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Ter esa revista de Literatura Brasileira [6 17]; São Paulo, p. 418-428, 2006. ^*0 421
um extenso poema. Mas não gostava que lhe encomen crições trazidas de acarreto ”.11 E foi isto, com efeito, o
dassem paisagens. A anedota citada por Alfredo Pujol que procurou realizar em seus romances: não permi
sobre o pedido de Ramos Paz para que o autor de tir descrições para divertimento, verdadeiros enfeites
A mão e a luva ornasse seu romance com um parque, e postiços no livro; é preciso que a natureza seja uma
a resposta de Machado de Assis, aquela descrição geo personagem que represente o seu papel, que a paisa
métrica, seca, voluntariamente geométrica (só fala em gem tenha significação e finalidade próprias, que sirva
separações, em caminhos que se cortam...), não tem, a para facilitar a compreensão dos homens ou auxiliar o
meu ver, outra significação. Quando é seu coração que desenrolar da ação, e não seja um mero quadro rígido.
fala, então os termos lhe ocorrem facilmente; quando Problema difícil, ao qual, como veremos, deu, depois
a prefeitura carioca, com pruridos urbanísticos, demo de um primeiro período de hesitações, a melhor solu
liu a velha rua Direita, o artista, comovido de ver de ção possível.
saparecer o pitoresco colonial escondido nesse bairro, Referindo-se, aliás, a Coelho Netto, Machado de
tira de suas lembranças uma tocante evocação .10 Assis notou que ele possuía o sentido da paisagem, que
Mas não são apenas os versos que permitem co empregava sempre as cores próprias, as palavras ade
nhecer um talento, mas também a crítica. Que quali quadas. Mas, ainda aqui, esse não é o seu maior elogio.
dades exigia o escritor de seus contemporâneos? Qual O que lhe agrada nesse escritor é que a natureza está
o seu ideal de estilo? Fala freqüentemente de meias- em toda parte. Em toda parte, isto é, mesmo onde não
tintas, de arte esfumaçada, da necessidade de ser só aparece à primeira vista, nos conflitos dos homens e
brio em literatura. E poderia por isso ser acusado de no íntimo das almas. Texto particularmente revelador,
se haver forjado um ideal em contradição com a natu pois que nos trai o segredo de Machado de Assis e nos
reza tropical, violenta, rica, colorida, exuberante, com indica a direção a tomar para descobrir a paisagem
um país que ainda se acha, na expressão de Keyserling, machadiana .12
no sétimo dia da criação. Certo, não nego a beleza do
estilo tropical. Mas logo me detém esta frase de M a ii
chado: “É preciso não confundir o sentimento com o
vocabulário”. Assim como se podem exprimir sobria Quando se estuda a evolução da pintura, vê-se que a
mente as tempestades do coração humano, como o fez paisagem foi de início apenas um fundo de quadro so
Mérimée, não se poderia exprimir sem exuberância bre o qual se destacava um retrato, uma cena mitológi
um clima tão vivo e ardente? E não será justamente ca ou religiosa. Há então dois casos a considerar: ou a
isso que vamos descobrir na paisagem interiorizada natureza é uníssona com a cena, a doçura da atmosfe
do nosso autor? ra, o brilho torrencial da luz, o patético do crepúsculo
Falando das Cenas da vida amazônica, de José Ve- correspondendo à doçura da parábola evangélica, à
rissimo, Machado de Assis elogia este último por ter expressão apaixonada ou dramática dos personagens;
sabido dar a sensação quase física da realidade vege ou, ao contrário, a paisagem contrasta com o assunto,
tal e aquática do país. Mas acrescenta: “Não são des ao qual, por essa oposição mesma, faz ressaltar.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma [...] os nossos temporais eram agora contínuos e terrí
força que arrastava para dentro, como a vaga que se veis. Antes de descoberta aquela má terra da verdade,
retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arras tivemos outros de pouca dura; não tardava que o céu se
tado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos
aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas
tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas mais belas do universo, até que outro pé de vento des
vinha crescendo cava e escura, ameaçando envolver-me, baratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra
puxar-me e tragar-me.23 bonança, que não era tardia nem dúbia, antes total, pró
xima e firme.
mas liga ainda, com sua branca orla, suas linhas sinuo Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré
sas, todas as partes do romance. Como o caminho que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar.
das eglantinas do Côté de chez Swan de Mareei Proust, Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim,
o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo une posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte
com sua areia úmida, sua geografia oceânica e senti de minha vida, como um marujo contaria o seu nau
mental, a casa de Casmurro e a de Escobar; todos os frágio.26
acontecimentos do drama se situam em dois planos
estreitamente misturados, doçura da luz na água e nos Em criança, Machado, interrogando o seu destino pela
espíritos, tempestades nos corações e nas águas; cons sorte da clara de ovo no copo d’água, via nos filamentos
tantemente é o olhar do leitor dirigido para as ondas esbranquiçados a imagem de um navio partindo. E, em
furiosas ou acariciantes. A ligação é tão completa que bora homem de terra, sem aventuras, citadino agarrado
o ciúme do herói só se precisa pouco a pouco, depois às ruas cariocas, a predição se realizou. Como nas Naus
de se desviar, de hesitar entre o mar e o amigo ;24é o Catarinetas do sertão, carregadas pelos homens sobre a
mar que se encarregará da vingança, vingança ainda terra dura e seca, como nas longínquas capelas do in
ignorada, palpitando ainda nas profundezas aquáticas terior onde se balança, entre os ex-votos, uma caravela
do inconsciente; “o mar perverso”, “o mar desencadea branca, o complexo brasileiro do mar, de que tão bem
do”, o que só restitui os cadáveres; são os olhos oce falou Mário de Andrade, habitava no coração desse ho
ânicos que virão buscar o afogado, arrastá-lo, levá-lo mem imóvel, mas cercado pelas águas em pleno Rio, e
para o palácio das lembranças como se fora ao mágico seus livros, como o copo da infância, encerram em fila
palácio das sereias: “Momento houve em que os olhos mentos dispersos a imagem alucinatória do Atlântico.
águas, torna-se um crescimento vegetal. 1 Este ensaio foi publicado originalmente na Revista do Brasil,
Seria possível mostrar no M em orial de Aires pro ano ui, 3a fase, n. 29, nov. de 1940; foi novamente publicado na
cessos análogos; também aqui, sem recorrer às descri Revista u sp dez.-fev. 2002-2003, p. 192-202. Na presente edição,
ções, a principal personagem do romance é um jardim sempre que possível as referências bibliográficas remetem a
que não conhecemos, mas que não podemos esquecer, edições mais recentes e acessíveis da obra de Machado de Assis.
tanto o autor tornou real a sua presença em nós. No caso de contos e romances, que contam com várias edições,
Coelho Netto contou esta impressão de uma lei fica indicado o volume ou o capítulo a que pertencem os tre
tora de Machado de Assis: “Sente-se neste livro uma chos referidos pelo autor.
3 “Uns braços” ( Várias histórias). a ssis, Joaquim M. Obra completa, 3 v. Rio de Janeiro: Nova
4 Cf. a seguinte carta a José de Alencar: “Não tive, como V. Ex., a Aguilar, 1997, v. 2, p. 721.
fortuna de os ouvir [os versos] diante de um magnífico panora 12 machado de a ssis Joaquim M. A Semana, 11.08.1895. In:
ma. Não se rasgavam horizontes diante de mim [...]. Em torno m a ch a d o de a ssis, Joaquim M. Obra completa. Op. cit., v. 3,
de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade”, ( m a c h a d o de p. 667.
As s is , Joaquim M. Correspondência. Coligida e anotada por 13 Encyclopédie Française, 16,64-17.
Fernando Nery. São Paulo: Jackson, 1951, p. 25). 14 Roger Clément,“ L’humanisation du paysage”. Cahiers du Sud,
5 m a ch a d o de a ssis, Joaquim M. Crônicas. São Paulo: Jackson, fev. de 1938.
i955> v. 3 (1871-78), p. 50 [29 de dezembro de 1872]. 15 laid Garcia, capítulo xiv.
6 Aurélio Buarque de Hollanda, Revista do Brasil , 11, n. 13, p. 55; e 16 “Um homem célebre” ( Várias histórias).
Cassiano Ricardo, Marcha para oeste, 1 .11, p. 274-5. 17 “Um homem superior” (Contos fluminenses 11, coleção Jackson).
7 Crônica da série “A Semana”, publicada na Gazeta de Notícias em 18 “Eterno” (Páginas recolhidas).
20 de agosto de 1893. A citação original tinha algumas omissões 19 Quincas Borba, capítulo l i x .
e foi restaurada a partir da edição de John Gledson, publicada 20 Quincas Borba, capítulo l x x i .
pela Hucitec em 1996. Cf. g l e d s o n , John. A Semana — crônicas 21 “O enfermeiro” ( Várias histórias); “Só” (Relíquias de casa velha).
(1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. (N. do E.) 22 A mão e a luva, capítulo xvi.
8 Ibidem, p. 286. Alfredo Pujol observou bem esse nativismo 23 Dom Casm urro, capítulo x x x ii. No original publicado na
machadiano e cita outro trecho eloqüente, aquele em que recla Revista do Brasil estava “trazer-me”, em vez de “tragar-me”, lapso
ma uma literatura brasileira contra as influências européias. Cf. corrigido aqui. (N. do E.)
p u jo l , Alfredo. Machado de Assis. São Paulo: Tipografia Levy, 24 Ibidem, capítulos cvi e cvii.
1917, p. 270. 25 Ibidem, capítulo cxxm .
9 A Semana , 7.01.1894. In: m a c h a d o de a ssis, Joaquim M. Obra 26 Ibidem, capítulo cxxxn.
completa, 3 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, v. 3, p. 596. 27 Ibidem, capítulo c x l v i i i .