sobreviver. Este
material é fácil de transportar em grandes quantidades para ascensões
longas.”

“Acho que estou feliz por não precisar comer,” eu disse, franzindo o nariz.

Caera balançou o tubo, abanando o cheiro de carne gelatinosa em meu rosto.


Eu me encolhi e afastei sua mão, minhas juntas encostando na algema de prata
em torno de seu pulso. “Como se sente com o seu novo artefato?” Eu perguntei,
ansioso para distraí-la de me torturar ainda mais.

“Ridiculamente frustrante,” Caera fez beicinho. “É como se eu tivesse crescido


um novo membro que tenho que aprender a usar do zero.”

“Eh, ele faz isso o tempo todo,” disse Regis, encolhendo os ombros de lobo.

Eu apertei minha mão ao redor do focinho de Regis antes de responder.


“Parece que você pegou o jeito pelo que vi lá atrás.”

Um leve sorriso apareceu no canto dos lábios de Caera antes de desaparecer


com a mesma rapidez. Ela ergueu sua braçadeira de prata enquanto se virava
em direção ao portal. “Você acha que a Bússola funciona como meu artefato?”

“O que você quer dizer?” Eu perguntei enquanto soltava Regis.

“Quando canalizei mana pela primeira vez para o artefato, eu pensei que era
apenas um item de defesa por causa da forma como os fragmentos mal
pairavam no lugar ao redor da braçadeira. Levei dias de experimentação
constante para perceber que os fragmentos eram capazes de ser controlados
de forma independente,” ela explicou, traçando as ranhuras gravadas na
pulseira de prata. “E se a função de retorno da Bússola for o padrão e para
você fazer mais, ela precisa de mais orientações?”

A expressão de Caera se suavizou. “Parece improvável que os magos antigos


deixassem seu povo atravessar essas zonas sem rumo. Caso contrário, o que
os teria impedido de ficarem presos, vagando a esmo para a morte?”

Observei enquanto ela inconscientemente brincava com a braçadeira de prata


em volta do pulso. Seu olhar estava vazio, focado em uma memória distante.
Ela não estava pensando nos djinn, ou em mim, ou mesmo nela própria.
Porque não era sobre ela.

“Você está com medo da possibilidade de que as Relictombs mandaram seu


irmão para algum lugar do qual ele não pudesse escapar,” eu disse
suavemente, ganhando um olhar surpreso da nobre alacryana de cabelo azul.

“Ler mentes é outro de seus poderes sobrenaturais?” Ela perguntou


horrorizada. “Por favor, me diga que você não escondeu o fato de que pode-”

Eu deixei um pequeno sorriso aparecer em meu rosto. “Eu sou bom em ler as
pessoas, mas não é mágica.”

“Sim,” ela confirmou com um suspiro de alívio. “Eu estive me perguntando por
um tempo agora… será que a zona em que você encontrou a adaga e a capa
dele em algum lugar…”

“Era um lugar do qual só eu poderia escapar?”

Ela assentiu com hesitação. “Como a sala do espelho ou as montanhas


congeladas? Mesmo a ponte dos rostos não teria sido escapável sem o seu…”

“Temos chamado de God Step,” respondi.

“Sem a sua habilidade do ‘God Step’ (Passo de Deus).” Ela me lançou um olhar
avaliador. “Regis chamou assim, não foi?”

Soltei uma risada alta que ressoou nas paredes do cânion. “Como você sabia?”

Ela sorriu ironicamente. “Algo me diz que você não seria tão… grandioso ao
nomear suas habilidades.”

“Primeiro, é um ótimo nome,” respondeu Regis defensivamente depois de


puxar o focinho de minha mão. ‘E segundo, você costumava usar um feitiço
chamado ‘Zero Absoluto,’ então…’

“Não,” eu disse em resposta à pergunta original dela. “A zona onde encontrei


a adaga do seu irmão não era como essas. Era mortal o suficiente para ceifar
a vida de muitos ascendentes antes que eu a encontrasse, mas não exigia o
uso de éter para escapar.”

“É alguma coisa, pelo menos. Estou feliz que ele teve uma chance de lutar,
mesmo que ele não tenha conseguido.” Caera forçou um sorriso antes de se
virar e ir embora.

Regis permaneceu ao meu lado enquanto eu voltei meu foco para a relíquia
semiesférica em minha mão. Como Caera havia dito, talvez a Bússola
precisasse de mais direcionamento. Fechando os olhos, visualizei a zona que
causou o maior impacto em mim, aquela de que me lembrava com maior
clareza.

“Está realmente mudando,” disse Regis com descrença antes de soltar um


gemido. “Você tinha que escolher essa?”

Eu abri um olho para ver o piso de mármore liso, o teto alto em arco e as portas
cobertas de runas cobrindo as duas extremidades… junto com as estátuas
armadas alinhadas em ambos os lados do corredor.

“Realmente funcionou,” eu bufei, sentindo o esgotamento do meu núcleo


enquanto a Bússola continuava a sugar o éter de mim para manter o novo
destino aberto.

Desativando a relíquia, comecei a relembrar os detalhes de nosso destino em


minha cabeça. Assim que a imagem ficou clara em minha mente, dei um
tapinha nas costas de Regis. “Chame a Caera. Estamos de saída.”

Quando o portal se estabilizou na próxima zona para a qual estaríamos indo,


Caera chegou com Regis, os olhos arregalados de admiração.

“Eu não posso acreditar que você realmente conseguiu isso tão rápido,” ela
murmurou.

“Seu conselho ajudou,” eu disse, estendendo a mão enquanto Regis


desaparecia dentro de mim. “Vamos lá.”

Respirando fundo, nós dois entramos, imediatamente saudados por uma


rajada de vento úmido. À nossa volta havia árvores densas crescendo tanto do
chão quanto do teto, salpicadas com as cores ocasionais dos frutos de éter,
enquanto teias de raízes emaranhadas se espalhavam infinitamente sob
nossos pés.

“Bem, este definitivamente não é o seu quarto,” Caera observou. “Então, esta
é uma das zonas que você precisa visitar nesta sua misteriosa busca?”

“Não,” eu disse baixinho, virando-me para ela. “É onde seu irmão morreu.”
A cabeça da nobre alacryana girou em minha direção, seus olhos vermelhos
inteligentes arregalados e trêmulos antes de ela se virar, deixando seu cabelo
cair para proteger seu rosto. “Obrigado, Grey.”

Ignorando a sensação de formigamento do sorriso provocador de Regis,


guardei a Bússola de volta na minha runa antes de avançar. “Não me agradeça
ainda.”

Na última vez em que estivemos aqui, Regis e eu matamos a centopéia gigante


e todos os seus ovos, exceto um, para não destruir o delicado ecossistema
contido na zona. Mas o tempo funcionava estranhamente nas Relictombs,
então não sabíamos o que encontraríamos aqui.

Explorando as árvores próximas, encontrei uma com galhos fortes e comecei


a me içar para cima, evitando as frutas penduradas e as criaturas invisíveis
que as usavam como isca. Assim que estava a vinte metros de altura, vasculhei
os arredores, procurando o covil da centopeia.

Embora o buraco que se abria na cova da centopeia fosse inconspícuo, o brilho


etéreo que emanava dele não era, e não demorou muito para ser encontrado.
Estava a menos de dois quilômetros de distância. Antes que eu pudesse descer
para os outros, no entanto, um movimento chamou minha atenção no dossel
distante. As copas das árvores farfalharam quando algo se moveu abaixo
delas.

Os macacos de duas caudas não eram grandes o suficiente para fazer as


árvores tremerem…

Caindo de galho em galho, eu estava no chão em segundos. Eu levei um dedo


aos lábios antes de falar com Caera em um sussurro. “A criatura está fora de
seu covil. Fica a alguns quilômetros de distância, mas precisamos nos mover
em silêncio.”

Acenando com a cabeça na direção que precisávamos ir, comecei a liderar o


caminho, dando cada passo com cuidado para evitar fazer barulho
desnecessário.

‘Por que você está tão tenso? Somos muito mais fortes do que éramos quando
chegamos aqui,’ observou Regis com escárnio.

Eu sei, mas é difícil deixar de lado o tipo de medo que cresce em você quando
está fraco. Ele cresce junto com você.

A selva estava quieta. Mesmo os passos pesados da centopeia estavam longe


demais para ouvir. A falta de pássaros cantando ou zumbindo de insetos
parecia anormal. Mas, além da centopeia voraz, a zona era o lar apenas dos
macacos de duas caudas, e eles haviam se adaptado para ficarem
completamente silenciosos. Mesmo enquanto eu tentava ouvi-los, não
conseguia ouvir nenhum.
Fiz uma pausa, examinando as árvores densas. Frutas ricas em éter pendiam
como peras gordas ao nosso redor, mas não havia um único macaco de duas
caudas à vista. Imbuindo éter em meus olhos, concentrei-me no teto, onde as
árvores cresciam como vinhas. Embora eu tenha examinado as sombras
distantes por um minuto ou mais, não vi nenhum movimento.

“Qual é o problema?” Caera sussurrou, sua cabeça girando de um lado para o


outro. “O que você vê?”

“Nada,” eu admiti. “Nadinha.”

Eu não tinha certeza de por que a ausência de metade da fauna local me


deixava nervoso, mas deixou. Reforcei a camada de éter que revestia meu
corpo e segui em frente.

Chegamos à entrada da toca sem ver nenhum sinal de vida. Caera se ajoelhou
e olhou para o túnel escuro. Ela fungou e franziu o nariz. “O que é esse fedor
nojento?”

Eu fiz o mesmo que ela e quase engasguei com o cheiro de carne podre. Senti
Regis estremecer por dentro. ‘É nojento o suficiente só de ler seus
pensamentos. Vou ficar de fora dessa.’

“Talvez seja o cadáver da centopeia,” sussurrei, dando alguns passos


hesitantes no túnel que descia abruptamente.

O túnel irradiava uma luz roxa fraca, como antes, mas parecia maior, e a sujeira
do chão tinha um tom vermelho abaixo do brilho roxo.

Nós nos movemos furtivamente ao longo do túnel até que ele se alargou e se
abriu à nossa esquerda. Cristais de éter estavam espalhados pelo chão do
túnel, e alguns tinham sido amassados até virar cascalho, já não brilhando
mais. O túnel eventualmente se abriu na enorme caverna onde lutamos contra
a primeira centopeia.

Caera tapou a boca e o nariz com a mão. Havíamos encontrado a fonte do


cheiro, e não era a centopeia que matamos.

Cristais de éter atapetavam o chão, não mais em pilhas, mas espalhados e


quebrados. Eles estavam manchados de vermelho por cadáveres de macacos
apodrecidos e meio comidos misturados entre eles como palha grotesca. Era
como algo saído de um pesadelo.

“Grey…” Caera parecia que ia estar doente, mas não achei que fosse só pela
visão diante de nós.

“Não estava assim antes,” eu disse gentilmente. “Nada tão horrível.”

Comecei a andar pela caverna, tentando evitar o pior da bagunça. Cristais de


éter rachados e quebrados rangeram sob meus pés, fazendo um barulho
desconfortável. Eu estava procurando pelo ninho em forma de tigela onde
originalmente encontrei os ovos da centopeia e os cristais contendo
armaduras e armas – tudo o que restou dos ascendentes devorados pela besta
– mas ele se foi.

Onde antes havia o ninho, o solo foi escavado e pisoteado, o único local
desprovido de cristais e cadáveres. Quando me aproximei do fosso estéril, meu
pé bateu em algo sob os cristais e puxei o cabo de uma espada quebrada. Era
a que eu tinha imbuído com éter e esmagado, antes de encontrar a adaga e a
capa de Sevren. Eu joguei de volta na bagunça.

“Desculpe,” eu disse quando Caera veio para ficar ao meu lado. “Eu pensei que
isso seria mais… sentimental.”

A mão de Caera pousou momentaneamente no meu ombro. Ela não disse nada,
mas não precisava.

Caminhando cautelosamente até o centro da cova estéril onde antes ficava o


ninho, ela se ajoelhou. Seus dedos vasculharam o solo recém-arado. Eu fiquei
quieto, deixando-a trabalhar com quaisquer pensamentos que ela estava
tendo. Imaginei que ela queria se despedir, algo que seus pais adotivos nunca
lhe deram a oportunidade de fazer.

Meu humor ficou melancólico quando pensei em meu pai. Eu gostaria de ter
feito mais para homenageá-lo. Reynolds Leywin foi um grande homem – um
herói – e mereceu mais do que uma morte repentina lutando contra feras
estúpidas. E provavelmente Caera se sentia da mesma forma em relação a
Sevren.

“Grey?” Eu olhei para dentro do poço, onde estava Caera. Ela franziu a testa.
“Você ouviu isso?”

Eu me deixei distrair, então não notei imediatamente o barulho crescente.


Parecia que um exército inteiro estava se aproximando, como mil soldados
blindados correndo pela selva acima.

“Merda, está aqui,” eu disse, dando a ela minha mão para ajudá-la a sair do
buraco. “Regis!”

‘Preciso mesmo?’ Ele resmungou, mas o lobo apareceu ao meu lado, suas
chamas tremeluzindo em agitação.

Rapidamente nos preparamos para a batalha. Fiquei perto do centro da


caverna, preparado para chamar sua atenção. Regis deu a volta para a
esquerda, permanecendo perto da parede oposta. Caera ficou bem para trás,
sua espada desembainhada e as duas espinhas de prata orbitando-a
defensivamente.
O som de seu exoesqueleto duro raspando nas paredes do túnel fez toda a
sala tremer e fez com que rastros de poeira caíssem do telhado. Ele diminuiu
à medida que se aproximava, de modo que eu podia ouvir as mandíbulas
estalando em um ritmo medido e constante. Clack clack clack. De novo e de
novo. Em seguida, se arrastava um pouco mais para a frente. Clack clack clack.

Então sua cabeça avançou lentamente para dentro da caverna.

‘Oh. Merda.’

Esta centopeia tinha facilmente o tamanho de uma e meia daquela que


matamos. Seu corpo tinha ficado com uma cor vermelha enferrujada, agora
ligeiramente translúcida. Cada mandíbula era longa e larga como um homem
e serrilhada como uma serra de osso.

Ela congelou. Sua cabeça se abaixou alguns metros. As mandíbulas estalaram.

Em seguida, disparou para frente em uma velocidade que deveria ser


impossível para algo de seu tamanho. Eu me esquivei para trás quando as
mandíbulas se fecharam bem à minha frente, então rolei para frente e agarrei
a primeira perna. Com uma torção acentuada, a perna se soltou do corpo, mas
a centopeia gigante estava se movendo novamente, cada perna golpeando
para baixo, o corpo resistindo e enrolando, cada centímetro dele em
movimento.

Eu podia ver Regis correndo pela extremidade traseira, mordendo e


abocanhando tudo o que podia. Da outra direção, o fogo negro estava batendo
na carapaça dura como flechas de balista, mas as chamas só deixaram marcas
escuras de queimadura. Todo o exoesqueleto estava coberto por uma espessa
camada de éter, que afastava até mesmo o fogo da alma.

Imbuindo a perna decepada com éter, tentei enfiar para cima na barriga da
centopeia, mas outra perna bateu no meu ombro e o golpe deslizou para longe
da quitina revestida de éter.

Jogando o apêndice cortado no chão, conjurei uma lâmina de éter e cortei a


perna mais próxima. Minha lâmina tirou uma lasca e depois se quebrou.
Amaldiçoando, eu investi mais poder na adaga etérea, focando em sua forma,
forçando-a a se expandir e crescer mais. A adaga inchou até o tamanho e a
forma aproximada de uma pá, então se partiu.

Caera se preparou quando a centopeia voltou sua atenção para ela. Soltou um
grito sibilante e avançou em sua direção.

Juntando o máximo de éter que pude rapidamente, dei um soco direto para
cima. O baixo-ventre quitinoso rachou e o corpo da centopeia estremeceu, as
pernas arranhando a terra coberta de cristal. Eu soquei novamente e
novamente, criando uma série de crateras quebradas ao longo da parte
inferior de seu corpo, mas não foi o suficiente para desacelerar ou recuperar
sua atenção.

Os cacos de prata do artefato de Caera giravam rapidamente à sua frente, não


mais atirando projéteis. Em vez disso, um feixe constante de fogo da alma os
conectou, formando uma barreira fina na frente dela. Enquanto eu me
preparava para agarrar as pernas da centopeia em um último esforço para
contê-la, um terceiro satélite se soltou da braçadeira, depois um quarto, e eles
se juntaram aos outros.

A fina barreira floresceu em uma parede de fogo negro um instante antes que
a centopeia a atingisse. Os olhos de Caera se aguçaram quando ela se inclinou
para frente, concentrando-se em manter a barreira defensiva no lugar. O
impacto sacudiu a toca, e o corpo da centopeia se dobrou como um trem
descarrilado quando a frente parou repentinamente, mas a traseira continuou
indo para frente.

As mandíbulas se abriram, tentando englobar o escudo de fogo da alma.


Faíscas preto-púrpura voaram onde quer que a centopeia revestida de éter
tocasse as chamas escuras, queimando tudo em que pousassem. A luz negra
refletia no suor que grudava no rosto de Caera, destacando suas feições. Seus
dentes estavam à mostra em uma careta de concentração, seus olhos
escarlates brilhando como se eles também tivessem sido incendiados.

Ela estava se segurando, mas eu sabia que ela não conseguiria aguentar por
muito tempo.

Uma pressão súbita e crescente do outro lado da caverna me fez girar,


desconfiado de alguma nova ameaça. Em vez disso, vi Regis se levantando de
uma pilha de cristais de éter. Suas chamas cresceram irregulares, sua forma
menos óbvia de lobo enquanto suas feições se moldavam em sombras
enquanto ele se transformava. Eu podia ver as pontas dos espinhos duros que
cresciam em todo o seu corpo e os chifres projetando-se de sua cabeça, mas
eu sabia que levaria algum tempo antes que ele pudesse voltar à luta.

Não havia tempo para duvidar da necessidade do uso de Destruição. Raios


etéreos brilharam ao meu redor enquanto eu dava um God Step para a cabeça
contorcida da centopeia. Infundindo éter em meus punhos, eu soquei o
exoesqueleto revestido de éter repetidamente, criando uma teia de aranha de
rachaduras na quitina espessa.

A centopeia recuou com os golpes, sua cabeça saindo de baixo de mim tão
rápido que girei no ar antes de cair de pé. A cabeça balançou para frente e
para trás e as mandíbulas estalaram juntas ameaçadoramente. Por um único
instante, as coisas na caverna ficaram quase imóveis.

Caera respirava com dificuldade por trás do escudo, mas quando encontrei
seus olhos, ela inclinou a cabeça apenas alguns centímetros, garantindo-me
que estava bem.
Toda a nossa atenção – até a da centopeia gigante – foi atraída para Regis. As
sombras desapareceram dele, revelando toda a extensão de sua forma de
Destruição. Assim como quando lutamos contra as chamadas “Coisas
Selvagens,” ele estava enorme. Seu peito e pernas dianteiras cresceram com
músculos tensos, suas costas ligeiramente inclinadas para baixo e em chamas
roxas irregulares e sobrenaturais. Chifres como aríetes afiados curvavam-se
para a frente como os de um touro, enquanto sua boca rosnava cheia de
adagas serrilhadas.

Quando ele falou, sua voz profunda reverberou pela sala, mais um grunhido
primitivo do que um discurso. “Tente me espancar agora, puta!”

Regis saltou metade do comprimento do covil para se chocar contra a


centopeia enroscada, suas mandíbulas infundidas com Destruição rasgando e
dilacerando. Ele arrancou pernas e fez enormes cortes na carapaça, através
dos quais uma lama espessa e avermelhada se espalhou. Mas a centopeia
estava resistindo. Apesar do tamanho de Regis, a fera gigante ainda era muito
maior e se enrolou em torno dele como uma píton, usando seu corpo para
esmagá-lo. Pernas esfaquearam como adagas por todo o corpo, desviando do
pelo endurecido.

Raios pretos ardentes de fogo espiritual atingiram a criatura, disparando ainda


mais rápido do que antes. A espessa barreira de éter estava desaparecendo, e
para cada dez raios que se dissipavam contra ela, um penetrava, fazendo com
que a quitina estalasse e assobiasse enquanto o fogo da alma a queimava.

De repente, a centopeia entrou em um giro de morte, batendo como uma


maníaca na caverna, com Regis preso contra seu corpo. O artefato de Caera
voltou ao modo defensivo quando parte do corpo da centopeia a esmagou
contra a parede.

Respirando fundo para me acalmar, conjurei uma lâmina de éter em meu


punho. Guiei a formação, mantendo uma imagem clara em minha mente: uma
lâmina longa e fina, roxa translúcida em vez de azul. Eu tinha o éter necessário
– eu sabia que tinha – era apenas a compreensão que me faltava. Algum
entendimento importante sobre como o éter poderia desenvolver uma forma
sólida – uma arma – continuava a escapar de mim.

Mesmo assim, tentei. A adaga se alongou, mas a ponta ficou indistinta. A forma
vacilou, enrolando-se como o corpo enorme da centopeia, que se retorcia e se
espatifava ao meu redor. Eu fortaleci minha vontade e a lâmina se endireitou.
As bordas estremeceram e dançaram, mais como fogueira do que aço
temperado, mas a forma se manteve.

Eu observei o formato da estrutura em espiral da centopeia. Era caótico, sem


sentido… mas havia um padrão em todo aquele caos. Segurando a lâmina com
as duas mãos, dividi minha mente. Com uma parte, mantive a forma da espada.
Com a outra, concentrei o éter em cada músculo, articulação e tendão. Minha
cabeça doía com o esforço, meu corpo gritava enquanto lutava para se segurar
contra a tensão.

O Burst Step puxou o mundo sob meus pés, e então eu estava de pé do outro
lado da toca, nada sobrando em minhas mãos além de um tênue fio de éter.
Atrás de mim, houve um ruído constante e contínuo de colisão à medida que
o corpo da centopeia caía no chão. Um dilúvio de lama vermelha jorrou de um
corte que marcava metade de seu corpo, transformando o solo em uma sopa
sangrenta de cristais, restos meio comidos e a gosma ensanguentada.

Você está bem? Pensei para Regis, que eu não pudia ver entre as dobras do
cadáver da centopeia. A pressão exercida por sua forma de Destruição havia
diminuído.

‘Tô tranquilo. Vou ficar deitado aqui nesta sopa fedorenta da morte por um
minuto,’ ele pensou, cansado.

Com uma risada cansada, voltei minha atenção para Caera, que estava
encostada na parede oposta. Eu tinha prometido trazê-la nessas ascensões em
troca de sua ajuda para roubar a Bússola. No entanto, ao ver a nobre alacryana
se manter firme nessas últimas zonas, tê-la como companheira de equipe
parecia menos por compromisso e mais como uma parceria genuína.

“Caera,” eu gritei quando a vi se levantando. “Bom trab-”

Algo em sua expressão me impediu de chegar mais perto de minha


companheira de cabelo azul enquanto ela mancava em direção ao centro da
sala.

Regis apareceu em torno de um monte dos restos da centopeia, sacudindo a


sujeira grudada em seu pelo. Ele veio ficar do meu lado, e observamos em
silêncio enquanto Caera encontrava um espaço relativamente limpo perto do
centro da toca. Fogo da alma de repente explodiu para fora dela, formando
uma esfera de chamas negras que se desvaneceu tão rapidamente quanto
tinha aparecido.

Agora de pé no centro de um anel de terra nu, ela retirou algo que brilhou
prateado na luz fraca, então o mergulhou no chão. A adaga de seu irmão.

Caindo de joelhos, ela se inclinou para frente e descansou a testa contra o


pomo. Seus ombros começaram a tremer quando as lágrimas escorreram por
sua bochecha antes de cair no chão.

“Vamos,” eu sussurrei antes de me virar. Regis me seguiu, permitindo a ela um


momento de privacidade para lamentar. O som meio abafado de soluços
quebrados ressoou no silêncio.

Capítulo 357
Relíquia de Sangue I

O éter percorreu meu corpo, acendendo meus canais com fogo líquido antes
de se fundir no âmago do meu núcleo. Apesar de meus pensamentos estarem
em outro lugar e do fato de eu ter feito isso inúmeras vezes antes, a sensação
ainda era embriagante. Este poder profundo e evasivo que nem mesmo asuras
podiam controlar totalmente estava dentro de mim, esperando para ser
libertado.

‘Acho que conseguimos,’ disse Regis quando terminamos de reunir as nossas


memórias. A última mensagem de Sylvia não tinha mostrado as quatro ruínas
dos djinn, mas mostrava as zonas que levavam a elas. Só que demorou para
nós dois lembrarmos os detalhes com clareza suficiente para que a Bússola
nos levasse até lá.

Sim, respondi simplesmente, visualizando a imagem de estreitos túneis de


terra serpenteando como um labirinto de buracos de minhoca gigantes em
todas as direções.

Eu abri meus olhos e fui saudado pelo cadáver quitinoso da centopeia gigante,
na qual eu estava sentado enquanto absorvia seu éter.

Com meu núcleo quase totalmente reabastecido e nosso destino definido,


desci ao chão bem a tempo de ver Caera se levantando do memorial
improvisado de seu irmão. O branco de seus olhos tinha ficado vermelho de
tanto chorar, mas seu olhar ficou sério, sua mandíbula firme e determinada.

Nenhuma palavra foi trocada, apenas um simples aceno de cabeça antes de


seguirmos em frente.

O portal de saída estava a horas da caverna, e o resto da jornada pela zona


vazia foi tranquila. Nós nos movemos rapidamente e em silêncio. Regis ficou
dentro do meu corpo, recuperando sua força após o uso da Destruição. Seu
controle sobre a habilidade tinha se fortalecido significativamente desde a
última vez que ele a usou, mas eu podia sentir o preço que isso custava a ele.

“Você deveria descansar um pouco antes de irmos,” eu disse quando


finalmente alcançamos a saída. “Já faz um tempo que você não dorme.”

“Estou bem,” respondeu ela, lançando um olhar para trás. Embora ela não
tenha dito isso, eu sabia que ela estava pronta para sair dessa zona.

Focando na imagem daqueles túneis sinuosos, eu ativei a Bússola e Caera


entrou. A zona adiante estava cheia de poeira que pairava no ar, tornando
difícil ver no que estávamos entrando, e tudo que eu podia ver de Caera era
uma silhueta escura.

‘Arthur,’ Regis latiu dentro de mim no momento em que mais duas silhuetas
surgiram de cada lado dela.
Fique dentro por enquanto, eu ordenei, focando na luz vermelha opaca que
refletia em suas armas.

O portal brilhante evaporou atrás de mim quando eu passei, meus olhos


imediatamente procurando por Caera e seus atacantes.

A lâmina vermelha de Caera cintilou na poeira espessa, soando contra a arma


de seu atacante. Gritos guturais encheram o pequeno espaço, e uma lança
brilhante se projetou para fora da poeira escurecedora. Eu a agarrei um
momento antes de atingir Caera nas costas. O cabo de aço reforçado com mana
guinchou quando eu arranquei a ponta da lança de sua haste e a joguei de
volta no portador. A ponta dentada perfurou o peito do atacante, e sua sombra
escura foi levantada do chão e se chocou contra a parede de terra nua.

A poeira começou a baixar, revelando outro homem – grande e coberto de


terra e argila – golpeando e atacando Caera com uma cimitarra congelada e
serrilhada, e dois Atacantes flanqueando um estreito túnel de terra que
conduzia para fora do pequeno espaço em que estávamos.

O God Step me levou pra trás deles, e um raio de ametista serpenteava em


minha pele. O primeiro morreu instantaneamente quando minha mão
revestida de éter atingiu sua nuca, quebrando sua coluna, apesar de sua
armadura para pescoço. Eu golpeei o segundo com as costas da mão quando
ele começou a ativar uma das runas dispostas ao longo de sua espinha,
arremessando-o para a parede do túnel. Ele pousou em sua própria lança,
empalando-se através de seus bíceps nus.

Ele soltou uma maldição antes de rolar e puxar inutilmente a lança, seu feitiço
esquecido.

O oponente de Caera rosnou em uma fúria bestial quando suas lâminas se


chocaram, um som que foi interrompido em um gorgolejo úmido quando a
espada dela perfurou seu peito.

Eu cavei meu calcanhar no ferimento sangrento do último mago, ignorando


sua tentativa desesperada de se defender com um manto de fogo.

“Por que você nos atacou?” Eu perguntei com calma, inclinando-me para
encontrar seus olhos.

“Ordens de Kage!” O homem gritou, seu rosto sujo de sujeira contorcido de


dor. “Por favor, estamos apenas fazendo o que nos foi dito!”

Eu inclinei minha cabeça, levantando uma sobrancelha. “Eu deveria estar


familiarizado com esse nome?”

“Nosso líder,” ele ofegou, seus olhos em pânico focados no sangue jorrando
de sua ferida. “Qualquer… qualquer pessoa que passar por esse portal
pertence a ele.”
Caera se ajoelhou para verificar o homem que eu empalara com sua própria
ponta de lança, mas agora ela se levantou e lançou um olhar feroz para o
ascendente sobrevivente. “Por que algum ascendente ‘pertenceria’ a ele?”

Meus ouvidos captaram os sons fracos de passos se aproximando. Levantando


meu pé de seu braço ensanguentado, dei um passo para trás.

O mago estava ofegante, seus olhos perdendo o foco. Avaliando pela lama
ensanguentada embaixo dele, ele não tinha muito mais tempo. “A relíquia
precisa de sangue,” disse ele. “Então nós … nós—”

Uma ponta de pedra irrompeu do chão e o empalou no peito, espirrando


sangue no rosto de Caera.

Eu me virei para ver mais uma dúzia de ascendentes amontoados mais adiante
no túnel. Um homem estava na vanguarda do grupo. Ele estava tão sujo quanto
o resto deles, mas sob as camadas de sujeira, eu podia ver uma rede de
cicatrizes cruzando seu rosto, braços e mãos. Seu cabelo era fino, e parecia ter
sido raspado com uma adaga em vez de uma navalha, e uma barba loira cheia
de nós cobria seu rosto. Ele usava uma armadura incompatível que parecia ter
sido retirada de uma dúzia de lugares diferentes.

“Você se importaria de nos dizer o que diabos está acontecendo nesta zona?”
Caera perguntou enquanto ela calmamente limpava o sangue de seu rosto com
um lenço.

“Inferno é a palavra apropriada,” o ascendente com cicatrizes falou


lentamente, sorrindo. Faltava mais de um dente na boca dele, e os que
restavam eram lixados e pontiagudos. “Você alcançou as próprias tripas das
Relictombs, onde os ascendentes vêm para morrer.”

Caera deu um passo confiante para frente, seu cabelo azul escuro esvoaçando
enquanto ela apontava sua lâmina fina para a garganta do homem. O
ascendente correspondeu, uma pequena cratera se formando sob seus pés
quando ele deu um passo à frente e pressionou o pescoço contra a ponta da
lâmina de Caera.

“Não há como sair daqui,” ele continuou, seus olhos escuros arregalados e com
um sinal de loucura. “Exceto pelo sangue. Todo mundo dá ou recebe, mas
ninguém que permanece neutro sobrevive por muito tempo.”

Eu me meti timidamente entre os dois e levantei um braço. “Não temos


nenhum desejo de lutar com você se você não nos obrigar. Mas você pode
explicar o que está acontecendo aqui? De forma menos enigmática, desta vez.”

O líder – Kage, eu assumi – pareceu me dispensar imediatamente, franzindo a


testa intensamente enquanto avaliava minha parceira. Os olhos de rubi de
Caera brilharam na escuridão, apesar de seu olhar ser frio. O impasse terminou
repentinamente quando sua carranca quebrou como gelo fino e seu rosto
estremeceu em um sorriso forçado.

Kage bateu seu dedo sujo contra sua têmpora. “Eu posso dizer que seu sangue
não é do tipo de deixar passar. Você tem gosto de carne fresca” — seus
capangas riram sombriamente disso — “que nós precisamos aqui. Entenda,
mentes, corpos e espíritos envelhecem neste purgatório.” Enquanto Kage
falava, um olho começou a se contorcer. “Quanto mais você fica, pior fica, mas
a única saída é esvaziando o sangue da vida de seus amigos e camaradas.
Crueis, aqueles demônios antigos…”

Os olhos do ascendente com cicatrizes perderam o foco por um momento.

“Acredito que pedimos que você fosse menos enigmático,” disse Caera,
impaciente.

Os homens atrás de Kage se empurraram, apertando as mãos ao redor das


armas enquanto seus olhares cortavam em direção à minha companheira. Um
ergueu uma arma que crepitava com eletricidade. A mão de Kage disparou,
pegando o homem na lateral da cabeça. “Não saia balançando sabres quando
eu estiver falando!”

Ele agraciou Caera com seu sorriso de dente vazio. “Eu posso dizer que vocês
são pessoas que tem maneiras. Wyverns, não wogarts, como diz o ditado. E
então eu vou ser sincero com vocês. Vocês estão presos em uma zona sem
saída. A única saída é reivindicar uma relíquia mantida no centro deste
labirinto de túneis, mas isso só pode ser feito com sacrifício de sangue. E até
agora, ninguém conseguiu derramar o suficiente para passar pelas proteções.”

Eu não tinha ouvido errado. Kage disse isso também…

Havia uma relíquia nesta zona.

Minha atenção permaneceu em Kage enquanto ele falava: suas mãos


constantemente gravitavam em direção a sua arma, seu sorriso desaparecia
apenas para ser forçado a voltar em seu rosto coberto de sujeira, e ele inchou
como um cervo com presas enquanto falava. Tudo isso criava uma imagem
sutilmente ameaçadora, como uma medida defensiva animalesca para repelir
ameaças potenciais.

“Gostaríamos de ver esta relíquia,” eu disse gentilmente. “Você pode nos levar
até lá?”

“Cai fora, magrelo!” Um dos homens vociferou, apontando sua espada para
mim.

Kage soltou uma risada áspera e deu um passo para trás, em seguida, girou
sobre os calcanhares como se estivesse em uma procissão militar. Uma lança
estreita de pedra explodiu do chão e espetou a mão do ascendente ofensivo,
fazendo a espada voar. Kage chutou o joelho do homem, fazendo-o rachar e
dobrar para trás, então o pegou pela garganta e o jogou no chão.

“Não me lembro de ter dito para você falar!” Kage rugiu em seu rosto, saliva
voando. As runas em suas costas brilharam quando ele levantou uma mão
sobre a cabeça, e uma crosta de pedra preta e laranja brilhante se formou de
seu cotovelo para baixo, irradiando um calor tão intenso que eu podia sentir
a vários metros de distância.

A manopla fumegante atingiu o rosto do homem como uma marreta. Atingiu


de novo e de novo, enchendo a caverna com o cheiro de carne queimada. O
resto dos ascendentes recuou. Alguns assistiram com uma espécie de
antecipação perversa, mas a maioria desviou os olhos.

Quando não havia mais nada do rosto do ascendente além de uma polpa
queimada, Kage se endireitou. Ele estava ligeiramente ofegante, e gotas de
fogo fumegante piscavam ao redor da manopla conjurada. Com um estalo de
pescoço e um suspiro, ele encarou Caera. “É preciso uma mão firme, você
sabe”, disse Kage, rindo. “Mão firme, entendeu?”

O nariz de Caera enrugou em desgosto, mas os homens de Kage soltaram


risadas dispersas. Eu mantive meu rosto sem expressão. “Desperdício de
sangue, no entanto. Bah.” A manopla derretida caiu em pedaços cinzentos
quando Kage liberou o feitiço. “O negócio é o seguinte, novata. Confiança gera
confiança. Primeiro, você e seu servo voltarão para o acampamento conosco.
Lá, podemos decidir quem pode ver o quê, belê?”

A boca de Caera se abriu, e eu poderia dizer pelo olhar em seu rosto que ela
estava prestes a rejeitar a oferta de Kage. Eu agarrei sua manga e dei um
pequeno puxão. “Senhora, nada de bom pode advir de rejeitar a oferta deste
homem. Veja o que ele fez com seu próprio aliado. Devíamos ir com ele e ver
o que ele tem a dizer.”

“Tudo bem,” ela respondeu, procurando meus olhos interrogativamente. Para


Kage, ela disse, “Nós iremos com você.”

“É um ajudante esperto que você tem aí,” Kage grunhiu. “Não pode ser um sem
adornos. Deve ser um Sentinela irritado escondendo sua mana, hein?” Ele me
olhou nos olhos e cuspiu no chão. “Ou talvez a dama mantenha você por perto
para outros fins, hein?”

Eu estremeci com seu olhar, o que só fez ele e seus homens rirem.

“Então?” Caera perguntou, andando entre nós. “Seu acampamento?”

“Hóspedes podem ir na frente,” disse Kage, gesticulando para baixo do túnel


como um porteiro nos dando as boas-vindas à melhor pousada de Alacrya.
Seus homens se separaram, deixando um espaço estreito para que Caera e eu
passássemos.
‘Matar tudo e todos que vem em nosso caminho está começando a entediá-
lo?’ Regis perguntou. ‘O que há com esse jeito de agir manso e frágil?’

Apenas fique dentro e mantenha os olhos abertos, eu retruquei.

‘Tudo bem,’ resmungou ele.

A zona era formada inteiramente por túneis de terra, como eu tinha visto na
falsa memória. Eles se contorciam e giravam continuamente, como se algum
verme gigante tivesse comido o solo aqui, deixando um labirinto de caminhos
para trás. Veias de alguma pedra em brasa rompiam a sujeira em alguns
lugares, lançando uma luz enferrujada pelos túneis.

Ocasionalmente, uma videira ou raiz espessa se projetava da parede do túnel,


e Kage rapidamente nos direcionou ao redor delas. “Eu evitaria os
estranguladores. Duvido que eu precise explicar o nome.”

Enquanto caminhávamos, virando para um lado e para outro tão regularmente


que eu lutava para manter a noção de onde estávamos, Kage continuou a falar.
“É uma guerra em que vocês se encontraram, amigos. Há caos e derramamento
de sangue quando ascendentes se voltam contra ascendentes pela chance de
uma relíquia realmente verdadeira. Mesmo se pudéssemos partir, a maioria
não o faria. Não com esse tipo de prêmio em jogo.”

“Deve haver mais do que isso,” disse Caera. “Os ascendentes não são animais
selvagens.”

“Era pior quando cheguei aqui,” disse Kage com orgulho. “Um banho de sangue
total, cada homem determinado a matar pra chegar até o topo.”

“O que aconteceu quando você chegou?” Eu perguntei, movendo-me


cuidadosamente ao redor de outra grande trepadeira que estava bloqueando
metade do túnel.

Kage bufou de alegria. “Impus um pouco de ordem, é claro! Quebrei crânios o


suficiente para provar minha força, então fiz o resto deles pararem de se
matar. Forjei uma tribo, dei a eles um propósito. Assumimos o controle do
santuário e, a partir de então, decidi quem vive e quem morre.”

Eu não perdi a ameaça sutil em seu tom quando ele disse isso.

“Se você pensar em como menos pessoas morreram desde que cheguei aqui,
na verdade sou um herói. Um salvador, não um açougueiro como você pode
estar pensando.”

Eu lancei um olhar para trás. Kage estava balançando a cabeça, sorrindo como
se estivesse satisfeito consigo mesmo.

“Quão longe vão esses túneis?” Caera perguntou. “Existe um fim?”


“É uma espécie de labirinto. Quase um grande círculo, com o santuário de
relíquia bem no centro,” respondeu ele. “Grande o suficiente para você se
perder e morrer de fome antes que alguém o encontre.” Eu praticamente podia
ouvir o desprezo frio em sua voz quando ele acrescentou, “Mas os túneis ainda
estão cheios de ascendentes loucos esperando para cortar sua garganta no
escuro, e eles o pegariam antes disso.”

Saber que a relíquia estava no centro do labirinto era algo, mas eu não tinha
nenhuma referência de onde nós estávamos ainda. Mas, por mais interessante
que fosse a presença de outra relíquia, minha curiosidade estava focada em
outro lugar.

“Se este lugar for tão grande, talvez você apenas não tenha encontrado o
portal de saída ainda—”

“Não!” Kage estalou, seus passos parando. Eu me virei e o vi fazendo uma


carranca para mim, seus punhos abrindo e fechando. Picos curtos em chamas
saíram das paredes do túnel ao nosso redor. “Você está duvidando de mim,
garoto? Muitos homens fortes definharam nos túneis em busca de uma saída.
Nós sabemos onde está a porta, então apenas um idiota continuaria
procurando. E a chave é” — ‘Sangue,’ Regis pensou sarcasticamente ao mesmo
tempo em que Kage o disse, “então só temos que descobrir como usá-lo.”

Eu balancei a cabeça, dando um passo tímido para trás. Meu pé bateu contra
uma videira que deslizou ao longo da lateral do túnel e me atingiu como uma
cobra. O estrangulador se enrolou na minha perna e recuou para o chão,
tentando me puxar com ele.

A lâmina de Caera brilhou, cortando a raiz logo acima do solo. A raiz se soltou,
se contorcendo como um verme moribundo aos meus pés. Eu me arrastei para
trás na terra para me afastar dela enquanto Kage e os outros explodiram em
uma gargalhada selvagem.

Kage me levantou e jogou o braço em volta do meu ombro, enxugando as


lágrimas e ranho de seu rosto vermelho brilhante enquanto ele continuava a
rir. “Sabe, garoto, meu tribunal precisa de um bom bobo da corte,” disse ele
entre acessos de riso. “Talvez haja um motivo para mantê-lo por perto, afinal.”

Regis deixou escapar um suspiro. ‘Isso é divertido. Posso ver você ser
intimidado e, ao mesmo tempo, ficar ansioso para vê-lo esmagar as gônadas
deles.’

Demorou mais uma hora para chegar ao acampamento de Kage. Eu me


perguntei como ele havia chegado ao portal de saída tão rapidamente, mas o
pensamento foi expulso da minha mente quando entrei em um grande túnel
de paredes lisas.

Ao contrário dos caminhos esculpidos naturalmente que nos levaram até aqui,
o acampamento dos ascendentes trazia sinais óbvios de ter sido escavado por
magia. Enquanto os túneis eram baixos, pouco mais do que o suficiente para
eu andar em pé na maioria dos lugares, o teto aqui tinha 5 metros de altura.
Pelo menos cem pequenos artefatos de iluminação estavam suspensos acima
de nós, lançando uma pálida, mas brilhante, luz branca sobre os homens ali.

Cerca de uma dúzia de homens com armaduras manchadas de lama ocupavam


o túnel, que tinha quase vinte metros de uma ponta a outra e tinha dez metros
de largura. Alguns estavam treinando, mas a maioria estava sentada ao redor
de pequenas fogueiras vermelhas e falando em voz baixa e cansada.

Vários outros estavam seminus e algemados nos pulsos, tornozelos e garganta.

Caera respirou com surpresa ao ver isso, mas se segurou e mordeu a língua no
momento.

Os homens algemados eram todos magros e estavam marrons de sujeira, suas


barbas longas e emaranhadas, seus cabelos sem brilho. Mas eu podia ver as
runas em suas costas marcando-os como magos. Dois carregavam um grande
jarro de barro entre eles – com cuidado para evitar uma enorme raiz
estranguladora que crescia em um lado da caverna – enquanto um terceiro
lançava um feitiço sobre um jarro semelhante perto da outra extremidade do
acampamento. Outro estava virando um espeto sobre o fogo, assando algum
tipo de carne. Eu não queria saber que tipo de carne era. Outros dois estavam
parados nas portas abertas para uma série de pequenas cavernas que haviam
sido escavadas no túnel principal, com os olhos baixos.

A mão cheia de cicatrizes de Kage bateu em meu ombro. “Bem-vindo ao meu


castelo. Casa dos Homens Kaged!”

“Não há mulheres,” disse Caera suavemente, como se estivesse falando para


si mesma.

“Ah, bem, qualquer coisa de valor é rara neste poço de desespero,” Kage
grunhiu sem humor. “Comida, água, entretenimento…”

Seus olhos permaneceram em minha companheira, movendo-se lentamente


para cima e para baixo em seu corpo, enquanto ele dizia isso.

“Selvagens,” ela disse, correspondendo seu olhar.

“Oh, pare com isso!” Ele uivou de tanto rir. “Há muito tempo atrás, eu era um
Alto Sangue, assim como você. Aqui, porém, o sangue de todos é vermelho e
maduro para ser colhido.”

Ele passou por nós, com os braços bem abertos ao entrar no acampamento.
“Seu salvador voltou!” Ele gritou, sua voz crescendo. “E eu trago novos
recrutas!”

Todos os ascendentes começaram a se reunir, com vários outros saindo das


cavernas que revestiam as paredes, mas os homens algemados mal pareciam
notar. Eles paravam e se curvavam sempre que Kage chegava perto, mas à
distância se apressavam com seus deveres.

“Chega de olhar pasmo!” Kage gritou de repente, empurrando um dos homens


– um menino perigosamente magro, que não podia ter mais de dezesseis anos,
a julgar pela forma com que seus pelos faciais cresciam em manchas
irregulares – fazendo-o tropeçar, quase caindo no fogo. “De volta ao trabalho!”

Eu examinei seus rostos enquanto seguíamos, observando os olhos fundos, as


bochechas magras e, acima de tudo, os olhares firmes que eles nos deram.
Cada um deles estava pronto para matar a uma palavra de seu líder, apesar de
como ele os tratava. Os homens que caíam em desespero aqui provavelmente
eram dados de comida para a relíquia, então eles abraçaram a fúria e o ódio
em vez disso. Esses eram os sobreviventes. Eu podia ver em seus olhos as
coisas terríveis que eles fizeram para chegar tão longe.

Kage nos levou para a maior das cavernas, embora chamá-la de uma simples
caverna não lhe fizesse justiça. Um mago talentoso havia esculpido um espaço
grande o suficiente para uma família de quatro pessoas. Os pisos foram
endurecidos em algo parecido com mármore, enquanto as paredes
avermelhadas foram esculpidas para parecerem tijolos. Móveis de pedra eram
cobertos com peles e cobertores – significativamente mais do que um homem
poderia ter trazido com ele para as Relictombs.

Uma cama enorme ocupava o centro de uma das paredes e estava empilhada
com mais peles e cobertores amarrados com cordas de seda.

“Pelo menos você não teve que desistir de seu luxuoso estilo de vida de Alto
Sangue,” Caera disse sarcasticamente enquanto olhava para casa improvisada
dele.

Kage se jogou em uma espreguiçadeira e levou uma bota enlameada até um


apoio de pedra para os pés. “Não tem sido de todo mal, eu admito. Lá fora, eu
era o quarto filho de um sangue decadente, mas aqui eu poderia muito bem
ser um Soberano.”

Caera revirou os olhos. “E o que acontece quando a Associação de Ascendentes


fica sabendo do que aconteceu nesta zona de convergência? Você será
executado.”

Kage sorriu para ela como um tubarão sem dentes. “Isso presumindo que
algum dia escapemos, minha senhora. E se escaparmos, isso significa que
reivindicamos a relíquia. Ninguém vai dar a mínima para o que fizemos para
consegui-la.” Ele colocou as mãos atrás da cabeça e olhou para o teto.
“Imagine isso. A primeira relíquia viva voltou em quantos anos? Duas décadas?
Três? Riqueza suficiente para todos nós mantermos nosso sangue forte por
gerações.”
Eu poderia dizer pela expressão azeda de Ceara que ela sabia que Kage estava
certo.

Passos bruscos na porta anunciaram a um recém-chegado, que se curvou


enquanto tentava segurar um barril pesado com algum líquido espirrando. Ele
era pálido como um fantasma, com cabelos discretos entre o cinza e o
castanho que caíam moles até os ombros. Seus olhos negros como grafite
apenas passaram por mim e Caera antes que ele cambaleasse até a mesa,
lutando contra o peso do barril.

“Ah, Rato, chegou na hora certa. Essa é a Cerveja Preta Truaciana?” Kage
perguntou, lambendo os lábios. Quando ele viu meu olhar questionador, ele
piscou. “Algum idiota tinha meia taverna enfiada em seu dispositivo
dimensional. Melhor para nós.” Seu rosto ficou triste. “Quase pronto agora, não
é, Rato?”

O homem chamado Rato enxugou o suor da testa enquanto batia no barril.


“Receio que sim, meu senhor. Só sobrou mais um barril, e é a cerveja clara de
Sehz-Clar.”

Kage bufou. “É quase a mesma coisa que beber o mijo do Rato.” Ele cuspiu no
chão.

O Rato usava uma camisa e calças simples de linho, mas não usava armadura.
Ele não estava equipado com algemas como os outras que vimos. Ele evitou
olhar para Kage, mantendo sua cabeça desviada de forma servil, e quando ele
falou, suas palavras foram suaves e não ameaçadoras. Ele imediatamente me
lembrou de seu homônimo, correndo ao redor da borda da sala como um
roedor tentando evitar ser pisado.

Estranhamente, ele estava bastante limpo. Quase não havia uma partícula de
sujeira em suas roupas ou rosto, e seu cabelo, embora desgrenhado, não
estava cheio de tufos de lama como os de todo mundo. Apenas suas mãos
mostravam algum sinal da sujeira que se agarrava ao resto deles como uma
segunda pele.

Seus olhos velozes me pegaram olhando para ele, mas pularam para longe
imediatamente.

“É possível…?” Eu comecei, minha voz trêmula. “Ver a relíquia agora?”

Kage pegou uma caneca de argila do Rato e a inclinou para trás, engolindo
vários goles e pingando pelo menos metade em sua barba e no pescoço de sua
placa peitoral. “Ah, isso é bom. Todos os vinhos finos podem vir de Etril, mas
aqueles desgraçados truacianos sabem fazer cerveja.”

Ele largou a caneca e se inclinou para frente, me dando um olhar curioso.


Quando ele falou, porém, foi direcionado a Caera. “Você está em meu domínio
agora. Você é forte, eu posso dizer, talvez até quase uma adversária para mim,
no um a um” — ele sorriu de uma forma que sugeria que ele não acreditava
nisso, mas estava simplesmente sendo educado — “mas eu tenho duas dúzias
de desgraçados fortes à minha disposição, e você tem um escudo de carne
tímido.”

Caera cruzou os braços, não muito impressionada.

“Você quer ver a relíquia. Você precisa encontrar um lugar para você nesta
zona, porque você não vai sair tão cedo.” Aquele sorriso feio e predatório
dividiu seu rosto. “Eu tenho meus próprios desejos e necessidades. Então, o
que você está disposta a negociar por suas vidas?”

“Se você já tivesse tudo o que queria, teria apenas nos matado no portal.”
Caera se inclinou para ficar cara a cara com o ascendente cicatrizado. “Não,
acho que você precisa de ajuda e espera que possamos ajudá-lo.”

“Você acha que eu preciso de ajuda? Eu sei como sair. Eu desvendei! Tudo que
eu preciso é de mais sangue.” Kage se levantou de repente, derrubando o
apoio para os pés antes de apontar um dedo imundo para minha companheira
imperturbável. “E eu posso fazer com que você e seu homem-donzela sejam
mortos a qualquer momento que eu quiser.”

“Então não deve haver problema em nos mostrar a relíquia,” Caera respondeu
friamente.

Rato estava inquieto enquanto batia os dedos rapidamente na mesa, seus


grandes olhos negros congelados em Kage. Quando ele me viu olhando, ele
parou e se ocupou preparando outra caneca de cerveja.

Kage olhou para Caera. “O Rato levará seu servo ao santuário para ver a
relíquia. Mas você fica aqui comigo, entendeu?”

“Não, ela precisa vir comigo,” eu disse rapidamente, me movendo um pouco


mais perto dela.

“Com medo de ficar sem sua dama protetora, princesa?” Kage perguntou,
tocando a alça de sua cimitarra.

“Sua oferta não é aceitável,” disse Caera categoricamente. “Eu veria com meus
próprios olhos, para julgar melhor a situação por mim mesmo.”

“Você se confundiu. Esta não é uma oferta. É uma ordem.” Ele disse com um
sorriso dentuço afiado. “Ele pode ir, mas você vai ficar bem aqui. Do meu lado.”

Ambos os ascendentes estavam com as mãos no punho neste momento. Eu


preferia não deixar Caera sozinha com aquele lunático assassino, mas também
não estava pronto para desistir de meu estratagema.
Caera olhou para mim, procurando em meus olhos alguma orientação. Eu
balancei a cabeça imperceptivelmente e sua mão deixou sua arma. Kage
manteve a dele.

“Tudo bem,” disse ela, meio resignada, meio irritada. Ela se aproximou do
senhor de guerra, que era apenas alguns centímetros mais alto que ela. “Mas,
me toque, e eu cortarei a parte do corpo que fizer isso.”

“Um brinde a isso.” Kage levantou a caneca para Caera enquanto balançava as
sobrancelhas lascivamente.

Rato me acompanhou apressadamente para fora. Apesar das perspectivas de


uma nova relíquia e encontrar outro djinn, meus pensamentos ficavam
voltando para Kage, considerando a melhor forma de lidar com ele depois que
tudo isso acabasse.

Capítulo 358
Relíquia de Sangue II

Fingindo nervosismo, arrastei-me cautelosamente pelos túneis enquanto


seguia o homem chamado Rato, e meus olhos saltavam de sombra em sombra.
O caminho era sinuoso como uma corda cheia de nós. Movíamos com cautela
e parávamos frequentemente para ouvir e espiar pelos cantos, mas a zona
estava silenciosa, exceto pelo leve som dos pés de Rato se arrastando atrás
dele.

‘Eu meio que me sinto mal por deixar Caera com todos aqueles bandidos
assassinos’, disse Regis, a sensação de sua presença como uma bola etérea
quente em volta do meu núcleo.

Eu sei, eu concordei. Não consigo imaginar o que ela fará com eles sem ter a
gente para mantê-la sob controle.

Passamos por uma seção desmoronada do túnel e notei um pedaço de parede


irregular, meio solto, que me fez pensar se alguma besta – ou ascendente –
poderia cavar um túnel através da terra. Pensando na rápida chegada de Kage
no portal de entrada da zona, fazia sentido. A habilidade de atravessar a terra
sólida era bastante comum entre os mais poderosos magos de atributos da
terra em Dicathen.

Viramos à direita duas vezes em uma curta distância, a fim de passar por baixo
do túnel que tínhamos atravessado. Haviam muitos outros pedaços soltos de
parede que sugeriam que alguém viajava por ali com frequência, e os veios de
rocha vermelha que iluminavam as passagens ficavam mais grossos e
brilhantes quanto mais progredíamos.
O éter na atmosfera também ficou mais denso, enchendo o ar como uma névoa
roxa. Eu estava confiante de que Rato estava me guiando no caminho certo, e
que eu poderia encontrar o santuário mesmo sem ele, ao usar o éter ambiente.

Eu expandi meu foco para sentir os caminhos etéreos conectando cada ponto
no espaço ao meu redor. No entanto, com o tamanho dessas redes de túneis
e cavernas, era impossível fazer um mapa preciso com as informações que
recebi.

‘Por mais chato que tenha sido assistir você agir como um woggart bunda mole,
admito que foi a decisão certa.’

Eu sei. É por isso que raramente ouço você, zombei.

“É injusto, não é?”

“Oi?” Eu perguntei, ligeiramente pego de surpresa quando Rato começou a


falar de repente.

“Esperam que sirvamos como animais de estimação, mas, no ato de fazê-lo,


tornamo-nos dependentes da força de nossos mestres para nos mantermos
seguros.” O homem pálido e quieto me deu um sorriso de boca fechada.

“É por isso que você serve… ao Kage?” Eu perguntei, alterando minha inflexão
para soar como se eu tivesse medo de dizer o nome do maníaco.

Os ombros curvados de Rato se encolheram. “Sua brutalidade o tornou eficaz


neste lugar. Você pode não acreditar em mim, mas as coisas eram piores antes
de ele chegar.”

“Você… não acha que ele vai machucar Lady Caera, acha?”

Embora eu não estivesse particularmente preocupado com Caera, sabendo


que ela era mais do que capaz de cuidar de si mesma, eu esperava apelar pro
lado emocional do meu guia. Se eu pudesse fazer com que ele se abrisse para
mim, poderia chegar mais facilmente à verdade sobre o que estava
acontecendo nesta zona, incluindo descobrir como escapar dela.

Os ombros de Rato afundaram ainda mais com a minha pergunta. Quando ele
falou, foi pouco mais que um sussurro. “Kage e seus homens… não são gentis
com as mulheres. Não vou defender, mas…” Ele fez uma pausa, enquanto eu
fingia um ruído assustado do fundo da minha garganta, e acabou se virando
para me encarar. Seus olhos negros me perscrutaram profundamente.
“Devemos seguir em frente. Ainda estamos a alguma distância do santuário.”

As orelhas de Rato estremeceram e ele parou por um segundo antes de


prosseguir. Viajamos em silêncio por um tempo, até chegarmos a um túnel
onde grossas raízes estranguladoras haviam crescido do chão ao teto,
bloqueando o caminho à frente. O rato inverteu o curso, encontrando outro
túnel que, segundo ele, contornaria a passagem coberta de vegetação.
“Há quanto tempo está aqui?” Eu perguntei suavemente.

“Um ano… talvez mais.” Seus ombros balançaram para cima e para baixo, num
gesto de impotência. “Lutei por um tempo, como os outros. Então me escondi.
E aí, o Kage veio. Pelo menos com ele temos algum tipo de ordem enquanto
descobrimos como reivindicar a relíquia.”

“Você realmente acha que é necessário um sacrifício de sangue para consegui-


la?” Eu perguntei, inseguro.

Rato farejava e cuspia no chão enquanto nos conduzia por um cruzamento de


vários túneis diferentes. “Por um ano eu vi sangue sendo drenado para o glifo,
e nunca foi o suficiente. Alguns meses atrás, Kage arrastou para o santuário
todos os ascendentes que ele tinha aprisionado, e fez com que suas gargantas
fossem cortadas ao mesmo tempo, certo de que ninguém nunca havia
derramado sangue suficiente de uma vez só… mas mesmo isso não foi o
suficiente.” Rato parou, ouvindo ao redor antes de se dirigir a mim. “Há alguns
nesses túneis que acham que deve ser outra coisa. E que talvez tenhamos lido
as runas incorretamente…” Um arrepio percorreu sua espinha, e eu
praticamente pude ver o peso daquelas mortes pressionando-o.

“É por isso que” – ele arrastou o pensamento, novamente me dando aquele


olhar investigativo – “eu fiz planos para você ver mais do que apenas o
santuário.”

Eu o observei com incerteza, mas não disse nada.

“Acho que somos quase iguais”, continuou ele com cautela, com apenas um
toque de esperança em suas palavras. “Podemos não ser feitos para
derramamento de sangue e batalha, mas nosso valor é maior do que nossos
mestres julgam ser.” Ele hesitou, depois balançou a cabeça com um sorriso
nervoso. “Meu tempo aqui me deixou sem modos. Eu nem perguntei o seu
nome.”

“Grey,” eu disse, devolvendo um sorriso sem jeito. “Você tem outro nome além
de…” Eu parei, esfregando minha nuca.

Ele franziu a testa com tristeza, mas disse: “Amand. Mas aqui… me chame de
Rato. Todo mundo me chama assim.” Ele se endireitou. “Grey, acho que juntos
podemos terminar este ciclo terrível. Estou pronto para ir para casa, para ver
meus… ” Ele pausou novamente, sua carranca se aprofundando. “Eu tenho uma
mãe… e um irmão… que provavelmente pensam que estou morto…”

Eu abri minha boca, e fechei novamente, não tendo que fingir minhas emoções
enquanto pensava em Ellie e minha mãe, escondidas sob o deserto de Darvish,
sem ter ideia de que eu estava vivo.
Limpando a garganta, ele continuou. “Espero que você entenda o risco que
estou correndo ao lhe dizer isso, mas… há algum tempo, tenho passado
informações sobre o Kage para as outras facções nesta zona.”

Regis deu uma risadinha. ‘Quem diria, nosso Rato é um rato mesmo.’

“Já fazem meses desde que alguém, além de Kage e seu pessoal, teve
permissão para ver a relíquia, ou a proteção em torno dela. Embora Kage
mantenha uma certa ordem por aqui, ele não é particularmente… inteligente.”

“E mentes frescas podem encontrar um novo significado em palavras antigas”,


eu disse, citando um livro sobre conjuração que li quando ainda era estudante
na Academia Xyrus.

“Exatamente,” Rat concordou. “Então… você vai me ajudar?”

Mostrando insegurança, abri minha boca, fechei-a e abri novamente. “Eu só


quero achar uma forma segura de tirar minha mestra desta zona.”

Rato assentiu, e continuou me conduzindo até o santuário, que não ficava


longe de onde paramos para conversar. Várias curvas depois, encontramos
três mulheres paradas no túnel, com as armas em punho.

Eu congelei, mas Rato continuou se movendo em direção a elas.

“Quem é esse?” uma mulher alta com tranças apertadas perguntou, apontando
sua lança dourada para o meu peito.

“Ele é novo,” Rato respondeu rapidamente. “Não é um dos homens do Kage.”

“Por que ele está aqui?” Seus olhos castanhos me avaliaram com desconfiança,
parecendo permanecer em torno do meu esterno. Sua carranca se aprofundou.

Rato coçou atrás da orelha. “Pelo mesmo motivo que você, T’laya.”

Ela estalou a língua, mas abriu passagem. Rato se esgueirou entre as mulheres,
cada uma vários centímetros mais alta do que ele, seus olhos demorando em
suas armas.

Eu imitei sua cautela enquanto eu também passava entre elas, paradas como
sentinelas dos dois lados, me olhando com frieza.

Chegamos a um ponto onde o caminho se dividia, curvando-se para a esquerda


e para a direita. O Rato tomou o caminho da esquerda, então parou diante de
um pedaço de parede nua. Ele fechou os olhos e pressionou a mão contra a
parede, e um zumbido vibrante sacudiu a passagem.

Como uma cortina sendo puxada para os lados, a parede se abriu, revelando
uma câmara completamente isolada do resto da zona. Três homens, todos
esfarrapados e imundos – obviamente parte da gangue de Kage – brandiram
suas armas, então recuaram ao ver o Rato.

Um homem corpulento, cuja barba caía quase até a barriga, colocou a haste
de seu maciço machado de duas mãos no chão e apoiou as mãos nele. Ele
olhou para as três mulheres, mostrando a boca cheia de dentes tortos e
manchados, mas sua expressão mudou quando ele me notou.

“Você não disse nada sobre outro homem,” ele disse rispidamente. “O Kage-”

“Eu estaria aqui se nosso mestre não desejasse?” Rato resfolegou. “Kage está
ficando impaciente pela relíquia. Este homem é um poderoso Sentinela a
serviço de uma poderosa Alto Sangue. Kage instruiu que ele teria permissão
para ver o santuário junto com T’laya e suas mulheres.”

O guarda corpulento não parecia convencido, olhando-nos com ceticismo.

“Você algum dia quer sair daqui, seu idiota sem sangue?” Rato estalou,
afastando os três guardas de uma enorme escultura que ocupava a maior
parte da câmara.

O homem pensou sobre isso por um momento, então ficou de lado, dando
passagem para o Rato. Rato gesticulou para que entrássemos, apontando para
o chão.

No entanto, meus olhos foram atraídos para além dele, em direção ao que só
poderia ser a relíquia pela qual tantos mataram e morreram.

Minha reação imediata foi… decepção.

O traje, que pendia suspenso em um feixe de luz dourada, era melhor descrito
como um manto blindado. (NT: há uma inconsistência no original sobre se
existe 1 manto ou vários. Vou supor que existe apenas 1). Ele era grosso e
volumoso, o tecido de um marrom acinzentado suave, com ombreiras de couro
escuro, braçadeiras e um gorjal. Runas foram bordadas nas costuras e
esculpidas ao longo das bordas das peças de armadura de couro.

Desconsiderando o estilo ultrapassado, a armadura-relíquia parecia ter sido


feita para um ogro, e não para um homem.

‘Ah, não sei. Parece bastante apropriado,’ disse Regis, pensativo. ‘Um vestido
machão para uma princesa machona.’

A maneira como o éter estava se movendo na sala chamou minha atenção, e


eu olhei mais de perto. Um brilho ametista sutil de éter infundia a armadura.

‘Isso é…?’
Acho que sim, confirmei, extasiado pela forma como o éter parecia girar em
torno da armadura, sendo atraído de todas as partes da zona. É por isso que o
éter atmosférico é muito mais espesso aqui.

T’laya cruzou na minha frente, quebrando o feitiço da relíquia. Ela se ajoelhou


sobre o glifo, seus dedos traçando os sulcos profundos no chão de pedra.

O glifo era uma série complexa de runas, cuidadosamente organizadas em


círculos concêntricos. Era engenhoso, como pintar um quadro com palavras,
mas era um design não tradicional. Eu não pude deixar de pensar que mesmo
um professor de runas djinn teria dificuldade para adivinhar o significado
exato. Havia uma complicação extra porque as peças foram desgastadas ou
danificadas com o tempo, e as ranhuras estavam manchadas de marrom
avermelhado por conta de todo o sangue que foi derramado aqui.

No topo do glifo, ele se fundia em um segundo símbolo menor, onde a


armadura pairava dentro de sua barreira protetora.

Abaixei-me para olhar mais de perto, meus dedos traçando as linhas


esculpidas.

“Que a luz me guie…” uma das mulheres ascendentes respirou maravilhada


enquanto olhava o santuário.

Rato fungou. “O que acha dela?”

‘Não me admira que ninguém tenha descoberto como obtê-la. Esse glifo está
uma bagunça,’ disse Regis, prestativo.

Eu reli a mesma seção pela terceira vez, fazendo um esforço para entender a
construção das runas.

“Começa aqui”, disse Rato, apontando para uma quebra nos círculos
concêntricos perto da luz dourada e da relíquia. “Talvez ajude se você ler do
começo ao fim.”

Mudei-me para onde ele havia indicado e comecei a traduzir com a ajuda de
Regis.

‘Isso é muito sangue para uma raça de pacifistas’, pensou Regis.

Ele tinha razão. Quando Kage e Rato revelaram o motivo da violência que
infestava esta zona, eu esperava descobrir que eles estavam sendo tolos ao
interpretarem mal as instruções do djinn, mas o glifo estava cheio de
referências a sangue.

‘…o sangue de alguém que… o que aquela runa diz?’

Não reconheço, admiti. Talvez esteja danificada.


‘…de alguém que sei lá o que, sei lá o que, sangue de nosso sangue, pode… ser
sobrecarregado? Isso não faz sentido nenhum…’

T’laya apontou a mesma runa com a qual tivemos dificuldade perguntando se


alguém podia lê-la, mas ninguém conseguiu.

Minha atenção se voltou brevemente para os três guardas contra a parede.


Cada um era maior – ‘e mais burro’, acrescentou Regis – do que qualquer outro
ascendente que eu tinha visto, e entendi por que Kage os escolheu para ficar
de guarda. Homens como esses não mostravam curiosidade, e dificilmente
pensariam muito profundamente no quebra-cabeça em que se encontravam,
apesar de ser a chave para uma fortuna que eles nem mesmo podiam
compreender.

“Os antigos magos eram um povo de paz,” eu disse, meio para mim mesmo. “A
dedicação deles a este ideal era tão grande que eles não se defenderam
mesmo quando outra raça os destruiu. Em vez disso, eles construíram as
Relictombs para manter seu conhecimento vivo. Eles não forjaram armas ou
armaduras. É por isso que esta relíquia foi trancada.” Eu apontei um pedaço
do glifo. “Eles até chamam de ‘um santuário para a futilidade’.”

“Mas a relíquia também é a chave para ir embora,” Rato nos lembrou,


cutucando a barbicha em seu queixo. “Você está sugerindo que este é um beco
sem saída?” Uma sensação de nervosismo caiu sobre ele. “Isso não pode ser
verdade…”

T’laya cuspiu no chão. “Há um caminho. Há sempre um caminho nas


Relictombs.”

Voltei minha atenção para o glifo, murmurando para mim mesmo enquanto
trabalhava em volta dele em um círculo, traduzindo-o novamente do
zero. “Sangue do nosso sangue… cheio de propósito… aquele que…”

Minhas sobrancelhas franziram enquanto eu relia os glifos mais algumas


vezes, focando mais nas partes aparentemente contraditórias das runas,
tentando entender seu significado.

Eu segurei a vontade de suspirar com a minha revelação. As coisas nunca eram


fáceis.

Soltando uma risada, me levantei. “E-eu acho que entendi.”

Rato se aproximou de mim, seus olhos se estreitando para os glifos antes de


me dar um olhar cauteloso. “O que você encontrou, Grey?”

Minha boca se abriu sozinha, de tanto entusiasmo. “O sangue não é…”

Parando bem a tempo, soltei uma tosse.


Respirei fundo para me acalmar. “É só que… eu… as runas pedem o sangue de
uma certa linhagem…”

Vendo minha reação, Rato suavizou, curvando-se levemente. “Peço desculpas,


Grey. Muitas vezes neste último ano alguém afirmou que havia entendido o
significado das runas, mas isso nunca foi verdade. Eu não tive a intenção de
desconfiar de você, estou apenas… cauteloso.”

Eu concordei com a cabeça e deixei um sorriso rastejar lentamente no meu


rosto. “Precisa de alguém de…” Então eu congelei, deixando minha boca
aberta.

“De quê, Grey?” Rato ficou inquieto, dando um passo para mais perto de mim,
com uma expressão que misturava antecipação e frustração.

“Por Vritra, sou o pior servo de Alacrya,” gemi, olhando para ele com pavor.
“Quase me esqueci de Lady Caera. Acha que ela está bem? Eu… eu estou
disposto a lhe dizer como conseguir a relíquia, mas primeiro precisamos ter
certeza de que ela está segura.”

Rato balançou a cabeça negativamente. T’laya e suas companheiras haviam


parado o que estavam fazendo e me olhavam com desconfiança. Os três
guardas trocaram olhares confusos.

“Será mais fácil libertá-la depois de reivindicarmos a relíquia. Então teremos


a vantagem”, insistiu Rato. “Assim que soubermos como sair…”

O ascendente corpulento deu um passo pesado à frente e apontou seu


machado para o Rato. “Kage não o enviou desta vez, não é, Rato? Você mentiu!”

Rato recuou para longe da saliva que voou dos lábios do enorme ascendente.
Antes que o homem pudesse vir atrás de nós, no entanto, uma lança dourada
atravessou seu pescoço. Os outros dois caíram ao mesmo tempo, igualmente
empalados quando T’laya e suas companheiras os atacaram.

A mulher alta arrancou a lança do pescoço do morto e apontou para mim.


“Explique.”

“O sangue tem que… que…” Eu engoli em seco. “O sangue precisa ser de alguém
com descendência dos asuras”, terminei apressado.

A lança de T’laya pressionou minha garganta. “Tolice. Mentiras. Isso é


impossível.

“Não é,” eu sibilei. “’Derrame o sangue de quem prejudicou o sangue do nosso


sangue.’ Os asuras… os asuras eram os inimigos dos antigos magos…”

Os olhos sérios de T’laya pareciam perfurar os meus enquanto ela procurava


a verdade. Depois de alguns longos segundos, ela praguejou e deu um passo
para trás, baixando a lança. “Então estamos realmente condenados a
apodrecer aqui para sempre.”

Esfreguei minha garganta, onde uma gota de sangue escorria pela minha pele.
A ferida já estava curada, mas ninguém parecia notar.

Rato estava me olhando fixamente. Eu fiz uma careta. Ele semicerrou os olhos.
“O que é isso, Grey?”

Hesitei até que T’laya soltou uma bufada de raiva, então disse: “Lady Caera…
ela é do Alto Sangue Denoir, mas não de nascimento. Ela tem sangue Vritra.”

Os olhos de Rato brilharam, seu olhar era tão intenso que era quase físico, até
eu perceber que realmente havia uma sensação física, como dedos
massageando meu cérebro. O rosto de Rato se abriu em um sorriso largo e
satisfeito, e ele ergueu a mão.

Meu corpo simplesmente parou de responder. Em algum lugar no fundo da


minha consciência, eu podia sentir um zumbido quase imperceptível que
estava mais em meus ossos do que em meus ouvidos. Um feitiço de atributo
de som, atacando diretamente meu sistema nervoso para me paralisar. Minhas
costas estavam voltadas para os outros, mas tinha certeza de que eles foram
afetados da mesma forma.

‘É uma regalia,’ disse Regis ao se dar conta. ‘Algum tipo de feitiço de paralisia
baseado em som. É bem forte.’

Isso era verdade. A proteção de mana apropriada o impediria de funcionar,


mas a maneira como ele atacava diretamente o sistema nervoso o tornava
muito eficaz. A força física não fazia diferença na minha capacidade de
bloquear o ataque.

Os olhos negros redondos de Rato estremeceram enquanto ele me olhava, as


mãos fechadas na frente do peito. “Você é perigosamente inteligente”, disse
ele, lambendo os lábios. “Você foi astuto com a garota… Kage foi um tolo por
chegar a conclusões precipitadas. Eu soube imediatamente que você não era
apenas um Sentinela escondendo sua assinatura de mana.”

Ele deu um toque na sua têmpora. “Apenas mais uma das minhas runas muito
úteis. Posso ouvir o fluxo do seu sangue, as batidas do seu coração, o ar
soprando em seus pulmões. Eu consigo dizer quando alguém está mentindo. E
como eu sei que você estava dizendo a verdade agora, felizmente não há mais
necessidade de continuar com esse joguinho. Foi um duelo interessante –
quem pode fingir ser mais fraco e patético – mas estou cansado disso.
“Agradeço, Grey, pela sua ajuda.”

‘Art, o que eu faço? Eu…’

Eu disse a Regis o que precisava dele, e ele ficou em silêncio.


Com um sorriso preguiçoso, Rato puxou uma longa adaga curva de seu cinto e
caminhou até mim. Ele manteve contato visual enquanto passava a lâmina em
minha garganta, e eu pude sentir de longe o calor do meu sangue derramando
pelo meu peito.

Meu corpo desabou no chão e Rato se inclinou sobre mim. Embora eu não
pudesse me mover, eu ainda podia sentir quando a adaga penetrou nas
minhas costelas, minhas costas e, finalmente, meu coração. Meus olhos se
fecharam e minha respiração parou.

RATO

O sangue se acumulou sob o corpo do ascendente de olhos dourados


enquanto ele tombava sem vida.

“Parece que você foi útil, no fim das contas.” Limpei a lâmina com a manga do
braço de Grey antes de me levantar e me virar para encarar T’laya.

A ascendente alta e orgulhosa estava imóvel, suas companheiras a


flanqueando. O resto de seu povo cairia rapidamente sem essas três, eu tinha
certeza. Acenei minha adaga na frente dos olhos injetados de sangue de T’laya.
Embora ela não pudesse se mover, eu poderia dizer pelo ritmo constante de
seu batimento cardíaco que ela já sabia o que estava para acontecer.

O feitiço de paralisia sônica estava começando a me desgastar, então não


perdi tempo saboreando suas mortes da maneira que gostaria. Assim que ela
caiu morta ao lado de suas companheiras, liberei meu feitiço e respirei,
cansado, mas alegre.

“Um último sacrifício antes do fim,” eu disse, segurando minha adaga em


direção à relíquia, como se fizesse um brinde.

Canalizando mana em uma de minhas runas menores, coloquei minha mão no


chão. “Kage. Traga-a.”

Se aquele degenerado tivesse seguido minhas instruções, ele já estaria por


perto com a alto sangue. Não havia como ter certeza absoluta de que Grey
poderia resolver o problema da relíquia, mas eu havia percebido a confiança
inabalável que ele mantinha em si mesmo.

Foi uma verdadeira surpresa descobrir o segredo da mulher. Embora ele não
tivesse dito a parte mais importante, eu tinha ouvido as variações sutis de seu
tom que o traíam. Lady Caera não só tinha sangue Vritra, mas seu sangue
também havia se manifestado. Sem a ajuda de Grey, eu poderia ter cometido
o erro de perfurar seu núcleo e jogá-la pro Kage. Saber que ela carregava
sangue Vritra, entretanto… isso mudava as coisas.
Kage chegou um ou dois minutos depois, arrastando Lady Caera atrás dele. Ela
avistou o corpo de seu companheiro no chão, e sua mandíbula se enrijeceu.
“Foi realmente necessário matá-lo?”

“Lady Caera do Alto Sangue Denoir,” eu disse, dando a ela uma leve reverência.
Sua boca se fechou. “Sangue do Vritra.” Sua boca se formou em uma linha
tensa e seu rosto empalideceu. Regozijei de alegria com a visão. Movendo-me
para ficar bem na frente dela, ajustei as correntes que prendiam seus pulsos.
“Você tem alguma ideia de como restrições que cancelam mana são úteis em
uma ascensão? E essas são variações particularmente de alto nível. Você nunca
sabe quando precisará desabilitar um inimigo – ou aliado – quando há
espólios a serem reclamados.”

Seu queixo se ergueu, enfatizando seu olhar superior. “Se você conhece meu
sangue, então você não ousaria colocar um dedo em mim…”

Rindo, eu estendi a mão e tateei em volta do pescoço dela pelo artefato que
eu sabia que deveria estar lá. Quando minha mão envolveu a corrente fina, dei
um puxão forte, arrancando-a de seu pescoço.

Chifres apareceram dos lados de sua cabeça, se desenhando para frente e para
cima, com pontas secundárias apontando para trás, emoldurando sua cabeça
como um louro negro. Passei um dedo ao longo da superfície dura e lisa,
momentaneamente fascinado por eles. Ela estremeceu com uma raiva
reprimida, mas não se afastou. Em vez disso, ela falou com uma calma forçada,
seus olhos escarlates se estreitaram em duas adagas ensanguentadas.

“Quando sairmos daqui, terei tanto uma relíquia viva quanto alguém de
sangue Vritra. Imagine isso, Lady Caera. Chego com a história de te descobrir
nesta zona de convergência, meio morta, traída por seu servo mais fiel… Você
não seria a mesma, é claro, não depois de tudo que viu, mas está viva. E com
a riqueza adquirida com a relíquia, talvez os Denoirs até me considerem um
marido adequado para o seu eu despedaçado?” Eu dei a ela um sorriso
zombeteiro. “Em um único dia, eu me tornarei o ascendente mais famoso de
Alacrya. Aposto que até conseguirei uma audiência com o Alto Soberano.
Talvez, para o descobridor da relíquia, ele se dignasse a oficializar nossa
cerimônia?” Meu sorriso vacilou quando tive um pensamento curioso. “Por que
você fez isso? Por que esconder este lindo dom?”

Aqueles olhos escarlates mortais apenas olharam de volta para mim.

“Bem, depois teremos tempo suficiente para uma conversa tão íntima. Por
ora…” Puxando pelo chifre, arrastei a mulher que se debatia – certificando-me
de que ela teria que passar por cima do corpo de seu companheiro morto no
caminho – e chutei a parte de trás de sua perna para que ela caísse de joelhos.

Puxando suas mãos pelas algemas que as prendiam, eu desenhei uma linha
sangrenta em sua palma com minha adaga, então a empurrei para o chão,
onde sua mão ensanguentada bateu na pedra esculpida do chão, manchando
o glifo.

Para minha decepção, ela nem mesmo engasgou de dor, mas isso era
insignificante em comparação com o que estava para acontecer.

Só que… nada aconteceu.

Soltando um suspiro pesado, senti um pouco do meu bom humor sumir. “Eu
realmente esperava poder receber meus dois prêmios, mas, enfim… Nem
sempre conseguimos tudo o que desejamos, não é, minha senhora?”

Mais uma vez, segurando-a pelo chifre, girei Lady Caera para me encarar,
dando-lhe a honra de não cortar sua garganta por trás. Seus olhos focaram em
algo atrás de mim, se alargando, e um sorriso se espalhou em seu rosto, em
vez do terror que eu deveria ter visto.

Virando-me lentamente, encontrei Grey de pé, suas feridas curadas, sua pele
sem marcas da minha lâmina. Mas eu sabia que o tinha esfaqueado… cortei
sua garganta, perfurei seu coração… o sangue que encharcava suas roupas era
prova disso!

Kage amaldiçoou e sacou sua cimitarra, mas não teve a chance de atacar. Uma
sombra negra explodiu para fora do corpo de Grey, jogando Kage no chão. Eu
mal percebi, incapaz de desviar o olhar de seus orbes dourados.

Tudo fazia sentido agora: aquela confiança impossível que o homem não
conseguia esconder. Mesmo agora eu não conseguia sentir sua mana de jeito
nenhum. Não porque ele fosse algum pequeno Sentinela estranho, capaz de
mascarar sua presença… não. Era porque ele era muito mais forte do que eu…
mas eu já havia derrubado bastardos maiores e mais fortes do que eu antes.

Meu núcleo doeu enquanto eu empurrava mana para minha runa novamente,
lançando a paralisia sônica. Um zumbido baixo vibrou de mim, a frequência
exata necessária para interromper o sistema nervoso, impedindo todo
movimento.

O lobo das sombras congelou no lugar, suas mandíbulas pairando sobre o


rosto de Kage, a baba escorrendo dos dentes enormes. Kage estava paralisado
também, de costas sob a criatura, sua boca aberta numa expressão que era
mais de medo do que um grito de guerra. Atrás de mim, ouvi a respiração de
Lady Caera parar em seus pulmões.

O ascendente de olhos dourados estava imóvel. Eu sorri e girei minha adaga


para ele ver.

“Eu preciso separar sua cabeça de seu pescoço para garantir que você não se
levante novamente? Talvez, depois de fazer isso, eu vou te queimar só para
garantir.”
Ele balançou a cabeça, por mais impossível que isso deveria ser. “Eu preferiria
que você não fizesse isso.”

Embora eu pudesse ver a certeza da minha própria morte em seus olhos, eu


me recusei a cair sem lutar. Girando, lancei-me sobre Lady Caera. Se eu
pudesse usá-la como refém, então…

No instante seguinte ele estava ao meu lado, o cabo de uma adaga de ametista
serrilhada brilhando entre seus dedos, a lâmina em minha barriga. Em meu
núcleo. Minha magia foi liberada com uma explosão de estática raivosa que
fez meus ouvidos zumbirem. Eu podia ouvir a respiração estável da mulher e
o rosnado de Kage quando a besta o prendeu no chão.

A força deixou meu corpo enquanto eu afundava no chão aos pés de Grey. Meu
sangue fluiu livremente, preenchendo as ranhuras do glifo.

Acima de mim, a luz dourada começou a piscar. Com minhas últimas forças,
me estiquei para ver a relíquia.

A barreira, há tanto tempo impenetrável, desapareceu.

Capítulo 359
Potenciais

ELEANOR LEYWIN

Os longos túneis entre a caverna do santuário e a pequena gruta da Anciã Rinia


estavam vazios e sem vida. Já havíamos caçado os ratos das cavernas até a
extinção, aparentemente. Haviam algumas centenas de pessoas para
alimentar no santuário agora, e embora as bestas de mana tivessem gosto de
gambá fedido, elas eram comestíveis – se você cozinhasse até quase queimar
a carne e não pensasse muito sobre o que estava comendo.

Embora a Anciã Rinia tivesse dito que ela estava muito doente para receber
visitas, eu não podia simplesmente ficar longe depois do que ouvi entre Virion
e Windsom. Eu tinha que conversar com alguém, mas estava com muito medo
pra contar pra qualquer outra pessoa. Já que Rinia já saberia – ela era uma
vidente afinal – pelo menos eu não a colocaria em perigo ao revelar o que
descobri.

Quando chegamos em frente à estreita fenda que servia de entrada para a casa
de Rinia, cocei Boo embaixo do queixo e atrás da orelha. “Você espera aqui,
garotão. Já volto.”

Havia um cheiro acre e terroso saindo da caverna, o que me lembrou de folhas


de dente-de-leão.
Eu deslizei pela fenda na pedra sólida. Antes mesmo de colocar minha cabeça
para dentro da caverna, uma voz cansada e rouca disse: “Bem, entre, eu
suponho.”

Um fogo estava queimando na parede oposta, e Rinia estava sentada na frente


dele em sua cadeira de vime, coberta por um cobertor grosso. A caverna estava
sufocante, quente e densa com o cheiro amargo.

“Parece que me lembro de ter dito que não estava com humor para receber
visitas,” Rinia murmurou, de costas para mim. “E, no entanto, a maldição do
vidente é que eu não posso nem ficar surpresa que você não me ouviu.”

Eu olhei ao redor da caverna antes de responder. Além da alcova natural em


que o fogo de Rinia ardia, ela tinha uma pequena mesa quadriculada coberta
de pedras, um armário maciço em uma parede e uma mesa baixa de pedra
coberta com ingredientes e plantas despolpadas, provavelmente para
preparar o que quer que estivesse borbulhando na panela sobre o fogo. Uma
pequena alcova continha sua cama e uma cômoda muito fina e muito
deslocada.

“Sinto muito por incomodá-la, Anciã Rinia, mas eu precisava…” hesitei,


observando seu estado atual. “Você está bem?” Por mais que quisesse falar
com ela sobre Elenoir, não conseguia reprimir a sensação de que algo estava
errado.

“Forte como um touro,” ela brincou, puxando o cobertor com mais força ao seu
redor.

Atravessei lentamente a sala e contornei a cadeira de Rinia para poder vê-la


melhor. Sua pele estava murcha e seca, e as órbitas oculares fundas e escuras.
Cabelo fino e branco caído sobre o rosto e mechas soltas agarradas ao
cobertor, caindo de sua cabeça. O mais surpreendente, porém, eram seus
olhos: eles encaravam o fogo, brancos como leite e cegos.

“Rinia…” Eu comecei, mas minha garganta apertou e eu tive que fazer uma
pausa e me recompor. “Por quê? O que você tem-”

“Olhando, criança,” ela disse, sua voz baixa e coaxando. “Sempre olhando.”

Fiquei de joelhos na frente dela e peguei sua mão com as minhas, inclinando-
me para descansar minha bochecha contra ela. Sua pele estava seca como um
pergaminho e desconfortavelmente fria, considerando o calor escaldante na
caverna. “Pelo que? O que poderia justificar esse sofrimento?”

“Está tudo em jogo, agora. Minha casa… Elenoir…” Rinia parou, sua mão se
contraindo fracamente contra minha bochecha. “Foi só o começo. Dicatheanos,
Alacryanos… humanos, elfos ou anões… queimando. Nossas casas – nosso
mundo inteiro – vão queimar a menos que eu veja…”
“Veja o quê?” Eu perguntei depois de uma longa pausa. “O que você está
procurando?”

“Tudo”, ela sussurrou.

Ficamos sentadas em silêncio por um longo tempo, e eu pensei por um


momento que ela havia adormecido. Minha mente estava dormente e percebi
que não tinha realmente acreditado quando Virion ou a própria Rinia me
disseram que ela estava doente. Vendo-a agora… ela era como um fantasma
de si mesma, mal se agarrando à vida. Eu não pude deixar de me perguntar o
quanto ela deve ter usado seu poder para declinar tão rapidamente.

Nossas casas – nosso mundo inteiro – vão queimar…

Um arrepio percorreu meu corpo quando essas palavras ecoaram em minha


mente. “O que posso fazer?” Eu perguntei, minha voz apenas um pouco mais
que um sussurro.

“Esteja no lugar certo na hora certa,” Rinia respondeu, me fazendo pular.

Afastei-me do fogo e sentei-me no chão com as pernas cruzadas, olhando para


o rosto enrugado de Rinia. “Onde é o lugar certo e quando é a hora certa?”

“Essa é sempre a questão,” ela respondeu vagamente.

Meu coração estava martelando no meu peito. Odiava esses jogos, mas o que
eu sentia era mais pena pela mulher idosa do que frustração. Estava mais claro
do que nunca que ela realmente estava tentando ajudar. “Isso tem algo a ver
com o que Virion e Windsom estão escondendo, não tem?”

Ela se virou, ajustando seu corpo sob o cobertor e causando uma sinfonia de
estalos e rangidos. “Não se envolva, criança. É uma situação… delicada. Seus
instintos estavam certos: não se envolva. Independente da nossa opinião
sobre o que foi feito, bater cabeça com o Virion agora só leva à catástrofe. Nós
dois sabemos que você não precisava vir me ver para confirmar isso.”

“Você…” Lutei contra o desejo de pressioná-la sobre o que ela sabia e quando.
Parecia que sempre acabava me sentindo amargamente desapontada. Mas a
tensão cresceu dentro de mim até que as palavras meio que saíram. “Você
sabia o que aconteceria com Tessia – comigo – quando eu lhe perguntei sobre
a missão?”

Ela soltou uma risada estridente que rapidamente se transformou em tosse.


“Cada escolha, cada futuro, tudo levando a um único resultado. Sempre,
sempre.”

“O que você quer dizer?” Eu perguntei, insistente.

“Estava destinado que Tessia cumpriria seu papel como recipiente para a arma
de Agrona,” ela disse, fechando os olhos e afundando de volta em sua cadeira.
“Tudo o que pude fazer foi tentar providenciar as circunstâncias mais positivas
em que isso aconteceria.”

“Você poderia ter dito. Você poderia ter me dito que Tess não deveria ir. Virion
a teria impedido, ele—”

“No futuro que você descreve”, ela retrucou, “a caravana de escravos seria
salva, mas Curtis Glayder opta por não ir a Eidelholm e resgatar o resto dos
elfos detidos lá. Uma dessas jovens, enquanto implora a seu novo mestre para
não a profanar, oferece informação, a única coisa que ela tem de valor: o nome
de um homem que ajudou outros a escapar dos Alacryanos.”

“Eles o encontram. Então eles nos encontram. Muitos de nós morremos. E


Tessia é levada de qualquer maneira,” Rinia terminou amargamente.

“Então e quanto a Arthur? Por que dizer a ele para não deixar os Alacryanos
ficarem com ela?” Eu perguntei, minha voz falhando um pouco quando eu disse
o nome do meu irmão. “Por que ele teve que… teve que…” Eu engasguei com a
frase, afastando-me da anciã para esconder minhas lágrimas.

“Porque ainda não estava na hora,” ela suspirou.

Eu a encarei, minhas lágrimas secando tão rapidamente quanto apareceram,


quando a raiva rapidamente assumiu o controle. “Mas ele morreu!” Eu bufei.
“E eles a capturaram mesmo assim!”

“Eu sei, criança.” Ela estendeu a mão trêmula em minha direção, mas eu me
afastei alguns centímetros e, eventualmente, sua mão caiu lentamente. “Eu
sei.”

“O destino dele era morrer?” Eu perguntei baixinho. “Isso tinha que


acontecer?”

Rinia estremeceu, um tremor lento que pareceu começar em seu peito e ir para
fora até passar pelos dedos dos pés. “Como diabos eu vou saber? Uma peça
de quebra-cabeça que não cabe, é o que seu irmão era. Eu nunca pude
realmente ver seu futuro, não como o de outras pessoas.”

“É sempre um jogo com você,” eu murmurei com raiva, meu temperamento


levando o melhor de mim. “Arthur não era uma peça no tabuleiro. Ele era meu
irmão!” Eu gritei, então imediatamente me senti culpada quando os olhos
cegos de Rinia lentamente se abriram. “Desculpe.”

Ela balançou a cabeça. “Não é fácil, criança. A nossa vida se resume em mover
um pequeno graveto flutuando em um lago, de um lado para o outro da água.
Mas você só pode movimentá-lo jogando pedras no lago e deixando que as
ondas o levem. E a questão é: você está com os olhos vendados. Às vezes, o
vento sopra forte e sopra o graveto. Eu não sou diferente. Mas talvez eu esteja
com um olho aberto, e eu posso ver todos os seus gravetos e as ondulações
que os movem, mas todos estão sempre interrompendo o fluxo jogando suas
pedras ao acaso, bagunçando ainda mais…”

Trazendo meus joelhos até o peito, me enrolei em torno deles. Meus olhos
ardiam, minha garganta estava inchada, mas não deixei mais lágrimas caírem.
Eu cerrei meus dentes e me belisquei. As lágrimas reprimidas não eram pelo
meu irmão, pela Tessia, ou mesmo por mim… eram por todos, por tudo. Uma
tristeza vinda do meu âmago se apoderou de mim, fria e de alguma forma
reconfortante, como um manto de neve. Eu senti como se a pressão, a
motivação de fazer alguma coisa, de revidar e mudar as coisas, estivesse se
esvaindo. Os problemas do mundo eram tão grandes que não havia mais nada
que eu pudesse fazer para salvá-lo.

A percepção de que eu poderia simplesmente deixar tudo de lado me trouxe


uma espécie de paz.

Mas eu não queria perder as esperanças. Eu não queria desistir, deixar todo
mundo lutar para ter de volta nosso futuro enquanto eu me escondia,
confortável em minha desilusão.

Mentalmente, chamei Boo, e um momento depois seu enorme


vulto apareceu na caverna, logo atrás de mim. Ele preencheu o pequeno
espaço e poderia facilmente ter destruído as coisas de Rinia, mas parecia
sentir que eu precisava de conforto em vez de proteção; ele se deitou atrás de
mim e eu me inclinei contra ele, deixando meus dedos brincarem em seu pelo.

“Bem, isso é novo”, disse Rinia, o fantasma de um sorriso em seus lábios.

Uma onda de calor saiu do meu núcleo, limpando minha mente e queimando
o manto frio da apatia.

“Me dê esperança,” eu disse suavemente. “Por favor, Rinia. Em toda a sua


procura, você deve ter visto algum vislumbre… ”

A velha empurrou o cobertor para o lado, deixando-o cair no chão. Eu teria


jurado que podia ouvir seus ossos estalando quando ela começou a se
levantar, mas quando me movi para ajudá-la, ela acenou para que eu sentasse.
Uma vez livre da cadeira, ela deu alguns passos lentos e arrastados em minha
direção, até que pudesse colocar a mão nas costas de Boo. Com muito cuidado,
a velha vidente começou a se abaixar ao meu lado.

“Rinia, você não deveria-”

“Não ache que você pode me dizer o que eu devo ou não devo fazer, criança,”
ela retrucou.

Eu ajudei a guiá-la da melhor maneira que pude, até que ela estivesse
descansando no chão ao meu lado, se recostando no Boo, assim como eu.
“Esperança nem sempre é uma coisa boa”, disse ela, ofegando ligeiramente.
“Quando perdida, pode quebrar o espírito de uma pessoa. Quando falsa, pode
impedir as pessoas de cuidarem de si mesmas.”

“Então, me dê esperança de verdade”, eu disse, novamente pegando a mão


dela e apertando suavemente.

Rinia se inclinou para o lado de forma que sua cabeça estava descansando no
meu ombro. “Há um lugar certo e uma hora certa. E eu sei quando e onde é.”

Fiquei com a Vovó Rinia por mais algumas horas, eventualmente ajudando ela
a se sentar na cadeira, servindo uma tigela de sopa e relembrando a época em
que mamãe, papai e eu tínhamos nos escondido junto dela em uma outra
caverna secreta. Mas eventualmente o cansaço tomou conta dela, então eu a
ajudei a ir para a cama e fui embora.

Eu estava esgotada. Tentar entender a conversa de vidente de Rinia sobre


futuros potenciais e circunstâncias positivas exauriu minha mente, e me fez
sentir pequena e infantil. Mas então eu me lembrei que quando Arthur tinha
quatorze anos ele estava na terra dos deuses, treinando com divindades para
lutar uma guerra que mudaria o mundo inteiro.

Eu dei um tapinha no lado de Boo enquanto caminhávamos silenciosamente


pelos túneis sinuosos. “Se importa se eu montar, garotão?”

O urso guardião grunhiu afirmativamente e parou. Eu me coloquei de costas e


me inclinei para frente para descansar minha cabeça em meus antebraços,
apenas me deixando flutuar em cima de seu corpo largo. “Aconteça o que
acontecer, sempre vamos cuidar um do outro, certo, Boo?”

Outro grunhido.

“Assim como Arthur e Sylvie, juntos até o fim.”

Ele bufou com a comparação, me fazendo rir.

Boo não precisava de nenhuma orientação minha para encontrar o santuário,


então fechei os olhos e repassei minha conversa com Rinia. Já devia ter
passado muito tempo e eu estava feliz por ter saído de lá sem nenhuma
desavença. Vê-la me fez perceber o quão pouco tempo ela provavelmente
ainda tinha. Eu gostaria que ela pudesse ter me contado mais sobre esse “lugar
certo e hora certa” de que ela sempre falava. Se ela se fosse antes que
chegasse a hora… Eu só podia confiar que ela sabia quando o fim chegaria.

ANCIÃ RINIA

Assim que a criança Leywin e sua besta finalmente partiram, voltei ao meu
trabalho.
Deitada na cama, encarei o nada, meus olhos físicos agora inúteis. Mas isso
dificilmente importava. Apenas meu terceiro olho era necessário, aquele que
podia ver além do aqui e agora para o que poderia ser.

Meu núcleo doeu quando ativei a mana e me esforcei para reunir força
suficiente para lançar o feitiço. Maldito corpo velho, amaldiçoei a mim mesma.
Mas eu sabia que, na verdade, meu corpo físico tinha resistido por muito mais
tempo do que deveria.

Foi minha irmã quem aprendeu a poção que pôde fortalecer nossos corpos,
mesmo enquanto nossa força vital se esvaia. Tarde demais para que ela
mesma se beneficiasse – mas, mesmo em meio a seus esforços ardorosos para
salvar a vida de Virion, ela nunca se forçou como eu estou fazendo.

Enviei um agradecimento silencioso a ela, onde quer que seu espírito


descansasse na vida após a morte. Eu ainda não tinha certeza se meus esforços
fariam alguma diferença no final, mas ganhei meses para procurar graças à
poção que ainda borbulhava em meu pequeno fogo.

Lançando Visão, me senti relaxar quando o terceiro olho se abriu em meu


espírito. Por meio desse olhar metafísico, o mundo etérico tornou-se visível,
revelando uma teia infinitamente complexa de fios entrelaçados que se
estendem para o futuro. Mas só olhar não era suficiente.

Como meu mestre havia me ensinado, eu me projetei em direção ao Aevum…


lentamente, hesitantemente, como alguém que se aproxima de um animal
meio selvagem. Mas foi minha afinidade com o Aevum que me deu os poderes
de adivinhação, e como havia acontecido milhares de vezes antes, o éter
reagiu, vagando em direção ao meu terceiro olho e conectando minha mente
à tapeçaria de futuros possíveis que foi colocada diante de mim.

Ignorei a maneira como todos eles se cortavam no mesmo ponto.

Agora, onde eu estava…

Escolhendo um fio, eu o toquei. Ele me arrastou, atraindo minha consciência


ao longo da linha do tempo que representava.

Quando não gostei do que vi, encontrei um fio ramificado e me deixei levar.

Foi ainda pior.

Eu sabia onde precisava estar e quando. Mas havia mais do que apenas estar
no lugar certo na hora certa, independentemente do que eu tinha dito a Ellie.
A viagem era tão importante quanto o destino.

O que só tornava ainda mais frustrante saber que meu tempo estava
acabando.
Dando um suspiro trêmulo, peguei o próximo fio, depois o próximo e o próximo
depois disso.

ELEANOR LEYWIN

Acordei do meu cochilo com a sensação de cair, como tropeçar em um sonho.

O túnel estava enevoado e o ar tinha um cheiro forte e enjoativo que fez meu
estômago apertar e minha cabeça girar.

“Boo?” Eu perguntei, minha língua arrastando pesadamente com o nome


familiar. “O que foi?”

Minha mente estava lenta por causa do cochilo e eu estava com dificuldades
pra me manter acordada, mas tinha certeza de que havia algo errado com Boo.
Ele estava andando devagar, respirando fundo, bufando, com dificuldade…

Meu vínculo deixou escapar um choramingo nervoso. Eu dei um tapinha em


seu pescoço e disse: “Ei, é só neblina, Boo, estamos…”

Cheirei o ar novamente. A neblina…

Fechando meus olhos, me concentrei na vontade da besta à espreita no meu


núcleo de mana, que agora era laranja escuro. Focando dentro de mim mesma,
cutuquei a vontade, acendendo-a e recebendo uma explosão de cheiros e sons
de meus sentidos aprimorados.

Os túneis eram úmidos e com um leve odor de podridão. O aroma pesado de


Boo estava em toda parte, assim como o cheiro fedorento deixado para trás
pelos ratos das cavernas que costumavam viver aqui, mas podridão da névoa
dominava todo o resto. Os túneis estavam quase totalmente silenciosos. Em
algum lugar abaixo de mim, eu podia ouvir o leve tamborilar de água pingando
do teto de uma caverna e espirrando em uma piscina rasa, mas os únicos
outros sons eram os passos desiguais de Boo e meu próprio batimento
cardíaco lento.

Boo tropeçou mais uma vez, enviando uma sacudida desconfortável no meu
estômago.

Tentei alcançar meu arco, mas não consegui tirá-lo das minhas costas. Uma
das pernas de Boo cedeu e eu caí pesadamente no chão. Eu sabia que deveria
ter doído, mas tudo que podia sentir era o desejo irresistível de fechar os
olhos.

As poderosas mandíbulas de Boo se fecharam nas costas da minha camisa e


ele começou a me arrastar, mas mesmo com meus sentidos nebulosos eu
podia ouvir sua respiração difícil.

“Boo…?”
Soltei uma risadinha estúpida ao som da minha própria voz, arrastada e boba.
Eu sabia que deveria estar com medo, mas realmente, eu só senti vontade de…
ir… dormir…

Boo me soltou, deixando escapar um grunhido de advertência. Eu mal consegui


virar minha cabeça o suficiente para olhar para o túnel, onde pude ver duas
silhuetas se aproximando. Seus rostos estavam cobertos… ou talvez fossem
apenas meus olhos ficando embaçados.

“Calma, garotão”, disse uma das silhuetas, com a voz abafada pelo pano.

Boo rugiu e se lançou, sua enorme pata embriagada golpeando as figuras. Eles
se esquivaram, mas ouvi uma respiração sibilante e uma maldição.

“Você… pegue-os… Boooo,” eu engasguei.

Boo cambaleou para frente e tropeçou no chão enquanto balançava suas


garras. Choramingando, ele soltou um grunhido baixo que pensei ser por
medo, então tudo escureceu.

Através da escuridão, eu podia ouvir passos se aproximando.

“Não… mexa… comigo,” eu murmurei fracamente. “Eu sou… uma…”

Braços fortes me pegaram como se eu fosse um bebê.

“Leywin…”

Uma voz suave e triste ecoou do nada escuro que me rodeava.

“Desculpe, Eleanor.”

Meus olhos se abriram, ou pelo menos foi minha impressão. Tudo estava cinza
e confuso. Minha cabeça parecia estar cheia de teias de aranha, e minha boca
e garganta estavam tão secas que doíam. Pisquei novamente várias vezes,
lentamente.

“Mamãe?”

Eu ri ao som da minha própria voz, que coaxou como um sapo velho e gordo.
O barulho morreu instantaneamente quando minha respiração ficou presa no
meu peito, e eu percebi com clareza que algo realmente ruim havia acontecido.

“Mamãe? Papai?”

Uma sombra se moveu pela minha visão turva e vozes distorcidas invadiram a
teia de aranha dentro do meu cérebro. Eu não conseguia entende-las.
“I-irmão? Irmão!”

As vozes falavam coisas sem sentido e uma das figuras se aproximou. Levantei
minhas mãos para afastá-los e fiquei chocado com um tilintar metálico e a
sensação de frio em meus pulsos.

“Irmão—”

Tudo voltou de uma vez, forçando um suspiro sufocado. Meu pai e meu irmão
estavam mortos. Rinia, o gás… Boo!

“Boo!” Eu gritei, sem tentar esconder meu pânico. Ele deveria estar comigo, eu
sabia. Ele deveria se teletransportar para mim, estar bem ao meu lado. “O que
você fez com o Boo?” Comecei a soluçar.

Mãos fortes pressionaram meus ombros. Um rosto estava bem na minha


frente, embaçado no início, depois vagamente familiar, então—

“Albold…?”

“Por favor, acalme-se, Ellie”, disse ele com firmeza, soltando meus ombros.
“Boo está ileso, embora eu não possa dizer o mesmo de nós. Nós o deixamos
nos túneis. Eu teria preferido fazer isso de uma maneira diferente,
mas devemos saber o que você sabe.”

“Nós… o quê?” Eu balancei minha cabeça, tentando limpar a última das teias
de aranha. “Você… você me atacou!” Eu olhei para ele acusadoramente.

Uma segunda figura apareceu para descansar sua mão no ombro de Albold. O
capuz do elfo magro ainda estava levantado, mas o pano que cobria seu rosto
havia sido removido. “Precisamos da verdade, Eleanor. Não pensamos que
você nos contaria, a menos que não tivesse escolha.”

“Feyrith, você… seu… seu idiota!” eu rosnei. Inclinando-me para trás, gritei:
“Boo! Boo, socorro!”

Albold se ajoelhou na minha frente e agarrou as algemas que prendiam minhas


mãos. Ele deu um puxão forte que torceu meus ombros e cotovelos de forma
desconfortável. Seus olhos – incolores na caverna escura – me prenderam
como flechas. “Chega, Ellie. Tomamos medidas para garantir que sua besta não
pudesse nos seguir. Aquelas algemas de supressão de mana devem—”

Pop!

Um rugido como terra e pedra sendo rasgada explodiu bem ao meu lado, e
Albold foi arremessado para trás da caverna, batendo com força na pedra
dentada. Uma parede peluda se moveu na minha frente, respirando
pesadamente e rosnando de raiva e medo.
Uma barreira espessa de água apareceu com um whoosh e dividiu a caverna
ao meio, separando Boo e eu de Albold e Feyrith, embora eu só pudesse ver as
bordas ao redor do enorme corpo de Boo.

A voz de Feyrith foi abafada quando ele gritou, “Eleanor, por favor, ouça! Não
vamos te machucar, só precisamos conversar.”

“Você tem um jeito engraçado de conversar”, retruquei. Boo se virou para me


olhar, certificando-se de que eu estava bem. Eu levantei as correntes. Com um
bufo irritado, ele as mordeu, esmagando os elos de metal encantados como se
fossem ossos velhos. A magia supressora desapareceu e eu senti meu núcleo
ganhando vida novamente.

“Nós… nós precisávamos ter certeza,” Feyrith disse desesperadamente. “Com


tudo que está em jogo, não poderíamos arriscar que você nos ignorasse ou nos
dissesse que não poderia discutir isso.”

Eu me levantei e balancei meus braços e pernas, que ainda pareciam meio


adormecidos. Quando tive certeza de que não cairia, contornei Boo e caminhei
até a parede de água, encarando os elfos do outro lado. Boo se moveu como
uma sombra ao meu lado, seus dentes à mostra.

Albold estava se limpando, e notei que sua calça estava rasgada e ele tinha
uma bandagem em volta da perna, encharcada de sangue. Ambos os elfos
estavam observando meu vínculo com cautela. Eu dei um tapinha no ombro
de Boo.

“Não acredito que estou tentando encontrar você há semanas”, resmunguei,


encarando Albold. Ele fez uma careta, mas não desviou o olhar. “Idiotas, o que
vocês querem? Vocês têm uma chance. E não pensem que Boo não
vai comer vocês se me atacarem de novo.”

Boo rosnou ameaçadoramente.

Feyrith liberou seu feitiço e a parede de água caiu, drenando para o chão e
deixando pedra seca para trás. Suas mãos estavam levantadas em um gesto
de paz quando ele deu um passo à frente. “Nós sabemos que Virion está
mentindo, Eleanor. Sua história não faz sentido. E sabemos que você falou com
o asura, Windsom, e que visitou a velha vidente.” Suas mãos caíram para os
lados e agarraram as pontas de sua capa desesperadamente.

Albold rangeu os dentes audivelmente. “Não tenho ideia de por que uma
menina de doze anos está tão envolvida em tudo isso, mas precisamos saber
o que você sabe.”

“Quatorze!” Eu disse indignada, cruzando os braços sobre o peito. “E tudo o


que Virion disse a você, é para o seu próprio bem.” Lembrei-me das palavras
de Rinia. “Ir contra ele só levará à catástrofe.”
Albold franziu o rosto com raiva. “Isso não é o bastante. Nós – todos os elfos –
merecemos saber a verdade. Se Virion está trabalhando com o inimigo… ”

Eu dei a língua, agindo como a idade que eles pensavam que eu tinha e
atraindo olhares chocados de ambos os elfos. “A verdade é uma merda! Sabê-
la não ajuda, confie em mim.”

Albold tinha uma expressão séria e desesperada, mas Feyrith parecia estar se
encolhendo. “Você não é uma elfa, Eleanor. Você não tem como saber como é
isso.”

Eu abri minha boca para responder que eu sabia o que era perder pessoas,
mas as palavras morreram na minha garganta.

O que Rinia disse mesmo? Eu me perguntei, tentando não vacilar enquanto


vasculhava meu cérebro estressado procurando pelos detalhes da nossa
conversa. Não se envolva. É uma situação delicada…

“Eu sei que você também perdeu pessoas, Eleanor…” Feyrith disse, dando meio
passo à frente, mas congelando quando Boo soltou um rosnado baixo. “Eu não
conhecia seu pai a fundo, mas… Arthur Leywin era meu maior rival e um amigo
próximo. Sua perda afetou a todos nós.” A voz de Feyrith estava tremendo.
“Mas eu perdi todo mundo, você entende? Minha…”

O elfo cedeu, seu rosto se contorceu enquanto as lágrimas corriam por suas
bochechas e soluços chacoalhavam seus ombros. Ele pressionou a mão sobre
os olhos, curvando-se ainda mais. Em meio aos soluços, ele disse: “Minha
família inteira… eles… eles se foram.” Ele afundou no chão, e Albold ajoelhou-
se desajeitadamente ao lado dele, sua expressão ilegível.

Feyrith enxugou o rosto com a manga e respirou fundo, trêmulo. “Eu tentei
salvá-los… mas fui pego… nem cheguei perto. Deixei-os contra a vontade deles
para frequentar a Academia Xyrus… para ser mais do que apenas o quarto filho
de uma família nobre, mas falhei com eles, entende? E agora eles… se foram…”

Albold estava pálido como um fantasma ao lado do Feyrith de rosto vermelho.


Seus olhos focavam no vazio, sem olhar para seu companheiro ou para mim.
“Nosso rei e rainha se foram. Nossa princesa se foi. Nossa casa, nossa cultura
se foram. Nossos amigos e familiares, professores, amantes, rivais… todo o
nosso mundo se foi.” Só então ele me olhou nos olhos. “E nem conseguimos
entender o porquê.”

Eu não conseguia desviar o olhar de seus olhos penetrantes. O que eu poderia


dizer para amenizar uma perda tão completa e amarga? Se eles soubessem o
que realmente aconteceu em Elenoir, isso realmente os faria se sentir melhor,
ou apenas mais desamparados – sem esperança – como eu? Além disso,
raciocinei comigo mesma, Rinia me disse para ficar fora disso.
Mas ela não me disse para não contar a mais ninguém. Não achei que a
verdade traria algum tipo de catarse aos elfos, mas eles não a mereciam
mesmo assim?

Eu me inclinei contra Boo, correndo meus dedos pelo seu pelo e ouvindo seu
coração martelando em meus ouvidos, mais alto do que o o som de meus
dentes rangendo. “Ok. Eu vou dizer.”

Capítulo 360
Relíquia de Sangue III

CAERA DENOIR

Meu olhar estava fixo nas costas de Grey enquanto andávamos pelo labirinto,
em silêncio, exceto pela bajulação constante de Kage. Apesar de que agora o
Grey parecia perfeitamente bem, era difícil ignorar a memória dele deitado
imóvel, com a sua garganta cortada…

Eu fechei meus olhos com força, piscando para esquecer essa imagem, e me
concentrei na tagarelice constante vindo de Kage enquanto ele nos guiava em
direção ao portal de saída que tinham escondido.

“… não é realmente minha culpa, entende? Quando o Rato viu como as pessoas
apenas iriam embora depois de um tempo, depois de decidirem que a relíquia
não poderia ser reivindicada, ele apareceu com a ideia de fechar o portal e
forçar as pessoas a ficar. Eu simplesmente concordei… o que mais eu poderia
ter feito?”

“E você também foi forçado a fazer as ascendentes mulheres que entraram


nessa zona de brinquedinhos?”

A forma grande e bruta de Kage se encolheu sob o meu olhar apesar do fato
de que nós não tínhamos nos incomodado em restringi-lo com algemas de
contenção de mana. Mesmo assim, ele ainda estava com espírito de luta, e eu
podia sentir sua mana queimando em fúria.

“Continue andando, resmungão,” Regis disparou enquanto ele seguia de perto


por trás do ascendente com cicatrizes.

Meus olhos se fixaram novamente nas costas de Grey enquanto ele se movia
quietamente atrás de Regis, deixando o lobo das sombras conduzir Kage até o
nosso destino.

Uma frustração desconfortável e revoltante estava fazendo minhas entranhas


se embrulharem enquanto eu considerava de novo o que Grey tinha me pedido
para fazer.

Ele sabia que Kage não era uma ameaça pra mim, mas a verdade era que Grey
ainda tinha silenciosamente pedido sua completa confiança. Eu fui deixada
pra trás como garantia, como uma donzela em perigo — um estereótipo de
fraqueza e fragilidade contra o qual eu estive lutando minha vida inteira — e
Grey esperava que eu me colocasse em um estado de vulnerabilidade sem
mesmo a oportunidade de questionar ou entender o que ele estava fazendo.

Eu precisei de toda fibra de autocontrole para me impedir de matar Kage


quando ele tinha sacado um par de algemas de supressão de mana e
anunciado que nós estaríamos seguindo atrás de Rato e Grey juntos.

Esfreguei os leves hematomas em meu pulso, e as dores incômodas eram um


lembrete físico do perigo de confiar demais – algo que eu nunca tinha me
permitido antes. Eu escolhi esconder minhas habilidades, confiando em Grey
que nada de ruim aconteceria comigo.

Nada de muito ruim, eu admiti enquanto pressionava os curativos contra o


corte sangrento na minha palma.

Preocupada com esses pensamentos, eu quase esbarrei em Grey, não


percebendo que Kage havia parado.

“É bem aqui, certo,” ele murmurou, dando a Regis um sorriso banguela, como
um servo espancado procurando pela aprovação de seu mestre arrogante.

“Você quer um petisco ou algo assim?” A juba flamejante de Regis tremeluziu


com irritação. “Abra.”

Kage ficou pálido antes de levar as mãos para a parede de pedra. A terra
tremeu e ruiu para os dois lados, escorregando como lama em um deslize de
terra repentino, e revelando um túnel escondido. Regis guiou nosso
prisioneiro relutante para a passagem, que levava a um beco sem saída. Kage
repetiu o feitiço, abrindo uma segunda passagem secreta, que levava a uma
terceira, a uma quarta até finalmente chegar numa caverna redonda.

Veias de rocha vermelha brilhante cresciam em um padrão circular no teto,


iluminando a caverna com um brilho estranho e banhando o portal com uma
luz enferrujada. O portal em si, que ficava bem no centro da sala, parecia uma
cortina escarlate caindo através da pedra vermelho-tijolo da moldura.

Nós todos caminhamos ao redor de Kage, que tinha parado completamente no


início do túnel, observando-nos com nervosismo. Assim que nossa atenção
saiu dele, ele girou e saiu correndo na direção que havíamos vindo.

Regis o observou ir com uma expressão de leve diversão em sua face de lobo.

Sem nem mesmo olhar pra trás, Grey disse, “Livre-se dele,” e Regis saiu em
uma disparada.

Grey parecia já ter tirado Kage de sua mente e sua atenção estava inteiramente
no portal. Ele deu duas voltas em torno dele, encarando a profundeza opaca
como se ele pudesse ver o que estava esperando do outro lado.
Suas roupas estavam rasgadas onde ele havia sido apunhalado, e manchadas
com sangue. Eu não entendia ainda completamente o que havia acontecido.
Grey não tinha explicado como ele havia desativado o escudo, apenas como
ele havia pego a relíquia e ordenado Kage a nos liderar até o portal. Ele esteve
calado quase o caminho inteiro.

Ele parou repentinamente e seu olhar se fixou em minha palma machucada.


“Me desculpe por isso.”

Eu flexionei minha mão cortada, que estava enrolada em um pedaço da camisa


rasgada de Grey. O machucado queimou, mas não era particularmente
profundo e se curaria rapidamente. “Eu vou te perdoar se você explicar
exatamente o que aconteceu lá atrás.”

“Justo.” Ele ficou pensativo por um momento. “O comportamento de Rato era


incomum para alguém que estava sendo mantido prisioneiro. Pequenas coisas.
Mas tudo realmente se encaixou quando eu vi os glifos e percebi que eles não
tinham ideia alguma de como realmente abrir.”

“O que você quer dizer?”

Grey se curvou e usou poeira do chão para limpar um pouco do sangue


manchando suas mãos. Quando ele olhou pra mim, seus olhos estavam frios e
calculistas. “Eu pensei sobre o que eu faria se eu estivesse na posição deles.
Como eu motivaria os ascendentes fortes, por vezes inteligentes, que
chegavam nessa zona…”

“Mas se você entendeu os glifos imediatamente, por que se deixar ser


derrotado completamente?”

Os dedos de Grey inconscientemente brincaram com os buracos na sua túnica


onde a lâmina de Rato havia machucado ele. “Porque eu precisava que ele
fizesse isso. Eles estavam certos quanto à necessidade de um sacrifício de
sangue, mas tinha que ser de alguém que havia machucado o sangue dos
djinn.”

Então você o deixou te apunhalar? Eu quase perguntei, mas eu já estava


reunindo as peças na minha mente. Vilões eram frequentemente previsíveis,
afinal. Tudo que Grey tinha que fazer era dar a Rato uma razão para derramar
seu sangue, fazendo o próprio Rato a chave para desbloquear a relíquia. Mas
então, isso significava…

“Então, você tem o sangue dos magos antigos — dos djinn?”

Grey encolheu os ombros indiferentemente. “Eu imagino que um bocado de


pessoas tenha. Mas as Relictombs me chamaram de “descendente” antes, o
que me confirmou que eu tinha um ancestral djinn… Eu imagino que isso foi
suficiente.”
Eu abri minha boca para perguntar sobre essa ancestralidade de magos
antigos, mas a fechei lentamente. Embora eu quisesse saber mais, a julgar pelo
jeito que Grey estava ficando cada vez mais impassível e sucinto dava pra dizer
que eu não conseguiria as respostas que almejava. Era muito frustrante o fato
que ele continuava a viver atrás desse véu de mistério, mesmo depois que eu
tinha mostrado tamanha confiança nele, mas… Eu sabia com o que eu havia
concordado quando fizemos nosso acordo.

Um breve momento de silêncio passou antes que eu soltasse uma respiração


profunda. “O que te faz ir tão longe?”

As sobrancelhas de Grey se levantaram em surpresa. Ele pigarreou e ficou de


pé repentinamente. Ele ficou quieto tanto tempo que eu não pensava que ele
ia responder, mas então um sorriso triste apareceu nas suas feições, uma
expressão que continha tão pouca, mas ainda assim muita emoção. “Eu devo
isso a todos que eu deixei para trás: voltar forte o suficiente pra cuidar deles.”

Eu tentei encaixar a resposta dele no mosaico quebrado que era meu


panorama da vida de Grey — cheio de lacunas que representavam tudo que eu
não sabia sobre ele — mas isso não ajudou muito para resolver o mistério do
que o levou a tais extremos.

Antes que eu pudesse decidir se eu queria xeretar mais, um grito, seguido de


uma voz profunda e retumbante ressoou pelo túnel. “Só eu posso chama-lo de
princesa!”

Os túneis tremeram, e um pouco de poeira caiu sobre nós. Eu encontrei os


olhos dourados de Grey, bem abertos, e nós dois caímos em uma gargalhada
silenciosa.

Balançando minha cabeça, eu perguntei, “Então? Você vai dar uma olhada na
relíquia ou trapos esfarrapados são uma parte de sua nova imagem agora?”

Ele revirou os olhos, mas ativou sua runa dimensional e pegou a relíquia.

Eu reprimi uma risada enquanto ele estendia o conjunto de mantos de batalha


pesados e antigos. A cor era um marrom cinzento, e já que eram compridos
demais para ele, iam ficar se arrastando atrás dele como um véu de
casamento. “Dê uma chance, Grey,” eu disse, incapaz de me conter. “Talvez um
lindo vestido para a linda princesa vai te ajudar a esconder sua identidade…”

Ele me ignorou enquanto investigava os mantos, seus dedos vasculhando


pelas fileiras de runas bordadas. O toque era gentil, um cuidado curioso, e eu
podia ver seus lábios se movendo embora ele não falasse alto. Eu sabia que
ele devia ser capaz de sentir algo a partir dos robes, embora eu apenas
pudesse sentir uma pequena carga de mana dentro deles, pouco mais que o
anel que ele usava em seu dedo.
Grey deixou os mantos caírem sobre um braço e pressionou sua mão no tecido.
“Eu acho…”

A roupa de batalha desapareceu, deixando para trás uma nuvem vaga de luz
roxa que sumiu um momento depois.

“O que aconteceu?” Eu perguntei, incerta se ele tinha simplesmente guardado


a roupa de novo, ou ativado algum tipo de habilidade baseada em éter que eu
não podia sentir.

Com os cantos de sua boca se contorcendo, Grey fez algo — um tipo de força
mental que aumentou a pressão do ar ao nosso redor e deixou os cabelos da
minha nuca em pé — e os mantos reapareceram, envolvendo seu corpo. Ele
estendeu seus braços para os lados, examinando o efeito.

Ele estava ridículo. Eu abri minha boca para dizer a ele isso, mas congelei. Os
mantos estavam se movendo, o tecido seco ondulando como água lamacenta,
escolhendo-se para se adaptar ao corpo dele.

A coloração marrom-cinzenta escureceu para um preto brilhante, e o tecido


pesado que pendia para baixo e se arrastava no chão se separou e se reformou
em pernas individuais. A relíquia — que já não se parecia com um manto mais
— continuou a ficar mais apertada até que coube em Grey como uma segunda
pele. O material se solidificou em escamas pequenas e pretas como piche, que
se prenderam à sua pele, destacando seu corpo muscular, mas flexível. Ouro
brilhava entre as escamas, correndo pelo seu corpo como tendões brilhantes.

Sabatões com escamas se moldaram ao redor de suas botas, as lâminas


sobrepostas estavam unidas por uma malha dourada, levemente visível
quando ele se movia, e ombreiras onduladas se formaram para cobrir seus
ombros. Manoplas com garras cresceram sobre suas mãos e antebraços.

O capuz do manto se transformou nas mesmas escamas negras, mas se


encolheu para cobrir a garganta, queixo e as laterais da cabeça de Grey,
deixado seu cabelo brilhante pendurado sobre a armadura negra e mantendo
sua face visível. Assim que eu pensei que a transformação estava completa,
chifres de obsidiana se formaram sobre suas orelhas, crescendo para fora da
armadura e se estendendo para frente e para baixo, enquadrando sua
mandíbula.

Eu me engasguei, soluçando em uma respiração chocada quando percebi que


eu tinha esquecido de respirar.

ARTHUR LEYWIN

Eu flexionei minhas mãos, que estavam inteiramente envolvidas pelas


manoplas com garras, e conjurei uma lâmina etérica. A longa adaga
estremeceu, sua forma instável por um momento, mas depois se estabilizou.
Eu podia sentir a pressão dela contra minha palma, desinibida pelas
manoplas. Desfazendo a lâmina, eu levantei meus braços e rotacionei meus
ombros, então desferi golpes no ar com uma série de chutes e socos.

A armadura se moveu comigo perfeitamente, deixando meus movimentos


desimpedidos.

Uma forma sombria no canto do meu olho capturou minha atenção, e eu


levantei minha mão para tocar o chifre crescendo do meio-elmo.

“Wow,” a voz familiar de Regis disse enquanto ele galopava de volta para a
pequena caverna. “Que diabos aconteceu enquanto eu estava fora?”

Sorrindo para meu companheiro, eu enviei um pulso de éter para a armadura,


e ela desapareceu, se desfazendo em uma nuvem etérica.

Seus olhos se esbugalharam, então ficaram comicamente maiores quando eu


reinvoquei a armadura com uma aplicação mínima de éter. Ela me envolveu
como uma sombra, tão leve e bem vestida que eu mal podia senti-la.

“Ayy! Xarás de chifres!” Regis deu uma risada gutural. “Nós podemos ser o trio
de cornos.”

Caera cuspiu surpreendida enquanto dava um carão para meu companheiro.


“Nós não vamos nos chamar assim.”

Regis me circulou, farejando. “Está aí, realmente e fisicamente, mas também…”

“Uma manifestação de éter,” eu finalizei por ele. “Como energia ligada à uma
forma física.” Curioso, eu estendi meu braço. “Regis, me morda.”

Mostrando uma preocupante falta de hesitação, ele mordeu meu antebraço,


seus dentes rangendo contra a armadura. Eu senti uma pressão, obviamente,
mas sem dor. Inclinando minha cabeça para ele, eu provoquei, “É o melhor que
você consegue?”

Rosnando, Regis mordeu ainda mais forte, e a pressão aumentou. Focando no


meu antebraço, eu empurrei éter para fora de minha pele do mesmo jeito que
eu me protegeria com uma barreira etérica. A armadura pareceu reagir a isso,
sugando o éter para reforçar suas capacidades defensivas e reduzir a pressão
esmagadora.

Regis soltou e deu patadas na sua língua. “Urghh. É como passar minha língua
numa bateria. Minha boca tá toda formigando agora.”

Embora eu estivesse curioso para continuar testando as habilidades dessa


nova relíquia, o zumbido baixo do portal de saída estava me atraindo, e eu
estava ansioso para ir para a próxima zona e testar a armadura
apropriadamente. “Nós deveríamos ir.”
Caera franziu quando ela deu uma olhada no túnel que chegava nessa pequena
caverna. “E as outras pessoas nessa zona? Não deveríamos…?”

“Eu não quero dar ainda mais motivos pra pensarem que fomos nós que
pegamos a relíquia,” eu respondi. “O túnel que leva até aqui é óbvio o
suficiente agora, e eles vão inevitavelmente começar a procurar de novo, agora
que Rato e Kage se foram. Eles vão encontrá-lo.”

Caera pareceu incerta, mas se moveu para ficar de pé ao meu lado em frente
ao portal. “Faça sua coisa com a Bússola, então.”

Eu estendi o braço e segurei a sua mão, surpreendendo-a. Nós tínhamos


simuletos sincronizados para nos manter juntos conforme nós navegávamos
pelas Relictombs, mas dessa vez, eu senti que o destino do portal seria
acessível apenas pra mim e queria ter certeza que não fôssemos separados.
“Esse portal já leva para onde precisamos ir.”

Assim que Regis voltou pra dentro do meu corpo, nós entramos na cortina
escarlate juntos.

E, então, nós nos encontramos em uma paisagem dos sonhos bizarra que
minha mente lutava para aceitar. Era como o corredor de branco estéril que
Regis e eu tínhamos navegado para alcançar a primeira ruína djinn, só que…

Pedaços de paredes e pisos brancos brilhantes flutuavam sobre — ou abaixo,


ou dentro — um vazio negro sem fim, esmagado e rasgado, cada parte
individual flutuando livremente, algumas girando, outras de cabeça pra baixo
ou viradas… mas nas lacunas, quando vistas do canto do meu olho, eu vi um
espaço como uma biblioteca, exceto que, invés de livros nas estantes, havia
fileiras e fileiras de cristais com uma coloração arco-íris, e nas facetas dos
cristais, imagens se moviam como memórias…

“Grey…” A voz de Caera veio de muito longe, ecoando enquanto se dobrava


sobre si mesma, repetindo-se várias vezes, mas ela não estava ao meu lado.
Eu não tinha certeza de quando ela havia saído, ou mesmo de quando eu havia
soltado sua mão.

Com cuidado, eu dei um passo para frente e minha perspectiva mudou. Caera
estava lá, encostada contra uma seção incompleta de parede. O chão abaixo
de nossos pés estava girando lentamente, trazendo à nossa visão outra parte
do corredor desunido e, bem longe, um vórtex de cristais negros esmagados,
que estava pulsando conforme as peças se recombinavam para formar um
portão, depois se quebravam de novo, repetindo isso a cada alguns segundos
de uma maneira que era difícil de olhar.

“Está tudo bem,” eu disse, pegando o braço dela. “Eu estou aqui.”

A biblioteca — ou a visão imaterial dela que eu havia visto do canto do meu


olho — tinha sumido, e em seu lugar havia uma ruína em pedaços, similar
àquela na qual eu havia descoberto a primeira projeção djinn. Assim como a
biblioteca, eu só podia vê-la quando eu não olhava diretamente, e eu não
sabia como alcançá-la, porque parecia que já estávamos lá.

‘O portão’, Regis sugeriu. ‘Se conseguirmos chegar nele de alguma maneira.’

Os olhos de Caera tremeram e se abriram, e ela deslizou seu braço para fora
do meu e se endireitou. Ela estava pálida e suando levemente, mas se segurou
contra a desorientação nauseante da zona em colapso. “Que lugar horrendo…”

“Eu não acho que é pra ser—” olhando para Caera, eu percebi com uma
surpresa de pânico que os seus chifres estavam visíveis.

Temendo que a zona estivesse interferindo com a magia, de maneira similar à


zona congelada, eu verifiquei minha nova armadura, encarando as escamas e
estendendo minha mão para tocar um chifre… mas a armadura estava intacta.
Entretanto, algo na zona estava a afetando, fazendo com que ela emitisse um
tipo de aura que parecia, de algum jeito, estabilizar a área ao meu redor.

Quando eu abaixei minha cabeça para olhar através da aura estreita — uma
zona de um centímetro ao meu redor onde o espaço era forçado de volta ao
formato correto — eu podia ver o corredor inteiro, não quebrado, se
envolvendo ao nosso redor.

Com Caera ao meu lado — ela desembainhou sua espada para ajudá-la a
manter o equilíbrio conforme ela caminhava por um corredor que não poderia
ver totalmente — eu nos guiei pela passagem, usando a imagem filtrada
através da aura nebulosa que cercava minha armadura, navegando até que
ficássemos de pé diante do portal de cristal negro.

Na minha mente, uma voz quebrada e distorcida disse, ‘Entre-bem-vindo-


descendente-por favor,’ causando uma pontada de dor atrás da minha
têmpora direita.

Os milhões de fragmentos do portal de cristal se dobraram pra fora,


desenrolando-se como uma bandeira e dissolvendo-se em um ciclone
cinzento. Esperei, e me encontrei de repente na biblioteca que tinha visto com
o canto do olho, mas nada aconteceu. Em seguida, o portão estava se
reformando, os fragmentos de cristal reaparecendo e voando juntos
novamente.

‘Entre-bem-vindo-descendente-por favor,’ soou em minha cabeça uma


segunda vez, levando a pontada de dor mais fundo.

A voz de Regis soou meio difusa quando ele disse, ‘Nós precisamos fazer algo,
chefe. Eu não acho que Caera vá durar muito aqui.’
Caera cambaleava levemente, seus olhos fechados com força contra a
dolorosa visão surreal do portão, que se quebrava e se refazia. “O que está
acontecendo, Grey? Eu não aguento abrir meus olhos…”

Piscando fortemente e resistindo à agonia lancinante no meu crânio, eu assisti


enquanto o portal de cristal se quebrava e começava a se refazer novamente.
Algum instinto de sobrevivência enraizado no meu âmago me avisou pra não
passar por aquele portão. Eu me imaginei capturado em seu loop eterno,
separado e reconstruído de novo e de novo até que as Relictombs se
degradassem e a zona colapsasse…

Novamente eu vi um cômodo circular de pedra arruinada no canto do meu


olho. Estava tão perto, como se eu pudesse apenas…

Em um instante de percepção, eu desfoquei meus olhos e procurei pelos


caminhos etéricos que eu poderia acessar com o Passo de Deus, mas eles
estavam torcidos e amarrados entre si. Mas se eu estivesse certo, não
importaria.

Eu agarrei o braço de Caera e ativei minha runa divina.

A zona se moldou em um clone da primeira ruína que eu havia visitado, feita


de pedra cinza, quebrada e desmoronando em muitos lugares. No centro do
espaço estava outro pedestal coberto por runas, ao redor do qual quatro halos
de pedra estavam rotacionando. Ou, deveria haver quatro.

Apenas dois halos continuavam suas revoluções lentas. A julgar pela massa de
pedra esmagada na base do pedestal, estava claro o que havia acontecido com
os outros dois.

Como antes, um pequeno cristal passava bem por cima do pedestal, pulsando
com uma luz inconsistente de lavanda. E como antes, algo dentro do cômodo,
algo além do cristal, continha uma quantidade monstruosa de éter.

Uma mulher saiu de trás do pilar. Caera levantou sua lâmina defensivamente,
mas eu pus minha mão em seu ombro, tranquilizando-a. Ela me deu um olhar
questionador antes de abaixar a arma lentamente.

A mulher havia ignorado Caera completamente. Seus olhos roxos brilhantes


estavam travados em mim, ou, mais especificamente, na minha armadura.

Ela mal tinha 1,5m de altura, e era tão fina que parecia frágil. Sua pele era de
uma cor rosa-lavanda discreta, seu cabelo cortado curto era ametista, e ela
usava apenas shorts brancos e um top, o que deixava à mostra os padrões
entrelaçados de runas de feitiço que cobriam cada centímetro de seu corpo.
Ao contrário da primeira projeção de djinn que conheci, que era serena tanto
em movimento quanto em atitude, o olhar inabalável e a graça nobre dessa
mulher carregavam uma intensidade furiosa que parecia irradiar dela como o
calor de uma fogueira.
Ela me deu um sorriso fraco e triste. “Então alguém recuperou minha criação
afinal. Na verdade, eu esperava que seu templo ficasse imperturbável até o
fim dos tempos.”

“Sua criação?”

Ela inclinou sua cabeça, gesticulando para a armadura que eu vestia. “Quando
ficou claro que o Clã Indrath preferiria destruir nosso povo do que aceitar que
nós não daríamos a eles nosso conhecimento de éter, eu tentei formar uma
resistência contra eles. Os muito poucos que estavam dispostos a revidar me
ajudaram a forjar essa armadura, mas era pouco demais, e tarde demais. Invés
de vesti-la eu mesma e avançar sozinha em uma batalha perdida, eu designei
a zona onde você a encontrou, nas esperanças que ela poderia um dia ser
reivindicada por alguém disposto a lutar contra os asura.”

Caera me deu um olhar incerto. “Grey, o que está acontecendo? Essa é uma…
uma maga antiga?”

Eu gesticulei para o cristal, que tremeluzia como um artefato de luz prestes a


acabar. “Não, não exatamente. Ela é uma consciência, contida naquele cristal.
Eles são como… algum tipo de guardiões ou algo assim.” Para a mulher djinn,
eu disse, “A última projeção que eu encontrei estava muito mais confusa em
me ver. Por que você não está?”

“Eu tenho algum eco da memória dele, e eu sabia que você estava vindo. Eu
tinha esperança que você chegasse antes que o artefato que abriga minha
consciência falhasse completamente.” Com o pé, ela cutucou um pedaço dos
halos de pedra quebrados. “Meu senso de tempo é… inexato, mas eu sei que o
tempo que eu tenho restante é limitado. Nós deveríamos começar o teste em
breve.”

“Teste?” Caera balançou sua cabeça. “Eu não entendi.”

Eu rapidamente expliquei o que aconteceu da última vez que eu encontrei uma


dessas projeções djinn, e como eu acreditava que cada um protegia uma parte
do conhecimento — escondido em uma pedra angular — que poderia me
ajudar a desbloquear novos poderes.

“Nós vamos lutar um contra o outro?” Eu perguntei à mulher djinn, que havia
nos observado curiosamente enquanto eu explicava.

Ela sorriu ironicamente. “A ironia de ter sido designada aqui é que minha
tarefa é administrar um tipo diferente de teste. Uma punição por declarar que
nossa ociosidade contra os dragões resultaria em loucura e fracasso, ao
contrário de paz.”

Ela estendeu uma mão para prevenir as perguntas já se formando nos meus
lábios. “Entretanto, o fato de que eles não me proibiram de passar adiante as
artes marciais que desenvolvi em vida diz muito sobre a sua passividade, sua
incapacidade de compreender o desejo de lutar — de se defender. Ao me dar
uma tarefa com um teste mental invés de um físico, eles presumiram que eu
simplesmente faria o instruído e nada mais.”

Ela posicionou os braços ao lado do corpo, e uma lâmina etérica apareceu em


sua mão esquerda. Era longa, fina, e levemente curvada, e sua forma era
surpreendentemente clara, sem a inconsistência na qual as minhas tentativas
deficientes resultavam, quando eu forçava o éter a se materializar. A
quantidade de energia contida naquela única lâmina era suficiente para
desencadear várias explosões etéricas.

“Como eu disse: mente pequena.” Então uma segunda lâmina apareceu em sua
mão direita. Ela cruzou as duas na sua frente, suas pontas afiadas marcando
linhas gêmeas na pedra em seus pés, e quando se tocaram, faíscas voaram
sibilando e estourando no ar.

“Você mostrou que tem força para revidar, para atacar e derramar o sangue de
nossos inimigos. Você é exatamente por quem eu estive esperando, e eu vou
treiná-lo para manipular o éter não apenas como uma ferramenta de criação,
mas como uma verdadeira arma de destruição.”

Capítulo 361
A Segunda Ruína

Meus olhos permaneceram fixos nos sabres gêmeos de éter brilhando nas
mãos da mulher djinn. Admiração, excitação e inveja circularam por mim
enquanto eu examinava suas criações quase perfeitas até que me forcei a
desviar o olhar. “E quanto à sua tarefa de me julgar?”

“Ela já começou,” ela respondeu com confiança. “Vou julgar o seu valor
enquanto lutamos.” Ela girou nos calcanhares e a sala desapareceu,
derretendo minha armadura e tudo ao nosso redor em um espaço vazio
branco. “Não perca tempo agora.”

A djinn correu em minha direção, se tornando um borrão ametista enquanto


seus sabres gêmeos tentaram cortar minha garganta em um amplo movimento
de arco.

Eu girei, aparando seus ataques com um golpe em suas mãos antes de forçar
o éter a assumir a forma de uma lâmina nebulosa. Aproveitando o curto
instante enquanto ela levantava suas espadas, eu me lancei em sua lateral
com minha adaga.

A djinn girou no meio do movimento, torcendo todo o seu corpo ferozmente,


ganhando o impulso para interceptar meu golpe com sua lâmina esquerda.

Faíscas queimaram com o impacto, mas a única arma remanescente era a dela.
A djinn mal esperou por mim e partiu pro ataque, suas lâminas gêmeas se
tornando uma enxurrada de golpes cruzados, decididos a me despedaçar.

Eu invoquei lâmina após lâmina, cada vez forçando mais para manter a forma
unida, para segurá-las enquanto redirecionava seus ataques, mas nenhuma
durou mais do que um único golpe.

“Você está se segurando,” disse a djinn laconicamente, enquanto me golpeava


com seu sabre. Assim que a lâmina de ametista passou assobiando por mim,
ela se transformou em um longo bastão. Girando em seu pé de apoio, ela
agarrou sua nova arma com as duas mãos e golpeou minhas pernas com a
extremidade do bastão, tentando uma rasteira.

Caí sobre um joelho com a força e, no momento em que olhei para cima, seu
cajado havia se tornado um martelo de guerra.

Arcos irregulares de relâmpago violeta arquearam através do meu corpo


quando recuei vários metros de distância com o Passo de Deus, no momento
em que o martelo gigante criava uma onda de choque de força após o impacto
com o chão branco.

A expressão da djinn de cabelo curto se transformou em surpresa pela


primeira vez, seus olhos arregalados e sobrancelhas franzidas quando ela
percebeu o que acabara de acontecer.

“De novo,” ela rosnou, lançando-se em minha direção como um borrão.

Eu dei um passo à frente, concentrando-me nos caminhos etéreos que


convergiam ao redor dela, enquanto conjurava minha própria lâmina.
Simplesmente redirecionar seu golpe com minha arma de éter já era o
suficiente pra quebrá-la, mas me dava tempo suficiente.

Gavinhas de relâmpago violeta arquearam através de mim mais uma vez


enquanto eu aparecia atrás da djinn. No entanto, no tempo que levei para
formar outra adaga, a sua lâmina de éter já havia interceptado meu ataque.

“Se você tivesse escolhido atacar com o punho, eu provavelmente não teria
sido capaz de bloqueá-lo,” ela admitiu, seus olhos afiados parecendo olhar
através de mim ao invés de para mim. “Sua mente parece ter associado esta
runa divina com o elemento relâmpago de mana. Explica muito sobre suas
tendências ao usar éter.”

Eu franzi minhas sobrancelhas, confuso. “Minhas tendências?”

A djinn dispensou minha pergunta, cravando sua espada etérea no chão e


casualmente encostando-se nela. “Antes, gostaria de perguntar primeiro o que
você quer de mim, Arthur Leywin,” ela perguntou, com um tom áspero.

Eu congelei antes de responder, percebendo que ela havia usado meu nome
verdadeiro.
O cabelo curto da djinn balançou enquanto ela inclinava a cabeça para o lado.
“Você já está se sentindo incomodado com esse nome?”

“Não,” eu respondi, pego desprevenido. Eu não tinha certeza de como me


sentia. Fazia meses que ninguém, exceto Regis, me chamava pelo meu nome
verdadeiro, e percebi que estava acostumado demais a ser chamado de Grey.
“Está tudo bem. Mas eu não entendo sua pergunta.”

Seus olhos brilhantes vagaram por mim como holofotes. “O que você quer,
Arthur?”

Isso faz parte do teste? Eu pensei, mas em voz alta, disse, “Não tenho certeza
se essa é a pergunta certa. O que eu preciso é aprender como controlar o
Destino.”

“Se o Destino fosse algo que pudesse ser simplesmente ensinado, passado de
pessoa para pessoa, então nosso universo poderia muito bem caber dentro de
um globo de neve.” Ela apoiou o queixo nas costas da mão enquanto
continuava a me devorar com os olhos. “Não. O que você quer é poder. O poder
pra proteger todos os seus entes queridos e derrotar seus inimigos.”

Eu cruzei meus braços. “Mas isso não é a mesma coisa? Mesmo com todos os
quatro elementos base à minha disposição, não consegui derrotar nem uma
única Foice. Eu quero — preciso — de algo mais forte. Pelo que me disseram,
esse algo é o Destino.”

Ela se ergueu mais uma vez, arrancando sua lâmina de éter do chão. “Então
você terá que abrir sua mente para novas ideias. Você está se restringindo ao
tentar ver o éter pela perspectiva da mana, equiparando um ao outro. Só
depois de entender o éter por si só é que você pode começar a entender o
Destino. Agora forme sua lâmina. Mostre-me que você entende.”

Minha adaga se formou quando me levantei, sua ponta irregular e sem


substância.

Ela a olhou com desgosto. “Acerte-me.”

Eu não hesitei, me lançando para frente e fintando para a direita. Quando sua
lâmina se moveu para interceptar, conjurei uma segunda adaga e empurrei em
suas costelas pela esquerda.

Sua espada desviou os dois golpes em um movimento, e minhas lâminas de


éter se desfizeram. Me defendi do seu contra-ataque com minha mão, então
dei um Passo de Deus para atrás dela, mas ela já estava rolando para frente,
sua lâmina cortando o ar atrás dela para me pegar se eu a seguisse. Foi um
movimento limpo e incrivelmente rápido.
Ela ergueu a mão antes que eu pudesse atacar novamente. “Foco. Você está
tentando vencer, e talvez até consiga, mas deveria estar tentando aprender.
Por que sua arma colapsa sempre que você a usa?”

“Porque não sou forte o suficiente para manter uma forma tão complicada,”
respondi honestamente.

Ela franziu a testa para mim como se eu fosse uma criança tola. “Errado. Você
é mais forte do que o necessário. Mais forte do que eu – pelo menos, esse resto
de mim, contida no cristal de memória. Mesmo assim…”

Uma espada perfeitamente formada apareceu em sua mão direita. Em seguida,


uma segunda em sua esquerda. Em seguida, uma terceira, pairando sobre seu
ombro. E uma quarta flutuando perto de seu quadril.

Ela olhou para mim com raiva, e todas as quatro lâminas apontavam para meu
rosto. “Não é poder que falta. É perspectiva. Como humano, sempre se esperou
que você construísse a partir do que já sabe. Engatinhar, andar e depois correr,
certo? Para manejar o éter, você deve esquecer que existem regras para as
coisas. Restringir-se a um sistema que já existe ao seu redor apenas te atrasa.
Não tente andar ou correr. Ignore a gravidade e simplesmente voe.”

Eu não pude deixar de jogar para ela um sorriso divertido. “Já aprendi a voar—

Uma das lâminas voadoras acertou meu pescoço. Eu a desviei com uma lâmina
de éter minha, mas ela se estilhaçou. A segunda espada voadora passou pela
lateral do meu joelho, enquanto as duas que ela segurava apunhalaram meu
peito e quadril. Lembrando-me das lições de Kordri, assumi uma posição
defensiva e usei movimentos curtos e rápidos de ambas as mãos e pés para
interceptar ou evitar cada golpe, conjurando várias adagas etéreas, uma após
a outra, cada uma evaporando sob a pressão de seus ataques.

Seu bombardeio foi implacável, com ataques vindos de várias direções ao


mesmo tempo. Embora eu fosse rápido o suficiente para desviar ou bloquear
a maioria, eu ainda sentia os cortes repetidos e estocadas penetrantes onde
seus golpes acertavam.

Eventualmente, ela simplesmente parou, dispensou suas armas e sentou-se


mais uma vez. Cautelosamente fiz o mesmo, esperando silenciosamente que a
lição continuasse. Eu queria pensar que tinha aprendido algo, mas até agora
sua orientação tinha sido muito esotérica, muito vaga, para realmente me
ajudar a entender como ela conjurava lâminas de éter tão poderosas. Embora
ela fosse uma fantástica parceira de treino, minha capacidade de manter a
forma de uma arma de éter puro não havia melhorado muito.

“Isso é porque você está esperando que eu diga o que fazer, como se
estivéssemos aprendendo manipulação de mana naquela sua academia,” ela
disse brevemente. “Mas eu não posso.”
Eu franzi o rosto para ela. “Você alega que quer me ensinar, mas também que
eu deveria simplesmente puxar esse conhecimento do ar, manifestando-o
como se fosse mágica.”

“Exatamente,” disse ela, dando-me um único aceno de cabeça ríspido. “Mas


posso sentir sua frustração e reconheço que você não é um djinn, mesmo que
compartilhe uma gota de nossa essência. Então tentarei explicar isso de uma
maneira diferente.”

Ela fez uma pausa, seus olhos perscrutadores olhando profundamente nos
meus. “Eu mencionei suas tendências antes. Você não consegue formar uma
verdadeira arma de éter porque trata o éter da mesma forma que trataria a
mana. Você sente uma necessidade constante e cada vez maior de estar no
controle, Arthur Leywin. Do seu corpo, da sua magia, da sua vida. Com mana,
esse desejo, juntamente com a profundidade de sua confiança, permitiu que
você progredisse a uma velocidade notável. Mas com o éter, isso só resulta em
uma barreira entre você e o que deseja.”

Resistindo ao impulso de discutir sobre minha aparente necessidade de


controle, eu disse apenas, “Você pode explicar melhor? Se eu não devo
controlar o éter, então o quê?”

“Você entende como funciona o seu coração ou os seus pulmões?” Ela


perguntou imediatamente, pressionando a mão no peito.

“Sim,” eu disse lentamente, sem saber aonde ela queria chegar com isso.

“Você controla seus pulmões?” Perguntou ela. “Você força cada respiração,
absorvendo apenas a quantidade certa de oxigênio em seu corpo? Você para
de respirar se não se concentrar?”

“Não, claro que não. Mas eu posso controlar minha respiração—”

Ela estalou os dedos e apontou para mim. “Sim, pode. Mas se você se
concentrar em cada respiração que faz ao longo de um dia, uma semana, um
ano, isso de alguma forma o tornaria melhor em respirar?”

Eu fiz uma careta e comecei a bater meus dedos no meu tornozelo. “Não,
embora praticar o controle sobre a respiração ajude a…”

Ela estendeu a mão e deu um tapa na lateral da minha cabeça. “Não seja
espertinho. Mantenha o foco.”

“Tudo bem,” eu disse, esfregando minha têmpora. “Então, se eu não


consigo controlá-lo, o que eu faço?”

Ela sorriu enquanto se levantava, gesticulando para que eu fizesse o mesmo.


“Éter não é mana da mesma forma que a água não é um cavalo de raça. Um
pode ser controlado, o outro deve ser guiado. Deve haver confiança. Um
vínculo deve ser formado. Mas o éter também não é um cavalo de raça. Não
deve ser quebrado. Além disso, seu éter não é meu éter. Através da aplicação
muito cuidadosa de runas de feitiço e décadas de prática, eu lentamente
aprendi a guiar o éter para me ser útil, absorvendo-o e direcionando-o. Já você,
por causa de seu núcleo e sua capacidade de absorver e refinar facilmente o
éter dentro de seu próprio corpo, tem um relacionamento com éter mais
parecido com o de pai e filho.”

Eu busquei a sensação vinda do meu núcleo, transbordando de éter puro e


brilhante. Minha primeira lição de Lady Myre a respeito do éter foi reforçar a
ideia de que ele tinha uma espécie de “consciência,” e que só podia ser
persuadido, nunca controlado. Quando forjei meu núcleo e provei que ela
estava errada, presumi que meu núcleo me permitia manipular e controlar o
éter de uma forma que a raça de dragões dos asuras simplesmente não
conseguia compreender, e não tinha pensado muito além disso.

Mas…

“Então você está dizendo que o éter que absorvo e purifico dentro do meu
núcleo… posso exercer uma influência tão forte sobre ele porque é… o quê?
Ligado a mim?”

“Exatamente!” Ela exclamou, focalizando meu esterno como se pudesse ver


através da minha carne e dentro do meu núcleo. Em seguida, seu rosto mudou
pra uma pequena carranca, quase um beicinho. “Embora sua técnica de
Spatium anterior tenha sido impressionante, eu ainda me sinto desanimada –
até mesmo desapontada – por isso ser tudo o que você conseguiu realizar
considerando o imenso potencial de seu corpo e núcleo combinados. Você
deve ser capaz de formar uma arma de éter com um pensamento – não, o éter
deve reagir à sua intenção antes mesmo de articulá-la totalmente em um
pensamento consciente.”

Eu cocei minha nuca, ao mesmo tempo frustrado e um pouco magoado com


sua repreensão. “Acho que estou começando a entender.”

A mulher djinn riu e balançou a cabeça quando uma única lâmina apareceu em
suas mãos. “Não. Mas com mais prática e menos conversa, você vai.” Seu rosto
tão sem emoção quanto pedra, ela avançou, sua lâmina apontada para o meu
núcleo.

Depois do que pareceram dias, nossa luta continuou inabalável. Eu fui forçado
a me lembrar de meu tempo no treinamento de orbe de éter com Kordri
enquanto a djinn e eu lutávamos um contra o outro até um impasse, nossas
batalhas durando horas seguidas. Nenhum de nós se conteve, nem cedemos
um centímetro ao outro. A djinn poderia invocar várias armas ao mesmo tempo
e mudar suas formas com uma precisão instantânea e imprevisível, mas eu era
o melhor espadachim.
E pela primeira vez desde que a Canção do Amanhecer se espatifou, eu tinha
uma espada de verdade novamente.

Levou algum tempo para que a mensagem forçosa da djinn fosse absorvida,
mas não foi a primeira vez que tive que reaprender algo que achava que sabia
bem. Lentamente, ao longo de horas ou dias, pratiquei deixar minha intenção
moldar a lâmina de éter.

Na prática, o conceito era semelhante ao que aprendi com a Three Steps para
perceber os caminhos etéreos do Passo de Deus sem primeiro ter que “vê-los”.
Enquanto antes a sensação era de tentar moldar água com minhas próprias
mãos, depois tornou-se tão confortável e natural quanto fechar minha mão
em um punho, embora manter a lâmina ainda exigisse quase toda a minha
concentração.

Eu sorri enquanto lutávamos, deleitando-me com a sensação da arma etérea


em minha mão. A lâmina em si era mais longa e mais larga do que a Canção do
Amanhecer, ligeiramente mais grossa na base e afinando até uma ponta
afiada, e brilhava com uma cor ametista. Uma empunhadura protegia minha
mão – uma adição que eu fiz depois que a djinn deu um golpe doloroso contra
meus dedos e interrompeu meu foco na arma.

Segurar a espada me revitalizava, me devolvendo algo que eu nem tinha


percebido que estava perdendo. Tanto como Rei Grey quanto Arthur Leywin,
dominar a arte da esgrima foi fundamental para meu senso de identidade, e
quando a Canção do Amanhecer foi destruída, foi como perder um membro.

Sempre que minha lâmina de éter cruzava com uma das muitas armas da djinn,
um zumbido profundo e ressonante enchia o ar, e o espaço ao redor delas
parecia deformar, flexionando levemente para fora e causando uma distorção
visível. Dava a impressão de que nosso combate estava alterando a própria
estrutura do mundo ao redor, e eu tive que me perguntar se isso era
meramente devido ao fato de estarmos em um reino inteiramente mental –
alguma representação de minha mente crescendo com o uso da lâmina – ou
se esta simulação mental estava retratando com precisão o verdadeiro
impacto físico das armas de éter.

A djinn se jogou em mim com um grito de guerra penetrante. A arma em sua


mão mudou para uma glaive, enquanto lâminas gêmeas giravam em minha
cabeça e quadril. Eu pulei no ar, girando horizontalmente com o solo para que
as espadas voadoras cortassem apenas o ar acima e abaixo de mim. Com a
glaive, a djinn cortou para cima em um movimento curto e brusco, com a
intenção de me golpear no ar, mas eu não precisava estar com os pés no chão
para reagir.

Eu dei um Passo de Deus para atrás dela, mas não conseguia manter a
concentração na lâmina etérea durante aquele espaço intermediário. O tempo
que levou para reformar a lâmina me custou a vantagem que eu tinha, dando
à djinn tempo suficiente para girar para me encontrar e então saltar sobre meu
golpe apontado para sua cintura. Eu redirecionei o ímpeto do meu movimento
para um golpe sobre a cabeça, forçando-a a levantar sua própria arma – uma
espada novamente – para se defender.

Inclinei-me em sua direção e empurrei com força, fazendo minha oponente


deslizar para trás enquanto eu segurava minha espada para afastar um ataque
surpresa das armas que voavam sem suporte ao redor dela.

Acionando o Passo de Deus, eu fui para o lado dela, então imediatamente dei
outro Passo de Deus para o lado oposto e formei minha lâmina, empurrando-
a em seu peito, mas ela já estava se movendo, suas muitas lâminas girando
para se defender de vários ângulos possíveis.

Repeti isso várias vezes, a cada vez tentando pegá-la desprevenida, atacando
de uma direção diferente, mas ela me acompanhava passo a passo, e nenhum
de nós foi capaz de desferir um golpe sólido contra o outro.

Então, de repente, suas armas desapareceram e ela piscou – não seus olhos,
mas seu corpo inteiro, como se ela tivesse ficado momentaneamente invisível.
Eu deixei minha própria espada desaparecer.

“Está tudo bem?”

Ela acenou com a cabeça, mas eu não pude deixar de pensar que sua forma
não era tão brilhante quanto antes. “Temo que nosso tempo esteja se
esgotando. Devemos” — o vazio branco desapareceu, e estávamos mais uma
vez nas ruínas de pedra dilapidadas — “voltar para seus companheiros.”

A projeção da djinn havia sumido e a voz agora emanava do cristal no centro


da sala. “Você se saiu bem, descendente.”

Caera e Regis se levantaram de onde estavam sentados contra uma das


paredes em ruínas. Caera parecia aliviada, mas Regis estava me olhando com
uma carranca aborrecida. Percebi que estava de volta à minha armadura, ou,
mais provavelmente, que nunca a havia descartado, já que a luta havia
ocorrido em minha mente.

“Tava sem pressa, amigão?” disse ele, mal-humorado. “Isso durou muito mais
do que da última vez.”

“Oh,” eu disse, já que não parei pra pensar na passagem do tempo enquanto
eu estava treinando com a djinn. “Quanto tempo faz?”

“Dez minutos, no máximo,” respondeu Caera, cutucando a lateral de Regis com


o joelho. “Você estava meio que parado aí, olhando fixamente para o vazio…
Foi meio assustador, na verdade.”

O cristal pulsou ao intervir, dizendo, “É uma pena que não tive energia para
continuar, mas manifestar o reino do pensamento é cansativo. No entanto,
acredito que você fez progresso suficiente para continuar treinando sua
técnica de lâmina de éter por conta própria.”

“E a minha avaliação?” Eu perguntei. Além de treinar e discutir como eu


poderia melhorar, ela não me deu nenhum outro teste.

“Um teste de caráter e força de vontade,” respondeu o cristal, iluminando-se.


“Você foi aprovado, por meu julgamento, e terá sua recompensa.”

Minha runa de armazenamento dimensional ficou quente, e me apressei em


retirar um cubo preto liso que tinha acabado de aparecer dentro. Como o
anterior, era muito mais pesado do que parecia. Uma parte de mim queria
imbuir éter nele imediatamente, entrando na pedra angular para ver o que
continha, mas resisti ao impulso.

Caera se inclinou, olhando para a relíquia. Entreguei a ela para examinar,


confiando que ela tomaria cuidado, e voltei minha atenção para o cristal.

“Você pode me dizer que tipo de percepção esta relíquia contém?” Eu


perguntei esperançosamente.

O cristal esmaeceu, pulsando de forma desigual. “Sinto dizer que não. A


descoberta é essencial para o aprendizado. Ao dizer a você qualquer coisa, eu
poderia inadvertidamente limitar ou mesmo corromper seu eventual
entendimento da runa divina.”

Pensei por um momento e perguntei, “E de onde vêm essas runas divinas?


Quem ou o que as dá a nós? Seu compatriota não foi capaz de responder.”

“Essa informação não é armazenada dentro deste remanescente.”

Eu não fiquei desapontado, já que esperava por isso. Além disso, eu tinha
muitas outras coisas com que me preocupar. O mistério das runas divinas teria
que ser resolvido algum outro dia.

“Sinto muito, não pensei em perguntar antes… Qual é o seu nome?”

O cristal parecia zumbir, sua luz tremeluzindo vagamente. Em um tom cru e


emocional, dizia, “Essa informação também não está armazenada neste
remanescente.”

“Há mais alguma coisa que você gostaria de me dizer antes de partirmos?”
Havia uma centena de perguntas que eu gostaria que o resto da djinn
respondesse, mas se estivéssemos com pouco tempo, eu não queria
desperdiçá-lo perguntando coisas que ela não poderia me dizer.

A luz lilás do cristal piscou silenciosamente por um minuto. “Não tente forçar
o mundo a se adequar às suas necessidades, mas você também não deve
aceitar as limitações deste mundo como ele é. Seu caminho é apenas seu, e só
você pode percorrê-lo. Eu sinceramente espero que minha criação o ajude
neste caminho. Ela atrairá o éter para você, tornando-o mais fácil de ser
absorvido, e o protegerá de quase qualquer ataque, mas não é impenetrável.
Um oponente forte o suficiente, com controle potente sobre mana ou éter,
ainda será capaz de feri-lo. Não os permita fazer isso.”

Eu assenti com a cabeça. “Obrigado.”

A ruína mudou ao nosso redor, apenas parcialmente se tornando a biblioteca


que eu tinha visto com o canto do olho enquanto navegava pela passagem em
colapso antes. Era como olhar para duas imagens transparentes colocadas
uma sobre a outra, tornando-se a biblioteca e a sala em ruínas ao mesmo
tempo.

Uma parede da biblioteca era dominada por um portal sombrio, cuja moldura
era um arco de prateleiras repletas de cristais. A biblioteca estava cheia de
pequenos movimentos, já que pequenas imagens passavam pelas muitas
facetas das centenas de cristais, mas achei impossível focar nelas, e quando
fui pegar um, minha mão passou como se não estivesse realmente lá.

De frente para o portal, perguntei, “Será que conseguiremos usar isso?” Mas
não houve resposta do cristal.

“Isso é muito estranho,” disse Caera, passando diretamente por uma mesa
ampla. Ela moveu a mão pelas costas de uma cadeira. “Uma ilusão?”

“Acho que nós somos a ilusão,” disse Regis, farejando ao redor. “Não há
nenhum cheiro aqui. Apenas uma leve insinuação de algo como ozônio… como
se não houvesse nada neste lugar. Ou como se não estivéssemos realmente
aqui.”

Eu retirei a Bússola. “A djinn vinculou e moldou a realidade com éter aqui, mas
está começando a entrar em colapso. Este lugar é como três quartos diferentes
empilhados um em cima do outro… mas os limites entre eles não são estáveis.
Precisamos ir embora.”

Segurando a relíquia semiesférica, eu coloquei éter nela. A luz nublada se


estabeleceu sobre o portal e a moldura se solidificou, tornando-se mais
concreta. Após o portal ficava meu quarto na academia, mas minha atenção
foi atraída para os cristais, que também estavam sólidos. As imagens passando
por suas muitas superfícies mostravam os djinn – sua raça óbvia pela variação
de tons de rosa e roxos em seu tom de pele e as runas de feitiço que
frequentemente cobriam a maior parte de seus corpos – realizando uma série
de atividades mundanas.

Muitas das facetas mostravam apenas rostos de djinn, falando. A maioria


parecia cansada e profundamente triste.

Timidamente, estendi a mão para levantar um cristal da prateleira. Ao meu


toque, uma dúzia de vozes sobrepostas – ou melhor, a mesma voz, mas dizendo
uma dúzia de coisas diferentes ao mesmo tempo – foram emitidas do cristal,
diretamente em minha mente. Instintivamente, toquei o cristal com éter, e as
vozes foram cortadas e as imagens desapareceram.

A curiosidade venceu a cautela – e uma pequena pontada de culpa – e eu


guardei o cristal na minha runa de armazenamento dimensional para mais
tarde.

Caera e Regis observaram isso em silêncio. Apesar de seu estoicismo e


resistência anormal, Caera parecia cansada. Regis, por outro lado, estava
ilegível, suas emoções escondidas até mesmo da nossa conexão, e ele
desapareceu pra dentro de mim sem uma palavra.

Com muito em que pensar e ainda mais a fazer, deixei meu parceiro sozinho
enquanto me lembrava da armadura de relíquia. O traje preto etéreo de
escamas evaporou, mas eu ainda podia senti-lo, esperando que eu o chamasse
novamente.

Compartilhando um aceno de cabeça e um sorriso cansado, gesticulei em


direção ao portal. “Vamos ver o que aconteceu na cerimônia de concessão.”

Capítulo 362
Destino Entrelaçado

NICO SEVER

Eu marchei da câmara de tempus warp principal do Taegrin Caelum através


dos corredores frios do castelo, movendo-me propositalmente em direção à
ala privada de Agrona. Os servos curvaram-se e pressionaram-se contra as
paredes enquanto passávamos, e até mesmo os muitos soldados de elite e
líderes militares de alto escalão se encolheram de medo de mim – como
deveriam. Eu não estava com vontade de ser perturbado ou interrompido; Eu
queria respostas e não seria dispensado até que o próprio Agrona as
entregasse para mim.

Eu subi as escadas em espiral para os aposentos de Agrona de dois em dois,


meu aperto firme em torno do pulso de Cecilia enquanto ela ficava atrás de
mim. As escadas se abriram em um corredor que conectava a parte principal
do castelo com os aposentos privados de Agrona. Ao contrário dos corredores
de pedra fria de onde acabamos de sair, esta câmara brilhava com uma luz
quente.

As paredes estavam cobertas de artefatos e lembranças das muitas vitórias de


Agrona. Espalhados entre as relíquias mortas e artefatos das famílias de Altos
Sangues favorecidas por Agrona estavam lembranças mais horríveis: uma asa
de fênix, montada de forma que se espalhava, exibindo as penas que ainda
brilhavam em vermelho e dourado; um cocar feito de penas de dragão
peroladas sobre um colar ornamentado de garras e presas; e um par de chifres
de dragão que brotavam da parede.

Eu parei abruptamente. O caminho a frente estava bloqueado.

“Estou aqui para falar com Agrona. Mova-se, Melzri.”

A outra Foice pressionou a mão contra o coração e deixou sua boca aberta
zombeteiramente. “Isso é jeito de falar com aquele que o treinou e cuidou de
você depois que trouxemos você de volta daquela ilhota de lixo, irmãozinho?”

Eu zombei, deixando uma intenção assassina vazar para o corredor


fantasiosamente decorado onde Melzri montava guarda. Embora eu tenha
olhado para ela, ela apenas sorriu de volta, parecendo exatamente como
sempre esteve: pele cinza-prateada perfeita, cabelo branco puro trançado em
uma trança grossa que descia por suas costas e lábios e olhos escuros que
combinavam com os dois pares de brilhantes chifres de ônix que brotavam de
sua cabeça e se curvavam fortemente para trás, um par menor diretamente
abaixo de dois chifres maiores.

“Eu não sou seu irmão,” eu disse irritadamente. “O que está fazendo aqui
mesmo?”

Ela me deu uma risadinha afetada, que ela sabia que eu odiava e fazia apenas
para me irritar. “Apenas alguns negócios de Victoriad. Viessa também esteve
aqui, mas saiu há poucos minutos, lamento dizer.” Seus olhos vermelho-
escuros, da cor de sangue coagulado, desviaram-se para se concentrar em
Cecilia. “Ah, o famoso Legado. A pele da garota élfica coube bem em você, devo
dizer. Esse cabelo é de morrer.”

Rosnei, me colocando entre Melzri e Cecilia. “Cale a boca e deixe-a fora disso.”

Senti Cecilia se mexer ao meu lado. “Nico, está tudo bem. Por que não vamos
apenas esperar em nossos quartos?”

O sorriso de Melzri se transformou em um sorriso predatório. “O que há de


errado, irmãozinho? Não está disposta a compartilhar seu brinquedo… embora
eu suponha que ela seja realmente o animal de estimação do Alto Soberano,
certo? O que te deixa tão… o quê? Babá dela? “Não…” Melzri cobriu a boca com
a mão enquanto dava outra risadinha. “Você é o brinquedo dela, eu acho…”

“Não me importo com o que você tem a dizer, Melzri,” eu disse, tentando soar
como se estivesse falando sério. Sem pensar, peguei a mão de Cecilia, mas ela
se esquivou e a raiva correu para fora de mim como o ar expelido de meus
pulmões.

Melzri viu, mas em vez de zombar de mim, ela franziu a testa desapontada e
deu um passo para trás para bloquear o caminho à frente. “O Alto Soberano
não está disponível para falar com você neste momento. Você pode esperar
aqui ou voltar para o seu quarto.”

“É urgente—”

Melzri fungou. “Eu só estou cuidando de você, irmãozinho. Se você invadir lá e


interromper a reunião do Alto Soberano com Dragoth e o Soberano Kiros, você
pode se encontrar com algo além de seus pequenos sentimentos feridos.”

Isso pegou minha atenção.

“O Soberano de Vechor está aqui?” Era raro os soberanos deixarem seus


domínios. Embora eu tenha desfilado diante de cada um deles quando fui
nomeado uma Foice do domínio central, nunca os encontrei novamente.

Melzri não se preocupou em responder, então eu virei minhas costas para ela
e caminhei até o canto mais distante da sala, próximo à porta da escada, onde
eu parei e olhei para um par de lâminas de rubi combinando, cruzado sobre a
crista do algum alto sangue extinto há muito tempo.

Os membros desse sangue ancestral viram o fim chegando para eles? Pensei
comigo mesmo. Sentiam-se seguros em sua nobreza, como se tivessem cavado
um lugar para si neste mundo, ou estavam sempre esperando que alguém
colocasse uma faca em suas costas?

Eu passei os eventos no Salão Supremo pela minha mente novamente,


tentando entender. Não havia uma única dúvida em minha mente de que este
Ascendente Grey, loiro de olhos dourados, era realmente meu Grey, apesar da
mudança na aparência. Mas eu não entendi por que Agrona não me disse o
nome antes.

Era algum tipo de teste?

Eu tinha sido testado com frequência, experimentado e levado ao meu limite.


Às vezes, essas provações eram dolorosas, até mesmo cruéis, mas sempre me
tornavam mais forte. Sempre havia um motivo.

Suspirei profundamente, não conseguindo entender.

Cecilia tinha me seguido, ficando ao meu lado, mas nunca me tocando, nunca
oferecendo conforto…

Precisando olhar para qualquer lugar, menos para Cecilia ou Melzri, deixei
meus olhos vagarem até o teto, onde um enorme afresco se estendia por todo
o corredor.

Ele mostrava a fuga dos Vritra de Epheotus, retratando os dragões do clã


Indrath como bestas monstruosas fervilhando em um céu vermelho-sangue,
enquanto as pessoas – tanto os menores quanto os basiliscos do Clã Vritra –
se encolhiam atrás de Agrona, exibido aqui em uma armadura de platina
brilhante e irradiando uma luz dourada que mantinha o dragão sob controle…

“Nico…?” Cecilia perguntou do meu lado. Eu podia sentir seu olhar em minha
bochecha, mas não me virei para olhar para ela. Eu não podia. Se eu virasse,
estava preocupado que eu podia quebrar.

Não deveria ter sido assim. Eu passei uma vida inteira tentando protegê-la,
primeiro de seu próprio ki monstruoso e depois de muitas pessoas que
procuraram usá-la, e esta nova vida foi dedicada a completar o ritual de
reencarnação e dar a ela uma segunda chance, mas quando eu finalmente
consegui, parecia que tudo havia dado errado para mim.

Agrona uma vez me bajulou da mesma maneira que agora tratava Cecilia… mas
ele se tornou desdenhoso e sarcástico em relação a mim. Ele tinha me enviado
para o Salão Principal sabendo quem este Ascendente Grey realmente era. Ele
deve ter feito isso, ou por que mais me escolheu para ir, e com tão poucas
informações? Mas não entendi suas motivações. Não foi nada mais do que um
jogo cruel?

Ele deveria ter me contado o que sabia ou suspeitava.

Minha mente se afastou desses pensamentos, rejeitando-os, porque


permanecer ali significava que eu teria que reconhecer o medo arrepiante que
estava roubando minha mente, corrompendo cada canto escuro dela. O medo
era inaceitável. Era fraqueza. As outras foices, os Vritra… todos podiam sentir
o cheiro, e mostrar medo aqui significava ser devorado vivo.

“Nico,” Cecilia disse novamente, movendo-se para estar na minha linha de


visão.

“O quê?” Eu disse, mais friamente do que pretendia.

“Como…” Ela parou, mordendo o lábio. Depois de vários segundos, ela respirou
fundo e tentou novamente. “Eu quero saber sobre minha morte.”

Minha mandíbula cerrou e eu cerrei meus dentes. Embora eu quisesse que ela
entendesse — queria que ela odiasse Grey tanto quanto eu — não consegui
falar.

“Experimentar a memória de uma morte pode ser bastante traumático,” disse


o rico barítono de Agrona no final do corredor, anunciando sua chegada
repentina. “Mas acho que você está pronta, Cecilia.”

Melzri deslizou para o lado, colocando as costas contra a parede e mantendo


a cabeça baixa. Os olhos vermelhos de Agrona observaram tudo dentro do
corredor com uma varredura fácil, um movimento plácido que quase parecia
preguiça, e ainda assim eu soube naquele instante que ele tinha lido tudo na
sala. Ele se movia com uma graça sem pressa, obviamente esperando que o
mundo parasse e esperasse por ele chegar. Ao passar por Melzri, ele estendeu
a mão e correu um dedo ao longo de um de seus chifres, mas sua atenção
estava inteiramente em Cecilia.

“Você realmente—” Minha boca se fechou com um olhar do Alto Soberano, meu
argumento rejeitado antes que pudesse deixar minha boca.

Eu queria envolver meu braço em volta de Cecilia, puxá-la para perto de mim
para que eu pudesse confortá-la e protegê-la, mas em vez disso, não fiz nada
quando Agrona se aproximou. Ele afastou seu cabelo cinza metálico e colocou
os dedos contra suas têmporas. Ela fechou os olhos enquanto seu corpo ficava
rígido.

Embora eu não pudesse experimentar diretamente o que o Alto Soberano


estava fazendo em sua mente, eu sabia muito bem. Agrona era um mestre na
manipulação direta da mente, capaz de remover e alterar memórias e até
mesmo de controlar diretamente o corpo de outra pessoa de forma limitada.
Agora, ele estava devolvendo a Cecilia a memória de sua morte… em apenas
alguns momentos, ela saberia.

Ela se lembraria.

Eu empurrei de volta a energia nervosa e culpada formigando pelo meu corpo.


Teria sido melhor se eu pudesse ter contado a ela toda a verdade desde o
início… mas era um risco muito grande. Eu sabia que Agrona tinha distorcido
as memórias que ela recebeu, destacando meu papel em sua vida enquanto
diminuía Grey. Ela apenas tinha que ter alguém neste mundo em que pudesse
confiar inteiramente, implicitamente. Ajustar essas pequenas memórias
garantia que ela tivesse isso… em mim.

Essa memória, porém, a memória de sua morte… mesmo eu não queria isso na
minha cabeça, e eu desejei, não pela primeira vez, que Agrona me ajudasse a
esquecer isso. Cecilia não deveria ter que se lembrar também, mas ela tinha
que ver, ela tinha que saber o que tinha acontecido. Com Grey vivo, era apenas
uma questão de tempo até que eles se cruzassem. Ela precisava saber quem
ele realmente era. Não importava quantos nomes ele tivesse assumido ou
quantas vidas tivesse vivido… por dentro, ele ainda era o mesmo Grey frio e
egoísta. O homem que escolheu a realeza em vez de seus únicos amigos –
família – no mundo.

Eu não o deixaria tirá-la de mim novamente.

Cecilia começou a tremer. Seus olhos permaneceram fechados, mas um


gemido de dor escapou de seus lábios. Seus joelhos ameaçaram ceder.

“Pare, ela está—”


Uma força esmagadora envolveu minha garganta, sufocando meu apelo.
Minhas mãos agarraram meu pescoço enquanto caia de joelhos, mas Agrona
nem mesmo olhou para mim.

Cecilia estava caindo, caindo para trás, mas ele a segurou, pegando-a e
segurando-a nos braços como uma criança. “Calma, Cecil. Eu sei, e lamento
sobrecarregá-lo com a verdade sobre sua morte. Descanse agora.” Agrona
abaixou a testa até tocar a de Cecilia. Houve uma faísca de magia e sua
respiração tornou-se uniforme e lenta, e os gemidos cessaram.

Melzri estava ao lado deles, e Agrona entregou Cecilia – minha Cecil – para a
Foice. “Leve-a para o quarto dela. Proteja-a até que ela acorde, depois volte
para Etril.”

“Como você comanda, Alto Soberano.” Então ela estava marchando e levando
Cecilia com ela.

Só quando eles se foram é que o punho invisível em volta da minha garganta


se soltou. Tossi e engasguei, caindo de joelhos, com falta de ar. Senti a aura
escura crescendo dentro de mim, com raiva e ansiosa para explodir, mas a
reprimi totalmente. Com lágrimas de raiva em meus olhos, eu olhei para
Agrona. Seu rosto estava impassível.

Depois que minha tosse acalmou, ele disse, “Você se esquece. Você está com
tanto medo de perder sua noiva pela segunda vez que o medo está rasgando
você por dentro.”

Eu me levantei, finalmente, e levantei meu queixo para encontrar os olhos de


Agrona. “Você a estava machucando.” Eu quase mordi minha língua pela
metade em frustração quando ouvi minha própria voz chorona. “Você jurou
que…”

“Nico.” Meu nome deixou os lábios dele como um dardo, e eu o senti me


perfurar em algum lugar dentro de mim. “Você entende o que é Cecilia? O que
é o legado?” Ele balançou a cabeça, as correntes decorativas penduradas em
seus chifres tilintando suavemente. Sua mão grande e fria roçou o lado do meu
rosto, mas não havia calor em seu olhar. “Claro que não entende. Ela é o futuro.
Mas você, Nico… há espaço naquele futuro – no mundo que construirei com
Cecilia ao meu lado – para guerreiros, mas não para menores fracos que
sucumbem inteiramente aos seus próprios impulsos.”

Tentei engolir. Ficou preso na minha garganta, quase como se eu estivesse


sendo sufocado de novo, mas era apenas minha própria raiva, medo e
decepção… Meus impulsos teimosos, pensei amargamente. Não era justo.
Minha raiva e fúria foram cultivadas desde que eu era uma criança,
aproveitadas e transformadas em uma arma – por Agrona. Era a pureza da
minha fúria que me fez poderoso. Sem isso…
Eu sabia que havia atingido o auge como mago, que não poderia continuar a
ficar mais forte, e obviamente Agrona sabia disso também.

Eu não tinha sido um guerreiro ou usuário de ki poderoso na Terra, não como


Grey ou Cecilia. Quando percebi meu potencial neste novo mundo, antes que
minhas memórias fossem arrancadas de mim e eu fosse transformado em
Elijah e mandado embora, fiquei em êxtase. Minha nova vida não seria nada
parecida com a anterior. Eu teria poder, força real – física, política e mágica, e
tudo por causa de Agrona. Ele me deu tudo que eu precisava – treinamento,
elixires, as runas mais fortes, um corpo capaz de canalizar as artes de mana
do tipo decadência dos basiliscos – para ter certeza de que eu seria forte.

Mas agora, aqueles com quem eu me importava ainda estavam indo além de
mim e me deixando para trás. De novo.

“Você sabe por que foi reencarnado?” Agrona perguntou, afastando-se de mim
para olhar para um dos enfeites pendurados na parede. “Você reencarnou
porque era próximo a ela. Ambos Você e Grey. Para maximizar o potencial da
reencarnação – para garantir que o Legado fosse capaz de se integrar
totalmente a este mundo – uma espécie de matriz tinha que ser formada entre
suas vidas. Eu precisava de âncoras para segurar e amarrar o espírito do
Legado. Isso é tudo que vocês são.”

Eu não pude deixar de balançar minha cabeça. “Não, você disse—”

“Você vê e incentiva as mentiras que conto a Cecília, mas não acha que eu faria
o mesmo com você?” Agrona sorriu, uma expressão indiferente e desarmante
que não mostrava culpa ou arrependimento. “Utilizando o que aprendi com as
Relictombs, olhei através dos mundos até encontrar o Legado e, ao lado dela,
você e o Rei Grey.”

Eu vacilei, minha raiva queimando com a referência à realeza de Grey, ganha


ao tirar a vida de Cecilia. “Mas você precisava de mim. Você próprio disse isso.
A reencarnação de Grey mostrou a você como me trazer aqui. Sem mim, você—

“Eu tentei a reencarnação em Grey primeiro, isso é verdade, mas sua alma
nunca chegou no receptáculo escolhido. Um simples erro de cálculo, pensei.
Ele ainda estava vivo, de volta ao seu mundo natal, a Terra, enquanto meus
preparativos para o Legado tinham assumido que uma alma havia passado de
sua bainha mortal.” Agrona inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, sua
língua passando por seus caninos afiados. “Nada disso importa agora, você
percebe? Há pouco ou nenhum ponto em discutir isso. Mas… suponho que
posso agradá-lo, Nico, nem que seja para vê-lo lutar para entender.”

Eu o encarei de volta. Suas palavras frias – não cruéis ou mesquinhas, mas


curiosas e humilhantes, como um pai desapontado se adaptando com as ideias
tolas de seus filhos – cortavam mais que qualquer faca, mas eu não
demonstraria isso. Eu também poderia ser frio e indiferente se quisesse.
“Conte-me. Eu mereço entender.”

Agrona encolheu seus ombros largos. “Embora eu possa explicar, não posso
fazer você entender. Pegando o que eu aprendi tentando despertar a
reencarnação do Rei Grey, comecei o processo de sua própria reencarnação a
seguir, no corpo de uma criança recém-nascida de uma família mágica
proeminente com algum sangue Vritra remanescente. Você chegou, como
planejado.”

Mantendo meu ritmo vazio de emoção, sentei-me em um banco almofadado


que corria ao longo de uma parede do corredor. Recostando-me na parede,
cruzei as pernas e esperei que ele continuasse.

“Mas eu precisava de duas âncoras,” continuou ele, “e Cecilia não era próxima
de mais ninguém. Tentamos alguns outros, mas nenhuma de suas almas era
forte o suficiente para reencarnar, então, por fim, deixei o experimento de
lado. Sem as âncoras apropriadas, a reencarnação do Legado era muito
arriscada; um vaso adequado não poderia ser forjado.”

Pensei na minha infância em Alacrya, no treinamento e na experimentação


sem fim. A ideia de ter Cecilia de volta me permitiu suportar qualquer tortura.
Embora eu não soubesse toda a verdade sobre minha reencarnação e
propósito, ela sempre foi a cenoura que Agrona balançava na minha frente,
prometendo que, se eu ficasse forte o suficiente, um dia ele seria capaz de
reencarná-la também. Essa promessa me impedia de enlouquecer.

“E quanto a mim, então? Minha infância? Tudo o que você fez comigo?”

“Nós não sabíamos quais benefícios sua reencarnação poderia trazer, então
eu o mantive aqui, ordenei que você fosse criado e treinado entre os Vritra.
Nós testamos você, experimentamos em você, e você provou que uma alma
reencarnada era de fato extraordinariamente potente. Isso manteve minha
esperança de que, algum dia, eu pudesse voltar ao meu plano, e o Legado seria
meu para controlar. E então…”

“Arthur…” Senti uma pontada ao dizer o nome, e as memórias de nosso tempo


juntos na Academia Xyrus vieram rapidamente à minha mente.

“Sim. Arthur. De alguma forma nasceu um Leywin, um continente de distância,


fora do meu domínio.” Agrona balançou a cabeça com aparente diversão,
fazendo seus ornamentos tilintarem novamente. “Ah, Sylvia. Sempre a mais
esperta. Escondida nas terras selvagens de Dicathen, mortalmente ferida e
ainda um espinho em minhas costelas.

“Não foi até que Cadell a encontrou que descobrimos a verdade. Tenho certeza
de que Sylvia pensou que tinha escondido o menino, mas no instante antes de
usar sua maldita arte de éter para congelar o tempo, ele viu. Quem mais
poderia ser? Que criança humana poderia ser tão importante que Sylvia
drenaria suas energias e se revelaria aos meus caçadores para salvá-la? Assim
que soube o que tinha acontecido, eu soube.”

“E então você retirou minhas memórias e me mandou para Dicathen, para


Rahdeas…” Minha vida como Elijah havia começado com os anões, uma lousa
em branco. Até meus verdadeiros poderes foram suprimidos e escondidos de
mim. Eu me perguntei, agora, o que eu poderia ter me tornado se aqueles anos
passados como Elijah não tivessem sido roubados de mim.

Eu ainda teria alcançado o ápice de minhas habilidades tão cedo?

Acho que não. Agrona roubou esse potencial de mim, tudo apenas para me
trazer para perto de Grey.

“Você não poderia ter me enviado como um espião? Por que…” Eu engoli em
seco. “Por que pegar minhas memórias? Por que tirar esse tempo de mim?”

“Você acha que poderia ter evitado atacar Arthur no momento em que o viu?”
Ele perguntou com um sorriso zombeteiro. “Você poderia ter forjado uma
amizade e um vínculo verdadeiros nesta vida, se carregasse o preconceito de
sua antiga vida?”

“Por Cecilia, sim. Qualquer coisa,” eu respondi, querendo desesperadamente


acreditar nisso, para Agrona estar errado.

“Sua raiva era uma variável indesejada. Por que eu correria um risco
desnecessário só por você? Tirando suas memórias – seu conhecimento de sua
própria reencarnação e nascimento em Alacrya – eu poderia trazê-los juntos
com mais segurança, as duas âncoras para a reencarnação do Legado.”

Coloquei minha cabeça em minhas mãos e imaginei arrancando os chifres de


Agrona de seu crânio e mergulhando-os em seu peito, de novo e de novo até
que não houvesse mais nada reconhecível dele. “Como você sabia que eu iria
encontrá-lo… Arthur?”

Uma mão pesada pousou no topo da minha cabeça e fechei os olhos. “Vocês
dois estavam presos pelo destino. Você, Grey e Cecilia formaram os três pontos
da matriz. Eu tinha certeza de que vocês encontrariam o caminho um para o
outro. Mas coloquei meus espiões em movimento, independentemente disso,
e eles expandiram nossa rede em Dicathen, e eu esperei.

“Passaram-se anos antes que ele ressurgisse em Xyrus. Mas nosso povo estava
bem posicionado ali para encontrá-lo, e uma vez que ele se revelou, não havia
como confundir os sinais: esgrima impecável, um mago quadra elemental,
despertado com apenas quatro anos de idade. E ele usava uma pena de
dragão em volta do braço.”

“A repentina insistência de Rahdeas para que eu me tornasse um aventureiro,


apesar da minha idade…” Eu murmurei, já entendendo o resto. “E foi a nossa
proximidade com a princesa élfica, Tessia Eralith, que a tornou o recipiente
perfeito para o retorno de Cecilia. Assim como na Terra… uma garota que amou
Grey primeiro, que só me viu porque eu estava ao lado dele …”

Os dedos fortes de Agrona se entrelaçaram em meu cabelo antes de repentina


e dolorosamente sacudir minha cabeça para cima para que eu ficasse olhando
em seus olhos escarlates. “O que você achou que fosse acontecer, Nico? Que
você e o Legado se retirariam para uma cabana na floresta e viveriam o resto
de seus dias despreocupados e em paz, brincando, copulando e esquecendo
tudo o que já tinha acontecido com vocês? Depois de dedicar tanto tempo e
recursos à reencarnação dela? Não. Você tinha um propósito, ao qual
obedientemente, embora sem saber, serviu.”

Ele me soltou e começou a se afastar pelo corredor, mas eu não tinha acabado
com ele ainda.

“E quanto a Grey?”

Agrona parou e se virou, franzindo a testa confuso, como se ele não pudesse
entender por que eu perguntaria sobre meu arquiinimigo. “Rei Grey… Arthur
Leywin… Ascendente Grey… seu nome não importa mais, porque ele não
importa mais. O papel dele está completo, assim como o seu. Eu suspeito que
ele sobreviveu porque minha filha de alguma forma se sacrificou usando as
artes do éter de sua mãe dragão, o que me serve muito bem. Sylvie sempre foi
o perigo maior do que seu pequeno amigo quadra elemental.”

“Mas como você sabia que este ascendente era o mesmo Grey? Por que…”
Respirei fundo, me segurando na imagem de Agrona profanada aos meus pés.
“Por que me mandar para o Salão Supremo se você já sabia?”

“Seris me disse há algum tempo,” Agrona disse indiferentemente, como se


estivesse se referindo a algum boato mundano e normal. “Ela pensava como
você – que Arthur era de alguma forma importante, que a notícia de sua
improvável sobrevivência deveria importar. Vocês, menores, e suas queixas
tolas. Desde que o lacaio de Dragoth foi morto em Dicathen – qual era o seu
nome? Uto? – tem sido, ‘Deixe-me matá-lo, Alto Soberano!’ ‘Oh não, não, por
favor, me dê a honra!’ Houve um tempo em que ele poderia ter sido uma
ameaça, talvez – quando ele tinha os asuras no bolso, por causa da minha filha
– mas esse tempo já se foi.”

Senti a base que sustentava toda a minha nova vida mudar e começar a
desmoronar sob meus pés. Em ambas as vidas, Grey foi meu amigo mais
próximo e o inimigo mais odiado. Ainda mais do que Cecilia, sua própria
existência mudava completamente o curso de minhas vidas. Eu não iria
simplesmente permitir que ele vivesse, sabendo o que ele tinha feito.

E o que ele ainda pode fazer, pensei. Enquanto Grey viver, Cecilia não estará
segura.
E ainda assim Agrona o dispensou, dispensou a nós dois. Por que ele não
entendeu a ameaça que Grey representava?

“Você está errado,” eu disse friamente, me levantando e me aproximando


lentamente do imponente lorde Vritra. Ele sorriu divertidamente. “Por favor,
permita-me caçar Grey, Alto Soberano,” eu disse, tentando não implorar, mas
muito ciente de como minhas palavras eram um eco de sua própria imitação
zombeteira. “Eu pensei que ele tinha morrido uma vez, mas de alguma forma
ele escapou da minha vingança. Deixe-me ter outra chance. Depois de tudo
que você fez comigo, você me deve isso. Você me deve Grey.”

O sorriso de Agrona se transformou em algo azedo, quase com pena. “Eu não
te devo nada. Mas se você deseja fugir e reconstituir sua vingança, fique à
vontade. Talvez matá-lo ajude a saciar seu eterno complexo de inferioridade.
Supondo que ele não te mate primeiro.” Agrona encolheu os ombros como se
ele realmente não se importasse de qualquer maneira. “Primeiro, porém,
retorne ao Legado e substitua Melzri. E não se esqueça. Cecilia é o futuro.
Certifique-se de que ela tenha tudo o que precisa.”

Agrona girou nos calcanhares e moveu-se com rapidez não natural pelo
corredor, deixando-me remoendo em minha decepção e raiva. Eu não preciso
de sua aprovação. Vou encontrar Grey. Eu vou encontrá-lo e vou matá-lo, e
desta vez, ele não vai voltar.

Capítulo 363
Resultados e Atenção

ARTHUR

O sol tinha acabado de nascer, cobrindo o campus com um manto de âmbar e


violeta. Eu me acomodei novamente no topo do telhado plano com ameias da
Torre Oca, saboreando a vista e a brisa fresca que eu não poderia ter em meu
quarto. Embora tivesse sido construída como uma torre de vigia há muito
tempo e mantida como um lugar para meditar, edifícios mais novos e
sofisticados haviam deixado essa estrutura praticamente abandonada.

Soltando um suspiro pesado, retirei a pedra angular e a virei, examinando o


cubo preto simples. Sua superfície era lisa e fosca; seu único traço físico
notável era o peso.

“Quem diria que essa coisa simples contém uma percepção capaz de
reescrever o mundo,” eu pensei. Mesmo sabendo de tudo o que eu fazia, ainda
achava difícil acreditar que algo tão pequeno e… tangível continha os segredos
que poderiam permitir que alguém obtivesse uma percepção sobre o próprio
Destino.

Regis saltou do meu corpo e cheirou a relíquia. “Podia haver pelo menos
algumas runas brilhantes ameaçadoras ou algo para lhe dizer o quão
importante é.” Virando-se de costas para mim, ele cruzou o telhado e colocou
as patas no parapeito. “De qualquer forma, divirta-se com isso.”

Seu corpo se tencionou para pular.

“Espere,” eu disse rapidamente. “Aonde está indo?”

Ele respondeu ainda de costas para mim, “Eu tenho meu próprio treinamento
para fazer.”

“O treinamento é separado da absorção do éter? Por que tão de repente?” Eu


perguntei, movendo-me para ficar ao lado dele.

Regis enrijeceu, mas se recusou a olhar para mim. “Porque. Fui trazido a este
mundo para ser sua arma — seu protetor — mas ultimamente parece que não
estou fazendo nada disso. Devíamos ser parceiros, mas você fica cada vez mais
forte aprendendo novos editos do éter. Eu não quero apenas assistir enquanto
a lacuna entre nós aumenta.”

Pela primeira vez em algum tempo, não sabia o que dizer ao meu companheiro.

Fiquei em silêncio, observando o lobo escuro, quando um pássaro de quatro


asas pousou no parapeito próximo, estalando o bico e nos observando com
expectativa. Retirei minhas rações embaladas – um hábito que mantive apesar
de raramente precisar comer – e tirei uma fatia de carne seca e apimentada,
jogando-a para a criatura. Ele saltou para o telhado de pedra e agarrou seu
prêmio antes de disparar, suas quatro asas levando-o rapidamente para fora
de vista.

“Eu… não percebi que isso te incomodava tanto,” eu finalmente concordei.

“Bem, você pode agradecer a Sylvie por essa atividade irritante de manter sua
bunda viva,” Regis zombou.

Soltei uma pequena risada e cutuquei o lobo das sombras. “Tudo bem, apenas
tome cuidado lá fora. O mundo é um lugar assustador para um cachorrinho.”

Ele virou seus olhos brilhantes para mim zombeteiramente. “Ha. Ha. Hilário.”

Então, em uma manobra que eu nem tinha certeza de que ele conseguiria,
Regis saltou da lateral da torre. Eu assisti enquanto ele despencava em direção
ao chão, chamas roxas se arrastando atrás dele como uma bandeira antes que
ele se tornasse incorpóreo e afundasse ligeiramente no chão.

Assim que ficou sólido novamente, Regis disparou para o norte, saindo do
campus em direção às montanhas. Ele, é claro, fez um esforço extra para
passar por uma pequena multidão de alunos, causando um coro de gritos,
antes de desaparecer de vista atrás de outro prédio.
Eu segui seu progresso por um tempo, ainda capaz de senti-lo mesmo
enquanto a distância entre nós aumentava. Ele parecia estar indo para as
montanhas. Eu me perguntei brevemente se a energia que nos unia o
permitiria ir tão longe, mas nós dois sentiríamos se ele começasse a alcançar
a distância máxima que ele poderia estar longe de mim. Já que não tínhamos
testado esse aspecto de nosso relacionamento desde a zona da ponte que
atravessei com os Granbehls, eu realmente não sabia até onde ele poderia ir.

Eu tenho certeza que ele vai ficar bem, eu disse a mim mesmo, me
concentrando de novo na razão pela qual eu havia subido nessa torre em
primeiro lugar.

O cubo preto caiu pesadamente em minhas mãos enquanto eu olhava para ele.
Um minuto se passou e depois outro enquanto eu analisava a pedra angular.

Com um suspiro, eu a armazenei de volta na minha runa dimensional. Eu


deveria estar mergulhando direto na pedra angular – treinando, absorvendo
éter, fazendo algo para ficar mais forte. Mas minha mente não estava lá. Eu
não conseguia dar meu máximo a todo momento acordado, ainda mais depois
de voltar de uma das ruínas dos djinn.

Em vez disso, retirei a relíquia de observação, traçando as facetas pontiagudas


enquanto pensava nas mesmas pessoas que me motivariam a seguir em frente.

Eu ativei a relíquia e fui transportado pelo mundo, ampliando até que eu me


encontrei na caverna subterrânea escura do santuário djinn. Ellie estava com
água até a cintura no riacho, espirrando água em Jasmine, que estava
segurando uma criança élfica que eu não conhecia como escudo, rindo.

Um nó se formou em meu peito quando notei minha mãe, Helen, e o resto dos
Chifres Gêmeos sentados ao redor de uma fogueira na beira do riacho,
observando com sorrisos cansados. Atrás de todos eles, Boo estava agachado
protetoramente sobre uma pilha de peixes brilhantes.

Eu cravei minhas unhas em minhas mãos, segurando o nó crescente na minha


garganta enquanto eu mesmo forçava um sorriso. Afinal, eles estavam todos
bem e riam e sorriam.

Isso bastava.

Com uma respiração estremecida e um sorriso vazio, eu me arranquei da


relíquia e a troquei pela pedra angular novamente.

O cubo preto do tamanho da palma da mão era muito menos denso em éter
do que a relíquia anterior, mas fora isso quase idêntico. “Tudo bem, vamos ver
o que você tem para mim.”

Liberando o éter do meu núcleo, canalizei-o pelo braço até a pedra angular.
Minha consciência parecia segui-lo enquanto eu era puxado para fora do meu
próprio corpo e para dentro da relíquia dos djinn. Primeiro, encontrei uma
parede de nuvens roxas, como esperado. A parede estremeceu com a minha
abordagem e passei facilmente.

Eu esperava encontrar outro quebra-cabeça, algo para manipular ou trabalhar


como na última pedra-chave, mas em vez disso…

Escuridão.

Escuridão completa e absoluta.

O pânico tomou conta de mim quando fui repentinamente sacudido de volta


para o telhado da torre, segurando o cubo preto, o suor escorrendo pelo meu
rosto e deixando minhas mãos escorregadias. Minha respiração veio
rapidamente, e então eu percebi o porquê: o interior da pedra angular parecia
exatamente como aquele lugar intermediário depois que meu corpo foi
destruído e antes de eu acordar nas Relictombs. Como se minha mente fosse
a única coisa que existisse em todo o universo.

Flutuando em um campo de preto opaco, eu me lembrei. Mas não é a mesma


coisa. Eu ainda estou aqui, desta vez. Nada mudou.

Respirando fundo várias vezes para me acalmar, tentei novamente.

Desta vez, a súbita ausência de qualquer coisa, exceto eu, foi menos
surpreendente, mas o interior da pedra angular não era menos assustador. Eu
vaguei por um tempo, sem saber se estava realmente me movendo ou apenas
tentando, nunca batendo em uma parede ou qualquer tipo de objeto mental,
como o mar de formas geométricas que eu tive que manipular dentro da pedra
angular de Requiem de Aroa.

Era esquecimento.

Mesmo o tempo não tinha significado dentro da pedra angular, e eu não tinha
como saber por quanto tempo fiquei à deriva. Em algum momento, comecei a
me preocupar se poderia perder minha aula, mas quando parei de canalizar
éter e deixei o espaço escuro, apenas alguns minutos se passaram. E então eu
me empurrei de volta e continuei a vagar pelas profundezas vazias.

Era como nadar no fundo do oceano, onde a luz não alcança. Para cima, para
baixo, para a esquerda, para a direita… a direção perdeu sentido, embora eu
continuasse a experimentar a sensação de movimento. Tentei empurrar com o
éter em direções aleatórias, ou ao meu redor, mas nada aconteceu. Eu tentei
me imbuir – ou o que quer que eu existisse naquele espaço – com éter, mas
novamente, isso não resultou em nada.

Então eu apenas me permiti flutuar. Meus pensamentos vagaram por um


tempo, depois pararam e foi como dormir.
A escuridão ondulou de repente, uma distorção visual dentro do vazio de preto
sobre preto, como se algo tivesse se movido dentro dele. Estendi a mão com o
éter, tentando interagir com o fenômeno, mas nada aconteceu.

A porta do telhado se abriu com um rangido, um ruído vago ouvido no limite


da minha consciência, e eu me afastei da pedra angular com irritação. Esse
lampejo de frustração rapidamente se transformou em curiosidade quando
um rosto familiar olhou para mim da porta.

“Valen?” Eu disse rigidamente, olhando para o jovem alto sangue, que estava
parado emoldurado na porta escura, uma mão ainda na porta. Seus olhos
permaneceram na pedra angular enquanto eu a devolvia à runa de
armazenamento extradimensional. “Você se perdeu?”

Os olhos de Valen varreram nervosamente o telhado da torre, mas ele não se


afastou da porta ou mesmo a deixou fechar. “Eu… hum…” Ele limpou a
garganta. “Eu estava procurando por você, professor.”

Eu levantei uma sobrancelha para o menino, franzindo a testa. “Como


descobriu que eu estava aqui?”

Valen olhou rapidamente para trás, para a escada da porta atrás dele, respirou
fundo e se afastou da porta, deixando-a fechar.

Ele limpou a garganta novamente antes de falar. “Acontece que encontrei Seth
no caminho para a sua sala de aula… acho que ele estava procurando por você
também, e ele mencionou que viu você vir aqui algumas vezes, então pensei…”
Ele estremeceu, deixando o pensamento morrer.

“Do que vocês precisam?” Eu perguntei asperamente, então me lembrei que a


cerimônia de concessão havia ocorrido hoje cedo. “Isso é sobre as
concessões?”

O jovem alto se recostou sobre a porta pesada, deixando sua cabeça descansar
contra ela com um baque sólido. Seus olhos escuros olharam para o céu claro.
Quando eu estava prestes a repetir minha pergunta, ele disse, “Recebi um
emblema.”

Um emblema era o segundo nível mais alto de runa para um mago alacryano.
Pelo que eu entendi, receber uma runa tão poderosa em uma idade jovem era
uma mudança de vida, mesmo para os altos sangues.

Eu levantei uma sobrancelha. “Tem certeza disso? Eu te parabenizaria, mas


você não parece muito satisfeito com isso.”

Valen soltou uma gargalhada sem humor. “Meu pai está em êxtase, é claro.
Meu sangue parece pensar que sou algum tipo de prodígio agora…”
Soltei um suspiro impaciente enquanto me recostava no parapeito em frente
a ele. “Bem, tenho certeza de que você não veio até aqui só para se gabar,
então diga logo.”

Ele coçou a sua nuca. “Eu simplesmente não tinha ninguém com quem
conversar. Meu sangue… eles não entendem. E meus associados—”

“Associados?” Eu zombei. “Essa é uma maneira estranha de se dirigir aos seus


amigos.”

Valen me lançou um olhar severo, quebrando um pouco sua hesitação


constrangedora. “Um Ramseyer não tem ‘amigos’ de acordo com meu pai.
Apenas servos, conhecidos, associados e aliados.” Após uma breve pausa, ele
acrescentou, “E inimigos, é claro.”

Eu balancei a cabeça em compreensão, pensando em Trodius Flamesworth e o


que ele estava disposto a fazer pelo bem do nome de sua família.

Eu não quero ser um prodígio,” Valen balbuciou com sua cabeça baixa. “Desde
que eu era um bebê, fui criado como um guerreiro, estudioso e líder, com a
expectativa colocada sobre mim desde o nascimento de que me tornaria o
Lorde Supremo do Alto Sangue Ramseyer. Nunca — nem mesmo uma vez na
minha vida — alguém me perguntou o que eu quero fazer ou me tornar.”

“E receber uma runa tão forte só terá exagerado essa expectativa,” eu


confirmei.

Ele acenou com a cabeça sem palavras enquanto se virava.

“Bem, então, deixe-me perguntar,” eu respondi. “O que você quer fazer?”

Valen desinflou e, pela primeira vez, parecia a criança que era, não alguém
tentando fingir que era um lorde supremo. “Não sei, mas… gostaria de ter a
chance de descobrir. Isso é tudo que quero dizer. Talvez… talvez o que meu
sangue deseja de mim seja exatamente o que eu quero fazer, a longo prazo.
Mas nunca vou me sentir assim, a menos que eu tenha algum tipo de escolha
no assunto.

“Eu quero explorar o mundo fora dos limites estreitos que meus tutores e
sangue estabeleceram para mim. Mas receber este emblema apenas parece ter
cimentado meu destino, em vez de me dar poder sobre ele.”

Ele me observou atentamente em busca de uma resposta, boa ou ruim. Talvez


ele esperasse que eu o repreendesse, lhe dissesse o quão afortunado ele era,
o encorajasse a fazer o que sua família desejava, mas eu mantive meu silêncio.

De repente, ele me deu um sorriso inesperado e seus olhos focaram em algum


lugar distante. “Sabe, meu tio estava na guerra em Dicathen e me contou algo
estranho. Lá, adolescentes – às vezes com apenas treze ou quatorze anos –
muitas vezes partem por conta própria para serem aventureiros, lutando
contra monstros e mergulhando em masmorras.”

Fui pego de surpresa pela repentina menção à Dicathen, lembranças de meu


tempo como o aventureiro mascarado, Note, vindo à tona. Parecia ter sido em
outra vida passada, agora. “Magos são menos comuns em Dicathen, e se tornar
um aventureiro é um ritual de passagem para muitos deles. Mas não é tão
diferente de como Alacrya trata os ascendentes. Ou assim eu ouvi,” eu
acrescentei rapidamente.

O sorriso de Valen demorou um momento enquanto ele pensava nisso, mas


lentamente sumiu de seu rosto. Por fim, ele acenou com a cabeça e disse,
“Obrigado, professor. Por ouvir. Não vou tomar mais seu tempo.”

Com uma reverência rígida, ele se virou para sair.

“Sabe, Valen,” eu disse a suas costas, minha voz suave, “só vai ficar mais difícil
ir contra a vontade deles conforme você envelhece. Se você realmente deseja
viver sua vida sem arrependimento, pode ser melhor decepcionar seus pais
agora do que mais tarde.”

Ele congelou, meio que se virando para olhar para mim, seu rosto inescrutável.
Finalmente, com um sorriso curioso, ele saiu, e a porta se fechou entre nós
novamente.

Relutante e incapaz de enfrentar as muitas linhas conflitantes de pensamento


emaranhadas em meu cérebro, retirei a pedra angular novamente e a ativei,
abraçando momentaneamente o espaço vazio que ela continha. Mas, em vez
de me isolar de meus pensamentos, ela os desnudou, deixando-me sem nada
além de minha própria mente em conflito.

Eu sabia que era injusto ao extremo culpar Valen ou seus colegas de classe por
qualquer coisa que tivesse acontecido em Dicathen. Eles eram tão vítimas da
guerra quanto meus amigos e família no meu lar, e ainda assim tinham
sido seus amigos e família matando os meus. Eles eram súditos de Agrona,
seus servos e ferramentas, cada um deles uma arma potencial contra mim. Ou
pior, contra minha mãe ou minha irmã.

Mas, cada vez mais, eu detectava uma hesitação nos alacryanos em seguir seu
suserano, especialmente entre os estudantes. No começo, eu presumi que a
falta de respeito de Caera pelos Vritra era algo único para ela — uma
manifestação de sua existência como uma Alacryana de sangue Vritra se
escondendo — mas meu tempo na academia me mostrou que isso não era
verdade. Além do desdém mal disfarçado do professor Aphelion pela guerra,
os sentimentos dos alunos ficavam bem claros em seus rostos toda vez que
Elenoir era mencionada.

Muitos jovens alacryanos poderosos perderam tudo naquele dia. E eu não acho
que todos eles culparam os asuras por isso.
Com um suspiro de frustração, saí da pedra angular e a coloquei de lado.
Estava claro que eu não iria chegar a lugar nenhum enquanto estivesse tão
distraído ou enquanto minha mente estivesse cheia de incertezas.

Da Torre Oca, eu vaguei pelo campus por um curto tempo antes de ir até a
minha sala de aula. Eu estava relativamente adiantado, mas meus
pensamentos se recusaram a se acalmar e eu não conseguia me concentrar
em nada, então aumentei a gravidade várias vezes no ringue de treinamento e
comecei a trabalhar o meu corpo. Embora eu teria aproveitado a chance de
invocar a lâmina de éter, não queria explicar a ninguém que acontecesse por
aparecer na sala de aula.

Não treinei por muito tempo.

O som da porta se abrindo e passos apressados descendo as escadas me tirou


de repetir uma das muitas formas que Kordri me ensinou.

“Você está aqui!” Mayla gritou, correndo em direção ao ringue.

Saltando rapidamente para fora da plataforma de treinamento, pressionei um


dedo contra sua testa para evitar que seus braços estendidos me envolvessem.

Mayla soltou um grito de surpresa enquanto abraçava o ar vazio entre nós.

“Boas notícias?” Eu perguntei, cruzando meus braços com indiferença


enquanto recostava contra a base da plataforma de treinamento elevada.

A garota da cidade de Maerin estava pulando na ponta dos pés quando disse,
“Sim! É doido demais. Inacreditável! Acabei de ser adicionada a todas essas
aulas de Sentinelas de alto nível e, aparentemente, as chances são tão baixas
que a Academia Central não tem nenhum registro de que isso tenha acontecido
antes, e eles estão se oferecendo para me isentar de minhas taxas de
participação e enviar este pagamento gigante para minha família em Etril se
eu concordar em fazer algum estudo individual com o chefe do departamento
de sentinelas aqui, e…”

Ela parou, percebendo a expressão de confusão crescendo em meu rosto. “Eu


consegui outro emblema!” Ela comemorou, sua voz aumentando uma oitava
em sua animação, saindo como um aperto. “Dois em seguida, e nas minhas
duas primeiras cerimônias de concessão. As chances são, tipo, próximas de
zero. Eles pensaram em me tirar desta aula para me concentrar nas coisas de
Sentinela, mas o diretor aparentemente realmente me quer no Victoriad
agora.”

Seu sorriso desapareceu e ela olhou para mim com óbvia preocupação. “O que
há de errado? Eu… pensei que você ficaria orgulhoso de mim. Eu disse algo
que não deveria, Professor?” De repente, ela deu um passo para trás e curvou-
se tão baixo que seu cabelo roçou o chão. “Eu peço desculpas.”

Enquanto ela falava, minha mente saltou dela para Valen, e depois de volta
para a cidade de Maerin, onde Mayla e o menino Belmun – as únicas duas
crianças com quem eu interagia intimamente – receberam runas
extraordinariamente poderosas. Eu suspeitava antes que minha presença
tivesse algo a ver com isso, mas não havia razão para pensar profundamente
sobre o processo de concessão. Eu não sabia o suficiente sobre como os
alacryanos alocavam magia para fazer suposições, além de supor que o éter
estava envolvido de alguma forma.

“Professor?”

Minha atenção voltou para ela, e eu percebi que estava com uma carranca
profunda e pensativa. Eu deixei minhas feições relaxarem. “Sinto muito, Mayla,
estava apenas pensando… mas tudo isso é uma grande mudança para você.
Como você está se sentindo?”

Quando Mayla recebeu sua runa original, ela foi recebida com emoções
conflitantes. Sua irmã não tinha runas e provavelmente passaria o resto de sua
vida na cidade de Maerin. Dois emblemas praticamente garantiam que Mayla
seria atraída para uma vida de aventura e perigo. Se ela não se tornasse uma
ascendente, ela certamente acabaria sendo convocada para a guerra.

E a próxima não será contra soldados de Dicathen, eu pensei, percebendo o


que as runas avançadas podiam significar para eles.

“Eu estava com medo, no começo,” ela admitiu. “Eu não queria sair de casa,
mas agora que estou aqui há um tempo…” Ela se virou em direção à porta,
onde o som de vários conjuntos de passos rápidos e várias vozes estavam se
aproximando. “Nunca me senti especial antes. Sempre achei que passaria o
resto da minha vida na cidade de Maerin, como Loreni.” Seu rosto caiu. “É
errado eu não me sentir culpada?”

“Não,” respondi, embora não tivesse certeza se acreditava em mim mesmo.


“Contanto que você não tenha deixado sua família para trás em seu coração,
então você não os abandonará. Tudo o que você faz agora é por eles, contanto
que essa seja a sua intenção.”

Lágrimas não derramadas brilharam nos olhos de Mayla, e ela balançou a


cabeça vigorosamente. “Estou… muito feliz que as Relictombs trouxeram você
para cidade de Maerin, Professor Grey.”

Eu acenei para ela sentar-se sem dizer nada. Ela se mexeu, depois se
aproximou. Eu pensei em pará-la novamente antes que ela pudesse envolver
seus braços em volta de mim, mas apenas suspirei, devolvendo o abraço com
um braço enquanto eu acariciava o topo de sua cabeça sem jeito.
Regis teria zombado tanto de mim se estivesse aqui…

Depois de alguns segundos, eu recuei e me virei para limpar minha garganta


enquanto o resto da classe começava a entrar, sua energia e entusiasmo
evidentes pelo barulho transbordante que eles produziram.

Os alunos explodiram em explicações ansiosas sobre as runas que receberam


durante a cerimônia de entrega. Cada membro da classe recebeu pelo menos
um brasão, como se viu, com um punhado de emblemas também. Até mesmo
Deacon se afastou de seus livros por tempo suficiente para se gabar de seu
novo brasão.

Passos agudos soando no corredor externo desviaram minha atenção da


conversa animada assim que o Professor Irongrove, Chefe do Departamento
de Combate Corpo a Corpo, empurrou a porta. Os alunos demoraram um pouco
para perceber, mas, um por um, eles se calaram de repente, sua atenção
voltada para o homem mais velho. Ele parou na porta, então deu um passo
para o lado para permitir que duas figuras familiares entrassem antes dele.

O cabelo característico de Briar – laranja desbotando para loiro amarelo


brilhante nas pontas – a tornava óbvia do outro lado do campus, muito menos
estando bem na minha frente, e eu imediatamente me perguntei o que a jovem
casca grossa estava fazendo. Seus olhos castanhos encontraram os meus
desafiadoramente enquanto ela descia os degraus rasos.

Atrás de Briar estava outro rosto familiar, embora tenha demorado mais para
reconhecê-la. Uma garota de cabelos escuros, altura e constituição
semelhantes às de Briar. Seus olhos rastrearam a sala de aula antes de se fixar
em mim, e então me lembrei: Aphene de Sangue Mandrick. Ela era neta do
Ancião Cromley, da Academia Stormcove. Tínhamos “brigado” durante a
cerimônia de concessão em Maerin.

O professor Irongrove parou no meio da escada e abriu os braços para


envolver a classe. “Táticas de aprimoramento de corpo a corpo! Nossa classe
estrela. Concorrentes de Victoriad, bem como os campeões da cerimônia de
concessão, devo dizer.”

Houve alguns gritos e uma salva de palmas dos alunos, aos quais Irongrove
respondeu com um sorriso bem-humorado. Quando a classe se acalmou, ele
encontrou meus olhos. “Professor Grey, desculpe me intrometer, mas eu
estava esperando uma conversa rápida antes de sua aula começar hoje?”

Eu acenei com a cabeça e fiz um gesto em direção ao meu escritório. Rafferty


e as duas jovens entraram no pequeno escritório e eu os segui. No momento
em que a porta se fechou atrás de mim, a sala de aula explodiu em barulho
novamente.

“Não vou mantê-lo ocupado já que você está se preparando para o Victoriad,”
Rafferty começou, seu tom profissional. “Na verdade, é por isso que estou aqui.
Como você não tem um assistente de sala de aula, o diretor queria garantir
que você recebesse ajuda. Um pouco de descuido que não foi visto antes,
honestamente…” Ele limpou a garganta e seu olhar caiu para o chão por um
instante. “Essas duas jovens muito capazes se ofereceram para acompanhá-lo
como professoras assistentes antes e durante o Victoriad. Mais alguns pares
de olhos – e punhos – para manter os alunos concentrados, se é que você me
entende.”

Eu lancei um olhar para Briar, meus lábios se curvando em um sorriso irônico.


“Descobriu uma maneira de chegar ao Victoriad afinal, hein?”

Rafferty olhou entre nós. “Pelo que entendi, você treinou ao lado de Briar do
Sangue Nadir antes. Ela é uma excelente aluna, garanto-lhe—”

Eu levantei minha mão. “Só brincando, professor. Ela é bem-vinda para ser
minha assistente.” Minha atenção se voltou para Aphene. “Estou mais curioso
sobre esta.”

Aphene ergueu o queixo e não pôde deixar de notar o leve tremor que a
percorreu. Quando nos encontramos pela última vez, eu tinha derrotado ela e
seu amigo – eu não conseguia lembrar o nome dele – em um duelo dois contra
um.

“O avô de Aphene buscou o patrocínio dos Denoirs para ela frequentar a


Academia Central,” Rafferty me informou. “Os Denoirs foram bastante
expressivos em sua ânsia de que ela recebesse um lugar em nossas fileiras, e
o próprio Cromley me procurou para dar uma recomendação para sua neta. Eu
ouvi a história do seu duelo em Etril. Com base apenas nisso – dois alunos
lutando contra um ascendente talentoso quase até que ninguém se movesse!
– Tenho certeza de que você concorda que ela seria uma excelente assistente.”

Minhas sobrancelhas se ergueram lentamente enquanto Rafferty falava, e eu


tive que reprimir conscientemente um escárnio surpreso com a menção de
nossa luta. A jovem tinha algum talento, mas se os Denoirs estivessem
envolvidos, parecia muito provável que ela seria chamada para me espionar,
assim como Caera. Rejeitar o trabalho tinha seu próprio conjunto de
desvantagens, no entanto, e parecia mais problema do que valia a pena.

Eu acenei com a cabeça em afirmação. “As duas estão bem. Ficarei feliz em ter
algumas babás por perto, enquanto me concentro nas coisas importantes.” Eu
reprimi um sorriso quando Briar e Aphene me lançaram olhares iguais. “Agora,
Professor Irongrove, tenho certeza que você tem coisas para fazer, porque eu
sei que eu tenho.”

O vazio estava sem nada e parado ao meu redor. A escuridão não ondulava
mais, e eu não senti mais nada – nenhuma presença, nenhuma energia –
dentro da pedra angular comigo.
Pulsos intermitentes de éter eram emitidos do meu corpo enquanto eu vagava
pela escuridão. Não houve resposta. Eventualmente, minha mente se afastou
do vazio e voltou para o mundo real.

A classe respondeu bem à presença de Briar e Aphene. Embora Briar estivesse


apenas em sua segunda temporada na academia, ela era mais velha do que a
maioria das outras – e tinha se beneficiado das aulas particulares de Darrin
Ordin – enquanto Aphene estava se aproximando de sua última temporada. As
duas jovens assumiram avidamente seus papéis, ajudando-me a preparar a
classe em uma série de novas formas, ramificações do treinamento de Kordri
que pensei que desafiariam eles até o Victoriad.

Foi então, quando me deixei distrair, que vi novamente: um movimento da


cortina ao vento através do espaço negro como tinta.

Uma batida na porta mais uma vez me interrompeu, mas eu ignorei, focando
nas ondulações que perturbavam o reino etéreo dentro da pedra angular. A
batida veio novamente, mais alta e mais insistente dessa vez.

Retirei-me da pedra angular e guardei-a. “Entre,” eu disse irritado.

A porta do escritório se abriu e Kayden Aphelion enfiou a cabeça para dentro.


“Eu não estou interrompendo uma reunião secreta de cabala ou algo assim,
estou?”

“Em que posso ajudá-lo?” Eu perguntei, impassível, sem vontade de trocar


piadas sem sentido.

Em vez de ficar desconcertado com minha atitude, o outro professor pareceu


considerar isso um desafio. Ele saiu mancando pela porta e se acomodou no
assento à minha frente. “Na esperança de convencê-lo a não tirar minha vida
por interromper esse encontro secreto, sem dúvida, da alta sociedade – havia
máscaras? Eu sinto que haveria máscaras. E criados escassamente vestidos. De
qualquer forma, onde eu estava?

“Certo,” disse ele, recostando-se na cadeira e lutando para cruzar as pernas,


um ato que exigia que ele levantasse fisicamente uma sobre a outra com as
mãos. “Direto ao trabalho, então. Achei que você pudesse se interessar em
saber que atraiu apenas um pouquinho de atenção para si mesmo, Professor
Grey.”

Ainda recostado no assento, recebi o olhar firme de Kayden. Seus olhos eram
afiados e vigilantes, não correspondendo exatamente ao sorriso irônico que
ele tinha. “Fale livremente, Kayden.”

Ele olhou ao redor do escritório, verificando os cantos de brincadeira, uma


pantomima zombeteira de busca por espiões. “A notícia do sucesso de sua aula
durante a cerimônia de concessão viajou rapidamente e muito. Você conhece
Sulla do Sangue Drusus, certo? O chefe da Associação de Ascendentes de
Cargidan? Ele é um amigo meu e aparentemente recebeu cartas de todos os
cantos de Alacrya perguntando sobre você, de onde você veio, etc.”

Ele esperou, me olhando com curiosidade.

“Há algum motivo para você estar me dizendo isso?” Eu perguntei.

Kayden encolheu os ombros com indiferença. “Como eu disse quando nos


conhecemos, você parece um homem que prefere manter seus negócios
privados. E, no entanto, parece que metade dos altos sangues e ascendentes
de Rosaere até Onaeka agora sabem seu nome. É sussurrado com frequência
em Vechor, em particular, de acordo com Sul.”

“E qual seria o motivo para isso?”

O sorriso de Kayden se aguçou. “Você deve saber tão bem quanto eu que cada
instante do Victoriad – cada nomeação, cada jogo, inferno, cada aperto de mão
ou a falta dele – é observado de perto, porque o próprio evento pode mudar a
face política de domínios inteiros. A mudança de retentor ou Foice pode fazer
com que sangues ascendam e caiam… a oportunidade perfeita para um
ascendente de um sangue desconhecido fazer uma ascensão violenta e
repentina pelos ranks de poder.”

Seu sorriso sumiu enquanto ele falava. “Mas não estou aqui para obter
respostas, nem mesmo para compartilhar minhas conjecturas. Só desejo que
você saiba – como seu auto-proclamado amigo – que está sendo observado de
perto e de muitos ângulos. Quer você busque a posição de retentor de Vechor
ou não, certamente gerou um turbilhão de boatos.”

Não pude evitar a risada surpresa que explodiu em mim, atraindo um sorriso
incerto de Kayden. “Esse é o rumor?” Eu disse, praticamente engasgando com
alegria. “Oh, perfeito. Perfeito.”

Kayden deve ter achado minha risada contagiante, porque ele começou a rir
também. “Então você não pretende desafiar para ser o retentor de Dragoth?”

Eu balancei minha cabeça e enxuguei uma lágrima do canto do meu olho. “Não,
nem um pouco.”

“Bem, lá se vai a aposta que planejei fazer. De qualquer forma, não vou prendê-
lo por mais tempo, só pensei—”

“Está tudo bem,” eu disse, minha irritação se acalmando. “Agradeço a


informação.”

Kayden mancou até a porta, movendo-se lentamente. Quando ele saiu do


escritório, eu disse, “Caera mencionou que você esteve na guerra. Devíamos…
trocar histórias, um dia desses.”
Ele faz uma pausa, seus olhos se arregalando ligeiramente. “Claro. Talvez me
convide para sua próxima reunião de cabala, e eu contarei a você tudo sobre
isso.”

Eu ainda não estava totalmente convencido de que ele não tinha visto nada
na noite em que Caera e eu roubamos a Bússola, mas se ele viu, ele a estava
mantendo isso escondido. Parecia mais provável que ele não tivesse visto
nada, considerando a escuridão e a chuva, e ele não trouxe aquela chance de
se encontrar novamente, ou mesmo perguntou como “Haedrig” tinha se saído.

Eu ainda estava considerando suas palavras quando deixei o prédio naquele


dia. Embora qualquer atenção fosse indesejada neste ponto, pelo menos a
nobreza havia inventado seus próprios motivos para minha fama, como eu
esperava. E se Agrona ou suas foices já haviam percebido minha presença, eles
não haviam feito a conexão entre minhas duas identidades. Se tivessem, eu
tinha certeza de que já teriam chegado em vigor.

Pensamentos de conflito com as forças de Agrona foram interrompidos


quando avistei uma cabeça familiar de cabelo azul marinho apenas algumas
dezenas de passos à minha frente. Eu me movi mais rápido para alcançar
Caera, mas diminuí a velocidade quando percebi que ela lia uma carta
enquanto caminhava, desconsiderando a multidão ao seu redor. Depois de um
momento, ela jogou o cabelo para fora e começou a rasgar a carta em pedaços.

“Mais ordens para me espionar?” Eu perguntei, fazendo-a pular. Ela se virou,


amassando os pedaços rasgados da carta em seus punhos. Suas bochechas
estavam ficando vermelhas rapidamente. “Eu estava brincando, mas… era, não
era?”

Ela olhou ao nosso redor para os alunos que passavam. “Sim e não. Era… um
convite para jantar. De novo. Já recusei, mas meus pais adotivos são
persistentes…”

As engrenagens em meu cérebro giraram enquanto eu pensava no conselho de


Kayden sobre todos os altos sangues ficando curiosos sobre mim. Com a
iminência de Victoriad, tive que considerar o que poderia acontecer depois
que meu tempo como professor terminasse. Pareceu apropriado começar a
plantar algumas sementes para o futuro.

Estendi um braço para Caera segurar, o que ela fez com um olhar desconfiado.
“Vou precisar de ajuda para escolher minha roupa se quiser estar na presença
de altos sangues tão renomados e poderosos como o Lorde Supremo e a Lady
Denoir.”

Capítulo 364
Plantando Sementes
Um caminho pavimentado de pedras vermelhas conduzia à propriedade dos
Denoir, flanqueado por arbustos de um metro de altura, que mesmo com o frio
das montanhas estavam florescendo com botões azuis. A mansão em si era
enorme, facilmente três vezes o tamanho da propriedade dos Helstea onde eu
morei em Xyrus, e os terrenos ao redor dela rivalizavam com os quintais do
palácio real da minha vida anterior.

Depois de parar um momento para me certificar de que Regis ainda estava


bem ao meu alcance, comecei a andar.

Artefatos de luz flutuantes começaram a piscar ao longo dos jardins conforme


nos aproximávamos, banhando o terreno com um brilho amarelo suave. Uma
das portas duplas enormes da propriedade se abriu e uma mulher em um
uniforme cinza-acinzentado saiu correndo, movendo-se rapidamente para nos
encontrar. Seu cabelo laranja brilhante estava preso em um coque, assim
como quando eu a vi do lado de fora do portal de descida das Relictombs.

“Senhora Caera!” ela disse calorosamente, parando na nossa frente e se


curvando. “E ascendente Grey.” Ela curvou-se novamente. “Bem-vindo à
propriedade dos Denoir.”

“Obrigado,” eu disse, retornando seu sorriso caloroso. “E você seria Nessa,


correto?”

A mulher ficou claramente surpresa, mas fez um esforço para esconder,


curvando-se pela terceira vez. “Você me honra.” Embora seu tom fosse firme,
eu podia ver um rubor vermelho se espalhando por suas bochechas.

“Não precisa ser tão humilde,” eu disse, gesticulando para ela se


endireitar. “Caera expressou que você é metade da razão pela qual ela
permaneceu sã sob o teto dos Denoir.”

Nessa corou ainda mais e pareceu ficar sem saber como responder. Caera a
salvou pegando o braço da mulher e indo em direção à casa.

Depois de alguns passos, Caera lançou um olhar para trás por cima do ombro
mostrando uma expressão brincalhona e repreensiva.

Ela tinha me preparado para essa noite, dizendo-me os nomes de todos e


explicando o protocolo, até mesmo delineando os prováveis tópicos de
conversa, caso seus pais adotivos tentassem me envolver em algum debate
político.

Caera provavelmente me via como uma espécie de bruto insociável que


preferia brigar com bestas mana a ser sociável – e acho que ela não estaria
totalmente errada – mas ela não sabia que eu tinha sido um rei na minha vida
anterior, o que me deu anos de prática em lidar com pessoas como os Denoirs.
Mais alguns criados esperavam no saguão de entrada. Embora a maioria
mantivesse os olhos baixos em uma reverência respeitosa, uma mulher mais
jovem deu uma espiada apenas para encontrar meus olhos. Eu dei a ela um
sorriso educado, e ela respondeu com um olhar em pânico antes de desviar os
olhos de volta para o chão. De lá, fomos conduzidos a uma sala de estar chique.
Móveis luxuosos estavam dispostos em pequenos grupos ao longo da grande
sala, que explodia de cor e possuía um bar inteiro que corria ao longo da
parede oposta.

De pé, ao lado do bar, estava Lauden Denoir, que conheci no auge do meu
julgamento. Uma mulher com um vestido marrom largo com cabelos brancos
brilhantes que caíam sobre os ombros estava recostada em uma poltrona – a
mãe adotiva de Caera, Lenora Denoir. O espadachim loiro, Arian, estava em um
canto.

Lenora se levantou graciosamente quando entramos, praticamente flutuando


para fora de sua cadeira e nos dando um sorriso bem treinado, mas
acolhedor. Seus olhos captaram tudo, desde minhas botas até meu cabelo
loiro cor de trigo em um único olhar, e eu praticamente pude ver as
engrenagens girando por trás de seus olhos perceptivos.

Nessa curvou-se e deu um passo para o lado. “Senhora Lenora do Alto Sangue
Denoir. Senhora Caera voltou. Ela traz consigo um convidado, o ascendente
Grey.” Então ela se endireitou e recuou até ficar quase pressionada contra a
parede ao lado da porta da sala de estar, ainda como uma estátua.

“Por favor,” Lenora disse, apontando para o sofá mais próximo. “Junte-se a
mim e ao meu filho para uma bebida enquanto esperamos pelo meu
marido. Ele deve descer a qualquer momento.”

Lauden levou dois copos do bar, um dos quais entregou à mãe, depois se virou
e estendeu a mão para mim. Eu peguei com firmeza, encontrando seus
olhos. “Que bom ver você de novo, ascendente Grey. Ou você prefere
professor, agora?” Suas maneiras eram impecáveis, mas não podiam esconder
completamente a tensão óbvia que ele carregava em seus ombros e
sobrancelhas.

“Por favor, Grey seria mais do que adequado”, respondi.

Lauden entregou o segundo copo para Caera. Assim que seu irmão adotivo deu
as costas para ela, ela torceu o nariz e pousou o copo disfarçadamente. Lauden
não pareceu notar quando ele voltou para o bar. “Bem, então, Grey, o que você
gostaria de beber? Meu pai tem muito orgulho da qualidade de nossa
coleção. Aqui você encontrará apenas as melhores e mais potentes bebidas,
feitas sob medida para serem apreciadas por aqueles com o metabolismo
elevado proporcionado pela força da magia.”

“É apropriado que eu espere pelo Lorde. Como manda a tradição, ele deve
tomar o primeiro drinque quando estiver bebendo com os convidados,” eu
respondi corretamente antes de piscar para ele. “Mas eu gostaria da
oportunidade de provar sua bela coleção, é claro.”

Lauden deu uma risada. “Um homem de cultura. Meu pai sem dúvida apreciará
sua adesão às normas sociais, embora eu espere que você me perdoe por
começar sem você.”

Passada essa formalidade, Lauden continuou a bater papo enquanto Lenora


questionava Caera sobre a academia. A Senhora Denoir e Caera mantinham
uma atitude rígida e profissional uma com a outra, e eu notei Caera olhando
em minha direção mais de uma vez.

Depois de alguns minutos, o barulho de passos pesados e sem pressa no


corredor anunciou a chegada do Lorde Corbett Denoir.

Todos nós nos levantamos quando o Lorde entrou na sala de estar, sem
demonstrar qualquer preocupação em me fazer esperar, uma tática comum
entre a nobreza. Seus olhos inteligentes pularam para cada um de nós, por sua
vez, embora tenham permanecido em mim por mais tempo. Seu terno branco
e azul marinho parecia custar tanto quanto as casas de algumas pessoas, e ele
usava um sabre de punho dourado ao lado.

Cruzando um braço sobre o peito com o punho logo abaixo do ombro e o outro
atrás das costas, me curvei ligeiramente, apenas uma inclinação suave das
minhas costas. Era o tipo de reverência que alguém fazia para mostrar
respeito, mas não subserviência. Esse simples gesto – que deixava claro que
eu considerava nossas posições iguais – acendeu as perguntas em sua mente,
uma vez que os Denoirs já suspeitavam que eu era secretamente um Alto
Sangue.

“Bem-vindo à nossa casa”, disse ele, imperturbável, antes de se mover para


trás de onde sua esposa estava sentada e pousar a mão em seu ombro. “Este
encontro demorou muito para acontecer, não foi, meu amor?”

“De fato,” ela respondeu, sorrindo para ele. Para mim, ela disse: “Você nos
proporcionou uma experiência tão nova, já que nenhum de nós está
acostumado a ver nossos convites rejeitados”.

Sua execução foi perfeita – provocando educadamente com farpas escondidas


entre suas palavras e uma lâmina em seu sorriso.

“Você tem minhas desculpas”, respondi com um sorriso cansado. “Era meu
desejo egoísta de expressar aos outros professores da Central Academy que
eu havia merecido um cargo lá por meu próprio mérito.”

“Vamos lá, nós só estamos brincando,” Lenora disse com uma risada. “Apesar
de tudo, Corbett e eu estamos bastante curiosos sobre você. Por que não
vamos para a sala de jantar, e você pode nos contar sobre si durante um
maravilhoso jantar que nossos cozinheiros prepararam em sua homenagem?”
Levantando-me, estendi o braço para a matrona Denoir, que o segurou com
um sorriso curioso. “Mostre o caminho, Senhora Denoir,” eu disse
educadamente.

Ela o fez, com o resto dos Denoirs nos seguindo. Corbett falou baixinho com
Lauden sobre alguns negócios enquanto Lenora exibia a mansão, me contando
sobre os muitos itens em exibição por toda a propriedade, incluindo várias
pinturas e tapeçarias muito finas, e pelo menos uma dúzia de artefatos
diferentes recupereados das Relictombs.

Uma longa mesa dominava a sala de jantar, com capacidade para pelo menos
trinta pessoas. Haviam três lustres pendurados em um teto alto, enchendo o
espaço com uma luz brilhante. Outro pequeno bar corria ao longo de um lado
da sala, enquanto o outro estava coberto por armários e prateleiras cheias de
pratos finos e talheres em dezenas de estilos diferentes. Era claramente uma
coleção valiosa e provavelmente algo de que Lenora tinha muito orgulho, um
fato que arquivei para nossas conversas.

A mesa já estava posta e Lenora me conduziu até a outra extremidade,


gesticulando para que eu me sentasse à esquerda da cabeceira da mesa, onde
o Lorde Denoir se sentou um momento depois. Lenora sentou-se à minha
frente, Caera à minha esquerda e Lauden à sua frente, ao lado de sua mãe. Era
uma posição de honra estar sentada à esquerda do Lorde, que presumi ser
normalmente reservada para seu filho.

Lenora continuou a conversar enquanto os canapés eram servidos, e eu sorria


e respondia entre mordidas de figos apimentados cobertos com pedaços
crocantes de carne. A conversa mudou para Corbett por causa de um aperitivo
de cogumelos recheados, mas ele evitou qualquer assunto sério, expressando
interesse em minha aula na academia e me contando sobre seu interesse por
literatura enquanto se gabava sutilmente das doações dos Denoirs para a
biblioteca da Academia Central. Caera manteve uma espécie de silêncio frio,
não interferindo na conversa a menos que ela fosse abordada diretamente.

Só quando a salada chegou é que a conversa mudou para algo mais sério.

“Então, Grey,” Corbett começou, enfiando o garfo na tigela, “eu esperava


aprender mais sobre o seu sangue. Não é tarefa fácil, garantir uma posição na
Academia Central. Isso fala muito bem das conexões de seu sangue.”

Eu dei ao homem um largo sorriso e encolhi os ombros com


indiferença. “Lamento desapontar, mas não há mistério a descobrir, sejam
quais forem os rumores que possam estar circulando. Meus pais são de uma
aldeia remota e ambos eram pessoas simples. Meu pai foi morto na guerra.”
Eu disse passivamente, minha voz sem emoção. “Depois que a guerra acabou,
eu me voltei para as Relictombs e me tornei um ascendente, tentando cuidar
de minha mãe e irmã.”
Corbett ouviu como se só acreditasse em mim pela metade, mas a mão de
Lenora se moveu para cobrir a boca. “Muitas vidas se perderam lutando contra
aqueles selvagens em Dicathen.”

Lauden resmungou tristemente, afastando-se da conversa e dando um longo


gole em seu copo.

Vendo uma oportunidade de tomar as rédeas da conversa, eu disse: “Verdade,


muitos, especialmente em… como se chama? Floresta mágica de Dicathen?”

“Elenoir”, respondeu Lauden, olhando para a bebida com uma expressão


azeda.

“É isso”, eu disse, batendo os nós dos dedos na mesa de madeira. “Pobres


almas. Embora, pelo que Caera me disse, o Alto Sangue Denoir não estivesse
presente lá.”

Corbett e Lenora trocaram um rápido olhar. “Não.” Respondeu Corbett após


um momento. “Reconheci que já tínhamos tudo o que precisávamos em
Alacrya. Manter um controle em uma terra tão distante, e ainda cheio de
turbulência, parecia uma complicação desnecessária.”

“Uma sábia decisão. Muitos outros não foram tão sábios.” Eu me virei para
Lauden. “Você perdeu pessoas em Elenoir?”

Ele inclinou o copo, terminando sua bebida em um gole. “Muitos dos que foram
a Elenoir para se estabelecer eram herdeiros de sangue, ou segundos filhos. Eu
conhecia muitos deles. Alguns sangues inteiros – aqueles que mais se
dedicaram a este empreendimento – foram exterminados, privando Alacrya de
muitas vozes poderosas e acabando com muitas linhagens potentes. E me
pergunto o que nós realizamos—”

“Lauden”, Corbett repreendeu, sacudindo sutilmente a cabeça para o


filho. “Este não é o momento para tal conversa. Grey, espero que se retire
comigo para o meu escritório depois do jantar. Uma boa lareira e um jogo de
Disputa dos Soberanos formam um cenário melhor para uma discussão
política do que a sala de jantar, você não concorda?”

Embora desapontado – eu queria me aprofundar mais nessa tensão que


Lauden exibia, para ver o quão profundo ela era – eu apenas balancei a cabeça
educadamente, e a conversa voltou a assuntos mais mundanos pelo resto do
jantar.

Depois de comermos tanta carne assada e tortas de frutas quanto era educado
– deixando a última mordida em nossos pratos para mostrar que estávamos
bem alimentados e não éramos gulosos – a mesa foi tirada e Lenora levou
Caera embora.
Lauden recostou-se na cadeira e me lançou um olhar curioso. “Sua fama
parece estar subindo rapidamente, Grey,” ele disse com a fala apenas
levemente arrastada, mesmo após vários copos de licor âmbar forte. “Boa
sorte no Victoriad. É o lugar para cimentar sua posição entre a nobreza – ou
para ver a si mesmo cair a toda velocidade de volta ao chão.”

“Fale com sua mãe e irmã antes de se retirar,” disse Corbett com firmeza,
olhando fixamente para o filho. Ele estendeu a mão para uma porta lateral da
sala de jantar. “Grey?”

Sem dizer nada, segui Corbett pela casa e subi até um escritório. Eu conhecia
pessoas cujas casas inteiras caberiam neste escritório de dois andares, e havia
tantos livros quanto a biblioteca da cidade de Aramoor. A lareira já estava
acesa.

“Sente-se”, disse Corbett, apontando para uma cadeira de couro muito fina
apoiada ao lado de uma mesa de mármore esculpida, que tinha um tabuleiro
de jogo gravado na superfície e peças já dispostas. “Presumo que você joga?”

Eu concordei com a cabeça, então dei uma espécie de encolher de ombros


impotente. “Devo dizer que joguei. Caera gosta de me lembrar que ela se
beneficiou de muito mais prática e treinamento do que eu.”

A expressão de Corbett não mudou quando ele serviu mais uma bebida para
nós dois e se sentou à minha frente. Tomei um gole do copo
oferecido. Queimava ao descer, mas se acomodou quente e pesado em meu
estômago. Um pouco da minha surpresa deve ter passado para o meu rosto
porque os lábios de Corbett se contraíram em um sorriso vazio.

“Bafo do Dragão,” ele anunciou. “Não estou surpreso que você nunca tenha
tomado. É feito com uma especiaria rara que só cresce ao longo das margens
do Redwater perto de Aensgar. Os guerreiros de Vechor costumam beber antes
de uma batalha.”

“E é isso que vai acontecer?” Eu perguntei, descansando meu copo na borda


do tabuleiro. “Uma batalha?”

O breve brilho de um sorriso sem humor voltou. “Isso depende da sua


habilidade.”

Ele me deu o primeiro movimento e eu comecei o jogo de forma conservadora,


movendo um escudo para o meio do tabuleiro. “Os eventos em Elenoir
deixaram um gosto amargo pros Altos Sangues em relação à
guerra?” Perguntei em tom de conversa, embora observasse o rosto de Corbett
com cuidado.

Ele respondeu de forma mais agressiva do que eu esperava, desenhando um


lançador ao longo da borda do tabuleiro. Era a mesma manobra de abertura
que Caera costumava usar. “Meu filho é obstinado e tem motivos para estar
frustrado. Vários de nossos amigos e aliados foram perdidos no ataque dos
asuras.”

“Embora, para ser justo, muito mais vidas de dicatheanos devam ter sido
perdidas no ataque do que as de alacryanos,” eu apontei, continuando a
avançar com meus escudos.

“Mais uma razão para abraçarem o Alto Soberano”, grunhiu ele, de olho no
jogo. Mesmo assim, havia algo nas rugas ao redor de seus olhos e em sua
postura rígida que me dizia que ele achava o assunto Elenoir e todas aquelas
mortes incômodas.

“Talvez,” eu respondi, fingindo pensar sobre meu próximo movimento


enquanto tomava outro gole do licor ardente. “E, no entanto, não posso deixar
de me perguntar… se isso significasse evitar mais conflitos entre os asura,
valeria a pena desistir de Dicathen?”

Ele franziu a testa profundamente, o que destacou suas rugas e o fez parecer
cerca de uma década mais velho. “Você quer dizer retirar as forças de lá e
abandonar o continente?” Ele esfregou o queixo pensativamente. “Essa é uma
proposta arriscada. O golpe para a moral—”

“Deixe-me colocar de outra forma,” eu disse, arrastando um atacante pelo


tabuleiro para tirar seu lançador. “Se o custo da guerra – o custo em vidas de
alto sangue – tivesse sido esclarecido desde o início, eles ainda a teriam
apoiado?”

Fizemos alguns movimentos em silêncio pensativo, embora os olhos de


Corbett continuassem a desviar-se do tabuleiro para mim. Depois de um ou
dois minutos, ele disse, “É comum para os sangues inferiores superestimar o
poder e a autoridade dos altos sangues.”

Eu reprimi um sorriso ansioso por seu deslize. “Certamente, se a maioria dos


altos sangues falasse como um, os Soberanos—”

“Você teve muito sucesso, e muito rápido”, disse Corbett, afastando as mãos
do tabuleiro e recostando-se na cadeira. “É evidente na maneira como você
fala, como se você não tivesse nenhuma experiência com os níveis mais altos
da política em Alacrya. Você deveria ter cuidado, Grey. A palavra errada no
ouvido errado pode fazer com que você morra.”

Como se para enfatizar seu ponto, ele passou um atacante por uma fresta em
meus escudos e matou um de meus conjuradores. Isso deixou a peça do
atacante aberta para um contra-ataque, mas enfraqueceu o círculo interno de
defesa em torno da minha sentinela. “Ir com pressa, ser ousado… foi isso que
aqueles sangues que morreram em Elenoir fizeram. E agora muitos deles são
menos do que os mais baixos sem nome.”
Quando respondi matando o atacante, notei que os nós dos dedos de Corbett
estavam brancos quando ele pegou a peça, apertando-a entre os dedos como
se pudesse esmagar a pedra esculpida em pó.

“Por que incentivar um investimento tão pesado em Elenoir se ainda existia


tanto risco?” Eu perguntei, meu tom inocente e despretensioso.

Corbett largou a peça com um tilintar agudo e olhou nos meus olhos. “Talvez
os Soberanos não achassem que os asuras tinham coragem de quebrar o
tratado…” Mas a verdade estava lá, brilhando como fogo em seus olhos. Ele
não acreditava que os Vritra — as próprias divindades — pudessem ser pegos
tão desprevenidos. O que significava…

“Você acha que foi uma armadilha,” eu disse categoricamente, uma declaração
de fato. “Isca, para fazer os asuras quebrarem o tratado.”

Corbett ficou tenso. “Você está ciente da relação entre Caera e os Denoirs,
correto?”

Eu concordei com a cabeça.

“Você sabia que, se falharmos em nosso dever para com os Vritra e Caera, o
Alto Sangue Denoir poderia ser despojado de todos os títulos e terras? Lenora
e eu podemos ser executados.”

Novamente, eu balancei a cabeça em resposta.

“Somos um dos Altos Sangues mais influentes no domínio central, até mesmo
em toda Alacrya,” disse ele, embora não houvesse presunção na declaração.
“E, no entanto, um passo em falso significaria nosso fim repentino e violento.
Não servimos reis ou rainhas, como fazem os dicatheanos. Nossos senhores
são os próprios deuses, e todos nós estamos sujeitos inteiramente à sua
vontade, desde o mais baixo sem nome até o mais rico alto sangue. Você faria
bem em não esquecer esse fato, Grey. Não se considere intocável porque
encontrou algum sucesso.”

Ponderando isso, fiz uma série de movimentos rápidos para encerrar o jogo.
Embora eu tivesse certeza de que poderia ter terminado com uma vitória
verdadeira, levando minha sentinela até a fortaleza de Corbett, meu gosto e
paciência para o jogo haviam desaparecido. Além disso, duvidava que
ganhasse mais alguma coisa de Corbett ou de sua família naquela noite.

Quando meu lançador finalmente matou sua sentinela, ele deu um suspiro
resignado e ergueu o copo para mim. “Diga-me, Grey, geralmente é depois que
você a derrota que Caera o lembra das aulas particulares dela neste jogo?”

Eu deixei um sorriso genuíno aparecer através da calma estoica que eu


mantive durante a maior parte da nossa conversa. “Como você adivinhou?”
Assim que voltamos ao térreo, Caera me pegou pelo braço. “Grey, temo
que realmente devêssemos ir. Ainda há muito a fazer na preparação para o
Victoriad.”

“Você está certa, claro. O Lorde Denoir e eu…”

“Por favor, me chame de Corbett,” disse ele, seu tom mudando visivelmente
para algo que se aproximava de amizade. Ele me deu um tapinha no ombro e
disse, “Gostei do nosso jogo, embora tenha medo de que você tenha me
distraído com uma conversa — intencionalmente, eu imagino”, disse ele,
lançando-me um olhar penetrante. “Você me deve uma revanche, o que, é
claro, significa que você e Caera terão que voltar para jantar em uma data
posterior.”

Caera tinha um olhar descarado de surpresa direcionado a seu pai adotivo, e


até Lenora pareceu surpreendida por um momento antes de deslizar o braço
ao redor do Lorde. “Eu até diria que você deve isso a nós por nos fazer esperar
tanto tempo!” Lenora e Corbett riram baixinho.

Eu me curvei novamente, um pouco mais profundamente do que antes.


“Obrigado, tanto pela boa comida quanto pela conversa estimulante.”

Caera olhou para mim como se um terceiro olho tivesse acabado de crescer na
minha testa. “Ok, nós vamos indo, então… tchau.”

Com isso, os Denoirs se despediram de nós, e Lady Lenora abriu a porta pra
nós, ao invés de Nessa. Caera deu uma despedida superficial antes de nos
conduzir rapidamente para fora da propriedade e para a rua, onde poderíamos
fazer sinal para uma carruagem nos levar de volta ao terreno da academia.

“O que, em nome do Vritra, você fez com Corbett?” ela disse, quando
estávamos bem longe das portas.

“O quê?” Eu perguntei inocentemente, minha mente já organizando tudo que


Corbett tinha me contado.

“Eu juro, você é como uma linda e misteriosa cebola,” ela disse ironicamente.
“Cada desafio que enfrentamos juntos revela mais uma camada sua. Como
exatamente que um auto-proclamado ninguém, vindo da periferia de Sehz-
Clar, aprende a se socializar com altos sangues?” Antes que eu pudesse
responder, ela continuou. “Não, esquece. Sinceramente, não quero saber.”

Eu ri baixinho enquanto jogava sobre os ombros a capa branca que Kayden


tinha me dado. “Tive motivos para aprender muitas habilidades. Uma sala de
jantar pode ser tão mortal quanto qualquer campo de batalha.”

“E sua língua é afiada como uma espada,” ela zombou quando uma carruagem
puxada por um lagarto laranja brilhante parou para nós.
Um vazio escuro.

Nada além disso.

O que eu não estou entendendo? Eu me perguntei enquanto nadava pelo reino


da pedra angular. Tem algo aqui. Eu senti isso.

O verdadeiro problema era o contexto. Os djinn transmitiam seu conhecimento


de uma forma esotérica, projetada para despertar compreensão, e não para
permitir a memorização ou a construção de uma habilidade. Eles
provavelmente tinham uma compreensão instintiva de seus próprios métodos
de ensino, da mesma forma que eu fui capaz de ler enciclopédias e tomos
sobre magia quando nasci neste mundo. O método Dicatheano de ensino e
aprendizagem operava nos mesmos princípios da Terra. Mas as pedras
angulares dos djinn não.

E ainda assim eu havia compreendido uma parte do Requiem de Aroa desde a


primeira pedra angular –

Uma ideia me ocorreu, fazendo meu coração disparar. Eu me retirei da pedra


angular e segurei o cubo preto. Se estava danificado de alguma forma, talvez…

A runa dourada ganhou vida nas minhas costas, brilhando através da minha
camisa, e partículas de ametista de energia dançaram e saltaram ao longo do
meu braço, fluindo para a pedra angular até que enxamearam sobre ela como
vaga-lumes roxos.

Mas elas não pareciam estar fazendo nada.

Não havia rachaduras para entrar, nenhum dano para consertar. Mais
frustrante ainda, eu não sabia se a runa divina não estava funcionando porque
não havia nada para consertar, ou porque ela não poderia consertar o dano –
tipo o portal de saída na zona da Três Passos.

Amaldiçoando me entendimento incompleto da runa, eu a liberei, e as


partículas piscaram e desapareceram.

Vários minutos depois, eu ainda estava sentado lá olhando para o cubo preto
quando a porta do meu escritório se abriu de repente, e Enola marchou para
dentro e se sentou na cadeira do outro lado da minha mesa.

“Claro, pode entrar,” eu disse, colocando o cubo pesado na minha mesa e


olhando para a jovem precoce. Ela estava olhando para suas mãos, que
estavam apertadas juntas em seu colo. Minha voz suavizou um pouco quando
continuei. “Você não apareceu na aula depois da concessão. Você recebeu uma
runa tão poderosa que te deu o direito de faltar o resto das aulas?”

Ela esfregou o rosto, em seguida, passou os dedos pelos cabelos curtos e


dourados. “Não. Minha matrona de sangue me chamou de volta para nossa
propriedade por alguns dias,” ela disse rigidamente. “Para discutir o meu
futuro.”

Quando me tornei um conselheiro de adolescentes? Quase disse as palavras


em voz alta, mas mordi minha língua.

“Eu recebi uma regalia,” ela disse, sua voz rouca com emoção contida. “A única
na academia a receber uma nesta cerimônia, mesmo entre os alunos mais
velhos.”

Soltei um assobio baixo. “Isso é sério.”

Com um bufo, Enola se levantou repentinamente, quase derrubando a cadeira,


então estremeceu e a colocou de volta no lugar. Ela ficou atrás da cadeira, as
mãos apertando o encosto. “Meu sangue já arranjou um posto para mim em
Dicathen depois desse semestre. Eu deveria ter mais dois anos e meio de
academia, mas eles estão me movendo como uma peça em um tabuleiro de
Disputa dos Soberanos, usando minha regalia para elevar o status do nosso
sangue.”

“E colocá-la numa posição central caso o conflito com os asura se intensifique


ainda mais”, indiquei cuidadosamente. Pensei em dizer mais, dar-lhe um
conselho ou uma palavra de conforto, mas não consegui consolá-la; ela estava
sendo enviada através do mar para ajudar a manter meus amigos e familiares
sob controle.

Enola ergueu o queixo com orgulho. “Não tenho medo de ir nem nada. Sou
uma guerreira. Mas…” Ela engoliu em seco. “Será que ainda é uma guerra, se
estamos lutando contra Asura? Parece mais um extermínio para mim. Com
regalia ou não, como soldados podem fazer alguma diferença em tal conflito?”

Eles não podem, eu queria dizer. Aldir havia queimado uma nação inteira como
se Elenoir havia sido construído na cabeça de um palito de fósforo.

“Meu… Ela fez uma pausa e deu a volta ao redor da cadeira, sentando-se
novamente. “Meu irmão foi morto em Dicathen. Nos primeiros dias, em um de
nossos primeiros ataques. A mesma batalha em que Jagrette, a retentora
Truaciana, foi morta.” Ela sorriu amargamente, olhando para além de mim em
vez de encontrar meus olhos. “Eu me lembro porque eles anunciaram isso
como se morrer ao lado de uma retentora fosse algum tipo de honra.”

Eu não pude evitar, mas estremeci. Eu tinha lutado e matado a bruxa venenosa
Jagrette em um pântano perto de Slore, e uma percepção repentina me atingiu.
Enquanto eu estava zangado, preocupado com o que as famílias desses alunos
haviam feito, nem sequer parei para considerar o fato de que eu poderia ter
matado seus parentes em uma batalha.

“Você deve odiar os Dicatheanos,” eu disse, me sentindo um pouco culpado


por enganá-la.
“Não,” ela disse imediatamente, sua resposta firme. “Meu irmão morreu em
uma batalha honesta. Guerra é guerra. Eles eram nossos oponentes. Embora
eu sinta saudades dele, meu irmão teve sorte de ter uma guerra para lutar.”

Enola ficou em silêncio, e eu sabia o que ela estava pensando.

“Mas lutar contra asuras…” Eu insisti.

“Eu quero ser um soldado, ou talvez uma ascendente poderosa.” Ela cruzou os
braços e recostou-se na cadeira. “Mas eu não quero ser jogada fora ou
queimada como lenha em uma batalha entre seres maiores.” Seus olhos se
fixaram nos meus, como se ela estivesse me desafiando a discutir com ela.

Apoiando meus cotovelos na mesa, suspirei. Meu olhar vagou até a pedra
angular, e Enola fez o mesmo. “Qualquer soldado pode mudar o curso de uma
batalha”, declarei. “O guerreiro mais forte pode cair inesperadamente,
enquanto o mais fraco e covarde pode cambalear até a vitória.” Peguei a pedra
angular e virei-a na mão, lembrando das palavras da projeção da djinn. “Mas
o seu caminho é o seu, e só você pode percorrê-lo. Você pode escolher desistir
de sua vida, se necessário, mas ninguém pode jogar sua vida fora como se ela
não significasse nada.”

Enola ficou tensa, sua mandíbula visivelmente apertada enquanto seus olhos
me perfuravam. “Você realmente acredita nisso?”

Eu sorri e bati levemente o cubo contra a mesa, quebrando a tensão. “Com


cada fibra do meu ser.”

Ela me deu um único aceno de cabeça afiado e olhou novamente para a pedra
angular. “O que é isso?”

“Ah, essa coisa velha?” Eu disse, lançando-a no ar e pegando novamente. “É


apenas uma ferramenta para me ajudar a meditar e canalizar meu… minha
mana.”

Enquanto eu tropeçava na palavra, quase dizendo éter, minha mente conectou


dois pontos que eu não havia considerado anteriormente. As duas vezes que
vi o movimento difuso dentro da pedra angular, foi quando alguém se
aproximou de mim, interrompendo minha meditação. Eu tinha pensado que
era apenas azar, com as interrupções chegando exatamente na hora errada,
mas e se…

“Aqui, deixe-me mostrar como funciona,” eu disse rapidamente, canalizando o


éter para a pedra angular.

Minha mente correu para a escuridão. Estava cheia de movimento. Ao meu


redor, fluxos sutis de tinta preta se contorciam e corriam como óleo sobre a
água.
A pedra angular reagia à presença de mana. O que explicava por que eu não
conseguia sentir nada dentro.

Como um cego tentando navegar em um labirinto, pensei, animado com uma


motivação repentina diante de tal desafio.

Eu encontraria o entendimento armazenado dentro dela e ficaria um passo


mais perto de descobrir o édito do Destino.

Capítulo 365
Ódio não resolvido

O punho de Valen disparou em um golpe certeiro no nariz de Seth. Em vez de


cambalear como antes, o menino magro se moveu para o golpe, retirando
qualquer força. Seu joelho atingiu as costelas de Valen, mas Valen bloqueou
com a palma da mão antes de se inclinar para frente e jogar o ombro no peito
de Seth, fazendo-o cambalear para trás.

Uma rasteira giratória nas pernas de Seth – já mal posicionadas para se


equilibrar – enviou Seth com força contra o tapete.

“Muito bem, vocês dois,” Aphene estava dizendo, e eu voltei minha atenção
para os papéis na minha frente com um suspiro.

Cada professor participante recebeu documentos explicando o Victoriad.


Devido à natureza do evento, a adesão à tradição e ao protocolo era de
extrema importância e, portanto, as informações fornecidas eram completas
ao ponto de dar tédio. Eu sabia que era necessário memorizar isso, mas minha
mente ficava vagando de volta aos meus próprios planos para o evento.

Eu estava mais forte agora do que quando era uma Lança de núcleo branco,
mesmo que tivesse perdido algumas das armas do meu arsenal. Ainda assim,
eu queria usar este evento para medir minha força contra a de meus inimigos
– sem revelar minha identidade, se possível.

Com a reputação que construí aqui como professor e ascendente, queria testar
minha força – se não contra uma Foice, pelo menos contra um retentor. Tanto
Caera quanto Kayden mencionaram que era incomum, mesmo para retentores,
receber um desafio, mas depois de ler este documento, ficou cada vez mais
claro o quão raro era.

Esqueça desafiar uma Foice, até mesmo solicitar um duelo de um retentor


exigia o consentimento de sua Foice de antemão. Caera mencionou que, como
havia duas posições de Retentor abertas desta vez, as pessoas especularam
que haveria muito mais probabilidade do que o normal.
E uma vez que tanto as Foices quanto os Retentores poderiam recusar um
adversário se descobrissem que tal competição estava abaixo deles, seria
difícil para mim até mesmo lutar contra um retentor.

Na pior das hipóteses, se nenhum dos retentores aceitasse meu desafio, eu


teria que assistir aos duelos de longe.

Normalmente, é aqui que Regis teria interferido com alguma avaliação direta,
mas irritantemente precisa, dessa situação, mas essa resposta não veio.

Estava quieto na minha cabeça sem o lobo flamejante sarcástico. Embora eu


ainda pudesse senti-lo, conectado a mim por um fio fino que se estendia alto
na encosta da cordilheira mais próxima, seus pensamentos estavam
protegidos de mim, seu foco inteiramente em si mesmo. Mas breves pulsos de
excitação ou frustração que não eram meus surgiam ocasionalmente, e eu
sabia que ele estava crescendo. Eu podia sentir sua força.

Eu tinha me acostumado a ter minha mente só para mim, mas isso não
significava que era pacífico. Eu tinha esquecido o quanto meu cérebro girava
sem Regis para me interromper.

Percebendo que havia perdido completamente a linha do que estava lendo,


deixei o pergaminho de lado para assistir ao próximo treino.

Aphene trouxe mais dois alunos para treinar enquanto Briar conduzia o resto
da classe em uma série de exercícios. Marcus e Sloane estavam trocando uma
série de socos e chutes brutais quando as portas da sala de aula se abriram e
vários homens blindados entraram.

Sloane os viu primeiro e errou um bloqueio, levando uma cotovelada em seu


queixo que o deixou deitado. Isso atraiu a atenção do resto da classe, e os
alunos explodiram em uma rodada de conversas surpresas. Briar e Aphene
foram rápidas em erradicar isso, seus olhos ficando à espera de respostas em
minha direção.

“Posso ajudá-los?” Eu disse, levantando-me do meu assento no painel de


controle da plataforma de treinamento e subindo no meio da escada em
direção aos intrusos. “Estamos no meio da aula.”

Uma figura familiar avançou, coçando a barba aparada e me dando um sorriso


estranho. “Desculpe, Grey, mas temo que você terá que vir conosco.”

Fiz uma careta para Sulla, chefe da Associação de Ascendentes em Cargidan.


“Isso pode esperar até—”

“Receio que não,” disse ele com firmeza.

Minha mente começou a correr enquanto eu considerava para que eles


poderiam estar ali.
A expressão sombria de Sulla deixou claro que sua visita não era de natureza
social. Mas como se tratava da Associação de Ascendentes e não dos guardas
da academia ou da polícia local, eu não tinha certeza de qual poderia ser o
problema. Se minha identidade tivesse sido comprometida – uma
possibilidade da qual sempre tive consciência – então teria sido Nico ou Cadell
batendo na minha porta.

Então, e aí?

Eu me virei e encontrei os olhos de Briar. “Você e Aphene terminam a aula. Não


vou demorar.”

Subindo as escadas, observei as mãos e os olhos do grupo em busca de


qualquer sinal de que estavam preparados para atacar. Os homens estavam
tensos e vigilantes, talvez até um pouco nervosos, mas também percebi um
tipo de frustração rebelde em suas sobrancelhas semelhantes. “Desculpe por
isso,” murmurou um deles, acalmando-se imediatamente quando Sulla lhe
lançou um olhar de advertência.

O próprio ascendente chefe tinha a aparência rígida e desajeitada de um


homem fazendo algo contra sua vontade. O que quer que estivesse
acontecendo, esses ascendentes não ficaram entusiasmados com isso.

E então eu não resisti, mas deixei que eles me levassem para fora do prédio e
pelo campus. Eles tomaram posições ao meu redor, mas ninguém sacou uma
arma ou preparou qualquer feitiço – pelo menos que eu pudesse detectar. A
maioria dos alunos estava em aula, mas ainda passamos por muitas dezenas
de pessoas em nosso caminho para fora do campus, e eu já podia sentir meu
nome no meio de uma centena de conversas sussurradas atrás de mim.

Felizmente, o Salão da Associação de Ascendentes estava por perto.

Segui Sulla até seu escritório, que dava para o andar principal do prédio. Os
outros ascendentes postaram-se do lado de fora das portas, que Sulla fechou
atrás de nós.

Sentei-me sem ser convidado e esperei. Sulla pegou uma bolsa de couro atrás
de sua mesa, observando-me com atenção. Então, com uma onda repentina de
raiva frustrada, ele bateu a bolsa em sua mesa e caiu em sua cadeira.

“Droga, Grey, você ao menos entende o quão perto da morte você ficou?”

Virei minha cabeça ligeiramente para o lado e fiz um show ao olhar ao redor
do escritório. “Parece que não estou com uma faca no pescoço, então não,
realmente não tenho.”

Sulla deu uma zombaria sem humor. “Parece improvável que você se preocupe
com pequenas coisas como facas.” Agarrando o fundo da bolsa, ele a virou,
derramando uma pilha de pergaminho sobre a mesa. “Você sabe o que essas
coisas são?”

Ainda observando Sulla, peguei uma página solta que flutuou sobre a mesa na
minha direção. Ele continha um colchete com cada um dos meus próprios
alunos emparelhados com um nome desconhecido. O torneio Victoriad, eu
percebi.

“Não entendo o problema,” disse eu, fingindo indiferença e jogando a página


de volta na pilha da mesa de Sulla.

Seu olho esquerdo estremeceu. Com os dentes cerrados, ele disse, “Então, por
favor, permita-me educá-lo, professor.” Ele teve que esperar um momento
antes de continuar, durante o qual folheou as páginas. Quando ele encontrou
o que estava procurando, ele o ergueu para que eu visse. “Este é um relatório
sobre os combatentes Victoriad da Academia Bloodrock em Vechor – ou pelo
menos, aqueles que estarão competindo especificamente nos duelos não
mágicos e desarmados.” Ele a largou com força e pegou outra página. “Isso
fornece alguns detalhes muito específicos sobre um dos melhores lutadores
de Bloodrock. Listas de runas, tipo de mago, estilos de combate preferidos…
Pelos chifres dos Vritra, Grey, até nomeia quais membros de seu sangue podem
ser ameaçados ou subornados para influenciar seu desempenho.”

Ele passou por mais algumas páginas, que continham detalhes semelhantes
sobre outros lutadores de alto desempenho de uma variedade de academias.

“Ótimo, isso parece uma pesquisa muito completa,” eu disse finalmente,


interrompendo-o quando ele começou a explicar outra página. “Mas o que isso
tem a ver comigo? Essas coisas não são minhas.”

Sulla suspirou e esfregou a ponta do nariz. “Então, por que uma testemunha
confiável se apresentou e afirmou que você está tentando trapacear no
Victoriad, usando esses documentos como prova.”

Eu encarei a pilha de papéis por um momento, então soltei uma risada


surpresa. “Isso é brincadeira, não?”

Sulla recostou-se na cadeira e olhou para mim como se um chifre tivesse


brotado do meio da minha testa. “Você nega que está liderando um esforço
para dar aos seus alunos uma vantagem injusta no Victoriad?”

“Se meus alunos tiverem uma vantagem, será porque trabalharam para isso,
não porque eu intimidei a mãe de uma adolescente,” retruquei, irritado por ter
sido incomodado com esse absurdo. “Não, eu realmente tenho coisas mais
importantes para fazer—”

Sulla colocou as duas mãos na mesa, jogando alguns pedaços de pergaminho


no chão e se inclinou na minha direção. “Então, alguém está tentando fazer
com que você seja morto, Grey.”
Eu olhei para o ascendente veterano com curiosidade, esperando que ele
continuasse.

“Trapacear, adulterar ou de outra forma interromper os eventos de Victoriad


resultará em sua execução como parte do ‘entretenimento’ de Victoriad,”
proclamou ele de forma ameaçadora. “Então, se você não ordenou que todas
essas informações fossem coletadas – informações que deixam claro que você
pretende ameaçar ferir vários membros de altos sangues importantes – então
outra pessoa o fez, e apenas para fazer com que você fosse acusado de um
crime que poderia acabar com sua vida.”

Eu estava ouvindo com mais seriedade agora, mas algo no que Sulla estava
dizendo não fazia sentido. “Você disse que tinha uma testemunha? Alguém que
alegou estar trabalhando comigo ou para mim ou algo assim?”

Ele semicerrou os olhos pensativamente antes de responder. “Sim. Ela me


procurou por conta própria, alegando que foi forçada a fazer vários contatos
entre você e a equipe da academia em toda Alacrya. Quando eles
interceptaram esta bolsa de documentos – supostamente destinada a você –
eles perceberam o que você estava fazendo e se sentiram compelidos a
entregar as evidências.”

Sulla fez uma pausa. “Você deve saber, um punhado de pessoas está
corroborando essa afirmação, confirmando que receberam cartas
ameaçadoras suas para fornecer tudo isso.” Ele gesticulou para os papéis. “O
melhor cenário é que você está proibido de frequentar o Victoriad. O pior, bem,
eu já disse a você.”

Mesmo desde o momento em que Sulla e seus executores chegaram à minha


sala de aula, ele parecia desconfortável. Agora o motivo estava claro. “Por que
você está tão certo de que não fui eu?”

Ele zombou novamente. “Qualquer um que realmente te encontrou saberia


que você não precisaria trapacear. Eu ouvi sobre as concessões de seus alunos
também. Não, isso cheirava a uma armadilha desde o início.”

Assentindo, descansei meus cotovelos nos joelhos e me inclinei para frente.


“Então me diga quem é a ‘testemunha’.”

Sulla hesitou, parecendo pouco à vontade. “Eu poderia – mas se você matá-lo,
isso estará fora de minhas mãos. No momento, só foi relatado à Associação de
Ascendentes. Se a Academia Central ou qualquer um desses altos sangues se
envolver…”

“Eu não vou matá-lo, mas vou descobrir—”

Fui interrompido por um dispositivo na mesa de Sulla acendendo e começando


a zumbir baixinho.
Ele olhou para ele como se fosse uma sanguessuga demoníaca por vários
segundos, então estendeu a mão e o tocou.

Uma voz familiar ressoou do dispositivo: “Aqui é Corbett do Alto Sangue


Denoir, entrando em contato com Sulla de Blood Drusus. Sulla?”

Os olhos do ascendente de cabelos escuros se arregalaram com a menção do


nome de Corbett e ele olhou para mim com algo semelhante ao pânico. “S-sim,
Senhor Supremo Denoir, aqui é-”

“Você acabou de prender um professor da Academia Central chamado Grey. As


acusações tolas contra ele são falsas, e tenho informações que ajudarão a
provar isso.” A voz de Corbett ecoou com uma leve distorção do artefato de
comunicação, mas ainda transmitia efetivamente o peso de sua autoridade.
“Exijo que ele seja libertado imediatamente.”

Eu não pude evitar o sorriso de surpresa que surgiu no meu rosto ao ouvir o
Lorde Supremo falar. Embora ele mantivesse um ar nobre, havia uma sutil
ameaça em suas palavras também.

Caera o encarregou disso? Eu perguntei para mim mesmo. Ou nossa conversa


impressionou mais do que eu pensava…

Sulla recuperou rapidamente a compostura. Embora os Denoirs devam estar


mais altos na hierarquia que o sangue Drusus várias vezes, ele não parecia um
homem a ser intimidado pela nobreza. “Você diz que tem informações
pertinentes a esta investigação?” Ele perguntou, seu tom totalmente
profissional.

“Os Granbehls estão por trás disso,” disse Corbett com firmeza. “Eles já fizeram
falsas alegações contra Grey antes, e estão de volta. Acredito que um
interrogatório completo de Janusz de Sangue Graeme, atualmente professor
da Academia Central, revelará que ele foi pago – e muito bem – para fornecer
evidências falsas contra Grey. Agora, confirme que Grey será libertado
imediatamente, ou serei forçado a visitar pessoalmente a Associação de
Ascendentes.”

Sulla olhou carrancudo para o artefato de comunicação, com o rosto


ligeiramente vermelho. “Não haverá necessidade disso, Senhor Supremo
Denoir. Estou igualmente certo da inocência de Grey e não irei acusá-lo. Ele
está aqui comigo agora, na verdade, para discutir a melhor forma de lidar com
esta situação.”

“Oh,” disse Corbett, seus nobres maneirismos diminuindo por apenas um


instante. “Pois bem. Já ouvi coisas boas sobre sua justiça e sabedoria, e parece
que esses rumores não são infundados. Grey, encontre-me no Trono de
Goldeberry na Rua da Realeza em duas horas. Bom dia então.”
“Bom dia, Senhor Supremo…” Disse Sulla, com uma expressão entre a
frustração e o alívio.

Quando o artefato esmaeceu, sua atenção se voltou para mim. “Então, você
realmente tem amigos em lugares importantes…”

“Um conhecido recente,” eu disse com um encolher de ombros. “Então,


Professor Graeme…”

Sulla estremeceu. “Como eu disse—”

“Ah, não se preocupe. Eu não vou matá-lo.” De pé, eu dei a ele um olhar
questionador. “Estou livre para sair?”

“No momento, sim,” disse ele com um sorriso sem humor. “Mas essa situação
precisa ser resolvida, Grey.”

Eu balancei a cabeça, um certo tio bêbado vindo à mente. “Então você poderia
entrar em contato com alguém por mim?”

***

Duas horas depois, eu estava caminhando rapidamente pela Rua da Realeza,


lar de muitos negócios ostentosos que atendiam aos altos sangues.

Vários cenários giravam em minha mente como clipes de diferentes filmes


enquanto eu pensava sobre o que havia aprendido. Se o que o professor
Graeme tão gentilmente me informou fosse verdade, então tudo mudava.

Meus pensamentos foram interrompidos quando fui forçado a sair do caminho


de um par de jovens altos sangues caminhando lado a lado no meio do
caminho, mas antes que eu pudesse pensar duas vezes, fui interrompido pela
visão do lugar onde eu deveria encontrar Corbett, um café de alto sangue
chamado Trono de Goldberry.

O prédio parecia mais um templo do que um café. Pilares de mármore com


topo dourado enrolados em torno de uma galeria ao ar livre na frente do
edifício e ao redor de um lado, e os entablamentos esculpidos que
descansavam no topo dos pilares brilhavam com ouro incrustado e uma dúzia
de cores de pedras preciosas, fazendo o telhado brilhar como uma coroa.
Chamas multicoloridas subiam de braseiros sempre acesos afixados aos
pilares, dando ao lugar uma qualidade mística distinta e exalando uma mistura
de aromas doces que fazia minha boca encher de água e meu estômago roncar.

Vários pares de olhos me seguiram quando entrei no café, provavelmente


porque meu traje não correspondia aos padrões do Goldberry. Lá dentro, o
aroma quente de café e pão recém-assado se misturava a uma dúzia de
colônias e perfumes diferentes para tornar o ar desconfortavelmente pesado.
Uma mulher matronal vestida de preto com um colete marrom trabalhava
atrás de uma pequena barra esculpida em algum tipo de cristal opaco. Ela
mergulhou em sua cintura em uma reverência respeitosa quando me
aproximei, sua expressão perfeitamente mascarada, além da contração rápida
de seus olhos enquanto ela me examinava da cabeça aos pés.

“Estou aqui para encontrar o Lorde Supremo Denoir,” disse eu, sentindo a
atenção de um punhado de clientes do café se voltando em minha direção.
“Ele já chegou?”

A mulher apontou para a direita, seu olhar ainda abaixado. “A sala privada do
Lorde Supremo Denoir está localizada na esquina, terceira porta.”

Eu balancei a cabeça e virei as costas para ela, apenas percebendo quando os


clientes – muitos dos quais estavam olhando para minhas costas apenas um
segundo antes – desviaram o olhar e fingiram se importar com seus próprios
negócios.

A porta indicada estava rachada e se abriu lentamente quando bati de leve


nela. Corbett ergueu os olhos de um diário encadernado em couro cheio de
letras apertadas. “Feche a porta atrás de você,” disse ele enquanto escondia o
diário.

Eu fiz, e uma série de proteções que corriam ao longo da borda da porta se


acenderam brevemente. “À prova de som?” Eu meditei em voz alta.

“Entre outras coisas. Goldberry não faz sucesso com os Altos Sangues
simplesmente pela decoração pretensiosa,” disse ele, apontando para uma
cadeira em frente a ele.

A sala não era grande, mas seu teto alto dava uma sensação de grandeza. Uma
mesa baixa feita de madeira escura e gravada com uma representação realista
das montanhas Presa de Basilisco ocupava o centro, com um sofá envolvente
de um lado e duas poltronas do outro. Sentei-me em uma delas, afundando
no amortecimento macio.

Um fogo baixo queimava em uma pequena lareira no canto atrás de mim, e


uma janela deixava entrar uma luz difusa atrás de Corbett. Eu fiz uma careta
para a janela, sem saber por que parecia tão fora do lugar, então percebi que
não poderia haver uma janela nesta sala, que ficava no centro do café, sem
paredes voltadas para o exterior. Olhando mais de perto, percebi que era um
artefato de luz em forma de painel que agia como uma janela falsa.

“Lugar legal,” eu comentei.

“Bom para pensar ou ter uma conversa que não deveria ser ouvida,” ele disse
significativamente. “Você conseguiu localizar o professor Graeme?”
“Graeme ainda está vivo, embora eu não possa dizer o mesmo sobre sua
dignidade,” respondi com indiferença. “Mas isso está fora de questão.”

O senhor supremo assentiu. “Eu percebi isso, e é por isso que gostaria que nos
encontrássemos aqui.”

“Preciso saber com que tipo de retaliação posso me safar,” disse eu, sem
preâmbulos. “Que tipo de problema eu poderia ter se fosse atrás dos
Granbehls?”

Ele me olhou criticamente, pesando claramente suas palavras. “Bem, se você


fosse um Alto Sangue – ou mesmo um sangue nomeado igual aos Granbehls
em estatura – você estaria inteiramente dentro do seu direito de contra-
atacar.” Ele deu um sorriso conhecedor. “Mas, como um sem sangue, você não
tem recursos fora do tribunal e já sabe bem como os corredores da justiça
realmente são.”

Um ‘recurso’ implementado por Altos Sangues como você, eu queria dizer.

“Os Granbehls entendem e manipulam o sistema como um verdadeiro alto


sangue,” ele continuou. “Eles lançaram um ataque total a vários sangues
nomeados rivais, mas até agora não cruzaram nenhuma linha que os veria
despojados de seus títulos ou executados – pelo menos não em plena luz do
dia. Seus inimigos parecem morrer em circunstâncias suspeitas e
convenientes, incluindo um incêndio recente que matou o lorde e a dama do
Sangue Rothkeller. ”

“Por que você acha que esses rivais não revidaram?”

Corbett bateu na lateral do nariz. “Eis a questão, não é? Mas nem toda pergunta
vem com uma resposta. Neste caso, tenho apenas especulações baseadas em
boatos. No entanto, parece que eles de alguma forma adquiriram o patrocínio
de um poderoso benfeitor, alguém cuja proteção lhes permitiu manobrar de
forma mais ou menos desinibida.”

Quando uma pessoa como Corbett Denoir chamava alguém de poderoso, isso
realmente encurtava a lista de suspeitos. Apenas outro alto sangue de alta
hierarquia poderia oferecer esse tipo de proteção – ou mesmo alguém acima
dos constructos normais da sociedade alacryana, como uma foice.

“Isso não muda o que eu preciso fazer,” respondi, minha expressão escondida
de Corbett.

“Você tem algum plano em mente, então?” Ele perguntou. Sua mão se moveu
para a almofada do sofá ao lado dele, e notei uma bolsa de veludo que estava
meio escondida em sua sombra.

Meus lábios se contraíram. “Sim, mas não é muito sutil.”


“Foi o que pensei,” disse ele, levantando a sacola e enfiando a mão dentro
dela. Ele puxou um emblema de metal e o colocou sobre a mesa entre nós.

O metal preto estava manchado e, quando me inclinei sobre ele, percebi que
havia sido queimado pelo fogo. O próprio emblema parecia ser uma videira
colocada diante de um sol nascente, uma vez de cores vivas, mas agora
enegrecida e sem os pequenos detalhes.

“Sangue Nomeado Rothkeller?” Eu perguntei.

Corbett acenou com a cabeça. “Se um dos poucos membros remanescentes


daquele sangue buscasse retribuição pela queima de sua propriedade—”

“Ninguém piscaria,” terminei, levantando o emblema e virando-o na mão. Com


o polegar, esfreguei a fuligem do sol, revelando uma coloração vermelha
rachada e desbotada. “O sangue Rothkeller provavelmente negaria isso?”

Os olhos de Corbett brilharam com cálculo frio. “Se seu emblema foi plantado
como uma bandeira de vitória nos destroços da propriedade de seu inimigo?
O que você faria no lugar deles?”

“Ponto justo,” admiti antes de colocar o emblema de volta na mesa. “Minha


única pergunta é por que você está disposto a fazer tudo isso por mim?”

Eles não ganharam nada em me ajudar além de minha própria obediência no


futuro, mas se as coisas dessem errado com os Denoirs, eu não poderia
exatamente matar todos eles, considerando sua relação com Caera. Permitir
que Corbett tivesse um segredo tão perigoso certamente era um problema,
mas sem nenhuma prova, seria apenas a palavra dele contra a minha.

“Curiosidade? Intriga?” Corbett meditou. “Você é um homem com muitas


camadas, Grey. E essas circunstâncias me permitem descobrir alguns delas.”

“Bem, seja o que for que eu decida fazer, eu não teria sido capaz de fazer sem
a sua ajuda,” eu disse, segurando o emblema como se estivesse fazendo um
brinde. “Então, aqui está um vínculo duradouro construído a partir da
destruição mutuamente assegurada, Corbett.”

O lorde supremo endireitou-se um pouco mais, mas um sorriso escapou de


seu comportamento cauteloso. “É claro. Afinal, ainda há esse misterioso
benfeitor com quem se preocupar.”

Meus pensamentos percorreram tudo o que o professor Graeme me disse mais


uma vez, mas não confirmei mais nada com Corbett. Em vez disso, perguntei,
“É possível que quem está apoiando os Granbehls vá atrás dos Rothkellers
restantes?”

Ele acenou com a cabeça, sua expressão inalterada. “Totalmente, mas mesmo
se eles morrerem, eles o fariam com orgulho sabendo que seu sangue foi
vingado. Você oferece a redenção de sangue deles, evitando qualquer
envolvimento pessoal, legal ou de outra forma.”

Eu não concordo com a visão dos Altos Sangues de orgulho acima da vida, mas
ter empatia não era difícil. Diante dos deuses como governantes, às vezes, o
orgulho era a única coisa que ficava sob seu controle.

Com um plano em prática e todas as peças em minha cabeça agora se


encaixando, eu me despedi dele e fiz meu caminho para a Rua da Realeza.

Um sorriso frio puxou os cantos dos meus lábios enquanto eu esticava meu
pescoço. Regis, volte aqui. É hora de um pequeno reencontro com os Granbehls.

Capítulo 366
Promessa Impiedosa

TITUS GRANBEHL

“Ah, quase esqueci de mencionar,” disse minha esposa do outro lado da mesa.
Com um sorriso no rosto, ela deixou de lado o pedaço de carne rosa que estava
prestes a levar à boca. “O Sangue Vale concordou com os nossos termos. Um
mensageiro chegou há apenas uma hora atrás com sua carta.”

Terminei de mastigar e abaixei o garfo e faca para cortar outro pedaço. “Sim,
eu pensei que depois de verem o que aconteceu com o Sangue Rothkeller,
talvez os de Sangue Vale ficassem incomodados…”

Os olhos frios de Karin se voltaram para Ada, mas a garota não estava
prestando atenção em nós enquanto mexia em seu prato sem pensar.

“De qualquer forma,” Karin continuou, seus olhos se arregalando ligeiramente


como se quisesse me lembrar, agindo como se eu precisasse de um lembrete
do nosso acordo.

Apertei os utensílios enquanto serrava mais fundo o sambar de cauda branca


chamuscada. Ada é muito frágil, muito fraca para sofrer com o conhecimento
das nossas atitudes.

Pensei em Kalon e Ezra. Meu filho mais velho era muito orgulhoso e hipócrita
para entender o que fazemos agora, mas se ele tivesse sobrevivido, talvez
ações tão extremas não tivessem sido necessárias. Mas o Erza, ele era muito
parecido comigo.
Com meu apetite me deixando, eu empurrei o prato inacabado.

Se ao menos Ezra tivesse sobrevivido, pensei amargamente, lançando um olhar


severo para a minha filha assustada.

“E eu enviei uma sugestão para alguns prováveis candidatos de Alto Sangue


em relação à nossa proposta,” ela continuou. Enquanto falava, ela estendeu a
mão e começou a cortar a comida de Ada, até mesmo levando o garfo à boca
da garota.

“Karin, deixe a garota se alimentar sozinha, ela está-“

Ela me lançou um olhar afiado e eu cedi, reprimindo minhas palavras.

Ela e seu cuidado obsessivo.

Observei Karin alimentar nossa filha como se ela não tivesse braços, mas não
disse mais nada. Por mais que seja difícil admitir, muito do que conquistamos
neste curto período de tempo teria sido impossível sem minha esposa.

Ela era astuta, carismática e implacável. Mas ela também era uma mãe que
havia perdido dois filhos. Com Kalon e Ezra mortos, Ada se tornou o mundo
para a mulher. Embora isso a tenha levado a extremos que eu nunca teria
imaginado possível, em sua mente, tudo foi feito por Ada.

“Titus, você está ouvindo?”

“Claro,” eu disse, procurando em minha memória por suas palavras ouvidas


pela metade. “Os Altos Sangues Lowe e Arbital. Ambos bons candidatos para
Ada.”

Afastei-me da mesa e um criado se apressou a recolher meus pratos e


utensílios. “Vou fazer minhas rondas, então talvez possamos nos retirar
juntos?”

Um sorriso conhecedor apareceu nos lábios de minha esposa. “Claro, Lorde


Granbehl.”

“Logo será Alto Lorde…” falei antes de sair da sala de jantar.


Havia uma doçura salgada na brisa quente que soprava do Oeste, que vinha
do mar. Quando os ventos mudassem, eles trariam um frio terrível das
montanhas distantes. E, no entanto, seja qual for a direção que o vento sopre,
ele estará sempre nas nossas costas. Até nossas derrotas se transformam em
vitórias.

Por ter falhado em conseguir as riquezas do Ascendente Grey, o sangue


nomeado Granbehl passou por tempos perigosos. Quando os juízes que
havíamos subornado foram executados em suas celas, fiquei preocupado que
poderíamos ter o mesmo destino em breve. Com a morte do meu herdeiro,
todo o nosso sangue repousava no fio da espada, e qualquer movimento
errado poderia significar nosso fim. Mas o destino, no fim das contas, foi gentil.

Pelo menos para nós.

O sol estava se pondo quando comecei minhas rondas noturnas para revisar a
segurança aprimorada da propriedade. Havíamos transformado muitos rivais
em inimigos ferrenhos, e em um curto período de tempo. Embora eles tivessem
sido covardes demais para nos atacar diretamente, graças em grande parte ao
boato do envolvimento de nosso benfeitor, eu estava totalmente preparado
para tal eventualidade de qualquer maneira.

Apesar do meu bom humor, coloquei uma carranca tempestuosa em meu rosto
enquanto marchava lentamente passando por cada grupo de mercenários,
guardas e ascendentes que eu havia contratado como segurança para nossa
propriedade em Vechor. Afinal, eles precisavam me temer se eu quisesse que
ficassem na linha.

Quando passei pelos portões principais, o chefe dos guardas saiu da guarita e
prestou continência. “Lorde Granbehl.”

“À vontade, Henrik.”

O homem fez uma reverência e puxou um pergaminho enrolado da bolsa ao


lado. “Isso chegou para você apenas alguns minutos atrás.”

Eu suprimi um sorriso vitorioso enquanto segurava o pergaminho enrolado,


que estava marcado com o selo da Academia Central. “Perfeito. O terreno
parece estar em ordem, Henrik.”
O homem – leal ao extremo e burro como pedra, mas bom com os outros
guardas – curvou-se novamente e voltou ao seu posto.

Eu, por outro lado, corri para dentro, ansioso para ler o relatório do professor
Graeme. Fiquei surpreso quando notei Petras parado na entrada. Ele se
encolheu ao me ver.

Meus lábios se curvaram em um sorriso de escárnio. “O que está fazendo aqui?


Pare de espreitar e volte para sua masmorra.”

Petras curvou-se profundamente, seu cabelo escuro caindo sobre o rosto


como uma cachoeira oleosa. “Minhas desculpas, Senhor. Queria dizer-lhe que
o último dos prisioneiros… se expirou, e o corpo foi levado embora. As
masmorras estão vazias, e—”

“Relatório recebido”, eu disse, dispensando-o com a mão. “Agora saia. Você


está estragando uma vitória muito esperada.”

O torturador voltou às sombras e desapareceu escada abaixo, deixando para


trás um forte cheiro de óleo. Balançando a cabeça, voltei minha atenção para
o pergaminho, rasgando o selo e desenrolando-o, um sorriso infantil se
espalhando pelo meu rosto.

Meu sorriso escureceu e eu cerrei meus dentes em frustração com as palavras


rabiscadas apressadamente na carta. O fino pergaminho se amassou em meu
punho quando o bati na parede.

“Tolo incompetente. Talvez eu tenha confiado demais em Janusz por ser um


Alto Sangue.”

Com nossa aversão mútua pelo Ascendente Grey, parecia natural usar Janusz,
mas aquela desculpa lamentável que se dizia um Alto Sangue não pôde nem
mesmo manter Grey detido pela Associação de Ascendentes por um dia.

Meus pensamentos foram até meu benfeitor, que havia deixado os detalhes
desta parte do plano inteiramente por minha conta. Se eu não conseguisse
cumprir minha parte…
“Pai?” Eu me virei ao som da voz de Ada. “Está tudo bem? Você estava
murmurando para si mesmo.”

Dando a ela um sorriso falso, eu rapidamente respondi: “Nada para se


preocupar. Por que não está no seu quarto? Estude e depois vá para a cama.
Você sabe que precisa descansar.”

O encolher de ombros simples e derrotado da garota era tão patético – eu não


sabia se a abraçava ou lhe dava um tapa no rosto. Com um suspiro pesado,
coloquei a mão em seu pequeno ombro. “Ada, é hora de superar isso. Você já
se remoeu demais por isso. Agora fique de pé e—”

Eu inclinei minha cabeça, ouvindo com atenção. Quase soou como um-

Gritos vinham de fora. Uma explosão de magia de fogo.

Um brilho vermelho irradiou através das janelas da frente, manchando as


paredes do vestíbulo e o chão com um vermelho sangrento. Um momento
depois, os alarmes começaram a tocar.

“Ada, vá até o porão”, falei, sem olhar para minha filha. Ela choramingou,
hesitando, então eu gritei, “Pelos Chifres de Vritra, garota, agora!”

Ouvi seus passos rápidos recuarem, desaparecendo enquanto descia as


escadas dos criados da mesma forma que Petras havia feito, mas eu não estava
mais pensando nela. Passos vacilantes me levaram a uma das janelas da
frente, onde confirmei que a barreira magica da propriedade havia sido
ativada, criando uma cúpula vermelha que cobria toda a minha propriedade.

O pátio brilhou com feitiços como balas de fogo, raios em arco e lanças de gelo
cortando a escuridão do início da noite. Tudo que eu podia ver de seu alvo era
uma sombra que parecia piscar dentro de uma mortalha de eletricidade roxa,
aparecendo e desaparecendo mais rapidamente do que eu poderia seguir.

“Uma casa rival?” Eu murmurei, minhas juntas rangendo no parapeito da


janela. “Mas quem ousaria…?”

Meus pensamentos saltaram espontaneamente para nosso benfeitor, a fonte


de nossos sucessos recentes… mas certamente não poderia ser ele. Ele não
poderia saber sobre o nosso erro com Grey ainda, e mesmo se soubesse, ainda
tínhamos tempo para corrigir o erro, não havia necessidade de-

Eu congelei quando um suor frio começou a escorrer pelo meu rosto.

Grey…

Amassei a carta na mão antes de jogá-la no chão. Meu rosto estava quase
pressionado contra o vidro enquanto eu procurava qualquer sinal de que meu
palpite estava certo.

Uma forma bestial envolta em chamas roxas passou correndo pela janela, me
fazendo ofegar e dar um passo para trás rapidamente.

Homens gritavam por toda a propriedade. Gritando e morrendo.

As portas da frente, feitas para travar magicamente quando a barreira de


proteção da propriedade fosse ativada, tremeram sob o peso de um forte
golpe.

Uma voz abafada gritava e praguejava incoerentemente – era Henrik, eu


percebi, embora eu nunca tivesse ouvido tanto pânico em sua voz grave antes
– então foi interrompida abruptamente quando uma lâmina roxa de luz pura
atravessou a porta com o guinchar de madeira estilhaçada.

Eu encarei a lâmina projetando-se em minha casa, a menos de três metros de


mim. Era diferente de tudo que eu tinha visto antes, como uma ametista de
cristal líquido dobrada sobre si mesma. A cor mudava sutilmente, mas
continuamente, ficando mais escura e mais profundamente roxa, e então, mais
brilhante e violenta. Por um segundo, eu me perdi nas profundezas do outro
mundo daquela lâmina.

Então ela desapareceu. O sangue começou a escorrer em um jato fino do


buraco na porta.

Recuei lentamente, já imaginando o que estava prestes a acontecer. As


proteções não deveriam permitir, mas eu sabia que não aguentariam.

As portas reforçadas explodiram para dentro, enviando estilhaços de


fragmentos afiados de madeira e ferro preto retorcido, espalhando-se pelo
corredor de entrada. Um escudo de fogo azul brilhante rugiu à minha frente,
evaporando madeira e metal, e ouvi os passos apressados de mais guardas
correndo do interior da casa.

Através da distorção do fogo azul, pude ver apenas uma silhueta grosseira
onde antes estava minha porta, o cadáver de Henrik a seus pés.

“Tirem-me daqui,” rosnei para os guardas que se aproximavam por trás de


mim. “E matem aquele cão sem sangue!”

Uma mão firme agarrou meu ombro e começou a me puxar, o escudo de fogo
movendo-se conosco. Dois Atacantes com armaduras pesadas passaram por
mim, suas armas estavam em chamas e a magia imbuía suas armaduras. Uma
roda giratória de vento e chamas cortou o ar entre eles, apontando para o
intruso, mas ele não estava mais lá.

Um suspiro sufocado me fez girar. O Conjurador, um dos meus guardas de elite,


já estava caindo no chão, seu corpo dividido ao meio na cintura. Suas pernas
caíram no chão enquanto seu torso caiu para trás, com uma expressão de
surpresa gravada em seu rosto já morto.

Uma silhueta escura luziu ao nosso lado, atacando meu protetor. O Escudeiro
foi arremessado para trás com som agudo, rápido demais para ajustar seu
lançamento de feitiços. Seu grito foi interrompido quando seu próprio fogo
azul queimou o ar de seus pulmões e o que atingiu a parede não era mais
reconhecível como um homem.

Ambos os Atacantes estavam olhando em volta confusos, tentando encontrar


seu oponente, suas armas prontas, mas inúteis quando ele apareceu entre
eles, a lâmina roxa brilhante borrando no ar enquanto passava por suas armas,
armaduras, carne e ossos como se fossem feitos de seda.

Ambos os homens caíram, mortos.

O aspecto persistente do escudo de fogo desapareceu quando o escudeiro


sufocou sua última respiração rasa.

Grey simplesmente ficou lá, olhando para mim, enquanto minha barreira
vermelha que defendia minha propriedade cintilava inutilmente ao fundo.
Meus punhos cerrados, meu corpo tremendo – não de medo, eu disse a mim
mesmo, mas de fúria.

“V-você foi longe demais,” eu disse, minha voz falhando. “Os Granbehls estão
protegidos. Estamos sendo” – engoli em seco, minha boca de repente muito
seca – “elevados. Você não tem propriedade, nem autoridade enquanto
estamos sendo protegidos por uma Foice. Você entende? Você vai morrer por
isso. Você vai-”

“Disseram a você o que aconteceria se você viesse atrás de mim novamente.”


Disse ele, sua voz desprovida de emoção.

Eu recuei quando uma criatura, um lobo enorme envolto em chamas pretas e


roxas, apareceu na porta, dando um passo ao lado dele. “A retaguarda está
limpa.”

Tentando reforçar minha coragem, me endireitei e limpei a garganta. “Estou


sob a proteção da Foice Nico do Domínio Central. Você ousou me atacar? Ele
vai—”

Grey deu um passo à frente e eu recuei tão rapidamente que quase tropecei
no braço estendido do conjurador morto.

“Ele virá atrás de mim,” ele concluiu. “Eu sei.”

A lâmina brilhou em sua mão, e seu lobo invocado rosnou baixo.

“Não!”

O grito veio do topo da escada.

“Karin!” Eu gritei, o tempo parecendo parar enquanto eu olhava com os olhos


arregalados para minha esposa. Seu cabelo estava molhado e ela estava
envolvida apenas em um vestido transparente que se agarrava a seu corpo.
Ela devia estar no banho, eu percebi distante, minha mente correndo para
processar informações enquanto meu corpo permanecia congelado no lugar.

Ela deveria ter corrido, escapado por uma das entradas dos fundos ou descido
para a masmorra para se esconder, mas em vez disso veio correndo para
defender a casa de nosso sangue. E ao contrário de mim, ela não tinha
congelado. Suas mãos subiram e eu senti sua mana aumentando quando o
vento começou a dançar no ambiente.

Droga, mulher, você precisa-

O feitiço do vento soprou pela sala como um furacão, arrancando retratos e


tapeçarias das paredes e derrubando móveis. Cordas brancas de vento
condensaram-se em torno do ascendente para formar uma teia, prendendo-o.
Desejei novamente que ela fugisse, mas Karin apertou a teia, segurando Grey
e esmurrando-o de várias dezenas de direções diferentes com seu emblema
poderoso.

Eu tinha visto magos dilacerados por este feitiço enquanto as rajadas os


rasgavam de todas as direções. Minha esposa preferia suprimir seu poder em
público, mas ela nunca teve vergonha de sujar as mãos se isso significasse
assegurar o futuro de nosso sangue. Eu teria sentido uma onda de orgulho em
seu feitiço, se Grey não tivesse simplesmente ficado ali, o feitiço Teia do Vento
de seu emblema não fazendo nada mais do que bagunçar seu cabelo…

“Não, Karin você—”

Minhas palavras ficaram presas na garganta quando me virei e encontrei os


olhos da minha esposa, já brilhando com a morte. Atrás dela estava Grey, sua
lâmina violeta envolta no sangue de Karin.

Eu abri minha boca, tentando dizer algo – dizer qualquer coisa – mas eu só
pude ficar olhando, congelado no tempo, enquanto a luz deixava os olhos de
minha esposa.

O tempo voltou quando seu corpo começou a cair sem vida para frente,
rolando grotescamente escada abaixo para pousar aos meus pés.

Eu caí de joelhos ao lado dela, arrastando sua forma inerte para o meu colo.
Meu corpo estava tremendo, até mesmo a respiração em meus pulmões
parecia tremer, e eu não pude fazer nada além de olhar para o cadáver de
Karin enquanto os fragmentos de seu feitiço caíam no chão ao meu redor.
Passos pesados e desajeitados quebraram o silêncio e vi Petras aparecer da
escada dos criados. Grey estava parado no topo da escada, seu olhar distante
sem emoção, ilegível.

“Petras, mate-o.” Eu engasguei em torno de um punho gelado de emoção crua


que parecia estar esmagando minha garganta.

Grey começou a descer as escadas, com a sobrancelha erguida em direção ao


Petras. “Já faz um tempo, velho amigo.”

Petras, a doninha desengonçada, largou a lâmina curva, que caiu no chão


ruidosamente. Ele deu as costas para mim – para mim! – e saiu furtivamente
por uma das muitas portas do saguão de entrada sem dizer uma palavra.

“Desgraçado,” eu murmurei. Para Grey, com o máximo de veneno que pude


reunir, eu disse: “Por que você não pode simplesmente morrer?” Estremeci
quando um vazio frio me invadiu. “Eu pensei, quando a Foice Nico nos
contatou…” Meu punho bateu no chão e eu senti os ossos dos dedos se
quebrarem. “Deveria ter sido fácil.” Eu olhei para o meu assassino. “Então, por
que você não pode simplesmente morrer, porra?”

Grey se aproximou sem palavras, uma pressão estrondosa exalando dele.

Eu cuspi no chão. “Você acha que pode se safar com isso? Você é a razão pela
qual meus filhos estão mortos. Você—”

O homem zombou enquanto descia lentamente as escadas. O lobo estava


vindo em minha direção vindo da porta, sua boca aberta, uma fome visível em
seus olhos brilhantes.

“Mesmo agora, você tenta usar sua família para justificar sua ganância.”

“Quem é você para presumir minhas razões?” Eu assobiei, segurando o corpo


frio da minha esposa com mais força. “Você não é um deus para saber disso,
nem tem autoridade para me julgar!”

O ascendente caminhou em minha direção, sem pressa enquanto gavinhas


violeta se condensavam para formar uma lâmina cintilante. “Você está certo,
Granbehl. Não sou um deus e também não sou juiz. Estou aqui apenas para
cumprir minha promessa.”

O medo primitivo correu por mim como veneno em minhas veias, mas me
recusei a mostrar a este bastardo qualquer aparência de fraqueza. Eu projetei
meu queixo e tórax para que a insígnia dos Granbehl, estampada em minha
gola, pudesse olhar de volta para o sem sangue. “Vá pro inferno—”

Eu ouvi, em vez de sentir, a lâmina violeta deslizar em meu peito. Frieza crua
se espalhou por mim, infiltrando-se em cada centímetro do meu corpo
enquanto eu caía para frente. O chão me apoiou enquanto eu olhava para
cima, através de meu assassino e na direção da minha casa.

Tudo pelo que trabalhamos para superar todos os outros, para nos tornarmos
um Alto Sangue, foi em vão. Só Ada ficaria como minha herdeira, a mais fraca
dos Granbehls, um pobre elogio pelo qual seríamos lembrados.

Meus pensamentos turvaram, perdendo toda forma.

Então, o mundo ficou escuro.

ARTHUR

A espada etérica se dissipou quando eu liberei meu controle sobre sua forma.
Lorde e Lady Granbehl estavam aos meus pés, seus cadáveres entrelaçados.

“Bem, está feito.” Regis fungou, olhando para o cadáver de Titus Granbehl
antes de se virar para mim. “Então… você quer comer um shawarma no
caminho de volta?”

Fechei meus olhos e respirei fundo; o cheiro de carne queimada pairava


pesado no ar. “Nenhum de nós precisa comer e tenho quase certeza de que
esse prato não existe neste mundo.”

Regis abriu a boca, fez uma pausa e baixou lentamente a cabeça. “Quer dizer,
sim, claro, acho que você está tecnicamente certo, mas parece apropriado.” Ele
torceu o nariz. “Ou talvez o cheiro esteja apenas me deixando com fome.”

“Regis,” eu disse lentamente “esses são os tipos de pensamentos que você


realmente deveria manter para si mesmo.”
O som de passos suaves ecoou nas proximidades, atraindo meus olhos para
uma alcova estreita em uma parede. A jovem conhecida que saiu
sorrateiramente da escada dos criados estava ainda mais magra e pálida do
que da última vez que nos vimos.

“Olá, Ada.”

Ada enxugou o rosto com a mão, esfregando as lágrimas meio secas com
sujeira. “Você os matou.” As palavras não eram uma acusação, apenas uma
declaração. “Sabia que o faria.”

“Talvez se seu pai soubesse…” Afastei-me dos cadáveres de seus pais. “Não
precisaria chegar a este ponto.”

Ela estava tão silenciosa e pálida que poderia ser um fantasma.

Pensei em simplesmente ir embora, não querendo sobrecarregar ainda mais a


pobre garota, mas eu precisava dela. “Ada?”

“Hm?” Ela murmurou, olhando para os corpos além de mim. Embora ela
olhasse, não fez nenhum movimento para se aproximar.

Retirei o emblema dos Rothkeller. Usando uma ponta decorativa projetando-


se da parte inferior, coloquei o emblema no corrimão da escada principal que
levava ao segundo andar, onde ele se ergueu como uma bandeira de vitória.

Ada se encolheu com o barulho, mas não fez nenhum outro movimento.

“As pessoas vão ver isso e presumir que o sangue Rothkeller vingou-se contra
sua família. Entendeu?”

Ela deu alguns passos hesitantes ao redor para que ela pudesse ver o símbolo
chamuscado dos rivais de sua família. “Vou dizer a todos que não vi nada—”

Eu balancei a minha cabeça. “Não, não para todos.”

Ada inclinou a cabeça, confusa.


“Você vai contar a verdade para o Foice que virá…” Meus olhos a observaram
em busca de sinais de compreensão. “E que estarei esperando por ele no
Victoriad.”

Foi uma transição abrupta entre o segundo andar das Relictombs e a


propriedade rural de Darrin Ordin em Sehz-Clar. Ainda estava quente no sul de
Alacrya, longe das montanhas, e uma brisa com cheiro doce soprava levemente
pelas colinas ondulantes e farfalhava os arbustos baixos no jardim da frente
de Darrin.

De Vechor, eu entrei nas Relictombs pelo Salão da Associação de Ascendentes


local, então usei uma das câmaras Tempus Warp de segundo nível para chegar
ao Darrin, onde Sulla me disse que meu “tio bêbado” estaria esperando.

Encontramos Alaric sentado em um banco perto da porta da frente, olhando


para o caminho. Devido ao atraso entre minha aparição e sua reação, que foi
arrotar alto e apoiar-se nos cotovelos, esticando a barriga saliente para a
frente, presumi que ele estava um tanto embriagado.

‘Sabe, senti falta desse velho idiota.’ Disse Regis, feliz.

“Então,” Alaric disse quando o alcancei, “ouvi dizer que você mais uma vez
precisa de aconselhamento jurídico.”

“Não exatamente,” eu disse, sentando no banco ao lado dele. “O que você já


sabe?”

“Eu sei que você está com problemas,” disse ele zombando. “E que, como
sempre, você mordeu o dobro do que pode mastigar.” Ele olhou para mim com
olhos instáveis. “Os Granbehls tentaram terminar o trabalho, mas você acabou
com eles, né?”

Contei a ele exatamente o que aconteceu, mas deixei uma informação


importante para o final. “Eles eram apoiados por uma Foice. Nico, do Domínio
Central.”
Os olhos permanentemente injetados de sangue de Alaric se arregalaram, e
ele se levantou e me encarou incrédulo. “Pelo saco do Soberano, garoto, por
que diabos estamos apenas sentados conversando? A sua identidade como
professor com certeza está arruinada, e sua conexão com Darrin e comigo
compromete a maioria dos meus contatos habituais…”

Ele começou a andar rapidamente para frente e para trás, descuidado ao pisar
em uma das plantas cuidadosamente mantidas por Darrin. Ele estava falando
rapidamente em um murmúrio baixo que eu não pude acompanhar. Em vez de
estressá-lo ainda mais interrompendo-o, deixei o velho continuar assim por
um minuto.

‘Acho que você acabou de tirar o fôlego do pobre bêbado,’ observou Regis, com
um toque de preocupação na voz.

Alaric parou de repente e olhou para mim. “Como diabos você ficou contra uma
Foice, afinal?”

“Nós temos história,” eu disse, impassível. “Quanto ao motivo que ele está
atrás de mim agora…”

Alaric balançou a cabeça e sentou-se, apoiando a cabeça nas mãos como se


estivesse totalmente exausto. Com a voz abafada, ele disse: “Não importa,
garoto. Não importa como você conseguiu colocar uma Foice na sua bunda, só
que você colocou.”

“Seja lá o que for que te meteu nisso,” disse ele depois de um minuto, “não
será fácil se esconder. Não com tanto poder farejando atrás de você.”

“Tudo bem,” eu disse, recostando-me também, “porque não vou me esconder.


Estou aqui para garantir algumas contingências no caso de precisar escapar
de Vechor.”

“Vechor…? Você não quer dizer—”

“Ainda pretendo participar do Victoriad,” respondi com firmeza.

Ele olhou para mim com um sorriso irônico. “Agora, eu sei que você está
brincando, porque apenas um idiota pensaria em fazer uma coisa dessas.” Os
olhos dele se estreitaram. “Você não está brincando. Seu idiota! Que diabos
você está pensando?”

Eu me inclinei para trás, colocando minhas mãos atrás da cabeça e cruzando


as pernas enquanto olhava para o céu azul.

“Estou pensando em matar uma Foice.”

Capítulo 367
O Victoriad I

Nota do Autor: Finalmente estamos no Victoriad! Acreditem em mim, sei que


muitos de vocês estão esperando ansiosamente para chegar a este evento
culminante. Reescrevi este capítulo algumas vezes junto com os capítulos
posteriores para ter certeza de que ele atende a todos e às minhas
expectativas. Este evento não vai terminar em um ou dois capítulos, então
aguarde e espero que você goste deste capítulo de 4,6 mil palavras (lembro-
me claramente de dizer que os capítulos terão de 2 a 3 mil capítulos em
média… o que aconteceu?)

SETH MILVIEW

Estava congelando! Os ventos mudaram, trazendo o ar gelado da montanha


para Cargidan e nos dando uma despedida gelada enquanto nos
preparávamos para partir.

Meu sopro congelou na minha frente, aumentando e se misturando com a


névoa gelada ao nosso redor. Eu franzi meus lábios e soltei, vendo-o subir e
desaparecer.

Foi uma coisa tão pequena e estúpida de se fazer, mas mesmo ser capaz de
fazer isso significava muito para mim. Há apenas alguns anos, alguns ventos
frios vinham até mim enquanto brincava com Circe, nós dois fingindo ser
dragões espalhando fogo em vez de vapor, foi o suficiente para me deixar de
cama.

Forcei meus lábios para formar um sorriso, enganando-me em pensar nessas


memórias como algo bom, antes de voltar minha atenção para a cena ao meu
redor.

Era de manhã no primeiro dia do Victoriad e estávamos todos alinhados fora


da câmara tempus warp, um pequeno edifício octogonal no coração do
campus. Muitos outros alunos, tanto aqueles que iriam competir em outros
eventos quanto aqueles que vieram nos desejar boa sorte, circulavam pelo
pátio, amontoados em grupos e enrolados em capas pesadas. Eu até notei
alguns que arrastaram seus cobertores para cá para se manterem aquecidos.

Havia muitos alunos indo para Vechor, muitos para usar o tempus warp de uma
vez, e nossa classe foi a última da fila a ser teletransportada. Lá dentro, a
Professora Abby do sangue Redcliff estava encarregada de teletransportar
cada classe por vez.

Eu olhei em volta e notei uma figura correndo no meio da multidão. A pessoa


estava enrolada em um casaco de pele animal com um capuz tão profundo e
acolchoado que escondia completamente seu rosto. Ele entrou na fila atrás de
nós e ajustou ligeiramente seu capuz.

“Olha quem tá aí, e aí, Laurel.” disse a Mayla, dando à outra garota um aceno
alegre. “Tá muito frio, né?”

Laurel espiou através do forro de pele do capuz e seus olhos se estreitaram


em um sorriso de desculpas até que ela encontrou o Professor Grey, que estava
parado ao lado dos dois assistentes. Sua voz estava ligeiramente abafada
quando ela disse, “D-desculpa, professor. Eu precisava encontrar meu casaco.
Eu o-odeio o frio…”

“Agora que estamos todos aqui”, o professor dispensou Laurel com um aceno,
“Eu tenho algumas coisas que cada um de vocês precisa ter.”

“Oh, presentes!” Laurel disse, saltando na ponta dos pés.

“Não exatamente.” o Professor Grey respondeu enquanto retirava um pacote


de itens de seu anel dimensional e os dividia com o Assistente Aphene e o
Assistente Briar.

Cada aluno recebeu dois itens. O primeiro era uma capa feita de veludo azul e
preto da Academia Central. A segunda era uma meia-máscara branca que
cobria meu rosto da linha do cabelo até abaixo do meu nariz. Um padrão de
linhas azuis escuras foi pintado sobre ele, nítidas e angulares como runas,
embora mais artística. Chifres pequenos projetavam-se do topo de cada
máscara.

Mayla ergueu o dela contra o rosto. Era idêntico ao meu, exceto pelos padrões,
que eram mais naturais e suaves, como rajadas de vento ou correntes de onda.
Ela mostrou a língua e fez um barulho bobo de rosnar.

“Eu não deveria ter que lembrar você.” Briar disse em desaprovação, seu foco
em Mayla. “Que o Soberano Kiros Vritra estará presente no Victoriad. Já que
esta é provavelmente a primeira vez para todos nós, estar na presença de um
Soberano, você precisa entender algumas coisas.

Embora esses itens nos identifiquem como representantes da Academia


Central, a máscara em particular deve ser usada sempre que você estiver à
vista do Soberano Kiros Vritra, o que, para nós, significa sempre. Nosso
comportamento no Victoriad representa não apenas a Academia, mas, uma vez
que somos do Domínio Central, o próprio Alto Soberano.

Suas vitórias não são suas, mas dele. Você não faz isso para sua própria glória,
mas para a do Alto Soberano. Qualquer insulto que você fizer, proposital ou
inadvertido, como ficar sem sua máscara ou olhar o Soberano Kiros nos olhos,
também refletirá no Alto Soberano e será punido severamente”.

A classe ficou em silêncio enquanto o resto do traje era distribuído. Laurel


pegou a dela e nos deixou para nos juntar a Enola na frente da fila.

Marcus, que estava parado bem na nossa frente, estava olhando para sua
própria máscara com uma expressão estranha e distante. Seus dedos traçaram
ao longo das linhas azuis pesadas e angulares pintadas nele.

Mayla também deve ter notado sua expressão. “O que você acha que suas
marcações representam?”

Ele olhou para ela, seu rosto se contraindo nervosamente por apenas um
segundo antes de se suavizar em seu tipo usual de expressão pronta. “Não
consigo imaginar que os padrões correspondam a nós pessoalmente de
alguma forma, você consegue? Afinal, eles devem limitar nossa identidade
pessoal perante o Soberano, não nos fazer destacar como indivíduos.”

“Oh”, disse Mayla, franzindo a testa. “Eu realmente não tinha pensado nisso.”

Yannick, geralmente quieto, se aproximou um pouco mais de Marcus e se


inclinou em nossa direção. “O Vritra se preocupa com sua utilidade, isso é
tudo. É tolice pensar de outra forma.” Ele colocou a máscara, um padrão de
cortes irregulares e selvagens que pareciam garras, e amarrou-a na nuca antes
de se afastar novamente.

A fila começou a se mover novamente quando a classe à nossa frente foi


levada para a câmara tempus warp e a multidão se dispersou enquanto as
pessoas voltavam para seus quartos. Algumas pessoas acenaram na direção
da nossa classe, mas eu sabia que ninguém estava acenando para mim.

Porém, eu não deixei esse fato me incomodar. A verdade é que, embora eu


tivesse perdido muito, esta temporada na academia tinha sido melhor do que
eu jamais poderia ter imaginado, principalmente devido às Táticas de
Aprimoramento Corpo a Corpo. Eu estava mais forte fisicamente do que nunca,
mesmo antes de ganhar um emblema. A doença com a qual vivi toda a minha
vida, que sempre esperei que me matasse, havia quase desaparecido
completamente.

Nunca, em meus sonhos mais loucos, imaginei que seria um portador de um


emblema. Até mesmo Circe esperava que eu não terminasse infeliz com uma
doença que provavelmente me mataria antes do meu vigésimo aniversário.
E eu era bom em alguma coisa. Talvez eu não fosse tão forte quanto Marcus,
tão rápido quanto Yannick, ou tão poderoso quanto Enola, mas depois de
treinar com o professor Grey, eu sabia que poderia entrar no ringue
com qualquer um deles e dar a eles uma luta justa. Mas mais do que isso, todos
os meus colegas me mostraram respeito, até Valen… talvez não tanto Remy ou
Portrel, mas pelo menos Valen os impediu de me espancarem como antes.

Se eles pudessem, eu me lembrei, incapaz de suprimir um sorriso bobo.

Olhei para o professor, que se afastou de nós para observar uma mulher de
cabelo azul se aproximando.

Eu realmente não entendi. Mesmo que ele sempre parecesse relutante, ele nos
ensinou como ser lutadores aceitáveis. Eu sabia que ele realmente não gostava
de nós, especialmente de mim. Na verdade, isso é um eufemismo muito
grande. Às vezes, pela maneira como ele me olhava, achei que ele devia
me odiar. Mas eu não tinha ideia do porquê.

Mayla me deu uma cotovelada forte nas costelas. “Então quer dizer, que você
tem uma quedinha por alguém?”

Eu vacilei e olhei para ela em confusão. “Quê?”

“Você não para de olhar para a Lady Caera.” Ela brincou, e eu percebi que devia
estar olhando para o professor Grey por um tempo, perdido em pensamentos.
“Ela é muito bonita, mas é um pouco velha para você, não é?”

Eu abri minha boca, sem ideia de como responder às provocações de Mayla,


mas o professor Grey começou a falar e eu fiquei quieto para ouvir.

“Você está atrasada.”

A professora assistente Caera olhou para trás dela, então de volta para ele,
uma mão em seu peito. “Como é que é? Você já chegou em Vechor, professor
Grey? Porque senão, parece que estou perfeitamente na hora.”

“Além disso.” Mayla murmurou, inclinando-se na minha direção, “Acho que ela
já está comprometida.”

Corei e me afastei, bem desconfortado mesmo pensando na severa vida


amorosa do professor. Fui salvo de mais provocações quando a linha começou
a se mover novamente e todos nós fomos convidados para o calor da câmara
tempus warp.

Uma vez que estávamos todos dentro, a professora Abby nos arrumou em um
círculo ao redor do dispositivo, que estava zumbindo suavemente e emitindo
um brilho quente. Alguns alunos se aproximaram, colocando as mãos para
aquecê-las.
Uma brisa soprou do nada e percebi que alguém estava lançando magia do
vento. Mayla riu e apontou: o cabelo da professora Abby estava dançando
levemente ao redor dela enquanto ela conduzia o professor Grey pelo braço
para um lugar aberto no círculo. “Estou realmente ansioso por isso, não é,
Grey?” ela perguntou, sua voz brilhante chegando na pequena câmara. “O
Victoriad é emocionante demais e há muito o que fazer! Devíamos tomar
alguma coisa durante nossa estadia lá.”

Alguns dos outros alunos explodiram em risadas abafadas, de modo que não
pude ouvir a resposta da professora.

Fosse o que fosse, a professora Abby fez beicinho enquanto se movia para o
artefato tempus warp em forma de bigorna e começava a ativá-lo.

Respirei fundo para me equilibrar, sentindo meus nervos começarem a


disparar. Não muito tempo atrás, eu teria inventado qualquer motivo para
deixar de fazer isso, mas agora… eu estava pronto. Eu estava animado até. Eu
ia me divertir e dar o meu melhor e mesmo que fosse nocauteado no primeiro
round, não importava, porque eu necessito ir para o Victoriad.

Houve uma sensação de calor e o cheiro repentino do mar.

Milhares de vozes se juntaram em um rugido caótico e eu percebi que


estávamos parados em uma enorme passarela de pedra no meio de um anel
de postes de ferro preto com artefatos de iluminação no topo. Uma dúzia de
plataformas idênticas alinhavam-se na passarela.

Antes que eu pudesse levar um segundo para olhar em volta, um homem com
uma máscara vermelho-sangue, que parecia ser algum tipo de demônio
monstruoso, entrou no centro do nosso grupo. “Bem-vindo a Vechor e à cidade
de Victorious. Professor Grey da Academia Central e da classe Táticas de
Aprimoramento Corpo a Corpo, correto?”

“Certo.” O professor Gray respondeu, não olhando para o homem, mas olhando
para os fluxos de alunos em diferentes estilos e cores de máscaras que
estavam se movendo continuamente.

“Por favor, dirija-se à área de teste”, disse o homem, apontando para a trilha
de alunos de toda Alacrya. “Área de preparação quarenta e um, no lado sul do
coliseu. De lá, você poderá assistir as outras competições, bem como se
preparar para a sua própria.”

O professor agradeceu ao homem e gesticulou para as assistentes Briar e


Aphene. “Não deixe ninguém se perder.”

Lembrando-me dos sargentos veteranos sobre os quais li nas histórias, os dois


assistentes nos agruparam em duas filas e nos guiaram para o rio de alunos e
professores vindos de outras plataformas. Fui separado de Mayla e me vi
caminhando entre Valen e Enola.
Degraus altos desciam do caminho de pedra para um aglomerado de barracas
e dosséis de cores vivas. Além do barulho dos alunos e seus professores, havia
também os gritos de dezenas de mercadores, todos lutando entre si por
atenção em meio ao caos, o zurro de feras mana, o toque de martelos de forja
e o estouro aleatório de explosões mágicas distantes.

Pairando sobre tudo isso estava um coliseu enorme. As paredes curvas se


erguiam bem acima de nós, lançando uma longa sombra sobre as barracas dos
mercadores. De onde estávamos, eu podia ver uma dúzia de entradas
diferentes, cada uma com uma longa fila de alacryanos bem vestidos filtrando-
se lentamente. No mais próximo, um grande mago com armadura estava
acenando algum tipo de varinha sobre cada participante antes de deixá-los
entrar.

“Uau, é tão… grande.” Eu disse, tropeçando na minha língua.

Atrás de mim, Valen bufou. “Tudo aquilo para um ‘uau, é grande’ é o melhor
que você pode fazer?”

Enola riu disso, esticando o pescoço para ver o topo das paredes do coliseu.
“Algo assim… pode roubar as palavras de qualquer um de nós.”

Tentei pensar em algo espirituoso para atirar em Valen, mas demorou muito e
o momento passou.

Nossa fila se dividiu em duas, um grupo indo para a esquerda enquanto nossa
classe seguia o riacho mais à direita, que nos levou por um largo bulevar entre
duas fileiras de barracas de mercadores. Todos foram imediatamente
distraídos pela enorme variedade de produtos e lembranças em exibição.

Tudo isso parecia um carnaval, com participantes bem vestidos e mascarados


vagando por toda parte enquanto uma centena de mercadores e jogadores
tentavam chamar sua atenção.

Todos nós engasgamos quando passamos por uma besta pesada de seis
pernas com uma cabeça achatada como uma pedra e bolsões de cristais
brilhantes crescendo por todo o corpo. Ele ergueu sua cabeça desajeitada para
nós e soltou um grito estridente, quase fazendo Linden tombar para trás.

Um mago que engoliu o fogo de um graveto e o fez sair pelos ouvidos dançou
ao lado do nosso grupo por várias baias antes que o assistente Briar o
espantasse, arrancando uma boa risada da classe.

Pouco depois disso, fomos todos forçados a parar quando uma procissão dos
Altos Sangue de Sehz-Clar passou à nossa frente usando ofuscantes lobos de
batalha e máscaras de joias. Um em particular chamou minha atenção, ou
melhor, o medalhão de prata pendurado em seu cinto.
“O que significa ‘No sangue existem lembranças’?” Eu perguntei a ninguém em
particular. Algo sobre a frase era familiar, mas não conseguia identificar o que
era.

“É usado por tolos que são teimosos demais para esquecer a última guerra
entre Vechor e Sehz-Clar.” Alguém disse sussurrando.

Olhando em volta, vi Pascal me encarando, mal-humorado. O lado direito de


seu rosto estava enrugado por causa de uma queimadura quando ele era mais
jovem, dando a ele uma aparência cruel, embora ele geralmente fosse um cara
muito legal.

“Oh,” eu disse, percebendo que devo ter lido em um dos muitos livros sobre
conflitos entre domínios que li. “Você é de Sehz-Clar, certo?”

Pascal resmungou e diminuiu a velocidade, olhando para um monte de adagas


enfeitadas com joias espalhadas em uma mesa ao lado do caminho. O
assistente Briar foi rápido em gritar com ele para voltar à fila, mas agora ele
foi para mais longe de mim na fila, muito longe para conversar.

A rota sinuosa para o coliseu nos levou a fabricantes de tecidos, entalhadores,


ferreiros, sopradores de vidro, padeiros e criadores de animais. Eu não pude
deixar de lamber meus lábios com o cheiro de carne assada saindo de um
açougueiro que se especializou na carne de bestas de mana exóticas.

Cada nova visão era algo que eu nunca tinha visto antes, quanto mais eu via,
mais animado ficava. Meus olhos ficaram cada vez mais arregalados à medida
que marchamos, e vi uma centena de coisas que gostaria de comprar: penas
que usavam magia sonora para traduzir sua voz e escrever tudo o que você
dizia; elixires que aguçaram sua mente e permitiram que você memorizasse
grandes quantidades de informações em pouco tempo; uma adaga que
continha seu próprio feitiço do vento e voltaria para a sua mão quando
lançada…

Na verdade, decidi que o último provavelmente não era uma boa ideia…

Por fim, fomos direcionados para uma entrada separada apenas para
participantes. Enquanto os muitos alunos de outras escolas desciam uma
longa encosta que conduzia a um túnel abaixo do próprio coliseu, nosso grupo
foi forçado a fazer uma pausa. Algumas dezenas de espectadores estavam
reunidos aqui, aplaudindo e acenando para os competidores do Victoriad
enquanto marchávamos.

“É um pouco opressor, não é?” Enola disse enquanto olhava ao redor e acenava
para várias crianças pequenas pressionadas contra a mureta perto do início
do túnel de descida.

“Sim, um pouco.” Eu admiti.


Ela se virou, sua surpresa óbvia mesmo por trás da máscara. “Um pouco? Seth,
treinei toda a minha vida para este momento e ainda estou apavorada.”

Portrel riu, tendo se esgueirado pela fila para ficar ao lado de Valen. “Pelo
menos se você se cagar, sua capa esconderá o pior, Enola.”

De repente, todos travaram, uma mão veio do nada e arranhou a nuca de


Portrel, fazendo-o gritar de dor.

“Tenha modos.” Disse o professor Grey com firmeza. “E mantenha a conversa


fútil no menor que puder.”

Portrel esfregou a cabeça e lançou um olhar azedo para um Enola com um


sorriso malicioso, mas então a fila começou a se mover novamente e nossa
turma começou a descer a rampa.

Mais do que alguns dos outros lançaram olhares ansiosos para os mercadores
enquanto mergulhávamos no túnel de entrada, onde pedras sólidas cortavam
grande parte do barulho acima. A enorme estrutura acima parecia nos
pressionar, fazendo com que todos ficassem quietos.

“Tenho certeza de que haverá tempo para gastar o dinheiro dos seus pais mais
tarde.” Disse o professor Grey no silêncio pesado, ajustando sua máscara e
olhando ao redor do túnel escuro. Portas grossas de madeira e túneis que se
cruzavam se abriam para a esquerda e para a direita em intervalos irregulares,
sugerindo uma grande rede subterrânea sob o chão do coliseu. “Por enquanto,
lembrem-se do que vocês estão fazendo aqui.”

Eu encarei as costas do professor enquanto ele se movia para a frente da nossa


classe. Aqui, no meio de tantos alunos do meu próprio nível, sua habilidade de
suprimir totalmente sua mana o fazia se destacar ainda mais. Era tão perfeito,
eu teria adivinhado que ele era um unad se eu não o conhecesse melhor.

Todos nós lentamente serpenteamos pelo interior do coliseu até que outro
caminho inclinado conduziu até a borda do campo de combate, e todos nós
demos nossa primeira olhada no quão grande a estrutura realmente era.

De acordo com As Maravilhas de Vechor, Volume Dois do historiador e


ascendente Tovorin do Alto Sangue Karsten, o campo de combate oval tinha
cento e oitenta e dois metros de comprimento e cento e cinquenta e dois
metros de largura, capaz de acomodar cinquenta mil pessoas em assentos ao
ar livre e cinquenta camarote.

Ainda assim, o livro nem chegou perto de fazer jus ao lugar. Não havia como
os números expressarem o quão grandioso era o Coliseu Vitorioso.

Dezenas de milhares de espectadores já haviam se sentado, borrando em um


mar de cores enquanto cada sangue exibia seus próprios emblemas, bem
como máscaras que representavam seus domínios e Soberanos. Alguns
aplaudiram nossa aparição, mas a maioria da multidão parecia alheia à nossa
presença.

Muitos dos homens e mulheres mais jovens nomeados e de Alto Sangue na


plateia estavam enviando rajadas de magia para criar faíscas de relâmpagos
ou raios de chamas coloridas que explodiram no ar. Sob esta exibição, várias
dezenas de guerreiros e magos já estavam no campo de batalha, treinando e
se preparando para os próximos torneios, seus gritos e feitiços aumentaram a
cacofonia e deram a impressão de uma grande batalha.

A entrada do túnel surgiu na frente da área de teste trinta e nove, e mais uma
vez os grupos de alunos se separaram para a esquerda ou para a direita.
Encontramos a seção rotulada como quarenta e um facilmente e o assistente
Briar abriu o caminho para o que era em parte um camarote e em parte sala
de treinamento.

“Isso é tão legal“, disse Remy, recebendo uma rodada de concordância de


vários outros enquanto todos olhavam ao redor.

Paredes com manchas escuras separavam cada área de palco da próxima,


enquanto a parede traseira era feita de pedra com uma única porta que dava
para um monte de túneis que levavam às arquibancadas. A frente, voltada para
o campo de combate, estava aberta, embora uma série de emissores de portal
gerassem um escudo que manteria qualquer um dentro a salvo das batalhas
mágicas que aconteciam do lado de fora.

A sala em si era espaçosa o suficiente para cinco vezes mais alunos do que
havia em nossa classe, mas nenhum de nós reclamou enquanto nos
espalhamos e começamos a explorar avidamente.

“Normalmente teríamos que compartilhar uma área de teste com toda a


delegação da Academia Central.” Valen estava explicando a Sloane. “Mas eu vi
o resto dos alunos de nossa escola sendo conduzidos na direção oposta. Meu
avô que mandou fazer isso, tenho certeza que ele queria nos dar um espaço
privado.”

O resto da classe se acomodou, mas fui atraído para a frente da área de


preparação para que pudesse olhar para o campo de batalha. Estava quase
tudo configurado e os primeiros eventos começariam em apenas algumas
horas, incluindo o nosso.

Eu descansei minhas mãos na varanda, de repente me descobrindo desejando


que Circe estivesse aqui para ver isso comigo.

Tudo o que minha irmã fez, ela fez por mim. Ela foi para a guerra por mim. Ela
morreu por mim. Mas ela nunca seria capaz de ver os resultados de seus
esforços. A guerra vencida. Seu irmão, completamente curado.
Se Circe não tivesse feito essas coisas, ela estaria viva. Mamãe e papai podiam
estar vivos. Mas eu não faria isso, pelo menos, não de qualquer maneira que
importasse.

Eu não estaria aqui.

Soltando um suspiro, olhei estupidamente para longe, olhando para o campo


de batalha sem realmente vê-lo.

Gostava de pensar que mamãe e papai estavam com Circe agora em algum
lugar do além, esperando que eu me juntasse a eles algum dia.

Meus pensamentos vagaram para talvez um dia viajando eu mesmo para


Dicathen. Afinal, se eu pudesse fazer isso, eu poderia fazer quase qualquer
coisa.

Eu poderia fazer uma lápide para ela… não, uma estátua! Não haveria—

Eu fiz uma careta, meu humor azedando. Supondo que nem todos se
transformem em pó entre os Vritra e os asuras.

“Não me diga que você já está se sentindo mal.” Disse o professor Grey,
aparecendo ao meu lado.

Eu vacilei, tropecei na minha resposta, então finalmente disse: “N-não senhor,


estou completamente bem. É só que…” Eu parei, engolindo a vontade de dizer
a ele tudo o que eu estava sentindo, sabendo, sem dúvida, que ele não queria
ouvir nada disso. “Estou bem, senhor.” Então, como se alguma força externa
de repente tivesse assumido o controle da minha boca, eu deixei escapar. “E
se eu não for bom o suficiente?”

O professor Grey me observou por alguns segundos, seu rosto impassível.


“Bom o suficiente para quem? Para a multidão dos Alto Sangue pomposos?
Para seus colegas de classe?” Ele ergueu uma sobrancelha. “Ou para você
mesmo?”

“Eu…” O que quer que eu estivesse prestes a dizer, o pensamento morreu em


meus lábios. Eu não sabia responder. Para fazer seu sacrifício valer a pena,
pensei, mas não consegui dizer isso em voz alta, porque não tinha certeza se
era mesmo verdade.

Uma buzina soou, me fazendo pular. O campo de batalha estava vazio. Quatro
enormes bolas de fogo voaram para o ar e explodiram, enviando faíscas
multicoloridas que choveram sobre o coliseu.

“Vai começar!” alguém gritou e o resto da classe se amontoou na frente em


torno de mim e do professor.

Ouviu-se um ruído surdo, tão profundo que mais senti do que ouvi e uma
enorme rampa no centro da arena começou a baixar. Quatro guardas
apareceram, marchando pelas rampas para a luz do sol e arrastando pesadas
correntes atrás deles. Presa à outra extremidade das correntes por algemas
em seus pulsos e tornozelos estava uma multidão de pessoas.

Os prisioneiros estavam vestidos com tanga e faixas de peito, seus corpos


pintados com runas. Alguns subiram a rampa, mas outros foram praticamente
arrastados. Muitos tinham cabelos tosados e raspados nas laterais para
mostrar orelhas pontudas, enquanto outros eram mais baixinhos e robustos…

Assim como os elfos e anões de Dicathen.

A multidão começou a vaiar os dicatheanos, gritando insultos e zombarias


enquanto os guardas reuniam os prisioneiros em um grupo bem no centro do
campo de batalha. Os prisioneiros se amontoaram ali, olhando ao redor com
óbvio pavor enquanto a rampa se fechava atrás deles.

Os guardas correram para fora do campo de combate e o estádio ficou quieto


novamente enquanto todos esperavam para ver o que iria acontecer. Este
silêncio durou o espaço de algumas respirações, então o barulho de trituração
veio novamente quando duas rampas menores baixaram de cada lado dos
prisioneiros.

Quatro bestas de pelo escuro subiram as rampas. Cada uma parecia um lobo,
exceto pelas pernas longas e com olhos laranja ardentes. Seus dentes tinham
o formato de pontas de flecha e brilhavam uma cor escura à luz do sol.

“Lobos das presas negras,” Deacon disse. “Classificados como monstros de


classe B na escala dicatheana. Eles têm pele resistente ao fogo e podem comer
pedras! Isso não é loucura?”

“Eu não acho que eles vão precisar de pedras esta noite.” Alguém murmurou.

As correntes caíram com um estrondo no chão, separando-se magicamente


das algemas dos prisioneiros e fazendo com que os lobos das presas negras
fugissem momentaneamente.

Os dicatheanos começaram a se mover enquanto as pessoas mais fortes e de


aparência mais saudável empurravam os mais fracos e frágeis para o centro
do grupo. Eu não senti nenhuma mana e nem vi feitiços sendo lançados.

A cautela dos lobos das presas negras não durou muito. Assim que perceberam
que suas presas estavam totalmente indefesas…

A primeira das feras se lançou no anel de defensores, suas presas escuras


fechando em torno da cabeça de um homem. Os outros três o seguiram e,
embora os prisioneiros lutassem, chutando e socando violentamente, não
havia nada que eles pudessem fazer.

As arquibancadas explodiram em barulho no derramamento de sangue.


Um arrepio repentino desceu pela minha espinha e fez minha pele arrepiar. Eu
estremeci, olhando ao redor em busca da fonte da aura fria e afiada que me
atacava como garras.

Professor Grey…

Parado ao meu lado, ele parecia, apenas por um instante, uma pessoa
totalmente diferente. Ele estava imóvel como uma estátua e seu rosto
normalmente inexpressivo estava afiado como uma lâmina. Seus olhos
dourados, escuros e implacáveis, olhavam para o campo de combate com tal
ferocidade que até me queimava internamente.

Apenas Lady Caera parecia ter notado. Quando ela estendeu a mão e enrolou
os dedos em torno de seu pulso, eu recuei, instintivamente com medo de que
a intenção de matar que eu sentia fosse atacá-la.

Então o feitiço foi quebrado e eu fiquei com uma sensação de vazio, como se
alguém tivesse escavado minhas entranhas com uma pá congelada.

Por que ver os dicatheanos o deixou tão perturbado?

A família dele morreu lá também? Eu queria perguntar.

Antes que eu pudesse criar coragem para dizer qualquer coisa, uma presença
ainda mais avassaladora instalou-se na área de palco. Imediatamente me senti
como se estivesse de volta à sala de treinamento, o aumento da gravidade me
esmagando contra o chão.

Brion e Linden se ajoelharam imediatamente e pressionaram seus rostos no


chão enquanto o resto da classe olhava em volta perplexa, a “batalha” lá fora
completamente esquecida.

Como um, nos viramos para encarar a figura que tinha acabado de aparecer
em nossa área de teste. Laurel soltou um gemido e caiu de joelhos e logo o
resto dos alunos seguiram o exemplo. Percebi com uma pontada de pânico
que apenas o professor Grey, Lady Caera e eu ainda estávamos de pé, mas
minhas pernas estavam travadas retas e eu não conseguia me mover.

Ela encontrou meus olhos, me segurou lá e eu senti como se estivesse sentado


na palma de sua mão enquanto ela me inspecionava. Tentei me ajoelhar
novamente, mas não consegui desviar o olhar do rosto dela, a única na sala
que não estava coberta por uma máscara.

A tinta roxa salpicada de ouro manchava seus lábios e suas bochechas


brilhavam com poeira estelar prateada. Seu cabelo pérola escuro se erguia em
tranças e cachos no topo de sua cabeça, descansando entre dois chifres
estreitos e espiralados. Ela usava um vestido de batalha feito de escamas que
brilhavam como diamantes negros e uma capa forrada de pele que era tão
escura que parecia absorver a luz.
Eu queria desviar o olhar, fechar os olhos, fazer qualquer coisa. Mas eu não
conseguia.

Em seguida, uma mão pesada estava em meu ombro, me forçando a sair do


meu estupor. Eu me deixei cair, caindo imediatamente de joelhos com um
grunhido de dor.

“Foice Seris.” Disse o professor Grey acima de mim. “Que prazer em revê-la.”

Capítulo 368
O Victoriad II

Reprimindo minhas emoções com um aperto de ferro frio, eu me recusei a


deixar ser tomado pela raiva, ao ver bestas de mana rasgando pessoas
desarmadas e sem magia… meu povo.

Meu estômago se revirou com a visão, enquanto o resto de mim não queria
nada mais do que usar o God Step no campo e matar aquelas bestas.

O poder de moldar a realidade em minhas mãos, mas eu não pude nem mesmo
salvar aquelas pessoas.

Me convenci de que me conter agora era para um bem maior, que era o preço
que todos tínhamos que pagar por perder a guerra.

Mas isso não tornou mais fácil de sentar e assistir aos meus colegas
Dicatheanos serem massacrados. E então houve os aplausos, que rolaram
como um trovão odioso de dezenas de milhares de espectadores enquanto se
fartavam da visão, assim como os lobos se fartavam de inocentes…

Por um único momento sombrio, odiei todos eles.

Eu imaginei o poder da Runa da Destruição sendo lançado de minhas mãos


para queimar todo o estádio e todos dentro dele, transformando-os em menos
que cinzas… mas não houve gritos ou risos vindos de nossa área de palco.
Embora eu não conseguisse desviar o olhar dos últimos momentos desses
dicatheanos, eu podia ouvir a respiração superficial e difícil dos meus alunos,
o estalo de seus dedos enquanto seguravam os trilhos, os gemidos silenciosos
de repulsa enquanto os lobos festejavam…

Então os cabelos de minha nuca se arrepiaram, quando uma força familiar


encheu o local, quebrando o feitiço da matança.

Os alunos começaram a cair de joelhos, enquanto seguiam a fonte da pressão


até a parede posterior da área do palco, onde uma figura com chifres, vestida
de preto estava nos observando.

Regis se eriçou, em um estado mental equivalente ao de ficar irritado.


Seris Vritra parecia muito diferente do que naquele dia no campo de batalha,
quando Uto quase matou Sylvie e eu. Em vez de uma general em tempos de
guerra, ela parecia nobre como uma imperatriz envolta em um vestido de
batalha preto com escamas, embora ela usasse a mesma capa preta escura
que ela tinha quando eu a vi chegar pela primeira vez em Darv.

Ao meu lado, Seth permaneceu de pé, de queixo caído e olhando fixamente.


Enquanto o resto da classe teve o bom senso de se ajoelhar, Seth parecia
congelado no lugar. O súbito aparecimento da Foice cimentou uma informação
que eu apenas imaginava até agora: Nico não era o único que sabia minha
verdadeira identidade.

Seris estava observando Seth como se ele fosse uma criaturinha divertida. Seja
qual for a razão dela para vir aqui, eu não precisava que meus alunos fossem
envolvidos nisso, então coloquei a mão no ombro de Seth e o coloquei de
joelhos.

“Foice Seris,” eu disse. “Que prazer em revê-la.”

“Professor Grey da Academia Central. Caera, do Alto Sangue Denoir.” Um


tremor percorreu os alunos ajoelhados ao som da voz prateada de Seris.
“Venham comigo.”

Ela girou, sua capa fluindo como um líquido ao redor dela, e desapareceu
através da única porta fixada na parede de pedra na parte de trás da área de
preparação. Caera saltou para segui-la, mas eu fiquei onde estava.

‘Sim, porque o que toda esta situação realmente precisava era outra camada
de complicação’, pensou Regis, nosso link transmitindo claramente sua
resignação hesitante.

O fato de Seris também ter descoberto minha identidade não foi exatamente
uma surpresa, já que Nico obviamente sabia, mas eu tinha que me perguntar
por que ela iria me contatar agora, e tão abertamente.

Mesmo com a saída de Seris, os alunos ainda estavam petrificados. Seu choque
e espanto eram tangíveis, flutuando no silêncio viscoso que o súbito
aparecimento e partida da Foice havia criado. Até o barulho da multidão havia
sido abafado, como se não fosse bem-vindo neste lugar.

“Briar, Aphene.”

Ambas as jovens estremeceram quando minha voz quebrou o silêncio, suas


cabeças levantando rapidamente, com os olhos arregalados e procurando ao
redor da sala. Os olhos de Briar piscaram várias vezes por trás da máscara,
como se ela estivesse acordando de um sonho longo e incerto.

“Você está no comando até eu voltar”, eu disse rapidamente. Em seguida,


marchei atrás de Caera e Seris.
A Foice ficou em silêncio enquanto nos conduzia pelas entranhas do coliseu.
Ela caminhava com determinação, e ainda assim seus movimentos eram
fluidos e elegantes, que sugeria um controle perfeito sobre sua forma física.
Seu ritmo confiante nunca foi interrompido, nem mesmo para olhar para trás
e ter certeza de que estávamos seguindo. Enquanto caminhávamos atrás dela,
não vimos mais ninguém, apesar da agitação constante de funcionários,
trabalhadores e escravos que deve ter enchido o subsolo.

Depois de um minuto ou dois, percebi que Caera me observava com o canto


do olho. Ela abriu a boca, mas fechou novamente sem falar.

“O que foi?” Eu perguntei, minha voz soando oca nos túneis subterrâneos, mas
ela apenas balançou a cabeça em resposta.

A cabeça de Seris virou uma fração de centímetro enquanto eu falava. Eu me


perguntava que tanta tensão estava pesando sobre os ombros de Caera, mas
mantive meu silêncio.

Eu estava desconfiado, mas não com medo. Embora Seris fosse muito distante
e misteriosa para considerá-la uma aliada, também não a considerava uma
inimiga. Se ela quisesse me machucar, houve muitas oportunidades de fazê-lo
antes do Victoriad.

Quando chegamos em um camarote com vista para o campo de combate, eu


imediatamente examinei a sala em busca de qualquer ameaça — como se
pudesse haver algo mais perigoso do que a Foice lá dentro — mas encontrei
apenas um salão luxuoso para assistir aos jogos abaixo. A decoração não me
interessou e minha atenção se voltou imediatamente para Seris.

“Fiquem à vontade”, disse Seris, seu tom leve em desacordo com sua presença
dominadora. Quando eu não fiz nenhum movimento para fazer isso, ela acenou
com a mão para afastar minha cautela. “Eu não te trouxe aqui para te
machucar, Grey, mas você já sabe disso. Você parece bem, por falar nisso.
Olhos dourados… muito sutis. Por que você não remove essa máscara para que
eu possa ver seu rosto propriamente?”

“Obrigado pela hospitalidade”, respondi, fazendo o que ela pediu. “Lugar legal,
embora um pouco solitário. Onde está Cylrit? Escondido no armário,
esperando para pular e me dar um aviso terrível?”

Seris riu. “Meu Retentor está cuidando de outra coisa para mim no momento.
Não há avisos terríveis hoje, mas isso não significa que não temos negócios a
discutir. Tenho certeza de que não vai te surpreender saber que tenho estado
te vigiando de perto desde que apareceu tão convenientemente nas
Relictombs.”

Caera se encolheu, olhando ligeiramente além de mim, não exatamente


encontrando meus olhos. “Desculpe, Grey. A Foice Seris, ela é minha guia —
minha mentora, como mencionei antes — e no início, é claro, eu não tinha ideia
de que vocês se conheciam, mas só contei a ela sobre você, porque você era
tão…” Ela fez uma pausa, mordendo o lado da bochecha. “Tão curioso e
interessante, e então ela quis saber mais sobre você, desse modo, ela me
pediu para ficar de olho em você — mas eu te disse, então espero que você
saiba que eu-”

Enquanto ela falava, notei Seris procurando meus olhos por trás dela e me
dando um sorriso tímido. Quando retornei a expressão, Caera vacilou, sua
preocupação dando lugar a uma carranca confusa.

“Está tudo bem, Caera. Quero dizer, você tem uma poderosa Foice como sua
mentora com um interesse incomum por mim?” Fiz um gesto para Seris,
incapaz de suprimir um sorriso culpado. “Eu nunca te pressionei por mais
detalhes, porque eu não precisava. Não foi tão difícil descobrir.”

Caera respirou fundo e passou uma mecha de cabelo azul entre os dedos.
“Obrigada por compreender. Vocês dois podem parar de se olharem como
bobos agora.”

“Caera de Alto Sangue Denoir, isso é jeito de falar com sua mentora?” Seris
perguntou com um leve ar de zombaria. “Sua mãe adotiva ficaria chocada.”

‘Muito elegante, a maneira como você lidou com isso. Mas acho que seria muito
infantil da sua parte, ficar todo irritado com ela por não ter contado a você,
considerando o número incontável de mentiras que você contou sobre sua
própria identidade.’ Regis zombou.

Você tem um ponto, pensei de volta. E também, cale a boca.

Seris reclinou-se contra o vidro protegido que ficava na frente da câmara.


“Você se tornou previsível, Grey.”

“Oh,” eu perguntei, erguendo uma sobrancelha para a Foice. “Quanto das


minhas realizações você previu, exatamente?”

Seus lábios se separaram para responder, mas eu vi seus olhos se voltarem


para Caera, e ela pareceu repensar o que quer que estivesse prestes a dizer.
Finalmente, ela disse apenas: “O bastante”.

Eu encontrei os olhos penetrantes da Foice, não mais sorrindo. “O que você


quer comigo agora, Seris?”

“A mesma coisa que sempre quis.” Ela se virou para a janela. Abaixo, uma dúzia
de escravos estavam limpando o que restava da bagunça deixada pelos lobos
com presas negras. “Ver o seu potencial crescer.”

A Foice se dirigiu para uma espreguiçadeira e se acomodou nela, enquanto


indicava que deveríamos sentar no sofá em frente a ela. Caera não hesitou em
atender ao pedido silencioso de sua mentora. Mudei-me para ficar atrás do
sofá, mas não me sentei, em vez disso, coloquei minhas mãos nas costas
almofadadas.

“Falando em potencial”, disse Seris, concentrando-se no meu esterno, “Caera


me disse que você trocou sua capacidade de manipular mana por misteriosas
artes do éter que nem mesmo ela entende.” Caera se mexeu
desconfortavelmente com as palavras de Seris. “Como isso aconteceu? Espero
que meu último presente para você não tenha sido totalmente desperdiçado,
ou foi?”

‘A mana de Uto não foi desperdiçada, se você quer saber’, pensou Regis com o
equivalente de deixar sua língua sair da boca com satisfação.

“Meus ferimentos na guerra foram catastróficos”, respondi, meu corpo


formigando quando me lembrei de senti-lo quebrando, devido ao uso
prolongado do terceiro estágio da vontade bestial de Sylvia. “Eu tive que
ajustar.”

“Sim, bem, isso certamente é algo que eu não poderia ter previsto”, disse ela
em voz baixa, mais para si mesma do que Caera ou eu.

“O que é que você quer comigo?” Eu perguntei de novo, com mais firmeza
dessa vez. Uma suspeita repentina me ocorreu e acrescentei: “Você me trouxe
aqui… Para o Victoriad?”

Os lábios pintados de Seris se curvaram. “Eu admito, me doeu ver você sentado
de mãos abanando naquela universidade por tanto tempo. Um professor,
sério?” Ela me lançou um olhar de desaprovação, como se eu me importasse
com o que ela pensava sobre minhas ações em Alacrya. “Como eu disse,
previsível. Mas você também está certo, eu providenciei para que sua classe
estivesse aqui.”

“Por quê?” Eu perguntei, tentando juntar essa nova informação a tudo o mais
que eu já sabia.

“Porque eu queria te lembrar quem você é e o que está em jogo,” ela disse,
sua voz carregada de autoridade, uma mudança brusca de tom em relação ao
resto de nossa conversa. “Para esse fim, arranjei sua presença neste local, para
pedir algo a você. Pense nisso como cobrar uma dívida que você me deve.”

“Dívida?” Eu perguntei, sem saber se gostaria para onde isso estava indo.
“Então você não me ajudou simplesmente por causa da bondade do seu
coração? Chocante…”

Caera se virou lentamente, olhando para mim com olhos do tamanho de luas
cheias. Sua mandíbula estava cerrada com tanta força que pensei que ela fosse
quebrar um dente.
Seris, porém, apenas se ajustou para ficar mais confortável. “Eu quero que
você desafie Cylrit para ser meu retentor.”

Isso parecia ser demais para Caera, cuja boca se abriu de surpresa. Ela
arrancou a máscara, rompendo a corda e a deixou cair no sofá ao lado dela.
“O que está acontecendo aqui?”

Eu disfarcei minha própria surpresa sob um sorriso irônico. “E o que eu tenho


a ganhar fazendo isso?”

“Presumo que seja uma pergunta retórica, porque ambos sabemos o motivo
real de você estar aqui”, disse ela, seu tom era o de um juiz dando seu
veredicto.

‘Diga pra ela que é foice ou nada.’ brincou Regis. ‘Não planejamos ficar na
sombra de ninguém.’

“Você não quer que eu seja seu retentor,” eu adivinhei, considerando


rapidamente os vários objetivos que ela poderia perseguir com este curso de
ação. “Você quer que eu chame atenção para mim.”

Ela acenou com a cabeça. “Ao derrotar Cylrit e recusar o papel de retentor,
você estará enviando uma mensagem muito clara.”

Agrona sabe que estou aqui, percebi com absoluta certeza, me perguntando se
Seris poderia ter contado a ele, ela mesma. Afinal, para quem mais ela
precisaria enviar uma mensagem. Mas ele já tem o que quer e não se importa
mais comigo.

Essa percepção me atingiu como um trovão. Todo esse tempo em Alacrya,


sempre achei que ele me faria uma prioridade se descobrisse que eu tinha
sobrevivido à minha batalha contra Nico e Cadell. Eu tinha medo de que as
Foices chutassem a porta da minha sala de aula ou chovessem fogo e ferro
preto no Windcrest Hall enquanto eu dormia.

Mas descobri que Agrona descobriu que eu não apenas tinha sobrevivido, mas
estava morando em suas próprias terras, e mesmo assim ele não se importou…

Estava conflitante, para dizer o mínimo.

‘Se Agrona não acha que somos uma ameaça, esse é seu próprio erro de cálculo
idiota,’ Regis pensou com um grunhido. ‘Mas se a deusa com chifres ali quer
que nós nos exponhamos…’

Esse conhecimento colocou todo o meu plano em questão. Enquanto Agrona


saber que eu estava vivo — e onde eu estava — não era exatamente ótimo,
Regis tinha razão. Me ignorar foi um erro da parte dele, que eu ficarei feliz em
capitalizar. Mas se eu chamasse sua atenção agora, mostrasse meu poder
antes de estar pronto…
“Esse plano parece ruim para mim, e eu não tenho certeza de como ele
beneficia você também,” eu me esquivei, curioso do quanto de seu plano Seris
desistiria, antes de me fazer confirmar minhas intenções.

“Oh, vamos, coloque essa sua mente inteligente para trabalhar,” ela insistiu, a
autoridade esmagadora desapareceu de sua voz, que era mais uma vez leve e
provocante. “Quanto tempo você planeja correr e se esconder?”

Sentada na minha frente, Caera permaneceu quieta, embora ela ainda


estivesse com uma expressão confusa, e eu podia ver as engrenagens em sua
cabeça girando enquanto ela lutava para entender a conversa.

Endireitando-me, olhei para a Foice. “Não vou desafiar Cylrit.”

A boca de Seris se estreitou em uma linha dura.

“Mas eu ainda vou enviar sua mensagem,” eu continuei tomando minhas


decisões apenas enquanto dizia as palavras em voz alta. “Vai ser alto e
bastante claro.”

Seris se endireitou e se levantou. Mesmo que ela fosse um pouco mais baixa
do que eu, quando ela olhou nos meus olhos parecia que ela estava me
subestimando. “Eu preferiria que você me dissesse exatamente o que vai fazer.
Talvez possa ajudar.”

“Vamos, Seris”, eu disse, imitando a mesma expressão provocadora que ela


usava apenas um momento atrás, “coloque essa sua mente inteligente para
trabalhar.”

Ao ouvir os passos de Caera pararem, também parei e me virei para encará-la.


Estávamos nas profundezas do subsolo, e a pedra ao nosso redor vibrava com
o barulho de aplausos e batalha lá de cima.

O olhar de Caera estava no chão aos meus pés, o pouco de suas feições que
eu podia ver por trás de sua máscara, deprimida.

“Trilby comeu sua língua?” Eu perguntei, sem tentar adivinhar que parte da
minha conversa com Seris fez sua cabeça girar. Eu não conseguia nem imaginar
que tipo de história selvagem ela estava criando em sua mente.

Caera murmurou nervosamente enquanto erguia os olhos para encontrar os


meus. “Eu quero que você saiba que pode confiar em mim. Obviamente, há
muitas coisas que não sei sobre você e com base no que acabei de
testemunhar entre você e uma Foice, quaisquer noções fantasiosas que tive
até agora são terrivelmente imprecisas.”
Eu examinei o túnel escuro onde paramos. Terminava em um cruzamento logo
à frente, onde virar à esquerda nos levaria de volta ao campo de combate e à
área de preparação, enquanto o caminho mais à direita nos levaria para fora.

Fazendo alguns cálculos rápidos sobre quanto tempo tínhamos antes do início
do torneio, sorri e estendi meu braço. Caera olhou para mim com incerteza
antes de deixar sua mão descansar na dobra do meu cotovelo.

“Vamos dar uma volta e limpar nossas cabeças um pouco, antes de nos
sujeitarmos às milhões de perguntas que provavelmente estão se formando
na cabeça dos meus alunos”, eu disse com uma risada suave.

“Não tenho certeza se eu, uma humilde Alto Sangue nascida com sangue Vritra,
mereço ser vista caminhando de braços dados com uma figura tão bem
conectada e misteriosa como você”, ela brincou.

“Talvez não, mas vou conceder-lhe esta honra apenas desta vez,” eu me lancei
rapidamente, levando-a em direção à saída.

O barulho lá fora era ensurdecedor depois do silêncio abafado das passagens


subterrâneas. Mercadores gritando, bestas de mana berrando, e milhares de
alacryanos animados gritavam uns para os outros, para serem ouvidos.

Saímos da multidão, descendo por becos menos apinhados, embora isso


tivesse a desvantagem de nos tornar alvos mais fáceis para muitos vendedores
e apostadores.

“Ei, senhor com os olhos dourados, pare aqui para ganhar um belo prêmio para
sua bela dama”, cantou um homem com uma máscara de prata brilhante,
acenando para que nos encaminhassem para seu carrinho.

Um homem gordo fez uma reverência ao passar e praticamente gritou na nossa


cara. “Pedras preciosas! Pedras preciosas aqui! Melhores cortes, melhores
cores! Safiras para combinar com o lindo cabelo da senhora, ou talvez rubis
para seus olhos encantadores!”

Pela primeira vez em um tempo, eu realmente senti falta de ser um mago


quadra elemental. Um feitiço de barreira de vento simples teria tornado a
caminhada muito mais pacífica.

“Por que está sorrindo?” Caera perguntou.

Eu consertei meu rosto. “Nada, apenas… me perguntando como você ficou sob
a tutela de Seris.”

“Ah, sério?” Ela perguntou, seu olhar seguindo a linha de carrinhos coloridos,
lonas e tendas. “Você já sabe mais sobre mim do que talvez qualquer outra
pessoa no mundo, embora você seja um livro trancado com páginas fora de
ordem, codificadas e provavelmente escritas em tinta invisível…” Ela parou,
me lançando um olhar irônico, então suspirou. “Mas, sem dúvida, vamos falar
sobre mim.”

“Crianças com sangue Vritra, aqueles de nós com sangue puro o suficiente para
potencialmente manifestar a magia Vritra, não são comuns, mas não somos
tão raros ao ponto de cada um de nós termos sua própria Foice também.” Uma
mulher que reconheceu Caera, uma vendedora de artigos de couro
extremamente caros, gritou, e Caera deu-lhe um pequeno aceno enquanto
continuávamos. “Ela alegou ter me escolhido por causa da posição de Alto
Sangue Denoir, que é claro, só cresceu depois de ser designada uma filha
adotiva de sangue Vritra, mas eu sempre me perguntei…”

“Se ela soubesse de alguma forma? Que você…” Fiz um gesto para sua cabeça,
onde seus chifres foram mantidos invisíveis pelo pingente de lágrima que ela
usava ao redor do pescoço.

“Certo,” ela respondeu. “Eu tinha… oito, talvez nove anos quando ela começou
a me treinar, me tornando não apenas um sangue Vritra e um Alto Sangue
adotado, mas também protegida de uma Foice. Isso contribuiu para uma…
infância conturbada.”

“Por que você acha que ela ajudou a mantê-la escondida?” Eu perguntei,
baixando minha voz enquanto um grupo de Alto Sangue passava
vagarosamente, vestidos tão brilhantemente que poderiam ter sido
confundidos com pavões. “O que ela quer com você?”

Caera me olhou com curiosidade. “Você está me perguntando para meu


benefício ou seu próprio benefício? Talvez tentando descobrir o que ela quer
com você a longo prazo?” Ela balançou a cabeça. “Ainda não consigo acreditar
que ela pediu a você para ser seu Retentor.”

Mas ela não me pediu, sério. Ela só quer que eu lute contra ele, lembra?”
Apontei.

“O que só torna tudo mais confuso, pelo menos para mim”, disse Caera,
parecendo confusa. “Eu não vou pressioná-lo a explicar nada — embora eu
fique feliz em ouvir, quando você decidir explicar — e prometo não usar isso
contra você se você decidir esconder algumas coisas” — Regis soltou um bufo
mental — “mas por que ela iria querer que você chamasse atenção para si
mesmo? De quem? Com qual objetivo?”

Caera mordeu a própria língua por um segundo antes de continuar,


obviamente dando voz a algum pensamento que a estava incomodando. “Você
é… um amante da Foice Seris?”

Quase engasguei com minha surpresa, a pergunta me pegando totalmente


desprevenido.
‘Isso é um novo nível de “manter seus inimigos mais perto”,’ Regis pensou com
uma risada latida.

“Não,” eu finalmente respondi, esfregando minha nuca. “Nada remotamente


parecido com isso.”

Ela me deu um aceno frustrado de cabeça. “Então eu simplesmente não


entendo.”

“Eu sei”, eu disse, parecendo repentinamente cansado, até mesmo para meus
próprios ouvidos, “mas um dia você saberá.”

“Isso vai ter que ser bom o suficiente então, eu acredito.” Ela disse com um
sorriso envergonhado. “De qualquer forma, é melhor voltarmos para a sua
turma. Suas lutas devem começar em breve.”

Capítulo 369
O Victoriad III

SETH MILVIEW

“Eles saíram já tem tempo,” Pascal murmurou para Deacon, que estava de pé
ao lado dele. Estávamos todos alinhados enquanto a Assistente Aphene nos
conduzia por uma série de movimentos e posturas para aquecer nossos
músculos. “O que, em nome do Alto Soberano, a Foice de Sehz-Clar iria querer
com nosso professor, afinal?”

“Talvez ele tenha ofendido ou irritado ela de alguma forma?” Deacon sugeriu,
mexendo nervosamente com sua máscara.

Como eu, Deacon geralmente usava óculos, mas não era possível usá-los com
as máscaras. Felizmente, minha visão estava melhorando lentamente desde
que minha doença debilitante foi embora, mas Deacon constantemente tinha
que parar e olhar de soslaio para a Assistente Aphene para ver em que posição
ela havia torcido seu corpo atlético.

“Não seja estúpido,” Valen zombou. “Uma Foice não viria pessoalmente para
isso. Ela enviaria seu retentor, ou talvez apenas um bando de soldados. Com
quase todas as Foices presentes no Victoriad, é de se esperar que eles
apareçam pessoalmente em algum momento.”

“Talvez o professor seja o amante secreto da Foice Seris Vritra!” Laurel deu
uma risadinha, escondendo a boca atrás de uma de suas longas tranças.

Mayla se inclinou para mim e sussurrou: “Alguém precisa desencanar das


histórias românticas bregas.”

“Ou ele está treinando para substituir o retentor dela,” Marcus sugeriu. “Todos
nós vimos o quão assustador ele pode ser quando quer. Você conhece mais
alguém, até mesmo professores, que pode treinar tão facilmente em gravidade
máxima na plataforma de luta da escola? Ele nem sequer suava.”

Valen deu de ombros, saindo da forma por um instante.

A assistente Briar estava andando entre nós, e oferecendo pequenas correções


na forma de nossos movimentos. Seu cabelo laranja e amarelo estava puxado
para trás, o que dava um ar assustador pra ela. Como se ela estivesse se
preparando para chutar a bunda de alguém. “Menos conversa, mais esforço”,
ela repreendeu.

“Teorias interessantes,” Valen continuou, sua voz mais baixa, “mas poderia ser
mais mundano do que isso. Eu já conheci pessoalmente as Foices Cadell Vritra,
Dragoth Vritra e Viessa Vritra. É…”

“E eu beijei a Foice Melzri Vritra”, disse Yanick, interrompendo a conversa e


arrancando uma risada surpresa de todos, até mesmo de Valen. A assistente
Aphene limpou a garganta e afastou a franja escura dos olhos enquanto se
movia para uma nova postura.

“O que eu estava tentando falar,” Valen disse enquanto o barulho diminuía, “é


que não é incomum que as Foices façam conexões sociais com sangues de alto
escalão.”

“Só que o Professor Grey não é um nobre de alto escalão, até onde sabemos,”
Deacon apontou, levemente ofegante por falar e se alongar ao mesmo tempo.
“E além disso, a Foice Seris Vritra é conhecida por ser uma reclusa. Ela
não faz visitas sociais.”

Fiquei de fora da conversa, envergonhado demais por congelar na frente da


Foice para dizer qualquer coisa ou chamar a atenção para mim.

E é claro que Mayla escolheu aquele momento para se inclinar para mim
novamente e perguntar: “Ei, você está bem? Você parece um pouco abalado.”

“Tá mais para congelado”, disse Pascal, iniciando outra rodada de risadas mal
reprimidas. Mayla lançou um olhar de advertência, e ele ergueu as mãos,
balançando levemente. “Brincadeira, calma.”

A assistente Aphene limpou a garganta novamente, mas antes que ela pudesse
repreender alguém por conversar, todos os olhos se voltaram para a frente da
área de preparação, onde um oficial do evento usando uma máscara de
demônio vermelho tinha acabado de aparecer, marchando até nosso espaço e
olhando ao redor.

Quase no mesmo momento, a porta na parede dos fundos da área de


preparação se abriu, e o professor entrou, com Lady Caera logo atrás dele. O
professor levantou a mão e parecia prestes a dizer algo para a classe quando
reparou no oficial.
“Professor Grey da Academia Central? o funcionário perguntou em um tom
cortante.

“Você está aqui por causa do torneio?” o professor perguntou. “Espero não ter
feito você esperar muito.”

Os olhos do funcionário se estreitaram por trás da máscara enquanto ele


atravessava a sala e estendia a mão, que o professor apertou superficialmente.
“Você não fez, o que é bom porque eu tenho mais quatro líderes de equipe
para encontrar.”

Ele fungou indignado e começou o que parecia um discurso muito ensaiado.


“Os duelos não mágicos desarmados começam em vinte minutos, Professor.
Várias partidas acontecerão simultaneamente, mas seus alunos serão
colocados nessas plataformas mais próximas quando possível. Os alunos
devem estar prontos no ringue designado o mais tardar cinco minutos antes
do início da luta. Este é um torneio de eliminação única. A perda ocorre por
nocaute, desistência ou por ser forçado a sair do ringue.

“Tenho certeza que não preciso lembrá-los, mas a magia não é permitida
sob nenhuma circunstância. Qualquer uso de mana, além do fortalecimento
latente do corpo causado pela presença de runas, resultará na perda imediata
da partida e na expulsão do Victoriad. Além disso, atacar com intenção de
mutilar ou matar também é proibido.”

Ele respirou fundo enquanto desenrolava o próximo pedaço de seu


pergaminho. “Os primeiros competidores da Academia Central são: Enola, de
sangue Frost, no ringue seis. Deacon, de sangue Favager, ringue sete. Portrel,
de sangue Gladwyn, ringue nove. Sloane, de sangue Lowe, ringue onze.”

Eu suspirei de alívio. Pelo menos eu não era um dos primeiros a lutar, então
não seria o primeiro a ser eliminado do torneio. Provavelmente.

O professor Grey verificou com os quatro alunos nomeados para garantir que
eles tinham entendido seus respectivos ringues, então agradeceu ao oficial.

Ele assentiu de volta. “Também pedimos que o líder da equipe – neste caso,
você, professor – permaneça presente caso surja algum problema.” Girando
nos calcanhares, o homem se apressou para fora de nossa área de preparação,
em direção à próxima.

“Bem, todos vocês o ouviram. Vamos…”

O professor fez uma pausa, seu olhar varrendo os alunos.

“Vocês parecem um bando de pintinhos esperando para serem alimentados”,


disse ele com um suspiro. “Suponho que nenhum de vocês vai se concentrar
até que eu explique, correto?”
“O que a Foice queria com você?” A assistente Briar perguntou em um tom
abafado.

O professor deu de ombros. “Bebemos chá e conversamos casualmente. Nada


especial.”

A assistente Briar bufou e revirou os olhos quando a assistente Aphene passou


um braço em volta de seu ombro, sorrindo. “Meu avô não vai acreditar que eu
estava tão perto de uma Foice, nem mesmo no Victoriad!”

Laurel se inclinou para perto de Mayla. Em uma voz cantante, ela sussurrou:
“Amante secreto”.

Todos explodiram em perguntas e comentários animados, mas o professor fez


um gesto para nos aquietar. “Enola, Deacon, Portrel, Sloane… Vão para os seus
respectivos ringues. O resto de vocês, prestem atenção.”

Enola e os outros se apressaram para as fileiras de ringues de combate e


esperaram. Assim como o oficial havia dito, eles estavam bem próximos, perto
o suficiente para ver todas as quatro lutas ao mesmo tempo. Corri para a frente
para ter uma boa visão, o resto da classe logo atrás de mim, e acabei
espremido entre Mayla e Brion.

Enola foi a primeira a entrar em seu ringue, caminhando confiante pelas


escadas logo atrás do oficial que a conduzia, seus cabelos dourados brilhando
à luz do sol.

Deacon, por outro lado, andava como se estivesse sendo enviado para o
escritório do diretor, seus pés arrastando no chão, sua cabeça girando
constantemente para olhar para nós.

Quando Portrel fez o mesmo, bufei com um sorriso. Depois de toda a sua
conversa fiada sobre eu estar nervoso, lá estava ele, constantemente olhando
por cima do ombro para olhar para Valen, mesmo quando ele estava no ringue
em frente ao seu oponente.

Os combatentes foram apresentados um por um, atraindo alguns aplausos


animados da platéia, mas principalmente de seus próprios colegas de classe
em cada área de preparação. Em seguida, um organizador e um árbitro
gritaram as instruções, suas vozes se misturando e ficando enlameadas
competindo entre si e com a multidão.

De acordo com o que eu tinha lido sobre o Victoriad, os torneios estudantis


eram em sua maioria apenas um evento de aquecimento – incrivelmente
importante para os alunos e nossos sangues, mas ainda assim sem muito
público.
O fato de que as arquibancadas estavam apenas meio cheias provava isso, mas
não me incomodava. Uma multidão menor significa menos pessoas para me
ver levar uma surra…

Os oficiais levantaram a mão direita e, de uma só vez, gritaram para começar.

Foi caótico tentar acompanhar todas as quatro lutas ao mesmo tempo, sem
mencionar todas as outras batalhas acontecendo na nossa frente que não
eram da Academia Central. Eu vi Deacon mal se esquivar quando uma garota
de pele escura com um moicano verde-musgo pulou e tentou dar uma
joelhada no peito dele, mas ao mesmo tempo Sloane acertou um soco que
derrubou seu oponente no chão, e minha atenção se voltou para sua luta.

Sloane pulou em seu oponente, um garoto de ombros largos em um uniforme


verde e dourado, jogando joelhadas e cotoveladas, mas Deacon soltou um
grunhido e então eu voltei para sua luta bem a tempo de vê-lo tropeçar para
trás através da barreira de proteção para cair duro no chão.

Ao meu lado, Brion escondeu o rosto na mão, e houve um coro de gemidos do


resto da classe.

Mayla agarrou meu cotovelo e apontou para Portrel, e senti uma pontada
distinta de inveja vendo o garoto maior agarrar o punho de seu oponente no
ar. “Ele é tão forte”, eu murmurei.

“É, loucura. Ah, essa doeu!” Mayla estremeceu quando Portrel jogou o garoto
com quem estava lutando no chão antes de nocauteá-lo com três socos
rápidos no rosto.

“Isso aí! Nocaute nele!” Remy gritou, seus punhos erguidos no ar acima de sua
cabeça.

Outro aplauso subiu, e eu percebi com um choque de excitação que Sloane


ganhou sua partida também. “Muito bem, Sloane!” Eu gritei, rindo quando
Brion jogou o braço em volta do meu pescoço e pulou de emoção, torcendo
junto comigo.

Várias outras lutas também já haviam terminado, tornando mais fácil ver os
ringues de trás, onde Enola ainda lutava de igual para igual com uma garota
que era pelo menos dez centímetros mais alta e quinze quilos mais pesada
que ela.

Mas isso não importava. Enola lutou como um demônio louco. Ela era tão
talentosa que era difícil acreditar que eu estava competindo no mesmo torneio
que ela. Mesmo que a outra garota fosse maior, Enola era uma lutadora muito
melhor.
Ouvindo a ovação de uma torcida em outra área de preparação, inclinei-me
sobre o corrimão e apontei os alunos da outra escola para Mayla. “Você sabe
de que academia eles são?”

“Não tenho certeza”, disse ela com um encolher de ombros, sem tirar os olhos
arregalados da luta de Enola.

“Academia Bloodrock,” Marcus disse, aparecendo entre mim e Brion. “Eles


tentaram muito me recrutar, mas meus pais estavam determinados a me
enviar para o domínio central para treinamento.”

“Eles parecem muito intensos”, eu disse, observando as fileiras de alunos


gritando e pisando em uníssono. Havia muito mais deles do que de nós, já que
nos deram uma área de preparação particular longe do resto dos alunos da
Academia Central.

Laurel começou a torcer, “E-no-la! E-no-la!” e acenando com os braços para


todos os outros, nos encorajando a torcer junto. O nome ecoou pelo estádio
com o ritmo de um tambor.

Nosso canto continuou até que a luta acabou, que foi vários minutos depois
das outras. Eu me envolvi tanto que me vi mergulhando e me abaixando,
acompanhando os movimentos de Enola sem pensar.

“Ei, cuidado, Seth,” Marcus resmungou quando eu acidentalmente pisei em seu


pé.

Eu parei e dei-lhe um sorriso de lábios apertados. “Uh, foi mal.”

Mayla riu, me cutucando nas costelas. “Você é tipo um nerd de luta, Seth.”

Eu mostrei minha língua para ela, mas depois voltei minha atenção para a luta.

Ficou bem claro quando a garota maior começou a se cansar, e quando isso
aconteceu, Enola se aproximou para terminar com uma das combinações
especiais que o Professor Grey nos ensinou.

Ela deu vários socos e chutes em rápida sucessão, cada um cronometrado para
tirar vantagem da ação defensiva mais provável de sua oponente, levando a
garota ao desespero. Cada esquiva ou bloqueio era mais selvagem e
imprevisível que o anterior, e ela terminou com uma cotovelada giratória na
menina indefesa. Ou pelo menos foi assim que o professor explicou.

Nossa área de preparação explodiu. Mayla pulou nas minhas costas, me


surpreendendo e quase me derrubando, mas nós apenas rimos e aplaudimos
ainda mais alto.

Enola, Sloane, Deacon e Portrel entraram na área de preparação logo após


aplausos barulhentos.
Eu dei um tapa no braço de Deacon. “Não fique tão triste. Você não se saiu tão
mal, considerando que nem conseguia ver direito.”

“Tanto faz, pelo menos agora eu posso apenas sentar e relaxar”, ele murmurou,
me dando um sorriso agradecido. “E ver o resto de vocês apanharem, é claro.”

Eu queria parabenizar Enola também, mas fiquei com o grupo de Deacon,


Mayla e Linden quando percebi que ela estava indo atrás do professor.
“Então… Como eu me saí?” ela perguntou, quase baixinho demais para eu
conseguir ouvir com Remy e Portrel lutando e gritando um com o outro.

“Sua execução foi um pouco descuidada. Você teria vencido na metade do


tempo se tivesse…” Ele fez uma pausa, então pareceu relaxar um pouco. “Você
se saiu bem.”

Enola sorriu enquanto se afastava, e trocamos olhares por um instante. Eu dei


a ela um polegar para cima e murmurei, “Ótimo trabalho”, então ela foi
absorvida pelo grupo enquanto Brion, Linden, Marcus e Pascal começaram a
enchê-la de perguntas e reviver seus momentos favoritos de sua luta.

Parecia que apenas alguns segundos se passaram antes que o oficial


mascarado estivesse de volta, interrompendo a celebração em nossa área de
preparação. Ele repetiu a parte de seu discurso anterior sobre onde ir e não
usar magia, blá blá blá, e eu senti a tensão em meu corpo enquanto ele se
preparava para anunciar a próxima rodada de lutas.

“Remy, de sangue Seabrook, ringue sete; Laurel, de sangue Redcliff, ringue


oito; Mayla, de sangue Fairweather, ringue nove; Seth, de sangue Milview,
ringue onze.”

Uma mão me agarrou e apertou. “Boa sorte, Seth!” Mayla disse animadamente.
“Vamos mostrar a todos o quanto aprendemos, ok?”

“Sim”, eu disse, minha voz saindo rouca.

Então estávamos todos marchando para o campo de combate junto com uma
dúzia de outros alunos de outras escolas. Eu imediatamente apaguei e esqueci
para qual ringue eu deveria ir, e acabei andando em círculo antes que um
oficial me pegasse pelo braço e me arrastasse para o ringue onze. Meu rosto
queimou quando ouvi risos da área de preparação mais próxima, mas não me
virei para olhar de qual academia era.

Pisquei e de repente o oficial estava me empurrando para a plataforma de


combate, em frente ao meu oponente.

Ele não era muito mais alto do que eu, mas era atlético, muito diferente de
mim. Eu tinha braços pálidos e finos, mas os dele eram bronzeados e
musculosos. Minhas pernas tremiam, mas as dele eram fortes como troncos de
árvores. Seu uniforme era vermelho e cinza, e ele usava uma máscara preta
com runas escarlates pintadas.

“Não é justo!” alguém por perto gritou. Desta vez eu me virei para olhar e
percebi que estava bem ao lado da área de preparação da Academia
Bloodrock. Um menino enorme — se é que era um menino, e não um ogro da
montanha disfarçado — estava encostado no parapeito e balançando a cabeça.
“Como você teve tanta sorte, Adi? Eu não sabia que eles estavam deixando
criancinhas competir neste evento.”

Todos os seus colegas deram gargalhadas apreciativas e aplaudiram meu


oponente, que estava sorrindo agora sob sua máscara preta.

O oficial disse algo que não entendi, então um gongo pesado anunciou o início
da luta.

Meu oponente nem mesmo adotou uma postura, apenas passeou pelo ringue
em minha direção. Com um ar casual, ele deu um chute na direção da minha
barriga, olhando para mim com uma mistura frustrante de pena e desdém.

Meu treino me fez reagir. Dei um passo para o lado e para a frente enquanto
mirava um chute baixo em seu tornozelo, tirando seu pé do chão. Ele caiu
direto com um grunhido de dor, suas pernas indo em direções opostas, mas
eu já havia invertido minha postura e chutado para trás com a outra perna,
meu calcanhar conectando solidamente com a têmpora do meu oponente.

Ele caiu de lado, a máscara torta e os olhos rolando para trás em seu crânio.

E acabou. Pares de alunos ainda estavam lutando ao meu redor, mas o juiz que
julgou minha luta pulou no ringue e gritou minha vitória acima do barulho,
então me instruiu a esperar ao lado do ringue até que todas as lutas
terminassem. O garoto atordoado se mexeu, então parei e ofereci minha mão
para ajudá-lo a se levantar, mas ele a afastou e se esforçou para se endireitar.

Descendo os degraus para o chão do campo de combate, olhei em volta para


as outras lutas sem realmente vê-las, sem ter certeza ainda do que havia
acontecido.

“Boa sorte, woggart”, disse o garoto grande atrás de mim, cruzando os braços
enquanto se levantava. Ele era tão alto quanto Remy, mas musculoso como
Portrel. Seus olhos eram de um vermelho sangue escuro por trás de sua
máscara. “É melhor você torcer para não acabar no ringue comigo. Eu vou
quebrar sua bunda magrela em duas.”

Fazendo o meu melhor para não parecer tão assustado quanto eu me sentia –
qualquer alegria pela minha vitória esquecida – eu tentei observar Mayla, mas
minha cabeça parecia estar cheia de alcatrão, e eu só pensava no grande e
furioso ogro me encarando na área da Bloodrock, e me perguntava se ele ia
pular em mim como um animal selvagem.
Vários minutos se passaram em um transe antes que eu fosse instruído a voltar
para a área de preparação com Mayla, Laurel e Remy. Com uma pontada de
culpa, percebi que nem tinha visto se Mayla ganhou.

Pelo jeito que ela estava sorrindo, no entanto, eu achei que sim. “Eu perdi toda
a sua luta!” ela disse animadamente enquanto caminhávamos lado a lado.
“Tipo, eu pisquei e acabou. O que aconteceu?”

“Ele ganhou!” Yannick gritou, pulando o corrimão e correndo para nós, seguido
por Marcus. Antes que eu soubesse o que estava acontecendo, eu estava
sentado em seus ombros sendo balançado enquanto eles começavam a gritar:
“Se-e-th! Se-e-th! Se-e-th! Se-e-th!”

Eu tive que me abaixar para evitar bater com a cabeça quando entramos na
área de preparação, que estava em alvoroço.

“Foi um puta movimento!” alguém gritou.

“Vitória mais rápida até agora”, disse outra pessoa, e continuou assim por um
minuto ou mais, com todos gritando e me parabenizando.

Eu gostaria de ter apreciado mais, porém minha mente estava zumbindo e eu


tive dificuldade em acompanhar o que estava acontecendo. Meus
pensamentos saltaram da sensação surreal de ser aplaudido para a memória
da luta – que agora parecia um sonho meio esquecido, e então para a ameaça
do menino Bloodrock…

Bati o olho no Professor Grey, e meu humor se neutralizou. Ele não disse uma
palavra, mas me deu um aceno de cabeça antes de se virar para dar as boas-
vindas ao oficial do evento, que estava de volta mais uma vez.

Quando a primeira rodada de batalhas acabou e todos lutaram, apenas


Deacon, Remy e Linden perderam. As lutas duraram mais na segunda rodada,
mas com apenas metade dos combatentes restantes, foi rápido.

O destaque foi definitivamente quando Laurel soltou um grito de pânico


quando por pouco não pegou o joelho de seu oponente em direção a sua boca,
acabou tropeçando para trás e caiu do ringue sozinha, o que, é claro, foi
recebido com grunhidos e um silêncio constrangedor por parte do resto da
turma. Mas ela não foi a única aluna a cair no segundo turno; Sloane, Pascal e
Brion se juntaram a ela logo depois.

Por mais que eu queira dizer que minha segunda luta foi tão legal quanto a
primeira… não foi. Minha oponente era uma garota de alguma academia em
Etril, e ela ficou para trás e saltou ao redor do ringue como se estivéssemos
em um baile formal em vez de um torneio de combate. Nossa luta na verdade
foi a mais longa, e só terminou quando eu corri pra agarrá-la e jogá-la para
fora do ringue.

Ainda assim, fiquei feliz por não ter tirado o grande ogro de Bloodrock, pelo
menos até Mayla ser chamada para o ringue onze…

Eu gemi, me sentindo um pouco doente quando ele pulou na plataforma


diante dela, estalando os dedos e olhando de canto d’olho como um bandido
de rua comum.

“Mayla, sangue Fairweather contra Gregor, sangue Volkunruh”, anunciou o


oficial, sua voz perdida em um emaranhado de outras, e então o gongo soou.

Gregor trovejou pelo ringue e deu um grande golpe com as costas da mão em
Mayla. Ela rolou por baixo e chutou a parte de trás do joelho dele, mas ele
girou com uma velocidade assustadora e tentou pisar nela. Ela mal se jogou
para fora do caminho, mas tinha sido uma armadilha. Usando a perna que ele
pisou, ele se lançou na outra direção, seguindo-a.

Quando o joelho dele atingiu o peito dela, Mayla foi levantada do chão e
jogada no ar. Meu próprio peito e estômago se contraíram como se eu tivesse
sido chutado, mas meu primeiro pensamento foi que pelo menos a luta havia
acabado, e ele não tinha machucado ela tanto assim.

Eu engasguei com esse pensamento quando seu punho enorme envolveu seu
tornozelo, puxando o corpo em pleno ar de volta para a plataforma ao invés
de deixar sair do ringue.

“Ei!” Eu gritei, minha voz falhando um pouco. Parecia muito claro para mim que
Gregor tinha toda a intenção de machucar Mayla, não apenas vencê-la, mas a
arbitragem oficial da luta não reagiu.

Mayla estava atordoada no chão e nem tentou bloquear ou esquivar quando a


bota de Gregor acertou em suas costelas, fazendo-a rolar pela plataforma de
duelo. De alguma forma, ela usou o impulso do impacto para ficar de pé, mas
estava sem fôlego para atacar de volta com eficácia.

Por dentro, eu estava implorando para ela desistir, mas eu não conseguia nem
gritar, apenas assistir com horror enquanto Gregor afastava suas defesas e a
agarrava pela garganta. Mayla foi levantada do chão até ficar cara a cara com
ele. Gregor parou ali, as mãos de Mayla em volta de seu pulso, lutando
debilmente para se libertar.

“O que diabos esse cara está fazendo?” Marcus cuspiu.

“Oh, merda,” alguém amaldiçoou, e eu percebi que a maioria dos meus colegas
estava assistindo a luta de Enola e não tinha visto o que aconteceu.

“Ele vai…”
Gregor virou-se para nossa área de preparação, sorrindo sob sua máscara.
Então sua mão avançou como um aríete no estômago de Mayla, o som audível
mesmo de onde eu estava. Ele a socou novamente, então novamente, então a
deixou cair. A bile subiu no fundo da minha garganta enquanto ela se enrolava,
obviamente ainda consciente, mas gravemente ferida.

Eu queria sair correndo e ajudar, ou dar um soco na cara grande e estúpida de


Gregor, mas em vez disso fiquei ali enquanto as assistentes Briar e Aphene
saíam e ajudavam Mayla a voltar para a área de preparação. Fiquei de lado
enquanto eles a deitavam em um dos sofás e verificavam se havia costelas
quebradas. Eu não disse nada mesmo depois que eles aplicaram pomada para
aliviar a dor e a envolveram em toalhas meio congeladas.

Só foi depois que o professor se aproximou que eu saí do transe, movendo-


me para sentar aos seus pés e no final do sofá.

“Você está viva?” ele perguntou.

A resposta de Mayla foi abafada por baixo de uma toalha.

O professor encontrou meu olhar, seu rosto impassível… exceto por um aperto
ao redor de seus olhos e no canto de sua boca. Minhas mãos se fecharam em
punhos, o que o professor deve ter notado, porque ele perguntou: “Você está
com raiva, Seth?”

“Sim”, eu disse, minha voz crua.

“Bom. Use isso.” Então ele se afastou novamente enquanto o resto das lutas
terminava.

“Ele é tão bom pra motivar a gente, não é?” eu disse.

Mayla deu uma risadinha, então gemeu por baixo de seus embrulhos. “Não me
faça rir,” ela resmungou, suas palavras mal discerníveis. “Mas… não vá embora,
ok?”

Houve uma agitação estranha no meu estômago e peito com suas palavras.
“Sim, beleza. Estou bem aqui. Você apenas descanse.”

Não sei se foi o destino, ou sorte, ou talvez apenas que os organizadores do


evento tivessem um senso de humor cruel, mas na próxima rodada eu, é claro,
iria contra “Gregor, de sangue Volkunruh”.

Quando eu vi o Atacante gigante da Academia Bloodrock se aproximando do


ringue 11 pela outra direção, meu estômago embrulhou. De repente eu queria
gritar com o oficial que eu desistiria e fugiria.

Mas eu estava com medo até de fazer isso.


Havia algo mais, porém, por baixo do medo. A imagem de Mayla machucada e
ensanguentada sob um embrulho de toalhas geladas o alimentou como lenha.
Mesmo que eu não pudesse colocar um nome nesse sentimento, eu sabia que
precisava disso se eu quisesse entrar no ringue com Gregor, quanto mais lutar
contra o monstro.

E então eu acolhi esse sentimento, imaginando minha amiga, vendo-a lutar


contra Gregor em minha mente, enquanto eu esperava que o oficial nos
acenasse para a plataforma de luta. Eu pensei em como ele propositalmente
prolongou a luta, como ele tentou não apenas vencer, mas machucá-la. Como
ele havia conseguido.

Ouvi a voz do Professor Grey na minha cabeça: Você está com raiva, Seth?

Sim, eu estava com muita raiva, mas existiam mais camadas de sentimento. E
eram camadas profundas. Desespero, motivação, ânsia… tudo estava
queimando sob a névoa do medo em minha mente e espírito.

E por isso não corri. Entrei no ringue e olhei para Gregor. Ele sorriu de volta.
Todo o resto ficou desfocado.

Então o gongo soou.

Meu corpo começou a se mover antes que eu tivesse qualquer tipo de plano
ou pensamento sobre o que fazer. Eu me senti como apenas mais um
espectador enquanto dei um passo rápido para frente e mergulhei para a
direita, logo abaixo da abertura que eu sabia que Gregor lançaria. Eu o acertei
com dois socos rápidos no rim, em seguida, recuei para fora do alcance do
chute nas costas que se seguiu.

Gregor era mais forte do que eu. Ele era mais rápido do que eu, também, e
tinha uma postura melhor. Eu nunca tive que lutar contra ninguém que tinha
o mesmo poder bruto em seus ataques. Mas o professor Grey não tentou me
fazer tão forte quanto Enola ou tão eficiente quanto Valen. Ele sabia que eu
não poderia ganhar apenas com talento. Em vez disso, ele me ensinou a
desenvolver meu próprio estilo, a me apoiar em meus talentos naturais.

Analisar meu oponente. Antecipar seus movimentos. Planejar meus contra-


ataques.

Era quase como um quebra-cabeça: veja o que o oponente faz, considere as


posturas e combinações que o professor me ensinou e depois use na hora
certa. Era um estilo de luta no qual eu poderia me destacar.

Antecipando os ataques de Gregor, eu me abaixei e me esquivei, dando alguns


socos e chutes quando ele dava abertura, mas recuando de qualquer esforço
para me encurralar. As poucas vezes que seus golpes acertaram, eles
derrubaram minhas defesas inadequadas e quase me esmagaram. Ainda
assim, estava funcionando.
“Você pula como um sapo assustado,” Gregor grunhiu depois de alguns
minutos. Seu rosto largo e feio estava vermelho e os nós dos dedos estavam
brancos. “Você está se envergonhando. Lute ou saia do ringue, sapo.”

Ele lançou uma série de socos, cotoveladas e joelhadas dos quais eu mal
consegui escapar, embora eu tenha acertado um chute forte na parte interna
de sua coxa em troca. Toda vez que eu acertava um golpe, ele inchava e ficava
ainda mais vermelho, como um tomate cheio de água prestes a estourar.

Mas o verdadeiro problema era que eu não o estava machucando. Meus chutes
e socos apenas ricocheteavam em seu corpo musculoso, como se ele estivesse
vestindo uma armadura.

Eventualmente, minha estratégia falhou.

Gregor lançou uma combinação prolongada de chutes rápidos e rasteiras,


tentando me colocar no chão. Depois de vários movimentos, eu levantei meu
pé para evitar um chute baixo no meu tornozelo, respondendo com um chute
na lateral de seu joelho. Eu me estiquei demais e não consegui colocar meus
pés de volta a tempo de evitar que seu grande cotovelo batesse em meu ombro
e me levasse dolorosamente ao chão aos seus pés.

Com um rugido de vitória, Gregor caiu em cima de mim, batendo o joelho no


meu estômago.

O som das minhas costelas quebrando cortou minha mente como uma adaga,
rasgando meu foco. Meu torso inteiro se iluminou com uma dor quente. O ar
em meus pulmões saiu em um grunhido sem som, e eu não conseguia
recuperar o fôlego.

O punho de Gregor caiu, como um martelo, na lateral da minha cabeça,


fazendo-a ricochetear na plataforma de combate e enchendo meus ouvidos de
zumbido. Atordoado, incapaz de me defender, apenas olhei para ele e esperei
que me batesse até ficar inconsciente. Só que o próximo soco não veio.

Em vez disso, Gregor se levantou e me deu as costas, com os braços abertos


enquanto gritava algo para seus colegas de classe. A resposta deles foi um
rugido sem sentido em meus ouvidos com defeito.

Concentrei-me em tentar respirar, até que meus pulmões finalmente inflaram


novamente e minha cabeça clareou um pouco, bem a tempo de Gregor agarrar
a frente do meu uniforme e me colocar de pé.

“Espero que você tenha gostado daquilo enquanto durou”, disse ele, sua
respiração quente no meu ouvido. “É a minha vez de me divertir agora.”

Minha cabeça caiu para trás quando ele bateu com a testa na ponte do meu
nariz com força suficiente para quebrar minha máscara, que caiu aos meus
pés. O mundo saltou, mudando de posição quando meus olhos perderam o
foco.

Três Gregors riam na minha cara. “Ficar sem máscara na frente do Soberano?
Seu verme. Você deve ser punido!”

Mãos enormes e firmes envolveram minha garganta e me levantaram do chão.


Em algum lugar, tão distante que poderia ter vindo de outro domínio, ou
mesmo do outro continente, alguém gritou meu nome.

Meus dedos agarraram os pulsos de Gregor inutilmente. Eu me rebati,


chutando suas pernas e dando joelhadas em seus lados, mas eu poderia muito
bem estar lutando contra uma estátua de mármore.

O pensamento selvagem e irracional de que esse menino ogro ia me matar


naquele momento tomou conta de mim, e o desespero queimou um pouco da
névoa que nublava minha mente. Concentrei-me em meu pulso, seguindo a
batida de tambor em meu crânio para voltar à consciência.

Soltando seus pulsos, empurrei meus braços entre os dele, forçando-os o


máximo que pude. Não foi o suficiente para quebrar seu aperto, mas me deu
espaço suficiente para dobrar minhas pernas em meu peito. A dor das minhas
costelas quebradas tentou roubar minha respiração novamente, mas eu me
concentrei naquele pulso, sincronizando minha respiração com
as batidas pesadas.

Enfiei um pé entre seus braços estendidos e chutei com força, meu calcanhar
atingindo seu nariz com um estalo molhado. Chutei de novo, depois de novo,
então me preparei.

Com um grito de guerra animalesco, Gregor me derrubou em direção ao chão.

Eu cambaleei para frente, apenas colocando minhas mãos em volta de seu


pescoço e puxando-o para baixo comigo. Quando atingimos o chão, meu
joelho estava logo abaixo de seu plexo solar, e todo o peso de seu próprio
ataque combinou com o peso de seu corpo para levar meu joelho em seu
esterno e o núcleo de mana abaixo dele.

Senti algo se mover e quebrar na minha perna ou talvez no meu quadril. Tudo
doía enquanto eu era esmagado sob Gregor, então era difícil dizer. A arena
brilhou em preto, então lentamente apareceu de volta, borrada nas bordas,
mas ainda lá. Estava muito tranquilo. Quase pacífico, como um bom lugar para
se deitar e morrer.

Gregor rolou de cima de mim, se deitando de lado. Sua boca estava abrindo e
fechando rapidamente, seus olhos esbugalhados. Então ele engasgou e um
fluxo de vômito espirrou na plataforma entre nós.
Um golpe suficientemente forte no núcleo de mana era como levar um chute
entre as pernas. E eu tinha acabado de aplicar força suficiente em seu esterno
para quebrar meu quadril, eu tinha certeza.

O oficial estava na plataforma conosco agora, gritando, mas a minha cabeça


estava em um barril de piche, me impossibilitando de ouvir direito. Ainda
assim, eu entendi mais ou menos.

Rolando pelo vômito de Gregor, eu o empurrei de costas e me forcei a ficar de


joelhos, enviando relâmpagos de dor por todo o meu corpo. Eu levantei meu
punho cerrado e tentei encontrar os olhos de Gregor, embora nenhum de nós
parecesse ser capaz de se concentrar. “Você… desiste?”

Ele tossiu, balançando a cabeça. Juntei o máximo de força que pude e dei um
soco no plexo solar, dando a seu corpo mais um monte de dor e convulsões.

“Desiste?” Perguntei de novo, lutando até mesmo para falar.

Gregor tossiu baba com vômito e cuspiu no chão. Um único e superficial aceno
de cabeça, e então seus olhos se fecharam.

Uma mão firme mas cuidadosa me puxou para longe de Gregor. Eu gritei
quando algo se moveu no meu quadril, e a mão me soltou, me deixando cair
de costas. O oficial estava falando rapidamente, mas as palavras não tinham
sentido.

A visão embaçada ficou mais intensa, escurecendo e lentamente engolindo


tudo o que eu podia ver. Um último pensamento passou pelo meu cérebro
cansado antes que eu perdesse a consciência.

Eu ganhei.

Capítulo 370
Um Breve Indulto

ARTHUR

Bati levemente na porta antes de abri-la e espiar lá dentro. Uma mulher


bochechuda olhou para mim, acenou com a cabeça e voltou a cuidar de seu
paciente.

Seth estava deitado em uma cama, envolto em bandagens, e cada centímetro


exposto de sua pele estava brilhando com pomadas curativas. A mulher estava
passando algum tipo de dispositivo em forma de bastão sobre seu torso,
tratando suas múltiplas costelas quebradas, pélvis fraturada e quadril
deslocado.

‘Garoto durão,’ disse Regis. ‘Achei que ele estava acabado.’


Sim, bom, esse tipo de resistência provavelmente corre pelo sangue dele,
retruquei. Sua irmã provavelmente mostrou o mesmo.

‘Claro, claro, vamos culpar essas crianças pelo que Agrona forçou seus amigos
e familiares a fazer. Totalmente justo, porque eles definitivamente poderiam
ter resistido a sua vontade, certo? Que bando de covardes.’

Eu suspirei. Já tivemos essa conversa, Regis. Eu estava apenas sendo


mesquinho, e reconheço isso.

‘Não me bajule como se eu fosse uma de suas princesas, Princesa,’ disse Regis
com uma bufada.

Não havia nada que eu pudesse fazer por Seth, então voltei para a área de
preparação, onde deixei Briar e Aphene no comando. Assim que abri a porta,
dei de cara com Briar gritando por cima da cacofonia da minha turma
superexcitada.

“Fiquem quietos! Nós temos um convidado—oh, Professor Grey…”

Briar olhou pra mim e depois para o diretor Ramseyer, que acabara de vir do
campo de combate, parecendo incomumente relaxado, até um pouco
perplexo. “Não seja muito dura com nossa equipe campeã”, disse ele. “É
natural que eles estejam animados, considerando os eventos. É por isso que
estou aqui, claro, para dizer algumas palavras. Se importa, Professor Grey?”

Fiz sinal para ele continuar.

O diretor esperou até que os últimos alunos conversando se calassem. “Foi um


prazer assistir às lutas”, disse ele, sorrindo para os alunos. “Parabéns a cada
um de vocês por um desempenho tão impressionante durante o torneio e,
claro, um trabalho excepcional feito por nossa campeã do torneio, Lady Enola,
do Alto Sangue Frost.”

Gritos e aplausos explodiram dos alunos, mas diminuíram rapidamente


enquanto o diretor olhava com expectativa.

“Além disso, eu gostaria de reconhecer Marcus, do Alto Sangue Arkwright e


Valen, de Alto Sangue Ramseyer, que se apresentaram de acordo com os altos
padrões de seus sangues, conquistando os melhores lugares nesse torneio,
depois da nossa campeã!”

Outra salva de palmas, embora eu também tenha captado alguns olhares


ríspidos e nada sutis do diretor para o seu próprio neto. Valen pareceu não ter
percebido, praticamente irradiando prazer com o elogio de seu avô.

“E é claro,” o Diretor Ramseyer continuou, “não podemos esquecer seus


colegas feridos, Seth, do Alto Sangue Milview e Yanick, do sangue Farshore.
Espero que vocês transmitam minha simpatia e meu orgulho quando os virem
mais tarde.”
Pouco depois da vitória por pouco de Seth contra o moleque da Academia
Bloodrock, a perna de Yanick foi quebrada por um oponente descuidado, mas
eles foram os únicos gravemente feridos. A Academia Central se destacou no
torneio depois disso, apresentando uma porcentagem de vitórias melhor do
que qualquer outra academia presente.

Os alunos ficaram mais selvagens e energéticos a cada rodada, e correram


para o campo de combate em um estado de frenesi quando Enola finalmente
ganhou o campeonato. Eu me encontrei em uma posição estranha, incapaz de
ignorar minha parte no sucesso deles. Afinal, foi meu treinamento que os
trouxe a esse ponto. E saber disso me deu orgulho, mas também trouxe culpa.

E assim, em vez de dar a esses garotos o reforço positivo que eles precisavam,
eu recuei, focando meus pensamentos no meu plano para o Victoriad,
eventualmente me retirando completamente, usando o ferimento de Seth
como uma desculpa para ficar alguns minutos sozinho na relativa calma da
sala de espera enquanto minhas emoções misturadas esfriavam.

“Agora”, disse o diretor Ramseyer, batendo palmas, “com os eventos de hoje


terminando, tenho certeza de que todos vocês estão ansiosos por um
momento para descansar seus corpos e relaxar suas mentes, então vou deixá-
los nas mãos do Professor Grey e suas assistentes. Mais uma vez, parabéns a
todos, bom trabalho!”

O diretor fez questão de apertar minha mão ao sair, os alunos zumbindo com
uma conversa cansada ao fundo. “Para você, Professor Grey, também devo
estender meus parabéns. A classe de Táticas de Aprimoramento Corpo a corpo
nunca foi exatamente a prioridade da nossa escola, receio, mas veja o que
você conseguiu com ela.” Sua expressão normalmente severa deu lugar a um
largo sorriso. “E pensar que quase te substituí. Hah!”

Balançando a cabeça, ele saiu da área de preparação, e eu o ouvi murmurar


claramente: “Oh, mal posso esperar para esfregar isso no nariz dos outros
diretores no jantar esta noite”.

Briar e Aphene estavam me observando, esperando. Eu dei-lhes um aceno de


cabeça.

“Escutem!” Briar gritou. “Estamos indo para nossos quartos. Sem enrolação,
sem desvio. Parece que todos vocês se afundaram até o pescoço na merda
depois de apanhar tanto, mas não pensem nem por um segundo que eu não
enfiaria a cabeça inteira de qualquer um que queira dar uma de espertinho.

Segurando pra não rir, eu segui atrás deles, sem prestar muita atenção no
grupo à frente.

“Todo mundo já deve ter o número do quarto”, disse Aphene quando


chegamos ao corredor onde nos foram fornecidos aposentos. “Quem tiver
esquecido seu número, vai ter que dormir no corredor.”
“Eu sei que a maioria de vocês está ansiosa para sair de seus quartos e se
divertir com os amigos”, acrescentei. “Tudo o que tenho a dizer é… apenas não
sejam pegos.”

Houve algumas risadas apreciativas, e até mesmo Aphene abriu um sorriso,


mas Briar apenas revirou os olhos e me lançou um olhar desaprovador. A linha
de alunos logo se dispersou quando eles começaram a procurar pelos seus
quartos.

Com meus deveres de professor completos, entrei no meu tranquilo e pequeno


aposento, fechando a porta atrás de mim.

Regis imediatamente pulou para fora do meu corpo e farejou ao redor. “Não é
exatamente um castelo, é?”

As acomodações oferecidas para estudantes e professores visitantes eram


suficientes, embora um tanto espartanas. Nos deram quartos no próprio
coliseu, e fomos convidados a ficar para o resto do evento, que consistia em
mais um dia de jogos de guerra e duelos entre ascendentes de alto escalão.

Não seria até o terceiro e último dia do Victoriad que os retentores e Foices
aceitariam desafios pelas suas posições. Se Nico iria morder minha isca, seria
no terceiro dia. Até lá…

Ativando minha runa de armazenamento extradimensional, conjurei a última


pedra chave que recebi. Tinha sido um dia longo e mentalmente desgastante,
e o que eu realmente precisava era meditar e focar minha mente.

Sentado de pernas cruzadas na cama com a gema entre os joelhos, fechei os


olhos, mas não imbuí a relíquia com éter. Em vez disso, esperei. Minha breve
sessão de treinamento com Enola e a gema me mostrou que o que eu
realmente precisava para progredir com a percepção da relíquia era de ajuda.

Alguns minutos se passaram antes que a batida na minha porta viesse.

“Pode entrar.”

A porta se abriu e Caera entrou, parecendo exausta. Ela passara as últimas


rodadas do torneio estudantil com seu sangue em sua sala particular a pedido
de Corbett.

“Desculpe,” ela murmurou. “Lenora me prendeu em uma conversa muito


desconfortável com um jovem homem de sangue Vritra que foi adotado por
algum Alto Sangue em Sehz-Clar.”

“Ah,” eu disse, ajustando minha posição e gesticulando para a única cadeira


do meu quarto ao pé da cama. “Existe um noivado em potencial no futuro,
‘Lady Caera’?”
“Não, ‘Professor’ Grey, mas isso não vai impedir Lenora de tentar.” Caera caiu
na cadeira com um bufo, então me deu um olhar mais sério. “Então, o que você
queria discutir? Finalmente está planejando me dizer qual é esse plano
misterioso?”

“Não”, eu admiti, dando-lhe um sorriso de desculpas. “Na verdade, eu preciso


da sua ajuda com uma coisa.”

Ela se recostou na cadeira e cruzou os braços, me dando um olhar desconfiado.


“Ah, sério?” Seu foco mudou para a gema de éter. “Algo a ver com essa coisa,
eu suponho?”

Passei alguns minutos explicando o que eu queria que ela fizesse, depois ela
ajustou a cadeira e ficou um pouco mais confortável.

“Então apenas…?”

“Exatamente”, eu respondi.

Ela fechou os olhos. Calor irradiava de seu corpo e, embora eu não pudesse
sentir sua mana, ainda podia sentir os efeitos físicos que causava. Um leve
movimento no ar deslocou uma mecha de seu cabelo, que caiu na frente de
seu rosto. Seus lábios pressionaram em uma linha fina enquanto ela se
concentrava. Seus olhos se moveram sob as pálpebras fechadas, que estavam
levemente maquiadas de uma cor cinza esfumaçada para o Victoriad.

“Obrigado, Caera,” eu disse, fechando meus próprios olhos e injetando o éter


na gema, deixando minha consciência seguir. Como antes, além da parede de
energia púrpura encontrei apenas um vazio negro.

A escuridão estava viva na presença da mana de Caera, mudando e se


movendo. Vagando pela vastidão, observei a dança rítmica acontecendo
dentro da escuridão viscosa com atenção, tomando nota de todos os aspectos
que pude pensar.

Por algum tempo – quinze minutos, supondo que Caera seguisse minhas
instruções, apesar de que o tempo parecia durar muito mais dentro da relíquia
– o movimento assumiu estrias verticais que saltavam e se contorciam como
chamas em um tronco.

Então os movimentos mudaram, ganhando uma aresta irregular e cortante,


manifestando de forma errática e difícil de quantificar, como se as muitas
formas afiadas – cada uma ainda parte do todo – travassem uma guerra
repentina e violenta umas contra as outras.

Isso não durou muito antes que a forma do movimento mudasse novamente,
agora fluxos sutis, fluindo e irradiando para fora, como um rio de lava e o
intenso calor que emitia.
A cada passo, eu praticava a formação do éter de várias maneiras, tentando
causar algum tipo de reação no movimento incolor do reino da gema. Chicotes,
arcos cortantes, rajadas moldadas e até uma forma etérea áspera em forma
de pá que arrastei pela escuridão, mas nada afetou meus arredores.

Nada funcionou.

Fosse qual fosse esse quebra-cabeça, faltava-me algo essencial – seja


compreensão ou habilidade – para navegar nele…

Suor frio umedeceu minha testa em uma percepção repentina e arrepiante, e


eu saí da pedra chave, meus olhos se abrindo.

Caera estava sentada na cadeira, atualmente canalizando mana por todo o


corpo para melhorar suas habilidades físicas. Seus olhos estavam abertos, e
ela estava olhando para mim. Ela pulou um pouco e cortou a canalização de
sua mana. “Eu não estava esperando…”

“Aqui”, eu disse, entregando a pedra chave.

Ela hesitou, olhando para a pedra como se fosse explodir.

Saí da minha posição sentada e me movi para o final da cama. Tomando a mão
dela na minha, coloquei a gema em sua palma, então envolvi as suas mãos
com as minhas, segurando a pedra chave no meio.

“Vou canalizar o éter para a gema”, expliquei. “Eu preciso que você me diga o
que você vê… supondo que isso funcione.”

“Hum, tudo bem, você está—” Suas palavras foram cortadas em um suspiro de
surpresa quando eu comecei.

Os olhos de Caera se fecharam e seu corpo enrijeceu. “Eu vejo… uma parede
enorme e etérea… como se eu estivesse me aproximando da borda do mundo.”

Manobrando pela prática e instinto, guiei sua consciência mais profundamente


no reino da pedra chave.

“Estou me movendo, é tudo roxo, uma centena de tons diferentes… e está


quente. Parece que—” Ela suspirou novamente, desta vez ainda mais alto. “Que
a Luz me guie… é mana. Eu consigo ver! Todas as cores… o mundo inteiro aqui
é feito de mana, moldado por ela. O que é isso, Grey? O que eu estou vendo?

Pulei para fora da cama, andando rapidamente a curta distância até a parede,
meu estômago apertado desconfortavelmente.

A pedra chave tem algo a ver com mana, já sabíamos disso. Só que… Caera
pode ver partículas de mana dentro da pedra, mas parece um vazio negro para
mim, o que significa… o quê?
Eu não tenho um núcleo de mana, mas a presença de um não permite que um
mago veja partículas de mana. Senti-las, sim, mas eu precisava ativar a
vontade de besta de Sylvia e o poder de Realmheart para ver a mana
diretamente, mesmo antes de meu núcleo ser destruído.

‘Então por que é tudo escuridão sem fim e ondulações assustadoras de


monstros de tinta quando você entra lá?’ Regis perguntou de onde ele havia se
encolhido no canto.

Minha falta de um núcleo de mana deve estar me impedindo de sentir


corretamente o que quer que a pedra chave esteja tentando me mostrar, eu
respondi, olhando para a relíquia cubóide descansando na mão de Caera,
ainda usando meu éter para mantê-la aberta e sua mente submersa lá
dentro. As ondulações no escuro, obviamente, são causadas pela própria mana
se movendo, mas isso não faz sentido… a menos que seja uma manifestação
dos efeitos da mana, como o calor saindo do corpo de Caera enquanto ela
canalizava mana de fogo.

‘Talvez seja como quando você vê uma névoa de calor subindo de uma pedra
queimada pelo sol. A mana está se movendo, causando uma mudança no
ambiente e, você sabe, interrompendo a informação sensorial que você
recebe.’ Regis rolou, enterrando o rosto no travesseiro da minha cama, que ele
deve ter roubado quando eu não estava olhando. ‘Mas o fato de você sentir
alguma coisa lá dentro, qualquer coisa, é um bom sinal, certo?’

Eu me encostei na parede enquanto considerava isso, imaginando qual


mecanismo da pedra chave e qualquer revelação que ela continha me permitia
sentir o movimento da mana, mesmo que eu não estivesse vendo. O reino
dentro da relíquia era de natureza etérea, e não havia luz natural, então a
comparação de Regis com uma pedra quente não se encaixava na imagem que
eu tinha na minha cabeça. Era mais como…

…o reflexo da água visto do lado de fora do copo. Minha mente remontava à


antes da guerra, quando Lady Myre me explicara pela primeira vez o éter. “O
éter compõe os blocos de construção dos quais o mundo é feito, enquanto a
mana é o que o enche de vida e sustento.” Ela comparou o éter a um copo, e a
mana à água que o enche. Mas se a água mudar de forma, ela não altera o copo
de forma alguma. Ou… altera?

‘Ok, eu estou ficando perdido. Os dragões não estão um pouco atrasados em


relação à arte do éter? O lobo soltou uma risada retumbante. ‘Art’ do éter.
Haha, entendeu?’

O próprio reino da pedra chave é etéreo por natureza, apenas abrigando mana.
Não consigo ver a mana, mas de alguma forma minha conexão com o éter está
me deixando sentir seu movimento. Pelo menos quando está reagindo a
estímulos externos, que devem causar flutuações mais fortes.
“Grey?” A voz de Caera era um sussurro calmo e nervoso, fazendo-me perceber
que eu estava quieto já há algum tempo.

“Desculpe,” eu disse imediatamente, “eu estava apenas pensando. Você se


importa de ficar um pouco lá dentro? Há mais algumas coisas que eu gostaria
de tentar.”

“Você está de brincadeira?” Caera sorriu. “Isso é incrível. É… lindo. Imagine ver
o mundo assim o tempo todo?”

Sorri tristemente, afastando os pensamentos de Realmheart e da besta de


Sylvia.

Havia trabalho a fazer.

TESSIA ERALITH

O vento frio acariciou minha bochecha e jogou uma mecha perdida do meu
cabelo platinado atrás da minha orelha. Ele dançou ao meu redor, carregando
uma pequena rajada de neve que girava a cada torção e mergulho na descida
até à fortaleza de Taegrin Caelum abaixo.

“Fraca.”

Esfreguei com força o ponto em meu peito onde a lâmina de Grey me


perfurou… em uma vida diferente, um corpo diferente, e ainda assim agora
que eu tinha a memória disso, era como se eu pudesse sentir a cicatriz da velha
ferida.

“Eu esperava mais de você.”

O vento rodou para dentro, puxando minha blusa como se quisesse que eu
dançasse também. Tão alto acima da fortaleza de Agrona, o ar estava frio e
claro, e ansioso para sentir o toque de mana.

As montanhas se estendiam até onde eu podia ver em todas as direções.


Nuvens se acumulavam no horizonte — cinza-fofo e cheias de neve — mas fora
isso o céu enorme era azul cristalino. Frio, mas convidativo.

“Eu sou o melhor candidato.”

Fechei os olhos com força, tentando afastar aqueles últimos momentos da


minha vida, que agora se repetiam em minha mente por dias… semanas? O
tempo se movia estranhamente em Taegrin Caelum, como se a virada do
mundo significasse pouco para a fortaleza ou seu governante.

“Se eu tiver que deixar você e Nico para trás para alcançar meu objetivo, eu
deixo.”
Essas foram suas últimas palavras reais para mim, essa pessoa que deveria ser
minha amiga. Antes que ele tivesse enfiado sua espada no meu peito. E Nico
tinha visto isso acontecer.

Essa era minha última lembrança. Virando a cabeça para ver Nico, cercado por
um feixe de luz, meio obscurecido por nuvens de poeira, seu rosto congelado
em uma máscara de tortura quando ele chegou tarde demais para ajudar…

Soltei um suspiro trêmulo.

Não é à toa que ele é do jeito que é.

Afastei o pensamento. Não foi culpa de Nico. Tudo que eu tive que fazer foi
morrer e acordar, mas Nico… seu caminho tinha sido muito mais longo, muito
mais doloroso.

Ser forçada a lembrar da minha própria morte me colocou em uma fuga por
dias, e mesmo depois disso levei mais dias para voltar a mim mesma. Depois
de demorar tanto para me ajustar ao meu novo corpo – meu corpo, estar presa
em meus aposentos novamente parecia uma prisão, uma tortura. Eu já tinha
vivido uma vida de prisão, na qual nunca me permitiram ser eu mesma, viver
por mim mesma, fazer escolhas por mim mesma.

Mas servir a Agrona não é a mesma coisa?

“Vou fazer com que não seja,” eu disse ao vento dançante. “Vou controlar meu
próprio destino.”

Eu liberei meu controle da magia que me fazia voar.

Meu corpo se contorceu no ar até que eu estava olhando para a fortaleza. O ar


raleou à minha frente enquanto soprava forte por trás, enviando-me para
baixo em um ritmo alucinante. Taegrin Caelum, pequeno como um brinquedo
de criança apenas um instante atrás, correu em minha direção, expandindo-
se para engolir minha visão.

Virei-me de repente, meu corpo doendo com a força, e voei pelas portas da
minha varanda aberta com velocidade suficiente para que elas se fechassem
atrás de mim. A porta para o labirinto de corredores se abriu pouco antes de
eu a ter arrebentado, respondendo à minha vontade, e eu me precipitei pelos
corredores do castelo com uma velocidade perigosa.

Quando eu parei, a súbita explosão de vento que minha passagem criou enviou
uma besta de mana empalhada pra fora de seu pedestal largo, caindo no
corredor. Estremeci, não querendo causar nenhum dano, mas também havia
uma pequena parte de mim que sentia prazer vingativo no ato.

Bati na porta de Nico, mas não houve resposta. A mana da terra permaneceu
na fechadura de metal pesado, e pulou para o lado ao meu comando,
permitindo que a porta se abrisse.
Meus pés saíram do chão e eu voei para o quarto. Estava escuro, vazio e sem
calor…

Nico não estava lá.

Havia apenas uma outra pessoa em Taegrin Caelum com quem eu podia
conversar, pra falar a verdade, então saí do quarto de Nico, voando de sua
varanda e contornando a fortaleza. Eu parei, pairando no ar, enquanto um
conjunto de portas na sacada do alto da parede da ala privada de Agrona se
abria para fora, como se fosse me dando as boas vindas.

Cada vez que nos encontrávamos, era como se eu estivesse vendo Agrona pela
primeira vez.

Seus chifres estavam sem ornamentos, suas roupas finas costumeiras


substituídas por calças de couro escuras e uma túnica branca simples que
pendia casualmente em sua figura ágil, com os botões superiores abertos,
expondo seu peito e permitindo que as tatuagens rúnicas que o cobriam
aparecessem. Sua pele de mármore brilhava na luz fria do meio da manhã, ou
talvez fosse a força de sua mana brilhando através de seu corpo vinda de seu
núcleo, que queimava como um sol em miniatura dentro de seu esterno.

“Se sente melhor?” ele perguntou, fingindo um ar casual. “Eu estava pensando
em você. Draneeve disse que você faltou à sua última avaliação. Eu…” Sua
cabeça inclinou ligeiramente para o lado, sua língua saindo para molhar seus
lábios. “O que se passa tanto em sua mente, Cecil?”

Encontrei seus olhos brilhantemente escarlates – esse ser que estava mais
perto de Deus do que do homem – e levantei meu queixo. “Eu tive muito tempo
para considerar tudo o que você me mostrou, Agrona, e preciso te dizer uma
coisa.”

Seu sorriso era gentil, mas carregava a confiança de um conquistador. O que


quer que eu tivesse a dizer, eu sabia que ele ouviria, mas ele não seria afetado
por isso.

“Eu não serei sua arma,” eu continuei, minha voz carregada pelo vento. “Ou
sua ferramenta. Quero poder fazer minhas próprias escolhas, ter uma vida, não
apenas estar viva.”

O encolher de ombros de Agrona foi perfeitamente casual. “Claro, Cecil. Sua


vida é só sua.” Ele me deu um sorriso encantador, caloroso e compreensivo
que tornou difícil lembrar o que eu queria dizer. “Eu pediria a você para
discutir mais sobre isso, mas honestamente eu amo o drama de você voar por
ai, com o rosto frio como gelo esculpido, pronta para fazer exigências.”

Ele está mentindo, é claro.


Eu respirei fundo e a mana ao nosso redor inchou como se fosse uma parte de
mim. O ar esquentou, o vapor d’água se solidificou e começou a cair enquanto
flocos úmidos de neve, e até as pedras de Taegrin Caelum, gemeram.

“Me conta a verdade.”

Agrona deu um passo largo para a varanda. Seus olhos se fecharam e ele
respirou fundo, enchendo seus pulmões com o vento que soprava. “Poder,” ele
disse, sua voz um sussurro retumbante. “Cru e impossível.”

Abrindo os olhos, ele estendeu a mão para pegar alguns dos flocos de neve.
“Acha que eu repetiria os erros daqueles tolos que te enjaularam em sua vida
passada? Suprimindo seu potencial, restringindo você, tentando controlá-la?
Espero não parecer tolo aos seus olhos.”

“Mas você fez algo parecido com Nico,” eu apontei, segurando o tremor que
teria destruído meu corpo com a menção casual de Agrona dos muitos anos
de prisão e tortura – sob o disfarce de treinamento – pelos quais passei na
minha última vida. “Ele…”

“Não é o Legado,” Agrona disse facilmente. “Embora… o que ele suportou por
você, apenas pela chance de ficar ao seu lado novamente… Nico estava fraco
e impotente enquanto observava Grey tirar sua vida. Incapaz de fazer qualquer
coisa, por menor que fosse. Ele estava disposto a suportar qualquer dor para
trazê-la de volta e mantê-la segura, não importa o custo para ele.

Agrona me inspecionou de perto. “Mas não é sobre Nico que você veio falar,
ou é? Não estou mentindo quando digo que suas escolhas são suas, mas há
algo que você precisa saber.”

Ele parou quando um pássaro passou voando por mim e pousou no parapeito
da varanda. Ele bateu o bico no metal, emitindo um tinido oco, e eriçou suas
penas pretas e vermelhas. Agrona estendeu a mão, que de repente estava
cheia de sementes. A criatura saltou da amurada para a palma da mão e
começou a comer, abanando as quatro asas.

“É… lindo,” eu disse, momentaneamente distraída.

“Você não vai encontrá-los em nenhum outro lugar em Alacrya,” Agrona


comentou, observando o pássaro bicar as sementes. “Eles vêm de Epheotus,
nativos apenas das encostas escarpadas do Monte Geolus. Trouxe alguns aqui,
há muito tempo, quando…”

As feições de Agrona ficaram intensas quando ele parou. De repente, seus


dedos se fecharam como uma gaiola ao redor do pássaro. Ele deu um guincho
assustado e começou a bater em sua mão e bicar inutilmente seus dedos.
“Eles estão fora do seu habitat, assim como você”, disse ele, seu olhar intenso
sobre o pássaro. “Você está em perigo, Cecil, e estará até que a guerra seja
vencida e o Clã Indrath seja jogado de sua montanha.”

“Por quê?” Eu perguntei, incapaz de tirar os olhos do pássaro, um forte


pressentimento fazendo meu estômago revirar.

“Ao contrário de nós Vritra, que nos orgulhamos de explorar o desconhecido,


o resto dos clãs Asura tem medo dele. Se eles alguma vez colocarem as mãos
em você…”

Seus olhos se desviaram do pássaro para encontrar os meus, e eu me senti


atraída por eles, como se estivesse olhando para a caldeira de um vulcão ativo.
Eu podia senti-lo vasculhando minha mente como se estivesse folheando as
páginas de um livro. Mas em vez de se sentir como uma violação, havia um
calor e conforto nisso, como se a presença dele lá significasse que eu não
estava sozinha.

Mas você não está sozinha, Cecilia.

Sua mão fechou. O pássaro deu um grito abafado, que foi imediatamente
substituído pelo esmagamento de pequenos ossos ocos. Quando a mão de
Agrona se abriu novamente, a bela criatura era pouco mais que penas
dobradas e asas quebradas.

Com um movimento do pulso, o pequeno cadáver caiu da beirada da sacada e


desceu para as pedras afiadas lá embaixo.

“Mas minha guerra com os outros Asura não é por sua causa,” Agrona disse,
sua voz pesada com intenção. “Eles não são apenas um perigo para você, mas
também para todos os serem inferiores. E as pessoas de Alacrya e Dicathen
merecem uma existência sem medo de sua tirania. Posso governar os seres
inferiores, guiar sua evolução, mas não tenho interesse em construí-los
apenas para quebrá-los e começar de novo como Kezess fez.”

Ele estendeu a mão para mim, palma para cima, como se esperasse que eu a
pegasse. “Se você lutar comigo na guerra que está por vir, você pode proteger
a si mesma e as pessoas de dois continentes do perigo que os Asuras
representam. Afinal, eles já mostraram a profundidade de seu desprezo por
vidas inferiores em Elenoir quando cometeram genocídio apenas
pela chance de impedir que você desenvolvesse seu poder total.”

À menção de Elenoir, uma névoa esmeralda vazou do meu núcleo, enchendo


minha visão e me fazendo balançar no ar. Agrona ficou tenso, mas recuperei o
controle imediatamente e empurrei a sensação para o fundo, de volta ao meu
núcleo, onde a presença anormal do guardião de Elderwood permanecia, seu
poder ainda fechado para mim.
Agrona estava traçando meu corpo com os olhos, inspecionando cada
centímetro de mim. “A besta se irrita com a menção do ataque”, observou ele.
“Muito interessante. Caso você ganhe controle sobre ela, adicionar esse poder
formidável ao controle livre sobre a mana que você já tem será uma benção,
mas isso não é estritamente necessário para você atingir todo o seu potencial.”

Esfreguei meu esterno sobre meu núcleo de mana, desconfortável.

“Mas eu entendo que este mundo nunca será sua casa,” Agrona continuou,
como se estivesse puxando pensamentos direto da minha cabeça. “E então eu
prometo a você isso. Quando derrotarmos os Asuras e derrubarmos o Clã
Indrath, usarei o conhecimento que ganhei das Relictombs para devolver a
você sua antiga vida, seu antigo mundo, mas como deveria ter sido.”

Minha respiração ficou presa no meu peito.

“Imagine isso, Cecil. Imagine exatamente como seria essa vida, o que você
quiser. Agora, o que você faria para reivindicá-lo?”

É um truque, ou uma armadilha, ou…

Mas seu tratamento em relação a mim já estava mudando. Seu tom era
respeitoso, até mesmo cauteloso. A maneira como ele olhou para mim, eu
podia ver em seus olhos, como se ele me visse como uma parceira, não uma
ferramenta, e isso era exatamente o que eu vim aqui para exigir. Havia uma
confiança e uma pergunta naquele olhar, e eu sabia com absoluta certeza que
ele poderia fazer o que disse.

Mas o que eu faria nesta vida por uma chance de voltar à vida que deveria ter
tido?

“Qualquer coisa, Agrona.”

Capítulo 371
O Victoriad IV

SETH MILVIEW

De pé no início de um longo trecho de escada que subia até aos assentos do


estádio, quase me virei e desisti. Eu estava tão cansado… mas também, ter
seus ossos e musculatura costurados de volta por magia não era exatamente
o que eu chamaria de descanso.

Fiquei na cama durante todo o segundo dia do Victoriad, o que foi uma droga.
Enquanto todo mundo estava torcendo pelos jogos de guerra ou gastando sua
mesada no mercado, eu estava enrolado sob cerca de quatro cobertores,
tremendo e suando enquanto meu corpo fazia hora extra para se curar.
Ainda assim, a médica estava otimista ao explicar que uma pelve fraturada era
relativamente fácil de juntar novamente, e como eu teria uma recuperação
muito mais longa e dolorosa se meu quadril estivesse quebrado e não apenas
deslocado. E a maioria da turma vinha em grupos para me ver, com Mayla
voltando várias vezes ao longo do dia para dar uma conferida na minha
situação e deixar bolos e doces para me fazer sentir melhor.

Toda vez que ela entrava pela porta eu me lembrava daquele momento
palpitante em que ela me pediu para ficar com ela, e através da confusão
induzida pela dor, percebi algo.

Eu gosto dela. Tipo, gosto, gosto dela. Eu nunca tive alguém que eu gostasse
antes. Eu nunca estive perto o suficiente de uma garota para me apaixonar…

“Seth?”

Eu me assustei, sentindo meu rosto ficar quente enquanto eu olhava para ela
com o canto do meu olho. Mayla estava segurando meu braço enquanto me
ajudava a andar, e eu tinha congelado por cerca de trinta segundos. “Desculpe,
eu, uh…”

“Nós poderíamos sentar mais baixo se—”

“Não, está tudo bem”, eu assegurei a ela, começando a subir as escadas. “Vou
ficar bem.”

Um atiçador quente batia na minha lateral a cada passo enquanto subíamos


até a metade do estádio até onde Brion, Pascal, Yanick, Linden e Deacon
estavam sentados. A maioria de nossos outros colegas de classe estavam em
caixas de exibição privadas com seus sangues enquanto todos se preparavam
para o evento principal, o verdadeiro motivo do Victoriad: os desafios.

“Salve, Seth, o Invicto, Matador de Gigantes!” Linden aplaudiu enquanto nos


arrastávamos para nos sentar ao lado dos outros.

“Estamos honrados e humilhados por sua presença,” Pascal acrescentou, com


um sorriso genuíno marcando o lado queimado de seu rosto.

Eu ri, então estremeci.

Yanick se inclinou para trás e esticou a perna pesadamente enfaixada no ar.


“Eu sinto sua dor, cara. Pelo menos você venceu sua luta.”

Com um sorriso agradecido para meus amigos, passei por algumas outras
pessoas – as arquibancadas estavam quase totalmente cheias agora – e
deslizei para o banco ao lado de Linden. “Então, eles já anunciaram os
desafios?”

“Não”, disse Yanick, fazendo beicinho para o campo de combate vazio, de onde
todas as plataformas de combate menores tinham sido tiradas. Porém logo ele
se animou. “Mas, o boato é que Ssanyu, o Comedor de Pedras, está desafiando
pra substituir Bilal como retentor da Foice Viessa Vritra.”

Pascal grunhiu. “Ssanyu pode ser um ascendente lendário, mas todos sabem
que a Foice Viessa Vritra prefere um certo tipo de retentor.”

“Isso é verdade”, eu disse, concordando com o que eles estavam dizendo.


“Você já leu O Forjamento de Foices de Tenebrous?”

“Oh, já!” Deacon disse com entusiasmo, arrancando risadas de todos os outros.
Ele parecia ofendido, pressionando a mão no peito enquanto dizia: “Bem,
desculpem-me por ler bastante, seus bárbaros”.

“Na versão mais recente, Tenebrous menciona que a Foice Viessa Vritra prefere
treinar seus retentores pessoalmente”, continuei, me ajustando no banco duro
para tentar ficar confortável. “Seu último retentor, Bilal, foi uma
recomendação de guerra, mas ele era seu pupilo desde criança.”

“Certo!” disse Deacon. “Ele e seus irmãos. Bilal, Bivran e… Bivrae, certo? Os Três
Mortos?”

“Três Mortos?” Mayla ecoou, parecendo confusa.

Estremeci quando me virei para ela. O sol brilhava em seu cabelo ruivo, que
emoldurava seu rosto e acentuava a leve redondeza de suas bochechas. Ela
era…

Limpando a garganta, eu disse: “Três criancinhas, de oito ou nove anos, que


foram encontradas sozinhas em sua casa. O prédio foi completamente
destruído por algum tipo de explosão, e todos os outros dentro foram mortos.
Mas de alguma forma os trigêmeos sobreviveram.”

“Uau”, disse Brion. “Nunca ouvi essa história.”

Linden se inclinou para frente, entrando na conversa pela primeira vez. “Eu me
pergunto se—”

Mas ele foi imediatamente interrompido por uma série de ruídos mágicos de
gongos ecoando por todo o estádio. Era como se alguém tivesse criado uma
barreira de som quando o público de repente ficou completamente em
silêncio.

No meio desse silêncio, um homem nascido Vritra veio marchando, vestindo


uma armadura escura com uma capa roxa atrás dele, caminhando
resolutamente em direção ao centro do campo de combate. Chifres se
projetavam de seu cabelo preto curto. Ele tinha um rosto sério, e onde quer
que seus olhos vermelhos estivessem focados, a multidão parecia tremer.

Não houve nenhum anúncio para nos dizer seu nome ou listar suas realizações.
Todos já sabiam quem ele era: Cylrit, retentor de Sehz-Clar.
Quando chegou ao meio do campo, virou-se para a tribuna de honra, sua
postura reta como uma espada, e então curvou-se profundamente. Eu mal
conseguia ver a Foice Seris Vritra se mover para a frente da varanda, mas eu
estava feliz por já estar sentado. A visão dela – seu cabelo brilhando como
pérola líquida à luz do sol, suas vestes de batalha brilhando como diamantes
negros – fez meus joelhos tremerem.

Ela voltou para as sombras no camarote de honra pouco antes de uma segunda
figura aparecer, marchando em direção a Cylrit.

Embora completamente focado na mulher, achei muito difícil, quase doloroso,


olhar para ela. Meu olhar continuava querendo escorregar, como sapatos de
sola lisa em um caminho gelado. Sua figura era indistinta, meio etérea…
sombra tornada real. Mantos pretos simples pendiam de seu corpo magro, mas
eles pareciam flutuar e se mover, desmoronando em nada ao redor de seus
tornozelos, como se deixassem de ser mantos e se tornassem apenas
escuridão.

Ela parecia flutuar sobre o chão, carregada em um vento de névoa negra.


Nenhum chifre brotava de sua cabeça, mas seu cabelo branco curto, que
praticamente brilhava em contraste com sua pele e vestes negras da meia-
noite, estava estilizado em pontas retas e afiadas.

Mawar, a Rosa Negra de Etril…

Parando ao lado de Cylrit, Mawar também se curvou para o camarote.

Outra mulher veio até a sacada, levantando a mão em direção à sua retentora.
Ela era muito parecida com a Foice Seris Vritra e, ao mesmo tempo, quase o
oposto dela. A pele cinza-prateada da mulher não estava pintada e ela não
usava ornamentos em seu cabelo branco brilhante. Ao contrário dos chifres
delicados de Seris, esta mulher tinha dois pares de chifres pretos grossos que
se curvavam para longe de seu couro cabeludo, escuros e pesados.

Ela não estava usando um vestido ou traje de batalha, mas sim uma armadura
feita de escamas brancas: placas maiores e ligeiramente mais escuras em seus
ombros, pescoço e quadris tinham uma aparência orgânica, quase como osso,
enquanto menores, em forma de flecha e escamas entrelaçavam-se sobre o
resto de seu corpo.

Foice Melzri Vritra…

Ela deu um passo para trás, e o retentor Mawar se endireitou.

O toque dos gongos fez toda a platéia pular. Yanick amaldiçoou e Linden quase
caiu de seu assento. Soltei um gemido de dor, tendo estremecido com tanta
força que parecia que eu tinha quebrado uma costela novamente.
Uma voz profunda falou, vindo do ar ao nosso redor. “Nenhum desafiante deu
um passo à frente para enfrentar Cylrit de Sehz-Clar. Algum pretendente
ofereceria agora um desafio?”

Como um, todo o público, várias dezenas de milhares de pessoas, todas


focadas no campo de combate, esperando sem fôlego. Mas ninguém deu um
passo à frente.

“Cylrit permanece incontestado”, a voz explodiu.

Curvando-se novamente para a tribuna de honra, o retentor Cylrit marchou


rigidamente para fora do campo.

“Nenhum desafiante deu um passo à frente para enfrentar Mawar de Etril.


Algum pretendente ofereceria agora um desafio?”

Mais uma vez, o chamado para desafiantes ficou sem resposta.

“Mawar permanece incontestado,” a voz trovejou.

Seguindo a liderança de Cylrit, Mawar curvou-se em uma reverência fluida,


então flutuou do campo de combate.

Quando ela se foi, a voz falou novamente. “A Foice Cadell Vritra do Domínio
Central optou por recusar todo e qualquer desafiante ao retentor Lyra de Alto
Sangue Dreide, que permanece na terra de Dicathen, ajudando a estabelecer
nosso novo continente irmão e trazer paz aos seus cidadãos.”

Houve alguns murmúrios da multidão com isso, mas eles pararam


imediatamente quando a voz continuou a falar.

“Em tempos de guerra, até o soldado mais forte pode cair seguindo a vontade
do Alto Soberano. O mundo é vasto e seus perigos são muitos, e é por isso que
Alacrya precisa do Alto Soberano para cuidar de nós, nos proteger e nos
fortalecer. Honramos os mortos por seu sacrifício. Retentores Uto de Vechor,
Jaegrette de Truacia e Bilal de Truacia. Seus nomes, como suas ações, serão
lembrados enquanto um único coração Alacryano ainda bater.

“Mas onde um cai, outro se levanta. Quatro dos campeões de Alacrya deram
um passo à frente para disputar o cargo de retentor de Truacia sob o comando
da Foice Viessa Vritra. O Soberano Kiros Vritra dá as boas-vindas e convida
para o campo: Ssanyu, o Devorador de Pedras—”

“Ah, eu te disse!” Yanick sussurrou, sorrindo de orelha a orelha.

“—Aadaan de Sangue Nomeado Rusaek, Kagiso de Alto Sangue Gwethe e Bivrae


dos Três Mortos.”

Enquanto seus nomes eram falados, os quatro desafiantes apareceram de uma


das muitas entradas e marcharam em direção ao centro do campo para o local
que Cylrit e Mawar tinham acabado de desocupar. Eles ficaram lado a lado em
uma fila – Bivrae bem longe dos outros, o rosto dela era uma máscara feia de
desdém – e se curvaram como um para o camarote.

“Algum outro pretendente ofereceria um desafio?” disse a voz.

Um momento se passou. Ninguém se moveu.

A voz ressoou novamente, mais profunda e mais grandiosa. “Então curvem-se


diante do Soberano Kiros de Vechor e que os desafios comecem.”

Uma presença sufocante tomou conta do coliseu. Parecia que alguém tinha
virado o mundo de cabeça para baixo e eu estava sob o peso de todo o
continente, esperando que ele caísse e me esmagasse até virar nada.

A sombra de um grande ser apareceu na sacada do camarote. Ao meu redor,


as pessoas já estavam olhando para baixo, olhando para os pés ou para o colo.

Apertando minhas mãos, mantive meus olhos em meus dedos entrelaçados,


não me atrevendo a olhar para qualquer outro lugar. Do alto da minha visão,
eu podia ver os quatro desafiantes, cada um de bruços na terra, prostrados
diante do Soberano.

Quando ele falou, a voz do Soberano explodiu com trovões manchados de


sangue e poder incandescente, queimando meus ouvidos e roubando minha
respiração. “Provem-se, desafiantes. Mostrem a profundidade de sua coragem
e o alcance de seus desejos. Tragam orgulho para seus sangues e seus
Soberanos. Que nenhuma fraqueza se apodere de vocês, mas reivindiquem
cada grama de força de seus corpos.”

Então a força de sua presença se foi. Esperei, com medo de olhar para cima e
encontrar acidentalmente o olhar do Soberano. Mas a multidão começou a se
mexer, e eu podia ouvir algumas conversas sussurradas, e finalmente a mão
de Mayla estava descansando no meu antebraço.

“Seth, você pode—”

Olhei para cima, encontrando seus olhos. “Isso foi…” Mas eu parei, sem saber
como descrever o que eu tinha acabado de sentir.

“Eu sei.”

A voz projetada do locutor invisível veio de novo, desta vez irritando ainda
mais meus nervos em frangalhos, fazendo parecer que alguém estava bem
atrás de mim, gritando no meu ouvido. “Desafiadores Kagiso e Aadaan, por
favor, permaneçam em campo. Todos os outros, retornem à sua área de
preparação.”

Ssanyu e Bivrae partiram em direções opostas, o primeiro caminhando


orgulhosamente, o segundo se esgueirando de uma maneira que me lembrou
as criaturas das histórias de terror que minha mãe lia para mim quando
criança.

Os dois homens restantes no campo curvaram-se novamente para o camarote,


depois um para o outro.

Aadaan era alto e magro, com braços e pernas que pareciam ter sido esticados
em uma prateleira. Ele estava vestido com uma armadura de couro com
inscrições rúnicas, o marrom escuro quase da mesma cor de sua pele. Ele
usava um sorriso inteligente, e seus olhos nunca deixaram Kagiso.

Kagiso fez um show de alongamento, sua juba de cabelos castanhos saltando


ao redor de seus ombros com cada movimento. As pontas de seus chifres
pretos eram apenas visíveis através de seu cabelo, e ele tinha um olho
vermelho brilhante e um preto azeviche. Sua armadura era uma malha de
couro e corrente em um vermelho profundo que combinava com seu olho, com
runas prateadas brilhando nas ombreiras, peito e em ambos os lados de suas
costas expostas.

“Caramba, olha a quantidade de runas,” Linden murmurou, e eu sabia que ele


não estava falando sobre a armadura. A espinha do homem estava marcada
com pelo menos uma dúzia de emblemas, e até mesmo algumas regalias.
“Alguém sabe alguma coisa sobre ele?”

“Só que ele foi criado pelo Alto Sangue Gwethe e ele é um ascendente solo,”
Deacon respondeu. “Ele parou de aparecer ao público quando manifestou seu
sangue Vritra.”

Pascal grunhiu e coçou sua bochecha cheia de cicatrizes. “Ouvi dizer que eles
fazem todos os tipos de experimentos malucos em qualquer um que manifeste
sangue de Vritra. É por isso que há tão poucos deles.”

“Não seja estúpido”, disse Brion, ganhando um olhar de Pascal. “Há tão poucos
deles porque é super raro até mesmo alguém com muito sangue Vritra ser
capaz de usar suas artes de mana asuran. Para os poucos que são capazes, o
Alto Soberano leva todos para Taegrin Caelum e os treina para lutar contra os
outros asuras.”

Linden riu. “Cara, mesmo os fodões não podem lutar contra asuras. Foices
talvez, mas só depois de terem sido fortalecidos com elixires e outras coisas.
Aposto que o Alto Soberano tem alguma arma secreta contra os outros asuras.
É por isso que ele nunca teve medo deles. Olha, pense nisso. Eles decidiram
explodir metade do outro continente em vez de nos atacar aqui. Por que eles
fariam isso se não tivessem medo de Alacrya?”

Pascal revirou os olhos. “Linden, amigo, você tem assistido a muitas


transmissões…”

A conversa foi interrompida pelo toque de gongos, anunciando o início da luta.


Só que os combatentes não se moveram. Kagiso e Aadaan estavam parados a
dez metros de distância, armas convocadas para suas mãos. Aadaan
empunhava uma longa e fina lança de prata, enquanto manoplas de ferro
preto se formavam ao redor das mãos de Kagiso, garras afiadas saindo dos nós
dos dedos.

“O que eles estão fazendo?” Mayla perguntou, sua voz quase um sussurro.

“Avaliando um ao outro,” Deacon murmurou, seus olhos arregalados por trás


de sua máscara. “Neste nível, um movimento descuidado pode significar perda
instantânea.”

Aadaan se moveu primeiro.

Inclinando o braço para trás, ele deixou sua lança voar em direção a Kagiso. O
ar se distorceu ao redor da lança, movendo-se como gelo derretido enquanto
se aglutinava em uma enorme lança de vento com a lasca de prata no centro.
Ao mesmo tempo, vários redemoinhos ganharam vida, circulando Aadaan e
girando protetoramente ao redor dele.

Kagiso levantou uma mão. A manopla se derreteu em dezenas de pequenos


pontos pretos, que se moveram para interceptar o ataque. Como um enxame
de vespas que atacam, eles cobriram completamente a lança e, quando se
dispersaram um instante depois, ela havia desaparecido, e o vento ao redor
deles se dissipou.

“O que acabou de acontecer?” Brion perguntou sem fôlego. “Eu nunca vi magia
assim.”

“Porque é magia Vritra,” eu respondi, mantendo meus olhos na batalha. “Tipo


Decadente. Erosão, provavelmente atributo do vento.” Todos os outros me
olharam com um misto de surpresa e curiosidade. “Eu…”

“Li sobre isso em um livro,” Linden, Brion e Pascal disseram em uníssono.

Todos nós rimos por um momento, mas o estádio estava tão quieto que não
pareceu natural, e rapidamente voltamos nossa atenção para o campo de
combate.

Com um movimento do pulso, Kagiso já havia enviado o enxame de pontos


pretos voando pelo ar em direção a Aadaan. Eles nem diminuíram a velocidade
enquanto cortavam seus ciclones defensivos como ferro quente atravessando
pergaminho, mas Aadaan apenas ficou lá sorrindo. Houve um clarão prateado,
e ele estava a seis metros de distância, seu sorriso se transformando em um
esgar perigoso.

A multidão, silenciosa desde a primeira apresentação dos retentores,


finalmente acordou, e a arena explodiu com o barulho de aplausos e gritos.

“Atleta do Vento,” Yanick respirou. “Sua regalia principal…”


O enxame de pontos pretos mudou de direção para seguir Aadaan, mas, em
outro lampejo de prata, ele estava a quinze metros de distância, atrás de
Kagiso.

Mas Kagiso não estava apenas parado chupando o dedo enquanto Aadaan
corria. Em vez disso, o ascendente de sangue Vritra estava canalizando mana
para outra runa, enviando gavinhas de mana da terra por todo o campo de
combate. Eu não conseguia dizer o que ele estava fazendo, mas—

Aadaan desapareceu em um flash quando o enxame desceu sobre ele, mas


uma enorme coluna de pedra entrelaçada com veios de metal preto irrompeu
do campo de combate. Houve um estalo, e a coluna quebrou e caiu no chão
com um estrondo que enviou vibrações até o banco embaixo de mim.

Aadaan, movendo-se na velocidade do vento, bateu na pedra com força


suficiente para quebrar ossos, mas ele nem parecia atordoado. Em vez disso,
um campo condensado de energia cintilante o cercava. Chutando o pedaço
quebrado da coluna, ele se lançou em direção a Kagiso, explodindo em uma
supernova de pura força.

O campo de batalha ficou momentaneamente escondido em uma nuvem de


poeira.

“O que diabos foi aquilo?” Linden perguntou, apertando os olhos enquanto


tentava ver através da nuvem marrom no campo.

“Algum tipo de feitiço de redistribuição de força,” Deacon respondeu, seguindo


a luta segurando seus óculos sobre sua máscara para que ele pudesse ver.
“Mas poderoso. Um emblema, ou talvez até mesmo uma regalia.”

Uma torrente de vento empurrou a nuvem de poeira para fora do estádio. Nos
poucos segundos em que não pudemos ver o que estava acontecendo, o chão
da arena se tornou um campo minado de pequenas partículas pretas de
Kagiso. Aadaan estava preso. Não havia como ele usar o Atleta do Vento para
se locomover em locais tão apertados.

Kagiso estava em cima do toco quebrado da coluna que ele conjurou,


basicamente trocando de lugar com Aadaan. Seu olho vermelho brilhou.

Parecia que ele tinha o truaciano preso.

Então algo puxou a mana do ar ao nosso redor, em todos os lugares. Eu podia


sentir o movimento dela indo até a arena, bombardeando o feitiço de Kagiso,
e a enorme quantidade de mana sobrecarregava a capacidade de erosão das
partículas pretas.

Mayla suspirou e agarrou minha mão, apertando com força, e meu estômago
se agitou. Olhei para ela com o canto do olho, mas seu olhar estava na arena,
e sua expressão não dava nenhum sinal de que ela estava pensando em
segurar minhas mãos. Linden me deu uma cotovelada do outro lado, suas
sobrancelhas subindo e descendo quando ele me deu um sinal de positivo
com a mão.

Envergonhado, pensei em puxar minha mão, mas… percebi que não queria. Era
um sentimento… bom. Bem estranho, mas reconfortante também.

Quando consegui me concentrar de volta na luta, o campo de batalha estava


livre dos ciscos negros – a onda esmagadora de mana os havia exaurido,
queimando-os – e um ciclone girando lentamente estava começando a girar
em torno de Aadaan. Kagiso estendeu a mão nua, e a manopla com garras se
reformou ao redor dela. Os dois se olharam por um longo momento, ambos
guerreiros cautelosos e confiantes de uma forma que achei difícil de entender.

Então Aadaan sorriu e empurrou para fora com a tempestade que se formava.

E isso foi só o começo.

O barulho da multidão diminuiu e fluiu enquanto a luta se estendia, cinco


minutos, dez, vinte. Meus amigos e eu rimos, suspiramos e gritamos uns com
os outros enquanto o ritmo da luta continuava a aumentar, impressionados
com cada novo feitiço lançado ou runa ativada, zombando quando um dos
lutadores estava com uma vantagem, e no momento seguinte, deixava o jogo
virar por conta de alguma reversão inesperada de seu oponente.

Eu nunca vi nada como aquilo. E eu nunca tinha me divertido tanto.

Mayla não soltou minha mão até os momentos finais. As capacidades


defensivas de Kagiso – seu poder de corroer a mana de seu oponente e afastar
até os ataques mais mortais – superaram a reserva de mana de Aadaan. Uma
vez que Aadaan não podia mais usar o Atleta do Vento para voar pela arena,
acabou.

Kagiso fechou a distância, esmagando as barreiras defensivas de vento de


Aadaan com aquelas manoplas pesadas e esmagando-o no chão. Com suas
garras na garganta de Aadaan, Kagiso olhou para o camarote de honra em
busca de orientação.

A multidão, que tinha ficado quieta novamente, respirou fundo, sibilando, e


Mayla se virou, pressionando o rosto no meu ombro.

Um gongo soou. Kagiso dispensou suas manoplas, e Aadaan rolou e ficou de


joelhos. A areia grudava em sua pele encharcada de suor, e mesmo da
arquibancada eu podia ver que ele estava tremendo.

A multidão estourou como uma barragem, inundando a arena com aplausos


em êxtase. Até Yanick deu um pulo, pulando em uma perna enquanto se
apoiava no ombro de Brion, gritando junto com todo mundo. “Kagiso! Kagiso!
Kagiso!”
Senti um momento de decepção quando Mayla soltou minha mão enquanto
pulava para cima e para baixo, seu rosto corado, seu cabelo balançando de um
jeito que achei meio hipnótico. “Isso foi loucura!” ela gritou sobre os aplausos
cacofônicos.

Inclinei-me para falar sem gritar. “Eu sei, eles estão realmente em outro nível.
Eu…”

“Boa luta”, disse a voz do locutor invisível, cortando a agitação da platéia e


silenciando todos na arena. “Boa luta para os pretendentes, Kagiso de Alto
Sangue Gwethe e Aadaan de Sangue Nomeado Rusaek. A vitória vai para
Kagiso!”

Os dois combatentes se curvaram novamente na direção da tribuna de honra,


onde o Soberano e as Foices se encontravam velados sob sombras espessas,
então deixaram o campo de combate, Kagiso caminhando confiante para
longe, Aadaan esgueirando-se atrás dele, seus olhos baixos.

“Ssanyu, o Devorador de Pedras e Bivrae dos Três Mortos, retornem ao campo


e preparem-se.”

Ssanyu entrou na arena primeiro. Ele era alto com músculos salientes, e usava
uma placa no peito que deixava seu abdômen e a crista de sua espinha
exposta, junto com placas de aço cobrindo a maior porção da sua parte inferior
do corpo. Uma espécie de coroa de ferro rodeava sua cabeça raspada.

Depois que Ssanyu chegou ao centro, uma névoa verde começou a ferver do
chão, formando uma mulher com membros finos e afiados e uma postura
grotesca e retorcida, como se seus ossos tivessem se colado da forma errada.
Como se para acentuar a grosseria de sua figura, as vestes pretas que ela usava
eram transparentes e cortadas em alguns lugares para revelar suas costelas e
coluna, que saiam da pele cinzenta e doentia.

Ela rosnou para Ssanyu, revelando dentes lixados em pontas.

Ambos os combatentes se curvaram para o camarote, então se encararam.


Uma névoa verde cor de vômito flutuava ao redor do corpo inumano de Bivrae.

O som de gongos anunciou o início da luta.

“Espere, o que ele está fazendo?” Mayla perguntou, levantando-se e


protegendo os olhos do sol com uma mão.

“Ele está… se rendendo…” Eu murmurei, surpreso.

Ssanyu se ajoelhou, sua cabeça abaixada para olhar para o chão sob os pés
com garras de Bivrae. Ela puxou os lábios para trás como um animal, exibindo
seus dentes afiados. As névoas flutuaram de uma forma agitada antes de
serem atraídas de volta para seu corpo.
Ela se virou para o camarote, endireitando-se da melhor maneira que sua
estrutura torcida permitia.

“Ssanyu, o Devorador de Pedras, concede”, disse a voz, seu tom perfeitamente


monótono. Se o locutor ficou surpreso, ele escondeu muito bem. “A vitória vai
para Bivrae!”

Houve alguns resmungos da plateia, e nenhuma comemoração para Bivrae


como houve para Kagiso, mas os adultos ao nosso redor mantiveram suas
queixas e conversas em silêncio, e eu sabia por quê. Abaixo, Bivrae lançou um
olhar desafiador para os espectadores, quase como se estivesse desafiando-
os a expressar seu descontentamento diretamente a ela.

Depois de alguns segundos, ela saiu da arena sob um punhado de aplausos


tímidos.

“Inacreditável”, disse Yanick mal-humorado. “E eu estava tão animado para ver


a luta de Ssanyu. Aquilo foi estúpido. Kagiso vai rolar e mostrar a barriga para
Bivrae também?”

Deacon bufou. “Teremos que esperar um pouco para descobrir. Ele fará uma
pausa para descansar e se recuperar, então veremos as batalhas para
substituir o retentor de Dragoth a seguir.”

Brion deu um tapinha nas costas de Yanick. “Todo mundo sabe que a Foice
Dragoth Vritra é a Foice mais popular. Tenho certeza de que haverá um—ooph!”
Brion agarrou seu estômago quando Yanick lhe deu uma cotovelada, e todos
os outros riram.

Mas antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita, o locutor começou a falar
novamente. “Mais doze campeões de Alacrya desafiaram a posição de retentor
de Vechor sob o comando da Foice Dragoth Vritra. O Soberano Kiros Vritra dá
as boas-vindas e convida para o campo…”

O locutor começou a listar os desafiantes, todos poderosos ascendentes ou


heróis de guerra. À medida que cada nome era falado, o prospecto entrava no
campo de combate e se juntava à fila crescente de frente para a tribuna de
honra. Quando o último dos desafiantes parou, a fila curvou-se em uníssono.

“Desafiadores Echeron e Lancel, por favor, permaneçam…”

A voz fez uma pausa. Olhei para Linden, depois para Mayla. Ela parecia tão
confusa quanto eu me sentia. Alguma coisa estava… errada.

“Ei… o que é aquilo?” Pascal perguntou, apontando para o ar. “Vocês estão
sentindo isso?”

Uma mancha preta no céu estava crescendo rapidamente em tamanho. Outros


membros da plateia estavam começando a notar isso agora, e milhares de
vozes ecoaram a pergunta de Pascal. Alguns até conjuraram escudos, outros
gritavam, deixando seus assentos ou canalizando magia em runas em
preparação para enfrentar o que obviamente pensavam ser uma ameaça.

Pela enésima vez desde o início do Victoriad, minha respiração foi esmagada
do meu peito pela súbita presença de uma aura poderosa.

Os pretendentes em campo se dispersaram, ativando seus poderes e se


preparando para se defender. Um cometa preto pousou no centro da arena
um instante depois com uma explosão de energia escura que enviou todos
voando como insetos. Dezenas de milhares de pessoas gritaram, mas ninguém
estava correndo agora. A plateia inteira parecia congelada, incapaz de fazer
qualquer coisa além de assistir.

A arena abaixo estava completamente obscurecida por uma nuvem de poeira


mais uma vez. Na tribuna, todas as quatro Foices avançaram para a sacada.
Embora eles não tenham feito nenhum movimento para lançar magia
defensiva, vê-los – todos juntos de uma vez assim – fez minha cabeça girar, e
eu me preocupei por um segundo que poderia desmaiar.

A mão de Mayla no meu braço me trouxe de volta a mim mesmo. Eu coloquei


minha mão sobre a dela e apertei.

Uma supernova de chamas negras limpou a poeira, revelando um homem


esbelto – um menino, na verdade, não muito mais velho do que a maioria de
nós – com cabelos pretos curtos e feições afiadas, quase despretensiosos,
exceto pela raiva indomável e cheia de ódio em seus olhos…

Ele saiu da cratera que havia feito no chão da arena, seus olhos escuros
varrendo o coliseu ao seu redor. Espigões de ferro preto se projetavam do chão
a cada passo, e chamas escuras envolviam seu corpo. A visão daquela magia
negra de Decadência – muito mais forte que a de Kagiso – me encheu de pavor.

A Foice Viessa Vritra falou primeiro, sua voz sendo transmitida sem esforço
pelas arquibancadas silenciosas. “Nico. Explique-se! O que, em nome do Alto
Soberano, você acha…”

“Grey!” o recém-chegado — a Foice Nico Vritra do Domínio Central, percebi com


um tremor — gritou, sua voz embargada. “Eu sei que você está aqui! Eu aceito
seu desafio, seu maldito! Então me enfrente!”

Os olhos de Mayla se arregalaram como pratos de jantar, seus lábios


tremendo. “E-ele—?”

“Grey?” Linden engasgou. “Tipo… Professor Grey?”

Minha mente disparou enquanto todas as teorias malucas sobre o estranho


encontro do professor com a Foice Seris Vritra passavam por ela, espalhadas
como folhas ao vento. Eu achava que meus colegas de classe eram
completamente malucos, do jeito que eles inventavam explicações cada vez
mais improváveis para o que tínhamos visto. Mas isso…

Quem realmente era o Professor Grey?

Foice Dragoth Vritra sorriu para a outra Foice. “Você passou dos limites,
pequeno Nico. Não é assim que nós…” Sua cabeça de repente se voltou para
uma das muitas entradas no campo de combate, seu sorriso se transformando
em uma carranca raivosa.

Alguém estava caminhando em direção à Foice Nico. Um homem com um


manto branco forrado de pele e uniforme da Academia Central. Cabelo loiro
como trigo despenteado pela aura furiosa da Foice, olhos dourados brilhando
por trás de sua máscara. Ele andava com tanta confiança e propósito, sua mera
presença um escudo contra a aura odiosa que irradiava como uma doença da
Foice Nico.

Eu sabia quem ele era, mas algo em meu cérebro não aceitava que essa
pudesse ser a mesma pessoa que eu conhecia, que eu encontrei pela primeira
vez na biblioteca antes do início o semestre, que passara tanto tempo
tornando um garoto magro, fraco, doentio em um lutador meio decente,
apesar de olhar para mim como se quisesse torcer meu pescoço…

Porque como é que meu professor de Táticas de Aprimoramento Corpo a Corpo


rabugento, misterioso e emocionalmente distante poderia ser a mesma pessoa
agora se aproximando da Foice Nico no campo de batalha como se ele não
estivesse caminhando para a própria morte? Eu não conseguia entender.

Mas era ele.

Mesmo as outras Foices não interviram mais quando o professor Grey e a Foice
Nico se encararam até quase se tocarem.

“Nico,” disse o Professor Grey, com um sorriso que não estava de acordo com
seus olhos. “Você está um lixo, velho amigo.”

Capítulo 372
Não Autorizado

ARTHUR

Nico deu um meio passo até mim, com a mandíbula tensa e uma veia pulsando
visivelmente em sua testa. Estacas negras se lançavam do chão a cada
movimento, e sua pele estava impregnada com fagulhas das chamas negras.
“Mesmo depois de duas vidas, você não mudou nada.”
O sorriso falso sumiu de meu rosto com as palavras dele, e eu evitei palavras
mais provocativas. O resto de orgulho que eu tinha sentido ao atrair Nico para
esse confronto — no qual ele não poderia escapar ou pedir por ajuda — sumiu
agora que ele estava diante de mim. Seu rosto, no qual restava apenas um
resquício da similaridade com o Elijah, me enchia de emoções conflitantes.

Ele foi o meu melhor amigo em duas vidas, afinal de contas. Primeiro como
Nico, e então como Elijah. E eu o decepcionei em ambas. Foram esses
fracassos, em parte, que levaram ele a se tornar quem ele era agora.

Rancoroso. Desesperado. Apenas o esqueleto de um homem.

Ainda assim… Eu não o culpava por me odiar.

Eu não poderia.

Eu não podia nem o culpar pelo que ele fez nessa vida… Por mais fácil que isso
teria sido. Ele foi reencarnado aqui apenas para ser manipulado e usado como
uma ferramenta pelo Agrona. O Destino não deu a ele a oportunidade de
aprender com os erros de sua vida passada. Ao invés de uma segunda chance,
o medo, insegurança e ódio de Nico foram manipulados e usados como uma
ferramenta e arma desde os primeiros momentos de sua vida.

Mas, independentemente de como nós dois chegamos a esse ponto, já não


existe mais espaço para perdão, para reconciliação.

Apesar de saber o quanto a Tessia significava para mim, Nico ajudou Agrona
na reencarnação da Cecilia, usando o corpo de Tess como um receptáculo — e
eu ainda não entendia quais consequências isso teria. A mesma Cecilia que
queria tanto evitar ser usada como arma a ponto de se jogar em minha espada
para fugir desse destino…

E ele, no seu egoísmo e ignorância infinitos, a entregou para Agrona.

“Diga algo!” Nico rosnou, quase gritando. Uma onda de chamas espirituais
corroeu o chão abaixo dele, e ele passou a flutuar.

“Tipo o quê?” Eu surtei, depois de sua reclamação petulante irritar meus


nervos como uma ferida antiga. “Dizer que eu não matei Cecilia? Que eu nunca
quis abandonar vocês dois? Você ao menos ouviria se eu te dissesse a
verdade? E o que isso mudaria, Nico? Certamente não o fato de que você matou
milhares de inocentes, que você levou a Tessia por puro egoísmo…”

“Eu só levei de volta o que me pertencia!” ele gritou, seus olhos queimando
com um ódio negro. “O que eu deveria ter. Isso é destino. Assim como você
morrer também é. Novamente.”

Não sei porque, mas a finalidade da declaração de Nico causou uma dor
profunda dentro de mim. Eu desejei, naquele momento, que eu pudesse
desfazer tudo que tinha acontecido. Que Cecilia tivesse sobrevivido, e que eles
tivessem fugido juntos como estavam planejando. Que eu não tivesse me
afastado deles para treinar com a Lady Vera, e que eu tivesse me esforçado
mais para ajudar Nico a encontrar Cecilia, quando ela desapareceu.

Tinha tanto que eu poderia ter feito de maneira diferente.

Mas eu não fiz. E apesar de que eu podia olhar para trás, para o caminho que
eu percorri, eu não podia mudar seu formato. Nem podia mudar o destino para
onde ele me trouxe. Mas eu podia olhar para frente, e fazer novas escolhas –
escolhas diferentes – para mudar minha direção.

Desde que eu acordei nas Relictombs, eu tinha sido frio e indiferente. Era
necessário, eu sabia disso. Eu não me culpava por essa necessidade.

A persona de Grey era como um escudo, que usei para cercar a minha mente,
mantendo de fora pensamentos sobre aqueles que eu não podia ajudar agora:
Tessia, Ellie, minha mãe, todos que estavam em Dicathen… Ao invés disso, eu
foquei nas Relictombs e em procurar as ruínas que a Sylvia me instruiu em sua
última mensagem, além de tentar entender minhas novas habilidades e o novo
mundo no qual eu me encontrava.

Mas era hora de seguir em uma direção diferente. E isso começaria com o Nico.

Eu não pude evitar que minha expressão suavizasse, exibindo a minha tristeza
e pena sem filtros.

“Não faça isso. Não me olhe assim,” Nico disse, balançando a cabeça em
desafio. “Eu não quero a sua compaixão.”
Meu corpo relaxava à medida que eu aceitava o que estava prestes a
acontecer. “Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes.”

SERIS VRITRA

Eu friccionava uma unha na outra até ouvir um estalo, que era um hábito de
infância do qual eu tinha me curado há tempos, ou pelo menos achava que
sim.

A trama do Arthur havia ultrapassado os meus planos, novamente.

Eu estava surpresa, vacilando entre uma tentativa apressada de colocar as


peças no lugar e uma aceitação silenciosa de que eu não entendia
completamente o que estava acontecendo.

Ainda assim, eu não tinha chegado até onde cheguei sendo estúpida, e depois
de considerar por um momento, eu percebi que o plano de Arthur tinha sido
bem simples, e mesmo assim eficaz.

A aliança impaciente e trôpega de Nico com os Granbehl’s, que


compartilhavam seu ódio pelo Arthur. A represália sem cautela de Arthur, e
sua tentativa superficial de cobrir seu rastro.

Nico precisaria ter mais autocontrole, para poder crescer a força de seus
aliados o suficiente, para então ser uma ameaça ao Arthur. Sua natureza
impulsiva ia contra o uso de subterfúgios. Quando seu golpe mal planejado
falhou, Arthur sabia que ele teria um chilique.

Nico sempre foi um garoto temperamental. Ele assimilou o conceito de poder


de um homem fraco, a ideia de intelecto de um tolo, e a visão de maturidade
que uma criança possui. E ainda assim, eu nunca descartei seu potencial. As
outras Foices ainda não enxergavam isso, mas nenhuma das reencarnações
eram o que pareciam. Cada uma delas era uma força de mudança — de caos —
em sua própria maneira.

Ao ver Nico e Arthur — ou Grey, que de várias maneiras era uma pessoa
diferente do garoto que eu salvei em Dicathen — se encarando no campo de
batalha, eu senti uma empolgação repentina.
“Uma interrupção não programada, mas talvez essa seja uma oportunidade
para o pequeno Nico provar a si mesmo,” disse Dragoth com uma risada
despreocupada.

“Provar a si mesmo?” perguntou Viessa, sua voz era apenas um assobio baixo.
“Apenas por lutar contra esse — o que ele é mesmo? Um professor de
escolinha? — Nico se envergonha, e por consequência, a nós também.

O Soberano Kiros soltou um bufo irritado, e seus olhos entediados se moviam


aleatoriamente pela tribuna, que tinha sido equipada com todos os confortos
imagináveis. “Contanto que isso não atrase muito as coisas,” ele grunhiu. Seu
olhar se demorou no canto mais escuro da sala. “Talvez você devesse ir
castigar seu irmão-de-armas.”

Cadell deu um passo para fora das sombras e se curvou perante Kiros. “Perdoe
a impudência da Foice Nico, Soberano. O Alto Soberano o deixou sem coleira
por muito tempo, eu temo.”

Os lábios de Kiros se torceram em um meio sorriso seco. “Você questiona as


ações ou julgamento do Alto Soberano, Foice?”

Cadell se ajoelhou e colocou ambos os braços em um dos joelhos. “Não,


Soberano Kiros, é claro que não.”

“Eles estão dizendo alguma coisa,” disse Melzri, se inclinando no parapeito e


virando sutilmente sua cabeça. “Provocações inúteis.” Ela lançou um olhar
sombrio para Viessa. “Nós devíamos ter surrado mais o Nico durante seu
treinamento.”

“Quem é esse Grey, afinal?” Dragoth perguntou, olhando para o resto de nós.
“Ele me parece familiar.”

Cadell, novamente de pé, estava observando das sombras ao invés de vir para
a varanda, como o resto de nós. “Um homem morto,” ele disse simplesmente,
encontrando meus olhos ao falar.

Então Agrona não confirmou a presença de Arthur em Alacrya com o restante


das Foices, mas ele disse pro Cadell. Interessante.
Eu não tinha certeza do quanto acreditar na insistência de Agrona em dizer
que Arthur não significava mais nada para ele. O Alto Soberano
frequentemente jogava seus próprios jogos, alguns com objetivo, alguns
apenas para entretenimento. Havia momentos em que ele trabalhava contra
seus próprios propósitos, talvez apenas para confundir qualquer um que
estivesse tentando acompanhar, incluindo seus aliados, ou talvez porque ele
tinha prazer em não saber exatamente como as coisas se desenrolariam.

Abaixo de nós, Arthur puxou a capa branca dos seus ombros e a fez sumir com
um floreio. Não houve nem um sinal de mana saindo dele, um fato que os
outros foram rápidos em comentar.

“Seu controle sobre a mana é perfeito,” disse Viessa, apertando seus olhos
totalmente pretos ao olhar para Arthur.

Não tentei ocultar meu divertimento com essa declaração, e ela se virou para
mim. Já havia algum tempo desde que eu tinha conversado com a Foice de
Truacia. Enquanto trocávamos olhares, eu reparei em sua expressão, postura
e características.

Sua pele era tão pálida quanto seus olhos eram negros, e um mar de cabelos
roxos se derramavam sobre seus ombros e pelas suas costas. Ela era mais alta
do que eu, e ficava ainda mais evidente por conta das botas de couro que
usava, que eram de uma cor azul esverdeada, que combinava com as runas
costuradas em seu rico manto de batalha branco e cinza. Os vazios negros de
seus olhos eram sempre ilegíveis, e seu rosto de porcelana raramente deixava
escapar alguma emoção.

De todas as Foices, Viessa era a que eu tinha mais dúvidas.

Mas eu não pensei muito nela nesse momento. Tinham coisas mais
interessantes para me concentrar. “Eles vão lutar.”

Na arena, Arthur e Nico tinham se separado, deixando uma distância de 6


metros entre eles. Nico estava dentro de um inferno de fogo negro. Arthur
parecia ser feito de gelo.

Com um grito raivoso, Nico avançou. O chão se desfez abaixo dele, sendo
destruído quando espigões negros cresciam como erva daninha onde quer que
sua sombra tocasse. Um redemoinho de chamas negras se enroscava em volta
dele, e se estendia à sua frente, à medida que ele se preparava para derramar
o fogo negro em Arthur.

Mas Arthur nem piscou diante da fúria de Nico. Eu teria achado que ele era
louco, se eu não tivesse mais informações.

Arregalei os olhos e me inclinei no parapeito ao lado de Melzri, mais do que


pronta para finalmente ver por mim mesma o poder que Caera tinha descrito.

Com um rugido faminto, as chamas de Nico explodiram para frente. A mão de


Arthur se levantou, e um cone de energia ametista saiu de encontro ao fogo.

Onde os dois poderes se tocaram, eles se mesclaram e consumiram um ao


outro, cada um cancelando perfeitamente o outro lado.

“Impossível,” Cadell grunhiu da parte de trás.

“Ah, agora isso está interessante,” disse Kiros, se inclinando para frente em
seu trono. “Você aí, Melzri, saia da frente, está bloqueando minha vista.”

Estacas negras saíram do chão ao redor de Arthur, mas elas colidiram contra
uma camada de éter brilhante que envolvia sua pele como uma luva.

Nico emergiu da nuvem de trovoadas que restou após a colisão do éter e do


fogo espiritual, com uma dúzia de novas lâminas de metal negro orbitando em
volta dele. Com um empurrão, ele as enviou como mísseis na direção de Arthur.

Uma espada se materializou na mão de Arthur. Uma lâmina de puro éter,


brilhando com uma cor ametista vibrante. O ar ao redor dela se distorcia de
uma maneira que fazia meus olhos doerem, como se a lâmina estivesse
pressionando o tecido do mundo para que pudesse existir. Em movimentos
tão rápidos que a maioria não conseguiria acompanhar, Arthur cortou espinho
após espinho, deixando os pedaços passarem por ele ou ricochetearem em
sua pele protetora.

E então, Nico avançou sobre ele.

A colisão enviou tremores pelas fundações do estádio, e por um momento eu


perdi a visão do que estava acontecendo. A arma de Arthur era uma linha acesa
de luz roxa brilhando através de uma tela de poeira. Nico era uma silhueta,
destacada pela nuvem de fogo negro que ainda o cercava.

A linha de luz roxa cruzou com a silhueta negra…

E então, Nico estava voando para longe de Arthur, tropeçando no ar como um


boneco.

O corpo de Nico atingiu o chão da arena com um impacto que abriu uma
cratera na metade do estádio atrás de Arthur.

“Espera, o que aconteceu?” Dragoth perguntou, sua voz grave carregada com
confusão.

Viessa soltou o ar lentamente. “O núcleo de Nico…”

Ela estava certa. A mana já estava abandonando Nico. Eu podia sentir ela
saindo de seu núcleo arruinado e se dispersando na atmosfera em volta.

“Oh,” Dragoth grunhiu. “Eu acho que eu estava errado sobre ele provar a si
mesmo.”

“Cale a boca, seu tolo,” disse Melzri, pulando da sacada e atingindo o chão
abaixo com força suficiente para rachá-lo.

Finalmente, Arthur se virou. Seus olhos dourados seguiram a linha da trajetória


de Nico até onde seu corpo quebrado estava jogado. O olhar dele se fixou em
Melzri, mas quando ela parou para se ajoelhar ao lado de Nico, seus olhos
subiram até a tribuna.

O tempo, que estava se arrastando, finalmente voltou a correr.

Eu ouvi a plateia com seus suspiros de choque e gritos assustados; os guardas


com suas perguntas em voz alta; os oficiais do evento procurando como
proceder; e finalmente as pedras caindo e a madeira se quebrando nos túneis
abaixo da arena de combate.

Eu reparei na preocupação de Melzri, na frustração de Viessa, na curiosidade


de Dragoth e no distanciamento frio de Cadell.
Eu já estava considerando as maneiras pelas quais eu poderia tirar Arthur
dessa situação, mas eu me contive. Isso era parte do seu plano. Ele já teria
preparado sua fuga, se é que ela seria necessária. O que meus colegas Foices
iriam fazer, afinal? Nico tinha desafiado Arthur — ou aceitado o seu desafio,
em suas próprias palavras. E tinha sido o Nico que interrompera o Victoriad.
Arthur não tinha feito nada de errado… mas ainda assim tinha mandado uma
mensagem.

Em alto e bom tom, realmente.

Eu pensava — estava torcendo — que Arthur iria simplesmente se retirar,


dando um fim ao confronto antes que se intensificasse. Ao invés disso, ele
caminhou com confiança na direção da tribuna, passando por Melzri, que
examinava a ferida de Nico.

“Eu peço perdão pelo atraso que este duelo causou nos eventos de hoje, mas
temo que uma interrupção adicional seja necessária,” ele gritou, garantindo
que sua voz fosse ouvida não só no camarote, mas por todo o coliseu.

“Este duelo foi um desafio não autorizado,” Viessa respondeu friamente, sua
voz se projetando sem esforço pelo estádio. “Qualquer que tenha sido a razão
para seu ataque contra nosso colega Foice, saiba que derrotá-lo não te garante
nada do Soberano Kiros, ou do Alto Soberano, e não te dá direitos para exigir
a posição da Foice Nico, ou nos pedir por qualquer coisa.”

Arthur encarou os olhos negros de Viessa sem piscar. A linha definida de seu
maxilar estava relaxada, seus lábios firmes e retos, e sua postura atenta, mas
calma. Era como se ele fosse a pessoa no comando aqui.

“Eu respeito as regras que vocês estabeleceram,” Arthur continuou, se


posicionando com as mãos entrelaçadas atrás de suas costas, e suas pernas
mais abertas, numa postura levemente mais agressiva. “Ainda assim, foi sua
Foice que instigou e me forçou a fazer esse desafio fora do protocolo.”

A figura de Dragoth se expandiu, crescendo quase um metro. Com ambas as


mãos no parapeito, ele olhava para baixo na direção de Arthur, sua curiosidade
velada transparecendo em seu maxilar e sobrancelhas. “Certo. Então o que é
que você quer? Talvez se você implorar, nós seremos…”
“Não,” Arthur disse, sua voz interrompendo a pompa de Dragoth como um
chicote.

Dragoth, sempre mais relaxado do que as outras Foices, respondeu a essa


ofensa só com uma risada, o que em outra circunstância teria sido punido com
morte.

Quando Arthur continuou a falar, ele encontrou meus olhos por um momento,
então direcionou o olhar para Cadell, falando com uma certeza tranquila que
contradizia a natureza extraordinária do seu pedido: “Eu só peço por coisas
que ganhei. Quero desafiar a Foice Cadell do Domínio Central.”

Os lábios de Viessa se torceram no que me pareceu quase uma careta.

Ao lado dela, Dragoth fez um gesto na direção do campo de batalha. “Nós não
temos que entreter desafios de professores de escolas.”

Abaixo, Melzri estava segurando um frasco de elixir, sua mão estava parada
antes de administrar o remédio na boca de Nico, seus olhos estavam
arregalados e sua boca parcialmente aberta.

Apenas cinco minutos antes, eu presumiria que qualquer conflito entre Arthur
e Cadell seria uma vitória unilateral. Se Arthur tivesse explicado seu plano
completo para mim — de não apenas atrair Nico para uma luta onde ninguém
iria intervir a favor dele, mas também para desafiar o Cadell diante do
Victoriad inteiro — eu o teria dissuadido ou removido ele do torneio, se
necessário.

O que é justamente o motivo dele não ter explicado.

Agora, qualquer recurso que eu poderia ter usado para removê-lo — ou para
ajudá-lo a escapar — se foi. Com meu olhar em Melzri e Nico, eu percebi que
não tinha mais certeza das habilidades de Arthur. Apesar de Nico não ser o
Cadell, ele ainda era uma Foice… Mas ele se deixou ser atraído para uma
situação desconhecida, caindo na armadilha de Arthur. Cadell não seria tão
tolo.

Olhei nos olhos de Cadell. Sua carranca se transformou em uma careta. Minhas
sobrancelhas se ergueram. As dele se franziram.
“Não,” ele disse finalmente, apenas alto o suficiente para que só nós o
ouvíssemos. “Foices não podem começar a entreter todo desafio que aparece.
Fazer isso nos diminuiria e daria uma plataforma para que qualquer tolo que
se acha importante pudesse…”

“Ele é alguém que derrotou um de nós com apenas um golpe,” eu interrompi.

“É…” Dragoth disse com uma risada baixa. “Não me diga que o Cadell, matador
de dragões, está com medo de um professor de academia?”

“Devemos mostrar ao povo que não somos tão fracos quanto Nico nos fez
parecer,” Viessa comentou.

Os olhos de Cadell brilharam. “Esse desafio está abaixo de mim. Ele não é—”

O Soberano Kiros se moveu em seu trono. Foi um pequeno movimento, mas a


discussão foi encerrada. Todos nós nos viramos para ele.

Kiros era alto e largo como Dragoth, apesar de não ser tão esbelto. Chifres
grossos cresciam a partir de sua cabeça, se curvando para cima e para frente,
até virarem pontas afiadas. Anéis dourados de várias espessuras
ornamentavam seus chifres, alguns cheios de gemas, outros gravados com
runas pulsantes. Seu cabelo dourado estava raspado na lateral e próximo aos
chifres, e atrás estava amarrado em um rabo de cavalo. Roupas vermelhas
brilhantes complementavam sua aparência.

Ele jogou uma fruta roxa e suculenta em sua boca, e começou a falar enquanto
mastigava, escorrendo polpa pelo queixo. “Vá. Esse homenzinho estranho
despertou meu interesse. Eu gostaria de ver mais do que ele é capaz, então
não acabe com as coisas muito rapidamente.”

Cadell se endireitou, então se curvou profundamente antes de se virar e sair


da sacada. Independentemente do que ele desejava, ele não podia recusar
uma ordem de Kiros.

Foi com uma sensação cada vez mais profunda de apreensão que eu observei
Cadell flutuar até o campo de batalha enquanto olhava para Arthur. Ele
esperou até que Melzri pegasse Nico — ou o corpo do garoto, já que pela falta
de mana eu não conseguia dizer se estava vivo ou não — e saiu da arena.
“Eu aceito.” A voz de Cadell estava marcada com amargura. “Mas essa batalha”
— ele pausou, deixando as palavras flutuarem — “vai ser até a morte.”

A falta de respiração da plateia era audível.

“É…” Arthur respondeu, dando vários passos para trás na direção do centro da
arena semidestruída. “Certamente será.”

Cadell não perdeu tempo, e não deu nenhum aviso. Uma aura de chamas
negras se acendeu no ar, ao redor de Cadell, formando um cone que se
estendia até o chão. A plataforma da arena onde Arthur se encontrava foi
obliterada, e a terra foi queimada deixando uma cratera do tamanho do campo
de batalha, com Arthur sumindo dentro dele.

A plateia suspirou quando o inferno se dissipou.

Arthur não havia se movido, mas agora ele estava na base de uma cratera
profunda. Seu corpo estava intacto, e não havia fogo espiritual queimando
nele, consumindo sua força de vida como deveria.

Eu tive que me segurar para não dar um sorriso desgostoso.

Tinha sido um bom truque. De onde Cadell estava, com sua visão obscurecida
pelo próprio ataque, ele provavelmente não tinha visto e o movimento foi
muito rápido para alguém da plateia seguir, mesmo com a visão reforçada por
magia. Por um instante, apenas por tempo suficiente para que a onda de fogo
passasse, Arthur desapareceu com um brilho de luz púrpura.

Caera havia mencionado essa habilidade, mas a velocidade incrível e o


controle que Arthur exerceu impressionaram até mesmo a mim.

O sentimento crescente de ignorância roía dentro de mim. O que exatamente


ele tinha feito? Como ele podia fazer isso quando nem mesmo os dragões
podiam? O que mais ele estava escondendo?

A aura de fogo negro ao redor de Cadell brilhou quando ele mergulhou,


expandindo atrás dele como asas gigantes. Garras de fogo se estenderam de
suas mãos. Sua aparência, incluindo as chamas, se apagou, se transformando
em sombra à medida que o fogo baseado em Decaimento consumia a luz.
Arthur se moveu, suas pernas se separando, suas mãos se transformando em
punhos. Novamente, a lâmina brilhante de éter se materializou.

Os dois sumiram em uma nuvem trovejante de fogo negro e púrpura.

Os espectadores gritavam quando os escudos, que impediam que a plateia


fosse vaporizada, tremiam e piscavam.

Atrás de mim, eu ouvi o barulho das roupas de Kiros quando ele se


reposicionava em seu trono.

Arthur reapareceu primeiro.

Minha mandíbula se fechou e meus dedos afundaram no corrimão decorativo,


torcendo o metal até ele se desfazer em minhas mãos.

Seu uniforme tinha sido rasgado do seu estômago até as costelas. Fogo negro
dançava na ferida, consumindo sua carne. Ele continuaria, incendiando seu
sangue e destruindo seus canais de mana, até que chegasse em seu núcleo.
Eventualmente, consumiria sua força vital, o matando de dentro para fora.

Quando a nuvem de mana e éter de dispersou, eu vi Cadell do outro lado da


arena, flutuando a 10 metros de altura. Uma mão estava pressionada contra
seu pescoço, e sangue fluía entre seus dedos. Ele fez uma careta de dor, mas
tinha um olhar de vingança. Eu já conseguia ver as chamas roxas lambendo a
ferida, e curando-a.

Mas Cadell não era o único que estava se curando. O fogo espiritual queimando
na lateral de Arthur diminuía à medida que ondas de uma luz roxa passavam
sobre a ferida, e aos poucos era extinguido. Então, como se a ferida não tivesse
sido nada mais que uma linha desenhada na areia, as mesmas ondas a levaram
para longe, deixando a pele de Arthur sem marcas.

“Fascinante,” murmurou Kiros. “Isso é uma surpresa do Alto Soberano, talvez?


Uma luta encenada para destacar alguma nova magia que ele desbloqueou?”
Eu dei uma olhada para o Soberano. Seus olhos estavam cheios de curiosidade
e maravilha, e seus lábios se curvavam em um sorriso bobo. “Que surpresa
maravilhosa,” ele adicionou, batendo as palmas nos joelhos com entusiasmo.
Tudo era um jogo para os Soberanos. Esse era o resultado de uma vida
completamente desconectada de consequências reais. Especialmente para os
Basiliscos do Clã Vritra, que viam o mundo como um grande laboratório, e tudo
que havia nele era para seus experimentos. Guerras, doenças, desastres
naturais… tudo isso era pouco mais do que oportunidade para que os Vritra
dissecassem o que sobrasse.

Minha mente tentou voltar até a última guerra entre Vechor e Sehz-Clar, como
acontecia com frequência quando eu considerava o passado e o futuro, mas
eu pus esses pensamentos de lado, concentrando-me na cena diante de mim.

Arthur tinha virado para encarar Cadell, que estava flutuando lentamente em
sua direção, seu nariz torcido em uma expressão amarga, enquanto ele tentava
esconder a surpresa de ver Arthur vivo.

A figura de Arthur tremeluziu, numa transformação parecida com a que os


asura faziam ao trocar de matéria para formas de mana pura. Eu segurei o
fôlego, momentaneamente boquiaberta, quando escamas negras cresciam
sobre seu corpo e chifres ônix saiam da lateral de sua cabeça, apontando para
frente e para baixo, emoldurando sua mandíbula.

Então ele se moveu, com um brilho dourado entre suas escamas, e eu fui
surpreendida novamente — uma sensação com a qual eu não estava
acostumada, e ainda assim parecia acontecer com frequência quando se
tratava de Arthur. Sua armadura era magnífica, sua manifestação era
maravilhosa, carregando a mesma elegância e prestígio que os próprios
asuras.

Arthur ajustou sua posição e conjurou uma espada, que projetou sua luz roxa
sobre o chão enegrecido. “Eu aprendi alguns truques novos desde a última vez
que nos encontramos,” disse Arthur, sua voz ressoando no silêncio etéreo. “Eu
espero que você também tenha aprendido, caso contrário isso vai acabar
muito mais rápido do que eu gostaria.”

Capítulo 373
O Victoriad Chega ao Fim

ARTHUR
Cadell se enrijeceu quando viu a relíquia de armadura, surpreendido pela
minha transformação. Eu podia ver sua mandíbula se apertando, e sentir sua
frustração emanando dele como o calor de uma chama.

“Seus truques são uma zombaria para os asura, garoto,” ele disse, cheio de
ódio, enquanto sua postura crepitava com energia.

Mas sua voz estava abafada, sufocada pelo som de sangue subindo à minha
cabeça. O mundo era apenas um borrão, e meus olhos se travaram em Cadell
– o primeiro monstro que eu tinha visto nesse mundo.

Eu me lancei no ar em sua direção ao mesmo tempo que Cadell descia do céu


como um raio negro.

Uma onda de fogo escuro saiu de sua mão. Eu contra ataquei com uma
explosão de éter antes de golpear na direção de sua garganta com minha
lâmina etérica. No entanto, o corpo de Cadell dissipou como fumaça, sumindo
nas chamas que ainda enchiam o céu.

Meus braços viraram apenas um borrão à medida que eu atacava ao meu


redor, despedaçando as chamas como cortinas de seda.

Mas quando Cadell reapareceu, foi atrás de mim. Sua mão, envolta em garras
flamejantes, se afundaram em minha lateral, através da armadura e do éter, e
envolveram minhas costelas. Ignorando a dor, eu reverti a lâmina de éter e
golpeei pra trás e pra baixo, por pouco não acertando seu peito quando ele
voou pra longe.

Eu canalizei minha vontade de seguir, de voar, de simplesmente ignorar as


restrições deste mundo de acordo com as instruções dos djinn, porém a
gravidade me puxou de volta pra baixo.

Com um urro de frustração, eu arremessei a lâmina na sua direção, mas ela


começou a dissolver assim que saiu da minha mão.

Caí no chão com outra arma já conjurada, e me atirei na direção da Foice,


brandindo a espada com negligência, penetrando a nuvem de chamas
espirituais. Mas a minha arma não encontrou o alvo, e novamente Cadell
consolidou as chamas para me atacar, dessa vez acertando meu braço e
deixando marcas de garra que quase o amputaram na altura do cotovelo.

Liberando a lâmina de éter do meu braço ferido e conjurando-a novamente na


outra mão, eu dei uma estocada na direção de seu peito com a força completa
do meu impulso, que tinha o ímpeto de uma pedra arremessada por uma
catapulta, mas ele se transformou em chamas e desapareceu novamente na
nuvem de fogo.

Eu parei 20 metros depois, no meio do chão destruído da arena, xingando


audivelmente.
A figura de Cadell se distorceu na minha visão – a memória dele antes de
massacrar as pessoas no castelo, antes de matar Buhnd, antes de matar Sylvia
se sobrepunham. Ele foi responsável por tantas mortes, incluindo a que
deveria ser minha, caso Sylvie não tivesse se sacrificado por mim.

A morte não seria suficiente pra ele. Eu precisava esmaga-lo, fazer com que se
sentisse fraco e desamparado, assim como eu tinha me sentido. Aqui, diante
de toda Alacrya, Cadell tinha que sofrer.

Sangue e éter correram por meus membros conforme as emoções que eu


estive suprimindo por todo esse tempo ameaçavam tomar conta de mim. Não
era a Destruição que tentava tirar minha autonomia dessa vez. Era eu.

A nuvem de chamas se dissipou, revelando Cadell, que flutuava sobre o campo


de batalha com uma lâmina em cada mão. Uma era feita do mesmo ferro negro
que Uto e Nico haviam usado, mas a outra de um preto vazio, como um pedaço
do céu noturno no formato de uma espada longa.

“Você é um menor até a raiz,” Cadell cuspiu.

Emitindo uma explosão etérica pra me proteger, eu corri pelo chão antes de
me jogar até ele, com minha arma em punhos.

Nós colidimos um contra o outro.

Faíscas negras e roxas voaram conforme o éter impactava suas armas envoltas
em fogo espiritual. Eu cortava e perfurava, mas cada golpe era desviado. Uma
dúzia de novas feridas se abriram em meu corpo, mas elas pouco importavam.

Então, eu estava sendo arremessado através do ar.

A ponta da arma negra tinha penetrado no meu peito, e estava crescendo, me


carregando junto. Cinco metros, dez, vinte, cinquenta, até que eu colidi contra
um dos enormes escudos que protegiam a plateia.

Mas a lança continuou a expandir, crescendo através de mim, e fazendo tanta


pressão no escudo que ele começou a vibrar. Minha armadura foi removida,
rasgando um buraco em meu peito.

Ataquei com minha lâmina de éter, mas o material negro se moveu, se


reformando ao redor da minha espada. Eu golpeei loucamente, como um
garoto sem treinamento tentando partir um tronco. Minha cabeça começou a
latejar, meu pulso se acelerou, e cada batida do meu coração bombeava
sangue pro ferimento ao redor da lança.

De repente uma frieza como gelo estava emanando do meu núcleo, limpando
a raiva quente, e submergindo-a em uma indiferença cheia de foco.

Uma sombra me cobriu.


Regis, em sua pura forma de Destruição. Asas enormes, feitas de uma sombra
negra, o mantinham no ar sem esforço. Sua gigantesca mandíbula cheia de
dentes se abriu, e uma gota de destruição caiu na lança e começou a queima-
la. As chamas violetas correram em ambas as direções, devorando a arma. Eu
senti, por um instante, a fome daquelas chamas dançando no buraco do meu
peito, lambendo a parte de dentro da minha ferida, e se afundando até meu
núcleo.

Então, eu estava caindo.

Atingi o chão com as costas, e fiquei jogado no solo.

Regis flutuou acima de mim, para me proteger, e eu podia ver seu duelo com
Cadell, usando a Destruição pra se defender de outro ataque.

‘Depois de ter sido condescendente com Nico… olhe pra você.’ Sua voz era um
inferno em minha cabeça. ‘Retome o controle.’

Eu cuspi um bocado de sangue enquanto o buraco em meu peito se remendava


vagarosamente, os ossos se uniam e os órgãos se reposicionavam. Finalmente,
eu consegui respirar fundo. E durante as respirações seguintes, eu percebi que
com esses meus movimentos imprudentes eu tinha canalizado muito éter nos
meus ataques, ignorado minhas feridas e negligenciado minha armadura.

Apesar da situação e do local onde eu me encontrava, eu permaneci nos


destroços e cinzas por um momento a mais e deixei que a raiva que tinha
tomado conta de mim se dissipasse em frustração e vergonha.

Qual era o sentido de ter ficado mais forte, ter aprendido as artes etéricas,
obtido as relíquias, se tudo o que eu ia fazer era atacar sem pensar?

Sim. Eu estou bem agora, eu avisei Regis com um suspiro calmo.

Com a mente limpa, mas ainda incapacitado, eu continuei a atrair éter da


atmosfera enquanto eu estudava a batalha acima.

Chamas roxas irrompiam da mandíbula de Regis enquanto uma barragem de


mísseis negros voava como um bando de corvos corruptos, tentando evitar as
chamas roxas, mas não rápido o suficiente.

A Destruição pulava de um míssil para o outro, queimando a magia com o


atributo de Decaimento como se não fosse nada, e depois perseguindo Cadell
até o céu, forçando-o a recuar. Pedaços da arena e dos escudos queimavam
com chamas roxas, mas elas foram apagadas rapidamente pelo meu
companheiro.

Eu já tinha enfrentado tanto as chamas espirituais quanto o metal negro antes,


mas a magia preta que vinha em rajadas era um atributo diferente,
provavelmente do vento, o que significava que Cadell podia controlar pelo
menos três elementos diferentes. E ele podia combina-los, como tinha feito ao
fundir as chamas espirituais e o vento pra desaparecer na atmosfera.

Seu poder era mais versátil que o meu, mas a mana não oferecia proteção forte
contra o éter. Tudo que eu precisava era de um único golpe decisivo para
derrotar Cadell, assim como eu tinha feito com Nico.

Os céus acima de nós ficaram escuros. Cadell pairava no centro de um furacão


de vento carregado com Decaimento, que se juntou para formar uma nuvem
impenetrável.

Ele fez um gesto com a mão, e uma chuva de estacas negras e fogo espiritual
desceu como uma torrente de virotes de balista. Linhas preto-carvão de um
vento infernal ia atrás das estacas em chamas, acelerando-as cada vez mais.

O coliseu tremeu quando as estacas caíram no chão ao redor do solo destruído


do estádio, algumas delas batendo nas paredes e outras penetrando o escudo
que protegia os assentos mais próximos. Uma esfera negra momentaneamente
envolveu a tribuna, e quaisquer espigões que a acertaram foram dissolvidos,
se apagando como velas usadas.

Mas sobre Regis e eu, um escudo de Destruição devorava tudo que entrava em
contato com ele, nos mantendo em segurança.

‘Eu sei que você tem suas feridas físicas e psicológicas pra lidar, mas eu tenho
um limite, sabe,’ Regis pensou com um urro mental de exaustão.

Eu reparei na aparição tremeluzente e esfumaçada primeiro que o Regis.

Cadell se solidificou na penumbra das nuvens acima, golpeando com uma


lâmina negra que queimava. Ativando o God Step, eu apareci diante dele,
segurando o ataque com minha lâmina etérica.

Eu só estava esperando você pedir arrego, eu respondi em pensamento, me


esforçando pra conter a força do golpe do Cadell.

O lobo de sombra se dissolveu, se tornando incorpóreo e flutuando até meu


corpo. ‘Já que você está fazendo piadas ruins novamente, eu posso presumir
que você consegue lidar daqui em diante?’ Apesar da sua provocação, eu podia
sentir a fadiga se acumulando no meu companheiro. Ele estava chegando no
limite de suas forças.

Espigões de metal negro surgiram do chão entre nós. Minha espada os cortou
sem dificuldade, mas deu a Cadell tempo suficiente pra recuar e puxar sua
própria espada. “Seu novo vínculo é só um projeto mal feito de besta.”

“Eu acho que a palavra que você está procurando é ‘majestoso’,” eu respondi,
me lançando pra frente e liberando uma enxurrada de cortes e estocadas,
pressionando-o mais pra trás. Ele tentou subir ao ar, mas usei o God Step para
impedi-lo e puxa-lo de volta ao chão, onde ficaríamos mais equilibrados.
Cadell podia até ser mais versátil, mas eu era um espadachim melhor.

Perfurando suas costelas com minha lâmina, eu tentei um movimento lateral


para dividi-lo ao meio, mas suas mãos se fecharam em volta do meu braço, me
impedindo.

Nossos olhos se cruzaram, e eu reparei na expressão sarcástica e cruel que


parecia permanentemente escancarada em seu pálido rosto cinza. Seu queixo
apontava para frente entre seus chifres que se enrolavam abaixo de suas
orelhas. Mas o ar de absoluta confiança que ele normalmente emitia já tinha
ido embora há tempos. Ele estava preocupado.

E ele estava com medo.

Eu notei a sombra quase tarde demais.

Usando o God Step, recuei um instante antes de várias estacas enormes me


perfurarem, e eu observei de cima quando elas atingiram o chão, puxando
Cadell para uma cratera gigantesca.

Rachaduras corriam da cratera, passando por baixo da arquibancada, e


fazendo com que o estádio todo tremesse. Em algum lugar, o metal distorcia e
madeira se quebrava, e duas seções do estádio começaram a se separar.

A plateia esquecida gritava conforme o escudo que as protegia piscava e


sumia, e era substituído por dúzias de escudos menores quando os magos
entraram em ação.

A fundação entrou em colapso, abrindo fissuras nas paredes e fazendo com


que várias seções de assentos se afundassem. Algumas pessoas tiveram a
sabedoria de correr para a saída, mas a maioria ainda estava congelada em
seus assentos. Eu reparei que Seth, Mayla, e alguns dos meus outros alunos,
todos agrupados abaixo de um escudo de mana conjurado por outro mago,
estavam boquiabertos e com espanto em seus rostos distantes.

Algo se moveu nas sombras e eu me vi na borda de uma das centenas de


estacas negras que saiam do chão. Uma criatura, mais sombra do que homem,
rastejou pra luz e esticou seus longos e finos membros que terminavam em
garras serradas.

As sombras ao redor de Cadell se retorciam e subiam no ar como chamas.


“Chega.” Sua voz estava áspera como dentes que dilaceravam ossos. “Não
existem dragões pra te salvar dessa vez, garoto.”

Os seus braços se abriram, e fogo negro começou a ferver de dentro dele. Sua
magia corrupta derramou como piche fervente no que sobrou da arena, e
espirrou contra os escudos que protegiam a área de preparação, fazendo com
que esses piscassem ao chegar no fim da sua capacidade de proteção.
Eu senti uma garra gelada apertando o interior do meu corpo ao me lembrar
dos últimos momentos ansiosos da minha batalha contra Nico e Cadell,
fugindo dessa mesma conflagração infernal com Tessia, desesperadamente
exaurindo minhas últimas forças. Só que dessa vez, Cadell não estava se
segurando.

Regis surgiu ao meu lado, com penugens em chamas, mas incapaz de manter
sua forma por muito tempo.

Minhas sobrancelhas se franziram quando olhei para meu companheiro. Regis.


Você não deveria –

‘Relaxe, Princesa. Não sou um mártir; sou sua arma, lembra?’

Instruções queimaram em minha mente como um ferro de marcar, me


mostrando vislumbres de Regis em uma clareira escura na floresta.

Isso é… Como você –

Minha visão se escureceu quando a sombra de Cadell desceu sobre nós.

‘Não está aperfeiçoada, mas ainda vai funcionar, provavelmente. Só use!’

Com a inundação de fogo quase nos alcançando, Regis fechou os olhos, e seu
corpo lupino se tornava transparente e nebuloso à medida que ficava
incorpóreo. Eu segurei a lâmina de éter em minha mão, mas ao invés de atacar,
eu a puxei e…

Afundei ela em meu companheiro.

Seu corpo se acendeu antes de invadir minha espada até a lâmina etérica
crescer e ficar envolta em chamas violeta.

“Não importa quantos truques você vai inventar, menor!” Cadell gritou
enquanto sua forma demoníaca de sombra se aproximava.

Segurei com força a espada banhada na Destruição, e um sentimento


compartilhado de um vazio frio e sem emoções limpou minha mente de
qualquer coisa além de Cadell. Seus membros longos de obsidiana oscilante,
seus chifres serrados que tinham dobrado de tamanho e a sua aura de fogo
espiritual que o evolvia como asas – eu assimilei tudo isso.

Cadell liberou seu arsenal de feitiços desenfreadamente – uma rajada de ferro


de sangue, uma tempestade de vento vazio, e uma barragem de fogo espiritual
– mas era inútil.

A espada violeta na minha mão arqueou em chamas serradas quando meu


corpo se moveu como um borrão. Movimentos concisos e sem desperdício
criavam pequenas aberturas graças à minha nova espada.
Arcos de violeta rasgavam todas as magias que a Foice lançava, e seus olhos
vermelhos se abriam cada vez mais em terror.

Ignorando a sensação gelada ao redor do meu núcleo, eu deixei que o God


Step me deixasse frente a frente com o rosto distorcido de Cadell. Eu levantei
minha espada acima de sua cabeça, e a Destruição desabrochava em um ardor
violeta. Seus macabros braços pretos estavam cruzados na frente dele,
cobertos por fogo espiritual, e várias estacas se materializavam como escudos.

A lâmina desceu, passando pelas estacas como se não fossem nada além de
névoa. Eu o acertei com a força total do meu corpo reforçado, enchendo cada
músculo com éter. Ele foi esmagado no chão e uma onda de choque saiu de
nós, derrubando o espigão de 10 metros que tinha se formado atrás de Cadell.

Gritos encheram o estádio quando parte do coliseu colapsou, arrastando


milhares de pessoas que estavam sentadas, engolindo várias cabines
particulares e enchendo o coliseu com uma nuvem grossa de poeira.

Cadell se levantou com dificuldade. Seus braços estavam oscilando entre fogo
espiritual e Destruição. Ele se movia desesperadamente, como se pudesse
apagar as chamas roxas. Seu corpo alternava entre corpóreo e incorpóreo, mas
a Destruição estava grudada nele, e sua própria torrente de mana era a única
coisa que o impedia de ser consumido.

O rosto da Foice ficou pálido conforme ele tremia, e as sombras que estavam
apegadas a ele se desfaziam à medida que ele retornava à sua forma normal.
Seus olhos escarlates estavam cheios de medo, e sua arrogância tinha se
transformado em uma máscara de desespero. Se virando para o outro lado,
ele olhou na direção da tribuna de honra, talvez na expectativa que outras
Foices ou até mesmo o Soberano viessem salva-lo.

Enquanto eu olhava pra ele, eu só sentia a fria aceitação da justiça que


finalmente foi servida. “Isso é pela Sylvia.”

As chamas violetas se agitaram ainda mais quando dei uma estocada com a
lâmina etérica. Ela penetrou seu peito e explodiu por suas costas. A Destruição
o consumiu, devorando Cadell a partir do peito. Não teve sangue, nem órgãos
caindo pra fora de seu corpo, apenas as chamas de Destruição que o
purificavam como se nunca tivesse existido.

Não, eu pensei, não é exatamente assim. A mancha da existência de Cadell


sempre estaria neste mundo, evidenciada pelos buracos que ele tinha deixado.

“Me desculpe por demorar tanto tempo,” eu disse, revendo em minha mente o
portal me puxando enquanto a Sylvia me direcionava seus olhos dracônicos
cheios de lágrimas, e suas últimas palavras ecoavam em minha mente:
“Obrigada, minha criança.” Minha culpa pelo que não pude fazer diminuiu, mas
eu sabia que nunca me deixaria completamente.
Eu puxei a espada do peito de Cadell e cortei acima de sua cabeça, decepando
ambos os chifres. Regis, entendendo minha intenção, conteve a Destruição,
deixando-os intactos.

Então ele se fora, deixando pra trás nada além dos chifres.

Regis flutuou pra fora da espada quando ela desapareceu, se movendo de


volta para meu corpo junto ao meu núcleo. Seu éter estava exaurido, e não
precisávamos de palavras pra expressar como nos sentíamos nesse momento.

Eu me curvei para pegar os chifres e os guardar na minha runa dimensional.


Uma fadiga profunda e avassaladora tomou conta de mim e eu passei os olhos
pelo coliseu destruído.

Dúzias de magos corriam para a seção que havia desabado, trabalhando para
puxar sobreviventes dos escombros. Os escudos que sobraram estavam
oscilando. O resto da plateia estava em choque, e seus olhos estavam fixos em
mim ou no lugar onde Cadell esteve.

Houve movimento na tribuna – um dos únicos locais não afetados no coliseu


inteiro – e minha atenção se voltou pra lá.

Um homem enorme com chifres ornamentados que apontavam pra frente se


moveu até a luz cheia de poeira. Ele estava vestindo um robe solto e um sorriso
faminto. Apesar de suprimida, sua aura era pesada o suficiente para virar as
cabeças e ombros de todos os alacryanos no estádio. Este era o Soberano,
Kiros Vritra de Vechor.

Eu esperava mais, comparado com Aldir, Kordri e Lord Indrath.

Eu mantive meus olhos levemente desviados, não pra baixo nem em uma
reverência como aquelas dezenas de milhares de alacryanos ao meu redor,
mas eu não olhei diretamente em seus olhos.

As palmas lentas que vieram do camarote me pegaram de surpresa.

Kiros estava aplaudindo. Sua expressão se alargou em um sorriso e suas mãos


se moveram mais rapidamente. Alguns aplausos confusos e fora de ritmo
vieram da audiência.

“Incrível!” disse Kiros, sua voz se projetando sem esforço pelo coliseu e
silenciando o aplauso fraco. “Uma bela demonstração de poder. E uma morte
tão inesperada! E entregue com tal–”

Uma forma oval perolada apareceu sobre o chão da arena, 6 metros à frente
da tribuna.

Kiros franziu a testa.

Duas figuras vieram através do portal.


A primeira era alguém que eu nunca tinha visto pessoalmente antes, mas eu
soube quem ele era instantaneamente, e mera visão dele foi suficiente para
afastar minha fadiga.

Os chifres de Agrona saíam de sua cabeça e se espalhavam como os de um


alce, e as dúzias de pontas negras afiadas estavam ornamentadas com anéis e
correntes. Ele tinha características marcantes que me causavam desconforto
ao me lembrar de Sylvie.

Pra segunda, eu estava ainda menos preparado.

Tessia tinha a mesma aparência de quando eu a vi pela última vez, falando a


seu povo de uma sacada em Elenoir. Ela estava usando vestes de batalha bem
ajustadas, similar ao vestido usado por Seris, mas as “escamas” individuais
eram de um verde esmeralda e num formato de pequenas folhas. As vestes
deixavam seus braços à mostra, mostrando as mesmas runas sutilmente
brilhantes que eu tinha reparado em minha visão.

Apesar de que ela parecia a mesma – cabelo cinza correndo pelas suas costas
e sobre seus ombros, as tranças puxadas por trás de suas orelhas pontudas,
os olhos de um azul brilhante – ela imediatamente e inequivocadamente não
era a Tessia.

Tessia…

Tessia era uma princesa. Ela havia crescido no palácio real em Zestier, tinha
sido ensinada nas maneiras e costumes da nobreza élfica, anã e humana. Esses
ensinamentos se aplicavam na maneira com que ela se portava, na expressão
de seu rosto, na cadência de seu andar…

Mas nada disso estava lá.

Ao invés disso, essa pessoa que se mascarava como minha amiga mais antiga
movia com uma confiança agressiva – não era a Cecília da minha infância, mas
não estava muito longe da jovem que eu havia batalhado no Torneio do Rei.
Qualquer mal que aquela experiência tinha causado em sua mente, claramente
tinha sido carregado até essa vida, sem dúvidas incentivado por Agrona, assim
como a raiva mal direcionada de Nico.

Logicamente, eu entendia o que eu estava vendo.

Mas o olhar desconfiado e frio que a Cecília me lançava pelos olhos da Tessia
enfiava uma faca em meu peito.

A visita de Agrona não era inesperada, exatamente, mas Tessia – Cecilia…

Eu tinha enterrado ela muito profundamente, identificado como um problema


que só poderia ser resolvido no futuro quando eu tivesse mais tempo pra
considerar…
Será que a Tessia poderia ser salva? Ela ainda estava lá em algum lugar? E se
ela pudesse… Será que proteger ela era mais importante que privar Agrona do
Legado?

No passado eu não estive pronto para encarar essas questões.

Eu ainda não estava.

Regis cutucou meu núcleo. ‘Isso é perigoso, Art. Se nós nos forçarmos ainda
mais…’

Eu deveria estar com medo. Não tinha nenhum jeito de eu lutar contra Agrona.
Eu nem tinha certeza se eu conseguiria lutar contra Cecilia, sem saber nada
dos seus poderes neste mundo. Mas eu não estava assustado. Eu sentia era
que a aparição de Agrona em pessoa tinha simplificado grandemente tudo pra
mim.

Isso significava que só havia um caminho a seguir, e que eu estava livre do


fardo de decidir o que fazer após o Victoriad.

A voz de Kiros reverberou, fazendo o já instável estádio tremer mais ainda.


“Vechor dá as boas-vindas ao Alto Soberano. Todos saúdam Agrona Vritra!”

O povo caiu de joelhos e com o rosto no chão para se curvarem


apropriadamente, e suas vozes ecoavam: “Todos saúdam Agrona Vritra!”

“Eu acho que eu finalmente atraí sua atenção,” eu disse no silêncio que se
seguiu.

Agrona deu um sorriso. Ele descansou uma mão nas costas da Cecilia, e os
braços dela fizeram um gesto complicado.

Algo aconteceu no meu núcleo. Pareceu como uma alfinetada de luz,


queimando através de mim. As mãos de Cecilia se abriram e essa alfinetada se
expandiu até um orbe de luz branca que me cercou completamente, afastando
a terra e a poeira. Pequenos redemoinhos de vento e rajadas de chamas se
manifestaram do lado de fora da esfera, e a umidade se condensava e depois
escorria, como o lado de fora de uma janela numa manhã cheia de orvalho.

Barras transparentes de cristal saíram do chão em um quadrado ao redor de


mim. O cristal tinha uma textura líquida, e se juntava acima de minha cabeça,
formando uma gaiola.

Pra testar, eu segurei as barras. Elas eram frias como gelo e vibrando com
energia. Eu puxei. Elas não quebraram.

‘É algum tipo de nulificação de mana,’ Regis pensou com um sentimento de


admiração.
Apesar de que eu não conseguia sentir a mana que ela tinha movido, eu tinha
certeza que Regis estava certo. Cecilia tinha puxado toda a mana da atmosfera,
até mesmo do meu corpo… Se eu ainda dependesse de um núcleo de mana,
essa única magia teria me deixado impotente. Eu não conseguia nem começar
a entender como isso era possível.

O sorriso de Agrona ficou mais afiado. “Isso tudo foi feito apenas pra mim?
Estou lisonjeado, Grey. Para um menor, seu sentimento de auto importância é
incrível. Mas você parece ter se esforçado muito para atrair minha atenção.
Bom, agora você a tem.” A cabeça de Agrona se inclinou levemente para o lado,
enviando o tilintar de correntes pelo coliseu silencioso. “Eu estou
positivamente ansioso para ver como suas novas habilidades funcionam. Vou
obter muito prazer em te desmontar em pedaços pra descobrir.”

‘Temos que ir,’ Regis pensou.

Eu olhei em volta para o estádio. Primeiro, meu olhar pousou em Mayla, Seth,
Deacon e nos outros. Apesar de que ainda prostrados, Seth estava olhando pra
mim, e seus olhos estavam cheios de confusão e medo. Eu repentinamente
desejei ter sido mais gentil com ele. Ele tinha o coração de um guerreiro, e não
merecia o lado da moeda que a vida tinha forçado pra ele.

Encontrei Valen e Enola, em seus camarotes particulares próximos um ao


outro. Apesar de que ajoelhados para seu Alto Soberano, ambos os estudantes
estavam praticamente pressionados contra os escudos transparentes que os
protegiam, me encarando assim como Seth.

Eu fiquei surpreso em ver Caera com um pé na terra queimada do campo de


batalha, de joelhos após a repentina aparência de Agrona ter interrompido a
sua pressa em vir ver como eu estava. Havia um terror genuíno em seu olhar
escarlate, e seus lábios se moviam em uma prece silenciosa.

Eu tinha esperanças que ela não me odiaria pelo que eu estava prestes a fazer.
Eu me arrependia em não ter dito a ela quem eu era, mas mesmo agora eu
ainda não conseguia dizer qual seria sua reação. Existia a possibilidade de que
ela se voltasse contra mim, e eu teria me arrependido de dizer a ela então.

Ela tinha sido uma boa amiga, se uma amizade verdadeira pudesse ser
construída em cima de mentiras. Eu só esperava que meu olhar expressasse
apropriadamente esse sentimento.

Enquanto eu estive olhando o coliseu, as Foices tinham voado para fora da


tribuna, e me cercado na arena.

A face de Seris estava ilegível e seus pensamentos estavam cuidadosamente


ocultos. Melzri tinha saído do lado de Nico, e estava me encarando com ódio
aberto. Energia sombria se movia como tentáculos ao redor de Viessa, apesar
de que seu olhar estava em Agrona ao invés de mim, esperando pacientemente
por suas ordens. Por último havia o Dragoth, que franzia a testa na direção da
mancha escura na qual Cadell tinha se tornado.

Uma coisa era consistente em todas as suas expressões, até mesmo a de Seris
– um indício de incerteza que abalava a confiança natural deles.

Antes de seguir o conselho de Regis, eu encarei Cecilia mais uma vez,


procurando em seus olhos por algo. Algum sinal. Eu tinha feito uma promessa.
Mas eu nem sabia se a mulher pra qual eu tinha me prometido estava viva em
seu próprio corpo.

Agrona gesticulou para que as Foices me levassem. “Vou admitir, estou


levemente desapontado. Eu esperava que você tivesse outro truque na manga.
Mesmo assim, se o que eu testemunhei de você até agora for a extensão total
de suas habilidades, tenho certeza de que te dissecar será uma distração útil.”

Eu tinha que decidir. Era hora de ir embora. Eu poderia ir sem ela, dando as
costas completamente pro problema, confiando que ainda haveria uma
chance de resolve-lo no futuro.

Ou eu poderia tentar leva-la comigo, tentar achar alguma maneira de tirar a


Cecilia do corpo de Tess, e traze-la de volta…

Ou…

Eu fiquei levemente enjoado com o pensamento.

Mas era o caminho mais claro adiante, a medida mais decisiva. Eu poderia
garantir que Agrona não usasse nem Tessia nem Cecilia, e que qualquer poder
que o Legado possuísse não pudesse ser controlado.

Eu senti meus olhos úmidos, mas eu endureci meu coração.

Me perdoe, Tessia.

Me preparando, eu canalizei éter pelo meu corpo exausto. Todo músculo e


articulação protestaram com raiva, e eu tive dificuldades para focar na costura
complexa de éter e forma física necessária para usar a técnica de Burst Step.

Me lembrando de como tinha sido sofrido o auto aprendizado nas florestas de


Epheotus, eu sabia o que poderia acontecer se eu não fosse preciso ou se
minha força falhasse…

As barras da gaiola eram extraordinariamente fortes. Mas minha armadura e


meu corpo asurano me protegeram quando eu me choquei contra elas,
enviando pedaços cristalinos em todas as direções. No meio do movimento,
eu conjurei a lâmina etérica, e mirei no núcleo dela.

Seus olhos azuis me seguiram a cada centímetro do caminho, como se ela


fosse capaz de rastrear meu progresso mesmo enquanto usava o Burst Step.
Quando a ponta da minha espada estava pressionada contra seu esterno, seus
olhos se abriram e brilharam em uma cor verde. Veias verde-musgo se
espalharam em seu rosto embaixo da sua pele e, por um instante, ela
pareceu… conformada enquanto um sorriso tenso enfeitou seus lábios
pintados.

Seu corpo tremeu, e sua mão subiu, não na direção da lâmina – não pra se
defender – mas na direção do meu rosto. Um carinho. “Art, por favor…”

Era a voz da Tessia.

Eu liberei a lâmina de éter. Ela sustentou o olhar por um instante, dois, e


então…

As veias verdes recuaram, os seus olhos voltaram à cor natural, e uma mão
subiu até o rasgo em suas vestes onde minha espada tinha quase perfurado
ela. Tess – Cecilia deu um passo pra trás, e me lançou um olhar de ódio
profundo.

“Oh, essa foi quase, não foi?” Agrona disse, achando graça. “Você realmente
pensou por um instante que você conseguiria, não?” O braço de Agrona
deslizava em volta do ombro de Cecilia e a puxava para o seu lado. “Você só é
coração frio e calculista quando é fácil, Grey. Na realidade, você é fraco,
emotivo e suscetível a afeição.”

Eu olhei para minha mão vazia, e minha mente estava em branco a não ser
pelas palavras de Agrona.

O que deveria ter sido um momento de vitória se tornou amargo, com uma
sensação vazia e o gosto de cinzas na boca.

“Levem ele,” Agrona ordenou. As Foices se aproximaram.

O sorriso confiante de Agrona finalmente sumiu quando eu ativei o God Step.


Ele tentou me alcançar, liberando repentinamente seu poder, e o peso da sua
intenção fazia até mesmo a Força Real de Kordri parecer amadora.

Seu olhar de perplexidade foi a última coisa que vi quando os caminhos


etéricos me levaram pra longe do coliseu e do Victoriad.

Capítulo 374
Depois

TESSIA ERALITH

Eu fiquei paralisada, sem movimento e sem vida, com olhos desfocados


enquanto meus pensamentos se voltavam pra dentro.
Agrona estava gritando, mas com o sangue bombeando em minha cabeça, suas
palavras estavam abafadas como um trovão nas montanhas distantes.

Este homem que supostamente já foi meu amigo – eu ignorei a sensação


irritante que quase toda memória dele continuava a me causar – tentou me
matar. Novamente. Mas mais preocupante do que isso, eu tinha perdido o
controle do meu próprio corpo.

Eu quase havia deixado ele me perfurar. Não, isso não estava certo – ela quase
tinha deixado ele me perfurar.

Entrecortados e tumultuados, meus pensamentos passaram pela curta


duração da minha nova vida, e eu percebi que ela sempre esteve lá, escondida
dentro deste corpo, enrolada dentro da força de vontade do guardião da besta.
Enraizada dentro de mim.

E ela tinha tomado o controle. Apenas por um segundo, mas foi tempo
suficiente para me mostrar que ela era mais do que apenas memórias.

Mas isso estava errado. Este corpo… Nico e Agrona disseram que tinha
pertencido a uma combatente inimiga, uma princesa, que tinha sido ferida em
batalha, e seu corpo continuou a viver com a mente ausente…

Mentiras, sempre mentiras –

Agora que eu podia senti-la completamente, agora que eu sabia o que ela era,
eu reconhecia esse pensamento como dela, e não como meu, e a silenciei. Eu
lembrei da sensação de quando Agrona abafou as memórias que tinham me
atormentado constantemente nos primeiros dias depois da minha
reencarnação. Procurando sentir o mesmo, eu instintivamente envolvi a
vontade da besta em mana, criando uma barreira atenuante entre a mente
dela e a minha.

Meus pensamentos são meus e de mais ninguém, eu pensei com raiva.

Não houve resposta.

Eu respirei fundo. O cheiro de piche e cinzas do estádio não deixava espaço


pras fragrâncias sutis da mana ambiente, que ainda estava em desordem
depois da batalha.

Agrona olhou em minha direção, com uma leve carranca. Atrás dele, eu vi, nas
arquibancadas, fileiras e fileiras de pessoas, ainda ajoelhadas, e algumas
estavam desacordadas por causa da pressão que Agrona emitia. As faces que
eu conseguia ver – daqueles corajosos o suficiente pra levantarem a cabeça
na presença do Alto Soberano – eram máscaras cansadas de medo e
admiração.

“O que você sentiu nele, Cecil?”


Eu balancei minha cabeça e uma mecha de cabelo prateado entrou no meu
campo de visão. Talvez eu devesse tingi-lo? Eu pensei, e me lembrei que
Agrona estava me aguardando. “Nada. Eu não senti nenhuma mana vindo dele,
mesmo quando ele claramente estava usando magia.” Eu pausei, procurando
nos olhos escarlates de Agrona. “Você teria deixado ele me matar?”

O olhar dele se voltou para os céus. “Você nunca esteve em perigo. Eu sabia
que ele ia tentar, e sabia que ele iria falhar.”

Concordando, eu me virei. Minha respiração parou quando eu notei a figura


machucada de Nico, deitado em uma das muitas áreas de preparação que
cercavam o campo de combate. Eu dei um passo em sua direção, mas Agrona
segurou meu cotovelo. Sem olhar pra mim, ele disse, “Deixe-o. O garoto não
tem mais nenhum valor pra nós dois.”

Fechando a cara, eu me livrei da mão de Agrona. “Ele tem valor para mim,
Agrona, então ele deveria ter para você também.”

Flutuando, eu passei por cima das estacas e terra queimada, então me ajoelhei
ao lado de Nico. Sua respiração estava descompassada, e seu cabelo escuro
totalmente bagunçado. Seu rosto pálido e sujo estava cheio de gotas de suor.

Havia um buraco manchado de sangue em sua armadura, acima de seu


esterno. A ferida não estava mais sangrando, e já estava se curando nas
beiradas, mas o elixir que ele tinha tomado não podia salvar seu núcleo. A
mana o ignorava. As poucas partículas de mana de terra se grudavam em sua
pele, e um pouco de mana azul de água navegava pelo fluxo de sangue em
suas veias, mas seu núcleo estava vazio. Quebrado e inútil.

“Sinto muito, Nico”, eu disse, limpando uma mancha de sujeira em sua


bochecha. “Eu deveria ter te protegido. Você fica tão… furioso… Eu deveria ter
imaginado que você ia fazer algo assim.”

O peito de Nico estava subindo e descendo. Suas sobrancelhas se moviam. Ao


seu redor, havia mana no chão, na brisa do vento, nos pequenos incêndios que
haviam sobrado da luta de Cadell e Grey…

Mas não ela não entrava em suas veias de mana, e nem energizavam seu corpo
através de seus canais. As runas marcadas em sua pele estavam vazias e sem
mana também, em nada diferentes das simples tatuagens de tinta no meu
mundo anterior.

Não era justo. Não era certo.

Eu senti o poder opressor de Agrona se aproximando por trás, e podia sentir


sua curiosidade sem nem mesmo olhar pra ele. Seu olhar fixo era como um
holofote, iluminando o mundo onde quer que ele olhasse. “Depois de todo o
seu trabalho e dor para ficar mais forte, Nico nunca mais vai usar magia.”
Agrona não parecia triste, e não se esforçou para transparecer nenhuma
emoção, apenas comentando o fato.

Suas palavras eram vazias aos meus ouvidos. Uma ferida que nem mesmo
matava o corpo não deveria ser capaz de roubar a magia de um mago. Dar esse
presente apenas para rouba-lo depois? Era um destino pior que a morte.

Agrona estava falando novamente, mas eu não conseguia processar suas


palavras em meu turbilhão de pensamentos. Minha visão se focou nos ciscos
de mana que rodeavam Nico. Havia algo aqui, algum potencial, algo que
apenas eu conseguiria fazer.

Meu corpo começou a se mover como se em transe, atraído por algum instinto
profundo. Minha mão foi até o esterno de Nico, e meus dedos penetraram na
sua ferida que ainda se curava. Eles se moveram pelo seu interior quente até
que eu senti algo rígido: seu núcleo.

Ciscos azuis, vermelhos, verdes e amarelos nos rodeavam, flutuando como


pólen brilhante pelo ar, e então fluindo para suas veias de mana, passando
pelo seu corpo e de volta para seu núcleo quebrado. Com a mana, eu podia
sentir tanto a cicatriz negra que arruinara seu núcleo quanto a irregularidade
lá dentro, que estava cheio de sangue coagulado e endurecido.

O núcleo em si – esse órgão estranho que existia neste mundo, mas não no
meu anterior – não reagia à presença de mana. Era como se ele estivesse
morto, apesar dos outros órgãos de Nico que continuavam a funcionar.
Normalmente, a falência de um órgão causaria uma cascata de outras falhas,
eventualmente resultando em morte. Mas humanos eram capazes de
sobreviver sem um núcleo de mana…

Eu tinha sido reencarnada em um corpo com um núcleo lindo de prata,


completamente formado, e nunca tive que formar o meu do zero. O processo
de reencarnação em si – ou talvez a minha condição como Legado – tinha
purificado o núcleo prateado para branco quase instantaneamente. Mas a
mana que ainda cercava o núcleo de Nico parecia apenas como um projeto do
que já tinha sido… do que ainda poderia ser.

Usando a mana como lã de aço, eu poli o sangue seco de dentro, ao mesmo


tempo que queimava o resíduo com uma ignição cuidadosa de mana de fogo.
Nico soltou um gemido baixo e tremeu, mas continuou inconsciente, e eu
estava agradecida por isso. O processo não era rápido. Mas minha habilidade
de dominar novas técnicas era, e dentro de poucos minutos eu havia limpado
o interior do núcleo.

O núcleo em si estava mais rígido. Como se tivesse acabado de ter se formado,


as paredes do órgão estavam contaminadas com sangue.
Agarrando apenas a mana de água, eu a puxei através das paredes do núcleo.
Cada partícula individual sugava um pouco do sangue, e quanto mais eu
repetia o processo, mais limpo ficava o núcleo de Nico.

Este era um processo mais lento, então eu parei quando seu núcleo ainda era
de uma cor amarelo ocre. Por enquanto, eu só precisava saber que iria
funcionar.

Mas apenas a presença do núcleo limpo e da mana não pareciam ter iniciado
nada dentro dele. Ele estava inquieto, com suas sobrancelhas franzidas e a
boca curvada pra baixo em um esgar desconfortável.

Alacrianos, ao contrário dos humanos em Dicathen, nasciam com seus núcleos


de mana no lugar: uma das muitas mutações causadas pelos experimentos de
Agrona e sua mistura de raças. As concessões ativavam o núcleo natural,
coletando mana para que o mago pudesse acionar os poderes das runas. Em
Dicathen, no entanto, eu sabia que magos jovens meditavam para coletar e
purificar mana até que eles “despertassem”, usando a própria mana para
manifestar seu núcleo.

Estendendo meu alcance, eu invoquei a mana que enchia o estádio, puxando-


a pra mim em correntes rodopiantes. Novamente a empurrei pelas veias de
Nico, até o seu núcleo, e então puxei-a pelos seus canais para chegar em suas
runas, até que seu corpo estava brilhando com mana, e sua feição acesa de
dentro.

Eu ouvi as Foices retornando, mas Agrona ignorou suas desculpas e


conjecturas. Ele estava focado inteiramente em mim, e sua mente me cutucava
curiosamente.

Eu o ignorei.

Os escudos – aqueles que haviam aguentado a batalha – enfraqueceram


quando roubei a mana deles. Componentes energizados com mana piscaram
e se apagaram. Artefatos imbuídos falharam. Com exceção dos núcleos das
pessoas que tremiam assustadas nas arquibancadas, eu retirei toda partícula
de mana que eu podia alcançar e derramei dentro de Nico.

Seus olhos se abriram. “Cecilia?”

Ele começou a tossir. Eu soltei seu núcleo e cuidadosamente puxei minha mão
de dentro do seu peito, limpando seu sangue em meus robes de batalha. “Eu
fiz a minha parte, Nico. Eu preciso da sua ajuda agora. Puxe a mana, controle
ela. Você… você pode fazer isso?”

Nico respirou fundo, engasgou e tossiu mais um pouco. “Eu não consigo senti-
la.”
Segurando sua mão, eu apertei forte o suficiente pra doer. “Crianças no outro
continente podem manipular a mana em seus corpos antes de formar um
núcleo. Com certeza você também pode.” Vendo a confiança deixando seu
olhar, eu cuspi as últimas palavras, tentando acender um fogo dentro de Nico.
“Grey conseguiu isso no corpo de uma criança de três anos, não foi?”

Ele ficou tenso, e eu sabia que tinha conseguido. Nico me encarou, então
fechou seus olhos. Um momento se passou, então dois, então… houve uma
ondulação na mana que eu tinha concentrado em seu corpo. Um pequeno
movimento a princípio, mas foi o suficiente para trazer um sorriso ao meu
rosto.

“O que exatamente você fez?” Agrona perguntou, colocando suas mãos em


meus ombros enquanto se inclinava ao meu lado.

Eu expliquei o processo da melhor maneira que eu pude, mantendo minha voz


baixa para que Nico pudesse se concentrar. “Mas ainda não tenho certeza se
está funcionando.”

“Mais uma vez, seu controle sobre a mana surpreende até a mim,” Agrona
disse, num barítono cheio de elogios. “Eu realmente acredito que não há limite
para suas habilidades, Cecil. E eu peço perdão pelo que eu disse mais cedo.
Me apressei ao desistir de Nico.”

“Tudo bem,” eu respondi friamente. “Porque eu nunca vou desistir dele. E


também não vou deixar você esquecer sua promessa.”

As partículas de mana dentro do núcleo de Nico começaram a mudar,


brilhando cada vez mais e com mais pureza. Seus canais se acenderam
também, empurrando a mana recém purificada para seu corpo, ajudando-o a
se recuperar. Suas runas se ativaram em breves clarões, uma por uma, como
músculos se alongando.

Os olhos de Nico se abriram. O sorriso que ele me deu estava cheio de


suavidade e admiração e da gentileza que eu via em minhas memórias do
orfanato.

“Como?”

Eu apertei sua mão novamente e percebi que a náusea e vertigem que eu


sentia sempre que ele me tocava – algum remanescente abstrato dos
sentimentos que Tessia Eralith tinha por ele – tinham sumido. Eu considerei
beija-lo por um momento, mas então me lembrei da promessa de Agrona.

Algum dia, Nico e eu teríamos nossas vidas de volta. Nossas vidas reais –
incluindo o relacionamento um com o outro. Mas por agora, neste corpo… a
intimidade parecia um tipo de profanação. Eu quase dei uma risada com a
infantilidade desse pensamento. Um limite bobo, eu disse a mim mesma. Tudo
bem lutar uma guerra com o corpo de outra, mas compartilhar um beijo era
errado?

Mas a verdade era outra. Algo mais complexo, e mais estranho.

Esta não seria uma vida de verdade, eu tinha decidido. Estava mais para um…
purgatório. Apesar de que eu não seria apenas uma arma no arsenal de Agrona,
eu também não seria eu mesma, não exatamente, enquanto eu vestisse essa
pele. Nico também não seria. Mas nós trabalharíamos juntos, mudando este
mundo para os propósitos de Agrona, e quando vencêssemos a guerra, nós
poderíamos ir embora. Juntos. Pra ser nós mesmos novamente.

Juntos.

Ficando de pé, eu puxei Nico junto de mim. Ele fez uma careta, alongando os
ombros e o pescoço. Os seus olhos pularam até Agrona e piscaram pra longe,
se focando na distância. “O que aconteceu com…”

“Grey?” Agrona perguntou, levantando uma sobrancelha em seu rosto


impassível. “Depois do seu fracasso impressionante, ele sumiu novamente.”

O olhar de Nico foi ao chão, mas eu o peguei pelo queixo e o forcei a olhar em
meus olhos.

“Não se perca no desespero e na raiva,” eu disse, o repreendendo suavemente.


“Eu preciso de você. Se nós vamos matar o Grey, precisamos fazer isso juntos.”

ARTHUR

Meu núcleo gritava em protesto quando completei o God Step.

Com o estômago embrulhado, eu despenquei até o chão, e meu corpo caiu em


um grosso tapete de folhas de pinheiros.

Por alguns segundos, apenas olhei para cima. As copas cheias das árvores altas
bloqueavam o céu. Troncos marrom acinzentados se erguiam até as alturas, e
grossos membros se espalhavam até que eles se enroscavam em seus vizinhos.

Minha mão agarrou um punhado de terra abaixo de mim. Eu bati com meu
punho no chão, e golpeei novamente enquanto um grito frustrado escapava
da minha garganta.

Eu sabia que tinha cometido um erro. Mas eu ainda não tinha certeza se eu
havia errado em não conseguir matar a Cecilia, ou em simplesmente ter
tentado.

Era óbvio agora que ela não era a mesma pessoa que havia morrido pela minha
espada no Torneio do Rei. Agrona tinha feito algo com ela durante sua
reencarnação, ou depois. O olhar de desprezo que ela me deu… não era o olhar
de uma garota torturada que se jogou na espada de um amigo para acabar
com a própria vida.

Mas havia algo a mais. Eu só não sabia ainda se isso era bom ou ruim.

Tessia ainda estava lá. Ela tinha tomado controle de seu corpo, apenas por um
instante, longo o suficiente pra me dizer.

Eu poderia ter pegado ela, e usado o God Step pra fugir…

Mas eu também sabia que Agrona não deixaria isso acontecer.

Um pequeno peso pressionou meu peito de repente, e Regis apareceu em sua


forma de filhote. O pequeno lobo das sombras pulou pra longe de mim e
começou a patrulhar o perímetro da pequena clareira onde tínhamos
aparecido.

Obrigado, eu pensei, incapaz de juntar energia para dizer em voz alta ainda.

‘Pelo quê, salvar sua pele?’ Regis pausou, levantando uma minúscula
sobrancelha lupina. ‘Não foi a primeira vez. Não será a última.’

Eu parei para reunir meus pensamentos. Por isso também, mas por me deixar
ter minha batalha contra o Cadell. Foi egoísta, até mesmo perigoso, mas foi
algo que eu precisava fazer.

Regis caçoou de mim, fingindo um choro. ‘Nem me diga’

Então, aquele poder que você usou…

‘Eu já te disse antes… minha força não está conseguindo acompanhar a


sua,’ Regis pensou sem rodeios. ‘Eu treinei, é claro, mas também passei muito
tempo pensando. Meditando.’

Uma visão de Regis sentado numa rocha, com os olhos fechados, as patas nos
joelhos, banhado pela fria luz do sol da montanha fez meus lábios
tremerem. Meditando, hein?

‘Ei, não se engane com meus dentes maravilhosos. Eu sou um intelectual. Mas
o que quero dizer é, eu pensei muito sobre como eu podia nos manter sãos
quando você utiliza os seus conhecimentos do éter…’

Então, ao restringir a aplicação de Destruição a um feitiço específico… Eu


considerei, me lembrando das chamas violetas que imbuíam a arma etérica.

‘Exatamente,’ Regis pensou, então se enrijeceu.

Um momento depois, eu ouvi as folhas se amassando com os leves sons de


passos, e virei minha cabeça para olhar com calma pela floresta.
Um tapete pesado de folhas douradas e laranjas cobriam o chão da floresta,
interrompido por arbustos verde escuros que cresciam ao redor da base das
árvores, impedindo a visão por mais de alguns metros em qualquer direção.

Atrás de mim, um arco desgastado interrompia o cenário natural. Era esculpido


em mármore branco, mas os detalhes entalhados já haviam desaparecido há
muito tempo, e a pedra estava amarelada. Vinhas se erguiam pelos lados, se
grudando como se quisessem puxa-lo pra baixo e arrasta-lo de volta à onde
ele pertencia.

Um velho enrugado, com uma barriga mais encorpada, mas com ombros largos
que ainda não tinham perdido toda a definição, saiu de trás de uma das
enormes árvores, com suas sobrancelhas levantadas. “Eu achei que você tinha
dito que seria uma operação quieta, garoto. Cair do céu e gritar como um louco
não é exatamente o conceito de quieto, é?”

Eu me forcei pra me colocar de pé, e dei a ele um aceno cansado. “Mais razão
ainda pra eu sair daqui.”

Alaric enfiou os polegares em seu cinto e me olhou de cima a baixo. “Bom,


considerando as dicas que você me deu, eu imaginava que você estivesse em
um estado muito pior se tivesse que chegar aqui. Tirando isso, as coisas foram
de acordo com os planos?”

“Mais ou menos.” Eu fiz uma careta e acariciei meu esterno que doía. “Você
pegou tudo?”

Alaric soltou um bufo. “Direto ao assunto, né?” Ele pegou um anel simples de
pedra polida, e depois o jogou pra mim. “Tudo está aí.”

“Obrigado,” eu disse, colocando o anel em meu dedo médio. “Eles vão me


procurar. Eu acho que eles vão manter as coisas por baixo dos panos, mas
imagino que vão investigar todos com quem eu tive contato.”

Alaric olhou diretamente em meus olhos e soltou um arroto. “Que todo mundo
vá pro inferno. Eu sou só um ascendente antiquado mesmo. Muito burro e
muito bêbado pra recusar um dinheiro fácil quando um estranho me paga pra
guiar ele por aí, e fingir que sou seu tio.”

Eu bufei, observando o velho homem cuidadosamente, e sentindo uma


rachadura que corria pelo gelo que me consumia como nevasca por dentro.
“Obrigado, Alaric. Eu espero que não tenha deixado sua vida ainda mais difícil.”

Ele chutou o chão um pouco, espalhando folhas mortas. “Realmente você


deixou, mas também acho que você tá dizendo essas palavras como uma
desculpa de boca pra fora, porque você já sabe disso.” Os olhos dele seguiram
o Regis, que continuava sua ronda. “Eu não estava vivendo a vida de um
Soberano quando você me encontrou, afinal de contas.”
Eu fiquei quieto, me concentrando apenas em metade das suas palavras, e
tentando imaginar o que o futuro me aguardava.

“Eu, ummm…” Alaric limpou a garganta, e seus olhos inflamados passaram por
mim, e depois foram pra longe. “Eu tive um filho, sabe. Nascido Vritra.”

Pego de surpresa, eu olhei pra cima com a testa franzida enquanto ele
continuava.

“Ele foi levado, é claro, no instante que ele foi identificado. Tirado de nós e
colocado sob a guarda de algum alto sangue.” Alaric se inclinou em uma das
árvores próximas e fechou seus olhos. “Não descobri até muitos anos depois
o que eles fizeram, mas aparentemente eles tinham a mentalidade de que,
para o sangue se manifestar, eles tinham que pegar pesado com ele. Muito
pesado.”

“Eles… o mataram.”

Alaric deixou que as palavras penetrassem o ar denso da floresta. “A mãe dele


já tinha ido embora há muitos anos antes. Nunca a vi novamente. Não
podíamos ter nenhum contato com ele, nem mesmo pra saber qual sangue o
tinha levado, e eu acho que ela não via motivo pra continuarmos juntos. Eu
não sei.”

Regis tinha se juntado a nós, aparentemente satisfeito com a nossa segurança,


por enquanto.

“Investiguei os registros da Associação de Ascendentes com a ajuda de amigos


alguns anos depois, quando ele já seria velho o suficiente para participar de
ascensões. Não encontrei nada, mas eu continuei procurando. Não sei porque,
na verdade.” Alaric coçou sua barba, que ocultava um sorriso doloroso. “Mas
se tornou um tipo de obsessão. Uma conexão levou a outra, e eventualmente
eu descobri pra qual alto sangue ele tinha sido enviado.”

“Me inscrevi pra ir em uma ascensão com um pessoal deles. Trouxe um bocado
de álcool, e deixei eles falarem. Mas nem teria precisado da bebida.” Os olhos
dele estavam distantes agora, penetrando o abismo de suas memórias.
“Orgulhosos em falar sobre como eles o tinham forçado. Forçado e forçado.
Eles já tinham cuidado de três nascidos Vritra, e ele teria sido o quarto. Mas…”

Alaric parou um momento para limpar sua garganta. “Ele quebrou. Morreu
quando tinha apenas oito anos. Foi levado pra Taegrim Caelum pra ser
dissecado e pesquisado. Impactou muito o nome deles. Foram rebaixados para
um sangue nomeado apenas. Por matarem o meu filho.”

Uma brisa fresca soprou por entre as árvores, e uma besta de mana uivou na
distância… ainda assim, um silêncio pesado pairava no ar enquanto palavras
de consolação falhavam em se formar.
Afinal de contas, eu tinha sido aquele garoto. Tirado da minha família, criado
primeiro pela Sylvia, depois pelos Eraliths, e meus pais não tinham ideia do
que havia acontecido comigo…

“Eu sinto muito, Alaric,” finalmente consegui dizer.

Ele limpou as palavras do ar com uma mão, enquanto abria uma garrafa com
outra. “Não precisa. Estou te dizendo isso para que você não saia daqui
preocupado comigo, pensando que você bagunçou a minha vida. Além disso…”
Alaric formou um sorriso. “Onde seria melhor pra soltar os meus demônios
interiores do que em um garoto que eu talvez nunca mais veja?”

“Certo,” eu sorri de volta, estendendo a minha mão. “Mesmo assim. Obrigado


por tudo que você fez por mim.”

Alaric a apertou. “Você pagou bem e me ofereceu algum tipo de… droga, eu
não sei, um tipo de propósito ou algo assim, mesmo já velho.” Sua voz grave
ficou embargada. “Bom, é melhor você ir, Grey, antes que uma Foice desça aqui
e faça com que essa história triste tenha sido pra nada.”

Eu acenei, dando um aperto firme em sua mão. “Arthur. Me chame de Arthur.”

“Arthur,” ele respondeu devagar. Sua sobrancelha se franziu enquanto ele


pensava, e seus olhos de repente se estatelaram. “Arthur? Tipo o –”

“É melhor eu ir,” eu disse com um sorriso entretido.

“Certo.” Alaric soltou uma risada forçada, se atrapalhando com o token de runa
em sua mão antes de tocar o mármore com ele. Com um zumbido suave, um
portal opalescente apareceu no arco. “Você vai voltar de… onde quer que você
esteja indo agora?”

“Não tenho certeza,” eu admiti. “Mas eu imagino que vou, eventualmente.”

“Bom, quando você voltar, procure seu velho tio Al.” Ele se inclinou na moldura
do portal e cruzou os braços em cima da barriga. “A não ser que eu já tenha
morrido de tanto beber, e nesse caso você demorou demais.”

Regis andava ao meu lado, e ao nos aproximar do portal, Alaric se inclinou


para o acariciar na cabeça. “Cuide bem do garoto, certo?”

Regis deu uma voltinha, mordiscou o dedo de Alaric, e depois pulou de volta
pra dentro de mim.

‘Eu vou sentir falta desse velhote,’ ele disse, com uma pitada de choro em sua
voz.

Eu dei um último sorriso para o bêbado. “Adeus, Alaric.”

Ele piscou. “Vejo você depois, garoto Arty.”


Balançando minha cabeça, eu me preparei pelo que estava por vir, e dei um
passo pra dentro do portal.

Capítulo 374.5
Por Outros Olhos

SETH MILVIEW

Todos estavam gritando enquanto o estádio tremia.

Uma bolha translúcida de mana cobria nosso grupo. Mayla estava grudada em
meu braço. Eu estava vagamente consciente do sangue que pingava em volta
de suas unhas, onde elas penetravam minha pele, mas eu não conseguia sentir
nada.

Deacon estava no chão, com a cabeça entre as mãos. Yannick estava caído em
seu assento, inconsciente. Pelo menos, eu esperava que ele estivesse apenas
inconsciente.

Brion e Linden estavam gritando com os dois, enquanto ainda observavam


parcialmente a luta que estava destruindo o coliseu.

Apenas Pascal não parecia que estava fora de si, mas então eu segui seu
olhar…

Várias das primeiras fileiras estavam cheias de cadáveres. Projeteis que eram
do tamanho de virotes de besta penetravam tanto pedra quanto carne, tendo
quebrado o escudo que deveria nos proteger de um combate até mesmo entre
retentores e Foices. Alguns deles devem ter usado seus próprios escudos para
se proteger, mas, contra o poder completo de uma Foice…

Houve uma explosão e uma seção inteira do coliseu desabou, do outro lado
de onde estávamos. Eu assisti milhares de pessoas serem engolidas por uma
nuvem de poeira marrom. Sumiram, em um instante…

A arena estava uma bagunça, um campo queimado de destroços. Estacas de


ferro-sangue estavam espalhadas como lápides por todo lado. A nuvem de
vento negro estava se dissipando e se afastando. Fogo espiritual queimava em
alguns lugares, assim como os fogos-fátuos que sempre mencionavam em
estórias. Como aqueles que guiavam o herói para o pântano ou o covil da fera…

No centro do campo de batalha, o professor Grey estava de pé, em frente à


Foice Cadell Vritra do Domínio Central. A diferença entre os dois era gritante.
O professor Grey… Será que eu ainda posso chamar ele assim? Eu me
perguntei. Parece um título tão insuficiente agora.

O professor Grey estava com as costas retas, emitindo uma força inegável,
inescapável, uma presença… física. Revestido em uma armadura de escamas
pretas, e assim como um Vritra, haviam chifres ônix se curvando pra fora de
sua cabeça. Ele parecia uma divindade.

Eu não conseguia entender o que eu estava vendo. Eu havia estudado magia e


runas desde que eu era uma criança. Minha doença significava que eu não
poderia começar a treinar como Circe, então eu ficava dentro de casa e lia. O
tempo todo. Mas eu nunca tinha visto nada sobre artes de mana como essas.

Ele havia voado pela arena com uma velocidade impossível. Sua arma aparecia
e desaparecia instantaneamente sem esforço aparente. Sua besta conjurada
havia mudado de uma criatura-lobo, que já era intimidadora, para um monstro
gigante e voador, que podia destruir todos os ataques do atributo de
Decaimento apenas com um sopro!

Isso não tinha lógica nenhuma. Eu não havia sentido mana saindo dele em
momento algum. A pressão da Foice Cadell Vritra era esmagadora e sufocante,
mas o poder do professor era… algo completamente diferente.

E foi assim, com um certo distanciamento, que eu assisti a arma do professor


penetrar na Foice e devora-lo. A sensação era de que isso foi algo… inevitável.
A maneira com que o fogo roxo corria pela pele da Foice, o desfazendo, me fez
sentir profundamente desconfortável. Como se eu estivesse observando as
regras que construíam meu mundo se romperem diante dos meus olhos.

“E-ele – mas… o quê?” Mayla gagejou.

“Você tá de sacanagem,” Linden disse, se esquecendo do inconsciente Yannick,


quando nossa atenção se voltou para a Foice Cadell Vritra queimando até virar
cinzas.

“O que diabos foi isso?” Pascal murmurou, e sua cabeça balançava como se ele
não pudesse acreditar no que estava vendo. “Eu nunca vi magia como essa
antes.”

“O jeito com que ele apunhalou sua besta…” A voz de Mayla estava cheia de
horror.

“Eu acho que ele a absorveu em sua arma,” eu comentei, me lembrando de


como o lobo havia se dissolvido e a lâmina tinha ganhado vida com chamas
violetas. “Algum tipo de ataque combinado insano.”

Tudo era bem difícil de entender, honestamente.

O professor havia derrotado uma Foice. Mas não, não era exatamente isso. Eu
quase havia esquecido sobre a Foice Nico, graças à minha mente e memória
estarem sobrecarregadas por tentar processar tudo que tinha acabado de
acontecer.

O professor havia derrotado duas Foices. E ele matou uma!


“Ele deve estar coberto em regalias,” disse Linden. “É por isso que ele não as
mostra como a maioria dos magos.”

Pascal arregalou os olhos. “Cara, talvez seja por isso que todo mundo na sala
acabou recebendo runas tão fortes na última concessão…”

A dúvida de repente sufocou minha mente. E com ela veio… pavor.

Havia algo errado. Estava muito, muito além dos limites do que normalmente
acontecia no Victoriad. Um desafio já era raro, mas matar uma Foice, talvez até
duas… isso poderia ser uma declaração de guerra.

Eu fiquei desconfortavelmente ciente de quão pouco sabíamos sobre o


professor Grey. Se o palpite de Pascal estava certo, o que isso significaria para
seus estudantes? Será que o professor era algum tipo de inimigo dos Vritra?
Todos nós tínhamos nos beneficiado de seu treinamento, e talvez até mesmo
da sua presença. Será que isso nos tornava… cúmplices, de alguma forma?

Eu encostei minha cabeça na de Mayla.

Ela me deu um olhar de lado. “Estou com medo, Seth. O que está
acontecendo?”

“Eu não sei,” eu respondi, sentindo o peito apertado. “Mas eu também estou.”

SERIS VRITRA

A onda de alívio que eu senti quando o Soberano Kiros aceitou alegremente a


morte Cadell se desmoronou em desapontamento quando o portal apareceu
abaixo de nós, interrompendo as palavras do Soberano.

Imediatamente, comecei a planejar como que eu iria tirar Arthur vivo dessa
situação.

Eu tinha certeza, agora mais do que nunca, de que este garoto humano era a
chave para tudo, e eu não podia deixar ele cair nas mãos de Agrona de forma
alguma.

Era muito frustrante, na verdade. Se ele tivesse simplesmente feito como eu


havia pedido, duelando e derrotando Cylrit, e depois recusando a posição de
retentor… teria tornado as coisas muito mais simples. Eu ainda poderia ter
usado a sua vitória para eleva-lo a um pedestal, apontando pra ele como um
líder entre os “menores”, mas sem atrair a atenção de Agrona. Pelo menos por
enquanto.

Mas esta vitória… era muito grandiosa, e muito adiantada. Agrona havia banido
todos os pensamentos sobre o garoto, se focando completamente no Legado,
não mais preocupado com as âncoras que haviam trazido ela até aqui. Isto era
útil. Não duraria pra sempre, é claro, mas se eu tivesse apenas mais alguns
meses para trabalhar…
Se eu não encontrasse alguma forma de leva-lo pra longe daqui, então Agrona
iria desmonta-lo até que só sobrasse o essencial, e pesquisar como os poderes
de éter de Arthur funcionavam. Eu já tinha visto o suficiente dos calabouços e
laboratórios abaixo de Taegrim Caelum para saber exatamente qual destino
que o aguardava. E mais aterrorizante do que perder Arthur era a possibilidade
de que Agrona pudesse, de alguma forma, descobrir uma maneira de controlar
o éter a partir do corpo dissecado de Arthur.

Dada a situação, até mesmo me revelar valeria a pena. Eu havia me preparado


o suficiente para que meus planos pudessem continuar mesmo se eu tivesse
que me esconder, apesar de não ser o ideal. O nome de Arthur, ou melhor,
Grey, estaria na boca de todos em Alacrya dentro de alguns dias. Todos
saberiam da sua vitória. E caso houvesse alguma forma miraculosa de escapar
do Victoriad, utilizar ele como uma figura de liderança seria uma tarefa
simples.

Eu me contentei em simplesmente assistir e ouvir, enquanto esperava pelo


momento certo. Mas, um instante depois, quando o Legado conjurou sua
magia, minha esperança foi por água a baixo.

Apesar de ter acompanhado seu progresso, eu não tinha visto essa habilidade
antes. Um feitiço desses poderia, teoricamente, derrotar até mesmo uma
Foice, se ela exercesse um controle forte o suficiente sobre a magia. Não, não
apenas uma Foice. Considerando que os asura infundiam mana em seus
corpos, dependendo dela pra existir, uma magia dessas talvez fosse capaz de
neutralizar até mesmo os seres mais fortes deste mundo, separando-os do seu
próprio poder.

Dragoth e Viessa flutuaram com a intenção de formar um círculo ao redor da


armadilha de Arthur. Eu não tive escolha a não ser seguir, deixando que a
situação continuasse.

Observando o rosto de Arthur, no entanto… de alguma forma, ele não parecia


amedrontado, mas sim calculista.

E talvez um pouco… triste?

Eu ouvi Agrona falar, não prestando muita atenção às suas palavras até que os
outros se moveram para capturar Arthur. Talvez eu pudesse agir durante o seu
transporte para Taegrin Caelum, e me oferecer para escolta-lo até os
calabouços…

De repente, Arthur se moveu, quebrando a armadilha e avançando na direção


de Agrona e do Legado, com uma lâmina roxa de éter vibrando ao ganhar vida
em suas mãos.

Eu me esqueci de respirar por um momento, de tão concentrada que eu estava


no que acontecia.
Tolo, eu pensei um momento depois, formando as palavras em meus lábios,
mas sem dize-las em voz alta.

Arthur tinha parado. Ele poderia ter dado o golpe final, e sua lâmina estava tão
perto que tinha feito um corte nas vestes do Legado, mas ele havia se contido.
Por causa do seu relacionamento com Tessia Eralith, ele não tinha a coragem
para fazer o que era necessário.

A ideia de mata-la eu mesma passou pela minha mente pela enésima vez, mas
eu não poderia arriscar tornar tanto Agrona quanto Arthur meus inimigos de
uma vez só. Se Arthur desse o golpe, no entanto…

Mas eu sabia que não havia esperança de que isso acontecesse quando Agrona
começou a zombar e insultar Arthur. Então, sem tirar seus olhos do garoto,
Agrona deu a ordem. “Levem ele.”

Eu sabia que era agora ou nunca, mas eu hesitei. Apesar de pálido e da mão
trêmula ao seu lado, Arthur não tinha o olhar de derrotado. Eu voei até ele,
mantendo o mesmo ritmo dos outros, sem saber como proceder.

E de repente, ele sumiu. Simples assim, e tão rapidamente que até mesmo
Agrona, com a face contorcida em fúria, pôde apenas olhar para a imagem
residual de eletricidade roxa que Arthur deixou pra trás.

Eu comecei a rir.

CAERA DENOIR

“Que porra foi essa?”

As palavras saíram da minha boca como se tivessem sido ditas por um


estranho, mas eu não poderia descrever meus sentimentos de maneira mais
eloquente nem que tivesse um mês pra pensar.

Grey tinha… sumido. Simplesmente sumido.

Enquanto o Alto Soberano começava a gritar instruções para todas as Foices,


eu me esgueirei de volta para as sombras de uma área de preparação vazia,
tropeçando em destroços até eventualmente escorar as costas em uma parede
e fechar meus olhos.

A primeira coisa que eu vi foi a memória de Grey, engaiolado e preso em algum


tipo de bolha anti-mana, olhando diretamente em meus olhos. Uma miríade
de emoções e pensamentos passaram pelo seu rosto naquele instante, mas
um deles estava claro acima de todo o resto.

Remorso.

O que poderia significar apenas uma coisa. Ele estava indo embora.
Eu tinha certeza de que ele não tinha usado suas artes etéricas apenas para
escapar do estádio. Ele pretendia desaparecer.

Eu sabia que deveria estar furiosa – deveria me sentir traída. Mas eu não
estava. Grey sempre me avisou sobre me aproximar demais… sobre saber
demais. Isto tinha confirmado. O que ele pretendia fazer estava além da minha
imaginação.

Eu me lembro da primeira vez que o vi nas Relictombs, sem mana e


praticamente à beira da morte, e eu senti pena do que eu achei que era uma
jovem mulher cujo núcleo havia sido destruído. Desafiando expectativas,
nossos caminhos se cruzaram novamente na zona de convergência, onde ele
empunhou a arma do meu irmão em batalha. Isso já seria o suficiente para não
ser mera coincidência, e ainda assim, depois descobri uma misteriosa conexão
entre ele e minha mentora vitalícia, Foice Seris…

Então, apesar de ter sido alguma força maior que nos uniu – éter, destino, ou
a vontade de alguma divindade além dos asura – eu sabia que era eu quem
deveria decidir meus próximos passos. Independente de Grey me incluir ou
não em suas aventuras, eu deveria escolher o que fazer de agora em diante.

“O que quer que isso seja,” eu disse em voz alta, me apertando contra a parede,
que estava tremendo sutilmente.

Separadamente e simultaneamente a essas considerações, a luta de Grey com


Cadell estava tocando rapidamente em minha mente. Apesar de ter lutado
lado a lado com ele, os poderes de Grey pareciam tão enigmáticos quanto no
começo.

Era fato conhecido em Alacrya que a Foice Cadell não era apenas uma Foice –
ele era o lacaio particular de Agrona, lidando com assuntos que requeriam a
atenção particular do Alto Soberano. De acordo com Foice Seris, ele tinha sido
nomeado Foice quando Agrona começou a se preparar para a guerra com
Dicathen há quase 15 anos atrás, mas mesmo antes disso ele já era mais
poderoso e mais perigoso que outras Foices.

E ainda assim, Grey tinha o derrotado em um combate individual, matando-o


onde todas as pessoas importantes do continente veriam.

Minha garganta se fechou enquanto as perguntas tropeçavam perigosamente


em meus pensamentos. Havia muito mais aqui do que uma derrota memorável.
Porque o Victoriad revelou que Grey não apenas conhecia Foice Seris, mas
também Cadell e Nico. E até mesmo Agrona, a julgar pela maneira que ele havia
falado.

Mas qual era o seu relacionamento? Porque Grey fez esses desafios? Quem era
Grey, de verdade? E o que ele estava tentando fazer?
Será que eu estava certa quando eu sugeri para a Foice Seris que ele era
nascido asura? Talvez algum descendente dos dragões que juraram vingança
contra Agrona? Se eu não tivesse me aventurado ao seu lado nas Relictombs,
eu quase acreditaria que ele fosse um asura completo. Pelo menos isso
explicaria o seu controle sobre o éter.

Ou – eu senti uma emoção crescer dentro de mim – ele poderia ser um dos
magos antigos? Um djinn, que sobreviveu dentro das Relictombs e se escondeu
de nós desde que os dragões os exterminaram. Era verdade que ele tinha uma
relação com as Relictombs, muito além de qualquer outro ascendente que eu
conhecia. Até onde eu sabia, nenhum ascendente na história havia descoberto
uma dessas ruinas antigas antes, muito menos conversado com um
remanescente djinn.

E ele tinha essas runas espontaneamente manifestadas – runas divinas – uma


das quais o permitia até reviver relíquias daquela cultura antiga…

Minhas bochechas ficaram vermelhas. Até mesmo pensar sobre essas coisas
fazia com que eu me sentisse como uma garotinha. Mas a verdade era que eu
não conseguia pensar em uma explicação razoável para como que Grey estaria
no centro desse poder todo. Tendo atraído a atenção do próprio Alto
Soberano, que raramente saia dos confins de Taegrin Caelum, lá nas alturas
das montanhas da Presa do Basilisco…

Eu percebi com uma certeza repentina e absoluta que Grey era um dos seres
mais poderosos do mundo. Se ainda não fosse, ele seria. Eu sabia com igual
certeza que eu não estaria contente em retornar para minha velha vida,
sabendo que ele estava lá fora, em algum lugar.

Minha mimada vida de nobreza, meus esforços para estar à altura do legado
do meu irmão como ascendente, até mesmo a realidade de que eu era uma
nascida Vritra cujo sangue havia se manifestado, tudo isso parecia
completamente sem importância diante de quaisquer inovações que o Grey
havia feito e que continuaria a fazer.

Isso era poder real, o tipo que poderia redesenhar o nosso mundo.

Um pequeno sorriso apareceu nos meus lábios quando me lembrei de uma


conversa que tive com Sevren, há muito tempo atrás. Nós estávamos
brincando de lutinha nos jardins com espadas de madeira – cada uma gravada
com o símbolo do éter, é claro – e o duelo se intensificou até que eu bati
acidentalmente nos nós dos seus dedos, forte o suficiente para que ele
gritasse de dor.

Envergonhada, eu o provoquei dizendo que ele tinha se curvado ao poder da


minha magia de éter, mas ao invés de ficar bravo, ele simplesmente sentou na
grama e abria e fechava as mãos com uma expressão pensativa.
“Um dia, eu vou ser um ascendente, irmã. Eu vou entrar nas Relictombs e
aprender sobre tudo isso de verdade.” Eu ainda me lembrava claramente de
como seus olhos brilhavam enquanto ele me olhava do chão, e seu rosto
estava sério demais para um garoto que não tinha nem 12 anos ainda. “Então
ninguém vai precisar lutar mais, nunca mais. Nós poderíamos transformar o
mundo no que a gente quisesse.”

Eu ri. “Você pode fazer com que chova caramelo para nós então? Lenora disse
aos cozinheiros que eles não podiam fazer mais depois que eu peguei alguns
escondida.”

Mas Sevren nem sequer sorriu. “A primeira coisa que eu faria é garantir que
ninguém te leve pra longe da nossa família. Eu criaria um mundo onde você
estaria segura contra o clã Vritra.”

Uma enxurrada de pensamentos e emoções conflitantes tomou conta de mim,


e eu percebi que haviam lágrimas descendo pelas minhas bochechas. Vindo
de fora da segurança da área de preparação vazia, eu podia ouvir o barulho de
milhares de passos correndo da arena, de pessoas gritando, dos ossos do
coliseu se movendo, de magia vibrando… Tanta vida sendo vivida, dor e medo
e admiração misturadas, e ninguém completamente certo do que havia
acabado de acontecer.

Eu considerei os estudantes de Grey, provavelmente espantados e


aterrorizados, sem nenhum contexto para ajuda-los a entender o que haviam
acabado de testemunhar.

Meus pais adotivos estavam em algum lugar lá fora também, provavelmente


correndo para conseguir um portal de tempus warp de volta para o domínio
central, pra que evitassem o envolvimento em qualquer consequência do que
ocorreu hoje, e já pensando em sua versão dos fatos para quando as conexões
de Grey com o Alto Sangue Denoir viessem à tona.

Talvez a coisa certa a se fazer fosse sair e ajudar. Dúzias de magos ainda
estavam procurando por sobreviventes nos destroços da seção desmoronada
do estádio. Os oficiais precisariam de toda a ajuda para gerenciar as multidões
correndo para as plataformas de tempus warp.

Mas quando eu finalmente me afastei da parede e limpei minhas lágrimas,


havia apenas uma coisa que eu conseguia pensar em fazer. Eu precisava saber
o que viria a seguir. E pra isso, eu precisaria da minha mentora.

Já tinha passado da hora de conseguir algumas respostas de verdade.

Capítulo 375
Vozes

ELEANOR LEYWIN
Eu oscilava de um lado pra outro à medida que as costas de Boo balançavam
com cada passo lento. Sua respiração era pesada e regular, quase sonolenta
depois de ter se empanturrado de peixe brilhante. Estávamos no nosso ritmo,
retornando do ponto favorito de pesca do Boo, e indo vagarosamente até a
praça na frente da prefeitura.

Eu já conseguia ouvir o murmúrio das várias vozes combinadas. Soavam como


dúzias, talvez até mais de uma centena…

Era estranho. Crescendo em Xyrus, um dia no mercado significava encontrar


centenas, ou até milhares de pessoas. Eu nunca pensei muito sobre o barulho
da multidão naquela época. Todas aquelas pessoas se mesclavam ao
fundo, estavam lá, mas… não eram importantes.

Agora a ideia de tantas pessoas – e cada uma delas havia passado por uma
perda terrível, sobrevivendo ao pesadelo destes últimos meses – me deixava
desconfortável. Constrangida. Mas, apesar desse sentimento que se alojava em
mim, uma luz dourada irradiava do meu núcleo, me enchendo de confiança e
bravura.

Sorrindo, eu acariciei o pescoço do Boo. “Obrigada. Eu sempre posso contar


com você, não é mesmo, Boo?”

O volume da multidão aumentava aos poucos à medida que eu me aproximava


dos refugiados reunidos, quase todos elfos. Vários me deram olhares
desconfiados quando passei, e eu fiquei surpresa com quão desconfortável a
multidão parecia. Eu não tinha certeza do que estava acontecendo, e só estava
aqui porque Albold havia me pedido em uma mensagem.

Minha mãe estava me esperando na entrada de um beco que levava à um dos


jardins comunitários, longe do grupo denso de elfos que enchia a praça.

Ainda em cima de Boo, eu estendi a mão pra baixo, e apertei a mão dela
levemente. “O que está acontecendo?”

“Eu achei que você ia conseguir me dizer,” ela disse, e seus olhos estavam
escaneando a multidão, inquietos.

Seguindo seu olhar, eu percebi o porquê. Haviam mais elfos olhando pra mim
agora. Alguns encaravam abertamente, e outros tentavam disfarçar enquanto
me olhavam de canto e cochichavam com amigos e família. E apesar de que
alguns pareciam curiosos, ou até mesmo – eu tinha esperança – amigáveis,
outros nem tanto.

Então eu percebi o motivo de Albold ter me chamado.

Eu me perguntei o que exatamente ele e Feyrith tinham dito a estes elfos. Será
que tinha sido tudo que eu compartilhei com eles da conversa de Virion e
Windsom? Isso parecia imprudente, mas eu não sabia exatamente o que eu
estava esperando que eles fizessem com a informação. Mas pela maneira que
as pessoas estavam olhando pra mim, parecia ser o caso.

Eu me vi desejando que eles pelo menos não tivessem mencionado de onde


obtiveram essa informação…

Não que eu estivesse com medo. Sentada nas costas de Boo, e com a mão da
minha mãe confortavelmente em volta da minha panturrilha, eu tinha a mesma
sensação quente de quando, na infância, o Art dormia ao meu lado enquanto
me colocava na cama. Uma sensação de estar protegida.

Mas eu não podia deixar de pensar que toda essa infelicidade e frustração que
eu via ao meu redor era culpa minha.

Umas duas semanas haviam se passado desde que eu contei para Albold e
Feyrith sobre as mentiras de Virion e Windsom. Rinia havia me avisado para
não me envolver, mas eu ainda sentia que eles deveriam saber. Eu sabia muito
bem como era quando mentiam e escondiam coisas para me “proteger”. Meus
pais sempre estavam escondendo de mim as coisas relacionadas ao Arthur.
Mesmo quando as Lanças o levaram, eles inventaram muitas desculpas para
que eu não me preocupasse.

Como se eu fosse estúpida demais para entender que quando minha mãe se
trancava em algum cômodo e chorava, havia algo de errado.

Mas eu queria que me dissessem a verdade, para que eu pudesse crescer com
ela, reagir ao mundo real, e não só ao que meus pais decidiam me mostrar.

Ainda assim… eu sabia que os elfos talvez não sentissem o mesmo. Talvez em
tempos assustadores como esse, algumas pessoas preferissem se manter
ignorantes, alheios e se segurando nas palavras esperançosas de nossos
líderes.

Então eu aguardei, esperando que algo acontecesse depois da minha conversa


com Feyrith e Albold, quase que torcendo por isso só pra que isso tudo
acabasse logo.

Porque, se algo ruim acontecesse, eu sabia que seria por minha causa.

“Obrigado por vir, Ellie,” alguém disse, vindo de trás. Eu me virei e sentei de
costas em Boo. Feyrith e Albold tinham acabado de sair de um beco estreito.

“O que exatamente está acontecendo aqui?” Minha mãe perguntou, se


movendo para ficar entre Boo e o par de elfos.

Ambos curvaram a cabeça pra ela, e Feyrith disse, “Graças à sua filha, nós elfos
finalmente soubemos da verdade sobre o que aconteceu à nossa terra natal.
E descobrimos que nossos líderes mentiram sobre isso, para proteger uma
aliança com falsos amigos.”
“Nós vamos fazer com que Virion explique a si mesmo e as suas ações,” disse
Albold assertivamente.

Feyrith me deu um sorriso discreto. “Nós queríamos que você estivesse aqui,
Ellie, para ouvir o que Virion tem a dizer e… dar a sua perspectiva, se
necessário.” Ele rapidamente levantou a mão quando minha mãe fez menção
de reclamar. “Você foi guiada pela própria profeta Rinia. Você estava em
Elenoir quando a destruição ocorreu… e foi a única sobrevivente do ataque.
Foi você que ouviu as mentiras que Virion compartilhou com o asura.
Precisamos de você aqui, Ellie.”

Então eu não estou aqui para ser questionada, eu pensei aliviada. Mas o que
Virion vai dizer – ou negar – quando pedirem a ele uma explicação? De
qualquer forma, essa reunião de elfos só estava acontecendo por minha causa
e da informação que eu escolhi compartilhar.

Mamãe soltou um suspiro, dando um passo pra trás e olhando pra mim. Boo
estava meio virado, para poder olhar os elfos, suas sobrancelhas apertavam
seus olhos e seus dentes enormes estavam à mostra.

“Está tudo bem,” eu disse. “Nós já estamos aqui. Eu só… Você precisava ter
contado pra todo mundo que foi eu?”

Um leve rubor apareceu nas bochechas de Feyrith, e ele olhou pro chão. “As
pessoas precisavam ser convencidas de alguma forma só para virem aqui. Nós
tivemos que dizer a elas exatamente como descobrimos a verdade.”

“Ah,” eu disse. Eu queria ficar brava, mas eu não conseguia culpa-los. Se eu


não quisesse ser envolvida, afinal de contas, eu poderia ter simplesmente
ficado de boca fechada.

Eu acho que não vou saber se o que eu fiz foi o certo ou errado até que eu veja
como tudo isso vai acabar. Espero que a maioria das pessoas esteja feliz em
descobrir a verdade, mas aposto que um bocado deles vai achar que estou
mentindo, ou me culpar por causar problemas.

Eu olhei em volta novamente. Tinha mais gente olhando pra mim, agora que
eu estava conversando com Feyrith e Albold. Uma velha elfa com uma bengala
– membro do conselho, eu imaginava – estava vindo na nossa direção, mas
atrás dela eu vi um rosto genuinamente amigável.

Acima da multidão, sobre os ombros de Jasmine Flamesworth, estava minha


amiga Camellia, sorrindo e acenando pra mim. Seu cabelo loiro claro estava
amarrado pra trás em finas tranças, e um ramo de azevinho estava atrás de
sua orelha. Ela deu um tapinha na cabeça de Jasmine e apontou em minha
direção, evocando uma carranca da sua montaria.

O resto dos Chifres Gêmeos estavam com eles, e quando eles se viraram em
nossa direção, as pessoas abriram caminho para permitir passagem.
Helen me deu um sorriso acolhedor e acariciou o lado de Boo. “Ellie. Eu deveria
saber que eles iam te arrastar pro meio disso.” Ela olhou friamente para Feyrith
e Albold, e seu sorriso sumiu.

Durden, que se destacava na multidão por ser pelo menos 10 centímetros mais
alto que todo o resto, fechou a cara de forma exagerada, destacando as
cicatrizes que cobriam metade de seu rosto. “Ellie, você sabe que você está
montada no seu urso de costas, né?”

Camellia deu uma risada apreciativa depois da piada, mas parou rapidamente.
Ela olhou pra baixo, deixando que uma trança de seu cabelo claro caísse sobre
seu rosto. “Me desculpem, acho que essa não é uma boa hora para risadas.”

“Sempre há espaço para que a gente se lembre que estamos vivos ainda,”
Angela Rose respondeu enquanto dava um abraço apertado em minha mãe.

A velha elfa finalmente veio até nós. Ela hesitou, olhando para os Chifres
Gêmeos e pra mim. “Desculpem a interrupção, mas…” Seu olhar pousou em
Feyrith. “Eu gostaria de uma palavrinha antes de começarmos.”

Feyrith acenou, parecendo todo sombrio e sério. Mas quando ele olhou pra
mim, havia uma suavidade em seu rosto que parecia ter desfeito um pouco do
dano feito enquanto era cativo dos Alacryanos. “Obrigado novamente por estar
aqui, Ellie.”

E eles se foram.

Eu me virei para sentar corretamente em Boo, e Camellia saiu dos ombros de


Jasmine e subiu na garupa de Boo, atrás de mim. Seus braços me envolveram
na cintura e ela descansou a cabeça em minhas costas, me apertando um
pouco.

“A coisa vai esquentar,” Angela murmurou, com um braço ainda em volta de


minha mãe.

“Vamos torcer para que não,” disse Helen. “Mas se esquentar, se lembrem que
nosso papel aqui é evitar que as pessoas machuquem uns aos outros.”

Durden pulsou com mana, e um braço de pedra se formou no lugar do que ele
tinha perdido durante a batalha na Muralha. “Estamos com você, como
sempre, Helen.”

Nossa estranha família ficou em silêncio enquanto esperamos.

Não demorou muito.

Albold e Feyrith andaram pela multidão até que eles subiram as escadas que
levavam até o prédio do conselho. Os guardas que deveriam estar lá estavam
ausentes, e as portas estavam fechadas.
Albold tentou gritar alguma coisa, mas sua voz se perdeu no ruído. Feyrith
atirou algum tipo de magia de água pra cima, onde ela estourou com um
barulho sibilante, e as pessoas se aquietaram.

“A maioria de vocês já sabe por que estamos aqui,” ele disse quando a
conversa acabou. “Alguns de vocês já abriram os olhos para as mentiras do
comandante e estão aqui para nos apoiar, mas eu sei que muitos de vocês
ainda estão céticos. Eu não os culpo por isso.”

Ele pausou, deixando que suas palavras se acomodassem na multidão.


“Companheiros elfos, nós já perdemos muito.” Sua voz falhou, e ele pausou
novamente. “Ninguém pode curar o buraco que fizeram em nossos corações e
almas ao destruírem nosso lar, ao cometerem genocídio do nosso povo. Mas
eu, Fevrith Ivsaar III, estou dizendo que vocês merecem entender porque
fizeram isso conosco.”

A voz dele ficou mais alta enquanto ele falava, se tornando um grito que
encheu a caverna. “Mentiram para nós. Nos trataram como crianças. Nos
pediram para que ficássemos ao lado dos nossos destruidores. Traídos pelos
nossos próprios líderes!”

Vários elfos aplaudiram após essas palavras, mas a maioria permaneceu


quieta. Alguns responderam à mensagem de Feyrith com hostilidade flagrante,
direcionando olhares ferozes para ele. Ao meu lado, eu vi Helen avaliando
todos que eram potenciais ameaças, independente de qual lado da discussão
eles estavam.

“Provas!” um elfo de cabelos cinzas gritou, cortando os aplausos. Ele tinha sido
marcado no pescoço, e a queimadura ainda estava recente e com crosta.
“Como você ousa acusar Virion Eralith, um homem que lutou por nós a vida
toda, de nos trair sem nenhuma prova!”

Houveram alguns gritos de apoio, mas os que ficaram do lado de Feyrith


vaiavam para tentar calar o homem.

“Nós devemos dar mais ouvidos às palavras de uma garota humana do que do
nosso comandante?!” uma elfa gritou, com olhos verdes brilhantes tão cheios
de amargura e desdenho que senti a bile subindo na minha garganta.

A multidão começou a discutir e gritar, e suas palavras se perderam. Tudo que


eu conseguia ver era a divisão que isso causava, o rompimento de nossa
resistência frágil, e como tinham sido as minhas palavras que nos trouxeram
até aqui.

“Eu espero que você não esteja levando as palavras deles pro pessoal, El,”
disse uma voz, e Emily Watsken veio de dentro da multidão. Cabelo
encaracolado emoldurava o rosto sujo de cinzas dela, e havia uma rachadura
em uma de suas lentes.
“Em!” Escorregando pra fora do Boo, eu dei um grande abraço nela. “O que
aconteceu com você?”

Ela esfregou sua bochecha, sujando ainda mais sua pele com cinzas. “Uma
explosão no laboratório, um dos projetos novos do Gideon… mas não se
preocupe com isso. O que eu perdi?”

Eu suspirei, me recostando em Boo. “Nada além de um bocado de gritos e


olhares bravos até agora.”

Todo mundo disse seus olás, apesar de que os Chifres Gêmeos estavam mais
focados na multidão fervendo. Eu subi de volta no Boo, me reclinando em
Camellia, que descansou seu queixo em meu ombro.

“Ninguém realmente tá te culpando por nada, sabe,” ela disse em um sussurro.


“Eles só estão assustados.”

“Não estamos todos?” Eu resmunguei, então soltei um suspiro


desnecessariamente longo. “Eu só…”

Minha mãe apertou minha perna e me deu um sorriso. “Se ver no meio de
eventos que alteram o mundo aparentemente é a maldição de meus filhos.”

Eu segurei a mão dela e ri um pouco. “Nós somos sortudos, eu acho.”

Na frente do prédio da prefeitura, Albold havia dado as costas para a multidão


e estava batendo nas portas. “Virion! Virion, seu povo precisa ouvir a sua voz.
Responda às acusações, ou você será tido como – ”

As portas se abriram de repente, quase arremessando Albold pra trás.

A Lança, Bairon Wykes, agora guarda pessoal do Comandante Virion e membro


do conselho, estava parado na entrada, com sua armadura brilhante cheia de
eletricidade. Seus olhos queimavam enquanto pequenos raios pulavam dele
para as paredes e pro chão, deixando marcas de queimadura na pedra.

“Vão embora,” ele ordenou, sua voz cheia de um poder que eu raramente havia
testemunhado de perto. Mesmo com 20 metros nos separando, eu podia sentir
a descarga estática arrepiando minha pele, e pequenos arcos de eletricidade
pulavam entre os pequenos pelos em meus braços. “O comandante não vai ser
arrastado da sua casa por uma turba. Se você quiser conversar, agende um
compromisso.”

Feyrith e Albold se recuperaram rapidamente. “Nosso próprio comandante,


que já foi rei de Elenoir, manda seu cão de caça para nos afugentar. Qual é o
seu plano, Lança? Você vai – ”

“Já basta, Bairon,” uma voz áspera saiu de dentro da prefeitura. A multidão –
que quase ficou louca com as ameaças do Lança – ficou quieta e parada como
um campo de rochas. “Eu vou falar com o meu povo.”
A Lança deu um olhar feroz em volta, antes de sair pra fora e se mover para o
lado. Virion veio atrás dele.

Apesar de que o velho elfo estava com as costas retas, e dava cada passo com
firmeza e confiança, eu senti imediatamente que algo estava errado. Ele estava
vestido em vestes de batalha verde-floresta, bordadas com folhas e vinhas
douradas, e usava o cabelo amarrado para trás em um rabo de cavalo, fazendo
com que ele emitisse uma poderosa aura de realeza… Mas isso não era o
suficiente para esconder o cansaço profundo que pairava sobre ele como uma
nuvem negra.

Ele não falou imediatamente, mas deixou que seus olhos afiados passassem
pelos refugiados reunidos. Onde ele olhava, os elfos abaixavam a cabeça.
Alguns estavam chorando, e seus fungos suaves eram o único som que se
ouvia.

“Meus irmãos e irmãs, ele começou, e sua voz era tanto firme quanto suave, de
alguma forma. Com um tom experiente de comando, mas também uma
projeção de avô compreensível. “Vocês chamaram por mim, então aqui estou.”

Eu não sabia como interpretar a expressão de Virion quando seus olhos


escanearam a multidão. “Me dói ver todos nós assim – a última escória de
nossa civilização, escondida abaixo da terra ao invés de prosperando nas
florestas nas quais nascemos… mas mais ainda me incomoda que estamos
sendo divididos, e num momento em que precisamos nos juntar mais do que
nunca.”

“Ninguém está questionando o que você disse,” Feyrith respondeu dos


primeiros degraus, olhando para cima até Virion. Ele gesticulou em direção aos
espectadores com uma das mãos. “Mas é difícil encaixar a sua mensagem com
a realidade da nossa situação, pelo menos pra mim. Nossa casa se foi, Virion…
e os asura de Epheotus a tomou de nós. Não foram os Alacryanos. Você nega
isso?”

Virion acenava com a cabeça enquanto Feyrith falava. Antes dele responder,
ele respirou profundamente. “Não, eu não nego.”

Houve uma inquietação nas pessoas, e algumas gritaram desacreditadas,


outras exigiram saber porquê, e ainda outras que diziam que Virion estava
sendo manipulado de alguma forma.

“Então porque mentir?” Albold elevou a voz acima do ruído.

“Foi uma mentira necessária, que eu contei para que os trapos da nossa
civilização não se desfizessem no desespero.” Enquanto ele falava, ele ergueu
a cabeça, encarando as acusações sem vacilar. “Eu posso lamentar a
necessidade dela, mas numa situação similar, eu tomaria a mesma decisão
novamente.”
“Você protegeria os asura ao invés do seu próprio povo?” Feyrith perguntou,
descrente.

Virion se endireitou, e o olhar que ele direcionou ao jovem elfo estava cheio
de fogo. “Você está vendo um asura diante de você, ou estas orelhas não são
prova da minha linhagem?”

Sua explosão repentina abafou todo o ruído.

“Você realmente acha que o meu luto por Elenoir não é tão profundo quanto
o de vocês, mesmo que eu tenha vivido tanto tempo e lutado tanto por ela? Os
asura destruíram Elenoir? Sim! E no ato, eles eliminaram um ponto estratégico
inimigo neste continente, além de cortar as cabeças de muitas das famílias
mais poderosas em Alacrya. Eles queimaram os acampamentos inimigos e
laboratórios de magia. Eles destruíram muitos dos dispositivos de
teletransporte de longo alcance que conectavam Dicathen a Alacrya.”

De onde eu estava observando, eu pude ver o momento exato que se formou


uma rachadura na postura real e disciplinada de Virion – a empatia e emoção
tomavam conta à medida que os olhos de Virion se umedeciam com lágrimas
mal contidas.

“Mas eles não tomaram nosso lar.” Virion apertou uma mão em seu peito,
gesticulando para a multidão com a outra. “Onde quer que formos, o que quer
que aconteça com o povo élfico, nós carregaremos nosso lar conosco. Árvores
podem ser replantadas. Casas reconstruídas. Magia recuperada. Ninguém
pode tirar isso de nós.”

“Mas as pessoas que eles mataram não podem nascer de novo!” alguém gritou
com a voz cheia de emoção.

“Isso é guerra!” A voz áspera de Virion falhou, e a palavra “guerra” desceu como
uma árvore caindo na multidão. “Sacrifício é necessário, mesmo quando o
preço parece ser alto demais.”

O fogo, que brilhou tanto que por um instante pareceu que ia irromper dele,
morreu, deixando pra trás um elfo muito velho e muito cansado. “Não deixem
que esta tragédia nos coloque em uma situação ainda pior. Não podemos
lamentar apropriadamente aqueles que perdemos até que consigamos salvar
todos os que ainda faltam…”

A multidão estava em silêncio, observando Virion, Feyrith e Albold com olhos


arregalados e úmidos.

Eu não concordava com Virion. Mas… eu o entendia. Seu povo estava tão frágil,
e já havia passado por tanta coisa. Ele só estava tentando os poupar de mais
dor.
Depois de uma longa pausa, Virion fez um gesto pra trás. “Foram os alacryanos
que atacaram nosso continente, invadiram nossas casas, assassinaram nossos
amigos e famílias… executaram nossos reis e rainhas…” Uma lágrima solitária
desceu do olho de Virion, viajando em zigue zague pelo seu rosto austero.
“Essa guerra termina quando eles forem expulsos de nossas terras.”

Ele se virou para pegar algo da chefe da guarda, Lenna Aemaria, que se curvou
e recuou de volta para a prefeitura. Quando ele se virou pra nós, estava
segurando uma caixa longa e decorada. Ela era feita de uma madeira escura,
de um preto profundo, e ornada com um metal prateado luminescente. Com
uma mão, ele abriu a tampa, revelando o conteúdo para todos.

Era uma vara, de mais ou menos 1 metro, com uma empunhadura vermelha
enrolada com anéis dourados a cada poucos centímetros. Na ponta da vara,
havia um cristal que brilhava com uma luz lavanda difusa. Era linda, mas olhar
pra ela me deu arrepios.

“Agora vocês sabem dos artefatos que eram usados para empoderar as Lanças,
que foram mantidos em segredo da população, e usados para garantir a
segurança de nossos reis e rainhas ao criar e vincular os magos mais
poderosos do continente sob seu serviço,” Virion disse para a plateia
encantada.

“Aqueles artefatos não mais servem um propósito,” Virion continuou, com a


voz suave e quase reverente. “E então, para mantê-las longe das mãos
inimigas, nossos aliados asura garantiram que elas não seriam usadas
novamente.”

Vários dos espectadores gritaram com medo, mas Bairon gesticulou para que
fizessem silêncio, com eletricidade correndo entre seus dedos.

“Ao invés disso, eles nos deram artefatos novos,” disse Virion, elevando a voz,
cada vez menos cansado e mais poderoso. Ele segurou a caixa no alto, fazendo
a gema lavanda brilhar na luz suave da caverna subterrânea. “Este é um dos
três artefatos capazes de elevar um mago para núcleo branco ou além, o que
poderia ser a nossa melhor chance de lutar contra os alacryanos. Cada artefato
foi especialmente ajustado para uma das três raças de Dicathen, e não podem
ser usados por ninguém com sangue Vritra, tornando-os inúteis para os
alacryanos.”

Eu fiquei surpresa com o número de aplausos que vieram da multidão.


Olhando em volta, eu percebi que a maioria dessas pessoas tinha vindo aqui
por conta do medo, não em busca da verdade, e Virion tinha acabado de dar-
lhes um vislumbre de esperança. Subitamente, quem tinha sido o causador do
desastre em Elenoir não importaria tanto caso tivéssemos armas como essas
para lutar contra os Alacryanos.

“Isso é… muito bom, não é?” Camellia perguntou, ainda sentada atrás de mim.
As pessoas estavam gritando perguntas ou elogios, mas uma voz subiu acima
de todas as outras. “A quem vai ser dado este presente, Comandante Virion?”

Virion fechou o rosto, e suas sobrancelhas se franziram quando ele fechou a


caixa e a devolveu para Lenna. O silêncio reinou mais uma vez, enquanto
aguardávamos por uma resposta.

Ainda há muito o que ser decidido,” ele admitiu, dando o primeiro passo para
descer as escadas. “A maneira de antes – selecionar apenas dois guerreiros de
cada raça – não será mais suficiente. Com estas novas relíquias, nós
poderíamos criar um destacamento inteiro de Lanças, e –”

“ – causar uma devastação nunca antes vista ao mesmo tempo que prendemos
os nossos defensores mais poderosos ao Clã Indrath,” uma voz rouca
interrompeu de algum lugar no público.

Eu escanei rapidamente os rostos surpresos até que eu a encontrei. Uma


postura encurvada, envolta em uma capa e um cobertor, saiu de dentro de
uma das casas ao redor da praça, puxando seu capuz para trás.

A multidão se abriu para dar espaço a ela. Alguns dos elfos se curvaram em
respeito, mas a maioria lançou olhares cuidados ou até mesmo hostis.

Ela não se importou, e se andou trêmula até Virion. “Estes artefatos são feitos
para nos prender no poder. Garantir a nossa subserviência. Eu sei o que vai
acontecer se usarmos eles.”

A carranca de Virion fez rugas profundas em seu rosto. Mas ao invés de raiva,
eu achei que sua expressão mostrava mais tristeza e arrependimento. “Rinia.
Por favor, venha pra dentro para que possamos discutir isso mehor.”

Ignorando Virion, a Anciã Rinia olhou para os lados, encarando aqueles que
estava perto dela. “Se forem usadas, estas relíquias realmente ajudarão os
nossos magos a ficarem mais fortes, o suficiente para lutar contra as Foices
alacryanas. Juntos, em número, fortes até mesmo para lutar contra os asuras
do Clã Vritra.”

O público começou a sussurrar, mas pararam rapidamente. “Nosso inimigo vai


responder com o aumento dos seus esforços neste continente – uma distração
planejada pelo Clã Indrath. As batalhas a seguir deixarão o continente em
ruínas. Xyrus será derrubada dos céus. Etistin, quebrada e levada pelo oceano.
A Muralha, derrubada até o chão. Dicathen, nosso lar, ficará em ruínas, com
titãs ainda batalhando por cima dos destroços.”

Virion estava quieto quando perguntou, “E o que acontecerá se nós


recusarmos a mão da amizade de Lord Indrath e quebrar nossa aliança com os
asura? Sem aliados, e sem esperança, eu não preciso de visões do futuro para
entender o destino do nosso continente.”
Rinia zombou ironicamente. “Seus aliados vão usar nosso povo como
fertilizante, a partir do qual eles vão construir uma nova nação depois que a
guerra deles com os Vritra acabar.” A atitude dela se aliviou um pouco e ela
olhou para seu velho amigo. “Existem tão poucos de nós, Virion. Não faça com
que os últimos elfos marchem para sua própria extinção.”

“Então o que devemos fazer?”

“Os deuses se viraram contra nós –”

“– morrer lutando, pelo menos!”

“– aceitar o presente dos asura –”

“– destruir os artefatos –”

Isso continuou por um tempo. Helen e os Chifres Gêmeos ficaram vigilantes,


caso as coisas se intensificassem, mas ninguém foi além do grito ou empurrão
ocasional. Camellia permaneceu comigo, com sua bochecha em minhas costas,
e seu corpo tenso como um arco. Minha mãe abraçou minha perna e se escorou
em Boo, seu rosto era um enigma.

“Eu me pergunto como eles funcionam?” Eu ouvi Emily dizer baixinho. “Vou ter
de perguntar para o Gideon…”

Depois de alguns minutos assim, uma pressão intensa, como uma tempestade
chegando, encheu a câmara e fez meus ouvidos estralarem.

Todos ficaram em silêncio quando o Lança Bairon deu um passo à frente.


“Silêncio,” ele disse com firmeza.

Virion olhou para Rinia como se procurando por algo. “Temos uma escolha
diante de nós então. Mas…”

O olhar dele passou pela caverna, parando em Albold e Feyrith, e em outros


líderes entre os elfos, antes de pousarem em meus próprios olhos. “Se todos
vocês querem ser ouvidos – se vocês desejam carregar o peso não apenas de
suas próprias vidas, mas também a de outros – então isso é exatamente o que
faremos.” Bairon deu um olhar preocupado em sua direção, mas logo ficou
impassível. “Conversem com seus familiares. Espalhem essa informação para
todos neste santuário, para que cada um de nós – tão deslocados pelos
alacryanos – possa expressar nossos desejos. Em três dias, todos os humanos,
anões e elfos neste santuário vão ter a chance de votar em relação a este
assunto, e determinar a direção do nosso povo. Para o bem ou para o mal.”

Minha mãe se afastou, se virando para ir embora, mas eu fiquei, observando


Virion enquanto ele descia vagarosamente as escadas da prefeitura.

A multidão começou a se dispersar, mas alguns permaneceram para conversar


com Feyrith e Albold, outros se reuniram ao redor de Rinia como se ela fosse
uma vela numa sala escura, e no meio disso tudo eu mal consegui ouvir as
palavras de Virion quando ele se aproximou da Anciã Rinia.

“Rinia. Entre. Vamos conversar, como nós costumávamos.”

A velha vidente apertou mais seu cobertor em volta dos ombros. “Não posso,”
ela respondeu rudemente. “Você não me ouve mais como você costumava.”

Ela se retirou, com muitos elfos a seguindo, e Virion me pegou olhando para
eles. Ele inclinou sua cabeça levemente em minha direção, e suas emoções
eram ilegíveis atrás da fadiga e renúncia que eram óbvias em cada pequeno
movimento.

Capítulo 376
Escolhas

VIRION ERALITH

Minhas botas pareciam pesadas como se estivessem cobertas com lama


grossa, e cada passo pelos corredores vazios eram lentos e arrastados. O peso
do meu confronto me deixou de ombros caídos e com as têmporas doendo. A
reunião inesperada, ou melhor, a minha resposta a ela, já estava rodando na
minha cabeça enquanto eu reconsiderava cada palavra e frase, com receio de
não ter conseguido articular meus pensamentos de forma clara.

Quando cheguei até meus aposentos, eu me virei para fechar a porta, e reparei
que Bairon tinha me seguido, e estava agora no corredor me observando com
cuidado. Sua presença era reconfortante, e eu não pude deixar de lembrar do
caminho pelo qual nosso relacionamento havia progredido. Eu nunca tinha
gostado do humano Lança, e o considerava interesseiro e egocêntrico. Muitas
vezes eu o teria dispensado, se tivesse poder pra isso, ou talvez o enviado para
algum tipo de purgatório, fazendo alguma tarefa humilhante e sem
importância.

Em algum momento, no entanto, em nossos longos dias no santuário oculto


dos magos antigos, me ocorreu que esses traços talvez não fossem intrínsecos
ao Bairon, mas sim produzidos pela sua família ou pelos Glayders. Seja pela
ausência deles, sua própria experiência de quase-morte, ou a falha das Lanças
em proteger Dicathen, Bairon tinha mudado de alguma forma.

Agora, ele estava ao meu lado no conselho, e tinha uma cabeça fria e mãos
firmes. Ainda orgulhoso, talvez, mas não presunçoso como era antes.

“Comandante?”

Eu me assustei, percebendo que eu estava encarando-o como um velho


babaca por vários segundos. “Bairon. Eu já expressei minha gratidão por sua
ajuda nesses últimos longos meses?”
Ele me olhou, incerto. “Senhor?”

“Coisas como um simples ‘obrigado’ são frequentemente esquecidas em


tempos de crise,” eu disse. “Já que eu provavelmente não disse o suficiente,
obrigado pelo seu serviço a Dicathen.”

Ele tirou o cabelo loiro da frente de seus brilhantes olhos verdes —


característicos da família Wykes. “Tais coisas não precisam ser ditas entre
homens como nós, Comandante.”

Eu dei uma risada irônica. “Talvez eu já tenha pensado o mesmo no passado,


mas estou muito velho e cansado para me importar com orgulho masculino.”
Os lábios de Bairon tremeram, mas ele não respondeu. “Agora, deixe um velho
elfo descansar.”

A Lança hesitou, com uma careta, e então disse, “Você tem certeza disso,
Comandante?”

Eu só pude oferecer a ele um gesto incerto com os ombros. “Nós não tivemos
um rei ou rainha que não tentaram jogar seu povo para as feras, em seu
próprio benefício. Não nessa guerra. Talvez… Talvez o tempo para governantes
esteja no passado. As pessoas precisam escolher por si mesmas como elas irão
morrer.”

Bairon abaixou a cabeça, se curvando, e deu uma meia-volta brusca antes de


sair marchando. Enquanto eu o olhava, considerei o quão separados — e até
mesmo solitários — nossas obrigações nos deixaram.

Bairon, pouco depois de recuperar suas forças, tinha ido até o que sobrou de
sua família, esperando que pudesse ajuda-los a fugir de Xyrus até o santuário.
Com o seu nível de poder, teria sido uma tarefa fácil, mas ele não estava
preparado para o que viu em Xyrus.

Não foram os alacryanos, que rapidamente chegaram em peso depois de


tomar controle dos portões de teletransporte no castelo flutuante, os
responsáveis por atrasar sua tarefa, mas sim sua própria família.

Os Wykes eram uma casa poderosa e renomada. Eles poderiam ter convocado
as outras casas e organizado uma defesa da cidade. Ao invés disso, eles foram
uns dos primeiros a jurar serviço a Agrona, provavelmente em algum esforço
imediatista para cair nas graças dos invasores. Bairon foi pra ajudar sua família
a escapar, mas ao invés disso, os encontrou trabalhando ativamente com os
alacryanos para suprimir quaisquer grupos de resistência que sobreviveram.

Retornar de mãos vazias tinha quase quebrado seu espírito novamente. Eu


ficava imaginando se o velho Bairon — a pessoa que ele era antes da nossa
derrota nas mãos das Foices — teria sequer voltado. Até tremo ao pensar no
que teria acontecido conosco, caso ele tivesse seguido a sua família ao invés
de mim.
Quando ele virou no corredor e saiu do meu campo de visão, eu fechei a porta
com calma e me sentei à minha mesa. Com os cotovelos descansando na
superfície, eu segurei o rosto em minhas mãos.

Saber que os asura, nossos aliados, haviam destruído Elenoir tinha sido um
golpe pesado para nosso moral. Eu sabia que aceitar a proposta de Windsom
seria arriscado, mas concordei com ele ao considerar que a verdade teria
quebrado completamente nosso espírito. Eu ainda considerava que isso
estava certo, apesar de que não podia deixar de questionar minha decisão,
agora que a verdade havia sido revelada através de fofocas e sussurros.

Por entre meus dedos, eu olhei para as três longas caixas que estavam em
cima da mesa. Cautelosamente, eu estendi a mão e destranquei a primeira
caixa, então abri sua tampa. A gema lavanda do bastão brilhava, e eu corri
meus dedos pelo couro rico da empunhadura. Houve um estalo de energia, e
os pelos no meu braço ficaram em pé.

Os artefatos haviam me dado esperança, e eu tinha a expectativa de que meu


povo — tanto o meu povo, os elfos, quanto todos aqueles sob meus cuidados
no santuário — compartilhassem dessa esperança. O momento de Windsom
não poderia ter sido melhor. Com os artefatos em mãos, eu tinha todas as
ferramentas necessárias para suavizar o choque e desespero que todos nós
sentíamos, e mostrar a eles um futuro onde tínhamos a força para sermos
vitoriosos.

Talvez tinha sido um erro não prever o envolvimento de Rinia. Mas, no fim das
contas, eu não era o vidente.

Rindo sombriamente, pressionei as palmas das mãos com força nos olhos para
aliviar a pressão que aumentava ali. Eu já estava me perguntando se a minha
oferta para permitir uma votação sobre o uso dos artefatos tinha sido um ato
de sabedoria ou de fraqueza.

Essa era uma pergunta que eu havia me feito muitas vezes antes, e era quase
reconfortante pensar que eu nunca saberia a resposta.

Julgar a exatidão de minhas ações seria deixado para as gerações futuras. Se


houvesse alguma geração futura. Se o que Rinia disse fosse verdade, se ela
tivesse previsto catástrofe e destruição em todo o continente, talvez não
chegaríamos a ter um futuro. Mas então, qual era a alternativa? Parecia que a
escolha era que ficássemos fortes o suficiente para nos destruir na luta ou
sermos destruídos, porque éramos fracos demais para revidar.

E esse, suponho, é exatamente o motivo pelo qual eu pedi a votação.

Essas pessoas não deveriam ter o poder de escolher o seu próprio fim? Eu
tinha comandado por muito tempo, havia enviado muitas pessoas para a
morte, e já estava muito velho para suportar o peso dessa decisão por conta
própria.
Pegando uma chave do meu cinto, destranquei a única gaveta da mesa e a abri
com um barulho áspero de pedra sobre pedra. Empurrando itens para fora do
caminho até que encontrei o que estava procurando, eu cuidadosamente
retirei uma esfera de cristal com cerca de vinte centímetros de diâmetro.

O artefato, apesar de valioso para mim, era algo que usava com moderação,
tentando seguir em frente. Mas eu me vi cada vez mais dependente dele,
usando-o para escapar de volta para um momento melhor em minha vida.

A esfera girou com uma luz enevoada, que parecia ficar agitada quando a
coloquei na mesa, segurando-a com uma mão para garantir que não rolasse e
se despedaçasse.

“Lania…” Eu sussurrei, olhando profundamente para a luz turbilhonada.

Ao som da minha voz, uma imagem brilhante começou a se formar… um rosto,


moldado de luz líquida. Era o rosto mais bonito que eu já tinha visto, um que
eu não via pessoalmente há muitos, muitos anos.

Minha esposa sorriu para mim de dentro da esfera da memória. “O rei dos elfos
não deveria parecer tão triste. Qual é o peso que arrasta os cantos de seus
adoráveis lábios para baixo?”

A voz na esfera era dela, mas continha um eco sutil, como se estivesse
ressoando ao longo dos anos e estivesse me alcançando de longe e há muito
tempo.

Minha própria voz, embora muitas décadas mais jovem, soou da esfera em
resposta. “Sinto muito. A guerra… durou muito tempo. Tempo demais. Comecei
a questionar o preço que pagamos. Estou com medo, Lania. Com medo de que
isso me deixe fraco.”

“Não, meu amor. Você não é uma pessoa fraca. Você é corajoso e bonito.”

“Bonito, é?” meu eu mais jovem respondeu com um bufo. Embora a memória
fosse do meu próprio ponto de vista, eu podia imaginar o elfo que falava, um
homem mais jovem, com rosto ainda não enrugado, e ombros não dobrados
pelos fardos do comando. Uma lágrima percorreu o caminho das linhas de riso
que ela me deu. “Esse não é exatamente o tipo de elogio que os reis esperam
ouvir.”

“Mas é verdade, agora e sempre. Por dentro e por fora, você é um homem
bonito, e você viveu uma vida linda. E eu sempre te protegerei.”

Outro bufo saiu do meu eu passado, mas me lembrei da maneira como meu
rosto se suavizou enquanto olhava para ela com carinho. “Você não quer dizer
que eu sempre vou te proteger?”
“Não, meu amor.” Sua mão se levantou para acariciar minha bochecha, e eu
podia praticamente sentir a suavidade das pontas de seus dedos contra minha
pele.

A imagem voltou a ser apenas um redemoinho de luz enevoada.

Sentei-me curvado sobre a esfera de cristal, olhando para minhas mãos


enrugadas através de sua superfície transparente.

Essas mesmas mãos estariam aqui se não fossem os presentes da minha


esposa?

O destino de Dicathen teria sido melhor sem mim nele?

Sentindo-me mais vazio agora do que antes de usá-la, empurrei a esfera da


memória de volta para minha mesa antes de me afastar.

“Maldita visão de futuro”, amaldiçoei, desgostoso que toda a minha vida


parecia quase inteiramente definida pelas visões de videntes.

Quer fosse um dom ou uma maldição, eu pensava, como eu tinha feito muitas
vezes antes, que era melhor que fossemos deixados para nossos próprios
meios, navegando nossas vidas da melhor maneira possível dentro do alcance
de nossa própria visão e previsão, em vez de confiar em imagens de futuros
que podem ou não acontecer. Mesmo o mais sábio de nós poderia enlouquecer
tentando decifrar os caminhos ramificados impossíveis que estavam à frente
de cada elfo, humano ou anão.

Mas eu tinha visto em primeira mão o quão pesada tal visão era naqueles que
a possuíam. A responsabilidade do conhecimento é, em muitos aspectos,
ainda mais pesada do que a do comando. Não importa quantas vezes eu
implorei para minha esposa parar de olhar para frente, e tentar me proteger
às custas de sua própria vida, ela não podia. Se algo tivesse acontecido comigo
quando ela estava em posição de evitar, isso a teria quebrado.

Mas ela já considerou como seria minha vida sem ela?

Rinia sempre entendeu minha amargura em relação ao seu dom. Quando a


guerra entre humanos e elfos finalmente terminou, ela não se ofereceu para
usar suas habilidades para me ajudar a liderar. Depois do que aconteceu no
castelo voador, no entanto… era difícil perdoá-la por não compartilhar o que
ela havia previsto antes.

“Seu velho hipócrita,” murmurei para mim mesmo, de pé e começando a andar


ao redor da pequena sala quadrada.

O arrependimento formigou no meu peito. Ver Rinia, que parecia ainda mais
velha e desgastada do que eu me sentia, realmente demonstrou o quanto de
si mesma ela havia sacrificado nos últimos meses. Ela estava seguindo o
caminho da minha esposa, sua irmã, mas eu não a agradeceria por isso. Ainda
assim, eu tinha que acreditar que ela tinha feito isso com propósito, e tinha
escolhido aparecer novamente com um objetivo.

Eu seria um tolo se desconsiderasse tudo o que ela disse.

Eu me movi para a janela e me inclinei contra o peitoril com um suspiro


trêmulo. Abaixo, uma família de elfos estava trabalhando no jardim de
cogumelos ao lado da Prefeitura. Três pequenos elfos correram e saltaram
pelo jardim, apontando cogumelos para o pai. A cada um, ele se abaixava para
ver se o cogumelo estava pronto, então o pegava ou explicava às crianças por
que não estava pronto…

Eu me perguntei o que ele fazia antes de vir para este santuário. Ele tinha sido
um soldado? Ou um lenhador? Talvez ele tenha sido um cozinheiro. Eu estava
curioso em saber o que ele pensava sobre os artefatos, e ainda mais sobre se
ele queria ou não ser responsável pela decisão que seria tomada em três dias.

Porque, independentemente de seus próprios desejos, espera-se que este


homem empreste sua voz à decisão. Eu tinha colocado essa pressão sobre ele.

Teria sido um ato de sabedoria que me levou a fazê-lo?

Eu estava com medo de que, no fundo, eu tinha tomado essa decisão


simplesmente por estar cansado. Eu não queria carregar esse fardo sozinho,
não quando o futuro de toda a minha raça estava em jogo.

Não quando ficamos sozinhos entre os grandes poderes dos clãs Vritra e
Indrath.

WINDSOM

Muito abaixo, a aldeia do santuário estava repleta de menores. Algumas


centenas, pelo que sei, todos amontoados no centro da cidade subterrânea.
Se eu fechasse meus olhos e empurrasse mana para meus ouvidos, eu podia
ouvir suas brincadeiras confusas, como um campo de auroques mugindo.

Foi com uma pontada de decepção que eu soube da recusa de Virion em


relação aos artefatos dos quais ele estava tão ansioso para se apropriar. De
uma perspectiva externa, parecia que ele se dobrou no momento em que seu
povo descobriu a realidade da destruição de Elenoir pela técnica Devoradora
de Mundos.

A mentira nunca foi feita para durar para sempre, mas simplesmente para
ganhar tempo para o próximo estágio do plano de Lorde Indrath começar. Uma
Dicathen sem esperança era inútil para o meu senhor. Eu até ofereci a Virion
várias sugestões sobre quais entre seu povo deveriam ser os primeiros a serem
ungidos pelos novos artefatos. Ele poderia ter começado esse processo a
qualquer momento nos últimos três dias, e magos como os Glayders,
Earthborns ou mesmo a Lança Bairon Wykes já estariam desfilando na frente
dessas pessoas como faróis de esperança.

De certa forma, isso tornou o colapso imediato de seu julgamento quase


pessoal. Todas as nossas longas conversas — todos os meus conselhos e
orientações — foram abandonados em um instante.

Foi decisão de Aldir colocar Virion como comandante das forças conjuntas de
Dicathen, quando a guerra começou a sério. Aldir o via como um homem digno
de tempo e treinamento, mas esse fracasso era um grande lembrete de que
todos os menores tinham limites, e parecia que Virion estava atingindo o dele.
Com vida curta e visão ainda mais limitada, os menores não tinham nenhum
conceito da verdadeira passagem do tempo ou do que estava em jogo além de
suas próprias vidas.

Tanto tempo desperdiçado, pensei, cheio de irritação agarrada a mim como


poeira de estrada depois de uma longa viagem.

Como emissário em Dicathen, muito da minha vida havia sido gasto cuidando
do continente, garantindo que a civilização dos menores não implodisse antes
de ser totalmente estabelecida. Embora eu não tivesse expressado o
pensamento ao meu mestre, eu estava ansioso para que essa guerra
finalmente terminasse, para que eu pudesse buscar um cargo mais alto na
corte.

Claro, dependendo do que Virion e seu povo decidissem, meu serviço a eles
poderia acabar mais cedo do que eu imaginava.

Meu corpo se derreteu em escuridão de tinta, transformando-se na forma de


um gato preto, e eu pulei da borda que estava observando, saltando de pedra
em pedra até chegar ao caminho que levava à cidade.

Talvez eu devesse ter lidado com a vidente anos atrás, pensei, frustrado com
a intervenção de Rinia Darcassan. Ela foi a única entre os menores que
entendeu o propósito de Lorde Indrath claramente, embora estivesse cega
pelo sacrifício pedido a Dicathen em vez de ver o bem que fariam cumprindo
seu papel.

Cheguei aos arredores da congregação antes do início da reunião. O sussurro


distorcido da multidão se dividiu em vozes individuais enquanto eu me
aproximava. Cada voz expressava uma opinião, e cada opinião contrária a
outra, criando um pântano incompreensível e sem direção. Como as decisões
poderiam ser tomadas de tal maneira estava além do meu entendimento.

A praça estava cada vez mais lotada com menores, então deslizei entre as
pernas deles e pulei em uma pequena borda saliente do lado de um edifício
de pedra moldada. Imediatamente me arrependi do meu lugar de escolha
quando uma criança tentou agarrar minha cauda. Não houve tempo para ir
para outro local, porque senti algo mudar na multidão.
Do outro lado da praça, as portas da Prefeitura se abriram e Virion apareceu,
carregando um dos artefatos em forma de vara que Lorde Indrath havia
presenteado. A Lança humana caminhava logo atrás dele, segurando um
segundo, com a joia azul e prata, enquanto um anão loiro agarrava o terceiro,
que foi forjado em ouro e tinha uma joia vermelha, como se fosse uma
serpente venenosa.

O barulho da multidão foi se acalmando quando perceberam que seu


comandante agora estava presente. Ele simplesmente observou as pessoas,
que enchiam a praça e todos os becos próximos, alguns até se inclinando para
fora das janelas ou se reunindo nos telhados baixos. Quando toda a caverna
ficou em silêncio, ele começou a falar.

“Dicateanos. Obrigado por estarem aqui hoje. O assunto diante de nós é de


extrema importância para cada alma dentro deste refúgio, e é essencial que
cada voz seja ouvida enquanto determinamos como avançar como um
coletivo.” Virion fez uma pausa, permitindo que algumas conversas
morressem. “Eu seguro em minha mão um artefato capaz de avançar um mago
para o núcleo branco, ou até mesmo além. Esse poder está sendo dado a nós
para que possamos finalmente estar em pé de igualdade com nossos
inimigos.”

Houve alguns aplausos e gritos de pergunta. Achei a falta de disciplina e


respeito terrível, mas Virion só esperou que o barulho diminuísse antes de
continuar.

“Esses artefatos foram criados pelos asuras de Epheotus e presenteados a nós


pelo Lorde Indrath. Mas, como tenho certeza de que todos sabem agora, é
verdade que Lorde Indrath também emitiu a ordem para o asura conhecido
como General Aldir atacar os alacryanos em Elenoir, resultando na destruição
da pátria élfica.”

“Assassinos!” gritou um humano barrigudo.

“Nós não aceitaremos a ajuda daqueles demônios!” uma mulher elfa gritou.
Faltava-lhe um olho, e havia um buraco medonho à vista de todos. “Você é tão
ruim quanto eles! Traidor.”

“Além do núcleo branco, tolos!” gritou uma voz profunda que eu não conseguia
localizar. “Poderíamos retomar nossas casas, seu orgulho que se dane!”

De um telhado, um jovem homem humano quebrou seu martelo de guerra


contra a pedra. “Por que votar? Comandante, apenas deixe que aqueles de nós
que querem ficar fortes usem os artefatos!”

Uma dúzia de vozes ressoou em uma confusão de apoio e condenação, e a


multidão parecia pronta para se voltar à violência. Antes que pudesse
progredir ainda mais, no entanto, o som de um trovão sacudiu a caverna. A
criança que estava próxima de mim correu em direção aos pais, chorando de
surpresa e medo.

Examinei a Lança. Bairon Wykes poderia ter sido uma mão firme para dirigir os
dicateanos em diferentes circunstâncias, mas ele estava muito alinhado com
Virion.

Ainda havia o resto das Lanças, é claro. Varay Aurae, em particular, teria sido
uma poderosa líder. Ela se mostrou totalmente leal a Dicathen, no entanto, e
era improvável que se aliasse a nós ao invés de Virion e o conselho menor.

“Há tempo suficiente para discutir como responderemos aos asuras, ou


mesmo o que as pessoas desejam fazer comigo”, continuou Virion, sua voz
soando pela caverna. “Mas hoje, estamos aqui para um propósito específico,
um de extrema importância que mudará a face dessa resistência. A escolha é
esta: aceitamos o dom do poder, mesmo advertidos de que ele poderia nos
levar por um caminho de destruição, ou recusaremos, rejeitando o Clã Indrath
e talvez colocando os escassos remanescentes de nossa nação contra os
próprios asura?”

Embora eu gostaria de ter fechado os olhos e ouvidos para o circo que se


seguiu, eu não tinha escolha a não ser ouvir atentamente como, um por um, as
pessoas começaram a dar suas opiniões.

Alguns falavam de sobrevivência, outros de certo e errado. Muitos choraram


profundamente pela perda de sua casa na floresta, enquanto outros pregavam
o pragmatismo. Apesar de todas as suas palavras, não me pareceu que algum
objetivo tivesse sendo realmente atingido. Ainda assim, tomei nota do que foi
dito enquanto olhava para todos eles, atento às suas palavras e ações.

Eleanor Leywin observava com a mãe e o urso guardião de uma varanda à


minha esquerda, mas eu não olhei com muita atenção, caso a jovem humana
perceptiva notasse meus olhos e conectasse essa forma à minha aparência
normal.

O inventor Gideon também estava presente, com os braços cruzados, um olhar


azedo beliscando seu rosto. Não era sempre que os asura tomavam nota dos
artífices de Dicathen, mas Gideon tinha uma mente incomum. Teria sido muito
lamentável se o Clã Vritra tivesse colocado suas garras nele.

Havia poucos outros menores no santuário que eram realmente notáveis.

Uma hora ou mais se passou enquanto eles iam e voltavam como crianças
brincando de atirar pedras. Mais do que tempo suficiente para eu considerar
a ironia de sentir os minutos da minha vida se afastando inutilmente, apesar
de ser mais velho do que até mesmo o mais antigo dos elfos. Quando eu
finalmente me convenci que eles devem ter esquecido a razão dessa conversa,
Virion pediu silêncio.
“Vamos agora votar. Amigos, peço que qualquer um que seja a favor de usar
esses artefatos levante a mão.”

Mãos se levantaram por todo o agrupamento, mas havia muitas pessoas para
ter certeza se era mais ou menos do que a metade. Ao lado de Virion, uma
maga levantou as mãos e enviou um pulso de mana de atributo de vento que
se espalhou pela multidão como uma ondulação em uma lagoa, puxando
minha pele enquanto passava. Ela se inclinou para Virion e sussurrou um
número no ouvido dele.

Ele assentiu. “Os que se opõem a usar as relíquias, por favor, levantem a mão.”

Novamente, as mãos foram erguidas. Percebi muito claramente que Eleanor


estava entre eles, assim como Gideon. Fiquei surpreso ao ver que Virion
também não levantou a mão, e nem a Lança.

Mais uma vez, um pulso de vento flutuou pela caverna. A maga se inclinou para
o ouvido de Virion. Ele não se dirigiu imediatamente à multidão, mas quando
o fez, foi com um tom claro de resignação.

“As pessoas pronunciaram-se. Recusaremos os artefatos e, ao fazê-lo,


recusaremos a mão de amizade de Lorde Indrath. Nossos magos não estarão
vinculados aos asura, e continuaremos a procurar uma maneira de resistir à
ocupação alacryana de nosso continente.”

“Mas aqueles de nós que querem deveriam…”

“A sabedoria prevalece!”

“Exigimos uma recontagem…”

“… nos tornamos inimigos das divindades!”

“… deve ser julgado como um traidor…”

Não pude deixar de suspirar, meus pequenos ombros se levantando e caindo


com decepção enquanto os menores se agitavam, a multidão imediatamente
se virando para gritar e empurrar agora que as gentilezas haviam falhado.
Guardas e alguns dos magos mais fortes apareceram, separando grupos de
brigas e gritando para que as pessoas se dispersassem e voltassem para suas
casas. As esposas se agarravam aos maridos, os pais protegiam crianças
agitadas em seus braços, e amigos compartilhavam olhares incertos.

Tão tolos, pensei, pulando do meu poleiro e tecendo meu caminho por entre
pés.

Por tanto tempo eles consideraram a nós, asura, como divindades. Eles
deveriam ter ficado mais gratos pelo que fizemos, nos considerado com mais
respeito.
Ou, por outro lado, eles deveriam ter se lembrado de ter medo.

Talvez a história esteja destinada a se repetir afinal, considerei, já preparando


mentalmente meu relatório para Lorde Indrath.

Capítulo 377
Hora de Ir

ALDIR

A silhueta familiar do castelo voador de Dicathen apareceu lentamente através


das nuvens escuras que pairavam muito acima da Clareira das Bestas. O
castelo parecia frio e morto, muito diferente de quando era a vibrante sede do
Conselho de Dicathen.

Uma das baías largas dedicadas a voos de entrada e saída estava destruída.
Eu me direcionei para lá, passando pela fina camada de mana que continha a
atmosfera do castelo e parando do lado de fora dele. A porta tinha sido
esmagada para dentro, e o chão abaixo dela estava cheio de corpos.

Pousando no meio deles, eu chutei o corpo de um homem armado, revelando


a parte exposta de sua couraça. Runas marcavam a pele ao longo de sua
espinha, que estava levemente azulada e envolta em uma camada de gelo.

O castelo estava quieto. Não havia sons de batalha pelos corredores, nem
brados de comando ou gritos de morte. À distância, eu podia detectar apenas
três assinaturas de mana em toda a estrutura. Parecia que todo o resto estava
morto.

Melhor assim. Haveria menos distrações para o que estava por vir.

Uma linha de cadáveres preenchia o corredor pelo qual eu passei ao seguir as


assinaturas de mana. Os seus corpos tinham sido esmagados no chão como se
por um peso enorme.

Nas escadas que levavam até o próximo andar, vários outros alacryanos
estavam jogados nos degraus, com suas próprias armas perfurando uns aos
outros, e seus rostos congelados em expressões de terror absoluto.

O mesmo cenário se repetia pelo castelo enquanto eu me movia na direção


dos três vestígios de mana, suprimindo cautelosamente a minha própria
assinatura. Ao invés de investigar todos os corpos, no entanto, eu estava
considerando meu propósito aqui. Apesar de ter tido o dia inteiro para pensar,
enquanto procurava nas Clareiras das Bestas, eu não estava perto de chegar a
uma decisão.

Eu agiria como um soldado, fazendo o que meu lorde havia me ordenado?


Fazer qualquer outra coisa colocaria em perigo todo o clã Thyestes, mas eu
sabia que era exatamente por isso que Indrath havia enviado a mim.
Um teste. De lealdade, não de habilidade. Seria outro membro do meu clã que
receberia esse teste.

Meus passos ficaram mais leves à medida que me aproximava da minha presa.
Suas vozes vagavam para fora das câmaras do Conselho, carregando a
respiração pesada da alegria da batalha.

“… poderia, mas não tenho certeza de que valha a pena manter.”

“Eu ainda acho que deveríamos destruir os controles do portal e simplesmente


sair.”

“Talvez, mas isso não poderia ser desfeito, Aya. Nós faríamos muito mais dano
ao futuro de Dicathen do que às forças alacryanas.”

“Mica sempre gostou daqui! Porque as Lanças não se estabelecem no castelo?


Se a Foice retornar, é só encher ele de porrada.”

Eu entrei pela porta, examinando as mulheres. Mesmo cansadas pela batalha


e com uma aparência tosca pelo tempo escondidas, elas não pareciam estar
feridas. O cabelo branco de Varay Aurae tinha sido cortado curto, em estilo
militar, o que reforçava ainda mais sua severidade. Ela estava inclinada na
parede oposta, com os olhos baixos.

Mica Earthborn parecia não ter mudado nada desde o tempo sob meu serviço,
sorrindo como uma criança e coberta com o sangue de seus inimigos. Seu
martelo desnecessariamente grande descansava ao seu lado.

A elfa, Aya, por outro lado, parecia apenas uma sombra do seu passado. Seus
olhos estavam escuros e fundos, sua pele pálida, e cada músculo em seu corpo
parecia estar tenso. Seu olhar se demorava em um cadáver sentado numa
cadeira no canto. Pelo olhar do homem, ele tinha sido brutalmente torturado
antes da morte.

“Isso não será necessário,” eu disse, antes que qualquer uma delas me
notasse.

As três lanças pularam, com armas em mãos e magia circulando em volta delas.
A cor sumiu de seus rostos, e seus feitiços vacilaram e quase se desfizeram
quando o pânico quebrou o seu foco. Apesar de serem as guerreiras mais
poderosas de Dicathen, elas não estavam à minha altura, e elas sabiam.

“General Aldir,” disse Varay, e a ponta de sua espada de gelo, que estava
apontada para mim, tremia levemente. “O que você está fazendo aqui?”

“A Foice, Cadell, não vai retornar,” eu disse, com as costas retas, e uma mão
levantada de forma não ameaçadora.

“O quê?” Mica perguntou, franzindo o rosto em confusão, e abaixando


levemente seu martelo.
Eu dei um leve aceno. “Ele foi morto em um duelo contra um alacryano
desconhecido.”

Mica e Varay trocaram um olhar, mas Aya não tirou os olhos de mim.

“Como você sabe disso?” Varay perguntou. “Na verdade, como você sabia que
estávamos aqui?”

Eu olhei para Aya enquanto respondia. “Alacrya está momentaneamente


distraída, um fato que com certeza ajudou no seu ataque a essa fortaleza.
Nossos espiões ainda estão tentando filtrar a verdade do exagero. Mas… não
é por isso que eu estou aqui.”

Os olhos de Aya foram ao chão. Sua voz estava fria como um cadáver quando
ela falou. “Foi você?”

Tanto Varay quanto Mica viraram na direção dela, mas antes que elas
pudessem interceder, Aya me olhou nos olhos e deu um passo à frente, e uma
rajada de vento jogou seu cabelo negro em seu rosto. “Você destruiu meu lar?
Eu senti… o seu poder…”

Abrindo meus dois outros olhos, eu dediquei a ela toda a minha atenção. “Eu
destruí, Aya Grephin. E agora eu fui enviado aqui para matar você e suas irmãs
de arma também.”

Varay deu um passo na direção da Lança élfica, mas Aya já estava se movendo.
Suas mãos se levantaram na minha direção, com os dedos espalhados, e
gavinhas de vento visíveis se formaram ao seu redor, empurrando as outras
para trás. Sua boca se abriu, soltando um grito fantasmagórico de fúria e
frustração, e uma lança de vento foi disparada de cada gavinha.

Eu não me movi enquanto dúzias e dúzias de lanças semitransparentes de


mana condensada com o atributo de vento explodiam ao meu redor. A parede
de pedra rachou, se partiu e caiu, espalhando destroços pela sala. O chão
abaixo de meus pés se cedeu, e meio metro de pedra sólida se quebrou e caiu
no espaço abaixo, mas eu continuei a pairar onde estava.

Eventualmente, o ataque derrubou o teto, e pedras caíam como chuva ao meu


redor. Quando eu determinei que as Lanças estavam em perigo, por conta da
estabilidade decadente da sala, decidi me mover.

Usando a técnica do clã Thyestes, Mirage Walk, eu fortaleci meu corpo com
mana e me movi em um pulso quase instantâneo até onde Aya estava. Minha
mão envolveu um de seus punhos, e eu liberei minha mana em uma onda que
se chocou contra todas as células do seu corpo de uma só vez.

Aya se enrijeceu quando a reação de mana sobrecarregou seus sentidos, e seus


olhos se reviraram. Ela desmaiou e começou a cair, mas eu a peguei e a
coloquei calmamente no chão.
Um martelo bateu em meu ombro com força suficiente para quebrá-lo, e o
impacto dilapidou o chão abaixo de nossos pés.

Eu olhei nos olhos de Mica. Ela meu deu um sorriso tímido. Então a gravidade
da sala aumentou várias vezes e o chão cedeu. Mobília e pedra caíram no vazio
abaixo, junto com o corpo inconsciente de Aya, que caía muito mais
rapidamente por causa do campo gravitacional.

As duas Lanças e eu, no entanto, permanecemos no ar. Eu balancei minha


cabeça levemente. “Nós já fizemos isso no passado, Mica Earthborn. Você já se
esqueceu da sua lição?”

“Mica não vai cair sem lutar, três olhos!” Ela gritou, com suor pingando de sua
sobrancelha enquanto tentava amplificar ainda mais a força da gravidade. Os
três muros que ainda restavam começaram a tremer.

“Você vai derrubar esta seção inteira do castelo,” eu comentei, com a voz firme.
“Isso danificaria muitas estruturas importantes e não causaria nada a mim.”

“Você tem certeza disso, asura?” Mica gritou. “Mica acha que jogar o castelo
inteiro em cima de você talvez cause alguma coisa.”

Apesar de estar tremendo e voando instavelmente, a Lança humana foi capaz


de mudar de posição e ficar ao lado de Mica. “Se ele fosse nos matar, nós já
estaríamos mortas!” Ela teve que gritar para ser ouvida no meio dos gemidos
do castelo. “Vamos ouvir o que ele tem a dizer!”

Mica encarou sua companheira Lança por um bom tempo antes de desfazer
seu feitiço. Algumas pedras ainda caíram ruidosamente nos escombros na sala
abaixo, e então tudo se aquietou. De repente, seus olhos se arregalaram e ela
começou a procurar na nuvem de poeira abaixo. “Aya!”

“Ela vai viver,” eu comentei quando a anã mergulhou em busca de sua amiga.

Varay estava me olhando com cuidado, e seu rosto era uma máscara
impassível. “Porque você está aqui se não for para fazer o que foi ordenado?
Eu sempre tive a sensação de que sua lealdade era direcionada ao seu mestre,
e não a nós menores.”

Eu considerei minhas palavras enquanto Mica reaparecia, segurando Aya em


seus braços.

“Se minha vida fosse representada numa peça de tapeçaria, a de vocês seria
apenas um fio,” eu disse. “E enquanto o seu mundo pode mudar de repente, e
frequentemente, como uma serpente trocando de pele, o meu permanece tão
estático quanto essa mesma tapeçaria. Epheotus é como um lugar preso no
tempo, imutável, sem evolução.”
Eu pausei, sem saber o que dizer, e incerto até mesmo quanto à minha
intenção. Eu era um soldado, e nunca tinha sido bom nisso. Mas antes eu nunca
tinha tido motivo para duvidar do caminho pelo qual meu lorde nos trouxe.

Lorde Indrath havia me enviado para matar estas Lanças como um teste da
minha lealdade, sabendo como o uso da técnica Devoradora de Mundos havia
abalado ela. Enquanto isso, em Dicathen, um garoto do meu clã enfrentaria um
teste diferente. Se eu falhasse e ele fosse bem-sucedido, não havia dúvidas de
que a técnica Devoradora de Mundos seria passada para ele.

Saber disso deveria ter solidificado minha determinação, ou facilitado para


que eu seguisse com essa tarefa, e ainda assim, eu me vi relutante em me
submeter a estes jogos. Era um tipo de teimosia que eu nunca havia tido. Mas
não importa quantas estórias da nossa história eu estudava, eu não conseguia
me convencer de que o jeito do Lorde Indrath era o correto.

Mica zombou, dando uma olhada incrédula na direção de Varay. “Mica acha
que o asura pretende nos entediar até morrermos.”

Varay assobiou para silenciar a anã, então acenou com a cabeça para que eu
continuasse.

“Ao invés de trazer morte a vocês, eu trouxe oportunidade,” eu disse


finalmente, ainda pairando no ar acima do andar destruído. “Seu comandante
Virion e a Lança Bairon estão vivos, protegendo centenas de refugiados.”

Os olhos de Varay se estreitaram, mas antes que ela pudesse falar, os olhos de
Aya se abriram, e seu corpo se enrijeceu. “O q– O que você disse?”

Cruzando meus braços no peito, eu me curvei. “Centenas de seu povo estão lá,
evacuados de Elenoir pouco antes de…”

“De ser destruída por você,” ela engasgou, se libertando dos braços de Mica e
voando instavelmente até que estivesse em minha frente. “Onde? Onde eles
estão?”

“Eu vou dizer a vocês,” eu respondi, me endireitando. “Mas eu também devo


dizer algo mais. Virion contrariou o Lorde Indrath, ferindo seu orgulho. Todos
no santuário estão em perigo. Eles precisam de suas Lanças.”

“Então nós vamos—”

Eu levantei a mão para interromper o comentário de Varay. “Mas saiba que, ao


enviar vocês para lá, eu talvez ainda esteja matando vocês.”

Um vento frio passou pela sala, levantando mais poeira. “Nós teremos uma
chance de salvar essas pessoas se formos?” A voz de Aya fez com que mais
pedras se soltassem, enviando tremores até as fundações do castelo.

“Vocês terão.”
A elfa esperou impacientemente enquanto eu explicava como chegar até o
santuário escondido, então deu as costas e voou até o andar destruído e saiu
por uma porta como o vento.

Mica me deu apenas uma olhadela antes de correr atrás de sua companheira,
deixando Varay e eu sozinhos na câmara de conferência destruída.

“Se Virion e Bairon ainda estão por aí, por que não os encontramos antes?” ela
perguntou. “Nós procuramos por sinais, e deixamos alguns também.”

Voando até a sala abaixo, eu puxei uma cadeira inteira dos destroços e sentei
nela. Apesar de olhar para o chão, eu estava vendo as montanhas e vales
distantes do meu lar. “As Lanças foram mantidas separadas de propósito, para
manter seu povo em desespero. O Lorde Indrath pensou que talvez pudesse
usar vocês, mas os eventos recentes o fizeram mudar de ideia.”

Varay apenas acenou. “Até mais, General Aldir.”

Eu fechei meu olho e descansei o queixo em minha mão. “Nós não somos mais
generais, somos, humana?”

Eu acompanhei as três assinaturas de mana enquanto elas deixavam o castelo


vazio e disparavam por cima da Clareira das Bestas na direção de Darv, mas
eventualmente, elas saíram do alcance dos meus sentidos.

Eu imaginei se eu deveria ter dito a elas sobre a improvável sobrevivência do


Arthur em Alacrya, mas eu não tinha certeza do que isso significaria para todos
eles, mesmo que sobrevivessem à batalha seguinte. Se não sobrevivessem,
então a vontade do Lorde Indrath seria feita da mesma forma, mesmo que não
da maneira que desejava. Se eles conseguissem sobreviver, e Arthur Leywin
conseguisse voltar a Dicathen de alguma forma…

Sem pressa para voltar para Epheotus, eu deixei minha mente vagar de volta
à conversa que tive com Seris. O que foi que ela disse mesmo?

“Indrath, Agrona. Agrona, Indrath. Você fala como se eles fossem os dois únicos
seres no mundo, como se não houvesse escolha a não ser servir um ou o outro.”

“Não,” eu disse, perturbando as partículas de poeira que ainda enchiam o ar.


“Nenhum de vocês é digno de serviço, no fim das contas.”

VIRION ERALITH

“Está na hora,” Lania estava dizendo, e sua voz era ao mesmo tempo jovem e
velha. Seus olhos brilhavam como pedra água-marinha sob o sol, e seus lábios
pálidos tremiam e se curvavam em um sorriso gentil. “Virion, é hora de ir.”

“Não,” eu implorei a ela. “Ainda não. Por favor, não—”


“Virion,” ela disse novamente, sua voz como rodas no cascalho. “Virion, seu
velho tolo, acorde!”

Eu fiz uma careta no sonho, e a dureza da minha cama fez pressão contra mim,
e eu percebi que estive dormindo. Meus olhos piscaram, com dificuldade para
se focar na sala escura.

“Está na hora, Virion,” uma voz diferente disse, mais velha e mais áspera. “A
evacuação já começou.”

“O-O quê?” Eu me levantei nos cotovelos, com dificuldades para sair do sonho.
“O que você quer dizer? Qual evacuação?”

Finalmente, minha visão se focou em Rinia. Ela estava envolta em um cobertor,


encolhida na cadeira no canto do meu aposento. Havia vapor subindo de uma
caneca que ela segurava em frente ao rosto. Ela soprou, enviando uma trilha
de redemoinhos cinzas para longe.

“Me diga o que está acontecendo,” eu disse com mais firmeza, saindo da cama
e ficando de pé.

Os olhos leitosos de Rinia vagaram através de mim, e suas sobrancelhas se


franziram levemente. “Eu não consigo ver tudo. O que está chegando, sim…
para onde devemos ir, isso também, mas…”

“Tem algo vindo? O que você quer dizer?” A frustração estava começando a
queimar a névoa do sono. “Como você entrou aqui, Rinia? O que você está—”

Minha velha amiga me encarou com tal ferocidade que fiquei em silêncio,
fechando lentamente a boca.

“Se você quiser salvar seu povo — não todos eles, não, isso seria impossível,
mas muitos deles — então por favor, cale a boca e me ouça.”

Nós encaramos um ao outro, e seus olhos sem visão ainda assim me


penetravam do outro lado do cômodo. Meus dentes se apertaram, e por um
momento eu considerei chamar os guardas. Mas então, me lembrei do meu
sonho, e suspirei. “Continue”.

Rinia tomou um gole de sua caneca, o que fez ela tossir. Ela bebeu novamente,
e disse, “Albold e os outros estão guiando as pessoas pelos túneis enquanto
conversamos. Alguns estão relutantes, esperando ouvir de você. Eu vi um lugar,
muito abaixo de nós, e posso nos levar até lá. Se chegarmos a tempo, alguns
de nós talvez sobrevivamos ao que está vindo.”

“Mas o quê está vindo, Rinia?”

“Nossa morte, se as coisas não derem certo,” ela disse simplesmente.


Senti um frio na barriga. Eu sabia, é claro, que negar o presente do Lorde
Indrath traria consequências, mas nunca pensei…

O que o lorde asura poderia ganhar ao enviar um dos seus atrás de nós, para
nos destruir? Não éramos nenhuma ameaça a ele, e provavelmente não
sobreviveríamos aos alacryanos sem a sua assistência. “Então por quê?” Eu
disse, vocalizando esse último pensamento.

“Porque o mar em tempestade afunda um navio?”

Rinia, tremendo, se levantou da cadeira, deixando o cobertor cair ao chão. Ela


colocou sua caneca na mesa, então se endireitou, e suas juntas velhas
estalaram audivelmente. “E não, antes que você pergunte, os artefatos não vão
ajudar. Usá-los agora apenas garantiria nossa destruição imediata.”

Eu sei que ela não queria responder mais perguntas, mas minha mente estava
cheia delas. “O que vai acontecer nesse lugar? Como que chegar lá vai nos
salvar?”

“Às vezes você só precisa estar no lugar certo, na hora certa,” ela disse com
uma calma irritante.

Os últimos meses e semanas passaram pela minha mente em um instante.


Tinha sido difícil confiar em Rinia — não, não confiar nela, mas ouvi-la —
depois que ela falhou em evitar que eu enviasse Tessia até Elenoir, e falhou
em me avisar sobre a destruição que isso causaria. Mas, apesar de nem sempre
me dizer o que eu queria escutar, ela nunca havia me levado para um caminho
errado também.

Especialmente em momentos como esses.

“Eu vou seguir sua liderança, Rinia. Vamos salvar nosso—”

As portas do meu quarto se abriram de uma vez, batendo na parede e eu


instintivamente busquei minha vontade da besta, mergulhando até a segunda
fase. A escuridão se espalhou pela minha pele, cada sentido se aguçou, e eu
pude ouvir os gritos pela caverna e sentir o cheiro do meu próprio medo pairar
no ar.

Um clarão de raio iluminou o quarto quando Bairon, já equipado com arma e


armadura, encarou o cômodo escuro. “Comandante? Tem um…” Ele deixou as
palavras no ar, e seu olhar se ficou em Rinia. “Quê?”

Eu me soltei da minha vontade da besta. “Bairon, vamos precisar organizar o


povo. Todos devem sair do santuário, e fugir para os túneis.”

O único sinal da surpresa de Bairon foi um pequeno tremor em seu olho. Ele
considerou as minhas palavras por meio segundo antes de agir. “É claro,
comandante!”
Ele se virou para sair correndo, mas Rinia o chamou, gesticulando para suas
pernas trêmulas. “Na verdade, é melhor você me carregar, ou todos iremos
morrer.

Capítulo 378
Última Resistência

BAIRON WYKES

A elfa anciã pesava quase nada em meus braços enquanto corríamos entre as
casas até o limite da caverna. As ruas ainda estavam cheias de pessoas,
algumas delas sem tomar nenhuma ação apesar de confusas, mas a maioria
estava correndo na mesma direção que nós.

Um turbilhão de vozes aumentava e diminuía enquanto corríamos pela cidade.


Virion falava com todos, sem parar de correr, direcionando-os até os túneis
mais profundos. Aqueles que eram mais leais ao Virion tinham hesitado a
princípio, mas com suas palavras, eles rapidamente nos seguiram com
quaisquer amigos e família que eles ainda tinham.

A entrada do túnel estava lotada com uma multidão de pessoas. Pelo menos
metade do santuário estava lá, ocupando o buraco estreito que levava para a
rede de cavernas e túneis.

“Não se esqueçam, fiquem junto dos líderes designados!” o elfo refugiado,


Feyrith Ivsaar, gritava de cima de uma plataforma de terra que foi conjurada
ao lado da entrada. “Eles vão levar vocês pra um lugar seguro! Nós vamos
enviar uma mensagem quando o perigo passar!”

Rinia se contorceu pra sair dos meus braços, batendo em meu cotovelo
quando seus pés estavam no chão. “Obrigado pelo seu serviço à Dicathen,
General Wykes. Eu preciso que você organize um grupo de guardas e procure
no vilarejo. Nós precisamos garantir que todo mundo escape dessa caverna.
Virion e eu vamos liderar enquanto você nos dá cobertura.”

Eu olhei pra Virion esperando confirmação, e ele acenou. “Estou contando com
você pra garantir que estas pessoas tenham tempo pra fugir da caverna.”

Eu bati continência. “É claro, Comandante.”

Virando nos meus calcanhares para sair, uma mão firme segurou meu braço.
Virion me olhou nos olhos e disse, “Não enrole. Eu vou te aguardar quando
isso tudo terminar, entendeu?”

Eu acenei firmemente, e Virion me soltou.

Aqueles que estavam mais perto já tinham reparado em Virion e Rinia, e em


poucos momentos, o par estava engolido pela multidão assustada, e dúzias de
vozes gritavam ao mesmo tempo.
Eu me afastei deles, observando a cena geral e procurando nossos guardas.
Alguns tinham se juntado perto de algumas das várias rochas espalhadas,
enquanto outros estavam no meio da multidão, ajudando Albold e Feyrith em
seus esforços. Eu fiz uma nota mental de quem tinha se juntado aos dois
causadores de problemas, e então fui na direção dos outros guardas.

“Você, volte até o vilarejo e procure por algum remanescente. Todos precisam
evacuar.” Os homens deram olhares incertos na direção da saída lotada.
“Agora!” eu gritei, fazendo eles se assustarem.

“Sim, senhor!” eles disseram em uníssono antes de saírem.

Eu voei pra cima, observando de uma altura de 15 metros enquanto eles


corriam de volta à cidade. O caos abaixo me trouxe a memória desconfortável
da queda do castelo. Eu tentei tirar a lembrança da mente, mas imagens de
eletricidade rebatendo na pele cinza invadiam meus pensamentos.

Nada que eu tinha tentado com a Foice tinha machucado ele. E agora, algo
ainda mais forte e perigoso estava vindo.

Meu olhar passou pela multidão enquanto o medo crescia. Eu odiava ele, o
impulso pra fugir, o questionamento que corria em minha mente. Eu deveria
ter ficado com minha família, abandonando Virion e todas essas pessoas ao
destino? Eu deveria ir embora agora, salvando a mim mesmo? Eu devia a minha
vida a essas pessoas?

Eletricidade pulava da minha pele e corria pela minha armadura. Ela estava
entre as pontas dos meus dedos, ansiosa por direcionamento.

Eu foquei nessa sensação. Essa vontade de atacar. Eu deixei que o seu brilho
me cegasse, e tentei não ver meus impulsos vulneráveis. Como Virion, apesar
de tudo que ele tinha encarado e todas as perdas que ele sofreu, eu me
tornaria um farol para inspirar e fortalecer.

Com uma eficiência nascida do desespero, os refugiados sob nossos cuidados


continuaram a sair pelo funil da entrada da caverna. Virion e Rinia já tinham
ido à frente, liderando o grupo principal para um destino desconhecido. Meus
soldados haviam explorado a vila duas vezes; os únicos que ainda
permaneciam estavam lotando a entrada do túnel, esperando sua chance de
escapar.

Eu fui o primeiro a sentir a mudança na mana. Um pouco além da última casa


no limite da cidade, um tremor correu pelo ar, e a luz se moldou em uma forma
oval tremeluzente. Alguém gritou.

Eu desci para o chão, entre o portal e aqueles que ainda tentavam fugir. Os
guardas estavam gritando instruções para que andassem mais rápido.
Duas figuras apareceram. O primeiro estava no mesmo uniforme imaculado
que ele sempre usou, e seus olhos inumanos absorviam tudo ao redor.

O segundo era mais jovem, mais feroz. Ele era magro e tinha a barba feita, sua
cabeça batia nos ombros de Windsom, e seus olhos negros não refletiam luz
nenhuma. Ao invés de um uniforme elegante ou armadura, ele usava roupas
vermelhas folgadas, como se ele estivesse aqui para um simples duelo de
treino.

O peso esmagador de sua intenção contrastava rispidamente com sua


aparência.

“Asuras!” Eu gritei, e minha voz rebateu nas pedras como trovão. “Vocês não
são mais bem vindos neste lugar. Saiam agora, ou –” Uma pressão intensa
apertou meu peito, me interrompendo.

“Silêncio, humano,” disse Windsom. Não havia indícios em sua expressão ou


tom de voz de que já havíamos estado do mesmo lado nesta guerra, e ele não
apresentava nenhuma empatia ou arrependimento. “Eu vim com uma
proclamação do Lord Kezess Indrath do Clã Indrath dos dragões, chefe entre
os asuras de Epheotus.”

“Nossa aliança falhou.” Estas palavras vibraram pelas pedras e pelo ar, e
pareciam estar vindo de todas as direções ao mesmo tempo, até mesmo
ecoando de volta da entrada do túnel. Gritos temerosos se seguiram. “Vocês
se mostraram sem capacidade de julgamento e fracos na fé. Vocês são um
perigo para sua própria nação, para o futuro de suas próprias raças. Por isso,
o Lorde Indrath julgou necessário eliminar este santuário e todos os que
residem aqui.”

Eu dei um passo à frente, com o queixo erguido, e uma lança longa feita com
eletricidade estalando em minhas mãos. “Seu lorde não tem autoridade aqui.
Voltem para suas casas e deixe nosso lar para cuidarmos. Nós vamos vencer
essa guerra sem vocês.”

O asura mais jovem fez um a careta, e seu nariz se torceu como se ele tivesse
pisado em alguma coisa imunda. Mas foi Windsom que falou. “Você sabe o que
fazer, Taci. Lorde Indrath espera muito de você.”

O dragão com olhos de galáxia se virou e sumiu dentro do portal, que


desapareceu.

Atrás de mim, os últimos refugiados estavam se empurrando para entrar no


túnel, cuja abertura estava lotada com pessoas agitadas, que gritavam
assustadas. Os guardas formaram um círculo em volta delas, e suas armas
foram apontadas para o jovem asura.
Reunindo meu poder, eu avancei com minha lança, que se estendeu em um
arco de eletricidade, mas o asura, Taci, apareceu vários metros para o lado, e
o ataque fez uma cratera no chão de pedra.

O mundo pareceu ficar mais lento quando a eletricidade correu pelos meus
nervos, elevando meus reflexos e percepção – algo que eu tinha aprendido do
garoto Leywin antes de sua morte. Finas gavinhas de eletricidade saíam de
mim em arco, como extensões do meu sistema nervoso, me permitindo sentir
ataques de qualquer direção, até mesmo antes de chegarem a mim.

O barulho da explosão ainda estava ressoando pelas muralhas – abafado e


embotado pelos meus sentidos acelerados – e então Taci se moveu. Mesmo
sobe os efeitos do Impulso do Trovão, eu mal conseguia acompanhar. Ele deu
um único passo, e o chão parecia me puxar em sua direção. Eu mal consegui
desviar para o lado e evitar a sua mão de foice, e as gavinhas de eletricidade
ajudaram a redirecionar a força de seu ataque, mas mesmo enquanto ele
passava por mim, eu pude ver seus olhos negros me rastreando.

O impulso do asura mudou no meio do ataque, e sua figura se borrou e pulou


de maneira sobre-humana, muito rapidamente para que eu pudesse reagir.

De repente eu estava voando na direção da construção mais próxima. O ar saiu


dos meus pulmões quando eu bati e passei por ela. A poeira e os destroços me
cegaram, e eu ouvi o barulho da pedra se movendo, e senti o peso da
construção inteira cair em cima de mim.

Mas mesmo através dos escombros, eu podia ouvir os gritos de morte dos
guardas.

Raios saíram de mim como uma explosão, e peso que me pressionava e cegava
foi jogado longe. Eu me envolvi em uma capa de eletricidade e voei com toda
velocidade para a entrada do túnel. Pedras voavam por todo o lado, vindas da
construção que eu destruí.

Os corpos mutilados dos meus soldados estavam espalhados pelo chão, e seu
sangue manchava as pedras cinzas. Parecia que um exército tinha passado por
cima deles, massacrando-os ali mesmo.

Taci estava de pé sob Lenna Aemaris, chefe dos guardas de Virion desde que
escapamos para o santuário. Ela se virou em minha direção, tossindo sangue,
com os olhos esbugalhados, incrédulos. Então, o Taci a golpeou com o pé,
eliminando seu último fio de vida.

Apesar de poder se mover mais rápido do que os olhos conseguiam


acompanhar, Taci andava com calma na direção da massa agrupada de
pessoas que estavam logo na entrada do túnel, e cada passo deixada uma
pegada sangrenta pra trás.
A eletricidade estalou entre meus dedos, se condensando em um orbe vibrante
azul e branco, que voou pelo ar. Pasou vários metros acima da cabeça do
asura, flutuando entre ele e as pessoas, e então soltou um clarão de luz. Um
raio bateu na parede acima do túnel, e uma sessão do muro caiu, tampando a
boca do túnel com pedras pesadas, e abafando os gritos que vinham de dentro.

Ao mesmo tempo, a orbe começou a girar, soltando faíscas que se tornaram


lanças de eletricidade e aceleraram na direção do asura. À medida que ele
golpeava cada lança para o lado, elas penetravam o chão ao seu redor.

A eletricidade pulou da ponta de cada lança, se erguendo ao seu redor como


postes, e formaram correntes e algemas que se prenderam nos pulsos e
tornozelos de Taci. Meu corpo inteiro irradiou mana enquanto eu voei pela
caverna e me choquei contra ele.

Houve uma explosão de energia azul e branca, seguida por um trovão que
abalou a caverna, ressoando a partir das paredes e construções até se tornar
uma onda de choque ensurdecedora.

Minha cabeça girou quando eu recuei, preparando uma lança de raios e


novamente carregando meu sistema nervoso com eletricidade. Meus olhos se
dilataram quando procuraram pelo meu oponente, que deveria estar na minha
frente, mas não estava.

Tarde demais, eu ouvi o barulho suave de suas roupas cortando o ar. Mesmo
com meus reflexos elevados, eu não consegui levantar meus braços a tempo,
e seu golpe me acertou no peito, me lançando pelo chão quando ele apareceu
bem na minha frente. Eu golpeei pra baixo com minha lança, prendendo-a à
pedra, que rachou e guinchou em protesto quando eu parei de repente, com
meus músculos gritando e reclamando.

Uma dor embotada e pulsante vinda de dentro imediatamente removeu da


mente essa outra dor mais leve. Olhando para baixo, eu percebi que a parte
frontal da minha armadura estava amassada e pressionava dolorosamente
meu esterno.

Passos suaves atraíram minha atenção de volta para Taci, que estava me
observando cuidadosamente enquanto aproximava. “Eu pensei que Lorde
Indrath tinha dito que isso deveria ser um teste da minha força…”

Eu bufei e soltei minha lança da pedra. “Indrath deveria ter esperado até que
você tirasse as fraldas antes de te mandar aqui, garoto.”

Os olhos negros de Taci se estreitaram, então seu corpo se tornou um borrão


quando ele repetiu a manobra de um passo. Minha lança golpeou para o lado
para tentar intercepta-lo, mas ele mudou a sua direção, dando um passo quase
instantâneo para o lado, dando a volta em minha lança antes de se aproximar.
A ponta do seu cotovelo desceu sobre meu ombro ao som de metal se partindo
e ossos se quebrando.
Minha visão escureceu, e então eu estava olhando para ele do chão, com meu
corpo inteiro dormente e todas as minhas magias se desfazendo quando eu
perdi o foco.

Ele estendeu a mão. Houve uma movimentação de mana, e de repente ele


estava segurando uma lança longa e vermelho-sangue. A lança se ergueu
acima de sua cabeça, mas ao invés de ser golpeada pra baixo, ela continuou a
subir pelo ar, levando Taci consigo. Eu pisquei. Taci estava abaixo de mim,
caindo para o teto da caverna, e eu estava despencando atrás.

O mundo parecia estar de cabeça pra baixo. Eu consegui ver rapidamente o


rosto de Taci enquanto ele escaneava a caverna antes que algo me batesse
pelo lado, agitando meus ossos quebrados no ombro.

Os sons de magias – gelo estilhaçando, vento soprando e pedras quebrando –


explodiram do nada, e por todo lugar ao mesmo tempo.

Eu pisquei, tentando ver o que tinha me acertado. Um rosto como de fada me


olhou e deu uma piscadela, e de repente estávamos desviando abruptamente
para evitar algo – um borrão vermelho – e em algum lugar, pedra se chocou
contra pedra.

“Mica?” eu disse, com o pensamento lento pela dor e esforço.

“Sempre querendo aparecer, não? Lutando com um asura no mano a mano


sem esperar pelo resto de nós.” Mica cantarolou quando nós pousamos, e o
impacto novamente abalou meu corpo inteiro. Ela me pôs de pé, e seus olhos
se voltaram para Taci. “Tem quanto tempo que a população fugiu?”

“Tempo que não é suficiente,” eu grunhi, movendo meu braço pra tentar
analisar quão ruim era o ferimento. “Nós temos que o segurar aqui.”

Ela me olhou por um momento, e o ar explodiu com mísseis de gelo muito


atrás dela. “Bom, então é melhor se aprumar logo.” Ela me deu um sorriso
confiante e então saiu voando para ajudar Aya e Varay, que estavam rodeando
o Taci como moscas, e suas magias pintavam o ar com linhas coloridas.

Voltei minha atenção pra dentro de mim, tentando entender o que havia de
errado. O asura só tinha me golpeado duas vezes, e nem havia usado magias,
mas toda a parte ao redor do meu núcleo estava inchada e com hematomas.
No mínimo, minha clavícula estava quebrada, e talvez mais ossos, além de que
havia uma dor irritante que subia pelo meu pescoço até a base do crânio,
sugerindo que meu pescoço também estava fraturado.

Eu me levantei e enviei mana para as partes machucadas do meu corpo,


apoiando os ossos quebrados e fraturados. Sem um emissor, não havia nada
que eu pudesse fazer para acelerar a cura. Eu simplesmente iria ter que lutar
dessa forma.
O ar acima do vilarejo havia se tornado puro caos.

Até mesmo de onde eu estava, eu podia sentir o frio das magias da Varay
enquanto ela congelava o próprio ar, fazendo com que grossos flocos de neve
caíssem nas construções antigas. Gelo se formou nos braços e pernas de Taci,
e apesar de ter se estilhaçado quando ele avançou contra a Varay, isso o
atrasou o suficiente para que ela pudesse evitar o ataque, conjurando uma
parede de gelo opaco entre eles e recuando a todo vapor.

Assim que ele desacelerou, o gelo começou a se formar novamente, deixando-


o mais pesado. Seus olhos escuros pareciam ter perdido o foco por um
momento, olhando para longe ao invés de procurar no ar pelas outras Lanças.

Um calafrio correu pela minha coluna ao ver essa expressão passiva e quase
curiosa. Sua boca era apenas um risco escuro em seu rosto, e uma sobrancelha
estava levemente erguida em consideração. Não era o olhar de um homem
lutando uma batalha de vida ou morte, e parecia mais com a expressão de uma
besta de mana que brincava com sua presa e testava seus limites…

Apesar de sua falta de foco, Taci repeliu facilmente uma séria de magias antes
de se focar novamente na batalha. No entanto, independentemente da direção
que ele olhasse, pilares de gelo apareciam para interromper sua linha de visão,
e um vento forte soprava em seu rosto para o distrair.

Vários ciclones carregando pedaços de gelo e pedras afiadas estavam


rodopiando entre todo o gelo, tentando puxar o asura e o derrubar. Enquanto
eu olhava, ainda focado em preparar o meu corpo, um dos ciclones passou por
ele. Ao invés de o prender, no entanto, ele pareceu se desfazer nas suas
defesas, dissipando a mana de vento, e seu conteúdo choveu pela caverna
muito abaixo.

Porém, no mesmo instante, ele foi jogado pra trás. Apenas meio metro, mas o
suficiente para que não pudesse lançar outro ataque. Então, a gravidade
mudou novamente, e ele desceu quase um metro na direção do chão, e depois
alguns centímetros na direção do teto, tirando o seu equilíbrio.

Rangendo os dentes, eu me lancei no ar, já acumulando mana em minha mão.


Taci parou de tentar resistir à tempestade de magias que o atingia, e seu peito
se ergueu quando ele inspirou profundamente. Uma mão subiu lentamente,
com os dedos apertados. A mana ao redor dele tremeu, e ele virou seu punho
rapidamente. Houve um crack ensurdecedor, e eu senti a mana se quebrar.

Mica gritou, e pelo canto do olho, eu a vi cair do ar como um pássaro atingido


por uma flecha.

Ao mesmo tempo, Taci chutou um pilar de gelo e desapareceu.


Instintivamente, eu me virei para Aya quando ele apareceu ao seu lado. Ela
estava cercada por uma rajada de vento, mas a lança de Taci penetrou essa
barreira sem esforço.
Eu liberei a eletricidade em minhas mãos na forma de um clarão de luz entre
Aya e Taci.

Ao mesmo tempo, o ar ao redor do asura congelou.

Por um instante, eu não pude ver o que aconteceu. Então o bloco de gelo se
despedaçou, e eu observei enquanto Aya deslizava da ponta da lança e caía.

Com um rugido, Mica apareceu como uma pedra de catapulta, e se chocou


contra o asura. Seu martelo se quebrou contra o braço levantado dele, depois
se reformou e quebrou novamente quando ele o empurrou para o lado.

Um pulso de força elétrica pulou dos meus dedos para o martelo dela, e
quando o próximo golpe caiu, uma explosão de raios empurrou Taci para o
lado. Logo atrás dele, um orbe preto como o vazio – uma esfera escura da qual
a luz não podia escapar – apareceu, e ele cambaleou na direção do orbe.

Mas eu tinha que recuar e me preocupar com o corpo em queda de Aya. Houve
um boom baixo quando eu atingi minha velocidade máxima, tirando ela do ar
um pouco antes de ter caído nos destroços de um dos inúmeros prédios
destruídos na luta.

Ela estava respirando com dificuldade, seus olhos estavam esbugalhados e


seus dentes como os de um animal. “Que droga, ele é muito forte. Aquela
lança…”

Eu voei pra trás de uma casa, com uma frágil esperança de que Varay e Mica
pudessem o segurar por um momento para que eu inspecionasse a ferida de
Aya. Mas quando a coloquei no chão e comecei a examina-la, ela me empurrou
de lado.

“Estou ótima, Bairon. Aquela lança fez algo, interrompeu minha mana, mas não
estou muito machucada,” ela disse, indicando uma ferida que sangrava em sua
lateral.

Enquanto Aya falava, eu olhei pra ela com calma. Haviam se passado meses
desde a última vez que eu vi outras Lanças. Aya estava esquelética, e seus
olhos estavam escuros. Já não existiam mais os lábios com beicinho, nem a
mana que fazia sua voz vibrar com um toque de sedução, que ela costumava
exibir como um tipo de armadura.

Não havia tempo para imaginar pelo que os outros passaram desde a batalha
em Etistin e a queda do castelo, mas eu também sabia que todos nós
poderíamos morrer aqui. “Aya, você tem certeza de que está bem?”

Ela me empurrou para o lado. “Não temos tempo. Vamos –”

“Nós não podemos lutar com ele de igual pra igual. Mesmo estas táticas para
atrasa-lo só vão durar mais um tempo. Essa não é uma luta pra ele, é algum
tipo de jogo de guerra maldito,” eu comentei, arrancando um olhar bravo de
Aya pela interrupção. “E sobre as suas ilusões? Talvez –”

Ela bufou, começando a flutuar e encarando ferozmente Taci, com olhos cheios
de ódio, e a necessidade desesperada por vingança esculpida em cada traço
do seu rosto. “Talvez – talvez – algo assim pudesse funcionar uma vez antes do
asura perceber o que estava acontecendo, e que diferença isso faria? Não, eu
não vou brincar com essa divindade.”

O vento chicoteava ao redor dela enquanto voltava para a luta, e tudo o que
eu podia fazer era segui-la.

O buraco negro que Mica havia conjurado já tinha desaparecido. Varay estava
coberta com uma armadura de gelo, mas as duas Lanças estavam na defensiva
e não podiam se afastar do turbilhão de ataques de Taci.

Aya estava gritando em sua direção. O ar se contorceu e se condensou em


mísseis curvados que atiraram em sucessão rápida, bombardeando as costas
do asura.

Eu segui logo atrás dela, enviando arcos de eletricidade dentro dos mísseis de
vento, moldando os raios em algo mais sutil enquanto eu conjurava Nerve
Fracture. Quando os projeteis imbuídos com raios acertaram, os impulsos
elétricos se espalharam pela pele dele como teias de aranha, vibrando pela
sua barreira de mana e penetrando seu sistema nervoso para paralisa-lo.

Ele mal piscou.

Aya se aproximou de Taci, e uma dúzia de lâminas transparentes o atacou de


todas as direções.

A figura dele pareceu que estava piscando pelo ar, se movendo com tamanha
precisão que era como ele estivesse se teletransportando um centímetro por
vez, usando apenas o movimento e esforço absolutamente necessário para
evitar um ataque ou deixa-lo se despedaçar em um braço ou ombro. Com cada
movimento, sua lança vermelha atacava, cortando e penetrando todas as
direções ao mesmo tempo, rasgando magias que ele não conseguia desviar,
quebrando outras para reabsorver a mana para alimentar sua própria força.

As outras precisavam recuar, mas elas estavam travadas no mesmo lugar.

Olhando para o teto, eu encontrei o que eu precisava. Tinha um grande pedaço


de pedra rica em ferro acima de onde os outros estavam lutando. Eu lancei um
projetil de mana de eletricidade na sua direção, mas ao invés de destruir a
pedra, eu a imbuí com a mana, então manipulei ela para girar em arco pelo
ferro.

Taci chutou pra trás, fazendo a Mica sair girando, então rodou sua lança ao
redor de si em um círculo. Quando ele segurou com menos força, eu puxei. O
ferro se tornou um imã gigante, arrancando a lança das mãos surpresas de
Taci. Ela voou em linha reta pelo ar e bateu no teto com um estrondo.

Imediatamente eu envolvi a pedra com tanta eletricidade que ela derreteu,


fundindo a lança no teto.

Varay aproveitou a oportunidade e recuou, conjurando várias barreiras de gelo


enquanto o fazia.

Mas Aya continuou lutando. A esfera de lâminas que a cercava se expandia e


condensava, e havia tantas se movendo, e tão rapidamente, que Taci não podia
mais se desviar delas. Ao invés disso, ele virou seus olhos escuros em sua
direção, deixando que as lâminas o acertassem de todos os lados, mas elas
não fizeram nada.

“Você sabe o propósito dessa provação?” o asura perguntou, olhando Aya


diretamente nos olhos. “Confirmar que eu tenho a força necessária para
aprender a técnica Devoradora de Mundos… a mesma técnica que destruiu seu
lar.”

O campo de batalha pareceu congelar. Como se em câmera lenta, Taci alcançou


e segurou a mana que estava rodando pelo ar, como ele tinha feito antes. Mas
no instante antes dele quebrar a magia de Aya, ela a liberou. Seu corpo se
tornou como o vento, que envolveu Taci e se reformou, deixando Aya logo atrás
dele, com a lâmina em seu pescoço.

Eles se moveram ao mesmo tempo. A lâmina dela moveu para o lado quando
ele girou, usando a mão como a ponta de uma lança para acerta-la no
estômago, quebrando sua barreira de mana.

Com uma nitidez horrível, eu observei quando seu braço atravessou a barriga
dela e saiu pelas costas. Estava pingando com o seu sangue, e segurava com
punho firma uma seção do que parecia ser sua coluna vertebral.

Mesmo de 20 metros de distância, eu vi a luz sair de seus olhos. Quando seu


corpo caiu, senti um calafrio no estômago.

Meus olhos acompanharam seu movimento até que ela sumiu, então focaram
novamente na batalha justo quando Taci virou um borrão antes de esmagar a
Mica contra a parede com as costas da mão sangrenta.

Uma camada grossa de cristal se formou ao redor de Mica, mas quando o asura
golpeou, houve um som como de vidro estilhaçando, e rachaduras apareceram
na superfície. Ele golpeou novamente, e pedaços de cristal negro voaram pelo
ar. No seu terceiro golpe, a magia do Cofre do Diamante Negro se quebrou, e
seu braço penetrou até o ombro.

Quando ele puxou, um instante depois, sangue jorrou de dentro pelas


rachaduras do cristal.
Um raio sólido de eletricidade branca deformou o ar entre nós, trazendo um
cheiro de ozônio queimado, e Taci tropeçou para o lado.

Varay apareceu no ar frígido e nebuloso ao meu lado, e uma brisa suave


balançava seu cabelo curto. Sua mão gelada envolveu meu punho, e o raio se
tornou um feixe de energia branca e fria. Ela olhou em meus olhos, cheia de
determinação. “Não guarde nada pra depois.”

Eu quase soltei uma risada. “Voltou não tem 10 minutos e já quer dar ordens.”

Sob o peso combinado de nosso feixe de mana, Taci estava sendo empurrado
para trás, e uma camada de gelo induzido por eletricidade se formava sobre
sua pele. Por um instante, eu senti uma faísca de esperança.

Houve um clarão vermelho quando a lança reapareceu na mão de Taci como


um escudo, separando o raio ao meio, e cada metade atingiu a parede atrás
dele com um impacto. Uma avalanche de pedras caiu sobre os prédios abaixo,
destruindo-os e soterrando metade da vila nos escombros.

Eu empurrei e empurrei, concentrando tudo o que eu tinha naquele ataque


único, e o aperto de Varay se tornava mais forte e mais gelado enquanto ela
fazia o mesmo.

A lança de Taci cortou o feixe, dividindo-o em dois.

Eu cambaleei para o lado quando a caverna explodiu. Uma lâmina invisível de


mana quebrou o telhado e abriu uma ravina profunda na parede atrás de nós
com uma explosão.

O ar ao meu redor estava cheio de uma névoa vermelha. Com horror, me virei
lentamente para Varay. O braço esquerdo dela, com o qual ela tinha me
empurrado, tinha sido vaporizado, deixando apenas uma ferida vermelha e
preta fumegando no seu ombro.

Então, Taci estava na nossa frente. Um painel no formato de escudo, feito de


eletricidade azul e branca, apareceu em minha frente com o barulho de um
trovão, mas a lança vermelha de Taci cortou por ele sem esforço, me cortando
no peito. O sangue jorrou pela abertura em minha armadura, e tudo ficou preto
por um segundo antes de eu voltar à realidade.

Eu estava caindo. Acima de mim, Varay estava segurando a lança vermelha com
um braço feito de gelo semitransparente. Taci girou a lança, quebrando o
braço, e a lâmina longa cortando Varay.

Minha visão se escureceu e meus olhos perderam o foco. Eu pisquei e então


ela estava caindo.

A cabeça de Varay estava indo em uma direção, e o resto do seu corpo em


outra.
Eu tentei me levantar, mas meu corpo inteiro gritava de dor. Olhando pra
baixo, eu vi que eu tinha sido cortado do ombro até os quadris, através da
armadura e da mana. Era difícil dizer se eu já estava morto e minha mente só
não tinha percebido isso ainda, ou se o sangue que caia do buraco da minha
armadura era o que iria me finalizar.

Mas eu era o único que restava.

Eu puxei o ar, tremendo, enquanto meus olhos se fixavam onde cada uma das
minhas companheiras havia caído. Meu peito se apertou. Uma pressão intensa
se acumulou atrás de meus olhos. Grunhindo no fundo da minha garganta, eu
me virei de lado e me forcei a levantar, brevemente consciente de que minhas
entranhas não tinham caído ainda.

Taci já estava se movendo para o túnel destruído para começar sua caçada.

“Asura!” eu gritei, com a voz rouca e a visão borrada com lágrimas.

Ele parou e me olhou, com os olhos pesados e sem interesse. Uma única gota
de sangue brilhante estava espalhada na lateral do seu pescoço onde Aya
havia o cortado, apesar da ferida em si já ter se curado.

Apertei os punhos, a pedra abaixo de mim tremia e uma chama intensa de fúria
acendia dentro de mim. As lágrimas secaram quando minha determinação se
firmou. Eu estava preparado para a morte, mas saber que as Lanças – os
maiores magos de Dicathen – tinham se juntado pra tirar uma única gota de
sangue deste asura era insuportável.

Eu sabia que garantir que os outros escapassem era o verdadeiro objetivo


desta batalha, mas isso não significava que eu tinha abandonado meu orgulho.
Eu era um Wykes, mesmo que o resto da família não fosse mais digna do nome.

“Fúria do Senhor Trovão,” eu proferi. O feitiço exigiu todo o meu foco, minha
raiva e minha mana.

Meu sangue se tornou em eletricidade nas minhas veias. Uma luz branca
começou a sair das feridas em meu torso, queimando em meus olhos e dentro
da minha pele. Mana divergente imbuiu cada partícula do meu corpo.

O asura mudou a lança para uma posição defensiva, e seus olhos negros sem
vida me penetravam.

Meu grito de guerra foi como um trovão quando deixei sair minha fúria. Um
rastro de eletricidade me seguiu quando voei pra cima, me transformando em
uma arma na direção de Taci. Eu me movi como o raio que eu canalizei,
irregular e imprevisível, e eu cheguei até ele em um instante. A eletricidade
que saía de mim e esfaqueou de todas as direções, e mil adagas em chamas
elétricas penetraram cada centímetro quadrado dele.
Sua lança me penetrou, mas a eletricidade correu pela haste até a sua mão.
Quando ele removeu a arma, um raio atingiu o seu peito.

Eu sorri, com sangue cheio de eletricidade entre meus dentes. “Queime,


divindadezinha.”

Ondas de choque começaram a sair do longo corte em meu peito, e cada uma
atingia o asura, removendo suas defesas. Eu envolvi uma mão ao redor de seu
pescoço para garantir que ele não poderia escapar, e quando a sua lança me
penetrou novamente, isso só permitiu que mais do meu poder fluísse.

Uma brisa fresca passou pela minha bochecha, e eu fechei os meus olhos. Eu
estava pronto. Eu tinha segurado o tempo que podia. Essa era uma morte da
qual eu poderia ficar orgulhoso.

Logo antes de eu explodir, uma voz pequena e familiar sussurrou em meu


ouvido. “Você fez o suficiente, Bairon. Não é a sua hora.”

Meus olhos se abriram de repente, e eu procurei loucamente pela voz, incerto


se era real, e com medo de que era minha própria mente pregando peças em
mim.

À medida que eu perdia a concentração, a luz que saía de mim foi diminuindo.
A lança de Taci subiu, quebrando nosso contato, e desceu novamente no meu
ombro já estilhaçado. Eu mal notei quando eu cai no chão como um meteoro.

Taci limpou cinzas do seu uniforme vermelho. Mesmo o tecido que ele usava
estava ileso, eu reparei com amargura.

Eu lutei para colocar meus cotovelos abaixo de mim, pra me levantar, e lançar
meu feitiço final, fazendo o dano que eu pudesse no asura, mas a voz veio
novamente, cheia de ar e muito real no meu ouvido. “Não se mova. Não
importa o que ver. Não se mova.”

Taci caiu ao meu lado. Ele não sorriu com a vitória, ou me ofereceu alguma
banalidade sobre nossa batalha. Havia uma careta em seu rosto quando ele
levantou a lança uma última vez.

Eu deixei meu corpo relaxar, finalmente largando o fardo que eu havia


carregado desde a queda do conselho. Eu tinha feito tudo o que podia. Apesar
de que eu tinha esperanças de que Virion e Rinia chegassem ao seu destino a
tempo, havia um tipo de paz em me submeter às ordens suaves dessa voz
estranhamente familiar.

A lança caiu, penetrando meu peito e meu núcleo.

À medida que a escuridão tomava conta de mim e eu deixava meus olhos se


fecharem pela última vez, um pensamento fugaz se alojou na minha fria
sonolência.
Eu imaginei que a morte doeria mais.

Capítulo 379
Lugar Certo, Hora Certa

ANCIÃ RINIA

O leito de rocha ancestral tremia sob meus pés. Eu sentia a mana atmosférica
se agitando com a liberação de um enorme poder. Não demoraria muito agora.

Alguém colocou uma mão no meu ombro. “Temos tempo suficiente?” Era a voz
de Albold. “Devemos preparar uma emboscada em algum lugar, e atrasar um
pouco mais o asura?”

Eu ri com desdém. “Nossa esperança agora está na pressa e na sorte, não na


força de armas. Não fiquem ansiosos para ter uma morte sem sentido, nenhum
de vocês.”

Uma outra voz, vindo do final da fila. “Você poderia se juntar a mim em cima
da besta.” Era a Madame Astera, a quem Eleanor Leywin havia permitido
montar seu vínculo, dado que ela estava sem uma perna. Foi uma oferta gentil,
vindo de alguém que me odiava profundamente.

“Eu conheço o caminho usando meus pés e sentidos, e não um urso. Vou
andar.” Eu apertei o braço de Virion enquanto ele me guiava. “Precisamos ir
mais rápido.”

Eu senti o seu olhar preocupado, apesar de não conseguir ver, mas ele fez
como pedi e eu empurrei meu velho corpo para acompanhar.

Este era o ponto onde os caminhos potenciais se divergiam, e minha


habilidade de influenciar um futuro em potencial era limitada. Nosso grupo
era de sessenta, talvez setenta pessoas: alguns membros do conselho, os
aventureiros conhecidos como Chifres Gêmeos, o artesão Gideon e sua
assistente, e aqueles dentre os refugiados que tinham demonstrado mais fé
em mim.

Eles iam precisar.

Grupos menores haviam se formado para descer em várias dúzias de túneis


diferentes, liderados pelos Glayders, Earthborns ou outros magos fortes. Se as
Lanças caírem muito rapidamente, ou lutassem por tempo demais, impedindo
o asura de chegar até nós no tempo certo, todos morreríamos. Se Taci nos
caçasse muito rápido, ou gastasse tempo demais rondando pelos túneis,
também morreríamos. O tempo era crucial.

Meu pé direito passou por uma pedra afiada. “Vire à direita na próxima
bifurcação,” eu disse a Virion, e depois de mais cinquenta passos ele me guiou
para a direita, e o caminho se inclinou para baixo sob meus pés.
Uma explosão de algum lugar muito atrás e acima de nós fez cair poeira do
teto da caverna. Alguém suprimiu um grito.

No final do declive, o túnel fez uma curva acentuada à esquerda. “Todos vocês
vão sentir uma forte sensação de desencorajamento à frente. Este é um truque
dos magos antigos para prevenir que este lugar seja descoberto.
Vocês precisam persistir.

Nós continuamos por várias outras bifurcações antes que a sensação ruim
começasse. A princípio ela era moderada, apenas um alerta na mente que
dizia: ‘Algo está errado aqui. Tenha cuidado.’ A sensação aumentava
rapidamente enquanto progredíamos, se transformando em um sentimento de
terror esmagador.

Aqueles que guiávamos começaram a reclamar e choramingar, e nosso ritmo


diminuiu apesar de meu encorajamento e das pancadas feitas pelas magias
quebrando pedras ao longe. Até mesmo o urso estava ofegante, e sua
respiração era cortada e desesperada.

“Albold, leve todos os guardar para a retaguarda. Garanta que essas pessoas
continuem se movendo. Não deixei ninguém se virar,” eu disse.

“V-Você não pode nos forçar!” alguém disse, se engasgando. “Você está nos
levando para nossas mortes!”

Vários passos pararam, e eu pude ouvir as pessoas se empurrando. Os guardas


se moveram para intervir, mas houve um pulso forte de intenção vinda do meu
lado, e todos ficaram em silêncio.

“Todos vocês podem sentir o perigo atrás de nós. Ele é bem real, mas essa
magia funciona apenas na nossa imaginação. Se a Rinia diz que a salvação está
adiante, então nós continuaremos.”

A confiança e autoridade de Virion acalmaram a perturbação, pelo menos


naquele momento. Quando ele se virou e começou a marchar novamente, com
o corpo rígido ao meu lado, todos continuamos a seguir.

Bum, a mana respondia à batalha ao longe. Bum. Bum.

Era quase suficiente para motivar até mesmo os refugiados mais assustados a
continuarem insistindo contra o terror mágico que procurava nos manter
afastados.

Mas não totalmente suficiente.

Depois de cinquenta passos, alguns estavam parando novamente. Depois de


uma centena, os guardas atrás estavam arrastando os mais fracos. Depois de
mil passos, até os guardas estavam sem forças, e aqueles que eram mais
impotentes para encarar o medo saíram do grupo e voltaram correndo pelo
túnel, com gritos que ecoavam nas profundezas escuras.
“Deixe-os ir,” eu exigi, quando ouvi os passos de Albold começarem a seguir.
“Qualquer um que dê as costas agora estará perdido, incluindo vocês.”

Nosso ritmo diminuiu excessivamente. A cada passo, eu tinha a sensação de


estar me movendo por um poço de piche, esperando pela escuridão cobrir
minha cabeça e sufocar a vida para fora mim.

Eu sabia que teríamos que cruzar esta barreira. Eu pensei que estivesse pronta.
Eu estava errada.

Meus pés pararam de se mover. Virion me cutucou, e quase dava para ouvir
sua careta. Ele estava dizendo algo, mas eu não conseguia ouvir graças ao
bombear do sangue em meus ouvidos.

Tudo tinha sido em vão. Eu forcei demais meu corpo, e agora eu não tinha
forças para continuar.

A terra pareceu tremer, e então ficar em silêncio. A mana se aquietou. A batalha


do asura contra as Lanças havia terminado. Nossa última linha de defesa tinha
caído. Não havia tempo. Não para dúvidas, nem para o medo.

Um braço fino envolveu o meu, e Virion soltou meu outro braço, se afastando.
Outro alguém, mais baixo e ainda mais fino do que o primeiro, o substituiu.

Mana fresca e calmante fluiu através de mim. A maior parte do meu corpo já
tinha se tornado uma dor unificada, tão constante que eu já havia me
esquecido de que estava lá, mas ao toque da mana, essa dor desapareceu.
Minha respiração ficou mais leve. Eu me endireitei.

Vinda do outro lado, uma luz dourada movia por mim, aquecendo meu núcleo
e afastando a escuridão e o desespero.

“Obrigada, Leywins…” Eu murmurei quando consegui falar. “Agora, vamos.


Estamos desperdiçando tempo precioso aqui.”

Alice riu ao meu lado, mas Ellie apenas me segurou mais forte. “Nós vamos
conseguir. Lugar certo, hora certa?”

Eu limpei a garganta quando ela fechou de repente, cheia de emoção.


“Estamos quase lá.”

As duas seguraram meus braços e me ajudaram a seguir adiante, com Virion


logo à frente. A zona do medo parecia continuar para sempre, forçando nossos
corpos e nossa mente com um desespero crescente para nos quebrar. De
repente, como se ao passar por uma cachoeira gelada, estávamos livres dele,
e cada nervo no meu corpo voltava à vida à medida que a aura repelente
sumia. Minha mente se clareou, imediatamente calculando a quantidade
aproximada de tempo que perdemos.
Sem dizer nada, eu ditei o ritmo, com o corpo renovado pela magia de cura de
Alice, me sentindo leve como uma pena sem o peso da defesa dos magos
antigos.

Uma intenção virulenta entrou pelos túneis atrás de nós, se movendo mais
rapidamente do que eu podia imaginar.

Nós começamos a correr.

O chão de pedra áspera se tornou mais polido, e exclamações aliviadas vindas


da parte de trás ecoaram pelo corredor construído. Eu sabia o que eles
estavam vendo: esculturas de pedras preciosas, contando a história de um
lugar chamado de Relictombs, feito pelos magos antigos antes de sua queda.

Mas não havia tempo. Nem para explicar para eles, nem para puxar o fôlego
necessário para correr, então eu apenas empurrei os outros para frente.

Os passos leves de Virion pararam adiante, mas eu insisti. “Vá, nós precisamos
de todos lá dentro.”

A aura que se aproximava era como uma névoa vermelha na mana, agitando-
a.

Apesar de meus olhos cegos não conseguirem ver a sala, eu a conhecia bem
pelas minhas visões. Um batente arqueado se abria em um grande espaço
hexagonal, com uns 30 metros de diâmetro. Bancos íngremes de pedra,
parecidos com degraus, desciam até uma plataforma no centro, onde um
batente retangular de pedra se erguia.

“Me leve até o centro,” eu disse, focando desesperadamente no batente de


rocha esculpida. Não havia muito tempo agora. Se não acontecesse logo…

Quando chegamos até a plataforma, eu me soltei e descansei a mão na


estrutura de pedra, passando os dedos pelo entalhe intricado.

Estava frio. Não havia mana ou éter correndo por ele.

“O que é isso?” Madame Astera perguntou enquanto a ajudavam a descer do


vínculo de Ellie. “Você nos trouxe a um beco sem saída!”

Outros se juntaram a ela, suplicando para que houvesse algo a mais nesse
lugar, qualquer coisa que pudesse salvá-los. Alguém bateu na estrutura, como
se o batente fosse uma porta, esperando que alguém os deixasse passar. A
maioria foi para a parte de trás da câmara, se afastando o máximo da aura que
se aproximava.

“Eu trouxe vocês até onde precisam estar para sobreviver,” eu disse, deixando
que meu cansaço e frustração permeassem as palavras. “Se o plano fosse
permitir que vocês morressem, teria sido mais simples ficar onde estávamos.”
“Se afastem da porta,” Virion estava dando ordens. “Todo mundo, para a parte
de trás da sala!”

Eu acenei em sua direção. “Este povo vai precisar de líderes capazes quando
isso acabar. Faça como ele disse, Astera. Sobreviva.”

Um grito cortou o ar frio, e eu ouvi carne rasgando e ossos quebrando.

Uma figura humana, tão rica com mana que a sua forma brilhava em meus
sentidos, passou pelo batente acima. Sua intenção de matar era como um
punho assassino envolvendo meu coração, espremendo a vida para fora de
mim.

O mundo pareceu congelar. O único som era um grito semiabafado de terror


abjeto, e o único movimento era o lento girar da cabeça do recém-chegado
enquanto escaneava a sala.

“Povo de Dicathen, seguidores do Comandante Virion Eralith, eu sou Taci do


Clã Thyestes.” Sua voz era cadenciada e arrogante, e as palavras que ecoavam
dele pela câmara estavam cheias de desgosto por nós. “Pela sua falha em ver
o caminho adiante e sua inabilidade de entender o mal necessário dessa
guerra, Lorde Indrath proclamou que todos vocês precisam morrer para abrir
espaço para um futuro mais sensato.”

Virion deu um passo à frente. Tolo corajoso, eu pensei, apesar de que não
tentei pará-lo. Nós precisávamos de cada segundo agora.

Mana surgiu de Virion quando ele ativou sua vontade da besta. Sua voz era um
rugido baixo quando ele disse, “Aliados falsos e traidores. Os Indraths não são
melhores do que os Vritra.”

Ele correu para frente, se movendo como um raio. Eu ouvi a sua espada sair da
bainha e cortar o ar, e observei a forma radiante de Taci se mover para
defender, e então a câmara se acender com magia quando uma dúzia de magos
jogavam os feitiços que podiam para ajudar Virion.

Eu prendi a respiração.

O asura se moveu com a graça líquida de uma vida inteira de dedicação e


prática. Contra ele, a velocidade e ferocidade animalesca de Virion era
impotente. Taci bloqueou vários golpes rápidos e nem se importou com uma
dúzia de outros feitiços. Virion se movia de um lado para outro, sempre
atacando, como se fosse um furacão negro, mas seus golpes nunca penetraram
a mana do asura.

De repente, Virion cambaleou e parou. Várias pessoas gritaram. Seu corpo


bateu contra os bancos de pedra com um doloroso crack.
Boo soltou um rugido poderoso que foi interrompido, se transformando em
um berro de tortura, e um peso enorme caiu nas escadas. Atrás de mim, Ellie
gritou desesperada.

O asura passou pela sala como um clarão, fundindo sua assinatura de mana
com a atmosfera num piscar de olhos, e quando ele reapareceu houve um som
afiado e molhado de lâmina cortando carne. Então, ele despareceu
novamente, e novamente, e para todo lugar que ele ia uma assinatura de mana
se apagava.

Mas o batente do portal permanecia frio e sem vida, desprovido de magia.

“Pare!” Eu gritei mais alto que o ruído. Eu dei um passo à frente, me libertando
dos braços que tentavam me segurar. “Taci do Clã Thyestes, eu, Anciã Rinia
Darcassan de Elenoir, te ordeno que pare!”

O asura parou, e eu tive que ouvir a sua lâmina deslizar para fora de um corpo,
que caiu ao chão.

“Você deixaria, voluntariamente, que eles te transformassem em uma arma?”


Eu perguntei, dando outro passo à frente. “Você não seria mais importante
para o seu Lorde do que nós somos. Uma ferramenta, para ser afiada, usada e
substituída quando necessário.”

Ele riu. Um som simples, incrédulo e cruel. “Eu fui treinado desde que era uma
criança, passando décadas no orbe de éter, para me tornar a arma de meu
Lorde. É o meu propósito, vidente.”

Pela câmara, as pessoas estavam chorando e soluçando. Alguém estava se


engasgando no próprio sangue. Você não pode salvar a todos, eu disse a mim
mesma pela centésima vez.

“Eu nunca entendi porque nós nos importávamos com vocês menores,” Taci
continuou, focando sua aura pela sala, e observando as pessoas impotentes e
aterrorizadas que ele estava prestes a assassinar. “Epheotus não precisa, e
nunca precisou de nada de vocês. Então por que — por que — um dos seus, um
garoto, uma criança idiota, foi treinado entre nós?”

Alguém tentou correr até a porta. A lança de Taci assobiou, e o sangue se


espalhou pelo chão.

“Isso foi uma desonra ao Ancião Kordri. Foi uma afronta contra mim, e contra
todos que tiveram que treinar com o garoto. Eu —”

Ele pausou, e eu senti a força da sua atenção completa em mim. Logo em


seguida, ele estava em pé diante de mim, e sua intenção era como uma
fogueira que ameaçava me consumir.

“Você acha que sou um tolo,” ele disse, com a respiração como um vento
quente de verão em meu rosto. “Eu fui avisado sobre vocês, estudante do
príncipe perdido. Agora, no entanto, eu não entendo o porquê. Quaisquer que
sejam as artes etéricas que você tiver roubado, você já foi consumida por elas.
Você não é nada além de uma folha ao vento.”

Sua mão pousou em meu ombro, e então empurrou.

ELEANOR LEYWIN

Como em algum terrível pesadelo, eu observei, paralisada, quando Rinia saiu


voando até que bateu na estrutura de pedra. Quando eu estava em Xyrus, uma
vez vi um garoto jogar um saco em cima de um rato e então pisar nele. O som
era o mesmo.

O corpo dela caiu ao chão, sem movimento. Eu estava gritando. Minha mãe
estava me segurando, tentando me puxar para longe, me proteger com seu
corpo, mas eu lutei para me libertar, para puxar meu arco. Era como se eu
tivesse assistindo a tudo de um ponto de vista acima de nós, sem controle
nenhum de mim mesma.

Vários dos guardas já estavam mortos. Boo estava jogado em um canto, imóvel,
e sua respiração curta era o único movimento perceptível. Durden estava
sangrando de uma ferida na cabeça, apesar de pensar — tinha esperança,
talvez — que eu ainda conseguia sentir sua mana. Jasmine e Angela Rose
estavam protegendo Camellia e Emily na parede dos fundos. Eu não conseguia
ver Helen, e não tinha certeza de que ela estava bem, mas o fato do arco dela
não estar atirando não era um bom sinal.

Os olhos negros do asura escanearam a sala, e repousaram em mim, focado


nos meus gritos. Uma flecha se formou em meu arco e saiu voando. Ele se
moveu alguns centímetros para o lado, e a flecha passou ao lado de sua orelha.
Uma segunda flecha saiu do meu arco, e ele pegou essa, quebrando a mana e
fazendo ela sumir com seu toque. A terceira veio ainda mais rapidamente, mas
ele não estava mais lá.

Houve um clarão vermelho, e meu arco se quebrou em pedaços na minha mão,


dissipando a flecha que estava na corda.

Eu ouvi os gritos de minha mãe mais altos do que os meus quando a lança
vermelha foi levantada como o rabo de uma manticora. Eu não estava com
medo, não de verdade. Eu sempre soube que iria morrer lutando, como meu
Pai, como Arthur. Eu queria ser forte e corajosa como eles. Mas neste mundo,
os fortes e corajosos sempre morriam lutando.

O asura hesitou. Minha mãe me puxou e me apertou, e os pedaços do meu arco


destruído ficaram dolorosamente presos entre nós. “Por favor!” ela gritou, com
a voz irregular e cheia de lágrimas.

Seu rosto se fechou ainda mais. “Você deve ser a irmã do Arthur.” Seus olhos
puramente pretos se fixaram em minha mãe. “E a mãe dele?” A lança se
abaixou. “É uma pena que Arthur não esteja aqui agora. Tem sido uma honra
cumprir esta tarefa para meu Lorde, mas eu teria gostado muito de enfrentar
seu irmão novamente, e mostrar a ele o quão pequeno seu potencial
realmente é comparado com a raça do panteão.”

Lentamente, o asura segurou o braço da minha mãe, e a puxou para longe.

“Não! Me solte! Não toque nela! Ellie!”

Ele se fez de surdo para as súplicas de minha mãe, e levantou a ponta da lança,
perfurando minha lateral abaixo das costelas. Meus joelhos começaram a
tremer quando eu a senti subindo pelo meu corpo, cortando tão facilmente
quanto bolo de aniversário.

Bolo de aniversário? Eu me perguntei, vendo meu rosto refletido nos olhos do


asura. Tá aí uma coisa engraçada para pensar quando se está morrendo. Mas
fazia um pouco de sentido, também. Eu tinha pensado muito sobre a última
festa de aniversário que eu tive antes da guerra. Quando todos estávamos
juntos, até mesmo o Irmão, quando o mundo não estava acabando.

Eu fiz questão de não gritar. Eu tinha decidido, no meio dos meus pensamentos
delirantes, que eu não morreria gritando.

A lança saiu de mim tão facilmente quanto tinha entrado. Minhas pernas
instáveis falharam, e eu caí ao chão.

Minha mãe se jogou sobre mim, com lágrimas descendo pelo seu rosto e me
molhando. Minhas costas estavam quentes e molhadas, mas eu podia sentir
uma frieza por dentro, se espalhando lentamente para fora. As mãos da minha
mãe estavam brilhando com uma luz pálida. “Está tudo bem, meu neném, está
tudo bem. Estou bem aqui. Estou junto de você, e vou levar a dor embora,
minha linda Ellie. Eu vou cuidar de você.”

Acima dela, a lança de Taci estava pronta para golpear a sua nuca, mas todo o
seu foco estava em mim.

Não, Mãe, corra. Vá embora, eu queria gritar, mas não conseguia puxar ar para
meus pulmões.

Taci hesitou novamente. Seu olhar se fixou onde a moldura de pedra se erguia
no centro da plataforma, e eu percebi que havia luz saindo dela. Eu tive que
me esforçar apenas para virar minha cabeça, mas dentro do que tinha sido um
retângulo vazio de pedra, agora havia um portal roxo brilhante, cheio de
redemoinhos etéreos.

Por entre a entoação frenética da minha mãe e os soluços daqueles que


esperavam sua vez de morrer, um zumbido rítmico e gentil saía do portal.

A cortina de líquido roxo ondulou como se uma brisa tivesse soprado, e duas
silhuetas apareceram.
Não consegui ver suas características, mas havia algo na figura e postura que
me eram tão familiares. Quase como…

Um sorriso apareceu em meu rosto enquanto meus olhos se fechavam. Eu me


senti segura pela primeira vez em muito, muito tempo.

ANCIÃ RINIA

O som de soluções vinha de perto, passando pelo tinido em meu crânio. Era
um som familiar. Alice. Eu tentei sentir a Ellie. Ela estava por perto, mas
desvanecendo. O asura estava de pé sobre elas, mas o seu foco estava em
outro lugar…

Eu o segui até o brilho etérico de um portal, manifesto mesmo sem minha


visão. Mas era uma coisa pálida se comparado com a figura humana dentro
dele.

Meu coração ressoou.

O que eu senti estava além do escopo do meu entendimento, mas eu sabia que
não era a minha mente pregando peças. Meu corpo estava quebrado, e minha
vida estava esvaindo. Este era o momento que eu tinha previsto, onde todas
as linhas se acabavam, mas eu nunca tinha conseguido entender como nós
seríamos salvos, apenas o onde e o quando. Mas agora, eu sabia o porquê.

“Arthur…”

Ele esteve ausente de minhas visões do porvir desde seu desaparecimento, e


até mesmo quando criança seu futuro nunca esteve muito claro para mim. Eu
não tinha acreditado completamente que ele estivesse morto, mas eu não
conseguia vê-lo em minhas visões ou encontrar um futuro no qual ele
reaparecesse. Apesar de eu ter visto este momento, era como se eu tivesse
assistindo através do fundo de uma garrafa grossa: incerto, e manchado com
minha própria falta de conhecimento e entendimento.

Agora eu conseguia ver ele tão claramente quanto eu via Taci, uma nuvem
radiante de luz ametista, e seu calor se espalhava pela câmara como o sol do
meio dia de verão.

“Regis, ajude minha irmã.”

Um fogo fátuo de luz roxa — uma faísca viva de éter — mergulhou na


evanescente assinatura de mana de Ellie, e a vida floresceu dentro dela.

Taci deu um passo para trás, mudando a sua arma, que queimava aos meus
olhos, para uma posição de defesa. “Quem… Arthur Leywin?” Sua confusão e
incerteza era palpável, audível em seu tom de voz, e costurada em sua postura.
A aura de Arthur ficou mais escura, e sinais de um vermelho apareceram no
meio do roxo. Um feixe de puro éter no formato de uma espada passou a
existir, distorcendo a malha da realidade.

Gavinhas de eletricidade de éter engoliram Arthur e o espaço pareceu se


dobrar à sua vontade quando ele reapareceu atrás de Taci. Uma luz roxa se
chocou contra uma vermelha quando Taci girou a lança para trás e interceptou
o ataque.

“Fico feliz que você esteja aqui,” Taci rosnou, sua voz áspera aos meus ouvidos.

“Você não deveria,” Arthur respondeu, com a voz como uma chama fria de ódio.

A espada de éter piscou e desapareceu, então voltou quase no mesmo


instante, e agora golpeava de baixo para cima, sob a lança. Mana e éter tiniram
uma contra a outra e a espada cortou o asura nas costelas.

Com um grunhido de dor, Taci deu um passo para trás, novamente


desaparecendo e reaparecendo, usando o que só poderia ser a técnica Mirage
Walk do Clã Thyestes.

Eu senti o éter inchando dentro de Arthur, e ele avançou contra seu inimigo,
formando um arco ametista no ar com sua espada. A lança de Taci novamente
se ergueu para defender.

A colisão emitiu uma onda de choque que quase me fez rolar para fora da
plataforma. Meu corpo reclamou me dizendo que eu estava morrendo, como
se eu não soubesse disso ainda.

Arthur pausou e olhou em volta. Alice tinha sido mandada para trás. Ellie tinha
saído rolando. Gritos encheram a câmara quando muitos outros saíram
voando pela colisão desses dois titãs.

Taci rodopiou sua lança para trás em um arco largo e eu senti uma onda de
mana cortante passar acima de nós. Alguns dos gritos pararam, interrompidos,
e várias assinaturas de mana foram extintas.

Em um instante, Arthur voltou a pressioná-lo, movendo sua lâmina mais


rapidamente do que era possível na mão de um humano, mas Taci se igualou
em cada golpe. E com cada colisão, a câmara tremia.

Eles vão derrubar o teto se o Arthur não fizer nada.

Eu tentei gritar, mas meus pulmões não conseguiram emitir mais do que um
sussurro abafado. Ao invés disso, eu reuni as últimas gotas de meu poder. Não
era muito. A mana se acendeu dentro de mim, e eu tentei reformá-la,
transformá-la em uma mensagem e enviar diretamente para a mente de
Arthur, mas… Não havia o suficiente de mim restante.
Pela primeira vez, a possibilidade de falha, apesar de tudo o que eu tinha feito
para chegar até esse ponto, parecia terrivelmente real. O mundo já havia, em
tantas ocasiões, pedido mais de mim do que eu conseguia entregar, e ainda
assim eu tinha doado, mas agora, no fim de tudo, me faltavam as forças para
garantir o que eu tinha visto.

Uma seção do teto da câmara caiu.

O fogo fátuo etérico que eu tinha sentido antes emergiu do corpo deitado de
Ellie, se jogando contra as pedras para proteger um grupo amontoado de
sobreviventes.

Os dois combatentes se mesclaram em uma mistura de cor e poder, luz branca


se fundindo com roxa, éter se chocando com mana, e suas armas zumbindo
uma contra a outra. Por várias vezes eu vi o Arthur se ferir, e senti fendas de
mana deixadas para trás onde a lança atingia, mas ele parecia tão disposto e
inexorável enquanto pressionava o asura.

A lança de Taci atingiu o chão de repente. A terra tremeu e a plataforma se


rachou. Mais pedras caíram do teto, e a câmara se encheu com mana usada
para formar escudos para desviar ou destruir os destroços.

As armas de Arthur sumiram e ele segurou a lança de Taci. Os dois se


esforçaram para lutar pelo controle da arma. Taci golpeou com joelhos e
cotovelos, carregando mana em seus ataques, cada um deles criando uma
outra onda de choque.

Arthur olhou em minha direção. Eu tinha que fazê-lo entender. Novamente, eu


reuni toda minha mana restante e formei a mensagem. A sala estava cheia de
éter, vazando do portal como uma barragem rompida. Eu tentei alcançá-lo,
suplicando, implorando para que me ajudasse.

Eu senti a mente de Arthur se conectar à minha.

Arthur, use o portal! Leve Taci para longe daqui. Eu olhei com olhos urgentes,
incerta se ele podia me ouvir e entender.

‘Asuras não podem entrar nas Relictombs.’

Eu senti a frieza dura como granito de sua mente através de nossa conexão.
Este não era o garoto que eu tinha conhecido. Ele tinha sacrificado tanto para
retornar para nós, deixando algo de si para trás onde quer que ele estava.

Apenas confie em mim.

O éter se acendeu ao redor de Arthur, e ele girou a lança acima de sua cabeça,
se virando de forma que ele e Taci estavam de costas um para o outro, cada
um segurando a lança no alto. Os dois brigaram, e nenhum deles foi capaz de
se impor, mas então Arthur piscou em um clarão de relâmpago etérico,
reaparecendo no mesmo lugar, mas virado para a outra direção.
Taci tropeçou para a frente como resultado de sua própria força. Os braços de
Arthur envolveram ele por trás, empurrando-o para frente.

Para dentro do portal.

E então… Eles tinham sumido. Um silêncio extraordinário reinou na câmara, e


o ar pareceu ficar mais leve e fácil de respirar. Eu inspirei com dificuldade,
sentindo um grande peso no meu peito.

Algo se moveu ao meu lado, e uma mão quente envolveu a minha,


entrelaçando nossos dedos. Sob o cheiro de suor e sangue, havia um cheiro
de luz do sol, folhas de bordo e óleo de espada. Eu me perguntei quanto tempo
havia se passado desde que a pele de Virion tinha sido exposta ao sol para
que o cheiro ainda permanecesse.

Eu abri minha boca para falar, mas nada saiu.

“Não fale. Você está machucada. Mas… Nós temos — onde está…?” Sua voz
grave foi interrompida, e eu pude sentir, pelo seu esforço, que ele estava
gravemente ferido. “Eu preciso de um emissor! Alice?”

Sua voz estava desaparecendo, e eu senti algo molhado pingar em minha pele.
A dor que inundava meu corpo enfraqueceu… E sumiu, deixando apenas o
calor de sua mão ao redor da minha.

Uma pena. Eu queria dizer a ele…

Eu estava feliz que ele estava ao meu lado aqui no final.

Capítulo 380
O Vazio Além

ARTHUR

‘Apenas confie em mim.”

As palavras de Rinia ecoaram pela minha mente quando Taci e eu colidíamos


com o portal. Ele inchou como a superfície de uma bolha, resistindo ao asura,
e recusando a sua entrada.

A raiva queimava o medo que eu deveria ter sentido ao lutar contra um asura.
A única coisa que a limitava era a presença de meus amigos e família. Mesmo
com a nuvem caótica de emoções, eu sabia que Rinia estava certa. Seria
impossível derrotar Taci enquanto eu me preocupava com a segurança de
todos em volta.
A superfície do portal se distorceu e nos envolveu, ondulando perigosamente.
Eu podia sentir o éter tentando não se distorcer, simultaneamente procurando
aceitar a mim e rejeitar ao Taci.

Vai quebrar. Eu hesitei, e minha mente tentou achar outra solução. Regis, nós

O mundo se despedaçou.

Fragmentos roxos de portal se espalharam em um crepúsculo etérico que se


estendia por um espaço vazio sem limites. Como espelhos quebrados, eles
refratavam a luz, que vinha de todo lugar e de lugar nenhum.

Algo faminto e onipresente devorou cada fragmento brilhante, desintegrando-


os de volta para éter puro, e depois para o nada.

Eu pude sentir uma dor aguda de algo faltando, como se eu tivesse perdido
um membro, mas não conseguia identificar essa dor.

Eu estava vagando, flutuando ou talvez caindo, mas eu não sabia onde e nem
em quê.

O que eu estava fazendo agora?

Eu estava com raiva? Pelo menos parecia que antes eu estava. Agora eu me
sentia apenas… deslocado.

Não, não faminto, eu considerei, e minha linha de pensamento voltou


ao algo onde eu estava vagando. Está bem ali, mas o quê…

Eu apertei os olhos, espreitando através da difusa luz ametista para uma


sombra fantasmagórica abaixo de mim. Havia uma paisagem de dunas
ondulantes vagando pelo mar de luz roxa, de um formato reconhecível.
Familiar.

Instintivamente, minha cabeça se inclinou pra frente quando tentei voar para
as dunas, mas não senti nenhum movimento, e a paisagem familiar-mas-nem-
tanto não se aproximou.

“O-onde estamos?” uma voz tensa veio de trás, de algum lugar acima de mim.
Me virando sem pensar, meu corpo começou a girar, e a figura de um jovem
careca entrou em minha visão.

Minhas memórias se colidiram com o meu estado mental confuso como dois
icebergs se chocando em mar aberto.

Dois sentimentos voltaram ao mesmo tempo. A euforia que eu tinha sentido


quando finalmente encontrei um portal que já estava conectado à Dicathen
esperando no final de uma ravina abaixo de uma zona cheia de dunas. E o
terror e fúria quando, ao ativar o portal, eu vi uma lança perfurar minha
irmãzinha…

Zonas e mais zonas haviam passado enquanto eu procurava, focando em


Dicathen a cada vez que eu usava a Bússola, e encontrando nada mais do que
portais mortos que não estavam mais conectados a lugar algum.

Mas eu sabia que deveria haver pelo menos um portal de Relictombs em algum
lugar de Dicathen. Eu só não entendia como procurar sem usar um mapa de
memória como os que Sylvia havia deixado para mim.

Minha cabeça quase rachou de dor quando as memórias voltaram em uma


bagunça enlameada e meio sem sentido.

Alaric havia ajudado com as preparações. Ele adquiriu a chave rúnica de portal.
Comprou ou roubou uma coleção de itens que eu queria caso eu não
conseguisse retornar à Alacrya.

Quando eu fiquei sabendo sobe o Victoriad, eu sabia que participar poderia


expor a minha verdadeira identidade, o que significava que eu deveria me
esconder. E só existia um lugar para ir: de volta a Dicathen. Para casa. Para
minha família. Finalmente.

E eu tinha conseguido. Apenas alguns segundos tarde demais…

Eu tinha lutado contra Taci, e ouvi a voz de Rinia em minha mente…

‘Apenas confie em mim,’ sua voz soou novamente, me trazendo de volta ao


início da linha de pensamento.
Eu procurei pelas sombras roseadas das dunas, fixando minha atenção lá, e a
confusão me enrolava como uma teia de aranha gigante. Esta era a última zona
que eu tinha passado antes de chegar em Dicathen. Um desfiladeiro enorme
dividia o chão. O que restava do guardião da zona, uma hidra feita de vidro
vivo e fogo líquido, ainda estava estilhaçado no chão.

As Relictombs eram programadas de alguma forma para não permitir a entrada


de asuras, mas este reino de éter era diferente – mais separado, talvez – das
Relictombs, que pareciam estar contidas por ele.

Nós provavelmente ricocheteamos nas Relictombs e acabamos neste espaço


intermédio.

Enquanto eu olhava para o cenário mal iluminado, uma rajada de vento


levantou a areia, passando pelas dunas com uma velocidade impossível e
limpando todas elas. Quando a tempestade passou, a zona parecia ter…
resetado. De volta ao estado de quando a encontrei. Eu podia ver a forma da
hidra se contorcendo abaixo da beirada do desfiladeiro, esperando o desafio
do próximo ascendente.

O que é –

A dor penetrante, a sensação de algo faltando, voltou com tudo, atraindo


minha atenção para um vazio dentro de mim.

Regis! Eu gritei mentalmente, procurando pela consciência do meu


companheiro. Ele não estava em lugar algum.

Nossa conexão havia sido cortada.

Eu refiz meus passos mentalmente, de volta ao poucos segundos que eu tinha


ficado em Dicathen. Regis ainda estava lá, e eu tinha enviado ele para a Ellie,
para fazer… eu não sei o que. Ajudar. De alguma forma. Eu vi a sua forma magra
novamente, deitada na pedra fria, sangrando, e minha mãe – com as mãos tão
vermelhas – lutando para cura-la.

Eu precisava conter minha raiva. Perder o controle significava arriscar a morte


de todos ali, incluindo a de Ellie e minha mãe. Toda a fúria que eu senti
naquele momento voltou pra mim de uma vez, quando choque passou.
Eu não teria que me segurar aqui.

Antes mesmo de eu terminar de formar o pensamento, o éter coalesceu na


forma de uma espada em minha mão direita.

Rangendo meus dentes, e com o corpo todo tenso, eu me inclinei na direção


de Taci. Mas eu não me movi.

A careta confusa de Taci lentamente se transformou em uma expressão


furiosa, similar à minha. “Onde estamos, Leywin? O que você fez?!”

E de repente ele estava na minha frente, e sua lança escarlate – ainda mais
vermelha agora, com o sangue de minha família e amigos – empurrou pro lado
a minha arma e entrou em meu ombro. Eu peguei a haste da lança com minha
mão livre e a usei como apoio para chutar Taci no peito, mandando-o girando
pelo espaço.

Sua lança foi arrancada da ferida, deixando uma abertura sangrenta abaixo da
minha clavícula. O sangue saiu em pequenos glóbulos, e apesar do perigo que
Taci representava, eu não pude deixar de observa-las flutuar pelo espaço vazio
etérico.

O vermelho foi rapidamente imbuído com roxo quando as partículas de éter


se grudaram nos glóbulos. A dor aguda em meu ombro se amenizou, e eu
percebi que o éter estava fluindo para dentro da ferida, a partir da atmosfera
e não do meu núcleo. A ferida foi curada em um instante.

Puxando da atmosfera pela primeira vez desde que eu apareci aqui, o éter
invadiu meu núcleo. A atmosfera não era apenas rica em éter. Era éter. Toda
ela. Tudo. A presença devoradora que eu tinha sentido era um oceano infinito
de éter ansioso para reabsorver a minúscula fração que havia sido
transformada no Portal das Relictombs.

Taci estava me observando com cuidado, e seus olhos se focaram no meu


ombro onde a ferida havia sumido. “O que você se tornou, Arthur Leywin?”

Deixando sair um bufo, eu invoquei a relíquia armadura. Ondas de escamas


obsidianas se aderiram ao meu corpo, se agitando contra minha pele quando
reagia ao oceano de puro éter.
Minha mão esquerda avançou, com a palma virada pra frente, e um cone de
energia violeta queimou o espaço entre nós. Taci voou para trás, golpeando o
éter com sua lança, mas o feixe o perseguiu, se contorcendo como uma cobra
enquanto crescia mais e mais, uma torrente viva de éter ansiosa para devora-
lo inteiro.

Sem ter um chão para se firmar, ele podia voar mas não podia usar a técnica
de Mirage Walk para se reposicionar. Ainda assim, sua mobilidade excedia em
muito a minha, que parecia estar limitada a girar no mesmo lugar enquanto eu
vagava lentamente pra longe do lugar onde nós tínhamos aparecido. Se eu
quisesse ter alguma esperança contra ele, eu precisava descobrir como me
mover.

Liberando a lâmina de éter – mas ainda me concentrando no fluxo de éter que


serpenteava em minha mão – eu tentei sentir mentalmente ao meu redor. Voar
seria o ideal, mas mesmo que eu só tivesse algo onde pisar…

Meus pés repousaram em algo sólido. Isso me pegou desprevenido, me


desconcentrando da torrente etérica em minha mão. Olhei para baixo e vi uma
plataforma pequena de energia levemente iluminada com um cinza arroxeado.
Era perfeitamente lisa e irradiava um calor suave.

Isto é éter…

Minha cabeça se virou quando um clarão de movimento passou em minha


visão periférica. A espada ametista veio à vida em minha mão a tempo de
defletir um golpe que mirava em meu pescoço. Taci usou seu ímpeto para se
chocar contra mim, me jogando para fora da plataforma em direção às dunas
abaixo. Eu girei sem controle, navegando confuso pelo espaço vazio, mas parei
de repente quando minhas costas bateram contra uma superfície sólida que
vibrava.

Taci veio para cima de mim, e sua lança pulava e golpeava tão rapidamente
que não era nada mais do que um borrão vermelho. Os golpes vinham em uma
sequência quase instantânea, já que o Mirage Walk acelerava não só o seu
movimento, mas também os seus ataques.
Ficando de pé, eu defendi cada golpe do asura com um próprio. Nós voltamos
aos padrões que foram ensinados a nós há muito tempo atrás pelo Kordri, mas
rapidamente ficou claro que o treinamento de Taci tinha ido muito além do
meu, e cada golpe dele contra-atacava com eficiência brutal. Se não fosse
minha constituição asura, ele rapidamente estaria em vantagem.

Taci sumiu. Eu deixei que meus sentidos se desfocassem, procurando pelos


caminhos etéricos com a runa de God Step, mas… não haviam caminhos aqui.

Algo me atingiu como um aríete entre as escápulas. A armadura de relíquia


mal conseguiu aguentar o golpe, e eu fui jogado para a frente. Taci apareceu
diante de mim, e a longa lâmina alada de sua lança perfurou minha armadura
logo acima do meu estômago, torcendo e rasgando as escamas.

Eu senti como se a lança houvesse impactado a casca duplamente reforçada


do meu núcleo de éter. Uma ondulação repugnante passou por mim, fazendo
cada átomo do meu ser recuar em puro horror. Eu senti uma dor chocante
quando a ponta da lança bateu contra a armadura em minhas costas, sem a
força necessária para penetrar completamente.

O pânico subiu em minha garganta como bile, e eu voltei os meus sentidos


para dentro, focando em meu núcleo.

Ele estava intacto.

Apesar da dor da minha ferida, o medo desapareceu, e foi substituído por uma
fúria gélida enquanto eu golpeava sua garganta com a lâmina da minha mão.

A lança desintegrou quando Taci se moveu para pegar o meu braço. Eu me


virei, me livrando de seu aperto, e então dei um murro em seu queixo,
liberando uma explosão etérica diretamente em seu rosto. Seu braço envolveu
o meu enquanto ele ia para trás e usava o impulso para me tirar do chão, girar,
e me mandar voando.

No meio da confusão pela dor, eu percebi onde estávamos: dentro de algum


tipo de barreira que encapsulava a zona das dunas. Era uma casca
transparente que separava a zona da expansão etérica. No meio segundo que
eu tive para considerar isso, minha mente se rebelou contra a ideia. As dunas
pareciam infinitas quando vistas de dentro da zona, sem nenhum teto ou
parede, e ainda assim…

Taci pousou em minhas costas, me esmagando contra a casca. Eu senti o éter


ser empurrado de lado quando ele levantou sua lança, ouvi o ranger de seus
dentes quando ele rosnou pra mim, se preparando para enfiar a lança em meu
crânio.

O éter estava correndo até mim. Meu núcleo estava cheio dele, e a ferida em
meu peito já estava curada.

Eu me afastei do “chão” tão forte quanto consegui enquanto conjurava a


lâmina de éter em uma pegada invertida, golpeando atrás de mim.

A lança passou raspando na armadura ao redor do meu pescoço, e Taci gritou


em agonia.

Eu girei, alternando automaticamente a lâmina em minha mão para uma


posição normal quando a levantei com a intenção de me defender, mas Taci
estava a 20 metros de mim. Sua mão pressionava uma ferida sangrando em
sua lateral, e a metade do rosto estava queimada com um cinza escuro. Seu
peito se movia rapidamente, acompanhando a respiração que sibilava por
entre os dentes, e seus olhos estavam esbugalhados.

Eu estralei meu pescoço enquanto o éter curava o hematoma que o golpe de


Taci havia causado temporariamente. “É a primeira vez que você teve que
sangrar por causa das ambições do Lorde Indrath?”

Com um grito cheio de raiva, Taci fez força e arremessou sua lança em minha
direção. Ela voou como um relâmpago vermelho pelo céu roxo. Eu dei um
passo curto e a deixei cortar o ar a menos de cinco centímetros do meu rosto.

Ela golpeou a crosta da zona como um martelo golpeia um gongo, e acabou


penetrando. Uma série de rachaduras saíram do local de impacto, e ciscos
roxos começaram a vazar e sumir na atmosfera.

Instintivamente, peguei a lança em minhas mãos e a soltei da concha. A haste


se curvou em meu aperto enquanto eu flexionava, com a intenção de quebrá-
la em dois, mas estava fortemente reforçada com mana. No instante seguinte,
eu não estava segurando nada. A lança se desmaterializou e reapareceu na
mão de Taci.

Uma espessa corrente de partículas de éter agora estava vazando do buraco


que havia deixado na concha a meus pés.

Com a lança na mão, Taci voou para mais longe, apenas parando quando havia
trinta metros ou mais entre nós. “Seja lá qual for a besta mestiça na qual você
tenha se transformado, Arthur Leywin, saiba que é minha honra desfazer você”,
ele gritou através do vazio.

Então ele começou a se transformar.

Chifres largos e pretos romperam a pele acima de suas orelhas, crescendo e


avançando até se cruzarem na frente de seus olhos, depois se fundindo em
uma viseira plana que mascarava a metade superior de seu rosto. Dois pares
adicionais de braços saíram para fora de seus lados, arrancando sua camisa e
se esticando de forma sobrenatural. Sua pele bronzeada endureceu e se
transformou em escamas douradas que brilhavam sob a luz roxa difusa. A
ferida logo acima de seu quadril se fechou, a pele se fundindo novamente
enquanto as escamas cresciam sobre ela.

Finalmente, quatro olhos, dois em cada lado de sua cabeça, se abriram, suas
íris brilhantemente brancas parecendo olhar para fora em todas as direções.
“Veja do que um panteão – do que eu – sou realmente capaz, menor.”

Segurada em quatro mãos, a lança vermelha varreu pelo lado enquanto o ar


assobiava como pistões entre as escamas que alinhavam seus braços. Senti a
distorção no éter quando o ataque foi projetado, e faíscas etéricas escuras
voaram da concha da zona.

Ativando o Burst Step, eu me esquivei por pouco do ataque. Atrás de mim,


houveram uma série de rachaduras agudas e repentinas, e a abertura na casca
começou a ceder para dentro, a própria barreira quebrando como uma casca
de ovo.

Uma pequena plataforma de éter apareceu sob o meus pés, e eu carreguei meu
corpo com éter antes de empurrá-lo com Burst Step novamente, mirando em
Taci. Mas ele se moveu tão rápido quanto eu. Desviando o golpe em seu
coração com uma mão, o asura agarrou meu pulso com outra e aproveitou a
força do meu impulso para me golpear com o joelho no meu estômago.

Minha armadura flexionou e as costelas sob ela foram quebradas. Comecei a


voar para trás, mas Taci ainda segurava meu pulso. Ele me parou e puxou sua
lança para trás.

Usando-o como âncora, eu me virei e plantei meus pés contra seu peito, depois
empurrei para fora, novamente ativando o Burst Step.

Ele me soltou, mas minha perna gritou de dor na coxa quando sua lança
perfurou minha armadura e quebrou meu fêmur. No final do Burst Step, fui
deixado flutuando no vazio, girando e derramando um rastro grosso de sangue
da minha perna retalhada.

Doía como o inferno, mas o éter já estava inundando a ferida, puxando a carne
de volta, a armadura selando sobre ela com a mesma rapidez. Enquanto eu
girava, vi Taci lutando para recuperar o controle de seu voo, já que ele fora
catapultado para longe de mim pela força do Burst Step.

Então minha rotação trouxe a zona de dunas de volta à minha linha de visão.

Éter estava derramando de mil rachaduras através da superfície de sua casca,


uma parte significativa da qual havia desmoronado. As dunas internas estavam
se dissolvendo, a matéria sólida se quebrando em partículas de éter antes de
ser explodida no vazio.

Minha pele ficou subitamente úmida com um suor frio enquanto observava as
plumas violetas serem reabsorvidas na atmosfera. Inspirei uma respiração
surpresa e encantada, meu coração batendo como um tambor ao perceber.

Pedra de Sylvie…

Quase peguei antes que a realidade da minha situação desabasse sobre mim
– um instante antes que o próprio Taci fizesse o mesmo.

Nossos membros se entrelaçaram enquanto lançávamos como um meteoro em


direção à zona em colapso abaixo, quatro mãos lutando para me agarrar
enquanto as outras duas batiam a lança nas minhas costelas. A lâmina de
ponta larga deslizou sobre as escamas negras com um grito metálico.

Eu convoquei a lâmina de éter em um dos meus pulsos presos e torci.

A luz violentamente roxa varreu um dos pulsos de Taci. As finas escamas


douradas mudaram, mudando de ângulo para desviar o golpe; meu golpe não
tinha força para atravessar.

O asura zombou e me puxou para perto, a lança enrolada em minhas costas


para me prender a ele, meus braços presos entre nós.

A cabeça de Taci recuou, então a placa de chifre sobre seus olhos bateu na
ponte do meu nariz com um estalo. Estrelas explodiram em minha visão,
depois piscaram em estrias roxas-pretas de dor quando Taci me bateu com a
cabeça novamente. Eu mais senti do que vi ele se preparar para um terceiro
golpe, mas algo colidiu conosco de lado, nos afastando um do outro.

Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, bati no lado de


uma duna, as areias douradas me engolindo.

Ao meu redor, eu podia sentir a matéria se quebrando, e a magia que os djinn


usaram para ligar e moldar a realidade falhando.

Ainda cambaleando com o último ataque de Taci, foi preciso me esforçar para
emitir uma explosão de éter, destruindo a duna em que eu havia afundado.
Encontrei Taci me esperando, flutuando na fronteira onde a zona ainda em
colapso encontrou o vazio.

O mar de areia outrora interminável agora parecia pouco mais do que uma ilha
no vazio roxo. A casca era visível de dentro da zona agora, o céu não mais azul
vibrante mas um azul púrpura escuro com rachaduras brilhantes correndo
através dele. O desfiladeiro contendo o hidra e o portal de saída já havia se
dissolvido, deixando apenas este trecho de dunas e a moldura do portal de
entrada da zona, que ficava em um vale no centro.

Droga, pensei, sentindo-me pálido.


Aquele portal parecia a única maneira de sair deste lugar. E a zona estava
desmoronando rapidamente ao redor dela. Eu não tinha certeza do que
aconteceria quando toda a zona se fosse, mas eu sabia que não seria bom.

Pequenas plataformas apareceram seguindo a minha vontade enquanto eu


subia no ar em direção a Taci.

Não havia muito tempo, mas eu não podia ativar o portal e arriscar que ele
passasse por ele comigo.

“Você deve ter realmente me odiado naquela época para nos levar a esse
ponto”, eu disse, me dando um segundo para pensar.

Taci zombou, um som que parecia o de pedras quebrando. “Você não tem nada
a ver com minha missão atual. Embora este tenha sido um encontro
interessante, e matá-lo trará uma certa redenção para o insulto de ser forçado
a treinar ao seu lado quando criança, você não me impediu de fazer o que meu
senhor ordenou.

“Tem certeza?” Eu ergui uma sobrancelha para ele, sorrindo ironicamente.


“Você não sabe onde está ou como sair. Mate-me ou não, minha família e
amigos estão a salvo de você. Você está preso aqui, Taci. Para sempre.

A boca de Taci se curvou em uma carranca profunda. “Você está mentindo.


Você só está tentando se salvar, porque sabe que não pode me derrotar.”

Eu bufei zombeteiramente. “Eu admito, eu realmente acreditei na mística dos


asuras, ainda pensando em você como deuses. Mas a verdade é que você é
apenas uma criança assustada, e Lorde Indrath é um covarde míope.

A lança de Taci brilhou e eu usei o Burst Step, subindo ao topo de uma duna
vizinha. A colina que deixei para trás explodiu em uma chuva de areia, cortada
completamente em dois. A lança brilhou novamente, e eu me esquivei, depois
de novo e de novo, cada golpe esculpindo o pouco que restava da zona.

Eu ativei God Step.

Dentro da zona, meus sentidos se iluminaram quando todos os caminhos de


ametista conectando todos os pontos a todos os outros ardiam intensamente
aos meus sentidos. Mas eles estavam instáveis, desmoronando ao lado da
zona, os pontos mudando e desaparecendo enquanto eu os segurava em
minha mente.

Eu pisei neles de qualquer maneira.

E apareci bem na frente de Taci.

Seus olhos desumanos se arregalaram de surpresa, mas ele conseguiu levantar


a lança para se defender quando uma lâmina apareceu em minha mão. Eu
golpeei em direção a ele, fazendo com que movesse sua lança para aparar o
golpe, mas deixei a lâmina se dissolver no último momento, usando a força do
meu movimento para atingi-lo no peito.

A lança subiu e girou, mas o God Step me levou atrás dele. As escamas
douradas mudaram novamente, parecendo me seguir, seus quatro olhos
oferecendo-lhe uma linha clara de visão em todas as direções.

Meu joelho golpeou sua parte inferior das costas, meu cotovelo desceu na base
do pescoço, e eu usei o God Step novamente, aparecendo logo atrás do arco
de sua lança. Éter correu para o meu punho, soltando como uma explosão
quando o atingi logo abaixo das costelas, a força disso me afastando.

Mas eu apareci novamente ao lado de Taci, agarrando dois de seus braços


enquanto eu golpeava com meu cotovelo em seu queixo e empurrava a parte
de trás de seu joelho com um pé. Usando o impulso de minha própria queda
perpétua junto com as mudanças sutis que meus golpes e chutes criaram, girei
pelo ar, conjurando uma lâmina de éter e levantando-a sob seus braços.

Dois punhos me bateram ao mesmo tempo, fazendo-me cair para fora da


atmosfera limitada da zona e para o espaço etérico que a cercava.

Uma parede vertical se formou para me pegar, e eu bati nela com força
suficiente para quebrá-la.

Eu me virei, procurando por Taci. Ele estava olhando para o lado direito, onde
todos os três braços flutuavam ao lado dele, conectados ao corpo apenas
pelas correntes de sangue que jorravam das articulações e membros cortados.
Mas depois dele, vi o que restava da zona. A moldura do portal ficava no centro
de uma ilha de apenas nove metros de diâmetro, areia dourada derramando
das bordas quebradas e se transformando em partículas de éter roxo.

Empurrando contra a plataforma rachada, usei o Burst Step novamente,


apontando para a ilha, minha mente inteira focada em alcançá-la antes que
ela desmoronasse completamente. As palavras da projeção do djinn voltaram
para mim, e o éter reagiu ao meu pensamento, parecendo se envolver ao meu
redor, me levantando, me empurrando e depois me acelerando em direção ao
meu objetivo.

Mãos fortes agarraram meu tornozelo e eu quase parei. Olhando por cima do
ombro, percebi que estava rebocando Taci atrás de mim, duas de suas mãos
restantes segurando-me enquanto a terceira espetava com a lança. Ela
deslizou pelo quadril, depois novamente pelas minhas costas, minha
armadura queimando com éter enquanto absorvia os impactos e virava a
lâmina para o lado.

Golpeei na direção dos pulsos dele, e ele recuou para evitar perder mais
membros. Voltando para o portal, corri para a frente novamente, voando pelo
éter como se tivesse asas.

A ilha encolheu diante dos meus olhos. 5 metros de largura, 3 metros. Éter fluiu
para a minha runa de armazenamento, a Bússola aparecendo na minha mão.
Dois metros e meio. Infundindo a bússola com éter e vontade, eu a torci em
dois. Dois metros de terra permaneceram sob a estrutura do portal, que estava
crescendo distorcida em torno das bordas, o éter lutando para manter sua
forma.

Concentrando-me na Bússola e na câmara onde encontrei Ellie e mamãe,


diminuí a velocidade apesar da vontade de me mover cada vez mais rápido. A
luz roxa começou a brilhar dentro da moldura de arenito, apontando para uma
vista através do portal.

Eu vi Virion ajoelhado ao lado de Rinia, com lágrimas no rosto. Mamãe estava


lançando feitiços sobre minha irmã, seus olhos secos, seu rosto determinado.
Meu coração disparou enquanto eu absorvia a vermelhidão das bochechas de
Ellie, a subida e descida de seu peito. Ela estava viva.
E sentado diretamente em frente ao portal estava Regis, preocupação gravada
em suas feições lupinas, o fogo de sua juba acenando em agitação.

Havia apenas trinta centímetros de chão restante em ambos os lados do portal


enquanto eu me arremessava em direção a ele.

Uma faixa de vermelho perfurou a moldura do portal. O arenito explodiu para


fora, e a janela de cor púrpura ondulou, desbotou e estalou com um som como
alcatrão fervente. Pousei nos destroços um instante depois. Ao meu redor, o
que restava da ilha se dissolveu, depois os restos da estrutura do portal e,
finalmente, os últimos fragmentos de casca dura de éter que continham a
zona.

Estávamos presos no vazio, nada além de nós dois, pelo que pude ver.

“Você vai ficar aqui comigo, menor”, disse Taci, suas três mãos restantes
segurando os tocos cortados em seu corpo.

Enquanto eu observava, os chifres recuaram de volta para a cabeça de Taci, o


resto de seu corpo revertendo para sua forma original um instante depois. Ele
parecia pálido e fraco enquanto pendia para o lado, sem um braço, o buraco
sangrento em seu ombro brilhando com mana para amarrar a ferida. E ainda
assim, de alguma forma, ele manteve sua arrogância frustrante.

Seu lábio se curvou em um sorriso de escárnio, seus olhos procurando,


cavando os meus. “Devemos ser dois imortais, lutando pela eternidade neste
reino exterior?”

Eu balancei a cabeça, desejando que o éter me levasse ao nível dele para que
eu pudesse olhá-lo nos olhos. “Não há mana aqui, não é? E você gastou toda
a que você tinha mantendo essa forma. Não tenho que lutar com você para
sempre, Taci. Na verdade, eu não tenho que fazer nada.” Eu olhei para ele de
cima a baixo. “Sem maneira de reabastecer sua mana, seu corpo se consumirá.
Você já está morto, e sabe disso.”

A fachada de sua confiança arrogante rachou e, por um instante, ele era


apenas um menino – um garoto aterrorizado que não estava pronto para
morrer.
Então a lança apareceu em um brilho escarlate, e ele apontou para o meu
núcleo. “Então eu não vou me segurar.”

Uma grande plataforma de éter se formou sob nós. Coloquei meus pés nela.
Vendo minha intenção, Taci fez o mesmo, sua lança pressionada e para a
esquerda. Eu conjurei uma lâmina na minha mão direita e posicionei meus pés.

“Pelo Lorde Indrath, que ele reine para sempre sob o sol dourado”, disse Taci
com orgulho.

“Não se eu puder impedir.”

Éter inundou todos os pontos do meu corpo, preparando-o para Burst Step. Os
olhos de Taci se estreitaram. Então eu estava me movendo.

Taci não havia se adiantado para me encontrar. Em vez disso, ele recuou, seus
olhos me rastreando mesmo no meio do Burst Step, sua lança se movendo
para me pegar.

Soltei minha lâmina de éter e ativei o God Step. Não havia caminhos, nem
tempo para procura-los, mesmo que eles existissem, mas o espaço ao meu
redor se deformava, puxando-me para dentro e através da distorção, e eu
apareci atrás de Taci, um relâmpago etérico envolvendo meus membros.

Infundindo a lâmina da minha mão com éter, eu me virei e bati em Taci na base
de seu pescoço, exatamente onde ele encontrava seu ombro. Houve
uma estalo alto quando seu corpo se dobrou para dentro.

A lâmina de éter, que eu havia liberado enquanto ainda avançava, voou por
cima de Taci. Peguei na minha mão livre e mergulhei-a entre as omoplatas
dele. Seu corpo estava girando, a lança rodando para golpear para trás, mas
ela escorregou de seus dedos quando ele caiu em um joelho, seus olhos negros
olhando para mim em desespero.

“Você quer saber no que eu me tornei?” Eu perguntei, enfiando minha lâmina


no pescoço dele. “Matador de Deuses é um nome apropriado.”

Taci tossiu, borrifando sangue sobre a plataforma, depois desabou e ficou


imóvel.
Eu descartei minha armadura e depois a plataforma, liberando o corpo de Taci
para flutuar no vazio. Eu o observei flutuar por alguns segundos até que o rosto
de Taci se virou na minha direção e encontrei seus olhos grandes e mortos,
congelados neste último momento de surpresa.

Então eu me virei, recusando me alegrar com a morte dele. Apesar de tudo o


que Taci fez, ele ainda era apenas uma ferramenta para Kezess.

A lança carmesim flutuava por perto, com sua lâmina alada delineada em uma
névoa cintilante, e o éter no meu sangue era reabsorvido na atmosfera. Eu a
tirei do vazio e enviei para a minha runa dimensional, sabendo que uma
inspeção adequada teria que esperar.

Depois disso, não pensei mais em Taci ou sua arma, afastando-se de seu corpo
para examinar o vazio infinito ao meu redor.

Imediatamente, notei um desvio na coloração da atmosfera exatamente onde


o portal de saída estava, como uma mancha no céu escuro. O éter ali flutuava,
ondulando como água.

Corri para ele, estendendo a mão e apenas deixando as pontas dos meus
dedos escovarem a superfície. Uma sensação de formigamento como
eletricidade estática percorreu meu braço e fez meus dentes coçarem.

Algo o estava forçando a abrir, segurando-o para mim. Eu empurrei minha


palma contra a distorção, mas ela resistiu. Havia uma conexão com Dicathen,
eu podia sentir, mas o portal em si havia sumido. Isso era mais como…uma
cicatriz.

‘-thur. Você… merda, é melhor você não estar morto ou eu mesmo vou te
matar.’

Um sorriso cansado se espalhou pelo meu rosto quando ouvi o som da voz de
Regis na minha cabeça, ecoando ao longo da cicatriz.

Regis. Você manteve o portal aberto. Como?

Eu praticamente o ouvi zombar. ‘Sim, eu sou incrível, os detalhes realmente não


importam agora, porque’ sua voz mental estava tensa, como se ele estivesse
segurando um grande peso ‘não posso manter isso aqui por muito mais tempo.
Você precisa de’

Os pensamentos de Regis sumiram, e senti a distorção vacilar quando ela


desapareceu perceptivelmente diante dos meus olhos.

Quase sem querer, conjurei o ovo iridescente de Sylvie da minha runa


dimensional. Era quente ao toque e praticamente vibrava na presença de tanto
éter. Havia mais do que o suficiente aqui para trazê-la de volta, eu sabia. Mas—

Um pico de pânico surgiu em mim. Não vinha de mim, mas do Regis. Ele não
conseguia segurar a cicatriz do portal no lugar por mais tempo.

Eu apertei o ovo. “Eu voltarei, prometo.”

O ovo voltou para a minha runa enquanto eu encarava a cicatriz, alcançando-


a com as duas mãos, pressionando-a com toda a minha força mental e física,
desejando que Regis me ouvisse.

Segundos se passaram. Empurrei com mais força, sentindo o tecido da


realidade tremer sob minhas mãos. A luz dourada me inundou quando o
Requiem de Aroa foi ativado, os motes dourados escorrendo pelos meus
braços e entrando na cicatriz.

Os pensamentos de Regis vieram a mim claramente quando a conexão


moribunda de repente se fortaleceu.

Não havia palavras, mas uma projeção mental do que ele estava vendo: uma
dúzia de magos trabalhando para tirar outros de escombros, dezenas mais
apenas olhando para Regis, bocas abertas e lágrimas escorrendo por seus
rostos.

Eu me concentrei na Ellie e na mamãe. Eu enxerguei o espaço até eles, imaginei


a teia de caminhos etéricos interligados ligando cada ponto entre nós.

Eu ativei God Step.

Paredes de névoa ametista e relâmpagos violetas passaram rapidamente. Meu


núcleo balançou quando a realidade se deformou ao meu redor.
Então meus pés tocaram solo sólido.

Lentamente, como acordar de um sonho longo e profundo, abri meus olhos.

A câmara do portal havia entrado em colapso. A poeira estava pesada no ar,


tingida com o cheiro de cobre do sangue derramado.

Uma presença calorosa flutuou nas minhas costas e se instalou perto do meu
núcleo. ‘Bem-vindo de volta. Você pode cuidar das coisas daqui, certo?’

Minha irmã estava olhando para mim da borda do estrado que apoiava a
moldura do portal. Seu rosto manchado de sangue e poeira se contraiu de uma
emoção para outra, a confusão afastando a dor persistente e uma tristeza
perturbada. Sob tudo isso, porém, havia um vislumbre esperançoso.

“I-irmão? É você mesmo?”

Senti minha expressão amolecer e meu corpo relaxar. “Ei, El. Já tem um tempo
que não te vejo.”

Lágrimas explodiram de seus olhos quando ela pulou e bateu em mim, me


envolvendo em um abraço desesperado.

Eu abracei Ellie de volta, apertando-a com força e levantando ela do chão.


Quando a coloquei de volta, ela olhou para mim, suas bochechas salpicadas
com lágrimas. Ela tinha crescido tanto. Havia uma profundidade e maturidade
em seus olhos castanhos em forma de amêndoa que eu não me lembrava de
antes, e ela estava magra e atlética, como meu pai em sua juventude.

Ela franziu a testa ligeiramente e arrancou um fio do meu cabelo pálido.

Então ela me deu um soco no braço o mais forte que pôde. “Pensei que estava
morto!”

Meu sorriso vacilou, e eu a puxei de volta para um abraço, uma mão dando
tapinhas na nuca dela. Olhei por cima dela até onde minha mãe tinha ficado.
Ela estava pálida e tremendo, os olhos arregalados, a boca aberta. Ela parecia
magra e fraca, como se tivesse murchado nos meses desde que a vi. Mas ela
ainda era minha linda mãe.
Eu sorri para ela do jeito que o papai fazia. “Oi, mãe. Estou de volta.”

Como se as palavras tivessem roubado o resto de sua força, ela caiu de joelhos,
as mãos indo para o rosto enquanto soluçava.

Dezenas de outras pessoas se levantaram ou se sentaram ao nosso redor,


todas empoeiradas e cobertas de sangue. Mas meus olhos se fixaram em
Virion, que me deu um leve aceno de cabeça antes de olhar para a pessoa em
seus braços.

A Anciã Rinia, seu corpo rígido e obviamente desprovido de vida. Ela tinha
esgotado o resto de sua força vital para trazer essas pessoas aqui, onde eu
poderia protegê-las.

Meu olhar voltou para Ellie, tremendo em meus braços.

“Estou de volta.”

Capítulo 381
Epílogo

Uma tosse seca me sobreveio, e eu acordei repentinamente num mar de dor.


Uma nuvem grossa de poeira obscurecia tudo além do chão manchado de
sangue que eu pensava ser meu leito de morte.

Meu último pensamento antes de ficar inconsciente voltou à minha mente.


Era assim que eu imaginava a sensação de morte. Cada parte de mim gritava
em agonia, e a dor de cada ferida lutava por atenção, uma sobrepondo a outra
em minha mente até que eu sentia como se meu corpo inteiro tivesse sido
cortado em pedaços pelo –

O asura!

Apesar de um desejo forte de nunca mais me mover, eu virei a minha cabeça,


movendo meus ossos quebrados e criando um coro renovado de agonias.

Eu não conseguia ver nada através da camada grossa de poeira. Mas também
não conseguia sentir a presença insuportável do asura.

Respirando profunda e calmamente, eu virei de lado e me esforcei pra


levantar, lutando até ficar de pé. Pedras e destroços caíram de mim, e o talho
em meu peito pulsava dolorosamente, parcialmente sedado pela poeira
coagulando na ferida.
Minhas pernas tremiam, e os pedaços esfarrapados da minha armadura
estavam tão frágeis como latas vazias de alumínio. Eu tentei empurrar mana
para meu corpo com o intuito de me fortalecer, mas apenas encontrei uma dor
apertada e embotada vinda de meu núcleo, que estava completamente vazio.

A reação fez meu estômago virar e bile subir até minha garganta.

Pedaços da batalha começaram a voltar à minha mente através das ondas de


náusea e dor, e minha respiração ficou presa em meus pulmões.

Varay, Mica, Aya…

Todas elas estavam –

Eu me virei quando ouvi pedras caindo das paredes ou tetos distantes. Meus
sentidos estavam entorpecidos, meus pensamentos se arrastavam como
lesmas em meu crânio, e havia um rugido baixo em meus ouvidos como se eu
estivesse debaixo d’agua. Apenas meu olfato ainda estava funcionando
decentemente; a caverna fedia a enxofre e solo queimado.

Uma luz fraca e sombria cortava a nuvem obscura em pequenos clarões e eu


senti mana movendo.

Minha boca se abriu sozinha, mas eu evitei gritar. Eu não sabia quem ou o quê
estava por lá. Poderia ser o asura, ou sobreviventes retornando dos túneis –
ou alacryanos, alertados pela perturbação que a nossa batalha sem dúvidas
havia causado no deserto acima. E eu não estava em condições de me
defender caso a presença fosse hostil.

A imagem de sangue jorrando de cristais negros estilhaçados se sobrepôs às


minhas últimas memórias de minha própria “morte”, e eu senti uma pontada
de esperança, mas rapidamente a selei.

Eu não deveria ter sobrevivido àquela batalha, e eu não conseguia encontrar


em mim nem um pingo de esperança de que as outras tivessem sobrevivido
também. Eu tinha visto o que Taci havia feito à Aya e Varay, e apesar da voz
que havia soado em minha cabeça nos últimos momentos de consciência, eu
sabia que nem mesmo uma Lança poderia sobreviver àqueles ferimentos.

Ainda assim, eu não poderia simplesmente ignorar a presença de outra pessoa


aqui, e comecei a mancar na direção da luz, me movendo tão rapidamente
quanto meu corpo quebrado e armadura arruinada me permitiam.

O chão da caverna estava arruinado. Os destroços das rochas, que tinha sido
alvo de raios ou despedaçadas como gelo, me forçava a tomar cuidado ao
andar, e eu tinha que navegar por várias fendas feitas pelos golpes de Taci.
Uma parede parcialmente intacta de um dos vários edifícios destruídos havia
sido lançada por vários metros e estava agora apoiada contra uma rocha
enorme que havia sido deslocada do teto.
Cuidadosamente, eu me esgueirei pela lateral da parede, e depois para um
pedaço de rocha que se curvava na direção de onde eu havia visto a luz. A
poeira foi abaixando enquanto eu me movia para a borda mais distante da
caverna, e eu apertei os olhos procurando por algum sinal de quem ou o que
havia usado mana.

Foi difícil acreditar no que eu estava vendo.

“M-Mica?” As palavras lutaram relutantes para sair de minha garganta e o


esforço pareceu acender um fogo em muitas outras feridas.

A Lança anã levantou os olhos para mim de onde ela estava ajoelhada ao lado
de uma segunda pessoa. O lado direto de seu rosto estava manchado com
trilhas de lágrimas no barro seco. Dúzias de marcas de cortes longas se
cruzavam no lado esquerdo de seu rosto, e um buraco preto e sangrento era
tudo o que restava do seu olho esquerdo. Todo o lado esquerdo estava
encharcado de sangue seco e algum tipo de lama molhada que ela havia
compactado sobre suas costelas.

Havia sangue pingando de suas palmas, onde ela tinha apertado as unhas, e
seu olhar normalmente brincalhão encontrou o meu com um vazio que me
fazia questionar se ela estava realmente viva ou era apenas um aspecto
sombrio do meu subconsciente.

Quando ela virou o olhar inquieto para a segunda figura, meus olhos seguiram,
relutantemente.

O rosto de Aya estava pálido, e seus olhos escuros sem visão encaravam o teto
da caverna. Seu abdômen estava em uma ruína sangrenta onde Taci havia
dado o golpe fatal.

“Eu…” Eu tive que parar para limpar minha garganta, e então continuei. “Eu
pensei ter ouvido ela, logo antes do fim. Ela… ela disse…”

Mas eu tive que parar novamente, incapaz de falar com o nó em minha


garganta.

Mica deixou cair os ombros, mas ela não respondeu.

Dolorosamente, me esforcei para descer pela elevação, e me movi até o outro


lado de Aya para poder me sentar com cuidado.

No passado, teria sido impossível me imaginar à beira de lágrimas pela morte


de outro soldado – especialmente outra Lança. Foi com uma pontada de culpa
que eu me lembrei da minha indiferença depois da morte inesperada da Lança
Alea. Ela merecia algo melhor, assim como Aya. Derramar lágrimas por uma
amiga levada cedo demais não era motivo para me envergonhar.

As seis Lanças haviam se tornado apenas duas, e – olhei para Mica – já não
restava muito de nós dois. Isso também era algo para se lamentar. Nós
deveríamos ter sido os maiores defensores de Dicathen, mas isso foi o que nos
tornamos.

O som de uma bota raspando contra a pedra rígida me fez pular. Minhas pernas
imediatamente fraquejaram, e eu cai dolorosamente em um joelho, grunhindo
com os dentes cerrados. Mica cambaleou quando se levantou, mas se manteve
de pé, e até mesmo conseguiu conjurar um pequeno martelo de pedra
enquanto seu olho remanescente penetrava a escuridão.

“Diga seu nome!” ela gritou, com a voz rouca.

Uma silhueta torta mancava na nossa direção, oculta pelo véu de poeira, com
uma mão pressionada na lateral do pescoço. Ela parecia um fantasma.

O fantasma de…

Varay coalesceu diante de nossos olhos, como se ela tivesse voltado direto da
terra dos mortos.

Seu braço esquerdo, que não estava mais lá, havia sido cortado no ombro, e a
ferida estava congelada. Um rastro de gelo escarlate marcava seu pescoço
abaixo de sua mão, mas o sangue estava correndo livremente por entre os
espaços.

Seus olhos estavam sem brilho, pulando entre Mica e eu de maneira


desfocada. Ela se apressou para nosso lado, com a perna direita se arrastando
a cada passo, mas quando chegou na borda da elevação, ela pisou em falso e
caiu de cara no chão, soltando um gemido abafado.

Mica correu para ajudá-la, virando-a de lado e arrastando para a apoiar em


seu colo.

O gelo em volta de seu pescoço havia se quebrado e derretido, revelando um


corte macabro que abria seu pescoço quase até a garganta. Sangue jorrava
como de uma fonte, encharcando Mica.

“Droga!”

Mica se apressou para pegar um punhado de terra solta. Ela se focou, fechando
seu olho, e a face dela se contorceu com o esforço enquanto eu via a terra se
transformar em uma lama grossa, que ela espalhou rapidamente sobre a
ferida. Quando terminou, houve um outro clarão de mana, e o solo argiloso se
endureceu, parando o sangramento.

Eu parei um momento, olhando para Varay.

Eu tinha visto ela morrer, tinha visto Taci golpear sua cabeça e arranca-la dos
ombros. “Uma ilusão,” eu murmurei, me virando para o corpo de Aya. Mas a
ferida dela definitivamente não era uma ilusão. “Ela… ela disse que as ilusões
não enganariam um asura mais de uma vez… e usou os últimos momentos de
sua vida para nos salvar. Sobrepondo ilusões de nossas mortes por cima de
nossos corpos.”

Eu estava chocado com sua demonstração final de força, e suas palavras de


repente fizeram sentido.

“Você fez o suficiente, Bairon. Não é a sua hora.”

Ela estava usando as últimas reservas de sua força, se sacrificando para salvar
o resto de nós, até mesmo me impedindo de usar a Fúria do Senhor Trovão e
queimar até a morte.

“Não se mova. Não importa o que você ver. Não se mova.”

Eu estava deitado aos pés de Taci, e sua lança estava preparada acima de mim.

Eu examinei uma ferida profunda em meu ombro direito, e depois tracei os


dedos até meu esterno. Apesar de dolorido e arroxeado, não havia nenhuma
ferida lá. Meu núcleo estava intacto.

Soltei um bufo incrédulo, o que atraiu um olhar irritado de Mica. “O quê?”

As pálpebras de Varay se abriram lentamente ao som da voz de Mica. Seu olhar


passou lentamente por mim antes de repousar em Aya. Seus lábios se abriram,
e sua garganta pulsava enquanto ela tentava falar, mas nada saía. Ela apenas
suspirou e afundou ainda mais no colo manchado de sangue de Mica.

Mica acariciou o cabelo e Varay, mas seu olhar se voltou para o corpo de Aya.
“Eu senti a mana sair do seu núcleo. Eu pensei… Eu pensei que ela havia
morrido instantaneamente, mas –” Um soluço sufocado interrompeu suas
palavras, e ela rangeu os dentes, frustrada.

Varay mudou de posição e tentou falar novamente. “Ela… esvaziou seu…


núcleo… de propósito.” Sua voz estava fraca e fina, saindo com dificuldade.
“Para… deixar… a ilusão… mais real.”

“Ela precisava que o asura acreditasse no que ele via e sentia,” eu comentei,
considerando cada uma de nossas feridas, e quão perto do limite do nosso
poder nós tínhamos chegado. Nossa assinatura de mana deve ter sumido até
virar quase nada naqueles momentos finais. “Era a única maneira dele não
perceber.”

“Mas foi o suficiente?” Mica perguntou, com a voz áspera. “Para as pessoas nos
túneis?”

“Aquelas vidas já não estão mais em nossas mãos…” Eu respondi. Nós não
tínhamos a força nem mesmo para caminhar, muito menos para ir atrás do
asura. “Mas a vida de Aya… Nós podemos nos lembrar e velar nossa amiga.
Enquanto esperamos por qualquer que seja o fim que nos espera.”
Mica irrompeu em soluços irregulares. Varay forçou as pálpebras a ficarem
abertas, deixando que lágrimas fluíssem pelas suas bochechas, mas sem tirar
os olhos de nossa companheira caída.

Me virando, eu estendi os dedos vacilantes até Aya e gentilmente fechei seus


olhos. “Sinto muito,” eu disse, com a voz como se fosse uma lixa grossa.
Normalmente, era Varay que lidaria com coisas como essa, mas eu sabia o que
eu gostaria de dizer. “E obrigado, Lança Aya Grephin de Elenoir. Sua longa
batalha chegou ao fim, mas aqueles que você deixa pra trás não vão parar de
lutar até que seja nossa hora de nos juntar a você. Descanse agora.”

Nota do Autor:

Bom, isso encerra o volume 9 de TBATE. Escrever isso durante o último ano foi
uma jornada incrível, mas eu não posso esperar pelo Volume 10. Como eu
anunciei há algum tempo atrás, a novel de TBATE vai estar em pausa por duas
semanas enquanto eu me preparo para o Volume 10. Para aqueles que
continuam apoiando pelo patreon apesar do breve hiato, obrigado pela sua
lealdade <3

Espero que vocês estejam ansiosos pelo Volume 10! Tenho muitas coisas
planejadas ^^

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