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UM GUERREIRO DO PASSADO

LOVE TRAVELLERS
KARINA HEID
CONTENTS

1. É ela quem deve procurar


2. Gente otimista
3. Isso só pode ser um pesadelo
4. De onde saiu essa pedra?
5. Ser tagarela é o seu poder
6. Não entendo essas bruxarias
7. Tudo tem cheiro de fruta
8. Preciso de um penico
9. Onde esse tal Google lutou?
10. Fonte: aquela série famosa
11. Por que a bruxa me enviaria para cá?
12. Garçonetes são perigosas
13. Fake dating
14. E isso, Cristopher, é chocolate
15. Malditos otomanos
16. Amante Islandês
17. Namorados também fazem sexo
18. Refúgio seguro
19. Quero aprender sobre o passado
20. Retorno a São Elmo
21. Borboletas e tormentas
22. Ataque a Malta
23. Espalhe a palavra
24. Sensação de uma presença
25. Meu coração carrega muitas pedras
26. Vim de longe
27. Está na hora
28. Uma caminhada que durou 457 anos
Epílogo 1
PRÉVIA DE “UMA VIAJANTE DO FUTURO”

Notas da autora - Sobre a Ordem dos Hospitalários


AGRADECIMENTOS
Meus livros
Sobre a autora
Um Guerreiro do Passado - Livro 1 - Love Travellers
Copyright© 2023 Karina Heid Rocha
Todos os direitos dessa obra são exclusivos da autora.
É expressamente proibida sua distribuição ou cópia,
parcial ou inteira sem prévia autorização.

Revisão: Ingrid Heid


Trabalho de texto: Tábata Mendes
Diagramação: Karina Heid
Arte da capa (imagem): Michaelly Amorim
Tipografia: Tatiana Mareto

Atenção:

Esta é uma obra de ficção. Embora alguns lugares e instituições descritas no livro existam e eu tenha
tentado me ater aos fatos históricos, nem tudo pode ou deve ser considerado verídico. O mesmo vale
para a ordem dos cavaleiros: qualquer menção a ela faz parte da narrativa ficcional. Sendo assim,
qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera
coincidência”

Created with Vellum


Para o amor da minha vida, que insistiu em uma certa viagem já sabendo
que dela sairia uma nova história.
“… Sempre existe no mundo uma pessoa que espera a outra, seja no
meio de um deserto, seja no meio das grandes cidades. E quando
essas pessoas se cruzam e seus olhos se encontram, todo o passado
e todo o futuro perdem qualquer importância; só existe aquele
momento e aquela certeza incrível de que todas as coisas debaixo
do sol foram escritas pela mesma Mão.”

— “O Alquimista”, Paulo Coelho


1
É ELA QUEM DEVE PROCURAR

Cerco de Malta, 1565


Batalha perdida de São Elmo
CRISTOPHER

A lâmina da espada colidiu com a da cimitarra, produzindo um som alto


e vibrando meu braço. Empurrei o infiel com um rosnado e ele se
chocou contra a parede. O olhar do otomano era de puro ódio, de
quem nos dilaceraria vivos. Embora pudéssemos vencê-lo, não tínhamos
para onde correr. A torre estava sendo invadida por uma horda de turcos e a
morte seria inevitável.
O homem revidou com a arma em riste, mas minha lâmina foi mais
rápida: ela desapareceu sob o uniforme de seda até que a empunhadura se
encharcasse de sangue.
Os olhos furiosos desceram até a túnica e voltaram aos meus.
Puxei a espada e o maldito tombou de joelhos. Não tínhamos muito
tempo até que o resto deles chegasse.
— Aaron? — gritei. — Se vão pular, tem que ser agora!
Do lado de fora, bramidos de vitória se misturavam aos de dor. O ar
fedia a pólvora e sangue. São Elmo ruía sob o barulho de explosões e
choques de espadas, e eu me oferecia como a última linha de defesa.
— O que estão esperando? Vocês precisam ir AGORA!
— Não sem você, Cristopher! — Aaron respondeu, ofegante.
— Alguém precisa ficar. — Limpei o sangue das vistas, irritado por
ouvir minha própria voz tremer. Não era hora para discussões. — Tire a
armadura ou afundará como um martelo quando cair na água!
— Aaron, ouça-o. — A voz macia da mulher ao lado soou como um
comando. — Chegou a hora, meu amor.
Em todos os vinte e oito anos de minha existência, nunca vira meu
irmão atender tão prontamente a um pedido. Aaron assentiu, desafivelando
a lateral da placa de ferro. A armadura caiu no chão fazendo um ruído, e
enquanto removia as placas das pernas, ele ergueu os olhos até os meus.
Não havia medo neles, apenas esperança. Como se soubesse que meu
fim seria honroso e estivesse em paz a respeito disso.
Se ele estava em paz, eu também estava.
Sons de línguas estrangeiras vieram das escadas. Os turcos estavam
chegando.
— Vá! — gritei outra vez, espantando a certeza dolorida de que nunca
mais o veria. Aquele era o meu último minuto de vida, mas não precisava
ser o deles.
Três soldados malteses que encontramos pelo caminho saltaram da torre
para o mar, em busca de refúgio no outro lado da baía. Aaron ia com eles
porque não havia mais ninguém vivo no forte para defender. Os últimos,
feridos demais para caminharem, se sentaram na entrada da torre com suas
espadas em punho. Sabiam que morreriam, mas atrasaram a subida dos
otomanos.
Éramos os últimos cavaleiros que ainda respiravam em São Elmo.
— O que está esperando, maldito? — gritei por trás do ombro,
empunhando a espada. Agora era questão de segundos. Precisaria derrubar
o máximo deles antes que as flechas chovessem da janela. Saltar no mar era
só o primeiro passo da fuga, não uma garantia de vida.
Foi então que a feiticeira, mulher do meu irmão, chamou meu nome.
— Cristopher?
Olhei para trás, estranhando o chamado. Ela nunca falava comigo, e me
evitava como a peste.
Tirando o colar que usava por cima do cabelo escuro, ela caminhou até
mim. Seu ventre estava começando a inchar com o filho de Aaron e eu
entendia o desespero do meu irmão em protegê-la. Com um gesto pensado,
ela enfiou o pingente no espaço entre meu pescoço e a armadura. A
estranha pedra roxa rolou pela reentrância da garganta e se alojou no centro
do peito, fria e pesada.
Ergui os olhos, sem entender.
— O que fez, mulher?
— Chegou a hora, Cristopher. Achei que viajaria dois dias atrás, mas o
momento é agora.
Ainda que os gritos se avolumassem e a morte fosse iminente, ela
pousou a mão no meu rosto e sorriu. Seus imensos olhos castanhos
cintilaram, quentes e ensolarados, como se não tivessem testemunhado
meses de pura dor.
— Isla — ela disse baixinho. — Lembre-se desse nome.
Dando um passo para trás, ela entrelaçou os dedos aos de Aaron e
caminhou de costas até a janela. Meu irmão levou pela última vez a mão ao
peito em um gesto de despedida. Confuso, repeti o gesto, indicando que ele
deveria ir, que eu os protegeria com a minha vida.
Antes que pulassem para o vazio, a feiticeira sorriu, e com uma calma
que jamais vi em meio a batalhas, sussurrou:
— O nome dela é Isla, e é ela quem deve procurar ao chegar.
2
GENTE OTIMISTA

Malta, dias atuais


ISLA

S abe do que eu gostaria? Gostaria mesmo? De entender a psicologia


do otimismo.
Tenho certeza de que deve existir um livro sobre isso. Sobre
como nossa cabeça disfarça as péssimas ideias para que pareçam geniais.
Para que acreditemos que uma atitude impensada pode trazer bons
resultados e um plano absolutamente ruim pode terminar bem.
Eu compraria esse livro. Na verdade, seria objeto de estudo desse livro.
Tenho até o nome para um dos capítulos: “Por que Isla achou que
aparecer no casamento do ex-chefe-e-namorado era uma boa ideia?”. As
páginas mostrariam dados estatísticos e exemplo de que aquilo era coisa de
gente estúpida.
— Okay, agora eu entro. — Chacoalhei os ombros. — Segura a onda,
garota. Quem fez a coisa errada foram eles, não você.
Argh, bati a bolsinha de festa na testa. Quem mandou encostar esse seu
dedo podre no chefe? Sim, eu tinha aquilo que a maioria das mulheres
solteiras na casa dos trinta acreditava possuir: um dedo podre para chamar
de meu. A capacidade de me envolver com todo homem errado que cruzava
o meu caminho e nunca aprender com a lição.
— Mas não dá para recuar agora. — Respirei fundo. — Tudo que
preciso fazer é sorrir. Doce e calmamente, para que meus ex-colegas não
percebam que estou tão por baixo quanto a sola de um sapato.
Não, mais baixo ainda. Eu era um maldito canal subterrâneo, um lençol
freático ou o próprio núcleo da Terra.
Pare com isso, Isla. Só porque minha antiga assistente, a que roubou
minha posição na empresa, estava se casando com meu ex traidor não
significava que o mundo havia acabado. O amor acontecia, certo? Muitas
vezes por debaixo dos panos, de maneira vil, safada e traiçoeira, mas
acontecia. Era pela celebração daquele amor que eu estava ali, mesmo que
rosnando, para mostrar que a Isla-descolada não ligava.
A Isla-descolada precisava de um emprego.
Abri a bolsa e conferi as horas no celular. Ajudaria se o cara que Lillian
arrumou para me acompanhar chegasse logo. Seria mais fácil entrar naquele
casamento ao lado de um bonitão, e ela me garantiu que conseguiria o cara
mais lindo que conhecia.
O problema era que o casamento já tinha começado e o rapaz ainda não
havia dado as caras. Por que raios pedi esse favor para a mais louca das
minhas amigas? O capítulo “Motivos para não pedir favores para amigas
malucas” do meu livro imaginário abordaria isso. Seria um capítulo sucinto.
Na verdade, teria apenas uma frase: peça ajuda para pessoas normais.
Alguém sensato me aconselharia a não vir ao casamento.
Uma musiquinha enjoada entoou no ar. Merda, a marcha nupcial.
— Pelo jeito, terei que entrar sozinha — cantarolei, aborrecida.
Assim que dei um passo adiante, meu salto agulha afundou no gramado,
molhando a sola do pé e sujando de lama a barra branca da calça.
— Tá de sacanagem? — Puxei o pé do lamaçal, ouvindo o pop similar
ao de uma rolha pulando de uma garrafa. Que ódio. Quem se casaria sobre
o gramado encharcado de um clube de golfe?
Dei mais um passo, como uma acrobata em uma corda bamba. A chuva
da véspera havia deixado a porcaria da terra mole. Sem grana,
desempregada e agora afundada na lama. Fala sério.
Ainda tentava desatolar o salto quando ouvi uma explosão. O som foi
tão intenso que lembrou o de um raio rachando a casca do mundo. Saltei
para trás, e pingos de lama salpicaram o terninho branco.
Nem deu tempo de xingar. O estouro foi seguido de um bonc, e mal
acreditei quando vi um carrinho de golfe dar um pulinho e… passar por
cima de alguém?
O veículo parou repentinamente e um rapaz saltou, apertando as mãos
contra a cabeça.
— Ai, meu Deus, matei alguém! Matei!
Retornei, afundando e desafundando o salto. O que eu tinha a ver com
aquilo? Nada. Mas quem resiste a um atropelamento, não é mesmo?
Uma fumaça densa envolvia a cena e só dava para reconhecer a silhueta
de alguém desnorteado no chão. Abanei a frente do rosto, estranhando que a
nuvem não fosse fumaça, e sim terra seca. Um grunhido masculino, tão
grave quanto o estrondo de há pouco, soou dolorido. O motorista do
carrinho se ajoelhou ao lado da pessoa caída, repetindo mil vezes que não
tinha a intenção de machucá-lo.
Uma imagem começava a ficar nítida no meio da fumaça. Pelo
tamanho, o atropelado era um homem e estava vestido dos pés ao pescoço
com uma…
Suspirei fundo.
— Ai, Lillian. Tenha santa paciência. — Balancei a cabeça. Esse é o
cara?
Olha, sinceramente, ninguém merecia ter como melhor amiga uma
artista vanguardista ultramoderna com tendência para a inovação. Sabia que
não devia ter deixado ela escolher alguém para me acompanhar, ainda mais
sendo do seu curso de teatro. Eu queria causar boa impressão, não virar alvo
de chacota. O que eu faria com um cara fantasiado de Rei Arthur?
— Que diabos aconteceu aqui? — perguntei, olhando o pó fino e terroso
descer sobre nós. — Você atropelou um saco de aspirador de pó?
— E-eu juro que não tinha nada na frente, senhora! Então, de repente,
ele apareceu! — O rapazote disse apavorado por trás dos dedos.
Foi só o atropelado mexer uma perna para o garoto arregalar os olhos.
— Ah, meu Deus. Ele tá vivo.
A armadura prateada reluziu sob o sol da tarde, rangendo quando o
homem dentro dela chacoalhou a cabeça e apoiou o cotovelo no gramado.
— Sorte que a armadura parece grossa — cochichei para o garoto,
apoiando as mãos nos joelhos enquanto investigava o estranho. — O
carrinho deve pesar menos do que isso aí.
Corri as vistas pelo corpanzil protegido pela carcaça de ferro. Já tinha
visto cavaleiros vestindo coisas parecidas com aquilo no centro de Valetta,
encenando poses e lutas de espada em troca de moedas de turistas
animados. Talvez ele tivesse vindo correndo de uma dessas apresentações.
Ou pretendesse trocar de roupa e limpar a cara do sangue falso antes de me
encontrar. Sei lá dos seus motivos, mas não tinha tempo para descobrir: era
hora de acelerar as coisas. O casamento estava acontecendo e eu passaria
como a louca rancorosa se não fingisse alegria pelos pombinhos — embora
fosse a louca rancorosa.
Estendi a mão na direção do cavaleiro assim que ele abriu os olhos.
— Venha, eu te ajudo a levantar.
— Não é melhor levar ele para o hospital? — o motorista sugeriu.
— Está vendo alguma víscera para fora? Algum membro faltando? —
perguntei com a mão ainda estendida. — Se não, esse homem vai entrar
comigo naquele casamento, e agora.
O motorista se afastou com uma careta, inconformado com minha
decisão.
Quando o atropelado finalmente ergueu a cabeça, só uma palavra
escapou dos meus lábios: uau. Um novo trovão poderia ter explodido
naquele dia ensolarado, compondo a trilha sonora do meu espanto. Eu tinha
pedido para minha amiga um homem bonito, não o Thor.
Olhos de um assombroso azul-prateado encontraram os meus. As
sobrancelhas loiras e grossas estavam unidas em um vinco profundo sobre
os olhos, e seu peito subia e descia, como se ele tivesse acabado de sair de
um combate.
O gigante olhou aturdido para a mão estendida como se esperasse ver
algo nela, ou que dali saltasse um punhal.
Mesmo estranho, o homem era de tirar o fôlego. Como era possível
Lillian nunca ter mencionado colegas de 1,90m de altura com cara de
nórdicos guerreiros e alma artística? Não que minha amiga ligasse para os
homens, já que preferia garotas, mas ela conhecia as minhas preferências —
e eu tinha um fraco por homens viris com olhares afiados.
E essas duas coisas resumiam aquele He-man: ele tinha um rosto que
parecia ter sido esculpido em pedra, nariz de conquistador e um cabelo
estriado de mechas prateadas que batia sobre o latão nos ombros. O rosto
inteiro era coberto por uma malha de pelos dourados que cresciam caóticos
ao redor da boca e nas laterais — prata e ouro na mesma face.
O bonitão ignorou minha mão, girando a cabeça para os lados.
— Onde estou?
— No clube de golfe. — A voz do motorista chegou a falhar de tanto
alívio. — Eu atropelei o senhor. S-sinto muito.
O homem levou a mão à cabeça e tanto eu quanto o menino demos um
passo para trás. Seus dedos imensos estavam cobertos por algo ressecado e
vermelho que se entranhava nas unhas e craquelava sobre o dorso.
— Isso é sangue? — o garoto gaguejou.
— Não é de verdade — respondi, girando os olhos. Conhecia sangue
falso com tranquilidade.
O metal rangeu quando o cara tentou ficar de pé, tropeçando como se o
chão estivesse bambo. Ele só não caiu porque me enfiei sob seu braço,
recebendo o impacto da armadura nos ombros. Os olhos de rapina desceram
até os meus, disparando um arrepio maluco que trouxe frio e calor ao meu
corpo.
Foco, Isla. Dei um jeito de me encaixar melhor contra o corpo firme e
sorri, ignorando a encarada.
— Que bom que chegou! Só acho que devia ter tirado essa coisa antes
de vir, grandalhão. Vai acabar virando a atração da festa. — O cheiro do
ferro da armadura se misturou a outro, igualmente metálico e pungente. —
Embora, admito, essa armadura certamente te salvou de alguns roxos e
arranhões.
Ajudei-o a se firmar. Seus olhos continuavam nos meus, como se
estudassem o que o mantinha de pé.
— Acha que ele vai morrer? — O motorista parecia prestes a chorar, as
mãos esticadas para a frente como se para amparar o homem caso inclinasse
naquela direção.
— Ele vai ficar bem. Apenas preste atenção para não atropelar mais
ninguém, está bem?
O menino assentiu, desaparecendo para dentro do carrinho antes mesmo
que eu terminasse a frase.
Precisei amparar o gigante mais uma vez quando ele se virou, chocado,
na direção do veículo. Removi alguns fiapos de grama presos na armadura,
aliviada por ele ter chegado a tempo. Linda, constatei, estudando a fantasia.
Muito bem-feita.
— Olha, podemos falar sobre o que temos que fazer aqui? Imagino que
Lilli tenha pintado uma cena deplorável do que vai acontecer, mas ignore
aquela maluca, está bem? Precisamos entrar, porque a cerimônia já está
rolando. Lá dentro te sirvo um suco e você se recupera de tudo isso. Só
precisa sorrir e…
Pensei em dizer “parecer um pouco encantado por mim”, mas o cara
havia acabado de ser lançado ao chão por um carrinho de golfe, estava todo
estropiado e certamente vinha do trabalho. Ele não conseguiria parecer
encantado por nada.
Puxei-o em direção à entrada lateral do clube e ele me seguiu,
mancando.
— Uau, você é pesado. — Eu me ajustei melhor sob ele, afundando e
desafundando de maneira humilhante na lama enquanto ele acompanhava
meus passos de forma automática.
Abri a bolsa e mostrei o convite para um dos seguranças, um velho
conhecido da época em que trabalhei com casting.
— Srta. Isla Bonnici e acompanhante. — O segurança maior leu o
convite moderninho enquanto me cumprimentava. Abaixando os óculos
para o homem ao meu lado, sorriu. — Estava gravando, amigo?
— A série dos dragões também está sendo filmada aqui? — o segundo
segurança perguntou.
— Dá um desconto, vai, Leon — pedi. — Um carrinho de golfe acabou
de passar em cima dele. Preciso sentá-lo em algum lugar.
— Não é melhor levar o cara para casa, Isla? — Leon comentou com
uma careta. — Tem sangue nele.
O problema de morar em uma ilha com 400 mil pessoas era que você
acabava conhecendo todo mundo. Embora Malta pululasse com milhões de
turistas por ano, a comunidade local era pequena. Aí, todo mundo sabia de
tudo e se metia em tudo também.
— Depois do casamento eu levo. E isso não é sangue, é aquela coisa
que usaram nas filmagens da série dos Tronos. Esqueci o nome do produto.
Os dois seguranças se afastaram, liberando a passagem enquanto
debatiam quais episódios haviam sido rodados na ilha. Passei por eles
amparando o meu acompanhante gigante, feliz por senti-lo caminhar um
pouco melhor.
Optei pela última mesa do canto mais distante, sob a sombra de uma
árvore gigantesca. Fiz o possível para não fazer barulho, mas quando o cara
se sentou, parecia que alguém estava desamassando a lataria de um carro.
Dali dava para ver a cauda do vestido branco da noiva e os pés do idiota do
meu ex. A voz do padre ecoava simpática por entre a folhagem, e tive
vontade de mostrar a língua para eles.
Testemunhar a felicidade daqueles dois traidores tinha gosto de fel. A
Isla-descolada, que fingia não ligar para a traição corporativa e afetiva, era
uma farsa. Eu ligava, e muito. O problema era que havia no máximo quatro
empresas no país onde eu poderia trabalhar, e brigar com o chefe de uma
delas não facilitava minha busca por uma vaga nas outras três.
— O casamento é do meu chefe. Ele é um otário — avisei ao estranho,
que agora pousava os antebraços sobre a mesa e girava a cabeça devagar
para me investigar. — Infiel, mulherengo, cruel. Além disso, muito, muito
influente. Sério, me desculpe por ter te enfiado nisso, mas obrigada por vir.
Não ia aguentar passar por isso sozinha. Não que eu precisasse aguentar,
mas você sabe. A gente tem que vestir algumas máscaras na vida
empresarial, não é mesmo?
Quando o sujeito abriu a boca, sua voz ecoou como o ronco de um
trator:
— Quem é a senhorita?
Ele não parecia ser daqui, pelo sotaque. Lembrava um pouco o linguajar
que se ouvia nas aldeias distantes do centro, mas não tinha a certeza.
— Eu sou a Isla. A amiga da Lillian. Lilli, como vocês do teatro
costumam chamá-la.
Ele chacoalhou de leve a cabeça.
— Isla?
— Sim, mas não estenda a mão — implorei com um cochicho, olhando
para os lados. — A gente precisa fingir que se conhece, pode ser? Para
todos os efeitos, estamos juntos. — Meu olhar passou pelas feições duras e
bonitas. — Se é que me entende.
Ele inclinou a cabeça, o olhar desconfiado me medindo de cima a baixo.
Pelo jeito, não estava entendendo nada. Quando o homem de armadura
encarou minhas pernas, contorceu os lábios como se estivesse desgostoso
com algo, até mesmo um pouco chocado.
— É, eu sei. Estou completamente imunda. Está se sentindo melhor? —
Investiguei o peitoral de ferro, vendo a cruz de Malta de oito pontas
gravada no metal. — O carrinho deve ter te dado um susto, mas não parece
ter amassado nada. Não bateu a cabeça, não é? Ou estava de capacete?
Ele chacoalhou a cabeça, como se estivesse zonzo e precisasse se
orientar. Quando finalmente se aquietou, os olhos azuis enfrentaram os
meus. Eles tinham a mesma cor pálida da armadura e brilhavam por algo
que eu não entendia. Uau outra vez. O homem me encarava como se eu
viesse de outro planeta. O que não deixava de ser engraçado, porque quem
parecia no mundo da lua era ele.
— Quer uma bebida? — Ergui a mão para um garçom parado no canto.
— Whisky. — Movi os lábios para o atendente. — Dois, por favor!
Voltei a sorrir para o carinha, confessando em voz baixa:
— Vou pedir whisky a noite toda, a menos que descubra algo mais caro.
Faça o mesmo e não tenha dó, está bem? O último contrato deles com o
governo foi superfaturado. — Apontei o queixo para o noivo. — Sei disso
porque me posicionei contra e, bem… Aqui estou eu, sem emprego. Encare
isso como uma pequena vingança por mau uso dos impostos.
— Você disse… Isla?
— Isso. E você, como se chama?
A resposta dele saiu automática, mas não pareceu interromper sua
confusão:
— Sir Cristopher De Landa.
— Que chique, “Sir”— segurei uma risada. — Prazer, Sir Cristopher De
Landa. Mal posso esperar para que eles te rodeiem e façam muitas
perguntas sobre a armadura. Uau, ela parece moldada ao seu torso… —
Toquei o metal com a ponta dos dedos. — Nada mais rebelde do que
aparecer assim em um evento. Puro suco de Malta. Adoro.
O whisky chegou, e ergui o copo na direção do meu belo salvador:
— Aos noivos — desejei, despejando com um sorriso alegre todo o
conteúdo dourado na grama.
3
ISSO SÓ PODE SER UM PESADELO
CRISTOPHER

A quilo não podia estar acontecendo, mas de uma forma que eu não
compreendia, estava. Eu já tinha chacoalhado a cabeça, sido
derrubado por uma carroça sem cavalos e estapeado o próprio rosto ,
e mesmo assim continuava a sonhar.
Sonhar, não. Aquilo estava mais para um pesadelo.
Eu lembrava de estar no meio de uma luta. Prestes a morrer defendendo
o forte de São Elmo, tomado por infiéis. Havia o odor de sangue no
ambiente, a fumaça dos canhões proveniente do lado de fora e o som das
botas batendo na escada de pedra. Aquele era o meu último minuto de vida,
e eu tinha escolhido passá-lo salvando a vida do meu irmão. Mesmo o fim
se aproximando, estava pronto e em paz.
Então, a feiticeira por quem meu irmão se apaixonou enfiou algo no
meu peito e disse alguma coisa que mudou tudo.
O que ela havia dito?
Arrastei a mão pela cabeça, sem me lembrar. A confusão de
pensamentos estava me deixando louco. Claro que não ajudava a estranha
mulher ao lado tagarelar sem parar, soando desagradável como um alaúde
desafinado.
“Chegou a hora.”
Sim, foi isso o que a feiticeira disse antes de saltar. Mas que hora havia
chegado? A minha, de morrer?
Não, duvido que fosse esse o significado. Eu a conheci melhor durante
o Cerco, sentia que a mulher sabia algo sobre mim. Embora me evitasse,
estava sempre me observando de um jeito estranho… fraternal, cuidadoso
até, como se se importasse comigo. Contudo, se recusava a se aproximar,
como se precisasse manter distância. Nunca gostei dela, já que não se
comportava como uma dama comum. Não obedecia a ordens e estava
sempre sendo chamada para conversas reservadas com o comandante.
Embora tudo aquilo fosse estranho, era a influência sobre Aaron, meu
irmão, que realmente me incomodava. Ele a amava e eu a detestava por
isso.
“Isla. O nome dela é Isla, e é ela quem precisa encontrar.”
Arregalei os olhos, lembrando de tudo. Sim, a feiticeira pronunciara o
nome Isla após se aproximar e enfiar a pedra dentro da minha armadura.
Tateei o peitoral, mas tudo que consegui foi fazer barulho. Havia uma
pedra em meu peito, e eu podia senti-la quente contra a camisa.
Olhei ao redor, perdido com tudo o que aconteceu. Eu não estava mais
no forte de São Elmo. Não estava defendendo a janela por onde os
otomanos poderiam flechar meu irmão. O problema era: se eu não estava lá,
onde diabos tinha ido parar?
A visão ganhou foco. Abri e fechei as mãos, ouvindo música tranquila,
observando pessoas bebendo e sorrindo. Onde estava a guerra? Os turcos e
suas armas malditas? Eu não reconhecia os trajes daquela gente, os objetos,
o lugar. Aquelas pessoas deveriam estar gritando! Fugindo da horda
invasora!
A garota continuava a falar ao lado:
— Beber vai te fazer bem. Vou pedir uma água para acompanhar, mas
manterei o whisky vindo. Não faça mau juízo de mim, por favor. Até o fim
da noite conto toda a safadeza que fizeram comigo. Quero ver você
defendê-los.
E, mais uma vez, ela entornou a bebida no chão.
Que tipo de loucura era aquela?
Arranquei a placa do braço e a joguei de lado, movendo os dedos de
maneira livre. Ao ver a manga da minha camisa manchada de sangue, a
mulher soltou uma risada.
— Isso parece tão real. — Ela cutucou duas vezes meu braço. — Uau,
você é tão duro. Está usando uma armadura por baixo da roupa também?
Ela estava zombando de mim?
Tomei o copo da sua mão e cheirei a bebida. Destilado. Entornei o
líquido cor de âmbar garganta abaixo, sentindo-a queimar. Pronto. Agora eu
acordaria, e quando isso acontecesse, descobriria que morri e que o céu era
feito de gramados floridos, música distante e mulheres faladeiras.
Pisquei os olhos algumas vezes, esperando ver o cenário mudar e um
turco se debruçar sobre mim e enfiar uma espada na minha barriga.
Quando vi que continuava ali, perdi a paciência.
— Onde estamos? — perguntei, ríspido, batendo o copo de volta na
mesa.
— No clube Royal, oras. No casamento do Danny e da Giulia. — Ela
indicou com o queixo o casal. — Aqueles dois ali. Mas não se deixe
enganar por toda essa aura de romance e trajes virginais. A união desses
dois está mais para aquele documentário sobre a vida das víboras,
sabe? Aquelas em que elas se juntam e formam um bolo gosmento ao se
acasalar?
Víboras? Do que raios esta louca estava falando?
— Onde, mulher? — insisti, cerrando os punhos. — Onde estamos?
Ela me examinou com uma careta.
— Você está bem? Bateu a cabeça, não foi?
Segurei seu pulso frágil, pensando em apertá-lo até arrancar a
informação, mas algo em sua falta de medo me fez recuar. Afastei a mão da
pele macia, preferindo voltar a fechá-la em um punho.
— Onde estou, exatamente? Exijo que me diga o nome do lugar!
— Em Malta, ué.
— Malta? — Olhei ao redor. — Não, esta não é a minha terra. Não pode
ser.
Mais uma vez, um servo parou ao lado e repôs os copos vazios por
outros. Puxei ambos para mim antes que a insana os jogasse fora, sem
deixar de encarar duro seus olhos castanhos.
— Pare de entornar o destilado no gramado — rosnei.
— Olha, homem de lata, você não parece bem. Tem alguma coisa
errada, eu posso sentir.
Errado comigo? Não havia nada de errado comigo, e sim com eles!
Meu nome é Cristopher De Landa, repeti como se precisasse afirmar as
únicas certezas que tinha, bebendo todo o conteúdo de um dos copos. Nasci
em Mdina, no ano 1535 do Senhor. Sou filho de Sir Hebert e Sophia De
Landa, irmão de Aaron, conhecido como O Invencível. Sou membro da
Ordem Soberana dos Cavaleiros Hospitalares de São João, que jurou
defender a fé e dar assistência aos pobres.
— Tuitio fidei et obsequium pauperum — murmurei o lema da ordem,
as palavras ressoando pelo peito.
Bebi o conteúdo do segundo copo sentindo o interior da garganta rasgar.
Que tipo de bebida dos infernos era aquela? Olhei para o vidro e, soltando
um som gutural, lancei-o ao chão, estilhaçando a porcaria em mil pedaços.
Ao olhar para a moça tresloucada, vi que ela segurava o riso.
— Adorei, Cristopher. Cada copo desses deve valer uma fortuna!
Vamos quebrar mais.
Virando-se para algumas pessoas que nos encaravam horrorizados, ela
soltou, divertida:
— Atores de Hollywood sendo excêntricos, nenhuma novidade! Voltem
a prestar atenção no casamento!
As pessoas obedeceram, se voltando à cerimônia.
Ela era uma líder desse povo estranho, constatei. Precisava agir com
cautela ao seu redor.
Ainda assim, a sensação de que algo estava errado inundava meus
sentidos. Era como se eu balançasse a esmo em um barco no meio de um
oceano bravio, sem remo ou terra à vista. Onde eu estava? Aquilo ali não
podia ser Malta, pois não era algo que eu reconhecia.
— São apenas puxa-sacos dos noivos, ignore-os. — Ela lançou seu copo
no chão também, mas ele apenas rolou pela grama até desaparecer debaixo
da mesa. — Bem, sinto muito por te envolver nessa furada. Lilli contou o
que fizeram comigo?
A mulher de nome Isla se sentou à minha frente e apoiou o queixo na
mão antes de me encarar com um sorriso desanimado.
— A noiva era minha assistente. Sou produtora, a propósito. Uma
ótima, mas isso não vem ao caso. Enfim, ela veio indicada por Danny, o
noivo, o meu chefe sem-vergonha. Vi logo que a garota não queria pegar no
pesado, só postar no Instagram que trabalhava na Luminar e aproveitar o
lado glamouroso da coisa.
Se entendi cinco palavras do que ela disse, foi muito.
— A história fica mais interessante. Sabe o noivo? — Ela apontou para
o homem ajoelhado no altar. — Eu estava saindo com ele.
— Saindo? — repeti, sem entender.
— Apenas ocasionalmente. — Ela revirou os olhos. — Ele era meu
chefe, eu sei, mas sabe quando a gente não calcula bem o que está fazendo?
Pois é, sou dessas que calcula mal o tempo todo. Ele era um notório idiota e
eu tinha plena consciência disso, mas não me importei.
Se eu não estivesse tão confuso, teria me levantado e partido.
Entretanto, não conseguia me mover direito, nem me distanciar da voz
melodiosa. Era como se alguém tivesse me alvejado na cabeça. O mundo
parecia girar rápido e um zunido contínuo não me deixava pensar.
Como podia estar em um lugar e, no segundo seguinte, em outro?
— Foi então que comecei a notar umas coisas estranhas. — A voz
feminina continuava ao fundo. — Eles começaram a ir embora juntos,
sempre no mesmo horário. Minhas pastas apareciam mexidas pela manhã, e
um dia desconfiei que alguém estava acessando meu computador durante a
noite.
Ela fez uma careta, como se tivesse acabado de provar uma comida
estragada.
— Perguntei ao meu chefe o que estava acontecendo, mas ele me
convenceu de que não era nada. Que eu deveria delegar mais para a minha
assistente, imagine. Então, um dia, um dos meus clientes me ligou
questionando o motivo de estar sendo contatado por ela. Me avisou para ter
cautela e insinuou que eu estava sendo enganada.
A faladeira olhou para o casal.
— Foi assim que descobri o caso entre os dois. Eles queriam me tirar da
jogada, cada um por um motivo, mas não sem antes aprender o que só eu
sabia fazer. Estavam me escanteando enquanto sorriam para mim, uma
durante o dia, e o outro… — ela deu um gole na bebida — enquanto me
fodia à noite. Foi quando resolvi pedir demissão. Eu estava confusa, me
sentindo traída… E não sou de pensar muito nas consequências.
Simplesmente marchei até a sala do cretino e me demiti.
Finalmente entendi uma palavra: marchar. Também entendi “foder”,
mas esta não poderia ter saído da boca de uma mulher, pelo menos não de
uma decente.
Para o meu alívio, o álcool começou a agir sobre os músculos. Meus pés
estavam mais firmes e os braços voltavam a ganhar força.
— O problema é que fiz isso sem ter um plano B. — Ela abriu um
sorriso sem alegria. — Disse apenas que queria montar meu próprio
negócio e deixei o emprego. Eu sei, que burra. — Ela bateu o bornal
salpicado de pedrinhas coloridas na própria testa. — Dei a eles exatamente
o que queriam. Minha assistente instagramer assumiu minha posição, os
dois se apaixonaram perdidamente e cá estou eu, fingindo não me importar.
Este é o resumo da ópera.
Que diabos é ópera?
Ela ergueu o novo copo e lançou o líquido por trás dos ombros,
chocando-o em seguida no meu.
— Tintim.
Aquela senhorita era louca. Tentei ficar de pé e sair dali, mas assim que
me equilibrei, algo explodiu sobre nossas cabeças.
Os infiéis!
Minha reação mais rápida foi saltar sobre a mulher e proteger seu corpo
contra a mesa.
— Os otomanos! — gritei, deitando o corpo sobre o dela. — Não se
mova!
— Ei! O que está fazendo? — Ela se debateu. Com o peito retumbando,
procurei ao redor minha espada.
— Minha espada, mulher! Onde ela está?
— Que espada?! Meu Deus, saia de cima de mim! — A garota se
contorceu, empurrando meu peito para longe. — Ficou doido?
— Estou tentando protegê-la dos estilhaços, criatura ingrata!
Olhos da cor de avelã, abertos e imensos, fixaram-se nos meus.
— Que escombros? São só fogos!
Respirando profundamente contra o rosto dela, pisquei, atordoado.
— Como assim, só fogos? Se há um incêndio se alastrando precisamos
sair daqui! — Levantei o peito o suficiente para que ela se arrastasse para
longe. Os estouros continuavam e a cada um deles eu me encolhia de
maneira reflexa. A mulher me observou como se o estranho fosse eu ao
apontar para o céu. Olhei para cima, vendo descer sob o gramado uma
chuva de pequenos brilhos que explodiam contra o firmamento. Aquilo era
um ataque, mas as pessoas aplaudiam! Sorriam, em júbilo!
— Jesus, que escândalo por nada. — Ela alisou a roupa, se levantando.
— Você tem um parafuso a menos?
— Preciso da minha espada! Eu estava com ela na mão! Onde está? —
Girei ao redor, observando o chão.
— O que planeja fazer? Apontar para as luzes e blasfemar? Acho que é
hora de deixar o personagem, não?
Luzinhas ainda caíam sobre nós, acompanhadas de estampidos. Apesar
de tudo, ninguém parecia surpreso.
— Exijo saber o que está acontecendo! — Bati a palma da mão no
tampo da mesa. — Por que estão felizes, se estamos sendo atacados?
— É isso. A batida do carrinho de golfe pode ter sido pior do que
imaginei.
Neguei, sem entender. O que estava acontecendo ali? Ao perceber meu
nervosismo, ela se aproximou.
— Não estamos sendo atacados, está bem? O casamento acabou. As
pessoas estão festejando. — Ela tocou meu ombro com reticência, quase
com um brilho de medo no olhar.
Olhei para a mão delicada, percebendo só agora como a moça era
pequena. Ela batia na altura do meu tórax e suas curvas eram visíveis por
causa da pouca roupa justa que usava. Embora seu cabelo tivesse sido
punido por uma navalha cega e sua língua fosse definitivamente
maledicente, o conjunto era agradável. Com exceção das suas vestimentas:
estas eram um ultraje. Ela vestia calças e casaco como um homem, mas no
lugar da camisa, havia uma faixa miúda na altura dos seios que deixava
metade da barriga de fora. Que tipo de vestes eram aquelas? Por não ter um
avental, estava suja da cintura para baixo com respingos de lama. Os pés
imundos, aliás, pareciam pequenos e delicados, tinham unhas pintadas de
escuro e estavam atados por tiras que os amarravam sobre um objeto de
tortura pontiagudo.
Aquilo podia bem ser uma arma.
— Exijo que me explique onde estou, estrangeira. Agora.
— Ah, exige, cavaleiro?
Mais uma vez, ela debochava de mim.
— Como sabe que sou um cavaleiro da Ordem?
Seu dedo com as estranhas unhas escuras tocou meu peito.
— Pela cruz de Malta na fantasia.
— Fantasia? — repeti ofendido, dirigindo-lhe um olhar duro que
cessaria imediatamente aquela impertinência.
O toque no peito, no entanto, me lembrou de outra coisa: a pedra.
— Maldita — resmunguei baixo, procurando a fivela do peitoral. A
feiticeira havia jogado seu colar dentro da minha armadura. O que estava
acontecendo comigo só podia ser consequência de um feitiço.
A mulher observou, confusa, a tentativa de me livrar da armadura.
Removi a placa pesada, sentindo a pedra se desalojar de onde estava e rolar,
fria, pela barriga até o gramado. Ao me abaixar para pegá-la, a jovem foi
mais rápida.
— O que é isso? — Ela girou o objeto na mão.
— Entregue-me agora. Isso não lhe pertence.
Ao invés de obedecer, a incauta deu dois passos para longe, erguendo o
pingente. A pedra roxa reluziu contra a luz do fim de tarde.
Com as sobrancelhas franzidas, ela estudou o meio círculo como se já o
tivesse visto antes.
— Onde conseguiu isso?
Arranquei o objeto da mão dela. Um cavaleiro não dava satisfações a
uma mulher.
— Já disse que não lhe interessa.
— Isso é impossível — a mulher murmurou atrás de mim.
Então, enfiando a mão entre os seios amassados por aquele estranho e
minúsculo pedaço cintilante de tecido, tirou dali um pingente preso a um fio
de ouro.
Meus olhos se arregalaram e minha língua paralisou.
A dama possuía uma pedra similar à minha.
Seus olhos me escrutinaram com a mais profunda desconfiança. Como
se algo muito errado tivesse acontecido, ou eu agora fosse uma ameaça real.
— Onde conseguiu essa pedra? — ela perguntou devagar, como um
bicho prestes a atacar.
— Uma mulher me deu.
Eu mesmo não conseguia parar de olhar para o pingente que ela tinha
entre os dedos. Era exatamente a outra parte da minha pedra!
Ela deu um passo para trás, os olhos cheios de assombro e medo.
— É só uma coincidência — murmurou para si mesma. — Não
aconteceu nada com Sabrina.
— Não há coincidências na bruxaria! — Avancei um passo. — E quem
é Sabrina? Conhece a mulher que me enviou para cá? — Em um ímpeto
desesperado, segurei seus braços. — Exijo que me explique como vim parar
aqui! Que tipo de sortilégio lançou contra mim, e onde está São Elmo? O
que aconteceu com os malditos infiéis, e o que essa maldita pedra tem a ver
com…
Antes que eu terminasse a frase, o bornal decorado que ela carregava
acertou a minha testa.
— Ai! — Soltei-a, me desequilibrando para trás.
Ela afiou os olhos na minha direção.
— Preste atenção, engraçadinho. Nunca, em hipótese alguma, segure
uma mulher contra a vontade dela, está bem?
Apesar de inofensiva à primeira vista, aquela bolsa pesava como uma
bigorna! Quantos perigos aquela mulher escondia em seus parcos trajes?
— Que tipo de arma é essa, criatura do mal? — Alisei a testa. — E qual
o seu papel na minha presença aqui?
Ela desceu os olhos pela minha camisa imunda, ignorando os ruídos de
conversas ao nosso redor.
— A menos que queira continuar esta conversa na delegacia, exijo
explicações, e agora. O que está fazendo com o pingente da minha irmã?
4
DE ONDE SAIU ESSA PEDRA?
ISLA

P or que essas coisas aconteciam comigo? Por que, entre todas as


azaradas da era moderna, precisava debater a segurança da minha
irmã com um lunático que achava que estávamos em guerra, um
homem enrolado em camadas de lata?
Eu teria deixado aquele maluco para trás se não tivesse visto o pingente.
Agora, um frio esquisito tomava conta das minhas entranhas junto com uma
urgência em descobrir como ele o conseguira.
— Dei essa pedra ano passado para a minha irmã. Como a conseguiu, se
a vi embarcar com ela?
Mais uma vez, era como se eu falasse em outra língua. O homem não
entendeu nada.
— Quem te deu a pedra? — repeti devagar, caso o problema fosse uma
concussão. Como ele não esboçou reação, abri a boca para repetir a frase.
— Quem…
— Eu não sei o nome dela.
Exalei sem paciência, levando a mão à cintura.
— Diga logo como conseguiu esse colar. Estou um pouco aflita de te
ver com ele!
— Não sei do que está falando! — A voz do cavaleiro engrossou,
tingida de… angústia? Embora ele parecesse bélico e até um pouco
ameaçador, também parecia perdido, como se tivesse pousado em outro
planeta e não reconhecesse nada. — Nós a chamamos de feiticeira —
continuou. — Ela só fala com o meu irmão, e antes dos otomanos
chegarem, eu nunca a tinha visto.
Ele levou a mão imunda à testa e, pela primeira vez, me perguntei se
aquelas manchas marrons eram, de fato, ketchup.
— Antes que tudo escurecesse, ela enfiou o colar dentro da minha
armadura e me mandou procurar uma mulher chamada Isla. — Ele arrastou
as mãos imensas no rosto. Seus dedos eram longos e bonitos, mas as unhas
estavam um horror de imundas.
— Você veio da Inglaterra? — perguntei. — Esteve com Sabrina?
Ele balançou a cabeça, perturbado.
— Inglaterra? Do que está falando? E já disse que não sei quem é
Sabrina!
Embora todos os meus alarmes soassem e aquele fosse o tipo de cara
que meu pai alertou a vida toda para evitar, eu não conseguia me mexer.
Alguma coisa em seu olhar me segurava ali. Para começar, quando me
tocou, fez força para não pressionar os dedos — e pelo seu tamanho,
poderia ter me quebrado como um galho seco. Em segundo lugar, o homem
parecia realmente atordoado. Desnorteado, perdido e sem rumo.
— Sabrina é minha irmã. Ela está fazendo intercâmbio na Inglaterra. —
Tirei o celular da bolsa e cliquei em uma foto dela. O rosto da adolescente
alegre, de sorriso metálico e cabelo pintado de vermelho, surgiu na tela.
Mostrei a imagem para ele. — Foi ela quem te deu a pedra?
Os olhos azul-polar percorreram o celular com assombro. Duvido que
tenha conferido a foto: ele parecia mais chocado pelo aparelho do que com
a imagem em si.
Com alívio, o vi negar.
— A mulher que me entregou a pedra é mais velha. Estava de barriga.
Desconfiada, digitei uma mensagem para Sabrina, ciente de que ele me
observava.

Ei, Sabrina. Tudo bem? Tá com a pedra que te dei?


Responda com urgência, por favor.

Assim que enviei a mensagem, visualizei os dois tracinhos azuis e as


reticências flutuando na tela. Graças a Deus.

Ei, maninha. Tudo bem por aqui. Pedra no pescoço, pq?

Pode me mandar uma foto?


Ela mandou um emoji desconfiado, mas obedeceu. Segundos depois,
minha irmã apareceu na tela fazendo um biquinho e segurando o colar ao
redor do pescoço. Soltei um suspiro de alívio.

Obrigada, Bini. Bons estudos e cuidado com as borboletas.

Já estava aliviada e até sorrindo, encerrando a troca de mensagens com


uma brincadeira só nossa, quando ela respondeu:

Afinal, ninguém quer provocar um tufão do outro lado do


mundo ;) 🦋

Ela adornou a mensagem com um emoji de borboleta e eu sorri, aliviada.


Estava tudo bem com ela. Desliguei o celular e o enfiei de volta na bolsa
sob o olhar sombrio do homem. Por um tempo ele continuou a olhar para a
minha mão, o rosto franzido em mil lugares, como papel amassado.
— Onde eu estou? — Seu murmúrio soou sincero.
— Provavelmente está aqui devido a um pedido meu — respondi mais
calma, vendo-o arrastar as mãos pelo cabelo e revelar raízes tão loiras que
quase pareciam brancas. — Eu precisava de alguém essa tarde. Na verdade,
não precisava de nada… nem mesmo de estar aqui. — Mirei o casal que
agora sumia no pavilhão decorado com flores, seguido pelos convidados. —
Eu só achei que precisava estar.
Tomei ar, voltando a encarar o bonitão.
— Lilli provavelmente te contou o que aconteceu e você se ofereceu
para ajudar.
— Não estou aqui para ajudar ninguém. Onde está o forte? — Ele
elevou a voz. — O acampamento dos otomanos?
Que saco. De novo, isso?
Olhei penalizada para ele. Pelo aspecto, o pobre coitado devia ter
trabalhado o dia todo. Seu cheiro era horrível e a aparência, pior ainda. Mas
quem era eu para julgar alguém que tinha um trabalho?
— Olha, Cristopher, tudo que eu precisava hoje era ser salva por um
cavaleiro numa armadura prateada, e aí chegou você. — Encarei o peitoral
gigante, achando graça na literalidade da coisa. — Você é a própria
representação do cavaleiro cristão e eu não podia estar mais agradecida. O
lance é que não preciso mais ser salva, ok? Tá liberado para ir embora, ou
procurar sua espada, sei lá. Muito obrigada, de coração.
— Você não está me ajudando.
— Tem razão. Não posso largar você aqui, desorientado. Vamos para o
hospital.
Ele parou de mexer na cabeleira leonina e me encarou.
— Seu nome é Isla, certo?
— Sim. E o seu é Cristopher. Bom, pelo menos está lembrando das
coisas. Pode ser que a concussão não seja grave.
Ele tateou o próprio corpo, olhando ao redor.
— Tenho que voltar para São Elmo. Mas antes, preciso achar a minha
espada.
— Posso te ajudar a procurá-la na saída. Perdi a vontade de ficar aqui.
A ideia de fingir que estava bem não me agradava mais. O que eu queria
provar? Que não me importava com aquele casamento? Eu não me
importava, mesmo. Não pelo caso de amor, pelo menos. Estava mais
magoada pela traição corporativa, pelos sorrisos falsos e acessos ilegais ao
meu computador. Deixei que a raiva conduzisse meus atos e estava ali
passando vergonha, isso sim. Eu devia fazer como Cristopher e
simplesmente achar um trabalho. Um que ocupasse minha cabeça e pagasse
minhas contas até me recolocar no mercado.
— Vamos — eu o chamei em direção ao portão. — A espada deve ter
caído onde o encontrei. Onde estacionou seu carro?
Como de costume, ele repetiu a última palavra — carro? — como um
papagaio.
Não chegamos a dar um passo quando ouvi uma voz atrás de mim.
— Isla?
Ai, droga. Virei devagar, abrindo o meu melhor sorriso.
— Vânia?
Uma das diretoras da Luminar vinha caminhando até nós, o cabelo
unido em um coque gigante sobre a cabeça e as mãos erguendo o vestido de
festa.
— O que faz aqui, querida? — O sorriso congelado da mulher mostrava
surpresa e uma boa dose de censura.
— Fui convidada — respondi, polida. — Vim prestigiar a união dos
meus colegas.
— Não achamos que viria. Você sabe, devido à situação com… — Ela
apontou para os noivos.
Fiz um gesto de descaso, soltando um pfft treinado.
— Imagine. Fico feliz que Giulia tenha tomado o meu lugar.
Sim, porque foi isso que ela fez: tomou o meu lugar.
— Danny me disse que saiu para montar sua própria produtora, é
verdade?
— É, sim. — Mentira. — Eu precisava expandir o horizonte, abrir as
asas.
— Nessa economia? Que coragem.
A vontade era responder algo mal-educado, mas antes que conseguisse,
o olhar felino da diretora migrou para Cristopher.
— E quem é este, Isla? Suas amizades são sempre tão curiosas.
Precisei buscar paciência nas profundezas das trevas para não mandá-la
cuidar da própria vida. Entretanto, uma coisa era me arrepender de estar ali,
a outra era desperdiçar uma boa ocasião. Dei um passo para o lado, me
aproximando do gigante.
Em condições normais (e de salto), eu bateria na altura dos ombros
largos. Porém, com o salto afundado na terra, minha cabeça batia na linha
do peitoral masculino. O que era bom, porque o fazia parecer maior e mais
perigoso.
— Esse é meu namorado, Cristopher De Landa.
O sorriso da mulher continuou costurado ao rosto.
— E de onde ele saiu? Do século XVI?
Algo nas palavras dela mexeram com o homem, porque ele se
empertigou. Sem pensar, entrelacei meus dedos aos ásperos dele, sorrindo
de volta.
— Hilário, Vânia. Na pressa de me encontrar, Cristopher não conseguiu
trocar a fantasia, não é, amor?
Ele abriu a boca para retrucar, mas à menção da palavra amor, as
sobrancelhas loiras se uniram sobre o nariz. Ignorei toda aquela beleza
rústica e sorri para a diretora.
— Você sabe como são essas filmagens: atores não têm um segundo de
paz. Como dizem por aí, "Hollywood não pode parar”!
Ninguém diz isso por aí, sua tonta.
— Hollywood? — As sobrancelhas da mulher se arquearam. — O que
estão filmando aqui?
Ai, meu pai. Pense rápido.
— Um… filme.
— Sobre o quê?
— Sobre o… — Milhares de cenas se agitaram na mente enquanto
olhava para o bonitão maluco, tão rápidas quanto a chamada de The Big
Bang Theory. Cocei a testa, soltando: — O Cerco de Malta.
O rugido do homem — “Cerco de Malta?” — Se misturou à surpresa de
Vânia.
— Como não ouvimos falar nada? — ela questionou, desconfiada.
Ergui uma das mãos para cima, como se só as estrelas tivessem a
resposta. O lado bom das mentiras é que, uma vez perdida a vergonha de
contá-las, elas fluíam como água.
— O diretor pediu que mantivéssemos as gravações em sigilo. Sabe
como essas coisas funcionam. — Sorri para o gigante. — Desculpe, amor,
isso é tudo que direi sobre o projeto.
Enquanto a mulher investigava Cristopher, ele me encarava,
profundamente confuso.
— Que coisa — Vânia murmurou. — Bem, desejo sucesso nessa sua
nova fase. Bom te ver, querida.
Assim que ela se afastou, o homem soltou minha mão e me segurou
pelos ombros. Os olhos prateados pareciam desferir chicotadas nos meus.
— De que cerco está falando? O contra os infiéis? Onde ele está
acontecendo?
— Eu inventei aquilo, desculpe. — Fiz uma careta. — Eu sei, não
preciso de outro sermão. Lilli também detestou o plano. — Encolhi os
ombros e as mãos dele escorregaram pelos meus braços, sem força. —
Desculpe por te fazer passar por isso, Cristopher, mas acredite, essa gente é
sádica. A graça deles em humilhar os funcionários é real, eu juro.
Nada daquilo pareceu entrar pelos seus ouvidos.
— O Cerco! Fale-me dele, mulher!
A maneira como ele exigia respostas era esquisita, e esses toques,
bastante problemáticos. Removi as mãos imensas dos meus braços e, como
da vez anterior, ele as afastou prontamente.
— Eu disse a primeira coisa que veio à cabeça, está bem? Você está
vestido de cavaleiro hospitalário, então mencionei a única coisa que sei
sobre vocês!
— O que aconteceu no Cerco? Os turcos tomaram a ilha? Quem venceu
a batalha?
Sua intensidade era assustadora, assim como o desespero. Aquela
encenação estava começando a me deixar apreensiva. Tentei me lembrar
sobre o passado da ilha.
— Malta ganhou. Os turcos fugiram quando os reforços chegaram.
Qualquer um aqui sabe disso.
Cristopher entreabriu a boca, exalando um suspiro tão profundo que seu
peito pareceu esvaziar. Para minha completa perplexidade, ele tombou de
joelhos ao chão.
— Senhor, obrigado.
Com o corpo curvado para a frente, ele começou a… rezar? Olhei ao
redor, vendo rostos se virarem para nós.
— Cristopher? As pessoas estão olhando. Vai, levanta, ou vão achar que
está ajoelhado para me pedir em…
No mesmo instante, parei de falar.
Que mal havia em deixá-lo rezar só mais um pouquinho, não é mesmo?

Durante os segundos em que ele permaneceu ajoelhado, murmurando


palavras em latim, notei que nos tornamos um tipo de atração. Mais de uma
pessoa tinha o telefone apontado para a cena, e precisei me conter para não
rir. Aquilo era tão perfeito.
Quando a prece acabou, ele se levantou.
— Leve-me para São Elmo — ordenou com voz de barítono. — Agora!
Estendi a mão alegremente na sua direção.
— Finja que está colocando um anel. Isso, pegue a minha mão.
Confuso, ele segurou meus dedos, sem entender meu sorriso
escancarado. Em breve a fofoca se espalharia pela festa como fogo em um
rastro de pólvora.
Sempre achei aqueles pedidos de casamento no meio das celebrações
alheias muito bregas. Um misto de falta de noção com uma tentativa de
chamar a atenção para si, e normalmente faria cara feia para a cena. No
entanto, minha opinião acabava de mudar: eu estava amando tudo aquilo.
— São Elmo? — respondi de forma que só ele pudesse me ouvir. —
Cristopher, eu te levarei ao céu, sério. Isso foi genial.
Dando um passo à frente, enlacei-o pelo pescoço. De perto ele
conseguia ser ainda mais bonito e mais… especial.
O cavaleiro paralisou, surpreso. Os olhos azuis fitaram os meus, e foi
engraçado ver toda aquela pose de mandão ir pelo ralo.
— O que está fazendo? — ele perguntou baixo.
— Agradecendo, claro!
Mas como fazer aquilo apropriadamente? Pela primeira vez em muito
tempo eu não estava por baixo. Não me sentia pequena, descartável,
substituível. Ultimamente, tudo andava soando excessivo: minhas tentativas
de ser alegre de novo, de provar que era uma profissional competente, de
que ainda tinha alguma sanidade depois de meses bebendo vinho, jogando
Candy Crush e me alimentando de sorvete, trancada no meu apartamento
escuro.
Esse era o começo da minha volta por cima.
Ergui os olhos até a boca larga e delineada escondida sob os fios loiros,
tentando não sorrir abertamente por aquele presente inesperado. Não ia
explicar para ele como era a sensação de derrota quando ela atingia todas as
partes da vida — ele provavelmente nem entenderia. O fracasso pessoal e
profissional combinados, a sensação de ser trocada por outra, a completa
descrença no amor.
Embora em choque, Cristopher não me afastou. Meus dedos se
embrenharam sob os fios dourados de seu cabelo enquanto seus olhos
cresciam como luas cheias no rosto. Então o puxei para baixo, só um
pouquinho, até que nossos lábios se encontrassem.
E foi assim que, naquele fim de tarde deslumbrante e com o sol
descendo dourado pelo gramado, beijei um cavaleiro vestido com uma
armadura brilhante.
Que outra dedo-podre no mundo teria uma chance dessas?
Foi engraçado ver como o homem parou de respirar. As mãos fortes,
antes prontas para me afastar, ajustaram-se à minha cintura. Seus lábios
permitiram o toque dos meus, e para a minha surpresa final, suas pálpebras
desceram, devagar.
Per-fei-to.
Foi um beijo fake, breve e sem língua, sem nenhuma paixão verdadeira.
Ainda assim, senti coisas esquisitas no peito. Coisas que não tinham a ver
com a minha propensão a ver romance em tudo, nem com o fato dele ser
lindo e eu precisar me controlar para não babar.
Tinha a ver com a pedra que tanto eu, quanto ele trazíamos no pescoço.
Quando elas se aproximaram, a minha aqueceu. Um aquecimento
morno que começou bem na região do coração e se espalhou pelos
membros. Minhas pernas amoleceram devagar, assim como os braços. O
corpo inteiro parecia vermelho e quente, sensível ao toque de cada parte
dele.
Minhas mãos largaram seu pescoço e dei um passo para trás, franzindo
de leve a sobrancelha. A situação inteira ficou subitamente estranha.
Cristopher abriu devagar os olhos. Suas íris faiscavam, tão claras e
puras que senti um tremor interno.
Pare já com isso, sua idiota. Eu proibia o departamento romântico do
meu cérebro de enxergar coisas onde não existiam. O setor da ilusão já
funcionava dentro de mim a todo vapor.
— Acho que já está bom. — Fiz um carinho leve na barba bagunçada.
— Agora podemos sair daqui.
Havia todo tipo de espanto em seu rosto. Todo tipo de choque.
Aproveitei seu estupor e dei a mão a ele, puxando-o para a saída. Sem
palavras pelo que ele fez por mim, só agradeci mentalmente a chance de dar
a volta por cima. E, se era assim, podia ao menos fazer algo por esse
homem.
Hospital, aí vamos nós.
5
SER TAGARELA É O SEU PODER
CRISTOPHER

A sensação de estar preso em um pesadelo continuava, mesmo tendo


deixado aquele lugar estranho que comemorava explosões. Na
verdade, o pesadelo piorava: agora, carroças de metal zuniam por
uma cidade que eu não reconhecia. As caixas de metal eram rápidas,
fedorentas e faziam barulhos ensurdecedores. Elas reviravam minhas
entranhas e me deixavam tonto quando me jogavam de um lado para o
outro.
Como pude entrar em uma carroça conduzida por uma dama?
Como se não bastasse, a garota chamada Isla não parava de falar, e eu
não conseguia entender nada — nem como ela conseguiu me enfiar naquela
coisa minúscula, onde mal cabiam minhas pernas, nem por que diabos havia
me beijado. Nunca uma mulher tomara essas liberdades comigo. Quando eu
precisava aliviar as necessidades do corpo, procurava por aquelas que eram
entendidas do assunto, mas a atitude partia sempre de mim. Que mundo
maluco era esse onde eu estava?
Por sorte havíamos encontrado minha espada. Ela estava caída no lugar
onde acordei, e segurá-la firme contra mim era a única coisa que me
prendia à sanidade.
Desviei o olhar para fora do baú apertado, tonto ao ver a rapidez com
que nos movíamos. Que tipo de magia sinistra nos movimentava tão
rápido? Era como se a horda de invasores estivesse correndo atrás de nós,
mas não havia nada. E onde estava a coragem de saltar da condução e me
livrar daquele tormento?
— Você precisava ver a cara das pessoas quando ergueu a espada no
meio do clube de golfe! — Isla soltou uma gargalhada sonora. — Eles estão
certos de que algum estúdio de cinema voltou à ilha!
Os olhos dela continuavam virados para a frente, as mãos girando o aro
escuro diante do corpo.
— Rá, quem está por cima agora? — Ela moveu o aro para a direita e o
veículo tomou um rumo inesperado. Segurei no teto, olhando-a assustado.
Como podia parecer tão despreocupada, cruzando o país naquela coisa
minúscula feita de ferro?
— Quando te vi vestido desse jeito quis desmaiar, mas agora faz tanto
sentido. Esse é o poder de chegar incendiando lugares. Tática imbatível,
admito!
Aquela feiticeira não devia ser subestimada. Se seu poder fosse tão
imenso quanto sua língua, o que poderia fazer comigo?
Ela precisava ser contida.
Tentei erguer minha espada, mas o cabo bateu no teto.
— Pode me contar o que estava fazendo antes de aparecer no clube?
Apresentação de rua? Ensaio para alguma apresentação no próximo
festival? — Ela arregalou aqueles imensos olhos escuros, iluminados pelo
que parecia ser a mais genuína alegria. — Ai, meu Deus. Você é ator de
verdade? Estava mesmo filmando alguma coisa?
Tentei virar a espada de lado, mas o cabo bateu na janela. Maldição, eu
não conseguia me mexer ou sacar minha espada. Em circunstâncias menos
apertadas, eu apontaria a lâmina para o pescoço daquela maluca e a faria
confessar o que fez comigo. Que papel tinha no meu pesadelo? Ela devia
saber o que estava acontecendo. O problema era estávamos presos naquele
cubo de ferro, voando sobre estradas estranhas. Tinha a sensação de que se
agisse, colocaria minha vida em risco pelo jeito como nos movíamos.
— Olha, Cristopher, se não conversar comigo, vou achar que está mal
por causa do atropelamento. Dizem que é bom falar quando batemos a
cabeça.
Ela também havia batido a sua? Porque desde que nos encontramos, não
passei um segundo sem ouvir sua voz.
— Tá bom, foi você quem pediu. Vamos para o hospital.
— Eu estava em uma batalha — respondi finalmente, nem querendo
pensar em como seria uma enfermaria naquele lugar maldito.
— Super te entendo. Quem não está, hoje em dia?
Eles também estavam em guerra? Olhei pela janela, para a confusão de
pessoas atravessando as vielas. Todas pareciam frenéticas, mas não com
medo, famintas ou à procura de abrigo. Não havia batalha alguma
acontecendo ali.
Olhei ofendido para a mentirosa, pronto para esganá-la.
— Vocês não estão em guerra!
Ela girou o aro escuro mais uma vez, e precisei espalmar a mão na
janela quando fui arremessado para o canto. Pegando então uma estrada
ainda mais larga e mil vezes mais assustadora do que a anterior, a mulher
teve o descaramento de rir.
— Há controvérsias. Espere até ver essa avenida na hora do rush.
Temos sorte de hoje ser sábado, ou ficaríamos presos aqui eternamente no
meio da confusão de buzinas e motoristas mal-educados. — Ela franziu o
nariz ao olhar para mim. — Então você estava filmando uma cena de
guerra, é isso? Espere, agora estou confusa.
— Filmando? Que diabos é isso? Estou dizendo que eu estava no Cerco,
no meio de uma batalha para defender São Elmo! — Apertei a
empunhadura da espada nas mãos, frustrado por não conseguir
desembainhá-la. Que humilhante estar preso entre aquelas paredes
apertadas sem poder tirar a espada do meio das coxas!
— Você diz aquelas batalhas que o povo encena na praça?
— Não é encenação! Em um cerco de verdade, contra os infiéis
otomanos! Você deve ser um deles, se está tentando me deixar louco! A
última coisa que me lembro é que uma feiticeira me deu esta pedra, houve
uma explosão e eu apareci aqui, nesse pesadelo!
Ela pareceu pensar no assunto. Então soltou, dando de ombros:
— Que bizarro.
Ela abaixou uma alavanca e um tec-tec-tec me fez olhar sobressaltado
ao redor. Outra curva, e quase caí sobre a mulher, dessa vez.
— Que tipo de condução infernal é essa? E desde quando mulheres
podem conduzir carroças?
— Você é hilário. — Ela curvou pela última vez, e o veículo que
chamava de Smart parou abruptamente sob algumas árvores.
Fui lançado para a frente e quase bati a cabeça no vidro.
— Eu avisei do cinto. — Foi tudo que disse antes de girar uma chave e,
de súbito, trazer o silêncio. Respirando fundo, ergui o olhar para fora,
checando os arredores.
Eu reconhecia aquele lugar.
— Chegamos.
Saltei do veículo como uma ervilha pulando da vagem. O sol se
despedia no horizonte e alguns últimos raios amarelos cortavam o
amálgama rosado e alaranjado do céu. Meu coração pulsava exaltado. Era
inconcebível que eu reconhecesse aquele local, mas, ao mesmo tempo… eu
sabia onde estava.
Havia placas com nomes distintos, pessoas sorrindo segurando objetos
desconhecidos, e uma imensa muralha adiante. O que deveria ser familiar
parecia distante e irreal.
Algumas pessoas passaram por nós, seus rostos fixos na tela mágica que
traziam quase grudada ao rosto, alheios a tudo ao redor. A nós, ao mundo,
aos ruídos.
Dei um tapa no meu próprio rosto. Cristopher, em breve acordará desse
pesadelo. Nada disso existe.
Eu morri, foi isso. Eu estava no céu. Em um bem estranho.
Bastou a mulher parar ao meu lado para eu me remexer, inquieto.
Talvez eu estivesse no inferno. Aquele não era um lugar de paz e
tranquilidade.
— Tinha me esquecido como esse forte é bonito. — Ela sorriu animada
para a construção.
À medida que a ideia da morte e do inferno iam se assentando, meus
olhos foram identificando o contorno da fortaleza. Dei um passo adiante
com a respiração em suspenso. Era óbvio do porquê eu reconhecer o lugar.
— São Elmo? — perguntei, assombrado.
— Você pediu que eu te trouxesse aqui, não?
Meu coração voltou a socar forte no peito, e o medo me fez agarrar a
espada. Olhei ao redor ao ouvir risadas e conversas tranquilas. Onde estava
a guerra? O desespero, os gritos, o cheiro de morte?
Caminhei devagar e incrédulo em direção ao lugar onde estive ainda
hoje, mais cedo. Onde estava a armada turca? Os canhões, a nuvem de
pólvora, os estouros indicando o fim da resistência?
No lugar, havia uma estrutura que eu lembrava estar cravejada de
marcas dos canhões, mas que parecia recuperada, ainda que brutalmente
velha. Com o mesmo formato de estrela, protegendo a península como fora
um dia construída para fazer. Os muros estavam lisos de novo, mas a
sensação era de que estávamos em um lugar ancestral. Em uma relíquia.
Minhas pernas bambearam. Ao redor do forte não havia um
descampado tomado por homens de turbante, e sim uma cidade. Eu estava
exatamente onde acordei naquela manhã, mas esse não era o lugar que
conhecia.
— Esse forte foi… palco do combate mais intenso do Cerco. — Olhei
para as paredes agora intactas. — Fomos bombardeados maciçamente por
canhões instalados ali, no monte Sciberras. — Girei o corpo na direção da
pequena colina, vendo no lugar dos canhões uma confusão de casas cor-de-
ocre baixas e altas.
De onde tudo aquilo surgiu?
Precisei me apoiar na escada para não colapsar. Os nomes e as faces de
muitas pessoas passaram pela minha mente, várias ofegantes e cobertas de
sangue após serem gravemente feridas. No lugar de gemidos de dor, eu
ouvia música. Gente tranquila atravessando as estranhas ruas de pavimento
cinza, passando ao lado do forte como se não o notassem. Como se aqueles
muros fossem apenas parte da paisagem, e não uma das últimas barreiras
que impediu Malta de ser destroçada.
— Cristopher, você está bem?
Eu não estava bem. Precisei arrancar a placa de metal das coxas. O peso
de parte da armadura não me deixava respirar. Eu precisava de ar, de uma
explicação. Eu estava no mesmo lugar onde acordei hoje cedo, mas não
estava mais no mesmo…
Virei lentamente a cabeça para encarar a mulher.
— Em que anos estamos?
— Como assim, que ano?
— Que ano estamos, maldição?!
— Dá para parar de falar maldição? Sou um pouco supersticiosa com
essa palavra.
— QUE ANO? — gritei.
Ela deu um passo para trás.
— Dois mil e vinte e dois! Esqueceu a data quando bateu a cabeça?
Você está começando a me assustar.
Chacoalhei a cabeça.
— Como assim, dois mil? — Que data era essa?
Os olhos dela deslizaram por mim, desconfiados.
— Olha, amigo, não sei que droga você fumou, mas não estou mais
achando graça na brincadeira. Se não se importa, já te trouxe aqui e agora
vou indo.
Respirei fundo, inclinando o corpo para a frente e soltando um grito de
frustração.
— Isso não pode estar acontecendo! — O mundo estava rodando e
fugindo debaixo dos meus pés. — Como posso ter pulado de 1565 para
2022? Como algo assim é possível?
Alguns pedestres pararam ao meu lado, me olhando de forma estranha,
como se nunca tivessem visto um homem na vida. Isla os mandou seguir
com uma encarada e um gesto de mão. Como essa gente poderia entender
meu desespero? Como eu entenderia o que estava acontecendo?
Com as mãos na cintura em uma pose arrogante, Isla caminhou até uma
placa e apontou para o pedestal.
— A história do Cerco está aqui, se quiser saber mais.
Em três passos, me coloquei ao seu lado. Ela apontou para as palavras
estranhas que eu não entendia. O que dizia ali?
— Aqui está. Cerco de Malta, maio a setembro de 1565.
Assombrado, olhei para ela.
— Sabe ler? Desde quando mulheres...
Ela inalou devagar e fingiu não me ouvir.
Uma mulher que sabia ler? Quem era essa criatura tão diferente?
— “O Cerco de Malta ocorreu no ano de 1565, quando o Império
Otomano decidiu invadir Malta, uma pequena ilha estratégica no
Mediterrâneo e sede da Ordem dos Cavaleiros Hospitalares — Isla leu com
tom de quem falava sobre o tempo. — O conflito, ponto culminante de uma
era de hostilidade entre os impérios espanhol e otomano, foi decidido pela
bravura de alguns poucos cavaleiros que defenderam a ilha contra uma
incalculável horda de inimigos.”
— Nós conseguimos? Defendemos o forte? — perguntei, pousando as
duas mãos sobre a placa. Aquilo soava quase impossível de acreditar. A
guerra tinha realmente acabado? Olhei para Isla e ordenei: — Continue.
Ela fez o que mandei, parecendo emburrada:
— “O forte de São Elmo resistiu por 28 dias, caindo em 23 de junho de
1565 nas mãos dos otomanos, que mataram todos os sobreviventes.”
Minha mão pousou sobre a dela, e sua voz cessou. Vinte e três de
junho. Essa era a data em que eu estava. A data da minha morte.
— Que dia é hoje? — perguntei com o que me restava de forças, cada
palavra saindo entre as respirações curtas.
— Quatro de junho — ela respondeu.
— Não é 23?
— Bem, será em 19 dias.
Pelo amor de Deus, essa mulher sabia até mesmo calcular! Abalado
demais, precisei me amparar na placa.
— Cristopher, você está bem?
Não, eu não estava bem. Tudo indicava que eu havia dado um salto no
tempo. Parado no futuro!
Isla me segurou antes que tombasse, e me ajudou a sentar sobre o
gramado. Tudo ao redor girava. Minha cabeça parecia ter sido dragada por
um redemoinho das trevas.
— Ninguém sobreviveu? — questionei, lembrando da fuga do meu
irmão. — Como podem não terem sobrevivido, mas eu continuar vivo, ali?
— Pelo que a placa diz, não houve sobreviventes.
Afundei a cabeça nas mãos. Uma adaga de dor atingiu o meu peito,
perfurando mil vezes o coração. Eles saltaram para a vida! Eu deveria ter
combatido os infiéis até a morte para garantir que viveriam! Essa era a
minha morte! Não a deles!
— Por que tenho a impressão de que não está apenas delirando, e sim é
completamente pancada das ideias? — A voz de Isla chegou baixa até meus
ouvidos.
Olhei para as mãos, os braços, as pernas. Isso tudo era um sonho ruim.
Tinha que acabar logo ou não sabia o quanto poderia suportar.
— Bem, espero que seu surto seja temporário. — Ela se levantou e deu
um passo para trás, se afastando. — Sabe, estou atrasada para… — disse ao
apontar para um lado qualquer. — Enfim. Boa sorte, Cristopher, até a
próxima. Espero que fique bem.
Assim que ela deu meia volta, percebi que não podia deixá-la ir. Se a
perdesse, como a reencontraria? Essa mulher maluca era a única conexão
que eu tinha com o passado, afinal, a feiticeira tinha dito para procurá-la.
Decerto ela sabia de alguma coisa.
— O que sabe sobre tudo isso? — Levantei-me também, decidido a
arrancar dela a verdade nem que precisasse torturá-la. — O que sua pedra
tem a ver com esse salto no tempo? Que tipo de feiticeira é você?
A resposta dela foi abraçar o pequeno bornal e apressar o passo para
longe.
Tive que correr para alcançá-la. Como era rápida essa mulher de calças!
— Que tipo de feiticeira eu sou? — A insolente riu, abrindo a porta do
ovo que chamava de carroça, se jogando lá dentro. — Uma bem burra, que
não soube reconhecer um surtado. Tchau, maluco. Passar bem.
— Estamos realmente no ano de 2022? — Caminhei até a frente do
transporte, disposto a partir aquela coisa feia ao meio se ela continuasse a
me ignorar.
Pois Isla me ignorou. Sem dizer mais nada, bateu a porta com força e
girou uma chave que fez o diabo daquele veículo voltar a soltar roncos
estranhos.
Temeroso que aquilo passasse por cima de mim, dei a volta até a lateral,
precisando achar um jeito de entrar naquela coisa de novo.
— Preciso da sua ajuda, Isla! — Consegui abrir a porta e me enfiar no
espaço apertado, mas por pouco não deu para acomodar a espada entre os
joelhos. — Não sei o que estou fazendo aqui! Nem conheço como funciona
esse lugar!
Ela moveu uma alavanca ao meu lado, esbarrando na minha coxa.
— Droga, você é grande demais! Saia do carro, estou ficando
assustada.
Maldição, ela tinha razão. Ela era pequena, delicada e frágil. Eu
precisava moderar minhas atitudes e meu tom de voz para não assustá-la.
Eu não era um homem pequeno, nem estava com a melhor das
aparências. Enfrentei seu olhar desconfiado, modulando a voz para um tom
que já tinha usado com pequenos animais ou crianças.
— Alguém me enviou para cá, Isla. A mesma que me mandou procurar
você! Tem ideia do porquê? — perguntei, pousando a mão sobre a dela, um
dedo acariciando devagar para frente e para trás.
Normalmente, eu não tocaria em uma mulher. Elas eram raras na minha
vida e eu não lidava bem com elas, mas sabia que palavras doces e carinhos
as acalmavam. Só não esperava receber seu olhar furioso depois de encarar
a mão que a tocava.
— É melhor tirar as mãos de mim ou vou chamar a polícia.
Encerrei imediatamente o toque, mesmo não tendo entendido quem
seria chamado. O tom deixava claro que era uma ameaça.
— Isla, entenda a minha situação. Como posso estar há pouco em 1565
e agora, aqui?
— Então, não dá, né? E não acredito em metade das baboseiras que está
dizendo. Saia do meu carro.
— Eu não sou daqui, diabos! Não tenho para onde ir!
Minha face deve ter passado o tamanho da minha angústia, porque ela
parou de discutir, mesmo que a sua expressão continuasse alerta e
desconfiada. Ela me observou com cuidado, parando sobre as manchas
ressecadas de sangue, antes de se virar para as partes da armadura jogada no
banco de trás.
— Isso está ficando tão estranho. — O tom de voz dela deixava claro
que eu tinha a chance de me explicar.
— Você não faz ideia de como está estranho para mim também.
Ela se ajeitou no banco.
— Está me dizendo que veio do passado? É isso?
Por mais que aquilo parecesse mentira, assenti.
— Eu estava em 1565. Em 23 de junho, dia da queda de São Elmo. A
placa está certa. Vi com os próprios olhos o forte cair, lutei até o fim para
salvar os últimos malteses e cavaleiros. Quando estava pronto para ter a
vida ceifada, acordei aqui, supostamente 2022.
— Não é supostamente, seu cabeça-dura. Estamos em 2022. — Ela
desistiu de mexer nas alavancas ao lado do aro preto, apesar das mãos
continuarem crispadas ali. — Como pode ter estado ainda hoje em uma
batalha que ocorreu há 457 anos?
— Pelo amor de Deus, mulher! Você só me surpreende! Como aprendeu
a somar e subtrair?
Ela entortou a boca e ergueu as palmas, mas não disse nada. Nem
precisou: pelos olhos afiados nos meus, acho que a ofendi.
— Sinceramente? Vá a merda. — Ela moveu a alavanca ao lado da
minha perna outra vez e o veículo deu um solavanco, como se fosse um
canhão sendo disparado. Minha cabeça foi arremessada para trás, batendo
em algo fofo, e para a frente, mas sem chegar ao vidro. — Uma coisa é
inquestionável, Cristopher: sua mente é realmente medieval. E ponha a
merda do cinto de segurança!
— Pare, por favor! — Estiquei as mãos para o alto, em um gesto de paz.
— PARE. Não estou tentando ofendê-la, só não sei o que está acontecendo!
Não sei o que fiz de errado! Sem falar que não sei o que é esse tal de cinto
de regulança! Nunca andei mais rápido do que um cavalo poderia cavalgar!
Eu nunca vi essas coisas que brilham e fazem ruídos, e eu
definitivamente não sei o que estou fazendo aqui! — confessei com a voz
falhada.
O veículo parou de andar para trás e, como mágica, inverteu a direção,
disparando pela estrada à frente.
— Está decidido. A próxima parada será o hospital.
Pensei em protestar, mas uma imensa placa escrito Valetta me distraiu.
— Valetta? O que diabos é isso?
— Esse é o nome da capital — ela resmungou.
— A cidade tem o nome de Jean de Valette?
— Até onde sei sobre a história do país, sim. — Isla me olhou de lado,
uma sobrancelha erguida sem entender o meu assombro.
— Por Deus, eu o conheço! Pergunte-me qualquer coisa sobre ele!
Posso provar que estou falando a verdade!
— Pare, vai. — Ela agora tinha um meio sorriso no rosto, mas as
sobrancelhas continuavam vincadas. — Sua atuação é uma pegadinha, não
é? Isso é a cara de Lilli. Olha, não estou mais achando graça, está bem?
Pode parar de fingir. Você quase me convenceu.
Afundei a cabeça nas mãos. A mulher não sabia ouvir, apenas falava
sem parar! Nada do que eu dizia encontrava eco!
Por longos segundos respirei fundo, o ar entrando com dificuldade, mas
eu precisava me acalmar. Tudo o que sabia é que estava ali devido à pedra.
Que precisava procurar alguém com o nome de Isla.
— Fui enviado para você — revelei, baixo.
A frase deve ter causado alguma reação na moça, porque ela se
encolheu. O baú de metal diminuiu a velocidade.
— Há algo entre nós — continuei devagar, levando os dedos à minha
pedra. — Também sente essa coisa estranha, não?
Ela não teria me permitido ficar na carroça se também não sentisse. Se a
minha pedra esquentava, a dela podia responder de alguma outra forma.
Isla olhou para o cordão que trazia ao redor do pescoço e sua expressão
pesou. Alguns minutos transcorreram até ela responder:
— Eu comprei a pedra, meses atrás, em um lugar conhecido por suas…
histórias fantásticas.
Em silêncio, voltamos a nos movimentar até que paramos sob uma
árvore. Ela não soltou o aro preto, mas ficava abrindo e fechando as mãos
num gesto que eu conhecia como uma tentativa de buscar calma.
— Você não deveria ter essa metade.
— Pode ser. Só que a realidade é que a tenho.
Ela bateu duas vezes a mão no aro negro, irritada.
— Por quê? — questionou a um ponto qualquer da cidade. — Por que
isso tinha que acontecer comigo?
Eu não tinha esta resposta.
— Não entendo isso ainda, senhorita. A única coisa que gostaria de
saber é: o que a pedra sussurra para você?
Os olhos castanhos da mulher encontraram os meus, temerosos e
preocupados. Quando a resposta veio, surpreendeu a ambos.
— Essa coisa estúpida diz que preciso ajudá-lo.
6
NÃO ENTENDO ESSAS BRUXARIAS
ISLA

M eu pai sempre repetiu que gente esperta pesava os riscos antes de


agir. Os atentos e os vigilantes rejeitavam aventuras inseguras,
questionavam fatos, recusavam argumentos tolos — ou seja,
raciocinavam.
Gente burra, por outro lado, sempre tinha um coração meio mole,
segundo ele. Acreditava na intuição, em sinais enviados pelo destino e
bonitões vestidos com armaduras prateadas.
Adivinhem em qual categoria eu me encaixava?
Quando liguei para Lilli para confirmar o que já sabia (ela não tinha
mandado ninguém), o bonitão de lata já estava instalado na minha casa.
Sabia que não deveria tê-lo trazido para cá — uma pequena porcentagem de
mim era esperta —, mas não consegui ficar parada e ver o cavaleiro enfiar a
cabeça entre os joelhos e quebrar. Sim, quebrar. O homem se partiu em mil
pedaços quando finalmente entendeu que havia desaparecido de sua época.
É sério, vi o pobre coitado ser reduzido a destroços.
Por pena, ofereci um café e agora estávamos eu e Lilli ali, avaliando o
problema que tínhamos em mãos: um homem de um metro e noventa, com
o físico do Schwarzenegger, que caminhava pelo meu apartamento como se
estivesse em um planeta distante da Terra.
— Ligou para a polícia? — Lilli sussurrou do meu lado.
Eu continuava apoiada no batente, observando o estranho. Nos últimos
dez minutos ele tinha dado um salto para trás quando encostou no controle
remoto e a TV ligou; depois, passou um minuto inteiro estudando o meu
robô aspirador de pó, para no fim ligar e desligar mil vezes o interruptor do
abajur de canto. Sem contar que, toda vez que olhava para fora e via a
iluminação de Valetta pela janela, parecia se desesperar em silêncio.
— Não quis envolver a polícia.
— É assim que mulheres viram estatística, Isla.
Soltei uma risada baixa. Minha amiga estava coberta de razão.
Entretanto, como eu ia explicar que nada no estranho — nem seu
tamanho, sua expressão dura ou mesmo o sangue coagulado em sua espada
— me botava medo? Eu deveria sentir pavor, nisso eu concordava. Porém,
toda vez que decidia me afastar dele — seja pensando em chamar a polícia
ou ligando para uma casa de saúde —, meu pingente esquentava contra a
pele. A pedra ganhava uma temperatura morna e me acalmava de um jeito
estranho, como se me pedisse calma.
Cheguei a dá-la para Lilli segurar, mas ela não detectou nada. Só eu
sentia a pedra quente.
— E ele simplesmente surgiu do nada e te acompanhou ao casamento?
Isso é inacreditável.
— Achei que ele tinha sido enviado por você. Então o carreguei até o
evento.
— Ao menos, conseguiu o que queria indo até lá?
Troquei o peso dos pés, desconfortável com a resposta que tinha
encontrado. Lilli achou uma má-ideia comparecer, assim como já tinha
criticado meu envolvimento com o babaca do meu ex-chefe, na época. Um
conselho que fingi não escutar, mas de que me arrependia agora.
— Não chegamos a ficar até o final. Quando me dei por satisfeita,
saímos de lá, mas naquela altura ainda acreditava que ele era um amigo seu.
Só entendi que ele não era um ator desorientado um pouco mais tarde.
Lilli chacoalhou a cabeça, mais por incredulidade do que censura.
— Ele não veio do passado, amiga. Você concorda comigo a respeito
disso, não é? — Seus olhos acharam os meus. — Por favor, diga que não
acredita nessa sandice ou vou começar a achar que o que ele tem é
contagioso.
Voltei a investigar o homem que alegava se chamar Cristopher De
Landa e vir do ano de 1565. Algo nele parecia tão real. Eu já tinha passado
por alguns mentirosos psicopatas na vida (que ocuparam, sem exceção, a
posição de rolo, casinho ou namorado), porém todos haviam enviado sinais
de que não prestavam. Eu via os sinais — só era muito boa em ignorá-los.
Aquele homem não fazia soar alerta nenhum, mesmo portando uma
espada com cara de afiada. Afinal, após 38 relacionamentos frustrados, 20
empregos idiotas e saúde mental comprometida devido às duas coisas, não
seria uma espada que me abalaria.
No entanto, o que arrepiava minha coluna era aquela voz vinda sabe-se-
lá-de-onde, dizendo que eu deveria confiar. Era como se eu ouvisse meu
íntimo sussurrar que ele era diferente.
Deus, era assim que mulheres viravam estatística.
— Você avisou para ele que tem uma arma em casa e facas escondidas
em lugares improváveis para o caso dele tentar alguma coisa? E que se fizer
algo, vai preso na mesma hora?
— Já falei tudo isso.
— E ele?
— Disse que estou segura. Que é um homem honrado. — Olhei para
Lilli, prendendo o riso. — Nunca conheci um homem honrado, mas ele
acha que é um cavaleiro da Ordem de São João de Jerusalém. Enfiou honra
e voto de castidade na mesma frase. Achei bonitinho.
Lilli apertou os olhos na minha direção.
— Você está dando mole para esse maluco fantasiado de lata de
sardinha?
Olhei de volta para Cristopher, que tinha acabado de descobrir o
interruptor da parede. Quando a lâmpada sobre nós se apagou, ele deu um
passo para trás, tateando a cintura em busca da espada.
— Eu só acho ele bonito, nada além disso.
— Ah, pronto. Vou fingir que não ouvi isso. — Ela ergueu as mãos. —
Mas saiba que repetirei essa frase no depoimento à polícia quando você
aparecer esquartejada em algum beco e eu for chamada para reconhecer
seus pedaços.
— Você não adora esses homens com tracinhos na testa? — Olhei
intrigada para a minha amiga quando a luz voltou a acender. Apontei
discretamente para Cristopher antes que ele a apagasse novamente. — Elas
lembram letra de médico, não? Parece que alguém receitou um remédio na
testa dele.
— Sim, adoro, e sabe o que está escrito nas linhas da sua? “Sou uma
doida varrida!”.
Quando ele ligou e desligou dez vezes a luz, achei melhor intervir.
— Agora chega, Cristopher. — Caminhei até ele. — Isso é só um
interruptor, está bem? Estou ficando nervosa com essa coisa de querer sua
espada toda vez que encontra alguma coisa diferente na minha casa. Já falei
que está seguro aqui.
Apontei para a espada pesada na sua cintura, encarando os olhos
prateados. Ao invés de ver loucura, malícia ou disposição para esquartejar
garotas idiotas, vi apenas alarme e receio. Baixei o tom de voz, sorrindo de
leve quando ele atendeu o meu pedido. Seus ombros desceram, como se
soubessem que suas ações estavam me deixando tensa.
— Se puder guardar a espada no armário das vassouras, agradeço. Não
precisa dela enquanto estivermos aqui.
— Eu não entendo essas bruxarias! Como podem ter prendido as
pessoas lá dentro? E como capturaram o fogo naquela coisa? — Ele
apontou para a TV, e depois para o abajur.
— Não é bruxaria. É tecnologia — respondi mansa, imaginando que
Lilli estivesse rolando os olhos atrás de mim. — As coisas avançaram no
mundo, meu bem. Velas se tornaram… isso. — Apontei para a lâmpada
acesa no teto. — E televisões vieram… Me ajuda, Lilli. As TVs vieram do
quê?
Minha amiga chacoalhou a cabeça, sem acreditar que a enfiei naquela
conversa.
— Do teatro — ela respondeu sem paciência.
Voltei a olhar para Cristopher.
— O nome disso é televisão. Daquilo, computador. — Apontei para o
notebook em cima do sofá. — E essa minha maquininha cheia de recursos,
celular.
— Do que… isso veio? — ele perguntou para o meu aparelho. Procurei
minha amiga, ainda afastada. Do que o celular tinha evoluído?
A voz de Lilli soou monocórdica:
— Alexa, qual foi o precursor dos celulares?
Ao ouvir a pergunta, a voz feminina e pausada da minha caixa de som
inteligente soou no ambiente:
"O computador remonta aos primórdios da Babilônia, por volta de 300
antes de Cristo, quando o ábaco…”
Em um segundo, minha querida caixa de som iluminava nossa
ignorância com sua sabedoria; no outro, jazia partida ao meio por uma
espada de aço que devia pesar pelo menos uma tonelada.
Os pedaços do aparelho espalharam-se por todos os cantos da sala. Meu
grito se uniu ao de Lilli, e nós duas nos refugiamos atrás da geladeira.
— Cristopher?! — gritei para ele.
— Que diabos foi isso? — ele gritou com a espada agora cravada na
minha mesa de madeira. — Isso não é um ábaco! Quem estava falando ali
dentro?
Eu e Lilli trocamos olhares. Ela tinha a mão no peito e ofegava,
enquanto eu não conseguia fechar a boca, nem responder nada.
— Ele acabou de destruir a sua caixa de som? — Lilli olhou horrorizada
para os pedaços espalhados no chão.
Sim, e aquele maluco tinha acabado de quase partir minha mesinha de
centro!
— A espada, Cristopher! — Caminhei decidida até ele com a mão
estendida, não me deixando abalar pelo olhar arrependido. — Não pode
destruir tudo que não conhece!
Ao ver que minhas mãos tremiam, Cristopher tocou a ponta da espada
no chão, me oferecendo a empunhadura. Assim que segurei o cabo com
força, ele a soltou e o peso quase me fez deixar tudo cair no tapete. Como é
que ele movia aquela coisa com tanta facilidade? Quase morrendo, arrastei
o objeto pesado para longe, observando com o coração apertado aquele
homenzarrão cair sentado no chão, claramente arrependido. Ele estava no
fim das forças, cansado e confuso. Não entendia em que mundo vivíamos
agora; como podia estar em outra época, ou como se controlar no meio
disso tudo.
Assim que tranquei a arma no armário, caminhei até ele e o ajudei a se
sentar no sofá. Eu sentia medo, mas muito mais pena pelo seu estado.
Cristopher me obedeceu, arrastando a mão na cabeça e soltando grunhidos
angustiados de perdão. Eu não conseguia nem começar a imaginar a
confusão na sua cabeça.
Ergui os olhos até a minha amiga, pedindo socorro. O que faria com
aquele cara?
Lilli estalou a língua, penalizada, e caminhou até nós. Embora sua
opinião sobre a situação não tivesse mudado, o sofrimento dele era
palpável, maluco ou não — e seu coração, mais mole que manteiga.
— Ele deve estar com fome, Isla. Conhecendo você como conheço, não
deve ter nada na geladeira para oferecer. Vou para a cozinha preparar
alguma coisa. — Olhando para o homem curvado no canto do sofá, ela o
chamou. — Cristopher, certo?
Ele ergueu a cabeça, fazendo um aceno curto.
Lilli se ajoelhou na frente dele com um sorriso incerto. Ela não devia
ser uma visão mais tranquila do que um computador, um celular ou uma
TV, já que seu cabelo era tingido de rosa e possuía um piercing no nariz.
Mesmo assim, Cristopher migrou sua atenção para o sorriso gentil.
— Tudo vai clarear depois que tomar um banho e comer alguma coisa.
Você parece exausto.
Ele voltou a assentir devagar. O homem parecia ter lutado em uma
guerra antes de estar ali. Bem, de acordo com ele, foi isso mesmo que
aconteceu.
— Enquanto preparo algo para você comer, Isla mostrará onde fica o
banheiro. Dessa forma, poderá se lavar e ficar apresentável.
— Eu preciso voltar para casa. — A voz dele saiu em um fio. Um fio de
aço, mas ainda assim um fio.
— Podemos tentar achar um jeito de fazermos isso mais tarde — garanti
a ele.
Não ligaria de dar mais uma chance à questão da sanidade. Talvez ele
fosse um desses adultos especiais que se vestia de super-herói e que, por um
acaso, acabou fugindo do quintal da mãe. Se fosse esse o caso, teria todo
prazer em retorná-lo para casa. Embora, no fundo do peito (e ao redor do
pingente), soubesse que a resposta para tudo aquilo estivesse na arena do
inexplicável.
— Pensaremos nisso depois que você comer e tomar um banho, está
bem? — Lilli repetiu como se falasse com uma criança.
— Não precisam desperdiçar uma bacia de água comigo — ele
murmurou, educado. — Um pano úmido será de boa serventia.
— Você precisa de mais do que um pano úmido. — Eu o puxei e ele
veio cordato, olhando para a destruição que causou no meio da sala. Se
vinha mesmo de 1565, não sabíamos, mas pela cor da roupa e todo aquele
sangue ressecado, parecia não tomar banho desde aquela data.
Cruzamos o minúsculo corredor do meu quarto-sala e chegamos ao
banheiro.
Eu devia ter conferido o estado do cômodo antes de trazê-lo. Recolhi a
roupa suja jogada no chão, as toalhas molhadas espalhadas pelos cantos e
joguei tudo na cesta de roupa para lavar. Então, liguei a torneira da banheira
e chequei a temperatura, constatando estar morna.
Ao me virar, ele tinha novamente os olhos arregalados.
— Que tipo de fonte é essa? — perguntou em um sussurro, passando
por mim e se aproximando da ducha. — Quem está trazendo essa água até a
tina?
— Não carregamos água há muitos séculos. E, a propósito, isso é uma
banheira, não uma fonte ou tina.
Ele tocou no jato d’água, admirado.
— É quente!
— É, eu sei. Eu também estou louca para me enfiar nessa banheira,
acredite, mas você está precisando de um banho um pouquinho mais do que
eu.
Escolhi na prateleira algo que pudesse ajudar a remover aquele cheiro
de estábulo e a crosta ao redor das unhas. Condicionador de aloe-vera…
Xampu de pêssego… Sabonete de lavanda. Peguei também um pouco de sal
de banho e um produto para fazer espuma. Talvez devesse pingar umas
gotas de água sanitária na água, mas isso eu faria apenas se ele não saísse
limpo.
— Ainda não entendo por que vim parar justamente nesse ano — ele
murmurou atrás de mim com aquele sotaque carregado de consoantes
guturais. — E por que eu?
Antes que pudesse responder que não sabia, ele continuou.
— Era minha hora de morrer. A feiticeira sabia.
Abraçada a todos aqueles frascos e sem ter a resposta para as perguntas,
encarei-o. Por que havia um guerreiro do passado parado na minha frente,
perdido no tempo? Por que uma feiticeira — sabe Deus o que a pobre
mulher era —, diria o meu nome antes de lhe dar uma pedra igual à que eu
possuía?
E por que, ao olhar para ele, não só a pele onde a pedra encostava
amornava, mas também o corpo inteiro?
— Não sei, Cristopher. Juro que não faço ideia.
Eu não sabia de muita coisa.
Coloquei os produtos na borda da banheira e joguei o sal aromático na
água. A situação atual era só mais um nível de confusão na minha vida. Eu
já havia gastado os dois últimos meses em uma busca por respostas
espirituais-psicológicas-morais que não tinham me levado a nada (talvez
apenas transformado meus banhos em uma experiência mística). Eu só
queria entender a razão da mesquinhez e do oportunismo humano —
respostas que, a propósito, não existiam. A conclusão? Certas coisas não
faziam sentido, ponto final. Por que pessoas legais se mostravam traidores
idiotas? Ou homens eram lançados no tempo em direção ao futuro?
Certos mistérios não vinham com explicações.
— Olha, Cristopher — enxuguei a mão no terninho imundo e o encarei
—, nem tudo faz sentido nessa história, mas prometo que vou te ajudar a
pensar nisso depois que se limpar, está bem?
Talvez eu não devesse olhá-lo assim, tão de perto. Os olhos
absurdamente bonitos, que lembravam a geada que cobria a ilha no inverno,
me deixavam de pernas bambas. Eles eram amendoados nos cantos, de uma
forma que o fazia parecer doce, mesmo que o resto do rosto gritasse
ferocidade.
Olhos que amansavam o todo de pedra e davam a um homem a
impressão de ser gentil eram um perigo. Toda vez que via algo assim,
minha reação era sempre a mesma: "olhe, um perigo!” — e lá ia eu saltar
sobre ele.
Era melhor dar um passo para trás.
— Tire a roupa para eu poder colocá-la na máquina, está bem? — pedi,
alisando meus braços para espantar o calafrio que fez subir cada um dos
seus pelinhos ao pensar em vê-lo nu. Cristopher apenas assentiu, olhando
para a banheira que se enchia. Emendei rápido, antes que ele pensasse que
queria vê-lo pelado: — Tenho um roupão masculino em algum lugar. —
Desci os olhos por ele, medindo seu tamanho. — Um tipo de veste para
usar até suas roupas secarem.
Sem debater, ele cruzou os braços e agarrou nas laterais da camisa larga
de linho, puxando-a por cima da cabeça. Oh, oh. Eu não estava preparada
para a cena. Paralisada, vi seu tronco largo e poderoso ficar exposto. Eram
metros e metros de pele lustrosa cobrindo músculos de ferro, e ao que
parecia, remover a camisa não o deixava sem graça.
Valha-me Deus.
Além de músculos, ele tinha muitas cicatrizes também. Algumas
revestidas por queloides, outras ainda em processo de cura. Nenhum fio de
cabelo no centro do peito, só ao redor do umbigo. Mamilos pequenos e
planos, arrepiados como se ele estivesse com frio.
Jesus.
Quase me engasguei com o pensamento traiçoeiro. Tentando me
acalmar, olhei para o lado, sem jeito.
— Você está machucado. — Apontei para a direção onde vi alguma
coisa sangrando. — Quer uma pomada, um band-aid?
Ele olhou para o machucado como se não fosse nada.
— O machucado está fechado.
Os dedos masculinos acharam a amarração da calça, parando por um
momento. Dei outro passo para trás. Se não tivesse saído logo dali e
fechado a porta, ele teria descido as calças na minha frente — e Deus era
testemunha de que eu não era conhecida por resistir a muitas tentações.
Cheguei à cozinha me sentindo um pouco zonza e nem prestei atenção
no que Lilli estava preparando. Tudo no que conseguia pensar era que eu
tinha um homem imenso no meu banheiro e que ele provavelmente passaria
a noite no meu apartamento. Um homem belo, imundo e assustado,
procurando uma mulher com o meu nome. Ele era alguém provavelmente
sem todos os parafusos na cabeça, mas que tinha me deixado arrepiada dos
pés ao último fio de cabelo apenas com a visão das costas largas e
marcadas.
— Vai ligar para a polícia agora? — Lilli levou a colher de pau à boca e
provou o tempero. — Talvez eles saibam sobre algum foragido vestido de
El Cid ou um fugitivo de algum sanatório que acredita ser o último homem
honrado da Terra.
Recostei na bancada da cozinha, ouvindo os ruídos que vinham do
banho. Pelo som, ele havia escorregado para dentro da banheira e tentava
achar uma posição. Meu Deus, se Cristopher não cabia lá, seria impossível
dormir no sofá.
— Você não está com cara de quem vai chamar a polícia.
A frase de Lilli me acordou.
— Não acha que… essa coisa de viagem no tempo possa mesmo
acontecer? — perguntei.
Eu não era do tipo que acreditava em crenças mágicas. Era, na verdade,
uma dedo-podre bem realista. Uma crente-analítica da terapia da
positividade e notória perseguidora dos modestos finais felizes-por-agora,
que sempre desconfiava de histórias muito rosadas. No entanto, eu
geralmente era a primeira a saber que uma situação era furada — mesmo
sendo a primeira a embarcar nelas. O que era totalmente o oposto da
situação atual. Cristopher parecia falar a verdade. Havia algo nele. Algo
mágico.
— Simplesmente aceitou que ele foi enviado de 1565 para cá com um
feitiço?
— Há algo de sobrenatural nele, Lilli. Você o viu.
— Vi músculos e mais músculos, e um rosto que, pela minha alma, não
tem um único defeito. Mas por favor, Isla — ela voltou para a pia para lavar
a colher —, não deixe sua carência enxergar coisas onde não existem.
Nós duas olhamos para a porta quando um ruído de jato descontrolado
chegou à cozinha.
— Ele descobriu a ducha.
— Ninguém pode ser tão idiota — Lilli murmurou.
— Exato. Ele fala como um maltês medieval, quase saltou da janela
quando a TV ligou e parecia estar em um OVNI quando dei partida no
carro. Sem falar em todo o pavor quando entramos na avenida principal ou
todo o desespero quando fomos até o forte.
— Como ele coube dentro do seu carro minúsculo?
— Ficou meio apertado com a espada e tudo, mas chegamos. Lilli,
falando sério, você precisava ver como ele reagiu em São Elmo… Ele sabia
onde estavam as coisas, só estava perdido com toda a cidade que cresceu
em volta do forte.
— Isso tá parecendo a vez em que fumei um bagulho que não conhecia.
Cheguei a ver crocodilos no teto, sabia?
— Ele não está drogado, Lilli.
— Como vamos saber? Você não conhece nada sobre essas novas
drogas sintéticas.
Um novo barulho nos fez parar de falar. Eu e minha amiga nos
entreolhamos, e ela indicou que eu deveria conferir o que estava
acontecendo.
Meu banheiro, meu cavaleiro, meu problema.
7
TUDO TEM CHEIRO DE FRUTA
ISLA

U m ciclone de magnitude cinco não deixaria o banheiro no mesmo


estado de destruição. Água e espuma pingavam por todo lado,
enquanto no meio da banheira Cristopher lutava contra um pote de
xampu, batendo-o contra a borda da banheira como se ele fosse uma casca
de coco que precisasse ser quebrada.
Antes que a casa virasse uma piscina, corri e fechei a torneira.
— Cristopher, o que está fazendo? — Muita quantidade de pele nua,
dourada e reluzente, agora limpa, estava à mostra. Notei também que os
joelhos, que despontavam da água, eram cobertos por fios escuros de
aspecto macio. Era muito homem para uma banheira tão pequena.
Ele levantou o vidro de xampu.
— Que raios é isso e como se abre? E por que há tanta espuma ao
redor?
— É só para ter certeza de que você vai sair daí limpo. — Tirei o pote
da mão dele. — E isso é para o cabelo. Deixa que eu te ajudo.
Desatarraxei a tampa e pedi que ele estendesse a mão. Deixei uma boa
quantidade de produto na palma cheia de calos e indiquei que ele deveria
levá-lo aos fios.
— Tem cheiro de fruta! — Ele me olhou assombrado.
Senti vontade de rir.
— Eu sei. Bom, né?
— Muito bom. — Ele levou a palma ao cabelo e em questão de
segundos uma espuma espessa cresceu sobre a cabeça. Quando achou que
tinha feito espuma suficiente, submergiu na água remexida.
— Bem, vou te deixar sozinho… Esfregue bem essas unhas!
Ele provavelmente não me ouviu.
Fechei a porta sentindo o coração acelerado. Meu rosto estava quente?
Jesus, ele estava. Pelando. Há quanto tempo não sentia as bochechas
arderem? Para com isso, sua irresponsável.
Meia hora depois, Cristopher ressurgiu do banho enrolado no roupão
verde-oliva que deixei pendurado na porta. Parecia faminto, pela forma
como encarou a comida. Lilli abrira uma garrafa de vinho “para fins
recreativos de observação”, e estava começando a se divertir com a situação
onde havia me enfiado.
Vê-lo limpo, sem toda aquela sujeira encrustada no rosto e nas mãos me
causou inquietação. O cabelo comprido pingava sobre os ombros e cheirava
a todo tipo de aroma artificial existente no mercado de cosméticos.
Cristopher caminhou até a mesa com cautela. Não sei se Lilli estava
conseguindo respirar, mas meus pulmões haviam parado de funcionar no
instante em que ele surgiu na porta. Quando os olhos azuis finalmente me
encontraram, pareciam me ver pela primeira vez. A névoa que antes o
confundia havia se dissipado
— Senhoras — disse baixo. — Agradeço imensamente a hospitalidade.
E peço desculpas mais uma vez pelo estrago. — Ele se virou meio
envergonhado para a sala, onde a mesa de centro e a caixa de som jaziam
mortas e despedaçadas.
— Não faz mal, Cristopher. Venha, vamos comer.
Andando até a mesa, o homem pegou um garfo na mão. Apontei para a
cadeira de frente para a minha:
— Sente-se. Você deve estar com fome.
— Vinho? —Lilli ofereceu ao estender a taça. Ele negou, ainda
investigando o garfo.
— Não bebe ou não está com vontade de beber agora? — perguntei por
pura curiosidade.
— Não posso beber até entender o que está acontecendo.
Ele arrastou a cadeira e se sentou. Seus joelhos trombaram nos meus
sob a mesa, e me encolhi, sem jeito.
— O que é isso? — ele perguntou, erguendo o talher.
Lilli pegou seu prato e começou a servi-lo, sem entender.
— Macarrão. Não conhece?
— Ele não está falando da comida, Lilli.
Assim que ela percebeu que ele não sabia usar o garfo, sacou o celular e
conferiu a informação.
— Ouça isso, Isla: o garfo só começou a ser usado na Europa em
meados do século XVI. Acho que ele não conhece o talher.
Olhei para Cristopher, confusa.
— Nunca viu um garfo?
Ele negou devagar, as sobrancelhas pesadas sobre os olhos.
— Conheço algo similar para tirar carnes de espeto, mas não reconheço
esse objeto — Cristopher o afastou, como se não tivesse gostado dele.
Eu e Lilli nos entreolhamos. Acreditávamos nele agora? Comíamos a
macarronada com colher? Eu já nem sabia o que estava perguntando para
ela.
— Bem, usar o garfo é fácil. — Lilli resolveu mostrar como se fazia. —
Você o gira assim na massa… e leva à boca.
Ela estendeu o garfo cheio até ele, e foi fascinante observar Cristopher
colocar o macarrão na boca como se tivéssemos acabado de fazer algum
tipo de magia. A partir de então, foi tudo ladeira abaixo. Com os olhos
arregalados assim que provou a comida, Cristopher atacou a massa como os
otomanos atacaram Malta. Ele terminou com toda a travessa de macarrão e
ainda tinha fome. Tivemos que buscar pão, azeite e frios, imaginando que
seria o suficiente. Quando isso acabou, trouxe iogurte, granola e o resto de
uma torta que tinha na geladeira.
Ele comeu tudo o que havia na casa.
— Há quanto tempo não comia? — perguntei por perguntar, adorando
ver suas expressões de satisfação e de assombro ao provar coisas novas. Ele
parecia ter uma queda por açúcar, e mais de uma vez olhou para a torta
como se estivesse sendo arrebatado pelo sabor. Era ao mesmo tempo doce e
engraçado. Fofo e… esquisito.
— Desde ontem — respondeu enquanto mastigava.
— Ontem, tipo, em 1565? — Lilli provocou, e chutei sua perna debaixo
da mesa. A resposta dele foi enfiar o resto da torta de morango na boca e
mastigar com mais vontade.
Quando nos levantamos, o medo de ser esquartejada tinha passado: o
estranho estava empanturrado demais para matar qualquer coisa. Ele me
ajudou a montar o sofá-cama — mais uma vez, pareceu estar diante da
invenção mais fascinante do mundo depois da roda — e a ajeitar o lençol de
elástico ao redor da área — esta sim, na minha opinião, a melhor invenção
do mundo.
Lilli terminou de colocar as panelas na lava-louças e eu sabia que ela
estava para partir. Ainda me sentia insegura por ficar sozinha com o
estranho, mas tinha oferecido hospedagem e agora precisava deixá-lo
pernoitar, pelo menos até amanhã. Além disso, eu tinha uma estranha
sensação de que ele deveria ficar.
Mas por quê? Por que raios eu tinha aquela certeza maluca de que podia
ajudá-lo?
Vendo-o parado ao lado da janela, contemplando a vista da cidade,
chegava à conclusão de que aquela nem tinha sido a minha pior ideia da
vida: eu já tinha feito coisas bem piores. Nem toda péssima ideia que trouxe
para casa tinha sua figura musculosa, visível através da camisa comprida e
recém-lavada que batia na metade da coxa, ou pernas tão fortes. O cabelo
loiro caía comprido nas costas, quase seco, e as mãos estavam cruzadas na
frente do peito.
Joguei o cobertor sobre o lençol, trocando olhares com Lilli.
— Tem certeza de que vai deixá-lo pernoitar? — ela murmurou
enquanto fechava a lava-louças. — O cara ainda pode ser um maníaco.
— Assim que você sair, me trancarei no quarto, prometo.
— E se tiver sede durante a noite e quiser beber água?
— Vou levar uma garrafa comigo, não se preocupe.
— Ou ir ao banheiro?
— Lilli, pode parar? — pedi, aborrecida. Eu entendia que ela estava
tensa, já que eu também estava. O homem tinha uma espada, pelo amor de
Deus! Mesmo assim, toda vez que pensava em dizer que ele deveria ir para
um abrigo ou ligar para o serviço social, não conseguia levar a ideia
adiante. Ele precisava ficar aqui, pois eu queria investigar melhor essa
história de viagem no tempo. Pela primeira vez em meses, estava curiosa e
excitada por alguma coisa. Sem vontade de me encolher e desaparecer de
tanto me lamentar. — Ele pode parecer perigoso, mas eu já trouxe caras
bem menos corteses para casa antes e você sabe.
— É, mas nenhum acreditava ser um cavaleiro medieval!
— Renascentista — eu a corrigi.
— O quê?
— Os cavaleiros de Malta são renascentistas. A Ordem foi criada no
período medieval, mas se ele esteve no Cerco, então ele é do século XVI.
Isso já é Renascença.
Minha amiga balançou a cabeça em censura.
— Eu não acredito, Isla. Você está atraída por ele!
Eu? Apontei para mim. Atraída por ele? Olhei para o deus nórdico de
pernas robustas parado no meio da minha sala.
— Até parece. Ele é só um bonitão desorientado.
Nosso cochicho acabou atraindo a atenção do cavaleiro, que caminhou
até a cama improvisada com os olhos sombrios e semblante cansado. Então,
sem dizer nada, recostou nas almofadas e fechou os olhos, como se
precisasse pensar.
Em questão de segundos, estava ressonando. O cara simplesmente
apagou como uma lâmpada.
— Pronto, já dormiu. Satisfeita? — Olhei para a minha amiga.
Lilli caminhou até a bolsa pendurada no cabide da entrada e apontou o
dedo para mim:
— Leve uma garrafa para o quarto e tranque a porta, entendeu? É uma
ordem. E não saia de lá por nada. Quando lidamos com estranhos,
pensamos com as pernas: ao menor sinal de perigo, saia correndo. Mande
uma mensagem amanhã cedo ou acharei que morreu.
— Sim, senhora. — Acenei um tchauzinho.
Ouvi a porta bater, voltando a observar o bonitão adormecido. Ele
ocupava todo o sofá-cama. As pernas, longas demais para o espaço
pequeno, deixavam os pés bonitos e grandes para fora. Algo me dizia que
eu não ia ser assassinada por ele naquela noite, porém, por precaução, levei
uma garrafa de água para o quarto e tranquei a porta.
Aproximadamente duas horas depois, quando a noite já era alta e o
silêncio profundo, despertei com o barulho de gemidos. Sons doloridos e
espaçados, intercalados por…
Batidas no teto?
Olhei para cima, revirando os olhos. Ao som do conhecido tump-tump-
tump do pé da cama batendo no chão, vi meu lustre balançar no teto.
Afundei a cabeça no travesseiro, xingando alto. Claro que faltava aquilo
para a noite ficar completa. Meu vizinho idiota estava se divertindo com a
visita da vez.
Infelizmente, só percebi o barulho que a diversão fazia quando deixei de
ser a visita em sua cama.
Esperei que a bateção parasse — bendita ejaculação precoce —, e
quando tudo se aquietou, voltei a ouvir os gemidos de antes. Eles não
vinham do apartamento de cima, e sim da sala.
“Não”, ouvi perfeitamente o lamento. “Venham comigo”. “Não
morram”. “Eu posso salvar vocês!”.
Intrigada, deixei a cama com cautela. Abri a porta devagar e caminhei
até a sala, espiando pela quina. O cavaleiro se remexia de um lado para o
outro no sofá, as pernas espalhadas e abertas sobre a cama pequena, a bunda
tapada por um canto da coberta. Parte do seu rosto estava iluminado pelo
outdoor da esquina e, pela expressão franzida, sentia medo. Mais do que
medo: um pavor abissal e avassalador, que partiu meu coração.
Encostei no batente, me proibindo mentalmente de chegar mais perto.
Podia ser uma armadilha. Você é mais esperta do que isso, Isla. Para a
minha própria segurança, assisti seu tormento de longe, agoniada por ver
alguém gemer de maneira tão sofrida.
O suplício prosseguiu até que, eventualmente, cessou. O cavaleiro
voltou a dormir, suado como se tivesse enfrentado uma batalha, e eu
retornei para a cama sem saber quem foram aquelas pessoas que ele queria
tanto manter vivas… E como, por mais estranho que soasse, já estavam
mortas há séculos.
8
PRECISO DE UM PENICO
CRISTOPHER

A s mãos deslizaram pela cama sem reconhecer o ambiente. O teto era


claro e os lençóis, limpos. No ar pairava um cheiro bom de comida
caseira.
Em um movimento de alerta, me sentei. Girei a cabeça para os lados,
investigando o local.
Era dia — mas que dia? Tateei o peito. Eu não estava em São Elmo, isso
era certo. Também não sabia onde estavam minhas calças, mas a armadura,
composta por diversas placas, estava ao lado da cama, com o peitoral por
cima. O eterno fedor de urina, sangue e pólvora havia sumido, junto com as
explosões dos canhões, tiros e gritos dos moribundos.
O silêncio era pacífico e quase completo.
Aproximei o nariz das axilas e franzi o cenho. Por que minha roupa
estava cheirando a fruta? Na verdade, o cheiro doce e penetrante recobria
tudo ao redor.
Uma descarga fria se desenrolou do meu estômago ao lembrar onde
estava. Não tinha sido um sonho. Eu não estava no forte, escorado em uma
parede que poderia ser explodida a qualquer momento, ouvindo o lamento
dos meus companheiros feridos.
Eu estava no futuro. Em segurança. Em um mundo onde não havia
guerra e só pessoas sorridentes.
Deus era testemunha de quanto meu último mês havia sido cheio de dor.
De desmaios de cansaço seguidos por explosões que me colocavam em pé
em segundos. De não saber se cada vez que a noite caía, seria a última. Não
me lembro de ter pregado o olho por mais do que alguns minutos nos
últimos tempos, e agora aqui estava eu, com o corpo descansado por uma
noite inteira dormindo. Vivo, em um mundo cheio de luzes, velocidade e
ruídos estranhos.
Um pi pi pi enjoado e interminável me despertou de vez.
— Bom dia, cavaleiro. — A voz feminina me sobressaltou. — Dormiu
bem?
A garota.
Ela passou por mim com aqueles imensos olhos da cor de canela e,
embora cada traço do seu rosto sorrisse, parecia tensa. Claro que deveria
estar. Havia um homem estranho em sua residência. Ao descer as vistas por
ela, notei trajar uma camisa masculina e mais nada, assim como eu. O traje
mal cobria seu traseiro!
Engoli em seco, tentando me lembrar do voto de castidade da Ordem.
— Você teve um pesadelo na noite passada — ela continuou. — Suas
noites são sempre assim, tão agitadas?
Evitei encará-la, porque suas pernas estavam nuas.
— Sim, senhorita.
Por que diabos seus olhos eram tão familiares? Não fazia sentido. No
entanto, quanto mais olhava para eles, mais certo ficava sobre já tê-los visto
antes de ontem.
Ela entrou na minúscula cozinha sem paredes. Da cama, conseguia vê-la
da cintura para cima, caminhando por aquelas máquinas estranhas e
mexendo em algo sobre o fogo. Ela abriu uma caixa de aço e o barulho
chato parou. Tirou algo de dentro e misturou à comida, reclamando de ter
errado na mão de algum ingrediente. Seu cabelo estava preso no alto da
cabeça, os fios cor de mel espetados para todos os lados como uma
palmeira, deixando a nuca delicada à mostra.
— Espero que goste de ovos mexidos. — Ela abriu outra caixa metálica
e seu rosto foi clareado por uma luz fraca. — Não sei fazer nada muito
elaborado na cozinha. Você gosta de leite? Café? — Ela me olhou por cima
da porta. — Tenho chá, se preferir. Bem, em algum lugar deve haver chá.
As lembranças do dia anterior chegaram de vez: o encontro inusitado,
ela me levando ao forte, sua língua capaz de pronunciar mil palavras por
segundo.
— Não quero nada.
— Até parece. Temos que comer logo, porque marquei um encontro
esta manhã.
Voltei a tombar o rosto entre as mãos. Como havia parado naquele
lugar? Por que não acordava de vez? Então, de repente, música encheu o
ambiente.
— Espero que não se importe, mas adoro cozinhar ouvindo música. Na
verdade, só tolero cozinhar com música. — Ela riu enquanto mexia no seu
aparelho de mão. — Infelizmente meu speaker encontrou uma espada
ontem e virou um montinho de entulhos, então teremos que ouvir no
celular.
Com uma faca, apontou para o corredor.
— O banheiro está desocupado, se precisar usá-lo.
Por um tempo a observei, mas depois o olhar pareceu perturbá-la e eu
voltei a mirar o chão. A moça começou a cantarolar no ritmo da música. Ela
tinha uma voz intrigante, rouca com traços de alegria, algo que nunca ouvi
antes em uma mulher. Estalei o pescoço, incomodado pela sensação entre as
pernas.
Espere: eu acordara rijo?
Após meses despertando com medo, em meio à sujeira e a outros
homens, sentir o corpo reagir era incomum. Levantei evitando olhar na sua
direção. Precisava deixar imediatamente o recinto.
Enrolei o lençol de bolinhas coloridas ao redor do corpo e caminhei de
lado até o corredor, precisando me aliviar. Teria que ser na banheira outra
vez? Não via um único jardim onde pudesse urinar.
No corredor havia dezenas de pinturas coladas à parede. Em todas podia
ver a garota, pintada à perfeição em fundos estranhos. Ela contra um pôr-
do-sol na frente do mar ou rindo sobre um notável veículo de duas rodas;
ela com os braços abertos em cima de uma montanha. Um trabalho
magnífico, conferi tocando o vidro que recobria as pinturas. Que tipo de
pintor primoroso retratava alguém com tamanha perfeição?
Não esperava, entretanto, me deparar com a última pintura. A moça
chamada Isla em trajes obscenos, vestindo nada além de… — Cristo — três
triângulos de pano que cobriam apenas os mamilos e a sua intimidade.
Minha face esquentou e o membro pareceu querer explodir. Maldição.
Arrumando o lençol de modo que o nó ficasse na frente da virilha, voltei à
cozinha e pedi, sério:
— Preciso de um penico.
Ela parou o que estava fazendo e ergueu os olhos até os meus.
— O que planeja fazer com um penico?
Endireitei as costas. Aquilo não precisava ser constrangedor. Homens e
mulheres tinham necessidades e todos usavam penicos. Por sorte, não
precisei dizer mais nada, porque ela percebeu o que eu queria.
— Ah, entendi.
Ela limpou a mão no pano pendurado no ombro e deixou a cozinha,
passando por mim. Ajeitei o lençol e evitei olhar para as pernas de aspecto
liso e sem pelos. A saliva caudalosa desceu pesada.
— Vou te mostrar como são os penicos hoje em dia.
Minutos depois, com ela já fora do quarto de banho e a porta trancada,
encarei por segundos a formidável invenção daquele tempo. Ela explicara o
funcionamento da coisa, mas aquilo excedia os mais inteligentes artefatos
conhecidos. Testei mais uma vez a alavanca prateada e um jato de água pura
e cristalina jorrou no penico de louça, levando o que havia no caminho
embora.
Fascinante. Tão engenhoso!
E aquele papel enrolado, então? O peito chegou a inflar de orgulho pelo
que Malta se tornara. Que tipo de sociedade enriquecia ao ponto de
desperdiçar papel para a limpeza dos fundilhos?
Minutos depois, já com um novo banho tomado — não pretendia tomar
outro na semana, mas Isla informou sobre o decreto de governo que
ordenava banhos diários — retornei à cozinha. Ela sorriu ao me ver, e antes
de empurrar um prato na minha direção, passeou com as vistas por mim.
— Espero que goste. Coloquei bacon.
O cheiro mágico fez minha barriga roncar como um animal.
— O que fez com as minhas calças? — perguntei ao me sentar. Ela
apontou para um quarto minúsculo, onde um quadrado metálico
chacoalhava, causando ruídos.
— Estão terminando de secar.
— E a minha espada?
— Esta continuará no armário — ela avisou com a boca cheia de pão.
Uma musiquinha enjoada a fez caminhar até o quartinho. — Só um
segundo. Suas calças estão secas.
Observei-a se levantar, enfiando uma colher de ovos mexidos na boca.
Aquela era uma boa mulher. Obediente e caridosa, além de bonita.
Porém, assim que os ovos encontraram a língua, me arrepiei inteiro, e
precisei procurar um lugar para cuspir. Que diabos era aquilo? Expeli
aquela coisa abominável na mão, olhando-a assustado quando ela retornou
com a minha calça.
— Acabou de cuspir minha comida? — Ela parecia rir.
— Por que colocou remédio nos ovos?
— Remédio? Do que está falando? — Ela jogou minha calça sobre
mim. Passando os olhos pela bancada, encontrei a causa da minha repulsa:
alho.
— Isto! — Apontei para o medicamento. — Não estou doente, nem
ferido!
— Apenas vista a roupa, Cristopher.
Peguei a peça sentindo-a quente como se tivesse ficado estendida horas
ao sol. Por mais absurdo que soasse, o tecido cheirava a flor. Que tempos
eram aqueles que colocavam remédio na comida e esfregavam flores nas
roupas?
— Pelo jeito, as manchas não vão sair — Ela apontou para as calças. —
Mas até arrumarmos coisas melhores, vão servir.
Os olhos dela encontraram os meus, e senti o mesmo solavanco interno
que me sacudiu ontem. Eu havia sido rude ao rejeitar o alimento e precisava
me desculpar. Ela não fora nada além de justa e gentil comigo.
— Desculpe sobre a comida. Não queria ser rude.
— Está tudo bem. Mas alho é tempero hoje em dia, só para constar. —
Ela guardou o remédio no armário prateado e recostou na bancada, os
braços cruzados. Não parecia ofendida pela minha recusa, apenas curiosa.
Quanto aos seus olhos, precisava me corrigir: eles não eram escuros como o
tronco das árvores. Eles tinham a cor do mel. Não os claros e transparentes
de sabor suave; os selvagens, densos e viscosos encontrados nas florestas.
— Vou me trocar — informou. — Temos um encontro em breve com
alguém que poderá te ajudar.
— A me levar de volta? — perguntei, o coração voltando a pulsar forte.
Virando de costas, removi o lençol e sacudi a calça morna. O grito feminino
atrás de mim me atentou para o descuido.
— Cristopher, não pode trocar de roupa na minha frente!
Pulando em direção ao corredor com uma das pernas enfiada na calça,
percebi que há meses me trocava na frente de qualquer um.
— Perdoe-me! — pedi por cima do ombro. — Estou desacostumado à
privacidade.
Frivolidades como recato inexistiam nas guerras e eu nem me lembrava
da época em que pude me dar ao luxo da solidão. Na tentativa de enfiar a
calça pela segunda perna, dei de cara com a pintura de Isla e aqueles seus
três minúsculos triângulos. Traidor, o corpo reagiu de novo. Como iria
adivinhar que aquela mulher, que usava aquele tipo de coisa, reagiria como
a filha pudica de um reverendo ao ver o meu traseiro?
Dei um laço na calça soltando grunhidos aborrecidos, incomodado com
o membro apertado de encontro à virilha. Ou a máquina de esquentar
diminuía as vestes, ou certas partes minhas haviam crescido nos últimos
tempos.
9
ONDE ESSE TAL GOOGLE LUTOU?
CRISTOPHER

E nquanto dirigíamos pela cidade caótica no baú que ela repetiu


diversas vezes se chamar “carro”, Isla explicou aonde íamos. Pelo
que consegui entender, ela tinha um amigo que lecionava história
europeia na universidade e sabia tudo sobre o Cerco. Não sei como um
professor me auxiliaria, mas entendi a intenção. Ela estava fazendo aquilo
por si mesma. Precisava que alguém confirmasse a minha história ou a
alertasse de que eu estava mentindo. Seus motivos eram irrelevantes: só me
importava ouvir os detalhes sobre como derrotamos os turcos.
Já na sala do tal erudito, fiquei espantado ao ver tantos volumes nas
estantes. Livros eram coisas raras e inacessíveis na minha época. Eu mesmo
só havia colocado a mão em dois ou três na vida, por isso estava fascinado
com a quantidade e a variedade deles, tanto que não conseguia parar de
alisar as lombadas coloridas. Sem falar nos títulos incríveis, que traziam
nomes e datas além da minha compreensão. Pedi que Isla traduzisse alguns
para mim: A Segunda Guerra em fatos, O mundo após a Guerra Fria, O
novo centro do mundo novo. A cada novo título revelado, eu me
perguntava: por que só tinham começado a contar as guerras depois de certo
período? Ou talvez tivéssemos chegado ao fim da contagem e fora
necessário recomeçar. Mais livros se seguiam: A Idade Média Europeia.
Batalhas Otomanas no século XVII. Era simplesmente fascinante.
Quando a porta abriu e um jovem ruivo e baixo entrou, deixei os livros
de lado. O rapazote carregava uma bolsa de aspecto pesado e abriu um
sorriso para a mulher.
— Isla, que surpresa receber a sua ligação!
— Obrigada por nos ver, Sam. — Ela beijou a lateral do rosto magro em
um gesto íntimo, e dei um passo para trás.
Aquilo era uma afronta aos bons costumes! Que homem honrado
tocaria uma dama com os lábios sem ter com ela algum tipo de
compromisso?
Pare com isso, Cristopher. Não era justo questionar a honra de ninguém.
Está certo que Isla não fora assim tão respeitável quando o beijara na boca,
no dia anterior, mas os tempos eram outros e aquele novo beijo parecia
diferente. Para começar, o erudito não pareceu excitado com o toque como
ele mesmo ficara.
Que gente esquisita.
O homem me inspecionou da camisa à bota. Jogando o bornal que trazia
sobre a mesa entulhada de papéis, aproximou-se, estendendo a mão.
Graças a Deus um cumprimento que eu conhecia. Se o homem tentasse
me dar beijinhos no rosto, teria que afastá-lo, e sabe-lá que tipo de desfeita
isso acarretaria.
— Sam Viacchini, prazer. Professor adjunto de História Europeia da
Universidade de Malta. — Ele se apresentou com o seu título. Não ouvi
nenhum sir ou lorde, muito menos bispo ou cardeal. Ele não devia ser
importante.
— Sir Cristopher De Landa. — Cumprimentei-o de volta com um
aperto firme de mãos. — Cavaleiro da Ordem de São João.
O professor assentiu, alisando a mão como se eu o tivesse machucado.
Em seguida, olhou para Isla com uma sobrancelha erguida.
— Longa história — ela disse, sucinta. — Obrigada por dispor de um
tempo para nós, Sam.
— Claro, claro. Admito que fiquei curioso com o seu pedido. — O
homem ajeitou os óculos sobre o nariz. — Sentem-se, por favor.
Isla pousou a mão pequena e feminina sobre o meu peito, me mantendo
no lugar — ou tentando. Baixei as vistas, estranhando o gesto e
encontrando seu olhar.
— Se alguém pode nos ajudar a entender o que aconteceu naquele dia, é
Sam. Portanto, comporte-se. — O pedido chegou num cochicho perto do
meu ouvido. Então, virando-se para o amigo, explicou: — Cristopher veio
de um lugar distante e não entende bem nossa língua, Sam. Peço que fale
devagar.
Ela afastou a palma, deixando no lugar um calor que parecia se espalhar
por todo o meu peito. Era a pedra que aquecia a minha pele ou era o toque
das suas mãos? Eu ainda não entendia o efeito das duas coisas sobre mim.
— Além disso, por motivos que descobrirá logo, gostaria de manter em
segredo o que vamos falar aqui. — Ela se sentou em uma das cadeiras
disponíveis, apontando a outra para mim. — Sei que não vai acreditar, Sam,
mas o Cristopher, ele… — Isla limpou a garganta, como se mencionar de
onde vim fosse um problema. — Bem, ele acredita ter estado no Cerco de
Malta.
— Não acredito; eu estava nele até ontem — corrigi-a de maneira
firme.
O erudito arregalou os olhos.
— Por causa disso, me lembrei que você comentou, um tempo atrás,
que era especialista nesse assunto, certo? Chegou a dar consultoria em uma
filmagem sobre isso, se não me engano.
— Além de assessorar dois livros. — O homem ergueu o queixo de leve
antes de abaixar a voz e continuar: — Isla, não estou entendendo o que está
dizendo. É alguma brincadeira ou pegadinha?
Ela negou, já abrindo a boca para explicar quando a coisa retangular que
sempre trazia nas mãos apitou. Isla rapidamente olhou para aquilo e logo
voltou a erguer a cabeça, parecendo ter perdido o momento de argumentar.
Gente frágil, hesitante e cética. Acreditavam em qualquer coisa que
saísse daquela caixinha fina, mas se abalavam quando ouviam um homem
de honra afirmar ter vindo do passado. Sem falar no fato de que eram muito
distraídas e tinham a atenção facilmente roubada por qualquer coisa que
fizesse blip ou blein.
E tudo fazia blips e bleins.
— Então. — Isla cruzou as pernas e o vestido curto revelou seus
joelhos. Cerrei o cenho, evitando olhá-los. Aqueles eram os primeiros
joelhos femininos que via à luz do dia em meus 28 anos de vida. —
Queremos saber o que aconteceu no Cerco de 1565. Se há relatos de
sobreviventes, histórias sobre um possível… sumiço mágico no meio de
uma batalha.
— Sumiço mágico? — o tal Sam perguntou.
— Sim. — Tomei a palavra, cansado daquela enrolação. — Ontem à
tarde, eu estava em São Elmo, pronto para enfrentar pela última vez o
inimigo. Estávamos encurralados, e os malditos otomanos vinham em
bando. Então, em um piscar de olhos, as paredes e os chãos desapareceram
a eu caí. No segundo seguinte, estava deitado em um gramado, olhando
para Isla. Preciso saber tudo sobre o dia em que o forte foi tomado para
tentar entender como isso aconteceu. Há algum relato sobre
desaparecimentos? Isla me garantiu que o senhor sabe tudo sobre aquele
dia.
— Espero que isso seja uma brincadeira — o professor me ignorou,
murmurando para minha acompanhante.
Quanta descortesia.
— Não estou brincando, Sam — Isla respondeu.
Aquilo não ia nos levar a lugar algum. Irritado, bati com o punho
fechado sobre a mesa, chamando a atenção de volta para mim:
— Diabos, ordeno que me conte o que sabe sobre o dia 23 de junho! —
bradei, enfurecido. — Sobre o exato dia em que a fortaleza caiu!
— O-o q-que sei está nos livros. “O filho caiu, os pais se mantiveram de
pé”. — O homem parecia tremer mais do que um bezerro recém-nascido.
— O-o que exatamente quer saber?
O filho!
Sim, São Elmo era considerado um forte menor, filho dos outros bem
maiores. Então era assim que as pessoas se referiam àquele momento.
Arrastei o corpo até a borda da cadeira.
— Alguém deve ter testemunhado o que aconteceu. Além disso, preciso
saber se quem saltou no mar sobreviveu!
Ao perceber minhas mãos fechadas ao redor do braço da cadeira, Isla
pousou a sua sobre os nós dos meus dedos já brancos, num toque quente e
gentil.
— Deixe que eu lido com o Sam, está bem? — Ela estava me dando um
alerta; havia me avisado de que meu tamanho assustava as pessoas e eu
“deveria ir com calma” na hora de pedir as coisas, seja lá o que isso
significasse.
A confiança intrínseca que sentia por essa mulher me fez calar a boca.
— Sam, alguma vez leu algo sobre esse tipo de coisa? Um detalhe visto
como superstição ou ilusão de ótica? — ela perguntou. — Relatos de
alguém desaparecendo diante de todos, ou o sumiço repentino de um
guerreiro?
A mão dela continuava sobre a minha, me inquietando a ponto de me
fazer remexer no assento. O homem negou, ainda bastante assustado.
— Os otomanos jogavam os mortos no mar, Isla. Não havia como
procurar um conhecido ou fazer um inventário sobre quem morreu. Muitos
também fugiam ou desertavam.
Assenti, concordando com aquilo. Tudo que o erudito falou era
plausível.
— Muitos eram cortados em partes, e as cabeças, catapultadas para
dentro das muralhas — adicionei. — Isso quando não eram levados como
escravos. Seu amigo tem razão sobre o que fala.
Isla removeu devagar a mão de cima da minha, os dedos deixando uma
sensação suave que formigou pela mão toda.
— O que exatamente está acontecendo aqui? — o professor questionou
com um sorriso tenso. — Isso é um tipo de teste para ver se o papel dele em
um filme funciona?
— Não é nada disso, Sam. É só que... Tenho motivos para acreditar que
Cristopher veio do passado. Da época do Cerco, para ser precisa.
— Está falando sério? — O sorriso do homem morreu.
Eu e ela balançamos a cabeça, afirmando.
— Qualquer coisa que souber pode ajudá-lo. Não entendemos por que
ele veio, ou mesmo se voltará…
— Claro que voltarei — interrompi a insensatez. Não havia a menor
possibilidade de ficar nesse mundo louco e sem sentido.
— Tá bom, você voltará. Mas quanto melhor entendermos o que
aconteceu naquele dia, mais chances temos de descobrir como devolvê-lo
ao passado — Isla continuou de uma forma mais calma. — Assim como
você, Sam, fiquei chocada no começo, e bastante incrédula. Entretanto, as
reações dele não são mentiras. Ele quase surtou na minha casa. Nunca tinha
visto uma TV antes, nem uma geladeira. Sentiu vertigens ao andar de carro,
destroçou minha caixa de som com a sua espada e não conhecia privadas.
O professor olhou para mim com desconfiança, a cabeça inclinada e
uma sobrancelha erguida. Encarei-o de volta sem medo. Se ele quisesse
mais alguns motivos, eu poderia listar mil outras coisas curiosas do seu
tempo, mas não queria me delongar no assunto.
— Ele não bateu a cabeça, ou…
— Se está insinuando que estou mentindo ou questionando a minha
honra, ficarei ofendido. Sou um cavaleiro da Ordem! Jamais recorreria a
mentiras para alcançar um objetivo ou para enganar incrédulos!
O homem soltou um suspiro. Então, após alguns segundos de
contemplação, levantou-se. Tirou da estante um volume grosso de onde
reconheci a cena da batalha na capa. Com dificuldade consegui entender as
letras e o título: “A verdadeira história do Cerco de Malta”, porém, antes
que pudesse perguntar como conseguiram pintores para retratar a guerra, o
professor começou:
— Quer ouvir sobre a tomada de São Elmo, certo? — Ele abriu o livro
sobre a mesa e voltou a se sentar, encarando Isla. — Só para situá-la no que
aconteceu, preciso contar que a batalha por Malta se deu entre alguns
poucos Cavaleiros da Ordem de São João e a imensa frota do Império
Otomano. São Elmo foi o primeiro forte a cair, um mês depois da chegada
da frota turca.
— Cristopher afirma ser esse o dia em que desapareceu.
— Sim. Eu estava lá no dia 23 de junho — repeti. — Então…
Aconteceu uma coisa. As paredes se agitaram e o chão tremeu. A próxima
coisa que me lembro é de acordar aqui.
O professor continuou com cautela, nem um pouco convencido.
— O forte realmente caiu nesse dia. Os turcos tomaram São Elmo e a
batalha continuou depois da queda. Os otomanos fugiram quando chegaram
os reforços da Sicília, e isso qualquer um pode saber apenas pesquisando no
Google.
Algo me diz que aquilo foi um ataque à minha história.
— Eu não estou mentindo! — Ergui a voz. — E não me interessa onde
este tal Google lutou! Eu estava lá! Fui chamado por De Valette para servir
em São Elmo em fevereiro, logo depois que ele ouviu rumores sobre o
ataque!
Sam ajeitou os óculos sobre o nariz.
— De Valette, do…
— O Grão Mestre da Ordem — bufei. — Ele não comandava
diretamente São Elmo, mas eu e meu irmão estávamos na mesma guarnição
que ele.
As sobrancelhas do homem se ergueram devagar.
— Por favor, continue — pediu.
Continuei, aborrecido.
— Seus espiões em Constantinopla eram unânimes: seria um ataque
brutal. Eu e meus homens ficamos responsáveis pelo reparo dos muros.
Começamos a construir gabiões e…
— Gabiões? — Isla não entendeu.
— Cestas de vime cheias de terra para absorver os tiros — O professor
explicou, e eu assenti.
— Mandamos em seguida as bocas inúteis para a Itália. Crianças,
velhos, mulheres, prostitutas. Além de todos os aleijados.
O professor olhou de soslaio para Isla.
— Desculpe. Cristopher não é lá muito politicamente correto — Isla
explicou algo para o amigo.
Franzi o cenho, sem entender, e continuei:
— A nobreza medíocre da ilha também foi enviada para a Sicília,
porque eram apenas desperdício de comida. Começamos então a alistar
cavaleiros. As regras exigiam quatro avós aristocráticos para a seleção, mas
deixamos isso de lado. Precisávamos de todos que conseguissem empunhar
uma espada. Sabíamos que mesmo assim estaríamos em menor número,
mas precisávamos tentar.
— Tinham noção da desvantagem em que estavam?
— Três para um, pelas nossas contas. Os turcos eram em cerca de trinta
mil. Metade disso eram soldados treinados, a outra, cidadãos comuns,
piratas que convocaram no caminho e mercadores no aguardo dos escravos.
— E vocês?
— Setecentos cavaleiros e oito mil soldados cristãos.
— Seria um massacre, não? — Isla perguntou em voz baixa. Antes que
eu respondesse que foi um massacre, o professor se adiantou.
— Os cavaleiros dessas ordens medievais, assim como os templários e
os teutônicos, eram guerreiros altamente treinados, Isla. Eram bastante
conhecidos pela bravura e por estarem sempre dispostos a morrer pela fé e
pela Ordem. Um deles valia facilmente por três soldados despreparados.
Eu devia sentir orgulho ao ouvir o elogio, mas em vez disso, senti
apenas a boca amarga.
— Feito tudo isso, esperamos.
— Por quanto tempo aguardaram? — o professor questionou.
— Dois meses, talvez. No começo de maio, vimos o horizonte ser
tomado por navios. Uma armada de quase duzentas embarcações que não
demorou para ancorar na costa oeste.
— Até aquele ponto, vocês apenas suspeitavam que o objetivo era
Malta, certo?
— Ninguém podia afirmar que eles vinham para cá. Eles podiam estar
vindo pela Sicília.
O professor se virou para Isla.
— Os turcos tinham intenção de se expandir pela Europa. Tudo que
havia no caminho deles era essa ilha minúscula no meio do Mediterrâneo e
os cavaleiros, antigos inimigos. Por favor, continue, sr. De Landa.
Contei, então, como os otomanos se moveram por terra. Como seus
acampamentos eram coloridos, as tendas redondas de tecido, os brocados
exóticos e os tapetes macios que enfeitavam o chão. Como as bandeiras e
galhardetes chacoalhavam ao vento, indicando a função de cada tenda, em
uma organização completamente estranha para nós.
Era impressionante como mantinham total limpeza nas barracas
enquanto nossas fortificações eram imundas e fedorentas, uma constante
ofensa ao olfato. Narrei ainda sobre como nossa disciplina, com hierarquias
e formações treinadas, se diferenciava da dos otomanos. Sobre como se
moviam de maneira caótica durante as batalhas, mandando os escravos na
frente enquanto os janízaros vinham atrás.
— Janízaros eram os soldados que avançavam durante as campanhas de
conquistas territoriais otomanas — Sam explicou para Isla, e eu concordei.
— O que nos preocupava, no entanto, eram os canhões — continuei. —
Conhecíamos seu poder de destruição, e São Elmo estava exatamente na
frente das outras fortificações. Tínhamos razão em nos preocupar: no dia 24
de maio, os turcos dispuseram três fileiras deles na frente da nossa muralha
e iniciaram o ataque. Bolas de oito quilos explodiam sem parar contra os
nossos muros. O dia e a noite toda.
Limpei a garganta, voltando a olhar para a cena do livro. Era como se
um punho forte esmagasse meu coração entre os dedos.
— Vimos, sem poder fazer nada, trincheiras e mais trincheiras serem
abertas para que mais canhões fossem montados. Eles achavam que
cairíamos rápido, mas resistimos. Foram semanas sendo massacrados, com
aquelas armas malditas atirando incessantemente. Foi quando partes da
fortaleza começaram a colapsar.
Enquanto falava, comecei a suar. Meus braços se ajeitaram no encosto
lateral da cadeira e o meu coração agora socava as costelas. A memória dos
turcos empurrando os sacos de pólvora para perto dos canhões, o brilho
laranja faiscando na noite escura… A tempestade de sons, fogo e fumaça,
os efeitos devastadores do impacto que faziam o próprio solo da ilha tremer.
Afastei a gola da camisa, sem ar.
Ao perceber o meu estado, o professor se levantou e buscou água. Ele
também apertou um pequeno círculo sobre um artefato branco e um vento
gelado afastou o calor.
— O que é isso? — perguntei em alerta.
— Você está suando. — Isla tocou meu braço. — Isso vai refrescá-lo.
Novo toque de peles, novo choque. Por que essa mulher insistia em
botar a mão em mim?
E por que eu reagia com alvoroço cada vez que isso acontecia?
Puxei o braço para longe dela, voltando a mergulhar nas lembranças da
batalha que, para mim, tinha acabado apenas no dia anterior.
— Durante os dias, a artilharia turca pulverizava a fortaleza, levantando
poeira. Ficamos nesse impasse durante semanas, resistindo enquanto
tentavam invadir o forte. O problema era que as pedras que caíam da
muralha começavam a encher a vala. Não demoraria para eles subirem
pelos detritos. Tentávamos reforçar as paredes, mas como, se o outro lado
simplesmente se esfarelava?
Fechei os olhos, e a partir de então as palavras jorraram em fluxo:
— Ninguém conseguia mais respirar devido ao pó. O próprio chão
parecia que estava para ceder. Então, quando a noite caiu e os canhões
cessaram, decidimos parar de nos esconder. Quando os atiradores otomanos
recuaram para que os escavadores abrissem novas covas, nós os atacamos.
Nem a água conseguiu fazer o espinho entalado na garganta descer.
— Você diz…
— Sim. Matamos todos — respondi de forma brusca ao professor. Não
tinha vergonha de ter tirado a vida dos meus inimigos, mas sim pesar pelos
amigos que perdi naquela noite.
Meu olhar parou na capa do livro. Contei, então, sobre a batalha, a pior
de todas, e como fizemos chover fogo sobre os infiéis — lançando uma
mistura de betume, alcatrão, enxofre e fogo grego — assistindo de longe
como eles rolavam sobre a areia, tentando apagar o fogo, enquanto outros
saltavam do penhasco em direção a água. Eu parecia reviver tudo outra vez,
toda a agonia e miséria no peito.
— Nossa perda foi grande. Vinte cavaleiros e sessenta soldados
morreram naquele dia. Muitos deles, meus amigos.
Não se ouvia um único som na sala a não ser o vento em minha direção.
— Não duramos muito depois disso. Na noite seguinte, os turcos
invadiram o forte, mataram nosso comandante e todos que encontraram no
caminho. A luta nos empurrou para a torre do lado leste e… percebi que
seria o nosso fim.
Enfiei a mão pela gola e tirei a pedra de dentro da camisa.
— Foi quando uma das mulheres que lutava conosco me entregou isso.
Vi que Isla levou a mão até o próprio pingente escondido pela roupa.
— Meu irmão queria ficar e lutar, mas ela deu essa ideia de que
sobreviveriam se saltassem no mar. Eu concordei, e me ofereci para o
sacrifício de impedir que os otomanos atirassem flechas sobre eles. Não sei
se escaparam ou se chegaram a São Angelo. Preciso saber isso.
O professor desceu os olhos até o livro.
Aproveitei o silêncio para respirar fundo. As lembranças dos berros e do
pânico tomavam conta da cabeça. Quantos de nós se sacrificaram para
salvar aquele forte? Aquela ilha?
Toda a luta, todas as batalhas… nada parecia fazer diferença nos dias de
hoje. Eram tempos de paz, e eu não cabia ali. Por que tinha ido para aquela
época, então? Aquele mundo fazia o meu parecer bárbaro e cruel. Mostrava
que nossa luta era vã e desnecessária.
Enquanto a sala continuava a se comprimir à minha volta, o professor
folheava concentrado o livro.
— O que foi, Sam? — Isla questionou. — Lembrou-se de alguma
coisa?
— Você disse que um grupo pulou no mar? — o professor perguntou
direto para mim.
— Sim. Cinco, pelo que me lembro.
Sam trocou olhares com Isla, alisando uma página aberta.
— O relato de tudo está correto e com muito mais detalhes do que
jamais ouvi, Isla. — O dedo do homem mostrou uma passagem. — Isso
aqui, por exemplo, é um detalhe que poucos notam, mas no dia da queda do
forte, nove pessoas foram capturadas vivas e posteriormente mortas pelo
otomanos. No entanto, cinco malteses conseguiram escapar saltando para o
mar e nadando até Birgu.
Ajeitei o corpo na cadeira, sem entender direito o que ouvia.
— Está dizendo que as cinco pessoas foram as únicas que se salvaram?
O professor olhou para mim e assentiu com um sorriso discreto.
— Sim, sr. De Landa. Ao que tudo indica, seu irmão, assim como todos
os que saltaram naquele dia, sobreviveram.
10
FONTE: AQUELA SÉRIE FAMOSA
ISLA

D a janela da sala de Sam, eu observava Cristopher encarar o mar da


baía. Os ombros sólidos como a própria fortaleza que defendeu,
naquela primavera sangrenta de 1565, estavam curvados em derrota,
as mãos unidas na frente do peito como se rezasse. Após todo o relato
realístico, ele havia pedido um tempo a sós e caminhado até a mureta com
vista para o mar. Cristopher parecia desiludido e aliviado com a conversa.
Grato e, ao mesmo tempo, culpado por estar ali, no presente, e não entre os
seus que ficaram para trás.
Já eu não sabia o que achar de tudo daquilo. Precisava admitir que o
trouxe até ali para comparar sua história com os conhecimentos de Sam,
esperando que dessa forma tivesse argumentos que provassem que o
cavaleiro mentia. Só que tudo conferia e era até mais acurado do que meu
amigo parecia saber. Se Cristopher fosse louco, era um bastante versado em
guerras e imerso em um tremendo sofrimento psíquico. Ele realmente
acreditava ter estado no Grande Cerco e ficara profundamente aliviado ao
saber da sorte do irmão.
Pela primeira vez, uma expressão diferente de preocupação ou espanto
apareceu em seu rosto. Sei que deveria estar preocupada com a veracidade
da história e com toda a situação dele acampado na minha casa, mas só
conseguia pensar em como era bonito.
Que criatura magnífica era aquele homem.
Valente, heroico, guiado por um norte sólido e imutável. Totalmente o
oposto de mim, sempre tão perdida e desprovida de bússolas internas.
Sam parou ao meu lado, olhando na mesma direção.
— Outra pessoa em seu lugar já o teria entregado às autoridades.
Levei a mão ao pingente que repousava sob a blusa. Sem tirar os olhos
de Cristopher, perguntei:
— E você, o que achou? Acredita nele?
Sam exalou, pensativo.
— Isla, sei que me achará louco, mas sinto que há algo muito estranho
em tudo isso. Para começar, ninguém mais usa o dialeto antigo de Malta, a
não ser esse homem. Em segundo lugar, ele não consegue ler direito as
letras impressas ou entender o que falamos, sem falar que parece realmente
assustado quando vê qualquer novidade tecnológica. Isso não pode ser
invenção ou mentira. São reações verdadeiras demais.
— Foi o que eu disse.
— O problema é que… — meu amigo continuou, devagar. — Bem,
acreditar nele implica em aceitar que viagens no tempo existem. Que
alguém pode se mover entre passado e futuro. E isso é avanço científico
muito grandioso para minha cabeça.
— Eu sei — murmurei. — E só fica pior quando ele afirma que é
feitiçaria e não ciência, né? Quão louco é isso?
— Muito louco. Se ele tiver razão, toda a nossa crença de que o
sobrenatural não existe pode estar errada.
Por longos segundos observamos o gigante loiro virado de frente para o
mar, sem saber o que dizer.
— Bem, boa sorte na busca pela verdade — Sam desejou, batendo de
leve no meu ombro. — Se eu puder ser de mais alguma ajuda, não hesite
em entrar em contato.

Deixei o departamento um pouco mais angustiada do que entrei. A última


coisa que precisava era encontrar alguém que alimentasse as minhas
dúvidas. Se Sam tivesse insistido que aquilo era uma loucura, talvez eu teria
ligado para a polícia ou para o serviço social na mesma hora. O problema
era que meu amigo sentiu, como eu, a estranheza da situação.
Cristopher não podia ser do nosso tempo.
Caminhei pelo gramado até a mureta que dava para o mar e me sentei
ao seu lado. Ao nosso redor, Valetta vibrava ao som de buzinas, ônibus
vermelhos lotados de turistas e toda a agitação de uma capital moderna. No
ar pairava um cheiro de maresia que se misturava horrivelmente ao do
combustível das lanchas que cruzavam a enseada. Aquele era o cheiro da
cidade atual. Não conseguia sequer imaginar como a cidade cheirava em
1565.
— Eles se salvaram. — A voz de Cristopher soou rouca e emocionada
assim que me sentei. — Meu irmão sobreviveu.
— Tudo indica que sim, homem de lata.
Ele se virou para me encarar, o cabelo voando com a brisa do mar. O sol
clareava o rosto coberto pela barba loira e deixava seus olhos da cor das
cinzas que restavam no chão das fogueiras apagadas.
— Foi por causa dela.
— Ela?
— A bruxa. Foi ela quem teve a ideia de saltar no mar. Aaron pretendia
ficar e lutar, como qualquer um de nós faria, mas ela o convenceu a partir.
— Cristopher parou de falar, o olhar ficando mais terno. — Meu irmão
optou por seguir o conselho da mulher que amava, por causa da criança que
ela trazia no ventre.
Como se essa revelação fosse a mais importante de sua vida, ele voltou
a observar o oceano, o rosto mais sereno do que antes. A constatação não
era um julgamento pela decisão do irmão, a frase era apenas a compreensão
tardia do que o motivou a se salvar. Parecia que só agora Cristopher
percebia o porquê de o irmão querer viver e ele, de se sacrificar.
— Sam acredita em você — comentei, querendo mudar de assunto e
melhorar o astral do momento.
Ele se virou, um olhar incrédulo no rosto.
— Acredita?
— Sim. Ele concorda que a ideia de viagem no tempo causa estranheza,
mas tem certeza de que você sabe, que viveu o que nos contou. Nesse caso,
só existem duas opções: acreditar no que diz ou considerar que é muito,
muito louco.
— Não estou louco.
— Então, só me resta acreditar. — Apoiei as mãos na murada e sorri. —
A pergunta é: o que pretende fazer agora?
Aquela questão dizia respeito a mim, também. Sentia um estranho elo
crescendo entre nós, um tipo de laço para o qual não tinha explicação.
Talvez devido à pedra, ou porque chegara procurando alguém com o meu
nome, ou por motivos que eu ainda desconhecesse.
Podia ser, no entanto, apenas um desejo meu de viver algo
extraordinário — devolver um guerreiro ao seu tempo, provando que
viagens entre passado e presente eram possíveis —, além de sair da espiral
de lamentação solitária em que estava vivendo.
— Preciso voltar — ele afirmou sem ressalvas. — Primeiro, preciso
entender como cheguei aqui, aí farei o caminho contrário.
— É um bom plano. Mas como pretende descobrir isso? Como se viaja
no tempo? — perguntei.
— A pedra. Tudo mudou quando a bruxa a colocou dentro da minha
armadura. Ela sabia que aquilo aconteceria. Estava calma, como se…
— Como se o quê?
Ele voltou a encarar a cidade.
— Como se soubesse que eu não ficaria no forte depois que eles
pulassem.
— Não faz sentido, Cristopher. Por que ela salvaria você, e não a si
mesma, se estava grávida? Por que não salvaria o seu irmão? Eles poderiam
não sobreviver ao salto no mar.
— Eu não sei. Mas tenho certeza de que a pedra tem algo a ver com
isso.
Tirei a minha de dentro do decote e a observei. Ela parecia tão normal.
Tão roxa e inofensiva.
— Onde você a comprou? — ele questionou, me observando virar o
pingente de um lado para o outro.
— No templo de Ħaġar Qim, durante uma festa, no ano passado.
— Ħaġar Qim? Não sei onde fica isso.
— É aquele templo megalítico que fica do outro lado da ilha —
lembrei-o, mas Cristopher não sabia do que se tratava. Revirando os olhos,
tirei o celular do bolso e digitei o nome do sítio histórico, mostrando para
ele a imagem que surgiu na tela.
— Não entendo como o mundo pode caber dentro dessa coisa — ele
murmurou antes de observar atentamente a fotografia.
Eu nunca me acostumaria à sua expressão surpresa toda vez que via
algo no celular. Ele passou as vistas pelos antiquíssimos megalitos de
proporções gigantescas, apertando os olhos quando rolei a tela para o lado e
mostrei os artefatos desenterrados por lá — placas de pedra com espirais
em relevo, as estátuas das duas deusas e mais algumas coisas. Mostrei
também o templo anexo, o de Mnjadra, menos conhecido e menor do que o
primeiro. O local ficava afastado da entrada principal e geralmente recebia
menos turistas.
No entanto, foi quando apareceu uma das câmaras pré-históricas — a
que tinha um orifício elíptico, construído para se alinhar com o nascer do
sol do solstício de verão — que atentei para um fato.
— Foi aqui. — Ampliei a tela, olhando para tudo com cuidado. — Foi
exatamente na frente dessa câmara que comprei a pedra. Não sei agora se
ela fica no primeiro sítio ou no segundo, mas foi na frente desse lugar.
O que era estranho, pensei. Lembrei que o local estava vazio e que só
havia aquela vendedora ao redor. Ela estava distante das barracas de
comidas e bebidas — e eu já estava um pouco bêbada, admito —, mas me
lembro de ter achado seu isolamento curioso. Por isso me aproximei.
Voltei a olhar para o meu pingente. Quando comprei era um pedra
inteira e redonda, um círculo quase perfeito, mas um descuido da minha
irmã acabou partindo-a ao meio. Foi por causa desse incidente que
transformei a pedra em dois pingentes. Com a minha metade fiz esse colar.
Sabrina, minha irmã, fez um buraquinho em uma das bordas da sua parte e
passou por ela uma tira de couro comprida. Ás vezes, usava ao redor do
pescoço, em outras, como uma pulseira.
— Está dizendo que essas pedras imensas ficam aqui? Em Malta?
— Sim, ao sul. Estive lá com um grupo de amigos no ano passado. Tem
um site que organiza visitas guiadas nos equinócios e solstícios. No
primeiro dia de verão, quando o sol sobe, os raios passam por esse buraco e
iluminam uma laje de pedra na câmara. É legal assistir.
Achei em seguida outra foto, onde Ħaġar Qim aparecia contra o recorte
da costa e mostrava a solitária ilha de Filfla ao fundo. Quando Cristopher
viu a ilhota, apertou as sobrancelhas.
— Ei, eu conheço esse lugar.
— Imagino que sim. — Olhei para o mar azul e a ilha estéril cravada no
meio dele. Talvez aquela fosse a visão que menos mudou nos últimos
quinhentos anos: uma ilhota solitária no horizonte azul.
— Mas nunca vi essas pedras na região. — Os olhos prateados
encontraram os meus. — Os antigos malteses contavam lendas sobre a ilha
ter sido habitada por gigantes, muitos anos antes, naquela área. Mas nada
era assim.
Lembrei de algo que ouvi, e meu coração acelerou. Claro que não havia
nada assim!
— Você nunca viu as pedras porque só começaram a escavar ali no
século XVIII — contei, animada por ter algo interessante para compartilhar.
— Essas pedras estão em Malta há pelo menos seis mil anos. São mais
velhas que as pirâmides, mas estavam soterradas.
Pelo olhar confuso, Cristopher não sabia o que eram as pirâmides.
Continuei a falar sobre o assunto atual, pretendendo falar das construções
egípcias mais tarde.
— As pedras só foram totalmente desenterradas no século XIX. Na sua
época, elas mal apareciam na superfície! Deviam ser só marcações no chão.
Sua expressão se iluminou.
— Então posso afirmar que já passei por lá. Com o meu irmão, há muito
tempo. — Ele pegou o celular da minha mão, tomando cuidado para não
encostar na tela. Já tinha aprendido que toda vez que mexia nela, tudo
mudava. — Quem te vendeu a pedra? Foi uma feiticeira?
Ele me devolveu o celular com cuidado, quase como se segurasse um
explosivo.
— Não temos muitas feiticeiras no meu tempo, Cristopher. Na verdade,
comprei a pedra de uma vendedora de bijuterias. Você sabe, pingentes,
pulseirinhas de couro, essas coisas.
Ele não entendeu. Continuei, tentando escolher melhor as palavras.
— Era uma mulher estranha. Estava suja e um pouco descabelada. As
pessoas pareciam evitar a sua barraquinha e fiquei com pena da situação.
Então me aproximei para puxar assunto e perguntar o preço das coisas, mas
não tinha intenção de comprar nada.
Lembrei de como a mulher pareceu me escrutinar. Como o veludo onde
dispunha as pedras era gasto e o cheiro ao seu redor era de incenso de
sândalo e algo místico, oriental.
— Ela me mostrou a pedra e eu fiquei imediatamente intrigada pela cor.
Nunca tinha visto uma tão roxa. Quando perguntei o preço, o valor
extremamente baixo me deixou incrédula. Achei uma pechincha e levei na
hora.
— Ela disse mais alguma coisa?
Tentei me lembrar se havia algo mais.
— Acho que não... Ela me ajudou a colocar o colar em torno do pescoço
e disse que tinha ficado bonito. — Foi minha vez de franzir a testa,
recordando de algo que não tinha reparado até agora. — Na verdade, ela
disse que a pedra tinha sido feita para mim.
— Por que ela diria isso?
— Não sei, Cristopher. É uma expressão comum atualmente.
Vendedores tentam empurrar as coisas para cima de clientes falando essas
coisas. Não dei importância à frase. No mesmo dia, assim que cheguei em
casa, minha irmã deixou o pingente cair e ele se partiu em dois.
Ele voltou a pegar a pedra que levava junto ao peito na mão,
observando a minha, caída sobre o meu decote.
— Acha que a minha é a outra metade da sua?
— Não — respondi com firmeza, atribulada pelo olhar cristalino no
meu. — Mandei uma mensagem para a minha irmã e ela disse que está com
a metade da minha. Ela me mandou até uma foto para provar, lembra? Mas,
sem dúvida, são feitas do mesmo material.
— Onde a sua irmã está? Gostaria de ver a pedra dela.
— Ela não está em Malta. Está fazendo intercâmbio fora do país e só
volta em dezembro.
Ele não perguntou o que era intercâmbio, mas sei que não entendeu
nada. Eu sempre esquecia que não devia usar tantas expressões com ele.
Seu silêncio mostrava o tamanho do orgulho ferido por não entender direito
nossas palavras.
— Sei que estou aqui por causa da pedra. — Ele a apertou entre os
dedos imensos. — Como sei que é ela que me levará para casa. Só me
pergunto se a mulher que lhe vendeu a pedra pode ter algo a ver com a
minha viagem.
Pensativos a respeito do assunto, nos encaramos por alguns segundos,
repassando tudo o que sabíamos. Qual poderia ser o próximo passo? O que
fazer com aquela informação que tinha acabado de compartilhar?
Foi quando tive uma ideia.
— Já sei! O que acha de irmos até Ħaġar Qim? Já ouvi relatos de que…
— Deus me ajude, eu não acreditava que ia falar isso — …pedras
monolíticas podem levar e trazer pessoas pelo tempo.
Os olhos dele ganharam o fogo da esperança.
— Existem? Por que não falou sobre isso antes, mulher?
Cocei a cabeça, assentindo com uma careta. Minha fonte esdrúxula era
uma série de ficção histórica em que uma mulher passeava entre passado e
presente ao lado de um escocês bonitão.
O gigante estendeu a mão até a minha, um sorriso partindo seu rosto ao
meio. Surpresa pela gentileza, entreguei a mão a ele, e o choque de sentir os
calos da palma áspera me fizeram estremecer.
— Agradeço-lhe eternamente por sua ajuda, Srta. Isla. Se puder, por
favor, leve-me até esse lugar. Tudo isso é um grande equívoco. Preciso
regressar para o meu tempo o mais rápido possível.
11
POR QUE A BRUXA ME ENVIARIA PARA CÁ?
ISLA

D urante todo o trajeto entre Valetta e o sítio arqueológico, Cristopher


se manteve em silêncio, olhando para a paisagem. Eu só conseguia
imaginar o que ele estava sentindo. Se eu tivesse sido catapultada
para o ano em que ele viveu, como estaria? Em pânico completo, com
certeza. Querendo desesperadamente voltar ao presente, onde estavam as
TVs, os celulares e as privadas modernas.
Em algum momento ele pediu que eu parasse no acostamento, então
saltou do carro cambaleando e vomitou. Esperei que reclamasse da
velocidade — qualquer coisa acima de vinte quilômetros por hora era
absurdamente rápida para ele —, mas esse homem não era de muitas
palavras, ainda mais as que demonstravam fraquezas. Era estranho ver
aquele cavaleiro imenso curvado, mãos nos joelhos, botando os bofes para
fora devido a uma viagem de carro.
— Você conduz muito rápido. — Ele se levantou, tropeçando para o
lado. Quando fiz menção de me aproximar, estendeu a mão. — Estou bem.
Só preciso de um tempo.
— Posso ir mais devagar, mas não posso ficar a menos de 60 km por
hora.
— Não sei o quanto é isso, mas parece uma velocidade impressionante.
Como consegue… conduzir isso? — Ele olhou para o meu carro. — O que
ele usa de tração?
— Combustível — respondi, torcendo para ele não perguntar mais do
que isso, ou eu não saberia responder. — Ele serve para quase tudo que se
move hoje em dia.
— Então é esse tal combustível que faz o mundo parecer tão agitado?
— Mais ou menos.
Eu só podia imaginar o quanto as estradas, as buzinas, a pressa, o ritmo
e as nossas intenções lhe eram estranhas. O mundo deveria ser
absurdamente lento no passado. Uma época em que as pessoas possuíam
tempo para desfrutar de uma viagem ou de um momento.
— Vivemos uma vida inteiramente diferente — Cristopher murmurou.
— Eu sei. Infelizmente o nosso mundo ficou assim, e segue avançando.
— Avançando para onde? — Ele parecia profundamente apreensivo.
— Sei lá. — Soltei uma risada. — Acho que para frente. Pequenas
invenções tomam o lugar de outras a todo momento. Antes do carro,
tínhamos carroças. Em breve teremos coisas que voam. Bem, coisas
individuais que voam. Já temos aviões.
Apontei para o céu, mostrando um deles cruzar o ar. Cristopher assistiu
por longos segundos a aeronave passar à distância, sem palavras.
— Há pessoas lá dentro?
— Muitas. Isso nos permite viajar até o outro lado do mundo em
questão de horas.
Ele abriu a boca em espanto. Só então percebi que não era com o
passado que eu deveria comparar as coisas se quisesse entendê-lo: eu
precisava imaginar o futuro. E se eu fosse catapultada anos adiante? E se a
vida não fosse apenas ligeira, mas insanamente mais rápida? Se, ao invés de
termos aparelhos na mão para checar as coisas, tivéssemos, sei lá, chips
implantados no cérebro que responderiam aos nossos pensamentos?
Enquanto ia me dando um nervoso só de pensar em como reagiria,
voltei para dentro do carro e peguei os paninhos umedecidos na bolsa, além
de uma garrafa de água. Esperei que ele se limpasse e recuperasse um
pouco da cor do rosto. Só então retornamos à estrada. Dessa vez, pisei leve
no acelerador.
Paguei os ingressos na bilheteria e entramos no sítio arqueológico.
Enquanto Cristopher caminhava pelas peças expostas do museu, abordei
uma das funcionárias e questionei sobre as barracas expostas no evento, um
ano atrás. Alguém devia ter uma lista de vendedores, talvez o telefone da
mulher que possuía o colar antes de mim.
Expliquei como ela era — cabelos brancos e longos, olhos escuros e
fundos, uma veste colorida —, mas a moça insistia em afirmar que não
tinham como me entregar nada sobre os expositores.
— Senhora, preciso muito falar com essa vendedora sobre a pedra que
comprei — insisti. A funcionária olhou para outra e as duas franziram o
rosto.
— Disse que a pessoa vendia pedras? — uma delas perguntou, olhando
de forma desconfiada para mim. — Olhe, a senhora deve ter se enganado.
Não havia ninguém cadastrado para vender pedras no último evento.
Como não? Eu a vi, ela estava no sítio, naquele dia.
— Havia sim — insisti. — Talvez ela não estivesse cadastrada, mas
certamente estava aqui. Comprei esse colar dela!
Tirei a pedra de dentro da blusa e a mostrei. As duas negaram
imediatamente.
— Impossível, senhora. É da política do local. Anos atrás, tivemos
problemas com remoção de pedras do sítio. Algumas pessoas cismaram que
elas tinham propriedades “mágicas” e pegavam pedaços sem autorização.
Desde então, ninguém mais pode vender nada que possa ser retirado daqui.
A senhora sabe, para preservar o lugar.
Assenti devagar, recolocando a pedra de volta entre o vale dos seios,
vendo o olhar da mulher se alterar.
— Alguém deve ter burlado o sistema, então — murmurei, procurando
um meio de me esquivar da conversa. Pela expressão das funcionárias, eu
tinha acabado de virar uma pessoa suspeita. Afinal, de onde tirara aquela
pedra? — Bem, devo ter me enganado. Admito que estava muito bêbada
naquela noite. — Dei um tapinha sobre o balcão, torcendo para a minha
eterna cara de culpada não me colocar em maus lençóis. — Acho que…
comprei esse colar em outro lugar.
Dando um último sorriso amarelo, apressei o passo para puxar
Cristopher para longe dali. O problema era: onde estava o cavaleiro?
Olhei ao redor, sentindo o coração acelerar.
— Cristopher? — Olhei para os lados. Um aperto inesperado me fez
levar a mão até o peito. — Cristopher? — chamei outra vez.
Onde ele estava?
Uma agitação estranha começou a tomar conta do meu estômago. Como
assim, ele foi embora? Como pode me deixar aqui, sem dizer nada?
Acelerei pela parte externa do sítio, tentando encontrar a cabeleira loira
em algum lugar. O pensamento de que ele podia ter realmente desaparecido
me deixou desconfortavelmente ciente de que gostava da sua companhia —
e muito. Eu deveria ficar feliz com o seu sumiço, na verdade. Isso
significaria que ele tinha achado um modo de voltar ao seu tempo, e eu,
estaria livre do fardo de não saber o que fazer com um cavaleiro do século
XVI acampado na minha sala.
Entretanto, não era alívio o que eu sentia. Era solidão, estranheza, uma
melancolia sem forma. O sentimento que batia quando olhávamos pela
última vez para alguém parado em um portão de embarque sabendo, no
fundo, que nunca mais veríamos aquela pessoa. Não era todo dia que um
cavaleiro bonitão, com voz de barítono, surgia para nos salvar de uma
humilhação. Ou trazia algum propósito à vida de desempregada sem
perspectiva.
Não, ele não iria embora sem se despedir. Iria? Bem, se ele partiu
abruptamente do passado, algo similar poderia ter acontecido agora.
Retornei ao museu. A cada ambiente que vasculhava atrás dele e não o
encontrava, mais meu coração diminuía de tamanho.
Cristopher, onde você se meteu?
Procurei nas alas laterais, chequei os banheiros, a sala de projeção, os
corredores onde ficavam os objetos expostos encontrados — e nada. Então,
deixei o prédio e dei a volta no edifício apenas para me certificar que ele
havia sumido mesmo.
A essa altura, meu peito fazia silêncio.
Peguei a longa passarela de cimento que levava de Ħaġar Qim a
Mnajdra, tapando o rosto devido ao sol inclemente. O segundo templo
ficava no topo de uma falésia com vista para o oceano, e estava mais vazio
do que o principal. No horizonte, o mar azul reluzia cintilante em contraste
com as pedras claras do chão, e o silêncio era completo.
A verdade? Eu não queria que Cristopher fosse embora ainda. Queria
saber mais sobre a sua vida, como era Malta no passado, o que faziam
naquele tempo. Por que não fiz perguntas assim ao invés de desconfiar o
tempo todo? Eu ainda reclamava mentalmente quando reconheci a silhueta
masculina na beirada da falésia. Ele estava virado para o mar, o cabelo loiro
e comprido voando ao vento.
Não sei explicar o tipo de sentimento que desceu sobre mim, mas sei
que voltei a ouvir o coração bater outra vez.
Caminhei até ele, segurando um suspiro de alívio. Era um sentimento
mesquinho e egoísta, mas eu não estava me negando a ajudá-lo a partir. Eu
só queria… não sei. Ter mais tempo com ele.
Equilibrando os passos entre as pedras, me aproximei.
— Cristopher? Achei que tivesse ido embora!
Ele não se virou. Continuou a mirar a pequena ilha de Filfla, talvez a
única paisagem imutável nos últimos séculos. A ilhota distante da costa era
o único ponto visível em meio à imensidão azul.
— Você está bem? — Cheguei mais perto.
— Não sei como me sinto — ele confessou sem se virar.
— Sentiu algo estranho quando pisou aqui? Alguma… impressão de
que este lugar possa ter alguma conexão com sua vinda?
Ele examinou o labirinto de pedras altas atrás de nós. O local estava
deserto, com poucos turistas, e o silêncio era interrompido apenas pelo som
dos grilos.
— Talvez. Não tenho certeza. — Ele apontou discretamente para as
pedras. — Por um acaso você ouve um zumbido fraco sair dali?
— Das pedras? — Soltei uma risada. — Definitivamente não. Acho que
o calor está mexendo com você. Venha, vamos sair do sol.
Ele me seguiu até a cobertura que protegia o sítio, e nos sentamos sobre
algumas pedras. O vento açoitava as moitas baixas e refrescava o calor,
trazendo um cheiro de oceano para a paisagem árida.
— Fascinante, não? — perguntei, olhando para a construção milenar. —
Isso foi erguido quando ainda estávamos no neolítico.
— Neo o quê? — Cristopher não parecia nada fascinado.
— Neolítico. A época em que deixamos de vagar pra nos assentarmos
em um lugar. — Como ele não parecia estar entendendo nada, mudei de
assunto. — Enfim, nada importante. Sobre o que estava pensando?
— No tempo — ele respondeu com aquele sotaque antigo. Então,
chacoalhando a cabeça sem entender, continuou. — Como um lugar assim
poderia ter ligação com a minha vinda para cá? São pedras!
— Eu não sei. — Suspirei, desanimada. — Nem mesmo temos certeza
se esse lugar tem ligação com o que aconteceu. Eu só achei que, como a
minha pedra veio daqui, talvez valesse a pena investigarmos.
Ele pensou por um tempo, as testa cheia de linhas.
— Eu sei. Obrigado por tentar. Só não consigo pensar na possibilidade
de nunca mais retornar.
— Algo te trouxe para o presente. Se você veio, existe um caminho que
o levará de volta.
Ele me encarou, e mais uma vez me senti um pouco estranha por ser
observada daquele jeito intenso. Era como se alguém, pela primeira vez,
estivesse me vendo de verdade. O olhar azul parecia me vazar e me deixar
vulnerável; enxergar quase tudo que havia em mim.
Voltei a encarar o mar, sentindo o coração palpitante.
— Por que a bruxa me enviaria para cá? — Ergui os ombros, sem
conseguir ajudá-lo. Eu não fazia ideia. — E como ela conhecia você?
— Talvez ela não conhecesse. Você pode ter ouvido meu nome na festa
de casamento e confundido a mensagem.
— Sei bem o que ouvi e da boca de quem.
— Bem, não acho que alguém do passado pudesse saber algo sobre
mim. Acho que agora precisamos nos concentrar na vendedora que me
empurrou essa pedra. Ela sim, pode nos explicar de onde veio.
Ele exalou longamente, sem discutir. Que não tenha argumentado ou
dito mais nada me causou uma sensação estranha, como se ele tivesse
aceitado a derrota, ou estivesse cansado demais.
— Conseguiu o contato que procurava? — Cristopher por fim
questionou.
— A administração do museu não sabe nada. Disse que ninguém tem
permissão de vender pedras aqui. Postarei algo nas minhas redes sociais
para ver se alguém se lembra dela. Será como procurar um grão de areia na
praia, mas precisamos tentar.
— Não entendi bem o que fará, mas agradeço, senhorita. Seu empenho
em me ajudar me comove. Não são todas as mulheres que se disporiam a
algo assim.
Fechei a mão em um punho e dei um soquinho no braço dele, tentando
deixar o momento descontraído. Assim que a recolhi, me perguntei do que
seus músculos eram feitos. Pedra?
Ele estranhou o gesto, passando a mão no local como se eu tivesse
machucado a área.
— O que foi isso?
— Desculpe. É assim que dizemos de nada hoje em dia. E por favor,
pare com essa coisa de senhorita. Pode me chamar de Isla.
Embora houvesse um ponto de interrogação na testa já cheia de riscos,
ele concordou com um leve aceno de cabeça.
— Por que está me ajudando... Isla?
Por que sou doida? Porque estou em busca de algo que dê sentido à
minha existência? Por que você é um gato e não consigo resistir quando
vejo seu olhar perdido?
Virei o corpo para o mar, sem saber o que responder.
— Porque sinto que é a coisa certa a fazer. — Essa era uma boa
resposta. Melhor do que admitir que eu era uma assanhada sem norte ou
juízo.
— Mesmo para esse mundo estranho, suspeito que tudo o que está
fazendo seja algo fora do normal — ele continuou, passando as mãos no
cabelo em um gesto claro de frustração. — Você é uma dama solteira, que
não pediu a permissão do pai ou de um parente masculino para estar aqui.
Sem falar que eu não devia sequer estar hospedado na sua residência.
Minha busca é esdrúxula e a solicitação soa como um truque de mágica. A
senhorit... Você tem todos os motivos para desconfiar da minha história, e
mesmo assim, aqui está.
— Bem, talvez precise entender algumas coisas sobre nós, damas da
atualidade. — Sorri. — Além de sermos criaturas muito curiosas, não
precisamos mais dar satisfação ou pedir nada para os homens.
Foi divertido ver seus olhos se arregalarem.
— Brincadeiras à parte, alguma coisa na sua pedra chamou a minha
atenção. Sinto a parte que está comigo esquentar às vezes, sabia? — Pousei
a mão sobre a minha. — Quando você apareceu, ela amornou. Além disso,
sua história é tão surreal que só pode ser verdade. Ninguém ousaria inventar
nada do tipo.
— Achou que eu estava mentindo?
— No começo. — Balancei as pernas, sem jeito. — E só para não
parecer muito louca.
— De qualquer maneira, agradeço sua curiosidade e bondade, Isla de
Malta.
Ouvi-lo dizer aquilo me fez sorrir. Lembrei da história por trás do meu
nome, de que, quando meu pai o escolheu, estava apaixonado pela palavra
ilha em espanhol: isla. Minha mãe tentou dissuadi-lo da ideia, mas não
houve argumento que o convencesse.
Contei a Cristopher como virei Isla de Malta e o sorriso masculino
enfeitou o rosto de aço. Se sério aquele homem era um desbunde, sorrindo
era inigualável. Ele tinha dentes muito brancos e divinamente perfeitos, o
que devia ser um rara exceção à época em que vivia. Sem falar naquele
rosto que conseguia ficar mais bonito quando alegre.
Em matéria de beleza, Deus claramente tinha seus preferidos.
Voltei a olhar para o mar, cada um mergulhado em seus dilemas. Quais
eram os dele, podia imaginar. Inusitado é que os meus fossem pensamentos
sobre o que faria com ele, caso uma parte de mim ainda não suspeitasse de
que tinha, mesmo, fugido de um hospício. Eu não era conhecida como para-
raio de problemas à toa.
— É a primeira vez que me sinto bem desde que cheguei — ele
murmurou. — É a única paisagem que permanece igual após tanto tempo.
Malta se transformou, cresceu e evoluiu. O forte não é mais o que foi um
dia, já não reconheço mais os lugares por onde passei, mas aquela ilhota
continua a mesma. Inalterável no meio do mar.
Cristopher arrastou a mão pelas coxas, como se enxugasse as palmas.
Seu semblante voltou a pesar.
— Foi daqui que avistamos os primeiros barcos da esquadra turca.
Imagino o tipo de medo que tomou a ilha depois do anúncio daquela
visão. Tive vontade de tocá-lo outra vez, mas ele não parecia gostar do
contato, então nem tentei.
— Como pode parecer tão atual e ter acontecido há mais de
quatrocentos anos? — Ele olhou para mim em busca de uma explicação que
eu não tinha.
— Eu não sei, Cristopher. Talvez esteja recente porque acabou de sair
de lá.
— Vocês hoje vivem tempos de paz. Nem mesmo sei como entender
isso.
— Nossa paz foi conquistada depois de muitas batalhas. E ao redor do
mundo ainda existem diversos lugares em guerra — expliquei. Ele
precisava saber disso, pois a verdade era essa mesmo. O mundo era um
lugar imenso, com diversas realidades, algumas ainda bem violentas. — Já
considerou que quando retornar, pode cair no exato lugar e momento em
que estava? No meio da batalha?
— Tenho consciência disso, mas preciso voltar pelo meu irmão. Ele
pode ter sobrevivido a São Elmo, mas não ao que veio depois. Não consigo
parar de pensar no que aconteceu a eles. — Ele voltou a olhar para o mar.
— De qualquer maneira, não posso ficar. Não pertenço a esse tempo, não
entendo esse mundo e nem quero. É bom saber que Malta resistiu e que a
guerra foi vencida, mas não sei viver longe do que acredito e conheço como
certo. Aqui, não acredito em nada, nem sei o que é certo.
Pensei em dizer que não tínhamos mudado muito em matéria de
sentimentos, mas me calei. Eu mesma estava ferida demais com as pessoas
para fazer qualquer tipo de discurso otimista.
Ele pareceu ponderar por um tempo, escolhendo as próximas palavras
com cuidado.
— Tudo tem um tempo certo de existir. Sou um cavaleiro da Ordem.
Perdi a chance de escrever meu nome na história para o quê? Para vomitar
por causa de uma viagem de carroça e tomar sustos com coisas que
acendem e fazem sons?
Assim que ele disse a palavra história, uma ideia me ocorreu.
— Cristopher, acho que sei onde podemos pesquisar sobre você.
Antes que ele pudesse perguntar mais alguma coisa, agarrei-o pela mão
e o puxei de volta até o caminho de cimento que levava à saída.
— O que está pretendendo? No que pensou?
— A Ordem, Cristopher! A Ordem dos Cavaleiros de São João ainda
existe!
12
GARÇONETES SÃO PERIGOSAS
ISLA

A Ordem dos Cavaleiros Hospitalários já não tinha mais nada a ver com
defesa da Terra Santa ou a proteção da Europa das invasões
muçulmanas, nem formava cavaleiros ou ensinava a arte das batalhas.
Entretanto, ela continuava a existir — seu telefone estava disponível na
internet —, e prestava o mesmo serviço de quando foi fundada, no ano de
1048: servir aos necessitados. Hoje, a Ordem oferecia um serviço de
ambulância voluntário na cidade, além de manter uma imensa biblioteca
sobre a sua história.
Enquanto aguardava ao telefone que alguém me passasse para o setor de
arquivos, olhava do deque do restaurante para a baía de São George. Era tão
estranho imaginar que aquele lugar cheio de turistas um dia esteve coberto
de sangue e foi palco de tantas batalhas sangrentas.
Após dez minutos de espera, consegui falar com o responsável. O
homem com quem conversei ficou de marcar um horário para visitarmos o
escritório, mas precisaria de alguns dias para se organizar. Embora quisesse
ter algo mais concreto para dizer a Cristopher, fiquei feliz em falar com
alguém. Deixei meu número e o homem prometeu ligar de volta.
Desliguei o telefone otimista. Se alguém mantinha registros sobre os
cavaleiros da Ordem, seria a própria instituição. Estava para retornar até
Cristopher quando um plim me fez levar o celular de volta ao rosto. A
mensagem desagradável do meu ex-chefe fez meu estômago se retorcer.

Oi, Isla. Precisamos conversar.

Não precisamos não, pensei. Aproveite e vá tomar naquele lugar onde o


sol não bate, cretino. Ignorei a tentativa de conversa e enfiei o celular de
volta ao bolso.
Embora aborrecida pela mensagem, ver Cristopher sentado em uma
mesa de bar como se fosse apenas mais um cara bonito na orla me fez
sorrir. De perfil, sua visão era impactante. Lindo de doer. Ele tinha os olhos
no mar e a expressão cansada.
Era impossível confundi-lo com os turistas que lotavam o lugar. Meu
acompanhante não tinha a despreocupação de quem estava de férias, nem
sorria com leveza. Os traços duros do rosto, de quem tinha visto mais do
que conseguia tolerar, combinavam perfeitamente com seu físico
avantajado, mostrando o guerreiro que era.
No entanto, por mais que ele parecesse moldado em aço sob aquela
roupa rota, mostrasse uma rara extravagância de músculos e fosse maior do
que qualquer outro homem ao redor, também parecia perdido. Silencioso
diante do mundo que não entendia. Guardando o medo e a inquietação em
um lugar distante e segurando o espanto pelas coisas mais ínfimas.
Ao redor, as pessoas seguiam suas vidas inteiramente indiferentes ao
que homens como aquele fizeram por elas, séculos antes. Eu mesma nunca
pensei, nem por um segundo, sobre como a nossa liberdade foi conquistada
ou quem precisou morrer por ela.
Quando ele suspirou, ainda virado para o mar, algo se apertou dentro de
mim. Não queria vê-lo triste ou chateado. Gostava dele feroz, incisivo,
firme… era adorável vê-lo tomar sustos com o mundo e tentar entender
como vivíamos. Bem, pelo menos eu tinha uma boa notícia para
compartilhar, já que a procura leiga pelo nome Cristopher ou Aaron de
Landa na internet não tinha dado em nada.
Assim que me aproximei, o olhar prateado se conectou ao meu.
— E então? A Ordem ainda existe?
Puxei a cadeira e me sentei na frente dele, erguendo a mão para chamar
a garçonete.
— Por que não pediu nada? Disse que estava com sede.
— Eu pedi um cantil de água, mas a taverneira não entendeu. Quando
ela começou a falar demais, mandei-a voltar depois.
Segurando a risada, chamei a moça outra vez. Ao parar ao nosso lado,
ela tinha uma expressão curiosa no rosto.
— Uma água sem gás para ele, por favor. Para mim, uma Coca.
O guerreiro acompanhou o pedido com os olhos estreitos, aprendendo
como eu fazia. Sim, era simples pedir água. Abraçada à bandeja, a jovem
encarou Cristopher com um sorrisinho de lado.
— Não vão querer nada para comer? Posso explicar os pratos do
cardápio, se quiserem.
— Por enquanto só isso mesmo — respondi, entendendo muito bem o
derretimento da mocinha.
— Temos um ótimo rosbife com gorgonzola — ela insistiu, continuando
a encará-lo.
— Quer saber, você tem razão: por que não pedimos? — Fechei o
cardápio. — Vamos querer dois kebabs com batata fritas, por favor, e só.
A garçonete parecia hipnotizada pelo olhar azul-geada do guerreiro, e
eu não a culpava. Entre na fila, meu bem, pois estou beeeeeem na frente.
Poucos tinham os olhos daquele homem incomum, e a mistura deles ao
resto do conjunto não ajudava o equilíbrio feminino.
Quando ela finalmente se foi, um canto da boca Cristopher estava
erguido. Duvido que as expressões humanas tivessem sofrido grandes
alterações nos últimos quatro séculos, já que sabia muito bem o que aquele
sorrisinho significava.
— Para sua informação, taverneiras são perigosas — avisei, seca. — É
melhor não se meter com elas.
O sorriso dele se alargou.
— Eu sei. Elas sempre são perigosas. Mas já lidei com algumas e essa
daqui não me pareceu um risco.
O maldito estava se divertindo com aquilo?
— Falei com a Ordem — cortei o assunto. — Eles existem e estão
dispostos a nos receber, mas há um porém. Segundo o arquivista,
documentos antigos assim ficam em Roma e ele precisa de alguns dias para
liberar o acesso.
— Vamos para Roma? — Cristopher pareceu chocado.
— Não, os documentos estarão dentro de telas como essa. — Apontei
para o celular. — Enfim, eles perguntaram por que estávamos atrás desta
informação, então contei uma mentirinha. Espero que não se importe.
As sobrancelhas espessas vincaram sobre os olhos. O homem não era fã
de mentiras.
— Falei que tinha achado alguns documentos na família e queríamos
confirmar se nossos antepassados lutaram na guerra. Nada de mais.
— E conseguiu toda essa informação com esse aparelhinho?
Empurrei o celular na direção dele, assentindo. Toquei na tela e a foto
da minha última viagem à Inglaterra surgiu: eu na frente do parlamento,
mãos erguidas enquanto tentava dar um patético salto no ar.
— Dentro desse telefone há todo tipo de mágica. Você pode falar com
qualquer pessoa do mundo que tenha outro como este. Pode pesquisar
informações sobre qualquer época e lugar. Guardar fotografias, fazer
contas, checar o quanto tem de dinheiro nos bancos, ler livros, assistir
filmes, fazer compras, procurar endereços e se relacionar com outras
pessoas.
Cristopher tinha os olhos no meu rosto. Eu o perdi na palavra 'mágica'
— depois dali, ele não entendeu mais nada.
— Não quero ficar perto disso. — Ele empurrou decidido o celular de
volta para mim. — Você duvida constantemente da minha palavra, mas
acredita nas que saem daí. Seu mundo está tomado por tolos e feiticeiros.
Enfiei o celular na bolsa, sem discutir.
— Já disse que não sou feiticeira, mas se quiser achar que sou, também
não tem problema. Ninguém vai me queimar na fogueira se eu for uma —
provoquei.
— Seu mundo é absurdo de uma nova forma — ele reclamou, e precisei
rir, concordando. — Quando acha que entrarão em contato?
— Não sei. Pode ser em uma semana, talvez menos. Porém, tenho
certeza de que em breve saberá o que aconteceu com você e o seu irmão.
Aliviado, ele esfregou o rosto, sem notar que a "taberneira" deixou as
bebidas sobre a mesa.
— Isso não muda o fato de que preciso voltar. — Um ruído cansado de
desânimo escapou da sua garganta. — Meu irmão pode estar precisando de
mim, e meu lugar é ao lado dele. Tenho pensado muito a respeito de tudo...
Sobre os motivos de ter parado aqui e como poderia retornar. — Ele cruzou
os dedos imensos sobre a mesa, e por vários segundos ficou tão quieto que
poderia ter sido transformado em pedra. — Minha conclusão é que você é a
resposta.
Franzi o cenho. Achei ter ouvido a palavra você.
Como ele não parava de me encarar, perguntei:
— Resposta para o quê?
— Para a minha vinda e o meu retorno. Toda vez que estamos
próximos, tenho a sensação de que a pedra aquece. Toda vez que decido me
afastar, a voz da bruxa retorna à minha mente. Aposto que ela lançou um
feitiço sobre nós. Estamos ligados de uma maneira que não entendo, mas
sei que você é a chave para reverter tudo.
Encaixei a boca no canudinho do refrigerante, me questionando se
Cristopher sabia quem eu era. Digamos que, dentre os oito bilhões de
habitantes deste planeta, ninguém era tão inapto a ser a chave de algo ou
incapaz de reverter as coisas como eu. Mal conseguia salvar a mim mesma,
essa era a verdade. Achar que eu poderia ajudá-lo a viajar no tempo era
hilário.
O homem continuava a ignorar as pessoas, a orla colorida, o ruído de
modernidade. Ele só tinha olhos para mim.
— Não vou morrer aqui, nesse lugar estranho, Isla. Confio que você me
mandará de volta.
Tiradas do contexto, aquelas frases podiam ser quase… fofas. O
problema era que não eram. Parei de beber, decidindo falar sério.
— Olha, Cristopher. Sou da teoria de que tudo que sobe, desce, e tudo
que vem, volta, mas estou começando a achar que talvez a sua “bruxa" não
tenha dito o meu nome, e sim mencionado a ilha. Isla de Malta, sabe? O
lance de eu me chamar Isla pode ter sido apenas uma coincidência. Eu não
faço ideia de como te mandar de volta. Eu quero ajudar, de verdade, mas
não eleve demais as expectativas.
Ele negou, teimoso.
— Você é a chave. Eu sinto.
— Posso não ter nada a ver com isso — insisti, incomodada pelas suas
palavras, pela responsabilidade que eu não pedi para ter, irritada por não ser
ninguém tão especial como ele queria que eu fosse. Eu não era a chave de
nada, ponto final. — Você passou por uma situação de quase morte…
Talvez esse salto no tempo tenha acontecido por causa disso, não sei. Ou…
talvez tenha sido o solstício, e não apenas a pedra. Estamos no começo do
mês, a poucas semanas do próximo, e não podemos esquecer que comprei a
pedra nessa data, ano passado.
— Deixei São Elmo no dia 23 de junho. Não era solstício.
— Dois dias a mais, dois a menos... — fiz um gesto de tanto faz. —
Talvez as coisas não funcionem como um relógio!
Ele ainda negava, mas dessa vez, com a cabeça baixa. Suspirei, sem
saber o que dizer além do que já tinha dito. Eu não o invoquei, não tive
nada a ver com sua vinda (duvido que o curso online sobre cristais que não
terminei tivesse algo a ver com isso), nem mesmo terminei a quarta
temporada de Outlander. Estava tão perdida quanto ele a esse respeito.
Aliás, nos últimos tempos, tudo que fiz foi chorar, comer e reclamar.
Sinceramente, se isso invocasse cavaleiros para o presente, o mundo estaria
entupido deles.
Ele finalmente ergueu a cabeça, o rosto belo e endurecido causando em
mim uma sequência incômoda de estremecimentos.
— Por que está me ajudando, se não tem nada a ver com isso? Sei que
já fiz essa pergunta, mas não me respondeu.
— Oras, porque você caiu do meu lado e acabei te confundindo com
outra pessoa.
Ele negou.
— Não é por isso e você sabe. Por que exatamente está me ajudando,
Isla? — Cristopher repetiu a pergunta. — Sou um estranho. Violento, estava
armado quando a conheci, e posso ser perigoso. Você me achou coberto de
sangue e mesmo assim me deu abrigo. Saiba que a recompensarei por isso,
mas no momento gostaria de saber por que, exatamente, decidiu me ajudar.
A resposta para aquela pergunta precisava ser empurrada para bem
longe da mente. Não podia acreditar nela, ou teria que admitir que estava
ficando doida.
— Diga, Isla.
Não posso.
Repeti mentalmente o que sabia sobre a minha vida nos últimos tempos:
eu estava financeiramente fodida. Não tinha emprego e tinha sido traída.
Precisei raspar as economias para pagar os estudos da minha irmã
adolescente na Inglaterra, já que o nosso pai (a quem eu amava
profundamente, não me entendam mal) só deixou saudades ao partir.
Aquelas eram as coisas reais da minha vida, as certezas, os fatos imutáveis.
O mais provável é que eu estivesse dando abrigo a um sem-teto delirante
por quem estava começando a sentir uma atração absolutamente sem
sentido. Reunindo essas coisas, só podia chegar à conclusão de que me
faltavam parafusos na cabeça.
— Você também sente, não sente? — Cristopher levou a mão à pedra,
apertando-a entre os dedos grossos.
Olhei para o mar, sentindo a brisa fresca remexer o cabelo. Sim, eu
sentia uma certeza no fundo dos ossos de que estava ligada a ele. Sentia não
só a pedra amornar muitas vezes contra a pele, como também um sussurro
no ouvido dizer que deveria ouvi-lo. Uma voz íntima e doce, que me fazia
acreditar em qualquer coisa.
Preocupante? Definitivamente.
No entanto, Cristopher parecia familiar. Estar ao seu lado era como
assistir uma comédia romântica da década de 1990 — um programa livre de
perigos. De onde vinha aquela sensação e o que significava?
Que precisava estar ali para ajudá-lo? Para ser ajudada por ele?
— Sei que também sente, Isla, e insisto em recompensá-la pela ajuda.
Peça-me o que quiser, e se estiver no meu alcance retribuir, farei o que…
Quase saltei sobre ele para tapar sua boca. Ele não podia sair por aí
oferecendo fazer tudo que eu quisesse, soltando frases com nomes de livros
picantes.
Antes que pudesse responder alguma besteira, o momento foi
interrompido por uma sombra. Ergui o rosto para ver quem tapava a
claridade, precisando segurar uma revirada de olhos. Ai, que saco.
Ao lado, estava a última pessoa desse mundo que gostaria de encontrar.
— Isla, querida! Que surpresa te encontrar aqui!
Giulia, minha ex-assistente — a noiva — tinha um sorriso gigante
colado ao rosto. Daniel, o noivo, também se aproximava. O maldito já devia
estar no bar quando me escreveu a mensagem de texto.
— Achei que estivessem em lua de mel — comentei, vendo Giulia fitar
Cristopher com um interesse nada disfarçado.
— O Tahiti terá que esperar. — A garota conseguiu, sabe-se lá como,
abrir ainda mais o sorriso. — Olá! Sou a ex-assistente da Isla e a nova
produtora da Luminar.
Daniel parou ao lado, passando o braço pelo ombro dela.
— Isla, que surpresa.
Você sabia muito bem onde eu estava, seu falso.
Os dois sorriam e esperavam as apresentações educadas. Bem, se
queriam fazer esse jogo de mentiras e falsidades, eu entraria nele também.
— Daniel, Giulia… Esse é o Cristopher, meu namorado. Amor, esses
são meu ex-chefe, Daniel, e minha ex-assistente. Os noivos daquele
casamento.
Pousei a mão sobre a do guerreiro, que enrijeceu sob o toque. Mais
tarde pediria desculpas pela confusão, mas no momento só conseguia
encarar os dois traiçoeiros e curtir seus olhares surpresos.
— Sentimos sua falta na festa. — Giulia fez biquinho.— Ouvimos dizer
que saiu logo depois da cerimônia.
— Ah, sim. Eu adoraria ter ficado, mas Cris se sentiu mal, então
tivemos que partir. A propósito, parabéns pelo casório. O whisky estava
ótimo.
Cristopher engoliu uma risada.
Os dois traidores agradeceram, hesitantes, mas não deram indicação que
iriam embora. Inclinei o corpo em direção ao guerreiro ao meu lado,
fingindo intimidade. Era impressão minha ou algo mais segurava aqueles
dois ali?
— Não sei se ouviu, mas precisamos adiar a lua-de-mel — Daniel
soltou, um pouco constrangido. — Tivemos um problema na produtora.
Foda-se, devolvi com um sorriso, arrastando a cadeira mais para perto
de Cristopher.
— Ah, amor, não acha que Isla saberia resolver o problema? — minha
ex-assistente insistiu, pousando as unhas compridas sobre o peito do noivo
emburrado. — Ela arrumaria aquela bagunça em três tempos.
Bagunça? Apoiei o queixo na mão livre, olhando de um para o outro
enquanto esperava para ver quem entregaria a fofoca. Aquilo tinha o
potencial para ficar interessante.
— Não sei se lembram, mas não trabalho mais para a Luminar.
— Sabemos disso, claro. — Daniel umedeceu os lábios e trocou o apoio
do corpo de uma perna para a outra. — É só uma coisinha que está nos
dando dor de cabeça. Nada muito grave... É que... Giulia não está
conseguindo dar conta dos contratos, e alguns clientes andaram
reclamando.
— Não é bem esse o problema — Giulia cantarolou, irritada.
Own, quer dizer que a assistente colocada para roubar o meu lugar não
estava dando conta do trabalho?
A situação melhorava a cada segundo.
— Benzinho, você me deixa sem jeito falando assim — Giulia reclamou
com a voz afetada.
— Sabe muito bem o que esta acontecendo, amor. — Daniel soltou um
suspiro exasperado.
— Não tenho culpa se os prazos são apertados, bebê. Como ia saber
que atrasos traziam multas?
Enquanto observava a conversa sussurrada, continuava com os dedos
entrelaçados aos de Cristopher.
— Nem todo mundo sabe que nesse ramo tempo é dinheiro — retruquei
simpática, interrompendo o debate.
Daniel respirou fundo.
— Isla, se pudesse dar um pulo na empresa e nos ajudar com os
americanos, eu seria eternamente grato. Eles são muito minuciosos e estão
irritados com as mudanças. Seria um dia só, talvez apenas uma tarde.
Oh... Era tão bom ouvi-lo implorando. Mirei longamente os dedos de
Cristopher trançados aos meus, interrompendo-o:
— Infelizmente não posso. Estou com meu namorado essa semana. Ele
veio diretamente da… Islândia, só para ficar comigo.
— Islândia? — Giulia questionou, enquanto o olhar de Cristopher
fincava no meu.
Desculpe, foi o que veio à cabeça!
— Pago bem — Daniel insistiu. Sua voz era de puro desespero.
Estava explicado o porquê das mensagens e da repentina aparição no
bar. A Luminar não estava conseguindo lidar com os pepinos e precisava de
mim. Justamente da mulher que aquele cachorro acreditou ser descartável.
— O problema é a firma americana. Eles perguntaram três vezes por
você, e quando disse que tinha deixado a produtora, ameaçaram pular fora.
Estamos tendo problemas com eles.
Conferi o estado (horrível) das minhas unhas, fingindo pensar.
— Eles sempre foram tão atenciosos comigo.
— Se puder ligar para os executivos e explicar o que aconteceu, ajudar
a organizar os schedules de produção e explicar para Giulia as planilhas,
seríamos muito gratos.
Encarei meu ex-chefe, bolando o plano na hora.
— Bem, se sou assim tão necessária, mandarei minha proposta hoje à
noite. Caso aceite o valor, podemos conversar na firma amanhã ou depois.
Cheque seu e-mail mais tarde, Daniel.
Daniel avermelhou.
Ah, você achou que eu apareceria por consideração a você e ao seu
sexo ruim? Vá sonhando, seu idiota. Eu cobraria com juros os dois meses
que passei comendo sorvete e assistindo séries ruins. Se quisesse a minha
ajuda, ela custaria muito.
Sem saída, ele apenas assentiu.
Cristopher, duro como um totem islandês (existem totens na Islândia?),
observou em silêncio os dois se despedirem e partirem. Quando sumiram,
larguei a mão dele e afundei o rosto nas palmas, feliz e meio chocada com
aquela reviravolta.
Ai, meu Deus.
Eu queria chacoalhar as pernas, bater palmas, sair dançando pelo
restaurante. Mal conseguia acreditar nos últimos minutos e no
descaramento daqueles dois!
— O que é um “namorado”? — A voz dele interrompeu minha alegria.
Olhei-o por entre os dedos, constrangida por enfiar mais uma vez o
pobre coitado nos meus planos.
— Namorados são… bem, como amantes — respondi sem pensar. —
Não havia namoro na sua época?
— Não sei se entendi direito o que é isso, mas quando havia interesse de
um homem por uma dama, ele fazia a corte com a aquiescência dos pais da
moça.
— Entendi. Bem, no mundo atual, fazer a corte se chama namorar.
Ele assentiu, mostrando que tinha entendido, embora as linhas na sua
testa dissessem: "não entendi nada.”
— Olha, Cristopher, me desculpa. Eu deveria ter combinado isso antes,
mas foi algo inesperado. E, uau, mal consigo acreditar nessa reviravolta! —
Soltei uma risada tensa. Minha face queimava e o corpo inteiro parecia
injetado por uma onda morna de adrenalina. — Se estava preocupada em
como pagaria as contas do mês, tcha-ram…! Aí está a solução! Vou prestar
serviços para a minha empresa incompetente e, de brinde, te…
Interrompi a frase a tempo.
Te esfregar na cara daquelas pessoas.
— Enfim... — Voltei a encará-lo, novamente bem-humorada. — Antes
de sermos interrompidos, perguntou como podia retribuir a minha ajuda,
certo? Em como poderia me recompensar?
— Sim. Estava pensando que talvez o solstício seja parte do estranho
encantamento que me trouxe para cá. Então, o óbvio é que preciso de um
lugar para ficar até lá.
— Lugar para ficar você já tem: comigo. E acho que encontrei uma
forma de você me recompensar sem fazer esforço.
Voltei a coletar o canudinho do refrigerante com a boca, vendo aqueles
olhos lindos de águia se afiarem sobre mim como se eu fosse um doce
coelhinho.
— E como eu faria isso?
— Fingindo ser meu namorado pelas próximas semanas.
13
FAKE DATING
ISLA

A Arte, como Lilli costumava descrever, era a incrível capacidade de


falar coisas malucas sem titubear. Como soltar, por exemplo, palavras
como “frutado", “intenso" e “marcante” durante uma prova de vinhos
sem entender bulhufas do assunto ou discutir a crise no Oriente Médio
usando frases tiradas das redes sociais. No fundo, era um tipo de blefe. Um
em que precisávamos fazer olhando para a cara de alguém sem hesitar,
gaguejar ou avermelhar.
Eu era muito experiente na Arte.
— Está sugerindo que finjamos um cortejo? — ele questionou, confuso.
— Um de mentirinha. Mas não se preocupe, será apenas até você partir.
— Não sou homem de fingir. Não gosto de mentiras.
— Não precisa contar nenhuma mentira, homem de lata, apenas não me
desmentir. Você fica na minha casa até a gente achar um jeito de te devolver
para o século XVI e, em troca, encena um relacionamento romântico
comigo quando estivermos na frente de outras pessoas.
Parecia simples e fácil, mas só de verbalizar a ideia, meu estômago deu
três cambalhotas.
— E durante esse tempo eu lhe ofereceria o meu nome e a minha
proteção? — Cristopher perguntou, sério.
Meu coração chegou a perder uma batida. Por que essas palavras
antigas eram tão românticas?
— Exatamente.
A garçonete entregou nossa comida, mas ele não respondeu de
imediato. Ficou um bom tempo investigando o kebab, cutucando-o com o
garfo. Não sabia se seu silêncio era porque estava pensando na proposta ou
na comida. Pelo jeito, o aspecto do sanduíche não lhe agradou.
— Isso é estranho. Preciso saber o que é antes de colocar na boca.
— O nome disso é sanduíche. Não tinha pão e carne na sua época?
— É claro que tinha.
— Pois então. A parte de fora é um tipo de pão. O resto é carne. Antes
de colocar na boca, mergulhe nisso aqui. — Apontei para a maionese verde
que vinha de acompanhamento.
Mesmo com toda a explicação, achei melhor mostrar como se fazia:
segurei firme o kebab e espremi o tempero sobre a confusão de carne e pão
antes de dar uma grande mordida. Ao me ver comer com as mãos,
Cristopher repetiu o gesto.
Assim que colocou a delícia turca na boca, fechou os olhos.
— Hum — gemeu, rouco. — Nunca experimentei nada assim antes.
— É turc…
Parei a tempo. Melhor não contar a procedência do sanduíche. Nem
conseguiria contar nada, a propósito: o homem mastigava com os olhos
fechados e minha mente poluída foi inundada por cenas.
Cama.
Eu e ele.
Violinos ao fundo e camisinhas se amontoando no chão.
Limpei a garganta, voltando a comer.
Ele terminou de mastigar, abaixou o sanduíche e limpou a boca na
manga da camisa. A maionese verde presa na barba fez um baita estrago no
linho, mas nada que o sangue de dezenas de turcos já não tivesse feito.
— Só não entendi uma coisa, Isla — ele questionou. — Por que,
exatamente, precisa de mim? Pelo que percebi, são aqueles dois que
precisam de você. É como se você estivesse numa batalha em um campo
mais alto. A vantagem é sua.
Mesmo sem compreender a referência, sabia que ele perguntaria isso em
algum momento, e tinha a resposta na ponta da língua. Abaixei a comida
com calma e limpei a boca no guardanapo antes de me ajeitar na cadeira e
inclinar o corpo para frente. Se havia algo que mulher traída gostava de
fazer, era reclamar sobre traição.
— Eu sei que eles precisam de mim na empresa, mas o meu problema
com Daniel vai além do emprego. A idiota aqui — apontei os polegares
para mim —, não resistiu aos cortejos dele, acreditando ser tudo verdade, e
acabou indo para cama com o babaca.
As sobrancelhas de Cristopher se uniram, acionando meu sistema de
decifração de códigos masculinos. Era melhor eu ser mais direta.
— Ir para cama é fazer sexo — resumi.
Pelo brilho em seus olhos e a boca levemente aberta, eu o tinha
chocado. Intrigado-o, talvez o atiçado um pouco. Aquele olhar podia
significar muitas coisas.
— Ele… desvirtuou você e se casou com outra?
De todas as coisas que pensei há pouco, aquele significado não passou
nem perto da cabeça. Cristopher fechou brevemente os olhos, e quando vi
seu rosto avermelhar, tive certeza de que ele não estava nada atiçado, e sim
irritado.
— Como ele pode ter manchado assim a sua honra? Como seu amante,
ele espera que eu lute com ele, não?
Se seu tom não tivesse saído tão nobre e solene, eu teria rido. Mas
estava preocupada, na verdade.
— Lutar? Você diz…
— Com a espada! — Cristopher respondeu como se aquilo fosse óbvio.
Jesus, quem estava em choque agora era eu. Aquele homem de dois
metros de altura e disposição para a guerra estava se oferecendo para limpar
minha reputação com sangue?
Quase suspirei apaixonada, se não tivesse soltado uma risada antes.
— Cristopher, se for lutar com todo homem que manchou a minha
honra, e estou sendo criativa em imaginar o que raios isso significa, teria
que simular outra batalha como a que enfrentou em 1565. A fila é longa.
— Está fazendo troça de algo muito sério, Isla de Malta — ele me
advertiu.
— Ir para a cama com alguém antes do casamento é absolutamente
normal na nossa época, Cristopher. Então não crie caso, está certo? O
problema é que Daniel é o dono da empresa onde eu trabalhava —
expliquei.
Ele olhou para a mesa como se precisasse amparar os olhos em algo
sólido e fixo enquanto sua mente girava. Aquela informação devia ser a
coisa mais louca do mundo. Uma mulher dormindo com vários homens?
Faço ideia de como me via, agora.
Esperei que ele perguntasse que tipo de pessoa eu era, mas Cristopher
pareceu estar indignado com outra coisa.
— Na minha época, muitos senhores se deitavam com as suas servas
sem se importarem com a honra ou o que seria delas depois que fossem
desvirtuadas. Você era a criada, e ele, seu patrão. Nunca gostei de homens
assim. São desonrados. Ele não deveria ter encostado em você.
— Eu não era uma criada — expliquei com toda a paciência. — Era
uma funcionária. E ele não era o meu senhor.
— Mas ele usou o poder que tinha para seduzi-la, não? E vocês
fornicaram.
Eu deveria parar de rir, mas não conseguia.
— Sim, nós fornicamos. Muito. — Voltei a comer, observando os olhos
do guerreiro faiscarem.
Enquanto eu mastigava, Cristopher estudou novamente meu rosto.
— Você o amava?
Quase engasguei ao ouvir aquilo. Precisei dar um bom gole no
refrigerante antes de responder:
— Não, claro que não o amava. Nem um pouquinho.
Ele parecia atento. Perdido, mas atento. Quem fornicava sem amor?
Culpada.
— Se não o amava, por que então…
— Porque eu quis, e ele também. Ninguém consegue me obrigar a nada,
ainda não percebeu?
Soltando um suspiro de alívio, ele largou a mesa e jogou o corpo para
trás na cadeira.
— Então não entendo. Se não o ama e fornicou porque quis, qual o
motivo de querer mostrar que está com outro homem?
Inclinei o corpo sobre a mesa, mirando aqueles belos olhos de geada.
— Olha, Cristopher, não sei como um homem tão ligado a honra e
regras morais poderia entender uma mulher traída do século XXI, mas
garanto que nem os otomanos conseguiriam nos derrotar em um dia ruim.
Não é por amor que estou fazendo isso; tudo que quero é irritar o cretino do
meu ex. — Ergui as palmas para cima. — Poderia ser para que ele
repensasse antes de descartar outra mulher? Sim. Ou para colaborar com as
suas futuras úlceras de estômago? Também, mas na verdade isso não
importa. O meu ganho é a desforra, é dar o troco, me vingar. Não ficarei
mais sábia, menos tola ou mais esperta depois disso, só me sentirei melhor
em vê-lo tão por baixo quanto a mosca do cavalo do bandido. Claro que
espero uma pequena compensação pelos meses trancada em casa, chorando
no escuro, e isso conseguirei cobrando um preço exorbitante pelo trabalho
que me pedem.
Enquanto Cristopher ouvia minha catarse, suas sobrancelhas grossas
iam se fechando. Talvez ele não entendesse muita coisa do mundo atual,
mas certamente entendia sobre dinâmicas humanas, porque elas eram pura
repetição.
Mulheres traídas no século XVI = mulheres traídas do século XXI.
Ele afastou o prato, e sua voz se aprofundou em um tom de conselho:
— Conheço bem a traição, Isla de Malta. Apenas acho que, se ela foi
tão grave, deveria negar-lhes ajuda, e não distribuir sorrisos.
— Aí que está o problema, bonitão. Adoraria cortar fora as bolas de
Daniel em um duelo, mas os dias de hoje pedem diplomacia. Malta é uma
ilha minúscula. Só existem três ou quatro lugares onde posso trabalhar e,
em todos eles, os donos são amigos. Quando Daniel sair de cena, sumir na
lua-de-mel ou me esquecer, entrarei em contato com seus concorrentes. Até
lá, deixei todos pensando que estou com um projeto meu.
— Não entendi. Projeto?
— É... um tipo de missão pessoal — expliquei como consegui o meu
sonho original. Pensar no meu projeto era tanto constrangedor quanto
dolorido, e não gostava de falar disso. — Eu estava juntando dinheiro para
montar minha própria empresa, mas aconteceram algumas coisas e deu tudo
errado, para variar.
Ele não entendeu nada, para variar também.
— Não entendo metade das coisas que diz, mulher.
— Em outras palavras, quero ser dona de um lugar onde eu vou mandar,
entendeu? Um negócio que seja só meu. Onde eu serei a senhora do lugar.
As sobrancelhas loiras franziram.
— E você pode fazer isso?
— Por que não poderia?
— Porque é uma mulher, oras.
— Século errado, homem de lata. Agora, as mulheres podem o mesmo
que os homens.
— Se pode, por que não monta, então?
Suspirei, olhando para o magnífico mar azul de Malta.
— Porque estou falida e sem ideias.
Ele terminou de mastigar e limpou a mão nas calças. Fiz uma nota
mental de que precisava apresentá-lo aos guardanapos o mais rápido
possível.
— Compreendi o seu dilema. Espero que eu deixe de ser um problema
em breve — avisou, solene —, porém, até lá, a ajudarei como puder. Tudo o
que me pediu como retribuição foi que a acompanhe pela cidade e finja ser
seu amante?
— Basicamente, sim. E é namorado, a propósito.
Ele ignorou a palavra.
— E o que sugere que eu faça para convencer outras pessoas de que
somos isso?
Cocei a cabeça, sem ter certeza de como me expressar sem causar uma
síncope no homem. Eu podia dizer que ele precisava apenas aparecer aos
lugares comigo, mas por que não transformar a mentirinha em algo maior?
— Ah, coisas românticas — disse por fim, erguendo um ombro como se
só tivesse pensado nisso agora. — Andar de mãos dadas… trocar abraços e
beijos. Fingir estar apaixonado. Pode me tratar da forma como faria com a
mulher que fosse desposar.
Um brilho estranho cruzou o olhar cristalino. Imediatamente, senti a
pele do rosto esquentar. Não querendo complicar as coisas, estendi as mãos
à frente do corpo e assegurei:
— Beijos de mentirinha, claro. Selinhos bastam.
— Selinhos? Como lacres de cartas, mas em miniatura?
Neguei, sem coragem de rir outra vez.
Arrastando as mãos nas calças e arrepiada dos pés à cabeça, pensei em
como mostrar o que era um selinho. Procurei ao redor até achar um casal
mais adiante, sentado na areia, logo abaixo do deque do restaurante. O beijo
casto que trocavam acontecia sob a luz fraca do fim de tarde, romântico e
doce a ponto de enjoar. Um formigamento sem precedentes tomou meu
corpo, começando do abdômen e se espalhando para a cabeça e os pés.
— Selinhos são basicamente aquilo — disse de uma vez, tentando não
imaginar demais.
Assim que Cristopher se virou para onde apontava, o casal parou de se
beijar de forma doce e começou a se atacar sobre a areia. Como se não
houvesse mais ninguém ao redor, a garota empurrou o peito do cara em
direção à esteira e então se sentou sobre o colo dele, dando uma remexida
suspeita com o quadril.
Arregalei os olhos, vendo o rosto de Cristopher avermelhar.
Para meu desespero, a mocinha se afastou, arfante. Quando achei que a
cena constrangedora havia chegado ao fim, ela voltou a mergulhar a boca
na do namorado como se quisesse desaparecer dentro do coitado, e minha
lição sobre selinhos foi por água abaixo.
De perfil, vi o pomo de Adão de Cristopher se mover para cima e para
baixo antes dele finalmente se voltar para mim e assentir.
— Selinhos. Acho que entendi como funcionam.
14
E ISSO, CRISTOPHER, É CHOCOLATE
ISLA

— E isso,Oquerido Cristopher, é um Shopping Center.


gigante loiro não conseguia acreditar no que seus olhos
mostravam. Precisei empurrá-lo para frente para desobstruir a entrada, e
pedir que parasse de olhar para a porta giratória porque estávamos
chamando atenção. Era hora de vestir aquela criatura perfeita com algo
menos arcaico do que um camisão de linho encardido de sangue e calças
imundas. As botas também iriam para o lixo.
— O que é tudo isso? — ele perguntou completamente chocado,
girando ao redor.
— Isso é o motivo pelo qual pessoas hoje entram em guerra, meu bem.
Coisas e objetos. — Como Cristopher não se movia, o puxei pela mão em
direção à rede mais barata de roupas que havia no centro comercial. — Se
vamos apresentar você como meu namorado, precisa parecer normal. Não
que seja anormal, mas como você é maior que a maioria das pessoas, tem
cicatrizes da cabeça aos pés e parece um ogro saído da floresta, precisa se
vestir como um homem desse século, sabe? Sei que no casamento te
apresentei como um ator, mas pensei em dizer que é lutador de MMA e que
está fazendo uma ponta, que tal? Eu poderia inventar que é dublê, mas o
povo da produtora entende tudo de filmes e te encheria de perguntas que
não saberia responder. Além disso, nós temos que...
— Se quiser que entenda o que diz, precisa falar mais devagar, għasel
tiegħi. 1
— O quê? — Estranhei a palavra. Como ele não explicou, apenas exalei
e concordei com o que entendi. — Você tem razão, vou falar mais devagar.
Assim que saímos da confusão de pessoas, soltei sua mão. O que era
uma pena, porque ela se moldava deliciosamente à minha, e segurá-la me
trazia uma imensa sensação de proteção.
O guerreiro olhou para os lados e para cima, girando o corpo.
— Por que há música ao redor?
— A música está saindo daquelas caixinhas pretas lá no alto — Mostrei
para ele. — E o motivo é porque os shoppings centers descobriram rápido
que somos infelizes, então eles se especializaram em nos deixar alegres.
— Alegres? Como pode ser agradável caminhar esbarrando entre
pessoas e ver coisas atrás de vidros?
— Acredite, tem gente que acha isso bastante curativo.
Ele chacoalhou a cabeça em censura, decerto achando o futuro um lugar
sem sentido. Segurei um sorriso, chamando-o para me seguir.
Entramos em uma imensa rede que costumava ter roupas baratas,
atravessando o quase infinito labirinto de estantes, prateleiras e cabides
giratórios entupidas de roupas. A vontade de cobri-lo de peças de marcas
era grande, mas com a conta bancária zerada, teríamos que nos contentar
com a Chique-Por-Menos.
— Você precisa de duas ou três camisas, uma calça jeans e um tênis…
— Comecei a caminhar pela seção masculina, avaliando as opções. —
Talvez uma jaqueta, só para jogar sobre o ombro e parecer descolado.
— Desco o quê?
— Moderno. Antenado. — Ao ver sua testa franzir um pouco mais,
desisti de explicar. — Quer saber? Esquece e deixa comigo.
Cristopher se virou para as araras entupidas de camisas de todas as
cores. Passando os dedos pelos tecidos coloridos, me encarou levemente
espantado.
— Quantos alfaiates esse lugar emprega? E por que as pessoas não
buscaram suas encomendas?
Eu poderia contar sobre Ford, linhas de produção e o excedente que a
revolução industrial permitiu, caso tivesse prestado atenção às aulas. Como
não prestei, optei pela saída mais fácil:
— Eles empregam muitos alfaiates.
Sem dar chance de ele retrucar, peguei uma camisa de botões de cor
azul e um jeans escuro que achei que poderiam caber naquele par de pernas
longas e grossas. Desde que o encontrei caído no gramado, tentava evitar
olhar para elas, na esperança de não me contagiar e começar a babar a
qualquer momento. Os membros eram compridos e pareciam toras cheias
de músculos, algo incrivelmente atraente para uma mulher com um fraco
por pernas como eu. Desviei o olhar sabendo que era melhor não dar corda
aos pensamentos tolos.
— Vista essas aqui. Devem caber, pelo que notei.
— Quer que eu tire a roupa aqui, no meio das pessoas?
— Meu Deus, claro que não. — Puxei-o para o provador masculino,
olhando com cara feia para umas adolescentes que haviam parado a
tagarelice para observá-lo.
Abri a cortina da cabine e enfiei Cristopher lá dentro. Sua presença
tomou todo o espaço, deixando apenas um filete para eu entrar e pendurar
as roupas. Ao colocar as peças no cabide, senti o calor do corpo masculino
às costas e o hálito morno próximo ao meu pescoço.
Jesus, livrai-me da tentação. Arrepiada da cabeça à sola dos pés, deixei
a cabine de prova me atrapalhando com o restante das coisas nas mãos.
— Troque de roupa e não tire antes de me deixar ver, está bem? — pedi,
fechando a cortina. Precisei me sentar na antessala para recuperar as forças
das pernas ou cairia no meio da loja.
Um minuto depois, a cortina se abriu e fui obrigada a segurar a
respiração. Cristopher estava pronto para ser massacrado pelas mulheres
afoitas desse século. As coxas robustas estavam apertadas sob o jeans, a
cena fazendo uma série de imagens rodopiarem pela minha cabeça. Os
ombros mal cabiam dentro da camisa clara, e não tive nem mesmo coragem
de olhar para eles duas vezes.
A única palavra capaz de descrever esse homem era “deslumbrante”.
Cristopher era bonito como só um deus devia ser.
Ele afastou o cabelo claro da frente do rosto e caminhou descalço até a
poltrona onde eu o aguardava. Que merda. Olhe só aqueles pés. O que eu
faria com a minha queda por pés bonitos? Por bundas redondas que uma
calça bem cortada favorecia? Por ombros largos e cinturas estreitas?
Meu Deus, eu tinha um queda por tudo o que esse homem mostrava!
Limpei a garganta, espantando os pensamentos indecentes.
— Ficou ótimo. Muito apresentável.
— Não gostei. Por que a calça é assim? — Ele moveu as pernas,
afastando um dos joelhos do outro. Depois, se agachou, as coxas ficando
mais delineadas pelo tecido grosso.
— Assim como? — Olhei para um lugar acima de sua cabeça, tentando
não imaginar como seria passar a mão por aqueles músculos ou imaginar se
haveria sobre eles muitos pelos macios.
— Essa calça é estranha. Apertada demais, áspera e a minha roupa não
estica desse jeito. Que raio de tecido é este?
— Deve ser o elastano. Eu mesma me espanto às vezes em como
elásticos são maravilhosos.
Cristopher não conhecia elástico, e definitivamente não compartilhava
do meu sentimento.
— Não gostei. — Desconfortável, ele ajeitou a camisa azul-clara na
frente da calça, incomodado com algo. — Linho não estica, nem o couro
cede dessa forma. Isso não está bom.
— Deixe de bobagem, está ótimo, e não existe apenas linho e couro no
mercado de roupas. Hoje em dia há mais tecidos do que você pode
imaginar. Por exemplo, o nome desse é jeans e virou o uniforme do
mundo. Acostume-se.
— Pois esse seu “jeans” tem um enorme problema — ele rosnou.
Coloquei as mãos na cintura, descendo os olhos por ele, procurando
onde esse problema estaria.
— Não consigo ver o que está falando.
— Não sei como fechá-lo — Cristopher confessou sem jeito, puxando a
camisa de botões para baixo.
— Como assim?
Ele trocou o peso entre as pernas e pousou a mão na frente da virilha,
batendo de leve os dedos no local.
Ah, sim, minha saliva desceu pesada.
— Não sei que tipo de amarração é esta. Ela é feita de metal. Além
disso, é fria em contato com… com as minhas partes sensíveis. Sem falar
que parece um tanto perigosa.
Achei melhor incluir algumas cuecas na lista de compras.
— Tudo bem, entendi o problema. Você está falando do zíper, e sim,
pode ser perigoso — falei, evitando olhar para a braguilha aberta. — Posso
te ajudar mais tarde com isso. Quero dizer... Vou mostrar como funciona e
te deixar fechar sozinho. Mas só depois que comprarmos cuecas.
Cansado de todas as novidades e da discussão sobre tecidos, Cristopher
não perguntou o que eram cuecas, apenas assentiu em silêncio. Como se
quisesse se certificar que o zíper era algo normal, ele migrou o olhar da
roupa até o meio da minhas pernas. Seus olhos eram da exata cor da camisa,
e precisei dar um passo para trás para não suspirar como uma adolescente
tola. Sei que a observação era para entender o zíper, mas o olhar me deixou
frenética. Saí atrapalhada da antessala, ordenando que tirasse a roupa e
trouxesse tudo com ele.
A caça por peças baratas de cuecas e meias levou algum tempo, o que
acabou sendo cansativo. Já fora da loja, entreguei as sacolas para
Cristopher. Seria um desperdício não usar toda aquela força para algo tão
simples.
— Agora vou te levar a um lugar que amo. Quero que experimente uma
coisinha antes de voltarmos para casa.
Se ele retornaria em breve para a Malta de 1565, precisaria levar
algumas boas recordações do futuro. A melhor delas talvez pudesse ser
adquirida ali, na minha cafeteria preferida. Essa era uma memória que eu
poderia dar sem correr o risco de colocar meu coração em jogo.
Assim que chegamos ao local e nos sentamos em uma mesa de canto,
pedi dois cafés. Enquanto Cristopher observava tudo, espantado e curioso
por qualquer coisa que aparecesse, apontei o celular para o QR Code e
acessei o cardápio.
— Qual o tamanho da sua fome? — perguntei, mas ele não me ouviu.
Com um foco impressionante, o guerreiro acompanhou uma mulher passar
com um cachorrinho na coleira. Ao se virar para mim, estava com o olhar
vago, como se o bicho ou a cena lhe trouxesse uma montanha de
lembranças.
— Cristopher? — A minha voz pareceu despertá-lo. Acompanhei o
cachorrinho desaparecer, gingando atrás da dona, e voltei a olhá-lo. Seu
semblante parecia diferente.
— Desculpe, o que perguntou?
— Se você está com fome.
Ele negou.
— Quer dividir alguma coisa doce, então? Adoro o bolo de chocolate
com calda quente daqui.
Como ele apenas deu de ombros, pedi uma fatia e duas colheres. Logo
que o servente se afastou, retomei a conversa:
— Você parece um pouco desanimado. Aconteceu alguma coisa?
— Estava pensando no passado, só isso.
— Tem alguma coisa a ver com o cachorro que passou? Deixou um
esperando em casa?
Ele negou, devagar. Quando achei que ia mudar de assunto, o homem
ergueu os olhos cheios de dor.
— Tive um, algum tempo antes dos turcos aportarem. Ele não era
exatamente meu, era só um cachorro que alimentava quando estávamos
treinando no campo.
— E o que aconteceu com o bichinho?
No momento em que Cristopher hesitou, me arrependi de ter feito a
pergunta.
Ele disse por fim:
— Recebemos ordem para matarmos todos.
Abri a boca, em choque.
— Vocês mataram todos os cachorros da ilha? — A ideia me fez
paralisar.
— Não participei disso — ele se defendeu. — Nem deixei que tocassem
no meu. Levei o cão para o interior e o soltei, esperando que sobrevivesse
ao que viria.
Eu mal conseguia esconder o horror daquilo.
— Isso é horrível, Cristopher. Eu sinto muito.
Ninguém melhor do que ele sabia disso. Esfregando as mãos no rosto,
murmurou:
— Quando se inicia um cerco como aquele, sem data para acabar, a
comida é racionada. E mesmo quando controlamos bem, não tem para todo
mundo. Alguns fizeram como eu e soltaram os animais, mas ninguém
esperava revê-los de novo. Apenas torcíamos para que o fim deles não fosse
muito cruel.
O bolo chegou, mas eu havia perdido a fome. Nem sempre eu conseguia
mensurar o tamanho do sofrimento que Cristopher devia ter passado, mas
aquele não era um desses momentos. Ali, conseguia sentir muito da dor e do
desespero que ele sofreu.
— Quando vi a mulher e o cão, entendi melhor a diferença entre os
nossos tempos. Não sei viver no seu mundo, mas preciso confessar que o
meu parece dolorosamente bárbaro em comparação.
Levei a mão até a dele, apertando-a. Mais uma vez, Cristopher pareceu
desconfortável como o toque.
— Vocês defenderam esse continente com tudo que tinham. A própria
configuração da Europa seria outra, se não tivessem sido tão valentes.
Quem sabe não foi a resistência de vocês que mudou o rumo da história?
Ele não respondeu, ficou apenas olhando para a minha mão sobre a sua.
Então, para a minha surpresa, moveu os dedos e os entrelaçou aos meus. O
gesto foi um misto de agradecimento pela minha empatia e a percepção
interna de que talvez não fôssemos tão estranhos assim. Aquele era o
primeiro contato que ele não repelia.
— É bom saber que Malta está em paz e não há mais necessidade de
lutar.
— Mas nós lutamos. — Observei seu polegar comprido alisar o dorso
da minha mão. Quando os pelos do braço se ergueram e deixaram claro o
que eu sentia, retirei os dedos de debaixo dos dele e cortei o contato. — Por
outras coisas, claro… Por direitos iguais, melhores condições de trabalho e
educação…
— Só que sem armas.
— A tinta substituiu os canhões. — Sorri para ele.
Deixei de lado que as telas substituíram a tinta, e que em outros cantos
do mundo ainda se derramava muito sangue pelos mesmos motivos de
antes, mas era hora de comer bolo, não de continuar falando daquilo.
Depois do choque de realidade, eu precisava de açúcar.
Assim que deu um gole no café com espuma, a expressão de Cristopher
mudou. Não sei se ele conhecia café, mas definitivamente não sabia que
café podia ficar gostoso assim. Ele também quase suspirou quando enfiei
uma colherada de calda quente e espessa de chocolate escuro em sua boca,
e a impressão era de que estava degustando o néctar dos deuses.
— Santo Cristo, isso é simplesmente delicioso.
— Sim, é. — Enfiei uma colher na boca também, gemendo de prazer. A
cena deve ter agradado o homem, porque o fez abrir um meio sorriso.
— Como se chama?
— Chocolate. Ele talvez seja a melhor iguaria do nosso tempo.
Mulheres matam por ele uma vez por mês, cuidado.
Seu sorriso se alargou, os olhos brilhando com divertimento.
— Tão bárbaras e tolas. Eu mataria uma vez por dia por algo assim.
Enfiei outra colher na boca, adorando conhecer o seu humor. E isso me
fez pensar no que ele fazia antes de ser um guerreiro defendendo São Elmo.
— O que fazia antes do Cerco? — perguntei, curiosa. — Trabalhava
com algo? Morava onde hoje é Valetta?
Cristopher voltou a olhar para a fatia do doce, remexendo na calda com
a colher.
— Não. Eu morava no forte mesmo, com os outros cavaleiros.
— Mas e quanto à sua vida particular? O que fazia nas horas vagas?
Ele não me entendeu. Pelo jeito, os conceitos de horas vagas, lazer e
vida particular lhe eram completamente estranhos. Cristopher então me
contou que sua vida era a Ordem, e os outros cavaleiros, seu mundo. Ele
lutava, rezava e ensinava iniciantes. Não havia sábados e domingos de
folga, dias de passeio, banhos de mar ou viagens para outros lugares. A
única coisa que conhecia era a vida no forte, a eterna vigília do mar e o
treinamento de futuros guerreiros.
— É estranho pensar em uma vida como a que vocês levavam —
comentei enquanto raspava o restinho do bolo do prato. — Hoje em dia
trabalhamos para ganhar dinheiro e ter momentos de prazer.
— E o propósito? Se o soldo é tudo que importa, como alimentam a
alma?
— Alma? — respondi, muito séria. — Não temos mais isso nos dias de
hoje.
Quando encarei Cristopher, ele tinha os olhos arregalados. Como não
entendeu a ironia, precisei explicar que estava brincando.
— Trabalhamos por dinheiro, Cristopher. Para ter bastante dele e
guardá-lo quando sobra. Alguns sortudos conseguem isso fazendo o que
adoram, mas a maioria de nós só quer, mesmo, pagar os boletos. — Pensei
brevemente a respeito, parando a colher no ar. — Talvez isso explique
porque inventamos remedinhos para nos deixar felizes e esquecermos que
somos tristes.
— Vocês inventaram remédios para ficarem felizes?
Como ele parecia absolutamente perplexo, contei em poucas palavras
sobre o que tínhamos hoje nas farmácias e para o que remédios eram
usados. Cristopher ficou bem interessado pelo assunto quando mencionei a
depressão. Comparamos as informações que tínhamos e descobrimos que
no século XVI eles chamavam a doença apenas de tristeza profunda — um
desencanto pela vida, uma desesperança.
— Conheço alguém que teve isso — ele murmurou para o prato. —
Meu irmão. Ao contrário de mim, ele deixou a Ordem um ano antes de a
ilha ser atacada. Estava desiludido com a guerra e com o mundo. Nas vezes
que fui visitá-lo, seus olhos…
— Pareciam não ter mais vida? — falei, lembrando da minha mãe, que
sofreu com a depressão por anos antes que o câncer a levasse.
Suas sobrancelhas pesaram sobre os olhos, e um suspiro profundo
escapou dos seus lábios.
— Achávamos que sua fé havia desaparecido. Que ele fora amaldiçoado
por largar a Ordem, porque não via mais motivos para lutar.
— Deus não amaldiçoa ninguém, muito menos por falta de fé ou quebra
de juramentos. — Ergui o braço e fiz o pedido de um novo bolo. Desta vez,
uma fatia do de coco com recheio de creme. — Algo aconteceu para ele ter
ficado assim. Um conjunto de coisas, talvez.
Cristopher fez silêncio até a nova fatia de bolo chegar.
— Eu culpei a feiticeira — confessou, me observando enfiar uma colher
de cobertura cremosa na boca e soltar um gemido deliciado. — Meu irmão
parecia melancólico antes, mas ela piorou seu estado.
— Deus castiga quem culpa as mulheres por coisas que não fizeram,
viu? — brinquei com a boca cheia.
Cristopher balançou a cabeça para os lados em reprimenda.
— As blasfêmias que você profere, mulher.
— Uma bruxa não causa depressão em ninguém. Houve outro motivo,
aposto.
Meio a contragosto, o homem bufou, admitindo:
— Embora déssemos a vida pela Ordem, alguns de nós… — ele limpou
a garganta, tentando escolher as palavras — ...tinham famílias nas vilas.
Aaron era um desses. Ele se casou jovem com uma moça e, algum tempo
depois, ela engravidou. Infelizmente, nem ela, nem o bebê sobreviveram ao
parto.
— Sinto muito por isso.
— Aconteceu anos antes do Cerco. Lutamos em Trípoli depois disso, e
meu irmão não parecia abalado pela morte deles… Até que, algum tempo
depois, tudo mudou. Aaron começou a dizer que havia perdido o propósito
de servir a Deus e questionar os motivos das batalhas. Pedi que não largasse
a Ordem, mas ele não me ouviu. Nosso comandante ofereceu então uma
saída. Havia um posto no canto mais remoto da ilha, onde meu irmão
continuaria como um dos nossos, porém isolado. Ele aceitou sem pensar
duas vezes. Mudou-se para lá, me deixando sem notícias por muitos meses.
Soube então que havia acolhido uma estrangeira e estava vivendo com ela.
Quando ouviu sobre o ataque, ele retornou a São Elmo e pediu para lutar ao
meu lado. Aaron poderia ter ido para outro lugar, mas quis ir para lá. —
Cristopher pausou, olhando para o pingente no peito. — Algo me diz que a
mulher teve algo a ver com a decisão.
— A “bruxa?” — perguntei para me certificar.
— Sim — grunhiu.
— Não acha que ela pode ter ajudado seu irmão a melhorar da tristeza?
— Não — Cristopher negou, duro. — O sentimento o fragilizou. O
único amor que nos torna melhores é o que sentimos pela nossa causa.
Sua certeza me fez rir.
— E o que acontece quando a causa desaba? Quando ela se mostra
errada ou vazia? — perguntei.
— Jamais entenderá sobre o que eu falo, Isla.
— Talvez, mas tenho o direito de discordar, não? Acredito que o amor
pode nos tornar melhores, sim. A maioria das lutas que conheço só vale a
pena quando acontece por amor.
— Ninguém luta por amor.
Passei o dedo no creme acumulado no cantinho do prato, discordando
mais uma vez. Milhares de pessoas saíam de casa todos os dias para lutar
por amor. Elas batalhavam pelos filhos, pelos parceiros, pelos amigos, ou
até mesmo pelos desconhecidos. Por trás de uma causa defendida, de uma
ideia utópica bonita ou de um projeto grandioso de vida, sempre havia um
motivo pessoal.
— Pelo que lutava, se não por alguém, Cristopher?
— Esse alguém era um povo. Nosso próprio povo.
Pensei por um tempo a respeito, achando a resposta abstrata e
impessoal. Não havia nada de impessoal nos humanos; nem nos de hoje,
nem nos de ontem.
— Acho que nossos motivos são mais particulares do que isso.
— Lutamos por Deus — ele respondeu, taciturno. — Para sermos úteis.
— Nunca é só religião, ou “utilidade”. Acho que tem mais, você só não
quer me dizer.
Catei o creme no canto da torta e levei até sua boca. Ele aceitou sem
reclamar, arregalando os olhos ao sentir o sabor do coco. Não pude deixar
de sorrir.
— E quer saber? — continuei. — Elegemos motivos e razões para
deixar uma causa nobre, mas a verdade é que sempre lutamos por amor.
Nem que seja amor por nós mesmos.
Dessa vez, o sorriso de Cristopher saiu completo.
— Recordo-me de ter ouvido, quando nos conhecemos, que não
acreditava no sentimento.
— Eu menti, admito. Saio espalhando essas coisas por aí para parecer
mais esperta do que sou, mas a verdade é que tenho muita fé no amor. —
Sorri de volta. — E acredito em cavaleiros que chegam para nos resgatar
com suas armaduras reluzentes também.
Ele me fitou por alguns instantes, como se mil pensamentos lhe
cruzassem a mente.
— Todas as mulheres do futuro são como você, Isla de Malta?
— Acho que não. A maioria concorda que cavaleiros bonitões causam
mais problemas do que resolvem... — Levantei a mão para chamar o
garçom, considerando pedir agora o cheesecake de framboesa. — Porém,
romântica como eu, conheço poucas. Considere-me uma dama à moda
antiga, que ainda procura o seu cavaleiro de armadura reluzente.

1 Meu bem
15
MALDITOS OTOMANOS
CRISTOPHER

E ra fascinante ver a noite cair e a cidade se iluminar. Compreender que


as velas haviam sido substituídas por aqueles estranhos bulbos
luminosos que capturavam as fogueiras sem serem quentes. Como
tudo respondia tão facilmente a botões colados às paredes, e nada mais
mergulhava na escuridão total. Pena que o céu, antes tão estrelado, agora
desaparecesse sob tanta claridade.
Que mundo estranho aquele havia se transformado.
Girei a pedra da feiticeira na mão, sentindo-a fria. Durante a tarde, ela
esquentara ao ponto do intolerável enquanto via Isla comer aquela coisa
chamada cheesecake.
Era difícil entender por que a garota mexia comigo. Por que motivos me
flagrava encarando-a, sentindo o peito bater de um modo diferente toda vez
que sorria. Isso nunca tinha acontecido antes.
Havia, claro, urgências que nem o juramento à Ordem ou o mais estrito
treinamento conseguia domar. Eu não as negava, porque eram insistentes
demais e porque aprendi cedo que podiam atrapalhar a mente de um
guerreiro. Nossa fidelidade era destinada à Igreja, aos nossos Grãos-mestres
e às missões, mas nas épocas de paz, eu e Aaron cavalgávamos até as vilas
da costa e nos deitávamos com mulheres vindas da Sicília. Era prazer em
troca de moedas, satisfação de necessidades indomáveis.
Contudo, depois do anúncio sobre a chegada dos otomanos, enterrei
qualquer tipo de necessidade autoindulgente. Não pensei em mulheres, em
bebedeiras com os amigos ou no prazer de um bom banquete. Calei
completamente os anseios do corpo em busca da concentração para a
guerra. Percebia, agora, que não havia covas profundas o suficiente para
esconder certos desejos. Eles existiam, e estavam descontrolados no
momento.
Talvez fosse esse o poder que a bruxa de fala macia exercia sobre
Aaron. Meu irmão tinha seus desejos descontrolados, e ela possuía o que
ele desejava, o que o acalmava.
“Você perceberá quando encontrar a mulher certa”, disse Aaron certa
vez, em meio a uma de nossas brigas acaloradas. “Quando isso acontecer,
entenderá as minhas escolhas.”
Era óbvio que meu irmão confundira sentimentos com urgências do
corpo. E, se eu não domasse minha mente nesse momento, cairia na mesma
cilada.
Ainda ouvia a água jorrar dentro do quarto de banho quando um sino
ecoou pela casa. O som desagradável não vinha dos irritantes aparelhos da
cozinha ou das máquinas estranhas espalhadas em todos os cantos, mas de
algum lugar acima da porta.
— Maldito mundo barulhento. — Caminhei até a entrada, ouvindo o
badalar outra vez.
Abri-a de rompante, irritado por não ter um segundo de paz. Dei de cara
com um homem com o punho erguido, pronto para bater na madeira. Ele
tinha cabelo curto e olhos profundos e escuros, e trazia um ramalhete na
mão, próxima ao peito.
Pelo cenho franzido e semblante confuso, não esperava me encontrar
ali.
— A… Isla está?
Olhei-o de alto a baixo.
— Está.
O recém chegado não se moveu, e nem eu. Passou-se um tempo até o
homem limpar a garganta e perguntar:
— Hum. Posso falar com ela, então?
— Não — respondi, seco, barrando sua tentativa de enxergar a casa ao
esticar o pescoço. Ele não podia entrar porque a dama estava no banho. Não
poderia permitir tamanho desrespeito.
— Você é amigo da Isla? Nunca te vi aqui no prédio.
— Sou seu amante islandês.
As sobrancelhas do homem se arquearam.
— Amante islandês? Não sabia que Isla estava em um relacionamento.
— Ele abaixou as flores, ouvindo o ruído do banho. — Poderia chamá-la,
por favor? Preciso falar com ela.
Sem me afastar um centímetro da entrada, eu o medi. O estranho não
era alto. Seu queixo batia no meu ombro e seu corpo tinha a constituição
preguiçosa dos tempos atuais — braços flácidos de quem nunca manejou
uma ferramenta e barriga redonda de quem estava cheio de vermes. Não
gostei do sujeito, mas não parecia ser um problema caso precisasse jogá-lo
para fora de casa. Ele parecia incomodamente familiar e, ao mesmo tempo,
estranho. Por que estava irritado com a sua presença e com aquelas flores
idiotas?
Como ele não parecia representar um perigo, deixei-o na entrada e
caminhei até o quarto de banho, batendo de leve na porta.
— Isla? Há um homem aqui perguntando por você.
Ouvi o fluxo da água cessar.
— Por mim? Quem?
Olhei para o rapaz no umbral, ordenando em voz alta:
— Apresente-se, estranho.
Aparentemente confuso, o rapaz se inclinou para dentro da casa e
gritou:
— Sou eu, Isla. Mehmed!
— Merda! — ela praguejou de dentro do banheiro.
Mehmed? Um segundo de silêncio se seguiu, e nele, todos os pelos do
meu corpo se eriçaram. Havia ouvido aquele nome corretamente? Mehmed,
a variação turca de Mohammed? Meu coração começou a socar contra o
peito. Eu estava diante de um…
De um otomano?
Meus punhos se apertaram ao lado das coxas, e os olhos correram pela
sala atrás da espada. Meu rugido soou alto:
— Infiel desgraçado! Eu vou matar…
Antes que avançasse sobre a dispensa para pegar minha espada, a porta
do banheiro abriu e Isla invadiu a sala, enrolada em uma toalha e com o
cabelo cheio de espuma.
— Mehmed? — Ela tinha os olhos arregalados em mim, embora falasse
com o invasor. — O que está fazendo aqui?
Com propósito, me movi em direção ao local onde estava a minha arma,
as mãos prontas para o combate. Apontando para mim, ela ralhou:
— Não ouse, Cristopher de Landa! Estamos em 2022!
Para os diabos com os 450 anos que me separavam deste sujeito! Dias
atrás, seu povo dizimou o meu! Matá-lo não traria os meus amigos de volta,
mas honraria meu nome! Avancei sobre os dois com a respiração alterada e
os punhos travados. Se ela não me deixasse pegar a espada, eu dizimaria o
infiel com minhas próprias mãos.
Isla saltou entre nós, e esticando a mão na minha direção, tocou meu
peito com as pontas dos dedos enquanto virava o rosto para o invasor:
— Não respondeu o que está fazendo aqui, Mehmed!
O homem não parecia temer a morte, porque respondeu:
— Senti saudades, Islazinha.
— Isso é um acinte! — Investi contra ele novamente. — Um infiel
cortejando uma maltesa?!
Isla espalmou a mão contra o meu coração acelerado.
— Pare agora, Cristopher De Landa!
— Vou cortar os testículos dele fora! — avisei.
Os olhos de Isla pareciam punhais afiados, e toda a sua postura indicava
estar perdendo a paciência.
— Não, você não vai cortar nada de ninguém.
Encarei-a furioso, apontando para a porta.
— Ele lhe trouxe flores!
— Isla, esse maluco disse que é seu amante! — O tal Mehmed apontou
da porta para mim. — Você me falou que estava solteira!
Isla exalou alto, ajeitando a toalha na frente do corpo. Aquilo era
indecente de muitas maneiras, mas também uma distração tentadora. Os
olhos do atrevido amansaram quando ela se virou e o encarou. O
movimento fez nossos corpo se aproximarem de forma íntima, todas as
curvas dela se moldando de leve ao meu corpo.
— Isso não é da sua conta, Mehmed. Já conversamos sobre o assunto.
— Assim você parte meu coração, boneca.
— Boneca? — Rosnei de onde estava.
— Pare de drama, Mehmed. Ouvi muito bem o seu coração 'se partindo'
noite passada. — Isla apontou para o teto, mas não entendi o gesto. — E
Cristopher não é meu amante, e sim namorado. — Ela pareceu dizer aquilo
para mim.
Os olhos escuros do abusado encontraram os meus, e devolvi a encarada
de forma ferina e ameaçadora.
— Pois avise ao seu namorado que preconceito religioso e xenofobia
são crimes, ok? Quem ele pensa que é para me chamar de “otomano
infiel”?
— Ele tem problemas com nosso idioma. Dê um desconto.
Isla olhou para mim com cara feia, mas a ignorei.
O homem espreitou por cima do ombro de Isla para mim.
— Não tem medo do que pode te acontecer, idiota? Brincadeira ou não,
posso chamar a polícia, que tal?
— Ele é inofensivo, Mehmed, não se preocupe.
— Inofensivo? — Eu me meti na conversa. — Isso é um ultraje!
Isla enfiou o cotovelo nas minhas costelas e voltei a me calar.
— Mehmed, é melhor ir embora. Eu te ligo qualquer hora dessas, está
bem? — Ela se aproximou da porta, acalmando o otomano com a voz doce
e tranquila. — Ando um pouco… ocupada. E você também, pelo que ouvi
noite passada. A propósito, troque aquela cama, pelo amor de Deus.
Vi em seguida, e com absoluto horror, o infiel dar um passo na direção
dela e… tentar beijá-la? Pelo sangue de Cristo, era hoje que um infiel iria
para o inferno!
Antes que eu pudesse colocar minhas mãos nele, Isla o empurrou para
longe.
— Sabe que não pode me beijar, Mehmed. Não depois de concordarmos
que aquilo foi um lapso e que não aconteceria de novo.
— Assim você me machuca, Islazinha.
Chacoalhei a cabeça, incrédulo por testemunhar tamanho horror.
— Posso machucá-lo, se quiser, Isla — me ofereci, mas ela negou.
— É melhor você ir. Está deixando meu namorado nervoso. — Ela
empurrou o maldito para fora de casa.
Antes que eu o agarrasse pelas roupas e o jogasse escadaria abaixo, o
maldito ergueu um dos dedos, o do meio, e disse algo em uma língua que
desconhecia. Não retribuí o gesto, pois não me despediria de um inimigo.
Isla o dispensou com um aceno e o empurrou para fora.
Assim que bateu a porta, furiosa, levou as mãos à cintura.
— O que foi essa cena, Cristopher de Landa? Você ia atacar o homem
sem motivo?
— Como pode defender um turco? Você é uma maltesa! — Apontei
furioso para a porta. — Eles carregaram cinco mil de nós como escravos!
Decapitaram mulheres e crianças, deixaram o mar de Malta vermelho por
meses!
Ela ergueu as mãos para o alto.
— Isso aconteceu séculos atrás! O mundo mudou! Você não viu? Ele
me trouxe flores!
— Eles não chegaram à ilha com flores nas mãos — revidei, ofendido.
— No que o seu mundo se tornou? Em um lugar de paz e amor?
A expressão dela amansou ao me ouvir dizer aquilo.
— Com certeza, não. Mas evoluímos e perdoamos algumas coisas. Por
exemplo, não chamamos mais muçulmanos de infiéis ou ameaçamos
decapitar pessoas. Hoje respeitamos a religião dos outros como desejamos
que façam com a nossa.
— Tanta luta e tantas mortes para ver uma de nós beijar um dos
inimigos! — Ergui as mãos, inconformado.
Isla revirou os olhos outra vez. Por que ela fazia isso? Eu não entendia
aquele gesto, mas estava aborrecido com a minha própria incapacidade de
parar de observá-la. Por que os olhos a buscavam a todo o momento, ou me
importava quem sua boca beijava?
O que estava acontecendo comigo?
— Olha, Cristopher, os turcos são um povo maravilhoso. Eu mesma já
estive em Istambul duas vezes, e sou viciada nas suas novelas. Então, pela
última vez: eles não são invasores.
— Istambul?
— Constantinopla — ela se corrigiu, soltando uma risada. — Nem
acredito que consegui achar essa informação nos meus paupérrimos
conhecimentos de história.
— Você, uma maltesa, esteve em Constantinopla sem ser escrava?
— Mal podia acreditar nos meus ouvidos.
— Pare com isso de malteses e otomanos. O mundo não se divide mais
dessa forma, somos uma aldeia só agora. Se continuar, acabará se enfiando
em problemas, entendeu? Vou repetir: não existem mais otomanos e nem
guerras entre nós. Precisamos deixar no passado o que precisa ficar no
passado, está bem?
Assim que finalizou a frase, Isla pareceu se arrepender do significado
das palavras, mas era tarde demais. A questão é que eu também achava o
mesmo. O que vinha do passado deveria permanecer no passado, porque
não havia mais lugar para nós neste mundo.
Isso só me fez ter mais vontade de voltar para casa, onde o mundo era
simples e eu conseguia entender como ele funcionava.
16
AMANTE ISLANDÊS
ISLA

— C ontinuo sem entender, Isla. — A voz de Cristopher ecoou do


banco ao lado. — Se um senhor de terras me dispensasse após
treinar seus homens, e mais tarde me chamasse porque não conseguiu
treiná-los da mesma forma, eu teria lhe enviado uma carta carregada de
insultos.
Estacionei o carro na vaga que costumava ser minha e suspirei, olhando
para a Luminar. Antes de ser demitida, estacionar ali de manhã me trazia
felicidade, mas agora só sentia o estômago arder. Eu estava voltando a esse
lugar apenas pelo dinheiro, e nada mais.
— E se houvesse pouquíssimos outros senhores de terra na região? —
questionei, procurando meus óculos escuros no porta-luvas. — E, por falta
de dinheiro, precisasse aceitar o trabalho do mesmo senhor de terras idiota?
— Eu morreria de fome. Minha honra e orgulho são inegociáveis.
Coloquei os meus ray-bans e o encarei.
— Bem, no meu mundo, tudo é negociável. Mas não se preocupe,
bonitão, nem a minha honra ou o meu orgulho estão sendo negociados. Só
não quero morrer de fome. Preciso de dinheiro para comprar tortas e bolos
para um certo hóspede que não para de devorá-las.
— O que é isso? — Ele apontou para os meus óculos, esquecendo toda
a questão de honra e orgulho. Segurei a risada, porque Cristopher tinha a
concentração de um esquilo.
— Serve para tapar a luz do sol. Quer um? Acho que tenho um
sobrando. — Voltei a remexer na bagunça do porta-luvas, detestando sentir,
assim inclinada sobre ele, o perfume bom que exalava da pele masculina.
Três dias com ele sob o mesmo teto e ainda não tinha me acostumado
àquele cheiro inconfundível.
— Não sei se quero. E para o seu conhecimento, posso viver sem tortas.
— Mas concorda que ambos precisamos dos xampus de pêssego, certo?
Cristopher assentiu, passando os dedos pelo cabelo e fazendo as mechas
loiras, agora hidratadas, reluzirem sob o sol. Podíamos dispensar os bolos,
mas definitivamente não o xampu.
Entreguei-lhe o par de óculos esquecidos por algum ex e saí do carro.
Ao dar a volta no veículo, a visão das pernas perfeitas dentro do jeans
apertado roubou meu fôlego. Se Cristopher já era um desbunde em trapos
manchados, como um homem moderno estava espetacularmente bonito. Os
óculos adicionaram o charme final, dando um ar misterioso ao esconder os
olhos tão claros.
Caminhamos até a entrada, lado a lado.
— Entendo que precise de moedas para sobreviver, e já explicou haver
pouco trabalho na ilha — Cristopher erguia e abaixava as lentes escuras na
frente do rosto, achando graça na diferença de luz —, mas não entendo o
meu papel nisso. Você diz que não, mas age como uma dama apaixonada.
— Rancorosa — eu o corrigi. — Dama rancorosa, não apaixonada.
Entramos no vasto saguão de mãos dadas, como combinado. Quando
me aproximei da recepcionista, Cristopher largou minha mão para examinar
uma mesa de aço polido, como fazia com todo metal que lembrasse o da sua
espada.
— Isla? — Christa, a recepcionista e velha amiga, saiu de trás do balcão
para me abraçar. — O que está fazendo aqui, meu bem?
Enquanto me segurava, cochichou entre risadas no meu ouvido.
— Esse lugar virou um hospício depois que foi embora. A nova chefe
misturou as pastas com o planejamento dos próximos filmes, apagou
arquivos, alterou datas. Ninguém sabe como ajeitar a bagunça, ou entender
o que ela fez.
— Nada novo sob o sol, então? — perguntei quando nos largamos.
O olhar de Christa voltou-se para o homem alto ao meu lado.
— Nada novo? Mais ou menos, né?
Virei-me para Cristopher, pronta para fazer as apresentações.
— Christa, esse é Cristopher, meu…
— Amante islandês — Cristopher completou, curvando-se em uma
mesura arcaica.
— Namorado — eu o corrigi.
Os olhos da recepcionista procuraram os meus, divertidos.
— Ele deve ser o bonitão que Giulia mencionou. Nada mau, hein,
garota. — Ela encostou o cotovelo na altura da minha costela.
— Pois vou te contar um segredinho: não somos namorados de verdade
— confessei. — Só estou ajudando Cristopher a voltar para casa e
aproveitando para espezinhar Danny um pouquinho.
A jovem recepcionista segurou uma risada.
— Ah, que pena não estarem juntos. — Ela olhou para o cavaleiro ao
meu lado e pude ver coraçõezinhos escaparem de seus olhos. — Mas quer
saber? Eu faria o mesmo. Narcisistas não toleram ver que foram superados.
Ótimo plano. Ele pode ficar melhor se, depois da vingança, você engatar em
um namoro de verdade com ele — cochichou.
Avermelhando dos pés à cabeça, mudei de assunto.
— Amiga, preciso subir. Fui chamada para apagar os incêndios. Deseje-
me sorte.
— Boa sorte e muita paciência. — Ela retornou ao seu lugar atrás do
balcão. — E não esqueça de me contratar quando sua empresa estiver
funcionando — ela avisou.
A minha empresa — que sonho. Aquela mentira, no entanto, eu
guardaria para mim, porque era doloroso admitir que não havia empresa
alguma.
— Pode deixar.
Colhi a mão de Cristopher, trazendo-o comigo. Enquanto esperávamos o
elevador (“que invenção inútil”, de acordo com o guerreiro), ele perguntou
qual era o meu trabalho ali. Explicar a minha profissão para pessoas atuais
já era difícil; para um homem recém-saído da era medieval, então, era
duplamente complicado. Contei como produtores atuavam nos bastidores da
indústria cinematográfica, resolviam pendências das filmagens, faziam
contratos, arrumavam figurantes e atores para filmes, controlavam tempo e
orçamento das produções. Ele não entendeu nada, mas ouviu atentamente.
Assim que chegamos ao meu antigo andar, cruzei os corredores
conhecidos cumprimentando antigos colegas. A maioria achou minha
demissão uma loucura, enquanto outros entenderam que não dava para ficar
trabalhando onde haviam me traído. Honra e orgulho, ao que parecia,
influenciavam decisões ainda hoje, sim. Cem por cento das pessoas que
trabalhavam ali acreditava, entretanto, que eu tinha dado a volta por cima.
Que estava feliz e realizada.
Isso deveria me deixar um pouquinho satisfeita, porém não deixava. Por
que não estava feliz? Por que me sentia, na verdade, mal com a mentira da
empresa e do namorado fake?
— Não vou demorar, está bem? — avisei a Cristopher assim que o
deixei na sala de espera. — O trabalho é ridiculamente simples, e até agora
não acredito que estou sendo mais do que bem paga para ajeitar o que
estava pronto. — Suspirei. — Sempre fiz tudo rápido e muito mais tarefas
do que devia, até perceber que fazer mais coisas em menos tempo só
enriquecia o dono.
— O mesmo dono que a dispensou por achar que outro podia fazer o
seu trabalho. Eu entendo.
— Quem diria, alguns dias no capitalismo e já temos um cavaleiro com
consciência de classe. Olhe, ali fica o café. A máquina funciona com botões
e copinhos no lugar de xícaras. Divirta-se.
Entrei em reunião com Daniel e Giulia em seguida. Durante todo o
tempo, mantive os olhos do lado de fora, através da parede de vidro, no
homem que me aguardava no sofá. Ele folheava uma revista atrás da outra e
se inclinava na direção da TV quando via algo interessante. Conseguiu até
mesmo fazer um café, depois de nove tentativas frustradas e muitos
copinhos jogados no lixo, sem falar nas dezenas de sorrisos que arrancou de
mim.
Por um instante desejei ter mais tempo para ficar com aquela criatura
curiosa. Apresentar as coisas mais simples do meu mundo e vê-lo arregalar
os olhos, assombrado, como se elas fossem pequenos milagres. Vê-lo sorrir
das coisas invisíveis para mim.
Eu gostava da sua presença. Sua tara por açúcar me divertia, assim
como a absoluta indignação pela existência do micro-ondas, ou o ódio pelo
apito que só parava quando tirávamos a comida de dentro. Eu apreciava
outras coisas também, como a incompreensão pela existência de um robô
que aspirava a casa (“Por que precisa disso, se tem mãos para limpar?”) e o
assombro diante da geladeira (“Que ideia formidável! Só perde para a
privada.”) Era adorável, assim como seu aborrecimento pelo som da
campainha, do telefone e da musiquinha da lavadora de roupas.
Gostava, especialmente, do seu esforço em compreender nosso tempo
de paz — embora tenha explicado muitas vezes que essa paz era provisória
e apenas nessa parte do mundo. Mas que esta era, sim, uma janela de
serenidade em uma história terrivelmente atribulada de um mundo caótico.
Ele não acreditou quando relatei sobre as duas guerras mundiais, o
holocausto, a colonização da África e a escravidão nas Américas — e me
mostrou que, independentemente de estarmos no passado ou no presente,
ainda repetíamos os mesmos erros, conseguindo ser cruéis das maneiras
mais criativas.
Nem todas as conversas giravam em torno de desgraças: também
compartilhei nossas conquistas. A liberdade de amar quem queríamos e a
revolução feminina. As condições de trabalho de hoje, que, embora longe
de ideais, ainda eram melhores do que as que conheceu. A criação de uma
ideia de infância, antes inexistente, e tantas novas regras e leis, que
permitiam com que vivêssemos de maneira civilizada em um planeta com
oito bilhões de pessoas.
E enquanto mostrava este mundo para ele, via um novo se abrir para
mim, e me encantava com as novidades como se as visse pela primeira vez.
— Isla, está me ouvindo? — A frase de Daniel me despertou. Voltei a
olhar para as pastas espalhadas sobre a imensa mesa de reuniões,
assentindo, entediada. — Você não tira os olhos do islandês.
Foi Giulia quem respondeu por mim.
— Ela está apaixonada, amor. Quem pode julgá-la?
Meu ex-chefe traidor juntou os papéis com uma expressão de desdém, e
eu só consegui achar graça.
— Às vezes acontece tão rápido que não dá para evitar, não é mesmo?
— Olhei para os dois, que se calaram, um pouco desconfortáveis.
Pelo resto da manhã, reorganizei as planilhas e baixei alguns arquivos
do meu computador particular. Era impressionante o que a estupidez,
associada à presunção, conseguiam fazer: na ânsia de dar uma nova cara ao
meu trabalho, o destruíram por completo. Sorte deles eu anotar tudo e
nunca esquecer a data dos compromissos. Com paciência, ajeitei todas as
planilhas de modo que até uma criança entendesse e as compartilhei com a
secretária, para que ela pudesse auxiliar a chefe no futuro. Poderia ter
terminado tudo naquela mesma tarde se estendesse um pouco as horas como
costumava fazer, mas escolhi dividir o trabalho em duas etapas. A segunda
seria feita em outra ocasião e realizada no horário normal de trabalho.
Aquilo custaria um pouco mais à firma, é claro.
Assim que terminei de organizar tudo, saí da sala de reuniões e fui até o
escritório de Daniel, onde entrei sem bater. Ao me aproximar da sua mesa,
estendi o papel com o valor da segunda visita sem o menor culpa no
coração. Se a Luminar quisesse informar ela mesma aos antigos clientes as
novas datas e o que estava acontecendo, que fizesse. Porém, se preferissem
que eu assumisse o trabalho, teriam que pagar.
— Quando ficou tão mercenária, Isla? — ele reclamou, já ligando para
o financeiro.
— Se quiser que Giulia assuma daqui, basta dizer. Não é tão difícil
assim.
O olhar que recebi foi de profundo desgosto.
— Não precisa desmerecê-la só porque ela não entende o trabalho.
— Desmerecê-la? Jamais. — Ajeitei a bolsa no ombro, pronta para
partir. Quem a colocou no meu lugar foi você, portanto só há um tolo nessa
história.
— Ela é curiosa e quer aprender, mas ainda está… meio verde no
assunto — Daniel continuou com os eufemismos que não me interessavam.
— Já tem o meu contato e o valor da minha hora. Quanto mais verde ela
for, melhor para mim, Daniel.
Ele nem rebateu.
— Pode passar no financeiro para pegar seu cheque — avisou a
contragosto. — Quando pode voltar?
Abri minha agenda vazia, fingindo procurar um horário.
— Hum, as coisas estão caóticas essa semana. Acho que trabalharei de
casa, se não se importar.
— Faça o que tiver que fazer. Só resolva essa bagunça, pelo amor de
Deus.
Deixei a sala de Daniel e rumei para o financeiro, sentindo a felicidade
correr borbulhante pelo sangue, como frisante. Acenei para os roteiristas em
suas salas comunitárias, para o pessoal de produção de vídeo e para a toda
poderosa Maya, nossa diretora de casting. Embora não fôssemos amigas,
sei que ela apreciava meu trabalho e foi a primeira a mostrar desagrado
quando Daniel colocou Giulia no meu lugar. Maya estava ao telefone, mas
sorriu quando acenei.
Finalmente, com o cheque gordo na bolsa, saí para procurar meu
namorado islandês. Quando saí da sala de reuniões, ele não estava mais me
esperando, mas imaginei que tivesse ido perambular pelos escritórios.
Depois de enfiar a cabeça para dentro de cada sala e não o encontrar, desci
até o primeiro andar. Cristopher não teria saído do prédio sem mim. E não
tinha como desaparecer, não é? Bem, eu esperava que não.
No grande salão do andar, alguns atores faziam entrevistas e
preparavam-se para as cenas. Não quis interromper a equipe para perguntar
se viram um homem deslumbrante perdido por ali. Já estava pronta para dar
meia-volta e subir de novo quando ouvi um bate-boca no pátio atrás da
produtora. Reconheci imediatamente a voz rouca que se elevava sobre as
outras.
— Ai, meu Deus — gemi. Cristopher, o que aprontou dessa vez?
Corri até o local, paralisando em frente à cena. Três homens estavam
parados no meio do gramado, espadas de latão na mão, prontos para uma
batalha fictícia. O problema é que entre eles também estava Cristopher.
Cheguei perto de um dos caras que trabalhava com dublês, sem saber se
interferia ou se assistia o meu cavaleiro em seu ambiente natural.
— O que está acontecendo?
O diretor de cena mal se virou ao responder:
— Estávamos ensaiando a coreografia quando esse cara simplesmente
parou tudo para nos corrigir.
Cristopher estava ao lado de um rapazote, ajeitando a arma em sua mão.
— Está segurando a espada de modo errado. — A voz de trovão soou,
séria. — A espada precisa ser uma extensão dos dedos, do braço. Ela é uma
ferramenta, não um enfeite. — Ele mostrou ao rapaz como se fazia, sob o
olhar espantado do menino. — Mas por que essa arma está tão leve? Precisa
treinar com uma mais pesada, ou não conseguirá matar ninguém!
— M-matar?
— Claro! Por que outra razão espadas existem?
— Acho melhor parar a explicação. — Dei um passo na direção do
grupo, mas meu colega segurou meu braço, atento ao desenrolar do assunto.
— Deixe-o continuar, Isla, está interessante. O conhecimento dele em
lutas com espadas é notável.
Por longos minutos ouvimos Cristopher ensinar o menino como manejar
a arma, de que lado dela deveria descer, como em uma batalha não havia
giros ou muito menos piruetas. Ele mostrou então ao grupo como fazer
certo.
Havia uma naturalidade incrível em seus gestos e no jeito como
ensinava. Mostrou a precisão das batidas, e a economia de movimentos para
não desperdiçar energia. Ele derrubava cada tentativa de ataque com golpes
secos, curtos e diretos. Devia ser assim uma luta que levava à vitória: fria,
precisa e certeira. Não havia alma ao redor que não estivesse perplexa com
o espetáculo.
— Vocês seriam mortos no primeiro minuto — Cristopher sentenciou, o
rosto mostrando todo o desgosto. — Não podem lutar assim se quiserem
deter um inimigo!
O diretor finalmente se meteu.
— E como devemos fazer, sabichão? Saberia nos ensinar?
— Sabe manejar uma espada? — Cristopher devolveu a pergunta, e o
diretor assentiu. Ele pediu que um assistente segurasse sua prancheta e
subiu no tablado. Recostei em uma pilastra com os braços cruzados, curiosa
ao ver os homens se colocarem um de frente para o outro.
Os dois tomaram posição. Cristopher pegou um dos cabos de vassoura
com que estavam treinando e o diretor optou pela espada de latão. Meu
colega avançou, e sem nem se mexer, Cristopher derrubou a lâmina, que
caiu fazendo barulho.
Uma segunda tentativa, e a luta durou menos de dois segundos.
O diretor insistiu sem mudar a situação. Enquanto lutava, entre um
golpe e outro, Cristopher indicava onde estavam os pontos fracos do ataque.
Como jamais deveriam se abaixar ou girar para acertá-lo, onde deveriam
manter as vistas, as pernas, a outra mão. Que a força do ataque deveria estar
não só no braço, como nas pernas também. Que devia prestar atenção ao
redor sem perder o foco na luta, e como cravar de maneira mortal uma
espada em um corpo — evitando ossos e mirando em lugares “moles”.
Recordei que ele tinha me contado que treinar os aspirantes a cavaleiros era
grande parte do seu trabalho antes do Cerco. Cristopher era um professor e
mostrava toda a sua perícia naquele momento.
Ao final, suado e cansado, Pedro, o diretor, se aproximou de mim.
— De onde saiu seu namorado, Isla?
Não sei se aquela foi uma pergunta retórica ou ele aguardava mesmo
uma resposta. Na dúvida, apenas sorri, ainda um pouco chocada pela crueza
e virilidade da cena. Minha respiração estava suspensa desde que Cristopher
começou a lutar. Olhando agora para o homem satisfeito com os olhos
pregados nos meus, mal conseguia dizer nada.
Mas conseguia imaginar.
— Ele não gostaria de realizar um teste? — Pedro me perguntou,
enxugando o suor da testa com a camiseta. — Estamos contratando para as
filmagens que começam em setembro.
A frase me fez despertar do estupor por estar diante de um guerreiro em
toda a sua glória.
— Infelizmente, meu namorado parte no fim do mês — respondi.
— Que pena. Ele leva jeito para a coisa.
— Realmente, uma pena. — Uma voz feminina soou de atrás de mim.
Maya se aproximava com os sapatos fazendo barulho no assoalho.
Apostava que ela tinha visto a luta da sua sala e sabia, pelo olhar que dirigia
a Cristopher, que já planejava mais do que uma ponta como secundário para
ele.
— Seu namorado sabe atuar, querida? — a diretora de casting foi direto
ao assunto.
— Tenho certeza que não, Maya.
Ela parou ao meu lado, inspecionando o guerreiro de cima a baixo.
— Um excelente material. O cinema estaria perdendo um talento e
tanto. Converse com ele a respeito. Se aceitar, posso manter o seu islandês
em Malta por mais tempo. — Ela piscou. — Tenho certeza de que gostaria
disso, não?
17
NAMORADOS TAMBÉM FAZEM SEXO
ISLA

T ump-tump-tump.
O sacolejo da cama no apartamento de cima ia acabar me
enlouquecendo. Não porque Mehmed trepava (pouco me importava
com ele), mas porque o barulho me lembrava que pessoas faziam sexo, e eu
queria muito estar na categoria de pessoas, hoje.
Qual era o meu problema? Chacoalhei a blusa, tentando secar a rodela
de suor debaixo do braço. Com toda a desgraça que acontecia na minha
vida, eu não deveria nem estar pensando nisso. Só que não podia fazer nada
contra os desejos do corpo. Agora que tinha arrumado finalmente um meio
de pagar as contas e, de quebra, desfilar com um belíssimo cavaleiro na
frente daqueles idiotas, as necessidades davam as caras. Eu devia estar
plena e tranquila, quieta e focada, e não… cheia de pensamentos errados.
Fechei o laptop e me levantei, caminhando até a porta. O som da TV
mostrava que a novelinha turca continuava passando — a punição por
Cristopher ter quase matado meu vizinho —, porém não ouvia mais nada.
Foi o rumo da conversa pouco antes de me deitar que tinha me deixado
nervosa desse jeito. Ela tinha começado bastante inocente, com Cristopher
pedindo para que eu explicasse o que namorados faziam, e eu enumerando
as coisas que podiam acontecer: namorados davam as mãos, falavam um
com o outro diversas vezes por dia e se beijavam. Tudo muito inocente até
que a conversa degringolou: ele perguntou qual seria a diferença, então,
entre namorados e amantes, e por qual motivo eu não gostava que ele se
apresentasse como a segunda categoria.
Nervosa, acabei respondendo que amantes basicamente faziam sexo.
— Namorados não fazem sexo? — ele questionou.
Começando a suar frio, respondi:
— Todo mundo faz sexo nesse século, Cristopher, sendo namorados,
amantes ou só conhecidos. O sexo acontece o tempo todo.
Não sei de onde tirei aquilo ou por que diabos simplifiquei tão mal as
coisas, mas o olhar que ele me lançou fez minhas pernas amolecerem. Antes
que algo mais acontecesse naquela sala, me recolhi e mandei ele fazer o
mesmo. Contudo, constrangida ou não, teria que encará-lo pelo tempo que
restasse até que fosse mandado de volta para o passado — ou para algum
sanatório — com a mensagem de que a 'fornicação' era a regra da nossa era.
Com uma sede que fazia a garganta arranhar, caminhei sem fazer
barulho até a sala, constatando que Cristopher dormia. A TV continuava na
novela, as vozes baixinhas dos atores trazendo um murmúrio calmante à
solidão. Às vezes fazia isso, deixava um programa rolando ao fundo só para
não jantar no silêncio, ou adormecer sem ninguém. Sempre gostei de vozes
ao redor e de casa cheia, por isso decidi que deixaria a TV ligada para
Cristopher também.
Observei o corpo monumental espalhado pelo pequeno sofá-cama
minúsculo. Embora ele fosse um homem que não inspirava cuidado, senti
pena de sua solidão. Talvez tenha sido este o motivo de acolhê-lo e ajudá-lo
em sua busca: eu entendia uma ou duas coisas sobre ser sozinha e não se
encaixar direito no mundo ao redor.
Lá estava a pedra esquentando contra a minha pele, novamente. Você
está fazendo a coisa certa, o sussurro me dizia. Por mais estranha que essa
coisa parecesse, e por mais louca que fosse ouvir uma pedra, eu sabia disso.
Antes de me virar, corri os olhos pela última vez pelo contorno firme do
corpo relaxado no sofá. O homem era mesmo um deslumbre. Ombros
largos, barriga dura, pernas maciças e pesadas. Eu mal conseguia despregar
os olhos daquela perfeição.
Dei meia volta para retornar ao quarto, quando ouvi um grunhido.
— Não.
Cristopher mudou de posição, remexendo-se sobre a cama improvisada.
Os pesadelos estavam de volta.
— Pulem — ordenou angustiado, repuxando o lençol entre os dedos.
Sua expressão ficou tão franzida que parecia sentir dor. Pelo jeito, ele
precisava salvar alguém.
Caminhei até onde estava com cuidado, não querendo acordá-lo no
susto.
— Cristopher? Acorde — chamei, tocando-o no ombro e balançando de
leve.
Ele negou com os olhos fechados, a testa coberta por uma lâmina de
suor.
— É só um sonho, Cris. Vamos, acorde.
Assim que toquei seu ombro com mais firmeza para sacudi-lo, ele abriu
os olhos de rompante. Braços ágeis e fortes me agarraram e soltei um grito,
achando que ia parar no chão. Caí contra o sofá e a cabeça bateu sobre as
almofadas. De um segundo para o outro, Cristopher estava em cima de
mim, peito com peito e coxas contra coxas. As mãos imensas pousaram ao
redor do meu rosto, me obrigando a encarar os olhos abertos e assustados.
Ficamos nos encarando pelo que pareceu uma eternidade. Seu peito
subia e descia contra o meu, as mãos colhendo meu rosto como se
quisessem firmá-lo no lugar. Não sei se ele procurava em mim um alento,
uma resposta ou um inimigo, mas sei que quando seus olhos desanuviaram
e ele me encontrou, acalmou-se.
Toquei a sobrancelha loira com gentileza. O nariz romano, o cabelo
comprido e perfumado. Afastei as mechas da sua bochecha quente e fiz
shhh para tranquilizá-lo.
— Sou eu — murmurei, sentindo a pressão dos seus dedos ao redor do
meu rosto afrouxar.
— Isla?
De um segundo para o outro, o susto virou arrependimento e o peso do
corpo maciço contra o meu amenizou. Seus joelhos acharam espaço entre as
minhas pernas, apoiando-se para ganhar estabilidade e me libertar.
— Por Cristo, desculpe se a machuquei. Eu não tinha…
— Está tudo bem — falei tranquila. — Você estava tendo um pesadelo.
Ele assentiu devagar, sem se mover; pelo jeito conhecia o tipo de coisa
que sonhava.
Suas mãos continuavam ao redor do meu rosto, e embora suas feições
estivessem mais brandas, seu peito mostrava que a respiração ainda estava
acelerada.
Engoli em seco. A pressão da virilha perigosamente próxima à minha
era a prova de que eu não era a única a sentir algo. Tinha percebido o olhar
dele mudar no último dia. Primeiro com as perguntas que ficaram mais
íntimas, depois, com a respiração que se alterava quando passava na frente
das fotografias do corredor. Eu tinha quase certeza de qual delas o deixava
assim.
— Desculpe por acordá-la — ele murmurou, e o hálito que envolveu
meu rosto era de menta. Ele andava comendo a pasta de dente. Tinha dito
para ele parar com isso, mas ele alegou que era gostoso.
— Eu não estava dormindo — respondi, o dedo enrolando uma mecha
loira.
— Dak tajjeb 1.
O tump tump tump no teto havia recomeçado, prova de que Mehmed
estava realmente fazendo aquilo para nos aborrecer.
— Não ligue para o barulho — murmurei, sentindo seu corpo em brasa
se mover um milímetro para perto. — Ele está querendo nos provocar.
O queixo quadrado inclinou-se para o alto. Afastei os joelhos e senti
Cristopher se encaixar em mim sem perceber . O volume que me pressionou
só aumentou o meu calor.
— Ele quer nos aborrecer fazendo barulho?
Soltei uma risadinha, que terminou com um suspiro fraco quando ele
voltou a me olhar.
— Ele quer mostrar que está fazendo sexo.
Ops. Palavrinha errada na hora errada.
Ou a certa na hora certa.
Os olhos claros desceram de volta até os meus, um pouco mais do que
um brilho discreto na escuridão quase total, mas ainda assim, duas lagoas
bonitas e translúcidas. Cristopher deslizou o polegar pela minha face e eu
sorri, tranquila, vendo-o retribuir o gesto.
Por um tempo ficamos imóveis, ele em cima e eu embaixo, ouvindo as
batidas cada vez mais frenéticas da cama de Mehmed contra o assoalho.
Mordi os lábios quando as batidas aceleraram, suprimindo a risada quando
a barulheira terminou com uma longa e interminável sequência de vogais.
Cristopher olhou novamente para cima, talvez como eu, tentando imaginar
se meu vizinho estava atingindo o ápice ou apenas morrendo.
Terminada a loucura, o guerreiro voltou a me encarar e sobre nós
tombou o silêncio que precedia os primeiros beijos.
Minha respiração estava acelerada e cada parte do meu corpo que
tocava o dele, em chamas. Eu queria muito aquilo. Só não sabia se ele
queria o mesmo.
Então o polegar de Cristopher se moveu com cautela sobre a minha
face, passando das bochechas para o queixo, em direção à boca. Quando a
ponta passou perto dos meus lábios, inclinei a boca e beijei-a.
O gesto fez Cristopher interromper a carícia.
Movi gentilmente a cabeça e abri de leve um pouco mais as pernas,
mostrando que estava autorizado a prosseguir, se quisesse. Para começar,
queria beijá-lo, e se isso escalasse para algo mais, não ia reclamar.
Vi o pomo de Adão subir e descer antes do corpo finalmente relaxar
sobre o meu. Foi a minha vez de pressionar o rosto bonito entre as palmas e
puxá-lo para perto. Cristopher veio, manso e incerto a princípio, mas
bastaram nossas bocas se tocarem para seus dedos ganharem firmeza outra
vez.
Minha língua encontrou a sua, quente e pronta. Os fios da barba
roçaram na minha pele disparando uma sensação inédita e crepitante. Meu
coração pulava batidas e meu estômago se contorcia, e, embora as duas
coisas trouxessem caos, também pareciam as reações mais certas. Estar
inteiramente indefesa sob aquele homem era assustador e excitante, algo
que não me lembrava de ter sentido antes. Era uma sensação elétrica e
gelada que irradiava e explodia por todas as minhas partes.
As mãos ásperas encontraram os meus seios sob a camiseta velha,
explorando o seu formato. Não sei que tipo de sexo rude Cristopher estava
acostumado, ou se tocava as mulheres com respeito. Pelo jeito, descobriria
agora, sozinha, sobre o sofá da minha sala.
— Tem certeza? — Sua voz incrivelmente rouca sussurrou no meu
ouvido.
— Tenho — murmurei de volta.
Ele acariciou meu rosto com o seu, negando como se me censurasse.
Bem, eu avisei que não tinha juízo — e ótimo que ele não me escutou.
— Não posso tirar proveito da sua bondade, nem desonrá-la, Isla.
— Não me sinto nada desonrada, Cristopher. Muito pelo contrário.
Seus dedos, antes parados perto da minha boca, me puxaram mais para
perto.
— Não espere que eu recue, então.
— Graças a Deus por isso. Mas terá que usar camisinha, está bem? —
Deslizei o dedo pela barba persistente, torcendo para que ele não se
negasse. Detestaria interromper o maravilhoso curso das coisas.
— Já estou de camisa, mas se quiser que coloque outra, apenas diga e
farei como me pede, Isla — ele respondeu, rouco.
Segurando o riso, desci os olhos até a junção entre nossos corpos, vendo
as virilhas se esfregarem devagar para cima e para baixo.
— Estou pedindo para usar proteção e evitar todas aquelas coisas que
adultos não devem passar para os outros. Além de bebês, é claro.
Ele demorou um tempo para entender o que eu dizia, mas no fim
assentiu.
— Claro. Não posso deixar uma criança no presente. Pode ter certeza de
que me aliviarei fora do seu corpo.
— No mundo atual temos outras formas de evitar essas coisas, e a
camisinha é a mais prática. — Cristopher franziu as sobrancelhas, sem
entender. — É mais fácil mostrar do que explicar. Na hora a gente conversa
sobre isso. — Sorri, derretida.
Ele esboçou algum tipo de concordância, e sua boca desceu mansa pelo
meu pescoço. Como pude ter medo de que fosse rude? Os beijos tinham a
pressão certa. Vinham entrecortados por carícias, mordidinhas,
acompanhados por massagens deliciosas de dedos e mãos. Ele queria
aquilo; me desejava o tanto quanto eu o queria. No entanto, nem em mil
anos imaginaria que as mãos tão quentes seriam tão gentis quantos os
beijos. Muito menos que minha entrega seria tão completa.
De repente, as carícias cessaram e Cristopher me firmou contra o
colchão do sofá, as mãos, procurando freneticamente o zíper da própria
calça. Apoiei o corpo nos cotovelos, sem entender a pressa.
— O que está fazendo?
Ele parou de tentar soltar o zíper e ergueu o olhar afogueado.
— Vamos fornicar, certo?
Nunca, em mil anos, eu teria maturidade para aquela palavra. Comecei a
rir, me sentando de frente para ele e cruzando as pernas.
— E pretende fazer isso sem tirar toda a sua roupa, ou a minha? Sem
preliminares e brincadeirinhas?
Ele piscou, os olhos lindos mais confusos do que quando o conheci.
Não sei que tipo de sexo cavaleiros castos e mulheres “fornicadoras” faziam
no século XVI, mas estávamos no século XXI. Até parece que eu perderia a
oportunidade de vê-lo em toda a sua nudez gloriosa.
— Nesse século, Cristopher, fazemos sexo devagar. Sem roupa.
Aproveitando cada segundo de contato, com carinhos e toques além da
penetração — expliquei já de joelho no estofado, alinhando meu rosto ao
dele.
Seus olhos viravam duas lâminas desconfiadas.
— Devagar como?
Ah, aquele era o meu momento. Deslizei as mãos pelo peito de pedra
sobre a malha macia, suspirando que em breve aquilo tudo se tornaria meu
parquinho de diversões.
— Virou moda dar prazer às mulheres antes do ato final. Horas de
prazer.
— Horas? — Ele parecia chocado.
Assenti, erguendo devagarinho sua camiseta, olhando hipnotizada os
fios escuros que corriam do umbigo em direção ao sul até desaparecerem
sob o cós da calça. As pontas dos meus dedos formigavam de vontade de
tocá-lo. Engoli a saliva antes de continuar.
— As mulheres de agora gostam de atenção em algumas partes
especiais…
— Que partes? — ele perguntou, rouco.
— Todas que você conseguir imaginar.
A camiseta chegou ao meio do peito, e Cristopher ergueu os braços para
facilitar a remoção. O delicioso cheiro de homem, misturado aos perfumes
que ele achou no banheiro, o deixavam tentador.
— Sexo agora envolve língua … — avisei baixinho, com o coração a
mil por hora. — Beijos, carícias e muitas posições diferentes.
Os olhos do homem chegaram a brilhar. Com a camiseta finalmente
fora, um peito largo e liso se apresentou à minha frente, sem um único pelo
no centro. Músculos bem desenhados preenchiam os braços e o peitoral,
enquanto a barriga parecia um projeto urbanístico cheio de blocos e
encruzilhadas. Aquilo era um templo ao desejo. A versão tátil do pecado.
Enfiei os indicadores sob a cintura da calça aberta e forcei
delicadamente a peça para baixo, curiosa. Cristopher ergueu o quadril para
ajudar, e o que revelei ficaria para sempre marcado na memória.
Ele era mais que um homem bem-dotado: estava muito próximo de um
superdotado. O membro, pesado e orgulhoso, erguia-se curvo na minha
direção, as veias inchadas cruzando por toda a extensão cor-de-rosa, da
cabeça à base robusta. Existiam palavras para descrever o que era a visão
daquele homem nu? Provavelmente, não. O mais próximo que consegui foi
pensar que, no templo dos paus, o seu era Zeus.
— O que foi? — ele perguntou, remexendo o corpo como uma criança
inquieta.
Sinceramente, eu estava um pouco chocada com a perfeição e exagero
de homem à minha frente.
— É só que… — Pensei na coleção de membros masculinos que já
tinha visto em meus trinta anos de vida, tentando categorizar aquele. Em
resumo, eu precisaria abrir uma nova categoria. — Não é nada.
Ele saiu de dentro da calça, agora embolada sobre o colchão do sofá, e
sentou-se esplendorosamente nu. Então decidiu agir, erguendo primeiro
minha camiseta com a mesma reverência com que o despi. A peça saiu
rápido, revelando tudo da cintura para cima. Nunca fui magra — nem
quando mais jovem —, e ao contrário de outras mulheres com quem cresci,
nunca quis ser. Eu era larga de ombros e quadril, tinha cintura, coxas
grossas e seios de tamanho médio. Sempre adorei morar na minha pele.
Como nunca tive vergonha do meu corpo nu, perceber seus olhos correrem
por mim, fascinados, foi um completo deleite.
— Isla de Malta, você só pode ter sido enviada pelo diabo para me
tentar.
— Foi você quem foi enviado atrás de mim, homem de lata. — Sorri,
vendo-o se aproximar.
— Você é muito bela. — A voz rouca envolveu todo o ambiente,
deixando o ar morno e de expectativa. — Muito tentadora…
Fechei os olhos e esperei. O rosto bonito desceu até a minha clavícula, e
senti seus lábios macios depositarem beijinhos na pele quente, fazendo
meus mamilos endurecerem. Sua mão traçou caminhos pelos meus braços
arrepiados e pousei as palmas no peitoral marcado por cicatrizes, sentindo o
calor sob elas.
A mão de Cristopher perambulou até o meio entre as minhas pernas. Ele
fazia tudo devagar, como instruí. Abri delicadamente as coxas, permitindo
seu acesso, e os dedos deslizaram pela calcinha úmida, circulando a borda
de renda até chegarem ao centro, onde tudo pulsava. Então, com delicadeza,
senti os dedos calejados afastarem a peça e pararem.
Ele se afastou, e eu abri os olhos.
— As mulheres atuais não têm mais pelos?
Com o peito subindo e descendo, olhei para baixo, onde a carícia
deliciosa havia virado uma exploração curiosa. Ele agora examinava toda a
extensão da minha virilha, sentindo a maciez da pele, perplexo. Eu tinha
pelos, mas eles eram depilados, concentrados apenas ao redor da fenda
íntima.
— Isso é... diferente — ele murmurou quente contra o vale dos seios,
abaixando a boca para capturar um dos montes. Arfei, inclinando o corpo
para trás e experimentando um milhão de sensações simultâneas quando a
língua ardente começou a brincar com a pontinha sensível. O movimento da
boca contra o bico e dos dedos revirando ao redor do meu clitóris era
fenomenal. Delicioso como sonhei e desejei que fosse.
Cristopher me deitou no sofá, se posicionando de lado e acariciando
tudo no caminho. Eu respirava rápido e fundo, sentindo a mão de
Cristopher sob a calcinha, o dedo indicador enfiado lá dentro, os lábios
duros brincando com a maciez dos bicos arrepiados dos seios.
Olhei para baixo, descendo a mão até o membro robusto — a coisa mais
linda que já vi, um verdadeiro monumento à beleza. Ele gemeu quando o
envolvi com os dedos e comecei a brincar com a pele fina e aveludada ao
redor. Minha carícia era experiente, as palmas movendo-se para cima e para
baixo, às vezes descendo para acariciar as bolas pesadas, em outras, a ponta
sensível e úmida. Ele tinha espasmos a cada toque, mostrando uma
sensibilidade deliciosa.
— Que feitiço é esse que roubou meus pensamentos, saħħara 2? —
Cristopher perguntou baixinho, deitando-se em cima de mim. Com a falta
de espaço, tive que largar seu pau e migrei as mãos para as duas bandas
perfeitas da sua bunda. Ele era todo duro e firme, todo músculos de aço. —
O que fez comigo, Isla, que me faz querer fazer tudo devagar?
Estávamos agora deitados de frente para o outro, ele por cima, eu por
baixo.
— Esse é o novo sexo — sorri, derretida. Não eram todos que topavam
fazer as coisas devagar, mas se eu pudesse deixar uma memória na mente
deste homem, que fosse um sexo melhor para as mulheres do seu futuro.
Talvez um dia eu lesse em um livro que o sexo prazeroso para as mulheres
nasceu de um cavaleiro maltês do século XVI, quem sabe?
Imediatamente detestei imaginá-lo fazendo aquilo de forma tão lenta e
sensual com outra mulher.
— Esse novo sexo é invenção sua, dama bonita?
Uma gargalhada sincera borbulhou para fora de mim.
— Se eu disser que sim, vai acreditar? — Continuei a massagem na
bunda perfeita, sentindo o membro se ajustar na minha entrada úmida.
Precisava tanto senti-lo lá dentro. As coxas se apertaram em torno da
cintura estreita e rebolei até que Cristopher chegasse o mais perto do que
podia avançar sem a proteção. Ele soltou um gemido deliciado com o
contato.
— Mentiria sobre isso também, feiticeira? Ainda não esqueci da história
dos banhos serem obrigatórios por decreto do governo.
Soltei outra risada, me acomodando ao corpo musculoso.
— Não. Sobre isso eu não mentiria. Infelizmente, o sexo lento não é
uma invenção minha, mas é uma preferência.
Ele deslizou os dedos pelo meu cabelo, me forçando a encará-lo, então
desceu a boca até bem perto do meu ouvido.
— Vou adorar aprender o que sabe sobre lentidão, mas também quero
mostrar uma ou duas coisinhas rápidas do meu tempo.
— Coisinhas do seu tempo? — perguntei, derretida pela pressão dos
dedos, do hálito de menta, do calor e peso do corpo sobre o meu.
Ele moveu a cabeça devagar assentindo, as mechas longas roçando na
minha pele.
— Mas apenas depois que me mostrar do que gosta.
Mordendo o lábio inferior, empurrei os ombros largos com delicadeza
para baixo, para que descesse pelo meu corpo. A montanha de músculo não
se moveu, uma sobrancelha se erguendo, intrigada. Não sei se o que li a
respeito do sexo nos séculos passados era verdade, que se resumia a
penetração sem muito contato, mas as coisas tinham mudado e isso não era
invenção minha. Por exemplo, cunnilingus era um hit na nova era.
Ele não entendeu meu empurrão discreto.
Olhei para a junção entre as minhas pernas, guiando o olhar e a atenção
dele para a primeira parada da noite. Quando enfim entendeu, o brilho que
cruzou seus olhos só se compararia à brasa mais incandescente de uma
fogueira.
Cristopher abriu minhas pernas devagarinho. Com um movimento de
polegar, removeu o tecido fino da calcinha para o lado e mergulhou a boca
em mim sem cerimônia. enquanto eu agarrava o lençol e arqueava as costas.
A língua áspera percorreu por toda a extensão da vulva, para cima e para
baixo, e então girou, passando a me chupar com a destreza de um…
Gemi de olhos fechados. Eu pensei em “um homem moderno”, mas
seria uma mentira e das grandes. Afinal, nenhum homem dos tempos atuais
me chupou com aquela vontade.
Com três ou quatro movimentos rápidos, ele rasgou a calcinha de renda
e jogou o tecido longe. Então, encaixou minhas pernas sobre seus ombros
fortes, formando um arco com minha coluna. Na posição mais aberta,
Cristopher continuou a chupada. Cada encontro da ponta da língua com a
carne sensível me paralisava com choques. Já não conseguia me manter
quieta ou no lugar. Chamei seu nome com um gemido angustiado de quem
precisava de mais. Segurei-o pelo cabelo e o puxei, esfreguei a intimidade
contra o seu rosto, sentindo as lambidas se acalmarem para recomeçarem
outra vez.
Aquilo era loucura. Eu esperava um homem rústico e inexperiente, e
recebia uma chupada com todo o requinte de um conhecedor do assunto, de
um expert naquilo. Levei a mão aos seios e belisquei meu próprio mamilo,
sentindo a chegada deliciosa do orgasmo.
Ao ver a cena, Cristopher parou de me chupar. Tenho certeza de que
nunca tinha testemunhado a tentativa de acelerar o gozo de uma mulher,
mas gostou do que viu. O sorriso acompanhou quando os dedos voltaram
até meu interior, os olhos brilhantes me observando curiosos por entre as
coxas, as duas piscinas bonitas focadas em mim enquanto ele alternava
entre me penetrar e lamber a pontinha do clitóris.
— Deus, eu vou gozar — avisei, arfante.
Os dedos giraram mais rápido, espalhando a umidade junto com a
saliva, um segundo dedo se unindo ao primeiro. Uma onda elétrica
percorreu meu corpo, começando no baixo ventre e irradiando para cima,
estremecendo cada nervo até o ponto da explosão.
Apertei as pernas contra a cabeça que me devorava, ondulando e
gemendo alto até perder o fôlego e deixar o corpo cair sem forças no sofá.
Aquilo tinha sido incrível. Mágico, indecente, novo para mim.
Cristopher não aguardou eu me recuperar. Subindo sobre o meu corpo,
traçou um caminho sinuoso de beijos e lambidas pela minha pele. Pelo
jeito, ele levou muito a sério quando falei “todos os cantos”. Isso deu tempo
para eu recuperar alguma força, e quando ele se posicionou entre as minhas
pernas, forte e determinado, só tive tempo de pegar uma camisinha na
gaveta da mesa de centro e desenrolá-la sobre o membro rijo como uma
barra de aço — eu precisaria comprar proteção de outro tamanho, se
quisesse repetir a dose. Não cheguei nem mesmo a perceber se ficou
surpreso pelo meu gesto; quando vi, ele já se enterrava em mim, centímetro
por centímetro, numa invasão constante como as ondas do mar que nunca
paravam de avançar. Precisei me segurar nos ombros fortes para não ser
arrastada sobre o estofado pela força das investidas.
O guerreiro me mostrava, agora, como ele fazia sexo em 1565.
Cristopher soltou minhas mãos de seus ombros e as levou para cima da
minha cabeça, onde me prendeu pelos punhos com uma de suas mãos.
Então, arremeteu forte, entrando inteiro, e de uma vez só. Abri a boca para
gritar, mas nada saiu. Só conseguia sentir o preenchimento completo, o
interior ardendo pelo tamanho exagerado do membro, os tremores do
orgasmo anterior dando vez à excitação da penetração total.
As investidas não tinham nada de delicadas, fracas, mansas ou lentas.
Eu era uma mulher experiente, mas aquilo era uma surpresa até para mim.
Se eu não estivesse maravilhosamente lubrificada, seria terra arrasada.
Meus dedos seguraram no encosto do sofá para não chocar a cabeça contra
ele. Os braços poderosos ao meu lado mostravam veias ressaltadas e o rosto
sobre o meu estava crispado, os olhos agora duros me observando.
— Está me sentindo dentro de você, feiticeira? — ele perguntou
entredentes.
Assenti, cordata.
Eu o sentia inteirinho dentro de mim, e a ardência estava me levando à
loucura. A mão que segurara meus pulsos escorregou até minha nuca e me
puxou para um beijo. Seus dentes mordiscaram meus lábios enquanto
continuava a meter forte, e eu comecei a ofegar. Amava a lentidão, mas não
tinha palavras para aquele tipo de estocada primitiva. Era alucinante,
viciante, como um droga que te levava às alturas.
Mulher nenhuma ficava imune àquilo.
Ele agora era o dono do meu corpo. Guerreiro, cavaleiro, rude,
malvado. Meu lado feminista e romântico tinham saído correndo e espiava,
de longe, a festa que meu lado safado estava experimentando.
Jesus amado, eu estava pronta para mais daquele ato de posse cru e
nada refinado. Daquela extensão robusta preenchendo cada micro espaço
dentro de mim.
Cristopher me beijou de língua, profundamente. Respondi agarrando
seu pescoço e obrigando-o a entrar até o fundo, ouvindo os ruídos que
saíam de sua boca se assemelharem a rosnados.
O atrito era divino, a sensação de preenchimento atingindo tudo, a
eletricidade correndo do meu íntimo em direção à coluna, barriga, clitóris.
Seus testículos batiam contra a minha entrada a cada ir e vir. Eu estava
inteira naquele momento, completamente submissa e entregue. Ele
aumentou a velocidade, puxando de leve meu cabelo até que eu arqueasse
as costas para poder chupar um dos meus seios, depois o outro. Exigiu
esforço de cada fibra minha para não gritar quando ele segurou a pontinha
de um mamilo entre os dentes e puxou, arremetendo até o fim ao mesmo
tempo. Eram estímulos demais, prazer demais, que inundava e afogava toda
a sanidade que eu tinha.
Meus músculos começaram a tremer. As coxas perderam as forças e eu
já não respirava mais direito. A pressão se acumulava mais uma vez, crescia
e aumentava dentro de mim, anunciando o novo gozo. A mente esvaziou e
as pernas tombaram fracas de lado. Não conseguia mais organizar as
sensações, só sentir as contrações elétricas me avassalando mais uma vez. O
tremor do resto do corpo indicava que uma segunda onda estava pronta para
estourar sobre os meus sentidos, potente e incontornável, capaz de varrer
para longe tudo que existia no mundo.
Cristopher chegou ao ápice comigo, o estômago retesado, os braços
crivados por veias parados ao lado da minha cabeça, a expressão do rosto
de puro alívio.
Então tombou sobre mim, exausto e trêmulo, ofegando como se tivesse
nadado por quilômetros em mar aberto. Acolhi o corpo quente e suado e o
abracei, sentindo uma mistura de calor, confusão e desejo que me fez
esquecer, por longos segundos, até mesmo onde eu estava.

1 Fico contente
2 Feiticeira
18
REFÚGIO SEGURO
ISLA

— E uhistérica
sabia que vocês tinham dormido juntos! — A voz de Lilli soou
do outro lado da linha. — Que você esteja viva para me
contar é um milagre!
— Deixe de besteira. — Ri baixinho, fechando a porta do quarto. Entrei
no guarda-roupas e me escondi no escuro, tentando não deixar Cristopher
ouvir a conversa. — Foi fora da curva, amiga. Três orgasmos guiando o
homem por todas as minhas posições preferidas sem ouvir um único não.
— Mentira! — A voz de Lilli soou assombrada.
Acomodei a bunda sobre as caixas de sapatos, entre as sacolas de roupa
para doação e as botas de inverno.
— Juro. Praticamente desmaiei no final. Ou acho que desmaiei, não sei.
Simplesmente apaguei de exaustão.
— Conte-me tudo e não esconda nada, principalmente os detalhes
picantes! Pra começar, como ele é lá embaixo?
Levei a unha do mindinho a boca, batendo os pés sobre os sapatos para
controlar meus gritinhos.
— Não tenho palavras. Bem, eu tenho, mas estou com vergonha.
Lilli soltou uma exclamação que misturava vibração animada com
histeria nervosa.
— Você, com vergonha? Isso é novidade! Me fala: ele foi cuidadoso? A
espada dele estava bem trancada no armário? Aquela arma me bota medo,
você sabe!
Tapei a risada com a mão livre.
— Por um segundo achei que estivesse falando de outra espada, juro. A
que ele embainhou em mim.
— Ai, Isla, você é tão quinta série!
Soltei outra risada animada e baixinha.
— Olha, tudo que posso dizer é que foi perfeito, quente como nada
tinha sido até hoje. — Parei de falar e suspirei. — Só tem um problema.
— Vocês não usaram camisinha? Ai, senhor, pense em sífilis, amiga!
Em doenças venéreas e peste bubônica, sei lá, qualquer coisa que possa
estar no combo cavaleiro com unha suja + século XVI!
— Claro que usamos camisinha, Lilli. Além disso, ele é um cavaleiro da
Ordem, se não se lembra.
— Não faço ideia do que isso significa.
— Significa que eles fazem voto de castidade. Bem, pela experiência,
ele não leva os votos muito a sério, mas também não é um libertino imundo.
— Não estou entendendo qual é o problema, então.
— É por isso que estou te ligando. O que eu faço agora? Como vou
encarar o cara que está acampando aqui até o solstício? As coisas
aconteceram sem eu pesar as consequências. Fui no embalo do tesão e me
ferrei, figurativamente.
— Literalmente também, amiga. Mas deixa ver se eu entendi: você deu
para o cara como se não houvesse amanhã e agora está com vergonha de
encará-lo na sua sala?
— Você não teria? Ele me virou do avesso ontem, Lilli. Não sei nem
como vou conseguir sair do quarto, quanto mais olhar em seus olhos.
— Eu teria pensado nisso antes, Isla. Sério, amiga, você deveria
consultar um médico.
— Por causa da noite?
— Por causa da sua impulsividade! Você não consegue pensar no
amanhã!
Arrastei a mão pelo cabelo, bagunçando tudo. Eu sabia disso, só não me
importei!
— Prometo que vou fazer isso, mas depois. O que eu faço agora?
Exatamente nesse segundo?
— Onde ele está?
— Bem, antes de eu entrar no quarto e me trancar, ele estava no banho,
gastando toda a água da ilha. Agora, pelo cheiro, está na cozinha derretendo
creme de avelã no micro-ondas.
— Ele gostou mesmo de banho, né?
— E do creme de avelã. — Sorri, pensando em como ele adorava doce.
— Quanto ao banho, você nunca ia adivinhar como ele adora os meus
produtos de beleza e higiene. Ele cheira inteirinho ao meu xampu de
pêssego. Você não faz ideia de onde anda se lavando com isso.
— Argh, Isla! Acabei de saber agora, não é? — ela resmungou.
Encostei as costas nas minhas bolsas guardadas, apoiando os pés na
parede do armário.
— Ele é cheiroso, bonito, gostoso. E que pegada, puta que pariu. Aquele
homem jurou o corpo para Cristo, mas as coisas que ele fez…
— Credo, eu teria medo de ir para o inferno — Lilli murmurou.
— O que você faria no meu lugar? Resistiria à tentação? Sabe que não
consigo.
— Se eu tivesse uma amazona lindíssima hospedada no sofá-cama da
minha sala, acho que provavelmente teria feito o mesmo.
Rimos juntas por um tempo, com Lilli tentando ouvir mais detalhes da
noite e eu sem condições de encará-lo na cozinha. Então o riso morreu e eu
voltei a ficar séria. Não tinha telefonado para Lilli só para fofocar sobre
uma noite de sexo espetacular. Estava incomodada, sentindo um aperto
estranho no peito sem entender o motivo. Como se lesse o meu silêncio
melhor do que eu, ela falou:
— Amiga, mesmo que o sexo seja fantástico e de virar do avesso, você
precisa entender que ele vai embora. Tudo isso é provisório e sabe disso,
não?
— Sei. — Recolhi as pernas e abracei os joelhos. Eu sabia, só não
estava mais tão afoita para que acontecesse.
— E partir é a coisa certa.
Assenti devagar, identificando direitinho a razão do meu aperto.
Cristopher, embora maravilhoso, em breve partiria.
— Já te disse uma vez, mas não custa dizer de novo. Se sentir que está
se apaixonando, puxe o freio de mão, está bem?
— Combinado — prometi, afastando a sensação ruim. — Não vou me
apaixonar por ninguém.
— Repita a frase, dessa vez com mais vitalidade e confiança.
— Não vou me apaixonar por ninguém. Ele é só uma aventura legal.
Um desvario da nossa cabeça.
— Da sua.
— Da minha. Depois que ele se for, a gente nem vai saber se ele veio
mesmo do passado ou era apenas um maluco amnésico, certo?
Minha amiga soltou uma risada.
— Claro, Isla. Fique bem, ok? Segure as pontas, não se apaixone e… —
ela pausou para que eu absorvesse suas palavras — de forma alguma leve-o
para o seu quarto.
Assenti, prometendo não cometer essa burrice. Meu quarto era a versão
espacial de "não-beijo-na-boca" de Julia Roberts, no filme Uma Linda
Mulher. Meu quarto era o meu refúgio seguro.
Meu quarto era o meu coração.
Quando resolvi aparecer, Cristopher estava na cozinha. Não esperava
vê-lo com o cabelo molhado, o corpo ainda úmido e uma toalha branca
amarrada na cintura. Eu estava sem graça e treinado por longos minutos o
que diria quando o reencontrasse. O que falávamos no dia seguinte com
quem nos deu três orgasmos fabulosos?Sinceramente, eu não fazia ideia, já
que nunca tinha desmaiado na cama de tanto prazer.
Ainda sem coragem para encará-lo, passei pelo homem com um sorriso
sem jeito, abrindo a geladeira para pegar o suco de maçã. Seus olhos me
queimaram as costas.
Ouvi a voz grossa atrás de mim:
— Bom dia, Isla.
Os cantos da boca dele estavam sujos com o creme de avelã. Até as
mechas loiras da barba estavam cobertas pelo doce quente, o que deixavam
aquele Viking nórdico parecendo um menino. Eu já tinha avisado que
açúcar era bom, mas que fazia mal. No entanto, como afastar um homem
dos doces depois que os havia provado? Eu é que não faria uma crueldade
dessas.
Parei do outro lado da bancada, arrumando sem jeito a camiseta curta. A
chaleira elétrica estava acionada e duas xícaras, já com uma colher de café
solúvel dentro, aguardavam a água.
— Bom dia, Cristopher — finalmente respondi.
— Dormiu bem? — Ele se inclinou sobre a bancada, os olhos de
tempestade em mim.
— Bastante.
Os braços musculosos estavam cruzados, os fios loiros que os
salpicavam penteados em uma só direção. Jesus, eu só conseguia pensar na
vontade intensa de senti-los ao meu redor outra vez, e limpar os cantinhos
daquela boca com a minha.
— Não vi a hora em que deixou a minha cama. Por que não dormiu
comigo?
A voz rouca sumiu em meio ao barulho das borbulhas da água fervendo.
Constrangida com o que responder, troquei o peso do corpo entre os pés
escolhendo que mentira iria contar.
— Achei... que preferiria dormir sozinho. Não quis atrapalhar.
Cristopher deu um passo para o lado, deixando a barricada da bancada
para chegar mais perto de mim. Dos pés à cabeça, nada no meu corpo
parava quieto. As partes íntimas ainda ardiam pela penetração e a mente
dançava com as imagens dos beijos, dos apertos e das carícias. Deus, eu
queria mais daquilo.
Atordoada pelas lembranças, não notei quando ele chegou tão perto,
mas pude sentir o cheiro da pele morna do banho misturado ao meu óleo de
rosas. Tentador. Pingos caíam das mechas loiras e desciam sinuosos pelo
peito marcado de cicatrizes — entre as novas, algumas unhadas afobadas.
Precisei engolir em seco ao ver os mamilos planos e pequenos
completamente arrepiados.
— Por mim, podia ter ficado até a aurora. Não me atrapalharia em nada.
Seus olhos, uma perfeição gelada e irresistível, fizeram meu sangue
começar a ebulir como a água na chaleira. Com uma carícia lenta, ele
removeu uma mecha do meu cabelo da frente do rosto até alojá-la atrás da
orelha.
— Está com fome? Acho que consegui fazer café. — Ele ofereceu com
o sorriso mais lindo do mundo.
Ondas perfumadas de chocolate e pasta de dente embalaram minha face.
Balancei a cabeça assentindo, vendo-o erguer ainda mais um canto da boca.
— Prefere comer agora ou posso oferecer outra coisa antes?
— Outra coisa? — As pernas chegaram a falhar.
Ele passou a língua pelo canto da boca e limpou o resquício do
chocolate, me olhando de um jeito que gritava sexo de muitas maneiras.
Quem precisava comer, afinal? Eu podia sobreviver muito bem sendo
apenas comida.
Sem esperar pela resposta, Cristopher me arrebatou no ar e me sentou
na bancada, se ajeitando entre as minhas pernas abertas. A toalha foi solta
com um sacolejar de quadril, escorregando até o chão. Com alguns puxões
bem dados, minha bermuda larga e minha camisa se juntaram à toalha
embolada no piso. O granito da bancada estava frio e tocava de maneira
inquietante algumas das minha partes mais latejantes e ligeiramente
assadas. Para contrapor o frio, as palmas das mãos dele estavam quentes,
deslizando pelos braços e coxas, pela barriga, por ambos os seios e o
pescoço, até pararem na nuca, se enfiando entre os fios de cabelo.
Então, ele me puxou e virou o dominador do meu corpo.
A língua tinha gosto de chocolate, e beijei-o até que o próprio ar
parecesse melado de açúcar. Cristopher mordeu de leve meu queixo,
descendo os beijos pelo pescoço até o vale entre os seios, sempre soltando
sons baixos que reverberavam pela minha pele. Mal conseguia acreditar que
repetiríamos a loucura de ontem antes mesmo do café da manhã. Melhor...
não acreditava que eu seria o café da manhã.
Do que eu estava com vergonha, mesmo?
Sem aviso, mãos se embrenharam sob as bandas da minha bunda e me
puxaram para perto, o pau monumental encaixando-se na minha entrada,
quente e aveludado, contrastando com o frio da pedra sob a bunda. Era
como se ele já soubesse qual o melhor caminho para me enlouquecer.
— A camisinha — sussurrei em meio ao beijo afoito, com o resquício
de sanidade que ainda tinha. Cristopher tateou a primeira gaveta e tirou de
dentro uma camisinha já aberta e inteiramente desenrolada.
— Estava só esperando você aparecer.
— Duro assim? — Soltei uma risada, anotando mentalmente que
precisaria lavar todos os talheres da gaveta, ou meus garfos e colheres
cheirariam a espermicida.
— Estou assim há minutos.
Aquilo era mais do que desejo: era sugar rush. Antes que o advertisse
que estava comendo muito doce e explicasse a relação da ereção com o
creme de avelã, dentes mordiscaram o lóbulo da minha orelha e um rosnado
soou junto ao ouvido. Quem conseguia resistir a uma tortura doce dessas?
Enlacei-o pelo pescoço, acesa novamente, sentindo deliciada a língua
invadir a minha boca e roubar qualquer aviso que pretendia dar. O beijo foi
urgente e intenso, sem cortesia ou delicadeza. Tão logo eu desenrolei a
camisinha sobre o seu pau, ele me ergueu pelo traseiro, caminhou até a
geladeira e me imprensou contra o aparelho, entrando inteirinho em mim.
De pé.
Sem conversas ou preâmbulos, o corpo duro me pressionando contra o
aço frio.
Mantendo minhas pernas em torno da cintura, Cristopher arremeteu até
o final, o olhar fixo no meu. Encostei a testa em seu ombro, ouvindo os
golpes dos quadris contra o metal. Um tipo de loucura diferente subia por
mim; invadia minhas frestas, derrubava minhas defesas.
A penetração também foi derrubando cada um dos meus ímãs decorados
pregados na superfície da geladeira.
Primeiro caiu Londres.
Depois foi a França.
Mais uma arremetida, e Berlim se estatelou no azulejo, seguido por
Mônaco, Roma e Amsterdam. Por fim Malta se espatifou no chão, enquanto
avisos e pregadores de acrílico colorido se juntavam à confusão de objetos
no chão. Nada disso realmente importava. Eu apenas gemia e dizia palavras
desconexas querendo mais dele, mais daquele prazer dolorido. Queria
acariciar a pele marcada, deslizar a boca pelo rosto másculo, sentir os
beijos, os toques e as estocadas, me perder em suas lambidas e mordidas.
Nossas respirações se misturaram em uma confusão arrítmica, enquanto
o atrito íntimo continuava, carne contra carne, liberando fagulhas como um
fio destapado. Cristopher não era manso, nem gentil. Fechei os olhos e
recostei a cabeça na superfície dura da geladeira, sentindo a força das
estocadas. Uma entrada no ângulo certo fez um gemido grave escapar dos
lábios masculinos.
Cristopher me ajeitou no colo de um jeito que sua boca descesse até
meus seios com facilidade. Ao se deparar com os montes, ele murmurou
algo e avançou. O hálito quente soprou contra o meu mamilo antes da boca
se fechar, úmida, ao redor da pontinha arrepiada. Ele me chupou um pouco,
depois voltou a bombear intenso, forte, potente. Agarrei seu cabelo e gemi
pedindo mais. Eu o queria inteiro, do jeito que ele sabia ser.
Agarrando meu traseiro novamente, Cristopher me carregou até o sofá
sem dificuldade. Então, me largou e logo virou meu corpo de barriga para
baixo. De quatro, ele segurou minha nuca com uma das mãos e se encaixou
contra mim. Senti os lábios começarem uma carícia sensual na minha nuca,
a pressão do peito contra as minhas costas, as coxas se ajustando contra as
minhas pernas. Mordendo de leve meu ombro, ele empurrou o corpo,
entrando inteiro e de uma só vez, de novo. Os dez dedos se cravaram na
minha cintura, pressionando minha anca para ditar o ritmo frenético do
entra e sai até me dar um orgasmo tão poderoso que tombei sem forças,
sentindo-o deitar-se logo depois, fraco e satisfeito, sobre as minhas costas.
Ao fim, Cristopher me virou e trouxe meu corpo para ficar sobre o dele.
Dessa forma pude encará-lo.
— Foi bruto demais para você, għasel tiegħi? 1 — perguntou, o rosto
clareado pelo sol filtrado pelas persianas. Abracei-o e neguei, inquieta pela
intensidade do momento e pelo tanto que tinha gostado daquela recepção
matutina.
— Não, Cristopher, você não foi. Foi perfeito.
O sorriso dele se alargou, e ele depositou um beijo de leve na minha
boca.
— Quero mais de você, Isla de Malta. Desde o nascer do sol quero
perguntar se, até o dia em que eu me for, posso me deitar com você o tanto
que quisermos. Porém… se desejar o oposto, respeitarei sua decisão e me
afastarei.
Minhas mãos subiram pelas costas largas e suadas, amando aquela
formalidade e respeito, porém mais ainda o que os próximos dias trariam.
— Também quero, homem de lata. Até o dia em que for embora, você e
toda essa destruição que provoca serão meus.

1 Meu bem
19
QUERO APRENDER SOBRE O PASSADO
CRISTOPHER

— C omo assim, a Europa virou uma coisa só? — Parei de traçar


caminhos invisíveis pelas costas de Isla, surpreso. Ela continuava
de olhos fechados, sonolenta desde a última vez em que fizemos sexo.
Informações como aquela nunca deixavam de me causar perplexidade. Esse
novo mundo ainda era um enorme mistério para mim.
Ela abriu os olhos da cor do mel e se espreguiçou, relaxada, sobre os
lençóis.
— Acredite você ou não. Temos até uma moeda única.
— Como conseguiram unir a França à Inglaterra? Ou o Império
Germânico e os reinos do Sul?
— As pessoas pararam de se odiar em algum momento. Cansaram, eu
acho. Até que voltaram a se odiar depois, e a se tolerar mais tarde. — Ela
sorriu. — É um ciclo, nunca acaba.
Deitei-me de costas ao seu lado no sofá, olhando para o teto da sala.
Embora tivesse trabalhado todos os músculos na última hora — e nos
últimos dias, com ela —, sentia o corpo em um estado de completo êxtase
caloroso. Apenas a cabeça girava com pensamentos caóticos, como um
daqueles equipamentos estranhos que as cozinhas de hoje usavam para
massacrar os alimentos.
Uma Europa única? Impensável.
Isla puxou o lençol para cobrir o corpo e virou o rosto para mim,
depositando um beijo casto em meu ombro. Uma parte mais abaixo reagiu
de imediato, como se ela estivesse beijando novamente meu membro, como
fez há pouco.
— Eu sei que é difícil imaginar o mundo atual se compararmos com o
seu. Acho que também não conseguiria entender as brigas da sua época se
fosse eu a aparecer por lá.
Corri os olhos pelo rosto de feições perfeitas, mas os assuntos da
Europa já tinham deixado de importar. Eu só conseguia pensar nessa
feiticeira e no prazer que ela me dava. O que estava acontecendo, que não
conseguia parar de desejá-la? De tirar as mãos dela? Sentia meu espírito
elevado a cada toque, estava cada vez mais cativo dos seus beijos. Meu
coração andava perdendo batidas por aquela mulher de risada solta, e nada
daquilo jamais acontecera antes.
Aqueles eram sentimentos perigosos para uma situação tão transitória.
— Você parece pensativo. — Ela apoiou o queixo no meu ombro. —
Quando está assim, sei que sua cabeça voltou para o passado.
Brinquei com uma mecha rebelde do seu cabelo, negando.
— Não estava lá, desta vez.
Isla abriu um sorriso amoroso, e a mão que descansava sobre meu peito
começou a fazer desenhos sem formas ou significados. Desejei poder me
deitar novamente sobre ela e profanar seu corpo de mil outras maneiras,
mas me contive. Havia deixado-a dolorida da última vez — embora saciada.
— Quero saber no que pensou — ela pediu.
— Nada de mais. Apenas que, se todos os reinos são amigos agora, o
que restou a homens como eu no seu mundo?
— Você diz um cavaleiro?
— Um guerreiro.
Ela pensou por um instante.
— Hoje em dia, homens com a sua habilidade ensinam outros a lutar.
— Para que fim, se não há mais embates corpo a corpo?
— Para fins de entretenimento — ela respondeu. — Diversão.
Como eu não conseguia acreditar, ela se sentou no sofá e ligou a TV.
Seus gestos eram ágeis demais para acompanhar, mas ela parecia escolher
algo entre muitas opções.
— Essa série fala sobre os cavaleiros templários. Vou adiantar as cenas
até uma das lutas, está bem?
Finalmente encontrando o que procurava, Isla apertou um botão e uma
cena específica e absurdamente real apareceu na tela. Assisti, fascinado,
homens vestidos com trajes que reconhecia lutarem com espadas. Era
estranho observar àquilo em segurança, sem sentir o cheiro de suor e do
sangue escorrendo do metal.
Como conseguiam captar a luta de tantos lugares diferentes?
Arregalei os olhos quando a espada de um dos lutadores desapareceu no
corpo de outro, e um rio de sangue jorrou do ferimento. Olhei para Isla,
perplexo.
— Vocês matam por entretenimento?
Ela soltou uma risada, apertando outro botão e parando a cena em seu
momento mais cruel.
— Eles são atores, Cristopher. Fingem as lutas e a morte. Não se
preocupe, ninguém se feriu ali. O meu ponto é que alguém os ensinou a
fazer isso. Treinou esses homens para manejar espadas nessas lutas de
mentirinha. O meu trabalho era organizar tudo isso. — Ela apontou para a
tela. — Achar esses professores, os atores certos, pagar pelos serviços,
coordenar os dias em que trabalhariam, onde e como.
Eu estava sem palavras com tudo aquilo.
— E isso entretém as pessoas?
Ela deixou a tela de lado e se virou para mim.
— Mais do que imagina. Quando lutou no meu antigo trabalho, a
diretora de casting, a pessoa que contrata esses atores, gostou de você. Ela
me perguntou se gostaria de trabalhar em um filme.
Franzi o cenho, negando imediatamente tal ideia.
— Isso é um disparate. Passei boa parte da vida treinando homens que
deram suas vidas em combate, morrendo e matando. Não consigo sequer
pensar em treinar pessoas para morrerem de mentira. — Apontei para o
falso-morto estirado no chão. — Que honra haveria em uma batalha falsa?
Que propósito tem essa luta?
Isla mantinha o sorriso bonito e os olhos enternecidos nos meus.
— O propósito é divertir, Cristopher.
— Lutas não deveriam divertir ninguém! — respondi, censurando toda
aquela tolice. — O que essas pessoas sabem sobre ter suas casas invadidas,
sua família destruída, seus filhos levados como escravos? Nada!
— Elas realmente não sabem nada, mas nós, que assistimos, queremos
saber. Na verdade, as pessoas adoram filmes com cavaleiros, e não só por
diversão. Elas querem aprender mais sobre o passado, sobre a formação dos
países e a vida de pessoas notáveis. Sem falar que há todo um imaginário
popular sobre vocês, uma aura romântica em torno de quem foram e o que
defenderam.
Foi impossível não franzir o cenho. Aura romântica?
Entretanto, algo que ela disse chamou minha atenção.
— Como sabem de tudo isso sobre nós? O tipo de roupa que vestíamos,
o modo como lutávamos? Está tudo nos livros? Se sim, preciso ter acesso a
eles — disse, taxativo. — Quero voltar para o passado com informações.
Preciso saber tudo que existe sobre nós.
Ela abraçou os joelhos, animada ao perceber minha curiosidade.
— Não temos apenas livros, mas também museus.
— Não sei do que se trata isso, mas quero lê-los também. — Olhando
para a tela da tal TV, questionei: — Há histórias como essa sobre o Cerco
de Malta?
Ela negou. Então, como se a semente de uma ideia tomasse sua mente,
olhou para mim.
— Não sei por que a indústria do cinema ainda não filmou nossa
história. Há séries sobre os cavaleiros templários, até mesmo sobre os
teutônicos, mas não sobre vocês. — Isla parecia tomada pela alegria típica
de quando tinha ideias. — Mas e se houvesse? — continuou, os olhos
bonitos voltando a cintilar. — E se alguém apresentasse um roteiro sobre o
Cerco, a história dos cavaleiros da Ordem de Malta, a guerra que a Europa
travou contra o mundo islâmico naquela época? Esse é um período da
história muito pouco explorado!
— O que está querendo dizer?
Ela cruzou as pernas, ajeitando o lençol na frente do corpo.
— Que meu trabalho é fazer filmes acontecerem, Cristopher. E acabei
de ter uma grande ideia.
— Quer fazer um filme sobre nós?
— Bem, pelo menos vender a ideia e convencer alguém a bancá-lo. —
Ela assentiu.
Voltei a observar a cena paralisada na tela, tentando entender o que
dizia. Por que alguém ia querer reproduzir aquele inferno para outros
assistirem?
Depois da guerra, algo em nós mudava para sempre. Uma longa e
solitária noite descia sobre o nosso espírito. Recontar aqueles dias era uma
ideia perturbadora.
— Como pode querer retratar aquele horror?
— O intuito dessas produções não é retratar o horror — ela me corrigiu.
— É explicar para as pessoas os motivos que levaram o horror a acontecer.
Enquanto eu negava veementemente, Isla continuou:
— Sabe o propósito que tanto repete? A intenção que dá sentido às
coisas? É isso que um bom filme mostra para a audiência. O porquê das
lutas. Essa é a mensagem deles.
Ela apertou outro botão e a cena continuou. Assisti, em silêncio, o
guerreiro principal deixar o massacre e erguer sua espada como um
estandarte, liderando um grupo de sobreviventes esfarrapados até uma
montanha enquanto a paisagem se abria e raios de sol recaíam sobre o
grupo. Tudo isso era embalado por uma música potente, e fez algo dentro
de mim se remexer.
Toda a barbárie cometida segundos antes parecia esquecida; toda
crueldade e brutalidade envolvida nas mortes, apagadas pelo caminhar
simbólico montanha acima. O homem explicou ao grupo que o
acompanhava qual era o seu sonho: para onde iria, e o que enfrentaria até
conseguir o que queria.
Aquilo era… inusitado.
Tantas vezes me senti bestial depois de uma luta, pecador além do
reparo, mas lá estava capturada, em uma cena, aquele fio de propósito que
unia meus pedaços e me fazia acreditar que minha crueldade não fora em
vão. As lutas tinham motivos nobres: proteção, defesa. Nem sempre
conseguíamos enxergar o que buscávamos em meio a tanto sangue e dor,
mas se não nos agarrássemos ao que nos movia, caíamos no mais profundo
desespero.
— Como conseguiram isso? — perguntei com os olhos vagos na tela,
sem saber como colocar em palavras o sentimento que se revolvia no meu
peito. Redenção era o que mais se aproximava do que eu sentia. Era como
ter os pedaços do peito novamente colados.
— Como conseguiram captar em minutos o que… o que na verdade
aconteceu?
Ela sorriu, orgulhosa.
— Isso é arte — respondeu com a paixão dos que veem sentido no que
fazem. — Ela retrata, ressignifica, reconta fatos. Ela recupera histórias e, ao
fazer isso, mexe conosco.
— É assim que veem o passado? — perguntei. — Quando o recontam, é
assim que o enxergam?
— É uma das maneiras. Às vezes ele é contado de maneira bonita; em
outras, retratado com exatidão para servir de lição e não repetirmos os
mesmos erros. De toda forma, é arte. Filmes e livros existem para não
deixar velhas histórias morrerem. Para que gerações futuras entendam os
motivos e propósitos de quem veio antes.
Aquilo era fascinante. Era a primeira vez que pensava no que aconteceu
sob um novo prisma. Se Aaron tivesse a chance de ver isso, se sentiria
novamente ligado à Ordem? Repensaria seus pensamentos, recuperaria a fé
nos homens, afastaria a tristeza do seu coração?
— Preciso saber mais — encarei-a, sério. — Quero retornar com o
máximo de informação que puder sobre as guerras, as pessoas, as batalhas.
Especialmente, sobre como somos vistos hoje.
Arrastei a mão no cabelo, me deparando com um problema.
— Mas como posso saber de tudo até o solstício, se não consigo ler seus
livros?
— Livros não são a única forma de aprender sobre o passado. — Isla se
levantou da cama, animada. — Vá, vista-se. Tive uma ideia.
20
RETORNO A SÃO ELMO
ISLA

U ma semana e meia — ou 457 anos depois —, Cristopher estava de


volta a São Elmo.
A gigantesca estrutura fortificada, local da batalha sangrenta
onde lutava quando desapareceu, abrigava hoje um museu. Sua coleção de
artefatos remontava desde os tempos pré-históricos, passando pela época
em que Malta foi governada pela Ordem dos Cavaleiros até sua participação
na segunda Grande Guerra.
Ele mal acreditava que o forte havia se transformado em um tipo de
“gabinete de curiosidades”, o conceito mais próximo de museu que
conhecia. A cada dez passos, ele precisava parar e admirar a vista do recorte
da costa e as aldeias vizinhas que os muros altos ofereciam. Não tinha
palavras para descrever a mudança nos imensos descampados de antes, e o
que era testemunhar, hoje, uma cidade estender-se infinita no horizonte.
Minha graça era observar cada uma das suas surpresas e alegria quase
infantil ao reconhecer algo da sua época. Ele subia as escadarias na frente,
ora sabendo onde estava, ora estranhando o interior reformado. Às vezes
caminhava de ré, os olhos no teto abaulado de pedra, tocando, mesmo sendo
proibido, as armaduras expostas que um dia pertenceram a pessoas que
talvez conhecera. Ao descer até o subsolo, antes um local fétido e escuro,
deslumbrou-se diante de um auditório amplo e iluminado que hoje mostrava
um filme sobre toda a glória que a fortaleza viveu.
Ele também se emocionou ao chegar na encenação da batalha, onde
figuras de cera em tamanho real mostravam soldados em seus uniformes
defendendo as muralhas, padres e cavaleiros cuidando dos enfermos e até
soldados otomanos estirados entre malteses feridos. Sem voz e com os
olhos caídos, mirou por longos minutos a cena enquanto recostava nas
velhas paredes tom de ocre. Seus pensamentos estavam definitivamente no
passado, e a emoção de estar ali cobrou a força de sua alma.
Eu já tinha feito aquele tour anos antes, em um passeio da escola, e me
lembrava de ter gostado do museu. A visita de hoje, no entanto, trazia outro
sentimento. Eu conseguia ver Cristopher ali dentro, correndo para ajudar os
feridos e combater quem atacava. Entendia sua emoção e incapacidade de
fala, e sentia muito por não poder ajudá-lo de alguma forma.
Porém, havia algo que eu talvez pudesse fazer.
Olhei ao redor, à procura de um guia. Cristopher merecia ouvir outra
perspectiva da história, merecia saber o que aconteceu depois daquele dia
em que desapareceu. Encontrei um senhor uniformizado mais adiante,
explicando a uma família sobre o Cerco. Ele falava de maneira clara e
pausada, e aguardei que terminasse a exposição para abordá-lo. Quando o
grupo se afastou, chamei Cristopher e nos aproximamos.
— Olá. Gostaríamos de um tour guiado sobre o Cerco. Alguém que
conheça bastante a história da batalha.
O idoso de cabelos grisalhos, olhos doces e barriga redonda abriu um
sorriso orgulhoso
— Estão falando com a pessoa certa. Ninguém sabe melhor o que
aconteceu naqueles dias do que eu. — Troquei olhares com Cristopher, que
parecia duvidar daquilo. — Gostariam de ouvir apenas a história de São
Elmo ou do Cerco inteiro? — perguntou.
Tirei meu caderninho de ideias da bolsa e respondi pelo meu
acompanhante.
— Sobre o Cerco inteiro, por favor.
— Fico feliz, porque o melhor veio após a queda desse forte. Venham
comigo.
Entrelacei os dedos aos de Cristopher, sentindo-os tensos. Muitos
séculos tinham se passado desde aquele junho sangrento, mas eu sabia que
ele revivia cada segundo. Acariciei a pele do dorso salpicado de pelos loiros
e sorri de maneira tranquila.
— Está tudo bem. Você está seguro, agora.
— É difícil acreditar que tudo passou — ele murmurou. — Que as
pessoas que conheci viraram estátuas, que a dor que eu senti, que nós
sentimos, não está aqui. Que o máximo que conhecem daqueles dias é isso.
Ele olhou ao redor, como se o pensamento lhe trouxesse dor.
— Não consigo nem medir o que está sentindo, Cristopher, mas acredito
em você. Deve ser terrível.
Trouxe sua mão até a boca e a beijei, tocada.
Meu gesto pareceu acalmá-lo. Ele me puxou para perto e beijou o topo
da minha cabeça, delongando-se no afago. Não durou nada, mas girou um
pouco mais a manivela do torno que comprimia o meu peito.
Seguimos o guia até o início da exibição, onde uma pintura imensa, que
tomava quase toda a parede de pedra, mostrava homens dos dois lados em
meio à luta. Cristãos e otomanos separados por um muro — aqueles
mesmos muros —, empunhando suas armas contra um céu cinza e uma
terra devastada.
O idoso parou na frente do quadro e apontou para uma placa dourada,
onde estava escrito: A queda do forte.
— O que sabem sobre esse dia em especial? — perguntou.
— Tudo — Cristopher respondeu com seu sotaque carregado.
— Quase nada — falei, abrindo o caderno. — O que puder nos contar,
queremos ouvir.
A ideia de apresentar um roteiro sobre aquela luta fermentava em mim.
Conhecia roteiristas que embarcariam nessa ideia e empresas de streaming
sempre ávidas por novas histórias. Sem falar que fazia algum tempo que
sentia uma tendência crescente por bons roteiros históricos. Com as pessoas
certas para levar a ideia adiante, eu tinha chances de fazer algo por mim e
por Cristopher, também. Se ia funcionar, eu não sabia, mas era a primeira
vez em muito tempo que estava animada com um projeto.
O guia explicou de maneira detalhada sobre o bombardeio que durou
toda a noite do dia 22 de junho de 1565 e o assalto final, no dia seguinte,
quando o forte tombou. Sobre como os últimos cavaleiros da Ordem mal
conseguiam ficar de pé, mas mantiveram os otomanos afastados por horas,
para que desse tempo dos últimos civis fugirem.
Contou como os cavaleiros que restaram foram lentamente empurrados
para a capela, onde aconteceu a resistência final, e lá foram capturados e
assassinados. O senhor confirmou a informação que Sam havia nos contado
sobre as cinco pessoas que pularam no mar. Porém, ele não sabia nada além
— nem sobre um cavaleiro que desapareceu em meio a uma última luta,
nem o destino dos que saltaram.
Cristopher olhava o tempo todo com os olhos úmidos para a pintura,
absorvendo as palavras do guia com tocante atenção.
— São Elmo, o menor das fortalezas de Malta e aquela que os turcos
esperavam conquistar em 3 dias, resistiu por um mês — a voz mansa
continuou. — Dizem que Mustafá, o líder do exército otomano, olhou ao
fim da batalha para outro lado do porto, onde ficava a fortaleza de São
Ângelo, e disse: “Se um filho tão pequeno nos custou tanto, que preço
teremos que pagar pelo pai?”
Cristopher mirou o homem.
— Ele disse isso?
— Segundo a história, sim.
Com as mãos unidas, o guia continuou:
— No dia seguinte à queda, os turcos decapitaram os cavaleiros
capturados, amarraram seus cadáveres a tábuas de madeira e os lançaram ao
mar para que flutuassem até São Ângelo. Como retaliação, o Grão-mestre
da Ordem, De Valette, mandou fazerem o mesmo com um bom número de
prisioneiros, então colocou suas cabeças nos canhões e atirou na linha de
frente turca.
Anotei as palavras segurando a respiração, ouvindo Cristopher
murmurar ao lado:
— Isso é algo que Valette faria.
O homem se moveu, nos chamando para parar diante do painel seguinte.
— Este quadro se chama A Luta pelo Pai, e retrata a batalha pela
conquista do forte de São Ângelo. Por um mês, os otomanos tentaram tomá-
lo sem sucesso. — Ele apontou para o fogo pintado na tela — Neste dia, 22
de julho de 1565, catorze baterias de canhões abriam fogo contra dois fortes
ao mesmo tempo. Os bombardeios duraram cinco dias inteiros até que os
muros fossem quase reduzidos a escombros. Os livros de história afirmam
que a violência foi tanta que os estouros puderam ser ouvidos na Sicília, do
outro lado do Mediterrâneo.
Parei as anotações para observar como Cristopher arrastava as mãos
pelo rosto. Se seu irmão tivesse sobrevivido ao salto no mar, estaria em São
Ângelo. Sobreviver a São Elmo não significa sobreviver àquilo.
Dei um passo até ele, passando as mãos pelas costas largas e firmes.
A voz do guia continuava ao fundo:
— Mesmo assim, o forte resistiu. Então, no dia sete de agosto, uma hora
antes do amanhecer, doze mil turcos tomaram o pequeno forte de São
Miguel, fixando a bandeira do sultão nas muralhas. A situação era tão
crítica que até De Valette participava das batalhas. Apesar de ferido, sua
presença entre os homens lhes infundiu coragem para suportar as nove
horas de duração da luta. Os cavaleiros estavam tão exaustos que até as
mulheres e as crianças ajudavam atrás das muralhas, lançando o que tinham
à mão em direção aos inimigos.
Os músculos de Cristopher pareciam de ferro. As palavras “mulheres e
crianças” indicavam que a mulher do irmão, grávida, também devia ter
lutado muito.
— E então, de um segundo para o outro, quando tudo parecia perdido,
os turcos recuaram — o guia disse.
— Como assim? Eles não estavam em vantagem? — Cristopher
perguntou.
O homem assentiu.
— Eles estavam, e é aí que mora a surpresa. Historiadores acreditam
que o jogo psicológico entrou na guerra. Os turcos viram grandes nuvens de
fumaça subirem de um de seus acampamentos, e alguém espalhou o rumor
de que os reforços da Sicília haviam chegado. Como tinham perdido
soldados demais na tomada de São Elmo e muitos outros no mês seguinte,
ficaram com medo. Avançar não trazia mais garantias de vitória.
— O que aconteceu, na verdade? Os reforços realmente chegaram? —
perguntei.
— Não. O que aconteceu foi que uma simples tropa encontrou um
acampamento inimigo sem proteção e colocou fogo em tudo. Ao mesmo
tempo, em Mdina, no interior do país, os turcos avistaram os parapeitos da
fortaleza repletos de soldados e ficaram com medo. São Elmo tinha deixado
uma lição valiosa: o custo da luta era alto. Só que — o guia soltou uma
risadinha —, não eram soldados empoleirados nas muralhas da cidade.
Eram camponeses, mulheres e até crianças vestidas com armaduras para
darem a impressão de que a cidade estava protegida.
— E por causa disso as tropas turcas simplesmente desistiram de tomar
a cidade? — Cristopher não conseguia acreditar.
O guia assentiu, bem-humorado, e eu anotei aquilo com um sorriso no
rosto.
— Um tempo depois, a frota cristã realmente chegou, trazendo ajuda da
Sicília. Foi ali que todos entenderam que era o fim. Os próprios turcos não
aguentavam mais, e só não partiram porque seus generais não deixaram.
Mas imaginem — o guia ergueu as sobrancelhas brancas —, o socorro
chegava ansioso para lutar, enquanto todos na ilha estavam em suas últimas
forças. Quando decidiram recuar, em 13 de setembro, os otomanos partiram
com tanta pressa que acabaram deixando milhares dos seus para trás.
Muitos tentaram nadar até os navios, se afogando na tentativa. Mais de mil
cadáveres deles encheram a baía, no dia seguinte.
Anotei aquilo com um suspiro.
Depois de alguns segundos de silêncio, nos movemos, enfim, para o
quadro final: O fim do Cerco.
Cristopher já não parecia mais notar nossa presença. Ele absorvia cada
detalhe da pintura, passava as vistas por cada soldado retratado como se
quisesse achar, naquelas feições genéricas, o rosto de quem procurava. Eu
sentia tanta pena pelo que ele estava passando. Pela expectativa de achar o
irmão, pela esperança de saber que estava bem. Queria tanto acolhê-lo e
confortá-lo.
— O Cerco havia chegado ao fim. Como descrito por um padre, que
registrou cada vitória e derrota daquela luta, “enquanto as bandeiras turcas
eram removidas de São Elmo, os malteses emergiam das ruínas para
encontrar um país arrasado”. Havia mortos por toda parte, e muitos ainda
morreriam nos próximos meses devido a feridas e machucados.
Abatido, Cristopher ouviu o fim da história. Os braços estavam
cruzados na frente do peito, e os ombros, curvados. Sentia muito por ele,
por não saber o que aconteceu ao irmão, por querer voltar para aquela terra
destruída. Quase me arrependi de tê-lo trazido ali. Eu queria saber mais
sobre o Cerco — afinal, a história acabava bem para Malta —, mas não
imaginei à custa de quanta dor a ilha chegou à vitória.
No entanto, ao mesmo tempo em que queria consolá-lo, uma cena
inusitada na pintura chamou minha atenção. Dei um passo para a frente,
apontando para o quadro.
— O que são esses cachorros ali no canto?
Em meio ao caos, cães magrelos apareciam em dois ou três pontos
diferentes da imagem. O guia nem precisou encontrá-los para responder a
minha pergunta.
— São os cães abandonados meses antes, nas fazendas, retornando para
casa. Eles eram tantos, e vinham com tanta fome, revirando as covas rasas,
que o pintor da cena achou por bem retratá-los.
Guardei o caderninho na bolsa e enlacei Cristopher pela cintura,
trazendo-o para perto. Trocamos um olhar breve e silencioso, e vi,
emocionada, uma fagulha de esperança em seus olhos. Não mais do que um
lampejo ínfimo do sentimento.
Talvez seu cão, aquele que soltou no interior da ilha para não ser morto,
também tenha retornado.
— Ele voltou para casa — falei baixinho.
Ele assentiu, fungando para afastar a emoção e voltar a prestar atenção
ao guia.
— Quanto a Mustapha, o general otomano, este retornou a
Constantinopla, cheio de desejos de vingança — o idoso continuou. —
Morreu anos depois, sem realizar a promessa que fez de retornar para Malta
e matar até a último cavaleiro que deixou vivo.
A voz do homem ganhou energia para a conclusão:
— Com a vitória dos cavaleiros, De Valette foi considerado um herói e
nos anos seguintes dedicou toda a sua energia para reconstruir o país.
Quanto à Ordem, infelizmente, esta nunca mais foi a mesma.
— Por quê? — Cristopher quis saber.
— A perda em suas fileiras foi grande demais. Ela nunca mais
conseguiu retornar ao que era.
Cristopher exalou longamente, girando para olhar o museu que contava
hoje a história da sua vida. Ele precisava de um tempo sozinho para
absorver tudo e eu lhe daria o que fosse preciso, mas só depois que
deixássemos o forte. O guia, alheio ao peso emocional dos últimos minutos,
chamou-nos para acompanhá-lo até um nicho separado.
— Antes de irem, quero mostrar uma última coisa.
Enquanto caminhávamos atrás do homem, esbarrei gentilmente em
Cristopher.
— Tudo bem? Não precisamos ouvir mais nada, se não quiser.
Ele assentiu em silêncio, fazendo que sim, que estava bem e que queria
ouvir.
— Desculpe se o tour não foi bem o que parecia ser. Minha intenção era
fazer você vibrar com a vitória. Não imaginava que a apresentação fosse ser
tão… — não consegui terminar a frase. — Enfim, eu não queria deixá-lo
triste.
Ele roçou a lateral dos dedos na minha face.
— Vou ficar bem, Isla. Não se preocupe comigo.
Tarde demais para isso. Eu estava envolvida até os ossos na história
daquela batalha, e meu coração doía toda vez que pensava em tudo o que
ele passou.
— Por aqui — o guia nos chamou, fazendo a curva.
Entramos em uma saleta com paredes vermelhas, vendo no centro,
lindamente iluminada por spots no teto, uma armadura completa,
exatamente como a que Cristopher usava quando chegou no dia do
casamento. Ela estava adornada por uma capa longa e escura e era
acompanhada por uma espada imponente e o escudo com a Cruz de Malta,
símbolos dos Hospitalários.
O tormento interior de Cristopher ficou visível em cada traço do rosto
bonito, e seus olhos umedeceram. Até eu fiquei emocionada.
— Essa é uma das armaduras usadas pelos guerreiros da época — o
idoso disse de forma reverente, como se soubesse a importância do artefato.
— Conto a história deles muitas vezes por dia, talvez centenas por ano, e
nunca me canso dela.
Foi a vez de sentir a mão suada de Cristopher segurar a minha, e com
força.
— Toda vez que narro os feitos daqueles homens, entendo melhor a
necessidade de exemplos para as novas gerações, e agradeço o papel deles
para a história — o guia continuou.
— Como assim? — questionei.
Ele abriu um sorriso reflexivo.
— Valores como valentia e bravura são muito abstratos para serem
ensinados sem exemplos. O que a batalha neste forte nos deu foi
exatamente o que precisávamos aprender. Os cavaleiros nos deixaram um
legado de honra e solidez. De dignidade e grandeza. Eles foram o escudo da
Europa, defendendo suas fronteiras e aceitando a sina de morrerem por seus
ideais.
Vi, na periferia da visão, Cristopher piscar algumas vezes. Ele era muito
duro para chorar, mas estava prestes a derrubar uma lágrima.
Eu, manteiga derretida que era, já tinha os olhos marejados.
— Não sei se há homens como aqueles hoje em dia — o guia divagou,
olhando para a armadura e parecendo falar para ela. — Guerreiros dispostos
a morrer pela honra, pelas suas crenças ou para defender o que acreditam.
Gosto de pensar que certas épocas nos moldam, e que a deles moldou seus
corações e seus objetivos. Espero que, caso chegue o momento, nossa época
nos encontre preparados. Também seremos moldados, se for necessário.
O senhor continuou, solene:
— Os cavaleiros de Malta inspiraram a força nas pessoas que moram na
ilha, e esse, se me perguntarem, é o maior legado que nos deixaram. Maior
que a nossa bandeira, inspirada na cruz da Ordem, ou do que as belíssimas
fortificações que construíram. Foram os seus atos heroicos que se tornaram
referência para nós. Foram essas atitudes que se tornaram a régua para
medir a virtude das gerações seguintes.
O guia apontou para o outro lado, onde um segundo artefato estava
exposto sob uma redoma de vidro.
— E é por isso que colocamos a armadura da Ordem de frente para esta
medalha que Malta recebeu após resistir bravamente ao maior bombardeio
da Segunda Guerra Mundial. Quatro séculos separam essas duas batalhas,
mas embora elas não pareçam conectadas, estão. Tudo, no final, se conecta.
Estava aí algo no qual eu também acreditava.
Ele caminhou até a medalha George Cross, o prêmio mais alto
concedido pelo governo britânico por bravura, recebido por Malta em 1942,
e nós o seguimos em silêncio.
Com os olhos vagos na cruz de prata sob a redoma, o guia falou:
— Lembro deste bombardeio quando era criança, e de como fiquei com
medo de morrer sob os escombros. Do meu pai nos abraçando e dizendo,
enquanto ouvíamos os estouros do lado de fora e víamos o céu alaranjar
pelo fogo, que havíamos sobrevivido a coisas piores e passaríamos por
aquilo também. E nós sobrevivemos. Desde então, tenho fascinação por
histórias de bravura e resistência, e por legados de coragem.
Ele sorriu de maneira terna para Cristopher, como se fosse sua vez de
passar uma mensagem de apoio.
— Esses dois artefatos provam, mais de uma vez, que não fomos feitos
para capitular. Nós resistimos, e devemos a isso à força que herdamos e aos
atos heroicos de quem veio bem antes de nós. Seja lá quem aqueles homens
foram, e o que tiveram que fazer naquela distante primavera de 1565 para
nos manter intactos, eu só tenho a agradecer. Sem eles, seríamos só
fragmentos. Talvez nem isso, já que não teríamos história.
21
BORBOLETAS E TORMENTAS
ISLA

A s cores da orla iluminada, uma mistura de amarelos foscos e


cintilantes com o azul sóbrio do oceano, sempre me encantava.
Valetta, a capital nomeada em homenagem ao Grão-Mestre que
Cristopher conheceu, pulsava viva, misturando passado, presente e futuro
como ninguém mais faria.
Cristopher caminhava em silêncio ao meu lado, e vinha assim desde que
deixamos o museu de São Elmo. As mãos estavam enfiadas nos bolsos do
jeans e a cabeça estava baixa, como se prestasse atenção aos desenhos da
calçada.
Eu ainda não conseguia dizer nada. Sabia que a visita ao museu traria
algum impacto para ele, mas não esperava que trouxesse um também para
mim. Abraçada à bolsa, caminhava com a mente fervilhando de planos. A
ideia de escrever um roteiro sobre a Ordem e o Cerco crescia em mim,
porque agora eu sentia melhor tudo o que fizeram e sofreram. Quem eles
foram, o que defenderam e à custa do quê. Aquilo podia dar certo.
Minha pedra dizia o mesmo, porque a sentia morna contra a pele há
minutos.
Um ônibus de turismo passou ao lado, misturando o cheiro de diesel ao
da maresia costumeira. Aproveitei o barulho para interromper o silêncio.
— O que achou da visita?
Cristopher ergueu a cabeça, mirando a enseada iluminada. Seus olhos
estavam novamente claros e o maxilar forte, por onde corria sempre uma
linha dura e tensa, estava relaxado.
— Estranha.
— Gostei daquela última saleta — continuei chegando mais perto,
querendo ouvir mais. — Do cavaleiro ao lado da medalha. Sobre vocês
terem formado quem somos hoje.
Ele abriu um sorriso minúsculo.
— Também gostei daquilo, embora não saiba dizer se acredito no que
ele disse.
— Por que não?
Ele suspirou, os olhos contemplativos na capital efervescente salpicada
de atrações, gente, vozes, luzes e sons.
— Não consigo imaginar como nossos feitos podem ter causado
diferença. Se tivéssemos perdido a guerra e os turcos, tomado Malta, que
diferença faria após tanto tempo? Vocês seriam felizes do mesmo jeito.
Apenas falariam outra língua e contariam outra história. Acho que ver o
futuro me deu uma perspectiva que eu nunca tive antes. — Ele retirou as
mãos dos bolsos e alisou a nuca. — Não sei mais de nada, Isla. É bom ouvir
que fizemos a diferença, que inspiramos outros. Senti orgulho ao ouvir
aquilo, admito. Só não sei se é verdade. Talvez ninguém mude coisa
alguma, e as coisas apenas mudem sozinhas.
Não consegui entender muito bem o que ele estava insinuando. Suas
reflexões eram sobre o fato de que nossos atos se diluíam com o tempo até
o ponto de não fazerem diferença? Que as ações não importavam a longo
prazo?
Nem por um segundo eu acreditava naquilo.
— Sabe, Cristopher, não acho que isso seja verdade. Meu pai costumava
dizer que qualquer gesto pode mudar o mundo inteiro. Nós só não
enxergamos o encadeamento das coisas.
Como tinha sua atenção, continuei, os olhos vagos nas pessoas que
passavam por nós, lembrando do homem gentil que meu pai foi — um
pouco sonhador demais, porém um bom exemplo de pessoa.
— Ele costumava brincar com uma frase da teoria do caos, sobre como
“o bater da asa de uma borboleta pode causar uma tempestade do outro lado
do mundo”.
— Que tolice — Cristopher resmungou, distraído por um grupo de
rapazes que passou bêbado por nós. — Como uma borboleta poderia causar
uma tormenta?
Olhei para ele, achando graça do seu ceticismo.
— Do mesmo jeito que uma pedra, jogada dentro de uma armadura,
poderia lançar um homem ao futuro. Acho que você vai ter que concordar
que uma pedrinha de nada provocou bastante caos na sua vida, não?
Ele balançou a cabeça em censura, embora sorrisse.
— Você fala as coisas mais estranhas, Isla de Malta. Borboletas e
tormentas… — comentou, soltando outra risada.
— O ponto é: pequenos gestos mudam tudo. Nós só não enxergamos
como se dá essa mudança.
— As coisas fazem parte do plano de Deus, e só ele define e sabe o que
vai acontecer.
— Então acredita que sua vinda possa ter sido parte de um plano?
Cristopher parou no lugar e por um tempo me encarou. O olhar era tão
suave como um carinho, mesmo assim, me deixou eletrizada como uma
tempestade de verão. Algum dia me cansaria de olhá-lo? De achar que era o
cara mais bonito do mundo?
— Talvez — ele murmurou após um tempo.
Fiquei tão perdida na visão maravilhosa que já nem sabia mais o que
aquele talvez respondia. Minha completa atenção estava no caminho de suas
mãos. Em como elas se esticaram até meu corpo e alcançaram o cós do meu
jeans. Em como circularam a minha cintura, brincando na circunferência da
minha barriga, deslizando discretamente sob a barra da blusa. Eu conseguia
sentir a urgência nos gestos; o desejo primitivo e intenso de me tocar e me
trazer para perto.
— Sei que há uma razão para eu estar aqui, Isla. E me pergunto todos os
minutos do dia se esse motivo não é apenas você.
O olhar continha uma expectativa silenciosa, como se alguma coisa
intensa flamejasse por trás. Meu corpo doía, carente do toque abrasador,
mas daquela vez, havia algo mais na forma como Cristopher me segurava.
Um anseio que não tinha nada a ver com desejo, e sim perda. Uma perda
que parecia iminente.
— Não sei o que está acontecendo comigo — ele confessou, engolindo
em seco em meio as palavras —, mas não me sinto mais dono dos meus
pensamentos. Tudo que desejo é retornar com você para a sua casa e…
O olhar de Cristopher escureceu, e as mãos me puxaram de maneira
abrupta em sua direção. Trombei contra o peito firme, ouvindo-o terminar:
— …e esquecer que não temos muito tempo.
Aquela frase escureceu a noite bonita. De súbito, senti raiva do girar do
mundo e do passar do tempo. De como ambas as coisas apagavam gestos e
pessoas comuns, e só privilegiavam os grandes feitos. De como traziam e
levavam pessoas e uniam casais para separá-los em seguida.
Impactada com a urgência de criar momentos que não se perdessem, só
não beijei Cristopher ali, no meio da rua, porque o telefone tocou. Tentamos
ignorar, mas o barulho chato desfez todo o momento. Ele me soltou sem
vontade, e quase me desequilibrei ao me afastar para tirar o aparelho da
bolsa.
— Mehmed? — Li com uma careta o nome do meu vizinho na tela.
Cristopher bufou.
— Avise ao seu “amigo” que se ele aparecer hoje, além de decapitá-lo,
catapultarei sua cabeça sobre o Atlântico.
— Não vou falar isso — ralhei, levando o celular à orelha. — O que foi,
Mehmed?
A voz do outro lado da linha parecia irritada:
— Islazinha, por que não respondeu minhas mensagens?
Revirei os olhos. Talvez estivesse na hora de cortar aquela chatice. Fiz
uma besteira e tentei manter a relação cordial, mas meu vizinho estava
passando dos limites.
— Porque não quis. Estou ocupada, não posso falar agora.
— Com aquele cara? Ele já devia ter vazado, não? Precisamos retomar
nossas conversas, docinho.
— Não, ele ainda não “vazou.” E não temos conversa alguma para
retomar.
— Qual é, Isla? Foi bom quando saímos, não foi? Eu te tratei como
rainha, não tratei?
Neguei em silêncio. Nope. Longe disso, companheiro.
— Manda esse xenófobo pastar e sobe até o meu apê, vai. Vou comprar
um vinhozinho e uns queijos para hoje à noite, que tal?
— Mehmed, eu não vou subir porque não existe nada entre nós, está
bem? — Olhei para Cristopher, que parecia um touro desorientado. Eu
estava bem mais interessada em domar aquela fera do que dar papo para o
vizinho insistente que me venceu na lábia em um dia de carência.
— Promete que vai me ligar quando chegar?
Dei as costas para Cristopher, abaixando a voz.
— Não vai rolar de novo, Mehmed. Pode continuar com a sua animação
noturna que, a propósito, anda barulhenta demais.
— Aquilo tudo poderia ser com você, meu bem.
— Mas não será. Nem agora, nem nunca. Só firma aquela cama no
chão, pelo amor de Deus!
Desliguei o telefone antes que ele pudesse concluir, guardando-o de
volta na bolsa. Quando me virei, os olhos de Cristopher eram duas lâminas
irritadas no rosto.
— Que tipo de relação incomum tem com esse cavalheiro?
Soltei uma risada, pensando em explicar o que eram contatinhos, a
terrível e agitada vida de uma mulher solteira na atualidade e as besteiras
que fazíamos após duas taças de um vinho ruim. Preferi simplificar as
coisas:
— Ele é meu vizinho, mas definitivamente não um cavalheiro. Esqueça
o chato, Cristopher. Ele é só um cara boa pinta e mulherengo que gosta de
ostentar o dinheiro do pai. Não é nada sério.
— Não entendo a maioria das coisas que falou, mas compreendo muito
bem a palavra mulherengo. — Meu cavaleiro continuava a me encarar,
taciturno.
Dei um passo na direção daquele touro bravo, completamente derretida
pela sua reação.
— Está com ciúmes, homem de lata?
— Estou.
Eu estava preparada para qualquer resposta, não para uma sonora
afirmação.
Sem palavras e com o coração ribombando, acompanhei-o até a beira do
calçadão. Nos bares ao redor da costa, casais e solteiros de todas as idades
conversavam animados, aproveitando a temperatura amena da primavera na
ilha. Tão perto do mar, o cheiro salgado da maresia se misturava ao do
borrifo das ondas batendo nas pedras da costa.
Cristopher se debruçou sobre a amurada, os olhos no Mediterrâneo e
seus muitos tons escuros.
— Preciso confessar que não entendo como vocês se relacionam hoje
em dia. Só quero entender como podia manter um relacionamento com o
seu patrão e o seu vizinho otomano?
— Não com os dois ao mesmo tempo — brinquei, segurando com força
o corrimão. — Embora, pensando em retrospecto, talvez os dois se
entendessem melhor um com o outro do que comigo.
— Quanta blasfêmia.
— As relações mudaram nesses últimos séculos — expliquei, adorando
seu ciúme.
— Mas por que aquele idiota do seu ex-chefe, ou esse otomano de
língua frouxa? — Cristopher explodiu, sem entender. — Você é uma boa
mulher, Isla. Honrada, de bom coração. Pronta para ajudar até mesmo um
estranho. Não devia estar com homens que não valem metade do que é.
Recostei na murada também, apoiando o queixo na mão.
— Adoro quando me chama de “uma boa mulher.”
— Eu não entendo como pode ter se envolvido com aquelas pessoas.
Onde estão os cavalheiros de espírito nobre da sua época? Os honrados?
— Não faço ideia. — Dei de ombros, frustrada. — Eu avisei que tinha o
dedo podre para namorados. Quando eu os toco, eles viram sapos.
Você, por exemplo, também virará um quando for embora. Antes que
Cristopher achasse que eu transformava literalmente homens em anfíbios,
expliquei:
— É uma expressão que vem dos contos de fadas, sobre um príncipe
que vira sapo. Nunca escutou? — Ele negou. — Enfim, essa é a minha sina.
Se eu me envolvo, eles deixam rapidinho de serem príncipes e se
transformam em outra coisa.
— Duvido que aqueles dois algum dia foram príncipes.
Estava aí um ponto inegável.
— Talvez tenha razão. Acho que perdi com o tempo a capacidade de me
importar — confessei. — Quando me envolvi com eles, sabia que eram dois
idiotas. Eu apenas me convenci de que só precisava de alguém para um dia
ruim, porque não queria ficar sozinha.
— Então não havia sentimentos?
Neguei devagar. Com exceção daqueles mau-trabalhados em mim,
havia muito pouco sentimento envolvido. Eu achava que apenas tesão
bastaria, e que o que conseguisse garimpar, evoluiria para algo mais. Claro
que isso não aconteceu.
Cristopher gastou um tempo considerável me mirando, como se
pensasse em algo.
— Se pudesse escolher, o que desejaria, Isla de Malta?
— Como assim?
— Que tipo de homem escolheria para amar e formar sua família? Deve
ter algo em mente, afinal, se não souber o que quer, como saberá quando
encontrá-lo?
Voltei a olhar para o mar, tentando pensar em tudo que gostaria de
alguém.
— Quero um cavalheiro de verdade — respondi. — Honrado, bondoso,
amigo. — Lindo como você, pensei, mas não disse. — E, já que estamos
sonhando, desejo que ele seja bem-humorado, gentil com as pessoas e com
os animais. Que pense de maneira progressiva e humana. Um homem que
adore a ilha, porque não quero sair daqui. Um cara que entenda que sou um
pouco atrapalhada e nem sempre sei ganhar dinheiro, mas sou animada e
bastante otimista.
Eu já não estava mais falando aquilo para Cristopher, e sim para mim.
Era a primeira vez em muito tempo que eu parava para pensar que tipo de
homem realmente me faria feliz. Uma tristeza que eu só me envolvia com
os que não me permitiriam nada disso.
Voltei a encará-lo com um sorriso resignado, notando que ele se
esforçava para entender cada palavra que saiu da minha boca. Cristopher
mostrava tudo o que sentia no rosto, dava para ver cada pensamento atrás
daqueles olhos translúcidos. Agora, a boca larga e bem definida estava
fechada em uma linha tensa, provavelmente desaprovando o que falei.
Aquilo precisava parar. Aquilo, no caso, era a montanha de sentimentos
que insistia em crescer dentro de mim por aquele homem incrível.
— Mas ele não precisa ser um herói — continuei, esperando que
Cristopher não achasse que estava falando dele. Encarei o mar, séria. —
Heróis partem. Vão embora em algum momento, porque têm outras
prioridades, coisas mais importantes do que permanecer com alguém. Não
me entenda mal, acho super válido lutar por grandes causas, mas sou do
outro grupo.
— Os que ficam para trás — Cristopher respondeu baixo.
— Esse mesmo. O mundo está cheio de gente como eu, cuidando das
pequenas coisas que as grandes precisam para acontecer. Estou bem com
isso, mas quero um homem que seja assim, para ficarmos juntos aqui.
Não me importava de fazer parte da legião de pessoas que ninguém
conhecia. Aquelas que enchiam estádios, filas do shopping, marchas por um
planeta mais verde. Ninguém realmente importante, cujos feitos o tempo
esqueceria rápido. Pessoas como eu preferiam um amor tranquilo, mas
presente. Podiam não ganhar museus em sua homenagem, mas podiam
dizer que viveram felizes.
Chacoalhei a cabeça, me perguntando por que estava pensando em tudo
aquilo.
— Bem, você perguntou, eu respondi. — Forcei um sorriso. — Agora
você, homem de lata. Se pudesse escolher, o que desejaria de uma mulher?
O que vi em seus olhos era puro fogo.
— Se eu um dia tivesse essa escolha — ele começou devagar, dando um
passo na minha direção, muito sério —, se soubesse que meus dias não
estão contados e que não morreria na batalha que me aguarda… — as mãos
envolveram o meu rosto, e a boca se aproximou da minha o suficiente para
sentir o cheiro bom do seu hálito — ...eu escolheria alguém como você.
Meu coração não me deixou ouvir a última palavra. Ele pisoteava meu
peito, causando estampidos alucinados.
— C-omo?
Os lábios dele tocaram nos meus, tão leves e delicados que mais
pareciam uma carícia.
— Uma mulher leve, alegre e livre. Completamente entregue ao meu
toque e boa de coração.
Aquilo era a coisa mais doce que eu já tinha ouvido na vida. Encarei os
olhos bonitos, emocionada e sem palavras. Ele se afastou apenas para
murmurar:
— Gosto de saber que hoje em dia posso beijar você nas ruas de Malta.
Sorri, tão derretida que achei que viraria uma poça no meio da calçada.
— Graças a alguns bravos heróis que lutaram pela nossa liberdade, você
pode — sussurrei de volta.
Ele sorriu, roçando a ponta do nariz imponente no meu.
— Então eu a beijarei, Isla de Malta, e, em seguida, a levarei para casa.
É hora de amá- la.
22
ATAQUE A MALTA
CRISTOPHER

A ssim que Isla entrou no banho, ouvi a sineta irritante ecoar pela casa.
Parei de passar o creme de avelã no pão, esperando que ela não
tocasse outra vez.
Infelizmente ela tocou, ofendendo repetidamente a audição.
— Cristopher? Veja quem é e peça para voltar mais tarde, por favor! —
Isla gritou do banho.
Eu sabia muito bem quem vinha. Sem escolha, larguei a barra de
chocolate quase finalizada e tirei minha espada do armário, pousando-a ao
lado da entrada. Limpando a barba dos resquícios do doce, abri a porta.
Como já imaginava, Mehmed, o otomano, me encarava do umbral.
Ao me ver sem camisa e apenas de calça, ele bateu as mãos nas pernas,
irritado.
— Fala sério! Você ainda está aqui? E desse jeito?
— Sim, eu ainda estou — respondi, seco.
Ele esticou a cabeça para dentro da residência, inspecionando a minha
cama-sofá ainda desfeita da movimentação recente e ouvindo o barulho de
Isla no banho.
— É impressão minha ou está se aproveitando de Isla? — Ele apertou
os olhos. — Não tem vergonha de abusar da boa vontade dela?
Cruzei o braço na altura do peito e o investiguei de cima a baixo.
Aquele homem estava começando a me importunar.
— Está insinuando que estou abusando da hospitalidade da minha
anfitriã?
— Estou, porque conheço tipos como o seu. — O atrevido ergueu um
dedo. — Sem emprego… — Ele ergueu outro, como se listasse algo. —
Oportunistas sanguessugas de mulheres carentes…
Aquele homem não fazia ideia do perigo que corria em perder o dedo.
Pensando em Isla e o quão irritada ficaria se eu batesse no homem, respirei
fundo e me controlei.
— Para seu conhecimento, não estou abusando da gentileza de
ninguém.
— Até parece. Está acampado há quase duas semanas na sala dela e não
vejo movimentação alguma para partir! — Mehmed teve a audácia de
aproximar o rosto de mim. — Você não passa de um hippie tentando se dar
bem em cima de uma garota desempregada, não é mesmo? Conheço
oportunistas da sua laia… Vocês não têm emprego, casa ou dinheiro, mas
adoram viver bem às custas de mulheres burras.
Estreitei os olhos. Ele acabou de chamar Isla de burra?
— Sabia que investiguei você? — O infiel teve coragem de dar um
passo adiante, mas recuou quando não me movi. — Fiz uma busca pelo seu
nome na internet e não achei nada. Por quê? Inventou um nome, foi isso?
— Ele fez uma cara de nojo. — Você não passa de um aproveitador barato
que não pode oferecer nada além de problemas e talvez doenças venéreas!
Mesmo entendendo apenas metade do que disse, rebati:
— E o que você teria para oferecer a ela, otomano? Um homem
disposto a cortejar uma dama precisa estar preparado para oferecer mais do
que palavras vazias.
— Cortejar? Você foi o que, criado pela avó? Posso oferecer tudo que
você não tem, vagabundo. Emprego, casa e dinheiro, além de um Porsche.
Consegue competir com isso?
Inclinei o rosto na direção do infiel e, com a calma adquirida por muitos
anos de oração, respondi baixo para que Isla não me ouvisse:
— Não sei bem de que maneira estaríamos competindo, já que Isla tem
casa, dinheiro e agora, trabalho. Além disso, mesmo com todo o espetáculo
que tenta dar toda noite — apontei para o teto —, não ouço Isla invocar o
seu nome, ou mesmo o seu Deus enquanto fornico com ela. E sobre o pox 1
que mencionou, espero que não seja transmissível, e que se cure
eventualmente. Agora, dê meia volta antes que minha paciência acabe e eu
corte os seus testículos e os pendure na frente da porta.
O homem arregalou os olhos e estufou as bochechas.
— Não pode me ameaçar com barbaridades! Tenho contatos na cidade,
sabia? Posso mandar destruir você!
Suspirei, profundamente enfadado. Por que as pessoas desta época
debatiam tanto? Na minha, toda essa impertinência teria lhe custado a
língua.
Com a paciência esgotada, puxei a espada de trás da porta e ergui a
lâmina. A ponta afiada encostou no peito do distraído, perfurando de leve o
tecido da camisa.
A espada o silenciou, graças ao bom Pai.
— Acho melhor dar meia volta e sumir, infiel. Não quero você tocando
esse maldito sino da porta ou usando aquele aparelhinho para falar com ela
outra vez, entendeu? Ela já disse e vou repetir: não é não.
O otomano perdeu a cor. Com os olhos esbugalhados, questionou:
— Que tipo de maluco aponta uma espada para alguém?!
A lâmina da espada respondeu por mim: eu.
— Quer saber? — Mehmed ergueu as mãos, dando um passo para trás.
— Se Isla é tão estúpida de não ver quem você é, quem não quer mais nada
com ela sou eu! Vocês são dois malucos que se merecem! — Ele aumentou
a voz, como se quisesse passar o recado. — Estou fora, ouviu? Aproveite
seus dias, malandro! Uma hora o dinheiro dela acabará, e aí, o que vai
fazer? Procurar outra trouxa para secar?
Cansado dos insultos, empurrei a espada de forma mais firme contra o
peito do homem e ele recuou dois passos, dando meia volta e saindo
correndo. Acompanhei sua subida até que sumisse na curva da escadaria.
As palavras do infiel foram muitas e quase não entendi nenhuma, mas o
pouco que compreendi me fizeram refletir.
Fechei a porta pensativo, concluindo que uma parte do que ele me
acusou era verdade. Estava realmente utilizando os recursos escassos de
Isla. Ela tinha parado de receber seu soldo há uns dias e eu a fazia gastar
muitas moedas comprando coisas doces para mim.
A voz feminina soou melódica do quarto de banho.
— Tinha alguém na porta, Cris?
— Ninguém importante. — Pousei a espada de volta no lugar,
caminhando até ela. Mehmed, o medroso, tinha razão: Isla era uma mulher
provendo por si mesma, sem a presença de um marido ou pai que a
amparasse. Era indigno da minha parte usufruir de seus parcos recursos sem
prover também.
Quando parei na sua frente, na porta do banheiro, ela abriu um sorriso
alegre, e o gesto fez todas as preocupações sobre dinheiro desaparecerem.
— Não assustou ninguém, não foi? Acho que ouvi o barulho da sua
espada arrastando no chão.
— Não sou um homem assustador. — Desci os olhos por ela. Meu
estômago voltou a se revolver ao vê-la enrolada naquela toalha minúscula, a
pele e cabelo úmidos cheirando a fruta.
Meu pau reagiu de imediato. Pelo sorriso que aumentou no rosto
feminino, ela também notou a minha animação.
— Você é, sim, assustador. Especialmente pelado. — O sorrisinho dela
se alargou ao descer os olhos pelo meu peito.
Abri o botão da calça com destreza.
— Gosta de levar sustos, maltesa?— perguntei rouco, chegando tão
perto que Isla precisou dar um passo para trás. — E punições por ser
malvada? Gosta também?
O pedaço de pano que segurava na frente do corpo caiu, revelando o
corpo bonito e cheio de curvas marcadas pelas minhas mãos e boca.
— Bem… um pouco — ela respondeu, mordendo o lábio inferior.
Abaixei a calça, mostrando a ferramenta de punição que usaria nela em
breve. A danada abriu a boca, soltando uma risada deliciosa.
— Se não sabe o que vai receber, é melhor correr, moça. Porque, agora,
é hora do meu ataque à Isla de Malta.
Ela me olhou de lado, um sorriso de canto e a sobrancelha erguida.
— Como os otomanos me atacaram no passado?
— Exatamente.
Se eu conseguia fazer piada com aquele horror, é porque a presença
curativa daquela mulher — além do tempo — estava me fazendo bem.
Isla soltou um gritinho, correndo em direção ao quarto, e a brincadeira
me incendiou. Saltando para fora da calça, a segui, nu e faminto, soltando
sons assustadores como faria antes de uma batalha.
— Você precisa parar de comer açúcar! — ela gritou do outro lado da
cama, corada e alegre. — Ele te deixa meio doido, sabia?
A loucura temporária chamava-se sugar rush, ela já tinha me contado.
A quantidade extra de doce me fazia ter picos de euforia e desejá-la três
vezes mais. Eu não via problema algum nisso. Desejar muito uma coisa
fazia ela acontecer, as pessoas deste tempo repetiam.
Ela deu um passo para o lado quando ameacei subir na cama. Isla
apertou os olhos, em dúvida se eu a atacaria mesmo. A mulher tinha
dúvidas? Então que entendesse de uma vez por todas que não pouparia
esforços para pegá-la.
Quando avancei sobre a cama, a feiticeira escorregadia deu a volta,
soltando uma gargalhada e rumando para a sala.
— Venha me pegar, cavaleiro lento!
Para me atrasar um pouco, Isla derrubou algumas cadeiras por onde
passava. Precisei saltar sobre elas e desviar de outros móveis para voltar a
me aproximar. Alguns momentos antes do infiel bater à porta, havia
deslizado a boca por aquele corpo sinuoso e pressionado as mãos contra
suas ancas. Alisara seus seios e beijara suas partes mais íntimas. Depois
voltara com a atenção para os lábios e a tinha penetrado sem piedade.
Era uma blasfêmia desejá-la novamente em tão pouco tempo, mas Isla
não fazia ideia da intensidade dos meus sentimentos, mesmo sem a carga
extra do açúcar.
Quando saltei na frente dela e a agarrei pela cintura, a feiticeira gritou,
se debatendo e me batendo de leve com os punhos.
— Sabe o que vai receber, não sabe, mulher? — Mordi de leve seu
pescoço, contendo-a quando tentou se livrar do aperto, ouvindo suas
gargalhadas se espalharem pela casa.
Vibrei internamente pelo que viria, segurando-a firme pela cintura
enquanto Isla se retorcia, tentando me fazer cócegas. Mais beijos estavam a
caminho. Mais vaivéns com os olhos cravados em cada mínima reação sua.
Então quando tudo acabasse, começaríamos tudo de novo — porque sim, eu
tinha comido uma quantidade absurda de açúcar.
Ao virá-la para mim, segurei-a firme na minha frente, pressionando os
corpos. Seu coração batia forte contra o meu e seus olhos brilhavam mais
do que mil estrelas. A pele das bochechas estava corada e o cabelo apontava
para todas as direções do globo. Eu mal conseguia respirar devido à
excitação e aos fogos faiscantes no estômago, coloridos e barulhentos como
os que me assustaram no dia em que a conheci.
— Peguei você — murmurei contra a sua boca. — Agora vou fincar
minha bandeira você sabe onde, e fazer essa terra inteiramente minha.
Com uma gargalhada, Isla enlaçou os braços ao redor do meu pescoço e
ronronou:
— Mal posso esperar.
Eu a ergui do chão e a carreguei de volta para o sofá. No entanto, antes
de que pudesse largá-la sobre as almofadas, ela balançou a cabeça, me
impedindo.
Estranhei, parando no lugar com ela no colo.
— Não? Não quer mais? — Por um segundo temi ser rejeitado, e a
sensação foi horrenda.
— Quero sim, cavaleiro. Só que hoje, quero você no meu quarto.
— O seu? — Estranhei, beijando a porta do nariz atrevido. Como Isla
nunca me chamou para ir até lá, tinha entendido que era um local proibido,
especial para ela.
— Sim — ela repetiu, mansa. — Quero você no meu quarto, desta vez.
Com um sorriso enorme, apenas obedeci.

ISLA

Ninguém admitia, mas o amor mexia com o tempo. Ele era capaz de
delongar momentos e encurtar outros. De ignorar o impossível e dar um
novo significado à palavra eternidade. O tempo, por sua vez, tinha um outro
tipo de poder: o de desbotar ou colorir intensamente os sentimentos. A falta
dele — do tempo —, conseguia aumentá-los, potencializá-los a níveis
insuportáveis, fazê-los parecer imensos e invencíveis.
Era isso o que eu sentia agora: o poder do tempo sobre os meus
sentimentos por Cristopher. Quanto menos dias eu tinha com ele, mais o
queria comigo.
Ele me deitou gentilmente na cama, pousando o corpo quente sobre o
meu. A luz azulada da noite entrava mansa pelas persianas e o perfume do
quarto era de pêssego.
Lábios experientes beijaram de leve minha testa, enquanto murmuravam
palavras incompreensíveis. Tão respeitoso, o meu cavaleiro. Então beijaram
minha face, a ponta do meu nariz, meu queixo. Continuaram descendo pelo
pescoço e vale dos seios até abocanharem o primeiro mamilo. Ele chupou a
pontinha dura, soltando sons de deleite e se ajustando ao meu lado, e então
se tornou possessivo, chupando mais forte. Enquanto a língua trabalhava no
bico, as mãos imensas deslizavam pela minha barriga, achando o caminho
entre as bandas meladas da vulva.
— Isla — ele murmurou com sua voz selvagem, tão masculino e
protetor. A cabeleira loira se moveu entre os meus seios, e precisei curvar as
costas quando as pontas dos dedos chegaram ao clitóris. Cristopher os
moveu, achando o pico sensível e fazendo círculos sensuais na ponta,
alternando entre deslizar o dedo sobre ele e beliscá-lo devagarinho. Aquilo
era tão perfeito que chegava a doer.
Minhas mãos não conseguiam ficar longe da sua pele. Eu acariciava os
ombros largos, o formato da cabeça por entre os fios longos, a robustez do
pescoço tenso. Minha boca às vezes pedia a sua e Cristopher interrompida a
tortura quase incapacitante para me beijar longa e profundamente.
Então, sem conseguir se segurar mais, seu corpo desceu sobre o meu,
denso e pesado. Ele cheirava a suor e maresia, como o próprio cheiro antigo
da ilha. Um aroma que penetrava na gente, que se espalhava debaixo da
pele e tomava tudo, exatamente como ele fazia comigo.
Enlacei a perna ao seu redor e o trouxe para mim. A urgência em tocá-lo
só aumentava e eu não conseguia parar de apalpá-lo porque sabia que em
breve não o teria mais. Só que no momento ele era meu e eu faria as
lembranças durarem para sempre. Precisava de memórias, de momentos que
me dessem certeza de que ele um dia existiu.
A verdade era que eu estava perdidamente apaixonada por Cristopher.
Sabia disso porque reconhecia o encanto das primeiras vezes. Era a
mesma sensação de quando éramos apresentados a uma música nova e
sabíamos que nunca tínhamos ouvido aqueles acordes antes. Como as
primeiras palavras de um livro bom, ou imagens nunca vistas em um filme.
A gente sabia quando estava diante de algo novo, algo bom e revelador, e
era com essa certeza de que eu reconhecia estar amando alguém de verdade
pela primeira vez.
Não era carência, nem tédio. Não era porque era proibido ou transitório.
Eu adorava aquele homem que agora se movimentava dentro de mim.
Adorava os olhos azuis quase transparentes. Amava a maciez dos fios
longos e perfumados do cabelo, bem como a dureza dos músculos. Sem
falar da coragem e da bravura que trazia com ele, o cuidado e o respeito
comigo. Amava tudo que ele era e representava. Esse homem era o meu
cavaleiro em armadura brilhante que chegara para me salvar.
Cristopher voltou com os beijos em direção ao pescoço, arrastando a
boca pelos meus ombros e colo. Então, achou a minha boca outra vez.
— Você me enfeitiçou, sabia? — Seu murmúrio saiu doce e dolorido. —
Ninguém conseguiria ser tão perfeita para mim.
Com olhos fechados, alisando as costas largas e suadas, sentia cada um
de seus beijos sugarem de leve minha pele. Não ouça suas palavras, Isla.
Expulse-as do peito, se puder, eu repetia, tentando não me perder naquela
ilusão de que tudo daria certo.
Unidos pelos quadris, eu tentava não ruir de tristeza.
— Minha Isla preciosa — Cristopher sussurrou no meu ouvido quando
o orgasmo chegou para ambos, tão forte e potente que eu ergui as costas da
cama e ele retesou inteiro. Eu pulsava ao seu redor, as ondas correndo pelas
minhas pernas e todos os meus nervos, enquanto o abraçava com força.
Aquilo não podia acabar tão facilmente com minhas defesas.
Mas acabou.
Após o orgasmo, Cristopher me abraçou com carinho, aninhando minha
cabeça em seu peito. Embalada pelos dedos que deslizavam pelo meu
cabelo, deixei que dormisse comigo, na minha cama.
A última barreira tinha sido cruzada.
Ele estava onde não devia nunca ter entrado: dentro do meu coração.

1 Uma doença viral (como a catapora ou a sífilis) caracterizada por pústulas ou erupções
23
ESPALHE A PALAVRA
ISLA

O tempo era um vilão, isso sim.


Ele arrastava os dias e fazia as noites parecerem curtas demais.
Havia vivido momentos idílicos com Cristopher nos últimos dias e
agora eles chegavam ao fim rápido demais. Tínhamos passado boa parte do
nosso tempo enfurnados em museus e passeando pela cidade, aguardando a
esperada ligação da Ordem que nunca chegou. Ironicamente, haviam me
dito ao telefone que Roma tinha seu tempo.
Roma até podia ter; éramos nós que não o tínhamos.
Folhas continuavam a voar do calendário, e nossas buscas por Aaron e
sua esposa não tinham dado em nada. Se soubéssemos o que aconteceu a
eles — tinham sido mortos naquele mesmo dia? Viveram tranquilos até a
velhice? —, Cristopher mudaria de ideia e decidiria ficar?
Eu sabia que ele havia se apaixonado pela ilha naquela última semana.
Havíamos caminhado algumas vezes sob as chuvas que abriam a nova
estação, conversando sobre a vida enquanto gotas pesadas lavavam as ruas
tomadas pelo asfalto. Seria um verão longo e quente, prenunciavam os
jornais, perfeito para passeios ao ar livre.
Cristopher quis retribuir tudo o que eu estava lhe dando e me levou até
o lugar onde costumava ir quando criança, no Norte da ilha, para que
sentisse o que era Malta em suas memórias. A infância dele cheirava a
papoulas e dragões-santos, a feno e erva-doce selvagem que crescia nos
campos abertos. Tudo ali era prova de que sua vida não fora apenas guerra e
dor. Ele teve momentos felizes em família, com amigos e brincadeiras de
criança. Aquilo me deixou feliz e ajudou a apaziguar um pouco meu
coração.
Depois, levei-o para conhecer o que era Malta para mim. Como
estávamos na época de festa nas aldeias, queria que ele visse a cor e as
encenações das danças típicas antigas. Algumas ele reconheceu, outras
nunca tinha ouvido falar. Vi, emocionada, Cristopher esquecer quem era e
se tonar, por alguns minutos, apenas um cara normal, que gostava de festas
e alegria. Assistimos aos fogos, desta vez sem susto ou medo, e nos
beijamos sob a chuva colorida sentindo o cheiro melado de açúcar ao redor.
Apresentei-o ao algodão-doce recém-fiado, à maçã caramelada e aos
salgadinhos fritos mergulhados em ketchup. Terminamos a noite
entrelaçados na cama, pegajosos e melados, segurando palavras que, uma
vez ditas, poderiam nos colocar em problemas.
Mas elas estavam lá. Em cada toque e sorriso, em cada olhar e nos
lábios pressionados.
Palavras de despedida também pairavam ao redor. Elas estavam lá todas
as vezes em que entrávamos em um museu e sentíamos aquele cheiro de
coisas antigas, o aroma doce e mofado das viagens no tempo. Chegavam a
pesar o ar, mas ninguém conseguiu dizer nada.
Agora, com os dias chegando ao fim, eu precisava acordar do sonho que
estava vivendo.
— Você está com aquele olhar apaixonado, Isla. Eu te conheço.
As palavras de Lilli me despertaram dos pensamentos doloridos. Estava
tão óbvio a ponto de estar estampado no rosto?
— Até parece.
Deixei o quarto e me enfiei no banheiro, mas ela veio atrás. Tentei
fechar a porta e me isolar, mas minha amiga era teimosa e se enfiou pela
brecha, trancando-se lá dentro comigo.
— Não está? Olhe para mim e diga a verdade. Está ou não apaixonada
pelo viajante do tempo?
— Como posso me apaixonar por um homem que veio do passado? —
perguntei com as mãos na cintura.
— Já se apaixonou por coisas piores.
— Seria loucura ter sentimentos por alguém que nunca mais vou ver. —
Cocei a cabeça, e dessa vez nem tentei fugir do olhar censurador da minha
amiga. — Ele vai embora, droga. Prefere viver naquela loucura que foi os
últimos dias do Cerco do que ficar aqui... Comigo.
— Você não tem juízo, sabia? Sua capacidade de escolher homens
errados atingiu um novo patamar.
— As reclamações devem ser direcionadas para o setor responsável.
Aqui é o de sonhos impossíveis — devolvi para ela, sem humor. —
Obrigada por nada.
— Como pode ter se apaixonado por um homem que não conhecia um
interruptor? — Lilli ergueu as mãos para o alto. — Que destruiu seu
despertador com um golpe de espada?
— Não sei se notou, mas ele tem qualidades!
— Claro que tem: ele é lindo. Parece ter saído de um filme de super-
heróis, deve ter uma piroca incrível, mas cá para nós? Que futuro você
achou que teria com ele?
Afundei o rosto entre as mãos. Futuro algum. Não pensei nisso, eu só
entreguei meu coração!
Recostei na pia, enquanto minha amiga se sentava sobre a privada. Por
longos segundos não trocamos palavras, porque eu não queria ouvir a
verdade. Estar apaixonada por Cristopher nem era a novidade. Pela primeira
vez, estava realmente arrebatada por um homem decente. Eu amava o
encantamento dele por absolutamente tudo que era novo. A casca bruta por
fora e toda a doçura por baixo. A forma como ele olhava para mim e
parecia me perfurar inteira, ou o jeito como me segurava com delicadeza,
como se eu fosse quebrar. Sem falar das palavras que dizia com a voz
talhada em aço.
— Eu não queria que ele partisse, Lilli. Sei que não vai sobreviver lá.
Consegue entender a minha agonia? Aquele homem perfeito, doce,
atencioso e heroico vai morrer assim que pisar no passado, e não há nada
que eu possa fazer!
— Disse isso a ele? Que gostaria que ele ficasse?
Neguei com a cabeça. Não tinha coragem. Não estava preparada para
ouvir sua negativa.
— Nada o fará desistir de voltar — resumi, infeliz, a situação.
— Ele gosta de você? Pelo menos um pouquinho?
Soltei um riso fraco.
— Gosta. Não ao ponto de largar tudo para ficar no presente,
obviamente, mas os sentimentos dele são verdadeiros. Ele tem honra
demais para fingir e mal consegue tirar as mãos de mim quando estamos
juntos.
Lilli fez a cara de “que merda, isso é tão doce” junto com um sorriso
triste. Odiava admitir, mas tinha gostado da resposta, mesmo que não
devesse.
— Sinto muito pelo seu coração, amiga. Ele vai quebrar mais uma vez.
Assenti devagar. Eu sabia disso, sempre soube, porém, como lutar
contra um sentimento daqueles? Agora, a única pergunta que eu tinha era:
ele teria remendo, desta vez?
Lilli respirou fundo, batendo as mãos nas pernas.
— Bem, não vamos chorar sobre o leite derramado. Vamos salvar
Cristopher de Alice. Ela está surtando com toda essa coisa de viagem no
tempo. Veio dizendo durante o caminho que não acreditava, que eu estava
ficando louca, mas no segundo em que viu o homem, ficou balançada pela
possibilidade.
Chutei de leve a canela da minha amiga, olhando-a de lado.
— Nem acredito que vocês voltaram. Quem é mesmo a pessoa com
dedo podre para romances?
Lilli e Alice acumulavam mais idas e vindas do que havia dedos nas
mãos para contar, e toda vez que decidiam retomar o relacionamento, se
frustravam. Alice nunca queria nada sério, e Lilli, embora a única racional
entre as duas, não conseguia resistir às ligações no meio da noite.
— Voltei, né. Também tenho baixa resistência à tentação.
— O que será que deu errado com a gente, amiga? Será que algum dia
vamos ter um relacionamento calmo e que dure? — Por que eu não tinha
nascido uma pessoa calma e serena como minha irmã? Ou pelo menos
ajuizada como a maioria das outras pessoas?
— Não sei, mas estou preocupada com você, Isla.
— Vai doer, não vai? — perguntei baixinho, sem precisar dizer o quê.
— Vai, amiga. Mas estarei aqui quando acontecer, e quero que saiba
disso.
Lilli se levantou e me puxou para um abraço apertado. Ela depositou um
beijo na minha bochecha, e eu a apertei mais forte. Quando a soltei, precisei
abanar os olhos para secar a umidade. Ia doer um pouco mais dessa vez do
que nas outras, mas eu aguentava o tranco.
— O quê?! — A voz masculina indignada, vindo da sala, nos fez trocar
olhares.
— Acho que precisamos salvar seu namorado da minha — Lilli disse o
óbvio.
— Coitado do Cristopher — murmurei antes de deixar o banheiro junto
com minha amiga.
Ao chegarmos na sala, meu cavaleiro encarava Alice com um ponto de
interrogação na testa.
— Tudo bem por aqui? — perguntei ao me sentar ao lado dele. — Você
está com a mesma cara de quando viu um aspirador de pó pela primeira vez.
Os olhos claros acompanharam perplexos a chegada de Lilli, que se
sentou ao lado da namorada sobre algumas almofadas espalhadas no tapete.
— É verdade o que ela acabou de me contar? — Cristopher perguntou.
Lilli olhou para mim, confusa.
— Sobre o quê?
Ele apontou para Alice.
— Ela disse que vocês são amantes.
— Namoradas. — Eu o corrigi mais uma vez. — Não apontamos para
as pessoas e dizemos que são amantes, lembra?
Cristopher olhou confuso para mim. Aquele não era o ponto.
Segurando a risada, Lilli se serviu de mais vinho.
— Sim, cavaleiro, é verdade — respondeu. — Eu e Alice somos
amantes. E namoradas.
— Mas vocês duas são mulheres! — ele retrucou, perplexo.
— Eu sou. — Alice ergueu a mão, divertida. — E posso garantir que
Lilli é também.
O pobre homem estava mais desorientado do que quando viu um avião.
— Como isso é possível? Como é que… que duas mulheres…
Alice chegou a abrir a boca para explicar com detalhes como o
relacionamento entre mulheres não apenas era possível, mas bastante
normal, mas Lilli a interrompeu. Era melhor que me deixassem lidar com
Cristopher.
— Mulheres hoje em dia podem namorar mulheres, assim como homens
podem namorar homens — revelei de forma didática. Ele chacoalhou a
cabeça, confuso, e aproveitei para servi-lo com o resto do vinho. Ia ajudá-lo
a relaxar e a deixar o assunto de lado.
— Tenho certeza de que não é a primeira vez que ouve isso, Cris.
Ele me lançou um olhar pensativo, e sei que revisitou alguma história
pregressa, ou alguma desconfiança nunca verbalizada. Não era possível que
na sua convivência quase exclusivamente masculina não tivesse havido
rumores. Inventamos muitas coisas no século XXI, mas a
homossexualidade definitivamente não era uma delas.
— Nós ouvíamos histórias… Só que as considerávamos blasfêmias.
— Uma blasfêmia tão grave quanto fornicar sem fins de procriação,
aposto. — Lilli sorriu para ele, que entendeu rapidinho a indireta.
— Mas vocês podem se casar? — ele questionou, sério. A pergunta não
tinha maldade, apenas uma curiosidade intrínseca.
— Se quisermos, sim.
— Você poderia se casar com uma mulher, se quisesse? — Ele olhou
para mim.
— Se eu desejasse, sim. E você com um homem também — confirmei,
deslizando uma das mãos para dentro da dele.
Ele entreabriu a boca, chocado. Lilli e Alice começaram a rir.
— Ele só pode ter vindo do passado, realmente. — Alice estava mais do
que convencida.
Cristopher se recostou no sofá, dando um gole generoso no vinho.
— Ninguém acreditará quando eu contar sobre isso em 1565.
A frase trouxe uma tristeza dolorida, e minha mão deslizou para longe
da sua. Toda vez que ele falava em retornar, eu congelava por dentro.
Mencionar sua volta ao passado não era apenas admitir que nossos dias
estavam contados, mas para mim, era saber que, antes que o sol se pusesse
no dia 23 de junho de 1565, Cristopher morreria em São Elmo.
Lilli se levantou e trouxe mais uma garrafa de vinho. Ela encheu as
nossas taças, voltando a se sentar.
— Já que vai falar com seus amigos sobre o que viu aqui, precisamos
que espalhe a palavra, grandão — ela aproveitou para dizer.
— Sobre o quê?
— Sobre terem descoberto, no século XXI, que mulheres são mais
espertas que os homens.
— Isso é verdade? — Cristopher se virou para mim, desconfiado. Alice
e eu nos entreolhamos, e a brincadeira acabou espantando a tristeza.
— Sim — Lilli respondeu no meu lugar. — Também descobriram que
sabemos dirigir melhor, somos melhores na escola, na ciência, e até
melhores estrategistas de guerra.
Rolei os olhos, ouvindo Cristopher exalar, surpreso.
— Pare com isso, Lilli.
— Deixe-o levar a informação para o passado, oras! — minha amiga se
defendeu. — Quem sabe as coisas não melhoram para a gente?
— Lilli está brincando com você, Cristopher. — Esbarrei o ombro no
dele. — Ela acha que, se você começar a fofoca no século XVI que somos
perfeitamente capazes de qualquer coisa, talvez a situação mude para nós.
A visão do sorriso tranquilo fez meu pobre coração perder uma nova
batida. O braço de Cristopher envolveu meu ombro, e sua voz rouca
respondeu perto do meu ouvido:
— No fundo, eu sempre soube que vocês eram melhores do que nós.
Roubei um beijo discreto dele, voltando logo ao lugar. Beijá-lo andava
doendo.
— Já pensou em não voltar, Cristopher? — A voz de Lilli me fez
enrijecer.
Ao invés de soltar a resposta direta, ele hesitou por alguns segundo, o
olhar virado para o teto. Depois, bebeu mais um gole do vinho e limpou a
boca com a manga da camisa.
— Esse não é o meu tempo. Não posso ficar.
— Às vezes temos a impressão de que não é o nosso, também. — Lilli
olhou para Alice e sorriu de forma doce.
— Nosso tempo é onde está o nosso propósito — ele murmurou.
— Entendi. Mas a questão é outra. O seu antigo propósito ainda te faz
feliz?
A provocação de Lilli tinha a intenção de deixá-lo pensativo, e
funcionou. Troquei olhares com ela, pedindo em silêncio que parasse. O
assunto do retorno dele me fazia fisicamente mal.
Infelizmente, a questão devia estar entalada em Cristopher, porque ele
continuou:
— Vocês de hoje em dia dão muita ênfase à felicidade pessoal. Eu e
meu irmão sempre lutamos lado a lado, pela Ordem, e isso nos fazia feliz.
Se eu não voltar, ele achará que morri. Sem falar que não sei se ele não
morreu também, tentando escapar. Essa dúvida rasga minha alma ao meio, e
tenho certeza de que rasga a dele não saber o que aconteceu comigo.
— Rasgaria um pouco mais se você morresse ao retornar, não? — A
pergunta de Lilli fez meu estômago reclamar do vinho. — Pelo que Isla me
contou, ninguém sobreviveu à tal queda do forte.
— Só terei certeza do que vai acontecer quando retornar — ele
devolveu de forma breve e serena.
— Acha que retornará para o mesmo minuto em que partiu?
— Não sei, mas preciso estar preparado para isso. Sem falar que tenho
mais conhecimentos agora do que quando parti. Pode ser que isso altere
meu destino.
Exalei sem paciência ao sentir a pedra contra a minha pele amornar.
Estava cansada daquelas mensagens térmicas, de ouvir angustiada sobre o
retorno de Cristopher. Ele estava decidido a partir e morrer defendendo o
irmão. Nada do que dissesse o dissuadiria da ideia.
Quem era eu para forçá-lo a ficar, afinal?
Precisando arrancar aquela coisa do pescoço, me levantei de forma
brusca, assustando os outros três. Não queria mais ouvir as mensagens
mágicas, nem sonhar com algo que em breve desapareceria da minha vida.
Só eu podia me ajudar, e começaria jogando aquela pedra fora.
— E isso acontecerá no solstício, daqui a três dias? — Alice questionou.
— Vamos mudar a conversa, por favor? — pedi, caminhando até a pia
para jogar o vinho fora.
— Isla comentou que você poderia ficar no presente e trabalhar
treinando pessoas — ela continuou a argumentar. — Com lutas de espadas,
se não me engano.
Apoiei as mãos na bancada. Meus dedos apertaram o granito frio,
aguardando a continuação da conversa. Cada possibilidade era uma
rachadura no meu coração, uma que não se curaria tão cedo.
— Para fins de diversão? — Pude ouvir o desgosto na voz masculina.
— Eu não conseguiria.
— Ele não quer ficar, droga! — falei, dura, para elas. — Não insistam.
— Desculpe, Isla. Eu só queria dizer que, se ele pensasse em ficar, teria
como ganhar dinheiro — Lilli se defendeu. — Você saberia fazer isso
acontecer, não?
Sim, eu saberia exatamente o que fazer com todas as habilidades de
Cristopher, mas essa não era a questão. A questão é que ele não queria ficar,
ponto final. Ele me viu digitar a proposta para a história do Cerco no
computador e enviar para um amigo roteirista. Sabia que, se ficasse comigo
no presente, poderíamos fazer isso juntos.
Ele só não queria. Não me queria.
— Preciso… resolver uma coisa. — Dei meia volta e rumei para o
quarto, precisando de um segundo sozinha. Uma lágrima furtiva já tinha
rolado e eu não ia deixar que ninguém a visse. Sempre fui a idiota que
lidava com os fins da maneira mais otimista possível. Era apenas o meu
dedo podre; os homens eram todos iguais.
Mas ali estava um diferente, e perdê-lo estava doendo mais do que
jamais esperei.
Entrei no quarto escuro e me deitei na cama. O momento de tristeza ia
passar; eles sempre passavam.
Minutos depois, ouvi uma batida na porta. Cristopher abriu uma fresta e
perguntou se eu estava bem.
— Só estou com um pouco de dor de cabeça. — Sequei os olhos. —
Não é nada, daqui a pouco eu volto para a sala.
Com três passadas ele se ajoelhou ao meu lado. Seu rosto se alinhou ao
meu, e mesmo com a face escurecida pela penumbra, seu olhos eram duas
chamas na noite.
— Por que está no escuro, Isla?
— Eu já falei, eu estou com…
A mão imensa pousou sobre a minha. O polegar alisou o dorso, e então
veio sua boca. Leve, macia e respeitosa. Ele a beijou com cuidado,
trazendo-a até seu peito.
— O assunto me entristece também, saħħara. Sei que está chateada por
causa dele.
— Tenho medo do que vai acontecer com você. Só isso. Como pode não
sentir o mesmo?
— O medo nunca me impediu de fazer nada.
— Ah, sim, claro — disse sem vontade. — Porque você é um herói.
— Não sou um herói, Isla. Só fui treinado para defender as pessoas que
eu amo. Não faria isso pela sua irmã? Não daria a vida por ela?
— É claro que sim. E admiro sua abnegação e coragem, mas não gosto
de pensar que está indo de encontro à morte!
Ele beijou minha testa.
— Eu entendo, amor.
Fala sério: amor? Isso era o golpe que faltava para me destroçar por
completo.
Cheguei a abrir a boca para implorar que ficasse. Que não fosse. Que
me escolhesse. Mas quem era eu para pedir aquilo? Uma cabeça na
multidão. Uma ninguém.
Ao meu lado, ele não conquistaria nada. Não entraria para a história,
não protegeria quem amava, não lutaria pelas grandes causas. Ao meu lado,
Cristopher frequentaria shoppings centers e se divertiria em noites regadas a
vinho. Teria que trabalhar para entreter as massas e deixar seus nobres
propósitos de lado.
Do outro lado do tempo, haveria a glória e o reconhecimento. Sua
coragem talvez fosse narrada de boca em boca entre homens valorosos
como ele. Talvez fizessem até músicas em sua homenagem. Seria lembrado
como alguém que fez algo grande. Inspiraria outros a agirem igual.
O problema é que, de qualquer ângulo que visse a história, ele
terminava morto no final. Mesmo que sobrevivesse ao Cerco e tivesse uma
vinda longa, acabaria seus dias sem mim. Enquanto eu ficaria no futuro,
sozinha, apenas com as suas lembranças. Pensar em mundo sem ele partia
meu coração.
Cristopher se sentou na cama, me puxando para me acomodar em seu
colo. Então, me amparou com seus braços grandes e fortes e beijou a minha
testa.
— Não quero voltar para a sala — ele confessou.
— Não podemos deixar as visitas sozinhas.
— Posso dizer que também estou com dor de cabeça, que tal? — ele
sugeriu, beijando de leve o meu pescoço. Contraí os ombros pela carícia,
negando.
— Elas não vão acreditar. Você não sabe mentir.
— Então posso dizer que o meu coração está doendo.
Os dedos grossos viraram meu queixo até ele. As pontas traçaram o
contorno dos meus lábios e então nossas bocas se uniram. A língua
perfumada e urgente procurou a minha, e eu me entreguei com toda a
saudade adiantada. Tentei não pensar que aquilo era apenas um curativo
para uma ferida grande demais, que eu continuaria a sangrar e sangrar se
não estancasse logo o que me machucava, mas não consegui me mover.
Ofegante, as mãos grandes me apalparam inteira, como se precisassem me
sentir presente.
Eu ainda estava ali.
Ele ainda estava ali.
Quando nos afastamos, Cristopher abriu os olhos e tocou a própria
pedra.
— Sinta, Isla.
Seu pingente estava quente, assim como o meu.
— A pedra ficou assim a noite inteira, e anda acontecendo com mais
frequência. Às vezes, acho que ela fala comigo.
— Fala o quê? — perguntei.
— Eu não sei, não entendo. Mas, na última noite, sonhei com a ponta
norte. O lugar onde meu irmão morou depois que largou a Ordem. A pedra
quer que eu vá até lá.
Toquei a minha própria pedra, no momento, fria como outra qualquer.
— Por que ela iria querer te levar até lá?
— Eu não sei, mas preciso ir antes de partir de vez. Por favor, preciso
visitar o lugar, e só terei forças se for comigo.
24
SENSAÇÃO DE UMA PRESENÇA
ISLA

A s Torres de Redin faziam parte de uma coleção de treze construções


de vigia costeiras construídas pela Ordem de São João durante o
tempo em que os cavaleiros governaram a ilha. Oito ainda
permaneciam de pé, e, segundo Cristopher, foi em uma delas que seu irmão
viveu durante os anos de reclusão.
A que estávamos visitando ficava na costa oeste, virada para o canal
entre Malta e a ilha de Gozo, mais ao norte. A construção de pedra, de
arquitetura simples e quadrada, dava para a imensidão azul do Mediterrâneo
e era rodeada por terra seca, pedras escuras e arbustos baixos. Hoje via-se
trilhas que cruzavam a encosta, indicando que o lugar era visitado por
amantes de aventuras e alguns poucos dispostos a explorar as cavernas e
falésias metros abaixo. Mesmo séculos depois, aquele ainda era um local
ermo, e a construção estava abandonada.
— Segundo o guia, há dezenas de torres iguais a esta ao redor de Malta.
— Ajeitei a brochura para ler melhor. — Todas construídas depois que os
cavaleiros chegaram. Garzes foi a primeira, depois vieram as torres de
Wignacourt, seguidas pelas de Lascaris e De Redin.
— Fico feliz em saber que finalmente as construíram. — Cristopher
caminhava por entre os arbustos espaçados, os passos lentos e os olhos no
chão. — Éramos constantemente atacados por corsários. Eles usavam o
porto de Mġarr para reabastecer os estoques de água e sempre saqueavam
tudo que encontravam.
— Estudei na escola sobre o ataque de 1551. — Olhei-o, vendo que ele
havia parado de frente para o mar. — Estava na ilha quando aconteceu?
Cristopher assentiu. O ataque frustrado de 1551 ficou conhecido pela
maldade que acarretou, e até eu, que não me lembrava muito sobre as aulas,
me lembrava daquele, ocorrido 14 anos do Cerco.
— Eu estava começando o treinamento — ele começou a contar, ainda
de costas. — Os otomanos estavam tentando tomar Malta mais uma vez.
Quando não conseguiram, sitiaram Gozo e levaram a população inteira
como escravos. Todos nós perdemos familiares e amigos naquele dia. Se
tivéssemos torres como esta na época, talvez tivéssemos avistado os
invasores a tempo e impedido a tragédia. — Ele voltou a caminhar, a cabeça
sempre baixa, assim como a voz. — Meu irmão insistiu muito para que
fossem construídas. Se não me engano, esta foi a primeira que realmente
serviu como posto de vigília.
Quando parou diante da torre abandonada, ergueu o rosto devagar,
absorvendo o impacto da construção. A essa altura, eu já reconhecia quando
ele estava atormentado, e aquele era um desses momentos. A testa tinha
linhas pronunciadas e o olhar, sempre tão claro, estava escurecido.
— Meu irmão largou a Ordem, mas não conseguiu deixar de se
preocupar com o povo. Ele aceitou vir para cá mesmo querendo distância
das guerras.
Observei com cuidado a torre baixa, as janelas estreitas e a porta de
ferro, sentindo um calafrio percorrer a minha espinha. Alisei os braços para
espantar a sensação estranha. O lugar não era novidade para mim. Eu já
tinha estado ali antes com um grupo de amigos, quando era adolescente. Na
época, não gastei um segundo pensando sobre quem morara ali, por que
renunciara a tudo para viver recluso ou o preço que pagara pela segurança
dos moradores da ilha. Eu começava a pensar diferente depois de encontrar
Cristopher. Nosso encontro trouxe outra visão sobre o caro esforço
individual em prol de todos.
A placa de Herança de Malta fixada em metal na parede mostrava que a
torre estava sob os cuidados do departamento de turismo, porém não mais
aberta para visitação. De qualquer forma, Cristopher demonstrou interesse
em entrar.
Pegando o caminho contrário, ele andou até o outro lado da torre. Eu
sabia que ele precisava de tempo para reconhecer o lugar e pensar no irmão,
por isso me sentei sobre uma mureta baixa, esperando que, quando fosse o
tempo certo, ele me chamaria.
Vi quando ele se inclinou sobre uma pedra rente à falésia, a silhueta
forte e contemplativa tensa de tanto pensar no que pode ter acontecido a
Aaron. Ele levou, então, as mãos ao cabelo e afastou os fios. Seu rosto
continuava duro e focado no horizonte, mas os olhos estavam secos.
Deus, eu o entendia. Compreendia sua agonia e sua dor, embora
conhecesse dela apenas uma fração, mas estava claro, para mim, o seu
desejo e motivos para retornar. Ele nunca teria um dia de paz na vida se
optasse por ficar. Ele precisava saber qual foi o destino das pessoas que
amava.
Incomodada com o desânimo que parecia exalar dele, deixei a bolsa de
praia sobre a mureta e me aproximei. Abracei-o por trás, colando a face em
suas costas e ouvindo seu coração potente bater. Em retorno, ele pousou as
mãos quentes sobre as minhas, no centro do seu peito. Permanecemos assim
por algum tempo, tentando entender como passado e presente poderiam se
encontrar. Nossos caminhos jamais deveriam ter se cruzado, mas ali
estávamos.
— Seu irmão pode ter sobrevivido a São Elmo e voltado para cá —
sussurrei contra a camisa clara. — Já pensou nisso? Que ele viveu uma vida
longa e feliz com a feiticeira, nessa torre?
Senti seu pulmão esvaziar de ar, e os ombros fortes se curvarem de leve.
— Não consigo imaginar isso. Porém, eu o sinto aqui. Quão estranho é
sentir a presença de alguém em um lugar, mesmo depois de tanto tempo?
O que era exatamente estranho? Eu mesma estava ali, abraçada a
alguém que não vinha do mesmo século que eu. Nada mais era estranho
para mim.
— Eu também sinto alguma coisa — confessei.
Algo que inexistia para os olhos, mas estava ali. A sensação de uma
presença. Era assim que eu conseguia explicar o que percebia naquele lugar.
— Não paro de pensar em Aaron. Se ele chegou até o outro lado da baía
em segurança, se sobreviveu a São Ângelo. Ele era corajoso, intrépido, não
tinha medo de nada. Um guerreiro imbatível. Se ele estava no outro forte na
hora da batalha, foi o primeiro a deixar a segurança para atacar os invasores
em solo.
— Foi por isso que se ofereceu para morrer por ele? Por que seu irmão
teria mais chances de vencer?
Cristopher negou. Com a testa franzida, precisou de um tempo para
organizar as palavras.
— Eu me sacrifiquei porque Aaron estava feliz. Era a primeira vez que
o via assim em muito tempo. Ele queria salvar a feiticeira e o filho que ela
estava esperando. Tinha um propósito de vida, um futuro… Já eu, não.
Tocada em ouvir aquilo, me coloquei na pontinha dos pés e apoiei o
rosto em seu ombro.
— Você sempre se refere a ela como “feiticeira.” Por que a chama
assim?
As mãos de Cristopher continuavam sobre as minhas, alisando o dorso e
fazendo desenhos aleatórios sobre a pele.
— Ela sabia de coisas, mas escondia. Falava como vocês falam sem
nunca dizer de onde vinha.
— Ela falava como nós? — Aquilo me soou estranho.
— Agora que entendo melhor o que dizem, posso afirmar que sim.
— Cristopher — soltei-o e dei a volta para encará-lo —, já pensou que
ela poderia ser do futuro? Se ela era recebida pelos comandantes do seu
regimento, talvez soubesse detalhes da batalha. — Os olhos azuis da cor do
céu estavam fixos nos meus, mas não pareciam surpresos. — Se você veio
para cá, ela pode ter ido para o passado.
— Aaron teria me contado — ele respondeu de maneira sucinta.
— Que a mulher pela qual se apaixonara vinha do futuro? Tenho certeza
que não. Além do risco de ela ser chamada de bruxa e, sei lá, ser queimada
viva, seu irmão sabia que você encararia aquilo com desconfiança. Ou
então, o segredo foi um pedido dela.
Cristopher alisou a testa, pensativo. Seu irmão teria escondido aquilo?
Talvez até mesmo concordado com o envio dele para o futuro?
— Aaron não faria isso comigo.
— Não tem como saber disso.
— Mas como ela foi parar lá?
— Da mesma maneira que você veio para cá. Acho que a pedra é a
responsável pela viagem. Talvez a pedra e o solstício juntos, não sei. A
mulher que me vendeu essa tinha muitas outras iguais.
— Disse que comprou a pedra de uma mulher estranha, certo?
— Sim, a idosa que conheci na feira. Acha que ela talvez seja a
feiticeira? Ela pode ter ido para o passado quando era jovem, e agora…
voltado para envelhecer aqui.
— Não sei, Isla. A feiticeira do meu irmão não é uma velha. Ela é um
pouco mais velha do que você. Além do mais, quem acha que ela vem do
futuro é você. Tenho outras teorias a respeito. Desde o primeiro momento
em que a vi, pensei que fosse uma inimiga. Uma infiltrada dos otomanos,
ou um dos muitos espiões de De Valette. Isso explicaria por que ela falava
de um jeito estranho e sabia de coisas que poderiam ser úteis na guerra. Ela
podia muito bem ser de outro país.
Ele tocou a própria pedra, me encarando com aqueles olhos
assombrosos.
— Não gosto de pensar que seja a pedra a responsável pela minha
vinda.
— Por que não? — perguntei.
Cristopher deu um passo adiante e derreti contra o seu abraço quando
me puxou para si. Ele me apertou contra o peito de aço, a boca deslizando
agoniada pela lateral do meu pescoço. Fechei os olhos e apenas senti o
carinho, a paixão, mas também a segurança de saber, mesmo que
tristemente, que ali era o meu lugar no mundo.
— Porque se eu acreditar que a pedra é a responsável, então você corre
perigo, já que também a tem. Temo mais do que a morte que suma dos
meus braços sem aviso, saħħara.
Aquelas palavras me paralisaram. Cristopher tinha medo de que eu me
fosse? De que a pedra me levasse para outro tempo? Um pânico súbito
desceu sobre mim: e se eu pudesse ser realmente arrancada do seu abraço?
Preocupada com o que poderia acontecer com ele, não dei atenção a outro
fato: eu também tinha a pedra viajante.
Em um gesto rápido, me livrei do colar, jogando-o no chão, e depois fiz
o mesmo com o dele. Não queria deixar minha vida, meu tempo, mas
principalmente, não queria ser levada embora daqueles minutos que
restavam. Eu estava vivendo por eles. Sempre no aguardo do toque daquele
homem incrível, de sentir sua presença maciça perto de mim.
— Não ouse falar em partir hoje — ordenei, olhando-o firme. — Nem
em recolocar esse colar. Ainda temos dois dias e eu não estou preparada
para a sua partida. — Meus olhos ameaçaram umedecer, mas chacoalhei a
cabeça e recuperei a compostura. — Está cedo demais.
Ele concordou, e voltei a abraçá-lo como se quisesse fundir nossos
corpos e almas. Nos transformar em uma coisa só para que nos tornássemos
indivisíveis. Cristopher acariciou meu cabelo por um longo tempo, e eu
passei todos aqueles segundos tentando não ruir.
Então, o medo foi substituído pelo sentimento de gratidão. De ser, na
verdade, não um para-raios de problemas, mas uma garota extremamente
sortuda por tê-lo conhecido.
— Sabe, Aaron costumava me contar sobre sua vida aqui. — Cristopher
entrelaçou os dedos aos meus, assim que nos recompomos. A trilha era
íngreme e dava na praia, muitos metros abaixo. — Ouvi diversas vezes
sobre essa praia onde ele podia pescar. Ela deve ficar lá embaixo.
O dia estava ensolarado e o cheiro era de mar e areia molhada. A tal
praia era visitada apenas por lanchas de turismo e donos de iates, mas não
havia ninguém por perto naquela manhã.
A pequena enseada era rodeada por paredões de pedra escura e banhada
pela água mais cristalina da ilha. Grutas cavadas nas pedras mostravam
arcos vazados por onde víamos o oceano azul encontrar o céu. Era um dos
lugares mais lindos que já tinha visto em Malta.
Assim que pisamos na areia, Cristopher arrancou o tênis e a camisa e
ficou apenas com o jeans, que delineava as curvas poderosas do corpo
perfeito. Ele era longilíneo, proporcional, maciço. Suas pernas eram
robustas e fortes, e seus braços, invencíveis. Ele parou na frente do mar e
fechou os olhos, sem se importar que as ondas fracas molhassem a barra da
calça. Sei que não estava em paz, mas a procurava.
Também arranquei o tênis e o short, depois a blusa, ficando apenas com
o biquíni. Acabei me sentando sobre uma tolha estendida, sentindo o calor
morno do chão e afundando os pés na areia clara e macia.
Quando ele finalmente se virou, abriu um sorriso tranquilo.
Não havia viva alma na praia e eu sabia bem o que aquele rosto safado
indicava.
— Você está trajando aqueles três triângulos da foto. — Cristopher
caminhou até onde eu estava e se ajoelhou na minha frente, pousando uma
mão em cada joelho meu. — Notei que muitas usam isso na praia.
Alisei seu peito, adorando como os olhos corriam ávidos por mim.
— Desde quando olha para as mulheres de biquíni na praia, Cristopher
de Landa?
— Não tenho qualquer interesse nas outras. — O olhar azul capturou o
meu, mostrando que falava a verdade.
Enlacei-o pelo pescoço e beijei de leve a boca bonita. Arrastei o rosto
pela barba macia, adorando a sensação áspera misturada ao cheiro
conhecido de suor.
— Adoro que seja assim, sabia? Tão sério e nobre… Tão correto a
ponto de nem olhar para outras.
— Por que olharia? — Ele repetiu o carinho, as mãos calejadas e
imensas deslizando pela curva da minha coluna. — Você é perfeita, Isla. O
mundo visto dos seus olhos parece bom, e eu aprendi muito com você nos
últimos tempos.
— O mundo é bom. — Beijei-o de leve na boca.
— Não o meu.
— Ele é agora. — Mordi seu lábio inferior, sentindo o coração potente
bater contra as palmas da mão. — Se decidisse ficar aqui, poderia ver como
ele pode ser gentil. Como nós…
Ele não me deixou terminar.
— Não vou ficar. — A frase curta, aliada ao tom decidido, foi uma
chuva gelada sobre o calor que me incendiava.
— Eu sei. Eu só sugeri que...
Ele me calou com a boca. O beijo foi possessivo, direto, faminto. Era
mais do que um toque simples de lábios, porque era também uma forma de
apagar o futuro e o que o esperava. Ele me queria, este era o presente e
aquilo era o que podíamos ter.
A língua invasora passeou pela minha boca e as mãos agarraram a alça
da calcinha, forçando-a para baixo.
— Cristopher, alguém pode nos ver. — Minha voz saiu apertada entre
os nossos lábios.
Ele se deitou sobre mim, pressionando o volume imenso sob a calça
contra as minhas coxas.
— Eu sei — murmurou. — Sei e não quero parar. Não me importo. Só
você importa, agora.
Aquilo era loucura, mas tão tentador. Voltei a beijá-lo, arrastando as
mãos pelo abdômen firme e pela ereção avantajada. Arrepiado, ele se
afastou com os olhos grudados no biquíni, como um predador
compreendendo a vulnerabilidade da presa. Aqueles lacinhos eram tudo que
me separava da nudez completa, e a percepção daquilo incendiava o seu
pensamento.
Ele afastou o rosto para dizer:
— Quando vi aquela foto no seu corredor, você vestida com esses trapos
profanos… Foi ali que comecei a te desejar — confessou.
Sorri, deliciada.
— Você é um tarado.
— Não sei o que é isso, mas devo ser um. Estou completamente rendido
por você, minha maltesa do futuro. — Ele voltou a me encarar. — Minhas
mãos não me obedecem mais. Elas estão constantemente procurando você,
meus dedos desejam tocá-la o tempo todo, minha boca só quer provar mais
da sua pele.
— Eu já notei a coisa com as mãos — brinquei, alisando seus músculos.
— E até onde me lembre, elas sempre me encontram.
Cristopher voltou a sorrir. Era isso que gostávamos um no outro: a
forma como nos completávamos. Ele era sério, contido e sofrido; eu era o
oposto. Minhas brincadeiras não apenas eram aceitas, mas desejadas,
porque quebravam sua sobriedade e aliviavam sua tristeza.
Como se tivesse chegado à mesma conclusão, aquele homem gigante
me abraçou forte e me beijou com fome. Lambeu meu rosto, mordiscou
minha orelha, apertou meu traseiro. Então, afastou o biquíni da frente dos
seios e seus lábios tocaram o mamilo com delicadeza a princípio, e depois
com luxúria. Eu os sentia rijos dentro da sua boca; sugados, mordidos de
leve, tratados com carinho e desejo. Abracei sua cabeça, arfando e gemendo
quando ele largou um e puxou o outro entre os dentes. Procurei a frente da
calça, desci o zíper e achei o volume duro como mármore e pronto para
mim.
Cristopher me soltou, as palmas ardentes passeando por meu corpo
inteiro, subindo e descendo pelas minhas coxas, abrindo-as completamente
para ele. A massagem suave de sua mão enviava correntes de desejo através
do meu corpo e eu gemia, pedindo por ele. A língua se juntou ao toque,
provocante e morna, traçando caminhos por minhas costelas até o umbigo.
Desde que o ensinei a me lamber lá embaixo, ele tinha desenvolvido uma
tara pelo gosto feminino — e ele adorou quando retribui o carinho.
Eu já estava inchada e pronta. Sentia minha entrada molhada e pulsante,
contraindo-se pela sua falta. Abri o laço lateral do biquíni e Cristopher fez o
resto do trabalho, tirando a parte de cima e me deixando nua.
Seu olhar era de puro deslumbre. Era tão perfeito que ele me achasse
linda e sem defeitos, que adorasse a forma curvilínea do meu corpo, que
beijasse as dobras da minha barriga e nem mesmo conhecesse a palavra
celulite. Sua visão de mulher não tinha sido tingida por décadas de
propagandas alteradas digitalmente, ou pela moda das altas e magras. Ele
olhava para mim e via uma mulher desejável, bonita, inteiramente em paz
com o sexo, e que esperava dar e receber prazer.
Ele fez uma pausa nas carícias entre as minhas pernas para sussurrar
algo em meu ouvido. Ele tinha os olhos fechados, a concentração inteira na
palma da mão.
— Inħobbok, Isla. Inħobbok ħafna.
Eu te amo, Isla. Eu te amo muito.
Abri os olhos, e as mãos pararam no meio das suas costas. As palavras
funcionaram como uma espada cravada bem no centro do meu peito,
marcando meu coração como seu. Eu não esperava aquela declaração.
Minhas pernas e braços ficaram fracos, e acariciei incerta sua barba,
respondendo sem palavras que tudo que ele sentia era pouco perto do que
me arrebatava.
Ainda perplexa pelo que ele disse, ajudei-o a remover a calça. Há dias
sentia seu afeto silencioso, seu desejo de intimidade. Que fosse efêmero só
deixava tudo mais belo e triste. Se algo era impossível e desafiador, eu
sempre pulava de cabeça, mas deveria ter me contido ali.
Eu só não consegui.
Gemi baixinho quando o pênis quente e duro se encaixou na minha
fenda e eu o ajustei ao centro. A língua explorou mais uma vez os mamilos
sensíveis, chupando-os e largando-os diversas vezes.
— Não trouxemos a proteção — ele murmurou, preocupado com a
minha segurança.
— Não quero usar nada hoje — sussurrei no seu ouvido. Tinha feito
recentemente um teste nele, já esperando, um dia, por esse momento. —
Quero sentir você dentro de mim.
— Não posso arriscar deixá-la de barriga, Isla. Não posso fazer nada
que a prejudique.
— Eu tenho DIU, não se preocupe.
Frente ao olhar de estranhamento, falei:
— Explico mais tarde. O importante é que não vou engravidar.
Ele assentiu, me penetrando devagar, o corpo se moldando ao meu,
exigindo passagem para entrar. Seus olhos nunca me abandonavam, o que
era um perigo. Eles eram uma armadilha bonita, sempre atentos às
ascensões e descidas do meu peito, ao remexer do quadril, às expressões de
prazer que eu fazia. Eu amava cada sensação do corpo que invadia o meu;
da pressão dos músculos ao peso que me colava à areia morna por baixo.
Era o dia perfeito, a praia perfeita, o homem perfeito. Cheguei a falar como
me sentia, mas não tive coragem de dizer de volta que o amava.
Por mais que o adorasse, uma parte minha sentia mágoa por ele querer
ir embora.
Enquanto ele me dominava, entrando e saindo, mãos vagavam pela
minha cintura, afagavam meus seios, abraçavam o meu pescoço. Ofeguei,
louca pela fricção bendita, beijando seu peitoral bonito enquanto me perdia
na visão que ele era. Os gemidos continuavam, agora dentro da boca do
outro. Era tão gostoso beijá-lo durante o sexo. Tão perfeito fazer amor com
ele.
Os movimentos se intensificaram. Cristopher afundou o rosto entre o
meu pescoço e um dos ombros. As mãos se fecharam sobre a minha bunda
e me ergueram de leve, arremetendo tão firme e fundo que choraminguei.
Agarrei suas costas e me entreguei, sentindo o orgasmo próximo.
Fagulhas irradiaram das terminações nervosas para todos os cantos do
corpo. Os membros aqueceram e meu corpo inteiro espasmou. Ele retesou,
o gemido atormentado ecoando no meu ouvido enquanto se despejava em
mim. Ofegante, com o peito subindo e descendo, tombei a cabeça de volta
na areia.
No alto, eu via o sol iluminar o mundo e pensava no quanto aquilo era
insano. Aquele homem me dava o melhor sexo que já experimentei, e
duvido que algum dia o título seria passado para outro.
Pelo tempo que Cristopher precisou para acalmar a respiração errática,
permaneceu em silêncio, dentro de mim. Então, tombou de lado, o tronco
forte ainda subindo e descendo, o pau agora flácido e saciado caído de lado.
Senti o sol cobrir a minha pele. Meu peito também subia e descia, e minhas
pernas e braços estavam moles como gelatina.
Ele rolou de lado, apoiando a mão na cabeça. Estava agora coberto de
areia e tinha os olhos novamente divertidos. Nesses momentos pós-sexo, ele
ficava relaxado e feliz, e deixava de ser o poderoso guerreiro para virar um
menino animado.
Eu não conseguia amá-lo mais.
— Você está parecendo um Schnitzel. — Olhei para o corpo dele
coberto de areia, sorrindo.
— Não sei o que é isso, mas pareceu uma ofensa.
A risada saiu solta na praia deserta.
— Mas não é. É de comer, um prato alemão. É um bife de carne
empanado no ovo e na farinha, depois frito.
— Hm. Deixou de ser ofensivo para parecer gostoso. — Ele beijou meu
rosto. — Só homens podem parecer Shnitlezs?
Ri da confusão que ele fez com as letras, negando. Qualquer um podia
virar um empanado na praia. Rolei de barriga para baixo, me cobrindo de
areia como ele.
— Agora sou um Schnitzel também.
— Meu Schnitzel — ele repetiu em um sussurro afetuoso, depositando
beijinhos no meu rosto.
Joguei mais areia sobre ele, e o abusado fez o mesmo comigo. A
brincadeira terminou com ele montado sobre mim, meus pulsos presos ao
lado da cabeça. As risadas correram soltas e altas, então diluíram até
virarem silêncio. Seus olhos agora mostravam uma mistura de alegria e
pesar, e eu sabia exatamente no que pensava.
No fim de tudo.
O toque de sua boca no meu nariz — talvez o único ponto sem areia no
corpo — me fizeram querer chorar.
— Não fique triste, amor.
— É tão óbvio assim? Não queria que notasse.
— Eu noto tudo em você, Isla.
— Eu só queria que tivéssemos mais tempo.
— Eu sei, għeżież tiegħi. Eu também.
Nenhuma alegria momentânea, nenhum "eu te amo” vindo dele ou
mesmo o sol sobre nós poderia aquecer o inverno que tinha descido sobre o
meu coração. Era quase insuportável sentir toda aquela tristeza.
Cristopher soltou meus pulsos e abarcou meu rosto com as mãos.
— Preciso da sua alegria, saħħara — ele implorou baixinho, muito
sério. — Do seu bom-humor. Só por hoje, pode ser a Isla feliz? Por mim?
Soltei uma risada, mas ela não continha qualquer humor. Eu já tinha
gostado de caras com metade da sua ternura e um décimo de sua honra. Não
me apaixonar fora uma tarefa árdua, mas ser a Isla feliz, agora, era um
desafio ainda maior.
Empurrei-o de leve para o lado e subi em cima de sua cintura.
Eu tentaria, apenas hoje. Por ele.
— Não ligue para mim. É só a minha sina de cair de amores por homens
impossíveis. E nesse departamento, você é a epítome deles.
— Sorria, então. Por mim. Preciso saber que está bem, querida.
Para mostrar que podia fazer o que me pediu, me levantei e caminhei
até a água para livrar as peças e o corpo da areia. Que droga, assim que
virei para o mar, deixei de sorrir. Não conseguia fingir alegria com tanto
peso no coração.
Nada daquilo deveria estar acontecendo, pensei enquanto mergulhava
completamente e me livrava da areia. Era para serem noites quentes e nada
mais. Ele partiria e eu voltaria para a minha vida idiota, como sempre fazia.
Quando retornei do mergulho, ouvi o barulho de água atrás de mim, e
segundos depois, senti o corpo quente de Cristopher colar ao meu. Ele me
abraçou por trás e afundou a cabeça no meu pescoço, e permanecemos
assim por algum tempo.
— Vou conseguir sorrir outra vez — prometi. — É só me dar um tempo.
Tempo. Que piada de mau gosto.
Cristopher me virou, encostando a testa na minha. Olhos nos olhos, a
voz rouca e masculina reverberou contra a minha pele:
— Não tenho direito de pedir que sorria, Isla, me desculpe. Esqueça
isso, está bem?
Assenti, mais leve. Não conseguia ficar com raiva dele, não por isso.
— Eu só quero que escute uma coisa. Se eu pudesse escolher uma
segunda vida, uma em que não existissem deveres e honra, escolheria ficar
com você. O lugar e o tempo não importariam. — Cristopher beijou minha
cabeça, carinhoso. — Eu só não tenho essa opção, amor.
As palavras vibraram através de cada osso meu. Eu o amava pela sua
nobreza e pelo seu caráter, justamente as duas qualidades que o levariam
embora. Aquilo era tão injusto.
— Nunca duvide dos meus sentimentos, está bem? O tempo não
conseguirá apagá-los. Nunca.
— Está bem — respondi baixinho, partida em um milhão de pedaços.

Era fim de tarde e eu dirigia pela rodovia em direção à capital. O sol estava
baixo e as avenidas até Valetta, cheias como sempre. Cristopher dormia ao
lado, a cabeça encostada no vidro. Seu nariz estava coberto por uma ligeira
cor vermelha, e os braços cheios de fios loiros, bronzeados pelo dia na
praia.
Eu seguia pensando nas nossas vidas. Principalmente na minha, que
seguiria no presente sem ele. Com a garganta fechada pelo luto antecipado,
peguei sua mão relaxada sobre a minha coxa e a trouxe à boca, depositando
na pele salgada um beijo leve.
Que desperdício de sentimentos bons. Que tristeza sem fim.
Eu já virava na pequena rua que levava ao meu apartamento quando
ouvi o telefone tocar. Parei o carro no meio-fio e atendi, ouvindo uma voz
masculina do outro lado. Ao olhar para o lado, encontrei Cristopher
novamente desperto, com os olhos fixos em mim.
Uma voz séria, com um discreto sotaque italiano, me saudou do outro
lado.
Apertei ligeira o botão do alto-falante, e a voz do homem ecoou pelo
carro:
— Senhora, o seu interesse na Ordem dos cavaleiros de Malta ainda se
mantém? Se sim, temos novidades sobre a sua solicitação.
25
MEU CORAÇÃO CARREGA MUITAS PEDRAS
ISLA

— A sede da Ordem não fica no país, e sim em Roma — um senhor


careca, de orelhas avantajadas, explicou enquanto caminhávamos
pelos corredores acarpetados. — Ela ficou na ilha até 1800, quando a
Inglaterra invadiu Malta e expulsou os cavaleiros. Eles se refugiaram na
Itália e estão lá até os dias de hoje. Aqui, temos apenas esse pequeno
escritório para administrar as construções no país.
Ele abriu uma porta de vidro e indicou que deveríamos passar na frente.
— É incrível que a Ordem tenha mantido características de um estado
soberano — comentei, entrando atrás de Cristopher. — Li que ela pode
emitir até mesmo seus próprios passaportes.
— Sim. Concedemos nacionalidade maltesa a todos os nossos membros.
— Seu olhar migrou de mim para Cristopher, parado na frente de alguns
quadros antigos. — Além disso, mantemos relações diplomáticas com
diversos países e temos até mesmo uma cadeira na ONU. — O homem
sorriu, orgulhoso.
Fascinante. — Pousei minha bolsa sobre a mesa que ele indicou. — É
aqui que faremos a busca?
Sobre a mesa longa, uma sequência de computadores parecia pronta
para o uso.
— Sim. Ficamos intrigados com a sua ligação, Sra. Bonicci. Não é
comum recebermos pessoas procurando cavaleiros de um passado tão
remoto. Geralmente elas estão atrás de parentes mais próximos.
Informações tão antigas exigiram algumas ligações e solicitações especiais
de acesso. Nosso arquivista conseguiu conectar nossa rede à da sede, em
Roma. Tudo que temos digitalizado pode ser acessado por essas duas
máquinas.
— Não sabe como agradeço por isso, senhor. Como disse ao telefone,
achamos alguns documentos na família e ficamos intrigados.
— Estamos ansiosos para ver estes documentos — o homem disse com
educação. — Adoraríamos adicioná-los à nossa coleção.
O “documento” encontrado, na verdade, era o homem de carne e osso
que vinha calado ao meu lado.
O funcionário da Ordem se virou para as máquinas.
— Bem, tudo que existir sobre seus ancestrais, se existir, estará aí.
Infelizmente, boa parte dos pergaminhos está escrito em caligrafia antiga.
Alguns em espanhol, outros em francês, muitos em latim. Disse que seu
amigo é especialista em línguas?
Assenti, olhando para Cristopher. Ele tinha detestado a ideia de mentir
para a Ordem, mas o convenci de que Deus fecharia os olhos para aquela
mentirinha. Ele me acusou novamente de blasfêmia, porém acabou
concordando.
— Vou deixá-los a sós. Se precisarem de ajuda, basta chamar.
O homem saiu e fechou a porta de vidro, indo ocupar seu lugar atrás de
uma mesa. Finalmente Cristopher abriu a boca.
— Não sei mexer nessas coisas, Isla. — Ele tocou o mouse com o dedo,
resmungando quando o pequeno objeto mostrou uma luz vermelha e
acendeu a tela do computador. — Não faço nem ideia de como achar um
papel dentro desta máquina.
— Sente-se ao meu lado. Eu acho os documentos e você os lê. Vamos
dividir o trabalho. — Cristopher tomou o assento ao lado. — Teremos uma
longa manhã pela frente.
Nas próximas horas, vasculhei centenas arquivos da Ordem atrás dos
nomes de Cristopher e Aaron de Landa. Era impressionante como as buscas
nos levavam a todo tipo de época e situação — ajudas humanitárias no
Haiti, ações de caridade no Leste Europeu, e até mesmo um braço russo da
organização. Havia muitos De Landa no sistema, porém, eram sempre
pessoas mais recentes. Cristopher não sabia de onde vinha tanta gente com
o seu sobrenome. Talvez fossem descendentes do seu irmão, mas não havia
como ter certeza. Sobre o próprio Aaron não achamos nada. Era como
procurar uma agulha em um palheiro.
Enquanto Cristopher decifrava os documentos antigos, eu sofria. O que
aconteceria se achasse o que buscava? Se descobrisse que o irmão morreu
naquele 23 de junho de 1565? Como eu conseguiria deixar aquele homem
partir para a morte? Entretanto, se Cristopher descobrisse que o irmão foi
feliz até o fim da vida, não desejaria voltar da mesma forma, para estar com
sua família? Eu não via como dissuadi-lo da ideia de retornar para sua
época.
Havia outras possibilidades, é claro. Poderíamos descobrir que
Cristopher não apenas sobreviveu, mas casou-se e foi feliz com uma
mulher. E, por mais que doesse, era essa informação dolorida, sobre uma
vida após o dia 23 de junho de 1565, que eu torcia para encontrar.
De qualquer forma, ele partiria.
Ás vezes, quando eu estalava as costas, exausta, ele me fazia um
carinho na nuca, atencioso. Desde ontem, a maioria dos seus gestos eram
ternos e não sensuais. Os olhares passaram de abrasadores para profundos e
compridos. Ele havia se declarado, aberto o coração e sido cruelmente
sincero. Eu sabia que agora estava tentando amenizar minha dor com
carinhos. Eu o amava muito por isso, mas algumas dores tendiam apenas a
aumentar antes de começarem a diminuir.
Até às cinco da tarde, hora em que fecharam o escritório, não tínhamos
encontrado nada. Combinamos de voltar no dia seguinte e continuar a
busca. Seria o último dia de Cristopher em Valetta.
Assim que pisamos do lado de fora, notei que tinha perdido meia dúzia
de ligações. Entre as chamadas perdidas, uma da Luminar e outra de Daniel
me chamaram a atenção. Pedi licença para Cristopher e liguei para a sede
da produtora, esperando descobrir qual era o problema. Fui passada para a
sala de Daniel imediatamente. Ele atendeu no primeiro toque.
— Isla? Finalmente! Onde você se meteu? Estamos precisando de você.
Há algumas questões pendentes e…
Eu estava com fome, sem forças e emocionalmente exaurida. A última
coisa que precisava era de um incompetente me cobrando por algo que não
era problema meu. O que era um trabalho de dois dias havia virado duas
semanas refazendo orçamentos que ninguém parecia saber ou querer fazer.
O dinheiro estava entrando, novos contratos haviam chegado e eu podia
passar o resto do ano prestando serviço para a Luminar e lucrando com a
incompetência do meu ex-chefe. Contudo, Cristopher estava para ir embora
e eu não ia perder aquele último dia trabalhando.
— Resolva, Daniel. Não dá para passar aí. Desculpe.
— Como assim, não dá? — A voz do meu ex soou fria.
— Não tenho condições de prestar serviço nenhum essa semana. Estou
ocupada com coisas minhas. Avisei quando começamos que estava ocupada
pelos próximos dias. Não sou mais empregada da Luminar, você sabe disso.
Ouvi o suspiro dramático do outro lado.
— Isla, precisamos conversar.
Arrastei a mão no cabelo, agoniada. Eu não precisava, nem queria,
conversar nada com ele. Nesse momento, minha prioridade era achar um
jeito de abrir o peito e libertar meu coração, comprimido há dias entre as
costelas. Eu já não via a volta de Cristopher como uma partida, mas sim
como uma contagem regressiva para a morte. Aquilo estava me matando.
— Estive pensando e… decidi que não posso contratar seus serviços
toda vez que tiver um problema. — Daniel continuava a falar, sem me
ouvir. — Preciso de você de volta.
Eu não estava esperando aquilo. Olhei para Cristopher, que me
aguardava recostado no carro.
— Está falando em me recontratar?
— Sim, Isla.
Não mesmo. Não podia voltar para aquele antro de idiotas. Não confiava
mais neles e havia me decepcionado de muitas formas com Daniel e a
empresa no âmbito profissional; se colocasse a traição pessoal, aí que não
aceitaria nunca voltar. Depois de tudo o que aconteceu, queria algo que me
fizesse inteira, não um emprego que me deixaria apenas meio feliz. Queria
ser completamente feliz.
— Como diretora de produção — Daniel interrompeu meus
pensamentos com a oferta. — Veja bem, sei que ficou magoada com meu
envolvimento com Giulia e sinto muito por isso. Nós… bem, você estava
envolvida comigo, embora eu tivesse deixado claro que não queria nada
sério…
Rolei os olhos. Lá íamos nós, novamente.
— A questão é que… Giulia ainda é muito nova para assumir sua
posição, entende? — Ele amansou a voz, reconhecendo o que eu e todo
mundo já sabia. — Sei que não aceitará voltar para o mesmo cargo, por isso
estou oferecendo o de diretora. Dessa forma, teria autonomia e poderia
coordenar melhor o que Giulia fizesse, e...
— E acertar seus erros — completei por ele.
Daniel suspirou, mas por fim soltou um doído sim.
— Fui um idiota em achar que ela ou qualquer um poderia substitui-la,
Isla. Você é boa demais no que faz.
Abaixei a cabeça, cansada. Eu não tinha nem mesmo forças para chamá-
lo de idiota.
— Seus clientes exigiram isso, não foi? — questionei monocórdica.
Um silêncio eterno se estendeu do outro lado.
— Sim. Eles só aceitam lidar com você.
Soltei uma risada sem humor. Eu sabia. Nem todos nesse mercado eram
aventureiros dispostos a cometer deslizes e trocar profissionais experientes
por noivas meio verdes. A vontade de negar era grande, eu admitia. Tão
grande quanto o salário do cargo que me esperava. Eu precisava ser racional
pelo menos sobre minha vida profissional.
— Me dê alguns dias — pedi, desligando o telefone. Ao retornar para o
carro, Cristopher se ajeitou desconfortável no banco do carona. Óbvio que
tinha ouvido parte da conversa.
— Não pode retornar para lá, Isla — afirmou naquela voz grave de
apresentador de telejornal. — Você não estava feliz e aquelas pessoas te
traíram.
— Ninguém é feliz trabalhando para os outros, Cristopher. —
Praticamente cuspi a resposta, cansada demais para debater o assunto. — A
gente só precisa do dinheiro, ponto final.
Liguei o carro e passei a marcha com raiva, ainda mais confusa do que
há pouco.
— Não pode desistir dos seus sonhos e da sua felicidade. Você precisa
ver sentido no que faz! Achar um propósito honrado no seu trabalho!
— Sentido? Não estamos no século XVI — bufei. — Tudo o que quero
é ter dinheiro no fim do mês para pagar as contas. Esse é um bom
propósito!
— Isso não é uma boa vida, għeżież tiegħi.
— Bem, a sua vida também não parecia boa quando sumiu, e mesmo
assim está voltando para ela. — Acelerei o carro, irritada.
— É diferente. Faço isso por outros motivos.
— Ah, sim. Honra. — Fiz uma curva brusca, e Cristopher achou melhor
colocar o cinto de segurança. — Olha, não tenho a sua honra, nem vejo uma
saída para mim. Eu queria sair da Luminar, juro, mas tudo que colecionei
nos últimos tempos foram boletos, lágrimas e raiva. Não quero adicionar
outras coisas ruins à lista. No momento, não tenho opções. Ou eu volto para
lá ou…
Ou adiciono pobreza à solidão.
Apertei as mãos no volante até os nós dos dedos ficarem brancos.
Peguei a avenida movimentada rumo ao meu apartamento, irritada porque
nada no horizonte parecia promissor. Adicionado a tudo que listei antes,
estava a partida iminente do homem que eu amava e a falta de resposta ao
e-mail que mandei para o meu amigo roteirista, que ficou de ler o esboço
que enviei sobre a batalha de 1565. As coisas estavam dando errado, mais
uma vez.
— Não pode desistir de montar o seu negócio, Isla.
— Não só posso, como vou. Preciso aceitar que meus planos não
vingaram. Minhas economias não deram nem para o início; a ideia do
roteiro não vai dar em nada e tenho que bancar as despesas extras da minha
irmã. A Luminar é o que existe e vai me pagar bem — suspirei,
desanimada. — Essa é a verdade. Lido com a úlcera estomacal mais tarde.
Pelo menos terei dinheiro para pagar um hospital.
— Isso é absurdo! Como pode se contentar com tão pouco? Ficar
tranquila em saber que vai ficar doente por causa de um trabalho que não
gosta?
— Que saída eu tenho, droga?
— Sempre há uma saída!
— Bem, há uma, sim. — Virei para ele, aborrecida. — Sabe qual? Você
ficar no presente! — Bati a mão irritada no volante, sem conseguir frear a
língua. — Fique e montarei a empresa dos meus sonhos, e vamos ganhar
dinheiro porque a indústria do entretenimento paga bem!
— Sabe que não posso ficar, Isla. — Cristopher me olhou, agoniado.
Eu sabia. Merda, como eu sabia. Não podia jogar a responsabilidade da
minha felicidade sobre ele. Não era justo, nem certo. Porém, a minha
catarse trazia uma verdade: eu não queria mais as mesmas coisas. Agora,
queria falar do passado. Falar dele. Da sua história sofrida e honrada.
Infelizmente, isso era o que eu queria, não o que ele queria.
Cansada, concluí:
— Da mesma maneira que não posso controlar sua decisão de ficar, não
aceito que se meta nas minhas. Você voltará para São Elmo amanhã, e eu,
para o abatedouro de sonhos que é a Luminar. Cada um sabe o que é melhor
para si.
Dirigi por algum tempo em silêncio, até que ouvi sua voz mansa
admitir:
— Minha decisão não é a melhor, Isla. Ela só é a única possível.
— Você sempre pode escolher ficar.
Ele negou, devagar.
— Não sem saber o que aconteceu a Aaron. — Ele murmurou,
continuando: — Acha que não pensei em como seria carregá-la comigo
para o passado? Em passar o resto dos meus dias com você?
Só de pensar na possibilidade, meu estômago esfriava.
— Não sabe nem mesmo se sobreviverá ao seu retorno, Cristopher. A
melhor solução seria ficar.
Eram palavras duras, mas ele precisava ouvi-las. Não podia fingir que
ele estava voltando para um mundo tranquilo. Eu estava brava com ele por
não ter medo da morte e ser tão teimoso. Queria bater nele, prendê-lo no
porão como aquelas pessoas malucas e obcecadas faziam nos filmes.
Dei a seta e entrei de forma abrupta na outra pista. Um carro buzinou, e
mostrei o dedo do meio pelo retrovisor. Tudo o que eu queria era ir para
casa e me enfiar debaixo das cobertas. Esquecer que a vida estava
desmoronando, que precisaria passar os próximos anos tentando esquecer
aquele homem magnífico, indo para um emprego que eu odiava e lidando
com um chefe que me traiu da pior forma possível. Meu futuro não era
bonito.
— Sei de tudo isso disso, amor. — A voz masculina continuou, rouca.
— Só queria que soubesse que também tenho sonhos. Acha que não pensei
em convidá-la para viver comigo em 1565? Você não gostaria do meu
século, mas eu a protegeria… Teria que se comportar de outra maneira e
não ganharia o seu sustento, mas eu proveria por você. Não haveria mais
telas e ruídos, nem doces ou veículos como os de hoje. As noites seriam
silenciosas e a diversão, diferente. — Ele pausou. — No entanto, teríamos
um ao outro, e é com isso que sonho quando me deito na sua sala e fecho os
olhos. Sei que haverá um período de paz na ilha depois do Cerco, e é nessa
época que meus sonhos se passam. Eu reconstruiria o país ao seu lado. Você
seria minha, só minha. Carregaria o meu nome e os meus filhos. É nisso que
penso quando não estou sofrendo por ter que ir embora!
Era muita covardia ele falar aquelas coisas, justamente agora. Eu
segurava no volante como se fosse um salva-vidas, como se só ele pudesse
me impedir de afundar e aceitar a proposta de largar tudo para ir com ele,
não importa onde fôssemos parar.
— Mas para meus sonhos acontecerem — Cristopher continuou —, eu
teria que sobreviver e não sei se vou. É apenas por isso, por não saber com
certeza de que você ficará bem comigo, que não te convidei para voltar
comigo à 1565. Meu coração está dilacerado com a partida, mas saber que
você vai viver em um mundo de paz ajuda a amenizar a dor. — Ele virou o
rosto para a rua, observando as pessoas aproveitando o final do dia,
tranquilas. — Só não queria que pensasse que a ideia nunca me ocorreu.
Meu coração carrega muitas pedras, Isla, mas a mais pesada, no momento, é
esta. Nem eu posso ficar no presente, nem você pode voltar comigo para o
passado. Não temos escolha sobre isso, infelizmente.
26
VIM DE LONGE
CRISTOPHER

E ra desesperador que o nosso último dia chegasse ao fim e não


tivéssemos encontrado nada. Eu sentia dor de cabeça de tanto olhar
para aquelas telas azuladas. As letras se embaralhavam ao ponto de
parecerem um só borrão. Nada havia aparecido na busca naquele último dia.
Aaron fora apagado da história.
Já não conseguia mais ouvir o zumbido baixo e constante das máquinas,
o som das cafeteiras funcionando no andar, o toque ininterrupto dos
telefones. Até o aparelho que refrescava o lugar trazia um ruído
infernizante. Às três da tarde, depois de dois cafés e uma barra de
chocolate, tombei a cabeça entre as mãos, exausto. Não íamos achar nada.
Quatrocentos e cinquenta anos apagavam o rastro de qualquer pessoa.
Frustrado, me levantei da mesa e caminhei até a janela. Da estranha
cortina feita de lâminas vazavam fios de luz fraca. O sol estava baixando, e
quando ele voltasse a aparecer, eu iria embora. No entanto, não era na volta
que eu pensava: era no tempo precioso que estava perdendo com Isla.
Deveríamos estar na sua casa ou em qualquer outro lugar da ilha,
aproveitando os últimos minutos juntos, e não debruçados sobre
documentos idiotas.
Eu queria muito saber o que tinha acontecido naquela tarde
interrompida de 1565 — talvez, se soubesse de algo, poderia sobreviver a
ela —, mas estava em busca do impossível. Deus não me deixaria trapacear
na vida e retornar com uma informação que nenhuma pessoa deveria ter. Eu
precisaria voltar sem saber de nada.
Foi quando Isla me chamou.
— Cristopher? — Sua voz parecia tensa. — Pode vir aqui, por favor?
Caminhei de volta até a cadeira, disposto a puxar o fio que ligava aquela
tela estranha à parede e encerrar aquela loucura. O oráculo não tinha as
respostas daquela vez. Ele sabia de muita coisa, mas não do essencial. Além
do mais, meu peito estava esmagado, meus pensamentos, turvos, e minha
alma, remexida. Eu precisava de Isla e do seu abraço, talvez de chocolate, e
alguns dos seus sorrisos.
Antes que apertasse o botão que escurecia a máquina, Isla me impediu.
Seus olhos estavam arregalados e toda cor de seu rosto havia sumido.
— O que foi, meu bem? — questionei, me sentando ao seu lado. — Está
se sentindo bem?
Ela levou a mão à boca, voltando a olhar perplexa para a tela.
— Acho que encontrei alguma coisa.
Acompanhei seu olhar, sem ver nada demais.
— O quê? — Tentei ler o que ela via, mas só conseguia enxergar
centenas de nomes escritos em letras miúdas e incompreensíveis. Mesmo
quando Isla apontou para o lugar certo da tela, não consegui entender nada
demais.
— Conhece a Catedral de São João? — ela perguntou.
— Não. Nunca ouvi falar.
Ela pensou um instante. Então, remexeu na bolsa até achar o celular,
conferindo uma informação.
— Hu-hum... Não teria como saber, realmente. — Então, passando o
dedo pela tela pequena, leu: — “Após o Cerco, a Ordem decidiu reconstruir
a ilha de Malta e foi assim que surgiu Valetta. A igreja de São João, que
mais tarde virou catedral, começou a ser projetada em 1571 mas só foi
inaugurada em 1578”.
— Não estou entendendo. O que essa igreja tem a ver com o meu
irmão?
Ela pousou o aparelho na mesa, virando-se para mim.
— Tem tudo a ver. — Um grande e verdadeiro sorriso fez tudo ao redor
se iluminar. — Acabei de achar um documento indicando que Aaron de
Landa e sua esposa estão enterrados nessa igreja.
ISLA
Estacionei o carro diante da fachada austera, me questionando quantas
vezes havia visitado aquele lugar. Pelo menos três, em ocasiões diferentes,
mas em nenhuma delas atentei para o chão ou para o que as palavras nas
lápides traziam.
A catedral estava em silêncio, como costumavam ficar nos fins de tarde.
O cheiro de incenso, vindo das velas acesas nos nichos, preenchia o ar. A
pequena igreja não era bonita, nem tinha a magnificência das construções
do seu tipo. Parecia mais um forte do que qualquer outra coisa e, no todo,
chegava até mesmo a trazer estranheza ao olhar. Por dentro era igualmente
sóbria, decorada com a austeridade das épocas de guerra.
Era o seu chão que a fazia especial.
Quatrocentas lápides de mármore dos mais importantes cavaleiros da
Ordem cobriam toda a superfície. Em cada uma delas estavam registrados
seus feitos e últimos recados.
Minha barriga se revolvia em uma estranha energia caótica. O que
encontraríamos ali era um mistério, porém traria respostas, eu sentia.
Cristopher caminhava atrás de mim, pisando sobre Grandes Priores,
almirantes, oficiais de justiça e cavaleiros hoje desconhecidos. Os epitáfios
estavam quase todos em latim, escritos dentro de brasões, juntamente com
insígnias que listavam suas virtudes, triunfos em vida e os feitos que os
lançaram à fama pós-morte. Que Aaron de Landa estivesse enterrado ali era
a mais perfeita mistura entre beleza e morbidez.
Eu continuava a ler o guia que compramos na entrada, minutos antes da
catedral fechar as portas. Cristopher não queria perder tempo com
panfletos: ele caminhava com os olhos no chão, tentando achar o nome do
irmão.
— Aaron não mandaria gravar seus feitos em mármore — murmurou
depois de um tempo. — Ele não lutava pela glória. Seu assunto era com
Deus.
— Ele pode ter mudado. — Abaixei o guia. — Ou desejado dizer coisas
íntimas e particulares. Todos nós queremos deixar uma última mensagem,
não?
Atravessamos o chão pisando em imagens de crânios, esqueletos, anjos
e outros símbolos de vida e morte. Eles eram parcamente iluminados pelas
velas que os turistas deixaram acesas, e pela luz fraca das janelas altas. Foi
realmente sorte termos chegado a tempo. Poucos minutos mais tarde e a
igreja já estaria fechada para visitantes.
— O guia tem a planta numerada das lápides. — Folheei as páginas. —
E uma lista alfabética de todos os cavaleiros enterrados. Eu só não estou
achando o nome do seu irmão no folheto.
— Vamos continuar a procurar. Ele está aqui, eu sinto.
A pedra enfiada no meu bolso me dizia o mesmo. Eu a sentia morna
mesmo através do jeans, latejando como se pulsasse em discretas ondas de
calor.
Passamos pela célebre placa com um dos trechos mais famosos
encontrados ali — “Dobre-se com suas velas acesas, quem quer que seja, e
reconheça sua mortalidade” —; por escudos onde anjos tocavam trombetas
e esqueletos estavam enfeitados por laços; por brasões onde nomes outrora
importantes eram adornados por coroas e foices. Os símbolos eram muitos,
e todos eles coloridos. A maioria datava do início do século XVII até o final
do século XVIII, e aquele era o problema: estávamos procurando algo
muito anterior. Aaron de Landa só poderia ter sido enterrado ali depois da
construção da igreja. Porém, talvez tivesse morrido bem antes, e só então
trazido para lá. Droga, aquilo era um quebra-cabeças sem fim.
Girei ao redor, pensativa.
— Se ele estiver aqui, deve ser um dos túmulos mais antigos da capela.
Perguntamos ao guia, que se preparava para ir embora, onde poderiam
estar enterrados os primeiros cavaleiros, aqueles que viveram no século
XVI. O homem pareceu pensativo por um instante, até dizer:
— Olhe, não sei se o local ainda está aberto para a visitação, mas
lembro que quando comecei a trabalhar aqui, permitiam que fôssemos ao
subsolo. Como poucos mostravam interesse e o lugar era apertado, o
fecharam. Mas me lembro de ter visto algumas lápides bem antigas por lá.
Agradecemos e esperamos que o homem se fosse. Assim que ele saiu
pela porta principal, Cristopher me puxou e saltamos a corrente que
separava a área de visitação das particulares para funcionários. Atrás de
uma porta pesada de madeira, encontramos uma escada estreita de pedra.
Acendi o interruptor e a lâmpada sobre nós piscou, soltando um zumbido
baixo. Descemos em silêncio entre paredes apertadas, chegando ao subsolo.
O local era escuro e abafado, e cheirava a caixas de papelão. As lápides
do chão estavam desgastadas e havia entulho por todo canto. Duvidei que
pudéssemos ler qualquer inscrição sobre elas.
Cristopher caminhou com cuidado ao redor, os olhos fixos nos chão. Ele
passava de lápide em lápide com agilidade, reconhecendo os escritos em
latim, descartando rápido quem não era Aaron.
Vê-lo tão inquieto partia meu coração. Não que eu tivesse um para ser
partido: o meu vinha se despedaçando nos últimos dias e já não restavam
pedaços inteiros para serem quebrados. Desejei com toda a força que ele
encontrasse as respostas que buscava. Que a data fosse favorável ao seu
irmão e que Aaron tivesse sobrevivido ao Cerco. Que Cristopher achasse
algum tipo de paz na descoberta. Não tinha esperanças de que ele mudasse
de ideia sobre partir, tivesse seu irmão morrido no dia da queda de São
Elmo, ou um dia depois. Cristopher retornaria para passar aquele único dia
com o seu irmão.
Cansada de toda a procura, me sentei em um dos cantos e decidi
encerrar ali a minha busca. Eu não sabia ler latim, nem aquela escrita
rebuscada. Não seria mais ou menos afetada por qualquer mensagem
deixada cinco séculos antes, e não queria mais fingir que a procura não me
abalava.
Usei o momento para observar o homem por quem me apaixonei e que
iria embora em poucas horas. Ele movia as caixas, tentava ler o que estava
embaixo, ajoelhava-se para limpar as lápides mais escurecidas pela poeira.
Ele queria saber a data da morte do irmão, e tinha pressa. Precisava
ponderar possibilidades a partir da informação. Voltaria sabendo muito
sobre o futuro de Malta, e em tempos tão violentos, saber das coisas
aumentava as chances de sobrevivência.
Foi enquanto observava Cristopher caminhar pela sala, a cada momento
mais frustrado por não encontrar nada, que notei algo estranho. O imenso
quadrado de mármore no chão, sob a caixa onde estava sentada, parecia
uma lápide. Ela tinha o dobro do tamanho das outras, e seu mármore estava
carcomido em diversos cantos.
Sentindo algo estranho no peito, o mesmo de quando visitei a torre
isolada, me levantei com as mãos trêmulas. Cristopher continuava agachado
do outro lado, limpando a poeira de cima dos túmulos escondidos.
Ajoelhei, sentindo o coração bater por todo o corpo. O que explicava
aquele segundo carregado de eletricidade que prenunciava as grandes
descobertas? Aquela sensação de saber, mesmo antes de ver, que havia algo
ali?
Pousei a mão no mármore gelado ouvindo minha própria respiração
acelerar. Afastei a caixa, que deixou uma trilha de poeira para trás. Varri o
pó de cima dos dizeres coloridos até que as palavras em latim ficassem
visíveis.
E então, as batidas no peito se transformaram em tambores de guerra.

“Longe veni, et pro libertate certaminis iunctus amor.”

Trêmula, tracei o dedo pela inscrição em baixo relevo, sentindo nas


pontas, antes mesmo de ver, o nome de quem aquele túmulo pertencia.
De Landa.
Acho que chamei Cristopher, não sei; não consegui ouvir minha própria
voz. Tentei pegar ar, mas ele não veio; tentei me levantar, mas os joelhos
estavam fracos. Eu nem deveria estar emocionada por encontrar a lápide,
mas inexplicavelmente estava, como se achasse finalmente alguém que
procurava há muitos anos.
A lápide, de um amarelo-saturado antigo, logo ficou livre da poeira. As
letras cavadas na pedra, preenchidas por um tipo de resina, mostravam
dizeres em latim. A sombra de Cristopher tomou o espaço da luz. Ele
precisou segurar no bulbo suspenso e incliná-lo para iluminar o chão:
— “Vim de longe e me uni por amor à luta pela liberdade” — sua voz
soou sombria.
Ele tinha achado o irmão.
E eu, algo mais.

“Hic in morte relinquo, anno 1599, nuntium pro Isla de Malta: hic laetus fui.
Numquam de profectione mea, aut de adventu meo loquar, aut cuivis narrabo quid
acciderit. In silentio omnia oportet esse, nam unius papilionis bracteae omnem
historiam possunt commutare”.

A voz rouca de Cristopher parecia penetrar dentro da minha pele, tão


fundo que chegou aos ossos:
— “Deixo na morte, no ano de 1599, um recado para Isla de Malta: fui
feliz aqui. Nunca fale sobre a minha partida ou minha chegada, nem conte a
ninguém, nem a mim, o que sucedeu. Em silêncio deverão ficar todas as
coisas, pois a batida da asa de uma única borboleta pode alterar toda a
história”.
O que Cristopher não leu, mas eu sim, foi quem assinou aquelas
palavras:
Sabrina de Landa, minha irmã.
27
ESTÁ NA HORA
ISLA

E ntre lágrimas, mostrei uma foto de Sabrina para Cristopher, que


assentiu alarmado.
Era ela.
A feiticeira que o irmão dele amava, a responsável por enviá-lo em seu
último segundo para mim. Quando mostrei a imagem primeira vez, no dia
de sua chegada, ele só conseguiu ver o celular, e não percebeu as
semelhanças. Mas agora ele confirmava: ele a conhecera.
Com os olhos cheios de lágrimas, toquei a imagem do rosto da minha
irmãzinha no celular. O castanho escuro natural do cabelo antes que os
tingisse para viajar, o sorriso alegre, o nariz bem-feito e atrevido. Então,
precisei me afastar de Cristopher, daquele mausoléu, daquela igreja. Eu
precisava de um tempo para digerir tudo aquilo.
Aquelas palavras e toda a história que Cristopher contou indicavam que
minha irmã apareceria em Malta em 1564 — um pouco antes do ataque dos
turcos —, e lá se apaixonaria por um cavaleiro, com quem viveria até a sua
morte, em 1599. Hoje, ela se encontrava enterrada ao lado do homem com
quem viveu por trinta e cinco anos, no subsolo de uma igreja antiga.
Como aquilo era possível? Sabrina era uma garota. Estava em um
intercâmbio em Londres, nesse momento. Quase tive o impulso de ligar
para ela, querendo ter certeza de que ainda estava aqui, enquanto perguntas
e mais perguntas inundavam meu cérebro.
Em que ano partiu do presente? Como parou lá? Ao presenteá-la com a
pedra, fui responsável por sua ida, e assim, com a vinda de Cristopher?
Deveria ir atrás dela e jogar a maldita pedra no mar?
Nossos destinos estavam unidos por um círculo que eu havia iniciado, e
alterar aqueles fatos mudaria tudo tanto para mim, como para ela.
Nada podia ser dito. Aquela frase era importante o suficiente para
constar na sua lápide. Nada podia ser mudado. O bater da asa de uma
borboleta podia causar um furacão do outro lado do mundo — podia
impedir que ela se fosse, e condenar Cristopher a morrer naquele fim de
tarde de junho de 1565.
Eu não conseguia parar de arrastar a mão pela cabeça. Como isso pode
ter acontecido? Eu não podia contar a ela, ainda muito jovem, que seu
destino estava traçado? Eu precisaria assisti-la viver sua vida sem saber
quando retornaria àquele passado tão sangrento e violento. Como ela
sobreviveria por lá?
Não me lembro como cheguei em casa, mas durante a noite inteira não
quis olhar para Cristopher. Perdê-lo agora doía um pouco mais, porque em
breve aconteceria o mesmo com minha irmã, e não havia nada que pudesse
fazer. Aquele era um pedido dela, feito em sua lápide. Claro, eu poderia
ignorar tudo e contar o que ela mesmo pediu para manter em segredo, mas
eu não tinha coragem.
E, toda vez que pensava nesse dilema, voltava a afundar o rosto no
travesseiro e chorar por perdas que ainda não tinham acontecido, porém,
iam acontecer. Era inevitável. Minha certeza estava gravada em mármore
pelo tempo que aquela pedra durasse.
Não conseguimos achar a lápide de Cristopher, nem seu irmão deixou
para ele qualquer mensagem além de um singelo “Achei a paz. Ache a sua
também”. Tudo o que sabíamos é que Aaron morreu em 1599 e Sabrina se
foi logo depois, e os dois foram enterrados juntos como se ela também
fizesse parte da Ordem.
Não sei que horas eram quando ouvi a batida na porta do meu quarto.
Do lado de fora ainda parecia madrugada.
Cristopher colocou a cabeça pela fresta, mas não consegui me mexer.
— Está chegando a hora, Isla.
A voz tranquila e baixa fez uma onda de medo se espalhar por mim.
Deus, estava na hora.
Eu passara a nossa última noite trancada no quarto, tentando me segurar
para não mandar uma mensagem para Sabrina, para não correr até ele e
implorar por um conselho sobre o que fazer. Um toque do meu dedo nas
teclas certas e minha irmã jogaria aquela pedra fora. Ela nunca iria para o
passado. Cristopher nunca viria para o presente. Meu coração e o dela
estariam livres, e eu não sofreria mais.
Então, ao erguer a cabeça do travesseiro e olhar para Cristopher, meu
coração se desmanchou. Talvez, e eu esperava muito que sim, o destino da
minha irmã tivesse sido diferente do meu. Ela teve uma vida. Passou anos
ao lado do homem honrado que amava e foi feliz. Lutou por algo que lhe
deu propósito e ofereceu, com seu coração imenso, a segunda chance que
aquele cavaleiro merecia.
Enxuguei o rosto com as costas das mãos e me sentei na cama. Não
eram decisões fáceis, mas eu não tinha saída.
Cristopher caminhou até a beirada do colchão e se ajoelhou aos meus
pés. O toque delicado afastou meu cabelo do rosto e o dedo coletou com
cuidado a última lágrima que descia.
— Eu ainda não consigo acreditar — sussurrei.
— Eu sei, meu bem. Eu sei. Mas eu a conheci, Isla. Ela esteve lá,
comigo, durante o mês em São Elmo. Lutou bravamente todas as vezes que
precisou, sem nunca hesitar ou fugir. E, preciso admitir, sua irmã atirava
flechas como ninguém. Cuidou dos feridos e foi de muita importância para
a batalha, porque os comandantes a ouviram e seguiram as ordens que deu.
— Minha irmã é uma menina! — Apontei chorosa para a foto dela
ainda aberta no meu celular. — Ela tem dezessete anos, pelo amor de Deus!
Ouve k-pop e não sabe manejar uma faca de pão!
— Sua irmã é uma mulher, Isla. Quando encontrou o meu irmão, não
era a garota que conhece hoje. Ela estava preparada para aquele mundo.
Alguém ou algo a deixou pronta.
Afundei o rosto entre as mãos, tentando amansar o turbilhão interno.
— Como vou aguentar viver pelos próximos anos e não contar tudo?
Como manter o segredo de que um dia ela desaparecerá daqui e ressurgirá
quinhentos anos atrás? Que quase morrerá na batalha mais sangrenta que
Malta já viu?
— Não pode dizer nada — ele retrucou baixinho. — Ela pediu na
inscrição do seu túmulo acreditando que você o acharia.
Sentia uma imensa vontade de gritar, de praguejar contra o mundo,
contra o destino, contra Deus, até. Eu precisaria para sempre esconder dela
e de todos os outros as últimas semanas da minha vida. Conviver com a
falta que Cristopher deixaria, sem saber quando ela desapareceria também.
Senti os braços poderosos me apertarem e retribui finalmente suas
tentativas de aproximação. Abracei-o com força, inalando o cheiro bom do
seu pescoço e do seu cabelo. Aquela era a última vez que faria isso com o
meu nobre e heroico cavaleiro.
Meu guerreiro honrado.
Meu amante-namorado do passado.
Cristopher me soltou quando ri ao me lembrar das confusões e do
estragos que fez. Do aspirador de pó destruído e do despertador
estraçalhado. Dos muitos banhos diários por causa do decreto. Dos beijos
apaixonados e seus olhos de geada.
Ele enxugou minha face, sorrindo também.
— É hora de ir — sussurrou, e o rosto, antes sombrio, ganhou traços de
dor.
— Eu sei.
Precisávamos chegar em Ħaġar Qim antes da aurora.
Enquanto dirigia pelas estradas vazias no meio da madrugada, ia vendo
a ilha com novos olhos. Nenhuma ruína agora passava despercebida.
Nenhuma torre ou forte deixava de me contar sua história. Eu me
perguntava o que Sabrina acharia daquela terra antes que se desenvolvesse
na ilha onde cresceu. Se reconheceria o lugar onde um dia brincamos
quando crianças, onde ficaria Valetta, se por acaso se lembraria de todos os
detalhes que definiriam o futuro do país.
Cristopher estava em silêncio, vestido novamente com a armadura e
abraçado à espada. Havia deixado tudo que compramos para trás, porque
nada deveria ir para o passado, apenas o que chegara ali com ele. Ele
parecia concentrado, preparando-se para algo importante em seu retorno:
sobreviver. Caso chegasse alguns minutos antes, ou muitos minutos depois
do momento em que desapareceu, tudo que veria era dor. Guerra era tudo
que havia no seu horizonte. Eu torcia para que voltasse alguns dias antes ou
depois, só assim sobreviveria ao Cerco. Mas quem decidia o minuto, o
segundo, ou mesmo o dia da volta?
Ħaġar Qim, o antiquíssimo site monolítico que permitia visitas nas
madrugadas de solstício, estava cheio. Durante os verões, turistas do mundo
inteiro apareciam para presenciar os primeiros raios de sol vazarem por um
minúsculo buraco cavado em uma pedra e iluminarem uma laje dentro da
câmara. Aquele raio, posicionado naquele exato lugar, mostrava a relação
entre os templos e o mundo.
A presença de Cristopher, vestido de cavaleiro, não chamou a atenção
de ninguém. Os turistas estavam acostumados a ver todo o tipo de coisa
exótica pela cidade, e naquela noite, nem todos estavam sóbrios. Éramos só
mais um casal esquisito buscando significados ocultos na passagem do sol
por um buraco.
No ano anterior, quando estive ali, havia encontrado a mulher que me
vendera a pedra inteira perto de algum lugar naquele salão. Mas onde? Eu
também não estava muito sóbria naquela noite. Rodei por todo o local, sem
achá-la. O que importava, agora? Era tarde demais.
Caminhamos em direção à câmara de Ħaġar Qim, mas Cristopher parou
no lugar e segurou sua parte da pedra.
— Não é aqui — falou com certeza assustadora. — Ouço as pedras me
chamarem de outro lugar.
Não sabia como as ouvia, ou o que ouvia, mas acreditava nele.
Deixamos a turma animada para trás e pegamos a longa descida até
Mnjadra, onde um segundo sítio, bem menor, estava escuro e vazio.
O céu estava livre de nuvens e milhões de galáxias rodopiavam sobre
nós enquanto caminhávamos em silêncio. Tudo que eu ouvia era o bater das
placas de ferro no chão. Uma brisa marítima revolvia as mechas loiras do
cabelo de Cristopher e traziam o frio. Apertei os braços ao redor do corpo,
mas duvidava que fosse o vento o causador da sensação polar na alma.
Sempre que me deparava com algo que machucava, eu entrava em modo
automático para realizar a tarefa, como agora. Iria enviá-lo de volta? Sim,
eu faria aquilo.
Porém, só eu sabia o oco que estava o meu coração.
Assim que deixamos a trilha, Cristopher guiou o caminho, sentindo o
chamado. Passamos pelo gigantesco portal de pedra — dois monolitos na
vertical com outro deitado na horizontal, por cima — e entramos na câmara.
Ainda estava escuro, mas o céu ganhava aos poucos o tom cobalto no
horizonte.
— Precisa sair antes da chegada do primeiro raio — ele avisou, baixo.
— Não me pergunte como sei disso, mas sei. No mais, não posso correr o
risco de te carregar comigo, Isla.
Assenti, sem dizer nada. Era hora de nos despedirmos.
Olhei para a armadura reluzente já com saudade do homem sob ela.
Queria seu abraço, suas risadas, suas brincadeiras... seu amor. Deus, ele
estava indo embora para sempre, e aquilo era imenso demais para entrar na
minha cabeça ou no meu coração. Eu levaria anos tentando entender o que
me destruiu.
Cristopher foi o primeiro a estender os braços. Seus olhos eram duas
esferas luminosas.
— Meu coração sempre será seu, minha pequena ilha. — Ele me
acolheu contra o metal frio e beijou minha testa. Com toda a força que
ainda tinha, me agarrei a ele.
— Cuide dela por mim, homem de lata — pedi baixinho. Ele sabia que
eu estava falando da minha irmã.
— Com a minha própria vida, como se fosse a minha irmã — ele
prometeu.
As paredes da câmara pareceram se apertar um pouco mais contra nós.
As perguntas pareciam forçar minha pele de dentro para fora, me fazer
explodir por coisas não ditas. Por que havia tanto a dizer e tão pouco tempo
para falar?
Por que amá-lo não bastava para que ficasse?
Aquele homem havia sido feito para mim, do detalhe mais ínfimo à
mais nobre grandeza do seu coração, e agora eu o via escapulir por entre os
meus dedos. Encarei Cristopher, afastando o cabelo comprido da face para
observá-lo melhor. Tão bonito. Tão invencível. Tão meu. E, ainda assim,
não podíamos ficar juntos.
Ele acariciou meu rosto, os olhos perdidos nos meus.
— Não serão das estranhezas desse mundo, com seus veículos sem
cavalo e barulhos altos, que me lembrarei ao voltar — Cristopher
murmurou —, mas sim você, saħħara. Você mudou as certezas do meu
coração. Não tenho palavras para descrever o que foram esses dias no
futuro ao seu lado, nem o que significou ter a chance de amá-la.
Ele pegou minha mão e beijou cada um dos dedos.
— Protegerei esse sentimento que fez crescer no meu peito com a
minha espada e a minha própria vida até que eu chegue no fim.
As lágrimas voltaram a descer, e as palavras não ditas, a travar a
garganta. Não vá. Por favor, não vá.
— Sei que teme o que acontecerá quando eu retornar ao meu tempo —
ele continuou.
— Você sabe o que vai acontecer. — Bati o punho no seu peito,
inconsolável.
— Eu sei, mas agora preciso não só proteger Aaron, mas também
Sabrina e o filho deles.
— Mas e você? Não merece ser protegido? Ser feliz? — perguntei,
angustiada.
Ele depositou um beijo respeitoso na minha testa, um sorriso triste
estampado no rosto. Quis socá-lo com mais força. Como podia embarcar
para a morte com tamanha tranquilidade? Por que não havia saída para
aquela situação?
— É tão dolorido saber que assim que se for, estará morto há centenas
de anos! — Dei o primeiro soco forte no peitoral de ferro, bem em cima da
cruz de oito pontas. — Dói demais saber que nunca mais nos veremos, e
que eu terei que encarar esse futuro sem-graça só com as suas lembranças.
Que a única coisa que me fará feliz será recordar do seu sorriso, da sua
curiosidade e da sua irritação pelos barulhos, sinetas e alarmes!
Soltei uma risada chorosa.
— Nunca mais vou olhar para um eletrodoméstico sem lembrar de você,
Cristopher de Landa.
Em meio a tristeza, ele conseguiu sorrir também.
— Desculpe por toda a destruição, Isla.
— E eu, pela pior declaração de amor de todos os tempos. — Enxuguei
o rosto com raiva.
Ele colheu minha face com suas mãos imensas.
— Ainda dá tempo de fazer uma melhor.
Assenti, vendo a noite ainda escura. Cristopher não podia partir
lembrando que minhas últimas palavras foram sobre eletrodomésticos.
Tentei pensar em algo bonito, grandioso e memorável, mas eu não era uma
daquelas pessoas que falavam coisas bonitas. Eu era a pessoa que falava as
coisas erradas.
Decidi por algo modesto, mas que representava meus sentimentos.
— Existe um livro muito conhecido que fala sobre os verdadeiros
encontros. — Pousei as mãos na armadura, respirando fundo para aquietar a
mente e o coração. — Ele diz que quando os olhos dessas duas pessoas se
encontram, passado e futuro perdem importância. Passa a existir somente
esse momento, e a certeza incrível de que tudo que existe foi escrito por
apenas uma mão. 1
Cristopher sorriu, parecendo ter gostado daquilo. Com os olhos caídos
de tristeza, pousou a palma sobre a minha, no centro do seu peito.
— Se for assim, acho que quem escreveu o meu destino entrelaçou-o ao
seu, amor.
Beijei o dorso sobre o meu, arrastando a face contra ele, sentindo os
pelos me fazerem cócegas. Ao erguer o rosto, assenti, fraca. De uma forma
única, estávamos unidos para sempre.
— Nunca deixarei de amá-la, lembre-se disso.
Era Cristopher quem derrubava agora uma lágrima. Minha resposta foi
abraçá-lo tão forte que nos meus sonhos mais malucos, partes dele ficariam
impregnadas em mim. Pedaços minúsculos de passado, de bravura, de
coragem e de delicadeza. A força dos meus braços era só uma tentativa de
me fundir a ele e conseguir ter um pouco mais coragem de soltá-lo quando
fosse a hora.
E a hora tinha chegado. Vi, pelo pequeno círculo, que já amanhecia.
Cristopher se afastou e limpou a garganta.
— Adeus, Isla.
— Adeus, meu amor — respondi, ouvindo o último pedaço do meu
coração se esfarelar.
Saí correndo da câmara sem olhar para trás, tentando não desabar
completamente. A vida precisava correr seu curso do outro lado do tempo.
Implorar para que ele ficasse apenas traria dúvidas e mancharia suas
certezas. E Cristopher merecia paz para chegar do outro lado.
Precisava estar forte para lutar e sobreviver.

1 O Alquimista, Paulo Coelho


28
UMA CAMINHADA QUE DUROU 457 ANOS
Cristopher

I n nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti.


Meu joelho estava novamente na terra. Minha espada era meu
consolo e meu apoio naquela última oração. Não estava sendo fácil
tomar a decisão de ir embora. Eu estava com medo, mas não da morte. O
problema é que havia me apegado à vida.
— Sempre fui um servo de Cristo e dos pobres, a primeira regra para ser
um verdadeiro cavaleiro. — Minha voz ressoou baixo dentro da câmara,
enquanto ouvia murmúrios distantes e antigos ecoarem no meu interior. —
Fui fiel à Ordem todos os dias em que a servi, guiado pelos seus ideais
soberanos. Dei minha vida protegendo-a e combati tudo que lhe colocava
em risco.
Um pequeno fio dourado vazou pelo círculo, e eu voltei a fechar os
olhos, desta vez com mais força. Eu já sabia das minhas dúvidas, apenas
não quão gigantes eram.
— Nunca agi contra a dignidade da Ordem e fui uma pessoa de honra, e
é por isso, Cristo, que peço um sinal. Não sei se minhas virtudes seriam um
dia valorizadas nesse mundo estranho, mas sei que acabarei como um
cavaleiro morto no próximo. A pergunta é: minha espada defenderá quem
eu amo nesses poucos segundos e isso os permitirá viver? Ou estou indo
para morrer em vão?
Como se respondesse às minhas orações, a pedra em meu peito
esquentou. Morna, tranquila e asseguradora.
Eu havia conhecido outra vida, distante do meu mundo.
Conhecido uma mulher que conseguiu me fazer sorrir.
Pela primeira vez estava em dúvida se seguia meu caminho ou arriscava
dar meia-volta.
— Ajude-me, Deus. — Olhei para o círculo que se preenchia
lentamente de sol e agora parecia sussurrar o meu nome, como se me
chamasse. — Eu seria um cavaleiro nos dias de hoje? Trajaria a cruz de oito
pontas com honra? Ou seria uma vergonha se escolhesse pensar na minha
pequena felicidade?
Olhei para as paredes cor de ocre, tentando ouvir uma resposta. Os
ruídos do lado de fora deixaram de existir e só havia eu e a luz ali dentro.
Memórias de feitos passados, todo o sangue derramado, as dores, as
aflições, as tristezas e as lembranças de amigos que se foram — tudo ficara
no passado distante. Eu tinha a chance de me juntar a eles e cumprir bem a
minha missão, ou aproveitar a janela luminosa de oportunidade e viver
minha vida com quem amava.
Arranquei a pedra do peito e segurei-a na mão. Ela deixara de ser morna
e ficara tão quente que parecia ter saído do fogo.
Quem eu seria se ficasse? E quem eu deixaria de ser?
De todos os momentos de dúvida, este era o mais estranho e inquietante.
E se meu heroísmo e bravura não fizessem mais parte de mim, caso ficasse?
E se eu virasse um homem comum? Uma cabeça em meio à imensa
multidão, perseguindo sonhos modestos e individuais?
A relutância em voltar se dava porque estava cansado de guerras e
morte. De erguer minha espada contra outros. Mesmo não entendendo o
mundo atual, ele me parecia mais acolhedor. Complexo, contraditório,
frenético e um pouco delirante — mas também feito de mais sorrisos, de
paz. Queria tempo para desbravá-lo. Para ouvir o ronco das carroças cujo
funcionamento não fazia o menor sentido. Para entender como aparelhos
nos obedeciam como servos. Para saber como seria, um dia, cruzar o céu
em uma daquelas máquinas que carregavam pessoas e poder observar o
mundo de cima.
Eu queria viver.
Mais do que isso: eu queria viver ao lado de Isla.
O sol avançava pela metade do círculo, projetando a luz laranja nas
paredes atrás de mim.
No segundo em que voltasse, morreria como um herói. Meu nome
apareceria em algum lugar da história — não como desaparecido, mas
como alguém que defendeu seu povo até o último instante.
O que eu decidisse nos próximos segundos transformaria o futuro.
Eu salvaria Aaron e Sabrina? Ou eles se salvariam de qualquer jeito, e
eu apenas pereceria sob a espada de algum otomano?
Por outro lado, se eu ficasse, teria Isla para sempre em meus braços.
Ouviria pelos próximos anos suas risadas indiscretas e testemunharia sua
pequena e inofensiva rebeldia. Conviveria com pessoas diferentes, mas
intrigantes.
Eu sentiria falta da ilha do passado e do homem que fui, mas algo me
dizia — de todas as formas táteis e sonoras — que aquela falta era
inevitável. O tempo aceitava mudanças, mas não se permitia ser pego,
parado, contido ou domado. O tempo criava e apagava heróis. A única coisa
que o tempo não controlava era o amor.
Eu precisava me decidir. Agora.
Não era necessário morrer um herói. Eu não queria morrer um herói.
Como meu irmão, eu só queria achar a paz.
— Você a achou, meu irmão. — A voz fraca de Sabrina ecoou entre
aquelas paredes, como se ela também tivesse estado, um dia, ali naquele
lugar. — Seja feliz.
Joguei a pedra no chão sem pensar mais. O sol agora preenchia quase
todo o círculo e o transporte estava completo. Sem o toque da minha pele, a
pedra roxa foi perdendo o brilho até ficar fosca; então, suas próprias bordas
começaram a desaparecer, até não existir mais resquício de que um dia
estivera ali.

ISLA

— Então é isso — falei para o mar, ouvindo as ondas soarem ao longe. —


Estou sozinha outra vez.
Com um rombo no peito, mas de pé. O dia clareava de maneira
esplendorosa e o azul do oceano era a coisa mais linda do mundo. Este seria
o mesmo horizonte que Cristopher veria do outro lado do tempo, caso
sobrevivesse ao massacre em que aterrissou.
Meu peito se apertou de tristeza outra vez, mas afastei o sentimento.
Cada um com suas batalhas: a dele era ser grande e entrar para a história. A
minha, sobreviver a partidas doloridas e a empregos patéticos. Esse era o
meu superpoder: seguir adiante.
Tirei o celular do bolso, pensando em como responderia à oferta de
emprego que Daniel me fez. Embora arrasada, não estava destruída ou
morta. Pessoas arrasadas ainda recebiam boletos e precisavam fazer
supermercado.
Porém, eu não morreria de amor. Não seria enterrada ao lado do
guerreiro que amava. Não lutaria em nenhuma guerra, não defenderia
fronteiras nem teria o nome escrito em algum livro. O mais próximo que
chegaria da glória seria ter meu nome nas letrinhas miúdas que corriam
aceleradas ao final de um filme classificado como ruim ou medíocre.
Ser uma cabecinha na multidão era o meu destino.
Dei meia volta, enxugando as lágrimas que insistiam em correr. Além
de chorar, só me restava trabalhar e comer. Por sorte havia estoque de
chocolate para três séculos em casa. Cristopher se fora, e só me restava
agora me apegar às lembranças e seguir adiante. Eu ia conseguir, eu sabia,
porque sempre teria o meu bom-humor para me resgatar nos momentos
difíceis e o otimismo para achar que amanhã seria um dia melhor. E os
amanhãs sempre eram um novo dia, mesmo.
Assim que deixei a falésia e peguei o caminho cimentado que levava à
saída, estanquei no lugar.
Havia um cavaleiro interrompendo a passagem.
Um homem com a armadura reluzindo sob os primeiros raios do sol,
ofuscando as vistas. Por longos segundos permaneci parada, os olhos
pousados na figura prateada, vendo os fios loiros e longos balançarem sob a
brisa marítima. Era uma miragem bonita e doída. Maldito cérebro que
pregava peças desse tipo.
Então, o sol incidiu de forma diferente na imagem, mas ela não se
desfez. Meu coração, antes suspenso, caiu de uma altura infinita. Porém, ao
invés de se estilhaçar, ele voltou a bater forte, retumbando tão alto que
talvez até mesmo Cristopher o tivesse ouvido.
As pernas ganharam força para caminhar até ele, e eu senti na barriga
milhares de sininhos soarem felizes. Não sei quanto tempo caminhei, mas
pareceram 457 anos.
Parei alguns passos distante do meu guerreiro, tentando entender o que
tinha acontecido. O solstício não havia funcionado? Ou ele escolhera ficar?
— Cristopher? Como… pode estar aqui?
Conforme os segundos passavam, meu peito ia se esvaziando. Não tinha
dado certo? Não pensamos num plano B. Sempre tive a certeza de que ele
partiria nessa data. Não sei de onde tiramos a ideia, mas era uma certeza
para nós dois. E agora...
De repente, ele avançou um passo e depois outro, até as mãos imensas e
quentes acolherem meu rosto. Seus olhos tinham a cor das piscinas mais
claras, brilhando com o mais puro amor e determinação.
— Não vou voltar. — Os polegares ásperos secaram a umidade dos
meus olhos. — Não há mais sombras no meu coração, Isla. Quero ficar no
presente. Com você.
Foi como se o meu corpo tivesse dado pane geral. Nem respiração,
batimentos cardíacos ou termômetro interno pareciam funcionar mais. Eu
não conseguia nem mesmo me mexer.
Eu esperava voltar sozinha para casa e me afundar em sorvete e
autocomiseração. Talvez aceitar o emprego idiota para ocupar a cabeça e o
vazio completo. Entretanto, meu guerreiro estava aqui, sorrindo e esperando
eu me recuperar do choque.
— Não foi uma decisão fácil. Sou um guerreiro, não um homem da sua
época, mas acho que preciso de paz. — Eu concordava totalmente com isso.
— Serão tempos difíceis para mim, Isla, mas conto com sua leveza e amor
para me ajudar. — A voz dele era um tormento baixo, quase um murmúrio.
— E como juramentos são feitos de joelhos, preciso me curvar para o que
vou dizer a seguir.
Abri a boca, ainda perplexa, vendo Cristopher se abaixar e pousar um
dos joelhos no chão, dobrando o outro na minha direção. Então, ele segurou
minha mão e me fitou.
— Juro a você fidelidade e respeito, mas principalmente, todo o meu
amor, Isla de Malta. Prometo honrá-la pela vida inteira. Defendê-la de todas
as maneiras que um homem pode defender sua mulher. Fazê-la minha
diante de Deus e do mundo, e encher sua barriga com meus filhos.
Mesmo se eu conseguisse falar alguma coisa — o que era óbvio que não
conseguiria —, seria impossível. Tinha virado uma estátua que só sentia as
palavras penetrarem na pele, viajando pelo sangue até tocarem o coração.
— Você é boa para mim. Uma boa mulher...
Quase soltei uma risada alta, mas estava emocionada demais para fazer
qualquer brincadeira.
— …e por tudo isso, desejo me casar com você.
— Ai, meu Deus.
— Mesmo com você profanando ininterruptamente o nome do Senhor.
Meu sorriso enterneceu e o toque dele virou um carinho. Cristopher se
levantou e embrenhou todos os dedos entre as mechas do meu cabelo, me
puxando para perto. Colidi contra a parede dura de sua armadura e meu
sorriso se alargou.
— Por quê? — Segurei as placas de aço sobre os braços, correndo os
olhos pelo rosto mais bonito do mundo. Eu ainda estava confusa. — Por
que decidiu ficar, Cristopher? — Tateei o ferro, detestando que parecesse
um rinoceronte, e não o homem quente e macio que eu amava. — Estou
sonhando, ou uma tragédia está prestes a acontecer? Talvez a queda de um
meteoro, um maremoto, o fim do mundo?
Eu era a Isla-do-dedo-podre. As coisas davam errado para mim!
— Nada vai acontecer, eu prometo, amor. E decidi ficar por um motivo
bem simples. Porque eu te amo — Cristopher respondeu. — Porque minha
alma é sua não consegui deixá-la para trás. Porque você agora está
impregnada em cada osso meu, e faz parte de que sou. E porque sei agora,
do fundo da minha alma, que era isso que Aaron e Sabrina queriam para
nós.
A boca charmosa se aproximou da minha, mas não chegou a me tocar.
Quando ergui o olhar, Cristopher sorria e esperava por algo que eu não
sabia o que era.
— Não sei como é nos tempos atuais, mas na minha época, quando um
homem expunha seu coração, ele esperava algo em troca. Você ainda não
disse se aceita meu juramento.
— Você tá de brincadeira, não é? — soltei uma risada. — A minha
resposta é sim, homem de lata. Mil vezes sim!
Só então nossas bocas colidiram. O hálito bom do seu beijo se misturou
às cócegas da barba, à pressão da mão ao redor do meu rosto, à sensação de
estar sendo apertada contra o para-choque de um caminhão. O beijo foi só
um prelúdio do que viria e serviu para mostrar que eu não estava sonhando.
Bastou o contato acabar para eu saltar em seus braços, em êxtase e
emocionada, finalmente compreendendo que ele estava mesmo ali, para
ficar, para sempre. Sem pensar onde estávamos, ou me importar, abracei sua
cintura dura com as pernas e envolvi seu pescoço com os braços,
depositando beijinhos por todo o rosto que eu amava. Cristopher me
segurou como se eu não pesasse nada, rindo da minha alegria.
— Eu achei que tivesse te perdido. — Apertei-o mais. — Para ele, o
tempo.
O guerreiro afundou a face no meu cabelo, respirando pesadamente de
emoção contra o meu pescoço.
— Ele tentou nos separar, mas eu e você formamos uma boa dupla.
Olhei-o com carinho. Deus era testemunha de que o tempo ainda me
roubaria muitas coisas, mas não conseguiu me roubar esse homem, não
hoje. Havíamos ganhado aquela batalha. Um dia minha irmã partiria
naquela roda que nunca parava, mas aquela seria a sua aventura, e eu não
poderia fazer nada além de amá-la até o embarque. O que podia fazer agora
era ser feliz com o meu cavaleiro e ver a vida avançar, levando e trazendo
outros rumos, lugares e pessoas.
— Cristopher… — Seu nome saiu dos meus lábios vibrando de
emoção, perdido em um oceano de felicidade. — Obrigada.
Obrigada por ter optado por mim.
Por ter acreditado em nós.
Por ficar.
Então, ainda agarrada a ele, olhei para o mar reluzente à distância e
agradeci também à magia do tempo por tê-lo permitido chegar aqui.
Agradeci, por fim, à irmã corajosa que voaria para longe em algum
momento do futuro, e decidiria, em um instante de amor, me enviar de
presente um guerreiro do passado.

Fim
EPÍLOGO 1
DEZ ANOS DEPOIS

E u assistia ao casamento de Sabrina com lágrimas nos olhos. Porém,


ao contrário da maioria, chorava de tristeza.
Cristopher e eu éramos os únicos de pé no canto da igreja. Laura,
nossa caçula, estava com soluços e reclamando da cerimônia demorada,
então precisávamos estar prontos para sair quando chorasse. Isso é o que
diríamos à minha irmã quando ela perguntasse por que não ficamos até o
final. A resposta verdadeira era porque estávamos arrasados. Nenhum de
nós sabia que ela se casaria com alguém antes de partir. Sempre
acreditamos que seu único amor seria Aaron.
Com as mudanças, comecei a me questionar até mesmo se ela algum dia
iria para o passado.
Sem ter o que fazer, apenas assisti sua vida correr para uma direção que
não entendia. Aquele homem ao seu lado não era Aaron. Ele não a faria
feliz — ou era isso que eu achava. Só tinha certeza de uma coisa: não
gostava nem um pouco dele. Sentia o peito apertado por saber que fui eu
quem o apresentei a ela, pouco tempo atrás. Era a estreia mundial de “A
maior batalha de todas”, filme produzido pela minha empresa e de
Cristopher. Como queríamos muita repercussão, convidei meio mundo para
o lançamento, e entre eles estava o homem no altar, ao lado de Sabrina.
Zachary Ruedas era um político maltês muito importante que facilitou
nossas gravações nos lugares originais da ilha e que parecia muito
charmoso e sedutor no começo.
Infelizmente, entre minha irmã e o homem foi paixão à primeira vista, e
a do tipo mais perigosa: aquela que fazia pessoas incompatíveis se casarem
em pouco tempo.
— Ainda não acredito no que está acontecendo — murmurei abraçada à
minha filha de dois anos, balançando a cabeça em censura. Cristopher
depositou um beijo sobre a minha cabeça, as mãos passando pelos fios
escuros do cabelo da menina.
— Também não acredito, mas você prometeu, diante da tumba dela, que
nunca interferiria nas suas decisões. Tudo o que está acontecendo precisa
acontecer, meu bem.
— Eu sei, Cris... Tento todos os dias me ater à promessa, mas isso não
significa que não sofra. Ainda mais quando já sei que ela não será feliz com
ele.
Meu marido também não estava feliz. Como eu, fora pego de surpresa
pela notícia do enlace.
— Juro que não sabia que ela já tinha sido casada. Duvido que Aaron
soubesse.
— Já não entendo mais nada, Cristopher. Ainda acho que deveríamos
ter falado alguma coisa. Feito algo.
Ele balançou a cabeça, negando devagar. Sabrina tinha pedido para não
saber de nada e isso devia ser importante.
Contrariada com a situação, olhei para o meu marido que há tantos anos
me fazia feliz. Ele continuava lindo, mesmo uma década depois. O mesmo
cabelo comprido, o mesmo tronco largo, o mesmo semblante sofrido e
heroico. A diferença do homem de hoje para o que conheci, dez anos antes,
era que agora ele tinha adquirido um certo refinamento do mundo atual e, o
mais importante, eu podia chamá-lo de marido.
Nos anos que se seguiram à sua decisão de ficar, Cristopher conheceu
minha irmã, tão jovem e cheia de vida, e os dois formaram uma amizade
improvável. Sabrina ainda não imaginava quem ele seria em sua vida no
futuro, mas o carinho e respeito já estavam lá. Quando ela pisasse no
passado, seria vista por ele como uma inimiga, uma feiticeira que o
afastaria do irmão. Porém, ela saberia que aquele homem rústico que lutava
ao seu lado se tornaria, um dia, marido da sua irmã e seu melhor amigo.
Infelizmente, precisaria encará-lo todos os dias sabendo quem ele era e sem
pode dizer nada. Teria que enfrentar sua animosidade em silêncio, sabendo
bem mais do que ele, sem poder revelar nada.
Cristopher, por sua vez, sabia quem Sabrina era agora. Talvez, por se
lembrar de como a tratou no passado, tentasse compensar as grosserias
pelos ciúmes tolos que sentiu por ter acreditado que ela roubara o irmão.
Sendo assim, meu marido tomou como missão prepará-la para os dias que
viriam, pois era o único que realmente conhecia o passado e tudo o que ela
enfrentaria. Ensinou-a a lutar enquanto ela passava férias na nossa casa, na
costa da ilha. Assim que a menina dominou a arte da luta corporal,
Cristopher a ensinou a empunhar espadas e a atirar com arcos. Hoje eu
sabia que a sobrevivência da minha irmã se dera devido aos seus esforços.
Foi ele que a fez chegar preparada ao passado.
Sabrina saberia disso o tempo inteiro. Ao que parecia, a sina da minha
família era guardar segredos que mudariam destinos.
Além de prepará-la fisicamente, eu e Cristopher a ensinamos sobre a
história da ilha, porém de forma discreta. Sabrina esteve ao meu lado na
estreia de “O Cerco de Malta”, o primeiro filme que ajudei a roteirizar e que
foi produzido por um grande estúdio de cinema. Como participou do
projeto, ela conhecia cada detalhe da batalha, o que a permitiu sobreviver
durante aqueles dias de 1565. Cristopher então ensaiou seus passos; avisou
onde deveriam se esconder e para onde correr quando tudo ruísse em São
Elmo, sem nunca deixá-la perceber que estava revelando o futuro — na
verdade, o passado — para ela.
Sabrina costumava comentar que achava o interesse do cunhado pela
história de Malta em 1565 excessivo, mas eu desconversava, atribuindo a
situação à sua formação em história antiga.
Mais um segredo que eu mantinha: para todos, Cristopher permaneceu
islandês, sem nunca revelarmos que ele era nativo da ilha.
Muitas coisas me angustiavam enquanto via minha irmã suspirar
apaixonada pelo marido no altar. Se a viagem ao passado ainda aconteceria,
será que ela deixaria filhos para trás? Será que o casamento estava fadado a
acabar? Será que, por algum motivo, eu me arrependeria por não tê-la
avisado o que a esperava? A cada vez que a via trajar a pedra roxa, sentia
um misto de agonia e tristeza, sempre me perguntando se aquele era o nosso
último momento juntas. A areia da ampulheta escasseava — Sabrina se
parecia cada vez mais com a mulher que Cristopher conheceu no forte —,
mas não podíamos fazer nada.
— Não aguento mais ficar aqui — disse, engasgada. Abracei minha
filha e indiquei com um movimento de cabeça que precisava sair daquela
igreja e tomar ar. Meu marido me seguiu em silêncio.
Caminhamos pelo jardim da capela vendo Aaron, nosso filho mais
velho, brincar com outras crianças. Com sete anos, ele era um garoto levado
e feliz, o menino de ouro do pai e o garotinho doce da mãe. Sentamos lado
a lado sob a sombra de uma árvore centenária, observando a pequena Laura
caminhar pelo gramado enquanto tentava pegar, com os dedinhos
gorduchos, uma joaninha no chão. Aquilo deveria ser felicidade em seu
estado mais pleno, se não fosse uma pontada dolorida que me lembrava
com tanta constância o que estava para acontecer.
— Não sei o que dizer desse casamento, Cristopher. Queria ficar feliz
por ela, mas não consigo. — Recostei a cabeça no tronco da árvore,
observando o céu azul daquele sábado bonito. Girei a cabeça para observar
meu guerreiro e fenomenal pai de família. — E se ela nunca for para o
passado? E se eu não perdê-la?
— Se isso acontecer, meu irmão nunca a conhecerá.
— Talvez ele conheça outra mulher. Ou nem mesmo esteja em São
Elmo no Cerco. A única coisa que me incomoda é o que a permanência dela
aqui pode causar.
Esse era o meu maior medo. Tinha pesadelos constantes de acordar um
dia e descobrir que Cristopher nunca veio para o presente. Que eu nunca
deixei de ser a Isla-do-dedo-podre que se resumia a ter empregos patéticos e
namorados idiotas.
Em um dia específico, Sabrina seria enviada para o passado. Se esse dia
passasse, um novo caminho de possibilidades se abriria, e nele, Cristopher
não existiria para mim, nem nossos filhos, nem essa felicidade toda que eu
vivia.
Olhei para o amor da minha vida e uma dor lancinante perfurou meu
peito, chegando até os ossos. O que aconteceria se esses dez últimos anos
idílicos fossem apenas uma possibilidade entre muitos futuros diferentes? A
felicidade — e a tristeza — estavam atreladas à partida de Sabrina. Quando
eu a perdesse, ela me enviaria Cristopher. Sabendo que tínhamos pouco
tempo, tentei viver essa janela de anos com os dois ao meu lado da forma
mais intensa e amorosa que consegui. Onde eu estive, Sabrina esteve
comigo. O sucesso que consegui nunca me afastou da minha irmã.
Agora, sentia medo por tudo isso ter sido apenas uma curva possível,
mas não o evento definitivo. Pensar que o amanhã pudesse desaparecer e
que nossas vidas tomassem outro rumo me fazia querer chorar
copiosamente.
Sabendo exatamente o que cruzava minha mente, Cristopher pousou a
mão sobre a minha.
— Você tem pouca fé, Isla de Landa.
Assenti de maneira triste. Eu nunca teria a fé que Cristopher possuía.
Nunca.
— Visitei a Catedral outra vez, esta semana — ele murmurou. — O
túmulo deles continua lá, inalterável. Sabrina partirá em breve, estando ou
não casada com esse idiota.
Voltei a olhar para a cerimônia que via acontecer parcialmente pela
porta lateral, sem saber o que achar. Como ela podia estar há 400 anos
enterrada ao lado de um homem e, ao mesmo tempo, jurar amor eterno a
outro?
E sim, Cristopher tinha razão: o homem era um idiota.
— Talvez devêssemos contar alguma coisa — disse de rompante. —
Talvez dizer que a felicidade dela não está aqui, com Zachary, mas em outro
tempo e lugar?
— Já conversamos sobre isso, saħħara, e a resposta é não. Sabrina
pediu que nunca disséssemos nada.
— Mas quando prometi isso, não achei que ela fosse se casar com
esse… — psicopata, pensei, mas não falei.
— Você está se preocupando demais, meu amor. — Cristopher beijou a
lateral da minha face, e a mesma sensação morna de felicidade, aquela que
passei a experimentar quando o conheci, me envolveu. Encarei os olhos
azuis translúcidos, decidida a acolher sua paz convidativa.
— Talvez você tenha razão.
— Venha — Cristopher me puxou —, a cerimônia acabou.
Ele caminhou até Aaron para ajeitar a roupinha desarrumada pela
brincadeira e eu olhei emocionada para a noiva, que deixava a capela sob
uma chuva de arroz. Era setembro de 2032 e a vida não poderia estar
melhor. Tínhamos uns aos outros, éramos felizes e estávamos todos juntos.
Por quanto tempo ficaríamos assim, não sabia, mas cada segundo contava.
Caminhei de braços abertos em direção a Sabrina, sorrindo por tê-la
comigo por mais um dia, um mês ou um ano. Abraçamo-nos com força.
Acariciei seu longo cabelo escuro e suas costas, sentindo minha irmã tão
quente e próxima de mim. Eu a amava tanto quanto meus próprios filhos.
Mais do que ela podia imaginar.
Quando nos afastamos, Sabrina tinha uma discreta careta de dor.
Zachary, seu agora marido, se afastou para cumprimentar alguns amigos
e eu chacoalhei a cabeça, sem entender.
— O que foi? — perguntei olhando alarmada para ela. — Está
machucada?
Minha cabeça já tinha imaginado o pior.
— Não, é só que tatuei uma coisa ontem e a pele ainda está sensível. —
Ela abriu um sorriso ao ver Cristopher se aproximar com Laura no colo e
Aaron ao lado. Sabrina deu um beijinho na menina e recebeu alegre o beijo
que Cristopher depositou em sua testa. Então, se abaixou para falar com o
seu afilhado.
— Como vai o menino mais lindo do mundo? — Brincou com a
bochecha da Aaron, que queria de qualquer jeito ir para o seu colo.
— Agora não — Cristopher avisou, acalmando os ânimos do filho. —
Titia está vestida de noiva, e se pular no colo dela, vai sujá-la.
— Querido, a madrinha promete que assim que tirar essa cobertura de
bolo, brincará com você, está bem?
Aaron assentiu, se contentando em apenas encostar a cabecinha nos
ombros da tia, que o abraçou com carinho.
Escolher minha irmã como madrinha do nosso filho mais velho foi a
decisão mais certeira que fizemos. Ela era presente, amorosa e
completamente apaixonada pelo menino. Sabrina sempre deixou claro que
seu sonho era ter um bebê, e que quando tivesse, gostaria que fosse
exatamente como o meu filho.
Coincidência ou não, segundo Cristopher, o nosso Aaron de olhos
verde-menta e cabelos escuros era uma cópia exata do seu irmão.
— O que tatuou? — questionei, curiosa, parando de sorrir quando
Zachary se aproximou. Alguma coisa naquele homem me dava arrepios, e
de homens idiotas eu entendia. Algo nele não estava certo.
Sabrina olhou para o recorte do vestido, que deixava parte do ombro à
mostra, e moveu o tecido para o lado. Um desenho discreto de uma
borboleta surgiu, e logo abaixo, o nome do meu filho.
Cristopher paralisou ao meu lado, assim como eu. Pelo jeito, nem
mesmo Zachary conhecia a tatuagem, pela expressão que fez.
— Queria que fosse uma surpresa. Mais tarde escreverei também o
nome de vocês, o de Zach e dos nossos filhos. Porém, precisava começar
por um e achei que deveria ser com o do garotinho mais lindo do mundo.
Ela acariciou com carinho o rosto de Aaron, mas a conversa foi
interrompida pelos outros convidados. Eu e Cristopher nos afastamos,
deixando que o casal recebesse os cumprimentos.
Chocada pela tatuagem, ainda não tinha palavras para expressar o que
sentia.
— Você sabia disso? — Cristopher perguntou.
Neguei, ainda pasma. Quando me virei para ele, vi que tinha um meio
sorriso no rosto. Algo naquela tatuagem tinha um significado diferente para
ele. Era como se o nome, agora marcado para sempre na pele de Sabrina,
fosse um sinal.
— Tenha fé, amor — ele sussurrou, passando os braços pelos meus
ombros e me puxando para um abraço. — Apenas fé.
PRÉVIA DE “UMA VIAJANTE DO FUTURO”
20 DE DEZEMBRO DE 2035, TRÊS ANOS DEPOIS

CRISTOPHER

I sla adormecera em meus braços, repousando tranquila contra mim após


o sexo. Eu sentia a curva das suas costas tocarem meu peito e o cheiro
bom que exalava do seu pescoço, à disposição para mais beijos. E eu o
beijava de maneira lenta e tranquila, do ombro nu ao lóbulo macio da
orelha, aproveitando o momento de silêncio. As crianças dormiam, a chuva
batia na janela como um tranquilizante natural e o momento era de
saciedade e paz.
Foi apenas por isso, porque o mundo inteiro estava mudo, que ouvi a
campainha.
O ruído baixo, nem de longe estridente como o que escutava nos dois
primeiros anos no pequeno apartamento de Isla, se diluiu na casa imensa.
Mal conseguia atravessar os três andares, e só o ouvi porque a pessoa
insistiu muito, tocando repetidamente.
Quem estava à porta, tão tarde da noite? Para chegar até nós, a pessoa
tinha que ter passado pela entrada do condomínio sem ser anunciado e
dirigido até ali. Nossa casa era a última da rua de um bairro planejado,
imenso e bastante restrito. Além disso, só os mais próximos conheciam o
nosso endereço.
Tentando não acordar a minha esposa, levantei com cuidado e coloquei
o roupão. Desci as escadas ainda descalço, vendo, do vidro que ornava a
entrada, a figura conhecida de Sabrina, andando de um lado para o outro na
soleira.
Antes mesmo que abrisse a porta depressa e a colocasse para dentro —
estava frio e o vento de dezembro parecia sacolejar o arquipélago naquela
época —, meu coração já tinha disparado. Há meses sabíamos que ela
estava enfrentando problemas no casamento e tentávamos ajudar como
podíamos. Como Isla previra, Zachary se revelara o pior tipo de canalha.
Temíamos que em algum momento ela se machucasse de verdade, ou uma
tragédia acontecesse. Sem jamais mencionar a viagem no tempo, e
honrando a promessa de nunca revelar nada, ajudávamos da forma que
humanos decentes faziam diante de casos de abuso e violência doméstica:
exigíamos que largasse o abusador, que fosse à polícia e que prestasse
queixa. Oferecemos nossa casa para ela ficar e cortamos de vez
relacionamento com aquele larápio. Infelizmente, nossas tentativas eram em
vão. Mesmo que Sabrina se afastasse, o fim durava pouco: os dois sempre
reatavam. Nem eu, nem Isla entendíamos o que mantinha os dois juntos.
Ao abrir a porta, considerei, pela primeira vez em muito tempo, pegar a
espada que ficava pendurada na parede da mansão e resolver as coisas
como fazia no passado.
Sabrina tinha um hematoma na lateral do rosto, e estava tão magra que
parecia um esqueleto ambulante. A raiva subiu rápido por mim, assim como
a vontade de sair no meio da chuva para matar aquele desgraçado.
Estava decidido: a cabeça de Zachary seria achada boiando amanhã na
praia.
— As coisas escalaram, Cristopher! — foi a primeira coisa que ela disse
quando entrou nervosa no vestíbulo, pingando pela chuva que tomou para
chegar até ali. — Zachary estava fora de si e eu não sabia mais o que fazer!
Pensei em chamar Isla, mas ao ver as lágrimas rolarem pela face da
minha cunhada, desisti. Havia tanta dor ali que mudei de ideia. Se
envolvesse minha esposa na história, só duplicaria aquela dor.
— O que ele fez dessa vez? — Fechei a porta e peguei um casaco
pendurado no armário da entrada. Coloquei a peça sobre os ombros
estreitos de Sabrina, contendo a raiva vulcânica por aquele homem sem
honra.
— Ele não precisa mais fazer nada, Cris. — Ela deixou os braços
tombarem sob o casaco, e vi sangue salpicado por todo o moletom que ela
vestia. Foi como levar um murro no meio do peito. Eu sabia que as coisas
estavam ruins, que Sabrina não estava mais suportando a pressão do
casamento, mas aquilo excedia em muito o que eu estava preparado para
ver.
A voz dela soou monocórdica e sem vida:
— Zach enlouqueceu, e estou ficando louca também.
— Sabrina — alertei-a pausadamente —, você precisa largá-lo. E de
vez.
— Eu tento há anos, você sabe. Eu não consigo mais lutar!
— Claro que consegue. Nós te protegeremos, não importa o que
aconteça.
Sabrina balançou a cabeça em uma negação desolada. E continuou
negando em silêncio até Isla aparecer no topo da escada, abraçada ao
cobertor. Por algum motivo ela não desceu, como se soubesse que sua
presença faria a irmã moderar nas revelações. Sabrina não gostava de
preocupar Isla, dizia que a irmã trabalhava demais e não merecia sofrer
pelas suas decisões ruins.
— Zach ficou completamente louco, Cristopher! — Sabrina finalmente
continuou, a voz deixando claro toda a sua exaustão. — Ele insistia em
dizer que descobriu coisas secretas sobre mim! Que eu o trairia em breve,
que o abandonaria para me casar com outro! Falou que nunca mais me
deixaria sozinha, que não me deixaria fugir dele outra vez!
Afundando as mãos ensanguentadas no rosto, ela recomeçou a chorar.
— Precisa se mudar para cá o mais rápido possível — ordenei. — E
sem desculpas, desta vez! Não pode voltar para casa, Sabrina!
— Ele andava me trancando no quarto! — Ela me ignorou, revelando
entre soluços a verdade dolorida. — Disse que um dia me casaria com
Aaron e que não permitiria que isso acontecesse! — Ela olhou para mim,
revoltosa. — Veja onde a loucura o levou: eu, me casando com meu
sobrinho!
Sobressaltado, arrastei os olhos até Isla, ainda no topo da escada. Você
falou alguma coisa?, perguntei com o olhar. Ela negou. Nunca disse nada a
ninguém e não teria feito isso sem me contar.
A pergunta, então, era: o que Zachary sabia sobre a viagem no tempo?
— Ele estava fora de si, não andava falando coisa com coisa! —
continuou. — Disse que eu já estou morta, que não entende como estava
aqui. — Ela se sentou na escada, de costas para a irmã, e afundou o rosto
entre as mãos. Procurei por ferimentos nas partes do corpo de Sabrina que
podia ver, mas não achei nada. — Já tentei fugir três vezes, mas não podia
avisar vocês. Eu não podia, ou ele os destruiria também! — Ela continuou,
o choro só aumentando. — Estava disposta a deixar tudo para trás e
desaparecer. Vocês não sabem como aquele homem era perigoso! Se
quisesse, poderia fechar a firma de vocês num estalar de dedos, Cristopher!
Prejudicar a todos que amo. Quando o conheci, não imaginei o quão insano
e perigoso ele era! Na minha última tentativa de fuga, há dois meses,
cheguei até Florença, mas ele me achou. Ainda consegui embarcar para
Sevilha, só que ele me encontrou de novo…
Ela arrastou as mãos no cabelo, claramente alterada.
— Eu nunca vou conseguir desfazer esse casamento ou fugir dele! —
soluçou. — Nunca!
Finalmente, Isla desceu as escadas.
— Sabrina, não pode fugir sem nos avisar — ela disse em um tom
firme, porém macio. Colocou então o cobertor sobre os ombros da irmã e
deu a volta, se ajoelhando na frente dela. Minha esposa estava tão
sobressaltada como eu com o estado de Sabrina. Sabíamos que as coisas
estavam ruins, mas não a esse ponto. — Mesmo que Zachary seja poderoso,
nós podemos fazer, sim, muita coisa contra ele! — Isla continuou. — Para
começar, podemos denunciar o cárcere, porque ele não tem o direito de te
prender!
Sem suportar o toque da irmã em suas costas, Sabrina se levantou.
Avisei para Isla que havia sangue na roupa da irmã, e que talvez não viesse
dela.
Isla enrijeceu ao olhar com atenção para a roupa manchada.
— Preciso fugir, Isla. Uma fuga que dê certo, dessa vez. — Sabrina
enxugou o rosto com a lateral das mãos, a voz resoluta. — Os homens de
Zach virão atrás de mim. Preciso de ajuda para sair de Malta, preciso me
esconder em um lugar bem longe. Quero recomeçar a vida, não me importa
como. Só que não sei o que fazer, nem conheço alguém de confiança que
possa me ajudar. — O rosto de Sabrina crispou, e ela voltou a chacoalhar os
ombros.
Isla olhou para mim, e ambos percebemos que a hora tinha chegado.
Minha esposa se levantou devagar e se virou para mim. Nunca vi seus
olhos daquele jeito, com uma certeza tão grande. Suas pupilas estavam
imensas, o rosto inteiro transformado pela dor e resolução.
— Chegou a hora, Cristopher.
Era hora de mandar Sabrina para o passado.

Fim da prévia :)
NOTAS DA AUTORA - SOBRE A ORDEM DOS
HOSPITALÁRIOS

Obrigada a todas que leram Um Guerreiro do Passado!


Como sempre, deixo aqui algumas informações relevantes e uma lista
de sites que me ajudaram a criar tanto Malta de 1565 como a de hoje.

Sobre a Ordem e seus cavaleiros:


A Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém,
de Rodes e de Malta realmente existe. Ela foi fundada no século XI, durante
as Cruzadas, e se tornou mais tarde uma ordem militar cristã encarregada de
assistir e proteger os peregrinos na Terra Santa.
Quando a última fortaleza cristã caiu após o Cerco de Acra, em 1291, a
ordem se estabeleceu no Chipre, e depois em Rhodes. A partir de então, os
cavaleiros se organizaram para montar uma frota poderosa que dominou o
Mediterrâneo oriental, travando batalhas “pelo bem da cristandade.”
Em 1523, após seis meses de cerco e combate feroz contra a frota e o
exército do sultão Suleiman, os cavaleiros se renderam e foram expulsos de
Rhodes. Foi quando o Imperador Carlos V cedeu a desértica ilha de Malta
para que os cavaleiros se reorganizassem, ao preço de um falcão por ano.
Foi assim que eles chegaram à ilha.
Em 1565, os Cavaleiros, liderados pelo Grão-Mestre Jean de Valette,
precisaram defender a ilha por mais de três meses durante o que foi
conhecido como O Grande Cerco de Malta, pano de fundo da minha
história.
Hoje em dia, a Ordem ainda existe como organização humanitária,
dirigindo hospitais e centros de reabilitação, atuando em cinco continentes
do mundo, sem distinção de raça ou religião.
Fonte: Wikipedia / The Great Siege of Malta, Bruce Ware Allen
https://amzn.to/3hSSs40

Alguns links e curiosidades:


1. https://en.wikipedia.org/wiki/Garzes_Tower
As torres mencionadas no capítulo 24, de Redin, foram construídas
depois da época do livro. Infelizmente, na época em que aconteceu a
história elas ainda não existiam.
2. https://heritagemalta.mt/whats-on/summer-solstice-at-mnajdra-and-
hagar-qim-temples/
Sabiam que dá, sim, para ver o solstício em Hagar Qim? Segue a
informação!
3. https://www.hypeness.com.br/2018/11/o-incrivel-manual-de-
caligrafia-do-seculo-xvi-que-esta-disponivel-para-download-gratuito/
Cristopher não consegue ler letras impressas porque na época em que
vivia, a caligrafia era como a mostrada acima. Na verdade, é possível ler,
mas ele precisaria de um tempinho para aprender o formato das letras. Uma
vez aprendido, conseguiria discernir as letras e leria sem problema algum.
4. https://themaltaexperience.com/virtual-tour/
Aqui você pode ver como era São Elmo por dentro!
5. https://en.wikipedia.org/wiki/Languages_of_Malta
Achei esse site interessante para entenderem sobre as línguas faladas em
malta.
Embora o livro tenha muita informação verdadeira sobre o cerco, não
deve ser considerado fonte de pesquisa. Para quem quer saber mais sobre o
assunto, recomendo demais esse livro aqui: https://amzn.to/3hSSs40
Espero que gostem das curiosidades!
Um grande abraço,
Karina

Crédito da imagem do brasão: Mathieu CHAINE


AGRADECIMENTOS

A todas que compraram a ideia da viagem no tempo, o meu mais sincero


obrigada! Meu agradecimento especial vai para as meninas do Love
Travellers e nossas discussões animadíssimas sobre o assunto! Que venha
2023 e todos os livros da série!

OUTROS DA SÉRIE LOVE TRAVELLERS:

Um Romance do Passado, Chiara Ciodarot

Um Highlander do Passado, Lígia Dantas

Um Inimigo do Passado, Liz Stein

Uma Princesa do Passado, Narjara Pedroso

Um Duque do Passado, Stefany Nunes

Um Lorde do Passado, Tatiana Mareto

e, em breve,

Uma Viajante do Futuro, Karina Heid


MEUS LIVROS

Se quiserem conhecer minhas outras obras, aqui estão elas:

Fantasia

A Jornada das Bruxas


O Príncipe Vampiro

Romance Adulto

A Última Peça
Sessenta Noites em Trindade
Meu Capitão: Sessenta Noites 2
Cowboy Sem-vergonha
O Lado Bom do Inferno
A Garota da Música
Xeque & Mate: O Clube da Vingança
Alices no País dos Romances
Um Guerreiro do Passado

Romances de Época

Série Damas de Aço

Lady Audácia
Lady Malícia
Lady Romance
As Doze Noites de Lady Malícia
Lady Escândalo

Série Enfeitiçados

Um Libertino Enfeitiçado
Um Forasteiro Enfeitiçado
Um Marquês Enfeitiçado
Série Kaiser Kinder

O Duque Perdido
O Libertino Domado
O Lorde do Nilo
O Conde Encantado

Contos e Antologias
Três Milagres de Natal
Spin-off de Selvagens: a história de June e João
Homens de Farda
Doze por Doze:“Janeiro”

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SOBRE A AUTORA

Publicitária, professora de alemão, psicóloga e escritora — tudo que é legal ser, já fui. Sou também
mãe de duas crianças lindas e esposa parceirona. Hoje mora na Ásia, porém, amanhã… Quem sabe?
Se quiserem bater papo comigo, sabem onde me encontrar!

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