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Ficha Técnica

Título original: Rebel Angels


Autor: Libba Bray
Editora: Cristina Lourenço
Tradução: Susana Serrão
Revisão: Natália Garcia
Capa: Maria Manuel Lacerda
ISBN: 9789892327631

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© Martha E. Bray, 2005


Publicado pela primeira vez por Delacorte Press,
uma chancela da Random House Children’s Books,
uma marca da Random House, Inc.
Direitos de tradução por acordo de Barry Goldbartt Literary LLC.
e Sandra Bruna Agencia Literaria S. L.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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Para Barry e Josh, claro
E para os meus amigos muito queridos,
prova de que todos acabamos por encontrar a nossa própria tribo
Tudo o que vemos ou parecemos
É apenas sonho dentro de sonho.
Edgar Allan Poe

Quem primeiro os seduziu para essa revolta ímpia?


A Serpente infernal; pois era ela, cuja astúcia
Movida a Inveja e Vingança, enganou
A Mãe da Humanidade, depois de a Soberba lhe acarretar
A expulsão do Céu com a sua Hoste de
Anjos Rebeldes, com cuja ajuda aspirava
Elevar-se à Glória acima dos seus Pares
E ombrear com o Altíssimo, que se lhe opunha;
Nessa ambição contra o Trono e a Monarquia de Deus
Travou Guerra ímpia e Batalhas soberbas
Mas vãs. O Todo-Poderoso derrubou-o do
Firmamento Eterno para o abismo da perdição
Em ruínas e em chamas, para lá ficar...
Ó Príncipe, Ó Chefe dos Potentados
Que levaste para a Guerra os Serafins
E com teus feitos destemidos
Desafiaste o Rei perpétuo dos Céus;
E puseste à prova sua alta Supremacia,
Apoiada na força, no Acaso ou na Sorte,
Bem vejo e lamento o momento que,
Com triste derrube e ímpia derrota
Nos perdeu o Céu e lançou na maior vileza
Esta Hoste pujante assim destruída,
Conforme essências divinas e celestiais podem ser;
Pois a mente e o espírito perduram invencíveis,
E o vigor não tarda a renovar-se,
Embora com a Glória extinta e aqui engolidos
Na miséria maior e interminável...
Reinar é digno de ambição mesmo no Inferno:
Antes reinar no Inferno do que servir no Céu.
Mas onde deixámos nossos amigos fiéis,
Associados e consócios da nossa queda
Jazem espantados e mergulhados no olvido,
Vamos chamá-los, não para todos ficarmos
Nesta mansão infelizes, mas para uma vez mais
Empunhar armas e recobrar o que pudermos no Céu,
Ou perder ainda mais no Inferno?

John Milton,
Paraíso Perdido, Livro Primeiro
PRÓLOGO
7 de dezembro de 1895

Aqui jaz o fiel e verdadeiro relato dos meus últimos sessenta dias, eu
Kartik, irmão de Amar, filho leal dos Rakshana, e da estranha visita que
recebi e que me deixou desconfiado nesta fria noite inglesa. Para começar
do princípio, devo voltar a meados de outubro, depois da desventura que se
deu.
O tempo arrefecia quando saí do bosque atrás da Academia Spence para
Jovens Senhoras. Antes recebera uma carta pelo falcão dos Rakshana.
Solicitavam a minha presença em Londres imediatamente. Devia viajar por
estradas secundárias e verificar se não era seguido. Durante vários
quilómetros, viajei a coberto da caravana dos ciganos. O resto do caminho
fiz a pé, sozinho, oculto pelo arvoredo ou pelo manto largo da noite.
Na segunda noite, exausto da viagem, meio morto de frio e fome –
terminara a parca ração de carne dois dias antes – a cabeça toldada pelo
isolamento, o bosque começou a enganar-me. Naquele estado debilitado, os
fogos-fátuos tornavam-se assombrações; os ramos partidos pelos cascos de
uma corça, ameaça das almas inquietas dos bárbaros chacinados séculos
antes.
À luz da fogueira, li vários excertos do meu único livro, um exemplar de
A Odisseia, na esperança de ganhar coragem com as atribulações desse
herói. Pois eu já não me sentia corajoso nem certo de coisa alguma.
Finalmente, deixei-me levar pelo sono e os sonhos.
Não foi um sono reparador. Sonhei com relva que ficava preta como
acendalhas. Eu estava num sítio feito de pedra e cinza. A silhueta de uma
árvore solitária recortava-se contra uma lua vermelha de sangue. Muito
mais abaixo, um vasto exército de seres sobrenaturais clamava por guerra.
Acima do ruído, ouvi meu irmão, Amar, a guinchar um aviso: «Não me
deixes ficar mal, irmão. Não confies...» Mas aqui o sonho mudava. Ela
estava lá, debruçada sobre mim, os caracóis ruivos dourados como uma
auréola contra o céu brilhante.
– O teu destino faz parte do meu – sussurrou. Chegou-se mais; os lábios
pairaram perto dos meus. Senti o mais ínfimo calor que brotava deles.
Acordei logo, mas não havia nada, tirando as brasas da minha fogueira e os
sons noturnos de animaizinhos a procurarem abrigo.
Quando cheguei a Londres, ia meio morto de fome e sem saber onde me
dirigir. Os Rakshana não me tinham dado instruções para os encontrar; não
era assim que faziam as coisas. Eles é que me encontravam a mim. Fui
cambaleando pelos magotes de Covent Garden, o cheiro a tarte de enguia,
quente e salgado, quase me enlouqueceu de fome. Estava quase a arriscar-
me a roubar uma quando reparei nele. Um homem encostado a uma parede
a fumar um charuto. Não tinha nada de especial: estatura e compleição
média, fato e chapéu escuro, o jornal matutino bem dobrado debaixo do
braço esquerdo. Usava um bigode bem cuidado, e na face uma cicatriz
como um sorriso malvado. Esperei que ele olhasse noutra direção para eu
poder roubar a tarte sem percalços. Fingi-me interessado num par de artistas
de rua. Um fazia malabarismo com facas e o outro encantava a multidão.
Um terceiro homem, disso sabia eu, andaria por ali, a aliviar as pessoas das
suas carteiras. Olhei para a parede outra vez, e o homem desaparecera.
Era o momento de atacar. Com a mão escondida a coberto do manto,
estendi-a para o monte de pãezinhos fumegantes. A tarte quente estava
quase ao meu alcance quando o homem da parede me ladeou.
– A Estrela do Oriente é difícil de encontrar – disse ele em voz baixa mas
alegre. Só então reconheci o alfinete que tinha na lapela do casaco: uma
espada pequena com uma caveira em cima. O símbolo dos Rakshana.
Respondi todo animado com as palavras que sabia serem as esperadas.
– Mas brilha para quem busca por ela.
Apertámos as mãos direitas então, com as esquerdas sobre os pulsos
como fazem os irmãos dos Rakshana.
– Bem-vindo, noviço, temos estado à tua espera. – Ele chegou-se mais
para me sussurrar ao ouvido. – Tens muito que explicar.
Não sei dizer ao certo o que aconteceu a seguir. A última coisa que me
lembro de ver foi a mulher das tartes a embolsar moedas. Senti uma dor
aguda na nuca e o mundo dissolveu-se num negrume.
Quando recobrei os sentidos, dei comigo num espaço escuro e húmido, a
piscar os olhos contra a luz súbita de muitas velas altas dispostas em círculo
à minha volta. Quem me acompanhara desaparecera. Doía-me a cabeça
como o diabo e, agora desperto, o meu terror afiou-se na pedra de amolar
do desconhecido. Onde estava eu? Quem era o tal homem? Se era
Rakshana, porquê a pancada na cabeça? Mantive os ouvidos bem abertos,
em busca de sons, vozes, qualquer pista quanto à minha localização.
– Kartik, irmão de Amar, iniciado da irmandade dos Rakshana... – A voz,
funda e possante, vinha algures de cima de mim. Não vi nada além das
velas, e além delas, completa escuridão.
– Kartik – repetiu a voz, a qual queria decididamente resposta.
– Sim – saiu-me, quando encontrei a própria voz.
– Vamos dar início ao julgamento.
A sala começou a tomar forma nas trevas. A quase quarenta metros acima
do chão havia um corrimão a toda a volta da sala circular. Atrás do
corrimão, comecei a discernir os sinistros mantos púrpuras das mais altas
patentes dos Rakshana. Não eram os irmãos que me tinham treinado toda a
vida, mas sim os homens poderosos que viviam e governavam nas sombras.
Para que um tribunal assim se reunisse, eu teria feito algo muito bom – ou
muito mau.
– Estamos desanimados com o teu desempenho – continuou a voz. – A
tua missão era vigiar a rapariga.
Algo muito mau. Novo terror apoderou-se de mim. Não era o medo de
que me batessem ou de ser assaltado por meliantes, mas sim o medo de ter
desapontado os meus benfeitores, meus irmãos, e de enfrentar a sua justiça,
já de si lendária. Engoli em seco.
– Sim, irmão. Eu vigiei-a, mas... – A voz ouviu-se, perentória.
– A tua missão era vigiá-la e comunicar-nos. Mais nada. Era uma missão
difícil, noviço?
Não conseguia falar, esmorecido de medo como estava.
– Porque não comunicaste connosco no momento em que ela entrou nos
reinos?
– Pensei... Pensei que tinha mão nos acontecimentos.
– Deveras?
– Não. – A resposta ficou a pairar no ar como fumo das velas.
– Não, não tinhas mão nos acontecimentos. E agora os reinos foram
transpostos. Aconteceu o impensável.
Esfreguei as palmas das mãos suadas nos joelhos, mas não ajudou. O
gosto frio e metálico do medo entrou-me na boca. Havia muito que eu
desconhecia sobre a organização a que dedicara a minha lealdade, a própria
vida, como o meu irmão fizera antes de mim. Amar contara-me histórias
dos Rakshana, do seu código de honra. Do seu lugar na história enquanto
protetor dos reinos.
– Se tivesses vindo ter connosco de imediato, poderíamos ter contido a
situação.
– Com todo o respeito, ela não é como eu pensava. – Parei para pensar na
rapariga que deixara para trás; obstinada, com uns inquietantes olhos
verdes. – Creio que ela tem boas intenções.
A voz atroou.
– Aquela rapariga é mais perigosa do que ela própria sabe, e constitui
uma ameaça maior do que tu sabes, rapaz. Ela tem o potencial de nos
destruir a todos. Agora, entre vocês dois, o poder está à solta. O caos
impera.
– Mas ela derrotou o assassino enviado por Circe.
– Circe tem mais do que um espírito tenebroso à sua disposição. – A voz
continuava. – Aquela rapariga quebrou as runas que albergavam a magia e a
tinham em segurança durante gerações. Compreendes que não há controlo
possível? A magia está à solta dentro dos reinos para qualquer espírito usar.
Já há muitos a usá-la para corromper os espíritos que devem fazer a
travessia. Vão levá-los para as Invernias e fortificar-lhes a pujança. Quanto
tempo faltará para que enfraqueçam o véu entre os reinos e este mundo?
Para que cheguem a Circe ou para que Circe consiga entrar? Quanto tempo
até ela ter o poder que tanto cobiça?
Um medo gelado e viscoso correu-me nas veias.
– Agora compreendes. Compreendes o que ela fez. O que a ajudaste a
fazer. Ajoelha-te...
Surgiram do nada duas mãos fortes que me obrigaram a cair de joelhos.
Desapertaram-me o manto no pescoço e senti o aço frio e duro na veia que
lá pulsava freneticamente. Pronto. Eu fracassara, envergonhara os Rakshana
e a memória do meu irmão, e iria morrer por isso.
– Obedeces aos desígnios da irmandade? – perguntou a voz.
A minha voz, estrangulada na garganta pela lâmina da faca, soou,
frenética, sufocada. A voz de um estranho.
– Sim.
– Diz.
– Eu... Eu obedeço aos desígnios da irmandade. Em todas as coisas.
A lâmina recuou. Soltaram-me.
Tenho vergonha de admitir que quase chorei lágrimas de alívio. Estava
vivo quando me apercebi de que me poupavam a vida, e teria hipótese de
provar o meu valor aos Rakshana.
– Ainda há esperança. A rapariga alguma vez te falou no Templo?
– Não, meu irmão. Eu nunca ouvi falar de tal sítio.
– Muito antes de as runas serem criadas para controlarem a magia, a
Ordem tinha um Templo. Constava ser a fonte de todo o poder nos reinos. É
o sítio onde se pode controlar a magia. Quem reclamar o Templo para si
poderá governar os reinos. Ela tem de o localizar.
– Onde fica?
Fez-se silêncio por momentos.
– Algures dentro dos reinos. Não temos a certeza onde. A Ordem fazia
disso segredo.
– Mas como...
– Ela tem de puxar pela cabeça. Se ela for verdadeiramente escolhida pela
Ordem, o Templo há de convocá-la de algum modo. Mas ela tem de ter
cautela. Há outros que também demandam o Templo. A magia é
imprevisível, bravia. Não se pode confiar em nada do outro lado. Isto é da
máxima importância. Assim que ela encontrar o Templo, tem de dizer estas
palavras: Eu prendo a magia em nome da Estrela do Oriente.
– Isso não entregará o Templo aos Rakshana?
– Entregar-nos-á o que é nosso. Porque é que a Ordem tem de ficar com
tudo? A época dela já terminou.
– Porque não lhe pedimos que nos leve com ela?
Fez-se silêncio outra vez, e tive medo que me pusessem a faca no pescoço
outra vez.
– Não há membro dos Rakshana que possa entrar nos reinos. Foi esse o
castigo das bruxas.
Castigo? Porquê? Eu ouvira Amar dizer apenas que éramos guardiães da
Ordem, um sistema de freios e contrapesos para o poder delas. Era uma
aliança conturbada, mas não deixava de ser uma aliança. O que se dizia
agora deixava-me em cuidado.
Tive receio de falar, mas soube que tinha de o fazer.
– Não creio que ela trabalhe para nós de livre vontade.
– Não lhe contes o objetivo. Conquista-lhe a confiança. – Pausa. – Faz-
lhe a corte, se preciso for.
Pensei na rapariga forte, poderosa, teimosa, que deixara para trás.
– Não é fácil cortejá-la.
– Qualquer rapariga gosta que a cortejem. É meramente questão de
encontrar o instrumento certo. O teu irmão, Amar, tinha grande talento para
manter a mãe da rapariga do nosso lado.
Meu irmão trajando o manto dos danados. Meu irmão a bradar o grito de
guerra dos demónios. Aquela não era altura de falar nos meus sonhos
perturbadores. Ainda pensavam que era cobarde ou louco.
– Cai nas graças dela. Encontra o Templo. Impede-a de se lançar noutras
iniciativas. O resto será nosso.
– Mas…
– Podes ir, Irmão Kartik – disse ele, com o título de honra que um dia me
poderia ser atribuído como membro de pleno direito dos Rakshana. –
Ficaremos atentos.
Os meus captores avançaram então para me vendarem os olhos mais uma
vez. Pus-me de pé de um salto.
– Esperem! – bradei. – Assim que ela encontrar o Templo, e o poder for
nosso, o que será dela?
Fez-se silêncio na sala, tirando o roçagar das chamas tremeluzentes
naquela ligeira corrente de ar. Por fim, a voz ecoou pela sala fora.
– Então terás de a matar.
UM
Dezembro de 1895
Academia Spence para Jovens Senhoras

Ai, o Natal!
Só de falar na época festiva, a maior parte das pessoas tem recordações
preciosas e sentimentais: uma árvore alta e verde coberta de ouropéis e
vidrarias; prendas embrulhadas em papel garrido espalhadas por todo o
lado; uma lareira animada e copos cheios de alegria; cantores às portas de
chapéus altos a apanharem a neve cadente; um belo e gordo peru numa
travessa, rodeado de maçãs e, claro, pudim de figos para a sobremesa.
Pois. Lindo. Eu também gostaria muito de ter isso.
Essas imagens da época natalícia estão a quilómetros de distância de onde
estou sentada agora, na Academia Spence para Jovens Senhoras, obrigada a
criar um enfeite de rapaz do tambor apenas com folha metalizada, algodão e
um bocadinho de cordel, como se fizesse uma experiência diabólica de
regeneração de cadáveres. O monstro de Mary Shelley não poderia ser
assim tão pavoroso como esta coisa ridícula. A figura não há de fazer
ninguém lembrar-se do espírito natalício. Aliás, o mais certo é que as
crianças se debulhem em lágrimas.
– Isto é impossível – resmungo, mas ninguém tem pena de mim. Nem a
Felicity ou a Ann, as minhas duas amigas do peito, ou seja, as minhas
únicas amigas aqui, acorrem em meu auxílio. A Ann está empenhada em
transformar açúcar húmido e bocaditos de acendalhas numa réplica exata do
Menino Jesus na manjedoura. Parece não reparar em mais nada além das
suas duas mãos. Por seu turno, Felicity vira os olhos frios e cinzentos para
mim como quem diz, Sofre, eu também sofro.
Não, antes pelo contrário, é a alimária da Cecily Temple quem me
responde. Queridíssima Cecily ou, como eu a trato na privacidade da minha
cabeça, A Desgraça em Figura de Gente.
– Não concebo o que poderá ser assim tão incomodativo, menina Doyle.
Com franqueza, é a coisa mais simples do mundo. Olhe, eu já fiz quatro. –
E exibe os quatro rapazes do tambor feitos de folha para inspeção de todos.
Ouvem-se exclamações e comentários quanto aos bracinhos perfeitos, aos
cachecóis de lã pequeninos… tricotados pelas mãos capazes da Cecily,
obviamente… e aos delicados sorrisos de alcaçuz que os fazem parecer
deleitados por virem a ser enforcados numa árvore de Natal.
Faltam duas semanas para o Natal e estou cada vez com mais má
disposição. O rapazinho de folha parece pedir-me que lhe dê um tiro.
Movida por uma força maior do que eu, não consigo deixar de colocar o
enfeite estropiado na mesinha e de dar um pequeno espetáculo. Faço
avançar a coisa hedionda a arrastar uma perna inútil como o Pequeno Tim
dos romances de Dickens.
– Que Deus nos abençoe a todas – digo numa voz esganiçada e
desgraçadinha.
A reação é um silêncio horrorizado. Todos os olhos se desviam. Até
Felicity, a quem ninguém tomaria por um modelo de boas maneiras, parece
encolher-se. Atrás de mim, ouço o ruído tão conhecido de alguém a
pigarrear numa censura imensa. Viro-me e vejo a senhora Nightwing, a
diretora empedernida da Spence, a olhar para mim como se eu fosse
leprosa. Maldição.
– Menina Doyle, parece-lhe humorístico? Fazer pouco do sofrimento
deveras verdadeiro dos infelizes de Londres?
– Eu... Eu... ora...
A senhora Nightwing olha para mim por cima dos óculos. A bola de
cabelo grisalho é como uma nuvem a ameaçar a tormenta iminente.
– Porventura, menina Doyle, se passasse algum tempo ao serviço dos
pobres, a enrolar ligaduras como eu fiz na mocidade durante a Guerra da
Crimeia, a menina adquirisse uma sadia e muito necessária dose de
compaixão.
– S-sim, senhora Nightwing. Não sei como é que pude ser tão mazinha –
balbucio.
Pelo canto do olho, vejo Felicity e Ann debruçadas sobre os enfeites
como se fossem relíquias fascinantes de uma escavação arqueológica.
Reparo que os ombros lhes tremem, e percebo que tentam dominar o riso
por causa da minha situação periclitante. A amizade é assim.
– Por causa disto, a menina perde dez pontos de bom comportamento e
fico à espera que faça uma ação benemérita durante a época festiva para se
redimir.
– Sim, senhora Nightwing.
– Vai escrever um relato completo dessa ação benemérita e explicar-me
os termos em que ela lhe engrandeceu o caráter.
– Sim, senhora Nightwing.
– Esse enfeite precisa de muito mais trabalho.
– Sim, senhora Nightwing.
– Tem dúvidas?
– Sim, senhora Nightwing. Quer dizer, não, senhora Nightwing.
Obrigada.
Ação benemérita? Durante as festas? Será que o tempo passado com
Thomas, meu irmão, conta para esse fim? Maldição. Agora é que estou
tramada.
– Senhora Nightwing? – O som agudo da voz da Cecily até me põe a
espumar da boca. – Espero que estejam satisfatórios. Anseio muito por dar
assistência aos infelizes.
É possível que eu ainda venha a perder a consciência de tanto reprimir um
sonoro Ha! em reação àquilo. A Cecily, que nunca perde oportunidade de
implicar com a Ann por ser bolseira indigente, não quer nada com os
pobres. Quer, isso sim, ser a cadelinha de colo da senhora Nightwing.
A senhora Nightwing leva os enfeites perfeitos da Cecily à luz para
melhor os inspecionar.
– Estão exemplares, menina Temple. Muito bom trabalho.
A Cecily faz um sorriso presumido.
– Obrigada, senhora Nightwing.
Ai, o Natal.
Com um pesado suspiro, desmonto o meu enfeite desgraçado e começo
tudo outra vez. Ardem-me os olhos, vejo tudo turvo. Esfrego-os, mas não
serve de nada. Preciso mesmo de dormir, mas tenho pavor de adormecer. Há
semanas que sou assombrada por avisos malvados em sonhos. Não me
lembro de muito quando acordo, apenas fragmentos aqui e ali. Um céu
toldado de vermelho e cinza. Uma flor pintada a escorrer lágrimas de
sangue. Estranhas florestas de luz. A minha cara, séria e inquiridora,
refletida na água. Mas as imagens que retenho são dela, linda e triste.
Porque é que me deixaste aqui? grita ela, e não consigo responder. Quero
regressar. Quero que fiquemos juntas outra vez. Desato a correr mas o grito
dela encontra-me. A culpa é tua, Gemma! Tu deixaste-me aqui! Tu deixaste-
me!
É só do que me lembro quando acordo todas as manhãs antes da alvorada,
ofegante e toda transpirada, mais cansada do que quando me fui deitar. São
apenas sonhos. Porque é que me deixam assim transtornada?
– Podiam ter-me avisado – ralho com Felicity e Ann assim que ficamos
sozinhas.
– Podias ter tido mais cuidado – Ann repreende-me. Tira da manga um
lenço que já está encardido de tanta lavagem e limpa o nariz que não para
de pingar e os olhos que não param de lacrimejar.
– Não teria dito nada se soubesse que ela estava mesmo atrás de mim.
– Sabes bem que a senhora Nightwing é como Deus: omnipresente. Aliás,
pode muito bem ser Deus, tanto quanto sei. – Felicity suspira. A luz da
lareira dá-lhe um brilho dourado ao cabelo louro quase branco. Ela
resplandece como um anjo caído.
Ann olha em redor, nervosa.
– N-n-ão devias falar de – ela diz a palavra num sussurro – Deus dessa
maneira.
– E por que raio não? – retruca Felicity.
– Pode dar azar.
Faz-se sossego, pois sabemos todas muito bem e sentimos todas
recentemente o que é ter azar, para podermos esquecer-nos de que há forças
além do mundo visível, forças além de toda a razão e compreensão.
Felicity olha para o lume.
– Ainda pensas que Deus existe, Ann? Depois de tudo a que assistimos?
Uma das criadas silenciosas desce o corredor mal alumiado, o branco do
avental destacado pelo cinzento da farda. No meio da escuridão só se lhe vê
o avental; a mulher desaparece completamente nas sombras. Se eu lhe
seguir o movimento a virar a esquina, consigo ver a sala alegre com a
lareira acesa donde acabámos de sair. Um enxame de miúdas de várias
idades, dos seis aos dezassete, lança-se em cantigas natalícias espontâneas,
a pedir a Deus que dê descanso aos seus alegres gentis-homens. Não se fala
no descanso das gentis mulheres de Deus, alegres ou não.
Anseio por ir ter com elas, acender velas na grande árvore, puxar os
cordéis dos garridos estalinhos de Natal e ouvir o papel a estalar com um
som alegre e satisfeito. Anseio por não ter mais ralações, tirando se o Pai
Natal será bonzinho para mim este ano, ou se encontrarei carvão no
sapatinho.
De braço dado como bonecas recortadas em papel, um trio de raparigas
balouça para trás e para a frente; uma pousa a cabeça macia e encaracolada
no ombro da que tem ao lado, e esta dá um beijinho na testa da primeira.
Não fazem ideia de que este mundo não é único. De que para lá das paredes
muralhadas da Academia Spence, muito além da barreira da senhora
Nightwing, da Mademoiselle LeFarge e das outras professoras que cá estão
a moldar os nossos hábitos e personalidades como se barro fossemos, além
da própria Inglaterra, há um lugar de grande beleza e terrível poder. Um
lugar onde o que sonhamos pode realizar-se, e temos de ter cuidado com o
que sonhamos. Um lugar onde nos podemos magoar. Um lugar que já
reclamou para si uma de nós.
Eu sou o elo para esse lugar.
– Vamos buscar os sobretudos – diz Ann, e avança para a imensa
escadaria em espiral que domina o átrio.
Felicity mira-a com curiosidade.
– Para que raio? Aonde vamos?
– É quarta-feira – respondeu Ann, e vira costas. – São horas de ir visitar a
Pippa.
DOIS

Abrimos caminho pelas árvores despidas atrás da escola até chegarmos a


uma clareira sobejamente conhecida. Está muita humidade, ainda bem que
trouxe casaco e luvas. À direita fica o lago onde estivemos ociosamente
deitadas num barco a remos debaixo do céu de setembro. O barco dorme
agora nas pedras cheias de geada e na erva morta e amarga do inverno à
beira da água. O lago é uma lâmina de gelo fina e lisa. Há meses, dividimos
este bosque com um acampamento cigano, mas há muito que eles se foram,
rumo a climas mais quentes. No grupo calculo que esteja um certo jovem de
Bombaim, com grandes olhos castanhos, lábios cheios e o bastão de
críquete de meu pai. Kartik. Será que ele pensa em mim, onde quer que
esteja? Quando será que ele vem à minha procura, e o que será que isso
significa?
Felicity vira-se para mim.
– Com que estás a sonhar aí tão calada?
– Com o Natal – minto, as palavras a saírem-me em baforadas de vapor
branco digno de uma locomotiva. Está um frio desgraçado.
– Já me esquecia de que nunca tiveste um Natal inglês como deve ser.
Tenho de to dar a conhecer durante as festas. Havemos de nos escapulir de
casa e de nos divertirmos à grande – diz Felicity.
Ann continua de olhos postos no chão. Ela vai ficar na Spence durante as
férias de Natal. Não tem parentes que a recebam, não tem prendas para abrir
nem recordações que a aqueçam até à primavera.
– Ann – digo animadamente. – Que sorte a tua ficares com a Spence só
para ti na nossa ausência.
– Não é preciso fazer isso – retruca ela.
– Fazer o quê?
– Embelezar o facto. Vou ficar sozinha e muito infeliz. Sei muito bem
disso.
– Oh, com franqueza, não te armes em coitadinha. Assim não posso
suportar a tua companhia – diz Felicity, exasperada. Pega num pau
comprido e vai batendo nas árvores à nossa passagem. Remetida a um
silêncio encabulado, Ann vai-se arrastando. Eu devia dizer algo para a
defender mas dou comigo, cada vez mais, fartinha da recusa dela em se
impor. Assim, deixo passar.
– Achas que vais a alguns bailes durante as férias? – pergunta Ann, a
morder o lábio, a torturar-se. Não há diferença alguma das pequenas
incisões que ela faz nos braços com a tesoura da costura, os cortes que as
mangas tapam, mas que eu sei que ela recomeçou a fazer.
– Sim, claro – respondeu Felicity, como se a pergunta fosse entediante. –
A mãe e o pai organizaram um baile de Natal. Toda a gente vai lá estar.
Toda a gente menos tu, bem podia ter acrescentado.
– Eu vou ficar confinada em casa com a minha avó, a qual nunca perde o
ensejo de me apontar os defeitos, e o meu irmão Tom que me dá cabo da
paciência. Posso garantir-te que vão ser umas férias extenuantes. – Sorrio,
na esperança de fazer Ann rir-se. A verdade é que me sinto culpada por a
abandonar, mas não a ponto de a levar para casa comigo.
Ann olha-me de soslaio.
– E como está o teu irmão Tom?
– Na mesma, ou seja, impossível.
– Então não anda de olho em ninguém?
A Ann gosta do Tom, o qual nunca se dignaria olhar para ela duas vezes.
É uma desesperança.
– Creio que anda, sim – minto. Vejo Ann estacar.
– Quem é?
– Ah... Uma menina Dalton. A família é de Somerset, parece-me.
– É bonita? – pergunta Ann.
– É – respondo. Continuamos, e espero que ela se fique por aqui.
– Bonita como a Pippa?
Pippa. A belíssima Pip, com canudinhos pretos e olhos cor de violeta.
– Não – respondo. – Não há ninguém como a Pippa.
Chegámos. Diante de nós ergue-se uma árvore enorme, a casca manchada
por um fino manto de geada. Uma pedra pesada na base. Descalçamos as
luvas e tiramos a pedra do caminho. Fica à mostra um buraco decrépito.
Dentro da árvore, um sortido das coisas mais díspares – uma luva de pele de
cabrito, um bilhete em papel pardo preso por uma pedra, uma mão-cheia de
caramelos, algumas flores secas que ficaram do funeral, mas que o vento
leva consigo assim que varre a sempiterna ferida do velho carvalho.
– Trouxeste? – pergunta Felicity a Ann.
Ela faz que sim com a cabeça e tira do bolso um embrulho em papel
verde. Abre o embrulho e vê-se um enfeite em forma de anjo feito de renda
e missangas. Cada uma de nós lhe coseu pedacinhos. Ann torna a embrulhar
a prenda no papel e coloca-a no altar improvisado, junto das outras
recordações.
– Feliz Natal, Pippa – diz ela, o nome de uma rapariga que jaz morta e
sepultada há dois meses a cerca de cinquenta quilómetros daqui. Uma
rapariga que era nossa amiga do peito. Uma rapariga que eu poderia ter
salvado.
– Feliz Natal, Pippa – murmuramos eu e Felicity.
Não se diz mais nada a seguir. O vento está frio nesta clareira, pouco tem
a travá-lo. Balas afiadas de nevoeiro irrompem pela lã do meu sobretudo,
fico com pele de galinha, toda arrepiada. Olho para a direita, onde ficam as
grutas, mudas e quedas, as bocas fechadas por um muro de tijolo acabado
de assentar.
Há uns meses, nós quatro reuníamo-nos naquelas grutas para ler o diário
secreto de Mary Dowd, que nos falava dos reinos, um mundo mágico e
oculto para lá deste, outrora regido por um poderoso grupo de feiticeiras
denominado a Ordem. Nos reinos, podemos realizar aquilo que mais
desejarmos. Porém, também há espíritos tenebrosos nos reinos, criaturas
que anseiam governá-los. Mary Dowd descobriu essa verdade. Nós
também, quando a nossa amiga Pippa lá se perdeu para sempre.
– Frio desgraçado – diz Ann, a quebrar o silêncio. Tem a cabeça curvada
e ouço-a pigarrear baixinho.
– Sim – diz Felicity, com pouca convicção.
O vento arranca uma folha castanha e obstinada da árvore e manda-a para
bem longe.
– Parece-te que voltaremos a ver a Pippa? – pergunta Ann.
– Não sei – respondo eu, embora todas saibamos que ela se foi.
Por momentos, não se ouve mais do que o som do vento a varrer as
folhas.
Felicity agarra num pau afiado, espeta-o na árvore sem destino.
– Quando é que vamos voltar? Tu disseste...
– ...que voltaríamos depois de encontrarmos as outras pessoas da Ordem
– remato eu a tirada.
– Mas já passaram dois meses – queixa-se Ann. – E se não houver
outras?
– E se nos recusarem a entrada, a mim e à Ann? Nós não somos especiais
como tu – diz Felicity, e pronuncia «especiais» com maldade. É um
obstáculo entre nós, o facto de só eu saber entrar nos reinos; de só eu ter
esse poder, e elas não. Só podem entrar se eu as levar.
– Sabem bem o que a minha mãe nos disse: os reinos decidem quem é
escolhido. Não nos compete a nós – digo, na esperança de se ficarem por
aqui.
– E quando, por obséquio, é que essas senhoras da Ordem vão estabelecer
contacto, e como? – pergunta Felicity.
– Não faço ideia – tenho de admitir, e sinto-me tola. – A minha mãe disse
que sim. Não é que possamos simplesmente pôr anúncio no jornal, pois
não?
– E o tal rapaz indiano que te andava a vigiar? – pergunta Ann.
– Kartik? Não o vejo desde o funeral da Pippa. – Kartik. Estará no meio
das árvores agora, a vigiar-me, a preparar-se para me levar aos Rakshana,
aqueles homens que me queriam impedir de voltar aos reinos?
– Talvez esteja tudo terminado, e ele se tenha ido embora de vez.
Até me dói a cabeça só de pensar nisso. Não consigo deixar de pensar na
última vez que o vi, os olhos castanhos grandes cheios de uma emoção nova
que eu não soube interpretar, o calor suave do polegar dele a roçar-me no
lábio, a fazer-me sentir estranhamente vazia e carente.
– Talvez – digo. – Ou talvez tenha ido aos Rakshana contar tudo.
Felicity pensa nisto enquanto raspa o seu nome na casca da árvore seca
com o pau afiado.
– Se fosse esse o caso, não te parece que já teriam vindo à nossa procura?
– Calculo que sim.
– Mas não vieram, não compreendes? – Ela empurra o pau com muita
força e ele parte-se no Y e o nome dela fica FELICITV.
– E ainda não tiveste visões nenhumas? – pergunta Ann.
– Não, desde que parti as runas, não.
Felicity mira-me friamente.
– Nada de nada?
– Na-da – respondo.
Ann enfia as mãos debaixo dos braços para as aquecer.
– Parece-te que essa fosse a fonte, e que quando partiste as runas, as
visões acabaram de vez?
Não me tinha ocorrido isso. Fico sobressaltada. Dantes, tinha medo das
minhas visões. Agora, sinto falta delas.
– Não sei.
Felicity pega-me nas mãos, brinda-me com todo o poder sedutor do seu
encanto.
– Gemma, pensa nisso: aquela magia amorosa desperdiçada. Há tanta
coisa que nunca experimentámos!
– Quero ser bonita outra vez – diz Ann, a afeiçoar-se à ideia de Felicity. –
Ou talvez possa encontrar um cavaleiro como a Pippa encontrou. Um
cavaleiro que me ame de verdade.
Não é que eu não tenha debatido estes mesmos aspetos comigo mesma.
Ansiava por ver o sol a pôr-se no rio, por ter todo o poder que me é
recusado neste mundo. É como se a Felicity conseguisse ver-me falhar a
determinação.
Ela dá-me um beijo na face. Tem os lábios frios.
– Gemma, querida, damos só uma olhadela? Entrada por saída, ninguém
dá por nada.
Ann aproveita.
– O Kartik foi-se embora e não há ninguém a vigiar-nos.
– E Circe? – Tive de as lembrar. – Ela ainda ronda por aí, só está à espera
que eu faça um erro.
– Vamos ter o maior cuidado – diz Felicity. Já estou a ver como vai ser.
Elas insistem até eu aceitar levá-las comigo.
– A verdade é que não consigo entrar nos reinos – digo, a olhar para o
bosque. – Já tentei.
Felicity afasta-se de mim.
– Sem nós?
– Uma vez – digo, e não quero encará-la. – Mas não consegui conjurar a
porta de luz.
– Mas que pena – diz Felicity. O tom indica-me: Não acredito em ti.
– Sim, estás a ver, teremos de encontrar as outras pessoas da ordem antes
de podermos voltar aos reinos. Receio que não haja outra maneira.
É mentira. Tanto quanto sei, eu poderia entrar nos reinos em qualquer
altura. Mas ainda não. Só depois de ter tempo para compreender este
estranho poder que me foi concedido, este dom que mais parece uma
maldição. Só depois de ter tempo de aprender a dominar a magia, como
minha mãe me recomendou. As consequências são demasiado graves. Já
basta que eu tenha de viver com a morte da Pippa na consciência para o
resto da minha vida. Não tornarei a fazer o mesmo erro. Por agora, é melhor
que as minhas amigas acreditem que já não tenho poder. Por enquanto, é
melhor mentir-lhes. Pelo menos, é disto que vou tentando convencer-me.
À distância, ouve-se o sino da igreja repicar, a anunciar as vésperas.
– Vamos chegar atrasadas – diz Felicity, a caminhar para a capela. O tom
de voz arrefeceu como o vento. Ann vai atrás obedientemente, fico só eu a
fazer rolar a pedra pesada para tapar a entrada do altar.
– Obrigadinha pela ajuda – resmungo, a fazer força com a pedra. Torno a
reparar no papel pardo. Estranho. Não me recordo de nenhuma de nós a
deixá-lo ali, agora que penso nisso. Não estava lá na semana passada, e
mais ninguém conhece este sítio. Tiro o papel rasgado de debaixo da pedra
e desdobro-o.
Preciso de a ver imediatamente.
Tem assinatura, mas não preciso de ler. Reconheço a letra.
É de Kartik.
TRÊS

Kartik está cá, algures, a vigiar-me outra vez.


É este o pensamento que me consome durante as vésperas. Está cá e
precisa de falar comigo. Imediatamente, dizia no bilhete. Porquê? Qual é a
urgência? Tenho o estômago enrolado num nó de medo e excitação. Kartik
voltou.
– Gemma – sussurra Ann. – O teu missal.
Tenho estado tão alheada que até me esqueci de abrir o missal e de fingir
que estou a seguir a missa. Da sua posição no banco corrido da frente, a
senhora Nightwing vira-se para me lançar um olhar furibundo como só ela
sabe fazer. Leio mais alto do que o necessário para mostrar entusiasmo. A
nossa diretora, satisfeita com a minha piedade, vira-se para a frente outra
vez, e não tardo a perder-me em pensamentos novos e perturbados. E se os
Rakshana me quiserem finalmente capturar? E se Kartik estiver cá para me
levar?
Sinto um arrepio na espinha. Não o vou deixar fazer isso. Ele terá de me
vir buscar, e não hei de ceder sem luta. Kartik. Quem é que ele pensa que é?
Kartik. Talvez tente apanhar-me desprevenida? Aparecer-me de supetão e
rodear-me a cintura com o seu braço forte? Claro que haveria luta. Eu vou
debater-me, embora ele seja muito forte, se bem me lembro. Kartik. Ainda
caímos no chão, e ele prende-me com o peso do corpo, os braços a
segurarem os meus, o rosto tão perto do meu que até consigo cheirar-lhe o
hálito doce e sentir o calor dele nos meus lábios...
– Gemma! – Sussurra Felicity categoricamente do meu lado direito.
Corada e agitada, tomo atenção e leio em voz alta o primeiro versículo da
Bíblia em que os meus olhos pousam. Tarde de mais, apercebo-me de que a
minha voz é a única no meio do silêncio. A minha exclamação assusta toda
a gente, como se eu tivesse tido uma conversão religiosa súbita. As
raparigas soltam risinhos de espanto. Sinto as faces muito quentes. O
reverendo Waite mira-me de olhos semicerrados. Não me atrevo a olhar
para a senhora Nightwing, com medo de que ela me deixe reduzida a cinzas
com aqueles olhos como verrumas. Antes pelo contrário, faço como as
outras e curvo a cabeça em oração. Em segundos, a voz de cana rachada do
reverendo Waite paira sobre as nossas cabeças, quase me embala até ao
sono.
– Em que raio estavas a pensar? – sussurra Felicity. – Estavas com uma
expressão muito estranha.
– Estava absorta em oração – respondo, culpada.
Ela tenta fazer um comentário, mas debruço-me para a frente, o olhar fixo
no reverendo Waite, e ela não pode interpelar-me sem incorrer na ira da
senhora Nightwing.
Kartik. Descubro que tenho saudades dele. Contudo, sei que, se ele
estiver cá, as notícias não podem ser boas.
Terminou a oração. O reverendo Waite dá a bênção ao seu rebanho, e
entrega-nos ao mundo. O crepúsculo chegou, calmo como um navio
fantasma, e com ele veio o nevoeiro do costume. À distância, as luzes da
Spence são como faróis. Ouve-se o pio de uma coruja. Estranho. Não tem
havido corujas por aqui ultimamente. Lá está outra vez. Vem do arvoredo à
minha direita. Pelo nevoeiro, vejo algo a cintilar. Uma lanterna pousada aos
pés de uma árvore.
É ele. Eu sei.
– O que se passa? – pergunta Ann, ao ver que parei.
– Tenho uma pedra dentro do botim – respondo. – Vocês vão andando.
Não demoro nada.
Por segundos, fico completamente imóvel, desejosa de o ver, ansiosa por
saber se ele não é uma alucinação da minha cabeça. A coruja pia outra vez,
até dou um salto. Atrás de mim, o reverendo Waite fecha as portas da capela
com estrondo, e a escuridão domina. Uma a uma, as raparigas desaparecem
no nevoeiro mais à frente, as vozes vão-se dissipando. Ann vira-se para trás,
meio engolida pela bruma.
– Gemma, anda lá! – A voz dela também flutua na bruma e faz eco antes
de ser completamente devorada.
– ...ma... an... da... lá...
O chamado da coruja vem das árvores, mais insistente desta vez. A noite
caiu mesmo nos últimos minutos. Só se vê a radiância da Spence e aquela
luzinha única no bosque. Estou sozinha no carreiro. Num repente, pego na
bainha da saia e lanço-me atrás de Ann com um berro nada senhoril.
– Espera por mim! Vou já!
QUATRO

Segue-se o que eu sei da história da Ordem.


Outrora eram as mais poderosas mulheres que se possa imaginar, pois
eram as guardiãs do poder mágico que governava os reinos. Aonde a
maioria dos mortais só entrava em sonhos ou após a morte, a Ordem
ajudava espíritos na travessia do rio para o mundo além de todos os
mundos. Era a Ordem que os ajudava a realizar os trabalhos das suas almas,
se preciso fosse, para poderem passar à frente. A Ordem podia também
manipular esse poder formidável neste mundo para invocar ilusões, moldar
vidas, influenciar o curso da História. Porém, isso foi antes de duas
iniciadas que frequentavam a Spence, Mary Dowd e Sarah Rees-Toome,
deixarem um rasto de destruição na Ordem.
Sarah, que assumiu o cognome de Circe, a poderosa feiticeira grega
clássica, era a melhor amiga de Mary. Porquanto o poder de Mary
continuasse a aumentar, o de Sarah começou a dissipar-se. Os reinos não a
tinham escolhido para continuar no caminho.
Desesperada por reter o poder que cobiçava, Sarah fez um pacto com um
dos espíritos tenebrosos dos reinos, num lugar proibido chamado Invernias.
Em troca do poder de entrar nos reinos quando lhe aprouvesse, ela
prometeu um sacrifício – uma menina cigana – e convenceu Mary a alinhar
na ideia. Com esse ato único, vincularam-se ao espírito tenebroso e
destruíram o poder da Ordem. Para impedir que os espíritos entrassem neste
mundo, Eugenia Spence, fundadora da Academia e sumo-sacerdotisa da
Ordem, ficou para trás, sacrificou-se à criatura, e a Ordem perdeu a sua
dirigente. O último ato dela foi atirar o amuleto – o olho e a meia-lua – a
Mary e pedir-lhe que fechasse os reinos de vez para que nada pudesse
escapar. Mary assim fez, mas brigou com Sarah por causa do amuleto, e
derrubaram uma vela. Um incêndio terrível devorou a Ala Oriental da
Spence, e esta ainda hoje está trancada e interditada. Partiu-se do princípio
de que as duas raparigas tinham morrido no incêndio, junto com Eugenia.
Ninguém soube que, enquanto o fogo lavrava, Mary fugiu para as grutas
atrás da escola, e deixou para trás o diário que nós acabaríamos por
descobrir. Sarah nunca foi encontrada. Mary passou à clandestinidade na
Índia, onde se casou com John Doyle e renasceu como Virginia Doyle,
minha mãe. Incapaz de entrar nos reinos, as filiadas na Ordem dispersaram-
se, à espera da altura em que pudessem reclamar o seu mundo mágico e o
seu poder mais uma vez.
Durante vinte anos, não aconteceu nada. A história da Ordem passou de
lenda a mito – até ao dia 21 de julho de 1895, o meu décimo sexto
aniversário. Foi nesse dia que a magia da Ordem começou a reanimar-se –
em mim. Foi nesse dia que Sarah Rees-Toome, Circe, finalmente logrou
apanhar-nos. Afinal não morrera naquele incêndio horrível, e andava a usar
o vínculo corrupto com o tal espírito tenebroso das Invernias para
congeminar vingança. Uma a uma, perseguiu as filiadas na Ordem, em
busca da filha de que tanto se falava à boca pequena, da rapariga que podia
entrar nos reinos e restituir a glória e o poder. Foi nesse dia que eu tive a
minha primeira visão, quando vi a minha mãe morrer, caçada pelo assassino
enviado por Circe – a criatura sobrenatural que também assassinou
brutalmente Amar dos Rakshana, uma seita de homens que protegia e temia
o poder da Ordem. Foi nesse dia que conheci Kartik, o irmão mais novo de
Amar, o qual se tornou meu guardião e minha assombração, vinculado a
mim pelo dever e pelo desgosto.
Foi nesse dia que se decidiu o resto da minha vida. Depois disso, fui
mandada aqui para a Spence. As minhas visões levaram-me a entrar nos
reinos com as minhas amigas, onde me reencontrei com a minha mãe e
soube que pertencia à Ordem desde que nascera; onde eu e as minhas
amigas usámos a magia das runas para mudar as nossas vidas; onde lutei
com o assassino enviado por Circe e quebrei as Runas do Oráculo – as
pedras que albergavam a magia; onde a minha mãe morreu por fim, e a
nossa amiga Pippa também. Eu vi-a escolher ficar, vi-a rumar de mão dada
com um cavaleiro bem-parecido a um lugar sem retorno. Pippa, minha
amiga.
Nos reinos, aprendi a minha sina: sou eu quem tem de reunir a Ordem
outra vez e continuar o trabalho. É esse o meu dever, mas tenho outra
missão secreta: hei de enfrentar a velha amiga de minha mãe – e minha
inimiga. Hei de enfrentar Sarah Rees-Toome, Circe, finalmente, e não hei
de vacilar.
A chuva persistente fustiga as janelas, é impossível dormir, embora Ann
esteja a ressonar alto e a bom som. Porém, não é a chuva o que me mantém
acordada, com pele de galinha, os ouvidos presos do mais ínfimo ruído. De
cada vez que fecho os olhos, vejo as palavras no papel: Preciso de a ver
imediatamente.
Kartik estará lá fora agora, à chuva?
Uma rajada bate nas janelas, fá-las abanar como ossos. O ressonar de Ann
aumenta e amaina de volume. É escusado ficar aqui deitada cheia de
nervos. Acendo o candeeiro da mesa-de-cabeceira e ajusto a chama o mais
baixa possível, o suficiente para encontrar aquilo de que preciso. Vou
remexer no roupeiro, e encontro: o diário de minha mãe. Passo os dedos
pelo cabedal e lembro-me do riso dela, da macieza da sua face.
Torno a dar atenção ao diário que conheço tão bem e demoro meia hora a
passar a pente fino as palavras de minha mãe em busca de orientação, mas
não encontro nenhuma. Não faço a menor ideia de como começar a
reformar a Ordem nem de como usar a magia. Não há informações úteis
sobre os Rakshana e o que poderão ter em mente para mim. Não há mais
nada a falar-me de Circe e de como a encontrar antes de ela me apanhar. É
como se o mundo inteiro estivesse à espera que eu agisse, e eu estou
perdida. Quem me dera que minha mãe me tivesse deixado mais pistas.
A atração da voz de minha mãe, mesmo numa página, é forte. Cheia de
saudades dela, olho para as palavras até sentir os olhos pesados pelo
adiantado da hora. Sono. Preciso de dormir. Dormir sem o terror dos
sonhos. Dormir.
Levanto a cabeça de supetão. Bateram à porta da frente? Vieram-me
buscar? Sinto cada nervo em franja, cada músculo retesado. Não há nada
além da chuva. Não há azáfama nos corredores, a sugerir que alguém se
apressa a atender ao chamado. É tardíssimo para haver visitas, e decerto
Kartik não usaria a porta da frente. Estou a começar a pensar que talvez
tenha sonhado quando ouço baterem à porta outra vez – desta vez, mais
alto.
Agora há movimento lá em baixo. Apago a lamparina rapidamente.
Brigid, a nossa governanta com mau génio, resmunga a caminho da porta
da frente. Quem é que bate a esta hora tardia? O coração bate-me ao ritmo
da chuva, desço o corredor e vou empoleirar-me perto da escadaria. A vela
da Brigid vai riscando a parede com sombras enquanto ela desce os degraus
quase dois a dois, a longa trança a esvoaçar bravia atrás dela.
– Por todos os santinhos – resmunga Brigid. Vai bufando e soprando e
chega à porta quando batem outra vez. A porta abre-se de par em par,
deixando a chuva entrar. Chegou alguém na calada da noite. Alguém
completamente trajado de preto. Sinto que ainda desato a vomitar de susto.
Estou paralisada no mesmo sítio, sem saber se hei de correr escada abaixo e
porta fora, se zarpar de volta ao quarto e trancar a porta. Na escuridão do
átrio, não consigo discernir as feições. A vela de Brigid aproxima-se mais,
lança uma radiância na figura. E se for um membro dos Rakshana que me
veio buscar... Estou muito confusa, pois trata-se de uma mulher. Ela diz o
nome mas, como a porta ainda está aberta, não consigo ouvir nada com o
vento a uivar e a chuva. Brigid faz que sim com a cabeça e indica ao
cocheiro que entre e traga a mala da mulher para o corredor. A mulher
paga-lhe, e Brigid fecha a porta contra a investida da noite.
– Vou só acordar a criada de quarto para a senhora se instalar – anuncia
Brigid. – Não vale a pena acordar a senhora Nightwing. Ela vê-a como deve
ser amanhã de manhã.
– Parece-me satisfatório – diz a mulher. A voz é funda, um leve toque de
sotaque, mas não sei dizer de onde.
Brigid acende as luzes até ficar uma radiância suave. Não consegue
resistir a soltar um «humpf» final a caminho da ala das criadas. Deixada
sozinha, a mulher tira o chapéu, mostra uma cabeleira espessa e escura e um
rosto severo emoldurado por sobrancelhas pesadas. Olha em redor, repara
no lustre serpentino, nos enfeites em relevo de ninfas e centauros aqui e ali.
Não há dúvida que já reparou na coleção de gárgulas no telhado e que ficou
a pensar no tipo de sítio que isto há de ser.
A mulher olha para a extensão da escadaria e fica quieta, com a cabeça
inclinada para um lado. Semicerra os olhos como se me visse. Agacho-me
rapidamente nas sombras, encosto-me toda à parede. Em momentos, ouço a
voz aguda de Brigid a dar ordens à criada de quarto, muito sonolenta.
– Esta é a menina McCleethy, a nova professora. Trata das coisas dela. Eu
mostro-lhe o quarto.
Mimi, a criada de quarto, boceja e estende a mão para pegar na peça mais
leve da bagagem, mas a professora McCleethy adianta-se-lhe.
– Se não se importa, eu própria levo esta. São os meus objetos pessoais. –
Ela sorri sem mostrar os dentes.
– Sim, menina. – Mimi faz uma vénia e, a suspirar, dá atenção à enorme
mala que está no átrio.
A vela de Brigid transforma a escadaria numa dança de sombras e luz. Eu
voo em bicos dos pés pelo corredor fora e refugio-me atrás de um vaso de
avencas em cima de um pilarete de madeira, observo-as a coberto daquelas
ramagens imensas. Brigid vai à frente, mas a professora McCleethy faz uma
pausa no patamar. A contemplar tudo, como se já tivesse visto antes. O que
acontece a seguir é uma coisa curiosíssima. Nas imponentes portas duplas
que dão para a Ala Oriental devorada pelo fogo, a mulher estaca e encosta a
palma da mão à madeira retorcida.
No esforço para ver, bato com o ombro no vaso das avencas. O pilarete
abana precariamente. Bem depressa, estendo a mão para amparar, mas já a
professora McCleethy espreita a escuridão.
– Quem está aí? – pergunta.
De coração acelerado, tento fazer-me pequenina, na esperança de que a
avenca me esconda. Não é nada bom ser apanhada a esgueirar-me pelos
corredores da Spence na calada da noite. Ouço as tábuas do soalho
rangerem, a assinalarem a aproximação da professora McCleethy. Estou
tramada. Vou perder todos os pontos de bom comportamento e ser obrigada
a passar uma eternidade a escrever excertos da Bíblia de castigo.
– Por aqui, professora McCleethy, se faz favor – chama a Brigid na outra
direção.
– Sim, vou já – responde a professora McCleethy. Sai do poleiro ao pé
das portas duplas e vai atrás de Brigid para cima e à volta da escadaria até o
corredor ficar em silêncio outra vez, tirando o barulho da chuva.

O sono, quando chega, é irregular, envenenado pelos sonhos. Eu vejo os


reinos, o verde belíssimo do jardim, o azul límpido do rio. Mas não é só o
que vejo. Flores que choram lágrimas negras. Três raparigas de branco
contra o cinzento do mar. Uma figura de manto verde-escuro. Algo que se
ergue do mar. Não consigo ver; só vejo os rostos das raparigas, o medo frio
e duro refletido nos olhos mesmo antes de gritarem.
Acordo por momentos, o quarto custa a ganhar forma mas o puxão do
sono é poderoso de mais e dou comigo num último sonho.
Pippa vem ter comigo com uma grinalda de flores na cabeça, como uma
coroa. O cabelo é preto e lustroso como sempre. As melenas esvoaçam nos
ombros nus, escuríssimas contra a palidez da pele. Atrás dela, o céu
derrama-se vermelho sangue em pinceladas grossas nas nuvens negras, e
uma árvore já de si retorcida torce-se sobre si própria, como que queimada
viva e nada mais resta dela do que a beleza orgulhosa e passada.
– Gemma – diz ela, e o nome faz eco dentro da minha cabeça até eu não
ouvir mais nada. Os olhos dela. Há qualquer coisa mal com os olhos dela.
Estão brancos-azulados, da cor do leite vindo da ordenha, rodeados por um
anel preto com uma única pinta negra no meio. Quero desviar os meus, mas
não consigo.
– É altura de voltar aos reinos... – diz ela, uma e outra vez, como uma
melopeia suavíssima. – Mas cuidado, Gemma, minha querida... Eles vêm
buscar-te. Vêm todos buscar-te.
Ela abre a boca com um rugido terrível e mostra as pontas aguçadas dos
dentes horrendos.
CINCO

Quando a manhã finalmente chega, estou tão cansada que sinto os olhos
tapados com areia. Um péssimo sabor na boca, vou gargarejar com água de
rosas e cuspo com a maior delicadeza possível para a bacia. Só não consigo
livrar-me da imagem horrível que me ficou na cabeça, Pippa transformada
em monstro.
Foi apenas um sonho, Gemma, apenas um sonho. São os remorsos que
vêm assombrar-te. A Pippa preferiu ficar. A escolha foi dela, não tua. Deixa
isso.
Lavo a boca mais uma vez, como se me pudesse curar as maleitas.

Na sala de jantar, as longas filas de mesas estão postas para o pequeno-


almoço. Arranjos florais de inverno, estrelas de Natal e fetos frondosos em
jarras prateadas a cada quarto lugar na mesa. Está lindo, e dou comigo a
esquecer-me do sonho e a lembrar-me de que é Natal.
Vou ter com Felicity e Ann e ficamos caladas a fazer continência atrás das
cadeiras, à espera que a senhora Nightwing comece a dar graças. Há
tacinhas de conservas e grandes colheradas de manteiga ao lado dos pratos.
A espera é uma tortura. Finalmente, a senhora Nightwing põe-se de pé e
manda-nos curvar a cabeça. Faz-se uma oração misericordiosamente curta e
deixam-nos sentar à mesa.
– Já reparaste? – pergunta Martha num sussurro teatral. É uma das leais
seguidoras de Cecily e até se começou a vestir como ela e a parecer-se com
ela. Têm o mesmo risinho recatado estudado e tendência para sorrir de
maneira a parecerem muito dignas, mas só parece que deram uma dentada
grande de mais no pão e não conseguem engolir.
– Reparei em quê? – pergunta Felicity.
– Temos uma professora nova – continua Martha. – Estás a ver? Sentada
ao lado da Mademoiselle LeFarge.
Mademoiselle LeFarge, a nossa rechonchuda professora de Francês, está
com as outras professoras numa mesa comprida à parte. Anda a namorar
com um detetive da Scotland Yard, o inspetor Kent de quem todas gostamos
muito e, desde que o namoro começou, ela tem trajado cores mais garridas e
segue mais a moda. Todavia, esta alegria recente não chega a ponto de ela
desculpar o meu francês deplorável.
As cabeças viram-se na direção da nova professora, sentada entre a
Mademoiselle LeFarge e a senhora Nightwing. Tem um fato de sarja de lã
cinzenta, um pé de azevinho na lapela. Reconheço-a logo, é a mulher que
chegou na calada da noite. Eu poderia alardear essa informação. Poderia
dar-me grande popularidade na mesa. O mais certo era que a Cecily
corresse logo para a senhora Nightwing e chamasse a atenção para as
minhas atividades noturnas. Antes pelo contrário, decido comer um figo.
A senhora Nightwing levanta-se para falar. O meu garfo, tão perto de
provar a felicidade, tem de ficar quieto no prato. Rezo em silêncio para que
ela se despache, embora saiba que melhor seria pedir neve em julho.
– Bom dia, meninas.
– Bom dia, senhora Nightwing – respondemos em uníssono.
– Gostaria de apresentar a professora McCleethy, nova docente de belas
artes. Além de desenho e pintura, a professora McCleethy sabe latim e
grego, badminton e tiro com arco.
Felicity faz-me um sorriso animado. Só eu e Ann sabemos como isto a
deixa contente. Nos reinos, ela revelou-se uma arqueira notável, facto que
só poderia deixar em sobressalto aqueles que a acham apenas dedicada às
últimas modas vindas de Paris. A senhora Nightwing continua em voz
monótona.
– A professora McCleethy chega-nos da mui estimada Escola de Santa
Vitória para Raparigas, no País de Gales. Estou deveras encantada, pois há
muitos anos que conto com a sua amizade.
Nisto, a senhora Nightwing brinda a professora McCleethy com um
sorriso caloroso. Extraordinário! A senhora Nightwing tem dentes! Sempre
parti do princípio de que a nossa diretora saiu do ovo de um dragão. Que ela
tenha «amizade» com alguém é coisa que me ultrapassa.
– Não tenho dúvidas de que ela se vai revelar um bem valioso na nossa
Spence, e peço às meninas que lhe deem as mais calorosas boas-vindas.
Menina Bradshaw, talvez esteja disposta a cantar uma canção para a
senhora Nightwing? Um cântico de Natal seria muito agradável.
Ann levanta-se obedientemente e avança entre as longas mesas até à parte
da frente. Ouve-se bichanar, um ou outro riso escarninho. Parece que as
outras raparigas nunca se cansam de arreliar a Ann, que tenta não dar nas
vistas e aguentar a crueldade delas. Porém, quando abre a boca para cantar
«Eis que num estábulo obscuro», a voz, límpida e belíssima e poderosa, faz
calar todas as críticas. Quando termina, apetece-me levantar-me e dar vivas.
Antes pelo contrário, batemos todas as palmas, breve e educadamente,
quando ela volta para a mesa. Cecily e as amigas fazem questão de não
reparar em Ann, como se ela não tivesse acabado de cantar para a sala
inteira. Para elas, é como se não existisse. Não passa de um fantasma.
– Foi esplêndido – digo-lhe ao ouvido.
– Não – diz ela, ruborizada. – Foi pavoroso. – Mas um sorriso tímido
anima-lhe o rosto, mesmo assim.
A professora McCleethy levanta-se para falar.
– Obrigada, menina Bradshaw. Foi um simpático começo para o nosso
dia.
«Simpático começo?» Foi lindo. Perfeito, aliás. A professora McCleethy
não tem paixão nenhuma, decido eu. Vou ser obrigada a dar-lhe dois pontos
por mau comportamento, no meu rol invisível.
– Espero vir a conhecer cada uma de vós e ser de alguma utilidade. Verão
que sou uma professora exigente. Conto com o vosso melhor em todos os
momentos. Mas creio que também me poderão considerar uma professora
justa. Se fizerem esforços, serão recompensadas. Senão, haverá
consequências.
A senhora Nightwing está radiante. Encontrou uma alma gémea, ou seja,
alguém desprovido da mais elementar alegria humana.
– Obrigada, professora McCleethy – diz ela. Depois senta-se, a nossa
bendita deixa para começarmos a comer.
Ah, lindo. Agora, o toucinho fumado. Levanto duas fatias grossas para o
meu prato. São um pedaço de céu.
– Parece reinadia – sussurra Felicity maliciosamente, a apontar com a
cabeça para a professora McCleethy. Só a Felicity se consegue safar com tal
atrevimento. Se fosse eu a sair-me com tal comentário, só me dariam um
silêncio sepulcral.
– Mas que sotaque estranho que ela tem – diz Cecily. – Estrangeiro.
– A mim não me parece galês – acrescenta Martha. – Parece-me mais
escocês.
Elizabeth Poole deita dois torrões de açúcar no chá salobro e mexe com
toda a delicadeza. Tem uma pulseira delicada de hera dourada, sem dúvida
uma prenda muito adiantada do avô, de quem se diz ser mais rico do que a
rainha.
– Pode ser irlandesa – diz naquela voz aguda e apertada. – Espero bem
que não seja papista.
Não valeria a pena perder o meu rico tempo a salientar que a nossa Brigid
é irlandesa e católica. Para gente da laia da Elizabeth, não há mal nenhum
com os irlandeses – no seu devido lugar. Esse lugar é a viver debaixo das
escadas e a trabalhar para os ingleses.
– Espero bem que seja muito melhor do que a professora Moore. – Cecily
dá uma dentada na torrada com doce.
Ao ouvir o nome da professora Moore, Felicity e Ann calam-se e baixam
os olhos. Não se esqueceram de que somos nós as responsáveis pelo
despedimento da anterior professora de belas artes, uma mulher que nos
levou às grutas atrás da Spence para nos mostrar as pinturas de deusas
primitivas que lá estão. Foi a professora Moore quem me falou no meu
amuleto, e na ligação à Ordem. Foi a professora Moore quem nos contou
histórias sobre a Ordem e isso, no fim, fê-la cair em desgraça. A professora
Moore era minha amiga, e tenho saudades dela.
Cecily franze o nariz.
– Aquelas histórias todas sobre mulheres mágicas... Como é que era?
– A Ordem – diz Ann.
– Ah, sim. A Ordem – repete Cecily. A seguir, fala com um ar teatral. –
Mulheres que sabiam criar ilusões e mudar o mundo. – Isto faz Elizabeth e
Martha rirem-se e chama a atenção das docentes sobre nós.
– Rematado disparate, na minha opinião – diz Cecily baixinho.
– Eram apenas mitos. Ela disse-nos isso – digo eu, a tentar não fitar
Felicity nem Ann.
– Exato. De que serviu contar-nos histórias sobre feiticeiras? Ela devia
ensinar-nos a fazer desenhos bonitos, e não levar-nos para uma gruta
húmida a ver esboços primitivos feitos por bruxas velhas. É um portento
que não tenhamos apanhado uma constipação e morrido.
– Não é preciso ser melodramática – diz Felicity.
– É verdade! No fim, ela teve o que merecia. A senhora Nightwing teve
razão em mandá-la embora. E tu tiveste absolutamente razão em pôr as
culpas em quem as tinha, Fee, na professora Moore. Se não fosse ela, talvez
a querida Pippa... – Cecily não termina a frase.
– Talvez o quê? – pergunto em voz gélida.
– Não quero dizer – Cecily arrelia-nos. Mais parece uma gata com um
ratinho na boca.
– A Pippa morreu de epilepsia – diz Felicity, a mexer no guardanapo. –
Ela teve um ataque...
Cecily fala mais baixo.
– Mas a Pippa foi a primeira a contar à senhora Nightwing do malfadado
diário que vocês todas andavam a ler. Foi ela quem confessou que vocês
andavam nas grutas de noite, e que tinha sido a professora Moore a dar-lhes
essa ideia. A mim parece-me uma coincidência estranha, não?
– Os scones estão excecionalmente bons hoje – comenta Ann, a tentar
mudar de assunto. Não suporta conflitos de espécie alguma. Tem medo de
que a culpa acabe sempre por ser dela.
– De que estás a acusá-la? – Não resisto a perguntar.
– Creio que sabes do que estou que falar.
Não me consigo conter mais.
– A professora Moore não fez mais do que contar um pouco de lendas e
narrativas. Eu sugiro que nos abstenhamos de falar dela seja de que maneira
for.
– Pois isso agrada-me – diz Cecily, a rir-se. As outras macaqueiam-na. A
Cecily é uma idiota, mas porque será que ainda tem a capacidade de me
fazer sentir tolinha? – Claro que só poderias defendê-la, Gemma. Foi esse
teu estranho amuleto que provocou a conversa para começar, se bem me
lembro. Como é que se chama isso?
– O olho da meia-lua – responde Ann, as migalhas agarradas ao lábio
inferior.
Elizabeth faz que sim com a cabeça, deita mais achas para a fogueira.
– Não creio que nos tenhas contado exatamente como é que isso te foi
parar às mãos.
Ann deixa de comer a meio do scone, os olhos muito grandes. Felicity
mete o bedelho.
– Disse, pois. Foi uma aldeã quem o deu à mãe da Gemma para proteção.
É tradição indiana.
É um amuleto da Ordem, que minha mãe me deu antes de morrer. Minha
mãe, Mary Dowd, com a amiga, Sarah Rees-Toome, cometeram as duas um
ato vil de sacrifício aqui nesta mesma escola há mais de vinte anos e
destruíram a Ordem.
– Sim, isso mesmo – digo baixinho.
– O mais certo era estarem mancomunadas – diz Cecily às suas
seguidoras, num sussurro para todos ouvirem. – Eu não me admiraria nada
se ela fosse uma... – Cecily faz uma pausa para dar mais efeito. Eu não
devia morder o isco, mas mordo.
– Uma quê?
– Menina Doyle, não sabe que é falta de educação ouvir conversas
alheias?
– Uma quê? – insisto.
Um esgar cruel espalha-se pela cara da Cecily.
– Uma bruxa.
Com as costas da mão, entorno a taça das conservas para cima do prato da
Cecily. As framboesas salpicam-lhe o vestido e ela terá de mudar de roupa
antes da aula da Mademoiselle LeFarge. Vai chegar atrasada e perder
pontos.
Cecily põe-se de pé, indignada.
– Fizeste de propósito, Gemma Doyle!
– Mas que desastrada que eu sou. – Faço uma careta diabólica, a mostrar
os dentes. – Ou talvez seja bruxaria.
A senhora Nightwing toca a sineta.
– O que está a acontecer aí? Menina Temple! Menina Doyle! Porque
estão a fazer alarido?
– A menina Doyle entornou as conservas em cima do meu vestido de
propósito!
Ponho-me de pé.
– Foi sem querer, senhora Nightwing. Não sei como é que pude ser tão
desastrada. Querida Cecily, toma, deixa-me ajudar-te. – Com o meu melhor
sorriso recatado, limpo-lhe o vestido com o guardanapo, o que só a deixa
mais furiosa, e enxota-me a mão.
– Está a mentir, senhora Nightwing! Ela fez de propósito, não fez,
Elizabeth?
Elizabeth, a cadelinha obediente, vem em auxílio de Cecily.
– Fez, senhora Nightwing, eu vi tudo.
Agora é Felicity quem se levanta.
– Isso é mentira, Elizabeth Poole. Sabes muito bem que foi por acaso. A
nossa Gemma nunca faria uma coisa tão mazinha.
Isto é mentira, pois, mas fico-lhe grata.
Martha defende Cecily.
– Ela sempre implicou com a nossa Cecily. Ela é uma rapariga pouco
civilizada, senhora Nightwing.
– Isso ofende-me! – digo. Olho para Ann a pedir ajuda. Está sentada
humildemente, ainda a comer e nada disposta a entrar na refrega.
– Basta! – A voz áspera da senhora Nightwing cala-nos a todas. – Que
péssimas boas-vindas à professora McCleethy. Não me admirava que
fizesse as malas e fugisse a sete pés, em vez de ficar entre selvagens. Não
posso, de maneira nenhuma, deixar as meninas à solta em Londres como se
fossem os cães do Hades. Por conseguinte, passaremos o dia a aperfeiçoar
as boas maneiras e a refletir em oração até o resultado ser o tipo de jovem
senhora de que a Spence se pode orgulhar de chamar sua. Agora vamos
terminar o pequeno-almoço em paz sem mais interrupções intempestivas.
Assim repreendidas, sentamo-nos e retomamos o pequeno-almoço.
– Se eu não fosse cristã, dizia-lhe exatamente o que penso dela – diz a
Cecily às outras, como se eu não a ouvisse perfeitamente.
– A menina é mesmo cristã, menina Temple? Olhe que não sei bem –
digo eu.
– E o que percebe a menina de caridade cristã, menina Doyle, criada entre
os pagãos da Índia? – Cecily vira-se para Ann. – Querida Ann, tens de ter
cuidado em não te dares com tal pessoa – diz, a dar-me uma olhadela. – Ela
pode dar cabo da tua reputação e, na verdade, é só o que tens a teu favor
para seres percetora.
Deparei com o diabo, e ele chama-se Cecily Temple. Aquele estafermo
sabe perfeitamente como instilar medo e dúvida em Ann – coitada da Ann,
órfã, aluna bolseira que só aqui está pela benesse de uma prima distante,
para poder trabalhar para ela quando terminar o curso. A Cecily e sua corja
nunca a aceitarão, mas gostam de se aproveitar dela quando lhes convém.
Se eu estivesse à espera que Ann se mostrasse à altura da ocasião, ter-me-
ia enganado redondamente.
Ann não diz, «Ora, Cecily, és mesmo um estafermo.» «Ora, Cecily,
graças a Deus que tens fortuna, bem precisas com a cara que tens». «Ora,
Cecily, a Gemma é minha grande amiga do peito e eu nunca diria nada
contra ela.»
Não. Ann continua sentada em silêncio, deixa Cecily pensar que ganhou
com a recusa de a enfrentar. E Cecily ganha, faz Ann sentir que, de
momento, foi como que aceite no círculo, embora tal não pudesse estar
mais longe da verdade.
As batatas estão frias e sem gosto, mas como-as mesmo assim, como se
não me melindrasse e os risos escarninhos das outras não passassem de
bátegas de chuva.

Depois de levantarem a mesa, somos obrigadas a ficar sentadas para termos


uma aula de boas maneiras. Tem caído neve a manhã toda. Eu nunca vi
neve, estou ansiosa por sair para a brancura luxuriante, sentir os cristais
frios e molhados nas pontas dos dedos. As palavras da senhora Nightwing
entram e saem da minha mente vagabunda.
Não queiram ser recusadas pela boa sociedade e riscadas das listas de
visitas das melhores casas...
Nunca peçam a um cavalheiro que lhes segure no leque, no ramalhete,
nas luvas durante uma dança, se ele não for vosso acompanhante ou
parente...
Como não conheço cavalheiros além de meu pai e meu irmão, não tenho
de me ralar muito. Isto não é inteiramente verdade. Conheço Kartik. Mas
não é provável que nos encontremos nos salões de baile de Londres. Que
notícias terá ele para mim? Devia ter-me encontrado com ele ontem no
regresso das vésperas. Deve pensar que sou muito tolinha.
A senhora da mais alta estirpe deve entrar na sala de jantar primeiro. A
anfitriã deve entrar por último...
Falar alto ou rir na rua mostra falta de educação...
...Associação com um homem que bebe, que joga, ou que se dedica a
outros males é de evitar a todo o custo, não vá afetar a vossa reputação...
Um homem que bebe. Meu pai. Quero afugentar a ideia. Vejo-o como o
vi em outubro, os olhos vítreos do láudano, as mãos trémulas. As poucas
cartas que a avó tem mandado desde então não falam na saúde dele, no
vício dele. Estará curado? Será o pai de que me lembro, o homem alegre
com um brilho nos olhos e tiradas espirituosas para nos rirmos? Ou será o
pai que conheço desde a morte da mãe – o homem vazio que parece já não
me ver?
As senhoras não podem sair da sala de baile desacompanhadas, para
não dar azo a mexericos.
A neve acumula-se nos vidros das janelas, cria pequenas aldeias
montanhosas nelas. O branco da neve. O branco das nossas luvas. Da pele
de Pippa. Pippa...
Eles vêm buscar-te, Gemma...
Sinto um arrepio. Não decorre do frio mas sim daquilo que não sei; do
que tenho medo de descobrir.
SEIS

Todas as dificuldades da manhã ficam esquecidas quando nos deixam sair.


O sol, forte e brilhante, reflete-se na frescura branca em cintilações
estonteantes. As raparigas mais novas soltam guinchinhos de contentamento
quando a neve molhada lhes entra pelos canos dos botins. Um grupo já
começou a fazer um boneco de neve.
– Não é glorioso? – Felicity suspira. Tem um novo regalo de pele de
raposa e quer exibi-lo, está toda contente. Ann vem atrás, receosa, a boca
fixa numa careta. A neve é um assombro para mim. Pego numa mão-cheia e
fico admirada por ser maleável.
– Ah, pegajosa! – digo alto.
Felicity olha-me como se me tivesse nascido outra cabeça.
– Sim, claro. – Depois lembra-se. – Tu nunca viste neve!
Apetece-me cair e tomar banho nela, tal é a alegria que sinto. Levo um
montinho à boca. Parecia-me que iria saber a creme de pasteleiro, mas está
simplesmente fria. Os flocos dissolvem-se logo, derretem-se no calor da
minha língua. Rio-me como uma tolinha.
– Olha, vou mostrar-te uma coisa – diz Felicity. Apanha a neve com as
duas mãos enluvadas, dá palmadinhas e molda-a até ficar com uma bola
compacta, e mostra-ma. – Eis a bola de neve.
– Ah – faço eu, sem compreender patavina.
Sem avisar, ela atira-me a neve compactada para cima. Apanha-me com
força na manga, salpica-me a cara e o cabelo com cristais molhados até me
fazer cuspir.
– A neve é maravilhosa, não é? – pergunta ela.
Devia zangar-me, calculo, mas dou comigo a rir-me. É maravilhosa sim.
Adoro a neve e quem me dera que nunca mais acabasse.
A bufar e a soprar, Ann chega finalmente ao pé de nós. Escorrega e cai
numa grande massa branca com um guinchinho, e eu e Felicity rimo-nos
sem dó nem piedade.
– Não se ririam se fossem vocês a ficar ensopadas – resmunga Ann, a
tentar pôr-se de pé com a maior falta de jeito e graça.
– Não sejas caguinchas – zomba Felicity. – Não é o fim do mundo.
– Não tenho dez pares de meias a postos como tu – diz Ann. Queria
parecer esperta mas resulta lamurienta e petulante.
– Então não te incomodo mais – diz Felicity. – Oh, Elizabeth! Cecily! – E
com isto, Felicity marcha para as outras raparigas, abandona-nos ali ao frio.
– Mas eu não tenho um manancial de meias – diz Ann, a defender-se.
– Só parecias cheia de pena de ti mesma.
– Parece que não digo nada que preste.
A minha tarde feliz na neve está a desvanecer-se. Não me parece que
possa suportar Ann a queixar-se durante uma hora. Ainda estou algo
zangada com ela por não me ter socorrido ao pequeno-almoço. Tenho a
neve na mão ainda antes de pensar nisso. Atiro-a contra Ann e espalha-se-
lhe na cara admirada. Antes que ela possa reagir, atiro outra bola de neve.
Ann balbucia:
– Eu... eu... eu...
Outra acerta-lhe na saia.
– Vamos lá então, Ann – digo, a provocá-la. – Vais deixar-me continuar a
castigar-te? Ou vais tentar vingar-te?
A resposta é uma chuvada de neve no meu pescoço. O gelo escorre-me
pelo colarinho e entra-me no vestido e dou gritinhos com o frio repentino.
Vou pegar em mais neve mas a bola de Ann apanha-me na cabeça. O cabelo
pesa-me com o gelo derretido.
– Isso não se faz! – grito. – Não tenho munições.
Ann fica quieta, e apanho-a com outra bola de neve que escondi atrás das
costas. A cara dela é a imagem da indignação.
– Tu disseste…
– Ann, mas tu fazes sempre o que te dizem? Estamos em guerra! – Atiro
uma que falha, mas a próxima bola de neve de Ann atinge-me na cara outra
vez. Sou obrigada a buscar terreno elevado e a sacudir o gelo dos olhos.
Abaixo da neve, a terra passou a lama espessa por causa da muita chuva.
Os saltos dos botins afundaram-se e, sem nada que me possa amparar –
árvore ou banco – receio estar bem presa. Levanto o pé e estico-o para a
frente, quase caio de barriga para baixo na mistela de neve e lama.
Agarram-me no pulso com força e levam-me para trás de uma árvore.
Quando consigo focar os olhos, estou cara a cara com ele.
– Kartik! – exclamo.
– Olá, menina Doyle – diz ele, a sorrir perante a minha aparência
ensopada. A neve escorre-me do cabelo para o nariz. – Parece... bem.
Estou um pavor.
– Porque não reagiu ao meu bilhete? – pergunta ele.
Sinto-me tola. E contente ao vê-lo. E cautelosa. Tantos pensamentos que
nem lhes sei dar nome.
– É difícil escapar-me. Eu...
Além das árvores, ouço Ann chamar-me, à minha procura para poder
vingar-se com bolas de neve.
Kartik aperta-me mais.
– Não importa. Temos pouco tempo e tenho muito que dizer. Há
problemas nos reinos.
– Que espécie de problemas? Quando de lá saí, parecia tudo bem. O
assassino enviado por Circe foi derrotado.
Kartik abana a cabeça. Por baixo do capuz, os caracóis compridos e
pretos balouçam.
– Lembra-se de quando quebrou as Runas do Oráculo e deu a liberdade à
sua mãe?
Faço que sim com a cabeça.
– As runas eram o vínculo antigo da Ordem para o grande poder que os
reinos encerram. Uma espécie de cofre para a magia. Era um modo de
garantir que só elas podiam albergá-la.
Ann chama outra vez. Está cada vez mais perto do nosso esconderijo.
Kartik fala num sussurro urgente.
– Quando quebrou as runas, menina Doyle, destruiu o vínculo.
– Soltei a magia nos reinos – termino eu. Sinto um medo viscoso nos
ossos. Kartik faz que sim com a cabeça.
– Agora está solta, livre de qualquer um usar para qualquer finalidade,
mesmo que não saibam como. É uma magia extremamente poderosa. Tê-la
à solta nos reinos sem controlo algum... – A frase suspende-se, mas ele
depois continua. – Há certos elementos que podem buscar o domínio de
todos os reinos. Podem aliar-se uns aos outros, e a Circe.
– Circe... – Oh, Deus, o que fui eu fazer?
– Gemma, aqui vou eu, vou descobrir onde estás! – Ann ri-se.
Kartik põe-me um dedo nos lábios e chega-se muito a mim. Cheira a
fogueiras, tem uma sombra no queixo. Mal consigo respirar com a
proximidade dele.
– Há uma maneira de vincular a magia outra vez. Uma esperança – diz
Kartik. A voz de Ann desvanece-se noutra direção e ele afasta-se de mim. O
ar entra de rompante a colmatar o espaço entre nós. – A sua mãe alguma
vez falou no Templo?
Ainda estou abalada pela sensação do peito dele contra o meu. Tenho as
faces coradas e não é só do frio.
– N-não. O que é?
– É a fonte da magia dentro dos reinos. Precisamos que o encontre.
– Há algum mapa? Um sinal?
Kartik sopra ar e abana a cabeça.
– Ninguém sabe onde fica. Está bem escondido. Só algumas acólitas da
Ordem sabiam onde encontrá-lo em determinada altura. Era a única maneira
de o manter a salvo.
– Então como é que vou encontrá-lo? Tenho de seguir a deixa das
criaturas?
– Não. Não confie em ninguém, em nada.
Nada. Na-da. Até estremeço.
– E as minhas visões? Posso confiar nelas? – Não é que tenha tido
alguma, ultimamente.
– Não sei. A fonte delas está nos reinos. – Ele encolhe os ombros. – Não
sei dizer.
– E quando eu encontrar o Templo?
O rosto de Kartik empalidece como se estivesse assustado. Nunca o vi
desta maneira. Não olha para mim quando diz:
– Diga estas palavras: Eu prendo a magia em nome da Estrela do
Oriente.
– Estrela do Oriente – repito. – O que significa?
– É um vínculo possante, um sortilégio da Ordem, parece-me – diz ele, a
desviar os olhos.
A voz de Ann aproxima-se. Vejo o azul do sobretudo pelos troncos das
árvores. Kartik também a vê. Levantou-se e está pronto a fugir.
– Eu fico em contacto – diz ele. – Não sei o que encontrará nos reinos,
menina Doyle, tenha cuidado, por favor. – Ele vira-se para se ir embora,
imobiliza-se, faz que vai outra vez, volta para trás e dá-me um beijo na mão
como um cavalheiro. Como um tiro, desaparece, corre depressa pela neve
como se não lhe custasse nada.
Não sei o que pensar. A magia está à solta nos reinos. A culpa é toda
minha. Tenho de encontrar o Templo e restaurar o equilíbrio antes de se
perderem os reinos. E Kartik acabou de me beijar.
Mal tive tempo de pensar nisso quando, sem aviso, sou acometida de uma
dor aguda e surpreendente que me faz dobrar pela cintura e amparar-me a
uma árvore. Estou zonza, e tudo me parece muito estranho. Aliás, sinto-me
muito doente, de súbito. Tenho noção de que estou a ser observada. Fico
horrorizada só de pensar que me vejam num momento tão vulnerável.
Ofegante, olho para cima, tento orientar-me.
A princípio, penso que deve ser a neve nos olhos. Pestanejo, mas a
imagem não se desvanece. Vejo três raparigas todas vestidas de branco. Mas
não as conheço. Nunca as vi na Spence, e parecem da minha idade. Apesar
do ar gélido, não trazem sobretudo.
– Olá – chamo-as. Não respondem. – Estão perdidas?
Elas abrem as bocas para falar mas não as consigo ouvir, e depois
acontece uma coisa curiosa. As raparigas cintilam e esfumam-se até não
haver vestígio algum delas na neve. Abruptamente também, a dor passa,
sinto-me bem.
Uma bola de neve dura apanha-me mesmo em cheio no queixo.
– Ah! – Ann grita de vitória.
– Ann! – queixo-me, zangada. – Eu não estava preparada!
Ela faz-me um raro sorriso de triunfo.
– Tu é que disseste que estávamos em guerra. – E com isto, vai-se
embora, desajeitadamente aos saltinhos pela neve, a bater em retirada.
SETE

– Minhas senhoras, a vossa atenção, se faz favor. É nosso privilégio termos


esta noite os Artistas Pantomineiros de Covent Garden. Vieram representar
uma versão assaz satisfatória do conto infantil Hänsel e Gretel dos irmãos
Grimm.
Eu estava a contar ter tempo, depois das vésperas e do jantar, sozinha
com Felicity e Ann para lhes falar do aviso de Kartik. Azar o meu, esta
noite a senhora Nightwing tratou de que assistíssemos a uma pantomina
especial. As minhas notícias terão de esperar. As raparigas mais novas estão
encantadas por verem um conto sangrento que inclui bosques ameaçadores
e uma bruxa má. O encenador, homem alto e atarracado com a cara cheia de
pó-de-arroz e patilhas enormes enceradas em caracolinhos, apresenta-nos os
atores. Um a um, entram no pequeno palco do salão de baile. Os homens
curvam a cabeça e as mulheres fazem uma vénia. Aliás, as personagens
curvam a cabeça e fazem vénia. Na verdade, a trupe pantomineira só tem
homens. Até a pobre alma que faz de Gretel é um rapaz com cerca de treze
anos.
– Atores, aos vossos lugares – brada o encenador em voz funda e sonante.
O palco esvazia-se. Dois ajudantes chegam um renque de árvores de
madeira para a frente do palco. – Comecemos a nossa história no devido
lugar: uma casa à beira de uma floresta muito negra.
Baixam as luzes. A multidão emudece. Não se ouve nada além do bater
incessante da chuva fria nas janelas martirizadas.
– Marido – guincha a megera da mulher – não temos comida que chegue
para todos. Temos de levar as crianças para a floresta, onde terão de fazer
pela vida.
O marido, caçador, reage com gestos largos e uma voz tão melodramática
que é como se parodiasse atores mesmo medonhos. Quando fica evidente
que não é paródia, tenho de fazer um esforço imenso para manter a
compostura.
Felicity bichana-me ao ouvido:
– Tenho de confessar que me apaixonei perdidamente pelo coitado do
caçador. Creio que foi a subtileza dele o que me conquistou.
Levo a mão à boca para que o riso não me saia.
– Dou comigo algo cativada pela esposa. Talvez seja por causa da
barba...
– O que estão para aí a bichanar? – pergunta Ann, o que provoca um
«chiu» indignado à senhora Nightwing e a sua vinda para o meio de nós.
Ficamos sentadas, empertigadas como pedras tumulares, a fazer de conta
que estamos interessadas na peça. Desejo fervorosamente que o pudim de
ameixa desta noite tivesse arsénico, e que me restem apenas momentos para
aguentar este espetáculo de homens, trajados com roupa garrida e berrante,
armados em mulheres.
A mãe enxota Hänsel e Gretel para a floresta.
– Pronto, crianças. Andem mais um bocadinho. Tudo o que sempre
desejaram está logo além desta floresta.
Hänsel e Gretel desaparecem na floresta e deparam com uma estranha
casa feita de guloseimas. De olhos arregalados e sorrisos exagerados,
fingem roer as persianas feitas de rebuçado pintado.
O encenador aparece à beira do palco.
– Quanto mais comiam, mais queriam – entoa ele em voz grave. A poucas
filas de distância, as raparigas mais novas vão bichanando atrás das mãos
erguidas. Ouvem-se risinhos. Quando estes acarretam mais risinhos, a
senhora Nightwing abandona o posto de pastora connosco e vai vigiar o
rebanho noutro lugar.
Quero contar a Felicity e Ann de Kartik, mas estamos demasiado vigiadas
para termos essa conversa agora. No palco, os incautos Hänsel e Gretel
foram atraídos para a casinha das guloseimas da bruxa.
– Coitadinhos, abandonados pelo mundo, vou dar-lhes sustento. Vou dar-
lhes o que procuram! – A bruxa vira-se para o público com uma piscadela
de olho, e nós vaiamos e assobiamos como manda o figurino.
O rapaz que faz de Gretel grita:
– E vai ser como se fossemos seus filhos, Tiazinha? Vai amar-nos e
ensinar-nos muito bem? – A voz falha na última parte. Ouve-se ralhar entre
o público.
– Sim, filho. Nada temas. Pois agora que aqui estás, como tantas vezes
rezei que estivesses, vou apertar-te contra o peito e não te largo nunca mais!
– A bruxa puxa Hänsel com força contra a peitaça falsa e quase o sufoca.
Todas nos rimos alegremente desta tolice. Encorajada, a bruxa enfia um
bocado de tarte na boca de Hänsel, o que só provoca mais gargalhadas no
público.
As luzes piscam. Ouve-se um coro de exclamações súbitas e alguns
guinchinhos das raparigas mais animadas. É apenas um ajudante de palco a
trabalhar, mas produz o efeito desejado. A bruxa esfrega as mãos de
contente e confessa a sua ideia diabólica de cevar as crianças e de as assar
num forno enorme. Toda a gente fica arrepiada, e eu tenho mesmo de
pensar que espécie de infância terão tido os irmãos Grimm. Não são
contadores de histórias nada alegretes, com crianças assadas por bruxas,
donzelas envenenadas por velhas relhas e sei lá que mais.
Há um corte súbito no ar, um frio húmido que se enterra até ao tutano.
Quem é que abriu a janela? Não, estão todas trancadas por causa da chuva.
Os cortinados nem bulem, nada sugere corrente de ar.
A professora McCleethy percorre o perímetro da sala, as mãos juntas
diante de si como um padre em oração. Um sorriso lento abre-se-lhe na cara
a mirar o conjunto das raparigas. Aconteceu algo divertido em palco. As
raparigas riem-se. Soa-me distorcido e longínquo, como se estivesse
debaixo de água. A professora McCleethy põe a mão nas costas de uma
rapariga sentada na ponta; depois dobra-se para ouvir a pergunta da criança
com um sorriso mas, debaixo daquelas sobrancelhas negras e espessas, os
seus olhos encontram os meus. Embora faça frio, comecei a transpirar como
se tivesse febre. Tenho uma vontade louca de fugir da sala. Aliás, sinto-me
doente.
Felicity está a bichanar-me qualquer coisa mas não consigo ouvir as
palavras. O próprio sussurro faz um barulho horrível, como asas secas e
patas móveis de um milhar de insetos. As pálpebras fecham-se-me. Um
rugido invade-me os ouvidos e estou a cair com toda a força e velocidade
num túnel de luz e som. O tempo estica-se e estaca como um elástico.
Tenho consciência da minha própria respiração, do sangue a correr-me nas
veias. Estou no auge de uma visão, mas nunca tive uma visão assim, esta é
muito mais possante.
Estou perto do mar. Penhascos. Maresia. O céu é um reflexo, nuvens
brancas revoltas, um castelo decrépito no cimo de um monte. Acontece
depressa. Demasiado depressa. Não consigo ver... Três raparigas vestidas de
branco saltam dos penhascos com uma rapidez absurda. A maresia é ácida
na minha língua. Manto verde. Mão erguida, uma cobra, o céu revolto,
nuvens cada vez mais negras e cinzentas. Algo mais. Algo – oh, Deus –
algo se levanta. O medo, ao fundo da minha garganta, como o mar. Os olhos
delas. Os olhos delas! Tanto medo! Abrem-se agora. Veem-no levantar-se
no mar. Os olhos delas um grito longo e mudo.
Sinto o sangue a puxar-me para trás, para longe do mar e do medo.
Ouço vozes. «O que foi?» «O que se passa?» «Afastem-se, deixem-na
respirar.» «Estará morta?»
Abro os olhos. Um grupo de rostos preocupados paira sobre mim. Onde?
O que são elas? Porque é que estou no chão?
– Menina Doyle...
O meu nome. Devia responder. A língua espessa como algodão.
– Menina Doyle? – É a senhora Nightwing. A cara dela ganha foco. Põe
algo malcheiroso debaixo do meu nariz. Um odor horrivelmente sulfuroso.
Sais. Até começo a gemer. Rodo a cabeça para fugir do cheiro.
– Menina Doyle, consegue pôr-se de pé?
Como uma criança, faço o que me mandam. Vejo a professora McCleethy
do outro lado da sala. Não arredou pé de onde ficara.
Ouço no ar exclamações sobressaltadas e sussurros. «Olhem. Acolá.
Vergonhoso.»
A voz da Felicity ouve-se por cima das outras.
– Toma, Gemma, segura-me na mão.
Vejo Cecily a bichanar para as amigas. Ouço os murmúrios. «Mas que
pavor.» Vejo a cara transtornada de Ann.
– O que... aconteceu? – pergunto. Ann olha para baixo timidamente, não
consegue responder.
– Vamos lá, menina Doyle, vou levá-la ao seu quarto. – Só quando a
senhora Nightwing me ajuda a levantar é que vejo o motivo dos mexericos:
a grande mancha vermelha que alastra pela minha saia branca. Comecei a
ser menstruada.
OITO

Brigid põe o saco de água quente entre as cobertas em cima da minha


barriga.
– Coitadinha. É sempre uma maçada. Já tive muita canseira por causa da
praga. E tendo de tratar das obrigações o tempo todo. Não há descanso para
quem mais se cansa, pode crer.
Não estou com disposição para ouvir as maleitas e queixumes da
sofredora da nossa governanta. Quando começa, não tem parança. Vou
ouvir do reumático, da vista cansada, do tempo em que ela quase foi
trabalhar para a mansão do décimo segundo primo em quarto grau do
Príncipe de Gales.
– Obrigada, Brigid. Agora creio que vou descansar – digo, a fechar os
olhos.
– Claro, pequenina. Vomecê precisa é de descanso. Descanso é que é.
Ora, ainda m’alembro quando era para ir trabalhar para uma senhora muito
fina, tinha sido dama de companhia da prima da duquesa de Dorset, do mais
respeitável que se podia encontrar, pode crer...
– Brigid. – É Felicity, com Ann a reboque. – Creio ter visto as criadas de
quarto a esgueirarem-se para baixo da escada com um baralho de cartas na
mão. Calculei que a Brigid quisesse saber.
Brigid põe os punhos nas ancas bem nutridas.
– Não lhes dei licença para isso. Estas moçoilas novas, não sabem o seu
lugar. No meu tempo, a governanta é que mandava. – Brigid vai bufando
pelo quarto fora, a resmungar o caminho todo. – Jogar às cartas. Isso é o
que vamos ver!
– Elas foram mesmo jogar às cartas? – pergunto a Felicity assim que
Brigid se vai embora.
– Claro que não. Eu tinha de a despachar de alguma maneira.
– Como te sentes? – pergunta Ann, a corar.
– Uma desgraçada – respondo.
Felicity senta-se na beira da cama.
– Queres dizer que esta é a primeira vez que foste... incomodada pela
doença mensal?
– Sim – digo, a sentir-me como um animal exótico e incompreendido.
Além do saco de água quente, fui despachada para a cama com chá forte e
um cheirinho de brande, cortesia da senhora Nightwing, a qual insistiu que,
neste caso, o brande é medicinal e não licencioso. O chá arrefeceu e ficou
amargo, mas o brande é calmante. Adormenta a sensação latejante na minha
barriga. Nunca me senti tão parvinha. Se é isto que significa ser mulher, não
me interessa coisíssima nenhuma.
– Coitada da Gemma – diz Ann, a dar-me palmadinhas na mão. – Em
público, ainda por cima. Mas que coisa embaraçosa.
Não podia sentir-me mais humilhada do que estou agora.
– Posso tomar a liberdade de inquirir quando é que vocês começaram
com...? – Deixo o resto no ar.
Felicity vai até à minha mesa observar as minhas coisas. Passa a escova
pelo cabelo louro quase branco.
– Há anos.
Mas claro que sim. Mas que tolice a minha perguntar sequer. Olho para
Ann, corada como um tomate de imediato.
– Oh, eu, não devíamos falar destas coisas.
– Com certeza – digo eu, a remexer na beira do lençol com todo o
esmero.
– Provavelmente ainda nem é mulher – diz Felicity friamente.
Ann levanta-se em protesto.
– Sou pois! Já há seis meses!
– Seis meses! Ora lá está. É praticamente perita no assunto.
Tento sair da cama, mas Ann empurra-me para baixo.
– Oh, não. Não deves mexer-te. Não é bom para ti nesse estado.
– Mas... Como é que vou tratar da minha vida?
– Simplesmente tens de aguentar isso. É o nosso castigo de filhas de Eva.
Porque é que te parece que lhe chamam a praga?
Sinto um puxão no estômago, faz-me ficar pesada e irritadiça.
– A sério? E que praga têm de aguentar os Adões deste mundo?
Ann abre a boca e, presumo que por não saber o que dizer, fecha-a outra
vez.
É Felicity quem responde, os olhos como aço.
– São fracos perante a tentação, e nós somos as tentadoras.
Tentação faz-me pensar em Kartik. Kartik e avisos. A magia à solta nos
reinos. O Templo.
– Tenho uma coisa para lhes contar – começo. Conto-lhes da visita de
Kartik, da minha missão e da estranha visão que tive durante a pantomina.
Quando termino, estão de olhos arregalados.
– Estou toda arrepiada. Pensa bem, aquela magia toda à mercê de
qualquer um – diz Felicity. Não sei se está assustada ou excitada com a
perspetiva. Ann está transtornada.
– Mas como é que hás de encontrar o Templo se não podes entrar nos
reinos?
Esqueci-me de que tinha mentido. Agora não há volta a dar-lhe. Tenho
mesmo de confessar. Puxo a roupa até ao pescoço, faço-me pequenina
dentro da cama.
– A verdade é que não tentei realmente entrar. Nunca mais desde a Pippa.
O olhar de Felicity até podia partir cristais.
– Mentiste-nos.
– Sim, eu sei. Desculpem. Não estava preparada.
– Podias ter dito isso – murmura Ann, magoada.
– Desculpa. Pensei ser melhor assim.
Os olhos cinzentos de Felicity são como pedras aguçadas.
– Não nos mintas nunca mais, Gemma. Será como uma traição à Ordem.
Não me agrada a maneira como ela diz isto, mas não estou disposta a
discutir agora. Faço que sim com a cabeça e estendo a mão para o brande.
– Quando é que vamos aos reinos? – pergunta Ann.
– Encontramo-nos à meia-noite? – Felicity quase suplica. – Oh, estou
ansiosa por ver tudo outra vez.
– Esta noite não estou em condições – digo. Não é que possam disputar
isso.
– Muito bem então – diz Felicity, a suspirar. – Descansa.
– O que se passa? – pergunta Ann, a perscrutar-me o semblante.
– Não deve ser nada, a sério. Estava só a pensar que a última coisa de que
me lembro antes de desmaiar foi da cara da professora McCleethy. Estava a
olhar para mim de um modo curiosíssimo, como se soubesse todos os meus
segredos.
Um sorriso diabólico abre-se na boca generosa de Felicity.
– Referes-te à justa mas exigente professora McCleethy – diz ela, a imitar
o estranho sotaque da professora nova. Tenho de me rir, mau grado meu.
– Se for mesmo velha amiga da Nightwing, só pode ser uma empedernida
horrorosa que fará da nossa vida um inferno – digo, ainda aos risinhos.
– Apraz-me ver que se encontra mais animada, menina Doyle. – É a
professora McCleethy em pessoa à minha porta. Cai-me o coração aos pés.
Oh, não. Há quanto tempo é que ali estaria?
– Sinto-me muito melhor, obrigada – digo num fio de voz esganiçada.
Tenho quase a certeza de que ouviu tudo, pois continua a fitar-me até ser
insuportável e eu ter de desviar os olhos, e depois diz, com simplicidade e
sem entusiasmo:
– Pois apraz-me sabê-lo. A menina devia fazer exercício. O exercício é
fulcral. Amanhã vou levar as meninas todas ao relvado praticar tiro com
arco.
– Mas que ideia esplêndida! Estou ansiosa por começar – diz Felicity,
demasiado espevitada, na esperança de disfarçar o que ela terá ouvido de
desagradável com uma demão fresca de salamaleques.
– Tem experiência com arco e flecha, menina Worthington?
– Um pequeno nada – diz Felicity, dissimulada. Na verdade, é excelente
nisso.
– Maravilhoso. Aposto que as senhoras têm toda a espécie de surpresas
para mim. – Um curioso meio sorriso puxa os cantos da boca tensa da
professora McCleethy. – Estou certa de que ficaremos amigas. As minhas
antigas alunas acabaram por me considerar deveras jovial, apesar da
reputação de empedernida horrorosa.
Ela ouviu tudo. Estamos tramadas. Vai odiar-nos para sempre. Não, vai
odiar-me para sempre. Mas que belo começo, Gemma. Bravo.
A professora McCleethy inspeciona a minha escrivaninha, vai pegando
nos poucos pertences que lá tenho – o elefante de marfim da Índia, a escova
do cabelo – para examinar de perto.
– A Lillian, a senhora Nightwing, contou-me do vosso envolvimento
infeliz com a anterior professora Moore. Lamento saber que ela tenha
abusado da vossa confiança.
E brinda-nos com aquele olhar penetrante outra vez.
– Eu não sou a professora Moore. Não vai haver historietas nem nada
impróprio. Não vou tolerar perturbações nas fileiras. Vamos obedecer à
letra da lei e ser melhores pessoas por isso. – Ela repara nos nossos rostos
pálidos. – Ora, com franqueza, estão com ar de quem as condenou à
guilhotina!
Tenta rir-se. Não é radioso nem simpático.
– Agora creio ser melhor deixarmos a menina Doyle repousar. Estão a
servir ponche na saleta. Venham falar-me de vós para sermos boas amigas,
sim?
Como um grande pássaro de asas cinzentas espraiadas, ela põe as mãos
nas costas de Felicity e Ann e leva-as na direção da porta. Fico a sofrer a
praga sozinha.
– Boa noite, Gemma – diz Ann.
– Sim, boa noite – repete Fee.
– Boa noite, menina Doyle. Durma bem – acrescenta a professora
McCleethy. – O amanhã chega antes mesmo de darmos por isso.
– Lamento perder o tiro com arco – digo.
A professora McCleethy volta atrás.
– Perder? Não fará tal coisa, menina Doyle.
– Mas pensei... Dado o meu estado...
– Não vai haver fraquezas debaixo da minha alçada, menina Doyle.
Encontramo-nos amanhã na carreira, senão a menina perde pontos de bom
comportamento. – Parece menos uma afirmação do que um desafio.
– Sim, professora McCleethy – digo. Já decidi: não gosto da professora
McCleethy.

Consigo ouvir risos de contentamento vindos da saleta. Não há dúvida de


que Felicity e Ann já terão contado a história da sua vida à professora
McCleethy. Agora devem ser todas unha com carne, sentadas à lareira, a
bebericarem a espuma do ponche, e eu permaneço a rapariga pavorosa que
não tem maneiras e que chamou empedernida à professora McCleethy.
Dói-me o estômago outra vez. Maldita inconveniência. O que é que os
jovens têm a assinalar a sua entrada na idade adulta? Calças, isso sim.
Calças compridas e novas. Desprezo absolutamente toda a gente neste
momento.
Com o tempo, o brande põe-me quentinha e sonolenta. O quarto fica mais
estreito a cada piscadela de olho. Adormeço.
Estou a andar no jardim. A erva está brava e cortante, pica-me os pés.
Estou perto do rio, mas está envolto em bruma.
– Mais perto – ouve-se uma estranha voz.
Chego-me mais.
– Ainda mais perto.
Estou à beira rio, mas não vejo ninguém, apenas ouço aquela voz feérica.
– Então é verdade. Vieste...
– Quem és tu? – pergunto. – Não te vejo a cara.
– Não – responde a voz. – Mas eu já vi a tua...
NOVE

Na tarde seguinte, faltam dez minutos para as três horas, apresentamo-nos


no relvado grande. Foram colocados seis alvos em fila. Os olhos garridos ao
meio parecem zombar de mim – Vá lá, acerta-nos, se é que te atreves.
Durante todo o pequeno-almoço, tive de aturar relatos do serão esplêndido
que perdi com a queridíssima professora McCleethy, a qual queria saber
simplesmente tudo tintim por tintim das raparigas.
– Ela disse-me que os Pooles são descendentes do próprio rei Artur! – Vai
cantarolando Elizabeth.
– Gemma, ela sabe contar histórias maravilhosas – diz Ann.
– De Gales e desta escola. Elas davam bailes praticamente semana sim,
semana não, com homens presentes mesmo – diz Felicity. Martha
intromete-se.
– Rezo para que ela convença a senhora Nightwing a deixar-nos fazer a
mesma coisa.
– Sabes que mais ela disse? – pergunta Cecily.
– Não, pois eu não estava cá – respondo. Estou cheia de pena de mim
própria.
– Oh, Gemma, ela perguntou por ti também – diz Felicity.
– Ai sim?
– Sim. Queria saber tudo de ti. Nem parecia importar-se que lhe tivesses
chamado empedernida.
– Gemma, não fizeste uma coisa dessas – diz Elizabeth, de olhos muito
abertos.
– Não fui a única – digo, e olho furibunda para Felicity e Ann. Felicity
fica impávida e serena.
– Estou certa de que ficarão amigas a seu tempo. Oh, lá está ela.
Professora McCleethy! Professora McCleethy!
– Boa tarde, senhoras. Vejo que estamos prontas. – A professora
McCleethy avança pelo relvado como a própria Rainha, e vai-nos dando
instruções sucintas quanto à técnica adequada para segurar no arco. As
raparigas querem chamar-lhe a atenção, pedem para lhes mostrar a maneira
correta. Quando ela faz uma demonstração, a flecha a espetar-se logo no
centro do alvo, toda a gente bate palmas como se ela mostrasse o próprio
caminho para o céu.
O primeiro grupo de raparigas recebe flechas.
– Professora McCleethy – chama Martha, ralada. – Então vamos usar
flechas a sério?
Tem a ponta metálica e afiada da flecha o mais longe do corpo que
conseguiu, como se fosse uma pistola carregada.
– Sim, não deveríamos usar com ponta de borracha? – pergunta
Elizabeth.
– Disparate. Ficam muitíssimo bem com estas, desde que não apontem
umas às outras. Ora, quem é a primeira?
Elizabeth avança para o risco feito a giz na relva morta. A professora
McCleethy indica-lhe a posição, puxa-lhe o cotovelo atrás. A flecha de
Elizabeth cai com um baque surdo, mas a professora McCleethy manda-a
treinar uma e outra vez e, à quarta tentativa, ela consegue raspar a parte de
baixo do alvo.
– São progressos. Continue a tentar. A seguir?
As raparigas disputam o segundo lugar. Confesso que também quero que
a professora McCleethy goste de mim. Prometo fazer o meu melhor,
conquistá-la e apagar o infeliz incidente desta noite. Quando a professora
McCleethy desce e vai passando de rapariga a rapariga, vou ensaiando a
minha abordagem.
Mas que empolgante, professora McCleethy, há muito tempo que queria
fazer tiro com arco. Que inteligente da parte da professora McCleethy ter-
se lembrado disto. Gosto mesmo do seu fato, professora McCleethy, é a
personificação do bom gosto.
– Menina Doyle? Está connosco? – A professora McCleethy está a meu
lado.
– Sim, obrigada – digo. Nervosa, levo o arco e a flecha e vou para a fila.
O arco é muito mais pesado do que me parecia. Obriga-me a andar
curvada.
– Tem de trabalhar a postura, menina Doyle. Endireite-se. Nada de
moleza. Assim. Braço para trás. Ora, pode bem puxar com mais força do
que isso.
Esforço-me por puxar a corda até ser obrigada a largá-la com um
resmungo. A flecha nem voa, vai gemendo no ar antes de se espetar no
chão.
– Tem de apontar mais alto, menina Doyle – diz ela. – Buscar!
A flecha está coberta de neve enlameada. Há flechas no chão por todo o
lado – menos as da Felicity. As dela conseguem quase sempre acertar numa
parte do alvo.
– Apanhei – digo, a declarar o óbvio com um sorriso que não é retribuído.
Usa os teus encantos, Gemma. Pergunta-lhe qualquer coisa. – De onde é a
professora McCleethy? Não é inglesa – digo, a tentar fazer conversa.
– Sou cidadã do mundo, parece-me. Levante-o assim.
Esforço-me por manter o arco em posição. Não quer colaborar.
– Eu nasci em Bombaim.
– Faz muito calor em Bombaim. Era quase irrespirável quando lá estive.
– Já esteve em Bombaim?
– Sim, pouco tempo, de visita a amigos. Assim, fique com o cotovelo
perto do corpo.
– Talvez tenhamos amigos em comum – digo, na esperança de cair nas
boas graças da professora McCleethy. – A senhora conhece os Fairchilds…
– Silêncio, menina Doyle. Basta de conversa. Concentre-se no alvo.
– Sim, professora McCleethy – digo. Solto a flecha, a qual saltita pela
relva empapada.
– Ah, estava quase, mas depois a menina hesitou. Deve disparar sem
hesitação. Ver o alvo, o objetivo, e nada mais.
– Eu vejo o alvo – digo, com impaciência. – Só não consigo acertar-lhe.
– Vai sair daqui com o orgulho ferido ou vai treinar até concretizar a
tarefa?
Cecily sorri de me ver repreendida. Torno a levantar o arco.
– Não estou ferida – digo baixinho.
A professora McCleethy põe a mão na minha.
– Muito bem. Agora, concentre-se, menina Doyle. Não ouça mais além da
própria respiração. Veja o centro até deixar de o ver de todo. Até a menina e
o centro serem um só e já não haver centro.
O fôlego sai-me em baforadas frias. Estou a tentar pensar no alvo, mas a
mente não quer sossegar. Quando é que ela esteve na Índia? Quem é que foi
visitar? Terá adorado como eu adorei? Porque é que não gosta de mim?
Olho para o centro do alvo até ver tudo desfocado.
Ver o objetivo, e nada mais.
Não hesitar.
Até já não haver centro.
A flecha voa com um som agudo e sibilante. Acerta no fundo da tela e
fica lá, a tremer.
– Melhor – concede a professora McCleethy.
À minha direita, Felicity faz pontaria, puxa o braço atrás e acerta num
alvo perfeito. As raparigas aplaudem imenso. Felicity sorri radiante, uma
princesa guerreira.
– Excelente, menina Worthington. A professora McCleethy marcha pelo
relvado fora, a arrancar flechas errantes da terra e dos fundos dos alvos
enquanto fala connosco. – Senhoras, não podem vacilar na vossa dedicação
a coisa alguma. Aquilo que desejam pode ser vosso, mas primeiro devem
saber o que desejam.
– Eu não quero ser arqueira – Cecily queixa-se baixinho. – Dói-me o
braço.
A professora McCleethy continua a aula.
– A menina Worthington é um exemplo para todas nós.
– Muito bem resmungo. Vou ser como Felicity: toda ação e pouca ou
nenhuma reflexão. Zangada, levanto o arco e disparo a flecha.
– Gemma! – grita Ann. Na pressa, não reparei que a professora
McCleethy estava a passar diante do meu alvo. Rápida como uma mosca,
ela ergue a mão para deter a flecha que decerto se lhe cravaria no crânio.
Arqueja de dor. O sangue empapa-lhe a luva branca. As raparigas largam as
aljavas e as flechas e acorrem em auxílio dela. Eu vou atrás, aparvalhada.
Ela está no chão, a tentar tirar a luva. Tem um buraco visível na palma da
mão. Não é fundo mas está cheio de sangue.
– Deem-lhe um lenço! – grita alguém.
Ofereço o meu. A professora McCleethy pega-lhe e lança-me um olhar
irado.
– Peço muita, muita desculpa – balbucio. – Não a vi.
– E vê alguma coisa, menina Doyle? – retruca a professora McCleethy, a
fazer uma careta de dor.
– Vou buscar a senhora Nightwing? – pergunta Felicity, e vira-se de
costas para mim. A professora McCleethy fixa-me com má cara.
– Não. Continuem o treino. A menina Doyle pode ajudar-me a tratar do
ferimento. De castigo.
– Sim, com certeza – digo, e ajudo-a a levantar-se.
Caminhamos em silêncio. Quando chegamos à escola, ela manda-me
buscar ligaduras a Brigid, a qual não consegue resistir a um sermão sobre
aquilo ser castigo de Deus à professora McCleethy por ensinar coisa assim
«contra natura» como o tiro com arco.
– Devia ensinar jeito para costurar ou a belezura das aguarelas, é a
opinião da velha Brigid, mesmo que nunca ma peçam, é uma pena. Tome lá
as ligaduras. Olhe que as deve pôr apertadas.
Curativos na mão, volto a correr para a professora McCleethy, a qual
lavou a mão e tenta estancar a hemorragia com um paninho.
– Trouxe ligaduras – digo, e mostro-lhas. Não sei o que fazer.
A professora McCleethy olha para mim como se eu fosse o simplório da
aldeia.
– Preciso que me faça o curativo, menina Doyle.
– Sim, com certeza – digo. – Peço desculpa, mas é que nunca...
A professora McCleethy interrompe.
– Comece na palma da minha mão e enrole a toda a volta, e repita até
terminar a ligadura. Ahhh!
Carreguei na ferida.
– Desculpe. Peço desculpa – digo. Continuo, e fecho a ligadura com a
pontinha por dentro.
– Agora, menina Doyle, se fizer o obséquio de me ir buscar outra luva.
Estão no meu roupeiro na gaveta de cima à direita – manda ela. – Nada de
moleza, menina Doyle. Temos de retomar a aula.

O quarto da professora McCleethy é modesto e limpo. Não obstante, é


estranho estar além da porta forrada onde as professoras vivem. Sinto que
estou a pisar chão sagrado. Abro as portas de mogno do grande roupeiro e
encontro a gaveta de cima da direita. As luvas estão onde ela disse, em fila
ordeira como soldados. Faço uma escolha e dou uma última olhadela ao
quarto para ver se há pistas quanto ao mistério que é a nossa nova
professora. O mais extraordinário é o pouco que há. Nada de toques
pessoais. Nada que sugira algo sobre ela. Pendurados no roupeiro estão
fatos de bom corte, saias, blusas, tudo cinzento, preto e castanho, nada que
chame a atenção. A mesa-de-cabeceira tem dois livros. Um é a Bíblia. O
outro é poesia de Lorde Byron. Não há fotografias de família ou amigos.
Não há pinturas nem esquissos – estranho, numa artista. É como se a
professora McCleethy tivesse vindo do nada e não seja de ninguém.
Estou quase a sair quando reparo na mala que a professora McCleethy
insistiu em trazer ela própria na noite em que chegou. Está guardada
debaixo da cama.
Eu não devia. Não se faz.
Fecho a porta do quarto sem ruído e tiro a mala do esconderijo. Tem
fechadura. O mais certo é estar trancada e lá se vai a minha ideia. Os dedos
tremem-me no fecho, mas abre-se, fico admirada ao ver, com bastante
facilidade. Tem dentro muito pouco: o anúncio a uma livraria, Aurora
Dourada, em Londres. Um anel estranho, de ouro e esmalte azul com duas
serpentes enroscadas. Conjunto de caneta e papel de carta.
Cai para debaixo da cama um papel. Com o susto, ponho-me de gatas à
procura dele. Estico o braço debaixo da colcha e chego-lhe. É uma lista:
Academia da professora Farrow para Raparigas; Escola Mackenzie para
Raparigas, na Escócia; Real Colégio de Bath; Escola de Santa Vitória;
Academia Spence para Jovens Senhoras. Todas têm um risco em cima
exceto a Spence. Torno a guardar o papel na mala o melhor que posso, na
esperança de que nada pareça mexido, e ponho a mala debaixo da cama
outra vez, salva e segura.
– Se esta é a sua ideia de nada de moleza, menina Doyle, não gostaria de
a ver quando não quer despachar-se – a professora McCleethy repreende-
me quando volto.
Não prevejo grandes amizades entre mim e a professora McCleethy
agora. Ela enfia a luva nova rapidamente, a fazer caretas quando lhe puxa
pela ferida na mão.
– Peço desculpa – torno a dizer.
– Sim, pois, tente ter mais cuidado de futuro, menina Doyle – exclama ela
naquele sotaque estranho.
– Sim, professora McCleethy – digo, incapaz de reprimir um bocejo. A
professora McCleethy semicerra os olhos perante a minha grosseria. –
Perdão. Não tenho dormido nada bem.
– Precisa de mais exercício. O movimento ao ar livre e ao fresco faz
maravilhas na constituição e no sono. Em Santa Vitória, eu insistia que as
minhas meninas dessem passeios e tomassem o ar do mar fosse qual fosse o
tempo. Se chovesse, levávamos os impermeáveis. Se nevasse, levávamos os
sobretudos. Agora voltemos ao relvado, se não se importa.
É possível que a professora McCleethy não tenha um único osso de boa
disposição no corpo todo, e acabei de me tornar na sua aluna menos
predileta. De súbito, nunca mais é Natal.
DEZ

O serão começa com um espetáculo natalício tradicional no salão de baile.


Não é tanto uma peça de teatro mas sim uma leitura encenada de contos de
Natal com adereços tirados dos baús que estão num dos muitos quartos por
habitar da Spence. Correm pelos corredores e riem-se na escadaria muitas
raparigas bem animadas e todas misturadas, um sortido de pastores, anjos,
fadas, fauna e flora. Uma rapariguinha encontrou o baú errado. Anda aos
saltinhos como uma bailarina mas tem vestida uma casaca de pirata muito
puída e calças esfarrapadas. Ann é o Fantasma do Natal Passado com uma
túnica castanha comprida, atada à cintura com uma fita prateada. Felicity
parece uma princesa medieval com um bonito vestido de veludo encarnado,
orlado a ouro nas mangas e na bainha. Insiste que é o Natal Que Está Para
Vir mas, na verdade, parece-me que ela encontrou o melhor traje de todas e
que decidiu chamar-lhe o que bem entender. Eu sou o Natal Presente de fato
verde, coroa de azevinho na cabeça. Sinto-me como uma árvore
cambaleante, embora Ann me garanta que estou «devidamente natalícia».
– É um portento que a professora McCleethy não te tenha cortado a
cabeça hoje. Estava com ar de ser bem capaz disso – diz Ann a caminho do
jantar, quando passamos por um cacho de fadas alcoviteiras e um ou dois
reis magos.
– Não foi de propósito – refilo, a endireitar o amuleto de minha mãe, na
base do pescoço. Já poli o metal martelado até cintilar. – Ela é estranha.
Não estou para me ralar com ela – digo. – Não te parece estranha?
Felicity desliza pelos tapetes como princesa que é.
– Eu creio que ela é mesmo do que a Spence estava a precisar. A
franqueza dela é uma lufada de ar fresco. Gosto dela. Perguntou toda a
espécie de coisas sobre mim.
– Lá por te ter feito um elogio, decidiste que é tua amiga – torno a refilar.
– Tu tens inveja porque ela me destacou.
– Não é verdade – prefiro zombar, mas desconfio de que seja, um pouco.
Parece que a Felicity já é a favorita da professora McCleethy sem grande
esforço, ao passo que será uma sorte se ela me der os bons-dias. – Sabes
que ela tem uma lista de escolas numa mala secreta escondida debaixo da
cama?
Felicity ergue uma sobrancelha.
– E como é que tu sabes isso?
Começo a corar.
– Estava aberta.
– Disparate! Estavas a bisbilhotar! – Felicity arrelia-me. Depois enfia o
braço no meu e Ann pega no outro. – O que mais lá havia? Conta lá!
– Pouca coisa. Um anel com serpentes; parecia muito antigo. Um anúncio
de uma livraria chamada Aurora Dourada. A lista.
Duas raparigas mais novas tentam passar por nós. Têm sorrisos ladinos e
trajes de anjinho. Felicity puxa as asas macias da rapariga mais próxima,
quase a deita ao chão.
– Nós temos primazia. Vocês para o fim da fila.
Aterradas, as rapariguitas fogem para trás de nós.
– O que mais estava na mala? – indaga Ann.
– Mais nada – digo.
– Mais nada? – repete Felicity, desapontada.
– Não ouviste nada sobre a lista – digo. – Todas as escolas tinham um
risco em cima exceto a Spence. O que te parece que seja?
Felicity não dá importância.
– Nada. Ela faz um rol das escolas onde procurou emprego. Não há nada
assim tão estranho nisso.
– Tu estás desorientada porque ela não gosta de ti – diz Ann.
– Ela disse que não gosta de mim? – pergunto.
Felicity dá uma voltinha, deixa a bainha do vestido ganhar roda.
– Nem é preciso. É evidente. E tentaste realmente empalá-la, o que não
ajudou em nada ao teu caso.
– Já te disse que não foi de propósito!
Os dois anjinhos voltaram. Conseguem entrar na sala de jantar à nossa
frente.
– Ora, seus diabinhos! – Felicity ruge. As rapariguitas correm aos
guinchos, encantadas com a sua audácia.
É tradição natalícia que a senhora Nightwing dê uma última ceia antes de as
raparigas desaparecerem de férias. Aparentemente, também é tradição que
haja festa no salão depois, com licor de cereja para as professoras e cidra
quente para todas nós. Podia inebriar-me só com a beleza do salão. A
enorme lareira de pedra acesa. A nossa árvore, um pinheiro gordo e alegre,
postada no meio do salão, os ramos estendidos como uma anfitriã
acolhedora. O professor Grunewald, de Música, foi coagido a tocar
violoncelo para nós, coisa que faz com surpreendente agilidade para um
homem de quase oitenta anos.
Temos busca-pés de Natal a puxar. Basta um safanão nas fitas e elas
abrem-se com um estalido agudo, pregam a toda a gente um susto de morte.
Ainda não percebi bem qual é a graça disto. Ouvem-se cânticos de Natal.
Acendem-se e admiram-se as velas da árvore. Dão-se prendas às
professoras. Há uma récita em francês para Mademoiselle LeFarge. Uma
canção para o professor Grunewald. Há poemas e bolachas e caramelos.
Ora, para a senhora Nightwing, nós abrimos os cordões à bolsa. As
raparigas abrem alas para Cecily passar com uma enorme chapeleira. É a
rapariga mais velha, tem a honra de dar a prenda à nossa diretora.
– Feliz Natal, senhora Nightwing – diz ela, e apresenta a caixa de
chapéus.
A senhora Nightwing pousa o copo numa mesinha de canto.
– Ora, o que poderá ser?
Abre a caixa, afasta o papel forte e tira um chapéu de feltro assombroso
com plumas pretas luzidias. Foi Felicity quem tratou da prenda, como é
natural. Saem-nos «ahs» sentidos das bocas. Há uma sensação de
maravilhamento e júbilo no salão quando a senhora Nightwing coloca o
chapéu enfeitado na cabeça.
– Fica-me bem? – pergunta.
– Parece uma rainha! – grita uma rapariga.
Batemos palmas e erguemos os copos.
– Feliz Natal, senhora Nightwing.
Durante muito tempo, a senhora Nightwing parece desarmada pelas
emoções. Tem os olhos marejados, mas a voz, quando finalmente se ouve,
está firme como sempre.
– Obrigada. É uma prenda muito sensata e sei que vou gostar muito de a
usar – diz. Com isto, tira o chapéu e guarda-o outra vez na caminha de
papel. Põe a tampa e empurra a caixa para debaixo da mesa e longe da
vista.
Novamente com os copos cheios, eu, Ann e Felicity escapulimo-nos
sentamo-nos no chão ao lado da árvore. O aroma dos ramos faz-me pingo
no nariz e a cidra quente deixa-me as faces coradas.
– É para ti – diz Felicity, e põe-me uma bolsinha de veludo na mão.
Tem dentro um bonito pente de tartaruga.
– É lindo – digo, encabulada pela extravagância. – Obrigada.
– Oh! – exclama Ann, e abre a sua prenda. Reconheço o que é. Um
alfinete da Felicity que Ann tem admirado. Sem dúvida que Felicity tem
outro para substituir, mas Ann fica encantada, e põe-no logo no fato.
– Tomem – diz Ann timidamente, e dá-nos duas prendas embrulhadas em
papel de jornal. Fez um enfeite para cada uma de nós, anjos de rendinhas
delicadas como os de Pippa.
Agora é a minha vez. Não tenho jeito para costura, como Ann, e não
tenho a bolsa de Felicity. Porém, posso oferecer algo de especial.
– Também tenho prendas – digo.
– Onde estão? – pergunta Ann. Atrás dela, os candeeiros vão dançando,
mandam fogos-fátuos de luz assombrarem as paredes.
Chego-me para a frente e sussurro:
– Encontramo-nos aqui à meia-noite.
Lançam-se a mim de imediato, aos gritinhos de alegria, pois vamos
finalmente voltar aos reinos.
Ouve-se grande alarido. Nunca ouvi tal gargalhada. Talvez seja porque
saiu da senhora Nightwing. Está sentada entre as professoras, todas bastante
alegres por esta altura.
– Oh, Sa… Claire, desconcertas-me – diz a senhora Nightwing, a mão a
bater no peito como se quisesse parar o riso.
– Se bem me lembro, foste tu quem começou – diz a professora
McCleethy, a sorrir. – Na altura eras bastante audaz, deixa que diga.
As raparigas acorrem como água num tronco fendido, a azáfama de
perguntas empurrada pela curiosidade insaciável.
– O que foi? – indagam. – Contem, contem!
– Não sabiam que a vossa diretora era bastante ladina? – retruca a
professora McCleethy, a acenar com a cenoura para burro comer. – E
romântica também.
– Ora, ora – protesta a senhora Nightwing, a bebericar o licor.
– Mas conte – implora Elizabeth. As outras fazem logo coro. – Sim, por
favor!
Como a senhora Nightwing não oferece resistência, a professora
McCleethy continua a narrativa.
– Estávamos num baile de Natal. Tinham mesmo enfeites lindos, não te
lembras, Lillian?
A senhora Nightwing faz que sim com a cabeça, de olhos fechados.
– Sim. Cartões com borlas encarnadas grossas. Lindos, lindos.
– Muitos cavalheiros presentes, mas claro que todas tínhamos os corações
presos de um homem muito elegante com cabelos pretos. Era mesmo bem-
parecido.
A senhora Nightwing nada diz, bebe mais licor.
– «É com aquele homem que me vou casar», anunciou a vossa diretora a
nós todas, audaz como sempre. Rimo-nos mas, num ápice, ela pegou-me no
braço e desfilou pelo...
– Eu não desfilei...
– ... e deixou cair o cartão das danças com toda a graça aos pés dele, e
fingiu não reparar. Claro que ele foi atrás dela. E dançaram três danças
seguidas até as vigilantes intervirem.
Ficamos encantadas com isto.
– O que aconteceu a seguir? – pergunta Felicity.
– Ela casou-se com ele – responde a professora McCleethy. – Nesse
mesmo Natal.
Um senhor Nightwing? Esqueço-me de que a senhora Nightwing já foi
casada, de que também foi rapariga. Tento imaginá-la jovem e risonha, a
conversar com amigas. Não me surge nada. Só a consigo ver como é agora,
a cabeleira grisalha, os óculos, os modos severos.
– Mas que romântico – diz Cecily, deslumbrada.
– Que romântico – concordamos todas.
– Foste mesmo audaz, Lillian – diz a professora McCleethy.
O rosto da senhora Nightwing fica ensombrado.
– Foi loucura.
– Quando é que o senhor Nightwing faleceu? – pergunto à Felicity num
sussurro.
– Sei lá. Dou-te uma libra para perguntares por ele – sussurra ela
também.
– Nunca na vida.
– Não queres saber?
– Assim tanto, não.
– Uma libra, prometes? – pergunta Ann.
Felicity confirma. Ann pigarreia.
– Senhora Nightwing, o senhor Nightwing já não está entre nós há muito
tempo?
– O senhor Nightwing está com os anjos há vinte e cinco anos – responde
a nossa diretora, sem tirar os olhos do copo. A senhora Nightwing deve ter
quarenta e oito anos, talvez cinquenta. Que seja viúva há metade da sua
vida parece-me uma pena.
– Então era novo? – insiste Cecily.
– Sim, muito novo – diz ela, a olhar para o licor de cereja pálido. –
Estávamos casados há seis muito felizes anos. Um dia... – A voz emudece-
lhe.
– Um dia? – repete Ann.
– Um dia, saiu para o trabalho no banco. – Ela cala-se, bebe um golinho.
– E nunca mais o vi.
– O que aconteceu? – pergunta Elizabeth, boquiaberta.
A senhora Nightwing parece em sobressalto, como se lhe fizéssemos uma
pergunta que não compreende, mas depois a resposta surge devagar.
– Foi atropelado por um coche na rua.
Faz-se um silêncio tremendo, do tipo que acompanha a espécie de más
notícias em que nada se pode fazer ou melhorar. Eu penso na senhora
Nightwing como a fortaleza inexpugnável que é a nossa diretora. Alguém
que sabe controlar tudo. É difícil pensar que não é assim.
– Mas que violência para si – diz Martha por fim.
– Coitada da senhora Nightwing – diz Elizabeth.
– É muito triste – diz Ann.
– Não vamos ceder a sentimentalismos. Foi há muito, muito tempo.
Resistência é o que é preciso. Temos de aprender a trancar pensamentos
desagradáveis e nunca voltar a eles. Senão passamos a vida a chorar os
porquês para dentro dos lenços e nada conseguimos concretizar. – Ela
esvazia o copo. A fenda na armadura foi remendada. Tornou a ser
Nightwing. – Ora bem. Quem tem um conto de Natal para nos contar?
– Oh, tenho eu – diz Elizabeth. – É um conto de arrepiar sobre um
fantasma chamado Marley com uma corrente comprida.
A professora McCleethy interrompe.
– A menina refere-se ao Conto de Natal do Senhor Dickens? Creio que
todos conhecemos, menina Poole.
Há risinhos às custas de Elizabeth.
– Mas é o meu preferido diz ela, a fazer beicinho.
Cecily aproveita:
– Tenho uma história bonita, senhora Nightwing. – Mas é claro que tem.
– Ah, esplêndido, menina Temple.
– Era uma vez uma menina que era muito boazinha. Tinha um caráter
irrepreensível em todos os aspetos, era discreta e bondosa e gentil e
educada. Chamava-se Cecile.
Creio que já sei onde isto vai dar.
– Infelizmente, Cecile era atormentada por uma rapariga selvagem e cruel
chamada Jemima. – Teve o descaramento de olhar para mim quando disse
isto. – Odiosa como era, Jemima arreliava a coitada da doce Cecile, dizia
inverdades e virava algumas das suas amigas diletas contra ela.
– Mas que horror – ajuda Elizabeth.
– A Cecile permaneceu bondosa e virtuosa durante esse tempo todo, mas
a tensão revelou-se demasiada e, um dia, a coitadinha adoeceu gravemente,
ficou acamada por causa da crueldade da implacável Jemima.
– Espero bem que a Jemima tenha o que merece – diz Martha a fungar.
– Espero que a Cecile tenha um fim prematuro – sussurra Felicity para
mim.
– O que aconteceu então? – perguntou Ann. É mesmo o tipo de história
de que ela gosta.
– Toda a gente acabou por saber a rapariga horrorosa que a Jemima era no
fundo, e todos cortaram relações com ela. Quando o príncipe ouviu falar da
bondade da Cecile, levou o seu próprio médico para a curar e enamorou-se
loucamente dela. Casaram-se, e Jemima ficou condenada a vaguear no
campo, uma mendiga cega, pois os olhos tinham sido vazados por cães
vadios.
A senhora Nightwing faz um ar confuso.
– Não compreendo como é que se trata de um conto de Natal.
– Ah – acrescenta logo a Cecily. – Decorre na época do nascimento de
Nosso Senhor. Jemima acaba por cair em si, por pedir perdão a Cecile, e vai
trabalhar para uma paróquia de aldeia, a varrer o chão para o vigário e a
mulher dele.
– Ah – faz a senhora Nightwing.
– Deve ser difícil varrer qualquer coisa, já que ela ficou sem a vista –
resmungo eu.
– Sim – diz Cecily, toda animada. – É grande o sofrimento dela, mas é
por isso que se trata de uma bela história cristã.
– Esplêndido – diz a senhora Nightwing, a língua algo entaramelada. –
Temos canção? Afinal, estamos no Natal.
O professor Grunewald senta-se ao piano e começa a tocar uma melodia
inglesa antiga. Algumas professoras cantam também. Há várias raparigas
que se levantam para dançar. A professora McCleethy não. Está a olhar
frontalmente para mim.
Não, está a olhar para o amuleto. Quando percebe que eu reparei, faz-me
um largo sorriso, como se nunca tivéssemos discutido e fossemos velhas
amigas.
– Menina Doyle – chama ela, a fazer-me sinal com a mão, mas Ann e
Felicity não me largam.
– Anda, vamos dançar – insistem, puxam-me até me levantarem, e levam-
me para longe.

O serão passa como um sonho bom. A excitação revela-se demasiada para


muitas das raparigas mais novas. Encostadas umas às outras, dormitam à
lareira, as asas de anjo esmagadas debaixo dos braços rechonchudos e
inertes das amigas queridas, coroas de drageias e azevinho todas tortas no
emaranhado dos cabelos. Noutro canto mais longe estão sentadas a senhora
Nightwing e a professora McCleethy, as cabeças juntas em conferência. A
professora McCleethy fala num sussurro determinado, a senhora Nightwing
abana a cabeça.
– Não – diz a nossa diretora, a voz mais alta por causa do licor. – Não
posso.
A professora McCleethy põe as mãos devagar nas da senhora Nightwing,
a murmurar coisas que não consigo ouvir.
– Mas pensa no custo – replica a senhora Nightwing. O olhar dela apanha
o meu por momentos, eu desvio logo os olhos. A seguir, ela levanta-se, algo
periclitante, põe uma mão no espaldar da cadeira até se conseguir
equilibrar.

Muito depois de apagarem os candeeiros, de as lareiras se extinguirem, e de


toda a gente estar deitada em segurança, eu e Ann encontramo-nos com
Felicity lá em baixo no grande salão. As últimas brasas na enorme lareira de
pedra lançam um brilho feérico sobre aquela sala cavernosa. A árvore de
Natal parece um gigante sinistro. Ao centro, as colunas de mármore
esculpidas com fadas, centauros e ninfas. Só de ver me sinto estremecer,
pois sabemos que são mais do que altos-relevos. São seres vivos
encarcerados ali pela magia dos reinos, o lugar que estamos tão prontas para
ver, sentir e tocar mais uma vez – se conseguirmos.
– Não te esqueças de que me deves uma libra – diz Ann para Felicity,
com os dentes a bater.
– Não me esqueço – responde Felicity.
– Tenho medo – diz Ann.
– Eu também – digo eu.
Até Felicity perdeu a fanfarronice habitual.
– Aconteça o que acontecer, não saímos de lá umas sem as outras. – Ela
não diz o resto: como tu deixaste a Pip... a deixaste para lá morrer.
– Concordo – digo eu. Respiro fundo e tento acalmar os nervos. – Deem-
me as mãos.
Damos as mãos umas às outras e fechamos os olhos. Há tanto tempo que
não entramos nos reinos. Tenho medo de não conseguir que a porta de luz
apareça mas, logo a seguir, sinto o formigueiro tão meu conhecido na pele,
o calor da luz. Abro um olho, depois o outro. Lá está, resplandecente diante
de nós: o glorioso portal para outro mundo.
Felicity e Ann mostram bem o quanto estão maravilhadas.
– Não sei o que vamos lá encontrar – digo eu antes de começarmos.
– Só há uma maneira de saber – replica Felicity.
Abro a porta e entramos nos reinos.
Das árvores chovem flores que nos fazem cócegas no nariz. A erva ainda
está verde num eterno verão. À nossa direita, o rio gorgolejante. Consigo
ouvir o som leve que sai das profundezas e que forma anéis prateados à
superfície. E o céu! Como o crepúsculo mais lindo no mais feliz dos dias.
Sinto que ainda me rebenta o coração. Oh, como senti falta deste sítio!
Como pude sequer pensar em nunca mais o visitar?
– Oh! – exclama Felicity. A rir-se, dá voltinhas, as palmas das mãos
abertas para o céu cor de laranja.
– É tão lindo!
Ann aproxima-se do rio. Para e olha para o seu reflexo, a sorrir.
– Sou tão bonita aqui. – E é, de facto. É a Ann como a Ann seria sem
ralações, sem medo nem mansidão, sem necessidade de colmatar o vazio
com bolos e queques.
Felicity passa os dedos por um salgueiro que se transmuta, como água a
correr, e passa a ser uma fonte.
– É extraordinário. Podemos fazer qualquer coisa aqui. Qualquer coisa!
– Olhem! – alerta Ann. Tem uma folha de erva nas mãos, fecha os olhos.
Quando abre as mãos, está lá um pendente de rubi a cintilar. – Ajudem-me a
pô-lo ao pescoço!
Felicity aperta o fecho. A coisa brilha na pele de Ann como o tesouro de
um rajá.
– Mãe? – chamo, desejosa que ela apareça para me cumprimentar. Não se
ouve mais do que o canto do rio e o riso deliciado das minhas amigas a
transformarem flores em borboletas, pedras em joias. Eu própria sabia que
ela se foi de vez, mas não pude evitar ter esperança do contrário.
Além das árvores, está a arcada de prata que dá para o coração do jardim.
Foi lá que lutei com o assassino enviado por Circe, um dos espíritos
tenebrosos das Invernias. Foi ali que estilhacei as Runas do Oráculo, o que
deu a liberdade à minha mãe mas também deixou a magia à solta. Sim, a
magia está à solta. Por isso é que viemos. Contudo, parece tudo como
estava. Não há nada que pareça deslocado.
– Venham comigo – digo. Passamos por baixo da arcada cintilante e
damos connosco num círculo nosso conhecido. Onde as runas de cristal
outrora se erguiam altaneiras e poderosas, só restam pedaços de terra
calcinada e um sortido bizarro de cogumelos pequeninos.
– Credo – diz Ann. – Tu fizeste mesmo aquilo, Gemma?
– Fiz.
– Mas como? – pergunta Felicity. – Como conseguiste partir algo que
perdurava há séculos?
– Não sei – respondo.
– Ai – diz Ann. Pisou um cogumelo, que se abriu, preto e molhado.
– Cuidado onde pões os pés – avisa Felicity.
– Onde é que procuramos o tal Templo? – pergunta Ann. Eu suspiro.
– Não faço ideia. Kartik diz que não há mapa nenhum. Eu só sei que fica
algures dentro dos reinos.
– Não sabemos a dimensão deste sítio – diz Ann. – Nem quantos reinos
pode haver.
– Não tens nada que sirva de pista? – pergunta Felicity.
– Não. Sabemos que não pode ser aqui no jardim, senão já o teríamos
visto. Calculo que seja melhor escolher um sentido e... O que se passa?
Felicity está muito branca. Ann também. Seja o que for, está atrás de
mim. Com todos os músculos contraídos, viro-me devagar para enfrentar o
meu fim.
Ela sai de dentro de um olival, uma grinalda de flores no cabelo preto. Os
mesmos olhos cor de violeta. A mesma pele branca e a mesma beleza
estonteante.
– Olá – diz Pippa. – Tinha esperança de que voltassem.
ONZE

Felicity corre para ela.


– Espera! – grito, mas não há como impedi-la. Ela corre para Pippa e
abraça-a com força. Pippa beija as faces de Felicity.
– És tu! – diz Felicity. Chora e ri ao mesmo tempo. – Pip, Pip, querida
Pip, estás aqui!
– Sim! Estou aqui. Ann! Gemma! Oh, não fiquem assim a olhar.
– Pippa! – grita Ann e corre para ela. Eu não posso crer. A Pip, a nossa
Pip, está aqui, linda como sempre. Há algo em mim que cede. Caio na relva,
a chorar, as lágrimas fazem nascer pequenas flores de lótus onde caem.
– Oh, Gemma, querida, não chores – diz Pippa. Rápida como uma corça,
está a meu lado. As mãos frias que vi em sonhos estão a afagar-me o
cabelo, e são quentes como um aguaceiro de verão. – Não chores.
Olho para ela. Ela sorri-me.
– Se pudesses ver a tua cara, Gemma. Credo, tão séria.
Isto faz-me rir. E chorar um pouco mais. Não tarda a que estejamos todas
a rir-nos no meio das lágrimas, os braços à volta umas das outras. Parece
um regresso a casa depois de uma viagem longa e cheia de pó.
– Deixem-me olhar para vocês – diz Pippa. – Oh, tenho tantas saudades
vossas. Têm de me contar tudo. Como está a senhora Nightwing? E a
Cecily e a Martha ainda são umas snobes insuportáveis?
– Completamente horrendas – diz Ann, a rir-se.
– A Gemma entornou compota no vestido da Cecily ainda uma destas
manhãs para ela ficar caladinha – diz Felicity.
Pippa abre a boca.
– Não!
– Receio bem que sim – admito, a sentir-me tolinha pelo mau
comportamento.
– Gemma! – exclama ela, a sorrir radiante. – És uma heroína!
Caímos outra vez na relva a rirmo-nos. Há tanto a dizer. Contamos-lhe
tudo – sobre a Spence, as raparigas, o funeral dela.
– Toda a gente chorou horrores? – pergunta Pippa. Ann faz que sim com a
cabeça.
– Imenso.
Ela sopra num dente-de-leão. A penugem espalha-se na brisa, e
transforma-se num enxame de pirilampos.
– Apraz-me saber. Detestaria pensar que as pessoas estiveram de olhar
empedernido à roda do meu caixão. As flores, eram lindas? Havia flores,
não havia?
– As cascatas de flores mais lindas e esmeradas – responde Felicity. –
Devem ter custado uma fortuna.
Pippa faz que sim com a cabeça, a sorrir.
– Ainda bem que tive um funeral assim bonito. Oh, contem-me mais
histórias de casa! Falam de mim no grande salão? Têm muitas saudades
minhas?
– Oh, sim – responde Ann, muito séria. – Temos todas.
– Agora já não é preciso ter saudades – diz Pip, a apertar-lhe a mão. Não
quero perguntar, mas tem de ser.
– Pippa, pensei que tinhas... – Morrido. Não consigo dizer. – Pensei que
tinhas atravessado o rio. Para o outro mundo além dos reinos. Quando me
fui embora, tu e o teu cavaleiro...
Ann endireita-se.
– Onde está o teu cavaleiro?
– Oh, ele. Tive de o deixar ir embora. – Pippa boceja. – Ele fazia sempre
o que eu mandava. Um tédio absoluto.
– Mas era bem-parecido – comenta Ann, embevecida.
– Era, não era? – Pippa ri-se.
– Desculpa – digo eu, com medo de estragar a nossa felicidade. – Mas
não compreendo. Porque é que não fizeste a travessia?
Pippa encolhe os ombros.
– O meu senhor, o cavaleiro, disse-me que afinal não era preciso fazer. Há
muitas tribos aqui, criaturas que vivem nos reinos há séculos. Fazem parte
deste mundo. – Ela recosta-se com os braços retesados, dobra os joelhos e
deixa-os balouçar devagar um contra o outro.
– Então simplesmente voltaste? – insisto.
– Sim, e depois parei para apanhar florzinhas e fazer uma coroa. Gostas?
– Gosto, sim – diz Ann.
– Então faço uma para ti.
– E para mim – acrescenta Felicity.
– Com certeza – diz Pippa. – Vamos todas ter uma.
Estou completamente baralhada. A minha mãe disse-me que as almas têm
de fazer a travessia, senão ficam corrompidas. Porém, aqui está a nossa
Pippa, feliz e contente, os olhos da cor das violetas frescas, a rapariga que
sempre conhecemos.
– Há quanto tempo estou aqui? – pergunta Pippa.
– Dois meses – respondo.
– A sério? Por vezes, parece que foi ontem; outras, é como se estivesse cá
desde sempre. Dois meses... Devemos estar quase no Natal. Parece-me que
vou ter saudades da manhã do dia de Natal.
Não sabemos o que dizer, nenhuma de nós. Ann endireita-se.
– Talvez ela ainda não tenha concluído a missão da sua alma. Talvez seja
por isso que ainda está aqui.
– Talvez seja para nos ajudar a descobrir o Templo! – exclama Felicity.
– Qual templo? – pergunta Pippa.
– Quando estilhacei as runas, soltei o poder da Ordem nos reinos –
explico. – O Templo é a fonte dessa magia. Quem encontrar o Templo e
vincular lá a magia passa a controlá-la.
Pippa arregala os olhos.
– Que maravilha!
Ann corrobora.
– Mas toda a gente anda à procura, incluindo os espiões de Circe.
Pippa enfia o braço no meu.
– Então temos de o encontrar primeiro. Eu farei tudo o que puder para as
ajudar. Podemos pedir ajuda às criaturas.
Abano a cabeça.
– Kartik disse que não podemos confiar em ninguém dos reinos, com a
magia à solta, não. – Não confie em ninguém, em nada, mas isso não deve
incluir Pippa.
– Kartik? – pergunta Pippa, como se tentasse lembrar-se de algo muito
antigo. – O indiano? O Rakshana?
– Sim.
Ela fala mais baixo.
– Tens de ter cuidado com ele. Os Rakshana também têm espiões aqui.
Não se pode confiar neles.
– O que queres dizer com isso?
– Constou-me que os Rakshana e a Ordem não são amigos coisa
nenhuma. Os Rakshana fingem apenas que são protetores, mas o que
querem realmente é o poder da Ordem, o controlo da magia e dos reinos.
– Constou-te como?
Pippa encolhe os ombros.
– É sabido aqui. Pergunta a quem quiseres.
– Nunca ouvi nada disso – digo. – A minha mãe decerto me teria avisado
se fosse verdade.
– Talvez não tenha tido ocasião – diz Pippa. – Ou talvez não soubesse
tudo. Sabemos, pelo diário, que ela era apenas caloira quando se deu o
incêndio. – Começo a querer objetar, mas Pippa interrompe-me. – Coitada
da Gemma. Estás zangada, agora que eu sei mais sobre isso do que tu?
– Não, claro que não – digo, e é verdade. – Simplesmente penso que
devemos ter cuidado.
– Sossega, Gemma. Eu quero saber todos os segredos dos reinos –
Felicity repreende-me, e vira-me costas. Pippa sorri, toda impante, e
lembro-me do que ela me disse no salão de baile da Spence há meses,
quando eu a destronei no lugar de favorita de Felicity: Cuidado ela não se
farte de ti a seguir. É uma grande queda.
Pippa puxa-nos para um abraço coletivo e dá-nos beijos nas faces com
ardor. O sorriso é tão genuíno.
– Oh, tive tantas saudades vossas! – Rola uma lágrima nas rosetas das
suas faces.
Sou uma amiga horrorosa. Também tive muitas saudades da Pip. Aqui
está ela, e eu estou a estragar o momento com o meu mau feitio.
– Desculpa, Pip, conta-nos o que sabes, se faz favor.
– Se assim o dizes! – O sorriso dela é deslumbrante, e todas nos rimos
como se nunca nos tivéssemos separado. Das árvores caem folhas que
flutuam na brisa e que nos cobrem as saias com as cores mais radiosas.
– Os reinos são vastos. Parece que não têm fim. Consta-me que há
maravilhas que nem conseguimos imaginar. Uma floresta de árvores cheias
de luz que brilham eternamente. Brumas douradas e criaturas aladas como
fadas. E um barco com cabeça de górgone!
– Górgone! – diz Ann, horrorizada.
– Oh, sim! Já a vi de noite, a deslizar na bruma. Um barco enorme com
uma cara temível – diz Pippa.
– Temível como? – pergunta Ann, a morder o lábio.
– Pode morrer-se de susto a olhá-la nos olhos – diz Pippa. Ann parece
aterrorizada. Pippa dá-lhe um beijo na face. – Não te aflijas, querida Ann.
Eu serei tua protetora.
– Não pretendo conhecer essa górgone.
– Dizem que foi amaldiçoada pela Ordem e vinculada pelo seu poder a
nunca repousar e sempre dizer a verdade – diz Pippa.
– Amaldiçoada? Porquê? – pergunta Felicity.
– Não sei. É uma das lendas.
– Se ela tem de dizer a verdade, talvez nos possa dizer onde encontrar o
Templo – digo eu.
– Vou procurá-la para ti – diz logo Pippa.
– Tem mesmo de ser? – pergunta Ann.
– Olha, Ann, vê isto. – Pippa pega numa mão cheia de relva e aperta-a na
palma das mãos. Quando as abre, está uma gatinha preta a piscar os
olhinhos para nós.
– Oh! – Ann leva a gatinha ao rosto.
– Há tanta diversão agora que estamos juntas outra vez!
Há um espinho de preocupação a picar-me por dentro. A minha mãe
insistiu que os espíritos tinham de fazer a travessia. E se estivesse
enganada?
Eu vi-a morrer; eu vi-a sepultada. Eu vi-a em sonhos.
– Tenho tido os sonhos mais atrozes contigo – digo, a apalpar terreno.
Pippa faz festas à gatinha, muda-lhe a cor para laranja e depois
encarnado.
– Deveras? Como eram eles?
– Só me lembro do último sonho. Vieste ter comigo e disseste: «Cuidado,
Gemma, eles vêm todos à tua procura.»
Pippa franze o sobrolho.
– Quem é que vem à tua procura?
– Não sei. Pensei que talvez me estivesses a enviar uma mensagem.
– Eu? – Ela abana a cabeça. – Não fiz nada que se parecesse com isso.
Agora venham comigo – diz ela como se fosse o flautista do contentamento.
– Quero fazer uma árvore de Natal.
Ficamos o que nos parecem horas. Até podem ser horas, tanto quanto
sabemos. Ninguém quer ser a primeira a despedir-se, e continuamos a
inventar motivos para ficar – mais enfeites mágicos para a árvore, outro
jogo de escondidas, mais busca pela górgone, que nunca aparece. Por fim,
chega a altura. Temos de nos ir embora.
– Podem voltar amanhã? – Pippa pede a fazer beicinho.
– Vou partir para Londres – diz Felicity em voz triste. – E vocês duas
livrem-se de vir cá sem mim!
– Eu parto no dia seguinte – digo eu.
Ann nada diz.
– Ann? – pergunta Pippa.
– Eu fico na Spence e passo o Natal com as criadas, como sempre.
– Quanto tempo até ficarem juntas outra vez? – pergunta Pippa.
– Quinze dias – respondo. Não tinha pensado nisso. Como é que
procuramos o Templo se ficamos separadas tantos dias?
– Isso assim não pode ser – diz Pip. – O que farei durante duas semanas
inteiras? Vou aborrecer-me imenso sem vocês. – A mesma Pippa de
sempre.
– Eu e a Felicity havemos de nos encontrar – digo eu. – Mas a Ann...
Ann está com ar de quem vai desatar a chorar.
– Tens simplesmente de ir comigo – diz Felicity. – Amanhã de manhã,
vou mandar um telegrama à Mamã a dizer-lhe que conte contigo. E vou
passar a noite a pensar numa boa história que o justifique.
Ann está radiante.
– Gostaria muito. Das férias e da história.
– Assim que pudermos, daqui a dois dias, voltaremos – digo a Pippa.
– Ficarei à espera.
– Vê o que consegues descobrir sozinha – digo. – Encontra a górgone.
Pippa faz que sim com a cabeça.
– Têm de se ir embora tão cedo? Não sei se aguento despedir-me.
– Daqui a dois dias – garante Felicity.
Ela passa por nós pelo sítio onde outrora estavam as runas.
– Cuidado – avisa Felicity.
Onde o cogumelo se abriu ao meio, a relva foi reduzida a cinzas. Está
uma cobra preta e luzidia a rastejar para a frente e para trás.
– Ai – diz Ann, a contorná-la.
Pippa pega numa pedra aguçada e deixa-a cair em cima da coisa.
– Pronto, já está – diz ela, a esfregar as mãos uma na outra para tirar o pó
da pedra que lá ficou.
– Abomino cobras – diz Felicity, com uma tremura.
Admira-me que Felicity se deixe incomodar por qualquer coisa. Admira-
me ainda mais o seguinte: Pippa está a olhar para a pedra que largou com
um sorriso estranho. Não sei definir a expressão que ela faz, mas incomoda-
me muito.
Com um último beijo, fazemos a porta de luz aparecer e estamos de volta
ao grande salão.
– Olhem! – diz Ann.
No pescoço dela, o rubi ainda brilha e resplandece.
– Trouxeste a magia contigo – digo eu, a tocar na joia.
– Não fiz por isso – diz Ann, como se houvesse sarilhos. – Aconteceu.
– Não há uma espécie de lacre a trancá-la – explico eu. – Deve ser isso.
– Deixa-me experimentar – diz Felicity. Fecha os olhos e, num instante,
está a flutuar bem acima de nós.
– Felicity! Desce daí! – digo num sussurro urgente.
– Nem morta! Porque é que não sobem vocês?
Com um guinchinho, Ann sobe ao encontro de Felicity. Dão as mãos no
ar e rodam muito acima do chão como fantasmas.
– Esperem por mim! – digo, a subir ao encontro delas. Os braços
estendidos, as pernas penduradas muito acima dos espaldares das cadeiras e
do lintel da lareira, sinto-me cheia de uma alegria pueril, um prazer
incorpóreo.
– É esplêndido – diz Ann, aos risinhos. Estende a mão para baixo e ajeita
o enfeite do anjo no cimo da árvore para ficar alto e direito. – Pronto.
– O que estás tu a fazer? – pergunto a Felicity, que está de olhos fechados.
Depois ela esfrega a palma da mão direita na esquerda. Quando aparta as
mãos, tem um anel de diamantes deslumbrante. Felicity enfia-o no terceiro
dedo e estende a mão para nós vermos.
– É a prenda de Natal mais maravilhosa de sempre – diz Felicity, a olhar
para o anel. – Pensem no quanto nos vamos divertir em Londres com a
magia nas nossas mãos.
– Não me parece sensato – digo eu. – Nós temos de vincular a magia. É
esse o nosso objetivo.
Felicity franze os lábios.
– Não farei nada horrível com a magia.
Não é discussão que me apeteça encetar agora.
– Vamos voar outra vez – digo, para mudar de assunto.
Finalmente, até Felicity se cansa. Esgueiramo-nos para os nossos quartos,
a dizermos com alegria o nome da rapariga por quem fazemos luto há dois
meses: Pippa. Talvez esta noite eu durma em paz. Sem sonhos pavorosos
que me deixem esgotada ao acordar.
Só depois de uma hora passada, e de eu estar a salvo na minha cama, é
que consigo definir a expressão que vi na cara de Pippa quando contemplou
a coisa que tinha matado.
Fome.
DOZE

Já chegou o coche que vai levar Felicity e Ann à estação de comboios. No


grande átrio revestido a mármore, despedimo-nos enquanto as criadas
mandam os cocheiros despacharem as malas delas. Felicity tem um ar
impassível e imperioso, de casaco cor de malva e regalo de peles. Ann está
alegre e esperançosa, com roupa fina emprestada por Felicity, uma capa de
veludo azul-imperial demasiado leve para o tempo que faz, presa com a
pregadeira das uvas.
– Tens magia ainda? – pergunta Felicity.
– Não – respondo. – Foi-se. E tu?
– Na mesma. – Felicity semicerra os olhos e avisa: – Não te atrevas a
voltar sem nós.
– Pela enésima vez, não volto. – O cocheiro leva o resto das coisas. – É
melhor despacharem-se. Não queiram perder o comboio. – É difícil
conversar naquela azáfama, e eu detesto despedidas. Ann está radiante.
– A Fee emprestou-me a capa.
– Amorosa – digo eu, a tentar não ligar ao facto de que ela empregou o
diminutivo. Felicity nunca me emprestou nada, e não consigo deixar de
sentir ciúmes das férias que as duas vão passar juntas.
Felicity mexe e remexe na roupa de Ann, a alisar vincos.
– Vou pedir à Mamã que nos leve ao clube amanhã para almoçar. É um
dos melhores clubes de senhoras. Temos de contar à Gemma do nosso
plano. Ela terá de desempenhar um papel também.
Já estou arrependida do que vem por aí.
– Encarreguei-me de reinventar a Ann durante as férias. Basta desta
rapariga tristonha, desta aluna de bolsa de estudo. Ela vai integrar-se como
se tivesse nascido para isto. Ninguém dará por nada.
Ann fala como se estivesse ensinada.
– Tenho de dizer à mãe dela que sou da realeza russa, que só
recentemente é que o meu tio-avô, o duque de Chesterfield, me descobriu
aqui na Spence e me informou do legado dos meus defuntos pais.
A mirar uma Ann muito rechonchuda e inglesa, pergunto:
– Parece-te acertado?
– A ideia surgiu-me por causa do rubi desta noite. Pensei, e se criássemos
a nossa própria ilusão? – diz Felicity. – E se fizéssemos uma brincadeira?
– E se formos descobertas? – Ann já está com nervoso miudinho.
– Não somos – diz Felicity. – Direi às senhoras do clube que, antes de os
teus pais falecerem, tiveste formação musical com uma cantora de ópera
russa de renome mundial. Ficarão encantadas por te ouvir cantar. Conheço-
as bem, hão de disputar-se para te terem a cantar nos seus bailes e jantares.
Serás o prémio e nunca farão ideia de que na verdade és pobre como um
rato de sacristia.
Há algo de felino no sorriso de Felicity.
– Provavelmente irei desapontá-las – murmura Ann.
– Tens de parar com isso imediatamente – ralha Felicity. – Não terei este
trabalho todo para teu bem para me estragares tudo.
– Sim, Felicity – diz Ann.
De sombrinhas abertas por causa da chuva, saímos para a rua, onde
podemos ter um momento sozinhas. Não queremos dizer o que sentimos
realmente, que será uma tortura esperar para entrar nos reinos. Depois de
saborear a magia, estou ansiosa por experimentar outra vez.
– Deslumbra a todas – digo para Ann. Abraçamo-nos ligeiramente e
depois o cocheiro chama-as por cima da cascata de chuva.
– Dois dias – diz Felicity. Eu confirmo com um aceno de cabeça.
– Dois dias.
Elas saltitam para dentro do coche, a levantar lama pelo caminho.
A Mademoiselle LeFarge está sentada no grande salão quando eu entro.
Tem vestido o melhor fato de lã e está a ler Orgulho e Preconceito.
– Está linda – digo eu. – Hum, très jolie!
– Merci beaucoup – diz ela, a sorrir. – O inspetor vem buscar-me.
– Vejo que está a ler a menina Austen – digo eu, grata por ela não ralhar
comigo devido ao meu francês pavoroso.
– Oh, sim. Aprecio muito os livros dela. São tão românticos. É muito
inteligente da parte dela terminar sempre num tom feliz: com um noivado
ou um casamento.
A criada bate à porta.
– O senhor Kent para a menina.
– Ah, obrigada. – A Mademoiselle LeFarge guarda o livro. – Bem,
menina Doyle, vemo-nos no ano novo, então. Desejo-lhe Feliz Natal.
– Feliz Natal também para si, Mademoiselle LeFarge.
– Oh, e não se esqueça de treinar francês nas férias, Mademoiselle Doyle.
É uma época de milagres. Talvez nós duas ganhemos um.

Em horas, a Spence fica quase deserta. Só resta uma mão-cheia de


estudantes. Têm partido raparigas o dia inteiro. Da minha janela, vejo-as
sair para o vento frio para entrarem no coche que as levará à estação de
comboio. Vi as despedidas, as promessas umas às outras para este baile ou
aquela ópera. É um portento como choram e bradam «vou ter saudades
tuas» quando parece que, afinal, nem separadas vão estar.
Tenho o edifício por minha conta, e passo algum tempo a fazer
explorações, a subir degraus íngremes que dão para torreões esguios cujas
janelas me dão vista panorâmica da terra que circunda a Spence. Passo por
portas fechadas e salas escuras forradas a madeira que parecem exposições
museológicas mais do que lugares onde se vive e se respira. Vou
perambulando até ficar escuro e passar muito da hora de deitar. Não é que
alguém venha à minha procura.
Quando chego ao meu próprio andar, paro de repente. Uma das portas
enormes que dá para os restos carbonizados da Ala Oriental ficou
entreaberta. Está uma chave espetada na fechadura. Desde que ando na
Spence, nunca vi as portas destrancadas, não percebo porque é que estão
abertas agora, com a escola vazia.
Quase vazia.
Aproximo-me a tentar não fazer barulho. Ouve-se vozes lá dentro.
Demoro um momento, mas reconheço-as: a senhora Nightwing e a
professora McCleethy. Não as consigo ouvir bem. O vento sopra como um
fole, manda-me palavras como «tem de começar», «Londres», «Elas
ajudam-nos», «Já tratei disso».
Tenho medo de espreitar, encosto só o ouvido à frincha, mesmo quando a
senhora Nightwing diz:
– Eu tratarei disso. Afinal, é a minha incumbência.
Com isto, a professora McCleethy passa pela porta e apanha-me.
– A bisbilhotar, menina Doyle? – pergunta ela, os olhos fulgurantes.
– O que se passa? De que se trata? – pergunta a senhora Nightwing. –
Menina Doyle! Mas o que foi?
– Desculpe, senhora Nightwing. Ouvi vozes.
– O que é que ouviu? – pergunta a senhora Nightwing.
– Nada – respondo.
– E pensa que acreditamos? – a professora McCleethy insiste.
– É verdade – minto. – A escola está tão vazia e custava-me a adormecer.
A professora McCleethy e a senhora Nightwing trocam olhares.
– Vá lá para a cama, menina Doyle – diz a senhora Nightwing. – De
futuro, dê a conhecer a sua presença de imediato.
– Sim, senhora Nightwing – digo, e vou quase em passo de corrida para o
meu quarto ao fundo do corredor.
De que estariam elas a falar? Tem de começar o quê?
Com esforço, descalço as botas, dispo o vestido, o corpete, as meias, fico
só em combinação. Tenho exatamente catorze molas no cabelo. Conto-as
conforme os dedos trémulos as tiram uma a uma. Os caracóis acobreados
rolam-me pelas costas abaixo com um suspiro de alívio.
Não vale a pena. Estou agitada de mais para pensar em dormir. Preciso de
distração, de algo para me desanuviar a mente. Debaixo da cama, a Ann
guarda uma resma de revistas, daqueles que dão conselhos e mostram as
últimas modas. Na capa está a ilustração de uma bonita mulher. O cabelo
enfeitado com plumas. A pele é de uma perfeição cremosa e o olhar
consegue ser bom e pensativo, como se estivesse a contemplar o pôr do Sol
mas também a necessidade de pôr pensos nos joelhos esfolados de crianças
chorosas. Não sei como conseguir tal visual. Dou comigo com um medo
novo: de que nunca, jamais, serei assim bonita.
Sento-me no toucador, a ver-me ao espelho, a virar o rosto de um lado
para o outro. Tenho um perfil aceitável. Um nariz direito e um bom queixo.
Viro-me para o espelho outra vez e reparo nas sardas e nos tons castanhos
pálidos. Nada a fazer. Não é que haja algo horrível em mim, é que não há
nada a sobressair. Não há mistério. Não sou do tipo que sai na capa das
revistas baratas, amorosamente com os olhos em alvo. Não sou do tipo que
os admiradores cobiçam, a rapariga imortalizada pelas canções. Não posso
afiançar que não me doa saber isso.
Quando for a jantares e bailes – se for, claro – o que verão os outros em
mim? Será que reparam em mim? Ou serão os irmãos suspirosos, e os tios
velhos queridos e os primos distantes de outros primos, obrigados a
dançarem comigo por boa educação porque as esposas, as mães e as
anfitriãs assim lhes mandaram?
Poderei vir a ser uma deusa? Escovo o cabelo e espalho-o sobre os
ombros como já vi em anúncios de ópera atrevidos, em que mulheres tísicas
morrem de amor sempre com um ar dolorosamente belíssimo. Se semicerrar
os olhos e entreabrir os lábios, até me podem tomar por atraente,
porventura. O meu reflexo quer qualquer coisa. Hesitante, baixo as alças da
combinação, mostro a carne. Sacudo o cabelo para ficar algo revolto, como
se eu fosse uma ninfa dos bosques, algo indomável.
– Se faz favor – digo para o meu reflexo – não creio que nos conheçamos.
Eu sou... – Pálida. Isso é que eu sou. Belisco as bochechas para ficarem
rosadinhas e começo outra vez, com a voz baixa e rouca. – Quem anda
assim livremente pelos meus bosques? Quem és? Fala!
Atrás de mim, ouço pigarrear e depois um sussurro.
– Sou eu, Kartik.
Sai-me um ganido da garganta. Salto do toucador e tropeço logo na beira,
caio no tapete e levo a cadeira comigo. Kartik sai de trás do biombo com as
palmas das mãos abertas à frente do peito.
– Por favor. Não grite.
– Como se atreve! – Corro para o meu roupeiro à procura do roupão que
lá está pendurado. Oh, Deus, onde está?
Kartik olha para o chão.
– Eu... Não era minha intenção, garanto-lhe. Eu estava ali, mas adormeci
e depois... Está... apresentável?
Encontrei o roupão mas os dedos não querem trabalhar em tal estado.
Tenho o roupão mal abotoado. Ficou todo torto. Cruzo os braços para
disfarçar o estrago.
– Talvez não saiba, mas é imperdoável esconder-se no quarto de uma
senhora. E não dar a sua presença a conhecer quando ela se veste... – Até
deito fumo. – Imperdoável.
– Lamento – diz ele, com ar embaraçado.
– Imperdoável – repito.
– É melhor ir-me embora e depois voltar?
– Já que aqui está, bem pode ficar. – Na verdade, agrada-me ter
companhia depois do infeliz encontro de há pouco. – O que poderá ser tão
urgente para subir uma parede e se esconder atrás do meu biombo?
– Entrou nos reinos? – pergunta ele.
Faço que sim com a cabeça.
– Sim. Mas não me pareceu haver nada de mal. Estava lindo como antes.
– Calo-me, a pensar em Pippa. A linda Pippa, para quem Kartik olhou uma
vez com tal espanto. Lembro-me do aviso dela sobre os Rakshana.
– O que foi?
– Nada. Pedimos ajuda a alguém de lá. Uma espécie de guia.
Kartik abana a cabeça.
– Não é nada sensato! Eu disse-lhe, nada nem ninguém que venha de
dentro dos reinos poderá ser de confiança agora.
– É alguém em quem podemos confiar.
– Como é que sabe?
– É a Pippa – digo baixinho. Kartik arregala os olhos.
– A menina Cross? Mas pensei que...
– Sim, também eu, mas vi-a esta noite. Ela não sabe do Templo, mas vai
ajudar-nos a descobrir.
Kartik olha para mim.
– Mas se ela não fizer a travessia, vai ficar corrompida.
– Ela diz que não é esse o caso.
– Não pode confiar nela. Pode já estar corrompida.
– Não há nada de estranho nela – retruco. – Ela está como... – Está linda
como antes, ia eu dizer.
– Ela está como quê?
– Ela é a mesma Pippa – respondo baixinho. – E sabe mais sobre os
reinos do que nós nesta altura. Ela pode ajudar-nos. É mais do que o que o
Kartik me deu como pista.
Se feri o orgulho de Kartik, ele nada mostrou. Anda de um lado para o
outro, passa tão perto que o consigo cheirar, um misto de fumo, canela,
vento, proibido. Agasalho-me bem com o roupão.
– Está bem – diz ele, a cofiar o queixo. – Avance com cautela. Mas não
me agrada. Os Rakshana avisaram expressamente...
– Os Rakshana não estiveram lá, como é que podem saber em que
confiar? – O aviso de Pippa parece-me, de súbito, muito bom. – Não sei
nada da sua irmandade. Porque haveria de confiar neles? Porque haveria de
confiar em si? Sinceramente, o Kartik entra no meu quarto e esconde-se
atrás do biombo. Segue-me para todo o lado. Está sempre a dar-me ordens.
Feche a sua mente! Não, peço imensa desculpa, abra a sua mente! Ajude-
nos a encontrar o Templo! Prenda a magia!
– Contei-lhe o que sei – diz ele.
– Não sabe grande coisa, pois não? – refilo.
– Sei que o meu irmão era Rakshana. Sei que morreu a tentar proteger a
sua mãe, e que ela morreu a tentar protegê-la a si.
E lá está. A mágoa feia que nos une. Sinto-me como se me tivessem
tirado o fôlego.
– Nem pense – aviso.
– Nem penso em quê?
– Em mudar de assunto. Creio que vou passar a dar as ordens por algum
tempo. O Kartik quer que eu encontre o Templo. Eu também quero algo de
si.
– Está a fazer chantagem comigo? – pergunta ele.
– Chame-lhe o que quiser, mas não lhe conto mais nada enquanto não
responder às minhas perguntas.
Sento-me na cama da Ann. Ele senta-se na minha, diante de mim. Aqui
estamos, dois cães prontos a morder se provocados.
– Pergunte – diz ele.
– Pergunto quando estiver pronta – retruco.
– Muito bem, não pergunte. – Ele levanta-se para se ir embora.
– Fale-me dos Rakshana! – sai-me de rompante.
Kartik suspira e olha para o teto.
– A Irmandade dos Rakshana existe há muito tempo, tal como a Ordem.
Surgiram no Oriente, mas outros se juntaram ao longo do tempo. Carlos
Magno era Rakshana, bem como muitos dos Cavaleiros Templários. Eram
guardiães dos reinos e fronteiras, juravam proteger a Ordem. A insígnia é a
espada e a caveira. – Ele diz isto num só fôlego, como se debitasse uma
aula de História para professor ouvir.
– Que prestável – digo, irritada.
Ele põe um dedo no ar.
– Mas informativo.
Não ligo à farpa.
– Como é que o Kartik ingressou nos Rakshana?
Ele encolhe os ombros.
– Sempre fiz parte deles.
– Decerto que nem sempre. Deve ter tido pai e mãe.
– Sim, mas nunca os cheguei a conhecer bem. Deixei-os quando fiz seis
anos.
– Oh – respondo, chocada. Nunca pensara em Kartik rapazinho a deixar
os braços da mãe. – Lamento muito.
Ele não me quer fitar.
– Não há nada a lamentar. Era sabido que eu seria treinado para ingressar
nos Rakshana, como o meu irmão, Amar, também fora. Era uma grande
honra para a minha família. Fui acolhido e instruído em matemática,
línguas, armas, combate. E críquete. – Ele sorri. – Sou bastante bom no
críquete.
– Que mais?
– Fui ensinado a sobreviver na floresta. A seguir a pista das coisas. A
roubar.
Perante isto, levanto o sobrolho.
– O que for preciso para sobreviver. Nunca se sabe quando roubar a
carteira de um homem nos compra comida para um dia ou serve de
manobra de diversão no momento certo.
Penso na minha própria mãe, que se foi de vez, e no quanto sinto a sua
falta.
– Não sentia imensa falta da sua família?
A voz dele, quando sai, está muito baixa.
– Ao princípio, procurava a minha mãe em cada rua, em cada praça,
sempre na esperança de a ver mas, pelo menos, tinha o meu irmão.
– Que horror. Não teve voto na matéria.
– Era a minha sina, e aceitei-a. Os Rakshana têm sido muito bons para
mim. Fui treinado para ingressar numa irmandade de elite. O que teria eu
feito na Índia? Guardado vacas? Passado fome? Vivido na sombra dos
ingleses, obrigado a sorrir quando lhes servia comida ou tratava dos
cavalos?
– Eu não queria transtorná-lo...
– Não me transtornou – diz ele. – Não creio que compreenda a grande
honra que é ser escolhido pela irmandade. Não tarda a que eu esteja pronto
a avançar para o último nível da minha formação.
– O que acontece então?
– Não sei – responde, com outro sorriso doce. – Tem de se prestar
juramento de obediência para a vida toda. Depois revelam-nos os mistérios
eternos. Nunca se fala disso. Primeiro, é preciso cumprir um desafio para
provar o nosso valor.
– Qual é o seu desafio?
O sorriso dele desvanece-se.
– Encontrar o Templo.
– A sua sina está ligada à minha.
– Sim – diz ele baixinho. – Assim parece.
Está a olhar para mim de tal maneira que torno a ter consciência da
posição comprometida em que me encontro só de roupão.
– Devia ir-se embora.
– Sim, devia – diz, e levanta-se. – Posso fazer uma pergunta?
– Sim – respondo.
– Costuma falar para o espelho? É algo que as jovens senhoras fazem?
– Não. Claro que não. – Fico mais corada do que jamais se viu nas faces
de qualquer rapariga. – Estava a ensaiar. Para uma peça. Vou... Vou cantar
num coro.
– Deve certamente ser uma exibição assaz interessante – diz Kartik, a
abanar a cabeça.
– Tenho um longo dia de viagem amanhã e agora tenho de lhe desejar as
boas-noites – digo com toda a formalidade. Estou ansiosa que Kartik se vá
embora para poder ficar envergonhada sozinha. Ele passa as pernas fortes
pelo parapeito da janela e pega na corda escondida na hera densa que sobe
pelas paredes da escola. – Oh, como é que entro em contacto consigo se
encontrar o Templo?
– Os Rakshana conseguiram emprego para mim em Londres durante as
festas. Algures perto. Eu contacto-a.
E, com isto, ele sai pela janela e desce pela corda. Vejo-o fundir-se na
noite, desejosa de que ele pudesse voltar. Mal tenho tempo para pôr a tranca
quando ouço bater à porta. É a professora McCleethy.
– Achei ouvir vozes – diz ela, a contemplar o quarto.
– Eu... Eu estava a ler em voz alta – digo, e agarro na revista de Ann que
estava em cima da cama.
– Compreendo – diz ela no seu sotaque estranho. Depois estende-me um
copo. – A menina disse que lhe custava a adormecer, por isso trouxe-lhe
leite quente.
– Obrigada – digo e pego no copo. Odeio leite quente.
– Sinto que a menina e eu começámos com o pé esquerdo.
– Lamento o que aconteceu com a flecha, professora McCleethy.
Lamento deveras. E não estava a bisbilhotar as senhoras há pouco. Eu...
– Ora, ora, já está esquecido. A menina divide este quarto com a menina
Bradshaw?
– Sim – respondo.
– Ela e a menina Worthington são as suas melhores amigas?
– Sim. – São as minhas únicas amigas, aliás.
– São certamente boas raparigas, mas não são interessantes como a
menina Doyle, devo dizer.
Fico siderada.
– Eu? Não sou nada interessante.
– Ora, ora – ela aproxima-se. – Eu e a senhora Nightwing estávamos
precisamente a falar de si esta noite, e concordamos que há algo de muito
especial na menina.
Estou diante dela com um roupão mal abotoado.
– As senhoras são uma simpatia. Na verdade, a menina Bradshaw tem
uma voz espantosa, e a menina Worthington é incrivelmente inteligente.
– Está a ver a sua lealdade, menina Doyle? É rápida a defender as amigas.
Trata-se de uma qualidade louvável.
Ela quer elogiar-me, mas sinto-me constrangida, como se estivesse a ser
estudada.
– Que colar mais invulgar. – Atrevida como tudo, ela leva o dedo à curva
da meia-lua. – Onde é que o arranjou?
– Era da minha mãe – respondo.
Ela olha-me com olhos penetrantes.
– Deve-lhe ter custado separar-se de algo tão precioso.
– Ela morreu, eu herdei-o.
– Tem significado especial? – pergunta ela.
– Não – minto. – Que eu saiba, não.
A professora McCleethy olha para mim até que eu tenho de desviar os
olhos.
– Como era a sua mãe?
Obrigo-me a bocejar.
– Perdão, creio que afinal estou cansada.
A professora McCleethy parece desapontada.
– Beba o leite enquanto está quente. Ajudará a dormir melhor. O repouso
é muito importante.
– Sim, obrigada – digo, ainda de copo na mão.
– Vamos, beba.
Não há como evitar. Obrigo-me a uns tragos daquele líquido pastoso
como giz. Está estranhamente doce.
– Hortelã-pimenta – anuncia a senhora Nightwing, como se me lesse o
pensamento. – Ajuda ao sono. Vou levar o copo à Brigid. Parece-me que ela
não gosta muito de mim, pois não?
– Decerto está equivocada – digo, porque é a resposta bem-educada a
dar.
– Ela olha para mim como se eu fosse o diabo em figura de gente. A
menina Doyle acha que eu seja o diabo?
– Não – digo em voz rouca. – Claro que não.
– Ainda bem que decidimos ser amigas. Durma bem, menina Doyle.
Basta de ler em voz alta por hoje.

Sinto o corpo quente e pesado. Será do leite? Da hortelã-pimenta? Será que


a professora McCleethy me envenenou? Não sejas tola, Gemma.
Abro as duas janelas, deixo entrar o ar gelado. Tenho de ficar acordada.
Dou grandes passadas pelo quarto fora. Dobro-me pela cintura e toco nas
pontas dos pés. Por fim, sento-me na cama a cantar melodias de Natal só
para mim. Não serve de nada. A canção emudece e eu caio num sono
crepuscular.
A meia-lua brilha-me na mão. A mão passa a ser uma flor de lótus num
carreiro. Trepadeiras verdes e grossas irrompem de frestas na pedra, os
botões pequeninos a desabrocharem em rosas magníficas. Vejo a minha cara
a olhar para mim, refletida num muro de água. Meto a mão nesse muro até
dar comigo a cair lá dentro.
Caio mais e sou engolida pelo manto negro de um sono sem sonhos.
Não sei que horas são quando acordo assustada com qualquer coisa.
Ponho-me à escuta, mas não ouço nada. O leite deixou-me uma película
fina a cobrir a língua. Parece que me cresce dentro da boca. Por mais que eu
não queira, tenho mesmo de lá ir abaixo beber água.
Com um pesado suspiro, afasto a manta e acendo uma vela, levo a chama
protegida pela mão em concha pelo corredor escuro fora, parece-me ter
quilómetros. Sou a única alminha neste andar. Só de pensar nisso, os meus
passos ganham celeridade.
Quando estou perto da escada, a chama da vela treme e morre. Não!
Tenho de voltar para a acender. Sinto uma tontura súbita. As pernas
bambas, consigo agarrar-me ao corrimão para me equilibrar. Às escuras,
ouve-se um barulho ligeiro, a arranhar, como giz a riscar grosso na ardósia.
Já não estou sozinha. Está aqui alguém comigo. Mal consigo sussurrar.
– Brigid? É você?
O som de arranhar aproxima-se. Na minha mão, a vela ganha vida, enche
o corredor com uma esfera de luz apertada. Lá estão elas, iridescentes no
contorno. Não são reais, mas são mais sólidas do que a visão que tive na
neve. Três raparigas, todas de branco. As biqueiras dos botins raspam o
chão de madeira com o ruído mais horroroso, e elas aproximam-se,
flutuantes. Mexem as bocas para falar. Não as consigo ouvir. Têm olhos
tristes, e olheiras grandes e fundas.
Não grites, Gemma. É apenas uma visão. Não te pode fazer mal, pois
não?
Estão tão perto que tenho de virar a cabeça e fechar os olhos. Estou quase
a vomitar de susto e com o fedor. O que será? O mar e algo mais.
Decrepitude.
Lá está o som outra vez, como milhares de asas de insetos a arranharem.
Falam tão baixinho que demoro um momento a discernir a mensagem mas,
quando consigo, fico enregelada até aos ossos.
Ajuda-nos.
Não quero abrir os olhos, mas abro. Elas estão tão perto, estas coisas
brilhantes e tremeluzentes. Uma estende a mão. Por favor. Por favor, não
me toques. Vou gritar. Vou gritar. Vou...
A mão dela é como gelo no meu ombro, mas não há tempo para gritar
porque o meu corpo fica rígido quando sou puxada para baixo. As imagens
inundam-me a mente. Três raparigas a saltitar em penhascos rochosos. O
mar bate para cima e por cima, deixa fios de espuma nos pés delas. As
nuvens escurecem. Tempestade. Vem aí tempestade. Espera, há uma quarta
rapariga. Ficou para trás. Alguém a chama. Aparece uma mulher. Traz um
manto verde.
As vozes xaroposas das raparigas entram-me no ouvido.
– Olha...
A mulher pega na mão da quarta rapariga. Nisto, chega o terror vindo do
mar. O céu a toldar-se. As raparigas a gritar.
Tornámos ao corredor incandescente. As raparigas desvanecem-se,
recuam para a escuridão.
– Ela mente... – sussurram as raparigas. – Não confies nela... – E depois
vão-se. A dor desaparece. Estou de joelhos no chão frio, duro, sozinha. A
vela bufa de repente, cospe uma centelha fugidia.
Não é preciso mais nada. Levanto-me e corro a toda a brida, como um
rato assustado, e só paro de correr quando me vejo de volta ao quarto com a
porta bem fechada – embora não saiba dizer o que é que estou a deixar para
trás. Acendo os candeeiros todos do quarto. Com o quarto bem iluminado,
sinto-me melhor. Mas que espécie de visão foi aquela? Porque é que elas
ficaram tão mais fortes? Será porque a magia está à solta? Ficará assim
mais ousada? Eu senti a mão dela no meu ombro...
Deixa-te disso, Gemma. Deixa de meteres medo a ti mesma.
Quem são as raparigas e o que é que querem de mim? O que queriam
dizer com «Não confies nela?» Não ajuda nada que a escola esteja tão
vazia, nem que amanhã eu esteja em Londres com a minha família, sabe-se
lá que horrores genuínos me aguardam lá.
Não tenho respostas para coisíssima alguma. Tenho medo de dormir.
Quando as primeiras luzes metem o nariz nos vidros da minha janela, já
estou vestida, tenho a mala feita, e estou pronta para ir para Londres, nem
que tenha eu própria de levar os cavalos até lá.
TREZE

Tom está atrasado, como de costume.


Cheguei à estação de Victoria no comboio do meio-dia vindo da Spence,
como se esperava, mas não vejo o meu irmão em parte alguma. Talvez
tenha tido um acidente horrível e esteja deitado na estrada, a pedir com o
seu último suspiro que um dos transeuntes chorosos corra à estação para
salvar a sua mui inocente e virtuosa irmã. É a única explicação caridosa que
consigo arranjar. O mais provável é que ainda esteja no clube, a rir à
gargalhada e a jogar às cartas com os amigos, e se tenha esquecido de mim.
– Minha querida, tem a certeza de que o seu irmão a vem buscar? – É
Beatrice, uma das irmãs solteironas de setenta anos de idade que se sentou a
meu lado no comboio, a falar incessantemente de reumatismo e das alegrias
das rosas de Santa Teresinha até eu pensar que ia enlouquecer. Ao invés do
meu irmão, elas estão raladas com o meu bem-estar.
– Oh, sim. Tenho a certeza, obrigada. Não se aflijam por causa de mim.
– Oh, meu Deus, Millicent, não creio que a possamos deixar aqui sozinha,
pois não?
– Não, tem toda a razão, Beatrice. Ela tem de vir connosco. Depois
informamos a família.
Está decidido. Vou matar o Tom.
– Lá está ele! – digo, a olhar para longe, onde o meu irmão não está.
– Onde? – perguntam as irmãs.
– Estou a vê-lo mesmo além. Devo ter estado a procurar na direção
errada. Gostei muito de conhecer as senhoras, espero que nos voltemos a
encontrar – digo, estendo a mão para as despachar. Saio dali a marchar
decidida e escondo-me na bilheteira. Quando a costa fica livre, sento-me
num banco ao fundo da gare.
Onde poderá ele estar?
Entra outro comboio na estação e despeja passageiros. São acolhidos por
parentes sorridentes. Trocam-se caixinhas; oferecem-se flores. Tom está
meia hora atrasado. O meu pai há de saber disto.
Um homem de fato preto bem cortado senta-se a meu lado. O que pensará
de mim, aqui sentada sozinha? Tem uma cicatriz assanhada do lado
esquerdo da cara que vai da parte de cima da orelha ao canto da boca. O
fato é de bom alfaiate. Reparo no alfinete de lapela e fico com a boca seca,
pois sei o que é. É a espada e a caveira dos Rakshana. Será coincidência que
se tenha vindo sentar a meu lado? Ou terá finalidade? Ele faz-me um sorriso
breve. Em silêncio, levanto-me e afasto-me. Quando chego a metade da
gare, viro-me para trás. Ele também se levantou do banco. De jornal
debaixo do braço, vem atrás de mim. Onde está o Tom? Paro numa florista,
finjo observar flores e botões. O homem também finge. Escolhe um cravo
encarnado para o botão da lapela, leva a mão ao chapéu em agradecimento,
e larga uma moeda na mão da vendedora sem dizer palavra.
O medo faz-me as pernas bambas como as de um gatinho recém-nascido.
E se ele tentar levar-me? E se aconteceu algo de mal a Kartik? E se Pippa
tiver razão e não se puder confiar nestes homens de todo?
Sinto o homem de fato preto acercar-se. Se eu quisesse gritar, quem é que
me ouviria acima dos silvos e rosnidos dos comboios? Quem me ajudaria?
Reparo num jovem que está à espera, sozinho.
– Aqui estás tu – digo, e avanço rapidamente para ele. Ele olha em redor,
a ver a quem me dirijo eu. – Estás atrasado, sabes?
– Estou... atrasado? Lamento imenso, mas não nos...
Chego-me a ele e sussurro com urgência.
– Ajude-me, por favor. Aquele homem anda atrás de mim.
Ele faz um ar confuso.
– Qual homem?
– Aquele. – Olho para trás, mas ele desapareceu. Não está ninguém. – Era
um homem de fato preto. Tinha uma cicatriz horrenda na face esquerda.
Sentou-se a meu lado no banco e depois seguiu-me até à florista. – Tenho
noção de que devo parecer ligeiramente tolinha.
– Talvez quisesse uma flor para a lapela – diz o jovem.
– Mas seguiu-me até aqui.
– Estamos perto da saída. – Ele aponta para as portas que abrem para a
rua.
– Ah, pois estamos – digo. Sou tão imbecil. – Lamento imenso. Parece
que ando a assustar-me com nada. O meu irmão devia ter vindo buscar-me,
receio que se tenha atrasado.
– Então eu fico e faço-lhe companhia até ele chegar.
– Oh, não, eu não poderia...
– A menina até me pode ajudar, aliás – diz ele.
– Que espécie de ajuda? – pergunto, cautelosa. Da algibeira do casaco, ele
tira uma bonita caixa de veludo do tamanho de uma latinha de bolachas.
– Preciso da opinião de uma senhora quanto a uma prenda. Não se
importa de me ajudar?
– Com certeza – digo, aliviada.
Ele põe a caixa na palma da mão aberta e levanta a tampa. Não há nada lá
dentro.
– Mas está vazia – digo.
– Assim parece. Observe. – Ele puxa o que parece ser o fundo da caixa e
revela um compartimento secreto. Dentro desse espaço oculto, está um
camafeu belíssimo.
– É lindo – digo eu. – E a caixinha é muito engenhosa.
– Então a menina aprova?
– De certeza que ela gostará muito – digo, e fico imediatamente corada.
– É para a minha mãe – explica o jovem. – Vim buscá-la ao comboio.
– Oh! – digo.
Ficamos assim. Não sei o que dizer ou fazer. Devo continuar aqui de pé
como uma idiota, ou salvar o que me resta de orgulho, desejar-lhe um bom
dia, e encontrar sítio para me esconder até o meu irmão me vir buscar?
Abro a boca para me despedir mesmo quando ele estende a mão.
– Chamo-me Simon Middleton. Oh, lamento imenso. O que é que ia
dizer?
– Oh, eu, eu, ia só... Muito gosto em conhecê-lo.
Damos um passou-bem.
– Muito gosto em conhecê-la também, menina...?
– Oh, Deus. Sim, chamo-me...
– Gemma! – O meu nome soa bem alto. Tom chegou finalmente. Corre
para nós, de chapéu na mão, aquela madeixa irritante a cair-lhe nos olhos. –
Achei que tinhas dito estação de Paddington.
– Não, Thomas – digo, e obrigo-me a sorrir para ser bem-educada. – Eu
disse bem que era Victoria.
– Estás enganada. Disseste Paddington!
– Senhor Middleton, posso apresentar-lhe o meu irmão, Thomas Doyle?
O senhor Middleton teve a amabilidade de esperar comigo, Thomas –
afirmo perentória.
Tom empalidece. Se tem vergonha, é bem feito.
Simon faz um sorriso aberto, que lhe põe os olhos a dançar.
– Gosto em vê-lo, Doyle, meu velho.
– Mestre Middleton – diz Thomas, estendendo a mão. – Como estão o
visconde e a lady Denby?
– Os meus pais encontram-se bem, obrigado.
Simon Middleton é filho de um visconde? Como é que alguém tão
simpático e encantador e brasonado como o senhor Middleton se pode dar
com o desagradável do meu irmão?
– Conhecem-se? – pergunto.
– Andámos em Eton – responde Simon. Isso faz com que Simon, o
honorável Simon Middleton, tenha a idade do meu irmão, dezanove anos.
Agora que me passou o choque, vejo que Simon também é bem-parecido,
tem cabelo castanho e olhos azuis. – Não fazia ideia de que tinha uma irmã
encantadora.
– Eu também não – diz Tom. Enfio o meu braço no dele, mas só para
poder dar-lhe um beliscão sem Simon ver. Quando Tom acusa o beliscão,
sinto-me melhor e deixo-o em paz. – Espero que ela não o tenha
incomodado muito.
– De todo. Ela estava com a impressão de que alguém a seguia. Um
homem de fato preto com... Como é que era? Uma cicatriz horrível na face
esquerda.
Agora sinto-me muito estouvada por causa disso. O pescoço pálido de
Tom fica todo corado.
– Ah, sim. A famosa imaginação dos Doyle. O mais certo é que ela venha
a ser escritora de romances de mistério, a nossa Gemma.
– Lamento tê-lo incomodado – digo eu.
– De todo. Foi a parte mais entusiasmante do meu dia – diz ele, com um
sorriso tão arrebatador que até acredito. – E a menina foi uma grande ajuda
com isto – acrescenta e mostra a caixinha de veludo. – A nossa carruagem
está mesmo à porta. Se não se importarem de esperar, posso dar-lhes
boleia.
– Temos a nossa carruagem à espera – diz Tom com presunção.
– Com certeza.
– Foi uma oferta muito generosa – agradeço. – Bom dia para si.
Simon Middleton faz a coisa a coisa mais extraordinária e audaciosa.
Pega-me na mão e dá um beijo cortês.
– Espero sinceramente que nos encontremos outra vez durante as festas.
Tem de ir lá jantar a casa. Vou tratar disso. Mestre Doyle, pode seguir. –
Simon leva a mão ao chapéu para se despedir de Tom e este retribui, como
se os dois fossem velhos amigos a brincarem ao faz de conta.
Simon Middleton. Estou ansiosa por contar à Ann e à Felicity.
À porta da estação, as ruas fervem de barulho, cavalos, autocarros e gente
que veio passar o dia a Londres, para ir às compras ou desfrutar do
entretenimento. É uma panorâmica louca e alegre, e agrada-me fazer parte
do coração da cidade. No momento em que o ar brumoso e os sinos me
recebem a repicar, sinto-me sofisticada e misteriosa. Eu poderia ser
qualquer outra pessoa aqui – duquesa ou bruxa ou caçadora de fortunas
ardilosa. Quem poderia saber? Afinal, acabei de ter um encontro
maravilhoso com o filho de um visconde. Sinto-me deveras otimista. Sim,
vai ser uma visita agradável com bailes e prendas e talvez até um jantar em
casa do bonito filho de um visconde. O meu pai adora o Natal. O espírito
natalício há de alegrá-lo e já não precisará tanto de láudano. Juntas, eu, a
Ann e a Felicity encontraremos o Templo e vincularemos a magia e tudo
acabará bem.
Um homem dá-me um encontrão e nem sequer me pede desculpa, mas
não faz mal. Eu perdoo-lhe, homem atarefado na cidade com cotovelos
bicudos. Olá e adeus para si! Pois eu, Gemma Doyle, vou passar um Natal
esplêndido na cidade de Londres. Vai correr tudo bem. Que Deus dê
descanso aos alegres gentis-homens. E gentis mulheres.
Tom está a tentar desesperadamente chamar uma charrete entre a
multidão.
– Mas onde está a carruagem? – pergunto.
– Não há carruagem nenhuma.
– Mas tu disseste...
– Sim, bem, não ia deixar o Middleton saber e passar por essa
humilhação. Temos carruagem em casa, sim senhor, mas não temos
condutor. O velho Potts foi-se embora de repente há dois dias. Eu queria pôr
anúncio mas o pai diz que encontrou alguém. Oh, se faz favor...
Com alguma esperteza, conseguimos chamar uma charrete e partir para a
casa de Londres que eu nunca vi.
– Não posso crer que tenhas encontrado o Simon Middleton – diz Tom
quando a charrete arranca da estação. – E agora temos de jantar com a
família dele.
Parece que não vale a pena observar que o honorável Simon Middleton
me convidou a mim para jantar, não ao Tom.
– Então ele é mesmo filho de um visconde?
– Deveras. O pai é membro da Casa dos Lordes e um mecenas muito
influente nas ciências. Com a ajuda dele, eu poderia ir longe. É uma pena
que não tenham filhas casadoiras.
– Pena? Estava mesmo a pensar na benesse que isso é.
– Então a minha própria irmã não me fomenta? Por falar nisso, não
ficaste ele me encontrar uma belíssima noiva com uma pequena fortuna?
Tiveste êxito nessa frente?
– Sim, já as avisei a todas.
– E Feliz Natal para ti também! – diz Tom, a rir-se. – Consta-me que
vamos ao baile de Natal da tua amiga, a menina Worthington. Talvez eu
encontre uma mulher adequada, ou seja, abastada, entre as senhoras que lá
forem.
E talvez todas fujam a bradar pelo convento.
– Como está o pai? – pergunto finalmente. A pergunta até abre um buraco
dentro de mim. Tom suspira.
– Estamos a melhorar. Tranquei o frasco do láudano e dei-lhe um que
diluí com água. Está a tomar menos. Receio que isso o tenha tornado
bastante desagradável por vezes, assolado por dores de cabeça horríveis.
Mas tenho a certeza de que está a dar certo. – Ele olha para mim. – Não lhe
podes dar mais, compreendes? Ele é esperto e há de pedir-te.
– Ele não faria tal coisa – refilo. – A mim, não. Eu sei.
– Sim, pois...
Tom não termina o que ia dizer. Continuamos em silêncio, o barulho da
rua como única conversa. As minhas ralações não tardam a esfumar-se
diante da emoção que é estar na cidade. A Oxford Street é um local
fascinante. Tantos edifícios grandiosos lado a lado. Tão altos e orgulhosos,
e depois, no andar de baixo, os toldos estendem-se sobre os passeios como
senhoras a levantarem timidamente as bainhas das saias para revelarem
tentações. Olha uma papelaria, um peleiro, um estúdio de fotografia, um
teatro, onde vários espetadores se juntaram na bilheteira para ver o
programa do dia.
– Maldição!
– O que foi? – pergunto.
– Devia ter ido buscar um bolo para a avó, e acabámos de passar pela
loja. – Tom chama o condutor e ele para a charrete na berma. – Não demoro
nada – diz Tom, embora eu desconfie que ele diz isto, não tanto para me
deixar descansada, mas mais para convencer o condutor a não cobrar uma
quantia calada por esta paragem imprevista.
Pela parte que me toca, fico contente assim sentada a ver o mundo em
toda a sua glória. Um rapazinho abre caminho pelos transeuntes, com um
ganso enorme precariamente em cima do ombro. Um coro de trompas de
harmonia e oboés e uma fiada feliz de cantores vão entrando em cada
estabelecimento, na esperança de receber uma mão-cheia de nozes ou uma
bebida. Continuam a andar, as cantigas ficam no ar atrás deles. Na montra
da loja onde Tom entrou, há toda a espécie de confeitaria deliciosa: passas
de uva gordas e limões confeitados; montanhas de peras, maçãs e laranjas;
pilhas coloridas de especiarias. Até fico com água na boca. Uma mulher
alta de chapéu bonito e fato de tweed aproxima-se. Não me é estranha mas,
só quando passa, é que a reconheço.
– Professora Moore! – grito da janela, esqueço-me completamente do
decoro.
A Professora Moore para, decerto a pensar quem é que a chama no meio
da rua com tal rudeza. Quando me vê, acerca-se da charrete.
– Ora, menina Doyle! Está com bom aspeto. Feliz Natal para si.
– Feliz Natal.
– Vai ficar muito tempo em Londres? – pergunta ela.
– Até depois do ano novo – respondo.
– Mas que coincidência feliz! Tem de ir visitar-me.
– Gostaria muito – digo. Ela parece radiante, e dá-me um cartão-de-
visita.
– Estou a residir em Baker Street. Estarei em casa amanhã o dia inteiro.
Diga que vem, se faz favor.
– Oh, sim, claro que sim! Seria ótimo. Oh... – calo-me.
– O que se passa?
– Receio ter um compromisso amanhã, com a menina Worthington e a
menina Bradshaw.
– Compreendo. – Não é preciso ela dizer mais nada. Ambas sabemos que
somos nós, as raparigas responsáveis pelo despedimento dela.
– Temos todas imensa pena do que aconteceu, professora Moore.
– O que lá vai, lá vai. Só podemos andar para a frente.
– Sim. Tem razão, claro.
– Embora, dada a hipótese, eu gostasse de torturar a menina Worthington
– diz a professora Moore com um brilho nos olhos. – Ela é mais descarada
do que mandam os limites do razoável.
– É bastante atrevida – digo eu, a sorrir. Oh, que saudades da professora
Moore!
– E a menina Cross? Não se vai encontrar com a minha acusadora durante
as férias? – O sorriso da professora Moore esmorece quando vê a minha
cara chocada. – Oh, transtornei-a. Lamento. Apesar dos meus sentimentos
para com a menina Cross, sei que são amigas. Foi indelicado da minha
parte.
– Não, não é isso. É que... A Pippa morreu.
A professora Moore leva a mão à boca.
– Morreu? Quando?
– Há já dois meses.
– Oh, menina Doyle, perdoe – diz a professora Moore, e põe as duas
mãos na minha. – Não fazia ideia. Estive fora estes dois meses. Regressei
somente na passada semana.
– Foi a epilepsia – minto. – A professora lembra-se das dificuldades dela.
– Há algo em mim que deseja contar a verdade daquela noite à professora
Moore, mas ainda não.
– Sim, estou recordada – diz a professora Moore. – Os meus pêsames.
Aqui estamos na época do perdão e eu não mostrei mais do que um coração
empedernido. Queira convidar a menina Worthington e a menina Bradshaw.
São bem-vindas.
– É de grande generosidade, professora Moore. Decerto todas
gostaríamos de saber das suas viagens – digo eu.
– Então vou contar-lhes. Marcamos para amanhã às três da tarde? Vou
preparar um chá bem forte e uma delícia turca.
Maldição. Há a dificuldade de convencer a minha avó a deixar-me fazer
visitas sem ela atrás.
– Gostaria muito, se a minha avó mo permitir.
– Compreendo – diz ela, e afasta-se da charrete. Um pedinte com uma
perna só coxeia até perto dela.
– Fachavor, menina? Moedinha para o aleijado? – pede ele, o lábio a
tremer.
– Disparate – diz ela. – Dobrou a perna e escondeu-a nas calças, não foi?
Nada de mentiras.
– Nã, senhora – diz ele, mas agora já vejo o contorno da outra perna com
clareza.
– Rua daqui antes que eu chame o guarda.
Rápido como um raio, a perna desce e ele desata a fugir sobre dois pés
muito capazes. Eu rio-me.
– Oh, professora Moore, estou tão contente de a ver.
– E eu a si, menina Doyle. Estou em casa a maior parte das tardes, das
três às cinco horas. A menina tem um convite em aberto para quando
entender.
A professora Moore vai-se embora e funde-se na multidão de Oxford
Street. Foi a primeira a contar-nos da Ordem, o que será que nos pode
contar mais? Provavelmente, manda-nos bugiar se lhe pedirmos, e com
razão. Não obstante, deve haver algo a que ela possa trazer um pouco de
luz, se tivermos cuidado com as perguntas. Mesmo que não, continua a ser
uma boa maneira de sair da casa da minha avó. A professora Moore bem
pode ser a minha única hipótese de sanidade durante estas férias.
O Tom está de volta da loja. Larga a caixa, bem embrulhada em papel
pardo e cordel, no meu colo.
– Um bolo de frutas horroroso. Quem era aquela mulher?
– Oh – digo eu – ninguém. Uma professora. – Quando a charrete abana e
ganha vida, acrescento: – Uma amiga.
CATORZE

A avó arrendou uma casa elegante no lugar da moda, Belgravia Square,


perto de Hyde Park. Ela costuma ficar em Sheep’s Meadow, a casa de
campo, e só vem a Londres para a temporada, de maio até meados de
agosto, e depois pelo Natal. Significa isto que ela só vem quando quer ver e
ser vista na sociedade londrina.
É estranhíssimo entrar no vestíbulo da frente que me é desconhecido e ver
o cabide dos casacos e a mesinha com espelho a acompanhar, o papel de
parede cor de vinho, os cortinados de veludo com borlas, como se eu
devesse encontrar conforto naquelas coisas estranhas, como se este fosse
um sítio que eu devesse conhecer e amar quando nunca sequer cá pus os
pés. Embora esteja cheia de poltronas, um piano, uma árvore de Natal
enfeitada com pipocas e fitas, e embora cada sala esteja aquecida pelas
chamas da lareira, não me sinto em minha casa. Para mim, a minha casa é
na Índia. Penso na nossa governanta, Sarita, e vejo-lhe o rosto enrugado e o
sorriso com dentes intervalados. Vejo a nossa casa com o alpendre aberto e
uma tigela de tâmaras em cima de uma mesa com toalha de seda encarnada.
Mais ainda, penso na presença da minha mãe e na gargalhada retumbante
do meu pai, outrora, quando ele se ria.
Como a avó ainda está fora numa visita, a senhora Jones, a governanta,
vem receber-me. Pergunta se a viagem foi agradável, eu respondo que sim,
como se espera. Não temos mais nada a dizer uma à outra, e ela leva-me
dois lances de escadas até ao meu quarto. É um quarto nas traseiras que dá
para as garagens e cavalariças, a pequena viela por trás de nós onde moram
os cocheiros e suas famílias. É um lugarzinho esquálido, e fico a pensar em
como será trabalhar com os cavalos, sempre a olhar para as luzes das casas
brancas, grandiosas e altaneiras, onde temos tudo o que nos aprouver.
Depois de mudar de roupa para jantar, torno a descer a escada. Paro no
patamar do segundo piso. O pai e o Tom estão a discutir à porta fechada da
biblioteca, e aproximo-me mais para ouvir.
– Mas, pai – diz Tom. – Parece-lhe acertado contratar um estrangeiro para
ser nosso cocheiro? Não faltam bons ingleses para essa função, parece-me.
Espreito pela frincha de luz na porta. O pai e Tom estão de frente um para
o outro, como duas molas retesadas. Há algo do meu antigo pai que ganha
vida.
– Não nos faltaram bons criados indianos em Bombaim, se bem te
lembras, Thomas.
– Sim, pai, mas isso era na Índia. Agora estamos cá, entre os nossos
iguais, que empregam todos cocheiros ingleses.
– Estás a duvidar da minha decisão, Thomas?
– Não senhor.
– Bom rapaz.
Há um momento de silêncio confrangedor e depois Tom diz com cautela:
– Mas o pai tem de admitir que os indianos têm hábitos que já lhe
trouxeram sarilhos a si.
– Basta, Thomas Henry! – ralha o pai. – Não admito mais discussões
deste assunto.
Tom sai de rompante pela porta e quase me deita abaixo.
– Ai, credo – digo eu. Como ele nada diz, acrescento: – Podias pedir
desculpa.
– E tu podias não escutar às portas – refila ele. Vou atrás dele para a
escada.
– Podias não dizer ao pai como é que há de tratar das suas coisas –
sussurro, tensa.
– Isso é bom de dizeres, tu – rosna ele. – Não foste tu quem passou quase
quinze dias a desmamá-lo do vício para ver que pode muito bem ser levado
à certa outra vez por qualquer cocheiro.
Tom desce a escada a passo irritado. Esforço-me por acompanhar.
– Não sabes nada disso. Porque é que tens de o apoquentar assim?
Tom gira nos calcanhares.
– Eu é que o apoquento a ele? Não faço mais nada além de lhe tentar
agradar, mas parece que não faço nada como deve ser.
– Não é verdade – digo eu. Ele faz uma cara como se eu lhe tivesse
batido.
– Como é que havias de saber, Gemma? Ele a ti adora-te.
– Tom... – começo a dizer. Aparece um mordomo alto.
– O jantar está servido, senhor Thomas, menina Gemma.
– Sim, obrigado, David – diz Thomas em voz tensa e, sem mais, gira nos
calcanhares e vai-se embora.

O jantar é um acontecimento lúgubre. Toda a gente se esforça tanto por se


mostrar alegre e sorridente, é como se posássemos para um anúncio.
Estamos todos a tentar elidir o facto de que não moramos aqui, juntos, e que
este é o primeiro Natal sem a presença da mãe. Ninguém quer ser aquele a
trazer a verdade para a mesa e a estragar o serão, pelo que há muita
conversa forçada de circunstância, sobre planos para as festas e andanças na
escola e mexericos na cidade.
– Como vão as coisas na Spence, Gemma? – pergunta o pai.
Ora, vejamos, a minha amiga Pippa morreu, e a culpa foi minha, de
facto, e estou a tentar desesperadamente encontrar o Templo, a fonte da
magia dos reinos, antes que Circe – a mulher malévola que matou a minha
mãe, e que também é membro da Ordem, mas o pai não quer saber disso –
o descubra e faça coisas diabólicas, e depois tenho de vincular a magia de
algum modo, embora ainda não faça a mais pálida ideia como. É assim que
vão as coisas.
– Muito bem, obrigada.
– Ah, esplêndido, esplêndido.
– O Thomas contou à menina que já é assistente clínico do Real Hospital
de Bethlem? – pergunta a avó, e dá uma generosa garfada nas ervilhas que
tem no prato.
– Não, não creio que tenha contado.
Tom faz-me uma cara maliciosa.
– Já sou assistente clínico do Real Hospital de Bethlem – papagueia ele
armado em esperto.
– Com franqueza, Thomas – a avó repreende-o, mas sem entusiasmo.
– Referem-se a Bedlam, o manicómio? – pergunto. A faca de Tom
arranha no prato.
– Não lhe chamamos isso.
– Coma as ervilhas, Gemma – manda a avó. – Fomos convidados para um
baile dado por Lady George Worthington, a esposa do almirante. É o
convite mais cobiçado da época natalícia. Que espécie de rapariga é a
menina Worthington?
Ah, excelente pergunta. Vejamos... Ela dá beijos a ciganos no bosque e,
uma vez, fechou-me na capela depois de me pedir que roubasse o vinho da
comunhão. Vi-a matar ao luar uma corça e subir da ravina toda nua e
salpicada de sangue. Ela também é, estranhamente, uma das minhas
melhores amigas. Não me peçam que explique como.
– Intrépida – respondo.
– Parece-me boa ideia amanhã ir visitar a senhora Rogers, minha amiga.
Ela vai ter um programa de música da parte da tarde.
Respiro fundo.
– Fui convidada para fazer uma visita amanhã.
O garfo da avó para a meio caminho da boca.
– A quem? Porque é que não deixaram um cartão para mim?
Absolutamente que não. Está fora de questão.
Está a correr bem. Talvez a seguir eu me possa enforcar com a toalha de
mesa.
– É a professora Moore, que lecionou belas artes na Spence. – Não há
necessidade de mencionar o despedimento dela da dita instituição. – Ela é
imensamente popular e querida e, de todas as alunas, convidou apenas a
menina Bradshaw, a menina Worthington e a mim para lá irmos a casa. É
uma grande honra.
– A menina Bradshaw... Não a conhecemos na Spence? É aluna de bolsa
de estudo, não é? – pergunta a avó, com má cara. – Órfã?
– Não lhe contei, avó? – A minha nova tendência para a mentira está a
revelar-se um talento.
– Contou o quê?
– Descobriu-se que a menina Bradshaw tem um tio-avô que é duque e que
reside em Kent, e que ela afinal descende da realeza russa. É prima afastada
da czarina.
– Não me digas! – exclama Tom. – Mas que sorte.
– Sim – diz a avó. – É como aquelas histórias que contam nos pasquins.
Exato. E não pense mais nisso senão ainda encontra parecenças
alarmantes.
– Talvez eu tenha de olhar melhor para a menina Bradshaw agora que ela
está de posse de uma fortuna – diz Tom a brincar, embora eu desconfie de
que é muito a sério.
– Ela conhece bem caçadores de fortunas – aviso o Tom.
– Parece-te que ela me possa achar assim desagradável? – funga ele.
– Dado que tem olhos e ouvidos, sim – retruco.
– Ah! Foi reduzido à sua insignificância, meu rapaz – diz o pai, a rir-se.
– John, não encoraje a Gemma, não fica bem ser assim mazinha – ralha a
avó. – Não conheço essa professora Moore. Não sei se posso permitir essa
visita.
– Ela é excelente a lecionar desenho e pintura – insisto.
– E deve cobrar em conformidade, não duvido. Essa laia cobra sempre –
diz a avó, e dá uma dentada nas batatas. – O seu desenho não há de perder-
se durante estas poucas semanas. É melhor passar o seu tempo em casa ou a
acompanhar-me em visitas para poder familiarizar-se melhor com quem
importa conhecer.
Até me apetece dar-lhe pontapés só por causa deste comentário. A
professora Moore vale dez «quem importa conhecer». Decido pigarrear.
– Claro que vamos criar enfeites para animar os hospitais nesta altura do
ano. A professora Moore está sempre a dizer que os atos caritativos nunca
são de mais.
– Isso é deveras admirável – diz a avó, a cortar o lombo de porco aos
bocadinhos. – Talvez vá consigo ver essa professora Moore com os meus
próprios olhos.
– Não! – estou quase a gritar. – Quer dizer... – O que é que eu quero
dizer? – A professora Moore ficaria muitíssimo embaraçada se as suas boas
obras fossem do domínio público. Ela aconselha a discrição a todos os
títulos. Como diz na Bíblia... – Calo-me. Como nunca li grande coisa da
Bíblia, não faço a mais pálida ideia do que lá diz. – «Que os teus enfeites
sejam somente para os ouvidos de Deus… dedos. Os dedos de Deus.»
Despacho-me a beber um gole de chá. A avó está com um ar perplexo.
– A Bíblia diz isso? Onde?
Demasiado chá quente enche-me a boca. Engasgo-me mas engulo.
– Salmos – respondo, a tossicar.
O pai olha para mim, curioso. Sabe que estou a mentir.
– Salmos, diz a menina? Qual deles? – pergunta a avó.
O sorriso enviesado do pai parece dizer, Ah, agora foi apanhada, minha
menina.
O chá vai queimando até chegar ao estômago num castigo instantâneo.
– O Salmo do Natal.
A avó retoma a mastigação ruidosa.
– Creio ser melhor irmos visitar a senhora Rogers.
– Mãe – diz o meu pai –, a nossa Gemma é uma jovem senhora com
interesses próprios.
– Interesses próprios? Disparate! Ainda nem saiu da escola – rabuja a
avó.
– Um pouco de liberdade só lhe fará bem – diz o pai.
– A liberdade pode levar à desventura – diz a minha avó. Não disse o
nome da minha mãe em voz alta, mas apunhalou o meu pai com essa
ameaça.
– Já contei que a Gemma teve a sorte extraordinária de conhecer o Simon
Middleton hoje na estação de comboios? – Assim que as palavras lhe saem
da boca, Tom apercebe-se de que cometeu um erro.
– E como é que isso aconteceu? – indaga o meu pai. Tom empalidece.
– Bem, eu não consegui arranjar uma charrete e, compreende, havia o
mais horrendo congestionamento de transportes na...
– Meu rapaz – ralha o meu pai – está a dizer-me que a minha filha esteve
sozinha em Victoria?
– Apenas por momentos – responde Tom.
O meu pai dá um murro na mesa, faz tremer os pratos e as mãos da avó.
– O menino hoje desapontou-me. – E com isto, sai da sala.
– Sou sempre um desapontamento – diz Tom.
– Espero bem que o menino saiba o que está a fazer, Thomas – sussurra a
avó. – O mau humor dele piora a cada dia que passa.
– Pelo menos estou disposto a fazer alguma coisa – diz Tom
amargamente. A senhora Jones aparece.
– Está tudo bem, minha senhora?
– Sim, bem – responde a avó. – O senhor Doyle comerá o bolo mais tarde
– diz ela, como se não estivesse nada mal no mundo.
Depois do nosso jantar completamente desagradável, eu e o meu pai
sentamo-nos à mesa de jogos para uma partida de xadrez. As mãos tremem-
lhe, mas ainda é surpreendentemente bom. Em apenas seis jogadas, lançou-
me um xeque-mate bem sólido.
– Foi muitíssimo inteligente da sua parte. Como é que fez isso?
Ele toca na têmpora com um dedo.
– Tem que se compreender a oponente, como é que ela pensa.
– Como é que eu penso?
– A menina vê o que parece ser a jogada óbvia, depreende que é a única
jogada possível, e age sem pensar, sem ver se há outro caminho. Isso deixa-
a vulnerável.
– Mas era a única jogada possível – protesto.
O pai espeta um dedo para me calar, e dispõe as peças tal como estavam
no tabuleiro duas jogadas antes.
– Agora, observe.
Vejo o mesmo dilema.
– A sua rainha está aberta.
– Apressada, apressada... Pense algumas jogadas mais à frente.
Só vejo a rainha.
– Lamento, pai, mas não vejo.
Ele mostra-me o avanço, o bispo de atalaia, a atrair-me a um ponto
exíguo de onde não há fuga possível.
– Está tudo no raciocínio – diz. – Como diria a sua mãe.
A mãe. Ele disse em voz alta, a palavra que não se pode dizer.
– A menina parece-se tanto com ela. – O pai esconde a cara nas mãos e
chora. – Sinto tanto a falta dela.
Não sei o que dizer. Nunca vi o meu pai a chorar.
– Eu também sinto.
Ele pega num lenço e assoa o nariz.
– Lamento, pequenina. – O rosto dele anima-se. – Tenho uma prenda de
Natal antecipada para si. Parece-lhe que a vou estragar com mimos se lha
der já?
– Sim, imenso! – digo, a tentar desanuviar o ambiente. – Onde está?
O meu pai vai à vitrina das coleções e abana as portas.
– Ah. Trancado. Creio que as chaves estão no quarto da sua avó. Não se
importa de as ir buscar, querida?
Corro para o quarto da avó, encontro as chaves na mesa-de-cabeceira e
volto com elas. As mãos do pai tremem, mal consegue abrir a vitrina.
– São joias? – pergunto.
– Isso seria revelador, parece-me. – Com esforço, ele abre as portas de
vidro e afasta coisas, à procura de algo. – Onde é que a deixei? Espere um
pouco.
Ele abre a gaveta destrancada mais abaixo e tira um embrulho de papel
encarnado com um ramo de azevinho preso pela fita.
– Esteve sempre dentro da gaveta.
Levo-o para o sofá e rasgo o papel. É um exemplar de Sonetos
Portugueses, de Elizabeth Barrett Browning.
– Oh – digo eu, na esperança de não soar desapontada como realmente
me sinto. – Um livro.
– Era da sua mãe. Eram os preferidos dela. Gostava de mos ler ao serão. –
O meu pai emudece, não consegue continuar.
– Pai?
Ele abraça-me com força.
– Ainda bem que está em casa, Gemma.
Sinto que devia dizer algo, mas não sei o quê.
– Obrigada pelo livro, pai. – Ele solta-me.
– Sim, bom proveito. Não se importas de levar as chaves?
A senhora Jones entra.
– Com licença, senhor. Um mensageiro acabou de trazer isto para a
menina Gemma.
– Sim, sim – diz o pai, algo irritado. A senhora Jones passa-me o
embrulho e o bilhete.
– Obrigada – digo. O bilhete é um convite formal para jantar dirigido à
minha avó. O visconde e lady Denby solicitam o prazer da companhia do
senhor John Doyle, da senhora William Doyle, do senhor Thomas Doyle, e
da menina Gemma Doyle para jantar na terça-feira, dia 17, às oito horas.
RSVP. Não duvido nada de que a avó dirá um entusiástico sim.
Agora, o embrulho. Rasgo o papel e encontro a belíssima caixinha de
veludo de Simon Middleton com um bilhete que diz Um lugar para
guardar todos os seus segredos.
Curiosamente, o pai nem sequer me pergunta da prenda.
– Gemma, pequenina – diz ele, absorto. – Leve as chaves agora, sim,
linda menina?
– Sim, meu pai – digo, e dou-lhe um beijinho na testa. Vou toda contente
ao quarto da avó e deixo lá as chaves, depois corro para o meu quarto e
deito-me na cama a contemplar a minha belíssima prenda. Olho para o
bilhete uma e outra vez, a examinar a caligrafia, a admirar a maneira forte e
fina com que ele desenha as letras. Simon Middleton. Ontem, eu nem
sequer sabia que ele existia. Agora não consigo pensar noutra coisa.
Curioso como a vida dá estas voltas.

Devo ter adormecido, pois acordo com alguém a bater-me à porta. O relógio
mostra que já passa da meia-noite. Tom entra de rompante no quarto. Está
muito zangado.
– Foste tu quem lhe deu isto?
– O quê? – pergunto, a esfregar o sono dos olhos.
– Deste isto ao pai? – Tom tem na mão um frasco castanho. Láudano.
– Não, claro que não! – digo, a absorver a realidade.
– Como é que ele o arranjou, não me queres explicar?
Ele não tem o direito de me entrar no quarto e maçar assim.
– Não sei, mas não lho dei – respondo em voz dura.
– Eu tinha-o trancado na vitrina das coleções. Só eu e a avó é que temos
chave.
Deixo-me cair na cama, enjoada e dormente.
– Oh, não. Ele pediu-me que o abrisse para me poder dar a prenda de
Natal antecipada.
– Eu disse-te que ele é esperto, não disse?
– Sim, disseste de facto – respondo. Simplesmente não acreditei. –
Lamento, Tom.
O meu irmão passa os dedos pelo cabelo.
– Ele estava a passar tão bem.
– Lamento – digo outra vez, embora me pareça fraco consolo. – Vou
deitá-lo para o lixo?
– Não – diz ele. – Não podemos deitá-lo fora, por enquanto. – Tom passa-
me o frasco. – Toma isto e esconde, esconde onde ele não possa encontrar.
– Sim, com certeza. – O frasco está quente na minha mão. Uma coisa tão
pequena. Tão poderosa.
Depois de Tom se ir embora, abro a prenda de Simon e tiro o fundo falso.
Um lugar para guardar todos os seus segredos...
Ponho o frasco lá dentro e tapo-o com o fundo falso, como se o láudano
não existisse de todo.
QUINZE

A avó não desiste e não me deixa ir visitar a professora Moore, mas deixa-
me ir fazer compras de Natal com Felicity e Ann, desde que a criada de
Felicity nos acompanhe. Quando o coche de Felicity encosta à porta de
nossa casa, fico tão contente de ver as minhas amigas – e tão desesperada
por fugir à minha avó autoritária – que quase corro ao encontro delas.
Ann está muito bem vestida com roupa de Felicity e um chapéu novo de
feltro verde na cabeça. Está a começar a encaixar no papel de debutante.
Aliás, está a começar a parecer-se com uma sósia de Felicity.
– Oh, Gemma! Que maravilha! Ninguém sabe que não sou como todos!
Não lavei um único prato nem ninguém zombou de mim. É como se eu
fosse mesmo descendente de uma czarina.
– Que mara... – Ann continua a tagarelice.
– Parece que vamos à ópera, e eu vou estar na fila para dançar no baile
deles como se fizesse parte da família! – Ann sorri para Felicity, e esta enfia
o braço no dela. – Hoje à tarde...
– Ann – avisa Felicity baixinho. Ann faz um sorriso envergonhado.
– Oh, desculpa, Fee.
– O que se passa? – pergunto, aborrecida com a intimidade delas.
– Nada – murmura Ann. – Não posso dizer.
– É falta de educação guardar segredos – digo acaloradamente.
– Hoje vamos acompanhar a minha mãe ao clube para tomar chá. Mais
nada – diz Felicity. Não há convite para mim. De súbito, deixo de estar feliz
ao vê-las. Prefiro que estivessem bem longe. – Oh, Gemma, não fiques
amuada. Eu também te convidaria, mas é muito difícil levar mais do que
uma convidada.
Não me parece que seja esse o caso, de todo.
– Não faz mal – digo. – Também tenho um compromisso.
– A sério? – pergunta Ann.
– Sim, vou visitar a professora Moore – minto. Elas ficam boquiabertas
quando lhes conto do encontro casual que tive. Estou a gozar bastante o
espanto delas. – Parece-me que lhe vou perguntar da Ordem. Como bem
veem, eu não poderia mesmo...
– Não podes ir sem nós – refila Felicity.
– Mas tu vais ao clube da tua mãe sem mim – digo. Felicity não tem
resposta para isto. – Vamos agora então às lojas de Regent Street?
– Não – responde Felicity. – Vamos contigo ver a professora Moore.
Ann faz beicinho.
– Pensei que íamos comprar um par de luvas novo para mim. Afinal,
faltam só nove dias para o Natal. Além disso, a professora Moore deve
odiar-nos por causa do que aconteceu.
– Ela não te odeia – digo eu. – Ela perdoou-nos a todas, e ficou
transtornada ao saber da Pip.
– Está decidido – diz Felicity, a enfiar o outro braço no meu. – Vamos
fazer uma visita à professora Moore. Depois, a Gemma vem connosco
tomar chá.
Ann hesita.
– E a Franny? Sabes bem que ela vai contar das mais ínfimas infrações.
– A Franny não vai dar trabalho nenhum – diz Felicity.
O sol vai alto, o dia está limpo e fresco quando chegamos ao apartamento
modesto da professora Moore na Baker Street. A criada da senhora
Worthington, Franny, está com atenção a tudo, pronta a tirar apontamento
de qualquer indiscrição da nossa parte, para poder reportar devidamente à
mãe de Felicity e à minha avó. A Franny não deve ser muito mais velha do
que nós. Não deve ter grande graça andar atrás de nós, diariamente
recordada de outra espécie de vida que lhe foi negada. Mesmo que sinta
amargura pela sua sorte, não se atreve a verbalizar. Porém, lá está, na linha
apertada da boca, na maneira como ela se obriga a olhar além de nós
enquanto vê tudo.
– Eu era para acompanhar as meninas às compras – diz.
– Houve mudança de planos, Franny – diz Felicity, impávida. – A mãe
pediu-me que fosse visitar uma amiga que adoeceu. É importante fazer
caridade, não lhe parece?
– Ela não me disse nada disso, menina.
– Sabe bem como a mãe se esquece das coisas. Anda tão ocupada.
O cocheiro ajuda-nos a descer da charrete. Franny faz menção de vir
também. Felicity impede-a com um sorriso frio.
– Franny, pode esperar no coche.
A cara cuidadosamente plácida e treinada de Franny abre-se numa vida
não ensaiada por momentos – toda olhos semicerrados e boca entreaberta –
antes de afivelar uma resignação odiosa.
– A senhora Worthington mandou-me acompanhar as meninas a todo o
lado.
– E a Franny tem acompanhado, mas o compromisso é para três, e não
três mais criada.
Odeio quando Felicity se põe com estas maneiras.
– Está muito frio cá fora – digo, na esperança de que ela perceba.
– Decerto a Franny se lembra bem do seu lugar. – Felicity faz um sorriso
que poderia passar por simpático se eu não sentisse a crueldade subjacente.
– Sim, menina. – Franny baixa a cabeça para voltar ao coche e ajeita o
corpo no canto mais fundo para ficar à espera.
– Agora podemos ter uma tarde agradável, livres da espia da minha mãe –
diz Felicity. Não se trata, afinal, de ser cruel para Franny, mas sim de
Felicity se vingar da mãe por qualquer motivo que desconheço.
Ann está com ar incerto, a olhar para o coche.
– Tu vens? – pergunta Felicity.
Ann marcha de volta ao coche, despe o casaco e dá-o a uma Franny
agradecida. Sem palavra, passa por mim e pela espantada Felicity e toca à
campainha para anunciar a nossa visita.
– A gratidão dá nisto – resmunga Felicity para mim quando avançamos
para a apanhar. – Levo-a para casa, transformo-a em realeza russa e ela
agora assume o papel.
A porta abre-se. Uma velha de olhos semicerrados e má catadura posta-se
diante de nós com a mão na anca larga.
– Eh! Quem vem lá? Qué que querem? Nã tenho o dia todo para ficar a
olhar para vocês. Tenho a lida da casa.
– Boa tarde – começo, mas sou interrompida pela velha impaciente. Olha
na minha direção com os olhos quase fechados. Será que ainda consegue
ver alguma coisa?
– Se são esmolas para os pobres, podem desandar.
Felicity estende a mão.
– Chamo-me Felicity Worthington. Vimos fazer uma visita à professora
Moore. Somos suas alunas.
– Alunas? Nã me disse nada de receber alunas – refila ela.
– Não falei nisso, senhora Porter? Tenha a certeza de que lhe disse ontem.
– É a nossa professora Moore a descer a escada para nos salvar.
– Muito esquisito, professora Moore. Se é para ser costume, vou
aumentar o preço da casa. É uma boa parte de casa. Nã falta quem a queira
arrendar.
– Sim, com certeza – diz a professora Moore. A senhora Porter vira-se
para nós de peito inchado.
– Gosto que m’informem do que se passa na ‘nha casa. Uma melher
sozinha tem que ter muito cuidado nos dias d’hoje. A nha casa dá-se ao
respêto. Perguntem a quem quiserem, a sôra Porter é uma melher
respeitável.
Receio que fiquemos ali de pé ao frio o dia todo, mas a professora Moore
pisca-nos o olho e leva-nos para dentro.
– Com certeza, senhora Porter. De futuro, dir-lhe-ei o que se passa. Tenho
muito gosto em ver as meninas de novo. É uma bela surpresa.
– Como tem passado, professora Moore? – Felicity dá um aperto de mão
rápido à nossa antiga professora, e Ann também. Ambas têm a decência de
fazerem um ar encabulado pela maneira torpe com que a trataram no
passado. No que lhe diz respeito, a professora Moore não perde o sorriso.
– Senhora Porter, apresento-lhe a menina Ann Bradshaw, a menina
Gemma Doyle e a menina Felicity Worthington. A menina Worthington,
claro, é filha do nosso almirante, Sir George Phineas Worthington.
A senhora Porter abre a boca e endireita-se.
– Nã ‘tá a reinar? E esta, hein? A filha do almirante na ‘nha pórpia casa?
– A senhora Porter, pitosga, confunde-me com Felicity e pega-me nas mãos,
abana-as com toda a força. – Oh, menina, é uma grande honra, pode crer. O
falecido sôr Porter também era marujo. ‘Tá ali o retrato na parede.
Ela aponta para um quadro péssimo de um cão terrier vestido com uma
gola isabelina. A expressão dorida do cão até parece que me suplica para
desviar os olhos e deixá-lo suportar a humilhação sozinho.
– Oh, isto pede vinho do Porto! Não lhe parece, professora Moore? –
exclama a senhora Porter.
– Talvez noutra altura, senhora Porter. Tenho de iniciar a nossa aula,
senão o almirante ficará aborrecido comigo – diz a professora Moore, a fiar
uma bela aldrabice.
– Atão eu cá sou um túmulo. – A senhora Porter faz um sorriso cúmplice,
e mostra dentes largos, amarelos e lascados como as teclas de um piano
velho. – A sôra Porter sabe guardar segredo. Nã duvide.
– Nem por sombras, senhora Porter. Obrigada pela maçada.
A professora Moore encaminha-nos escada acima para o terceiro andar e
a modesta parte de casa onde reside. O sofá de veludo, os tapetes floridos e
os cortinados pesados devem ser ao gosto da senhora Porter, mas as estantes
apinhadas e a escrivaninha cheia de desenhos são típicas da professora
Moore. A um canto está um globo antigo aninhado na sua caixa de madeira.
Pinturas, maioritariamente paisagens, preenchem uma parede. Noutra está
uma coleção de máscaras exóticas, horrendas na sua beleza feroz.
– Ai, Jesus – diz Ann, a mirá-las.
– Aquelas são do Oriente – diz a professora Moore. – Gosta das minhas
máscaras, menina Bradshaw?
Ann até estremece.
– Parece que nos querem comer.
A professora Moore chega-se mais.
– Hoje não me parece. Já comeram. – Ann demora um momento a
perceber que a professora Moore está a brincar. Há um silêncio
constrangedor, e ocorre-me que fiz um grande erro em ter trazido as minhas
amigas. Devia ter vindo sozinha.
– Isto parece Aberdeen – diz Felicity por fim, a contemplar uma pintura
com montes e urze rosada e purpúrea.
– Assim é. Já esteve na Escócia, menina Worthington? – pergunta a
professora Moore.
– Uma vez, de férias. Mesmo antes de a minha mãe ir para França.
– É uma bela terra – diz a professora Moore.
– A sua família está na Escócia? – pergunta Felicity timidamente.
– Não. Já não tenho pais. Não tenho grande família, tirando uns primos
afastados na Escócia, tão maçadores que dá vontade de ser órfã.
Rimo-nos com isto. É excelente não termos de nos mostrar boazinhas o
tempo todo.
– Tem viajado muito, professora Moore? – pergunta Ann.
– Hum – diz a professora Moore, a assentir. – E estas são as minhas
recordações dessas viagens lindas. – Ela aponta para os muitos desenhos e
pinturas que forram as paredes: uma praia desolada, um mar bravo, um
campo inglês pastoral. – Viajar abre a mente como pouca coisa pode fazer.
Tem a sua própria forma de hipnose, e eu estou sob esse sortilégio para
sempre.
Reconheço um dos lugares nas pinturas.
– São as grutas atrás da Spence?
– De facto – responde a professora Moore. Voltou o constrangimento,
pois todas sabemos que a visita às grutas foi uma das razões para o
despedimento da professora Moore.
A professora Moore traz chá, bolinhos, pão e um naco de manteiga.
– Por mais humilde que seja, aqui têm o lanche – diz ela, e pousa o
tabuleiro em cima da mesinha. Os segundos passam nervosos no relógio
enquanto debicamos a comida. Felicity pigarreia várias vezes. Está à espera
que eu pergunte sobre a Ordem à professora Moore, como prometi. Agora
já não me parece assim tão boa ideia.
– A sala está demasiado quente, menina Worthington? – pergunta a
professora Moore quando Felicity pigarreia pela quarta vez. Felicity abana a
cabeça, e pisa-me o botim com alguma força.
– Ai!
– Menina Doyle? Encontra-se bem? – pergunta a professora Moore.
– Sim, bem, obrigada – respondo e afasto os pés.
– Digam-me, minhas senhoras, como vão as coisas na Spence? – pergunta
a professora Moore, e salva-me.
– Temos uma professora nova – Ann deixa escapar.
– Deveras? – comenta a professora Moore, a barrar uma fatia grossa de
pão rústico. O rosto é uma máscara. Não lhe custará saber que foi
substituída?
– Sim – Ann continua. – Chama-se professora McCleethy. Veio da Escola
de Santa Vitória para Raparigas, no País de Gales.
A faca da manteiga da professora Moore esbarra e deixa-lhe uma noz de
manteiga no polegar.
– Não me há de deixar mais saborosa. – Ela sorri e todas nos rimos da sua
graça. – Santa Vitória. Não posso dizer que tenha ouvido falar. E essa
senhora é boa professora?
– Está a ensinar-nos tiro com arco – diz Felicity. A professora Moore
ergue uma sobrancelha.
– Mas que inusitado.
– A Felicity é bastante boa – diz Ann.
– Decerto que sim – comenta a professora Moore. – Menina Doyle, o que
lhe parece a professora McCleethy?
– Ainda não sei dizer. – Eu e Felicity trocamos olhares que não passam
desapercebidos à professora Moore.
– Será que noto insatisfação?
– A Gemma está convencida de que ela é bruxa – confessa Felicity.
– Deveras? Já lhe viu a vassoura, menina Doyle?
– Eu nunca disse que a achava bruxa – refilo.
Ann interrompe, quase sem fôlego. Adora enredos demoníacos.
– A Gemma contou-nos que ela chegou à Spence na calada da noite,
mesmo quando rugia uma tempestade terrível!
A professora Moore arregala os olhos.
– Céus! Chuva torrencial? Em dezembro? Em Inglaterra? Sinal de
bruxaria, por certo. – Todas se riem às minhas custas. – Mas continue.
Quero ouvir a parte em que a professora McCleethy enche o forno de
crianças.
Nova onda de risinhos de Felicity e Ann.
– Ela e a senhora Nightwing foram à Ala Oriental – digo eu. – Ouvi-as
falarem de algo que era preciso em Londres. Estavam a fazer planos juntas.
Felicity semicerra os olhos.
– Isso não nos contaste!
– Aconteceu anteontem à noite. Eu era a única que lá estava. Elas
apanharam-me à porta e ficaram zangadas comigo. A professora Moore
depois levou-me leite quente com hortelã-pimenta.
– Hortelã-pimenta? – pergunta a professora Moore de cenho franzido.
– Disse que me ajudaria a dormir bem.
– É uma erva que se sabe ser tranquilizante. É curioso que ela saiba.
– Ela tem um anel estranho, com duas cobras entrelaçadas.
– Cobras? Bizarro.
– E também queria saber do meu amuleto! – exclamo. – E da minha mãe.
– E que lhe contou a menina? – pergunta a professora Moore.
– Nada – respondo. A professora Moore bebe chá.
– Compreendo.
– É velha amiga da senhora Nightwing, mas parece vários anos mais nova
– comenta Felicity. Ann estremece.
– Talvez não seja. Talvez tenha pacto com o demo!
– Não deve ser assim muito bom, pois continua a ser professora numa
escola de meninas em Inglaterra – observa a professora Moore secamente.
– Ou talvez ela seja Circe – digo eu por fim. A chávena da professora
Moore fica a meio caminho da sua boca.
– Agora perdi-me.
– Circe. Sarah Rees-Toome? Foi a aluna da Spence que causou o incêndio
e destruiu a Ordem, ou pelo menos foi isso que lemos no diário de Mary
Dowd. Lembra-se, professora? – pergunta Ann, sem fôlego.
– Se me lembro? Como poderia esquecer-me? Esse livrinho foi o motivo
do meu despedimento.
Faz-se um silêncio desagradável. Se a professora Moore não nos tivesse
descoberto a ler o diário, se não nos tivesse lido alto algumas páginas,
nunca teria sido despedida da Spence. Mas leu, e isso determinou o seu
destino junto da Nightwing.
– Temos tanta pena, professora Moore – diz Ann, a olhar para o tapete
oriental. Felicity acrescenta:
– Foi a Pippa mais do que ninguém, sabe?
– Foi? – pergunta a professora Moore. Nós bebemos o chá com ar
culpado. – Cuidado com a culpa. É um bumerangue. Seja como for, está
feito. Mas essa Sarah Rees-Toome... Circe... se existiu...
– Existiu, pois! – insisto. Sei de certeza.
– ... não morreu no incêndio da Spence?
– Não – acrescenta Felicity de olhos muito abertos. – Ela só queria que
pensassem que morrera. Ainda anda por aí.
Tenho o coração a bater-me forte no peito.
– Professora Moore? Estávamos a pensar, quer dizer, estávamos na
esperança de que nos contasse mais histórias da Ordem.
O olhar dela está empedernido.
– Já fizemos isso, não já?
– Já, mas não pode dar sarilho algum, agora que a professora já saiu da
Spence – diz Felicity com frontalidade. A professora Moore ri-se.
– Menina Worthington, o seu descaramento espanta-me.
– Pensámos que talvez soubesse certas coisas. Sobre a Ordem. A senhora
professora – digo com grande formalidade.
– A senhora professora – repete ela.
– Sim – digo, a sentir-me tola de tantas maneiras, mas já não há hipótese
de parar e recuar, mais vale prosseguir. – Pensámos que talvez a
professora... Tivesse até feito parte dela.
Está dito. A chávena treme-me na mão. Espero que a professora Moore
nos repreenda, nos ponha na rua, admita que sabe tudo, qualquer coisa. Não
estou preparada para que ela desate à gargalhada.
– Pensaram...? Que eu...? Oh, santíssimo sacramento! – Ela ri-se tanto
que não consegue terminar.
Ann e Felicity também se desatam a rir, como se achassem parvoíce
desde o princípio. Traidoras.
– Ai, pobre de mim – diz a professora Moore, a secar os olhos. – Sim, é
verdade. Sou uma grande feiticeira da Ordem. Moro aqui nesta parte de
casa, tenho alunas para pagar a renda, é tudo um ardil engenhoso para
ocultar a minha verdadeira identidade.
Sinto as faces a arder.
– Desculpe. Nós – digo, a salientar o plural – simplesmente pensámos
que, como a professora sabe tanto sobre a Ordem...
– Oh, meu Deus. Mas que desilusão devo ser para as meninas. – Ela olha
demoradamente para a sala, o olhar vai das gravuras das praias às grutas
atrás da Spence e depois às máscaras na parede em frente. Receio que a
tenhamos indisposto mesmo. – Porquê tanto interesse na Ordem? –
pergunta, por fim.
– Eram mulheres que tinham poder – responde Felicity. – Não é como
aqui.
– Temos uma mulher no trono – contemporiza a professora Moore.
– Por direito divino – resmunga Ann. A professora Moore faz um sorriso
enviesado.
– Sim, é certo.
– Deve ser por isso que o diário nos intrigou tanto – digo eu. – Imagine-se
um mundo, os tais reinos, onde as mulheres mandam, onde uma rapariga
pode ter o que bem lhe aprouver.
– Seria um belo lugar, de facto. – A professora Moore bebe mais chá. –
Confesso que a ideia da Ordem, as histórias, têm exercido grande fascínio
sobre mim desde menina. Calculo que também a mim me agradasse a ideia
de um sítio mágico quando tinha a vossa idade.
– Mas... E se os reinos existissem mesmo? – pergunto.
A professora Moore olha bem para nós. Pousa a chávena na mesinha de
lado e recosta-se na cadeira, a mexer no relógio de bolso que prendeu à
cinta.
– Muito bem, vou alinhar. E se os reinos existissem mesmo? Como é que
seriam?
– Inimagináveis de tão belos – diz Ann com ar sonhador. A professora
Moore aponta para um esboço seu.
– Ah. Como Paris, então?
– Melhor! – exclama Ann.
– Como é que sabes? Nunca foste a Paris – zomba Felicity. Não liga a
Ann e continua. – Imagine-se um mundo onde o que desejamos se possa
concretizar. Das árvores chovem flores. O orvalho transforma-se em
borboletas nas nossas mãos.
– Há um rio e, quando vemos o nosso reflexo nele, somos lindas – diz
Ann. – Tão lindas que nunca mais ninguém fará pouco caso de nós.
– Parece-me amoroso – diz a professora Moore em voz baixa. – E é tudo
assim? As meninas disseram reinos, no plural. Como são os outros reinos?
– Não sabemos – digo eu.
– Não fomos... não imaginámos o resto – diz Ann. A professora Moore
oferece a travessa de bolinhos.
– Quem é que mora nesses reinos?
– Espíritos e criaturas. Alguns não são muito simpáticos – diz Ann.
– Querem controlar a magia – explico.
– Magia? – repete a professora Moore.
– Oh, sim. Há magia. Muita magia! – exclama Felicity. – As criaturas
fariam qualquer coisa para a controlar.
– Qualquer coisa?
– Sim, qualquer coisa – diz Ann, com ademanes teatrais.
– E conseguem controlar? – pergunta a professora Moore.
– Agora, sim. A magia estava protegida dentro das runas – continua Ann,
entre dentadas. – Mas as runas partiram-se e a magia está à solta, para
qualquer um usar como lhe aprouver.
Parece que a professora Moore quer fazer uma pergunta, mas Felicity
adianta-se.
– E a Pippa está lá, bonita como sempre – diz ela.
– Devem ter imensas saudades dela – diz a professora Moore. Vai virando
o relógio de bolso nos dedos. – Essas histórias são uma bonita maneira de a
recordarem.
– Sim – digo eu, na esperança de não mostrar a culpa que sinto.
– E agora que a magia está solta, como dizem, como é? As meninas
juntam-se aos outros membros da Ordem e fazem truques?
– Não. Foram todas mortas ou estão na clandestinidade – diz Felicity. – E
não é nada bom que a magia esteja à solta.
– Deveras? Então porquê?
– Há espíritos que a podem usar para fins tenebrosos. Podiam usá-la para
entrarem neste mundo ou para levar Circe para lá – explica Felicity. – Por
isso é que temos de encontrar o Templo.
A professora Moore faz um ar confuso.
– Receio ter de tirar apontamentos para não me perder. O que é o Templo,
não se importam?
– É a fonte secreta da magia dentro dos reinos – digo eu.
– Fonte secreta? – repete a professora Moore. – E onde fica esse sítio do
Templo?
– Não sabemos. Ainda não descobrimos – digo eu. – Mas assim que
conseguirmos, podemos vincular a magia outra vez e formar nova Ordem.
– Então bon courage. Mas que história fascinante – diz a professora
Moore. O relógio em cima da lareira dá as quatro da tarde. A professora
Moore compara as horas com as do relógio de bolso. – Ah, infalível de
precisão.
– Já são quatro? – pergunta Felicity e põe-se de pé. – Temos de nos
encontrar com a minha mãe daqui a meia hora.
– Mas que pena – diz a professora Moore. – Têm de voltar para outra
visita. Aliás, há uma exposição excelente numa galeria de arte particular em
Chelsea, na quinta-feira. Querem ir?
– Oh, sim! – exclamamos todas.
– Muito bem – diz ela, e levanta-se. Depois ajuda-nos a vestir os casacos.
Enfiamos as luvas e assentamos os chapéus.
– Então não há mais nada que nos possa dizer sobre a Ordem? – ainda
insisto.
– As senhoras têm aversão à leitura? Se eu quisesse saber mais sobre
determinado assunto, procuraria um bom livro, um ou dois – diz ela, e leva-
nos pela escada abaixo, onde a senhora Porter está à nossa espera.
– Qué dos desenhos benitos? – pergunta a senhoria, a procurar papel ou
giz em nós. – Nã sejam ‘canhadas. Mostrem cá à velhota.
– Não temos nada para lhe mostrar – diz Ann. A senhora Porter muda
logo de expressão.
– Atão, ê tenho aqui um estabelecimento respeitável, professora Moore.
Você disse que o almirante pagava aulas. Qué qu’andaram a fazer lá em
cima este tempo todo?
A professora Moore inclina-se para a senhora Porter até a velha ter de dar
um passo atrás.
– Bruxaria – sussurra ela. – Venham lá, senhoras. Abotoem-se bem. O
vento está cortante e não poupa ninguém.
A professora Moore faz-nos sair mesmo quando a senhora Porter berra do
vestíbulo.
– Nã m’agrada. Nã m’agrada memo nada.
A professora Moore nunca olha para trás nem perde o sorriso.
– Encontramo-nos na quinta-feira – diz, e despede-se a acenar. Ficamos
despachadas.
DEZASSEIS

– Foi uma tarde perdida. A professora Moore não sabe mais nada sobre a
Ordem e os reinos. Tínhamos feito melhor em ir às compras – anuncia
Felicity assim que chegamos ao clube feminino da sua mãe.
– Não te obriguei a ir comigo – digo eu.
– Talvez a Pippa tenha tido sorte a encontrar o Templo – diz Ann
animadamente.
– Já passaram dois dias – diz Felicity, a olhar para mim. – Prometemos
voltar assim que pudéssemos.
– E como é que conseguimos ter privacidade com a Franny? – pergunto.
– Eu trato disso – responde Felicity.
As portas abrem-se, vemos um criado de libré. Felicity mostra o cartão-
de-visita da mãe e o homem magricela examina-o bem.
– Somos convidadas de Lady Worthington, minha mãe – diz Felicity
desdenhosamente.
– Queira desculpar, menina, mas não é costume do clube Alexandra
admitir mais do que uma convidada. Lamento, mas as normas são para
cumprir. – O criado faz por parecer compassivo, mas no sorriso vejo
indícios de satisfação.
Felicity lança um olhar duro ao homem de farda engomada.
– Sabe quem é esta menina? – pergunta ela num sussurro ensaiado que
chama a atenção de toda a gente ali perto. Fico de sobreaviso, pois sei que a
Felicity só pode estar a tramar alguma. – Trata-se da menina Ann
Bradshaw, a recentemente descoberta sobrinha-neta do duque de
Chesterfield. – Felicity pestaneja como se o criado fosse idiota. – É
descendente da própria czarina. Decerto o senhor leu as notícias.
– Receio bem que não, menina – responde o criado, mas já menos seguro
de si. Felicity suspira.
– Quando penso nas vicissitudes que a menina Bradshaw passou, a viver
como órfã, dada como morta pelos seus entes queridos, oh, até me dá um
desgosto ver que está a ser maltratada aqui neste mesmíssimo momento.
Coitada da menina Bradshaw. Lamento muito esta maçada. Não duvido que
a minha mãe fique muito descontente quando souber do sucedido.
Uma das matronas da alta sociedade aproxima-se.
– Ora essa, menina Worthington, trata-te realmente da sobrinha-neta da
czarina há muito desaparecida?
Nunca dissemos tal coisa, mas dá-nos jeito.
– Oh, sim – responde Felicity, de olhos muito abertos. – Aliás, a menina
Bradshaw veio cantar para nós hoje, compreende, ela não é convidada da
minha mãe propriamente, mas sim convidada do clube Alexandra.
– Felic… menina Worthington! – exclama Ann, em pânico.
– Ela é modestíssima – acrescenta Felicity.
Há murmúrios entre as matronas da alta sociedade. Estamos prestes a
passar vergonha. O criado está constrangido. Se nos deixar entrar a todas,
estará a infringir as normas à vista de toda a gente; se recusar uma de nós,
arrisca-se a indispor uma das sócias do clube e talvez a ser despedido por
isso. Felicity jogou a sua cartada de mestre.
A matrona avança.
– Como a menina Bradshaw é convidada do clube Alexandra, não vejo
motivo para problemas, de todo.
– Como lhe aprouver, minha senhora – diz o criado.
– Estou ansiosa por ouvir a menina cantar esta tarde – diz a mulher já
depois de passarmos.
– Felicity! – sussurra Ann enquanto o criado nos leva para uma sala de
jantar forrada a madeira de carvalho com mesas bonitas cobertas por toalhas
brancas adamascadas.
– O que foi?
– Não devias ter dito aquilo, de eu cantar hoje.
– Mas tu sabes cantar, não sabes?
– Sei, mas...
– Queres fazer este jogo ou não, Ann?
Ann não diz mais. A sala está quase cheia de senhoras elegantes a
bebericarem chá e a debicarem pãezinhos com agrião. A nossa mesa fica
num canto distante.
Felicity perde a compostura.
– Chegou a minha mãe.
Lady Worthington corta a direito pela sala fora. Todos os olhos a miram,
pois é realmente bonita – branca como porcelana e aparentemente delicada.
Dela emana um ar de fragilidade, como alguém de quem cuidaram toda a
vida. O sorriso é cordial sem ser demasiado convidativo. Eu poderia treinar
mil anos e nunca conseguir um sorriso assim. O vestido de seda castanha é
sumptuoso e como manda a última moda. No pescoço elegante tem fiadas
de pérolas. A emoldurar-lhe o rosto, um chapéu enorme com plumas de
pavão na fita.
– Bonjour, querida – diz ela, a dar beijos nas faces de Felicity como me
constou que os parisienses fazem.
– Mãe, tem mesmo de dar espetáculo? – ralha Felicity.
– Muito bem, querida. Como está, menina Bradshaw? – diz Lady
Worthington. Olha para mim, e o sorriso vacila um pouco. – Não creio que
tenhamos sido apresentadas.
– Mãe, esta é a menina Gemma Doyle.
– Como está, Lady Worthington? – cumprimento-a.
A senhora Worthington faz um sorriso apertado para a filha.
– Felicity, querida, seria bom avisar-me de que traz convidadas para o
chá. O Alexandra é muito rigoroso com as convidadas.
Apetece-me morrer. Apetece-me entranhar-me no chão e desaparecer.
Porque é que a Felicity tem de fazer estas coisas?
Aparece uma criada como uma sombra ao lado da senhora Worthington e
serve-lhe o chá. A senhora Worthington põe o guardanapo no colo.
– Bem, agora não importa. Agrada-me conhecer as amigas da Felicity. É
muito agradável que a menina Bradshaw tenha podido passar o Natal
connosco, dado que o querido tio-avô, o duque de Chesterfield, ficou retido
em São Petersburgo.
– Sim – digo eu, a tentar não me engasgar com uma mentira tão
descarada. – Temos mesmo muita sorte.
Lady Worthington faz algumas perguntas de circunstância e eu faço uma
autobiografia monótona mas algo fidedigna; em troca, parece que Lady
Worthington me bebe as palavras. Faz-me sentir como se eu fosse a única
pessoa na sala. É fácil ver porque é que o almirante se enamorou dela.
Quando fala, as histórias dela são muitíssimo divertidas. Porém, Felicity
está sentada e amuada, a brincar com a colher, até a mãe pôr a mão na sua
para ela parar com isso.
– Querida – diz a mãe. – Tem mesmo de ser?
Felicity suspira e olha em redor da sala como que na esperança de que
alguém a venha salvar. Lady Worthington faz um dos seus sorrisos
deslumbrantes.
– Querida, tenho ótimas notícias. Queria que fosse surpresa para si, mas
não sei se consigo esperar nem mais um momento.
– O que se passa? – pergunta Felicity.
– O papá tem uma menina a seu cargo. A pequena Polly é filha da prima
Bea, que morreu tísica, ao que consta, embora eu me atreva a dizer que ela
morreu de desgosto. O pai sempre foi um inútil e despachou-a sem mais
cuidados. A própria filha.
Felicity empalideceu.
– A que se refere? Ela vai morar connosco? Consigo e com o papá?
– Sim. E a senhora Smalls, a governanta, claro. O seu pai está tão
contente por ter uma princesinha em casa outra vez. Felicity, caríssima,
tanto açúcar no chá, não. Não faz bem aos dentes – ralha a Lady
Worthington sem perder o sorriso.
Como se não tivesse ouvido nada, Felicity deita mais dois cubos de
açúcar no chá e bebe. A mãe finge não ter reparado.
Uma mulher mole e estofada como uma poltrona chega-se à nossa mesa.
– Boa tarde, senhora Worthington. É verdade que a sua ilustre convidada
vai cantar para nós?
Lady Worthington parece sobressaltada.
– Oh, bem, eu não saberia... Eu...
A mulher continua a tagarelar.
– Estávamos mesmo a falar no extraordinário que é a senhora ter acolhido
a menina Bradshaw na sua casa. Se não se importar de vir connosco, conte-
nos, a mim e à senhora Threadgill, como é que a parente há muito perdida
da czarina chegou até nós.
– Com licença – diz Lady Worthington, e desliza para a outra mesa como
um cisne.
– Estás bem, Fee? – pergunto. – Estás muito pálida.
– Estou bem. Simplesmente não me agrada a ideia de ter um bicho
qualquer a tropeçar-me nos pés enquanto estiver em casa.
Ela tem ciúmes. Ciúmes de alguém chamada pequena Polly. A Felicity
sabe ser tão mesquinha, por vezes.
– É apenas uma criança – digo eu.
– Eu sei – retruca Felicity. – Não vale a pena falar disso. Temos coisas
importantes a tratar. Venham comigo.
Ela leva-nos a passar pelas mesas de senhoras elegantes com chapéus
espalhafatosos a beberem chá e a bisbilhotarem. Elas levantam o olhar, mas
nós não temos importância, e retomam as conversas de quem fez o quê a
quem. Seguimos Felicity por escadarias amplas e atapetadas, passamos por
senhoras trajadas com vestidos engomados da moda, as quais parecem
discretamente interessadas nas jovens audazes que derrubam as barricadas
do seu clube tão seleto.
– Aonde nos levas? – pergunto.
– O clube tem quartos particulares para as sócias. Decerto haverá um
vazio. Oh, não.
– O que foi? – pergunta Ann, em pânico.
Felicity está a espreitar por cima da balaustrada para o átrio lá em baixo.
Uma mulher de aspeto sólido, vestido roxo e estola de peles, rodeada da sua
comitiva. É uma presença dominadora; as outras bebem-lhe as palavras.
– Uma das antigas amigas da minha mãe, Lady Denby.
Lady Denby? Será a mãe de Simon? Sinto um nó na garganta. Resta-me
esperar que consigamos esgueirar-nos sem darem por nós, para que Lady
Denby não fique com uma opinião desfavorável sobre mim.
– Porque é que dizes antiga amiga? – pergunta Ann, com ar aflito.
– Ela nunca perdoou à minha mãe ter ido morar para França. Não gosta
dos franceses, dado que a família Middleton remonta ao próprio Lorde
Nelson – responde ela, a falar do grande herói naval britânico. – Se Lady
Denby gostar de ti, tens a vida de feição. Se te considerar insuficiente em
qualquer aspeto, és banida. Continuará a ser cordial, sim, mas muito fria. A
tola da minha mãe é ceguinha e não quer ver. Continua a tentar cair nas
boas graças de Lady Denby. Eu nunca serei assim.
Felicity avança devagar, audazmente, pela varanda, a observar Lady
Denby. Eu faço o que posso para a seguir de cabeça baixa.
– Então é a mãe do Simon Middleton? – pergunto.
– Sim – responde Felicity. – Como é que conheces o Simon Middleton?
– Quem é o Simon Middleton? – pergunta Ann.
– Conheci-o ontem na estação dos comboios. Ele e o Tom são amigos.
Felicity arregala os olhos.
– Quando é que tencionavas contar-nos isso?
Ann tenta outra vez.
– Quem é o Simon Middleton?
– Gemma, tornaste a guardar segredos!
– Não é segredo – digo, a corar. – Não é nada, realmente. Ele convidou a
minha família para jantar. Mais nada.
Felicity tem ar de quem a largou no meio do Tamisa.
– Foram convidados para jantar? Isso é certamente qualquer coisa.
– É falta de educação falar de pessoas que nunca vi – refila Ann, a fazer
beicinho. Felicity tem pena dela.
– Simon Middleton é, não só, filho de um visconde, como muitíssimo
bem-parecido. Parece que se interessou pela Gemma, embora ela não queira
que nós saibamos disso.
– Não é nada, a sério – protesto. – Ele estava apenas a ser caridoso, de
certeza.
– Os Middletons nunca são caridosos – diz ela, a olhar para baixo. – Tens
de ter o maior cuidado perto da mãe dele. Ela gosta de esquadrinhar as
pessoas por desporto.
– Não me estás a deixar nada à vontade.
– Mais vale prevenir do que remediar, Gemma.
Abaixo de nós, Lady Denby diz algo alegre que faz as companheiras
rirem-se daquela maneira contida que as mulheres aprendem quando se
livram da sua meninice. Não parece ser o monstro que Felicity está a
pintar.
– O que vais usar? – pergunta Ann, com ar sonhador.
– Chifres e a pele de um animal grande – respondo. Ann demora um
pouco, como se acreditasse piamente. O que é que hei de fazer com ela? –
Vou usar um vestido a preceito. Algo que seja aprovado pela minha avó.
– Tens de nos contar os pormenores todos depois – diz Felicity. – Estou
interessadíssima em saber tudo.
– Conheces bem o senhor Middleton? – Tenho de bisbilhotar.
– Conheço-o há séculos – responde Felicity. Ali de pé, com as madeixas
soltas do cabelo dourado a curvarem-se debaixo do queixo, ela parece uma
estampa, a sua beleza estranha no auge da sedução.
– Compreendo. E já lhe lançaste o isco?
Felicity faz uma careta.
– Ao Simon? É como um irmão para mim. Não posso sequer conceber
um romance com ele.
Fico aliviada. É uma tolice minha ter esperança em Simon tão cedo, mas
ele é encantador e bem-parecido e parece gostar de mim. A atenção dele
faz-me sentir linda. É apenas um fio de entusiasmo, mas sinto que não
quero largá-lo tão cedo.
Uma das companheiras de Lady Denby olha para cima, vê-nos a olhar.
Lady Denby olha também.
– Vamos embora – sussurro. – Toca a andar!
– Não é preciso empurrar! – ralha Felicity quando praticamente caio por
cima dela. Escondemo-nos num corredor. Felicity puxa-nos para dentro de
um quarto e fecha a porta. Ann olha em redor, nervosa.
– Não devíamos estar aqui, pois não?
– Querias privacidade – diz Felicity. – Agora tem-la.
Está um roupão no espaldar de uma cadeira, várias caixas de chapéus a
um canto. O quarto até pode estar vazio – de momento – mas não está
desocupado.
– Temos de nos despachar – digo eu.
– Exatamente – diz Felicity, a sorrir. Ann tem cara de quem vai adoecer.
– Vamos ficar desgraçadas. Eu sei.
Porém, assim que damos as mãos e eu faço aparecer a porta de luz, o
constrangimento fica esquecido, engolido pelo nosso maravilhamento.
DEZASSETE

Mal entramos no brilho intenso dos reinos quando fica tudo escuro; sinto
dedos frios nos olhos. Esgueiro-me do enlaço e giro nos calcanhares, deparo
com Pippa atrás de mim. Ainda tem a coroa de flores, mas já estão a
murchar. Ela acrescentou urtigas e um narciso cor-de-rosa para animar.
Começa-se a rir de me ver assim boquiaberta.
– Oh, coitada da Gemma! Assustei-te?
– N-não. Bem, um bocadinho talvez.
Felicity e Ann correm para Pippa com um grito e abraçam-na.
– O que se passa? – pergunta-me Ann.
– Preguei um susto à coitada da Gemma. Não te zangues comigo – pede
ela, e pega-me na mão. Fala num sussurro. – Tenho uma surpresa. Venham
comigo.
Pip leva-nos pelo arvoredo.
– Fechem os olhos – diz. Por fim, detém-se. – Abram-nos.
Estamos no rio. Na água está um barco como nunca vi antes. Não sei bem
se será um barco, pois parece-se mais com o corpo de um dragão, preto e
encarnado, com grandes asas que se abrem dos lados. É certamente de um
tamanho monstruoso, curvo em ambas as pontas, com um mastro
gigantesco que se ergue perto da proa e uma vela fina como casca de
cebola. Cordas grossas de algas pendem dos lados, bem como redes de
prata cintilante que flutuam à superfície da água. Porém, o mais
extraordinário de tudo é a cabeça maciça junta à frente do barco. É verde e
escamosa, com serpentes longas como ramadas a rastejarem na cara temível
e impávida.
– Encontrei-a! – diz Pippa, emocionada. – Encontrei a górgone!
Aquela coisa é a górgone?
– Rápido! Vamos perguntar-lhe do Templo antes que ela se vá embora –
diz Pippa, e aproxima-se do barco imponente. – Ó de bordo!
A górgone vira a cara na nossa direção. As serpentes da cabeça bufam e
mexem-se como se nos quisessem comer por lhes transtornarmos a paz.
Decerto comeriam se não estivessem presas à coisa. Não estou nada
preparada para quando a criatura abre os grandes olhos amarelos.
– O que pretendes? – pergunta, numa voz soturna e sibilante.
– Tu és a górgone? – pergunta Pippa.
– Sssim.
– É verdade que estás obrigada pela magia da Ordem a não fazer mal a
ninguém e a dizer apenas a verdade? – continua ela. A górgone fecha os
olhos um ínfimo momento.
– Sssim.
– Estamos à procura do Templo. Conheces? – pergunta Pippa. Os olhos
abrem-se outra vez.
– Todos o conhecem. Ninguém sabe onde fica. Ninguém além da Ordem,
e há muitos anos que não aparecem.
– Há alguém que possa saber onde o encontrar? – pergunta Pippa. Está
aborrecida com a falta de préstimo da górgone. A górgone olha para o rio
outra vez.
– A Floresta das Luzes. A tribo de Fílon. Consta que outrora foram
aliados da Ordem. Poderão saber onde encontrar esse Templo.
– Muito bem – diz Pippa. – Pretendemos ir à Floresta das Luzes.
– Somente alguém da Ordem mo pode ordenar – diz a górgone.
– Ela é da Ordem – diz Pippa e aponta para mim.
– Veremos – bufa a górgone.
– Vá, Gemma – insiste Felicity. – Experimenta.
Dou um passo em frente e pigarreio. As serpentes abrem-se em redor da
cabeça da górgone como uma juba ondulante. Bufam-me, mostram os
dentes afiados e pontiagudos. A contemplar aquela cara horrível, custa-me
encontrar a minha voz.
– Pretendemos ir à Floresta das Luzes. Não te importas de nos levar,
górgone?
Em resposta, uma das grandes asas do barco baixa devagar até à margem
para nos dar passagem. Pippa e Felicity mal cabem em si de contentes.
Sorriem como tolinhas alegres e sobem para a tábua.
– Temos mesmo de ir nisto? – pergunta Ann, a deixar-se ficar.
– Não tenhas medo, Ann, querida. Eu estou contigo – diz Pippa, e puxa-a
para a frente.
A asa range e oscila quando a atravessamos. Felicity estende a mão e toca
numa das redes que pendem do lado da barcaça.
– São leves como teias de aranha – diz, a dedilhar as fibras delicadas. –
Que peixes é que consegues apanhar com elas?
– Não são para apanhar – responde a górgone na sua voz grossa e
xaroposa. – São para advertir.
Abaixo de nós, a água gira, manda uma radiância de cor-de-rosa e violeta
para a superfície.
– Olhem que bonito – diz Ann, e leva a mão à água. – Esperem, estão a
ouvir?
– A ouvir o quê? – pergunto.
– Lá está! Oh, que som tão bonito, nunca ouvi outro igual – diz Ann, e
leva o rosto perto da água. – Vem do rio. Está lá qualquer coisa, logo abaixo
da superfície.
Os dedos de Ann tocam na água cintilante e, por instantes, penso que vejo
algo a mexer-se muito perto da mão dela. Sem aviso, a grande asa que se
baixou para nós sobe depressa e obriga-nos a correr para dentro do barco.
– Foi repentino – diz Ann. – A música parou. Agora nunca saberei donde
vinha aquela canção bonita. – Fica amuada.
– Há coisas que é melhor não saber – comenta a górgone. Ann
estremece.
– Isto não me agrada nada. Agora não temos como sair.
Pippa dá-lhe um beijo na bochecha, como uma mãe a tranquilizar todos
os receios.
– Agora temos de ser corajosas. Temos de ir à Floresta das Luzes se
quisermos encontrar o Templo.
A górgone torna a falar.
– Tu és a minha soberana e tens de me mandar ir.
Apercebo-me de que ela está à minha espera. Olho para as curvas e
contracurvas do rio, sem saber para onde vai a partir dali.
– Muito bem – digo, a respirar fundo. – Rio abaixo, se faz favor.
A grande barcaça arranca. Atrás de nós, o jardim desaparece da vista.
Fazemos uma curva e o rio alarga-se. Imensas bestas de pedra com dentes
compridos e toucados complicados guardam as margens distantes. Como as
gárgulas da Spence, não veem nada mas são guardiãs sinistras e antigas do
que jaz mais abaixo. A água aqui é brava. Até há espuma nas ondas que
embalam o barco e me dão voltas ao estômago.
– Gemma, estás completamente verde – diz Pippa.
– O meu pai diz que ajuda se pudermos ver o destino – sugere Felicity.
Sim, qualquer coisa. Eu experimento qualquer coisa. Deixo as minhas
companheiras entregues aos risinhos e às histórias e avanço para a proa do
barco, sento-me na ponta comprida e afilada perto da nossa estranha
navegadora. A górgone sente que lá estou.
– Estás bem, Altíssima?
A língua preta e escorregadia apanha-me desprevenida.
– Estou indisposta. Fico bem num instante.
– Tens de respirar fundo. Assim é.
Respiro fundo várias vezes. Parece dar resultado, e o rio e a minha barriga
acalmam-se logo a seguir.
– Górgone – começo, depois de reunir coragem – há mais criaturas como
tu?
– Não. – É a resposta. – Sou a última da minha espécie.
– O que aconteceu às outras?
– Foram destruídas ou banidas aquando da rebelião.
– Da rebelião?
– Foi há muito, muito tempo – diz a górgone, e parece cansada. – Antes
das Runas do Oráculo.
– Houve um tempo antes das runas?
– Sssim. Foi um tempo em que a magia estava à solta nos reinos e todos a
podiam usar. Mas também foram tempos tenebrosos. Houve muitas batalhas
com as criaturas a digladiarem-se por mais poder. Foi um tempo em que o
véu entre o teu mundo e o nosso era ténue. Podíamos ir e vir como nos
aprouvesse.
– Podiam ir ao nosso mundo? – pergunto.
– Oh, sim. Um lugar assaz interessante.
Penso nas histórias que li, histórias de avistamento de fadas, fantasmas,
míticas criaturas marinhas a atraírem marinheiros para a morte. De súbito,
já não me parecem meras histórias.
– O que aconteceu?
– Aconteceu a Ordem – diz a górgone, e não sei dizer se o tom é de raiva
ou de alívio.
– Mas a Ordem não existia desde sempre?
– De certo modo. Eram uma das tribos. Sacerdotisas. Curandeiras,
místicas, videntes. Levavam espíritos para o mundo mais além. Eram
mestres ilusionistas. O seu poder sempre foi grande, mas aumentou com o
tempo. Constava que tinham encontrado a fonte de toda a magia dentro dos
reinos.
– O Templo?
– Sssim. – É a resposta sibilante da górgone. – O Templo. Constava que a
Ordem bebia das suas águas, e que assim a magia começou a fazer parte
delas. Vivia nelas, fortalecia-se a cada nova geração. Tinham mais poder do
que todos os outros. Aquilo que não lhes agradava era alvo de correção.
Começaram a limitar as visitas das criaturas ao vosso mundo. Não podia
entrar ninguém sem autorização delas.
– Foi aí que criaram as runas?
– Não – responde a górgone. – Isso foi a sua vingança.
– Não compreendo.
– Houve várias criaturas de todas as tribos que se associaram. Não
gostavam do poder que a Ordem exercia sobre elas. Não queriam pedir
autorização. Um dia, ripostaram. Quando várias iniciadas da Ordem
estavam a brincar no jardim, apanharam-nas desprevenidas e levaram-nas
para as Invernias, onde as massacraram a todas. Foi nessa altura que as
criaturas descobriram um segredo horrível.
Sinto a boca seca de ouvir esta história.
– Que segredo era?
– O sacrifício de outra entidade conferia um poder enorme.
A água corre debaixo de nós com ruído, leva-nos para a frente.
– De raiva e de desgosto, a Ordem criou as runas para selarem a magia.
Fecharam a fronteira entre os mundos para que só elas pudessem entrar. O
que ficou de cada lado da fronteira permanece encarcerado lá para todo o
sempre.
Lembro-me das colunas de mármore da Spence, das criaturas lá presas na
pedra.
– Assim perdurou muitos anos. Até que uma de vós atraiçoou a Ordem.
– Circe – digo eu.
– Sssim. Ela fez um sacrifício e deu poder aos espíritos negros das
Invernias mais uma vez. Quanto mais espíritos angariavam, mais poderosos
ficavam, mais o selo sobre a magia das runas enfraquecia.
– Então foi por isso que consegui estilhaçá-las? – pergunto.
– Talvez. – A resposta da górgone é como um suspiro. – Talvez,
Altíssima.
– Porque é que me chamas Altíssima?
– Porque o és.
As outras estão debruçadas de um dos lados do barco. Revezam-se a
segurarem nas cordas das velas, deixam os corpos empurrarem contra a
força do vento. O riso alegre de Pippa chega-me acima do restolhar da água.
Tenho uma pergunta para fazer, mas receio dizer em voz alta, receio a
resposta que poderei ter.
– Górgone – começo. – É verdade que os espíritos daqueles do nosso
mundo têm que fazer a travessia?
– É assim que tem sido desde sempre.
– Mas há espíritos que ficam para sempre?
– Não conheço nem um que não tenha ficado corrompido e ido morar nas
Invernias.
O vento apanhou a coroa de flores de Pippa. Ela tenta apanhá-la, a rir-se,
e consegue agarrá-la bem nas duas mãos.
– Mas agora está tudo diferente, não está?
– Sssim – sibila a górgone. – Diferente.
– Então talvez haja maneira de mudar as coisas.
– Talvez.
– Gemma! – Pippa chama-me. – Como te sentes?
– Muito melhor! – digo em voz alta.
– Então volta para cá!
Saio do meu poleiro ao lado da górgone e vou ter com as outras.
– O rio não é lindo? – pergunta Pippa, a sorrir. Tem deveras uma
tonalidade anilada que parece divina. – Oh, tive tantas saudades vossas.
Tiveram muitas saudades minhas?
Felicity corre para a abraçar, e agarra Pip com força.
– Eu pensei que nunca mais te iria ver.
– Tu viste-nos ainda não há dois dias – lembro eu.
– Mas é insuportável. Estamos quase no Natal – diz ela, nostálgica. – Já
foram a alguns bailes?
– Não – responde Ann. – Mas a mãe e o pai da Felicity vão dar o baile de
Natal.
– Depreendo que seja grandioso – diz Pippa, a fazer beicinho.
– Eu vou usar o meu primeiro vestido de noite – continua Ann, e descreve
o traje ao pormenor. Pippa pergunta-nos do baile. É como se estivéssemos
de volta à Spence, sentadas no grande salão, dentro da tenda da Felicity, a
mexericar e a fazer planos.
Sorridente, Pippa faz Felicity dar uma voltinha enquanto a barca desce o
rio vagarosamente.
– Estamos juntas, e não temos de nos separar nunca.
– Mas nós temos de voltar – digo eu. A mágoa nos olhos de Pippa fere-
me.
– Mas quando formares a Ordem outra vez, vens-me buscar, não vens?
– Claro que vimos – responde Felicity. Está em sintonia com Pippa outra
vez, contente por estar perto dela. Pippa abraça Felicity e encosta a cabeça
ao ombro dela.
– São as minhas amigas mais queridas no mundo inteiro. Não há nada que
possa mudar isso, nunca.
Ann junta-se ao abraço. Finalmente, também eu levo os braços ao redor
de Pippa. Rodeamo-la como pétalas, e eu tento não pensar no que nos
acontecerá a todas quando encontrarmos o Templo.
Depois de uma curva pronunciada, o rio abre-se e dá-nos a panorâmica
mais majestosa da margem, com grutas em penhascos que se erguem acima
de nós. Na rocha, há deusas esculpidas. Têm talvez quinze metros de altura,
e toucados complexos em forma de cone. Nos pescoços, fiadas de joias.
Tirando isso, estão nuas e bastante sensuais, as ancas num certo ângulo, um
braço atrás da cabeça, os lábios a esboçarem um sorriso. A decência manda-
me desviar os olhos, mas estão sempre a fugir para lá.
– Oh, valha-me Deus – diz Ann, e baixa imediatamente o olhar.
– O que são? – pergunta Felicity.
A górgone abre a boca.
– As Grutas dos Suspiros. Agora não passam de ruínas abandonadas,
habitadas apenas pelos Hajin, os Intocáveis.
– Os Intocáveis? – repito.
– Sssim. Lá está um. – A cabeça da górgone pende para o lado direito. Há
qualquer coisa a passar pelo mato à beira-rio. – Bichos imundos.
– Porque é que se chamam Intocáveis? – pergunta Ann.
– Sempre foi assim. A Ordem baniu-os para as Grutas dos Suspiros. Já
não vai lá ninguém. É proibido.
– Ora, isso não se faz – diz Ann, a voz já mais alta. – Não se faz de todo.
– Coitada da Ann. Sabe bem o que é ser intocável.
– Para que é que eram usadas antes disso? – pergunto.
– Era o sítio onde a Ordem recebia os amantes.
– Amantes? – repete Felicity.
– Sssim. – A górgone faz uma pausa, e depois acrescenta: – Os
Rakshana.
Eu não sei o que dizer perante isto.
– Os Rakshana e a Ordem eram amantes?
A voz da górgone soa longínqua.
– Outrora.
Felicity exclama:
– Olhem só! – E aponta para o horizonte, onde uma bruma pesada cai do
céu como lascas de ouro, ocultando-nos a vista do que está mais à frente.
Ruidosa como uma queda de água.
– Vamos passar por ali? – pergunta Ann, aflita. Pippa puxa Ann mais para
si.
– Não te aflijas. Vai correr tudo bem, de certeza, senão a górgone não nos
levava lá. Não é assim, Gemma?
– Sim, com certeza – respondo, a tentar não parecer que me sinto
aterrorizada. Não faço ideia do que nos vai acontecer. – Górgone, juraste
que não nos fazias mal, não é assim?
Porém, a pergunta morre no barulho implacável da cascata dourada.
Sentamo-nos todas no chão do barco. Ann fecha bem os olhos. Conforme
avançamos, também fecho os meus, com medo de saber o que vai acontecer
a seguir. Com um barulho ensurdecedor, passamos pela cortina de água e
saímos do outro lado, onde o rio parece um oceano sem terra à vista, tirando
uma ilha verdejante ao largo.
– Estamos vivas – diz Ann, admirada e aliviada.
– Ann – diz Pippa – olha, agora és uma menina de ouro!
É verdade. Temos a pele coberta por flocos de ouro. Felicity vira as mãos
de um lado para o outro, a rir-se alegremente por vê-las resplandecentes.
– Oh, estamos bem, não estamos? Não houve sarilho nenhum!
Pippa ri-se.
– Eu disse-te que não tivesses medo.
– A magia é forte – diz a górgone. Não sei dizer se é afirmação ou
advertência.
– Gemma – pergunta Pippa – porque é que temos de vincular a magia?
– A que te referes? Porque está à solta dentro dos reinos.
– E se isso não for assim tão mau? Porque é que não podem todos usar
esse poder?
Não me agrada o rumo da conversa.
– Porque podem usá-la para entrarem no nosso mundo e lançarem o caos.
Não haveria regulação nem controlo sobre a magia.
– Tu não sabes se os habitantes dos reinos a usariam mal.
Ela não ouviu a história da górgone, senão pensaria de outro modo.
– Não sabemos? Lembras-te da criatura que escravizou a minha mãe?
– Mas estava conluiada com Circe. Talvez não sejam todas assim –
continua Pippa.
– E como é que eu decido quem a pode ter, em quem posso confiar?
Ninguém tem resposta para isto. Eu sacudo a cabeça.
– Está fora de questão. Quanto mais tempo a magia estiver à solta, maior
o perigo de os espíritos aqui presentes ficarem corrompidos. Temos de
encontrar o Templo e vincular a magia outra vez. Depois reformularemos a
Ordem para manter o equilíbrio nos reinos.
Pippa faz beicinho. Tem a ventura irritante de continuar linda mesmo
assim.
– Muito bem. Estamos quase a chegar, seja como for.
DEZOITO

O rio estreitou-se outra vez. Estamos a entrar num ponto em que as árvores
crescem muito altas, grossas e verdes. Delas pendem milhares de
lamparinas. Faz-me lembrar o festival das luzes, Diwali, na Índia, quando
eu e a minha mãe ficávamos acordadas até tarde para ver as ruas
desabrocharem com velas e lamparinas.
O barco acosta na areia macia e molhada da ilha.
– A Floresta das Luzes – diz a górgone. – Fiquem alerta. Digam ao que
vão a Fílon e apenas a Fílon.
A tábua alada baixa e nós saímos para o tapete macio de erva e areia que
se funde em mato rasteiro e denso salpicado de flores de lótus brancas e
gordas. As árvores são tão altas que desaparecem num teto verde-escuro. Só
de olhar para cima me sinto tonta. As luzes oscilam e mexem-se. Uma
passa-me depressa pela cara, faz-me abrir a boca de susto.
– O que foi aquilo? – sussurra Ann, de olhos arregalados.
– O que se passa? – É Felicity quem pergunta. Tem várias luzes em cima
da cabeça. O rosto deslumbrante está alumiado por uma coroa
resplandecente.
As luzes fundem-se numa bola que flutua à nossa frente, a indicar o
caminho.
– Parece que querem que vamos atrás delas – diz Pippa, maravilhada.
Os espíritos pequeninos e luminosos, se assim se chamam, levam-nos
para dentro da floresta. O ar tem um aroma rico a terra. Cresce musgo nas
enormes árvores, como penugem macia e verde. Olho para trás e já não vejo
a górgone. É como se tivéssemos sido absorvidas pela floresta. Tenho
vontade de arrepiar caminho e fugir, especialmente quando ouço o ritmo
suave de cascos no chão a aproximar-se. A bola de luz rebenta e as luzinhas
esvoaçam desgarradas para dentro da floresta.
– O que será? – pergunta Felicity com um guinchinho, a olhar em redor.
– Não sei – responde Pippa.
O ritmo parece chegar-nos de todos os lados. Seja o que for, estamos
cercadas. Aproxima-se e, repentinamente, deixa de se ouvir. Um grupo de
centauros sai, um a um, dentre as árvores. Avançam algo rígidos nas
robustas patas equinas, os braços grossos cruzados sobre torsos humanos
nus. O maior do clã adianta-se. No queixo tem vestígios de barba.
– Quem são? O que tem a tratar aqui? – pergunta.
– Viemos ver Fílon – responde Pippa. Está a ser mesmo corajosa, pois a
mim só me apetece fugir. Os centauros trocam olhares desconfiados.
– Foi a górgone que nos trouxe – digo, na esperança de isso me abrir
portas.
O maior dos centauros avança até ter os cascos a centímetros dos meus
pés.
– A górgone? Que brincadeira faz ela connosco? Muito bem, pois. Vou
levá-las a Fílon e deixar o nosso líder decidir a vossa sina. Subam, a menos
que prefiram andar.
Ele agarra-me com mão férrea quando me iça para a sua garupa larga e
lisa.
– Ah – escapa-se-me, pois não há freio como num cavalo. Aliás, não há
nada a que me possa agarrar, e sou obrigada a abraçá-lo pela cintura grossa
e a apoiar a cabeça na amplidão das suas costas.
Sem sequer pedir com licença, ele lança-se a galope, comigo bem
agarrada enquanto passamos por árvores cujos ramos se estendem
perigosamente perto. Alguns deixam-me arranhões na cara e nos braços, e
desconfio que ele está a fazer de propósito. Os centauros que levam Felicity,
Pippa e Ann cavalgam a meu lado. Ann tem os olhos fechados e a boca
apertada numa careta. Por outro lado, parece que Felicity e Pippa apreciam
a estranha viagem.
Por fim, chegamos a uma clareira de palhotas e cabanas. O centauro
estende-me a mão e atira-me para o chão, onde aterro de traseiro. Depois
ele leva as mãos aos quadris e fica a sorrir por cima de mim.
– Queres ajuda para te levantares?
– Não, obrigada. – Levanto-me de um salto e sacudo as ervas da saia.
– És uma delas, não és? – pergunta, a apontar para o amuleto que
apareceu por cima da blusa depois da viagem acidentada. – Os boatos são
verdade! – brada ele para os amigos. – A Ordem está a voltar aos reinos,
aqui estão elas.
O clã avança e cerca o nosso grupinho de raparigas.
– O que havemos de fazer quanto a isso? – pergunta o centauro, a raiva a
rondar-lhe as palavras. Já não me interessa ver Fílon nem fazer-lhe
perguntas sobre o Templo. Só desejo fugir.
– Creósto! – Ouve-se uma voz nova e estranha.
Os centauros apartam-se, recuam. Curvam as cabeças. O maior, Creósto,
baixa também a cabeça mas por pouco tempo.
– O que é aquilo? – sussurra Ann, agarrada a mim.
Diante de nós está a criatura mais magnífica que eu jamais vi. Não sei se
é homem ou mulher, pode ser ambos. É delicada, com pele e cabelo da cor
baça dos lilases e uma capa comprida até ao chão, feita de bolotas, espinhos
e cardos. Os olhos são verdes cintilantes e oblíquos como os de um gato.
Uma mão é uma pata, a outra, uma garra de ave.
– Quem vem lá? – pergunta a criatura numa voz que é uma harmonia
trinomial, os tons distintos mas inseparáveis em simultâneo.
– Uma bruxa – diz o centauro hostil. – Trazida à nossa beira pela górgone
amaldiçoada.
– Hum – faz a criatura, a olhar para mim até eu me sentir como uma
criança ladina diante da palmatória. Com uma garra afiada, ela levanta-me o
amuleto para melhor o inspecionar. – Uma sacerdotisa. Há muitos anos que
não vemos uma como tu. És aquela que quebrou as runas, o selo da magia?
Tiro o colar da frente do corpo e guardo-o dentro da blusa outra vez.
– Sou.
– O que pretendes de nós?
– Lamento, mas só posso falar com Fílon. Sabes onde posso encontrá-
lo...
– Eu sou Fílon.
– Ah – digo. – Vim pedir-te ajuda.
Creósto interrompe.
– Não a ajudes, Fílon. Não te lembras do que têm sido para nós todos
estes anos?
Fílon cala-o com um olhar.
– Porque haveria de te ajudar, sacerdotisa?
Não tenho resposta ensaiada para isto.
– Porque eu desfiz o selo da magia. É preciso repor o equilíbrio.
Ouvem-se risadas entre os centauros.
– Então que sejamos nós a repô-lo, e a controlar – brada um centauro. Os
outros aplaudem.
– Mas só a Ordem pode vincular a magia e governar os reinos – diz
Felicity.
Fílon fala outra vez.
– Assim foi durante gerações, mas quem diz que terá de ser sempre
assim? O poder é fugaz. Corre como areia.
Mais aplausos e vivas dos outros. Juntou-se uma multidão. Além dos
centauros, as criaturas de luz já têm cerca de meio metro de altura, e pairam
como pirilampos enormes.
– Preferem que seja Circe a encontrá-lo primeiro? – pergunto. – Ou os
espíritos negros das Invernias? Se controlarem a magia, parece-lhes que
venham a ser generosos convosco?
Fílon reflete nisto.
– A sacerdotisa tem razão. Venham comigo.
Creósto ainda grita atrás de nós.
– Não lhes prometas nada, Fílon! A tua lealdade é para com o teu povo
primeiro! Não te esqueças!
Fílon instala-nos numa cabana grandiosa e deita um líquido encarnado
numa taça. Não nos oferecem, o que me faz confiar um pouco mais na
estranha criatura. Se comêssemos ou bebêssemos algo daqui, teríamos de
ficar, como aconteceu a Pippa. Fílon agita o líquido na taça e bebe.
– Concordo que a magia tem de ficar contida. É demasiado possante deste
modo. Há quem nunca lhe tenha sentido a força, e esteja deslumbrado com
ela. Querem mais e mais. Há inquietação. Receio que entrem em alianças
insensatas e nos condenem à escravidão. É uma ameaça aos nossos
costumes.
– Então ajudas-me a encontrar o Templo? – pergunto.
– E o que nos prometes se te ajudarmos? – Como eu nada digo, Fílon faz
um sorriso torto. – Tal como eu pensava. Não interessa à Ordem partilhar o
poder dos reinos.
– A górgone disse que vocês e a Ordem eram aliados outrora.
– Sim – diz Fílon. – Outrora. – A criatura dá a volta à sala com uma
graciosidade elegante e felina. – Os centauros eram mensageiros delas; eu
era mestre de armas. Porém, depois da rebelião, elas sonegaram-nos a
magia, como fizeram a todos os outros, embora tivéssemos permanecido
leais. Foi assim que nos agradeceram.
Não sei o que dizer perante isto.
– Talvez não houvesse outra maneira. – A criatura contempla-me
longamente, até eu me sentir obrigada a desviar o olhar.
– Eles não nos vão ajudar, Gemma. Vamo-nos embora – diz Felicity.
Fílon volta a encher a taça.
– Não posso dizer-te onde encontrar o Templo pois, na verdade, não sei
onde fica. Mas posso oferecer-te algo. Venham comigo.
Saímos para o dia nublado outra vez. Creósto vem ao caminho daquele
chefe magnífico e fala baixo numa língua que não compreendemos. Porém,
eu compreendo a raiva na voz, a cautela nos olhos de cada vez que
dardejam para nós. Fílon despacha-o com uma palavra breve:
– Nyim!
– Não podes confiar nelas, Fílon – cospe o centauro. – As promessas
delas são como brilho, com o tempo, esfumam-se.
Fílon leva-nos para uma cabana baixa. As paredes cintilam com um leque
de armas reluzentes, algumas que eu nem nunca vi. Mosquetões prateados
pendem em ganchos. Taças com pedrarias e espelhos ricamente
ornamentados lado a lado.
– Enquanto a magia está à solta, usamo-la para regressar aos antigos
costumes. Se não sabemos o resultado, temos de estar preparados. Podem
levar uma arma para a vossa viagem.
– São todas armas? – pergunto.
– Com o sortilégio certo, tudo pode ser uma arma, sacerdotisa.
São tantas que nem sei por onde começar.
– Oh – exclama Felicity. Encontrou um arco leve como uma pluma e uma
aljava cheia de setas com pontas de prata.
– Parece-me que a escolha está feita – diz Fílon, e passa-lhe o conjunto.
As setas são benfeitas mas discretas, tirando as estranhas marcas nas pontas
de prata, uma série de números, linhas e símbolos que poderei nunca vir a
compreender.
– O que são? – pergunta Felicity.
– A língua dos nossos anciãos.
– Setas mágicas? – pergunta Ann, a mirar as pontas.
Felicity ergue o arco e fecha um olho a mirar um alvo imaginário.
– São setas, Ann. Hão de funcionar como quaisquer outras.
– Talvez – diz Fílon. – Se tiveres coragem de apontar e disparar.
Felicity faz má cara e vira o arco para Fílon.
– Felicity! – sai-me num silvo. – O que estás a fazer?
– Coragem não me falta – rosna ela.
– E terás quando importar mais? – pergunta Fílon, impávido. Pippa baixa
o arco e afasta-o.
– Fee, deixa isso.
– Coragem não me falta – diz ela outra vez.
– Claro que não – contemporiza Pippa. Fílon olha-as, curioso.
– Veremos. – Vira-se para mim e continua: – Sacerdotisa, estas setas são
então a tua escolha?
– Sim – respondo. – Presumo que sim.
– Temos de nos ir embora – diz Felicity. – Obrigada pelas setas.
Fílon curva aquela cabeça magnífica.
– Não têm de quê. Mas não são prendas. São prova de uma dívida a
pagar.
Sinto-me como que a cair num buraco e quanto mais tento sair, mais me
afundo.
– Que espécie de pagamento?
– Parte da magia é o que pedimos, caso encontres o Templo primeiro.
Não tencionamos viver nas trevas outra vez.
– Compreendo – digo, a fazer uma promessa que não sei se poderei
honrar.

Fílon acompanha-nos à orla da floresta, onde as estranhas luzes radiantes


nos esperam para levar de volta ao barco.
– Todos vão tentar impedir-te de encontrar o Templo. Tens de ficar ciente
disso. Como é que se vão proteger? Têm alianças?
– Temos a górgone – respondo. Fílon faz que sim com a cabeça, devagar.
– A górgone. A última da sua espécie. Encarcerada num barco para todo o
sempre para remissão dos seus pecados.
– A que te referes? – pergunto.
– Refiro-me ao muito que desconheces – responde Fílon. – Avança com
cautela, sacerdotisa. Aqui não há escusas. Os teus desejos mais profundos,
as tuas ânsias ou os teus maiores medos podem ser usados contra ti. Há
muitos que quererão impedir-te de cumprires essa tarefa.
– Porque é que me dizes isso? Afinal continuas leal à Ordem?
– Estamos em guerra – diz Fílon, o cabelo comprido arroxeado a dançar
nas maçãs do rosto proeminentes. – Sou leal ao vencedor.
As luzes giram e correm por cima da cabeça de Pippa. Ela enxota-as a
brincar. Eu ainda tenho uma última pergunta antes de partirmos.
– A górgone é nossa aliada, não é? Obrigada a dizer-nos a verdade
sempre.
– Obrigada por quem? A magia já não é fiável. – E com isto, a criatura
alta e esguia vira costas, a capa de cardos a arrastar-se como uma corrente.
Quando chegamos à margem, Creósto está lá, à espera, de braços
cruzados.
– Encontraste o que procuravas, bruxa?
Felicity dá palmadinhas na aljava que leva às costas.
– Então Fílon deu-te uma prova. O que nos darás tu em troca? Dar-nos-ás
poder? Ou recusar-te-ás?
Não respondo, subo para a tábua alada da górgone, a ouvi-la fechar-se
com um rangido atrás de nós. O vento enfuna a vela larga e translúcida, e
afastamo-nos da ilha diminuta até não passar de um ponto verde atrás de
nós. Porém, o brado do centauro segue-me na brisa, prende-me o fôlego no
seu punho.
– O que nos darás em troca, bruxa? O que nos darás tu?

Passamos mais uma vez pela cortina dourada e seguimos rio abaixo.
Quando regressamos às estátuas nos penhascos, às Grutas dos Suspiros,
vejo fumo colorido – encarnado, azul, cor de laranja, violeta – que se ergue
muito acima, e fico com a certeza de ter visto uma figura atrás do fumo.
Todavia, o vento sopra e muda de direção, não vejo mais do que volutas de
luz.
Surge um nevoeiro prateado. Tenho vislumbres da beira-rio, mas custa-
me a ver bem. Ann vai para a borda do barco.
– Escutem, estão a ouvir? Aquela canção bonita voltou!
Demoro um momento, mas já ouço. A canção é ténue mas belíssima.
Entranha-se-me nas veias e corre-me pelo corpo, faz-me sentir quente e
leve.
– Olhem! Na água! – exclama Ann.
Uma a uma, emergem três cabeças nuas. São mulheres como nunca vi. Os
corpos cintilam debilmente com escamas luminescentes que brilham em
tons rosados, acastanhados e alaranjados. Quando levantam as mãos de
dentro de água, vejo membranas leves entre os dedos compridos. São
hipnóticas, e dou comigo incapaz de não olhar. Sinto-me alegre com a
canção. Felicity e Ann riem-se e juntam-se na lateral do barco, tentam
chegar-se mais. Eu e Pippa vamos também. As mãos palmípedes afagam a
grande barcaça como se fosse o cabelo de uma criança. A górgone não
abranda. A massa de serpentes emaranhadas sibila sem parar.
Ann estende o braço mas não chega lá com a mão.
– Oh, quem me dera tocar-lhes – diz.
– Porque é que não podemos? – pergunta Pippa. – Górgone, baixa a
tábua, se faz favor.
A górgone não responde e não abranda.
As mulheres são tão lindas; a canção tão bonita.
– Górgone – digo eu. – Baixa a tábua.
As serpentes contorcem-se como se sofressem.
– É teu desejo, Altíssima?
– Sim, é meu desejo.
O grande barco abranda e a tábua desce até pairar logo acima da água.
Com as saias arrebanhadas nas mãos, saímos e agachamo-nos, à procura
delas.
– Onde estão? – pergunta Ann.
– Não sei – respondo.
Felicity está de gatas, as pontas do cabelo já dentro de água.
– Talvez se tenham ido embora.
Ponho-me de pé, tento ver no nevoeiro. Algo frio e molhado me acaricia
o tornozelo. Solto um guincho e cambaleio mesmo quando a mão
palmípede da criatura se recolhe e afasta da minha perna, deixa escamas
reluzentes na minha meia.
– Oh, não! Assustei-a – digo eu. O corpo como o de uma sereia desliza
para baixo da tábua e desaparece.
A tona do rio está coberta com uma película oleosa. Passado momentos,
as criaturas emergem mais uma vez. Parecem fascinadas por nós como
estamos por elas. Ficam a boiar nas correntes pequenas, as mãos estranhas
para trás e para a frente, para trás e para a frente.
Ann ajoelha-se.
– Olá.
Uma das criaturas aproxima-se e começa a cantar.
– Oh que lindo – diz Ann.
De facto, a canção é tão bonita que me apetece ir para a água atrás delas e
ouvi-la para sempre. Juntou-se uma multidão delas, seis, depois sete, depois
dez. A cada uma que vem, a canção cresce, fica mais pujante. Estou a
afogar-me nesta beleza.
Uma criatura agarra-se ao barco. Olha para mim. Tem olhos enormes,
como espelhos do próprio oceano. Fito-os e vejo-me a cair depressa nas
profundezas, onde toda a luz se desvanece. Ela estende a mão para me
acariciar o rosto. A canção dela flutua perto dele.
– Gemma! Não! – Tenho a vaga noção de que Pippa me está a chamar,
mas tudo se funde na canção e passa a melodia que me convida a entrar no
rio. Gemma... Gemma... Gemma...
Pippa puxa-me rudemente e caímos as duas em cima da tábua. A canção
das ninfas passa a um guincho feroz que me deixa um arrepio na espinha.
– O que… que foi? – pergunto, como se acordasse de um sonho.
– Aquela coisa quase te puxou para baixo! – exclama Pippa. Depois abre
muito os olhos. – Ann! – grita.
Ann passa as duas pernas para um dos lados da tábua. Tem um sorriso de
êxtase nos lábios e uma das coisas está a afagar-lhe a perna e a cantar tão
docemente que é de cortar o coração. Felicity estende uma mão, os dedos a
centímetros das mãos palmípedes de duas criaturas.
– Não! – Eu e Pippa gritamos em uníssono.
Agarro Ann e Pippa passa os braços à volta de Felicity. Elas debatem-se,
mas conseguimos puxá-las.
As criaturas soltam outro guincho horrível. De raiva, agarram-se à tábua
como se nos quisessem sacudir para cairmos à água, ou mesmo arrancar a
tábua.
Ann esconde-se nos braços de Pippa e Felicity dá pontapés nas mãos das
criaturas.
– Górgone! – chamo eu. – Socorro!
– Omata! – Ouve-se a voz da górgone, poderosa e autoritária. – Omata!
Deixem-nas senão usamos as redes!
As criaturas gritam e recuam. Olham para nós com desapontamento antes
de se afundarem devagar dentro de água. Não há nada além de um brilho
oleoso à tona, a servir de prova da sua presença. Eu praticamente empurro
as outras para dentro do barco.
– Górgone, iça a tábua! – grito.
– Como te aprouver – responde ela, e puxa a asa pesada. As mulheres
calvas e brilhantes não gostam. Tornam a guinchar.
– O que são aquelas coisas? – pergunto, arquejante.
– Ninfas da água – responde a górgone, como se eu as visse todos os dias
ao lanche. – Estão fascinadas pela vossa pele.
– São inofensivas? – pergunta Ann, a esfregar as escamas coloridas que
lhe ficaram numa meia.
– Depende – responde a górgone. Felicity olha para a água.
– Depende de quê?
A górgone continua.
– Se te acharem encantadora. Se ficarem particularmente deslumbradas
tentarão atrair-te até ao lago delas. Depois de te encurralarem, tiram-te a
pele.
Quando me apercebo do perto que estivemos de as seguir até às
profundezas, tremo como varas verdes.
– Quero voltar – geme Ann. Eu também quero.
– Górgone, leva-nos de volta ao jardim, já – ordeno.
– Como te aprouver – diz ela.
Atrás de nós, vejo as ninfas a espreitarem à tona da água revolta, as
cabeças reluzentes a boiarem como joias de um tesouro perdido. Um
fragmento daquela canção belíssima encontra-nos e, por momentos, chego-
me à beira do barco, desejo mais uma vez mergulhar. Avançamos com uma
sacudidela, afastamo-nos delas, e a canção transforma-se em raiva, um
ruído como pássaros que não têm que comer.
– Calem-se – digo eu baixinho, desejosa que acabe. – Porque é que não se
calam?
– Estão à espera de uma prenda, de um brinde para o caminho – responde
a górgone.
– Que espécie de prenda? – pergunto.
– Uma de vós.
– Isso é horrível – digo.
– Sssim – sibila a górgone. – Indispuseram-nas deveras, parece-me.
Sabem ser malvadas quando se zangam, e guardam rancor.
A ideia daquelas mãos molhadas e frias a puxarem uma de nós para baixo
faz-me estremecer.
– Há mais ninfas daquelas por aí? – pergunta Pippa, o rosto pálido
iluminado pelo céu cor de laranja.
– Sssim – responde a górgone. – Mas eu não preocuparia muito. Só
podem chegar-vos se as meninas estiverem dentro de água.
Fraco consolo.
O nevoeiro levanta. Tenho as pernas a tremer, como se tivesse corrido
durante muito tempo. Nós quatro estamos deitadas no chão do barco, a
olhar para o céu radioso.
– Como é que encontraremos o Templo se aquelas criaturas usarem a
própria magia contra nós? – pergunta Ann.
– Não sei – respondo.
Não é o jardim bonito que minha mãe me mostrou. Agora é bastante
evidente que os reinos além desse jardim não são sítio onde eu possa agir
descontraidamente.
– Górgone – chamo quando tudo está mais calmo e o jardim à vista – é
verdade que foste encarcerada neste barco para castigo?
– Sssim. – É a resposta sibilante.
– Pela magia de quem?
– Da Ordem.
– Mas porquê?
A grande barcaça range e geme na água.
– Fui eu quem chefiou o meu povo contra a Ordem aquando da rebelião.
As serpentes na cabeça dela contorcem-se e esticam-se. Uma enrola-se na
proa pontiaguda, a língua a centímetros da minha mão. Recuo para uma
distância mais segura.
– Ainda és leal à Ordem? – pergunto.
– Sssim. – A resposta vem, mas não é imediata, como se fosse obrigada
por magia. Há um momento de hesitação. Ela parou para pensar. Apercebo-
me de que o aviso de Fílon faz sentido.
– Górgone, sabias que as ninfas de água estavam perto?
– Sssim – diz ela.
– Porque é que não nos avisaste?
– Não perguntaste. – Com isto, chegamos ao jardim, onde a grande besta
verde fecha os olhos.
Pippa abraça-nos com força, não nos quer largar.
– Têm mesmo de ir já? Quando é que podem voltar?
– Assim que possível – diz Felicity para a descansar. – Não deixes que
nada te apanhe, Pip.
– Não deixo – diz Pippa, e pega-me nas mãos. – Gemma, eu hoje salvei-
te a vida.
– Sim, salvaste. Obrigada.
– Presumo que isso nos deixe vinculadas, não é? Como uma promessa?
– Presumo que sim – respondo, pouco à vontade. Pippa dá-me um beijo
na face.
– Voltem assim que puderem!
A porta de luz acende-se e viemos embora com ela a acenar-nos, a
derradeira imagem fugaz num sonho antes de acordarmos.
De volta ao quarto no clube, tomamos bem atenção umas às outras.
Estamos bem, algo abaladas, e prontas a retomar os nossos lugares para o
chá.
– Estás a sentir? – pergunta Felicity quando descemos a escada. Faço que
sim com a cabeça. A magia corre-me pelo corpo. O sangue passa mais
depressa, todos os sentidos estão mais alerta. É espantoso, como ter luz por
dentro. Atrás das portas fechadas da sala de jantar, ouço pedaços de
conversas, sinto as carências e os desejos, as invejas mesquinhas e os
desapontamentos de cada coração que bate, até me sentir obrigada a fechar-
me a tudo.
– Ah, cá está a nossa menina Bradshaw – diz a mulher volumosa quando
entramos na sala. – Constou-nos que foi treinada pelos mestres mais
prestigiados de toda a Rússia quando era pequena, e que foi assim que a
família da czarina soube logo que a menina era a parente há muito perdida,
pela sua voz belíssima. Não nos quer dar a honra de cantar uma canção para
nós?
Esta história está a ganhar vida própria como a magia nos reinos, de cada
vez que é contada.
– Sim, tens de o fazer – diz Felicity, a pegar no braço de Ann. – Usa a
magia – sussurra ela.
– Felicity! – sussurro também. – Não é para nós...
– Tem de ser! Não podemos abandonar a Ann.
Ann olha para mim, suplicante.
– Só desta vez – diz Felicity.
– Só desta vez – repito eu.
Ann vira-se para a multidão, a sorrir.
– Tenho muito gosto em cantar.
Depois espera que o roçagar das saias termine e que as mulheres se
sentem. Fecha os olhos. Sinto-a a concentrar-se, a reunir a magia. É como
se estivéssemos unidas por ela, a laborar em conjunto para criar esta ilusão.
Ann abre a boca para cantar. Tem uma voz linda já de si, mas a música que
sai dela é poderosa e sedutora. Demoro um momento a reconhecer o
idioma. Ela está a cantar em russo, língua que desconhece. É um toque
muito requintado.
As mulheres do clube estão deslumbradas. Quando Ann chega ao
crescendo da canção, algumas levam os lencinhos aos olhos, de comovidas
que estão. Quando Ann termina com uma vénia pequena e respeitosa, as
mulheres aplaudem e correm para a louvar. Ann deleita-se com a adoração.
Lady Denby avança para Ann e dá-lhe os parabéns.
– Lady Denby, está maravilhosa hoje – diz a mãe de Felicity. Lady Denby
faz que sim com a cabeça mas nada diz. O desdém não passa desapercebido
a ninguém. Faz-se um silêncio constrangedor na sala. Lady Denby olha para
Ann com frieza.
– Diz que é parente do duque de Chesterfield?
– S-sim – gagueja Ann.
– Estranho. Não creio ter conhecido esse duque.
Sinto um puxão, uma mudança no ar. A magia. Quando olho, Felicity tem
os olhos fechados para se concentrar, e um sorriso leve nos lábios
generosos. De súbito, Lady Denby solta um vento com enorme barulho.
Não há como ocultar o choque e o horror no seu rosto ao perceber o que
fez. Torna a bufar, e várias mulheres pigarreiam e desviam os olhos,
fingindo que não repararam na ofensa. Por seu turno, Lady Denby pede
licença, a murmurar algo de estar indisposta, mas já a sair.
– Felicity, que maldade a tua! – sussurro eu.
– Porquê? – pergunta ela, impávida e serena. – Afinal ela só tem ar por
dentro, mais nada.
Agora que Lady Denby se foi embora, as pessoas rodeiam Ann e a
senhora Worthington, felicitam a mãe de Felicity por ter uma convidada de
tanto prestígio em sua casa. Convidam-na para tomar chá, para jantar,
abrem-lhe as suas casas. O desdém ficou esquecido.
– Nunca mais serei impotente – diz Felicity, embora eu não saiba bem a
que se refere, e ela também não adianta explicações.
DEZANOVE

Quando chego a casa, está a fazer-se noite sobre Londres como um véu, a
luz dos candeeiros a gás suaviza as arestas e fica tudo numa mesmitude
escura e nublada. A casa está um sossego. A avó foi jogar cartas com as
amigas. O meu pai está a dormitar na poltrona, o livro aberto no colo. Até
em sonhos o meu pai é assombrado.
Fluem em mim os últimos vestígios de magia. Fecho as portas e ponho a
mão na testa dele. Só desta vez, como disse a Felicity. Não preciso de mais
nada. Não vou usar este poder para ter um vestido de noite novo; vou usá-lo
para sarar o meu pai. Como é que isso pode ser errado?
Mas como começar? A mãe disse que tenho de me concentrar. Tenho de
ter a certeza do que pretendo e tenciono. Fecho os olhos e deixo o
pensamento ir para o meu pai, curá-lo daquele mal.
– Desejo sarar o meu pai – digo. – Desejo que ele nunca mais tenha
vontade de tomar láudano. – Sinto formigueiro nas mãos. Está a acontecer
algo. Rápida como uma torrente, a magia transborda de dentro de mim e
entra no meu pai, o qual arqueia as costas com o embate. Ainda de olhos
fechados, vejo nuvens correrem pelo céu, vejo o meu pai a rir-se e sadio
outra vez. Agarra-me para dançarmos e oferece prendas de Natal aos
criados todos, cujos olhos brilham de gratidão e bonomia. É o pai que eu
conheço. Só agora me apercebo da falta que senti. As lágrimas molham-me
o rosto.
O meu pai deixa de gemer na cadeira. Estou pronta a tirar a mão, mas não
consigo. Há uma última coisa, rápida como um truque de prestidigitação.
Vejo a cara de um homem, os olhos contornados a traço negro. «Obrigado,
boneca», rosna ele. Fico livre.
As velas na árvore de Natal ardem bem. Estou a tremer e a transpirar do
esforço. O meu pai está tranquilo e quieto, até tenho medo de o ter matado.
– Pai? – chamo baixinho. Como ele não acorda, sacudo-o. – Pai!
Ele pestaneja, admirado por me ver tão agitada.
– Olá, querida. Passei pelas brasas, não foi?
– Sim – respondo, observo-o atentamente. Ele leva os dedos à testa.
– Tive sonhos tão esquisitos.
– Com quê, pai? Com que sonhou?
– Não... Não me recordo. Bem, agora estou acordado. E cheio de fome,
de repente. Passei a hora do chá a dormir? Tenho de me entregar à
misericórdia da nossa fiel cozinheira. – O meu pai atravessa a sala a passo
enérgico. Daí a momentos, ouço a voz sonante do meu pai e a cozinheira a
rir-se. É um som tão bonito que até dou comigo a chorar.
– Obrigada – digo, a ninguém em particular. – Obrigada por me ajudarem
a sará-lo.
Quando entro na cozinha, o meu pai está sentado a uma mesinha, a dar
dentadas em pão com pato assado e molho, e a regalar a cozinheira e uma
criada com as suas aventuras.
– Lá estava eu, cara a cara com a maior cobra que já se viu, a pôr-se de
pé, alta como uma árvore tenra e um pescoço grosso como o braço de um
homem.
– Valha-me Deus – diz a cozinheira, a beber-lhe as palavras. – E o que fez
o senhor?
– Eu disse, «Olhe, não queira comer-me, que eu sou muito rijo. Coma
aqui o meu sócio, o senhor Robbins.»
– Não disse!
– Ai disse, pois. – O meu pai está contente com a plateia, e salta para
representar o resto como uma pantomina. – Lançou-se ao Robbins sem
demora. Eu só tinha um instante para agir. Calado como um rato, saquei da
machadinha e cortei a cobra ao meio, mesmo antes de ela atacar o coitado
do Robbins e de o matar.
A criada, uma rapariga da minha idade, está boquiaberta. Além da
fuligem que tem no nariz, é bem bonita.
– A cobra era deliciosa. – O meu pai senta-se com um sorriso satisfeito.
Estou tão feliz de o ver assim que podia passar a noite a ouvir-lhe as
histórias.
– Oh, senhor, mas que emoção. As aventuras que o senhor teve. – A
cozinheira passa uma travessa à criada. – Toma. Leva isto ao senhor Kartik.
– Senhor Kartik? – repito, e sinto que vou desmaiar.
– Sim – diz o meu pai, a ensopar o pão no molho. – Kartik, o novo
cocheiro.
– Eu vou, se não se importam – digo, tirando a travessa à criada, que faz
cara triste. – Gostaria de conhecer esse senhor Kartik.
Antes que possam objetar, dirijo-me aos estábulos, passo por uma criada
coberta de fuligem e uma lavadeira cansada, com as mãos nas cruzes. Há
famílias inteiras a viverem nas casas por cima destes estábulos. Custa a
imaginar. O cheiro faz-me levar a mão ao nariz. A nossa carruagem é a
quarta à direita. Está um moço de estrebaria a tratar dos dois cavalos do
meu pai. Quando me vê, tira o boné.
– Boa noite, menina.
– Estou à procura do senhor Kartik – digo eu.
– ‘Tá ali, menina, ao pé do coche.
Dou a volta e lá está ele, a polir o coche já reluzente com um trapo.
Deram-lhe uma farda como deve ser: calças, sapatos, colete às riscas,
camisa boa, chapéu. Os caracóis estão domados com óleo. Parece mesmo
um cavalheiro. Até fico sem fôlego.
Pigarreio. Ele vira-se e vê-me, um sorriso malandro anima-lhe o rosto.
– Boa noite, como está? – pergunto com toda a formalidade para o moço
ouvir, pois deve estar a espiar-nos neste instante. Kartik apanha logo a dica.
– Boa noite, menina. Willie! – chama ele.
– Sim, senhor Kartik?
– Sê bom rapaz e vai esticar as patas da Ginger, está bem?
O rapaz leva a égua da baia para fora do estábulo.
– O que lhe parece o meu fato novo? – pergunta Kartik.
– Não lhe parece um atrevimento aceitar emprego de cocheiro na nossa
casa? – sussurro.
– Eu disse que estaria por perto.
– Pois disse. Como é que conseguiu?
– Os Rakshana trataram de tudo. – Os Rakshana. Claro. Está tudo em
sossego. Ouço a Ginger a resfolegar baixinho do outro lado dos estábulos.
– Bem – digo eu.
– Bem – repete Kartik.
– Cá estamos.
– Sim. Foi simpático da sua parte vir ver-me. Está com bom ar.
Ainda morro de boa educação.
– Trouxe-lhe o jantar – digo, e mostro a travessa.
– Obrigado – diz ele, a puxar um banco para mim, o qual tem em cima
um volume de A Odisseia. Kartik senta-se nos degraus do coche. – Presumo
que a Emily já não venha.
– Quem é a Emily? – pergunto.
– A criada. Ela é que me traz o jantar. É uma rapariga muito simpática.
Sinto-me corar.
– E decidiu como ela é depois de a conhecer há um dia.
– Sim – diz ele, a descascar uma laranja sumarenta, obviamente colocada
na travessa pela simpática Emily. Ocorre-me que Kartik talvez nunca me
possa ver como uma rapariga normal, alguém por quem se espera, por quem
se anseia, a quem se considera «simpática».
– Tem notícias sobre o Templo? – pergunta ele sem levantar os olhos.
– Hoje fomos a um sítio chamado Floresta das Luzes – digo-lhe. –
Conheci uma criatura chamada Fílon. Não sabia onde encontrar o Templo,
mas ofereceu-se para me ajudar.
– Que tipo de ajuda?
– Armas.
Vejo Kartik semicerrar os olhos.
– A criatura pensou que a menina precisasse delas?
– Sim. Fílon deu-nos setas mágicas. Eu não sei usá-las, mas a Feli… a
menina Worthington tem muito jeito. Ela…
– O que pediu em troca? – Kartik lança-me um olhar penetrante.
– Parte da magia quando encontrarmos o Templo.
– A menina recusou, com certeza. – Como nada digo, Kartik atira a
laranja para cima da travessa, irritado. – Fez uma aliança com criaturas dos
reinos?
– Eu não disse isso! – refilo. Não é verdade, mas também não é mentira. –
Se não estou a fazer as coisas como o Kartik gosta, porque não vai lá?
– Sabe bem que não podemos entrar nos reinos.
– Então terá de confiar que eu estou a fazer o que posso e sei.
– Eu confio – diz ele baixinho.
Os ruídos da noite rodeiam-nos, criaturinhas a escapulirem-se para aqui e
para ali, em busca de comida e aconchego.
– Sabia que os Rakshana e a Ordem outrora foram amantes? – pergunto.
– Não, não sabia – responde Kartik, passada alguma hesitação. – Mas
que... interessante.
– É, de facto.
Ele tira uma pele branca à laranja e oferece-me um gomo limpo.
– Obrigada – digo eu, tiro o gomo dos dedos dele e ponho-o na língua. É
muito doce.
– Não tem de quê. – Ele faz-me um sorrisinho. Ficamos sentados um
pouco, a saborear a laranja. – A menina já...
– O quê?
– Pergunto se alguma vez viu o meu irmão nos reinos?
– Não – respondo. – Nunca o vi.
Kartik parece sentir alívio.
– Então ele deve já ter feito a travessia, não lhe parece?
– Sim, presumo que sim.
– Como é que são os reinos? – pergunta ele.
– Lindos, em parte. Tão lindos que não queremos vir embora nunca mais.
No jardim, podemos transformar pedras em borboletas ou ter um vestido de
fio de ouro que canta ou... O que desejar-mos.
Kartik sorri.
– Continue.
– Há uma barcaça, parece um barco viquingue, com a cabeça de uma
górgone. Ela levou-nos por um muro de água dourada que nos deixou
centelhas de ouro na pele.
– Como o ouro do seu cabelo?
– Muito mais fino – digo, a corar, pois não é nada típico de Kartik reparar
em mim.
– Há outras partes que já não são tão bonitas. Criaturas estranhas, coisas
horrorosas. Calculo que seja por isso que tenho de vincular a magia, para
que não a possam manipular.
O sorriso de Kartik desvanece-se.
– Sim, calculo que sim. Menina Doyle?
– Sim?
– Parece-lhe... Quer dizer, e se decidisse lá ficar, nos reinos, depois de
encontrar o Templo?
– O que quer dizer com isso?
Kartik esfrega os dedos onde o sumo da laranja os deixou brancos como
giz.
– Parece-me um belo sítio para alguém se esconder.
– Mas que coisa estranha de se dizer.
– Queria dizer viver. Um belo sítio para se viver, não lhe parece?
Por vezes não compreendo Kartik de todo.
Uma lamparina lança luz sobre a palha e a terra debaixo dos nossos pés.
A bonita criada da cozinha aparece de repente, com um ar pasmado.
– Com licença, menina. Esqueci-me de trazer o café ao senhor Kartik.
– Eu estava de saída – digo-lhe, quase me levanto de um salto. Presumo
que seja a dita Emily. – Obrigada por explicar, hum, essas informações
importantes sobre... sobre...
– Segurança em viagem? – sugere Kartik.
– Sim. Todo o cuidado é pouco com essas coisas. Boa noite – digo.
– Boa noite – diz ele. Emily não faz por se vir embora. Quando passo
pelos cavalos, ouço-a rir-se moderadamente, como uma menina, de algo
que Kartik disse.
Reparo em Ginger e ela põe-se a resfolegar.
– É falta de educação estar a olhar – digo-lhe, antes de correr para o meu
quarto para amuar sozinha.

A caixinha que Simon me deu está em cima da mesa ao lado da cama. Tiro
o fundo falso e vejo o malvado frasco castanho lá dentro.
– Já não vais ser preciso – digo. A caixa desliza facilmente para um canto
do meu armário, fica perdida entre combinações e bainhas de saias. Da
janela vejo as lamparinas dos estábulos e do lugar para o nosso coche. Vejo
Emily a voltar de lá, com lamparina na mão também. A luz incide-lhe na
cara quando se volta para sorrir a Kartik, e este acena-lhe. Ele olha para
cima e eu baixo-me, apago rapidamente a minha luz. O quarto fica imerso
nas sombras.
Porque é que me incomoda que Kartik goste de Emily? O que somos um
para o outro, além de uma obrigação? Deve ser isso que me incomoda. Oh,
quem me dera esquecer isto tudo com Kartik. É uma tolice.
Amanhã é um novo dia, 17 de dezembro. Vou jantar com Simon
Middleton. Farei o melhor que puder para encantar a mãe dele e não ser um
fardo nem um estorvo. Depois disso, vou tratar de descobrir o Templo mas,
por uma noite, uma noite gloriosa e descontraída, tenciono usar um belo
vestido e desfrutar da bela companhia de Simon Middleton.
– Como tem passado, senhor Middleton? – pergunto para o ar. – Não –
respondo, e falo mais baixo. – Como tem passado, menina Doyle? Ora,
maravilhosamente bem, senhor...
A dor assola-me. Não consigo respirar. Meu Deus! Não consigo respirar!
Não, não, não, deixem-me em paz, por favor, por favor! Não serve de nada.
Sou puxada como a maré, afundo-me numa visão. Não quero abrir os olhos.
Sei que elas estão lá. Sinto-as. Ouço-as.
– Vem connosco... – sussurram.
Abro um olho e depois o outro. Lá estão elas, as três raparigas
fantasmagóricas. Parecem tão perdidas, tão tristes, com a pele macilenta, as
olheiras fundas nas faces.
– Temos algo para te mostrar...
Uma delas põe-me a mão no ombro. Reteso-me toda e sinto-me adensar
na visão. Não sei onde estamos. Um castelo qualquer, uma grande fortaleza
em ruínas. Há musgo verde-escuro num dos lados. Ouvem-se gargalhadas
animadas e, pelas janelas altas e ogivais, vejo lampejos de branco. São
meninas a brincar. Não são umas raparigas quaisquer – são moças vestidas
de branco. Mas estão tão bonitas, frescas e vivas e contentes!
– Não me apanhas, não me apanhas! – grita uma, e até me corta o
coração, pois era a brincadeira que a minha mãe fazia comigo quando eu
era pequenina. As outras duas raparigas aparecem a uma esquina, assustam-
na. Todas desatam à gargalhada. – Eleanor! – chamam todas três. – Onde
estás? Já são horas! Vamos ter poder… ela prometeu.
Correm para a beira do penhasco; o mar troveja lá em baixo. As raparigas
passam por cima das rochas, as silhuetas recortadas contra o céu cinza
como estátuas gregas animadas. Riem-se, tão felizes, tão felizes.
– Vamos, não sejas mandriona! – gritam elas alegremente para a quarta
rapariga. Não a consigo ver bem, mas vejo a mulher de manto verde-escuro
a aproximar-se rapidamente, vejo as mangas amplas e longas enfunadas ao
vento. A mulher pega na mão da rapariga que está a ficar para trás.
– São horas? – gritam as outras.
– Sim – grita também a mulher no manto verde. Com a mão da rapariga
bem presa na sua, ela fecha os olhos e levanta as mãos das duas na direção
do mar. Está a murmurar qualquer coisa. Não; está a conjurar qualquer
coisa! O terror nasce dentro de mim como náuseas, faz-me engasgar. Vem
do mar, e ela está a chamá-lo! As raparigas gritam aterrorizadas, mas a
mulher de verde não abre os olhos. Não se detém.
Porque é que me estão a mostrar isto? Quero sair daqui! Tenho de fugir
daquela coisa, do terror. Estou de volta ao meu quarto. As raparigas pairam
aqui perto. As biqueiras dos botins raspam no chão. Acho que ainda
enlouqueço com o ruído.
– Porquê? – pergunto, tento não vomitar. – Porquê?
– Ela mente... – sussurram. – Não confies nela... Não confies nela... Não
confies nela...
– Em quem? – pergunto, arquejante, mas elas foram-se. A pressão liberta-
me. Tento respirar, de olhos lacrimejantes, nariz a pingar. Não suporto estas
visões horríveis. E não as compreendo. Não confiar em quem? Porque é que
não posso confiar nela?
Porém, houve algo diferente nesta visão, um pormenor de que me recordo
agora. Algo na mão da mulher. Ela tinha um anel qualquer, um anel
invulgar. Demoro um momento caída no chão para recobrar os sentidos.
Depois parece-me que sei o que era.
O anel na mão da mulher tinha a forma de duas serpentes entrelaçadas.
Já vi esse anel – na mala debaixo da cama da professora McCleethy.
VINTE

– Gemma, não descomponhas assim o cabelo – ralha a avó do seu poleiro a


meu lado no coche.
– Ah – exclamo. Tenho estado tão absorta em pensamentos que nem
reparei no anel de cabelo que estou a enrolar num dedo, incessantemente.
Tenho estado perdida o dia todo, a pensar na visão desta noite e no que
significa. Uma mulher com um anel de serpentes. A professora McCleethy
tinha um anel assim, mas que ligação poderá ter àquela mulher embuçada
ou às raparigas? Estas visões não têm sentido nenhum. Quem são as
raparigas, porque é que precisam da minha ajuda? O que é que me estão a
tentar mostrar?
Tenho de enxotar estes pensamentos, por agora. Estou a caminho de uma
festa, e a ideia de enfrentar a temível Lady Denby mete mais medo do que
qualquer visão que eu possa conjurar.
Conto mais três coches quando chegamos a casa de Simon, uma imagem
magnífica de tijolo e luz. Do outro lado da estrada, Hyde Park é uma
mancha escura, perdida na incandescência dos candeeiros a gás que nos
fazem auréolas nubladas, que nos tornam mais brilhantes do que somos,
emprestadas pelo céu. Kartik dá-me a mão, ajuda-me a descer. Piso a frente
do vestido, tropeço contra ele. Ele apanha-me pela cintura e, por momentos,
fico nos braços dele.
– Cuidado, menina Doyle – diz ele, e ajuda-me a recompor.
– Sim, obrigada, senhor Kartik.
– O velho Potts é que não conseguiria ampará-la assim – diz o pai para
Tom, a arreliá-lo. Olho para trás e vejo Kartik a mirar-me no meu vestido
azul e casaco de veludo, como se eu fosse alguém completamente diferente,
uma estranha para ele.
O pai dá-me o braço e avançamos para a porta. Escanhoado, de gravata e
luvas brancas, é quase o pai de que eu me recordo.
– Está muito galante, papá – digo eu. O brilho nos olhos dele voltou.
– Fumo e espelhos – diz, e pisca-me o olho. – Fumo e espelhos.
É esse o meu medo. Quanto tempo poderá a magia durar? Não, não me
vou ralar com isso agora. Deu resultado, e ele é o meu querido pai outra
vez, não tarda nada, vou jantar com um jovem bem-parecido que me
considera interessante, vá-se lá saber porquê.
Somos recebidos por uma hoste de criados de libré e criadas com fardas
tão engomadas que os vincos até podiam fazer sangue. Parece que há um
criado para tudo. A avó não cabe em si de empolgação. Se conseguisse
empertigar-se mais, ainda partia a espinha. Levam-nos para uma sala muito
grande. Simon está perto da lareira, a conversar com dois cavalheiros. Faz-
me um sorriso lupino. Desvio logo os olhos, como se tivesse acabado de
reparar no papel de parede e esteja imensamente fascinada, embora o meu
coração bata a um novo ritmo: ele gosta de mim; ele gosta de mim; ele
gosta de mim. Não tenho tempo para delíquios. Lady Denby esvoaça pela
sala a fazer apresentações, as crinolinas a roçagarem a cada passo.
Cumprimenta um cavalheiro com efusão mas é bastante fria com a esposa
dele.
Se Lady Denby gostar de ti, tens a vida de feição. Se te considerar
insuficiente em qualquer aspeto, és banida.
Tenho a língua enrolada contra o céu-da-boca. Não consigo engolir. Ela
lança-me um olhar avaliador conforme se aproxima. Simon vem logo para
perto dela.
– Mãe, apresento-lhe o senhor John Doyle; a sua mãe, a senhora William
Doyle; o senhor Thomas Doyle, e a menina Gemma Doyle. Thomas é meu
colega do tempo em Eton. Atualmente é assistente clínico do doutor Smith
no Hospital de Bethlem – acrescenta Simon. A mãe fica logo encantada
com Tom.
– Ora, o doutor Smith é um velho amigo. Conte-me, é verdade que um
dos vossos doentes já foi membro do Parlamento? – pergunta ela, na
esperança dos mexericos.
– Minha senhora, se internássemos os lunáticos do Parlamento, ficaria o
Parlamento vazio – brinca o meu pai, esquecido de que o pai de Simon
também é membro do Parlamento. Ainda morro. Surpreendentemente, Lady
Denby ri-se disso.
– Oh, senhor Doyle! Que espirituoso.
O ar sai-me do corpo numa rajada pequena, só me resta esperar que passe
desapercebida.
O mordomo anuncia o jantar. Lady Denby reúne os convidados como um
general veterano a arregimentar tropas para a batalha. Estou a fazer o que
posso para me recordar de tudo o que a senhora Nightwing me ensinou de
etiqueta. Morro de medo de fazer alguma gafe horrenda e lançar a minha
família na mais profunda e duradoura vergonha.
– Vamos? – Simon oferece-me o braço e eu enfio o meu. Nunca andei de
braço dado com um homem que não fosse meu parente. Mantemos uma
distância respeitável entre nós, mas não impede a corrente de energia que
sinto percorrer-me.
Depois da sopa, servem-nos leitão assado. Ver um animal numa bandeja
com uma maçã na boca não me abre o apetite. Enquanto os outros
tagarelam sobre propriedades no campo, caça à raposa e o problema de
arranjar criadagem como deve ser, Simon sussurra-me:
– Constou-me que era um leitão muito antipático. Sempre a lamuriar-se.
Nunca tinha boas palavras para ninguém. Até chegou a morder um pato de
despeitado que era. Eu não me sentiria culpado de o comer se fosse a si.
Sorrio. A voz de Lady Denby interrompe o momento.
– Menina Doyle, a sua cara não me é estranha.
– Eu... Eu fui convidada da senhora Worthington no clube Alexandra
ontem, para ouvir a menina Bradshaw cantar.
– A menina Bradshaw cantou? – Tom fica encantado por saber da
ascensão social de Ann. – Que encanto.
Estou de olhos postos em Lady Denby, a qual comenta:
– Sim, estranho também. Senhor Middleton – aqui dirige-se ao marido –
conhece o duque de Chesterfield?
– Não me parece, a menos que seja homem de caça.
Lady Denby franze os lábios como se matutasse nalguma coisa e
continua:
– Constou-me que a menina frequenta a Spence?
– Sim, Lady Denby – respondo, nervosa.
– O que lhe parece? – indaga, e serve-se de batatas assadas. Sinto-me
como um inseto debaixo do foco intenso do microscópio.
– É uma escola muito simpática – digo, e desvio o olhar.
– Claro que ela teve uma governanta inglesa quando estiveram na Índia –
interpõe a avó, sempre receosa de desvios sociais. – Receei deveras mandá-
la para longe de casa, mas garantiram-me que a Spence é uma escola muito
boa.
– O que lhe parece, menina Doyle? Está inclinada a crer que as jovens
devem aprender latim e grego atualmente? – pergunta Lady Denby.
Não é uma pergunta inocente. Está a pôr-me à prova, de certeza. Respiro
fundo.
– Creio que é importante as raparigas aprenderem tanto como os rapazes.
Senão como poderíamos ser esposas e mães? – É a resposta mais segura que
posso conceber. Lady Denby faz um sorriso simpático.
– Concordo, menina Doyle. É uma menina muito sensata.
Dou um suspirinho de alívio.
– Bem vejo porque é que o meu filho está encantado – anuncia Lorde
Denby.
Sinto-me enrubescer muitíssimo, e não consigo olhar para ninguém.
Tenho de me controlar para não sorrir como uma parvinha. Só tenho um
pensamento tolo na cabeça: Simon Middleton, rapaz de tal perfeição, gosta
de mim, a estranha e incómoda Gemma Doyle.
Passa pelos convivas uma galhofa moderada.
– Agora é que foi – diz um cavalheiro de bigode. – Ela assim nunca mais
cá volta.
– Ora, senhor Conrad – diz Lady Denby, a brincar. Não vejo porque é que
a Felicity pensa tão mal de Lady Denby. Parece-me bastante simpática, e
gosto dela.
O serão passa como um sonho feliz. Não me sentia tão tranquila e
satisfeita desde antes de a minha mãe falecer. Ver o meu pai animado outra
vez é estar no céu, e fico finalmente contente com este poder estranho e
belo. Durante o jantar, ele é o homem encantador de sempre, a divertir Lady
Denby e Simon com histórias da Índia. A cara da avó, geralmente vincada
de preocupação, esta noite está serena, e Tom até está simpático, se é que se
lhe pode chamar assim. Claro que deve pensar que curou o pai e, por uma
vez que seja, não me apetece contrariá-lo. Significa muitíssimo ver a minha
família a divertir-se. Quero guardar esta bolha de tempo feliz, esta sensação
de me integrar. De ser querida. Quero que esta noite continue para sempre.
A conversa à mesa passa para o Hospital de Bethlem. Tom tem a atenção
de todos com as histórias das suas obrigações clínicas.
– ... ele insistiu que era o imperador do West Sussex e que assim devia ter
direito a mais uma dose de comida. Quando recusei, ele prometeu mandar
decapitar-me.
– Coitadinho – Lady Denby ri-se.
– É melhor usar de cautela, meu jovem, senão ainda acorda sem cabeça –
diz o pai de Simon. Tem os mesmos olhos azuis bondosos.
– A menos que fosse uma melhoria no seu caso, bom homem? – Simon
arrelia Tom, o qual se finge ultrajado.
– Ai! Touché!
– Ora esta, o meu filho não pode ficar sem cabeça – diz o meu pai, com
um ar muito sério. – Paguei bom dinheiro pelo seu chapéu novo, e não mo
querem devolver. – Toda a gente desata à gargalhada. A avó interrompe.
– Lady Denby, é verdade que há bailes quinzenais em Bethlem?
– De facto. É deveras revigorante para eles estarem com pessoas, e
recordarem os preceitos sociais. Eu e o meu marido já fomos em várias
ocasiões. Há outro baile daqui a uma semana. Os senhores têm de vir
também, são nossos convidados.
– Teríamos muito gosto – diz a avó, a falar por todos nós, como tantas
vezes faz.
Dói-me a cara de tentar ter sempre uma expressão agradável. É agora que
devo calçar as luvas outra vez? Devo comer o resto da sobremesa, como
quero tanto, ou deixar metade para mostrar o meu apetite delicado? Não
quero fazer nada de mal, esta noite, não.
– Oh, conte-nos outra história – pede Lady Denby a Tom.
– Sim, conte – diz Simon. – Senão sou obrigado a falar do momento em
que fui ao campo e olhei um faisão descontente nos olhos, e os senhores
ficam todos catatónicos de tão entediados. – Simon olha para mim outra
vez. Dou comigo a gostar que ele me espie as reações. Gosto de ser
cortejada. É uma sensação deveras poderosa.
– Ah, vejamos... – diz Tom, a pensar. – Tínhamos o senhor Waltham que
alegava ouvir o que acontecia dentro das casas por onde passava. Dizia que
as próprias pedras falavam com ele. Agrada-me declarar que ficou curado e
teve alta ainda no mês passado.
– Bravo! – exclama o pai de Simon. – Não há nada que a ciência e o
homem não possam ultrapassar a seu tempo.
– Exato – diz Tom, encantado por encontrar um amigo em poleiro tão
alto.
– Que mais? – pergunta uma senhora de vestido cor de pêssego.
– Temos a senhora Sommers para quem esta vida é apenas sonho, e que
vê espíritos no quarto à noite.
– Coitadinha – diz a avó, mais por hábito.
Estas histórias estão a roubar-me a felicidade. O que pensariam os meus
companheiros de jantar se soubessem que eu tenho visões e vou a outros
mundos? Tom continua.
– Temos a Nell Hawkins, de dezanove anos. Diagnosticada como
maníaca quando ainda estava num colégio interno.
– Estão a ver? – diz o senhor de bigode, com o dedo em riste. – A
constituição feminina não aguenta os rigores de uma educação formal. Não
pode vir daí nada de bom.
– Oh, senhor Conrad. – A esposa repreende-o a brincar. – Queira
prosseguir, senhor Doyle.
– Nell Hawkins sofre de delírios – diz Tom, impante. O meu pai
aproveita.
– Pensa que é a Joana d’Arc, então?
– Não, esse é o senhor Jernigan da ala M1B. A menina Hawkins é única.
Sofre da ilusão de fazer parte de uma seita mística de feiticeiras chamada a
Ordem.
A sala afunila-se. O coração bate-me descompassado. De muito longe,
ouço-me perguntar:
– A Ordem?
– Sim. Ela diz saber os segredos de um lugar chamado os reinos, e que
uma mulher chamada Circe quer o poder todo para si. Alega que
enlouqueceu devido à tentativa de ocultar a sua mente do alcance de Circe.
– Tom abana a cabeça. – É um caso muito difícil.
– Concordo consigo, senhor Conrad, demasiada educação formal não faz
bem às nossas filhas. É este o preço. Estou muito grata à Spence por
salientar o essencial na formação de uma senhora. – A avó leva à boca uma
colherada bastante grande de creme de chocolate.
Custa-me imenso não sair da mesa a fugir, pois tremo por todo o lado.
Algures no Hospital de Bethlem está uma rapariga que poderá contar-me
tudo o que eu preciso de saber, e eu tenho de arranjar maneira de chegar até
ela.
– O que se poderá fazer num caso assim? – pergunta o senhor Conrad.
– Ela encontra consolo na poesia. As enfermeiras leem-lhe sempre que
podem.
– Talvez eu pudesse ler poesia para ela? – ofereço-me, na esperança de
não parecer desesperada como me sinto. Eu faria qualquer coisa para ver a
rapariga. – Talvez ela encontre consolo a conversar com uma rapariga da
idade dela, quero dizer.
O pai de Simon ergue o copo de vinho em minha honra.
– A nossa menina Doyle é uma alma caridosa.
– É o nosso anjo – diz o meu pai.
Não sou nada. Sou uma malvada assim a ludibriá-los, mas tenho de ver
Nell Hawkins.
– Muito bem, então – diz Tom, de má vontade. – Hei de levá-la amanhã à
tarde.
VINTE E UM

Depois de levarem a sobremesa, os homens estão prontos a tomar o brande


e a fumar charuto, enquanto as mulheres se retiram para a salinha a fim de
conversarem e beberem chá.
– Mãe, creio que a menina Doyle gostaria de ver o retrato do avô – diz
Simon, a apanhar-nos à entrada. Não me constou nada de tal quadro.
– Sim, com certeza. Vamos todos – diz Lady Denby. O sorriso presumido
de Simon desvanece-se.
– Não queria nada afastá-la do lume, minha mãe. Faz corrente de ar na
biblioteca, como bem sabe.
– Disparate, levamos os xailes e ficaremos bem. A menina tem mesmo de
ver o caro George: foi pintado por um retratista de renome oriundo das
Cotswolds.
Não sei o que acabou de se passar, mas creio que Simon perdeu.
– Ora cá estamos. – Lady Denby leva-nos para uma sala espaçosa
dominada por um retrato grande como uma porta. É uma imagem
horrivelmente arrebicada de um homem atarracado montado num cavalo.
Tem uma casaca encarnada e parece completamente um cavalheiro do
campo que parte para a caça. Aos pés estão sentados dois cães obedientes.
Simon aponta com a cabeça.
– Menina Doyle, apresento-lhe o meu avô, Cornelius George Basil
Middleton, visconde de Denby.
A avó dá espetáculo a mostrar-se encantada com o retrato, embora o que
ela saiba sobre arte pudesse caber num dedal. Não obstante, Lady Denby
fica orgulhosa. A seguir, passa para uma obra de arte em cima de um lintel,
o que obriga uma criada que estava a limpar uma grelha a levantar-se e a
ficar à espera, com a escova na mão cheia de fuligem.
– É um quadro muito bonito – digo diplomaticamente. Simon ergue uma
sobrancelha.
– Se por bonito a menina quer dizer tolo, exagerado e grotesco, então
aceito o elogio.
Tento abafar um risinho.
– Os cães têm um ar muito distinto.
Simon está a meu lado e sinto aquela estranha energia outra vez. Ele
inclina a cabeça para um lado, a refletir no meu comentário e no quadro.
– Sim. De facto, talvez eu possa dizer que eles é que são meus parentes. –
Tem os olhos tão azuis. Um sorriso tão caloroso. Estamos a centímetros de
distância. Pelo canto do olho, vejo a avó e as outras a darem a volta à sala.
– Quantos destes é que o Simon leu? – pergunto, a avançar para as
estantes, fingindo-me interessada.
– Não muitos – diz Simon, e acompanha-me. – Tenho muitos
passatempos, que me tomam grande parte do tempo. É meu dever tratar dos
nossos interesses em Denby, a casa e tudo.
– Sim, com certeza – digo, e continuo lentamente a andar.
– A menina vai ao baile do Almirante e de Lady Worthington, por acaso?
– Sim, vou – respondo, e avanço para as janelas que dão para a rua.
– Eu também lá estarei. – Ele apanha-me. Aqui estamos, lado a lado outra
vez.
– Oh – exclamo. – Que agradável.
– Talvez a menina me guarde uma dança? – pergunta ele, tímido.
– Sim – respondo a sorrir. – Talvez guarde.
– Vejo que não tem o seu colar esta noite.
Levo logo a mão ao pescoço nu.
– Reparou nas minhas joias?
Ao ver a mãe entretida, ele sussurra-me ao ouvido:
– Reparei no seu pescoço. O colar estava lá. É deveras invulgar.
– Era de minha mãe – digo, ainda corada do elogio ousado. – Foi uma
aldeã na Índia quem lho deu. Um talismã de proteção. Receio que não tenha
dado resultado para ela.
– Talvez não seja para proteção – diz Simon. Nunca tal me tinha
ocorrido.
– Não imagino para que mais possa ser.
– Qual é a sua cor preferida? – pergunta Simon.
– Púrpura – respondo. – Porque pergunta?
– Por nada – diz ele, sorridente. – Se calhar vou ter de convidar o seu
irmão para o meu clube. Parece-me bom tipo.
Ah!
– Decerto ele gostaria muito. – O Tom até saltaria anéis de fogo pela
hipótese de ir ao clube do Simon. É o melhor em Londres. Simon está a
mirar-me.
– A menina não é como as outras jovens que a minha mãe pavoneia
diante de mim.
– Não? – digo eu, a fazer uma careta e desesperada por saber em que é
que sou diferente.
– Há algo de aventura em si. Sinto que a menina tem muitos segredos que
eu gostaria de conhecer.
Lady Denby repara em nós assim tão próximos à janela. Finjo que um
exemplar de Moby Dick encadernado a pele me interessa. Está em cima de
uma mesinha e a lombada chia quando levanto a capa, como se nunca
tivesse sido manuseado.
– Talvez o Simon não os quisesse conhecer então – digo.
– Como é que a menina sabe? – pergunta Simon, e ajeita a estatueta de
dois cupidos em cerâmica. – Ponha-me à prova.
O que posso dizer? Que sofro dos mesmos delírios da coitada da Nell
Hawkins, mas que afinal não são delírios? Que tenho pavor de estar a um
passo do manicómio também? Seria tão bom fazer confidências a Simon e
ouvi-lo dizer, «Vê? Afinal não custou nada, pois não? A menina não está
louca. Eu acredito em si. Eu estou consigo.» Deixo passar a oportunidade.
– Tenho um terceiro olho – digo com ligeireza. – Sou descendente de
Atalanta. E os meus modos à mesa são indesculpáveis.
Simon faz que sim com a cabeça.
– Assim me parecia. É por isso que vamos pedir-lhe que passe a comer no
estábulo doravante, por precaução. Não se importa, pois não?
– De todo. – Fecho o livro e viro costas. – E que segredos terríveis tem o
senhor Middleton?
– Além do jogo, da bebida e das pilhagens? – Ele acompanha-me. – A
verdade?
Até me salta o coração.
– Sim – digo, e viro-me para ele finalmente. – A verdade.
Ele olha-me nos olhos.
– Sou aborrecidíssimo.
– Não é verdade – digo, e afasto-me outra vez, a olhar para as estantes
enormes.
– Receio bem que sim. Tenho de encontrar uma esposa adequada com
fortuna adequada e continuar o nome da família. É o que se espera de mim.
As minhas vontades não são para cá chamadas. Perdão. Fui demasiado
leviano. A menina não tem de ouvir o que me perturba.
– Não, a sério, fico feliz de o ouvir. – E fico, coisa mais curiosa.
– Vamos retirar-nos para a salinha? – convida Lady Denby. Com um
suspiro, a criada retoma a esfrega assim que as senhoras saem. Eu e Simon
vamos devagar.
– A sua flor está a escorregar, menina Doyle. – A rosa que tinha presa ao
cabelo já está no pescoço. Levo a mão ao mesmo tempo que ele. Os nossos
dedos tocam-se um momento antes de eu me afastar.
– Obrigada – digo, completamente encabulada.
– Não se importa? – Com todo o cuidado, Simon prende a flor atrás da
minha orelha. Eu devia impedi-lo, ainda pensa que sou permissiva, mas não
sei o que dizer. Recordo-me de que Simon tem dezanove anos, três a mais
do que eu. Sabe coisas que eu não sei.
Há qualquer coisa a bater na janela, e mais outra, fico sobressaltada.
– Quem é que está a atirar pedras? – Simon espreita pelo vidro enevoado.
Depois abre a janela. Entra ar frio, fico com a pele dos braços toda
arrepiada. Lá em baixo não conseguimos ver ninguém.
– Tenho de ir ter com as senhoras. A minha avó ainda fica ralada comigo.
Bato apressadamente em retirada, quase tropeço na criada, que nem
sequer levanta a cabeça da esfrega.

Já passa da meia-noite quando nos despedimos e saímos para uma noite


cheia de estrelas e esperança. O serão foi um misto de coisas para mim. As
boas: Simon; a sua família; a simpatia que me mostraram; o meu pai
recuperado. Depois a perspetiva realista de conhecer Nell Hawkins em
Bedlam para ver se ela tem a chave da localização do Templo e de Circe. Lá
está a curiosidade – as pedras atiradas à janela.
No coche, Kartik parece agitado.
– Noite agradável, menina?
– Sim, muito agradável, obrigada – respondo.
– Assim pareceu – resmunga ele. Ajuda-me a subir e depois sai da berma
com demasiado ímpeto. O que será que se passa com ele?
Depois de a minha família estar segura na cama, visto o casaco e corro
pelo chão duro e frio até aos estábulos. Kartik está sentado a ler A Odisseia
e a beber chá quente. Não está sozinho. Emily está sentada perto, a ouvi-lo
ler.
– Boa noite – anuncio e entro a marchar.
– Boa noite – diz ele e levanta-se. Emily parece abalada.
– Oh, menina, eu estava só... só...
– Emily, tenho assuntos a tratar com o senhor Kartik neste momento, se
não se importa.
Como um tiro, Emily corre para casa.
– O que queria dizer com o seu comentário desta noite?
– Perguntei simplesmente se tinha tido uma noite agradável. Com o
senhor Muddleton.
– Middleton – corrijo. – É um cavalheiro, sabia?
– Parece um efeminado.
– Agradeço que não o insulte. Não sabe nada sobre ele.
– Não gosto da maneira como olha para si. Como se fosse uma peça de
fruta madura.
– Não faz nada disso. Espere aí. Como é que sabe que ele olha para mim?
Esteve a espiar-me?
Incomodado, Kartik esconde o nariz no livro.
– Ele olhou para si assim. Na biblioteca.
– O Kartik atirou pedras à janela!
Kartik salta, esquece-se do livro.
– Deixou que lhe mexesse no cabelo!
É verdade. Não foi um comportamento nada senhoril. Estou
envergonhada mas não vou deixar Kartik saber.
– Tenho algo a dizer-lhe, se conseguir parar de ter pena de si próprio para
me dar ouvidos.
Kartik zomba de mim.
– Não estou com pena de mim próprio.
– Então muito boa noite.
– Espere! – Kartik dá um passo atrás de mim. Estou impante. Não é
atraente, mas pronto. – Desculpe. Prometo portar-me muitíssimo bem – diz
ele. Cai de joelhos num gesto teatral e tira uma bolota do chão para a chegar
ao pescoço. – Suplico-lhe, menina Doyle. Conte-me, senão serei obrigado a
matar-me com esta arma possante.
– Oh, levante-se lá – digo eu, a rir-me mau grado meu. – O Tom tem uma
doente em Bethlem. Nell Hawkins. Diz que ela sofre de delírios.
– Isso explica o internamento em Bethlem. – Ele faz-me um sorriso
presunçoso. Como não retribuo, ele diz com ar contrito: – Desculpe.
Continue, se faz favor.
– Ela diz ser membro da Ordem, e que uma mulher chamada Circe anda à
procura dela. Diz que enlouqueceu de propósito para Circe não lhe chegar.
O sorriso desaparece.
– A menina tem de ir ver Nell Hawkins imediatamente.
– Sim, já tratei de tudo. Amanhã, por volta do meio-dia, vou ler poesia a
Nell Hawkins e descobrir o que ela sabe sobre o Templo. Ele estava mesmo
a olhar para mim dessa maneira?
– Qual maneira?
– Como uma peça de fruta madura?
– Será melhor ficar de sobreaviso com ele – diz Kartik.
Tem ciúmes! Kartik tem ciúmes e Simon considera-me... deliciosa? Até
fico tontinha. E confusa. Mas não, tontinha e contentinha.
– Sou bem capaz de tomar conta de mim própria – digo. Giro nos
calcanhares e vou direitinha à parede, e nasce-me um galo na testa que
provavelmente ficará para sempre.
VINTE E DOIS

Na tarde seguinte, trajada com o fato de flanela cinzenta e chapéu de feltro,


vou ter com o Tom ao Real Hospital de Bethlem. O edifício é
impressionante. A fachada tem um pórtico sustentado por seis colunas
brancas. Uma cúpula com janelas por cima, como um chapéu de polícia.
Resta-me esperar que o Tom não consiga ouvir o meu coração a bater
descompassado. Com sorte, a menina Hawkins vai desvendar-me o mistério
do Templo.
– Estás deveras apresentável, Gemma, tirando o hematoma na testa – diz
Tom, a mirá-lo. – Como é que arranjaste isso?
– Não foi nada – digo, e enterro mais o chapéu na cabeça.
– Não importa. Vais ser a rapariga mais bonita de Bethlem – diz Tom.
Ah, lindo saber que vou ser mais bonita do que todas as lunáticas. Pelo
menos, tenho isso a meu favor. Coitado do Tom. Tem boas intenções. Tem
sido muito mais simpático comigo desde o interesse óbvio do Simon por
mim. É quase como se eu fosse humana aos olhos dele. Deus nos livre.
Decido ter pena dele e não responder torto.
– Obrigada. Estou ansiosa por conhecer a menina Hawkins.
– Não esperes muito, Gemma. Ela tem a mente torturada. Por vezes, faz e
diz coisas injuriosas. Tu não estás habituada a tais coisas. Tens de te
preparar.
Eu tenho visto coisas que não te passariam pela cabeça, caro irmão.
– Sim. Obrigada. Vou seguir o teu conselho ao pé da letra.
Passamos por um corredor muito comprido, janelas à direita e portas à
esquerda. Há fetos e avencas dentro de cestos pendurados no teto, e assim
aquele espaço dá uma sensação animadora. Não sei de que é que estava à
espera num manicómio, mas não imaginava isto. Se não soubesse já, diria
que estava a entrar num dos clubes mais exclusivos de Londres. As
enfermeiras passam por nós e cumprimentam com acenos de cabeça, as
toucas brancas muito engomadas empoleiradas nas cabeças como suspiros
feitos no dia anterior.
Tom leva-me para uma saleta de paredes revestidas a madeira, onde já
estão várias mulheres sentadas a costurar. Uma mais velha, algo
descomposta, está concentrada em tocar piano, a martelar uma melodia
infantil e a cantarolar em voz baixa e trémula. A um canto está uma gaiola
com um bonito papagaio dentro. O pássaro guincha. «Como estamos hoje?
Como estamos hoje?»
– Elas têm um papagaio? – sussurro. Estou a tentar manter a presença de
espírito, dar a impressão de que faço visitas a manicómios todos os dias.
– Sim. Chama-se Cassandra. É bastante tagarela. Apanha um pouco de
tudo com os nossos doentes. Botânica, navegação, devaneios disparatados.
Não tarda a que tenhamos de a curar também.
Como se fosse a sua deixa, Cassandra grita: «Sou grande poeta. Sou
grande poeta». Tom faz que sim com a cabeça.
– Um dos nossos doentes, o senhor Osborne, entende que é poeta e que
vale uma pequena fortuna. Fica indignadíssimo com os nossos esforços para
o manter aqui e escreve cartas diárias ao editor e ao duque de Gales.
A mulher mais velha ao piano deixa de tocar, de repente. Muito agitada e
a torcer as mãos, aproxima-se de Tom.
– Isto é tudo sonho? Você sabe? – pergunta ela em voz preocupada.
– Asseguro-lhe de que é tudo realidade, senhora Sommers.
– Eles vão fazer-me mal? Fui mazinha? – Ela puxa as pestanas e fica com
algumas na mão.
Uma enfermeira de bata branca engomada acorre e interpela-a.
– Ora, senhora Sommers, o que aconteceu à sua bonita canção? Vamos
voltar ao piano, está bem?
A mão que ficou perto das pestanas da mulher esvoaça como um pássaro
ferido e tomba ao lado do corpo.
– Sonho, sonho. Tudo um sonho.
– Acabaste de ver a senhora Sommers.
– Compreendo.
Um homem alto e magro com barba e bigode bem aparados aproxima-se.
Tem a roupa algo amarrotada e o cabelo não quer assentar mas, de resto,
parece bastante normal.
– Ah, senhor Snow. Como estamos hoje? – pergunta Tom.
– Bem, bem – responde ele. – Mandei uma carta ao doutor Smith. Ele não
tarda a ter o meu caso tratado, tratado, tratado. Eu vou ao baile. Vou, vou,
cavalheiro.
– Veremos, senhor Snow. Primeiro há a questão do seu comportamento no
baile anterior. Tomou algumas liberdades com as senhoras. Elas não
gostaram nada.
– Mentiras, mentiras, tudo mentiras. O meu advogado há de tratar disso,
cavalheiro, ora. Mentiras, estou a dizer-lhe.
– Falaremos disso. Então um bom dia para si.
– O doutor Smith tem a minha carta, cavalheiro! Ele há de retificar a
minha reputação!
– O senhor Snow – explica Tom conforme avançamos pela sala de estar. –
Tem o hábito de deixar as mãos passearem quando está a dançar.
– Oh – exclamo. Vou tentar não dançar com o senhor Snow. Continuamos
e Tom vai cumprimentando educadamente quem vê. Tendo em conta o mau
feitio que mostra em casa, é uma surpresa vê-lo aqui, bondoso e controlado.
Tenho orgulho nele. Não posso crer, mas tenho.
À janela está sentada uma criatura pequenina. Tem um ar tão frágil. O
rosto magro, embora se veja que outrora foi uma bonita rapariga. Tem
olheiras fundas nos olhos castanhos. Vai passando os dedos finos pelo
cabelo, puxado e apanhado num carrapito. Há tufos espetados por todo o
lado, o que lhe dá parecenças com a papagaia Cassandra.
– Bom dia, menina Hawkins – diz Tom alegremente.
A rapariga não responde.
– Menina Hawkins, apresento-lhe a minha irmã, menina Gemma Doyle.
Ela gostaria muito de a conhecer. Trouxe com ela um livro de poesia. As
duas podiam ter uma conversa agradável.
Silêncio outra vez. A língua de Nell passa-lhe pelos lábios gretados. Tom
olha para mim como quem pergunta, tens a certeza? Digo que sim com a
cabeça.
– Muito bem, vou deixar que se conheçam enquanto faço a ronda, sim?
– Boa tarde, como está? – pergunto, e sento-me na cadeira em frente a
ela. Nell Hawkins continua a passar as mãos pelo cabelo. – Constou-me que
frequentou um colégio. – Silêncio. – Eu também estou num colégio. Na
Academia Spence. Talvez tenha ouvido falar? – Ao fundo da sala, a senhora
Sommers continua a maltratar o piano. – Posso ler Browning? A poesia dele
é muito tranquilizante.
A papagaia guincha: «Continua o caminho. Continua o caminho».
Dou grande espetáculo a ler Browning.
Tom sai da sala e eu fecho o livro.
– Não creio que esteja louca, menina Hawkins. Eu sei da Ordem e de
Circe, eu acredito em si.
A mão dela deixa de mexer um momento. Depois treme.
– Não tenha medo de mim. Eu quero deter Circe, mas preciso do seu
auxílio.
Os olhos de Nell Hawkins parece que me veem pela primeira vez. A voz
sai-lhe aguda e arranhada como ramos de árvores a baterem na vidraça ao
vento.
– Eu sei quem tu és.
A papagaia guincha: «Eu sei quem tu és. Eu sei quem tu és». Eu fico
cheia de arrepios na espinha.
– Sabe?
– Andam à tua procura. Eu ouço-as, na minha cabeça. Coisas horríveis. –
Ela volta a puxar os cabelos e vai cantando baixinho.
– Quem é que anda à minha procura?
– Ela é uma casa de doces à espera de te devorar. Ela tem espiões –
sussurra Nell de uma maneira que me arrefece toda. Não sei o que pensar
disto.
– Menina Hawkins. Tem de falar com clareza. A sério que pode confiar
em mim, mas eu tenho de saber onde encontrar o Templo. Se souber onde
fica, é imperativo...
Nell vira-se para mim com olhos desvairados.
– Segue o caminho. Não saias do caminho.
– O caminho? Qual caminho?
Rápida como um relâmpago, Nell arranca-me o amuleto que tenho ao
pescoço, com tanta força que até me arde a pele. Antes que eu possa
protestar, ela vira-o com as duas mãos. Muda de uma para outra como se
tentasse ler algo que esteja na parte de trás.
– O verdadeiro caminho.
«Segue o verdadeiro caminho. Segue o verdadeiro caminho» – guincha
Cassandra.
– De que caminho é que está a falar? É no jardim? Ou refere-se ao rio? –
pergunto.
– Não. Não. Não – murmura Nell, a balouçar violentamente para a frente
e para trás. Com uma agilidade de que não estou à espera, ela bate com o
amuleto na minha cadeira, com tanta força que até dobra o olho.
– Pare com isso – peço, e agarro no colar. O olho agora tem um ângulo
esquisito.
– Fica no caminho – diz Nell outra vez. – Eles vão tentar desviar-te.
Mostrar-te coisas em que não podes fiar-te. Não te fies em ninguém.
Cautela com os Guerreiros da Papoila.
Até tenho a cabeça à roda com os estranhos repentes de Nell.
– Menina Hawkins, por favor, como é que eu encontro esse caminho? Vai
levar-me ao Templo? – pergunto, mas Nell Hawkins já está fora do meu
alcance, a trautear baixinho, a bater com a cabeça frágil na parede, num
acompanhamento desesperado à música, até que uma enfermeira aparece
em passo rápido.
– Então, então, menina Hawkins. O que diria o senhor doutor se a visse a
portar-se desta maneira? Vamos ver umas amostras, está bem? Tenho
novelos novos muito bonitos.
A enfermeira leva a menina Hawkins dali. Os tufos de cabelo que lhe
saem do carrapito abanam e esvoaçam.
– O Templo está escondido à vista – diz ela. – Segue o caminho.
A enfermeira faz Nell Hawkins sentar-se numa cadeira e leva-lhe a mão
para cima e para baixo sobre pontos diminutos. Estou mais confusa do que
nunca. Olho para a gaiola da Cassandra.
– Tu compreendes?
A papagaia pisca os olhinhos repetidamente, o pontinho preto da pupila a
desaparecer numa revoada de penas brancas e a voltar ao negrume outra
vez, como um truque de prestidigitador. Centímetro a centímetro, ela vira-se
no poleiro da gaiola, e mostra-me o lombo colorido.
– Não, bem me parecia que sim. – Suspiro.
Pergunto a uma enfermeira onde posso encontrar o Tom e ela manda-me à
ala dos doentes masculinos. Oferece-se para me levar, e é a coisa decente a
fazer, mas garanto-lhe que vou esperar pelo Tom. Depois esgueiro-me e
dirijo-me à ala dos homens. Os médicos passam, absortos em conversa.
Fazem cumprimentos de cabeça e eu faço um sorriso simpático de boca
fechada. Os olhos deles miram-me apenas mais um momento, e logo desvio
os meus. É uma sensação estranha, ser vista desta maneira. Quero e receio
um pouco, em simultâneo. Há tal poder naqueles olhares fugazes, mas não
sei o que jaz do outro lado deles, e isso assusta-me um pouco. Como é
possível sentir-me preparada mas ainda não pronta para este mundo novo
dos homens?
O senhor Snow das mãos que passeiam aproxima-se. Escondo-me num
corredor à espera que ele se vá embora. Há um homem sentado a esfregar
os dedos repetidamente, o olhar perdido em frente. Por favor, senhor Snow.
Passe lá para eu poder voltar ao corredor ilesa.
– Tenho um recado para si – diz o homem.
Não há mais ninguém tirando nós dois.
– Perdão?
Ele vira-se devagar para me encarar.
– Os espíritos estão a aliar-se, menina. Querem vir atrás de si.
Sinto-me quente e zonza.
– Como disse?
Ele mostra os dentes e baixa a cabeça, olha para mim com as pálpebras
meio fechadas. O efeito é estarrecedor, como se ficasse uma pessoa
completamente diferente.
– Vamos atrás de si, menina. Vamos todos atrás de si. – Com uma rapidez
feroz, ele abre e fecha os maxilares e rosna como um cão raivoso.
Foge, Gemma. Ofegante, fujo dele, viro a esquina depressa de mais e dou
um encontrão ao meu irmão aturdido.
– Gemma! Mas que diabo andas a fazer aqui sozinha?
– Eu... eu... eu... estou à tua procura! Aquele homem... – digo e aponto
para trás de mim.
Tom vira a esquina e vou atrás dele. O velho está lá sentado, a olhar em
frente.
– O senhor Carey. Coitado. Completamente inalcançável. Receio bem que
tenhamos de o mudar para instalações noutra comarca dentro em breve.
– Ele... falou comigo – estou a gaguejar. Tom parece confuso.
– O senhor Carey falou contigo? É impossível. O senhor Carey não diz
palavra, jamais. É mudo. O que foi que pensaste que ele te disse?
– Vamos atrás de si – repito, e quando o digo apercebo-me de que não era
o senhor Carey a falar comigo, era alguém distinto.
Alguém dos reinos.
***
– O que aconteceu à Nell Hawkins? – pergunto quando apanhamos uma
charrete para nos encontrarmos com Felicity e Ann na Regent Street.
– São informações confidenciais – responde Tom com uma fungadela.
– Ora, Tom. Não é que eu vá contar a alguém – estou a mentir. Tom abana
a cabeça.
– Não, terminantemente. É horrível e indelicado, não é o tipo de coisa que
uma jovem senhora deva ouvir. Além disso, tu já tens uma imaginação
galopante. Não vou contribuir para os teus pesadelos.
– Muito bem – resmungo. – E ela vai recuperar?
– É difícil saber. Estou a trabalhar nesse sentido, embora duvide que ela
alguma vez possa voltar para Santa Vitória. De certeza que eu não
recomendo nada esse regresso.
Sento-me muito direita, os nervos ao rubro.
– Como é que disseste?
– Disse que não recomendo nada esse regresso.
– Não, antes disso.
– Voltar à Escola de Santa Vitória para Raparigas. Creio que fica em
Swansea. Consta que é um bom colégio, mas dá que pensar. Porque
perguntas?
Sinto um formigueiro na barriga, um pressentimento sinistro. Um anel de
serpentes. Uma mulher de verde. Não confies nela... – Creio que uma das
nossas professoras veio de Santa Vitória.
– Espero bem que olhem melhor pelo rebanho do que fizeram em Santa
Vitória. Não posso dizer mais nada sobre o assunto – afirma Tom em voz
lúgubre.
Fico perturbadíssima. Será que a professora McCleethy estava em Santa
Vitória quando Nell Hawkins era lá aluna? O que aconteceu que seja
demasiado «indelicado» para Tom me contar? O que aconteceu a Nell
Hawkins que a levou à loucura?
Seja o que for, rezo para não vir a sofrer a mesma sina.
– Tens a morada de Santa Vitória? – pergunto.
– Tenho, porquê? – Tom está desconfiado. Olho para as lojas que têm
artigos de Natal nas montras.
– A nossa diretora encarregou-me... a nós... de fazer um ato de caridade
nas férias. Pensei que poderia escrever à escola, dizer que estou a fazer
companhia à menina Hawkins e a recordar-lhe tempos mais felizes.
– Louvável. Nesse caso, dou-te a morada. Ah, chegámos.
VINTE E TRÊS

A charrete para diante de uma papelaria na Regent Street. Felicity e Ann


saem ao nosso encontro, seguidas pela sempre vigilante Franny. Quero
desesperadamente contar-lhes o que descobri sobre Nell Hawkins e fico a
pensar como é que vou conseguir.
Tom leva a mão ao chapéu para cumprimentar as minhas amigas.
Trocam-se saudações.
– Está a gostar de Londres, menina Bradshaw? – pergunta ele.
– Gosto muito – responde Ann, e faz-lhe um sorriso estupidamente
tímido.
– Tem um chapéu original. Fica-lhe muito bem.
– Obrigada – murmura Ann, a olhar para o chão, encabulada. Daqui a
pouco, eu ainda me atiro para baixo de uma carruagem qualquer.
– Posso acompanhá-las à papelaria?
Felicity sorri com impaciência.
– Ficamos muito gratas, decerto, mas não é preciso incomodar-se. Um
bom dia para si.
– Isso não foi nada simpático – ralha Ann, tanto quanto Ann consegue
ralhar, assim que entramos na loja.
– Podias ter-lhe dito que o «chapéu muito original» era meu – censura
Felicity.
– Tenho notícias – digo eu antes que Ann possa retrucar. Agora já me dão
toda a atenção.
– O que se passa? – pergunta Ann.
Franny fica a pairar, os olhos fixos na distância à nossa frente, os ouvidos
a apanharem todas as nossas palavras com a exatidão de uma repórter.
– Não vamos divertir-nos nada com ela a reboque – sussurra Felicity
amargamente, conforme vamos fingindo que examinamos as resmas de
papel marfim grosso embrulhado em fitas coloridas. – Ela espia-nos a cada
passo como se fosse a própria senhora Nightwing. É impossível pensar que
temos mais liberdade na Spence, mas parece que sim.
Saímos da papelaria e passamos por uma chapelaria, uma loja de tecidos,
outra de brinquedos, a última de tabacos, onde estão sentados vários
cavalheiros a fumar charutos gordos. As ruas estão apinhadas de gente à
caça do par de luvas certo para a Tia Prudence, ou o tamborzinho perfeito
para o Johnny. Franny não nos perde de vista, e Felicity está à beira de uma
birra das antigas.
– A mamã pensa que pode fugir para França e depois voltar e portar-se
como se eu tivesse de estar às ordens dela e a sorrir sempre. Pois não quero.
Estou tentada a mandar a Franny bugiar – Felicity queixa-se e faz beicinho.
– Oh, não, por favor – pede Ann. – Não quero causar escândalo nenhum.
– Sim, ficaríamos trancadas nos nossos quartos até ao fim das férias –
digo eu.
Chegamos a uma pastelaria, onde doces sumptuosos e fruta cristalizada
nos chamam detrás dos vidros. Um jovem varre o passeio e, de repente,
chama atrevidamente:
– Franny! Anda cá dar-me um chocho!
Franny empalidece e desvia o olhar. Felicity aproveita.
– O cavalheiro conhece bem a minha criada?
O jovem não sabe o que dizer ou fazer. É evidente que conhece Franny, e
bem, mas agora pode ter-lhe arranjado sarilhos. Para uma criada, basta um
cheirinho de indecência para justificar despedimento.
– A minha mãe ficará bastante interessada em saber como é que a sua
própria criada beijou um homem em plena luz do dia, na companhia de
raparigas impressionáveis a seu cuidado – diz Felicity.
– Mas eu não fiz nada disso! – protesta Franny.
– É a sua palavra contra a nossa – diz Felicity, e faz de nós cúmplices,
quer queiramos, quer não. Franny fecha as mãos em punhos ao lado do
corpo.
– Deus está a ver a sua maldade, menina. É uma marca negra no livro de
contas Dele, de certeza.
– Creio que podemos chegar a acordo. – Felicity tira um xelim da mala. –
Tome. Vá, aceite. Aceite e vá comprar um bolinho. De certeza que este
jovem não se importa de a acompanhar. Combinamos encontrar-nos aqui,
digamos, às cinco horas?
O xelim reluz entre os dedos enluvados de Felicity. Se Franny o aceitar,
poderá deliciar-se com um bolinho e o seu amigo, mas também ficará nas
garras da Felicity para todo o sempre. Franny abana a cabeça.
– Oh, não, menina. Por favor não me peça para mentir à senhora
Worthington. Eu não conseguiria, menina. A menina quer que eu arrisque o
meu emprego e a minha alma imortal só por causa de um xelim?
Que Franny consiga fazer este discurso de chantagem com cara séria é
uma proeza. Tenho renovado respeito por ela.
– Tenho vontade de dizer à minha mãe, seja como for – rosna Felicity. É
uma afirmação vã, e todas sabemos disso. Felicity vai conseguir a liberdade
que deseja. Ela dá a Franny uma libra, o preço do seu silêncio. Franny
agarra logo na moeda, fecha-a bem na mão. Felicity não quer correr riscos.
– Se pensar sequer em contar à minha mãe, nós diremos que foi a Franny
quem nos deixou para se ir encontrar com um amigo. Coitadas de nós,
perdidas e sozinhas sem dama de companhia nas ruas cruéis de Londres, e
sem uma libra também. Curiosíssimo como é que isso aconteceu.
Franny, tão triunfante há segundos, fica toda encarnada e fecha bem os
lábios finos numa linha soturna.
– Sim, menina. Às cinco horas.
Nós corremos atrás de Felicity, mas eu ainda me viro para Franny, sem
saber o que dizer.
– Obrigada, Franny. Foi, hum, foi uma rapariga muito digna. – E com
isto, ficamos por nossa conta.
A liberdade sabe a folhados de creme comprados na Regent Street. As
folhas doces de massa quebradiça dissolvem-se na minha língua enquanto
coches e ónibus sobem e descem a rua, a água lamacenta misturada com a
neve suja por baixo das rodas. As pessoas andam de um lado para o outro,
armadas com o sentido da finalidade. Nós andamos entre elas sem
restrições, outra parte da mole sem nome que colide com o acaso, com o
destino.
Vamos a pé até Piccadilly e entramos na grande Arcada de Burlington,
passamos pelos maceiros, que mantêm a ordem com olhares duros e o peso
da maça nas suas mãos. Há bancas a vender artigos de toda a espécie –
partituras, luvas, meias, retrosaria, enfeites, entre outros – e eu sinto uma
profunda saudade da Índia outra vez, com os seus bazares e mercados
frenéticos.
– Isto é quase tão bom como estar nos reinos – diz Ann, a devorar o seu
miminho toda contente.
– Que notícias tens? – pergunta Felicity.
– O meu irmão tem uma doente em Bethlem chamada Nell Hawkins. Um
caso muito interessante...
– É tão nobre da parte do Tom cuidar dos desventurados – diz Ann, a
lamber uma noz de creme que lhe ficou nos lábios. – A noiva dele deve
considerá-lo amoroso.
– Noiva? O Tom? – repito, algo irritada pela interrupção. Tarde de mais,
recordo-me da minha aldrabice. – Ah, sim, referes-te à menina Richardson.
Claro, que tola que sou.
– Disseste que ela se chamava Dalton e que era linda.
– Eu... – Eu não consigo pensar em nada para dizer. Meti realmente o pé
na argola. – Terminaram.
– Ah sim? – pergunta Ann, toda esperançosa.
– Não te importas de a deixar continuar com a história? – Felicity
repreende-a.
– A Nell Hawkins não pensa que é a Joana d’Arc nem a Rainha do Sabá.
A ilusão dela em particular é pensar que faz parte da Ordem, e que uma
mulher chamada Circe anda atrás dela.
Felicity fica boquiaberta.
– Fiquei toda arrepiada.
Ann está confusa.
– Mas não tinhas dito que ela estava em Bethlem?
– Pois, sim – digo eu, a assimilar o ridículo da conversa. Passam por nós
dois ardinas, e metem-se connosco. Não lhes ligamos.
– Mas não te parece que ela esteja louca. Parece-te que ela faz de conta
para se proteger, não é? – sugere Felicity.
Chegámos a um sítio onde se vendem caixas de rapé todas trabalhadas.
Examino uma com incrustações de marfim. É cara, mas ainda não tenho
nada para oferecer a meu pai, e por isso peço à rapariga que ma embrulhe.
– Aliás, eu fui visitá-la há pouco. Ela está, de facto, louca. Foi ela quem
fez isto – digo eu, e mostro-lhes o meu amuleto amolgado.
– Meu Deus – diz Felicity.
– Então não vejo como é que ela nos pode ajudar – resmunga Ann.
– Ela viu Circe. Tenho a certeza disso. Estava sempre a falar no caminho.
«Fica no caminho.» Disse isto várias vezes.
– O que te parece que signifique? – pergunta Felicity. Passamos por outra
arcada e saímos para a Bond Street, onde paramos diante de uma montra
resplandecente. Uma seda cor de clarete cai como cascata na figura de cera
de uma mulher silenciosa. Cada prega brilha como vinho ao luar. Não
podemos deixar de olhar com anseio.
– Não sei o que significa, mas sei que Nell Hawkins era aluna de Santa
Vitória no País de Gales.
– Não foi onde a professora McCleethy lecionou antes de ir para a
Spence? – pergunta Ann.
– Foi, mas não faço ideia se foi ou não professora da Nell. Vou escrever
uma carta à diretora a perguntar quando é que a professora McCleethy
deixou de trabalhar lá. Creio que há alguma ligação terrível entre o que
aconteceu à Nell Hawkins e a professora McCleethy, algo que tem a ver
com os reinos. Se conseguirmos resolver esse enigma, poderá muito bem
levar-nos ao Templo.
– Não sei como – teima Ann. Eu suspiro.
– Eu também não mas, de momento, é a minha única esperança.
A seda chama-nos do poleiro alto atrás do vidro. Ann suspira.
– Não adorarias ter um vestido feito daquilo? Seria de virar todas as
cabeças.
– A mamã encomendou o meu vestido em Paris – diz Felicity, como se
falasse do clima. Ann põe a mão no vidro.
– Eu queria... – Nem consegue terminar a frase. Simplesmente querer já é
demasiado.
Aparece uma vendedora na montra, o arco das letras que compõem o
nome Castle & Filhos, Costureiros, corta-a em duas secções demarcadas.
Ela pega no tecido deslumbrante. Despojado daquele requinte, o manequim
abana e depois sossega, não passa de uma concha cor de carne.
Continuamos a andar até darmos connosco numa rua lateral, onde fico
embasbacada. Escondida de baixo de um toldo está uma lojinha – Aurora
Dourada.
– O que foi? – pergunta Felicity.
– Aquela loja. A professora McCleethy tinha um anúncio dentro da mala.
Era uma das poucas coisas que ela tinha, deve ter alguma importância –
respondo.
– Uma livraria? – pergunta Ann, a franzir o nariz.
– Vamos dar uma olhadela – propõe Felicity.
Entramos na gruta que a loja é. A poeira dança na luz fosca. Não é uma
livraria muito bem organizada, e fico a pensar porque é que a professora
McCleethy gosta dela. Ouve-se uma voz no meio da obscuridade.
– Posso ajudar?
A voz ganha forma na pessoa de um homem curvado na casa dos setenta
anos. Avança a coxear, apoiado numa bengala. Os joelhos estalam com o
esforço.
– Como estão as meninas? Sou o senhor Theodore Day, proprietário da
Aurora Dourada, livraria desde o anno regni reginae de mil oitocentos e
sessenta e um.
– Como está o senhor? – murmuramos em uníssono.
– Então o que procuram? Ah, esperem! Não me digam. Tenho mesmo a
coisa indicada. – Com a bengala à frente, o senhor Day coxeia
apressadamente até uma estante alta atulhada de livros. – Algo com
princesas, talvez? Ou não, castelos assombrados e donzelas em perigo? –
As sobrancelhas, duas lagartas brancas e gordas por cima dos óculos,
mexem-se com um deleite evidente.
– Se não se importa... – começo eu. O senhor Day estica o dedo no ar.
– Não, não, não, não estrague. Vou encontrar aquilo que procuram. –
Vamos atrás do senhor Day conforme ele examina cada prateleira, passa o
dedo nodoso pelas lombadas de couro, a murmurar títulos de livros de si
para consigo. – Monte dos Vendavais... Jane Eyre... Castelo de Otranto…
ora lá está um livro esplêndido.
– Se o senhor não se importa – digo eu, ligeiramente mais alto. –
Estávamos na esperança de encontrar um livro sobre a Ordem. O senhor
tem algum livro sobre o assunto?
Deixei o senhor Day perplexo. As sobrancelhas lagartas juntam-se sobre a
cana do nariz.
– Ora, ora... não sei se ouvi falar... como disse que era o título?
– Não é um título – diz Felicity, com tal impaciência que quase ouço seu
velho caquético, como ela diria a seguir.
– É um tema – diz Ann com bondade, a redimir-nos. – A Ordem. Era um
grupo de mulheres que governava os reinos com a sua magia…
– Não eram mulheres a sério, claro! – interrompo. – Afinal não passa de
uma história.
– Então é ficção que procuram? – pergunta o senhor Day, a coçar a careca
entre os poucos tufos de cabelo branco que lhe restam. Isto está a revelar-se
impossível.
– Mitos – digo eu, depois de pensar um pouco. O rosto do senhor Day
anima-se.
– Ah! Tenho belos livros de mitologia. Venham por aqui, se faz favor.
Leva-nos para uma estante mais ao fundo.
– Grega, romana, celta, nórdica…oh, eu adoro mitologia nórdica. Aqui
estão.
Felicity lança-me um olhar desamparado. Não é disto que estamos à
procura, mas o que podemos fazer, além de agradecer e, pelo menos, fingir
que olhamos antes de nos irmos embora? A sineta por cima da porta
assinala a chegada de outro freguês e o senhor Day deixa-nos. Em voz
alegre, pergunta se pode ajudar. Responde uma mulher. Eu conheço aquele
sotaque esquisito. É igual ao da professora McCleethy.
Espreito de um dos lados da estante e vejo-a à porta da loja.
– Olhem ali – sussurro com urgência.
– Aonde? – estupidamente, Ann sai do esconderijo que a estante
constitui. Puxo-o com força e ela volta ao meu lado.
– Olha por aqui – digo, e tiro dois livros da prateleira, o que nos dá um
buraco por onde espiar.
– É a professora McCleethy! – exclama Ann.
– O que está ela aqui a fazer? – sussurra Felicity.
– Não sei – sussurro também. – Não consigo ouvir.
– Ah, sim. Acabou de chegar – está o senhor Day a dizer, em resposta a
alguma pergunta que não conseguimos ouvir à professora McCleethy.
– O que é que acabou de chegar? – pergunta Ann. Eu e Felicity fazemo-la
calar-se, tapamos-lhe a boca.
– Não demoro nada. Esteja à vontade. – O senhor Day desaparece atrás de
uma cortina de veludo. A luz do dia entra pelas janelas sujas, banha a
professora McCleethy numa névoa de pó. Ela tira a luva da mão direita para
poder folhear melhor as páginas de alguns romances empilhados numa
mesa. A luz reflete-se no anel das serpentes e encandeia-me com a
radiância. A professora McCleethy sai da mesa e avança mais para o nosso
esconderijo.
Em pânico, agachamo-nos no chão conforme os livros acima das nossas
cabeças vão saindo dos seus poleiros. Se ela procurar nas estantes mais
abaixo...
– Ora cá está – declara o senhor Day, a empurrar a cortina de veludo outra
vez. O misterioso livro é embrulhado, atado com uma fita, e entregue à
professora McCleethy. Em seguida, ouve-se a sineta anunciar a partida dela.
Espreitamos pelo buraco para garantir que ela se foi, e depois vamos ter
com o senhor Day.
– Senhor Day, creio que esteve aqui mesmo agora uma grande amiga da
minha mãe. Não se importa de fazer o obséquio de me dizer qual o livro
que ela comprou? Eu admiro muito o gosto dela nessas matérias – digo eu
com a maior doçura possível.
Pelo canto do olho, vejo Felicity abrir a boca com a surpresa e a
admiração. Ela não é a única a saber mentir.
– Sim, era Uma História das Sociedades Secretas, de Wilhelmina Wyatt.
Ainda não o li.
– E o senhor terá outro exemplar? – pergunto.
– Certamente. – O senhor Day vai a coxear até às traseiras da loja e volta
com o livro na mão. – Ora cá temos. Não é curioso? Não tenho visto
interesse nenhum neste livro, e hoje já vendi dois exemplares. É uma pena a
autora.
– A que se refere o senhor? – pergunta Felicity.
– Ter falecido pouco depois da publicação. – O senhor Day chega-se mais
e fala baixo. – Dizem que andava envolvida no oculto. Coisas malévolas.
Agora vou pôr-lhe uma bela fita e...
– Não, obrigada, senhor Day – digo eu, e pego no livro antes que ele
possa embrulhá-lo. – Estamos com imensa pressa, compreende?
– Muito bem, são quatro xelins, se faz favor.
– Felicity? – digo eu.
– Eu? – sussurra ela. – Porque é que eu tenho de pagar?
– Porque tu é que tens o porta-moedas – respondo com um sorriso tenso.
– Não olhem para mim – diz Ann. – Eu nada tenho.
– São quatro xelins – afirma o senhor Day.
Por fim, somos obrigadas a juntar as moedas para adquirir o
aparentemente sinistro livro da menina Wyatt.
– Deixa-me ver primeiro. Afinal, paguei três xelins e tu só um – rabuja
Felicity quando saímos para a rua.
– Vamos ler juntas – digo eu, a puxar pela minha ponta.
– Lá está ela! – exclama Ann. A professora McCleethy caminha mesmo à
nossa frente. – O que havemos de fazer?
– Eu sugiro segui-la – diz Felicity e lança-se logo na peugada.
– Espera aí – digo eu e apanho-a, sempre de olho na professora
McCleethy que está a dobrar a esquina. – Não sei se será inteligente.
Ann toma o partido de Felicity, claro.
– Tu querias saber. Esta é a maneira de o conseguir.
Não há como brigar com as duas. A professora McCleethy para e vira-se.
Com uma exclamação coletiva, juntamo-nos diante de um amolador. Daí a
momentos, ela prossegue. O amolador apregoa:
– Facas! Facas bem afiadas! – ouve-se bem acima do ruído da rua. A
professora McCleethy quase desapareceu da vista.
– Vamos embora – digo eu.
VINTE E QUATRO

Vamos na peugada da professora McCleethy durante algum tempo,


passamos por lojistas em mangas de camisa a despacharem encomendas
para dentro de coches expectantes e de uma mulher trajada de preto a
implorar-nos que nos lembremos dos infelizes nesta época natalícia. Não
lhe ligamos nenhuma, só nos interessa a nossa caçada.
Em Charing Cross, a professora McCleethy surpreende-nos ao entrar no
metro.
– O que havemos de fazer agora? – pergunta Felicity. Eu respiro fundo.
– Creio que vamos andar de metro.
– Nunca andei de metro – diz Ann, vacilante.
– Eu também não – diz Felicity.
– Não há nada como o momento presente – digo eu, embora a ideia até
me faça o fôlego agarrar-se à fiada ossuda das minhas costelas. Caminho-
de-ferro Metropolitano. Pois. É apenas um comboio subterrâneo, Gemma.
Isto é uma aventura, e eu sou uma rapariga com algo de aventura em mim,
disse o Simon.
– Pronto, não tenhas medo, Ann. Dá-me a tua mão – digo.
– Não tenho medo – afirma ela, passa por mim e começa a descer a
escada rumo aos túneis que correm por baixo das ruas apinhadas de
Londres como se não houvesse problema nenhum. Não há nada a fazer
além de a seguir. Respiro bem fundo e avanço. A meio caminho, viro-me e
vejo Felicity no cimo das escadas com um ar duvidoso na cara. Olha para
mim como se eu fosse Eurídice puxada de volta ao Mundo Subterrâneo.
– Gemma, espera! – brada ela, e corre para mim.
Ao fundo da escada, abre-se uma sala. Estamos num cais alumiado por
candeeiros a gás. O grande teto de madeira abobadada do túnel ergue-se
acima de nós. Mais abaixo no cais, a professora McCleethy está à espera.
Ficamos longe da vista até chegar um comboio à estação. A professora
McCleethy entra e nós avançamos depressa para a carruagem adjacente à
dela. É difícil perceber o que será mais estimulante: a possibilidade de
sermos descobertas pela professora McCleethy ou a nossa primeira viagem
de metro. Revezamo-nos a esticar o pescoço na coxia, da maneira menos
senhoril possível, para podermos espiar a professora McCleethy no
compartimento a seguir. No que lhe diz respeito, a professora McCleethy
está a ler o livro da menina Wyatt sobre sociedades secretas. Estou
desesperada por saber o que ela descobriu mas não me atrevo a olhar para o
nosso livro, senão ainda perdemos de vista a nossa professora.
O maquinista dá a partida. Com um puxão, o comboio entra no túnel.
Felicity agarra-me na mão. É uma sensação estranha, darmos connosco em
movimento nesta passagem obscurecida, a cintilação débil dos candeeiros a
gás a passar pelas nossas caras espantadas como estrelas cadentes.
Há outro maquinista por perto, pronto a anunciar cada paragem na sua
estação. A professora McCleethy não levanta os olhos do livro. Quando o
maquinista anuncia Westminster Bridge, contudo, ela fecha o livro e sai do
comboio, nós três a segui-la a uma distância segura. Saímos para a rua, a
pestanejar perante a claridade súbita.
– Ela vai apanhar aquele elétrico puxado a cavalos! – exclama Felicity.
– Então estamos tramadas – digo eu. – Não a podemos seguir lá para
dentro, que ela repara.
Ann pega-me na mão.
– Podemos. Olha, há muita gente. Vamos misturar-nos. Se ela nos vir,
dizemos simplesmente que andamos a passear.
É um plano muito audacioso. A professora McCleethy avança para a
parte de trás do elétrico apinhado. Nós ficamos à frente, com o máximo de
pessoas de permeio. A professora McCleethy sai na Westminster Bridge
Road, e nós quase caímos por cima umas das outras a tentar ir atrás dela. Eu
sei onde estamos. Já cá estive recentemente. Estamos em Lambeth, muito
perto do Real Hospital de Bethlem. Com efeito, a professora McCleethy
avança a passo rápido nessa direção. Em minutos, estamos a vê-la passar
pelos portões de ferro e a subir pelo passeio curvo até ao grande pórtico da
entrada. Escondemo-nos numas sebes ao longo do passeio, bem agachadas.
– O que será que ela vai fazer em Bedlam? – pergunta Felicity em tom
sinistro. Eu sinto arrepios.
– A Nell Hawkins está lá.
– Não pensas que a professora McCleethy lhe vá fazer mal, pois não? –
pergunta Ann naquela maneira imprópria de tão excitada, que sugere não
estar assim tão desagradada com a ideia, desde que sirva de história
empolgante para a nossa tarde.
– Não sei – respondo. – Mas faz-me pensar que se conhecem, e o mais
certo é que seja de Santa Vitória.
Ficamos na rua ao frio mais algum tempo, mas a professora McCleethy
não sai, e corremos o risco de faltar à hora marcada com Franny. Partimos
com relutância e eu fico com mais perguntas do que nunca. O que queria a
professora McCleethy em Bedlam? De que está à procura? Tenho a certeza
de que a professora McCleethy e Nell Hawkins estão ligadas. Só não sei
como nem porquê.
VINTE E CINCO

Felicity convida-nos a ir a sua casa para um lanche muito tardio. Com o


apetite espicaçado pela aventura, cada uma de nós devora vários pãezinhos
recheados sem apelo nem agravo.
– Bem, o que lhes parece? A professora McCleethy em Bedlam? –
pergunta Felicity entre dentadas.
– Talvez a professora McCleethy tenha algum parente lunático? – sugere
Ann. – Um que seja uma grande vergonha para a família.
– Ou talvez lá tenha ido ver a Nell Hawkins – digo eu.
– Não temos respostas para isso, de momento. Vamos ver o que a menina
Wyatt tem a dizer que desperte tanto o interesse da professora McCleethy –
diz Felicity, e apodera-se do livro, como eu já sabia que ela faria. –
Cavaleiros Templários, Pedreiros-Livres, Clube do Fogo do Inferno, os
Hassassinos... só o índice já é leitura. Ah, cá está. Página duzentos e
cinquenta e cinco. A Ordem. – Ela avança para a página e começa a ler em
voz alta.
– A cada geração, as jovens são escrupulosamente treinadas para
assumirem o seu lugar nas fileiras mais privilegiadas da Ordem. Quando
chegam aos dezasseis anos, são vigiadas de perto para ver quem foi
escolhida pelos reinos para brandir o verdadeiro poder, e aquelas cujo
poder não passa de uma chama tremeluzente que arde até às cinzas.
Aquelas que não são escolhidas são reencaminhadas, talvez para uma vida
doméstica, para nunca mais pensarem no seu tempo com as outras mágicas
poderosas. Ainda há outras que seguem uma vida dedicada a outrem,
chamadas por vezes pela Ordem quando forem precisas.
– Há quem diga que a Ordem nunca existiu. Não passaria de um conto de
fadas, espíritos, bruxas e princesas, e os deuses imortais do Monte Olimpo
que assinalam a literatura tão estimada por raparigas impressionáveis e
desejosas de acreditarem em tais fantasias. Outros dizem que estas
mulheres eram pagãs celtas que desapareceram nas brumas do tempo, tal
como Merlim, Artur e os seus cavaleiros. Outros ainda contam à boca
pequena uma história mais tenebrosa: que dentro da própria Ordem
alguém traiu os princípios com um sacrifício humano...
Os olhos de Felicity abarcam a página. Está a ler para si.
– Tens de ler alto! – protesto.
– É só o que já sabemos – diz ela.
– Pronto, leio eu – Pego no livro.
– Os lunáticos, os viciados, os bêbedos, os pobres ou os famintos, estas
pobres almas desventuradas precisavam da proteção da Ordem, pois
tinham as mentes perturbadas e fracas, não conseguiam resistir às vozes
dos espíritos negros que falavam com elas quando assim entendiam...
Os bêbedos. Os viciados. Penso no meu pai, mas não, eu salvei-o. Ele
está a salvo.
– Se os espíritos conseguem entrar nas mentes dos loucos, como é que
podemos ter a certeza com a Nell Hawkins? – pergunta Ann. – E se já a
estiverem a usar para fins doentios?
Felicity concorda.
– É uma ideia perturbante.
Lá estava o senhor Carey, a fazer-me um aviso arrepiante, mas Nell não
me meteu medo. Ela é que tinha medo. Tenho mesmo que abanar a cabeça.
– Creio que a Nell está a lutar muito para impedir que os espíritos a
alcancem. Deve ser por isso que é tão difícil falar com ela.
– Quanto tempo poderá ela resistir? – pergunta Ann. Não tenho resposta
para isto.
– Deixa-me tentar outra vez – propõe Felicity, e tira-me o livro das mãos.
– É facto, – começa ela em voz alta – embora muitos disputem a
veracidade destas informações, que a Ordem ainda existe nos dias de hoje.
Os membros tornaram-se incógnitos e reconhecem-se entre si por uma
variedade de símbolos que apenas eles conhecem. Entre estes, encontram-
se o olho na meia-lua, a dupla flor de lótus, a rosa, as duas serpentes
entrelaçadas...
– Tal e qual o anel da professora McCleethy! A professora Moore disse
que era um símbolo – digo eu. – E eu já vi um anel assim na visão que tive
das três raparigas.
Ann arregala os olhos.
– Viste?
– Mas não é tudo – continua Felicity em voz alta. Não gosta de ser
interrompida por qualquer motivo. – As sacerdotisas da Ordem também
recorrem ao anagrama. Trata-se de um mecanismo particularmente eficaz
na ocultação das suas identidades quando são perseguidos. Assim sendo,
Jane Snow ficaria Jean Wons, e ninguém, à exceção das suas irmãs,
saberia. – Felicity pega numa folha de papel.
– Vamos fazer os nossos próprios anagramas. Quero saber qual poderá ser
o meu nome secreto. – Está animada. Aqui em privado, já não é snobe. Não
tem medo de parecer tolinha de tanto entusiasmo.
– Muito bem – digo eu. Felicity escreve o seu nome no cimo da folha:
Felicity Worthington. Ficamos a olhar para as letras, à espera que elas
revelem um nome novo e misterioso. Ann começa a escrevinhar.
– Felicity Worthington fica City Worth Gin If Lento.1
Felicity faz uma careta.
– Mas que espécie de nome é esse?
– Parvinho – digo eu.
– Experimenta outra vez, Ann – manda Felicity. Ann pega na caneta,
concentra-se como se fosse uma cirurgiã com o doente.
– Wont Left in City Groh? – sugere.
– Não faz sentido nenhum – queixa-se Felicity.
– Estou a fazer o melhor que sei.
Eu não estou a sair-me muito melhor. Já dispus e redispus as letras do
nome Gemma Doyle e só me aparece uma única coisa.
– Que tal está o teu, Gemma? – pergunta Felicity.
– Nem vale a pena dizer – respondo e amarroto o papel. Felicity tira-mo e
abre-o.
– Dog Mealy Em2! – As raparigas desatam à gargalhada e eu fico
imediatamente arrependida de terem visto.
– Oh, é perfeito – diz Felicity, contentíssima. – Doravante, serás
conhecida pelo teu nome anagramático secreto da Ordem: Dog Mealy Em.
Que maravilha.
– Vou tentar outra vez – digo eu.
– Podes, se quiseres – diz ela, a mostrar os dentes como uma gata a
encurralar a presa. – Mas eu prefiro tratar-te por Dog Mealy Em.
Ann até resfolega de tanto se rir e fica com o nariz a pingar. Limpa-o, a
murmurar Dog Mealy Em, e Felicity desata aos risinhos outra vez. Estou
irritada por ser a feliz destinatária de uma farpa tão aborrecida.
– Muito bem, qual é o teu nome secreto, Ann? – pergunto, a provocá-la.
A letra escorreita e apertada de Ann estende-se pela folha branca.
– Nan Washbrad.
– Não é coisa que se faça! – protesto. – Parece um nome a sério.
Ann encolhe os ombros.
– Não serve ter um nome que dê nas vistas, pois não? – Ela sorri,
triunfante, e no silêncio ouço o que ela não disse: Dog Mealy Em.
Felicity tem estado a tamborilar com a ponta da caneta no papel, muito
concentrada. Depois ruge de frustração.
– Não consigo fazer bater a bota com a perdigota do meu nome. Não me
ocorre nada.
– Tens segundo nome de batismo? – pergunta Ann. – Pode ser que ajude.
Mais letras.
– Isso não serve de nada – responde Felicity, muito depressa.
– Porque não? – retruca Ann.
– Porque não! – Felicity fica corada. Não é nada dela corar por qualquer
coisa.
– Então está bem. Doravante serás conhecida como City Worth Gin If
Lento – digo eu, a gozar bastante com o anagrama dela.
– Se têm mesmo de saber, o meu segundo nome de batismo é Mildrade. –
Felicity volta à folha de papel como se não carregasse o fardo daquele que
porventura será o pior segundo nome de sempre. Ann franze o nariz.
– Mildrade? Mas que espécie de nome é esse?
– É um nome de família antigo. – Fee começa a fungar. – Remonta aos
saxões e tudo.
– Ah – faz Ann.
– Lindo – digo eu, a tentar desesperadamente impedir que os cantos da
boca me comecem a mexer. Felicity esconde a cara nas mãos.
– Oh, é horroroso, não é? Simplesmente, abomino-o.
Não há nada educado a dizer a isto.
– De todo. – Não resisto a dizê-lo em voz alta. – Mildrade.
Felicity semicerra os olhos.
– Dog Mealy Em.
Isto pode durar a noite toda.
– Tréguas? – Ela faz que sim com a cabeça e diz:
– Tréguas.
Ann começou a cortar as letras do nome de Felicity para poderem servir
de quadrados móveis em cima da escrivaninha, até formarem um qualquer
nome razoável. É um trabalho entediante e, em minutos, estou a olhar para
as letras mas a pensar no que me apetece para o jantar. Felicity declara a
tarefa impossível e atira-se para o canapé de modo a ler mais sobre as
sociedades secretas da menina Wyatt. Somente Ann continua determinada a
decifrar o código do nome de Felicity. Está ferozmente concentrada, a
passar as letras para a esquerda e a direita.
– Ah! – exclama por fim.
– Deixa-me ver! – Felicity descarta o livro e corre para a escrivaninha.
Vou também. Ann aponta orgulhosamente para onde os quadrados
irregulares formaram um nome novo, que Felicity lê em voz alta.
– Maleficent Oddity Ralingworth. Oh, que perfeição.
– Sim – digo eu. – Maligna e Bizarra.
– Dog Mealy Em – retruca Fee. Tenho mesmo de trabalhar o meu nome.
Num canto do papel, Ann escrevinhou senhora Thomas Doyle várias vezes,
a experimentar uma assinatura que nunca será sua, e tenho vergonha de a ter
riscado da lista de Tom antes mesmo de ela ter hipótese. Hei de remediar
isso. Ann está a olhar para um nome.
– O que foi? – pergunto.
– Estou a experimentar o nome da professora McCleethy – responde ela.
Felicity e eu rodeamo-la.
– O que foi que te saiu?
Ann mostra-nos o seu trabalho.
Claire McCleethy Let Her Claim Ccy I’m Clear Celt Hey C Ye Thrice
Calm Cel The Mal Cire Leccy
Felicity ri-se.
– Isto não faz sentido nenhum. – Let Her Claim Ccy? Mal Cire?
– Cire é um tipo de tecido. Mal significa mau – diz Ann orgulhosamente.
Eu ainda estou a olhar para a folha. Há algo estranhamente familiar, algo
que me deixa os pelinhos da nuca todos em pé.
Ann escreve outro C, o que faz Circe.
– Experimenta o nome todo – digo eu.
Mais uma vez, Ann escreve o nome e corta as letras em quadradinhos que
se podem mover. Experimenta várias combinações – Circe Lamcleethy,
Circe the Lamley, Circe the Mal Cley, Circe the Ye Call M.
– Põe o Y depois de The – mando eu.
Circe They E Call M.
Ann muda as letras até ficar: They Call Me Circe.3
Ficamos a olhar, abismadas.
– Claire McCleethy é um anagrama – sussurra Ann. Felicity estremece.
– Circe voltou à Spence.
– Temos de encontrar o Templo – digo eu. – E depressa.

Pippa está sentada com a górgone quando chegamos aos reinos.


– Olhem, fiz grinaldas para todas! São as minhas prendas de Natal para
vocês! – Tem nos braços vários círculos de flores, e põe-no-los na cabeça. –
Lindo!
– Oh, são perfeitas – Felicity até começa a arrulhar.
– E guardei em seguranças as tuas setas encantadas – diz Pip, a passar a
aljava para as costas de Felicity. – Vamos descer o rio outra vez?
– Não, não me parece – respondo. – A górgone gira a cabeça verde na
minha direção por momentos.
– Não há viagens hoje, Altíssima? – sibila ela.
– Não, obrigada – respondo. Lembro-me bem da nossa última travessia,
daquele momento de hesitação. Não sei se posso confiar na criatura mítica
que outrora chefiou uma rebelião contra a Ordem. Houve razão para a
aprisionarem.
Faço sinal para as outras me seguirem até ao jardim. Os cogumelos estão
mais gordos. Alguns parece que quase rebentam.
– Descobrimos que o nome da nossa professora é um anagrama de They
Call Me Circe – conta Felicity a Pippa, depois das outras notícias do nosso
dia.
– Que empolgante! – diz Pippa. – Quem me dera ter lá estado para lhe ir
na peugada. Foi mesmo corajoso da vossa parte.
– Parece-lhes que a senhora Nightwing também seja suspeita? – pergunta
Felicity. – Elas são amigas.
– Não tinha pensado nisso – digo eu, abalada.
– Ela não queria que soubéssemos nada da Ordem! Por isso é que
despediu a professora Moore – diz Pippa. – Talvez a senhora Nightwing
tenha algo a esconder.
– Ou talvez não saiba nada disso – diz Ann. A senhora Nightwing tem
sido a única mãe que Ann jamais conheceu. Eu sei bem o que é ter as
certezas sobre a pessoa a quem amamos defraudadas.
– A senhora Nightwing era professora na Spence quando a Sarah e a
Mary eram alunas. E se ela estiver a ajudar a Sarah desde sempre, à espera
da altura propícia para regressar? – alvitra Felicity.
– Esta conversa não me agrada – balbucia Ann.
– E se...
– Fee – interrompo eu, a lançar uma olhadela a Ann. – Creio que por
agora será melhor limitarmo-nos a procurar o Templo. A Nell Hawkins diz
que temos de procurar um caminho. Já viste algum caminho por aqui, Pip?
– pergunto. Pip lança-me um olhar enigmático.
– Quem é a Nell Hawkins?
– Uma lunática internada em Bedlam – responde Ann. – A Gemma pensa
que ela sabe onde encontrar o Templo.
Pippa ri-se.
– Estão a reinar!
– Não – digo eu, a corar. – Já viste algum caminho?
– Centenas. De que tipo de caminho estamos à procura?
– Não sei. O verdadeiro caminho. Foi só o que ela disse.
– Não serve de muito – diz Pippa, a suspirar. – Há um que sai do jardim e
por onde ainda não fui.
– Mostra-me – digo eu.

O caminho de que ela fala não passa de uma azinhaga estreita que parece
desaparecer num muro de verdura frondosa. É sinuoso e difícil. A cada
passo, temos de afastar as folhas largas e os ramos gordos e beges que nos
deixam fitinhas de seiva nas mãos até ficarmos pegajosas como pez.
– Mas que maçada – resmunga Pippa. – Espero que seja o caminho certo.
Seria péssimo termos este trabalho todo para nada.
Um ramo bate-me mesmo na cara.
– O que disseste? – pergunta Felicity.
– Eu? Não disse nada – respondo.
– Ouvi vozes.
Paramos. Também ouço. Há algo a mexer-se no mato cerrado. De súbito,
parece-me má ideia ter vindo por aqui sem saber nada. Estendo a mão para
deter as minhas amigas. Felicity pega numa seta. Estamos tensas como
cordas de piano.
Aparece um par de olhos entre as ramadas da palmeira.
– Quem vem lá? – pergunto eu.
– Vieram ajudar-nos? – pergunta uma voz branda.
Uma jovem sai de detrás da árvore e deixa-nos boquiabertas. Tem o lado
direito do corpo horrivelmente queimado. A mão mirrada até ao osso. Ela
vê o choque nas nossas caras e tenta tapar-se com o que lhe resta do xaile.
– Houve um incêndio na fábrica, menina. Foi-se como estopa, e nós não
conseguimos sair a tempo – responde ela.
– Nós? – pergunto, recobro finalmente a voz.
Atrás dela, no mato, estão talvez umas doze raparigas novas, muitas delas
queimadas, todas elas mortas.
– As que não conseguiram fugir. O fogo apanhou algumas; outras
saltaram e morreram na queda – diz ela, no tom mais casual.
– Há quanto tempo estão aqui? – pergunto.
– Não sei dizer – responde ela. – Parece que desde sempre.
– Quando foi o incêndio? – pergunta Pippa.
– No dia 3 de dezembro de 1895, menina. Fazia muito vento nesse dia, se
bem me lembro. – Estão cá há cerca de duas semanas, menos tempo do que
Pippa. – Eu já tinha visto a menina – diz ela, a apontar com a cabeça para
Pippa. – A menina e o seu cavaleiro.
Pippa fica embasbacada.
– Eu nunca a vi na vida. Não sei do que está a falar.
– Desculpe ter ofendido, menina. Não foi com intenção.
Não sei porque é que a Pip está tão mal-humorada. Não está a ajudar
nada.
A rapariga puxa-me a manga e eu tenho de reprimir um grito quando vejo
aquela mão em cima de mim.
– Isto é o céu ou o inferno, menina?
– Nem uma coisa, nem outra – respondo e dou um passo para trás. –
Como se chama?
– Mae. Mae Sutter.
– Mae – sussurro eu. – Alguma dentre vocês se tem portado de maneira
esquisita?
Ela reflete um pouco.
– A Bessie Timmons – responde, a apontar para outra rapariga queimada,
cujo braço tem uma fratura muito feia. – Mas na verdade, menina, ela
sempre foi um bocadinho estranha. Tem andado a falar com alguém às
escondidas, e diz-nos que temos de ir para um sítio chamado as Invernias,
que lá nos podem ajudar.
– Mae, ouça bem o que lhe digo. Não podem ir para as Invernias. Não
tarda a que fique tudo como deve ser, e a Mae e as suas amigas poderão
atravessar o rio para o outro lado.
Mae olha para mim, assustada.
– E o que tem o outro lado?
– Não... Não sei ao certo – respondo, não sirvo de consolo. – Mas
entretanto, não podem confiar em ninguém que conheçam aqui.
Compreende?
Ela lança-me um olhar duro.
– Então porque haveria de confiar na menina? – Ela volta para as amigas
e ouço-a dizer-lhes: – Elas não nos podem ajudar. Estamos por nossa conta.
– Tantos espíritos à espera da travessia... – diz Felicity.
– À espera de serem corrompidos – diz Ann.
– Não sabes se é assim – diz Pippa. Calamo-nos.
– Vamos continuar – digo eu. – Talvez o Templo esteja perto.
– Eu não quero continuar – diz Pippa. – Não quero ver mais horrores. Vou
voltar para o jardim. Quem vem comigo?
Olho para a verdura à nossa frente. O caminho some-se por baixo da
pesada cobertura de folhas. Porém, penso ver através delas um lampejo de
branco cintilante e fantasmagórico a roçagar no mato.
Bessie Timmons sai ao caminho. Tem uma expressão dura nos olhos.
– Porque é que não arredam, já que não nos podem ajudar? Vá, arredem.
Senão...
Ela não explica o «senão». Outras raparigas vêm também para trás dela,
cerram fileiras. Não nos querem aqui. Não vale a pena lutar com elas, neste
momento, não.
– Vamos lá – digo eu. – Vamos regressar.
Arrepiamos caminho. Bessie Timmons ainda berra nas nossas costas.
– Deixem-se de sobrancerias. Não tarda a ficarem todas como nós. Os
meus amigos hão de ir à vossa procura. Hão de fazer de nós inteiras! Hão
de fazer de nós rainhas! E vocês não passam de pó.
O regresso ao jardim faz-se em silêncio. Estamos cansadas e pegajosas e
amuadas, Pippa em particular.
– Agora podemos divertir-nos, se faz favor? – bufa ela, quando chegamos
ao sítio onde estavam as runas. – Esta busca do Templo é tão maçadora.
– Sei de um lugar para brincadeiras, senhora minha.
O cavaleiro sai de detrás de uma árvore, é um sobressalto para todas nós.
Numa mão, traz uma coisa embrulhada num pano. Abrimos a boca e ele
leva um joelho ao chão.
– Assustei-as? – pergunta, a inclinar a cabeça para um lado, e o cabelo
dourado como palha cai-lhe na cara como uma cortina encantadora. Pippa
olha para ele com dureza.
– Não foste convocado.
– Lamento – diz ele. Não parece lamentar nada. Parece que está a
divertir-se às nossas custas. – Como poderei redimir-me, senhora minha? O
que me mandas fazer? – Nisto, encosta o punhal ao pescoço. – Exiges
sangue, senhora minha?
Pippa está estranhamente impávida.
– Se assim desejares.
– Qual é o teu desejo, senhora minha?
Pippa vira costas, os caracóis pretos compridos a ressaltarem nas
omoplatas.
– Desejo que me deixes em paz.
– Muito bem, senhora minha – diz o cavaleiro. – Mas deixo-te uma
prenda.
Ele atira o embrulho para o chão e volta para o mato.
– Pensei que te tinhas visto livre dele – diz Felicity.
– Sim. Também pensei que sim – responde Pippa.
– O que foi que ele te trouxe? – pergunta Ann. Começa a desembrulhar e
cai na relva com um gritinho.
– O que é? – perguntamos eu e Felicity, a correr para ela.
É a cabeça de uma cabra, coberta de moscas e sangue seco.
– Que horror! – diz Ann, a tapar a boca com a mão.
– Se aquele homem voltar, tenho umas coisas para lhe dizer – diz Felicity
com as faces coradas.
Foi uma coisa pavorosa de se fazer, e eu fico a pensar como é que o
cavaleiro, outrora sonhado e invocado pelos anseios de Pippa – uma
criatura vinculada a ela pela magia – pode ter ficado tão cruel. Pippa olha
para a cabeça da cabra com atenção. Tem as mãos na barriga e, a princípio,
parece-me que vai vomitar. Porém, ela lambe os lábios ligeiramente, com
um olhar anelante. Nisto, repara que eu estou a observá-la.
– Hei de dar-lhe a devida sepultura mais tarde – diz, e enfia o braço no
meu.
– Sim, seria acertado – digo eu, e começo a afastar-me.
– Voltem amanhã! – grita ela. – Tentaremos outro caminho. De certeza
que o encontramos amanhã!
***
O relógio de cuco ricamente esculpido em cima da lareira de Felicity dá as
horas. Parece que estivemos fora muito tempo, mas passou menos de um
segundo à hora de Londres. Ainda estou abalada pelos acontecimentos do
dia – a professora McCleethy à porta de Bedlam, o anagrama, Mae Sutter e
as amigas. E Pippa. Sim, especialmente Pippa.
– Vamos divertir-nos? – pergunta Felicity, a correr para a porta da frente
connosco a reboque. Shames, o mordomo, vem atrás de nós.
– Menina Worthington? O que se passa?
Felicity fecha os olhos e estende a mão.
– Shames, não me está a ver aqui. Estamos na sala a tomar chá.
Sem palavra, Shames abana a cabeça como se não compreendesse porque
é que a porta está aberta. Fecha-a atrás de nós, e ficamos livres. O nevoeiro
londrino oculta as estrelas. Elas brilham aqui e ali mas não conseguem
destacar-se no céu toldado.
– O que vamos fazer agora? – pergunta Ann. Felicity abre um largo
sorriso.
– Tudo.
Voar sobre Londres numa noite fria por magia é algo extraordinário. Lá
estão os cavalheiros a saírem dos clubes, a fila de coches para os recolher.
Lá estão os maltrapilhos, pobres crianças sujas que procuram nas margens
imundas do Tamisa algumas moedas e um pouco de sorte. Basta-nos descer
para tocar nos telhados dos teatros do West End ou passar as pontas dos
dedos pelas grandes espiras góticas das Casas do Parlamento, e assim
fazemos. Ann senta-se no telhado ao lado da torre do Big Ben.
– Olhem – diz ela, a rir-se. – Tenho assento no Parlamento.
– Podemos fazer qualquer coisa! Esgueirar-nos para o Palácio de
Buckingham e usar as joias da coroa – diz Felicity, a franquear as torres em
bicos dos pés.
– Não fazias uma coisa dessas, pois não? – pergunta Ann, horrorizada.
– Não, não fazia – respondo eu, com firmeza.
É revigorante desfrutar de tal liberdade. Voamos preguiçosamente sobre o
rio, paramos para descansar na Ponte de Waterloo. Passa por baixo de nós
um barco a remos, a lamparina a lutar com o nevoeiro, e a perder. É curioso,
mas consigo ouvir os pensamentos do cavalheiro idoso dentro do barco, tal
como ouço os das mulheres perdidas em Haymarket e dos chapéus altos a
conduzirem as suas charretes particulares em Hyde Park, quando passamos
por lá. É ténue, como ouvir uma conversa noutra sala, mas sei o que estão a
sentir.
O velhote põe pedras na algibeira, e eu sei o objetivo.
– Temos de impedir o homem naquele barco – digo eu.
– Impedi-lo de quê? – pergunta Ann, a rodopiar no ar.
– Não o ouves?
– Não – diz Ann. Felicity abana a cabeça e flutua de costas como se
nadasse.
– Ele quer matar-se.
– Como é que sabes? – pergunta Felicity.
– Consigo ouvir-lhe o pensamento – respondo.
Elas duvidam, mas seguem-me até ao nevoeiro cerrado. O homem canta
uma cantiga lúgubre sobre uma moça bonita perdida para sempre, à medida
que enche a algibeira de pedras e se chega à beira do barco que balouça.
– Tinhas razão! – exclama Ann.
– Quem vem lá? – grita o homem.
– Tenho uma ideia – sussurro para as minhas amigas. – Venham comigo.
Adensamo-nos no nevoeiro, e o homem quase cai para trás ao ver três
raparigas a flutuarem na sua direção.
– Não pode fazer um ato desesperado – digo eu numa voz trémula que
espero resulte sobrenatural. O homem cai de joelhos e arregala os olhos.
– Qué-qué que são vomecês?
– Somos os fantasmas do Natal, e coitado do homem que não ouvir os
nossos avisos – digo eu em tom lamuriento.
Felicity geme e dá uma cambalhota para compor o ramalhete. Ann olha
para ela de boca aberta, mas eu estou impressionada pelo seu raciocínio
rápido e pela suas acrobacias.
– Qual aviso? – guincha o homem.
– Se persistir neste rumo terrível, vai acontecer-lhe uma praga horrível –
digo eu.
– E à sua família – acrescenta Felicity.
– E à família dela – Ann ajuda, e parece-me demasiado, mas não há como
voltar atrás.
Funciona. O homem tira pedras da algibeira tão depressa que ainda vira o
barco.
– Obrigado! – diz ele. – Sim, obrigado, de certezinha.
Satisfeitas, voamos para casa, a rirmo-nos do nosso engenho e a
sentirmo-nos todas presumidas por termos salvado a vida de um homem.
Quando chegamos outra vez às casas elegantes de Mayfair, sinto-me atraída
para casa de Simon. Seria fácil voar perto e talvez ouvir-lhe os
pensamentos. Por momentos, fico a pairar, mais perto dele mas, quase na
última, mudo de rota, sigo Felicity e Ann até à sala de estar novamente,
onde o chá já arrefeceu.
– Foi emocionante! – diz Felicity a sentar-se.
– Sim – diz Ann. – Porque será que eu e a Fee não conseguimos ouvir-lhe
os pensamentos também?
– Não sei – respondo.
Entra uma menina de traje imaculado e avental. Não pode ter mais de oito
anos. O cabelo louro foi puxado para trás no cocuruto com uma fita branca
e larga. Os olhos têm a mesma cor azul-cinza de Felicity. Aliás, parece-se
muito com Felicity.
– O que é que quer? – pergunta Felicity de mau modo. Entra uma
governanta.
– Lamento, menina Worthington. A menina Polly parece que perdeu a
boneca. Eu disse-lhe que tem de ter mais cuidado com as coisas dela.
Então aquela é a pequena Polly. Tenho pena dela por viver com a
Felicity.
– Aqui está – diz Felicity, ao encontrar a boneca debaixo do tapete persa.
– Espere. Deixe-me ver se está tudo bem.
Felicity faz de conta que é enfermeira da boneca, e Polly ri-se mas,
quando fecha os olhos e põe as mãos na boneca, eu sinto o puxão da magia
que trouxemos.
– Felicity! – digo eu, a estragar-lhe a concentração. Ela passa a boneca à
Polly.
– Pronto, Polly. Já está melhor. Agora tem alguém que tome conta de si.
– O que é que fizeste? – pergunto depois de a Polly ir para o seu quarto
com a governanta.
– Ora, não olhem para mim assim! A boneca tinha o braço partido, eu só
o consertei – bufa Felicity.
– Tu não farias nada de mal à menina, pois não?
– Pois não – responde Felicity, impávida.
1 Cidade Vale Gim (bebida) Se (for) Lento. (N. da T.)
2 Em (diminutivo de Emily) Cão de Papa. (N. da T.)
3 Chamam-me Circe. (N. da T.)
VINTE E SEIS

Quando acordo, escrevo uma carta à diretora da Escola de Santa Vitória


para Raparigas, a perguntar se a professora McCleethy esteve lá a dar aulas.
Mando a Emily levar ao correio ainda a tinta não secou por completo.
Dado que é quinta-feira, a professora Moore leva-nos à galeria tal como
nos prometeu. Vamos de ónibus pelas ruas de Londres. É glorioso
sentarmo-nos no cimo, o vento a bater-nos na cara, a olharmos para baixo,
para as pessoas que se afadigam na rua e para os cavalos que puxam vagões
cheios de mercadorias. Falta menos de uma semana para o Natal, e o tempo
arrefeceu muito. No céu as nuvens estão pesadas da neve que aí vem. As
barrigas brancas sentam-se nos topos das chaminés, engolem-nos inteiros
antes de passarem ao próximo e ao outro, a descansarem de cada vez como
se tivessem um longo caminho a percorrer.
– A nossa paragem está próxima, senhoras – chama a professora Moore
por cima do bulício das ruas. O vento aumentou e ela tem de segurar o
chapéu com uma mão. Com passos cuidadosos, descemos a escada que dá
para a base do ónibus, onde um maquinista aperaltado na sua farda nos dá a
mão e nos ajuda a sair.
– Abrenúncio! – diz a professora Moore, a ajeitar o cabelo por baixo do
chapéu. – Pensei que ainda levantava voo.
A galeria fica num antigo clube de cavalheiros. Há muitos visitantes hoje.
Passamos de um piso a outro na companhia deles, absorvemos cada quadro
magnífico. A professora Moore leva-nos por um corredor dedicado às obras
de artistas menos conhecidos. Há retratos tranquilos de donzelas pensativas,
cenas fulgurantes de guerras no mar, e paisagens pastorais que me dão
vontade de correr descalça nelas. Dou comigo atraída por um quadro grande
a um canto. Tem um exército de anjos reunidos em batalha. Abaixo deles,
um jardim luxuriante e uma árvore solitária, e muita gente de costas
viradas, a gemer. Mais abaixo, uma ampla extensão de pedra negra banhada
numa luz laranja de fogo. Uma cidade dourada nas nuvens mais além. No
centro, dois anjos em combate, os braços entrelaçados de modo que nem sei
dizer onde termina um e começa outro. É como se, sem essa luta para os
manter em voo, ambos se pudessem precipitar no vazio.
– Encontrou algum de que goste mais? – pergunta a professora Moore,
subitamente a meu lado.
– Não sei dizer – respondo. – É... perturbante.
– A arte de qualidade costuma ser. O que é que a menina considera
perturbante neste quadro?
Olho para os tons vibrantes dos óleos, os vermelhos e laranjas do fogo; os
brancos e cinzas pálidos das asas dos anjos; as variações nos tons de carne
que parecem dar vida aos músculos, contraídos para a vitória.
– Parece-me bastante desesperado, como se houvesse imenso em jogo.
A professora Moore inclina-se para a frente de modo a ler a placa de latão
por baixo do quadro.
– Artista desconhecido. Aproximadamente mil oitocentos e um. Uma
Hoste de Anjos Rebeldes. – A professora continua a citar o que me soa a
poesia. – Reinar é digno de ambição mesmo no Inferno: Antes reinar no
Inferno do que servir no Céu. John Milton, Paraíso Perdido, Livro
Primeiro. Já leu?
– Não – respondo, a corar.
– Menina Worthington? Menina Bradshaw? – pergunta a professora
Moore. Elas abanam as cabeças. – Abrenúncio, o que será do Império se
não lermos os nossos melhores poetas ingleses? John Milton, nascido em
mil seiscentos e oito, falecido em mil seiscentos e setenta e quatro. O seu
poema épico, Paraíso Perdido, é a história de Lúcifer. – Ela aponta para o
anjo moreno ao centro. – O anjo mais brilhante e amado do céu, expulso
por inspirar uma rebelião contra Deus. Depois de perder o céu, Lúcifer e os
seus anjos rebeldes juraram continuar a lutar aqui na terra.
Ann assoa-se delicadamente a um lencinho.
– Não compreendo porque é que tinha de lutar. Ele já estava no céu.
– De facto, mas não se contentava em servir. Queria mais.
– Tinha tudo o que podia desejar, não tinha? – pergunta Ann.
– Exato – afirma a professora Moore. – Tinha de almejar. Estava
dependente dos caprichos de alguém. É terrível não ter poder próprio. Ser
recusado.
Felicity e Ann olham para mim e eu sinto um assomo de culpa. Eu tenho
poder. Elas não. Será que me odeiam por isso?
– Coitado do Lúcifer – murmura Felicity. A professora Moore ri-se.
– Mas que ideia assaz invulgar, menina Worthington, mas não é a única.
O próprio Milton parecia apiedar-se dele. Este pintor também. Está a ver a
beleza que ele conferiu ao anjo negro?
Nós três observamos bem as pinceladas das costas fortes e perfeitas dos
anjos. Quase parecem amantes, alheados de todas nós. A luta é que
importa.
– Faz-me pensar... – diz a professora Moore.
– Em quê, professora Moore? – pergunta Ann.
– E se o mal não existir realmente? E se o mal for apenas algo sonhado
pelo homem, e não houver nada com que lutar exceto as nossas limitações?
A batalha constante entre a nossa vontade, os nossos desejos e as nossas
escolhas?
– Mas há mal verdadeiro – digo eu, a pensar em Circe. A professora
Moore lança-me um olhar curioso.
– Como é que a menina sabe?
– Já vimos – balbucia Ann. Felicity começa a tossicar e dá a Ann uma
cotovelada nas costelas. A professora Moore aproxima-se mais.
– Tem razão. O mal existe mesmo. – Até sinto parar-me o coração. Será
agora? Será que ela vai confessar algo, aqui e agora? – Chama-se escola de
etiqueta. – Ela finge estremecer de medo e nós rimo-nos. Passa por nós um
casal com ar soturno e cinzento, lança-nos um olhar de censura.
Felicity olha para o quadro como se lhe quisesse tocar.
– Parece-lhe possível... que haja pessoas que não estão benfeitas, de
algum modo? Que haja uma espécie de mal nas pessoas que leve as outras...
– Ela cala-se.
– Que leve as outras a quê? – pergunta Ann.
– A fazerem maldades.
Não sei do que é que ela está a falar.
A professora Moore continua de olhos postos no quadro.
– Cada uma de nós deve responsabilizar-se pelos seus atos, menina
Worthington, se é isso que me pergunta.
Se for realmente isso que Felicity quer saber, não o deixa transparecer. Eu
não sei dizer se a pergunta ficou com resposta dada.
– Avançamos, senhoras? Ainda nos falta ver os Românticos. – A
professora Moore avança de propósito na galeria. Ann vai atrás, mas
Felicity não se mexe. Está fascinada pelo quadro.
– Tu não me deixarias de fora, pois não? – pergunta ela.
– Deixaria de fora de quê? – pergunto eu.
– Dos reinos. Da Ordem. De tudo isso.
– Claro que não.
Felicity inclina a cabeça para um lado.
– Parece-te que tenham sentido terrivelmente a falta dele, quando caiu em
desgraça? Será que Deus chorou o seu anjo perdido?
– Não sei – digo eu.
Felicity enfia o braço no meu e avançamos atrás das outras, deixamos os
anjos no seu combate eterno.
– Ora esta, serás tu, Ann? É a nossa Annie!
Uma mulher aproxima-se de nós. Está demasiado bem vestida, em fiadas
de pérolas e brincos de diamantes que ficariam melhor para sair à noite. É
óbvio que tem dinheiro e que quer exibi-lo. Até sinto vergonha por ela. O
marido, um homem de bigodinho bem aparado, tira o chapéu alto ao ver-
nos. Anda com uma bengala ricamente enfeitada para dar mais efeito.
A mulher abraça Ann com alguma hesitação.
– Mas que surpresa ver-te aqui. Porque é que não estás na escola?
– Eu... eu... eu... – gagueja Ann. – Apresento-lhes a minha prima, a
senhora Wharton.
Fazem-se as apresentações e ficamos a saber que a senhora Wharton é
prima afastada de Ann, aquela que ajuda a pagar-lhe a escola para Ann vir a
ser precetora dos filhos daqui a um ano.
– Espero bem que a exposição seja de bom gosto – diz a senhora
Wharton, a franzir o nariz. – Vimos uma exposição em Paris que era
obscena, lamento dizê-lo. Pinturas de selvagens sentados sem um único
trapinho.
– Mas foi bastante carota – diz o senhor Wharton, a rir-se, embora seja de
muito mau gosto falar em dinheiro. A professora Moore endireita-se toda a
meu lado.
– Ah. Verdadeiros apreciadores de arte. Não podem perder o quadro de
Moretti – acrescenta ela, e refere-se à ousada pintura de uma Vénus nua, a
deusa do amor, que até me fez corar de tanta audácia. De certeza que os
Whartons se vão sentir ofendidos, e desconfio que ela fez de propósito.
– Então não perdemos. Obrigada – gorgoleja a senhora Wharton. – É uma
sorte termo-nos cruzado, Annie. Parece que a Elsa, a nossa precetora, se vai
embora mais cedo do que esperávamos. Será em maio, e precisamos que tu
comeces logo de imediato. Eu sei que a Charlotte e a Caroline vão gostar de
te ter como precetora, embora me pareça que a Charlotte esteja ansiosa por
ter alguém a tratá-la por menina Charlotte, agora que tem oito anos. Não a
podes deixar mandar em ti demasiado. – A mulher ri-se do que diz, alheia
ao tormento de Ann.
– Temos de continuar, senhora Wharton – diz o senhor Wharton e oferece
o braço. Já se entediou com a nossa companhia.
– Sim, senhor Wharton. Eu vou escrever à senhora Nightingale – diz a
mulher, a enganar-se no nome. – Tive muito gosto em conhecê-las –
acrescenta, a deixar que o marido a leve como a uma criança.

Retiramo-nos para uma sala de chá escura e acolhedora. Não é como os


clubes e a salinhas que costumamos visitar, cheias de flores e conversas
empertigadas. É um lugar para mulheres trabalhadoras, e sente-se bem o
bulício. Eu e a Felicity estamos ao rubro com o poder da arte. Falamos dos
nossos quadros preferidos e a professora Moore conta-nos o que sabe sobre
os próprios artistas, o que nos faz sentir muito sofisticadas, como se
fossemos convidadas de um salão famoso em Paris. Ann está calada. Bebe
o chá e come duas grandes fatias de bolo, uma a seguir à outra.
– Continua a comer assim e não chegas a caber no vestido para o baile do
Natal – ralha Felicity.
– E de que importa? – retruca Ann. – Ouviste a minha prima. Em maio já
cá não estou.
– Ora, então, menina Bradshaw. Há sempre outras escolhas – diz a
professora Moore com vivacidade. – O seu futuro ainda não está decidido.
– Já está, sim. Eles ajudam a pagar a minha estadia na Spence. Estou em
dívida para com eles.
– E se os recusasse mas se oferecesse para pagar a dívida assim que
conseguir emprego noutro lugar? – propõe a professora Moore.
– Eu nunca poderia pagar a dívida.
– Com o tempo, poderia. Não seria fácil, mas pode ser exequível.
– Mas eles ficariam zangadíssimos comigo – diz Ann.
– Sim, é o mais provável. Ninguém morre disso.
– Eu não aguentaria que alguém pensasse mal de mim.
– Prefere passar a vida à mercê da senhora Wharton e das meninas
Charlotte e Caroline?
Ann olha para as migalhas que tem no prato. A tristeza é que eu conheço
a Ann. A resposta é sim. Ela faz um sorriso fraco.
– Talvez eu venha a ser como as heroínas das histórias de colegiais, e
alguém apareça para me salvar. Um tio rico. Ou talvez eu agrade a um
homem bom que queira fazer de mim sua mulher. – Ela diz esta última frase
a olhar para mim, nervosa, e eu sei que ela está a pensar no Tom.
– É muita coisa para deixar à esperança – diz a professora Moore. Ann dá
umas fungadelas. Caem-lhe lágrimas grossas dentro do chá.
– Então, então – diz a professora Moore, a dar-lhe palmadinhas na mão. –
Há tempo. O que havemos de fazer para a animar? Querem contar-me mais
da vossa história sobre as coisas bonitas que fazem nos reinos?
– Eu lá sou linda – diz Ann, a voz espessa da dor das lágrimas
reprimidas.
– Muito bonita mesmo – digo eu. – Conta como afugentámos as ninfas de
água!
Passa um sorriso pelos lábios de Ann.
– Levaram que contar, não levaram?
A professora Moore finge-se amuada.
– Ora, ora, não façam suspense. Contem-me das ninfas de água.
Contamos-lhe tudo com grandes descrições e a professora Moore escuta
com toda a atenção.
– Ah, afinal vejo que andam a ler, sim senhora. É coerente com as antigas
lendas gregas de ninfas e sereias que levavam os marinheiros para a morte
com os seus cantos. E conseguiram encontrar o vosso templo, não era
assim?
– Ainda não, mas fomos à Aurora Dourada, uma livraria perto de Bond
Street, e encontrámos um livro sobre sociedades secretas de uma menina
Wilhelmina Wyatt – diz Ann.
– Aurora Dourada... – diz a professora Moore, a comer um bocadinho de
bolo. – Não me parece que já tenha lá ido.
– A professora McCleethy tinha um anúncio da livraria dentro da mala –
balbucia Ann. – A Gemma viu.
A professora Moore ergue uma sobrancelha.
– Estava aberta – digo eu, a corar. – Não pude deixar de ver.
– Vimos a professora McCleethy lá na livraria. Ela pediu o livro, e nós
também. Tem informações sobre a Ordem! – diz Felicity.
– Sabia que a Ordem usava anagramas para ocultar a identidade quando
era preciso? – pergunto eu. A professora Moore serve-nos mais chá.
– Deveras?
Ann aproveita.
– Sim, e quando nós fizemos um anagrama para a professora McCleethy,
ficou They Call Me Circe. Está provado.
– O que é que está provado? – pergunta a professora Moore, a entornar
um bocadinho de chá que tem de ensopar com o guardanapo.
– Que a professora McCleethy é Circe, claro. E que voltou à Spence com
qualquer finalidade diabólica – explica Felicity.
– E isso seria ensinar Desenho ou Latim? – pergunta a professora Moore
com um sorriso torto.
– Isto é muito sério, professora Moore – insiste Felicity. A professora
Moore chega-se à frente com uma cara muito solene.
– Acusar alguém de feitiçaria por ir a uma livraria também é.
Devidamente repreendidas, ficamos a beber o chá.
– Nós fomos atrás dela – diz Ann baixinho. – Ela foi a Bedlam, onde está
a Nell Hawkins.
A professora Moore fica parada com a boca na chávena.
– Nell Hawkins. Quem é ela?
– Uma rapariga que acredita na Ordem. Diz que Circe anda a tentar
apanhá-la. Por isso é que enlouqueceu – diz Ann, toda contente. Tem
mesmo gosto pelo macabro.
– O meu irmão Tom é assistente clínico em Bethlem. Nell Hawkins está
lá internada – explico eu.
– Interessante. E falaram com essa pessoa?
– Falei – digo eu.
– Ela contou-lhe que conhece a professora McCleethy?
– Não – respondo, algo encabulada. – Ela está louca, é difícil decifrar-lhe
os devaneios. Mas ela esteve na Escola de Santa Vitória para Raparigas
quando lhe aconteceu essa desventura terrível, e temos razões para crer que
a professora McCleethy estava lá a lecionar ao mesmo tempo.
– Curioso – diz a professora Moore, a deitar leite no chá até o líquido
ficar bege turvo. – E sabem disso com certeza?
– Não – admito. – Mas já escrevi à diretora a perguntar. Espero saber
dentro em breve.
– Então não sabem nada de facto – diz a professora Moore, a alisar o
guardanapo que tem no colo. – Até saberem, recomendo terem cuidado com
as acusações. Podem ter repercussões imprevistas.
Olhamos umas para as outras com ar culpado.
– Sim, professora Moore.
– Ann, o que estás aí a fazer? – pergunta ela. Ann tem estado a
escrevinhar num bocado de papel, e tenta tapar com a mão.
– N-nada.
Não é preciso mais nada para Felicity lho tirar.
– Dá cá isso! – queixa-se Ann, a tentar recuperá-lo, mas em vão. Felicity
lê alto.
– Hester Moore. Room She Reet.
– É um anagrama do seu nome, mas não é grande coisa – diz Ann, toda
acalorada. – Fee, se faz favor!
Felicity continua a ler, implacável.
– O, Set Her More. Set More Hero. – Os olhos de Felicity lampejam.
Aparece-lhe um sorriso ferino. – Er Tom? Eros He.
Não importa que não faça sentido. O facto de Tom e Eros estarem
combinados na mesma frase deixou Ann sumamente humilhada. Ann
consegue recuperar o papel. As outras pessoas na sala de chá repararam na
maneira infantil como nos estamos a portar, e eu fico terrivelmente
constrangida por a nossa visita terminar deste modo. A professora Moore
provavelmente nunca mais nos convida para sair.
Com efeito, ela vê as horas no relógio de bolso.
– Tenho de levar as meninas a casa.

Na charrete, a professora Moore diz:


– Espero bem que não voltem a encontrar as ditas ninfas de água.
Parecem-me particularmente horrendas.
– A mim também – diz Ann, a tremer.
– Talvez me possam incluir na história. Eu gostaria de lutar com as
ninfas. – A professora Moore faz uma cara heroica. Nós rimo-nos. Eu fico
aliviada. Gostei tanto do nosso dia; não queria nada pensar que não vou ter
outro assim.
Depois de Ann e Felicity estarem de volta a casa em segurança, fazemos
a pouca distância até Belgravia Square. A professora Moore aprecia a casa
bonita.
– Gostaria de entrar e conhecer a minha avó? – pergunto eu.
– Talvez noutra altura. – A professora Moore faz um ar preocupado. –
Gemma, parece-lhe mesmo que a professora McCleethy não seja de fiar?
– Há qualquer coisa nela que me perturba – respondo. – Não sei dizer o
que é.
A professora Moore faz que sim com a cabeça.
– Muito bem. Vou fazer a minha própria investigação. Talvez não seja
nada, e ainda nos venhamos a rir das tolinhas que temos sido. Entretanto,
aconselho que tenha cuidado com ela.
– Obrigada, professora Moore – digo eu. – Obrigada por tudo.
VINTE E SETE

Quando entro em casa, a senhora Jones está fora de si.


– A sua avó está à sua espera na saleta, menina. Disse para a menina lá ir
assim que chegasse.
A senhora Jones parece-me tão extremada que até receio ter havido algo
de mal com o meu pai ou o Tom. Entro na saleta de rompante e deparo com
a avó sentada com Lady Denby e Simon. Acabei de vir do frio. Tenho o
nariz prestes a pingar com o calor súbito da sala. Faço muita força para não
pingar.
– Lady Denby e o senhor Middleton vieram fazer-nos uma visita, Gemma
– diz a avó com um sorriso apavorado quando repara bem no meu mau
aspeto. – Vamos esperar que a menina se vá vestir para os poder receber.
Não está a pedir.
Assim que fico apresentável, vamos dar um passeio em Hyde Park. Lady
Denby e a avó atrás, eu e Simon com hipótese de conversar, apesar de
vigiados.
– Está um lindo dia para passear – digo eu, mesmo quando me caem
flocos de neve na manga do casaco.
– Sim – concorda Simon, com pena de mim. – Fresco, mas bonito.
O silêncio estende-se entre nós como umas ligas elásticas prestes a
romper.
– O Simon...
– A Gemma...
– Desculpe – digo eu.
– A culpa é minha. Queira prosseguir – diz Simon, e até sinto o coração
descompassado.
– Estava simplesmente a pensar... – Em quê? Não tenho nada a dizer.
Estava apenas desesperada por fazer conversa e mostrar-me uma rapariga
espirituosa, divertida e atenciosa, daquelas com quem não se pode sequer
imaginar a vida sem. A dificuldade, claro, é que não tenho nem uma dessas
qualidades a que aspiro. Será um milagre que eu consiga fazer um
comentário sobre o estado das pedras da calçada. – ... se... quer dizer... Eu...
As árvores estão lindas nesta época do ano, não estão?
As árvores, despojadas de qualquer folhinha, feias como gnomos, fazem
caretas em resposta.
– Calculo que tenham uma certa elegância – diz ele.
Isto não está a correr nada bem.
– Não queria nada incomodá-lo, senhor Middleton... – diz a avó. – Receio
que seja a humidade nos meus ossos. – A avó coxeia para confirmar.
Simon morde o isco e oferece-lhe o braço.
– Não é incómodo algum, senhora Doyle.
Nunca me senti tão grata por uma interrupção em toda a minha vida. A
avó está no céu, a passear de braço dado com o filho de um visconde em
Hyde Park, onde toda a gente pode ver da janela e ter inveja. A avó
continua a tagarelar sobre a saúde, o problema da criadagem nos dias de
hoje, e outros assuntos que me põem a cabeça à roda, Simon lança-me uma
olhadela enviesada e dou comigo a sorrir amplamente. Ele até faz com que
um passeio com a avó pareça uma aventura.
– É apreciadora de ópera, senhora Doyle? – pergunta Lady Denby.
– Dos italianos, não, mas aprecio os nossos Gilbert & Sullivan, são
encantadores.
Fico encabulada com a falta de gosto dela.
– Mas que coincidência feliz. O Mikado vai à cena sábado à noite na
Royal Opera House. Nós temos camarote. Gostariam de ir connosco?
A avó está calada e, ao princípio, receio que esteja prestes a ficar
catatónica, mas depois apercebo-me de que até está empolgada. Feliz. É
uma ocorrência tão rara que até a deixa desarmada.
– Ora, teríamos muito gosto! – responde ela por fim.
A ópera! Nunca fui. Olá, árvores lindas de feias! Ouviram bem? Eu vou à
ópera com Simon Middleton. O vento sopra nos ramos nus, faz um ruído
como o som de aplausos distantes. Folhas secas saltitam pelo caminho e
colam-se às pedras molhadas, e depois são pisadas.
Aproxima-se devagar uma carruagem preta e reluzente, puxada por dois
corcéis possantes que brilham como se tivessem sido polidos. O cocheiro
usa o chapéu alto bem enterrado na testa. Quando a carruagem se chega
mais perto de nós, o ocupante espreita nas sombras lá dentro, faz-me um
sorriso cruel. Tem uma cicatriz na face esquerda. É o homem que eu vi na
estação de comboio assim que cheguei a Londres, o homem que me seguiu.
Não há engano possível. Conforme a carruagem passa, ele leva os dedos ao
chapéu e faz um sorriso malvado. A carruagem passa por uma lomba na
estrada e abana sobre rodas enormes. Aparece a mão enluvada de uma
mulher, a segurar-se à portinhola. Não lhe consigo ver a cara. A manga da
capa apanha vento e esvoaça como um aviso – é verde-escura, opulenta.
– Menina Doyle? – Simon chama-me.
– Sim? – digo, quando consigo recobrar a voz.
– Encontra-se bem? Pareceu-me indisposta por momentos.
– Receio bem que a menina Doyle se tenha resfriado. Deve voltar a casa e
sentar-se à lareira de imediato – insiste a mãe de Simon.
A estrada agora está em sossego. Até o vento parou de soprar. Por dentro,
o meu coração brada tão alto que é um portento ninguém o ouvir. Aquela
capa verde era muito semelhante à das minhas visões, aquela que de certeza
pertence a Circe, e esvoaçava à janela de uma carruagem onde ia um
membro dos Rakshana.
***
Depois de Simon e Lady Denby se irem embora, a avó manda a Emily
preparar um banho quente para mim. Quando me afundo na banheira, a
água corre pelos lados e acalma em ondinhas por baixo do meu queixo.
Lindo. Fecho os olhos e deixo os braços flutuarem à tona da água.
A dor aguda aparece depressa, quase me puxa para baixo. Sinto o corpo
todo hirto, não consigo controlar. A água entra-me na boca até me fazer
tossir e cuspir. O pânico faz-me agarrar aos lados da banheira, desesperar
por sair. Ouço o sussurro que mais temo, como um enxame de insetos.
Vem connosco...
A dor amaina e agora sinto o corpo leve como um floco de neve, como se
eu sonhasse. Não quero abrir os olhos. Não as quero ver. Porém, talvez
tenham respostas para as minhas perguntas, e por isso viro a cabeça
devagar. Lá estão elas, fantasmagóricas e grotescas, com os vestidos
brancos esfarrapados e olheiras fundas nos olhos sem alma.
– O que querem? – pergunto. Ainda estou a tossir água.
– Segue-nos – dizem elas, e saem pela porta fechada como se não fosse
nada.
À pressa, pego no roupão e abro a porta, à procura delas. Estão a pairar
mesmo à porta do meu quarto, lançam uma luz falsa no fim do corredor
obscurecido. Fazem-me sinal que as siga quando entram no meu quarto.
Estou a tremer e molhada, mas vou atrás delas, a ganhar coragem para
falar.
– Quem são vocês? Podem dizer-me alguma coisa sobre o Templo?
Elas não respondem. Não está ali nada. Apenas a minha roupa e os meus
sapatos. Elas abanam as cabeças pálidas.
– As respostas que procuras estão aqui.
No meu roupeiro? São loucas como a Nell Hawkins. Com o máximo de
cuidado, contorno-as e começo a afastar vestidos e casacos, a abrir caixas
de chapéus e sapatos, em busca do que se espera que eu encontre, embora
eu não consiga sequer imaginar o quê. Finalmente, rebento de frustração.
– Já lhes disse, não está aqui nada!
É o barulho horrível dos botins pontiagudos a arrastar pelo chão que me
faz recuar às pressas. Oh, Deus, agora é que foi, enfureceram-se. Elas
avançam, de braços estendidos, vêm-me buscar. Não consigo recuar mais;
estou encurralada pela cama.
– Não, por favor, não – sussurro, e enrolo-me em posição fetal, de olhos
bem fechados.
Os dedos de gelo prendem-me os ombros e aí vem uma visão de tal fúria
que nem consigo respirar, quanto mais pensar em pedir auxílio. Um campo
verde vai das velhas ruínas aos penhascos e ao mar. De vestidos brancos, as
raparigas correm e riem-se. Uma puxa a fita ao cabelo da outra.
– Será que ela nos vai dar poder hoje? – pergunta a rapariga com a fita. –
E será que vamos finalmente ver os reinos que são tão lindos?
– Espero bem que sim, queria muito brincar com a magia – diz outra.
A rapariga cujo cabelo se soltou da fita chama:
– Eleanor, ela prometeu que seria hoje?
– Sim – responde a rapariga em voz aguda e tensa. – Ela não tarda a
chegar. Entraremos nos reinos e teremos tudo o que sempre desejámos.
– E ela pensa que desta vez nos consegues levar?
– Ela diz que sim.
– Oh, Nell, é maravilhoso.
Eleanor. Nell. O nome tira-me o ar dos pulmões. Pela primeira vez, vejo-
a, a caminhar na direção das outras. Está mais pesada, e o cabelo
encaracolado e lustroso, o rosto imperturbável, mas reconheço-a de
imediato: é Nell Hawkins, antes de ser tocada pela loucura.
Há um ruído de asas de inseto perto do meu ouvido.
– Observa...
É como ser puxada por um comboio rápido, tudo passa depressa de mais
pelas janelas dos meus olhos. As raparigas nas pedras. A mulher de verde, o
rosto oculto. A mão que pega na de Nell. O mar a elevar-se como o terror
nos olhos delas.
Acaba. Estou arquejante no chão do quarto. Elas apontam para o
roupeiro. O que poderá ser? Já vasculhei tudo, e não está lá nada... O diário
de capa encarnada espreita na algibeira de um casaco. Vou pegar-lhe.
– Isto? – ainda pergunto, mas elas já se desvanecem na bruma que depois
desaparece por completo. O quarto volta ao normal. A visão terminou. Não
faço ideia do que queriam dizer. Já li e reli este diário de minha mãe em
busca de pistas, e não está lá nada. Viro cada página até chegar ao lugar
onde guardei os recortes de jornais amarrotados de minha mãe. Quando leio
a primeira frase, desta vez, não me parece uma história melodramática mal
contada. Não, desta vez, deixa-me arrepiada até aos ossos.
Três raparigas no País de Gales foram passear e nunca mais ninguém
soube delas...
Continuo a ler e sinto o sangue a correr depressa.
Jovens senhoras que eram os anjos da Escola de Santa Vitória para
Raparigas... filhas da Coroa... lindas e vibrantes... queridas de todos...
caminharam alegremente até aos penhascos à beira-mar, sem nunca
saberem do destino trágico que as aguardava... única sobrevivente...
ensandeceu... alguma semelhança com a história de uma formosa moça da
Escola Mackenzie para Raparigas... Escócia... o punhal trágico do
suicídio... alegava ter visões, assustava as outras raparigas... caiu para a
morte... outras histórias perturbantes... Academia da professora Farrow
para Raparigas... Real Colégio de Bath...
Os nomes destas escolas não me são estranhos. Conheço-os. Onde é que
já ouvi falar deles? Nisto, a resposta surge-me com um arrepio frio e duro: a
professora McCleethy. Vi os nomes na lista que ela tinha dentro da mala
debaixo da cama. Estavam todos assinalados. Só faltava a Spence.
VINTE E OITO

Eu e Nell Hawkins damos um passeio pelos pátios soturnos de Bethlem. O


dia está fresco, mas se Nell quer andar, então eu ando. Farei tudo para
deslindar este mistério, pois tenho a certeza de que, algures dentro da mente
torturada de Nell, está a resposta de que preciso.
Só saíram à rua algumas poucas almas corajosas. Nell recusa-se a calçar
as luvas. As mãos pequeninas estão roxas de frio mas parece que ela não se
importa. Quando já estamos a boa distância das portas de Bethlem, entrego
a Nell um recorte de jornal.
Nell deixa-o nas mãos que lhe tremem.
– Santa Vitória...
– A Nell esteve lá, não esteve?
Ela senta-se num banco como um balão que flutua até à terra, murcho.
– Sim – responde, como que a recordar-se de algo. – Eu estive lá.
– O que aconteceu naquele dia à beira-mar?
Os olhos de Nell, cheios de sofrimento, encontram os meus como se lá
estivessem as respostas. Depois fecha bem os seus.
– O João e a Maria foram os dois passear, para água ir buscar – diz ela. –
O João caiu, a cabeça partiu...
Depois diz mais depressa.

«OJoãoeaMariaforamosdoispassear,paraáguairbuscarOJoãocaiu,acabeçapart
iu... e...
Não consigo suportar.
– ... e a Maria foi ao mar. – termino por ela.
Ela torna a abrir os olhos. Estão lacrimosos do frio.
– Sim. Sim. Mas eu não fui ao mar.
– O que está a dizer? Não compreendo.
– Nós fomos passear... passear... – Ela começa a balouçar para a frente e
para trás. – Para água ir buscar. Água. Veio da água. Ela fez vir.
– Circe? – sussurro.
– Ela é uma casa de doces à espera de nos devorar.
A estranha senhora Sommers tem andado a passear por perto, e vai
arrancando as sobrancelhas quando ninguém está a olhar. Vai pairando cada
vez mais perto, a tentar ouvir.
– O que queria Circe de si? De que é que ela andava à procura?
– Da entrada. – Nell ri-se de tal forma que até sinto arrepios na espinha.
Os olhos dela dardejam como os de uma criança com um segredo maroto. –
Ela queria entrar. Queria. Queria. Disse que ia fazer de nós a sua nova
Ordem. Rainhas. Rainhas com coroa na cabeça. O João caiu, a cabeça
partiu...
– Menina Hawkins, olhe para mim, se faz favor. Pode contar-me o que
aconteceu?
Ela parece tão triste, tão longe.
– Afinal não a consegui fazer entrar. Eu não podia entrar. Inteiramente,
não. Apenas aqui. – Ela aponta para a própria cabeça. – Eu via coisas.
Contava-lhe coisas. Mas não bastava. Ela queria entrar. Ela cansou-se de
nós. Ela... – A senhora Sommers aproxima-se mais. Nell vira-se para ela de
repente, a gritar até que a mulher, desarmada, foge a correr. Tenho o
coração a bater muito, transtornado pelo repente de Nell.
– Ela está à procura daquela que souber levar a magia de volta à glória
plena. Aquela com o poder de a levar para dentro, de a levar ao Templo. É
isso que ela quer desde sempre – sussurra Nell. – Não, não, não, não! –
depois grita para o ar.
– Menina Hawkins – pergunto, a tentar levá-la de volta à questão em
apreço. – Era a professora McCleethy? Ela estava lá? Ela é Circe? Pode
contar-me.
Nell curva a cabeça até as nossas testas se tocarem, a mãozinha
surpreendentemente forte na minha nuca. A pele da palma da mão é
grosseira como serapilheira.
– Não a deixes entrar, Dama Esperança. – Isto é resposta? Nell continua
em tons baixos. – As criaturas farão qualquer coisa para te controlar. Para te
fazer ver coisas. Ouvir coisas. Tens de as travar.
Quero livrar-me da mãozinha que me assusta com a sua força oculta, mas
tenho medo de me mexer.
– Menina Hawkins, por favor, sabe onde posso encontrar o Templo?
– Tens de seguir o verdadeiro caminho.
Tornámos ao mesmo.
– Há centenas de caminhos. Não sei a qual se refere.
– Está onde menos estiveres à espera. Esconde-se à vista de todos. Tens
de olhar e depois reparar, reparar, mar, veio do mar, do mar. – Ela arregala
os olhos. – Eu vi-te! Desculpa, desculpa, desculpa!
Estou a perdê-la outra vez.
– O que aconteceu às outras raparigas, Nell?
Ela começa a ganir como um animal ferido.
– A culpa não foi minha. A culpa não foi minha!
– Menina Hawkins... Nell, está tudo bem. Eu vi-as, nas minhas visões. Eu
vi as suas amigas...
Ela começa a rosnar-me, com tal fúria que até tenho medo que me queira
matar.
– Elas não são minhas amigas! Não são nada minhas amigas!
– Mas estão a tentar ajudar.
Ela afasta-se de mim, a gritar.
– O que é que fizeste? O que é que fizeste?
Alarmada, uma enfermeira sai do seu posto à porta e vem direita a nós.
– Menina Hawkins, por favor, eu não tinha intenção...
– Chiu! Elas ouvem pelos buracos das fechaduras! Elas vão ouvir-nos! –
diz Nell, a correr para a frente e para trás, os braços cruzados sobre o peito.
– Não há ninguém, menina Hawkins. Somos só nós duas...
Ela volta para trás, agacha-se aos meus joelhos, uma espécie de coisa
selvagem.
– Elas hão de ver dentro da minha mente!
– Menina Hawkins... N-nell... – estou a gaguejar, mas ela está perdida
para mim.
– Que linda falua que lá vem lá vem – berra ela, a olhar em redor como se
falasse para um público invisível nos pátios. – É uma falua que vem de
Belém.
Com isto, ela salta e corre para a enfermeira, que a leva para dentro.
Deixa-me sozinha ao frio com mais perguntas do que antes. O
comportamento de Nell, a ameaça súbita, deixaram-me transtornada. Não
compreendo o que ela quer dizer nem o que a incomodou tanto. Estava na
esperança de que Nell me desse informações sobre Circe e o Templo.
Porém, não me posso esquecer, Nell Hawkins também vive em Bedlam. É
uma rapariga cuja mente foi corroída pela culpa e pelo trauma. Já não sei
em quem, ou no quê, devo acreditar.
A senhora Sommers volta e senta-se a meu lado no banco, a sorrir à sua
maneira desconfortável. Nos pontos calvos das sobrancelhas ralas, a pele
está encarnada.
– Isto será tudo sonho? – pergunta-me ela.
– Não, senhora Sommers – respondo, e pego nas minhas coisas.
– Ela está a mentir, sabes?
– A que se refere? – pergunto.
As sobrancelhas que faltam dão à senhora Sommers um ar perturbante,
como um demónio saído de uma pintura medieval.
– Eu ouço-os. Eles falam comigo, contam-me coisas.
– Senhora Sommers, quem é que fala consigo e lhe conta coisas?
– Eles – diz ela, como se eu tivesse de compreender. – Eles contaram-me.
Ela não é quem parece. Fez coisas tão más. Ela está mancomunada com os
maus, menina. Eu ouço-a no quarto dela à noite. Coisas más, mesmo más.
Tenha cuidado consigo, menina. Eles vêm à sua procura. Eles vêm todos à
sua procura.
A senhora Sommers sorri e mostra dentes pequenos de mais para a boca
que tem.
Guardo os recortes de jornal na minha carteira às arrecuas e corro para
dentro, ando depressa pelos corredores, passo pelas aulas de costura e o
piano desafinado e o palrar de Cassandra. Estugo o passo até estar quase a
correr. Quando chego à carruagem e a Kartik, estou completamente
ofegante.
– Menina Doyle, o que se passa? Onde está o seu irmão? – pergunta ele, a
olhar em redor, nervoso.
– Ele diz... para depois o vir buscar... – digo eu às arrancadas.
– O que se passa? Está alterada. Vou levá-la a casa.
– Não. Lá, não. Tenho de falar consigo. A sós.
Kartik olha bem para mim, ofegante e obviamente abalada.
– Eu conheço um sítio. Nunca lá levei uma senhora, mas é o melhor que
me ocorre de momento. A menina confia em mim?
– Confio – digo eu. Ele estende-me a mão, agarro-a e subo para a
carruagem, deixo Kartik tomar as rédeas também do meu destino.
Passamos pela Blackfriars Bridge e, quando entramos no coração escuro e
sujo da Londres Oriental, começo a duvidar da ideia de deixar Kartik
decidir. As ruas são estreitas e tortas aqui. Vendedeiras de hortaliça e
açougueiros bradam de dentro das suas carroças.
– Batatas, cenouras, ervilhas!
– Bons cortes de cordeiro, sem ossos para estorvar!
As crianças juntam-se à nossa volta, a pedirem qualquer coisa – moedas,
comida, trapos, trabalho. Competem pela minha atenção.
– Menina, menina! – gritam, a oferecerem «ajuda» de qualquer espécie
por uma ou duas moedas. Kartik leva a carruagem para uma viela atrás de
um açougue. As crianças rodeiam-me, puxam-me pelo casaco.
– Eh lá! – grita Kartik, a falar com um sotaque que nunca lhe ouvi. –
Quem é que sabe da caveira e da espada, hein?
As crianças arregalam os olhos perante esta menção aos Rakshana.
– Pronto – continua Kartik. – Atão é melhor arredarem senão já sabem!
De imediato, as crianças dispersam-se. Só fica um rapazinho, e Kartik dá-
lhe uma moeda.
– Toma conta da carruagem, miúdo – diz ele.
– Boa! – responde o rapaz, a embolsar a moeda.
– Foi impressionante – digo eu enquanto percorremos as ruas sujas.
Kartik permite-se um sorrisinho triunfante.
– O que for preciso para sobreviver.
Kartik continua um passo à minha frente. Tem andar de caçador – ombros
curvados e passos cautelosos. Viramos numa rua sinuosa de casas
decrépitas e depois outra. Por fim, chegamos a uma rua curta e paramos
diante de uma pequena taberna entalada entre outros edifícios determinados
a apertá-la bem. Aproximamo-nos da pesada porta de madeira. Kartik bate
numa sucessão de toques breves. Abre-se uma vigia tosca por dentro, e vê-
se um olho. A vigia fecha-se e deixam-nos entrar. É um sítio pequeno e
cheira ao caril e ao incenso mais deliciosos. Estão homens grandes sentados
às mesas e curvados sobre travessas de comida, as mãos manchadas a
rodearem canecas de cerveja como se fossem as únicas posses que vale a
pena guardar. Agora vejo porque é que Kartik nunca cá trouxe uma senhora.
Do que posso ver, sou a única presente.
– Alguém me vai fazer mal? – sussurro entredentes.
– Não mais do que a mim. Trate da sua vida e não olhe para ninguém, há
de correr tudo bem.
Porque é que sinto que esta resposta faz com que Kartik se pareça muito
com precetoras que contam histórias pavorosas às crianças ao deitar e
depois esperam que elas durmam bem a noite toda?
Ele leva-me para uma mesa nas traseiras, por baixo de um teto
abobadado. Parece que é tudo subterrâneo, como uma coelheira.
– Aonde vai? – pergunto logo assim que Kartik começa a afastar-se.
– Chiu! – faz ele, com o dedo nos lábios. – Vou fazer-lhe uma surpresa.
Pois, é disso mesmo que tenho medo. Junto as mãos em cima da mesa de
madeira tosca e tento passar desapercebida. Em momentos, Kartik regressa
com uma travessa de comida e pousa-a diante de mim com um sorriso.
Dosa! Não como estes bolinhos finos e picantes desde que saí de Bombaim
e da cozinha de Sarita. Basta uma dentada para ter saudades da bondade
dela e do país que eu estava ansiosa por deixar, um país que não sei se
alguma vez voltarei a ver.
– Isto é delicioso – digo, a dar mais uma dentada. – Como é que conhece
este sítio?
– Foi o Amar que me indicou. O gerente é de Calcutá. Está a ver aquela
cortina ali? – Ele aponta para um tapete pendurado na parede. – Tem uma
porta por trás. É uma sala escondida. Se alguma vez precisar de mim...
Apercebo-me de que ele está a contar-me um segredo. É uma sensação
boa quando confiam em nós.
– Obrigada – digo eu. – Tem saudades da Índia?
Ele encolhe os ombros.
– A minha família são os Rakshana. Eles desencorajam lealdade a outros
países ou costumes.
– Mas não se lembra do quanto as ghats4 ficavam bonitas ao crepúsculo,
ou das oferendas de flores a boiarem na água?
– A menina parece o meu irmão a falar – diz ele, a dar uma dentada nos
bolinhos fumegantes.
– Como assim?
– Ele tinha saudades da Índia, por vezes. Costumava reinar comigo.
«Ouve, maninho», dizia ele, «Hei de reformar-me em Benares, casado com
uma mulher gorda e com doze filhos para me darem ralações. Quando
morrer, podes deitar as minhas cinzas no Ganges para eu nunca mais
voltar.»
É o máximo que Kartik alguma vez contou sobre o irmão. Sei que temos
assuntos urgentes a debater, mas quero saber mais dele.
– E ele... casou-se?
– Não. Os Rakshana estão proibidos de se casarem. É uma distração ao
nosso objetivo.
– Ah. Compreendo.
Kartik pega noutro dosa e corta-o em pedaços idênticos.
– Uma vez prestado juramento aos Rakshana, fica-se comprometido para
a vida toda. Não há como sair. Amar sabia disso, e honrou as suas
obrigações.
– Estava muito alto na hierarquia?
O rosto de Kartik fica toldado.
– Não, mas poderia ter subido se...
Se não tivesse morrido. Se não tivesse tentado proteger a minha mãe,
tentado proteger-me a mim.
Kartik empurra o prato para longe de si. Voltou ao ar profissional.
– O que é que a menina tinha para me contar?
– Creio que a professora McCleethy é Circe – digo eu. Conto-lhe do
anagrama e de a seguir até Bedlam, conto-lhe dos recortes de jornal da
minha mãe e da estranha visita que fiz a Nell. – A menina Hawkins disse
que Circe tentou entrar nos reinos por meio dela mas que não conseguiu. A
Nell só conseguia ver os reinos na sua mente. Como não conseguiu...
– Como não conseguiu?
– Não sei. Tive vislumbres nas minhas visões – respondo. Kartik olha
para mim numa advertência, como eu já estava à espera. – Sei o que vai
dizer, mas continuo a ver as três raparigas de branco que eram amigas da
menina Hawkins. É a mesma visão, mas vai ficando mais nítida. As
raparigas, o mar e uma mulher de manto verde. Circe. E depois... Não sei.
Acontece algo horrível, mas nunca consigo ver essa parte.
Kartik começa a tamborilar com o polegar na mesa.
– Ela disse-lhe onde encontrar o Templo?
– Não – respondo. – Está sempre a dizer que tenho de encontrar o
verdadeiro caminho.
– Eu sei que gosta da menina Hawkins, mas não pode esquecer-se de que
a mente dela não é de fiar.
– Um pouco como a magia e os reinos neste momento – digo eu, a mexer
nas luvas. – Não sei por onde começar. Parece-me impossível. Tenho de
encontrar algo que parece não existir, e o mais perto que estou é uma
lunática internada em Bedlam que está sempre a palrar sobre não sair do
caminho, seguir o caminho. Eu ficaria encantada por seguir um raio de um
caminho se soubesse qual era.
Kartik fica boquiaberto. Tarde de mais, percebo que praguejei.
– Oh, tenho imensa pena – digo eu, horrorizada.
– Bem pode ter, c’um raio – diz Kartik, e desata a rir-se. Mando-o calar, e
não tarda a que estejamos a sorrir como hienas. Um velhote noutra mesa
abana a cabeça a olhar para nós, deve achar que somos loucos.
– Desculpe – digo eu. – É que me sinto tão frustrada.
Kartik aponta para o meu amuleto amolgado.
– Bem vejo. O que aconteceu com isso?
– Ah – digo eu, e tiro o amuleto. – Não fui eu. Foi a menina Hawkins. Da
primeira vez que a fui ver, ela arrancou-mo do pescoço. Achei que me
queria esganar, mas ela depois empunhou-o à sua frente, assim – digo eu, a
mostrar como. Kartik franze o sobrolho.
– Como uma arma? – Ele tira-me o amuleto e corta o ar com ele, como se
fosse um punhal. À luz ambarina dos candeeiros da taberna, o metal brilha
dourado.
– Não, ela segurou-o assim. – Pego nele outra vez e ponho as mãos em
concha como Nell fez. – Estava sempre a mirar a parte de trás como se
procurasse alguma coisa.
Kartik endireita-se na cadeira.
– Faça lá outra vez.
Passo o amuleto pelas mãos como antes.
– O que foi? Em que é que está a pensar?
Kartik deixa-se cair na cadeira.
– Não sei. É que aquilo que a menina está a fazer faz-me lembrar uma
bússola.
Uma bússola! Puxo o candeeiro para mais perto e levo o amuleto para
perto da luz trémula.
– Está a ver alguma coisa? – pergunta Kartik, e chega a cadeira tão perto
da minha que até sinto o calor dele, o aroma, um misto de fuligem e
especiarias, do cabelo dele. É um cheirinho bom, um cheiro que me ajuda a
centrar.
– Nada – respondo. Não vejo marcas nenhumas. Indicações nenhumas.
Kartik recosta-se na cadeira.
– Bem, a ideia era boa.
– Espere lá – digo eu, ainda a olhar para o amuleto. – E se só pudermos
ver nos reinos?
– Vai tentar?
– Assim que puder – digo eu.
– Isto foi bom, menina Doyle – diz Kartik com um sorriso largo. – Vamos
levá-la para casa antes que eu perca o emprego.
Saímos da taberna e passamos as duas ruas sinuosas de volta aonde
deixámos a carruagem. Quando chegamos a essa ruela, o rapazinho já lá
não está. Antes pelo contrário, há três homens com fatos pretos idênticos.
Dois empunham paus com que parecem querer fazer-nos mal. O terceiro
está sentado na carruagem, com um jornal aberto à frente da cara. A rua,
que há apenas meia hora fervilhava de gente, está deserta.
Kartik estende a mão para me abrandar o passo. Os homens veem-no e
assobiam. O homem dentro da carruagem dobra o jornal com cuidado. É o
homem da cicatriz, aquele que me tem seguido desde que cheguei a
Londres.
– A Estrela do Oriente é difícil de encontrar – diz o homem da cicatriz. –
Muito difícil de encontrar. – Reparo no alfinete com a caveira e a espada.
Os outros não têm.
– Viva, ‘migo – diz um dos homens corpulentos, a aproximar-se. Depois
bate com o pau na palma da própria mão com estrondo. – Lembras-te de
mim?
Kartik esfrega a cabeça num gesto absorto, e eu fico a pensar no que
diabo estarão a falar.
– O senhor Fowlson ali precisa da tua presença numa espécie de ruunião
ao pé da carruagem da s’nhora. – Diz isto e puxa Kartik com força. O outro
homem acompanha-me.
– Fowlson – digo eu. – Então tem nome.
O homem olha com má cara para o grande brutamontes.
– Não vale a pena fingir. Eu sei que é Rakshana e agradeço que deixe de
me seguir por todo o lado.
O homem fala numa voz baixa e controlada, como se repreendesse
ligeiramente uma criança transviada.
– E eu sei que a menina é uma rapariga impertinente que não liga à
seriedade da questão em apreço, senão já estaria nos reinos em busca do
Templo, e não a perambular pelas ruas mais esconsas de Londres. Decerto o
Templo não fica aqui. Ou fica? Conte lá, aonde é que este aqui a levou?
Ele não sabe do esconderijo de Kartik. A meu lado, sinto Kartik a suster o
fôlego.
– A passear – digo eu, ali onde estou, perto de um matadouro. – Eu queria
ver estes bairros com os meus próprios olhos.
O grandalhão do pau na mão ri-se de mim.
– Asseguro-lhe, senhor. Tenho toda a seriedade nas minhas obrigações –
digo para Fowlson.
– Ai sim, moça? A missão é simples: encontrar o Templo, prender a
magia.
– Se a questão é assim tão simples, porque é que não fazem os senhores?
– Respondo logo a seguir, acaloradamente. – Não, não podem. Terão de
depender de mim, uma «rapariga impertinente», não é?
Fowlson tem ar de quem me quer bater com toda a força.
– De momento, assim parece. – Depois faz um sorriso frio para Kartik. –
Não te esqueças tu da tua missão, noviço.
Ele guarda o jornal debaixo do braço e faz sinal aos homens. Os três
recuam devagar e, por fim, desaparecem ao virar de uma esquina. Kartik
passa logo à ação, praticamente empurra-me para dentro da carruagem.
– O que queria ele dizer, não se esqueça da sua missão? – pergunto.
– Já lhe disse – responde ele, a levar Ginger para a rua. – A minha missão
é ajudá-la a encontrar o Templo. Mais nada. O que queria a menina dizer
quando mandou o Fowlson deixar de a seguir para todo o lado?
– Ele tem andado a seguir-me! Estava na estação de comboio no dia em
que cheguei a Londres, e depois quando dei um passeio com a avó em Hyde
Park – digo, e evito de propósito falar em Simon – ele passou num coche. E
vi uma mulher de manto verde com ele, Kartik. Manto verde!
– Não faltam mantos verdes em Londres, menina Doyle – diz Kartik. –
Nem todos serão de Circe.
– Pois não, mas será um. Eu só pergunto se o Kartik tem a certeza de
podermos confiar no senhor Fowlson.
– Ele faz parte dos Rakshana, parte da minha irmandade – diz ele. – Sim,
tenho a certeza.
Kartik não olha para mim quando diz isto, e fico a pensar se não terei
estragado a confiança que começámos a ganhar entre nós. Kartik sobe para
o seu lugar atrás das rédeas. Com um safanão, partimos, as palas da égua a
mantê-la dócil mas os cascos a levantarem uma tempestade de pó no chão
empedrado.

Ao serão, eu e a avó pegamos nos lavores à lareira. De cada vez que passa
uma carruagem lá fora, ela senta-se um pouco mais direita. Por fim,
apercebo-me de que está à espera da nossa carruagem, do regresso do meu
pai do clube onde foi. Ele tem passado lá bastante tempo, especialmente ao
serão. Há noites em que dou por ele a chegar já perto da madrugada.
Esta noite está a ser particularmente difícil de a avó aguentar. O meu pai
saiu depois de um ataque de mau génio terrível, de acusar a senhora Jones
de lhe perder as luvas, de quase virar a biblioteca do avesso à procura delas,
antes de a avó lhas encontrar no bolso do casaco. Nunca tinham de lá saído.
Ele foi-se embora sem sequer pedir desculpas.
– Decerto ele não tarda a chegar – digo eu, quando passa outra carruagem
por nossa casa.
– Sim. Sim, com certeza – diz a avó com ar ausente. – Decerto se
esqueceu das horas, simplesmente. Ele gosta mesmo de conviver, não
gosta?
– Gosta – respondo, admirada por vê-la tão ralada com o filho. Assim é
mais difícil não gostar dela.
– Ele gosta mais de si do que do Tom, sabe?
Fico tão admirada que até pico um dedo com a agulha. Começo a ver uma
bolhinha de sangue a abrir caminho na carne.
– É verdade. Oh, claro que se preocupa com o Tom, mas os filhos são
algo diferente para um homem, mais obrigação do que indulgência. A
Gemma é o anjo dele. Não lhe dê nenhum desgosto, nunca. Ele já passou
por muito. Ficaria acabado.
Estou a tentar não chorar, da alfinetada e das informações que não queria
ter.
– Não dou – prometo.
– Os seus lavores estão a correr bem, querida. Pontos mais curtos na orla,
parece-me melhor – diz a avó como se não tivéssemos falado de outro
assunto. A senhora Jones aparece.
– Com licença, senhora Doyle. Chegou isto para a menina Doyle esta
tarde. A Emily ficou com ele e esqueceu-se de me dizer. – Embora se
destine claramente a mim, ela passa a caixinha à avó, um bonito embrulho
com um laço de seda cor-de-rosa. A avó lê o cartão.
– É do Simon Middleton.
Uma prenda do Simon? Estou intrigada. Dentro da caixa está um colar de
pedras ametista pequenas, delicadas, lindas, que se abrem em leque na
correntinha. Púrpura, a minha cor favorita. O cartão diz: «Gemas para a
nossa Gemma».
– Tão bonito – diz a avó, e segura-as contra a luz. – Creio bem que Simon
Middleton está encantado consigo!
É lindo, possivelmente a coisa mais linda que já alguém me deu.
– Não se importa de me ajudar com o fecho? – peço.
Tiro o amuleto de minha mãe e a avó põe-me o colar novo. Corro para o
espelho para me ver. As gemas caem docemente por cima das minhas
clavículas.
– Tem de o usar na ópera amanhã à noite – aconselha a avó.
– Sim, usarei – digo eu, a ver as pedras preciosas refletirem a luz.
Cintilam e resplandecem tanto que nem me reconheço.

Tenho um bilhete de Kartik em cima da almofada: Tenho uma coisa para


lhe contar. Estarei nos estábulos. Não me agrada que Kartik sinta que pode
entrar no meu quarto quando muito bem lhe apetece. Hei de dizer-lhe isso
mesmo. Não me agrada que tenha segredos comigo. Também lhe hei de
dizer isso. Mas agora não. Agora estou a usar um colar novo que Simon me
deu. Simon, lindo, que não me considera apenas alguém que o pode ajudar
a subir na hierarquia dos Rakshana, mas sim uma rapariga digna de gemas.
Delicadamente, pego no bilhete em cima da almofada e dou voltinhas
pelo quarto com ele bem esticado nos dedos. O colar pesa-me na pele como
uma mão tranquilizante. Gemas para a nossa Gemma.
Atiro o bilhete de Kartik para o lume. As pontas do papel enrolam-se e
enegrecem; num instante, fica reduzido a cinzas.
4 Escadarias e/ou passagens. (N. da T.)
VINTE E NOVE

Se eu já estou ansiosa quanto à ida desta noite à ópera, a avó está fora de si.
– Espero bem que essas luvas sirvam – diz ela, enquanto uma costureira
faz uns ajustes de última hora no meu vestido, cetim branco como as jovens
devem levar à ópera. A avó mandou vir as minhas primeiras luvas de ópera
dos grandes armazéns Whiteley. A costureira passa os botões de pérola
pelas casas no meu punho, encerra-me os braços nus dentro de pele de
cabrito bem cara. Arranjaram-me caprichosamente o cabelo afastado da
cara com flores no carrapito. Claro que pus o lindíssimo colar que Simon
me deu. Quando me vejo ao espelho, tenho de admitir que estou bastante
bonita, como uma verdadeira senhora.
Até Tom se levanta da cadeira quando entro na salinha, chocado com a
minha transformação. O meu pai pega-me na mão e beija-a. A dele treme
um pouco. Sei que esteve fora até de madrugada, e que dormiu o dia todo,
espero bem que não vá adoecer. Ele limpa o suor da testa com um lenço,
mas a voz sai-lhe bastante alegre.
– És uma rainha, pequenina, não é, Thomas?
– Não envergonha ninguém, por certo – diz Tom. Para o imbecil que é,
fica muito elegante de fraque.
– Não sabes dizer nada mais agradável? – O pai repreende-o. Tom
suspira.
– Estás bastante apresentável, Gemma. Não te esqueças de não ressonar
na ópera. Não é bem visto.
– Se continuo acordada quando tu falas, Tom, de certeza que hei de
conseguir.
– Já trouxeram a carruagem, senhor – anuncia o mordomo Davis, e salva-
nos de mais conversa.
A caminho da carruagem, vejo a expressão de Kartik. Está a olhar para
mim ousadamente, como se eu fosse uma aparição, alguém que ele não
conhece. Fico estranhamente satisfeita com isso. Sim. Ele que veja que não
sou «uma rapariga impertinente» como o esbirro dos Rakshana disse.
– A porta, senhor Kartik, se faz favor – diz Tom em voz tensa. Como que
puxado de um sonho, Kartik abre logo a porta da carruagem. –
Sinceramente, meu pai – diz Tom quando já vamos a caminho. – Quem me
dera que o pai reconsiderasse. Ainda ontem o Sims me recomendou um
cocheiro…
– Assunto encerrado. O senhor Kartik leva-me aonde eu tenho de ir – diz
o pai rigidamente.
– Sim, é essa a minha preocupação – resmunga Tom baixinho, só eu
consigo ouvir.
– Então, então – diz a avó, a dar palmadinhas no joelho ao meu pai. –
Vamos estar bem-dispostos, sim? Afinal estamos quase no Natal.

Quando se abre a porta da Royal Opera House, sou tomada de pânico. E se


eu estiver ridícula e não elegante? E se houver algo – o cabelo, o vestido, o
porte – deslocado? Sou tão alta. Quem me dera ser mais baixa. Mais
delicada. Morena. Sem sardas. Uma condessa austríaca. Será tarde de mais
para fugir para casa e me esconder?
– Ah, lá estão eles – anuncia a avó. – Vejo Simon. Está tão bonito de
gravata branca e fraque preto.
– Boa noite – digo eu a fazer uma vénia.
– Boa noite – diz ele. Faz-me um sorrisinho e, com esse sorriso, sinto tal
alívio e felicidade que até poderia aguentar dez óperas.
Recebemos os libretos e juntamo-nos à multidão. O meu pai, Tom e
Simon são levados para uma conversa com outro homem, um indivíduo
atarracado e careca com um monóculo pendurado numa correntinha, ao
passo que eu, a avó e Lady Denby ficamos a passear devagar, a acenar com
a cabeça e a cumprimentar as várias senhoras da sociedade. É um desfile
necessário destinado a exibir o nosso requinte. Ouço chamarem-me. São
Felicity e Ann. Estão muito bem aperaltadas de vestidos brancos. Os
brincos de granadas de Felicity brilham no cabelo louro dourado dela. Ann
tem uma pregadeira cor-de-rosa na concavidade do pescoço.
– Ai, senhores – diz Lady Denby. – É aquela maldita Worthington.
O comentário faz a avó espevitar.
– A senhora Worthington? A mulher do almirante? Houve algum
escândalo?
– A senhora não sabe? Há três anos, ela foi para Paris, por motivos de
saúde, alegaram, e mandou a menina Worthington para um colégio interno.
Ora eu sei de fonte segura que ela teve um amante, um francês, e que agora
ele a deixou e ela voltou para o almirante, a fingir que nada aconteceu.
Claro que não a recebem nas melhores casas, mas toda a gente vai aos
jantares e aos bailes que ela dá em consideração ao almirante, que não
podia ser mais respeitável. Chiu, aí vêm elas.
A senhora Worthington avança com as raparigas a reboque. Espero que o
rubor nas minhas faces não me denuncie, pois desagrada-me a sobranceria
de Lady Denby.
– Boa noite, Lady Denby – diz a senhora Worthington, de sorriso radioso.
Lady Denby não estende a mão mas abre o leque. – Boa noite, senhora
Worthington.
Felicity faz um sorriso deslumbrante. Se eu não a conhecesse não saberia
ver o gelo que dele ressuma.
– Oh, Ann, que pena, parece que perdeu a sua pulseira!
– Qual pulseira? – pergunta Ann.
– Aquela que o duque mandou de São Petersburgo. Talvez a tenha
perdido na salinha. Temos de a ir procurar. Gemma, não se importa de
ajudar?
– Não, de todo – digo eu.
– Não se demorem. A ópera está quase a começar – avisa a minha avó.
Fugimos para a salinha. Estão lá algumas senhoras a pavonearem-se aos
espelhos, a ajeitarem xailes e joias.
– Ann, quando eu digo que perdeste a pulseira, é melhor alinhares – ralha
Felicity.
– Odeio Lady Denby de paixão. É uma mulher horrorosa – resmunga
Felicity.
– Não é nada – refilo eu.
– Não dirias isso se não estivesses embeiçada pelo filho.
– Não estou embeiçada. Ele simplesmente convidou a minha família para
a ópera.
A sobrancelha erguida de Felicity indica-me que não acredita em nada do
que digo.
– Talvez queiras saber que descobri algo sobre o meu amuleto – digo eu,
para mudar de assunto.
– O que é? – pergunta Ann, a tirar as luvas para alisar o cabelo.
– O olho da meia-lua é uma espécie de bússola. Era isso que a Nell
Hawkins me estava a tentar dizer. Creio que nos poderá levar ao Templo.
Os olhos de Felicity brilham.
– Uma bússola! Temos de experimentar esta noite.
– Esta noite? – Até guincho. – Aqui? No meio desta gente toda? – Com o
Simon, quase digo. – Não poderíamos.
– Claro que podemos – sussurra Felicity. – Mesmo antes do intervalo,
pedes licença à tua avó para vir à salinha. Eu e a Ann faremos o mesmo.
Encontramo-nos no corredor e arranjamos sítio onde possamos entrar nos
reinos.
– Não é assim tão simples – digo eu. – Ela não me vai deixar vir, muito
menos sozinha.
– Arranja maneira – insiste Felicity.
– Mas não é decente!
– Receosa do que o Simon vai pensar? Não é que vocês estejam noivos! –
ralha Felicity. O comentário cai como uma bofetada.
– Eu nunca disse nada disso.
Felicity sorri. Sabe bem que ganhou.
– Então estamos combinadas. Mesmo antes do intervalo. Não te atrases.
Com o plano fisgado, damos atenção aos espelhos, ajeitamos as travessas
no cabelo e alisamos os vestidos.
– Ele já tentou beijar-te? – pergunta Felicity com ar de descaso.
– Não, claro que não – respondo, encabulada. Espero que ninguém a
tenha ouvido.
– Eu se fosse a ti teria cuidado – diz Felicity. – O Simon tem fama de
mulherengo.
– Comigo tem sido um perfeito cavalheiro – protesto.
– Hum – exclama Felicity, de olhos postos no reflexo ao espelho,
cativante como sempre.
Ann está a beliscar as faces, em vão, na esperança de ganhar mais cor.
– Espero conhecer alguém esta noite. Alguém bom e nobre. Do tipo que
gosta de ajudar os outros. Como o Tom.
Reparo em dois vergões assanhados e cruzados perto do osso do pulso
dela. São recentes, talvez nem muitas horas tenham. Ela tornou a mutilar-se.
Ann vê que eu estou a olhar e as faces acabadas de enrubescer ficam
pálidas. Ela calça rapidamente as luvas para cobrir as cicatrizes.
Felicity vai à frente e cumprimenta uma amiga da mãe já à porta. Agarro
no pulso de Ann e ela encolhe-se.
– Prometeste-me que ias parar com isso – digo eu.
– A que te referes?
– Sabes muito bem a que me refiro – é um aviso. Os olhos dela
encontram os meus. Ela faz um sorrisinho triste.
– É melhor que eu faça mal a mim mesma do que se forem eles a fazer.
Dói menos.
– Não compreendo.
– É diferente, para ti e para a Fee – diz Ann, quase a chorar. – Não
compreendes? Eu não tenho futuro. Não há nada à minha espera. Nunca
serei uma senhora nem me casarei com alguém como o Tom. Resta-me
fingir. É horrível, Gemma.
– Não sabes o que vai acontecer – digo eu, a tentar acalmá-la. – Ninguém
sabe.
Felicity reparou que não estamos ao lado dela e volta para perguntar:
– O que se passa?
– Nada – digo eu animadamente. – Vamos já. – Dou a mão a Ann. – As
coisas podem mudar. Repete comigo.
– As coisas podem mudar – diz ela baixinho.
– Acreditas?
Ela abana a cabeça. Caem lágrimas silenciosas pelas faces redondas.
– Arranjaremos maneira. Prometo. Mas primeiro, tu tens de me prometer
que te deixas disto. Por favor?
– Vou tentar – diz ela, a passar a mão enluvada pela cara húmida e a
tentar sorrir.
– Temos sarilhos – diz Felicity quando nos juntamos à multidão no átrio.
Vejo logo a que se refere. Cecily Temple. Está ao lado da mãe, de pescoço
esticado, a olhar para todo o lado na esperança de ver alguém que lhe
interesse. Ann entra em pânico.
– Vou ser desmascarada! Enxovalhada! Vai ser o fim.
– Deixa-te disso – ralha Felicity, mas claro que Ann tem razão. Cecily
pode deitar abaixo a história da nobreza russa de Ann, e do parentesco com
um duque, como um castelo de cartas.
– Vamos evitá-la – diz Felicity. – Vem comigo. Vamos pela escadaria em
frente. Gemma, mesmo antes do intervalo. Não te esqueças.
– Pela terceira vez, não esqueço – digo, já irritada.
As luzes da sala piscam para avisar que a ópera está quase a começar.
– Cá está a menina! – Simon esperou por mim. Até me treme o estômago.
– Encontraram a pulseira da menina Bradshaw?
– Não. Ela afinal lembrou-se de que a deixou no guarda-joias – minto.
A família de Simon tem um camarote bem acima que me faz sentir a
própria Rainha, a presidir a todos os meus súbditos. Sentamo-nos e
fingimos que lemos os libretos, embora ninguém esteja realmente a tomar
atenção ao Mikado. Aproveita-se os lornhões para espiar amantes e amigos,
para ver os trajes que se usam, as companhias. Há mais escândalo e drama
potenciais entre o público do que jamais poderia haver em palco. Por fim,
as luzes baixam e o pano sobe para mostrar uma aldeiazinha japonesa. Um
trio de sopranos com trajes orientais e perucas pretas lacadas canta a sua
história de serem três meninas na escola. É a minha primeira ópera, e
parece-me deliciosa. A dado momento, apanho Simon a olhar para mim.
Em vez de desviar os olhos, ele faz-me o sorriso mais radioso, e nem
consigo imaginar como é que vou arrancar-me daqui para entrar nos reinos,
pois isto aqui também é magia, e não consigo deixar de sentir má vontade
por ter obrigações a tratar.
Mesmo antes do intervalo, espio Felicity pelo lornhão. Está a olhar para
mim com ar de impaciência. Chego-me ao ouvido da avó e peço-lhe licença
para ir à salinha. Antes que ela possa protestar, passo pelas cortinas que dão
para o corredor, e encontro-me com Felicity e Ann.
– Há um camarote vazio lá em cima – diz Felicity e pega-me na mão.
Ouve-se uma ária nostálgica pelo teatro fora conforme subimos para o
andar de cima. Baixamo-nos, afastamos as cortinas pesadas e sentamo-nos
no chão lá dentro. Dou-lhes as mãos. De olhos fechados, concentramo-nos e
a porta de luz aparece.
TRINTA

O aroma doce dos lilases está à nossa espera no jardim, mas as coisas
parecem diferentes. As árvores e a erva estão algo bravias, como que
espigadas. Apareceram mais cogumelos venenosos, que lançam sombras
compridas nas nossas caras.
– Ai, estão tão lindas! – exclama Pippa do seu poleiro à beira rio. Corre
para nós, a bainha esfarrapada do vestido a esvoaçar na brisa. As flores da
coroa secaram e ficaram quebradiças. – Que bonitas! Aonde é que foram
nestes requintes?
– À ópera – responde Ann, e dá voltinhas no seu vestidinho. – O Mikado
ainda está a dar. Escapulimo-nos!
– À ópera – diz Pippa com um suspiro. – É loucamente elegante? Têm de
me contar simplesmente tudo!
– É deslumbrante, Pip. As mulheres cheias de joias. Um homem piscou-
me o olho.
– Quando? – pergunta Felicity, incrédula.
– Piscou, pois! A subir a escadaria. Oh, e a Gemma veio com o Simon
Middleton e a família dele. Está sentada no camarote deles – informa Ann
sem fôlego.
– Oh, Gemma! Fico tão feliz por ti! – exclama Pippa e dá-me um beijo.
As reservas que eu possa ter tido com ela acabaram de desaparecer.
– Obrigada – digo e retribuo o beijo.
– Oh, parece-me tudo celestial. Contem mais. – Pippa encosta-se a uma
árvore.
– Gostas do meu vestido? – pergunta Ann, a dar mais voltinhas para a
inspeção de Pippa. Esta pega nas mãos de Ann e dança com ela.
– É lindo! Tu és linda!
Pippa deixa de girar. Faz uma cara como quem vai chorar.
– Nunca fui à ópera, e agora sei que nunca irei. Quem me dera ir
convosco.
– Serias a mais bela de todas, se lá estivesses – diz Felicity, e Pip volta a
sorrir. Ann corre para mim.
– Gemma, experimenta o amuleto.
– O que se passa? – pergunta Pippa.
– A Gemma pensa que o amuleto dela é uma espécie de bússola –
responde Felicity.
– Crês que nos vai mostrar o caminho para o Templo? – pergunta Pippa.
– É isso que vamos descobrir – digo eu. Tiro o amuleto da malinha e viro-
o ao contrário. A princípio, não há mais do que a superfície metálica e fria a
refletir uma imagem distorcida de mim própria. Nisto, algo começa a
mudar. A superfície fica turva. Eu começo a andar lentamente num círculo.
Quando estou de frente para duas filas direitas de oliveiras, o olho da meia-
lua começa a brilhar muito, a alumiar um caminho indeterminado mas
óbvio.
– Segue o caminho – murmuro, a recordar as palavras de Nell. – Creio
que encontrámos o caminho para o Templo.
– Oh, deixa-me ver! – Pippa tira-me o amuleto das mãos e vê-lo reluzir na
direção das oliveiras. – Esplêndido!
– Já foste por ali? – pergunto.
Pippa abana a cabeça. Corre uma brisa pelo carreiro entre as oliveiras,
leva com ela uma mão-cheia de folhas e o aroma dos lilases. Com a
cintilação do amuleto a servir de guia, seguimos a coberto das árvores,
caminhamos o que nos parece mais de um quilómetro, passamos por
estranhos totens com cabeças de elefantes, cobras e pássaros. Chegamos a
uma passagem feita de terra. O amuleto brilha mais.
– Por aqui? – pergunta Ann, ofegante.
– Assim parece – respondo.
É apertado e nada alto. Até Ann, a mais baixa de todas, tem de se curvar
para passar. O caminho deixa de ser regular e fica pedregoso. Saímos para
um caminho orlado de ambos os lados por campos de flores altas cor de
laranja vivo que balouçam hipnoticamente. Quando passamos, a brisa
verga-as para a frente e elas roçam-nos suavemente na cara e nos ombros.
Cheiram a fruta fresca de verão. Pippa apanha uma flor e ajeita-a na sua
coroa murcha. Algo passa a correr à minha direita.
– O que foi aquilo? – pergunta Ann, e chega-se mais.
– Não sei – digo eu. Não vejo mais do que as flores a ondularem ao
vento.
– Vamos continuar – aconselha Pippa.
Seguimos o brilho vivo do amuleto até que o caminho termina
abruptamente numa enorme parede de rocha. É alta como uma montanha e
parece nunca mais acabar, pelo que não parece haver volta a dar.
– O que fazemos agora? – pergunta Felicity.
– Deve haver maneira de atravessar – digo eu, embora não tenha a mais
vaga ideia como. – Procurem uma passagem.
Vamos tateando as rochas até ficarmos exaustas do esforço.
– Não vale a pena – diz Pippa, ofegante. É rocha sólida.
Não podemos ter feito este caminho todo para nada. Deve haver maneira
de entrar. Ando ao longo da parede, a mexer o amuleto para trás e para a
frente. De súbito, acende-se.
– O que será? – pergunto.
Viro outra vez o amuleto com cuidado e ele cintila-me na mão. Quando
olho para a rocha, vejo o leve contorno de uma porta.
– Estão a ver isto? – pergunto, na esperança de não estar a imaginar
coisas.
– Sim! – exclama Felicity. – Uma porta!
Estendo a mão e sinto o metal frio de uma maçaneta na rocha. Respiro
fundo e puxo. É como se um buraco grande e escuro se tivesse aberto na
terra. O brilho do amuleto é forte.
– Parece que é este o caminho – anuncio eu embora, na verdade, não
tenha vontade alguma de entrar nesse poço negro e fundo. Felicity lambe os
lábios num gesto nervoso.
– Vá lá, então. Nós vamos atrás.
– Não serve de consolo – digo eu. De coração descompassado, meio à
espera de ser engolida inteira pela rocha, dou um passo em frente e espero
que os olhos se habituem à obscuridade. É húmido e cheira a jardim
acabado de regar. Lanternas de papel douradas e cor-de-rosa pendem das
paredes de pedra, lançam uma luz fraca no chão de lama. É difícil ver mais
do que um palmo à frente do nariz, mas sinto que estamos a subir em
círculo. Não tarda a que a respiração nos seja mais difícil. As pernas
tremem-me do esforço. Por fim, chegamos a outra porta. Rodo a maçaneta e
deparamos com fumo roxo e vermelho a subir à nossa volta como nuvens.
Uma brisa leva o fumo colorido, e o cenário abre-se. Estamos muito acima
do rio. Lá ao fundo, o barco da górgone corta silenciosamente a água azul.
– Como é que subimos tanto? – pergunta Felicity, a tentar recobrar o
fôlego.
– Não sei – respondo. Ann estica o pescoço.
– Credo! – Está a olhar boquiaberta para as deusas sensuais entalhadas no
penhasco, para as curvas de ancas e bocas, joelhos rechonchudos, a macieza
opulenta dos queixos redondinhos. Aquelas mulheres de pedra olham para
nós de tão alto, reparam em nós mas não se ralam connosco.
– Eu lembro-me disto – digo eu. – Fica perto das Grutas dos Suspiros,
não fica?
Vejo Pippa estacar.
– Não devíamos estar aqui. Os Intocáveis moram aqui. É proibido.
– Vamos voltar – diz Ann.
Porém, quando viramos para trás, a porta funde-se na rocha. Não há
regresso pelo mesmo caminho.
– O que havemos de fazer agora? – pergunta Ann.
– Quem me dera ter trazido as setas – murmura Felicity.
Vem aí alguém. Uma figura aparece por entre o fumo espesso, uma
mulher pequena com a pele curtida pelas intempéries, da cor de um barril
de vinho. As mãos e o rosto pintados em padrões complexos, mas os braços
e as pernas! Marcados pelas feridas mais pavorosas. Uma perna tão inchada
que mais parece o tronco de uma árvore. Viramos costas com o desagrado,
não conseguimos olhar para ela.
– Bem-vindas – diz ela. – Chamo-me Asha. Venham comigo.
– Já nos íamos embora – diz Felicity. Asha ri-se.
– E para onde iam? Esta é a única saída. Para a frente.
Dado que não podemos sair por onde viemos, vamos com ela. O caminho
está apinhado de criaturas, também deformadas, curvadas, marcadas.
– Não fiques a olhar – ralho baixinho com Ann. – Cuidado onde pões os
pés.
Asha leva-nos à volta do penhasco, por arcadas de túneis suportadas por
pilares. As paredes pintadas com cenas de batalhas fantásticas – a
decapitação de uma górgone, a expulsão de umas serpentes, cavaleiros
trajados de túnicas pintadas com papoilas encarnadas. Vejo a Floresta das
Luzes, um centauro a tocar flauta, as ninfas da água, as Runas do Oráculo.
É como uma tapeçaria, com tantas cenas que até lhes perco a conta.
O túnel abre-se com outra paisagem magnífica. Estamos bastante alto na
montanha. Há vasos com incenso ao longo do caminho estreito. Volutas de
fumo de cor magenta, turquesa e amarela causam-me cócegas no nariz e
fazem-me arder os olhos.
Asha detém-se na boca da gruta. A assinalar a entrada, um relevo tosco de
uma corrente feita de serpentes. Não parece escultura, parece mais algo que
irrompeu da própria terra.
– As Grutas dos Suspiros.
– Não tinha dito que era a saída? – pergunto.
– Assim é. – Asha entra na gruta e funde-se na escuridão. Atrás de nós, na
estrada, os outros formaram um aglomerado de gente a perder de vista. Não
podemos bater em retirada.
– Isto não me agrada – diz Pippa.
– A mim também não, mas que escolha temos agora? – digo eu, e baixo-
me para entrar na gruta.
Assim que entro, compreendo logo porque é que as grutas ganharam o
nome que têm. É como se as próprias paredes suspirassem com a felicidade
de cem mil beijos.
– Tão lindo – diz Ann. Está perante o baixo-relevo de uma cara com nariz
comprido e lábios cheios. As mãos dela percorrem a curva do lábio
superior, e eu lembro-me imediatamente de Kartik. Pippa também vai
desfrutar da sensação da pedra nas mãos.
– Desculpe, mas nós seguíamos um caminho e agora parece que
desapareceu. Não se importa de nos indicar o caminho de volta? Estamos
com muita pressa – pede Felicity docemente.
– Estão à procura do Templo? – pergunta Asha. Agora é que nos chamou
a atenção mesmo.
– Sim – digo eu. – Sabe onde fica?
– O que tens a oferecer? – pergunta Asha, de mãos estendidas.
Eu tenho de oferecer qualquer coisa? Não tenho nada para dar. Não
poderia abdicar do colar de Simon nem do meu amuleto.
– Lamento – digo eu. – Não trouxe nada comigo.
Vê-se bem o desapontamento nos olhos de Asha, mas ela sorri mesmo
assim.
– Por vezes procuramos aquilo que ainda não estamos prontas a
encontrar. O verdadeiro caminho é difícil. Para o ver, tens de estar disposta
a largar esta pele como se uma cobra fosses. Tens de estar disposta a
abdicar do que te é mais precioso. – Ela olha para Pippa quando diz isto.
– Temos de ir embora – diz Pippa. Creio que pode ter razão.
– Obrigada pela maçada, mas agora temos de regressar.
Asha faz uma vénia.
– Como te aprouver. Posso indicar esse caminho, mas vais precisar da
nossa ajuda.
Uma mulher com o rosto pintado de vermelho vivo e riscas verde-escuras
deita uma mistela de barro num tubo comprido com um buraco na ponta.
– Para que é isso? – pergunta Felicity.
– Para vos pintar – responde Asha.
– Para nos pintar? – guincha Ann.
– Para dar proteção – explica Asha.
– Proteção contra quê? – pergunto eu à cautela.
– Proteção do que vier à vossa procura nestes reinos. Esconde o que tiver
de ser escondido e revela o que tiver de ser visto. – Mais uma vez, ela lança
o mesmo olhar curioso a Pippa.
– Isto não me agrada mesmo nada – diz Pippa.
– A mim também não – concorda Ann.
– E se for uma armadilha? – sussurra Felicity. – E se a tinta for
venenosa?
A mulher da cara vermelha faz-nos sinal para nos sentarmos e colocarmos
as mãos em cima de uma pedra grande.
– Porque é que haveríamos de confiar em si? – pergunto.
– Há muitas escolhas a fazer. És livre de recusar – responde Asha.
A mulher da tinta aguarda pacientemente. Devo confiar em Asha, uma
Intocável, ou arriscar-me nos reinos sem proteção?
Estendo as mãos à mulher da cara pintada.
– Vejo que és corajosa – diz Asha. Depois faz sinal com a cabeça à
mulher, e esta espreme a mistela em cima das minhas mãos. É fria na pele.
Será o veneno a entrar-me no sangue? Só me resta fechar os olhos e esperar,
esperar que corra pelo melhor.
– Olha! – exclama Ann.
Receosa do pior, abro os olhos. As minhas mãos. Onde a mistela de barro
secou, ficaram cor de tijolo vivo num padrão mais complexo do que uma
teia de aranha. Faz-me lembrar as noivas da Índia de mãos desenhadas com
hena em homenagem aos maridos.
– Eu sou a seguir – diz Felicity, e despacha-se a descalçar as luvas. Já não
tem medo de ser envenenada, apenas de ficar de fora.
Nos recantos fundos da gruta há um lençol de água suave como vidro que
parece subir e descer em simultâneo. O fluxo dá-me sono. É a última coisa
que vejo antes de adormecer.

Estou diante de um poço grande. A superfície fervilha de movimento,


mostra-me coisas. Rosas a desabrocharem depressa em trepadeiras verdes e
grossas. Uma catedral à deriva numa ilha. Rocha negra banhada por
nevoeiro. Um guerreiro de capacete com chifres monta um cavalo com ar
feroz. Uma árvore torcida contra um céu vermelho-sangue. As mãos
pintadas de Asha. Nell Hawkins. O manto verde. Algo se move nas
sombras, assusta-me, aproxima-se. Um rosto.
Acordo sobressaltada. Felicity ri-se alegremente, a exibir as mãos,
pintadas com arabescos bonitos. Compara-as com os padrões complexos
nas mãos de Ann e Pippa. Asha está sentada à minha frente, as pernas
grossas e escamosas cruzadas.
– O que viste nos teus sonhos? – pergunta ela. O que vi eu? Nada que me
faça sentido algum.
– Nada – respondo. Torno a ver o desapontamento nos olhos dela.
– São horas de te ires embora.
Ela leva-nos à entrada da gruta. O céu já não está azul, está uma noite
escura como tinta. Estamos aqui há tanto tempo assim? Os vasos de incenso
vomitam um arco-íris de cores. Há archotes ao longo do caminho. Os Hajin
estão ao lado deles, e fazem vénias à nossa passagem.
Quando chegamos à rocha outra vez, a porta aparece.
– Não tinha dito que a única saída era para a frente? – pergunto.
– Sim. É verdade.
– Mas foi por aqui que viemos!
– Foi? – perguntou ela. – Cautela no caminho. Andem depressa e em
silêncio. A tinta vai ocultá-las da vista. – Asha junta as palmas das mãos e
faz uma vénia. – Agora vão.
Não compreendo nada, mas já perdemos demasiado tempo para fazer
mais perguntas. Temos de voltar ao caminho. Com a radiância do amuleto,
consigo ver os traços delicados nas minhas mãos. Parece-me parca proteção
para o que quer que ande à nossa procura, mas espero que Asha tenha
razão.
TRINTA E UM

A radiância do olho da meia-lua leva-nos para longe da montanha até nos


encontrarmos em terreno conhecido. O céu aqui não é tão escuro. Está
banhado na luz de uma lua vermelha-escura. Estamos rodeadas pelos corpos
nodosos de árvores gigantescas. Os ramos arqueiam-se bem acima das
nossas cabeças, os dedos nus e torcidos a entrelaçarem-se num amplexo
feérico. O efeito assemelha-se deveras a estar dentro de uma gaiola
comprida.
– Já alguma vez viemos por aqui? – pergunta Felicity.
– Onde estamos? – pergunta Pippa.
– Não sei – respondo.
– É um sítio pavoroso – diz Ann.
– Eu sabia que não podíamos confiar nelas. Bichos imundos! – exclama
Pippa.
– Chiu! – digo. Na minha mão, a radiância do amuleto passa a uma
cintilação tremeluzente e depois é como se nos apagassem uma vela. – Foi-
se.
– Ora que bom! Agora como é que voltamos? – resmunga Ann.
A lua encarnada derrama-se nos ramos finos e nus como agulhas, lança
sombras compridas.
– Vamos aproveitar o luar. Continuem a andar – digo eu. Porque é que o
amuleto deixou de funcionar?
– Credo, que cheiro é este? – pergunta Felicity.
O vento sopra a nosso favor e também sinto o odor. Cheira a doença e
imundície. Cheira a morte. Passa uma brisa pela alameda atrás de nós, faz-
nos esvoaçar sedas e cetins. É mais substancial do que uma rajada de vento.
É um anúncio. Vem aí alguém. Ann tapou o nariz e a boca.
– Ai que é mesmo mau.
– Chiu! – peço eu.
– O que foi? – pergunta Pippa.
– Não estás a ouvir?
Cavaleiros. Cavalgam depressa. Vê-se uma nuvem de pó. Não tardam a
ultrapassar-nos. Parece que o corredor à nossa frente tem quilómetros.
Conseguiremos esgueirar-nos pelos espaços entre as árvores? Não passam
de frinchas de luz, são tão estreitos que não nos deixam passar.
– Onde é que foram? – pergunta Pippa a olhar em redor.
– O que queres dizer? Estamos mesmo aqui – responde Felicity.
– Não as consigo ver!
A tinta! Está a esconder-nos, sei lá como.
– A tinta protege-nos. Não nos conseguem ver.
– E eu? – pergunta Pippa, a olhar para as mãos, bastante visíveis. – Oh,
Deus! – Parece desesperada, e não sei o que hei de fazer para a ajudar. Os
cavaleiros aparecem – espetros esqueléticos tão deformados que ninguém
os reconheceria. Atrás deles paira uma figura aterradora – uma coisa
pavorosa com asas enormes e esfarrapadas e uma boca cheia de dentes
compridos e pontiagudos. Ainda têm bocados de carne agarrada. A cara não
tem olhos, mas cheira o ar, na nossa peugada. Eu sei o que é, pois já
enfrentei um. É um pisteiro, daqueles empregados por Circe.
Fareja na nossa direção. O fedor basta para me fazer engasgar. Tento
controlar-me.
– Tu aí – uiva o espírito negro e, por momentos, receio que nos tenha
descoberto. – Ainda não atravessaste, espírito?
– E...eu? – pergunta Pippa. – Eu... eu...
A boca da coisa horrenda baba-se em fios nojentos e pegajosos. Oh, Pip!
Quero salvá-la mas estou apavorada, não sou capaz de abdicar da segurança
que a invisibilidade me dá. A criatura nojenta fareja o ar.
– Ah, estou a cheirá-las. Coisas vivas. A sacerdotisa esteve aqui. Tu viste-
a?
Pippa treme e sussurra:
– N...não.
A besta aproxima-se mais dela. A voz é um rosnido tocado pelo
desespero de mil almas.
– Não nos irias mentir, pois não?
Pippa abre a boca mas as palavras não saem.
– Não importa. Acabaremos por encontrá-la. A minha soberana está a
tratar disso e, quando o Templo for dela, o equilíbrio do poder recairá
finalmente sobre as Invernias. – Ele aproxima-se mais de Pippa e mostra
um sorriso terrível. – Monta connosco. Podes partilhar a nossa vitória. O
que desejares pode ser teu. Que bichinha tão bonita. Monta connosco.
Aquela cara está tão perto das faces lindas de Pippa. Tenho uma pedra
debaixo do sapato. Com cuidado, apanho-a e atiro-a para o fundo da
azinhaga. A cabeça maciça do pisteiro gira nessa direção. Os espetros
uivam e guincham.
– Elas ainda estão perto. Têm a magia a trabalhar para elas. Estou a senti-
lo. Decerto nos encontraremos outra vez, bichinha. Arrancar! – Com isto,
lançam-se a berrar para o corredor. Ficamos sem nos mexermos nem
falarmos até o chão assentar e já não haver vento.
– Tu estás bem, Pip? – grita Felicity.
– S...sim. Creio que sim – diz ela. – Ainda não as consigo ver. Porque
será que comigo não funcionou?
Sim, porque será. Esconde o que tiver de ser escondido e revela o que
tiver de ser visto. Porque é que Pippa não precisa que a escondam, a menos
que já tenha proteção nos reinos? Não, Pippa não é nada como aquela coisa.
É isto que a minha cabeça me diz, mas o coração diz-me outra coisa
pavorosa: não tarda a que ela possa ficar assim.
– Quero sair daqui imediatamente – diz Ann.
Caminhamos depressa e em silêncio como Asha nos aconselhou. Quando
chegamos ao fim do corredor, o amuleto crepita e acende-se nas minhas
mãos.
– Voltou! – exclamo e começo a mexer-lhe. Brilha mais na minha mão
esquerda. – Por aqui!
Logo vemos a beira puída do crepúsculo dourado que assinala o reino do
jardim. Quando chegamos à arcada de prata e ao rio, já estamos novamente
visíveis. Pippa treme como varas verdes.
– Aquela criatura... horrorosa.
– Tens a certeza de que estás bem? – pergunto eu. Ela faz que sim com a
cabeça.
– Gemma – começa ela, a morder o lábio – o que acontecerá quando
encontrares o Templo?
– Tu sabes o que acontecerá. Tenho de vincular a magia.
– E o que será de mim? Terei de ir? – A voz dela é um murmúrio.
É esta a questão que estou sempre a descartar mas, esta noite, comecei a
aperceber-me – a ver com clareza, nas palavras de Asha – que isto não
poderá continuar para sempre. Que Pippa se poderá tornar num daqueles
espíritos negros se não fizer a travessia. Não consigo dizê-lo. Apanho uma
mão-cheia de gotas de orvalho na mão. Juntam-se nos meus dedos, fazem
uma teia de prata que os entrelaça.
– Gemma... – pede Pippa.
– Claro que não tens de ir – diz Felicity, a passar-me à frente. –
Arranjaremos maneira de mudar as coisas com a magia. A Ordem vai
ajudar-nos.
– Não sabemos isso – digo eu baixinho.
– Mas é possível, não é? – pergunta Pippa, a esperança a devolver-lhe o
brilho nos olhos. – Pensem só! Eu poderia ficar. Nós poderíamos ficar
juntas para sempre.
– Sim, com certeza. Arranjaremos maneira. Prometo – diz Felicity.
Olho para Felicity para a avisar, mas Pippa está a chorar lágrimas de
alegria, abraçada a Felicity, a embalar Felicity.
– Fee, obrigada. Adoro-te muito.
A tinta das nossas mãos desbotou e não ficou mais do que uma sombra de
traços e rabiscos que desaparece no tecido branco das nossas luvas finas.
– Não podem ir já – pede Pippa. – Quero fingir que também estou na
ópera. E que depois há baile! Venham, dancem comigo!
Ela corre para a relva, a varrê-la com o vestido de um lado para o outro, a
bater com os calcanhares bem alto. Aos risinhos, Ann corre atrás dela. Eu
puxo Felicity de parte.
– Não devias prometer tais coisas à Pippa.
Os olhos de Felicity dardejam.
– Porque não? Gemma, ela estava perdida para nós, e agora temo-la de
volta. Tem de haver uma razão para isso, não te parece?
Penso na travessia da minha mãe, no quanto ainda me custa ter ficado
sem ela, como uma ferida que se pensa sarada até magoarmos outra vez a
marca que ficou e sentirmos outra vez a dor. É horrível. Todavia... A magia
de Asha não deu resultado em Pippa. Os espíritos negros viram-na.
Cortejaram-na a ela e queriam caçar-nos a nós.
– Não sei o que é que temos, mas não é a Pippa. A nossa Pippa, não é,
pelo menos.
Felicity afasta-se de mim.
– Recuso-me a perdê-la duas vezes. Bem vês que ela não mudou. Ainda é
a nossa Pippa, linda como sempre.
– Mas ela comeu as bagas. Ela morreu. Tu viste-a ser enterrada.
Felicity não quer saber.
– A magia. Vai mudar as coisas.
– Não é essa a finalidade – digo eu baixinho. – A Pip agora é uma criatura
dos reinos, e tem de fazer a travessia antes de começar a corrupção.
Felicity olha para onde Pippa e Ann brincam na relva fresca, a
rodopiarem como bailarinas.
– Não sabes isso.
– Fee...
– Não sabes isso! – E lança-se a correr.
– Dança comigo, Fee – Pippa chama-a, de sorriso radioso. Pega nas mãos
de Felicity. Algo se passa entre elas que não consigo definir. Uma ternura.
Uma intimidade. Como se estivéssemos todas reunidas no salão de baile da
Spence, Felicity põe as mãos na cintura de Pippa e puxa-a para uma valsa.
Rodam e rodam, os caracóis de Pippa a apanharem o vento, soltos e livres.
– Oh, Fee. Tinha tantas saudades tuas. – Pippa põe o braço na cintura de
Felicity e esta faz o mesmo. Podiam ser gémeas siamesas. Pippa sussurra
qualquer coisa ao ouvido de Felicity, e esta ri-se. – Não me deixes – diz
Pippa. – Promete que vais voltar. Promete.
Felicity põe as mãos em cima das de Pip.
– Prometo.
Eu preciso de um momento para me concentrar. Vou até à beira-rio e
sento-me a pensar. A górgone aparece silenciosamente.
– Algo te perturba, Altíssima? – pergunta ela na sua voz dissimulada.
– Não – resmungo eu.
– Não confias em mim – diz ela.
– Eu não disse isso.
Ela gira a enorme cabeça verde na direção do jardim, onde as minhas
amigas dançam na relva macia.
– As coisas estão a mudar. Não podes impedir a mudança.
– O que é que isso significa?
– Que terás de fazer uma escolha, em breve.
Ponho-me de pé e sacudo a erva da minha saia.
– Eu sei que ajudaste a matar membros da Ordem. Não nos avisaste
quando as ninfas de água estavam perto. Tanto quanto sei, até podes fazer
parte das Invernias. Porque é que eu havia de dar ouvidos ao que tiveres a
dizer?
– Fui obrigada pela magia a dizer a verdade e a não fazer mal à tua
espécie.
Outrora.
Viro-me para me ir embora.
– Como bem disseste, as coisas estão a mudar.
***
Regressamos ao camarote vazio na Royal Opera House mesmo quando cai
o pano para o intervalo. Trazemos a magia connosco. Pega-se-me ao corpo
de uma maneira que me desperta os sentidos. Ouço o silvo lento do
candeeiro a gás montado na ponta do camarote particular dentro da minha
cabeça. As luzes sobem e fazem-me arder os olhos. Irrompem dentro de
mim pensamentos alheios até me fazerem pensar que vou enlouquecer.
– Gemma? – Estás bem? – pergunta Ann.
– Não sentes? – Estou boquiaberta.
– Sinto o quê? – pergunta Felicity, irritada.
– A magia. É demasiada. – Levo as mãos aos ouvidos como se isso
impedisse alguma coisa. Ann e Felicity não parecem nada incomodadas. –
Tentem fazer alguma magia, um gafanhoto, ou um rubi.
Felicity fecha os olhos e estende a mão. Algo cintila na palma mas
desaparece.
– Porque é que não consegui?
– Não sei – digo. Custa-me recobrar o fôlego. – Experimenta tu, Ann.
Ann fecha as mãos juntas em concha e concentra-se. Está a pedir uma
coroa de diamantes. Eu sinto o desejo dela dentro de mim. Daí a momentos,
ela deixa de tentar.
– Não compreendo – diz.
– É como se a vossa magia estivesse toda em mim – digo eu, a tremer. –
Como se eu a tivesse a triplicar.
Felicity espreita pela varanda do camarote.
– Saíram dos lugares! Temos de ir ter com eles. Gemma, consegues pôr-te
de pé?
Tenho as pernas como as de um potro acabado de nascer. Felicity e Ann
ladeiam-me, as três de mãos dadas. Vamos atrás de um homem com a sua
esposa. Está a ter uma aventura com a cunhada. Tenciona encontrar-se com
ela esta noite depois da ópera. Os segredos dele correm-me nas veias,
envenenam-me.
– Oh – exclamo, a abanar a cabeça para me livrar dos pensamentos dele.
– É pavoroso. Consigo ouvir e sentir tudo. Não tenho como impedir. Como
é que vou ultrapassar esta noite?
Felicity leva-me para a escadaria.
– Vamos levar-te à salinha e dizer à tua avó que estás indisposta. Ela leva-
te para casa.
– Mas assim não estou com o Simon! – queixo-me.
– Queres que o Simon te veja nestes preparos? – sussurra Felicity.
– N-não – gaguejo, as lágrimas a correrem-me pela cara.
– Então vamos lá.
Ann está a trautear baixinho. É um tique dela, mas até me parece
tranquilizante e, se ouvir apenas a voz dela, dou comigo a andar e a parecer
razoavelmente bem.
Quando chegamos ao fundo da escadaria e ao grande átrio, Tom está à
minha procura. Ann deixa de trautear e sou agredida pelo burburinho dos
segredos de todos. Concentra-te, Gemma. Enxota-os. Escolhe um.
Ann. Sinto-lhe o coração a bater ao ritmo do meu. Está a imaginar-se a
dançar nos braços de Tom, com ele a olhar amorosamente para ela. É o que
ela quer desesperadamente, e lamento sabê-lo.
Ali vem ele, junto com Lady Denby. E Simon. Perco o fio da meada da
Ann. Tudo me agride outra vez. Entro em pânico. Só penso em Simon, no
belíssimo Simon de gravata branca e fraque preto, e eu, desgraçada pela
magia. Ele avança para mim. Por momentos, os pensamentos dele arranjam
maneira de entrar. Imagens fugazes. A sua boca no meu pescoço. A mão a
tirar-me a luva.
Os joelhos atraiçoam-me. Felicity segura-me com firmeza.
– Menina Doyle? – pergunta Simon, perplexo.
– A menina Doyle está indisposta – responde Felicity para grande
vergonha minha.
– Lamento sabê-lo – diz Lady Denby. – Vamos mandar vir a carruagem
imediatamente.
– Se lhe parecer melhor, Lady Denby – diz a minha avó, desapontada por
acabar já o serão.
– Lady Denby, que prazer vê-la! – É a mãe da Cecily Temple, a marchar
para nós com Cecily a reboque. Esta arregala os olhos quando vê Ann.
– Boa noite – diz Cecily. – Ora, a menina Bradshaw. Que surpresa vê-la
aqui. Porque é que não ficou na Spence com a Brigid e as criadas?
– Temos a ventura de ter a menina Bradshaw connosco durante as festas,
dado que o seu tio-avô, o duque de Chesterfield, ficou retido na Rússia –
informa a mãe da Felicity.
– Duque de Chesterfield? – repete Cecily como se não tivesse ouvido
bem.
A senhora Worthington conta a história das origens nobres de Ann a
Cecily e à mãe desta. Cecily está boquiaberta de espanto, mas a crueldade
torce-lhe a boca num sorriso malévolo. Algo frio e duro corre dentro de
mim. São as intenções de Cecily. Ela vai agir. Vai contar. Agora é o susto de
Ann a martelar-me, misturado com o despeito de Cecily até me deixar
zonza. Não consigo respirar. Preciso de pensar. Ouço a voz da Cecily.
– Ann Bradshaw...
Sinto os olhos fecharem-se-me. Parem, por favor.
– ... é...
Por favor. Parem.
– ... a maior...
Não consigo aguentar mais e grito:
– Parem!
Sinto um alívio delicioso. Faz-se o mais profundo silêncio. Não há
pensamentos a agredirem-me. Não há burburinho. Não há afinação de
orquestra. Não há nada de nada, com efeito. Quando abro os olhos, vejo
porquê. Fiz com que tudo se imobilizasse: as damas a pegarem nas saias, a
tagarelarem. Os cavalheiros a olharem para o relógio de bolso. São como
quadros de cera por trás das montras gigantescas nos grandes armazéns.
Não era minha intenção que isto acontecesse, mas já que aconteceu, tenho
que aproveitar. Tenho de salvar Ann.
– Cecily – começo e ponho a mão no braço hirto dela. – Não vais dizer
nem mais uma palavra contra a Ann. Vais crer em tudo o que dissermos, e
mais, vais tratar a Ann como se ela fosse a própria Rainha.
– Ann – continuo, a tirar-lhe o cabelo do rosto preocupado. – Não há
motivo para aflições. Tu mereces estar aqui. Tu és querida aqui.
O homem que tem uma aventura com a irmã da esposa está ali perto. Não
resisto. Dou-lhe uma bofetada. É uma satisfação estranha.
– O cavalheiro é um patife. Vai redimir-se imediatamente e dedicar-se à
felicidade da sua esposa.
Simon. É tão esquisito vê-lo especado, os olhos azuis abertos mas sem
verem nada. Muito devagar, descalço a luva e acaricio-lhe o queixo de lado.
A pele é macia, escanhoada de fresco. A mão fica-me a cheirar ao bálsamo
do barbeiro. Será o meu segredo.
Calço a luva e fecho os olhos, desejo que seja tudo como entendi.
– Recomeçar – digo.
O mundo entra em ação como se não tivesse havido pausa. O marido
sente o ardor da minha bofetada. Simon leva os dedos ao queixo como que
a recordar um sonho. A expressão presumida de Cecily não se alterou, e até
sustenho o fôlego, na esperança de que a magia resulte quando ela abrir a
boca.
– A menina Bradshaw é a mais caridosa e querida alma em toda a Spence
– anuncia Cecily. – Aliás, foi a modéstia dela que a impediu de nos contar
do sangue real que lhe corre nas veias. Não se pode esperar conhecer uma
pessoa tão boa.
Não sei quem ficou mais siderada – Ann ou Felicity.
– Menina Bradshaw, espero bem ter o prazer de a visitar durante a sua
estadia em Londres – diz Cecily com seriedade renovada. Tom aproveita.
– Menina Bradshaw, tem de me fazer a honra de comparecer ao baile de
Natal no Hospital de Bethlem.
Mas o sortilégio foi extensivo a todos? Não, acabo por me aperceber. A
mera sugestão de fama e fortuna tem um encanto muito próprio. É
alarmante a rapidez com que as pessoas transformam a ficção alheia em
facto para apoiar as suas próprias ficções. Porém, ao ver o rosto encantado
de Ann, sabendo o que lhe vai no coração, não posso deixar de me alegrar
com a ilusão.
– Teria muito gosto – diz Ann a todos. Podia ter aproveitado a
oportunidade para se armar. Eu teria. Mas não, revelou-se digna de sangue
real.
– Devíamos mandar vir a carruagem para a menina Doyle – diz Lady
Denby. Eu impeço-a.
– Não, obrigada. Gostaria de ficar para o resto da ópera.
– Pensei que estava indisposta – diz a avó.
– Já me sinto melhor. – E sinto. A magia acalmou-me de algum modo.
Ainda ouço alguns pensamentos, mas já não parecem tão prementes.
Felicity sussurra:
– O que aconteceu?
– Conto-te depois. É uma história muito boa.

Quando finalmente vou para a cama, a magia quase desapareceu. Estou


esgotada e trémula. Sinto a testa quente quando tiro a temperatura. Não sei
bem se é a magia a fazer isto ou se estou realmente a adoecer. Só sei que
estou desesperada por dormir.
Quando vêm, os sonhos não me dão descanso. São caleidoscópios de
loucura. Eu, Ann e Felicity a fugirmos por túneis alumiados por archotes, a
corrermos para salvar a pele, o terror estampado nas nossas caras. As
Grutas dos Suspiros. O amuleto a girar. A cara de Nell Hawkins paira perto
de mim: «Não sigas a Estrela do Oriente, Dama Esperança. Eles querem
matar-te. É essa a missão dele».
– Quem? – murmuro, mas ela foi-se, e estou a sonhar com Pippa
recortada num céu vermelho. Tem outra vez os olhos distorcidos, um azul-
esbranquiçado horrível com cabeças de alfinete pretas no centro. O cabelo
empastado com flores silvestres que já espigaram. Ela sorri e mostra dentes
aguçados e pontiagudos, apetece-me gritar, oh, Deus do céu, apetece-me
gritar. Ela oferece algo com as duas mãos, algo ensanguentado e fedorento.
A cabeça de uma cabra arrancada ao corpo.
O trovão perpassa pelo céu avermelhado. «Eu salvei-te a vida, Gemma.
Não te esqueças...» E sopra-me um beijo. Nisto, rápida como um
relâmpago, agarra na cabeça da cabra e ferra-lhe o dente no cachaço.
TRINTA E DOIS

É determinado pelo nosso médico, o Dr. Lewis, que eu estou constipada e,


depois de espirrar várias vezes, tenho de concordar com o parecer dele. Sou
obrigada a ficar de cama. A senhora Jones traz-me chá quente e um caldo
numa bandeja de prata. Da parte da tarde, o pai passa uma hora a contar-me
belas histórias da Índia.
– Lá estávamos nós, eu e o Gupta, na viagem para Caxemira com um
jerico que não se queria mexer nem por todas as joias da Índia. Viu o
desfiladeiro na montanha, arreganhou-nos os dentes e, simplesmente,
deitou-se, recusou-se a continuar. Puxámos e puxámos a corda, e quanto
mais puxávamos mais ele se debatia. Pensei mesmo que estávamos
acabados. Foi a ideia do Gupta o que nos salvou por fim.
– O que foi que ele fez? – pergunto, a assoar-me.
– Tirou o chapéu, fez uma vénia ao jerico e disse, «Faça o obséquio». O
jerico mexeu-se e nós fomos atrás dele.
Resolvo mirá-lo de olhos semicerrados.
– Acabou de inventar isso tudo.
O meu pai leva a mão ao peito num gesto teatral.
– A menina duvida da palavra de seu pai? Para as galés consigo, filha
ingrata!
Isto faz-me rir – e espirrar. O pai serve-me mais chá.
– Beba mais, querida. Não queira perder o baile do Tom com os lunáticos
esta tarde.
– Constou-me que o senhor Snow gosta de se familiarizar com as
parceiras – digo eu.
– Lunático ou não, mando-o esfolar se ele se atrever – diz o meu pai, a
esticar o peito na fanfarronice como um oficial da marinha aposentado. – A
menos que ele seja maior do que eu. Nesse caso, preciso que a minha
querida me proteja.
Torno a rir-me. Ele hoje está bem-disposto, embora me pareça magro, e
as mãos ainda lhe tremam por vezes.
– A sua mãe teria adorado a ideia de um baile em Bedlam, isso lhe
garanto. Ela adorava tudo o que fosse invulgar.
Faz-se silêncio. O meu pai faz rodar a aliança de casamento que ainda
usa, uma e outra vez.
Estou dividida entre falar com sinceridade e mantê-lo aqui comigo.
Ganha a sinceridade.
– Tenho saudades dela – digo eu.
– Eu também, pequenina. – Silêncio outra vez, não sabemos o que dizer
para colmatar a lacuna entre nós. – Sei que ela gostaria de a ver na Spence.
– A sério?
– Oh, sim. A ideia foi dela. Disse que, caso algo lhe acontecesse, eu tinha
de mandar a menina para lá. Coisa mais inusitada de se dizer, pensando
bem. Quase como se ela soubesse... – O meu pai cala-se e olha para a
janela.
É a primeira vez que ouço dizer que a minha mãe me queria a frequentar
a Spence, a escola que quase a destruiu e onde conheceu uma amiga tornada
inimiga, Sarah Rees-Toome. Circe. Antes que eu possa perguntar ao meu
pai mais sobre isso, ele levanta-se e começa a despedir-se. A vivacidade foi
invadida pela verdade dura e fria, e ele não consegue ficar e travar amizade
com ela.
– Então vou-me embora, meu anjo.
– Não pode ficar mais um bocadinho? – queixo-me, embora saiba o
quanto ele detesta que eu o faça.
– Não posso deixar os rapazes no clube pendurados.
Porque é que me parece sempre que para mim só fica a sombra do meu
pai? Sou como uma criança constantemente a querer agarrar-lhe na cauda
do fraque e a escapar-se-me.
– Está bem – digo eu. Faço um sorriso, finjo que sou a sua menina linda e
resplandecente. Não lhe dê nenhum desgosto, Gemma.
– Encontramo-nos ao jantar, pequenina.
Ele dá-me um beijo na testa e sai. No quarto não parece ter deixado
saudades. Nem sequer deixou mossa na cama onde esteve sentado.
A senhora Jones entra de rompante com mais chá e o correio vespertino.
– Carta para si, menina.
Não me ocorre alma nenhuma que me queira enviar um postal de Natal e
fico muito admirada de ler que vem do País de Gales. A senhora Jones
passa uma eternidade a arrumar o quarto e a abrir as cortinas. Tenho a carta
no colo, a provocar-me.
– Deseja mais alguma coisa, menina? – pergunta a nossa governanta sem
entusiasmo algum.
– Não, obrigada – digo com um sorriso, que não é retribuído.
Finalmente, a senhora Jones vai-se embora e eu rasgo o sobrescrito. É da
diretora da escola de Santa Vitória que se chama Morrissey.

Estimada menina Doyle,


Obrigada pela sua questão. É deveras reconfortante saber que a
nossa Nell encontrou uma amiga numa alma tão bondosa. A Escola
de Santa Vitória empregou de facto uma professora chamada Claire
McCleethy, entre o outono de 1894 e a primavera de 1895. Foi uma
excelente professora de artes e poesia e era deveras popular com
certas alunas, Nell Hawkins entre as quais. Infelizmente, não creio
ter uma fotografia da professora McCleethy para oferecer à menina
Hawkins, como me solicitou, nem sei qual o paradeiro dela. Quando
a professora McCleethy saiu de Santa Vitória, ia aceitar um cargo
numa escola perto de Londres onde a irmã é diretora. Espero
sinceramente que esta carta lhe tenha utilidade, menina Doyle, e que
possa desfrutar de um Natal muito feliz.
Cordialmente,
Beatrice Morrissey

Ela esteve lá! Eu sabia!


...aceitar um cargo numa escola perto de Londres onde a irmã é
diretora...
Escola perto de Londres. Spence? Significa isso que a senhora Nightwing
é irmã da professora McCleethy?
Estou a ouvir vozes vindas do andar de baixo.
Em poucos momentos, Felicity entra pela porta adentro com uma Ann
encabulada e uma senhora Jones furiosa atrás de si.
– Olá, Gemma, querida. Como te estás a sentir? Eu e a Ann julgámos por
bem vir fazer-te uma visita.
– O senhor doutor disse que a menina tem de descansar. – A senhora
Jones corta as terminações das palavras como um jardineiro zangado.
– Não faz mal nenhum, senhora Jones, obrigada. Creio que uma visita só
me poderá fazer bem.
Felicity sorri, triunfante.
– Como lhe aprouver, menina. Uma visita curta – enfatiza ela, e fecha a
porta com determinação.
– Agora é que a fizeste bonita. Fizeste a Jonesy zangar-se – digo eu a
arreliar Felicity.
– Ai que horror – diz Felicity a revirar os olhos.
Ann examina o vestido que está pendurado na porta do meu roupeiro.
– Vais estar melhor para ires ao baile do hospital esta tarde, não vais?
– Vou – respondo. – Lá estarei. Não te aflijas, o Tom também vai lá estar.
Ele não apanhou a minha constipação.
– Apraz-me ouvir que ele se encontra de boa saúde – diz ela, como se não
tivesse estado o dia inteiro à espera de ouvir isto mesmo. Felicity está a
observar-me.
– Tens um ar maroto estampado na cara.
– Tenho notícias interessantes. – Entrego a carta nas mãos delas.
Felicity e Ann sentam-se na minha cama, leem em silêncio e depois
arregalam os olhos.
– É ela, não é? – pergunta Ann. – A professora McCleethy é, na
realidade, Circe.
– Apanhámo-la – digo eu.
– Quando ela saiu de Santa Vitória, era para aceitar um cargo numa
escola perto de Londres onde a irmã é diretora... – Felicity lê em voz alta.
– Se for verdade – digo eu – a senhora Nightwing também é suspeita. Já
não podemos confiar nela.
TRINTA E TRÊS

Depois de meia hora passada a andar de um lado para o outro, decidimos


que vamos mandar um bilhete à única pessoa que nos poderá ajudar, a
professora Moore. Espero impacientemente pelo regresso do mensageiro e,
mesmo antes de sair para o baile em Bedlam, chega a resposta dela.

Querida Gemma,
Também eu fiquei abalada por estas coincidências. Talvez haja uma
explicação para tudo mas, de momento, aconselho-a a ficar de
sobreaviso. Se ela for ao Hospital de Bethlem, a Gemma faça o que
tiver de fazer para a impedir de chegar à sua Nell Hawkins.
Da sua amiga,
Hester Asa Moore

O meu pai não voltou a casa para o jantar como me prometeu. Não há
notícias dele. Como ele levou Kartik e a carruagem, eu e Tom somos
obrigados a chamar uma charrete para nos levar a Bethlem. O hospital está
muito bonito, decorado com azevinho e hera trepadeira, e os doentes
trajados no seu melhor, cheios de alegria e malícia.
Eu trouxe flores para Nell. Uma das enfermeiras leva-me à ala feminina
para eu lhas poder dar.
– Que bonito arranjo – comenta a enfermeira.
– Obrigada – digo eu num murmúrio.
– É um dia de sorte para a nossa menina Hawkins. É a segunda vez que
lhe trazem flores.
– O que quer dizer com isso?
– Ela teve uma visita hoje que lhe trouxe umas bonitas rosas.
Um doente passa por nós a dançar com uma parceira imaginária.
– Visita? Como é que se chamava? – pergunto. A enfermeira franze os
lábios, a pensar.
– Não me consigo recordar, tem sido um dia! O senhor Snow tem estado
muito alterado. O doutor Smith disse-lhe que, se ele não se acalmasse, não
lhe dava autorização para ir ao baile. Chegámos – diz a enfermeira quando
entrámos numa salinha.
Nell está mais descomposta do que eu alguma vez vi. O cabelo fino,
espigado e escortanhado cai-lhe pelos ombros como uma ruína. Está
sentada sozinha, tem no colo a gaiola onde está Cassandra. A papagaia
guincha para Nell, e esta vai murmurando palavras doces. Na mesa a seu
lado está uma jarra com rosas vermelhas garridas.
– Menina Hawkins – diz a enfermeira. – A menina Doyle veio vê-la e
trouxe-lhe mais um bonito arranjo de flores. Não quer cumprimentá-la?
– Boa tarde! Boa tarde! – Cassandra vai trinando.
– Vou deixá-la com a sua visita – diz a enfermeira. – Daqui a pouco tem
de se vestir, menina Hawkins.
– Nell – digo eu, depois de ficarmos sozinhas. – Hoje teve uma visita. Foi
a professora McCleethy?
Nell encolhe-se ao ouvir o nome, e puxa a gaiola para si de tal maneira
que Cassandra começa a saltitar lá dentro, incomodada.
– Ela levou-nos para as rochas. Ela prometeu-nos poder e depois
atraiçoou-nos. Veio do mar. O João e a Maria foram os dois passear...
– Ela foi sua professora em Santa Vitória, não foi? O que é que ela lhe
fez? O que aconteceu?
Nell mete os dedos pequeninos pelas grades da gaiola, a tentar chegar a
Cassandra, que guincha e saltita para os evitar.
– Nell! – agarro-lhe nas mãos.
– Oh, Dama Esperança – diz ela num sussurro feroz, os olhos marejados
de lágrimas. – Ela encontrou-me. Ela encontrou-me e tenho a cabeça tão
transtornada. Tenho medo de não as conseguir enxotar. Elas não me querem
perdoar.
– Quem é que não lhe quer perdoar? – pergunto.
– Elas! – Nell está quase a gritar. – Aquelas com quem falas. Elas não são
minhas amigas, não são minhas amigas, não são minhas amigas.
– Chiu, pronto, sossegue, Nell – já tenho de murmurar. Ouço afinarem
violinos à distância. Chegou a orquestra de câmara. O baile está quase a
começar. Nell está a balouçar-se para a frente e para trás.
– Tenho de fugir não tarda. O João e a Maria foram os dois passear,
passear esta noite. Esta noite, vou dizer-te onde podes encontrar o Templo.
Com agilidade e ferocidade surpreendentes, Nell agarra numa pata de
Cassandra. A papagaia guincha de dor, mas Nell está decidida, a boca fixa
num estranho sorriso.
– Nell, Nell, largue-a – digo eu. Puxo-lhe os dedos e ela dá-me uma
dentada na mão com toda a força. Vejo uma meia-lua de sangue, fina e
irregular, a manchar-me a luva.
– Então, qual é a razão deste alarido todo? – Aparece uma enfermeira e
marcha para nós com ar profissional. Se ela vir a dentada, não vai deixar a
Nell ir ao baile desta tarde, e assim nunca virei a saber onde é que fica o
Templo.
– O pássaro deu-me uma bicada – digo eu. – Pregou-me um susto.
– Cassandra, és mazinha, és pois – ralha a enfermeira, e tira a gaiola das
mãos de Nell.
– Mazinha, mazinha! – guincha Cassandra.
– Esta noite – diz Nell em voz rouca. – Tens de ouvir. Tens de ver. É a
nossa última hipótese.
Dói-me a mão como o diabo. Pior, o senhor Snow está à espera no
corredor, todo lampeiro. Ele não devia estar aqui, na ala feminina, e fico a
pensar como é que se terá esgueirado. Não há como evitar. Terei de
atravessar à frente dele para chegar ao baile. Ganho coragem, endireito os
ombros e avanço como se fosse dona do Hospital de Bethlem. O senhor
Snow acompanha-me logo, a marcar passo.
– És mesmo bonita, pois és.
Continuo a andar, recuso-me a dar troco. O senhor Snow salta para a
minha frente e começa a andar às arrecuas. Eu olho à minha volta em busca
de socorro, mas está toda a gente no salão de baile.
– Não se importa de me deixar passar?
– Dá cá um chocho então. Um chocho para me lembrar de ti.
– Senhor Snow, não se esqueça do decoro, se faz favor – digo eu. Tento
soar firme, mas a voz sai-me trémula.
– Tenho um recado delas para si – sussurra ele.
– Delas?
– Das raparigas de branco. – Tem a cara tão perto da minha que lhe
consigo cheirar o hálito azedo. – Ela está mancomunada com as tenebrosas.
Com aquela que vem aí. Ela vai levá-la para maus caminhos. Não confie
nela – sussurra ele, mas com a mesma expressão lúbrica na cara.
– Está a tentar meter-me medo? – pergunto.
O senhor Snow põe as mãos contra a parede de cada lado da minha
cabeça.
– Não, menina, estamos a tentar avisá-la.
– Senhor Snow! Já chega! – Finalmente aparece uma enfermeira e o
senhor Snow esgueira-se pelo corredor abaixo, mas não sem ainda me gritar
em tom urgente.
– Cautela, menina! Tem uma cabecinha tão linda!
Só quando estou longe dele e em segurança é que descalço a luva e
examino a ferida que Nell me fez na mão. Não está nenhum pavor. É mais
um arranhão fundo. Porém, e pela primeira vez, tenho as minhas dúvidas
quanto a Nell Hawkins.
Pela primeira vez, tenho medo dela.
TRINTA E QUATRO

O baile em Bethlem é um acontecimento deveras popular. O hospital está


repleto de gente que chegou por convite ou pela aquisição do bilhete. Uns
vieram pela música e a dança ou pelo sentido da caridade; outros, pela
curiosidade de verem os loucos de Bedlam a fazerem vénias uns aos outros,
na esperança de que ocorra algo estranho e escandaloso, algo que possam
contar noutro baile ou noutro jantar. Com efeito, duas senhoras observam
discretamente uma enfermeira a tentar tirar uma boneca esfarrapada das
mãos cerradas de uma doente, a acalmarem a velhota com garantias de que
a sua «menina» ficará melhor a dormir uma noite descansada no «berçário».
«Coitadinha», murmuram as senhoras, e «até corta o coração», embora eu
veja bem pelo brilhozinho nos olhos delas que já estão a saborear aquilo
que as fez cá vir – uma espreitadela atrás da cortina do desespero, do horror,
da desesperança, para terem a satisfação de a correrem outra vez e
manterem a sua mácula longe dos limites seguros das suas vidas regaladas.
Só lhes desejo uma dança bem longa com o senhor Snow.
O baile já vai adiantado quando reparo em Felicity e Ann a avançarem
para mim no meio da multidão. A senhora Worthington veio acompanhá-
las, mas já está entretida a conversar com o médico diretor do hospital, o
Dr. Percy Smith.
– Gemma! Oh, o que aconteceu aqui? – pergunta Felicity ao ver a minha
luva manchada de sangue.
– A Nell Hawkins mordeu-me.
– Que horror – diz Ann.
– A professora McCleethy já cá esteve hoje. A Nell está completamente
transtornada, mas sabe onde se encontra o Templo e, esta noite, vai revelar-
mo.
– Se for de fiar – diz Ann.
– Sim – admito. – Se for.
De repente, vejo Tom a meu lado. A mexer na gravata com nervoso
miudinho.
– Creio que está a correr bastante bem, não te parece?
– É o melhor baile em que já estive – diz Ann. É o único baile onde
jamais esteve, mas agora não parece valer a pena falar nisso.
– Espero bem que a atuação desta noite se revele satisfatória – diz Tom, a
olhar na direção do Dr. Smith. – Mandei alguns doentes prepararem um
pequeno programa de entretenimento para esta noite.
– Estou certa de que será encantador para todos – diz Ann, como se fosse
questão de suma importância.
– Obrigado, menina Bradshaw, é muitíssimo atenciosa. – Tom faz um
sorriso genuíno.
– De todo – diz Ann antes de fazer um olhar anelante na direção da pista
de dança.
Felicity dá-me um beliscão. Depois tossica delicadamente para dentro de
um lencinho, mas eu sei que está a tentar não se rir desta conversa
desamparada. Vá lá, Tom, peço eu em silêncio. Convida-a para dançar.
Tom faz uma vénia a Ann.
– Faço votos de que tenha um serão agradável – diz, e vai-se embora.
Vê-se o desapontamento na cara de Ann, e depois o choque.
– Ela está cá! – sussurra ela.
– Quem?
Ann abre bem o leque. Atrás dessa proteção, ela aponta para o outro lado
do salão. Eu só vejo o senhor Snow a dançar a valsa com uma senhora
Sommers radiante, mas depois os meus olhos encontram algo que não me é
estranho. Não a reconheço de imediato, com um vestido claro cor de
alfazema e o pescoço desnudado.
É a professora McCleethy. Chegou.
– O que havemos de fazer? – pergunta Felicity. Eu lembro-me do bilhete
da professora Moore e respondo:
– Não a podemos deixar chegar à Nell, custe o que custar.
A orquestra parou de tocar e os candeeiros baixam até ficar uma radiância
agradável. As pessoas saem da pista aos pares, passam às laterais do salão.
Tom vai para o centro. Vai passar os dedos pelo cabelo – um tique nervoso
– mas lembra-se das luvas e da brilhantina e deixa-se disso. Ouço pigarrear
excessivamente. Até fico ansiosa por ele. Finalmente, recupera a voz.
– Senhoras e senhores, um momento da vossa atenção. Obrigado por
terem aparecido numa noite tão fria. Em agradecimento, os artistas do Real
Hospital de Bethlem prepararam uma pequena atuação. Vamos então...
bem... ver os artistas de Bethlem.
Depois desta saída airosa, Tom retira-se ao som dos aplausos da praxe.
Descubro que perdi a professora McCleethy na multidão. Sinto um terror
frio a subir-me devagar pela espinha.
– Perdi a professora McCleethy – sussurro para Felicity. – Estás a vê-la?
Felicity estica bem o pescoço.
– Não. Aonde é que vais?
– À procura dela – respondo, e esgueiro-me a coberto da multidão.
A senhora Sommers está a martelar no piano e eu vou silenciosa como
nevoeiro pelo salão fora, em busca da professora McCleethy. É algo penoso
ouvir a senhora Sommers a tocar, mas a multidão bate palmas mesmo
assim. Ela levanta-se algo trémula depois, a fazer vénias e a sorrir, a mão a
tapar a boca. Quando começa a querer arrancar o cabelo, Tom fá-la sentar
com amabilidade. O esquisito senhor Snow declama um monólogo do
Conto de Inverno de Shakespeare. Tem uma voz treinada para o palco e
seria impressionante se eu me conseguisse esquecer da atuação que teve
para mim ao princípio da tarde.
Já passei por metade da multidão mas não consegui lobrigar a professora
McCleethy outra vez.
Nell Hawkins é apresentada. Trajada no seu melhor, o cabelo apanhado e
preso na nuca, parece uma bonequinha. Bonita, como a rapariga risonha que
tenho visto nas minhas visões. O raminho de flores está preso na camisa
dela. Quase parece maior do que ela.
Nell está de pé a olhar para a multidão até começarem a murmurar,
confusos: O que é que ela está a fazer? Isto faz parte da atuação?
A sua voz, feérica como uma agulha a arranhar o disco no fonógrafo, faz-
se ouvir.
– O João e a Maria foram os dois passear, para água ir buscar. O João
caiu, a cabeça partiu, e a Maria foi ao mar.
Ouve-se uns risinhos baixos e educados pelo salão, mas eu ainda posso
desatar a chorar. Ela prometeu-me, e agora sei que a promessa não é mais
do que outra ilusão concebida pela sua mente perturbada. Ela não sabe onde
encontrar o Templo. Ela é uma rapariga louca, coitada, e só me apetece
chorar por nós duas.
Nell começa a ficar animada, arrebatada. É como se fosse uma rapariga
diferente.
– Aonde havemos de ir, donzelas? Aonde havemos de ir? Têm de sair do
jardim. Deixaram-no para trás com uma despedida triste. Rio abaixo por
obséquio da górgone, passando as garras das ninfas escorregadias e luzidias.
Pela bruma dourada da magia. Conheçam o povo da linda Floresta das
Luzes. As setas, as setas, devem usá-las bem e com sensatez. Mas guardem
uma. Guardem uma para mim. Pois eu precisarei dela.
Uma senhora a meu lado vira-se para o marido.
– Isto é de Pinafore? – pergunta, confusa, a referir-se a uma opereta de
Gilbert & Sullivan.
Eu estou ao rubro. Ela sabe! Encontrou uma maneira engenhosa de
revelar o local do Templo. Pois quem, tirando nós raparigas, pode
compreender aquela algaraviada? A professora McCleethy sai de trás de um
pilar, vejo-lhe o lado esquerdo, o direito escondido em sombras. Também
está a escutar com toda a atenção.
– Oferece esperança aos Intocáveis, pois precisam muito dela. Continua a
avançar, muito além das flores de lótus. Segue o caminho. Sim, não saiam
do caminho, donzelas. Pois elas querem desviá-las, transviá-las, com falsas
promessas. Cautela com os Guerreiros da Papoila. Os Guerreiros da Papoila
roubam-lhes a força. Querem devorá-las. Devorar, devorar!
Com isto, toda a gente se ri. Há vários doentes a repetirem «devorar,
devorar» para se divertirem. São como galinhas a cacarejarem até as
enfermeiras os mandarem calar outra vez. Tenho os pelinhos da nuca todos
arrepiados. É como se Nell fizesse uma pantomina só para mim, falasse
num código que eu tenho de decifrar – ou então entregou-se à loucura total.
– Não saiam do caminho, pois é difícil encontrá-lo outra vez caso se
percam. E elas hão de levar a canção até ao rochedo. Não deixem a canção
morrer. Cuidado com a beleza. A beleza tem de atravessar. Há sombras
negras de espíritos. Logo além das Fronteiras, onde fica a árvore solitária e
o céu se transforma em sangue...
Algumas senhoras abanam os leques, incomodadas pela simples menção
do sangue.
– ...nas Invernias congeminam e intrigam com Circe. Não hão de
descansar até levantar um exército e os reinos forem deles para governar.
Há agitação nas gentes, como que a indicar que Nell já abusou do tempo.
Tom avança para a frente. Não! Enquanto ela não me disser onde encontrar
o Templo, não! Tom já lá está.
– Obrigado, menina Hawkins. E agora...
Nell não se senta. Fica mais agitada.
– Ela quer entrar! Ela encontrou-me e não consigo travá-la!
– Senhora Enfermeira, se não se importa...
– Vai onde ninguém quer ir, onde é proibido, oferecer esperança... O João
e a Maria foram os dois passear, o mar, o mar, veio do mar... Vai onde a
escuridão esconde um espelho de água. Enfrenta o medo e prende a magia
só a ti!
– Vamos embora, menina Hawkins – diz a enfermeira, e agarra-a bem.
Nell não arreda. Debate-se com a enfermeira numa ferocidade brutal. A
camisa rasga-se pela costura do braço e a manga fica inteira na mão da
enfermeira. A multidão exclama em uníssono. Nell está fora de si.
– Ela quer usar-me para o encontrar, Dama Esperança! Há de usar-nos às
duas, e eu ficarei perdida, perdida para sempre! Não a deixes levar-me! Não
hesites! Dá-me a liberdade, Dama Esperança! Dá-me a liberdade!
Apareceram dois auxiliares encorpados com uma camisa-de-forças.
– Venha connosco, menina. Não arranje problemas.
Nell grita e dá pontapés, mostra aquela força surpreendente outra vez,
mas não consegue impedi-los. Um prende-lhe o pescoço esguio no gancho
de um braço robusto, e o outro obriga as mãos delirantes de Nell a entrarem
na camisa-de-forças e amarra as fitas das costas. O corpo dela soçobra de
encontro aos homens, que a levam, meio ao colo, meio arrastada, inerte, até
não se ouvir mais do que os seus gemidos e o baque surdo dos saltos dos
sapatos no chão.
A multidão não se contém, chocada com o espetáculo. Tom manda os
músicos retomarem. A música consegue sossegar o salão, e não tarda a
haver almas corajosas na pista de dança. Eu estou a tremer de corpo inteiro.
Nell corre perigo e tenho de a salvar. Abro caminho até Felicity e Ann.
– Tenho de me esgueirar daqui para encontrar a Nell – digo.
– O que queria ela dizer com «Cautela com os Guerreiros da Papoila»? –
pergunta Ann.
– Parecia loucura – acrescenta Felicity – o que te parece a ti?
– Parece-me que era código para nós, para encontrarmos o Templo –
respondo. – E tenho a certeza de que a professora McCleethy também
estava à escuta.
Os olhos de Felicity varrem a multidão.
– Onde é que ela está?
A professora McCleethy já não está ao pé do pilar. Também não está na
pista de dança. Desapareceu. Felicity olha para mim de olhos arregalados.
– Vai ter com ela imediatamente!
Saio do salão o mais depressa que posso, desato a correr para a ala
feminina. Tenho de chegar a ela antes que a professora McCleethy consiga.
Ela encontrou-me! Deveras. Pois não estou disposta a deixá-la levar-te,
Nell. Não te aflijas.
O corredor está apinhado com idas e vindas das enfermeiras. Quando sai
a última, agarro bem nas saias e corro para o quarto de Nell o mais rápido
que posso.
Nell está sentada a um canto. Tiraram-lhe a camisa-de-forças. O bonito
ramo de flores está todo estragado, as pétalas despedaçadas e esmagadas.
Nell balouça o corpo para a frente e para trás, bate ligeiramente com a
cabeça na parede de cada vez. Pego-lhe nas mãos.
– Menina Hawkins, é Gemma Doyle. Nell, não temos muito tempo.
Preciso de saber o local onde fica o Templo. A Nell ia dizer quando a
tiraram de lá. Agora está a salvo. Pode contar-me.
Vejo começar a correr-lhe do canto da boca um fio de saliva. Há um odor
a fruta demasiado madura a toldar o fôlego que lhe sai às arrancadas.
Deram-lhe qualquer coisa para a acalmar.
– Nell, se não me disser como encontrar o Templo, receio bem que
estejamos perdidas. Circe há de encontrá-lo antes de nós, e não se sabe o
que poderá acontecer. Ela ainda fica a governar os reinos. Ela ainda pode
fazer isto a outra rapariga, e mais outra.
Muito longe atrás de nós, a música muda de ritmo quando começa outra
dança. Não faço ideia de quanto tempo posso estar ausente antes de se
lançarem à minha procura.
– Ela nunca há de parar – A voz rouca de Nell arranha o silêncio. –
Nunca. Nunca. Nunca.
– Então temos de ser nós a travá-la – digo eu. – Por favor. Por favor,
ajude-me.
– É a ti que ela quer, é a ti que ela sempre quis – diz ela em voz arrastada.
– Ela há de obrigar-me a dizer-lhe onde encontrar o Templo, assim como
me obrigou a dizer-lhe onde te encontrar a ti.
– O que quer dizer com isso?
Ouço um som qualquer que me deixa alerta. Passos no corredor. Mais
perto. Vou à porta, espreitar para fora. Vem aí alguém. Alguém num manto
verde-escuro. Vai parando para espreitar cada quarto da galeria. Fecho a
porta com todo o cuidado.
– Nell – digo, com o coração descompassado. – Temos de nos esconder.
– Que linda falua quer lá vem, lá vem... que vem de Belém, de Belém.
– Chiu, Nell. Tem de estar caladinha. Ande, vamos, esconda-se debaixo
da cama.
Nell é pequenina, mas está pesada do remédio que lhe deram, é difícil
pegar-lhe. Caímos no chão juntas. Com esforço, consigo empurrá-la para
debaixo da cama, e depois arrasto-me também para lá. Os passos detêm-se à
porta de Nell. Tenho a mão sobre a boca dela quando a porta se abre. Não
sei de que é que tenho mais medo, de Nell desatar a falar de repente e
revelar o nosso esconderijo, ou de ser o bater descompassado do meu
coração a denunciar-nos. Ouve-se sussurrar às escuras.
– Nell?
Nell fica muito hirta contra o meu corpo. Ouve-se o sussurro outra vez.
– Nell, querida, estás aqui?
Vejo a bainha do manto verde. Por baixo, os atacadores delicados de
botins engraxados e lustrosos. Tenho a certeza de que poderia ver o meu
próprio medo refletido naquele lustro. Os botins aproximam-se. Sustenho o
fôlego; continuo com a mão sobre a boca aberta de Nell, e a saliva molha-
me.
A meu lado, Nell está tão sossegada que me ocorre ter morrido. Os botins
viram-se para longe de nós, e a porta fecha-se com um estalido. Saio de
debaixo da cama e puxo Nell atrás de mim. Nell fecha a mão sobre o meu
pulso. As pálpebras ameaçam fechar-se; os lábios apertam-se num ricto que
só deixa cinco palavras escaparem.
– Vê o que eu vejo.
Caímos depressa e violentamente numa visão. Mas a visão não é a minha.
É de Nell. Eu vejo o que ela vê, sinto o que ela sente. Estamos a correr
pelos reinos. A erva lambe-nos os tornozelos. Mas está a acontecer muito
depressa. A mente de Nell é um emaranhado, não consigo dar sentido ao
que estou a presenciar. Rosas a empurrarem muro acima. Barro encarnado
na pele. A mulher de verde, a segurar bem na mão de Nell, as duas
debruçadas num poço fundo e límpido.
E estou a cair para trás nessa água.
Não consigo respirar. Estou a sufocar. Saio da visão e dou com a mão de
Nell fechada no meu pescoço. Tem os olhos fechados. Não me está a ver,
não parece saber o que está a fazer. Frenética, tento arrancar a mão, mas não
mexe.
– Nell – digo em voz sufocada. – Nell... por favor.
Ela solta-me, e caio no chão, a sorver ar, a cabeça dói-me daquela
brutalidade súbita. Nell tombou na loucura outra vez, mas o rosto está
molhado das lágrimas.
– Não hesites, Dama Esperança. Dá-me a liberdade.
TRINTA E CINCO

É véspera de Natal. Em toda a Londres, as lojas e os pubs estão cheios de


gente animada, as ruas apinhadas de pessoas que levam para casa uma
árvore cheirosa e outras que escolhem um ganso gordo para a ceia. Eu devia
estar cheia de espírito natalício e do ímpeto de espalhar a boa vontade aos
meus próximos. Antes pelo contrário, estou a contemplar o quebra-cabeças
que Nell Hawkins me deixou para encaixar.
Vai onde ninguém quer ir, onde é proibido, oferecer esperança. Vai onde
a escuridão esconde um espelho de água. Enfrenta o medo e vincula a
magia só a ti! Não faz sentido nenhum. Sigam o caminho. Pois elas querem
desviá-las, transviá-las, com falsas promessas. Quem? Quais falsas
promessas? É tudo um enigma dentro de outro enigma e outro e mais outro.
Tenho o amuleto para me orientar, mas não sei onde encontrar o Templo, e
sem isso não tenho nada. Fico tão frustrada que só me apetece atirar a bacia
pelo quarto fora.
Para piorar as coisas, o meu pai não está em casa. Não veio para casa
depois de sair para o clube esta noite. Eu sou a única que parece
minimamente ralada com isto. A avó está ocupada a vociferar ordens aos
criados para o nosso jantar de Natal. Na cozinha está uma revoada de
cozinheiras a tratar de pudins e molhos e faisão com maçãs.
– Ele não esteve presente ao pequeno-almoço? – pergunto.
– Não – responde a avó, e passa por mim na firme intenção de berrar com
a cozinheira. – Creio que vamos omitir o prato da sopa. Ninguém se
importa, seja como for.
– Mas e se ele estiver combalido? – torno a perguntar.
– Gemma, se faz favor! senhora Jones, a seda encarnada deve bastar,
parece-me.

A ceia de Natal começa e acaba sem sinal do meu pai. Nós três começamos
a abrir as prendas na saleta, a fingir que não se passa nada.
– Ah – diz Tom, a desembrulhar um cachecol de lã comprido. – Perfeito.
Obrigado, minha avó.
– Apraz-me que goste. Gemma, porque não abre a sua?
Começo a abrir a prenda da avó. Talvez seja um bonito par de luvas, ou
uma pulseira. Lá dentro, estão lenços bordados com o meu monograma. São
bastante bonitos.
– Obrigada – digo eu.
– As prendas práticas são sempre as melhores, parece-me – observa a
avó, e dá uma fungadela.
A abertura das prendas termina em minutos. Além dos lencinhos, recebo
um espelho de mão e uma caixinha de chocolates da avó, e do Tom um belo
quebra-nozes encarnado que muito me diverte. Dei um xaile à avó e ao Tom
uma caveira para enfeitar o consultório dele.
– Vou chamar-lhe Yorick – diz Tom, encantado. Agrada-me que ele tenha
ficado contente. As prendas do meu pai continuam debaixo da árvore, por
abrir.
– Thomas – diz a avó. – Talvez o menino deva ir ao clube perguntar por
ele. Seja discreto.
– Mas eu tenho de ir ao Ateneu esta noite, sou convidado de Simon
Middleton – protesta Tom.
– O pai está desaparecido – digo eu.
– Não está desaparecido. De certeza que vai chegar a casa a qualquer
momento, provavelmente carregado de prendas que foi buscar a algum lado
num capricho. Lembras-te daquela vez em que ele chegou na manhã do dia
de Natal, como se fosse o próprio São Nicolau, montado num elefante?
– Sim – digo, a sorrir com a recordação. Ele trouxe-me o meu primeiro
sari, e eu e Tom bebemos leite de coco em tigelas como se fossemos tigres.
– Ele há de vir para casa. Atenta no que te digo. Não aparece sempre?
– Tens razão, claro – digo, mas porque quero desesperadamente crer
nele.

A casa fica em silêncio, só se ouvem os sons abafados dos lumes a


crepitarem e dos relógios a contarem os minutos, os candeeiros reduzidos a
murmúrios cintilantes. Como já passa das onze da noite, os criados
retiraram-se para os seus quartos. A avó está na sua cama, confiante de que
também eu estou deitada em segurança também. Mas não consigo dormir.
Sem o pai aqui, não. Quero que ele venha para casa, com ou sem elefante.
Assim, vou sentar-me na saleta, à espera.
Kartik entra ainda com sobretudo e botas. Está ofegante.
– Kartik! Onde tem estado? O que se passa?
– O seu irmão está em casa? – Kartik parece deveras nervoso.
– Não. Saiu. Porque pergunta?
– É imperativo que eu fale com o seu irmão.
Endireito-me toda até ficar em pé.
– Já lhe disse que ele não está em casa. Pode contar-me a mim.
Kartik pega num ferro e começa a bater na lenha quebradiça, a qual ganha
chama. Kartik não diz nada, e eu fico a imaginar o pior.
– Oh, não. É o meu pai? Sabe onde é que ele está? – Kartik faz que sim
com a cabeça. – Onde?
Kartik não consegue encarar-me.
– Bluegate Fields.
– Bluegate Fields? – repito – Onde fica?
– Fica no fim do mundo, é um sítio onde só há ladrões, drogados,
assassinos, e afins, lamento dizer.
– Mas o meu pai... porque é que ele lá está?
Mais uma vez, Kartik não consegue olhar para mim.
– Ele está viciado em ópio. Está no Chin-Chin, um antro de droga.
Não é verdade. Não pode ser verdade. Eu curei o meu pai. Ele tem
andado melhor desde que fiz magia, não tem pedido uma única gota de
láudano.
– Como é que sabe isso?
– Porque me mandou levá-lo lá ontem à noite e ainda não de lá saiu.
Sinto um aperto no coração.
– O meu irmão está com o senhor Middleton no clube dele.
– Temos de o mandar vir.
– Não! O escândalo. Seria uma humilhação para o Tom.
– Sim, não queremos importunar o Muito Honorável Simon Middleton.
– O senhor é demasiado atrevido – digo eu.
– E a menina está a mentir de não querer que o Tom passe pela
humilhação. Está é a salvar o seu próprio couro.
A verdade nua e crua fere-me, e odeio Kartik um pouco por ma dizer.
– Não podemos fazer mais além de esperar que o seu irmão regresse – diz
Kartik.
– Quer dizer que deixamos o meu pai naquele sítio?
– Não temos alternativa.
– Ele é tudo o que eu tenho – suplico-lhe. – Leve-me lá.
Kartik abana a cabeça.
– Está fora de questão. Bluegate Fields não é sítio onde se leve uma
senhora.
– Eu vou quer o senhor me leve, quer não.
Avanço rapidamente para a porta. Kartik pega-me num braço.
– Sabe o que lhe pode acontecer se lá for?
– Terei de arriscar. – Eu e Kartik estamos como adversários. – Não o
posso deixar lá, Kartik.
– Muito bem – diz ele, a transigir. Depois lança-me um olhar avaliador de
alto a baixo. – Terá de levar vestida roupa do seu irmão.
– A que se refere?
– Se tem mesmo de ser, terá de ir vestida de homem.
Corro escada acima, na esperança de não acordar a avó nem os criados. A
roupa do Tom é um mistério para mim. Com alguma dificuldade, lá me
consigo despir, tiro as muitas camadas e o corpete. Até respiro de alívio
quando me vejo livre dele. Enfio as calças do Tom por cima das meias de lã
e escolho camisa e casaco. Ficam-me um pouco justos. Sou alta mas não
sou magra como ele é. Não obstante, terá de servir. Mais difícil é apanhar o
cabelo dentro de um chapéu, pois ameaça fazer-mo saltar da cabeça. Para
calçar os sapatos do Tom, preciso de forrar as biqueiras com lenços, pois ele
tem uns bons quatro centímetros a mais do que eu. Fico com um andar de
bêbedo.
– Que tal estou? – pergunto, já a descer a escada. Kartik zomba de mim.
– Como alguém que vai ser assediada por todos os meliantes de Londres
Oriental. É uma péssima ideia. Vamos esperar que o seu irmão regresse.
– Não vou deixar o meu pai à morte num antro de ópio – digo eu. – Traga
a carruagem.

Começou a cair uma neve suave, que cobre a crina da Ginger com uma
camada fina como pó cinzento quando entramos devagar nos bairros pobres
de Londres Oriental. Está uma noite muda e fria. Até custa a respirar. Becos
e vielas estreitas e imundas serpenteiam entre prédios decrépitos que
parecem curvados como mendigos. Dos telhados ensopados irrompem
chaminés raquíticas, braços metálicos e tortos a pedir esmola ao céu,
esperança, uma espécie de conforto de que esta vida não resuma tudo o que
jamais conhecerão.
– Puxe o chapéu mais para baixo, a cobrir a cara – avisa Kartik. Mesmo
de noite e com este frio, as ruas estão cheias de gente bêbeda, barulhenta,
malcriada. Três homens à porta de uma casa de genebra apreciam-me a
roupa boa. Kartik está sempre a meu lado.
– Não olhe para eles – diz Kartik. – Não se deixe interpelar por ninguém.
Um grupo de maltrapilhos rodeia-nos, a pedinchar. Um tem uma irmã
bebé doente em casa; outro oferece-se para nos engraxar as botas por um
xelim. Outro ainda, um rapaz que não pode ter mais de onze anos, sabe de
um sítio onde podemos ir e ele será «bom» para mim o tempo que eu quiser.
Não sorri nem deixa transparecer emoção alguma quando diz isto. Fala com
um tom casual como o do rapaz que se oferece para me limpar as botas.
Kartik tira seis moedas da algibeira, ficam a reluzir na lã preta da mão
enluvada. Os rapazes arregalam os olhos na obscuridade.
– Três xelins para quem tomar conta da carruagem e da égua – diz ele.
Juntam-se logo três rapazes, a prometerem toda a espécie de estragos a
quem importunar a carruagem de tão distinto cavalheiro.
– E três para quem nos acompanhar ao Chin-Chin sem incidentes –
continua Kartik.
Silêncio. Um rapaz imundo de roupa esfarrapada e sapatos cambados e
esburacados pega nas últimas moedas.
– Ê conheço o Chin – diz. Os outros rapazes olham para ele com inveja e
desdém.
– Por aqui, ‘sores – diz ele, e leva-nos por um labirinto de vielas húmidas
com o vento a soprar das docas ali perto. Ratazanas gordas correm pelo
empedrado, metem o focinho em sabe-se lá o quê na berma da estrada.
Apesar do vento agreste e da hora tardia, há gente na rua. Ainda é noite de
Natal, e encheram as casas de genebra. Nas ruas estão alguns a caírem de
bêbedos.
– É ‘qui memo – diz o rapaz quando chegamos a um casebre dentro de
um patiozinho. O rapaz empurra a porta decrépita e acompanha-nos por
uma escada íngreme e escura acima que tresanda a urina e humidade.
Tropeço em qualquer coisa e apercebo-me de que é o corpo de alguém.
– É só o velho Jim – diz o rapaz, imperturbável. – ‘Tá sempre cá.
No segundo andar, chegamos a outra porta.
– Chigámos. Chin-Chin. Dê cá ‘ma pinga pelo trabalho, ‘tá bem, chefe? –
pede o rapaz, a estender a mão na esperança de ganhar mais dinheiro.
Ponho mais dois xelins na palma da mão dele.
– Feliz Natal, chefe. – Ele desaparece e eu bato à porta cheia de
imundície. Abre-se a ranger e deparo com um velho chinês. As olheiras nos
olhos cavos fazem-no parecer mais aparição do que homem de carne e osso,
mas depois sorri e mostra uma mão-cheia de dentes manchados como fruta
podre. Faz-nos sinal para irmos atrás dele para dentro do espaço exíguo e de
teto baixo. Há corpos para onde quer que a minha vista alcance. Deitados
por todo o lado, as pálpebras a mexerem-se; uns vão palrando em frases
compridas que não significam nada. Vão fazendo pausas e ocasionalmente
soltam uma galhofa fraca que me enregela a alma de tão vazia que soa. Um
marujo, a pele da cor da tinta-da-china, mexe a cabeça a dormitar a um
canto. Ao lado dele está um homem com ar de quem nunca mais vai
acordar.
Os fumos do ópio fazem-me lacrimejar os olhos e arder a garganta. A este
ritmo, será um portento conseguirmos sair daqui sem sucumbirmos também
nós à droga. Levo o lenço à boca para não me engasgar.
– Cuidado onde põe os pés – avisa Kartik. Há vários cavalheiros com ar
distinto à roda de uma tigela de ópio num estupor, de boca escancarada.
Acima deles, passa uma corda pela divisão toda, com trapos puídos
pendurados a formarem uma cortina podre que cheira a leite azedo.
– Em que navio está, meu rapaz? – surge uma voz da escuridão. Aparece
uma cara no brilho de uma vela. O homem é indiano.
– Não sou embarcadiço. Nem rapaz – responde Kartik.
O marujo indiano ri-se disto. Tem uma cicatriz feia que lhe sai do canto
do olho e lhe corta a face. Até estremeço a pensar em como é que ele a
arranjou ou no que terá acontecido ao outro homem. O marujo leva os
dedos ao punhal que tem na cinta.
– És sabujo treinado para inglês ver? – Ele aponta para mim com o
punhal. Depois imita um cão a ladrar e desata em mais galhofa e depois um
ataque de tosse que lhe deixa a mão cheia de sangue.
– Os ingleses. – Cospe. – Dão-nos esta vida. Somos sabujos deles, eu e
tu. Cães. O que prometem não te podes fiar. Mas o ópio do Chin-Chin faz
do mundo inteiro um doce. Fuma, meu amigo, e esqueces-te do que eles
fazem. Esqueces-te que és um cão. Que serás sempre um cão.
Ele aponta o punhal à bola preta e pegajosa do ópio, pronto a transformar
os problemas em fumo e a deixar-se ir num olvido em que não é subalterno
de ninguém. Eu e Kartik continuamos pela névoa de fumo. O chinês leva-
nos a uma sala pequenina e manda-nos esperar um pouco enquanto
desaparece atrás dos trapos que pendem sobre a porta. Kartik continua de
maxilar retesado.
– O que aquele homem disse... – Calo-me, não sei bem como prosseguir.
– O que quero dizer é que espero que o Kartik saiba que eu não penso
assim.
Vejo o rosto de Kartik empedernir.
– Eu não sou como aqueles homens. Eu sou Rakshana. Uma casta
superior.
– Mas também é indiano. São seus compatriotas, não são?
Kartik abana a cabeça.
– É a sina que determina a casta. Deve-se aceitar e viver consoante as
regras.
– Não pode crer mesmo nisso!
– Mas creio. Que o infortúnio do homem é não saber aceitar a sua casta, a
sua sina.
Eu sei que os indianos identificam a casta com uma marca na testa para
toda a gente ver. Eu sei que, em Inglaterra, temos o nosso próprio sistema
de castas inconfesso. Um lavrador nunca terá assento no Parlamento. Uma
mulher também não. Não creio que eu jamais tenha questionado estas
coisas até este momento.
– E a vontade e o desejo? E se alguém quiser mudar as coisas?
Kartik continua de olho na sala.
– Não se pode mudar a casta em que se nasceu. Não se pode ir contra o
próprio destino.
– Isso significa que não há esperança de vida melhor. É uma armadilha.
– É assim que a menina vê as coisas – diz ele baixinho.
– A que se refere?
– Pode ser um alívio seguir o caminho que nos foi destinado, saber o
rumo e desempenhar o nosso papel.
– Mas como é que se pode ter a certeza de seguir o rumo certo? E se não
houver destino, apenas escolha?
– Então eu não escolho viver sem destino – diz ele com um ligeiro
sorriso. Parece-me tão confiante, e eu não sinto nada além de incerteza.
– O Kartik alguma vez tem dúvidas? A respeito de alguma coisa?
O sorriso dele esfuma-se.
– Sim.
Gostaria muito de saber quais são, mas o chinês regressa e interrompe-
nos o debate. Vamos atrás dele, afastamos os trapos fétidos do caminho. Ele
aponta para um inglês gordo com braços do tamanho de patas de elefante.
– Estamos à procura do senhor Chin-Chin – diz Kartik.
– ‘Tá memo à sua frente – diz o inglês. – Aceitei uma oferta do dono
original há três anos. Há quem me trate por Chin. Há quem me trate por tio
Billy. Vieram provar a felicidade?
Numa mesa baixa está a tigela de ópio. Chin mexe a papa preta e espessa.
Tira uma bolinha pegajosa como alcatrão e empurra-a para baixo no
cachimbo de madeira. Horrorizada, vejo que ele tem a aliança de casamento
de meu pai numa corrente ao pescoço.
– Onde arranjou essa aliança? – pergunto num sussurro rouco que espero
sirva de voz de rapaz.
– Benito, né? Foi um freguês. Troca justa pelo mê ópio.
– Ainda cá está? Esse homem?
– Sê lá. Nã tenho nhuma pensão, poi’ não, chefe?
– Chin... – A voz, urgente mas rouca, sai do outro lado da cortina
esfarrapada. Aparece uma mão. A tremer em busca do cachimbo. Há uma
bela corrente de relógio pendurada nos dedos magros. – Chin, toma... Dá-
me mais...
É o meu pai.
Corro a cortina imunda. O meu pai está deitado no colchão manchado e
roto apenas de calças e camisa. O casaco e o sobretudo enfeitam uma
mulher que está deitada por cima dele, a ressonar ligeiramente. A gravata
fina e as botas desapareceram – roubadas ou trocadas. Não sei qual. O fedor
a urina é esmagador e tenho de fazer um grande esforço para não vomitar.
– Pai.
Na luz fosca, ele tenta ver quem está a falar. Tem os olhos raiados de
sangue, as pupilas grandes e vítreas.
– Olá – diz ele, a sorrir como num sonho. A mim dói-me a garganta de
tudo o que estou a reprimir.
– Pai, são horas de ir para casa.
– Só mais uma. Certinho. Depois podemos ir...
Chin pega na corrente do relógio e guarda-a na algibeira. Depois passa o
cachimbo ao meu pai.
– Não lhe dê mais – suplico eu.
Tento tirar-lhe o cachimbo, mas o meu pai arranca-mo da mão e dá-me
um empurrão. Kartik ajuda-me a levantar.
– Chin, lume. Bom homem...
Chin baixa a vela até ao cachimbo. O meu pai puxa o fumo. Os olhos
tremem-lhe e sai uma lágrima que faz um rasto lento pela face não
barbeada.
– Deixa-me, pequenina.
Não aguento nem mais um momento. Com toda a força que consigo
reunir, tiro a mulher de cima do meu pai e puxo-o até ficar de pé.
Cambaleamos os dois para trás. Chin ri-se, como se assistisse a uma luta de
galos ou qualquer outro desporto. Kartik pega no outro braço do meu pai e,
juntos, conseguimos levá-lo pela multidão de opiómanos. Tenho tanta
vergonha de que ele veja o meu pai neste estado. Apetece-me chorar mas
tenho medo de, se começar, nunca mais parar.
Vamos cambaleando escada abaixo mas conseguimos chegar à carruagem
sem mais percalços. Os rapazes cumpriram a palavra dada. Agora já são
cerca de vinte crianças, que saem todas dos assentos da carruagem e da
garupa da Ginger. O ar frio da noite, há pouco tão agressivo, é agora um
bálsamo depois dos malditos fumos do ópio. Respiro em golfadas ávidas
enquanto ajudo Kartik a enfiar o meu pai na carruagem. As calças do Tom
ficam presas na porta e rasgam-se pela costura. Com isto, também eu fico
despedaçada. Tudo o que tenho reprimido – desapontamento, solidão,
medo, e a tristeza esmagadora de tudo – me assalta numa torrente de
lágrimas.
– Gemma?
– Não... olhe... para... mim – digo a soluçar, de rosto virado para o aço
frio da carruagem. – É tudo... horrível... e a culpa... é minha.
– A culpa não é sua.
– Sim, sim, é! Se eu não fosse quem sou, a minha mãe não teria morrido.
Ele nunca teria ficado assim! Acabei-lhe com a felicidade! E... – Aqui,
calo-me.
– E...?
– Usei a magia para tentar curá-lo. – Tenho medo de que Kartik fique
zangado, mas ele não diz nada. – Não aguentava vê-lo sofrer daquela
maneira. De que serve este poder todo se não posso fazer nada com ele?
Com isto, desato a chorar outra vez. Para grande surpresa minha, Kartik
limpa-me as lágrimas com a mão, e murmura:
– Meraa mitra yahaan aaiye.
Sei muito pouco da língua hindi, mas o suficiente para saber que ele
disse: Vem cá minha amiga.
– Nunca conheci uma rapariga mais corajosa – diz ele.
Deixa-me encostar à carruagem um momento até as lágrimas pararem, e
sinto o meu corpo como acontece sempre que choro bastante – calmo e
limpo. Do outro lado do Tamisa, os carrilhões do Big Ben dão as duas da
manhã.
Kartik ajuda-me a sentar ao lado do meu pai, adormecido.
– Feliz Natal, menina Doyle.

Quando chegamos a casa, os candeeiros estão acesos, o que nunca é bom


sinal. Tom está à espera na salinha. Não há como esconder o que acabou de
acontecer.
– Gemma, aonde estiveste a estas desoras? Porque é que estás vestida
com a minha roupa? E o que fizeste às minhas melhores calças?
Kartik entra na sala a apoiar o meu pai o melhor que pode.
– Pai! – exclama Tom, e vê bem o estado meio despido e drogado em que
ele se encontra. – O que aconteceu?
As palavras saem-me numa torrente aterrorizada.
– Encontrámo-lo num antro de ópio. Estava lá há dois dias. Kartik queria
que fosses tu, mas eu não queria causar um escândalo no clube e por isso
fui... fui...
Ao ouvir o alarido, a senhora Jones aparece, com a touca de dormir ainda
na cabeça.
– Passa-se alguma coisa, senhor? – pergunta ela.
– O senhor Doyle está doente – responde Tom.
Os olhos da senhora Jones indicam saber muito bem que é mentira, mas
ela entra em ação de imediato.
– Vou já buscar chá, senhor. Mando chamar o senhor doutor?
– Não! O chá basta, obrigado – diz Tom. Depois lança um olhar duro a
Kartik. – Agora é comigo.
– Sim, senhor – diz Kartik. Por momentos, não sei se devo ir ter com o
meu irmão ou com Kartik. Por fim, vou ajudar Tom e a senhora Jones a
levar o meu pai para a cama. Depois, dispo a roupa do meu irmão, limpo a
porcaria de Londres Oriental que me ficou na pele e visto a minha camisa
de dormir. Encontro Tom sentado na salinha, a olhar para a lareira. Está a
pegar nos gravetos pequenos de mais para servirem de alguma coisa, a
parti-los ao meio e a atirá-los metodicamente para as chamas iradas.
– Lamento, Tom. Eu não sabia o que mais havia de fazer – digo eu.
Espero que ele me descreva como desgracei a minha família e que nunca
mais vou poder sair desta casa.
Acende-se outro graveto. Estala e dissolve-se em cinzas com um silvo.
Não faço ideia do que hei de dizer mais.
– Não o consigo curar – Tom diz tão baixinho que tenho de apurar o
ouvido para apanhar. – Um aluno de Medicina é um homem da ciência.
Tem de saber as respostas. Nem sequer consigo ajudar o meu próprio pai a
conquistar os seus demónios.
Encosto a cabeça à madeira do umbral da porta, algo sólido para me
amparar não vá eu escorregar desta terra e continuar a cair.
– Com o tempo arranjarás maneira. – Quero soar reconfortante. Não
consigo.
– Não. A ciência acabou para mim. Acabou. – Ele deixa cair a cabeça nas
mãos. Ouve-se um ruído sufocado. Está a tentar não chorar, mas não
consegue evitar. Apetece-me correr pelo tapete fora e abraçá-lo com força,
arriscar-me ao desdém.
Antes pelo contrário, giro calmamente a maçaneta da porta e saio, deixo-o
salvar a face e fico a odiar-me por isso.
TRINTA E SEIS

Acordo com o som de carrilhões distantes. Estamos na manhã do dia de


Natal. A casa sossegada como uma morgue. O meu pai e o Tom ainda
dormem depois da nossa longa noite, e a avó preferiu ficar na cama
também. Só eu e os criados estamos a pé.
Visto-me rapidamente e sem barulho e dirijo-me às cavalariças. O sono
ainda se vê em Kartik de uma maneira doce e encantadora.
– Vim pedir desculpas por esta noite, e agradecer ao Kartik por ter
ajudado – digo eu.
– Toda a gente precisa de ajuda de vez em quando – diz ele.
– Toda a gente menos o Kartik.
Ele não responde. Em contrapartida, dá-me uma coisa mal embrulhada
num pedaço de pano.
– Feliz Natal, menina Doyle.
Fico siderada.
– O que é?
– Abra.
Lá dentro está uma faca pequena do tamanho do polegar de um homem.
Acima da lâmina está um totem pequeno e tosco de um homem com muitos
braços e cabeça de búfalo.
– Megh Sambara – explica Kartik. – Os Hindus creem que constitui
proteção contra os inimigos.
– Pensava que o Kartik não tinha lealdade para mais nenhuns costumes
além daqueles dos Rakshana.
Encabulado, Kartik mete as mãos nas algibeiras e começa a balouçar
sobre os calcanhares.
– Era do meu irmão Amar.
– Então não devia ficar sem ele – digo eu, a tentar devolver a faca. Kartik
dá um salto para evitar a lâmina.
– Cuidado. É pequena mas afiada. Pode vir a precisar dela.
Odeio ter de me lembrar do meu objetivo aqui e agora.
– Vou guardá-la sempre comigo. Obrigada.
Vejo outro embrulhinho ao lado dele. Adoraria perguntar se é para a
Emily, mas não consigo.
– Hoje é o baile de Natal da menina Worthington, não é? – pergunta
Kartik, a passar os dedos na massa densa dos seus caracóis.
– Assim é – respondo.
– O que é que se faz nesses bailes? – pergunta ele timidamente.
– Oh – respondo com um suspiro. – Sorri-se muito e fala-se do clima e de
como toda a gente está bonita. Há uma ceia ligeira e bebidas. E a dança,
claro.
– Nunca fui a um baile. Não sei como é que se dança.
– Para um homem, não é difícil ganhar o jeito. A mulher tem de aprender
a fazer ao contrário e a não lhe pisar os pés.
Kartik levanta as mãos como se abraçasse uma parceira imaginária.
– Assim? – E começa a dar voltas.
– Mais devagar. Isso – digo eu.
Kartik fala em voz emproada.
– Ora, Lady Fulana, tem tido muitos pretendentes desde que chegou a
Londres?
– Oh, Lorde Beltrano – replico eu, na mesma voz. – Ora, tenho recebido
tantos cartões de pessoas da melhor espécie que tive de arranjar duas taças
de porcelana para os guardar a todos.
– Duas taças?
– Duas taças.
– Mas que maçada para si e o seu serviço de porcelanas – diz Kartik, a
rir-se. Fica tão amoroso quando se ri.
– Gostaria muito de o ver de casaca preta e gravata branca.
Kartik estaca.
– Parece-lhe que ficaria com ar de cavalheiro distinto?
– Sim.
Ele faz-me uma vénia.
– Posso ter esta dança, menina Doyle?
Eu faço outra vénia.
– Oh, com certeza, Lorde Beltrano.
– Não – diz ele baixinho. – Posso ter esta dança, eu?
Kartik está a convidar-me para dançar. Olho em redor. A casa ainda está
fechada de sono. Até o sol se esconde atrás das nuvens cinzentas dos seus
lençóis. Não se vê vivalma, mas não devem tardar. A minha cabeça
sussurra-me avisos frenéticos: «Não podes. Impróprio. Errado. E se alguém
nos vir? E se o Simon...»
Porém, a minha mão toma a decisão, empurra o frio da manhã até se
juntar à dele.
– Ah, a sua, hum, outra mão deve ficar na minha cintura – digo eu, a
olhar para os nossos pés.
– Aqui? – pergunta ele, a pousar a mão na minha anca.
– Mais acima – digo em voz rouca. A mão dele encontra a minha cintura.
– Isso.
– E a seguir?
– Dançamos – respondo, a respirar superficialmente.
Ele faz-me dar a volta devagar e desajeitadamente, a princípio. Há tanto
espaço entre nós que caberia uma terceira pessoa. Continuo de olhos postos
nos nossos pés a pisarem tão perto uns dos outros, a deixarem marcas na
fina camada de serradura.
– Creio que seria mais fácil se não se afastasse tanto – diz ele.
– É assim que se faz – replico.
Ele puxa-me mais para si, muito mais do que é próprio. Não há mais que
um sussurro de espaço entre o meu peito e o dele. Instintivamente, olho em
redor, mas não há ninguém a ver-nos, só os cavalos. A mão de Kartik desce
da minha cintura e eu fico boquiaberta. A dar voltas e mais voltas, a mão
dele quente nas minhas costas, a outra mão a agarrar bem na minha, sinto-
me tonta de repente.
– Gemma – diz ele, e tenho de levantar a cabeça para ver aqueles
magníficos olhos castanhos. – Tenho uma coisa para lhe dizer...
Não pode dizer. Vai estragar tudo. Afasto-me, levo a mão à barriga para
me equilibrar.
– Sente-se bem? – pergunta Kartik.
Faço um sorriso leve e que sim com a cabeça.
– É o frio – digo. – Talvez seja melhor voltar para dentro.
– Mas primeiro tenho de lhe dizer...
– Há tanto que fazer – digo eu, a interrompê-lo.
– Pois bem – diz ele, e parece-me melindrado. – Não se esqueça da sua
prenda.
Kartik passa-me a faca-amuleto. As nossas mãos tocam-se e, por
momentos, é como se o mundo parasse, e depois os lábios dele, aqueles
lábios quentes e macios, tocam nos meus. É como se eu tivesse sido
apanhada num aguaceiro súbito, esta sensação.
Sinto no estômago como que passarinhos a esvoaçar quando me afasto.
– Não faça isso.
– É porque sou indiano, não é? – pergunta ele.
– Claro que não – respondo. – Nem sequer penso em si como indiano.
Ele fica com ar de quem levou um murro. Depois lança a cabeça para trás
e desata à gargalhada. Não sei o que disse que tivesse tanta graça. Depois
olha-me com tal dureza que o meu coração só pode partir-se.
– Então nem sequer pensa em mim como indiano. Ora que alívio imenso.
– Não... Não era minha intenção.
– Nunca é intenção dos ingleses. – Kartik dirige-se aos estábulos comigo
nos calcanhares.
Nunca me tinha ocorrido do insultuoso que aquilo foi. Tarde de mais,
apercebo-me de que ele tem razão, que no meu coração tenho como dado
adquirido que a minha franqueza com Kartik, a minha maneira de ser...
genuína... se deve ao facto de ele ser indiano e assim nunca poder haver
nada entre nós. Seja o que for que eu disser agora será uma mentira. Fiz
uma trapalhada enorme.
Kartik está a recolher os seus poucos pertences dentro de um bornal.
– Aonde vai?
– Ter com os Rakshana. É altura de reclamar o meu lugar. De começar a
formação e de avançar.
– Não vá, Kartik, por favor. Não quero que vá. – É a coisa mais
verdadeira que já disse o dia todo.
– Por isso tenho pena de si.
Os cavalos acordam. Os criados entraram em ação como pequenas figuras
mecanizadas num relógio de cuco.
– É melhor a menina ir para dentro. Não se importa de fazer o obséquio
de entregar isto à Emily? – pede ele, muito frio, e passa-me a outra prenda,
que se abre um pouco e vejo tratar-se de A Odisseia. – Diga-lhe que
lamento não poder continuar a ensiná-la a ler. Ela terá de arranjar outra
pessoa.
– Kartik – começo eu. Reparo que ele deixou a prenda que eu lhe dei há
meses, encostada à parede. – Não quer levar o bastão de críquete?
– Críquete. Um jogo tão inglês – diz ele. – Adeus, menina Doyle. –
Kartik põe o bornal a tiracolo e afasta-se, rumo à primeira luz fraca da
manhã.
TRINTA E SETE

Chegado o meio-dia, as ruas de Londres são um concerto de carrilhões a


chamarem toda a gente para a missa. Eu, a avó e o Tom sentamo-nos nos
bancos corridos e duros, deixamos as palavras do reverendo banharem-nos.
– «Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu
exatamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera. E
enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino e,
quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore...»
Olho para a igreja. A toda a minha volta, vejo cabeças curvadas em
oração. As pessoas parecem satisfeitas. Felizes. Afinal, estamos no Natal.
Um vitral banhado pela luz mostra um anjo na anunciação. A seus pés,
está ajoelhada Maria, a tremer conforme recebe este recado temeroso
daquela visita celeste. O rosto dela mostra o assombro e o medo pelas
notícias, pela dádiva que ela não pediu mas de que será não obstante
portadora. E eu fico a pensar porque é que não há passagem nenhuma a
descrever a sua dúvida terrível.
– «Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se
muito, e mandou matar todos os meninos que havia em Belém, e em todos
os seus contornos...»
Porque é que não há nenhum painel que mostre mulheres a dizerem, Não,
lamento, mas não quero esta dádiva. Pode ficar com ela. Tenho ovelhas a
pastar e pão a amassar, não tenho vontade nenhuma de ser mensageira
sagrada.
Esse vitral é que me apetecia muito ver.
Um raio de luz passa pelo vidro e, por momentos, o anjo parece
resplandecente como o sol.

Tenho autorização para passar a tarde com Felicity e Ann, de modo a que a
avó e o Tom possam tratar do meu pai. A senhora Worthington está a tratar
dos trajes da pequena Polly, o que deixou Felicity de muito má disposição, a
ombrear com a que eu sinto também. Apenas Ann está a desfrutar do dia. É
o primeiro Natal de que tem memória em que está numa casa a sério com
um baile aonde ir, e está completamente encantada com isso, não nos larga
com perguntas.
– Devo usar flores e pérolas no cabelo? Ou será demasiado gauche?
– Gauche – responde Felicity. – Não sei porque é que fomos escolhidos
para a acolher. Tem parentes mais adequados.
Estou sentada frente à cómoda de Felicity a passar a escova pelo cabelo, a
contar as vezes, e a ver a mágoa nos olhos de Kartik a cada escovadela.
– Sessenta e quatro, sessenta e cinco, sessenta e seis...
– Derretem-se e afadigam-se com ela como se fosse uma princesa que nos
veio visitar – resmunga Felicity.
– É uma menina muito bonita – diz Ann irrefletidamente. – Estava a
pensar em usar perfume. Gemma, será que o Tom considera demasiado
ousado as raparigas usarem perfume?
– Ele sente-se atraído pelo cheiro a estrume – diz Felicity. – Bem podes
chafurdar nos estábulos para atraíres o amor dele em todo o seu esplendor.
– Estás mesmo de mau humor – resmunga Ann.
Não devia ter dançado com ele. Não devia tê-lo deixado beijar-me. Mas
eu queria que ele me beijasse. E depois insultei-o.
– Oh, é tudo uma maçada tão grande – queixa-se Felicity, e avança para a
cama, juncada com meias, sedas, saiotes. Parece que o recheio dos
roupeiros de Felicity está à mostra para o mundo inteiro ver. Contudo, ela
não encontra nada que lhe pareça adequado.
– Não vou – balbucia Felicity. Está petulantemente deitada num canapé
com o roupão vestido, as meias de lã caídas nos tornozelos. Abandonou-se
qualquer arremedo de pudor.
– É o baile da tua mãe – digo eu. – tens de ir. Sessenta e sete, sessenta e
oito...
– Não tenho nada para vestir!
Eu faço um gesto grandiloquente na direção da cama e retomo a
contagem.
– Não vais usar um dos vestidos que a tua mãe mandou fazer para ti em
Paris? – pergunta Ann. Tem um dos vestidos contra o corpo e vira-se para
um lado e para o outro. Depois faz uma vénia ligeira a um acompanhante
imaginário.
– São tão bourgeois – diz Felicity, a resfolegar.
Ann passa os dedos pela seda azul-água, as continhas bordadas no decote
delicado.
– Este a mim parece-me amoroso.
– Então usa-o tu.
Ann tira os dedos como se os tivesse queimado.
– Nem conseguiria caber dentro dele.
Felicity sorri.
– Podias caber se tivesses desistido dos bolinhos ao pequeno-almoço.
– Não faria diferença nenhuma. Eu seria apenas um insulto ao próprio
vestido.
Felicity levanta-se de um salto e com um suspiro que mais parece um
rosnido.
– Porque é que fazes isso?
– Faço o quê? – pergunta Ann.
– Te diminuis sempre em cada oportunidade.
– Estava só a aligeirar as coisas.
– Não estavas nada. Estava, Gemma?
– Oitenta e sete, oitenta e oito, oitenta e nove... – respondo em voz alta. –
Ann, se continuares a dizer que não vales nada, as pessoas começam a crer
nisso.
Ann encolhe os ombros, volta a pôr o vestido na pilha que está em cima
da cama.
– Creem no que veem.
– Então muda o que eles veem.
– Como?
– Usa o vestido. Podemos alargá-lo dos lados.
– Uma centena. – Viro-me de frente para elas. – Sim, mas depois já não te
servia a ti.
Felicity faz um sorriso ferino.
– Exato.
– Parece-te mesmo boa ideia? – pergunto. O vestido deve ter sido bem
caro, feito em Paris à medida de Felicity.
– E a tua mãe não vai ficar zangada? – pergunta Ann.
– Vai estar demasiado envolvida com os convidados para reparar no que
vestimos. Só vai ralar-se com aquilo que ela vai vestir, e se a faz parecer
mais nova ou não.
Parece má ideia, mas Ann já está outra vez a acariciar a seda como se
fosse um gatinho querido, e não vou ser eu a estragar-lhe o momento.
Felicity até salta.
– Vou chamar a Franny. Por mais aborrecida que seja, é uma costureira
excelente.
Franny é convocada. Quando Felicity lhe explica o que quer feito, a
rapariga arregala os olhos, incrédula.
– Não é melhor perguntar à senhora Worthington primeiro, menina?
– Não, Franny. Será uma surpresa para a minha mãe. Ela vai ficar
felicíssima de ver a menina Bradshaw bem arranjada.
– Com certeza, menina.
Franny tira as medidas a Ann.
– Não vai ser fácil, menina. Não sei dizer se vai haver tecido que chegue.
Ann fica corada.
– Oh, não vale a maçada. Vou vestir o que usei para ir à ópera.
– Franny – diz Felicity, e o nome parece uma melopeia doce – você é tão
boa costureira. Tenho a certeza de que, se alguém consegue, esse alguém é a
Franny.
– Mas depois de o alterar, menina, não posso voltar atrás – diz Franny.
– Deixe isso comigo – diz Felicity, a empurrá-la porta fora com o vestido
nos braços.
– Agora vamos tratar de te arranjar cintura – manda Felicity.
Ann ampara-se na parede com os dois braços. Começa a virar-se para me
dizer qualquer coisa, mas Felicity empurra-lhe a cabeça para a frente outra
vez.
– Não me vais apertar muito, pois não?
– Vou – digo eu com a maior casualidade. – Agora quieta. – Dou um
puxão nas laçadas do corpete, aperto a cintura de Ann o mais que posso.
– C-c-credo – exclama ela.
– Outra vez – manda Felicity.
Puxo com força, e Ann endireita-se, a ofegar, as lágrimas já a verem-se
nos olhos.
– Muito apertado – balbucia ela.
– Queres usar o vestido ou não? – Felicity gosta de a arreliar.
– Quero... mas não quero morrer.
– Pronto, não serve de nada desmaiares. – Dou um pouco de folga às
laçadas e a cor volta às faces de Ann.
– Olha, senta-te – digo eu e levo-a para o canapé. Ela não tem alternativa
senão sentar-se direita como a torre do campanário de uma igreja. Está a
arquejar como um cavalo de tiro.
– Não é assim tão mau depois de nos acostumarmos – sussurra Ann, e faz
um sorrisinho fraco. Felicity atira-se para cima do canapé outra vez.
– Mentirosa.
– O que te pareceu a atuação da Nell Hawkins? A mim não me fez
sentido nenhum – pergunta Ann, a tentar respirar. – O Tom estava muito
bem-parecido. Ele é tão bondoso.
– Não consegui dar-lhe sentido nenhum também – respondo. – Ofereçam
esperança aos Intocáveis; não deixem a canção morrer. Têm de ter cuidado
com a beleza; a beleza tem de atravessar.
– Não saiam do caminho. O que é que significa? – pergunta Ann.
– E aquilo das ninfas escorregadias e luzidias? – pergunta Felicity, a rir-
se. Ou Cautela com os Guerreiros da Papoila. Querem devorá-las.
Devorar, devorar!
Ann começa-se a rir, mas o corpete corta-lhe logo a alegria. Só consegue
sorrir e ofegar.
– Ela estava a tentar dizer-nos alguma coisa. Tenho a certeza. – Estou a
sentir-me bastante defensiva quanto a este assunto.
– Ora, francamente, Gemma! Era um poema disparatado. A coitada da
Nell Hawkins é doida varrida.
– Então como é que sabia da górgone ou da Floresta das Luzes? Ou da
bruma dourada?
– Talvez lhe tenhas contado.
– Não contei nada!
– Então ela leu nalgum lado.
– Não – protesto. – Creio que estava a falar para nós em código e, se
conseguirmos decifrar, vamos deslindar o mistério da localização do
Templo.
– Gemma, eu sei que queres crer que a Nell tem a chave disto tudo, mas
tenho que dizer, depois de a ter visto, que estás enganada.
– Pareces o Kartik. – Arrependo-me logo de ter falado nele.
– O que se passa, Gemma? Estás a franzir o sobrolho – pergunta Ann.
– O Kartik foi-se embora.
– Embora? Embora para onde? – pergunta Felicity, a puxar uma meia e a
ver como fica na curva da barriga da perna.
– Voltou para os Rakshana. Insultei-o, e ele foi-se embora.
– O que é que lhe disseste? – pergunta Felicity.
– Disse-lhe que nem sequer pensava nele como indiano.
– Qual é o insulto? – pergunta Felicity, pois não compreende. Tira a meia
e deixa-a cair no chão. – Gemma, vamos aos reinos esta noite? Quero
mostrar o meu vestido novo à Pip e desejar-lhe Feliz Natal.
– Vai ser difícil escapulirmo-nos – digo eu.
– Disparate. Há sempre oportunidades de fuga para as damas de
companhia. Já antes o fiz.
– Eu queria aproveitar o baile – digo eu. Felicity fixa-me com um sorriso
zombeteiro.
– Tu queres aproveitar o Simon Middleton.
– Eu estava na esperança de dançar com o Tom – admite Ann.
– Vamos amanhã – digo eu, a atirar um osso à Felicity.
– Detesto quando ficas assim. Um dia, hei de ter o meu próprio poder e
depois entrarei nos reinos quando bem me apetecer – Felicity já está a
bufar.
– Felicity, não te zangues – pede Ann. – É apenas uma noite. Amanhã.
Amanhã vamos aos reinos outra vez.
Ela começa a afastar-se, a despachar-nos.
– Tenho saudades da Pip. Ela estava sempre disposta a tudo.

Depois da despedida grosseira de Felicity, eu e Ann conversamos sobre


banalidades e passamos o tempo a brincar com fitas. Nisto, como se não
tivesse acontecido nada, Felicity irrompe quarto adentro com Franny, a qual
traz com todo o cuidado o vestido de seda azul nos braços.
– Vamos então ver, está bem? – exclama Felicity.
Ann entra no tecido que cai em camadas no chão, consegue enfiar os
braços. Franny fecha os botões de pérolas pequeninas nas costas. É lindo.
Ann dá voltinhas como se não pudesse crer que a rapariga refletida no
espelho seja ela.
– O que te parece a ti? – pergunto, a tirar o cabelo de Ann do pescoço
para ver o efeito. Ela faz que sim com a cabeça.
– Sim. Gosto. Obrigada, Felicity.
– Não me agradeças. Será um grande prazer ver a cara da minha mãe.
– A que te referes? – pergunta Ann. – Não tinhas dito que ela não iria
ligar?
– Ai disse? – retruca Felicity, a fingir-se admirada.
Olho para Felicity a querer avisá-la. Ela não me liga e tira um vestido de
veludo cor de vinho da pilha que está em cima da cama.
– Franny? Você é uma costureira tão boa, de certeza que não se importa
de me fazer umas emendas neste vestido. Ora, estou certa de que o
consegue fazer numa hora.
Vejo Franny corar.
– Sim, menina?
– É que o corpete deste vestido é demasiado formal para uma jovem levar
a uma festa tão grandiosa. Não lhe parece?
Franny examina o corpete.
– Parece-me que consigo baixá-lo um bocadinho, menina.
– Oh, sim, faz favor! Imediatamente – diz Felicity, a empurrar Franny
porta fora. Depois senta-se onde eu estava frente ao espelho e abre um
sorriso malvado. – Isto vai ser divertido.
– Porque é que a odeias tanto? – pergunto.
– Até estou a afeiçoar-me à Franny.
– Eu referia-me à tua mãe.
Felicity segura num par de brincos com granadas a ver como lhe fica.
– Não me interessa o gosto dela em vestidos.
– Se não quiseres falar disso...
– Não, não quero – diz Felicity.
Por vezes, Felicity é para mim um mistério digno da localização do
Templo. Ora é infantil e despeitada, ora é animada e espirituosa; uma
rapariga com a bondade de levar Ann para sua casa no Natal e a
mesquinhez de considerar Kartik seu inferior.
– Ela parece-me bastante simpática – diz Ann. Felicity olha para o teto.
– Ela dedica-se muito a parecer simpática: ligeira e divertida. Isso é o
mais importante para ela. Mas não cometam o erro de pedir-lhe ajuda para
nada que tenha verdadeiramente importância.
Algo sombrio e duro passa pelo semblante de Felicity.
– O que queres dizer com isso? – pergunto eu.
– Nada – resmunga ela, e o mistério que Felicity é continua a adensar-se.
Para desanuviar, visto um dos vestidos de Felicity, de cetim verde-escuro.
Ann fecha os botões e fico com uma cintura bonita. É perturbante ver-me
assim: as meias luas dos meus seios pálidos a espreitarem por cima do
maciço de seda e flores. Será esta a rapariga que toda a gente vê?
Para Felicity e Ann, sou um meio de entrar nos reinos.
Para minha avó, sou algo a moldar em determinada forma.
Para Tom, sou uma irmã que ele tem de tolerar.
Para meu pai, sou boa menina, sempre a um passo de o desapontar.
Para Simon, sou um mistério.
Para Kartik, sou uma tarefa a desempenhar.
O meu reflexo devolve-me a imagem, à espera de apresentação. Olá,
rapariga no espelho. Tu és a Gemma Doyle. E não faço ideia de quem sejas
na verdade.
TRINTA E OITO

Todas as luzes estão acesas na mansão dos Worthingtons em Park Lane. A


casa resplandece com a neve que cai suavemente. Chegam carruagens numa
linha comprida e preta. Os criados de libré ajudam as senhoras a descerem
graciosamente para a berma, onde enfiam os braços nos dos cavalheiros que
as acompanham e avançam para a porta da frente, as cabeças bem erguidas,
as joias e os chapéus altos bem à vista.
O senhor Jackson, o nosso novo cocheiro, observa-nos quando o criado
de libré ajuda a minha avó a sair da carruagem.
– Cuidado com a poça, minha senhora – diz Jackson, atento ao charco que
a rua já tem.
– O Jackson é bom homem – diz Tom. – Ainda bem que apareceu, pois o
senhor Kartik parece ter desaparecido sem deixar rasto. Certamente que não
vou afiançar do seu caráter, caso algum futuro empregador me venha a
contactar.
Até faço uma careta. Será que voltarei a ver Kartik?
O senhor Jackson tira-me o chapéu. É um brutamontes de cara comprida e
magra e bigodes que lhe dão ar de morsa. Talvez eu esteja a ser maldosa por
ter saudades de Kartik.
– Onde é que encontraste o senhor Jackson? – pergunto quando chegamos
junto aos casais bem trajados que desfilam até ao baile.
– Oh, encontrou-me ele. Apareceu a perguntar se tínhamos necessidade
de um cocheiro.
– No dia de Natal? Mas que curioso – digo eu.
– E fortuito – acrescenta Tom. – Não te esqueças de que o pai adoeceu e
não pode vir esta noite, mas manda dizer que tem muita pena.
Como eu não digo nada, a avó pega-me num braço, sempre a sorrir e a
assentir para os outros que vão chegando.
– Gemma?
– Sim – digo com um suspiro. – Não me esqueço.
Felicity e a mãe recebem-nos à chegada. O vestido de Felicity, alterado por
Franny, mostra uma quantidade ousada de décolletage que não passa
despercebida aos convidados, o choque vê-se bem nos olhares que se
demoram mais um pouco. O sorriso tenso da senhora Worthington mostra
tudo o que ela está a sentir, mas não pode fazer mais nada além de mostrar
coragem, como se a própria filha não a estivesse a envergonhar no seu
próprio baile. Eu não compreendo porque é que Felicity gosta de espicaçar
assim a mãe, nem por que razão a mãe a atura com pouco mais de um
suspiro de martírio.
– Boa tarde, como está? – murmuro eu para Felicity, e trocamos vénias.
– Que simpática em ter vindo – diz ela. Estamos tão formais que tenho de
reprimir um risinho. Felicity faz sinal para o homem à sua esquerda. – Creio
que ainda não conhece o meu pai, Sir George Worthington.
– Muito gosto em conhecê-lo, Sir George – digo e faço uma vénia.
O pai de Felicity é bem-parecido, tem olhos cinzentos-claros e cabelo
louro que já perdeu brilho. Tem aquela espécie de perfil forte que se
imagina destacado pelo cinzento do mar. Até estou a vê-lo, os braços atrás
das costas como agora, a dar ordens aos tripulantes. Tal como a filha, tem
um sorriso carismático, que se vê bem quando a pequena Polly entra na
sala, de vestido de seda azul e cabelo aos canudinhos.
– Posso ficar para o baile, meu tio? – pergunta ela baixinho.
– Ela devia ir para o seu quarto – diz a mãe de Felicity.
– Ora, ora, é Natal. A nossa Polly quer dançar e há de dançar – diz o
almirante. – Creio bem não passar de um velho tolo no que respeita a fazer
vontades a jovens senhoras.
Os convidados riem-se, encantados com a boa disposição do almirante.
Nós continuamos a avançar e ouço-o cumprimentar as pessoas com grande
bonomia e talento.
– Sim, vou partir para Greenwich em visita aos velhos marujos do
hospital real. Parece-lhes que lá me deixem pernoitar?... Stevens, não me
diga que está pior da perna? Ah, excelente, excelente...
Numa mesa lateral, dispuseram bonitos cartões de dança. Estão
engenhosos, enfeitados com uma trança dourada e um lápis pequenino
pendurado para escrevermos o nome do parceiro ao lado da dança – valsa,
quadrilha, compasso, polca – que nos convide para dançar. Embora me
agradasse escrever o nome de Simon em todas, sei que não posso dançar
mais de três danças com um cavalheiro, e terei de dançar uma vez com o
meu irmão.
O cartão dará uma bela recordação do meu primeiro baile embora, na
verdade, eu ainda não tenha «saído da escola», visto que ainda não fui
debutante nem tive a minha temporada. Porém, trata-se de uma festa
familiar e assim terei os privilégios de uma jovem de dezassete ou dezoito
anos.
A avó passa uma quantidade imensa de tempo a cumprimentar diversas
senhoras e sou obrigada a ir atrás, a sorrir e a fazer vénias e, regra geral, a
não dizer nada sem que primeiro me dirijam a palavra. Fico a conhecer as
damas de companhia – todas tias solteironas e entediadas – e uma senhora
Bowles promete à minha avó tomar conta de mim como uma mãe galinha,
enquanto a avó for jogar às cartas não sei onde. Do outro lado do salão, vejo
Simon a entrar com a família, e sinto um friozinho na barriga. Fico tão
absorta com a chegada dele que nem percebo uma pergunta da senhora
Fulana de Tal. Ela, a minha avó e a senhora Bowles estão a olhar para mim,
à espera de resposta. A minha avó fecha os olhos por segundos,
envergonhada.
– Sim, obrigada – digo eu, julgando ser a réplica mais segura.
A senhora Fulana de Tal sorri e abana-se com um leque de marfim.
– Maravilha! A próxima dança vai começar. Aqui está o meu Percival.
Aparece um jovem ao lado dela. O topo da cabeça dele chega-me à parte
de baixo do queixo e ele tem a desventura de se parecer com um peixe
grande, todo olhos protuberantes e boca excecionalmente larga. Acabei de
aceitar dançar com ele.
Chego a duas conclusões durante a dança da polca. Primeira, é como se
ficássemos abanadas até à eternidade. Segunda, a razão para Percival
Fulano de Tal ter uma boca tão grande é uso excessivo. Ele fala durante a
dança inteira, só se cala para me fazer perguntas a que depois responde
também. Faz-me lembrar histórias de sobrevivência em que homens
corajosos foram obrigados a amputar os próprios braços ou as próprias
pernas para fugirem a armadilhas destinadas a animais, e receio ter de
recorrer a uma medida assim desesperada se a orquestra não parar de tocar.
Misericordiosamente, param e consigo fugir, depois de informar
«pesarosamente» o Percival de que o meu cartão de dança está preenchido
até ao fim do baile.
Quando saio da pista para voltar à companhia da senhora Bowles e das
outras, vejo Ann que vai dançar com Tom. Ela não podia ter um ar mais
contente. Tom parece encantado por estar na companhia dela. Eu sinto-me
bastante comovida por vê-los juntos.
– Posso pedir-lhe esta dança, menina Doyle? – É Simon a fazer-me uma
vénia ligeira.
– Gostaria muito.

– Estou a ver que a senhora Faber conseguiu que a menina Doyle dançasse
com o Percival – diz Simon a fazer-me girar devagar na valsa. Tem a mão
enluvada nas minhas costas, orienta-me facilmente pela pista fora.
– Ele dança com muito cuidado – digo eu, a tentar ser educada. Simon
sorri.
– É isso que a menina Doyle lhe chama? Calculo que seja um talento, ser
capaz de dançar a polca e falar incessantemente em simultâneo.
Não posso deixar de sorrir perante isto.
– Olhe ali – diz Simon. – A menina Weston e o senhor Sharpe. – Ele
indica uma jovem com ar severo sentada sozinha com o cartão de dança na
mão. Vai dando olhadelas a um jovem alto de cabelo preto que está a
conversar com outra jovem e a sua precetora, de costas para a menina
Weston. – É do conhecimento público que a menina Weston gosta do senhor
Sharpe. Também é do domínio público que o senhor Sharpe nem sequer
sabe quem é a menina Weston. Veja como ela anseia que ele a convide para
dançar. Aposto que tem o cartão de dança vazio na hipótese de ele a
convidar.
O senhor Sharpe avança na direção da menina Weston.
– Veja – disse eu. Talvez ele a vá convidar.
A menina Weston endireita-se na cadeira, um sorriso esperançoso na cara
esguia como uma agulha. O senhor Sharpe passa por ela, e ela finge olhar
para longe como se não estivesse nada incomodada pela rejeição. É tudo
muitíssimo cruel.
– Ou, talvez não – diz Simon. Vai tecendo comentários sobre os casais
que nos rodeiam. – O senhor Kingsley anda atrás da herança considerável
da viúva Marsh. A menina Byrne está muito mais forte do que na
temporada de maio. Em público, come como um passarinho mas consta
que, em privado, consegue devorar a despensa num abrir e fechar de olhos.
Diz-se que Sir Braxton tem uma aventura com a própria percetora dos
filhos. Depois temos o caso dos nossos anfitriões, os Worthingtons.
– A que se refere?
– Mal se falam. Está a ver como ela o vai evitando? – A mãe de Felicity
passa de um convidado a outro, dá-lhes toda a atenção, mas nem sequer
olha para o marido.
– Ela é a anfitriã – digo eu, sinto necessidade de a defender.
– Toda a gente sabe que ela viveu em Paris com o amante, um artista
francês. A menina Worthington está a mostrar muita carne esta noite. Já não
se fala noutra coisa. Provavelmente terá de se casar com um qualquer
americano barulhento. É uma pena. O pai foi ordenado cavaleiro pela
Rainha, galardoado com a Comenda da Ordem do Banho pela sua
prestigiante carreira naval. Agora até se responsabilizou por uma jovem
órfã, filha de um primo afastado. É bom homem, mas a filha está a tornar-se
numa mancha na sua reputação impecável.
O que Simon diz de Felicity é verdade, mas não me agrada ouvi-lo falar
da minha amiga desta maneira. É um aspeto do Simon que eu desconhecia.
– Ela é simplesmente exuberante – protesto.
– Indispus a menina Doyle – diz Simon.
– Não, não indispôs – minto, embora não saiba porque é que estou a
fingir não estar zangada.
– Indispus sim. Foi grande falta de cavalheirismo. Se a menina fosse
homem, deixá-la-ia escolher pistolas para defender a honra da menina
Worthington – diz ele, com aquele meio sorriso diabólico que tem.
– Se eu fosse homem, aceitaria – digo eu. – Mas de certeza que falharia.
Simon ri-se.
– Menina Doyle, Londres é um sítio muito mais interessante consigo
aqui.
A dança termina e Simon acompanha-me prometendo convidar-me
quando o meu cartão mo permitir. Ann e Felicity correm para mim, insistem
que tenho de as acompanhar à outra sala para tomar uma limonada. Com a
senhora Bowles a reboque, passamos pelas salas de braço dado, a falar
baixinho dos últimos mexericos.
– ...e depois ela disse que eu era nova de mais para usar um decote tão
grande e que mais valia não me ter trazido de todo se era para a fazer passar
vergonhas assim em público e que o vestido de seda azul ficou estragado...
– Felicity vai tagarelando.
– Ela não ficou zangada comigo, pois não? – pergunta Ann, a máscara da
preocupação afivelada no rosto. – Tu disseste-lhe que eu tentei impedir-te?
– Não é preciso afligires-te tanto. A tua reputação está intacta. Além
disso, o pai veio defender-me e a mãe recuou imediatamente. Ela nunca o
vai enfrentar...
O salão de baile dá para outra sala que foi reservada às bebidas.
Bebericamos limonada, muito fresca. Apesar do frio de inverno, temos
calor da dança e da animação. Ann vai olhando ansiosa para o salão de
baile. Quando a música começa outra vez, ela pega no seu cartão.
– Não é a quadrilha?
– Não – digo eu. – Parece-me outra valsa.
– Oh, graças a Deus. O Tom convidou-me para dançar a quadrilha. Não
quero perder por nada deste mundo.
Felicity fica momentaneamente aturdida.
– Tom?
Ann está radiante.
– Sim. Disse que quer saber tudo sobre o meu tio e de como vim a saber
que era uma lady. Oh, Gemma, parece-te que ele gosta de mim?
Mas o que fui eu fazer? O que acontecerá quando descobrirem o ardil?
Tenho um pressentimento mau.
– Tu gostas mesmo dele?
– Muito. Ele é tão... respeitável.
Até me engasgo com a polpa da minha limonada.
– Que tal te estás tu a dar com o senhor Middleton? – pergunta Felicity.
– Sabe dançar muito bem – respondo. Estou a empatá-las, claro.
Felicity dá-me com o cartão de dança, a brincar.
– Não tens mais nada a dizer? Só que ele sabe dançar muito bem?
– Conta lá – insiste Ann. A senhora Bowles já nos apanhou e fica a pairar
por perto, na esperança de uma conversa, um cheirinho a escândalo.
– Ai, ai, tenho um rasgão no vestido – digo eu.
Ann entorta-se toda para me ver a saia do vestido.
– Onde? Não vejo nada.
Felicity não perde pitada.
– Ah, sim. Temos de te levar aos bengaleiros imediatamente. Uma das
criadas pode dar-lhe um ponto. Não se aflija connosco, senhora Bowles!
Antes que a nossa vigilante possa dizer água vai, Felicity tira-nos dali,
leva-nos pela escada abaixo até chegarmos a uma estufa pequenina.
– Então?
– Ele é muito simpático. É como se eu o tivesse conhecido toda a vida –
digo eu.
– Não me liga muito a mim – diz Felicity.
Mas ela não saberá o que ele acabou de me dizer dela? Até fico corada a
pensar que poderia tê-la defendido muito mais.
– Porque é que dizes isso?
– Ele queria fazer-me a corte. Eu recusei-o o ano passado, e ele nunca mo
perdoou.
É como se me dessem um pontapé com toda a força.
– Não tinhas dito que não tinhas interesse no Simon?
– Sim, exato. Eu não tenho interesse nele. Não perguntaste se ele tinha
interesse em mim.
A minha boa disposição caiu-me até ao fundo da barriga, como confeitos
a juncarem uma pista de dança. Será que o Simon me anda a dar atenção
este tempo todo para arreliar a Felicity? Ou será que tem mesmo interesse
em mim?
– Creio que devíamos voltar ao baile – digo eu, e avanço para o primeiro
andar, mais depressa do que seria necessário, apenas para deixar espaço
entre mim e Felicity. Não me apetece juntar à multidão satisfeita. Por
enquanto, não. Preciso de um momento para me recompor. Do outro lado da
sala estão duas portadas que dão para uma pequena varanda. Esgueiro-me
para fora, a contemplar a vastidão do Hyde Park. Nas árvores nuas, vejo
Felicity, tentadora no seu vestido decotado, e a mim, a criatura alta e
esgalgada a brincar aos adultos; a rapariga assombrada por visões. Felicity e
Simon juntos poderiam ter uma vida livre de complicações. Seriam bonitos
venerados e viajados. Será que ela perceberia as piadas espirituosas dele?
Será que ele contaria piadas? Talvez ela lhe fizesse a vida num horror.
Talvez.
O ar frio está a ajudar-me. A cada fôlego sinto a cabeça mais
desanuviada. Logo vejo que estou recomposta o bastante para me queixar
do frio. Lá em baixo, cocheiros e criados de libré juntaram-se perto de uma
banca com café. Têm canecas quentes nas mãos e andam de um lado para o
outro na neve, a tentar guardar o calor. Estes bailes devem ser um suplício
para eles. Por momentos, parece-me ver Kartik, mas depois lembro-me de
que ele se foi embora.

O serão desenrola-se em danças e sussurros, sorrisos e promessas. O


champanhe corre livremente, as pessoas riem-se alegremente, esquecem-se
de cuidados. Não tarda a que as damas de companhia percam o interesse de
vigiarem as jovens e prefiram dançar também ou jogar whist e outros jogos
de cartas numa sala do andar de baixo. Quando Simon por fim regressa ao
salão de baile, vindo do seu jogo de cartas, eu estou uma pilha de nervos.
– Cá está a menina – diz ele, a sorrir. – Guardou outra dança para mim?
Não consigo evitar.
– Pensei que o senhor Middleton fosse dançar com a menina
Worthington.
Ela franze o sobrolho.
– Uma dança com a carnívora da Felicity? Porquê? Ela já devorou os
outros cavalheiros disponíveis?
Fico tão aliviada com isto que até me rio, apesar da minha amizade por
Felicity.
– Não me devia estar a rir. O senhor Middleton é horroroso.
– Sim – diz Simon, de sobrancelha erguida. – Sou excelente a ser
horroroso. Não quer tirar as teimas?
– A que se refere?
– Vamos dar um passeio?
– Oh – digo eu, num misto de medo e entusiasmo. – Tenho de informar a
senhora Bowles.
Simon sorri.
– É apenas um passeio. Veja só como ela está a gostar da dança. Porque é
que lhe vamos estragar a felicidade?
Não quero irritar o Simon, nem que ele pense que afinal sou um tédio.
Porém, é impróprio da minha parte sair dali com ele sozinha. Não sei o que
hei de fazer.
– Tenho mesmo de informar a senhora Bowles...
– Muito bem – diz Simon. A sorrir, pede licença. Agora é que a fiz
bonita. Afugentei-o. Todavia, momentos depois, ele regressa com Felicity e
Ann. – Agora estamos a salvo. Pelo menos, as vossas reputações estão
seguras. Quanto à minha, já não sei.
– O que se passa aqui? – indaga Felicity.
– Se as senhoras se dignarem ir ter comigo à sala de bilhar, não tardam a
descobrir – diz Simon, e pede licença.
Aguardamos um tempo respeitável antes de nos dirigirmos à sala de
bilhar dos Worthingtons, no andar de cima. Se eu já me sentia constrangida
por ficar sozinha com Simon, agora sinto-me duplamente por ter Felicity
connosco.
– O que tem em mente, Simon? – pergunta ela. Ouvi-la tratá-lo assim
livremente causa-me uma sensação doentia no estômago.
Simon vai até à estante e tira um volume da prateleira.
– Tenciona ler para nós? – Felicity franze o nariz. Depois empurra uma
bola branca pelo feltro verde e amplo da mesa. A bola bate no triângulo que
se encontra ao centro e manda as outras bolas na direção dos buracos.
Simon leva a mão ao espaço deixado pelo livro e tira uma garrafa de
líquido espesso verde-esmeralda. Eu nunca vi um licor assim.
– O que é isso? – pergunto, a sentir a boca seca. Simon curva os lábios
num sorriso malvado.
– Um pouco da fada verde. É uma amante muito simpática, como me
parece que convirá.
Ainda estou confusa.
– Absinto. A bebida dos artistas e dos loucos. Dizem que a fada verde
vive num vidro de absinto e que nos leva para o seu covil onde se pode ver
toda a espécie de coisas estranhas e belas. Gostaria de tentar viver em dois
mundos ao mesmo tempo?
Não sei se me hei de rir se hei de chorar perante isto.
– Oh – diz Ann, preocupada. – Creio que talvez devêssemos voltar.
Decerto já deram pela nossa falta.
– Então diremos que estávamos nos bengaleiros a tratar do rasgão do teu
vestido – diz Felicity. – Eu quero provar absinto.
Eu não quero provar absinto. Bem, talvez um pedacinho – se pudesse ter
a certeza do efeito que será. Tenho receio de ficar, mas não quero sair da
sala agora nem deixar Felicity partilhar esta experiência com Simon
sozinha.
– Eu gostaria de provar também – balbucio.
– Espírito de aventura – diz Simon, a sorrir para mim. – É disso que eu
gosto.
Simon leva a mão ao espaço vazio outra vez e traz uma colher achatada e
esburacada. Depois serve-se de meio copo de água de um decantador. Pousa
o copo em cima da mesa e coloca a estranha colher por cima da boca do
copo. Com dedos graciosos, leva a mão ao bolso e tira um torrão de açúcar,
o qual coloca em cima da colher.
– Para que serve isso? – pergunto eu.
– Para cortar o travo amargo da planta.
Espesso como seiva de árvore, verde como a relva de verão, o absinto
corre por cima do açúcar, dissolve-o na sua investida implacável. Dentro do
copo, decorre uma belíssima alquimia. O verde funde-se num branco
leitoso. É extraordinário.
– Como é que isso acontece? – pergunto eu.
Simon tira uma moeda da algibeira, põe na palma da mão e mostra-me a
mão vazia. A moeda desapareceu.
– Magia.
– Vamos ver se é – diz Felicity, e leva a mão ao copo. Simon tira-lho da
frente e passa-mo a mim.
– As senhoras primeiro – diz ele.
Felicity está com ar de quem lhe vai cuspir para os olhos. É cruel,
espicaçá-la desta maneira, mas eu também devo ser cruel, pois não consigo
deixar de me sentir satisfeita por ter sido escolhida primeiro. Tenho a mão a
tremer quando pego no copo. Estou meio à espera que esta bebida estranha
me transforme em rã. Até o aroma é inebriante, parece alcaçuz temperado
com noz-moscada. Engulo e sinto ardor na garganta. Assim que termino,
Felicity tira-me o copo e bebe a sua parte. Depois passa a Ann, a qual não
bebe mais do que um golinho. Por fim, chega a Simon, que bebe e me passa
outra vez a mim. O copo dá mais três voltas até ficar vazio.
Simon usa o seu lenço para limpar o resto do absinto do copo e coloca
tudo atrás do livro, de modo a servir noutra altura. Depois aproxima-se de
mim. Felicity interpõe-se e pega-me no pulso.
– Obrigada, Simon. Agora será melhor fazermos mesmo a visitinha aos
bengaleiros para conferir verdade à nossa história – diz ela, com um brilho
de satisfação no olhar.
Simon é que não fica nada satisfeito, vê-se muito bem, mas faz uma vénia
e deixa-nos sair dali.
– Não me sinto assim muito diferente – diz Ann, quando já estamos nos
bengaleiros a abanarmo-nos com leques, a deixarmos as criadas procurarem
rasgões imaginários nos nossos vestidos.
– Isso é porque não bebeste mais do que um golinho – sussurra Felicity. –
Eu sinto-me mesmo bem.
Tenho um calorzinho na cabeça, uma leveza que faz com que tudo me
pareça bem e que nada de mal me vai acontecer. Sorrio para Felicity, já não
estou zangada, apenas a gozar a nossa marotice juntas. Porque será que uns
segredos nos afundam enquanto outros nos aproximam das outras pessoas
de uma maneira que nunca queremos perder?
– Estás linda – diz Felicity, as pupilas dos olhos grandes como luas.
– Tu também – digo eu. Não consigo parar de sorrir.
– Então e eu? – pergunta Ann.
– Sim – digo eu, a sentir-me cada vez mais leve. – O Tom não vai
conseguir resistir-te, Ann. És uma princesa. – Com isto, a criada que me
está a tratar do vestido olha para cima, por momentos, mas depois volta ao
trabalho.
Quando tornamos a entrar no salão de baile, parece transformado, as
cores mais intensas, as luzes mais esbatidas. A fada verde derrete-se em
fogo líquido que me corre pelas veias como mexericos, como as asas de mil
anjos, como um sussurro do segredo mais delicioso que jamais guardei. À
minha volta, o salão abrandou num borrão de cores, sons e movimentos
lindos; o ruge-ruge das saias engomadas das senhoras funde-se nos verdes e
azuis, pratas e grenás dos corpos ajaezados de joias. Elas curvam-se e
ondulam na direção dos cavalheiros como imagens refletidas em espelhos a
beijarem-se e a afastarem-se, beijarem-se e afastarem-se.
Sinto os olhos molhados e bonitos. A minha boca está madura como a
fruta de verão, e só consigo sorrir como se soubesse tudo o que há para
saber mas não conseguisse reter nada. Simon encontra-me. Dou comigo a
aceitar uma dança com ele. Juntamo-nos à multidão ondulante. Estou a
flutuar. Simon Middleton é o homem mais cativante que jamais conheci.
Quero dizer-lhe isto mesmo, mas as palavras não saem. Pelos meus olhos
turvos, o salão de baile transformou-se numa dança sagrada em espiral de
dervixes rodopiantes, as sotainas brancas a esvoaçarem como as primeiras
neves de inverno, os chapéus altos cor de púrpura a desafiarem a gravidade
em cima das suas cabeças que giram delicadamente. Porém, sei muito bem
que não posso estar a ver isto.
Com esforço, fecho os olhos para desanuviar o panorama e, quando os
abro outra vez, lá estão as damas e os cavalheiros, as mãos dadas com
hesitação para dançar a valsa. Por cima dos ombros brancos como
penugem, as senhoras comunicam umas com as outras mediante acenos de
cabeça subtis e olhares silenciosos – «A rapariga dos Thetfords e o rapaz
dos Roberts, um par deveras adequado, não lhe parece?» – os destinos
selados, os futuros decididos em menos de um fósforo debaixo da ilusão
resplandecente do lustre que lança prismas de luz duros como diamantes, a
banharem tudo num reflexo de beleza fria.
Acabada a dança, Simon leva-me da pista. Tonta, vou cambaleando
ligeiramente. Levo a mão a tentar amparar-me em algo sólido e encontro a
vastidão do peito de Simon. Os meus dedos fecham-se nas pétalas brancas
da rosa que ele tem na lapela.
– Cuidado aí. Menina Doyle, sente-se bem?
Sorrio. Oh, sim, deveras. Não consigo falar nem sinto o corpo, mas estou
lindamente – queira deixar-me aqui, por obséquio. Sorrio. As pétalas caem,
flutuam devagar até ao chão na sua própria dança em espiral. A palma da
mão da luva está manchada com o resíduo pegajoso da rosa. Não consigo
descortinar como é que aconteceu nem o que fazer acerca disso. Considero
isto insuportavelmente humorístico, e dou comigo a rir à gargalhada.
– Cuidado aí... – diz Simon, e faz-me alguma pressão no pulso. A dor faz-
me cair em mim, ligeiramente. Ele leva-me além dos grandes vasos de fetos
perto da entrada e por trás de um biombo ricamente enfeitado. Pelas
frinchas, vejo fragmentos do salão de baile a passarem depressa. Estamos
escondidos mas podemos ser descobertos aqui. Eu deveria considerar razão
para alarme, mas não considero. Não me importo.
– Gemma – diz Simon. Os lábios dele roçam na minha pele logo abaixo
do lóbulo da orelha. Deixam um rasto húmido até à covinha na base do
pescoço. Sinto a cabeça quente e pesada. Tudo em mim me parece maduro
e dilatado. O salão ainda faz a sua dança de luzes rodopiantes, mas os sons
da festa estão abafados e longínquos. É a voz de Simon que flutua dentro de
mim.
– Gemma, Gemma, tu és um elixir.
Ele junta o corpo ao meu. Não sei se é do absinto ou de algo mais
profundo, algo que não sei descrever, mas estou a afundar-me dentro de
mim e não desejo parar.
– Vem comigo – sussurra ele. Faz-me eco na cabeça. Ele segura-me pelo
braço, leva-me como se estivéssemos prontos a dançar. Antes pelo
contrário, tira-me do salão de baile e leva-me pela escada acima, para longe
da festa. Entramos num quartinho no sótão, o quarto da criada, parece-me.
Está quase às escuras, só tem uma vela acesa. É como se eu não tivesse
vontade própria. Deixo-me cair na cama, maravilhada com o aspeto das
minhas mãos à luz da vela, como se não fossem minhas, de algum modo.
Simon vê-me a olhar para as mãos. Começa a desabotoar-me uma luva. Na
abertura, ele beija as veiazinhas azuis que pulsam contra a pele.
Quero dizer-lhe para parar. A névoa do absinto esfuma-se um pouco.
Estou sozinha com Simon. Ele está a beijar-me o pulso nu. Não devíamos
estar aqui. Não devíamos.
– Eu... Quero voltar.
– Chiu, Gemma. – Ele tira-me a luva. A minha pele nua dá-me uma
sensação tão estranha. – A minha mãe gosta de ti. Não pensas que faríamos
um belo par?
Não penso? Não penso. Ele começa a tirar-me a outra luva. O meu corpo
arqueia-se, fica tenso. Oh, Deus, está a acontecer. Está a acontecer. Por
cima das costas curvadas de Simon, vejo o quarto a cintilar, sinto o meu
corpo retesar-se com a visão que não consigo impedir. A última coisa que
ouço é a voz aflita de Simon a chamar-me, Gemma, Gemma! e depois
sinto-me cair, cair no buraco negro.
As três raparigas de branco flutuam logo depois de Simon.
– Encontrámo-lo. Encontrámos o Templo. Anda ver...
Vou atrás delas depressa pelos reinos, até ao cume de um monte. Consigo
ouvir gritos. Rápido, vamos muito rápido. Os montes desaparecem, e
deparo com a catedral mais majestosa que jamais vi. Cintila como uma
miragem. O Templo.
– Depressa... – sussurram as raparigas. – Antes que eles o encontrem.
Atrás delas, as nuvens negras avolumam-se. O vento sopra-lhes o cabelo
em redor dos rostos pálidos e ensombrados. Vem aí alguma coisa. Vem aí
alguma coisa por detrás delas. Ergue-se sobre elas como uma fénix escura.
Uma criatura enorme, negra e alada. As raparigas não veem, não olham.
Mas eu vejo. A criatura abre as asas até encherem o céu, até revelarem o
que têm dentro, um vórtice de horror de caras a gritarem.
E depois grito eu.
– Gemma! Gemma! – É a voz de Simon a chamar-me de volta. Tem a
mão a tapar-me a boca para eu não gritar mais. – Desculpa, não foi por
mal.
À pressa, ele dá-me as minhas luvas. Demoro um momento a regressar ao
quarto, a assimilar que Simon me estava a beijar os ombros nus e que ele
pensa que os meus gritos são por causa disso. Ainda estou toldada pela
bebida mas agora já me sinto enjoada. Desato a vomitar no lavatório da
criada. Simon apressa-se a trazer-me uma toalha.
Estou envergonhadíssima, e dói-me a cabeça. Também estou a tremer de
corpo inteiro, tanto da visão como do que aconteceu entre nós.
– É melhor mandar buscar alguém? – pergunta Simon. Está à porta do
quarto, não se quer aproximar mais. Eu abano a cabeça.
– Não, obrigada. Quero voltar para o baile.
– Sim, imediatamente – diz Simon, e soa-me, a um tempo, receoso e
aliviado.
Quero explicar-lhe, mas como? Assim, descemos a escada em silêncio.
No primeiro andar, ele deixa-me. Tocam a sineta para chamar para a ceia, e
eu misturo-me com as outras senhoras.
A ceia é uma coisa imensa e, gradualmente, com comida e tempo,
começo a sentir-me mais eu mesma. Simon não veio cear e, com a cabeça
mais desanuviada, a vergonha aumenta. Fui tola em ter bebido o absinto,
em ter ido com ele sozinha. E depois aquela visão horrenda! Porém, e por
instantes, eu vi o Templo. Eu vi-o. Está ao nosso alcance. Não é o maior
consolo desta noite, mas é algum, e agarro-me bem a essa sensação.
O senhor Worthington faz um brinde ao Natal. Ann é apresentada e
pedem-lhe para cantar. Ela canta, e os convidados batem palmas, nenhum
deles mais alto do que Tom, o qual clama, «Bravo!» A precetora aparece
com uma Polly muito sonolenta, agarrada a uma boneca.
O almirante Worthington faz sinal à rapariga.
– Sente-se nos meus joelhos, filhinha. Eu sou o seu tio bom, não sou?
Polly sobe-lhe para o colo e faz um sorriso tímido. Felicity observa, um
ricto sombrio na boca. Não posso crer que ela seja infantil ao ponto de ter
ciúmes de uma rapariguinha. Porque é que ela faz estas coisas?
– Então? É essa a paga que os tios recebem nos dias de hoje? Dê cá um
beijinho como dever ser ao seu tio.
A criança mexe-se com algum nervosismo, os olhos a dardejarem de
pessoa em pessoa. Toda a gente lhe retribui a mesma expressão ansiosa:
Vamos, então. Dá-lhe um beijo. Resignada, Polly chega-se para a frente, de
olhos fechados, e dá um beijo na face bem-parecida do almirante
Worthington. Ouvem-se murmúrios de afeto e aprovação pela sala fora:
«Ah, muito bem.» «Assim é que é.» «Como vê, Lorde Worthington, a
criança gosta de si como se fosse seu pai.» «É mesmo boa pessoa.»
– Papá – diz Felicity, a levantar-se. – A Polly tem de se ir deitar agora.
Faz-se tarde.
– Senhor? – A precetora olha para o almirante Worthington à espera de
ordens.
– Sim, com certeza. Siga então, querida Polly. Eu depois subo para lhe
deitar pó de fadas, para ter a certeza de que a menina tem sonhos lindos.
Felicity atalha a precetora.
– Oh, deixe-me levar a Polly para a caminha.
A precetora faz uma ligeira vénia com a cabeça.
– Como queira, menina.
A mim não me agrada. Porque é que Felicity quer estar sozinha com
Polly? Ela não faria mal à menina, pois não? Peço licença e saio da sala
para ir atrás delas. Felicity leva Polly para cima, para a ala das crianças. Eu
fico mesmo à porta, a ver. Felicity está agachada, os braços nos ombros de
Polly.
– Bem, Polly, tens de me prometer uma coisa. Promete-me que trancas a
porta antes de te ires deitar. Prometes?
– Sim, prima.
– E tens de trancar a porta todas as noites. Não te esqueças, Polly. Isto é
muito importante.
– Mas porquê, prima?
– Ora, para os monstros não entrarem, claro.
– Mas se eu trancar a porta, o tio não me pode deitar pó de fadas.
– Eu é que te deito pozinho de fadas, Polly. Mas não podes deixar o tio
entrar.
Não compreendo. Porque é que ela insiste tanto em não deixar entrar o
próprio pai? O que poderia o almirante fazer que fosse...
Oh, Deus. A compreensão horrível ergue-se em mim como uma ave
enorme, as asas da verdade a abrirem-se devagar, a lançarem uma sombra
terrível.
Não podem pedir-lhe ajuda para nada que tenha verdadeiramente
importância.
Não. Almirantes, não.
Parece-lhe possível que haja uma espécie de mal nas pessoas que leve as
outras a fazerem maldades?
Escondo-me nas sombras quando Felicity sai do quarto de Polly. Ela
detém-se um momento, à escuta do clique da tranca. Parece-me tão
pequena. Na escada, apareço e ela fica admirada.
– Gemma! Pregaste-me um susto. Tens a cabeça a tinir? Nunca mais bebo
absinto, isso te garanto! Porque é que não estás na festa?
– Eu ouvi o que disseste à Polly – digo eu. Os olhos de Felicity estão
desafiadores mas, desta vez, não tenho medo dela.
– Deveras? E depois?
– Não havia tranca na tua porta? – pergunto. Felicity respira fundo.
– Não sei o que é que queres insinuar, mas creio que deves parar
imediatamente – diz ela. Eu ponho a minha mão na sua, mas ela sacode-me.
– Para com isso! – estala.
– Oh, Fee, tenho tanta pena...
Ela abana a cabeça, vira-me costas para eu não lhe ver a cara.
– Não sabes como as coisas se passam na verdade, Gemma. A culpa não é
dele. A culpa é minha. Eu desperto-o desse modo. Foi ele quem mo disse.
– Felicity, de certeza que a culpa não é tua!
– Eu sabia que não irias compreender.
– Compreendo que ele é teu pai.
Ela olha para mim, o rosto lavado em lágrimas.
– Ele não queria. Ele ama-me. Foi ele quem mo disse.
– Fee...
– É alguma coisa, não é? É alguma coisa. – Ela está a suster o choro, a
mão na boca como se conseguisse impedi-lo, engoli-lo de volta.
– Os pais devem proteger as filhas.
Os olhos dela estão coruscantes. A mão aponta.
– Mas tu és mesmo especialista nisso? Conta lá, Gemma, como é que o
teu pai te protege adormentado pelo láudano?
Fico tão chocada que nem respondo.
– É essa a verdadeira razão para ele não estar cá esta noite, não é? Ele não
está doente. Deixa de fingir que está tudo bem quando sabes muito bem que
não está!
– Não é a mesma coisa de maneira nenhuma!
– O pior cego é aquele que não quer ver. – Felicity olha para mim com ar
furibundo. – Tu sabes o que é não ter poder algum? Estar completamente
indefesa? Não, claro que não. Tu és a grande Gemma Doyle. Tu tens o
poder todo, não tens?
Ficamos ali, a olharmos uma para a outra, não dizemos mais nada. Ela
não tem o direito de me agredir desta maneira. Eu só estava a tentar ajudar.
Neste momento, só me apetece nunca mais ver a Felicity.
Sem dizer mais nada, começo a descer a escada.
– Isso, vai lá. Vai-te embora. Estás sempre a ir e vir. O resto de nós aqui
está, presa. Julgas que ele continuaria a gostar de ti se soubesse quem és?
Ele não se importa mesmo, apenas quando lhe dá jeito.
Por momentos, não sei se ela se refere a Simon ou a meu pai. Vou-me
embora, deixo Felicity na sombra ao cimo da escada.

O baile acabou. O soalho está uma porcaria. A pegar em casacos, a bocejar


as boas-noites, os convidados passam por cima dos detritos no chão –
papelinhos, migalhas, cartões de dança esquecidos, as pétalas das flores
murchas. Alguns cavalheiros têm os narizes vermelhos e estão tocados.
Apertam a mão da senhora Worthington com demasiado ardor, as vozes
soam alto de mais. As esposas puxam-nos dali com afirmações educadas
mas firmes, «A carruagem está à espera, senhor Johnson». Uns vão atrás.
Outros saem com o rubor de um novo amor nos rostos sonhadores; outros
ainda usam as esperanças despedaçadas e os corações partidos nos olhares
baixos e sorrisos vacilantes.
Percival pergunta se me pode visitar algum dia. Não vejo Simon em lado
nenhum. Parece que os Middleton se foram embora. Ele saiu sem se
despedir.
Fiz uma trapalhada em tudo – Kartik, Simon, Felicity, meu pai. Feliz
Natal. Que Deus nos abençoe a todos.
Mas vi o Templo numa visão.
Quem me dera ter alguém a quem contar.
TRINTA E NOVE

Passam-se dois dias solitários e desgraçados até eu encontrar coragem de


visitar Felicity, a pretexto de devolver um livro emprestado.
– Vou saber se a menina está em casa – diz o mordomo Shames, a pegar
no cartão-de-visita da minha avó, onde acrescentei o meu nome numa letra
bonita. Daí a momentos, ele volta com o cartão… e sozinho. – Lamento,
menina. Parece que a menina Worthington afinal saiu.
À saída da casa, olho para trás, para cima, e vejo a cara dela à janela.
Felicity esconde-se logo atrás do cortinado. Está em casa e preferiu mandar-
me embora.
Ann vem ter comigo à carruagem.
– Desculpa, Gemma, de certeza que ela não faz por mal. Sabes bem como
ela fica.
– Não é desculpa – digo eu. Ann parece-me enervada com qualquer outra
coisa. – O que se passa?
– Recebi um bilhete da minha prima. Alguém andou a perguntar das
minhas alegações de parentesco com o duque de Chesterfield. Gemma, vão
descobrir tudo.
– Não vão descobrir nada.
– Vão pois! Assim que os Worthingtons souberem quem sou e que os
enganei... oh, Gemma, estou num grande sarilho.
– Não contes à senhora Worthington do bilhete.
– Ela já está tão zangada por causa do vestido. Ouvi-a dizer à Felicity que
tinha ficado estragado depois de ter sido alargado para mim. Eu não a devia
ter deixado convencer-me a alinhar. E agora... Vou ficar com a minha
reputação de rastos, Gemma. – Ann parece quase doente de medo e
ralação.
– Vamos remediar tudo – digo eu, embora não faça ideia como. Vejo
Felicity à janela lá em cima outra vez. Tanta coisa a remediar. – Não te
importas de dar um recado à Felicity?
– Claro que não – Ann ainda fala em voz queixosa. – Se eu ainda cá
estiver para lho dar.
– Não te importas de lhe dizer que eu vi o Templo? Vi-o numa visão na
noite do baile.
– Viste?
– As três raparigas de branco mostraram-me o caminho. Diz-lhe que,
quando ela estiver pronta, voltaremos.
– Digo – Ann promete. – Gemma... – Outra vez, não. Agora não a
consigo ajudar. – Não vais contar ao Tom nada disto, pois não?
Se ele descobrir, não sei a quem é que ele odiará mais pelo logro, se a
mim, se Ann.
– Eu sou um túmulo.

É intolerável voltar a casa. O meu pai está a piorar a olhos vistos, grita que
quer láudano ou o cachimbo, algum opiáceo para lhe tirar as dores. Tom
está sentado à porta do quarto do pai, os braços compridos apoiados nos
joelhos dobrados. Tem a barba por fazer e olheiras fundas.
– Trouxe-te um chá – digo eu, e passo-lhe a chávena. – Como é que ele
está?
Como que em resposta, o meu pai geme do outro lado da porta. Ouço a
cama a ranger com o peso dos seus movimentos nervosos. Está a chorar
baixinho. Tom leva as mãos à cabeça como se pudesse espremer todos os
pensamentos lá de dentro.
– Faltei-lhe, Gemma.
Desta vez, sento-me ao lado do meu irmão.
– Não, não faltaste.
– Talvez eu não esteja destinado a ser médico.
– Claro que estás. A Ann pensa que vais ser um dos melhores
especialistas em Londres – digo eu, na esperança de o animar. Custa-me ver
o Tom, o Tom arrogante, impossível, imparável, a sentir-se assim tão mal.
Ele é a única constante na minha vida, mesmo que seja uma constante
irritação. Tom faz um sorriso acanhado.
– A menina Bradshaw disse isso? Ela é mesmo bondosa. E rica também.
Quando te pedi que me arranjasses um bom partido com uma pequena
fortuna, estava só a brincar, mas levaste-me ao pé da letra.
– Sim, pois, acerca dessa fortuna... – começo. Como é que hei de explicar
esta mentira ao Tom? Devia dizer-lhe antes que as coisas avancem mais,
mas não consigo confessar-lhe que Ann não é herdeira de ninguém, apenas
uma alma boa e esperançosa que o considera o suprassumo. – Ela é rica
noutros aspetos, Tom. Não te esqueças disso.
O meu pai resmunga alto e Tom parece que quer fugir.
– Não aguento muito mais. Talvez lhe devesse dar alguma coisa, brande
ou...
– Não. Porque é que não vais dar um passeio ou passares pelo teu clube?
Eu fico com ele.
– Obrigado, Gemma. – Tom dá-me um beijo impulsivo na testa, e o sítio
fica quente. – Não cedas. Eu sei como são as senhoras, demasiado brandas
para servirem de guardiãs.
– Vai lá, sim? Rua daqui – digo eu.
O quarto de meu pai está banhado na névoa purpúrea do crepúsculo. Ele
geme e mexe-se na cama, tem os lençóis todos enrodilhados. O ar cheira a
suor. O meu pai está empapado em suor, a roupa de cama colada ao corpo.
– Olá, meu pai – digo eu, corro os cortinados e aumento a chama do
candeeiro. Deito água num copo e levo-lho aos lábios, gretados e
esbranquiçados. Ele bebe golinhos.
– Gemma – diz ofegante. – Gemma, querida. Ajude-me.
Não chores, Gem, sê forte.
– Quer que eu lhe leia alguma coisa?
Ele agarra-me num braço.
– Ando a ter os sonhos mais horrorosos. Tão vívidos que nem sei se estou
a dormir se estou acordado.
Sinto um nó no estômago.
– Como é que são os sonhos?
– Com criaturas. Contam-me histórias terríveis sobre a sua mãe. Que ela
não era quem dizia ser. Que era uma bruxa, uma feiticeira que tinha feito
coisas terríveis. A minha Virgínia... a minha mulher.
Ele desata a chorar. Há algo dentro de mim a despedaçar-se. O meu pai,
não. Deixem o meu pai em paz.
– A minha mulher era virtuosa. Era uma mulher muito nobre. Muito boa.
– Os olhos dele encontram os meus. – Dizem que a culpa é sua. Que tudo
isto é por causa de si.
Tento respirar. O olhar do meu pai suaviza-se.
– Mas a Gemma é a minha menina querida, a minha menina muito boa,
não é, Gemma?
– Sim – digo num sussurro. – Com certeza.
Ele agarra-me bem.
– Não suporto nem mais um minuto estas coisas. Seja boazinha, Gemma.
Procure o frasco. Antes que os sonhos voltem a atormentar-me.
A minha determinação enfraquece. Já não tenho a certeza de aguentar
perante as súplicas dele que ganham mais urgência, a voz lavada em
lágrimas que passa a um sussurro rouco.
– Por favor, por favor, por favor. Não consigo aguentar. – Sai uma
bolhinha de saliva dos seus lábios gretados.
Sinto-me enlouquecer. Como a mente de Nell Hawkins, a mente do meu
pai está muito castigada. Aquelas criaturas conseguiram encontrá-lo em
sonhos. Não o deixam em paz por causa de mim. A culpa disto tudo é
minha. Tenho de remediar isto. Esta noite, vou aos reinos e não saio de lá
enquanto não encontrar o Templo.
Porém, não vou deixar meu pai a sofrer entretanto.
– Sossegue, pai, eu ajudo – digo eu. Puxo as saias muito para cima da
decência e corro para o meu quarto, encontro a caixa onde escondi o frasco.
Torno a correr para a cabeceira de meu pai. Tem os lençóis da cama presos
nas mãos, está a abanar a cabeça para a frente e para trás, a contorcer-se e a
transpirar.
– Pai, toma. Toma! – Levo-lhe o frasquinho aos lábios. Ele bebe o
láudano como um homem sedento.
– Mais – pede-me ele.
– Chiu, não há mais.
– Não basta! – grita ele. – Não basta!
– Deixe fazer efeito.
– Não! Vá-se embora! – berra ele, e bate com a cabeça no espaldar da
cama.
– Não, pai! – Ponho as minhas mãos de cada lado da cabeça dele para não
continuar a magoar-se.
– É a minha linda menina, Gemma – sussurra ele. As pálpebras tremem.
A mão dele solta-me. O meu pai acalma-se num sono movido a ópio. Resta-
me esperar ter feito a coisa acertada. Vejo a senhora Jones à porta.
– Menina, está tudo bem?
Saio do quarto algo cambaleante.
– Sim – respondo, quase sem fôlego. – O senhor Doyle agora vai
descansar. Ocorreu-me uma coisa que tenho de fazer. Não se importa de
ficar com ele, senhora Jones? Eu não me demoro.
– Com certeza, menina – diz ela.

Começou a chover outra vez. Não temos carruagem, apanho uma charrete
até ao Hospital de Bethlem. Quero dizer a Nell que vi o Templo numa visão
e que está ao meu alcance. Também lhe quero perguntar como hei de
encontrar a professora McCleethy – Circe. Se ela pensa que pode mandar as
criaturas atormentarem o meu pai, está muito enganada.
Quando chego, está tudo num pandemónio. A senhora Sommers esgueira-
se pelo corredor fora a torcer as mãos. Fala em voz esganiçada. Está
muitíssimo excitada.
– Ela está a fazer coisas más, menina. Coisas tão más!
Há vários doentes reunidos no corredor, ansiosos por ver o que estará a
causar tal distúrbio. A senhora Sommers começa a arrancar o próprio
cabelo.
– Menina má, má!
– Então, Mabel – diz uma enfermeira e baixa o braço à senhora Sommers.
– O que é que está para aí a arengar? Quem é que está a fazer coisas más?
– A menina Hawkins, é uma menina má.
Ouvem-se uns guinchos pavorosos ao fundo do corredor. Duas das
mulheres começam a imitar por graça. O som está em todo o lado ao
mesmo tempo e agride-me.
– Santíssimo sacramento – exclama a enfermeira. – O que será isto?
Passamos depressa pelas mulheres que guincham, os nossos pés ressoam
no soalho polido até chegarmos à sala de espera. Nell está de pé e de costas
para nós. A gaiola de Cassandra está vazia e de porta entreaberta.
– Menina Hawkins? Que alarido é este... – A enfermeira cala-se quando
Nell se vira para nós, a papagaia segura nas suas mãos pequenas. Tem penas
verdes e encarnadas numa cascata de cores, mas a cabeça da ave está mal.
Está num ângulo impossível em relação ao corpinho frágil. Nell quebrou-
lhe o pescoço. A enfermeira fica estarrecida.
– Oh, Nell! Mas o que é que tu foste fazer?
Juntou-se uma multidão atrás de nós, vai apertando para conseguir ver. A
senhora Sommers corre de uns para outros, a bichanar:
– Malvada! Malvada! Eles disseram que ela era malvada! Disseram!
– Não se pode enjaular as coisas – diz Nell Hawkins em tom neutro.
Horrorizada, a enfermeira não consegue dizer mais nada.
– Mas o que é que tu foste fazer?
– Dei-lhe a liberdade. – Parece que Nell agora reparou em mim. Faz-me
um sorriso de cortar o coração. – Ela vem buscar-me, Dama Esperança. E
depois vem buscar-te a ti.
Aparecem dois homens encorpados com a camisa-de-forças para Nell.
Aproximam-se devagar e vestem-lha como se ela fosse um bebé. Ela não
oferece resistência. Não parece dar por nada.
Só quando passa por mim é que desata a gritar.
– Eles hão de desorientar-te com promessas falsas! Não saias do
caminho!
QUARENTA

Ao final do dia seguinte, a curiosidade de Felicity levou a melhor à raiva


que ela me tem. Vem visitar-me com Ann. Os nossos dias em Londres
estão-se a acabar. Não tarda a que tenhamos de voltar à Spence. Tom recebe
Ann animadamente, e ela alegra-se. Tem ganho mais autoconfiança nestas
duas semanas em Londres, como se finalmente se considerasse digna de ser
feliz, e eu fico ralada que isto vá acabar mal. Felicity puxa-me para a
salinha.
– Aquilo que aconteceu no baile, nunca mais vamos falar disso. – Recusa-
se a fitar-me. – Seja como for, não é o que tu pensas. O meu pai é bom
homem, afetuoso, um perfeito cavalheiro. Ele nunca faria mal a ninguém.
– E a Polly?
– O que tem a Polly? – pergunta ela, subitamente a olhar para mim com
altivez. Felicity sabe transmitir tanto gelo naqueles olhos quando lhe
interessa. – Ela tem sorte de a termos acolhido. Vai ter tudo o que quiser: as
melhores precetoras, escolas, roupas, uma temporada que vai meter todas as
outras num chinelo. É melhor do que o orfanato, mas de longe.
É este o preço da amizade dela, o meu silêncio.
– Estamos entendidas?
Ann vem ter connosco.
– Perdi alguma coisa?
Felicity está à espera da minha resposta.
– Não – digo eu para Ann. Felicity descontrai os ombros.
– Não nos vamos ralar com o horror das visitas natalícias ao domicílio. A
Gemma sabe como encontrar o Templo.
– Creio que o consegui ver.
– De que é que estamos à espera? Vamos – diz Ann.

O jardim está quase irreconhecível para mim. As ervas daninhas estão


espigadas e, densas e altas como sentinelas. A carcaça de um animal
pequeno, um coelho ou um ouriço, jaz aberta na erva quebradiça. As
moscas não a largam. Fazem um zumbido alto e horrível.
– Tens a certeza de que estamos no jardim? – pergunta Ann, a olhar em
redor.
– Tenho – digo eu. – Olha, a arcada de prata. – Está manchada mas, de
resto, na mesma.
Felicity encontra a pedra onde Pippa lhe escondeu arco e flechas, e põe a
aljava ao ombro.
– Onde está a Pip?
Sai um animal lindíssimo dos arbustos. É como uma mescla de veado e
pónei, com crina longa e lustrosa e flancos cor de malva variegada.
– Olá – digo eu.
A criatura vem ter connosco e para, a farejar. Nisto, fica assustadiça,
como se lhe cheirasse a coisa alarmante. De repente, desata a correr, mesmo
quando alguma coisa salta do mato com um berro de guerreiro.
– Fujam! – grito eu, e empurro as outras para dentro das ervas daninhas.
O animal é deitado ao chão, a berrar. Ouve-se o ruído doentio de ossos a
partirem-se, e depois, nada.
– O que era aquela coisa? – sussurra Ann.
– Não sei – respondo.
Felicity pega no arco e vamos atrás dela até à beira do matagal. Está
qualquer coisa agachada por cima do animal, no sítio onde lhe abriram a
carne. Felicity assume posição.
– Não se mexa!
A criatura levanta a cabeça. É Pippa, a cara manchada do sangue do
animal. Por momentos, juro que lhe vejo os olhos a ficarem azuis
esbranquiçados, um olhar de fome a passar por aquele rosto tão bonito.
– Pippa? – chama Felicity, e baixa o arco. – O que é que estás a fazer?
Pippa levanta-se. Tem o vestido esfarrapado e o cabelo num torvelinho.
– Tinha de ser. A coisa queria atacá-las.
– Não queria nada – digo eu.
– Queria, sim! – grita ela. – Tu não sabes estas coisas. – Ela avança para
nós e eu, instintivamente, recuo. Pippa apanha uma flor de dente de leão e
oferece-a a Felicity. – Vamos descer o rio outra vez? É tão bonito no rio.
Ann, conheço um sítio onde a magia é muito forte. Podíamos fazer-te tão
bonita e assim poderias ter tudo o que desejasses.
– Eu desejo ser bonita – diz Ann. – Depois de encontrarmos o Templo,
claro.
– Ann – digo eu, a avisá-la. Não era minha intenção, mas escapou-se-me.
Pippa olha para Ann e depois para Felicity.
– Sabem onde fica?
– A Gemma viu numa visão – Tenho de interromper Felicity.
– Não. Ainda não.
Os olhos de Pippa enchem-se de lágrimas.
– Sabes bem onde fica. E não queres que vá convosco.
Ela tem razão. Tenho medo da Pip, daquilo em que ela se estará a tornar.
– Claro que queremos que vás connosco, não queremos? – pergunta-me
Felicity. Pip acaba com a flor e olha-me de mau modo.
– Não, não quer. Ela não gosta de mim. Nunca gostou.
– Isso é mentira – digo eu.
– É verdade! Sempre tiveste ciúmes de mim. Tinhas ciúmes da minha
amizade com a Felicity. E tiveste ciúmes da maneira como aquele indiano, o
Kartik, olhava para mim, como se me desejasse. Tu odiavas-me por isso.
Não te rales a negar que o tens estampado na cara!
Ela trespassou-me com a verdade, e sabe-lo muito bem.
– Não sejas tola – digo eu. Nem consigo respirar. Ela fixa-me com um
olhar de animal ferido.
– Eu não estaria aqui se não fosses tu.
Pronto, lá está, aquilo que tinha ficado por dizer.
– Tu... Tu escolheste comer as bagas – balbucio. – Tu escolheste ficar.
– Tu deixaste-me aqui a morrer no rio!
– Eu não consegui travar o assassino a mando de Circe, aquela coisa
negra! Eu voltei por ti.
– Convence-te do que quiseres, Gemma mas, no teu coração, tu sabes a
verdade. Tu deixaste-me aqui com aquela coisa. Se não fosse por mim, tu
nunca saberias... – Ela cala-se.
– Nunca saberia o quê? – pergunta Ann.
– Tu nunca saberias que andavam à tua procura! Fui eu quem te avisou,
em sonhos.
– Mas tu disseste que não sabias nada disso – diz Felicity, com ar
magoado. – Tu mentiste. Tu mentiste-me.
– Fee, por favor, não te zangues – diz Pip.
– Porque é que não me disseste antes? – pergunto eu.
Pippa cruza os braços.
– Porque é que me arriscaria a contar-te tudo quando tu não me prometes
nada?
A lógica dela é uma teia magistralmente bem tecida, e sou apanhada por
ela.
– Muito bem. Se eu não sou de fiar – diz Pippa, a virar costas – podem
encontrar o Templo sem mim. Mas depois não venham cá pedir socorro.
– Pippa! Não vás! – Felicity chama-a. Eu nunca tinha visto a Felicity
pedir coisa alguma a alguém. Pela primeira vez, Pippa não lhe responde ao
chamado. Continua a andar até deixarmos de a ver.
– Não devíamos ir atrás dela? – pergunta Ann.
– Não. Se ela quiser portar-se como uma criança mimada, pois seja. Eu
não vou atrás dela – diz Felicity, a agarrar bem no arco. – Vamos
prosseguir.
O amuleto aponta-me o caminho e adensamo-nos na floresta, passamos o
maciço onde estão as desventuradas operárias da fábrica incendiada.
Seguimos o caminho do olho da meia-lua numa pista longa e sinuosa até
chegarmos a uma porta estranha que dá para as Grutas dos Suspiros.
– Como é que viemos aqui parar outra vez? – pergunta Felicity. Eu estou
muitíssimo confusa.
– Não faço ideia. Creio que já perdi o norte completamente.
De súbito, Ann estaca com um ar temeroso no rosto.
– Gemma...
Eu viro-me e vejo-as, a flutuarem no caminho. Felicity faz menção de
pegar nas setas, mas eu impeço-a.
– Não faz mal – digo eu. – São as raparigas de branco.
– O Templo está perto – sussurram elas naquelas vozes como enxames. –
Vem connosco.
Elas andam depressa. Mal conseguimos não as perder de vista. O verde
da pista emaranhada como uma selva dá lugar a montes verdejantes que
depois passam a extensões de areia. Quando descemos o terceiro monte, já
deixei de ver as raparigas. Esfumaram-se no ar.
– Onde é que elas estão? – pergunta Felicity, a tirar a aljava para aliviar o
ombro dorido.
– Não as consigo ver – digo eu, a tentar recobrar o fôlego. Ann senta-se
numa rocha.
– Estou cansada. Parece que estamos a andar há dias seguidos.
– Talvez consigamos ver se subirmos a um destes montes – propõe
Felicity. – Disseram que ficava perto. Anda daí, Ann.
De má vontade, Ann levanta-se e subimos todas três o monte pedregoso à
nossa direita.
– Estás a ouvir alguma coisa? – pergunto eu. Pomo-nos à escuta e lá está:
ruído de choro baixinho.
– Pássaros? – pergunta Felicity.
– Gaivotas – responde Ann. – Devemos estar perto da água.
Estamos perto do cume do monte. Estendo a mão a Ann para a puxar.
– Credo! – exclama Ann, a abarcar o panorama.
Diante de nós, do outro lado de uma extensão de água, está uma pequena
ilha. Nela ergue-se uma catedral majestosa com uma cúpula pintada a azul e
ouro. As gaivotas que estávamos a ouvir esvoaçam em círculos por cima
dela.
– É isto. Foi o que eu vi na visão – digo eu.
– Encontrámos! – clama Felicity. – Encontrámos o Templo!
Na nossa pressa de não ficar para trás, esqueci-me de olhar para o
amuleto e verificar a nossa rota. Quando olho, vejo que parou de cintilar.
– Saímos do caminho – digo, em pânico.
– Que importa? – retruca Felicity. – Encontrámos o Templo finalmente.
– Mas não está no caminho – digo eu. – A Nell disse para não sairmos do
caminho.
O cansaço deixou Felicity irritadiça.
– Gemma, ela estava a dizer baboseiras. Tu estás a seguir conselhos de
uma lunática diagnosticada!
Viro-me num círculo, a subir e a descer o amuleto numa tentativa de
receber uma espécie de sinal. Nada. Ann põe as mãos nas minhas.
– É verdade, Gemma. Não fazemos ideia se podemos confiar no que ela
nos tem dito. Na melhor das hipóteses, ela é só uma lunática. Na pior, estará
conluiada com Circe. Não sabemos.
– Como é que tu sabes sequer que esse amuleto é fiável? Sinceramente,
aonde é que ele nos levou? Aos Intocáveis? Àquelas raparigas no matagal?
Quase éramos assassinadas por aqueles pisteiros horrorosos na noite da
ópera! – insiste Felicity. Ann faz que sim com a cabeça.
– Tu própria disseste que as raparigas de branco te apareceram numa
visão. Elas mostraram-te o Templo, e lá está ele!
Sim, e todavia...
Não está no caminho. Nell disse que não deveríamos deixar que nos
desviassem. Nell, que estrafegou uma papagaia num acesso de loucura, que
me tentou estrangular também.
Não confies nela, disseram as raparigas de branco.
Ora, Kartik disse que não se podia confiar em nada dentro dos reinos.
Já não sei em que é que hei de acreditar.
A catedral ergue-se como algo que existe ali há muitos anos. Só pode ser
o Templo. O que mais poderia ser? Lá em baixo na praia, está um pequeno
barco a remos, à espera, como se estivessem à nossa espera.
– Gemma? – Felicity interpela-me.
– Sim – respondo, e guardo o amuleto. – Deve ser o Templo.
Com um ganido, Felicity corre pelo monte abaixo até ao barco. À
distância, a magnífica catedral chama-nos com mil luzes a arder.
Desatracamos o barco e empurramo-lo da margem, vamos remando até à
ilha.
Já na água, faz-se nevoeiro. A noite cai de repente. Os gritos das gaivotas
rodeiam-nos a toda a volta. O fosso que nos separa do Templo é
surpreendentemente largo. Tento olhar por cima do nevoeiro e, por
momentos, a igreja altaneira não me parece mais do que ruínas. A lua
amarelada derrama-se numa das janelas altas e cavas da catedral, reflete-se
em cacos de vidro que permanecem como um farol a chamar um navio que
perdeu o norte. Fecho os olhos, quando os torno a abrir, a catedral continua
magnífica e inteira, um enorme monumento de pedras e pináculos e grandes
janelas góticas.
– Parece deserta – diz Felicity. – Não consigo imaginar alguém que more
além.
Nem nada que lá more, apetece-me dizer.
Atracamos o barco. O Templo está alcandorado no monte. Para lá chegar,
temos de subir degraus íngremes que foram escavados na rocha.
– Quantos te parece que sejam? – pergunta Ann, a tentar lobrigar o topo.
– Só há uma maneira de saber – digo eu, e começo a subida. É penosa e, a
meio caminho, Ann tem de se sentar para recobrar o fôlego.
– Não consigo fazer isto – sopra ela.
– Consegues, pois – digo eu. – Falta só mais um pedacinho. Olha.
– Oh! – exclama ela, sobressaltada. Passa por nós um grande pássaro
preto, as asas muito perto do rosto dela, e vai empoleirar-se nos degraus a
nosso lado. Deve ser uma espécie de corvo. Começa a fazer barulho, deixa-
me os braços cheios de pele de galinha. Aparece outro. O par parece que
nos desafia a continuar.
– Vamos lá, então – digo eu. – São apenas uns pássaros.
Passamos por eles até ao cimo da escada, onde deparamos com uma
enorme porta dourada. Tem entalhadas nela as mais belas flores.
– Que lindo – diz Ann. Depois leva os dedos às pétalas e a porta abre-se.
A catedral é imensa, o teto ergue-se muito acima de nós. Por todo o lado há
velas e archotes acesos.
– Está gente? – chama Ann. A voz dela faz eco, gente, ente, ente.
As lajes do chão de mármore foram assentadas num padrão de flores
encarnadas. Quando viro a minha cabeça para um lado, o chão parece-me
sujo e lascado, as lajes cheias de fendas. Pisco os olhos e volta a ser
brilhante e bonito.
– Veem alguma coisa? – pergunto. Coisa, oisa, oisa.
– Não – diz Ann. – Espera lá, o que é isto?
Ann toca numa coisa qualquer na parede. Essa parte da rocha esboroa-se.
Há qualquer coisa que cai pelo chão fora e que aterra aos meus pés. Uma
caveira. Ann estremece.
– O que é que estava ali a fazer?
– Não faço ideia. – Tenho os pelinhos da nuca todos eriçados de medo.
Devo estar a ter ilusões de ótica, porque o chão me parece lascado outra
vez. A beleza da catedral parece estrelejar como as velas, de majestosa a
macabra. Por segundos, vejo outra catedral, uma casca partida e esboroada,
as janelas estilhaçadas acima de nós parecem-se bizarramente com as
órbitas vazias de uma caveira.
– Creio que nos devemos ir embora – sussurro.
– Gemma! Ann! – A voz de Felicity está esganiçada de medo. Corremos
para ela. Tem uma vela a alumiar a parede. É quando vemos. Incrustados na
parede, ossos. Centenas de ossos. O medo grita dentro de mim.
– Isto não é o Templo – digo, a ver os ossos de uma mão enterrada na
pedra carcomida. Fico gelada quando me apercebo da verdade. Não saiam
do caminho, donzelas. – Elas desorientaram-nos, como a Nell disse que
fariam.
Por cima de nós, algo a correr. Sombras a atravessarem a cúpula. Ann
agarra-me num braço.
– O que era aquilo?
– Não sei. – Sei, sei, sei.
Felicity leva a mão à aljava que tem ao ombro. O barulho vem do outro
lado. Parece próximo.
– Vamo-nos embora – sussurro eu. – Agora.
De súbito, há movimento a toda a volta. As sombras dardejam pelo topo
da cúpula dourada como morcegos gigantescos. Estamos quase à porta
quando ouvimos um grito agudo que me enregela o sangue nas veias.
– Fujam! – grito eu.
Lançamo-nos para a porta, os sapatos a ressoarem no chão de lajes
lascadas, mas não chega para abafar os guinchos, rosnidos e latidos
horrendos.
– Vamos, vamos! – continuo a gritar.
– Olhem! – berra Felicity.
A escuridão no átrio está a mexer-se. O que estava acima de nós chegou à
porta antes de nós, encurralou-nos. O grito penetrante passa a um cântico
baixo e gutural.
– Bonecas, bonecas, bonecas...
Eles saem das sombras, meia dúzia ou mais das criaturas mais grotescas
que alguma vez os meus olhos viram. Trajados todos com túnicas brancas
imundas e esfarrapadas, por cima de cotas de malha antigas e botas de
biqueira de aço. Uns têm cabelos compridos empastados que lhes chegam
aos ombros. Outros raparam as cabeças, os cortes ainda frescos e
ensanguentados. Uma alma temível não tem mais que uma faixa de cabelo
comprida no meio da cabeça, da testa à nuca. Tem os braços cobertos de
pulseiras e ao pescoço um colar feito de ossos dos dedos. Este, o líder, dá
um passo em frente.
– Olá, boneca – diz, com um sorriso horrendo.
Estende-me a mão. As unhas estão pintadas de preto. Há linhas pretas e
fundas nos braços fibrosos, caules com espinhos que choram lágrimas de
pez. Terminam acima do cotovelo, onde desabrocham flores encarnadas e
gordas em faixa à roda do braço. Papoilas.
As palavras de Nell vêm-me à cabeça: Cautela com os Guerreiros da
Papoila.
QUARENTA E UM

As sombras mexem-se. Há mais. Muitos mais. Muito acima de nós,


empoleiram-se nas traves e nas vigas como um bando de gárgulas. Vejo um
a brandir uma clava na ponta de uma corrente, balouça de um lado para o
outro como um pêndulo. Tenho medo de olhar para o homem diante de mim
mas, quando finalmente o faço, vejo olhos contornados a lápis preto em
forma de losango. É como olhar para uma máscara viva do Arlequim.
Sinto a garganta seca. Mal consigo balbuciar uma saudação.
– C-c-omo está?
– Como está o quê, boneca?
Os outros riem-se disto, um som que me deixa toda arrepiada.
Ele avança mais um pouco. Tem uma espada tosca que usa como bengala,
a mão fechada no punho. Usa um anel em cada dedo.
– Lamentamos ter entrado assim... – Tenho a boca demasiado seca. Não
saem mais palavras.
– Estamos perdidas – diz Felicity.
– Estamos todos, boneca, estamos todos. Eu chamo-me Azreal. Sou
Cavaleiro da Papoila, assim como todos os outros. Ah, mas ainda não nos
disseram como se chamam, lindas senhoras.
Não dizemos nada. Azreal dá estalinhos com a língua.
– Oh, isso é que não pode ser. O que temos aqui? Ah, vejo que fizeram
amizade com a gente da floresta. – Ele tira o arco e a seta a Felicity e deita-
os no chão. – Boneca tola. O que é que lhes prometeram?
– Foi uma prenda – diz Felicity. O bando desata a sibilar.
– Mentiras, mentiras, mentiras...
Azreal sorri.
– Não há prendas nestes reinos, boneca. Toda a gente está à espera de
alguma coisa. O que faz uma moça tão doce com uma prenda assim
terrível? Contem lá, bonecas, de que é que estavam à procura? Pensaram
que isto era o Templo?
– Qual Templo? – retruca Felicity. Azreal ri-se disto.
– Que genica. Será quase uma pena quebrar-ta. Quase.
– E se estivéssemos à procura desse Templo? – pergunto eu, o coração a
bater-me descompassado.
– Bem, boneca. Teríamos de as impedir.
– A que se refere?
– Que as bichinhas prendessem a magia? Não, boneca. Assim não
teríamos ninguém a vaguear perto de nós. Ninguém com quem brincar.
– Não estamos aqui para prender a magia. Nós queremos o que todos
querem, um pedacinho – estou a mentir.
– Mentiras, mentiras, mentiras!
– Chiu – manda Azreal, a abrir as mãos, a mexer os dedos. – Os
Guerreiros da Papoila sabem ao que vieram. Nós sabemos que uma das
bichinhas é a Altíssima. Nós cheiramos a magia nas bichinhas.
– Mas... – digo eu, a tentar arranjar maneira de lhe fazer ver. Ele põe-me
o dedo nos lábios.
– Chiu, nada de negociações. Connosco, não. Assim que quebrarmos as
bichinhas, podemos sugar-lhes a magia dos ossinhos. Um sacrifício. Há de
dar-nos um poder deveras feroz.
– Mas ficam condenados – sussurra Ann.
– Já estamos condenados, boneca. Não serve de nada chorar sobre o
sangue derramado. Ora bem, qual das bichinhas havemos de oferecer
primeiro? – Azreal detém-se diante de Felicity. – Belas brincadeiras que
poderíamos fazer juntos, boneca. – Ele passa a unha afiada pela face de
Felicity, deixa um fino rasto de sangue. – Sim. Contigo seria digno de um
desporto, pequena bonita. Encontrámos a nossa primeira oferenda.
Ele agarra no braço de Felicity e ela tomba de joelhos, aterrorizada.
– O que lhes posso oferecer eu? – grito.
– Oferecer-nos, boneca?
– O que pretendem?
– Ora, brincar, claro. Já não temos aventuras, já não temos cruzadas.
Apenas brincadeiras.
Ele bate palmas e duas das bestas agarram Felicity.
– Esperem! – grito eu. – Isso não é desportivismo, pois não?
Azreal manda parar os homens.
– Continua – manda ele.
– Proponho um jogo.
Azreal mostra os dentes, o que lhe dá à cara a aparência de uma máscara
da morte.
– Estou intrigado, boneca. – Ele rodeia-me o pescoço com a mão,
acaricia-o, e fala-me ao ouvido. – Diz-me lá, que espécie de jogo?
– Uma caçada – sussurro eu.
Azreal recua.
– O que estás a fazer? – adverte Ann.
Continuo de olhos fixos em Azreal. Se eu conseguir juntar-nos, posso
fazer aparecer a porta de luz e podemos fugir aos Guerreiros da Papoila.
Azreal bate as palmas outra vez, e desata a gargalhar, encantado. Os
Guerreiros da Papoila imitam-no. Juntos, parecem os pássaros que ouvimos
quando atravessámos a água.
– Mas que oferta tão desportiva. Sim, sim, agrada-me. Aceitamos,
boneca. Uma caçada vai aguçar-nos o apetite. Estão a ver aquela porta?
Ele aponta para uma arcada com porta de ferro no outro extremo da
catedral.
– Estou – digo eu.
– Dá para as catacumbas lá em baixo, são cinco túneis. Um leva à saída e
para bem longe. Talvez o encontrem. Isso é que seria magia, deveras,
bonecas. Vamos deixá-las começar.
– Sim, mas precisamos de um momento para conferenciar – digo eu.
Azreal abana-me um dedo espetado.
– Não há tempo de mandar vir a porta, sacerdotisa da Ordem – diz ele,
como se me lesse o pensamento. – Sim, sei tudo sobre isso. O teu medo dá-
nos passagem. – Depois sacode as mãos por cima de nós, como se
espalhasse pó das fadas, as pulseiras a chocalharem com eco. – Vamos ver
se conseguem encontrar o túnel. Vão lá, bonecas. Rua, rua, rua. – Ele entoa
isto como se fosse uma bênção. – Rua, rua, rua.
Os Guerreiros da Papoila pegam na deixa como uma melopeia – Rua,
rua, rua – até ressoar nas paredes da catedral como um grande rugido.
Rrruuuaaa, rrruuuaaa, rrruuuaaa!
Como se disparadas por um canhão, eu e Ann lançamo-nos na direção da
porta.
– Felicity! – grito eu.
Ela parou para pegar no arco e na aljava cheia de setas.
– Esperta, a boneca! – berra Azreal. – Mas que genica que ela tem!
– Vão! – grita ela, e consegue apanhar-nos. Não perdemos tempo.
Empurramos a porta pesadíssima e saímos para um corredor comprido com
velas de cada lado.
– Deem-me as mãos! – grito eu.
– Agora? – guincha Felicity. – Estão já atrás de nós.
– Mais uma razão para partir imediatamente!
Damo-nos as mãos, e eu tento concentrar-me. Os uivos e guinchos mais
primitivos e terríveis ecoam pela enorme catedral. Eles vêm atrás de nós.
Em segundos, hão de passar a porta e já não teremos hipótese. Estou a
tremer de medo de corpo inteiro.
– Gemma, faz a porta de luz! Tira-nos daqui! – grita Ann, quase
histérica.
Experimento outra vez. Um guincho penetrante abala-me e perco a
concentração. Felicity tem no rosto uma expressão tresloucada de medo.
– Gemma! – grita ela.
– Não consigo. Não me consigo concentrar! – digo eu.
Azreal fala como numa lengalenga.
– Não há magia nenhuma aqui, boneca. Não quando temos tantas
brincadeiras para fazer.
– Estão a sonegar-nos a magia. Vamos ter de arranjar outra maneira –
digo eu.
– Não, não, não! – Felicity está a gemer.
– Vamos lá! Procurem por todo o lado! – mando eu. Vamos cambaleando
pelo corredor fora, a apalpar as paredes, em busca de uma via de fuga. É um
trabalho cruento: as minhas mãos sentem bocados de ossos e dentes.
Aparece um bocado de cabelo nos meus dedos, e até me engasgo de medo e
nojo. Ann grita. Encontrou um esqueleto acorrentado a uma parede, um
aviso do que está para vir.
– Agora é que é, bonecas, vamos à vossa procura!
Oh, Deus. Os meus dedos trémulos encontram uma maçaneta. Faz parte
de uma porta pequena que quase se funde na parede.
– O que é isto? – pergunto. A porta abre-se a ranger, e quase caímos por
um lance de escadas perigosas bem comprido. Os degraus dão a volta à
parede, terminam muito lá em baixo, onde a sala dá para cinco túneis.
– Por aqui! – grito eu. Felicity e Ann ajudam e juntas empurramos a porta
pesada para a fechar, e pomos uma tranca. Baixinho, faço uma súplica para
que a tábua que encaixámos não ceda.
– Andem junto à parede – digo eu, a tentar lobrigar-lhe a esquina. O pé de
Ann resvala e manda uma pedra para o vazio. Demora muitos segundos a
cair no chão… uma queda bem longa. Depressa mas com cuidado, vamos
descendo. É como descer ao inferno. Os archotes lançam um brilho feérico
nas paredes molhadas e rugosas. Finalmente, chegamos ao fundo. Estamos
num círculo que se abre em túneis, como uma estrela de cinco pontas.
Ann está lavada em lágrimas, misturadas com ranho que lhe corre sem
parar. Os olhos arregalados de medo.
– E agora?
Os guinchos dos Guerreiros da Papoila passam pelas frinchas da porta
trancada. Estão a tentar arrombá-la implacavelmente, a madeira fende-se
num ruído ensurdecedor.
– Temos de encontrar o túnel que dá para a saída.
– Sim, mas qual é? – pergunta Felicity. Os túneis, alumiados por archotes,
abundam em sombras. Cinco túneis. Não fazemos ideia do comprimento
que tem cada um, nem do que nos espera no final.
– Temos de nos separar. Cada uma segue por um túnel.
– Não! – protesta Ann.
– Chiu! É a única maneira. De cada vez voltamos ao centro. Se
encontrarmos a saída, chamamos.
– Não posso, não posso – chora Ann.
– Ficamos juntas, ou já te esqueceste? – pergunta Felicity, a invocar as
palavras que dissemos no meu quarto na Spence. Só passaram duas
semanas, mas parece uma vida inteira.
– Então está bem – digo eu.
Tiro um archote da parede sangrenta e entramos na boca de um túnel
escuro. A chama alumia poucos metros à nossa frente e nada mais. A luz
incide sobre as ratazanas que nos correm por cima dos pés, e eu tenho de
abafar um grito. Continuamos até chegar ao fim.
– Não é este – digo eu, e arrepio caminho.
Ouve-se um ruído agudo e penetrante que faz eco nas paredes. Ressoa nos
ossos dos mortos, joguetes desventurados dos Guerreiros da Papoila. Eu
daria qualquer coisa para fugir a este som pavoroso. Acima de nós, a porta
foi castigada mas, misericordiosamente, aguentou firme.
Os grandes pássaros negros que vimos lá fora voam por cima de nós nas
catacumbas. Uns empoleirados nos degraus. Outros aterram no chão, a
crocitar. O segundo túnel é outro beco sem saída. Ann já está a chorar
abertamente quando cambaleamos pelo terceiro túnel fora, a luz fraca do
archote não mostra saída alguma. A voz de Azreal chega até nós.
– Estou a ouvir-te, bichaninha. Sei muito bem qual és, és a gordinha.
Como é que vais fugir de mim, ossinhos lindos?
– Ann, nada de choramingar! – Felicity dá um abanão a Ann, mas não
serve de nada.
– Estamos encurraladas – diz ela a chorar. – Vão encontrar-nos. Vamos
morrer aqui.
Os guinchos dos Guerreiros da Papoila passaram a rosnidos e latidos,
como uma caçada ao contrário em que os animais acossam os humanos. O
ruído deixa-me toda arrepiada.
– Chiu, vamos encontrá-lo – mando-a calar e levo-nos a todas de volta ao
círculo aberto. Apareceram mais pássaros. O ar está denso de tantos
pássaros.
– Só faltam dois túneis – ouve-se Azreal dizer. Como é que ele sabe? Não
está à porta. A não ser que haja outra entrada, de que só eles saibam.
Tenho o coração a bater como louco, até tenho medo de desmaiar, quando
Felicity grita:
– Gemma, o amuleto!
Está a cintilar debilmente por baixo do tecido do vestido. Ann deixa de
chorar.
– Deve estar a mostrar-nos a saída.
Santo Deus, sim, uma saída! Com dedos nervosos, puxo o colar, mas fica
preso na renda do vestido. Dou um puxão e solto o amuleto. Voa pelo ar e
ouço-o cair no chão, algures na escuridão.
– Temos de o encontrar. Rápido, ajudem-me a procurar! – grito.
A gruta está às escuras. Estamos no chão de gatas, em busca de qualquer
coisa reluzente. O meu coração é um martelo que bate depressa e com
força. Nunca senti um medo assim. Vá lá, vá lá, encontra-o, Gemma, linda
menina. Enxota o medo da tua mente.
Algo cintila no escuro. Metal. O meu amuleto!
Corro para onde o vi.
– Encontrei! – exclamo.
Levo a mão para o apanhar, mas o metal não se solta. Está preso a
qualquer coisa. Uma bota de biqueira de aço. Toma forma nos meus dedos
conforme um grito me nasce na garganta. Quando olho para cima, vejo
Azreal à luz do archote.
– Não, bichinha linda. Eu é que te encontrei.
QUARENTA E DOIS

Os pássaros grandes começam a crocitar. Ouve-se asas a bater quando eles


saem dos poleiros. Conforme fazem voo picado, mudam de forma,
metamorfoseiam-se em homens, até ficarem Guerreiros da Papoila, e
rodeiam-nos, cortam-nos todas as saídas.
Ao ver a minha expressão chocada, Azreal explica:
– Sim, foi a Ordem quem nos amaldiçoou desta forma por causa das
nossas brincadeiras. Há tanto tempo que não temos belezas assim com
quem brincar. Há tanto tempo que não podemos visitar o vosso mundo lindo
e trazer bichinhas para cá. – Ele enrola o meu cabelo nos dedos como se
fizesse laçadas. O hálito está quente no meu ouvido quando ele se
aproxima. – Há tanto, tanto tempo.
Tenho a garganta seca como estopa, e as pernas bambas.
– Não creio que isto venha a servir de nada agora – diz ele, e deixa cair o
amuleto inerte na minha mão. – Ora bem, com quem é que havemos de
brincar primeiro? – Azreal detém-se em frente a Ann. – Quem é que daria
pela tua falta, bichinha? Será que alguém viria a suspirar por causa de mais
uma donzela perdida? Talvez se ela fosse a mais bela de todas as belas. Mas
não estamos num conto de fadas. E tu não és bela. Não és nada bela.
Ann está tão aterrada que parece quase em transe.
– Seria uma bênção se te levássemos, hum? Deixavas de arder por dentro
enquanto as outras têm tudo o que desejam e mais ainda. Deixavas de cortar
a tua própria carne. Deixavas de ficar de boca bem fechada em redor do
grito que explode por dentro quando zombam de ti.
Ann faz que sim com a cabeça. Azreal chega-se mais a ela.
– Sim, nós podemos acabar com isso por ti.
– Parem! – estala Felicity. Azreal passa para ela, afaga-lhe o pescoço.
– Que genica, bichinha. Quanto tempo poderás durar? Se eu te quebrar e
sangrar? Uma semana? Duas semanas? – Azreal mostra os dentes num
sorriso lento. – Ou... correrias para dentro algures, como fizeste de cada vez
que ele te tocou?
A vergonha de Felicity mostra-se numa única lágrima que lhe corre pela
face.
Como é que ele sabe estas coisas sobre ela?
– Esteja calado – sussurra ela, a voz a trair a angústia.
– Tantas noites no teu quarto. Sem ter para onde fugir. Sem ter em quem
confiar. Sem ninguém para te ouvir. Não tinhas assim tanta genica,
bichinha.
– Cale-se – sussurra Felicity. Ele lambe-lhe a face.
– Aguentaste e, no fundo, disseste a ti mesma: «A culpa é minha. Eu é
que causei isto...»
Felicity tem tanto medo. Até o sinto nela. Todos sentimos. O que é que
ele disse? Nós cheiramos o vosso medo. O vosso medo dá-nos passagem.
Haverá algo no medo que sentimos que dê poder à magia deles?
– Fee, não ouças o que ele diz! – grito.
– Sabes uma coisa, bichinha? Parece-me que até gostaste bastante. É
melhor do que ser completamente ignorada, não é? É disso que tens
verdadeiramente medo, não é? Que afinal sejas indigna de ser amada?
Felicity está a chorar, não consegue retrucar.
– Não queres viver mais com isso, pois não, boneca? A vergonha. O
desgosto. A mácula na tua alma. Porque é que não pegas nesta lâmina e te
matas?
Felicity estende a mão e pega no punhal que ele lhe oferece.
– Não! – grito, mas um dos Guerreiros agarra-me. Azreal fala com
Felicity com toda a doçura, como uma mãe para o seu bebé.
– Isso mesmo. Acaba com isso. Tanto sofrimento. Desaparece para
sempre.
– Não lhes dês passagem – digo eu para Felicity. – Estão a usar o teu
medo contra ti. Tens de ser forte. Sê forte! – Forte. Força. Ocorre-me uma
coisa que Nell disse. – Felicity, a Nell disse que os Guerreiros da Papoila
nos queriam roubar a força. Fee, tu és a nossa força! Precisamos de ti!
Estou cara a cara com Azreal e os seus olhos mortos pintados de preto.
– Então e o teu medo, boneca? Por onde havemos de começar? Nem
sequer consegues ajudar o teu próprio pai.
– Não estou a ouvir nada – digo. Tento concentrar-me, abandonar o medo,
mas é tão difícil. Azreal continua.
– Tanto poder e não consegues fazer a única coisa que importa.
Há momentos, o meu amuleto começou a cintilar, para me mostrar a
saída. Tenho-o bem escondido na mão e viro-o na direção dos últimos dois
túneis. Qual será a saída?
Uma bofetada deixa-me a cara a arder.
– Estás a ouvir, boneca?
Continua concentrada, Gemma. Estarei a imaginar coisas, ou o amuleto
tem mesmo luz? Tem luz! É fraca mas é a sério. O túnel diretamente por
detrás de Azreal é o certo. Encontrei a saída.
– Nós visitamos o teu pai de vez em quando – diz ele.
– Como? – pergunto, e acaba-se-me a concentração. A luz desaparece.
– Quando ele está sob o sortilégio da droga, a mente fica muitíssimo
recetiva a nós. Que belas brincadeiras. Contámos-lhe de ti. Da tua mãe. Mas
ele está a enfraquecer e nós estamos a perder o divertimento.
– Deixem-no em paz.
– Sim, sim. Por agora. Vamos brincar.
– Ninguém se mexe! – Felicity está em cima de uma pedra, o arco bem
retesado, um olho semicerrado sobre a seta que tem apontada num arco
largo, a abranger a sala por inteiro. Os Guerreiros da Papoila crocitam. A
boca dela curva-se num sorriso odioso, uma imitação da corda do arco.
– Baixa o arco agora já, boneca.
Felicity aponta a seta para Azreal.
– Não.
O sorriso dele desaparece.
– Vou comer-te viva.
– Não me parece, maldito – diz ela entre lágrimas.
Com um brado, ele lança-se para ela. A seta de Felicity voa direita e
rápida, espeta-se no pescoço de Azreal mesmo acima da proteção da cota de
malha. Os olhos dele abrem-se muito quando tomba de joelhos e cai no
chão cheio de pó, morto. Há um momento de silêncio atordoado, seguido de
pandemónio. Os Guerreiros da Papoila guincham de raiva e dor. Não há
tempo a perder.
– Por aqui! – grito eu, e corro para o túnel que o amuleto me indicou.
Felicity e Ann vêm logo atrás, mas os Guerreiros da Papoila também. Não
temos hipótese de pegar num archote. O túnel é escuro como breu pelo
caminho fora, vamos dando encontrões umas às outras, sentimos as
ratazanas a correrem-nos pelos pés, ouvimos a respiração forçada e
desesperada umas das outras. Mesmo atrás de nós, ouve-se o crocitar
horrendo dos cavaleiros metamorfos.
– Onde está? – grita Felicity. – Onde está a saída?
Ainda está escuro de mais para eu ver a minha mão.
– Não sei!
– Gemma! – chama Ann. Eles estão no túnel connosco. Estou a ouvi-los
aproximarem-se.
– Continuem! – grito.
O túnel faz uma curva pronunciada. De súbito, vejo à minha frente – uma
abertura e, além dela, a bruma cinzenta do nevoeiro. Com mais um arranque
de velocidade, saímos para o ar denso, sorvemos grandes golfadas. Estamos
à beira da água.
– Lá está o barco – grita Felicity. Está onde o deixámos. Ann entra e pega
nos remos, eu e Felicity empurramos o barco para longe da praia, entramos
na água turva até aos joelhos. Com esforço, conseguimos subir.
Os pássaros vêm num enorme bando preto de guinchos.
Eu e Ann remamos contra a corrente enquanto Felicity faz pontaria
àquelas terríveis coisas aladas. Fecho os olhos e remo com toda a gana,
ouço o crocitar pavoroso e as setas de Felicity a cortarem o ar.
Há qualquer coisa que bate no barco.
– O que foi isto? – pergunta Ann.
– Não sei – digo, e abro os olhos. Olho em redor mas não vejo nada.
– Continuem a remar! – manda Felicity, a disparar setas. Caem pássaros
do céu. Transformam-se em homens e afundam-se na água.
– Estão a voltar! – grita Felicity. – Vão-se embora!
Até damos vivas. O remo de Ann é-lhe arrancado da mão. Há algo que
bate no barco com tanta força que até trememos.
– O que se passa? – pergunta Ann, aterrada.
Com um grande empurrão, o barco vira e somos atiradas para dentro do
fosso lamacento. Venho à tona a cuspir água, a limpar a água dos olhos com
os dedos.
– Felicity! Ann! – chamo. Não há resposta. Chamo mais alto. – Felicity!
– Aqui! – ela aparece, a cuspir água a meu lado. – Onde está a Ann?
– Ann! – torno a berrar o nome dela. – Ann!
A fita azul do cabelo está a boiar, abandonada. Ann foi-se, e só
conseguimos ver o lustre oleoso das ninfas da água.
– Ann!
Gritamos até ficarmos roucas. Felicity mergulha e volta.
– Apanharam-na.
Ensopadas e a tremer, cambaleamos até terra firme. À distância, as
janelas cavas da catedral piscam-me o olho. Despojada do encanto mágico,
voltou à sua verdadeira natureza, uma ruína grandiosa. Ponho a cabeça nos
joelhos e desato a tossir. Felicity está a chorar.
– Fee – digo eu, e ponho-lhe a mão nas costas. – Vamos encontrá-la.
Prometo. Não vai ser como... – Não vai ser como com a Pippa.
– Ele não me devia ter dito aquelas coisas – diz ela, a soluçar. – Não mas
devia ter dito.
Demoro um momento a perceber que ela se refere a Azreal e ao que
aconteceu nas catacumbas. Penso nela de pé em cima da pedra, a espetar a
seta no nosso torcionário.
– Não estejas arrependida do que fizeste.
Ela olha para mim, os soluços acabam numa fúria fria sem lágrimas. Em
seguida, Felicity põe ao ombro a aljava onde quase já não há setas.
– Não estou.

O caminho de volta ao jardim é longo e penoso. Daí a pouco, reconheço o


matagal do sítio onde encontrámos as raparigas do incêndio na fábrica.
– Estamos perto – digo eu. Já ouço as raparigas a conversarem.
– Aonde é que vamos? – pergunta uma delas.
– Com as amigas da Bessie. Elas conhecem um sítio onde podemos ficar
seguras outra vez – responde outra.
Puxo Felicity para baixo. Agachamo-nos atrás de um feto muito grande.
Agora estou a vê-las. As três raparigas de branco, aquelas da minha visão –
estão a levar as raparigas deste sítio no matagal numa direção em que nós
ainda não fomos. Pois elas querem desviá-las, transviá-las, com falsas
promessas...
A Nell tinha razão. Não importa quem as raparigas foram outrora, agora
são espíritos negros conluiados com Circe.
– Aonde é que elas vão? – sussurra Felicity.
– Para as Invernias, creio eu – respondo.
– Não devíamos impedi-las? – pergunta Felicity. Eu abano a cabeça.
– Temos de as deixar ir. Temos de salvar a Ann, se possível.
Felicity faz que sim com a cabeça. Parece uma escolha terrível, mas está
feita. Assim, ficamos a vê-las ir, umas de mãos dadas, outras a cantarem,
todas a caminho da danação.
QUARENTA E TRÊS

Chegamos ao pôr do Sol cor de laranja tão nosso conhecido no jardim. A


caminhada triste e silenciosa com as botas empapadas deixou-nos bolhas
nos calcanhares. Ardem e doem a cada passo, mas não posso pensar nisso
agora. Temos de salvar Ann – se é que ainda está viva.
– Credo, o que é que lhes aconteceu? – pergunta Pippa. O sangue já não
lhe mancha as faces. Já não parece pavorosa, mas sim calma e bonita.
– Não temos tempo para explicações – digo eu. – As ninfas da água
apanharam a Ann. Temos de ir à procura dela.
– Claro que tu não deixarias a Ann para trás – resmunga Pippa. Eu deixo
passar. – Eu disse-te que não me viesses pedir ajuda.
– Pip! – ralha Felicity. – Juro-te que, se não nos valeres agora, nunca mais
hei de voltar cá para te ver durante toda a minha vida.
Pippa fica assustada com a fúria súbita de Felicity.
– Tu farias uma coisa dessas?
– Faria, pois.
– Muito bem – diz Pippa. – Como é que te propões a lutar com elas? Nós
só somos três.
– A Pip tem razão. Precisamos de ajuda. – Tenho mesmo de ceder.
– E se for a górgone? – sugere Pip – Ela já nos ajudou uma vez.
Eu abano a cabeça.
– Não sabemos se podemos confiar nela, neste momento. Aliás, não
sabemos se podemos confiar em criatura alguma dos reinos.
– Em quem confiar então? – pergunta Pippa.
Eu respiro fundo.
– Terei de voltar para pedir ajuda.
Felicity semicerra os olhos até ficarem só fendas de irritação.
– Tu disseste que não deixarias a Ann para trás. Que não seria como...
como da última vez.
Pippa desvia o olhar.
– Estou a pensar na professora Moore – digo eu. Pippa faz um ar
incrédulo.
– A professora Moore? O que é que ela poderá fazer?
– Sei lá! – sinto-me rebentar, e tenho de massajar as têmporas com a dor
de cabeça que já tenho. – Não posso ir ter com as nossas famílias e contar-
lhes. Internavam-me logo para todo o sempre! Ela é a única pessoa que me
ocorre e que me daria ouvidos.
– Muito bem, seja – diz Felicity. – Podes trazê-la.

É preciso magia e concentração para fazer a porta de luz aparecer e para


abrir caminho, rapidamente e sem ser detetada, pelas ruas de Londres.
Estou a correr um risco terrível, a manipular um poder que é imprevisível,
mas nunca me senti mais desesperada. A magia não faz nada para me
escudar da chuva de Londres, que pena. Quando chego ao apartamento da
professora Moore, estou a pingar. Felizmente, a senhora Porter não está e é
a minha antiga professora a atender a porta.
– P-professora M-moore – estou a bater o dente, enregelada até aos
ossos.
– Menina Doyle? O que diabo se passa? Está ensopada. Pelo amor de
Deus, entre lá.
Ela leva-me para o andar de cima, e põe-me à frente da lareira para me
aquecer.
– Desculpe tudo isto, mas tenho de lhe contar uma coisa. É urgente.
– Sim, está bem – diz ela, e ouve o medo na minha voz.
– Precisamos da sua ajuda. As histórias que lhe contei da Ordem? Não
temos sido completamente honestas. É tudo verdade. Tudo. Os reinos, a
Ordem, a Pippa, a magia. Estivemos lá. Vimos tudo. Vivemos tudo. Todos
os bocadinhos. E agora as ninfas da água apanharam a Ann. Apanharam-na,
e nós temos de a ir resgatar. Por favor. A professora tem de nos ajudar.
As palavras saem-me numa torrente que combina com a chuva a fustigar
as janelas do apartamento da professora Moore. Quando termino, a
professora Moore observa-me por momentos.
– Gemma, eu sei que tem passado muito, a perder a sua mãe e também
uma amiga... – A professora Moore põe-me a mão no joelho.
Apetece-me chorar. Ela não acredita em mim.
– Não! Não estou a inventar histórias por compaixão! É verdade! –
Começo a gemer. Espirro duas vezes seguidas. Tenho a garganta dorida e
inchada.
– Eu quero crer em si, mas... – Ela começa a andar de um lado para o
outro diante da lareira. – Consegue provar-me alguma coisa?
Faço que sim com a cabeça.
– Então muito bem. Se mo conseguir provar aqui e agora, eu hei de
acreditar. Senão, vou levá-la a casa de imediato e falar com a sua avó.
– Aceito. – Faço que sim com a cabeça outra vez.
Não perco tempo. Agarro-lhe na mão e uso o pouco poder que me resta
para fazer a porta aparecer. Quando abro os olhos, apareceu, a luz cintilante
a incidir numa expressão de rematado espanto na cara da professora Moore.
Ela fecha os olhos e abre-os outra vez, mas a porta continua lá.
– Venha comigo – digo eu.
De mãos dadas, puxo-a para dentro. É um esforço tremendo. Estou cada
vez mais fraca. Mal consigo sentir o afluxo de sangue nas veias dela, a
alimentar um coração que se encontra mesmo agora a aceitar que a lógica é
mais uma ilusão criada por nós.
O jardim ganha foco aos meus olhos. O chão está juncado de flores cor de
púrpura. Ali, uma árvore cuja casca se enrola em pétalas de rosa. Acolá, as
ervas daninhas altas e os cogumelos estranhos. Por momentos, tenho medo
de que o choque seja demasiado para a professora Moore. Ela leva uma
mão trémula à boca e apoia a outra numa árvore. Quando a tira, traz uma
mão-cheia de pétalas e deixa-as cair entre os dedos, conforme vai andando
na erva verde-esmeralda, como que em transe. Depois senta-se numa
pedra.
– Estou a sonhar. Isto é um delírio. Só pode ser.
– Eu bem avisei – digo eu.
– Pois avisou. – Ela toca numa das flores cor de púrpura. A flor
transforma-se numa cobra de jardim que rasteja pela árvore acima e
desaparece. – Oh!
A professora Moore arregala os olhos.
– Pippa! – Pippa e Felicity correm ao nosso encontro. A professora
Moore ergue uma mão hesitante para tocar na seda que é o cabelo de Pippa.
– É você, não é?
– Sim, professora Moore – responde ela.
A professora Moore leva a mão ao estômago como se tentasse recompor-
se.
– Estou mesmo aqui, não estou? Não estou a sonhar?
– Não, não está a sonhar – asseguro eu.
A professora Moore vai cambaleando pelo jardim, a absorver tudo. Faz-
me lembrar da minha primeira viagem aqui, do espanto que senti. Vamos
atrás dela por baixo da arcada de prata manchada e entramos no sítio onde
as runas estavam. Ela olha para a terra calcinada debaixo dos pés.
– Foi onde a Gemma partiu as Runas do Oráculo, o que encerrava a
magia – explica Pippa.
– Oh – exclama a professora Moore, como se estivesse a milhas de
distância. – Por isso é que as meninas andavam à procura do tal templo?
– Sim – digo eu. – Ainda estamos.
– Então ainda não o encontraram?
– Não. Estávamos a tentar encontrá-lo quando nos deixámos transviar por
uns espíritos negros. Depois as ninfas da água apanharam a Ann – explico
eu.
– Temos de a salvar, professora Moore – pede Felicity. A professora
Moore endireita-se toda.
– Sim, com certeza que temos. Onde é que encontramos essas criaturas?
– Vivem no rio – digo eu.
– É a casa delas? – pergunta a professora Moore.
– Isso não sei bem – admito. Pippa intervém.
– A górgone sabe onde elas vivem.
A professora Moore arregala os olhos.
– Há uma górgone?
– Sim – respondo eu. – Mas não sei bem se podemos confiar nela agora.
Ela estava vinculada pela magia da Ordem a dizer só a verdade e a não
fazer mal. Mas a magia já não é como era.
– Compreendo – diz a professora Moore. – Há outra maneira?
– Não há maneira mais rápida – defende Felicity. – Não temos tempo.
Temos de confiar na górgone.
Não me agrada depositar toda a minha fé numa criatura dos reinos, mas
Felicity tem razão. Temos de encontrar Ann o mais depressa possível.
A górgone está pacientemente atracada no rio. Quando nos aproximamos,
ela gira a cabeça hedionda e latejante na nossa direção. A professora Moore
encolhe-se. Os perturbantes olhos amarelos da górgone piscam muito.
– Vejo que trouxeste uma nova amiga.
– Uma velha amiga – corrige Felicity. – Górgone, apresento-te a
professora Hester Moore.
– Professora Moore... – ouve-se sibilar a cabeça verde e cheia de
serpentes.
– Sim, Hester Moore – confirma a professora Moore. – Como está?
– Como sempre estive – diz a górgone.
A prancha desce, e a professora Moore sobe para a barcaça como se
estivesse à espera que tudo se evaporasse a qualquer momento.
– Górgone – começo eu. – No dia em que fomos à Floresta das Luzes, as
ninfas da água fugiram naquela direção. – Aponto para jusante do rio. –
Sabes onde vivem?
– Sssim – diz a górgone, os olhos reptilianos a abrirem-se e a fecharem-se
devagar. – A casa delas é na laguna, mas tem rocha negra a circundá-la. Eu
só posso levá-las até à rocha. A partir daí, têm de ir a pé.
– Isso será o bastante – diz Pippa.
– A canção delas é poderosa – avisa a górgone. – Poderão resistir à
atração que dela emana?
– Teremos de nos esforçar – digo eu.
Entramos para a barcaça e seguimos viagem rio abaixo. Eu pego no meu
amuleto.
– O olho da meia-lua... – diz a professora Moore. – Posso?
Dou-lho.
– É uma bússola. Segure-a desta maneira.
Ela muda o amuleto de uma mão para a outra, mas não emite brilho
algum para nos orientar. De certeza que agora estamos fora do caminho e
completamente por nossa conta. A barcaça sai do pôr do Sol do jardim para
uma bruma verde que dificulta alcançar com a vista o que quer que seja.
– Como é que descobriram este lugar? – pergunta a professora Moore, a
olhar em redor completamente maravilhada.
– A minha mãe – respondo eu. – Ela fazia parte da Ordem. Ela era Mary
Dowd.
– A autora do diário? – pergunta ela. Eu faço que sim com a cabeça.
– E a Gemma pensa que a professora McCleethy foi quem a matou?
– Sim, creio que ela tem andado de escola em escola à minha procura.
– E o que vai a Gemma fazer se ela declarar as suas intenções?
Olho para a bruma que se enrola em volutas.
– Vou garantir que ela não faz mal a mais ninguém.
A professora Moore pega-me na mão.
– Eu receio pela Gemma.
Eu também.
Está calor. O suor corre-me entre as omoplatas e cola-me mechas de
cabelo à testa.
– Que calor – diz Felicity, a limpar a testa com as costas da mão.
– É horrível. – Pippa levanta o cabelo para não lhe tocar no pescoço.
Como não há brisa alguma para a refrescar, ela solta-o.
A professora Moore está de olhos fixos no rio, a absorver tudo o que se
vê, tudo o que se ouve. A ver a água correr por baixo e para longe de nós,
penso no que terá acontecido a Mae e Bessie Timmons e ao resto das
raparigas do incêndio na fábrica. Terão sido engolidas e escravizadas pelos
espíritos negros das Invernias? Terá acontecido depressa, ou terão elas tido
tempo de se aperceberem do horror do que lhes estava a acontecer?
Fecho os olhos para afugentar estes pensamentos e deixo o movimento do
barco embalar-me.
– Estamos a chegar aos baixios – avisa a górgone.
O rio começou a mudar de cor. Já consigo ver até ao fundo. Está cheio de
pedras e bancos de areia fosforescentes que nos fazem as mãos parecer
verdes e azuis. A barcaça.
– Não posso ir mais adiante – diz a górgone.
– A partir daqui, vamos a pé – digo eu. – Górgone, podemos levar as
redes connosco?
A górgone faz que sim com a cabeçorra. As outras correm para soltar as
redes. A górgone chama-me.
– Tem cautela não sejas apanhada numa rede, Altíssima – diz ela.
– Vou ter – digo eu, mas sinto-me pouco à vontade. A górgone abana a
cabeça. As cobras mexem-se e bufam.
– Há redes que só se conseguem ver quando já se está completamente
enredada.
– Gemma! – Felicity chama-me num sussurro insistente. Vou logo ter
com as outras. Felicity tem as setas a postos; Pip e a professora Moore têm
as redes e uma corda. Saímos da barcaça e ficamos com água pelos
tornozelos; entramos a vau numa terra obscurecida por um banco de
nevoeiro. O chão debaixo de nós é duro e inclemente. Temos de dar as mãos
umas às outras para não perdermos o equilíbrio. A bruma levanta um
pouco, e consigo ver a paisagem desoladora de montes pretos e rochosos.
Há charcos pequenos e fumegantes aqui e ali, abertos na rocha. A bruma sai
deles em volutas verdes de enxofre.
De gatas, subimos ao cimo de uma rocha cheia de arestas. Lá em baixo
estende-se uma laguna funda e ampla. As pedras fosforescentes no fundo da
laguna dão-lhe uma radiância azul-esverdeada que se derrama na bruma à
superfície.
– Estou a vê-la! – exclama Felicity.
– Onde? – pergunta a professora Moore, a perscrutar o horizonte.
Felicity aponta para uma rocha plana do outro lado da laguna. Só com a
combinação vestida, Ann foi amarrada à rocha como se fosse a figura de
proa de um navio qualquer. Está a olhar em frente como que numa espécie
de transe.
Elas hão de levar a canção até à rocha. Não deixem a canção morrer.
– Não deixem a canção morrer – digo eu. – A Ann é a canção. Era isso
que a Nell estava a tentar dizer.
– Vamos então – diz Felicity, e começa a descer.
– Espera – digo eu, e puxo-a para trás.
As ninfas da água emergem das profundezas, as cabeças luzidias como
pedras polidas na cintilação da água. Estão a cantar docemente para a Ann.
A atração das vozes começa a fazer efeito em mim.
– Elas são como as sereias de antanho. Não deem ouvidos. Tapem as
orelhas – manda a professora Moore. Fazemos isso, mas Pippa não. Pippa
não é suscetível à atração delas, e mais uma vez me lembro de que ela não é
a Pippa que nós conhecemos, por mais que todas quiséssemos fingir o
contrário.
Lá em baixo, as ninfas da água passam uma espécie de esponja do mar
pelo cabelo emaranhado de Ann, o que dá às madeixas uma cor verde
perlada. Elas passam os dedos palmípedes pelos braços e pelas pernas de
Ann. Ela fica coberta pelo lustre das escamas brilhantes que elas lá
deixaram. Passam a esponja na pele de Ann e fazem-na estremecer. A pele
dela passa à mesma cor verde dourada.
As ninfas pararam de cantar.
– O que é que estão a fazer? – pergunto num sussurro. A professora
Moore tem um semblante sombrio.
– Se as lendas forem de fiar, elas estão a preparar a menina Bradshaw.
– A preparar para quê? – pergunta Felicity. A professora Moore ganha
alento.
– Estão a preparar-se para lhe tirar a pele.
Todas ficamos horrorizadas.
– É isso que torna a água tão bela e quente – explica a professora Moore.
– A pele humana.
Do outro lado da laguna, a bruma ganha iridescência e forma. Aparece
uma rapariga, depois outra e mais outra, até estarem presentes as três
formas fantasmagóricas. As três de branco. Por momentos, olham na nossa
direção com um sorriso curioso, mas não nos denunciam.
– Para baixo – mando eu, e puxo a saia à professora Moore. Ela deita-se
ao comprido em cima da rocha. – Estão ali espíritos muito negros. Não
queira ser vista por eles.
As raparigas chamam as ninfas numa língua que desconheço. Quando
espreito por cima da rocha, vejo as raparigas a levarem as ninfas em redor
de um pontão e para longe da vista.
– Agora – mando eu.
O mais rápido que conseguimos, descemos o rochedo e chegamos à beira
da água.
– Quem é que vai? – pergunta Pippa ansiosamente.
– Vou eu – diz a professora Moore.
– Não – digo eu. – Ela é minha responsabilidade, vou eu.
A professora Moore faz que sim com a cabeça e diz:
– Como lhe aprouver.
Depois vejo-a amarrar a corda à cintura.
– Se as coisas se revelarem custosas, puxe a corda que nós rebocamo-las
para a segurança.
Eu pego na outra ponta e começo a nadar na direção de Ann presa à
rocha. A água é uma surpresa de tão agradável, mas estremeço só de pensar
no motivo para ser assim tão bela. Quando mais avanço, mais percebo que
tenho de fechar os olhos para poder continuar.
Finalmente, chego aonde está Ann.
– Ann? – sussurro, e depois com mais urgência: – Ann!
– Gemma? – pergunta ela, como se acordasse de um estupor de droga. –
És tu?
– Sou – sussurro eu. – Viemos buscar-te. Quieta agora.
Enrolo a corda à cintura de Ann e amarro bem. Tenho os dedos
escorregadios da água da laguna, mas consigo desapertar os nós que a atam
de pés e mãos. Ann desliza para a água com um pequeno chape-chape.
– Gemma! – Felicity chama-me da margem. – Não a deixes afogar-se.
Puxo a corda e Ann vem à superfície, a tossir, acordada. Começa a
debater-se.
– Ann! Caluda! Vais atraí-las...
Tarde de mais. Do outro lado da laguna, as ninfas terminaram o encontro
com as raparigas de branco. Veem o que estou a fazer. Zangadas e a rosnar,
lançam-se na nossa direção com um guincho que me deixa varada. Não
gostam que eu me tenha atrevido a roubar-lhes a bichinha. Depois só vejo o
arco prateado das costas delas a mergulharem, uma a uma, a nadarem
depressa na nossa direção, esfaimadas pela nossa pele bonita.
Empurro a rocha e levo Ann a reboque. Sinto a professora Moore a puxar
a corda com toda a força, mas temos de nos esforçar as duas contra o peso
morto de Ann.
– Anda lá, Annie, tens de nadar também – peço eu.
Ela começa a nadar mal, os braços a baterem na água, mas não
conseguimos ombrear com as ninfas furiosas que vêm no nosso encalço.
Começo a gritar, já não ligo ao barulho.
– Puxem! A corda, puxem com força!
Felicity e Pippa vão ajudar a professora Moore. A grunhir e a transpirar,
elas puxam o mais que podem. Nós tentamos ganhar ímpeto na água. Não
chega.
– Usem as redes! – guincho eu, a engolir uma golfada de água suja que
me deixa a tossir e a engasgar-me.
Pippa corre a buscar as redes. Atira uma. A rede voa e cai na água. As
ninfas berram de raiva. A rede assustou-as, mas é temporário. Avançam
com esforço renovado. Desta vez, a rede atirada por Pippa cai em cima de
quatro delas. Ouve-se um berro horrível quando a rede lhes queima a pele.
Elas somem-se em bolhas até não serem mais do que espuma do mar.
As outras deixam-se ficar, têm medo de avançar. Felicity e Pippa içam-
nos da água para os baixios aguçados. A professora Moore ajuda-me a
levantar.
– A Gemma encontra-se bem?
Ann vomita na água. Está fraca, mas está viva. Roubámos o prémio às
ninfas. Não me consigo conter. Desato a gritar de alegria e satisfação.
– Queriam a nossa pele, não era? Ah! Ora toma!
– Gemma – adverte-me a professora Moore, tirando-me da água. – Não as
provoque.
De facto, as ninfas não apreciaram a minha festa. Abrem a boca e
começam a cantar. A atração do canto é como uma rede que me leva para a
água. Oh, um som como a promessa de que nunca mais terei de me ralar
com nada nem de ansiar por nada. Até poderia ficar embriagada com a
canção. A professora Moore tapa os ouvidos.
– Não ouçam!
Felicity entra na água cálida até aos tornozelos, depois os joelhos, atraída
pela canção. Pippa corre para a margem, a chamá-la aos gritos.
– Fee! Fee!
Ann começou a cantar também. Por momentos, distraio-me com a voz
dela. O que é que estou a fazer na água? Saio. Ann deixa de cantar, e as
ninfas assolam-me com as suas doces promessas outra vez. Tenho
vagamente consciência de a professora Moore gritar:
– Ann! Canta! Tens de cantar!
Ann começa a cantar outra vez. A canção dela tira-me da água e das
ninfas o bastante para ver o que se está a passar. Felicity está a nadar para
longe.
– Ann, canta! – grito eu. As minhas mãos encontram a garganta dela e
sentem a pulsação fraca. – Canta como se corresses perigo de morte.
A canção de Ann, débil ao princípio, não consegue sobrepor-se à tentação
nos ouvidos de Felicity. Porém, a voz vai ganhando força. Ela canta mais
alto e com mais pujança do que alguma vez a ouvi cantar, até se transformar
na própria canção. Ela contempla as criaturas como uma guerreira a
anunciar a batalha que se avizinha. Na água, Felicity detém-se. Pippa
apressa-se a chegar a ela.
– Fee, volta comigo. – Pippa estende a mão e Felicity pega-lhe. – Vamos
– diz Pippa baixinho, a tirá-la da água. – Vamos.
Felicity segue a voz de Ann e a mão de Pippa até estar em terra firme.
– Pippa? – chama Felicity.
Pippa abraça-a e Felicity agarra-se com tanta força, até tenho medo que
Pippa se parta.
As ninfas apercebem-se de que perderam e guincham de raiva.
– Não vamos deixar-nos ficar, está bem? – propõe a professora Moore e
enrola a corda ao ombro. Estou tão grata pela presença da professora Moore
neste momento que até tenho vontade de chorar.
– Obrigada, Hester – digo eu.
– Eu é que devo agradecer-lhe, Gemma.
– Porquê? – pergunto.
Mas não há resposta à pergunta, pois as raparigas de branco voltaram, e
não vieram sozinhas. Trouxeram a criatura temível que vi na minha visão,
aquela que nos perseguiu até às Grutas dos Suspiros – um pisteiro. Emerge
por detrás delas na escuridão, ergue-se, espalha-se até sermos obrigadas a
contemplar a vasta extensão ondulante que ele é. As raparigas entram nela
como crianças agarradas às saias da mãe.
– Finalmente... – diz ele.
Foge. Sai daqui. Não me consigo mexer. Medo. Tanto medo. As asas
abrem-se e revelam as caras horríveis lá dentro. Ódio. Terror.
A professora Moore tira-me do caminho e diz em voz forte:
– Fujam!
Descemos a rocha negra aos tropeções. É uma descida dolorosa. Corta-
me as mãos, mas depressa chegamos ao chão.
– Vão para a górgone – grita Felicity. Está à cabeça, Pippa logo atrás. Eu
estou a puxar Ann, que mal consegue correr. Mas onde está a professora
Moore? Estou a vê-la! Ela aparece na bruma verde cheia de enxofre. A
besta e as raparigas vão-lhe nos calcanhares. Ela faz-nos sinal que
continuemos.
– Vão! Vão!
Continuo a puxar Ann e corro o mais depressa que posso até ver a
górgone nos baixios. Nós quatro subimos para a barcaça.
A professora Moore aparece, mas a coisa é veloz e salta-lhe ao caminho.
– Professora Moore! – grito eu.
– Não, Gemma, foge! – grita ela. – Não esperem por mim!
Com um rosnido enorme, a górgone lança-se rumo ao jardim. Eu seguro-
me ao tombadilho, mas Felicity e Ann puxam-me pelos braços. Estou a
debater-me que nem uma louca.
– Górgone, trava neste instante! Estou a mandar-te parar!
Mas ela não para. Estamos a afastar-nos da margem, onde aquela terrível
criatura paira sobre a minha amiga.
– Professora Moore! professora Moore! – grito até ter a garganta dorida,
até deixar de ter voz. – professora Moore – balbucio, e deixo-me cair no
convés do barco.

Estamos de volta ao jardim. Doem-me os olhos de tanto chorar. Estou


exausta e enjoada. Viro-me para a górgone.
– Porque é que não paraste quando te mandei parar?
Aquela cabeça grossa e escamosa gira lentamente na minha direção.
– Primeiro de tudo tenho ordens para não te causar mal algum, Altíssima.
– Podíamos tê-la salvado! – grito eu. A cabeça gira para longe.
– Não me parece.
– Gemma – diz Ann baixinho. – Tens de fazer a porta aparecer.
Felicity e Pippa estão sentadas juntas, de braços dados, não querem nada
sair da companhia uma da outra.
Eu fecho os olhos.
– Gemma – diz Ann.
– A criatura de Circe apanhou-a e eu não consegui impedi-la.
Ninguém tem uma única coisa reconfortante a dizer.
– Vou matá-la – digo eu, as palavras duras como aço. – Vou enfrentá-la e
depois vou matá-la.
É preciso um esforço tremendo para fazer a porta de luz aparecer. As
outras têm que me amparar. Finalmente, a cintilação ganha forma. Pippa
despede-se e sopra-nos beijos a todas. Sou a última a passar e, enquanto
espero, olho uma última vez para Pippa. Tirou qualquer coisa de um
esconderijo atrás de uma árvore. É a carcaça de um animal pequeno. Ela
contempla-a ansiosamente e depois agacha-se, senta-se nos quadris como se
fosse ela própria um animal. Leva a carne à boca e come, os olhos brancos
de fome.
QUARENTA E QUATRO

A professora Moore foi-se. Foi-se. Eu não encontrei o Templo. Os


Rakshana fizeram mal em confiar-me essa missão. Não sou a Dama
Esperança da Nell Hawkins. Não sou a Altíssima, aquela que trará de volta
a glória da Ordem e a magia. Sou Gemma Doyle, e fracassei.
Estou tão cansada. Dói-me o corpo todo; sinto a cabeça como que cheia
de algodão. Apetecia-me deitar-me e dormir dias seguidos. Estou
demasiado cansada para me despir sequer. Deito-me atravessada na cama.
O quarto gira um momento e depois adormeço profundamente e começo a
sonhar.
Estou a voar sobre ruas escurecidas e escorregadias da chuva, sobre vielas
onde crianças imundas roem pão duro cheio de insetos a zumbir. Continuo a
voar, até pairar sobre os corredores de Bethlem e o quarto de Nell
Hawkins.
– Dama Esperança – sussurra ela. – O que foste fazer?
Não compreendo. Não sei responder. Ouço passos no corredor.
– O que foste fazer? O que foste fazer? – grita ela. – O João e a Maria
foram os dois passear; o João e a Maria foram os dois passear; o João e a
Maria foram os dois passear.
Estou a flutuar para longe dos delírios dela, muito acima do corredor,
onde a senhora de manto verde avança no corredor escuro sem ninguém dar
por ela. Continuo a flutuar rumo à noite negra por cima de St. George
quando ouço o grito débil e abafado de Nell Hawkins.
Não sei quanto tempo dormi, em que dia estamos, nem onde estou
quando a senhora Jones me acorda, ansiosíssima.
– Menina, menina! Tem de se vestir depressinha. Lady Denby veio fazer
uma visita com o senhor Simon. A sua avó mandou-me buscá-la
imediatamente.
– Não me estou a sentir nada bem – digo eu, e deito-me outra vez nas
almofadas. A senhora Jones obriga-me a sentar na cama.
– Depois de se irem embora, a menina pode descansar o quanto quiser
mas, por agora, eu tenho de a vestir e despachar-me com isso.
Quando desço, estão todos reunidos na salinha, todos juntinhos com
chávenas de chá na mão. Se isto for uma visita social, não está a correr nada
bem. Há qualquer coisa que está mal. Nem o Simon sorri.
– Gemma – diz a avó. – Sente-se, filha.
– Receio ter notícias assaz perturbadoras sobre a sua conhecida menina
Bradshaw – diz Lady Denby. O coração deixa de me bater.
– Ah sim? – pergunto em voz fraca.
– Sim. Pensei que era estranho eu própria não conhecer a família dela, e
mandei investigar. Não há duque de Chesterfield algum em Kent. Aliás, não
consegui desencantar nada sobre uma rapariga de quem se descobriu
pertencer à nobreza russa.
A avó abana a cabeça.
– É um choque, um choque!
– Mas descobri que ela tem uma prima bastante comum, mulher de um
comerciante que mora em Croydon. Receio que a sua menina Bradshaw
seja pouco mais do que uma caçadora de fortunas – diz Lady Denby.
– Eu nunca lhe ganhei afeto – diz a avó.
– Deve haver algum equívoco – digo eu ainda em voz fraca.
– Isso é dizer pouco, minha querida – diz Lady Denby, a dar-me
palmadinhas na mão. – Mas não se esqueça de que também a menina foi
tocada por este escândalo. E a senhora Worthington, claro. Pensar que lhe
abriram a sua casa. Claro que a senhora Worthington não é famosa pelo seu
discernimento, se é que posso dizê-lo.
A avó lavra a sua sentença.
– A menina não vai dar-se mais com essa rapariga.
Tom entra na sala. Tem o rosto pálido e abatido.
– Thomas? O que se passa? – pergunta a avó.
– Foi a menina Hawkins. Está com febre elevada. Não quer acordar. – Ele
abana a cabeça, não consegue continuar.
– Eu sonhei com ela esta noite – balbucio eu.
– Sonhou? Como era o sonho? – pergunta Simon.
Eu sonhei com Circe e o grito abafado de Nell. E se não fosse sonho
algum?
– N-não me lembro – respondo.
– Oh, coitadinha, está tão pálida – diz Lady Denby. – Custa muito saber
que se foi enganada por uma alegada amiga. E a agora a sua menina
Hawkins adoeceu. Deve ser um choque terrível.
– Sim, obrigada – digo. – Não me estou a sentir bem.
– Coitadinha – murmura Lady Denby outra vez. – Simon, seja cavalheiro
e ajude a menina Doyle.
Simon dá-me o braço e leva-me da sala.
– Não suporto pensar na Ann em tais sarilhos – digo eu.
– Se ela se armou em quem não é, merece o que daí vier – diz Simon. –
Ninguém gosta de ser enganado.
Como eu estou a enganar o Simon, a deixá-lo pensar que sou uma simples
e descomplicada colegial inglesa? Será que ele fugiria a sete pés se
soubesse a verdade? Sentir-se-ia enganado? Guardar segredos é uma ilusão
equivalente a montar uma farsa complicada.
– Sei que estou a abusar de si, senhor Middleton – começo eu. – Mas
poderia atrasar a visita da sua mãe à senhora Worthington até eu ter
hipótese de falar com a menina Bradshaw?
Simon sorri-me.
– Farei o meu melhor, mas fique sabendo que a minha mãe, assim que
fica com a intenção de fazer alguma coisa, há muito pouco que se possa
fazer para a dissuadir. E creio que ela tem intenções no que diz respeito à
menina Doyle.
Eu devia sentir-me lisonjeada. E sinto, um pouquinho. Mas não consigo
livrar-me da sensação de que, para ser amada por Simon e pela sua família,
terei de ser uma rapariga muito diferente e que, se eles me conhecessem –
me conhecessem deveras – não me acolheriam com tanta simpatia.
– E se o Simon ficasse desapontado comigo?
– Eu nunca poderia ficar desapontado consigo.
– E se descobrisse alguma coisa... surpreendente a meu respeito?
Simon faz que sim com a cabeça.
– Eu sei o que é, menina Doyle.
– Ai sabe? – sussurro eu.
– Sei – continua ele muito sério. – A menina tem uma bossa nas costas
que só aparece depois da meia-noite. Eu levarei o seu segredo para a
campa.
– Sim, é isso – digo eu a sorrir e a pestanejar para suster as lágrimas que
me ardem nos olhos.
– Está a ver? Sei tudo a seu respeito – diz Simon. – Agora descanse.
Venho ter consigo amanhã.

Ouço-as na salinha a trocar mexericos. Ouço-as porque estou na escada,


leve como poeira de estrelas. Depois saio porta fora, o mais silenciosamente
que posso, e vou a casa dos Worthingtons para as avisar. A seguir hei de
encontrar a professora McCleethy e ela há de responder pela professora
Moore, pela minha mãe, pela Nell Hawkins e pelas outras. Nesse intuito,
guardo a faca que Kartik me deu dentro do botim.

O mordomo de Felicity abre a porta e eu empurro-o, passo pelos seus


protestos.
– Felicity! – chamo, sem ligar a maneiras ou protocolos. – Ann!
– Estamos aqui! – responde Felicity da biblioteca.
Entro de rompante com o mordomo nos calcanhares.
– Menina Doyle para a menina – diz ele, determinado a dar algum decoro
à situação.
– Obrigada, Shames, não é preciso mais nada – diz Felicity. – O que se
passa? – pergunta ela depois de estarmos sozinhas. – É alguma coisa com a
professora Moore? Encontraste maneira de a trazer de volta?
Abano a cabeça.
– Descobriram-nos a careca. Lady Denby mandou investigar. Descobriu a
tua prima, Ann. Ela sabe que temos estado a fingir este tempo todo. –
Deixo-me cair numa cadeira. Estou tão cansada.
– Então toda a gente vai ficar a saber. Disso podes ter a certeza – diz
Felicity, e parece verdadeiramente aterrada. Ann empalidece.
– Não tinhas dito que ninguém havia de descobrir?!
– Não contei com Lady Denby e o ódio que tem à minha mãe.
Ann senta-se, a tremer.
– Estou perdida. Nunca mais vão deixar que nos encontremos as três.
A mão de Felicity está fechada num punho sobre a barriga.
– O Papá vai mandar decapitar-me.
– A ideia foi tua – diz Ann, a apontar o dedo a Felicity.
– Tu não te importaste nada em alinhar!
– Calem-se, se faz favor – digo eu. – Temos de impedir Lady Denby de
contar o que sabe.
– Ninguém a pode impedir – diz Felicity. – É uma mulher muito
determinada, e este tipo de mexerico deixa-a regalada.
– Podíamos arranjar outra história – diz Ann, a andar de um lado para o
outro.
– E quanto tempo levará ela a mandar investigar também? – pergunto eu.
Ann senta-se no canapé, deita a cabeça num braço e desata a chorar.
– Podíamos usar a magia – diz Felicity.
– Não – digo eu. Os olhos de Felicity relampejam.
– Porque não?
– Já te esqueceste desta noite? Vamos precisar de toda a magia para
encontrar o Templo e enfrentar Circe.
– Circe! – Felicity cospe. – A Pippa tem razão. Tu só sabes cuidar de ti.
– Não é verdade – digo eu.
– Ai não?
– Por favor, Gemma – choraminga Ann.
– Vocês viram como a magia me deixa de rastos – digo eu. – Hoje nem
me sinto eu mesma. A Nell Hawkins entrou numa espécie de transe. Ainda
esta noite sonhei que Circe a tinha descoberto.
O mordomo de Felicity entra na biblioteca.
– Está tudo bem, menina Worthington?
– Sim, Shames, obrigada.
Ele sai, mas não leva consigo a nossa raiva. A nossa raiva paira no ar, em
olhares feridos e num sossego hostil. Dói-me a cabeça.
– Parece-te que é verdade? Parece-te que Circe apanhou mesmo a Nell
Hawkins? – pergunta Ann no meio das lágrimas.
– Parece – respondo. – Portanto compreendem que é imperativo que
vamos aos reinos outra vez esta noite. Assim que encontrarmos o Templo e
prendermos a magia, podes usá-la para os fazerem pensar que és a Rainha
Vitória se bem te apetecer. Mas primeiro encontramos o Templo. – E Circe.
Felicity sopra alto.
– Obrigada, Gemma, eu consigo manter a minha mãe ocupada e longe das
garras da Lady Denby até amanhã. Ann, tu vais ficar muito doente.
– Vou?
– Ninguém se atreve a dizer mal dos inválidos – explica ela. – Agora,
desmaia.
– E se virem que estou a fingir?
– Ann, desmaiar não tem dificuldade nenhuma. As mulheres estão sempre
a desmaiar. Simplesmente deixas-te cair no chão, fechas os olhos e não
falas.
– Sim – diz Ann. – Caio no chão aqui ou no canapé?
– Oh, francamente, não interessa! Desmaia e pronto!
Ann faz que sim com a cabeça. Depois, com a perícia de uma atriz nata,
revira os olhos e deixa-se tombar no chão teatralmente, como um suflé que
se abate sobre si. É o desmaio mais gracioso que eu jamais vi. É uma pena
ter sido desperdiçado em nós.
– Esta noite – diz Felicity, a pegar-me nas mãos.
– Esta noite – concordo.
Empurramos a porta da salinha com toda a agitação que conseguimos
fingir.
– Shames! Shames! – chama Felicity. O mordomo alto e frio aparece.
– Sim, menina?
– Shames, a menina Bradshaw perdeu os sentidos! Receio que esteja
doente. Temos de chamar a mãe imediatamente.
Até o plácido Shames fica abalado.
– Sim, menina, vou já.
A casa irrompe num frenesim de excitação – pois parece que toda a gente
adora o potencial para a catástrofe, uma quebra na rotina que os adormenta
– e eu despeço-me. Devo admitir que estou ferozmente regalada a ensaiar o
que vou dizer à minha avó sobre esta visita. ...E depois o espírito bondoso e
gentil da menina Bradshaw ficou tão abalado por estas acusações falsas
que ela perdeu os sentidos e adoeceu...
Sim, vai ser um momento que me vai dar grande satisfação. Se ao menos
não me sentisse tão cansada.
O sol pôs-se sobre Londres e trouxe granizo. Está um fim de tarde agreste
e estou ansiosa por me sentar à lareira. Pergunto-me o que terá acontecido à
professora Moore, se há algo que eu possa fazer para a salvar de um destino
terrível. Pergunto-me se tornarei a ver Kartik ou se foi absorvido pelas
sombras dos Rakshana.
Jackson está pacientemente à espera na berma. Só pode querer dizer que
descobriram que saí e chegaram à conclusão lógica. Agora fiquei no mesmo
tipo de sarilho que Felicity e Ann. O mais certo é Tom estar dentro da
carruagem, furioso.
– Boa tarde, menina. A sua avó estava muito ralada consigo – diz
Jackson, a abrir-me a porta da carruagem, e dá-me a mão para me ajudar a
subir e sentar.
– Obrigada, Jack... – fico paralisada. Não é o Tom nem a avó quem está à
minha espera. A professora McCleethy está sentada na minha carruagem.
Com ela está Fowlson dos Rakshana.
– Entre lá, menina, se faz favor – diz Jackson, a empurrar-me as costas.
Abro a boca para gritar. A mão dele tapa-ma, prende o som na minha
garganta. – Eu sei onde mora a sua família. Pense no seu paizinho, doente
no hospital, todo vulnerável.
– Jackson – diz a professora McCleethy. – Já chega.
Com relutância, Jackson larga-me. Fecha a porta nas minhas costas e sobe
para trás da parelha de cavalos. As luzes de Mayfair esmorecem quando a
carruagem entra no tráfico que se dirige a Bond Street.
– Aonde é que me levam? – pergunto.
– Aonde possamos conversar – responde a professora McCleethy. – A
menina Doyle é muito difícil de apanhar.
– O que é que fez à Nell Hawkins? – pergunto.
– Não tenho tempo para me ralar com a menina Hawkins neste momento.
Temos de falar do Templo.
Fowlson molha um lenço com líquido que tem num frasquinho.
– O que é que está a fazer? – pergunto, o terror a tolher-me a garganta.
– Não podemos deixar que a menina saiba onde fica o nosso esconderijo
– diz Fowlson.
Aproxima-se de mim. Começo a debater-me, a virar a cabeça para a
esquerda e para a direita, mas ele tem muita força. Só vejo o branco do
lenço a aproximar-se, a tapar-me o nariz e a boca por fim. Há o odor
sufocante e incontornável do éter. A última coisa que vejo antes de
sucumbir à escuridão é a professora McCleethy a meter um caramelo na
boca sem cuidados nenhuns neste mundo.
***
Vou recobrando os sentidos gradualmente. Primeiro, o gosto na boca, uma
coisa tipo enxofre que se me agarra à língua e me dá vontade de vomitar.
Depois a vista turva. Tenho de levantar um braço para tapar a luz que oscila
e treme. Estou numa sala escura. Velas a arder. Estou sozinha? Não vejo
ninguém, mas sinto outras presenças na sala. Ouve-se um roçagar da
escuridão por cima de mim.
Entram na sala dois homens mascarados com outra pessoa de olhos
vendados. Tiram-lhe a venda e vejo Kartik! Os homens recuam e deixam-
nos sozinhos juntos.
– Gemma – diz ele.
– Kartik – mal consigo falar. Tenho a garganta seca. A voz falta-me. – O
que está aqui a fazer? Também o apanharam?
– Encontra-se bem? Tome, beba um pouco de água – diz ele. Eu bebo um
golinho.
– Tenho muita pena do que disse no outro dia. Não era com nenhuma
intenção maldosa.
Ele abana a cabeça.
– Já está esquecido. Tem a certeza de que se encontra bem?
– Tem de me ajudar. O Fowlson e a professora McCleethy raptaram-me e
trouxeram-me para aqui. Se ela conta com a lealdade dele, já não podemos
confiar nos Rakshana.
– Chiu, Gemma. Ninguém me trouxe aqui contra vontade. A professora
McCleethy faz parte da Ordem. Está a trabalhar com os Rakshana para
encontrar o Templo e restaurar o poder integral da Ordem. Ela veio ajudar a
Gemma.
Começo a falar num sussurro.
– Kartik, você sabe que a professora McCleethy é Circe.
– O Fowlson diz que não é.
– Como é que ele sabe? E como é que o Kartik sabe que ele não está já
corrompido também? Como é que sabe que pode confiar nele?
– A professora McCleethy não é quem a Gemma pensa. Chama-se
Sahirah Foster. Tem andado à caça de Circe. Usa o nome McCleethy para
servir de isco, para chamar a atenção da verdadeira Circe, pois era o nome
que ela tinha quando deu aulas em Santa Vitória.
– E o Kartik acredita nessa história? – pergunto com desdém.
– O Fowlson acredita.
– Tenho a certeza de que a Nell Hawkins lhe poderia contar outra história.
Não está a ver? – suplico. – Ela é Circe! Ela assassinou as raparigas, Kartik.
Ela assassinou a minha mãe e o seu irmão! Não a vou deixar fazer-me o
mesmo a mim.
– Gemma, está equivocada.
Também foi apanhado por ela. Já não posso confiar nele.
A professora McCleethy entra na sala. O longo manto verde a varrer o
chão.
– Isto está a demorar tempo de mais, menina Doyle. Vai levar-me aos
reinos e eu vou ajudá-la a encontrar o Templo. Depois vamos prender a
magia e restaurar a Ordem.
De cima de nós, ouve-se ribombar uma voz funda.
– Com acesso aos reinos e à magia concedido finalmente aos Rakshana. –
À luz das velas, só consigo ver uma cara mascarada.
– Sim, com certeza – diz a professora McCleethy.
– Eu sei tudo sobre si – digo eu. – Escrevi para Santa Vitória, sei o que a
senhora fez à Nell Hawkins e às outras raparigas antes dela.
– A menina Doyle não sabe nada. Apenas pensa que sabe, e é aí que está
o busílis.
– Sei que a senhora Nightwing é sua irmã – anuncio eu, triunfante. A
professora McCleethy parece admirada.
– A Lillian é uma grande amiga. Não tenho irmãs.
– Está a mentir – digo eu. A voz lá de cima torna a ressoar.
– Basta! Já é mais que tempo.
– Não os levarei lá! – grito para todos. Fowlson agarra-me no braço à
bruta.
– Já estou fartinho das suas jogadas, menina Doyle. Já nos custaram
demasiado tempo.
– Não me pode obrigar – digo eu.
– Ai não?
A professora McCleethy intervém.
– Senhor Fowlson. Dê-me um momento com a rapariga, se faz favor.
Ela puxa-me de parte. A voz é funda mas não passa de um murmúrio.
– Não se aflija, minha querida. Não faço tenções nenhumas de deixar os
Rakshana terem voto nos reinos. Só estou a moderá-los com uma
promessa.
– Depois de eles a ajudarem, vai acabar com eles.
– Não se rale muito com isso. – Ela fala ainda mais baixo. – Eles queriam
ficar com os reinos só para eles. Que palavras lhe deram para prender a
magia?
– Eu prendo a magia em nome da Estrela do Oriente.
Ela sorri.
– Com essas palavras, estará a dar-lhes poder sobre o Templo.
– Porque é que havia de acreditar em si? Kartik disse-me...
– Kartik? – Ela faz um trejeito de desdém. – Ora, e ele disse-lhe qual é a
sua missão?
– Ajudar-me a encontrar o Templo.
– A menina Doyle é realmente bastante crédula. A missão dele era ajudá-
la a encontrar o Templo para que os Rakshana pudessem apoderar-se dele.
Assim que tivessem todo o poder, parece-lhe mesmo que precisariam de si
para mais alguma coisa?
– A que se refere?
– A menina não passaria de um estorvo nessa altura. Um encargo, o que
nos traz à verdadeira missão dele: matá-la.
A sala fica mais pequena. Não consigo respirar.
– Está a mentir.
– Estou? Porque não lhe pergunta? Oh, não me parece que ele lhe vá dizer
a verdade. Mas observe-o bem, observe-lhe o olhar. Os olhos não mentem.
Não te esqueças tu da tua missão, noviço...
Teria sido tudo mentira? Haveria algum fundo de verdade?
– Portanto vê, minha querida, estamos encalhadas uma com a outra.
Sinto demasiada amargura para chorar. Até o meu sangue está doente de
ódio.
– Assim parece – digo eu, a fúria é uma serpente enrolada na minha
barriga.
– A Gemma tem dons extraordinários. Sob a minha tutela, vai aprender
muitíssimo. Mas primeiro, não se esqueça, tem de prender a magia em
nome da Ordem. – A professora McCleethy sorri e faz-me lembrar uma
cobra. – Há vinte anos que espero por este momento.
Prefiro morrer.
– Tenho de saber a verdade – digo eu. Ela faz que sim a cabeça.
– Muito bem. Fowlson! – chama ela. Momentos depois, ele entra com
Kartik. Por cima de nós, a sala enche-se. O chão até vibra com o ruído de
passadas discretas. Depois fica tudo mudo e quedo na sala, exceto pela luz
trémula das velas.
– Kartik – pergunto, e a minha voz faz eco nas paredes. A sala é mais
pequena do que eu pensava. – Qual foi a missão que os Rakshana lhe
deram? Além daquela de encontrar o Templo – continuo, a voz a ressoar
ódio. – A outra.
– A outra? – repete ele, atrapalhado.
– Sim. Depois de eu encontrar o Templo. Qual era a sua missão nessa
altura? – Nunca olhei para ninguém assim, com uma raiva mortífera. E
nunca vi Kartik apavorado desta maneira.
Ele engole em seco. Os olhos dardejam para cima, para os homens sem
rosto ocultos nas sombras.
– Cuidado agora, irmão – avisa Fowlson.
– Era ajudá-la a encontrar o Templo. Não havia outra – diz Kartik, mas
não me consegue encarar e agora já sei. Sei que ele está a mentir. Sei que a
tarefa dele é matar-me.
– Mentiroso – digo eu. Isto obriga-o a olhar para mim, mas depressa torna
a desviar o olhar. – Estou pronta.
– Muito bem – diz a professora McCleethy.
Pego nas mãos fortes da professora McCleethy e fecho os olhos.
Desmaiar não tem dificuldade nenhuma. As mulheres estão sempre a
desmaiar. Fecham os olhos e caem no chão.
– Ohhh – desato a gemer, e caio no chão de olhos fechados.
Não tenho a graciosidade da minha amiga Ann. Antes pelo contrário, caio
para a frente, fico com a mão a centímetros do pé. Os meus dedos
encontram o cabo da faca escondida de Megh Sambara. Se alguma vez
precisei de proteção contra os meus inimigos, é esta.
– O que se passa agora? – Fowlson suspira.
– Está a fingir – diz a professora McCleethy, a dar-me com a biqueira dos
botins. Não me mexo. – Garanto-lhe, é farsa.
– Levantem-na! – a voz grandiosa ouve-se mais acima.
Kartik mete os braços debaixo dos meus e levanta-me, leva-me para a
porta, que alguém abre.
– Tragam os sais – manda Fowlson.
– Isto é a fingir – ralha a professora McCleethy. – Não confiem nela nem
por momentos.
Continuo de olhos fechados, vou espreitando para ver onde é que Kartik
me leva. Estamos num corredor com pouca luz. Algures mais acima, ouço
homens a rirem-se, em conversas abafadas. Será esta a saída?
Os meus dedos agarram bem no totem. Empurro Kartik e saco da faca,
ameaço toda a gente.
– Não tem como fugir. Não sabe qual é a porta certa – diz Fowlson.
Tem razão. Estou encurralada. Fowlson e Jackson aproximam-se. A
professora McCleethy está à espera, com ar de quem me podia comer
alegremente ao jantar.
– Basta de tolices, menina Doyle. Não sou sua inimiga.
Qual será a porta? Kartik. Olho para ele. Por momentos, vejo-o hesitar.
Depois os olhos dardejam para a porta à minha esquerda. Ele faz um aceno
brevíssimo com a cabeça, e eu sei que os traiu e me mostrou o caminho.
– O qué que ‘tás praí a fazer, rapaz? – berra Jackson.
Serve de distração e consigo empurrar a porta com Kartik atrás de mim, e
ele fecha-a nas nossas costas.
– Gemma! A faca, despache-se! Na tranca ali!
Enfio a faca na tranca de ferro que prende a porta. Ouço-os a bater e a
berrar do outro lado. Não há de aguentar para sempre; só espero que o
suficiente para podermos fugir.
– Por aqui – diz Kartik. Saímos para uma rua escura de Londres. Os
flocos de neve misturam-se com o fumo negro dos candeeiros a gás, custa
muito ver mais à frente. Mas há mais gente na rua. Estou a reconhecer esta
zona. Não estamos longe de Pall Mall Square e dos clubes masculinos mais
exclusivos de Londres. Eram as vozes de homens que eu ouvi!
– Vou empatá-los até a Gemma conseguir fugir – diz Kartik, sem fôlego.
– Espere! Kartik! Não pode voltar – digo eu. – Nunca mais pode voltar.
Kartik balouça nos calcanhares, as pernas divididas entre ficar ali e voltar
a correr, como uma criança que corre para a mãe e diz Desculpa, desculpa
pelo que fiz, agora perdoa-me por favor. Mas os Rakshana não perdoam.
Kartik acaba de cair em si quanto ao que o seu ato precipitado significa. Ao
ajudar-me, deitou fora qualquer hipótese de vir a ser membro de pleno
direito. Virou costas à única família que conhece. Está despojado de tutela,
não tem casa. Está sozinho, como eu.
Fowlson e Jackson aparecem no passeio, a olharem para a esquerda e a
direita. Veem-nos. A professora McCleethy vem atrás. Kartik ainda está
especado como quem não sabe para que lado se virar.
– Venha então – digo eu, e enfio o braço no dele com a maior audácia. –
Vamos dar um passeio.
Fazemos o que podemos para nos misturar com as pessoas que enchem as
ruas, os homens que saem dos clubes depois do jantar, charutos e brande; os
casais a caminho do teatro ou de uma festa.
Atrás de nós, ouço Fowlson assobiar uma cantiga militar, algo que eu
ouvi aos soldados ingleses na Índia.
– Eu não o teria feito – diz ele.
– Continue a andar, se faz favor – digo eu.
– Eu tê-la-ia deixado fugir.
O assobio de Fowlson, enganosamente puro, corta o ruído do trânsito e da
rua até me deixar enregelada. Olho para trás de nós. Estão a aproximar-se.
Viro-me para a frente e deparo com um horror ainda maior: Simon e o pai
estão a sair do Ateneu. Não me podem ver aqui. Largo o braço de Kartik e
arrepio caminho.
– O que é que está a fazer? – pergunta ele.
– É o Simon – digo eu. – Não me posso denunciar.
– Pois de certeza que não podemos ir por aí!
Estou em pânico. Simon sai da sombra da grande estátua de Atena na
entrada grandiosa do clube. Vem na nossa direção. Tem a carruagem à
espera na berma. Alguém sai de uma charrete e paga ao condutor. Kartik
tira um casal do caminho e abre-me a porta.
– Duquesa de Kent – diz ele, a sorrir para o homem e a mulher
indignados. – Precisam dela no Palácio de Saint James de imediato.
O homem começa a vociferar e a chamar a atenção dos transeuntes,
incluindo Simon e seu pai. Eu escondo-me. O homem furioso exige que eu
saia da sua charrete.
– Tenho que protestar, minha senhora! Era nossa por direito!
Por favor, por favor, deixem-me ficar. Fowlson avistou-nos. Parou de
assobiar e estugou o passo. Vai descobrir-nos em meros segundos.
– Qual é o tumulto aqui? – é a voz de Lorde Denby.
– Esta jovem ficou-nos com a charrete – diz o homem, a fungar. – E este
indiano diz que ela é a duquesa de Kent.
– Ora esta, meu pai, não é o antigo cocheiro do senhor Doyle? É, sim
senhor!
Lorde Denby endireita os ombros.
– Escute cá, rapaz, o que significa isto?
– Vamos chamar o guarda? – pergunta Simon.
– Menina, se não se importa – diz o homem imperiosamente, estende-me
a mão pela janela e eu tento esconder-me. – Já se divertiu. Agradeço-lhe
que saia da nossa charrete imediatamente.
– Tenha paciência, menina – diz o condutor. – Nã’ vamos ter esta
trabalheira numa nôte tão má.
É o fim. Das duas, uma: ou Simon e o pai me descobrem e fico com a
reputação estragada para sempre, ou Fowlson e a professora McCleethy me
levam sabe-se lá para onde.
Tenho a mão na maçaneta da porta quando Kartik começa aos pulos que
nem um louco, a cantar uma cantiga airosa e a bater os calcanhares.
– Estará bêbado ou louco? – pergunta Lorde Denby.
Kartik encosta-se à charrete.
– Sabe onde me encontrar.
Depois levanta os braços e baixa uma das mãos com toda a força, a bater
na garupa do cavalo. Com um relincho bem alto, o cavalo lança-se na rua,
com o condutor a berrar, «Eh lá, Tillie!» mas sem sorte alguma. O melhor
que consegue fazer é levar o animal para longe dos clubes e para o fluxo do
trânsito que sai de Pall Mall. Quando me atrevo a olhar para trás, ainda vejo
Kartik armado em doido varrido. Já vem aí um guarda, a soprar no apito, e
Fowlson e Jackson recuam. Não podem apanhar Kartik agora. A professora
McCleethy não se vê em parte alguma. Desapareceu como um fantasma.
– Para onde, menina? – pergunta o condutor finalmente.
Para onde hei de ir? Onde me poderei esconder?
– Baker Street – grito, e dou a morada da professora Moore. – E depressa,
se faz favor.
QUARENTA E CINCO

Chegamos a Baker Street a tempo de me aperceber que não trouxe mala de


mão. Não tenho como pagar a corrida.
– Cá estamos, menina – diz o condutor, e ajuda-me a sair da charrete.
– Ora esta – digo eu. – Parece que me esqueci da mala. Se me der o seu
nome e morada, tratarei de que seja muito bem pago. Prometo.
– E a Rainha é minha mãe – diz ele.
– Estou a falar a sério, senhor.
Vai a passar um guarda do outro lado da rua, os botões de latão da farda a
luzirem neste tempo fosco. Sinto o sangue a correr-me mais depressa nas
veias.
– Atão diga lá isso ao guarda – diz o condutor. – Ó! Chefe! Ande cá!
Desato a correr, o apito do guarda a soar agudo atrás de mim.
Rapidamente, escondo-me nas sombras de uma viela e aguardo. A neve
passou a granizo. O gelo pequenino e duro fustiga-me a cara, põe-me o
nariz a pingar. As casas cintilam com a nova pátina de gelo e luz dos
candeeiros a gás. Cada fôlego me custa, uma luta por ar contra o frio. Mas é
mais do que isso. A magia começou a pesar-me. Sinto-me esquisita, como
se tivesse febre.
Ouço os passos do guarda bem perto.
– E depois disse que era a duquesa de Kent – explica o condutor da
charrete.
Encosto-me toda à parede. O coração bate-me contra o peito; tenho o
fôlego preso como um criminoso a ferros.
– Se calhar é melhor não apanhar mulheres estranhas, amigo – diz o
guarda.
– Como é que eu havia de saber que ela era estranha? – protesta o
condutor.
Continuam a discutir e passam a centímetros de mim sem sequer olharem
na minha direção, até os passos e as vozes não serem mais do que ecos
fracos finalmente engolidos pela noite. O fôlego que estive a suster sai-me
de rajada. Não perco tempo. Começo a andar rua abaixo rumo ao
apartamento da professora Moore o mais depressa que posso, no estado
enfraquecido em que me encontro. A casa está às escuras. Bato à porta
sonoramente, na esperança de me ocorrer qualquer ardil para me deixarem
entrar. A senhora Porter mete a cabeça de fora da janela lá em cima, com ar
irritado.
– Qué que quer?
– Senhora Porter, lamento imenso incomodá-la. Tenho um recado urgente
para a professora Moore.
– Nã tá em casa.
Pois, eu sei, e a culpa é minha. Sinto que vou desmaiar. Tenho a cara
dormente de ser fustigada pelo granizo. O guarda pode voltar a qualquer
momento. Tenho de entrar. Só preciso de um sítio para me esconder, pensar,
descansar.
– Olhe lá, faz-se tarde. Volte amanhã.
Ouço o eco de passos no empedrado escorregadio. Vem aí alguém.
– Querida senhora Porter – digo eu, desesperada. – É a Felicity
Worthington, a filha do almirante Worthington.
– A filha do almirante Worthington? Oh querida filha, o senhor almirante
‘tá bom?
– Muito bom, obrigada. Quer dizer, não, não está nada bom. Por isso é
que eu vim falar com a professora Moore. É muito urgente. Posso esperar
aqui por ela? – Por favor, deixe-me entrar. Só o tempo de me recompor.
Ao fundo da rua, já pouco os passos do guarda a arrepiarem caminho.
– Beeem... – diz a senhora Porter. Já tem a camisa de noite vestida.
– Eu não pedia se a senhora não fosse uma alma caridosa. Tenho a certeza
de que o meu pai quererá agradecer-lhe em pessoa, assim que puder.
A senhora Porter enche o peito ao ouvir isto.
– Não demoro nada.
A lanterna do guarda espalha a luz na minha direção. Por favor, senhora
Porter, despache-se. Ela já está à porta, a abri-la.
– Boa noite, senhora Porter – diz o guarda, a tirar-lhe o chapéu.
– Boa noite, senhor John – responde ela.
Depois fecha a porta. Eu ponho uma mão na parede para me amparar.
– Que bom ter companhia. Nã ‘tava nada à espera. Deixe-me tirar-lhe o
casaco.
Fecho bem o casaco junto à garganta que já me dói.
– Querida senhora Porter – começo. – Desculpe, mas tenho de despachar
o meu assunto com a professora Moore para depois voltar para a cabeceira
do meu pai.
A senhora Porter faz cara de quem trincou um bocado de chocolate e
descobriu recheio de picles.
– Humpf. Não tenho nada que a deixar entrar no quarto dela. Eu tenho um
estabelecimento respeitável, ‘tá a ver?
– Sim, com certeza – digo eu.
A senhora Porter pondera no dilema um momento antes de esvaziar uma
jarra que está na mesinha e de tirar a chave dos quartos da professora
Moore desse esconderijo.
– Por aqui, se faz favor.
Vou atrás dela pela escada estreita acima e até à porta da professora
Moore.
– Mas se ela nã’ voltar até daqui a meia hora, a menina tem de se ir
embora – diz ela, e mete a chave na fechadura. A porta abre-se e eu entro.
– Sim. Obrigada. Não se incomode a esperar, senhora Porter. Sinto aqui
uma corrente de ar, se a senhora apanhasse uma constipação por minha
causa, eu nunca me perdoaria.
Parece que isto amolece a senhora Porter de momento, e ela vai-se
embora, a descer a escada pesadamente.
Fecho a porta. Às escuras, a sala é-me estranha, sinistra. Passo os dedos
pelo papel de parede amarelecido e encontro o interruptor. O candeeiro a
gás sibila até acender, a chama a tremeluzir dentro do vidro. A sala acorda –
o canapé de veludo, o globo vertical, a escrivaninha no estado habitual de
desarrumação, as filas de livros muito amados. As máscaras parecem-me
cruentas nesta luz noturna. Não consigo olhar para elas. Consolo-me com os
quadros da professora Moore – a urze cor de púrpura da Escócia, os
penhascos acidentados perto do mar, as grutas cheias de musgo no bosque
atrás da Spence.
Sento-me no canapé para me acalmar, tento dar sentido a tudo o que
passei. Estou tão cansada. Apetece-me dormir, mas não posso. Ainda não.
Tenho de pensar no que fazer a seguir. Se os Rakshana estiverem
conluiados com a professora McCleethy, com a própria Circe, não se pode
confiar neles. Ora, Kartik traiu-os para me ajudar a fugir. O relógio vai
dando os minutos. Cinco. Dez. Corro o cortinado e espreito para a rua, mas
não vejo sinal de Fowlson ou da carruagem preta.
Batem à porta e apanho um susto de morte. A senhora Porter entra com
uma carta.
– Linda, pode deixar-se de esperas. Eu não tinha reparado. A professora
Moore deixou-me isto na mesa lá em baixo esta manhã.
– Esta manhã? – repito. Não é possível. A professora Moore está perdida
nos reinos. – Tem a certeza?
– Tenho, pois. Eu vi-a sair, mas nunca mais a vi desde então. Mas só
agora li a carta. Diz que ela foi passar algum tempo com a família.
– Mas a professora Moore não tem família – digo eu.
– Então não tem? – A senhora Porter começa a ler em voz alta. –
«Estimada senhora Porter. Perdoe a falta de antecedência, mas tenho de
partir de imediato, pois aceitei uma vaga numa escola perto de Londres
onde a minha irmã é diretora. Mandarei buscar os meus pertences assim que
me for possível. Cumprimentos, Hester Asa Moore.» Humpf. O mais certo
é falhar a renda. Já me deve duas semanas, fique a menina sabendo.
– Escola? Onde a irmã é diretora? – pergunto em voz fraca.
Já deparei com esta frase algures, na carta que a senhora Morrissey me
mandou de Santa Vitória, mas era a respeito da professora McCleethy.
– Parece que sim – diz a senhora Porter.
Há algo horrível que luta por ganhar forma dentro de mim. A pintura. A
Escócia. A Spence. A paisagem marítima tão conhecida, semelhante àquela
das minhas visões. Poderia ser em Gales, apercebo-me com terror crescente.
Todo e qualquer lugar da lista da professora McCleethy está representado
nestas paredes.
Porém, foi a professora McCleethy quem lecionou naquelas escolas
todas. Ela é que era a professora em busca da rapariga que a pudesse levar
aos reinos.
A menos que a professora McCleethy e Kartik estivessem a dizer a
verdade. A menos que a professora Moore não seja a professora Moore.
– Nã’ vale a pena esperar por ela agora, menina Worthington – diz a
senhora Porter.
– Pois não – digo eu. – Deixo apenas um bilhete para seguir com os
pertences dela.
– Como queira – diz a senhora Porter, a ir-se embora. – Também lhe pode
perguntar pelo que me está a dever. Ainda não recebi a renda.
Remexo numas coisas e encontro uma caneta e uma folha de papel de
carta. Respiro fundo. A professora Moore, não. Não pode ser. A professora
Moore é aquela que acreditou em mim. Aquela que primeiro nos falou da
Ordem. Aquela que ouviu quando eu lhe contei... tudo.
Não. A professora Moore não é Circe, e vou prová-lo.
Escrevo as palavras, grandes e carregadas: Hester Moore.
As palavras olham para mim. Ann já fez um anagrama para a professora
Moore. Não deu mais do que disparates. Olho para o bilhete.
Cumprimentos, Hester Asa Moore. Asa. O segundo nome. Risco e começo
outra vez. Com dedos trémulos, mudo as letras do nome para fazer algo
novo. S, A, R. Por fim, ponho as letras que restam no sítio. H, R, E. A sala
foge-me quando o nome me fica a dançar diante da vista.
Sarah Rees-Toome.
A professora Moore é Sarah Rees-Toome. Circe. Não. Não quero
acreditar. A professora Moore ajudou-nos a salvar a Ann. Mandou-nos fugir
enquanto lutava com a criatura de Circe. A criatura dela. E eu levei-a para
dentro dos reinos. Dei-lhe esse poder.
As coisas voltam-me à ideia – o interesse da professora Moore pela
professora McCleethy. Como nos mandou mantê-la afastada da Nell
Hawkins. A maneira como as raparigas de branco olharam para ela nos
reinos, como se a conhecessem.
Quando tu vires o que eu vejo – foi o que a Nell disse.
– Preciso de ver. Quero saber a verdade – digo eu.
A visão esmaga-me com a ferocidade de um aguaceiro repentino na Índia.
Os braços tremem-me e caio de joelhos com a força. Respira, Gemma. Não
resistas. Não consigo controlar e o pânico sobe dentro de mim quando caio
rápida e violentamente.
Para tudo. Reina a calma. Eu conheço este sítio. Já tive vislumbres antes.
O rugido do mar enche-me os ouvidos. A espuma beija os penhascos
acidentados e cobre-me o cabelo e os lábios de maresia. O solo está rachado
e gasto, a superfície da pedra desfaz-se em milhares de fissuras.
Mais à frente vejo as três raparigas. Porém, desta vez não são espetros
fantasmagóricos. Estão vivas, felizes, sorridentes. O vento levanta-lhes as
saias, e as saias adejam atrás delas como lencinhos das mães. A primeira
rapariga tropeça e oscila, os guinchos passam a gargalhadas quando se
consegue equilibrar. A gargalhada dela entoa dentro da minha cabeça como
um eco vagaroso.
– Anda lá, Nell!
Nell. Estou a viver este momento na pele da Nell. Estou a ver o que ela
viu.
– Ela vem dar-nos poder! Vamos entrar nos reinos e ser irmãs da Ordem!
– brada a segunda rapariga de branco. Está radiante com essa promessa.
Sou tão vagarosa. Não consigo acompanhá-las.
As raparigas acenam a alguém atrás de mim.
Cá está ela, a mulher do manto verde, a dar grandes passadas sobre a terra
desgastada. Elas chamam-na.
– Professora McCleethy! Professora McCleethy!
– Sim, vou já – responde ela. A mulher tira o capuz da cara, mas não é a
professora McCleethy que eu conheço. É a professora Moore. Agora
compreendo a expressão chocada da professora Moore quando falei na
professora McCleethy pela primeira vez, a pressa em desacreditar a nossa
nova professora. Compreendeu que havia alguém da Ordem a persegui-la. E
eu enganei-me em tudo desde o princípio.
– Vai dar-nos poder? – perguntam as raparigas em voz alta.
– Sim – responde a professora Moore, a voz vacilante. – Avancem pelas
rochas mais um pouco.
As raparigas sobem aos penhascos, a guincharem com uma desenvoltura
feliz quando o vento lhes sopra com força, as faz sentir mortais por
momentos. Eu tento chegar a elas.
– Nell! – chama a professora Moore. – Espera comigo.
– Mas professora McCleethy – dou comigo a dizer. – Elas estão a ganhar.
– Deixa-as ir. Fica comigo.
Confusa, Nell fica a ver as amigas em cima dos penhascos. A professora
Moore levanta uma mão. Não tem anel com serpentes no dedo. Acabo por
me aperceber de que nunca teve. Contei à professora Moore do anel que eu
tinha visto, e as raparigas de branco deram-me a ver o que ela queria que eu
visse.
A professora Moore murmura numa língua que não consigo discernir. O
céu plúmbeo ganha vida, mexe-se e rodopia. As raparigas sentem a
mudança. O alarme vê-se bem nos seus rostos. A criatura ergue-se do mar.
As raparigas gritam aterrorizadas. Tentam fugir, mas o enorme fantasma
estende-se como uma nuvem. Corre sobre elas e desce, engole as raparigas
inteiras como se elas nunca tivessem existido. A criatura suspira e
resmunga. Depois abre os grandes braços como asas e eu vejo as raparigas
presas lá dentro, a gritarem.
A mão da professora Moore treme. Ela fecha os olhos.
A criatura vira a cabeça horrenda na nossa direção.
– Estou a ver mais uma – diz ela em voz sibilante. O som gela-me o
sangue nas veias.
– Não – diz a professora Moore. – Esta, não.
– Ela não pode dar-te entrada. O que te importa se for sacrificada? –
guincha a criatura na sua voz de danação.
– Esta não – repete a professora Moore. – Por favor.
– Nós decidimos quem poupamos, não tu. O infortúnio será teu se vieres
a afeiçoar-te a elas. – A coisa expande-se até encher o céu. A cara espetral é
grande como uma lua. A boca abre-se e mostra dentes aguçados.
– Foge! – grita a professora Moore. – Foge, Nell! Continua a fugir! Não a
deixes entrar na tua mente!
Assim faço. No corpo de Nell, fujo o mais depressa que posso, vou
escorregando nas rochas. O salto fica-me preso numa fenda, o tornozelo
vira-se num ângulo torto. A fazer caretas de dor, continuo a coxear, desço
os penhascos, a coisa na minha peugada.
A criatura guincha de raiva.
O medo é esmagador. Ainda morro de susto. Não posso deixá-lo tolher-
me a mente.
– O João e a Maria foram os dois passear, para água ir buscar. O João
caiu, a cabeça partiu, e a Maria foi ao mar.
Estou nas pedras escorregadias. O mar lambe-me os artelhos, ensopa-me
toda. Vem aí. Oh, Deus, vem atrás de mim.
– O João e a Maria, o João e a Maria, o João e a Maria.
Está tão perto. Desisto, caio no mar encapelado. Estou a afundar-me. Os
pulmões clamam por ar. As bolhas sobem à superfície. Estou a lutar contra
a corrente. Vou afogar-me! Abro os olhos. Lá estão elas, as três. Que rostos
tão pálidos! As sombras fundas nos olhos. O meu grito fica enterrado
debaixo de água. Quando sou puxada das profundezas pelas mãos de um
pescador, ainda estou a gritar.
Voltou a pressão. A visão está a terminar, e dou comigo mais uma vez na
luz amarela do apartamento da professora Moore.
Sei a verdade. Tento levantar-me e sinto as pernas bambas. Com esforço,
lá consigo. Quando saio, nem sequer me ralo a fechar a porta. A escada
mexe-se à minha frente. Vou pôr o pé num degrau e caio.
– ‘Tá tudo bem? – pergunta a senhora Porter. Não consigo responder.
Tenho de chegar à rua. Ar. Preciso de ar.
A senhora Porter vem atrás de mim.
– Perguntou-lhe da minha renda?
Saio a cambalear para o ar da noite. Estou a tremer como varas verdes,
mas não é de frio. É da magia que se apodera do meu corpo, que me puxa
para baixo.
– Professora Moore! – grito para a escuridão. A minha voz não passa de
um choro dorido. – Professora Moore!
Elas estão na curva da rua, à minha espera, as horrorosas raparigas de
branco. As sombras delas alongam-se, dedos escuros e longos a
marinharem pelo empedrado molhado, a franquearem a distância entre nós.
A voz tão conhecida faz-se ouvir.
– A nossa soberana entrou. Nós temos a vidente. Ela vai mostrar-nos o
Templo.
– Não... – digo eu.
– É quase nosso. Perdeste.
Tento bater-lhes, mas mal consigo mexer os braços. Caio na rua molhada.
As sombras delas passam pelas minhas mãos, banham-me na obscuridade.
– São horas de morrer...
O apito agudo do guarda fere-me os ouvidos. A sombra recua.
– Calma aí, menina. Vamos levá-la para casa.
O guarda leva-me rua abaixo. Ouço o clique repetido dos sapatos dele no
empedrado. Ouço o apito, as vozes. Ouço-me a mim mesma murmurar
repetidamente, como num mantra, Perdoa-me, perdoa-me, perdoa-me...
QUARENTA E SEIS

Alguém corre as cortinas. A sala fica escura e baça. Não consigo falar. O
Tom e a avó estão à minha cabeceira. Ouço outra voz. Um médico.
– Febre... – diz ele.
Não é febre. É magia. Tento dizer-lhes isso, dizer alguma coisa, mas não
consigo.
– Tens de repousar – diz Tom a segurar-me na mão.
No canto do quarto, vejo as três raparigas à espera, aparições silenciosas e
sorridentes. As olheiras fundas fazem-me lembrar a cara espetral daquela
coisa sobre os penhascos.
– Não – digo eu, mas não é mais do que um murmúrio.
– Sossega e dorme – diz a avó.
– Sim, dorme – sussurram docemente as raparigas de branco. – Dorme
bem.
– Vamos ajudar ao sono... – A voz do médico é como um zumbido nos
meus ouvidos. Vejo-lhe um frasco na mão. O Tom hesita. Sim, querido
Tom. Mas o médico insiste e o Tom leva-me o frasco aos lábios. Não! Não
posso beber. Não posso dormir. Mas já não tenho forças em mim. Viro a
cabeça, mas a mão do Tom é forte.
– Por favor, Gemma.
As raparigas sentam-se, as mãos no regaço.
– Sim. Que doçura, bebe e dorme. A nossa soberana já entrou. Agora
dorme tu.
– Agora dorme – aconselha a voz de Tom já longínqua.
– Encontramo-nos nos teus sonhos – dizem as raparigas conforme caio no
sortilégio do medicamento.
Vejo as Grutas dos Suspiros mas não como eram. Já não é um sítio
decrépito, mas sim um templo magnífico. Estou a percorrer os túneis
estreitos. Passo os dedos pelas paredes irregulares e os desenhos desbotados
ganham vida em tons vermelhos e azuis, verdes, cor-de-rosa e cor de
laranja. Estão aqui pinturas de todos os reinos. A Floresta das Luzes. As
ninfas da água nas suas profundezas turvas. O barco da górgone. O jardim.
As Runas do Oráculo como estavam outrora. O horizonte dourado do outro
lado do rio, para onde devem rumar os nossos espíritos. As mulheres da
Ordem nos seus mantos, de mãos dadas.
– Encontrei – murmuro, a língua espessa do opiáceo.
– Chiu – diz alguém. – Agora dorme.
Agora dorme. Agora dorme.
As palavras descem um túnel até ao meu corpo, onde se transformam em
pétalas de rosa sopradas nos meus pés descalços em cima do chão
poeirento. Pico o dedo num espinho que estava cravado numa fenda da
parede. Caem gotas de sangue em espiral no pó a meus pés. Irrompem
trepadeiras gordas e verdes pelas fendas. Entrecruzam rapidamente os
pilares em padrões complexos como os mendhi dos Hajin.5 Rosas de cor
carregada brotam, desabrocham e abrem-se, enrolam-se nos pilares como
dedos de amantes entrelaçados. É tão lindo, tão lindo.
Vem aí alguém. Asha, a Intocável. Quem melhor para guardar o Templo
do que alguém insuspeito de ter poder?
Ela cumprimenta-me, junta as palmas das mãos e leva-as à testa, ao
mesmo tempo que inclina o corpo para a frente. Eu imito-a.
– O que ofereces?
Oferece esperança aos Intocáveis, pois precisam muito dela. Dama
Esperança. Eu sou a esperança. Eu sou a esperança.
O céu abre-se. O rosto de Asha está toldado de preocupação.
– O que se passa?
– Sinto-a. Se ficares, ela encontrará o Templo. Tens de sair deste sonho.
Interrompe a visão, Altíssima. Agora!
– Sim, vou-me embora – digo eu. Tento sair da visão, mas o medicamento
já está a fazer efeito. Não me consigo obrigar a sair.
– Vai! Corre para os reinos – diz ela. – Oculta a tua mente do Templo. Ela
verá o que tu vires.
Estou pesada, drogada. Tão pesada. Não consigo fazer com que os
pensamentos me obedeçam. Saio da gruta aos tropeções. Atrás de mim, as
pinturas perdem a cor, as rosas voltam a ser botões, as trepadeiras recuam
para as fendas. Quando saio da gruta, o céu já escureceu. Os vasos de
incenso mandam plumas coloridas rumo às nuvens como um aviso. O fumo
aparta-se. A professora Moore está à minha frente com a coitada da Nell
Hawkins, o sacrifício.
– O Templo. Obrigada, Gemma.

Abro os olhos. O teto, enegrecido por causa do candeeiro a gás, ganha


nitidez. As cortinas estão fechadas. Não sei que horas são. Ouço sussurrar.
– Gemma?
– Ela abriu os olhos. Eu vi.
Felicity e Ann. Correm para mim e sentam-se à beira da cama, pegam-me
nas mãos.
– Gemma? É a Ann. Como te sentes? Estávamos tão raladas contigo.
– Disseram que tinhas febre e por isso não nos queriam deixar vir mas eu
insisti. Estás a dormir há três dias – diz Felicity.
Três dias. Ainda estou tão cansada.
– Encontraram-te em Baker Street. O que estavas lá a fazer, perto da casa
da professora Moore?
Professora Moore. A professora Moore é Circe. Encontrou o Templo.
Fracassei. Deitei tudo a perder. Viro a cabeça para a parede. Ann continua
a falar.
– Com esta excitação toda, Lady Denby ainda não teve hipótese de
revelar a minha história à senhora Worthington.
– O Simon tem vindo cá todos os dias, Gemma – diz Felicity. – Todos os
dias! Isso deve deixar-te feliz.
– Gemma? – Ann parece mesmo preocupada.
– Não quero saber. – A voz sai-me pequenina e seca.
– Como é que é isso, não queres saber? Pensei que estavas louca por ele.
Ele é louco por ti, ao que parece. São boas notícias, não são? – continua
Felicity.
– Perdi o Templo.
– A que te referes? – pergunta Ann.
Tanta coisa a explicar. Dói-me a cabeça. Quero dormir e nunca mais
acordar.
– Enganámo-nos acerca da professora McCleethy. Acerca de tudo. A
professora Moore é Circe.
Não olho para elas. Não consigo.
– Eu levei-a para dentro dos reinos. Ela agora tem poder. Acabou. Tenho
muita pena.
– Já não há magia? – pergunta Ann.
Abano a cabeça. Dói-me só de o fazer.
– E a Pippa? – pergunta Felicity, e começa a chorar. Eu fecho os olhos.
– Estou cansada – digo.
– Não pode ser – diz Ann, a fungar. – Já não há reinos?
Não respondo. Antes pelo contrário, finjo adormecer até ouvir a cama
ranger com a partida delas. Fico deitada, a olhar para nada. Entra uma
frincha de luz pelas cortinas fechadas. Afinal é de dia. Não é que isso tenha
importância para mim.

Ao serão, Tom leva-me para a salinha para me sentar à lareira.


– Tens uma visita surpresa – diz ele.
Comigo ao colo, ele empurra as portas da salinha. Simon veio sem a mãe.
Tom pousa-me na poltrona e tapa-me com uma manta. Devo estar de morrer
de susto, mas não me consigo importar.
– Vou pedir à senhora Jones que traga chá – diz Tom e sai da sala às
arrecuas. Embora ele deixe as portas abertas, estou sozinha com Simon.
– Como se sente? – pergunta ele. Não respondo. – Pregou-nos um grande
susto a todos. Como é que foi parar a um sítio daqueles?
A árvore de Natal secou. Está a perder agulhas aos molhos.
– Pensámos que alguém quisesse pedir resgate. Talvez aquele indivíduo
que a seguiu na estação de Vitória não seja apenas imaginação sua, afinal.
Simon. Parece tão ralado. Eu devia dizer algo para o consolar. Pigarreio.
Não sai nada. O cabelo dele tem a cor exata de uma moeda baça.
– Tenho uma coisa para si – diz ele, aproximando-se mais. Tira uma
pregadeira do bolso do casaco. Está enfeitada com muitas pérolas e parece
antiga e valiosa.
– Isto era da primeira viscondessa de Denby – diz Simon, com a
pregadeira leve como uma pena entre os dedos. Depois pigarreia, duas
vezes. – Tem mais de cem anos e tem sido usada pelas mulheres da minha
família. Seria para a minha irmã, se eu tivesse irmã. Não tenho, como a
Gemma sabe. – Torna a pigarrear.
Simon põe a pregadeira na renda do meu robe. Compreendo vagamente
que fiquei a usar uma promessa dele. Compreendo que as coisas mudaram
muitíssimo com este pequeno gesto.
– Menina Doyle. Gemma. Posso ter a audácia? – Simon dá-me um beijo
casto, muito diferente daquele na noite do baile.
Tom regressa com a senhora Jones e o chá. Os homens sentam-se a
conversar jovialmente, enquanto eu continuo a olhar para as agulhas do
pinheiro que caem no chão, continuo a afundar-me na poltrona, o peso da
pregadeira a prender-me.
***
– Hoje parece-me boa ideia irmos a Bethlem – anuncia Tom ao almoço.
– Porquê? – pergunto eu.
– Andas com a roupa de dormir há dias seguidos. Vai fazer-te bem sair.
Também pensei que a tua visita poderá mudar o estado da menina
Hawkins.
Não há nada que possa mudar o estado dela. Parte dela está presa nos
reinos para sempre.
– Por favor? – pede Tom.

Por fim, cedo e vou com Tom. Temos outro cocheiro novo, pois Jackson
desapareceu. Não posso dizer que esteja admirada com isso.
– A avó diz que a Ann Bradshaw não tem parentesco algum com o duque
de Chesterfield – diz Tom, depois de nos pormos a caminho. – Também diz
que a menina Bradshaw perdeu os sentidos quando lhe fizeram estas
acusações. – Como eu não confirmo nem desminto, ele continua. – Não
estou a ver como é que pode ser verdade. A menina Bradshaw é uma alma
tão boa. Não é do tipo que gosta de enganar as pessoas. O próprio facto de
ter desmaiado prova que tem um caráter bom de mais para sequer conceber
tal ideia.
– As pessoas nem sempre são como queres que sejam – resmungo eu.
– Perdão? – retruca Tom.
– Nada – digo eu.
Acorda, Tom. Os pais podem fazer mal aos filhos, propositadamente.
Podem ser viciados fracos de mais para largar os vícios, não importa o
sofrimento que causam. As mães podem negligenciar-nos até ficarmos
invisíveis. Podem apagar-nos com uma negação, uma recusa em ver. Os
amigos podem enganar-nos. As pessoas mentem. É um mundo frio e duro.
Não posso censurar a Nell Hawkins por fugir dele numa loucura escolhida
por si própria.
Os corredores de Bethlem agora quase me parecem tranquilizantes. A
senhora Sommers está ao piano a martelar uma canção com as notas
erradas. Criou-se um grupo de costura a um canto. As mulheres afadigam-
se com as suas peças, como se cosessem a salvação a cada ponto dado com
esmero.
Sou levada ao quarto de Nell. Está estendida na cama, de olhos abertos
mas sem ver nada.
– Olá, Nell – digo eu. Está silêncio no quarto. – Talvez seja melhor ires-te
embora – digo para Tom.
– O quê? Ah, sim. – Tom vai-se embora.
Pego nas mãos de Nell. São tão pequeninas e estão tão frias.
– Tenho tanta pena, Nell – digo, o pedido de desculpas sai-me em voz
entrecortada. – Tenho tanta pena.
As mãos de Nell prendem as minhas. Ela está a lutar com alguma coisa
com as poucas forças que lhe restam. Estamos juntas e, na minha cabeça,
consigo ouvi-la falar.
– Ela... não pode... prendê-la – sai-lhe um sussurro. – Ainda... há...
esperança.
Os músculos descontraem-se. As mãos dela saem das minhas.
– Gemma? – pergunta Tom quando saio disparada do quarto de Nell e
vou direitinha à carruagem. – Gemma! Gemma, aonde vais?

Passam quinze minutos das cinco quando finalmente apanho uma charrete.
Com alguma sorte, hei de chegar à estação de Vitória antes de Felicity e
Ann embarcarem no comboio das cinco e quarenta e cinco rumo à Spence.
Porém, a sorte não quer nada comigo. As ruas estão congestionadas de
gente e veículos de toda a espécie. É a pior altura do dia para pressas.
O Big Ben dá a meia hora. Deito a cabeça de fora da charrete. Diante de
nós estende-se um mar de cavalos, vagões, charretes, carruagens e ónibus.
Estamos talvez a um quilómetro da estação e completamente engarrafados.
Chamo o cocheiro.
– Se não se importa, vou sair aqui.
A correr entre cavalos que resfolegam, atravesso a rua rapidamente e
chego ao passeio. A caminhada até à estação é curta, mas estou fraca dos
dias passados na cama. Quando finalmente chego à estação, tenho de me
amparar à parede para não perder os sentidos.
Passam quarenta minutos das cinco da tarde. Não há tempo para
descansar. A gare está apinhada. Nunca as conseguirei encontrar neste caos.
Reparo num caixote de jornais vazio e subo para cima dele, começo a
perscrutar a multidão, sem ligar à má cara dos transeuntes que consideram o
meu comportamento ultrajante um insulto a todas as senhoras em toda a
parte. Por fim, dou com elas. Estão na gare com a Franny. Os Worthingtons
nem sequer se incomodaram em virem despedir-se da filha com um beijo e
umas lágrimas.
– Ann! Felicity! – chamo aos gritos. Mais pregos no caixão do meu
caráter. Vou ter com elas, algo coxa.
– Gemma, o que estás aqui a fazer? Pensei que só ias para a Spence daqui
a dias – diz Felicity. Tem um vestido de viagem numa cor malva que lhe
fica muito bem.
– A magia não é dela – explico, completamente sem fôlego. – Ela não
consegue prendê-la.
– Como é que sabes? – pergunta Felicity.
– A Nell disse-me. Deve ser porque ela não tem poder que chegue
sozinha. Precisa de mim para isso.
– O que havemos de fazer? – pergunta Ann.
Ouve-se o apito. O comboio para a Spence já está na linha numa névoa de
fumo. À tabela. O maquinista está na gare a anunciar o embarque.
– Vamos atrás delas – digo eu.
Vejo que Jackson e Fowlson chegaram. Eles também nos veem. Vêm
direitos a nós.
– Temos companhia – digo eu.
Felicity repara nos homens.
– Aqueles?
– Rakshana – digo eu. – Vão tentar impedir-nos, querem controlar tudo.
– Então vamos deixá-los a comer pó – diz Felicity e embarca no
comboio.
5 Desenhos no corpo feitos com hena. (N. da T.)
QUARENTA E SETE

– Eles também estão a embarcar! – diz Ann, em pânico.


– Então temos de sair – digo eu. Estamos quase a chegar às portas quando
o comboio arranca com um solavanco. A gare desaparece atrás de nós, as
pessoas que se despedem a acenar numa janela, depois noutra, e mais outra,
até deixarem de se ver por completo.
– O que havemos de fazer agora? – pergunta Felicity. – Decerto nos hão
de descobrir.
– Procurar um compartimento – digo eu.
Procuramos à esquerda e à direita até encontrarmos um desocupado e
trancamos a porta.
– Temos de nos despachar – digo eu. – Deem-me as mãos.
E se eu não conseguir invocar a porta? E se eu estiver fraca de mais, ou a
magia estiver comprometida de algum modo? Por favor, por favor, deixem-
nos entrar mais uma vez.
– Não está a acontecer nada – diz Felicity.
Ao fundo do corredor, ouço abrir-se uma porta e a voz de Fowlson a
dizer: «As minhas desculpas, afinal não é aqui o meu lugar».
– Estou muito fraca. Preciso da vossa ajuda – digo eu. – Temos de tentar
outra vez. Empenhem-se como nunca se empenharam em algo na vida.
Tornamos a fechar os olhos. Eu concentro-me em respirar. Sinto a pele
macia e carnuda da mão de Ann debaixo da luva. Ouço o bater corajoso do
coração ferido de Felicity, sinto a mancha pesada na sua alma. Cheiro a
proximidade grosseira de Fowlson no corredor. Sinto um poço fundo de
força a abrir-se dentro de mim. Estou a ganhar vida no mais ínfimo do meu
ser.
A porta aparece.
– Agora – digo eu e entramos nos reinos mais uma vez.
O jardim está um matagal. Há mais cogumelos venenosos. Já têm dois
metros de altura, ou mais. Faltam-lhes bocados nos caules gordos e
farinhentos onde foram comidos, e deixaram buracos negros fundos. Uma
cobra verde-esmeralda sai a rastejar de um dos buracos e deixa-se cair na
erva.
– Oh! – exclama Ann, quando a cobra por pouco não lhe assenta num pé.
– O que aconteceu aqui? – Felicity está passada com a mudança.
– Quanto mais cedo chegarmos ao Templo, melhor.
– Mas onde fica? – pergunta Ann.
– Se eu estiver certa, tem estado debaixo dos nossos narizes desde sempre
– digo eu.
– O que queres dizer com isso? – pergunta Felicity.
– Aqui, não – respondo, a olhar em redor. – Não é seguro.
– Temos de encontrar a Pip – diz Felicity.
– Não – digo eu, e impeço-a de avançar. – Não podemos confiar em
ninguém. Vamos sozinhas.
Esperava discussão, mas Felicity não barafusta.
– Está bem, mas levo as minhas setas – diz, e vai buscá-las ao
esconderijo.
– Seta, queres tu dizer – corrige Ann, pois Felicity já usou quase todas.
– Terá de servir – diz Felicity, a tirar a seta da aljava. Depois põe o arco
ao ombro. – Estou pronta.
Seguimos o caminho até ao matagal e ao sopé da montanha.
– Porque é que vamos por aqui? – pergunta Felicity.
– Vamos ao Templo.
– Mas este é o caminho para as Grutas dos Suspiros – diz Felicity, a voz
cheia de incredulidade. – Decerto não estás a sugerir...
Ann está siderada.
– Mas são apenas grutas e ruínas antigas. Como é que pode ser o
Templo?
– Porque não o vimos da maneira como realmente é. Se quisessem
esconder aquilo que mais prezam, não escolheriam num sítio onde ninguém
se lembrasse de procurar? E porque não guardá-lo por quem se pensa não
ter poder nenhum?
– Oferece esperança aos Intocáveis, pois precisam muito dela – Ann
repete as palavras de Nell.
– Exato – digo eu. Aponto para Felicity e depois para Ann. – Força.
Canção. Eu sou a Esperança. Dama Esperança. Era isso que ela me estava
sempre a chamar.
Felicity abana a cabeça.
– Continuo sem compreender.
– Já vais ver – digo eu.
Começamos a subir a estrada estreita e poeirenta que leva ao cume da
montanha, onde ficam as Grutas dos Suspiros. Tenho de parar pelo caminho
para descansar. Felicity ampara-me no seu ombro.
– Estás bem?
– Sim. Ainda fraca.
Olho para cima e protejo os olhos com a mão. Parece-me tão longe até ao
cume.
– Gemma! Felicity! – grita Ann. – Ali em baixo! – Está a apontar para o
rio. A barcaça da górgone acelera na nossa direção. Pippa subiu ao cesto da
gávea. O vento fustiga-lhe o cabelo preto como uma capa sedosa a
esvoaçar.
– Pippa! – chama Felicity, a acenar.
– O que estás a fazer? – pergunto e puxo-lhe o braço para baixo.
Tarde de mais. Pippa já nos avistou, e acena também quando a górgone
desliza até à margem.
– Se vamos prender a magia, a Pip deveria estar presente – diz Felicity. –
E talvez haja maneira... – Depois emudece.
Força. Canção. Esperança. E Beleza. Cuidado com a beleza. A beleza tem
de atravessar...
– Sabes bem que não posso prometer isso, Fee. Não sei dizer o que é que
vai acontecer.
Ela faz que sim com a cabeça, os olhos marejados de lágrimas.
– Ó de bordo! – chama Pippa, e Felicity faz um sorriso amargo.
– O mínimo que podes fazer é deixar-nos fazer uma despedida como deve
ser. Não como da última vez – diz ela baixinho.
Vejo Pippa a avançar alegremente pelo mato e começar a subir a areia.
Parece tão vivinha.
– Ela vem aí – diz Ann, e olha para mim em busca de resposta.
– Vamos esperar por ela – digo eu por fim. Pippa não demora muito a
chegar a nós.
– Aonde é que vão? – pergunta. A coroa de margaridas foi-se. Só tem
umas poucas flores secas no cabelo emaranhado.
– Encontrámos o Templo – diz Felicity.
Pippa fica espantada.
– Este sítio? Só podem estar a reinar.
– A Gemma diz que é uma ilusão, que não vemos como é na verdade –
explica Ann.
– É neste sítio que nasce a magia? – pergunta Pippa.
– E onde se a pode conter – digo eu. Vejo o rosto de Pippa toldar-se.
Ponho-me de pé.
– Já esperámos muito tempo. Temos de continuar.
Os vasos de incenso deitam fumos vermelhos e azuis quando entramos no
grande salão de frescos esmaecidos. O vento sopra pétalas de rosa secas
numa espiral que sobe e desce. Por momentos, sinto-me tolhida pela
dúvida. Como é que este sítio decrépito pode ser a fonte de toda a magia
dos reinos? Talvez a minha visão estivesse equivocada, e eu esteja à procura
no sítio errado outra vez. Asha aparece como uma miragem. Junta as mãos
e faz uma vénia. Eu retribuo o gesto. Ela sorri.
– O que nos ofereces? – pergunta ela.
– Ofereço-me a mim própria – respondo. – Ofereço Esperança.
Asha sorri. É um sorriso belíssimo.
– Sou uma tua criada.
– Tua criada sou também – retribuo.
– Estás pronta a prender a magia?
– Creio que sim – digo, subitamente cheia de medo. – Mas como?
– Quando estiveres pronta, tens de passar a queda de água até ao poço
onde espera a eternidade.
– O que acontece então?
– Não sei dizer. Lá vais enfrentar o teu medo e talvez possas sair do outro
lado.
– Talvez possa sair? – repito. – Não é certo?
– Nunca nada é certo, Dama Esperança – diz ela.
Talvez. É uma palavrinha que mal serve de escudo.
– E se conseguir sair?
– Tens de escolher as palavras para prender a magia. As tuas palavras vão
determinar o rumo que ela vai ter. Escolhe-as bem.
– Gostaria de começar – afirmo.
Asha leva-me para a estranha queda de água que parece descer e subir ao
mesmo tempo.
– Quando te sentires pronta, entra sem medo.
Fecho os olhos. Respiro fundo. Outra vez. Sinto o Templo a ganhar vida
em meu redor. As rosas a brotarem das fendas nas paredes. O ar perfumado
com o seu aroma. Os frescos a brilharem de cor. Os suspiros abafados
passam a vozes distintas, muitas línguas, mas consigo ouvi-las a todas. O
bater do meu coração junta-se a esse coro.
Estou pronta.
Avanço pela parede de água rumo ao meu destino. O poço da eternidade é
um círculo de água perfeito e tão liso que quase nem ondulação tem. A
superfície mostra-me tudo de uma só vez. Mostra-me os reinos, o mundo, o
passado, o presente, porventura o futuro, embora eu não tenha essa certeza.
Será que o meu destino está nestas águas? Ou será apenas possibilidade?
Olho para elas, a pensar na forma que desejo dar ao vínculo da magia, nas
palavras de que vou precisar.
Um som distrai-me. Há movimento nas sombras da gruta.
Lá vais enfrentar o teu medo e talvez possas sair do outro lado.
Vem aí alguma coisa. A professora Moore sai para a luz, com Nell
prisioneira a seu lado.
– Olá, Gemma. Tenho estado à tua espera.
QUARENTA E OITO

Olho para trás, para a cortina de água por onde entrei. Nítidas como numa
fotografia, vejo as caras aflitas de Felicity, Pippa e Ann. Só Asha não revela
emoção alguma. Apetece-me atravessar a queda de água de volta à
segurança, mas a segurança é outra ilusão. Só posso andar para a frente.
– A senhora não pode realmente tocar na magia, pois não? Por isso é que
precisava da Nell. Por isso é que precisa de mim. Só pode controlar a magia
por meio de alguém.
– A Gemma é a Altíssima. As suas palavras afinal são precisas – diz ela.
– Nós juntas podemos restaurar o poder e a glória da Ordem. Podemos fazer
muitas coisas boas, coisas gloriosas. A Gemma tem mais magia em si do
que qualquer outra pessoa na história da Ordem. Não há limites para o que
eu e a Gemma podemos fazer. – Ela estende-me a mão. Não lhe pego.
– A senhora não quer saber de mim – digo eu. – O seu único desejo é
controlar a magia e os reinos.
– Gemma...
– Não há nada que me possa dizer que eu queira ouvir.
– Não, tem de me ouvir, se faz favor – pede ela. – Sabe como é quando
nos tiram poder? Render-se a alguém para sempre? Eu tive poder nas
minhas mãos, eu controlei o meu próprio destino, e tiraram-me tudo.
– Os reinos não a escolheram – digo eu, sempre com o poço entre nós
duas.
– Não. Isso é a mentira que elas contam. Os reinos deram-me poder. A
Ordem negou-mo. Escolheram a sua mãe em vez de mim. Ela era mais
cordata, ela estava disposta a fazer o que elas mandavam.
– Não meta a minha mãe nisto.
– É isso que a Gemma quer? Ser uma criada fiel delas? Vai combater por
elas, proteger o Templo, prender a magia e depois dar-lhe tudo de mão
beijada para elas administrarem como lhes aprouver? E se preferirem não a
incluir? E se lhe tirarem tudo o que tem agora? Prometeram-lhe alguma
coisa?
Não prometeram. Eu não questionei nada. Fiz o que me mandaram.
– Sabe bem que estou a dizer a verdade. Porque é que não lhe ofereceram
auxílio algum? Porque é que não foram elas a prender a magia? Porque não
o podem fazer sem a Gemma. Porém, assim que a Gemma prender a magia
e deixar de haver perigo, vão pedir-lhe que as traga cá dentro. Vão
apoderar-se de tudo. E a Gemma deixará de ter préstimo para elas se não
fizer o que lhe mandarem. Não se vão preocupar consigo como eu me
preocupo.
– Como se preocupou com a Nell. Como se preocupou com a minha mãe.
– As palavras saem-me quase cuspidas.
– Ela prometeu ajudar-me. Mandou-me uma carta de Bombaim a dizer
que tinha mudado de ideias. Depois denunciou-me aos Rakshana.
– E a senhora matou-a.
– Não. Não fui eu. A criatura.
– É a mesma coisa.
– Não, não é. A Gemma conhece muito pouco dos espíritos negros. Eles
querem devorá-la viva. A Gemma precisa da minha ajuda. – Ela faz um
último apelo. – Sem a magia, não me posso livrar do elo que me prende a
estas criaturas. A Gemma pode salvar-me desta existência desgraçada.
Passei anos em busca da escolhida, de si. Tudo o que fiz, fiz para este
momento, para esta oportunidade. Nós podemos formar uma nova Ordem,
Gemma. Basta dizer as palavras...
– Eu vi o que a senhora fez àquelas raparigas.
– É horrível. Não o vou negar. Tenho feito muitos sacrifícios por isto –
diz a professora Moore. – Que sacrifícios está a Gemma disposta a fazer?
– Não farei o que a senhora fez.
– Diz isso agora. Todos os líderes têm sangue nas mãos.
– Eu confiava em si!
– Eu sei, e lamento. As pessoas desapontam-nos, Gemma. A questão é
aprendermos a viver com esse desapontamento e seguir em frente. Eu estou
a oferecer-lhe um novo mundo.
Não consigo viver com isso.
– Elas tiveram razão em recusá-la. A Eugenia Spence tinha razão.
Os olhos dela ficam coruscantes.
– Eugenia! A Gemma não sabe aquilo em que ela se tornou. Ela tem
estado com os espíritos negros este tempo todo. Como irá combatê-la, se
tiver de o fazer? Vai precisar de mim para o que vem aí. Isso posso garantir-
lhe.
– Está a tentar confundir-me – digo eu.
– Não pode passar! – É a voz de Asha.
Pippa entrou pela parede de água.
– Pip! – Felicity corre atrás dela. Ann hesita um momento mas segue-as.
– O que é que está a acontecer? – pergunta Pippa. Felicity levanta o arco.
– Resta-me uma seta.
– Se me matarem, levarei comigo todos os segredos que sei dos espíritos
negros e das Invernias. Nunca os saberão.
– Sabe como usar a magia para manter um espírito aqui e em liberdade? –
pergunta Pippa, vacilante.
– Sei – responde a professora Moore. – Posso arranjar maneira de lhe dar
o que a Pippa deseja. Não será preciso fazer a travessia. Poderá ficar aqui
nos reinos para sempre.
– Ela está a mentir, Pippa – digo, mas já estou a ver o desejo dorido no
olhar de Pippa. A professora Moore também vê.
– Não teria de te deixar, Fee – diz Pippa, e pergunta à professora Moore:
– Vai doer muito?
– Não. Não vai doer nada.
– E vou ficar como estou?
– Sim.
– Não creias nela, Pip.
– O que me prometeste tu, Gemma? Eu ajudei-te e o que é que tu fizeste
por mim?
Ela contorna o poço e dá a mão à professora Moore.
– Assim podemos ficar juntas, Fee. Como era antes.
A mão de Felicity hesita a segurar o arco. A corda fica bamba outra vez.
– Felicity, sabes bem que não pode ser – sussurro eu.
– Mata-a – sussurra Ann. – Mata Circe.
Felicity faz pontaria, mas Pippa põe-se em frente da professora Moore, a
protegê-la como um escudo. Não faço ideia do que aconteceria a Pippa, que
é um espírito, se a matassem dentro dos reinos.
Felicity põe-se de pé, os músculos tensos do peso do arco retesado e da
tarefa impiedosa. Finalmente, baixa o arco.
– Não consigo. Não consigo.
O sorriso de Pippa é de partir o coração de tanto amor.
– Obrigada, Fee – diz ela, e corre para a abraçar.
Eu agarro no arco e seguro-o bem. Não tenho a perícia de Felicity, e só há
uma única seta.
A professora Moore tem Nell nos braços.
– Eu poderia oferecer a Nell em sacrifício neste momento. Junte-se a mim
e eu deixo-a ir em paz.
– Deu-me uma escolha impossível – digo eu.
– Mas continua a ser uma escolha, mais do que a Gemma me deu a mim.
Nell encosta-se à professora Moore como uma boneca sem vida. A
centelha que outrora lhe brilhou no olhar foi-se, enterrada sob camadas de
sofrimento. Posso poupar Nell, juntar-me à professora Moore e partilhar o
Templo com ela. Ou posso ficar a vê-la oferecer Nell à criatura e usar esse
poder para fazer o que bem lhe aprouver.
Nell vira o olhar angustiado para mim. Não hesites...
Deixo ir a seta. Vai direita e espeta-se no pescoço de Nell Hawkins. Com
uma exclamação, ela tomba no chão. Enquanto sacrifício, deixou de ter
préstimo.
A professora Moore olha para mim com um misto de fúria e choque no
olhar.
– O que é que foi fazer?
– Agora tenho sangue nas mãos – digo eu.
A professora Moore corre para mim. Não há tempo para obedecer a
regras. Terei de fazer regras novas. Fecho os olhos e avanço a correr rumo
ao poço, mas a professora Moore é rápida. Agarra-me na mão.
Desequilibro-me e caímos as duas, de braços cerrados para a batalha,
naquelas águas eternas e grandiosas.
Consigo sentir a professora Moore respirar, ouço-lhe o coração a bater
como louco a descarregar sangue, esse mensageiro tão necessário. Cheira-
me ligeiramente à fuligem das chaminés de Londres e a pó de talco com
aroma de lilás, e algo mais. Logo abaixo da pele, há medo. Sofrimento.
Remorso. Anseio. Desejo. Uma vontade férrea de poder. Tudo isto. Estamos
juntas. É como se vivêssemos no centro de uma grande tempestade. À nossa
volta, o mundo dos reinos gira como um caleidoscópio gigantesco, imagens
refratadas uma e outra vez. Tantos mundos! Tanto para conhecer.
Sim, parece que a professora Moore diz dentro da minha cabeça. Tanto
que a Gemma não conhece.
Estou a ser esticada por tudo isto. Consigo sentir cada pedacinho de mim
a ser espalhado até eu fazer parte de tudo que vejo. Sou a folha que se
transforma em borboleta, sou o rio que vai polindo os seixos na margem.
Sou a barriga a dar horas da mulher-a-dias, o vago desapontamento que o
padeiro sente com os seus filhos, o anseio que a rapariga tem por animação.
Apetece-me rir e chorar ao mesmo tempo. É muito, muito.
Avista-se um descampado gelado. Estamos a voar sobre montanhas
acidentadas por baixo de um céu feroz. Lá em baixo, um exército de
espíritos, um milhar deles, uiva para o vazio. Consigo senti-los dentro de
mim. O medo, a raiva. Eu sou o fogo. Eu sou o monstro que destrói. Não
tenho vontade alguma de travar a luta cruel. É a luta que me mantém viva.
Sinto os braços da professora Moore a estreitarem-me. Ela não quer ser
recusada segunda vez. Agora não tenho consciência de nada além do nosso
combate. Só uma de nós poderá emergir do poço. Como se ela me
conseguisse ler o pensamento, a professora Moore empurra-me com força.
Quer vencer, quer de todo o coração.
Eu também quero vencer.
Tens de refletir no rumo que desejas tomar, na forma do vínculo. Tenho
de pensar numa maneira de conter a magia, mas é difícil no meio deste
combate desesperado. Não consigo ver mais do que a professora Moore, a
minha professora, a minha amiga, a minha inimiga. De súbito, sei o que
devo fazer, como devo levar isto a um fim.
Com um grande empurrão, livro-me da professora Moore aos pontapés e
ela tomba para trás. Os olhos ficam muito arregalados. Ela sabe o que eu
tenho em mente, o que tenciono fazer. Lança-se para mim mas, desta vez,
ganhei rapidez com a determinação. Subo e galgo a beira do poço, saio
molhada e lustrosa como um bebé recém-nascido. Levo as mãos à
superfície da água e digo as palavras que espero venham a restaurar o
equilíbrio.
– Eu ponho um selo sobre o poder. Que o equilíbrio dos reinos seja
restaurado e que ninguém perturbe a sua majestade. Eu vinculo a magia em
nome de todos os que vierem a partilhar o poder um dia. Pois eu sou o
Templo; a magia vive em mim.
Há uma súbita rajada de luz branca e resplandecente. Sinto-me a ser
dividida ao meio pela força. Isto é a magia. O vínculo está a usar-me como
mediadora. Flui por mim como água. Nisto, já está. Estou de joelhos,
arquejante.
Mas a gruta está saturada de cor. Os frescos voltaram a ser vibrantes. As
rosas abrem-se e as grandes estátuas parecem animadas.
– O que aconteceu à professora Moore? – pergunta Ann.
– Fiz o que ela pediu: salvei-a da sua existência desgraçada e prendi-a
num sítio onde ela já não pode fazer mal.
– Então está feito? – É a voz de Pippa.
Ann fica boquiaberta quando Pippa sai de detrás de uma rocha. A magia
já não está à solta e o encanto começou a desvanecer-se. Em cima dos
caracóis dela, a coroa de flores voltou a desabrochar, mas Pippa já não é a
Pippa que conhecemos e amamos. A criatura diante de nós está em
metamorfose. Os dentes algo aguçados, a pele mais translúcida, vê-se o azul
das veias. Os olhos...
Ficaram brancos mortiços com pontinhos pretos como cabeças de
alfinete.
– Porque é que estão a olhar para mim dessa maneira? – pergunta ela,
receosa. Não conseguimos responder, nenhuma de nós.
– Está feito, mas eu ainda aqui estou – diz ela. Sorri, mas o efeito é
arrepiante.
– É tempo de nos deixares, Pip – digo eu com brandura. – De te deixares
ir.
– Não! – Ela geme como um animal ferido, e eu sinto que o meu coração
se vai partir. – Por favor, eu não quero ir. Ainda não. Por favor, não me
deixem! Por favor! Fee!
Felicity chora.
– Tenho muita pena, Pip.
– Tu prometeste que nunca me deixavas. Tu prometeste! – Ela limpa as
lágrimas com um braço. – Vais-te arrepender disto.
– Pippa! – chama Felicity, mas é tarde de mais. Ela deixou-nos, fugiu
para o único sítio onde encontrará abrigo. Um dia, voltaremos a encontrar-
nos, não como amigas, mas sim como inimigas.
– Eu não podia usar a magia para a manter aqui. Tu compreendes, não é?
Felicity não olha para mim.
– Estou cansada deste sítio. Quero ir para casa. – E começa a marchar
montanha abaixo até se perder no fumo colorido dos vasos de incenso.
Ann dá-me a mão. É a sua maneira de dizer que me perdoa, e fico-lhe
agradecida. Resta-me esperar que Felicity também me venha a perdoar, com
o tempo.
– Olha, Dama Esperança! – É Asha a chamar-me.
Do outro lado do rio, consigo vê-los – milhares a atravessarem para o
mundo além deste, finalmente prontos a fazer a viagem. Passam por nós
numa torrente, não nos veem. Só anseiam pelo próprio repouso. Espero,
numa esperança vã, avistar Bessie Timmons e Mae Sutter entre eles, mas
não. Terão chegado às Invernias, como Pippa também chegará em breve. É
um combate que fica para outro dia.
– Dama Esperança!
Viro-me e vejo Nell Hawkins a acenar-me da margem como num sonho.
Está como me recordo das minhas visões, uma rapariga pequenina e feliz.
Sinto o remorso a picar-me. Terei as mãos manchadas para todo o sempre
com o sangue de Nell Hawkins. Terei feito a coisa acertada? Terei de o
fazer a outras?
– Tenho muita pena – digo eu.
– Não se pode enjaular as coisas – diz ela. – Adeus, Dama Esperança. –
Com isto, ela entra no rio, submerge e sai do outro lado, começa a caminhar
rumo ao céu cor de laranja até eu deixar de a ver de todo.

A górgone está à nossa espera no rio


– Vou levar-te ao jardim, Altíssima? – pergunta ela.
– Górgone, eu liberto-te da servidão à Ordem – declaro. – És livre, como
desconfio que tens sido desde que a magia ficou à solta.
As cobras dançam na cabeça dela.
– Obrigada – diz a górgone. – Vou levar-te ao jardim?
– Não ouviste? És livre.
– Sssim. Escolha. É uma coisa ótima, e eu escolho levar-te de volta,
Altíssima.
Descemos o rio na barcaça da górgone. O ar já se sente mais leve. As
coisas estão em mutação. Não sei dizer como nem que forma acabarão por
assumir, mas a mutação é que importa. É o que me faz sentir que todas as
coisas são possíveis.
O povo da floresta reuniu-se à beira-rio abaixo das Grutas dos Suspiros, a
toda a extensão e à nossa passagem. Fílon sobe para cima de uma rocha e
chama-me:
– Estamos à espera da nossa paga, sacerdotisa. Não te esqueças.
Junto as mãos e faço uma vénia como vi Asha fazer. Fílon retribui o
gesto. Estamos em paz, por agora.
Não sei dizer quanto tempo a paz irá durar.
– Tentaste avisar-me da professora Moore, não foi? – pergunto à górgone
assim que saímos para o leito do rio. Por cima de nós, as nuvens brancas
alastram em fiapos granulosos, como açúcar derramado no pavimento do
céu.
– Eu conhecia-a por outro nome.
– Tu deves conhecer muita coisa – digo eu. O silvo da górgone parece
mais um suspiro.
– Um dia, quando houver tempo, vou contar-te histórias dos dias de
outrora.
– Tens saudades deles? – pergunto.
– Não passam de dias que o meu povo viveu – responde ela. – Estou à
espera dos dias vindouros.

O quarto do meu pai está escuro como o túmulo quando finalmente regresso
a casa. Está a dormir agitado em lençóis ensopados de suor. É a primeira
vez que vou usar a magia desde que a vinculei. Rezo para saber fazer
melhor uso dela. Da primeira vez tentei curá-lo, mas acabei por aceitar que
não funciona assim. Não posso usar a magia para controlar ninguém. Não
lhe posso devolver a integridade. Só posso orientá-lo. Ponho a mão sobre o
coração dele.
– Encontra a tua coragem, meu pai. Encontra a tua vontade de lutar.
Ainda lá está. Isso te prometo.
A respiração faz-se mais pausadamente. A testa desanuvia-se. Creio que
até vi um esboço de sorriso. Talvez seja da luz. Talvez seja o poder dos
reinos a laborar por meio de mim. Ou talvez seja uma mescla de espírito e
desejo, amor e esperança, uma alquimia que cada um de nós possui e pode
exercer, se primeiro soubermos onde procurar sem ter receio.
QUARENTA E NOVE

É o meu último dia em Londres antes de voltar à Spence. A avó aceitou que
o meu pai fosse recuperar para um sanatório. Amanhã, vai ela para o campo
descansar também. A casa está um rodopio de criados a taparem a mobília
com lençóis. Fazem-se malas. Pagam-se ordenados. Londres está a
esvaziar-se nas casas mais na moda, até à nova temporada em abril.
Esta noite vamos jantar uma última vez com Simon e família mas,
primeiro, tenho duas visitas a fazer.
Ele fica admirado por me ver, quando lhe entro no quarto pela portinha
atrás da cortina que ele uma vez me mostrou, e tiro o capuz da cabeça com
dedos ousados. Fica muito direito, como uma criança que aguarda castigo
ou um beijo de perdão. O que eu trouxe não é bem uma coisa nem outra. É
a minha própria solução de compromisso.
– Não se esqueceu – diz ele.
– Não me esqueci.
– Gemma... menina Doyle, eu...
Três dedos enluvados bastam para o fazer emudecer.
– Vou ser breve. Há muito que fazer. Dava-me jeito a sua ajuda, se estiver
disposto a oferecê-la livremente e sem obrigações para com terceiros. Não
pode servir a nossa amizade e os Rakshana em simultâneo.
O sorriso dele apanha-me desprevenida. Nasce nos ramos macios dos
lábios dele, um pássaro ferido sem saber onde pousar. Depois os olhos
negros enchem-se de lágrimas que ele tenta dissipar a piscar os olhos numa
concentração desesperada.
– Parece... – Kartik pigarreia. – Parece-me necessário salientar que eu já
não tenho interesse para os Rakshana. Por conseguinte, não tenho nada a
oferecer à sua causa, ter um paladino assim caído em desgraça.
– Pois vai ter de servir, parece-me a mim. Somos mesmo um bando de
marginais.
Os olhos desanuviam-se. A voz ganha força. Ele faz que sim com a
cabeça para ninguém em particular.
– Parece que afinal o Kartik mudou o seu destino – digo eu.
– A menos que seja a minha sina mudá-lo assim – diz ele, a sorrir.
– Pois sim – digo eu, e puxo o capuz para a cabeça outra vez. Chego à
porta quase ilesa, mas ele não consegue deixar de perguntar uma última
coisa.
– Obediência à Ordem... é a única fidelidade que a Gemma me pede?
Porque é que esta pergunta simples tem o poder de me deixar sem
fôlego?
– Sim – digo num sussurro, sem me virar. – Mais nada.
Num ruge-ruge de veludos e sedas, passo pela porta e deixo o aroma a
zimbro, o silêncio e a sombra de um sussurro: Por agora...

A residência da professora McCleethy é em Lambeth, fica perto do Hospital


de Bethlem.
– Posso entrar? – pergunto.
Ela recebe-me com cordialidade fingida.
– Menina Doyle, a que devo esta visita surpresa?
– Tenho duas perguntas para lhe fazer. Uma diz respeito à senhora
Nightwing, a outra diz respeito à Ordem.
– Prossiga – diz ela, sentando-se numa cadeira.
– A senhora Nightwing conta-se entre nós?
– Não, é simplesmente uma amiga.
– Mas a senhora discutiu com ela na festa de Natal, e novamente na Ala
Oriental.
– Sim, sobre a reparação dos danos na Ala Oriental. Defendi que é altura
de reconstruir, mas a Lillian é muito frugal.
– Mas aceitou-a como Claire McCleethy embora não seja esse o seu
nome verdadeiro.
– Eu disse-lhe que tinha mudado de nome para fugir a uma relação
amorosa que deu para o torto. É algo que ela compreende, e não há mais
nada a dizer. Qual é a outra pergunta?
Não sei dizer se ela me está a dizer a verdade ou não. Decido prosseguir.
– Porque é que a Ordem nunca quis partilhar o poder?
Ela fixa-me com aquele olhar perturbante.
– É nosso. Lutámos por ele. Sacrificámo-nos e derramámos sangue por
ele.
– Mas também magoaram outros. Recusaram-lhes qualquer hipótese de
terem parte na magia, de terem voto na matéria.
– Garanto-lhe que eles fariam a mesma coisa. Nós cuidamos das nossas.
É assim que as coisas são.
– É uma coisa desagradável, então.
– O poder costuma ser – diz ela sem mágoas. – Não gostei quando a
menina me deixou com os Rakshana, mas compreendo que pensou que eu
era Circe. Agora já não tem importância. A menina conseguiu impedir que
Circe tocasse no Templo e na magia. Fez bem. Agora podemos restabelecer
a Ordem com as nossas irmãs e...
– Não me parece – interrompo. A boca da professora McCleethy quer
sorrir.
– Como?
– Estou a fazer novas alianças. Felicity. Ann. Kartik dos Rakshana. Fílon
da Floresta. Asha, a Intocável.
Ela abana a cabeça.
– Não pode estar a falar a sério.
– O poder tem de ser partilhado.
– Não, isso é proibido. Não sabemos se podemos confiar-lhes a magia.
– Não, não sabemos. Teremos de mostrar boa-fé.
A professora McCleethy está furibunda.
– Redondamente, não! A Ordem tem de continuar pura.
– E isso deu tanto resultado, não deu? – digo eu com o máximo de veneno
que consigo destilar.
Quando ela vê que não está a levar a sua avante, a professora McCleethy
muda de ideias, fala comigo como se fosse uma mãe a acalmar uma criança
ansiosa.
– A menina pode tentar aliar-se a eles mas as probabilidades apontam
para um fracasso. Os reinos orientam quem fizer parte da Ordem. Não
temos poder sobre isso. É assim que sempre foi.
Ela até me tenta fazer festinhas na cabeça, mas não deixo.
– As coisas mudam – digo eu, e despeço-me.
A professora McCleethy esquece-se do decoro e chama-me da janela.
– Não faça de nós suas inimigas, menina Doyle. Não abandonamos o
nosso poder com tanta facilidade.
Não me viro para olhar para ela. Continuo de olhos em frente, em busca
da entrada do metropolitano. Um anúncio emoldurado na parede gaba as
virtudes da revolução que se avizinha no mundo das viagens. Já começaram
a eletrificar os carris em algumas estações. Não tarda a que todos os
comboios andem com a energia invisível dessa invenção tão moderna.
É de facto um mundo novo.

O jantar com os Middletons deixa um travo amargo e doce. Custa-me fazer


conversa fiada a comer sopa e ervilhas quando tenho tanto que fazer.
Quando chega o momento de os homens e as mulheres se retirarem para
espaços diferentes, Simon leva-me sozinha para a salinha e ninguém levanta
objeções.
– Vou sentir falta da sua companhia – diz ele. – Vai corresponder-se
comigo?
– Sim, com certeza – digo eu.
– Já lhe contei que a menina Weston fez figura de tola a correr atrás do
senhor Sharpe num chá dançante?
Não considero a história divertida. Só tenho pena da coitada da menina
Weston. De súbito, é como se eu não conseguisse respirar. Simon mostra-se
preocupado.
– Gemma, o que se passa?
– O Simon continuaria a gostar de mim se descobrisse que eu não sou
quem pareço ser?
– A que se refere?
– Pergunto se o Simon continuaria a gostar de mim independentemente
do que viesse a saber de mim?
– Mas que coisa em que ponderar. Não sei o que dizer.
A resposta é não. Não é preciso que ele o diga.
Com um suspiro, Simon entretém-se com o lume e o atiçador. Caem
bocados do cepo carbonizado, mostram as entranhas assanhadas. Brilham
cor de laranja por momentos e depois assentam. Passadas três tentativas, ele
desiste.
– Parece-me que o lume morreu.
Eu estou a ver brasas suficientes.
– Não, não me parece. Se...
Ele suspira, e isso diz tudo.
– Não ligue – digo, a engolir em seco. – Estou cansada.
– Sim. – Ele agarra-se a essa desculpa. – Ainda está a convalescer. A
Gemma verá que não tarda a deixar tudo isto para trás e que tudo voltará a
ser como dantes.
Nada voltará a ser como dantes. Já está mudado. Eu estou mudada.
A criada bate à porta.
– Com sua licença, senhor. Lady Denby mandou chamá-lo.
– Muito bem. Menina Doyle, Gemma, dá-me licença? Não me demoro.
Quando fico sozinha, pego no ferro e bato no cepo em brasa
repetidamente até uma delas se desfazer e acender um lumezinho. Ele
desistiu cedo de mais. Só precisava de um pouco mais de cuidado. A
quietude da sala fecha-se sobre mim. As mobílias cuidadosamente
agrupadas. Os retratos a olharem para baixo com olhos passivos. O relógio
de sala a medir o tempo que nos resta. Pelas portas abertas, vejo Simon e a
família, sorridentes, contentes, sem cuidados nenhuns no mundo. É tudo
deles – nem é preciso tirar, já têm. Não sabem o que é fome nem medo nem
dúvida. Não é preciso lutarem pelo que querem. Está tudo simplesmente à
espera e a eles basta deixar que lhes aconteça. É como um desgosto para
mim. Gostaria tanto de me deixar envolver na manta quente que eles
constituem. Porém, já vi demasiado para poder viver nessa manta.
Deixo o alfinete de pérolas em cima da lareira, pego no casaco antes que
a criada mo possa trazer, e saio para o lusco-fusco frio. Simon não virá atrás
de mim. Ele não é desse tipo. Ele há de casar-se com uma rapariga que não
seja eu e que não considere o alfinete pesado de todo.
O ar está fresco e agreste. O lampianista vai coxeando pela rua fora com a
vara. Atrás dele, as luzes ardem nos candeeiros a gás. Do outro lado de Park
Lane, estende-se Hyde Park, a mortalha do inverno a cobrir a primavera que
há de vir. Mais além fica o Palácio de Buckingham, governado por uma
mulher.
Tudo é possível.
Amanhã estarei de volta à Spence, onde é o meu lugar.
CINQUENTA

A Spence, essa dama sensaborona e imponente a leste de Londres, ficou um


lugar amigável na minha ausência. Nunca me senti tão feliz por ver um sítio
em todos os meus dezasseis anos. Até as gárgulas perderam ferocidade. São
como bichinhos tresmalhados que não sabem sair do telhado e por isso os
deixamos lá viver, de má catadura mas alegretes.
Os boatos decorrentes da noite em que o guarda me encontrou em Baker
Street já correm a toda a brida pela escola. Fui raptada por piratas. Estive às
portas da morte. Quase perdi uma perna – não, um braço para a gangrena!
Aliás, morri e fui sepultada mas puxei a corda do sino com o dedo do pé, e
preguei um susto de morte ao coitado do coveiro quando teve de me tirar do
caixão no último momento. São espantosas as histórias que as raparigas
arranjam para aliviar o tédio. Não obstante, é bom ter toda a gente a
oferecer-se para fazer coisas por mim, é bom apartar multidões quando
entro numa sala. Não vou mentir: estou a gozar imenso a minha
convalescença.
Felicity chamou a si a tarefa de dar aulas de tiro com arco às alunas mais
novas. Elas adoram-na, claro, com as suas travessas de cabelo parisienses e
o estatuto de rapariga mais velha e cheia de estilo. Desconfio bem que a
seguiriam como ao Flautista de Hamelin por mais mazinha que ela quisesse
ser. Desconfio também que Felicity tem noção disso e gosta bastante de ter
uma multidão de adoradoras.
Como tenho de obedecer às rigorosas ordens da minha avó e da senhora
Nightwing de não fazer exercício enquanto não me encontrar bem
restabelecida, sento-me debaixo de um monte de mantas num cadeirão que
trouxeram especialmente para mim. Parece-me a melhor maneira de fazer
exercício e vou tentar prolongar isto o mais que me for possível.
Lá fora no grande relvado, os alvos estão a postos. Felicity dá instruções
a um grupo de raparigas de dez anos acerca da técnica correta, e vai
endireitando a posição de umas e ralhando com outras por se rirem.
Repreendida, a rapariga risonha endireita-se, fecha um olho e dispara. A
seta vai ressaltando no chão e espeta-se num torrão de terra.
– Não, não – Felicity suspira. – Tome atenção. Vou demonstrar a posição
correta mais uma vez.
Abro a correspondência que chegou de manhã. Tenho uma carta da minha
avó. Não diz nada acerca do meu pai até ao fim. «O seu pai está a melhorar
no sanatório e manda calorosos cumprimentos.»
Também recebi uma encomenda pequenina de Simon. Até receio abri-la,
mas a curiosidade acaba por levar a melhor. Dentro está a caixinha preta
que lhe devolvi por estafeta junto com o bilhete original: Um lugar para
guardar todos os seus segredos. Mais nada. Estou surpreendida. De repente,
já não tenho a certeza do que estou a fazer, de ter feito a coisa certa em
deixá-lo ir. Há algo de tão seguro e reconfortante em Simon, mas é um
pouco como a caixinha de fundo falso, a sensação que me dá. Só sei que
algo em mim me diz que eu acabaria por romper o fundo do seu afeto
cintilante e dar comigo lá presa.
Tenho estado tão absorta que nem reparei na senhora Nightwing atrás de
mim. Está a contemplar as raparigas com arcos e flechas e dá estalinhos de
censura com a língua.
– Não estou nada certa a respeito disto – diz.
– É bom ter por onde escolher – digo eu, a caixa ainda na mão. Estou a
tentar não chorar.
– No meu tempo, não havia escolhas assim. Liberdades. Não havia
ninguém a dizer-nos: «Eis o mundo à tua frente, só tens de lhe pegar.»
Nesse momento, Felicity abre a mão e solta a flecha. Esta corta o ar em
dois e encontra o alvo diretamente no centro, mesmo em cheio. Felicity fica
impante. Grita com a alegria da vitória de um modo bastante natural e nada
senhoril, e as raparigas juntam-se a ela.
A senhora Nightwing abana a cabeça e leva os olhos ao céu por
momentos.
– É indubitável que o declínio da civilização está iminente.
Foge-lhe um breve sorriso, e ela reprime-o com a mesma pressa. Pela
primeira vez, reparo na pele flácida do queixo da senhora Nightwing, na
penugem fina da face como a marca da mão de uma criança, e fico a pensar
como será ver-se a si própria a amolecer com a passagem dos anos, sem
poder impedir. Como será medir os dias em aperfeiçoamentos às vénias de
rapariguinhas e a beber cálices de xerez ao serão, a tentar acompanhar o
mundo que puxa rumo ao futuro, sabendo que se está sempre um passo
atrás.
A senhora Nightwing olha para a caixa que tenho nas mãos. Pigarreia.
– Constou-me que a menina decidiu não aceitar o senhor Middleton.
Estou a ver que há boatos de outra espécie também.
– Sim – respondo, a reprimir as lágrimas. – Toda a gente pensa que
enlouqueci. Talvez esteja louca mesmo. – Tento rir-me, mas sai-me apenas
um soluço. – Talvez haja algo de mal em mim para não poder ser feliz com
ele.
Fico à espera que a senhora Nightwing confirme que é esse o meu caso,
que toda a gente sabe, que devo secar os olhos e deixar de ser tolinha. Antes
pelo contrário, ela põe-me a mão no ombro.
– É melhor ter a certeza absoluta – diz ela, sempre de olhos postos nas
raparigas que correm e brincam no relvado. – Senão dá consigo a chegar a
casa um dia e a deparar com ela vazia, salvo por um bilhete: Fui à rua.
Pode esperar a noite toda que ele volte. As noites passam a semanas, as
semanas a anos. É horrível, a espera. Quase não se consegue aguentar. E
talvez anos depois, de férias em Brighton, lá está ele, a percorrer o paredão
como que saído de um sonho. Já não está perdido. O seu coração bate mais
depressa. Tem de o chamar. Alguém o chama primeiro. Uma jovem bonita
com uma criança. Ele acerca-se e pega na criança ao colo. É seu filho. Ele
dá um beijo furtivo à sua jovem esposa, e passa-lhe uma caixa de
chocolates que sabemos ser da casa Chollier. Ele e a família continuam o
passeio. Há algo em si que se apaga. Nunca mais será como antes. Resta-lhe
apenas a hipótese de ser algo novo e incerto. Pelo menos, a espera acabou.
Quase nem respiro.
– Sim, obrigada – digo quando consigo recobrar a voz outra vez.
A senhora Nightwing dá uma palmadinha no meu ombro antes de
endireitar a saia, de alisar as pregas da cintura. Uma das raparigas grita.
Encontrou um passarinho sem mãe que conseguiu sobreviver ao inverno
sabe-se lá como. Está a piar-lhe nas mãos quando ela corre para a senhora
Nightwing.
– Ora, que loucura é esta agora? – resmunga a nossa diretora, a entrar em
ação.
– Senhora Nightwing, por favor... podemos ficar com ele? – A cara da
rapariguinha é franca e muito séria. – Por favor, por favor! – trinam as
rapariguinhas como pintainhos que são.
– Pronto, seja.
As raparigas desatam aos vivas. A senhora Nightwing tem de levantar a
voz para se fazer ouvir.
– Mas não serei eu a responsável. É incumbência vossa. Não tenho
dúvidas de que virei a lamentar esta decisão – diz ela com uma fungadela. –
Agora, se me dão licença, gostaria de ir acabar o meu livro, sozinha, sem a
presença de uma única rapariga de caracóis para me interromper. Se me
forem buscar para jantar e me encontrarem na cadeira finalmente enviada
aos anjos, saibam que morri sozinha, ou seja, na mais completa beatitude.
A senhora Nightwing marcha monte abaixo na direção da escola. Pelo
menos quatro raparigas lhe vão ao caminho perguntar isto ou aquilo.
Cercam-na. Finalmente, ela desiste e, com um bando de raparigas a
reboque, ruma à Spence. Não há de ler o seu livro até chegar a noite, e de
algum modo eu sei que é isso mesmo que ela pretende – que precisem dela.
É essa a sua incumbência.
É esse o seu lugar. Encontrou-o. Ou encontrou-a ele.

Depois do jantar, quando já estamos reunidas à lareira no salão, a


mademoiselle LeFarge regressa do seu dia em Londres com o inspetor
Kent. Está radiante. Nunca a vi tão feliz.
– Bonsoir, mes filles! – diz ela, a entrar na sala com saia e blusa novas e
bonitas. – Tenho notícias.
As raparigas correm para ela que nem loucas, mal lhe dão tempo de se
sentar à lareira e descalçar as luvas. Quando o faz, todas reparamos na
presença de um anel no terceiro dedo da mão esquerda. A Mademoiselle
LeFarge tem notícias mesmo.
– Vamos casar-nos em maio – diz ela, a sorrir como se o rosto se pudesse
desfazer de alegria.
Mostramo-nos encantadas com o anel e com a nossa professora, fazemos-
lhe muitas perguntas: Como é que ele lhe pediu a mão em casamento?
Quando é que será a cerimónia? Podemos ir todas? Devia ser um casamento
em Londres – não, um casamento no campo! Para dar sorte, será que ela vai
usar flores de laranjeira? Vai usá-las no cabelo ou bordadas no vestido?
– É extraordinário pensar que até uma velha solteirona como eu pode
encontrar a felicidade – diz ela, a rir-se, mas depois vejo-a a esticar o
terceiro dedo da mão esquerda. Está a mirar o anel sem querer parecer
deslumbrada como de facto está.

Na primeira quarta-feira do ano novo, fazemos a nossa romaria ao altar de


Pippa. Sentamo-nos na base da velha árvore, em busca de sinais da
primavera, embora saibamos que ainda faltam meses.
– Escrevi ao Tom a contar a verdade – diz Ann.
– E depois? – pergunta Felicity.
– Não lhe agradou ser enganado. Disse que eu sou uma rapariga horrível
por ter fingido ser outra pessoa.
– Lamento muito, Ann – digo eu.
– Pois eu acho-o um tédio e mau perdedor ainda por cima – comenta
Felicity.
– Não é nada. Tinha todo o direito de ficar zangado comigo.
Não tenho nada que possa dizer perante isto. Ela tem razão.
– Nos livros, a verdade faz com que tudo fique bem e bom. O bem
prevalece. O mal é castigado. Reina a felicidade. Mas na realidade não é
assim, pois não?
– Não – digo eu. – Creio que só faz com que se saiba tudo.
Encostamos as cabeças à árvore e olhamos para as nuvens brancas e
gordas.
– Para quê darmo-nos a esse trabalho então? – pergunta Ann.
Passa no céu um castelo de nuvens, ociosamente, e depois transforma-se
num cão.
– Porque não se pode manter a ilusão para sempre – digo eu. – Ninguém
tem magia que chegue para isso.
Deixamo-nos ficar muito tempo sem dizer nada. Ninguém tenta dar as
mãos ou contar uma história tola, falar do que se passou ou do que está para
vir. Ficamos simplesmente sentadas, encostadas à árvore, os ombros a
tocarem-se. É o mais leve dos toques e basta para me prender à terra.
Por momentos, compreendo que tenho amigas neste caminho solitário,
que por vezes o nosso lugar não é algo que encontremos mas sim algo que
temos quando dele necessitamos.
O vento sopra mais forte. Varre as folhas até abrandar numa brisa suave
que as faz assentar outra vez, como que a dizer, Sosseguem, pronto, pronto,
está tudo bem. Uma folha ainda fica a dançar no ar. Sobe, sobe, a desafiar a
gravidade e a lógica, a esticar-se por algo que está fora do alcance. Terá de
cair, claro. Ao fim de algum tempo. Por agora, eu sustenho o fôlego, desejo
que a folha continue a subir, consolo-me com esse esforço.
Sopra outra rajada. A folha é levada rumo ao horizonte nas asas possantes
do vento. Fico a olhar até não ser mais do que uma linha, e depois uma
centelha. Olho até não ver mais nada, até o caminho que percorreu ser
apagado por uma súbita revoada de folhas novas.
AGRADECIMENTOS

Os livros não se escrevem sozinhos. Se assim fosse, eu teria muito mais


tempo para passear nos centros comerciais. Os livros também não se
escrevem sem os sábios conselhos, sinceros contributos e aplausos
ocasionais dos outros. Por isso é que eu tenho tanta gente fabulosa a quem
agradecer.
A minha editora maravilhosa, Wendy Loggia, sem a qual eu estaria
perdida. A gestora de marca da casa-mãe, Beverly Horowitz; a talentosa
designer Trish Parcell Watts; a deusa da revisão, Colleen Fellingham; a
muito saudosa Emily Jacobs; as divas da publicidade Judith Haut e Amy
Ehrenreich; Adrienne Weintraub e Tracy Bloom, por não me deixarem pisar
o risco; a Chip Gibson, deliciosamente aéreo e traquinas; e a toda a gente
por tudo e mais alguma coisa. A Random House é o máximo!
O meu magnífico agente, Barry Goldblatt, e não é só por me dar rédea
livre e me tirar do parapeito quando eu acho que escrevo mal a ponto de
causar lesões internas a alguém.
Os Deuses Espampanantes da cultura vitoriana: Colin Gale, arquivista
sénior no Real Hospital de Bethlem, que respondeu incansavelmente às
minhas dúvidas e cujo livro, Presumed Curable, foi um maná dos céus.
Mark Kirby, do Museu dos Transportes em Londres, infalivelmente
educado e incrivelmente pormenorizado, mesmo quando eu dizia coisas do
tipo «Pronto, mas e se ela apanhasse o metro em Piccadilly...», como se
estivesse a encenar uma cena do filme Monty Python e o Cálice Sagrado.
Ao encantador Lee Jackson – manancial único para tudo, e quero mesmo
dizer tudo, sobre a era vitoriana. Inteligente, espirituoso, incrivelmente
enciclopédico, rápido com as respostas por correio eletrónico, e fã de Elvis
Costello. O coração enche-se-me de amor. Estes homens sabem. Erros ou
liberdades que se encontrem neste livro são unicamente culpa da autora.
Laurie Allee, leitora por excelência que, mais uma vez, foi direitinha ao
que interessava. Não sou digna de tanto.
Holly Black, Cassandra Claire e Emily Lauer sabem mais sobre fantasia e
sistemas de magia num dia de folga do que eu jamais poderia alcançar.
Nancy Werlin, por fazer todas as perguntas certas.
A mui honorável Kate Duffy da Kensington Books, a primeira entre os
seus pares.
Os meus compinchas da YAWriter por praticamente tudo.
Os especialistas em café do Tea Lounge em Brooklyn – Brigid, Ben,
Mario, Ali, Alma, Sherry, Peter, Amanda, Jonathan, Jesse, Emily, Rachel,
Geoffrey – pela cafeína, por me fazerem rir, por tocarem música espantosa,
por me deixarem lá ficar horas esquecidas, e por me proporcionarem uma
experiência de trabalho muito agradável. Estou ansiosa pelos retoques finais
no cubículo que eles me estão a fazer perto da tomada de corrente...
Os livreiros e bibliotecários empenhados que tenho conhecido, vocês são
os meus heróis.
BookDivas, faço votos de eternas leituras e longo reinado.
Todos os leitores que tenho conhecido nesta viagem alucinante. Obrigada
pela inspiração e pelo encorajamento.
Por último mas certamente não menos importante, o meu filho, Josh, por
ter tanta paciência. Sim, querido, agora podemos ir jogar Cluedo.

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