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Elfa - Volume I

Autor(es): elfman

Sinopse
Aventuras espadas & calcinhas com um grupo de matadoras de monstros e caçadoras de tesouros que inclui uma
elfa, uma fada, uma coelhinha ninja e uma humana com a bunda gordinha.

Notas da história
* Escrito com o objetivo de sacanear todos os clichês de mangás, animes, rpgs e histórias de fantasia que
existem, nada se salva e todo elemento possível de se imaginar nesse tipo de história acaba aparecendo uma hora.

* A princípio pode não parecer, mas é uma história bastante complexa e com dezenas de personagens e elas
passam por algumas aventuras bastante pornográficas de vez em quando, então leia por sua conta e risco.

* Não leia a sério.

(Cap. 7) VI - Rastejando Elegantemente Por Aí

Notas do capítulo
Da aventura no mundo subterrâneo.

Parte VI - Rastejando Elegantemente Por Aí

“Da aventura no mundo subterrâneo.”

Como ficou dito no episódio anterior deste relato, de forma não tão sutil quanto precisa, minha tia-avó, a
elfa Pelluria, e a princesa renegada da ilha de Xexeres, a mulher-coelho Meloine, após insidioso julgamento
acabaram forçadas a entrar em um túnel subterrâneo localizado num bosque próximo ao Vilarejo da Cerejeira
Sagrada, onde a fadinha sumira com a esmeralda da duquesinha Mychelle Alanturia. Enquanto na superfície
sucediam eventos dos quais trataremos noutra ocasião, a coelha e a elfa, munidas de tochas e espadas simples
cedidas por seus captores, iam se esgueirando pelo estreito túnel e chegavam numa zona em que este tornava-se
mais amplo: bifurcava-se em um caminho escavado na terra, tão apertado quanto o percorrido para ir até ali, e em
outro ainda mais estreito, cujas paredes e o chão eram compostos de encorpados blocos de pedra semelhantes
àqueles da cela onde minha tia e sua companheira haviam passado a maior parte da tarde. Puderam perceber o que
parecia ser luz de tocha no fim deste ultimo caminho, o de pedra, vinda de longa distância adiante da bifurcação.
Para não chamar a atenção do que pudesse haver no fim da passagem, deixaram suas próprias tochas para trás e
prosseguiram pela mesma, sendo este o ponto exato em que abandonamos as duas no referido capítulo.

Pois o túnel onde agora se encontravam assemelhava-se em tudo a um longo corredor. Logo abriu-se mais
e, apesar de manter-se estreito, tinha o teto bem mais alto do que o das outras partes por onde haviam passado;
podiam tocá-lo apenas erguendo um braço, é verdade, mas pelo menos era melhor do que andarem ajoelhadas ou
abaixadas como haviam tido que fazer até há pouco. A largura da passagem não permitia caminharem lado a lado
e ficava ainda mais estreita em áreas pelas quais havia vigas que pareciam de madeira dispostas
perpendicularmente ao chão, de modo que ia a coelha na frente, seguia Pelluria atrás e encolhiam os ombros para
atravessar por estas zonas ou até mesmo passavam de ladinho, o que também não era muito fácil para Meloine e
saberieis por que se tivesseis também seios do tamanho daqueles dela. E digo apenas parecerem de madeira as
vigas porque não podiam vê-las, estava muito escuro.

Haviam andado bem mais do que pretendiam sem encontrar o fim do caminho. A luz à frente permanecia
distante e fraca e sua origem continuava impossível de identificar, enquanto as tochas que deixaram para trás,
literalmente para trás ficaram e já não se podia mais percebê-las. Iam tateando pelas paredes, falando baixo e
pouco, Pelluria tocando seguidamente nas costas da coelha para certificar-se de que ela ainda estava ali, e a coelha
fazendo longas pausas entre seus passos pelo mesmo motivo.

“Devemos estar há muita distância da superfície da terra,” observou Pelluria durante o percurso, já
cansada. E não só de tanto rastejar e andar, mas por todos os acontecimentos desde que vierar parar naquela
província. “De outra forma não poderia estar tão elevado o topo desta passagem. Que assustador!”

“Não sei se descemos tanto assim,” foi o que respondeu Meloine, “pois pareciam estar todos os caminhos
por que passamos dispostos horizontalmente, a não ser pelo pequeno trajeto da entrada.”

“Podemos ter descido sem termos percebido,” disse Pelluria. “Era tão tortuoso aquele túnel que
percorremos de quatro feito duas cachorras que bem pode ter-nos confundido os sentidos.”

“Tortuoso para mim, pois fiquei atrás da tua saia.”

“O que queres dizer?”

“Oh, nada. Pelas folhas de Xexeres!” Apoiando-se nas duas paredes, pois a estreiteza do corredor bem o
permitia, a coelha parou de andar, fazendo atrás de si esbarrar Pelluria. “Isso não tem fim!” ela falou. “Tenho
medo de que possamos morrer sufocadas, vamos voltar!”

“Ei, continua, sua grossa.” Para desagrado da coelha, a elfa a empurrou pelos arrebitados assentos, os
quais tinha ainda sensíveis das chibatadas tomadas no vilarejo. “Quando não tem ar, não tem luz de tochas! E não
foi por acaso tua a idéia de virmos por este lado?”

“Mas e se aquela luz não for de uma tocha?” a coelha perguntou, retomando o passo de forma hesitante.

“Vai ser de que?” quis saber Pelluria.

“Sei lá, alguma coisa mágica! Vai ver este é um túnel sem fim!”

“Ai, só fala bobagem essa coelha. Nós nem andamos tanto assim pra já dizeres que é um túnel sem fim. E
não existem coisas mágicas.”

“Então ainda deveríamos poder ver nossas tochas lá atrás!”

“Gulp! É verdade!” voltou-se Pelluria para verificar o que tinha dito a coelha. “Será que se apagaram?”

“Ih, alguém apagou nossas tochas,” Meloine disse assustada, num sussurro.
“Cala a boca, coelha.” Pelluria puxou-a pela roupa, ou mais tentou que puxou por serem as malhas pretas
muito apegadas ao corpo, e pensou numa explicação menos perigosa. “Deve ter sido o vento!”

“Que vento, se não tem vento aqui?” Novamente Meloine parou de andar e abaixou a voz. “Ui, eu ouvi
alguma coisa.”

“Ouviste nada. Prossegue.”

“Ouvi sim, eu tenho orelhas boas.”

“Eu também tenho e não ouvi nada, foi só imaginação!” Minha tia chutou a canela da outra. “Agora pára
de falar antes que atraias todas as lâmias do mundo!”

“Ai, tem lâmias atrás da gente, tem lâmias atrás da gente!” ia gritando a coelha enquanto dava passos
apressados, até que parou repentinamente pela terceira vez e veio de novo a elfa de encontro a suas costas.

“Uf! Quer parar de fazer isso? Avisa quando fores freiar!”

“Pelluria!” Meloine chamou mostrando nervosismo. “Alguma coisa me bateu no braço ali atrás!”

“Uh? O que?”

“Sei lá, bateu-me perto do ombro quando a gente passou ali. Vamos voltar um pouco.” Sem virar-se,
Meloine empurrou a elfa para trás por bem pouca distância. “Tá aqui! Tem um pau na parede.”

“Pelos ossos de Sene, um o quê”

“Aqui, ó. Um negócio de ferro.”

Após procurar um pouco, Pelluria pôs a mão onde Meloine indicava e segurou uma protuberância
arredondada e de textura metálica, similar ao cabo de uma espada ou punhal. Parecia sair dum buraco na parede, o
qual ela também explorou notando ser retangular e não muito fundo. Disse:

“Parece uma alavanca. E tem um buraco.”

“Cuidado com buracos na parede, elfa, podem ter aranhas, é o que sempre digo.”

“Essa coisa tá levantada, vou movê-la pra ver o que acontece!”

Antes que Meloine pudesse pedir a Pelluria para que não o fizesse, a elfa segurou a alavanca e puxou-a
para baixo. Esta moveu-se quase sem oferecer resistência e em seguida as duas ouviram, vindo de dentro ou de
trás das paredes, um rangido cada vez mais alto de arrastar de correntes; culminou em um repentino e
extremamente alto som de ferro batendo contra ferro e por pouco não matou-as de susto.

Enquanto gritavam, Pelluria abraçada às costas da coelha, viram movimentos próximos da luz distante: era
como se uma parede ou porta deslizasse ruidosamente pela frente da luz para revelar uma abertura pela qual a
claridade ficava mais intensa. O som foi-se tão rápido quanto começou, sem nem deixar eco, e da frente das duas,
da direção da recém aberta passagem, além da luz vinha agora uma brisa fria que atravessava o corredor roçando
ao redor de seus corpos trêmulos. A própria luz tremia banhando e tornando visíveis as pedras no fim do túnel,
pulsatil, dando sinais de ser realmente de uma tocha ou fonte semelhante. Anteriormente parecia mais distante do
que em verdade estava porque devia a tal porta bloquear, pelo menos em parte, sua passagem.

Esperaram e, como não acontecia mais nada, foram se acalmando. Foi então que Pelluria notou um tremor
entre as coxas, algo fazia sua saia esvoaçar. Dirigiu os dedos até ali pensando nervosa em mil insetos diferentes
que podiam ter-lhe escalado as pernas e agarrou um amontoado felpudo que movia-se e saltava para todos os
lados, mas soltou-o logo em seguida, quando Meloine avisou um tanto embaraçada do que se tratava:

“Quer largar meu rabo?”

“Oh, desculpa, dona coelhinha! Hehehe. Acho que essa alavanca só abriu uma porta.”
Recuperaram suas espadas, pois as haviam deixado cair no momento do barulhento susto, e com o
aumento da claridade passaram a andar mais depressa. Atingiram o fim do corredor, terminava no que parecia ser
uma pequena sala ou cubículo com mais ou menos o triplo da largura do túnel.

Todas as paredes da sala estavam à mesma distância uma da outra, formando um quadrado, e a única que
tinha uma porta era aquela pela qual entraram. Era uma cela. O primeiro a atrair-lhes a atenção, já um pouco antes
de terem ali chegado, foi um esqueleto de aparência humana apoiado numa parede, sentado e vestido com roupas
bastante desgastadas. O crânio estava jogado para a esquerda, as pernas esticadas, e um dos braços repousava ao
lado do corpo, separado do mesmo, pois estava quebrado pouco abaixo do ombro aquele longo e grosso osso
chamado úmero.

Meloine e Pelluria entraram então na sala, como já foi dito, e, apreensivas, seus olhos percorreram os
arredores. Logo viram ser a luz que até lá as havia atraído a proveniente de três archotes fixos na parede à
esquerda da porta, lado a lado, sem os quais, é claro, nem poderiam ter enxergado o tal esqueleto e tudo o mais
que ficou dito acima. Na parede central estava recostado o esqueleto e na outra, na oposta aos archotes, bem
próximo do teto havia uma pequena abertura similar a uma janela pela qual talvez Pelluria pudesse passar, se três
grossas barras de ferro não formassem ali uma grade sólida. Bem, talvez fosse uma janela mesmo, apenas não
chamei-a assim duma vez porque não tenho muita experiência em exploração de masmorras. E Meloine também
poderia ir através dela, se além de não estarem as grades na janela, nossa coelha não trouxesse duas esferas tão
impressionantes e gorduchas brotando do peito. Mas da forma como era, passava pela abertura apenas a brisa fria
que já fizera-se sentir no corredor e que agora era bem mais forte, devido à proximidade de sua origem.

Meloine ajoelhou-se ao lado do esqueleto e, após examiná-lo atentamente, disse “Olha só! É de pedra, não
é de verdade!”

“O que?”

“Está todo rachado e é feito de pedra, como uma estátua.” A coelha apontou para o braço no chão; depois
ergueu-o com as pontas dos dedos. “É pesado!”

Pelluria abaixou-se do outro lado e disse:

“É verdade, parece mesmo pedra. Mas não devias tocar dessa forma nos itens desta sala, pois quem sabe
quais armadilhas não estão por aqui ocultas, só esperando serem acionadas?”

“E tu não devias mover alavancas em corredores escuros,” respondeu Meloine.

“Alavancas foram feitas para ser movidas. Mas por que razão poriam um esqueleto de pedra em lugar
como este?”

“Oh, por razões que, sem dúvida, só as lâmias conhecem.”

Meloine deixou as imitações de ossos e voltou a erguer-se. Esfregou as mãos na própria roupa para tirar
delas a poeira.

“E ainda por cima puseram trapos no esqueleto de pedra,” Pelluria disse, pois algumas marcas douradas
gravadas no carcomido resto de cinturão negro que o esqueleto trazia chamaram sua atenção. “Tem runas aqui,
olha.”

“Hm? São letras?”

“Sim, está em um dialeto élfico, acho.”

“E o que dizem?”

“São duas palavras. Ou três?” Acocorada, Pelluria puxava com cuidado o cinto para aproximá-lo dos
olhos. “Deixa eu ver, isto é ‘dragões’ e aqui é ‘de pequenos cavaleiros’. E essa bolinha pequeninha indica um
conjunto ou grupo.”

“Uh?”
“Será que é o dialeto dos elfos marinhos? Se for, tenho que inverter a ordem das sentenças.”

“Tens certeza de que sabes ler?” Meloine perguntou com uma das mãos apoiada na cintura e a outra
segurando a espada com a lâmina voltada para trás.

“Claro, eu conheço muitos dialetos,” afirmou Pelluria. “Tu achas que podes fazer melhor?”

“Ei, eu não sei ler mas sou honesta, não fico enrolando.”

“Ahá, já sei!” A elfa estalou os dedos. “Está escrito ‘ordem dos cavaleiros de dragões pequenos’, tenho
certeza!”

“Ah, tá. Nunca ouvi falar. E o que achas dessas tochas?” Meloine deixou a pequena espada apoiada num
canto e foi tentar mover um dos archotes, mas não conseguiu desgrudá-lo da parede. Sua pequena cauda de coelho
esticou-se e apontou para trás.

“Hã? O que tem as tochas?”

“Alguém deve mantê-las acesas, não é óbvio?”

“Ai, é verdade! Será que são as lâmias? Que finalidade tem esta sala?”

“E eu é que sei? Sentiria-me mais segura se tivesse minha espada e não essa porcaria,” Meloine disse;
apontou com um dos polegares para a arma que tinha deixado apoiada num canto.

“Também pegaram a minha Lucille, tenho que voltar até o vilarejo para recuperá-la,” contou a elfa.

“Ah, pára, não me diz que deste um nome para tua espada.”

“Pelo menos eu não fiz amor com ela!”

“Ei, isso é golpe baixo.” Avermelharam-se as bochechas da coelha. “Eu não estava bem quando aquela
situação tão desagradável aconteceu e já falei que sentei nela sem querer! Vamos esquecer isso, tá bom? Bem,
agora só nos resta verificar o que há naquela janelinha.”

Meloine apoiou-se na parede com a abertura gradeada. No momento em que ia esticar os pés para alcançar
a janela, uma das pedras nas quais pisava afundou pouco menos de meio palmo, surgindo em seguida ruído de
correntes semelhante ao ouvido no corredor. Antes que a coelha e Pelluria pudessem perceber, veio de trás delas o
som de metal batendo, desta vez quase ensurdecedor. A razão de tanto estrondo era simples: uma porta de ferro
muito enferrujada havia se fechado na única saída da sala.

Quando recuperou-se da surpresa, ainda com os ouvidos zumbindo, Pelluria foi examinar a porta para
descobrir que sua superfície enrugada não tinha trinco, fechadura e nenhuma marca ou saliência, era como uma
parede metálica. Tinha, porém, uma janelinha retangular do tamanho do rosto da elfa e na mesma altura dele; era
por esta abertura que antes haviam visto a luz no túnel e, olhando agora pelo lado em que estavam, só viam
escuridão. Havia também uma pequena fresta no lado esquerdo da porta, onde se encontrava com a parede, sendo
provavelmente o local para onde deslizava quando estava aberta.

Voltando-se para o interior da sala após infrutíferas tentativas de abrir a porta, tanto empurrando-a quanto
tentando fazer com que deslizasse para os lados, Pelluria viu estar a coelha abaixada, apalpando o bloco de pedra
afundado por ela própria e por seu peso. Apreensiva, Meloine constatou o óbvio:

“Esta placa fechou a saída!”

“Não podias ter sido mais cuidadosa?” Pelluria gritou. “Agora estamos presas por tua culpa! Eu não disse
que podia ter uma armadilha, sua tetuda f******-de-espadas?”

“Como eu ia saber que essa pedra ia afundar?” Meloine perguntou e ergueu-se mordendo o lábio inferior
com os dentões.
“Bem que a minha mãe dizia que quanto maiores os peitos, menor a cabeça.”

“Oh! Meus peitos não são maiores que a minha cabeça, pois têm o mesmo tamanho dela!”

“E estão ocas, essas três esferas!”

“Se és tão esperta assim, por que não me avisaste que o chão ia afundar?” Meloine apontou para o peito.
“E sabe que a princesa de Xexeres é escolhida pelo tamanho dos seios, pois estes são símbolo de inteligência e
sabedoria.”

“Já não chega estar presa aqui, ainda tenho que ouvir tais bobagens,” resmungou Pelluria.

“É natural que sintas um pouco de inveja por seres lisa feito uma tábua, elfinha.”

“Oh, até parece. Se eu tivesse bolotas desse tamanho, mal poderia andar! Me poupa, tá? E agora como
vamos sair daqui?”

“Não sei. Deixa eu ver essa porta.”

Esforçaram-se para empurrar a porta de volta ao interior da fissura de onde saíra, mas não moveu-se nem
um pouco. Prosseguiram na tentativa de encontrar um modo de abri-la por muito tempo, até que Meloine meteu a
ponta de sua espada entre a porta e a parede para usá-la como alavanca. Após forçar um pouco, a coelha acabou
partindo a lâmina da arma em dois pedaços e mais umas lascas.

“Ai, que espada vagabunda!” disse e jogou para longe o cabo que sobrara em suas mãos. “A porta não se
move!”

“É claro, a única forma de abri-la é utilizando aquela alavanca no corredor,” Pelluria falou. “Esta sala é
uma armadilha para aprisionar intrusos. Logo surgem as tais lâmias e agora, mais uma vez por tua culpa, estamos
com apenas uma espada.”

“Gulp! Deixa de ser reclamona, elfa, estamos no mesmo barco.”

Enquanto minha tia dizia que teriam os miolos comidos pelas lâmias, Meloine aproximou-se de novo da
janelinha através da qual ia olhar no momento em que a porta havia se fechado. Agarrou-se numa das grades e,
erguendo o rosto, viu haver uma vasta galeria do outro lado da abertura.

Lá estava uma grande e bem iluminada caverna, apesar de não se poder perceber de onde vinha esta
iluminação; apenas parecia proveniente de todos os lados ao mesmo tempo. O teto erguia-se até sumir de vista e
nas porções que podia-se enxergar apresentava estalactites ao redor das quais moviam-se e escondiam-se miríades
de pequenos morcegos. Já o chão, poucos metros depois da parede da sala ou cela em que as duas se encontravam,
acabava num precipício. De onde estava a coelha, não podia ver se era fundo, somente que era largo e que no
centro dele havia uma ponte de corda e madeira indo solitária até o outro lado, onde a galeria continuava. E nesta
continuação, após as mais de 50 tábuas que compunham aquela rústica ponte, a muita distância, a ultima coisa que
se podia notar era uma pequena casa de pedra construída à moda dessas que se vê nos vilarejos humanos, com
uma porta e janela e até mesmo um telhado. Sem dúvida era algo inusitado de se encontrar numa caverna
subterrânea, aquela pequena construção perdida numa ilhota no extremo de um precipício.

“Tem uma casa, tu vês?” Meloine perguntou, pois Pelluria já estava ao seu lado na janela.

“Claro que vejo! Mas não me perguntes o que significa, pois do Reino Subterrâneo nada conheço. E bem
queria continuar sem conhecer. Será uma casa de lâmias?”

“Sei lá, também nunca estive aqui. Oh, estou ficando cansada.” A coelha apoiou as costas na parede e foi
sentar-se no chão, onde abraçou as próprias pernas. “Logo vou mudar!”

“Mudar?”

“Sim, tu sabes. Não contei sobre a maldição?” perguntou Meloine, referindo-se ao que havia dito durante a
tarde na outra cela que dividira com a elfa. “Quase já não posso mais segurar a transformação, tenho medo! Elfa,
cuida dele para mim, por favor!”

“Dele, é?”

“Sim, lembras do que me prometeste quando estávamos lá atrás? Talvez ele possa ajudar a abrir a porta
com suas ferramentas de ladrão. Por favor, não deixes que nada aconteça com ele ou o mesmo acontecerá comigo!
Eu conto contigo!”

“Ai, ai.” Pelluria suspirou e andou até a porta, onde recostou um ombro. “As coisas pelas quais uma elfa
passa só para conseguir um pouco de vinho de graça... Eu devia é ter mantido boa distância daquele vilarejo onde
enchem a bunda das outras de chicotadas e só pesares sucedem. Mas não, tinha que ter acreditado no convite!
Aquele maldito taberneiro tinha razão...”

Após roçar seus dedos pelo metal enferrujado, sentindo-lhe a textura desagradável, Pelluria voltou-se e
para seu espanto estava realmente ali sentado, naquele lugar onde a mulher-coelho se encontrava até há pouco, o
mesmo homem que ela conhecera na noite anterior, na taverna do vilarejo. Vestia uma malha de ferro sobre alguns
panos azuis, trazia em uma mão um punhado de moedas e uma chave – a do quarto da estalagem, com certeza – e
na outra um amontoado de sacos de couro. Tinha no rosto tanta surpresa quanto minha tia, que ao assimilar o que
de fato havia sucedido, gritou assim:

“Pelo g**** ereto e imaculado de Sene! Era verdade!”

“Onde estamos?” perguntou o homem, olhando ao redor e deixando cair tudo o quanto segurava. “O que
aconteceu?”

“Então realmente pegaste meu ouro, seu... seu ladrão desaforado!”

Pelluria ajoelhou-se e com velocidade retomou os sacos de couro, depois recolheu as moedas e deixou
apenas a chave, por ser inútil, e com isso, pela proximidade com o dinheiro que julgava perdido, apesar de
continuar presa passou a sentir-se bem melhor. Foi ajeitando tudo ao redor da saia, nos bolsos e nos demais
lugares em que sempre punha seus pertences, à exceção de uma outra sacola que conferiu antes de falar dessa
forma:

“E ainda por cima havias roubado meus diários! Mas que atrevimento!”

“Não é verdade,” ele tentou se explicar. “Apenas recolhi-os porque havias adormecido e caíram pelo chão
todas tuas coisas.”

“Não adianta tentar me enganar que a coelhinha já me contou tudo!”

“Gulp! A Meloine?”

Pelluria explicou a Gustaff Olafson o que se passara durante o dia, falou sobre como ela e a coelha tinham
ido para as masmorras e também sobre como haviam acabado ali no mundo subterrâneo. Terminou por confirmar
a suspeita que ele já tinha na noite anterior de não ser a nossa elfa nenhuma princesa.

“Então, por culpa daquela coelha tonta, estou agora aprisionado no reino das lâmias.” Apressado, ele foi
verificar a porta. “Não entendo como ela fez tudo o que disseste se, antes de me transformar, bebi um sonífero
com a finalidade de mantê-la adormecida durante o dia inteiro.”

“Pois ela estava bem desperta, aquela coelha tarada e onanista! Cometeu as mais inacreditáveis
atrocidades, coisas que não poderia fazer se dormindo estivesse!”

Ignorando o que lhe havia pedido Meloine, minha tia contou ao homem sobre as atitudes desavergonhadas
da coelha, as quais culminaram na tão indecorosa profanação da Cerejeira Sagrada.

“Não pode ser!” ele replicou depois de ouvir com atenção ao que Pelluria disse. “A coelha Meloine mais
tem de simplória que de indiscreta. Não é nada donzela mas também não chega a tal ponto!”
“Nem indiscreta e nem simplória, a coelhinha estava era subindo pelas paredes. Até a mim, eu que sou
mulher, tentou agarrar!”

“Será que o sonífero causou algum efeito inesperado em Meloine?”

“Ou isto ou essa é característica dela que desconhecias,” observou Pelluria, estranhando que ele
defendesse tanto a honra da outra.

“Eu devia ter indagado à herborista se a mistura funcionaria no organismo duma mulher-coelho, porque
deve ter a constituição diferente da dos humanos.”

Após dar alguns passos, ele foi ajoelhar-se próximo ao esqueleto.

“Ei, tu estás sentindo dor?” Pelluria perguntou, pois havia notado que ele estava inquieto e desde que
surgira parecia procurar uma posição que aliviasse-lhe o sofrimento.

“Hã? Ah, não, não,” ele respondeu envergonhado, mas sua voz também deixava perceber sinal de estar
passando por algum martírio.

A elfa sorriu maliciosa e perguntou, com as mãos na cintura:

“Ei, tu estás com dor na bunda?”

“O quê!?”

“A coelhinha tarada contou-me que toda a punição infringida ao corpo de um de vós faz-se sentir no do
outro,” explicou Pelluria. “Então, depois de tudo aquilo que sucedeu a ela, creio só poder ser natural que te doa o
bumbum!”

“Aaaaah!” Suando frio, ele pôs de súbito as mãos nas nádegas, pensando apenas o pior após tudo o que
ouvira sobre as perversões praticadas pela mulher-coelho. “O que foi que aquela coelha maluca andou fazendo?”

“Oh, foi terrível,” falou Pelluria, esfregando sua própria traseira. “Eu o digo porque sofri o mesmo. Ou
quase o mesmo! Pois é o seguinte: quando estávamos presas, chibataram-nos as traseiras até nos tirarem delas a
pele! E depois, como castigo pelos crimes que praticou a coelha, ainda deram mais 70.000 pauladas de palmatória
na infeliz, razão pela qual deves estar agora descadeirado.”

“Ufa! Então foi só isso,” Ele respirou aliviado. “Ainda bem.”

“Só isso?” Pelluria virou o rosto para o outro lado e pensou um pouco, após o que prosseguiu: “Oh!
Imaginaste que ela tivesse... Pervertido! Que mente suja!”

“Eu não sou pervertido,” o outro respondeu. “Mas depois do que disseste sobre ter ela protagonizado
tantas temerosidades e sandices, não soube o que pensar.”

“Mas quer dizer que se ela tivesse posto em prática tais patifarias que percorreram tua imaginação
perversa e as quais eu, com toda minha inocência élfica, desconheço, sentirias as conseqüências?” Pelluria
prosseguiu inquirindo de forma debochada e fazendo um circulozinho com uma mão. “Nossa, deve ser bastante
desagradável acordar sem saber o que andaram fazendo com nosso corpo no dia anterior, ainda mais quando é
uma coelha maluca e endiabrada a se apoderar dele!”

Mais preocupado em encontrar uma saída daquela sala, Gustaff Olafson já ignorava as burlas de minha tia.
Então, também voltando seus pensamentos para este fim, ela aproximou-se do canto que ele vasculhava nas
proximidades da porta da cela e perguntou-lhe “Mas onde estão tuas armas, as quais Meloine disse que
apareceriam contigo?”

“Eu tenho um estilete,” respondeu ele.

“Só?”
“É bem afiado. E mesmo com minhas ferramentas, não vejo como abrir a porta se ela não possui
fechadura.” Ele foi para perto da janela e do bloco que Meloine fizera afundar. “Talvez se pudermos remover esta
pedra, venha a revelar-se o mecanismo da armadilha.”

Passaram a tentar retirar o bloco de pedra de onde estava, com o auxílio da espada que Pelluria trazia e de
outras ferramentas que ele tinha numa pequena sacola presa à cintura,mas não havia maneira de executar tal
tarefa.

“Como foi que te juntaste à Meloine?” perguntou a elfa enquanto prosseguiam naquele trabalho. “De que
forma acabaram os dois amaldiçoados?”

“Então ela não te contou? Bem, com certeza notaste aquela jóia azul que ela carrega metida no inchado
peito, não é verdade?”

“Heheheh, sim!” Pelluria havia decidido não falar nada sobre mais este roubo de jóia de que havia
participado e fazendo isto atendia a pelo menos um dos pedidos da coelha. “Meloine disse que era a jóia de
Xexeres, a aguamarinha mágica ou algo do tipo, mas nada falou sobre a forma como obteve a mesma, tendo
apenas contado que é por causa dela perseguida pelas outras mulheres-coelho de seu clã. Ela acredita ter a jóia a
capacidade de reviver o deus das coelhas ou algo assim.”

“Bobagem, reviver Xexeres é uma crença tola daquele clã, apesar de ter realmente a jóia certos poderes.
Bem, devo contar desde o início, então. Há vários meses, já quase um ano, tomei o conhecimento das histórias
sobre o povo das mulheres-coelho que vivem no sul e sobre este artefato mágico que possuíam, o totem de Qui-
Gon Jin, herdado do desaparecido povo dos homens-tigre. Dizem terem sido também adoradores de Xexeres, os
tais homens-tigre, e são os lendários habitantes originais do Pacivinico, região possivelmente submersa nas
proximidades da ilha das mulheres-coelho, sendo a própria ilha, segundo os que nisto tudo crêem, um restolho
daquele continente. Tudo o que digo contou-me ancião muito recluso e de estranhos hábitos que vive aqui perto
desta província de Orqushire e também através dele eu soube que o totem, da mesma forma que a aguamarinha de
Xexeres, mas em maior extensão que esta, possuía o poder de moldar a carne, sendo por causa da sua habilidade
de transformar em tigres os homens que é nomeada da forma como é a raça destes que o possuíram antes das
coelhas. Comprei do velho asceta, embora já tenham dito que eu o tivesse roubado, um pergaminho contendo o
texto mágico que deve ser lido diante daqueles objetos sagrados por quem deseja o dom de ser por eles
transformado num tigre. E com este objetivo decidi viajar em seguida até a ilha de Xexeres.”

“Ui, não leva a mal,” Pelluria disse, “mas deixa que eu pergunte uma coisinha para ver se entendi. Então,
sem mais nem menos, ouviste sobre este totem e esta jóia mágicos que podem transformar pessoas em tigres e
foste atrás deles?”

“Isso.”

Pelluria olhou para Gustaff Olafson sem dizer nada.

“Qual o problema?” ele perguntou. “Se estas mulheres são metade humanas e metade coelhos, por que não
podem elas ter uma jóia que transforma pessoas em tigres?”

“Hm, bom, até tem uma certa lógica. E num momento de instabilidade emocional também já acreditei em
algumas tolices sobre jóias mágicas de semelhantes propriedades.” Pelluria lembrou-se da fadinha. “Mas digamos
que tal gema pudesse fazer tal coisa, então por que alguém em sã consciência iria querer virar um tigre?”

A isto respondeu Gustaff Olafson:

“Com o poder de me transformar num tigre quando quisesse, nada poderia me deter e eu seria o ladrão
mais poderoso e rico do mundo.”

“Oh, então o tal totem poderia te mudar de tigre para pessoa e pessoa em tigre conforme a tua vontade?
Que tolice a minha, pensei que ia te transformar em tigre para sempre. Ai, ai, cada uma que me aparece.” Pelluria
parecia interessada na história apenas porque, estando presa naquela sala, não tinha mais o que fazer. “Bom, então
o que aconteceu quando foste para a ilha?”
“Cheguei lá escondido num navio de comércio e invadi a ilha durante a noite, pois a rainha das coelhas
não permite a entrada de humanos naquele lugar.”

“Eis que surgiu-me outra dúvida muito interessante!” interrompeu a elfa. “As coelhas são todas mulheres?
Quer dizer, não existem homens-coelho ou algo do gênero?”

“Não vi nenhum, todas que encontrei eram mulheres. Devem existir, contudo. De que outra forma
nasceriam os daquela raça?”

“Hmm, pois é. Já imaginaste? Homens-coelho! Quer dizer, deve ser engraçado, né?”

“Mas dando prosseguimento à história de meu infortúnio, entrei no castelo da rainha das mulheres-coelho
e não facilmente atingi o nível inferior de suas masmorras, por serem verdadeiro labirinto. No centro do mesmo, o
qual encontrei com dificuldade ainda maior, havia uma sala na forma de capela com altíssimas paredes azuladas,
mantidas por colunas todas feitas do mesmo material precioso da jóia de Xexeres, tudo brilhando muito, de forma
que a única cor visível no local era o azul, como se nos cobrissem os olhos com vidro de tal tonalidade. Diante
duma grande lareira ou fornalha, que sabe-se lá com qual propósito era mantida acesa, e cujo fogo também tinha
sobrenatural cor azulada ou quase branca, havia um altar do deus Xexeres com seu símbolo talhado diversas vezes
na pedra. Sobre aquele altar, repousando numa almofada, estava a jóia, e ao seu lado, o totem, que era pequeno;
aparentava ser de madeira comum e tinha a mesma forma das imagens do deus Xexeres.”

“A mesma forma, é? Quer dizer, a de uma cenoura como aquela que vi em teu peito na estalagem?” A elfa
riu um pouco. “Mas está bem, já pude sentir o drama, conta-me logo o que aconteceu e encurta esta narrativa, pois
dos aposentos das mulheres-coelho não faço questão de conhecer os detalhes. E quero saber como isso acaba antes
que as lâmias venham e devorem-nos os miolos.”

“Pois lá, sentada num canto ao lado da lareira, estava a coelha Meloine,” continuou Gustaff Olafson.
“Deveria estar guardando a jóia, mas sua lança estava apoiada na parede e seu capacete de metal repousava no
chão, próximo de um amontoado de talos de cenouras, provavelmente sobras de uma refeição recente.
Encontrava-se adormecida, roncava alto e trazia vestidas aquelas mesmas roupas e armas que deves conhecer, já
que a viste.”

“Hã? Ela era uma vigia?” Pelluria interrompeu mais uma vez. “Pois ela tinha me dito que era a princesa de
Xexeres!”

“É verdade, ela havia sido a princesa herdeira de Xexeres. Mas, como sei agora, fora rebaixada a simples
serva do castelo e trabalhava ora como cortesã, ora como vigia, por motivos que apenas suspeito serem de extrema
gravidade, tamanha a punição. Não posso imaginar quais sejam tais motivos, contudo, pois é algo que a coelha
prefere morrer a revelar, além de que não tenho muito contato com ela, como podes notar.”

“Mm, sim, agora lembro-me de que ela disse ter sido deserdada. O que será que a taradinha fez?” Pelluria
pensou em perguntar isto para Meloine caso saíssem com vida da emergência em que se encontravam.

“Aproveitando-me do sono da vigia,” disse Gustaff Olafson, “desenrolei o pergaminho e li em voz baixa
as primeiras palavras dele, ao término do que passou a jóia de Xexeres a emitir um cintilante brilho. Já o totem
tornou-se claro e transparente como se sua madeira se tivesse convertido em vidro, confirmando estar pronto para
o resto do encantamento. Mas infelizmente o brilho, por ser demasiado intenso, fez despertar aquela mulher-
coelho de peito hipertrófico.”

“Oh, então também reparaste na envergadura dela?”

Neste ponto da conversa já estava ele segurando um artefato similar a pequena e fina estaca de metal;
apoiava-o numa das pedras vizinhas àquela a qual lutavam por erguer e nele batia com o cabo de espada restante
da desastrada tentativa da coelha de abrir a porta.

“Dando-se conta do que sucedia, veio a coelha para tirar-me da mão o totem, pois eu o havia recolhido no
intuito de dar prosseguimento ao ritual. Puxando de forma desastrada, ela fez com que voassem totem e
pergaminho, indo tudo parar no interior da lareira e tornando-se naquele instante o fogo e a claridade do local
muito mais fortes, chegando o brilho a ofuscar-nos as vistas como se tudo explodisse. Corri para um lado da mesa,
para contorná-la e alcançar a lareira antes que dano permanente acontecesse com a relíquia, e enquanto metia o
braço dentro daquele fogo de origem mística, senti cair sobre minhas costas todo o peso da mulher-coelho, pois
havia se jogado de cima do altar. Seu capacete havia voado para longe e se não me tivessem acertado em primeiro
lugar os dois abundantes seios, amortecendo o choque, ter-me-ia partido as vértebras, mas ao invés disso a
estabanada jogou a nós dois no interior da fornalha. Sobreveio clarão que bloqueou-me todos os sentidos, de
modo que nem o chão podia perceber e nada mais via além de luz azulada por todos lados, abaixo e acima; nem o
peso da coelha Meloine notava mais, pois o corpo dela parecia ter passado através do meu. Este desespero
aparentou prolongar-se por horas e pensei estar morto, pois não podia mover-me, além de nada mais ter ouvido
após um ruído de vidro se partindo. E quando voltei a mim não sei quanto tempo depois, disseram-me terem sido
dias, estava cercado por várias das mulheres-coelho, a rainha delas visivelmente irritada pela perda do totem, pois
este fora destruído. E as demais logo revelaram-me estar eu preso à princesa Meloine pela maldição resultante da
quebra do amuleto, motivo único pelo qual pouparam-me a vida e evitaram que me fosse causado qualquer mal.
Passei todo o verão em área restrita do castelo, alternando minha existência com a da coelha de forma que a minha
tentativa de adquirir o totem redundou em prisão. Ajudava-me a entender Meloine apenas a mais jovem de suas
irmãs, e embora Meloine não pudesse ler, isto era algo que eu podia fazer, então, no intuito de descobrirmos uma
forma de anular os efeitos da maldição, encontramos no castelo textos sobre a jóia de Xexeres. Tais escritos
revelavam a existência de duas pedras semelhantes, uma que havia sido de um antigo rei dos elfos sombrios e
outra pertencente à famosa rainha Tchuma-Enthofa, atrás da qual decidimos partir. Numa noite a coelha Meloine
apoderou-se da aguamarinha e, não sei de que forma (mas parece-me que utilizou uma catapulta gigante), fugiu da
ilha, vindo parar no continente, nas proximidades de Arai. Prosseguimos em longa viagem até o norte, estando
sempre atrás de nós as guerreiras da rainha-coelha Malória; e depois, pelo mar, fomos até o feudo sagrado onde
Tchuma-Enthofa mostrou-se incapaz de reverter a maldição: a rainha Tchuma-Enthofa dizia conhecer uma única
forma de fazê-lo, mas desta maneira um de nós dois não sobreviveria. Revelou-nos contudo que seria realizado em
Orqushire um conclave onde tratariam de jóias semelhantes a de Xexeres, pois existiam várias outras, e talvez
pudéssemos obter mais informações sobre a aguamarinha com o grão-duque de Orqushire, conhecimento este que
ela também queria, e que se trouxessemos para ela a esmeralda do grão-duque, é possível que esta pedra ampliasse
o poder do rubi dela e possibilitasse-lhe separar-me de Meloine sem danos. Assim, Tchuma-Enthofa permitiu-me
vir até o vilarejo como seu enviado, tendo ela própria receio de mandar alguns de seus súditos, pois não confia nos
humanos do continente. Agora, porém, não vejo como poderei entrar em contato com o grão-duque, tudo por
culpa daquela coelha. Está sempre fazendo algo errado, se tivesse ficado dormindo na estalagem como prometera
que ficaria, e pelo que bebi um sonífero para confirmar, certamente agora estaria eu com o grão-duque.”

“Rrrnc! Zzz... hã? Ah, desculpa, eu tô meio cansada.” Pelluria esticou as costas, donde veio som de estalo,
bocejou e foi apoiar-se num canto. Pôs-se nas pontas dos pés diante da janelinha na parede, mas após uma olhada
a principio desatenta, encolheu-se pálida e de olhos arregalados, as mãos na parede como se esta fosse cair se a
deixasse.

“O que foi que houve, elfa?” perguntou-lhe Gustaff Olafson, estranhando a atitude dela.

Minha tia apontou para a janela e gaguejou alguma coisa. Ele foi até ali, mas ela empurrou-o dizendo em
voz baixa e apressada “Nãão! Tem uma lâmia! Não deixes que te veja ou ela vai vir nos comer!”

Foram um para cada lado da janela e, com cuidado, prontos para se esconderem a qualquer momento,
viram a lâmia atravessando a ponte no precipicio, já a mais da metade dela. Estava de costas, tinha cabelos negros
indo até a cintura, onde começava a gigantesca cauda de serpente muito grossa e de aparência pesada e úmida.
Enrolada sobre si mesma, a cauda ia impulsionando aquela mulher-cobra e contrastava com a pele clara da parte
superior de seu corpo, onde era humana, apesar da pele também parecer úmida.

A lâmia tinha várias argolas de metal bem presas ao redor dos braços finos, mas de músculos e ombros
salientes, e em cada mão carregava uma tocha apagada, bem podendo ser as que Pelluria e Meloine haviam
deixado para trás. Uma tira de couro envolvia-lhe a cintura esguia, na frente desta parecia estar presa uma espada,
escondida do outro lado daquela mistura arredondada de nádegas com escamas que, muito protuberante, movia-se
de forma peculiar em ritmadas e hipnóticas ondulações.

A criatura foi rastejando até o outro lado da ponte, sacudindo-a toda, não sei de que forma mantendo o
equilíbrio sobre ela, e lá chegando abriu a porta daquela casa no fim da galeria; entrou na mesma e sumiu logo em
seguida. Neste exato momento, tão inesperado quanto das outras vezes, repetiu-se o som de metal e correntes logo
reconhecido pela elfa como sendo o da porta da cela, que com efeito deslizou para o interior de seu
compartimento na parede, deixando reverberante eco e não mais sutil tremor no chão.
Pelluria, já bastante exaltada pela visão da lâmia – mais pelo fato da criatura ter a parte inferior do corpo
similar à cauda de um réptil de que desgostava do que por medo puro, porque em verdade minha tia era mais
exagerada e escandalosa do que medrosa – saltou e agarrou-se em Gustaff Olafson. E como se o estrondo não
tivesse atordoado suficientemente o humano, a elfa começou a gritar e a subir pelas costas dele.

Desequilibrou-se Gustaff Olafson com o peso da minha tia e caiu prensando-a contra a parede, onde uma
batida na nuca findou a histeria e provocou um desmaio. Quando ela voltou à consciência poucos segundos
depois, estava deitada no chão, Gustaff Olafson a examinar sua cabeça num lado e no outro o homem que estivera
aprisionado com Pelluria e Meloine na masmorra do templo. Este ultimo ainda estava vestindo o uniforme de um
dos soldados do grão-duque, à exceção do capacete, o qual já não trazia mais.

“Ooh...”

Pelluria apoiou-se nos cotovelos para logo se levantar.

“Não era uma lâmia, elfa,” disse Gustaff Olafson, apontando para o outro.

Pelluria reconheceu-o e perguntou, enquanto massageava a própria cabeça:

“O que estás fazendo aqui?”

E ele respondeu o seguinte: “Os soldados de Orqushire foram atacados na entrada do Reino Subterrâneo.”

“O que? Por quem?”

“Por cavaleiros de Dravísios em armaduras escuras. Foram dizimados, os humanos. Durante o ataque,
entrei no túnel subterrâneo com a intenção de vos encontrar. Mas vejo já não estar mais a mulher-coelho contigo.”
O homem fixou o olhar em Gustaff Olafson. “Posso vê-la em teu interior.”

O olhar do estranho causava incômodo. Gustaff Olafson falou:

“Hã? Então todo mundo já sabe...?”

“Este é o homem que esteve comigo e com a Meloine na prisão, conforme te contei há pouco,” Pelluria
explicou. “A coelha também disse para ele que se transforma em ti.”

“Ah.”

“Foste tu quem abriu a porta desta sala?” a elfa perguntou ao recém chegado.

“Sim, encontrei uma alavanca lá atrás.”

“Que bom, então vamos sair daqui antes que surjam as lâmias!” Pelluria foi para a entrada do corredor,
onde nada enxergava. “Tens uma tocha?”

“Não.”

“Então como encontraste a alavanca?”

“Não preciso de fogo para ver.” O estranho foi até os archotes e arrancou um deles da parede com
facilidade, deixando formidável rachadura no bloco de pedra. “Ao contrário de vós.”

Pelluria segurou a fonte de luz oferecida por ele, não sem estranhar o modo como fora extraída da parede,
e partiram todos. Regressaram rapidamente àquela bifurcação onde elfa e coelha tinha deixado as tochas, das
quais agora nem sinal restava.

Minha tia manifestou o desejo de voltar para a superfície, para logo em seguida deixar a província; dizia já
deverem estar longe da entrada os soldados de Dravísios de que o outro falara, em provável ataque ao vilarejo.
(Pensava também, é verdade, em planejar um meio de reobter sua espada, confiscada pela duquesinha.) Mas o
estranho pretendia continuar a busca pela esmeralda e lembrou Pelluria de que os de Dravísios bem podiam saber
do paradeiro da jóia, não sendo nenhuma surpresa se tivessem deixado alguns vigias guardando a passagem ou até
mesmo se enviassem alguns dos seus atrás da pedra preciosa.

Isto confundiu a elfa e indeciso também estava Gustaff Olafson, pois não sabia se o melhor para ele seria
regressar ao vilarejo para entrar em contato com o grão-duque, como era seu plano inicial, ou se deveria continuar
na busca, tanto porque a esta altura já podia estar a vila sob ataque bem como porque poderia ele aproveitar-se da
jóia da duquesa para seu uso pessoal. Quem sabe em conjunto com a de Xexeres, que ele acreditava estar ainda
em posse de Meloine, não teriam as duas pedras poder suficiente para terminar com a maldição da qual ele era
vítima, como tinha sugerido a rainha Tchuma-Enthofa?

Logo foram-se as dúvidas, pois ao encolher-se para tomar a rota da saída, Pelluria viu quatro barras de
ferro interditando a passagem. Formavam uma grade impossível de remover, pareciam ter descido do teto do túnel
para cravarem-se e enterrarem-se no mais profundo do solo.

“Estas grades não estavam aí antes!” ela gritou.

“Evidente que não, pois há pouco atravessei por esta entrada,” disse o estranho.

“Será outra armadilha?” perguntou Gustaff Olafson, aproximando-se para ver também.

“Tu não podes... hã, empurrar ou puxar as grades como fizeste com o archote?” Pelluria perguntou e o
estranho foi verificar as barras; ele disse estarem muito firmes, apesar de não parecer ter realmente tentado movê-
las. Ou isto ou minha tia estava deixano o medo dominá-la e deixá-la paranóica.

Seguiram pela passagem na terra, a única restante, para desagrado de nossa elfa, e este caminho, ao modo
do outro, de pequeno túnel transformava-se em longo corredor onde podiam andar até duas pessoas lado a lado. Ia
o estranho na frente e Pelluria e Gustaff Olafson atrás dele, a elfa carregando a tocha.

Prosseguiram por muito tempo, atravessaram grande distância por caminhos nada retos, com uma ou outra
pequena rampas. Em certo ponto surgiu parede de pedra muito sólida para bloquear a passagem, recoberta de
musgo; no centro desta muralha, numa abertura entalhada na rocha, estava uma porta de madeira, grossa e
adornada por detalhes de ferro, e um pouco úmida. Tinha fechadura como uma porta comum e estava trancada. E
perdida ali no meio da pedra bruta, não parecendo pertencer àquele lugar, a porta deixava passar claridade vinda
do outro lado por uma espaçosa folga em seu topo. Marcada em sua madeira estava uma linha de símbolos com
significado desconhecido pelos três viajantes.

Gustaff Olafson meteu um ferrolho na fechadura e pôde destrancá-la.

Logo ao atravessar a abertura, entraram em caverna de proporções majestosas. Havia nela pedregulhos e
rochas espalhados por todos cantos, alguns fazendo muros ideais para emboscadas, outros formando rampas
levando para pequenas galerias ou para lugar nenhum, muitos aparentando ser o resultado de desabamentos. Por
todas as paredes e também por colunas formadas pela união de estalagmites com estalactites, estavam presas
tochas e archotes, na maioria acesos. E a boa distância podiam ver a galeria da ponte, aquela já avistada, porém
por outro ângulo, na sala do esqueleto. Era a mesma, certificaram-se. Lá estava a abertura gradeada numa das
paredes, donde se podia ver o interior da cela, e do outro lado da ponte, a estranha casa onde entrara a lâmia.

Foram se aproximando da ponte.

Pelluria estremeceu, não sabia se pela sensação de estar sendo observada ou se pela brisa bastante fria
vinda do precipício adiante para meter-se sob sua saia. Devia ser o meio da noite, pensou, e o Reino Subterrâneo
era bem mais frio que a superfície.

Com o cuidado inspirado pela situação, chegaram todos à beira da ponte. Não podiam ver o fundo do
precipício e naquele ponto o ar deslizava com tanta pressa por entre as pedras que produzia som assustador,
lembrando o uivo de lobos selvagens. Nossa elfa regressou alguns passos, pois a proximidade com aquele fosso
causava-lhe vertigem, e viu por trás da casa, erguendo-se lá do outro lado, gigantesca construção de rocha negra e
lisa como se tivesse sido polida; parecia uma torre conectada às próprias paredes da caverna e perdia-se no fundo
do precipício e também no teto, por onde ia se afilando.
“Conforme nos aprofundamos neste mundo subterrâneo, surgem mais e mais modificações não naturais na
estrutura da caverna, tudo indicando a presença de lâmias como aquela que há pouco vimos entrando na casa,”
Pelluria disse com o olhar perdido na bizarra arquitetura que misturava uma casa humana com uma torre de pedra.
“Muito me incomoda vir por aqui.”

“Tudo indica ser o caminho correto,” o estranho respondeu em seu tom habitual, já pisando na ponte para
testar sua firmeza. Nada parecia alterá-lo, mantinha-se do mesmo modo desde que fora encontrado por Pelluria na
cela, onde já não demonstrava grande preocupação com coisa alguma além das jóias. “A esmeralda está daquele
lado, posso sentir.”

“Então vamos nos apressar,” sugeriu Gustaff Olafson.

“A jóia, a jóia! Só quereis saber disso!” gritou Pelluria, sacudindo numa mão a tocha e na outra a espada.
“Esquecestes de que somos só três? O quanto vale uma jóia, se por ela perdemos nossas vidas? Não mais do que
vidro, eu digo. Já tive aquela pedra em mãos e nada me trouxe além de bolotas, chibatadas e coelhas pervertidas.”

“Não há outro caminho, elfa da madeira,” disse lá da frente o estranho, seus cabelos sacudindo com o
vento.

“Ele tem razão, Pelluria.” Gustaff Olafson tocou um dos ombros da minha tia e ela abaixou os braços
inconformada. “A saída está fechada e só resta este caminho. Se a frente podem estar as lâmias, atrás vêm os de
Dravísios.”

“Como sabes? Como podemos confiar nele?” Pelluria perguntou, deixando a espada no chão. Estavam
mesmo entre dois fogos? Passou os dedos sobre uma das bochechas sardentas e disse: “Só quero sair daqui.”

“Pois busquemos por uma saída do outro lado, que deste não há nenhuma,” respondeu Gustaff Olafson. “E
aqui somos alvo fácil. Se adiante houver passagem levando para a jóia e passagem para a superfície, tomaremos a
segunda. E se não estiver o vilarejo em perigo, encontraremos o grão-duque para resolvermos este mal entendido,
pois tem fama de sensato e, com o que tenho a explicar, te deixará livre. Vamos, não tenhas medo.”

“Pois não se trata de ter medo,” Pelluria disse. “A verdade é que se eu não tivesse tido a idéia de ir para o
tal vilarejo, não teria passado por tudo isto e não estaria correndo riscos em busca de algo que não me pertence e
que certamente não ficará comigo. Trata-se de arrependimento, eu digo.”

“E por acaso não entendo de arrependimento, tendo encontrado o que encontrei quando fui em busca do
totem das mulheres-coelho?” perguntou Gustaff Olafson. “Não nos é dado conhecer o que nos reserva o futuro.”

“Estou cansada.” Pelluria pegou de volta a espada. O estranho, após lançar-lhe olhar de desprezo,
prosseguiu pela ponte. “Só quero sair daqui e voltar a buscar o que é meu, pois parece que caí no meio de algo que
não entendo e pelo que já sofri mais do que deveria. Para mim chega dessa história de jóias.”

Foram Gustaff Olafson e Pelluria atrás do estranho, ele já estava na metade da ponte. Logo nas primeiras
tábuas, tudo tremeu e sacudiu; a madeira era frágil e parecia estar mal atada e a ponto de se desmanchar.

Pelluria desequilibrou-se. Precisava ter pelo menos uma das mãos livres para segurar-se nas cordas, por
isso, e para não cair ela própria, deixou que se fosse a tocha: o fogo foi diminuindo até perder-se no abismo, e a
elfa, assustada, sentiu o vento fazendo subir sua capa e também a saia. Pensou em tentar evitar que esta se
erguesse demais, pois era curta, mas não pôde tirar nenhuma das mãos de onde estavam.

“Aaah, não olha!” ela gritou sem se mexer, ainda curvada e agarrada numa das bordas da ponte; dali
bloqueava os passos de Gustaff Olafson, que disse:

“Eu não estou olhando, mas não me deixas passar!”

Então ele pegou-a pelo braço; Pelluria apoiou-se nele e, com a mão em que tinha a espada, segurou a saia.
Quando já estavam próximos do fim da travessia, ela viu que a casa e todo o lugar para onde conduzia a ponte
eram apenas o cume de uma coluna de pedra isolada no meio do precipício. Para trás estava aquela parede de
rocha inclinada e lisa, mas era fechada e não havia como fazer a volta nela para ver o seu outro lado. Era
inacessível, aquela estranha torre.
Diante da casa, tendo já o vento parado de molestar-lhe as pernas, Pelluria respirou aliviada por estar
novamente pisando chão firme. O estranho abriu a porta bem simples e fina da construção, estava apenas
encostada; ele foi o primeiro a entrar e depois vieram relutantes os outros dois.

Nada havia lá dentro. Estava um pouco escuro, o que fez a elfa arrepender-se de ter perdido o archote, mas
logo que os olhos se acostumavam bem podia-se ver todas as paredes da construção. Era um cubículo pouco
maior do que a cela com o esqueleto.

É uma armadilha, iria dizer Pelluria, mas o estranho apontou para o chão de madeira, o qual produzia sons
nada maciços quando andavam sobre ele. Ali havia uma portinha semelhante às de porão. Seria imperceptível não
fosse uma argola de ferro pela qual ele puxou e abriu o alçapão.

“Não devias fazer isso!” reclamou Pelluria. “Podia ter uma armadilha!”

“Não grites, elfa,” pediu Gustaff Olafson. “Irás alertar as lâmias da nossa presença.”

“Ai, é mesmo!”

Ela cobriu a boca com uma das mãos e foi olhar o que havia sob aquela portinha. Lá estava uma escada
reta, dessas construídas com dois bambus paralelos entre os quais se amarram vários pedaços de madeira para
formar os degraus; era bastante comprida, levava para um poço ou gruta abaixo da casa. A borda superior se
prendia no teto da cova, que era o chão da casa, e a inferior repousava em solo de terra salpicado por pedregulhos.

“Vamos prosseguir,” o estranho disse e foi de novo o primeiro a avançar.

Pelluria continuou olhando para a abertura, imaginava como poderiam as lâmias descerem por uma escada
dessas se não tinham pernas. Por fim, acabou indo atrás do estranho.

Abaixo, várias saídas partiam do fosso e iam em todas direções, cada uma se abrindo em túnel que deixava
passar duas pessoas juntas e de cada uma vindo luz de tochas.

Ao fim da primeira passagem tomada por eles (pelo simples motivo de ser a mais próxima) havia uma sala
que parecia peça de casa humana, mas com as paredes de pedra. Tinha num extremo um armário com algumas
prateleiras repletas de livros e, no centro, uma mesa de tábua escura, onde repousava lamparina acesa. Uns
banquinhos ficavam ao redor, uma pilha de quadros apoiava-se num canto, próxima duma cortina branca que
cobria por inteiro uma das paredes; da cortina emanava adocicado perfume, lembrando o odor de flores.

Gustaff Olafson examinou os quadros, viu serem pinturas das mais variadas, de paisagens e retratos de
pessoas, mas nenhuma famosa ou de grande valor. As molduras, entretanto, eram belas e adornadas por jóias,
talvez pudessem ser vendidas por bom preço se ele tivesse como transportá-las dali.

Enquanto isso, Pelluria aproximava-se do armário. A prateleira mais inferior continha, entre os livros, uma
caixa de madeira abarrotada de moedas de muitos tamanhos e cores. A elfa pegou bom número delas, havia até
algumas raras de prata, e as embolsou sentindo-se um pouco melhor do que quando reclamava antes de atravessar
a ponte. Pelo menos servira toda aquela andança para alguma coisa. Se deixasse esta província com vida, levaria
bom dinheiro.

Ela ia dizer que aquela devia ser a sala onde as lâmias guardavam seus saques quando ouviu um som
diferente: era uma voz fina e baixa, cantava triste canção numa linguagem desconhecida. Mas a voz reconheceu
muito bem. Vinha abafada, e vinha de trás da cortina que logo afastou.

Mais uma passagem se revelou, era uma porta escavada na parede; e atrás dela havia outra sala. Desta
apenas o centro era visível e nele estava mesa entulhada de tecidos, panos e peças de couro e seda, incluindo
coletes de armaduras, vestidos, saias e até corpetes; ao redor, espalhavam-se pelo chão pilhas de barris e caixotes,
bem como várias outras lamparinas de óleo.

Não se via as paredes laterais daquele depósito, ou por estarem muito afastadas ou por não existirem, e na
de trás, a boa distância após a mesa, havia apenas cortina vasta de panos perdidos no breu; e naquele lado o cheiro
doce era ainda mais intenso e agradável, se se fechasse os olhos tinha-se a sensação de se estar em campo florido e
não groto escuro.
A elfa correu em direção à mesa, que era de onde vinha a voz; viu pequena caixa com gravetos de madeira
a constituírem grades, era uma gaiola à moda das usadas para conter passarinhos e estava cercada por algumas
taças de cristal, apenas uma delas contendo líquido transparente e viscoso que bem poderia ser vinho branco. E
dentro da gaiola estava a fadinha, aquela mesma do nosso primeiro capítulo. Mas, a não ser pelas botinas em seus
pés, totalmente despida. Quando percebeu que chegava gente, a fada cessou a cantoria e de imediato bateu as asas,
arrancando-se do chão e chocando-se contra o topo da caixa para em seguida cair de quatro.

Pelluria pegou o caixote e aproximou-o do rosto, fazendo a fadinha dentro dele deslizar dum lado para o
outro.

“Aai, pára! Pára!” zumbiu alto a pequena. “Tá me machucando! Socorro!”

“Hahahaha!” Pelluria balançou ainda mais a gaiola e tinha um sorriso enorme que espantava tanto o
estranho quanto Gustaff Olafson, estando já um de cada lado dela. “Nos encontramos de novo, não foi, dona
fadinha?”

“Socorro! Socorro!” A fada meteu o rosto entre as grades e pediu ajuda aos outros dois. “Fazei ela me
soltar!”

“Toma! Toma! Isso é por todas bolotas de maculóphyta que estão por tua causa na minha bunda!”

Minha tia virou a gaiola e a fada caiu sentada nas grades, suas nádegas foram de encontro as mesmas e se
encaixaram entre elas feito as pontas de dois polegares postas lado a lado.

“Ai! Como foi que essa elfa meretriz chegou aqui?” berrou a fadinha, depois de se desprender.

“O que?! Pede desculpa, desaforada!” Pelluria enfiou o dedo por entre os gravetos e passou a cutucar a
pequena. “Se não fosse por ti, sua barata voadora, eu não estaria aqui!”

“NHECT!”

“Aaai! Me mordeu! Solta! Solta!”

Provocando terremoto para a fada, a elfa deixou cair a gaiola na mesa e meteu o indicador dolorido entre
os lábios. Gustaff Olafson aproximou o rosto das grades para ver se depois daquilo ainda estava viva a criaturinha.

“Uuuui...” A fada ergueu-se devagar e, ao ver Gustaff Olafson, cruzou as pernas e cobriu com um dos
braços os dois pontinhos vermelhos que eram os seios, pois os tinha, bem como tudo o que tem mulher comum,
inclusive a vergonha de mostrá-los. “Me ajuda, me solta! Essa elfa maluca quer me matar!”

“Ela é tão bonitinha,” Gustaff Olafson disse e foi tentar abrir a portinha, também construída com gravetos.

Balançando as asas brilhantes sem sair do lugar, a fada agradeceu dizendo que concederia a ele mil
desejos. Mas Pelluria saltou gritando “Não! Dá aqui!” e logo voltou a se adonar da gaiola. “Vou mostrar para essa
fada safada o que é bom!” ameaçou ela.

“Fada,” chamou o estranho neste ponto, desviando um pouco a atenção de Pelluria das maldades que ela
pretendia pôr em prática. “Conta onde está a jóia.”

“Hã? A jóia?”

“Isso mesmo! Boa pergunta!” Minha tia bateu no fundo da gaiola com o cabo da espada, fez a fada pular.
“Onde tá a jóia da duquesinha de Orqushire, bichinho desgraçado?”

“Eu não sei! As lâmias pegaram!” zumbiu a fadinha. “Mas como chegastes aqui? Como passastes por
ela?”

“Hã? Ela quem?” perguntou Gustaff Olafson olhando ao redor.


“Não dês ouvidos,” mandou Pelluria, toda abraçada na gaiola. “Essa miniatura de coisa ruim só conta
mentiras!”

Gustaff Olafson conseguiu com muito esforço tirar a caixa das mãos da elfa para evitar que maltratasse
mais a fadinha, pois a pequena parecia-lhe frágil e bonita como um animalzinho.

“Mas te apliquei uma boa, não é, elfinha?” foi o que gritou a fada para Pelluria, quando viu-se segura.
“Quem manda ser tão burra?” E ainda colocou a língua para ela.

“Ah, é? Devolve ela aqui!”

“De quem estavas falando antes?” perguntou Gustaff Olafson à mulherzinha com asas.

“Da guardiã do tesouro! A naga! Este é o tesouro das lâmias! Não sentis vós o cheiro doce dela? Vamos,
tirai-me daqui antes que ela retorne!”

“Uma naga?”

“Não liga,” resmungou Pelluria, olhando para cima com os cantos dos olhos. Estava louca para pôr as
mãos na outra. “Ela é uma mentirosa, eu já disse, e vai mentir até que a retires desse caixote. Uma naga, essa é
boa!”

“Ela é uma cobra grande, grande, grande e tem cabeça de mulher!” disse a fadinha para Gustaff Olafson,
os dois ignorando minha tia e a pequena esticando os braços e também a voz para dar ênfase à descrição que fazia.
“Tem uma cauda gigante e capaz de quebrar paredes, que dirá de ossos!”

“Onde está a jóia, fada?” insistiu o estranho no seu único interesse, de braços cruzados. “Para onde foi
conduzida?”

“Não sei! Me solta, a naga tá aqui perto!”

Vendo que repousava a fada de encontro às grades da gaiola, Pelluria aproximou-se sorrateiramente por
trás de Gustaff Olafson e, de surpresa, pegou e torceu todas as asinhas que passavam por entre os gravetos.

“Aaaai! Tá bom, tá bom, pára, me solta!” gemeu a fada. “Não sei onde tá a jóia, as lâmias a levaram e me
deixaram presa aqui já faz mais de cem anos!”

“Que cem anos, se faz pouco mais de um dia desde que entraste naquele buraco?” perguntou Pelluria.

Mas Gustaff Olafson acabou por afastar as mãos da elfa, pedindo que deixasse a fada em paz e ainda
chamando-a de coitadinha.

“Entrei naquele buraco por culpa tua, orelhuda dos infernos,” a fada disse. “Se me tivesses deixado ir em
paz, a essas alturas já estaria em casa com minha bondosa senhora Régala, com a qual falhei!”

“Então até mesmo os nobres das fadas estão atrás das jóias?” perguntou o estranho.

“Que nada, minha justa senhora não quer a jóia para si! Precisa da esmeralda para livrar sua filha, a
formosa Doce-de-Avelã, de perigo mortal! Mas por culpa dessa elfa fedorenta, corre minha boa senhora o risco de
nunca mais ver a filha!” E enquanto a fada dizia isso, tinha Gustaff Olafson que bloquear as mãos de Pelluria para
impedi-la de atacar novamente. “O projeto orelhudo de ladra aí, que não tinha nada que se meter com a esmeralda
da duquesinha p**inha, me fez entrar no Reino Subterrâneo para escapar dela, e aqui logo essas lâmias me
pegaram! Só me deixaram viva e presa nesse escuro porque a chefe delas está louca para tirar meu pó de fada!”

Gustaff Olafson interrompeu a pequena, na qual tanto o estranho quanto a elfa prestavam, por motivos
diferentes, a atenção, pois pareceu-lhe ter visto movimento perto das cortinas:

“Não quero atrapalhar, mas não seria melhor se soltássemos a fada e saíssemos logo daqui?”
“Sim, sim, liberta-me, eu acho que sei onde fica a saída!” gritou aquela a quem mais agradou a idéia.
“Precisamos recuperar a esmeralda para lady Régala dos Bons-Tempos! Rápido, logo a naga está aqui, ela nunca
fica longe por muito tempo!”

“Não solta essa piranhinha, pois vai fugir,” disse Pelluria.

Mas a pequena prometeu a Gustaff Olafson que não o faria e, quebrando a portinha, ele abriu a gaiola.
Logo a fada disparou em direção ascendente, gritando “Tchau, otários!” porém mal subiu um pouco, chocou-se
contra as mãos de Pelluria, que já estava preparada.

“Ulp! Me solta!” pediu a fada espremida no meio dos dedos de minha tia. O que Pelluria fez foi tirar dos
seus pertences uma daquelas meias coloridas que tinha roubado da duquesinha; com ela deu mil voltas no corpo
da fada, enrolando-a e transformando-a num novelo de lã de onde saíam apenas as pernas, braços, asas e cabeça.
Deixou uma ponta solta por onde segurava como se pegasse uma coleira, e com todo aquele entulho mal podia
erguer-se da mesa a criaturinha, por mais que batesse as asas.

“Pronto, agora não escapa mais!”

“Elfa malvada, eu quero sair, eu quero sair!” debatia-se e chorava a fadinha.

“Pára quieta! E trata de mostrar onde está a...”

Um estrondo calou Pelluria. Alguns barris caíram no fundo da sala e rolaram pelo chão. Todos ouviram
som de algo se arrastando e notaram perto da porta o movimento fluido de um corpo cilíndrico; saía de trás dos
caixotes e ia se erguendo, não podendo ninguém perceber onde iniciava e nem onde terminava, pois quando iam
suas vistas atingir o que parecia o topo, este subia mais. E subiu muito, até que finalmente, dobrando-se sobre si
mesma, veio descendo a extremidade da criatura, onde havia cabeça que era mistura monstruosa de formas
humanas com as de serpente. E se não fosse pela cabeça, passaria por serpente daquelas gigantes que são tão
comuns nos desertos de Daforos.

A criatura tinha o corpo mais alto do que grosso, pois devia medir uns três ou quatro metros e seu
diâmetro podia se acomodar quase completamente entra as mãos de minha tia, não que fosse Pelluria tocar
naquilo, tanto pela forma repulsiva quanto pelas muitas espinhas pontudas brotando entre as escamas arroxeadas e
brilhantes que cobriam toda extensão da cauda ao rosto, sob o qual parecia haver um crânio humano. Esta cabeça,
ao modo dum pêndulo, estava pendurada e esticada, mantinha-se em altura de onde podia fixar bem os olhos
dourados e redondos em minha tia e seus companheiros; também tinha nariz e boca, e só nisto era similar a uma
pessoa, e ao redor dos lábios afilados espetavam-se mais espinhas.

“Ladrões, quereis o tesouro do reino das lâmias?” perguntou a serpente de rosto humanóide numa voz tão
suave e doce quanto o perfume que exalava seu corpo, e isto causou grande surpresa em todos, pois não
esperavam poder um monstro daqueles emitir som tão agradável. “Perturbastes meu sono, ladrões. Quem vos
enviou da superfície? Há alguém ou apenas vossa ganância?”

“Eu avisei! Eu disse!” gritou lá da mesa a fada. “Agora jamais escaparemos com vida!”

Pelluria segurou firmemente a espada pequena que trazia e respondeu:

“Não somos ladrões! Podemos explicar tudo!”

“Não sois?”

Desceu ainda mais o rosto da criatura e outra parte de seu corpo entrou em contato com o chão para
arrastá-la para perto; ela veio até estar a poucos passos de Pelluria. Gustaff Olafson aproximou-se da mesa e
recolheu a fadinha que ali girava feito louca tentando livrar-se do embrulho de meias. Também feito louco pulava
o coração de minha tia; a naga sorriu como se pudesse vê-lo tentando escapar do peito dela.

“Então por que trazeis vós os meus pertences? Tens os bolsos carregados com minhas moedas, elfa da
floresta. O que está no reino das lâmias não pertence às lâmias? Solta minhas moedas. Deixa minha fada. Abaixa a
espada, elfa, escuta minha advertência.”
“Os da superfície não respeitam nada e não merecem teus avisos, guardiã!” vieram de trás de todo grupo
estas palavras, aos gritos. Voltaram-se, lá estava uma lâmia; trazia espada curta numa das mãos, uma cimitarra. E
nos olhos bem humanos, escuros e apertados, tinha raiva. Os cabelos negros, encaracolados, caíam pelos ombros,
indo alguns parar ao redor dos seios jogados nus por sobre o peito inflado por respiração apressada; subia e descia
também a ponta da cauda, chicoteando o solo e levantando poeira, e tudo o que ela vestia eram argolas ao redor
dos braços e tira de couro envolvendo a cintura, que fazia Pelluria lembrar-se da lâmia da ponte. Bem podia ser a
mesma.

A mulher-cobra bateu com a cimitarra na mesa e, demonstrando muita força, fez com que se partisse a
madeira e se espalhassem pelo chão todos os tecidos e o que ali havia.

Pelluria e os dois homens estavam cercados pela naga e pela lâmia.

“Pude sentir vossa presença desde que invadistes nosso reino!” Saltou da boca humana da lâmia uma
língua longa e bifurcada, tremeu no ar enquanto vinha ela se aproximando cada vez mais, os ombros sacudindo
impulsionados pela cauda. Passou entre o estranho e Gustaff Olafson e quando Pelluria notou que vinha em sua
direção já era tarde.

A elfa recebeu empurrão no peito, foi cair sentada. A mulher-cobra soltou um rosnado ou sibilo e ameaçou
os outros dois com a cimitarra; continuou o estranho impassível e foi Gustaff Olafson para trás, levando a fada.

Neste ponto vieram luzes de tochas dos extremos da sala. Foram caindo as cortinas e várias outras lâmias
arrastaram-se e cercaram o grupo vindas de todos cantos, segurando tochas e archotes. E muitas também com
espadas de diferentes formas, bem como lanças, arcos e escudos; umas até mesmo tinham partes de armaduras de
ferro a cobrirem ombros e um ou os dois seios.

O som de arrastar de caudas era cada vez mais alto e quando parou havia pelo menos vinte delas,
formavam com seus corpos um círculo ao redor de Pelluria, Gustaff Olafson, do estranho e da que trazia a
cimitarra. Esta olhava mais uma vez com raiva para a elfa e parecia ignorar os outros. O rosto até, noutra situação,
podia não ser feio se não se visse a língua bifurcada. Com a luz mais intensa, os seios, tão amorenados quanto a
pele, pareciam brilhar úmidos, como se escamas estivessem escondidas sob a pele.

A fadinha, com grande esforço, bateu as asas e saltou para o interior das roupas de Gustaff Olafson, foi
parar entre seu colete e o pano azul por ele coberto.

“Levanta, ladra!” gritava a da cimitarra, sua voz era o oposta da da naga.

E havia todo tipo de lâmia ali, as caudas de todos tamanhos imagináveis, escamas de muitas cores; de
mesmo modo eram variadas as partes humanas, algumas com cabelos claros, outras escuros, outras curtos,
algumas magras, e o perfume de flores ficara tão intenso que chegava a causar repugnância.

Agora, com a claridade de tantas tochas, podia-se ver no fundo da sala, atrás da multidão de mulheres-
cobra, rampa natural levando para plataforma onde duas outras lâmias de ventre muito largo assistiam a tudo; elas
vestiam elmos metálicos assustadores que cobriam-lhes os cabelos e orelhas e narizes.

Pelluria ergueu-se. Sacudiu a saia, pois estava cheia de areia.

“Isto é inevitável, não é?”

Pelo olhar da lâmia, sabia que nada iria tirar-lhe a vontade de lutar.

“Inevitável é que venham ladrões da superfície para levar nossos pertences!”

A mulher-cobra foi empurrar de novo a elfa, mas Pelluria, com o punho, desviou a mão dela. Desviou
porque não pôde detê-la, era muito forte.

“Não somos ladrões, estúpida,” Pelluria falou alto. “Mas não vais ouvir! Já não escutas mais nada!”

“Sois mentirosos! Deixa tua espada falar por ti, elfinha ladra! Ou não tens coragem?” Veio a cimitarra e
chocou-se contra a espada de Pelluria, que bloqueou-lhe o golpe com dificuldade. “Vence e permitiremos que
saias daqui!”

“A que ponto levaram-me as coisas? Se não vais ouvir, se é para morrer aqui, antes vou te dar uma lição,
cobra.” Com a espadinha curta, Pelluria empurrou e afastou a cimitarra da outra, bem disposta a dar-lhe uma
surra, pois não gostava de ser empurrada. “(Isto se essa espada vagabunda permitir!)”

“Muito bem! Afastai-vos todos!”

Vieram as lâmias e puxaram os outros dois; o estranho, ao contrário de Gustaff Olafson, acompanhou-as
sem reagir. Elas abriram mais o círculo no interior do qual ficaram apenas Pelluria e a lâmia da cimitarra. Esta,
sem se virar, usou sua cauda para jogar longe os destroços da mesa atrás de si. Parecia a parte mais musculosa
dela, a cauda, embora os braços não fossem nada fracos.

Pelluria respirou fundo, obrigou o medo a se afastar. Concentrou-se na espada e, acostumada com sua
Lucille, muito maior e mais pesada, segurou-a com as duas mãos. Já não tremia mais, apesar do coração ainda
querer furar-lhe o peito. Começou a andar para trás, enganando-se com o pensamento de que a outra seria lenta
por não possuir pernas.

Pelo contrário, a lâmia vinha velozmente, cada impulso da cauda cobria mais terreno do que muitos passos
da elfa. A lâmia atacou com fúria, seu golpe empurrando a espada, os braços e todo corpo de minha tia. E
continuou atacando sem parar, em alturas diferentes, Pelluria mal tendo tempo de bloquear suas investidas e
sempre saltando para trás, procurando por alguns segundos de vantagem. Não obtia nenhum, a cada golpe vinha
toda a parte humana da lâmia contra a espada da elfa, e a cauda forte, batendo no chão, a equilibrava e trazia de
volta para cima no mesmo instante.

Os dedos de Pelluria ardiam, não poderia agüentar muito mais, enquanto a fúria da outra só crescia e dava
a impressão de ter ela fôlego para continuar o ataque pelo tempo que precisasse. Pelluria esperou e soltou a espada
no momento em que a lâmia desferiu o golpe seguinte. Sem encontrar a resistência com que se acostumara, veio a
parte humana da lâmia mais para baixo, como se tivesse ela tropeçado, e desviando, Pelluria deixou que passasse
ao seu lado. Antes que pudesse a cauda trazê-la de volta, empurrou as costas da lâmia com os cotovelos. Caiu a
lâmia por cima dos próprios braços e minha tia montou com os joelhos em suas costas sem dar-lhe tempo para
agir.

Atordoada pela dor, a mulher-cobra soltou um gemido. Debatia-se toda e não podia alcançar a elfa.
Pelluria envolveu seu pescoço com as duas mãos, puxou-o para cima e forçou ainda mais um dos joelhos entre os
ombros dela. Os gritos das outras impediram minha tia de ouvir o aviso de Gustaff Olafson, então ela foi
surpreendida por uma batida em suas costas: a cauda da mulher-cobra veio por trás de Pelluria e acertou-a,
fazendo-a soltar o pescoço da lâmia para apoiar-se no chão. O rabo de serpente gigante se enredou na cintura de
Pelluria e apertou, puxou-a para cima e a teria jogado longe se ela não tivesse fixado as pernas ao redor das costas
da lâmia, de modo que dali não podia ser arrancada. Mas isto não duraria muito, pois a cauda continuava
apertando e puxando e sufocando e querendo lançá-la para longe.

Pelluria fechou uma das mãos naquele monte de cabelos negros que a mulher-cobra tinha e com o outro
braço conseguiu por fim pegar a cimitarra jogada ali perto. Encostando-a no pescoço da lâmia, gritou:

“Desiste enquanto podes respirar!”

A cauda a envolvendo relaxou o aperto, Pelluria conseguiu respirar.

“Basta!” veio a voz doce da naga.

Temendo um ataque dela, Pelluria virou-se e viu o quanto a criatura se havia aproximado. E quando seus
olhos encontraram os dela, sentiu um choque. Foi erguer a cimitarra, mas seu braço não se movia, tinha o corpo
todo paralisado, tornara-se pesada como chumbo.

“Não te intrometas, guardiã!” ordenou a lâmia caída, rastejando sob Pelluria e saindo de baixo dela sem
que a elfa pudesse relutar. A mulher-cobra ergueu-se e pôs as mãos em seu próprio pescoço dolorido,
avermelhado; depois virou-se para minha tia, ainda com raiva, mas também com vergonha. “Eu nunca havia sido
derrotada por uma bípede.”
“Me solta e eu te derroto de novo!” foi o que disse Pelluria, pois como estava, só podia falar; já sabia ser a
naga a razão de sua paralisia. Essas criaturas têm um olhar hipnótico, já ouvistes dizer, certamente, e era esse
olhar que impedia minha tia de se mexer. Não tirava-lhe a vontade, mas fazia seu corpo parecer pedra.

“Liberta a elfa!” exigiu a lâmia.

Uma dormência nos braços e pernas de Pelluria precedeu o retorno de seus movimentos; ela foi se
erguendo devagar, os membros ainda pesavam, e a naga afastou-se com algo similar a um olhar de apreensão em
seu estranho rosto.

“Tu lutas bem,” a lâmia disse, ainda parada.

“Oh. Grande.”

“Podias ter me matado naquele momento.”

“De que adiantaria estando presa no meio das tuas?”

“Somos honradas e permitiríamos que te fosses. A intromissão da guardiã me deixou envergonhada.”

“Tô adorando a conversa de guerreira machona,” Pelluria soltou a cimitarra e a arma enterrou-se no chão.
Assustou-se um pouco, era muito mais afiada do que tinha pensado, o chão era mais rochoso que de areia. “O que
vamos fazer agora? Queres lutar de novo? Ou vais nos deixar ir? Ou nos matar?”

“Eu sou Altisidora.” a lâmia disse.

“Sou a Pelluria.”

“És corajosa e habilidosa.” Esperou um pouco. “Pena que és uma ladra. Pega o que quiseres e vai embora.
Se voltares...”

“Não vim aqui para roubar, já disse! Parece que ninguém me escuta! Somos enviados da vila da Cerejeira
Sagrada!”

A lâmia Altisidora voltou seu rosto para o estranho e olhou o uniforme de soldado de Orqushire como se
só agora o tivesse percebido. Pôs as mãos e também a ponta da cauda na cintura escamosa e um amontoado de
cabelos escuros foi cobrir-lhe a bochecha, que inflou-se um pouco. Depois de emitir um chiado, ela perguntou:

“Uma elfa servindo como enviada dos homens de Orqushire?”

“Por que pegaste minhas moedas e minha fada, então, elfa de Orqushire?” inquiriu a naga, amontoando
seu corpo ao redor dos destroços da mesa. “Se é que alguma vez já se viu elfa em Orqushire.”

“Não sei nada sobre este Reino Subterrâneo, apenas peguei as moedas porque estavam ali paradas,” foi o
que explicou Pelluria. “Nós três somos todos prisioneiros de Orqushire e nos queriam enforcar. Em troca de nossa
liberdade, enviaram-nos em busca da jóia da duquesinha, trazida para cá por esta fada.”

“A jóia? Mais cedo ou mais tarde mandariam alguém atrás dela,” falou Altisidora. “Que covardes são os
bípedes de Orqushire. Por que não vêm pessoalmente? Eu mesma a entregaria para Mychelle Alanturia nos
próximos dias.”

“Esqueces o tratado entre os humanos e lâmias,” disse a naga.

Ignorando-a, prosseguiu Altisidora:

“Queres dizer que sois inimigos dos homens desta província, elfa? Pois vem comigo. Talvez possas
explicar para a rainha o que teu amigo faz vestido com roupa de um dos soldados do Grão-Duque.”

Levaram-nos então, Altisidora e algumas outras lâmias, por uma rede de túneis cheia de curvas, subidas e
descidas, uma verdadeira cidade subterrânea. Por fim, no que deveria ser o centro de todo aquele labirinto,
chegaram em um salão forrado por tapetes, cortinas e almofadas de cores fortes, tudo era mistura bizarra de luxo
com rusticidade. Lá havia dezenas de mulheres-cobra, algumas até bem jovens, com cauda pequena e ainda
crianças na parte humana, e na entrada estavam três que tinham a pele acinzentada e que seguravam certamente as
maiores cimitarras que se pode imaginar.

Numa elevação no centro da sala, acomodada confortavelmente sobre enorme quantidade de almofadas,
repousava uma lâmia diferente das demais; não na cauda, muito grande e perdida e enrolada no meio de toda
aquela seda e veludo, nem no corpo, apesar de, ao contrário das outras, trazê-lo envolto em túnica feita de peles
que cobria-lhe ombros e peito, deixando à vista apenas a barriga adornada por escamas; eram os cabelos a
diferença: a lâmia tinha no lugar deles, para espanto dos estrangeiros, pequenas cobras, todas vivas. Brotavam da
cabeça dela e moviam-se e contorciam-se inquietas indo uma para cada lado e enredando-se umas sobre as outras
sem nunca parar, talvez até brigando umas com as outras, sempre emitindo chiados e sibilos. Em ambos os lados
dela, que Altisidora apresentou como sendo a rainha Ellenora do Reino Subterrâneo, estavam sentadas outras duas
muito magras e de olhos bem claros.

Alguns dos cabelos – ou cobras – da rainha das lâmias ergueram-se e abriram suas bocas como se
quisessem saltar da cabeça dela para morder o homem que acompanhava Pelluria e Gustaff Olafson.

“O que significa isso?” perguntou a rainha. “O que ele faz aqui?”

Altisidora disse que aqueles eram os três invasores e disse também terem eles vindo em busca da jóia da
duquesa; estava tão surpresa quanto Pelluria e Gustaff Olafson por parecer a rainha ter reconhecido o estranho.

“Vieram pela jóia de Mychelle Alanturia, por certo. Mas não por Orqushire e não para Mychelle. Uma
elfa? Um...? O que estás fazendo aqui? Vai embora, não és bem vindo na terra das minhas filhas!”

A rainha terminou sua frase aos gritos, apontando para o estranho, e ergueram-se aquelas lâmias jovens
que deveriam ser suas guardiãs ou cortesãs.

Ele nada dizia, o estranho.

Então Altisidora, aproximando-se da rainha, falou alguma coisa para ela e em seguida pediu à elfa que
contasse o que sabia. Foi o que fez Pelluria, dizendo como havia ido parar ali com seus companheiros, sempre
evitando olhar para todas aquelas cobras esverdeadas se retorcendo na cabeça da outra e agradecendo por estarem
interessadas no estranho e não nela.

“Os humanos mantinham-no numa cela?” riu por fim a rainha Ellenora, referindo-se ao estranho. “Como
se barras de ferro pudessem segurá-lo.”

“O que está acontecendo aqui, afinal?” nossa elfa perguntou o que todos queriam saber. “O que há com
ele?”

“Olha nos meus olhos, menina,” pediu a rainha. E foi o que Pelluria fez, mesmo que isso a arrepiasse.
“Eles podem transformar tua carne em pedra. Contudo, não são tão perigosos quanto os dele, que se esconde atrás
dum rosto humano.”

A rainha foi se aproximando mais do estranho, sempre seguida pelas suas cortesãs. Disse para ele:

“Tu tens os olhos de algo muito velho e arrogante. Estás surpreso? Não és o único a enxergar o que se
oculta no interior dos outros. E eu sei que uma face inocente pode esconder natureza terrível.”

O estranho apenas ergueu uma das sobrancelhas e nenhum dos que a tudo assistiam soube o que pensar ou
dizer acerca daquilo. Neste momento veio se aproximando do fundo da sala uma outra lâmia das que traziam
espada; parecia ser uma guerreira e foi falar com a rainha.

Altisidora deslizou até onde estavam Pelluria e Gustaff Olafson e envolveu este ultimo com um dos braços
e também com a cauda, o que, é claro, não deixou de sobressaltá-lo, pois a textura fria e escamosa dela estava
longe de ser agradável, além de que, como minha tia pudera comprovar, apertava com muita força.

“Talvez minha mãe dê ele pra mim!” a lâmia disse, sorrindo para Pelluria.
“Aaah! Então é verdade! Elas são carnívoras!” a elfa gritou e começou a bater no rabo da lâmia para que
ela soltasse o outro. “Ela quer te comer!”

“Ei, claro que não, humanos e elfas têm gosto ruim, ainda se fossem como aquelas –mm— coelhinhas
fofinhas de Xexeres...” disse Altisidora, assustando ainda mais o homem e o apertando com seu rabo de serpente
para que não escapasse. “Eu quero que ele fique aqui para ser meu marido, já está chegando a hora de eu ter
filhos!”

“O quê!?” espantaram-se a elfa e Gustaff Olafson.

“Qual é o problema?” A lâmia encarou Pelluria da mesma forma como quando a havia encontrado pela
primeira vez e a cutucou no ombro com tanta força que parecia querer furá-la. “Não me digas que és a namorada
dele?”

“Oh, não, não, não é isso!”

“Que bom, senão eu teria que matar todos vós.” Altisidora voltou a abraçar-se em Gustaff Olafson e,
virando-se para ele, mudou o tom de sua voz; seus lábios apertados abriram-se num sorriso de dentes pontudos e
de aparência venenosa. “Não gostas de mim? Podemos nos casar!”

Então a rainha disse aos demais, pois já havia partido a guerreira que falava com ela:

“Estranhos foram vistos nas proximidades da entrada pela qual vós viestes e minhas vigias ainda não
retornaram de lá. Dize quem mais vos acompanhava, elfa!”

“Apenas soldados da vila da Cerejeira Sagrada, que ficaram lá fora para nos esperar,” respondeu Pelluria,
“liderados por uma humana muito da forçuda e machona.”

“Os cavaleiros de Dravísios estão lá,” completou o estranho.

“E quem são esses?” a rainha perguntou.

“Estão em busca da jóia e vêm de fora do Continente. Dizimaram os homens de Orqushire que vigiavam
na superfície.”

“E tu o que fazes aqui?”

“Apenas vim para observar o conclave de Orqushire.”

“Altisidora! Envia as guerreiras até essa entrada e que levem os estrangeiros,” mandou a rainha e depois,
voltando-se para Pelluria, continuou: “Tu podes ficar com essas moedas que pegaste, mas eu quero a fada de
volta, pois o pó dela tem muito valor.”

“Ah, pode ficar com essa porcariazinha,” Pelluria arrancou a fadinha de Gustaff Olafson, que estava
impossibilitado de reagir ainda envolto na cauda de Altisidora, e mesmo que a fada gritasse por socorro,
sapateasse e se agitasse toda, entregou-a para a rainha. Ainda estava enovelada nas meias da duquesinha. “Por que
não convocas um enxame de abelhas agora, bichinho malvado?”

A pequena foi levada dali por uma das cortesãs. Então a lâmia Altisidora pediu para sua mãe – pois na
verdade era filha da rainha Ellenora – que a deixasse acompanhar as guerreiras. Logo reuniram-se muitas dezenas
de mulheres-cobra, todas armadas, e foram até aquele lugar por onde Pelluria e Meloine tinham entrado no reino
subterrâneo. Mas chegaram lá por caminho diferente, sem passar pela ponte, e levaram os três viajantes com elas,
sempre muitas cuidando do estranho. Nem Pelluria nem Gustaff Olafson sabiam o que pensar sobre ele, e o
humano que dividia sua existência com a coelha Meloine estava mais preocupado com Altisidora, que não saía do
seu lado e fazia questão de não soltar seu braço.

Deslizavam e rastejavam as lâmias muito rapidamente por aqueles túneis, de modo que deles saíram
muitas antes de chegarem a elfa e seus companheiros à superfície.
Era noite escura e, ao menos ali fora, abafada, com ar úmido, algumas nuvens carregadas cobrindo as luas
e estrelas. Perto da árvore onde fora escavada a entrada, nada havia, nem sinal dos humanos da vila da Cerejeira
Sagrada e nem daqueles sobre os quais falava o estranho. Foram as lâmias, suas caudas escorrendo pela grama,
revistar o terreno, todas com mais espadas do que tochas em suas mãos. Altisidora também tinha a cimitarra dela e
ia ao lado de Pelluria e Gustaff Olafson, como já foi dito. De vez em quando saltava sua língua bifurcada da boca
e vibrava experimentando o ar para sentir nele qualquer sinal de movimento.

Não passou muito tempo e uma das outras gritou, chamando por Altisidora. Juntaram-se muitas na entrada
da floresta, onde, no chão, acharam jogadas duas lâmias, sem vida e com sangue esparramado em poças ao redor
delas e também por sobre seus peitos feridos. Eram as vigias da rainha. E em volta de tudo havia várias outras
poças de sangue, dispostas quase num círculo.

Excitaram-se as lâmias e passaram a emitir chiados horripilantes.

Gustaff Olafson ergueu os olhos a partir do amontoado de sangue próximo dele. Olhando para cima, viu,
preso e dependurado numa árvore não se pode saber se por corda ou pelo que, um dos soldados da vila da
Cerejeira Sagrada, sangue ainda pingando de seus pés. Gustaff Olafson logo notou todos os outros vultos: os
homens de Orqushire que haviam conduzido Pelluria até ali há algumas horas estavam mortos e atados aos galhos
das árvores em altura considerável e algo havia arrancado as pernas de um deles.

Era verdade então o que havia dito o estranho? perguntava-se Pelluria. Mas se assim fosse... E seus
pensamentos foram interrompidos por zumbido ao qual seguiu-se um estrondo.

Minha tia virou-se para o local donde veio o som, não muito longe de suas costas, e ali estavam caídas
duas das lâmias que a acompanhavam. Secou-se a garganta de Pelluria, o tronco de cada uma estava separado da
cauda e tudo ainda se contorcia em espasmos, sangue jorrando.

Mais para trás das duas lâmias mortas estava agora homem muito grande ou o que quer que fosse aquilo
que vestia armadura enferrujada; o metal cobria-lhe todo o corpo, os braços e pernas eram grossos – duplos, pode-
se dizer – e no lugar da mão direita tinha uma lâmina afiada: partia direto do punho e tornava-se ponta muito fina,
donde escorria ainda o sangue arrancado das lâmias mortas. De fato, toda a armadura parecia banhada em sangue
escuro ou lodo e, larga, deixava aquele que a vestia com aparência de muralha de ferro.

Como podia ele enxergar naquela escuridão com elmo tão cerrado? E como, debaixo de todo aquele peso,
podia ter se movido tão rápido a ponto de, com golpe único, cortar duas lâmias ao meio sem que elas tivessem
tempo para gritar e sem que ninguém percebesse?

Num piscar de olhos já ia outra das guerreiras para cima dele; saltou impulsionada pela cauda. A lâmina
atravessou-a no ar e, apenas levantando o braço, o ser de armadura livrou-se da mulher-cobra jogando-a inteira
para longe, de encontro a uma árvore, fazendo barulho horroroso que parecia de madeira e bem podia ser de ossos
se rompendo.

“Isso não é bom,” disse Gustaff Olafson quando minha tia voltou para ele o rosto. Deu o primeiro passo,
aquele monstro de armadura, e logo rolou a cabeça de outra lâmia pelo chão. “Nada bom.”

Altisidora precipitou-se em direção ao inimigo e, superestimando a própria força, bateu sua cimitarra
contra a armadura. Com um único tapa ele derrubou a lâmia; não matou-a apenas porque seu braço-lâmina estava
ocupado tirando a vida de outra das guerreiras que se aproximavam dispostas a proteger a princesa. No chão,
assistindo suas irmãs tombarem, ela sabia que logo seria a sua vez.

“Agora é uma boa hora para ajudá-la!” Pelluria empurrou Gustaff Olafson. E Altisidora, em desespero e
sem tempo para se levantar, enrolou a cauda nas pernas do homem de armadura enquanto caía outra lutadora por
cima dela.

“Mas eu só tenho um estilete,” disse Gustaff Olafson. “Talvez seja uma boa hora para irmos embora!”

Altisidora mal pôde defender-se do golpe do adversário, este arrancou a cimitarra dela e já ia preparando o
ataque derradeiro quando Pelluria, vindo por trás, acertou-lhe a cabeça com cimitarra recolhida de uma das lâmias
mortas, fazendo no elmo um som de gongo. Aquela investida mais surpreendeu do que abalou a criatura; porém,
fez com que se voltasse para a elfa e permitiu que Altisidora rastejasse para trás em busca da cimitarra.
Era peculiar o modo de ataque daquele inimigo; quando executava um golpe, o fazia com extrema rapidez,
mas parecia demorar para escolher seu alvo. Infelizmente para minha tia, o próximo movimento dele já estava
bem decidido.

Sucedeu neste ponto o mais bizarro acontecimento do combate. E foi muito rápido, foi quando vinha o
braço-lâmina do homem de armadura em direção ao rosto de minha tia. Não se pode imaginar o que ela sentiu
naquele instante que não chegou a durar a menor fração concebível de segundo, no qual percebeu que seu próprio
braço jamais interceptaria a tempo o do outro. E o que aconteceu foi que estacionou-se a ponta da lâmina a menos
de um fio de cabelo do nariz da elfa, como se tivesse batido em parede invisível.

Dura, sem conseguir fechar os olhos, Pelluria viu que o estranho estava ao seu lado. Havia se aproximado
silenciosamente e seu braço esticado segurava o do guerreiro de armadura, fora isso o que detivera o ataque.

O guerreiro da armadura permaneceu parado. A lâmina estremecia brevemente, o suficiente para Pelluria
gritar, mas parou de novo.

Vinham com cuidado outras lâmias para ver o que sucedia e cercaram o inimigo. E ele nada fazia. Às
vezes os metais que cobriam-no voltavam a tremer, como se ele quisesse atacar o estranho; mas parecia temer
alguma coisa, estava relutante. E assim passou-se pequena eternidade, pois as lâmias espreitando também não
pareciam ter coragem de iniciar o ataque, fato compreensível vista a facilidade com que aquele homem de
armadura eliminara tantas delas.

Andando um pouco para o lado, que não lhe era agradável ficar com o nariz grudado numa lâmina, vendo
o guerreiro concentrado apenas no estranho, Pelluria mirou e, num movimento rápido, conseguiu meter sua espada
na abertura entre a base do elmo e o restante da armadura. Com força enterrou-a e deixou-a presa lá dentro, e
afastou-se enquanto a armadura toda cambaleava, mas não foi veloz o suficiente para que a lâmina do outro não a
atingisse. Primeiro pareceu ter cortado apenas o ar diante dela, mas enquanto andava para trás, a elfa sentiu o
ombro esquerdo arder e o sangue passou a escorrer por uma linha avermelhada que surgiu em sua pele.

“Atacai todas juntas, irmãs, concentrai vossa fúria!” gritou Altisidora; e vindas de todas direções, pularam
dezenas de lâmias em cima do inimigo, quase sem dar espaço umas para as outras. Derrubaram-no, ouviu-se o
som do metal das espadas atravessando o da armadura e Pelluria pensou que o despedaçariam, o que não lhe
pareceu ideia ruim.

Finalmente o abandonaram estendido entre as que havia matado. A armadura estava completamente
amassada, tinha alguns furos e até mesmo umas espadas enfiadas nela; a que minha tia havia usado ainda estava
no pescoço, embora quebrada.

Surgiram então muitas outras lâmias vindas do meio das árvores, tantas que nem se podia contar. Ficou
tudo claro, pois traziam muitas lâmpadas, e algumas delas já tratavam de apagar as tochas que haviam caído perto
das árvores para evitar que incendiassem o bosque. A rainha estava entre elas, acompanhada por uma que tinha
duas espadas e também por outra muito magra e que não era lâmia; ou pelo menos não parecia ser, pois tinha
pernas. (Mais tarde, porém, minha tia descobriria que não apenas podem existir, mas existem lâmias com pernas.)
Esta era menina pálida, de longos cabelos quase brancos, mas a pele tinha um brilho umedecido por onde
espalhavam-se algumas escamas que revelavam-lhe a natureza. Vestia apenas uma saia e os ossos do peito eram
muito salientes. Seu rosto era levemente familiar, como se Pelluria já o tivesse visto nalgum lugar, mas a luz das
tochas fez nossa elfa se assustar quando olhou para baixo, com o que interrompeu sua observação: tinha mais
sangue do que pensava no próprio braço, o corte, que tinha parecido ser só de raspão, era fundo. Grudou a mão ali
assustada.

Próxima do guerreiro caído, Altisidora encolheu sua cauda e foi se abaixando. Puxou o elmo, removeu-o.
Revelou-se um rosto de homem, mas de pele muito escura e murcha, grudada nos ossos da face. E em alguns
pontos só tinha osso, pois nestes locais a pele e carne pareciam ter saído junto com o elmo. Era mais couro seco
do que carne, aquilo, e no lugar dos olhos havia apenas grandes bolotas completamente brancas e endurecidas. E
ele não tinha sangue, nem na parte do pescoço em que estava atravessada a espada de Pelluria; o guerreiro por trás
da armadura assemelhava-se a um cadáver morto há muito tempo.

“Que espécie de criatura é essa?” perguntou Gustaff Olafson.


Minha tia pensou, é claro, como sei que pensarieis também, em terríveis histórias sobre nigromantes
animando cadáveres.

“Enfrentamos outro desses aqui perto,” disse a rainha das lâmias. “Queimai o corpo dele!”

Esta ultima parte também pareceu a Pelluria bastante acertada, pois assim não poderia se reanimar a
criatura se não estivesse já morta o bastante.

Altisidora aproximou-se de sua mãe; a rainha apontou para o estranho vestido com os trajes de soldado de
Orqushire e mandou que ele fosse embora e não voltasse mais.

Ele se virou e partiu andando devagar, sem dizer nada; algumas das lâmias afastaram-se para abrir
passagem.

O corpo do cavaleiro desmorto de armadura já ardia em chamas e, às dezenas, passavam as lâmias


rastejando por todos cantos da floresta, os vultos delas por entre as árvores.

“Podemos ir também?” perguntou Pelluria. Tinha a palma da mão apertada contra o ombro, todo o braço
estava manchado e sangue escorria-lhe por entre os dedos.

A rainha disse:

“Por que não vens comigo? Vamos voltar ao Reino Subterrâneo, deves estar cansada. Lá poderás
descansar, tu e o humano, e também comer. Afinal, salvaste a vida de minha filha tão impulsiva.”

“Eu podia ter me livrado dele sozinha,” Altisidora disse para a elfa em voz baixa.

“Oh, não precisas agradecer.”

“Depois,” continuou a rainha, “tentaremos esclarecer o que está se passando aqui e também o que faremos
da jóia da minha sobrinha.” E pegou a esmeralda, que trazia dentro do colete de peles. A luz das tochas fez a gema
verde brilhar.

“Sobrinha?”

A rainha mandou que suas guerreiras vigiassem a floresta. Depois disse alguma coisa para aquela menina
que a seguia, a que não tinha cauda de cobra, e ela desapareceu entre as árvores. Voltaram as outras para os túneis,
onde Pelluria tratou seu ferimento, e poucas horas antes do sol nascer, durante estranho banquete, a rainha das
lâmias contou sobre a origem daquela esmeralda e também sobre a da província. E sim, aquela duquesinha loira e
um tanto rechonchudinha (principalmente na parte de trás do corpo) que conhecemos no início desta série de
aventuras era a sobrinha dela, como veremos no próximo capítulo desta narrativa, onde se conclui a aventura do
Reino Subterrâneo.

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