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Elfa - Volume I

Autor(es): elfman

Sinopse
Aventuras espadas & calcinhas com um grupo de matadoras de monstros e caçadoras de tesouros que inclui uma
elfa, uma fada, uma coelhinha ninja e uma humana com a bunda gordinha.

Notas da história
* Escrito com o objetivo de sacanear todos os clichês de mangás, animes, rpgs e histórias de fantasia que
existem, nada se salva e todo elemento possível de se imaginar nesse tipo de história acaba aparecendo uma hora.

* A princípio pode não parecer, mas é uma história bastante complexa e com dezenas de personagens e elas
passam por algumas aventuras bastante pornográficas de vez em quando, então leia por sua conta e risco.

* Não leia a sério.

(Cap. 9) VIII - Movimentos nas Sombras

Notas do capítulo
Em que sucedem eventos dos mais bizarros enquanto dorme o povoado da Cerejeira Sagrada.

Parte VIII - Movimentos nas Sombras

“Em que sucedem eventos dos mais bizarros enquanto dorme o povoado da Cerejeira Sagrada.”

Depois de muitas aventuras e desventuras, ficou minha tia Pelluria com a jóia da duquesinha e obteve
sucesso entre as mulheres-cobra do Reino Subterrâneo, as quais revelaram a ela e ao humano Gustaff Olafson a
história desta província de Orqushire e a dos pais da duquesinha: o grão-duque de Loirs e lady Amora, a lâmia dos
pés de cabrita.

Vimos não ser a fadinha nenhuma espiã do submundo como pensavam os líderes do Vilarejo da
Cerejeira Sagrada e testemunhamos o confronto dos protagonistas desta narrativa com misterioso guerreiro de
armadura. De onde teria surgido tal oponente, que mais parecia um cadáver reanimado por magia negra? Segundo
o estranho – aquele homem encontrado por Pelluria nas masmorras do templo quando ela estivera ali aprisionada,
e o mesmo que, disfarçado de soldado de Orqushire, seguiu-a até o território das lâmias – o inimigo fazia parte do
exército de Dravísios; disse ainda o estranho ter sido tal exército o responsável pelas mortes dos humanos que
compunham a escolta de Pelluria.

Mas por qual motivo teria o vilão de armadura, após mostrar-se tão hábil em combate com diversas
lâmias e humanos, hesitado em atacar o estranho, este desarmado e sozinho? Seria o homem realmente um dragão
escondido sob formas de pessoa, como suspeitava a rainha Ellenora dos subterrâneos? E para onde teria ele ido,
depois da soberana tê-lo expulsado de lá?

O que querem os de Dravísios parece ser uma coleção de jóias peculiares, pois obtiveram um ônix
com o grão-duque, compraram uma pérola da felina vinda da Turísia, perseguiram a esmeralda da duquesinha e
certamente tomariam a aguamarinha que foi parar nas mãos da capitã Artemísia, se soubessem estar com ela a tal
gema. Diz o estranho terem poderes mágicos estas pedras, já a rainha Ellenora garante estar a esmeralda
amaldiçoada e causar só prejuízo. A verdade cedo ou tarde descobriremos.

Por fim, deixamos Pelluria quando ela se aproximava da Vila da Cerejeira Sagrada no final do dia
que lhe havia sido dado como limite para retornar com a esmeralda às terras da superfície. Vinha ela por túnel
secreto, acompanhada pela coelha Meloine e pela fada Alanis, e disposta a reaver sua espada Lucille e a
aguamarinha de Xexeres, e também a saquear o que pudesse do vilarejo. E vamos deixá-la ali mesmo, pois é
chegado o momento de contar o que aconteceu na vila enquanto estava a elfa se aventurando pelo reino das
lâmias. Comecemos pelo cardeal.

Andando de forma vagarosa, pois era pesado demais para andar de outro modo, foi o cardeal de
Dravísios até o posto de vigia nas proximidades dos portões da Vila da Cerejeira Sagrada, e isto no momento em
que, no subterrâneo, devia estar minha tia aprisionada com Gustaff Olafson na câmara do esqueleto. Era o cardeal
acompanhado por um par de sacerdotes encapuzados, e no posto de vigia, além dos soldados cumprindo o dever,
estavam três recém-chegadas. Nagnólia e Teresa, já conhecidas de capítulos anteriores, eram duas delas, e haviam
entrado lá agitadas, querendo contar algo ao oficial que era o seu comandante. Antes que pudessem dizer qualquer
coisa, veio a capitã Artemísia. Haviam escutado as batidas dela no portão, bem como seus gritos, e deixaram que
entrasse, exausta, abraçada a um objeto fino e retangular e alto, este coberto por pano negro. Não o soltava de
modo algum, lutava para recuperar o fôlego, suor banhava-lhe a testa e o peito e as axilas e coxas e todas partes
que tinha expostas, seus músculos estavam contraídos e logo os soldados perceberam que eram de sangue as
manchas pretas nas mãos dela. E também sangue seco cobria o corpete da capitã. Estava ela sem as armas, o
misterioso objeto era tudo o que trazia, e de seus trajes restavam só o saiote, as botas e o ensangüentado corselete.
Os cabelos escorriam pela testa e amontoavam-se sobre um dos olhos, pareciam ter sido mergulhados em água.

Foi para encontrar a capitã que dirigiu-se até ali o cardeal. Ao avistar o obeso homem, Artemísia
pareceu querer dizer algo, mas de seus lábios não saíram palavras, só respiração ofegante. Ela colocou o objeto
nas mãos do cardeal, e as dela, bem como os braços, tremiam e espantavam os demais soldados, pois jamais a
haviam visto angustiada assim. Voltou-se para os lados, a capitã, como se procurasse por alguma coisa oculta nos
cantos da sala, e ninguém teve coragem de perguntar-lhe o que havia acontecido e nem se estava ferida.

O comandante do posto, então, dirigiu-se à Nagnólia e Teresa, perguntou-lhes o que faziam ali se a
tarefa de uma delas era vigiar o depósito de armas. E ao mesmo tempo os sacerdotes aproximaram-se do cardeal,
puseram-se a segurar, um de cada lado, o item trazido pela capitã. Com um pequeno sorriso, o cardeal descobriu o
artefato revelando um espelho adornado por grossa moldura de pedra onde se encontravam, em baixo-relevo,
símbolos nos quais ninguém pôde prestar atenção, pois estava escuro e logo o tecido os recobriu. Artemísia foi a
única que não olhou para o espelho, ela contemplava o vazio.

Percebendo que algo importante acontecia e que poderia sobrar-lhes mais do que lhes cabia,
Nagnólia e Teresa deixaram o local, foram andando em direção à armaria num dos cantos do muro, a alguns
metros dali. Não andaram muito, contudo, e viram saindo do posto a capitã: partiu correndo e como um raio
cruzou a distância que a separava da rua principal, onde sumiu em seguida.

E no fim da rua principal ainda restavam alguns músicos diante da estalagem, embora não houvesse
o mesmo número de pessoas da noite anterior; já algumas das caravanas tinham partido por haverem encerrado
seus assuntos no conclave, e o clima, quente e úmido, era desagradável.
“Que será que houve com a capitã?” Nagnólia perguntou para Teresa depois de já ter perdido
Artemísia de vista. “Não vieram com ela os demais soldados.”

Sua companheira respondeu com outras perguntas:

“Quem pode dizer? Terão se envolvido em confronto com as lâmias?”

“Se assim for, coitada da elfa Pelluria,” falou Nagnólia, lembrando-se de minha tia. “Não parecia
nada perigosa quando a encontramos.” Em que muito se enganava, claro, pois minha tia era uma elfa quase tão
letal quanto Meloine quando a coelhinha ninja não estava sob efeito de poções afrodisiacas.

Em frente à armaria, dois outros vigias abriram a porta de ferro por onde elas prosseguiram para
subir por escadas mal-iluminadas.

“Nem pudemos falar sobre a espada da coelha,” Teresa disse, destrancando uma fechadura com a
chave que estava acorrentada a um de seus punhos. E depois abriu a única porta que havia no topo da escadaria e
elas a atravessaram.

Nagnólia disse em seguida:

“Não era um bom momento, o próprio cardeal estava lá.”

“Sim, mas e depois se nos culparem pelo sumiço dela?”

Estavam numa sala repleta de armas de vários tipos, organizadas em diversas prateleiras. Uma única
e diminuta janela gradeada deixava entrar um pouco de ar e umas tochas estavam presas aos lados da porta.

“Vai ver foi uma brincadeira dos rapazes,” falou Nagnólia. “Eles esconderam a arma só para te
perturbar.”

“Eu já disse que vi a espada da coelha desaparecer na minha frente, duma hora pra outra!” Teresa
apontou para um dos armários, onde nada havia. “Estava aqui num minuto e quando pisquei os olhos, sumiu.”

“Ei, aquelas outras setas menores e estrelinhas de metal esquisitas também sumirarm,” Nagnólia
disse. “A porta estava trancada?”

“Claro, eu estava sozinha aqui.”

“Deve ter sido a tua imaginação.”

“Onde está a espada agora, então, se foi minha imaginação?”

Nagnólia bocejou e dirigiu-se até a porta. “Não sei,” ela respondeu à Teresa. “Podia ser pior, podia
ter sido a arma de um visitante e não a de uma prisioneira que não virá reclamá-la. Ninguém vai perceber, garanto.
Bem, vou embora, preciso dormir.”

“Sorte tua,” Teresa disse, olhando para as paredes tão apertadas da sala. “Tenho que passar a noite
aqui, que tédio.”

“Tédio nada, pelo menos terás o dia livre. Amanhã cedo estou lá vigiando o quarto da duquesinha.”
Apoiada no corredor, já pisando os primeiros degraus da escada, Nagnólia voltou-se para o interior da sala e riu ao
perguntar o seguinte: “E por falar em duquesinha, tu podes trazer um dos rapazes aqui pra cima para passar o
tempo, não podes?”

Teresa empurrou Nagnólia, fez um gesto obsceno e depois fechou a porta.

Agora, antes de descobrirmos exatamente o que aconteceu à capitã no bosque, devemos regressar
algumas horas até o momento em que a noite recém tinha se iniciado e o grão-duque retornava para o templo da
Cerejeira Sagrada a fim de encontrar o cardeal. Este, acomodado em pesada poltrona, recebeu-o assim:
“Tememos que tenha escapado de sua cela o prisioneiro capturado ontem no quarto da jovem
duquesinha.”

“Para isto tu me chamaste novamente aqui?” perguntou o grão-duque; já havia sido informado da
fuga e do modo como tinha sido encontrado amarrado na masmorra um dos guardas, do qual levaram o uniforme.

“Sim, tal fato nos preocupa.”

“Se isso te incomoda,” interrompeu o grão-duque, “sabe que já estão buscando pelo fugitivo no
vilarejo. Mas estava disfarçado como um dos soldados, portanto creio que a esta altura já tenha ido para longe.”

“É uma infelicidade,” o cardeal disse após beber um pouco do conteúdo de sua taça. “Não pudemos
descobrir donde vinha.”

“Devias te preocupar com outros assuntos,” o grão-duque disse e afastou alguns dos pergaminhos
espalhados na mesa. “Já tens a pérola da Turísia e teus mapas estão completos, enquanto nós, os desta província,
só tivemos perdas. Como explicas a maldição da qual meu sobrinho tornou-se alvo?”

O cardeal deixou o vinho de lado e enrugou a testa. Secou os lábios com um guardanapo e, relutante,
disse:

“Uma maldição? Como podemos explicar tal acontecimento? Sequer tínhamos conhecimento disso.”

E começou a falar sobre espiões, mas o grão-duque novamente o interrompeu:

“Não vejo empenho de tua parte em cumprir a promessa que fizeste.”

“Ora, não duvides de que a cumpriremos. Apenas estamos preocupados, no momento, com a
segurança do vilarejo. E de seus habitantes.” O cardeal fez uma longa pausa. “Com a da jovem duquesinha,
também.”

Então o cardeal ergueu a face, o queixo duplo cobrindo seu pescoço, e o grão-duque, com os cantos
dos olhos, enxergou, pela sacada, a torre da duquesinha.

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Estava apoiada na janela de seu quarto, nossa duquesinha, quando a capitã Artemísia atravessou
correndo a rua principal do vilarejo: os sacerdotes jamais contaram ao grão-duque da chegada dela e vinha a
capitã em direção às torres. A duquesinha viu-a entrar na de seu primo, depois deitou a testa sobre um dos braços
que tinha recostado nas grades. Lembrou-se da noite anterior, de quando estivera exatamente na mesma posição e
local, e lembrou-se também de quem viera por detrás dela para afastar-lhe os cabelos e acariciar-lhe as costas
naquela ocasião. Mas hoje estava sozinha. Respirou fundo, sentia calor, e logo fechou a cortina, não queria que
mais mosquitos invadissem o aposento. Nem morcegos, que ela podia jurar, na noite anterior, ter ouvido o ruído
duma dessas criaturas terríveis na janela.

Umas quatro velas estavam acesas na cômoda, a duquesinha foi até a frente delas, tirou o saiote e
soltou-o no chão, ficou vestindo apenas a camisa de mangas curtas. Passou o dorso das mãos sobre a pele das
nádegas pesadas, estavam úmidas de suor. Andou, atravessou a sala da banheira e parou diante da entrada de seus
aposentos, este lugar iluminado apenas pelas luas. Olhou para a porta e imaginou sua serva chegando.

Pegou uma maçã e mordeu-a. “Por que tu não vens?” pensou. As nádegas gorduchas esparramaram-
se sobre o veludo duma cadeira, que secou o suor delas, e a duquesinha comeu toda maçã. Afrontou a serva em
seus pensamentos. Chamou-a, também. Levantou-se um pouco irritada quando se flagrou pensando na capitã e em
seu primo e voltou ao quarto, apagou as velas.
Já esperava há horas. Sentou na cama, devia ser tarde. Por que ela não vinha? “Lourdes-Maria”
disse e apertou entre os dentes a ponta duma mecha dos próprios cabelos.

Ficou mais escuro, nuvens cobriram as luas. Então a duquesinha deitou-se de bruços, escondeu os
antebraços sob o travesseiro, jogou o cobertor para o lado com a perna. Fechou os olhos, sentiu um aperto em seu
interior quando tentou dormir.

“Tu falas e me provocas com ciúmes e abraços de mentira, mas não me queres mesmo, não és
melhor do que nenhum dos outros.”

Uma hora vieram umas lágrimas aos olhos dela e a duquesinha revirou-se na cama até os lençóis
estarem completamente enrolados em suas pernas. Ergueu a camisa até as costelas, estava mais intenso o calor, e
finalmente dormiu.

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Na taverna da estalagem, sentada diante do balcão como quem espera algo ou alguém, estava
Shavanah, a cortesã, um amontoado de véus transparentes presos em sua cintura, um outro pano enrolado no
peito, cobrindo-lhe os seios, ou mais erguendo-os do que cobrindo, e um colar feito de correntes douradas
envolvendo seu pescoço. Estava curvada, os ossos da coluna se empilhavam num arco saliente atravessando suas
costas, e ao lado dela, num outro banco, estava a herborista Rouge. E ao contrário dela, a herborista tinha todo o
corpo escondido em vestido longo e leve. Tomavam bebidas diferentes, as duas, e Shavanah dizia:

“Não adianta ficar irritada, tu vês, o taberneiro tem razão. Deve ser contra a lei fazer fogueiras em
quartos de estalagem.”

“Que lei?” perguntou a herborista com voz rouca, afastando o copo de madeira.

“Sei lá, mas é perigoso um negócio desses, podias botar fogo na estalagem.”

“Eu sei fazer fogueiras, não iria pôr fogo na estalagem.”

“Se precisavas de água quente, podias ter pedido ao taberneiro,” Shavanah disse e espiou a mulher
sentada no outro extremo do balcão, atrás da herborista: era a felina vinda da Turísia, segurava um pote de leite
perto do rosto, tinha a boca metida dentro dele e a ponta do nariz manchada por umas gotas brancas. Sua cauda
felpuda estava erguida, saía de baixo de vasta capa esverdeada e bastante inadequada para o calor que fazia-se
sentir; tinha os pés descalços, as unhas deles eram garras longas como as das mãos, as duas maiores enfiavam-se
na madeira do banco. “Quer dizer,” prosseguiu Shavanah, “se eles têm leite quente para mulheres peludas com
caudas, também têm água quente. O que é ela, afinal? Um gato?”

“Não sei,” disse a herborista. “Mas preciso ferver a água na temperatura certa, de outra forma não
poderia fazer misturas como a das ervas que te dei.”

“Tá bom, não quero parecer ingrata,” disse Shavanah. “Quanto tempo mais pretendes ficar aqui?”

“Mais um dia ou dois,” respondeu a herborista. “Meus objetivos neste lugar mudaram recentemente.
Por quê?”

“Nada, né? Bom, sei que caíste nas graças do grão-duque por teres curado o sobrinho dele e tudo,
mas o conclave está se encerrando, vê como está vazio o bar. Para uma herborista e uma...” Shavanah ergueu os
ombros. “Bem, nas nossas profissões não se ganha muito em lugares vazios. Eu mesma costumo viajar de vez em
quando até Loirs para trabalhar por algumas noites no início dos meses, que é quando recebem seus salários os
soldados, e aqui, meus melhores clientes são os sacerdotes; mas apenas os que não seguem os votos da Cerejeira
Sagrada.”

Enquanto falava todas essas coisas Shavanah, levantou-se a felina da Turísia e foi pagar o taberneiro.
“Isso não é bom,” disse a herborista acompanhando com o olhar a felina, que agora já deixava a
estalagem. “Perverter sacerdotes.”

“Ei, eu não perverto ninguém,” Shavanah disse sorrindo. “Só fico parada na esquina do templo e de
vez em quando eles me chamam!”

“Tu estás corrompendo teu espírito e perdendo tua virtude desta forma. E levando outros à
perdição.”

“Ah, qual é?” Shavanah torceu os lábios e seus olhos se estreitaram. “A virtude não tenho mais há
muito tempo e o espírito... bom, é só um trabalho, eu faço para ganhar dinheiro, não é para ter prazer. Claro que
uma vez ou outra acontece, mas normalmente, como ontem com aquele orc, eu me acabo toda. Porém rende mais
do que passar a semana ajoelhada limpando salões de templos ou cozinhando ou vigiando muros e quartos de
gorduchas nobres.”

“Ainda acho que devias mudar de trabalho.”

“Ei, não começa de novo. Quando servia bebidas aqui, todos os homens viviam com a mão no meu
rabo, então agora deixo que ponham um pouco mais, mas pelo menos ganho para isso. Oh, lá vem ela!” Shavanah
apontou para a porta da estalagem, por onde entrava sua prima, a vigia Nagnólia. Chamou-a e apresentou-a à
herborista.

Depois de dizer já ter ouvido falar de Rouge por haver se espalhado o fato dela ter recuperado a
saúde do primo da duquesinha, Nagnólia perguntou:

“Não vais trabalhar hoje, Shavanah?”

“Infelizmente não posso aproveitar o fim do conclave,” respondeu cabisbaixa a cortesã, mas em
seguida começou a rir de forma escandalosa. Disse: “Aquele orc pirocudo deixou-me com a xereca meio assada!”

“Sua porca! Quem mandou dar para um orc?”

“Eu achei que podia agüentar, esqueci de que já havia sido desgastada pelos anõezinhos e pelo
centauro. Ou de repente a meleca do orc me deu alergia, vai saber. Eu não tinha idéia de que orcs podiam soltar
tanta meleca, acho que devem ter saído uns dois ou três litros!” Shavanah virou-se para a herborista, que parecia
bastante envergonhada. “A minha amiga herborista aqui deu-me uma poção para curar a xênia, só que eu tenho
que ficar dez dias inteiros sem utilizar a dita cuja!”

Nagnólia, também embaraçada após ouvir tudo que Shavanah expôs aos gritos, ergueu-se e disse
“Bem, vou jantar e dormir, preciso acordar cedo amanhã.”

“Espera aí,” Shavanah chamou. “A herborista disse-me querer ir até a armaria para pegar um
negócio, um picador de ervas mágicas ou algo assim.”

“Vai até o posto de vigia amanhã e pede aos soldados.” E depois de pensar um pouco, Nagnólia
prosseguiu: “Ou podes ir até lá, é a Teresa que tá no depósito, acho que ninguém vai se importar.”

Então Shavanah contou às outras de seu encontro com a coelha nua no dia anterior, fato que julgou
bastante engraçado, e pouco mais tarde a cortesã e sua nova amiga foram até o depósito de armas.

E como vimos, ou melhor, como viu a duquesinha, a capitã Artemísia havia entrado na torre onde
estava alojado o primo da nobre, Dom Mastilhos de Orqushire. No topo das escadarias, com os pés e pernas já
além da dor, a capitã exigiu aos guardas, com um único rosnado, que abrissem a porta do quarto. Amedrontados
pela expressão no rosto dela, não quiseram contrariá-la.

Na privacidade dos aposentos do primo da duquesinha, a capitã jogou o rosto em um dos ombros
dele e chorou até finalmente voltar ao normal sua respiração. Sentou-se depois na cama, ao lado dele, a areia e o
sangue em suas coxas manchando o lençol, e esfregou o rosto nos dedos, limpou o nariz.

“Estás ferida,” disse Dom Mastilhos, segurando Artemísia.


“Não, o sangue não é meu,” foi o que ela respondeu. E contou o que havia lhe acontecido na floresta:

Pouco mais de uma hora depois de terem entrado a coelha e a elfa no Mundo Subterrâneo, ela
avistara uma sombra nas proximidades do acampamento que os soldados ainda terminavam de montar.
Aproximara-se então, com alguns deles, para ver de que se tratava o vulto, e era homem muito alto envolto em
panos, capas ou robe com capuz. Moveram-se os panos e ela ouviu um barulho, algo saltou na direção de seu
rosto e fez com que fechasse os olhos. E imediatamente ao voltar a abri-los, viu os três soldados diante dela
tombados, suas cabeças arrancadas dos pescoços. Era algo impossível, não podia ter acontecido em tão pouco
tempo.

Relutando em aceitar aquilo, a capitã olhou para baixo, para o próprio peito; estava banhada no
sangue dos soldados. Ouviu gritos vindos de todos lados e o som de espadas cortando e atravessando. Logo
cessaram os barulhos e ela notou ser a única sobrevivente do acampamento, estava cercada pelos corpos dos
outros, e por uns três homens em armaduras escurecidas que pareciam enferrujadas. Mais de quinze soldados
mortos e não tivera a capitã nem tempo de se mover.

O que estava diante dela, rápido e inesperado, pegou-a pelo pescoço, puxou-a com tanta força que
deixou-a nas pontas dos pés. Aproximou-a e a capitã viu que este não tinha armadura, que o que parecia metal era
o corpo dele, e o rosto ou pelo menos a parte que as luas iluminavam era pálido, de pele azulada, e os olhos
tinham a cor e o brilho das fagulhas que solta a madeira recém queimada quando é sacudida. Não era humano, o
gigante, era um monstro. O braço segurando a capitã parecia um tentáculo, dobrava-se como se não tivesse as
articulações e ossos que têm os das pessoas, e os dedos se enrolavam em torno do pescoço dela, sufocavam e eram
molhados e repulsivos como lesmas ou sanguessugas, porque se prendiam na pele como vermes desse tipo. O
toque daqueles dedos e o cheiro de carne estragada emanando da criatura nausearam a capitã e quando foi deixada
de joelhos, após ele reconhecer no peito dela o amuleto que havia sido dado pelo cardeal, e também após ter
arrancado da cintura dela a espada, ela quase vomitou. A criatura só podia ser um demônio.

Foi para trás dela, o monstro, para juntar-se aos outros, e antes que pudesse Artemísia voltar o rosto,
veio do fundo da cabeça dela, como um pensamento, uma voz sólida e fria; fez o coração dela quase parar e disse
“Pega”. A capitã recolheu o objeto solto diante dela, na grama, e, com as pernas enfraquecidas, saiu dali.

Sentou-se encostada numa árvore depois de muito correr e examinou então o item, era um espelho.
Refletia de forma anormal a luz, como se tornasse avermelhado o que era branco, de modo que nele as luas
pareciam manchadas de sangue como na antiga música das Diáfanas, um vermelho enegrecido.

“Não soube o que fazer,” a capitã disse para o primo da duquesinha e abaixou o rosto. “Trouxe para
o cardeal o espelho, como ele havia ordenado, ele certamente serve aos demônios que estão na floresta. Talvez
tenham ficado lá a espera da elfa com a jóia da tua prima. O cardeal obrigou-me a vigiar a jóia da duquesinha nos
últimos dias, é por causa dela que o culto de Dravísios está no vilarejo, mas eles servem aos demônios!”

“Precisamos avisar o grão-duque,” disse Dom Mastilhos.

“Eu não queria,” a capitã gemeu, voltando a abraçar o primo da duquesinha, e o tremor retornou ao
corpo dela. “Eu não queria, mas eles me obrigaram! Disseram que podiam te deixar doente e foi o que fizeram!
Disseram que tu morrerias e também o meu irmão se eu não obedecesse! Não quero que o meu irmão morra, tenho
medo, ele é só um menino! Não quero que tu morras! Eu não devia ter dito nada, mas não sei o que fazer!”

Dom Mastilhos revelou à capitã sobre a maldição e sobre a corrente de ferro negro destruída pela
herborista. Cada vez mais assustada, Artemísia tirou do corpete, e depois do pescoço, o pingente que dera-lhe o
cardeal.

“Era igual a esse,” confirmou o primo da duquesinha. “Então o culto de Dravísios estava mesmo por
trás da maldição!”

“A mesma doença vem afligindo meu irmão,” falou a capitã, chorando, e pôs-se de pé. “Tenho que ir
para minha vila. Deve haver uma corrente dessas lá, preciso ajudar o meu irmão!”

Dom Mastilhos tentou detê-la, mas ela afastou-se e, virando-se de costas, tirou a aguamarinha que
havia roubado de Pelluria de dentro do corpete, colocou-a no interior do couro do saiote que apertava-lhe a
cintura. Depois tirou todo o corpete, deixou-o no chão.
“Vou embora, vou tentar sair sem que ninguém perceba,” ela disse apertando os dedos contra os
olhos. “Vem comigo, para minha casa.”

“Não, precisamos descobrir o que querem os monges de Dravísios. Talvez pretendam atacar o
vilarejo.”

“Eu sinto muito. Não quero te deixar. Mas o meu irmão...” A capitã voltou-se para Dom Mastilhos e
por uns instantes pareceu querer se aproximar. “Desculpa-me, fui muito burra.”

Artemísia correu, desceu até o primeiro andar, os soldados e vigias nos corredores não sabiam para
onde olhar quando ela passava com o peito descoberto, os seios pareciam achatados no meio dele do tanto de
tempo que estiveram apertados pelo corselete, ou vai ver era o formato deles. Ela pegou suas roupas, deixou a
torre, andou o mais calmamente que pôde pelas ruas escuras e vazias no fim do vilarejo, onde subiu até o telhado
duma das casas, passou para uma árvore e depois, machucando os braços e joelhos, alcançou o topo do muro e
saltou para o outro lado dele.

Também deixou a torre, e também de forma disfarçada, o primo da duquesinha. Foi até o Templo da
Cerejeira Sagrada, entrou nele no momento mais apropriado que encontrou, quando não havia ninguém ali na
frente. As portas principais eram as únicas abertas.

Atravessou o grande salão escuro e vazio esgueirando-se pelos lados dos bancos, foi até as escadas
que levavam às sacadas do segundo andar, local por onde passavam os fiéis todas as manhãs durante a cerimônia
de adoração à árvore sagrada. Mas naquela hora estavam as escadarias fechadas por portas de metal. Ele
prosseguiu, foi até as proximidades do altar, a pedra azulada refletindo a luz da vela acesa acima dele. Na parede
do outro extremo de onde se encontrava havia uma passagem donde vinha a luz duma única tocha. Lá estavam
outras escadas, mas também um soldado encostado na parede.

Dom Mastilos estranhou o fato do vigia permanecer imóvel, não era possível que não o tivesse visto.
Não soube o que fazer, esperou alguns instantes, mas o guarda continuou parado. Estaria dormindo em seu posto?

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“Olha, é a Shavanah,” gritou um dos vigias do depósito de armas quando viu a cortesã se
aproximando dali com a herborista.

E depois dela ter chegado, o colega dele, já tirando da cintura uma pequena bolsa e separando três
guinéis de ouro, disse:

“Oba, veio alegrar a nossa noite!”

“Sinto muito,” Shavanah falou bem séria. “Não posso trabalhar hoje, estou... hã, naqueles dias e tal.”

“Oh, não. Agora que finalmente pudemos juntar algum dinheiro,” entristeceram-se os soldados.

Shavanah pensou um pouco, depois disse “Bem, acho que posso abrir uma exceção, afinal sempre
podemos usar um ou dois de meus orifícios extras! Kakakaka!” Ela parou de rir de repente e voltou-se para
encarar a herborista.

Então Shavanah explicou aos dois soldados o que Rouge queria e, com outros assuntos em mente,
eles deixaram que a mulher subisse. Shavanah disse que ela fosse encontrar Teresa lá em cima e que pedisse a ela
o que precisava. Depois que Rouge desapareceu nas escadas, a cortesã pegou um dos soldados pela mão e, junto
com ele, fez a volta no depósito, foi em direção às sombras nas proximidades do muro.

A porta do segundo andar não estava trancada e a vigia Teresa, sentada no chão e encostada num
caixote com a cabeça caída sobre ele, roncava muito alto. Rouge decidiu não acordá-la para evitar explicações
sobre o que pretendia pegar e o que logo pôs-se a procurar; encontrou numa prateleira a sacola que queria e dela
retirou uma porção de pequenas pontas metálicas e triangulares parecidas com extremidades de setas ou lanças,
todas bastante pesadas e brunidas. Observou uma delas, passou o dedo pelo topo afiado e, enquanto uma gota de
seu próprio sangue caía, sorriu pensando no coração de quem iria meter aquela flecha.

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Estava morto o vigia, caiu no chão quando Dom Mastilhos tocou seu ombro. Após esperar um
pouco, para recuperar-se da surpresa e para ver se não se aproximava ninguém, o primo da duquesinha virou o
guarda para cima: seu rosto estava arranhado e, em seu peito, várias manchas de sangue e vários furos na roupa
deixavam claro ter ele sido atingido por uma lâmina pequena o suficiente para ser de punhal ou faca. Teriam os
próprios monges de Dravísios feito aquilo?

Dom Mastilhos atravessou a passagem que o guarda devia vigiar, escadas conduziam para baixo e
para cima, e ele sabia onde terminavam: nas masmorras e também no segundo andar, mas não nas sacadas, e sim
nas partes do templo exclusivas paras os sacerdotes, onde ficava aquela sala em que seu tio mantinha os mapas e
documentos; documentos estes que tanto interessavam ao cardeal de Dravísios. Até eles pretendia ir, portanto
Dom Mastilhos subiu ao segundo andar.

Chegou em salão parecido com o de baixo, mas grande cubículo no centro dele bloqueava a visão da
parede oposta e dividia o lugar em dois corredores longos. Para a esquerda das escadas, no fim daquele corredor
em que se encontrava, havia uma sacada pequena, e após ela, porta levando até as sacadas públicas, as quais
aproximavam-se da árvore sagrada. Era para a direita que ele devia ir, para onde estava a sala dos documentos.

Dirigiu-se então para este extremo do corredor e fez bem em verificar o que havia do outro lado
antes de avançar mais, pois na frente da porta do escritório estavam dois soldados. E bem vivos, pois seguravam
suas lanças e de vez em quando trocavam algumas palavras. Certamente não sabiam do acontecido com o vigia do
andar inferior. Poderia mais alguém ter entrado no templo antes dele? perguntou-se Dom Mastilhos.

Enquanto voltava às escadas com a intenção de ir até o grão-duque, pois não havia como chegar ao
escritório, o primo da duquesinha percebeu uns panos jogados diante das sacadas no fim do corredor. Foi até o
balcão, dele podia ver a parte norte do vilarejo e, mais para trás do templo, a torre onde estivera nos últimos dias.
Havia também uma corda num dos cantos, amarrada na sacada superior, a ponta dela pendurada na altura de seus
ombros. Os panos esverdeados no chão eram uma capa, o outro invasor – pois agora ele estava certo de que havia
um – seguira por ali.

Puxando a corda e vendo estar bem firme, subiu também Dom Mastilhos por ela até sacada similar
no terceiro andar, a qual dava em salão um pouco menor. Este lugar ele já desconhecia e no centro havia outra sala
fechada. Fez a volta nela procurando por alguma porta, mas não achou nenhuma.

À distância ao oeste, onde terminava a sala, havia outras portas, provavelmente para mais sacadas;
de lá vinha o som de passos lentos, um guarda andava dum lado ao outro. E ao contrário do andar inferior, naquele
não havia escadas à mostra, nenhum modo de voltar ao segundo andar.

Dom Mastilhos seguiu para o leste, afastando-se do vigia, e atravessou em silêncio um pequeno
corredor formado por portas de ferro, todas com pequenas janelas gradeadas e com adornos religiosos. De dentro
de algumas vinha o som dos roncos dos sacerdotes, eram seus quartos, e o caminho terminava numa ultima sacada
de onde via-se as duas torres, elas ficavam bem atrás do templo. A mesma visão tinha-se no escritório do cardeal
no segundo andar, pois a sacada ficava exatamente acima dele.

Dom Mastilhos foi até a beirada do balcão e olhou para baixo. No parapeito, vários riscos retos e
fundos marcavam a madeira como se alguém tivesse fixado nela algum instrumento. Dom Mastilhos pulou o
parapeito, segurou-se na parte mais inferior dele e, esperando não fazer muito barulho, jogou-se para a sacada do
escritório no segundo andar, pois não parecia muito distante e dava-lhe a certeza de que poderia alcançar
novamente a superior se precisasse voltar.
O escritório estava mais escuro que os corredores, a pouca claridade vinha de fora, da passagem por
onde ele próprio havia entrado. Uns objetos estavam espalhados na mesa, reconheceu umas velas apagadas, uns
pergaminhos e algumas das taças usadas pelo cardeal. Com a perna, bateu acidentalmente numa porta de armário
escondida no breu, mas por não vir andando muito rápido, não fez barulho que pudesse ser percebido. Abaixou-se
e achou uma caixa diante do pequeno armário. Era um baú, recolheu-o e dentro dele, pois havia sido sua pequena
tranca destruída, encontrou a pérola da Turísia. Foi fechar a porta do armário para tirá-la do caminho e percebeu
com os dedos que a fechadura fora arrancada, a madeira ao redor dela estava arrebentada.

Lembrou-se da corda, do pano na sacada, do vigia morto. E de que os soldados diante do escritório
ainda estavam lá fora. E então alguma coisa segurou-o pelo rosto e puxou-o para trás, atirando-o na parte do chão
que estava clareada pelas luas. Sentiu algo saltando sobre seu peito, algo ágil e leve como um pequeno animal, e
finalmente pôde ver o que lhe havia atacado.

Uma mulher muito magra estava acocorada sobre ele, toda arqueada. Cada um dos pés dela pisava
numa das mão dele, um dos braços finos vinha-lhe em direção ao rosto, a mão cobrindo-lhe a boca, e os dedos
dela, de tão compridos, faziam a volta pelas bochechas dele e chegavam ao chão. O outro braço da mulher estava
erguido, das mãos saltaram garras longas, eram certamente a ‘adaga’ que havia assassinado o vigia do primeiro
andar.

Ela era tão leve que ele mal a sentia e por isso mesmo tentou derrubá-la. Mas vieram os dedos
abertos e as garras pararam diante dos olhos dele, e as unhas pontudas dos pés dela estavam enfiadas na madeira,
presas no chão tão firmemente que ele não podia nem mover os braços. Ela miou alto como um gato e depois,
cuspindo palavras sibilantes, perguntou “O que estás fazendo aqui?”

Tirou a outra mão do rosto dele de modo a permitir que falasse e as unhas surgiram nas pontas de
seus dedos.

“Os guardas... vais alertá-los,” disse Dom Mastilhos.

“Um ladrão?” sorriu a mulher e seus olhos pareceram brilhar.

No peito dela uma faixa de pano cobria dois pequenos montinhos e outra faixa abaixo da primeira
cobria outros dois, pois ela tinha quatro deles. Tomou a pérola da mão do primo da duquesinha, olhou-a contra a
luz vinda das sacadas e depois rosnou baixinho:

“É minha.”

“És a enviada da Turísia, a guardiã da princesa de Darinária,” reconheceu-a Dom Mastilhos pelas
formas e pela maneira de pronunciar as palavras, e sabia que chamava-se Elmira.

A felina guardou a pérola dentro dos panos que cobriam-lhe os vários seios e disse “E tu és o sobrinho
do grão-duque. Já nos encontramos antes, na Turísia. Agora, o que estás fazendo aqui? Por que temes alertar os
guardas se eles servem ao teu tio?”

“Mas servem também aos monges de Dravísios, não sabem que os sacerdotes pretendem atacar o
vilarejo. Agora me solta.”

“Mmmm.”

Ela esperou um pouco e depois pulou para trás, foi parar em cima da mesa, apoiada nela apenas com
as mãos e pés. Tinha os joelhos elevados, usava saia comprida que acumulava-se toda entre as pernas. Falou por
fim:

“Por essa eu não esperava. Bom. Não teremos que lutar. Não terei que te matar.” Sem se importar
com os guardas, ela miou muito alto enquanto erguia-se Dom Mastilhos. “Não é? Isso seria muito ruim.”

“O que vieste fazer no templo?”

“Roubar,” a mulher-felina disse e passou uma das mãos entre as quatro saliências no peito. A cauda
dela deitava-se lentamente sobre alguns dos papéis na mesa enquanto ela falava. “Pegar de volta a pérola vendida
aos sacerdotes. As terras da minha dama precisam do dinheiro, tu sabes, para defesa das fronteiras com Daforos ao
oeste e para a manutenção da frota naval. A ameaça dos piratas é maior do que nunca, eles interceptam os
comerciantes na rota da Guarnição de Dortocolmos.” Neste ponto as garras ejetaram-se novamente dos dedos dela
e meteram-se na madeira da mesa produzindo um som abafado, as dos pés e as das mãos. “Como esses monges
são também inimigos do teu tio, pelo que dizes, então não se trata de uma ofensa à Orqushire. E podemos manter
nosso encontro em segredo. Não é?”

Dom Mastilhos aproximou-se da mesa e passou a recolher todos os documentos espalhados sobre
ela. A mulher saltou para o chão e perguntou apontando para os pergaminhos:

“O que é?”

“Documentos e mapas do cardeal.”

“Oh.” Ela pegou um punhado deles e ronronou mostrando-se disposta a não deixá-los. “Vou levar
alguns também.”

Guardou-os junto com a pérola de maneira bagunçada e apertada e amassada, depois andou até a
passagem que levava para a sacada, onde esticou os braços e segurou-se nas paredes. A saia dela prendia-se
apenas sobre a cauda: abaixo daquele rabo de felina dividia-se em linha reta, indo uma metade para cada lado e
deixando descobertas as pernas e coxas em suas partes traseiras, e também as nádegas. E a primeira vista estas
pareciam indecorosamente expostas, mas não estavam apenas sob a proteção da cauda, pois eram cobertas por
tanga de tecido muito delicado e da mesma cor cinzenta da pele da felina. E por causa da cor, e também da
escuridão, confundia-se a peça com aquilo que cobria, e às vezes apegava-se tanto uma coisa a outra que precisava
ir um dos dedos da turisiana até ali para separar tudo.

“Onde estavas quando entrei aqui?” perguntou Dom Mastilhos à mulher-gato.

“Nas escadas.”

“Escadas?”

“Sim,” ela disse e apontou para o fundo da sala em sua parte mais sombria, enquanto com um dedo
da outra mão atrás de si fazia aquele movimento de desprender descrito acima. “Parecem portas de armário, mas
escondem escadas para andares superiores. Escutei alguns murmúrios vindos de lá, talvez vozes. Podemos subir
para ver se achamos mais mapas, minha senhora aprovaria.”

“Tenta não matar mais nenhum vigia, então.”

“Ooh... Matar? Eu?” Ela lambeu a ponta de uma unha e depois foi até as escadas. Subiam em círculo
e vinha pouquíssima luz de cima.

Dom Mastilhos foi atrás da felina e, pelo espaço que percorreram, imaginou estarem indo para o
último andar do templo, que era o quarto. E quanto mais se aproximavam de lá, mais altas ficavam as vozes.

Terminava aquela escadaria num grande salão similar à masmorra, pois suas paredes de pedra não
tinham janelas ou qualquer adorno e era bastante escuro apesar das duas fileiras de tochas em seus extremos.
Havia também uma outra porta no lado oposto ao das escadas, mas até ela eram pelo menos uns cinqüenta metros,
e estava fechada.

No centro do lugar estava o cardeal, acompanhado por diversos outros sacerdotes, e para felicidade
dos invasores, todos virados em direção contrária às escadas. Também no centro uns candelabros seguravam
algumas velas e a luz delas refletia-se em seis armaduras muito grandes e gastas que estavam ao redor dos
monges. Mas logo Dom Mastilhos e a felina descobriram não serem apenas armaduras vazias, pois veio surgindo
da frente do cardeal, como se subisse por alçapão aberto no solo, uma nova armadura para juntar-se às demais.
Eram soldados, todos maiores que homens comuns, o metal cobrindo-lhes de forma que nada de seus corpos
aparecesse, e no fim de seus braços, em vez de mãos ou manoplas tinham lâminas de espadas.

Lembrou-se Dom Mastilhos do que lhe havia contado a capitã Artemísia e o que via fez com que
desaparecessem quaisquer dúvidas que pudesse ter a respeito da veracidade da história dela.
“Matar, matar,” sussurrou a mulher-gato. “Não creio que minhas unhas pudessem ter qualquer efeito
naquelas coisas de lata, de qualquer forma.”

Neste ponto afastou-se um pouco o cardeal e Dom Mastilhos e a turisiana viram a chegada de outro
soldado de armadura: saía de dentro dum espelho, que só podia ser aquele sobre o qual havia falado a capitã ao
primo da duquesinha. Dois monges seguravam o artefato pelas molduras, mantendo-o inclinado, e de seu interior
saía o guerreiro como se atravessasse uma janela. Vinha do nada para juntar-se ao restante daquele grupo.

Dom Mastilhos e a felina perguntavam-se o que era e como podia aquilo ser possível quando surgiu
através do espelho um outro homem, totalmente coberto por mantos e capuz, e muito alto e largo. Veio ainda mais
um atrás dele, um menor, também coberto por mantos amarronados, mas estes deixavam a vista suas mãos e
braços, que eram finos ao ponto de podermos descrevê-los como quebradiços.

Movia-se o menor com dificuldade, como se fosse muito velho, e alguns dos outros monges tiveram
que ajudá-lo a deixar aquela estranha passagem que era o espelho. Assim que terminou de atravessá-la com seus
movimentos relutantes, ele retirou o capuz revelando face de aparência quase esquelética e em sua cabeça não
havia um fio de cabelo. Uma delgada faixa de pano cobria-lhe os olhos e era amarrada na nuca, dando a impressão
de ser cego aquele caquético monge; e por todo seu aspecto e constituição só podia estar sendo consumido por
alguma doença.

Quando aproximou-se dele e disse-lhe algumas palavras o cardeal, o monge este ergueu um dos
dedos de unhas rachadas e passou a falar com voz aguda:

“As serpentes destruíram alguns guerreiros na floresta e estão agora reclusas nos seus túneis.
Estavam entre elas uns estrangeiros.”

“Estrangeiros?” perguntou o cardeal, recobrindo a boca com o dorso da mão. “Trata-se do grupo
enviado pelo grão-duque ao subterrâneo com a... hã... finalidade de recuperar a jóia.”

“Mas a esmeralda continua no subterrâneo e os estrangeiros aliaram-se às serpentes,” disse o velho


monge, interrompendo o gaguejar do cardeal e virando-se para outro lado. “Fracassastes, irmãos. Permitistes que
as serpentes tomassem a esmeralda.”

O cardeal abriu bem os olhos assustados e disse:

“Um imprevisto, ó visionário. Já possuímos o ônix e a pérola da Turísia.” E neste momento surgiu
num dos cantos da boca da felina da Turísia um dente pontudo. “Bem como a localização de muitas outras pedras
e diversas informações que nosso senhor aprovará. Recuperaremos a esmeralda, nem que para isso tenhamos que
invadir as terras das fracas lâmias. Um único de nossos guerreiros é suficiente para jogar pelo menos uma dezena
delas ao solo.”

“Tolice,” disse o velho esqueletico e apontou em direção a uma das paredes, talvez por imaginar que
se encontrasse ali o cardeal, e seu braço todo tremeu mostrando dificuldade em manter-se erguido. “As serpentes
são fracas, mas são em grande número. Poucos guerreiros podem atravessar ao mesmo tempo as estreitas
passagens levando às regiões subterrâneas delas. Lá não temos espelhos como aqui e no castelo em Loirs.”

O monge levou vagarosamente as mãos à cabeça e removeu a faixa que cobria-lhe os olhos, eram
dois globos completamente cinzentos e sem vida. Mudou então a voz dele, aproximou-se do som de galhos se
partindo, e adquirindo força que ele não parecia ter, disse “Os espelhos estão enfraquecidos e amanhã estarão
inutilizados, talvez não sejam capazes de transportar todos os guerreiros para o castelo de Loirs. Destruí estas
terras e trazei as três jóias, foram as palavras do nosso senhor.”

Caiu de joelhos o velho homem e incapaz de conter o tremor dos braços, que passou também ao
restante do corpo, seguiu falando:

“Posso ver elfos! Uma elfa sombria no mar!”

A felina da Turísia puxou Dom Mastilhos para trás neste momento, indicando que a seguisse, e
voltaram pelas escadarias até a sala dos documentos. O ancião, diante do cardeal que agora suava, continuou
elevando a voz até chegar aos gritos:
“Vejo uma mestiça da madeira com a esmeralda! E outra jóia azul perto daqui! Vejo movimento no
mundo das lâmias e em corredores da superfície! Uma mulher com sangue de serpente perto daqui!”

“A jovem duquesa de Orqushire, há rumores de que tenha o sangue, visionário,” falou o cardeal
abaixando o rosto, pois o outro estava cada vez mais perto do chão.

“Um ancião!” gritou o velho monge em agonia. “Pude ver um dos antigos! Um ancião!”

Caiu por fim de costas, como se tivesse se quebrado sua coluna, e as convulsões que percorriam seu
corpo cessaram, bem como todos seus movimentos.

“Um ancião?” perguntou para si mesmo o cardeal, pois estava morto o velho monge.

E se tivessem permanecido ali Dom Mastilhos e a turisiana, teriam visto se aproximar do corpo dele
um outro sacerdote: ajoelhou-se ao lado do velho, pegou-lhe as mãos, que estavam estendidas de forma
desajeitada, e quando voltou-se para o cardeal tinha os olhos esbranquiçados por completo. Disse este novo
sacerdote:

“Um dos antigos” e fez uma pausa. “Pela primeira vez duvido de minha própria visão.”

Mas Dom Mastilhos e a felina já haviam deixado o templo, ambos sabendo que, pelos furtos ou pelo
soldado morto pela turisiana, sua invasão logo seria descoberta. Diante da sacada do escritório no segundo andar,
tirou sua saia a mulher-gato, prendeu-a na madeira como se fosse corda e desceu por ela até aproximar-se do chão,
onde saltou; esticada, a saida ficava com o dobro do tamanho, pelo modo como eram cortadas suas metades. Lá
embaixo pegou os pergaminhos que tinha amassados numa das faixas em seu peito e colocou-os presos num dos
lados da tanga, sobre sua coxa esquerda. Depois puxou para baixo a parte de trás da veste, pois já estava se
insinuando novamente para o interior do espaço que devia apenas cobrir.

Foi com Dom Mastilhos até a mansão do governador, estava interessada em reunir mais informações
sobre os de Dravísios – as quais poderiam ser úteis à sua senhora, a princesa de Darinária – e queria deixar claro
que nada tinham os da Turísia com os sacerdotes. Quando entrou, as tochas mostraram que o tom cinzento de sua
pele não era apenas ilusão provocada pelo escuro.

Acredito ser necessário interromper agora esta história com o intuito de melhor explicar a situação
geográfica dos territórios do nordeste do Continente para aqueles que não os conhecem, e também por terem se
alterado alguns pontos nos mapas desde os tempos da minha tia. As três províncias no extremo nordeste eram
apenas a Turísia, Blanqueários e Orqushire na época dela.

Como se sabe, a Turísia ficava mais ao norte, bem próxima do mar e de Daforos, com o qual tinha
fronteira ao oeste, sendo por isso a parte ocidental da província uma zona perigosa, cenário de diversas batalhas
com bárbaros e até mesmo de algumas invasões. Sua capital era Darinária, na parte oriental, governada naquela
época pela filha do rei Dortocolmos, da qual era serva a felina. A Turísia era maior que Orqushire e Blanqueários,
e destas era a única que tinha portos, indo as rotas marítimas mais famosas para o norte, em direção à ilha
chamada Guarnição de Dortocolmos, que era entreposto comercial entre o Continente e a distante ilha de Tchuma-
Enthofa, e também para o leste, por onde alguns navios contornavam o Continente e iam até algumas cidades do
extremo da Cashimiria, uma província gigantesca e, naquela época, pouco explorada, mais ao sul de Orqushire.

Ao leste da Turísia havia vasta região de florestas, grande parte dela também inexplorada. Não se
sabia até que ponto dessas florestas iam os túneis das lâmias de Orqushire, os quais se iniciavam ao sul dali. Já
Blanqueários ficava ao oeste de Orqushire e ao sul da Turísia, a meio caminho entre as duas, e considerava-se
Blanqueários a única fronteira que tinha a Turísia com outro território do Continente. Mas na verdade também
havia na parte sudoeste da província passagem muito pequena para um dos extremos de Agropolos, ao norte do rio
de mesmo nome. E Agropolos, como sabemos, era a província ao sul de Daforos.

A capital de Orqushire, a menos povoada das províncias do nordeste, era o castelo-cidadela de Loirs,
no centro do território, onde vivia a família dos governantes, da qual já conhecemos bem o grão-duque, a
duquesinha e o primo dela. E sobre as origens de Orqushire, estão explicadas na história contada pela rainha das
lâmias no nosso capítulo anterior.
A pouca distância para o leste do castelo de Loirs ficava o Vilarejo da Cerejeira Sagrada, até agora a
sede da maioria dos eventos desta narrativa, e em muitos outros pontos não documentados da província existiam
vilas e grupos de humanos, de ogros e lâmias, desde comerciantes até saqueadores.

Ao sul de Orqushire, e também de Blanqueários, ficava a Cashimiria, e na fronteira entre as três,


como bem explicara a rainha Ellenora, estavam as ruínas do Forte de Pernície, usadas agora como abrigo
temporário por criminosos procurados.

E isso é o suficiente, acredito. Se quiserdes saber mais, devo vos referir a um detalhado anexo com
mapas e glossário e notas explicativas que pretendo colocar no final do primeiro volume desta narrativa e pelo
qual, se tiver sorte, cobrarei enorme quantia de moedas.

Dom Mastilhos e a turisiana haviam ido ao encontro do grão-duque, como foi dito, na mansão do
governador, que ficava atrás da torre da duquesinha. Quando entraram na sala em que estava o grão-duque,
acharam-no acompanhado por jovem mulher de aparência muito curiosa: era tão magra quanto a felina, e sua pele,
apesar de não ser cinzenta como a da turisiana, chamava a atenção pela brancura e também por estar despida, já
que a menina vestia apenas uma saia que mal tocava-lhe os joelhos. Além disso, parecia úmida a pele dela, e em
alguns pontos ao redor dos seios, que eram apenas duas setinhas rosadas, tinha uns sinais coloridos feito escamas
de cobra. Os cabelos, que não poderiam deixar de ser claros, eram compridos e, nas costas, cobriam até o fim das
escápulas, suas pontas perfeitamente alinhadas. Os olhos, ela os tinha bem estreitos, eram dois riscos finos mas de
bonita cor esverdeada, e nisto lembravam os da duquesinha. O rosto todo dela lembraria as feições da duquesinha,
percebeu Dom Mastilhos pouco depois, se se pudesse imaginar a prima dele emagrecida.

A menina era mensageira das lâmias, chamava-se Laetitia, que foi como apresentou-a o grão-duque.
Havia vindo ao vilarejo por passagem secreta que apenas o próprio grão-duque e a rainha Ellenora dos
subterrâneos conheciam.

O grão-duque reconheceu a felina da Turísia, e ela e Dom Mastilhos falaram rapidamente sobre os
acontecimentos ocorridos no templo. “Precisamos reunir os soldados e atacar os sacerdotes de Dravísios antes que
terminem de convocar seus guerreiros sobrenaturais,” disse em seguida o grão-duque e contou ao seu sobrinho e à
turisiana o que lhe havia sido relatado por Laetitia: ficaram sabendo todos sobre os acontecimentos no Reino
Subterrâneo, sobre o combate das lâmias com os guerreiros de armadura, no qual contaram com a ajuda da elfa da
madeira, e também sobre o fato de mais alguns daqueles estranhos guerreiros estarem na floresta esperando para
serem transportados, da maneira que havia visto Dom Mastilhos no templo, para a vila e para o Castelo de Loirs:
entravam em um espelho mágico lá e surgiam no outro colocado no templo. “Pelo menos a esmeralda não caiu nas
mãos deles,” foi o único bom sucesso que pôde relatar o grão-duque.

E logo ele mandou que o governador convocasse o exército e pediu que Dom Mastilhos levasse
alguns soldados ao castelo de Loirs com pressa para alertar os soldados de lá a respeito da invasão.

Não demoraram os de Dravísios, como já havíamos previsto, a perceber que haviam sido roubados
os documentos, pois o cardeal foi até seu escritório logo que deixou o salão onde estavam os guerreiros de
armadura, e em desespero ele descobriu também o furto da pérola da Turísia. Foi o mais rápido que pôde até a rua,
na companhia de alguns monges e também na daquele homem alto e encapuzado que vimos surgir através do
espelho, e partiu em busca do grão-duque. Chegando na mansão do governador, viu um grupo de soldados ali na
frente com pelo menos trinta homens e neste momento já partia a cavalo Dom Mastilhos com pelo menos outros
trinta, e também com Laetitia e com a felina da Turísia. Mas esta ultima logo abandonou o grupo.

“Vou para casa agora,” ela disse a Dom Mastilhos ainda nas proximidades do vilarejo.

Ele perguntou então “E o que farás se encontrares os guerreiros de Dravísios no caminho? É melhor
que sigas até o castelo e de lá vás a Blanqueários, que é rota segura até a Turísia.”

Ela miou alto e, enquanto se afastava, falou:

“Um navio me espera ao leste daqui, estarei nele até o amanhecer. Talvez teu caminho cruze o de
Elmira de novo!”

Na mansão, entraram o cardeal e seus monges no salão principal, onde encontraram o grão-duque:
ele contava tudo que sabia ao governador e aos comandantes do exército.
“Nosso bondoso grão-duque de Orqushire, graças aos céus!” foi gritando o cardeal para perto deles.
“Uma tragédia aconteceu! A pérola da Turísia...”

“Sim. Uma tragédia. Prendei o cardeal!”

Aproximaram-se dois soldados que vigiavam a entrada e o cardeal assustou-se. Antes que pudessem
chegar diante dele, porém, segurou-os o encapuzado, pegando-os nos pescoços, e ouviu-se o som de ossos se
partindo. Caíram os soldados e o monge alto removeu seu capuz; era a criatura monstruosa que encontrara a capitã
e dizimara os homens na floresta: seus olhos brilhavam feito fagulhas.

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Feriram o monstro, todos os homens, atingiram-no diversas vezes nos poucos segundos que durou o
combate. Mas ele nada sentia, seu sangue jorrava e manchava o chão e as paredes, e mesmo quando seus braços
eram separados do corpo, ele não caía. Nada podia detê-lo, seus ferimentos se fechavam, vinham de baixo do
manto outros braços para substituir os perdidos e, um por um, pegavam pelo pescoço os homens e faziam o
mesmo que haviam feito com os dois soldados que morreram primeiro. A criatura pegou por fim o grão-duque, o
único que resistia vivo, e estava tudo terminado em menos de um minuto e quase sem nenhum barulho.

“Nunca deixarás a mansão com vida!” disse o grão-duque, os dedos tentaculares do monstro quase o
asfixiando. “Os soldados estão lá fora!”

“Agradecemos por reuní-los, nosso amigo,” disse o cardeal, limpando o suor de sua testa. “Agora o
grão-duque poderá enviá-los a uma assembléia de guerra no ultimo andar do templo, onde nossos guerreiros estão
prontos para recebê-los e para ensinar-lhes a ultima lição de suas vidas. Assim restarão menos deles quando
estivermos para dar início a invasão.”

“Jamais!”

O monstro permitiu que o grão-duque voltasse o rosto para o cardeal, que aproximava-se de um dos
homens caídos. Com cuidado para manter o equilíbrio, o obeso cardeal abaixou-se o suficiente para pegar um dos
mortos pela mão e puxá-lo para cima.

“Foste um tolo, nosso amigo, mas cumpriremos a impossível promessa que fizemos de juntar carne
novamente aos ossos apodrecidos da tua mulher-lâmia Amora, em seu ataúde no templo. E será a carne que sobrar
de tua filha depois que tivermos nos fartado dela.” O cardeal colocou então os dedos do homem morto na boca,
que foi abrindo cada vez mais, e cada vez de forma mais grotesca e inacreditável, e quando fechou-a, separou
aquela mão do braço com um estalo. Começou a mastigar como quem come algo muito macio e o grão-duque
ouviu o som de ossos sendo triturados.

Voltou-se o grão-duque para o monstro que o segurava, a face arroxeada da criatura tinha mudado e
assemelhava-se a sua própria; o rosto todo movia-se de forma abjeta, pele esticava-se e a barba brotava, e em
pouco tempo ele era uma cópia do grão-duque.

“Não pode ser...”

Vieram do fundo da sala outros dois monges e foram segurar o grão-duque. O cardeal aproximou-se
trazendo o braço desmembrado do comandante dos soldados, sangue escorrendo dele e de sua boca, e enquanto
saía dali o monstro transfigurado, falou o cardeal:

“Tem calma, nosso bom amigo, pois só decidiremos o que fazer de ti depois que nosso próprio grão-
duque conduzir seus soldados à silenciosa morte. Agora vamos terminar nosso jantar.”

Jogou o braço decepado sobre a mesa, mordeu e arrancou um grande pedaço dele.
Lá fora, dirigiram-se ao templo os soldados, onde deixaram suas armas e foram atrás daquele que em
tudo parecia ser o grão-duque.

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Acordou-se sobressaltada a duquesinha quando estava começando a surgir a claridade, de manhã;


sentou-se na cama, nua, e com o lençol secou o suor em sua testa e depois no peito, entre os seios. Pensou em
vestir a camisa que encontrou jogada na cabeceira, mas deixou-a ali e esperou na cama até o momento em que
julgou estar bem azul o céu, quando foi à janela e abriu as cortinas. Grandes nuvens brancas estavam imóveis
sobre o templo da Cerejeira Sagrada e a duquesinha finalmente conseguiu parar de pensar no sonho que tivera.
Outras nuvens, maiores e mais escuras, pareciam se paroximar por trás das primeiras.

Foi até a cômoda, prendeu os cabelos com uma fita alaranjada. “Ela não veio, então,” pensou. “Por
quê?” Derrubou uma das velas apagadas com as pontas dos dedos.

Lembrou-se de seu primo. E de seu pai falando sobre a maldição. Depois da serva, falando sobre
ciúmes, sobre não suportar a idéia de vê-la nos braços dele. De repente ouviu o som da porta se abrindo distante e
passos, o coração pulou. Era a serva, a duquesinha sabia, reconhecia os passos; mas mesmo assim, mesmo que
estivesse a menina acostumada a vê-la nua, nossa duquesa recolheu o saiote do chão e cobriu com ele os
cabelinhos loiros do íntimo. Depois foi sentar-se de novo na cama e cobriu assim a traseira muito branca e larga,
que o saiote só tapava a frente.

“Bom dia, minha senhora,” a serva disse e foi aproximando-se da duquesinha. Estava perfeitamente
penteada, parecia ter se arrumado por muito tempo e seu vestido simples não tinha nenhum amassão.

Com o rosto virado para a janela, a duquesinha perguntou:

“Por que tu não vieste?”

“Eu queria, mas as vigias não deixaram,” a menina respondeu sorrindo. Tocou o rosto da duquesinha
e ia beijar-lhe uma das bochechas, mas a duquesinha empurrou-a com desgosto e, com o lençol enrolado na
cintura, levantou-se e afastou-se até a cômoda.

A serva foi atrás.

“Que foi?” perguntou. “Ih, dormiste com a cortina da cama aberta de novo? Garanto que os
mosquitos encheram-te de picadas na bunda.” Foi tocar a traseira da duquesa por sobre o lençol, mas hesitou e
desistiu.

A duquesinha nada disse.

A serva ergueu mais a mão e tocou-a no ombro, fez com que se voltasse, e falou “Eu queria vir, meu
amor, juro.”

“Cala a boca,” a duquesinha falou baixinho e, apertando o lençol contra as costas com uma das mãos
para que não caísse, olhou para a serva. “Foste tu, não é? Tu que amaldiçoaste meu primo.”

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Na mansão do governador, estava o cardeal de Dravísios sentado numa cadeira diante de uma mesa
de toalha manchada, onde havia ossos; limpava os lábios com as mangas do hábito, também manchadas da mesma
coisa abjeta, e seu ventre parecia ainda maior, de modo que já não podia nem cruzar os braços sobre ele.
Um outro sacerdote aproximou-se e entregou-lhe taça com vinho; depois abaixou-se e disse algo
perto de seu ouvido.

“Ah. Está feito, está feito,” falou o cardeal, sua voz parecendo escapar do fundo de um poço.
“Agora, enquanto o nosso grão-duque encerra o conclave e se despede dos ultimos convidados, terminamos de
reunir nosso exército. Os vigias manterão em sua torre a jovem duquesa para o caso de precisarmos dela. Se não
for necessária, daremos um fim bastante apropriado a...”

“Tolos.”

Tentou voltar-se o cardeal para ver quem havia falado, mas tinha dificuldade em se movimentar. Veio
para o lado dele um sacerdote de braços finos e olhos cegos e fundos, grandes círculos em sua cabeça formavam-
se onde havia caído o cabelo. De forma arrastada, o sacerdote disse “Agora se foi a pérola e só nos resta o ônix. E
se eu não conduzisse o transporte do exército, o espelho já estaria quebrado.”

O cardeal, perturbado, parou de beber e voltou sua atenção ao cego, que assim prosseguiu:

“Ele já apresenta rachaduras, agora não podemos trazer mais do que um guerreiro por hora.”

“ïmurpðJá iniciamos a construção do artefato,” disse o cardeal. “Esta noite estará pronto, ó
visionário, e a passagem será aberta.”

“Pronto? Para quê?” o cego perguntou. “Para receber a esmeralda e a pérola que vós perdestes?”

“A esmeralda não ficará no submundo para sempre.”

“Não é o que vejo. Vejo que a esmeralda continua no subterrâneo. Vejo que o sobrinho do grão-
duque anda pela floresta com seus soldados.”

“Jamais chegará ao palácio a tempo. Antes do anoitecer teremos iniciado o ataque e a vila e o castelo
estarão perdidos. Mesmo que pudesse ele voltar com reforços, não ousaria nos atacar, pois temos a jovem
duquesa. Muito embora preferissemos deliciar-nos nas carnes suculentas dela, é verdade.”

“Cuidai bem do ônix e não vos esqueceis das informações que obtivestes. Levai ao templo o
verdadeiro Grão-Duque.”

O cardeal ergueu os olhos e viu no outro extremo da mesa, amarrado a uma cadeira, o grão-duque. O
monge cego continuou falando:

“E refreai vosso apetite, pois já fizestes uma boa última refeição.”

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Ao leste de Orqushire, na costa do Continente, aproximava-se barco a remo de um pequeno navio


com a bandeira da Turísia; era conduzido por um ciclope e levava Elmyra, a felina turisiana. Meia hora passou até
ela subir a bordo do navio, onde um outro ciclope recebeu-a com uma capa que ela logo pôs nas costas. E a sua
espera no convés estava uma elfa de pele mais cinzenta que a dela própria, mas de um cinza muito mais escuro.
Também usava uma capa, esta elfa, preta, e cobrindo-lhe o peito havia algo que parecia armadura feita de ossos:
eram ossos dispostos em arcos como se fossem costelas, e talvez fossem mesmo, mas não se podia distinguir de
que tipo de criatura. E digo que era armadura e não veste aquele colete porque, pelos espaços entre os ossos,
deixava aparecer as pontas escuras dos seios da elfa, eram do mesmo tom noturno que possuíam os lábios e
também os olhos dela.

A elfa sombria tinha protuberantes os músculos do abdome e abaixo deles, cobrindo-lhe a nudez,
havia quatro dedos de esqueleto; partiam do espaço entre suas virilhas, onde tapavam-lhe a intimidade, e subiam
afastando-se aos poucos, deixando desavergonhadamente à mostra entre eles, e também no topo deles, uns pêlos
brancos muito curtinhos que haviam sido aparados de modo a formarem um estreito retângulo. Esta segunda e
exótica peça feita com ossos de dedos obviamente nem para armadura servia e não posso imaginar de que maneira
prendia-se ali onde estava. Quando andava a mulher, parecia acariciar-lhe o sexo aquela mão esquelética, pois
movia-se de forma obscena.

“Finalmente,” disse a elfa, e voltou para baixo seus olhos, pois era alta e botas de couro com saltos
finos deixavam-na muito acima de Elmyra. Uma jóia vermelha, talvez feita de vidro comum, estava presa no topo
de cada bota.

“Trouxe alguns documentos que talvez interessem à minha soberana e também à tua,” a felina miou
e sorriu. “Agora vamos partir, tenho saudade da minha senhora.”

A elfa respondeu num tom calmo, aparentando estar entediada:

“Ainda não partiremos, infelizmente. Sinto uma tempestade se aproximando pelo norte, que é a
direção em que devemos navegar.”

Ela desprendeu então uma tiara de seus cabelos bem brancos e compridos e eles espalharam-se sobre
a capa. Num dos cantos do nariz dela – que, ao contrário do rosto, era bem arredondado – estava metido um
pedaço de osso pontudo, devia ser um adorno e perfurava uma de suas narinas.

“Uma tempestade?” a felina perguntou e pegou a pérola que levava escondida nas vestes, fechou a
mão em volta dela. “Tens certeza?”

“Sim,” disse a elfa sombria. “Se tivesses vindo antes, talvez pudéssemos ter ido a tempo de escapar
dela, mas agora é melhor esperarmos até que tudo se acalme.”

“Eu odeio água.” Elmyra foi se afastando em direção ao tombadilho. “Oh, preciso tomar um pouco
de leite.”

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Em seu quarto na estalagem, sentada no chão, a herborista terminava de encaixar uma ponta de metal
no corpo de madeira duma flecha, tornava-a idêntica às várias setas organizadas sobre a cama. Por fim cobriu
todas outras com um lençol, apertou aquela com firmeza e disse:

“Um último presente para a senhora duquesinha.”

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