Você está na página 1de 79

DAVID MEANS

Sinistros com fogo


Contos

Tradução José Rubens Siqueira

COMPANHIA DAS LETRAS


Copyright C) 2000 by David Means

Título original
Assorted fire events

Capa
Rita da Costa Aguiar

Foto de capa
Stock Pilotos

Preparação
Denise Pessoa

Revisão
Carmen S. da Costa
Isabel Jorge Cury

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção;


não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Means, David, 1961-


Sinistros com fogo : contos / David Means ; tradução José Rubens Siqueira. — São Paulo :
Companhia das Letras, 2006.

Título original: Assorted fire events


ISBN 85-359-0832-3
1. Contos norte-americanos I. Título.
06-2991 CBD-813

Índice para catálogo sistemático:


I. Contos Literatura norte-americana 813

[2006]
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002— São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Da Contracapa:

Saudado na imprensa com termos como “impecável” e “cristalino” e logo premiado pelo Los
Angeles Times como melhor livro do ano, Sinistros com fogo marca a maioridade de um autor cuja
técnica e sensibilidade renovam o conto contemporâneo. Na esteira de Raymond Carver, as
histórias de David Means — do terror de “O que eles fizeram” e da vingança surda de “A reação” à
beleza extrema de “O caçador de gestos” — abrem talhos e dúvidas na fronteira tênue entre a
narrativa seca e a hipótese angustiada, entre a suposta banalidade do cotidiano e o acidente
melodramático que a interrompe. A matéria parece clamar por sensacionalismo, mas os narradores
de Means preferem sondar, supor, refletir. Transitando por pesadelos, reminiscências e ilusões dos
habitantes das cidadezinhas idílicas à beira do rio Hudson e a meia hora de Nova York, Means
produz um retrato dolorido de um modo de vida que só deixa ver sua beleza nos momentos de
máxima contradição — como num incêndio.

Tradução de José Rubens Siqueira


Das orelhas do livro:

A circunstância inicial pode ser mínima — um gesto, uma visão, um ato distraído ou intempestivo
que escaparia a qualquer um, inclusive aos protagonistas. Mas o norte-americano David Means,
comparado pela imprensa a grandes nomes como Raymond Carver e Saul Bellow, não precisa de
ensejo maior para pôr a vida do avesso. Colando-se à pele de seus personagens ou distanciando-se
para dar a justa medida de suas esperanças e subterfúgios, Means inventou para si uma prosa única,
que vai ajustando o foco diante do leitor até atingir a máxima clareza de visão — muitas vezes à luz
de algum incêndio, real ou metafórico.

Para tanto, porém, não é preciso ser incendiário. Os contos de Sinistros com fogo precisam apenas
seguir o rastro deixado pelas ambições frustradas de seus personagens — gente da cidade que
inventou de procurar a paz do campo a meia hora de Nova York, forçada inesperadamente a um
encontro quase sempre letal com a realidade, encarnada ora num bando de adolescentes bêbados,
ora numa falcatrua imobiliária. O resto — a catástrofe — vem por si só.

Os assuntos — desmoronamentos, ex-combatentes do Vietnã, piromaníacos, atropelamentos de


carro ou de trem — bem parecem provir das páginas metropolitanas de um jornal qualquer. Mas
Means não nutre gosto pela miséria alheia, nem permite que seu leitor o faça. Como seu mestre
confesso, Anton Tchekhov, o contista norte-americano sabe unir precisão e proximidade; exercendo
esse dom difícil, Means acompanha seus personagens nos momentos mais dilacerantes, e na mesma
medida se afirma como um dos principais nomes do conto contemporâneo.

David Means nasceu em Michigan e estudou em Ohio e Nova York. Depois da estréia com A quick
kiss of redemption (1991), o autor passou a publicar seus contos em revistas como Harper's, The
New Yorker e The Paris Review, para então reuni-los em Sinistros com fogo (2000), que recebeu o
Los Angeles Times Book Prize de 2001, e The secret goldfish (2005). Means vive com sua família
em Nyack, Nova York, e ensina literatura no Vassar College.
Sumário

Incidente na ferrovia, agosto de 1995

Coito

O que eles fizeram

Nênia do Urso Adormecido

A reação

A garra

O que eu espero

A interrupção

A condição de viúva

Tahorah

O caçador de gestos

Sinistros com fogo

O lenhador
Para Genève
Incidente na ferrovia, agosto de 1995

O declive onde ele sentou para descansar fazia parte do leito da ferrovia, aberto com a ajuda de
explosivos nos depósitos de xisto e calcário cortados pelo rio Hudson, que ficava logo abaixo do
morro e não dava para ver, escondido pela arborização, quintais, casas. O vento passou pelo mato,
soprou os dois lados dos trilhos, morreu, depois voltou insinuando algas marinhas — o mar a
quilômetros se abria para o grande porto de Nova York, o mar atraído pela gravidade da lua Hudson
acima, aquele profundo e manso estuário que chegava como um toque de sal no ar contra o rosto
dele, preso entre os joelhos; ele sentia o próprio sal nos lábios, porque estava andando havia
quilômetros e a noite estava quente. Era um homem elegante de camisa de colarinho branca para
dentro da calça jeans passada; era o tipo de homem que mandava lavar a seco o jeans; estava
acostumado a retirar de dentro de sacos plásticos longos e brilhantes as roupas, processadas
quimicamente, dobradas, identificadas e desinfetadas. Oito quilômetros atrás, seu BMW azul-escuro
parado na estrada com o motor ligado — com gasolina suficiente para ele continuar funcionando
—, estacionado na lateral do acostamento a fim de dar a impressão de que era um daqueles muitos
carros, em noite de verão, gente da cidade que deu uma parada para recuperar alguma lembrança
perdida ou sentir o gostinho do ar da floresta mais uma vez antes de voltar para casa, para o abraço
do concreto. Ele era o tipo de homem que deixava o carro funcionando só pelas aparências, para
ajudar a embalar uma estranha imaginária num ilusório senso de estabilidade: estava tudo bem com
o mundo, ela pensaria, passando, indo cuidar de suas coisas; quando ele saiu do carro foi com ela na
cabeça — alguma mulher estranha passando a caminho de casa —, por isso deixou o carro ligado.

Apesar da dor nos pés por causa da estranha caminhada ao longo de quase cinco quilômetros de
leito de ferrovia, não pôde deixar de notar; curvado como estava, o esplendor desse lugar no mundo,
abaixo do vasto céu aberto, a escuridão quebrada apenas pela passagem de um carro na rodovia
mais acima; durante a caminhada, a noite, que descera devagar, ao longo de várias horas,
endurecera; seus olhos tinham se acostumado com o escuro e o guiaram com segurança até esse
lugar. Esticou as pernas e começou a tirar os sapatos, empurrando o calcanhar com a sola do outro
sapato. (Ele era o tipo de homem que desamarrava os sapatos primeiro, tirava um, depois o outro,
sentado no banquinho-escada ou na beira da cama; era também o tipo de homem que usava uma
calçadeira de marfim para calçá-los toda manhã, adorava a sensação da meia deslizando com
firmeza contra a superfície lisa e fria, o uso de um instrumento para a tarefa simples.) Mas não era
nem hora nem lugar para rituais costumeiros; tinha vindo para trair a si mesmo, para se livrar dessas
coisas. Deixou-os nos arbustos, um solitário par de italianos finos, feitos à mão, um pé aninhado
junto ao outro amorosamente, frente com frente. Andou devagar.

Na curva havia luz suficiente — difusa pelo céu brumoso — para divisar os cacos de garrafas
quebradas (se estivesse olhando para baixo em vez de olhar para a frente). O estilhaço em que
pisou, de uma garrafa de uísque de malte envelhecido, era serrilhado como os Alpes franceses, a
base redonda da garrafa formando um suporte perfeito para a saliência, o único caco de vidro em
metros, bem acomodadinho contra o trilho; entrou direto em seu calcanhar, cortou firme a almofada
dura, abriu um corte que o fez cair de lado Era um daqueles cortes que vão se abrindo devagar para
as possibilidades da dor, crescendo a partir de um pequeno ponto, como um cone; era o tipo de corte
que dava a assustadora sensação de ser ilimitado na dor que podia acabar produzindo. Ficou sentado
ali e pensou um momento naquilo, sem elaborar uma estratégia, mas tentando invocar alguma
imagem do manual da Cruz Vermelha que um dia havia memorizado. (Era uma exigência de suas
aulas de iatismo.) Aprendera a fazer uma bóia com um jeans molhado; aprendera a estancar o
sangramento de um membro amputado usando um cinto de couro como torniquete; sabia afastar a
língua e desobstruir a garganta antes de começar um boca-a-boca; mas ali, na solidão absoluta de
sua dor, não tinha certeza do que fazer a não ser tentar lembrar um desenho de algum tipo, um
daqueles diagramas esquemáticos, mas úteis, de algum agudo sofrimento humano, como uma
fratura exposta, o osso apenas um conjunto de linhas saindo de dentro de alguma coxa imaginária,
duas linhas curvas como num esboço de Picasso; ficou ali sentado e deixou sangrar um momento,
esperando lavar o tétano. Parecia que sua vida se tornara uma série de episódios assim, longos
silêncios inquiridores enquanto tentava lembrar alguma imagem perdida, um tênue diagrama de
uma circunstância e a maneira própria de resolver, remendar, enfaixar os ferimentos até poder obter
ajuda mais profissional.

No mato daquele cafundó suburbano, agachado no trilho de aço sem fim (forjado em Bethlehem,
Pensilvânia, e instalado durante o século XIX, usado no transporte de calcário das minas às margens
do Hudson para a construção dos grandes alicerces dos grandes arranha-céus), ele tirou a camisa e
tateou a costura buscando o ponto onde poderia ceder. Para rasgar teve de usar os dentes.

Queria uma única razão incisiva para caminhar sozinho seminu, a dor no calcanhar esquerdo
queimando perna acima, a bandagem improvisada farfalhando. Uma explicação: talvez a recente
perda catastrófica de sua esposa, Margaret, o carro dela soltando vapor e fumaça de cabeça para
baixo na pista errada da avenida Saw Mill River, os destroços retorcidos traídos pelo guardrail
batido, a pavimentação antiquada seguindo uma trilha feita originalmente pelos indígenas, o gosto
do cabelo vermelho dela em sua boca quando se abraçaram pela última vez. Um negócio de ações
estragado — culpa dele. A culpa atribuída a uma falha do computador. O rosto firme de McKinnen
atrás dos óculos com aro de metal, dedos tamborilando no tampo de vidro da mesa, oferecendo um
bom pacote. A partida de sua esposa certa manhã; as palavras de explicação em trêmula caligrafia
de esferográfica preta; o nome do traidor o de um velho amigo, Samson, cujo aperto de mão ainda
dormia na palma de sua luva de golfe no andar de cima. Histórias melhores poderiam ser contadas
se Margaret tivesse morrido devagar, um longo declínio com suas células brancas a ceder, os lábios
tremendo ao formular as últimas palavras. Não era razão suficiente para suas atitudes. Ele tinha
certeza disso. A casa grande deles ficava ao lado do rio, estimulante de tão grande quando se
mudaram, agora só casa demais; ele talvez tenha andado a tarde inteira pela varanda e olhado a água
lisa até que, por volta das três, um grupo de jardineiros chegou, sacudindo o silêncio poético com
seus foles e cortadores de grama ruidosos, empurrando-o para o escritório do terceiro andar, onde,
com o rosto nas mãos, implorou pela própria salvação — salvação não da dor, mas de alguma coisa
que não conseguia especificar, talvez apenas coisas que não havia feito. Talvez passos que não havia
dado. Talvez aceitasse inteiramente que ela não era nada mais que vazio agora; ela era saias
penduradas no armário, o cheiro de seu perfume nos lençóis não lavados empilhados na lavanderia,
receitas rasgadas de revistas empilhadas na mesa dela no quartinho.

Mais uma brisa leve soprou. Ele avançava devagar pelos trilhos, deixando para trás o carimbo de
uma pegada de sangue em cada dormente. Adiante, os trilhos faziam uma curva escuridão adentro; à
sua esquerda e acima, as vigas mestras e calhas das paredes recortadas na pedra.

Para os sujeitos que o avistaram uns quatrocentos metros adiante, ele saiu como um animal ferido
do ar brumoso, nada mais que uma sombra nos trilhos mancando de um jeito estranho que não
parecia humano. Eram quatro, eles também sem camisa, alimentando uma fogueira de gravetos que
mal produzia chamas, só muita fumaça esbranquiçada em fitas no ar pesado. Mesmo à luz da
fogueira dava para ver que eram todos magrinhos, daquele jeito carente, nodosos de músculos e de
sombras cinza-azuladas de várias tatuagens. O que o avistou tinha acabado de sorver um longo
trago de uma garrafa de cerveja e estava retomando o fôlego.

Porra, nossa, disse ele baixinho, afastando uma longa mecha de cabelo preto do rosto.
Que porra é essa?, disse outro, separando um pouco as pernas como se quisesse se estabilizar contra
a chegada de uma força. As botas grossas trituraram o cascalho. Ele apertou as mãos abertas contra
os lados da cintura. Um dos outros parou ao lado, passando as mãos sobre a superfície lisa do couro
cabeludo raspado num movimento repetido, meio agitação, meio hábito; cada um deles trepidando
agitado. Entenderam de imediato que fosse quem fosse que vinha vindo, envolto como estava no
escuro, vinha enfraquecido e com algum tipo de problema, de fato, porque estava sem camisa e
oscilava de um lado para outro, talvez bêbado ou cansado ou as duas coisas, e pronto para ser
dominado, para ser seduzido por qualquer coisa que sentissem vontade de fazer; ele era tudo que a
noite lhes tinha oferecido, como em resposta a uma prece, algo para romper o tédio de fumar
maconha e falar merda e tudo o mais, e eles todos sabiam, ao vê-lo, e estavam prontos.

O ponto onde se reuniam, bem na frente de onde os trilhos abriam um buraco escuro no barranco
que subia, estava juncado de velhos restos da ferrovia, trilhos e dormentes, grumos de piche e
garrafas quebradas; era um abrigo marginal apartado e protegido de tudo, simplesmente
abandonado e desnecessário como eles próprios se sentiam e, por causa disso, eram; um punhado de
lixo e carne jogada fora, as tatuagens feitas por eles mesmos marcando a carne jovem. Eram jovens,
bêbados, ávidos. O que eles viram surgir era um homem amolecido pela meia-idade. Em seu
manquejar havia um ligeiro resíduo de dignidade e formalismo, no jeito como levantava os pés
como se ainda estivessem calçados e carregassem o peso dos sapatos caros; ou talvez tudo isso não
tenha sido notado até que, chegando a eles, o homem abriu a boca e falou, disse um alô suave, as
vogais se abrindo, a copa da boca sobre as palavras como uma concha valiosa… talvez não tenham
notado nada ao se posicionarem em torno dele em silêncio, sem uma palavra, o sujeito com a
cabeça lisa por trás, enquanto o sujeito de botas grossas dava um passo à frente e os outros se
moviam em uníssono, um de cada lado, como se ele fosse fazer alguma tentativa de escapar. (Essa
era a fantasia de tensão que a postura deles produzia, queria produzir, ansiava produzir.)

Foi depois, nas reconstituições oníricas daqueles momentos, que ele se deu conta de que o silêncio
em que eles trabalhavam revelava tudo sobre seus corpos jovens: músculos ágeis de proezas, carne
marcada, ferida, queimada com pequenos olhos-de-boi duros dos tocos de cigarro do papai; os foda-
se de corpos retorcidos em chaves e golpes de luta livre, presos com joelhos nas costas e no esterno;
tendões travados e ossos partidos de juntas muito flexíveis que sugavam o ar de suas bocas de
catorze anos nos recessos do estacionamento de trailers cravado no cu dos cafundós perto do
depósito de lixo tóxico da cidade. Esses eram os garotos que cantavam e caçoavam e que ele havia
temido antes, ao andar pela cidade. Agora, estava contente de topar com almas que surgiam do
escuro em torno de uma patética fogueira. Havia por trás de tudo isso, enquanto eles armavam um
silêncio que traía também o chute que viria primeiro do homem da frente, apenas o som mortiço dos
insetos, um som tão prolongado que se apagou de sua cabeça e foi preenchido com uma forma nova
e mais aguda de silêncio. O chute acertou seu estômago. Ele caiu. Devagar, com graça, os dois
rapazes das laterais vieram até ele e gentilmente o ajudaram a levantar, sentindo de imediato sua
falta de resistência, fazendo notar isso ao dobrar seus braços nas costas, o que produziu um arco-íris
de dor nas omoplatas. A função deles era preencher o espancamento com o máximo de dignidade
possível, sustentar o balé da cena, fazer aquilo valer a pena, porra — produzir uma suspensão em
que seu amigo, com as longas mechas de cabelo preto e oleoso balançando agora na frente da
cabeça inclinada, pudesse trabalhar; e ele se curvou ligeiramente, bem na frente do homem sem
camisa, deixando o breve período de graça inchar entre eles — depois se curvou mais e mais perto
até sua testa encostar bem na testa do estranho, tocando ali a umidade do suor, enquanto
pronunciava para ele, no sussurro abafado de um confessor, de um padre passando penitência: A
gente vai te encher de porrada, sabe, então é melhor não reclamar… interrompendo as palavras e
oferecendo um chute na virilha tão forte que fez o homem se dobrar em dois, e na hora exata os
outros o soltaram, de forma que ele caiu no chão, o pé ensangüentado raspando no trilho, o de
cabeça lisa tirou a carteira do bolso de trás do homem e abriu, curvou-se para a luz, folheou com o
dedo o bolinho de notas que tirou fora, jogou a carteira de couro preto no mato, onde ela caiu
aberta, derramando no escuro documentos, fotografias, cartões de crédito e de banco que, quando
introduzidos no caixa eletrônico e acompanhados de HHMH — iniciais dele e de sua mulher —,
fariam ejetar belas pilhas de notas, tantas quantas alguém pudesse querer ou precisar.

Perfurado na encosta anos antes (durante o período já mencionado de entusiasmo na construção da


ferrovia) por meio de uma série de explosões que soltaram a rocha o suficiente para permitir que
homens com picaretas e pás trabalhassem em cima das pilhas, o túnel era uma coisa rústica, um
buraco aberto a gotejar água de fonte, com um cheiro molhado de enxofre; era uma ferida na terra e
o tipo de lugar onde os caras gostavam de fumar maconha e até dormir nas noites de verão, deitados
uns contra os outros, junto do lado úmido para o caso de um possível trem de carga resolver passar,
sacolejando e guinchando. Eram trens feios, bestiais, que vomitavam fumaça de diesel e se
arrastavam como se tivessem vergonha dos trilhos decrépitos, pegando a passagem de nível ao
longo do rio Hudson a passo de lesma; vagões de carga sujos e amassados, os selos e emblemas do
proprietário marcados pelo tempo, raspados, rabiscados com spray — a composição completa
passava algumas vezes por dia, e mesmo que os meninos estivessem na cidade, bebendo ou
morgando na pizzaria, dava para ouvir o grito do trem na curva perto da passagem de nível.

Foi para esse túnel que levaram o homem, arrastando-o, seus tornozelos batendo nos dormentes, a
boca amordaçada com a bandagem cheia de sangue. Podia-se desejar que fosse diferente, desejar
que esses rapazes, em sua alegria, resolvessem soltá-lo aos elementos, jogá-lo no mato, nos talos
inclinados do bambu silvestre, para apodrecer ali ou rastejar de volta à segurança; mas não. A
verdade é que eles sabiam tão bem como todo mundo o que estavam fazendo; havia ali um esquema
bem encaixado acima de tudo; as estrelas se alinhavam de determinado jeito, e tudo estava saindo
como planejado; se existe um Deus e, depois, se o homem se salvasse e pensasse na profunda
questão de sua experiência, poderia atribuí-la (com a orientação do reverendo Simpson) a um estado
pessoal de deus absconditus, abandonado em certo sentido como Cristo na cruz; se não existe Deus,
então esse golpe de má sorte começou quando ele largou o BMW e começou a andar com grande
determinação, e sem determinação, para o lado inferior da estrada 9W, que normalmente o levava
nas noites de sexta-feira até a cidade, por cima da ponte, pela West Side e saindo pela rua 72, até um
estacionamento coberto feito de concreto moldado fresco, a batida da porta do carro, borracha
contra borracha, soando particularmente doce ao ecoar naqueles espaços fechados. No Lincoln
Center, ele podia estacionar no subsolo e subir para as salas de concerto sem atravessar o espaço ao
ar livre: esta noite era a Sinfonia nº 3 de Brahms, com aquele segundo tema misterioso, o andante,
que não reaparece no lugar esperado da repetição; e o terceiro movimento, de que ele gostava
especialmente, poco allegretto, tão redondo e macio no começo que o faria, se tivesse ido até lá,
lembrar-se dos ombros de sua mulher, de um momento, vinte anos antes, em que faziam amor num
quartinho em Nantucket, numa noite de outono, o noroeste de inverno soprando com uma coerência
constante que parecia eliminar o mundo, de forma que só existia a umidade macia debaixo dele e os
ombros dela. Claro, ao ouvir de sua poltrona na terceira fila à direita, com os olhos fechados, ele
iria, se tivesse ido à cidade, idealizar e sentimentalizar aquela primeira noite de amor com a mulher
que dois anos depois iria lhe dar a mão como sua amada esposa. A verdade daquela noite era
diferente, claro: beijos estranhos, dentes batendo, vergonha por certas deformações. Ele não ouviu o
Brahms, e portanto não teve essa lembrança em particular. (E talvez ao descer do carro, bater e
trancar a porta, o firme crepitar das solas de couro na alameda do desvio, ele soubesse que estava
evitando essa lembrança; talvez sim, talvez não.) Fosse qual fosse sua escolha na questão, Deus ou
não-Deus, os meninos sentiram a força do acaso do lado deles; tinham de cumprir um dever,
sabendo como sabiam que aquele homem que estavam arrastando, imóvel, tinha algum pequeno
traço de dignidade enterrado nos gritos abafados, inexpressivos, que estava dando. No cinema, os
olhos nessa situação espreitam em torno, cintilam de medo, buscam o céu para se apoiar em alguma
coisa — mas os olhos dele pairaram no escuro devagar e sem determinação, como se estivessem
soltos; na boca do túnel, ao sentir o frio ar como de caverna, ele ficou quieto.
Reentraria no que se chama de mundo semicurvado, com os joelhos sangrando e o céu lá em cima
mostrando os primeiros indícios da manhã; silenciada toda a vida insetífera no mato seco, haveria
apenas atrás dele e descendo a encosta o polvorento zumbir das esteiras de transporte puxando
pedras no restinho do turno da noite. Em sua dor, a produção de certos opiáceos naturais teria sido
detonada, substâncias químicas que sustentam o corpo em momento de exigência máxima e
permitem marchas forçadas de um tipo ou outro — grandes massas de desalojados levantando tanta
poeira que dá para ver de um jato passando, as regiões malfadadas de Ruanda ou de outro lugar —
aqueles abusos em medida tão extrema que os guardamos como testemunhos de uma crua
habilidade de sobreviver fisicamente a limites: mal se mantendo em pé e mal engatinhando, ele se
dirige sem pensar para um cruzamento onde, por sorte e por coincidência, um velho bondoso em um
Oldsmobile Cutlass acabará parando, a suspender a calça parda que cai e enfiar dentro dela a fralda
da camisa branca de colarinho (trata-se do reverendo Simpson, da igreja de Alabaster Salvation, de
Haverstraw, a caminho de preparar-se para seus deveres matinais), para saudar esse vagabundo
cambaleante. Talvez por algum movimento no porte do homem (mais uma vez há certo controle, até
mesmo nesse mau estado), talvez por causa do vinco na calça jeans ou apenas o jeito do cabelo,
que, embora salpicado de sujeira e poeira do túnel, tinha ainda o que era claramente um corte caro,
um verniz que levava cuidado e tempo para adquirir; fosse o que fosse — talvez apenas um
bondoso senso de dever de algum tipo, ou uma obrigação moral enraizada em suas crenças
religiosas, que exigiam que Simpson parasse para qualquer um que estivesse vagando esfarrapado,
fraco, com o sol nascendo sobre o rio e sobre os ombros dele, os trilhos lambidos de orvalho, a
estrada mergulhando em um vazio de bruma —, ele parou, descartando polidamente os me desculpe
do homem, que, ao ouvi-lo e depois vê-lo, parecia tomado de dor quando caiu de joelhos com as
palmas das mãos sujas voltadas para cima e chorou, saindo naquele momento de sua dificuldade
apenas física para algo estupidamente emocional. Era o tipo de cena com a qual Simpson se sentia
apto a lidar; então segurou aquela ovelha desgarrada pelos ombros nus, ajudou-o a pôr-se de pé e
batalhar com suas próprias forças até o sacolejante e mal regulado Olds. Nesse carro fera, rodando
pela margem do rio, seria de esperar uma conversa em que as histórias fossem lentamente relatadas
por lábios amortecidos — não tanto para o bom reverendo, que tinha pouco a dizer e só precisava
concordar gentil com a cabeça, colocar a palma da grande mão aberta na perna daquele homem
trêmulo, cujos joelhos estavam cobertos com um cobertor xadrez de poliéster normalmente usado
para piqueniques de beira de estrada com sua mulher (porque o bom reverendo era um daqueles
últimos firmes adeptos das glórias do piquenique de beira de estrada, sendo velho o bastante para
lembrar-se dos dias dos primeiros automóveis, quando a realidade do transporte rápido do
Fordmobile ainda se confundia de alguma forma com as aventuras de um dia inteiro a cavalo e de
carroça) — propiciadas pelo alívio do peso, e pelo júbilo e a misericórdia para com a dor que ele
havia atravessado: a morte da esposa, problemas financeiros, qualquer mal que pudesse ser
interpretado como causa de seu ato, uma razão para caminhar sozinho por trilhos de ferrovia.

Últimos pensamentos não vêm fácil, últimos pensamentos subindo acima do choque, da dor, do
rugido do sangue nos tímpanos, cores explodindo por dentro das pálpebras, o gotejar da água que
escorre pela parede do túnel, os passos arrastados dos rapazes indo embora, deixando-o para trás,
encostado à parede. O mais alto dos quatro rapazes na frente, metros adiante dos outros. Antes de ir,
curvara-se com os lábios bem junto da boca do velho fodido para ver se saía algum ar; não sentiu
nada, e para ter certeza deu um chute mole com a ponta de seu Doc Martens — solas de algum tipo
de borracha reforçada com aço e que eram RESISTENTES A ÓLEO GRAXA ÁCIDO GASOLINA
ÁLCALIS e agüentavam as mais ásperas abrasões e condições de trabalho, fabricadas na Inglaterra,
berço da Revolução Industrial. O chute fez o barulho duro, sólido, de castanholas estalando entre os
dedos de uma dançarina de flamenco quando os ossos do queixo do homem — um queixo fino e
digno, por sinal — estalaram como ossinhos da sorte. Ele liderava o bando, uns metros à frente,
porque tinha acabado com o babaca e tinha direito a essa posição. Até lá longe, no rio, subiam
névoas das águas da maré, e ali estava ele, reentrando no mundo, tremendo e arrumando a camiseta
antes de acender um cigarro, à espera de que os outros o alcançassem. Os outros sujeitos saíram do
túnel com passos leves, meio apoiados uns nos outros, se trombando e brincando. Como toque final,
tinham voltado e colocado o corpo deitado em cima do trilho — um arremate, uma coda, um grande
desfecho que se destacaria como um de seus maiores gestos até então, porque ele viria com certeza,
aquela fera trepidante de trem que sempre mastigava os últimos vestígios de silêncio que a noite
tinha a oferecer, despertando pássaros ao longo dos trilhos, pássaros que guinchavam e piavam
estupidamente a sua súbita e intensa fome; aquele trem, uma velha máquina da Central de Nova
York repintada com as cores da Conrail, estaria puxando uma composição de uns cinqüenta e tantos
vagões sitiados; eles estariam na porra da lanchonete bebendo café fraco e comendo ovos quando o
trem dobrasse aquela curva do rio; estariam com os cotovelos fincados no tampo de fórmica da
mesa, e o de cabeça lisa diria Puta que pariu, é uma porra de uma viagem, cara. Puta que pariu, é
isso aí, estão ouvindo o que eu estou ouvindo, cara?, enquanto os outros sacudiriam a cabeça e se
permitiriam uns poucos minutos de silêncio — nem mesmo um nervoso foda-se resmungado —,
uma meditativa contemplação profunda e espiritual, cheia de peso, ou sem peso de moral, de Deus
ou não-Deus, com suas estrelas alinhadas ou desalinhadas, dependendo de como se vê a coisa. O
corpo foi encontrado no trilho a pouco menos de um quilômetro pelo maquinista que o viu primeiro
no círculo de luz de sua lanterna de cabeça e começou de imediato o procedimento de emergência
para deter mil toneladas de carga, freio de ar e freio de fricção utilizados juntos, virando-se para não
ver o impacto — na verdade, ele não veria de jeito nenhum, escondido pela frente de sua
locomotiva, mas virou o rosto por respeito ao que ia morrer. O corpo se alojou debaixo do engate,
ou partes dele pelo menos: claramente dividido, as pernas ficaram para trás no túnel.

No momento em que o trem chegou lá ele já não estava mais, era ou um crânio vazio de atividade
química e elétrica, só isso, ou uma alma subindo através do calcário e do xisto para o céu do
alvorecer: ele estava morto. Quando morreu, pouco depois do chute final, mergulhando fundo no
choque que precede o encerramento de sistemas, o trem ainda estava em Nova Jersey, arfando e
sacudindo os fundos do aeroporto de Newark, tão perto das pistas a ponto de permitir que o
maquinista tivesse uma boa visão do vôo TWA de Los Angeles rugindo céu noturno adentro, aquele
moroso intercâmbio de luzes de alerta passando de uma asa para outra marcando a envergadura das
asas. Uma empatia que o maquinista sentia com tudo quanto é máquina se assanhou dentro dele
enquanto olhava, corpo inclinado, esticando o pescoço para espiar pela estreita janela da cabine.
Um rastro de calor, deformando as estrelas, jorrou dos motores, desenhando uma curva na luz
violeta das refinarias e subúrbios quando os trilhos faziam uma curva e o trem abria caminho pelos
brejos; só depois, talvez em alguma rememoração dessa noite, do corpo, de outro vagabundo
bêbado eliminado por seu trem — era o terceiro incidente assim que tinha em dois anos —, só
depois ele iria lembrar também de ter visto o avião decolando; não que ele tivesse feito uma ligação
entre os dois eventos naquela noite, mas sentiu de alguma forma que havia ligação entre o avião e a
morte do homem cujo corpo ficou encravado debaixo do que um dia foi um limpa-trilhos e era
agora apenas uma grelha de metal com fendas quadradas destinada a amainar o impacto se o trem
viesse a entrar em contato com alguma coisa. Porque a verdade é que esse maquinista era uma boa
alma que ainda abraçava um romântico amor por trens e pelo que costumavam significar —
estendendo seus vastos trilhos por este grande continente —, com uma sensibilidade particular para
as exigências do trabalho. Ele tinha a capacidade de tomar a frequência cada vez maior de corpos
caídos na linha por uma espécie de preceito filosófico: o mundo está falhando, rodando para alguma
coisa ruim e má, afastando-se do que um dia foi firme e sólido e, evidentemente, unido com ferro,
madeira e pedra britada — límpidos, decentes direitos de passagem horários raramente
desobedecidos. O peso e a carga toda da morte caíram sobre os ombros do maquinista porque ele
não sabia que o homem já estava morto uns bons vinte e cinco minutos antes de a locomotiva cortar
o corpo pelo meio; é claro que ele ativara os procedimentos de parar o trem, acionara os freios,
transmitira uma mensagem de rádio para a Central com a informação, usando o telefone celular
recentemente instalado para discar para a polícia de Haverstraw, e assim por diante, mas nada
aliviou o peso da morte, que ele levou consigo durante várias semanas não como uma dor
debilitante, ou um sentimento de culpa, mas apenas como uma espécie de sentimento ruim, uma
idéia perturbadora, de que de alguma forma, por algum milagre ou graça, ele devia ter previsto o
corpo no túnel, percebido por qualquer pequeno sinal — talvez a decolagem do avião — que um
homem estaria no túnel e ter, assim, salvado uma vida. Na luz do fim da tarde, ao tomar seu café na
mesa da cozinha e se preparar para o turno que tinha pela frente, ele pensou no homem cujo corpo
teve de ser removido com ferramentas de debaixo da cabine por policiais principiantes cujos olhos
— vidrados e arregalados — traíam o choque diante da visão, um torso que mal parecia uma figura
humana; ao fazer uma triangulação espiritual com aqueles rostos, iluminados por luzes de arco e
fachos de lanternas, de seu lugar na gasta poltrona Naugahyde da cabine (ele se recusou a descer
dali, se recusou a participar da remoção do corpo), ele entendeu e sentiu o dano que a sua máquina
fera havia feito, deixando uma mancha de sangue e vísceras. E lá, certa manhã à mesa da cozinha,
nessa casa perto do rio atrás da pedreira, de onde dava para ir a pé até o local desse último desastre
com sua mulher no outro quarto cantando para o bebê e, lá fora, depois de um barranco de
margaridas e amoreiras, à calma metálica do Hudson —, lá estava ele sentado, tentando firmemente
não ouvir toda aquela música feita agora e antes por sua máquina e as vidas vivendo em torno dele,
e o Brahms que ele nunca ouvira antes, mas que agora de alguma forma ouvia suavemente, aquele
andante enfim reaparecendo outra vez, mas agora como um coral solene. A noite caía mansamente
sobre o vale do Hudson. O outono se aproximava. O ar estava fresco e claro. Seu filho dormia. Sua
mulher saiu de jeans e camiseta, deu-lhe um beijinho na testa e ali manteve os lábios, sabia no que
ele estava pensando porque ele só pensava naquilo havia duas semanas já. O peso daquela morte.
Mas era hora de trabalhar, dizia o beijo dela. Suavemente, ele retribuiu o beijo. Vestiu a jaqueta, foi
dar uma última olhada no bebê, passou o polegar nas pálpebras da criança. Subiu a escadinha de
concreto até a caminhonete e sentiu o peso aliviar. A noite caía docemente entre as árvores. Havia
cheiro de água, terra, céu. Uma barcaça descansava no rio, à espera de pedra, na rua os meninos
davam voltas em suas bicicletas. Era um bom trabalho, mesmo que as coisas não estivessem
seguindo como deviam. Um trabalho muito bom.
Coito

Isso acontece numa tarde de quarta-feira, 10 de julho, em um dia mais fresco que o normal de um
verão longo, seco e quente no litoral leste, durante o coito de Bob Sampson e Ellen Davidson-
Simms, que estão deitados juntos na luz que parece ondular com o sobe-e-desce das cortinas, que
durante aqueles primeiros momentos (antes da penetração) subiram e desceram diversas vezes,
dando forma a uma frente de ar frio canadense, fria e seca, que traria alívio para as duas longas
semanas de calor recorde. A casa em que nossos dois amantes se encontravam — como dizem — é
cheia de luz, explode de luz, limpa, branca, nem grande, nem pequena, mas de certa forma
grandiosa, ligada como está à propriedade maior de que um dia fez parte; é a chamada casa de
hóspedes, mas é maior que as casas lá de cima do morro, afastada do rio, e agora que cresceram as
cercas vivas, as roseiras, trepadeiras nas treliças podres, ela fica isolada. A parte da penetração —
dele nela — e o sobe-e-desce da brisa no corpo dele — ele está por cima — fazem-no sentir as
nádegas arenosas como pedra, firmes e duras, eternas, retendo algum frescor que a terra exige, mas
há aquela linha do bronzeado que lhe dá a sensação — ao menos uma vaga sensação — de ser um
homem de dois lados, um cálido, outro frio, escondido por Speedos e cueca samba-canção e tênis.
Mas isso é outra história, porque no segundo ou terceiro movimento (é um movimento ou uma
onda, uma ação restrita a certas latitudes?) as cortinas sobem de novo, incham, dobram-se, a cabeça
dele se volta ligeiramente para olhar, de olhos quase fechados, como dobras brancas de luz, espaço
e ar; cortinas que sua esposa fez para a casa velha, a primeira que possuíram em comum,
estendendo as longas peças de algodão na sala de estar para cortar no tamanho — voltando o rosto
para Ellen, queixo toca queixo um momento, um hummmm saindo da garganta dela, a base do
pescoço dela, ele sente, vibrando —, de muito, muito longe, o gemido brando de uma buzina de
barco, um puxão, arrastando a barcaça rio acima para as pedreiras de calcário de Haverstraw, dois
alertas de algum tipo, ele escuta…

… trazem-lhe à mente, sem nenhuma razão, a morte de Tom — seu irmão no norte de Michigan que
virou uma canoa ao longo do Two Hearted; um rio ruim de remar, uma porção de armadilhas
naquela primavera, água gelada, os galhos pretos gelados o seguraram embaixo da água — foi a
esse grande custo que Bob Sampson conquistou a profundidade de seus olhos; Ellen viu isso, que
emprestava aos olhos dele uma qualidade muito atraente. Haviam se encontrado daquele jeito
involuntário que se vê em filmes ruins, ou mesmo em alguns filmes bons, onde o destino de fato
pena para fazer com que duas almas se esbarrem fisicamente — ou é o que devemos pensar, ao
menos, sabendo muito bem que — é sobretudo a sorte e nada mais, o que mais poderia explicar a
qualidade dos olhos de Bob ter custo tão alto? Isso nunca se vê em filmes, o custo da grande beleza;
Ellen entendeu assim que viu que encontrou os olhos dele, olho no olho; quem não entenderia? Bob
tem olhos grandes. Têm aquela qualidade profunda de piscina; pairam sobre você o tempo certo e
depois desviam; ele não encara, mas demora um tempinho em cada olhar, ou pelo menos demorou,
parado lá, virando para pedir um cappuccino duplo com canela extra — um homem que gosta de
canela, ela pensou; ela estava usando a saia verde-limão pregueada, justa na coxa; era dona de uma
loja de roupas e conhecia todo mundo na cidade, mas por uma razão ou outra não conhecia Bob,
que estava transferindo seu trabalho para casa, ou arrumando um escritório doméstico, seja lá o
nome que se dê a isso; ela depois lembrou da mulher dele, que conhecia pelo primeiro nome, Cindy,
uma mulher alta e esbelta que ia sempre lá e preferia vestidos compridos, pretos e um pouco
soltos… vamos deixá-la fora disso; o arco dele dentro de Ellen, aquele barco, aquela buzina de
barco, o volume, o volume do queixo dela — luz rosada e branca, frescor, mas mesmo assim um
fino buço de suor a se formar pouco acima da linha do lábio superior dele;
há uma tristeza relutante no jeito como ele contém o movimento seguinte, como chamar aquilo?
Não que ele estivesse pensando nisso, mas talvez o pensamento tomasse forma mesmo assim — que
era um defender-se da morte, essa pausa para evitar o gozo, para reter a ejaculação sem revelar que
era isso que era aquela pausa, a mão dela afundando na parte de trás do cabelo dele, cortado em
camadas, preto pontilhado de grisalho — talvez ele nem soubesse disso, não permitiria a desculpa
de algum tipo de controle nesse momento; ele enxugou o suor com a língua.
o que foi
nada
certeza
é
só descansando
é

a buzina de novo mais longe no rio mais perto de Haverstraw ou apenas o som de um trem que
atravessa o rio fazendo uma daquelas manobras desesperadas — o que era aquilo, um quilômetro e
meio lá adiante, dois talvez? —, a água fresca vidrada e lambida de prata; olhos abertos; Ellen, seis
anos mais nova, ainda firme em torno do queixo, mas não de pele clara, os olhos dela castanhos-
nogueira e pequenos, perto dos dele, talvez perto demais, porque ele começou com as ondas de
novo para afastá-la, para fazê-la afastar-se, para fazê-la fechar aqueles olhos brancos e rosados,
aquela coisa branco-rosada atrás das pálpebras; de novo o vento, agora pelos lados, um cutucão do
joelho dele contra a parte interna da perna dela, a coisa toda apontando… esse som de gemido para
dentro que ambos fizeram uma vez, duas, o branco subindo, e a casa tentando remover, livrar-se,
livrar-se de alguma coisa. (Teve aquela vez no inverno passado em que, ao voltar da cidade, debaixo
de neve pesada, subindo pela Saw Mill, ele viu gamos pastando ao lado da estrada — não era o que
ele viu que importava, era a monotonia da viagem que propiciou aquilo; dirigia tão devagar, os
enormes flocos de neve soprados pelo vento borrando a luz dos faróis a tal ponto que teve de parar
para ver onde estava, e então, pela primeira vez em anos, sem nenhuma razão, no silêncio trancado
do carro pensou em Tom, ele afundando, a canoa virando, a frieza dura da água forçando-o a
respirar curto.) O que ele tinha visto? Seu irmão afundar? Não. Nada disso. Apenas a canoa
vermelha enganchada em uma árvore, os galhos pretos duros acima da água, sombreados, e abaixo
também se podiam ver os galhos; ele mergulhou depois de um momento para encontrar — nada —,
era apenas dura escuridão; a correnteza o levou para o fundo, lá embaixo era muito mais duro —
depois voltou à superfície e chamou Tom Tom Tom, imaginou se talvez o irmão não estaria fazendo
uma brincadeira, porque ele era dado a brincadeiras. (Havia caído e atravessado o gelo uma vez,
pescando, matando o tempo, desbastando a beira do buraco — mas isso é outra história, apenas
outra história.) De qualquer jeito, não conseguia lembrar nada do rosto de Tom, de verdade, não
mais do que conseguia do rosto de Ellen de verdade quando estava com os olhos fechados e inchava
dentro dela. (Os olhos, os lábios desmanchavam.) Tinham parado algumas vezes para cruzar o rio a
vau e deslocar alguns galhos maiores — vezes demais, na verdade —, e já havia borrachudos àquela
hora, tão cedo, já enxameando; tinham trazido redes para o rosto só para isso, mas haviam deixado
no acampamento; era disso que se lembrava, do cheiro da fogueira, da fria dureza da noite, de fazer
a barba no lago Superior de manhã com a água estupidamente gelada, gelada de matar, que deixava
os tornozelos azuis antes que se entrasse nela. O jeito como Tom se jogou de cabeça.
A logística do romance era simples, simples demais, ele pensava algumas vezes, mas não muitas;
ambos estavam livres, na verdade, todos os dias; para confirmar a ausência dela e a distância, para
ter certeza de que ela realmente estava na cidade, ele telefonava para Cindy talvez no meio da
manhã, a voz dela rachada e remota no viva-voz. (Entre palavras, durante as pausas, a máquina
substituía a voz dela por estática; era voz ou estática, e nada entre uma coisa e outra, o que a tornava
ainda mais inumana.) Não que esses telefonemas não o enchessem de culpa — a culpa estava lá,
manifestava-se estranhamente na oração. Ele frequentava a igreja First Congregational, rio abaixo,
perto da cidade, em Nova Jersey — perto, de carro, pela 9W, que abraçava o rio — sozinho, porque
Cindy achava chato e ele não estava — como dizem — a fim de perder sua alma, pela qual
realmente rezava; rezava, ele, pela sujeira em que se achava, o profundo vazio sugador de sangue
em que havia caído, se é nisso que você acredita nos dias de hoje — como dizem —, mas era
verdade; rezava mesmo pela própria alma e o fazia com tanto cuidado e com um empenho em
tornar cada confissão verdadeira, franca, aberta a qualquer força que estivesse se acumulando e
decidindo os destinos das almas no finzinho do século XX — rosa por dentro das pálpebras e
umidade e aquele espaço esvaziado no fim do pau, uma caverna se abrindo abaixo dele por um
segundo e que torna a se fechar; levara algum tempo para chegar ao ponto de tirarem a roupa um na
frente do outro, na verdade meses, de conversas e encontros para tomar café; ela prendia o cabelo,
expondo a testa lisa e as finas sobrancelhas desbastadas, havia — ele rezava — um encontro de
almas em questão que não se podia evitar e que havia levado à nudez final, mas isso é outra história,
o verdadeiro encontro de almas — o vento sobe de novo, e ele sente sobre as costas a mão fresca e o
cheiro de grama recém-cortada, de trepadeira, de bambu silvestre perto do ancoradouro, um leve
sinal de fumaça de escapamento, e ela dizendo baixinho no ouvido dele, os lábios dela bem ali,
contra o lóbulo, dizendo alguma tênue frase, sua própria versão de falar em línguas, a criptografia
das canções secretas dela oh, oh, oooh,

ele decerto tirava vantagem dela, entendeu isso de cara — o potencial para o sexo, para uma ligação
de algum tipo, para um encontro físico; parte disso foi o jeito como ela se vestiu para o segundo
encontro deles, em vez da saia verde-limão, agora esfarrapada, naquele dia no fim da primavera,
jeans com buracos nos joelhos e Keds; quando os dois acabaram sentados juntos e ela dobrou as
pernas, ele viu de relance a covinha em seus joelhos e só de vislumbrar aquela maciez extrapolou
para o resto do corpo dela. Sem dúvida é possível fazer isso, e ele fez.

Irrompe o apito do meio-dia, e dá para ouvi-lo se espalhando sobre o marulhar do Hudson, a maré
vindo do mar, e o recorte fundo do rio lambendo o Atlântico, o Atlântico lambendo por baixo da
ponte agora, o som pairando do outro lado, se encrespando sobre as montanhas que se vêem quando
se está à janela do quarto deles, janelas até o chão abertas para um pequeno telhado betumado. O
som volta, e ele sente o peso da montanha — ainda flexionando, trabalhando com as mãos lá
embaixo para sentir a si mesmo e a ela em volta dele, a mecânica escorregadia, bem lubrificada da
coisa — com aquele som se abrindo e expandindo; nos cafundós daquele rio — era um rio escuro
como madeira — eles dormiam no acampamento e se levantavam com o sol e depois de ele se
barbear iam de carro trinta quilômetros rio acima levando o barco; nisso ele encontrou um lugar
para colocar a culpa anos depois, no ato fútil de colocar a canoa em cima do teto da perua do papai
e da mamãe para ir rio acima só para poderem descer remando pelo rio (era o único acampamento
do parque estadual naquela parte da península — uma merdinha de pedaço de terra empoeirada,
churrasqueiras lavadas com creolina cercadas de garrafas de Bud desbotadas, a privada era um
buraco no chão para cagar), quando já estavam na boca do rio. O rio terminava no lago Superior
com uma aguda determinação; não se abria, nem se expandia em um delta, mas enfiava-se limpo e
claro na frieza do lago. O plano era descer de canoa e depois pescar no fim da tarde, quando as
larvas de insetos eclodiam.

O que isso
tem a ver
com o rosado levantar branco dos quadris dela, a barriga dela contra a dele por um momento olhos
abertos um para o outro
impulso narrativo
leva para
alguma resolução:
no morro ninguém se importava
com resolução, mas aqui embaixo perto do rio a música era clássica, e o pessoal se importava
e até rezava por isso,
sozinho
à beira da estrada
debaixo da neve pesada,
rezando.

Bob se lembra de ter ouvido o tiro, o tiro que matara o trabalhador da rede pública que cometeu
suicídio no morro em junho; os dois tinham ouvido, deitados nus — o som de um tiro ecoando das
paliçadas, dos morros do cemitério passando pelo hospital; lápide escrita depois: ELE MORREU
VIOLENTAMENTE MAS DESCANSA EM PAZ — em estado de coito na cama de casal dele;
talvez fosse isso, a razão de ele pensar naquilo com aquele termo técnico, porque ele estava deitado
lá na cama de casal ouvindo algum sujeito se matar, percebendo apenas aquele ligeiro sopro de som
quando naquele dia o sol estava trazendo aqueles frescos aromas de hortelã (tinha chovido na noite
anterior) lá de baixo, de perto do ancoradouro. Agora, em julho, ele está conscientemente
controlando o ritmo, pensando como antes, ao tirarem a roupa de baixo, um puxando a do outro
com os dedos, a voz dela soara particularmente solitária; ele agora começava a perceber que ela era,
de verdade, uma pessoa solitária que precisava dele; uma cliente havia entrado para fazer uma troca,
devolvera o vestido estampado verde-escuro e branco que ela recomendara pessoalmente, e, bem,
não sei, ela dissera, quer dizer, Bob, foi como se eu tivesse tomado a coisa pessoalmente, nem sei,
ela entrando, batendo os pés daquele jeito e dizendo que não estava certo — quer dizer não estava
certo, foi só isso que ela disse, e talvez eu esteja levando isso muito a sério, claro que estou, mas
mesmo assim, será que estou errada de sentir desse jeito?, disse ela. Estou errada, Bob? Como se ele
soubesse: como se qualquer um de nós soubesse; e há aquela ativa sensação agora de que ele devia
se perder naquilo, para aquilo, aceitá-la pelo que ela era, mas ele se vê de repente agudamente
consciente das dobras no lençol — que ele alisou, prendeu bem esticado, cheirou e experimentou,
talvez pedir para a faxineira trocar (hoje é quarta-feira, não é?); houve um momento em Barcelona
com Cindy em que ele teve essa exata sensação — a de que alguém já tinha dormido nos lençóis —,
e quando desceu para falar com o homem da portaria descobriu que era verdade. Estavam no quarto
errado. Uma cama usada, talvez arrumada por algum costume de arrumação. Os dedos dele voltam
para ela, trabalhando ali no final das costas em busca de alguma coisa…
O gosto do buço salgado, o som de outro barco — o segundo em uma cadeia de três barcaças que
passa diante da montanha Hook, dobrando a curva para as minas —, uma buzina de barco poderia
levá-lo de volta àquele momento, quando retiraram seu irmão Tom da água e ele viu logo na débil
recusa de luz nos olhos dele que havia partido, perdido. Mas luz rosada/branca, o som de seu
coração batendo, outra vez a brisa, esta ligeiramente marcada de betume — doce betume de uma
obra em um telhado alguns quarteirões adiante, homens com baldes pesados selando os altos de
uma pizzaria —, os movimentos rápidos dele, ela levantando o quadril, o dar e receber, e aquele
olhar rosado/branco: o ar fresco; o vazio no final, o suave arrulhar dela, nem mesmo um arrulhar
mas aquele som de sorriso que se pode ouvir de um pássaro no ninho, dormindo talvez, e eles vão
desistir de tudo por esse momento, os dois, a loja de roupas e o negócio dele, se abrindo, e a última
pulsação do branco liso, parada branca, a abertura rosada, a forma ascendente do ar nas cortinas e o
calor betumado — como dizem —, o calor da coisa toda se unindo; ele vai ficar aliviado; ele vai
levantar a alma do irmão morto em seus braços; a mecha úmida do cabelo na testa horas depois
quando os policiais montados do estado, usando longas varas, o retiraram, pegaram-no por um
braço, foi só o que pegaram, simplesmente engancharam por baixo do braço e o arrancaram porque
dava para vê-lo bem ali, curvado e torto, oscilando suavemente na corrente da água.

Reparação tem pouco a ver com esta história, aquele som de buzina de barco que se introduziu nas
ondas de movimento e toque que compuseram uma tarde de amor. Por um minuto ele cambaleou
pela margem desamparado, evidentemente sem saber onde estava a não ser que era em algum ponto
do Two Hearted (depois, ouvindo Mozart, ele entendeu a sensação: era a sensação de dois temas
que soam simultâneos, um fugindo do outro ao mesmo tempo implacável e com graça, purificados
de todo erro, as notas só recebendo, recebendo e dando, era assim que era na luz frouxa, nos galhos
escuros, sem saber onde, onde ele estava); cambaleando; chorando; o fedor úmido de mato em
decomposição do chão da floresta e o vasto vazio que a península Superior apresenta, aqueles ermos
pétreos coçando as costas do maior corpo de água doce do mundo, um lago fundo a ponto de
engolir cargueiros inteiros, barcos tão compridos que os marinheiros iam de um extremo a outro de
bicicleta. Ele estava naquele não saber da trepada e no perder-se nela, nas ondas brancas de frio — a
ponto de virem, irem e se perderem —, e estava só lembrando do custo; ela também, talvez, de
olhos fechados com força, mas os dele abertos — ele os abrira, estava bem acordado, fechava os
olhos para a fresca umidade branca e rosada da própria carne; havia o cheiro de betume também,
mas isso não basta para fazer uma história de ou sobre a maneira como ele seguiu quase dois
quilômetros pela estrada, a lama congelada, e fez sinal para uma picape cor de ferrugem dirigida por
um velho que usava aparelho auditivo, para o qual teve de gritar que queria ir para a loja, para onde
houvesse um telefone; o louco alívio de carne contra carne de desonra e culpa e um vestígio de
esperança; porque para ele havia esperança em gozar, depois de controlar, e o movimento da pelve
dela também e a sutil oração que havia feito aquela noite na Saw Mill, é só isso, só e tudo isso, e
depois na luz o suor fresco, de olhos muito abertos, ela veria o custo daquilo nos olhos dele, ele
achava — a morte de seu irmão naquele dia de primavera, os olhos atemorizados dos policiais,
investigando, procurando alguma falha na história, o peso da história já grande, já se fragmentando
na boca dele ao procurar as palavras certas; e ele sentado sozinho no banco enquanto os homens de
botas até o quadril soltavam Tom; aquela mão pétrea acenando para sempre, gravada a fogo
permanentemente nas pálpebras, o último momento tanto quanto a primeira luz rosada/branca e
branca e algum roxo mais escuro quando ele fecha os olhos bem apertados, vindo, e ela dizendo
está vindo, vou gozar, baixinho, quase nenhum ar pelos lábios aquela lembrança produziu, a
confusão que é, que nos deixou tortos e dilacerados procurando encontrar esses momentos, os
flancos vermelho-escuros de uma canoa na margem, o vento puro do norte chiando pelas coníferas,
a estupidez de ir de um lugar a outro só por ir quando não é preciso —

é mais tarde, depois, e ainda nus eles conversam baixinho um com o outro. Ela está pedindo
detalhes, quer saber de onde vem aquele ar distante, os longos silêncios que não perturbam, que só
estão ali, uma parte dele, e ele tentando explicar, apoiado no cotovelo, tentando olhar para fora,
lembrando aquela vez que aquele sujeito se matou na colina; ele ouviu o tiro também, como outros
ouviram, porque tinha vindo do chão e viajado por cima da água, um relato — o jornal chamou
assim — rebatendo nas inconspícuas cristas pelo rio de ida e volta — e custou um esforço afastar
essa lembrança, começar a descascá-la pelas bordas, encontrar um jeito de deixá-la ir embora.
O que eles fizeram

O que eles fizeram foi cobrir o córrego com longas placas de concreto reforçado, do tipo que tem
barras de aço por dentro. Eles talvez comecem com uma malha de aço, depois despejem o concreto,
fazendo um sanduíche de cimento e aço. Você talvez chame aquilo mais de ribeirão que de córrego,
ou em alguns lugares, dependendo da região, de riacho, embora ao longo de gerações tenha cavado
uma profunda e estreita garganta naquela terra, uma espécie de pequeno cânion com encostas
íngremes. Cobriram as placas de cimento com uns metros de preenchimento, isto e aquilo, cacos de
cimento, entulho, tocos e detritos da escavação dos alicerces para a casa do terreno, que ficava a uns
cinqüenta metros na frente do córrego. Depois cobriram o entulho e os detritos com quinze
centímetros de terra arenosa escavada perto do lago Michigan, solo ruim, o tipo de terra que
acabava com os trabalhadores rurais migrantes na região da Dust Bowl. Em cima disso, colocaram
uns dez centímetros de terra boa, material rico e fedido que custa uma nota, e aí, por cima,
colocaram a grama, desenrolada do jeito que se desenrola um rolo de papel higiênico; depois
molharam muito e deixaram que crescesse e se espalhasse enquanto a casa, uma vez terminada, era
limpa e arrumada para as primeiras visitas de proprietários em potencial. Os Howard, os primeiros,
compraram na hora. Seu instinto gregário, ele explicou ao apertar a mão de Ingersol, o sujeito da
imobiliária. Marjorie Howard apoiou a mão aberta na barriga volumosa e pensou Duas semanas
mais, mas não disse nada. Umas pedras, ou seixos, estavam empilhadas perto da beira do caminho
de entrada e ali foram deixadas como lembrete de alguma coisa, talvez do fato de que um dia aquilo
havia sido um pequeno vale natural com choupos e algumas bétulas brancas e um ligeiro declive até
a margem, o barranco para o córrego ou riacho ou seja o que for que está agora escondido debaixo
de placas de concreto — que já estão cedendo ligeiramente, mas de modo ainda não perceptível
para o inspetor de construções, que não faz idéia de que o regato está ali porque é uma daquelas
coisas longe dos olhos longe do coração, melhor não dizer nada para não preocupar os futuros
proprietários, que poderiam se preocupar, se fosse da natureza deles, com um riacho debaixo do
concreto reforçado. Então, tudo o que se vê da cozinha, grande, com uma pequena ilha de trabalho
no centro com as bocas do fogão e uma janela grande, é um declive até o extremo do quintal onde
uma cerca alta de cedro está sendo instalada, um declive suave com um leve afundamento no centro
— mas nenhum sinal, nem o mais ínfimo, de qualquer tipo de riacho correndo por ali. No
julgamento, o paisagista — ou seja lá o que ele for — chamou de regato, querendo dizer uma coisa
pequena e procurando diminuir a estupidez do que haviam feito. O promotor chamou de rio,
comparou ao rio Estige, ou ao Flegetonte, o rio de sangue fervente, sem citar Dante nem nada, mas
apenas usando as palavras para confusão do júri, quatro homens brancos e três mulheres brancas,
três mulheres negras, dois homens hispânicos. Placas foram colocadas em cima do córrego, ou rio,
seja o que for, nos dois lotes adjacentes, e também algum material, solo ruim, húmus, grama em
rolos, muito irrigada até crescer e se espalhar, mas mantinha ainda aquela aparência ligeiramente
falsa que esse tipo de grama tem por anos e anos depois de desenrolada, nem um vestígio de ervas
daninhas, de tiririca ou pragas para dar uma textura natural. E o rio virava para a esquerda mais
adiante, para dentro de campos baldios e de uma área arborizada marcada para desenvolvimento em
breve, mas em suspenso por causa de uma recessão (sobretudo da indústria pesada), estacas com
finas fitas alaranjadas fluorescentes esvoaçando ao vento, como marcas de futuras “propriedades”,
becos sem saída e comunidades muradas uma vez que os choupos e bétulas brancas daquele setor
fossem pelados para dar lugar a enlameadas trilhas com marcas de pneu. O que eles fizeram foi
cobrir outro córrego em outro lugar do mesmo jeito, e ao fazê-lo notaram que as placas empenavam
ligeiramente para cima por alguma razão, a constrição do concreto ao secar sobre as hastes de aço; e
assim, para contrabalançar, penduraram com correntes curtas, por baixo do centro de cada placa,
pequenos baldes galvanizados de jardim, cheios de cimento, um balde por placa, o que permitia um
ligeiro curvamento para baixo até que o endurecimento — não a secagem, explicou um engenheiro
no tribunal, mas o assentamento, uma transformação química, moléculas se rearranjando e assim
por diante — nivelasse tudo. De forma que, quando o sujeito do salvamento desceu quatro metros,
passeando o foco de sua lanterna de mineiro por ali, viu uma coisa estranha, mal registrou mas viu,
uma série de baldes pendurados sumindo na escuridão acima do córrego até o valezinho virar
ligeiramente para o norte e desaparecer na sombra. O que eles podiam ter feito em vez disso, disse o
engenheiro, era desviar o córrego para o norte (é claro que custaria muito caro e traria como
conseqüência a imposição de uma passagem de nível pertencente à Conrail, ou à Penn Central),
processo que implica escavar uma vala, desviar o curso da água e permitir que ela corra para erodir
naturalmente um novo leito. O que eles podiam ter feito, disse outro sujeito, um arquiteto ambiental
que ficava vermelho como um pimentão quando se auto-intitulava assim, por causa da vergonha
que tinha de trombetear à própria posição com a autoridade de seu título — ou pelo menos foi o que
pareceu ao sr. Howard, que dos dois era o único capaz de se compor o suficiente para olhar para a
frente. A sra. Howard limpava o nariz com um lenço de papel em frangalhos, fungava, enxugava
lágrimas, soluçava, fazia o que tinha de fazer. Ela não ficou presente a todo o julgamento, evitou a
parte em que foram mostradas as fotos do corpo. Evitou as plantas do córrego e do terreno, os
mapas e diagramas, os cortes transversais das placas. Ela não suportou também a visão do quintal, o
buraco aberto, o cordão amarelo da polícia e os cones cor de laranja, e de vez em quando, brilhante
como um raio, a iluminação da equipe de notícias da televisão flutuando lá, o assunto final para a
edição das onze horas, até a CNN voltou dias depois para mais uma beliscadinha. O que podiam ter
feito era simplesmente deixar o córrego onde estava e pavimentar as encostas com um muro de
arrimo bonito de pedra cortada, porque, segundo um perito, o córrego, tributário do rio Kalamazoo,
era alimentado principalmente pelo escoamento da água da chuva de um campo de golfe local e da
floresta e, de qualquer forma, estava secando devagar. Em cerca de cem anos teria quase
desaparecido, disse o sujeito, não querendo contradizer o fato de que podia ser forte o suficiente
para erodir os cantos do suporte das placas e deslocá-los, ou algo assim, ninguém tinha certeza,
enfraquecendo aquilo a ponto de formar a falha. À falha, foi como eles chamaram. Não um buraco.
É uma porra de um buraco, disse o sr. Howard. Ninguém na defesa admitia que fora um daqueles
baldes puxando para baixo naquele ponto que havia aberto um buraco. O lado deles no caso se
baseava na erosão, nas forças naturais, num ato de Deus, Ninguém admitia que tinha pouco ou nada
a ver com forças naturais ou erosão. A não ser, silenciosamente, para si mesmo, Ralph Hightower, o
contramestre do local, que tivera a idéia do balde, sob grande pressão dos sujeitos da Lansing, que
financiavam o projeto, e de seu patrão, Rob, que estava forçando o término no prazo por causa das
visitas na primavera. De vez em quando, ele pensava nisso, tomava umas duas cervejas, fumava um
dos seus Red Owls e matutava sobre sua culpa do jeito que alguém matuta sobre um jogo de bola
muito ruim, em que perdeu alguma grana; ele não gostava nem um pouco de crianças, nem mesmo
de menininhas inocentes, mas ainda sentia uma ponta de culpa pelo fato de o cara do resgate ter
precisado descer lá e ver o corpo boiando quinze metros córrego abaixo daquele jeito e chapinhar na
escuridão cerrada naquela água assombrada para chegar até ela; ele havia vadeado rios antes
algumas vezes perseguindo salmão prateado e sabia como era escorregadio andar em cima de pedra
coberta de limo. Além de Ralph Hightower com sua cerveja, a culpa e a responsabilidade foram
distribuídas entre dez outras pessoas até virar uma coisa morna e aguada, como uma gota de leite
em um grande jarro de água — mal visível, uma ligeira bruma, se tanto. Toda a culpa real pesava
sobre Marjorie Howard, que viu sua filha desaparecer, sumir, engolida inteira pela grama macia,
que estava de um verde-azulado vivo sob um céu de primavera limpo, absolutamente brilhante.
Toda a grama de rolo explodia de satisfação fotossintética, embora ainda desse para dizer que era
grama de rolo pela gama de tons ligeiramente diferentes onde as bordas se encontravam, se fundiam
— isso depois de uns bons anos de crescimento com o sistema de aspersão a pleno vapor nas noites
de verão e as cuidadosas aplicações de adubo e herbicida que o sr. Howard fazia. (Ela havia lido,
poucos dias antes de sua filha desaparecer no quintal, que era o calor que fazia germinar as
sementes e essas coisas dormentes; não a luz, mas simplesmente o calor.) Ao olhar para fora, o
ponto que ela focara ficava além do portão de segurança Fisher-Price, que devia proteger os degraus
do deque. Ela viu Trudy descer os degraus, o andar oscilante semi-equilibrado dela, mal capaz de se
orientar na largura estranha dos degraus (construídos fora do padrão, o que era quase pior que
desrespeitar o padrão e fazê-los estreitos demais ou altos demais, estupidamente largos e curtos sem
nenhuma razão especial a não ser algum erro que o cara do deque cometeu, um garoto aprendiz de
deque, na verdade). Ela estava mais ou menos no meio da travessia do quintal, a meio caminho da
cerca de cedro, seguindo em linha reta para alguma coisa — real ou imaginária, quem pode saber?
— que via com a imaginação ou com o olhar real, alguns pássaros se banhando, talvez. O que eles
fizeram foi emoldurar as barras de reforço — em malha, ou apenas longas e retas — com retângulos
de madeira lá na floresta, ou no que havia sido a floresta e era agora apenas um terreno enlameado
cheio de sulcos onde, dentro de alguns meses, haveria outra casa. Molduras feitas, os caminhões
vinham e despejavam concreto dentro delas, o cimento endurecia, e aí traziam um guindaste grande
para levantar as placas por cima do regato ou córrego, ou seja lá o que for, que nessa época não era
mais a brilhante lâmina de água correndo rápido, mas estava cheia de limo, lodo e detritos da
escavação, mais parecia um corte a sangrar uma substância marrom. Os peixes que se conseguia
encontrar eram tão tontos e lerdos que mal se podiam considerar peixes. Içavam, controlando com
cordas, e jogavam em cima do córrego — talvez uns vinte no total, mais ou menos, dependendo do
tamanho de cada um. Depois passavam para o lote seguinte, com ou sem a aprovação do inspetor,
que na verdade nunca ia muito por ali. Depois as camadas de solo ruim, depois o húmus, depois os
rolos de grama, enquanto os outros caras faziam o teto e levantavam as laterais, e os caras dos
interiores estavam em ação instalando as placas de revestimento de gesso o mais depressa que
podiam, com as turmas do masseamento vindo logo atrás deles, depois os pintores a trabalhar ao
lado da turma do carpete, cujas máquinas de pregos espoucavam como loucas, e atrás deles, ou com
eles, seja o que for, os eletricistas instalando os acabamentos e o aquecimento central, e tudo isso
junto com as ordens do patrão, e os caras das janelas pré-fabricadas também, aquelas que estavam
sendo colocadas nas molduras pré-instaladas, de folhas duplas, fáceis de limpar e tal, tudo a fim de
aprontar para as visitas que os caras da imobiliária, que operavam em Detroit, haviam escalado. A
demanda já era bem grande por causa da companhia que estava montando um novo quartel-general
ali perto. Era um local bem remoto para um empreendimento desses, mas por causa dos impostos
baixos (como parque industrial) e das máquinas de fax e de toda a nova tecnologia, não importava
onde ficava o quartel-general, contanto que fosse perto de um daqueles aeroportos secundários e
tivesse um heliporto no telhado para as chegadas e partidas dos principais executivos. Moradia era
uma coisa urgentemente necessária para gente nova. A data das visitas na primavera devia-se à data
de inauguração da companhia, que era 1º de julho. O que o solo fez naquele dia foi abrir um bom
buraquinho, perfeitamente redondo, bem debaixo do peso da menina — que não era mais do que
quinze quilos, talvez menos, o suficiente, porém, para detonar as forças já em ação, mas isso não
importava, os fatos, a física não tem nada de mágica, como declarou um engenheiro, e se essa
tragédia não tivesse acontecido — palavras dele —, certamente o próprio rio teria vencido, erodido
os suportes, feito toda a placa cair durante um churrasco ao ar livre ou algo assim, um jogo inteiro
de vôlei ou badminton engolido em um grande bocado de terra. Presente num segundo, no seguinte,
ausente, foi como alguém, melhor não dizer quem, mas o mais provável é que tenha sido a CNN,
descreveu o que Marjorie Howard viu — ou sentiu, porque realmente a expressão parece um poema
metafórico ou talvez um preceito filosófico (escolha errada por parte dos construtores, não, escolha
não, nada a ver com escolha aí, ou talvez destino ou Deus, se tem alguma coisa a ver, um repórter
local chegou realmente a usar a expressão Obra de Deus, se é que isso é uma expressão). Mas era
uma descrição exata, porque estar ali parada na cozinha assim, ver a menina ir, olhar a menina
desaparecer e toda a sua própria incredulidade ao assistir àquilo, a momentânea perda de sanidade,
o esfregar dos olhos em total, fantástica incredulidade, tudo isso desabrocharia em grandes ondas e
nunca desapareceria por nada, de forma que naquele segundo sua filhinha presente e o segundo em
que ela se tornara ausente eram uma imensa ferida se abrindo que nunca se fecharia, ou talvez
terminaria seja a palavra. O que eles fizeram foi orientar as placas para baixo, o trabalho todo
realizado em uma manhã, porque o guindaste estava escalado para ser usado num projeto lá em
Plainwell, e depois pensaram enquanto almoçavam com suas marmitas pretas, pés para cima num
toco, olhando as placas, o rio ausente, desaparecido, o valezinho ausente, desaparecido, nada senão
placas de cimento ainda úmido misturadas a placas de lama — os baldes pendurados por baixo,
invisíveis —: a gente fez um bom trabalho hoje de manhã, nada mais, nada menos.
Nênia do Urso Adormecido

Esta nênia — se me perdoam o uso da palavra — começou no dia em que estávamos acampados no
Urso Adormecido e Rondo saiu muito louco e se perdeu. Nós piramos, acordamos umas dez, de
ressaca, piscando com a luz, Amy de calcinha na luz alaranjada da barraca, inclinada, vestindo o
jeans.

O Rondo sumiu, porra, só isso que ela disse.

O queeeê?, perguntou Ricky. Estávamos os três ali, dormindo feito pedra.

O babaca não voltou ontem de noite, ela disse, batendo do lado da cabeça umas duas vezes com a
mão aberta, como se quisesse tirar alguma coisa dali, encaixar um parafuso solto. Rondo era seu
namorado, e o pânico que havia na voz dela me deixou com um pouco de ciúme porque eu sentia
atração por ela, mesmo ele sendo o meu melhor amigo; nós jogávamos hóquei juntos na State,
dávamos socos um nas costas do outro, bebíamos, essa coisa toda, simulando um companheirismo
quando a verdade da ligação real entre nós estava envolta em mistério, ou talvez fosse simplesmente
física: éramos, os dois, malhados, no auge do nosso ser físico — nunca mais seríamos tão bonitos,
tão fortes, tão viris como naquele outono. Era o contrário com Sam — o objeto do meu lamento —,
que era desajeitado e fisicamente inapto, sujo e repulsivo, o cabelo comprido, ensebado, caindo
feito rabo de castor em cima do blusão de couro.

Naquela manhã pavorosa, eu tinha certeza de que íamos encontrar o corpo de Rondo na praia,
bêbado e fora do ar, rolando naquele movimento macio de vai-e-vem das ondas de três metros do
lago Michigan. Quem não é do Meio-Oeste acha que estou inventando a altura das ondas do lago
Michigan, do mesmo jeito que a idéia de grandes dunas de areia fina no meio do país parece ilusão,
como também talvez a idéia de amor entre homens que se consideram héteros, como eu.

Saí da barraca para a luz de um dia do começo do outono, coberto de grama e um monte de areia
branca, uns poucos turistas já espalhados pela passarela que serpenteia pela praia; era ilegal
acampar no parque, mas por alguma razão o vigilante não tinha detido a gente, ou talvez não nos
tivesse visto, muito embora a gente tivesse dormido — a julgar pelo sol — até bem tarde de manhã.
Se um cara armava uma barraca na área de acampamento, em geral tinha de levantar antes do nascer
do sol para se livrar dela. Lá estávamos nós, saindo da barraca alaranjada fluorescente grogues, de
ressaca, gritando o nome de Rondo. Amy estava bem adiante da gente, quase fora do nosso campo
de visão, em pânico. Naquele calor e naquela luz de cegar não pensei na casa de Sam em Burgick,
nem no corpo de Sam, que pelo que eu sabia tinha sido desenterrado por lá. Não pensei em Sam até
a gente já estar procurando há uma boa hora, percorrendo a praia toda, passando pela relíquia
carbonizada da nossa fogueira de madeira flutuante, uma coroa de latas de Bud brancas e vermelhas
amassadas; voltando por cima da imensa duna, pelas saliências onduladas, fendas e recantos. Nas
beiradas, as árvores cresciam de algum jeito e depois eram derrubadas pelos ventos fortes para
revelar imensos, maravilhosos novelos de raízes onde dava para se encolher e fumar um baseado,
sentir aquela maravilhosa gradação de calor e frio ao mesmo tempo, o gosto seco da poeira, a
umidade dos lábios. Não pensei em Sam até ficar sozinho na extremidade de um dos
estacionamentos, sentado em cima de uma cerca, o rosto enfiado nas mãos, desistindo de tudo —
sabia no fundo do meu coração que Rondo estava morto e acabado, talvez flutuando para Chicago,
o corpo dele fazendo a curva adiante de Gary, Indiana, as chaminés fumegantes da Steel U.S. Havia
um buraco vazio e profundo em meu coração, pensando no torso musculoso dele, no sorriso
inteligente, no jeito como ele sugava a cerveja com aqueles grandes goles ondulando na garganta.
Gosto de pensar que naquele momento aprendi minha primeira lição sobre a imbecilidade do
machismo; sobre a minha leveza, peso leve, coração leve e como os ideais mão-pesada de ser hétero
não combinavam comigo.

Vai ver que eu sempre soube.

Porque uma noite, anos atrás, voltei da casa de Sam para a minha a pé, sozinho, fui para o quarto e
chorei. É assim que eu gosto de me imaginar: um garotinho não formado — um loirinho de olhos
arregalados enfrentando pela primeira vez o corredor escuro da casa de Sam perto da fábrica, aquele
quarto pós-Natal dele com um único brinquedo. Eu não podia ter sido o caga-regras calejado que
entrou na casa e deu uma risada; que só foi embora para contar para os outros meninos que o cagão
do Sam não tinha nem um brinquedo para brincar, só um centro espacial Matt Mason, igual ao que
todo mundo tinha ganhado no ano anterior; que a casa dele era vazia, nua, e que quando a gente
descia a escada o velho dele, de volta da fábrica — com aquele cabelo de Elvis —, estava lá
grunhindo para uma lata de cerveja, os cotovelos na mesa, a cara vazia; que as primeiras palavras
dele foram E aí, cabeça de merda? e que Sam, o rosto vermelho-vivo de Vergonha, me levou para a
porta, me entregou o casaco e saiu junto comigo. Vamos embora daqui, ele disse. Filho-da-puta.

Eu chorei?

Ou fui para a escola no dia seguinte e contei para Ted Nelson, que estava sempre atrás de algum
motivo para gozar do Sam? Eu fiz para ele um esquema da casa — as partes carecas no centro de
cada degrau da escada principal, a rachadura comprida cheia de poeira no piso de madeira do
corredor? Entreguei para Nelson, como informação confidencial, os fatos da situação de Sam: pobre
de dar dó? Janelas quebradas, entrando vento, remendadas com papelão. Uma estalactite de limo
pendurada da torneira da banheira. Lâmpadas queimadas. Colchão no chão. Um único brinquedo
para ele, porra, logo depois do Natal.

Na cerca que dá para o estacionamento do Urso Adormecido pensei em Sam pela primeira vez em
quatro ou cinco anos, invoquei uma imagem daquele fim de tarde na casa dele, minha única visita,
ao entrar na cozinha e ver o pai dele, de olho baço, cansado, usando o uniforme verde-oliva da
fábrica de papel, um remendinho redondo do lado direito do peito com o nome dele em letras
bordadas, grandes, tortas: ED; gasto, cansado, entediado e triste com a vida, levando a lata de
cerveja aos lábios antes de dizer o que tinha de ser dito. À cozinha com suas altas, antiquadas
prateleiras que iam até o teto alto; o tampo do balcão salpicado com os restos e um desenho floral;
as paredes e a tampa do fogão com borrifos de gordura, entranhados de poeira; tudo isso iluminado
por um globo pontilhado de insetos. Na cerca do Urso Adormecido, me ocorreu — quase morrendo
de preocupação com o corpo de Rondo, o corpo dele ainda lá no lago — como a gente tinha saído
da casa, atravessado a rua, cortado entre dois prédios da fábrica até os trilhos da ferrovia e além
deles para o imenso poço de lama onde a Allied Paper despejava seus restos e onde nós todos (da
minha turma) gostávamos de brincar de ensandecidos jogos de covarde-e-desafio; era tudo muito
perigoso, o grande lago de restos de papel que formava uma crosta como gelo, e alguns dias a gente
podia até pisar um pouquinho, e depois se arriscava, tateando, um pouco mais adiante, vendo se
estava forte o bastante para agüentar.

Vai encarar?, foi mais ou menos tudo o que Sam disse, acho, ali de pé olhando o jeito que a luz
fraca morria no corrugado endurecido da lama. Atrás dele, em frente à linha de árvores
descabeladas lá longe, pássaros de inverno mergulhavam em cima da beira do poço. Ouviu-se a
buzina aguda e familiar de um trem a mais ou menos uns setecentos metros, vindo na nossa direção
com uma fileira de vagões; dava para ouvir os trancos agudos dos engates. A indústria estava
fervilhando por todo lado, mas na época a gente não sabia disso, não tinha interesse em saber disso
e naquele momento éramos só dois garotos desafiando-se silenciosos a fazer uma coisa
fantasticamente idiota.
A verdade era que naquele momento Sam não estava realmente me pedindo que fosse, mas estava
falando consigo mesmo, com suas pernas curvas e sua parca de náilon barato de forro laranja e
debrum de pele falsa em torno do capuz. Parecia mais que ele estava fazendo algum tipo de prece
pedindo a proteção divina, cambaleando com o vento frio da noite, que agitava seu cabelo enquanto
ele tocava a lama com a ponta do pé — era uma substância traiçoeira, nem papel, nem gelo, nem
nada, uma merda do outro mundo —, e antes de eu poder dizer: Claro, eu vou, e dar um passo, ele
já estava dando uns passinhos na ponta dos pés, testando a tensão da gosma, sentindo a resistência
debaixo da bota de lama ou do tênis PF Flyer ou seja lá o que for que estivesse usando aquele dia.
Ele foi adiante. Foi achando um caminho uns cinco ou seis metros à frente. Era o mais longe que eu
já tinha visto alguém conseguir avançar na casca daquela superfície. A gente jurava que chegava
direto a dezesseis metros de profundidade, cavado em ângulo. O trem estava passando atrás de nós,
dobrando e colorindo os trilhos, e quando Sam chegou até onde estava querendo ir, virou devagar,
ficou de frente para mim, mexeu os lábios, dizendo alguma coisa, nunca vou saber exatamente o
quê; mas os lábios dele se mexeram bastante, talvez umas cinco frases, por mim podia estar
recitando o que podia ser o discurso de Gettysburg, que todo mundo tinha de aprender de cor na
escola aquele ano. Esgotado e patético, com seu casaco barato e fino contra o vento que piorava,
Sam, o menino que só tinha um pobre brinquedo dele mesmo, ficou parado na lama, dizendo:

Oitenta e sete anos atrás nossos patriarcas criaram neste continente uma nova nação, concebida em
liberdade e dedicada à proposição de que todos os homens são criados iguais…

Então a lama cedeu e ele afundou até os joelhos — o trem atrás de mim ainda se arrastando, mas tão
devagar a ponto de o grito dele ser audível agora por cima do barulho — em um grosso caldo de
dioxina e polpa, de solventes e compostos químicos certeiros. Como Cristo que anda na água e
falha, as pernas fracas, miseráveis dele racharam a casca da polpa enquanto ele voltava na minha
direção, a coisa grudada e formando placas no jeans dele. Um tênis (ou bota) tinha sumido quando
ele finalmente saiu.

Ele se arrastou pelos trilhos, atravessou a rua, raspou a merda da perna com um pauzinho e me fez
jurar que eu nunca ia contar pra ninguém o que ele tinha feito.

Você não vai, vai?, ele ficava dizendo.

Não vou. Juro por Deus. Em cima de uma pilha de Bíblias. Pelo vestido de noiva da minha mãe.
Não vou contar pra ninguém. Fica entre nós dois.

Eu ia contar para todo mundo que eu conhecia. Era uma história boa demais para guardar comigo.
Eu ia transformar o mundo com a imagem de Sam, coitado, fodido, afundando na merda até o
joelho. Só que na minha versão da história, eu ia dizer que foi até a cintura, ou ia fazer ele nadar no
negócio.

Amy chamou meu nome, Means, e eu virei para ver que ela estava acenando freneticamente para
mim do outro lado do estacionamento.
Tinham encontrado Rondo, disse ela, passando um único dedo por dentro do jeans para aliviar
alguma tensão mal ajustada do cós da roupa de baixo; tentei não olhar. Estava esperando notícias de
vida ou morte de Rondo, enquanto, ao mesmo tempo, trazia à mente e à memória a imagem de Sam
na aula de banda logo depois que eu dei um tapão na boca da corneta dele; ele ficou com os olhos
perplexos e confusos de alguém que acabou de ser machucado, pouco antes que a dor se soltasse
num jorro imenso de agonia; os olhos dele mostravam, gosto de pensar agora, aquele longo e largo
salto de graça redentora. Ele perdeu dois dentes da frente quando a borda do bocal entrou para
dentro; toda aquela força transportada pela curva da boca, pelos tubos, se concentrando na borda de
metal do bocal tamanho 7C; quando meti a palma da mão aberta dentro da boca da corneta dele eu
sabia a física do que ia acontecer. Não posso negar agora como neguei na hora. Não sabia na época
de onde vinha a minha raiva, mas agora sei. À lição que tirei da minha atitude é clara: eu era
culpado de muitos pecados diante desse menino que, na banda, na sétima série, já tinha deixado
crescer o cabelo e usava blusão de couro roubado. Gosto de pensar que quebrei os dentes dele por
causa da minha vergonha; eu tinha contado para todo mundo sobre a casa dele, sobre o pai, e sobre
ele caindo na crosta de lodo (depois de andar em cima dela tipo Cristo durante uns bons cinco
segundos).

Ele está bem, disse ela. Estava tão bêbado que não sabia aonde ia é acabou no acampamento,
dormindo ao lado das latrinas.

Ela colocou a mão na minha coxa, como se quisesse avaliar meu equilíbrio sobre a cerca.

As dunas movediças de areia, aumentadas por mais areia, se juntavam umas às outras; os eternos
dias e noites das correntes do lago Michigan e o bater constante do vento rolando grão sobre grão;
as margens do Wisconsin cambaleando indiferentes sobre o lago como bêbados desajeitados,
recolhendo umidade do grande corpo de água e chovendo sobre a costa até do nada nascer alguma
coisa. O que os indígenas de Ottawa pensavam, ao andar por essa paisagem lunar, rezando para seu
amado Urso Adormecido caído de bruços na grande extensão da alteridade, encolhido contra o
lago? Ao longo de todo este lado do estado as praias estavam sendo tomadas pelas correntes; casas
caíam em câmera lenta nos noticiários, grupos operadores de máquinas de terraplanagem vestidos
de amarelo-vivo tentavam rearranjar o destino, e nós fumamos nossos cigarros, bebemos a última
cerveja e sentamos num pequeno nicho de grama para rir do nosso medo, da idéia de que tenhamos
ficado preocupados com a possibilidade de que Rondo, todo músculos e braços de hóquei, tivesse
morrido.

O dia acabava se mostrando brusco, como um dia de outono. A frente tinha oscilado por uma
gigantesca linha de bigornas. Do firmamento, do incessante soprar do vento, Sam veio a mim mais
uma vez: aquele dia na casa dele sozinho naquele quarto com o cheiro macio e felpudo de fogo de
fornalha. (Que que você quer fazer? Não sei); o caso da corneta. E é claro à morte dele — a morte
dele principalmente — pegando toda a escola de surpresa. Os arrogantes foda-se dele acabados para
sempre. Naquela época, ele não passava de um daqueles seres marginais, absorvido pela vasta maré
de mistério que nós fingíamos que não existia; lá mas não lá, o fantasma derrotado de um menino
que mal ia às aulas, mas que de algum jeito continuava, sem ser expulso nem preso. O que corria na
escola era que ele tinha se mudado da casa em Burdick havia muito tempo e se juntara com alguma
mulher e o filho dela.

Minha nênia começou bem ali, dando uma tragada no cigarro, soprando a fumaça no vento,
enquanto Rondo e Amy rolavam atrás de uma touceira de grama e Ricky apostava corrida com o
vento para cima e para baixo na praia para fazer o sangue voltar a correr em sua cabeça mirrada. Eu
me levantei e andei sozinho pela costa, deixei que eles terminassem fosse o que fosse que estavam
fazendo. Peguei carro e fui para casa com eles rindo no banco de trás; tínhamos transformado a
viagem no arremate de uma longa piada sem fim sobre nosso medo, e essa piada ia continuar e
continuar pelo resto de nossa vida; mas enquanto tudo isso acontecia, eu pensava naqueles últimos
frágeis momentos de uma vida, e em como talvez, se eu o tivesse abraçado quando ele saiu do poço
de lodo, tivesse dado a ele minha camisa para enxugar a polpa de papel das pernas, talvez as coisas
tivessem sido diferentes. Eu teria mudado o mundo; teria mudado tudo.

Você aí, babaca, Rondo veio por trás de mim e começou a cutucar minhas costas com a ponta do
indicador. Ele queria que eu virasse, agarrasse as canelas dele e o derrubasse no chão. Eu estava
sentado perto da água. As ondas, de uns bons três metros, estavam lambendo a ponta do meu All
Star.

Cale a boca, idiota.

Você aí.

Lembra aquele menino, aquele Sam não sei do quê, sabe, aquele cara que foi, você sabe, enterrado
aqui nos deslizamentos de areia?

Não, Rondo suspirou. Era um não final, terminal, o não tipo fim de conversa. Ele dizia aquele não e
passava os dedos pela mecha de cabelo que lhe caía nos olhos; era o não de beco sem saída do navio
de Colombo despencando da idéia de horizonte.

A força do bocal contra os dentes empurrou um pouco para trás os dois seja lá como chamam os da
frente, danificou a dentina, a gengiva e os nervos a ponto de acabar com eles. O esmalte ficou
cinzento ao longo das duas semanas seguintes, e depois, um mês depois, os dois caíram. Foi um
acidente, eu disse para o sr. Tear, nosso maestro da banda. A culpa foi colocada nos ombros de Sam.

Sabe, foi assim: ele desapareceu, como Rondo hoje de manhã, só que ele realmente foi embora
desta terra — levantou, abriu as asas angélicas e voou pelo grande lago até Wisconsin. Ele estava
com uns amigos (até aí eu sei), quatro outros coitados da nossa cidade, fumando maconha, fodendo,
fazendo o que eles fazem; estava com eles e saiu sozinho (ou foi o que eles disseram), e
desapareceu por uma semana. A gente não sabia disso. Se um de nós desaparecesse, teria saído no
jornal, mas para uns caras como o Sam sumir desta terra um pouquinho era passar despercebido.
(Ele foi de carona até Chicago para ver os Dead. O velho dele sumiu com ele na península Superior
para pescar.)

Mas eles acabaram de algum jeito entendendo as coisas e mandaram grupos de busca pelas dunas
para cutucar e examinar a areia. Homens com varas compridas furavam aqui e ali, trabalhando em
equipe, marcando quadrantes com estacas e barbante. Estavam pesquisando a maciez da carne, a
resistência dos corpos. Levou uma semana. Era muito chão para ser percorrido.

É assim que eu imagino a coisa, e gosto de pensar que isso é mais que apenas parte do meu lamento.
Que isso realmente aconteceu assim.

Era um sujeito chamado Mel, um trabalhador do departamento de recursos naturais do estado, um


sujeito de cara comprida, olhos tristes e um cigarro permanente nos lábios; um sujeito de olhos
tristes que morava em um dos trailers que o estado fornecia perto do acampamento do Urso
Adormecido; um homem satisfeito de estar sozinho com a areia e o soprar constante do vento nas
encostas. Ele estava examinando pela segunda vez um quadrante. Tinha suas próprias suspeitas
quanto à localização do corpo. Anos e anos como patrulheiro haviam lhe dado um sexto sentido
quanto ao jeito como a areia se deslocava; ele sentia as áreas que estavam prestes a ceder, os lugares
onde podiam ocorrer deslizamentos. Foi até o tal ponto e olhou para o firmamento antes de enfiar a
vara na areia. Havia quatro gaivotas marcando o céu escuro tarde da noite. Respirou fundo, fez uma
oração sem palavras, enfiou um pedaço da vara na areia, sentiu a resistência mole e entendeu na
mesma hora que tinha sido seu destino encontrar o corpo de um rapaz morto; entendeu que ia ficar à
parte quando o resto dos homens — os caras da forense e os peritos — viesse terminar o trabalho,
as pás soltando suspiros chiados enquanto ele fumava e observava mais um bando de gaivotas que
vinha comer os peixes mortos por causa da corrente de água quente da central elétrica que ficava
uns cento e cinqüenta quilômetros ao sul. Ele terminou de fumar, disse adeus a Mike, seu patrão, e
foi andando devagar pela trilha para os fundos do parque. (Podia ir de carro, mas preferia andar
sozinho pela trilha estreita e acidentada.) No caminho pensou em seu filho, que morava com a mãe
em Paw Paw, e no quanto temia por ele do mesmo jeito que tinha certeza de que algum pai, em
algum lugar, havia temido pela alma do seu pobre menino. Ele parou um momento, ouviu alguma
coisa no mato, uma andorinha ou um pardal, ou talvez alguns jovens aprontando, e naquele
momento fez uma oração para a alma do morto e curvou-se à sua maneira diante das grandes forças
da natureza que haviam produzido esse enorme amontoado de areia ao longo da luva sem dedos do
estado e que haviam de algum modo conspirado para encontrar um meio de matar um rapaz que
provavelmente não esperava de jeito nenhum morrer em um deslizamento de areia. O que é
fantástico neste momento, acho, é que nele Sam recebeu mais amor do que em toda a sua vida:
aquele amor imenso e profundo do pai pelo filho de que todos precisamos, um amor maior, que nem
eu nem seu pai horrível ou qualquer pessoa viva na Terra hoje jamais dera a ele.

Tenho de imaginar tudo isso e deixar assim enquanto Rondo, de volta às dunas, grita meu nome no
vento e diz que sou um babaca e me manda levantar a bunda da areia e fazer alguma coisa porque
temos de desmontar a barraca, arrumar as malas e voltar para casa de modo que ele possa estar lá
para o pontapé inicial jogo do Notre-Dame. Ele grita, a voz desfiada pelo vento e pelas ondas, e eu
simplesmente fico sentado ali e penso que vou ter de voltar aqui sozinho, dirigir de volta quatro
horas depois de deixar eles lá e encontrar o mesmo lugar para poder comungar com Sam, achar um
jeito de pedir desculpas. E vou, acho, vou voltar aqui e sentar e repassar a coisa toda: o momento
em que parei na porta do quarto dele — não a pessoa que eu sou agora, e não algum garoto sincero,
mas alguém ainda amortecido pela vasta desolação daquele quarto com a estação espacial Matt
Mason no meio, o estrado do colchão no canto, a membrana de papelão dobrada na janela marcando
o hálito de ar frio de inverno a pulsar naquela parte da cidade naquele dia particular.

De volta a este lugar, vou lamentar aqueles dois dentes da frente, que ele, é claro, nunca teve
condições de arrumar ou recolocar. Morreu sem eles, engolido inteiro pela terra numa tarde de
verão enquanto os amigos dele davam saltos tipo caminhando sobre-a-lua pela encosta da grande
duna, esticando os braços para o céu, sentindo-se livres da gravidade por uns poucos segundos
durante cada salto — loucos de comprimidos, de ácido, de solidão, os cigarros fumegantes entre os
lábios deixando trilhas que ziguezagueavam loucamente contra o céu azul.
A reação

No final da tarde, Sloan achou que estava tendo uma reação alérgica, anafilaxia, uma súbita — em
termos médicos, embora pudesse levar vinte minutos para começar — e violenta reação das defesas
do corpo contra o alérgeno; um ataque total, era assim que ele pensava na coisa, uma sobremarcha
imediata de funções corporais que causa severa constrição muscular — inclusive, é claro, dos
músculos em torno da garganta. Ele havia lido nos jornais sobre essas reações. Na verdade, o que
ele estava tendo mesmo naquele momento eram úlceras na garganta, uma reação ao remédio contra
dor que andava tomando, que continha alguns indicadores sintomáticos semelhantes. Uma coisa
totalmente diferente. Coisa comum. Nada de mais. Era só baixar a dose ou mudar para Advil. Levou
alguns segundos para fazer o diagnóstico correto.

O crepúsculo sangrava sobre as árvores do quintal. No pomar, depois do muro de pedra, um


cachorro latia, o latido envolto em silêncio porque a estrada entre as árvores — normalmente um
chiado ativo a essa hora — estava fechada ao tráfego. Seu vizinho, Congers, estava de mudança; a
velha monstruosidade se arrastava pelo meio da rua, roçando os galhos mais altos das árvores, a seis
quilômetros por hora, disse o jornal no dia seguinte, mas Sloan calculou que deviam ser quatro
quilômetros e meio por hora porque levou mais de duas horas para transportar a casa para o novo
terreno, que ficava a nove quilômetros. (Havia uma foto no jornal mostrando a casa no meio da rua,
com um artigo ao lado que fazia a mudança parecer gloriosa e profunda, uma tentativa de preservar
o passado, quando na verdade era um ato de avareza.) Congers estava vendendo os trinta hectares
de terra de cultivo de primeira que haviam sido dados a seus ancestrais por George III, junto com
seiscentas árvores frutíferas, terraços de pedra, um barracão caindo aos pedaços, diversos anexos,
uma prensa de cidra manual que estava em uso havia mais de cem anos, e uma vista do vale ao
longo do rio — tudo isso ia ser subdividido em terrenos para moradia de cidadãos idosos de alta
renda. O pomar circundava os lados sul e leste da propriedade de Sloan, de dois hectares, financiada
por anos de viagens de trem ao hospital na cidade. Exatamente trinta anos. Agora ele estava
atendendo num pequeno consultório logo adiante na rua, servindo a uns duzentos pacientes, mal se
mantendo com as pesadas prestações do seguro, sem nenhum lucro, muitas vezes vivendo meses
com retiradas antecipadas de seu fundo de aposentadoria.

No momento de pânico, sentado numa poltrona de couro, tendo à frente uma vista de árvores
moribundas caindo umas sobre as outras em ângulos estranhos, desconjuntados, estava pensando
em Congers, que, na manhã anterior, tinha vindo fazer um exame, um exame físico completo, com
tudo (para ter certeza de que seria capaz de agüentar o estresse do projeto de mudar a casa), e parara
na frente dele — como um milhão de outros antes — com seu corpo idoso, os peitorais murchos
pendurados e o pescoço grosso e comprido, para não falar das grandes manchas hepáticas nos
antebraços e nas mãos.

Você está forte como uma rocha, disse ele a Congers. Nada com que se preocupar. Para um homem
de noventa anos, está mesmo em excelente estado. A não ser, talvez… bom, talvez apenas, não é
certeza absoluta, mas percebo algumas indicações, pelo que me disse, de que possa haver um
problema de cálculo biliar. Você disse que tem tido problemas para digerir peixe…

Sloan achou difícil separar o momento em que teve a primeira sensação da úlcera na garganta da
súbita consciência do silêncio na rua.
Foi um momento profundo, de fato, disse ele a Jenny, durante o jantar essa noite, sentado numa das
mesas ao ar livre do restaurante.

E por que isso?

Bom, porque eu estava pensando em Congers, ou pelo menos acho que pensava nele e na casa dele,
que estava sendo transportada, e ao mesmo tempo eu sentia essa coisa na minha garganta e, tenho
de admitir, começava a entrar em pânico, imaginando se o pistache que tinha comido — um
daqueles vermelhos — teria provocado a reação.

E a casa estava sendo transportada.

Certo, certo, é, a casa estava sendo transportada. Minha vista estava sendo destruída. E toda a
propriedade começava a perder o valor.

Então talvez isso tenha suscitado a lembrança de Congers vindo fazer exames.

Sabe, sabe, é o fato de eu ter falado para ele do cálculo biliar. Provavelmente não é nada. Quer
dizer, só porque ele não consegue digerir gorduras não significa que tenha alguma coisa. Quem é
que consegue? Ele esteve em Cape e comeu um daqueles, sabe, um daqueles pratos de peixe frito
— aquela embalagem de papelão xadrezinho vermelho e branco — e se sentiu estranho, palavras
dele; o de sempre, nada muito específico no caso, não é? Nem dá para contar as centenas de vezes
que alguém entra com uma grande reclamação, mas quando eu peço que me conte exatamente o que
está esquisito, a pessoa não consegue definir. É só isso, uma coisa esquisita. Eu me sinto esquisito.
Só esquisito. Nós todos nos sentimos esquisitos, tenho vontade de dizer a eles. Nós todos nos
sentimos muito, muito esquisitos mesmo.

E disse isso a ele? Então? Ela mexeu no cabelo, só atrás, deu uma arrumada. Tinha acabado de
cortar. Ainda morena, mas com mechas grisalhas na raiz.

É, mas sabe, normalmente eu não teria dito à ele, não tem por quê. Tem de fazer exames, e alguém
na idade dele, normalmente não teria me dado ao trabalho a não ser que houvesse mais indicações,
além de ter problemas com gorduras e tal… mas peguei e disse, direto: Pode sentar, Frank, sente um
pouquinho e deixe eu ver, quer um pouco de água? Dou um pouco de água da torneira a ele e digo
para não se preocupar, mas ele parece, bom, Jenny, devo dizer que dava para ver que ele estava
preocupado porque mesmo sendo durão como é, durão mesmo, ele se preocupa quando se trata de
saúde. (Provavelmente por isso está durando tanto. Morando sozinho naquela monstruosidade.) Aí
digo a ele, Olhe, Frank, estou preocupado com essa história do peixe — é indício talvez de um
problema de cálculo biliar e sabe-se lá o que mais. E dou-lhe um bom cutucão, faço ele deitar de
novo na mesa e, bom, cutuco forte mesmo, dos dois lados, viro para cá e para lá, sem nenhuma
razão especial, sabe, mas para fazer ele, bom, não sei, fazer ele pensar que…

Jenny levantou o copo e acenou com ele. Vá direto ao ponto, ao ponto, disse ela.

O que quero dizer é que não sei bem se estava dizendo isso ele, sabe, só para atingir, para fazê-lo
desanimar.

Ele tocou a gravata, o nó gordo e apertado, listas brancas e vermelhas.

Para fazer ele atrasar a mudança da casa, para a gente conseguir aqueles advogados do como é
mesmo? Preserve a Terra? Salve o Solo? Sabe, os sujeitos que saem por aí comprando terra e depois
só deixam crescer bosque ou mata secundária, ou pântanos. Só para esperar uns dias. Porque a
ordem restritiva, aquela do grupo da terra, aquela da bacia do rio e tudo, podia passar. Ele ainda
estaria lá. E a casa ainda estando lá, o juiz podia balançar. Sabe. A casa não tinha sido mudada
ainda, e se a coisa toda ainda estivesse em processo, o juiz podia simplesmente pôr tudo a perder.
Juiz Janson, não é? O velho Janson, ligação de parentesco com Congers, acho; parentesco que recua
até o próprio rei George, certo? Ele veio fazer um exame. O homem conhece o país inteiro. Janson
diz assim: Sei que você é diferente politicamente, mas quando se trata da minha saúde confio em
você como se fosse dos meus.

Na sarjeta, uma motocicleta estacionou; dois desceram de jaquetas de couro.

É a Janet, essa?, diz ela, a voz vibrando. Não pode ser a Janet. Será a Janet?

Por um instante ficam olhando a garota remover o capacete, azul dégradé e com um visor muito
escuro para cobrir o rosto; ela o levanta devagar, sacode uma cascata de cachos pretos sobre os
ombros. Como conseguiu enfiar tanto cabelo dentro do capacete? Os dois divagam. Depois pensam:
não é a nossa querida Janet, nossa filha, que se perdeu para os elementos, rebeldia geral, não
rebelde demais, mas sempre em movimento, indo de um lugar para outro. Nossa Janet.

Sloan deu um gole comprido e profundo em sua bebida, depois outros, depois um curtinho, e
concluiu que não havia por que continuar falando daquele assunto. Não que quisesse proteger da
verdade sua mulher, mas apenas manter algum equilíbrio entre o que tinha na cabeça e o que disse
em voz alta. Não contou a ela o seguinte: que naquela tarde tinha havido uma lasquinha de tempo
entre sentir a garganta começar a apertar e fazer o diagnóstico correto (da úlcera como resultado
mais provável do remédio que estava tomando para as juntas); que nessa pequena fração de tempo
ele havia entrado em pânico (olhara as árvores, tombadas para todo lado) e um vazio se abrira, um
grande espaço a revelar o que poderia acabar se expandindo numa fissura e, com o passar dos anos,
tornar-se um imenso precipício: a perda de sua capacidade de fazer um diagnóstico imediato,
adequado, correto, um equilíbrio cuidadoso entre opinião profissional e os sintomas disponíveis.
Nesse pânico veio, sentiu, o que só se poderia chamar de (ali estava, sentado, bebendo sua vodca)
primeiro deslize de sua capacidade. Por baixo dele, a vida estava cedendo. A noite estava caindo. A
garçonete chegou, levou os pratos e ofereceu diversas sobremesas: bomba de creme, musse de
chocolate, bolo de sorvete. Ficou sem dizer. O medo de que estivesse chegando ao fim de sua longa
carreira; a crescente e profunda sensação de perda que sentira na garganta naquele momento. Sua
completa confusão com a coisa toda.

Entre eles, o silêncio continha os problemas de garganta dele, a casa de Congers mudando, o terreno
que estava sendo vendido e Janet. Janet ficava sem ser mencionada entre eles. O ponto de orvalho
estava se instalando. Os copos de água gelada pontilhados de suor. Sloan correu o dedo pelo lado do
copo, traçou um pequeno s cursivo e olhou para a rua atrás de sua mulher. Atrás deles, subiam as
paliçadas do Hudson, pesadas, contra os fundos do restaurante. O rio, lá do outro lado da rua, corria
com a grande solenidade das correntes de maré que subiam.

Janet, disse ele baixinho.

Não, disse ela. Não vamos lá, não. Não agora. Por favor.

A menção do nome invocou uma imagem de sua filha parada na esquina da Quarta com à Bowery,
debaixo da luz violeta do céu, pálida e delicada, com os ombros caídos e o cabelo que parecia
perpetuamente embaraçado pelo vento, castanho-escuro, profundo, contra a palidez do rosto. Com
isso ele se lembrou da finas conchinhas que eram suas orelhas nos lados da cabeça, e do cabelo,
quando criança, se armando com a estática quando ela passava a escova por todo o comprimento,
tomando cuidado para não afundar com muita força as cerdas — o corpinho ossudo recebendo o
peso das escovadas, o quadril sem cintura, reto de ambos os lados, se sustentando fina e firme.

Levantou dois dedos juntos para pedir uma segunda vodca, essa com um pinguinho de tônica.

Outro homem veio se consultar aquela tarde, com dor na barriga, e Sloan pensou logo — ao apertar
com força o dedo bem no ponto exato — que devia muito provavelmente ser uma semente cravada
no divertículo dele, uma semente de gergelim ou uma semente de papoula que achara seu rumo
intestino abaixo só para se alojar em um dos pequenos e extensos canais secundários (questionara
longamente o homem acerca de seus hábitos alimentares, sem encontrar sementes, a não ser talvez
num pão com manteiga que o sujeito havia comido — não tinha certeza — uns dias antes no almoço
em uma padaria da rua 42 e que podia ou não ter sementes de papoula); a dor que o homem sentia
não era aguda, mas um latejamento surdo com pequenos picos de agudeza, difíceis de quantificar…
e ele dissera para esperar um ou dois dias, e depois, se a dor continuasse, teriam de fazer um exame
interno — colocando, ao falar, uma mão no ombro do paciente. Sloan não era do tipo de médico que
toca, mas achava importante estabelecer ao menos um contato físico por visita, para traduzir sua
preocupação com o bem-estar e a saúde geral de cada paciente em termos concretos, um aperto de
mão que demorava um pouquinho, um toque no ombro (como com esse paciente), até mesmo um
afago no joelho nos casos certos; com pacientes realmente velhos e próximos, aqueles que vinham
regularmente e com quem tinha um relacionamento construído ao longo de resfriados fortes, ossos
fraturados, cânceres tratados e curados, fissuras no reto, caroços no escroto, costas com formações
de corcunda, infecções do maxilar que se expandem pela cavidade craniana, fraturas de estresse e
tendões rompidos na prática de esportes — nessas almas ele sempre dava um abraço de despedida,
ou um abraço de chegada e um abraço de despedida; e nos amigos íntimos, homens e mulheres, ele
pensou, no café, tomando um segundo gole muito rápido da vodca (quase nada de tônica nessa
dose), dava um beijo, nos lábios ou no rosto, ou em ambos. Como com sua filha, na última vez que
se encontraram para jantar: ele dera um aperto de mão, um tapinha no ombro, um abraço, um beijo
na bochecha e outro na testa; depois, chorando, beijara bem o centro da testa dela, onde costumava
colocar os lábios com liberdade quando ela era criança (e tal e coisa), e depois beijara os lábios
dela, um beijo de verdade, uma pressão firme que durou alguns segundos, e brindara-o com suas
palavas de aconselhamento, seu alerta para tomar cuidado, sua esperança de que ela encontrasse
algum lugar seguro neste mundo e, se necessário, o chamasse para qualquer tipo de ajuda de que
precisasse.

Mas na verdade acho que não devemos evitar isso, ela estava dizendo, quero dizer Janet, a palavra,
o nome em si. Fizera-se um silêncio incomensurável quando a garçonete serviu a bebida. Silêncio
entre goles. A garota do capacete de motocicleta tinha voltado, segurava o cabelo para cima com as
duas mãos, os cotovelos levantados no ar; o namorado, ou amigo, estava ao lado com um casaco de
couro comprido, ajudando — usava dois elásticos de borracha nos pulsos —: agarrou a juba de
cabelo, as mãos da garota ajudando também, e puxou um elástico de borracha da mão para o cabelo,
torcendo e retorcendo, e uma vez mais, até ficar bem apertado; depois dobrou o rabo-de-cavalo no
meio e deslizou o segundo elástico de borracha (as mãos dela arrumando o tempo todo, ajustando a
formação, entrelaçando-se com as mãos dele), até que todo o arranjo ficou pronto e ele botou
suavemente o capacete na cabeça dela — ambas as mãos segurando dos lados —, fazendo pequenos
ajustes enquanto colocava. Ela levantou o pé ligeiramente, no que parecia o começo de um arabesco
(muitas bailarinas viviam nas paliçadas, com grandes janelas que davam para uma vista do Hudson,
as luzes de Westchester e de alguns pontos privilegiados, a cidade em si). De capacete, emoldurada
pelo dispositivo de segurança, o rosto divino e puro à luz da vela projetada das mesas, a garota
virou-se e beijou o homem, que por sua vez colocou as mãos espalmadas em torno da parte fina de
seu queixo e segurou-a por um momento. Depois montou na moto, chutou o suporte, que cedeu com
um estalo forte de metal debaixo dele, e pousou os braços com força no guidão. Deu um giro firme.
O motor rugiu (e rugiu mesmo, um rugido de romper os tímpanos, sem amortecedor), ela montou e
encolheu as pernas, e suavemente, apesar do barulho, quase como se fosse em silêncio, zarparam
para a rua e sumiram, perdidos para sempre, os dois, pode ter certeza, nunca mais seriam vistos por
Sloan e sua mulher, que não tinha observado nada da cena, de costas para ela, e ainda falando sobre
Janet (o que podia ou não acontecer com ela), declarando com ênfase que não deviam pôr de lado
suas dores, que a dor se enfrenta com a cara e a coragem, a voz dela um pouco bêbada, que era
muito importante ele, Sloan. encarar o fato de que sua filha podia ser uma drogada (como se ele não
encarasse) e também encarar Congers, dizer a ele o que está sentindo, o cálculo biliar que se dane.
O tempo todo ele — sem ouvir muita coisa do que ela dizia — manteve os olhos na rua, no lugar
onde a trilha de luz da motocicleta havia sumido no escuro.

Para voltar para casa eles tomaram a estrada de trás, que rodeava a propriedade de Conger — uma
estrada que pelo zoneamento deveria continuar com duas pistas e estreita porque ao longo dela
moravam aqueles que respeitavam o próprio conceito de duas pistas, uma estrada que recentemente
fora considerada culpada pela morte de quatro adolescentes. (Sloan estava trabalhando essa noite,
dando plantão, quando a porta do pronto-socorro se escancarou e o rapaz — o mais novo do grupo
— foi trazido sem um braço e com apenas metade do rosto, ainda vivo, ofegando, em convulsão.) A
caminho de casa, a bursite no joelho tornava insuportável até mesmo a mais leve pressão no
acelerador. Talvez fosse isso, pensou. Talvez o ruim da dor seja nos deixar sensíveis às menores
nuances de movimento; a urgência de uma pressão do dedo do pé na borracha do acelerador do
Volvo, um nada, uma coisa que se faz a vida inteira sem pensar, de repente tão real e complexa;
talvez fosse isso. Talvez a própria Janet, com toda a sua sensibilidade, sentisse essas coisas e não
tolerasse. Ele se apegou a essa idéia, seguiu o caminho das curvas, passou diante do local do
acidente (um x de giz no tronco da árvore, que, apesar de ter sobrevivido aos rapazes, ao impacto do
carro e a incontáveis invernos rigorosos, teria de ser cortada; uma touceira pequena de ranúnculo e
uma cruz, embora dois dos quatro mortos fossem judeus). Ele se apegou à idéia de alguém vivendo
com uma aguda consciência de coisas como um pé pressionando um acelerador de carro. Apegou-se
à idéia de medo, pânico e dor também, combinados como estavam naquela tarde em que sentiu a
constrição na garganta. Apegou-se à idéia de que Janet podia ser muito sensível, como aqueles
imensos espaços côncavos cavados na floresta tropical e riscados de fios, coletando tênues sinais de
rádio dos recessos mais remotos e escuros do universo. Apegou-se à idéia de que talvez tivesse sido
muito certo apavorar Congers com o problema do cálculo biliar, para colocar a verdade no ouvido
dele. E apegou-se à idéia de que talvez fosse melhor de agora em diante não mais instar em termos
mais suaves com os pacientes por seu bem-estar, mas sim cortar fundo com a notícia exata dos seus
mal-estares. Apegou-se à idéia da dor em si como centro do mundo, ponto de gravitação. Apegou-se
à idéia de que não havia nada que pudesse fazer por Janet, sua filha adorada. Janet se lançava de
cabeça no mundo sem ter a menor noção do que fazia ao mundo. Passavam pelo ponto vazio onde a
casa de Conger estava naquela manhã, agora um monolito emborcado de escuridão mais escura que
a terra — um retângulo escuro de nada — e árvores retorcidas ao luar e o terreno em terraços que
iria, dentro de poucos meses, abrigar compactos complexos de casas, construções amontoadas umas
ao lado das outras, pintadas com aquele azul-acinzentado estranho e sem graça. Apegou-se a essas
idéias ao subir a rampa de entrada, ao acionar a porta automática, e depois rodou para debaixo da
casa, para a garagem que cheirava a fréon da geladeira (mantinham carne estocada para o ano todo,
pacotes de vitela e frango embalados a vácuo), óleo e gasolina do cortador de grama, borracha de
pneus de carro e de bicicleta. Depois, no silêncio abafado da porta fechada sobre a vedação de
borracha, virou para sua esposa de quarenta anos de casamento, estendeu a mão e sentiu o lado de
dentro de sua cintura carnuda, apertou até silenciar (porque ela tinha vindo o caminho todo falando
com ele sobre Drew, o atual namorado de Janet, que tinha uma tatuagem no braço e pilotava
planadores em Cancún). Ele ia levando os lábios para os lábios dela. As constrições em sua garganta
estavam voltando, o músculo ali destinado a fazer a comida descer, a fazer acontecer uma coisa
simples como a deglutição. Para se livrar da sensação, beijava a esposa. A noite era silenciosa em
torno deles. Houve, como era de esperar, lágrimas de frustração. Houve suaves murmúrios de amor.
Houve a mão dele ao longo da coluna dela. E, poucos minutos depois, a luz da porta automática, por
causa de um fusível de retardo, estourou, lançando-os num escuro relaxante.
A garra

Debaixo dele o metal cedeu e cantou acompanhado do tedioso claque dos espaços do trilho; eram os
engates batendo uns contra os outros ou algo parecido. Jim não conhecia as partes do jeito que
alguns conheciam, aqueles que trabalhavam nas linhas; ele só estava por ali, e tinha estado assim
desde os pátios de Albuquerque, onde trepava entre os carros e depois, antes que pudesse saltar de
volta para o chão, via-se preso quando o trem alcançava velocidade total e caía o escuro, o que
ocorria ao longo desse trecho do rio rápido e agitado, o sol deslizando no vazio, ele preso apenas
pela garra da mão e o apoio do pé, que não era seguro. Fazia muito frio. O calor subia pelo céu
translúcido, sumia, e ele ficava com a camisa de algodão — esfarrapada, com buracos de traça.
(Tinha ido embora de Ohio com essa mesma maldita camisa, a mesmíssima.) Ouvira histórias de
homens em circunstâncias idênticas, homens traídos por um salto ruim para um trem de carga
rodando devagar; tinha ouvido altas histórias de homens que se agüentaram em posições difíceis a
noite inteira, até o dia seguinte, e mais uma noite cansativa, até os tendões travarem e os músculos
quebrarem, salvos no último segundo, quando chegaram ao destino ou o trem parou num trilho
lateral para o expresso passar. Depois, com os braços como que de zumbis, eles cambaleavam entre
os engates e caíam na relva, a gritar para o céu. Sobre o outro lado também tinha ouvido dizer.
Aqueles que seguravam uma noite inteira, depois tentavam achar um jeito de subir para o passadiço
e caíam para uma morte maldita. A garra que tinha era sólida, e havia um apoio para a ponta do pé
embaixo, em uma saliência de metal que se projetava do carro, um pedaço da carroceria quebrado e
sem uso aparente. O apoio do pé não era grande, e para se manter ali era preciso apoiar o peso na
parte lateral da bota, no arco; quando doía, voltava só para os dedos do pé. Com uns cinquenta
minutos de corrida, o pé escorregou, e ele teve de contar só com a garra para não cair. Foi quando
resolveu que era melhor manter o arco do pé em cima do ferro. Seu parceiro Roy estava mais atrás,
provavelmente em cima de um carro; talvez tivesse conseguido avançar, e ao olhar para baixo o
tivesse visto, e de algum jeito ia acabar achando um jeito de dar uma ajuda para ele subir, talvez
fazendo uma laçada com o cinto (será que ele usava cinto?), porque Roy estava viajando havia
meses e conhecia os truques do ofício. Roy falava de boca fechada, com um ar de sabichão. Ele
ruminava por um bom tempo o que sabia, suas histórias da estrada, antes de contar.

Ali era um pedaço comprido de terra vazia e sem graça, deserto duro e plano, o que permitia ao
maquinista pisar mais, de forma que o trem, apesar de seu considerável comprimento, podia chiar
pela paisagem e entrar no pátio em Fe ao amanhecer; ele calculava que ia conseguir ficar agarrado
até de manhã, no mínimo, e talvez mais o dia seguinte se fosse preciso, porque sabia o que era
necessário para se manter vivo nesta vida. Tinha sido chamado de animal pela tia adotiva, e em suas
errâncias se via tirando força e vida da comparação. Um dia e depois outro e outro ainda — era
basicamente vivendo a vida de um animal que ele sobrevivia (confessara isso tudo a Roy numa
tirada apostólica junto à fogueira uma noite depois de umas garrafas de uísque sour mash); ele
sacou que tinha a garra bem forte, os dedos grossos e duros do último trabalho que fizera
carregando gelo em Ohio, os pulsos bons e grossos como o resto do torso, pelo menos até as pernas,
que eram compridas, finas e bem elegantes; ele sacou que isso tudo podia ajudar a ficar agarrado no
vagão pelo menos até Fe.

A noite baixou sobre o trem. As trilhas de luz no céu piscando acima dele, plumas de cirros em tons
alaranjados e magenta foram engolidas pelo mais puro e fino escuro que ele já vira. O escuro
parecia ser um óleo grosso vertido de baixo do trem por cima e em volta dele até que — isso foi
uma ou duas horas mais tarde — ele não tinha mais certeza de quanto tempo fazia que estava ali
nem de quanto tempo ia ter de esperar para o amanhecer Não tinha muita certeza de nada a não ser
da dor no arco do pé em cima do apoio e de que precisava soltar a garra, flexionar os dedos, colocar
ainda mais peso naquele apoio antes de fazer a contorção — quase escorregou no processo — para
conseguir transferir o peso para o outro pé.
Acima dele, o coruscante mostruário do cosmos emoldurado pela boca do funil atestava o
movimento do trem, do espaço e do tempo passando, mas ele não viu nada disso. Ele não viu a
passagem das estrelas; o movimento celeste espiralado. Ele se agarrou, e se agarrou com força, e o
tempo se esvaiu. O tempo não passou. Ou passou, sim. Ele lembrava do tempo que passara na casa,
em Galva, no quintal, brincando debaixo de grandes lençóis de casal pendurados no varal, que
inflavam é dobravam no vento como velas de barco, engomados pelo sol enquanto sua mãe —
cantarolando a musiquinha indistinta que sempre cantarolava quando trabalhava sozinha —
colocava mais pregadores em mais panos, ou só ficava parada ali de costas para ele, perscrutando o
horizonte, como se o pai dele fosse aparecer na paisagem tal uma aberração de luz; porque o pai era
um daqueles caixeiros-viajantes desaparecidos há tempos, que pegavam a estrada para vender e
raramente voltavam: um raspar das solas duras no chão da cozinha, o cheiro de engraxate, os braços
grossos e deselegantes eram os únicos fragmentos que sobravam do homem. Aquele momento único
no quintal deitado na relva olhando a mãe, ou apenas ouvindo o som musical que ela emitia, o ar
contra os dentes e os lábios; e depois, junto com isso, a lembrança dos braços dela lhe dando um
dos seus grandes, fantásticos abraços de urso. Esse momento dominou e desapareceu com o grande
esforço da garra — a incrível dor daquilo —, sobrepujou qualquer lembrança, como a lâmpada de
um projetor queimando um furo no filme engastalhado. Que importava isso? Era a última
lembrança dela, afinal, tudo que lhe restava. Ela morrera antes de poder se revelar inteiramente a
ele. Depois de sua morte, o resto de sua infância foi breve e brutal, uma série de retratos desolados,
de daguerreótipos indistintos de suas tias — passou de casa em casa, até seu corpo endurecer em um
adulto e a Depressão se instalar, e começou a vagar.

À noite assumiu proporções vastas, grandiosas; a noite era líquida e fluida, tensa e esticada até não
ser mais que um fino filamento branco e calor a queimar seu pé e sua mão.

Com grandes e laboriosos sacolejos, o trem ralentou e começou a se arrastar pelo aclive, entrando
no sopé das montanhas — mas não suficientemente lento para permitir que ele pulasse de sua
estranha posição, com o corpo meio retorcido, de forma que não conseguia encontrar impulso para
um salto que o livrasse das rodas e da largura do vagão; de qualquer forma, a energia de que
precisava para uma ação dessas tinha acabado, ou era o que ele achava, calculando e fazendo
suposições. Foi a lenta desaceleração do trem, a diminuição dos cliques das ligações do trilho, que o
arrancou de sua estranha divagação sobre a mãe (que até onde ele sabia era a última coisa real em
que podia pensar além da garra, da saliência que estava queimando feito fogo do inferno em seu pé;
talvez um pensamento avulso sobre o gosto bom que teria um gole do Ripple de Roy naquele
momento). Não tinha nenhum grande mapa filosófico do mundo com o qual considerar a situação.
Sua intenção, sua única intenção era sobreviver essa noite, agarrar-se. Ao longe, no escuro, o trem
deu um apito baixo, provavelmente para espantar um coiote dos trilhos. Nenhuma alma temente a
Deus se encontraria tão longe assim no deserto, mesmo com torres de água a espaços regulares.
Mais uma vez considerou as histórias de homens que haviam se aventurado no deserto apenas para
observar as ondas sardônicas de guarda-freios e companheiros vagabundos pelas bocas abertas dos
vagões de carga passando; pensou de novo nas fantásticas histórias de homens como ele mesmo,
agarrados pela própria vida em posições estupidificantes durante dias sem fim. Essas histórias
sempre pareceram ridículas, burras e impossíveis para qualquer um que tivesse passado pela
experiência de viajar entre vagões por mais de uma hora. Mas eram as melhores histórias, as
histórias que interessavam por mais tempo à multidão em volta das fogueiras de acampamentos, os
besteira e os é, sei aumentando a diversão de contá-las.

Uma das duas coisas ia ter de acabar: a garra, ou o apoio de pé. Se perdesse a garra — ele já tinha
perdido um pouco naquela vez que mudara de pé —, podia contar com o apoio de pé. Se perdesse o
apoio de pé, podia ter esperança de manter a força para se pendurar nos dedos o suficiente para
retomar o pé. O vagão gingava num leve balanço rítmico. Os trilhos estavam em cima de cascalho
branco, limpo, mas não eram perfeitos. Durante o tempo em que estava segurando — uma hora,
talvez quatro, muito provavelmente não mais que isso, porque não havia nem mesmo o menor traço
de luz do amanhecer no céu —, ele aprendeu a dança que o vagão fazia; o rosto colado na lateral
metálica; sentia o gosto dela com os lábios: metal, tinta velha, creolina e fuligem. A dança era a
valsa, uma coisa de três tempos. Agora ela estava ralentando, e ele fez uma mudança: colocou todo
o peso na ponta ao mudar para a mão esquerda, fria, úmida de orvalho, e depois girou ligeiramente
— em congruência com o balanço do vagão, ao que parece — para o outro pé.

De novo, lá longe no futuro, havia o guincho estridente de um apito.

O trem parecia estar indo ainda mais devagar, se bem que pelo menos uma coisa ele tinha aprendido
com Roy: não havia melhor velocidade que totalmente parado para descer de um trem; e qualquer
vagabundo sabia que não havia nada mais difícil do que avaliar a velocidade de um trem quando se
estava sob o domínio dele; homens acabavam traídos por todo tipo de coisas, e uma coisa que podia
acabar com você era achar que os claques estavam ficando mais lentos, que havia um longo espaço
entre eles, quando tudo o que acontecia era que você parava de ouvir; não escutava mais; ou não
tinha mais trilhos, ou simplesmente não importava mais e você estava pronto para empacotar.

A relação dele com o abandono era íntima. Tinha observado o longo olhar vazio das Grandes
Planícies durante horas sem fim. Tinha ficado direto em cima de uma carga de carvão através das
planícies de Nebraska e deixado seus olhos engolirem o cosmos de um extremo a outro.

Roy tinha uma daquelas vozes estranhas, retorcidas, meio caipira, mas com um toque de algum tipo
de dignidade fingida que vinha do fato de ter frequentado uma boa faculdade no Leste antes de Wall
Street sair da sua vida. Alguns diziam que ele tinha abandonado casa, dois filhos e até um pequeno
cocker spaniel como se fossem restos, lixo jogado na estrada. Outros diziam que ele um dia fora um
grande empresário, um colega de Rockefeller. Num barraco de vagabundos em algum lugar perto de
Cleveland, um homem havia sussurrado no escuro — segredando as palavras em grunhidos baixos,
roucos — que Roy um dia jogara croqué com Lindbergh. Quem sabe? Era possível, como qualquer
outra coisa no mundo. Então, quando a voz de Roy surgiu na parte de cima do vagão, parecia ao
mesmo tempo angelical e áspera; ele latiu comandos por cima do rugido do trem. Os comandos
eram grandiosos, cheios de oratória: para pular longe dos trilhos, Jim, só precisa, disse ele, é
encontrar a decisão, a coragem, à atitude positiva. Era a voz de um homem se dirigindo ao Rotary
Club acerca do orgulho cívico e do entusiasmo, por um lado, e, por outro, tinha um subtom de
conselho paterno.

Silhuetado pela luz das estrelas e o que talvez fossem os primeiros bons indícios de amanhecer, viu
a mão de Roy lá em cima estendida para ele com um furtivo movimento ondulante. Me dê sua mão,
disse a voz com firmeza. Seria simples. Roy o puxaria para cima pela lateral do vagão, e eles
fumariam para celebrar, soltando cinza e faíscas no vento do movimento do trem, sem falar quase
nada, mas deixando o próprio silêncio se espalhar em torno do jeito fantástico como ele havia
sobrevivido à dificuldade. Ia esperar para perguntar a Roy se ele tinha alguma idéia de quanto
tempo fazia que estava ali agarrado; ia saborear a resposta que viesse; duas horas, porra, ou três, ou
mais. Depois, com essa informação sabida, iam rir dos estranhos caminhos do universo e rebolar
para subir nos dois vagões, até que encontrassem um vagonete de carga no qual cavar uns buracos
redondos no carvão onde desse para puxar uma palha.

Jim tinha de se convencer da verdade, repassar a verdade sistematicamente. A voz que estava
ouvindo não era nada mais que o fluxo constante do ar em movimento distorcido por sua dor, e a
mão a acenar acima dele a convencê-lo a largar mão não era mais que seus olhos cansados cedendo
à esperança. Ele já tinha visto miragens antes, fantasticamente reais, se abrindo nos campos de lowa
e Utah; tinha visto um grande lago de água fresca no meio do qual havia uma jangada, além de um
barco puxando garotas sobre esquis; tinha visto rostos de indígenas, passivos em seu juízo e
sabedoria, espiando atrás de arbustos de sálvia e espinheiros. Acreditar nelas era uma coisa, porque
era tão possível acreditar em uma miragem como acreditar em qualquer outra coisa; mas esperar de
uma miragem o que se pode esperar de uma coisa real e tangível não era mais que besteira; muito
vagabundo dos bons tinha tomado esse rumo, botado fé nas visões — ido na direção de grandes
lagos abertos com barcos velozes puxando esquiadores e morrido por causa disso. Tinha aprendido
que as melhores visões eram aquelas que você relaxava e aceitava sem confiar nem um pouco; por
outro lado, tivera visões reais que eram tão boas quanto miragens por serem tão distantes de sua
confiança, de seus dedos. Uma vez, na Costa Leste, numa parada de viagem em Nova York quando
vendia pêra na rua, tomara um trem até o fim do Bronx e depois um bonde ainda mais longe, até
que se viu diante de uma avenida de grande riqueza, na qual as casas, imensas e imponentes, eram
cercadas de coroas de bordos e carvalhos. Aquilo lhe pareceu o vestígio de uma terra tão grandiosa
e fantástica que ele sentou na calçada ali mesmo, cruzou as pernas e chorou com o rosto entre as
mãos. Então chegou um homem, um cavalheiro negro de camisa branca larga e macacão azul-
escuro, a cara escura como piche, inchada por anos de trabalho duro. Ele perguntou se estava tudo
bem. Depois ofereceu um copo de água, conduziu-o por um caminho lateral até a porta da cozinha
de um lugar, onde o fez esperar até voltar com um copo alto, verde-escuro, com cubos de gelo de
verdade tilintando dentro, e fez que bebesse bastante antes de dizer que ele devia seguir em frente
porque gente como ele não era apreciada por ali. De volta ao caminho, outra vez diante da casa, ele
não tinha mais certeza da realidade do fato. Tinha ido com o negro até a porta dos fundos para matar
a sede? Ou tinha simplesmente inventado a cena como uma forma de indulgência, brotada da sede
que estava sentindo? Sentado ali naquela calçada, sua garganta estava tão seca quanto em qualquer
uma das viagens pelo deserto, nem um restinho de saliva na boca para aliviar a secura do esôfago e
o papel ressecado da língua; e agora, no trem, quase perdendo a garra, estava com essa mesma sede.
Mas estava acordado. Isso era certo. Estava mais acordado do que nunca. Fez um pequeno
movimento com o pé — agora tão amortecido que mal podia chamá-lo de seu — e tentou flexionar
os dedos sem soltar, mas em vez disso soltou mesmo, e todo o peso de seu corpo ficou sobre a ponta
por um segundo, e então seu pé escorregou completamente, e bem na hora — em conjunto com
outro guincho da buzina lá longe — ele retomou o apoio da mão.

Havia apenas dois finais para as bravatas contadas diante das fogueiras quase apagadas: homens
tombavam para a morte, ou continuavam galantemente vivos, apesar das adversidades mais vastas
que o céu e mais tortuosas que as árvores de Josué. Bom, que se foda isso tudo, disse ele,
maldizendo o deslize e o quanto havia chegado perto de ser engolido pelas rodas. Foda-se isso tudo.
Estava na hora de largar mão ou ser largado, de duas uma. Estava na hora que a longa e ondulante
remissão da noite — o incessante bater e ranger dos engates ali embaixo, a paisagem do deserto de
noite — de zimbro, poeira e orvalho misturados — impusesse sua vontade.

Mas ele não largou com uma tentativa de pulo pela simples razão que não o deixou até o fim dos
anos 50, no leito de morte, em Toledo, Ohio, com o filho Carter ao lado segurando sua mão, e
lembrou disso de novo. No acampamento, ao lado da torre de água, logo depois de cair no sono
mais profundo de sua vida, ele fizera a si mesmo o voto de nunca esquecer aquilo e dissera a Roy
para lembrar o que ele ia dizer e repetir para ele quando acordasse. Não me deixe esquecer isso,
disse ele, pelo amor de Deus, quando eu acordar e voltar a ser eu mesmo me conte toda a história
para me lembrar. Cambaleara uns metros trilho acima, até onde o guarda-chaves lhe disse para ir
embora. Nunca esqueceria o guarda-chaves gentil que o viu sair cambaleando entre os vagões e cair
de joelhos. Vestido com o macacão da ferrovia, uma lata de óleo na mão, o guarda-chaves veio até
ele e o ajudou a se levantar, perguntou se estava bem. Pegue aqui esta moeda, porque você não
pediu, disse, entregando a moeda, sacudindo a cabeça de um jeito divertido mas respeitoso, quando
viu onde o rapaz tinha se pendurado — a alça pequena, o pedacinho de metal saliente embaixo —,
atravessando o deserto inteiro.

Logo acima da beira do vagão, naquele espaço aberto iluminado pelas estrelas que era apenas uma
ligeira variação do escuro — só um pouquinho mais claro que o próprio trem —, ele viu o rosto
pequeno e puro dela, como algum tipo de fruta madura; nele viu seus próprios olhos, marrom-terra
com pintas de mica, e a forma de sua própria boca, fina e tensa contra os dentes. Tão certo estava de
que isso não era uma aberração, de que não era de jeito nenhum uma miragem, que chamou o nome
dela diversas vezes. Mãe. Mãe. Mãe. Ela estendeu as mãos para ele, os braços longos e finos que
pareciam frágeis no escuro; estendeu as mãos para ele e entrelaçou os dedos nos dele; segurou firme
— garra no antebraço, garra no antebraço — até que o lusco-fusco começou a se fundir com o
escuro e se espalhou sobre o trem.

Os dedos de minha mãe apareceram, disse ele a Roy, que desviou os olhos com uma vergonha
cética pela confissão do companheiro; era uma coisa triste ver o parceiro afundar a esse ponto sem
estar pirado de bêbado de Ripple. Prometa que vai me contar. Eu esqueço tudo quando durmo, disse
ele. Ah, merda, eu conto, resmungou Roy, dando uma cuspida no mato.

Para o mundo, tanto fazia se ele tivesse sido engolido pelas rodas, mais um corpo morto libertado à
força de sua garra pelo azar, pela fraqueza, momento errado, ou algum sádico touro de ferrovia.
Havia muitos mortos naquela época de vagabundos. Ele revelou a história ao filho pouco antes de
morrer, no Hospital Memorial Flower, em Toledo, onde Carter era radiologista residente. Tinha
avistado o rosto da mãe lá em cima, real e puro, tão sólido como se entalhado em rocha. E tinha
vivido para contar isso ao filho, que chorou ao ver o raio X do pai revelar o nebuloso resultado de
setenta anos de Lucky Strike. Os dedos de sua avó eram surpreendentemente fortes, disse ele. Se
enrolaram nos meus, e juntos fomos achando o rumo para fora da noite, entrando na manhã
seguinte, quando, como uma canção de misericórdia, os claques diminuíram e o trem saiu para a
passagem de nível e parou para pegar água.

Ele então contou ao filho sobre Roy e como o fizera prometer que lhe repetiria a história quando
acordasse, e como, depois de fazer o pedido, tinha caído de bruços no mato e deslizado para o sono
mais profundo de sua vida.
O que eu espero

Não quero que ninguém mais morra nas minhas histórias. De agora em diante, tem de ser uma vida
gloriosa. A luz do entardecer na balsa para a ilha vai brilhar e espoucar no horizonte, o resto de sol
minguando; eles se debruçam na amurada, ombro a ombro, e sentem a suave oscilação das ondas,
sabendo que assim que chegarem à hospedaria — o sachezinho de pot-pourri pendurado no armário
e um bombom de menta no travesseiro — vão se despir para se olhar no esplendor da nudez. No dia
seguinte, alugam bicicletas e pedalam contra o vento até suas coxas (nunca andavam de bicicleta em
casa, na cidade) ficarem duras; fazem um piquenique longe, no extremo da ilha, numa angra
protegida do vento. Só uma brisa ocasional vai jogar areia na salada de batatas. Ali se beijam
devagar, e ele lamberá o sal dos lábios dela e se deslumbrará com o calor de sua boca em contraste
com o duro frio ali fora, na angra, onde as ondas rugem. No caminho de volta, com o vento por trás,
sentem o júbilo de um jorro seguindo a torrente; abrem os braços, velas a captar o vento. Guardam
as bicicletas debaixo da varanda e as prendem nas correntes, e então sobem para o saguão com
pernas fracas. Ah, tão cansados estarão, de joelhos tão adoravelmente fracos, como se navegassem
em terra pela primeira vez em anos, e nessa angústia de exaustão os dois fazem amor de novo no
andar de cima, meio vestidos, e adormecem e passam da hora do jantar, acordam na escuridão com
o tremor da tempestade lá fora, e com aquela consciência mal perceptível de que está faltando
alguma coisa, alguma coisa da maior importância. No saguão, a porta está abrindo, e o homem do
outro lado, que eles supõem ser um solitário, está indo ao banheiro (que eles compartilham), e
ambos ficam ouvindo, prendendo a respiração para ouvir o som do xixi na água, o que não os faz
mais rir do jeito que fez na primeira vez que ouviram, de manhã, mas agora soa como alguma coisa
que tem de ser feita, água fria e firme contra água na bacia de porcelana. Se ninguém morre na
história, é assim que será: os dois no dia seguinte de volta ao barco e então retornando à terra,
olhando a paisagem sumir atrás do barco, as gaivotas mergulhando no rasto espumante e à espuma
em si se desmanchando depois do V, desaparecendo no eterno rumor do Atlântico Norte.
A interrupção

Eles ficaram juntos na noite mais fria do ano, imaginando quando os caras da segurança iam
resolver sair para mandar que seguissem seu caminho — e havia caminhos a seguir mesmo em uma
noite de inverno, caminhos que podiam ser tomados dependendo de quem tropeçaria primeiro em
qual direção. Arno estava com o braço em cima do ombro de Roy quando ele se abaixou junto ao
velho e tentou escutar o que ele dizia — um blablablá abafado em parte pelo boné de tricô que tinha
sobre as orelhas e em parte por uma vibração que vinha de debaixo das botas congeladas deles,
vinha do sistema de circulação de ar do Hilton, um ruído baixo e monótono que era parte da atração
daquele ponto, como a nota mais baixa de um órgão de catedral; Arno escutou, meio preocupado
com o que Roy estava tramando e meio preocupado com a rachadura que tinha se aberto em seu
lábio e parecia trazer dentro de si um abismo de dor largo demais para uma rachadura tão pequena
na carne.

“Você entra”, o velho estava falando, excitado, “e diz que tem de participar de uma reunião, e aí só
passa direto por aquela mesa que eles têm lá e age como se soubesse aonde está indo e descobre a
maior festa maluca rolando… depois você simplesmente escorrega essa bunda gelada de volta aqui
para nós com o que conseguir… A gente faz uma festa de rei…”

Três noites de frio intenso haviam se abatido sobre os homens, deslocando-os de um lugar para
outro, mas nunca para nenhum tipo de calor continuado: uns poucos minutos na entrada de um
prédio de apartamentos antes de serem enxotados; umas poucas horas na biblioteca pública atrás de
exemplares abertos da Elma Gazette; cinco minutos no vestíbulo do First National Bank debruçados
sobre o longo balcão de mármore, os joelhos meio dobrados no esforço de aliviar o tremor das
pernas cansadas, mas sem sentar, porque sentar seria admitir precisar do apoio total da gravidade, e
isso por si só chamaria a atenção dos proprietários. Por toda a cidade, eram os proprietários que
vinham e pediam a eles, às vezes gentilmente, às vezes não, que seguissem em frente.

“Vá em frente, Arno, tente”, disse Snag. Snag tinha dezesseis ou dezessete anos, a cara de um
vagabundo de praia de setenta e cinco. Cabelos compridos grudados de oleosidade, óleo mesmo,
sujeira e vômito velho — restos daquele troço de dreadlock que ele usava antes. Os olhos, quando a
gente fixava por tempo suficiente, solidificavam em alguma coisa como cubos de gelo; neles se
encontrava a frieza rígida que vem de tanta droga, somada às surras que o pai lhe dava. Os braços
eram compridos, magros e frágeis de tantas marcas de picadas. Se lhe perguntavam, ele dizia que
não usava drogas. Nunca tinha usado. E na história dele existe alguma coisa — os grandes
argumentos que invoca — que soa verdadeira para os outros caras. Ele não usou drogas. Quem
sabe, talvez, as agulhas o tenham atacado, a ele. O crack tinha de queimar em algum lugar, e
escolheu o cachimbo dele. A macacada que batia ao acaso em máquinas de escrever acabava
escrevendo a história dele.

“Por que não vai lá, Snag? Vai lá na porra do hotel” Arno mal abriu os lábios sobre os dentes
estragados. Plumas de fumaça de frio ilustravam suas palavras. Ele não é muito fã desse garoto. Um
garoto desses por perto pode chamar problemas. Snag não era de Elma. Tinha uma visão de
forasteiro distorcida — de Dearborn, perto de Detroit.

“A gente pode dar um rolê naquele cara de uniforme”, Snag insistiu. “Você só tem de botar o Roy lá
dentro”, ele se virou, acenou para além das brilhantes lâmpadas de cobre amarelo, para um outro
canteiro de arbustos decorativos, “e deixar ele começar a mijar ou fazer qualquer coisa para o cara
sair. Ele sai para gritar com Roy, e a gente entra. Só isso, é simples.”
Fez-se um silêncio longo e generalizado enquanto os homens pensavam na situação. Zeek começou
a concordar num movimento de cabeça com alguma pergunta não formulada e ficou assim durante
um longo tempo. Zeek tinha cinqüenta anos, miolo mole, e uma casquinha de barba em torno da
boca que lhe valia o apelido alternativo de “Boca de Estopa”. (Ele ia morrer dentro de algumas
semanas de uma úlcera perfurada — metade do sangue dele foi parar na cavidade estomacal,
chiando para lá e para cá, enquanto a pressão sangüínea diminuía. Um menino de dez anos que
estava entregando os jornais de domingo encontrou Zeek morto, congelado.)

Ninguém lembra quanto tempo passou até que Roy, numa súbita explosão do que se poderia chamar
de inspiração de último momento, levantou e esticou os braços por cima da cabeça. As calças dele
eram esfarrapadas, com buracos de traça, conseguidas na Legião da Boa Vontade anos antes. “Ah,
merda, eu mesmo vou”, disse ele, e antes que Arno ou qualquer um pudesse reagir, ele seguiu por
aquele semicírculo de concreto muito iluminado, andando depressa, fazendo as portas elétricas se
abrirem enquanto o valete se abaixava para acertar o rádio ou amarrar a bota de combate — tanto
faz. Os homens não demonstraram o menor interesse em ir atrás do amigo naquele abismo
brilhante. Recostaram-se, fecharam a rodinha, se agüentando num silêncio apertado, balançando a
cabeça ligeiramente, enquanto Arno lembrava como eram incríveis as pernas arqueadas do velho
babaca quando ele estava lá debaixo da água fervendo do chuveiro no abrigo da igreja batista; eram
pernas finas que arqueavam com o peso de uma vida longa e dura.

O fragor no salão chiava as contracorrentes mornas de um segundo casamento; do teto escuro


pendiam longas tiras de folha de alumínio amassada. Abaixo das fitas prateadas havia vinte mesas
redondas. Em uma delas, o sr. Standard se via às voltas com seu terceiro scotch, suas mãos grandes
mal conseguindo segurar o copo plástico. Queria amassar o copo, vê-lo explodir. A recepção —
depois de uma hora de discursos ruins — tinha ficado mais chata e sem graça que um jogo de bola
ruim; nada acontecia, só um tremular de calor sobre um campo vazio. No tablado, ao lado do resto
do grupo do casamento, estavam sentados Melville, Mel Horton, o noivo, com sua cara franca,
redonda, que parecia — ao menos para Standard — precisar ser inaugurada, como uma luva nova
de beisebol. Alguém devia despejar óleo de mocotó em cima dele e enfiar a mão, esfregar bem —
arrancar daquelas bochechas todo aquele rico frescor, aquela boca de colher de prata, ele pensou.
Mas aí olhou para sua mulher, os malares estreitos e a forma fina dos pulsos. Ela com certeza não ia
concordar nem um pouco com essa idéia. Era a melhor amiga da noiva, Susan Porter, que estava lá
em cima agora, mexendo de um lado para o outro o vestido de noiva com aquela triste
complacência que Standard tinha visto centenas de vezes em outros segundos casamentos.
Acreditava piamente na derrocada do homem. Sua empresa, a Standard Pipe, estava passando por
um péssimo momento, depois de ter superado maus momentos. Estava enferrujando, literalmente:
longas manchas sangrentas de ferrugem desenhavam línguas nas laterais do aço corrugado
remendado da fábrica principal. Havia janelas quebradas, e ele quase já não conseguia mais dar
conta dos pedidos. Enquanto sorvia seu scotch, pensava na última visita de Melville Horton ao
escritório. O filho-da-puta ficou lá parado com aquele terno bacana dele, as mãos enfiadas nos
bolsos. O escritório de Standard ficava num cômodo dos fundos, com persianas amareladas e
arquivos superlotados, sem nenhuma pretensão de grandeza. Na parede da esquerda estavam suas
velhas condecorações do Rotary Club, uns troféus de golfe azulados de poeira. Uma gaveta do
arquivo estava aberta, fora do trilho, e estava assim havia dez anos. Estranhamente, esse escritório
não revelava de jeito nenhum a verdadeira natureza de Standard, que, segundo todos os padrões, era
detalhista e cuidadoso tanto em questões pessoais como em questões empresariais. Tinha as
cutículas tratadas, as unhas perfeitamente cortadas. O escritório simplesmente não lhe importava
muito, não do jeito como o verdadeiro trabalho com o metal importava. E então, quando Melville
Horton fungou e passou um dedo em sua placa de Homem do Ano do Rotary 1968, ele sentiu uma
espécie de profunda sensação de desequilíbrio que o lançou simplesmente em um torvelinho de
raiva; se havia alguma coisa que ele realmente detestava no mundo, era ser esnobado por um garoto
que não era nem uma célula de esperma quando ele desembarcou na Normandia.

“Não posso fazer esse tipo de negócio”, Horton estava dizendo ao afastar-se da placa, procurar uma
cadeira e encontrar uma velha com assento verde, remendada com fita isolante. Permaneceu em pé.
“Como eu posso atender meus pedidos se esse material que você devia produzir não chega no
prazo? Estou com um sujeito a postos para acionar a nova engrenagem, e Bob está fazendo hora
extra para botar a velha para funcionar, e aí a Standard me diz que não vai chegar cano nenhum —
então esse trabalho todo não serviu para nada.”

Standard olhou para ele de alto a baixo antes de falar. Horton tinha idade para ser seu filho, o que
foi morto perto de Khe Sanh, Colina 861, como membro do Primeiro Batalhão, Nona Divisão. Mas
ao contrário de seu filho, que tinha sido forte, um zagueiro de primeira no time estadual do colégio,
esse garoto tinha um verniz yuppie. O terno era cortado um pouco grande demais, pendendo sobre a
barriga lisa, largo e solto nos ombros. “O pedido vai chegar”, Standard resmungou. “Eu disse que
vai, e vai. Só estamos sobrecarregados. Quer dizer, a Tilco enlouqueceu, nos mandou bitola dupla
por acaso. Depois essa greve de trem, para um pedido chegar de Dayton levou um mês; e aí a porra
do negócio descarrilou.”

Esse garoto, Melville Horton, não entendia o velho acordo tácito de que não se invade o escritório
de um homem durante uma greve de trem para exigir um trabalho atrasado se não for questão de
dinheiro de fato. Ele era um idiota. E Melville não estava curto de dinheiro, não com a loja dele
recebendo cem pedidos por semana. Além disso, ele estava operando a coisa toda como uma
espécie de hobby, afinal, porque o pai do pai dele tinha fundado a Cap Soaps antes que ela fosse
incorporada. O filho-da-puta se encheu da grana quando vendeu as ações. Tinha muitos bens
líquidos para vender quando fosse preciso. O garoto não precisava se preocupar com
descarrilamentos ou má operação. O babaca podia comprar a porra da ferrovia se quisesse.

O DJ estava botando um mambo. Houve uma proclamação abafada, mais um brinde de última hora
para injetar vida na recepção. Standard levou o copo de plástico aos lábios e sorveu as últimas gotas
de cima do gelo.

“Benzinho” Ellen Standard estava com a mão em cima da mão dele. Ela sabia e queria matar a sede
dele. Tinha acabado o terceiro e Já estava começando a se levantar. Susan estava vindo, circulando,
levantando a saia do vestido de noiva ao andar e revelando os tornozelos grossos. Ela ganhara mais
peso durante o noivado do que durante os últimos dez anos, desde seu último casamento.

“Vou encher o tanque”, disse ele, tentando parecer despreocupado. Havia um toque de pânico em
sua voz, como se o bar pudesse fechar.

“Parabéns, Susan”, disse ele, mal se detendo, apenas roçando o braço dela com o seu e seguindo,
cambaleando ligeiramente na escuridão. Havia três pessoas dançando ao som de “Flashdance”, num
passo frouxo, mal-e-mal lembrado, das discotecas. A música soava alta contra as paredes duras.
Explodia dos alto-falantes, caixas pretas que iam até a metade do pé-direito. O DJ manejava o CD
player com incrível seriedade, como um juiz que preside um tribunal. Seu rosto era firme, e no
intervalo entre as músicas ele anotava algo numa prancheta. Era um trabalho triste, solitário, prover
música para ocasiões como aquela. Mas nessa noite, ao observar Frank Standard cambalear até o
bar pela quarta vez — ao notar o jeito solene como o homem não desviava os olhos do atendente do
bar —, o DJ teve uma premonição: sentiu uma mudança na noite, e depois diria saber que essa
recepção estava condenada a ser um evento traumático. Se alguém no mundo podia sentir a coisa
chegando, esse alguém era ele. Perito no tédio dos rituais modernos; na aguada inabilidade que
levava a maioria das recepções de casamento a superar o próprio desânimo, minucioso e deliberado.
Então, quando Roy entrou pela porta, cheirando à merda que lhe tinha escorrido pela perna
enquanto atravessava o saguão do hotel e passava pelos guardas que discutiam acaloradamente o
jogo dos Pistons, o DJ não ficou surpreso: simplesmente baixou o volume de dez para sete e
esperou.

Dois anos depois, quando os papéis de divórcio foram assinados por ambas as partes, seria da
interrupção que as pessoas se lembrariam ao pensar na festa; o jeito de Roy parado na moldura da
porta, pernas separadas, braços ligeiramente afastados do corpo, fedendo tanto que nem mesmo o
sistema de ventilação do Hilton, soltando ar a rugir por aberturas de um metro e meio, conseguia
competir; merda, urina, suor e cheiros corporais ao lado do bafo de bourbon de sua boca e um toque
de alho de um pedaço de pizza que tinha descolado no lixo para o almoço naquela tarde. Era um
desses cheiros que permanecem indeléveis, raspado na pedra dos dendritos, um cheiro que diz que
nós somos todos da merda, nada mais, nada menos, Deus nos perdoe. E foi nesse cheiro que Susan
Horton, que depois de dois anos havia incorporado certos refinamentos, pensou quando se sentou no
deque da casa que dava para o Mediterrâneo. Ela estava mais magra. Tinha perdido uns dez quilos
desde que chegara à casa, que ficava em um despenhadeiro, a setenta e cinco quilômetros de
Málaga. Em volta dela estendia-se o deserto; era a África, na verdade, lambendo aquele extremo da
Espanha, dissera-lhe Peter, o britânico que tomava conta das casas americanas fora de temporada.
Ele a pegara no aeroporto em Almeria. Um homem atarracado com uma testa larga. Havia sido
pára-quedista da Força Aérea britânica, explicou, levantando o punho da camisa para mostrar uma
velha tatuagem, tão desbotada e borrada que mais parecia uma marca de nascença. O deque era feito
de lajes lisas com pequenos seixos entremeados, e era gostoso de sentir nos pés ao voltar da praia.
Ela descia para o mar todos os dias depois do almoço, ficava umas duas horas, sozinha em sua
esteira de palha, lendo os livros de bolso salgados que alguém havia deixado lá, e depois, ao voltar
sozinha para o deque, tomava um gim-tônica e de seu lugar à sombra olhava a paisagem. Nessa
tarde, o cheiro voltou-lhe à mente. Ela não tinha visto Roy quando ele entrou cambaleando na
recepção. Ouvira uma descrição da entrada dele feita pela irmã de Horton, Edith, que falou no
assunto depois aquela noite, quando a comemoração terminou, quando Roy, roxo de tanta pancada,
dormia profundamente na cela da cadeia do condado. Os convidados foram retirados da sala, a não
ser a noiva e o noivo, Edith, Ronald, o marido dela e Ellen Standard, que estava tentando remendar
a reputação do marido. À sala estava brilhante, revelando o encanamento no alto e as negras paredes
circunstantes com as marcas de chutes e avarias de todo tipo dos bailes de formatura da escola
secundária. Sob as luzes era impossível não ver a grande mancha oval onde Roy havia depositado
seu vômito inicial, antes de alguém realmente chegar até ele, antes que a pancadaria começasse.
Edith contou-lhe essa parte; falou disso como se falaria de um aperitivo delicioso. Foi realmente
grotesco. Aquilo, aquele homem, parado ali. Eu não conseguia acreditar no que via. Meu Deus, o
cheiro era absolutamente horrível. No balcão de frutas e saladas, tigelas apoiadas em cima de gelo
picado; foi para lá que ele se dirigiu, e Standard, o DJ e alguns gatos-pingados foram os primeiros a
notar.

Duas semanas depois do casamento, na noite em que Roy morreu com Arno cuidando de suas
necessidades, uma primeira rachadura minúscula apareceu no casamento — ao menos, olhando para
trás, parecia ser assim. Ela deu um gole no gim-tônica, sacudiu o gelo, sentiu o ar fresco da
superfície da bebida e pensou nisso: tinham ido ao Wal-Mart de brincadeira, para comprar enfeites
de Natal, para ver os pobres um pouco; estacionaram a Ferrari dele bem longe para evitar carrinhos
abandonados, saíram debaixo das luzes de sódio estranhamente excitados com a vastidão deserta do
pavimento. Estava nevando bastante, formavam-se grumos na estola de pele dela. Em torno da
entrada da loja havia alguns vagabundos. (Na época, a palavra vagabundo servia à sua visão dessas
sombras vigilantes a pairar na periferia das coisas. O pai dela, um imigrante húngaro trabalhador,
via os vagabundos como gente suja, e não conseguiu deixar de instilar em sua única filha a idéia de
que essa gente vagabundeava por vontade própria, nacos da humanidade que havia perdido o passo
na terra. Ela se lembrava dos acampamentos de sem-teto à beira do Elma num ano particularmente
mau; eram principalmente homens vindos do Canadá para colher mirtilo, que viviam em um
aglomerado de abrigos improvisados e barracas de lona. Dava para sentir o cheiro a quilômetros,
dizia o pai dela. Gente suja. Ela estava com sete anos, e um homem foi à casa dela pedir uma xícara
de água ou café. Na Espanha, na mesa, tivera uma breve visão dele: seus belos olhos castanhos,
marmorizados, um rosto jovem. Era um menino, na verdade. Tinha a idade dela, um rapaz novo.
Estava com os polegares enfiados nos bolsos do macacão. Ela o beijou sem nenhuma razão.
Simplesmente sentiu vontade e o beijou, e lá estava seu pai berrando em húngaro, como fazia
quando ficava tão bravo que os circuitos dele entravam em curto e o inglês era dominado pela
língua nativa. Ele perseguiu o rapaz durante quase um quilômetro e deu-lhe uma chicotada com
uma haste de madeira. Isso foi depois da guerra, depois da Depressão e durante um estranho período
de reajuste durante o qual o protocolo para se aproximar dessa gente estava sendo alterado; o país,
explodindo em riquezas, não tinha mais nem mesmo um espaço mínimo para os sujos, nem mesmo
para um contato de raspão com eles, pensou ela, agora, no deque, ouvindo o jardineiro gemer
baixinho para si mesmo.) Dentro da loja, aquela noite, havia o cegante e opulento brilho de neon em
cima de neon, o calor dos corredores cheios de produtos — e, sentindo-se tontos, eles foram para a
seção onde ficavam os enfeites de Natal. Imediatamente começaram a discutir. A discussão se
transformou em briga. A briga foi a respeito da melhor luz, branca ou colorida, para decorar a
balaustrada da frente — era só disso que ela se lembrava, segurando de novo o copo e deixando um
pedaço de gelo tocar seus dentes da frente até o frio penetrar no cerne macio. O sol estava atrás das
montanhas, e a paisagem poeirenta, pontilhada de cascalho, ficou banhada pela pós-vida alaranjada
de um dia; pombos negros ligeiros passaram voando pelas casas caiadas. Em algum lugar fora do
seu campo de visão, o jardineiro regava os canteiros de flores. Foi a constrição de suas palavras que
ela conseguiu lembrar, o tom; a troca de informações em frases tensas — para aquilo que devia ter
sido uma escolha cálida, gostosa, uma escolha romântica —; foi sua primeira indicação da resoluta
grosseria que perpassava Horton Melville inteiro. Ela sorri e pensa no britânico, Peter, convidando-
a para tomar um drinque; lembra-se do volume dele, instável sobre as pernas grandes, do jeito como
ele balançava na ponta dos pés, como um menino. Foi amor o que ela sentiu por esse homem, por
seu rosto vermelho, quadrado, o resistente sotaque cockney, as tatuagens de pára-quedista britânico?
Não era mais o tipo de mulher que evitaria ter sentimentos intensos por alguém depois de apenas
uns poucos encontros, disse a si mesma; as experiências com Horton haviam resultado em sua visão
da vida, e ela agora estava bem certa de que a pessoa é mais bem orientada pelos primeiros
impulsos, pelos movimentos intempestivos, e não por alguma obrigação ou por algum duradouro
senso comum.

Arno agarrou Roy e levou-o pela parte dos fundos da estação de trens, que estava escura diante dos
trilhos de ferrugem sangrenta. Passava um trem por dia para pegar passageiros e prosseguir até
Detroit, se arrastando tão devagar que não eliminava a ferrugem. Estavam indo para a velha torre de
controle da ferrovia Baltimore—Ohio, um barril de pólvora instável, meio queimado de um lado
pela fogueira descontrolada de alguém; atrás dela uma velha fábrica de papel encerado, todas as
janelas quebradas, se abrindo para o céu cheio de neve. (Isso foi mais ou menos na hora em que
Horton, dentro do Wal-Mart, pegou um conjunto de luzes brancas e disse, tenso: “Eu prefiro manter
a tradição”.) E atrás deles, a cinquenta metros, perto da passagem de nível, havia uma mancha
vermelha na neve, no lugar onde Roy havia vomitado, dobrado para a frente como uma carteira de
dinheiro vazia enquanto Arno o segurava pela cintura, sentindo apenas ossos duros, nada restando
que lembrasse pernas.

“Agüenta aí, Roy”, disse Arno.


“A gente consegue, velho”, disse Roy.
“A merda aumenta muito, em dois.”
“É”

Roy não queria morrer; e Arno estava se arrebentando para fazê-lo avançar. A neve caía de leve.
Havia uma capa de dez centímetros em cima de tudo. Na cabeça de Roy, nada além do silêncio de
uma noite nevada, principalmente nas piores partes da cidade, onde, devido à sua própria
dilapidação, restos do passado assumiam uma beleza particular. Ele adorava aquilo. Encolhera-se
muitos verões na torre da ferrovia com seus companheiros, bebendo, fumando sem ouvir
absolutamente nada a não ser, talvez, o agudo zumbido de isolamento de sua própria solidão. A torre
era um bom lugar para ficar, e ele queria estar ali. Era alta. Por mais que a ferrovia tapasse com
madeira as janelas, um bando de sem-teto tomava como seu encargo remover as folhas de
compensado. Debaixo de uma pilha de jornais, num canto, geralmente dava para encontrar calor
suficiente para agüentar até o amanhecer. Mas suas entranhas estragadas estavam lançando pontadas
de dor contra a caixa torácica. A autópsia revelaria o baço esmagado. De qualquer modo, sua
própria lembrança dos acontecimentos tinha sido apagada pela bebida. Se alguém fosse compilar
tudo o que Roy conseguia lembrar inteiramente nessa noite nevada, encontraria uma coleção
elíptica de imagens: frios pisos de madeira; janelas com buracos tapados com jornal amarelado; a
fábrica de papel do outro lado da rua onde seu pai costumava trabalhar; o jeito como os homens
sentavam no batente das janelas no verão, segurando as marmitas, comendo; os longos traços tensos
do rosto de sua mãe se retorcendo quando ela apanhava, os recessos vazios dos olhos, negros como
contas. As noites nas ruas removiam completamente muitas lembranças. A vida dele agora subsistia
em um pequeno cerne bem no centro da cabeça e esse cerne era a lateral da enorme mão de seu pai
batendo nele uma manhã quando tinha oito anos de idade, deixando seu queixo mole como um
lençol pendurado num varal… e isso bastou para alimentá-lo nessa noite nevada.

O jardineiro era extremamente magro, a calça de trabalho azul-escura larga nas pernas, a mangueira
tremendo em sua mão. O gim-tônica tinha acabado, e ela estava sentada, olhando a luz desaparecer
do cascalho, o mar cintilando, ouvindo vozes a subir da praia lá embaixo. Não tinha bem certeza do
nome dele — Miguel, ela apostava. Havia sido contratado por Peter, e Peter era quem mais falava
com ele.

“Hola”, disse ela.

Ele grunhiu, levantou a mangueira um pouco alto demais, derrubou água nos próprios pés. Deitou a
mangueira na base de um arbusto e pegou um lenço estampado do bolso para enxugar os sapatos.
Era o tipo de sapatos que ela tinha visto para vender no mercado: de sola de pneu de caminhão,
couro barato, fino, acamurçado. Tinha ido ao mercado naquela manhã, acompanhada de Peter, que
dissera que fazia parte de seu trabalho conduzir os visitantes — os que não tinham carro alugado —
até o Carbonaras. A seca intensa do campo, somada ao inesperado e implacável calor matinal,
parecia deixar seus nervos olfativos altamente sensíveis. De repente, tudo tinha um cheiro preciso.
A poeira. A areia. As pedras em torno das casas. Os baldes baratos de plástico. Fileiras de frascos de
detergente. Longas mesas de objetos de couro. E, é claro, o peixe e o pão. No deque, observando
Miguel jogar água em outros arbustos (se tivesse olhado com cuidado teria visto como ele apertava
a mangueira com todo o respeito, espirrando, só que um pouco irrequieto. A escassez de água estava
presente nos ossos dele, na pele seca, quebradiça; a água dos poços era salobra e malcheirosa), ela
tocou o lado do braço perto do cotovelo, onde Peter, no meio da multidão, a havia segurado,
conduzindo-a como se fosse uma cega.

Da torre de controle da ferrovia, tinha-se uma vista dos arcos em balanço que sustentavam o teto
coberto de neve da estação de trem abandonada. Ao longo de uma parede do edifício, ficava um
velho carrinho de bagagens com rodas de metal, a única coisa que não tinha sido destruída,
vandalizada, pichada, suja de mijo, merda e vidro quebrado porque era grande demais para ser
empurrada da plataforma — e a ferrugem imobilizara as rodas. Na torre, uma longa língua de neve
tinha entrado pela janela aberta e forçado todos a se encostar na parede dos fundos, onde ficaram de
pernas para cima, amontoados. A respiração de Roy estava difícil e profunda. O rosto dele, áspero,
de barba malfeita. Ele parecia fazer um esforço com a boca a cada respiração. Arno acendeu um
Camel, deu uma tragada, colocou o cigarro na boca do amigo.

“Vamos lá, seu bosta. Agente aí.”

(Agüentar. Como? Por quê? Arno não fazia a menor idéia de como ou por que o babaca tinha de
agüentar. Porque a morte dele era favas contadas, uma certeza contra a qual não dava para apostar.
A frase dele ali era talvez apenas um lugar-comum tranqüilizador pronunciado por senso de dever
com aquelas condições de morte. Nesse caso, podia-se dizer que Arno havia atingido a mais alta
condição de humanidade no sentido de que estava desempenhando seu papel no drama, o penúltimo
drama da vida de seu amigo. Por outro lado, talvez Arno estivesse falando sinceramente; talvez ele
só quisesse que Roy se apegasse à vida, só isso. Talvez sua idéia de arrastar Roy para a torre da
ferrovia fosse para encontrar ao menos um pouquinho de aconchego; quatro paredes, talvez um
cobertor de velhas Elma Gazettes, talvez o prêmio de uma garrafa de vinho do Porto; melhor ainda,
talvez eles fossem presos e ficassem contentes com a prisão.)

Pelo menos tinham passado a noite nisso, se arrastando pela Main inteira na neve até topar com
Zeek, que estava parado no canto interno de um abrigo de ponto de ônibus de plástico branco
raspado fumando um minúsculo baseado fininho, batizado com crack, tremendo de frio e de
nervoso. Dentro do abrigo, os faróis sangravam como linhas chiadas de gelo derretido através do
plástico leitoso. Os homens fizeram uma festa, baforando o ar frio, bebendo no gargalo de uma
garrafa de vinho de cereja Boone's Farm que Zeek roubara de outra loja de bebidas, na ponta da
faca. Quando isso acabou, Zeek materializou — dizendo mesmo a palavra abracadabra — uma
garrafa de Thunderbird de trás da cabeça de Roy e o deixou entornar o quanto quis. Deu o vinho
para Roy como se dá de mamar a um bebê. Fez o babaca arrotar; tomou cuidado para ele não
engolir muito ar. E mesmo estando amortecido de barato, ainda teve o tênue prazer de ver o sangue
do velho companheiro alimentado.

Talvez seja da natureza de alguns casamentos ter a implícita possibilidade de grande violência e
tragédia; talvez seja apenas isso que ouvimos zunindo sob a música, o movimento silencioso de
balões e confetes atirados sobre o estalar de vestidos engomados, dos abraços de colarinhos
apertados e faixas de cetim. O DJ sabia disso. Ele entendeu bem.

Ao voltar do bar com mais um scotch, Standard pensava na atmosfera estagnada dos negócios em
Elma, nos recursos econômicos esgotados daquela parte do estado e num recente estudo que
indicava uma severa carência de material de encanamento e uma subida de preços por causa das
guerras islâmicas em regiões do globo que ele se sentiu pressionado a localizar num mapa. Estava
pronto para alguma mudança no mundo. A música estava facilitando. Houve uma súbita calmaria.
Um naco da conversa geral silenciou, e muitas pessoas — de pé e sentadas — pareceram mudar de
direção, como um rebanho de gansos que muda de direção no meio do vôo. Justamente antes de
virar e ver Roy oscilando na porta, lembrou-se de Melville descendo a escada instável de seu
escritório, ombros retos, cobertos pelo terno risca-de-giz. À placa da Standard Pipe, com bolhas de
vento, precisando de conserto, pendia mole ao fundo. Sem muita vontade, levantara o punho para o
rapaz, querendo gritar alguma coisa, mas sabendo que tudo estava diferente e que os Melville do
mundo haviam predominado. Não adianta nada. Voltou para o escritório, sentou na cadeira
remendada com fita isolante e pensou no assunto — não exatamente fervendo, mas alimentando
uma raiva tensa que conservou dentro de si o verão inteiro e inverno adentro, capaz de senti-la ao
descer de seu Lincoln Towncar para o frio, atravessar o saguão do hotel e mergulhar em seu quarto
(ou seria o quinto?) scotch. Então, quando se virou e viu Roy, as rugas profundas que havia no rosto
do sem-teto, o velho boné de vigia da Marinha polidamente na mão, sentiu um agudo prazer ao se
dar conta de que ia haver um tumulto geral. O fedor, o cheiro de merda, já estava se espalhando.

Existe uma quietude que só os necessitados conhecem. E Arno a sentiu com intensidade ao ajudar
Roy a se acomodar, ajeitando as dobras de seu velho casaco do Exército em torno da cabeça do
sujeito. Foi até a escada para fumar — não por respeito ou polidez, mas como desculpa para sair.
Fazia quatro meses que o verão tinha acabado, quando as noites eram fáceis e eles iam para a
floresta fora da cidade e sentavam em volta da lenha da fogueira perto do barraco de Roy, curtindo
os frutos de um dia cavoucando o depósito de lixo. A fumaça de seu Camel fundia-se à de seu hálito
quando baforava. A temperatura estava bem abaixo de zero. À nuvem de fumaça e bafo pareceu
ficar parada. Que foda, disse baixinho, foda foda foda, e atirou a ponta do cigarro no escuro.

Por volta do momento em que Roy morreu, Susan Porter-Horton estava escovando os dentes, ainda
se acostumando à altura da pia na casa nova deles. A torneira tipo pescoço de ganso, folheada a ouro
de verdade, atrapalhava quando ela lavava o rosto. Ela prometeu a si mesma que ia trocar as
torneiras assim que as coisas se assentassem; ia esperar até as expectativas daquelas primeiras
semanas de casamento se cumprirem e então teria segurança suficiente para fazer sugestões desse
quilate. A casa comprida e esquisita com andares intermediários e floreios pós-modernos havia sido
construída para a primeira esposa de Melville. Estava cheia de fantasmas do passado. Votos não
eram simplesmente apagados nem mesmo por procedimentos legais, advogados de divórcio ou
ódio. Ela lavou a escova de dentes, enfiou de volta no suporte folheado a ouro e olhou o próprio
rosto, as faces macilentas, pálidas, os lábios apagados e os olhos em que não confiava mais.

(Na Espanha, depois de fazer amor com Peter, ela deita na cama ouvindo o vento, que chega quente
da costa da África, entrar pelas janelas; então, por um momento, um fugaz momento, ela repassa
uma longa lista de mudanças que fez na casa — pensa nas torneiras, em seus arcos elegantes, nas
finas maçanetas de osso e imagina se as colocaria de volta agora. Levanta-se silenciosamente,
caminha pelo piso fresco. Na cama, o grande vulto do ex-pára-quedista se mexe e suspira, flutuando
em seus próprios sonhos.)
Todo gesto se torna grandioso diante da morte. Arno voltou para dentro e viu que Roy estava
tremendo violentamente. Sem saber o que fazer, fez o que lhe veio à cabeça: abrindo a camisa de
Roy, montou em cima dele, sustentando o próprio peso nos joelhos e cotovelos, de forma a não
esmagar suas costelas; manteve essa posição o máximo que pôde, até escorregar e suas bochechas
se tocarem. (Haviam se barbeado uma semana antes, na missão batista, lado a lado, Arno ajudando,
deslizando a lâmina Good News pelo rosto fundo do amigo — chiando na água quente. Tinha
havido no ar então um sinal da morte iminente, quando, no chuveiro, os joelhos de Roy
enfraqueceram e ele escorregou para os ladrilhos debaixo d'água. Não tinha havido nada das
brincadeiras com a toalha que — um ano antes — tinham acompanhado os primeiros estágios do
amor entre os homens, logo depois de eles terem jurado por aquela garrafa. Arno tomou banho
sozinho, enquanto Roy, seco e vestido, conversava com Grant, o pastor. Ele tomou banho sozinho
para poder se masturbar, deslizando a barra de sabonete Irish Spring pelos lados do pau — sem
sentir nenhuma vergonha. O amor de suas mãos por seu pau era tão puro quanto qualquer outra
forma de amor. Era amor limpo e divino na terra dos solitários. Levava cinco minutos. À água ia de
morna a quente dependendo do uso da água na cozinha para os pobres, onde as senhoras voluntárias
iam enxaguando os copos à medida que chegavam. Ele estava tendo idéias macias, adoráveis.
Pensava em uma garota que conhecera na décima série, chamada Wendy.) Dez minutos depois,
deixou o corpo de Roy a congelar.

Os homens diante do Hilton à espera de Roy sair aquela noite o esperavam do jeito que qualquer um
esperaria um salvador. Sentaram sonhadores a considerar o que estava para acontecer: ele ia sair
impetuoso com um sorriso sacana e os braços carregados com o butim, passando pelo cara de
uniforme, balançando os quadris numa dança bêbada de vitória enquanto eles gritavam e uivavam.
Era o jeito deles. Sabiam como comemorar as pequenas vitórias. Os homens com a árdua
determinação de estóicos. De vez em quando, depois de algum tempo, um deles resmungava:
“Imagino o que aconteceu com o babaca”. E outro dizia: “Ah, confie um pouco no cagão, ele vai
sair. Tenho certeza de que vai. Pelo amor de Deus, porra. Confie no cara”.* Mas não houve
nenhuma Segunda Vinda, claro, e tudo o que veio naquela noite e na seguinte foi a neve. Caiu em
grandes blocos. Caiu em pó fininho. Caiu em afiado granizo.

* Fica-se tentado a deixar as coisas assim, a terminar aqui com os homens sentados esperançosos
sobre a grade de vapor, o murmúrio do sistema de ventilação do hotel debaixo deles. A neve ainda
está caindo sobre as ruas e na lama de neve que os carros fazem enquanto a miséria geral do mundo
parece estar, por um momento, suspensa. Mas deixar as coisas assim seria deixar os homens em um
estado de ostensiva esperança, como meninos esperando uma recompensa, tão cheios de esperança
que batem os pés e que se escuta no “vamos lá, onde ele está” de Zeek um mantra de esperança
perdido no passado. Então vou acrescentar aqui o fato de que as portas de correr se abriram e dois
homens escoltaram Roy para fora, segurando-o pela lapela, sem chutá-lo para fora da porta, mas
arrastando-o como a um velho soldado ferido da Guerra Civil. Ele estava gemendo. Havia um fio de
sangue escorrendo de sua boca. Um lado do corpo dele — por baixo do casaco — estava
machucado. À interrupção durara apenas alguns momentos. Standard o chutara diversas vezes antes
de Melville e outros dois homens interferirem para afastá-lo. Segundos depois, talvez meio minuto,
as pessoas voltaram para suas mesas, e lenta e gradualmente a conversa começou de novo e o DJ
virou o botão para o nove, tocando uma melodia lenta, porque era isso que a maior parte das
pessoas queria dançar, afinal. As pessoas tinham medo de movimentos rápidos. Queriam fazer de
suas vidas lentos círculos preguiçosos, minúsculos passos esgotados. Por toda a sala casais se
juntaram e foram para a pista executar pífios semicírculos em volta da canção, marcando o território
de suas limitadas expectativas. Era uma canção dos Carpenters. Karen Carpenter tinha morrido
prematuramente de anorexia, e a maioria das pessoas no casamento, ao ouvir suas palavras, pensou
em seu corpo magrinho, devastado, toda a beleza sugada. Era “Close to you”, e tinha uma letra que
falava de pássaros e do dia do nascimento de alguém e de tudo o mais que se quisesse que fosse
emitido por sua voz cheia. Havia dias de solidão e isolamento naquela voz, de susto e medo e uma
mistura de esperança que, cafona como era a letra, fez todo mundo — Melville, sua mulher, todo o
grupo — esquecer a interrupção, lavar a interrupção, até que lentamente ela passasse para a história
e se transformasse, no fim, pelo que sei, em parte da fofoca em geral.
A condição de viúva

O aperto de mão com Hugh Lawson transformou-se em uma suave luta livre, uma força calada de
dedos se enfrentando junto com a suave pressão que o ato requeria. Lá fora, a chuva de vento
amainou um pouco, abrindo um intervalo no qual as pessoas podiam ir embora. Ele se inclinou para
mais perto dela, não perto demais, mas perto o bastante para poder reduzir a voz a um sussurro
íntimo — “sinto muito pela sua perda”. Ela, por sua vez, disse o que toda viúva tem de dizer diante
dessa comiseração, o que vinha dizendo havia semanas sem fim para todo tipo de palavras e
conselhos, acompanhados de caçarolas de atum e xícaras de café, olhando pela janela da cozinha
(porque era aí que a maior parte dos rituais pós-morte tinha lugar) para a longa procissão do rio
Hudson se movendo pelas primeiras semanas de novembro. “Está tudo bem”, ela dizia, ainda com a
mão dele na sua, porque a coisa toda realmente levava apenas um segundo — uma pausa antes de
alguém dizer está parando e outro grupo de pessoas sair pela porta em direção ao frio. “Estou bem”

Fizeram o vídeo no último dia da lua-de-mel, em um hotel em Madri, um lugar quatro-estrelas com
um saguão brilhante, vazio, moderno e escadas de degraus fundos demais para o pé dela; a largura
dos degraus ficará com ela para sempre, assim como o piso de mármore branco, o cheiro de lustra-
móveis no elevador e o porteiro que sorriu gentilmente quando descobriu que era a lua-de-mel deles
e lhes disse, em um belo, lento espanhol da Andaluzia, para não terem filhos logo, para ficarem
longe disso pelo menos por um ano — brindando-os com um amplo e gracioso sorriso cheio de
dentes.

Sangrando de volta na tela: sombras; má iluminação. O jogo de carne e falhas eletrônicas junto com
a luz tênue das cortinas abertas captando meio crepúsculo; era por volta das nove, o que em Madri
no verão parecia pleno dia. As cortinas abertas para uma vista branda, o caminho de entrada do
hotel, a rua — movimentada de tráfego — empalidecida por aquela sépia seca e poeirenta de um dia
quente e bordejada de árvores doentes. Em cima da penteadeira, apoiada em uns livros, a câmera
enquadrava a cama, deixando a invenção do amor deles apenas para aquele quadrado específico de
espaço pouco iluminado e fazendo aquilo tudo parecer — uma semana depois, quando assistiram
em casa, em Nova York — minúsculo, estático, desfeito em fiapos. Os ângulos não estavam certos.
Eles trepavam de um jeito normal. Assistindo depois, deram-se conta de que filmes pornôs eram
distorções em diversos aspectos: posições antinaturais, acrobáticas, de aparência estranhamente real
forneciam uma mecânica visível do entra-e-sai. À pornografia muitas vezes parecia mais natural
que a coisa verdadeira.

Dois fantasmas cambiantes, sem Deus. Ron pendurado em cima dela como uma placa comprida de
carne iluminada pelo luar, enquanto debaixo dele, mal visível, jazia ela, inquieta, a mão estendida
abrindo e fechando devagar, agarrando o ar. Foi esse colher o ar que a fez ficar com as bochechas
vermelhas de vergonha quando assistiram à fita juntos; quando ela viu aquela mão, acenando como
uma criança do convés de um navio que parte, a beleza do momento ficou comprometida para
sempre. Não pertencia mais ao reino da memória.

Ele pairou em cima dela com os braços estendidos enquanto ela rolava de costas. Depois ele fez
amor com ela enquanto sua bunda, pálida como uma lua cheia, entrava e saía do foco. Os dois riram
com isso, com a maneira como a gravação continuou depois de terem terminado, os dois deitados de
volta nos lençóis emaranhados — como duas colheres. Quando ela se levantou, sua barriga sem
cicatriz passou e afastou-se, sumiu de vista. Ele se levantou também, mostrando a bunda chata ao
virar, leitosa, delineada pelo bronzeado escuro, maduro depois de três semanas ao sol, lembrando a
ambos aquelas clássicas tomadas dos traseiros dos sobreviventes dos campos de concentração, dos
prisioneiros humilhados enfileirados no pátio da prisão de Attica quando terminaram os tumultos.

Ao longo da estrada para Fuente Vaqueros, havia árvores de cortiça. Ele as apontou, compridas e
finas, curvadas pelo vento. Atrás do ônibus subia uma espiral de poeira. Visitaram o local de
nascimento de Lorca. Pisos frescos de ladrilhos. A cama onde ele era embalado. Ele assinou o livro
— Ron Stanford. Poeta. (Mixador de som.)

O rio recolhe ondas de branco — faróis passando em cima da ponte, abaixo das fieiras de lâmpadas
nos lugares mais altos. Pontos ao longo do litoral de Westchester —, estacionamentos em estações
de trem, janelas de casas, postes de rua. Seria exato dizer que a noite está pressionando contra as
janelas; há um suave tremor de molduras que cedem quando o vento vem em rajadas fortes — uma
frente fria, disse o noticiário, trazendo com ela o que certamente será a primeira neve do ano.
Buffalo já tem vinte e cinco centímetros — engolindo a umidade do lago Eire. Em uma cadeira,
pernas dobradas embaixo do corpo, ela lê Tchekhov numa edição de capa dura que Ron comprou
um mês antes de saber da notícia. Depois disso, ele deixou de lado o livro de contos: não fazem
sentido quando tento, ele dizia sempre, e seja como for nunca me liguei muito em Tchekhov porque
ele é muito seco, muito virginal. As únicas histórias que contavam eram as mensagens dos
laboratórios; os resultados de exames passaram a ser a literatura da vida dele.

Encostado à perna dela, o telefone toca.

A voz de Hugh parece dura e ressoa no fone, ela tem certeza de que essa é a primeira vez que
realmente ouviu a voz dele, embora tenham conversado um pouco na pré-escola, ao buscar as
crianças, e, é claro, na outra noite, no saguão do bar.

“Tudo bem. Quer dizer, claro, eu só estava sentada aqui.”

“Ah, é que eu pensei... bom, pensei se você não ia querer tomar um café alguma hora, talvez jantar”

“Eu gostaria”, diz ela, segurando com o ombro o fone encostado ao ouvido, indo à janela e vendo a
mortalha de seu rosto até chegar perto o bastante para avistar as luzes, a água, a ponte.

“Eu não sabia bem se você ia querer. Bom, quer dizer, não tinha certeza se seria exatamente a hora
certa e tudo”

Ele parece ansioso por terminar o telefonema, mas têm de marcar uma data.

“Eu tenho uma babá. Jenny. Então qualquer noite está bem”, diz ela.

“Então tudo bem?


Combinam na próxima quarta-feira, 12 de dezembro, e ela faz uma longa pausa para ele pensar que
ela está anotando, porque diz: “Estou anotando, e vou falar com Jenny”, e assim que desliga o
telefone ela o pega de novo e liga para Jenny.

“Eu tenho esta fita”, ela conta a Meg, na cozinha. Estão tomando café, levantando as xícaras
devagar. Uma velha casa ao lado do rio, a cozinha é no andar de baixo. Uma barcaça sobe o rio
devagar lá fora.

“Ron e eu, na nossa lua-de-mel. Transando.”

Meg bebe o café, passa um dedo pela sobrancelha e desvia os olhos de Grace para a terra nua do
jardim e adiante disso para a linha de marga formada pela maré vazante. O sol cintila no esterco
lustroso.

“Ele nem esfriou ainda”, Meg diz, leve o bastante para ser uma piada.

Grace imagina o corpo fumegando em cima da montanha atrás do hospital, enterrado com
celebridades e gente sem importância, sem distinção. Vapor subindo através do solo grosso e as
raízes das árvores e os sacos de turfa de inverno. Meg olha a fita, com os dedos a levanta. As unhas
são compridas, mas ela sabe como pegar as coisas com elas.

“Dá para... ahn... ver muito?”

“Ver muito?”

“É, quer dizer, eu tentei uma vez com… como é mesmo o nome dele?… Bom, não dava para ver
quase nada, na verdade”

“Bom, nós usamos uma câmera velha, e a luz era ruim, mas é bem claro o que está acontecendo”

“O que você vai fazer com isso?”

“Não sei.”

Meg se põe de pé, arruma os lados da saia e olha a vista de novo, depois vai à sala de jogos.

“Talvez deva jogar fora”, diz, voltando com Billy, fechando o zíper do casaco dele até o queixo.
Billy olha para as duas, traído, e diz: “Não quero ir. Não quero ir. Não quero ir”.

“Nós temos de ir, senão não conseguimos chegar ao doutor Drake”, diz Meg. Chega pertinho de
Grace e sussurra: Ele vai ter de tomar uma porção de injeções”.

Haverá um traço de excessiva autoconfiança na voz de Hugh; ele usará paletó de tweed esporte e
gravata larga fora de moda azul-marinho com listas vermelhas; terá a pele coriácea de um homem
que passa muito tempo ao ar livre; os nós dos dedos terão rugas grossas que desaparecem quando
ele fecha o punho, e as mãos são do tipo dedos grossos de pontas chatas, capazes de segurar uma
picareta com facilidade, de agarrar pedaços de rocha ígnea, de empunhar amostras de xisto. Claro
que os interesses dele serão variados, e que dirá a ela que ele — assim como ela — está muito
interessado em música, e ela dirá que se formou em música na faculdade, até fez um pouco de
composição depois, umas peças para piano, uma para pequeno ensemble apresentada em um
festival de música nova no Brooklyn antes de os meninos nascerem, e que desistiu, ou melhor,
deixou de lado, colocou numa estufa. Ele vai mencionar sua teoria sobre o Bach de Glenn Gould,
que o segredo mesmo do universo está entre o discurso — o dar e receber entre as vozes — de suas
Variações Goldberg, a primeira mono, rápida, não a última, onde ele ralentou e fez ainda mais
barulho — o ranger do banquinho e seu perpétuo cantarolar consigo mesmo, e que isso tem algo a
ver com a maneira como Gould pontua as notas, como as dedilha e nunca usa o pedal. Hugh fica de
olhos úmidos só de falar nisso. Ela brinca suavemente com ele, mencionando como é moderno
gostar de Gould. Ele está na moda, ela dirá. Havia aquele filme sobre a vida dele. O que as drogas
fizeram com ele. O que ele fez com as drogas. Tudo que é tão bacana como o modo de ele tocar
acaba distorcido pela moda, vira uma muleta, um calço, uma mercadoria. Ele concorda com a
cabeça, menciona sua preferência pelos mitos indígenas, as histórias dos nativos americanos — ou
seja lá como se deva chamar o folclore de progenitores destituídos… Depois do jantar tomarão um
conhaque no bar do andar de baixo, antes de sair para a neve fria, recém-caída. Primeira tempestade
do ano. As estradas fechadas. As calçadas vazias. Ele a acompanha a pé para casa — ele mora no
alto da colina, ele precisará descer depois para ir para casa, mas ele insiste que não tem importância.
Quando chegam à casa dela, Jenny está deitada no sofá, mas não está dormindo; senta-se, mas não
se levanta quando o vê. Ela às vezes serve de baby-sitter para o menino mais novo de Hugh — mas
ele de repente lhe parece desconhecido. Ela cumprimenta com a cabeça do jeito que se cumprimenta
um transeunte estranho. (“Ele tossiu um pouco. Está pegando alguma coisa”, diz.) Na cozinha —
enquanto calça as botas — Jenny perguntará: Como foi o seu encontro?, com uma voz macia,
conspiratória. Os passos dele ressoam lá em cima enquanto ele se desloca diante da estante de
livros, cutucando os títulos com o dedo. Foi bem. Tudo bem. Ela tentará de todo modo não olhar
nos olhos de Jenny, tomados de uma passividade calma e judicatória. Ele estará sentado na grande
poltrona de leitura quando ela volta para cima; folheando um exemplar de Dublinenses, correndo as
páginas com o polegar como se estivesse fazendo leitura dinâmica (ou talvez um livro de poemas de
Eliot, ou as desbeiçadas Aventuras do ursinho Pooh de Gary — qualquer coisa realmente para
indicar um interesse secundário em livros, para dividir sua atenção); ele está passando os olhos pelo
suéter dela, preto, de gola rulê, lambendo com o olhar a parte de baixo de seu queixo, macia — e é
assim que ela pensará nisso depois, ao sentir a tateante aranha de dedos dele no fecho do sutiã; tudo
bem lamber alguém com os olhos, manifestar seu toque de diferentes maneiras. O que se poderia
considerar como sucumbir — despir-se depressa, na verdade ajudá-lo a entender o arranjo dos
ganchinhos, rir com leveza daquilo, deixar que ele a penetre depois de apenas alguns minutos de
preliminares, as mãos dele sem graça, burras, em suas ondas de limpador de pára-brisa nos seios
dela. O que alguém poderia ver como uma traição a Ron pode para ela ser nada mais que uma
fraude decisiva para o universo. Uma graça. Um ceder à sua dor. O aperto na garganta finalmente se
abrindo depois de dois meses. O arrepio ao longo do lado interno do braço, um frio tinir nos nervos,
se desmanchando em orgasmo.

Meg, dá para acabar com a tristeza trepando?, ela perguntará de repente na cozinha, outro dia,
semanas depois. Mesmo arranjo: tomando café na cozinha enquanto as crianças brincam na outra
sala. Só que é fevereiro. Quase dois meses se passaram. Pela primeira vez em anos o rio está
congelado. Blocos de gelo ocupam as margens, amontoados em pilhas. Noite passada, em seu
quarto encontro com Hugh, foi a um cinema no novo multiplex; jantar tardio em um restaurante
italiano ruim; depois, no andar de cima, em seu quarto, ele fez amor com ela pela primeira vez por
cima e por trás, sem nada além de ar e o movimento dele; a simplicidade da posição, o jeito como
ele estava em cima dela, mas sem tocá-la, a não ser pela penetração, a fez pensar em espaço vazio.
Era fácil demais. Aquela posição, o rosto dela no travesseiro. Como era bom. Meg faz uma pausa,
olha nos olhos dela e então, abruptamente, dá um gritinho e diz o nome dela — CGrrraace Smith
—, alongando como se estivesse anunciando um participante de um programa de entrevistas, e
depois se põe de pé, vai até ela, dá-lhe um abraço de menina, pequeno, apertos rápidos. O que você
tem na cabeça? Leva Grace para a mesa e a faz sentar. E então ela contará como é estar com Hugh,
confessará como foi bom desde o começo, aquela primeira noite, quando ela simplesmente foi em
frente e dormiu com ele, e como se sente culpada por isso, mas sabe que não há nada errado em
sentir prazer com o próprio corpo. Ele tem boas mãos, dirá ela. Ele vai na velocidade certa. Fico tão
envergonhada. Quer dizer, não faz assim tanto tempo que Ron morreu, e a verdade é que, quer
dizer, é tão horrível dizer isso, mas eu sinto como, bom, sinto que tenho de dizer. Ele é melhor do
que Ron era, talvez, quer dizer, talvez eu esteja me enganando, talvez não me lembre, ou isso não
importa — afinal, ele foi embora, fisicamente e tudo, e eu não devia estar comparando, certo, não
devia nem colocar os dois lado a lado, mas é natural, não é? E, é claro, bom, tenho de admitir que
mesmo quando Ron estava bem, antes de ele ficar doente, você sabe, as coisas não eram uma
maravilha nesse departamento nem nunca tinham sido, pelo menos eu não sabia que não eram, mas
agora sei; tenho de comparar, não posso evitar, e seria desonesta se dissesse que, mesmo ele sendo
desajeitado às vezes, é cem vezes melhor do que Ron jamais foi, porque, bom, por causa de alguma
coisa, do ritmo dele. Acho que — ele é muito musical. Ele é fantástico, uma performance de
virtuose todas as vezes.

Ela imagina que ele vai propor encontros fora da cidade, o relacionamento deles desabrochando em
círculos concêntricos, como as zonas danificadas do ponto zero de uma explosão atômica. Eles
farão passeios com Gary nos fins de semana, e Rudy e Stan, os meninos dele, virão para brincar,
Stan talvez desempenhando o papel de irmão mais velho. Irão de carro a West Point na primavera
para assistir a parada dos cadetes. Depois, uma noite — quase um ano depois —, começo do
outono, vão atravessar sozinhos a ponte do monte Bear e seguir pelas curvas da estrada norte ao
longo do rio. Ela chutará os sapatos e espreguiçará os dedos dos pés com meias de náilon no ar
quente do aquecedor — a mão pousada, solicitante, no joelho dele, se retorcendo sobre o veludo
cotelê largo, alisando o tecido, esfregando de leve a protuberância rija entre as virilhas dele. Um ano
se passou. A dor desapareceu. O que ela consegue lembrar de sua vida com Ron virou uma coisa
polida, ideal, uma bela relíquia (ou o inverso; o casamento todo, puro tédio, o homem, um chato, o
fim inevitável de um jeito ou de outro). Ela olhará pela janela o escuro invernal — mal ouvindo
Hugh, que fala sobre um castelo no alto da montanha, construído por um barão ladrão, e como ele
uma vez subiu uma trilha para ver as ruínas da casa, os alicerces de pedras cheios de madeira
queimada. Chegarão à cidade, estacionarão na rua. Uma neve ligeira estará caindo. O restaurante no
fim da rua, diante do píer, terá janelas compridas que permitem uma vista do rio — e, do outro lado
— além da estreita curva de água — a alta rocha sólida e escura do monte Storm King; ele dará
alguma explicação de como essas rochas não foram esculpidas pelas correntes glaciais. Ela ouvirá
pela metade. Terá se acostumado à voz dele, aos tons vibrantes e aos solilóquios sobre formações
geológicas; o mundo dele é estriado, quebrado, governado por forças que provêm de algum centro
primordial, ele tem uma pegada firme nesse mundo, na vida, e a terá levantado, vai tê-la em seus
braços, no estacionamento, depois da refeição, e ela sente, subindo da lã úmida, um vago resquício
da colônia forte que ele usa. O anel de noivado um pouco largo no dedo dela. Ela o mantém
ligeiramente dobrado durante a volta para casa. A tristeza perdeu o pé. Tornou-se apenas um tênue
resíduo.

Quando a idéia lhe ocorreu, ela estava na cozinha, misturando grumos de chocolate em pó em um
copo de leite. Isso não pode transpirar. Não posso deixar isso acontecer. Quarta-feira, 12 de
dezembro. Do lado de fora da janela, o rio, liso, tremulava como prata derretida. Gary e Billy
brincavam. À samambaia enviada pelo correio estava no centro da mesa junto a uma pilha de papéis
que ela precisava examinar — relatórios de seguro, documentos de impostos, contas, coisas que
precisavam ser organizadas. Ia empurrar a samambaia para Meg; era um presente tardio, um esforço
de consolação de última hora. Colocou o cartão num cesto embaixo da mesa, junto com os outros;
havia centenas — gente de Los Angeles de quem nunca tinha ouvido falar; gente de cinema que
despejava condolências desonestamente do mesmo jeito que despejava elogios sem pensar (quando
alguma coisa que você fazia estava ligada à produção de dinheiro). Detectou um traço impiedoso,
grotesco na chegada dessa samambaia: era presente do antigo agente de Ron, um homem bonito,
malandro e falante, de uma megaagência que fora parte da vida de Ron durante aqueles poucos e
intensos anos em que tentara a sorte nos roteiros.

Aquela noite nevou de verdade — quarta-feira, 12 de dezembro de 1999. E eles se sentaram de


verdade um na frente do outro na Hudson House e conversaram. À pele dele era coriácea, e ele
falava sobre a Islândia quase o tempo todo, até brotar naturalmente da conversa a sugestão de que
ela talvez quisesse conhecer o país algum dia; nada sobre dançar na boca de vulcões ou se jogar
dentro de um em sacrifício, mas uma insinuação disso. Ele tinha pulsos largos e o hábito de juntar
as mãos como se fosse rezar. À voz dele tinha um timbre lânguido, sereno — talvez um pouquinho
confortável demais — enquanto falava do divórcio e dos anos seguintes como pai solteiro (quatro
anos ao todo, mas que pareciam uma vida inteira).

“Não posso dizer que seja um homem particularmente solitário”, disse quase no final. Era tarde. Os
garçons parados, entediados, no fundo do restaurante. Um deles conferia com o dedo as
informações na tela do computador. O ar tinha cheiro de bife queimado, de fumaça de cigarro que
subia do bar lá embaixo.

“É um jeito engraçado de colocar. O ‘particularmente’, quero dizer. Você parece não ter muita
certeza.”

“Eu sei. Eu me vejo, bom, acho que é o cientista dentro de mim. Não dá para evitar. Eu olho a vida
objetivamente. Gosto de ficar um passo atrás. Acho que com as pessoas solitárias é o contrário. Elas
se fecham em si mesmas e nunca olham o panorama geral”

“Acho que eu sou dessas pessoas solitárias. Não sou muito cientista. Fui reprovada em biologia. A
única coisa que me lembro é de não ter conseguido fazer isso...”

“Fazer o quê?” Ele pegou a taça, ergueu-a, olhou para ela através do pé acanelado.

“Dar um passo atrás em relação a tudo. Acho que foi um gato que nós abrimos em biologia”

“Ah, um gato. Uma dissecação.”

“É.”

“Cientistas raramente são solitários.”

“Bom”, e então, antes que ela pudesse continuar a resposta, o garçom trouxe o café, a conversa
morreu na presença dele, nunca retomaram o assunto. Desse ponto em diante, foi um papo mais
casual, e depois, no andar de baixo, na rua, a surpresa de mais alguns centímetros de neve fresca; a
caminhada para casa; pagar Jenny, a breve conversa com ela no saguão — “Como vai indo?”
“Muito bem, muito bem.” “Nós nos divertimos.” “Obrigada por ter ficado com as crianças.”
“Cuidado, as calçadas estão escorregadias” E então ficaram sozinhos com o som tranquilizador da
respiração de Gary na babá eletrônica.

Havia lendas: os sioux do rio Branco acreditam em Takuskanskan, o poder do movimento, um


espírito que está por trás de todo movimento — e daí o nosso delicado mito da relação sexual, de
que de alguma forma as almas se transfiguram no ato, de que todo aquele movimento, virar, mexer,
gemer, pode nos refazer.

Sozinho na manhã de domingo em seu recanto colonial no alto da montanha, Hugh sentou-se a uma
ampla mesa oval, diante da janela, e serviu-se de café numa grande caneca que havia trazido da
Alemanha por ocasião de uma conferência sobre rochas; na outra sala, os meninos estavam vendo
televisão — um leve murmúrio de efeitos sonoros, de vozes agudas. Sua vida mudara. Disso ele
tinha certeza. Havia confusão, uma suave, porosa tontura no centro de sua cabeça. No peito, abaixo
das costelas, havia se formado um vácuo, e ele tinha certeza de que eram os primeiros estágios de
uma ligeira depressão que se instalava. Para combatê-la, tomaria um comprimido e levaria os
meninos para a montanha Bear, alugaria patins de gelo, fariam manobras, ele treinaria algumas
novas. A sensação das lâminas ao caminhar pelo piso de borracha, antes de pisar no gelo, daria um
jeito nele. Depois, levaria os dois para a hospedaria para tomar chocolate quente e então, enquanto
baixava o crepúsculo de um azul sombrio, pré-Natal, iria para casa, seguindo a corrente vermelha de
faróis traseiros pelo vale do Hudson. Iria sentir-se melhor ao lado de mil outras almas — todas
mergulhando de volta em uma noite de domingo. Talvez ao voltar para casa telefonasse para Grace.
Talvez não. Estava em dúvida. Ela era um caso estranho. Peso morto demais. Naquela manhã ele
não se sentira do tipo salva-vidas. Afinal, havia uma mulher solteira chamada Ann em quem andava
pensando.

Ela trabalhava na mesa de referências da Biblioteca Butler de Colúmbia. Durante a pesquisa para
seu livro, uma história geológica da Islândia, haviam flertado bastante, a ponto de ele saber que ela
provavelmente aceitaria o convite para jantar no campo — um passeio até Saw Mill; ela podia
passar a noite (ele ficaria no sofá e mandaria os meninos para a casa de amigos), ou ele a traria de
volta de carro.

Mas sua vida mudara. Nunca mais seria exatamente a mesma. À estranheza daquela noite seria
difícil de quebrar.

Ela estava com tudo preparado, a fita de vídeo já no aparelho. (Quando a colocou, sentiu o desejo
da máquina pela fita. Era o cassete menor aninhado dentro de um mecanismo maior que
escancarava a fita contra o beijo da cabeça de reprodução, todas as fitas, roladores e pinos esticados
e firmes.) Apertou o play. Ao lado dela, no sofá, Hugh assistia com um olhar plácido — um ar de
polida expectativa no rosto ao cruzar as pernas e apoiar o calcanhar suavemente em cima da mesa
de centro. Ele estava sem sapatos. Havia um reforço de cor diferente na ponta de suas meias, e um
exemplar de Dublinenses encadernado em verde-escuro em seu colo. Ela não disse muito, apenas
murmurou que queria que visse uma coisa, e pronto, a verdade é que ele — ela só pensou nisso
depois — nem perguntou o que ela queria lhe mostrar. Não se preocupava em saber com
antecedência o que ela ia botar na tela. Não havia nele uma necessidade de saber. Não tinha
importância. O que ela decidira colocar na frente dele à guisa de entretenimento não era a questão; o
buraco era mais embaixo. Então a máquina fez aquele barulhinho de rodar — toda aquela tensão;
ouviu-se um bip, apareceu uma tela azul, depois uma tela preta com algumas listas brancas de
estática embaixo — e então, aparecendo do escuro, clareando devagar e se abrindo como uma
cornucópia de luz e partes corporais, a cena dela e Ron fazendo amor na lua-de-mel; primeiro um
borrão, depois fundindo-se (como ela imagina que Hugh viu aquilo) no escuro, uma malha de luz, a
fenda da bunda de Ron e as pernas dela abertas, entrando e saindo de foco ao mesmo tempo, tudo
acompanhado pelos suaves gemidos dela e pelo motor da câmera — o chiar do ar-condicionado e,
por trás de tudo, as motocicletas zunindo na calle.

O que é isso?”, Hugh perguntou com algum sobressalto, pesando cada palavra.

“Sou eu com Ron”, ela respondeu; estava no chão, com as pernas dobradas debaixo do corpo,
sentada a meio caminho entre o aparelho de televisão e o sofá.

“Sem dúvida”, disse ele.

Podia ter dito Desligue isso, por algum tipo de incômodo, ou vergonha; ou podia ter se excitado
pela triste provação de assistir ao marido morto trepando com ela: ela podia ter se levantado chorosa
e gritado Olhe o que o mundo tirou de mim, mas em vez disso ouviu-se o suave bater de janelas da
tempestade recebendo uma rajada dura de vento do norte; havia o zunido do motor da câmera ao
fundo ressoando na penteadeira espanhola; o leve arrebatamento de duas pessoas chegando a um
orgasmo prematuro contra a vontade; as pernas dela trançadas com força na parte de trás das coxas
dele; nada engraçado dessa vez; parecia uma fita imensamente diferente da fita que ela vira com
Ron na televisãozinha do apartamento deles na cidade. (A televisão de agora era duas vezes maior.)
Hugh recostou-se para assistir e não disse nada. Fez Isso em parte por consideração pelos
sentimentos dela; levantar e ir embora — dada a santidade da situação — não seria gentil, estava
pagando para ver, então assistiu durante quatro minutos, até a desajeitada separação depois do
orgasmo, carne e carne se afastando, e viu os pixels de luz se juntarem no que parecia um template
para a fita pornô feita em casa. (Nunca havia alugado aquelas fitas pornôs amadoras da locadora,
mas aquilo era exatamente o que ele esperava.) Assistiu ao final e ficou sentado enquanto ela
desligava o aparelho, passava as mãos pelo cabelo e dizia a ele que era melhor ir embora ao
acompanhá-lo pela escada até o saguão de entrada onde ele havia deixado as botas, e agradeceu pela
ótima noite enquanto ele amarrava os cadarços. Depois, ela segurou o casaco e ele enfiou os braços
pelas mangas; e o tempo todo ela falava sobre a carne de porco com massa de pão que comera no
jantar, como era adorável a atmosfera da Hudson House, até ele se virar e dizer: “Fique aí”, dar-lhe
um pequeno abraço, adivinhando a maciez dos ombros dela através do casaco grosso. Ele então
seguiu o caminho até a subida da rua principal, virou à esquerda e andou pela cidade. Levantou o
capuz, e o chiado asmático de seu hálito lhe fez companhia. Era um cientista, acostumado a encarar
os fatos, mas não tinha o coração duro. Sabia o que estava acontecendo. O jogo era claro. Ela queria
terminar, jogar aquilo em cima dele, sua vida antes da morte de Ron. Não estava pronta para amar
de novo. Era cedo demais. O coração dela ainda estava com Ron, como devia ser. Ela era
perfeitamente normal. Não havia nada errado no que ela fizera, mostrar a ele a fita daquele jeito,
encenando uma recomendável fidelidade a seu passado; era o tipo de atitude impulsiva, talvez
desequilibrada, que se esperaria de uma viúva. Estranhamente, ele pensou, era (agora estava
subindo a encosta com passos rápidos, convulsivos) o que se podia querer de uma viúva. À gente
quer aquela tristeza macia. Quer o comportamento estranho — instabilidade apaixonada, arrebatada.
Quer a dor manifestada em atos desusados. Caía uma neve fina, que derretia ao tocar seu rosto. A
tristeza parecia crepitar debaixo de seus pés. O planeta inteiro era uma matriz de movimentos, ele
sabia, provocando mudança irremediável. Pensou na Islândia, nas violentas irrupções de calor
irradiante enterrado no fundo do mar — nas longas fissuras de magma se infiltrando na imensa
pressão das profundezas, apenas quatro metros de água equivalem à pressão de quilômetros de ar, e
mais fundo ainda, a um peso fantástico. Dentro de uma semana, de volta à Islândia para a
conferência sobre placas tectônicas, ele relaxaria e reconsideraria as coisas. Ia pensar apenas nos
problemas do sistema geotermal, precisos, no entanto ainda terrenos e em última análise
inapreensíveis. Tomaria o barco para o local da pesquisa e mergulharia com seus colegas. Havia
mergulhado antes no Alvin — uma borracha de vedação, a única coisa entre a vida dele e aquelas
tremendas pressões. Paredes de titânio puro, um metro e meio de espessura, mas tudo o que havia
entre a vida e a morte era aquela borracha de vedação. Ele adorava a Islândia. Não tinha fim a
quantidade de calor que podia brotar da terra — absolutamente livre. Nunca fazia frio dentro de um
lar na Islândia. O preço: fantástica instabilidade vulcânica, a insegurança de saber que a qualquer
momento, qualquer dia, o lugar todo poderia ir pelos ares numa explosão. Estava na porta de sua
casa. Com a mão na fechadura. Tinha tanta coisa a fazer. Tinha de pensar sobre tudo aquilo e chegar
a alguma conclusão.

Os meninos dormiam. No andar de cima, despiu-se no escuro e deixou as roupas no chão. Não
escovou os dentes. O torpor do conhaque estava se esgotando, e havia ainda o gosto do jantar em
sua boca. Deitou-se e olhou as sombras de galhos escuros no teto. Havia um vento forte, constante.
Manteve os olhos abertos o quanto pôde. Quando fechou os olhos, viu flutuando por trás das
pálpebras as sombras da fita de vídeo, mal distinguíveis, os joelhos de Grace e a parte de trás das
coxas de Ron, fundidos pela luz e pela lente naquela tarde em Madri; embora não desse para
identificar precisamente o som, podia ouvir o zumbido das motocicletas passando pelas ruas
antigas, estreitas.
Tahorah

Ele estava na UTI cardíaca e não suportava mais todos os grunhidos e gritos bárbaros que vinham
do quarto vizinho e do corredor. Com que nome identificá-los, ele não tinha certeza; algo
estrangeiro, porque o patoá que estavam falando não fazia nenhum sentido e lhe dava nos nervos
quase tanto quanto o choro, os soluços, aquilo tudo, mas não podia fazer nada a respeito porque
estava empapado de morfina e não se concentrava nos detalhes; desistiu dos detalhes depois do
segundo infarto, de toda aquela dor, grandes muralhas de dor, como no cinema, gemendo e tentando
dirigir o caminhão para o acostamento; onde foi isso? A duzentos e quarenta quilômetros de
distância de Altoona? Quase em casa? Em algum lugar de Jersey? Ninguém da equipe médica
parecia saber, ou dar importância. O crepitar do cascalho na pista, o raspar liso, baixo, ao bater no
guardrail, o grito da matéria plástica do pára-choque descolando — e depois o deslizar daquele
jeito, rolando uma parte para cima, de lado, a cabine dele, vermelho-carmesim escuro, enquanto o
reboque se soltava, virava e rolava ribanceira abaixo. O resmungar de reza — era isso que vinha
agora da porta vizinha, ele sabia, pelo menos uma partezinha dele sabia. Alguns estavam
resmungando aquela coisa bem na porta dele. E ali estava o cara que Angela mandou dizendo
Nossas preces estão com você e falando, os lábios junto à sua orelha, hálito de Listerine, um
daqueles que têm sobrancelhas enormes — verdadeiro homem das cavernas, esse pregador da
Bethel First Christ, na Rutherford, ou perto dali. É o que Angela considera uma piada maldosa, um
último hurra, sabendo muito bem que ele não ia querer, provavelmente inventando uma longa
história sobre o ex-marido e a culpa e como ela sentia que ele precisa de consolo e segurança no que
sem dúvida seriam suas últimas horas. Agora, além do movimento no corredor, tinha de aguentar os
tons piedosos do resmungo da voz desse cara, falando alguma coisa sobre o caminho estreito de
Cristo; engraçado, era a única coisa que ele sabia, ou parecia saber, sobre seu coração, o
estreitamento da artéria entupida pelo excesso de donuts, café demais e longas horas na estrada
injetando heroína, misturando vodca com qualquer coisa que lhe caísse nas mãos, nos últimos anos
fazendo transporte transcontinental de qualquer carga que conseguisse. Engate a cabine no reboque
e não faça perguntas.

Quando tentaram fazer uma ponte, a artéria arrebentou, definitivamente, e ele teve um segundo
infarto bem ali na mesa. Não dá para fazer nada agora, disse o médico, a não ser esperar as vinte e
quatro horas de graça ou de falta de graça, o momento crítico, e esperar pelo melhor, porque,
independentemente de qualquer coisa, parte do coração dele era matéria morta. “Se você for
morrer”, disse o médico, “o mais provável é que seja nas próximas vinte e quatro horas.”

E agora esse padre anão ou seja lá o que for fazendo sermão sobre o caminho estreito de Cristo.

“O que o senhor quer, padre?” Mal podia abrir os lábios, rachados de tão secos. Sentira a boca seca
a noite inteira, seca ao entrar o dia e agora seca à tarde, não importava quantos copinhos plásticos
de suco de uva sugasse.

“Padre?”, disse o sujeito, baixinho. E limpou a garganta. “Não precisa usar esse tratamento comigo”

“O que está fazendo aqui, padre?”

“Eu prefiro Bill, se você não se importa.”

“Tudo bem, Bill”, disse ele, os lábios se contorcendo em torno das palavras do jeito que fazem no
cinema quando a trilha de som está ligeiramente defasada.
O pregador, ou ministro, ou pastor, não parecia confortável de pé e foi procurar uma cadeira, puxou-
a num rangido alto, sentou-se junto da cama, depois apoiou os braços na guarda da cama e olhou
seu fiel.

“Vim para lhe trazer a palavra de Deus”, disse o sujeito, falando no que era sobretudo um sussurro,
mal audível por cima dos bipes e suspiros das máquinas; tubos e fios pregados em seu peito, braços
e pernas. Bem nesse momento, antes que o pregador pudesse começar a ganir de novo, houve um
súbito e persistente bipe. Uma enfermeira veio depressa e puxou o lençol branco de algodão para
baixo de seu pescoço, expôs os caracóis escuros, profundos, dos pêlos de seu peito, e deu uma
picada até que o bipe contínuo parou e permaneceu apenas o batimento cardíaco e os goles macios
do balão de oxigênio, o aparelho de contagem de pulsação da aorta. O ministro Bill afastou a
cadeira e ficou sentado quieto. Melhor assim. Ele estava boiando na maciez da morfina ou de seja lá
que analgésico fosse. A palavra de Deus podia esperar. Mas então a enfermeira saiu, e o pregador
aproximou a cadeira de volta, levantando-se dessa vez, e debruçou-se na guarda de novo e começou
a falar do caminho de Deus e de Cristo, aquele nhenhenhém todo, falou do quanto Angela o amava,
embora o doidão não entrasse em contato desde 1976, belo bicentenário: vinte anos, ele pensou, e
acabou dando em um padre anão resmungando sobre o hino favorito dele, algo como “Ó, adoremos
ao Senhor, glorioso nas alturas”, citando o hino para ele, o hálito medicinal bem próximo, tirando
vantagem de sua impotência para estar bem ali, a menos de quinze centímetros da cara dele, até
cantando um pouco — uma espécie de canção de ninar meio recitada: “Débeis filhos do pó, fracos
na fragilidade, em vós confiamos, e sabemos que não falhareis”; e então ele disse ao padre anão,
tendo de fazer um verdadeiro esforço para falar: “Padre, me faça um favor. Cale a boca. Ou fale em
línguas, se quiser. Mas se continuar cantando, eu saio da porra desta cama e quebro seu pescoço”.

Foi no Tennessee — numa viagem à Flórida com uma carga de peças de máquinas — que ele viu a
igreja dos que falam em línguas. Se enganchou com uma garota chamada Lauren, menina doce,
num bar de caminhões, acabou no trailer dela fodendo até se fartar, e no dia seguinte, domingo,
arrastado por ela para a igreja, viu todos tagarelando naquelas línguas de cobra. Saiu da Igreja,
esquentou o motor e foi para o sul, pronto. Agora no quarto, com padre Bill ali na cadeira sentado
quietinho, ele escuta o chiado de vozes no corredor, a família inteira lamentando alguma perda,
matraqueando na língua deles, depois uns pedaços em inglês, depois a língua deles de novo. Outras
vezes misturam as duas; tudo fundido num chiado que parecia aquele usado pelos que falavam em
línguas naquela manhã em algum estado dos cafundós em que ele estava — Tennessee ou
Kentucky.

Por um segundo, quis perguntar de Angela ao pregador, só como ela estava indo, mas sabia que o
sujeito, que muito provavelmente jurara não contar nada, ia dizer apenas Bem bem, e ficar nisso. O
que mais iria dizer? Que ela estava chafurdando na merda, pobre de morrer, sem pagar aquela
merda de casa em Elmwood ou Shorthills? Pelo que sabia, ela não estava mais lá, mas pensava
nisso mesmo assim quando pensava nela, com os meninos, batalhando em cima de um tanque de
roupa suja e de uma tábua de esfregar, qualquer coisa assim — nada real. Quando ele imaginava,
era desse jeito: imagens de algum lugar que nunca existiu, porque ele não conseguia lembrar o que
havia existido. A casa que tinham em Rutherford. Uma casa simples de tábua, casa de catálogo da
Sears. Um bom jardim de ervas daninhas com uma daquelas araras de secar roupas e sempre roupa
lavada pendurada nela como uma rosa branca de lençóis e roupa de baixo desabrochando quando
ele chegava em casa do trabalho naquele ano em que estava trabalhando fixo, provendo, fazendo
sua parte; o pregador Bill não ia admitir, se perguntado, que ela estava banhada em dor como ele
estava, talvez pior, câncer no cérebro, uma inválida, ou pirada, presa ao leito em tempo integral em
alguma ala de algum lugar. Claro que ela estava bem, Bill diria. Tentou lembrar-se da cara dela e
teve uma visão de seu cabelo vermelho-escuro, o rosto oval largo, liso, a pele muito branca e a
risada viva. Teve uma visão dela na cabana que alugavam no norte do estado, perto da água,
fumando cigarros enrolados à mão e bebendo cerveja até acabarem na cama, uma coisa sacolejante
de ferro, sem roupa e só aquele pálido lusco-fusco de verão, meio brilhando, meio sumindo,
deixando a pele dela lisa feito leite integral; uma maravilha de macia, ele lembrava, principalmente
a parte baixa da barriga chata, até o osso do púbis, as cristas duras de ambos os lados, e com uma
brisa daquela, nem muito quente nem muito fria, soprando pelas venezianas.

Quando acordou era noite, no alto a luz verde-pálida das venezianas e a dura luz alaranjada da
rampa do estacionamento na janela. Do corredor vinha um brilho puro, felpudo, de neon. Padre Bill
tinha desaparecido, a cadeira vazia onde ele a havia deixado, perto da porta. A leve alternância da
bomba funcionando; a tênue pulsação do aparelho na cavidade do peito se abrindo com o ar e
desinflando junto ao coração como um passarinho aninhado entre as costelas.

Por quanto tempo ficou deitado, ele não sabia; horas, minutos. Só a máquina e uns gritos no
corredor — árabe ou alguma coisa —, algum menino pequeno fazendo barulho, choramingando, a
família ainda reunida lá fora, mas meio quieta e silenciosa agora, talvez fosse tarde demais, eles
todos dormindo na sala de espera junto com os outros. Devia haver muitos; um hospital grande,
superlotado, muitas mortes ocorrendo na UTI e na UTI cardíaca.

Um dos médicos entrou e conferiu as tabelas, cutucando, sem falar muito porque sabia o que estava
fazendo, sabia que aquele rabugento que havia sido arrastado de uma rodovia tinha temperamento
difícil e não gostava de papo. Uns cutucões e apalpadelas, uma conferida nos dados da tela.

“Vamos remover o balão”, disse ele. “Já ficou bastante, e é um equipamento bem caro, tem outro
paciente que está saindo de uma cirurgia de emergência e vai precisar dele já, já. A polícia poderia
trazer outro de Newark, mas acho que você já está estabilizado agora.”

Amarrada embaixo de sua perna havia uma prancha comprida para manter as coisas niveladas e
planas; e na perna, perto da virilha, havia um buraco do tamanho de uma moeda de dez centavos,
mas que dava a sensação de ser de uma moeda de vinte e cinco, buraco que ia dar na artéria
femoral. Um buraco na porra da perna, ele pensou dezenas de vezes, e não um buraco de bala. Ele
pensava que se algum dia tivesse um buraco na perna — um buraco de verdade —, seria de bala de
um daqueles drogados dos bares vagabundos que freqüentava na estrada que ia da Califórnia a
Nova York. As enfermeiras entraram: uma garota hispânica, mais para gordinha, mas ficava com ela
assim mesmo se tivesse ânimo — ah ah ah —, e uma mulher grande, mais velha, de cabelo cinza-
azulado, e depois um enfermeiro; os três juntos o seguraram, cada um pegando uma parte diferente
enquanto o médico tirava devagarinho o balão de onde estava, junto ao seu coração, puxando o cabo
pelo buraco de moeda, baixando pela artéria femoral, onde não era lugar dele e onde com toda a
certeza não cabia, porra, porque a dor era de queimar, explosiva, convulsiva, e ele franziu a cara —
toda queixo e rugas de sol — e gritou feito um porco espetado: “Me dêem algum analgésico, seus
idiotas, idioootaaas”, enquanto o médico enfiava alguma coisa que parecia um saca-rolhas no
buraco e dava um último puxão, tirava, sem dizer uma palavra, trabalhando em silêncio a não ser
por umas instruções murmuradas para uma das enfermeiras.

“Sinto muito” O médico deu de ombros.

“Aposto que sente mesmo.” Mal conseguia falar. A dor estava produzindo explosões de faíscas
dentro de suas pálpebras.

As enfermeiras e o médico trocaram olhares, como quem diz: Este aqui é um bom de um filho-da-
puta, mantenha distância; se a gente pudesse, botava uma mordaça nele, torrando dinheiro do
hospital, dinheiro do governo e a paciência de todo mundo; mas o médico pôs a mão na testa do
sujeito, esfregou um pouquinho. Ficou com a mão ali tempo demais para ser qualquer tipo de teste
de febre ou auscultação de alguma coisa.
“O que aconteceu com o pregador?”, disse ele.

“Como é?”, disse o médico.

“O pastor, o papa-bíblia, o que aconteceu com ele?”

“Não tenho a menor idéia.”

Depois o deixaram sozinho com a pulsação dura da dor, ou o vestígio da dor, porque assim é que
era, como o guincho do giz na lousa ou uma marca a ferro ou algo parecido — uma sensação que
subia pela perna inteira e para dentro do peito vazio, agora sem o passarinho aninhado, nada além
de ar e de seu próprio coração batendo lá dentro; uma sensação da dor daquela coisa sendo
arrancada por dentro da perna pelo idiota do médico. Um bipe tênue, baixo, da máquina indicava
seu pulso, ele sozinho, e o barulho no corredor ficando mais alto com o blablablá e todo o resto,
mais vozes, os tênis guinchando no piso encerado, mais passos, mais e mais.

No corredor, antes de ele sair e colocar o rosto fantasmagórico na frente deles, com tubos
pendurados e de camisola fininha, sufocando, a família estava reunida de lado, rezando,
conversando, chorando — dois meninos pequenos que só puderam entrar na ala porque eram as
últimas horas, se não minutos, da vida de Tara. Dias antes os médicos haviam calculado as chances
dela entre poucas e nenhuma — ou então calculavam a coisa em números, mais provavelmente,
tentando manter tudo no âmbito matemático, as possibilidades, porque sempre que se fala de
juventude perdida — de morte jovem — o melhor é colocar as coisas o máximo possível em
números. O pai de Tara usava, e isso já havia dois dias, um casaco esporte de tweed marrom-escuro,
sapatos mocassins, calças cáqui, e estava com a cabeça enterrada nas mãos. Largado contra a
parede, falando sozinho, calcanhares apoiados no chão. Ao lado dele, sentado no chão, escutando,
Stanley, seu irmão, que ao saber da notícia tinha vindo de Israel no primeiro avião; estava com jet
lag, exausto, e sentia-se flutuando em um espaço ofuscante de tão limpo no corredor; passara a
tarde toda ali, tentando acalmar a alma de seu pobre irmão, de quem andava afastado. Tudo por
causa de quê? Uma remessa malsucedida de mercadorias, que ele enviara ou deixara na fila; nada
que fosse realmente culpa sua — ele não tinha feito nada além de ser o intermediário de sempre,
mas a coisa de alguma forma degringolou entre os dois, e, depois de algum tempo, a não ser pelas
pequenas gentilezas para manter uma aparência de civilidade (principalmente, é forçoso admitir, por
causa das mulheres), os dois raramente se falavam; o mal-estar foi ficando maior com o tempo — a
discussão sobre o dinheiro perdido —, até que tudo o que acontecera antes disso, recuando até as
miúdas disputas por bolinhas de gude em cima do asfalto imundo diante do apartamento deles em
Israel, cada momento tenso, passou a parecer profético. Para Stanley, que tinha medo de elevadores
e de prédios altos, tornar o avião e viajar havia sido um grande gesto, os braços mais que abertos
cruzando os céus de Tel-Aviv (conforme ele via a coisa); uma prova de seu verdadeiro, profundo
amor, um amor que ia além de um mau negócio (cinco mil chaves de cano, todas fundidas com uma
garra frouxa); mas, é claro, o que se podia esperar de um irmão profundamente triste senão isso —
esse cambalear do corpo ao som da tristeza? Esse homem choroso, exaurido, sem saber o que deve,
o que pode, o que deveria ser feito? Então tudo o que Stanley fez foi sentar com seu irmão, ouvir,
balançar a cabeça, aquiescer, acrescentar uns poucos comentários de vez em quando em hebraico
(supondo — talvez erroneamente — que só de ouvir a língua-mãe Howard se consolaria). Atrás
deles, dentro do quarto de Tara, as mulheres estavam em volta da cama, as pontas dos dedos
pousadas nos lençóis, afastando o cabelo da testa da jovem. Um carro havia desobedecido o sinal de
parar em Hackensack — num sábado à tarde, tráfego leve para aquela esquina, um homem mais
velho dirigindo um Buick Skylark verde-pálido, com a pressão sangüínea quatro vezes mais alta
que o limite legal, ultrapassou correndo e pegou de lado o Toyota dela a cento e vinte por hora.

Quando ela chegou perto do fim — e dava para dizer, ou melhor, as enfermeiras indicaram isso
silenciosamente com meneios de cabeça e ligeiros movimentos de olhos —, houve um
aquietamento. Fizeram ligações do telefone público da sala de espera, onde as pessoas moles de
ansiedade se esparramam em cima de imensas poltronas marrons de corte quadrado. Para falar as
palavras que tinha de falar — não que ela estava morta, mas que estava, como dizem (embora ele
achasse uma expressão meio cafona), perto da morte (como se a morte fosse uma ilha, uma estância
de férias) —, Stanley se viu ouvindo a própria voz: era uma marionete; havia alguma outra pessoa a
segurá-lo, composta e serena, dando a notícia terrível, o ventríloquo, e ao falar sua voz tremeu —
seca e rouca por causa do longo vôo — debaixo do peso da notícia que tinha para dar; ao mesmo
tempo, estava pensando nos moldes dos velhos shows de rádio de que ele e Howard tanto gostavam
quando crianças.

Com a bomba removida do peito, tudo no corredor passou a ser amplificado pelo silêncio. Ele não
sabia, mas as orações eram sobretudo em hebraico, embora algumas fossem em inglês, e parte
daquilo que ouvia fosse apenas conversa, choro e frases emotivas como Como pode ser? e Por quê
por quê por quê? e Se ao menos… e Ah, meu Deus. E um movimento oscilante verbalizado em uma
espécie de recitativo entoado — e até mesmo um pequeno canto de um dos meninos bem pequenos
que não sabiam o que estava acontecendo, uma cançãozinha arrebatadora com uma letra sem
sentido sobre uma cabra, um sapato e o Quatro de Julho.

Pouco antes de se arrastar para levantar, decidido a calar a boca deles lá fora, lembrou que tinha
havido uma noite logo depois daquela noite no norte do estado, com aquela brisa maravilhosa
entrando pela janela, em que ele e Angela ficaram sentados na ponta do píer bebendo cerveja e
vendo as estrelas clarear, ouvindo os peixes subir, espadanando água, principalmente percas, mas
alguns belos achigãs, ele tinha certeza. (Tinha passado aquela tarde jogando um anzol imenso,
carregado de minhocas, sem nenhum resultado.) Acima e abaixo da costa os peixes estavam
pulando feito loucos, enquanto, atrás de Angela, no escuro profundo debaixo das árvores, luzes de
vaga-lumes se comunicavam em ondas frenéticas para cima e para baixo da praia.

“Está pensando em quê?”, ele perguntou.

“Só estava pensando, sabe, em tudo o que a gente vai fazer e como vai ser bom e tudo”, disse ela.
Era uma canção que ela estava cantando, seu próprio hinozinho aos portentos que o futuro
reservava.

“Hummm”, disse ele, tomando um gole grande de cerveja, chiando garganta abaixo.

“E você, está pensando em quê?”

“Em nada, nada mesmo, a não ser em estar aqui e em como é bom aqui, com você, agora” E ele
estava sendo sincero. Seu irmão do meio, Gary, tinha morrido um ano antes quando trabalhava na
construção de um telhado, e até aquele exato momento parecera impossível livrar-se da dor daquela
perda, a imagem recorrente do idiota ao escorregar em uma telha solta, cair dois andares e quebrar o
pescoço; agora alguma coisa estava se dissipando, ou pelo menos era assim que ele sentia, ao
relembrar aquela noite no píer com Angela enquanto ele, desta vez, estava ali deitado de costas no
hospital com o sangue correndo cheio de morfina; a mesma sensação de uma clara dissipação, como
se estivesse voando sobre o lago. Algum tipo de graça, um momento disso, na ponta do píer com a
maré baixa na margem à luz dos vaga-lumes.

Pode-se esperar algum tipo de justiça divina. Incrível como ele conseguiu se levantar e se arrastar
até o corredor para gritar com eles, considerando o seu estado, os fios e tubos, os bipes de alerta, a
própria pressão sangüínea muito baixa que seu coração apresentava. Ele falou o que pensava ali no
corredor, gritando com eles. Se fosse justo, Deus o teria calado com uma oclusão; um infarto
grande, grande, que travasse seu coração em um nó, em um novelo de fibras bem apertado, um
punho no meio de sua caixa torácica, uma explosão de dor cegante que o derrubasse, sufocando-o
até seus últimos minutos. Em vez disso, teve um ataque menor — que ele mal sentiu na hora.

Ele morreu, sim. Morreu uns dias depois, sozinho, no meio da noite, quando uma série de infartos
começou e ele sofreu uma parada cardíaca mais grave e todo o pessoal atendeu e tomou medidas
heróicas (porque ele havia dito não, de jeito nenhum, para aquela merda de testamento em vida. De
jeito nenhum. Como é que eu vou assinar isso aí? Vocês vão me enterrar, pelo amor de Deus. Por
que eu devo confiar em vocês, idiotas, depois do jeito como vocês arrancaram a porra do balão pela
minha perna?), dando-lhe choques com os eletrodos besuntados de gel, enchendo-o de
anticoagulantes, suando em cima do sujeito.

Sete dias de luto sem o couro duro dos sapatos e durante o shiva só uma vez o cara maluco foi
mencionado; lembrado por Stanley — que em sua dor tinha descido duas vezes para a calçada ao
longo da Riverside Drive, para tomar o ar fresco do Hudson e beber o single malt de uma daquelas
garrafinhas que havia comprado no avião; já era a terceira garrafa. Estava de volta ao apartamento,
sentado no chão, conversando baixinho com Saul, um comprador de correias de máquinas, e ao
repassar outros assuntos, ao deslizar por eles em seu murmúrio, mencionou tristemente o gói que
saíra cambaleando para o corredor, semivivo, enchendo o ar com seus xingamentos imundos; foi o
jeito como ele se apoiou em Saul; o jeito como tentou levar sua voz do hebraico para um tom
anasalado de Ohio (tentando sussurrar ao mesmo tempo) — Calem a boca, pelo amor de Deus,
porra, seus idiotas tagarelas; voltem para o lugar de onde vieram. Foi a forma, e não o conteúdo,
que fez os caras darem risada, bem na hora em que o pai de Tara descia a escada, de braços dados
com a mulher.

Pelas janelas altas o Hudson cintilava fagulhas brancas de luz e estendia diante deles uma vista que
abarcava Nova Jersey, na margem oposta, e ia até a ponta George Washington. Quando Tara
morreu, a notícia correu pelas fibras ópticas, foram feitas ligações para Israel, para garantir que todo
mundo que devia lamentar soubesse da morte dela para que ninguém fosse convocado a lamentar
depois, porque a partir do momento em que se ouviu a notícia, todos os que estavam sujeitos à
obrigação tinham de observar as leis e costumes estabelecidos pelo Talmude. O ritual de lavar o
corpo, o tahorah, tinha de ser celebrado, porque nenhum dos ferimentos dela, todos internos e
concussivos, derramara sangue suficiente para molhar suas roupas, caso em que teria sido enterrada
com as roupas ensangüentadas. Depois do funeral, foram ao cemitério, parando sete vezes para
recitar o salmo 91:

Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo


à sombra do Onipotente descansará.
antes de espalhar a terra sobre o caixão.

Enquanto Stanley contava a história do maluco no hospital, no quarto do andar de cima o pai dela
rasgava todas as suas gravatas, uma a uma, e empilhava ao lado. Rasgava cada uma, com puxões
fortes e largos, as estreitas, magrinhas, do começo dos anos 80, as largas dos anos 60 de listas
imensas, e as semilargas dos 90. Rasgava ao meio, quando conseguia, e rasgava em pedaços pelo
centro, abria, dobrava o forro de seda e rasgava dos lados. Suas mãos estavam secas e rachadas,
enganchavam na seda. Quando a mulher subiu para ver onde ele estava, já havia quase terminado;
sentado na beira da cama junto a uma pilha de tecido retorcido despencando pela borda da colcha de
popeline, rasgava a última, uma Calvin Klein com triângulos azul-escuros sobre um fundo azul mais
claro riscado de curvas e borrões à Jackson Pollock que Tara havia lhe dado no Natal dois anos
antes. Pollock era o pintor favorito dela. Ele usara aquela gravata uma vez a cada duas semanas,
talvez, durante um ano, depois a colocara de lado em favor de outras que ele próprio havia
escolhido, de padrões mais conservadores. Celebrara o qeri'ah padrão no funeral, rasgando a fitinha
de pano presa em sua lapela esquerda, mas aparentemente aquilo não fora suficiente. Pare, disse a
mulher. Pare. Pare. Pare. E ele parou, curvou a cabeça sobre as mãos e caiu em um longo choro,
batendo os calcanhares no tapete, aninhando o que restava da gravata junto aos lábios.

“Desça comigo”, ela disse, colocando a mão na curva de seu pescoço.

“Tudo bem. Por você, eu desço.” Ele pigarreou, levantou-se e, devagar, ergueu uns fiapos de
gravatas sobre a cama.

Os rostos pareciam ter respostas para ele quando desceu a escada em espiral para o shiva; as
pessoas se curvavam falando baixinho, pondo comida na boca; ele se lembraria de ver cada rosto:
os lábios apertados de Erma, a melhor amiga de sua esposa, segurando um soluço; seus sócios nos
negócios desviando os olhos na direção de Nova Jersey; as crianças, alheias, brincando com
bonecas perto da entrada da cozinha. Mas o que ele mais lembraria, e no que se concentrou depois,
foi o sorriso estranho, retorcido, no rosto do irmão, um sorriso abençoado que parecia recuar até os
segredos deles quando crianças; era o jeito como Stanley sorria quando estava tentando não sorrir,
os cantos da boca apertados que levavam a duas covinhas em meia-lua; uma maravilhosa
combinação de esgar e sorriso boboca; e, ao ver isso, alguma coisa se dissipou ligeiramente. Era
apenas o primeiro bocadinho de peso da sua dor, mas era significativo que fosse o primeiro; foi até
ele, e os dois se abraçaram, bem forte.

“Do que está rindo?”

“De nada”

“Qual é, cara?”

“Da tolice do mundo”, Stanley disse.

Do lado de fora das janelas, a tarde caía. Raios alaranjados iam sumindo entre os edifícios de Jersey.
As sombras alongadas dos prédios comprimidas atrás da paisagem.

Nunca mais foi mencionada, essa cena, esse momento no corredor do hospital. Não passou para o
folclore familiar. Não foi para lugar nenhum, a não ser por aquele momento do sorriso no rosto de
Stanley, uma coisa que o pai de Tara viu quando voltou para o shiva.
O caçador de gestos

Eu me interesso pelo jeito como as pessoas vivem a vida de todo dia. Sabe, como ocupam o tempo,
com o que preenchem todo aquele tempo. Não os grandes movimentos, mas os pequenos, acho:
alguém que pendura roupa em um varal antiquado, quebrando a praxe da secadora, o movimento
fluido dos braços levantando os lençóis, o prendedor de madeira entre os dentes, o balanço da
corda, carregada de lençóis soprados pelo vento, relacionado ao modo como ela se inclina; um
sujeito no posto de gasolina ajudando os clientes de serviço completo, o pé no pedal preto do
macaco de borracha, a perna mexendo com força ao bombear, o carro subindo e descendo devagar
enquanto seus olhos, indiferentes, permanecem presos em algum ponto perdido no horizonte, e ele
toca as manchas nos braços sob a camiseta verde. Sou um caçador de gestos. Colho momentos.
Cuido muito bem deles.

Era um daqueles dias típicos de nossa cidade, que fica à margem do Hudson, a cerca de cinqüenta
quilômetros da capital. Quero dizer que o dia havia se instalado na cidade e a cidade no dia — claro
e ensolarado com apenas um vestígio de frio no vento, que enrugava a superfície do rio e era forte o
suficiente para que algumas ondas rolassem, mas não chegassem a quebrar. (À maioria das ondas no
Hudson tem uma característica meio patética: embocadura fraca, vacilante. Assim como os barcos,
ao processar os estranhos padrões do vento, sobretudo do norte, tentam enfrentar as correntes da
maré, que vêm e depois acabam imobilizadas em misteriosos ventos mortos debaixo da ponte
Tappan Zee; nada fluido nem gracioso em nada disso.) É estranho que eu não possa dizer
exatamente se é o dia que vem à cidade ou a cidade que vai ao dia quando começo essas buscas,
principalmente de manhã — às vezes começo cedo —, quando a luz ainda está baixa e prateada.
Mas como eu disse, este foi, ao que parece, nada mais que um dia típico sob todos os aspectos,
exceto por ser de manhã e eu ter começado bem cedo. Não consigo dizer agora o que senti naquele
momento — quando fiz minha primeira varredura lenta pelo centro da cidade, entrei pela Broadway
(toda cidade que fica perto da capital não tem a sua própria e frívola Broadway?), dirigindo na
minha velocidade costumeira de dez quilômetros por hora — em que tive uma sensação de traição;
quero dizer que não pensei que naquele dia houvesse qualquer coisa traiçoeira destinada a mim.
Mas os dias fazem isso. Um dia pode trair você. Você investe nele, e ele devolve alguma coisa que
você não esperava. Com o rabo dos olhos vi um homem saindo da delegacia; tinha o passo lento, de
velho — muito parecido com o meu —, camisa amarelo-clara e um daqueles chapéus de lona que
amassam, usados para pescar; estava descendo com seu passo lento a rampa para deficientes. Do
outro lado da rua, na frente de uma das muitas lojas de antigüidades (esses escandalosos
revendedores e reempacotadores do passado) que conquistaram para a nossa cidade um lugar no
mapa, alguém, levantando alguma coisa, estava a meio caminho da porta. Vi apenas a parte de trás
do homem: o jeans Wrangler, o quadril e a ponta do que estava carregando, fosse lá o que fosse,
carvalho escuro, talvez, e a moldura de metal polido da porta. Nada que valesse a pena notar. Um
gesto, decerto, mas não do tipo que eu queria. Precisava da coisa inteira, unida e graciosa e, acima
de tudo, cheia de revelação, revelação completamente deslumbrante; um jovem carregando uma
mesa para dentro de uma loja não tinha esse perfil. Adiante, o farol estava verde; mais adiante,
talvez um ou dois quarteirões, um daqueles monstros de quatro rodas cor de esmeralda, grandes,
volumosos, estúpidos, que rondam nossas ruas.

Permitam que eu faça apenas algumas anotações, acrescente algumas coisas: veja, estamos perto do
fim do século, e certos movimentos de cidades pequenas como eu as conheci antes, como as
conheci quando estava crescendo, estão desaparecendo. Quando era menino, em Galva, Illinois,
havia gestos de despertar numa cidade. Todas as cidades os tinham. Eram cheios de graça. O sr.
Bursell da loja de secos e molhados acordava em seu pequeno apartamento em cima da loja —
movimentava-se com a lerdeza deliberada e indiferente de um solteirão convicto, ajustava as alças
caídas de seu macacão azul em torno da cintura, prendia o cinto devagar enquanto olhava pela
janela, para o outro lado da rua, onde Ellen Barton varria a calçada diante do cinema do marido, The
State. Ah, aquele gesto, a vassoura casada com o braço e o braço com a vassoura, o movimento
oscilante, cotovelo dobrado, os canhotos de bilhetes de entrada, pipoca e lenços de papel
empurrados para a frente até a sarjeta. O cabelo dela, cor de mel, bom, preso com um grampo. As
pregas desbotadas da saia em torno dos tornozelos. Bursell estudaria aqueles movimentos um
momento, os dedos no cinto, depois descia a escada, saía para abrir com a manivela o toldo sobre a
loja e assim deter o sol da manhã (depois, à tarde, ele faria a mesma coisa ao contrário), segurava o
carretel de madeira que dava firmeza à barra com uma mão enquanto a outra girava a manivela. À
manivela fazia o toldo, verde-ácido com listas brancas, se abrir graciosamente — o trabalho
assumindo forma acima de sua cabeça. Era assim que era em uma cidade que ainda não havia sido
traída pela carnificina que acabaria por tirar de nossas mãos tantos dos mais finos gestos; roubados
de nós, engolidos pelas entranhas de tantas máquinas.

Somos os desgraçados e perplexos, malucos com nosso insaciável desejo de outro tempo e lugar e
de um senso de movimento, nós, os caçadores de gestos. O movimento de uma língua sobre um
lábio seco nos bastará; uma mulher no cemitério chorando ao pé do túmulo do marido, a saia azul-
marinho levantada nas panturrilhas e as solas achatadas e gastas dos sapatos cor de areia seca — é
disso exatamente que precisamos, tudo por que lutamos neste mundo, nada mais, nada menos.
Temos nosso modus operandi, nossas técnicas, alguns preferem esperar a passagem de um
movimento perfeito sentados o dia inteiro, dia após dia, esperando. É um meio desalmado de busca,
eu acho, deixar o movimento da cidade acontecer à sua volta, mas existem aqueles, meus
companheiros, que se contentam em trabalhar desse jeito; e eu digo: sigam seu caminho em paz. Na
cidade há dois desses operadores, embora eu tenha de duvidar um tanto de suas intenções; seus
desejos não são tão puros como os meus. Sem cabelos e com marcas do Vietnã — napalm, dizem
alguns — que arroxeiam o couro cabeludo, Hank fica sentado pacientemente, pregado num banco,
mas as buscas dele são invalidadas por seus sôfregos goles de uma garrafa de cerveja, o saco de
papel suado apertado na boca. E existe uma velha bruxa apelidada Boop — como a Betty — que
tem cheiro de urina e usa meias de náilon manchadas e vestidos rasgados, mas não desperta nem o
mais ligeiro olhar dos passantes quando ocupa seu lugar no banco em frente à loja de sorvete,
fazendo seus ruídos estalados, inúteis: cacarejos, grasnidos e chiados, e uma ou duas palavras
ocasionais, talvez buscando, ou talvez não. Difícil saber o que pensar dela, e eu raramente penso
nela se consigo evitar, mas sei que talvez um dia ela tenha sido uma genuína caçadora de gestos
também, que se dedicou com firmeza e com todas as boas intenções que se pode esperar. No
passado, quando o tempo era diferente e nós tocávamos nossos negócios na cidade, ela era uma
grande corretora de imóveis (e eu, no banco, o maior concessionário de empréstimos). Na época,
assim como agora, era dever de um corretor curvar-se e moldar sua personalidade para combinar
com a do comprador em potencial, chegando mesmo a combinar gesto a gesto com ele se
necessário: ela podia estar em um deselegante bangalô com um teto ruim de vigas seladas, a trave
principal tomada por cupins, e ainda assim teria de abrir os braços em um daqueles abraços largos e
dar uma respirada funda de levantar o peito como se fosse o ar mais fresco do mundo, para
combinar com o gesto do comprador que, vindo da cidade dar uma assuntada num dia de verão,
acabara por entrar no escritório dela só para ver o que havia disponível e, depois de ver o bangalô,
ficou de repente tonto coma idéia de morar “no campo”. Então, com a Boop era difícil saber; ela
havia roubado tantos gestos, apertado tantos num abraço que talvez estivesse procurando um gesto
dela mesma que ficara perdido por ali. Essa é a natureza básica de muitos de nós, caçadores.
Queremos, acima de tudo, encontrar o que é nosso por direito.
Duas vezes fui consagrado por gestos puros — apenas duas, descontado o terceiro incidente. Uma
vez, levei meu falecido e há muito perdido filho, Stevie, para pescar em Massachusetts; o rio
Chesterfield, rochoso e difícil de atravessar, o dia acabado, apagado, aquele escuro sufocante
puxando devagar os meados do verão sobre a água. Nós ficamos esperando os que iam subir, que
viriam inevitavelmente porque estávamos pescando com spinners, baixando com o escuro como
flocos de neve que se recusassem a encontrar a terra. Copulavam em pleno ar e logo atingiriam a
água para botar seus ovos. (Não pesquei mais desde esse dia, nem pescarei de novo.) Fodaérea, nós
chamamos, uma daquelas piadas sujas constrangidas entre pai e filho que têm um gosto amargo
agora que ele foi embora e que o que havia de sujo entre nós é mais negro que fuligem em minha
memória. São só lembranças, e talvez isso é que faça a dor que causei a ele naquele momento —
apenas uma pequena farpa afiada no pulso — se destacar tão aguda, e faça o gesto que se seguiu à
dor permanecer o gesto limpo e sagrado (de nós dois), purificado pelo tempo, pela lembrança, pela
poeira e tudo o mais. Ele estava explorando aquele profundo poço oleoso que captava a noite antes
que ela descesse, em uma saliência de xisto, encaixando as coisas contra uma pedra grande,
arremessando e arremessando de novo, enquanto eu explorava o meu próprio poço do outro lado.
Meu lançamento foi colhido por uma única lufada de brisa noturna, a única daquela noite, pelo que
me lembro, e para compensar tive de trabalhar minha linha de lado, e aí houve aquele som
assustado e agudo da voz dele, uma retomada de sua voz infantil, quando o fisguei na pele branca
do pulso, sem saber que havia feito isso, pensando que tinha enganchado em alguma coisa, puxando
sem pensar, uma vez, outra vez; mas a dor que causei a ele é eterna e dura para sempre por causa e
só por causa da voz dele naquele momento, misturada e confundida com o cascatear de água sobre
pedras. Sabe, tudo isso levou ao gesto puro e doce do rosto dele, um rosto grande, tão a minha cara,
sorrindo da dor ao me atirar de volta meu anzol, enxugando o sangue do pulso. Sangue que não
consegui ver e que nunca verei. Foi o arremesso e o sorriso, mal visíveis, talvez totalmente
invisíveis para mim no escuro que caía, pesados de sombras, profundos e meditativos, as florestas
pressionando, os lados da garganta parecendo inchar em bosques. Eu havia causado a ele uma
súbita e inexplicável dor, e ele havia atirado aquilo longe, um gesto simples que continuou no
movimento fluido de jogar a linha, a linha dele lançada naquele poço escuro. Mais tarde, a truta
subiu para pegar a isca dele e o levou àquele maravilhoso movimento de trabalhar um peixe, força
contra força — não um gesto puro (haveria apenas dois), mas que valia a pena guardar, mesmo
assim. Quando soube que meu filho havia sido morto no Vietnã, tomado por dores que devem ter
desabrochado e explodido de trás para a frente, sangue jorrando do peito onde a bala saíra, imaginei
aquele movimento do pulso, e sorri, jurei venerar aquilo e talvez um dia igualar aquilo. Jurei que
encontraria pelo menos mais um movimento que fosse tão gracioso, apenas mais uma vez, na
superfície desta terra povoada por almas humanas que cuidam de suas vidas, encontrar um gesto
que igualasse aquele de meu filho no riacho um ano e meio antes de morrer, ou aquele de seu doce
corpo molhado numa banheira, o cheiro de sabonete de bebe…

Nesse dia, agora, voltando a esse dia, com o céu matinal se abrindo e a névoa branca perto da
margem do rio, depois de passar por aquele homem que ia à loja de antigüidades, o sinal mudando
para amarelo, depois vermelho, com aquela estranha lentidão que só eu pareço notar. A polícia
estava atrás de mim. Sabiam da minha busca e muitas vezes me paravam. Não havia nada de ilícito
na rota do meu circuito, cinco ou seis quarteirões Broadway abaixo e depois de volta, junto ao rio,
onde o novo projeto habitacional avançava e se espalhava. Alguns dias, eu me instalava no banco na
frente da biblioteca para examinar os movimentos e gestos de um pequeno quadrante: vislumbraria
coisas boas ali, de vez em quando, os movimentos de passagem e os gestos de muitos, mas
raramente alguma coisa que chegasse perto de um gesto puro. Só uma vez, quase, ao avistar duas
pessoas vestidas de calças cáqui e camisa pólo azul-marinho combinando, atravessando a rua com
aquele passo aposentado que se vê ali, orgulhosos e decididos trotes de pernas ligeiramente
arqueadas e distorcidas por dores ocultas e aberrações, ossos quebradiços e fracos; esses dois eram
ágeis nos pés, e o gesto deles me reteve semanas, me sustentou em minha busca, encheu minha
alma com o borbulhar de possibilidades. Ela pegou o braço dele ao atravessarem, um agarrar de
leve, os dedos finos curvados em torno de um dedo dele, não me importava nada qual dedo, porque
em um bom gesto é o gesto em si que põe abaixo e torna irrelevantes os pequenos detalhes; a coisa
toda se transforma em um movimento, uma marca, um ato em si apartado de detalhes particulares.
Na esperança de mais, pensei em segui-los, mas entendi que não devia. Para caçar gestos, é preciso
deixar que eles encontrem você, atravessem a rua voando como folhas mortas: um homem se detém
diante de alguma coisa na janela, as mãos nos bolsos de um jeito particular; uma criança pequena
acena para nada, em silêncio, de um jeito discreto, ao passar no banco de trás de uma Chevy Nova
azul, os olhos obstinados e solitários.

Nessa manhã, quando o sinal abriu segui em frente pelo cruzamento, olhando de um lado para
outro, como é meu hábito. Logo depois da esquina da Broadway com a Elm, tive a estranha
sensação que se tem ao olhar de uma rua principal para uma lateral, uma rua que leva ao rio, a
névoa de luz sangrando da água, a proximidade dos muros de tijolos poeirentos, a solidão que essas
tristes ruas entoam. Há muito tempo, lá em Illinois, eu costumava parar e me deter nesses lugares.
Era como se a alma tivesse decolado da cidade e deixado um casulo vazio, oco. À brisa sacudiu
muito ligeiramente as folhas do álamo em frente do prédio da biblioteca, os bancos vazios. À
polícia estava atrás de mim.

Eu disse que foi um dia estranho? Disse que a alma havia se levantado da cidade, aberto suas asas
sobre as confluências e divergências do rio Hudson? Disse que os ossos empoeirados dos mortos
jaziam nas calçadas como cinza limpa, o talco residual de queixos, dentes e testas?

Minha busca estava indo bem quando passei pela livraria, onde uma mãe empurrava um carrinho
numa esquina, seus cotovelos aprumados para erguer as rodas da frente com muita delicadeza de
modo a não despertar o bebê ali dentro, aquela pequena forma branca flutuando no meio dos
lençóis. Adiante dela, no ponto de ônibus, em frente ao teatro extinto, cartazes esfarrapados
tremulando, duas mulheres negras paradas com aquela estranha expectativa solitária que sempre
vejo nos que esperam o ônibus para a ponte George Washington: a desesperança, seus olhos
contemplando a rua com tamanha ansiedade. Adiante delas, na calçada da esquerda, alguém estava
curvado, amarrando os sapatos com a lenta determinação de uma criança, como se estivesse
aprendendo a dar o laço pela primeira vez — decerto um belo gesto, mas finalizado antes que
acabasse de passar. Ele se transformou num empresário com um terno azul, elegante e esguio,
endireitou-se, ajeitou o vinco da calça e olhou uma vez para conferir os sapatos pretos brilhantes.

Para delinear o óbvio, para consagrar aquela cena, aquele gesto puro, que diante de mim apareceu
nos degraus estreitos e curtos, três ao todo, que levavam à entrada da casa funerária, cobertos pela
sombra pesada do grande carvalho americano que crescia em frente: estavam na frente do
estabelecimento de Olsen. Um homem e uma mulher abraçados em dor. Abraçados. O homem de
jeans e casaco esporte com aquela expressão curvada, ligeiramente dobrado pelo peso gravitacional
da própria dor; a mulher de vestido roxo comprido e apertado, depois solto nos quadris quando a
brisa soprava o tecido — aqueles quadris eu nunca esquecerei, acho, um tanto salientes contra os
dele, também parte do abraço, como todo o resto. Ela se curvou e combateu as grandes forças que
estavam contra ela como alguém que no convés de um barco tem de se adaptar a um horizonte
cambiante — ali, bem diante de mim, o giroscópio da dor deles no gesto suspenso, tornado puro
como pedra esculpida, petrificado para sempre, as guardas de latão sustentando o toldo acima,
listado de verde e branco. De repente, um brilho roxo cegante acendeu-se na frente da casa
funerária. Passou. Ficara para trás. Aquele gesto amado, esculpido — quase perfeito —
desaparecera, esvanecera-se em algum ponto infinito ao longo das linhas de minha vida, dissolvido
pelo tempo e pelo movimento humano. Senti então, agudamente, e pela primeira vez em anos, a
tristeza da minha perda. Dei a volta no quarteirão, à espera de que o gesto ainda estivesse ali quando
eu voltasse. Era o tipo de esperança frágil, boa, que só pode decepcionar. O homem e a mulher
nesse momento já teriam mudado para alguma outra posição. Ele estaria fumando um cigarro
encostado à guarda de latão; ela estaria com o pescoço dobrado a estudar o interior de suas luvas.
Ah, a mútua tristeza da perda, dos mortos e desaparecidos. Dei a volta no quarteirão mesmo assim.

Quando voltei, o tráfego estava congestionado, e homens e mulheres com fones de ouvido
orientavam a multidão. Dessa vez vi os refletores armados do outro lado da rua, na frente do
estabelecimento de Olsen, e os cabos elétricos serpenteando pela sarjeta, os figurantes entediados e
solitários com seus olhos irreais, mastigando sanduíches fornecidos pela produção em mesas de
armar perto da biblioteca. Em uma ruazinha lateral empoeirada, trailers estacionados um de frente
para o outro. Era uma imposição à alma da minha cidade, uma afronta final. A cidade tinha se
entregado ao irreal. O irreal detinha o tráfego, atraindo espectadores. Espectadores mais
interessados no irreal do que em suas próprias vidas. À obra do final de minha vida estava chegando
ao fim. Eu seria traído, ou traidor? Não haveria obrigações com os mortos a serem levadas em
conta, castigos a serem atribuídos? Não seria um crime lamentar, lamentar com falsidade, e nessa
falsa perda criar o que seria essencialmente um gesto humano perfeito? Que mais eu podia fazer?
Que escolha eu tinha? Fiz mira. À direção tremeu na ponta de meus dedos. A sarjeta ofereceu firme
resistência, mas minha velocidade a ultrapassou. Atingi a câmera bem de frente. Ela subiu para o
céu, pesada e sólida. Com uma morte, eu santificava o cenário em que o gesto perfeito havia
ocorrido.

De forma que você vê que meus atos não foram, como disseram alguns, atos de um louco. A polícia
não encontrou nenhuma marca de deslizamento de pneus, e tirou suas conclusões. O julgamento,
conforme reza nossa justa Constituição, foi rápido e eficiente. Aquele terceiro gesto lá está para
sempre, onde todos os caçadores de gestos conservam essas coisas, gravado na rocha de minhas
pálpebras como um antigo petróglifo. Não consigo me livrar dele por mais falso que tenha sido. Por
mais alguns quarteirões, ele me deu a tristeza que era minha por direito.

Eu não havia planejado de jeito nenhum matar o diretor, apesar do fato de a morte ter entrado em
minha vida de diversas formas e maneiras para tirar de mim aquele gesto que me forneceu os gestos
perfeitos que, imobilizados no fundo de minhas pálpebras, mantêm-se como minha salvação: o
gesto de meu filho no riacho, a correnteza pesada da água contra nossas botas altas, e aquele outro
em que ele estava na banheira, brilhos cintilantes de água em sua barriga lisa de bebê, a brancura
rosada da pele clara, da gordura de bebê, as mãozinhas levantando para espadanar a água, sem nem
saber talvez que era água, mas apenas uma cálida aparência de tecido enrolada em torno de seu
corpo, porque naquela época seus olhos ainda eram novos e faziam força para focar qualquer coisa
e tinham aquele ar fixo negro-acastanhado dos que nada sabem. Era apenas isso, um simples
espadanar em outro elemento comigo sentado a seu lado na beira da banheira azul. Fui tomado por
aquilo e fiquei tonto, sabendo perfeitamente bem que o que eu estava vendo nunca mais se repetiria
e era decerto a visão mais linda do mundo. A água borbulhou em torno de seu punho. À luz oleosa e
lisa escorregou de sua pele. O rosto sorridente levantou-se para mim, a mechinha de cabelo grudada
na cabeça, enquanto minha mulher, atrás de mim, no corredor, dobrava suavemente uma toalha no
braço, e lá fora o ar do verão se deslocava, perfumado de lavanda.
Sinistros com fogo

A primeira casa que ele incendiou aquele dia queimou em belas cores, fantásticas, brilhantes, levou
uma hora até que os bombeiros chegassem. Não tinha importância. O metro de neve que havia no
chão tornava sem efeito as correntes para as rodas. O melhor era o revestimento de vinil; quente de
queimar ao derreter e escorrer, as chamas lambendo as laterais com impressionante rapidez. Uma
casa é construída de fora para dentro, mas o fogo se abre de dentro para fora, animado, até não
haver mais interior, só exterior. Era disso que ele gostava. Passou um bom tempo observando as
coníferas perto da casa ficarem marrons e se retorcerem, um anel de neve derretida escorrendo,
delineando a zona mais intensa de calor. As pegadas que deixou subiam para a floresta, faziam um
arco de volta à área dos grandes chalés vitorianos da associação de veraneio ao longo das margens
do lago Michigan, mantidos pelo povo de Chicago (como havia contado seu pai), congelados no
tempo por códigos e regimentos; depois, com suas velhas botas de snowmobile andou pelos montes
até a estrada e saiu correndo. *

Não há nada particularmente engraçado no fogo. Nada que provoque riso, eu tinha de articular isso
para mim assim porque não conseguia parar de rir. Sou falante, quando é comigo mesmo, mas
quando é com outra pessoa eu calo a boca. A coisa que me faz rir é o som do fogo — a amplificação
dele, o crepitar, porque é tão alto. Quero dizer que é fantasticamente alto quando um chalé inteiro
está indo pelos ares. Não há nenhum outro som igual a esse na Terra, vivo e animado, como pipoca
em óleo quente, um pouco antes de os grãos estourarem — aquela tensão no chiado, entende. O
bom é que aqui, com a neve e o isolamento e o pessoal todo do verão em Chicago, dá para queimar
três ou quatro em seguida sem muita preocupação. O melhor é como uma lingüinha de fogo
consegue crescer, se desdobrando até que é só uma enorme de uma filha-da-puta de uma fera
rugindo, sabe.

No quintal, as crianças estão brincando, talvez umas sete ou oito — o número não importa, porque
algum ouvido interno dele capta especificamente os seus filhos enquanto está sentado ali no estúdio,
escrevendo, mas as vozes são altas —; um, chamado Gomer, dando uns gritinhos rebeldes, pelo som
que se ouvia; esse menino, Gomer, que vem às vezes (o nome verdadeiro dele é alguma coisa como
Ronald ou Rupert) chupar um picolé com Stan, o colorido artificial a escorrer pelos cantos da boca,
ele deixa respingar assim de propósito. Superposto ao som dos gritinhos de Gomer, aquele outro;
não exatamente como um cortador de grama gigante (essa é a metáfora que ele usa depois, em
busca de um som semelhante), mais como um enorme pedaço de celofane quebradiço amassado
pela mão de Deus (essa ele nunca havia usado). Primeiro, os meninos vêem a grande parede de
chamas através das árvores e entre as casas; depois, quando chega o vento, a fumaça ácida de
plásticos queimados, polímeros sendo reduzidos a compostos de carbono, que os faz correr,
gritando e rindo de alegria com a cena, os primeiros a chegar, dançando e gritando porque as
chamas estão subindo como facas para o céu acima das árvores e a fumaça está rolando na direção
do Hudson; lá na cidade ouve-se o som arcaico, gutural da sirene de incêndio gemendo seu patético
chamado às armas. Logo depois, a equipe de voluntários chega, contente de se ocupar da coisa de
verdade para variar. (Para praticar, haviam incendiado a ala velha do hospital que estava sendo
demolido, e dois passaram mal por inalação de fumaça.) De cara, ao ver as latas de verniz na
varanda da frente e ao saber dos pincéis molhados com seus trapos ao sol, o chefe entendeu a causa.
Isso foi combustão espontânea. **
Sozinhos na quietude de um final de tarde, os pincéis cutucam um ao outro, inclinam-se para a pilha
de trapos, sussurram comentários em um chiadinho macio e uma fina espiral de fumaça, que
combina com o seco silêncio de um bairro onde a maioria está trabalhando, fazendo negócios, na
cidade, fazendo o que tem de ser feito. Os pincéis falam, a lata de verniz assa, a tampa enferrujada
com pintinhas de oxidação da chuva. A varanda foi pintada no sábado. Agora é quarta-feira, e os
pincéis acomodados, bêbados com o elixir do verniz, estão prontos para explodir na canção do fogo.

Shank teve de amarrar o cachorro, a boca calada com fita adesiva, pregá-lo no chão como uma
barraca e depois pegar a lata de gasolina e jogar em volta sabendo muito bem que riscar o fósforo ia
colocá-lo em perigo tanto quanto ao cachorro, mas seguiu em frente com cuidado sistemático
mesmo assim, enquanto os outros mantinham distância olhando, brincando e rindo com leveza do
sombrio desejo de Shank de queimar coisas vivas; a questão era pegá-las vivas, como pegar uma
lagosta e jogar dentro da panela (o pai de Shank era pescador de lagostas), como se desse para
contar o número de células nervosas, como se desse para fazer um registro exato de cada dendrito
derretido. Uma chama azul preguiçosa rola em torno de seus tornozelos e do ar, e de repente
explode no cachorro, que mesmo com a fita adesiva dá uma espécie de ganido alto, aflito, enquanto
as chamas devoram o pelame, depois a pele e depois o corpo, se enrolando na distorção das ondas
de calor. Ninguém sabia com certeza o que era distorção do calor e o que era movimento do
cachorro, assim como os monges que fazem a sua dança sentada na auto-imolação no Vietnã.

Uma manhã, em Rochester, minha tia — mãe de cinco filhos, membro de uma família fina de
projeção sem nenhuma grande dificuldade (visível de fora), a caminho de seu trabalho no colégio
— pegou uma lata de gasolina, colocou dentro do carro, foi até um beco sem saída sossegado, virou
a gasolina em cima da cabeça e do corpo e se incendiou. Morreu poucas horas depois, a carne
consumida. ***

À nota que deixou foi escrita em primeira pessoa, do ponto de vista da lata de gasolina, falando da
viagem sacolejante, acomodada debaixo do assento do motorista, o chão cheio de papel de bala,
depois agarrada com força pelos dedos longos dela, abraçada contra seu vestido azul, levada até o
fim da rua, onde o ar era fresco, frio e tinha o cheiro do arbusto de zimbro atrás delas; depois o
alívio de ter sua alma vertida pelo longo bico corrugado, o ar chiando pela pequena válvula amarela
ao entrar para substituir o fluido — aquela grande mijada de gasolina para fora de sua barriga — e o
barulho ressonante de um tímpano de orquestra ao ser colocada de lado cuidadosamente, com uma
delicadeza muito apreciada. À nota que escreveu meditava sobre as dificuldades e tribulações da
vida de uma lata de gasolina, servindo sobretudo a pequenos motores do tipo cortador de grama,
deixada no gramado no calor escaldante das tardes de verão, ocasionalmente levada à popa de um
barco para servir ao motorzinho, com óleo misturado para isso; era a vida de uma lata, uma vida
sendo cheia, esvaziada, tampada, sacudida, cheia de novo e conferida. A curva dourada do líquido
interno, sobre o qual flutuavam pedacinhos de hastes de grama. Sempre os vapores fazendo pressão
no céu da boca, cantando, transformando os seus limites em pequenas árias de instabilidade. ****

Aqueles velhos cinejornais dos lança-chamas da Segunda Guerra Mundial cuspindo suas lindas
línguas de fogo em buracos cheios de japoneses: longas membranas flectidas de combustão
rasgando a branda monotonia do preto-e-branco. Lindo. Lindo.

A trama do fogo é nebulosa e serena, loucamente fanática e calma ao mesmo tempo, sobe pelas
cortinas e pelos baixos do revestimento de carpete, saboreando seu tempo e depois, ao contrário, se
torna diametral, logarítmica, dá grandes lambadas engolindo tábuas de soalho e passadeiras — até
cantar com doçura o fantástico lamento da casa queimando, explodir pelas janelas e lamber os
beirais do telhado. Você vai para o fogo atordoado, vergado de angústia diante do fato
verdadeiramente central de que tudo o que um dia existiu em torno de sua vida — os chamados
objetos de valor sentimental — agora é cinzas.

Queimar coisas era natural para Fenton, e ele o fazia sempre e em todo lugar que podia. O pai
garantira à mãe que era natural que um menino tocasse fogo nas coisas. Quando criança, eu mesmo
fazia isso, dissera a ela. Era uma fase que o menino superaria, acrescentara. O foguete era
improvisado, uns tubos de papelão presos com fita e cheios de papel encerado (Fenton tinha certeza
de que nada queimava melhor que papel encerado), coroado por um rústico cone retorcido de papel
de construção — azul-escuro, tudo mal amarrado a uma plaquinha de compensado. Era a gasolina.
Ele ensopou os tubos com gasolina, depois a placa, e arrumou perto da lateral da garagem —
naquele espaço estreito entre a sua garagem e a do vizinho —, depois jogou mais um pouco por
precaução, contou cinco, quatro, três, dois, um, encostou o isqueiro Bic na ponta da madeira, não
sentiu a lambida, a vibração, a subida da chama — a pequena chama espiral roxa quase invisível
tocou sua meia e espalhou-se pela boca do jeans, com um ponto de combustão mais alto que os
pêlos de seus tornozelos — chama se abrindo em chama virando um grande estampido ofegante, um
trago, rugindo depois para seu rosto, ele recua, cai de frente em cima da coisa, pega na calça, nas
meias e sobe pelas pernas antes que ele entenda o que é o quê, e pela madeira seca da garagem
também; fora um verão longo e seco no qual toda a região assou, crocante. Mas estava perto do
outono, afinal, aquele cheiro seco e acre, prenhe dos portentos do que ia acontecer na primeira noite
fria de geada. Aconteceu tudo em meio segundo, até ele estar todo em chamas fazendo aquele
PARE, DEITE, ROLE que havia treinado. (Na escola tinham praticado, jogar um cobertor em cima
do corpo e, se estivesse sozinho, não entrar em pânico nem correr, mas rolar no chão.) Só que não
havia espaço entre as duas garagens, e ele rolou de volta para a parede do vizinho, depois na direção
do fogo — soltando o tempo todo aquele guincho agudo, de apito de cachorro, mas que não podia
ser ouvido porque, do outro lado da alameda que liga as vias dessa pequena cidade do Meio-Oeste,
o sr. Jones ceifava a grama com estrépito com seu desregulado Lawn Boy, o que abafou os gritos e
os estalos iniciais do fogo. Ele seria o primeiro a notar a fumaça, o primeiro a ver, mas tarde
demais, porque nesse momento ambas as garagens já teriam sido engolidas. (Ele ouvia mal, mas
tinha a visão cem por cento.) O inferno logo saltaria da garagem para a varanda e, antes de os
caminhões de bombeiros conseguirem chegar, tomaria todo o lado da casa de Fenton e parte da casa
do vizinho também, destruindo ambas com danos suficientes para dar perda total no seguro.
A pele de Fenton está de fato soltando fumaça, uma umidade de pântano na manhã, ele engatinha,
ligeiramente ridículo se se olha de modo imparcial, como num filme, quando se sabe que é um ator
com uma roupa à prova de fogo, algum dublê como um vagabundo de Chaplin, ou de cara preta,
cara de fogo — realmente, honestamente, pele fumegando, queimando ainda —, incapaz de gritar
agora por causa do esforço que tem de fazer para se afastar do fogo, que está se deslocando
rapidamente (acompanhando a suave brisa oeste), mas ele pode sentir o fogo lambendo seus
calcanhares, embora não possa sentir os calcanhares porque as solas dos tênis derreteram e
grudaram em seus pés, ou no que resta deles; é uma imagem horrível que ninguém vê. (Ele é uma
criança que fica sozinha. Normalmente chega e liga a televisão, passa uma boa hora aí antes de tirar
os livros da mochila.) Ninguém está ali para ver seu heróico engatinhar para fora do fogo, para o ar
fresco, os pulmões queimados ofegando. Quando os sujeitos do resgate e os caminhões de
bombeiros aparecem na esquina gritando, ele está bem no centro do gramado, ainda fumegando,
como um monte de resíduos de fogueira. Mas os homens já viram coisas mais estranhas, almas
ainda vivas com chamas que dançam para fora do pescoço; gente fazendo dança do fogo com os
cabelos como tochas, coisas que desafiam até aqueles cuja imaginação foi treinada por técnicas de
animação computadorizada para aceitar qualquer coisa nesta estranha terra; esses sujeitos, no curso
de combate a incêndios — os mais velhos —, entram em casas de fazendas que rugem em chamas
cheias de madeira velha e seca: já viram os deuses do fogo fazerem estranhas caretas, com línguas
de fogo. Então Fenton não foi para eles uma visão tão estranha quanto seria para você se topasse
com a figura fumegante dele. A porcentagem queimada de sua pele (como a de minha tia) foi dada
como estatística, como se os centímetros quadrados de tecido corporal pudessem ser mapeados,
cortados em cubos, como hectares de terra cultivável em Iowa. Qualquer um que conheça os
rudimentos dessas notícias — pessoas queimadas que tiveram a pele enxertada em uma série de
tortuosas operações que são (segundo muitos relatos) mais dolorosas que a queimadura original;
corpos suspensos em tanques de flutuação especiais, suspensos em líquido, lavados com esponja, as
feridas secretando por meses, por anos. Para qualquer um familiarizado com esses casos, a história
da luta de Fenton para sobreviver seria mera rotina. Como Cristo, ele jaz num tanque com os braços
estendidos. Como Cristo, ele sofreu por toda a humanidade. Como Cristo, ele sugou para sua pele e
nervos a dor do universo inteiro. Foi um evento sagrado. Olhos azul-escuros mirando os ladrilhos
do teto. Os lábios entreabertos, tentando falar. Como Cristo, ele entrou no fogo escaldante do
inferno e saiu apenas com grandes manchas roxas e um rosto que era difícil de reconhecer como
humano. As pessoas passavam por aquele rosto com os olhos no céu ou nos pés, sabendo que olhar
para ele faria rir alto. Seria uma grande, explosiva gargalhada que a cara de Fenton provocaria na
maioria das pessoas, o tipo de gargalhada que se dá no circo quando os olhos lacrimejantes do
palhaço e seu sorriso pateta são pintados no sujeito mais triste da escola de palhaços, jubilado, o
mais patético que você já viu, um sujeito cuja família está no circo há gerações e que não tem
escapatória senão continuar fazendo o que a família faz; ele odeia o trabalho mais que a própria
vida, mas continua sempre, dos shows no Madison Square Garden para as pequenas feiras do
interior. No circo há fogo também. Ele é girado em anéis e lançado da boca de Deus.

* Quando eu tinha uns treze anos, alguém queimou diversos chalés em Bay View, uma estância no
norte de Michigan. Na primavera, quando a neve derreteu, foram encontrados. O que ficava vizinho
à casa de meus avós estava acabado, reduzido a carvão. Eu adorei a visão daquilo e achei um lugar
para ela na minha fila de imagens memoráveis. Gostei em particular dos grandes pinheiros em volta
do chalé, reduzidos a torres quebradiças.
** Na primavera passada, uma casa perto da minha foi reduzida a escombros quando pegou fogo; e,
de fato, eu estava escrevendo e ouvi um som estranho lá fora — como celofane amassado com ruído
—, e as crianças pularam de alegria.

*** É um fato horrível, trágico. Saiu no Times.

**** Isso é ficção.


O lenhador

No primeiro dia depois da volta, ele cortou lenha como um maníaco, foi à floresta dia e noite —
pelo menos é o que dizem. Estava de volta havia seis anos quando eu alcancei idade suficiente para
notá-lo, e nessa época ele ia um pouco mais devagar (pelo menos foi o que me disseram), mas ainda
cortava uma boa medida cord, uma medida cord completa, em cerca de duas horas, dependendo do
tipo de madeira que fosse e da circunferência da árvore; tinha uma cunha movida a gasolina que
abria os troncos ao meio; depois simplesmente os jogava e partia para outro, em geral um golpe só
era o que bastava, e tocava o tronco para longe de si com a ponta de aço das botas e partia para
outro; todo dia, quase todos os dias, sete dias por semana, parava só com o tempo ruim. Quando
parava, era comum haver gotas de suor e condensação em sua barba preta; no tempo frio, uma
crosta de gelo pendurada; no verão havia uma fina tramazinha de vergões vermelhos debaixo dos
pêlos, na superfície da pele. Calor de pinicar. A camisa de lenhador que usava, Pendleton,
tradicional, vermelha e preta de boa lã, o acompanhava até no verão. Quando ele se matou — em 1º
de agosto de 1985 —, vestia a camisa, junto a uma medida cord de carvalho envelhecido empilhado
junto à garagem. Sua mulher estava lá desabotoando a camisa devagar para chegar ao ferimento,
pequeno e redondo, produzido por uma bala revestida de teflon (disseram os jornais) que entrou
com facilidade em seu peito e saiu, ferozmente dividida — as maravilhas da tecnologia espacial vão
um passo além de panelas antiaderentes (meu pai resmungou). Abundavam teorias sobre as exatas
razões, mas sendo o suicídio um enigma inexplicável, não demorou muito tempo para atribuí-lo ao
Vietnã, a seu papel no cerco de Khe Sanh, aos camaradas perdidos e a isso tudo, embora os jornais
mencionassem que ele estava sendo processado por abater sem permissão um bordo vermelho em
uma propriedade particular; foi direto para a entrada de carro dos Janson (uma daquelas curvas de
cascalho lavado na frente da casa de campo deles revestida de cedro), amarrou uma corda em volta
da árvore e depois no gancho de sua picape, ligou a serra elétrica e me disse para soltar a
embreagem quando ele desse um grito (aos catorze anos apenas, eu não era versado no
funcionamento de um câmbio manual, mas fiz o que ele mandou, fui soltando devagar, a picape deu
um tranco, e a árvore caiu atrás de mim com um baque surdo, uma nuvem de poeira). Antes mesmo
de eu sair da cabine da picape, ele estava fatiando o grosso tronco, chegando bem no coração da
árvore, que tinha uns bons cento e vinte anos, segundo a minha contagem dos anéis (posterior). Eu
não disse nada sobre meu papel na morte dele. Não convinha deixar as pessoas saberem que talvez
não tivesse sido o Vietnã que o fizera abrir um belo buraco de tiro no coração, que talvez tivesse
sido outra coisa, o valor de árvores sendo cortadas, o maravilhoso alívio de peso quando a cabeça
do machado fechava o arco e se enfiava no corte. (Eu assisti milhões de vezes.) A ameaça de não
poder entrar nos quintais arborizados de seus vizinhos, ou nos parques locais onde obtinha a maior
parte das árvores, para abater o crescimento excessivo, foi demais para ele; seus dias de lenhador
estavam contados.
ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM ELECTRA POR OSMANE GARCIA FILHO E
IMPRESSA PELA GRÁFICA BARTIRA EM OFSETE SOBRE PAPEL PÓLEN BOLD DA
SUZANO BAHIA SUL PARA A EDITORA SCHWARCZ EM MAIO DE 2006

Você também pode gostar