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John Milton,
Paraíso Perdido, Livro Primeiro
PRÓLOGO
7 de dezembro de 1895
Aqui jaz o fiel e verdadeiro relato dos meus últimos sessenta dias, eu
Kartik, irmão de Amar, filho leal dos Rakshana, e da estranha visita que
recebi e que me deixou desconfiado nesta fria noite inglesa. Para começar
do princípio, devo voltar a meados de outubro, depois da desventura que se
deu.
O tempo arrefecia quando saí do bosque atrás da Academia Spence para
Jovens Senhoras. Antes recebera uma carta pelo falcão dos Rakshana.
Solicitavam a minha presença em Londres imediatamente. Devia viajar por
estradas secundárias e verificar se não era seguido. Durante vários
quilómetros, viajei a coberto da caravana dos ciganos. O resto do caminho
fiz a pé, sozinho, oculto pelo arvoredo ou pelo manto largo da noite.
Na segunda noite, exausto da viagem, meio morto de frio e fome –
terminara a parca ração de carne dois dias antes – a cabeça toldada pelo
isolamento, o bosque começou a enganar-me. Naquele estado debilitado, os
fogos-fátuos tornavam-se assombrações; os ramos partidos pelos cascos de
uma corça, ameaça das almas inquietas dos bárbaros chacinados séculos
antes.
À luz da fogueira, li vários excertos do meu único livro, um exemplar de
A Odisseia, na esperança de ganhar coragem com as atribulações desse
herói. Pois eu já não me sentia corajoso nem certo de coisa alguma.
Finalmente, deixei-me levar pelo sono e os sonhos.
Não foi um sono reparador. Sonhei com relva que ficava preta como
acendalhas. Eu estava num sítio feito de pedra e cinza. A silhueta de uma
árvore solitária recortava-se contra uma lua vermelha de sangue. Muito
mais abaixo, um vasto exército de seres sobrenaturais clamava por guerra.
Acima do ruído, ouvi meu irmão, Amar, a guinchar um aviso: «Não me
deixes ficar mal, irmão. Não confies...» Mas aqui o sonho mudava. Ela
estava lá, debruçada sobre mim, os caracóis ruivos dourados como uma
auréola contra o céu brilhante.
– O teu destino faz parte do meu – sussurrou. Chegou-se mais; os lábios
pairaram perto dos meus. Senti o mais ínfimo calor que brotava deles.
Acordei logo, mas não havia nada, tirando as brasas da minha fogueira e os
sons noturnos de animaizinhos a procurarem abrigo.
Quando cheguei a Londres, ia meio morto de fome e sem saber onde me
dirigir. Os Rakshana não me tinham dado instruções para os encontrar; não
era assim que faziam as coisas. Eles é que me encontravam a mim. Fui
cambaleando pelos magotes de Covent Garden, o cheiro a tarte de enguia,
quente e salgado, quase me enlouqueceu de fome. Estava quase a arriscar-
me a roubar uma quando reparei nele. Um homem encostado a uma parede
a fumar um charuto. Não tinha nada de especial: estatura e compleição
média, fato e chapéu escuro, o jornal matutino bem dobrado debaixo do
braço esquerdo. Usava um bigode bem cuidado, e na face uma cicatriz
como um sorriso malvado. Esperei que ele olhasse noutra direção para eu
poder roubar a tarte sem percalços. Fingi-me interessado num par de artistas
de rua. Um fazia malabarismo com facas e o outro encantava a multidão.
Um terceiro homem, disso sabia eu, andaria por ali, a aliviar as pessoas das
suas carteiras. Olhei para a parede outra vez, e o homem desaparecera.
Era o momento de atacar. Com a mão escondida a coberto do manto,
estendi-a para o monte de pãezinhos fumegantes. A tarte quente estava
quase ao meu alcance quando o homem da parede me ladeou.
– A Estrela do Oriente é difícil de encontrar – disse ele em voz baixa mas
alegre. Só então reconheci o alfinete que tinha na lapela do casaco: uma
espada pequena com uma caveira em cima. O símbolo dos Rakshana.
Respondi todo animado com as palavras que sabia serem as esperadas.
– Mas brilha para quem busca por ela.
Apertámos as mãos direitas então, com as esquerdas sobre os pulsos
como fazem os irmãos dos Rakshana.
– Bem-vindo, noviço, temos estado à tua espera. – Ele chegou-se mais
para me sussurrar ao ouvido. – Tens muito que explicar.
Não sei dizer ao certo o que aconteceu a seguir. A última coisa que me
lembro de ver foi a mulher das tartes a embolsar moedas. Senti uma dor
aguda na nuca e o mundo dissolveu-se num negrume.
Quando recobrei os sentidos, dei comigo num espaço escuro e húmido, a
piscar os olhos contra a luz súbita de muitas velas altas dispostas em círculo
à minha volta. Quem me acompanhara desaparecera. Doía-me a cabeça
como o diabo e, agora desperto, o meu terror afiou-se na pedra de amolar
do desconhecido. Onde estava eu? Quem era o tal homem? Se era
Rakshana, porquê a pancada na cabeça? Mantive os ouvidos bem abertos,
em busca de sons, vozes, qualquer pista quanto à minha localização.
– Kartik, irmão de Amar, iniciado da irmandade dos Rakshana... – A voz,
funda e possante, vinha algures de cima de mim. Não vi nada além das
velas, e além delas, completa escuridão.
– Kartik – repetiu a voz, a qual queria decididamente resposta.
– Sim – saiu-me, quando encontrei a própria voz.
– Vamos dar início ao julgamento.
A sala começou a tomar forma nas trevas. A quase quarenta metros acima
do chão havia um corrimão a toda a volta da sala circular. Atrás do
corrimão, comecei a discernir os sinistros mantos púrpuras das mais altas
patentes dos Rakshana. Não eram os irmãos que me tinham treinado toda a
vida, mas sim os homens poderosos que viviam e governavam nas sombras.
Para que um tribunal assim se reunisse, eu teria feito algo muito bom – ou
muito mau.
– Estamos desanimados com o teu desempenho – continuou a voz. – A
tua missão era vigiar a rapariga.
Algo muito mau. Novo terror apoderou-se de mim. Não era o medo de
que me batessem ou de ser assaltado por meliantes, mas sim o medo de ter
desapontado os meus benfeitores, meus irmãos, e de enfrentar a sua justiça,
já de si lendária. Engoli em seco.
– Sim, irmão. Eu vigiei-a, mas... – A voz ouviu-se, perentória.
– A tua missão era vigiá-la e comunicar-nos. Mais nada. Era uma missão
difícil, noviço?
Não conseguia falar, esmorecido de medo como estava.
– Porque não comunicaste connosco no momento em que ela entrou nos
reinos?
– Pensei... Pensei que tinha mão nos acontecimentos.
– Deveras?
– Não. – A resposta ficou a pairar no ar como fumo das velas.
– Não, não tinhas mão nos acontecimentos. E agora os reinos foram
transpostos. Aconteceu o impensável.
Esfreguei as palmas das mãos suadas nos joelhos, mas não ajudou. O
gosto frio e metálico do medo entrou-me na boca. Havia muito que eu
desconhecia sobre a organização a que dedicara a minha lealdade, a própria
vida, como o meu irmão fizera antes de mim. Amar contara-me histórias
dos Rakshana, do seu código de honra. Do seu lugar na história enquanto
protetor dos reinos.
– Se tivesses vindo ter connosco de imediato, poderíamos ter contido a
situação.
– Com todo o respeito, ela não é como eu pensava. – Parei para pensar na
rapariga que deixara para trás; obstinada, com uns inquietantes olhos
verdes. – Creio que ela tem boas intenções.
A voz atroou.
– Aquela rapariga é mais perigosa do que ela própria sabe, e constitui
uma ameaça maior do que tu sabes, rapaz. Ela tem o potencial de nos
destruir a todos. Agora, entre vocês dois, o poder está à solta. O caos
impera.
– Mas ela derrotou o assassino enviado por Circe.
– Circe tem mais do que um espírito tenebroso à sua disposição. – A voz
continuava. – Aquela rapariga quebrou as runas que albergavam a magia e a
tinham em segurança durante gerações. Compreendes que não há controlo
possível? A magia está à solta dentro dos reinos para qualquer espírito usar.
Já há muitos a usá-la para corromper os espíritos que devem fazer a
travessia. Vão levá-los para as Invernias e fortificar-lhes a pujança. Quanto
tempo faltará para que enfraqueçam o véu entre os reinos e este mundo?
Para que cheguem a Circe ou para que Circe consiga entrar? Quanto tempo
até ela ter o poder que tanto cobiça?
Um medo gelado e viscoso correu-me nas veias.
– Agora compreendes. Compreendes o que ela fez. O que a ajudaste a
fazer. Ajoelha-te...
Surgiram do nada duas mãos fortes que me obrigaram a cair de joelhos.
Desapertaram-me o manto no pescoço e senti o aço frio e duro na veia que
lá pulsava freneticamente. Pronto. Eu fracassara, envergonhara os Rakshana
e a memória do meu irmão, e iria morrer por isso.
– Obedeces aos desígnios da irmandade? – perguntou a voz.
A minha voz, estrangulada na garganta pela lâmina da faca, soou,
frenética, sufocada. A voz de um estranho.
– Sim.
– Diz.
– Eu... Eu obedeço aos desígnios da irmandade. Em todas as coisas.
A lâmina recuou. Soltaram-me.
Tenho vergonha de admitir que quase chorei lágrimas de alívio. Estava
vivo quando me apercebi de que me poupavam a vida, e teria hipótese de
provar o meu valor aos Rakshana.
– Ainda há esperança. A rapariga alguma vez te falou no Templo?
– Não, meu irmão. Eu nunca ouvi falar de tal sítio.
– Muito antes de as runas serem criadas para controlarem a magia, a
Ordem tinha um Templo. Constava ser a fonte de todo o poder nos reinos. É
o sítio onde se pode controlar a magia. Quem reclamar o Templo para si
poderá governar os reinos. Ela tem de o localizar.
– Onde fica?
Fez-se silêncio por momentos.
– Algures dentro dos reinos. Não temos a certeza onde. A Ordem fazia
disso segredo.
– Mas como...
– Ela tem de puxar pela cabeça. Se ela for verdadeiramente escolhida pela
Ordem, o Templo há de convocá-la de algum modo. Mas ela tem de ter
cautela. Há outros que também demandam o Templo. A magia é
imprevisível, bravia. Não se pode confiar em nada do outro lado. Isto é da
máxima importância. Assim que ela encontrar o Templo, tem de dizer estas
palavras: Eu prendo a magia em nome da Estrela do Oriente.
– Isso não entregará o Templo aos Rakshana?
– Entregar-nos-á o que é nosso. Porque é que a Ordem tem de ficar com
tudo? A época dela já terminou.
– Porque não lhe pedimos que nos leve com ela?
Fez-se silêncio outra vez, e tive medo que me pusessem a faca no pescoço
outra vez.
– Não há membro dos Rakshana que possa entrar nos reinos. Foi esse o
castigo das bruxas.
Castigo? Porquê? Eu ouvira Amar dizer apenas que éramos guardiães da
Ordem, um sistema de freios e contrapesos para o poder delas. Era uma
aliança conturbada, mas não deixava de ser uma aliança. O que se dizia
agora deixava-me em cuidado.
Tive receio de falar, mas soube que tinha de o fazer.
– Não creio que ela trabalhe para nós de livre vontade.
– Não lhe contes o objetivo. Conquista-lhe a confiança. – Pausa. – Faz-
lhe a corte, se preciso for.
Pensei na rapariga forte, poderosa, teimosa, que deixara para trás.
– Não é fácil cortejá-la.
– Qualquer rapariga gosta que a cortejem. É meramente questão de
encontrar o instrumento certo. O teu irmão, Amar, tinha grande talento para
manter a mãe da rapariga do nosso lado.
Meu irmão trajando o manto dos danados. Meu irmão a bradar o grito de
guerra dos demónios. Aquela não era altura de falar nos meus sonhos
perturbadores. Ainda pensavam que era cobarde ou louco.
– Cai nas graças dela. Encontra o Templo. Impede-a de se lançar noutras
iniciativas. O resto será nosso.
– Mas…
– Podes ir, Irmão Kartik – disse ele, com o título de honra que um dia me
poderia ser atribuído como membro de pleno direito dos Rakshana. –
Ficaremos atentos.
Os meus captores avançaram então para me vendarem os olhos mais uma
vez. Pus-me de pé de um salto.
– Esperem! – bradei. – Assim que ela encontrar o Templo, e o poder for
nosso, o que será dela?
Fez-se silêncio na sala, tirando o roçagar das chamas tremeluzentes
naquela ligeira corrente de ar. Por fim, a voz ecoou pela sala fora.
– Então terás de a matar.
UM
Dezembro de 1895
Academia Spence para Jovens Senhoras
Ai, o Natal!
Só de falar na época festiva, a maior parte das pessoas tem recordações
preciosas e sentimentais: uma árvore alta e verde coberta de ouropéis e
vidrarias; prendas embrulhadas em papel garrido espalhadas por todo o
lado; uma lareira animada e copos cheios de alegria; cantores às portas de
chapéus altos a apanharem a neve cadente; um belo e gordo peru numa
travessa, rodeado de maçãs e, claro, pudim de figos para a sobremesa.
Pois. Lindo. Eu também gostaria muito de ter isso.
Essas imagens da época natalícia estão a quilómetros de distância de onde
estou sentada agora, na Academia Spence para Jovens Senhoras, obrigada a
criar um enfeite de rapaz do tambor apenas com folha metalizada, algodão e
um bocadinho de cordel, como se fizesse uma experiência diabólica de
regeneração de cadáveres. O monstro de Mary Shelley não poderia ser
assim tão pavoroso como esta coisa ridícula. A figura não há de fazer
ninguém lembrar-se do espírito natalício. Aliás, o mais certo é que as
crianças se debulhem em lágrimas.
– Isto é impossível – resmungo, mas ninguém tem pena de mim. Nem a
Felicity ou a Ann, as minhas duas amigas do peito, ou seja, as minhas
únicas amigas aqui, acorrem em meu auxílio. A Ann está empenhada em
transformar açúcar húmido e bocaditos de acendalhas numa réplica exata do
Menino Jesus na manjedoura. Parece não reparar em mais nada além das
suas duas mãos. Por seu turno, Felicity vira os olhos frios e cinzentos para
mim como quem diz, Sofre, eu também sofro.
Não, antes pelo contrário, é a alimária da Cecily Temple quem me
responde. Queridíssima Cecily ou, como eu a trato na privacidade da minha
cabeça, A Desgraça em Figura de Gente.
– Não concebo o que poderá ser assim tão incomodativo, menina Doyle.
Com franqueza, é a coisa mais simples do mundo. Olhe, eu já fiz quatro. –
E exibe os quatro rapazes do tambor feitos de folha para inspeção de todos.
Ouvem-se exclamações e comentários quanto aos bracinhos perfeitos, aos
cachecóis de lã pequeninos… tricotados pelas mãos capazes da Cecily,
obviamente… e aos delicados sorrisos de alcaçuz que os fazem parecer
deleitados por virem a ser enforcados numa árvore de Natal.
Faltam duas semanas para o Natal e estou cada vez com mais má
disposição. O rapazinho de folha parece pedir-me que lhe dê um tiro.
Movida por uma força maior do que eu, não consigo deixar de colocar o
enfeite estropiado na mesinha e de dar um pequeno espetáculo. Faço
avançar a coisa hedionda a arrastar uma perna inútil como o Pequeno Tim
dos romances de Dickens.
– Que Deus nos abençoe a todas – digo numa voz esganiçada e
desgraçadinha.
A reação é um silêncio horrorizado. Todos os olhos se desviam. Até
Felicity, a quem ninguém tomaria por um modelo de boas maneiras, parece
encolher-se. Atrás de mim, ouço o ruído tão conhecido de alguém a
pigarrear numa censura imensa. Viro-me e vejo a senhora Nightwing, a
diretora empedernida da Spence, a olhar para mim como se eu fosse
leprosa. Maldição.
– Menina Doyle, parece-lhe humorístico? Fazer pouco do sofrimento
deveras verdadeiro dos infelizes de Londres?
– Eu... Eu... ora...
A senhora Nightwing olha para mim por cima dos óculos. A bola de
cabelo grisalho é como uma nuvem a ameaçar a tormenta iminente.
– Porventura, menina Doyle, se passasse algum tempo ao serviço dos
pobres, a enrolar ligaduras como eu fiz na mocidade durante a Guerra da
Crimeia, a menina adquirisse uma sadia e muito necessária dose de
compaixão.
– S-sim, senhora Nightwing. Não sei como é que pude ser tão mazinha –
balbucio.
Pelo canto do olho, vejo Felicity e Ann debruçadas sobre os enfeites
como se fossem relíquias fascinantes de uma escavação arqueológica.
Reparo que os ombros lhes tremem, e percebo que tentam dominar o riso
por causa da minha situação periclitante. A amizade é assim.
– Por causa disto, a menina perde dez pontos de bom comportamento e
fico à espera que faça uma ação benemérita durante a época festiva para se
redimir.
– Sim, senhora Nightwing.
– Vai escrever um relato completo dessa ação benemérita e explicar-me
os termos em que ela lhe engrandeceu o caráter.
– Sim, senhora Nightwing.
– Esse enfeite precisa de muito mais trabalho.
– Sim, senhora Nightwing.
– Tem dúvidas?
– Sim, senhora Nightwing. Quer dizer, não, senhora Nightwing.
Obrigada.
Ação benemérita? Durante as festas? Será que o tempo passado com
Thomas, meu irmão, conta para esse fim? Maldição. Agora é que estou
tramada.
– Senhora Nightwing? – O som agudo da voz da Cecily até me põe a
espumar da boca. – Espero que estejam satisfatórios. Anseio muito por dar
assistência aos infelizes.
É possível que eu ainda venha a perder a consciência de tanto reprimir um
sonoro Ha! em reação àquilo. A Cecily, que nunca perde oportunidade de
implicar com a Ann por ser bolseira indigente, não quer nada com os
pobres. Quer, isso sim, ser a cadelinha de colo da senhora Nightwing.
A senhora Nightwing leva os enfeites perfeitos da Cecily à luz para
melhor os inspecionar.
– Estão exemplares, menina Temple. Muito bom trabalho.
A Cecily faz um sorriso presumido.
– Obrigada, senhora Nightwing.
Ai, o Natal.
Com um pesado suspiro, desmonto o meu enfeite desgraçado e começo
tudo outra vez. Ardem-me os olhos, vejo tudo turvo. Esfrego-os, mas não
serve de nada. Preciso mesmo de dormir, mas tenho pavor de adormecer. Há
semanas que sou assombrada por avisos malvados em sonhos. Não me
lembro de muito quando acordo, apenas fragmentos aqui e ali. Um céu
toldado de vermelho e cinza. Uma flor pintada a escorrer lágrimas de
sangue. Estranhas florestas de luz. A minha cara, séria e inquiridora,
refletida na água. Mas as imagens que retenho são dela, linda e triste.
Porque é que me deixaste aqui? grita ela, e não consigo responder. Quero
regressar. Quero que fiquemos juntas outra vez. Desato a correr mas o grito
dela encontra-me. A culpa é tua, Gemma! Tu deixaste-me aqui! Tu deixaste-
me!
É só do que me lembro quando acordo todas as manhãs antes da alvorada,
ofegante e toda transpirada, mais cansada do que quando me fui deitar. São
apenas sonhos. Porque é que me deixam assim transtornada?
– Podiam ter-me avisado – ralho com Felicity e Ann assim que ficamos
sozinhas.
– Podias ter tido mais cuidado – Ann repreende-me. Tira da manga um
lenço que já está encardido de tanta lavagem e limpa o nariz que não para
de pingar e os olhos que não param de lacrimejar.
– Não teria dito nada se soubesse que ela estava mesmo atrás de mim.
– Sabes bem que a senhora Nightwing é como Deus: omnipresente. Aliás,
pode muito bem ser Deus, tanto quanto sei. – Felicity suspira. A luz da
lareira dá-lhe um brilho dourado ao cabelo louro quase branco. Ela
resplandece como um anjo caído.
Ann olha em redor, nervosa.
– N-n-ão devias falar de – ela diz a palavra num sussurro – Deus dessa
maneira.
– E por que raio não? – retruca Felicity.
– Pode dar azar.
Faz-se sossego, pois sabemos todas muito bem e sentimos todas
recentemente o que é ter azar, para podermos esquecer-nos de que há forças
além do mundo visível, forças além de toda a razão e compreensão.
Felicity olha para o lume.
– Ainda pensas que Deus existe, Ann? Depois de tudo a que assistimos?
Uma das criadas silenciosas desce o corredor mal alumiado, o branco do
avental destacado pelo cinzento da farda. No meio da escuridão só se lhe vê
o avental; a mulher desaparece completamente nas sombras. Se eu lhe
seguir o movimento a virar a esquina, consigo ver a sala alegre com a
lareira acesa donde acabámos de sair. Um enxame de miúdas de várias
idades, dos seis aos dezassete, lança-se em cantigas natalícias espontâneas,
a pedir a Deus que dê descanso aos seus alegres gentis-homens. Não se fala
no descanso das gentis mulheres de Deus, alegres ou não.
Anseio por ir ter com elas, acender velas na grande árvore, puxar os
cordéis dos garridos estalinhos de Natal e ouvir o papel a estalar com um
som alegre e satisfeito. Anseio por não ter mais ralações, tirando se o Pai
Natal será bonzinho para mim este ano, ou se encontrarei carvão no
sapatinho.
De braço dado como bonecas recortadas em papel, um trio de raparigas
balouça para trás e para a frente; uma pousa a cabeça macia e encaracolada
no ombro da que tem ao lado, e esta dá um beijinho na testa da primeira.
Não fazem ideia de que este mundo não é único. De que para lá das paredes
muralhadas da Academia Spence, muito além da barreira da senhora
Nightwing, da Mademoiselle LeFarge e das outras professoras que cá estão
a moldar os nossos hábitos e personalidades como se barro fossemos, além
da própria Inglaterra, há um lugar de grande beleza e terrível poder. Um
lugar onde o que sonhamos pode realizar-se, e temos de ter cuidado com o
que sonhamos. Um lugar onde nos podemos magoar. Um lugar que já
reclamou para si uma de nós.
Eu sou o elo para esse lugar.
– Vamos buscar os sobretudos – diz Ann, e avança para a imensa
escadaria em espiral que domina o átrio.
Felicity mira-a com curiosidade.
– Para que raio? Aonde vamos?
– É quarta-feira – respondeu Ann, e vira costas. – São horas de ir visitar a
Pippa.
DOIS
Quando a manhã finalmente chega, estou tão cansada que sinto os olhos
tapados com areia. Um péssimo sabor na boca, vou gargarejar com água de
rosas e cuspo com a maior delicadeza possível para a bacia. Só não consigo
livrar-me da imagem horrível que me ficou na cabeça, Pippa transformada
em monstro.
Foi apenas um sonho, Gemma, apenas um sonho. São os remorsos que
vêm assombrar-te. A Pippa preferiu ficar. A escolha foi dela, não tua. Deixa
isso.
Lavo a boca mais uma vez, como se me pudesse curar as maleitas.
Devo ter adormecido, pois acordo com alguém a bater-me à porta. O relógio
mostra que já passa da meia-noite. Tom entra de rompante no quarto. Está
muito zangado.
– Foste tu quem lhe deu isto?
– O quê? – pergunto, a esfregar o sono dos olhos.
– Deste isto ao pai? – Tom tem na mão um frasco castanho. Láudano.
– Não, claro que não! – digo, a absorver a realidade.
– Como é que ele o arranjou, não me queres explicar?
Ele não tem o direito de me entrar no quarto e maçar assim.
– Não sei, mas não lho dei – respondo em voz dura.
– Eu tinha-o trancado na vitrina das coleções. Só eu e a avó é que temos
chave.
Deixo-me cair na cama, enjoada e dormente.
– Oh, não. Ele pediu-me que o abrisse para me poder dar a prenda de
Natal antecipada.
– Eu disse-te que ele é esperto, não disse?
– Sim, disseste de facto – respondo. Simplesmente não acreditei. –
Lamento, Tom.
O meu irmão passa os dedos pelo cabelo.
– Ele estava a passar tão bem.
– Lamento – digo outra vez, embora me pareça fraco consolo. – Vou
deitá-lo para o lixo?
– Não – diz ele. – Não podemos deitá-lo fora, por enquanto. – Tom passa-
me o frasco. – Toma isto e esconde, esconde onde ele não possa encontrar.
– Sim, com certeza. – O frasco está quente na minha mão. Uma coisa tão
pequena. Tão poderosa.
Depois de Tom se ir embora, abro a prenda de Simon e tiro o fundo falso.
Um lugar para guardar todos os seus segredos...
Ponho o frasco lá dentro e tapo-o com o fundo falso, como se o láudano
não existisse de todo.
QUINZE
A avó não desiste e não me deixa ir visitar a professora Moore, mas deixa-
me ir fazer compras de Natal com Felicity e Ann, desde que a criada de
Felicity nos acompanhe. Quando o coche de Felicity encosta à porta de
nossa casa, fico tão contente de ver as minhas amigas – e tão desesperada
por fugir à minha avó autoritária – que quase corro ao encontro delas.
Ann está muito bem vestida com roupa de Felicity e um chapéu novo de
feltro verde na cabeça. Está a começar a encaixar no papel de debutante.
Aliás, está a começar a parecer-se com uma sósia de Felicity.
– Oh, Gemma! Que maravilha! Ninguém sabe que não sou como todos!
Não lavei um único prato nem ninguém zombou de mim. É como se eu
fosse mesmo descendente de uma czarina.
– Que mara... – Ann continua a tagarelice.
– Parece que vamos à ópera, e eu vou estar na fila para dançar no baile
deles como se fizesse parte da família! – Ann sorri para Felicity, e esta enfia
o braço no dela. – Hoje à tarde...
– Ann – avisa Felicity baixinho. Ann faz um sorriso envergonhado.
– Oh, desculpa, Fee.
– O que se passa? – pergunto, aborrecida com a intimidade delas.
– Nada – murmura Ann. – Não posso dizer.
– É falta de educação guardar segredos – digo acaloradamente.
– Hoje vamos acompanhar a minha mãe ao clube para tomar chá. Mais
nada – diz Felicity. Não há convite para mim. De súbito, deixo de estar feliz
ao vê-las. Prefiro que estivessem bem longe. – Oh, Gemma, não fiques
amuada. Eu também te convidaria, mas é muito difícil levar mais do que
uma convidada.
Não me parece que seja esse o caso, de todo.
– Não faz mal – digo. – Também tenho um compromisso.
– A sério? – pergunta Ann.
– Sim, vou visitar a professora Moore – minto. Elas ficam boquiabertas
quando lhes conto do encontro casual que tive. Estou a gozar bastante o
espanto delas. – Parece-me que lhe vou perguntar da Ordem. Como bem
veem, eu não poderia mesmo...
– Não podes ir sem nós – refila Felicity.
– Mas tu vais ao clube da tua mãe sem mim – digo. Felicity não tem
resposta para isto. – Vamos agora então às lojas de Regent Street?
– Não – responde Felicity. – Vamos contigo ver a professora Moore.
Ann faz beicinho.
– Pensei que íamos comprar um par de luvas novo para mim. Afinal,
faltam só nove dias para o Natal. Além disso, a professora Moore deve
odiar-nos por causa do que aconteceu.
– Ela não te odeia – digo eu. – Ela perdoou-nos a todas, e ficou
transtornada ao saber da Pip.
– Está decidido – diz Felicity, a enfiar o outro braço no meu. – Vamos
fazer uma visita à professora Moore. Depois, a Gemma vem connosco
tomar chá.
Ann hesita.
– E a Franny? Sabes bem que ela vai contar das mais ínfimas infrações.
– A Franny não vai dar trabalho nenhum – diz Felicity.
O sol vai alto, o dia está limpo e fresco quando chegamos ao apartamento
modesto da professora Moore na Baker Street. A criada da senhora
Worthington, Franny, está com atenção a tudo, pronta a tirar apontamento
de qualquer indiscrição da nossa parte, para poder reportar devidamente à
mãe de Felicity e à minha avó. A Franny não deve ser muito mais velha do
que nós. Não deve ter grande graça andar atrás de nós, diariamente
recordada de outra espécie de vida que lhe foi negada. Mesmo que sinta
amargura pela sua sorte, não se atreve a verbalizar. Porém, lá está, na linha
apertada da boca, na maneira como ela se obriga a olhar além de nós
enquanto vê tudo.
– Eu era para acompanhar as meninas às compras – diz.
– Houve mudança de planos, Franny – diz Felicity, impávida. – A mãe
pediu-me que fosse visitar uma amiga que adoeceu. É importante fazer
caridade, não lhe parece?
– Ela não me disse nada disso, menina.
– Sabe bem como a mãe se esquece das coisas. Anda tão ocupada.
O cocheiro ajuda-nos a descer da charrete. Franny faz menção de vir
também. Felicity impede-a com um sorriso frio.
– Franny, pode esperar no coche.
A cara cuidadosamente plácida e treinada de Franny abre-se numa vida
não ensaiada por momentos – toda olhos semicerrados e boca entreaberta –
antes de afivelar uma resignação odiosa.
– A senhora Worthington mandou-me acompanhar as meninas a todo o
lado.
– E a Franny tem acompanhado, mas o compromisso é para três, e não
três mais criada.
Odeio quando Felicity se põe com estas maneiras.
– Está muito frio cá fora – digo, na esperança de que ela perceba.
– Decerto a Franny se lembra bem do seu lugar. – Felicity faz um sorriso
que poderia passar por simpático se eu não sentisse a crueldade subjacente.
– Sim, menina. – Franny baixa a cabeça para voltar ao coche e ajeita o
corpo no canto mais fundo para ficar à espera.
– Agora podemos ter uma tarde agradável, livres da espia da minha mãe –
diz Felicity. Não se trata, afinal, de ser cruel para Franny, mas sim de
Felicity se vingar da mãe por qualquer motivo que desconheço.
Ann está com ar incerto, a olhar para o coche.
– Tu vens? – pergunta Felicity.
Ann marcha de volta ao coche, despe o casaco e dá-o a uma Franny
agradecida. Sem palavra, passa por mim e pela espantada Felicity e toca à
campainha para anunciar a nossa visita.
– A gratidão dá nisto – resmunga Felicity para mim quando avançamos
para a apanhar. – Levo-a para casa, transformo-a em realeza russa e ela
agora assume o papel.
A porta abre-se. Uma velha de olhos semicerrados e má catadura posta-se
diante de nós com a mão na anca larga.
– Eh! Quem vem lá? Qué que querem? Nã tenho o dia todo para ficar a
olhar para vocês. Tenho a lida da casa.
– Boa tarde – começo, mas sou interrompida pela velha impaciente. Olha
na minha direção com os olhos quase fechados. Será que ainda consegue
ver alguma coisa?
– Se são esmolas para os pobres, podem desandar.
Felicity estende a mão.
– Chamo-me Felicity Worthington. Vimos fazer uma visita à professora
Moore. Somos suas alunas.
– Alunas? Nã me disse nada de receber alunas – refila ela.
– Não falei nisso, senhora Porter? Tenha a certeza de que lhe disse ontem.
– É a nossa professora Moore a descer a escada para nos salvar.
– Muito esquisito, professora Moore. Se é para ser costume, vou
aumentar o preço da casa. É uma boa parte de casa. Nã falta quem a queira
arrendar.
– Sim, com certeza – diz a professora Moore. A senhora Porter vira-se
para nós de peito inchado.
– Gosto que m’informem do que se passa na ‘nha casa. Uma melher
sozinha tem que ter muito cuidado nos dias d’hoje. A nha casa dá-se ao
respêto. Perguntem a quem quiserem, a sôra Porter é uma melher
respeitável.
Receio que fiquemos ali de pé ao frio o dia todo, mas a professora Moore
pisca-nos o olho e leva-nos para dentro.
– Com certeza, senhora Porter. De futuro, dir-lhe-ei o que se passa. Tenho
muito gosto em ver as meninas de novo. É uma bela surpresa.
– Como tem passado, professora Moore? – Felicity dá um aperto de mão
rápido à nossa antiga professora, e Ann também. Ambas têm a decência de
fazerem um ar encabulado pela maneira torpe com que a trataram no
passado. No que lhe diz respeito, a professora Moore não perde o sorriso.
– Senhora Porter, apresento-lhe a menina Ann Bradshaw, a menina
Gemma Doyle e a menina Felicity Worthington. A menina Worthington,
claro, é filha do nosso almirante, Sir George Phineas Worthington.
A senhora Porter abre a boca e endireita-se.
– Nã ‘tá a reinar? E esta, hein? A filha do almirante na ‘nha pórpia casa?
– A senhora Porter, pitosga, confunde-me com Felicity e pega-me nas mãos,
abana-as com toda a força. – Oh, menina, é uma grande honra, pode crer. O
falecido sôr Porter também era marujo. ‘Tá ali o retrato na parede.
Ela aponta para um quadro péssimo de um cão terrier vestido com uma
gola isabelina. A expressão dorida do cão até parece que me suplica para
desviar os olhos e deixá-lo suportar a humilhação sozinho.
– Oh, isto pede vinho do Porto! Não lhe parece, professora Moore? –
exclama a senhora Porter.
– Talvez noutra altura, senhora Porter. Tenho de iniciar a nossa aula,
senão o almirante ficará aborrecido comigo – diz a professora Moore, a fiar
uma bela aldrabice.
– Atão eu cá sou um túmulo. – A senhora Porter faz um sorriso cúmplice,
e mostra dentes largos, amarelos e lascados como as teclas de um piano
velho. – A sôra Porter sabe guardar segredo. Nã duvide.
– Nem por sombras, senhora Porter. Obrigada pela maçada.
A professora Moore encaminha-nos escada acima para o terceiro andar e
a modesta parte de casa onde reside. O sofá de veludo, os tapetes floridos e
os cortinados pesados devem ser ao gosto da senhora Porter, mas as estantes
apinhadas e a escrivaninha cheia de desenhos são típicas da professora
Moore. A um canto está um globo antigo aninhado na sua caixa de madeira.
Pinturas, maioritariamente paisagens, preenchem uma parede. Noutra está
uma coleção de máscaras exóticas, horrendas na sua beleza feroz.
– Ai, Jesus – diz Ann, a mirá-las.
– Aquelas são do Oriente – diz a professora Moore. – Gosta das minhas
máscaras, menina Bradshaw?
Ann até estremece.
– Parece que nos querem comer.
A professora Moore chega-se mais.
– Hoje não me parece. Já comeram. – Ann demora um momento a
perceber que a professora Moore está a brincar. Há um silêncio
constrangedor, e ocorre-me que fiz um grande erro em ter trazido as minhas
amigas. Devia ter vindo sozinha.
– Isto parece Aberdeen – diz Felicity por fim, a contemplar uma pintura
com montes e urze rosada e purpúrea.
– Assim é. Já esteve na Escócia, menina Worthington? – pergunta a
professora Moore.
– Uma vez, de férias. Mesmo antes de a minha mãe ir para França.
– É uma bela terra – diz a professora Moore.
– A sua família está na Escócia? – pergunta Felicity timidamente.
– Não. Já não tenho pais. Não tenho grande família, tirando uns primos
afastados na Escócia, tão maçadores que dá vontade de ser órfã.
Rimo-nos com isto. É excelente não termos de nos mostrar boazinhas o
tempo todo.
– Tem viajado muito, professora Moore? – pergunta Ann.
– Hum – diz a professora Moore, a assentir. – E estas são as minhas
recordações dessas viagens lindas. – Ela aponta para os muitos desenhos e
pinturas que forram as paredes: uma praia desolada, um mar bravo, um
campo inglês pastoral. – Viajar abre a mente como pouca coisa pode fazer.
Tem a sua própria forma de hipnose, e eu estou sob esse sortilégio para
sempre.
Reconheço um dos lugares nas pinturas.
– São as grutas atrás da Spence?
– De facto – responde a professora Moore. Voltou o constrangimento,
pois todas sabemos que a visita às grutas foi uma das razões para o
despedimento da professora Moore.
A professora Moore traz chá, bolinhos, pão e um naco de manteiga.
– Por mais humilde que seja, aqui têm o lanche – diz ela, e pousa o
tabuleiro em cima da mesinha. Os segundos passam nervosos no relógio
enquanto debicamos a comida. Felicity pigarreia várias vezes. Está à espera
que eu pergunte sobre a Ordem à professora Moore, como prometi. Agora
já não me parece assim tão boa ideia.
– A sala está demasiado quente, menina Worthington? – pergunta a
professora Moore quando Felicity pigarreia pela quarta vez. Felicity abana a
cabeça, e pisa-me o botim com alguma força.
– Ai!
– Menina Doyle? Encontra-se bem? – pergunta a professora Moore.
– Sim, bem, obrigada – respondo e afasto os pés.
– Digam-me, minhas senhoras, como vão as coisas na Spence? – pergunta
a professora Moore, e salva-me.
– Temos uma professora nova – Ann deixa escapar.
– Deveras? – comenta a professora Moore, a barrar uma fatia grossa de
pão rústico. O rosto é uma máscara. Não lhe custará saber que foi
substituída?
– Sim – Ann continua. – Chama-se professora McCleethy. Veio da Escola
de Santa Vitória para Raparigas, no País de Gales.
A faca da manteiga da professora Moore esbarra e deixa-lhe uma noz de
manteiga no polegar.
– Não me há de deixar mais saborosa. – Ela sorri e todas nos rimos da sua
graça. – Santa Vitória. Não posso dizer que tenha ouvido falar. E essa
senhora é boa professora?
– Está a ensinar-nos tiro com arco – diz Felicity. A professora Moore
ergue uma sobrancelha.
– Mas que inusitado.
– A Felicity é bastante boa – diz Ann.
– Decerto que sim – comenta a professora Moore. – Menina Doyle, o que
lhe parece a professora McCleethy?
– Ainda não sei dizer. – Eu e Felicity trocamos olhares que não passam
desapercebidos à professora Moore.
– Será que noto insatisfação?
– A Gemma está convencida de que ela é bruxa – confessa Felicity.
– Deveras? Já lhe viu a vassoura, menina Doyle?
– Eu nunca disse que a achava bruxa – refilo.
Ann interrompe, quase sem fôlego. Adora enredos demoníacos.
– A Gemma contou-nos que ela chegou à Spence na calada da noite,
mesmo quando rugia uma tempestade terrível!
A professora Moore arregala os olhos.
– Céus! Chuva torrencial? Em dezembro? Em Inglaterra? Sinal de
bruxaria, por certo. – Todas se riem às minhas custas. – Mas continue.
Quero ouvir a parte em que a professora McCleethy enche o forno de
crianças.
Nova onda de risinhos de Felicity e Ann.
– Ela e a senhora Nightwing foram à Ala Oriental – digo eu. – Ouvi-as
falarem de algo que era preciso em Londres. Estavam a fazer planos juntas.
Felicity semicerra os olhos.
– Isso não nos contaste!
– Aconteceu anteontem à noite. Eu era a única que lá estava. Elas
apanharam-me à porta e ficaram zangadas comigo. A professora Moore
depois levou-me leite quente com hortelã-pimenta.
– Hortelã-pimenta? – pergunta a professora Moore de cenho franzido.
– Disse que me ajudaria a dormir bem.
– É uma erva que se sabe ser tranquilizante. É curioso que ela saiba.
– Ela tem um anel estranho, com duas cobras entrelaçadas.
– Cobras? Bizarro.
– E também queria saber do meu amuleto! – exclamo. – E da minha mãe.
– E que lhe contou a menina? – pergunta a professora Moore.
– Nada – respondo. A professora Moore bebe chá.
– Compreendo.
– É velha amiga da senhora Nightwing, mas parece vários anos mais nova
– comenta Felicity. Ann estremece.
– Talvez não seja. Talvez tenha pacto com o demo!
– Não deve ser assim muito bom, pois continua a ser professora numa
escola de meninas em Inglaterra – observa a professora Moore secamente.
– Ou talvez ela seja Circe – digo eu por fim. A chávena da professora
Moore fica a meio caminho da sua boca.
– Agora perdi-me.
– Circe. Sarah Rees-Toome? Foi a aluna da Spence que causou o incêndio
e destruiu a Ordem, ou pelo menos foi isso que lemos no diário de Mary
Dowd. Lembra-se, professora? – pergunta Ann, sem fôlego.
– Se me lembro? Como poderia esquecer-me? Esse livrinho foi o motivo
do meu despedimento.
Faz-se um silêncio desagradável. Se a professora Moore não nos tivesse
descoberto a ler o diário, se não nos tivesse lido alto algumas páginas,
nunca teria sido despedida da Spence. Mas leu, e isso determinou o seu
destino junto da Nightwing.
– Temos tanta pena, professora Moore – diz Ann, a olhar para o tapete
oriental. Felicity acrescenta:
– Foi a Pippa mais do que ninguém, sabe?
– Foi? – pergunta a professora Moore. Nós bebemos o chá com ar
culpado. – Cuidado com a culpa. É um bumerangue. Seja como for, está
feito. Mas essa Sarah Rees-Toome... Circe... se existiu...
– Existiu, pois! – insisto. Sei de certeza.
– ... não morreu no incêndio da Spence?
– Não – acrescenta Felicity de olhos muito abertos. – Ela só queria que
pensassem que morrera. Ainda anda por aí.
Tenho o coração a bater-me forte no peito.
– Professora Moore? Estávamos a pensar, quer dizer, estávamos na
esperança de que nos contasse mais histórias da Ordem.
O olhar dela está empedernido.
– Já fizemos isso, não já?
– Já, mas não pode dar sarilho algum, agora que a professora já saiu da
Spence – diz Felicity com frontalidade. A professora Moore ri-se.
– Menina Worthington, o seu descaramento espanta-me.
– Pensámos que talvez soubesse certas coisas. Sobre a Ordem. A senhora
professora – digo com grande formalidade.
– A senhora professora – repete ela.
– Sim – digo, a sentir-me tola de tantas maneiras, mas já não há hipótese
de parar e recuar, mais vale prosseguir. – Pensámos que talvez a
professora... Tivesse até feito parte dela.
Está dito. A chávena treme-me na mão. Espero que a professora Moore
nos repreenda, nos ponha na rua, admita que sabe tudo, qualquer coisa. Não
estou preparada para que ela desate à gargalhada.
– Pensaram...? Que eu...? Oh, santíssimo sacramento! – Ela ri-se tanto
que não consegue terminar.
Ann e Felicity também se desatam a rir, como se achassem parvoíce
desde o princípio. Traidoras.
– Ai, pobre de mim – diz a professora Moore, a secar os olhos. – Sim, é
verdade. Sou uma grande feiticeira da Ordem. Moro aqui nesta parte de
casa, tenho alunas para pagar a renda, é tudo um ardil engenhoso para
ocultar a minha verdadeira identidade.
Sinto as faces a arder.
– Desculpe. Nós – digo, a salientar o plural – simplesmente pensámos
que, como a professora sabe tanto sobre a Ordem...
– Oh, meu Deus. Mas que desilusão devo ser para as meninas. – Ela olha
demoradamente para a sala, o olhar vai das gravuras das praias às grutas
atrás da Spence e depois às máscaras na parede em frente. Receio que a
tenhamos indisposto mesmo. – Porquê tanto interesse na Ordem? –
pergunta, por fim.
– Eram mulheres que tinham poder – responde Felicity. – Não é como
aqui.
– Temos uma mulher no trono – contemporiza a professora Moore.
– Por direito divino – resmunga Ann. A professora Moore faz um sorriso
enviesado.
– Sim, é certo.
– Deve ser por isso que o diário nos intrigou tanto – digo eu. – Imagine-se
um mundo, os tais reinos, onde as mulheres mandam, onde uma rapariga
pode ter o que bem lhe aprouver.
– Seria um belo lugar, de facto. – A professora Moore bebe mais chá. –
Confesso que a ideia da Ordem, as histórias, têm exercido grande fascínio
sobre mim desde menina. Calculo que também a mim me agradasse a ideia
de um sítio mágico quando tinha a vossa idade.
– Mas... E se os reinos existissem mesmo? – pergunto.
A professora Moore olha bem para nós. Pousa a chávena na mesinha de
lado e recosta-se na cadeira, a mexer no relógio de bolso que prendeu à
cinta.
– Muito bem, vou alinhar. E se os reinos existissem mesmo? Como é que
seriam?
– Inimagináveis de tão belos – diz Ann com ar sonhador. A professora
Moore aponta para um esboço seu.
– Ah. Como Paris, então?
– Melhor! – exclama Ann.
– Como é que sabes? Nunca foste a Paris – zomba Felicity. Não liga a
Ann e continua. – Imagine-se um mundo onde o que desejamos se possa
concretizar. Das árvores chovem flores. O orvalho transforma-se em
borboletas nas nossas mãos.
– Há um rio e, quando vemos o nosso reflexo nele, somos lindas – diz
Ann. – Tão lindas que nunca mais ninguém fará pouco caso de nós.
– Parece-me amoroso – diz a professora Moore em voz baixa. – E é tudo
assim? As meninas disseram reinos, no plural. Como são os outros reinos?
– Não sabemos – digo eu.
– Não fomos... não imaginámos o resto – diz Ann. A professora Moore
oferece a travessa de bolinhos.
– Quem é que mora nesses reinos?
– Espíritos e criaturas. Alguns não são muito simpáticos – diz Ann.
– Querem controlar a magia – explico.
– Magia? – repete a professora Moore.
– Oh, sim. Há magia. Muita magia! – exclama Felicity. – As criaturas
fariam qualquer coisa para a controlar.
– Qualquer coisa?
– Sim, qualquer coisa – diz Ann, com ademanes teatrais.
– E conseguem controlar? – pergunta a professora Moore.
– Agora, sim. A magia estava protegida dentro das runas – continua Ann,
entre dentadas. – Mas as runas partiram-se e a magia está à solta, para
qualquer um usar como lhe aprouver.
Parece que a professora Moore quer fazer uma pergunta, mas Felicity
adianta-se.
– E a Pippa está lá, bonita como sempre – diz ela.
– Devem ter imensas saudades dela – diz a professora Moore. Vai virando
o relógio de bolso nos dedos. – Essas histórias são uma bonita maneira de a
recordarem.
– Sim – digo eu, na esperança de não mostrar a culpa que sinto.
– E agora que a magia está solta, como dizem, como é? As meninas
juntam-se aos outros membros da Ordem e fazem truques?
– Não. Foram todas mortas ou estão na clandestinidade – diz Felicity. – E
não é nada bom que a magia esteja à solta.
– Deveras? Então porquê?
– Há espíritos que a podem usar para fins tenebrosos. Podiam usá-la para
entrarem neste mundo ou para levar Circe para lá – explica Felicity. – Por
isso é que temos de encontrar o Templo.
A professora Moore faz um ar confuso.
– Receio ter de tirar apontamentos para não me perder. O que é o Templo,
não se importam?
– É a fonte secreta da magia dentro dos reinos – digo eu.
– Fonte secreta? – repete a professora Moore. – E onde fica esse sítio do
Templo?
– Não sabemos. Ainda não descobrimos – digo eu. – Mas assim que
conseguirmos, podemos vincular a magia outra vez e formar nova Ordem.
– Então bon courage. Mas que história fascinante – diz a professora
Moore. O relógio em cima da lareira dá as quatro da tarde. A professora
Moore compara as horas com as do relógio de bolso. – Ah, infalível de
precisão.
– Já são quatro? – pergunta Felicity e põe-se de pé. – Temos de nos
encontrar com a minha mãe daqui a meia hora.
– Mas que pena – diz a professora Moore. – Têm de voltar para outra
visita. Aliás, há uma exposição excelente numa galeria de arte particular em
Chelsea, na quinta-feira. Querem ir?
– Oh, sim! – exclamamos todas.
– Muito bem – diz ela, e levanta-se. Depois ajuda-nos a vestir os casacos.
Enfiamos as luvas e assentamos os chapéus.
– Então não há mais nada que nos possa dizer sobre a Ordem? – ainda
insisto.
– As senhoras têm aversão à leitura? Se eu quisesse saber mais sobre
determinado assunto, procuraria um bom livro, um ou dois – diz ela, e leva-
nos pela escada abaixo, onde a senhora Porter está à nossa espera.
– Qué dos desenhos benitos? – pergunta a senhoria, a procurar papel ou
giz em nós. – Nã sejam ‘canhadas. Mostrem cá à velhota.
– Não temos nada para lhe mostrar – diz Ann. A senhora Porter muda
logo de expressão.
– Atão, ê tenho aqui um estabelecimento respeitável, professora Moore.
Você disse que o almirante pagava aulas. Qué qu’andaram a fazer lá em
cima este tempo todo?
A professora Moore inclina-se para a senhora Porter até a velha ter de dar
um passo atrás.
– Bruxaria – sussurra ela. – Venham lá, senhoras. Abotoem-se bem. O
vento está cortante e não poupa ninguém.
A professora Moore faz-nos sair mesmo quando a senhora Porter berra do
vestíbulo.
– Nã m’agrada. Nã m’agrada memo nada.
A professora Moore nunca olha para trás nem perde o sorriso.
– Encontramo-nos na quinta-feira – diz, e despede-se a acenar. Ficamos
despachadas.
DEZASSEIS
– Foi uma tarde perdida. A professora Moore não sabe mais nada sobre a
Ordem e os reinos. Tínhamos feito melhor em ir às compras – anuncia
Felicity assim que chegamos ao clube feminino da sua mãe.
– Não te obriguei a ir comigo – digo eu.
– Talvez a Pippa tenha tido sorte a encontrar o Templo – diz Ann
animadamente.
– Já passaram dois dias – diz Felicity, a olhar para mim. – Prometemos
voltar assim que pudéssemos.
– E como é que conseguimos ter privacidade com a Franny? – pergunto.
– Eu trato disso – responde Felicity.
As portas abrem-se, vemos um criado de libré. Felicity mostra o cartão-
de-visita da mãe e o homem magricela examina-o bem.
– Somos convidadas de Lady Worthington, minha mãe – diz Felicity
desdenhosamente.
– Queira desculpar, menina, mas não é costume do clube Alexandra
admitir mais do que uma convidada. Lamento, mas as normas são para
cumprir. – O criado faz por parecer compassivo, mas no sorriso vejo
indícios de satisfação.
Felicity lança um olhar duro ao homem de farda engomada.
– Sabe quem é esta menina? – pergunta ela num sussurro ensaiado que
chama a atenção de toda a gente ali perto. Fico de sobreaviso, pois sei que a
Felicity só pode estar a tramar alguma. – Trata-se da menina Ann
Bradshaw, a recentemente descoberta sobrinha-neta do duque de
Chesterfield. – Felicity pestaneja como se o criado fosse idiota. – É
descendente da própria czarina. Decerto o senhor leu as notícias.
– Receio bem que não, menina – responde o criado, mas já menos seguro
de si. Felicity suspira.
– Quando penso nas vicissitudes que a menina Bradshaw passou, a viver
como órfã, dada como morta pelos seus entes queridos, oh, até me dá um
desgosto ver que está a ser maltratada aqui neste mesmíssimo momento.
Coitada da menina Bradshaw. Lamento muito esta maçada. Não duvido que
a minha mãe fique muito descontente quando souber do sucedido.
Uma das matronas da alta sociedade aproxima-se.
– Ora essa, menina Worthington, trata-te realmente da sobrinha-neta da
czarina há muito desaparecida?
Nunca dissemos tal coisa, mas dá-nos jeito.
– Oh, sim – responde Felicity, de olhos muito abertos. – Aliás, a menina
Bradshaw veio cantar para nós hoje, compreende, ela não é convidada da
minha mãe propriamente, mas sim convidada do clube Alexandra.
– Felic… menina Worthington! – exclama Ann, em pânico.
– Ela é modestíssima – acrescenta Felicity.
Há murmúrios entre as matronas da alta sociedade. Estamos prestes a
passar vergonha. O criado está constrangido. Se nos deixar entrar a todas,
estará a infringir as normas à vista de toda a gente; se recusar uma de nós,
arrisca-se a indispor uma das sócias do clube e talvez a ser despedido por
isso. Felicity jogou a sua cartada de mestre.
A matrona avança.
– Como a menina Bradshaw é convidada do clube Alexandra, não vejo
motivo para problemas, de todo.
– Como lhe aprouver, minha senhora – diz o criado.
– Estou ansiosa por ouvir a menina cantar esta tarde – diz a mulher já
depois de passarmos.
– Felicity! – sussurra Ann enquanto o criado nos leva para uma sala de
jantar forrada a madeira de carvalho com mesas bonitas cobertas por toalhas
brancas adamascadas.
– O que foi?
– Não devias ter dito aquilo, de eu cantar hoje.
– Mas tu sabes cantar, não sabes?
– Sei, mas...
– Queres fazer este jogo ou não, Ann?
Ann não diz mais. A sala está quase cheia de senhoras elegantes a
bebericarem chá e a debicarem pãezinhos com agrião. A nossa mesa fica
num canto distante.
Felicity perde a compostura.
– Chegou a minha mãe.
Lady Worthington corta a direito pela sala fora. Todos os olhos a miram,
pois é realmente bonita – branca como porcelana e aparentemente delicada.
Dela emana um ar de fragilidade, como alguém de quem cuidaram toda a
vida. O sorriso é cordial sem ser demasiado convidativo. Eu poderia treinar
mil anos e nunca conseguir um sorriso assim. O vestido de seda castanha é
sumptuoso e como manda a última moda. No pescoço elegante tem fiadas
de pérolas. A emoldurar-lhe o rosto, um chapéu enorme com plumas de
pavão na fita.
– Bonjour, querida – diz ela, a dar beijos nas faces de Felicity como me
constou que os parisienses fazem.
– Mãe, tem mesmo de dar espetáculo? – ralha Felicity.
– Muito bem, querida. Como está, menina Bradshaw? – diz Lady
Worthington. Olha para mim, e o sorriso vacila um pouco. – Não creio que
tenhamos sido apresentadas.
– Mãe, esta é a menina Gemma Doyle.
– Como está, Lady Worthington? – cumprimento-a.
A senhora Worthington faz um sorriso apertado para a filha.
– Felicity, querida, seria bom avisar-me de que traz convidadas para o
chá. O Alexandra é muito rigoroso com as convidadas.
Apetece-me morrer. Apetece-me entranhar-me no chão e desaparecer.
Porque é que a Felicity tem de fazer estas coisas?
Aparece uma criada como uma sombra ao lado da senhora Worthington e
serve-lhe o chá. A senhora Worthington põe o guardanapo no colo.
– Bem, agora não importa. Agrada-me conhecer as amigas da Felicity. É
muito agradável que a menina Bradshaw tenha podido passar o Natal
connosco, dado que o querido tio-avô, o duque de Chesterfield, ficou retido
em São Petersburgo.
– Sim – digo eu, a tentar não me engasgar com uma mentira tão
descarada. – Temos mesmo muita sorte.
Lady Worthington faz algumas perguntas de circunstância e eu faço uma
autobiografia monótona mas algo fidedigna; em troca, parece que Lady
Worthington me bebe as palavras. Faz-me sentir como se eu fosse a única
pessoa na sala. É fácil ver porque é que o almirante se enamorou dela.
Quando fala, as histórias dela são muitíssimo divertidas. Porém, Felicity
está sentada e amuada, a brincar com a colher, até a mãe pôr a mão na sua
para ela parar com isso.
– Querida – diz a mãe. – Tem mesmo de ser?
Felicity suspira e olha em redor da sala como que na esperança de que
alguém a venha salvar. Lady Worthington faz um dos seus sorrisos
deslumbrantes.
– Querida, tenho ótimas notícias. Queria que fosse surpresa para si, mas
não sei se consigo esperar nem mais um momento.
– O que se passa? – pergunta Felicity.
– O papá tem uma menina a seu cargo. A pequena Polly é filha da prima
Bea, que morreu tísica, ao que consta, embora eu me atreva a dizer que ela
morreu de desgosto. O pai sempre foi um inútil e despachou-a sem mais
cuidados. A própria filha.
Felicity empalideceu.
– A que se refere? Ela vai morar connosco? Consigo e com o papá?
– Sim. E a senhora Smalls, a governanta, claro. O seu pai está tão
contente por ter uma princesinha em casa outra vez. Felicity, caríssima,
tanto açúcar no chá, não. Não faz bem aos dentes – ralha a Lady
Worthington sem perder o sorriso.
Como se não tivesse ouvido nada, Felicity deita mais dois cubos de
açúcar no chá e bebe. A mãe finge não ter reparado.
Uma mulher mole e estofada como uma poltrona chega-se à nossa mesa.
– Boa tarde, senhora Worthington. É verdade que a sua ilustre convidada
vai cantar para nós?
Lady Worthington parece sobressaltada.
– Oh, bem, eu não saberia... Eu...
A mulher continua a tagarelar.
– Estávamos mesmo a falar no extraordinário que é a senhora ter acolhido
a menina Bradshaw na sua casa. Se não se importar de vir connosco, conte-
nos, a mim e à senhora Threadgill, como é que a parente há muito perdida
da czarina chegou até nós.
– Com licença – diz Lady Worthington, e desliza para a outra mesa como
um cisne.
– Estás bem, Fee? – pergunto. – Estás muito pálida.
– Estou bem. Simplesmente não me agrada a ideia de ter um bicho
qualquer a tropeçar-me nos pés enquanto estiver em casa.
Ela tem ciúmes. Ciúmes de alguém chamada pequena Polly. A Felicity
sabe ser tão mesquinha, por vezes.
– É apenas uma criança – digo eu.
– Eu sei – retruca Felicity. – Não vale a pena falar disso. Temos coisas
importantes a tratar. Venham comigo.
Ela leva-nos a passar pelas mesas de senhoras elegantes com chapéus
espalhafatosos a beberem chá e a bisbilhotarem. Elas levantam o olhar, mas
nós não temos importância, e retomam as conversas de quem fez o quê a
quem. Seguimos Felicity por escadarias amplas e atapetadas, passamos por
senhoras trajadas com vestidos engomados da moda, as quais parecem
discretamente interessadas nas jovens audazes que derrubam as barricadas
do seu clube tão seleto.
– Aonde nos levas? – pergunto.
– O clube tem quartos particulares para as sócias. Decerto haverá um
vazio. Oh, não.
– O que foi? – pergunta Ann, em pânico.
Felicity está a espreitar por cima da balaustrada para o átrio lá em baixo.
Uma mulher de aspeto sólido, vestido roxo e estola de peles, rodeada da sua
comitiva. É uma presença dominadora; as outras bebem-lhe as palavras.
– Uma das antigas amigas da minha mãe, Lady Denby.
Lady Denby? Será a mãe de Simon? Sinto um nó na garganta. Resta-me
esperar que consigamos esgueirar-nos sem darem por nós, para que Lady
Denby não fique com uma opinião desfavorável sobre mim.
– Porque é que dizes antiga amiga? – pergunta Ann, com ar aflito.
– Ela nunca perdoou à minha mãe ter ido morar para França. Não gosta
dos franceses, dado que a família Middleton remonta ao próprio Lorde
Nelson – responde ela, a falar do grande herói naval britânico. – Se Lady
Denby gostar de ti, tens a vida de feição. Se te considerar insuficiente em
qualquer aspeto, és banida. Continuará a ser cordial, sim, mas muito fria. A
tola da minha mãe é ceguinha e não quer ver. Continua a tentar cair nas
boas graças de Lady Denby. Eu nunca serei assim.
Felicity avança devagar, audazmente, pela varanda, a observar Lady
Denby. Eu faço o que posso para a seguir de cabeça baixa.
– Então é a mãe do Simon Middleton? – pergunto.
– Sim – responde Felicity. – Como é que conheces o Simon Middleton?
– Quem é o Simon Middleton? – pergunta Ann.
– Conheci-o ontem na estação dos comboios. Ele e o Tom são amigos.
Felicity arregala os olhos.
– Quando é que tencionavas contar-nos isso?
Ann tenta outra vez.
– Quem é o Simon Middleton?
– Gemma, tornaste a guardar segredos!
– Não é segredo – digo, a corar. – Não é nada, realmente. Ele convidou a
minha família para jantar. Mais nada.
Felicity tem ar de quem a largou no meio do Tamisa.
– Foram convidados para jantar? Isso é certamente qualquer coisa.
– É falta de educação falar de pessoas que nunca vi – refila Ann, a fazer
beicinho. Felicity tem pena dela.
– Simon Middleton é, não só, filho de um visconde, como muitíssimo
bem-parecido. Parece que se interessou pela Gemma, embora ela não queira
que nós saibamos disso.
– Não é nada, a sério – protesto. – Ele estava apenas a ser caridoso, de
certeza.
– Os Middletons nunca são caridosos – diz ela, a olhar para baixo. – Tens
de ter o maior cuidado perto da mãe dele. Ela gosta de esquadrinhar as
pessoas por desporto.
– Não me estás a deixar nada à vontade.
– Mais vale prevenir do que remediar, Gemma.
Abaixo de nós, Lady Denby diz algo alegre que faz as companheiras
rirem-se daquela maneira contida que as mulheres aprendem quando se
livram da sua meninice. Não parece ser o monstro que Felicity está a
pintar.
– O que vais usar? – pergunta Ann, com ar sonhador.
– Chifres e a pele de um animal grande – respondo. Ann demora um
pouco, como se acreditasse piamente. O que é que hei de fazer com ela? –
Vou usar um vestido a preceito. Algo que seja aprovado pela minha avó.
– Tens de nos contar os pormenores todos depois – diz Felicity. – Estou
interessadíssima em saber tudo.
– Conheces bem o senhor Middleton? – Tenho de bisbilhotar.
– Conheço-o há séculos – responde Felicity. Ali de pé, com as madeixas
soltas do cabelo dourado a curvarem-se debaixo do queixo, ela parece uma
estampa, a sua beleza estranha no auge da sedução.
– Compreendo. E já lhe lançaste o isco?
Felicity faz uma careta.
– Ao Simon? É como um irmão para mim. Não posso sequer conceber
um romance com ele.
Fico aliviada. É uma tolice minha ter esperança em Simon tão cedo, mas
ele é encantador e bem-parecido e parece gostar de mim. A atenção dele
faz-me sentir linda. É apenas um fio de entusiasmo, mas sinto que não
quero largá-lo tão cedo.
Uma das companheiras de Lady Denby olha para cima, vê-nos a olhar.
Lady Denby olha também.
– Vamos embora – sussurro. – Toca a andar!
– Não é preciso empurrar! – ralha Felicity quando praticamente caio por
cima dela. Escondemo-nos num corredor. Felicity puxa-nos para dentro de
um quarto e fecha a porta. Ann olha em redor, nervosa.
– Não devíamos estar aqui, pois não?
– Querias privacidade – diz Felicity. – Agora tem-la.
Está um roupão no espaldar de uma cadeira, várias caixas de chapéus a
um canto. O quarto até pode estar vazio – de momento – mas não está
desocupado.
– Temos de nos despachar – digo eu.
– Exatamente – diz Felicity, a sorrir. Ann tem cara de quem vai adoecer.
– Vamos ficar desgraçadas. Eu sei.
Porém, assim que damos as mãos e eu faço aparecer a porta de luz, o
constrangimento fica esquecido, engolido pelo nosso maravilhamento.
DEZASSETE
Mal entramos no brilho intenso dos reinos quando fica tudo escuro; sinto
dedos frios nos olhos. Esgueiro-me do enlaço e giro nos calcanhares, deparo
com Pippa atrás de mim. Ainda tem a coroa de flores, mas já estão a
murchar. Ela acrescentou urtigas e um narciso cor-de-rosa para animar.
Começa-se a rir de me ver assim boquiaberta.
– Oh, coitada da Gemma! Assustei-te?
– N-não. Bem, um bocadinho talvez.
Felicity e Ann correm para Pippa com um grito e abraçam-na.
– O que se passa? – pergunta-me Ann.
– Preguei um susto à coitada da Gemma. Não te zangues comigo – pede
ela, e pega-me na mão. Fala num sussurro. – Tenho uma surpresa. Venham
comigo.
Pip leva-nos pelo arvoredo.
– Fechem os olhos – diz. Por fim, detém-se. – Abram-nos.
Estamos no rio. Na água está um barco como nunca vi antes. Não sei bem
se será um barco, pois parece-se mais com o corpo de um dragão, preto e
encarnado, com grandes asas que se abrem dos lados. É certamente de um
tamanho monstruoso, curvo em ambas as pontas, com um mastro
gigantesco que se ergue perto da proa e uma vela fina como casca de
cebola. Cordas grossas de algas pendem dos lados, bem como redes de
prata cintilante que flutuam à superfície da água. Porém, o mais
extraordinário de tudo é a cabeça maciça junta à frente do barco. É verde e
escamosa, com serpentes longas como ramadas a rastejarem na cara temível
e impávida.
– Encontrei-a! – diz Pippa, emocionada. – Encontrei a górgone!
Aquela coisa é a górgone?
– Rápido! Vamos perguntar-lhe do Templo antes que ela se vá embora –
diz Pippa, e aproxima-se do barco imponente. – Ó de bordo!
A górgone vira a cara na nossa direção. As serpentes da cabeça bufam e
mexem-se como se nos quisessem comer por lhes transtornarmos a paz.
Decerto comeriam se não estivessem presas à coisa. Não estou nada
preparada para quando a criatura abre os grandes olhos amarelos.
– O que pretendes? – pergunta, numa voz soturna e sibilante.
– Tu és a górgone? – pergunta Pippa.
– Sssim.
– É verdade que estás obrigada pela magia da Ordem a não fazer mal a
ninguém e a dizer apenas a verdade? – continua ela. A górgone fecha os
olhos um ínfimo momento.
– Sssim.
– Estamos à procura do Templo. Conheces? – pergunta Pippa. Os olhos
abrem-se outra vez.
– Todos o conhecem. Ninguém sabe onde fica. Ninguém além da Ordem,
e há muitos anos que não aparecem.
– Há alguém que possa saber onde o encontrar? – pergunta Pippa. Está
aborrecida com a falta de préstimo da górgone. A górgone olha para o rio
outra vez.
– A Floresta das Luzes. A tribo de Fílon. Consta que outrora foram
aliados da Ordem. Poderão saber onde encontrar esse Templo.
– Muito bem – diz Pippa. – Pretendemos ir à Floresta das Luzes.
– Somente alguém da Ordem mo pode ordenar – diz a górgone.
– Ela é da Ordem – diz Pippa e aponta para mim.
– Veremos – bufa a górgone.
– Vá, Gemma – insiste Felicity. – Experimenta.
Dou um passo em frente e pigarreio. As serpentes abrem-se em redor da
cabeça da górgone como uma juba ondulante. Bufam-me, mostram os
dentes afiados e pontiagudos. A contemplar aquela cara horrível, custa-me
encontrar a minha voz.
– Pretendemos ir à Floresta das Luzes. Não te importas de nos levar,
górgone?
Em resposta, uma das grandes asas do barco baixa devagar até à margem
para nos dar passagem. Pippa e Felicity mal cabem em si de contentes.
Sorriem como tolinhas alegres e sobem para a tábua.
– Temos mesmo de ir nisto? – pergunta Ann, a deixar-se ficar.
– Não tenhas medo, Ann, querida. Eu estou contigo – diz Pippa, e puxa-a
para a frente.
A asa range e oscila quando a atravessamos. Felicity estende a mão e toca
numa das redes que pendem do lado da barcaça.
– São leves como teias de aranha – diz, a dedilhar as fibras delicadas. –
Que peixes é que consegues apanhar com elas?
– Não são para apanhar – responde a górgone na sua voz grossa e
xaroposa. – São para advertir.
Abaixo de nós, a água gira, manda uma radiância de cor-de-rosa e violeta
para a superfície.
– Olhem que bonito – diz Ann, e leva a mão à água. – Esperem, estão a
ouvir?
– A ouvir o quê? – pergunto.
– Lá está! Oh, que som tão bonito, nunca ouvi outro igual – diz Ann, e
leva o rosto perto da água. – Vem do rio. Está lá qualquer coisa, logo abaixo
da superfície.
Os dedos de Ann tocam na água cintilante e, por instantes, penso que vejo
algo a mexer-se muito perto da mão dela. Sem aviso, a grande asa que se
baixou para nós sobe depressa e obriga-nos a correr para dentro do barco.
– Foi repentino – diz Ann. – A música parou. Agora nunca saberei donde
vinha aquela canção bonita. – Fica amuada.
– Há coisas que é melhor não saber – comenta a górgone. Ann
estremece.
– Isto não me agrada nada. Agora não temos como sair.
Pippa dá-lhe um beijo na bochecha, como uma mãe a tranquilizar todos
os receios.
– Agora temos de ser corajosas. Temos de ir à Floresta das Luzes se
quisermos encontrar o Templo.
A górgone torna a falar.
– Tu és a minha soberana e tens de me mandar ir.
Apercebo-me de que ela está à minha espera. Olho para as curvas e
contracurvas do rio, sem saber para onde vai a partir dali.
– Muito bem – digo, a respirar fundo. – Rio abaixo, se faz favor.
A grande barcaça arranca. Atrás de nós, o jardim desaparece da vista.
Fazemos uma curva e o rio alarga-se. Imensas bestas de pedra com dentes
compridos e toucados complicados guardam as margens distantes. Como as
gárgulas da Spence, não veem nada mas são guardiãs sinistras e antigas do
que jaz mais abaixo. A água aqui é brava. Até há espuma nas ondas que
embalam o barco e me dão voltas ao estômago.
– Gemma, estás completamente verde – diz Pippa.
– O meu pai diz que ajuda se pudermos ver o destino – sugere Felicity.
Sim, qualquer coisa. Eu experimento qualquer coisa. Deixo as minhas
companheiras entregues aos risinhos e às histórias e avanço para a proa do
barco, sento-me na ponta comprida e afilada perto da nossa estranha
navegadora. A górgone sente que lá estou.
– Estás bem, Altíssima?
A língua preta e escorregadia apanha-me desprevenida.
– Estou indisposta. Fico bem num instante.
– Tens de respirar fundo. Assim é.
Respiro fundo várias vezes. Parece dar resultado, e o rio e a minha barriga
acalmam-se logo a seguir.
– Górgone – começo, depois de reunir coragem – há mais criaturas como
tu?
– Não. – É a resposta. – Sou a última da minha espécie.
– O que aconteceu às outras?
– Foram destruídas ou banidas aquando da rebelião.
– Da rebelião?
– Foi há muito, muito tempo – diz a górgone, e parece cansada. – Antes
das Runas do Oráculo.
– Houve um tempo antes das runas?
– Sssim. Foi um tempo em que a magia estava à solta nos reinos e todos a
podiam usar. Mas também foram tempos tenebrosos. Houve muitas batalhas
com as criaturas a digladiarem-se por mais poder. Foi um tempo em que o
véu entre o teu mundo e o nosso era ténue. Podíamos ir e vir como nos
aprouvesse.
– Podiam ir ao nosso mundo? – pergunto.
– Oh, sim. Um lugar assaz interessante.
Penso nas histórias que li, histórias de avistamento de fadas, fantasmas,
míticas criaturas marinhas a atraírem marinheiros para a morte. De súbito,
já não me parecem meras histórias.
– O que aconteceu?
– Aconteceu a Ordem – diz a górgone, e não sei dizer se o tom é de raiva
ou de alívio.
– Mas a Ordem não existia desde sempre?
– De certo modo. Eram uma das tribos. Sacerdotisas. Curandeiras,
místicas, videntes. Levavam espíritos para o mundo mais além. Eram
mestres ilusionistas. O seu poder sempre foi grande, mas aumentou com o
tempo. Constava que tinham encontrado a fonte de toda a magia dentro dos
reinos.
– O Templo?
– Sssim. – É a resposta sibilante da górgone. – O Templo. Constava que a
Ordem bebia das suas águas, e que assim a magia começou a fazer parte
delas. Vivia nelas, fortalecia-se a cada nova geração. Tinham mais poder do
que todos os outros. Aquilo que não lhes agradava era alvo de correção.
Começaram a limitar as visitas das criaturas ao vosso mundo. Não podia
entrar ninguém sem autorização delas.
– Foi aí que criaram as runas?
– Não – responde a górgone. – Isso foi a sua vingança.
– Não compreendo.
– Houve várias criaturas de todas as tribos que se associaram. Não
gostavam do poder que a Ordem exercia sobre elas. Não queriam pedir
autorização. Um dia, ripostaram. Quando várias iniciadas da Ordem
estavam a brincar no jardim, apanharam-nas desprevenidas e levaram-nas
para as Invernias, onde as massacraram a todas. Foi nessa altura que as
criaturas descobriram um segredo horrível.
Sinto a boca seca de ouvir esta história.
– Que segredo era?
– O sacrifício de outra entidade conferia um poder enorme.
A água corre debaixo de nós com ruído, leva-nos para a frente.
– De raiva e de desgosto, a Ordem criou as runas para selarem a magia.
Fecharam a fronteira entre os mundos para que só elas pudessem entrar. O
que ficou de cada lado da fronteira permanece encarcerado lá para todo o
sempre.
Lembro-me das colunas de mármore da Spence, das criaturas lá presas na
pedra.
– Assim perdurou muitos anos. Até que uma de vós atraiçoou a Ordem.
– Circe – digo eu.
– Sssim. Ela fez um sacrifício e deu poder aos espíritos negros das
Invernias mais uma vez. Quanto mais espíritos angariavam, mais poderosos
ficavam, mais o selo sobre a magia das runas enfraquecia.
– Então foi por isso que consegui estilhaçá-las? – pergunto.
– Talvez. – A resposta da górgone é como um suspiro. – Talvez,
Altíssima.
– Porque é que me chamas Altíssima?
– Porque o és.
As outras estão debruçadas de um dos lados do barco. Revezam-se a
segurarem nas cordas das velas, deixam os corpos empurrarem contra a
força do vento. O riso alegre de Pippa chega-me acima do restolhar da água.
Tenho uma pergunta para fazer, mas receio dizer em voz alta, receio a
resposta que poderei ter.
– Górgone – começo. – É verdade que os espíritos daqueles do nosso
mundo têm que fazer a travessia?
– É assim que tem sido desde sempre.
– Mas há espíritos que ficam para sempre?
– Não conheço nem um que não tenha ficado corrompido e ido morar nas
Invernias.
O vento apanhou a coroa de flores de Pippa. Ela tenta apanhá-la, a rir-se,
e consegue agarrá-la bem nas duas mãos.
– Mas agora está tudo diferente, não está?
– Sssim – sibila a górgone. – Diferente.
– Então talvez haja maneira de mudar as coisas.
– Talvez.
– Gemma! – Pippa chama-me. – Como te sentes?
– Muito melhor! – digo em voz alta.
– Então volta para cá!
Saio do meu poleiro ao lado da górgone e vou ter com as outras.
– O rio não é lindo? – pergunta Pippa, a sorrir. Tem deveras uma
tonalidade anilada que parece divina. – Oh, tive tantas saudades vossas.
Tiveram muitas saudades minhas?
Felicity corre para a abraçar, e agarra Pip com força.
– Eu pensei que nunca mais te iria ver.
– Tu viste-nos ainda não há dois dias – lembro eu.
– Mas é insuportável. Estamos quase no Natal – diz ela, nostálgica. – Já
foram a alguns bailes?
– Não – responde Ann. – Mas a mãe e o pai da Felicity vão dar o baile de
Natal.
– Depreendo que seja grandioso – diz Pippa, a fazer beicinho.
– Eu vou usar o meu primeiro vestido de noite – continua Ann, e descreve
o traje ao pormenor. Pippa pergunta-nos do baile. É como se estivéssemos
de volta à Spence, sentadas no grande salão, dentro da tenda da Felicity, a
mexericar e a fazer planos.
Sorridente, Pippa faz Felicity dar uma voltinha enquanto a barca desce o
rio vagarosamente.
– Estamos juntas, e não temos de nos separar nunca.
– Mas nós temos de voltar – digo eu. A mágoa nos olhos de Pippa fere-
me.
– Mas quando formares a Ordem outra vez, vens-me buscar, não vens?
– Claro que vimos – responde Felicity. Está em sintonia com Pippa outra
vez, contente por estar perto dela. Pippa abraça Felicity e encosta a cabeça
ao ombro dela.
– São as minhas amigas mais queridas no mundo inteiro. Não há nada que
possa mudar isso, nunca.
Ann junta-se ao abraço. Finalmente, também eu levo os braços ao redor
de Pippa. Rodeamo-la como pétalas, e eu tento não pensar no que nos
acontecerá a todas quando encontrarmos o Templo.
Depois de uma curva pronunciada, o rio abre-se e dá-nos a panorâmica
mais majestosa da margem, com grutas em penhascos que se erguem acima
de nós. Na rocha, há deusas esculpidas. Têm talvez quinze metros de altura,
e toucados complexos em forma de cone. Nos pescoços, fiadas de joias.
Tirando isso, estão nuas e bastante sensuais, as ancas num certo ângulo, um
braço atrás da cabeça, os lábios a esboçarem um sorriso. A decência manda-
me desviar os olhos, mas estão sempre a fugir para lá.
– Oh, valha-me Deus – diz Ann, e baixa imediatamente o olhar.
– O que são? – pergunta Felicity.
A górgone abre a boca.
– As Grutas dos Suspiros. Agora não passam de ruínas abandonadas,
habitadas apenas pelos Hajin, os Intocáveis.
– Os Intocáveis? – repito.
– Sssim. Lá está um. – A cabeça da górgone pende para o lado direito. Há
qualquer coisa a passar pelo mato à beira-rio. – Bichos imundos.
– Porque é que se chamam Intocáveis? – pergunta Ann.
– Sempre foi assim. A Ordem baniu-os para as Grutas dos Suspiros. Já
não vai lá ninguém. É proibido.
– Ora, isso não se faz – diz Ann, a voz já mais alta. – Não se faz de todo.
– Coitada da Ann. Sabe bem o que é ser intocável.
– Para que é que eram usadas antes disso? – pergunto.
– Era o sítio onde a Ordem recebia os amantes.
– Amantes? – repete Felicity.
– Sssim. – A górgone faz uma pausa, e depois acrescenta: – Os
Rakshana.
Eu não sei o que dizer perante isto.
– Os Rakshana e a Ordem eram amantes?
A voz da górgone soa longínqua.
– Outrora.
Felicity exclama:
– Olhem só! – E aponta para o horizonte, onde uma bruma pesada cai do
céu como lascas de ouro, ocultando-nos a vista do que está mais à frente.
Ruidosa como uma queda de água.
– Vamos passar por ali? – pergunta Ann, aflita. Pippa puxa Ann mais para
si.
– Não te aflijas. Vai correr tudo bem, de certeza, senão a górgone não nos
levava lá. Não é assim, Gemma?
– Sim, com certeza – respondo, a tentar não parecer que me sinto
aterrorizada. Não faço ideia do que nos vai acontecer. – Górgone, juraste
que não nos fazias mal, não é assim?
Porém, a pergunta morre no barulho implacável da cascata dourada.
Sentamo-nos todas no chão do barco. Ann fecha bem os olhos. Conforme
avançamos, também fecho os meus, com medo de saber o que vai acontecer
a seguir. Com um barulho ensurdecedor, passamos pela cortina de água e
saímos do outro lado, onde o rio parece um oceano sem terra à vista, tirando
uma ilha verdejante ao largo.
– Estamos vivas – diz Ann, admirada e aliviada.
– Ann – diz Pippa – olha, agora és uma menina de ouro!
É verdade. Temos a pele coberta por flocos de ouro. Felicity vira as mãos
de um lado para o outro, a rir-se alegremente por vê-las resplandecentes.
– Oh, estamos bem, não estamos? Não houve sarilho nenhum!
Pippa ri-se.
– Eu disse-te que não tivesses medo.
– A magia é forte – diz a górgone. Não sei dizer se é afirmação ou
advertência.
– Gemma – pergunta Pippa – porque é que temos de vincular a magia?
– A que te referes? Porque está à solta dentro dos reinos.
– E se isso não for assim tão mau? Porque é que não podem todos usar
esse poder?
Não me agrada o rumo da conversa.
– Porque podem usá-la para entrarem no nosso mundo e lançarem o caos.
Não haveria regulação nem controlo sobre a magia.
– Tu não sabes se os habitantes dos reinos a usariam mal.
Ela não ouviu a história da górgone, senão pensaria de outro modo.
– Não sabemos? Lembras-te da criatura que escravizou a minha mãe?
– Mas estava conluiada com Circe. Talvez não sejam todas assim –
continua Pippa.
– E como é que eu decido quem a pode ter, em quem posso confiar?
Ninguém tem resposta para isto. Eu sacudo a cabeça.
– Está fora de questão. Quanto mais tempo a magia estiver à solta, maior
o perigo de os espíritos aqui presentes ficarem corrompidos. Temos de
encontrar o Templo e vincular a magia outra vez. Depois reformularemos a
Ordem para manter o equilíbrio nos reinos.
Pippa faz beicinho. Tem a ventura irritante de continuar linda mesmo
assim.
– Muito bem. Estamos quase a chegar, seja como for.
DEZOITO
O rio estreitou-se outra vez. Estamos a entrar num ponto em que as árvores
crescem muito altas, grossas e verdes. Delas pendem milhares de
lamparinas. Faz-me lembrar o festival das luzes, Diwali, na Índia, quando
eu e a minha mãe ficávamos acordadas até tarde para ver as ruas
desabrocharem com velas e lamparinas.
O barco acosta na areia macia e molhada da ilha.
– A Floresta das Luzes – diz a górgone. – Fiquem alerta. Digam ao que
vão a Fílon e apenas a Fílon.
A tábua alada baixa e nós saímos para o tapete macio de erva e areia que
se funde em mato rasteiro e denso salpicado de flores de lótus brancas e
gordas. As árvores são tão altas que desaparecem num teto verde-escuro. Só
de olhar para cima me sinto tonta. As luzes oscilam e mexem-se. Uma
passa-me depressa pela cara, faz-me abrir a boca de susto.
– O que foi aquilo? – sussurra Ann, de olhos arregalados.
– O que se passa? – É Felicity quem pergunta. Tem várias luzes em cima
da cabeça. O rosto deslumbrante está alumiado por uma coroa
resplandecente.
As luzes fundem-se numa bola que flutua à nossa frente, a indicar o
caminho.
– Parece que querem que vamos atrás delas – diz Pippa, maravilhada.
Os espíritos pequeninos e luminosos, se assim se chamam, levam-nos
para dentro da floresta. O ar tem um aroma rico a terra. Cresce musgo nas
enormes árvores, como penugem macia e verde. Olho para trás e já não vejo
a górgone. É como se tivéssemos sido absorvidas pela floresta. Tenho
vontade de arrepiar caminho e fugir, especialmente quando ouço o ritmo
suave de cascos no chão a aproximar-se. A bola de luz rebenta e as luzinhas
esvoaçam desgarradas para dentro da floresta.
– O que será? – pergunta Felicity com um guinchinho, a olhar em redor.
– Não sei – responde Pippa.
O ritmo parece chegar-nos de todos os lados. Seja o que for, estamos
cercadas. Aproxima-se e, repentinamente, deixa de se ouvir. Um grupo de
centauros sai, um a um, dentre as árvores. Avançam algo rígidos nas
robustas patas equinas, os braços grossos cruzados sobre torsos humanos
nus. O maior do clã adianta-se. No queixo tem vestígios de barba.
– Quem são? O que tem a tratar aqui? – pergunta.
– Viemos ver Fílon – responde Pippa. Está a ser mesmo corajosa, pois a
mim só me apetece fugir. Os centauros trocam olhares desconfiados.
– Foi a górgone que nos trouxe – digo, na esperança de isso me abrir
portas.
O maior dos centauros avança até ter os cascos a centímetros dos meus
pés.
– A górgone? Que brincadeira faz ela connosco? Muito bem, pois. Vou
levá-las a Fílon e deixar o nosso líder decidir a vossa sina. Subam, a menos
que prefiram andar.
Ele agarra-me com mão férrea quando me iça para a sua garupa larga e
lisa.
– Ah – escapa-se-me, pois não há freio como num cavalo. Aliás, não há
nada a que me possa agarrar, e sou obrigada a abraçá-lo pela cintura grossa
e a apoiar a cabeça na amplidão das suas costas.
Sem sequer pedir com licença, ele lança-se a galope, comigo bem
agarrada enquanto passamos por árvores cujos ramos se estendem
perigosamente perto. Alguns deixam-me arranhões na cara e nos braços, e
desconfio que ele está a fazer de propósito. Os centauros que levam Felicity,
Pippa e Ann cavalgam a meu lado. Ann tem os olhos fechados e a boca
apertada numa careta. Por outro lado, parece que Felicity e Pippa apreciam
a estranha viagem.
Por fim, chegamos a uma clareira de palhotas e cabanas. O centauro
estende-me a mão e atira-me para o chão, onde aterro de traseiro. Depois
ele leva as mãos aos quadris e fica a sorrir por cima de mim.
– Queres ajuda para te levantares?
– Não, obrigada. – Levanto-me de um salto e sacudo as ervas da saia.
– És uma delas, não és? – pergunta, a apontar para o amuleto que
apareceu por cima da blusa depois da viagem acidentada. – Os boatos são
verdade! – brada ele para os amigos. – A Ordem está a voltar aos reinos,
aqui estão elas.
O clã avança e cerca o nosso grupinho de raparigas.
– O que havemos de fazer quanto a isso? – pergunta o centauro, a raiva a
rondar-lhe as palavras. Já não me interessa ver Fílon nem fazer-lhe
perguntas sobre o Templo. Só desejo fugir.
– Creósto! – Ouve-se uma voz nova e estranha.
Os centauros apartam-se, recuam. Curvam as cabeças. O maior, Creósto,
baixa também a cabeça mas por pouco tempo.
– O que é aquilo? – sussurra Ann, agarrada a mim.
Diante de nós está a criatura mais magnífica que eu jamais vi. Não sei se
é homem ou mulher, pode ser ambos. É delicada, com pele e cabelo da cor
baça dos lilases e uma capa comprida até ao chão, feita de bolotas, espinhos
e cardos. Os olhos são verdes cintilantes e oblíquos como os de um gato.
Uma mão é uma pata, a outra, uma garra de ave.
– Quem vem lá? – pergunta a criatura numa voz que é uma harmonia
trinomial, os tons distintos mas inseparáveis em simultâneo.
– Uma bruxa – diz o centauro hostil. – Trazida à nossa beira pela górgone
amaldiçoada.
– Hum – faz a criatura, a olhar para mim até eu me sentir como uma
criança ladina diante da palmatória. Com uma garra afiada, ela levanta-me o
amuleto para melhor o inspecionar. – Uma sacerdotisa. Há muitos anos que
não vemos uma como tu. És aquela que quebrou as runas, o selo da magia?
Tiro o colar da frente do corpo e guardo-o dentro da blusa outra vez.
– Sou.
– O que pretendes de nós?
– Lamento, mas só posso falar com Fílon. Sabes onde posso encontrá-
lo...
– Eu sou Fílon.
– Ah – digo. – Vim pedir-te ajuda.
Creósto interrompe.
– Não a ajudes, Fílon. Não te lembras do que têm sido para nós todos
estes anos?
Fílon cala-o com um olhar.
– Porque haveria de te ajudar, sacerdotisa?
Não tenho resposta ensaiada para isto.
– Porque eu desfiz o selo da magia. É preciso repor o equilíbrio.
Ouvem-se risadas entre os centauros.
– Então que sejamos nós a repô-lo, e a controlar – brada um centauro. Os
outros aplaudem.
– Mas só a Ordem pode vincular a magia e governar os reinos – diz
Felicity.
Fílon fala outra vez.
– Assim foi durante gerações, mas quem diz que terá de ser sempre
assim? O poder é fugaz. Corre como areia.
Mais aplausos e vivas dos outros. Juntou-se uma multidão. Além dos
centauros, as criaturas de luz já têm cerca de meio metro de altura, e pairam
como pirilampos enormes.
– Preferem que seja Circe a encontrá-lo primeiro? – pergunto. – Ou os
espíritos negros das Invernias? Se controlarem a magia, parece-lhes que
venham a ser generosos convosco?
Fílon reflete nisto.
– A sacerdotisa tem razão. Venham comigo.
Creósto ainda grita atrás de nós.
– Não lhes prometas nada, Fílon! A tua lealdade é para com o teu povo
primeiro! Não te esqueças!
Fílon instala-nos numa cabana grandiosa e deita um líquido encarnado
numa taça. Não nos oferecem, o que me faz confiar um pouco mais na
estranha criatura. Se comêssemos ou bebêssemos algo daqui, teríamos de
ficar, como aconteceu a Pippa. Fílon agita o líquido na taça e bebe.
– Concordo que a magia tem de ficar contida. É demasiado possante deste
modo. Há quem nunca lhe tenha sentido a força, e esteja deslumbrado com
ela. Querem mais e mais. Há inquietação. Receio que entrem em alianças
insensatas e nos condenem à escravidão. É uma ameaça aos nossos
costumes.
– Então ajudas-me a encontrar o Templo? – pergunto.
– E o que nos prometes se te ajudarmos? – Como eu nada digo, Fílon faz
um sorriso torto. – Tal como eu pensava. Não interessa à Ordem partilhar o
poder dos reinos.
– A górgone disse que vocês e a Ordem eram aliados outrora.
– Sim – diz Fílon. – Outrora. – A criatura dá a volta à sala com uma
graciosidade elegante e felina. – Os centauros eram mensageiros delas; eu
era mestre de armas. Porém, depois da rebelião, elas sonegaram-nos a
magia, como fizeram a todos os outros, embora tivéssemos permanecido
leais. Foi assim que nos agradeceram.
Não sei o que dizer perante isto.
– Talvez não houvesse outra maneira. – A criatura contempla-me
longamente, até eu me sentir obrigada a desviar o olhar.
– Eles não nos vão ajudar, Gemma. Vamo-nos embora – diz Felicity.
Fílon volta a encher a taça.
– Não posso dizer-te onde encontrar o Templo pois, na verdade, não sei
onde fica. Mas posso oferecer-te algo. Venham comigo.
Saímos para o dia nublado outra vez. Creósto vem ao caminho daquele
chefe magnífico e fala baixo numa língua que não compreendemos. Porém,
eu compreendo a raiva na voz, a cautela nos olhos de cada vez que
dardejam para nós. Fílon despacha-o com uma palavra breve:
– Nyim!
– Não podes confiar nelas, Fílon – cospe o centauro. – As promessas
delas são como brilho, com o tempo, esfumam-se.
Fílon leva-nos para uma cabana baixa. As paredes cintilam com um leque
de armas reluzentes, algumas que eu nem nunca vi. Mosquetões prateados
pendem em ganchos. Taças com pedrarias e espelhos ricamente
ornamentados lado a lado.
– Enquanto a magia está à solta, usamo-la para regressar aos antigos
costumes. Se não sabemos o resultado, temos de estar preparados. Podem
levar uma arma para a vossa viagem.
– São todas armas? – pergunto.
– Com o sortilégio certo, tudo pode ser uma arma, sacerdotisa.
São tantas que nem sei por onde começar.
– Oh – exclama Felicity. Encontrou um arco leve como uma pluma e uma
aljava cheia de setas com pontas de prata.
– Parece-me que a escolha está feita – diz Fílon, e passa-lhe o conjunto.
As setas são benfeitas mas discretas, tirando as estranhas marcas nas pontas
de prata, uma série de números, linhas e símbolos que poderei nunca vir a
compreender.
– O que são? – pergunta Felicity.
– A língua dos nossos anciãos.
– Setas mágicas? – pergunta Ann, a mirar as pontas.
Felicity ergue o arco e fecha um olho a mirar um alvo imaginário.
– São setas, Ann. Hão de funcionar como quaisquer outras.
– Talvez – diz Fílon. – Se tiveres coragem de apontar e disparar.
Felicity faz má cara e vira o arco para Fílon.
– Felicity! – sai-me num silvo. – O que estás a fazer?
– Coragem não me falta – rosna ela.
– E terás quando importar mais? – pergunta Fílon, impávido. Pippa baixa
o arco e afasta-o.
– Fee, deixa isso.
– Coragem não me falta – diz ela outra vez.
– Claro que não – contemporiza Pippa. Fílon olha-as, curioso.
– Veremos. – Vira-se para mim e continua: – Sacerdotisa, estas setas são
então a tua escolha?
– Sim – respondo. – Presumo que sim.
– Temos de nos ir embora – diz Felicity. – Obrigada pelas setas.
Fílon curva aquela cabeça magnífica.
– Não têm de quê. Mas não são prendas. São prova de uma dívida a
pagar.
Sinto-me como que a cair num buraco e quanto mais tento sair, mais me
afundo.
– Que espécie de pagamento?
– Parte da magia é o que pedimos, caso encontres o Templo primeiro.
Não tencionamos viver nas trevas outra vez.
– Compreendo – digo, a fazer uma promessa que não sei se poderei
honrar.
Passamos mais uma vez pela cortina dourada e seguimos rio abaixo.
Quando regressamos às estátuas nos penhascos, às Grutas dos Suspiros,
vejo fumo colorido – encarnado, azul, cor de laranja, violeta – que se ergue
muito acima, e fico com a certeza de ter visto uma figura atrás do fumo.
Todavia, o vento sopra e muda de direção, não vejo mais do que volutas de
luz.
Surge um nevoeiro prateado. Tenho vislumbres da beira-rio, mas custa-
me a ver bem. Ann vai para a borda do barco.
– Escutem, estão a ouvir? Aquela canção bonita voltou!
Demoro um momento, mas já ouço. A canção é ténue mas belíssima.
Entranha-se-me nas veias e corre-me pelo corpo, faz-me sentir quente e
leve.
– Olhem! Na água! – exclama Ann.
Uma a uma, emergem três cabeças nuas. São mulheres como nunca vi. Os
corpos cintilam debilmente com escamas luminescentes que brilham em
tons rosados, acastanhados e alaranjados. Quando levantam as mãos de
dentro de água, vejo membranas leves entre os dedos compridos. São
hipnóticas, e dou comigo incapaz de não olhar. Sinto-me alegre com a
canção. Felicity e Ann riem-se e juntam-se na lateral do barco, tentam
chegar-se mais. Eu e Pippa vamos também. As mãos palmípedes afagam a
grande barcaça como se fosse o cabelo de uma criança. A górgone não
abranda. A massa de serpentes emaranhadas sibila sem parar.
Ann estende o braço mas não chega lá com a mão.
– Oh, quem me dera tocar-lhes – diz.
– Porque é que não podemos? – pergunta Pippa. – Górgone, baixa a
tábua, se faz favor.
A górgone não responde e não abranda.
As mulheres são tão lindas; a canção tão bonita.
– Górgone – digo eu. – Baixa a tábua.
As serpentes contorcem-se como se sofressem.
– É teu desejo, Altíssima?
– Sim, é meu desejo.
O grande barco abranda e a tábua desce até pairar logo acima da água.
Com as saias arrebanhadas nas mãos, saímos e agachamo-nos, à procura
delas.
– Onde estão? – pergunta Ann.
– Não sei – respondo.
Felicity está de gatas, as pontas do cabelo já dentro de água.
– Talvez se tenham ido embora.
Ponho-me de pé, tento ver no nevoeiro. Algo frio e molhado me acaricia
o tornozelo. Solto um guincho e cambaleio mesmo quando a mão
palmípede da criatura se recolhe e afasta da minha perna, deixa escamas
reluzentes na minha meia.
– Oh, não! Assustei-a – digo eu. O corpo como o de uma sereia desliza
para baixo da tábua e desaparece.
A tona do rio está coberta com uma película oleosa. Passado momentos,
as criaturas emergem mais uma vez. Parecem fascinadas por nós como
estamos por elas. Ficam a boiar nas correntes pequenas, as mãos estranhas
para trás e para a frente, para trás e para a frente.
Ann ajoelha-se.
– Olá.
Uma das criaturas aproxima-se e começa a cantar.
– Oh que lindo – diz Ann.
De facto, a canção é tão bonita que me apetece ir para a água atrás delas e
ouvi-la para sempre. Juntou-se uma multidão delas, seis, depois sete, depois
dez. A cada uma que vem, a canção cresce, fica mais pujante. Estou a
afogar-me nesta beleza.
Uma criatura agarra-se ao barco. Olha para mim. Tem olhos enormes,
como espelhos do próprio oceano. Fito-os e vejo-me a cair depressa nas
profundezas, onde toda a luz se desvanece. Ela estende a mão para me
acariciar o rosto. A canção dela flutua perto dele.
– Gemma! Não! – Tenho a vaga noção de que Pippa me está a chamar,
mas tudo se funde na canção e passa a melodia que me convida a entrar no
rio. Gemma... Gemma... Gemma...
Pippa puxa-me rudemente e caímos as duas em cima da tábua. A canção
das ninfas passa a um guincho feroz que me deixa um arrepio na espinha.
– O que… que foi? – pergunto, como se acordasse de um sonho.
– Aquela coisa quase te puxou para baixo! – exclama Pippa. Depois abre
muito os olhos. – Ann! – grita.
Ann passa as duas pernas para um dos lados da tábua. Tem um sorriso de
êxtase nos lábios e uma das coisas está a afagar-lhe a perna e a cantar tão
docemente que é de cortar o coração. Felicity estende uma mão, os dedos a
centímetros das mãos palmípedes de duas criaturas.
– Não! – Eu e Pippa gritamos em uníssono.
Agarro Ann e Pippa passa os braços à volta de Felicity. Elas debatem-se,
mas conseguimos puxá-las.
As criaturas soltam outro guincho horrível. De raiva, agarram-se à tábua
como se nos quisessem sacudir para cairmos à água, ou mesmo arrancar a
tábua.
Ann esconde-se nos braços de Pippa e Felicity dá pontapés nas mãos das
criaturas.
– Górgone! – chamo eu. – Socorro!
– Omata! – Ouve-se a voz da górgone, poderosa e autoritária. – Omata!
Deixem-nas senão usamos as redes!
As criaturas gritam e recuam. Olham para nós com desapontamento antes
de se afundarem devagar dentro de água. Não há nada além de um brilho
oleoso à tona, a servir de prova da sua presença. Eu praticamente empurro
as outras para dentro do barco.
– Górgone, iça a tábua! – grito.
– Como te aprouver – responde ela, e puxa a asa pesada. As mulheres
calvas e brilhantes não gostam. Tornam a guinchar.
– O que são aquelas coisas? – pergunto, arquejante.
– Ninfas da água – responde a górgone, como se eu as visse todos os dias
ao lanche. – Estão fascinadas pela vossa pele.
– São inofensivas? – pergunta Ann, a esfregar as escamas coloridas que
lhe ficaram numa meia.
– Depende – responde a górgone. Felicity olha para a água.
– Depende de quê?
A górgone continua.
– Se te acharem encantadora. Se ficarem particularmente deslumbradas
tentarão atrair-te até ao lago delas. Depois de te encurralarem, tiram-te a
pele.
Quando me apercebo do perto que estivemos de as seguir até às
profundezas, tremo como varas verdes.
– Quero voltar – geme Ann. Eu também quero.
– Górgone, leva-nos de volta ao jardim, já – ordeno.
– Como te aprouver – diz ela.
Atrás de nós, vejo as ninfas a espreitarem à tona da água revolta, as
cabeças reluzentes a boiarem como joias de um tesouro perdido. Um
fragmento daquela canção belíssima encontra-nos e, por momentos, chego-
me à beira do barco, desejo mais uma vez mergulhar. Avançamos com uma
sacudidela, afastamo-nos delas, e a canção transforma-se em raiva, um
ruído como pássaros que não têm que comer.
– Calem-se – digo eu baixinho, desejosa que acabe. – Porque é que não se
calam?
– Estão à espera de uma prenda, de um brinde para o caminho – responde
a górgone.
– Que espécie de prenda? – pergunto.
– Uma de vós.
– Isso é horrível – digo.
– Sssim – sibila a górgone. – Indispuseram-nas deveras, parece-me.
Sabem ser malvadas quando se zangam, e guardam rancor.
A ideia daquelas mãos molhadas e frias a puxarem uma de nós para baixo
faz-me estremecer.
– Há mais ninfas daquelas por aí? – pergunta Pippa, o rosto pálido
iluminado pelo céu cor de laranja.
– Sssim – responde a górgone. – Mas eu não preocuparia muito. Só
podem chegar-vos se as meninas estiverem dentro de água.
Fraco consolo.
O nevoeiro levanta. Tenho as pernas a tremer, como se tivesse corrido
durante muito tempo. Nós quatro estamos deitadas no chão do barco, a
olhar para o céu radioso.
– Como é que encontraremos o Templo se aquelas criaturas usarem a
própria magia contra nós? – pergunta Ann.
– Não sei – respondo.
Não é o jardim bonito que minha mãe me mostrou. Agora é bastante
evidente que os reinos além desse jardim não são sítio onde eu possa agir
descontraidamente.
– Górgone – chamo quando tudo está mais calmo e o jardim à vista – é
verdade que foste encarcerada neste barco para castigo?
– Sssim. – É a resposta sibilante.
– Pela magia de quem?
– Da Ordem.
– Mas porquê?
A grande barcaça range e geme na água.
– Fui eu quem chefiou o meu povo contra a Ordem aquando da rebelião.
As serpentes na cabeça dela contorcem-se e esticam-se. Uma enrola-se na
proa pontiaguda, a língua a centímetros da minha mão. Recuo para uma
distância mais segura.
– Ainda és leal à Ordem? – pergunto.
– Sssim. – A resposta vem, mas não é imediata, como se fosse obrigada
por magia. Há um momento de hesitação. Ela parou para pensar. Apercebo-
me de que o aviso de Fílon faz sentido.
– Górgone, sabias que as ninfas de água estavam perto?
– Sssim – diz ela.
– Porque é que não nos avisaste?
– Não perguntaste. – Com isto, chegamos ao jardim, onde a grande besta
verde fecha os olhos.
Pippa abraça-nos com força, não nos quer largar.
– Têm mesmo de ir já? Quando é que podem voltar?
– Assim que possível – diz Felicity para a descansar. – Não deixes que
nada te apanhe, Pip.
– Não deixo – diz Pippa, e pega-me nas mãos. – Gemma, eu hoje salvei-
te a vida.
– Sim, salvaste. Obrigada.
– Presumo que isso nos deixe vinculadas, não é? Como uma promessa?
– Presumo que sim – respondo, pouco à vontade. Pippa dá-me um beijo
na face.
– Voltem assim que puderem!
A porta de luz acende-se e viemos embora com ela a acenar-nos, a
derradeira imagem fugaz num sonho antes de acordarmos.
De volta ao quarto no clube, tomamos bem atenção umas às outras.
Estamos bem, algo abaladas, e prontas a retomar os nossos lugares para o
chá.
– Estás a sentir? – pergunta Felicity quando descemos a escada. Faço que
sim com a cabeça. A magia corre-me pelo corpo. O sangue passa mais
depressa, todos os sentidos estão mais alerta. É espantoso, como ter luz por
dentro. Atrás das portas fechadas da sala de jantar, ouço pedaços de
conversas, sinto as carências e os desejos, as invejas mesquinhas e os
desapontamentos de cada coração que bate, até me sentir obrigada a fechar-
me a tudo.
– Ah, cá está a nossa menina Bradshaw – diz a mulher volumosa quando
entramos na sala. – Constou-nos que foi treinada pelos mestres mais
prestigiados de toda a Rússia quando era pequena, e que foi assim que a
família da czarina soube logo que a menina era a parente há muito perdida,
pela sua voz belíssima. Não nos quer dar a honra de cantar uma canção para
nós?
Esta história está a ganhar vida própria como a magia nos reinos, de cada
vez que é contada.
– Sim, tens de o fazer – diz Felicity, a pegar no braço de Ann. – Usa a
magia – sussurra ela.
– Felicity! – sussurro também. – Não é para nós...
– Tem de ser! Não podemos abandonar a Ann.
Ann olha para mim, suplicante.
– Só desta vez – diz Felicity.
– Só desta vez – repito eu.
Ann vira-se para a multidão, a sorrir.
– Tenho muito gosto em cantar.
Depois espera que o roçagar das saias termine e que as mulheres se
sentem. Fecha os olhos. Sinto-a a concentrar-se, a reunir a magia. É como
se estivéssemos unidas por ela, a laborar em conjunto para criar esta ilusão.
Ann abre a boca para cantar. Tem uma voz linda já de si, mas a música que
sai dela é poderosa e sedutora. Demoro um momento a reconhecer o
idioma. Ela está a cantar em russo, língua que desconhece. É um toque
muito requintado.
As mulheres do clube estão deslumbradas. Quando Ann chega ao
crescendo da canção, algumas levam os lencinhos aos olhos, de comovidas
que estão. Quando Ann termina com uma vénia pequena e respeitosa, as
mulheres aplaudem e correm para a louvar. Ann deleita-se com a adoração.
Lady Denby avança para Ann e dá-lhe os parabéns.
– Lady Denby, está maravilhosa hoje – diz a mãe de Felicity. Lady Denby
faz que sim com a cabeça mas nada diz. O desdém não passa desapercebido
a ninguém. Faz-se um silêncio constrangedor na sala. Lady Denby olha para
Ann com frieza.
– Diz que é parente do duque de Chesterfield?
– S-sim – gagueja Ann.
– Estranho. Não creio ter conhecido esse duque.
Sinto um puxão, uma mudança no ar. A magia. Quando olho, Felicity tem
os olhos fechados para se concentrar, e um sorriso leve nos lábios
generosos. De súbito, Lady Denby solta um vento com enorme barulho.
Não há como ocultar o choque e o horror no seu rosto ao perceber o que
fez. Torna a bufar, e várias mulheres pigarreiam e desviam os olhos,
fingindo que não repararam na ofensa. Por seu turno, Lady Denby pede
licença, a murmurar algo de estar indisposta, mas já a sair.
– Felicity, que maldade a tua! – sussurro eu.
– Porquê? – pergunta ela, impávida e serena. – Afinal ela só tem ar por
dentro, mais nada.
Agora que Lady Denby se foi embora, as pessoas rodeiam Ann e a
senhora Worthington, felicitam a mãe de Felicity por ter uma convidada de
tanto prestígio em sua casa. Convidam-na para tomar chá, para jantar,
abrem-lhe as suas casas. O desdém ficou esquecido.
– Nunca mais serei impotente – diz Felicity, embora eu não saiba bem a
que se refere, e ela também não adianta explicações.
DEZANOVE
Quando chego a casa, está a fazer-se noite sobre Londres como um véu, a
luz dos candeeiros a gás suaviza as arestas e fica tudo numa mesmitude
escura e nublada. A casa está um sossego. A avó foi jogar cartas com as
amigas. O meu pai está a dormitar na poltrona, o livro aberto no colo. Até
em sonhos o meu pai é assombrado.
Fluem em mim os últimos vestígios de magia. Fecho as portas e ponho a
mão na testa dele. Só desta vez, como disse a Felicity. Não preciso de mais
nada. Não vou usar este poder para ter um vestido de noite novo; vou usá-lo
para sarar o meu pai. Como é que isso pode ser errado?
Mas como começar? A mãe disse que tenho de me concentrar. Tenho de
ter a certeza do que pretendo e tenciono. Fecho os olhos e deixo o
pensamento ir para o meu pai, curá-lo daquele mal.
– Desejo sarar o meu pai – digo. – Desejo que ele nunca mais tenha
vontade de tomar láudano. – Sinto formigueiro nas mãos. Está a acontecer
algo. Rápida como uma torrente, a magia transborda de dentro de mim e
entra no meu pai, o qual arqueia as costas com o embate. Ainda de olhos
fechados, vejo nuvens correrem pelo céu, vejo o meu pai a rir-se e sadio
outra vez. Agarra-me para dançarmos e oferece prendas de Natal aos
criados todos, cujos olhos brilham de gratidão e bonomia. É o pai que eu
conheço. Só agora me apercebo da falta que senti. As lágrimas molham-me
o rosto.
O meu pai deixa de gemer na cadeira. Estou pronta a tirar a mão, mas não
consigo. Há uma última coisa, rápida como um truque de prestidigitação.
Vejo a cara de um homem, os olhos contornados a traço negro. «Obrigado,
boneca», rosna ele. Fico livre.
As velas na árvore de Natal ardem bem. Estou a tremer e a transpirar do
esforço. O meu pai está tranquilo e quieto, até tenho medo de o ter matado.
– Pai? – chamo baixinho. Como ele não acorda, sacudo-o. – Pai!
Ele pestaneja, admirado por me ver tão agitada.
– Olá, querida. Passei pelas brasas, não foi?
– Sim – respondo, observo-o atentamente. Ele leva os dedos à testa.
– Tive sonhos tão esquisitos.
– Com quê, pai? Com que sonhou?
– Não... Não me recordo. Bem, agora estou acordado. E cheio de fome,
de repente. Passei a hora do chá a dormir? Tenho de me entregar à
misericórdia da nossa fiel cozinheira. – O meu pai atravessa a sala a passo
enérgico. Daí a momentos, ouço a voz sonante do meu pai e a cozinheira a
rir-se. É um som tão bonito que até dou comigo a chorar.
– Obrigada – digo, a ninguém em particular. – Obrigada por me ajudarem
a sará-lo.
Quando entro na cozinha, o meu pai está sentado a uma mesinha, a dar
dentadas em pão com pato assado e molho, e a regalar a cozinheira e uma
criada com as suas aventuras.
– Lá estava eu, cara a cara com a maior cobra que já se viu, a pôr-se de
pé, alta como uma árvore tenra e um pescoço grosso como o braço de um
homem.
– Valha-me Deus – diz a cozinheira, a beber-lhe as palavras. – E o que fez
o senhor?
– Eu disse, «Olhe, não queira comer-me, que eu sou muito rijo. Coma
aqui o meu sócio, o senhor Robbins.»
– Não disse!
– Ai disse, pois. – O meu pai está contente com a plateia, e salta para
representar o resto como uma pantomina. – Lançou-se ao Robbins sem
demora. Eu só tinha um instante para agir. Calado como um rato, saquei da
machadinha e cortei a cobra ao meio, mesmo antes de ela atacar o coitado
do Robbins e de o matar.
A criada, uma rapariga da minha idade, está boquiaberta. Além da
fuligem que tem no nariz, é bem bonita.
– A cobra era deliciosa. – O meu pai senta-se com um sorriso satisfeito.
Estou tão feliz de o ver assim que podia passar a noite a ouvir-lhe as
histórias.
– Oh, senhor, mas que emoção. As aventuras que o senhor teve. – A
cozinheira passa uma travessa à criada. – Toma. Leva isto ao senhor Kartik.
– Senhor Kartik? – repito, e sinto que vou desmaiar.
– Sim – diz o meu pai, a ensopar o pão no molho. – Kartik, o novo
cocheiro.
– Eu vou, se não se importam – digo, tirando a travessa à criada, que faz
cara triste. – Gostaria de conhecer esse senhor Kartik.
Antes que possam objetar, dirijo-me aos estábulos, passo por uma criada
coberta de fuligem e uma lavadeira cansada, com as mãos nas cruzes. Há
famílias inteiras a viverem nas casas por cima destes estábulos. Custa a
imaginar. O cheiro faz-me levar a mão ao nariz. A nossa carruagem é a
quarta à direita. Está um moço de estrebaria a tratar dos dois cavalos do
meu pai. Quando me vê, tira o boné.
– Boa noite, menina.
– Estou à procura do senhor Kartik – digo eu.
– ‘Tá ali, menina, ao pé do coche.
Dou a volta e lá está ele, a polir o coche já reluzente com um trapo.
Deram-lhe uma farda como deve ser: calças, sapatos, colete às riscas,
camisa boa, chapéu. Os caracóis estão domados com óleo. Parece mesmo
um cavalheiro. Até fico sem fôlego.
Pigarreio. Ele vira-se e vê-me, um sorriso malandro anima-lhe o rosto.
– Boa noite, como está? – pergunto com toda a formalidade para o moço
ouvir, pois deve estar a espiar-nos neste instante. Kartik apanha logo a dica.
– Boa noite, menina. Willie! – chama ele.
– Sim, senhor Kartik?
– Sê bom rapaz e vai esticar as patas da Ginger, está bem?
O rapaz leva a égua da baia para fora do estábulo.
– O que lhe parece o meu fato novo? – pergunta Kartik.
– Não lhe parece um atrevimento aceitar emprego de cocheiro na nossa
casa? – sussurro.
– Eu disse que estaria por perto.
– Pois disse. Como é que conseguiu?
– Os Rakshana trataram de tudo. – Os Rakshana. Claro. Está tudo em
sossego. Ouço a Ginger a resfolegar baixinho do outro lado dos estábulos.
– Bem – digo eu.
– Bem – repete Kartik.
– Cá estamos.
– Sim. Foi simpático da sua parte vir ver-me. Está com bom ar.
Ainda morro de boa educação.
– Trouxe-lhe o jantar – digo, e mostro a travessa.
– Obrigado – diz ele, a puxar um banco para mim, o qual tem em cima
um volume de A Odisseia. Kartik senta-se nos degraus do coche. – Presumo
que a Emily já não venha.
– Quem é a Emily? – pergunto.
– A criada. Ela é que me traz o jantar. É uma rapariga muito simpática.
Sinto-me corar.
– E decidiu como ela é depois de a conhecer há um dia.
– Sim – diz ele, a descascar uma laranja sumarenta, obviamente colocada
na travessa pela simpática Emily. Ocorre-me que Kartik talvez nunca me
possa ver como uma rapariga normal, alguém por quem se espera, por quem
se anseia, a quem se considera «simpática».
– Tem notícias sobre o Templo? – pergunta ele sem levantar os olhos.
– Hoje fomos a um sítio chamado Floresta das Luzes – digo-lhe. –
Conheci uma criatura chamada Fílon. Não sabia onde encontrar o Templo,
mas ofereceu-se para me ajudar.
– Que tipo de ajuda?
– Armas.
Vejo Kartik semicerrar os olhos.
– A criatura pensou que a menina precisasse delas?
– Sim. Fílon deu-nos setas mágicas. Eu não sei usá-las, mas a Feli… a
menina Worthington tem muito jeito. Ela…
– O que pediu em troca? – Kartik lança-me um olhar penetrante.
– Parte da magia quando encontrarmos o Templo.
– A menina recusou, com certeza. – Como nada digo, Kartik atira a
laranja para cima da travessa, irritado. – Fez uma aliança com criaturas dos
reinos?
– Eu não disse isso! – refilo. Não é verdade, mas também não é mentira. –
Se não estou a fazer as coisas como o Kartik gosta, porque não vai lá?
– Sabe bem que não podemos entrar nos reinos.
– Então terá de confiar que eu estou a fazer o que posso e sei.
– Eu confio – diz ele baixinho.
Os ruídos da noite rodeiam-nos, criaturinhas a escapulirem-se para aqui e
para ali, em busca de comida e aconchego.
– Sabia que os Rakshana e a Ordem outrora foram amantes? – pergunto.
– Não, não sabia – responde Kartik, passada alguma hesitação. – Mas
que... interessante.
– É, de facto.
Ele tira uma pele branca à laranja e oferece-me um gomo limpo.
– Obrigada – digo eu, tiro o gomo dos dedos dele e ponho-o na língua. É
muito doce.
– Não tem de quê. – Ele faz-me um sorrisinho. Ficamos sentados um
pouco, a saborear a laranja. – A menina já...
– O quê?
– Pergunto se alguma vez viu o meu irmão nos reinos?
– Não – respondo. – Nunca o vi.
Kartik parece sentir alívio.
– Então ele deve já ter feito a travessia, não lhe parece?
– Sim, presumo que sim.
– Como é que são os reinos? – pergunta ele.
– Lindos, em parte. Tão lindos que não queremos vir embora nunca mais.
No jardim, podemos transformar pedras em borboletas ou ter um vestido de
fio de ouro que canta ou... O que desejar-mos.
Kartik sorri.
– Continue.
– Há uma barcaça, parece um barco viquingue, com a cabeça de uma
górgone. Ela levou-nos por um muro de água dourada que nos deixou
centelhas de ouro na pele.
– Como o ouro do seu cabelo?
– Muito mais fino – digo, a corar, pois não é nada típico de Kartik reparar
em mim.
– Há outras partes que já não são tão bonitas. Criaturas estranhas, coisas
horrorosas. Calculo que seja por isso que tenho de vincular a magia, para
que não a possam manipular.
O sorriso de Kartik desvanece-se.
– Sim, calculo que sim. Menina Doyle?
– Sim?
– Parece-lhe... Quer dizer, e se decidisse lá ficar, nos reinos, depois de
encontrar o Templo?
– O que quer dizer com isso?
Kartik esfrega os dedos onde o sumo da laranja os deixou brancos como
giz.
– Parece-me um belo sítio para alguém se esconder.
– Mas que coisa estranha de se dizer.
– Queria dizer viver. Um belo sítio para se viver, não lhe parece?
Por vezes não compreendo Kartik de todo.
Uma lamparina lança luz sobre a palha e a terra debaixo dos nossos pés.
A bonita criada da cozinha aparece de repente, com um ar pasmado.
– Com licença, menina. Esqueci-me de trazer o café ao senhor Kartik.
– Eu estava de saída – digo-lhe, quase me levanto de um salto. Presumo
que seja a dita Emily. – Obrigada por explicar, hum, essas informações
importantes sobre... sobre...
– Segurança em viagem? – sugere Kartik.
– Sim. Todo o cuidado é pouco com essas coisas. Boa noite – digo.
– Boa noite – diz ele. Emily não faz por se vir embora. Quando passo
pelos cavalos, ouço-a rir-se moderadamente, como uma menina, de algo
que Kartik disse.
Reparo em Ginger e ela põe-se a resfolegar.
– É falta de educação estar a olhar – digo-lhe, antes de correr para o meu
quarto para amuar sozinha.
A caixinha que Simon me deu está em cima da mesa ao lado da cama. Tiro
o fundo falso e vejo o malvado frasco castanho lá dentro.
– Já não vais ser preciso – digo. A caixa desliza facilmente para um canto
do meu armário, fica perdida entre combinações e bainhas de saias. Da
janela vejo as lamparinas dos estábulos e do lugar para o nosso coche. Vejo
Emily a voltar de lá, com lamparina na mão também. A luz incide-lhe na
cara quando se volta para sorrir a Kartik, e este acena-lhe. Ele olha para
cima e eu baixo-me, apago rapidamente a minha luz. O quarto fica imerso
nas sombras.
Porque é que me incomoda que Kartik goste de Emily? O que somos um
para o outro, além de uma obrigação? Deve ser isso que me incomoda. Oh,
quem me dera esquecer isto tudo com Kartik. É uma tolice.
Amanhã é um novo dia, 17 de dezembro. Vou jantar com Simon
Middleton. Farei o melhor que puder para encantar a mãe dele e não ser um
fardo nem um estorvo. Depois disso, vou tratar de descobrir o Templo mas,
por uma noite, uma noite gloriosa e descontraída, tenciono usar um belo
vestido e desfrutar da bela companhia de Simon Middleton.
– Como tem passado, senhor Middleton? – pergunto para o ar. – Não –
respondo, e falo mais baixo. – Como tem passado, menina Doyle? Ora,
maravilhosamente bem, senhor...
A dor assola-me. Não consigo respirar. Meu Deus! Não consigo respirar!
Não, não, não, deixem-me em paz, por favor, por favor! Não serve de nada.
Sou puxada como a maré, afundo-me numa visão. Não quero abrir os olhos.
Sei que elas estão lá. Sinto-as. Ouço-as.
– Vem connosco... – sussurram.
Abro um olho e depois o outro. Lá estão elas, as três raparigas
fantasmagóricas. Parecem tão perdidas, tão tristes, com a pele macilenta, as
olheiras fundas nas faces.
– Temos algo para te mostrar...
Uma delas põe-me a mão no ombro. Reteso-me toda e sinto-me adensar
na visão. Não sei onde estamos. Um castelo qualquer, uma grande fortaleza
em ruínas. Há musgo verde-escuro num dos lados. Ouvem-se gargalhadas
animadas e, pelas janelas altas e ogivais, vejo lampejos de branco. São
meninas a brincar. Não são umas raparigas quaisquer – são moças vestidas
de branco. Mas estão tão bonitas, frescas e vivas e contentes!
– Não me apanhas, não me apanhas! – grita uma, e até me corta o
coração, pois era a brincadeira que a minha mãe fazia comigo quando eu
era pequenina. As outras duas raparigas aparecem a uma esquina, assustam-
na. Todas desatam à gargalhada. – Eleanor! – chamam todas três. – Onde
estás? Já são horas! Vamos ter poder… ela prometeu.
Correm para a beira do penhasco; o mar troveja lá em baixo. As raparigas
passam por cima das rochas, as silhuetas recortadas contra o céu cinza
como estátuas gregas animadas. Riem-se, tão felizes, tão felizes.
– Vamos, não sejas mandriona! – gritam elas alegremente para a quarta
rapariga. Não a consigo ver bem, mas vejo a mulher de manto verde-escuro
a aproximar-se rapidamente, vejo as mangas amplas e longas enfunadas ao
vento. A mulher pega na mão da rapariga que está a ficar para trás.
– São horas? – gritam as outras.
– Sim – grita também a mulher no manto verde. Com a mão da rapariga
bem presa na sua, ela fecha os olhos e levanta as mãos das duas na direção
do mar. Está a murmurar qualquer coisa. Não; está a conjurar qualquer
coisa! O terror nasce dentro de mim como náuseas, faz-me engasgar. Vem
do mar, e ela está a chamá-lo! As raparigas gritam aterrorizadas, mas a
mulher de verde não abre os olhos. Não se detém.
Porque é que me estão a mostrar isto? Quero sair daqui! Tenho de fugir
daquela coisa, do terror. Estou de volta ao meu quarto. As raparigas pairam
aqui perto. As biqueiras dos botins raspam no chão. Acho que ainda
enlouqueço com o ruído.
– Porquê? – pergunto, tento não vomitar. – Porquê?
– Ela mente... – sussurram. – Não confies nela... Não confies nela... Não
confies nela...
– Em quem? – pergunto, arquejante, mas elas foram-se. A pressão liberta-
me. Tento respirar, de olhos lacrimejantes, nariz a pingar. Não suporto estas
visões horríveis. E não as compreendo. Não confiar em quem? Porque é que
não posso confiar nela?
Porém, houve algo diferente nesta visão, um pormenor de que me recordo
agora. Algo na mão da mulher. Ela tinha um anel qualquer, um anel
invulgar. Demoro um momento caída no chão para recobrar os sentidos.
Depois parece-me que sei o que era.
O anel na mão da mulher tinha a forma de duas serpentes entrelaçadas.
Já vi esse anel – na mala debaixo da cama da professora McCleethy.
VINTE
O caminho de que ela fala não passa de uma azinhaga estreita que parece
desaparecer num muro de verdura frondosa. É sinuoso e difícil. A cada
passo, temos de afastar as folhas largas e os ramos gordos e beges que nos
deixam fitinhas de seiva nas mãos até ficarmos pegajosas como pez.
– Mas que maçada – resmunga Pippa. – Espero que seja o caminho certo.
Seria péssimo termos este trabalho todo para nada.
Um ramo bate-me mesmo na cara.
– O que disseste? – pergunta Felicity.
– Eu? Não disse nada – respondo.
– Ouvi vozes.
Paramos. Também ouço. Há algo a mexer-se no mato cerrado. De súbito,
parece-me má ideia ter vindo por aqui sem saber nada. Estendo a mão para
deter as minhas amigas. Felicity pega numa seta. Estamos tensas como
cordas de piano.
Aparece um par de olhos entre as ramadas da palmeira.
– Quem vem lá? – pergunto eu.
– Vieram ajudar-nos? – pergunta uma voz branda.
Uma jovem sai de detrás da árvore e deixa-nos boquiabertas. Tem o lado
direito do corpo horrivelmente queimado. A mão mirrada até ao osso. Ela
vê o choque nas nossas caras e tenta tapar-se com o que lhe resta do xaile.
– Houve um incêndio na fábrica, menina. Foi-se como estopa, e nós não
conseguimos sair a tempo – responde ela.
– Nós? – pergunto, recobro finalmente a voz.
Atrás dela, no mato, estão talvez umas doze raparigas novas, muitas delas
queimadas, todas elas mortas.
– As que não conseguiram fugir. O fogo apanhou algumas; outras
saltaram e morreram na queda – diz ela, no tom mais casual.
– Há quanto tempo estão aqui? – pergunto.
– Não sei dizer – responde ela. – Parece que desde sempre.
– Quando foi o incêndio? – pergunta Pippa.
– No dia 3 de dezembro de 1895, menina. Fazia muito vento nesse dia, se
bem me lembro. – Estão cá há cerca de duas semanas, menos tempo do que
Pippa. – Eu já tinha visto a menina – diz ela, a apontar com a cabeça para
Pippa. – A menina e o seu cavaleiro.
Pippa fica embasbacada.
– Eu nunca a vi na vida. Não sei do que está a falar.
– Desculpe ter ofendido, menina. Não foi com intenção.
Não sei porque é que a Pip está tão mal-humorada. Não está a ajudar
nada.
A rapariga puxa-me a manga e eu tenho de reprimir um grito quando vejo
aquela mão em cima de mim.
– Isto é o céu ou o inferno, menina?
– Nem uma coisa, nem outra – respondo e dou um passo para trás. –
Como se chama?
– Mae. Mae Sutter.
– Mae – sussurro eu. – Alguma dentre vocês se tem portado de maneira
esquisita?
Ela reflete um pouco.
– A Bessie Timmons – responde, a apontar para outra rapariga queimada,
cujo braço tem uma fratura muito feia. – Mas na verdade, menina, ela
sempre foi um bocadinho estranha. Tem andado a falar com alguém às
escondidas, e diz-nos que temos de ir para um sítio chamado as Invernias,
que lá nos podem ajudar.
– Mae, ouça bem o que lhe digo. Não podem ir para as Invernias. Não
tarda a que fique tudo como deve ser, e a Mae e as suas amigas poderão
atravessar o rio para o outro lado.
Mae olha para mim, assustada.
– E o que tem o outro lado?
– Não... Não sei ao certo – respondo, não sirvo de consolo. – Mas
entretanto, não podem confiar em ninguém que conheçam aqui.
Compreende?
Ela lança-me um olhar duro.
– Então porque haveria de confiar na menina? – Ela volta para as amigas
e ouço-a dizer-lhes: – Elas não nos podem ajudar. Estamos por nossa conta.
– Tantos espíritos à espera da travessia... – diz Felicity.
– À espera de serem corrompidos – diz Ann.
– Não sabes se é assim – diz Pippa. Calamo-nos.
– Vamos continuar – digo eu. – Talvez o Templo esteja perto.
– Eu não quero continuar – diz Pippa. – Não quero ver mais horrores. Vou
voltar para o jardim. Quem vem comigo?
Olho para a verdura à nossa frente. O caminho some-se por baixo da
pesada cobertura de folhas. Porém, penso ver através delas um lampejo de
branco cintilante e fantasmagórico a roçagar no mato.
Bessie Timmons sai ao caminho. Tem uma expressão dura nos olhos.
– Porque é que não arredam, já que não nos podem ajudar? Vá, arredem.
Senão...
Ela não explica o «senão». Outras raparigas vêm também para trás dela,
cerram fileiras. Não nos querem aqui. Não vale a pena lutar com elas, neste
momento, não.
– Vamos lá – digo eu. – Vamos regressar.
Arrepiamos caminho. Bessie Timmons ainda berra nas nossas costas.
– Deixem-se de sobrancerias. Não tarda a ficarem todas como nós. Os
meus amigos hão de ir à vossa procura. Hão de fazer de nós inteiras! Hão
de fazer de nós rainhas! E vocês não passam de pó.
O regresso ao jardim faz-se em silêncio. Estamos cansadas e pegajosas e
amuadas, Pippa em particular.
– Agora podemos divertir-nos, se faz favor? – bufa ela, quando chegamos
ao sítio onde estavam as runas. – Esta busca do Templo é tão maçadora.
– Sei de um lugar para brincadeiras, senhora minha.
O cavaleiro sai de detrás de uma árvore, é um sobressalto para todas nós.
Numa mão, traz uma coisa embrulhada num pano. Abrimos a boca e ele
leva um joelho ao chão.
– Assustei-as? – pergunta, a inclinar a cabeça para um lado, e o cabelo
dourado como palha cai-lhe na cara como uma cortina encantadora. Pippa
olha para ele com dureza.
– Não foste convocado.
– Lamento – diz ele. Não parece lamentar nada. Parece que está a
divertir-se às nossas custas. – Como poderei redimir-me, senhora minha? O
que me mandas fazer? – Nisto, encosta o punhal ao pescoço. – Exiges
sangue, senhora minha?
Pippa está estranhamente impávida.
– Se assim desejares.
– Qual é o teu desejo, senhora minha?
Pippa vira costas, os caracóis pretos compridos a ressaltarem nas
omoplatas.
– Desejo que me deixes em paz.
– Muito bem, senhora minha – diz o cavaleiro. – Mas deixo-te uma
prenda.
Ele atira o embrulho para o chão e volta para o mato.
– Pensei que te tinhas visto livre dele – diz Felicity.
– Sim. Também pensei que sim – responde Pippa.
– O que foi que ele te trouxe? – pergunta Ann. Começa a desembrulhar e
cai na relva com um gritinho.
– O que é? – perguntamos eu e Felicity, a correr para ela.
É a cabeça de uma cabra, coberta de moscas e sangue seco.
– Que horror! – diz Ann, a tapar a boca com a mão.
– Se aquele homem voltar, tenho umas coisas para lhe dizer – diz Felicity
com as faces coradas.
Foi uma coisa pavorosa de se fazer, e eu fico a pensar como é que o
cavaleiro, outrora sonhado e invocado pelos anseios de Pippa – uma
criatura vinculada a ela pela magia – pode ter ficado tão cruel. Pippa olha
para a cabeça da cabra com atenção. Tem as mãos na barriga e, a princípio,
parece-me que vai vomitar. Porém, ela lambe os lábios ligeiramente, com
um olhar anelante. Nisto, repara que eu estou a observá-la.
– Hei de dar-lhe a devida sepultura mais tarde – diz, e enfia o braço no
meu.
– Sim, seria acertado – digo eu, e começo a afastar-me.
– Voltem amanhã! – grita ela. – Tentaremos outro caminho. De certeza
que o encontramos amanhã!
***
O relógio de cuco ricamente esculpido em cima da lareira de Felicity dá as
horas. Parece que estivemos fora muito tempo, mas passou menos de um
segundo à hora de Londres. Ainda estou abalada pelos acontecimentos do
dia – a professora McCleethy à porta de Bedlam, o anagrama, Mae Sutter e
as amigas. E Pippa. Sim, especialmente Pippa.
– Vamos divertir-nos? – pergunta Felicity, a correr para a porta da frente
connosco a reboque. Shames, o mordomo, vem atrás de nós.
– Menina Worthington? O que se passa?
Felicity fecha os olhos e estende a mão.
– Shames, não me está a ver aqui. Estamos na sala a tomar chá.
Sem palavra, Shames abana a cabeça como se não compreendesse porque
é que a porta está aberta. Fecha-a atrás de nós, e ficamos livres. O nevoeiro
londrino oculta as estrelas. Elas brilham aqui e ali mas não conseguem
destacar-se no céu toldado.
– O que vamos fazer agora? – pergunta Ann. Felicity abre um largo
sorriso.
– Tudo.
Voar sobre Londres numa noite fria por magia é algo extraordinário. Lá
estão os cavalheiros a saírem dos clubes, a fila de coches para os recolher.
Lá estão os maltrapilhos, pobres crianças sujas que procuram nas margens
imundas do Tamisa algumas moedas e um pouco de sorte. Basta-nos descer
para tocar nos telhados dos teatros do West End ou passar as pontas dos
dedos pelas grandes espiras góticas das Casas do Parlamento, e assim
fazemos. Ann senta-se no telhado ao lado da torre do Big Ben.
– Olhem – diz ela, a rir-se. – Tenho assento no Parlamento.
– Podemos fazer qualquer coisa! Esgueirar-nos para o Palácio de
Buckingham e usar as joias da coroa – diz Felicity, a franquear as torres em
bicos dos pés.
– Não fazias uma coisa dessas, pois não? – pergunta Ann, horrorizada.
– Não, não fazia – respondo eu, com firmeza.
É revigorante desfrutar de tal liberdade. Voamos preguiçosamente sobre o
rio, paramos para descansar na Ponte de Waterloo. Passa por baixo de nós
um barco a remos, a lamparina a lutar com o nevoeiro, e a perder. É curioso,
mas consigo ouvir os pensamentos do cavalheiro idoso dentro do barco, tal
como ouço os das mulheres perdidas em Haymarket e dos chapéus altos a
conduzirem as suas charretes particulares em Hyde Park, quando passamos
por lá. É ténue, como ouvir uma conversa noutra sala, mas sei o que estão a
sentir.
O velhote põe pedras na algibeira, e eu sei o objetivo.
– Temos de impedir o homem naquele barco – digo eu.
– Impedi-lo de quê? – pergunta Ann, a rodopiar no ar.
– Não o ouves?
– Não – diz Ann. Felicity abana a cabeça e flutua de costas como se
nadasse.
– Ele quer matar-se.
– Como é que sabes? – pergunta Felicity.
– Consigo ouvir-lhe o pensamento – respondo.
Elas duvidam, mas seguem-me até ao nevoeiro cerrado. O homem canta
uma cantiga lúgubre sobre uma moça bonita perdida para sempre, à medida
que enche a algibeira de pedras e se chega à beira do barco que balouça.
– Tinhas razão! – exclama Ann.
– Quem vem lá? – grita o homem.
– Tenho uma ideia – sussurro para as minhas amigas. – Venham comigo.
Adensamo-nos no nevoeiro, e o homem quase cai para trás ao ver três
raparigas a flutuarem na sua direção.
– Não pode fazer um ato desesperado – digo eu numa voz trémula que
espero resulte sobrenatural. O homem cai de joelhos e arregala os olhos.
– Qué-qué que são vomecês?
– Somos os fantasmas do Natal, e coitado do homem que não ouvir os
nossos avisos – digo eu em tom lamuriento.
Felicity geme e dá uma cambalhota para compor o ramalhete. Ann olha
para ela de boca aberta, mas eu estou impressionada pelo seu raciocínio
rápido e pela suas acrobacias.
– Qual aviso? – guincha o homem.
– Se persistir neste rumo terrível, vai acontecer-lhe uma praga horrível –
digo eu.
– E à sua família – acrescenta Felicity.
– E à família dela – Ann ajuda, e parece-me demasiado, mas não há como
voltar atrás.
Funciona. O homem tira pedras da algibeira tão depressa que ainda vira o
barco.
– Obrigado! – diz ele. – Sim, obrigado, de certezinha.
Satisfeitas, voamos para casa, a rirmo-nos do nosso engenho e a
sentirmo-nos todas presumidas por termos salvado a vida de um homem.
Quando chegamos outra vez às casas elegantes de Mayfair, sinto-me atraída
para casa de Simon. Seria fácil voar perto e talvez ouvir-lhe os
pensamentos. Por momentos, fico a pairar, mais perto dele mas, quase na
última, mudo de rota, sigo Felicity e Ann até à sala de estar novamente,
onde o chá já arrefeceu.
– Foi emocionante! – diz Felicity a sentar-se.
– Sim – diz Ann. – Porque será que eu e a Fee não conseguimos ouvir-lhe
os pensamentos também?
– Não sei – respondo.
Entra uma menina de traje imaculado e avental. Não pode ter mais de oito
anos. O cabelo louro foi puxado para trás no cocuruto com uma fita branca
e larga. Os olhos têm a mesma cor azul-cinza de Felicity. Aliás, parece-se
muito com Felicity.
– O que é que quer? – pergunta Felicity de mau modo. Entra uma
governanta.
– Lamento, menina Worthington. A menina Polly parece que perdeu a
boneca. Eu disse-lhe que tem de ter mais cuidado com as coisas dela.
Então aquela é a pequena Polly. Tenho pena dela por viver com a
Felicity.
– Aqui está – diz Felicity, ao encontrar a boneca debaixo do tapete persa.
– Espere. Deixe-me ver se está tudo bem.
Felicity faz de conta que é enfermeira da boneca, e Polly ri-se mas,
quando fecha os olhos e põe as mãos na boneca, eu sinto o puxão da magia
que trouxemos.
– Felicity! – digo eu, a estragar-lhe a concentração. Ela passa a boneca à
Polly.
– Pronto, Polly. Já está melhor. Agora tem alguém que tome conta de si.
– O que é que fizeste? – pergunto depois de a Polly ir para o seu quarto
com a governanta.
– Ora, não olhem para mim assim! A boneca tinha o braço partido, eu só
o consertei – bufa Felicity.
– Tu não farias nada de mal à menina, pois não?
– Pois não – responde Felicity, impávida.
1 Cidade Vale Gim (bebida) Se (for) Lento. (N. da T.)
2 Em (diminutivo de Emily) Cão de Papa. (N. da T.)
3 Chamam-me Circe. (N. da T.)
VINTE E SEIS
Ao serão, eu e a avó pegamos nos lavores à lareira. De cada vez que passa
uma carruagem lá fora, ela senta-se um pouco mais direita. Por fim,
apercebo-me de que está à espera da nossa carruagem, do regresso do meu
pai do clube onde foi. Ele tem passado lá bastante tempo, especialmente ao
serão. Há noites em que dou por ele a chegar já perto da madrugada.
Esta noite está a ser particularmente difícil de a avó aguentar. O meu pai
saiu depois de um ataque de mau génio terrível, de acusar a senhora Jones
de lhe perder as luvas, de quase virar a biblioteca do avesso à procura delas,
antes de a avó lhas encontrar no bolso do casaco. Nunca tinham de lá saído.
Ele foi-se embora sem sequer pedir desculpas.
– Decerto ele não tarda a chegar – digo eu, quando passa outra carruagem
por nossa casa.
– Sim. Sim, com certeza – diz a avó com ar ausente. – Decerto se
esqueceu das horas, simplesmente. Ele gosta mesmo de conviver, não
gosta?
– Gosta – respondo, admirada por vê-la tão ralada com o filho. Assim é
mais difícil não gostar dela.
– Ele gosta mais de si do que do Tom, sabe?
Fico tão admirada que até pico um dedo com a agulha. Começo a ver uma
bolhinha de sangue a abrir caminho na carne.
– É verdade. Oh, claro que se preocupa com o Tom, mas os filhos são
algo diferente para um homem, mais obrigação do que indulgência. A
Gemma é o anjo dele. Não lhe dê nenhum desgosto, nunca. Ele já passou
por muito. Ficaria acabado.
Estou a tentar não chorar, da alfinetada e das informações que não queria
ter.
– Não dou – prometo.
– Os seus lavores estão a correr bem, querida. Pontos mais curtos na orla,
parece-me melhor – diz a avó como se não tivéssemos falado de outro
assunto. A senhora Jones aparece.
– Com licença, senhora Doyle. Chegou isto para a menina Doyle esta
tarde. A Emily ficou com ele e esqueceu-se de me dizer. – Embora se
destine claramente a mim, ela passa a caixinha à avó, um bonito embrulho
com um laço de seda cor-de-rosa. A avó lê o cartão.
– É do Simon Middleton.
Uma prenda do Simon? Estou intrigada. Dentro da caixa está um colar de
pedras ametista pequenas, delicadas, lindas, que se abrem em leque na
correntinha. Púrpura, a minha cor favorita. O cartão diz: «Gemas para a
nossa Gemma».
– Tão bonito – diz a avó, e segura-as contra a luz. – Creio bem que Simon
Middleton está encantado consigo!
É lindo, possivelmente a coisa mais linda que já alguém me deu.
– Não se importa de me ajudar com o fecho? – peço.
Tiro o amuleto de minha mãe e a avó põe-me o colar novo. Corro para o
espelho para me ver. As gemas caem docemente por cima das minhas
clavículas.
– Tem de o usar na ópera amanhã à noite – aconselha a avó.
– Sim, usarei – digo eu, a ver as pedras preciosas refletirem a luz.
Cintilam e resplandecem tanto que nem me reconheço.
Se eu já estou ansiosa quanto à ida desta noite à ópera, a avó está fora de si.
– Espero bem que essas luvas sirvam – diz ela, enquanto uma costureira
faz uns ajustes de última hora no meu vestido, cetim branco como as jovens
devem levar à ópera. A avó mandou vir as minhas primeiras luvas de ópera
dos grandes armazéns Whiteley. A costureira passa os botões de pérola
pelas casas no meu punho, encerra-me os braços nus dentro de pele de
cabrito bem cara. Arranjaram-me caprichosamente o cabelo afastado da
cara com flores no carrapito. Claro que pus o lindíssimo colar que Simon
me deu. Quando me vejo ao espelho, tenho de admitir que estou bastante
bonita, como uma verdadeira senhora.
Até Tom se levanta da cadeira quando entro na salinha, chocado com a
minha transformação. O meu pai pega-me na mão e beija-a. A dele treme
um pouco. Sei que esteve fora até de madrugada, e que dormiu o dia todo,
espero bem que não vá adoecer. Ele limpa o suor da testa com um lenço,
mas a voz sai-lhe bastante alegre.
– És uma rainha, pequenina, não é, Thomas?
– Não envergonha ninguém, por certo – diz Tom. Para o imbecil que é,
fica muito elegante de fraque.
– Não sabes dizer nada mais agradável? – O pai repreende-o. Tom
suspira.
– Estás bastante apresentável, Gemma. Não te esqueças de não ressonar
na ópera. Não é bem visto.
– Se continuo acordada quando tu falas, Tom, de certeza que hei de
conseguir.
– Já trouxeram a carruagem, senhor – anuncia o mordomo Davis, e salva-
nos de mais conversa.
A caminho da carruagem, vejo a expressão de Kartik. Está a olhar para
mim ousadamente, como se eu fosse uma aparição, alguém que ele não
conhece. Fico estranhamente satisfeita com isso. Sim. Ele que veja que não
sou «uma rapariga impertinente» como o esbirro dos Rakshana disse.
– A porta, senhor Kartik, se faz favor – diz Tom em voz tensa. Como que
puxado de um sonho, Kartik abre logo a porta da carruagem. –
Sinceramente, meu pai – diz Tom quando já vamos a caminho. – Quem me
dera que o pai reconsiderasse. Ainda ontem o Sims me recomendou um
cocheiro…
– Assunto encerrado. O senhor Kartik leva-me aonde eu tenho de ir – diz
o pai rigidamente.
– Sim, é essa a minha preocupação – resmunga Tom baixinho, só eu
consigo ouvir.
– Então, então – diz a avó, a dar palmadinhas no joelho ao meu pai. –
Vamos estar bem-dispostos, sim? Afinal estamos quase no Natal.
O aroma doce dos lilases está à nossa espera no jardim, mas as coisas
parecem diferentes. As árvores e a erva estão algo bravias, como que
espigadas. Apareceram mais cogumelos venenosos, que lançam sombras
compridas nas nossas caras.
– Ai, estão tão lindas! – exclama Pippa do seu poleiro à beira rio. Corre
para nós, a bainha esfarrapada do vestido a esvoaçar na brisa. As flores da
coroa secaram e ficaram quebradiças. – Que bonitas! Aonde é que foram
nestes requintes?
– À ópera – responde Ann, e dá voltinhas no seu vestidinho. – O Mikado
ainda está a dar. Escapulimo-nos!
– À ópera – diz Pippa com um suspiro. – É loucamente elegante? Têm de
me contar simplesmente tudo!
– É deslumbrante, Pip. As mulheres cheias de joias. Um homem piscou-
me o olho.
– Quando? – pergunta Felicity, incrédula.
– Piscou, pois! A subir a escadaria. Oh, e a Gemma veio com o Simon
Middleton e a família dele. Está sentada no camarote deles – informa Ann
sem fôlego.
– Oh, Gemma! Fico tão feliz por ti! – exclama Pippa e dá-me um beijo.
As reservas que eu possa ter tido com ela acabaram de desaparecer.
– Obrigada – digo e retribuo o beijo.
– Oh, parece-me tudo celestial. Contem mais. – Pippa encosta-se a uma
árvore.
– Gostas do meu vestido? – pergunta Ann, a dar mais voltinhas para a
inspeção de Pippa. Esta pega nas mãos de Ann e dança com ela.
– É lindo! Tu és linda!
Pippa deixa de girar. Faz uma cara como quem vai chorar.
– Nunca fui à ópera, e agora sei que nunca irei. Quem me dera ir
convosco.
– Serias a mais bela de todas, se lá estivesses – diz Felicity, e Pip volta a
sorrir. Ann corre para mim.
– Gemma, experimenta o amuleto.
– O que se passa? – pergunta Pippa.
– A Gemma pensa que o amuleto dela é uma espécie de bússola –
responde Felicity.
– Crês que nos vai mostrar o caminho para o Templo? – pergunta Pippa.
– É isso que vamos descobrir – digo eu. Tiro o amuleto da malinha e viro-
o ao contrário. A princípio, não há mais do que a superfície metálica e fria a
refletir uma imagem distorcida de mim própria. Nisto, algo começa a
mudar. A superfície fica turva. Eu começo a andar lentamente num círculo.
Quando estou de frente para duas filas direitas de oliveiras, o olho da meia-
lua começa a brilhar muito, a alumiar um caminho indeterminado mas
óbvio.
– Segue o caminho – murmuro, a recordar as palavras de Nell. – Creio
que encontrámos o caminho para o Templo.
– Oh, deixa-me ver! – Pippa tira-me o amuleto das mãos e vê-lo reluzir na
direção das oliveiras. – Esplêndido!
– Já foste por ali? – pergunto.
Pippa abana a cabeça. Corre uma brisa pelo carreiro entre as oliveiras,
leva com ela uma mão-cheia de folhas e o aroma dos lilases. Com a
cintilação do amuleto a servir de guia, seguimos a coberto das árvores,
caminhamos o que nos parece mais de um quilómetro, passamos por
estranhos totens com cabeças de elefantes, cobras e pássaros. Chegamos a
uma passagem feita de terra. O amuleto brilha mais.
– Por aqui? – pergunta Ann, ofegante.
– Assim parece – respondo.
É apertado e nada alto. Até Ann, a mais baixa de todas, tem de se curvar
para passar. O caminho deixa de ser regular e fica pedregoso. Saímos para
um caminho orlado de ambos os lados por campos de flores altas cor de
laranja vivo que balouçam hipnoticamente. Quando passamos, a brisa
verga-as para a frente e elas roçam-nos suavemente na cara e nos ombros.
Cheiram a fruta fresca de verão. Pippa apanha uma flor e ajeita-a na sua
coroa murcha. Algo passa a correr à minha direita.
– O que foi aquilo? – pergunta Ann, e chega-se mais.
– Não sei – digo eu. Não vejo mais do que as flores a ondularem ao
vento.
– Vamos continuar – aconselha Pippa.
Seguimos o brilho vivo do amuleto até que o caminho termina
abruptamente numa enorme parede de rocha. É alta como uma montanha e
parece nunca mais acabar, pelo que não parece haver volta a dar.
– O que fazemos agora? – pergunta Felicity.
– Deve haver maneira de atravessar – digo eu, embora não tenha a mais
vaga ideia como. – Procurem uma passagem.
Vamos tateando as rochas até ficarmos exaustas do esforço.
– Não vale a pena – diz Pippa, ofegante. É rocha sólida.
Não podemos ter feito este caminho todo para nada. Deve haver maneira
de entrar. Ando ao longo da parede, a mexer o amuleto para trás e para a
frente. De súbito, acende-se.
– O que será? – pergunto.
Viro outra vez o amuleto com cuidado e ele cintila-me na mão. Quando
olho para a rocha, vejo o leve contorno de uma porta.
– Estão a ver isto? – pergunto, na esperança de não estar a imaginar
coisas.
– Sim! – exclama Felicity. – Uma porta!
Estendo a mão e sinto o metal frio de uma maçaneta na rocha. Respiro
fundo e puxo. É como se um buraco grande e escuro se tivesse aberto na
terra. O brilho do amuleto é forte.
– Parece que é este o caminho – anuncio eu embora, na verdade, não
tenha vontade alguma de entrar nesse poço negro e fundo. Felicity lambe os
lábios num gesto nervoso.
– Vá lá, então. Nós vamos atrás.
– Não serve de consolo – digo eu. De coração descompassado, meio à
espera de ser engolida inteira pela rocha, dou um passo em frente e espero
que os olhos se habituem à obscuridade. É húmido e cheira a jardim
acabado de regar. Lanternas de papel douradas e cor-de-rosa pendem das
paredes de pedra, lançam uma luz fraca no chão de lama. É difícil ver mais
do que um palmo à frente do nariz, mas sinto que estamos a subir em
círculo. Não tarda a que a respiração nos seja mais difícil. As pernas
tremem-me do esforço. Por fim, chegamos a outra porta. Rodo a maçaneta e
deparamos com fumo roxo e vermelho a subir à nossa volta como nuvens.
Uma brisa leva o fumo colorido, e o cenário abre-se. Estamos muito acima
do rio. Lá ao fundo, o barco da górgone corta silenciosamente a água azul.
– Como é que subimos tanto? – pergunta Felicity, a tentar recobrar o
fôlego.
– Não sei – respondo. Ann estica o pescoço.
– Credo! – Está a olhar boquiaberta para as deusas sensuais entalhadas no
penhasco, para as curvas de ancas e bocas, joelhos rechonchudos, a macieza
opulenta dos queixos redondinhos. Aquelas mulheres de pedra olham para
nós de tão alto, reparam em nós mas não se ralam connosco.
– Eu lembro-me disto – digo eu. – Fica perto das Grutas dos Suspiros,
não fica?
Vejo Pippa estacar.
– Não devíamos estar aqui. Os Intocáveis moram aqui. É proibido.
– Vamos voltar – diz Ann.
Porém, quando viramos para trás, a porta funde-se na rocha. Não há
regresso pelo mesmo caminho.
– O que havemos de fazer agora? – pergunta Ann.
– Quem me dera ter trazido as setas – murmura Felicity.
Vem aí alguém. Uma figura aparece por entre o fumo espesso, uma
mulher pequena com a pele curtida pelas intempéries, da cor de um barril
de vinho. As mãos e o rosto pintados em padrões complexos, mas os braços
e as pernas! Marcados pelas feridas mais pavorosas. Uma perna tão inchada
que mais parece o tronco de uma árvore. Viramos costas com o desagrado,
não conseguimos olhar para ela.
– Bem-vindas – diz ela. – Chamo-me Asha. Venham comigo.
– Já nos íamos embora – diz Felicity. Asha ri-se.
– E para onde iam? Esta é a única saída. Para a frente.
Dado que não podemos sair por onde viemos, vamos com ela. O caminho
está apinhado de criaturas, também deformadas, curvadas, marcadas.
– Não fiques a olhar – ralho baixinho com Ann. – Cuidado onde pões os
pés.
Asha leva-nos à volta do penhasco, por arcadas de túneis suportadas por
pilares. As paredes pintadas com cenas de batalhas fantásticas – a
decapitação de uma górgone, a expulsão de umas serpentes, cavaleiros
trajados de túnicas pintadas com papoilas encarnadas. Vejo a Floresta das
Luzes, um centauro a tocar flauta, as ninfas da água, as Runas do Oráculo.
É como uma tapeçaria, com tantas cenas que até lhes perco a conta.
O túnel abre-se com outra paisagem magnífica. Estamos bastante alto na
montanha. Há vasos com incenso ao longo do caminho estreito. Volutas de
fumo de cor magenta, turquesa e amarela causam-me cócegas no nariz e
fazem-me arder os olhos.
Asha detém-se na boca da gruta. A assinalar a entrada, um relevo tosco de
uma corrente feita de serpentes. Não parece escultura, parece mais algo que
irrompeu da própria terra.
– As Grutas dos Suspiros.
– Não tinha dito que era a saída? – pergunto.
– Assim é. – Asha entra na gruta e funde-se na escuridão. Atrás de nós, na
estrada, os outros formaram um aglomerado de gente a perder de vista. Não
podemos bater em retirada.
– Isto não me agrada – diz Pippa.
– A mim também não, mas que escolha temos agora? – digo eu, e baixo-
me para entrar na gruta.
Assim que entro, compreendo logo porque é que as grutas ganharam o
nome que têm. É como se as próprias paredes suspirassem com a felicidade
de cem mil beijos.
– Tão lindo – diz Ann. Está perante o baixo-relevo de uma cara com nariz
comprido e lábios cheios. As mãos dela percorrem a curva do lábio
superior, e eu lembro-me imediatamente de Kartik. Pippa também vai
desfrutar da sensação da pedra nas mãos.
– Desculpe, mas nós seguíamos um caminho e agora parece que
desapareceu. Não se importa de nos indicar o caminho de volta? Estamos
com muita pressa – pede Felicity docemente.
– Estão à procura do Templo? – pergunta Asha. Agora é que nos chamou
a atenção mesmo.
– Sim – digo eu. – Sabe onde fica?
– O que tens a oferecer? – pergunta Asha, de mãos estendidas.
Eu tenho de oferecer qualquer coisa? Não tenho nada para dar. Não
poderia abdicar do colar de Simon nem do meu amuleto.
– Lamento – digo eu. – Não trouxe nada comigo.
Vê-se bem o desapontamento nos olhos de Asha, mas ela sorri mesmo
assim.
– Por vezes procuramos aquilo que ainda não estamos prontas a
encontrar. O verdadeiro caminho é difícil. Para o ver, tens de estar disposta
a largar esta pele como se uma cobra fosses. Tens de estar disposta a
abdicar do que te é mais precioso. – Ela olha para Pippa quando diz isto.
– Temos de ir embora – diz Pippa. Creio que pode ter razão.
– Obrigada pela maçada, mas agora temos de regressar.
Asha faz uma vénia.
– Como te aprouver. Posso indicar esse caminho, mas vais precisar da
nossa ajuda.
Uma mulher com o rosto pintado de vermelho vivo e riscas verde-escuras
deita uma mistela de barro num tubo comprido com um buraco na ponta.
– Para que é isso? – pergunta Felicity.
– Para vos pintar – responde Asha.
– Para nos pintar? – guincha Ann.
– Para dar proteção – explica Asha.
– Proteção contra quê? – pergunto eu à cautela.
– Proteção do que vier à vossa procura nestes reinos. Esconde o que tiver
de ser escondido e revela o que tiver de ser visto. – Mais uma vez, ela lança
o mesmo olhar curioso a Pippa.
– Isto não me agrada mesmo nada – diz Pippa.
– A mim também não – concorda Ann.
– E se for uma armadilha? – sussurra Felicity. – E se a tinta for
venenosa?
A mulher da cara vermelha faz-nos sinal para nos sentarmos e colocarmos
as mãos em cima de uma pedra grande.
– Porque é que haveríamos de confiar em si? – pergunto.
– Há muitas escolhas a fazer. És livre de recusar – responde Asha.
A mulher da tinta aguarda pacientemente. Devo confiar em Asha, uma
Intocável, ou arriscar-me nos reinos sem proteção?
Estendo as mãos à mulher da cara pintada.
– Vejo que és corajosa – diz Asha. Depois faz sinal com a cabeça à
mulher, e esta espreme a mistela em cima das minhas mãos. É fria na pele.
Será o veneno a entrar-me no sangue? Só me resta fechar os olhos e esperar,
esperar que corra pelo melhor.
– Olha! – exclama Ann.
Receosa do pior, abro os olhos. As minhas mãos. Onde a mistela de barro
secou, ficaram cor de tijolo vivo num padrão mais complexo do que uma
teia de aranha. Faz-me lembrar as noivas da Índia de mãos desenhadas com
hena em homenagem aos maridos.
– Eu sou a seguir – diz Felicity, e despacha-se a descalçar as luvas. Já não
tem medo de ser envenenada, apenas de ficar de fora.
Nos recantos fundos da gruta há um lençol de água suave como vidro que
parece subir e descer em simultâneo. O fluxo dá-me sono. É a última coisa
que vejo antes de adormecer.
Querida Gemma,
Também eu fiquei abalada por estas coincidências. Talvez haja uma
explicação para tudo mas, de momento, aconselho-a a ficar de
sobreaviso. Se ela for ao Hospital de Bethlem, a Gemma faça o que
tiver de fazer para a impedir de chegar à sua Nell Hawkins.
Da sua amiga,
Hester Asa Moore
O meu pai não voltou a casa para o jantar como me prometeu. Não há
notícias dele. Como ele levou Kartik e a carruagem, eu e Tom somos
obrigados a chamar uma charrete para nos levar a Bethlem. O hospital está
muito bonito, decorado com azevinho e hera trepadeira, e os doentes
trajados no seu melhor, cheios de alegria e malícia.
Eu trouxe flores para Nell. Uma das enfermeiras leva-me à ala feminina
para eu lhas poder dar.
– Que bonito arranjo – comenta a enfermeira.
– Obrigada – digo eu num murmúrio.
– É um dia de sorte para a nossa menina Hawkins. É a segunda vez que
lhe trazem flores.
– O que quer dizer com isso?
– Ela teve uma visita hoje que lhe trouxe umas bonitas rosas.
Um doente passa por nós a dançar com uma parceira imaginária.
– Visita? Como é que se chamava? – pergunto. A enfermeira franze os
lábios, a pensar.
– Não me consigo recordar, tem sido um dia! O senhor Snow tem estado
muito alterado. O doutor Smith disse-lhe que, se ele não se acalmasse, não
lhe dava autorização para ir ao baile. Chegámos – diz a enfermeira quando
entrámos numa salinha.
Nell está mais descomposta do que eu alguma vez vi. O cabelo fino,
espigado e escortanhado cai-lhe pelos ombros como uma ruína. Está
sentada sozinha, tem no colo a gaiola onde está Cassandra. A papagaia
guincha para Nell, e esta vai murmurando palavras doces. Na mesa a seu
lado está uma jarra com rosas vermelhas garridas.
– Menina Hawkins – diz a enfermeira. – A menina Doyle veio vê-la e
trouxe-lhe mais um bonito arranjo de flores. Não quer cumprimentá-la?
– Boa tarde! Boa tarde! – Cassandra vai trinando.
– Vou deixá-la com a sua visita – diz a enfermeira. – Daqui a pouco tem
de se vestir, menina Hawkins.
– Nell – digo eu, depois de ficarmos sozinhas. – Hoje teve uma visita. Foi
a professora McCleethy?
Nell encolhe-se ao ouvir o nome, e puxa a gaiola para si de tal maneira
que Cassandra começa a saltitar lá dentro, incomodada.
– Ela levou-nos para as rochas. Ela prometeu-nos poder e depois
atraiçoou-nos. Veio do mar. O João e a Maria foram os dois passear...
– Ela foi sua professora em Santa Vitória, não foi? O que é que ela lhe
fez? O que aconteceu?
Nell mete os dedos pequeninos pelas grades da gaiola, a tentar chegar a
Cassandra, que guincha e saltita para os evitar.
– Nell! – agarro-lhe nas mãos.
– Oh, Dama Esperança – diz ela num sussurro feroz, os olhos marejados
de lágrimas. – Ela encontrou-me. Ela encontrou-me e tenho a cabeça tão
transtornada. Tenho medo de não as conseguir enxotar. Elas não me querem
perdoar.
– Quem é que não lhe quer perdoar? – pergunto.
– Elas! – Nell está quase a gritar. – Aquelas com quem falas. Elas não são
minhas amigas, não são minhas amigas, não são minhas amigas.
– Chiu, pronto, sossegue, Nell – já tenho de murmurar. Ouço afinarem
violinos à distância. Chegou a orquestra de câmara. O baile está quase a
começar. Nell está a balouçar-se para a frente e para trás.
– Tenho de fugir não tarda. O João e a Maria foram os dois passear,
passear esta noite. Esta noite, vou dizer-te onde podes encontrar o Templo.
Com agilidade e ferocidade surpreendentes, Nell agarra numa pata de
Cassandra. A papagaia guincha de dor, mas Nell está decidida, a boca fixa
num estranho sorriso.
– Nell, Nell, largue-a – digo eu. Puxo-lhe os dedos e ela dá-me uma
dentada na mão com toda a força. Vejo uma meia-lua de sangue, fina e
irregular, a manchar-me a luva.
– Então, qual é a razão deste alarido todo? – Aparece uma enfermeira e
marcha para nós com ar profissional. Se ela vir a dentada, não vai deixar a
Nell ir ao baile desta tarde, e assim nunca virei a saber onde é que fica o
Templo.
– O pássaro deu-me uma bicada – digo eu. – Pregou-me um susto.
– Cassandra, és mazinha, és pois – ralha a enfermeira, e tira a gaiola das
mãos de Nell.
– Mazinha, mazinha! – guincha Cassandra.
– Esta noite – diz Nell em voz rouca. – Tens de ouvir. Tens de ver. É a
nossa última hipótese.
Dói-me a mão como o diabo. Pior, o senhor Snow está à espera no
corredor, todo lampeiro. Ele não devia estar aqui, na ala feminina, e fico a
pensar como é que se terá esgueirado. Não há como evitar. Terei de
atravessar à frente dele para chegar ao baile. Ganho coragem, endireito os
ombros e avanço como se fosse dona do Hospital de Bethlem. O senhor
Snow acompanha-me logo, a marcar passo.
– És mesmo bonita, pois és.
Continuo a andar, recuso-me a dar troco. O senhor Snow salta para a
minha frente e começa a andar às arrecuas. Eu olho à minha volta em busca
de socorro, mas está toda a gente no salão de baile.
– Não se importa de me deixar passar?
– Dá cá um chocho então. Um chocho para me lembrar de ti.
– Senhor Snow, não se esqueça do decoro, se faz favor – digo eu. Tento
soar firme, mas a voz sai-me trémula.
– Tenho um recado delas para si – sussurra ele.
– Delas?
– Das raparigas de branco. – Tem a cara tão perto da minha que lhe
consigo cheirar o hálito azedo. – Ela está mancomunada com as tenebrosas.
Com aquela que vem aí. Ela vai levá-la para maus caminhos. Não confie
nela – sussurra ele, mas com a mesma expressão lúbrica na cara.
– Está a tentar meter-me medo? – pergunto.
O senhor Snow põe as mãos contra a parede de cada lado da minha
cabeça.
– Não, menina, estamos a tentar avisá-la.
– Senhor Snow! Já chega! – Finalmente aparece uma enfermeira e o
senhor Snow esgueira-se pelo corredor abaixo, mas não sem ainda me gritar
em tom urgente.
– Cautela, menina! Tem uma cabecinha tão linda!
Só quando estou longe dele e em segurança é que descalço a luva e
examino a ferida que Nell me fez na mão. Não está nenhum pavor. É mais
um arranhão fundo. Porém, e pela primeira vez, tenho as minhas dúvidas
quanto a Nell Hawkins.
Pela primeira vez, tenho medo dela.
TRINTA E QUATRO
A ceia de Natal começa e acaba sem sinal do meu pai. Nós três começamos
a abrir as prendas na saleta, a fingir que não se passa nada.
– Ah – diz Tom, a desembrulhar um cachecol de lã comprido. – Perfeito.
Obrigado, minha avó.
– Apraz-me que goste. Gemma, porque não abre a sua?
Começo a abrir a prenda da avó. Talvez seja um bonito par de luvas, ou
uma pulseira. Lá dentro, estão lenços bordados com o meu monograma. São
bastante bonitos.
– Obrigada – digo eu.
– As prendas práticas são sempre as melhores, parece-me – observa a
avó, e dá uma fungadela.
A abertura das prendas termina em minutos. Além dos lencinhos, recebo
um espelho de mão e uma caixinha de chocolates da avó, e do Tom um belo
quebra-nozes encarnado que muito me diverte. Dei um xaile à avó e ao Tom
uma caveira para enfeitar o consultório dele.
– Vou chamar-lhe Yorick – diz Tom, encantado. Agrada-me que ele tenha
ficado contente. As prendas do meu pai continuam debaixo da árvore, por
abrir.
– Thomas – diz a avó. – Talvez o menino deva ir ao clube perguntar por
ele. Seja discreto.
– Mas eu tenho de ir ao Ateneu esta noite, sou convidado de Simon
Middleton – protesta Tom.
– O pai está desaparecido – digo eu.
– Não está desaparecido. De certeza que vai chegar a casa a qualquer
momento, provavelmente carregado de prendas que foi buscar a algum lado
num capricho. Lembras-te daquela vez em que ele chegou na manhã do dia
de Natal, como se fosse o próprio São Nicolau, montado num elefante?
– Sim – digo, a sorrir com a recordação. Ele trouxe-me o meu primeiro
sari, e eu e Tom bebemos leite de coco em tigelas como se fossemos tigres.
– Ele há de vir para casa. Atenta no que te digo. Não aparece sempre?
– Tens razão, claro – digo, mas porque quero desesperadamente crer
nele.
Começou a cair uma neve suave, que cobre a crina da Ginger com uma
camada fina como pó cinzento quando entramos devagar nos bairros pobres
de Londres Oriental. Está uma noite muda e fria. Até custa a respirar. Becos
e vielas estreitas e imundas serpenteiam entre prédios decrépitos que
parecem curvados como mendigos. Dos telhados ensopados irrompem
chaminés raquíticas, braços metálicos e tortos a pedir esmola ao céu,
esperança, uma espécie de conforto de que esta vida não resuma tudo o que
jamais conhecerão.
– Puxe o chapéu mais para baixo, a cobrir a cara – avisa Kartik. Mesmo
de noite e com este frio, as ruas estão cheias de gente bêbeda, barulhenta,
malcriada. Três homens à porta de uma casa de genebra apreciam-me a
roupa boa. Kartik está sempre a meu lado.
– Não olhe para eles – diz Kartik. – Não se deixe interpelar por ninguém.
Um grupo de maltrapilhos rodeia-nos, a pedinchar. Um tem uma irmã
bebé doente em casa; outro oferece-se para nos engraxar as botas por um
xelim. Outro ainda, um rapaz que não pode ter mais de onze anos, sabe de
um sítio onde podemos ir e ele será «bom» para mim o tempo que eu quiser.
Não sorri nem deixa transparecer emoção alguma quando diz isto. Fala com
um tom casual como o do rapaz que se oferece para me limpar as botas.
Kartik tira seis moedas da algibeira, ficam a reluzir na lã preta da mão
enluvada. Os rapazes arregalam os olhos na obscuridade.
– Três xelins para quem tomar conta da carruagem e da égua – diz ele.
Juntam-se logo três rapazes, a prometerem toda a espécie de estragos a
quem importunar a carruagem de tão distinto cavalheiro.
– E três para quem nos acompanhar ao Chin-Chin sem incidentes –
continua Kartik.
Silêncio. Um rapaz imundo de roupa esfarrapada e sapatos cambados e
esburacados pega nas últimas moedas.
– Ê conheço o Chin – diz. Os outros rapazes olham para ele com inveja e
desdém.
– Por aqui, ‘sores – diz ele, e leva-nos por um labirinto de vielas húmidas
com o vento a soprar das docas ali perto. Ratazanas gordas correm pelo
empedrado, metem o focinho em sabe-se lá o quê na berma da estrada.
Apesar do vento agreste e da hora tardia, há gente na rua. Ainda é noite de
Natal, e encheram as casas de genebra. Nas ruas estão alguns a caírem de
bêbedos.
– É ‘qui memo – diz o rapaz quando chegamos a um casebre dentro de
um patiozinho. O rapaz empurra a porta decrépita e acompanha-nos por
uma escada íngreme e escura acima que tresanda a urina e humidade.
Tropeço em qualquer coisa e apercebo-me de que é o corpo de alguém.
– É só o velho Jim – diz o rapaz, imperturbável. – ‘Tá sempre cá.
No segundo andar, chegamos a outra porta.
– Chigámos. Chin-Chin. Dê cá ‘ma pinga pelo trabalho, ‘tá bem, chefe? –
pede o rapaz, a estender a mão na esperança de ganhar mais dinheiro.
Ponho mais dois xelins na palma da mão dele.
– Feliz Natal, chefe. – Ele desaparece e eu bato à porta cheia de
imundície. Abre-se a ranger e deparo com um velho chinês. As olheiras nos
olhos cavos fazem-no parecer mais aparição do que homem de carne e osso,
mas depois sorri e mostra uma mão-cheia de dentes manchados como fruta
podre. Faz-nos sinal para irmos atrás dele para dentro do espaço exíguo e de
teto baixo. Há corpos para onde quer que a minha vista alcance. Deitados
por todo o lado, as pálpebras a mexerem-se; uns vão palrando em frases
compridas que não significam nada. Vão fazendo pausas e ocasionalmente
soltam uma galhofa fraca que me enregela a alma de tão vazia que soa. Um
marujo, a pele da cor da tinta-da-china, mexe a cabeça a dormitar a um
canto. Ao lado dele está um homem com ar de quem nunca mais vai
acordar.
Os fumos do ópio fazem-me lacrimejar os olhos e arder a garganta. A este
ritmo, será um portento conseguirmos sair daqui sem sucumbirmos também
nós à droga. Levo o lenço à boca para não me engasgar.
– Cuidado onde põe os pés – avisa Kartik. Há vários cavalheiros com ar
distinto à roda de uma tigela de ópio num estupor, de boca escancarada.
Acima deles, passa uma corda pela divisão toda, com trapos puídos
pendurados a formarem uma cortina podre que cheira a leite azedo.
– Em que navio está, meu rapaz? – surge uma voz da escuridão. Aparece
uma cara no brilho de uma vela. O homem é indiano.
– Não sou embarcadiço. Nem rapaz – responde Kartik.
O marujo indiano ri-se disto. Tem uma cicatriz feia que lhe sai do canto
do olho e lhe corta a face. Até estremeço a pensar em como é que ele a
arranjou ou no que terá acontecido ao outro homem. O marujo leva os
dedos ao punhal que tem na cinta.
– És sabujo treinado para inglês ver? – Ele aponta para mim com o
punhal. Depois imita um cão a ladrar e desata em mais galhofa e depois um
ataque de tosse que lhe deixa a mão cheia de sangue.
– Os ingleses. – Cospe. – Dão-nos esta vida. Somos sabujos deles, eu e
tu. Cães. O que prometem não te podes fiar. Mas o ópio do Chin-Chin faz
do mundo inteiro um doce. Fuma, meu amigo, e esqueces-te do que eles
fazem. Esqueces-te que és um cão. Que serás sempre um cão.
Ele aponta o punhal à bola preta e pegajosa do ópio, pronto a transformar
os problemas em fumo e a deixar-se ir num olvido em que não é subalterno
de ninguém. Eu e Kartik continuamos pela névoa de fumo. O chinês leva-
nos a uma sala pequenina e manda-nos esperar um pouco enquanto
desaparece atrás dos trapos que pendem sobre a porta. Kartik continua de
maxilar retesado.
– O que aquele homem disse... – Calo-me, não sei bem como prosseguir.
– O que quero dizer é que espero que o Kartik saiba que eu não penso
assim.
Vejo o rosto de Kartik empedernir.
– Eu não sou como aqueles homens. Eu sou Rakshana. Uma casta
superior.
– Mas também é indiano. São seus compatriotas, não são?
Kartik abana a cabeça.
– É a sina que determina a casta. Deve-se aceitar e viver consoante as
regras.
– Não pode crer mesmo nisso!
– Mas creio. Que o infortúnio do homem é não saber aceitar a sua casta, a
sua sina.
Eu sei que os indianos identificam a casta com uma marca na testa para
toda a gente ver. Eu sei que, em Inglaterra, temos o nosso próprio sistema
de castas inconfesso. Um lavrador nunca terá assento no Parlamento. Uma
mulher também não. Não creio que eu jamais tenha questionado estas
coisas até este momento.
– E a vontade e o desejo? E se alguém quiser mudar as coisas?
Kartik continua de olho na sala.
– Não se pode mudar a casta em que se nasceu. Não se pode ir contra o
próprio destino.
– Isso significa que não há esperança de vida melhor. É uma armadilha.
– É assim que a menina vê as coisas – diz ele baixinho.
– A que se refere?
– Pode ser um alívio seguir o caminho que nos foi destinado, saber o
rumo e desempenhar o nosso papel.
– Mas como é que se pode ter a certeza de seguir o rumo certo? E se não
houver destino, apenas escolha?
– Então eu não escolho viver sem destino – diz ele com um ligeiro
sorriso. Parece-me tão confiante, e eu não sinto nada além de incerteza.
– O Kartik alguma vez tem dúvidas? A respeito de alguma coisa?
O sorriso dele esfuma-se.
– Sim.
Gostaria muito de saber quais são, mas o chinês regressa e interrompe-
nos o debate. Vamos atrás dele, afastamos os trapos fétidos do caminho. Ele
aponta para um inglês gordo com braços do tamanho de patas de elefante.
– Estamos à procura do senhor Chin-Chin – diz Kartik.
– ‘Tá memo à sua frente – diz o inglês. – Aceitei uma oferta do dono
original há três anos. Há quem me trate por Chin. Há quem me trate por tio
Billy. Vieram provar a felicidade?
Numa mesa baixa está a tigela de ópio. Chin mexe a papa preta e espessa.
Tira uma bolinha pegajosa como alcatrão e empurra-a para baixo no
cachimbo de madeira. Horrorizada, vejo que ele tem a aliança de casamento
de meu pai numa corrente ao pescoço.
– Onde arranjou essa aliança? – pergunto num sussurro rouco que espero
sirva de voz de rapaz.
– Benito, né? Foi um freguês. Troca justa pelo mê ópio.
– Ainda cá está? Esse homem?
– Sê lá. Nã tenho nhuma pensão, poi’ não, chefe?
– Chin... – A voz, urgente mas rouca, sai do outro lado da cortina
esfarrapada. Aparece uma mão. A tremer em busca do cachimbo. Há uma
bela corrente de relógio pendurada nos dedos magros. – Chin, toma... Dá-
me mais...
É o meu pai.
Corro a cortina imunda. O meu pai está deitado no colchão manchado e
roto apenas de calças e camisa. O casaco e o sobretudo enfeitam uma
mulher que está deitada por cima dele, a ressonar ligeiramente. A gravata
fina e as botas desapareceram – roubadas ou trocadas. Não sei qual. O fedor
a urina é esmagador e tenho de fazer um grande esforço para não vomitar.
– Pai.
Na luz fosca, ele tenta ver quem está a falar. Tem os olhos raiados de
sangue, as pupilas grandes e vítreas.
– Olá – diz ele, a sorrir como num sonho. A mim dói-me a garganta de
tudo o que estou a reprimir.
– Pai, são horas de ir para casa.
– Só mais uma. Certinho. Depois podemos ir...
Chin pega na corrente do relógio e guarda-a na algibeira. Depois passa o
cachimbo ao meu pai.
– Não lhe dê mais – suplico eu.
Tento tirar-lhe o cachimbo, mas o meu pai arranca-mo da mão e dá-me
um empurrão. Kartik ajuda-me a levantar.
– Chin, lume. Bom homem...
Chin baixa a vela até ao cachimbo. O meu pai puxa o fumo. Os olhos
tremem-lhe e sai uma lágrima que faz um rasto lento pela face não
barbeada.
– Deixa-me, pequenina.
Não aguento nem mais um momento. Com toda a força que consigo
reunir, tiro a mulher de cima do meu pai e puxo-o até ficar de pé.
Cambaleamos os dois para trás. Chin ri-se, como se assistisse a uma luta de
galos ou qualquer outro desporto. Kartik pega no outro braço do meu pai e,
juntos, conseguimos levá-lo pela multidão de opiómanos. Tenho tanta
vergonha de que ele veja o meu pai neste estado. Apetece-me chorar mas
tenho medo de, se começar, nunca mais parar.
Vamos cambaleando escada abaixo mas conseguimos chegar à carruagem
sem mais percalços. Os rapazes cumpriram a palavra dada. Agora já são
cerca de vinte crianças, que saem todas dos assentos da carruagem e da
garupa da Ginger. O ar frio da noite, há pouco tão agressivo, é agora um
bálsamo depois dos malditos fumos do ópio. Respiro em golfadas ávidas
enquanto ajudo Kartik a enfiar o meu pai na carruagem. As calças do Tom
ficam presas na porta e rasgam-se pela costura. Com isto, também eu fico
despedaçada. Tudo o que tenho reprimido – desapontamento, solidão,
medo, e a tristeza esmagadora de tudo – me assalta numa torrente de
lágrimas.
– Gemma?
– Não... olhe... para... mim – digo a soluçar, de rosto virado para o aço
frio da carruagem. – É tudo... horrível... e a culpa... é minha.
– A culpa não é sua.
– Sim, sim, é! Se eu não fosse quem sou, a minha mãe não teria morrido.
Ele nunca teria ficado assim! Acabei-lhe com a felicidade! E... – Aqui,
calo-me.
– E...?
– Usei a magia para tentar curá-lo. – Tenho medo de que Kartik fique
zangado, mas ele não diz nada. – Não aguentava vê-lo sofrer daquela
maneira. De que serve este poder todo se não posso fazer nada com ele?
Com isto, desato a chorar outra vez. Para grande surpresa minha, Kartik
limpa-me as lágrimas com a mão, e murmura:
– Meraa mitra yahaan aaiye.
Sei muito pouco da língua hindi, mas o suficiente para saber que ele
disse: Vem cá minha amiga.
– Nunca conheci uma rapariga mais corajosa – diz ele.
Deixa-me encostar à carruagem um momento até as lágrimas pararem, e
sinto o meu corpo como acontece sempre que choro bastante – calmo e
limpo. Do outro lado do Tamisa, os carrilhões do Big Ben dão as duas da
manhã.
Kartik ajuda-me a sentar ao lado do meu pai, adormecido.
– Feliz Natal, menina Doyle.
Tenho autorização para passar a tarde com Felicity e Ann, de modo a que a
avó e o Tom possam tratar do meu pai. A senhora Worthington está a tratar
dos trajes da pequena Polly, o que deixou Felicity de muito má disposição, a
ombrear com a que eu sinto também. Apenas Ann está a desfrutar do dia. É
o primeiro Natal de que tem memória em que está numa casa a sério com
um baile aonde ir, e está completamente encantada com isso, não nos larga
com perguntas.
– Devo usar flores e pérolas no cabelo? Ou será demasiado gauche?
– Gauche – responde Felicity. – Não sei porque é que fomos escolhidos
para a acolher. Tem parentes mais adequados.
Estou sentada frente à cómoda de Felicity a passar a escova pelo cabelo, a
contar as vezes, e a ver a mágoa nos olhos de Kartik a cada escovadela.
– Sessenta e quatro, sessenta e cinco, sessenta e seis...
– Derretem-se e afadigam-se com ela como se fosse uma princesa que nos
veio visitar – resmunga Felicity.
– É uma menina muito bonita – diz Ann irrefletidamente. – Estava a
pensar em usar perfume. Gemma, será que o Tom considera demasiado
ousado as raparigas usarem perfume?
– Ele sente-se atraído pelo cheiro a estrume – diz Felicity. – Bem podes
chafurdar nos estábulos para atraíres o amor dele em todo o seu esplendor.
– Estás mesmo de mau humor – resmunga Ann.
Não devia ter dançado com ele. Não devia tê-lo deixado beijar-me. Mas
eu queria que ele me beijasse. E depois insultei-o.
– Oh, é tudo uma maçada tão grande – queixa-se Felicity, e avança para a
cama, juncada com meias, sedas, saiotes. Parece que o recheio dos
roupeiros de Felicity está à mostra para o mundo inteiro ver. Contudo, ela
não encontra nada que lhe pareça adequado.
– Não vou – balbucia Felicity. Está petulantemente deitada num canapé
com o roupão vestido, as meias de lã caídas nos tornozelos. Abandonou-se
qualquer arremedo de pudor.
– É o baile da tua mãe – digo eu. – tens de ir. Sessenta e sete, sessenta e
oito...
– Não tenho nada para vestir!
Eu faço um gesto grandiloquente na direção da cama e retomo a
contagem.
– Não vais usar um dos vestidos que a tua mãe mandou fazer para ti em
Paris? – pergunta Ann. Tem um dos vestidos contra o corpo e vira-se para
um lado e para o outro. Depois faz uma vénia ligeira a um acompanhante
imaginário.
– São tão bourgeois – diz Felicity, a resfolegar.
Ann passa os dedos pela seda azul-água, as continhas bordadas no decote
delicado.
– Este a mim parece-me amoroso.
– Então usa-o tu.
Ann tira os dedos como se os tivesse queimado.
– Nem conseguiria caber dentro dele.
Felicity sorri.
– Podias caber se tivesses desistido dos bolinhos ao pequeno-almoço.
– Não faria diferença nenhuma. Eu seria apenas um insulto ao próprio
vestido.
Felicity levanta-se de um salto e com um suspiro que mais parece um
rosnido.
– Porque é que fazes isso?
– Faço o quê? – pergunta Ann.
– Te diminuis sempre em cada oportunidade.
– Estava só a aligeirar as coisas.
– Não estavas nada. Estava, Gemma?
– Oitenta e sete, oitenta e oito, oitenta e nove... – respondo em voz alta. –
Ann, se continuares a dizer que não vales nada, as pessoas começam a crer
nisso.
Ann encolhe os ombros, volta a pôr o vestido na pilha que está em cima
da cama.
– Creem no que veem.
– Então muda o que eles veem.
– Como?
– Usa o vestido. Podemos alargá-lo dos lados.
– Uma centena. – Viro-me de frente para elas. – Sim, mas depois já não te
servia a ti.
Felicity faz um sorriso ferino.
– Exato.
– Parece-te mesmo boa ideia? – pergunto. O vestido deve ter sido bem
caro, feito em Paris à medida de Felicity.
– E a tua mãe não vai ficar zangada? – pergunta Ann.
– Vai estar demasiado envolvida com os convidados para reparar no que
vestimos. Só vai ralar-se com aquilo que ela vai vestir, e se a faz parecer
mais nova ou não.
Parece má ideia, mas Ann já está outra vez a acariciar a seda como se
fosse um gatinho querido, e não vou ser eu a estragar-lhe o momento.
Felicity até salta.
– Vou chamar a Franny. Por mais aborrecida que seja, é uma costureira
excelente.
Franny é convocada. Quando Felicity lhe explica o que quer feito, a
rapariga arregala os olhos, incrédula.
– Não é melhor perguntar à senhora Worthington primeiro, menina?
– Não, Franny. Será uma surpresa para a minha mãe. Ela vai ficar
felicíssima de ver a menina Bradshaw bem arranjada.
– Com certeza, menina.
Franny tira as medidas a Ann.
– Não vai ser fácil, menina. Não sei dizer se vai haver tecido que chegue.
Ann fica corada.
– Oh, não vale a maçada. Vou vestir o que usei para ir à ópera.
– Franny – diz Felicity, e o nome parece uma melopeia doce – você é tão
boa costureira. Tenho a certeza de que, se alguém consegue, esse alguém é a
Franny.
– Mas depois de o alterar, menina, não posso voltar atrás – diz Franny.
– Deixe isso comigo – diz Felicity, a empurrá-la porta fora com o vestido
nos braços.
– Agora vamos tratar de te arranjar cintura – manda Felicity.
Ann ampara-se na parede com os dois braços. Começa a virar-se para me
dizer qualquer coisa, mas Felicity empurra-lhe a cabeça para a frente outra
vez.
– Não me vais apertar muito, pois não?
– Vou – digo eu com a maior casualidade. – Agora quieta. – Dou um
puxão nas laçadas do corpete, aperto a cintura de Ann o mais que posso.
– C-c-credo – exclama ela.
– Outra vez – manda Felicity.
Puxo com força, e Ann endireita-se, a ofegar, as lágrimas já a verem-se
nos olhos.
– Muito apertado – balbucia ela.
– Queres usar o vestido ou não? – Felicity gosta de a arreliar.
– Quero... mas não quero morrer.
– Pronto, não serve de nada desmaiares. – Dou um pouco de folga às
laçadas e a cor volta às faces de Ann.
– Olha, senta-te – digo eu e levo-a para o canapé. Ela não tem alternativa
senão sentar-se direita como a torre do campanário de uma igreja. Está a
arquejar como um cavalo de tiro.
– Não é assim tão mau depois de nos acostumarmos – sussurra Ann, e faz
um sorrisinho fraco. Felicity atira-se para cima do canapé outra vez.
– Mentirosa.
– O que te pareceu a atuação da Nell Hawkins? A mim não me fez
sentido nenhum – pergunta Ann, a tentar respirar. – O Tom estava muito
bem-parecido. Ele é tão bondoso.
– Não consegui dar-lhe sentido nenhum também – respondo. – Ofereçam
esperança aos Intocáveis; não deixem a canção morrer. Têm de ter cuidado
com a beleza; a beleza tem de atravessar.
– Não saiam do caminho. O que é que significa? – pergunta Ann.
– E aquilo das ninfas escorregadias e luzidias? – pergunta Felicity, a rir-
se. Ou Cautela com os Guerreiros da Papoila. Querem devorá-las.
Devorar, devorar!
Ann começa-se a rir, mas o corpete corta-lhe logo a alegria. Só consegue
sorrir e ofegar.
– Ela estava a tentar dizer-nos alguma coisa. Tenho a certeza. – Estou a
sentir-me bastante defensiva quanto a este assunto.
– Ora, francamente, Gemma! Era um poema disparatado. A coitada da
Nell Hawkins é doida varrida.
– Então como é que sabia da górgone ou da Floresta das Luzes? Ou da
bruma dourada?
– Talvez lhe tenhas contado.
– Não contei nada!
– Então ela leu nalgum lado.
– Não – protesto. – Creio que estava a falar para nós em código e, se
conseguirmos decifrar, vamos deslindar o mistério da localização do
Templo.
– Gemma, eu sei que queres crer que a Nell tem a chave disto tudo, mas
tenho que dizer, depois de a ter visto, que estás enganada.
– Pareces o Kartik. – Arrependo-me logo de ter falado nele.
– O que se passa, Gemma? Estás a franzir o sobrolho – pergunta Ann.
– O Kartik foi-se embora.
– Embora? Embora para onde? – pergunta Felicity, a puxar uma meia e a
ver como fica na curva da barriga da perna.
– Voltou para os Rakshana. Insultei-o, e ele foi-se embora.
– O que é que lhe disseste? – pergunta Felicity.
– Disse-lhe que nem sequer pensava nele como indiano.
– Qual é o insulto? – pergunta Felicity, pois não compreende. Tira a meia
e deixa-a cair no chão. – Gemma, vamos aos reinos esta noite? Quero
mostrar o meu vestido novo à Pip e desejar-lhe Feliz Natal.
– Vai ser difícil escapulirmo-nos – digo eu.
– Disparate. Há sempre oportunidades de fuga para as damas de
companhia. Já antes o fiz.
– Eu queria aproveitar o baile – digo eu. Felicity fixa-me com um sorriso
zombeteiro.
– Tu queres aproveitar o Simon Middleton.
– Eu estava na esperança de dançar com o Tom – admite Ann.
– Vamos amanhã – digo eu, a atirar um osso à Felicity.
– Detesto quando ficas assim. Um dia, hei de ter o meu próprio poder e
depois entrarei nos reinos quando bem me apetecer – Felicity já está a
bufar.
– Felicity, não te zangues – pede Ann. – É apenas uma noite. Amanhã.
Amanhã vamos aos reinos outra vez.
Ela começa a afastar-se, a despachar-nos.
– Tenho saudades da Pip. Ela estava sempre disposta a tudo.
– Estou a ver que a senhora Faber conseguiu que a menina Doyle dançasse
com o Percival – diz Simon a fazer-me girar devagar na valsa. Tem a mão
enluvada nas minhas costas, orienta-me facilmente pela pista fora.
– Ele dança com muito cuidado – digo eu, a tentar ser educada. Simon
sorri.
– É isso que a menina Doyle lhe chama? Calculo que seja um talento, ser
capaz de dançar a polca e falar incessantemente em simultâneo.
Não posso deixar de sorrir perante isto.
– Olhe ali – diz Simon. – A menina Weston e o senhor Sharpe. – Ele
indica uma jovem com ar severo sentada sozinha com o cartão de dança na
mão. Vai dando olhadelas a um jovem alto de cabelo preto que está a
conversar com outra jovem e a sua precetora, de costas para a menina
Weston. – É do conhecimento público que a menina Weston gosta do senhor
Sharpe. Também é do domínio público que o senhor Sharpe nem sequer
sabe quem é a menina Weston. Veja como ela anseia que ele a convide para
dançar. Aposto que tem o cartão de dança vazio na hipótese de ele a
convidar.
O senhor Sharpe avança na direção da menina Weston.
– Veja – disse eu. Talvez ele a vá convidar.
A menina Weston endireita-se na cadeira, um sorriso esperançoso na cara
esguia como uma agulha. O senhor Sharpe passa por ela, e ela finge olhar
para longe como se não estivesse nada incomodada pela rejeição. É tudo
muitíssimo cruel.
– Ou, talvez não – diz Simon. Vai tecendo comentários sobre os casais
que nos rodeiam. – O senhor Kingsley anda atrás da herança considerável
da viúva Marsh. A menina Byrne está muito mais forte do que na
temporada de maio. Em público, come como um passarinho mas consta
que, em privado, consegue devorar a despensa num abrir e fechar de olhos.
Diz-se que Sir Braxton tem uma aventura com a própria percetora dos
filhos. Depois temos o caso dos nossos anfitriões, os Worthingtons.
– A que se refere?
– Mal se falam. Está a ver como ela o vai evitando? – A mãe de Felicity
passa de um convidado a outro, dá-lhes toda a atenção, mas nem sequer
olha para o marido.
– Ela é a anfitriã – digo eu, sinto necessidade de a defender.
– Toda a gente sabe que ela viveu em Paris com o amante, um artista
francês. A menina Worthington está a mostrar muita carne esta noite. Já não
se fala noutra coisa. Provavelmente terá de se casar com um qualquer
americano barulhento. É uma pena. O pai foi ordenado cavaleiro pela
Rainha, galardoado com a Comenda da Ordem do Banho pela sua
prestigiante carreira naval. Agora até se responsabilizou por uma jovem
órfã, filha de um primo afastado. É bom homem, mas a filha está a tornar-se
numa mancha na sua reputação impecável.
O que Simon diz de Felicity é verdade, mas não me agrada ouvi-lo falar
da minha amiga desta maneira. É um aspeto do Simon que eu desconhecia.
– Ela é simplesmente exuberante – protesto.
– Indispus a menina Doyle – diz Simon.
– Não, não indispôs – minto, embora não saiba porque é que estou a
fingir não estar zangada.
– Indispus sim. Foi grande falta de cavalheirismo. Se a menina fosse
homem, deixá-la-ia escolher pistolas para defender a honra da menina
Worthington – diz ele, com aquele meio sorriso diabólico que tem.
– Se eu fosse homem, aceitaria – digo eu. – Mas de certeza que falharia.
Simon ri-se.
– Menina Doyle, Londres é um sítio muito mais interessante consigo
aqui.
A dança termina e Simon acompanha-me prometendo convidar-me
quando o meu cartão mo permitir. Ann e Felicity correm para mim, insistem
que tenho de as acompanhar à outra sala para tomar uma limonada. Com a
senhora Bowles a reboque, passamos pelas salas de braço dado, a falar
baixinho dos últimos mexericos.
– ...e depois ela disse que eu era nova de mais para usar um decote tão
grande e que mais valia não me ter trazido de todo se era para a fazer passar
vergonhas assim em público e que o vestido de seda azul ficou estragado...
– Felicity vai tagarelando.
– Ela não ficou zangada comigo, pois não? – pergunta Ann, a máscara da
preocupação afivelada no rosto. – Tu disseste-lhe que eu tentei impedir-te?
– Não é preciso afligires-te tanto. A tua reputação está intacta. Além
disso, o pai veio defender-me e a mãe recuou imediatamente. Ela nunca o
vai enfrentar...
O salão de baile dá para outra sala que foi reservada às bebidas.
Bebericamos limonada, muito fresca. Apesar do frio de inverno, temos
calor da dança e da animação. Ann vai olhando ansiosa para o salão de
baile. Quando a música começa outra vez, ela pega no seu cartão.
– Não é a quadrilha?
– Não – digo eu. – Parece-me outra valsa.
– Oh, graças a Deus. O Tom convidou-me para dançar a quadrilha. Não
quero perder por nada deste mundo.
Felicity fica momentaneamente aturdida.
– Tom?
Ann está radiante.
– Sim. Disse que quer saber tudo sobre o meu tio e de como vim a saber
que era uma lady. Oh, Gemma, parece-te que ele gosta de mim?
Mas o que fui eu fazer? O que acontecerá quando descobrirem o ardil?
Tenho um pressentimento mau.
– Tu gostas mesmo dele?
– Muito. Ele é tão... respeitável.
Até me engasgo com a polpa da minha limonada.
– Que tal te estás tu a dar com o senhor Middleton? – pergunta Felicity.
– Sabe dançar muito bem – respondo. Estou a empatá-las, claro.
Felicity dá-me com o cartão de dança, a brincar.
– Não tens mais nada a dizer? Só que ele sabe dançar muito bem?
– Conta lá – insiste Ann. A senhora Bowles já nos apanhou e fica a pairar
por perto, na esperança de uma conversa, um cheirinho a escândalo.
– Ai, ai, tenho um rasgão no vestido – digo eu.
Ann entorta-se toda para me ver a saia do vestido.
– Onde? Não vejo nada.
Felicity não perde pitada.
– Ah, sim. Temos de te levar aos bengaleiros imediatamente. Uma das
criadas pode dar-lhe um ponto. Não se aflija connosco, senhora Bowles!
Antes que a nossa vigilante possa dizer água vai, Felicity tira-nos dali,
leva-nos pela escada abaixo até chegarmos a uma estufa pequenina.
– Então?
– Ele é muito simpático. É como se eu o tivesse conhecido toda a vida –
digo eu.
– Não me liga muito a mim – diz Felicity.
Mas ela não saberá o que ele acabou de me dizer dela? Até fico corada a
pensar que poderia tê-la defendido muito mais.
– Porque é que dizes isso?
– Ele queria fazer-me a corte. Eu recusei-o o ano passado, e ele nunca mo
perdoou.
É como se me dessem um pontapé com toda a força.
– Não tinhas dito que não tinhas interesse no Simon?
– Sim, exato. Eu não tenho interesse nele. Não perguntaste se ele tinha
interesse em mim.
A minha boa disposição caiu-me até ao fundo da barriga, como confeitos
a juncarem uma pista de dança. Será que o Simon me anda a dar atenção
este tempo todo para arreliar a Felicity? Ou será que tem mesmo interesse
em mim?
– Creio que devíamos voltar ao baile – digo eu, e avanço para o primeiro
andar, mais depressa do que seria necessário, apenas para deixar espaço
entre mim e Felicity. Não me apetece juntar à multidão satisfeita. Por
enquanto, não. Preciso de um momento para me recompor. Do outro lado da
sala estão duas portadas que dão para uma pequena varanda. Esgueiro-me
para fora, a contemplar a vastidão do Hyde Park. Nas árvores nuas, vejo
Felicity, tentadora no seu vestido decotado, e a mim, a criatura alta e
esgalgada a brincar aos adultos; a rapariga assombrada por visões. Felicity e
Simon juntos poderiam ter uma vida livre de complicações. Seriam bonitos
venerados e viajados. Será que ela perceberia as piadas espirituosas dele?
Será que ele contaria piadas? Talvez ela lhe fizesse a vida num horror.
Talvez.
O ar frio está a ajudar-me. A cada fôlego sinto a cabeça mais
desanuviada. Logo vejo que estou recomposta o bastante para me queixar
do frio. Lá em baixo, cocheiros e criados de libré juntaram-se perto de uma
banca com café. Têm canecas quentes nas mãos e andam de um lado para o
outro na neve, a tentar guardar o calor. Estes bailes devem ser um suplício
para eles. Por momentos, parece-me ver Kartik, mas depois lembro-me de
que ele se foi embora.
É intolerável voltar a casa. O meu pai está a piorar a olhos vistos, grita que
quer láudano ou o cachimbo, algum opiáceo para lhe tirar as dores. Tom
está sentado à porta do quarto do pai, os braços compridos apoiados nos
joelhos dobrados. Tem a barba por fazer e olheiras fundas.
– Trouxe-te um chá – digo eu, e passo-lhe a chávena. – Como é que ele
está?
Como que em resposta, o meu pai geme do outro lado da porta. Ouço a
cama a ranger com o peso dos seus movimentos nervosos. Está a chorar
baixinho. Tom leva as mãos à cabeça como se pudesse espremer todos os
pensamentos lá de dentro.
– Faltei-lhe, Gemma.
Desta vez, sento-me ao lado do meu irmão.
– Não, não faltaste.
– Talvez eu não esteja destinado a ser médico.
– Claro que estás. A Ann pensa que vais ser um dos melhores
especialistas em Londres – digo eu, na esperança de o animar. Custa-me ver
o Tom, o Tom arrogante, impossível, imparável, a sentir-se assim tão mal.
Ele é a única constante na minha vida, mesmo que seja uma constante
irritação. Tom faz um sorriso acanhado.
– A menina Bradshaw disse isso? Ela é mesmo bondosa. E rica também.
Quando te pedi que me arranjasses um bom partido com uma pequena
fortuna, estava só a brincar, mas levaste-me ao pé da letra.
– Sim, pois, acerca dessa fortuna... – começo. Como é que hei de explicar
esta mentira ao Tom? Devia dizer-lhe antes que as coisas avancem mais,
mas não consigo confessar-lhe que Ann não é herdeira de ninguém, apenas
uma alma boa e esperançosa que o considera o suprassumo. – Ela é rica
noutros aspetos, Tom. Não te esqueças disso.
O meu pai resmunga alto e Tom parece que quer fugir.
– Não aguento muito mais. Talvez lhe devesse dar alguma coisa, brande
ou...
– Não. Porque é que não vais dar um passeio ou passares pelo teu clube?
Eu fico com ele.
– Obrigado, Gemma. – Tom dá-me um beijo impulsivo na testa, e o sítio
fica quente. – Não cedas. Eu sei como são as senhoras, demasiado brandas
para servirem de guardiãs.
– Vai lá, sim? Rua daqui – digo eu.
O quarto de meu pai está banhado na névoa purpúrea do crepúsculo. Ele
geme e mexe-se na cama, tem os lençóis todos enrodilhados. O ar cheira a
suor. O meu pai está empapado em suor, a roupa de cama colada ao corpo.
– Olá, meu pai – digo eu, corro os cortinados e aumento a chama do
candeeiro. Deito água num copo e levo-lho aos lábios, gretados e
esbranquiçados. Ele bebe golinhos.
– Gemma – diz ofegante. – Gemma, querida. Ajude-me.
Não chores, Gem, sê forte.
– Quer que eu lhe leia alguma coisa?
Ele agarra-me num braço.
– Ando a ter os sonhos mais horrorosos. Tão vívidos que nem sei se estou
a dormir se estou acordado.
Sinto um nó no estômago.
– Como é que são os sonhos?
– Com criaturas. Contam-me histórias terríveis sobre a sua mãe. Que ela
não era quem dizia ser. Que era uma bruxa, uma feiticeira que tinha feito
coisas terríveis. A minha Virgínia... a minha mulher.
Ele desata a chorar. Há algo dentro de mim a despedaçar-se. O meu pai,
não. Deixem o meu pai em paz.
– A minha mulher era virtuosa. Era uma mulher muito nobre. Muito boa.
– Os olhos dele encontram os meus. – Dizem que a culpa é sua. Que tudo
isto é por causa de si.
Tento respirar. O olhar do meu pai suaviza-se.
– Mas a Gemma é a minha menina querida, a minha menina muito boa,
não é, Gemma?
– Sim – digo num sussurro. – Com certeza.
Ele agarra-me bem.
– Não suporto nem mais um minuto estas coisas. Seja boazinha, Gemma.
Procure o frasco. Antes que os sonhos voltem a atormentar-me.
A minha determinação enfraquece. Já não tenho a certeza de aguentar
perante as súplicas dele que ganham mais urgência, a voz lavada em
lágrimas que passa a um sussurro rouco.
– Por favor, por favor, por favor. Não consigo aguentar. – Sai uma
bolhinha de saliva dos seus lábios gretados.
Sinto-me enlouquecer. Como a mente de Nell Hawkins, a mente do meu
pai está muito castigada. Aquelas criaturas conseguiram encontrá-lo em
sonhos. Não o deixam em paz por causa de mim. A culpa disto tudo é
minha. Tenho de remediar isto. Esta noite, vou aos reinos e não saio de lá
enquanto não encontrar o Templo.
Porém, não vou deixar meu pai a sofrer entretanto.
– Sossegue, pai, eu ajudo – digo eu. Puxo as saias muito para cima da
decência e corro para o meu quarto, encontro a caixa onde escondi o frasco.
Torno a correr para a cabeceira de meu pai. Tem os lençóis da cama presos
nas mãos, está a abanar a cabeça para a frente e para trás, a contorcer-se e a
transpirar.
– Pai, toma. Toma! – Levo-lhe o frasquinho aos lábios. Ele bebe o
láudano como um homem sedento.
– Mais – pede-me ele.
– Chiu, não há mais.
– Não basta! – grita ele. – Não basta!
– Deixe fazer efeito.
– Não! Vá-se embora! – berra ele, e bate com a cabeça no espaldar da
cama.
– Não, pai! – Ponho as minhas mãos de cada lado da cabeça dele para não
continuar a magoar-se.
– É a minha linda menina, Gemma – sussurra ele. As pálpebras tremem.
A mão dele solta-me. O meu pai acalma-se num sono movido a ópio. Resta-
me esperar ter feito a coisa acertada. Vejo a senhora Jones à porta.
– Menina, está tudo bem?
Saio do quarto algo cambaleante.
– Sim – respondo, quase sem fôlego. – O senhor Doyle agora vai
descansar. Ocorreu-me uma coisa que tenho de fazer. Não se importa de
ficar com ele, senhora Jones? Eu não me demoro.
– Com certeza, menina – diz ela.
Começou a chover outra vez. Não temos carruagem, apanho uma charrete
até ao Hospital de Bethlem. Quero dizer a Nell que vi o Templo numa visão
e que está ao meu alcance. Também lhe quero perguntar como hei de
encontrar a professora McCleethy – Circe. Se ela pensa que pode mandar as
criaturas atormentarem o meu pai, está muito enganada.
Quando chego, está tudo num pandemónio. A senhora Sommers esgueira-
se pelo corredor fora a torcer as mãos. Fala em voz esganiçada. Está
muitíssimo excitada.
– Ela está a fazer coisas más, menina. Coisas tão más!
Há vários doentes reunidos no corredor, ansiosos por ver o que estará a
causar tal distúrbio. A senhora Sommers começa a arrancar o próprio
cabelo.
– Menina má, má!
– Então, Mabel – diz uma enfermeira e baixa o braço à senhora Sommers.
– O que é que está para aí a arengar? Quem é que está a fazer coisas más?
– A menina Hawkins, é uma menina má.
Ouvem-se uns guinchos pavorosos ao fundo do corredor. Duas das
mulheres começam a imitar por graça. O som está em todo o lado ao
mesmo tempo e agride-me.
– Santíssimo sacramento – exclama a enfermeira. – O que será isto?
Passamos depressa pelas mulheres que guincham, os nossos pés ressoam
no soalho polido até chegarmos à sala de espera. Nell está de pé e de costas
para nós. A gaiola de Cassandra está vazia e de porta entreaberta.
– Menina Hawkins? Que alarido é este... – A enfermeira cala-se quando
Nell se vira para nós, a papagaia segura nas suas mãos pequenas. Tem penas
verdes e encarnadas numa cascata de cores, mas a cabeça da ave está mal.
Está num ângulo impossível em relação ao corpinho frágil. Nell quebrou-
lhe o pescoço. A enfermeira fica estarrecida.
– Oh, Nell! Mas o que é que tu foste fazer?
Juntou-se uma multidão atrás de nós, vai apertando para conseguir ver. A
senhora Sommers corre de uns para outros, a bichanar:
– Malvada! Malvada! Eles disseram que ela era malvada! Disseram!
– Não se pode enjaular as coisas – diz Nell Hawkins em tom neutro.
Horrorizada, a enfermeira não consegue dizer mais nada.
– Mas o que é que tu foste fazer?
– Dei-lhe a liberdade. – Parece que Nell agora reparou em mim. Faz-me
um sorriso de cortar o coração. – Ela vem buscar-me, Dama Esperança. E
depois vem buscar-te a ti.
Aparecem dois homens encorpados com a camisa-de-forças para Nell.
Aproximam-se devagar e vestem-lha como se ela fosse um bebé. Ela não
oferece resistência. Não parece dar por nada.
Só quando passa por mim é que desata a gritar.
– Eles hão de desorientar-te com promessas falsas! Não saias do
caminho!
QUARENTA
Alguém corre as cortinas. A sala fica escura e baça. Não consigo falar. O
Tom e a avó estão à minha cabeceira. Ouço outra voz. Um médico.
– Febre... – diz ele.
Não é febre. É magia. Tento dizer-lhes isso, dizer alguma coisa, mas não
consigo.
– Tens de repousar – diz Tom a segurar-me na mão.
No canto do quarto, vejo as três raparigas à espera, aparições silenciosas e
sorridentes. As olheiras fundas fazem-me lembrar a cara espetral daquela
coisa sobre os penhascos.
– Não – digo eu, mas não é mais do que um murmúrio.
– Sossega e dorme – diz a avó.
– Sim, dorme – sussurram docemente as raparigas de branco. – Dorme
bem.
– Vamos ajudar ao sono... – A voz do médico é como um zumbido nos
meus ouvidos. Vejo-lhe um frasco na mão. O Tom hesita. Sim, querido
Tom. Mas o médico insiste e o Tom leva-me o frasco aos lábios. Não! Não
posso beber. Não posso dormir. Mas já não tenho forças em mim. Viro a
cabeça, mas a mão do Tom é forte.
– Por favor, Gemma.
As raparigas sentam-se, as mãos no regaço.
– Sim. Que doçura, bebe e dorme. A nossa soberana já entrou. Agora
dorme tu.
– Agora dorme – aconselha a voz de Tom já longínqua.
– Encontramo-nos nos teus sonhos – dizem as raparigas conforme caio no
sortilégio do medicamento.
Vejo as Grutas dos Suspiros mas não como eram. Já não é um sítio
decrépito, mas sim um templo magnífico. Estou a percorrer os túneis
estreitos. Passo os dedos pelas paredes irregulares e os desenhos desbotados
ganham vida em tons vermelhos e azuis, verdes, cor-de-rosa e cor de
laranja. Estão aqui pinturas de todos os reinos. A Floresta das Luzes. As
ninfas da água nas suas profundezas turvas. O barco da górgone. O jardim.
As Runas do Oráculo como estavam outrora. O horizonte dourado do outro
lado do rio, para onde devem rumar os nossos espíritos. As mulheres da
Ordem nos seus mantos, de mãos dadas.
– Encontrei – murmuro, a língua espessa do opiáceo.
– Chiu – diz alguém. – Agora dorme.
Agora dorme. Agora dorme.
As palavras descem um túnel até ao meu corpo, onde se transformam em
pétalas de rosa sopradas nos meus pés descalços em cima do chão
poeirento. Pico o dedo num espinho que estava cravado numa fenda da
parede. Caem gotas de sangue em espiral no pó a meus pés. Irrompem
trepadeiras gordas e verdes pelas fendas. Entrecruzam rapidamente os
pilares em padrões complexos como os mendhi dos Hajin.5 Rosas de cor
carregada brotam, desabrocham e abrem-se, enrolam-se nos pilares como
dedos de amantes entrelaçados. É tão lindo, tão lindo.
Vem aí alguém. Asha, a Intocável. Quem melhor para guardar o Templo
do que alguém insuspeito de ter poder?
Ela cumprimenta-me, junta as palmas das mãos e leva-as à testa, ao
mesmo tempo que inclina o corpo para a frente. Eu imito-a.
– O que ofereces?
Oferece esperança aos Intocáveis, pois precisam muito dela. Dama
Esperança. Eu sou a esperança. Eu sou a esperança.
O céu abre-se. O rosto de Asha está toldado de preocupação.
– O que se passa?
– Sinto-a. Se ficares, ela encontrará o Templo. Tens de sair deste sonho.
Interrompe a visão, Altíssima. Agora!
– Sim, vou-me embora – digo eu. Tento sair da visão, mas o medicamento
já está a fazer efeito. Não me consigo obrigar a sair.
– Vai! Corre para os reinos – diz ela. – Oculta a tua mente do Templo. Ela
verá o que tu vires.
Estou pesada, drogada. Tão pesada. Não consigo fazer com que os
pensamentos me obedeçam. Saio da gruta aos tropeções. Atrás de mim, as
pinturas perdem a cor, as rosas voltam a ser botões, as trepadeiras recuam
para as fendas. Quando saio da gruta, o céu já escureceu. Os vasos de
incenso mandam plumas coloridas rumo às nuvens como um aviso. O fumo
aparta-se. A professora Moore está à minha frente com a coitada da Nell
Hawkins, o sacrifício.
– O Templo. Obrigada, Gemma.
Por fim, cedo e vou com Tom. Temos outro cocheiro novo, pois Jackson
desapareceu. Não posso dizer que esteja admirada com isso.
– A avó diz que a Ann Bradshaw não tem parentesco algum com o duque
de Chesterfield – diz Tom, depois de nos pormos a caminho. – Também diz
que a menina Bradshaw perdeu os sentidos quando lhe fizeram estas
acusações. – Como eu não confirmo nem desminto, ele continua. – Não
estou a ver como é que pode ser verdade. A menina Bradshaw é uma alma
tão boa. Não é do tipo que gosta de enganar as pessoas. O próprio facto de
ter desmaiado prova que tem um caráter bom de mais para sequer conceber
tal ideia.
– As pessoas nem sempre são como queres que sejam – resmungo eu.
– Perdão? – retruca Tom.
– Nada – digo eu.
Acorda, Tom. Os pais podem fazer mal aos filhos, propositadamente.
Podem ser viciados fracos de mais para largar os vícios, não importa o
sofrimento que causam. As mães podem negligenciar-nos até ficarmos
invisíveis. Podem apagar-nos com uma negação, uma recusa em ver. Os
amigos podem enganar-nos. As pessoas mentem. É um mundo frio e duro.
Não posso censurar a Nell Hawkins por fugir dele numa loucura escolhida
por si própria.
Os corredores de Bethlem agora quase me parecem tranquilizantes. A
senhora Sommers está ao piano a martelar uma canção com as notas
erradas. Criou-se um grupo de costura a um canto. As mulheres afadigam-
se com as suas peças, como se cosessem a salvação a cada ponto dado com
esmero.
Sou levada ao quarto de Nell. Está estendida na cama, de olhos abertos
mas sem ver nada.
– Olá, Nell – digo eu. Está silêncio no quarto. – Talvez seja melhor ires-te
embora – digo para Tom.
– O quê? Ah, sim. – Tom vai-se embora.
Pego nas mãos de Nell. São tão pequeninas e estão tão frias.
– Tenho tanta pena, Nell – digo, o pedido de desculpas sai-me em voz
entrecortada. – Tenho tanta pena.
As mãos de Nell prendem as minhas. Ela está a lutar com alguma coisa
com as poucas forças que lhe restam. Estamos juntas e, na minha cabeça,
consigo ouvi-la falar.
– Ela... não pode... prendê-la – sai-lhe um sussurro. – Ainda... há...
esperança.
Os músculos descontraem-se. As mãos dela saem das minhas.
– Gemma? – pergunta Tom quando saio disparada do quarto de Nell e
vou direitinha à carruagem. – Gemma! Gemma, aonde vais?
Passam quinze minutos das cinco quando finalmente apanho uma charrete.
Com alguma sorte, hei de chegar à estação de Vitória antes de Felicity e
Ann embarcarem no comboio das cinco e quarenta e cinco rumo à Spence.
Porém, a sorte não quer nada comigo. As ruas estão congestionadas de
gente e veículos de toda a espécie. É a pior altura do dia para pressas.
O Big Ben dá a meia hora. Deito a cabeça de fora da charrete. Diante de
nós estende-se um mar de cavalos, vagões, charretes, carruagens e ónibus.
Estamos talvez a um quilómetro da estação e completamente engarrafados.
Chamo o cocheiro.
– Se não se importa, vou sair aqui.
A correr entre cavalos que resfolegam, atravesso a rua rapidamente e
chego ao passeio. A caminhada até à estação é curta, mas estou fraca dos
dias passados na cama. Quando finalmente chego à estação, tenho de me
amparar à parede para não perder os sentidos.
Passam quarenta minutos das cinco da tarde. Não há tempo para
descansar. A gare está apinhada. Nunca as conseguirei encontrar neste caos.
Reparo num caixote de jornais vazio e subo para cima dele, começo a
perscrutar a multidão, sem ligar à má cara dos transeuntes que consideram o
meu comportamento ultrajante um insulto a todas as senhoras em toda a
parte. Por fim, dou com elas. Estão na gare com a Franny. Os Worthingtons
nem sequer se incomodaram em virem despedir-se da filha com um beijo e
umas lágrimas.
– Ann! Felicity! – chamo aos gritos. Mais pregos no caixão do meu
caráter. Vou ter com elas, algo coxa.
– Gemma, o que estás aqui a fazer? Pensei que só ias para a Spence daqui
a dias – diz Felicity. Tem um vestido de viagem numa cor malva que lhe
fica muito bem.
– A magia não é dela – explico, completamente sem fôlego. – Ela não
consegue prendê-la.
– Como é que sabes? – pergunta Felicity.
– A Nell disse-me. Deve ser porque ela não tem poder que chegue
sozinha. Precisa de mim para isso.
– O que havemos de fazer? – pergunta Ann.
Ouve-se o apito. O comboio para a Spence já está na linha numa névoa de
fumo. À tabela. O maquinista está na gare a anunciar o embarque.
– Vamos atrás delas – digo eu.
Vejo que Jackson e Fowlson chegaram. Eles também nos veem. Vêm
direitos a nós.
– Temos companhia – digo eu.
Felicity repara nos homens.
– Aqueles?
– Rakshana – digo eu. – Vão tentar impedir-nos, querem controlar tudo.
– Então vamos deixá-los a comer pó – diz Felicity e embarca no
comboio.
5 Desenhos no corpo feitos com hena. (N. da T.)
QUARENTA E SETE
Olho para trás, para a cortina de água por onde entrei. Nítidas como numa
fotografia, vejo as caras aflitas de Felicity, Pippa e Ann. Só Asha não revela
emoção alguma. Apetece-me atravessar a queda de água de volta à
segurança, mas a segurança é outra ilusão. Só posso andar para a frente.
– A senhora não pode realmente tocar na magia, pois não? Por isso é que
precisava da Nell. Por isso é que precisa de mim. Só pode controlar a magia
por meio de alguém.
– A Gemma é a Altíssima. As suas palavras afinal são precisas – diz ela.
– Nós juntas podemos restaurar o poder e a glória da Ordem. Podemos fazer
muitas coisas boas, coisas gloriosas. A Gemma tem mais magia em si do
que qualquer outra pessoa na história da Ordem. Não há limites para o que
eu e a Gemma podemos fazer. – Ela estende-me a mão. Não lhe pego.
– A senhora não quer saber de mim – digo eu. – O seu único desejo é
controlar a magia e os reinos.
– Gemma...
– Não há nada que me possa dizer que eu queira ouvir.
– Não, tem de me ouvir, se faz favor – pede ela. – Sabe como é quando
nos tiram poder? Render-se a alguém para sempre? Eu tive poder nas
minhas mãos, eu controlei o meu próprio destino, e tiraram-me tudo.
– Os reinos não a escolheram – digo eu, sempre com o poço entre nós
duas.
– Não. Isso é a mentira que elas contam. Os reinos deram-me poder. A
Ordem negou-mo. Escolheram a sua mãe em vez de mim. Ela era mais
cordata, ela estava disposta a fazer o que elas mandavam.
– Não meta a minha mãe nisto.
– É isso que a Gemma quer? Ser uma criada fiel delas? Vai combater por
elas, proteger o Templo, prender a magia e depois dar-lhe tudo de mão
beijada para elas administrarem como lhes aprouver? E se preferirem não a
incluir? E se lhe tirarem tudo o que tem agora? Prometeram-lhe alguma
coisa?
Não prometeram. Eu não questionei nada. Fiz o que me mandaram.
– Sabe bem que estou a dizer a verdade. Porque é que não lhe ofereceram
auxílio algum? Porque é que não foram elas a prender a magia? Porque não
o podem fazer sem a Gemma. Porém, assim que a Gemma prender a magia
e deixar de haver perigo, vão pedir-lhe que as traga cá dentro. Vão
apoderar-se de tudo. E a Gemma deixará de ter préstimo para elas se não
fizer o que lhe mandarem. Não se vão preocupar consigo como eu me
preocupo.
– Como se preocupou com a Nell. Como se preocupou com a minha mãe.
– As palavras saem-me quase cuspidas.
– Ela prometeu ajudar-me. Mandou-me uma carta de Bombaim a dizer
que tinha mudado de ideias. Depois denunciou-me aos Rakshana.
– E a senhora matou-a.
– Não. Não fui eu. A criatura.
– É a mesma coisa.
– Não, não é. A Gemma conhece muito pouco dos espíritos negros. Eles
querem devorá-la viva. A Gemma precisa da minha ajuda. – Ela faz um
último apelo. – Sem a magia, não me posso livrar do elo que me prende a
estas criaturas. A Gemma pode salvar-me desta existência desgraçada.
Passei anos em busca da escolhida, de si. Tudo o que fiz, fiz para este
momento, para esta oportunidade. Nós podemos formar uma nova Ordem,
Gemma. Basta dizer as palavras...
– Eu vi o que a senhora fez àquelas raparigas.
– É horrível. Não o vou negar. Tenho feito muitos sacrifícios por isto –
diz a professora Moore. – Que sacrifícios está a Gemma disposta a fazer?
– Não farei o que a senhora fez.
– Diz isso agora. Todos os líderes têm sangue nas mãos.
– Eu confiava em si!
– Eu sei, e lamento. As pessoas desapontam-nos, Gemma. A questão é
aprendermos a viver com esse desapontamento e seguir em frente. Eu estou
a oferecer-lhe um novo mundo.
Não consigo viver com isso.
– Elas tiveram razão em recusá-la. A Eugenia Spence tinha razão.
Os olhos dela ficam coruscantes.
– Eugenia! A Gemma não sabe aquilo em que ela se tornou. Ela tem
estado com os espíritos negros este tempo todo. Como irá combatê-la, se
tiver de o fazer? Vai precisar de mim para o que vem aí. Isso posso garantir-
lhe.
– Está a tentar confundir-me – digo eu.
– Não pode passar! – É a voz de Asha.
Pippa entrou pela parede de água.
– Pip! – Felicity corre atrás dela. Ann hesita um momento mas segue-as.
– O que é que está a acontecer? – pergunta Pippa. Felicity levanta o arco.
– Resta-me uma seta.
– Se me matarem, levarei comigo todos os segredos que sei dos espíritos
negros e das Invernias. Nunca os saberão.
– Sabe como usar a magia para manter um espírito aqui e em liberdade? –
pergunta Pippa, vacilante.
– Sei – responde a professora Moore. – Posso arranjar maneira de lhe dar
o que a Pippa deseja. Não será preciso fazer a travessia. Poderá ficar aqui
nos reinos para sempre.
– Ela está a mentir, Pippa – digo, mas já estou a ver o desejo dorido no
olhar de Pippa. A professora Moore também vê.
– Não teria de te deixar, Fee – diz Pippa, e pergunta à professora Moore:
– Vai doer muito?
– Não. Não vai doer nada.
– E vou ficar como estou?
– Sim.
– Não creias nela, Pip.
– O que me prometeste tu, Gemma? Eu ajudei-te e o que é que tu fizeste
por mim?
Ela contorna o poço e dá a mão à professora Moore.
– Assim podemos ficar juntas, Fee. Como era antes.
A mão de Felicity hesita a segurar o arco. A corda fica bamba outra vez.
– Felicity, sabes bem que não pode ser – sussurro eu.
– Mata-a – sussurra Ann. – Mata Circe.
Felicity faz pontaria, mas Pippa põe-se em frente da professora Moore, a
protegê-la como um escudo. Não faço ideia do que aconteceria a Pippa, que
é um espírito, se a matassem dentro dos reinos.
Felicity põe-se de pé, os músculos tensos do peso do arco retesado e da
tarefa impiedosa. Finalmente, baixa o arco.
– Não consigo. Não consigo.
O sorriso de Pippa é de partir o coração de tanto amor.
– Obrigada, Fee – diz ela, e corre para a abraçar.
Eu agarro no arco e seguro-o bem. Não tenho a perícia de Felicity, e só há
uma única seta.
A professora Moore tem Nell nos braços.
– Eu poderia oferecer a Nell em sacrifício neste momento. Junte-se a mim
e eu deixo-a ir em paz.
– Deu-me uma escolha impossível – digo eu.
– Mas continua a ser uma escolha, mais do que a Gemma me deu a mim.
Nell encosta-se à professora Moore como uma boneca sem vida. A
centelha que outrora lhe brilhou no olhar foi-se, enterrada sob camadas de
sofrimento. Posso poupar Nell, juntar-me à professora Moore e partilhar o
Templo com ela. Ou posso ficar a vê-la oferecer Nell à criatura e usar esse
poder para fazer o que bem lhe aprouver.
Nell vira o olhar angustiado para mim. Não hesites...
Deixo ir a seta. Vai direita e espeta-se no pescoço de Nell Hawkins. Com
uma exclamação, ela tomba no chão. Enquanto sacrifício, deixou de ter
préstimo.
A professora Moore olha para mim com um misto de fúria e choque no
olhar.
– O que é que foi fazer?
– Agora tenho sangue nas mãos – digo eu.
A professora Moore corre para mim. Não há tempo para obedecer a
regras. Terei de fazer regras novas. Fecho os olhos e avanço a correr rumo
ao poço, mas a professora Moore é rápida. Agarra-me na mão.
Desequilibro-me e caímos as duas, de braços cerrados para a batalha,
naquelas águas eternas e grandiosas.
Consigo sentir a professora Moore respirar, ouço-lhe o coração a bater
como louco a descarregar sangue, esse mensageiro tão necessário. Cheira-
me ligeiramente à fuligem das chaminés de Londres e a pó de talco com
aroma de lilás, e algo mais. Logo abaixo da pele, há medo. Sofrimento.
Remorso. Anseio. Desejo. Uma vontade férrea de poder. Tudo isto. Estamos
juntas. É como se vivêssemos no centro de uma grande tempestade. À nossa
volta, o mundo dos reinos gira como um caleidoscópio gigantesco, imagens
refratadas uma e outra vez. Tantos mundos! Tanto para conhecer.
Sim, parece que a professora Moore diz dentro da minha cabeça. Tanto
que a Gemma não conhece.
Estou a ser esticada por tudo isto. Consigo sentir cada pedacinho de mim
a ser espalhado até eu fazer parte de tudo que vejo. Sou a folha que se
transforma em borboleta, sou o rio que vai polindo os seixos na margem.
Sou a barriga a dar horas da mulher-a-dias, o vago desapontamento que o
padeiro sente com os seus filhos, o anseio que a rapariga tem por animação.
Apetece-me rir e chorar ao mesmo tempo. É muito, muito.
Avista-se um descampado gelado. Estamos a voar sobre montanhas
acidentadas por baixo de um céu feroz. Lá em baixo, um exército de
espíritos, um milhar deles, uiva para o vazio. Consigo senti-los dentro de
mim. O medo, a raiva. Eu sou o fogo. Eu sou o monstro que destrói. Não
tenho vontade alguma de travar a luta cruel. É a luta que me mantém viva.
Sinto os braços da professora Moore a estreitarem-me. Ela não quer ser
recusada segunda vez. Agora não tenho consciência de nada além do nosso
combate. Só uma de nós poderá emergir do poço. Como se ela me
conseguisse ler o pensamento, a professora Moore empurra-me com força.
Quer vencer, quer de todo o coração.
Eu também quero vencer.
Tens de refletir no rumo que desejas tomar, na forma do vínculo. Tenho
de pensar numa maneira de conter a magia, mas é difícil no meio deste
combate desesperado. Não consigo ver mais do que a professora Moore, a
minha professora, a minha amiga, a minha inimiga. De súbito, sei o que
devo fazer, como devo levar isto a um fim.
Com um grande empurrão, livro-me da professora Moore aos pontapés e
ela tomba para trás. Os olhos ficam muito arregalados. Ela sabe o que eu
tenho em mente, o que tenciono fazer. Lança-se para mim mas, desta vez,
ganhei rapidez com a determinação. Subo e galgo a beira do poço, saio
molhada e lustrosa como um bebé recém-nascido. Levo as mãos à
superfície da água e digo as palavras que espero venham a restaurar o
equilíbrio.
– Eu ponho um selo sobre o poder. Que o equilíbrio dos reinos seja
restaurado e que ninguém perturbe a sua majestade. Eu vinculo a magia em
nome de todos os que vierem a partilhar o poder um dia. Pois eu sou o
Templo; a magia vive em mim.
Há uma súbita rajada de luz branca e resplandecente. Sinto-me a ser
dividida ao meio pela força. Isto é a magia. O vínculo está a usar-me como
mediadora. Flui por mim como água. Nisto, já está. Estou de joelhos,
arquejante.
Mas a gruta está saturada de cor. Os frescos voltaram a ser vibrantes. As
rosas abrem-se e as grandes estátuas parecem animadas.
– O que aconteceu à professora Moore? – pergunta Ann.
– Fiz o que ela pediu: salvei-a da sua existência desgraçada e prendi-a
num sítio onde ela já não pode fazer mal.
– Então está feito? – É a voz de Pippa.
Ann fica boquiaberta quando Pippa sai de detrás de uma rocha. A magia
já não está à solta e o encanto começou a desvanecer-se. Em cima dos
caracóis dela, a coroa de flores voltou a desabrochar, mas Pippa já não é a
Pippa que conhecemos e amamos. A criatura diante de nós está em
metamorfose. Os dentes algo aguçados, a pele mais translúcida, vê-se o azul
das veias. Os olhos...
Ficaram brancos mortiços com pontinhos pretos como cabeças de
alfinete.
– Porque é que estão a olhar para mim dessa maneira? – pergunta ela,
receosa. Não conseguimos responder, nenhuma de nós.
– Está feito, mas eu ainda aqui estou – diz ela. Sorri, mas o efeito é
arrepiante.
– É tempo de nos deixares, Pip – digo eu com brandura. – De te deixares
ir.
– Não! – Ela geme como um animal ferido, e eu sinto que o meu coração
se vai partir. – Por favor, eu não quero ir. Ainda não. Por favor, não me
deixem! Por favor! Fee!
Felicity chora.
– Tenho muita pena, Pip.
– Tu prometeste que nunca me deixavas. Tu prometeste! – Ela limpa as
lágrimas com um braço. – Vais-te arrepender disto.
– Pippa! – chama Felicity, mas é tarde de mais. Ela deixou-nos, fugiu
para o único sítio onde encontrará abrigo. Um dia, voltaremos a encontrar-
nos, não como amigas, mas sim como inimigas.
– Eu não podia usar a magia para a manter aqui. Tu compreendes, não é?
Felicity não olha para mim.
– Estou cansada deste sítio. Quero ir para casa. – E começa a marchar
montanha abaixo até se perder no fumo colorido dos vasos de incenso.
Ann dá-me a mão. É a sua maneira de dizer que me perdoa, e fico-lhe
agradecida. Resta-me esperar que Felicity também me venha a perdoar, com
o tempo.
– Olha, Dama Esperança! – É Asha a chamar-me.
Do outro lado do rio, consigo vê-los – milhares a atravessarem para o
mundo além deste, finalmente prontos a fazer a viagem. Passam por nós
numa torrente, não nos veem. Só anseiam pelo próprio repouso. Espero,
numa esperança vã, avistar Bessie Timmons e Mae Sutter entre eles, mas
não. Terão chegado às Invernias, como Pippa também chegará em breve. É
um combate que fica para outro dia.
– Dama Esperança!
Viro-me e vejo Nell Hawkins a acenar-me da margem como num sonho.
Está como me recordo das minhas visões, uma rapariga pequenina e feliz.
Sinto o remorso a picar-me. Terei as mãos manchadas para todo o sempre
com o sangue de Nell Hawkins. Terei feito a coisa acertada? Terei de o
fazer a outras?
– Tenho muita pena – digo eu.
– Não se pode enjaular as coisas – diz ela. – Adeus, Dama Esperança. –
Com isto, ela entra no rio, submerge e sai do outro lado, começa a caminhar
rumo ao céu cor de laranja até eu deixar de a ver de todo.
O quarto do meu pai está escuro como o túmulo quando finalmente regresso
a casa. Está a dormir agitado em lençóis ensopados de suor. É a primeira
vez que vou usar a magia desde que a vinculei. Rezo para saber fazer
melhor uso dela. Da primeira vez tentei curá-lo, mas acabei por aceitar que
não funciona assim. Não posso usar a magia para controlar ninguém. Não
lhe posso devolver a integridade. Só posso orientá-lo. Ponho a mão sobre o
coração dele.
– Encontra a tua coragem, meu pai. Encontra a tua vontade de lutar.
Ainda lá está. Isso te prometo.
A respiração faz-se mais pausadamente. A testa desanuvia-se. Creio que
até vi um esboço de sorriso. Talvez seja da luz. Talvez seja o poder dos
reinos a laborar por meio de mim. Ou talvez seja uma mescla de espírito e
desejo, amor e esperança, uma alquimia que cada um de nós possui e pode
exercer, se primeiro soubermos onde procurar sem ter receio.
QUARENTA E NOVE
É o meu último dia em Londres antes de voltar à Spence. A avó aceitou que
o meu pai fosse recuperar para um sanatório. Amanhã, vai ela para o campo
descansar também. A casa está um rodopio de criados a taparem a mobília
com lençóis. Fazem-se malas. Pagam-se ordenados. Londres está a
esvaziar-se nas casas mais na moda, até à nova temporada em abril.
Esta noite vamos jantar uma última vez com Simon e família mas,
primeiro, tenho duas visitas a fazer.
Ele fica admirado por me ver, quando lhe entro no quarto pela portinha
atrás da cortina que ele uma vez me mostrou, e tiro o capuz da cabeça com
dedos ousados. Fica muito direito, como uma criança que aguarda castigo
ou um beijo de perdão. O que eu trouxe não é bem uma coisa nem outra. É
a minha própria solução de compromisso.
– Não se esqueceu – diz ele.
– Não me esqueci.
– Gemma... menina Doyle, eu...
Três dedos enluvados bastam para o fazer emudecer.
– Vou ser breve. Há muito que fazer. Dava-me jeito a sua ajuda, se estiver
disposto a oferecê-la livremente e sem obrigações para com terceiros. Não
pode servir a nossa amizade e os Rakshana em simultâneo.
O sorriso dele apanha-me desprevenida. Nasce nos ramos macios dos
lábios dele, um pássaro ferido sem saber onde pousar. Depois os olhos
negros enchem-se de lágrimas que ele tenta dissipar a piscar os olhos numa
concentração desesperada.
– Parece... – Kartik pigarreia. – Parece-me necessário salientar que eu já
não tenho interesse para os Rakshana. Por conseguinte, não tenho nada a
oferecer à sua causa, ter um paladino assim caído em desgraça.
– Pois vai ter de servir, parece-me a mim. Somos mesmo um bando de
marginais.
Os olhos desanuviam-se. A voz ganha força. Ele faz que sim com a
cabeça para ninguém em particular.
– Parece que afinal o Kartik mudou o seu destino – digo eu.
– A menos que seja a minha sina mudá-lo assim – diz ele, a sorrir.
– Pois sim – digo eu, e puxo o capuz para a cabeça outra vez. Chego à
porta quase ilesa, mas ele não consegue deixar de perguntar uma última
coisa.
– Obediência à Ordem... é a única fidelidade que a Gemma me pede?
Porque é que esta pergunta simples tem o poder de me deixar sem
fôlego?
– Sim – digo num sussurro, sem me virar. – Mais nada.
Num ruge-ruge de veludos e sedas, passo pela porta e deixo o aroma a
zimbro, o silêncio e a sombra de um sussurro: Por agora...