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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FRANZ KAFKA: METAMORFOSES DA LIBERDADE E DA SUBMISSÃO

Pablo Baptista Rodrigues

Rio de Janeiro
Setembro de 2018

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FRANZ KAFKA: METAMORFOSES DA LIBERDADE E DA SUBMISSÃO

Pablo Baptista Rodrigues

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como quesito para obtenção do título de Mestre
em Ciência da Literatura (Teoria literária).

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

Rio de Janeiro
Setembro de 2018

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FRANZ KAFKA: METAMORFOSES DA LIBERDADE E DA SUBMISSÃO

Pablo Baptista Rodrigues

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para obtenção do
título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria literária).

BANCA EXAMINADORA
Aprovada por:

_______________________________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza – UFRJ

_______________________________________________________________________
Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ

_______________________________________________________________________
Prof. Doutora Viviane Vasconcelos – UERJ

_______________________________________________________________________
Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ

_______________________________________________________________________
Prof. Martha Alkmin – UFRJ

Rio de Janeiro
Setembro de 2018

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A meu pai, Paiva.
À minha mãe, Célia.
À minha prima, Talita.

E a todos os outros,
Presentes (E agora distantes),
inomináveis
e corroídos pela memória.

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AGRADECIMENTOS

Enquanto escrevo, meu pai está subindo uma pequena montanha de areia para o
terraço de nossa casa. Futuramente, nossa cozinha terá laje. Minha mãe, sob a metade da casa
de telha, está preparando o almoço de sábado. Eu, em meu quarto, termino esta dissertação.
Este livro é para eles! Pela possibilidade da escrita, pelo incentivo aos meus estudos, por ter
me permitido viver de literatura e filosofia. Aos meus pais, Célia e Paiva, dedico a conclusão
deste trabalho sobre Franz Kafka.
À Talita e Thayna, todo o meu amor e agradecimento pela companhia. Eu as amo
profundamente. À minha tia Sandra, irmã de minha mãe, e mãe da Talita, um carinho de filho.
Vesti no dia de minha defesa o seu presente: uma blusa, uma calça e a persistência de seguir
adiante, apesar de todas as dificuldades.
Aos amigos Anne, Edylene e Guido, por acompanharem de perto a escrita do meu
trabalho. Eu não conseguiria ir tão longe sem a companhia de vocês! À Lindiamara e à
Martha, por me amarem e acolherem. Ao Eduardo, pela inspiração em cada encontro. Ao Ary,
por ter acreditado em mim desde a graduação. À Rô, pelo vinho e outras alegrias. A Mônica,
Sandra, Anderson, Amilson (in memoriam) e Rose (in memoriam), por terem cuidado daquele
menino de 17 anos recém-chegado na Faculdade de Letras, em 2011. Ao Carlos, pelo
incentivo das últimas horas. À Cleone, pelos telefonemas e e-mails afetuosos. Ao Henrique,
pelo amor que nos salva a cada dia. Ao Daniel e à Mariana, pela palavra certeira. A Kizzy,
por tudo.
Aos meus professores do ensino médio no Colégio Estadual Professora Sandra Maria
Santos de Souza, Rosinéia, Ronaldo, Janaina, Eudicias, Elizama, Márcia, Sandra, Clara,
Cláudio, Paula... E aos do Pré-vestibular social do CEDERJ, João, Rodrigo, Andreia e Jamil...
Ao Ricardo, meu orientador, por ter acreditado neste trabalho e por ter me incentivado e
respeitado minha individualidade, minhas crises e devaneios. À Viviane e ao Pucheu, por
terem aceitado participar desta banca: a escolha se justifica não só pelo profissionalismo, mas,
sobretudo, pelo afeto. Ao Programa de Pós-graduação de Ciência da Literatura, pela
oportunidade, pelos congressos e pelas viagens. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa concedida durante todo o mestrado.
A Franz Kafka, por tudo.

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RESUMO

FRANZ KAFKA: METAMORFOSES DA LIBERDADE E SUBMISSÃO

Pablo Baptista Rodrigues

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para obtenção do
título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria literária).

Esta dissertação tem como objetivo analisar o modo como Franz Kafka apresenta o
tema da liberdade e da submissão em sua literatura, a partir dos textos “Um relatório para um
academia” e A metamorfose. Com base nas considerações de Günther Anders (2007), buscou-
se observar como esses dois conceitos filosóficos encontram, na literatura kafkiana, uma
abordagem totalmente original, diante da tradição filosófica e literária. Buscou-se, ainda,
observar como esse tema amplia a compreensão da condição humana contemporânea, da qual
acreditou-se ser Franz Kafka um importante crítico.
A ideia inicial deste trabalho foi observar como, em situações de profunda submissão,
os personagens kafkianos reagem às instâncias de poder como as leis, a burocracia e a família.
Os personagens Pedro Vermelho e Gregor Samsa são tomados como heróis que resistem na e
pela submissão. Há, portanto, uma transvaloração dos conceitos de liberdade e de submissão.
Ambos os termos passam a ser criticados; porém, a liberdade, quando presente no texto
kafkiano, é destituída de toda sua positividade. Ao contrário, a submissão dos personagens de
Franz Kafka pode ser vista como uma pedagogia de uma nova resistência.
A construção desta dissertação fundamentou-se nos seguintes aportes teóricos.
Primeiramente, acreditou-se ser necessária a fundamentação da relação da literatura com a
filosofia, por meio dos autores Alain Badiou, Jeanne Marie Gagnebin e Pedro Duarte de
Andrade. Num segundo momento, pôde-se, então, afirmar que a literatura de Kafka dialoga
com a filosofia da suspeita de Nietzsche, Freud e Marx, com o texto homônimo de Michel
Foucault. Posteriormente, os conceitos de liberdade e de submissão foram lidos na perspectiva
da suspeita, a partir dos textos de Hannah Arendt, Isaiah Berlin, Erich Fromm e Frédéric
Gros.

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ABSTRACT

FRANZ KAFKA: METAMORPHOSES OF LIBERTY AND SUBMISSION

Pablo Baptista Rodrigues

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para obtenção do
título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria literária).

This master’s thesis aims to analyze how Franz Kafka presents the theme of freedom
and submission in his literature from the texts “A Report to an Academy” and The
Metamorphosis. Based on the considerations of Günther Anders in his book, Kafka pro und
contra: Die Prozess-Unterlage, it was observed how these two philosophical concepts find in
Kafka’s literature a very original approach to the philosophical and literary tradition. It was
also sought to observe how this theme broadens the understanding of the contemporary
human condition, in which Franz Kafka was believed to be an important critic.
The main idea of this work was to observe how Kafka’s characters react to instances
of power as the laws, the bureaucracy and the family when they are in situations of deep
submission. The characters “Pedro Vermelho” and “Gregor Samsa” are understood as heroes
who resist "in" and "by" submission. Therefore, there is a metamorphosis in the concepts of
liberty and submission and both philosophical terms are criticized in Franz Kafka's literature.
However, the feeling of freedom is devoid of all its positivity when presented in a Kafkaesque
text. On the other hand, the submission of Franz Kafka’s characters may be seen as a
pedagogy of a new resistance.
The writing of this master’s thesis was based on the following theoretical
contributions. Firstly, it was necessary to establish the relationship between literature and
philosophy through the works of the authors Alain Badiou, Jeanne Marie Gagnebin and Pedro
Duarte de Andrade. After that, it can be said that Kafka's literature dialogues with the
philosophy of the suspicion of Nietzsche, Freud and Marx, with the eponymous book of
Michel Foucault. Subsequently, the concept of freedom and submission is read from the
perspective of suspicion philosophy from Hannah Arendt, Isaiah Berlin, Erich Fromm and
Frédéric Gros.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
2. LITERATURA E FILOSOFIA EM DIÁLOGO .......................................................... 14
2.1. Literatura e filosofia: aproximações .................................................................................. 15
2.2. Literatura como instauradora de suspeita .......................................................................... 21
2.3. Uma crítica literária que suspeita ...................................................................................... 28
2.4. Sobre a condição humana .................................................................................................. 34
2.5. A verdade sobre Sancho Pança ......................................................................................... 36
3. RELATAR A LIBERDADE........................................................................................... 45
3.1. A escrita de um relatório ................................................................................................... 45
3.2. A liberdade no conto de Kafka em diálogo ....................................................................... 55
3.3. A liberdade em suspeita .................................................................................................... 62
4. METAMORFOSE DA SUBMISSÃO ........................................................................... 65
4.1. Gregor Samsa: um insubmisso .......................................................................................... 66
4.2. O medo à liberdade tendo como resposta a submissão ..................................................... 83
4.3. Servidão voluntária e desobediência involuntária ............................................................. 91
4.4. Gregor Samsa: a lição de um submisso ............................................................................. 96
5. CONSIDERAÇÕES PARA OS FILHOS DA ÉPOCA .............................................. 105
6. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 110

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1. INTRODUÇÃO

Eu escrevo sobre o autor “mais lido e comentado da literatura alemã moderna”


(CARONE, 2011, p. 7). Eu escrevo sobre uma literatura de um nome considerado “um ícone
literário surpreendente” (CARONE, 2011, p. 7). Um homem que ao morrer, aos 41 anos,
vítima de uma tuberculose pulmonar que o atingira desde os seus 34, era um “outsider no
próprio centro da modernidade” (CARONE, 2011, p. 7). Eu escrevo sobre a literatura de
Franz Kafka (1883-1824), escritor nascido no dia 3 de julho de 1883 e falecido no dia 3 de
junho de 1894. Filho de Hermann Kafka (1852-1931) e Julie Löwy (1856-1934), irmão de
Gabriele (“Elli”), Valerie (“Valli”) e Ottilie (“Ottla”). Homem de noivados interrompidos:
dois com Felice Bauer (1887-1960) e um com Julie Wohryzek (1896-1944). Já sem a
oficialidade do compromisso matrimonial, vive os últimos momentos de sua vida com Dora
Diamant (1898-1953). Amigo de Max Brod (1884-1968), seu leitor e editor, a quem Kafka
pediu que queimasse todos os seus escritos. Doutor em direito pela Universidade Carolina, em
Praga. Funcionário de uma empresa de seguros contra acidentes de trabalho do Reino da
Boêmia. Escritor de literatura. Escritor d’A metamorfose (KAFKA, 2011).
Sua língua, o alemão de Praga, não é a minha língua, o português brasileiro do século
XXI. Aproximo-me, entretanto, de Franz Kafka, pela construção de suas metamorfoses (pois
muitas vezes fui Gregor Samsa); das sereias que não cantam e quase me aprisionam (sou
também Ulisses); das vezes em que fui condenado (sem ter feito mal algum).
Eu me aproximo de Franz Kafka, sobretudo, pelo caminho da “suspeita” (FOUCAULT,
1975), entrando pelas ramificações desses textos, que podem ser a expressão de uma
“literatura menor” (DELEUZE e GUATTARI, 2014); páginas que me ensinaram a
“desloucar” o mundo para quem sabe compreendê-lo (ANDERS, 2007). E, diante dessas
inúmeras parábolas (BENJAMIN, 1987), ter apenas a incompreensão como resposta e o
infinito gesto da interpretação. Essa porta estava destinada também para mim: não havendo
ponto de fuga, ou concessão, aceitei a locomotiva kafkiana que se dirigiu ao meu encontro
(ADORNO, 1998)
Há um aspecto que desejo pontuar e que se inscreve por todo este trabalho. O caráter
periférico de Franz Kafka, que vai de encontro ao meu mal-estar no mundo:

Estes três altíssimos escritores [Marcel Proust, James Joyce e Franz Kafka]
só escrevem (como aliás, Machado de Assis) a partir da periferia: Proust
aplicando-se microscopicamente a uma classe (ou película) social em vias de

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desaparecimento, a aristocracia, que negociava seus títulos e nomes
altissonantes com a burguesia endinheirada, atraída pelo estilo refinado de
um novo e até então invejado parceiro; Joyce, que viveu a duras penas com a
família em várias cidades da Europa (Paris, Zurique, Trieste e Roma, por
exemplo) mas não dedicou a menor atenção artística a outro lugar que não
fosse Dublin, cidade que na época era uma colônia inglesa, atrasada e
convulsiva, que o escritor imortalizou nos seus contos e novelas
“exemplares”.

Talvez seja por esse motivo, também, que os três escritores inscreveram em
bronze seu nome na Weltliteratur do século XX: o primeiro, Proust, por dar
o arremate final à grande prosa do século XIX; o segundo, Joyce, por
avançar as fundas transformações da literatura que vinham desde Homero; e
o último, Kafka, por fazer tabula rasa das convenções artísticas e
psicológicas e inventar um narrador à sua altura: o narrador não consciente,
que sabe tanto quanto o personagem e o leitor, ou seja, nada ou quase nada,
o que os leva, por uma mediação estritamente literária, ao universo alienado
em que todos nós vivemos (CARONE, 2011, p. 8-9).

Esse escritor de um narrador não consciente descobriu – e, felizmente, nos revelou –


que pouco sabemos sobre a nossa realidade. Com isso, revelou a condição alienada, porque
alienante, em que estamos inseridos. Ora mais resignados, ora mais combativos a todos os
discursos que nos expropriam a consciência. E é sobre esse universo que se inscreve este
trabalho. Pois o mundo de Franz Kafka, com sua burocracia, sua análise que expõe a medula
dos mecanismos de poder das instâncias familiares e do mundo das leis, nunca foi tão atual
para nós. Infelizmente.
Diante dos enigmas, das fábulas e parábolas kafkianas que se locaram para mim durante
minha formação enquanto leitor de Franz Kafka, a que permaneceu foi esta: por que os
personagens kafkianos não reagiam à altura do mundo que os oprimia? Não existiria, diante
do pai ou da lei, um possível esboço de uma estratégia contra essas instâncias de poder? Se
não há esperança para nós, como disse Franz Kafka certa vez, não haveria ao menos a
oportunidade de vermos a terra prometida, ainda que nela nunca venhamos a habitar? Se não é
liberdade o que almeja o símio de “Um relatório para uma academia”, qual seria, então, a
saída que seu personagem nos propõe? Gregor Samsa é apenas uma imagem de derrota ou
uma estratégia de combate (HOUAYEK, 2011)?
Assumindo, então, Franz Kafka como um estabelecedor de novas fronteiras, porque cria
novos territórios, a minha leitura não estará próxima das definições existencialistas ou
reducionistas de uma certa crítica kafkiana, de que os personagens do nosso autor em questão
são personagens resignados (LÖWY, 2005). Ou seja, creio que, na prosa kafkiana, reside uma
forma singular de resistência. A denúncia à alienação do homem por Kafka, que passa a ser a

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própria condição humana contemporânea (ARENDT, 2008), não é para naturalizar sua
condição, para convidá-lo a reagir. Franz Kafka será aqui um estrategista.
É bem certo que, se tomarmos O processo como exemplo, chegaríamos à conclusão de
que as instâncias superiores que detinham o poder de esclarecer o que ocorrera com Josef K.
foram vitoriosas. “Como um cão”, morre K. (KAFKA, 2003, p. 211). Mas é necessário clarear
o momento da cena. E, em alguns momentos antes de sua morte, K. afirmou: “A única coisa
que posso fazer agora é conservar até o fim um discernimento tranquilo” (KAFKA, 2003, p.
209); para emendar logo depois: “Eu não queria de modo algum ficar parado” (KAFKA,
2003, p. 209). O narrador o completa: “K. puxou os senhores para a frente com força”
(KAFKA, 2003, p. 210). Linhas que demostram uma possível relação de resignação e
resistência diante da eminência de sua morte.
Os personagens de Kafka padecem para nos alertar que, diante de uma manhã em que se
é detido sem ter feito mal algum (destino possível a todos nós), ainda existe “sobre um último
andar da casa situada no limite da pedreira” – lugar em que K. foi morto – uma luz que
“tremula, uma janela que se abre ali de par em par; uma pessoa que a distância” observa os
minutos finais da vida de K. O narrador kafkiano, tão desinformado quanto nós, pergunta-se:
“Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que participava? Alguém que queria
ajudar? Era apenas um? Era todos? Havia a possibilidade de ajuda? Existiam objeções que
tinham sido esquecidas?” (KAFKA, 2003, p. 211).
Sabemos apenas que tal indeterminação nos auxilia a entender que a condenação de K.
está para além da vida regida pelos tribunais. O processo de Josef K. já estava escrito nos
olhares da senhora Grubach, nos quadros pintados por Titorelli, bem como na luz que emana
da janela do prédio próximo à pedreira1. O poder da lei agora reside nos detalhes, não apenas
para referir antecipadamente a uma microfísica do poder (FOCAULT, 1979), tão bem
elaborado por Franz Kafka e Michel Foucault, mas para evidenciar que, no mundo kafkiano,
tudo está fora de lugar. O mundo está “desloucado” (ANDERS, 2007). E não se pode confiar
em nada do que é dito. Tudo é o tribunal.
Creio que Kafka operou pela literatura um rebatizar e um “desloucamento” de toda
nossa realidade (ANDERS, 2007). Instaurou, portanto, um novo circuito de afetos, que é,
também, um novo circuito de interpretações (SAFATLE, 2016). A sala vazia do tribunal ao

1
Assim como a condenação do prisioneiro “Na colônia penal” reside no lencinho que o oficial utilizava e nos
doces permitidos ao condenado na sua última refeição (KAFKA, 2011).

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qual K. se destina em um domingo, por si só, já é uma das formas com que Franz Kafka
denunciou a abstração do mundo das leis, “Efetivamente estava vazia [a sala do tribunal] e no
seu vazio parecia mais lastimável” (KAFKA, 2003, p. 51). Os livros do juiz de instrução não
são os típicos livros: estão cheios de gravuras. É a constatação de um sistema corrompido, em
que K. declara, sem nenhuma dúvida diante de uma gravura obscena: “São estes os códigos de
lei estudados aqui [...] é por homens assim que devo ser julgado”. (KAFKA, 2003, p. 53). Em
lugar das leis, encontra-se pornografia barata.
O que almejei nesta dissertação foi o que resultou do embate da minha vida com o texto
literário. Pensar com Franz Kafka a minha liberdade, ou “uma saída”, como queria Pedro
Vermelho em “Um relatório para uma academia...”. E, com a metamorfose de Gregor Samsa,
entender uma forma insubmissa de vida apreendida nas páginas d’A metamorfose. Foram
esses os dois textos selecionados para apresentar as minhas questões em torno do tema da
liberdade e da submissão.
Entender que Kafka pode ser tomado, assim como Freud, Marx e Nietzsche, com um
mestre da suspeita – o que é evidenciado por meio da análise apurada de Günther Anders.
Tudo isso, por fim, contribuindo para o aprofundamento daquilo que Hannah Arendt definiu
como nossa condição humana contemporânea.
O que restou de nossa forma de compreender o mundo após a consciência da suspeita
kafkiana lançada sobre nosso mundo? O que resistiu após o “desloucamento” enunciado por
seu texto literário? Tudo o que se escreve aqui também deve ser colocado sob suspeita. E
espero ter entrado pelas portas de Kafka, e, com isso, não ter apresentado uma verdade sobre
nosso autor. Não sei se atingi essa ambição; de todo modo, eis aqui o que o texto de Franz
Kafka me proporcionou.

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2. LITERATURA E FILOSOFIA EM DIÁLOGO

O objetivo deste capítulo é tecer considerações a respeito da aproximação entre a


literatura e a filosofia, levantar mais uma vez esse debate para corroborar a aproximação do
texto de Franz Kafka com um modo de escrita que apresenta questões literárias e filosóficas –
em especial, uma literatura da suspeita. É um capítulo que busca apresentar a visão que
norteia a minha forma de analisar o texto literário, deixando menos embaçado, aos que me
leem, o caminho que procurei seguir em toda a dissertação.
Desse modo, apresentarei, nas páginas seguintes, a relação da literatura com a filosofia.
Logo após, apresento o diálogo que nos servirá de entrada no texto kafkiano, que é a filosofia
e a literatura como instauradoras da “suspeita”. Apresentarei, também, como essa “escrita da
suspeita” está presente no modo em que os intérpretes de Franz Kafka o definiram, em
especial partindo de Günter Anders por meio da palavra “desloucamento” – termo que terá
agora um tratamento especial, para ser melhor compreendido por você, leitor.
Termino este capítulo com a análise do texto “A verdade sobre Sancho Pança” para,
assim, confrontarmos o nosso próprio processo de construção interpretativa da suspeita.
Tomei o cuidado para que o texto literário sempre fosse a nossa prioridade. O seu surgimento,
de forma mais concentrada, nos momentos finais deste capítulo se justifica porque assim me
pareceu mais coerente ao leitor, e pela própria organização do pensamento. Pelo menos para
este momento.
O diálogo que buscarei travar neste capítulo ocorreu a partir das considerações feitas
por Alan Badiou com o capítulo “Arte e filosofia” (BADIOU, 2002); de dois textos de Jeanne
Marie Gagnebin – o “Literatura e filosofia” no II Colóquio de Literatura Brasileira da USP
(GAGNEBIN, 2016) e o capítulo “Literatura e filosofia” do livro Ler, escrever e memória
(GAGNEBIN, 2006); e do capítulo “A filosofia do romance” da tese Estio do tempo:
Romantismo e estética moderna, de Pedro Duarte de Andrade (ANDRADE, 2009).
Já com a relação literatura e filosofia estabelecida, parti do texto de Michel Foucault
com o livro Nietzsche, Freud e Marx (FOUCAULT, 1975), para pensar com o pensador
francês a instauração do “método” da suspeita como modo de atuação da filosofia da virada
do século XIX para o XX. Tal postura filosófica, de buscar a transvaloração de todos os
valores, a questão do inconsciente e da ideologia contra toda a objetividade – postura
contrária à filosofia do cogito cartesiano (DESCARTES, 1996) –, está, para mim, em forte

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diálogo com a leitura de Günther Anders, ao considerar que Franz Kafka tem como forma de
escrita o “desloucamento”.

2.1. Literatura e filosofia: aproximações

Por “inestética” entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando
que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira
alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação
estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos
produzidos pela existência independente de algumas obras de arte
(BADIOU, 2002, p. 9).

Alan Badiou apresenta, no capítulo “Arte e filosofia” (BADIOU, 2002), esquemas para
entender a relação entre o fazer artístico e o fazer filosófico. São as categorias que denominou
de “Didatismo”, “Romantismo” e “Classicismo”, tendo em consideração “a educação dos
sujeitos” (BADIOU, 2002, p. 15) como um elemento importante que perpasse esses modos de
compreensão do diálogo da arte e da filosofia no decorrer dos tempos. Filosofia e arte, afirma
Badiou, “são historicamente acopladas” (BADIOU, 2002, p. 11); porém, as relações se deram
de forma muito particular no decorrer da história ocidental.
No “Didatismo”, a relação arte e filosofia diz respeito a uma espécie de controle do
processo educativo e seu destino ao verdadeiro. A arte, portanto, é “incapaz de verdade ou [..]
toda verdade lhe é exterior” (BADIOU, 2002, p. 14). O problema apresentado na República
de Platão não seria tanto a doutrina de “não aceitar a parte da poesia de caráter mimético”
(PLATÃO, 2011, p. 293); seria, sim, o da imitação como efeito de verdade (BADIOU, 2002,
p. 12), o que faz com que a arte mimética seja denunciada, sendo “uma aparência de verdade”
(BADIOU, 2002, p. 13).
Contrapõe-se ao modelo do “Didatismo” platônico o modelo “Romântico”. A arte,
agora, assume o estatuto de verdade e ela está apta à verdade. A arte prossegue onde a
filosofia se detém. Ela é o “Filho sofredor que salva e reergue”, enquanto a filosofia é o “Pai
afastado e impenetrável” (BADIOU, 2002, p. 13). A arte encarna e, liberta da suspeita
platônica (já em Aristóteles), serve como “tratamento das afecções da alma”. Ela agrada e
revela a compreensão das paixões. Portanto, Badiou fala, aqui, de uma arte que se aprofunda
como forma de identificação, isto é, transferência: uma “deposição das paixões”, a catharsis.
(BADIOU, 2002, p. 15).

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Já no “Classicismo”, a arte tem como função captar o desejo e, quando a filosofia é
convocada, atua como “estética”. Ou seja, a filosofia, nesse sentido, é entendida como o saber
que fornece o conhecimento sobre o “agradar” (BADIOU, 2002, p. 16). Dito isso, como se dá
a relação da filosofia em nosso tempo? Para Badiou, a resposta do século XX foi marxismo
(didático), a psicanálise (clássico) e a hermenêutica alemã (romântico), pois o Estado
socialista, com seu controle estatal, aproxima-se do didatismo platônico, um “platonismo
stalinizado” (BADIOU, 2002, p. 16); a psicanálise, por “organizar a arte como objeto do
desejo [...] A obra de arte encadeia uma transferência” (BADIOU, 2002, p. 18); e, por fim, a
filosofia heideggeriana, por expor “um entrelaçamento indiscernível entre o dizer do poeta e
do pensar” (BADIOU, 2002, p. 17).
Uma das formas que Alan Badiou encontrou para pensar a relação da arte e da filosofia
no seu tempo foi observar o que os três esquemas herdados – didático, romântico e clássico –
têm em comum. Nesse caso, é a relação da arte com a verdade. Numa relação de imanência
entre arte e verdade, a pergunta lançada é se na obra de arte reside a verdade ou a arte serve
para mostrar uma verdade exterior. E, na relação de singularidade, perguntar-se se a arte
apresenta algo que somente ela pode mostrar, ou se o que ela nos revela também está presente
em outros registros do pensamento.
No aprofundamento da compreensão do diálogo entre arte e filosofia, Alan Badiou nos
diz que não seria possível assumir uma verdade artística singular e imanente ao mesmo
tempo. No “Romantismo”, a verdade na arte é imanente e o fazer artístico nos revela o
pensamento, mas sem singularidade. No “Didatismo”, há o aspecto singular da verdade na
arte, pois somente o fazer artístico expõe uma verdade. No “Classicismo”, a “verdade coage
no imaginário, sob a forma de verossímil” (BADIOU, 2002, p. 20). Qual seria a Proposta de
Badiou? Entender que “a própria arte é um procedimento de verdade” e fazer com que na arte
se busque, então, seu caráter de verdade imanente e singular – o que leva a arte da mera
função geradora de efeitos para o estatuto de “um pensamento cujas obras são o real”
(BADIOU, 2002, p. 20).
Essa postura, portanto, enaltece o procedimento artístico e faz com que, hoje,
colhamos os frutos mais aparentes e menos “velados”, aos quais se referiu Badiou. Logo,
entender o diálogo entre literatura e filosofia – e, principalmente, o literário como instigador
do pensamento – não significa buscar na literatura o pensamento de Platão, Aristóteles, Kant
etc. Isso porque “uma configuração pensa a si mesma nas obras que a compõe [...] deve se

16
sustentar que a arte, configuração ‘em verdade’ das obras, é em cada ponto pensamento do
pensamento que ela é” (BADIOU, 2002, p. 26).
Sobre as questões da educação dos sujeitos, devemos salientar que o papel educativo
evidenciado por Alan Badiou também está presente na arte. Ou seja, ainda que enfraquecido,
devemos recordar que “só há educação pelas verdades” e que existe, portanto, uma
“corresponsabilidade da arte” ao produzir as suas verdades.
Paralelamente a essas questões levantadas por Alan Badiou, penso ser relevante
apresentar também as considerações de Jeanne Marie Gagnebin. Acredito que Badiou afirma
o lugar da arte para a produção de conhecimento e sua autonomia diante do fazer filosófico,
enquanto, Gagnebin, apresenta o caráter literário do fazer filosófico. Ou seja, há um caráter
intrínseco do próprio fazer da filosofia que o aproxima do literário:

a filosofia se autodefine e é definida de diversas maneiras segundo os


momentos de sua história, segundo os momentos da história: na Idade
Média, tinha que se confrontar principalmente com a teologia, por exemplo,
na modernidade, desde Descartes, com as matemáticas e com as ciências
exatas, hoje com outras ciências ditas humanas ou naturais. A segunda coisa
é que a filosofia só pode se dar na e pela linguagem, por isso a chamei de
linguística ou de linguageira (“sprachlich”), ela não trabalha primeiramente
com “ideias”, mas sim com palavras. História e Linguagem, inseparáveis,
delimitam o exercício filosófico, fazendo sua grandeza e sua fragilidade – e
tecendo seu parentesco com aquilo que, a partir do Romantismo alemão,
costumamos chamar de “literatura” (GAGNEBIN, 2016, p. 5-6).

É necessário considerar dois pontos importantes ao longo dessa primeira afirmação de


Jeanne Marie Gagnebin. Diante da história da filosofia, devemos recordar as inúmeras
mutações do campo filosófico e que, sem a linguagem, não teríamos o “filosofar”; isso porque
a filosofia se dá na linguagem e pela linguagem. Portanto, podemos assumir que há, entre
filosofia e literatura, uma intersecção, e não ilhas incomunicáveis. Filosofia e literatura
surgem de um único terreno: o solo da linguagem. O filósofo não trabalha primeiramente com
ideias, mas sim com palavras. E, para compreender o exercício de fazer filosofia, é necessário
compreender o lugar inseparável da filosofia e da literatura – premissa estabelecida a partir do
romantismo alemão.
O olhar de Jeanne Marie Gagnebin sobre a filosofia é interessante por criar a
possibilidade de pensarmos em ler a filosofia acentuando o seu caráter literário: de ler
Nietzsche, por exemplo, como um poeta-filosófico e, assim, ressignificar e potencializar o
homem de Assim falava Zaratustra. Ou seja, a proposta de uma hermenêutica filosófica que
leve em consideração a literalidade da Filosofia.

17
Se esquecermos a forma literária “diálogo” para procurar estabelecer um
“sistema” de afirmações platônicas e, a partir delas, extrair algumas
proposições essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos
muitas contradições, muitas incoerências, poucas certezas e poucas
evidências. Mas se levarmos a sério a forma diálogo, isto é, a renovação
constante do contexto e dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de
avanços e regressos, as resistências, o cansaço, os saltos, as aporias, os
momentos de elevação, os de desânimo etc, então perceberemos que aquilo
que Platão nos transmite não é nenhum sistema apodítico, nenhuma verdade
proposicional, mas, antes de mais nada, uma experiência: a do movimento
incessante do pensar, através da linguagem racional (logos) e para além dela
(GAGNEBIN, 2006)

Nesse sentido, há um aspecto na filosofia a ser defendido por Gagnebin. (E podemos


ver isso em Franz Kafka, como na literatura e filosofia contemporânea). Ensaio, aforismos e
um texto em fragmentos se opõem ao modelo dos grandes sistemas filosóficos e
problematizam de forma potente o pensamento. Justamente pelo seu estilo paradoxal, esses
gêneros literários unem a “filosofia e literatura [...] com todas as suas diferenças”, permitindo
um fazer litero-filósofico próprio.
Por fim, encerro esse primeiro momento argumentativo com o trabalho de Pedro Duarte
de Andrade, que contribui para a compreensão de algumas nuances deixadas em aberto no
texto de Alan Badiou e Jean Marie Gagnebin, do valor do romantismo alemão para o
entendimento da relação da arte e da filosofia ao longo da história do pensamento no
Ocidente. Como dissemos anteriormente, o “Romantismo” para Badiou significou a
“independência” de pensar a vida pela arte, pois a arte no “Romantismo” passa a ter um
significado particular: promover o valor do pensamento por si só, e não a serviço da filosofia.
Isso, nas linhas de Gagnebin, foi dito da seguinte forma: “História e Linguagem,
inseparáveis, delimitam o exercício filosófico, fazendo sua grandeza e sua fragilidade – e
tecendo seu parentesco com aquilo que, a partir do Romantismo alemão, costumamos chamar
de “literatura” (GAGNEBIN, 2016, p. 3).
A palavra que aproxima a linguagem da filosofia, logo, é a “literatura”. O romance é,
então, altamente valorizado como forma literária para ser a forma primordial de manifestação
do pensamento romântico, pois, ao perder-se o amparo divino do mundo grego e de sua
mitologia tradicional, os escritores românticos verão, na emergência do gênero romance
(mistura de gêneros, prosa e poesia, fragmentos), a possibilidade da “própria filosofia dentro
da mesma obra” (ANDRADE, 2009, p. 19). Diante da modernidade, o homem moderno
desamparado poderia ver, no gênero romance, a reflexão de sua subjetividade e o possível
encontro de sentidos à sua existência.

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Entre as propostas dos escritores românticos está a de ver a obra não por uma tabela de
gêneros, mas sim “compreender os critérios da obra a partir da própria obra” (ANDRADE,
2009, p. 101) e, com isso, por meio da obra, atingir o possível sentimento do absoluto, em
recuperação ao desmoronamento do mundo grego. Desse modo, a partir de seu lugar
indefinido, o homem moderno se viu impelido a ver na arte a possibilidade da invenção de
uma nova humanidade – o que faz, então, da obra literária forma de compreensão do mundo,
de si mesmo, e esse considerado um gênio. Andrade recupera uma das compreensões de
Goethe sobre a literatura de Shakespeare, tido pelos românticos como um gênio inspirador:

Ao ler sua primeira página tornei-me seu adepto para toda a vida, e ao
terminar a primeira peça, senti-me como um cego de nascimento a quem fora
dada de repente a vista por uma mão milagrosa. Reconheci, senti vivamente
que toda a minha existência se alargara infinitamente, tudo era novo,
desconhecido, e a luz a que não estava acostumado doía-me nos olhos. Aos
poucos aprendi a enxergar e tenho de dar graças ao meu gênio reconhecido,
se ainda sinto vivamente o que ganhei (GOETHE, 1991, p. 66 apud
ANDRADE, 2009, p. 116).

Para Goethe, Shakespeare era uma marca para sua própria inspiração, o gênio. E o
escritor de Os sofrimentos do jovem Werther reconhece que, no texto do Bardo, há o fomento
de questões não apenas da estrutura teatral shakespeariana, mas de uma verdade sobre a vida
– um aprendizado sobre a própria existência, que “se alargara infinitamente”. E é tão
interessante quanto belo comparar William Shakespeare a uma espécie de teoria do
conhecimento ao modo platônico: “a luz a que não estava acostumado doía-me nos olhos. Aos
poucos aprendi a enxergar”. Para Johann Wolfgang von Goethe, a saída de sua caverna
interior ocorreu pela leitura do dramaturgo inglês.
O que penso ser o diálogo da literatura com a filosofia, após essas breves colocações de
argumentos e posições teóricas e do que tais considerações contribuem para este trabalho?
Tentei empreender aqui a leitura de alguns projetos de compreensão entre o discurso
literário e o discurso filosófico – o que, em resumo, é afirmar quão interessante é, ainda hoje,
problematizar a fronteira entre a arte literária e o filosofar. O texto literário pode ser tomado
como objeto da filosofia? Existem características literárias num texto filosófico? E, ao afirmar
o lugar primordial da literatura como forma própria para o pensar, ainda aceitamos todos os
pressupostos românticos?
Em resumo, o que desejei fazer foi demostrar, nesta seção, a preparação argumentativa
para tomar o texto literário de Franz Kafka como propositor de questões filosóficas – em
especial, as questões que tangenciam a condição humana. Preocupei-me, nesse exercício, com

19
não buscar, na literatura de Kafka, os pressupostos filosóficos encontrados nos pensadores
escolhidos para o meu trabalho – um dos recorrentes erros da aproximação do literário com a
filosofia (GAGNEBIN, 2006).
Nesse sentido, o texto literário é autônomo para a realização do pensamento (como bem
apontou Badiou, Gagnebin e Andrade). É bem certo que nossos primeiros críticos apresentam
uma tentativa de projeto de reconciliação da arte e da filosofia, o encontro do literário na
própria filosofia e a compreensão do “Romantismo” como exaltação da forma do romance,
sendo meio escolhido para o exercício do pensamento e reflexão do sujeito moderno e a
construção de sua individualidade. Os projetos de Badiou, Gagnebin e Andrade permitiram
ver a possibilidade de seguir esse caminho litero-filosófico – em especial, o de pensar a arte
literária como provocadora do pensamento.
Concluo essa seção com duas considerações interessantes. A primeira presente nos
próprios manuais de teoria literária. No clássico livro de René Wellek e Austin
Warren(WELLEK e WARREN, 1971), nos capítulos “Natureza da literatura” (WELLEK e
WARREN, 1971, p. 25-34) e “A função da literatura” (WELLEK e WARREN, 1971, p. 35-
46), lemos as seguintes passagens:

Se reconhecermos que a “ficcionalidade”, a “invenção” ou a “imaginação”


são os traços característicos de literatura, concebemos a literatura mais em
função de Homero, Dante, Shakespeare, Balzac, Keats, do que propriamente
de Cícero ou Montaigne, Bossuet ou Emerson. Concebemos que existirão
casos “fronteiriços”, obras como a República, de Platão, nas quais se não
podem ignorar passagens de “invenção” ou de “ficcionalidade”, pelo menos
nos grandes mitos, não obstante serem simultaneamente, primordialmente,
obras de filosofia” (WELLEK e WARREN, 1971, p. 32)

Uma corrente contemporânea baseia a utilidade e a seriedade da poesia na


alegação de que a poesia acarreta conhecimento – uma espécie de
conhecimento. A poesia é uma forma de conhecimento. Aristóteles parece
ter afirmado algo de semelhante, na sua célebre observação de que a poesia é
mais filosófica do que a história, uma vez que a história “relata coisas que
aconteceram, a poesia coisas que podiam acontecer” – o geral e o provável.
(WELLEK e WARREN, 1971, p. 39)

As duas citações corroboram para pensar o caráter filosófico da literatura. Esse assunto
sempre vem à tona na tentativa de definir o que vem a ser o literário, e tal abordagem sempre
está presente nos principais manuais de literatura. Existe, portanto, uma fronteira, desde dos
tempos de Platão, que permite o trânsito entre literatura e filosofia, de maneira mais facilitada
do que entre a história e a filosofia.

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É o caráter fronteiriço da literatura com a filosofia que nos interessa, naquilo que Terry
Eagleton (EAGLETON, 2006), no já conhecido capítulo “O que é literatura?”, também
afirmou, acrescentando outros pontos ao que René Wellek e Austin Warren consideraram, por
exemplo, em seu manual – principalmente, acentuando a impossibilidade do caráter único de
definir literatura, já alertando sobre assumir de maneira descuidada a relação literatura,
filosofia, e escrita imaginativa.

Muitas têm sido as tentativas de definir literatura. É possível, por exemplo,


defini-la como a escrita “imaginativa”, no sentido de ficção – escrita esta que
não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre
aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não
procede. A literatura inglesa do século XVII inclui Shakespeare, Webster,
Marvell e Milton; mas compreende também os ensaios de Francis Bacon, os
sermões de John Donne, a autobiografia espiritual de Bunyan. [...] A
literatura entre “fato” e “ficção”, portanto, não parece nos ser muito útil”
(EAGLETON, 2006, p. 1-2).

A filosofia sofrerá a mesma indecisão na sua definição, o que, para mim, aproxima
ainda mais esses dois terrenos discursivos. Dito isso, sinto-me mais seguro para aproximar a
literatura do terreno da filosofia. Mas de qual filosofia? A filosofia que propõe suspeitas,
como a demarcada por Michel Foucault (FOUCAULT, 1975). Minha impressão, enquanto
leitor de Franz Kafka, é que ele lança para nós uma certa suspeita por meio do seu mundo
ficcional. Logo, nada que é afirmado por um personagem kafkiano deve ser tomado ao pé da
letra, haja vista as inúmeras cenas d’O castelo, cheias de ambiguidades – portanto, ricas em
interpretações.

2.2. Literatura como instauradora de suspeita

Pensar Franz Kafka como autor da suspeita é ampliar as considerações de Michel


Foucault, inserindo o poeta de Praga entre a tríade “Nietzsche, Marx, Freud”, considerados
como “mestres da suspeita” pelo autor de Vigiar e punir. O que proponho aqui é estabelecer
um caminho filosófico no qual Franz Kafka é, também, um mestre da suspeita e que lança
profundas dúvidas sobre as bases da condição humana contemporânea. O primeiro ponto que
devemos considerar é que Nietzsche, Marx e Freud colocam diante de nossa antiga forma de
compreender a consciência um novo enigma (ZUBEN, 2008). A consciência como matéria de
compreensão do real nunca mais terá a mesma confiança após as considerações desses três
autores. Isso porque,

21
Segundo Ricoeur, a partir de Nietzsche, Marx e Freud, a consciência passa a
ser considerada como consciência falsa, isso querendo dizer que, a partir
deles, estabelece-se a crítica à idéia cartesiana de que o sentido e a
consciência do sentido coincidem. Eles instauraram a dúvida sobre os
poderes da consciência em apreender o sentido do mundo e de si mesma de
maneira evidente, de maneira clara e distinta. Segundo Ricoeur, o cogito
cartesiano “penso, logo existo”, a auto-apreensão imediata do sujeito foi
posta em questão pela descoberta do inconsciente em Freud, do ser social em
Marx e da vontade de poder em Nietzsche (ZUBEN, 2008, p. 35)

A substância da qual não se teria mais dúvida, a que resiste após todo o perscrutar da
dúvida, o “eu cartesiano” como substância imutável e sustentadora da consciência, é
definitivamente criticada e retirada de seu pedestal. Não se pode compreender a realidade,
portanto, de maneira objetiva; e, ao invés da via da certeza no conhecer, coloca-se a suspeita
como um caminho sem volta. Curioso, porque Descartes também usa da suspeita para sua
filosofia. Acredito, porém, que a distinção entre Nietzsche, Marx e Freud (entre inúmeras
distinções, evidentemente) é que os autores concluíram que não se pode chegar a essa
substância sustentadora do eu. Sem lançar mão de uma filosofia do ceticismo (ZUBEN, 2008,
p. 35), nossos mestres procuram “outra via de acesso à consciência, um trabalho de
interpretação mediado pelos signos e pelos símbolos a partir dos quais a própria consciência
se manifesta”. (ZUBEN, 2008, p. 35) e, com isso, a proposta de uma nova hermenêutica do
sujeito.
O que ocorre, a partir de Ricoeur e Foucault, é que se constrói a possibilidade de
pensar para além de uma hermenêutica de “exegese bíblica ou jurídica” (ZUBEN, 2008, p.
35) para pensar com as ferramentas dessa exegese uma possibilidade de interpretar o próprio
eu. O homem, não sendo mais caminho (método) para a compreensão da realidade, passa a ser
o próprio mundo a ser compreendido: “A interpretação se torna [...] um eterno jogo de
espelhos, e assume um caráter existencial e ontológico para o homem”. (ZUBEN, 2008, p.
36). Ou seja, não há, portanto, um caminho único de interpretação do mundo da vida, uma
única hermenêutica para interpretar o sujeito.
E talvez seja realmente nessa nova hermenêutica que Franz Kafka se insere. Isso
porque não há, tomado pela proposta de Nietzsche, Freud e Marx, um início do processo de
interpretação do sujeito: apenas a inacabada e o interminável processo de interpretação, o
inacabado e interminável processo da análise psicanalítica, o inacabado e interminável
processo da metamorfose dos personagens de Franz Kafka.
A instauração de uma hermenêutica moderna implica, portanto, a compreensão de uma
outra abordagem para a consciência, “não mais o problema de uma substância, mas o

22
problema de uma ação, uma ação interpretativa que infinitamente se recoloca como
problema” (ZUBEN, 2008, p. 37). O sujeito, então, assume não o lugar da substância
cartesiana, mas sim o desejo e a vida.
Sigamos com aquilo que Michel Foucault nos diz em Nietzsche, Freud e Marx
(FOUCAULT, 1975). Na proposta do filósofo francês, na busca em compreender as técnicas
de interpretação em Marx, Nietzsche e Freud e, assim, compreender como Franz Kafka se
colocará, ao seu modo, como escritor da suspeita, diz o escritor de Arqueologia do saber:

– Por um lado, a suspeita de que a linguagem não diz exatamente o que diz.
O sentido que se apreende e que manifesta de forma imediata, não terá
porventura realmente um significado menor que protege e encerra; porém,
apesar de tudo transmite outro significado; este seria de cada vez o
significado mais importante, o significado “que está por baixo”. Isto é o que
os gregos chamavam a allegora e a Hypohia.

– Por outro lado, a linguagem engendrou esta outra suspeita: que, em certo
sentido, a linguagem rebaixa propriamente verbal, e que há muitas outras
coisas que falam e que não são linguagem. Depois disto poder-se-ia dizer
que a natureza, o mar, o sussurro do vento nas árvores, os animais, os rostos,
os caminhos que se cruzam, tudo isto fala: pode ser que haja linguagens que
se articulem em formas não verbais. Isto equivaleria, querendo, em grosso
modo, ao semäion dos gregos. (FOUCAULT, 1975, p. 14)

Nesse “perpétuo jogo de espelhos interpretativos” que conosco compartilha Foucault,


vemos, então, nossa relação com a linguagem ser modificada. Não mais a relação referencial,
isto é, a relação dêitica, a linguagem como representação do significado e significante, mas a
linguagem não abarcando a coisa em si. Logo, suspeita-se da linguagem, pois o sentido que se
apreende não tem mais manifestação imediata, como um dia já se acreditou. Diria que, à
moda de Kafka, o significado não sendo dado, passa a estar presente no ato de entrar na toca,
no final da sentença do personagem de “Na Colônia penal”, e durante todo o processo de
Josef K.; no caso de Gregor Samsa, durante toda a sua metamorfose.
Modificando a forma como compreendemos os símbolos, o homem, na interpretação
agora de si mesmo, vê sua existência ricocheteada nos espelhos da inconsciência, da ideologia
e na vontade de potência. O mundo do século XVIII e dos séculos anteriores – dado a
signatura, analogia, cognitio, divinatio, consensus e simulacrum, que revelam a comparação
do interior com o exterior – será, portanto, rebaixado, pois a nova interpretação consiste em
que cada um desses intérpretes “desça, que se converta, como disse Nietzsche, no ‘bom
escavador dos baixos fundos’” (FOUCAULT, 1975, p. 18-19) da interioridade humana.

23
Advogo para Franz Kafka um lugar especial entre Freud, Nietzsche e Marx, para,
assim, entendermos que o dilema presente na escrita kafkiana se apresenta por meio de
operadores semelhantes aos mestres da suspeita apresentados por Michel Foucault. Ou seja,
nada em Kafka pode ser tomado de maneira direta e objetiva, pois sua literatura fala a respeito
de um homem que não está em diálogo com a filosofia do cogito.
Ao recuperar alguns dos textos de Karl Marx, escritos com seu amigo Friedrich
Engels, podemos entender a crítica de Marx por meio do termo “ideologia”, apontado como
Michel Foucault como forma instaurar a suspeita na vida em sociedade. Diz Marx em
Ideologia alemã, já no “Prefácio” da obra:

Até agora, os homens tiveram ideias falsas a respeito de si mesmos, daquilo


que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função das
representações que faziam de Deus, do homem normal etc. Esses produtos
de seu cérebro cresceram a ponto de dominá-los completamente. Criadores,
inclinaram-se diante de suas próprias criações. Livremo-los, pois, das
quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos
quais eles se estiolam. Revoltemo-nos contra o domínio dessas ideias
(ENGELS e MARX, 1998, p. 3)

Marx, aqui, aponta para o teor de todo o seu livro, que é o de combater a ideologia
dominante, que oprime o proletariado. Em Marx, diferente de Lenin e, posteriormente, do
próprio marxismo, a palavra ideologia terá o intuito de “ilusão”, referindo-se à “consciência
deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante: as ideias das classes
dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” (LÖWY, 2010, p. 12). Desse modo,
“ideologia”, para Karl Marx terá um sentido crítico, pejorativo e negativo.
A maneira de o homem pensar se dá então, para Marx e Engels, na sistematização das
ideias na ideologia. Karl Marx e Friedrich Engels, ao revelar a condição do homem de seu
tempo, mostram que a realidade é analisada de maneira “enviesada, deformada,
fantasmagórica” (ENGELS e MARX, 1998, p. XXI) e, na proposta do materialismo histórico
do autor de O capital, descobrimos que nosso senso de liberdade e justiça se estabelece por
intermédio do que se deriva do “substrato material da história”: não como algo natural, mas
sim naturalizado pela burguesia, a classe dominante. No que diz respeito ao caráter autônomo
da ideologia, descobrimos também que sua influência atinge a base econômica, e, por
consequência, as formas de desenvolvimento da história – o que reitera ainda mais o aspecto
fantasmagórico do mundo.

24
O desejo de Marx e Engels, portanto, é o de fazer com que a vida real se manifeste em
oposição à vida falsificada2. Revolucionando a maneira como se olha o mundo, a proposta de
uma nova sociedade é possível. É, portanto, “partindo dos homens em sua atividade real” que
se percebe que as ideias deformadoras do homem como a moral, a religião, e a própria
metafísica perdem sua aparência de autonomia.
Foucault, em seu ensaio, talvez tenha falado que Marx tornou o mundo malévolo por ter
aprofundado a noção de ideologia como algo negativo, para, assim, fazer sua crítica contra a
superestrutura econômica, convocando todos a uma ressignificação do mundo, uma nova
“hermenêutica do sujeito”, como diz o autor de História da sexualidade. Ainda sobre a nova
hermenêutica do sujeito, vale falar sobre as considerações de Freud. Foucault nos diz:

Em Freud, sabe-se suficientemente como se realizou a progressiva


descoberta deste caráter estruturalmente aberto e descoberto da
interpretação. Fez-se em princípio de uma maneira muito alusiva, voltada
para si mesma no Traumdeutung, quando Freud analisa os seus próprios
sonhos e quando alude a razões de pudor ou de não divulgação como
desculpa para interromper a sua tarefa. (FOUCAULT, 1975, p. 21)

Talvez o aspecto infinito da interpretação se exemplifique melhor no terreno da clínica,


no processo infinito do analista com seu analisando. Mas é bem certo que Freud está para
além da proposta de um conhecimento instrumental para compreender os sofrimentos
individuais. No caso, há também o Freud analista da cultura, e acredito que é a esse Freud –
de Mal-estar na civilização, Totem e tabu e Futuro de uma ilusão – que se refere Foucault.
Isso porque, nesses textos, Freud põe não o indivíduo, mas a cultura no divã. Como bem disse
Vladimir Safatle:

transformar o patológico em chave compreensiva do solado necessário da


ontogênese das capacidades prático-cognitivas de sujeitos socializados. O
que não poderia ser diferente para alguém que acredita que a conduta
patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de Vergrösserung e
Vergröbergung), o que está realmente em jogo no processo de formação das
condutas sociais gerais (SAFATLE, 2009, p. 356)

O tom dos primeiros parágrafos de Mal-estar na civilização apresenta o caráter


investigativo de Freud para além da clínica. O exemplo do seu amigo e a preocupação de
entender a profundidade da religião como ilusão, logo na primeira seção de Mal-estar, já

2
Inclusive, a questão da ideologia se dá como forma de crítica e também de resposta. Marx não fala contrário a
uma ideologia do proletariado, ainda que tais acepções só ganhem maior contorno em Karl Manneheim (LÖWY,
2010, p. 12).

25
seriam suficientes para, além de qualquer comentário, vermos que, em Freud, a compreensão
da realidade de forma objetiva não se sustenta. Ela carece de outro gesto, de outro modo para
interpretá-la. Isso porque a vida psíquica, assim como uma cidade, é construída por meio das
ruínas. E ainda que, no campo visual, os muros antigos, os prédios desfeitos de Roma não
sejam mais encontrados, há uma Roma psíquica que sustenta a atual estrutura aparente.
Freud, propondo algo para além de Marx, escolhe ver que os bens e a relação material
não são as únicas chaves de compreensão da realidade, pois há uma vida pulsional que está
para além do visível. Não se sabe a origem em que nossas pulsões foram colocadas em estado
de privação, ou ainda como permitimos que a instituição nos proíba a fruição dessas mesmas
pulsões. A cultura, dirá Freud, é sustentada pela repressão e coerção dos indivíduos. Ou seja,
há uma Roma subterrânea que é anulada para a emergência de uma Roma que desperte beleza
e admiração.
O que somos não é fruto apenas do embate entre o Eu e o Id, mas também com aquilo
que ele herda culturalmente, o Supereu, a cultura, dirá o autor de Futuro de uma ilusão.
Exemplifica, ainda, o autor de Luto e melancolia que a religião é o discurso que os homens
acreditam por não conseguir suportar a vida. Porém, a análise freudiana se diferencia ao
colocar Deus como fruto da criação humana, junto ao conjunto de ideias para tornar
“suportável o desamparo humano”. Em resumo, o mundo que vivemos e sua suposta
objetividade nada mais são do que criação da cultura como forma de defender o homem da
opressão de seu estado orgânico.
Por fim, vale entendermos a tarefa de Nietzsche como mestre da suspeita:

E a tarefa que reivindica para si mesmo, sua missão e destino, consiste em


questionar tudo o que até então o ser humano venerou e, pelo mesmo
movimento, afirmar tudo o que ele negou. Desse modo será possível revelar
o que por trás dos valores instituídos se esconde e trazer à luz o que eles
mesmos escondem. Mas, se assim se empenha em seus escritos, não é para
ainda uma vez censurar, condenar ou rejeitar o que foi banido da reflexão; ao
contrário, julga imprescindível justamente afirmar o que lhe trazem “suas
andanças pelo proibido” (MARTON, 2010, p. 31)

Acredito que Kafka também reivindica para si uma tarefa. Em um dos seus
aforismos, o autor de O processo nos diz: “Você é a lição de casa. Por todos os lados nenhum
aluno” (KAFKA, 2011, p. 192). Você é algo a ser realizado – entretanto, sem o aluno para
realizá-lo, o que também sugere a inexistência de um professor. Só existe a missão. Só existe
a porta e a lei e a ordenança: “essa porta está destinada apenas para ti”.

26
Mas qual seria a missão de Franz Kafka? Talvez Zaratustra nos dê uma pista quando
diz: “Onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servente
encontrei a vontade de ser senhor” [...] E estre segredo a própria vida me contou. ‘Vê’, disse,
‘eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo’” (NIETZSCHE, 2012, p. 108). E, no
Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma o estilo de sua filosofia: “Uma outra convalescença,
em algumas circunstâncias ainda mais desejada por mim, está em auscultar ídolos... Há mais
ídolos do que realidades no mundo: este é meu “mau olhar” para este mundo, é também meu
“mau ouvido”... Fazer perguntas com o martelo” (NIETZSCHE, 2012, p. 7).
Nietzsche tem como “missão” utilizar o martelo como estetoscópico da cultura, pois
é ele o seu médico e ofertante de sua possível cura. É bem verdade que Franz Kafka não terá
um martelo. É um instrumento mais afiado o de Kafka, o machado: “um livro deve ser o
machado para o mar de gelo que somos”. Não a filosofia a golpes de martelo, mas a filosofia
a golpes de machado é o estilo de Franz Kafka. E quais os valores devem ser destituídos de
seu pedestal?
É a liberdade um dos conceitos mais golpeados por Franz Kafka. E, ao longo de toda
sua obra, posso crer e ver o trabalho exaustivo de nosso autor para colocar em dúvida – em
suspeita – todos os valores correspondentes a ela. A liberdade como direito inalienável do
homem é um ponto importante para Kafka, pois o narrador de O processo nos fala: “K. ainda
vivia num Estado de direito”? (KAFKA, 2003, p. 10). Como bem sabemos, entre a culpa e a
absolvição, K. é condenado sem ter feito mal algum.
E o que dizer da América kafkiana (KAFKA, 2012) como terra da liberdade, quando
vemos diante de nós o teatro de Oklahoma que a todos recebe, não sem antes pedir algo em
troca. Ainda que a narrativa ao longo do século XIX tenha sido a de construir a América
como o lugar de liberdade, esse continente é exílio para um filho infrator. Tanto Nietzsche
quanto Kafka falam do homem perdido diante do mundo com valores em ruínas (BURNETT,
2016).

O desnorteado de Kafka tem seu quê de desespero, mas, diferente do louco,


só desperta para sua própria condição quando confronta o relógio da praça
com o seu. Só depois dessa descoberta ele se assusta, só depois que o tempo
parece curto e limitado demais para qualquer encontro. Quando o louco sai
ao mercado o narrador oculto diz que “era plena manhã”, da mesma forma
que o desnorteado informa desde o início que “era de manhã bem cedo”. Em
ambos os casos tomaram consciência de seus desamparos à luz do dia, e não
sob o escuro da noite, que poderia velar o real da miséria exposta. A
distância entre os dois textos define o foco dos narradores: no caso de
Nietzsche estamos no momento crucial da descoberta da grande interrogação

27
moderna, prenunciada pelo fim da esperança messiânica cujo desfecho se dá
em plena derrocada mítica, envoltos no manto da industrialização primitiva;
em Kafka estamos imersos nos resultados das perguntas inseguras
formuladas por Nietzsche, quando todas as esperanças jaziam sob
escombros. (BURNETT, 2016, p. 76)

Até esse momento, quis dizer que há algo de filosófico no texto de Franz Kafka, no que
ele suscita, no debate da literatura em diálogo com a filosofia – em especial, uma filosofia da
suspeita. Talvez tudo tenha se estabelecido como uma espécie de insinuação, pois entender
Kafka como “leitor” de Nietzsche, Freud e Marx – ou, ainda, que ele pode integrar essa tríada
– é um trabalho hercúleo. De todo modo, a ideia foi dizer o quanto Kafka pode ser
aproximado dos mestres da suspeita por uma forma singular de vasculhar a condição humana,
o que a crítica kafkiana afirmou certamente.

2.3. Uma crítica literária que suspeita

Acredito que minha hipótese inicial de assumir Franz Kafka como escritor da suspeita
se deu muito pelo contato com os próprios leitores do texto kafkiano – em especial, um dos
seus maiores intérpretes, Günther Anders. No meu caso, a leitura de Anders sempre partiu de
uma leitura afetiva. Se Benjamin, Adorno, Deleuze e Guattarri eu li posteriormente, foi com o
autor de Kafka: pro e contra que embasei minha primeiras considerações sobre o texto
kafkiano desde a graduação.
Devo ainda reconhecer o trabalho de Modesto Carone, tradutor de Franz Kafka, que
sempre se reportou a Günther Anders (que também traduziu) como um intérprete kafkiano de
extrema importância para a leitura de Franz Kafka no século XXI. Isso se deu pela incisiva
marcação de Carone (em entrevistas, principalmente) de que Kafka era o autor do
“desloucamento”, “e que o espantoso em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém” –
afirmação que dá título a uma das secções de Kafka: pro e contra. Esse termo de Anders
passou a ser uma chave de leitura importante para uma das entradas nas ramificações do texto
literário kafkiano, e aqui o justifico, por meio da filosofia da suspeita:

O monge Maximus Planudes, que no século XIV publicou as fábulas que


circulavam sob o nome de Esopo, conta que o rosto de Esopo era
monstruosamente feio e disforme, a ponto de não ser reconhecível. O próprio

28
Esopo não poderia ter inventado melhor fábula sobre a fábula; pois as
verdades da fábula nascem da deformação.

Aqui entramos em Kafka. A fisionomia do mundo kafkiano parece


deslocada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso
mundo do louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa
aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o
fato louco de que o mundo louco seja considerado normal. (ANDERS, 2007,
p. 15)

Em nossa tradição ocidental, sabemos a importância das fábulas como gênero literário.
Não apenas do lugar de Esopo, o escravo escritor, mas também de toda uma tradição literária
fundada e ressignificada pelo escritor grego, pelo escrito francês La Fontaine e, em terras
brasileiras, pelo escritor Monteiro Lobato.
De maneira geral, o gênero se apresenta tendo a estrutura textual de um texto curto, de
caráter didático, e também escolhe como personagens animais falantes ou dotados de uma
humanização toda especial, como é o caso de fábulas como a da formiga e da cigarra, a do boi
e do pastor e a da lebre e do coelho:

Nesta [na fábula clássica], o animal fora herói porque era entendido como
uma espécie de "ser humano": o mesmo ocorre nos contos de fadas. O que
sustenta a fábula são apenas histórias de bichos falantes" // "A substituição
clássica de homem por animal, usada com fins didáticos, teve, porém, uma
singular aptidão moral para a Europa cristã. Não é absolutamente por acaso
que o animal continuou sendo fabulae persona até La Fontaine, Lessing e
Goethe: se na fábula os bichos agem e falam como homens, isto significa a
inversão: os homens são bichos (ANDERS, 2007, p. 19).

Sendo insuficiente para Esopo falar sobre o homem utilizando o nome "homem", ele
achou por bem inverter os papéis e animalizar o ser humano, para que, assim, permitisse a
criação de um novo espelho – logo, um novo olhar sobre a humanidade de seu tempo. Não é
Kafka, portanto, o criador desse método de escrita “desloucada”, mas um revolucionário da
forma, desfazendo e deglutindo a tradição literária que chegou até ele, pois, “para denunciar o
escândalo de que ‘os homens são coisas’, tem de inventar fábulas nas quais as coisas
aparecem como seres vivos”.
Portanto, se Kafka, com sua literatura, procura observar, de algum modo, nossa
humanidade, e escreve sobre uma certa condição humana, acredito que, para criticar a
realidade desumana de seu tempo (e infelizmente, ainda a nossa realidade), não bastava ser
um intérprete e leitor de Esopo e escrever uma Cigarra que reclama da perda de direitos ou de
uma nova lei trabalhista que favorece seu algoz. Retratar a formiga como um neoliberal, um
self-made man, diz que a resposta do mundo é só continuar a trabalhar. Isso não seria

29
suficiente para Kafka, por mais interessante que seja. Acredito que Kafka diria sobre o direito
trabalhista do violão da cigarra, por exemplo. E ainda, como tudo em Kafka é de fato
“desloucado”, assumir que esse violão – que não emite som afinado, como a Rata Josefina – é
o instrumento sonoro que produz a verdadeira arte.
Portanto, se há uma pedagogia em Kafka, ela se dá por uma espécie de “deslocamento
para fixar”, “um constante rebatismo dos nomes”, “personagens que diante do espantoso não
se espantam”, um estranhamento como forma de entrada no mundo, que, para nós, leitores, é
constatação de que, diante do texto de Kafka (e da vida), precisamos “de uma manual sobre o
modo de usar” (ANDERS, 2007, p. 17) – um manual que nunca fomos capazes de escrever.
É nesse jogo de palavra “desloucamento”, uma escolha de tradução de Modesto Carone
– verrücken: deslocar / verrückt: particípio do verbo que, como adjetivo, significa louco
(ANDERS, 2007, p. 151) –, que entramos na obra Kafkiana e, principalmente, entendemos
que, deslocando e mostrando a loucura do mundo, o autor de Praga lança sobre nós um
profundo sentimento de suspeita, de como é, então, entender a arte, o ser humano, a escritura
mediante esse conhecimento obtido do texto kafkiano.
A definição de Anders é de lidar com Kafka como um “fabulador realista” que, diante
da fisionomia do seu mundo, conseguiu registrar de forma apropriada suas deformações.
Kafka é o Picasso na literatura, disse Modesto Carone. E Picasso é o Kafka na pintura, pois
ambos entenderam que a forma como mundo poderia compreender a si mesmo, após a
tradição da pintura e da escrita anteriores a eles, era retratar a realidade pela deformidade dos
seus tempos. Pois só assim, borrando os limites pré-estabecidos, o homem conseguiria
novamente enxergar.
Curiosamente, esse “desfiguramento” kafkiano apresenta resultados surpreendentes,
pois é de uma simplicidade brutal. O que Franz Kafka operou foi o estranhamento com o
mundo, para que, diante da não surpresa dos rótulos3, pudéssemos novamente ser estrangeiros
no mundo e, nessa suspeita, ver o que está diante de nós.
É bem certo que a “naturalidade” com a qual tratamos o mundo é uma forma da nossa
própria sobrevivência. Entretanto, a saturação dessa naturalização é perigosa. E acredito que é
isso que Franz Kafka deseja pontuar, pois, “No mundo alienado, a natureza se torna nature
morte e o próprio semelhante muitas vezes se transforma em mera ‘coisa’” (ANDERS, 2007,
p. 18). E somente naturalizando essa posição de coisa (naturalizar a potência do silêncio, as

3
O rótulo "H2O", ao qual já estamos acostumados e o qual naturalizamos, é o exemplo de Anders.

30
narrativas dos fatos), afirmar que o “natural” e “não-espantoso” passa a não ser mais
espantoso (ANDERS, 2007, p. 23).
Para termos uma ideia, esse movimento do “desloucamento” é de uma objetividade tão
sincera que está presente num livro chamado Ele está de volta, de Timur Vermes (VERMES,
2014) – livro considerado um best seller alemão e que originou, por fim, a série streaming de
mesmo nome. O livro se passa numa Alemanha presidida por uma mulher, um país aberto aos
imigrantes e economicamente forte. Utilizando do recurso da ficção científica, somos
apresentados a um corpo que cai num terreno baldio sem nenhuma explicação. No desenrolar
da narrativa, descobrimos que esse é o corpo de Hitler deslocado do tempo. O Hitler do século
XX está agora no século XXI. Por ser Adolf Hitler, ele assume para todo ser o comandante do
então império alemão, chefe do terceiro Reich. No primeiro momento, não passa de um
personagem cômico. Um louco que se acha Hitler. Um bom ator para uns. E algo
desnecessário para os mais conscientes da história alemã no pós-guerra. Nós, que
compactuamos com o narrador, sabemos que ele é, de fato, Hitler. Porém, a Alemanha
contemporânea o trata como um artista. Podemos duvidar da qualidade da obra, mas o gesto
me pareceu interessante, pois o Adolf Hitler deslocado de seu tempo evidencia para nós,
leitores, que o mundo contemporâneo facilmente o aceitaria. Riria de seus costumes. E, diante
das mesmas opiniões genocidas, o Hitler deslocado dessa literatura best seller consegue a
atenção do povo alemão, assumindo um programa de televisão. E, posteriormente, almejando
espaço na cena política germânica.
Se desejarmos um exemplo mais nobre, valemo-nos, então, do caso de Hamlet
(SHAKESPEARE, 2016) na peça homônima. Hamlet, pleno de sua condição e consciência,
decide agora expor a podridão do reino da Dinamarca. Não pode confrontar seu tio Cláudio,
rei assassino e usurpador do trono de seu pai. É necessário outro recurso. Um método do
deslocamento. O que faz o pobre Hamlet? Encena uma peça na peça. Faz com que seu tio veja
a atuação de sua própria vida. Coloca diante do reino um espelho, no qual seu tio vê a sua
maldade e, diante da sua podridão interior, tenta fugir. Esse elemento shakespeariano é de
uma potência tamanha e fora visto, antes, num texto ainda mais antigo, quando, na narrativa
judaica, o profeta Natã narra a Davi um caso de um pastor ganancioso que rouba a única
ovelha de um vizinho próximo. Diferente de Cláudio, Davi – talvez por não ter a consciência
já em pleno vigor em Hamlet – não consegue se ver no espelho criado pelo profeta. É
necessário que Natã intervenha e diga que, assim como o pastor da anedota foi egoísta e

31
ambicioso, Davi também o era ao roubar a única mulher de Urias, soldado, mesmo podendo
ter todas as mulheres que desejasse.
Seja na narrativa bíblica, na peça de Shakespeare, em Picasso e nas fábulas, na literatura
de best seller alemã, o dizer é sempre colocado de forma indireta, “fora do lugar”. Kafka,
como mestre, foi capaz de deixar sua marca nessa tradição, indo para além da apropriação de
uma técnica ou forma, fazendo disso um meio de adquirir consciência do mundo que o
cercava.
Assim como os mestres da suspeita de Foucault, que deslocaram a consciência do
mundo do cogito para o terreno da ideologia, do inconsciente e da vontade de potência,
Kafka, leitor desse tempo, nos ofereceu um novo “realismo literário” (ANDERS, 2007, p. 17).
“Se o realismo tem um sentido filosófico, é este”, do rebatizar o mundo para desnaturalizá-lo.
O rebatismo kafkiano como instaurador da suspeita é uma forma de dizer que o nome das
coisas está cheio de preconceitos, e que tais preconceitos não nos permitem olhar a realidade
de frente.
Mas não podemos nos enganar. Como disse anteriormente, Kafka não é um “fabulista”
aos moldes da tradição da fábula no Ocidente. Seu ensinamentos fabulares têm uma estrutura
diferente, o que, nesse caso, é a do estranhamento anulado. O se estranhar, o “desloucar”, e a
suspeita em Kafka não são apenas denúncia de uma consciência vítima da razão, mas de uma
vida tão alienada que foi necessário mostrar o deslocamento como algo costumeiro para,
assim, quem sabe, despertar-nos “de pesadelo dogmático”.
A suspeita em Kafka é estranhamento, pelo estranho que não estranha ninguém, pelas
afirmações que não levam a lugar algum. Anders brilhantemente afirma que “a linguagem
[em Kafka] salta para as mil possibilidades” (ANDERS, 2007, p. 92). A dúvida constante em
Kafka “impede que ele jamais expresse um pronunciamento em forma real de tese (ANDERS,
2007, p. 115). Sentimentos e afirmações vistos anteriormente na proposta dos mestres da
suspeita foucaultiana lançam uma forma infinita de interpretar o mundo, na tentativa de
chegar mais fundo na compreensão da vida.
E é essa vida singular que Kafka nos apresenta como sustentadora de sua obra. Não
para realizarmos uma leitura psicologizante de seus textos, mas para entendermos que só
alguém deslocado, um outsider de seu tempo, poderia propor e se aproximar de tais temáticas.
E, com isso, “de fora” “reconhecer a maldade do poder” (ANDERS, 2007, p. 119). Por fim,
cito as considerações de Anatol Rosenfeld (1996), que resume a importância e a distinção
crítica dessa chave de leitura de Anders e elucida ainda mais a cena:

32
Este último [Gunter Anders] realça a posição kafkiana em favor do
compromisso e ajustamento completos em face de autoridades pré-fascistas;
aquele destaca a luta incessante dos heróis kafkianos contra estas mesmas
autoridades. Anders afirma que o poder equivale, para Kafka, ao direito; o
homem sem poder e, portanto, sem direito é por isso mesmo culpado.
Emrich [outro impotante crítico de Kafka] ao contrário, considera Kafka
como “moralista no sentido rigoroso da palavra” que procura reconstituir a
responsabilidade do homem”. Para Anders, Kafka é também um “moralista”,
mas do conformismo, cuja mensagem moral – o sacrificium intellectus –
seria completada pela mensagem da auto humilhação (ROSENFELD, 1996,
p. 226)

Rosenfeld acrescenta ao pensamento dos dois teóricos que, em Kafka, o que acontece é
que os protagonistas kafkianos estão perturbados, pois “querem ajustar-se por completo. Mas
ao mesmo tempo não conseguem” (ROSENFELD, 1996, p. 227) e que os heróis de Kafka
oscilam entre “a auto-entrega e auto-afirmação” (ROSENFELD, 1996, p. 227). Essa
declaração corrobora meu olhar sobre o texto de Kafka, pois as cenas deslocadas me lançam
ao terreno da incerteza e constante interpretação. Não há, portanto, uma voz definitiva a se
dizer sobre os textos de Kafka. É, por isso, o meu incômodo, ao ouvir que Kafka exemplifica,
e apenas isso, uma forma de denúncia de nossa alienação. Sim, isso é verdade. Entretanto,
nisso também reside uma insubmissão, entrega e resistência e uma declaração contrária à
simples obediência.

***

É bem certo que um trabalho que identificasse o principal recorte da crítica kafkiana
seria interessante para olharmos o quanto o aspecto do “desloucamento” se fez presente nos
olhares dos outros leitores de Franz Kafka, ainda que por outro nome, evidentemente. Penso
que, quando Walter Benjamin diz “que toda a obra de Kafka representa um código de gestos,
cuja significação simbólica não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio
autor”, estamos diante do caráter “enigmático do desloucamento”.
O mesmo servo para Theodor Adorno, nas suas anotações sobre Kafka, quando disse
que “Kafka quer, através da reificação do sujeito, exigida de antemão pelo mundo, sobrepujar,
na medida do possível, essa reificação”; ou seja, deslocamento do mundo, que, no caso de
Adorno, é assumir a potência da reificação como condição humana. Kafka, portanto, buscaria
uma salvação por meio da inversão, deslocamento, estranhamento radical, como vemos por
meio de seus personagens. No final, completa Adorno, “Os heróis de O processo e de O

33
castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa – eles não têm nenhuma –, mas porque
procuram trazer a justiça para o seu lado”.
Deleuze e Guattarri expõem um Franz Kafka “desterritorializado”, emergente de uma
literatura menor para deslocar a literatura hegemônica. Numa língua menor, de um país
culturalmente forte, mas periférico, constrói uma língua que não é a de Goethe, mas sim a da
língua burocrata de Praga. Kafka escolhe outros caminhos, os caminhos da
desterritoralização.
Modesto Carone não foi diferente em sua análise de A metamorfose, confessando-nos
que uma das chaves de leitura importantes do texto kafkiano é o “princípio da inversão”, no
qual Franz Kafka é mestre; um estilo inconfundível da prosa kafkiana e que, aqui, busquei
utilizar como forma de realização de uma leitura do tema da liberdade e da submissão. Com
isso, acredito que, mesmo elegendo Anders como meu principal teórico, deixo evidente que
esse princípio de uma inversão radical foi observado por outros críticos de Kafka.

2.4. Sobre a condição humana

Talvez seja importante definir ainda o que compreendo como “condição humana”,
termo utilizado de forma recorrente ao longo deste trabalho. Para tal, não assumo “existência
humana”, mas tomo o vocábulo “condição” como recurso expressivo. Isso não é gratuito.
Sigo as considerações que aprendi com Arendt, quando a pensadora do totalitarismo teceu
profundas considerações sobre as ações humanas no pós-guerra do século passado. E para
estreitar os laços e olhar em Kafka essa crítica à condição de todos nós, fiz-me valer de um
texto de Arendt chamado “Franz Kafka: uma reavaliação. Por ocasião do vigésimo aniversário
de sua morte” (ARENDT, 2008)
Em seu artigo, a autora expressa que, em Kafka, constata-se que

Esses heróis anônimos não são pessoas comuns que encontraríamos na rua,
mas formam o modelo do “homem comum” como um ideal de humanidade;
assim, são concebidos com a intenção de prescrever uma norma para a
sociedade. Tal como o “homem esquecido” dos filmes de Chaplin, o
“homem comum” de Kafka foi esquecido por uma sociedade que se divide
em humildes e figurões. Pois o motor de suas atividades é a boa vontade,
contrastando com o motor da sociedade à qual ele não se ajusta, que é a
funcionalidade. Essa boa vontade, que o herói encarna apenas como um
modelo, também tem uma função; de maneira quase inocente, ela
desmascara as estruturas ocultas da sociedade, que frustra as necessidades
mais banais e destrói as mais elevadas intenções do homem. Revela as falhas

34
de construção de um mundo onde o homem de boa vontade que não quer
fazer carreira está pura e simplesmente perdido. (ARENDT, 1999, p. 103)

Arendt se utiliza de Kafka para pensar a “humanidade” dos homens comuns, dos
homens que não estão de acordo com a funcionalidade do mundo. E, por isso, logo se veem
sob a guilhotina da burocracia. A condição humana, portanto, não é algo de especial, que
coloca o homem acima dos outros seres. Franz Kafka cria um panteão de personagens que
estão fora do mundo das leis. É no mundo “desloucado” que o poeta de Praga escreve, porque
é essa a sua condição.
Ainda nos alerta Arendt que a leitura dos textos de Kafka carece de um pacto de
fidelidade com o que é dito, “Pois em seus livros [os de Kafka] não existe nenhum elemento
de devaneio e ilusão” (ARENDT, 2008, p. 104) e somente o leitor que “considera vida, o
mundo e homem tão complicados, de um interesse tão terrível, que deseja descobrir alguma
verdade a respeito deles, e por isso recorrer as histórias em busca de uma percepção íntima de
experiências comuns a todos nós, pode recorrer a Kafka e a seus projetos” (ARENDT, 2008,
p. 104).
O mundo de Franz Kafka e de seus projetos é o mundo no qual os homens já estão sem
a ajuda divina. Não se trata mais do tempo burguês, baseado na ideia de vocação, da história,
do chamado e da necessidade (ARENDT, 2008, p. 106). Kafka nos convida a um outro
mundo, onde as necessidade e dignidades humanas são determinadas pelos próprios homens
(ARENDT, 2008, p. 106) – o que em nada faz do nosso autor um autor modesto. Mas como
Kafka fez isso? Criar personagens que são homens anônimos, dos quais pouco sabemos, às
vezes só um letra, um K., sua função, caixeiro viajante, agrimensor, fiscal... Mas todos esses
homens kafkianos, que Hannah Arendt dominou de “homens de boa vontade”, estão aí para
mostrar que a realidade do mundo de Kafka pode nos sobrevir em algum momento. Vale
recordar uma passagem de O processo, em que o narrador afirma:

Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade
pertenciam? K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda
parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele
em sua casa? Ele tendia a levar as coisas pelo lado mais leve possível, a crer
no pior só quando este acontecia, a não tomar nenhuma providência para o
futuro, mesmo que tudo fosse ameaça. Aqui porém não parecia acertado; na
verdade, tudo podia ser uma brincadeira pesada, que os colegas de banco
tinham organizado por motivos desconhecidos, talvez porque ele hoje
completasse trinta anos de idade (KAFKA: 2005, p. 10).

A condição humana colocada por Hannah Arendt é a de que as fronteiras entre o


homem do mundo de Kafka se cruzam entre o mundo da brutalidade das guerras do século

35
XX. A voz que pergunta se K. ainda estava num Estado de Direito nos lança, junto com o
protagonista, ao completo mundo de incerteza. Pois essa é uma das nossas condições, uma
vida de profunda incerteza.

***

Entendo, então, por “condição humana” uma experiência de vida que se deu de tal
maneira, por ter se organizado na Terra e não em outro lugar. A vida na Terra é a nossa
quintessência da condição humana; vida que é transformada por trabalho, pela ação e pela
pluralidade. Terra que nos condiciona, portanto, a uma condição de vivência, e não outra; a
uma que é inteiramente vida política, e não vida a-política. Tudo o que tocamos se torna
“imediatamente” em algo relacionado com nossa condição. “Tudo o que adentra o mundo
humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano”, diz Arendt, “torna-se parte da condição
humana”. O que Hannah Arendt significou em palavras pode ser resumido no pensamento de
Albert Camus, quando diz que nossa condição humana tem “uma absurdidade fundamental ao
mesmo tempo que implacável grandeza” (CAMUS, 2016, p. 129).

2.5. A verdade sobre Sancho Pança

Vejamos como Franz Kafka opera, por meio da sua escrita, o seu processo de suspeita e
“desloucamento”. É o momento de vermos a máquina kafkiana em ação. E, para esse fim,
escolhi dois de seus textos, “A verdade sobre Sancho Pança” e “O silêncio das sereias”.
Caberá, neste capítulo, ilustrar o método do “desloucamento kafkiano” para, assim, podermos
entender uma liberdade inversamente colocada e distanciada dos modelos tradicionais do
pensamento. Mas, antes, uma breve contextualização sobre a obra é necessária.
Em português brasileiro, tanto “A verdade sobre Sancho Pança” e “O silêncio das
sereias” se encontram no mesmo livro, Narrativas do espólio. Não é uma obra que tenha sido
organizada por Franz Kafka, mas sim um nome que classifica textos que o autor nunca
publicou em vida. Narrativas é fruto do acervo deixado pelo autor em 1924, e um sexto do
que sobrou após a ordenança de Franz Kafka ao seu amigo e testamenteiro Max Brod de
queimar toda sua obra. O que nos chega foi fruto da desobediência de Brod – essas “peças” ou
“pequenas peças”, ou ainda “histórias”, como denominava Kafka. Ainda sobre os textos de

36
Narrativas do espólio, afirma Carone: “Na realidade, o princípio que orientou a seleção
original das “narrativas” não foi inteiramente esclarecido”. Seu trabalho de tradutor foi de
cotejar o livro com a edição crítica e privilegiar as peças produzidas nos anos de 1914 e 1924,
descartando textos como Preparativos de um casamento no campo, de 1904 e Descrição de
uma luta, de 1907, considerados textos “pré-kafkianos”.
Foi Max Brod que nomeou o texto, no ano de 1931. O conto é um dos contos de Kafka
que remetem à cultura literária clássica. Os outros textos são “O novo advogado” (KAFKA,
1999, p. 11), “Prometeu” (KAFKA, 2012, p. 74), e “Poseidon” (KAFKA, 2012, p. 77), “O
silêncio das sereias” (KAFKA, 2012, p. 72). Stéphane Mosès nos diz ainda:

Assim, “A verdade sobre Sancho Pança” remete ao Dom Quixote, “O brasão


da cidade”, à Bíblia e às mitologias médio-orientais, “Uma mensagem
imperial”, a uma China de faz de conta. A unidade desses textos, assim
como das quatro narrativas que remetem à mitologia clássica, provém de sua
estrutura interna: a oposição claramente marcada entre dois elementos
distintos. O primeiro é uma referência a uma fonte tradicional. Essa
referência pode tomar diversas formas: reenvio à narrativa tradicional
(“Sobre Prometeu dão notícias quatro lendas”), citação de um fragmento
desta (“Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se
fez amarrar ao mastro”), menção a um simples nome próprio (Bucéfalo,
Posêidon, Sancho Pança, a Torre de Babel). Em todos os casos, a função
dessa referência é de citar um fragmento de um mundo cultural anterior, esse
fragmento servindo de ponto de partida, ou ainda de pré-texto à fábula
propriamente dita. Esta, que representa na estrutura do texto o segundo
elemento, desempenha em relação à citação o papel de uma glosa;
comentário, exegese ou reinterpretação do material tradicional. (MOSÈS,
2013, p. 297)

Os textos de Kafka vão ao passado mítico e com muita liberdade operam uma
dessacralização. Dom Quixote é criação de Sancho Pança. E Ulisses é um homem de salvação
infantil. Temos, portanto, uma reviravolta de todos os valores estabelecidos. Vamos ao
primeiro texto de Kafka, para a melhor compreensão desta secção:

Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos
conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores
nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio — a quem
mais tarde deu o nome de D. Quixote — de tal maneira que este, fora de
controle, realizou os atos mais loucos, os quais no entanto, por falta de um
objeto predeterminado — que deveria ser precisamente Sancho Pança —,
não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou
imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote
nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o
fim de seus dias (KAFKA, 2012, p. 79)

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Comecemos pelo título da narrativa, “A verdade sobre Sancho Pança”. Como uma
espécie de porta-voz da verdade, nosso narrador nos convida a descobrir a verdade por trás da
antiga história sobre Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Se
existem histórias sobre o fidalgo cervantino, sabemos que agora estamos diante da
“verdadeira história”. Curiosamente, não é o Quixote, o personagem principal da história de
Miguel de Cervantes, que ocupa o principal lugar na história de Kafka, mas sim seu
coadjuvante, Pança.
O Sancho Pança kafkiano é uma personagem humilde e que não se vangloria de sua
produção literária. Segue no seu curso da vida produzindo romances, ora “romances de
cavalaria”, ora de “salteadores”, no fim da tarde e da noite. Kafka vê o escritor em Pança, e
não em Quixote, informando-nos, ainda, que é pelo processo de escrita, que o pobre auxiliar
afasta de si seus demônios. Nada mudou daquilo que encontramos nas primeiras páginas de
Cervantes: o caráter transformador da literatura, forma pela qual Quixote descobre uma forma
de dar sentido o seu mundo: “Cumpre então saber que esse tal fidalgo [Dom Quixote], nas
horas em que estava ocioso (que eram as mais do ano) se dava a ler livros de cavalarias com
tanto empenho e gosto que esqueceu quase por completo o exercício da caça e até a
administração da sua fazenda” (CERVANTES, 2015, p. 204). A não ser a questão autoral,
pois aquele que fora convidado por Quixote, por meio de recompensas e despojos de batalhas
– “Hás de saber, amigo Sancho Pança, que foi costume muito usado dos cavaleiros andantes
antigos nomear seus escudeiros governadores das ínsulas, ou dos reinos que ganhava”
(CERVANTES, 2015, p. 239) – é, agora, autor do grande romance fundador de nossa
modernidade literária.
A literatura de Cervantes passa a ser os atos mais loucos de Dom Quixote, demônio
fruto de Sancho Pança, objeto que predetermina o mundo louco quixotesco. O Dom Quixote
de Kafka tem a missão de trazer à tona o que sente seu autor, Pança. Não num mero relatar da
história, ou da realidade, mas num fornecer, ao próprio fiel escudeiro escritor, uma maneira de
se livrar de suas angústias. O “demônio” não é por Kafka esconjurado por meio do nome de
Deus, de Cristo ou pelo Espírito Santo, mas sim pelo romance, pela escrita. Um demônio que
o constitui, pois o nomeia como algo pessoal e próximo. E sobre a nomeação, devemos
imaginar um Pança que diz para ao seu demônio: “Qual é seu nome? ”. Não ouvindo, “Eu sou
legião”, (BÍBLIA, 2007, p. 1470) como o endemoninhado bíblico, escuta “Eu sou D.
Quixote”.

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De um lado, D. Quixote, o louco; de outro, Sancho Pança, o responsável, “um homem
livre, [que] acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D.
Quixote nas suas sortidas” aventuras. E é claro, não podemos esquecer que, nesse mundo de
escolhas sortidas, “retirando delas um grande e proveitoso divertimento”, Pança consegue
retirar alegria até o fim dos seus dias. É preciso, de certo modo, concordar com Rodrigo
Fresán, escritor argentino, que “todos [com D. Quixote] se divertem pra caralho” (FRESÁN,
2015, p. 23). E ainda nos diz Fresán:

D. Quixote seria apenas a tradução em romance deste sintoma um tanto


psicótico: a vontade de viver, de protagonizar e cumprir o desejo da vida, a
fantasia na realidade. E é dessa vontade tão épica quando delirante que,
acho, surge o quixotesco, o vírus, o vazamento radiativo, a febre, a
alucinação, a epidemia e, last but not least, a ambiguidade. Porque D.
Quixote é também Alonso Quijano. E é, em princípio, Quijano quem se
deforma a si mesmo e resolve – enlouquecido pela leitura de cavalaria –
virar o definitivo paladinho. D. Quixote é apenas o sedimento real dessa
ambição louca, aquilo que resta, que resulta, a substância desperta e insone e
cansada desse sonho. (FRESÁN, 2015, p. 24-25)

Kafka é também um leitor e crítico de Cervantes. É isso que se coloca aqui, e não um
movimento de paródia ou de pastiche. Franz Kafka não retira, por exemplo, o elemento da
loucura: ele “deslouca” o romance de Cervantes para o fixar ainda mais, dando-nos um olhar
que intensifica o sentimento da loucura, a intensidade da carga viral, como bem apontou
Fresán. O romance, seja em Cervantes, Joyce, Proust e, em nosso caso, em Kafka, é “a
tradução deste sintoma um tanto psicótico”, que nada mais é do que o desejo da vida. E
nenhum outro escritor desejou mais a vida do que Kafka; nenhum outro autor percorreu a
fantasia da realidade e o desejo de cumprir a vida como o nosso autor.
A revolução que acredito que Franz Kafka nos coloca é a do olhar. Sempre a do olhar,
que resulta, portanto, em uma novíssima teoria. Digo isso, pois, para mim, coloca-se desse
modo um pouco mais cristalino o método kafkiano. Ao continuar lendo o texto de Fresán,
deparo-me com as afirmações do duplo condicionado à dualidade Quixote/Sancho. E, de fato,
é isso que estamos inclinados a pensar:

Sancho Pança, o outro somos nós, porque – à medida que o romance avança
– Sancho Pança lê D. Quixote com olhos que de certo modo são os nossos.
Sancho é o leitor, o acompanhante, a testemunha, aquele stendhaliano
espelho estrada agora onde o herói se vê olhando para nós. Se a leitura de
qualquer romance equivale à paciente supressão da nossa pessoa e da nossa
vida para abrir espaço a outras vidas e outras pessoas, o que acontece com
Sancho Pança no romance de Cervantes é outra coisa. Sancho Pança
funciona como ponto de vista e ao mesmo tempo como muro mais ou menos

39
amigo contra o qual D. Quixote bate de frente, e volta a bater. A dupla
Quixote/Sancho é, de certo modo, a gênese das grandes duplas cômicas
(FRESÁN, 2015, p. 29-30)

O que Fresán, leitor de Cervantes, aponta, Kafka já tinha dito: “Sancho Pança, o outro
somos nós”. Na medida de nossas vivências, buscamos expulsar nossos monstros, nossos
“Quixotes”. Mas o que Franz Kafka apontou foi que não há um paralelo, uma dualidade. O
duplo Quixote/Pança é colocado dentro do próprio Sancho Pança. A condição humana, nesse
sentido, é agravada, pois em Pança residiria o bem e o mal, a sanidade e a loucura, a paz e o
demoníaco. Sancho é a antítese de si mesmo. Não é mais par opositivo. É, sim, personagem
que, após sua cisão, jamais retorna à sua forma anterior.
Em outro ensaio, agora do autor mexicano Juan Villoro (2015), lemos:

O romance é a zona onde ambos os discursos se cruzam e se contaminam: D.


Quixote atinge a sensatez argumental em situações criadas por seu delírio e
Sancho se finge de louco por instinto de sobrevivência. A inversão kafkiana,
retomada por Borges, de que é Sancho quem cria D. Quixote, tem sua
origem no próprio romance de Cervantes. O escudeiro batiza a seu amo
como Cavaleiro da Triste Figura e assim define sua condição melancólica.
D. Quixote aceita a sugestão do seu subordinado, mas reduz sua importância
considerando que não foi ideia dele: foi o sábio árabe que compõe a obra que
a colocou “na boca e no pensamento”. Se Sancho “escreve” D. Quixote é
porque ele já está escrito de antemão. Kafka suprime a última volta do
parafuso e preserva a autoria de Sancho (VILLORO, 2015, p. 47).

Foi Cervantes o grande “desloucador de mundos”. Por meio da literatura, o personagem


em La Mancha nunca foi tão livre. Somente subvertendo a verdade em falsidade, Dom
Quixote sobrevive ao mundo que se impõe diante dele. Villoro ainda nos diz: “Para pensar
que se é D. Quixote, é preciso ser D. Quixote. E é preciso estar sempre do lado de fora, nunca
entre malucos” (VILLORO, 2015, p. 52). Ou seja, é preciso assumir que o estranho não é
estranho. Kafka foi o que levou o mundo cervantino às últimas consequências.
Sobre isso, já falava Günther Anders, quando afirmou:

A função histórica de Cervantes foi dupla: utilizando o gênero “romance de


cavalaria” para descrever a época “descavalarizada”, levou a própria época
ad absurdum; mas sua função mais importante consistiu no fato de – pela
representação da tensão entre o homem e o mundo – ter atacado o tema pela
primeira vez em toda a ficção romanesca moderna. (ANDERS, 2007, p. 33)

O Quixote cervantino responde, portanto, a um mundo que não existe mais. Sabe o que
tem que ser feito, pois conhece as regras da cavalaria. Sabe que precisa de um fiel escudeiro e
precisa recompensá-lo; que é o baluarte da justiça; e que todo o seu feito, por fim, confirma

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seu amor pela mulher amada. O mundo ridiculariza Quixote, mas isso não o faz envergar.
Dentro do seu mundo, dirá ainda Anders, Quixote é um herói sem mundo (ANDERS, 2007, p.
34), um sujeito negativo. E somente Kafka foi capaz de criar um mundo que se aproxima do
de Cervantes, pois foi capaz de entender a “discrepância insanável entre o sujeito e o mundo”
(ANDERS, 2007, p. 34).
É bem verdade que os personagens de Kafka não respondem a um mundo qualquer, mas
perguntam ao mundo. A comprovação de tal discrepância se dá pelas perguntas sem resposta.
Pois tudo o que Kafka escreve é sempre uma grande indagação: Por que a metamorfose de
Gregor Samsa? Quem caluniou Josef K.? Qual foi o real crime de Karl Rossmann? E por que
K. nunca chega ao castelo, apesar de todos os seus esforços? Benjamin, no clássico texto
sobre Kafka, fará um breve comentário sobre “A verdade sobre o Sancho Pança”, no qual
pode sintetizar toda a verdade sobre esse kafkiano: “Sancho Pança, tolo sensato e ajudante
incapaz de ajudar, mandou na frente seu cavaleiro. Bucéfalo sobreviveu ao seu Homem ou
cavalo, pouco importa, desde que o dorso seja aliviado do seu fardo” (BENJAMIN, 1987, p.
164)
Por fim, para demostrar ainda a inversão radical proposta por Franz Kafka, que instaura
um processo de suspeita e “desloucamento” no leitor, devemos ler ainda um outro, “O
silêncio das sereias”:

Prova de que até meios insuficientes – infantis mesmo podem servir à


salvação:

Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez


amarrar ao mastro. Naturalmente – e desde sempre - todos os viajantes
poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já
atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia
ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos
teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso,
embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no
punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao
encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu
silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha
escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o
sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí
resultante – que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja


porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse
adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não
pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de
todo e qualquer canto.

41
Ulisses no entanto – se é que se pode exprimir assim – não ouviu o seu
silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o
perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a
respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas
achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis
em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a
distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação,
e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram o corpo e se contorceram,


deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras
sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o
mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas


permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão
astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não
conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido –
embora isso não possa ser captado pela razão humana – que as sereias
haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo
de aparências acima descrito. (KAFKA, 2012, p. 80-81)

Conta-nos o poeta Homero que Ulisses, avisado por Circe, prepara-se para o seu
encontro com as Sereias. Nos versos homéricos, encontramos:

Circe divina, depois que falei, tais palavras me disse:


“Logo já realizado isso tudo; atenção ora presta
Ao que te passo a dizer: aliás, há de um deus recordar-to.
Primeiramente, hás de ir ter às Sereias, que todos os homens
Que se aproximam dali, com encantos prender têm por hábito.
Quem quer que, por ignorância, vá ter às Sereias, e o canto
Delas ouvir, nunca mais a mulher nem os tenros filhinhos
Hão de saudá-lo contentes, por não mais voltar para casa.
Enfeitiçado será pela voz da Sereias maviosas. (HOMERO, 2015, p. 204)

Entre as leituras mais belas que me chegam dessa passagem da Odisseia, de Homero,
está aquela em que seu personagem principal deseja, mais do que tudo, voltar para a casa.
Após vinte anos distante do lar, Ulisses busca agora voltar à família e estabelecer a ordem.
Portanto, qualquer empecilho ao seu regresso deve ser visto com muito cuidado. As Sereias
seriam um inimigo à altura do nosso homem de mil ardis.
A imagem, além do som, seria tenebrosa. Circe ainda adverte que, no prado onde as
sereias repousam, ossos de homens podem ser vistos. Todos devem se proteger, Ulisses e seus
“sócios”. Ainda assim, se Ulisses desejar ouvir o seu canto, deve se amarrar ao máximo para
não se deixar levar pelas Sereias, “Mas tu próprio, se ouvi-las quiseres, é força/ que pés e mão

42
no navio ligeiro te amarrem os sócios” (HOMERO, 2015, p. 204). Sabendo que “em teu
próprio peito/ tens de conselho tomar”.
O conto “O silêncio das sereias” instaura em mim uma ambiguidade. Todos os
caminhos que desejo tomar para ler tal texto colocam meu gesto de leitura em conflito. Por
ora, vejo o deslocar do mito e sua reescrita. Em outro momento, vejo que há pontos
importante no Ulisses de Kafka que se conectam sem nenhuma modificação ao Ulisses de
Homero. Portanto, nada se modificou, foi colocado em suspeita?
A leitura que encontro e que ressaltou todas essas nuances do conto de Kafka foi a de
Stéphane Mosès. O filósofo conseguiu ver dois momentos interpretativos no pequeno conto.
De uma lado, não pelo recurso da deusa, mas por infantil sabedoria é que o Ulisses de Kafka
encontra sua salvação. Sobre isso, todos estamos de acordo. Outro ponto é que Kafka não se
desfaz das ferramentas de combate do antigo Ulisses, pois o herói kafkiano ainda utiliza a
cera aos ouvidos e prende-se ao mastro. O que Mosès afirma, em seu ensaio “Ulisses em
Kafka”, é que o escritor de Praga deseja colocar em evidência que o homem moderno é um
homem sem poderes. O Ulisses kafkiano é um homem destituído de sua aura mitológica e que
enfrenta seu destino com a sua ingenuidade infantil.
A primeira afirmação do conto – “Prova de que até meios insuficientes – infantis
mesmo podem servir à salvação” – pede, para nós, uma explicação e confirmação. E toda a
exegese posterior responde ora sim, ora não tal afirmação. Ulisses vence as sereias por
ingenuidade, sem astúcia. Logo, a afirmação é verdadeira num primeiro plano. Não tendo
nada a nos ensinar. Ulisses é um homem comum, cheio de incertezas. Já nos parágrafos finais,
lemos: “Talvez ele tivesse realmente percebido – embora isso não possa ser captado pela
razão humana – que as sereias haviam silenciado”. Ou seja, não foi a arte do Ulisses kafkiano
a de fingir ser ingênuo diante do seu destino. Subverteu a ordem e a razão, o lugar do mito
ocupado pelas Sereias e pelo próprio Ulisses.
O novo Ulisses leva dentro de si a decisão de ouvir o canto das sereias e nos
proporciona mais um duelo entre o homem, seu desejo e seu destino. Munido de toda a
proteção possível, Ulisses enfrenta as Sereias. Novamente, junto com o Ulisses de Homero,
vence-as. Porém, em Kafka, o destino de Ulisses é duplamente impossível. As sereias
encantam pelo Silêncio e pelo Canto. Antes em Homero, as Sereias naturalmente cantam,
“representam uma necessidade sem nenhuma liberdade”. Mas, em Kafka, “depende [de
Ulisses] escutar as sereias ou permanecer surdo ao seu canto; entre a perdição e a salvação,
ele é livre para escolher” (MOSÈS, 2013, p. 313).

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Kafka, nesse “apêndice” sobre a história do grande Ulisses, dá uma informação valiosa:
o herói relido de Homero se opõe aos deuses e às sereias pelo “jogo de aparências”. E é por
esse jogo de aparência, um novo subterfúgio para Ulisses, que ele pode, então, vencer a
condição de duplo fracasso (Silêncio e Canto). É no seu lugar de impotente que Ulisses reage.
Vale ainda afirmar com Mosès que esse embate homérico-kafkiano ocorre no plano fora da
razão, na interioridade de Ulisses. Kafka não cessa de repetir: a escritura é um combate contra
os Deuses, onde salvação e perdição estão em jogo, e onde a astúcia suprema consiste, talvez,
em fingir ingenuidade. (MOSÈS, 2013, p. 317).

***

O que quis construir até aqui? Quis apresentar o caminho do “desloucamento” kafkiano
por meio da aproximação da filosofia e da literatura – em especial, me embasando na filosofia
da suspeita, por meio de Nietzsche, Marx e Freud. Em termos kafkianos, isso ocorre pelo
termo cunhado por Anders, “desloucamento”. O “desloucamento” é um recurso da escrita
kafkiana: é um dizer dizendo, um espantar pelo não espanto. Rebatizar e fixar. Logo, não é
meramente dizer algo para dizer outra coisa. É colocar etiquetas com rótulo “H2O”, para dizer
da mesma coisa, “Água”. Para que, assim, quem sabe, suspeitemos novamente do mundo que
nos cerca. Nos próximos capítulos, tentarei escrever as implicações desse gesto kafkiano do
“desloucamento” sobre o tema da liberdade e da submissão.

44
3. RELATAR A LIBERDADE

Escolhi o texto “Um relatório para uma academia” para desenvolver o tema da liberdade
em Franz Kafka. Minha hipótese para compreender a liberdade em Franz Kafka é que ela foi
profundamente “desloucada” por nosso autor. Nesse caso, a liberdade não será ambicionada
pelo nosso personagem, Pedro Vermelho: Vermelho recusa o vocábulo “liberdade” como
forma de expressão de seu sentimento de se ver fora da jaula. Porém, escolhe a palavra saída.
Pensei, então, ser importante realizar uma leitura do conto destacando aqueles
momentos em que os olhos se desprendem do texto para uma viagem particular, para, depois,
retornar ao texto por um gesto de amor (BARTHES, 2004). Desse modo, procurei ler a
estrutura do conto, seu tema, seu personagem, trazendo dados que considerei importantes para
a compreensão textual desse célebre escrito de Franz Kafka.
Procurei compreender como podemos definir o conceito “liberdade” pelo literário e,
nas significações tradicionais, entender o motivo da rejeição do termo para a experiência de
nosso macaco. Logo, percorri textos que trataram de forma geral e específica esse conceito
tão importante para a compreensão de nossa humanidade. Comecei do mais simples
dicionário, passando aos dicionários filosóficos, contrastando definições e opiniões de alguns
pensadores. A tarefa de pensar a liberdade na produção da filosofia ocidental, por si só, é
um trabalho extremamente exaustivo. Perguntar o que seria a liberdade para os gregos,
medievais e primeiros modernos, mesmo sendo uma tarefa importante, levaria a um terror
maravilhoso, mas que, por ora, não seria possível. Fiz, portanto, um recorte, sempre afetivo e
posteriormente mais dogmático. Encontrei um texto de Paul Valéry sobre a liberdade, que
aqui acrescentei. Depois, somei as noções mais contemporâneas de liberdade assumidas por
Camus, Arendt e Isaiah Berlin. Por serem textos mais próximos em data, das nossas questões
atuais, considero que eles apresentam a liberdade de forma crítica e objetiva.

3.1. A escrita de um relatório

Entendemos por relatório a produção textual que apresenta as conclusões a que se chega
após um percurso de uma investigação por uma pessoa nos exercícios de sua profissão, de um
determinado grupo de pesquisa e até de uma instituição pública ou privada; texto que se
destina aos membros de uma comissão avaliadora, integrantes de uma academia ou uma

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agência financiadora. Diante do avanço de uma pesquisa científica, por exemplo, o
pesquisador se coloca perante seus pares e relata o desenvolvimento de sua investigação.
O relatório do cientista parte de um acontecimento real: o que aconteceu durante a sua
pesquisa. Transita entre uma linguagem objetiva e pessoal, respeitando seu conteúdo
(científico) e o público ao qual esse texto se destina. Já em questões judiciais, é o documento
originado no processamento pelo sistema jurídico. E ainda, nos termos policiais, o vocábulo
“relatório” serve para designar a narrativa elaborada após a averiguação da existência do
crime. É a peça que será oferecida como parte de uma possível ação penal. Ainda que
apresentado por indivíduos nos mais variados exercícios e atribuições de suas funções, na
escrita de um relatório, sempre é necessário o rigor absoluto, pois o relatado, que é um
documento oficial, destina-se sempre a uma autoridade.
Dito isso, entende-se um pouco melhor a primeira afirmação de “Um relatório para uma
academia”: “Eminentes senhores da Academia: Conferem-me a honra de me convidar a
oferecer à Academia um relatório sobre a minha pregressa vida de macaco” (KAFKA, 1999,
p. 59). O que nos chega, então, é um relatório do que ocorreu com a vida de Pedro Vermelho,
um símio que nos relatará sua metamorfose de condição de macaco para homem civilizado,
brindando-nos com a frase que é central para mim no desenvolvimento deste capítulo: “Não,
liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, por onde quer que eu fosse;
eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser apenas um engano; a exigência era
pequena, o engano não seria maior” (KAFKA, 1999, p. 64-65).
Mais uma vez estamos diante de uma profunda transformação de um personagem
kafkiano. Teremos novamente acesso a cinco anos de metamorfose, como se Pedro Vermelho
fosse “irmão” ao avesso de Gregor Samsa. Porém, em “Um relatório...”, diferente de Samsa,
que é destituído da vida coletiva, o símio de Franz Kafka se torna humano, criando um
paralelo inequívoco com A metamorfose. Assim, novamente, Kafka desloca para fixar,
rebatizando nossa condição humana, tão naturalizada (ANDERS, 2007).
Para se aprofundar no drama familiar e o da lei da família que incidia sobre a vida de
Gregor Samsa, Kafka o transforma em inseto monstruoso, pois sabe que falar de um filho
desempregado não seria suficiente para mostrar a forma como a lei familiar pode operar sobre
os corpos. Da mesma forma, para falar de nossa liberdade, não poderia apenas dizer sobre um
cidadão livre, mas sim sobre um macaco que consegue a liberdade de sua condição de símio,
desejando, a partir dela, a saída de algo que fora sua condição.

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Acompanhado de “pessoas excelentes”, “conselhos”, “aplausos” e “música orquestral”,
o símio Pedro Vermelho nos narra como entrou no reino dos homens. Acessa a sociedade pelo
convívio, pela escuta, pelo reconhecimento, e usufrui com seus novos pares a cultura musical.
Ressalta que, em tudo, “se mantinha bem recuado diante da barreira” (KAFKA, 1999, p. 59),
mas, mesmo assim, avançava em suas conquistas “autocivilizatórias”.
O que houve por parte do símio kafkiano foi um gradual desprendimento de quem ele
era. Sua condição de animal preso incidiu sobre seu corpo, assim como outros elementos
necessários ao aprendizado do humano. Nosso personagem abriu mão de sua origem animal e
selvagem para vivenciar a metamorfose por completo. “Essa realização teria sido impossível
se eu tivesse querido me apegar com teimosia à minha origem” (KAFKA, 1999, p. 59), diz-
nos o macaco de Franz Kafka.
A escolha poderia ter sido o regressar e o permanecer na sua condição de símio. Até
porque, como bem disse o nosso protagonista: “eu, macaco livre, me submeti a esse jugo”
(KAFKA, 1999, p. 60). Porém, ao vivenciar a experiência de um céu “simultaneamente mais
baixo e mais estreito” (KAFKA, 1999, p. 60),4 nosso macaco-homem se vê prestes a vivenciar
a morte de sua antiga condição e nascimento de um outro ser, instaurando a problemática de
que essa humanidade aprendida é “empurrada para frente a chicote”. O homem que mal acaba
de nascer, desfrutando das benesses do “ser racional”, tem como processo de transformação a
“pedagogia do chicote”. Assim, a partir de cada ato de violência de seus algozes, vê-se mais
incluído no mundo dos homens.
O tornar-se homem é um processo de acúmulo cultural, uma espécie de progresso, que
Franz Kafka está, creio eu, diretamente questionando. A cada passo dado, o macaco não pode
mais retornar. E depois de compreendido isso, ele só pode constatar que só há um caminho a
percorrer: a conclusão de sua metamorfose. Retornar é voltar por um buraco que esfolaria o
seu corpo. Uma espécie de sair da caverna primitiva, após conhecer o mundo dos hominídeos.
O processo de liberdade é, portanto, doloroso. E é uma viagem sem volta. Logo, não é
possível ao macaco voltar a sua caverna de origem. Ainda que nossa macaquice more em nós
a fazer “cocegas” no calcanhar “do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles”.
Após os três primeiros parágrafos, nosso macaco começa a relatar as mudanças sofridas
e seus aprendizados. O primeiro de todos é o “aperto de mão”. Ele aprende que aquilo, em

4
Como as paredes cada vez mais estreitas da “Pequena fábula”, outro ponto de intertextualidade desse texto,
Pedro Vermelho é semelhante ao pequeno rato.

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nossa cultura, simboliza a franqueza ao relacionar-se com os outros. Define, com isso, a chave
que entrou no mundo dos homens, sendo agora um ex-macaco. Aprendendo o seu primeiro
gesto de civilidade. E recorda, primeiramente, esse gesto, de extrema importância na
narrativa, porém não “essencialmente novo à Academia”. (KAFKA, 1999, p. 60). Afirmações
como essa esclarecem ainda mais a condição do nosso símio, que está habitando num “entre
civilizatório”.
Sobre sua origem, Pedro Vermelho, diz ser natural da Costa do Ouro (KAFKA, 1999, p.
61) – curiosamente, o mesmo nome que designa uma terra no continente africano subjugado
pelos europeus até 1482. O que hoje é a atual Gana, já foi um dia colonizado por
dinamarqueses, neerlandeses, britânicos, alemãs, portugueses e suecos. Foi rica em minérios,
marfim e de mão de obra para o projeto colonizador dos europeus.
Pedro Vermelho não diz apenas sobre o lugar em que foi capturado, como também
afirma que a compreensão da sua própria individualidade é fruto não de sua consciência sobre
si mesmo, mas “tenho de me valer de relatos de terceiros” (KAFKA, 1999, p. 61). Nesse
sentido, o relato que temos sobre a Costa do Ouro, assim como o da vida de nosso símio, seria
o relatório elaborado pela Império Britânico no pós-1ª Grande Guerra. O contexto desse
documento é significativo, pois ele dialoga com a afirmação de Pedro Vermelho. Costa do
Ouro, assim como o símio, é conhecido apenas por “relatos de terceiros”:

In the spring of 1917 the Foreign Office, in connection with the preparation
which they were making for the work of the Peace Conference, established a
special section whose duty it should be to provide the British Delegates to
the Peace Conference with information in the most convenient form –
geographical, economic, historical, social, religious and political –
respecting the different countries, districts, islands, &c.. with which they
might have to deal. In addition, volumes were prepared on certain general
subjects, mostly of an historical nature, concerning which it appeared that a
special study would be useful. (THE DIRECTION OF THE HISTORICAL
SECTION OF THE FOREIGN OFFICE, 1920)

Após a Primeira Guerra Mundial, no verão de 1917, o governo britânico reúne uma
série de informações que seriam usadas por seus delegados na Conferência da Paz. O
documento Gold Coast é o de número 93 de uma série de estudos produzidos pelo Ministério
das Relações Exteriores britânico. Encontram-se, no documento, informações sobre geografia
e política, história e economia – o que nos faz lembrar que o macaco capturado se insere
dentro de uma lógica econômica do entretenimento, pois seu aprisionamento é fruto de “Uma
expedição de caça da firma Hagenbeck”.

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O macaco de Kafka foi capturado pela firma Hagenbeck. Novamente, a literatura e a
história se cruzam. Carl Hagenbeck foi especialista na captura de animais selvagens para a
alimentação dos zoológicos europeus, criando zoológicos que se afastavam do conceito
tradicional e buscavam aproximar os animais de seu habitat e sendo um dos nomes pioneiros
na aproximação dos animais com os homens (THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA
BRITANNICA, [S.d]). Assim diz nosso personagem: “aliás, com o chefe dela esvaziei [o
macaco] desde então algumas boas garrafas de vinho tinto”.
O que se lê, ainda que em duas simples afirmações, deve ser levado em proximidade das
relações entre a história e ficção, revelando para nós, leitores de Franz Kafka, uma série de
informação históricas, que de alguma forma contribuem para a compreensão do fazer
kafkiano. O contexto do século de Pedro Vermelho é o século colonial. O documento é do
Império Britânico e a importância da Costa do Ouro para o desenvolvimento da cora inglesa,
primordialmente. E novamente, falar sobre a saída desejada pelo macaco (gesto que no senso
comum pode ser um gesto banal) significa estar diante de outras considerações para além do
que está na vista, ou no rótulo. Sigamos a leitura cerrada do conto.
A captura de Pedro Vermelho ocorreu pela noite, enquanto bebia água. O símio é
capturado com dois tiros. Um na maçã do rosto, “esse foi de leve, mas deixou uma cicatriz
vermelha de pelos raspados, que me valeu o apelido repelente de Pedro Vermelho”. O outro
no flanco, “embaixo da anca”. Esse foi mais grave e fez com que o macaco mancasse até o
fim da vida. Ressalto aqui que é pelo ato de violência, que lhe deixa uma cicatriz, que Pedro
Vermelho é singularizado e se diferencia de um outro símio, o Pedro.
A comparação não sei se procede, mas aqui lembro da cicatriz do velho Ulisses. Pois a
cicatriz do velho Ulisses, como declara Auerbach, não é apenas um detalhe, é índice de uma
“modernidade anacrônica”, se posso dizer assim. A cicatriz é acesso a um tempo
escamoteado, que só tomaria contornos profundos com Virginia Woolf, na também celebre
passagem da meia marrom de Passeio ao farol – ambos textos literários analisados por Erich
Auerbach.

Na minha reprodução do incidente, omiti até agora o conteúdo de todo uma


série de versos que o interrompem pelo meio. São mais de setenta – o
incidente em si compreende cerca de quarenta versos antes e quarenta versos
depois da interrupção. A interrupção, que ocorre justamente no momento em
que a governanta reconhece a cicatriz, isto é, no momento da crise, descreve
a origem da cicatriz, um acidente dos tempos da juventude de Ulisses,
durante uma caça ao javali por ocasião de uma visita ao seu avô Autólico.
Isto dá, antes de mais nada, motivo para informar ao leitor acerca de
Autólico, sua moradia, grau de parentesco, caráter, e, de maneira tão

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pormenorizada quão deliciosa, seu comportamento após o nascimento do
neto; segue-se a visita de Ulisses, já adolescente, a saída matutina para a
caça, o rastejo do animal, a luta, o ferimento de Ulisses por uma presa, o
curativo da ferida, o restabelecimento, o regresso a Ítaca, o preocupado
interrogatório dos pais; tudo é narrado, novamente, com perfeita
conformação de todas as coisas, não deixando nada no escuro e sem omitir
nenhuma das articulações que as ligam entre si. E só depois o narrador
retorna ao aposento de Penélope, e Euricleia, que tinha reconhecido a
cicatriz antes da interrupção, só agora, depois dela, deixa cair, assustada, o
pé na bacia. (AUERBACH, 2011, p. 2).

O que Auerbach nos fala, em resumo, é que a cicatriz revela a fratura do tempo. E no
simples olhar da cuidadora de Ulisses – o que, na Odisseia, é posto por meio das construções
sintáticas –, o tempo da casa do avô, do Ulisses menino, da caça com o javali, são postos ali.
Um tempo escamoteado, e que será produzido de maneira intensa em toda a literatura
moderna. É no momento da crise, dirá o crítico, que a cicatriz se revela e nos revela um tempo
homérico que coloca em questão – Eric Auerbach é muito cauteloso nisso – uma noção de
modernidade literária já em Homero.5
Mas o que a cicatriz de Pedro Vermelho nos revela, qual é a sua crise? O macaco-
homem nos diz “eu tenho predileção em despir as calças para mostrar o lugar onde aquele tiro
entrou”. Pedro Vermelho deseja mostrar para os membros da academia “uma pelúcia bem
tratada e a cicatriz de um – tiro delinquente”. Eu me pergunto o que deseja trazer à tona para
nós, leitores, com essa cicatriz. E sou prontamente respondido: “Está tudo exposto à luz do
dia, não há nada a esconder; quando se trata de verdade, qualquer um de espírito largo joga
fora as mais finas maneiras”. Portanto, há um verdadeiro que Pedro Vermelho nos deseja
mostrar, a cada vez que baixa suas calças, se despe de seus modos e “sentimentos delicados”,
e, assim, nos revela a cicatriz fruto de sua captura.
Existe uma tensão proporcionada pelo conto, que é o preço dessa metamorfose em “ser
humano”. A conquista da civilização se dá com uma cicatriz nos flancos. E agora Pedro
Vermelho nos revela, em alto bom som, por recursos literários. Não é mais o discurso feito
por outros. E, no despertar para esse mundo de homem, “Depois daqueles tiros eu [Pedro
Vermelho] acordei” na condição de encarcerado:

5
Devo ressaltar, ainda, que a passagem da cicatriz de Ulisses, em Auerbach, coloca em questão o gênero épico e
o gênero trágico; e posteriormente a cultura grega e judaica. A história grega é objetiva, como podemos ver pelos
relatos de Ulisses e dos deuses. O tempo bíblico já seria histórico, ordenado em princípio, meio e fim – no que,
para Eric Auerbach, se vê o despontar da modernidade. Agradeço ao Ricardo Pinto de Souza pela elucidação
desse ponto de minha dissertação.

50
Depois daqueles tiros eu acordei – e aqui, aos poucos, começa minha própria
lembrança – numa jaula na coberta do navio a vapor da firma Hagenbeck.
Não era uma jaula gradeada de quatro lados; eram apenas três paredes
pregadas num caixote, que formava, portanto, a quarta parede. O conjunto
era baixo demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os
joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado para o caixote,
uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém e
desejava estar sempre no escuro, enquanto por trás as grades da jaula me
penetravam na carne. Consideram vantajoso esse tipo de confinamento de
animais selvagens nos primeiros tempos e hoje, pela minha experiência, não
posso negar que seja assim do ponto de vista humano. (KAFKA, 2012, p.
62)

A cena é de uma dor tamanha. Um processo só amortizado pelo “ponto de vista”


humano, que a tudo olha e acha normal o processo de infligir, ao alheio, sofrimento. Para
mim, Kafka denuncia um processo de constituição do ser humano que é profundamente cruel.
Esse ponto de vista de um gesto atroz realizado com o corpo de Pedro Vermelho é por Kafka
fixado, para, assim, revelar o quão descabido é tomar por modelo o processo de humanização
de povos sobre outros povos. Quem poderá, portanto, julgar o relatório de Pedro Vermelho, se
o seu próprio autor, do ponto de vista humano, faz da barbárie um gesto humanamente
aceitável?
Se, como disse no primeiro capítulo, Kafka “deslouca” o mundo aparentemente normal
e o fixa para gerar seu próprio processo de suspeita, devemos nos valer, aqui, de uma das
produções mais estarrecedoras de Franz Kafka. O gesto não foi o primeiro – falar sobre um
macaco para falar de nossa humanidade. Kafka tinha feito isso com a rata cantora Josefina e a
muralha da China, o que, para alguns intérpretes do nosso autor, era uma forma desviante de o
poeta de Praga falar sobre a coletividade do povo judeu.
Pedro Vermelho não só está perdendo sua real sensibilidade como também, “com toda a
força de um macaco”, não consegue se desfazer das barras das grades que prendem seu corpo.
Pois, no seu processo de se tornar homem (ainda que, em alguns momentos, agisse como um
autêntico símio caçando pulgas, cuspindo...), a única certeza de sua nova vida foi não ter
nenhuma saída. A verdade antiga – a da condição de símio – existe, mas não pode mais ser
acessada.
O processo de se tornar homem acontece. É a saída para o aprisionamento na jaula que
impele nosso macaco a esse gesto. Parece que o modo de Pedro Vermelho modificar a sua
situação de símio capturado foi absorvendo o que lhe infligiam e saltando na escala evolutiva.
Como para romper com o sofrimento, talvez se aproximar de quem lhe faz sofrer fosse a única
saída; ainda que, para Pedro Vermelho os homens que o aprisionaram fossem “bons, apesar

51
de tudo”. Tal passagem me deixou em dúvida quanto ao processo de saída pela humanização,
mas, a bem da verdade, isso está na sentença “consideram vantajoso esse tipo de
confinamento de animais selvagens nos primeiros tempos e hoje, pela minha experiência, não
posso negar que seja assim do ponto de vista humano”.
Repare-se a construção recorrente em Kafka e que tanto nos chama a atenção. O
Macaco-Homem consegue olhar a civilização de fora. Faz-se valer do seu lugar de
observador, de propositor de um relatório sobre sua metamorfose, que também é tornar seu
“inimigo” em objeto. Aqui, Kafka já coloca em evidência uma linha mestra de que, em muito,
tenho me aproximado. Se a transformação em ser humano é a única saída, e ela é brutal, ela
também permite revelar uma condição estrutural da humanidade. Isso é, nossa condição
enquanto seres humanos:

Ainda hoje gosto de me lembrar dos som dos seus [das pessoas do navio]
passos pesados que então ressoavam na minha sonolência. Tinham o hábito
de agarrar tudo com extrema lentidão. Se algum queria coçar os olhos,
erguia a mão como se ela fosse o prumo de chumbo. Suas brincadeiras eram
grosseiras mas calorosas. Seu riso estava sempre misturado a uma tosse que
soava perigosa mas não significava nada. Tinham sempre na boca alguma
coisa para cuspir e para eles era indiferente onde cuspiam. Queixavam-se
sempre de que minhas pulgas pulavam em cima deles, mas nunca ficaram
seriamente zangados comigo por isso; sabiam muito bem que nos meus pelos
as pulgas prosperam e que as pulgas são saltadoras; conformavam-se com
isso. Quando estavam de folga, alguns sentavam-se em semicírculos à minha
volta; quase não falavam, mas arrulhavam uns para os outros; fumavam os
cachimbos esticados sobre os caixotes; davam tapas nos joelhos assim que
eu fazia o menor movimento e de vez em quando um deles pegava um pau e
me fazia cocegas (KAFKA, 2011, p. 118).

Por um instante, Pedro Vermelho consegue analisar os homens do navio. Tomar aquela
embarcação como metonímia de toda a civilização não seria um equívoco. É nesse salto que
Macaco de Kafka nos revela ser a humanização não apenas a possibilidade de saída, como
também de um gesto super-humano. Pois Pedro Vermelho consegue compreender as relações
sociais e negociar, com o ambiente em que está inserido, sua sobrevivência. Aposta às cegas,
a bem da verdade. E consegue se ver livre da jaula.
Como o Ulisses de o “Silêncio das sereias”, Pedro Vermelho encontra um subterfúgio,
ferramentas para mudar sua dura realidade. O tornar-se homem implicaria riscos, e um deles é
que nada poderia acontecer, ainda que sua metamorfose fosse concluída. O Símio aprende a
cuspir, a abrir uma garrafa de aguardente (sua maior dificuldade). Tem aulas teóricas sobre
ser homem e delas se cansa. O processo de educação era a forma com que lutava contra sua

52
natureza de macaco – uma crítica contundente ao processo pedagógico, que pode nos
embrutecer e matar em nós uma natureza singular.
A construção kafkiana do conto obedece a um aforismo kafkiano de número 27: “Ainda
nos impõem fazer o que é negativo; o positivo já nos foi dado”. A humanidade é uma saída e
aqui não é louvada, “Repito: não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava
uma saída” (KAFKA, 2011, p. 70). Em nenhum momento, a humanidade é positivada, mas
sim negativada. Ele é um sujeito pleno e caminha habilmente na linguagem, a ponto de deixar
louco seu professor, que “precisou ser internado num sanatório. Felizmente saiu logo de lá”
(KAFKA, 2011, p. 70).
Quando aporta no continente, o Símio de Kafka escolhe, por estratégia e mostra de sua
habilidade adquirida, o desejo de ir para o “teatro de variedades”. Ir para o zoológico seria ir
novamente para a jaula. Ele mostra para a academia que realmente aprendeu a ser humano
para sobreviver ao próprio homem, “E eu aprendi, senhores. Ah, aprende-se o que é preciso
que se aprenda” (KAFKA, 2011, p. 70). Carone dirá que a escolha do teatro é justamente a
amostra da “habilidade para imitar os humanos”, que faz de Pedro Vermelho “astro de um
circo de variedades e a qualidade do seu poder mimético é o recurso que lhe permite escapar
do confinamento de uma jaula” (KAFKA, 2011, p. 114).
Eu acredito que essa cena de Kafka, entre a escolha entre o zoológico e o teatro de
variedades, intensifica-se ainda mais quando contrastada com outra cena kafkiana: o último
capítulo de O Desaparecido ou Amerika. No livro, Karl se vê agora se dirigindo ao grande
“Teatro de Oklahoma”. Já diminuído ao longo do seu processo em solo americano, o jovem
Rosmann perde sua liberdade, justamente na terra da liberdade, a América. Seu sobrenome
desaparece; seu tio, um proeminente senador, o abandona; os amigos que faz ao longo do
caminho não são confiáveis... No último capítulo da obra, é apenas o “Karl”. O Theatro de
Oklahoma a todos aceitam, “Quem pensa no futuro nos pertence! Todos são bem-vindos!”. E
é isso que atraiu tanto Karl, essa “proliferação de destinos” (LAGE, 2012, p. 279)
Pedro Vermelho, assim como Rosmann, escolhe o teatro e o futuro. O macaco investe
na escolha de inúmeros professores, o que lhe permitiu ter a “formação média de um
europeu”. E, por meio dessa encenação, “essa saída humana”, Pedro Vermelho busca
transformar sua condição de símio: “Eu não tinha outro caminho, sempre supondo que não era
possível escolher a liberdade” (KAFKA, 2011, p. 71).

Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga
que o esforço não valeu a pena. No mais não quero nenhum julgamento dos

53
homens, quero apenas difundir conhecimentos; faço tão-somente um
relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, só
apresentei um relatório (KAFKA, 2011, p. 72).

Essas foram as palavras finais de nossa novo homem. Já homem instruído, evoluído,
com uma garrafa de vinho à espera de sua “pequena chimpanzé semi-amestrada”. E, por ser
humano, já pode negar, inclusive, outras naturezas e modos de existência: “[ela, a chimpanzé]
tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu reconheço e não consigo
suportá-la” (KAFKA, 2011, p. 72). Creio que há um tom semelhante ao que foi realizado em
“O silêncio das sereias”. Isso porque, no fim, a dúvida se instaura na academia (e em nós,
leitores, também?) e é sugerido pelo personagem o não julgamento da metamorfose em
homem civilizado: “No mais, não quero nenhum julgamento dos homens”. Assim como Brod,
não somos fiéis a Kafka, e julgamos sua obra.
Em um ensaio denominado “Mal-estar na cultura: corpo e animalidade em Kafka, Freud
e Coetzee”, Márcio Seligmann-Silva nos apresenta uma exegese surpreendente sobre esse
conto de Kafka. Agora, temos uma macaco teórico da literatura que louva o brilhantismo de
Franz Kafka, diante de mais uma academia. O macaco de Seligmann-Silva é convidado a
“escrever sobre os animais na obra de Kafka”, escritor que conhece “pouco depois de ele ter
publicado – para meu furor: sem a minha permissão – o relatório, que logo se tornou famoso”.
O relatório é o “Um relatório para uma academia”. Esse macaco, pelo visto, é um velho
conhecido nosso, agora já com mais de 100 anos. E, sobre a animalidade em Franz Kafka, o
macaco afirma:

Comecemos pelo início: por que Kafka abriu um espaço tão privilegiado
para animais em seus textos? Para mim isto é um sinal de inteligência!
Assim ele pôde pensar melhor no próprio animal-humano. Sinceramente,
como macaco, primo de vocês, posso dizer que o Sr. Kafka deve ter sido um
dos que melhor soube mergulhar nesse homem do século XX, ou seja,
alguém que não se sente em casa nem no próprio corpo. De animais mesmo
ele não entendia quase nada. Ele gostou de meu relatório porque lá apresento
como o ser-humano está a um passo do ser-animal. Eu atravessei a galope o
processo evolutivo, que vocês levaram centenas de milhares de anos para
trilhar (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 205)

É apenas invertendo as categorias “desloucadamente” que Franz Kafka conseguiria


“pensar melhor no próprio animal-humano” (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 205). Dizer
sobre nossa realidade de maneira a denunciar a nossa condição humana é quase que obrigação
de um escritor responsável e ético. A problemática se debruça no “como” realizar tal feito e
efeito. Falar de seres, de ratos, de insetos, de cães para mostrar a existência do homem de seu

54
tempo precisa ser encarado por todos os lados: “Ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise
da soberania e da nossa autoimagem” (SELIGMANN-SILVA, 2010).
O macaco de Seligmann-Silva se dirige não apenas aos seus pares – mais uma vez, à
Academia –, mas sim busca falar por todos os seus companheiros de metamorfose. Citar o
conto “Chacais e árabes”, “Uma folha antiga”, “O novo advogado”, “Investigação de um
cão”, “Josefina, a cantora, ou O povo dos camundongos” e, por fim, a própria A metamorfose.
Todos esses personagens, chacais, homens animalizados como gralhas, cavalo, cão, ratos e
camundongos, insetos de todos os tipos (joaninhas, besouros, baratas), revelam aquilo que
Freud denunciou como um “mal-estar na cultura”. Personagens que servem para nos dizer que
o homem do século XX, e do nosso século, se encontra “condenado a morar no mal-estar”
(SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 206), condenado a sentir-se desabrigado.
Nisso vale, ainda, um comentário de Seligmann-Silva:

Não podemos esquecer que para Freud o processo de aculturação se


confunde com o de hominização e passa pelo recalque de nossos instintos e
predileções animais, que são enviados para o fundo do nosso ser. Como
lemos em O mal-estar na Cultura, a passagem do modo de andar
quadrúpede para o bípede determinou uma série de repressões com relação
ao olfato e seu papel na excitação e relacionamento humano e, por outro
lado, o aumento do papel da visualidade. “Um fator social está também,
inequivocamente,” escreve Freud, “presente na tendência cultural para a
limpeza, que recebeu, ex post facto, justificativa em considerações
higiênicas, embora tenha se manifestado antes da descoberta destas. O
incentivo à limpeza origina-se num impulso a livrar--se das excreções, que
se tornaram desagradáveis à percepção dos sentidos. Sabemos que, no quarto
das crianças, as coisas são diferentes.” (SELIGMANN-SILVA, 2010, p.
217)

O comentário que Seligmann-Silva realiza sobre Freud é pertinente ao personagem


Pedro Vermelho de Franz Kafka. A “aculturação” de nosso personagem ocorreu no
aprendizado no viver na jaula (cultura para Freud?). Um abandono de natureza símia e a
entrada no reino dos homens, pela caminhar bípede. O nosso macaco se torna limpo, tem um
relacionamento, professores... Não é mais o que cuspia e bebia garrafas de água ardente: é
agora crítico de nossa raça.

3.2. A liberdade no conto de Kafka em diálogo

Mas voltemos, agora, à questão da liberdade em Kafka – em especial, ao parágrafo em


que o narrador declara para a academia sua definição e sua crítica à liberdade:

55
Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída.
Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente
que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade
por todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei
conhecimento com pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz
respeito, eu não exigia liberdade nem naquela época nem hoje. Dito de
passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a
liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais
sublimes, também o ludíbrio correspondente figura entre os mais elevados.
Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes da minha entrada em cena,
um ou outro par de artistas às voltas com os trapézios lá do alto junto ao teto.
Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços do
outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. “Isso também é
liberdade humana”, eu pensava, “movimento soberano.” Ó derrisão da
sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalhada
dos macacos à vista disso (KAFKA, 2011, p. 117)

“Não digo que é liberdade”, diz o macaco, mas sim “saída”. É o vocábulo “saída” que
serve ao nosso símio. E ainda que a precisão não seja ideal, tendo um sentido mais comum e
pleno, é assim que nosso Pedro Vermelho nomeia seu processo de agenciamento de
assimilação das jaulas, que foi o de imitar os homens, para, assim, ver a si mesmo fora do
mundo das grades. Temos em Kafka a referência à “liberdade” como um sentido filosófico,
creio eu: “o grande sentimento”. Vamos seguir nosso personagem, então, na busca da
compreensão da liberdade, no “seu sentido mais comum e pleno”.
Encontramos no dicionário eletrônico Houaiss (DICIONÁRIO ELETRÔNICO
HOUAISS, 2009) as primeiras definições e informações para o vocábulo “liberdade”:

n. substantivo feminino. 1. grau de independência legítimo que um cidadão,


um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal. 2.
Derivação: por extensão de sentido. Conjunto de direitos reconhecidos ao
indivíduo, isoladamente ou em grupo, em face da autoridade política e
perante o Estado; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro
dos limites que lhe faculta a lei. Exs.: l. religiosa. l. de pensamento. 3.
condição daquele que não se acha submetido a qualquer força
constrangedora física ou moral. Exs.: ter l. de movimentos. ter l. de agir. 4.
condição daquele que não é cativo ou que não é propriedade de outrem. Exs.:
pôr em l. um prisioneiro. dar l. a um escravo. 5. Derivação: por extensão de
sentido. Estado daquilo que está solto, sem qualquer empecilho tolhendo os
seus movimentos. Ex.: os cabelos voavam em l. 6. Derivação: por extensão
de sentido. Autonomia, independência, soberania. 7. Derivação: por extensão
de sentido. Possibilidade que tem o indivíduo de exprimir-se de acordo com
sua vontade, sua consciência, sua natureza. 8. Derivação: por extensão de
sentido. Licença, permissão. Ex.: você tem total l. de sair ou ficar. 9.
Derivação: por extensão de sentido. Atitude que revela confiança,
familiaridade. Ex.: desculpe-me a l. de telefonar-lhe tão tarde. 10. Rubrica:
filosofia. Capacidade individual de optar com total autonomia, mas dentro
dos condicionamentos naturais, por meio da qual o ser humano realiza a sua
plena autodeterminação, organizando o mundo que o cerca e satisfazendo

56
suas necessidades materiais. ª liberdades. n substantivo feminino plural. 11.
Autonomia de que gozam certos grupos sociais; imunidades, franquias. Ex.:
as l. galicanas. 12. Maneira petulante, audaciosa de agir. Ex.: que l. são essas
com a sua professora? 12.1. Intimidade no trato amoroso. Ex.: ele estava
tomando l. inadmissíveis com minha irmã. (DICIONÁRIO ELETRÔNICO
HOUAISS, 2009).

Como pode ser lido, o dicionário fornece, para um não iniciado nas questões filosóficas,
nuances importantes para a compreensão do conceito de “liberdade”. Ao todo, são mais de
dez aspectos e podemos associar, sem equívoco, a palavra “liberdade” às várias instâncias da
vida humana. Independência. Conjunto de direitos. Movimento. Autonomia. Todos atributos
da vida do indivíduo no viver consigo mesmo e com os seus semelhantes em sociedade. Em
um outro dicionário, agora o filosófico, lemos:

Esse termo [liberdade] tem três significados fundamentais, correspondentes a


três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem
ser caracterizadas da seguinte maneira: 1ª L. como autodeterminação ou
autocausalidade, segundo a qual a L. é ausência de condições e de limites; 2ª
L. como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a
autodeterminação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence
(Mundo, Substância, Estado); 3ª L. como possibilidade ou escolha, segundo
a qual a L. é limitada e condicionada, isto é, fínita. Não constituem conceitos
diferentes as formas que a L. assume nos vários campos, como p. ex. L.
metafísica, L. moral, L. política, L. econômica, etc. As disputas metafísicas,
morais, políticas, econômicas, etc, em torno da L. são dominadas pelos três
conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas
específicas de L. sobre as quais essas disputas versam (ABBGNANO, 2007,
p. 605)

No que tange às acepções filosóficas do termo “liberdade”, Nicola Abbagnano


(ABBAGMANO, 2007) recorre a palavras que são utilizadas de forma recorrente à
compreensão do conceito “liberdade”: “autodeterminação”, “autonomia”, “autocausalidade”
etc., tomando a liberdade como um bem estimado e inalienável de todo indivíduo. Tal postura
evidencia para nós que, na história da filosofia ocidental, o conceito de “liberdade” foi,
principalmente, associado à liberdade do indivíduo na relação consigo mesmo.
Hannah Arendt foi uma das pensadoras que, no século XX, teceu considerações
importantes sobre o conceito de liberdade, criticando essa ideia de liberdade como
“autonomia do sujeito”. Em seu livro Entre o passado e o futuro (ARENDT, 2016), encontrei,
no artigo “O que é liberdade?”, as contribuições da pensadora alemã sobre o tema. Visitando a
história da filosofia, Arendt identifica a forma como a filosofia tem abordado o tema desde
Epicteto a Kant e, em sua análise, buscou subverter os paradigmas de pensamento ocidental
sobre essa temática.

57
O conceito de liberdade, para a autora, não residiria mais no homem, evidenciado ao
longo da tradição filosófica ocidental, mas sim na relação entre os homens. Não na vida
privada, afastada da cena pública, mas sim na relação que se dá no terreno da política
(ARENDT, 2016). Em palavras da própria Arendt: “se há porventura um eu primariamente
livre em nós mesmos, ele certamente jamais aparece de modo claro no mundo fenomênico e,
portanto, nunca pode se tornar objeto de verificação teórica” (ARENDT, 2016, p. 187).
O princípio de “autodeterminação”, “autonomia”, “autocausalidade” é questionado, pois
“não estamos capacitados a chegar algum dia a sequer conhecer todas as causas que entram
em jogo” (ARENDT, 2016, p. 188). Isso porque lidar com o homem não se assemelha ao lidar
com a natureza e nos é impossível compreender todas as variáveis que os filósofos modernos
definiam ser a base da liberdade, estritamente individual.
As implicações do pensamento arendtiano para a compreensão da liberdade são
esclarecidas no trabalho de Mariana de Mattos Rubiano (RUBIANO, 2011). Em sua
dissertação Liberdade em Hannah Arendt, a pesquisadora afirma:

A tradição, ao transpor a liberdade da esfera pública para a vida do espírito,


provocaria a contradição entre causalidade e conduta prática. Isto porque,
seguindo a filosofia kantiana, a causalidade constitui uma categoria da razão
pura que ordena todos os dados sensoriais. Para a cognição, tudo até as ações
humanas, seria explicado pela categoria da causalidade, nada existiria sem
uma causa. Nesse sentido, a cognição é a parte da mente responsável pelas
formulações científicas, e por isso ela seria inadequada, de acordo com
Arendt, para tratar as questões da liberdade. Ao relacionar ser livre com a
interioridade, o próprio pensamento pode dissolver o fenômeno da liberdade
ao explicar as ações por causas internas ou externas. O que Arendt quer dizer
é que a causalidade conflita com a ideia de homens livres, pois as ações
parecem ser sempre consequências de alguma vontade interna ou lei natural,
e não das escolhas debatidas publicamente (RUBIANO, 2011, p. 13)

As implicações do pensamento arendtiano, então, permitiram um novo olhar sobre o


plano da condição humana, pois “A raison d’être da política é a liberdade” (ARENDT, 2016,
p. 190). A liberdade arendtiana exige das pessoas relações de comunicação, o que é um
impasse ao conceito de liberdade interior de pensadores como Kant. “Portanto, a liberdade
existe entre pessoas e externamente ao espírito individual. Arendt pensa que liberdade aparece
no mundo quando os seres humanos atuam na presença de outros” (FRY, 2010, p. 91).
A liberdade para Hannah Arendt, portanto, implica uma prática. O que Pedro Vermelho
realiza, então? Acredito que há nuances nas afirmações de Arendt, próximas e distantes das
preocupações de nosso símio. Não vejo, por exemplo, a capacidade de uma isonomia entre os
pares no caso de nosso macaco. Pedro Vermelho é um símio de um mundo colonial. O

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personagem foi capturado para servir como objeto de entretenimento para a burguesia
europeia. Como já disse acima, Pedro Vermelho é encontrado na Costa do Ouro ficcional, por
meio de uma empresa de captura de animais.
Arrisco redizer que, assim como a leitura de Kafka do conto “Chacais e árabes” permite
uma leitura judaizante, ao tomarmos o conflito dos chacais (judeus) com os homens do
deserto (possíveis árabes), a leitura de “Um relatório para uma academia” pode vir a significar
uma leitura da condição da colonização da África – o que implica outras colocações sobre a
liberdade. Se a condição de homem escravizado está sob a pele de Pedro Vermelho, também
essa liberdade apresenta novos contornos, para além da condição de liberdade como
autonomia que nunca serviu ao homem colonizado pelo europeu e de um modo de fazer
política como liberdade descrito por Hannah Arendt. E sobre essas questões, cito, mais uma
vez, o pesquisador e professor Seligman-Silva:

Mas a teoria da grande cadeia dos seres permitia, por exemplo, aproximar os
negros dos animais, sobretudo dos macacos. Em Daniel Defoe, por exemplo,
vemos a descrição dos selvagens como marcada pela ambiguidade: eles
oscilariam entre os pólos da docilidade (Sexta-Feira) e da ferocidade (demais
membros da tribo de Sexta-Feira, que são canibais). Deste modo o autor
aproxima os “selvagens” dos animais, que são ora dóceis (ou seja,
domesticáveis), ora pertencentes a uma natureza descontrolada, externa à
civilização. Também o filósofo David Hume aproximava os negros dos
animais.*

Edward Long, no seu History of Jamaica foi um dos maiores formuladores


da animalidade dos negros, derivando desta tese a justificativa da escravidão.
Ele afirmava que negros na África tinham relações sexuais com símios.
Contra a concepção cristã da monogênese, ele propôs a poligênese, já que
para ele brancos e negros constituíam duas espécies distintas. Com Hume,
ele via os negros desprovidos de gênio, de ciência e de capacidade para o
progresso. Pensando na grande cadeia dos seres, ele aproxima os negros dos
primatas.* Buffon, antes dele, ao relacionar as diferentes raças aos climas e
sua influência, já adiantara ideias próximas às de Long. É importante
observar como estas teorias todas tinham um forte teor estético e
eurocêntrico: Buffon condena a “feiúra” dos tipos não-europeus e os
estigmatiza como sendo degenerados (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 214)

A utilização do animal kafkiano serviu para podermos observar a profundidade do ser


colonizado? Prefiro o lugar da “possibilidade” a uma afirmação categórica. E que há um
“Kafka pós-colonial”, interessado e, consequentemente, motivador de tais questionamentos da
cultura. Ainda que meu trabalho nunca tenha se voltado plenamente para essa questão, nunca
podemos negar os lugares a que a literatura pode nos levar. Desse modo, o que seria pensar
essa liberdade kafkiana com esses pontos levantados por Seligman-Silva? Pedro Vermelho

59
estaria a simbolizar, portanto, uma outra liberdade, que não é a liberdade “clássica”. Por isso,
a expressão “saída”, e, por isso, “um Kafka pós-colonial”, interessado em refazer os
binarismos de uma sociologia e filosofia, preocupado com “liberdade/escravidão”, “liberdade
interna/externa”. O relatório de Pedro Vermelho não é apenas um relatório sobre si, é um
documento de barbárie. Devemos, então, continuar perseguindo uma noção muito particular
de liberdade a ser rejeitada por nosso macaco-homem. Lemos, abaixo, mais uma definição:

LIBERDADE: 1. Libertas, liberum arbitrium; D. Freiheit, Willensfreiheit


nos sentidos. D, E, F. Liberty, freedom (em todos os sentidos); free will (nos
sentidos D, E, F.) F. Liberté; 1. Liberta; libero arbítrio.

Sentido primitivo: o homem “livre” é o homem que não é escravo ou


prisioneiro. A liberdade é o estado daquele que faz aquilo que quer e não
aquilo que outrem pretende que ele faça; é a ausência de constrangimento
alheio (LALANDE, 1993, p. 615)

Eis aqui um sentido importante de liberdade: a liberdade existe porque existe o homem
escravizado, ou prisioneiro. A liberdade não pode ser vista como um fim em si mesma, ou
seja, quando o vocábulo remete uma independência individual a uma autonomia do ser.
Tampouco se acredita na plena isonomia dos seres políticos para o exercício da liberdade na
política. Nosso macaco perece conhecer todos esses dilemas da liberdade, o que explica sua
rejeição de escapar da jaula por essa via. E, ainda assim, se procura seguir uma saída próxima
ao mundo dos homens livres, não deixa de, no seu lugar de macaco, observar criticamente a
liberdade como um ilusão: “Dito de passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem
entre si com a liberdade”.
No caso do clássico ensaio de Berlin (1969), encontramos dois conceitos que resumem
as acepções de liberdade no Ocidente, sendo elas “liberdade negativa” e “liberdade positiva”.
Por “liberdade negativa”, Berlin afirma ser esta a vida sem impedimento para o exercício da
liberdade individual ou coletiva.

Diz-se normalmente que alguém é livre na medida em que nenhum outro


homem ou nenhum grupo de homens interfere nas atividades desse alguém.
A liberdade política nesse sentido é simplesmente a área em que um homem
pode agir sem sofrer a obstrução de outros. Se sou impedido por outros de
fazer o que, de outro modo, poderia fazer, deixo de ser livre nessa medida; e
se essa área é limitada por outros homens além de um certo mínimo, podem
dizer que estou sendo coagido ou, provavelmente, escravizado (BERLIN,
1969).

A citação revela uma concepção antiga de liberdade: o ser livre é uma espécie de
“caminhar sem impeditivo”. A expressão não é gratuita, remonta a Hobbes em seu Leviatã.

60
Sou livre, na medida em que nada me aprisiona. Mas já em Hobbes víamos que tal noção era
acompanhada da regulação de tal liberdade pelo Estado, pois, para Thomas Hobbes, a
liberdade sem freios resultaria em desordem do corpo social, “luta de todos contra todos”.
Somente uma figura, a do Leviatã, poderia garantir a liberdade individual. Isso rendeu
profundas críticas às afirmações de Hobbes, ao ponto de dizer que suas teorias
fundamentavam um Estado absolutista e de controle dos indivíduos. Berlin, nesse sentido, não
promove um novo Leviatã, mas questiona que essa liberdade a ser controlada pelo Estado é
negociada. A liberdade é um conceito flutuante, e desassociada de um sistema político. Em
resumo, a liberdade negativa pode ser entendida com a pergunta “até que ponto sou
governado?”.
Já o conceito de “liberdade positiva” pode ser entendido no retorno ao texto de Berlin:
“O sentido ‘positivo’ da palavra ‘liberdade’ tem origem no desejo do indivíduo de ser seu
próprio amo e senhor. Quero que minha vida e minhas decisões dependam de mim e não de
forças externas de qualquer tipo” (BERLIN, 1981, p. 142). E aqui vemos a liberdade como
autonomia, já apontada anteriormente a partir das definições de dicionários seculares e
filosóficos e indiretamente apresentadas e criticadas pelas afirmações de Hannah Arendt.
É o significado mais usual de liberdade e é isso que faz com que Berlin ocupe um lugar
importante nos estudos sobre a liberdade. De um lado, a liberdade negativa, que são os limites
à própria liberdade. O Estado encarna esse impeditivo. Do outro, a liberdade positiva,
segundo a qual, pela luta individual, o homem se faz livre. O eu é plenamente realizado.
O que desejo dizer é que, de algum modo, o nosso Macaco se relaciona com tais
conceitos. Há uma dimensão de “liberdade negativa” e “liberdade positiva” aos moldes da
tradição literária filosófica em Kafka. Com seus textos, posso pensar toda a tradição do
pensamento, assim como “A verdade sobre o Sancho Pança” e “O silêncio das sereias”
buscam, cada texto ao seu modo, uma releitura de um mundo não mais existente – como o
mundo da cavalaria de Cervantes – e o mundo do mito – por meio da Odisseia de Homero.
Aqui, em “Um relatório para uma academia”, penso que a tradição filosófica é recuperada,
mas dela o nosso autor parte para um lugar da crítica, o que, por fim, comenta a própria noção
de modernidade, condição humana e projeto de cultura europeia. Sempre olhando para o estilo
kafkiano de “desloucar” os temas, penso, então, numa liberdade negativa kafkiana quem tem
por finalidade apontar a escolha de uma saída, não apenas da liberdade clássica.

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3.3. A liberdade em suspeita

Assim como Paul Valéry, que disse, em seu ensaio “Fluctuations I. Sur la liberté”
(VALÉRY, [S.d]), que o vocábulo “liberté” “c’est un de ces détestables mots qui ont plus de
valeur que de sens”, o símio de “Um relatório para um academia” nos mostra esse lado menos
iludido do termo “liberdade”. A liberdade seria uma dessas detestáveis palavras que
utilizamos para designar o que está no plano da eloquência e da ilusão. Suscita mais
perguntas, do que resposta. Também diz Valéry que é nesse “Mais rien de plus fécond que ce
qui permet aux esprits de se diviser et d’exploiter leurs différences, quand il n’y a point de
référence commune qui les oblige à s’accorder” que a definição de liberdade acontece. Ou
seja, é nessa pluralidade de referências para pensarmos a “liberdade” que a melhor definimos.
A liberdade, nos termos de Valéry, assim como nos de Kafka, parece-me uma profunda
impossibilidade. O homem que diz ser livre o diz baseado numa condição particular. Se
perguntado se faria diferente algumas da escolhas de sua vida, diria que sim – o que, por fim,
remete à pergunta: Estaria, então, preso a algum determinismo de modo que, naquela época,
tal ação não pudesse ser feita de outro modo? Pensar a liberdade, diz o poeta francês, é pensar
a relação de nossos impulsos e as restrições impostas a nós mesmos:

La liberté, sensation que recherche à sa guise chacun. L’un dans le vin ;


l’autre dans la révolte ; et tel dans une «philosophie» ; et tel dans une
amputation comme Origène. L’ascétisme, l’opium, le désert, le départ, seul
avec une voile, le divorce, le cloître, le suicide, la légion étrangère, les
mascarades, le mensonge…

Tantôt l’accroissement de notre pouvoir, tantôt la réduction de notre vouloir,


autant de procédés échappatoires qui se dessinent à l’esprit ; les uns par
action sur les choses et sur les êtres ; les autres par action sur soi.

Et quand on est vraiment le plus libre, c’est-à-dire quand le besoin et les


désirs sont en équilibre avec les pouvoirs, la sensation de liberté est nulle.
(VALÉRY, [S.d])

A liberdade é esse caminho de ambiguidade que achamos no vinho e, também, na


solidão. Sendo uma “sensation”, pode muito bem estar no terreno das ilusões. Isso não é de
todo mal; mas tal definição não deixa de influir na concepção geral de liberdade. Cada
indivíduo terá uma visão, um sentir, a respeito do termo “liberdade”, que despertará em cada
ser um sentimento particular. Soma-se, então, o que se sentiu em inúmeras épocas sobre o
desejo de liberdade, para compreendê-la. Seja no caso de Pedro Vermelho, que se vê livre ao

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incorporar as grades e conseguir reverter seu quadro, seja no do símio anterior, Pedro, que
morreu na captura: ambos estariam diante de liberdades muito particulares.
Vale a pena voltar a Camus, mas agora no que o pensador argelino francês nos disse em
seu Mito de Sísifo sobre a liberdade: “não tenho nada a ver com a liberdade metafísica. Não
me interessa saber se o homem é livre. Só posso experimentar minha própria liberdade”. O
autor de A peste diz isso para depois afirmar: “O problema da ‘liberdade em si’ não tem
sentido”. Isso porque Albert Camus considerava que a liberdade estava ligada a um ser divino
e que, no fim, essa perguntava implicava se o ser humano tinha ou não um amo e se essa
liberdade diante de Deus nos leva a ser culpados de todo o mal existente na terra: “ou não
somos livres e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis,
mas Deus não é todo-poderoso” (CAMUS, 2016, p. 63). Isso não interessa a Camus, mas sim
como esse homem no seio do Estado se coloca em liberdade de espírito e ação.
O homem comum (que se opõe ao “homem absurdo”) está ligado a uma vida que o
engana. Está ligado ao futuro, no amanhã e na aposentadoria. Age como se fosse livre: todas
as coisas dirigem sua via, menos ele mesmo. O convite de Camus e de Kafka: o do homem e
do personagem absurdo. A liberdade para esses dois autores não me parece ser uma escolha –
o que nos permite dizer que há um ensinamento nesta literatura (um ensinamento que não é
moralista): “Por mais que nos afastemos de todo preconceito, moral ou social, em parte
sempre os conservamos e até, no caso dos melhores [...] adaptamos nossa vida a eles. Assim o
homem absurdo compreende que não é realmente livre” (CAMUS, 2016, p. 63).
Não devemos comprar essa ideia camusiana de primeira mão. O próprio autor dirá que o
absurdo é “a razão da minha liberdade”. Logo, há liberdade, não nos termos do homem
comum, mas nos do homem absurdo. O homem absurdo, em resumo, é o dotado de plena
consciência de sua existência, de sua morte. É, portanto, o homem que sabe as “regras do
jogo”, porém insiste e persiste. O que empurrará a pedra eternamente para o alto da montanha,
como Sísifo.
Existe aí uma trabalho implícito de repetição. Na jaula, são as inúmeras repetições que
ocorrem diante de Pedro Vermelho para o processo de aprendizagem. Muitas garrafas de
aguardente abertas para, então, adquirir tal habilidade. Tais processos, diria Camus, são a
característica do homem absurdo. Kafka nos ofereceu um personagem que sabia da existência
da liberdade, mas não a desejava: parafraseando o autor, “existe liberdade infinita, mas não
para nós”. A palavra “esperança”, na frase original, e “liberdade”, em nosso contexto, evocam
para a realidade kafkiana um cena mais trágica. Em que sentido? Pelo seu ar de cotidiano. No

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trágico, o destino sempre se coloca de forma mais apurada no rosto do lógico e do natural,
dirá Camus. É na simplicidade do cotidiano que Édipo começa ver o desenrolar de sua trama,
a lógica de seu destino sobrenatural. O mesmo para Gregor Samsa, um caixeiro-viajante
qualquer; ou Josef K., um bancário entre muitos outros da firma.
Mas não percamos o nosso horizonte. A questão não é colocar Kafka na esteira do
pensamento sobre liberdade apenas – o que significaria me aproximar com uma lupa do texto
de Kafka, encontrando as definições dos dicionários, a leitura de Hannah Arendt e Isaiah
Berlin, Paul Valéry e Albert Camus. Nesse sentido, todos esses autores colaboram com uma
compreensão muito particular do que vem a ser liberdade e em muito elucidam o texto
kafkiano.
Liberdade, em resumo, pela tradição, é vista como uma realização individual ou
coletiva, impedida ou não por terceiros, sendo mais livre aquele que tem menos impeditivos
para sua realização individual. Parece que, sobre isso, estamos de acordo. E, se nos incomoda
o quanto essa realidade pode alimentar o individualismo contemporâneo, podemos pensar, em
termos arendtianos, que a liberdade, sendo “política”, estabelece-se de forma coletiva. Ou
seja, liberdade está no plano individual e no plano coletivo. Não se pode ser livre estando
distante da condição de quem, ao nosso lado, não está livre.
Meu questionamento reside ainda no fato de Pedro Vermelho ter dito não desejar a
ilusão dessa liberdade, mas sim uma saída. Ou seja, ele abre mão de todas as possíveis
nuances que podemos apresentar sobre o conceito liberdade. Liberdade enquanto política,
liberdade negativa, liberdade absurda. Ele suspeita de tal termo. E isso é o que talvez seja
perturbador em Kafka e no seu conto.

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4. METAMORFOSE DA SUBMISSÃO

O diálogo que pretendo travar neste capítulo diz respeito a um sentimento surgido a
partir da leitura do texto kafkiano. Como tento evidenciar ao longo de meu projeto de escrita,
preocupou-me pensar com Franz Kafka os processos de metamorfoses da liberdade.
Entretanto, tal afirmação poderia ser lida como uma tentativa de observar a liberdade em
Franz Kafka – o que não seria de todo incorreto. O que me ocorreu, porém, foi pensar que, se
a liberdade em Franz Kafka existe, ela estaria relacionada o desejo de ser livre em relação “a
quê”?
Assumi que há um processo, nos escritos de Franz Kafka, que passa por uma tentativa
de “furar” as instâncias de poder. Diante do pai, da família, de Deus e da burocracia, existem
mecanismos kafkianos para, de alguma forma, mostrar uma forma de oposição ao sistema das
leis, da burocracia e da família.
Algo me fez acreditar, muito pelo método de inversão kafkiano, que as submissões dos
personagens de Kafka não dizem respeito à vitória das instâncias superiores, mas, somadas ao
próprio método de inversão, são formas combativas que Franz Kafka oferece na sua narrativa,
escritos que colocam em evidências inúmeras fraturas na lei. Logo, a submissão deve ser lida
como uma forma de oposição, não como a vitória da família sobre o homem-inseto. Acredito
que há uma espécie de reviravolta interpretativa se assumirmos a submissão kafkiana como
forma de combate e não de anulação.
Isso ficou evidente para mim, pois diante do método de inversão kafkiana, como
conversamos no capítulo anterior, nada que se coloque em Kafka como compreensível em
uma primeira leitura será o que de fato se lê. Kafka também ressignifica o próprio conceito de
submissão. Preferiu, com seu próprio corpo, o chefe da ilha de “Na colônia penal” evidenciar
as falhas e a brutalidade dos sistemas punitivos. Reparem também que a primeira vez que
Gregor Samsa se vê livre de ser provedor da família é quando se metamorfoseia em inseto.
Bem como a liberdade do processo só se dá pela morte.
Não acredito que ocorra aqui um convite à resignação. Muito menos um louvor ao
sofrimento. Ainda que haja “esperança infinita, mas não para nós”. Se Kafka fosse tão
resignado como podemos incoerentemente assumir, não haveria escrita, mas apenas aceitação
diante do corpo do pai e da lei. As cinzas são um processo do que foi. Pior ainda seria, se não
houvesse nada para queimar. E isso não aconteceu.

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4.1. Gregor Samsa: um insubmisso

Quando eu penso em submissão, o personagem de Franz Kafka que me vem à mente é


Gregor Samsa. Se, em paralelo, pensarmos em Josef K., de O processo, há de se concordar
que ele se importa em ter sido caluniado em algum grau; de minimamente interessado, passa a
totalmente interessado (KAFKA, 2003). Já o K., de O Castelo, precisa de um telefone para
esclarecer quais são as suas atribuições na vila em que é hóspede, divide o trabalho para os
funcionários, caminha sempre em busca de chegar ao castelo, mesmo sem nunca chegar.
Porque, em sua cabeça, não existe a possibilidade de estar a trabalho e não cumprir com seu
dever (KAFKA, 2011). O condenado de “Na colônia penal” se movimenta frente à máquina,
dando sinais de recusa (KAFKA, 2011, p. 59). O homem que precisa de carvão em “O
cavaleiro do balde” sai da sua casa em busca de carvão na casa do carvoeiro, como se sua vida
dependesse disso. E, de fato, ela depende (KAFKA, 2011, p. 125). Mas, com Gregor Samsa,
creio ser diferente.
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou...” (KAFKA, 2011, p. 227) de “sonhos
intranquilos” viu seu corpo completamente metamorfoseado num inseto monstruoso. Não
sabemos sobre seu dia anterior: se era final de semana; se foi um dia exaustivo de trabalho a
ponto de justificar a perda da hora do próximo trem; ou se algo de surrealista aconteceu para
que o resultado, após uma noite de sono, fosse a mudança abrupta da forma de seu corpo.
O cobertor de Samsa passa a se tornar curto demais para cobrir toda sua nova existência
física e psicológica. Seu olhar matutino é dirigido para sua forma abdominal “abaulada,
marrom, dividida por nervuras arqueadas” (KAFKA, 2011, p. 227). O homem-inseto, Gregor
Samsa, esboça em seu pensamento uma indagação: “O que aconteceu comigo?”. E nós, que
poderíamos achar que estávamos em um conto de fadas, somos alertados: “Não era um
sonho” (KAFKA, 2011, p. 227).
Não sabemos o que é esse ser metamorfoseado. E diante dele nos assustamos. Uma
outra personagem talvez nos ajude a entender essa cena. G.H., após a sua metamorfose, conta-
nos da experiência sobre-humana que enfrentou: “É que por enquanto a metamorfose de mim
em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu
tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou. E agora o que sou? Sou: estar de pé diante
de um susto. Sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me
assusta, com os seus planetas e baratas” (LISPECTOR, 1999, p. 66).

66
Samsa não volta para nos dizer de suas percepções psicológicas sobre sua metamorfose,
como a personagem de Clarice Lispector. Entretanto, ambos passam por uma metamorfose
sem total sentido aparente. Nosso personagem, como G.H, perde tudo o que tinha, e o que
tinha era apenas sua vida de caixeiro viajante. Reduzido a nada, passa a ser objeto repudiado
pela família e pelos futuros hóspedes de sua casa.
Não era um sonho. E o narrador nos afirma isso a cada instante: “Seu quarto, um
autêntico quarto humano” (KAFKA, 2011, p. 227), não deixando dúvidas em relação ao
cenário em que a metamorfose aconteceu. Não nos vemos em um reino fabular. Gregor Samsa
é um trabalhador comum: “Sobre a mesa, na qual se espalhava, desempacotado, um
mostruário de tecidos – Samsa era caixeiro-viajante” (KAFKA, 2011, p. 227). Não sabemos
de forma nominal, mas, assim como G.H, parece que Gregor também perdeu uma terceira
perna (LISPECTOR, 1999, p. 10). A chuva do lado de fora “batendo no zinco do parapeito –
deixou-o inteiramente melancólico” (KAFKA, 2011, p. 227). Algo de fato se perdeu e não
sabemos o que é. Algo se fraturava ali, colocando Gregor Samsa numa condição nunca antes
vivida por ele, e na literatura: uma metamorfose “imetamorfoseável”. Seria essa a sua
condição até a morte.
Para Gregor Samsa, sua metamorfose é apenas “tolice”. Samsa pensa em voltar ao sono,
para talvez, assim, resolver todas as novas questões que se colocaram em sua vida numa
determinada manhã. Mas há uma tensão que não devemos jamais esquecer na leitura de A
metamorfose: a tensão estabelecida entre a voz de Samsa e a voz de seu narrador. Samsa
assume a possibilidade do sono como algo reparador da condição de homem-inseto.
Entretanto, o narrador afirma “isso era completamente irrealizável” (KAFKA, 2011, p. 228).
A forma física de Samsa lhe impossibilita os hábitos comuns do sono. Nada mais era como
antes.
É durante a nova condição de Gregor Samsa que descobrimos uma espécie de projeto
radical de liberdade, pensado antes do processo da metamorfose: “Se não me contivesse, por
causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe
e dito o que penso do fundo do coração” (KAFKA, 2011, p. 228-229). Curiosamente, o que
vemos nessas linhas é o homem-inseto revelando para nós o seu projeto de fuga do peso do
trabalho e da família. Essa afirmação, que está dita pela voz interna de Samsa, é para o
gerente da firma e os familiares de Samsa. É para o gerente da firma, que cobra o trabalho
excelente, e para a família, que cobra do filho sua sustentação. E conclui o inseto monstruoso:
“Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar dinheiro para lhe pagar

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a dívida dos meus pais – deve demorar ainda de cinco a seis anos – vou fazer isso sem falta”.
(KAFKA, 2011, p. 229).
Como bem sabemos, a família ocupa um lugar primordial nas narrativas de Franz
Kafka. São o pai, a irmã, a mãe e a empregada que se incomodam com o fato de Gregor ainda
estar na cama: “Gregor – chamaram; era a mãe. – É um quarto para as sete. Você não queria
partir?” (KAFKA, 2011, p. 230). “Gregor, Gregor – chamou. – O que está acontecendo?”.
Batia o pai na porta com punho. (KAFKA, 2011, p. 230). E a irmã lamuriando baixinho:
“Gregor? Você não está bem? Precisa de alguma coisa? [...] Gregor abra, eu suplico”
(KAFKA, 2011, p. 230). Em resposta, temos uma das passagem mais profundas d’A
metarmofose: o narrador se espanta com a própria voz de Gregor Samsa. Assim como nós,
que seguimos surpresos com a narrativa de Kafka a todo instante:

Que voz suave! Gregor se assustou quando ouviu sua própria voz responder,
era inconfundivelmente a voz antiga, mas nela se imiscuía, como se viesse
de baixo, uma pilar irreprimível, e doloroso, que só no primeiro momento
mantinha literal a clareza das palavras, para destruí-las de tal forma quando
acabavam de soar que a pessoa não sabia se havia escutado direito. Gregor
quisera responder em minúcia e explicar tudo, mas nestas circunstâncias se
limitou a dizer:

– Sim, sim, obrigado, mãe, já vou me levantar. (KAFKA, 2011, p. 230).

Estamos diante não apenas do deslocamento da linguagem que não abarca mais o novo
ser, mas a linguagem que não mais se subordina ao mundo. Começa aqui a ocorrer o processo
da incomunicabilidade entre Samsa e os seus. Diante da mãe, do pai, da irmã, da empregada e
do gerente da firma, e dos hóspedes, Samsa se verá gradualmente sem linguagem para
interagir no mundo dos humanos. Com isso, não há apenas esse processo de
desterritorialização, mas também não há o processo de autodefesa pela linguagem. Ou seja, o
logos não o ajudará mais.
O mais ferido nesse embate com o mundo é Gregor Samsa. Mas, agora sem a linguagem
dos homens ele não está mais subordinado aos modus operandi da vida humana. A condição
de novo homem, ainda que de homem-inseto, é a construção de um novo patamar de
existência. A vida “calma e sem perturbação, vestir-se e sobretudo tomar o café da manhã, e
só depois pensar no resto” (KAFKA, 2011, p. 231) já não era mais possível. Samsa nesse
momento “Não duvida nem um pouco de que a alteração da voz era outra coisa senão o
prenúncio de um resfriado, moléstia profissional do caixeiro-viajante” (KAFKA, 2011, p.

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231). E nós, seus leitores, já sabemos que o caixeiro não tinha mais o controle sobre si
mesmo. Suas reflexões não iriam levá-lo para parte alguma.
Assim como foi visto em Pedro Vermelho, a experiência de uma nova condição
existencial é feita pela experiência da dor. Dor é a experiência recorrente enfrentada por
Samsa nos primeiros passos fora da cama. E vale a pena resgatar três passagens, logo no
início da narrativa, que revelam essa nova condição:

se atirou para a frente, bateu com violência nos pés da cama, pois tinha
escolhido a direção errada; a dor ardida que sentiu ensinou-lhe que
justamente a parte inferior do seu corpo era no momento, talvez, a mais
sensível de todas (KAFKA, 2011, p. 232).

Gregor se atirou com toda a força para fora da cama. Houve uma pancada
alta, mas não propriamente um estrondo. A queda foi um pouco atenuada
pelo tapete, mas as costas também eram mais elásticas do que Gregor havia
pensado – daí o som surdo que não chamava tanto a atenção. Ele só tinha
sustentado a cabeça com cuidado suficiente e por isso havia batido com ela;
de raiva e dor, virou-a e esfregou-a no tapete (KAFKA, 2011, p. 235).

Se pudesse apenas girar o corpo, logo estaria no seu quarto, mas temia tornar
o pai impaciente com essa operação que demandava tempo – e a todo
instante a bengala na mão dele o ameaçava com um golpe mortal nas costas
ou na cabeça. Mas no fim não restou a Gregor outra coisa senão isso, pois
ele notou com horror que, andando para trás, não sabia nem mesmo manter a
direção [...] Mas quando enfim estava com a cabeça diante da abertura da
porta, feliz, verificou que seu corpo era demasiado largo para passar sem
mais por ela. Ao pai, naturalmente, na sua condição atual, não ocorreu nem
mesmo remotamente abrir outra folha da porta, para oferecer a Gregor
passagem suficiente. Sua ideia fixa era que Gregor voltasse o mais rápido
possível para o quarto. [...] Em vez disso, impelia agora Gregor com um
ruído excepcional, como se não existisse nenhum obstáculo; a voz atrás dele
já não soava como a de um pai apenas; realmente já não era uma brincadeira
e Gregor forçou – acontecesse o que quisesse – a entrada pela porta. Um
lado do seu corpo se ergueu, permaneceu torto na abertura da porta, um dos
seus flancos se esfolou inteiro, na porta branca ficaram manchas feias, ele
logo se entalou e não poderia mais mover-se sozinho – as perninhas de um
lado pendiam trêmulas no ar, as do outro comprimiam-se doloridas no chão
– quanto o pai desferiu, por trás, um golpe agora de fato possante e liberador
e ele voou, sangrando violentamente, bem para dentro do seu quarto.
(KAFKA, 2011, p. 246-247)

Tudo isso que presenciamos na vida do jovem Gregor Samsa é vivido com maior
intensidade no primeiro capítulo d’A metamorfose. A apresentação de uma nova condição
surge na vida de um caixeiro-viajante. Seu quarto será o único lugar da possibilidade de
aceitação do seu novo estado. Um quarto que se soma aos outros quartos kafkianos, que em
Franz Kafka são o epicentro do desenvolvimento de toda uma narrativa. E poderia,
novamente, citar outras obras além da própria A metamorfose, como, por exemplo: n’O

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Processo de Josef K.; os quartos de O desaparecido ou Amérika; o quarto de “O veredicto”. É
nesse espaço da intimidade que a monstruosidade do inseto surge, que os embates acontecem.
E os olhares aparecem sobre os personagens Gregor, Josef K., K., o sobrinho e o filho.
Desenha-se já aqui um dos pontos importantes da metamorfose de Samsa: os olhares
que se cruzam e se evitam. A fuga do olhar do pai. O pai como a instância ameaçadora.
Diante do pai kafkiano (assim como diante da lei), não há afeto como meio de interlocução.
Walter Benjamin dirá em “Franz Kafka. A propósito do décimos aniversário de sua morte”
(BENJAMIN, 1987, p. 137) que os pais e os burocratas em Kafka são as mesmas pessoas.
Não sei se em todo caso isso ocorreria, haja vista que, no caso do gerente da firma, diz o
narrador: “O gerente precisava ser retido, tranquilizado, persuadido e finalmente conquistado;
dependia disso o futuro de Gregor e de sua família” (KAFKA, 2011, p. 244). Há uma
sensibilidade e um trato especial com essa instância de poder. O mesmo com a mãe: “Mamãe!
Mamãe! – Disse Gregor baixinho e olhou para cima”. Mas com o pai não. Talvez porque ao
pai se deu uma outra metamorfose: “Implacável, o pai o pressionava, emitindo silvos como
um selvagem” (KAFKA, 2011, p. 245). Com o pai, a relação é diferenciada, sendo a instância
paterna a afirmar a condição desse corpo metamorfoseado.
Com seu novo corpo, surge o aprendizado e uma nova vivência. A primeira vez que
Gregor Samsa usa seu corpo era para abrir a porta de seu quarto: “E imaginando que todos
acompanhavam ansiosos os seus esforços, mordeu a chave como um louco, com as forças que
ainda podia reunir. [...] agora mantinha-se em pé só com o auxílio da boca” (KAFKA, 2011,
p. 240). É uma nova forma de se integrar ao mundo dos homens. Momentos antes em diálogo
entre mãe, pai, filha, empregada e gerente, viu-se a necessidade de um médico e um
serralheiro. O médico e o serralheiro era a antiga forma de entrar no mundo dos homens:
“Sentiu-se novamente incluído no círculo dos homens e passou a esperar do médico e do
serralheiro” (KAFKA, 2011, p. 239-240). Essa segunda opção nunca ocorreu, foi apenas
“sentimentos”. Um médico e um serralheiro nunca foram chamados.
Todos tinham a convicção de que “Gregor estava garantido pelo resto da vida nessa
firma” (KAFKA, 2011, p. 243) e Samsa era um exímio trabalhador e focado em sua missão de
ajudar a família: “Tenho por outro lado de cuidar dos meus pais, e da minha irmã. Estou num
aperto, mas sairei dele trabalhando” (KAFKA, 2011, p. 242). Mas, agora, a metamorfose de
Gregor Samsa o levou a uma nova condição, que é a condição de “Odradek” (KAFKA, 1999,
p. 43): uma forma que ninguém sabe o que é e que instaura na cena um total mal-estar. Samsa
habita, agora, um lugar de objeto e ser asqueroso. Ninguém da casa deseja olhar para ele.

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Porém, preciso dizer que, de certo modo, a metamorfose veio na hora certa. A metamorfose
foi capaz de fazê-lo livre da relação entre família-trabalho.
Logo no início da narrativa, o chefe diz para Gregor Samsa: “Nos últimos tempos seu
rendimento tem sido muito insatisfatório; de fato não é época de fazer negócios excepcionais,
isso nós reconhecemos; mas época de fazer negócio algum, não existe, senhor Samsa, não
pode existir”. (KAFKA, 2011, p. 237). Um pouco mais consciente de sua condição, Gregor
Samsa pensou que seu estado poderia gerar empatia no primeiro olhar que incidiu sobre seu
corpo, o do seu chefe. Novamente, a busca afetiva para a compreensão da realidade: “Se ele
se assustasse, então Gregor não tinha mais nenhuma responsabilidade e podia sossegar”
(KAFKA, 2011, p. 238): ou seja, quem sabe se a metamorfose pode ser convertida em
argumento positivo e autoexplicativo – até mesmo para atestar o quanto o rendimento no
trabalho pode ser questionado.
É no decorrer da metamorfose que seu corpo “abaulado” passa a ter um mínimo de
sentido e a ser valorizado: “Tateando desajeitadamente com as antenas que só agora aprendia
a valorizar, se desloca até a porta para ver o que havia acontecido” (KAFKA, 2011, p. 248).
Samsa está no seu quarto e acorda por um possível movimento próximo à porta. O narrador
kafkiano, ao falar dessa nova condição de inseto monstruoso, e já ferido pelo pai, assim como
as portas, também deve olhar para as cicatrizes em Kafka. Gregor Samsa carrega em seu novo
corpo inúmeras cicatrizes – reforça-se a aproximação com a cicatriz de Ulisses comentada no
primeiro capítulo deste trabalho.
Identifica-se a fome de Gregor Samsa, a rejeição às coisas delicadas como o leite
preferido. A mudança alimentar para um gosto pelo repulsivo. E, fora do ambiente do seu
quarto, uma nova ordem é estabelecida: “Bem, talvez essa leitura, sobre a qual a irmã sempre
falava e escrevia, tivesse caído em desuso nos últimos tempos” (KAFKA, 2011, p. 249). A
metamorfose é o ponto que permitiu aos olhos de insetos de Samsa uma análise de seu
ambiente familiar que antes não fora visto, bem como a mudança de seu paladar pelo
civilizado:

– Que vida tranquila a família levava! – Disse Gregor a si mesmo e sentiu,


enquanto fitava o escuro diante dele, um grande orgulho por ter podido
proporcionar aos seus pais e à sua irmã uma vida assim, num apartamento
tão bonito. Mas como seria agora, se todo o sossego, todo o bem-estar, toda
a satisfação chegasse assustadoramente ao fim? Para não se perder nesses
pensamentos, Gregor preferiu pôr-se em movimento, rastejando de cá para lá
no quarto. (249)

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A preocupação nasce a partir desse possível desiquilíbrio que sua nova condição de vida
traz à família. Samsa não sabe como será a situação de seus pais e irmã após atingir uma
mínima consciência sobre sua incapacidade de colaborar com sua família. O corpo de Gregor
Samsa proporcionou momentos de possível fartura, “num apartamento tão bonito”, e agora a
proposta desse novo corpo é o silêncio familiar.
Em seu quarto, “pois afinal era o quarto habitado há cinco anos por ele” (KAFKA,
2011, p. 250); o quarto de Gregor Samsa; o quarto de Josef K.; o quarto de Karl Rossmann (e
nesse caso são mais de um quarto: o do navio, o do casa do tio, o do hotel); o quarto do pai do
veredicto; o quarto do agrimensor K; e os inúmeros quartos paralelos, os vizinhos, o do
pintor... Observo tais imagens, pois esse universo dos quartos, que é, também, o universo das
portas, me parece ser o ponto central da narrativa e para onde um determinado fluxo narrativo
passa a se destinar. Gregor sai dele para o trabalho. Para o sustento da casa. Para o sustento
dos pais. E depois, tudo se inverte. A paisagem vista pela sua janela parece atravessar o vidro
e esmagá-lo, causando em nosso personagem um sentimento “melancólico”. As portas,
quando se abrem, fazem-no despertar do sono, do momento de tranquilidade e repouso, e
significam a invasão de seu espaço e exposição de sua nova condição. Gregor Samsa passa a
ser o doente da família, ou pelo menos, o cuidado recebido era como se assim o fosse, ainda
que o médico nunca tenha sido chamado pela família. E o tratamento de Grete Samsa era
como seu irmão fosse um doente: “abriu-a de novo imediatamente e entrou na ponta dos pés,
como se fosse o quarto de um doente grave ou mesmo de um estranho” (KAFKA, 2011, p.
251).
A irmã é essa imagem de sensibilidade e de adaptabilidade. Como se, em um certo
sentido, fosse ela, irmã, mulher, a compreender – ou, pelo menos, tentar compreender – a
nova situação do irmão. A chegada da irmã é o momento em que “os seus ferimentos deviam
estar completamente curados”. Dessa cena, desponta uma pergunta do inseto-homem: “Será
que agora eu tenho menos sensibilidade?”. (KAFKA, 2011, p. 252).
Nesse momento, depreendemos também a descoberta de uma nova gramática,
compreendida minimamente pela irmã: “Hoje, sim, ele gostou”. Como se o seu novo idioma,
muito mais gestual, tivesse aquela mulher como intérprete. Era um gesto de sensibilidade por
parte da irmã, ainda que a família de modo geral pensasse “que ele não podia entender os
outros” (KAFKA, 2011, p. 253):

Muitas vezes a irmã perguntava ao pai se ele queria cerveja, oferecendo-se


cordialmente a ir buscá-la e ela mesma e, quando o pai silenciava, dizia, para

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desfazer qualquer escrúpulo da parte dele, que podia também mandar a
zeladora do prédio buscar; mas então o pai dizia finalmente um grande “não”
e não se falava mais nisso (KAFKA, 2011, p. 254).

Como a questão financeira é um dos pontos centrais da narrativa, coube à família se


reestruturar. O pai convoca a família (mãe e filha) para a exposição das finanças familiares. É
quando descobrimos que o lugar do filho era de fato um papel economicamente importante
para a família Samsa, pois, “cinco anos antes”, tinha resgatado sua família da falência. Tempo
este em que Gregor Samsa viveu no seu quarto antes da metamorfose. Durante os cincos anos,
Samsa foi o filho provedor do pai, mãe e irmã e de todos os benefícios familiares: “A
preocupação de Gregor na época tinha sido apenas fazer tudo para a família esquecer o mais
rápido possível a desgraça comercial, que havia levado todos a um estado de completa
desesperança” (KAFKA, 2011, p. 254-255). Deve-se acentuar aqui o trecho final: Gregor
Samsa foi tido como a esperança de sua família. Dessa ordem financeira que corrompe a
instituição familiar, novamente é a irmã de Gregor que destoa e passa a importar-se menos
com a questão financeira.
Além da inversão e da própria submissão como gesto de liberdade, diria que as
mulheres em Kafka são essa forma de questionar a instância paterna-burocrática. A música
que vem da irmã vem como memória que o Gregor-Inseto recorda, ouvindo na porta os sons
vindos da casa. Ele pode ter perdido a potencialidade da fala, de uma fala humana, mas é a
irmã que o permite o afeto familiar por meio do violino. É claro que não basta ser mulher.
Porém, há uma relação “de uma certa possibilidade”, para além da opressão das instâncias de
poder, que as mulheres permitem a Gregor Samsa. As mulheres também fazem Gregor Samsa
sofrer, haja vista o deparar-se com sua mãe. E ainda o cuidado de sua irmã também o faz
sofrer. Mas não é o sofrimento do dilaceramento do corpo, como o ocasionado pelo pai, pelo
fechar da porta sobre Gregor.
Retorno a um ponto que considero importante. O narrador de A metamorfose nos diz:
“Na verdade poderia ter pago, com essa sobra de dinheiro, mais uma parte da dívida do pai ao
chefe, e com isso estaria muito mais próximo o dia em que poderia ser livre do emprego; mas
agora era indubitavelmente melhor assim do modo como o pai havia arranjado as coisas”.
(KAFKA, 2011, p. 256). Não creio que o projeto de liberdade de Samsa foi de todo
abandonado. Ele também se subverteu. Cabe a nós, leitores, a possibilidade desse encontro e
desse caminho reescrito por Franz Kafka. Ser livre do emprego resultaria no fim da obrigação
com o pai da família.

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Talvez a situação de Samsa seja uma situação de sacrifício de si mesmo para pagamento
da dívida do pai, o que, por consequência, é a conquista da sua própria liberdade. Gregor
Samsa não é um filho benevolente diante da fragilidade de um pai: “Ora, o pai era na verdade
um homem saudável”. (KAFKA, 2011, p. 256). Portanto, há aqui um outro projeto,
absurdamente novo, de redenção. Não o trabalho, mas a metamorfose é a forma com que
Gregor Samsa se liberta.
Chega-se ao ponto em que a janela do quarto de Gregor Samsa, que o inundava de
melancolia, é agora tomada como fruto de sua liberdade, acentuando na narrativa toda uma
preocupação com o olhar. Olham para Samsa o pai, a mãe, a irmã, o gerente da firma... E o
olhar de Gregor Samsa para um horizonte cada vez mais distante, por se tornar cada vez mais
cego ao longo de sua metamorfose: “Pois efetivamente ele enxergava dia a dia com menos
acuidade” (KAFKA, 2011, p. 257). Não mais o mundo calmo, urbano, da rua Charlotte,
muito menos o hospital que tanto amaldiçoava. Agora era apenas “um deserto, no qual o céu
cinzento e a terra cinzenta se uniam sem se distinguirem um do outro” (KAFKA, 2011, p.
257).
Essa espécie de dicotomia dentro e fora é de extrema importância na narrativa kafkiana.
Esse trecho de A metamorfose fez-me lembrar do que acontece com Karl Rosmman quando
chega à América. O dilema de sair do navio na chegada a Nova Iorque. O sair da casa do tio e
encarar a rua de noite. Como funcionário do hotel, sai do prédio para a rua e quase morre
atropelado. São elementos que despontam, em Franz Kafka, de um sentimento do “dentro = a
segurança” e do “fora = a liberdade perigosa” – a própria aniquilação.
Passado um mês de sua metamorfose, o que podemos constatar é que, nesses possíveis
trinta dias, o olhar de sua família para seu corpo abaulado enfrentou a estranha e
desconfortável imagem desse inseto: “Gregor reconheceu [após a visita repentina de sua irmã]
que a visão dele continuava sendo insuportável para ela”. (KAFKA, 2011, p. 258). Mas, até
esse ponto da história, a mãe de Gregor Samsa não o tinha visto o filho: “Deixem-me ver
Gregor, ele é o meu filho infeliz! Vocês não entendem que eu preciso vê-lo?” (KAFKA, 2011,
p. 259). E será apenas nas páginas seguintes que a mãe de Gregor Samsa o verá pela primeira
vez depois da metamorfose completa.
É nesse ínterim que temos, também, uma das mais interessantes passagens dessa novela:
a mãe e a filha unidas na tentativa de proporcionar a Samsa uma melhor qualidade de vida. A
irmã tenta retirar do quarto aquilo que poderia atrapalhar o locomover de Samsa,
principalmente porque o inseto-Gregor “adotou o hábito de ziguezaguear pelas paredes e pelo

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teto” (KAFKA, 2011, p. 260). Apresentando-se “diante dos pais, nas conversas sobre as
questões de Gregor, como perita”, Grete se opõe à voz da mãe que pensa ser uma falta de
consideração a Samsa mover os seus móveis do lugar: “Não é como se nós mostrássemos,
retirando os móveis, que renunciamos a qualquer esperança de melhora e o abandonamos à
própria sorte, sem nenhuma consideração? Creio que melhor seria tentarmos conservar o
quarto exatamente no mesmo estado” (KAFKA, 2011, p. 261).
Aonde está Samsa após o longo trabalho e conversa das duas mulheres de sua vida, a
mãe e a irmã? Escondido debaixo do canapé, ouvindo tudo apenas por sussurro, e,
aproveitando a retiradas das duas, ele se move até o quadro na parede, dizendo, com isso, à
mãe e à irmã não apenas de sua afetividade pela imagem no quadro, “a imagem pendurada da
dama toda vestida de peles” (KAFKA, 2011, p. 264), mas também da humanidade que lhe
restava.
O encontro acontece nesses passos em que Gregor Samsa sai debaixo do canapé para
salvar a imagem de uma terceira mulher e intencionalmente se mantém sobre o quadro para
argumentar com seu próprio corpo – não pela fala – o desejo de ficar com imagem: “Ele
torceu a cabeça em direção à porta da sala de estar para observar o retorno das mulheres”
(KAFKA, 2011, p. 264). Aqui, ao meu ver, assim como em toda narrativa, funda-se uma nova
política do olhar:

Então, os olhares dela cruzaram-se como os de Gregor na parede. Sem


dúvida só por causa da presença da mãe ela manteve a compostura;
inclinando o rosto para a mãe a fim de evitar que esta olhasse ao seu redor e
disse – seja como for, trêmula e sem refletir:

– Venha, é melhor voltarmos um instante para a sala de estar.

Para Gregor a intenção de Grete era clara, ela queria pôr a mãe a salvo e
depois enxotá-lo parede abaixo. Bem, ela que tentasse! Ele estava sentado
em cima da sua imagem e não ia entrega-la. Preferia antes saltar no rosto de
Grete.

Mas as palavras de Grete haviam na verdade intranquilizado a mãe; ela deu


um passo de lado, divisou a gigantesca mancha marrom no papel de parede
florido e, antes que realmente chegasse à sua consciência que o que ela via
era Gregor, exclamou com voz esganiçada e áspera:

– Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!

Como se desistisse de tudo, ela caiu de braços abertos sobre o canapé e não
se moveu (KAFKA, 2011, p. 264-265).

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Se, antes, Samsa tinha ficado debaixo do canapé coberto por um lençol, escondendo sua
nova condição, enquanto sua mãe e irmã trabalhavam em seu quarto, agora seu corpo é
colocado completamente em evidência. Disse “política do olhar”, presumindo que a família
de Samsa, como prática de sua autossobrevivência, após a repentina metamorfose, assume
uma espécie de cegueira moral diante do caso Gregor-Samsa-Inseto. O relacionamento
acontece desde que Samsa não seja visto, pois ver o antigo caixeiro viajante nessa condição
provoca na família rejeição e indiferença – até mesmo para Grete, que mesmo depois de um
mês, como dissemos acima, ainda não se acostumou com a aparência do irmão.
Gregor existe na casa, desde que trancafiado em seu quarto, distante da vista de todos.
Por ser raiz, tronco, caule, sustentáculo dessa pesada família, sua nova situação gera em todos
uma profunda vergonha e desiquilíbrio emocional. “Política do olhar” porque Gregor Samsa,
o ser não visto no quarto, desperta em seus familiares a repulsa. E, com isso, pai, mãe e irmã,
principalmente, revelam a condição indiferente – e, de certa forma, insensível – diante do
novo Gregor Samsa:

– Você, Gregor! – bradou a irmã com o punho erguido e olhos penetrantes.

Eram as primeiras palavras que endereçava diretamente a ele desde a


metamorfose. Correu ao quarto vizinho para pegar alguma essência com que
pudesse despertar a mãe do desmaio; Gregor queria também ajudar – para
salvar o quadro ainda que havia tempo –, mas estava firmemente colado ao
vidro e precisava se soltar à força; depois correu também para o quarto
vizinho, como se pudesse, à maneira de antigamente, dar algum conselho à
irmã; mas teve de ficar bem atrás dela sem fazer nada; enquanto?
Curiosamente deve se relatar o ferimento à Gregor causado pela irmã, “uma
garrafa caiu no chão e se quebrou, um estilhaço feriu Gregor na cara, algum
rémedio corrosivo escorreu por ele” (KAFKA, 2011, p. 256).

Posso dizer que essa passagem é uma passagem das mais emblemáticas da narrativa,
não por si só, mas naquilo a que ela se opõe e ajuda a construir. Gregor é mais uma vez
ferido; agora, por uma das mulheres que muito o ajudou. Ela também o pode ferir. Entretanto,
o ferir de Grete não é intencional, mas acidental. Sua indignação e violência se manifestaram
pela linguagem verbal, ao se dirigir a Gregor Samsa após fazer sua mãe desmaiar. “– Você,
Gregor! – bradou a irmã com o punho erguido e olhos penetrantes”. [Olhos penetrantes sobre
o homem inseto. Punhos erguidos]. Nada, porém, se compara à instância paterna que incide
todo seu peso e poder sobre Gregor. Temos o momento em que o pai, ao chegar em casa e
saber do que estava ocorrendo pelo relato da filha, decide, então, punir Samsa.

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– O que aconteceu? – foram suas primeiras palavras; a aparência de Grete
sem dúvida havia denunciado tudo.
Grete respondeu com voz abafada, obviamente comprimia o rosto no peito
do pai.
– A mãe desmaiou, mas agora já está melhor. Gregor escapou.
– Eu já esperava – disse o pai. Eu sempre disse isso a vocês, mas vocês
mulheres não quiseram ouvir. (KAFKA, 2011, p. 266)

No seu lugar de pai, temos apenas uma má interpretação de todo o ocorrido. Gregor
Samsa é considerado culpado “de algum ato de violência” (KAFKA, 2011, p. 266). Samsa,
sabendo do poder do pai, decide, então, aplacar sua ira com seu próprio corpo. O inseto
permanece firme diante da porta, como sinal de que só bastaria ao pai abri-la para que tudo se
resolvesse e o filho voltasse para sua “toca”. Entretanto, “o pai não estava num estado de
ânimo para notar sua [de Gregor Samsa] sutileza” (KAFKA, 2011, p. 266).
O pai não é só humanamente maior do que Samsa, mas gigantescamente maior. A
representação paterna kafkiana, bem como o universo da lei, sempre se organiza por meio de
uma geografia própria em Franz Kafka. Lembro do pai de “O veredicto”, que oprime o corpo
de Georg para o canto do quarto. Até Bruneida, uma das mulheres excepcionais de Kafka (que
acredito destoar do perfil de mulher e liberdade) é imensa. Nesse caso, essa mulher encarna a
tirania e o poder. Ainda que a metamorfose de Gregor implique também numa dimensão
física nova, acredito que o pai como instância de poder está para além do limite físico
humano. Todavia, é nesse lugar novo de homem inseto que Gregor Samsa consegue ver a real
dimensão do pai. O narrador, que no caso de Kafka não é onisciente, nos pergunta: “era
aquele ainda o seu pai?” (KAFKA, 2011, p. 267). E aí temos as informações do pai, obtidas
por Samsa desde o primeiro dia de sua nova vida – ou seja, a metamorfose permitiu a Samsa
um olhar livre:

Gregor ficou espantado com o tamanho gigantesco das solas das suas botas.
Mas não ficou nisso, já sabia desde o primeiro dia da sua nova vida que,
diante dele, o pai só considerava adequada a severidade extrema. E assim
correu na frente do pai, parando quando ele se detinha e se apressando de
novo apenas o pai se movia. Dera assim várias voltas pelo quarto sem que
nada de decisivo acontecesse (KAFKA, 2011, p. 268).

Os tamanhos aqui tomam uma medida um tanto proporcional. À medida que o pai se
aproxima, Samsa diminui (o mesmo acontece com Georg de “O veredicto”). Ainda que sua
condição física fosse já menor, desde o início da narrativa, agora ela contrasta com o imenso
continente que é o pai. O pai é uma espécie de edifício do qual Samsa, em sua condição nova,
só enxerga a fundação, as botas. Ressalto novamente que é no lugar de inseto que Gregor

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Samsa consegue observar “a severidade do pai”. Antes, na condição plena de homem, o que
se via era a necessidade familiar. A busca do sustento do pai, da mãe e da irmã. Essa é a
minha leitura: a metamorfose instaura na vida de Samsa outras competências que a vida, com
sua racionalidade, seu cartão de ponto, seu horário de trabalho, não permite ver. O grande
alienado era o Gregor Samsa homem.
Nesse sentido, afasto-me das noções de que os personagens de Franz Kafka são
amostras do massacre do sistema opressor (seja pela figura do pai, da burocracia, da lei) para
uma possibilidade de redenção sem salvador. Gregor Samsa nos diz: “Ainda é necessário um
pouco mais de esperança”. Devo insistir. Devo sair da cama. Evidentemente, poderíamos ser
questionados do fato de Samsa nos falar isso ainda como sujeito desconhecedor de sua
realidade de inseto. Talvez isso fosse verdade, se, já avançada a narrativa, em seu segundo
capítulo, Samsa não voltasse novamente a esse projeto de se ver livre da opressão do trabalho
e da família.
O pai, agora um trabalhador, “ereto, vestido com um uniforme azul justo, de botões
dourados, como usam os contínuos de instituições bancárias” (KAFKA, 2011, p. 267), é a
encarnação da própria tirania, ao afirmar com seu corpo para Gregor Samsa que sua dívida
com a família não era apenas financeira. Segue aqui outra das cenas mais dolorosas da
narrativa:

Enquanto cambaleava de cá para lá, quase não mantinha os olhos abertos, a


fim de reunir todas as forças para a corrida; no seu torpor não pensava em
outra maneira de se salvar se não correndo; e tinha quase esquecido que as
paredes estavam à sua disposição, embora aqui elas permanecessem
obstruídas por móveis cuidadosamente talhados, cheios de recortes e pontas
– quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu
lado e rolou diante dele. Era uma maçã; a segunda passou voando logo em
seguida por ele; Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era
inútil, pois o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê
ele havia enchido os bolsos de maças e, por enquanto sem mirar direito, as
atirava uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que
eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força
raspou as costas de Gregor mas escorregou sem causar danos. Uma que logo
se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele; Gregor quis
continuar se arrastando, como se a dor surpreendente e inacreditável pudesse
passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado
no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos
(KAFKA, 2011, p. 268).

A mãe de Gregor é a última visão do filho combalido pelos ataques do pai: “o último
olhar ainda viu a porta do seu quarto ser escancarada e a mãe se precipitar de combinação”
(KAFKA, 2011, p. 268). Já a irmã argumenta com seu corpo “abraçando-o, em completa

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união com ele [o Pai]” a possibilidade de manter Gregor vivo. A ferida de Samsa é a ferida
que expõe a instituição familiar, “era um membro da família, não podia ser tratado como um
inimigo, mas diante do qual mandamento do dever familiar impunha engolir a repugnância e
suportar, suportar e nada mais” (KAFKA, 2011, p. 270). Após a ferida causada pela maçã
jogada pelo pai, a porta é aberta e, assim, Gregor Samsa consegue observar a família, “de uma
maneira totalmente diversa da anterior” (KAFKA, 2011, p. 270).
A estrutura econômica da família mudou profundamente. É na chegada do trabalho que
o pai de Gregor Samsa o fere com as maçãs. É agora, com seu corpo combalido, que Samsa
vê a mãe e a irmã cansadas também de tanto trabalhar. A irmã passou a ser vendedora. E a
mãe costureira. O pai é também a figura da lei e vive “como se estivesse sempre pronto para o
serviço e aguardasse também aqui a voz do superior” (KAFKA, 2011, p. 271). Apesar de seu
uniforme cada vez menos asseado, o pai ainda era a figura do poder. Devemos dizer também
que o pai se sentava como numa espécie de trono e nele se afundava. Apesar de ser a instância
poderosa, Kafka sempre colocou tal instância em ruínas.

Quem nessa família sobrecarregada e exausta tinha tempo para se ocupar de


Gregor mais que o absolutamente necessário? A economia doméstica tornou-
se cada vez mais restrita; a empregada foi afinal despedida; uma faxineira
imensa, ossuda, de cabelo branco esvoaçando em volta da cabeça, vinha de
manhã e à noitinha para fazer o trabalho mais pesado; a mãe cuidava do
resto, além de toda costura. Aconteceu até que diversas joias da família, que
a mãe e a irmã antes tinham usado com o maior dos júbilos em festas e
solenidades, foram vendidas, como Gregor ficou sabendo uma noite ao ouvir
a discussão geral sobre preços alcançados. [...] o pai ia buscar o café da
manhã para os pequenos funcionários do banco, a mãe se sacrificava pelas
roupas de baixo de pessoas estranhas, a irmã corria de lá para cá atrás do
balcão ao comando dos fregueses, mas as energias da família não iam mais
longe que isso (KAFKA, 2011, p. 272-273).

Nesse momento de novos arranjos econômicos, vemos como Samsa passa a ser tratado.
Se não é mais a sustentação familiar, torna-se o rejeitado da família, o empecilho ao sustento
de todos na casa. Isso porque, se o apartamento, com todo seu espaço – “grande demais para
as atuais necessidades” (KAFKA, 2011, p. 271) –, deve ser abandonado, é o corpo de Samsa
que impede a mudança. Como retirar o inseto do quarto? Para Samsa, tudo se resolveria com
uma caixa com buracos para ele respirar. Já para a família, seria o confronto com a “total falta
de esperança e o pensamento de que tinha sido atingida por uma desgraça como mais ninguém
em todo círculo de parentes e conhecidos” (KAFKA, 2011, p. 273).
Como bem sabemos, nada pode ajudar Gregor Samsa em sua terrível condição.
Curiosamente, é nos últimos momentos de sua vida que Samsa se vê diante de suas memórias.

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Primeiramente, lembra do chefe e do gerente, passando a funcionários de níveis inferiores
como a arrumadeira (única memória agradável, porém passageira) e uma caixa de uma loja de
chapéus.
O drama familiar se rompe diante da porta aberta de Gregor. Nós, que sabemos das
polifonias das portas na narrativa de Franz Kafka, devemos imaginar que, diante da porta da
lei, do quarto, do pintor, das portas do hotel, das portas do navio, esconde-se a estrutura por
vezes perversa do sistema de poder. No caso d’A metamorfose, a porta aberta mostra a fratura
da estrutura familiar que trata o filho como simples coisa. Não temos, então, a relação filho-
cuidado, mais filho-coisa monstruosa – portanto, desprezível. Samsa não é mais capaz de
sustentar a família, ponto não apenas constatado pelo leitor.
Entre as idas e vindas das faxineiras, dispensadas por questões econômicas, temos uma
que ocupará um lugar feminino, agravando mais a condição de Gregor Samsa. Ela será a
empregada capaz de rivalizar com o inseto-homem, que reside no quarto dos Samsa. A
mulher chama o antigo caixeiro de “velho bicho sujo”, perturbando o animal que procura em
dado momento, em vão, revidar. Ao mesmo tempo, é a empregada que resolverá o que fazer
com todas as coisas que “não se podia vender, mas que também não se queria jogar fora”
(KAFKA, 2011, p. 276), definindo, indiretamente, o “entre lugar” que Gregor Samsa ocupava
naquela família. É a empregada que entrará no quarto para observar o pobre homem-inseto
sem temê-lo.
Ainda sobre a nova condição da família, deve-se dizer alguma coisa sobre os novos
hóspedas de casa. São inquilinos que agora residem na casa para aumento da renda familiar,
levando os membros da família Samsa à condição de serviçais. Muito exigentes, “Não
suportavam tralha inútil, muito menos, suja” (KAFKA, 2011, p. 276); agora, faziam da mãe e
da irmã suas empregadas. Como se não houvesse ali mais família, mas sim uma pensão com
um único corpo sem distinções, unido pelo serviço de quem pode pagar mais.
Nessa nova configuração familiar, a cozinha fora destinada às refeições dos donos da
casa, enquanto, aos inquilinos, a sala. E da cozinha brota o som do violino de Grete, tão
encantador aos ouvidos dos hóspedes, e de Gregor Samsa. A irmã é chamada à sala para o
entretenimento dos hóspedes. Na sala, “eles”, senhores dos charutos; no quarto, “ele”, nosso
inseto-homem, completamente encantado com a música. Novamente, o narrador de Franz
Kafka nos faz uma pergunta emblemática, “Era ele um animal, já que a música o comovia
tanto?” (KAFKA, 2011, p. 280). Gregor Samsa, nesse ponto, não se alimentava como antes. E

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a fome que lhe roía as entranhas era substituída pela atividade musical da irmã. Cada vez mais
encantado pela música, Gregor Samsa decide entrar na sala, no que é visto pelos inquilinos:

Declaro por este meio – disse ele [o inquilino], erguendo a mão e procurando
também a mãe e a irmã com o olhar – que eu, levando em conta as condições
repulsivas reinantes nesta casa e nesta família – aqui ele cuspiu no chão,
rápido e decidido –, rescindo neste momento a locação do meu quarto.
Naturalmente não vou pagar o mínimo que seja nem pelos dias que aqui
passei; pelo contrário, vou ainda refletir se não movo contra o senhor alguma
ação com reivindicações que serão – acredite-me – muito fáceis de
fundamentar (KAFKA, 2011, p. 281-282).

Não apenas um inquilino, mas os três decidem rescindir o contrato com a família
Samsa, devido à presença de Gregor Samsa no lugar indevido – lugar para o qual Samsa fora
atraído pela música da irmã. Era a marca final de humanidade e amor do inseto monstruoso.
As cenas decorrentes dessas passagens nos levarão para o fim da narrativa e o fim do próprio
personagem. A irmã passa a ser a voz da razão e a convocação para que se dê um fim na
condição daquilo que ela passa a considerar como uma figura monstruosa, até mesmo
inominável: “Não quero pronunciar o nome do meu irmão diante desse monstro e por isso
digo apenas o seguinte: precisamos nos livrar dele. Procuramos fazer o que é humanamente
possível para tratá-lo e suportá-lo e acredito que ninguém pode nos fazer a menor censura
(KAFKA, 2011, p. 282).
Gregor, que permanecera imóvel todo esse tempo, pois não tinha energias para se
movimentar, estava inquieto. Não era mais o irmão, o provedor da família, muito menos
capaz de financiar os sonhos da irmã de continuar os estudos de violino. Agora, Gregor Samsa
era apenas o “disso”, que precisa ser retirado como obstáculo à família: “Precisamos nos
livrar disso” (KAFKA, 2011, p. 283). Vale aqui citar a fala de Grete Samsa, nesses momentos
finais da novela:

É preciso que isso vá para fora – exclamou a irmã –, é o único meio, pai.
Você simplesmente precisa se livrar do pensamento de que é Gregor. Nossa
verdadeira infelicidade é termos acreditado nisso até agora. Mas como é que
pode ser Gregor? Se fosse Gregor, ele teria há muito tempo compreendido
que o convívio de seres humanos com um bicho assim não é possível e teria
ido embora voluntariamente (KAFKA, 2011, p. 283-284).

Gregor Samsa não pode mais, aos olhos de Grete Samsa, viver entre os homens. Ou
pelo menos não deveria. Reduzido apenas a “isso”, “bicho” e “monstro”, a nova condição de
Gregor Samsa é a de ferir a família com sua nova realidade – mesmo que o inseto-homem

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tivesse “a menor intenção de causar medo a ninguém, muito menos à irmã” (KAFKA, 2011,
p. 284).
O que me deixa mais espantado com A metamorfose é o fato de residir em Gregor
Samsa uma humanidade que sua própria família nunca teve. Apesar de viver na escuridão de
seu quarto, o olhar mais lúcido é o de Gregor-inseto. Ele consegue ver a estrutura da família, a
falta de amor. Apesar dos pesares, com a “maçã apodrecida nas suas costas e a região
inflamada em volta, inteiramente cobertas por uma poeira mole, quase não incomodavam.
Recordava-se da família com emoção e amor” (KAFKA, 2011, p. 285).
Os momentos finais de Gregor Samsa são meditando sobre sua forma “ainda mais
decidida” de desaparecer. (KAFKA, 2011, p. 285). E é assim que, com esse peso em sua
mente, sua cabeça “afundou completamente e das suas ventas fluiu fraco o último fôlego”
(KAFKA, 2011, p. 286). A empregada, que, em cenas anteriores, desafiava o pobre inseto, é a
que nos fornece o argumento cabal de seu fim: “ele empacotou; está lá empacotado de uma
vez!” (KAFKA, 2011, p. 286). Chega-se ao fim a vida do caixeiro viajante Gregor Samsa.
Reconheço que cada passagem escrita por Franz Kafka é, de fato, monumental. Não há,
aqui, o fim da história de nosso personagem principal, pois a família ainda apresenta suas
últimas encenações. “Bem”, diz o pai, “agora podemos agradecer a Deus” (KAFKA, 2011, p.
287). “A faxineira fechou a porta e abriu completamente ao ar fresco um pouco de mornidão.
Afinal era fim de março. Após a morte de Gregor houve a expulsão de vez dos inquilinos,
‘Deixem imediatamente a minha casa!’” (KAFKA, 2011, p. 288). E, sem eles e Gregor
Samsa, a casa passa a ser o lugar de alívio para o resto da família. (KAFKA, 2011, p. 288). A
empregada será despedida (KAFKA, 2011, p. 290). Cartas serão escritas, justificando a falta
no trabalho do pai e irmã e o atraso do trabalho da mãe, porque todos “Decidiram dedicar o
dia ao repouso e ao passeio; não só mereciam, como também necessitavam absolutamente
dessa interrupção no trabalho” (KAFKA, 2011, p. 289). E, juntos, saem “para o ar livre no
subúrbio da cidade”. Tinham tempo agora para cuidar da filha e conseguir um marido para
ela, que se encontrava aos olhos dos pai “cada vez mais animada”, “uma jovem bonita e
poluente” a espreguiçar seu corpo jovem. Desloco uma afirmação do pai de família, e finalizo
meu comentário sobre o texto literário: “Agora venham aqui [Disse o pai]. Parem de pensar
no que passou. E tenham um pouco de consideração por mim” (KAFKA, 2011, p. 290).
Antes de comentar de maneira mais incisiva a forma como vejo que, n’A metamorfose, a
submissão é uma espécie de “saída”, acredito ser importante compreendermos o que
considero como “submissão” e munirmo-nos teoricamente de definições que considero

82
importantes para a continuação deste trabalho. Em especial, uma forma de lermos a transição
da liberdade para a submissão, para que, assim, o texto de Franz Kafka seja retomado
posteriormente.
Insiro, para tanto, o debate da submissão na filosofia e, assim, observo como Kafka
escreve isso em sua literatura. Sigo novamente a pista do “desloucamento”. Ao tratar da
liberdade, descobri que a liberdade de Kafka estava para além do conceito trabalhado na
tradição filosófica. O macaco Pedro Vermelho desejava uma saída, não a ilusão da liberdade.
Seguindo as pegadas do símio, questiono se a recusa da liberdade resultaria em uma leitura
diferente de seu termo contrário – a submissão.
A pergunta que me fiz foi: Se Kafka rejeita a liberdade e inverte e embaça esse
conceito, o que ele opera com o termo “submissão”? Nesse caso, diria que a submissão
também será “desloucada” a ponto de ser uma saída para o personagem. Acredito que essa
resposta é possível devido ao fato de o próprio Pedro Vermelho ter escolhido a sujeição,
mesmo que isso não fosse a garantia de sua liberdade. Foi uma estratégia em que nosso
personagem nos mostrou uma possibilidade de resistência.

4.2. O medo à liberdade tendo como resposta a submissão

Para realizar a transição entre a questão da liberdade e a da submissão, parto do livro de


Erich From, Medo à liberdade (FROM, 1967). Em resumo, a preocupação de Erich From é de
entender como o “homem moderno, emancipado dos grilhões da sociedade pré-
individualista”, “não alcançou a liberdade na acepção positiva de realização do seu eu
individual: isto é, a manifestação de suas potencialidades intelectuais, emocionais e sensórias”
(FROM, 1967, p. 10). Recorrendo à história da humanidade, From dirá que seu tempo foi o
do esforço do homem pela política, economia e espírito, de se levar daquilo que o
acorrentava. Aponta que, graças ao liberalismo econômico, a democracia política e à
autonomia na religião, o homem moderno encontrou terreno para o fortalecimento de sua
ambição pela liberdade individual. Tudo, portanto, “ocorria bem” na história da humanidade.
Entretanto, não demorou muito para que o mesmo homem livre estivesse diante de
situações em que se viu tolhido de sua liberdade. A Primeira Guerra foi um sinal amarelo a
alertar que a inspiração da liberdade estava por ruir. E o sinal vermelho se acendeu no
momento em que as civilizações passaram pela experiência da Segunda Guerra. Se, na

83
Primeira Guerra, a humanidade pensava a vitória diante dos sistemas autoritários, com a
Segunda Guerra, colocavam-se os velhos problemas, porém atualizados, na história do
pensamento: “Fomos compelidos a reconhecer que milhões de alemães estavam ansiosos por
abrir mão de sua liberdade do mesmo modo que seu pais haviam lutado por ela” (FROM,
1967, p. 14).
Discorremos por algumas questões sobre a liberdade. No caso de Hannah Arendt, a
liberdade é relacional, se dá na cena pública. Já em Isaiah Berlin, a liberdade é dividida em
“liberdade negativa” e “liberdade positiva”. Ambas, apesar de opostas, entrecruzam-se no
direito do indivíduo a realizar-se sem impeditivos. Em outra seara filosófica, Valéry colocará
a liberdade como fruto das sensibilidades humanas ao longo das eras. Já para Albert Camus, a
condição do homem absurdo é essencial para se compreender a liberdade, pois é na
compreensão da loucura do mundo e da eminência da morte que a liberdade acontece. O
caminhar sempre para cima, como Sísifo, com sua montanha e sua pedra.
A virada de From é: se a liberdade é uma condição humana a ser questionada e
compreendida, podemos dizer o mesmo da submissão? Ou seja, assim como o homem deseja
ser livre, deseja ele também ser submisso? Nesse caso, valeria então discorrer de maneira
mais detida o que From quis afirmar em suas colocações.
Inicialmente recorrendo à biologia, From dirá que nosso estado desde o nascimento é o
da procura da libertação dos “vínculos primários”, dos primeiros contatos que o bebê tem com
o mundo, ligado ao corpo da mãe até o nosso processo de individuação. Cortar o cordão
umbilical metafórico é o processo que homens e mulheres realizam ao longo de um
autoprocesso de amadurecimento. No processo de individuação (o aumento do vigor do eu), o
ser humano paga um determinado preço – em alguns casos, a solidão crescente –, ocorrendo,
então, em muitos casos, a tentativa de renunciar ao próprio processo de individuação.
A submissão passa a ser a resposta diante da autoridade e do mundo que se impõe frente
ao processo de individuação. No caso da criança, ela “pode sentir-se segura e satisfeita [em
submeter-se a um adulto], porém inconscientemente compreende que o preço que está
pagando é a renúncia da sua força e a integridade do seu eu” (FROM, 1967, p. 35). No caso
do adulto, não será diferente. A história da humanidade é um longo processo de individuação
da natureza e de Deus. O homem medieval e, principalmente, o protestante foram os
primeiros a dar passos no processo solitário da individuação – preparação para o que viria na
era moderna, com o projeto renascentista e, posteriormente, com a sociedade capitalista.

84
Não se pode negar o valor positivo da Reforma Protestante para a construção do
processo de individuação do homem europeu. Antes da Reforma, assumimos com From que o
homem pertencia a uma coletividade sustentada pela Igreja e pela própria sociedade feudal
rigidamente estratificada. Desmantelado o sistema medieval da sociedade feudal, o homem se
vê completamente isolado. Não mais tem o sentimento de pertencimento, está “desvinculado
do mundo”. Em troca, pode agora ser “livre para agir e pensar independentemente, para
tornar-se seu próprio senhor e fazer de sua vida o que pudesse – e não que lhe fosse mandado”
(FROM, 1967, p. 91). Preparado pela Reforma, o homem moderno é ainda mais
potencializado em seu processo de individuação no capitalismo, que não só “libertou o
homem dos grilhões tradicionais como igualmente contribuiu, de forma tremenda, para o
incremento da liberdade positiva, para ampliação de um ego ativo, crítico e responsável”
(FROM, 1967, p. 97):

No capitalismo, a atividade econômica, o sucesso, as vantagens materiais


passam a ser fins em si mesmos. O destino do homem torna-se contribuir
para o crescimento do sistema econômico, ajuntar capital, não tendo em vista
sua própria felicidade ou salvação, mas como um fim por si mesmo. O
homem converteu-se em um dente de engrenagem da vasta máquina
econômica – importante se dispunha de muito dinheiro, insignificante em
caso contrário –, mas sempre um dente de engrenagem para servir a uma
finalidade a ele alheia. (FROM, 1967, p. 99)

Ou seja, há um preço a pagar pela liberdade, o que From nomeou de “ambiguidade da


liberdade” (FROM, 1967, p. 61). Tanto a Reforma quanto o Capitalismo fizeram os homens
mais livres, mas também aumentaram a sua condição de servidão. Lutero e Calvino criaram a
noção de que a vida do fiel era apenas para glorificar a Deus. Logo, tendo sua natureza
completamente depravada e sua individualidade ressaltada, cabe ao homem, sozinho, colocar-
se diante de Deus, sem o auxílio dos padres da Igreja ou dos santos:

[...] um ponto capital dos ensinamentos de Lutero foi a ênfase que pôs na
maldade da natureza humana, na inutilidade de sua vontade e de seus
esforços. Calvino deu o mesmo destaque à iniquidade humana e colocou no
centro de seu sistema a ideia de que o homem deve abater ao máximo sua
altivez e, outrossim, que a finalidade da vida do homem é exclusivamente a
glória de Deus e nunca a sua. Assim, Lutero e Calvino prepararam o homem
psicologicamente para o papel que tinha de assumir na sociedade moderna: o
de sentir seu próprio eu como algo insignificante e de estar pronto a
subordinar sua vida exclusivamente a fins que não os seus próprios. Uma vez
pronto o homem para tornar-se apenas um meio para a glória de um Deus
que não simbolizava justiça nem amor, estava suficientemente preparado
para aceitar o papel de um servo da máquina econômica – e, eventualmente,
de um Führer (FROM, 1967, p. 100).

85
O processo de individuação dos indivíduos se sustenta, portanto, na criação da sua
condição de ser servo nesse dado sistema religioso. Talvez isso fique mais claro em um
sistema econômico como o capitalismo, em que a “subordinação do indivíduo” se torna um
meio para o sustento da produção. Pois o homem, destituído de sua centralidade, está agora
submetido às forças suprapessoais: o capital e o mercado (FROM, 1967, p. 61). Agora o
homem está livre, mas está sozinho.
No caso, portanto, do homem solitário, ele vê diante de si algumas escolhas, entre elas o
autoritarismo, a destrutividade e o conformismo. Para Eric From, esses são os três
mecanismos possíveis para os indivíduos que, quando conscientes de sua condição de homens
solitários, desejam abrir mão de sua liberdade positiva.
Quando os indivíduos vivem uma vida esmagadoramente sem sentido, parecem criar
estados psicológicos suscetíveis ao autoritarismo. Não é raro identificarmos elementos sádicos
em sistemas autoritários. O sadismo, por exemplo, une os indivíduos na aparência de
dependência um do outro, quando, na realidade, os indivíduos passam a ser instrumento de
violência um do outro. Uma tendência generalizada de fazer o outro sofrer. Isso porque,
apesar de nossa visão sempre ser a de que o indivíduo objeto do sádico é o mais vulnerável
nessa relação, deve-se assumir também que “Há uma fator no relacionamento do sádico com o
objeto de seu sadismo que é muitas vezes desprezado [...]: sua dependência face ao objeto do
sadismo” (FROM, 1967, p. 126):

Enquanto é evidente a dependência da pessoa masoquista, esperamos que


com a pessoa sádica ocorra o contrário: ela parece tão forte e dominadora, e
o objeto de seu sadismo tão fraco e submisso, que é difícil pensar na forte
como dependendo daquela sobre a qual exerce seu poderio. No entanto, a
análise mais cerrada demostra que isto é verdade. O sádico precisa da pessoa
em que ele manda, precisa muito dela porque seu próprio sentimento de
forma emana do fato de ele ser o senhor de alguém. Esta dependência pode
ser inteiramente inconsciente. Assim, por exemplo, uma homem pode tratar
a esposa bem sadicamente e dizer-lhe que ela pode abandonar o lar qualquer
dia, pois ele só ficaria contente com isso. As vezes ela está tão subjugada
que nem ousa tentar ir embora, e portanto ambos continuarão a crer que o
que ele diz é verdade (FROM, 1967, p. 64)

Parece, portanto, que é na própria submissão sádica que se pode encontrar a resposta
para reverter um quadro de dominação. No caso do exemplo de From, é no perceber-se
fragilizada que a mulher pode quebrar os vínculos que a oprimem, pois descobre que,
enquanto objeto sádico, é um elemento de extrema importância nesse jogo de dependências.
O masoquismo soma-se aqui por ser também um mecanismo que os indivíduos utilizam
para abrir mão de sua liberdade individual. A busca, porém, aqui, é do descarte do ego

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individual que leva o fardo pesado da liberdade. O indivíduo desejará se submeter a uma força
superior para que, assim, o outro assuma o controle de sua existência. Descartando, então, sua
liberdade, o masoquista se amesquinha e aceita a dor e o sofrimento como resposta à sua
solidão e angústias.
Tudo está, portanto, interligado. A destrutividade não seria como o masoquismo e o
sadismo, que implicam, ainda que relações destrutivas, uma simbiose ativa ou passiva. A
destrutividade seria quando o indivíduo assume a destruição do objeto. A destrutividade é
“fuga à insustentável sensação de impotência, posto que tem em vista remover todos os
objetos com o que o indivíduo tem de cotejar-se”. (FROM, 1967, p. 153). Diante de uma vida
frustrada, o indivíduo livre decide, então, destruir o mundo (destruir a si mesmo), em busca de
aliviar o peso da liberdade. Por último, Eric From nos dirá do último mecanismo de rejeição
da liberdade, que é o conformismo:

Este mecanismo em particular é a solução que a maioria dos indivíduos


normais encontra na sociedade moderna. Para ser breve, digamos que o
indivíduo cessa de ser ele mesmo; adota inteiramente o tipo de personalidade
que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte, torna-se
exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele seja. A
discrepância entre o eu e o mundo desaparece e, com ela o temor consciente
à solidão e à impotência. (FROM, 1967, p. 157)

A rigor, o que temos é um fenômeno visto na maioria das nossas relações sociais.
Conforma-se a um determinado cenário político, visto o custo de afirmação de um eu
autônomo. Reprime-se quem se é para viver plenamente na sociedade. Novamente, isso tem
um custo para o “Eu”: ser colocado num estado de “intensa insegurança”. E, nesse estado de
autômato, ele, então, sujeita-se às novas autoridades que o permitem um ilusório estado de
segurança.
Tais debates não são novos. E logo nos vem na memória o caso da Alemanha nazista.
Por que boa parte da população alemã foi fiel a Hitler? Adolf Hitler é aceito por questão de
uma psicologia social fragilizada ou de uma cenário econômico alemão desestruturado? Ou
seria a combinação dessas fatores (psicológicos, sociais, econômicos) que nos auxiliaria na
compreensão das barbaridades descobertas no pós-Segunda Guerra? E tais questões se
intensificam para além do caso alemão.
Estamos abrindo mão de nossa liberdade graças a uma profunda crise do capitalismo
especulativo? Ou, somado a isso, temos o descortinar da condição humana que não apenas
deseja ser livre, mas também colocar-se de joelhos diante de espíritos autoritários?
Novamente, a resposta é complexa. Mas o que diferencia tais contextos – e isso deve ser

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explicitado – é que, no caso de Hitler, falávamos de um Estado organizado em princípios
totalitários. Um projeto nacionalista, anticomunista e antiliberal. Sua retórica se sustentava no
louvor aos valores tradicionais, representado não pela figura do rei ou da igreja, mas por
homens que se fazem a si mesmos (Hitler, Mussolini, Franco, Salazar) e que são legitimados
pelo povo (HOBSBAWM, 1995, p. 130-132).
A onda totalitária que a Europa enfrentou pode ser descrita por Hobsbawm de forma
análoga à de From. O historiador de A era dos extremos afirma que, do final do século XIX
para o XX, germinou na sociedade um profundo ódio ao projeto do liberalismo. A
transformação das sociedades capitalistas permitiu a organização dos trabalhadores e a
emigração em massa dos trabalhadores para esses países desenvolvidos. O medo desse
fenômeno social fez com que fosse introduzido o sentimento de xenofobia em massa no
continente europeu, o que acabou por culminar nas barbáries ocorridas durante todo o século
XX. O historiador inglês nos dirá, ainda, que “era o ressentimento de homens comuns contra
uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes
movimentos de trabalhistas, do outro” (HOBSBAWM, 1995, p. 133).
Essa configuração econômica originou, então, não apenas o sentimento de xenofobia em
todo o mundo europeu, mas também se expressou por meio de movimento políticos
antissemitistas. A hostilidade aos judeus passa a ser crescente a partir do final do século XIX,
pelo significado que essa classe social representava na história da Europa: “estavam presentes
em quase todo lugar e podiam simbolizar com facilidade tudo o que havia de mais odioso
num mundo injusto” (HOBSBAWM, 1995, p. 134).
A diferença que chega pelo fenômeno da imigração e o medo causado pela expressão
econômica e cultural do povo judeu durante todo o século XIX faz com que a reação dos
Estados europeus caminhe diretamente a uma conduta política de expressão fascista. O medo
do povo, somado ao medo da classe média e média baixa, foram, portanto, o alicerce dos
movimentos fascistas durante o século XX (HOBSBAWM, 1995, p. 136) e motivo para que
ocorresse um gradual movimento da perda de liberdades individuais.
Para que se tenha uma ideia, o autoritarismo como resposta ao medo à liberdade é visto
não apenas nas condutas bárbaras para com as minorias políticas na Europa, bem como na
própria “queda do liberalismo” no início do século passado. Um processo contínuo de
eliminação dos Estados liberais foi visto em todo mundo:

Em 1918-20, assembleias legislativas foram dissolvidas ou se tornaram


ineficazes em dois Estados europeus, na década de 1920 em seis, na de 1930

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em nove, enquanto a ocupação alemã destruía o poder constitucional em
outros cinco durante a Segunda Guerra Mundial. Em suma, os únicos países
europeus com instituições políticas adequadamente democráticas que
funcionaram sem interrupção durante todo o período entreguerras foram a
Grã-Bretanha, a Finlândia (minimamente), o Estado Livre Irlandês, a Suécia
e a Suíça.

Nas Américas, a outra região de Estados independentes, a situação era mais


confusa, mas não chegava a sugerir um avanço geral das instituições
democráticas.

[...]

Em resumo, o liberalismo fez um retirada durante toda a Era da Catástrofe,


movimento que se acelerou acentuadamente depois que Adolf Hitler se
tornou chanceler da Alemanha em 1933 (HOBSBAWM, 1995, p. 124-125).

Questões políticas, sociais e econômicas criaram um contexto propício às atrocidades do


século XX, o que Erich Hobsbawm explica, nos seguintes termos: “A ascensão da direita
radical após a Primeira Guerra Mundial foi sem dúvida uma resposta ao perigo, na verdade à
realidade, da revolução social e do poder operário em geral”. O historiador ainda acrescenta
algumas ressalvas a essa hipótese, pois o próprio sentimento dos militares pós-Primeira
Guerra (os chamados frontsoldat, o “soldado da linha de frente”) é que alimentariam o
sentimento nacionalista na Segunda Grande Guerra. E a segunda ressalva diz respeito ao
sentimento da própria direita conservadora e seu medo dos movimentos trabalhistas que
“ameaçam a origem existente da sociedade”, mais do que os socialistas e comunistas. Em
resumo, o medo das revoluções sociais fomentou o fascismo. (HOBSBAWM, 1995, p. 139-
140).
Em uma outra linha de frente, Hannah Arendt explicará que o totalitarismo nazista e
stalinista é fruto de um movimento político que se volta contra si mesmo. O resultado foi o
fim da procura do bem comum das pessoas e o empenho em uma política baseada na morte e
destruição de seus opositores. Assim como Eric Hobsbawm, Hannah Arendt não deixa de
apontar que o “antissemitismo” e o “imperialismo” europeu foram a matéria-prima para o
florescimento de um comportamento racista na Europa – o que, por fim, desdobrou-se no
nazismo e stalinismo. (FRY, 2010, p. 24). Porém, a pensadora, diferente do historiador, não
está interessada numa “origem do totalitarismo”, apesar de o título de sua obra ser Origens do
totalitarismo. Arendt acredita “que as ações humanas são livres, e uma discussão de fatores
causais dá a impressão de que o totalitarismo seria inevitável” (FRY, 2010, p. 24). Não há
também em Arendt a escolha do “bode expiatório”, posição defendida por Hobsbawm em Era
dos extremos.

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No que já foi dito por Arendt e seus comentadores, chamo atenção para a leitura que a
pensadora faz do caso de Rahel Varnhagen. O caso de Varnhagen é colocado na obra de
Arendt como um dos primeiros momentos em que a pensadora de Homens em tempos
sombrios debate a “questão judaica”. Rahel Varnhagen era uma jovem judia que frequentava
o salão literário de sua cidade e que é tomada por Hannah Arendt como um forma de
compreensão da situação do judeu durante o século XIX. Varnhagen, na busca de integração
na sociedade europeia de seu tempo, busca casar-se com um aristocrata alemão, na busca de
escapar dos estereótipos ligado ao povo judeu: uma forma de submeter-se, para, assim, ser
livre (ARENDT, 2012, p. 78). Rahel Varnhagen, assim como os demais judeus, não busca a
cidadania, o que resultaria na autorização da participação do povo judeu na cena pública, bem
como no direito à liberdade. O que ocorreu, portanto, foi uma submissão, um ardil arriscado
para sobreviver – tanto que “o salão de Rahel, por definição e intencionalmente, situava-se à
margem da sociedade” (ARENDT, 2012, p. 78):

A assimilação, isto é, a aceitação da diluição dos judeus por parte da


sociedade não judaica, era concedida só excepcionalmente aos indivíduos
claramente distintos das massas judaicas, que ainda assim, compartilhavam
as mesmas condições políticas restritivas e humilhantes. A sociedade,
confrontada com a igualdade política, econômica e legal dos judeus, deixou
claro que nenhuma das suas classes estava preparada para acolhê-los dentro
de preceitos de igualdade social, e que somente seriam aceitas exceções, os
judeus “excepcionais” (ARENDT, 2012, p. 75)

Hannah Arendt coloca em questão pontos que considerava negativos na relação do


povo judeu e na sociedade europeia do século XIX, o que chamou de processo de assimilação
judaica. Essa sociedade exigia dos judeus um estado de “ser e não ser”, uma educação
inquestionável, não se comportando como um “judeu comum”, mas sendo excepcional por ser
um judeu, sendo indivíduos submissos frente à organização do Estado e ao crescente
antissemitismo. Tal conduta se tornaria uma forma tradicional do povo judeu diante da
opressão social. Inclusive, Arendt aponta como problema essa passividade judaica, que foi
logo colocada no início do julgamento de Adolf Eichmann:

O contraste entre o heroísmo israelense e a passividade submissa com que os


judeus marcharam para a morte — chegando pontualmente nos pontos de
transporte, andando sobre os próprios pés para os locais de execução,
cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando caprichosamente as
próprias roupas, e deitando-se lado a lado para ser fuzilados — parecia uma
questão importante, e o promotor, ao perguntar a testemunha após
testemunha “Por que não protestou?”, “Por que embarcou no trem?”, “Havia
15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente — por que
vocês não se revoltaram, não partiram para o ataque?”, elaborava ainda mais

90
essa questão, mesmo que insignificante. Mas a triste verdade é que ela era
tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo não judeu se
comportou de outra forma (ARENDT, 1999, p. 22)

A pergunta sobre o “lugar insignificante que [os judeus] desempenharam na história do


holocausto” nunca foi respondida claramente. E a possível passividade do povo judeu foi um
dos elementos que sustentaram fortes críticas ao texto de Hannah Arendt, junto com o fato de
estar sendo generosa com Adolf Eichmann. Isso se deu muito pela incompreensão do termo
“banalidade do mal” cunhado pela autora, lido como forma de abrandar e perdoar o rasco –
leitura que não se sustenta ao longo da leitura de Eichmann em Jerusalém.
Fry diz que “Diversas pessoas pensaram que Arendt condenou os conselhos judaicos de
maneira mais severa que sua condenação de Eichmann” (ARENDT, 1999, p. 191). Foi
considerada persona non grata pelo povo judeu, e até mesmo acusada de ser nazista. Ainda
que a pensadora alemã tenha nos ofertado contra-argumentos contra tal passividade, como os
casos particulares de revolta ao regime nazista – o caso dos “judeus holandeses”, que se
levantaram contra a Polícia de Segurança Alemã no velho bairro judeu em 1941; dos
quatrocentos e trinta judeus em Buchenwald; e o levante do gueto de Varsóvia – como
exemplos de luta do povo judeu, isso não foi capaz de evitar as inúmeras polêmicas do livro
Eichmann em Jerusalém. Seu livro, dirá a autora em autodefesa, é um relatado de elementos
de um julgamento.
Chego à conclusão de que a submissão que conhecemos como experiência política, na
maioria dos casos, é tratada de uma forma negativa frente a um sistema político autoritário. A
submissão que Erich From nos fala ser a resposta ao medo da liberdade, leva o homem
solitário a um condição de servidão. Já a submissão escolhida pelos judeus do século XIX
como forma de manutenção de sua própria sobrevivência seria um dos elementos utilizados
contra a sua própria eliminação. No caso, eu leio, a submissão como uma ferramenta delicada
para a luta contra o fascismo. Porém, uma possibilidade real de resistência.

4.3. Servidão voluntária e desobediência involuntária

O debate sobre a abertura de nossos direitos de ser homens livres se amplia ainda
quando retornamos um pouco mais na história. Se com From, Hobsbawm e Arendt olhamos
os passos do homem moderno do século XX, devemos dizer que tal pergunta – “Por que nos

91
submetemos?” – foi feita alguns séculos antes por um pensador francês chamado Étienne de
La Boétie, em seu livro Servidão voluntária:

Por enquanto, gostaria somente de entender como tantos homens, tantos


burgos, tantas cidades e tantas nações suportam às vezes um tirano só, que
não tem mais poder que o que lhe dão, que só pode prejudicá-los enquanto
quiserem suportá-lo, e que só pode fazer-lhes mal se eles preferirem tolerá-lo
a contradizê-lo. Coisa realmente admirável, porém tão comum, que deve
causar lástima que espanto, ver um milhão de homens servir miseravelmente
e dobrar a cabeça sob o jugo, não que sejam obrigados a isso por uma força
que se imponha, mas porque ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados
somente pelo nome de um, que não deveria temer, pois ele é um só, nem
amar, pois é desumano e cruel com todos. (BOÉTIE, 2009, p. 32)

Discurso da servidão voluntária é um pequeno ensaio de La Boétie, escrito ente os anos


de 1552 e 1553. Inicialmente, o ensaio foi preparado para integrar o centro do primeiro livro
de Michel de Montaigne, os Ensaios, e ficaria entre o ensaios “Os canibais” e “Sobre a
amizades” – dois belíssimos e importantes ensaios deste autor. O planejado não ocorrera e
Boétie tem seu discurso apropriado pelos protestantes franceses, como uma espécie de
“panfleto da tiranicidade”. Depois, no século XVIII, é apresentado por Marat como “panfleto
pedagógico-político”; e, no século XIX, passa a ser instrumento da luta panfletária
democrática e, também, dos anarquistas, que “o leem como panfleto libertário”. Como
podemos ver, as inúmeras apropriações do texto do melhor amigo de Montaigne confirmam a
importância desse escrito para um questionamento político importante: por que em nós reside
a vontade de servir? É possível, na submissão, resistir contra o tirano?
O contexto do Discurso é o do Renascimentos europeu, momento entre o fim do século
XV e início do XVI que estabelece, em solo europeu uma nova ordem política para todo o
continente. A mentalidade europeia se debruça para pensar novas formas de fazer política,
saindo do contexto da Antiguidade e do mundo medieval. Teremos o surgimentos de uma
nova política, com nomes como Maquiavel e seu livro O príncipe somados a outros, como
Thomas More, Lutero, Calvino...
No Brasil, uma de suas importantes leitoras é Marilena Chauí, que, no ensaio “O poder
político da amizade”, abre o livro Contra a servidão voluntária, dizendo o seguinte: “O título
é desconcertante porque, habituados à tradição do pensamento político clássico e cristão,
sabemos que o conceito de vontade e servidão são incompatíveis” (CHAUI, 2014, p. 12). A
servidão não pode (segundo o pensamento clássico) nascer de um ato voluntário dos
indivíduos em serem servos. A servidão é um resultado de alguém que impele sobre o outro a

92
condição de servo. A questão do Discurso da servidão voluntária é porque nós desejamos o
jugo quando poderíamos ser livres.
A primeira resposta, dirá Chauí, é dada em três movimentos: 1. Esse “Um” que nos
controla tem apenas um par de olhos. Logo, seu controle sobre nosso corpo se estabelece pelo
fato de que nós damos a ele inúmeros pares de olhos a mais e, assim, milhares de ouvidos,
mãos e pés. 2. O que em nossa natureza nos impele a doar nosso estado de liberdade natural
ao corpo controlador? 3. O povo tem em si a ambição de servir e abre mão de sua liberdade
no desejo de, um dia, subjugar seus semelhantes.
Há uma inversão dos polos aqui que precisa ser ressaltada. A tradição política sempre
observou a tirania vindo de figuras tirânicas. Em La Boétie, o que temos é que tal tirania é
alimentada pelos súditos, os seres muitas vezes sem nome e sem rosto. La Boétie pouco fala
sobre o papel do tirano, mas sim como “a classe dominante [...] são movidos pela ambição e a
avareza” de dominar. Eis outro ponto importante do texto de Étienne de La Boétie: inverter a
ideia de alienação causada pelos exploradores, quando os explorados também têm
responsabilidade sobre tal condição: “Aquele que vos oprime tem só dois olhos, duas mãos,
um corpo, nem mais nem menos que o mais simples dos habitantes do número infinito de
vossas cidades (BOÉTIE, 2009, p. 38).
A condição humana denunciada por La Boétie é da submissão geral do homem de todos
os lugares e de todas as condições. “Tantos homens, tantos burgos, tantas cidades” estão a
abrir mão da sua liberdade em prol do tirano. Ou seja, não é apenas a questão de perguntar ao
servos por que eles se colocam em tal condição, de humilhação e lástima, para La Boétie,
mas, também, de perguntar por que eles obedecem à tirania. E a obediência não seria apenas a
de um pequeno grupo coagido por força das armas empunhadas por um exercício, diz o autor,
mas sim porque “não cem, não mil homens, mas cem países, mil cidades, uma milhão de
homens se absterem de atacar aquele que trata a todos como servos e escravos” (BOÉTIE,
2009, p. 34).
A liberdade para La Boétie é uma condição natural do homem. Nesse caso, sinto que as
proposições de Eric From antes referidas estão distantes desse autor. Enquanto aquele defende
que há, no homem, uma condição para servir – inclusive, o homem faz uso de mecanismo
contrário à sua própria liberdade –, este autor nos diz que “naturalmente” o homem só pode
desejar a liberdade e se assusta com o oposto, do vil desejo da servidão coletiva: “Não existe
nada mais caro para o homem do que readquirir o seu direito natural e, por assim dizer, de
animal voltar a ser homem” (BOÉTIE, 2009, p. 36).

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Há, portanto, um convite à luta lançado por Étienne de La Boétie. Não o pegar em
armas e usar a força para conquistar a libertação pela violência – nesse sentido, creio também
ser esse um dos momentos genuínos no texto do pensador francês. A proposta de resistência
ao tirano se estabelece em não consentir com a servidão, “Nem é preciso tirar-lhe algo [do
Tirano], mas só não lhe dar nada. O país não precisa esforçar-se para fazer algo em seu
próprio benefício, basta que não faça nada contra si mesmo” (BOÉTIE, 2009, p. 36). E
conclui: “É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser
submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo” (BOÉTIE, 2009, p. 36).
Para La Boétie, haveria, então, a recusa da liberdade pelos indivíduos e a criação do
corpo tirânico, único em ação, mas diferente na forma de apresentação e captação da servidão
dos homens: “Há três tipos de tiranos. Uns adquirem o poder por eleição do povo, outros pela
força das armas, e os últimos por sucessão” (BOÉTIE, 2009, p. 42). Não há diferença nos
resultados ocasionados por esses três tipos de tiranos: por mais que “cheguem ao trono por
meios diversos, sua maneira de reinar e quase sempre a mesma” (BOÉTIE, 2009, p. 43). Tais
governantes, em dado momento, tratam seus governados como touros, presas ou um bando de
escravos.
O que acredito ser importante para nosso debate é o teor paradoxal de La Boétie ao
questionar nossa obediência frente ao tirano como resgate a uma liberdade genuína. Em
resumo, sua inversão apresentada no Discurso da servidão voluntária se resumiria na
pergunta feita por Frédéric Gros nos seguintes termos: “o problema não é a desobediência, o
problema é a obediência” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 9). Nisso, as contribuições de Gros são
fundamentais para uma análise contemporânea de Étienne de La Boétie. Primeiramente,
porque Gros atualiza alguns dados para nós, entre eles nossa atual cena política e econômica:
o “aprofundamento das injustiças sociais, das desigualdades de fortuna”, somado à
“degradação progressiva do meio ambiente”. Tudo isso resultando num modo de geração de
riquezas que se fez em detrimento da humanidade futura.
Esse é o mundo de agora. Cada vez mais injusto, apesar da produção de grande riqueza
e acúmulo de saber. Lemos, no portal inglês BBC, a seguinte manchete: “Os 8 bilionários que
têm juntos mais dinheiro que a metade mais pobre do mundo”. Já no Brasil, o jornal El Pais:
“Seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre”. La
Boétie nos perguntaria “por quê?”. Por que permitimos um governo que nos expropria a vida,
os sonhos, a liberdade – o que nos deixa letárgicos frente a “iminência da catástrofe”, e de
“braços cruzados” e olhos desviantes frente a esse futuro que nasce esgotado? É necessário ir

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contra o super’obedecer: afirmar a condição de servidão e, a partir dela, projetar a
possibilidade de transformação do quadro do catastrófico:

La Boétie evoca também a possibilidade de uma adesão mais maciça, quase


um fervor. O texto torna-se então satírico, violento, injusto, até injurioso:
essas mulheres que o tirano viola são vocês que as entregam; suas produções
que ele taxa, são vocês que as oferecem; e vocês criam as crianças que ele
envia à guerra. Participação ativa, entusiasta de cada um e de todos em sua
própria espoliação. Os exageros não são apenas retóricos. Ajudam a entender
um ponto de inflexão na obediência: esse momento de aceitação irracional
que ultrapassa a obrigação objetiva, em que engajamos nossa própria
submissão com energia, com desejo. Vejo-os, escreve La Boétie, “não
obedecer mais servir”; “[o povo] servindo tão francamente e de tão bom
grado que ao considerá-lo dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim
ganhou sua servidão”. (FRÉRÉRIC, 2018, p. 54)

É necessário não oferecer ao tirano o que ele pede; assim, seu poder é desmantelado.
Não é, portanto, tirar algo do poder, mas sim parar de lhe fornecer o nutriente que o sustenta.
Pois ser livre, para Etiénne de La Boétie, é reconhecer esse estado de submissão, e, a partir
dele, elaborar um meio de resistir à tirania. É necessário que se entenda que “antes de mais
nada”, é preciso “emancipar-se do desejo de obedecer” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 56).
É necessário, portanto, compreender uma nova espécie de submissão que põe em xeque
as relações de poder, e não uma submissão-assimilação que coloque em risco a própria
história dos indivíduos, vistos ao longo do século XX (como apontado no caso judaico por
Hannah Arendt). É necessário, portanto, uma “submissão ascética”, “uma obediência
calculada ao milímetro, uma obediência que faria um esforço perpétuo sobre si mesma para se
reduzir” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 56). É quando o indivíduo de From, alvo do sadismo, entende
que também tem parte nas relações sádicas, e pode miná-las gradualmente.
A “submissão ascética” seria, então, a resposta para tempos sombrios. O homem deste
tempo, então, “se esforça para calcular, no que lhe mandam fazer, uma obediência mínima”.
(FRÉRÉRIC, 2018, p. 57). Obedece-se à ordem, mas de forma incompleta, levando a
realização da tarefa ao limite da sabotagem. O que La Boétie diz – em “não dar ao tirano” o
seu sustento, os seus olhos – significa não se revoltar por meio de armas, mas obedecer da
pior forma possível.
Não seria um equívoco lembrar das resistências pacíficas do século XX, com nomes
como Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr.: King, que pacificamente resiste com seu
corpo frente ao racismo americano; e, antes dele, Gandhi, que, dentro do cruel sistema
colonial britânico, luta pacificamente contra a economia dos produtos ingleses que destruíam
a economia colonial indiana. Uma explicação de Gros serve para esses dois homens: “Não é

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um chamado às armas: trata-se de permanecer submisso. Mas a ideia é desencorajar em si
mesmo tudo que poderia configurar a propensão à adesão – nunca antecipar o desejo do
chefe” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 58). O que esses homens viram é que “a submissão é uma
relação de forças históricas, portanto reversível” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 65) e que, dentro do
sistema opressor, encontra-se a chave contra toda e qualquer tirania.
Devemos lembrar, ainda, que, en passant, o exemplo dado por Antígona, que “não
desobedece por capricho, ou por insolência, nem mesmo por loucura” (FRÉRÉRIC, 2018, p.
83): diante do decreto de Creonte, deve decidir se obedece à lei imposta ou se obedece à lei da
família, que manda enterrar seus ancestrais. O que faz é obedecer. Não a Creonte, que “só
possui a forma externa de uma lei”, mas sua obediência total é, sim, à lei que “ultrapassa as
pobres leis frágeis, transitórias do homem” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 83).

4.4. Gregor Samsa: a lição de um submisso

Algo na leitura d’A metamorfose me fez crer que Franz Kafka colocou em Gregor
Samsa a lição de uma sensível liberdade a partir da submissão do homem-inseto. Sobre isso,
disse Modesto Carone, certa vez, que é necessário libertar Samsa de sua condição de “escravo
assumido” e, “Vistas as coisas por esse ângulo, é admissível supor que o inseto Gregor é inútil
porque já não produz, só consome; ao mesmo tempo que Gregor, o inseto, é a forma sensível
de uma libertação” (CARONE, 2012).
Como busquei apresentar no primeiro capítulo, há um movimento típico do texto de
Franz Kafka que é o método da inversão, nomeado por Anders como o “desloucamento”.
Nesse sentido, o mundo do realismo filosófico de Kafka é apresentar uma realidade em
profunda suspensão. A liberdade é rejeitada como vocábulo formal para representação do
sentimento de Pedro Vermelho. E a submissão é aceita por Gregor Samsa, que se vê
gradualmente se aprofundando no seu processo de metamorfose.
Foi necessário, portanto, ler detidamente não apenas A metamorfose, como também
autores que propõem a questão do medo da liberdade, como Eric From; fundamentar a
questão do medo da liberdade e sua relação com o totalitarismo, por meio do historiador Eric
Hobsbawm e a pensadora Hannah Arendt; comentando, ainda, a inquietação da servidão
voluntária posta por Étienne de La Boétie em seu Discurso da servidão voluntária. Somam-se
a isso as considerações do pensador francês pelo Frédéric Gros.

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Para mim, nunca foi suficiente a leitura de que Gregor Samsa simbolizasse um arrimo
de família, vencido pela presença familiar. Talvez minha postura diante do texto literário
tenha sido, de certa forma, ingênua; isso porque busquei achar em Samsa uma resistência
frente ao ambiente sufocante de sua família, da lei e da burocracia.
Num dado momento, senti que tudo se colocava contra essa hipótese. Gregor Samsa é
jogado fora, varrido para a lata do lixo, para, assim, finalmente, a família Samsa se ver livre
da perturbadora presença do jovem inseto. Samsa é completamente desumanizado. Vence a
família! Entretanto, agarro-me aos detalhes d’A metamorfose para seguir na comprovação
desta hipótese: em Franz Kafka, em especial no personagem Gregor Samsa, sua submissão
deve ser vista com um “desloucamento conceitual”, o que implica ler os gestos de submissão
como uma forma “sensível de liberdade”.
Observei que, ao longo da mostra da nova condição de Gregor Samsa, encontra-se um
projeto radical de liberdade. Os pais de Samsa ocupam um lugar central na narrativa,
principalmente como motivação ao trabalho do caixeiro-viajante. Samsa trabalha com o
objetivo de ver-se livre de um passado que lançou a família num estado de crise financeira. E
o fez, sem escolha alguma, esperança para pais e irmã.
Acredito que tais afirmações de Gregor Samsa são um projeto que nem mesmo sua
metamorfose o fez esquecer. Inclusive, minha leitura é: a metamorfose pode ser encarada
como a forma da libertação sensível de Samsa das engrenagens familiares. É pelos pais que
Samsa aceita um trabalho possivelmente desagradável. Quanto a essa postura do filho, não
temos dúvida; e repito: “Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar
dinheiro para lhe pagar a dívida dos meus pais – deve demorar ainda de cinco a seis anos –
vou fazer isso sem falta”. (KAFKA, 2011, p. 229).
Não devemos pensar, ainda, que a condição de inseto colocará em xeque o projeto de
Samsa. Ainda que sua linguagem esteja “desloucada” e não abarcando mais o mundo do
homens, é necessário observar que é justamente nesse estado de “ser de fora” que Samsa pode
ser profundamente livre. Se não tem mais o logos para sua argumentação diante do gerente
que o visita inesperadamente, bem como para a defesa diante sua família, é com seu corpo
que Samsa reivindica espaço, atenção e afetividade. Sua nova condição de inseto constrói,
portanto, um novo patamar existencial, como comentei anteriormente. Não mais a vida
rotineira do trem, mas a da exploração do quarto, da música, e do projeto de compreensão da
família.

97
As páginas que lemos d’A metamorfose revelaram para nós um antigo e exímio
trabalhador. Assim pensava a família de Gregor Samsa, quando o narrador da novela nos diz
que sua família pensava que ele ficaria pelo resto da vida no mesmo emprego – o que explica
a reação de Samsa com a visita inesperada do gerente. Ele não tinha tantos motivos assim para
deixar a firma e ir à casa do caixeiro; entretanto, o chefe se comporta de maneira diferente.
Devemos lembrar que é nessa condição de inseto monstruoso que Samsa pode analisar
toda a sua conjuntura familiar. Samsa se torna irmão de Odradek de “A preocupação do pai de
família” (KAFKA, 1999, p. 43). Isso porque – repito – é nessa condição anômala que temos
acesso ao que há de mais precioso na análise do comportamento humano. E, com seu corpo de
carretel, com seu o corpo inseto, coube as esses estranhos personagens de Kafka ficarem de pé
e dizer: “temos vida”. Em todos os seres kafkianos, reside a vida.
Penso, a partir de Schwarz, que Samsa é um ser para a vida e que sua metamorfose o
colocou de fora do sistema de compromissos laborais. Samsa e Odradek são impossíveis à
ordem burguesa e, em seu estado de fragilidade e submissão, nos permitem um reolhar para
nossa condição humana. Assim como “a produção para o mercado permeia o conjunto da vida
social, como é próprio do capitalismo, as formas concretas de atividade deixam de ter em si
mesmas a sua razão de ser” (SCHWARZ, 2008, p. 25). Sem finalidade, Samsa é também
completo, à sua maneira.
A existência de Gregor Samsa passa a ser uma existência “subversiva” e de “tentação do
pai de família”. Novamente, o que Roberto Schwarz considerou sobre Odradek me serve para
compreender o caso de Gregor Samsa: “Odradek é feito de resíduos, de materiais
desclassificados, sem nome ou preço, eliminados pela circulação social. É a imagem extrema
da liberdade em meio à lida do decoro” (SCHWARZ, 2008, p. 26).
O projeto de Gregor Samsa, de uma liberdade pela submissão, tem como resposta a
metamorfose. Não o trabalho, como desejava nosso personagem, mas sim, o devir inseto. Pois
é nesse lugar novo de inseto que Samsa consegue ver a dimensão real do pai. É somente com
os olhos de inseto que Gregor Samsa perfura a instância de poder paterna. É depois do
termino do cuidado de Samsa para com os pais (impossibilitado pela metamorfose) que o pai,
bem como a família, mostra sua verdadeira face.
Esse lugar de Franz Kafka como um insubmisso foi posto por Michael Löwy em seu
livro Franz Kafka: sonhador insubmisso (LÖWY, 2005). A proposta do crítico é propor uma
leitura de Franz Kafka somada à extensa crítica já produzida sobre o autor, evidenciando o
caráter libertário e insubmisso de sua obra. Seguirá não uma dogmática, mas sim uma

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sensibilidade ao guiar-se pelo fio de Ariadne do labirinto kafkiano. Seu desejo, “pôr em
evidência a dimensão formidavelmente crítica e subversiva da obra de Kafka, tantas vezes
ocultada” (LÖWY, 2005, p. 12).
Curiosamente, Löwy aponta que sua leitura se distanciará do nosso principal crítico de
Kafka, Günther Anders. Para Michel Löwy, não apenas Anders, mas Georg Lukács, entre
outros, apontaram “com frequência” um pessimismo radical e um resignação nos escritos
kafkianos. Löwy deve acusar Anders no que diz respeito à segunda parte do projeto de Kafka:
pro e contra, em que lemos a seguinte advertência:

Sua obra não é de hoje, mas de anteontem. A situação histórica na qual ele é
utilizado não podia ser prevista por ele. As alusões ao mundo do terror e do
nivelamento, do qual somos contemporâneos, não eram, para ele, alusões.

[...]

É preciso também herdar advertências. E, através de grandes advertências,


educar a si mesmo e dar formação a outros. O desenho do mundo, executado
por ele, de como o mundo não devia ser; das atitudes que não podem ser
nossas, postas como placas de advertências em nossas almas, serão úteis.
(ANDERS, 2007, p. 135-136)

As considerações de Anders são sutis, mas revelam, de fato, um Kafka profeta do terror
– ao qual Löwy se opõe, pois o crítico marxista conseguiu ver em Franz Kafka não apenas o
radiógrafo do nosso tempo, mas também, em sua literatura, a possibilidade de uma redenção.
Ainda que não haja nesse projeto de redenção, um messias.
O projeto de Michel Lowy é de todo interessante. Sua busca começa em encontrar, no
próprio autor d’A Metamorfose, o sentimento pela liberdade. Seria uma tentativa de encontrar,
de aproximar Franz Kafka de um “socialismo libertário”. Esse gesto não resulta em encerrar o
autor numa doutrina política especial, por mais que Franz Kafka seja cooptado por socialistas
e anarquistas. A questão se coloca como “inclinações”, sentimentos, indícios de um Kafka
politicamente engajado.
E são muitos os indícios que Michel Löwy levanta sobre Franz Kafka. Segundo o
crítico, “seu amigo de juventude e colega de ginásio Hugo Bergmann” disse que o autor
tcheco “portava, para demostrar suas opiniões, um cravo vermelho” (LÖWY, 2005, p. 19-20).
Em outro momento, Löwy afirma: “Não há testemunho de laços do jovem Kafka com a
social-democracia tcheca ou austríaca” (LÖWY, 2005, p. 20). Em outro momento, já em uma
carta de 1920 à Milena, o autor de O processo teria “manifestado interesse pela revolução
russa” (LÖWY, 2005, p. 21). Os “indícios” de um Kafka “socialista” são muitos e afirmam

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mais um lado político de Franz Kafka. Todo o levantamento de Michel Löwy serve para
entendermos que os escritos kafkianos não falam de “uma mensagem, de uma doutrina ou de
uma tese, mas de um tom, no sentido musical do termo” (LÖWY, 2005, p. 57).
Nesse sentido, é necessário afirmar que minha leitura se aproxima de um Kafka de uma
liberdade negativa, aos moldes de Michel Löwy. Não no sentido de Isaiah Berlin, mas sim no
negativo que significa uma liberdade “como crítica de um mundo totalmente desprovido de
liberdade, submetido à lógica absurda e arbitrária de um ‘aparelho’ todo poderoso” (LÖWY,
2005, p. 56).
Isso que tenho dito sobre A metamorfose de Franz Kafka é afirmado também por
Löwy, quando ele diz: “A metamorfose é igualmente um relato sobre o poder mortífero do
pai”. A metamorfose de Samsa é a resposta literária de Kafka para explicar o totalitarismo
familiar, mostrar sua estrutura e nos dizer uma forma de combate insubmisso.
A aproximação que Michel Löwy realizou entre Étienne de La Boétie e Franz Kafka foi
a de identificar que a imagem do cão, em Kafka, é a imagem da servidão voluntária aos
moldes do discurso de Étienne. A imagem canina em Franz Kafka passa a ser uma alegoria ao
comportamento dos que “deitam aos pés de seus superiores hierárquicos” (LÖWY, 2005, p.
124) e Löwy tenta comprovar seu argumento ao listar as cenas em que os personagens d’O
processo se submetem, como um cão, aos seus superiores. Assim é o caso do advogado Huld,
quem tem ao seus pés o comerciante Block, e do próprio Josef K., que acaba por morrer como
um cão.
Invocando, ainda, um acontecimento histórico, o autor de Franz Kafka: sonhador
insubmisso aponta que O processo pode ser identificado como “ao mesmo tempo ‘pessimista’
e resolutamente anticonformista” (LÖWY, 2005, p. 126) e que há uma construção crítica à
servidão voluntária – até mesmo uma possível crítica à servidão dos soldados da Primeira
Grande Guerra (1914). É, portanto, um escrito de apelo à resistência, pois Kafka teria
participado de movimentos antimilitares nos anos de 1909-1912. Começou a redigir o
processo de Josef K. em agosto de 1914, poucos dias após a eclosão da guerra.
A pergunta que me fiz foi em que sentido essa crítica à servidão se encontra em Kafka,
quando a proposta de Étienne de La Boétie residia em não dar ao tirano o que ele desejava.
Como já disse anteriormente, em meu comentário ao texto de La Boétie, a questão era agir de
forma a não compactuar com o tirano, não sendo seus olhos, suas mãos, seus pés. Como
aponta Löwy, Josef K. é o exemplo da própria servidão voluntária: por ter, por fim, entregue a

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si mesmo à morte, a crítica à servidão é indireta. Kafka apenas ilustra o Discurso da servidão
voluntária, e não propõe o essencial: uma forma de desobedecer.
Acredito no oposto. Mesmo sendo alegoria para a servidão voluntária, os heróis de
Franz Kafka nos apresentam, pela sua servidão, uma forma combativa. Isso é paradoxal, tenho
que confessar. Mas, acima de tudo, se alinha à teoria que fundamenta meu argumento. Kafka
cria personagens obedientes; porém, o que não vimos, pois isso residia numa camada mais
profunda do texto literário, é que esse ato de obediência, no mundo literário kafkiano, é a
contragosto. Talvez, além d’A metamorfose, a Carta ao pai ilumine um pouco mais essa
questão da obediência como forma de não dar ao tirano o que ele deseja e, assim, minar o seu
poder.
Modesto Carone, em apresentação à carta de Franz Kafka ao pai Hermamm Kafka,
dirá, logo nas primeiras linhas, que esse documento é um “acerto de contas com o pai
despótico”. Franz Kafka tinha 36 anos e já poderia ser considerado um escritor maduro. A
carta, dirá o tradutor, pode ser lida como um documento de fundo histórico e existencial
concreto, não apenas expondo a relação familiar dos Kafka, mas também, com o devido
cuidado, uma forma de chave de leitura para a obra kafkiana. Indiretamente, a carta do filho
explicaria a figura paterna, que se repete, na literatura de Franz Kafka, nos homens da justiça
(BENJAMIN, 1987), chegando à “falta de liberdade objetiva no mundo administrado”
(KAFKA, 1997). Para termos uma ideia, Kafka define a relação paterna da seguinte forma:

Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora
mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai você era forte demais para
mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs
só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o
primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais (KAFKA, 1997, p. 10).

O lugar ocupado por Franz Kafka na relação com seu pai, Hermann Kafka, é ser alvo da
tirania do pai. O pai é uma figura profundamente autoritária, no sentido de que seu poder não
se justifica na sua própria figura. O pai é retratado por Franz Kafka como um juiz, “por todos
os lados, sob todos os pretextos – processo em que você afirma constantemente ser juiz”
(KAFKA, 1997, p. 41). É uma figura que a tudo domina, como uma espécie de mapa: “Às
vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim,
então, é como se entrassem em considerações apenas as regiões que você não cobre ou que
não estão ao seu alcance” (KAFKA, 1997, p. 68). Não resta dúvida de que o Pai kafkiano de
Carta ao pai é escrito para que, em tudo, simbolize a tirania: “Você assumia para mim o que

101
há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na
própria pessoa”. (KAFKA, 1997, p. 15-16).
Filipe Pereirinha, em ensaio intitulado “Uma leitura da ‘Carta ao pai’ de Franz Kafka”
(PEREIRINHA, 2013), coloca em cena outras nuances para além das colocadas por Carone –
entre as quais, o fato de que a carta de Kafka se destina a uma pergunta do pai, “Querido pai...
Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você” (KAFKA, 1997, p. 7)
e, sobretudo, que o “Mote” deste documento é o medo. Isso, na leitura de Pereirinha, permite
o desdobramento da carta em duas possibilidades de leitura.
A primeira leitura apontaria a Carta como uma resposta à tirania do pai – isto é, uma
condição ativa perante a instância paterna, muito diferente do filho de “O veredicto”: “a
escrita como resposta não suicida”. O segundo desdobramento seria o de que Kafka “parte de
si-para si mesmo”. A carta seria uma afirmação a respeito de Kafka, não de seu pai, o que
permite que Filipe Pereirinha afirme que o destinatário da carta não era o pai, mas sim o seu
próprio emissor: “O pai é um outro nome do sintoma-Kafka”.
Penso que, em ambos os casos, há de se pensar nas entrelinhas dessa carta para
refletirmos sobre um obedecer combativo. Se a saída da tirania do pai de Georg é o lançar-se
sobre as águas, obedecendo ao veredito paterno, a saída do filho Kafka é obedecer ao
chamado do pai e responder o motivo da inimizade familiar. Kafka, portanto, obedece à
convocatória paterna, mas obedece de maneira insuficiente. “Pelo contrário: se eu tivesse
obedecido menos, você na certa estaria muito mais satisfeito comigo”. Foi obedecendo que
Franz Kafka pôde causar insatisfação ao pai. Ao longo de toda a Carta, Kafka declara o
profundo dilema de ter que obedecer e o quanto a lógica da obediência a Hermann Kafka não
se sustentava. Ou seja, é preciso problematizar a obediência – e não a desobediência – em
relação ao tirano. A fragilidade e a tensão na casa dos Kafka não ocorre por meio de um filho
ausente e desobediente; pelo contrário, “Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei
obediente, mas fiquei internamente lesado” (KAFKA, 1997, p. 13).
Desde a minha primeira leitura de Carta ao pai, nunca aceitei que o documento escrito
por Franz Kafka tratava apenas de uma escrita ressentida da relação entre pais e filhos. Em
parte, a luta contra a tirania paterna apontada por Modesto Carone tem seu fundamento, bem
como a questão de que a carta se volta para o próprio Franz Kafka, como apontou Pereirinha.
Entretanto, além dessas leituras extremamente significativas, vejo agora que Kafka não deu ao
pai (ao tirano) algo que alimentasse seu poder. Seja pelo impeditivo materno, seja pela

102
desistência de Kafka no seu envio. O que sabemos do pai de Franz Kafka, Hermann Kafka, é
pelos olhos do filho. Eis o triunfo kafkiano.
Foi nessa transformação particular de filho oprimido que Franz Kafka elaborou uma
revanche contra o poder paterno. Sem direto à fala, o pai é silenciado. O filho
hierarquicamente inferior é a fonte do enunciado. É bem certo que esse lugar de enfrentar a
instância paterna pela escrita é um exercício novo para Franz Kafka, evidenciado nas
ressalvas ao longo de toda a Carta. Porém, convocado pelo pai, o filho não abre mão da
possibilidade da resposta. O ataque kafkiano parte da condição de servo voluntário, ao
assumir, diante da tirania, o seu tamanho, o seu comportamento. Franz Kafka ridiculariza o
pai, ainda que o preço seja condenar a si mesmo como um cão.
É bem certo que, ao lermos “O veredicto”, ficamos em dúvida se o conselho de Étienne
de La Boétie é completamente desobedecido; o que me faria pensar que a submissão kafkiana
seria encenada de modo diferente em cada texto do autor e que o projeto de ver-se livre da
tirania do pai não fosse um projeto evidenciado por um outro filho, Gregor Samsa. O pai,
como juiz, condena o filho, e este acolhe para si tal julgamento. Nas últimas linhas, lemos:
“Agora portanto você [Georg] sabe o que existia além de você, até sabia apenas de si mesmo”
(KAFKA, 2011, p. 41). A sentença do pai para o filho é “eu o condeno à morte por
afogamento” (KAFKA, 2011, p. 42).
Devemos lembrar que Samsa, apesar da sua condição de inseto, tem um projeto que o
libertaria do lugar de arrimo de família. Logo, temos a nosso favor esse primeiro argumento: a
elaboração de um projeto para ver-se livre pessoa familiar. Como descobrimos depois, não
será pela via do trabalho que essa “liberdade” será conquistada – o que me fez pensar,
portanto, que a resposta estaria na metamorfose de Gregor Samsa em inseto. Desse modo,
Gregor Samsa não dá à tirania do pai o que ele tanto almejava, sua força produtiva. O império
construído no tempo de cinco anos em um apartamento – as empregadas, a possibilidade de
enviar Grete ao curso de violino – começa a desmoronar. Sem saber o que fazer, pais e filha
precisam se inserir na lógica do trabalho.
É certo que o projeto de liberdade ambicionado por Gregor Samsa parece estar além da
sua imaginação. Como sabemos, não houve nenhuma aparição mágica e fabular que, diante da
dura vida de Samsa, oferecesse-lhe uma alternativa à escolha do trabalho. Muito menos Deus
aparece para Gregor Samsa, mostrando a salvação por meio da metamorfose. Duvido também
que Franz Kafka, como disseram muitos de seus intérpretes, saberia conscientemente de toda
potência de sua criação literária, o que inclui o dilema da metamorfose.

103
Lendo A metamorfose para este trabalho e pensando que, na submissão de Gregor
Samsa, há uma ação poderosa contra o poder, releio Hannah Arendt e o caso de Adolf
Eichmann. Eichmann, sendo fiel à tirania, deu-lhe tudo o que Hitler e o sistema nazista
pediram. “Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra. [...] Ele [Eichmann]
cumpria seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia
ordens, ele também obedecia à lei.” (ARENDT, 1999, p. 152). Em que Franz Kafka se
relaciona com o ato de obediência irrestrita de Eichmann? É que, nos casos mais sombrios,
ensinam-nos “Um relatório para uma academia” e A metamorfose que é possível a obediência
à lei como uma forma de resistência ao mundo do legislador. Essa não foi a escolha de
Eichmann, evidentemente, mas foi a escolha de todos os personagens de Franz Kafka.
Repito, aqui, a pergunta feita no início do meu trabalho: por que os personagens
kafkianos não reagiam à altura do mundo que os oprimia? Não existiria, diante do pai ou da
lei, um possível esboço de ataque contra essas instâncias de poder? Se não há esperança para
nós, como disse Franz Kafka, não haveria ao menos a oportunidade de vermos a terra
prometida, ainda que nela nunca habitemos? Se não é liberdade que almeja o símio de “Um
relatório para uma academia”, qual seria então, a saída que ele nos propõe? Gregor Samsa é
um derrotado?
Por que esses cães kafkianos, símbolos da servidão voluntária, obedecem? Eles não
podem agir de outra maneira. A sanção para os homens que agem por contra própria em
Kafka é imediata e extremamente pesada. Das vezes em que Samsa saiu do seu quarto, foi
profundamente atacado e ferido. O homem diante da lei é advertido que, no simples passo
para dentro do edifício da lei, será severamente impedido por guardas mais poderosos. A
entrada da lei deve ser uma ação premeditada.
O custo de desobedecer ao aviso do porteiro é impossível de ser pago. “No fundo, a
única razão para obedecer é a impossibilidade de desobedecer” (FRÉRÉRIC, 2018, p. 40).
Samsa é o herói insubmisso por ter demostrado, como nenhum outro personagem, que a
submissão se sustenta por meio de “forças desiquilibradas, na injustiça de uma relação
hierárquica”: (FRÉRÉRIC, 2018, p. 40): “Ao mesmo tempo, a submissão pode trazer como
seu reverso futuro uma promessa de revolta, de rebelião. O submisso espera sua hora. Ele
espreita as fraquezas do senhor, está atento às suas fragilidades, às brechas, pronto para dar o
golpe, virar o jogo”. (FRÉRÉRIC, 2018, p. 41).

104
5. CONSIDERAÇÕES PARA OS FILHOS DA ÉPOCA

“Somos filhos da época/ e a época é política”. Esses são os dois primeiros versos que
abrem o poema “Filhos da época”, de Wislawa Szymborska (SZYMBORSKA, 2011, p. 77-
78). Ele me permite acreditar que todo gesto que fazemos – aqueles que resultam no acerto e
os muitos outros que depõem a favor do erro – são, por fim, gestos políticos. Todas as ações
estão relacionadas à nossa condição como seres políticos.
Afeto e resistência foi o que desejei transmitir ao longo das páginas de minha
dissertação. Trouxe para a introdução questionamentos que me acompanham desde muito
tempo. Um desejo particular por liberdade, a conquista progressiva de autonomia, uma vida
na qual eu não seja espectador, mas sim um escultor de minha própria existência. Foi assim
que a literatura e a filosofia entraram em harmonia no primeiro capítulo deste trabalho, no
intuito de reforçar que, ainda que esses saberes estejam “tão fora de moda” em nosso tempo, a
Literatura e a Filosofia ainda têm muitas perguntas a nos lançar.
O caminho que percorri se deu por uma intuição. A filosofia e a literatura devem
caminhar juntas para que o pensamento sobre nosso tema seja feito de forma robusta e
coerente. Nesse passo, busquei reler aquilo que considerei importante para a autorização desse
diálogo. A literatura não apenas como diálogo com a filosofia, mas a literatura como
propulsionadora de questões – na realidade, de um tipo de filosofar, que é a filosofia da
suspeita. A literatura e a filosofia em tempos tão cheios do prenúncio do autoritarismo servem
para nos fazer suspeitar do mundo que amanhece a cada manhã. Não é certo que o sol nascerá
amanhã. O seu nascer e pôr-se diário nos ilude à eternidade do astro rei. Alguém precisa nos
lembrar que o sol, um dia, irá se pôr para sempre.
Dizer isso é dizer que, sobretudo na vida, deve-se suspeitar. A suspeita, assim como a
confiança, é um valor de extrema importância para a vivência dos homens e mulheres na terra
e deve ser cultivado. Um filho ou uma filha suspeitarem de sua mãe é, sem dúvida, uma tarefa
emocional cansativa; mas essa ação é, de todo, necessária. E a literatura e a filosofia são as
mestres da suspeita. Se algo eu pude aprender ao longo de minha escrita, é que a literatura de
Franz Kafka é uma literatura instauradora de suspeitas.
Franz Kafka conseguiu contrair uma atmosfera literária em que nos perguntamos: Será
que isso poderia acontecer comigo algum dia? Eu poderia acordar metamorfoseado num
inseto monstruoso, ou detido sem ter feito mal algum? Trata-se, em Kafka, do que foi
definido como realismo filosófico. E ele conseguiu tal atmosfera “desloucando” e fixando as

105
cenas a ponto de fazer acreditar que sua nova fixação é a organização que sempre esteve
diante de nós. Pois parece que, diariamente, um macaco em uma jaula em viagem para a
Europa se torna homem. E isso que, em outro escritor, seria uma espécie de conto de fadas,
em Franz Kafka se torna de uma verossimilhança brutal. Porque Pedro Vermelho, como
símio, passa a atingir a todos nós.
Disse que, desde muito tempo, uma inquietação sobre a liberdade e submissão tomou
conta dos meus questionamentos. O que desejei construir neste trabalho foi a resposta à
pergunta “como se tornar livre quando estamos na condição de enjaulados e cerceados em
nossos quartos, completamente submissos?”; pois a realidade descrita por Franz Kafka se
tornou a nossa. Somos retirados de nosso habitat, ou, ainda, tornamo-nos tão estrangeiros no
seio de nossa própria casa.
Somente “desloucando” o mundo encontramos respostas. Onde se lê “liberdade”,
encontra-se a submissão. E em nossa submissão reside o mais profundo gesto de liberdade. É
paradoxal, é verdade. Parece um convite a entregar-se à engrenagem mortífera da lei. É o
colocar-se na máquina como o caso descrito “Na colônia penal”. Entretanto, ainda que esse
movimento nos deixe assustados, é necessário observar sua potência.
Certa vez, no estágio obrigatório para a conclusão da licenciatura em Letras-Literaturas,
meu professor na época, Marcos Schefell, alertava-nos sobre a burocracia da Faculdade de
Educação. Eram planilhas, relatórios, trabalhos de final de curso... Ele nos disse, então, algo
que pode ser resumido em algumas palavras já ditas aqui: “faça da obediência uma
resistência. Se eles querem papéis, vamos dar papéis a eles”. Ri do comentário do meu
professor, mas isso significa, diante da submissão imposta pela universidade, reagir de
alguma forma. A universidade não poderia nos apontar qualquer falta. E se, ainda assim,
“reclamasse”, sua queixa só serviria para mostrar o quanto seu sistema é completamente
burocrático e desnecessário.
A metamorfose de Gregor Samsa, bem como a também metamorfose de Pedro
Vermelho, dizem-nos que, no fim, as instâncias superiores parecem vencer. Não apenas esses
dois personagens de Franz Kafka, mas parece que todo seu panteão de heróis são cães em
estado de servidão voluntária. Nossa condição humana é, de fato, atrelada a uma história de
expropriação e absurdidade. Mas o que sempre valerá a pena colocar em questão – e espero
ter conseguido fazer isso – é que, mesmo diante da falta de liberdade, existe uma forma
submissa de resistência.

106
***

Queridos membros desta academia,

O que procurei desenvolver ao longo de minha dissertação foi a possibilidade de pensar


a literatura em proximidade com a filosofia. Essa constatação me ocorreu ao entender que, por
meio da literatura, eu poderia construir uma forma singular de pensar a minha realidade. O
texto literário, para mim, nunca serviu para outra coisa senão isto: pensar a forma como vivo e
como vivem os que me cercam.
No ano de 2010, eu concluía o Ensino Médio na Rede Estadual de Ensino do Rio de
Janeiro, no Colégio Estadual Professora Sandra Maria Santos de Sousa. Influenciado pela
série Bones, que tinha como protagonista a antropóloga forense Temperance Brennan (Emily
Deschanel) e por minha aulas de sociologia do professor Ronaldo Braga, respondia no Pré-
Vestibular Social da Fundação CECIERJ/CEDERJ a opção de Ciências Sociais como o “meu
curso de graduação”. A bem da verdade, essa opção foi a mais bem fundamentada entre todas
as outras opções frutos de minha indecisão crônica. Pensei em Ciências Sociais, História,
Química, Turismo e Letras. Escolhi Letras-Literatura, sendo a terceira turma do curso noturno
que tinha sido recém implementado na UFRJ.
Abracei a literatura e a filosofia na minha chegada à Faculdade de Letras da UFRJ, no
ano de 2011, e especificamente esse relacionamento com a Literatura se aprofundou após os
anos de 2014. Clarice Lispector, no curso de Literatura Brasileira, foi a escritora a colocar um
pouco de ar nas minhas feridas, abertas pela fissura de um sistema de crenças religiosas e
familiares que se encontrava, pela primeira vez, num questionamento contundente, nas
páginas de Perto do coração selvagem.
Segui nas minhas leituras encontrando Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre e Albert
Camus, Carlos Drummond de Andrade. Sem nenhuma obrigatoriedade acadêmica e guiado
apenas pela obrigatoriedade do “amor à sabedoria”, li um pouco de cada um desses autores.
Na tentativa de compreender os valores que estavam sendo questionados em minha vida, eu
conheci o martelo de Nietzsche. Com Sartre, tudo passou a ser uma profunda náusea. E com

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Camus, a vida passou a ser um absurdo a ser encarado até suas últimas consequências.
Drummond foi o poeta de todos os meus sentimentos.
Entretanto, somente Franz Kafka me levou a estar diante de uma banca de pós-
graduação, motivando uma pesquisa que relacionasse meu sentimento juvenil, e esse profundo
desejo de respostas. Kafka esteve ali, do meu primeiro período, ao ler “A Muralha da China”,
com meu orientador, Ricardo Pinto de Souza, companheiro de viagem. Por vezes, Franz
Kafka desaparecia do meu horizonte, fácil como o esmagar das cinzas que ficam após a
queima de alguns papéis, mas sempre deixando marcas: felizmente, o que é recalcado sempre
volta com outras máscaras.
A proposta que eu coloquei para a literatura e a filosofia sempre foi clara. A literatura e
a filosofia me auxiliariam a pensar sobre a minha própria existência. Nesse sentido, estou
muito próximo de Lima Barreto, e assumi a postura de que “ou a literatura e a filosofia me
matam, ou elas me dão o que eu quero”. E acredito que as páginas aqui escritas são uma
resposta a esse confronto.
Penso que um dos pontos mais importantes, para mim, foi pensar a minha própria
liberdade. Foi assim que, ao ler Franz Kafka, tive a impressão de que todas as linhas da obra
kafkiana desempenhavam uma tentativa de escritura de resistência a todos possíveis
mecanismos de poder que podemos enfrentar. A luta já está vencida, é o que parece nos dizer
Kafka. E o que nos é importante – às vezes, Kafka é claro nisso; outras vezes, nem tanto – é
como levamos o processo ou como encaramos a metamorfose, até a sua consumação. Até
sermos mortos como um cão ou varridos pela faxineira.
A Minha vida se uniu a Kafka de uma forma surpreendente. Ele faz aniversário no dia 3
de julho de 1883. Eu, Pablo Rodrigues, faço aniversário no dia 4 de julho de 1993. Quando
apresentei pela primeira fez na PUC-RJ, na Semana de Filosofia dos Alunos da Pós-
graduação (SAF 2017), apresentei-me na sala Leandro Konder. Konder tem um pequeno livro
de caráter introdutório sobre Franz Kafka, e seu nome estava na placa da sala em que eu iria
apresentar. Franz Kafka me fez ir à terra do meu pai, o Ceará de Belchior, onde pude não
apenas realizar uma viagem acadêmica apresentando em um evento acadêmico na
Universidade Federal do Ceará, mas, sobretudo, encontrar-me comigo mesmo e com minha
história. O mesmo ocorreu quando, no ano passado, pude conhecer Campinas, apresentando
um trabalho sobre Franz Kafka na UNICAMP. Ali, fui um objeto estranho, proporcionando
um novo círculo de afetos. Um “Odradek” em pessoa. Uma amiga chegou no término de

108
minha comunicação e disse: “Pablo, eu percebi que você era um dos únicos comunicadores
negros de todo evento”.
Ano passado, o poeta de Praga me proporcionou organizar o primeiro encontro de
pesquisadores brasileiros sobre Franz Kafka. A “Kafkiana 2017” foi fruto de um longo
trabalho em colaboração com meu orientador, Ricardo Pinto de Souza. Fiquei surpreso
quando recebemos para o nosso evento textos de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo,
Ceará... E tivemos o prazer de ter o nosso evento divulgado no Estadão para todo o Brasil.
Sou morador da Baixada Fluminense, São João de Meriti, e, nas vezes em que aparecemos
nos noticiários, estamos relacionados a inúmeros casos de violência em nossa região. Mas a
literatura de Franz Kafka me proporcionou uma outra manchete. Nessa primeira edição do
nosso evento, contamos com a participação de Luiz Costa Lima e Susana Kampf Lage, e com
a força afetiva de Eduardo Oliveira Pereira (Mestre, PPGCL-UFRJ), Edylene Daniel
Severiano (Mestranda, PPGCL-UFRJ), Guido Arosa (Mestrando, PPGCL-UFRJ), Martha
Alkmin (Docente, PPGCL-UFRJ) e Lúcio Flávio Gondim (Mestrando, PPGL-UFC) e Ricardo
Pinto de Souza (Docente, PPGCL-UFRJ).
A Franz Kafka, por tudo.

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