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PUC-SP
Doutorado em Direito
São Paulo
2018
João Roberto Gorini Gamba
São Paulo
2018
BANCA EXAMINADORA
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Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
Ela nos espia do aparador.
(Carlos Drummond de Andrade)
RESUMO
This thesis works with the concept of justification of the State, differentiating it from the
legitimacy (empirical aspect) and legality (normative aspect) and seeks to verify the fulfillment
of the justifying function of contractarianism and proceduralism models in the context of
modernity and late modernity, respectively. To do that, it uses a historical-evolutionary
approach to the problem of justification. Therefore, it verifies the insufficiency of
contractarianism and proceduralism justifications, but not without first realizing a historical
reconstruction of the problem, presenting the Aristotelian theory in antiquity, and the
theological-religious, typical of the Middle Age, noting the need for a rationally structured
justification for the political and legal order in modernity. In this context, contractarianism
theories will be presented to fulfill this function and are analyzed here from their different
formulations, from Thomas Hobbes to Immanuel Kant, through John Locke and Jean-Jacques
Rousseau, verifying the importance of these theories for the configuration of Modern state.
Then, it analyzes the overlapping consensus by John Rawls, the legitimation by procedure by
Niklas Luhmann, and procedural theory of deliberative democracy by Jürgen Habermas, as they
contribute to the problem of State justification and seek to give additional breath to the modern
project. In the end, it concludes by the insufficiency of contractarianism and proceduralism
models in their task of justifying the Modern State, which undermines the effectiveness of its
legal system, especially with the advent of late capitalism, in which the problem of justification
is aggravated by the advance of science and technique not only in productive models, but
especially in politics with the denominated technocracy, in such a way as to affect the founding
constructs of modernity, notably by reducing the participation of the individual in the
productive system and in the democratic process, forcing us to rethink the typically modern
forms of State and law in a moment of a possible inflection of modernity.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DO PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO
DO ESTADO.................................................................................................................... 12
1.1 Introito etimológico-conceitual ................................................................................ 12
1.2 Contexto da descoberta e contexto da justificação .................................................. 14
1.3 O problema da justificação do Estado e sua relação com a legitimidade e a
legalidade..................................................................................................................18
1.3.1 O aspecto ético-filosófico da justificação do Estado ................................... 18
1.3.2 Aspectos normativo (legalidade) e empírico (legitimidade) ........................ 22
2 A POSIÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA E A NECESSIDADE DE UMA NOVA
JUSTIFICAÇÃO PARA O ESTADO NA MODERNIDADE .................................... 30
2.1 A justificação aristotélica do Estado ........................................................................ 30
2.1.1 A formação da cidade................................................................................... 30
2.1.2 A natureza política do humano .................................................................... 33
2.1.3 Autoridade pré-política e liberdade .............................................................. 38
2.1.4 O organicismo a partir da predominância da cidade sobre o indivíduo ....... 40
2.2 A justificação do Estado no medievo ....................................................................... 46
2.2.1 Notas acerca das justificações teológico-religiosas ..................................... 46
2.2.2 As doutrinas contratualistas no medievo...................................................... 53
2.3 Contexto de ruptura e o surgimento da necessidade de uma nova justificação do
Estado na modernidade ............................................................................................ 56
3 AS TEORIAS CONTRATUALISTAS MODERNAS .................................................. 60
3.1 Thomas Hobbes e as bases do contratualismo moderno .......................................... 60
3.1.1 Aspectos metodológicos e ruptura com a física aristotélica ........................ 60
3.1.2 A estrutura do argumento contratualista hobbesiano ................................... 63
3.1.3 A inadequação do modelo absolutista hobbesiano....................................... 72
3.2 John Locke e os fundamentos do Estado liberal ...................................................... 76
3.2.1 O conceito lockeano de propriedade ............................................................ 79
3.2.2 A limitação para a acumulação de propriedades .......................................... 84
3.2.3 Argumentos lockeanos para a acumulação ilimitada ................................... 85
3.2.3.1 A utilização da moeda .................................................................................. 85
3.2.3.2 O aumento da produtividade pela apropriação ............................................. 87
3.2.3.3 A limitação de ordem física e o trabalho assalariado como condição
natural...........................................................................................................88
3.2.4 A essencialidade do liberalismo lockeano para sua época ........................... 91
3.2.5 A desigualdade como condição natural ........................................................ 93
3.2.6 Liberdade contratual e contratualismo ......................................................... 96
3.3 Jean-Jacques Rousseau e o contrato social ............................................................ 102
3.3.1 Estado de natureza e as relações de propriedade em seu limite ................. 104
3.3.2 O fundamento da autoridade decorrente do contrato social ....................... 114
3.4 Immanuel Kant e a síntese do contratualismo moderno ........................................ 120
3.5 O resultado do projeto: o Estado moderno ............................................................ 125
4 AS CARACTERÍSTICAS DO CONTRATUALISMO MODERNO EM
PERSPECTIVA CRÍTICA........................................................................................... 130
4.1 Construção teórica individualista ........................................................................... 130
4.2 Das consequências da submissão ou associação .................................................... 135
4.3 O apriorismo do pacto ............................................................................................ 138
4.4 Crítica à vontade geral como fundamento do poder político e da normatividade
jurídica ................................................................................................................... 144
5 AS TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO
DIREITO ........................................................................................................................ 153
5.1 Breves notas sobre a modernidade como projeto em execução ............................. 153
5.2 A justificação neocontratualista e a reutilização do contrato como instrumento
metodológico em John Rawls ................................................................................ 161
5.3 A (auto)legitimação pelo procedimento na teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann.................................................................................................................171
5.4 A continuidade do projeto moderno a partir da teoria procedimental da democracia
deliberativa de Jürgen Habermas ........................................................................... 178
5.4.1 Notas sobre as bases da teoria da democracia deliberativa: racionalidade
comunicativa e consenso ............................................................................ 178
5.4.2 A Legitimidade “a partir de baixo” do capitalismo liberal ........................ 182
5.4.3 A repolitização da legitimação e seu fundamento comunicativo ............... 185
6 A INSUFICIÊNCIA DOS MODELOS PROCEDIMENTALISTAS DE
JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO ...................................................... 194
6.1 Capitalismo tardio e tecnocracia ............................................................................ 194
6.2 A iminente supressão do sujeito ............................................................................ 200
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 205
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 213
9
INTRODUÇÃO
trabalho, conquanto o leitor atente-se que a ideia de justificação do Estado e da ordem jurídica
aqui referida situa-se para além dos aspectos fático e normativo do fenômeno do poder.
Posto isto, a problemática que se segue deste conceito é: as diferentes justificações das
ordens política e jurídica do Estado moderno obtiveram êxito em sua função justificadora?
Dentro desta questão, abordaremos as teorias contratualistas modernas e as teorias
procedimentalistas contemporâneas, anotando as principais críticas a tais modelos, de tal modo
a apontá-los como insuficientes para a tarefa a que se propuseram.
No que concerne aos aspectos metodológicos, consideramos nossa tese alinhada a uma
abordagem histórico-evolutiva do problema, isto é, verificamos a insuficiência dos modelos
teóricos de justificação do Estado na modernidade e na modernidade tardia, mas não sem antes
realizar uma reconstrução histórica do problema, apresentando as principais teorias antigas e
medievais voltadas a esta questão. Diante desta abordagem, transparecerá nossa leitura possível
da história, demonstrando, ainda, a ideia de que os institutos sociais, bem como as ideias que
os suportam, são fruto de um longo processo histórico de formação, sendo a análise deste
processo fundamental para a compreensão atual de tais institutos ou ao menos fator de
substantiva importância em sua compreensão.
Para tanto, analisaremos a visão aristotélica da questão, pela qual o homem é
apresentado como animal político e, portanto, naturalmente gregário, sendo a sociedade política
vista como necessidade natural decorrente de formações menores, já dotadas de autoridade e
subordinação, estabelecendo assim uma desigualdade natural dos homens. Ainda na
compreensão de formas pré-modernas de justificação, debruçamo-nos também sobre as
justificações teológico-religiosas, de notável importância no medievo, para então
compreendermos a desconstrução da representação aristotélico-medieval do mundo e a
decomposição do Antigo Regime, contexto em que se engendra a transição da sociedade feudal-
medieval para a sociedade moderna e que faz emergir a necessidade de uma justificação
racionalmente estruturada para a ordem política e jurídica nascente do chamado Estado
moderno.
Apresentaremos então as teorias contratualistas modernas, atentando-se para as
particularidades de cada formulação teórica, de Hobbes a Kant, anotando a importância destas
teorias, que buscaram responder à questão elementar da aurora da modernidade: como
estruturar um corpo social harmônio em que convivem interesses conflitantes de indivíduos
racionais e autointeressados?
Na sequência, veremos as visões procedimentalistas típicas do século XX e que
adentram ao século XXI buscando dar o devido suporte às instituições democráticas e ao direito,
11
numa tentativa de dar fôlego adicional ao projeto moderno. Ambas teorias – contratualistas e
procedimentalistas –, em nossa leitura, não preencheram satisfatoriamente o vazio teórico
deixado pela queda das justificações tradicionais, demonstrando-se insuficientes para
justificação da ordem jurídica e política instaurada após a queda do Antigo Regime. Dentre
outros fatores que serão abordados, o contratualismo moderno ignorou as relações fáticas ao
imputar ao indivíduo concreto o ônus de um contrato aprioristicamente celebrado por
indivíduos abstratos, justificando a ordem política e jurídica a partir de uma autolegislação
meramente formal, noção que permeará todas as demais formas de justificação posteriormente
verificadas, incluindo aquelas contemporâneas de viés procedimentalistas.
Por fim, veremos como o advento do chamado capitalismo tardio e a chamada terceira
revolução tecnológica colocaram a questão da justificação sob novas perspectivas, ainda sob
investigação. Neste sentido, o fim do capitalismo industrial e o consequente avanço da técnica
e, politicamente, da tecnocracia afetaram constructos basilares do projeto moderno,
notadamente tolhendo a participação do indivíduo não só no processo produtivo, mas também
naquele democrático, forçando-nos a repensar a questão da justificação do Estado e do direito,
bem como a questionar se a supressão de conceitos fundantes da modernidade não a coloca nos
trilhos de uma iminente ruptura.
Nosso escopo, portanto, limita-se em demonstrar a insuficiência dos modelos de
justificação do Estado moderno e os fatores que em nossa leitura inflexionam o projeto
moderno, sem, contudo, pretender apresentar conjecturas sobre os modelos que estão sendo
germinados para justificar a ordem política e jurídica decorrente da chamada quarta revolução
tecnológica, cuja falta de distanciamento inviabiliza uma avaliação adequada.
12
1
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mora. São
Paulo: Cultrix, 2006, p. 62.
13
Posto isto, cumpre esclarecer que não nos propomos aqui estabelecer meras
significações de proposições mediante processos supostamente assépticos de verificabilidade,
de tal sorte que não buscaremos neste trabalho apresentar qualquer explicação ou qualquer
espécie de relação causal necessária que descreva as condições iniciais, a causa ou a predição
dos eventos sociais, econômicos e políticos que, num intricado jogo social permeado por
inúmeros outros fatores que nos fogem, resultaram no constructo moderno do Estado.
A partir destes breves apontamentos, cumpre apontar ainda quanto aos termos em
análise, que em nossa visão a expressão explicação refere-se ao passado, enquanto a
justificação aponta para o presente e também para o futuro, ponto que voltaremos a analisar à
frente.
Retornando às acepções possíveis da expressão justificação, para assim podermos
compreender melhor seu emprego, identificamos que ela não possui uma ampla utilização na
língua portuguesa. A expressão, contudo, aparece em alguns manuais de Teoria Geral do
Estado2, referindo-se aos fundamentos éticos que justificam o Estado como tal, tratando-se de
abordagem semelhante, porém não integralmente equivalente, à que iremos realizar neste
trabalho.
Adicionalmente, o uso de tal expressão é bastante difundido no estudo da teologia. Neste
tocante, no que se refere à teologia cristã, que possui notável influência em nossa cultura e, por
conseguinte, na construção de nossa língua, o termo justificação refere-se à “transformação
global, ordenada por Deus, que transporta a pessoa do estado de pecado-inimizade com ele para
o de santidade e de filiação adotiva divina, apta à destinação sobrenatural”. 3
Ressalte-se que o conceito teológico de justificação foi um dos pontos centrais da
contradição histórica verificada no período da Reforma, na medida em que no conceito luterano
de justificação os pecados não são cancelados, mas apenas cobertos ou não imputados, enquanto
que para os católicos haveria o verdadeiro cancelamento. Assim, na visão luterana não há uma
renovação interior do homem que dependa de sua resposta pessoal e, portanto, não há méritos
no mero ato externo de Deus. Já na visão católica, ocorre uma renovação a partir da liberação
do pecado e o renascimento para uma nova existência, já que o homem é sobrenaturalmente
santificado e renovado. 4
2
Por exemplo, em: JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE,
2000; HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000; e
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
3
LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p. 424.
4
FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. Vol. III. 2ª Ed. São Paulo:
Loyola, 1987, p. 105.
14
5
REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of
Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961.
15
social. Diante disso, aponta três tarefas da epistemologia: descritiva, crítica e orientadora.
Focaremos apenas na primeira, que nos interessa. Nela, nos apresenta a existência de relações
internas que pertencem ao conteúdo do conhecimento; e externas, as quais combinam questões
do conhecimento com outros tipos de questões que não se referem ao conteúdo do
conhecimento. Diante disso, afirma que a tarefa da epistemologia consiste na análise das
relações internas, enquanto a sociologia tende a se ocupar parcialmente com relações internas,
misturando-as com relações externas.6 Inobstante esta demarcação, a epistemologia não nos dá
a descrição completa dos processos de pensamento. Há, em Reichenbach, uma grande diferença
entre o sistema de conexões lógicas do pensamento e a maneira pela qual tal pensamento é de
fato formado, na medida em que os processos psicológicos do pensamento são vagos e
flutuantes. A real forma de ocorrência dos processos de pensamento consiste em campo de
estudo da psicologia, enquanto à epistemologia ficaria a tarefa de (re)construir os processos de
pensamento da maneira como eles deveriam ocorrer se eles estivessem alinhados num sistema
consistente, construindo, assim, um jogo justificável de operações.7 O termo mais adequado
para sintetizar esta questão é certamente o de reconstrução racional. Neste sentido, são
emblemáticas as palavras do autor em comento:
A partir desta perspectiva, o autor irá nos apresentar os conceitos evidenciados neste
capítulo, quais sejam, o de contexto da descoberta e contexto da justificação, para demonstrar
a diferença entre os processos que de fato resultaram na produção intelectual daqueles que
posteriormente reconstroem o pensamento a partir dos ditames da razão científica:
6
REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of
Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 5.
7
REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of
Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 5.
8
“In spite of its being performed on a fictive construction, we must retain the notion of the descriptive task of
epistemology. The construction to be given is not arbitrary; it is bound to actual thinking by the postulate of
correspondence. It is even, in a certain sense, a better way of thinking than actual thinking. In being set before the
rational reconstruction, we have the feeling that only now do we understand what we think; and we admit that the
rational reconstruction express what we mean, properly speaking.” (REICHENBACH, Hans. Experience and
Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of Knowledge. Chicago: The University of Chicago
Press, 1961, p. 6. Tradução livre).
16
9
“The way, for instance, in which a mathematician publishes a new demonstration, or a physicist his logical
reasoning in the foundation of a new theory, would almost correspond to our concept of rational reconstruction;
and the well-known difference between the thinker's way of finding this theorem and his way of presenting it
before a public may illustrate the difference in question. I shall introduce the terms context of discovery and context
of justification to mark this distinction. Then we have to say that epistemology is only occupied in constructing
the context of justification.” (REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the
Foundations and the Structure of Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 6-7. Tradução
livre).
17
ignorados pelos cientistas sociais e filósofos estudiosos dos referidos assuntos. Embora sejam
fatos externos à mente que pensou, é notável que interferiram o processo racional de formulação
das teorias, ou seja, tem-se a ideia de que não seriam pensadas da mesma forma se as situações
fossem outras. Rejeita-se, assim, a pretensão de conhecimento verdadeiro no âmbito das
ciências culturais (sem entramos na discussão se o mesmo não se aplica às naturais), não
havendo nelas uma predominância de análise apenas do contexto da justificação. Se assim é, “a
história das ideias só pode alcançar seu objetivo, que é dar conta do processo inteiro da histórica
intelectual de uma forma sistemática, se for suplementada por uma análise estrutural histórica
dos vários centros de sistematização que se sucederam de forma dinâmica”. 10
Para aquilo que nos afeta, identificamos que na justificação do Estado que aqui nos
propomos a esmiuçar, não há uma mesma necessidade científica de se verificar a reconstrução
racional dos eventos fáticos responsáveis direta ou indiretamente pelo surgimento do Estado,
tal como se este fosse resultado de relações causais concatenadas, o que seria, em verdade,
explicá-lo, conforme distinção já feita acima. Neste sentido, destacamos que as nuances do
processo histórico de formação fática do Estado moderno pressupõem um necessário recorte e
a aplicação de métodos e visões para a formulação de uma justificação. Este aspecto histórico,
englobado no contexto da descoberta, não será por nós ignorado, na medida em que as teorias
que justificaram racional e filosoficamente a fundação do Estado moderno, bem como sua
manutenção, não são de qualquer forma impessoais ou neutras do ponto de vista político e
histórico, e nem poderiam, de modo que a noção de contexto da descoberta será aqui
devidamente evidenciada a partir dos acontecimentos históricos que circundavam os
pensadores responsáveis pela construção da teoria contratualista e das demais que serão
apresentadas (ainda que não nos seja possível trabalhar os aspectos psicológicos das
formulações das teorias). Assim, daremos a devida importância ao contexto que envolveu os
responsáveis por formular as ideias que posteriormente (ou simultânea e dialeticamente) foram
absorvidas pelas estruturas formais do Estado moderno.
Posto isto, buscaremos apresentar as justificações do Estado moderno, sem ignorar que
se trata de uma reconstrução racional da forma pela qual a filosofia e a teoria da ciência dos
setecentos tratava de considerar a forma como o conhecimento válido deveria ser apresentado,
até mesmo no campo das humanidades. Buscando uma explicação, ou seja, uma reconstrução
racional da formação – ainda que hipotética – do Estado, intentavam justificá-lo sobre o ponto
de vista ético, vez que cumprindo os preceitos básicos da ciência moderna então nascente.
10
MANNHEIM, Karl; MERTON, Robert K.; WRITH MILLS, C. Sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1967, p. 69.
18
Diante disso, irá apontar que para tal minoria influente, a questão da justificação do
Estado se converte na questão da existência do Estado, ou melhor, na manutenção do atual
estado de coisas, cuja conservação é centralizada na figura do Estado. Já para a grande massa,
a questão que aqui buscamos trabalhar acaba por se reduzir ao aspecto prático, isto é, à mera
11
“Ciertamente que em el seno del Pueblo del Estado hay siempre uma reducida minoría para la que el ser y modo
de ser del estado desembocan constantemente en uma decisión de deber ser, minoría que participa, pues, com
actividad consciente, em la conservación y formación del Estado. Pero la gran masa, em cuanto es impulsada a um
obrar concorde com lo estatal por algo más que la dominación y las necesidades elementales, concibe la realidade
normal o eficaz como un deber ser; para esa masa la normatividade o, más exactamente, la habitualidad apenas
consciente de lo fáctico, significa uma base de justificación suficiente del Estado.” (HELLER, Hermann. Teoría
del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 277. Tradução livre).
19
coercibilidade ligada à legalidade. Assim, ambos possuem interesse na obediência, mas por
motivos imediatos de ordem distinta. Verificaremos, adiante, que para além de tais vinculações
imediatas pode haver um motivo precípuo pelo qual se obedece ao Estado, sendo certo que a
perda da fé nos princípios que justificam o Estado pode ocasionar sua instabilidade e, no limite,
seu fim. Com isso, assume-se que não basta apenas sua atuação como poder técnico-jurídico; é
necessário, além disso, obrigar moralmente para manter-se como uma “necessidade
psicológica”. 12
Com estes mesmos argumentos é que se refutam as teorias que consideram ser o Estado
justificado pela força (ou necessidade física). Tais teorias concebem o Estado como sendo
resultado do domínio de grupos fortes sobre fracos, explicando uma tendência natural. Neste
mesmo sentido, Jellinek nos brinda com uma importante afirmação, ao dizer que “os partidários
dessas teorias desconhecem que este poder de dominação é predominantemente de natureza
psicológica e não física, o que explica perfeitamente que seja uma minoria em vez de uma
maioria que frequentemente mande.”13 E conclui o referido publicista que:
Argumenta, assim, que a teoria da força não justifica o Estado, mas ao contrário aponta
para sua destruição, na medida em que aparece como uma incitação à luta permanente.
Diante de tais apontamentos iniciais, destacamos que para apontar a justificação do
Estado não basta remontar à sua gênese histórica. Afinal, trata-se de um conceito ético e, por
vezes, teológico. Desta forma, bem pontua Zippelius15 que o tema da justificação do Estado não
pode ser tratado como ciência avalorativa, na medida em que as doutrinas éticas da justificação
12
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.
277.
13
“Los partidarios de esta doctrina desconocen que este poder de dominación es predominantemente de naturaliza
psicológica y no física, lo cual explica perfectamente que sea una minoría em vez de uma mayoría la que
frequentemente mande.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México:
FCE, 2000, p. 205-6. Tradução livre).
14
“De estas doctrinas se han deducido consecuencias anarquistas, al frente de las cuales se encuentra la proposición
de que el Estado descansa en el poder y la fuerza, y que es, por consiguiente, ajeno a él una forma superior moral.
Y así como mediante esta teoría aparece justificada de una parte una negación, también aparece justificada, de
otra, la tendencia a producir revoluciones que transformen fundamentamente todo lo existente.” (JELLINEK,
Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 206. Tradução livre).
15
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 149.
20
acabam por demonstrar que determinados fins somente podem ser atingidos por meio da
existência do Estado. A natureza desta referida obrigação de viés ético-moral, contudo, possui
direta relação com os motivos fáticos da existência do Estado como instituição e das teorias
políticas e sociais suscetíveis de aceitação de determinado momento e local.
Assim sendo, embora aqui trataremos de trabalhar as questões principiológicas acerca
do existência e manutenção desta forma específica de instituição política detentora do poder,
que é o Estado moderno, não poderemos olvidar do contexto político e social no qual ele nasce,
sob pena de considerá-lo fato universal e natural16, como foi visto durante largo período
histórico, notadamente lastreado nos ensinamentos aristotélicos, que veremos à frente. Nesta
linha, cumpre destacar a importante lição de Jellinek:
16
“La consecuencia verdadera de una doctrina como ésta sería rechazar para el futuro toda exigencia práctica
respecto a la voluntad, porque si la historia es independiente de toda decisión individual y está governada por una
necesidad que queda más allá del bien y del mal, entonces esta necesidad se afirma por sí misma y no necessita
reconocimiento por parte del individuo” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los
Ríos. México: FCE, 2000, p. 232). Em tradução livre: “A consequência verdadeira de uma doutrina como esta
seria rejeitar para o futuro toda exigência prática a respeito da vontade, porque se a história é independente de
qualquer decisão individual e está governada por uma necessidade que está além do bem e do mal, então essa
necessidade se afirma por si mesma e não requer reconhecimento por parte do indivíduo.”
17
“Si es posible una justificación científica del Estado, sería un error concluir de aquí que existe una determinada
forma del Estado o una divisíon de sus poderes que pueda ser derivada de principios generales como la única justa.
Precisamente porque en todas las épocas los partidos políticos y sociales y sus partidarios teóricos se han inclinado
a caer em estas doctrinas, es por lo que toda ciencia seria debe apartar de sí tales tendencias. Un tipo ideal de
Estado con valor universal sólo puede encontrarse partiendo de principios con fundamento metafísico, acerca de
los cuales precisamente jamás existe conformidade. Todo Estado particular en su forma concreta es la obra de
fuerzas históricas cuyos efectos se pueden compreender, pero que no non susceptibles de ser representadas en su
totalidad por no ser absolutamente racionales. La política práctica y los deseos de los partidos conservan su derecho
a cambiar lo dado, y la investigación científica de la política puede y debe abrir caminho para que se realicen
mejoras; pero uma ciencia que concediera un valor especial a la exigencia de los partidos y racionalizase cualquier
tipo empírico de estudiar el encadenamiento íntimo de las teorias políticas en su evolución histórica, comprenden
que toda apoteosis de uma situación concreta del Estado provoca inmediatamente la crítica apasionada y la
21
racionalización de outra opuesta.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos.
México: FCE, 2000, p. 231-232. Tradução livre).
18
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004, p. 45.
19
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004, p. 49.
20
“La respuesta a las cuestiones críticas señaladas aqui debe suministrarnos no un conocimiento histórico, sino
principios para las acciones. Las instituiciones necesitan para substir poder ser justificadas racionalmente ante la
conciencia de cada generación.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos.
México: FCE, 2000, p. 197. Tradução livre).
22
O estudo do poder e da forma de seu exercício nas sociedades políticas nos leva a
questionamentos de suma importância para a compreensão do atual modelo de Estado e os
motivos precípuos pelos quais devemos obediência a seus preceitos, notadamente ao direito
posto. A análise deste tema nos coloca inevitavelmente diante de abordagens sociológicas, tais
como as tradicionais análises acerca da legitimidade – em Weber –, bem como, por outro lado,
diante de noções de claro teor positivista, que tendem a reduzir o fenômeno da justificação à
ideia de legalidade e obediência às normas jurídicas, notoriamente em virtude da coercibilidade,
ou, ainda, de perspectivas procedimentalistas, baseadas na obediência ao procedimento
formado – supostamente – em bases consensuais juridicamente estruturadas.
Destaque-se, desde já, que a análise da justificação do Estado objeto de estudo deste
trabalho não se confunde com tais conceitos, mas com eles necessariamente se relaciona.
Assim, a justificação do Estado não se confunde com (i) a legitimidade (em sentido
sociológico), ou seja, à aceitação fática – mediante obediência efetiva – de um poder específico,
afeta ao aspecto empírico do problema da justificação; e (ii) a legitimação normativa, ou seja,
a aceitação do poder do Estado como decorrente de uma ordem jurídica, o que denota um dever
de obediência às estruturas jurídicas postas, nos conduzindo à ideia da simples legalidade do
poder, ou, ainda, ao aspecto normativo da justificação do Estado.
Tal distinção é especialmente necessária diante da forte influência que o positivismo
jurídico teve em nossa cultura política e jurídica, de modo a realizar uma substancial redução
da questão da justificação à obediência ao direito posto, apresentando o aspecto normativo
como suficiente para justificar o Estado. Nesta linha, Hermann Heller21 aponta que a partir do
positivismo e do historicismo passou-se a cometer o erro de identificar a resolver a questão do
valor do Estado considerando seu sentido compreensível. Na visão do publicista, a confusão de
sentido e valor consiste num dos principais erros do pensamento contemporâneo. Desta forma,
pontua que a questão da justificação do Estado não pode ser resolvida pela simples consideração
de sua função compreensível, como aqui também buscaremos sustentar.
Neste ponto, são necessários alguns apontamentos no sentido de aproximar e diferenciar
a questão da legalidade (aspecto normativo) com os aspectos ético-filosóficos que cuidam de
dar a necessária justificação ao Estado. A legalidade, por evidente, alinha-se com uma teoria
21
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.
276.
23
jurídica da justificação do Estado, na medida em que considera este como produto do Direito.
Aqui estamos diante da justificação jurídico-positiva kelseneana, que pretendeu consolidar os
anseios científicos modernos na seara jurídica. Quanto a ela, é sabido que norma fundamental
kelseneana acata todas as variações de conteúdo normativo e nos remete ao arbítrio do primeiro
constituinte histórico, restando por identificar força e direito.
Neste sentido, ressaltamos que a conformidade dos atos estatais com o direito constitui
a base de sua legalidade, porém nunca de sua legitimidade justificadora22, de modo que a
legalidade do Estado não significa sua justificação; no máximo, ela contribui para a sustentação
desta na medida em que vincula a conduta dos governados por meio da coerção e, na linha da
sociológica clássica, implementa uma forma de legitimidade racional-legal.
Diante disso, a justificação ético-filosófica que aqui buscamos trabalhar encontra-se
acima do Estado constituído nos termos de um mero sistema jurídico. Afinal, não podemos
justificar o Estado com base apenas no sentido vinculativo derivado da coercibilidade das
normas jurídicas que ele mesmo coloca e que, ainda, trataram de o criar. A legalidade, como
problema da justificação, não se sustenta pelo simples fato de que as normas jurídicas extrairiam
sua fundamentação ética do próprio ordenamento jurídico de que fazem parte, recaindo assim
num grave problema de autorreferência.
Já a questão da legitimidade (aspecto empírico), nos conduz inevitavelmente aos estudos
de Max Weber, que possui famosa exposição acerca dos principais motivos para o acatamento
de ordens. Há, evidentemente, conexões entre o aspecto fático da aceitação, trabalhado pela
sociológica, e a justificação ético-filosófica que aqui buscaremos compreender. Neste rumo, é
essencial iniciar pelo que Weber entende por “dominação”, sendo esta “a probabilidade de
encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de
pessoas”. 23 Acrescente-se a isso que:
22
HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.
282.
23
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 139. E
ainda: “Por “dominação” compreendemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta
(“mandado”) do “dominador” ou dos “dominadores” quer influenciar as ações de outras pessoas (do “dominado”
ou dos “dominadores”), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se
realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações
(“obediência”).” (WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Trad.
Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999,
p. 191).
24
exercida são o que faz nascer, de uma ação social amorfa, uma relação
associativa racional, e noutros casos, em que não ocorre isto, são, não
obstante, a estrutura da dominação e seu desenvolvimento que moldam a ação
social e, sobretudo, constituem o primeiro impulso, a determinar,
inequivocamente, sua orientação para um “objetivo”. 24
Referido conceito inclui hábitos racionais, bem como inconscientes, sendo evidente que
a natureza do motivo pelo qual se obedece determina em larga medida o grau de dominação
exercido. A tais fatores se junta a crença na legitimidade, sendo esta de diversas naturezas,
ensejando assim tipos de obediência, bem como quadros administrativos distintos para cada
modelo. Ingressa-se aí na tradicional divisão da legitimidade em três tipos distintos de vigência,
quais sejam, a de caráter racional (dominação legal); a de caráter tradicional (dominação
tradicional); e a de caráter carismático (dominação carismática), sobre as quais
transcorreremos breves notas, apenas para que possamos delinear o tema da legitimidade em
sentido sociológico e, com isso, delimitar nossa análise da justificação do Estado em termos
filosóficos, sem que com isso haja qualquer confusão entre os conceitos. Neste sentido, é válido
transcrever um breve resumo feito pelo próprio Weber:
24
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Trad. Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 187.
25
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 141.
25
26
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 148.
27
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 173.
26
Há, inevitavelmente, uma necessária vinculação entre os três níveis apontados acima,
bem como uma necessária confusão de tais níveis, a depender da visão e das teóricas que são
possíveis de serem utilizadas para a análise deste tema. Via de regra, as questões éticas e
filosóficas tratam de justificar o aspecto normativo e este, por sua vez, vincula a obediência
fática, ou seja, justifica legal e racionalmente o poder, legitimando-o em bases sociológicas. No
28
caso do Estado moderno, a obediência fática (aspecto empírico) será decorrente da dominação
racional-legal trabalhada por Weber, relacionando-se umbilicalmente com a legalidade em
sentido positivista e, no plano filosófico, ancorou-se no contratualismo dos setecentos e,
contemporaneamente, no procedimentalismo, teorias sobre as quais nos debruçaremos com
maior cuidado.
Complementarmente às noções aqui apresentadas sobre justificação do Estado e do
direito, cumpre destacar uma visão teórica similar:
28
VALVERDE, Antonio José Romera, BRAGA, Luiz Carlos Montans, PUGLIESI, Márcio. Filosofia política e
direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André
Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo
Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/136/edicao-1/filosofia-politica-e-direito
(acesso em 11/11/2017).
29
seguir a hipótese – não comprovada – do direito natural de que já na própria realidade encontra
expressão um sentido racional. 29
29
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 140.
30
30
JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 197.
31
Assim sendo, este capítulo, cujo propósito é verificar a posição histórica acerca do
problema do fundamento da existência das sociedades políticas, deve iniciar na Grécia antiga,
local e momento em que se verifica a primeira consciência e reflexão acerca do fenômeno
político; ou seja, se coloca a origem e organização da pólis como objeto de estudo, distanciando-
a do observador. Naquilo que nos afeta, será Aristóteles, portanto, o primeiro a questionar sobre
o fundamento da associação política.
Passemos, então, a realizar uma análise da obra aristotélica de notória importância para
nossa tese, qual seja, A Política. O texto, como se sabe, muito além de tratar da relação do
indivíduo com a pólis, traz também relações entre escravo e senhor, moeda e riqueza, formas
de governo ideais, bem como sobre eudaimonía coletiva e educação. Tais temas, por evidente,
não serão objeto de nossa análise, senão naquilo que contribuírem ao cerne do que aqui se busca
entender: a visão aristotélica acerca da natureza gregária do ser humano e a relação deste com
a sociedade política vista como ontologicamente necessária.
O estagirita Aristóteles, embora jamais tenha se envolvido com a política prática,
realizou valiosos estudos a partir de análises históricas e também por meio da observação a ele
possível. Em A Política, inicia dizendo que “É para a mútua conservação que a natureza deu a
um o comando e impôs a submissão ao outro”32 Diante desta visão natural acerca da submissão,
irá pontar a família como a principal sociedade natural, sendo formada pela “dupla reunião do
homem e da mulher, do senhor e do escravo”.33 Sobre a questão específica da autoridade natural
e as consequências disso votaremos a tratar à frente.
Dando continuidade ao seu pensamento, aponta que a sociedade que se forma “em
seguida” à família, com várias casas, chama-se Aldeia, na qual haveria famílias dispersas
vivendo conjuntamente, porém sob o governo do mais velho. 34 Como se sabe, a sociedade que
se formou da reunião das várias aldeias é a Cidade: “A sociedade que e formou da reunião de
várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada
não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade,
31
WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.
2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 8.
32
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2.
33
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2.
34
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3.
32
portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos”.
35
Encontra-se aí o esquema básico traçado por sua obra: a partir da natureza é que
decorrem posições de comando e submissão necessárias à conservação, já que as pessoas não
podem viver umas sem as outras (natureza gregária do ser humano). A principal sociedade
natural, a família, forma-se pela união do homem e da mulher, do senhor e do escravo (num
esquema claro de submissão natural voltada à conservação) e, a partir da reunião de famílias
surge a Aldeia. A próxima etapa é a Cidade que, como dito, basta a si mesma – como meta
padrão de tudo o que está na natureza.
Ademais, referido postulado nos faz chegar às mesmas conclusões de Francis Wolff,
quando este diz que:
...a cidade não é apenas posta como “soberana entre todas”; é também aquela
que “inclui todas as outras”. Esta relação de extensão significa que a cidade é
a maior das comunidades, o que implica duas coisas; de um lado, que toda
comunidade diferente é um “subconjunto” da cidade; de outro lado, que aquilo
que é maior do que a cidade (por exemplo, a “nação” helena, ou as
confederações de cidades estabelecidas por tratados etc.) não é
verdadeiramente uma comunidade. 36
Aqui Wolff apreende ponto significativamente importante para nossa tese, qual seja,
aquele entendimento aristotélico de que a comunidade incluí todas as outras e, portanto, a forma
mais perfeita de convívio social, estando ainda nos desígnios da natureza humana. Difere-se,
portanto, de todas as outras “maiores”, tal como aquelas confederações estabelecidas entre as
Cidade-Estado helênicas com propósitos outros que não o viver bem, tal como a união para
vencer inimigos de guerra e quaisquer outros motivos – não naturais – que implicam afirmar
que tais confederações são formadas a partir de convenções que visam interesses. Sendo este o
motivo da união, não poderão tais confederações serem chamadas, em termos aristotélicos, de
comunidades, vez que carecem do organicismo típico das perspectivas aristotélicas e da
característica essencial à compreensão de sua teoria acerca da comunidade: o desenvolvimento
natural (e não mediante convenções).
Em uma síntese parcial, podemos dizer que a pólis se funda na não-autonomia do ser
humano, cuja natureza é associativa, e a partir de uma formação gradual (família – aldeia –
35
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3-4.
36
WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.
2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 45.
33
cidade), sendo que a Cidade basta a si mesma e, portanto, possui os elementos necessários para
o perfazimento da essência humana (o bem viver).
37
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4.
38
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4.
39
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4.
40
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4.
34
eles o homem, possuem uma conformação natural para agir em grupo visando a satisfação de
finalidades próprias à sua natureza, que inclui o lógos. 41
A discussão sobre a naturalidade da formação da pólis em contraposição à
convencionalidade das formações políticas modernas é ponto central de discussão do
pensamento político aristotélico e de suma importância para nossa tese. Taylor, neste sentido,
aponta a discussão:
Para reforçar seus argumentos, Taylor levanta a questão da relação senhor-escravo que,
mesmo considerada por Aristóteles como natural, é convencional na medida em que um escravo
é, por definição, propriedade do senhor e, portanto, a existência desta relação pressupõe
convenções constitutivas do direito de propriedade. Em conclusão, teríamos que “Aristóteles
construiu em sua conta do que é natural um elemento considerável de descrição dos
fundamentos da sociedade grega antiga”.43 Trata-se aqui de um questionamento de suma
importância para a compreensão da teoria aristotélica em comento, amiúde posta em termos de
uma origem natural do Estado.
No que tange a tal discussão, Höffe possui importantes contribuições:
41
LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera
Pública, 2008, p. 47.
42
“We might note in passing that the notion of “natural” in play here is not entirely unproblematic. If “natural” is
understood as “such as will inevitably come about unless prevented by external interference”, then Aristotle is
surely unjustified in claiming that the household and the village, as he understands them, are natural in that sense.
Plainly, the basic human needs of reproduction and survival may be satisfied in numerous kinds of organization
(e.g. the nomadic tribe) other than those which he has identified. Again, it is unclear to what extent “natural” (or,
equivalently, “by nature”) is opposed to “conventional” or “artificial”.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,
Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 236. Tradução livre).
43
“Aristotle has built into his account of what is natural a considerable element of description of the fundamentals
of ancient Greek society” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES, Jonathan. The Cambridge Companion to
Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 236. Tradução livre).
35
Tal tendência para se associar, para procriar ou para preservar a vida obedece
a uma finalidade natural que exclui a possibilidade de um fim alternativo, ao
contrário do que ocorre em relação aos fins realizáveis pela ação humana, os
quais (fim e ação ou meio) sempre poderiam ser diferentes do que são. Esse
44
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 231.
45
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 231-2.
36
Desta forma, o processo de formação da cidade tem como motor, ou melhor, como
causa, a natureza política do animal homem que, em virtude do lógos que lhe é específico,
forma uma comunidade a ser organizada segundo princípios de justiça – eticamente –, de tal
sorte a extrair a potencialidade do lógos. Ainda Höffe:
Em continuidade a esta temática, Höffe expõe sua visão acerca do risco de se verificar
em Aristóteles uma noção de desenvolvimento da pólis meramente biológica:
Neste ponto, o viés teleológico dos estudos aristotélicos nos leva a compreender a
existência da pólis a partir da busca de sua finalidade. Evidente que a finalidade das sociedades
políticas não pode ser reduzida a um bem concreto, vez que os homens possuem interesses
distintos. Assim, irá apontar – na linha platônica – uma finalidade de ordem genérica, que
defende o princípio da facilitação da vida e uma existência humana bem-sucedida e feliz. A
46
LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera
Pública, 2008, p. 47.
47
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 236.
48
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 237.
37
partir desta abordagem (já vista acima, da reunião para viver bem), o conceito de natural
adquire o seguinte sentido:
Em síntese, buscando alcançar a eudanimonia50, fim maior para a humanidade (do ponto
de vista moral) e das cidades (do ponto de vista político), os homens se reúnem em sociedades
políticas. Sintetizando a discussão, nos parece ponderada a posição de William David Ross:
Uma análise similar é feita por Marisa Lopes, ao trabalhar o aspecto natural e não-
necessário da cidade:
49
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 233.
50
O termo costuma ser definido por “felicidade”, embora sempre seja pontuada a desconformidade dos termos.
51
“En représentant l'état comme une chose naturelle, Aristote n'entend pas le rendre indépendant de la volonté
humaine. C'est par la volonté humaine qu'il a été formé et qu'il se maintient, et c'est par la volonté humaine qu'il
peut être façonné de manière “plus conforme au désir du coeur”. Mais il affirme qu'il est naturel en ce sens qu'il a
ses racines dans la nature des choses et non dans le caprice de l'homme.” (ROSS, William David. Aristote. París:
Payot, 1930, p. 329-330. Tradução livre).
52
LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera
Pública, 2008, p. 57.
38
Em resumo, temos que a posição sustentada por Aristóteles quanto à origem das
sociedades políticas pode ser vista a partir de diversos ângulos, embora nenhuma análise ignore
a importância por ele dada à natureza no processo de constituição das sociedades políticas.
Ressalta-se, neste ponto, a importância da questão ética da obra aristotélica para realizar a
devida análise acerca da natureza da cidade, já que “embora a natureza seja a causa necessária
que impulsiona o homem para a vida gregária, ela não garante, por si só, um certo modo de vida
(o virtuoso) que o homem é autônomo para escolher ou não.”53
Inobstante as discussões acima levantadas sobre a natureza da cidade, as afirmações
feitas logo no início de sua obra são, de certa forma, hialinas:
É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar umas sem as
outras, como o macho e a fêmea para a geração. Esta maneira de se perpetuar
não é arbitrária e não pode, na espécie humana assim como entre os animais e
as plantas, efetuar-se senão naturalmente. 54
53
LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera
Pública, 2008, p. 58.
54
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2.
39
Com este entendimento, o referido autor pretende demonstrar que a ideia da cidade
natural e do homem como ser naturalmente político significa não a naturalidade de uma
subordinação política, mas a ideia de que o homem foi feito para exercer uma autoridade
política e instituir uma ordem que responde ao fim último de toda associação. Daí a gradual
formação do Estado a partir de organizações (com autoridade) menores. Afinal, “é para a mútua
conservação que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro.” 56
Para
Aristóteles, portanto, “a natureza, que faz todos nós seres racionais, não nos torna, por causa
disso, igualmente livres. Pelo contrário, a liberdade é tão fracamente natural que o escravo,
segundo Aristóteles, é precisamente aquele que permanece de algum modo no estado de
natureza.”57
Diante disso, temos uma clara diferença do pensamento aristotélico para aquele
moderno que iremos analisar à frente, para o qual todos são iguais num pressuposto estágio
anterior à ordem política. Quanto a este aspecto, é importante não confundir a autoridade natural
trabalhada por Aristóteles com a noção do Estado como autoridade responsável pela
manutenção da ordem, conceito este de norte nitidamente moderno. Neste tocante:
55
BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola,
2007, p. 49.50.
56
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2.
57
BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola,
2007, p. 40.
40
por que o indivíduo deve aceitar a autoridade do Estado, Aristóteles, por sua
vez, reforça a alegação de que o bem individual é irrealizável a não ser para
um participante ativo em uma comunidade política. 58
O Estado, portanto, terá papel central na obra de Aristóteles enquanto único ambiente
possível para que o indivíduo se realize em sua plenitude, ao contrário dos modernos que nele
enxergarão uma entidade que, mediante coerção, busca limitar a convivência das liberdades
individuais com vistas a, desta forma, assegurar o bem comum.
Além disso, não se deve esquecer a grande diferença entre a pólis grega e um
Estado moderno. Se em Aristóteles vemos a pólis comprometida com o eu
zen, então se deve pensar apenas na separação que não existe de Estado e
sociedade ou mesmo temer até uma moralização da política. Como um lugar
58
“The question of political authority, central to most modern political philosophy, is, then, absent from Aristotle’s
agenda. That question, which may be phrased as “What are the grounds, and what are the limits, of the individual’s
obligation to obey the state?”, presupposes a background of thought in which the central concept is that of
obligation and in which the state is seen as something external to the individual, a coercive agency whose power
to interfere and to limit stands in need of justification. Aristotle’s presuppositions are quite different. His
fundamental concept is not that of obligation, but of human good; while in his view the role of the state, so far
from limiting the individual’s freedom of action with the aim of securing a common good, is precisely that of
enabling the individual to realize his or her potential to achieve his or her individual good, an achievement
impossible unless in the context of the state. (…) For the modern theorist the central problem is why the individual
should accept the authority of the state, Aristotle has rather to make good the claim that individual good is
unattainable except to an active participant in a political community.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,
Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 233-4. Tradução livre).
41
que se pode abranger com os olhos, com uma topografia e com a cidadania
familiares, uma coletividade do tamanho da pólis não é apenas uma
associação, mas também pátria e oferece, já por isso, muito mais chances de
humanidade diretas que o Estado contemporâneo com seu caráter de sistema.
59
Esta linha de raciocínio não é propriamente inaugurada com Aristóteles, podendo ser
verificada, por exemplo, no seguinte diálogo platônico:
59
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo
Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 235.
60
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4-5.
42
61
PLATÃO. A República. Trad. Albertino Pinheiro. Bauru, SP: EDIPRO, 2001, p. 66.
62
WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.
2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 9.
63
“Com efeito, o Estado na Antiguidade é a Cidade, condensação de todos os poderes. Da Cidade se irradiam as
dominações, as formas expansivas de poder e força. [...] Nínive, Babilônia, Tebas, Persépolis, Esparta, Atenas,
Roma, e tantas outras, são a imagem eloquente do Estado Antigo com sua geografia política urbana, sua
concentração personificada de poder, sua forma de autoridade secular e divina expressa na vontade de um titular
único – o faraó, o rei, o imperador –, de quem cada ente humano, cada súdito, é tributário.” (BONAVIDES, Paulo.
Teoria Geral do Estado. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 34). Ainda neste sentido, é importante destacar a
noção de Cidade-Estado grega como qualitativamente distinta da nossa: “Num outro sentido ainda, pode-se afirmar
que a cidade-estado não era uma cidade. Para os gregos, “pólis” significava sempre uma comunidade, e não uma
área territorial. Eles pensavam em termos de pessoas enquanto nós – expressando inconscientemente uma
concepção feudal que ainda vive em nossa mente – tendemos a pensar em termos de hectares. Daí a pergunta: qual
a ideia em nome da qual essas pessoas se reuniam, e se estruturavam numa sociedade? Há duas respostas possíveis:
a contiguidade e as relações de parentesco. Se adotarmos a primeira resposta, estaremos autorizados a falar da
comunidade grega como uma cidade-estado (“Stadtstaat”); se dermos a segunda, seremos obrigados a falar em
estado-tribal (“Stammstaat”). (BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega: Platão e seus predecessores. Trad.
Sérgio Fernando Guarischi Bath. Brasília: UNB, 1978, p. 48).
43
Ademais, a ideia de que o Estado é o primeiro objeto a que se propôs a natureza ressalta
o caráter necessário e relevante que a organização política possui no pensamento aristotélico.
Sua função é clara em seu pensamento: “não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver
juntos que se fez o Estado.” 65 Assim, apenas a vida em sociedade oferece a oportunidade do
homem construir seu caráter por meio da prática das virtudes. Neste sentido, Aristóteles deixa
claro sua recusa à formação mecânica do todo social ao dizer que:
Para então concluir que “a Cidade é uma sociedade estabelecida, com casas e famílias,
para viver bem, isto é, para se levar uma vida perfeita e que se basta a si mesma.” 67
Desta
forma, o pensador grego recusa veementemente qualquer formação mecânica – como será vista
a sociedade industrial moderna – como forma de associação apta a constituir uma Cidade, já
que esta – inerente à condição humana – precede as partes que contém, perfazendo um invólucro
social apto ao bem viver humano; sendo, ainda, único ambiente possível para que o homem
exerça as virtudes para a formação de seu caráter.
Sobre esta contraposição com relação ao pensamento moderno, Wolff possui importante
lição para compreender a natureza do político para os gregos da época clássica:
64
BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega: Platão e seus predecessores. Trad. Sérgio Fernando Guarischi
Bath. Brasília: UNB, 1978, p. 22.
65
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 45.
66
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 46-7.
67
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 47.
44
Com efeito, a sociedade política figura-se em sua obra como primeiro objeto da
natureza, tendo existido o todo (a sociedade) antes das partes (seus indivíduos) que, portanto,
estão subordinados ao corpo de que fazem parte. Consta aí a base do organicismo69
característico da Antiguidade, em que o indivíduo existe em função do Estado e não este em
função daquele, tal como veio a prevalecer, posteriormente, no pensamento moderno
eminentemente mecanicista. 70
Feitas as colocações que consideramos necessárias sobre o pensamento aristotélico no
que tange ao assunto por nós estudado, cabe apresentar uma síntese do pensamento aristotélico,
conforme feita por Eduardo Bittar, em seu Curso de Filosofia Aristotélica:
Deste conjunto de reflexões se extrai que: a) tudo está ordenado para um fim,
inclusive a conformação política; b) o fim há de ser algo que é o melhor; c) a
pólis é fim, por sua auto-suficiência, e o é para as comunidades que a
antecederam no tempo. Tem-se, então, que a pólis é uma das coisas que existe
por natureza (ek toútwn oûn phaneròn óti twn phísei he pólis estí), e por
68
WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.
2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 14.
69
“The analogy commits Aristotle to holding that what makes any of us human is our capacity for polis
membership, just as what makes this quantity of organic matter a hand is its capacity to play a particular role in a
functioning human body. The political implications of this analogy are momentous, since the parts of an organism
have no interests independent of the interests of the organism as a whole. Rather, the good of the parts is its such
as to make its proper contribution to the good of the organism.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,
Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 239-240). Em tradução
livre: “A analogia confirma que Aristóteles considera que o que faz qualquer um de nós humano é a nossa
capacidade para a adesão à polis, da mesma forma que o que faz com que essa quantidade de matéria orgânica seja
uma mão é a sua capacidade para desempenhar um papel específico em um corpo humano em funcionamento. As
implicações políticas dessa analogia são de grande importância, uma vez que as partes de um organismo não têm
interesses independentes dos interesses do organismo como um todo. Pelo contrário, o bem das partes é fazer sua
contribuição adequada para o bem do organismo.”
70
A análise comparativa entre as diferentes formas de organização social na antiguidade e na modernidade
consiste, como não poderia ser diferente, de uma análise a partir da ótica e dos parâmetros hodiernamente
estabelecidos para tanto. Desta forma, com vistas a modelar imagens coletivamente eficazes do ser humano,
Sloterdijk nos lembra de que humanistas, teólogos, sociólogos e politólogos sempre se valem da teoria segundo a
qual a humanidade começa com a grande civilização. Trata-se, aqui, de apontar um equívoco comum que consiste
em projetar o homem moderno no homem da Antiguidade. Em suas palavras: “A ideologia oficial das grandes
civilizações, em todas as suas variedades, quer nos fazer acreditar que a história real e digna de menção não teria
mais do que quatro a cinco mil anos, e que a espécie essencial, na qual tendemos a nos incluir, surgiu da névoa
justamente àquela época no Egito, Mesopotâmia, China e Índia. Naquele tempo apareceram escrevinhadores e
escultores que pela primeira vez nos mostraram o que era o homem. Ecce Pharao, eccce homo – o homem não é
mais antigo do que a grande civilização, a verdadeira humanidade começando no seu apogeu. [...] A apologia atual
da grande civilização abrevia a história da humanidade em mais de 95%, talvez até em 98% de sua duração real, a
fim de ter liberdade para uma doutrinação ideológica e antropológica em alto grau – a doutrina, entendida como
clássica e moderna, do homem como um “ser político”. Seu sentido é apresentar o homem a priori como um animal
burguês que, para sua realização essencial, precisa de capitais, bibliotecas, catedrais, academias e representações
diplomáticas.” (SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. Trad.: Claudia Cavalcanti.
2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 18-19).
45
A partir desta síntese, podemos absorver aquilo que precisamos para contrapor o
pensamento aristotélico aos estudos modernos acerca do fenômeno político, notadamente
quanto às alegações feitas pelo pensador grego em comento, qual seja, a natureza gregária do
ser humano e a cidade como ontologicamente natural e autárquica, no sentido acima exposto.
Neste tocante, Aristóteles inaugura uma linhagem filosófica72 que verá o instinto de
sociabilidade como inato aos seres humanos e a sociedade política como necessária 73,
apontando, portanto, que a vida política do homem não consiste em um meio para a realização
de qualquer concepção de bem, mas a própria finalidade do homem, uma vez que a concepção
de bem é, ela mesma, social e, desta forma, a vida em comunidade é o lugar por excelência para
a realização da essência natural humana.
É esta visão que iremos contrapor no capítulo terceiro à frente, ao apontar a visão
moderna do mesmo problema, encabeçada por Samuel Pufendorf e Hugo Grotius, e
sistematizada por Thomas Hobbes e, posteriormente, por John Locke e Jean-Jacques Rousseau,
delineando a abordagem moderna do problema, pela qual veremos que o politikòn zwon cederá
para o homem selvagem, cujo impulso natural não consiste naquele gregário, mas sim no de
conservação de si mesmo e, portanto, volta-se para benefícios próprios a partir de uma
racionalidade natural. Diante disso, cairá por terra a concepção organicista do pensamento
político grego e prevalecerá uma noção mecanicista, típica do pensamento moderno, de tal sorte
que deixarão de existir causas finais (perspectiva teleológica de Aristóteles), sendo a busca pela
comunidade uma questão instrumental decorrente do impulso natural pela busca do benefício
71
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico.
Barueri, SP: Manole, 2003, p. 1180.
72
Sem prejuízo das demais referências feitas nesta tese a tal linhagem e levando-se em consideração os lindes
estabelecidos para esta pesquisa, ressaltamos, ainda na Idade Antiga, a posição de Cícero: “XXV. – É, pois, –
começou o Africano – a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo
congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem:
a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de
sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma
disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum. XXVI. – Assim, não
deve o homem atribuir-se, como virtude, sua sociabilidade, que é nele intuitiva. Formadas assim naturalmente,
essas associações, como expus, estabeleceram domicílio, antes de mais nada, num lugar determinado; depois, esse
domicílio comum, conjunto de templos, praças e vivendas, fortificado, já pela sua situação natural, já pelos
homens, tomou o nome de cidade ou fortaleza.” (CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad.: Amador Cisneiros.
4ª Ed. São Paulo: Atena, 1956, p.34-5).”
73
Neste ponto, cumpre-nos apontar a crítica de Sloterdijk: “A inesquecível tese da zoologia platônico-aristotélica
tem como objetivo fazer com que de antemão surjam do Estado, em pequenos rebanhos, seres vivos, tais quais
produtos de um único regaço político que produz reis e artesãos na mesma ninhada. Portanto, será possível o
homem como politikós?” (SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. Trad.: Claudia
Cavalcanti. 2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 39).
46
74
“Tanto quanto posso ver, Marsílio de Pádua foi o um dos primeiros, senão o primeiro, que em seu escrito
Defensor pacis (1341) criticou, seguindo Aristóteles, a teoria da translatio imperii e, com isso, toda justificação
teológica. Essa controvérsia seguiu até o século XIX, quando teóricos como de Bonal e de Maistre tentaram
fundamentar religiosamente mais uma vez os poderes tradicionais da igreja, da monarquia e da sociedade
estamental.” (HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São
Paulo: Unesp, 2016, p. 401).
47
modo que o escopo do grupo e de seu “direito” coincidem e residem nesta divindade que o
justifica. Na Índia e na Pérsia, por exemplo, os soberanos eram delegados de Deus, vez que se
acreditava que haviam recebido o poder diretamente por manifestação de uma vontade divina.
No Egito, os Faraós eram tidos como descendentes das divindades. Já o Imperador da China
possuía um mandato do céu. 75 Em suma, cada grupo apresentava justificações que legitimavam
a autoridade soberana por meio de um desígnio divino qualquer.
Tais pretensões não foram abraçadas nos primeiros séculos do cristianismo. Afinal, a
doutrina cristã tendia a apontar como herética a postura de considerar um humano a
personificação de Deus ou algo que a isso valha. Para os cristãos, todo o poder vem de Deus de
maneira providencial, ou seja, por meio dos homens. 76
O clássico ensinamento cristão “dai a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus” traça a divisa do poder terreno, que governa
as coisas da terra, e do poder espiritual, que cuida da alma. Jellinek77 vai além ao lembrar-se da
oposição de civitas Dei e civitas terrena de Santo Agostinho, apontando o Estado como
consequência necessária de nossa queda no pecado. 78
Ainda na ideia agostiniana acerca do poder político, destaque-se a síntese de Landrey
Bernard:
75
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Migulel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 60.
76
Ressalta-se, ainda, a teoria do direito divino providencial como uma das espécies de justificação teológico-
religiosa: “Deus dirige providencialmente o mundo, guiando a vida dos povos e determinando os acontecimentos
históricos. Dessa direção suprema resulta a formação do Estado; o poder bem de Deus, mas não por manifestação
visível e concreta da sua vontade. O poder vem de Deus através do povo – per populum –, como doutrinou Santo
Tomás de Aquino. Em outras palavras: todo poder vem de Deus, in abstracto, não in concreto.” (MALUF, Sahid.
Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 62).
77
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 198.
78
“Como todo lo que deriva del pecado, sirve él también para mostrar claramente la gracia divina que promete a
los elegidos la salvación; triunfará la gracia cuando el Estado divino se sobreponha al Estado terreno y la eternidade
haya consumido el tempo.” (JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos.
México: FCE, 2000, p. 200). Em tradução livre: “Como tudo o que deriva do pecado, ele serve também para
mostrar claramente a graça divina que promete salvação aos eleitos; triunfará a graça quando o Estado divino se
sobrepor ao Estado terreno e a eternidade tenha consumido o tempo.”
48
A partir deste trecho, fica evidente a origem do poder político, na linha defendida por
São Paulo, notoriamente em Romanos, XIII, I (Non est potestas nisi a Deo), de tal sorte a derivar
todo poder de Deus, passando-o, em contextos terrenos, pelo papa.
Também Walter Ullmann80, ao tratar das realezas teocráticas medievais, nos lembra que
a ideia da Dei Gratia como justificação do poder aparece no oriente desde o séc. V e é utilizada
posteriormente tanto para justificar o poder religioso, como também o poder secular. Tal
princípio parece fundar-se em São Paulo, ao expor o Gratia Dei sum id quod sum (pela graça
de Deus sou o que sou)81, dando a ideia de que aquilo que somos não depende de nossos méritos,
mas da graça de Deus.
De tal conceito deriva o princípio da concessão, segundo o qual Deus concedia o poder
ao Rei e este, por sua vez, concedia direitos ao povo. Este princípio, embora de fácil
compreensão, possui fatores intrínsecos de suma importância; em especial, vale ressaltar que
“a noção de concessão excluía a ideia de direito à coisa concedida”. 82
Assim sendo, o poder
provinha de cima, num exemplo clássico de forma descendente de justificação do poder
político, mediante concessão divina. O rei, por sua vez, fazia novo ato de concessão ao conceder
direitos ao povo que, de acordo com a noção aqui apresentada, não detinha efetivamente tais
direitos.
Destaque-se ainda, a recepção das teorias aristotélicas dentro do contexto político-
ideológico medieval, notadamente influenciado pelo cristianismo. Neste tocante, Ullmann nos
ajuda a estabelecer a diferença substancial do pensamento político aristotélico e daquele cristão,
no que se refere ao fundamento do Estado:
79
LANDRY, Bernard. L’idée de chrétienté chez les scolastiques du XIIIe siècle. Paris: 1929, p. 5-6 apud
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 74.
80
ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela Soriano. Madrid:
Revista de Occidente, 1971, p. 121.
81
Coríntios, XV, 10.
82
ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela Soriano. Madrid:
Revista de Occidente, 1971, p. 124.
49
De toda sorte, do profundo conhecimento da obra aristotélica por São Tomás resultou a
conciliação dos ensinamentos do pensador grego com os postulados cristãos. Com efeito:
Tal fez com que fosse possível qualificar o tomismo de aristotelismo cristão, sendo os
entendimentos aristotélicos acerca da natureza e, no que nos afeta, da política, incorporados à
filosofia política predominante no medievo a partir do século XIII, exercendo forte influência
em virtude do aparente enquadramento dos ensinamentos aristotélicos à cosmologia cristã.
Afinal, o conceito de natureza, de expressiva importância na obra de Aristóteles, foi em larga
83
“El Estado aristotélico crece; está constituido orgánicamente; está sujeto a los principios de la evolución natural
y toma en cuenta las diferencias, divergencias y variaciones del desarollo humano de una manera que podríamos
calificar de realista. En todos sus aspectos esenciales la posición cristocéntrica es precisamente su contraria, ya
que el “Estado”, es decir, la Iglesia, en tanto que unión de todos los cristianos, clérigos y laicos, parte de una
fundación: fue estabelecida por un acto consciente y deliberado de Cristo; sigue las leyes de su fundador y las
implementa en su extranaturalidad. En resumen, el Estado aristotélico es una entidad natural que deriva su esencia,
ser y desarollo de las propias fuerzas naturales; la Iglesia es extranatural y deriva su esencia, ser y desarollo de su
propia fundación divina.” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad.
Graciela Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 239. Tradução livre).
84
Indudablemente, y sin la más mínima intención de subestimar a ninguno de sus contemporáneos, hay que afirmar
que Tomás fue el único escritor que no solo comprendió perfectamente al filósofo [Aristóteles], sino que además,
y precisamente por ello, percibió las potencialidades que encerraba su doctrina. Hacer que Aristóteles duera
aceptado dentro de la cosmologia cristiana pudo haber parecido a los profanos del tempo uma tarea poco menos
que imposible, pero en virtude de una penetración nunca vista hasta entonces dentro de los pensamientos
aristotélico y Cristiano, así como del despliegue de todas las potencialidades que le brindaba el método escolástico
dialético, Tomás fue capaz, indudablemente, de llevarla a cabo. Se trata de uma tarea de la cual hay pocos paralelos
en historia del pensamiento.” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad.
Graciela Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 244. Tradução livre).
50
medida utilizado por São Tomás, fazendo com que fosse possível distinguir entre secundum,
contra, preter y supra naturam, bem como valer-se de tais conceitos para classificações.
Naquilo que nos afeta, Tomás absorve o entendimento aristotélico quanto à natureza
gregária do ser humano, o que pode ser evidenciado em diversas passagens da Suma
Teológica85 e, neste sentido, apresenta uma continuação do pensamento aristotélico,
conciliando-o com uma visão teocêntrica de mundo e apontando o Estado como corpo político
e moral, que não foi fundado ou criado artificialmente, mas surge a partir do instinto gregário
natural dos seres humanos.
Além das disposições da Suma Teológica, que evidenciam a natureza gregária do ser
humano, em Comentário à Política de Aristóteles, obra póstuma de São Tomás, o pensador
logo no Prólogo já estabelece que:
85
Como na I-II Parte, questão 61, art. 5: “E como o homem é, por natureza, animal político, as virtudes cardeais,
enquanto nele existentes segundo as condições próprias da sua natureza, se chama políticas, ou seja, praticando-
as o homem procede corretamente na gestão das coisas humanas. E é nesse sentido que temos tratado delas até
aqui.” (AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. 4. I Seção da II Parte. Questões 49-114. São Paulo: Loyola,
2005, p. 170). Ademais, na I-II Parte, questão 71, art. 4: “Acima foi dito que o pecado é um ato desordenado. De
haver no homem uma tríplice ordem. Primeiro, em relação à razão, cuja regra deve servir de medida para todas as
nossas ações e paixões. Depois, em relação à lei divina, cuja regra deve também dirigi-lo em tudo. E, se fosse feito
para viver só, lhe bastariam essas duas ordens. Mas, ele é naturalmente político e social, como se prova no livro I
da Política, por isso lhe é preciso uma terceira ordem pela qual se ordene aos outros homens com os quais deve
conviver.” (idem, p. 310).
86
“La ciudad es lo principal entre lo que puede constituirse por la razón humana, pues a ella se refieren todas las
comunidades humanas. Además, en las artes mecânicas, los todos constituidos por las cosas que llegan al uso del
hombre, se ordenam a éste como a su fin. Luego, si la ciencia principal se refiere a lo más digno y perfecto, es
necesario que entre todas las ciencias prácticas la política sea la principal arquitectónica de todas las otras, pues
considera el bien último y perfecto em los asuntos humanos.” (AQUINO, Tomás de; ALVERNIA, Pedro de.
Comentario a la Política de Aristóteles. Trad. Ana Mallea. Pamplona: EUNSA – Universidad de Navarra, 2001,
p. 35. Tradução livre).
51
aristotélico com uma visão teocêntrica87, faz emergir no final da Idade Média um entendimento
adequado ao seu tempo, delineando o surgimento do Estado como nação, bem como evidencia
o distanciamento desta instituição com a Igreja. Neste sentido, cumpre-nos apontar a seguinte
síntese feita por Ullmann:
Portanto, o Estado não tem nenhuma relação com outro elemento que não seja
a natureza mesma. Mas, por outro lado, devemos lembrar, primeiro: que não
se origina em nenhum pacto humano; não foi criado artificialmente, nem nas
suas Origens nem no seu funcionamento atual tem algo a ver com o papado
ou qualquer outro organismo eclesiástico. Em segundo lugar: o Estado está
orientado para objetivos derivados da sua essência natural, com a qual a
teologia da natureza encontra sua plena realização, “já que sustentamos, com
o filósofo, que a natureza de uma coisa é seu fim”. Esse fim ou objetivo do
Estado é seu bem-estar (bem viver), sua autossuficiência, sua independência,
já que somente com esta orientação pode obter-se a “felicidade” do Estado e,
obviamente, de seus cidadãos. Em suma, o Estado é autônomo, independente.
Terceiro - e talvez o mais importante: o Estado constitui uma associação
humana; não se trata de uma coisa abstrata (ainda), mas de uma realidade viva,
de um ser por direito próprio, com suas próprias leis, finalidades, propósitos e
órgãos. Portanto, não pode nos surpreender que o conceito de nação seja
também um instrumento de trabalho dentro do sistema tomista: existem
nationes hominum e o direito eclesiástico dos ritos “per diversas nationes
diffunditur”. Natio, igual de natureza, sustenta Tomás, é derivado
etimologicamente de nasci, e é a partir desse momento em que o conceito
começa a adquirir um significado preciso. Se trata de um conceito que, ao
longo do tempo, expressará a identidade natural de um povo que, com base
em sua ascendência comum, língua, instituições, etc., constitui ou aspira a
constituir uma unidade natural. 88
87
Ainda que em determinadas passagens Tomás de Aquino apresente a ideia de pacto como fundamento da
legitimidade da autoridade política. Neste sentido: “Se compete ao direito de uma dada multidão [ad ius
multitudinis] se dar a si própria um rei, não é injusto [non iniuste] que o rei seja deposto ou tenha seu poder
restringido por essa mesma multidão quando, tornando-se um tirano, ele abusa de seu poder real. Não se deve
pensar que essa multidão esteja agindo de modo desleal [infideliter agere] ao depor o tirano, embora ela tenha
previamente se sujeitado a ele perpetuamente, pois ele próprio merece que o pacto com seus súditos [pactum a
subditis] não seja mantido, uma vez que, ao governar sobre a multidão, ele não agiu de modo leal como o dever
de um rei exige. (AQUINO, Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco Benjamin
de Souza Neto. Pretrópolis: Vozes, 1997, p. 140).
88
“Por tanto, el Estado no tiene ninguna relación con outro elemento que no se ala naturaliza misma. Pero, por
otra parte, debemos recordar, primero: que no se origina en ningún pacto humano; no há sido creado articialmente,
y ni en sus Orígenes ni em su funcionamento actual tiene nada que ver con el papado o con cualquier otro
organismo eclesiástico. Segundo: el Estado se orienta hacia objetivos derivados de su esencia natural, con lo que
la teologia de la naturaleza encuentra su realización plena, “ya que sostenemos, con el filósofo, que la naturaleza
de una cosa es su fin”. Ese fin u objetivo del Estado es su bienestar (bene vivere), su autosuficiencia, su
independencia, ya que solo con esta orientación puede obtenerse la “felicidad” del Estado y, por supuesto, de sus
ciudadanos. En suma, el Estado es autónomo, independiente. Tercero – y quizá lo más importante –: el Estado
constituye una asociación humana; no se trata de una cosa abstracta (todavía), sino de una realidad viviente, de un
ser en su propio derecho, con sus propias leyes, fines, propósitos y órganos. Por tanto, no puede sorprendernos que
el concepto de nación sea también un instrumento de trabajo dentro del sistema tomista: existen las nationes
hominum y el derecho eclesiástico de ritos “per diversas nationes diffunditur”. Natio, igual de naturaliza, sostiene
Tomás, se deriva etimologicamente de nasci, y es desde este momento cuando el concepto comienza a adquirir un
significado preciso. Se trata de um concepto que con el correr del tiempo llegará a expresar la identidad natural de
un Pueblo que, en base a su común ascendencia, lengua, instituciones, etc., constituye o aspira a constituir una
52
unidad natural” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela
Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 250. Tradução livre).
89
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 60-1.
90
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 207 e ss.
53
que nos ensina Heller, ao concluir que durante dois mil anos se justificou, se não o Estado, ao
menos o poder político, pela necessidade de assegurar um direito natural suprapositivo.
Vejamos:
91
“Este tan amplio sentimiento jurídico del hombre occidental se seculariza en la Edad Moderna, el derecho natural
cristiano se laiciza, pero ni el derecho natural dogmático ni el racional renuncian a la pretensión de validez
universal. La misma doctrina del Estado de Fichte em 1813, cuando pretende concebir la cristiandad como el
evangelio de la libertad y de la igualdad, tanto en sentido metafísico como civil, no encuentra outra justificación
para el ansiado reino de los alemanes, pues entende a éste como ‘un verdadeiro reino del derecho’ como nunca ha
existido en el mundo, es decir, ‘para la libertad fundada en la igualdad de todo lo que tiene rostro humano’. Durante
dos mil años se justificó, si no el Estado, al menos el poder político, por la necesidad de assegurar el derecho
natural suprapositivo.” (HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura
Económica, 2000, p. 280. Tradução livre).
54
utilizada por algumas vezes na história, antes de receber uma importância significativa na Idade
Moderna, conforme veremos à frente. Na Idade Média, destaca a sua função de legitimar a força
política de modo independente do poder religioso. Vejamos:
Desde os seus primórdios, esta doutrina foi proposta para certos objetivos
políticos que precisavam ser alcançados pelo contrato. Primeiramente
encontramos a doutrina das origens contratuais do poder na época de Gregório
VII. Os gregorianos defenderam-na para mostrar que a origem do império não
era de caráter divino, e os antigregorianos, para provar a independência do
imperador em relação ao poder pontífice. Na luta das cidades contra os
príncipes, afirma-se, por parte de ambos, o caráter contratual de suas relações,
e aquela Concepção vem desempenhar um grande papel na Inglaterra do
século XII e, posteriormente, nos Estados continentais, que antes tinham suas
cortes. Mas durante a Idade Média não era o fundamento da instituição do
Estado que eles se propuseram provar, pela doutrina do contrato, mas o poder
concreto do mesmo. 92
92
“Desde sus comienzos, esta doctrina se propuso determinados fines políticos que habían de ser alcanzados por
el contrato. Primeramente hallamos la doctrina de los orígenes contractuales del poder em la época de Gregorio
VII. Defendíanla los gregorianos para mostrar que el origen del império no era de carácter divino, y los
antigregorianos, para probar la independencia del emperador respecto del poder potificio. En la lucha de las
ciudades contra los príncipes, se afirma, por parte de ambos, el carácter contractual de sus relaciones, y aquella
Concepción llega a desempeñar un gran papel en la Inglaterra del siglo XII y posteriormente en los Estados
continentales que de antiguo tenían sus Cortes. Mas durante la Edad Media no era el fundamento de la instituición
Estado el que se propoonían probar, mediante la doctrina del contrato, sino el poder concreto del mismo.”
(JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 212.
Tradução livre).
55
93
“la doctrina del contrato de la Edad Media no es la doctrina de la creación primaria de los Estados, sino la
inserción del poder de mando em los Estados; no es el populus quien nace mediante el contrato, sino el rex.”
(JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 213.
Tradução livre).
56
Para que seja possível compreender o surgimento de novas teorias tendentes a justificar
o poder político e jurídico no contexto da modernidade, é importante ter em conta os principais
fatores de ordem política, econômica e social que foram sendo alterados num processo – no
mínimo centenário – de germinação da cultura político-jurídica moderna. Já realizamos esta
tarefa em outro trabalho94, em que tivemos a oportunidade de expor todo o contexto de
surgimento e consolidação do modelo feudal a partir da queda do Império Romano ocidental,
bem como o processo de formação e ascensão das cidades e da burguesia dentro do sistema
feudal. Ao longo deste processo, a racionalidade do modelo produtivo das cidades prevaleceu
frente ao modelo feudal e deu escala a excedentes de produção, essenciais para a consolidação
da lógica mercante típica das cidades, a qual se expandiu de modo a ocasionar o
aburguesamento dos estamentos privilegiados, alcançando inclusive o poder central, resultando
no modelo mercantilista, que já engendrava as discussões típicas para o surgimento do
capitalismo, isto é, a busca pelo lucro por meio da ação racional e a questão da liberdade
econômica.
Considerando todo o contexto sócio-político mencionado acima, bem como o ambiente
filosófico que se formou desde a Antiguidade sobre o fundamento do poder político e da própria
existência e atuação do Estado, emerge na chamada Modernidade95 a necessidade de prover
outra justificação teórica para esta realidade recém-criada denominada Estado, tendo em vista
a nova configuração político-social em formação a partir do tensionamento da forma estamental
de organização social e da descrença nos modelos de justificação do Antigo Regime.
Com efeito, até aqui nossa análise da justificação do ponto de vista histórico centrou-se
nas figuras de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, o que se justifica pelo fato de ambos serem
os principais expoentes da teoria que postula a natureza social e política do ser humano e,
consequentemente, a ideia da sociedade política como necessária. Entretanto, é importante
ressaltar que Aristóteles tem em mente a Cidade-Estado grega da sua época e, do mesmo modo,
94
GAMBA, João Roberto Gorini. O processo de consolidação da propriedade como centro do ordenamento
jurídico moderno: uma leitura. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: PUC-SP, 2014, p. 48-81.
95
“A modernidade começa quando os homens desenvolvem o sentimento de sua própria competência, quando
começam a pensar primeiro que podem compreender a natureza e a sociedade e depois que podem controlar a
natureza e a sociedade para atingir seus próprios objetivos. Acima de tudo, a modernização implica a crença na
capacidade do homem de, através de uma ação racional, mudar seu meio ambiente físico e social. Significa a
rejeição dos obstáculos externos aos homens, sua libertação de Prometeu dos deuses, da fatalidade e do destino.”
(HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. USP, 1975, p. 112).
57
Santo Tomás faz suas reflexões diante da sociedade medieval de sua época. Ambos, portanto,
não tiveram contato com aquilo que propriamente denominados por Estado, fenômeno
eminentemente moderno. Assim, é importante ter isto em mente para que não sejam estendidas
a ambos afirmações que sequer poderiam cunhar sem possuir qualquer compreensão acerca do
fenômeno estatal; estaríamos, neste caso, incorrendo em perigoso anacronismo.
Feitas estas ressalvas, cumpre-nos estabelecer alguns comentários quanto à
transformação do pensamento aristotélico no que tange ao fenômeno político. Assim, antes de
abordarmos o contratualismo como a doutrina moderna que cumpre esta função de justificar o
Estado em bases racionais e em perspectiva diversa daquela aristotélica, cabe estabelecer
algumas palavras sobre o contexto de seu surgimento, de tal sorte que nos seja possível sua
compreensão de forma mais adequada.
Neste sentido, temos que a partir da quebra do paradigma teocêntrico, o Antigo Regime
via-se em clara decomposição. Dentre outros fatores, como aqueles de ordem econômica e
social que levaram a este desfecho, as justificações de ordem teológico-religiosas para a
aquisição e manutenção do poder político utilizadas por este modelo já não mais lograriam êxito
em conquistar os modernos, cujo ceticismo fora exacerbado em virtude da desconstrução da
representação aristotélico-medieval do mundo, ocasionada, em especial, pelo fim do
geocentrismo, pela ruptura com a evidência sensível e pela afirmação da infinidade do universo.
Neste tocante:
96
CASSIER, Ernst. O mito do Estado. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Córdex, 2003, p. 203.
58
Essa visão racional não foi, de forma alguma, considerada uma visão histórica.
Somente uns poucos pensadores tiveram a ingenuidade de concluir que a
“origem” do Estado, como a explicavam as teorias do contrato social, nos dava
uma perspectiva dos seus começos. Não podemos, obviamente, assinalar o
momento exato da história em que pela primeira vez apareceu o Estado. Mas
essa falta de conhecimento histórico não interessa aos teóricos do Estado-
contrato. O problema deles é analítico, e não histórico. Eles compreendem o
termo “origem” num sentido lógico, e não cronológico. O que eles procuram
não é o começo, mas o “princípio” do Estado – a sua raison d’être. 98
Utilizei a palavra “Estado”: está claro a que me refiro – algum bando de bestas
louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente
97
Referimo-nos à transição do feudalismo ao capitalismo.
98
CASSIER, Ernst. O mito do Estado. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Córdex, 2003, p. 206-207
59
e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma
população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e
nômade. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se
acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem
pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e
gestos – que tem a ver com contratos! 99
De toda forma, a teoria da força, posta nestes termos por Nietzsche, é talvez de grande
valia para a explicação do Estado em termos fáticos, mas não para sua justificação filosófica, a
qual nos dedicamos.
Para que desde já se justifique o recorte realizado, é necessário apontar que a teoria da
origem da sociedade humana como convencional remonta às especulações filosóficas dos
sofistas. Quanto à Idade Média, Jellinek ressalta que a teoria da origem contratual – tal como
foi abordada pelos modernos – ao apontar o indivíduo como soberano e fonte de todo poder
seria certamente taxada como herética durante o medievo, conforme os apontamentos feitos
acima. No período subsequente, pensadores100 buscaram justificar o Estado a partir de uma
origem convencional. De toda sorte, embora não se possa ignorar a possível influência de tais
escolas e pensadores, a teoria só ganharia relevo a partir de Hobbes, primeiro sistematizador do
modelo.
Assim sendo, tendo feito nos capítulos anteriores uma breve exposição acerca das
construções teóricas que circundaram e antecederam o surgimento do contratualismo moderno,
trataremos no capítulo seguinte de abordar de forma analítica os principais representantes do
contratualismo moderno, para podermos compreender as minúcias de suas construções teóricas,
bem como os pontos comuns e divergentes entre tais pensadores, podendo assim verificar quais
teorias foram incorporadas às formas de vida e aos diplomas jurídicos do período moderno,
sendo-nos possível ainda observar aqueles institutos que, inobstante o ambiente que
circunscrevia seu surgimento ser outro, persistem sólidos e operantes até o presente, norteando
a conduta e a construção de conceitos jurídico-políticos contemporâneos.
99
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad.: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 68.
100
Jellinek nos aponta Richard Hooker, Johannes Althusius e Hugo Grocio, embora afirme que a histórica
científica da teoria contratualista começa em Hobbes. (JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.:
Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 213-214).
60
Quanto ao método que empreguei, entendi que não basta utilizar um estilo
claro e evidente no assunto que tenho a tratar, mas que é preciso – também –
principar pelo assunto mesmo do governo civil, e daí remontar até sua geração,
e à forma que assume, e ao primeiro início da justiça; pois tudo se compreende
melhor através de suas causas constitutivas. Pois, assim como um relógio, ou
em outro pequeno autômato da mesma espécie, a figura e o movimento das
rodas não podem ser bem compreendidos, a não ser que o desmontemos e
101
Destaca-se a visão de Grotius sobre o direito natural: “id quod Gentium omnium aut multaum voluntate vim
obligandi accpit (o que por vontade de todas ou de muitas gentes assume força de obrigação)” (GROTIUS, Hugo.
De iure belli ac pacis, Livro I, cap. I, § XIV, 1, p. 30 apud FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno:
nascimento e crise do Estado nacional. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 17-18).
102
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 134-
137.
61
Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo
início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer
que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de
molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o que é o
coração, senão uma mola, e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas,
senão outras tantas todas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como
foi projetado pelo Artífice? E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela
criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela
arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em
latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura
e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. E
no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo
inteiro; (...) Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes
deste Corpo Político foram criadas, reunias e unificadas assemelham-se
àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação. 104
103
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 15-6.
104
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 5.
105
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 203.
62
Trata-se, assim, de uma outra visão acerca da natureza, de viés mecânico, em que a
questão da causa diferenciará substancialmente daquela visão aristotélica. Para o pensador
grego, embora a causa eficiente seja necessária, a principal causa do movimento é a causa final
(decorrência da visão teleológica manifesta em sua filosofia), já para Hobbes, o que causa o
movimento de um corpo é outro corpo – a partir da ideia da inércia –, de tal sorte que a causa
eficiente é suficiente para explicar seu movimento. Neste sentido:
...as causas das coisas universais (daquelas, pelo menos, que têm uma causa)
são manifestas por si mesmas ou, como se diz, conhecidas por natureza; de
modo que não necessitam de nenhum método, já que todas elas possuem
apenas uma só causa universal, qual seja, o movimento. 107
A suplantação de uma natureza teleológica por uma mecânica retira-lhe causas finais e
a deixa, em certo sentido, vazia. Há aqui, conforme brevemente exposto ao final do capítulo
anterior, a desconstrução da representação aristotélico-medieval do mundo, de relevante
impacto para as formulações filosóficas do período. Apenas a título de contextualização, em
1637, Descartes publica seu Discurso do Método e, em 1641, as Meditações, com as Objeções
de Hobbes.
Destaque-se, ainda, a utilização, em matéria de política, do chamado método galilaico,
consistente em resolver o objeto dado em seus elementos constitutivos para o compor
novamente em sua complexidade, já que “é necessário conhecer as coisas a serem compostas
antes que possamos conhecer o todo composto”. 108 Neste tocante, em De Corpore, apresenta-
nos as questões metodológicas aplicáveis à filosofia109, estabelecendo as noções de método
compositivo (ou sintético) e método resolutivo (ou analítico), com vistas a dar cientificidade à
106
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 11.
107
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 202.
108
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 200.
109
“Filosofia é o conhecimento que adquirimos, por reto raciocínio, das aparências, ou dos efeitos aparentes, a
partir do conhecimento que temos de alguma possível produção ou geração das aparências; e de tal produção real
ou possível a partir do conhecimento que temos dos efeitos. No estudo da filosofia, portanto, o método é o caminho
mais curto para a descoberta dos efeitos por meio de suas causas conhecidas, ou para a descoberta das causas por
meio de seus efeitos conhecidos.” (HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno
Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 198).
63
política. Neste tocante, concede maior importância ao método sintético, o qual requer que a
investigação sobre filosofia moral passe antes pela própria física110, vez que a vê como
movimentos da mente.
110
No mesmo Prefácio, Hobbes explica que, inicialmente, dividia seus estudos em três partes, conforme o grau,
da seguinte forma: “...na primeira trataria do corpo, e de suas propriedades gerais; na segunda, do homem e de
suas faculdades e afecções especiais; na terceira, do governo civil e dos deveres dos súditos. De modo que a
primeira parte conteria a filosofia primeira, e certos elementos de física; nela consideraríamos as razões de tempo,
lugar, causa, poder, relação, proporção, quantidade, figura e movimento. Na segunda discutiríamos a imaginação,
a memória, o intelecto, o raciocínio, o apetite, a vontade, o bem e o mal, o que é honesto ou desonesto, e coisas
parecidas. O que a última parte aborda é o que acabo de vos expor.” (HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad.
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 20). Neste sentido, aponta a primeira parte de seus
estudos como dedicados a questões físicas, algo que determinou a forma como Hobbes verificou ser a relação entre
indivíduos e destes com o corpo político. Cumpre destacar que tal ordem deixou de ser aplicada em virtude da
conjuntura político-social do momento em que escrevia, que o fez colocar as questões sociais – inicialmente em
terceiro lugar – em primeiro plano.
111
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 18.
64
sua crítica ferrenha aos escritos políticos de Aristóteles que, como vimos, fixam-se sobre uma
ideia da desigualdade natural:
113
Solidifica, com isso, a igualdade como condição natural dos humanos. Referida
situação de igualdade é verificada no estado de natureza humano, sendo este aquele em que “os
homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito” e, durante este
período, “eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de
todos os homens contra todos os homens.” 114
O impulso do egoísmo produziria o do temor e
este, por sua vez, faria nascer o desejo pela paz. Esta paz, como se sabe, somente poderia ser
alcançada mediante uma união via contrato, cujo conteúdo seria a submissão de todos à vontade
de um homem ou de uma assembleia de homens. 115
O estado de natureza mencionado é aquele que se caracteriza pela ausência do Estado e,
segundo a concepção hobbesiana, também da justiça; afinal “onde não há Estado nada pode ser
injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento de pactos válidos, mas a
validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os
112
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 84.
113
Outra passagem sobre igualdade pode ser apontada: “Primeiro, se considerarmos como são pequenas as
diferenças de força ou de conhecimento entre os homens maduros e como é muito fácil para aquele que é mais
fraco, em força ou inteligência, ou em ambas, destruir inteiramente o poder do mais forte – uma vez que se
necessita de pouca força para tirar a vida de um homem –, podemos concluir que os homens, considerados na mera
natureza, deveriam reconhecer-se em situação de igualdade. (HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e
política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 67-8)
114
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 75.
115
Referindo-se à existência social de outras criaturas vivas, como abelhas e formigas, em contraposição à
experiência humana, Hobbes elenca inúmeros fatores diferenciadores para, ao final, atestar que “o acordo vigente
entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente.
Portanto, não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e
duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido
do bem comum.” (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.
Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p.
105).
65
homens a cumpri-los.” 116 Neste ponto, Hobbes estabelece não só os fundamentos para a teoria
contratualista moderna, mas também delineia o modelo liberal dele decorrente, uma vez que
reduz a função do Estado ao poder coercitivo voltado ao cumprimento dos pactos válidos.
Neste sentido, estabelecerá em De Cive que “a origem de todas as grandes e duradouras
sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os
outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”. 117
Este medo, segundo o próprio
Hobbes, deriva da própria condição de igualdade natural dos homens, bem como da “mútua
vontade de se ferirem”. 118
Neste sentido, no que concerne à relação das teorias hobbesianas com aquela de
Aristóteles já apresentada, podemos concluir que há substancial diferença, em especial naquilo
que nos afeta, ou seja, no problema do fundamento da sociabilidade humana. Para Aristóteles,
o homem só pode alcançar aquilo que possui em potencial e ser verdadeiramente humano na
pólis que, conforme sua teoria, é um fim em si mesma e figura como autárquica. Para Hobbes,
a sociedade política parece como mero meio para viabilizar a autoconservação. Desta tese surge
a ideia de que o indivíduo é anterior e formador da sociedade política que resulta de um pacto
associativo. Neste sentido, o ser humano aparece como tal antes e independentemente da
sociedade política, o que Aristóteles não pode aceitar.
116
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 86.
117
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 32.
118
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 33.
119
FRATESCHI, YARA. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas-SP: UNICAMP, 2008, p. 30-
31.
66
Pois aqueles que perscrutarem com maior precisão as causas pelas quais os
homens se reúnem, e se deleitam uns na companhia dos outros, facilmente hão
de notar que isto não acontece porque naturalmente não poderia suceder de
outro modo, mas por acidente. (...) Portanto, não procuramos companhia
naturalmente e só por si mesma, mas para dela recebermos alguma honra ou
proveito; estes nós desejamos primariamente, aquela só secundariamente. 121
120
FRATESCHI, YARA. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas-SP: UNICAMP, 2008, p. 34.
121
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 29.
67
De toda sorte, cumpre-nos apontar que o princípio hobbesiano de que o ser humano é
guiado pela ideia do benefício próprio decorre em sua visão, curiosamente, de um impulso
natural, “pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas acima
de tudo do maior dentre os males naturais, que é a morte; e isso ele faz por um certo impulso
da natureza, com tanta certeza como uma pedra cai”. 122
Desta forma, embora evidente as
distinções entre Hobbes e Aristóteles, é relevante compreender que Hobbes extrai de um
impulso natural o princípio da autopreservação, determinante para a celebração do pacto
fundador da sociedade política. Neste sentido, segue-se importante síntese sobre referido
princípio:
tudo o que puder para preservar a sua própria vida e os membros do seu corpo.
124
Outra formulação deste segundo preceito da natureza aparece em Leviatã com a seguinte
redação:
Inobstante tal afirmação, Hobbes127 dirá que alguns direitos deverão ser preservados, tal
como o direito de defender o seu próprio corpo, bem como o de usar o fogo, a água, o ar livre
e a um lugar para viver, coisas que considera necessárias à vida. A partir deste preceito, outro
importante se estabelecerá com o seguinte conteúdo: “que todo homem está obrigado a manter
e cumprir os pactos que faz.” 128
124
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 69. A afirmação mais completa e conhecida sobre tal direito em Hobbes encontra-se logo no início
do capítulo XIV do Leviatã: “O direito de natureza, a que os autores geralmente chama jus naturale, é a liberdade
que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria
natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe
indiquem como meios adequados a esse fim.” (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um
estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural
(Os Pensadores), 1979, p. 78).
125
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 72.
126
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 79.
127
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 85.
128
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 78. O mesmo argumento aparece em Leviatã, XV.
69
À ruptura do pacto chamará injúria, a qual alinha-se à injustiça pelo não cumprimento
do pacto celebrado; também chamado por Hobbes de violação de fé129, vez que o pensador vê
a celebração do pacto como promessa de seu cumprimento futuro. De outro lado, com o
cumprimento do pacto, estabelece-se a situação de paz, na qual, destaque-se, as coisas que não
poderão ser divididas serão usadas em comum e no caso daquelas que não podem ser divididas
e nem usadas em comum, o critério será o de sorteio ou uso alternado. Destaque-se, ainda, que
a celebração do pacto se apresenta como ato voluntário do indivíduo e, tal como todos os atos
voluntários, possui como objetivo algum bem para o indivíduo. 130
Desta forma, em estrutura simplificada, a teoria hobbesiana coloca que 1) o direito de
natureza estabelece como regra fundamental que cada um preserve a sua vida; 2) todos os
homens têm direito a todas as coisas; 3) o homem deve se esforçar pela paz e por sua busca; 4)
para alcançar o objetivo estabelecido no item 3, os homens devem renunciar a seu direito a
todas as coisas (conforme item 2); e 5) que o contrato é o meio para operacionalizar a
transferência mútua de direitos e, portanto, efetivar a renúncia prevista no item 4 acima.
Diante desta estrutura de argumentação, apresentará no capítulo XIV de Leviatã131 sua
teoria dos contratos; esta, em apertada síntese, apresenta as seguintes características: 1) a
transferência de direitos via contrato se dá por ato voluntário; 2) todo ato voluntário objetiva o
bem do indivíduo que o faz; 3) o cumprimento do contrato chama-se observância da promessa
ou fé; 4) a falta de cumprimento (voluntária) do contrato chama-se violação de fé; 5) os sinais
do contrato são expressos ou por inferência; 6) as inferências apresentam-se pelo tempo verbal
das palavras, sendo aquelas no futuro relacionadas ao que chama promessa; 7) a promessa é
equivalente a um pacto e, portanto, é obrigatória; 8) quem cumpre sua parte do contrato merece
o cumprimento da outra parte, tendo-o como devido; 9) no estado de natureza, o cumprimento
de um contrato por um dos contratantes não garantirá o cumprimento pela outra parte, vez que
as palavras são frágeis ante à ambição e outras paixões humanas; 10) no estado civil, com o
estabelecimento de um poder, há autoridade para coagir aqueles que violaram sua fé e, portanto,
o cumprimento torna-se obrigatório; 11) é impossível fazer pactos com animais ou com Deus;
12) o objeto de um pacto é sempre sujeito à deliberação; 13) prometer o que sabe ser impossível
129
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 80.
130
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 80.
131
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 78-85.
70
não é um pacto; 14) a liberação do pacto ocorre em duas situações: cumprindo ou sendo
perdoado; 15) os pactos aceitos por medo, na condição de natureza, são obrigatórios; 16) a
causa do medo só torna inválido um contrato quando superveniente a este; 17) um pacto anterior
anula outro posterior, sendo portanto a última promessa nula; e 18) um pacto que o indivíduo
se compromete a não se defender da força pela força é nulo. Destaque-se, por fim, o preceito
natural de grande relevância exposto acima, qual seja, aquele segundo o qual os homens devem
cumprir os pactos que celebrarem.
Dentre tais características, destacamos a de número 15, que se apresenta como
necessária para que a ideia do pacto social fundador da sociedade tenha validade, bem como as
de número 9 e 10 que atestam pela superioridade do estado civil ante ao estado de natureza no
que tange à coação como forma de vincular o cumprimento dos contratos. Ademais, o
estabelecido nos itens 1 e 2 (aspecto voluntário do pacto) e 12 (todo objeto de pacto é
deliberado) apresentam-se como formas de legitimar as condições posteriores à celebração do
pacto, vez que decorrem de uma situação deliberada e voluntariamente acordada. Tal pacto,
ressalte-se, contempla os seguintes dizeres de um indivíduo para todos os outros: “Cedo e
transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações”132, formando assim o Estado, o grande Leviatã, cuja essência é: “Uma
pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi
instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente para assegurar a paz e a defesa comum”. 133
Em suma, Hobbes irá apresentar a constituição da sociedade política (ou corpo político)
como sendo “uma multidão de homens reunida em uma só pessoa por meio de um poder
comum, para sua paz, defesa e benefício comuns” 134, sendo o homem ou o conselho a quem os
membros particulares deram o poder comum chamado de soberano e cada membro do corpo
político é chamado por sua vez de súdito. Neste contexto, estabelece as linhas mestras daquilo
que viria a ser o positivismo jurídico séculos depois:
Concluirá que incumbe a quem detém o poder da espada estabelecê-las e aos súditos
observá-las. Neste sentido, cabe apontar a teoria hobbesiana sobre os fundamentos da soberania
decorrente do pacto, conforme já explicado. O capítulo XVIII do Leviatã (Dos direitos dos
soberanos por instituição) trata desta questão, ao dispor sobre os direitos conferidos a quem o
poder soberano é atribuído mediante o consentimento do povo reunido. Os doze pontos
trabalhados por Hobbes neste capítulo dizem, resumidamente, que: 1) os que pactuam pela
formação do Estado não estão vinculados por pacto anterior; 2) o pacto é celebrado entre os
indivíduos e não entre indivíduo e soberano, de modo que o soberano não pode descumprir o
pacto e nenhum súdito pode se liberar da sujeição; 3) se por consentimento a maioria escolher
um soberano, os que discordaram devem passar a consentir juntamente com o restante; 4)
considerando que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano,
nada do que este faça pode ser considerado injúria com os súditos e estes não podem acusá-lo
de injustiça; 5) não se pode castigar o soberano, pois isso equivaleria a castigar a si mesmo; 6)
compete ao soberano ser juiz de opiniões e doutrinas contrárias à paz; 7) compete ao soberano
estabelecer as relações de propriedade; 8) compete ao soberano a autoridade judicial; 9)
pertence ao soberano o direito de fazer a guerra e a paz com outras nações e Estados; 10) cabe
ao soberano a escolha de conselheiros, ministros, magistrados e funcionários, tanto na paz como
na guerra; 11) é direito do soberano compensar com riquezas e honras, bem como punir com
castigos, os seus súditos, com base em leis previamente estabelecidas; e 12) compete ao
soberano conceder títulos de honra.
Sendo estas as características do poder soberano na obra de Hobbes, destacamos, para
aquilo que nos afeta, especialmente os itens de número 1 a 5, que tratam da questão do pacto
propriamente dito, bem como das relações que se seguem a ele, sendo certo que a minoria não
anuente com o pacto deverá a ele se sujeitar e, ainda, juntamente com os demais súditos, deverá
obedecer às regras estabelecidas pelo soberano, bem como às ordens emanadas deste poder,
sem que seja possível atribuir-lhes qualquer aspecto de injustiça, vez que pela formação
135
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010, p. 109.
72
136
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 314.
137
Embora deixe claro em alguns trechos que seu conceito de soberano inclui monarca em monarquias, bem como
assembleias de democracias. Fato é que o soberano (qualquer desses que seja) não fica sujeito às leis civis.
(HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 162).
73
natureza, onde se verifica uma perigosa igualdade e onde não há a unidade do poder que defina
o justo e o injusto. Neste sentido, nos diz Bobbio:
Assim sendo, se absorvermos a visão de Bobbio que aponta Hobbes como partidário da
segunda antítese (anarquia-unidade), concluiremos que Hobbes preocupa-se com a unidade do
poder139 e sua possível dissolução – e, neste caso, a eventual volta ao belicoso estado de
natureza. Distingue-se, portanto, dos pensadores iluministas que deram seguimento à tradição
contratualista e que analisaremos a seguir. Este é certamente um dos fatores que fez com que
as revoluções e independências verificadas nos séculos XVII e XVIII não utilizassem sua
doutrina, tampouco o poderoso governo decorrente do pacto hobbesiano (inclusive cumulando
aspectos temporais e espirituais). Como se sabe, os interesses sócio-políticos em discussão
nestes eventos pautavam-se muito mais na limitação do poder real e na desconstrução das
relações rígidas de poder, notadamente excluindo a estratificação social.
Adicionalmente, como vimos acima, o estado de natureza previsto pelo autor em
comento não poderia por si fornecer a existência dos conceitos de justo e do injusto ante à
ausência de um poder comum que trata de estabelecer os critérios para tais conceitos. Neste
sentido, no que tange à existência de um direito de propriedade (ponto que trabalharemos com
mais profundidade na análise da teoria lockeana), destacamos a seguinte passagem:
138
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 26.
139
“Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa,
de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a
unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja uma. E é o representante o
portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma
multidão. (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 98).
74
Diante disso, fica clara a ideia hobbesiana de que a propriedade não consiste em um
direito natural, como apontará Locke e como ela será recepcionada pelos diplomas
constitucionais notórios dos séculos XVII, XVIII e em toda codificação ocidental dos
oitocentos. Com efeito, no capítulo XV de Leviatã expõe de maneira clara o que aqui se
pretende apontar:
Portanto, para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam ter lugar, é necessária
alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens
ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja
superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de
fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo,
como recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver
tal poder antes de erigir-se o Estado. O mesmo pode deduzir-se também da
definição comum da justiça nas Escolas, pois nelas se diz que a justiça é a
vontade constante de dar a cada um o que é seu. Portanto, onde não há o seu,
isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi
estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há
propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde
não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça
consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só
começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens
a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade. 141
Neste excerto temos a clara a ideia de que para Hobbes a propriedade não consiste em
um direito natural, tal como Locke a coloca (conforme veremos abaixo), ao contrário, apenas
passa a existir quando há um Estado que então estabeleça o que é de cada um, pois sem o Estado,
sem um poder coercitivo, todos os homens têm, por natureza, direito a todas as coisas. Pois
onde não há Estado, há uma guerra perpétua entre os homens, na qual cada coisa é de quem a
apanha e conserva pela força, o que não se trata de propriedade, mas de incerteza. 142
Com o advento do Estado, cada súdito passa a ter propriedade, entretanto esta não se dá
de maneira absoluta, posto que não exclui o soberano de sua ingerência:
140
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 77.
141
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silv. a. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 86.
142
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 150.
75
Em face de tais apontamentos, nada nos parece mais estranho às aspirações políticas do
período do que uma propriedade que preveja possibilidade de uso pelo soberano e uma
distribuição de terras pelo Estado visando a paz e a segurança de todos. Aliás, no capítulo XXIX
de Leviatã, Hobbes nos fala sobre as coisas que levam à dissolução de um Estado, dentre elas
consta: “A quinta doutrina que tende para a dissolução do Estado é que todo indivíduo particular
tem propriedade absoluta de seus bens, a ponto de excluir o direito do soberano.” 144 Ou seja, a
ideia de uma propriedade particular absoluta consiste, para Hobbes, em uma causa possível de
dissolução de um Estado. Este ponto deixa nítido o que pretendemos demonstrar neste item: a
inadequação do modelo hobbesiano para os interesses em ascensão naquele momento.
Neste sentido, João Paulo Monteiro nos diz:
143
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 151.
144
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 194.
145
MONTEIRO, João Paulo. Ideologia e economia em Hobbes. In: MORAES, João Quartim de (org.). Filosofia
Política. Vol. 2. Campinas: UNICAMP, 1985, p. 128.
146
“A teoria lockeana, prescrevendo a entrega do poder soberano a um corpo de representantes, encarregado das
funções legislativas e também de indicar o detentor do poder executivo, o qual recebia apenas uma outorga
fiduciária e não uma soberania propriamente dita, apresentava um programa muito mais consentâneo com os
interesses dos grupos ‘burgueses’.” (MONTEIRO, João Paulo. Ideologia e economia em Hobbes. In: MORAES,
João Quartim de (org.). Filosofia Política. Vol. 2. Campinas: UNICAMP, 1985, p. 133).
76
Embora nas obras de sua juventude Locke tenha sustentado posições não-liberais147,
similares àquelas postuladas anteriormente por Hobbes, notadamente colocando a autoridade
do Estado sobre direitos de liberdade dos indivíduos, apontando-o ademais como absoluto e
ilimitado, será pela sua obra de maturidade, de teor nitidamente liberal, que Locke entrará para
a história como um dos responsáveis pelas formulações mestras daquilo que denominados
Estado moderno. Com efeito, a obra liberal de Locke exerceu enorme influência sobre diversos
diplomas constitucionais do final do século XVII, bem como sobre a codificação dos oitocentos,
pelos motivos que veremos abaixo. Neste sentido, iremos centrar nossa análise nos Dois
Tratados sobre o Governo, especialmente sobre o Segundo Tratado, sua obra de maior relevo
para a política e o direito, notadamente pela importância concedida ao consentimento e ao
direito de propriedade, bases de seu contratualismo.
Locke inicia a referida obra dissertando sobre o poder político, o que o remete a trabalhar
o conceito de estado de natureza, sendo este aquele em que os homens viviam antes da aparição
de qualquer poder político. Na visão lockeana, o estado de natureza é aquele em que não há
subordinação ou sujeição a qualquer autoridade, predominando a igualdade e a liberdade.
Vejamos:
Locke nos parece descrever o estado de natureza como desprovido de autoridade civil e
norteado pela liberdade e igualdade, no que se diferencia de Hobbes, que vê uma amoralidade
nesta condição; Locke, por sua vez, enxerga uma espécie de lei moral nos guiando neste estado,
estando a execução das leis da natureza nas mãos de todos os homens:
147
As referências às obras de John Locke com este teor são exploradas em BOBBIO, Norberto. Locke e o direito
natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 93-99.
148
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 217.
77
E para impedir a todos os homens que invadam os direitos dos outros e que
mutuamente se molestem, e para que se observe a lei da natureza, que importa
na paz e na preservação de toda a Humanidade, põe-se, naquele estado, a
execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, mediante a qual
qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau
que lhe impeça a violação, pois a lei da natureza seria vã, como quaisquer
outras leis que digam respeito ao homem neste mundo, se não houvesse
alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução
aquela lei e, por esse modo, preservasse o inocente e restringisse os ofensores.
149
Assim sendo, para o referido pensador a lei natural é vista num sentido forte, provida de
eficácia, vez que em nome da Humanidade qualquer indivíduo ameaçado pode julgar o
transgressor da lei natural e fazer-se executor da sentença. Desta afirmação também é possível
extrair a condição de igualdade existente no estado de natureza, conforme a jurisdição e poderes
recíprocos dos indivíduos, bem como podemos extrair uma associação entre lei e sanção,
lembrando a lição de Leo Strauss no sentido de que, para ser lei, a lei da natureza deve ter
150
sanções. Neste sentido, Locke parece apresentar um jusnaturalismo que preenche este
requisito, na medida em que deixa claro o poder de jurisdição de cada indivíduo no que tange
ao efetivo cumprimento das leis naturais.
Cumpre apresentar a visão de Chiappin e Leister sobre a incompletude do estado de
natureza lockeano: “Assim, podemos interpretar o estado de natureza lockeano como o estado
no qual vigora um contrato incompleto, que admite objetivamente o direito de justiça, mas
carece de um sistema de punição explicitamente reconhecido.” 151 Adicionam ainda que:
O advento do Estado Civil em Locke, uma vez posta a questão nos termos do
modelo das tragédias dos comuns, implica na adoção da solução envolvendo
a estatização da justiça (e não sua privatização), que é objetivada quando os
indivíduos renunciam mutuamente a seu direito de aplicá-la (mas apenas a
este direito) e o colocam nas mãos do governo instituindo um novo mecanismo
de solução de conflitos, um mecanismo centralizado. 152
149
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 218. Sendo notável ainda a passagem: “a pessoa prejudicada tem o poder de apropriar-se
dos bens ou serviços do ofensor pelo direito de autopreservação, como qualquer um tem o poder de castigar o
crime para impedir-lhe a repetição, pelo direito que tem de preservar toda a Humanidade e de executar tudo quanto
seja razoável a favor desse objetivo.” (Idem, p. 219)
150
STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2014, p. 269.
151
LEISTER, C.; CHIAPPIN, J. R. N. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da
tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Locke, Rousseau e Kant, 2007.
Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/81m032w6. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 8.
152
LEISTER, C.; CHIAPPIN, J. R. N. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da
tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Locke, Rousseau e Kant, 2007.
Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/81m032w6. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 9.
78
Assim sendo, para sair de tal estado, os homens concordam mutuamente em formar uma
comunidade, fundando o corpo político. Entretanto, não é todo e qualquer pacto que possui esta
capacidade:
...porque não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os
homens, mas apenas o de concordar, mutuamente e em conjunto, em formar
uma comunidade, fundando um corpo político; outras promessas e pactos
podem os homens fazer entre si, conservando, entretanto, o estado de natureza.
153
Mas se para Locke os homens são livres no estado de natureza, qual a razão de se unirem
em comunidade para se sujeitarem ao domínio e controle de um poder? Os motivos são
evidenciados ao longo de diversos trechos154 do Segundo Tratado, inobstante sejam centrados
numa só ideia: a preservação daquilo que Locke denomina propriedade.
Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito
[liberdade], a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta
à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem
igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a
fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito
arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que,
embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão
que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão já
unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade
e dos bens a que chamo ‘propriedade’. 155
Trata-se de mais uma passagem onde Locke exalta o objetivo de unirem-se os homens
em sociedade, sendo tal objetivo a proteção da propriedade e sua fruição certa e segura. Por
conta disso, o quinto capítulo do Segundo Tratado, intitulado Da Propriedade, consiste sem
sombra de dúvida no cerne da referida obra. Desta forma, passamos agora à análise do conceito
lockeano de propriedade, sem o qual não é possível compreender seu contratualismo.
153
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 221.
154
Vide em especial parágrafos 94; 124; 134; 136; 138 e 222.
155
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 264. Adicionalmente: “A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam as propriedades
dos homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que disponham da força reunida da sociedade
inteira para garantir-lhes e assegurar-lhes a propriedade, e para que gozem de leis fixas que a limitem, por meio
das quais todos saibam o que lhes pertence. É para esse fim que os homens transferem todo poder natural que
possuem à sociedade para a qual entram, e a comunidade põe o poder legislativo nas mãos que julga mais
convenientes para esse encargo, a fim de que sejam governados por leis declaradas, senão ainda ficarão na mesma
incerteza a paz, a propriedade e a tranquilidade, como se encontravam no estado de natureza.” (Idem, p. 270).
79
Antes desta análise, cabe desde já a ressalvar que Locke define propriedade em termos
amplos durante seu Segundo Tratado. No parágrafo 87 temos: “...preservar a propriedade – isto
é, a vida, a liberdade e os bens”, já no 123: “...para a mútua conservação da vida, da liberdade
e dos bens a que chamo de ‘propriedade’”, por fim no 173 temos: “Por propriedade devo
entender, aqui como em outros lugares, a que os homens têm tanto na própria pessoa como nos
bens”. 156
Neste sentido, Bobbio157 também apresenta seu entendimento acerca da
multiplicidade conceitual que o termo propriedade possui na obra de Locke, enxergando nele a
consolidação de todos os outros direitos naturais (vida, liberdade e bens), coisa que Locke
denomina como propriedade. Assim, a propriedade não é o único direito natural, mas é
revelador, para Bobbio, que Locke a utilize para resumir nela todos os outros direitos naturais.
Locke, logo no princípio do capítulo V de seu Segundo Tratado nos diz: “é muito claro
que Deus, conforme diz o Rei Davi (SL 113, 24), ‘deu a terra aos filhos dos homens’,
concedendo-a em comum a todos os homens”. 159 A partir de tal pressuposto – de que a terra
foi dada em comum a todos os homens – Locke se lança no desafio de provar como podem os
homens estabelecer propriedade sobre aquilo que Deus deu em comum à Humanidade e isto
independentemente de qualquer pacto expresso entre os membros da comunidade.160 Locke
intenta, portanto, demonstrar como foi possível ao homem estabelecer propriedade individual
sobre o que até então era comum, independentemente de qualquer convenção humana ou
organização política neste sentido. Em outras palavras, pretende demonstrar a existência do
direito de propriedade num estado pré-político.
Inicia tal argumentação dizendo que tudo aquilo que foi dado aos homens em comum
deve ser usado para o sustento e conforto de sua existência. 161 Assim, embora todos os frutos
pertençam a todos, é necessário um meio de apropriação para que tal fruto possa ser utilizado
156
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 20.
157
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 188-189.
158
A análise que se segue (itens 3.2.1 a 3.2.5) é uma revisão e ampliação de um estudo passado e pode ser
encontrada em GAMBA, João Roberto Gorini. O processo de consolidação da propriedade como centro do
ordenamento jurídico moderno: uma leitura. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: PUC-SP, 2014, p. 88-106.
159
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
160
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
161
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
80
para seu propósito (alimentação e sustento) sem que qualquer outro possa alegar qualquer
direito a tal alimento, antes que este traga o benefício de sustentar-lhe a vida, caso contrário os
homens morreriam de fome mesmo havendo abundância de alimentos. Tal meio consiste no
trabalho, visto como algo que pertence à pessoa. Vejamos:
A partir do trecho descrito, podemos inferir que Locke vê em cada homem um potencial
proprietário, pois por meio do trabalho, que a ele pertence, aqueles frutos da terra que até então
eram comuns se tornam propriedade individual. A partir daí podemos concluir que o consumo
dos frutos disponíveis se converte em apropriação legítima destes, pois Deus deu a terra aos
homens para seu sustento, de modo que a ideia de pertencimento fica associada à condição
natural de sobrevivência; e tal direito, evidentemente, não pode depender do consentimento dos
demais163, sendo a propriedade, portanto, não uma condição política, mas natural.
Desta forma, “Deus, mandando dominar, concedeu autoridade para a apropriação; e a
condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente
introduziu a propriedade privada.” 164 Dentro deste diapasão, o trabalho, por si só, estabelece a
propriedade independente de pactos expressos entre os membros da comunidade. Não faltam
críticas sobre tal conjuntura; dentre elas, podemos apontar a de Proudhon165, para o qual o
trabalho por si não pode transformar a posse em propriedade, pois, se assim fosse, o homem
cessaria de ser proprietário quando deixasse de trabalhar.
Quanto ao pressuposto lockeano segundo o qual aquilo que foi dado ao homem em
comum deve ser usado para seu sustento e, portanto, deve haver um meio de apropriação,
Proudhon apresenta a seguinte argumentação: primeiramente, o pensador francês pontua que o
162
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
163
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 228.
164
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 230.
165
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.
Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 97.
81
homem tem o direito de ocupar pelo simples fato de existir, não podendo prescindir de uma
matéria de exploração e trabalho para manter-se vivo. Proudhon, então, ressalta a importância
da terra enquanto necessária para a sobrevivência humana, tal como a água, o ar e a luz.
Vejamos:
Pretende com isso derrubar os argumentos de C. Comte, segundo o qual a terra é passível
de ser apropriada por ser um bem finito, diferentemente da água, do ar e da luz. O argumento
de C. Comte é facilmente rebatido por Proudhon, pois, ao nos apropriarmos de uma quantidade
qualquer de água, ar ou luz, disso não resulta mal a ninguém, já que sobrará o suficiente para
todos, mas, quanto ao solo, a situação altera-se, já que qualquer apropriação de um bem limitado
prejudica os demais por faltar-lhes o necessário a sua sobrevivência, conforme o trecho exposto
acima. Em resumo, na medida em que a terra consiste em algo necessário à nossa conservação
ela é, na visão de Proudhon, bem comum (tal como o ar), portanto algo não passível de
apropriação sem que cause prejuízo aos demais. 167
Proudhon ainda vai além: como o solo consiste em bem finito, encontrado em
quantidade muitíssimo menor que a água, o ar e a luz, seu uso deve ser regulamentado, para o
interesse de todos e não em benefício de uma minoria. Ora, se pretendemos uma igualdade de
direitos e se estamos diante de um bem limitado, tal igualdade só pode ser realizada pela
igualdade de posse168; e como o número de ocupantes varia conforme os nascimentos e óbitos,
a quota de matéria destinada a cada um varia conforme tal número de ocupantes; assim, a posse
nunca deve permanecer fixa, sendo impossível sua transformação em propriedade. Chega,
então, a seguinte máxima: “O direito de ocupar é igual para todos. Não estando a medida da
ocupação na vontade, mas nas condições variáveis do espaço e do número, a propriedade não
pode se formar.” 169 Ou seja, se se parte do pressuposto de que a terra foi dada em comum aos
166
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.
Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 83.
167
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.
Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 83.
168
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.
Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 84.
169
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.
Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ªed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 76.
82
Quando digo ‘eu tenho propriedade em minha própria pessoa’, significa algo
como isto: eu, que existo agora, tenho o direito de pensar como eu vou ser no
futuro, para tomar uma decisão sobre o que fazer com minha pessoa, e de
dispor de minha pessoa com exclusividade durante um período de tempo no
futuro, de acordo com a minha decisão presente. Ou então, isso significa que
a minha parte racional tem o direito de dispor com exclusividade da parte
170
“For property is the exclusive right of disposal or control, and if A controls the same A at one and the same
time, then it implies that A is a ruler while he is being ruled at the same time. This is to violate the principle of
non-contradiction. If I interpret ‘I control myself’ in the strict reflexivity sense, this produces a contradictory
statement which affirms and negates that I am a master or winner in one and the same respect. The same can be
said of the concept of property. We need to distinguish a subject from its object if we are to make it possible to
speak of the relation of ownership or control.” (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property. In:
ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres,
Routledge, 2006, p. 205. Tradução livre).
83
171
“When I say ‘I have a property in my own person’, it means something like this: I, who exist now, have a right
to think of what I will be like in the future, to make a decision on what to do with my person, and to dispose of my
person exclusively over a period of time in the future, in accordance with my present decision. Or else, it means
that my rational part has a right to dispose of the desiring part of my person exclusively. If we bring in the timescale
or the distinction between the ruling and the ruled part, then we can avoid the logical contradiction which we have
seen above. So we can affirm that it is possible to have moderate reflexivity.” (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s
Concept of Property. In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers,
Series II. Londres, Routledge, 2006, p. 204-205. Tradução livre).
172
SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property. In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical
Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres, Routledge, 2006, p. 205.
173
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 271.
84
A mesma lei da natureza que nos dá por esse meio a propriedade também a
limita igualmente. ‘Deus nos deu de tudo abundantemente’ (I Tim 6, 17) é a
voz da razão confirmada pela inspiração. Mas até que ponto no-lo deu? Para
usufruir. Tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a
vida antes que se estrague, em tanto pode fixar uma propriedade pelo próprio
trabalho; o excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros.
Deus nada fez para o homem estragar e destruir. 175
174
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227-228.
175
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 229.
176
“Pois não é a ‘extensão’, daquilo que o homem se apropria pelo seu trabalho (ou pelas trocas dos produtos do
seu trabalho), mas ‘o perecimento de qualquer coisa que se encontre inutilmente sob sua posse’ que faz dele um
homem culpado de um crime contra a lei natural.” (STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno
Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 288).
85
de apropriação torna-se limitado de modo a garantir aos demais homens tais direitos, do
contrário a igualdade restaria prejudicada. Assim, a apropriação de uns não pode significar a
diminuição de tais direitos para outros.
Frente a tais limitações, Locke nos apresenta dois argumentos importantes para a
compreensão de sua teoria, de modo a contornar os argumentos utilizados anteriormente e
defender uma ideia de apropriação ilimitada. O primeiro consiste na possibilidade de
acumulação ilimitada (e sem perecimento) ocasionada pela utilização da moeda. Já o segundo
exalta a produtividade ocasionada pela apropriação, conforme o trabalho aplicado à terra.
Analisaremos à frente cada um desses argumentos apresentados por Locke para superar a então
aparente limitação e, adicionalmente, analisaremos a questão da limitação de ordem física e sua
relação com o trabalho assalariado. Todas estas questões importantíssimas para o modelo
capitalista em formação.
Ao final do parágrafo 36 de seu Segundo Tratado, Locke faz uma importante afirmação,
contrariando os argumentos de limitação para a apropriação, conforme expostos acima.
Vejamos:
Mas, seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar
corajosamente o seguinte: – a mesma regra de propriedade, isto é, que todo
homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no mundo sem
prejudicar a ninguém, desde que existisse terra bastante para o dobro dos
habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo
um valor à terra, não tivessem introduzido – por consentimento – maiores
posses e o direito a elas. 177
Com este trecho, Locke nos parece iniciar sua argumentação contra a limitação para a
acumulação de propriedade, pois ela apenas subsistiria se a invenção do dinheiro não tivesse,
por consentimento, criado maiores posses e o direito a elas. Assim, o advento do dinheiro –
177
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 230-231.
86
Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida humana em
comparação com o alimento, vestuário e transporte, tendo valor somente pelo
consenso dos homens, enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é
evidente que os homens concordam com a posse desigual e desproporcionada
da terra, tendo descoberto, mediante consentimento tácito e voluntário, a
maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo
produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata que
podem guardar sem causar dano a terceiros, uma vez que estes metais não se
estragam nas mãos de quem os possui. 180
A partir do trecho acima, temos que o dinheiro, sendo um bem não perecível, torna sua
acumulação permitida por não lesar terceiros, o que, como dito, ocorreria no caso de
acumulação de bens perecíveis. De fato, a acumulação de bens perecíveis subtrai sua circulação
e ocasiona seu perecimento, sendo, portanto, recriminável conforme a regra do não desperdício.
No caso da terra, temos que sua apropriação ilimitada se torna permitida ante ao uso da
moeda como meio de representar propriedades acumuladas. Desta forma, com a adoção do
dinheiro, todas as propriedades de um determinado território são desde logo apropriáveis por
178
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 215.
179
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 235.
180
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 235.
87
uma só pessoa, permitindo que os demais homens permaneçam sem propriedades. Tal situação
será detalhadamente analisada abaixo quando tratarmos da relação entre propriedade e
desigualdade no pensamento lockeano.
181
“A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua
propriedade. Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo.
Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os Pensadores), 1991, p. 229).
182
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 231.
183
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 224.
88
Desta forma, a partir de uma leitura crítica da obra de Locke, podemos chegar à seguinte
conclusão: caso a produção realizada pelo sujeito apropriador – mais eficaz que a produção
natural – seja revertida para o benefício dos homens que, por conta desta apropriação, tornaram-
se despossuídos, o argumento lockeano encontraria legitimidade.
Assim a grama que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério
que extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito em comum com outros,
tornam-se minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de
qualquer outra pessoa. O trabalho que era meu, retirando-os do estado comum
em que se encontravam, fixou a minha propriedade sobre eles. 185
Com este trecho, Locke parece legitimar a apropriação do trabalho alheio – do criado –
como forma legítima de aumento de propriedade – do senhor – e, ainda, supor a relação salarial
184
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 224-225.
185
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 228.
89
também como condição natural. De fato, se analisarmos o argumento visto acima, onde Locke
nos fala sobre a apropriação de grandes porções de terra para o aumento da produção voltada à
troca, somos levados a crer que, de fato, estava supondo a validade da relação salarial, pela qual
um homem pode licitamente adquirir o trabalho de outro como meio de aumentar sua riqueza,
do contrário não nos falaria em hectares e mais hectares produtivos, algo que só é possível a
um homem mediante a aquisição de força de trabalho alheia. 186
Conforme a visão de James Tully187, endossada por Edgar José Jorge Filho188, a turfa
cortada pelo criado descrito por Locke consiste numa tarefa completa realizada por um servo,
com seus próprios instrumentos, e não um trabalho realizado com instrumentos de produção
pertencentes ao capitalista. 189 Nesta visão, o servo é livre para optar trabalhar ou não ao senhor,
diferente do escravo e do trabalhador assalariado que não possuem real opção entre trabalhar
ou não, visto que os meios de produção são açambarcados pelos capitalistas e, portanto, não lhe
pertencem. Em sua argumentação, Jorge Filho coloca que o produto do trabalho do servo se
acrescenta à propriedade do senhor, conforme o contrato firmado entre eles e que:
Segundo esta visão, a relação descrita por Locke na referida passagem não consiste
numa relação capitalista-assalariada, mas sim numa relação firmada entre servo e senhor para
o acúmulo de propriedade deste mediante o trabalho e instrumentos daquele (sendo a
propriedade dos meios de produção o traço descaracterizador da relação capitalista-assalariada),
sobretudo por conta do pagamento em dinheiro, convencionalmente aceito entre os homens.
186
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 226.
187
TULLY, James. A Discourse on Property: John Locke and his adversaries. London: Cambridge University
Press, 1980, p. 135-145.
188
JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992, p. 84.
189
“Therefore, in the light of Locke’s concept of the master-servant relation, and in terms of our historical
knowledge of the period, it is incorrect and anachronistic to impute the assumption of capitalist wage-labour to
Locke.” (TULLY, James. A Discourse on Property: John Locke and his adversaries. London: Cambridge
University Press, 1980, p. 142). Em tradução livre: “Portanto, à luz do conceito lockeano da relação senhor-servo,
e em termos do nosso conhecimento histórico do período, é incorreto e anacrônico imputar a assunção de trabalho
assalariado no sentido capitalista a Locke.”
190
JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992, p. 84.
90
Sobre esta discussão, entendemos que independente do criado descrito por Locke
possuir ou não os meios de produção para a execução do trabalho, o trecho em comento consiste
numa clara referência ao trabalho como fonte de moeda (esta convencionalmente aceita entre
os homens) e não como fonte dos meios de subsistências próprios daquele que o faz. Ou seja,
separa o trabalhador do produto de seu trabalho, que é vendido em troca de moeda. Esta, por
óbvio, será utilizada pelo criado para adquirir seus próprios meios de subsistência – e até outros
bens de consumo – num mercado que, nesta lógica, deve existir. Assim, permanece nosso
entendimento de que Locke advoga pelo comércio no sentido capitalista como decorrente da
condição natural humana e, ainda, pressupõe a venda da força de trabalho como legítima e,
portanto, em conformidade com a lei da natureza.
Vale a pena lembrar que “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a
esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas
mãos, pode dizer-se, são propriamente dele” 191; de modo que a possibilidade de alienação da
força de trabalho permanece coerente com o restante de sua argumentação, vez que a vê como
uma propriedade e, portanto, alienável. Neste sentido, a justificativa jusnaturalista lockeana do
trabalho encontra neste não apenas o meio de tornar propriedade privada o que até então era
comum, mas ele mesmo se torna propriedade, alienável tal como qualquer outra. Torna-se,
portanto, mercadoria. Sobre este tema, Galvano Della Volpe nos apresenta importante lição:
Leia-se tal entendimento lockeano à luz do novo sistema produtivo e temos não apenas
uma separação entre propriedade e trabalho, mas uma relação onde este se reveste com as
características daquela – em especial a possibilidade de alienação. Nada mais oportuno num
sistema onde a acumulação de propriedade pode ocorrer à custa do trabalho alheio.
Nesta mesma linha segue Macpherson, para o qual o núcleo do individualismo de Locke
é a afirmativa de que todo homem é naturalmente o único proprietário de sua própria pessoa e
191
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
192
DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. Trad. António José Pinto Ribeiro.
Lisboa: Edições 70, 1982, p. 32.
91
de suas próprias capacidades – especialmente sua capacidade de trabalho –, não devendo nada
193
à sociedade por isso. Com efeito, a definição de sociedade de mercado possessivo em
Macpherson exalta exatamente este ponto:
Com a construção teórica feita nos moldes expostos acima, Locke nos parece ser o
pensador chave para compreendermos o período de transição em que vivia. Com efeito, suas
ideias parecem legitimar o desenvolvimento do comércio no sentido capitalista196, vez que, sem
a ideia da troca, o indivíduo não teria razão para produzir mais do que o suficiente para si197; e,
como vimos acima, tal produção é amplamente defendida quando o pensador argumenta pela
maior produção ocasionada pela apropriação. Ainda, coerentemente com o advento do dinheiro,
193
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 227.
194
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 59.
195
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 227.
196
Cumpre ressaltar que Kiyoshi Shimokawa, mencionado alhures, rejeita a ideia de que o conceito de propriedade
em Locke consiste num conceito de propriedade burguesa. Refutando as ideias de Macpherson, Shimokawa nos
diz que antes de ser vista como um direito de alienar e dispor objetos, a propriedade para Locke é fruto do trabalho
do sujeito apropriador lockeano que se apropria dos bens primeiramente para seu consumo e sustento, antes mesmo
da ideia de troca e economia monetária se desenvolverem. (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property
In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres,
Routledge, 2006, p. 194).
197
KUNZ, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade e Propriedade. In: QUIRINO, Célia Galvão; VOUGA, Cláudio;
BRANDÃO, Gildo (orgs.). Clássicos do Pensamento Político. 2ª ed. São Paulo: USP, 2004, p. 117.
92
temos que aquilo que se troca não se desperdiça, pois o excedente acaba, por conta do
intercambio realizado, servindo para suprir a necessidade de outro. Desta forma, a moeda
permite uma nova forma de acumulação e expansão da propriedade, de modo que os
industriosos e racionais podem se apropriar da terra para extrair dela seu máximo, enriquecendo
ilimitadamente sem violar ou prejudicar o direito dos demais. Estava legitimada a atividade de
apropriação em detrimento do trabalho como meio de acúmulo de propriedade:
Com efeito, a separação entre capital e trabalho marca uma etapa decisiva na transição
do feudalismo ao capitalismo. Aqui, algo semelhante ocorre. A ideia inicial de Locke,
desenvolvida no início do Segundo Tratado, deixava claro que o surgimento da propriedade
individual ocorre ao adicionarmos aos bens da natureza, comuns, algo próprio – o trabalho.
Agora, apresentados seus argumentos para a apropriação ilimitada, inclusive de terras, a
atividade de apropriação ganha força em detrimento do trabalho. Este, por sua vez, será
utilizado tão somente por aqueles que não possuem propriedade acumulada e, por esse exato
motivo, são obrigados a vender aquilo que lhes resta, a força de trabalho. 199
Neste contexto, é curioso notar que no estado de natureza, como vimos, o trabalho torna
propriedade particular aquilo que era então comum, já na sociedade civil o trabalho perde essa
característica:
198
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 246.
199
Macpherson reafirma a ideia de que Locke via a plena racionalidade na apropriação e não no trabalho: “A
inteira concepção de um estado de natureza monetária e comercial, que historicamente falando, é bobagem,
hipoteticamente é compreensível, mas só o é se atribuirmos à natureza humana, como fez Locke, a propensão
natural para acumular. Quer dizer, só é compreensível se se reinterpreta no estado de natureza um relacionamento
entre o ser humano e a natureza (ou seja, entre o homem e a terra enquanto fonte da subsistência humana) que é
tipicamente burguês, como o fez Locke na sua afirmativa de que a condição da vida humana insere inevitavelmente
a propriedade privada da terra e dos meios materiais para trabalhá-la. Foi porque Locke sempre supôs o
comportamento plenamente racional que pôde, à altura em que a lavra e a apropriação se separaram, descobrir que
a plena racionalidade residia na apropriação e não na lavra.” (MACPHERSON, C. B. Teoria política do
individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.
247).
93
A partir de tal análise, o uso da moeda permite que o homem possa acumular tanto
quanto consiga. Tal acumulação, entretanto, não mais se dá em virtude do seu trabalho
empregado à coisa, já que este, na sociedade civil, perde o valor intrínseco de transformar o
comum em privado. A isso que Leo Strauss chama “emancipação da aquisição” 201, Locke
justifica do único modo pelo qual é possível defendê-la: tal aquisição conduz ao bem comum,
à felicidade de todos e da sociedade. Isto, pois as restrições constantes do estado de natureza se
dão por conta da penúria desse estado, em contraposição à abundância que se verifica pela
produção gerada com a sociedade civil, afinal: “um rei de território grande e fértil lá [na
América], mora e veste-se pior que um trabalhador jornaleiro na Inglaterra.” 202 Ou seja, a tal
jornaleiro, o exercício dos direitos e privilégios do direito natural lhe daria menos riqueza do
que o salário que recebe pelo seu trabalho na sociedade civil. Desta forma, Locke inverte o jogo
e nos diz que a apropriação ilimitada e indiferente às necessidades dos outros é a verdadeira
caridade.
200
STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2014, p. 291-292.
201
STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2014, p. 291-294.
202
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 232.
94
destas terras por seus respectivos proprietários, ainda implica dizer que, com a apropriação
ilimitada não restariam terras boas e suficientes para os demais. Nem precisaria, pois a
produtividade das já apropriadas seria mais do que a natureza espontaneamente proveria e, com
o advento do uso do dinheiro, seus frutos poderiam ser acumulados em moeda, sem prejudicar
os demais.
Como consequência necessária desta teoria, uma parcela da população ficaria sem
propriedades, a não ser aquela intrínseca à sua pessoa, ou seja, sua força de trabalho que, na
visão liberal lockeana, é tratada como mercadoria tão alienável quanto as demais. Em resumo,
podemos inferir que a natureza humana, na visão de Locke, pressupõe a divisão da sociedade
em duas classes distintas: uma de proprietários e outra composta daqueles que, por não terem
propriedades para delas viverem, são obrigados a vender a única que lhes pertence, sua
capacidade de trabalho.
Macpherson ressalta que, ao tempo de Locke, os defensores da produção capitalista –
dentre eles o próprio Locke – ainda não tinham consciência acerca dos efeitos desumanizantes
de transformar o trabalho em mercadoria e, na ausência de tal consciência – que seria talvez
adquirida somente após os excessos da Revolução Industrial – não havia razão para não
acharem a relação salarial algo natural, como fez Locke. 203
Adicionalmente aos argumentos apresentados para demonstrar como Locke via a
relação salarial como natural, temos que o ingresso na sociedade civil, para o pensador, não cria
nenhum direito, mas apenas protege aqueles já existentes conforme a lei natural e, portanto, já
verificados no estado de natureza. Desta forma, o governo civil limita-se a fazer cumprir aqueles
preceitos da lei natural. É isso que nos parece dizer no parágrafo 135 do Segundo Tratado:
A partir daí, nos é lícito inferir que Locke intentava demonstrar que o direito à
propriedade desigual é um direito constante do estado natural e que os homens apenas trazem
203
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 229-230.
204
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 269.
95
205
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 230.
206
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 243.
207
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 262.
96
Frente a tal conclusão, não resta dúvida de que as colocações lockeanas vêm no sentido
de sustentar a meritocracia como meio de legitimação das desigualdades, já que estas, conforme
dito, não se baseiam na função desempenhada, como ocorria na Idade Média, mas sim conforme
a capacidade de lidar com as regras inerentes ao livre mercado.
A partir das análises feitas acima, podemos concluir pela forte limitação de poderes
conferidos ao Estado, apresentando, portanto, uma noção bastante liberal, conforme
amplamente defendida nos séculos seguintes aos escritos de John Locke. Neste sentido, cabe
apontar as lições de Bobbio:
Ora, a teoria política de Locke é, nesse sentido, uma teoria objetivista da ética,
ao observar as inclinações e as necessidades naturais do homem – isto é, as
inclinações e necessidades que se manifestam no estado pré-social. Pretende
construir, sobre essa base, o castelo de todas as regras que pautam a
convivência social.
Quanto à função histórica do jusnaturalismo, insisto oportunamente sobretudo
em um ponto: o jusnaturalismo foi o caminho pelo qual passaram as várias
concepções que propuseram limites para o poder estatal. Ora, a construção
política de Locke obedece à ideia principal de que o bom governo é aquele
que nasce com limites que não podem ser ultrapassados, limites impostos pelo
fato de que as leis políticas veem depois das leis naturais, estando, por assim
dizer, a seu serviço. 209
Assim sendo, na visão lockeana a função do Estado, ou melhor, das leis políticas, é a de
proteger as leis naturais, manifestas no estado de natureza humano; em especial, aparece o
208
MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 256.
209
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 151.
97
Estado como constructo humano necessário para a proteção da propriedade e da liberdade. Sua
visão se afasta, portanto, de qualquer visão paternalista ou absolutista de governo e centra-se
em conceitos que viriam a ser pontos essenciais de toda codificação de viés liberal: a
propriedade privada e a liberdade contratual.
Neste sentido, tendo sido explorada toda construção teórica lockeana no que tange à
propriedade, passemos agora à ideia de contrato. Neste tocante, Locke nos dirá sobre uma
vinculação contratual de ordem “privada” estabelecida neste estado pré-político:
Estas afirmações são essências para compreender a ideia de formação do corpo político
como decorrente de um pacto associativo, cuja validade apenas se dá em virtude do mútuo
consentimento entre seus signatários, ressaltando a ideia de liberdade contratual como pré-
política, bem como evidenciando um fundamento sólido para a obediência do poder constituído
no momento posterior ao da celebração do pacto.
Ademais, no último excerto transcrito acima, fica evidente – como em outros pontos da
obra de Locke – seu entendimento acerca de uma moralidade natural do ser humano e da
formação de vínculos de natureza jurídica no estado natural humano. Não só a propriedade se
forma como direito de propriedade e isso independentemente de um poder político que institua
regras específicas e positivadas sobre seu domínio legítimo, mas também obrigações, tal como
a de intercâmbio de bens feito independentemente de um direito positivo disciplinando a
relação, também surge como vinculativo às partes que o celebram. Neste tocante, nos parece
que Locke parece sugerir como inerentes à natureza humana a própria ideia da autonomia
contratual, bem como dela extrair suas consequências, sendo a mais notável a própria
vinculação daquele que manifestou seu consentimento, conceito este central para a
compreensão de sua obra.
Fixadas as noções chaves para a compreensão de sua obra, notadamente a propriedade,
a liberdade contratual, bem como a força que possui em sua argumentação a ideia do
consentimento, cumpre-nos estabelecer as premissas abordadas por Locke para compreender o
210
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 221.
98
fundamento do poder político, ponto essencial de nossa pesquisa. Neste tocante, Locke
estabelece logo no início do Segundo Tratado as seguintes palavras:
A partir deste trecho, fica claro o objeto de pesquisa de Locke, qual seja, verificar uma
fonte para o poder político, diversa do domínio privado e daquela de Robert Filmer, alvo de seu
Primeiro Tratado. Adiciona, em seguida, sua definição de poder político:
Considero, portanto, poder político o direito de fazer leis com pena de morte
e, consequentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a
propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e
na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão-só em prol do bem
público. 212
A partir destas premissas, Locke nos dirá que “para compreender o poder político e
derivá-lo de sua origem, devemos considerar em que estado todos os homens se acham
naturalmente” 213
. Como vimos no início deste capítulo, tal estado é caracterizado por Locke
como sendo um estado de liberdade (inicialmente pensado de forma ideal e depois apresentado
em sua forma real), bem como de igualdade, na medida em que há entre os homens
reciprocidade de poder e jurisdição. A partir daí, Locke irá sugerir, em linha com a tradição
contratualista, a renúncia do direito natural de execução das leis da natureza em favor da criação
do corpo social, via pacto:
Contudo, como qualquer sociedade política não pode existir nem subsistir sem
ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, castigar as ofensas
211
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 215.
212
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 216.
213
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 217.
99
Esta é, certamente, uma das passagens mais emblemáticas do Segundo Tratado. Nela
Locke nos apresenta a ideia central da formação do corpo social como sendo a preservação da
propriedade, bem como os meios para que isso ocorra na sociedade política, ou seja, a existência
de leis comuns (e aplicáveis a todos igualmente) e a ausência de julgamentos privados.
Ademais, deixa claro que a formação da sociedade política cria um corpo, com judicatura, no
sentido que gerar uma autoridade bastante para decidir sobre controvérsias. Está, assim,
delineada a estrutura do argumento contratualista de John Locke.
Neste sentido, a recusa ao entendimento de viés absolutista defendido por Hobbes e a
defesa de uma espécie de Estado de Direito, conceito chave para a compreensão da formulação
do Estado moderno, vem de forma expressa na obra lockeana, já que “é evidente que a
monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato, incompatível
com a sociedade civil.” 215
Neste sentido, a existência de príncipes absolutos coloca-o num
estado de natureza no que tange aos seus súditos, posto que o governo absoluto não é compatível
com a ideia de sociedade política defendida por Locke. 216
Adicionalmente, o contexto posterior ao pacto, na obra de Locke, coaduna-se com sua
visão liberal e vinculada aos interesses sócio-políticos do período histórico em que escreveu
214
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 249.
215
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 250.
216
O pensador chega, inclusive, a apontar o estado de natureza como superior ao modelo absoluto: “...mas desejaria
que quem fizer essa objeção se lembre serem os monarcas absolutos somente homens, e se o governo tiver de ser
o recurso para os males que necessariamente decorrem de serem os homens juízes em causa própria, não sendo
por isso de suportar-se o estado de natureza, desejo saber que espécie de governo deverá ser este, e quão melhor
será do que o estado de natureza, em que um homem, governando uma multidão, tem a liberdade de ser juiz em
seu próprio caso, podendo fazer aos súditos tudo quanto lhe aprouver, sem que alguém tenham a liberdade de
formular perguntas aos que lhe executam as vontades ou de controla-los, devendo todos a ele submeter-se, seja lá
o que for que ele faça, levado pela razão, pelo erro ou pela paixão? Muito melhor será no estado de natureza, no
qual os homens não estão obrigados a submeter-se à vontade injusta de outrem; e se aquele que julga julgar
erroneamente no seu próprio caso ou no de terceiros; é responsável pelo julgamento perante o restante dos
homens.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 220).
100
217
Destacamos, neste assunto, a Petition of Rights de 1628 e a Bill of Rights de 1689.
218
Destaque-se que, para Locke: “O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição
da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas em paz e
segurança, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder
legislativo.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural
(Os Pensadores), 1991, p. 268)
219
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 270.
220
Destacam-se os artigos 2 e 17 do referido diploma: “Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a
segurança e a resistência à opressão.”
“Art. 17. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando
a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.”
221
Neste sentido, a Constituição assinada em 17 de setembro de 1878 traz dois artigos importantes: “Artigo V:
Ninguém será chamado a responder por um crime capital, ou infamante, a menos que sob denúncia ou indiciamento
oriundo de um grande júri, exceto em casos que se apresentem nas forças terrestres e navais, ou na milícia, quando
chamadas a serviço ativo em tempo de guerra ou perigo público; ninguém poderá ser acusado duas vezes pelo
mesmo crime com risco de perder a vida ou parte do corpo; ninguém será obrigado, em qualquer caso criminal, a
testemunhar contra si mesmo, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido procedimento
legal; nenhuma propriedade privada será tomada para um uso público sem uma justa compensação.”
“Artigo XIV: Todos os indivíduos nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, e submetidos à sua jurisdição,
são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem. Nenhum Estado fará ou aplicará qualquer lei que
restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa
da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido procedimento legal, nem negará a qualquer pessoa dentro
da sua jurisdição a proteção equitativa das leis.”
222
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 270.
101
223
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 256.
224
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-
europeus. Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 555. E, de fato, é o que se verifica no mundo
ocidental: “El estado mundo occidental de nuestros días, igual que el del pasado, es la consecuencia inevitable de
las diferencias económicas y tiene como finalidad suprema la defensa de la propiedad privada, mediante ejércitos
y cárceles o al través de un ordenamiento jurídico que otorgue un grado más o menos importante de libertad,
compatible con la estabilidad del sistema.” (CUEVA, Mario de la. La idea del estado. 5ª. Ed., México:
UNAM/Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 414). Em tradução livre: “O estado do mundo ocidental de nossos
dias, como no passado, é a consequência inevitável das diferenças econômicas e tem como finalidade suprema a
defesa da propriedade privada, mediante exércitos e prisões ou através de um ordenamento jurídico que outorgue
um grau mais ou menos importante de liberdade, compatível com a estabilidade do sistema.”
225
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 264.
102
apresentará um estado civil protetor dos direitos naturais, bem como centrado no conceito de
consentimento, remetendo-nos, portanto, à ideia de uma democracia representativa.
226
CHALLAYE, Félicien Robert. Pequena história das grandes filosofias. Trad. Luiz Damasco Penna e J.B.
Damasco Penna. São Paulo: Editora Nacional, 1966, p. 179.
227
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 200.
103
Aponta, portanto, sua recusa aos fatos que podem cambiar, o que não acontece com
conjecturas racionalmente pensadas a partir de seu método, possibilitando-o, assim, chegar nos
princípios políticos que iremos apresentar ao longo deste capítulo, os quais, como consequência
do emprego de tal método, não serão meramente conjecturais. Assim, no Segundo Discurso,
“evitando ‘recorrer aos testemunhos incertos da História’, ele começa ‘por afastar todos os
fatos’”228, o que irá distanciá-lo substancialmente da metodologia empregada por Grotius. Esta
não seria, em verdade, a única diferença entre os dois pensadores. Embora Rousseau tenha
certamente se valido das lições de Grotius para a formulação de seus escritos, o que era
inevitável à época, Rousseau, como iremos apresentar neste capítulo, irá rejeitar a defesa do
poder real feita por Grotius, sobre qual irá deflagrar inúmeros ataques, especialmente em seu
Contrato Social229, apontando certa desonestidade intelectual de Grotius pela defesa do poder
real em detrimento do povo, visando agradar interesses. Embora Grotius tenha consciência de
que não é mais possível legitimar o poder real com base no direito divino, nem por isso deixa
de ser partidário da monarquia absolutista, de tal sorte que procura justificar seu poder
independente do direito divino que até então o fazia.
Superado este ponto, vejamos o Segundo Discurso, em que Rousseau nos diz claramente
que o mal não reside na natureza humana, mas sim nas estruturas sociais, sobretudo na
legitimação da propriedade. Com efeito, na obra em comento, Rousseau inicia por conjecturar
acerca da condição humana num estado pré-político, antes, portanto, do advento da sociedade
civil e a consequente formalização das relações de propriedade. Conforme já ressaltamos, a
ideia de natureza é um conceito central para compreender Rousseau, já que a crítica à sociedade
civil já corrompida – posto que fundada na desigualdade – só pode ser realizada a partir do
retorno à natureza para interrogá-la e conhecer sua influência sobre a alma humana e nos
mostrar quanto nos afastamos desse estado original. 230
É importante destacar que nesta tentativa de reconstruir a condição humana natural
Rousseau tinha em mente não confundir o homem selvagem com os homens de hoje, já
corrompidos pelo processo civilizatório, crítica esta imputada certeiramente a Hobbes. 231
228
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 122.
229
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 88.
230
PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. [Tese de
Doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 1996, p.15.
231
Neste sentido: “Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de
orgulho, transportaram para o estado de natureza ideias que haviam tirado da sociedade: falavam do homem
selvagem e descreviam o homem civil.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de
Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 161).
104
Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, antes
selvagens do que maus e mais preocupados em proteger-se do mal que podiam
receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a rixas muito
perigosas; como não tinham entre si nenhum tipo de relações e não conheciam,
consequentemente, nem a vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem o
desprezo; como não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma
verdadeira ideia de justiça...232
Desta forma, o homem selvagem não tendo ainda “inventando” a propriedade não
poderia, por conseguinte, entender qualquer relação de pertencimento pessoal com exclusão
dos demais; não tinha, portanto, a ideia de algo seu em contraposição a algo não seu, do outro.
Tal pensamento leva o pensador a estabelecer uma correlação entre esta condição de homens
que nada possuem e a possibilidade de dependência e sociabilidade entre eles. Vejamos:
Um homem bem poderá apoderar-se dos frutos que outro colheu, da caça que
matou, do antro que lhe servia de refúgio; mas como conseguirá ele fazer-se
232
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 193.
105
Entende Rousseau, portanto, que neste estado de natureza em que não há ainda no
espírito humano qualquer noção de propriedade, não pode haver qualquer relação de
dependência entre os homens; afinal, se não há qualquer relação de propriedade firmada entre
os frutos da terra e os humanos que dele usufruem, tudo pertence igualmente a todos e há
alimentos suficientes para que todos possam saciar sua fome, de modo que qualquer briga por
território ou alimento perde seu sentido, conforme o trecho transcrito acima, visto que no estado
de natureza não há uma desigualdade que conceda ao mais forte qualquer autoridade sobre o
mais fraco. Como consequência, o homem selvagem situado neste estado preza apenas por suas
reais necessidades e pode saciá-las com os produtos da natureza, existentes em quantidade
suficiente para ele e seus semelhantes (conforme o pressuposto da abundância também previsto
em Locke).
Diante disso, temos que a ideia de um direito de propriedade encontrada por Locke já
no estado natural aparecerá em Rousseau apenas com o estabelecimento posterior da sociedade
civil, que tornará o direito precário e provisório do primeiro ocupante um direito legítimo e
reconhecido. O estabelecimento da sociedade, conforme a construção elaborada por Rousseau,
torna a usurpação um verdadeiro direito, apagando o vício de sua origem. 234
Em síntese, temos que embora partam de um pressuposto de abundância no estágio
humano primitivo, Rousseau e Locke divergem quanto à existência ou não de uma relação de
propriedade necessária para a apropriação e consumo dos frutos disponíveis no estado de
natureza. Para Locke, como vimos, a relação de propriedade deve se firmar com vistas a garantir
a apropriação individual do bem pelo indivíduo, garantindo sua sobrevivência sem a possível
interferência dos demais. Já para Rousseau, não há qualquer relação de propriedade que possa
ser reclamada sem a instituição da sociedade civil e, portanto, ao homem primitivo não cabe
233
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 199.
234
VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p. 81.
106
235
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 203.
236
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 207-208.
107
237
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 83-84.
238
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 84.
239
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 84.
108
Cada qual começou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a
estima pública teve um preço. Aquele que cantava e dançava melhor; o mais
belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente passou a ser o mais
considerado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício ao
mesmo tempo; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado a vaidade
e o desprezo, do outro a vergonha e o desejo; e a fermentação causada por
esses novos germes produziu por fim compostos funestos à felicidade e à
inocência.
Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente e lhes formou no
espírito a ideia de consideração, cada qual pretendeu ter direito a ela e não foi
mais possível privar ninguém dela impunemente. 240
Por outro lado o homem, de livre e independente que era antes, passou a estar,
em virtude de uma profusão de novas necessidades, por assim dizer sujeito a
toda natureza, sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se torna
escravo, mesmo em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços;
pobre, precisa de seu auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de
viver sem eles. Logo, é necessário que incessantemente procure interessá-los
em sua sorte e fazê-los encontrar, real ou aparentemente, proveito em trabalhar
para o seu próprio; isso torna-o dissimulado e artificioso com uns, imperioso
e duro para com outros e torna-lhe imprescindível lograr todos aqueles de que
necessita, quando não pode fazer-se temer por eles e não acha de seu interesse
servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar sua
fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima
240
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 210-211.
241
“Na filosofia da história exposta no segundo Discurso, a sociabilidade está fundada no princípio da separação:
a ‘festa primitiva’ fornece as condições para que os homens se comparem entre si, buscando distinguir-se dos
demais, levados pelo desejo da estima pública, quando então o amor-de-si terá se degenerado em amor-próprio. A
imaginação, influenciando de modo determinante as paixões, suscita no homem a expansão dos desejos. Na ânsia
de ser o centro das atenções e obter a consideração de todos, o homem passa a modelar o seu comportamento em
função da opinião alheia.” (FREITAS, Jacira de. Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação.
São Paulo: Humanitas, 2003, p. 54).
242
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 72.
109
243
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 217-218.
244
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo, Ática, 1976, p. 51.
245
FREITAS, Jacira de. Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação. São Paulo: Humanitas,
2003, p.72.
246
“Mas, a partir do instante em que um homem necessitou do auxílio do outro, desde que percebeu que era útil a
um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se
necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que cumpria regar com suor dos homens e
nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e medrarem com as searas. A metalurgia e a agricultura
foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes.
Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 213).
247
VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p. 60.
110
Destarte, a divisão do trabalho alinha-se com a partilha das terras cultivadas, visto que
a posse contínua pelo trabalho passa a dar direito sobre a gleba. Não obstante este direito não
deva ser visto no sentido proposto por Locke, tal como um direito natural de propriedade
fundado pelo trabalho, mas sim como um direito precário, que se torna legítimo apenas com a
proteção concedida pela formação da sociedade civil:
Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que criaram novos
entraves para o fraco e novas forças para o rico, destruíram em definitivo a
liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,
de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e, para o lucro de
alguns ambiciosos, sujeitaram daí para frente todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria. 249
Neste ponto reside uma substancial diferença entre o pensamento de Rousseau e aquele
de Locke, já analisado. Como tivemos oportunidade de estudar, Locke constrói seus argumentos
no intuito de provar a existência da propriedade independente de qualquer pacto entre os
membros da comunidade250, ou seja, num estado pré-político, dotando-a, portanto, de caráter
natural, vez que ligada diretamente à condição de sobrevivência humana. Já aqui, Rousseau
deixa claro que é apenas a instituição da sociedade civil que torna o que até então era usurpação
248
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 215-216.
249
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 222.
250
LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os
Pensadores), 1991, p. 227.
111
251
Em sua obra Do Contrato Social, aparece a expressão: “cambiando a usurpação por um direito verdadeiro”
(ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 81).
252
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 80.
253
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 81.
254
NASCIMENTO, Milton Meira do. Reivindicar Direitos Segundo Rousseau. São Paulo, IEA, p. 7. Disponível
em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/nascimentorousseau.pdf. Acesso em: 22 de novembro de 2017,
12:55.
112
ser, como consequência desta situação, a regra comum dos povos, esvaindo-se o direito natural.
255
Esta guinada, que torna a razão uma razão de dominação é, como vimos, fruto do
surgimento da propriedade e sua consequente atividade comparativa. “O homem compara pela
reflexão, entra em relação, descobre a diferença – a desigualdade é o outro nome da relação; a
primeira desigualdade que se exprime numa noção (maior ou menor habilidade no trabalho),
255
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 221.
256
VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p. 46-7.
257
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 74.
113
Sob este diapasão, o estabelecimento da propriedade e das leis não se presta a garantir
a liberdade e a igualdade, mas sim a legitimar a desigualdade, reforçando a relação de
dominação dos proprietários sob forma jurídica. A desigualdade, portanto, não é condição
natural261, como vimos ser defendido por Locke, mas uma criação262 das estruturas sociais,
encabeçadas pela propriedade.
Frente aos apontamentos realizados neste item, podemos concluir que enquanto Locke
vê na instituição da sociedade civil a solução para o problema da sociabilidade humana, posto
que garante a efetividade aos direitos naturais – ressalte-se a garantia da propriedade –,
Rousseau vê exatamente aí a consolidação e legitimação da desigualdade – inexistente no
estado natural –, de onde emergem misérias, horrores e injustiças.
258
MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 77-8.
259
PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. [Tese de
Doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 1996, p. 3.
260
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 243.
261
Quanto à desigualdade, temos novamente uma concordância entre Rousseau e Hobbes, em oposição ao
defendido por Locke: “A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples
natureza, na qual todos os homens são iguais. A desigualdade atualmente existente foi introduzida pelas leis civis.”
(HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 91).
262
“se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos que o estabelecimento
da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem
e os fundamentos da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad.
Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 235).
114
não parece ter sido somente o precursor de Rousseau, mas também seu mestre.
A cento e cinquenta anos de distância, Althusius e Rousseau sustentaram, um
e outro, a mesma luta pelo triunfo das ideias democráticas. É em nome do
mesmo ideal político que um mediu-se com Bodin e que o outro lutou contra
o absolutismo de Hobbes, Grotius e Pufendorf. 264
Importante destacar, ainda, que as doutrinas afetas ao direito natural, tal como o
contratualismo, apresentam conteúdo teórico conflituoso para o clérigo católico, o qual tratava
de apontá-las como alinhadas ao discurso da Reforma, por tratar de uma tentativa para
desalinhar o poder político do poder da Igreja.
De toda sorte, frente ao exposto ao longo deste capítulo, verificamos que o estado de
natureza inicial previsto por Rousseau apresenta o ser humano como naturalmente bom,
expondo um equívoco de seus antecessores ao verificar no homem selvagem as mazelas que
acometiam o homem da sociedade de seu tempo. Entretanto, o advento das relações de
propriedade e de divisão do trabalho alteram substancialmente o estado de natureza, tornando-
o conflituoso em seu limite. Com efeito, a partir do advento da agricultura e da metalurgia –
acumulação de novas “luzes” – brotam a divisão do trabalho e a propriedade, já que a partir do
momento em que são necessários homens para fundir o ferro, foram necessários outros homens
para nutrir aqueles; ou seja, para subsistir, os indivíduos passaram a depender necessariamente
do trabalho alheio. A partir desse contexto surge uma forma de troca baseada numa apropriação
exclusiva, a partir da qual se fortalecem as desigualdades, apoiadas nas diferentes ambientais e
naturais entre os proprietários, sendo que uns são mais capazes de acumular riqueza do que
outros. 265
263
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 57 e ss.
264
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 157.
265
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989, p. 62-3.
115
Com o intuito de pôr fim à guerra generalizada que se estabelece com o advento da
propriedade no limite do estado de natureza é que os homens têm a ideia de um acordo, um
pacto social que estabeleça regras que obriguem a todos igualmente. Neste contexto, o direito
civil passará a ser a regra comum dos povos, restando ao homem libertar-se dos prejuízos
trazidos pela sociabilidade historicamente inaugurada a partir da criação da propriedade
266
mediante o pacto social, cuja função torna-se, portanto, reparadora. Na realidade, a
instituição desta ordem legal, na mesma medida em que promove a paz, legitima a propriedade,
dando respaldo às desigualdades.
Conforme vimos anteriormente, para Hobbes e Locke a sociedade política sobrevém ao
estado de natureza para solucionar a insegurança da vida e da propriedade, respectivamente, no
estado de natureza. Para Rousseau, diferentemente, o pacto decorre da situação de conflito
gerada no limite do estado de natureza, pelo advento da propriedade, de tal sorte que se chega
a imputar a Rousseau a ideia de que a sociedade decorrente do pacto é ilegítima 267, como faz
pressupor sua linha de argumentação utilizada no Segundo Discurso, fazendo-nos analisar
agora seu Contrato Social, para verificar as questões afeta ao pacto social, suas características
e objetivos, bem como à sociedade política que dele segue.
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada
associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo
a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. 268
É este, segundo Rousseau, o
problema fundamental a ser resolvido pelo contrato social. O qual, cumpre-nos dizer, é
apresentado na obra de Rousseau de maneira claramente teórica – e não como uma realidade
histórica possível –, o que fica evidente ao dizer que “embora talvez jamais enunciadas de
maneira formal, são as mesmas em toda parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos
os lugares”269, sendo certo que a alienação total de cada associado exprime a integralidade do
pacto, de tal sorte a constituir uma união perfeitamente organizada.
Rousseau deixa clara a troca efetuada quando da celebração do pacto: o homem perde a
liberdade natural e o direito ilimitado a tudo quanto possa alcançar (a mera posse), mas ganha
a liberdade civil (limitada pela vontade geral) e a propriedade (com título) de tudo que possui.
266
PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. São Paulo:
PUC-SP [Tese de Doutorado], 1996, p. 38.
267
VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p. 67.
268
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 70.
269
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 70.
116
Ademais, temos que a síntese da ideia do contrato reduz-se nas seguintes palavras:
“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da
vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. 270
Diante disso, verificamos em Rousseau a ideia de que, enquanto social (pós pacto), cada
membro – isto é, indivíduo –, só existe enquanto partícipe de uma sociedade, sendo, portanto,
parte indivisível do todo. Este todo verifica-se como um corpo moral e coletivo, resultante do
pacto, sobre o qual Rousseau imputa a ideia de pessoa pública, apresentando-nos, ainda, sua
verificação histórico-político como cidade, república ou corpo político, “o qual é chamado de
Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus
semelhantes.” 271
Cumpre-nos destacar que a ideia de pacto social, para Rousseau, encontra-se de maneira
mais claramente delineada em parte no seu Segundo Discurso e, é claro, no Contrato Social.
Neste sentido, voltemos ao Segundo Discurso para uma importante afirmação:
Tal entendimento é oposto ao de Hobbes, visto acima, no que concerne aos celebrantes
do pacto. Em Hobbes, o pacto é celebrado entre os indivíduos e não entre indivíduo e soberano,
de modo que o soberano não pode descumprir o pacto e nenhum súdito pode se liberar da
sujeição, já em Rousseau, o pacto é bilateral, obrigando ambas as partes à observância das leis
estipuladas para o convívio social.
No mesmo sentido, dirá Rousseau logo no início do capítulo VII do Contrato Social,
que o ato de associação compreende “um compromisso recíproco entre o público e os
particulares” 273, o qual, como vimos, possui o propósito de possibilitar a fruição da liberdade
natural do ser humano, ou pelo menos tentar rememorá-la. Não olvidemos, entretanto, que a
partir do advento das relações de propriedade no limite do estado de natureza, a situação natural
270
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 71.
271
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 71.
272
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 231.
273
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 73.
117
humana torna-se, até mesmo para Rousseau, insustentável, de tal modo que se não mudasse, o
ser humano pereceria. 274 A partir daí, é a agregação das formas individuais num todo coletivo
a única saída para superação das dificuldades.
A partir deste ponto, cria-se o corpo coletivo, cujo princípio de regência é a vontade
geral, voltada ao bem comum. Esta não se confunde com a mera maioria numérica, mas
apresenta-se como a expressão comum das vontades particulares, o que Rousseau 275 chama de
liame social, sem o qual não existiriam sociedades. Leister e Chiappin nos ajudam a
compreender este relevante conceito:
Desta forma, aparece a vontade geral vinculada à criação contratual do Estado Civil,
dando o fundamento necessário à soberania deste. Com efeito, dirá Rousseau:
274
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 69.
275
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 85.
276
LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista da Teoria
Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de Estudos
Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 293.
277
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 97.
118
com suas partes, sendo “convenção legítima por ter como base o contrato social, equitativa por
ser comum a todos, útil por não poder ter outro objetivo que não o bem geral, e sólida por ter
como garantia a força pública e o poder supremo.” 278
Neste ponto, Rousseau nos introduz aquilo que seja talvez o grande motivo pelo qual se
torna legítima a vontade geral decorrente do contrato social: a ideia da autolegislação:
Assim sendo, Rousseau passa a analisar não mais o indivíduo isolado no estado de
natureza, mas o corpo social gerado pelo contrato, cuja atribuição passa a ser “a tarefa de
traduzir a vontade geral em termo de um sistema de leis”280, ou seja, viabilizar a expressão
desta vontade única emanada dos membros que compõem o Estado.
Diante disso, temos que o ato de alienação em Rousseau refere-se à toda coletividade (e
não a um homem ou a uma assembleia de homens, como quer Hobbes), sendo este um requisito
para a passagem do estado de natureza para o estado civil. O resultado é evidente, no modelo
hobbesiano, há um dever de obediência que demonstra um cidadão passivo; já em Rousseau, o
cidadão possui um papel participativo (ativo) na sociedade civil, posta, portanto, na forma de
república, de tal sorte a rejeitar os modelos aristocráticos e monárquicos.
As diferenças do modelo rousseauniano de contrato social com relação aos modelos
anteriores continua. Dirá Rousseau que “o mais forte nunca é suficientemente forte para ser
sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever”281,
evidenciando, assim, a predominância do poder simbólico sobre o poder físico ou concreto.
Neste sentido é que vai a ideia do fundamento do Estado como decorrente de um pacto
associativo hipotético, o contrato social, que não só constitui a sociedade política, mas a torna
justa, já que todo direito, na visão rousseaniana, decorre de convenções. Neste sentido, é
importante a assertiva feita no início do capítulo IV de seu Contrato Social: “Visto que homem
278
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 98.
279
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 98.
280
LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista da Teoria
Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de Estudos
Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 293.
281
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 59.
119
algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz nenhum direito,
só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens.”282
Colocar o fundamento da autoridade como decorrente de um pacto não é inovação de
Rousseau; entretanto, a natureza de seu pacto é o que o diferencia de seus antecessores, os quais
apontam ser este pacto um pacto de submissão, pelo qual se concedia autoridade a um soberano,
283
seja por coação, seja de forma voluntária. Para Rousseau, um pacto desta natureza, que se
converte em benefício de apenas uma das partes, não pode ser considerado, a rigor, um contrato.
Para Rousseau, não há um contrato de governo, nos termos descritos acima, mas apenas
um pacto associativo, no qual consta um engajamento recíproco com relação ao corpo político
do qual farão parte. Assim sendo, Rousseau irá se diferenciar dos contratualistas de até então,
na medida em que a simples ideia do consentimento não basta para vincular. Neste sentido, irá
estabelecer a possível nulidade do pacto se este violar a equidade e as leis naturais,
especialmente no sentido de alienação da liberdade natural. Derathé nos ajuda a esclarecer este
ponto:
282
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 61.
283
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 272.
284
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 361.
285
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas escritas de Montanha. Carta VI. Pol. Writ., II, p. 200 apud DERATHÉ,
Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:
Barcarolla, 2009, p. 362.
120
Há, como não poderia deixar de ser, uma absorção parcial de aspectos relacionados às
teorias pelos filósofos contratualistas posteriores a Hobbes, sendo tal acúmulo de conhecimento
inevitável no progresso das ciências e da filosofia. Neste sentido, ao avançarmos na história da
justificação filosófica do Estado no seio da modernidade, diminui-se progressivamente a
necessidade de maiores exposições. Isto, pois os filósofos aqui sob análise recusaram parte dos
entendimentos contratualistas anteriores, mas, em larga medida, absorveram e aceitaram parte
significativa das premissas de seus antecessores. 286 É o que ocorre com Kant, o qual sintetiza
as demandas modernas sob diversas perspectivas, notadamente no campo da gnosiologia, mas
também sob o aspecto da fundamentação do Estado e do direito como forma de compatibilizar
a coexistência das liberdades, livrando-nos das mazelas – quaisquer que sejam – do estado de
natureza. Em sua perspectiva, o contrato social aparece como aquele sobre o qual se assenta
uma constituição civil legitima, ou seja, o direito posto como forma de harmonizar a
coexistência das liberdades. Neste sentido, Höffe aponta que:
De Hobbes, ele [Kant] recebe o estado natural como fundamento racional para
a necessidade de um Estado, de Locke, a ideia dos direitos humanos
inalienáveis, de Locke e Montesquieu, a ideia da divisão dos poderes, e de
Rousseau, a tese de que somente a vontade geral (volonté générale) constitui
o princípio crítico-normativo supremo de toda legislação positiva. 287
Na mesma linha, irá apontar o Estado como uma instituição de segunda ordem, cujo
propósito é dar efetividade às instituições de primeira ordem, ou seja, a propriedade, os
286
Neste sentido, Leister e Chiappin identificam, a partir do aparato metodológico do programa de pesquisa
lakotosiano as propostas que se encaixam dentro da tradição contratualista clássica, pertencendo assim a um
mesmo programa de pesquisa que contém: “(i) um núcleo básico cuja estrutura é formada pelos componentes que
definem a abordagem contratualista; (ii) um conjunto de quatro teorias que formam a heurística positiva do
programa. Essas teorias são: (i) teoria T¹ como a teoria hobbesiana; (ii) teoria T² como sendo a teoria lockeana;
(iii) teoria T³ é a teoria rousseauísta; (iv) teoria T 4 que corresponde à teoria kantiana. Essa sequência de teorias
caracteriza-se por proporcionar um refinamento da proposta original hobbesiana ensejando novas e mais
complexas construções do problema da emergência da cooperação entre indivíduos interagentes e solucionando
os novos problemas que surgem no interior do programa por meio do aumento da sofisticação dos instrumentos,
ferramentas e métodos disponibilizados em sua heurística positiva. Dessarte, se Hobbes visa resolver o problema
da paz por meio da instituição de um poder absoluto que garanta a cooperação entre indivíduos com interesses
particulares e conflitantes, Locke refina a solução hobbesiana granjeando, ainda, na solução construída por este
último, a garantia da liberdade individual por meio do estiolamento do poder coercitivo distribuindo-o através de
diferentes instâncias políticas. Novas restrições são, igualmente, introduzidas às teorias contratualistas que os
antecede, de Hobbes a Locke, promovendo, por aí, a sofisticação das soluções propostas dentro do programa
contratualista.” (LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista
da Teoria Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de
Estudos Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 263).
287
HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 252-253.
121
288
HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 251.
289
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 23.
290
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 31.
291
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 152-153.
292
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 153.
122
Deste estado civil, onde paira a limitação exterior publicamente acordada, decorre a
cidade (ou coisa pública – res publica), que encerra em si os três poderes, “isto é, a vontade
universalmente conjunta numa pessoa tripla (trias politica): o poder soberano (soberania) na
pessoa do legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial
na pessoa do juiz (potestas legislatória, rectoria et judiciaria).
Apontando o estado de natureza como guerra, Kant irá verificar a paz como algo que
precisa ser instaurado para ocorrer, de modo que não basta a abstenção de hostilidades, é
necessário implementar a paz e “só pelo fato de ter ingressado no estado civil, cada um dá aos
demais as necessárias garantias; e é a autoridade soberana a que, tendo poder sobre todos, serve
de instrumento eficaz àquelas garantias.”293 Assim sendo, é o estado civil, detentor da
autoridade soberana, que torna eficaz as garantias reciprocamente concedidas para a
constituição do próprio estado civil; garantias estas não concedidas no estado de natureza, sendo
este de perpétua ameaça. Em oposição, aparece na sociedade civil o direito, “único fundamento
possível da paz perpétua”294, assinalando sua já conhecida concepção jurídica do Estado, cuja
função é a manutenção de um ordenamento jurídico necessário à coexistência de liberdades.
Este estado civil aparece delineado em sua Doutrina do Direito:
A constituição desta realidade decorre, como não poderia deixar de ser, de um contrato
primitivo:
O ato pelo qual o povo se constitui em uma cidade, e, propriamente, a simples
Ideia desse ato, segundo a qual se pode unicamente conceber a legitimidade
do próprio ato, é o contrato primitivo, segundo o qual todos (omnes et singuli)
se desprendem de sua liberdade exterior diante do povo para tornar a recobrá-
la no novo instante como membros de uma república, isto é, na qualidade de
membros de uma comunidade ou do povo como cidade. E não se pode dizer
que a cidade, que o homem em sociedade tenha sacrificado a um fim uma
parte de sua liberdade exterior natural; mas sim que deixou inteiramente sua
liberdade selvagem e sem freio para encontrar toda a sua liberdade na
293
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 39.
294
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 107.
295
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 153.
123
296
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 157.
297
“Ou seja, a relação universal governante-governado tem por base uma concepção contratualista da sociedade e
pressupõe uma equação teórica em que ser cidadão é igual a ser obediente.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio.
Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas. Barueri:
Manole, 2007, p. 413).
298
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 77.
124
próprio fim, o preceito jurídico”299, de modo que “a natureza garante a paz perpétua, utilizando
em seu proveito o mecanismo das inclinações humanas.” 300
A síntese deste movimento encontra-se em Kersting, ao dizer que “o imperativo
categórico é a regra de operação do universalismo da moral; o contrato originário é a regra de
operação do universalismo do direito”. 301
Neste sentido, José N. Heck resume aquilo que
pretendemos demonstrar:
299
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 77.
300
KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 81.
301
KERSTING, Wolfgang. Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts - und Staatsphilosophie. Frankfurt
a/Main: Suhrkamp, 1993, p. 32-33. Der kategorische Imperativ ist die Operationsregel des Universalimus der
Moral; der ursprüngliche Kontrakt ist die Operationsregel des Universalismus des Rechts” apud HECK, José N.
Contratualismo e sumo bem político: a paz perpétua. In: Kant e-Prints - Vol. 2, n. 6, 2003, p. 4.
302
HECK, José N. Contratualismo e sumo bem político: a paz perpétua. In: Kant e-Prints - Vol. 2, n. 6, 2003, p.
4.
303
“O sentido da História encontra-se na instituição de estados de direito e de uma convivência legal (justa) dos
Estados entre si, em constante progresso do direito de toda a humanidade, até que finalmente se tenha formado
nos limites de uma federação de povos, uma comunidade de paz que abarque o mundo todo. (…) A fundação de
estados de direito e a sua conveniência em uma comunidade mundial de paz é a suma tarefa, o fim terminal da
humanidade.” (HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 274-275).
125
304
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.
34.
305
“Entre Hobbes e Locke, a estrutura teórica do Estado moderno estava substancialmente completa.
Fundamentando-se na separação entre o governo público e a autoridade privada – diferença que escapara a Erasmo
e Maquiavel e cujo verdadeiro criador na Europa moderna fora Bodin –, configuram o Estado como uma entidade
abstrata separada do governante (o soberano) e dos governados (a sociedade civil), mas que continha os dois. Luís
XIV podia gabar-se que l’état (não, o que mais importante, a res publica, ou civitas, ou communitas, ou alguma
expressão semelhante), c’est moi; contudo, o próprio fato de que ele, ao contrário de quaisquer de seus
predecessores reais em qualquer outra época e lugar, pudesse fazer tal afirmação demonstra que os dois não eram
mais um só.” (VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martin
Fontes, 2004, p. 259).
306
“Jean-Luc Nancy também enfatiza que o sufixo “-cracia” (-cratie) que forma a palavra “democracia” remeteria
à ideia de força e de imposição violenta, ao contrário do que ocorre com o sufixo “-arquia” (-archie) que remeteria
à ideia de um poder fundado ou legitimado por um princípio. Assim, segundo sua análise, o termo democracia
pareceria colocar de lado a possibilidade de um princípio fundador. Segundo ele, não haveria “demarquia”
(“démarchie”), de modo que o povo não representa o princípio de fundamentação. (NANCY, Jean-Luc.
Démocratie finie et intinie. In: AGAMBEN, Giorgio et al. Démocratie, dans quell état? p. 84-85 apud VILLAS
BÔAS FILHO, Orlando. Democracia: a polissemia de um conceito político fundamental. In: Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 108, p. 651-696, jan/dez. 2013, p. 657).
126
ato coletivo amplo o suficiente para todos nele abarcarem, propõe uma forma de poder
ascendente – em contraposição ao poder descendente do Antigo Regime –, feito, portanto, de
baixo para cima. Fundamenta, em bases racionais, a justificação do Estado moderno,
vinculando-o à soberania popular:
Com efeito, o poder do legislativo extraído da obra de Locke e o governo pela vontade
geral de Rousseau constituem o que há de essencial na estrutura do Estado moderno, síntese
dos reclamos da modernidade e erigido à luz de princípios tais como o da liberdade (sobretudo
a contratual, cerne do direito privado); igualdade (decorrente da transcendentalidade do sujeito
kantiano e estabelecida, ainda que apenas formalmente, pelos diplomas legais); representação
política (e seu necessário vínculo com a ideia de autolegislação); e respeito e obediência às
instituições democraticamente estabelecidas.
Desta forma, o Estado moderno apresenta-se como um complexo artificialmente erigido
para a conveniência dos seus súditos, verdadeiros detentores do poder político segundo a teoria
da soberania popular, corolário da contratualista. Centra-se no conceito de Estado de Direito e,
portanto, no predomínio da ordem jurídica. Com efeito, a partir da ideia de um consenso prévio
entre indivíduos abstratos resultam as relações de subordinação estabelecidas pelo ordenamento
jurídico. Ademais, assenta-se sobre um traço que lhe é fundamental e, em especial, o diferencia
das demais formas institucionalizadas de poder que lhe antecederam: a soberania. Neste sentido,
é importante a lição de Paulo Bonavides:
Mas nunca deslembrar que foi a soberania, por sem dúvida, o grande princípio
que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse
a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e
concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária,
monopolizadora de coerção.
Antes de se prender, pois, a uma instituição visível e manifesta mas
despersonalizada – a saber, o Estado propriamente dito –, aquela autoridade
se prendia à pessoa do governante, do monarca, do príncipe legibus solutus,
espécie de divindade temporal e terrena, a saber, príncipes, primus inter pares,
que dissolvera num lento processo a constelação de poderes desiguais e
privilegiados do sistema feudal até se transformar, em época posterior das
307
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.
160.
127
Nesta perspectiva, o Estado moderno deixa de ser o Estado absoluto do Antigo Regime
e passa a ser o Estado constitucional, sob a égide da lei, conforme o constitucionalismo nascente
na transição do séc. XVIII para o séc. XIX. Trata-se aí de uma guinada histórica relevante: a
transição do poder das pessoas para o poder das leis.
Politicamente, temos Cromwell sendo proclamado Lorde Protetor da Inglaterra, Escócia
e Irlanda e ficando sujeito a uma constituição (o Instrumento de Governo), escrito por um
Conselho de Oficiais sob a direção de Lambert, em 1653. Outro ponto de inflexão se dará em
1689, com a aprovação da Declaração de Direitos (Bill of Rights) pelo Parlamento, limitando
as prerrogativas reais. Já em 1714, assume Jorge I, de Hannover, sem ter conhecimento da
língua inglesa e outorgando a chefia de governo para um gabinete, de onde se destacaria
oportunamente a figura do Primeiro-Ministro como chefe de governo, germinando o sistema de
governo parlamentarista.
De fato, o avanço promovido pelos ingleses no século XVII foi essencial para a
transformação das estruturas jurídicas medievais em um sistema parlamentar limitador do poder
real. Posteriormente, o modelo da tripartição dos poderes de Montesquieu seria implementado
na Constituição americana da Independência. Esta, por sua vez, trouxe consigo a importância
da constituição escrita, código sistemático de organização do Estado e de proteção de direitos,
viabilizando, em especial, o governo popular em contraposição à injusta tradição monárquica.
Ademais, outros avanços podem ser imputados aos americanos neste tocante, como o
federalismo e o sistema de governo presidencialista, este modelado com uma separação mais
rígida das funções executiva, legislativa e judiciária em contraposição ao modelo
parlamentarista, onde a relação executivo-legislativo não se reveste propriamente de
independência.
Tais eventos, por evidente, impulsionaram a Revolução Francesa e, considerados dentro
de um período histórico relativamente curto (da segunda metade do séc. XVII ao final do séc.
XVIII) forneceram as bases essenciais à formação do Estado constitucional moderno, além de
terem desencadeado as independências das colônias espanholas e portuguesas nas décadas
308
BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 35.
128
seguintes. Destaque-se que o papel dos eventos revolucionários deste período é, conforme
Arendt309, algo substancialmente distinto das rebeliões e guerras da antiguidade, posto que
noção de revolução, para a referida pensadora, está associada à ideia de instauração da
liberdade, algo que não aparecia nas guerras antigas, mas é inerente aos movimentos
revolucionários do período moderno em comento.
Destaque-se, na referida pensadora, a apologia feita à Revolução Americana em
detrimento daquela Francesa, no que tange ao aspecto central dos movimentos revolucionários,
a constituição da liberdade (constitutio libertatis), concluindo, em apertada síntese, que a
Constituição americana nasceu “da confiança de ter descoberto um princípio de poder com
força suficiente para fundar uma união permanente”310, enquanto as efêmeras constituições
europeias do pós-guerra nasceram “da desconfiança frente ao poder em geral e [d]o medo frente
ao poder revolucionário do povo em particular”311. A partir desta substancial distinção, recusa
a possibilidade de que tais constituições pudessem instaurar a mesma forma de governo
implementada pela Constituição americana. Neste sentido, ressalta a ideia de que o ato
revolucionário é determinado pelo tipo de governo que derruba, já que a Revolução Americana
combateu uma monarquia limitada e a Francesa a Monarquia Absolutista. 312
Paralelamente e de forma sobreposta com tais acontecimentos políticos se dava “o
aumento da complexidade social e o aparecimento de subsistemas sociais de tal forma que
pouco a pouco assistimos, já no séc. XVIII, à diferenciação do chamado subsistema econômico
que passa a constituir algo de per se e, por isso, merecedor da atenção do governo”313. Também
a Revolução Industrial, por sua vez, traria as bases para a produção em massa, estabelecendo
uma sociedade técnica e industrial em contraposição àquela medieval (que neste contexto torna-
se pré-industrial), de forma a perfazer o processo de mudança do modo produtivo. Dentro deste
309
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
36. E ainda: “Existiam homens no Velho Mundo que sonhavam com a liberdade pública, existiam homens no
Novo Mundo que provaram a felicidade pública – são estes, em última análise, os fatos que determinaram que o
movimento de restauração, de recuperação dos antigos diretos e liberdades, evoluísse para uma revolução dos dois
lados do Atlântico. E, por mais que os acontecimentos e circunstâncias, no êxito e na derrota, viessem a separá-
los, os americanos ainda concordariam com Robespierre sobre o objetivo supremo da revolução, a fundação da
liberdade, e sobre a tarefa concreta do governo revolucionário, a instauração de uma república.” (ARENDT,
Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 188).
310
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
203.
311
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
203.
312
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
205.
313
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos
humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 424.
129
quadro conceitual e fático se firmarão os preceitos centrais para a compreensão dos aspectos
sociais e políticos da sociedade moderna:
Neste sentido é que será erigido o Estado moderno, ente criado e regido por uma
constituição, fortemente balizado nos ditames da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão promulgada pela Assembleia Nacional francesa em 1789, a qual apontou, de maneira
expressa, que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem; e no Código Civil napoleônico de 1804, que norteou os aspectos
centrais do direito civil moderno; ambos responsáveis pela racionalização jurídica das relações
sociais típicas da modernidade: relações de troca, relações de propriedade, transmissão de bens,
relações de trabalho e o conceito de cidadão e civilidade, com seus respectivos conteúdos
jurídicos.
314
PUGLIESI, Márcio. Sujeito: traços de um projeto burguês. [Tese de doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 2008, p.
229.
130
Buscaremos, neste item, dar a devida clareza quanto ao que até aqui procuramos
demonstrar, ou seja, apresentar as características gerais em certa medida compartilhadas pelas
doutrinas contratualistas modernas expostas acima, bem como apresentar críticas a tais
características a partir das diferentes formulações dadas pelos pensadores analisados. Com isso,
nos propomos a esmiuçar as condições filosóficas que levaram à ideia de contrato ser elevada
ao fundamento do Estado na modernidade, bem como as consequências advindas das
construções ora apresentadas.
Assim sendo, para desde já tornar as características estruturantes das doutrinas
contratualistas modernas mais claras, vale apontar a organização dos elementos feita por Leister
e Chiappin:
Além do núcleo com suas teses básicas, o programa conta, igualmente, com
uma heurística positiva que consiste em vários modelos básicos cuja
combinação dependerá dos autores e de seus compromissos axiológicos. Esses
modelos básicos são: (i) Modelo I, o modelo do indivíduo; (ii) Modelo II, o
modelo de um conjunto de n indivíduos do modelo I que é o modelo do estado
de natureza, o qual inclui o conjunto dos indivíduos mais a interação entre
eles; (iii) Modelo III, o modelo do Estado de guerra; (iv) Modelo IV, o modelo
de transição que define o contrato social engendrado por indivíduos racionais
(o contrato explicita os elementos de transição entre o estado de natureza e a
sociedade); (v) Modelo V, o modelo do Estado civil; (vi) Modelo VI, os
modelos de governo: democracia, aristocracia, monarquia. A combinação que
cada autor faz desses modelos para fundamentar a passagem do modelo de
estado de natureza para o Estado civil junto com os próprios modelos define
o que chamamos de método de construção, que fornece um método capaz de
mostrar como se pode construir uma sociedade política. 315
315
LEISTER, Ana Carolina Corrêa da Costa; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa contratualista
clássico e o problema da cooperação: Hobbes e os fundamentos de um governo constitucional e de uma sociedade
justa. In: RBDC n. 20 – jul./dez. 2012, p. 59-60.
131
316
CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência do
indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do mercado.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014, p. 494.
132
317
CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência do
indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do mercado.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014, p. 508.
318
CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da
tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:
https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 4. Questão similar é levantada
por Rawls em RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes,
2016, p. 335.
133
319
CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da
tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:
https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 7.
320
CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da
tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:
https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 6.
134
321
Para esta questão, ver GAUTHIER, David. Morals by Agreement. Oxford: Oxford University Press, 1986.
322
CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, Carolina. A concepção pragmatista/utilitarista e sua importância na relação
entre epistemologia e ciência na emergência da ciência contemporânea. In: COGNITTIO-ESTUDOS: Revista
Eletrônica de Filosofia. São Paulo, Volume 5, Número 2, julho-dezembro, 2008, p. 114-118.
135
Desta forma, temos que o contratualismo como teoria que sustenta a soberania pode
servir como fundamento teórico não só para modelos democráticos de sociedade política, como
para outros tipos, o que não é novidade, na medida em que, nas apresentações anteriores,
mostramos o próprio modelo hobbesiano como absolutista, inobstante o fato da fundação da
sociedade política apresentar-se como decorrente de um pacto. Neste sentido, também Grotius
e Pufendorf, todos comumente apontados como fundadores da teoria do contrato social,
apresentam-se como absolutistas.
323
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 81.
136
Assim, temos clara a noção trabalhada por Derathé, no sentido de que não é possível
confundir a origem da soberania com seu exercício. Assim sendo, todos os contratualistas
apontam como origem da soberania o povo, entretanto, como sabemos, seus primeiros
formuladores, apontados acima, apresenta-se como alinhados às ideias absolutistas no que tange
à forma de exercício desta soberania, ainda que originada no povo. Rousseau, conforme
trabalhado, desponta ao apresentar a ideia de que a soberania não só é originária do povo, como
também deve ser por este exercida, de tal modo que não é possível sua alienação a qualquer
homem ou assembleia de homens. Aí consta, em linhas gerais, uma distinção essencial entre os
pensadores contratualistas Hobbes e Rousseau. Para Hobbes, a necessidade do Estado decorre
da necessidade de sujeição, enquanto que, para Rousseau, a necessidade do Estado deriva da
necessidade de autonomia, de tal modo que um novo pacto é necessário, do qual decorra uma
nova forma de governo (Republicana) e um novo tipo de homem (cidadão virtuoso). 324
Com efeito, as origens do contratualismo, de fato, remontam aos escritos dos juriscultos
Grotius e Pufendorf325, que embora alinhados aos interesses absolutistas, contribuíram
significativamente para alavancar as noções de direito natural no início da modernidade,
apresentando-os de forma desligada da ideia de direito divino, notadamente naquilo que
concerne à origem e fundamento da soberania do Estado. Neste tocante, Pufendorf estabelece
que “a soberania não se encontra menos nas democracias do que nas monarquias”. 326
Em Hobbes, que primeiro sistematizou o modelo e, portanto, deu a ele a devida
importância e visibilidade, vê-se o entendimento de que “a lei da natureza manda todo homem
transferir certos direitos a outrem, como condição necessária para alcançar a paz, e que todas
as vezes que isso acontecer se terá firmado um contrato”327, destacando a importância da ideia
de contrato para compreensão da transição do chamado estado de natureza para a sociedade
política, sem apontar daí as questões afetas ao modelo de estado civil necessário para que a tal
paz seja efetivada.
324
SANTILLÁN, José F. Fernández. Hobbes y Rousseau: entre la autocracia y la democracia. México: Fondo de
Cultural Económica, 1996, p. 137.
325
Quanto à Rousseau, por exemplo, Derathé aponta que: “A fonte imediata onde Rousseau extraiu sua informação
em matéria de direito político seria, antes Pufendorf. Pois, com toda evidência, foi o tratado do Direito de natureza
e dos povos que Rousseau escolhera como manual. Rousseau utilizou constantemente a tradução e o comentário
de Barbeyrac. Foi Pufendorf que o fez conhecer a doutrina de Hobbes, e Barbeyrac, a de Locke.” (DERATHÉ,
Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:
Barcarolla, 2009, p. 142).
326
PUFENDORF, Samuel. Le droit de la nature et des gens. Liv. VII, Cap. V, 5 (II, 334) apud DERATHÉ,
Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:
Barcarolla, 2009, p. 136.
327
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 61.
137
O Contrato mútuo pelo qual as pessoas se obrigam a unir para formar uma
comunidade está baseado na reciprocidade e pressupõe a igualdade; seu
conteúdo efetivo é uma promessa, e seu resultado é de fato uma “sociedade”
328
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São
Paulo: Barcarolla, 2009, p. 166.
138
Sendo tal contrato vinculativo a uma nova estrutura de poder em virtude de ser derivado
de promessas livres e sinceras. Já no segundo tipo:
Desta forma, o indivíduo parece ganhar poder no sistema de promessa mútua e perder
ao dar seu consentimento ao poder exercido pelo governante. Adicionalmente, a ideia de
consentimento aparece ligada ao isolamento do indivíduo e, portanto, a sanção externa
(religiosa) parece ser necessária, enquanto a ideia de mútua promessa é feita perante os demais
e, portanto, legitima-se aí mesmo, de modo que o corpo político resultante do ato de promessa
mútua é a própria fonte de seu poder, enquanto aquele decorrente do consentimento concede ao
governante o poder e, portanto, os governados ficam impotentes enquanto não recuperarem o
poder original para mudar o governo. 331
O Estado, neste contexto, aparecerá como a tecnologia criada pela razão humana para
solucionar o problema da relação de indivíduos, sendo visto como:
...um artifício edificado e construído, pela razão, e por meio de uma decisão
voluntária, com um propósito de solucionar problemas de cooperação. (Ou
seja, para os contratualistas, o Estado é uma entidade artificial). Esta
tecnologia introduz e impõe uma racionalidade à interação humana,
eliminando, ou ao menos mitigando, as determinantes do conflito ao
institucionalizar as relações humanas legítimas ou admitidas sob termos
racionalizados. Ele é um mecanismo institucional construído para servir
329
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
222.
330
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
222-223.
331
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
223.
139
332
LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa sobre a política e o direito
como ciência e o problema das condições de emergência e estabilidade da cooperação entre indivíduos
interagentes: a construção do Estado de Direito e o núcleo teórico do contratualismo. In: Revista do Instituto dos
Advogados de São Paulo. Nova Série. Ano 13, nº 25, RT, jan-jun/2010, p. 128-129.
333
SOARES, Luiz Eduardo. A estrutura do argumento contratualista: Thomas Hobbes e a gênese ética da reflexão
política moderna. In: Dados: Revista de Ciências Sociais v.36, n.1, p.39-61, 1993, p. 54.
140
334
“Afirmam que todos os homens continuam nascendo iguais e não devem fidelidade a nenhum príncipe ou
governo, caso não estejam presos pela obrigação e sanção de uma promessa. E como nenhum homem iria
renunciar, sem em troca receber alguma coisa equivalente, às vantagens de sua liberdade natural, submetendo-se
à vontade de outro homem, essa promessa deve sempre ser atendida como condicional, sem lhe impor obrigação
alguma, a não ser que receba justiça e proteção de seu soberano. O soberano, em troca, promete-lhes estas
vantagens e, se acaso deixar de cumprir a promessa, terá violado, por seu lado as cláusulas do compromisso,
libertando assim seu súdito de qualquer obrigação de fidelidade. Tal é, segundo esses filósofos, o fundamento da
autoridade de todo e qualquer governo; e tal é o direito de resistência que pertence a todo e qualquer súdito.”
(HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1973. p.
228). Sobre o impacto desta visão de Hume sobre a questão do direito de resistência vide LEISTER, Carolina;
CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa sobre a política e o direito como ciência e o
problema das condições de emergência e estabilidade da cooperação entre indivíduos interagentes: a construção
do Estado de Direito e o núcleo teórico do contratualismo. In: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo.
Nova Série. Ano 13, nº 25, RT, jan-jun/2010, p. 128-129.
335
“Assim, podemos asseverar que a fonte da normatividade, para os contratualista, é o resultado de uma escolha
humana, i.e., de uma ação voluntária que a antecede. É por essa razão que, em última instância, toda justificativa
no racionalismo clássico, matriz epistemológica e metodológica heurística adotada e aplicada na construção das
teorias contratualista, envolve a possibilidade de encontrar os fundamentos ou a origem de uma ideia, sendo uma
decisão o fundamento da normatividade, de sorte que a decisão e a promessa dela decorrente, empreendida no
contrato, constroem artificiam e racionalmente a ação deontológica a qual, no sentido político do termo, é a
obrigação política. Por conseguinte, e referendado pelo voluntarismo nele inerente, pode-se afirmar que o
fundamento da obrigação política implica (mais do que isto, depende de) uma teoria da escolha racional, supondo-
se serem os agentes tomadores de decisão os indivíduos do contratualismo, entidades amorais, porém racionais.
Por outras palavras, é por serem racionais (e não pode serem morais) os indivíduos, que se funda a normatividade
e a ação moral. E, ainda mais, é porque é racional, e não porque é moral, que o indivíduo não quebra o contrato,
sua quebra sendo justificada para o caso do indivíduo ser tomado por suas paixões, que subvertem ou obscurecem
sua razão.” (CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência
do indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do
mercado. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014,
p. 514).
141
entre indivíduos e desses direitos, visando possível estabilidade sistêmica. Com efeito,
argumento contratualista volta-se à origem lógica – e não histórica – do Estado; propondo,
assim, a justificação da ordem social e jurídica com base em um consenso a priori decorrente
de um pacto associativo firmado por indivíduos abstratos. Ressalte-se, nesta temática, a
justificação contratual do Estado moderno na visão de Bobbio e sua relação com o sistema
jurídico:
336
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000,
p. 145.
142
Ignorando a problemática kelseneana sobre este ponto, podemos apontar que o poder
coercitivo mostra-se justo, do ponto de vista pragmático, por estar a serviço da coletividade,
garantindo a segurança interna e externa e o bem-estar econômico, por exemplo.
Outro ponto de suma importância nesta análise consiste no volenti non fit iniuria (não
há ofensa a quem consente), de onde podemos extrair que a coerção assumida voluntariamente
é justa. Evidente que tal voluntariedade, para ser válida, dependeria de um individualismo, o
qual, ressaltamos, é assumido pelas doutrinas contratualistas, as quais cuidam de inaugurar não
o indivíduo, mas a participação deste como formador do corpo social, bem como a unidade que
este corpo representa, especialmente no que tange à manifestação de decisões de Estado, sempre
lastreadas no conceito de vontade geral ou opinião popular.
A partir destas construções, o universo político assume, na modernidade, as formas de
direito e de Estado, de tal sorte que a noção de justiça política designará a ideia de uma ética
jurídica e estatal, fazendo surgir formas legítimas de sua manifestação. Para Höffe, de toda
forma, o intermédio necessário que o direito faz entre Estado, instituições sociais e cidadão,
acarreta o desaparecimento da crítica suprapositiva:
337
HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 39.
338
HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 39.
339
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad. Ernildo
Stein. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 7.
143
340
“Sólo formulamos la proposición simple, de que la promesa como tal crea una pretensión y uma obligación”
Em tradução livre: “Somente formulados a proposição simples de que a promessa como tal cria uma pretensão e
uma obrigação”. (REINACH, Adolfo. Los Fundamentos Apriorísticos del Derecho Civil. Trad. José Luis
Álvarez. Barcelona: Librería Bosch. 1934, p. 90).
341
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Ari Marcelo Solon. São Paulo: EDRIPRO, 2011,
p. 55.
144
É balizado nos paradigmas teóricos apontados acima que se situa o cerne do projeto
político moderno, qual seja, a instauração do Estado de Direito e da democracia representativa
como forma de unificar a vontade de todos na suposta vontade geral de viés rousseauniano,
concedendo, por via da teoria da soberania popular, a necessária justificação filosófica do
Estado, tal como aparece delineado no início da modernidade. A análise contemporânea da
própria Revolução Francesa anota referida influência:
Em outros termos, Regbera ataca a Revolução por ela ter querido deduzir a
prática política a partir da teoria, ou seja, antes de mais nada, do Contrato
Social: como “sistema político unicamente deduzido das leis puras da razão”;
para ele a Revolução só podia ser deficitária em um “mundo real”, em
problemas concretos e afirmar-se impotente; além disso, ao colocar no poder
a vontade de todos, os revolucionários foram vítimas de uma confusão criada
pela teoria pura: a sutil distinção estabelecida por Rousseau entre vontade
geral (razão) e vontade de todos (resultante das paixões) só podia ser ignorada
por ocasião da passagem da teoria à práxis e provocar a instalação no poder
da vontade arbitrária de todos, dominada – eis a fraqueza dos homens – não
pela razão, mas pelas paixões cegas. 342
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três “críticas”. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 173.
342
343
HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 256.
145
mulheres do restante deste conceito de “povo”, no que tange às cidadanias ativas e passivas. 344
Trata-se, com efeito, de vício típico das universalidades e dos conceitos aprioristicamente
formulados pelas teorias de linhagem kantiana.
Dentro desta problemática, Bobbio lembra que a democracia moderna repousa na
soberania dos cidadãos (e não do povo):
Assim, a soberania não se exerce pelo conceito universal de povo, mas pelos cidadãos
a partir do depósito de seus votos nas urnas e, em última análise, pela vontade expressa da
maioria, sendo isso aquilo que pragmaticamente se consegue fazer. Quanto a isso, nunca é
demais lembrar que a equivalência entre o pensado autonomamente pelo sujeito e seu voto, ou
qualquer espécie de influência no poder político não consiste em um mandamento democrático;
ao contrário, “o processo democrático não obriga os cidadãos a agirem sempre segundo a sua
consciência, mas permite-lhes decidir enquanto titulares de interesses.” 346
Hannah Arendt, nesta linha, diferencia substancialmente a Revolução Francesa da
Americana. Dentre outros fatores, aponta que o absolutismo prévio à Revolução Francesa
influenciou o ato revolucionário, de tal sorte que a noção de vontade geral de Rousseau
apresentou-se como o substituto teórico da vontade soberana de um monarca absoluto. Disto
resulta um grave efeito, já que
344
HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 257-258.
345
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 119-
120.
346
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 153.
347
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
206.
146
A partir destas noções, Arendt critica a forma como a vontade geral foi alocada na
Revolução Francesa e os efeitos de se apontar o povo não só como fonte do poder, mas também
das leis. Sieyès, neste tocante, irá propor a distinção entre pouvior constituant (poder
constituinte) e pouvoir constitué (poder constituído). Neste sentido, o problema da legalidade
das novas leis dependia de uma fonte suprema externa, posto que o poder constituinte não
poderia ser constitucional, na medida em que se apresenta anterior à própria constituição.
Assim, tanto poder quanto lei se apoiam na vontade da nação, a qual está situada acima dos
governos e das leis. 350
A partir daí, para Arendt, estava caracterizado o erro crasso da Revolução Francesa, qual
seja, de “acreditar de maneira acrítica e quase automática que o poder e a lei brotam da mesma
fonte”. 351
Isto, pois no caso americano – seu parâmetro de comparação –, a formação da
348
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
210.
349
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
212.
350
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
214.
351
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
216.
147
352
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
200.
353
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
197.
354
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
227.
355
Sobre este evento, cabe apontar que consiste num pacto redigido no navio e assinado no desembarque, diante
de homens num suposto estado de natureza de fato e da incerteza acerca da lei aplicável ao local de desembarque.
Aponta, portanto, a relevância da doutrina contratualista para a formação dos Estados Unidos, notadamente aquela
de Locke, dada a importância que este concede ao consentimento como forma de vincular homens livres e formar
uma sociedade política.
148
processo histórico da independência americana, vale destacar a visão da pensadora no que tange
à ideia de ação:
Esta construção é feita para que, em seguida, aponte o poder na América colonial como
decorrente da ação e sua manutenção como proveniente dos meios recém-descobertos da
promessa e do pacto. A comprovação desta teoria se daria pelo fato da guerra contra a Inglaterra
ter sido vencida pelas colônias.
Com isso, Arendt pretende apresentar a diferença – conhecida na prática pelos
americanos – entre o poder e a autoridade. Assim, a pensadora nos apresenta a noção segundo
a qual os homens da Revolução Francesa encaravam o poder como uma força natural pré-
política, força esta desencadeada pela revolução. Já os americanos, entendiam o poder como
nascente onde e quando o povo se reunia e se unia por meio de promessas, pactos e
compromissos mútuos. Logo, a visão acerca do poder real era de um poder espúrio e usurpado,
já que não derivava da reciprocidade. 357 Daí consta o erro francês e o estabelecimento de uma
ideia de absoluto. Neste sentido, Arendt irá apontar outra diferença substancial entre as referidas
revoluções. Sendo
a única razão pela qual essa necessidade [do absoluto] não levou os homens
da Revolução Americana aos mesmos absurdos a que levou os homens da
Revolução Francesa, em particular o próprio Robespierre, foi que aqueles
distinguiram claramente, sem qualquer equívoco, entre a origem do poder, que
brota debaixo, das “bases” do povo, e a fonte da lei, cuja sede fica “acima”,
em alguma região mais elevada e transcendente. 358
Por este fato, Arendt chega a usar a expressão “endeusamento do povo” para a
Revolução Francesa, apontando a intensão de tentar derivar a lei e o poder da mesma fonte.
Trata-se aqui de alinhar a ideia de vontade divina – a que se torna direito divino – à vontade
356
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
228.
357
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
236.
358
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
237.
149
geral de Rousseau e Robespierre, a qual igualmente basta para criar uma lei, como aliás aparece
no início do art. 6º na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (“A lei é a
expressão da vontade geral”).
Aponta, então, o círculo vicioso decorrente do processo legislativo: aqueles que estão
reunidos para constituir um novo governo não tem legitimidade para isso, o que remonta à
necessidade de um absoluto, uma lei superior ou fundamental que dará validade às demais. Para
tanto, lembra da clássica passagem de Rousseau, segundo a qual o estabelecimento de leis
superiores aos homens dependeria da existência de deuses. Isso aponta para a tentativa dos
modernos de buscarem um fundamento transcendente para a esfera política a partir de conceitos
como “o Legislador do Universo”, “leis da natureza e de Deus” e similares. Ressalta, por
oportuno, que na Antiguidade grega e romana não havia preocupação com isso e que,
curiosamente, os modernos que estavam prestes a separar definitivamente a política e a religião
estavam, em última análise, buscando um fundamento religioso para o poder. 359 Desta forma,
podemos considerar que a própria ideia de se buscar um fundamento superior e absoluto para
conferir validade ao sistema de leis é uma herança do absolutismo.
Curioso notar, nesta análise, que os revolucionários se voltaram à Idade Média e não à
Antiguidade para buscar um modelo de justificação da esfera política, na medida em que na
Idade Média “a esfera secular da política terrena recebia suas luzes do esplendor da Igreja”. 361
Inobstante este fato, voltavam-se à Roma pela repulsa às tradições medievais – sem perceberem
a espiritualidade que embalada seu esclarecimento –, e de lá poderiam extrair uma visão da
constituição americana segundo a qual esta dá ao governo força de religião. O entendimento da
359
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
240-241.
360
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
251.
361
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
254.
150
palavra aqui, em seu sentido romano original, é interessante, pois remete a religare, ou seja,
ligar de volta a um início. 362
Neste ponto, Arendt começa a delimitar de maneira mais clara a distinção entre
autoridade e poder. A autoridade Romana não estava nas leis ou numa autoridade superior a
elas, estava, pois, no Senado (potestas in populo, mas auctoritas in senatu). O Senado
americano, de toda forma, difere substancialmente daquele romano. A autoridade, no modelo
americano, decorre do poder judiciário que, por exercer a autoridade, torna-se inapto ao poder,
da forma como, inversamente o próprio poder da legislatura torna o Senado inapto a exercer a
autoridade. Assim, pela falta de poder e por ser uma espécie de assembleia constituinte em
sessão contínua, o Supremo Tribunal americano é a sede da autoridade. Ressalta-se que a noção
de autoridade em Roma era política e a noção americana é jurídica, de interpretação. 363
Importante se faz pontuar a origem etimológica da palavra auctoritas, que provém do
termo augere, aumentar e crescer. O que, no caso romano, onde os Senadores representavam
os pais fundadores de Roma, significava que era possível aumentar, crescer e alargar as
fundações, tal como lançadas pelos ancestrais. Assim sendo: “Manter-se nessa linha
ininterrupta de sucessores significava, em Roma, estar na autoridade, e permanecer ligado ao
início dos ancestrais com piedosa rememoração e conservação significava ter peitas romana,
ser “religioso” ou estar “religado” aos próprios inícios”. 364 A autoridade, em sentido romano,
portanto, liga-se à ideia de tradição, religião e ampliação das fundações originais, tal como a
Constituição americana é ampliada pelas emendas.
À fundação que deliberadamente fundou o corpo político se incorpora uma veneração
que, conforme pretende concluir Arendt, envolve o resultado concreto desta reunião, a
Constituição, e protege este documento contra investidas do tempo e da mudança das
circunstâncias, de tal forma que a autoridade da república continuará incólume enquanto o ato
de fundação for rememorado sempre que surgirem questões constitucionais. 365
O que Hannah Arendt pretende dizer, em suma, é que a revolução americana, ou melhor,
o resultado da reunião americana, a Constituição, por decorrer de um corpo político por
deliberação mútua determinada por uma cadeia que a formou, lastreada no conceito de
362
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
255.
363
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
257-258.
364
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
258-260.
365
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
262.
151
promessa e embalada pela ideia de fundação de autoridade, para ampliação por seus
descendentes, conforme o espírito romano, consistiu, em resumo, numa deliberação fundadora
de um direito legítimo. A ideia, portanto, é que a busca por um absoluto que rompa com o
círculo vicioso da legitimidade é inútil, na medida em que o “absoluto” reside no próprio ato
do iniciar em si. Avança neste ponto, questionando a própria visão consequencialista e
continuísta que temos do tempo (visão decorrente da tradição hebraico-cristão, que vê um Deus
como externo ao resultado de sua criação). O início não estaria ligado a uma cadeira de causas
e efeitos e não está ligado a nada que possa se prender; “é como se saísse do nada no tempo e
no espaço.” 366
A questão aqui reside no fato de haver um velho hábito humano ocidental de
querer buscar um absoluto do qual tenha brotado e pelo qual seja explicado o novo.
Em linha com a exposição acima, Hegel profere duras críticas à noção tipicamente
rousseauniana. Com efeito, o pensador que aponta o Estado como “a realidade da liberdade
concreta”367 nos coloca a seguinte questão no importante §258 de sua Filosofia do Direito:
366
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
264.
367
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,
adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211.
368
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,
adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 205.
152
369
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,
adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 206.
153
Considerando que demonstramos até aqui a justificação do Estado moderno a partir das
doutrinas contratualistas, notadamente estruturadas a partir da obra hobbesiana e desenvolvidas
e aperfeiçoadas para os interesses modernos por Locke, Rousseau e Kant, bem como
apresentamos seus pontos fundamentais de estruturação e críticas que consideramos pertinentes
a tais escritos, cumpre-nos neste momento verificar – e em larga medida apenas retomar – os
pontos estruturantes da modernidade para que possamos deixar claro que, em nossa leitura
possível, não houve qualquer ruptura ou completude da modernidade que nos possibilite dá-la
como finda e, portanto, permanecemos no plano filosófico e, em especial, jurídico, sob as
premissas estabelecidas na aurora da modernidade e estruturadas, do ponto de vista da
justificação do Estado, a partir das doutrinas contratualistas. Verificaremos, ainda, a
superveniência de questões de ordem econômica e tecnológica que embora não tenham o
condão de alterar substancialmente as premissas modernas de estruturação do corpo social e do
direito, tornam necessárias adaptações sistêmicas sob pena de crises de diversos tipos. Estamos
diante daquilo que aqui denominamos modernidade tardia.
Destaque-se que os manuais de história tradicionalmente apontam a modernidade como
um período iniciado em 1543 e findo em 1789, com o início da Revolução Francesa. Após tal
data estaríamos na chama contemporaneidade. Essa periodização tradicional corresponde a
importantes mudanças, sobretudo quanto à fragmentação da unidade da Igreja medieval, a
ascensão do absolutismo e as grandes descobertas, entretanto a continuidade entre a Idade
Média tardia e a época moderna (até meados dos séc. XVIII) não deve ser ignorada. 370 Sabemos
que as características estruturantes da sociedade feudal (monarquia absolutista, sociedade
estratificada e teocentrismo) só são realmente abaladas – e, em grande parte, suplantadas – com
o início da Revolução Francesa que, em nossa visão aqui empregada, cuida de instaurar os
paradigmas políticos e jurídicos que caracterizarão aquilo que denominados modernidade.
Assim sendo, no plano fático, a consolidação do absolutismo monárquico no chamado período
moderno não nos parece um fato instaurador da modernidade, mas a queda dos regimes
monárquicos e as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII parece-nos, no cume
370
CAENEGEM, R.C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. Trad. Carlos Eduardo Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 35.
154
371
TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascensão do capitalismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio
de Janeiro: Zahar, 1978, p. 240.
372
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12.
155
própria construção do conceito importa dizer que sua referência se encontra fincada no período
anterior, na modernidade.
Se adotarmos nossa leitura, de que permanecemos no período moderno, uma coisa ainda
é certa: há uma crise da modernidade. Com efeito, críticas às características fundantes da
modernidade foram apresentadas sob diversos ângulos, destacando-se aquelas de Nietzsche,
bem como posteriormente as da Escola de Frankfurt, notadamente o clássico Dialética do
Esclarecimento373, em que Adorno e Horkheimer apresentam fundada preocupação com o
sentido da ciência, da indústria cultural e dos rumos tomados pela razão instrumental.
Habermas374 nos lembra das diferentes posições críticas à modernidade, dentre elas aquelas que
verificam as premissas da modernidade como findas e a continuidade de suas consequências
(que seriam autossuficientes), bem como a visão daqueles que verificam uma união
indissociável entre razão e modernidade e, portanto, o fim da modernidade ocorreria tão
somente com o fim da razão moderna. Esta última visão, anote-se, é aquela que busca desvelar
o real sentido dominador do racionalismo ocidental.
Não vamos, evidentemente, ingressar em qualquer discussão acerca das perspectivas
denominadas por Habermas de neoconservadoras e anarquistas; importa-nos, apenas,
compreender a modernidade como projeto inacabado, em execução, para que possamos então
demonstrar o motivo mais relevante pelo qual utilizamos aqui da ideia de modernidade tardia.
Intentamos nos capítulos anteriores demonstrar como a filosofia política moderna,
notadamente o contratualismo de Hobbes até Kant buscou responder à questão da justificação
do Estado e conceder o necessário suporte ético-filosófico para a implementação das
democracias liberais, tais como ainda são estruturadas hoje. Neste sentido, entendemos que a
modernidade continua como projeto em execução até a atualidade, não havendo, desde a
formulação dos conceitos básicos de filosofia política moderna qualquer alteração substancial
que nos permita dizer que houve uma ruptura ou superação da época moderna do ponto de vista
da filosofia, em especial aquela política e jurídica.
Sabe-se, ainda, que a implementação dos conceitos políticos modernos, incluindo a
democracia e a liberdade, foram sendo concretizados aos poucos não só na Europa, mas também
com o devido atraso nas demais partes do Ocidente, incluindo América do Norte e do Sul. A
título de ilustração, Samuel Huntington nos lembra que:
373
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.
Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
374
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7.
156
Por volta de 1830, a norma nos Estados Unidos era o sufrágio universal de
todos os brancos do sexo masculino. Na Europa, em contraste, permaneciam
elevadas as qualificações de propriedade. O Ato de Reforma de 1832
aumentou o eleitorado inglês de 2% para 4% do total da população; nos
Estados Unidos, 16% da população total votaram nas eleições presidenciais
de 1840. (...) O sufrágio universal masculino foi introduzido na Alemanha em
1871, mas na Prússia o sistema de eleitores de três classes permaneceu em
vigor até o fim da Primeira Guerra Mundial. Nos Países Baixos e na
Escandinávia, o sufrágio universal masculino foi introduzido no fim do século
XIX e no início do século XX. 375
375
HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. USP, 1975, p. 106-107.
376
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 251-252.
157
377
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5.
378
ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen
Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas e duas conferências de Jürgen Habermas. São
Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110.
379
HOTTOIS, Gilbert. Do renascimento à pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e
contemporânea. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2008, p. 579.
158
Neste sentido, para uma melhor compreensão desta caracterização do projeto moderno,
torna-se essencial mencionarmos, ainda que de passagem, a análise da teoria da modernidade
de Weber, a qual cobre tanto o processo de racionalização religiosa, quanto da sociedade,
expondo o surgimento da consciência moderna e sua corporificação nas instituições sociais, o
que se evidencia a partir das características do Estado moderno e da economia capitalista
norteados por aquilo que chama de razão instrumental. Em Weber, ambos se estabilizam
mutuamente a partir da interação mediada pelo direito formal moderno. Neste sentido:
380
ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 158.
159
381
PUGLIESI, Márcio. Sujeito: traços de um projeto burguês. [Tese de doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 2008,
229.
382
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.
Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 17.
383
PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito: aspectos macrossistêmicos. Rio de Janeiro: Sapere Aude, 2015, p. 71.
384
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. Prefácio
e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 23.
160
385
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 11. O problema da consciência do tempo ganhará uma nova
dimensão e a modernidade não poderá extrair de outros modelos seus critérios de orientação Nas palavras de
Habermas “ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade” (idem, p.12).
386
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. Prefácio
e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211.
161
387
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 4.
388
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 14.
389
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
14-15.
162
sorte a obter respostas verdadeiras, ou justas, como melhor aplicável neste caso; afinal, Rawls
intenta com este recurso metodológico estabelecer a ideia segundo a qual o acordo celebrado
na posição original e sob o véu de ignorância alcança o status de pacto justo.
Em linha com a crítica acima, o próprio autor assume sua presunção de um senso de
justiça390, do qual, inclusive, emergiriam os dois princípios sobre os quais as pessoas racionais,
na situação acima descrita, chegariam a um consenso (Rawls391 chega a falar inclusive em
unanimidade). Em breve síntese, concluiriam pela igualdade na atribuição dos direitos e dos
deveres fundamentais (especialmente da liberdade) e que as desigualdades sociais e econômicas
só serão justas se resultarem em vantagem para todos (em especial para os menos favorecidos).
Os princípios teriam o seguinte teor:
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema similar de
liberdade para todos392
Segundo princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de modo a que
tanto:
(a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos favorecidos
que seja compatível com as restrições do princípio de poupança justa, como
(b) estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de
igualdade equitativa de oportunidades. 393
Kant afirmava, creio eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os
princípios de sua ação são escolhidos por ela como expressão mais adequada
possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que
norteiam suas ações não são adotados em razão de sua posição social ou de
seus dotes naturais; ou em vista do tipo específico de sociedade na qual ela
vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais
princípios é agir de modo heterônomo. Ora, o véu de ignorância priva as
pessoas que ocupam a posição original do conhecimento que as capacitaria a
390
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 15.
391
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
327.
392
Posteriormente reformulado para: “Cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de
liberdades básicas iguais para todos, que seja compatível com um mesmo sistema de liberdade para todos.”
(RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 144).
393
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
376.
394
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
318.
163
395
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
313.
396
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 82.
397
Em 1973, Hart apresenta Rawls on liberty and its priority, no qual apresenta sua crítica à ideia da demonstração
desta prioridade apresentada por Rawls, que não seria necessariamente escolhida por um indivíduo racional. Para
tanto, ver: HART, H.L.A. Rawls on liberty and its priority. In: D. NORMAN. Reading Rawls: Criticalstudies on
Rawls. Los Angeles, Stanford University Press, 1989.
398
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
376.
164
sistema legal partilhado por todos e, portanto, buscar conceder ao sistema legal um fundamento
de aceitação compartilhada. Já no segundo caso, a ideia de aceitação é mais evidente ao dizer
que a liberdade menos extensa deve ser condição aceita por aqueles que dela suportam, de modo
que a estabilidade do sistema decorre do conformismo dos indivíduos acerca do sistema legal
e da forma como a sociedade é organizada. 399 Trata-se, portanto, de aceitar que o maior nível
de liberdade para uns funcione como boa estruturação do sistema, ou seja, a aceitação decorreria
exclusivamente do fato de que aqueles que suportam menor nível de liberdade reconhecem sua
situação como legítima apenas pelo fato de haver a possiblidade formalmente garantida – e
prevista no sistema legal vigente – de aumentarem seu nível de liberdade.
Nesta mesma linha vai o segundo princípio, em que é notável verificar a possibilidade
da existência de desigualdades econômicas e sociais, desde que sua disposição se dê de tal
forma que todos se beneficiem. O conceito aqui é que as partes na posição original acima
mencionada aceitariam otimizar a distribuição de bens em seu nível máximo, sendo a
“otimalidade de Pareto” utilizada por Rawls para justificar que “a configuração é eficiente
sempre que é impossível modificá-la para melhorar a situação de algumas pessoas (pelo menos
uma) sem, ao mesmo tempo, piorar a situação de outras pessoas (pelo menos uma)”. 400 Assim
sendo, temos de assumir que Rawls parte do pressuposto de que há uma quantidade limitada de
bens e uma quantidade maior (ilimitada, talvez) de desejo de consumo desses bens; daí a
necessidade de se discutir critérios para sua distribuição. 401
A partir da exposição de tais princípios, Rawls advoga pelo modelo da igualdade
democrática, em contraposição à igualdade liberal, onde há um sistema de livre mercado e uma
igualdade meramente formal no ponto de partida e que é posteriormente alterada em virtude de
contingências naturais e sociais.
399
Em O Liberalismo político, Rawls desenvolve de forma mais apropriada a questão da estabilidade. Sem prejuízo
das noções apresentadas neste sentido no decorrer de nosso texto, a questão se estrutura da seguinte maneira: “A
estabilidade envolve duas questões: a primeira é saber se as pessoas que crescem em meio a instituições justas
(como a concepção política as define) adquirem um senso de justiça suficiente, de modo a geralmente adirem de
acordo com essas instituições. A segunda é saber se, em vista dos fatos gerais que caracterizam a cultural política
e pública de uma democracia – e, em particular, o fato do pluralismo razoável –, a concepção política pode ser o
foco de um consenso sobreposto. Pressuponho que esse consenso consista em doutrinas abrangentes e razoáveis
que, em uma estrutura básica justa (como a concepção política a define), provavelmente persistirão e conquistarão
adeptos no decorrer do tempo.” (RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed.
São Paulo Ática Lisboa: 2000, p. 187).
400
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 81.
401
“Há identidade de interesses porque a cooperação social viabiliza para todos uma vida melhor do que qualquer
um teria se tentasse viver apenas por seus próprios esforços. Há conflito de interesses porque ninguém é indiferente
com relação a como são distribuídos os maiores benefícios produzidos pela cooperação, pois, para perseguir seus
objetivos, cada qual prefere uma fatia maior a uma fatia menor desses benefícios. Assim, precisamos de princípios
para escolher dentre os diferentes arranjos sociais que definem essa divisão de vantagens e para que se firme um
acordo no tocante às parcelas distributivas apropriadas.” (RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara
Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 153).
165
Não iremos aqui realizar uma minuciosa exposição acerca do pensamento de John
Rawls, nem discutir os diversos pontos levantados por sua obra quanto às liberdades iguais, a
questão da participação, da liberdade política, da tolerância, da poupança e economia, bem
como outras que, embora muito relevantes, não contribuem diretamente para a temática a que
nos propomos trabalhar. No que tange, então, à estrutura contratualista de sua teoria, cabe frisar
em Rawls o pressuposto do cumprimento daquilo que é pactuado, já que “para o acordo ter
validade, as partes devem ser capazes de honrá-lo em todas as circunstâncias pertinentes e
previsíveis. Deve haver uma garantia racional de que se pode cumpri-lo” 402 Isto para que haja
a confiança mútua de que todos vão cumprir os princípios pactuados, mesmo que as piores
possibilidades venham a se concretizar. Neste ponto, Rawls nos introduz um ponto de suma
importância para nosso trabalho, ao verificar a estabilidade de uma concepção de justiça a partir
do reconhecimento público de sua concretização por meio do sistema social. 403
402
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
215.
403
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
217.
404
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
218.
405
“Dizer que uma sociedade é bem-ordenada significa três coisas: a primeira (e isso está implícito na ideia de
uma concepção de justiça publicamente reconhecida), que se trata de uma sociedade na qual cada indivíduo aceita,
e sabe que todos os demais aceitam, precisamente os mesmos princípios de justiça; a segunda (implícita na ideia
da regulação efetiva), que todos reconhecem, ou há bons motivos para assim acreditar, que sua estrutura básica –
isto é, suas principais instituições políticas, sociais e a maneira segundo a qual se encaixam num sistema único de
cooperação – está em concordância com aqueles princípios; e a terceira, que seus cidadãos têm um senso
166
conforme trabalhada acima. Uma das ideias centrais para nosso tema de análise é, certamente,
a estabilidade e equilíbrio alcançados pelo estabelecimento dos princípios de justiça acima
descritos, sobre os quais há o já mencionado consenso sobreposto. Neste ponto, cumpre-nos
apresentar a ideia de interferências sistêmicas sobre a mencionada estabilidade:
normalmente efetivo de justiça e, por conseguinte, em geral agem de acordo com as instituições básicas da
sociedade, que consideram justas. Numa sociedade assim, a concepção publicamente reconhecida de justiça
estabelece um ponto de vista comum, a partir do qual as reivindicações dos cidadãos à sociedade podem ser
julgadas.” (RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa:
2000, p. 79).
406
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
564.
407
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
583.
167
Aí consta uma ideia central para a compreensão da justificação do Estado no âmbito das
sociedades complexas do século XX, onde há a coexistência de doutrinas conflitantes, cuja
harmonização depende, na visão de Rawls, de um consenso acerca daquilo que é essencial na
concepção de justiça publicamente adotada, bem como da pouca aceitação das perspectivas
drasticamente contrárias a ela; ocasionando, a partir do método contratualista visto acima (cuja
estrutura básica consiste em posição original, véu de ignorância e estabelecimento dos
princípios de justiça), um consenso suficientemente inquestionável sobre os fundamentos e
instituições básicas desta sociedade. Além desta vinculação, é necessário que o poder político
esteja “de acordo com uma constituição, cujos elementos essenciais se pode razoavelmente
esperar que todos os cidadãos, em sua condição de livres e iguais, endossem à luz de princípios
e ideias aceitáveis para sua razão humana comum.” 409
Sendo, este, na visão de Rawls, o
princípio liberal da legitimidade política, cuja preocupação não é exatamente o pluralismo em
si, mas a existência de um pluralismo razoável, isto é, uma concepção política de justiça que
possa ser endossada por doutrinas abrangentes diferentes e opostas. Assim é que se apresenta,
na visão do pensador em comento, a sustentação de determinada concepção política.
408
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 179-180.
409
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 182.
410
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 183.
168
teorias contratualistas, como se justifica a obediência a leis consideradas injustas? Rawls nos
apresenta sua resposta, que não só se apresenta como decorrente da mesma lógica da
estabilidade apresentada acima (que se baseia no conteúdo dos princípios que regem as
instituições), mas também numa crença no próprio procedimento democrático:
411
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 184.
412
“Neste ponto, introduzo o conceito de racionalidade deliberativa seguindo uma ideia de Sidgwick. Ele
caracteriza o bem futuro de uma pessoa como aquilo que desejaria e procuraria se as consequências de todos os
diversos cursos de conduta a ela acessíveis fossem, no atual momento, previstas por ela com precisão e realizadas
de maneira adequada na imaginação.” (RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev.
São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 515).
169
413
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 58.
414
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,
p. 25.
170
415
RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.
175.
416
Importante anotar também que em O Direito dos povos, Rawls estende sua lógica contratualista do nível
nacional para o internacional buscando expandir a determinação liberal interna para o plano internacional. Trata-
se de uma obra assumidamente lastreada na Paz perpétua de Kant, já menciona por nós anteriormente, cujo
propósito é apresentar a possibilidade de uma sociedade mundial de povos liberais lastreada em princípios
selecionados num procedimento similar – mas em outro nível – ao previsto em suas demais obras. (RAWLS, John.
O direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001).
171
417
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2010, p. 42.
418
PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Trad. Dante Moreira Leite. São
Paulo: Livraria Pioneira, 1969, p. 17.
419
“O que muda na atual compreensão da Teoria dos Sistemas, em relação aos avanços alcançados nos anos 1950
e 1960, é uma formulação mais radical, na medida em que se define o sistema como a diferença entre sistema e
meio. Tal formulação necessita de um desenvolvimento explicativo, já que se apoia em um paradoxo de base: o
sistema é a diferença resultante da diferença entre sistema e meio. O conceito de sistema aparece, na definição,
duplicado no conceito de diferença.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana
Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 81).
172
sistemas sociais. 420 Neste sentido, Parsons define a sociedade como “um tipo de sistema social,
em qualquer universo de sistemas sociais, e que atinge o mais elevado nível de autosuficiente,
como um sistema, com relação aos seus ambientes.” 421
Rejeitando a metáfora da transmissão por implicar demasiada ontologia, Luhmann então
nos apresenta a própria comunicação como “um sistema autopoiético, que, ao reproduzir tudo
o que serve de unidade de operação ao sistema, reproduz-se a si mesmo.” 422 Sem ingressarmos
nas questões específicas da linguagem, cuja complexidade nos tiraria do foco, centremos nossa
análise na teoria sobre a sociedade política organizada.
Feitas estas sucintas considerações iniciais com vistas a compreendermos a abordagem
sistêmica do fenômeno da justificação, verificamos que são muitas as possibilidades de ação de
um indivíduo no âmbito de uma sociedade, em outras palavras, o mundo apresenta ao homem
uma multiplicidade de possíveis experiências e ações que, quando concretizadas, abrem um
novo leque de possibilidades. Há, assim, complexidade e contingência nas possibilidades de
ação. Estas possibilidades são apresentadas especialmente na medida da experimentação efetiva
de terceiros observadas pelo indivíduo. É claro que, neste caso, o reconhecimento e absorção
da expectativa de terceiros pressupõe que o indivíduo reconheça o terceiro como igual
(igualdade na variação do comportamento, inclusive).
Diante da incerteza gerada pela contingência erigem-se estruturas estabilizadoras de
expectativas. Os sistemas sociais o fazem mediante regras (dever ser) a partir de uma redução
generalizante, típicas dos regulamentos e diplomas normativos (notadamente dotados de
generalidade e abstração). A função seria, é claro, a criação de segurança em termos de
expectativa (bem como de expectativa sobre expectativas). Assim, baseada em processos de
neutralização simbólica das expectativas, as normas
420
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2010, p. 293.
421
PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Trad. Dante Moreira Leite. São
Paulo: Livraria Pioneira, 1969, p. 21.
422
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2010, 301.
423
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 53.
173
424
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 68.
425
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 149.
174
Trata-se de um nível mais abstrato de consenso, distinto do possível nível fático deste,
cuja existência seria facilmente revogável e de difícil estabilização no tempo. Assim, a partir
daí o consenso se torna expectável e ativável caso necessário, de modo que “o “consenso social
geral” só precise ser coberto pela experiência atual de algumas pessoas, em alguns sentidos e
em alguns momentos.” 428
Este aspecto, atinente à estabilização, ocorre por meio da fixação de sentido transmitida
pela linguagem. Ressalta-se que com o aumento da complexidade social, a diferenciação
funcional ocorre, gerando uma ampla gama de possibilidades normativas, que por sua vez
426
PASUKANIS, E. B. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar,
1989, p. 101.
427
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 84.
428
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 80.
175
pressionam para que haja a seleção dessas projeções normativas – por vezes divergentes – que
devem se tornar direito. 429A partir daí, passa a ser necessário sistemas de intenção destinados
à seleção:
Ressalta-se, conforme consta do excerto acima, seu descolamento com relação à vida
cotidiana, o que significa dizer que o que é válido no mundo, não é necessariamente válido no
processo, pois precisará ser introduzido neste para que nele tenha validade. De toda sorte, trata-
se da previsão de um encaminhamento ordenado, cuja estrutura enquanto sistema social nos
interessa, posto que na visão de Luhmann “só com auxílio do processo é que as normas jurídicas
puderam ser abstraídas em um sentido capaz de sedimentar, por seu lado, a legitimidade da
dominação política.” 431
A decisão jurídica, por sua vez, legitima-se também pela expectativa da aceitação, já
que, para Luhmann: “Pode-se afirmar que legítimas são as decisões nas quais pode-se supor
que qualquer terceiro espere normativamente que os atingidos se ajustem cognitivamente às
expectativas normativas transmitidas por aqueles que decidem.” 432 Ressalte-se que o referido
autor visualiza a força física e o direito positivo como intrínsecos à exposição do direito e
consolidação da confiança no direito, ainda que de formas distintas. Entrelaçando estes
conceitos, verificamos que há uma suposição genérica de que os que forem afetados por
decisões se submetam à força física, ou seja, há uma expectativa de que tais afetados não se
433
rebelem. A função legitimadora dos processos se fundamenta na separação em termos de
papéis sociais, ou seja, por serem diferenciados no contexto dos papeis sociais.
429
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 176-177.
430
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 178.
431
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,
p. 180.
432
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985,
p.64.
433
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985,
p.65.
176
Aqui consta, na obra de Luhmann, a vinculação ao tema por nós proposto, sobre qual
Luhmann dedicou, inclusive, obra específica, a Legitimação pelo procedimento, de 1969, um
ano após a Crise de legitimação do capitalismo tardio de Habermas ser lançada. Na referida
obra, Luhmann trabalha a ideia de procedimento a partir de três procedimentos que considera
estruturalmente decisivos nos sistemas políticos atuais, quais sejam, o procedimento da eleição
política, o procedimento parlamentar da legislação e o processo judicial, sendo os três de
naturezas distintas, porém todos juridicamente organizados.
Ressalte-se a visão clássica de procedimento como aquele que busca assegurar uma
esfera de comunicação livre e independente contra influências ou vantagens decorrentes de
434
status, posição e sob forma de processos legalmente organizados. Entretanto, destaca
Luhmann que “era ilusão interpretar uma tal solução como um meio para alcançar o objetivo
da verdade – uma depreciação do problema da complexidade, típica da época do
iluminismo”435, lembrando que o núcleo de toda teoria procedimental é, em última análise, a
correlação com a verdade ou com a justiça como objetivo.
No que tange à legitimidade, Luhmann a apresenta como “uma disposição generalizada
para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”
436
, o que torna clara a vinculação com a obra de Weber, especialmente quanto à legitimidade
de tipo legal-racional já aqui mencionada e que consiste, com efeito, o parâmetro pelo qual a
sociologia e a filosofia política têm estudado a questão da legitimidade. De fato, o progressivo
desencantamento do mundo tornou impossível vincular a legitimação do poder político de
qualquer moral naturalmente alcançável, o que tornou necessário que o próprio sistema político
produzisse sua própria forma e fundamento de legitimação.
Destaque-se, neste âmbito, a aceitação das premissas das decisões e a aceitação das
próprias decisões como dois momentos distintos da legitimação. Ademais, a questão transcende
a esfera individual de aceitação fática e momentânea de um indivíduo:
434
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 27.
435
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 27.
436
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 30.
177
Assim sendo, resume-se a legitimação não como o objetivo do procedimento (que visa
normalmente a verdade ou o justo), mas como consequência da manutenção da estabilidade
gerada a partir das estruturas possíveis do próprio sistema que, portanto, se autolegitima. 441
437
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 34.
438
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 35.
439
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 193.
440
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,
1980, p. 201.
441
Sobre o uso da autoreferência de forma produtiva pela teoria dos sistemas (ao invés de ver nela um paradoxo
evitável), ressalta Teubner que: “the theory of autopoiesis delas with these paradoxes of self-reference in a
diferente way: Do not avoid paradoxes, but makes productive use of them! If social discourses are autopoietic
systmens, i.e. systems that recursively produce their elements from the network of their elements, then they are
178
founded on that very self-referentiality that Habermas and Foucault are desperately trying to avoid (TEUBNER,
Gunther. How the law thinks: toward a constructive epistemology of law. San Domenico: European University
Institute, Badia Fisolana, 1988, p. 21 apud VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas
de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006, p. 168).
442
“Giro linguístico foi a mudança de paradigma que ocorreu no pensamento filosófico ao longo do séc. XX. Aqui
a linguagem deixa de ser um objeto de estudo entre outros e passa a ter uma referência inevitável e fundamental
onde se abordam todos os problemas filosóficos. Razão e linguagem se tornam idênticos de tal modo que a
linguagem se torna a única forma racional de se conhecer a realidade. Nessa relação com o mundo passa a ter um
caráter simbolicamente mediado, visto que a linguagem desempenha um papel fundamental. A linguagem não é
mais um meio de conhecimento, ela passa a ser a condição de possibilidade de conhecimento.” (VELASCO
ARROYO, Juan Carlos. Para leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, 2003.Tradução Livre).
443
“Embora Kant escolha a forma imperativa (‘Age só pela máxima que se possa transformar ao mesmo tempo,
por acção de teu desejo, em lei geral!’), o imperativo categórico assume o papel e um princípio de justificação,
assinalando como válidas as normas de conduta susceptíveis de generalização: todos os seres dotados de razão têm
de ser capazes de desejar o que se encontra moralmente justificado. É nessa perspectiva que falamos de uma ética
formalista. Na ética do discurso, o método de argumentação moral substitui o imperativo categórico. É ela que
formula o princípio ‘D’: - as únicas normas que têm o direito a reclamar validade são aquelas que podem obter
anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático. O imperativo categórico desce ao mesmo
tempo na escala, transformando-se num princípio de universalização ‘U’, que nos discursos práticos assume o
papel de uma regra de argumentação: no caso das normas em vigor, os resultados e as consequências secundárias,
179
substituição nos força a repensar as bases da razão moderna e interpretar (e talvez reconfigurar)
a ordem política e jurídica existente. Abandona-se a tradicional estrutura da metafísica focada
na relação sujeito-objeto e implementa-se a noção de intersubjetividade, conforme interações
argumentativas. Com efeito, a partir da construção de Pierce de um modelo de conhecimento
que prescinde da tradicional visão sujeito-objeto e se firma numa construção intersubjetiva,
Habermas verá que a elaboração racional que conduz ao conhecimento não é um trabalho
solitário, mas cooperativo de uma comunidade científica. 444
Esta – a razão comunicativa – não é informativa e nem imediatamente prática, mas
refere-se a intelecções, proposições e normas criticáveis e, portanto, abertas a um
esclarecimento intersubjetivo via argumento ou discurso. 445
Desta forma, “o elemento
definidor da correção dos conhecimentos é um elemento externo ao plano cognitivo, situando-
se no plano da ação”446, considerando, evidentemente, que a fala é uma ação, de onde se extrai
seu caráter pragmático. Cumpre destacar que no modelo habermasiano da ação comunicativa,
os atos ilucucionais “são o meio no qual os agentes, que são orientados para uma coordenação
cooperativa de seus diferentes planos de ação, ‘mobilizam o potencial para a racionalidade’
inerente à linguagem ordinária”. 447
Sobre os atos ilucucionais, cumpre destacar as cinco
categorias vislumbradas por Searle:
provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses
de cada um, terão de poder ser aceites voluntariamente por todos.
Finalmente, designamos por universalista uma ética que afirma que este princípio moral (ou um idêntico) não
exprime apenas as intuições de dada cultura ou de dada época, mas tem também sua validade geral.”
(HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do Discurso. Trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Piaget, 1999,
p. 15-16).
444
“um signo consegue unicamente desempenhar a sua função representativa se estabelecer, simultaneamente à
referência ao mundo objetivo das entidades, uma referência ao mundo intersubjetivo dos intérpretes;
consequentemente, uma objetividade da experiência não é possível sem a intersubjetividade do entendimento
mútuo.” (HABERMAS, Jürgen. Charles S. Peirce sobre comunicação. In: HABERMAS, Jürgen. Textos e
contextos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 21 apud SEGATTO, Antonio Lanni. A tensão entre facticidade e
validade. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 41).
445
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Uma filosofia do direito procedimental. In: Revista Tempo Brasileiro, jul.-
set. – n. 138. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999, p. 156.
446
ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 107.
447
WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi.
São Paulo: Ícone, 1995, p. 47.
448
SEARLE, John R. Expressão e Significado: estudos da teoria dos atos de fala. Trad. Ana Cecília G. A. de
Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. X.
180
449
SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Trad. F. Rangel. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 139.
450
O questionamento de Searle nos é aplicável: “Como pode haver uma realidade objetiva que é o que é apenas
porque pensamentos que é o que é?” (SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Trad. F. Rangel. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000, p. 106).
451
“As quatro pressuposições mais importantes são: (a) publicidade e inclusão: ninguém que, à vista de uma
exigência de validez controversa, possa trazer uma contribuição relevante, deve ser excluído; (b) direitos
comunicativos iguais: a todos são dadas as mesmas chances de se expressar sobre as coisas; (c) exclusão de
enganos e ilusões: os participantes devem pretender o que dizem; e (d) não-coação: a comunicação deve estar livre
de restrições, que impedem que o melhor argumento venha à tona e determine a saída da discussão.”
(HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Trad. Lucia Aragão. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2012, p. 67).
181
situação da qual decorreria um consenso acerca dos princípios de justiça a partir de um véu de
ignorância cuja função seria similar à da formação de uma situação ideal de fala, posto que visa
a construção de um consenso não enviesado por características pessoais, isto é, sem
interferências acerca da racionalidade plena da decisão.
Em Habermas, esta situação ideal de fala consiste numa medida de crítica para
questionar consensos formados e não num fenômeno empiricamente possível, estando ligado
aos seguintes postulados: igualdade comunicativa, igualdade de fala, veracidade, sinceridade e
452
correção de normas. Tais postulados são de suma relevância para o patamar da crítica que
se fará aos consensos faticamente obtidos. Estes, por sua vez, se dão não só a partir de condições
de fala possíveis, mas dentro de um horizonte que limita a própria comunicação, o chamado
mundo da vida (lebenswelt)453, o qual é dado e abrange a consciência e o contexto social da
comunicação, condicionando as possibilidades de consenso.
Ressalte-se que o conceito de agir comunicativo em análise “desenvolve a intuição de
que à linguagem é inerente o telos do entendimento.” 454 Neste ponto, verificamos a necessidade
de por Habermas por apresentar um modelo de ação distinto daquele weberiano – a ação
racional com respeito a fins –, o que intentará fazer pela ação comunicativa que, conforme dito
acima, visa o entendimento. Desta forma, a finalidade do agir comunicativo volta-se à formação
de consensos, a princípio criticáveis a partir dos postulados acima descritos e considerando-se
os limites impostos pelo contexto no qual se dão (o mundo da vida). Afinal, é certo que a maior
complexidade decorrente da evolução social ocasionou pluralização de formas de vida que
inibem as convergências que se assentam na base do mundo da vida. Neste contexto, a questão
que surge é fundamental e é, para Habermas, um problema típico das sociedades modernas:
“como estabilizar, na perspectiva dos próprios atores, a validade de uma ordem social, na qual
ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas?”
455
Em termos mais claros:
452
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1989, p. 105.
453
“Ora, podemos representar as componentes do mundo da vida, nomeadamente os padrões culturais, as ordens
legítimas e as estruturas de personalidade, como adensamentos e sedimentações destes processos de entendimento,
de coordenação de acções e de socialização que perpassam o agir comunicativo.” (HABERMAS, Jürgen.
Pensamento pós-metafísico: ensaios filosóficos. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa: Almedina, 2004, p. 106-107).
454
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: ensaios filosóficos. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa:
Almedina, 2004, p. 89.
455
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 45.
182
456
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 46.
457
Para fins deste capítulo, utilizaremos algumas vezes as expressões legitimidade e legitimação, conforme
utilizadas por Habermas. De toda sorte, o significado a elas atribuído é similar ao que aqui denominamos
justificação.
458
HABERMAS, Jürgen. A Crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª Ed. Trad. Vamireh Chacon. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 30-38.
183
sociedade leva à exclusão daquele que discorda, com a manutenção do estado de coisas.
Entretanto, com o aumento dos dissensos, a eticidade única se abala.
A passagem da forma de organização social tradicional para a forma liberal capitalista
representa a possibilidade de convívio mútuo entre eticidades distintas e, por vezes, divergentes,
dentro de um mesmo espaço que, portanto, torna-se palco de um convívio conflituoso sob uma
ordem política que carece de unidade para manter-se, vez que não mais lastreada em valores
míticos ou religiosos inquestionáveis.
Como vimos anteriormente, no contexto do início da chamada modernidade irá ser
proposta a justificação da sociedade política em bases contratualistas, fundamentando a
sociedade a partir do indivíduo como único núcleo político considerável e substituindo as
fundamentações típicas da sociedade tradicional, notadamente as de base teológica, que
sustentavam o Antigo Regime, bem como todas aquelas de viés comunitarista, lastreadas na
visão aristotélico-tomista. Habermas, por sua vez, irá apresentar um entendimento diverso,
segundo o qual a base da legitimação política do Estado no âmbito do advento da modernidade
e do chamado capitalismo liberal não decorre de um entendimento filosófico como tal, mas a
partir da base econômica de reprodução desta sociedade. Isto, pois com Adam Smith e Ricardo
a sociedade passa a ser vista como o ambiente do comércio e do trabalho social, determinados
por leis anônimas, posto que decorrentes do livre comércio. Assim, com esta mudança de
perspectiva, conduzida pela economia liberal e também a partir das análises marxistas da crítica
à economia política, a categoria do direito, tal como vista pelos contratualistas, perde sua
posição-chave enquanto instrumento teórico legitimador da realidade social e política.
Em outras palavras, Habermas irá dizer que “os próprios mecanismos da integração
459
social são de natureza não-normativa” , cujas verdadeiras relações não são jurídicas, mas
econômicas.
Neste ponto, é essencial a análise de Habermas quanto à mudança estrutural ocorrida
com o advento do capitalismo: “A instituição do mercado pode ser fundamentada na justiça
inerente à troca de equivalentes; e, por esta razão, o Estado constitucional burguês encontra sua
justificação nas relações legítimas de produção.” 460 Assim, ante à inexistência de uma ordem
natural qualquer que legitime o Estado a partir de cima, o capitalismo em sua nascente apresenta
uma forma de legitimação a partir de baixo, ou seja, das forças produtivas. Assim, no
459
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 69.
460
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 36.
184
Assim, verificamos que o advento da chamada modernidade mexe com a posição das
forças produtivas no quadro de legitimação dos sistemas sociais institucionalizados. Com isso,
demonstram-se também inadequados os modelos jusnaturalistas e, portanto, aquele
contratualista462 e a dominação política saída dos quadros da racionalização a partir de cima
abandonará sua visão teológico-religiosa para poder ser legitimada a partir de baixo, ou seja, a
partir da ação instrumental, ainda que as técnicas características do trabalho precisem de um
quadro de interação para funcionarem.
461
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,
2016, p. 397.
462
“No decorrer dos processos de racionalização das sociedades modernas, caracterizados por uma crescente
complexidade e diferenciação das estruturas sociais com a expansão da economia capitalista de mercado e a
consolidação do sistema burocrático administrativo do Estado moderno, e por uma crescente diferenciação das
esferas culturais de valor, as teorias contratualistas apoiadas na tradição do direito natural racional foram sendo
consideradas inadequadas para esclarecer o problema da legitimidade da dominação política.” (WERLE, Denílson
L.; SOARES, Mauro V. Política e direito: a questão da legitimidade do poder político no Estado democrático de
direito. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 125).
463
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,
2014, p. 98.
185
de revoluções tecnológicas que alteram as relações de produção, bem como pela inclusão do
Estado como principal player no mercado. O acoplamento do sistema econômico ao político
repolitiza as relações de produção, criando uma nova necessidade de justificação da ordem
política.
464
SIEBENEICHELER, Flávio Beno. Uma filosofia do direito procedimental. In: Revista Tempo Brasileiro, jul.-
set.- nº 138, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 157.
465
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 14.
186
466
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 66.
467
HABERMAS, J. Más Allá del Estado Nacional. Madrid: Ed. Trotta, 1997, p. 162-163 apud ARAGÃO. Lucia.
Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 59.
187
Habermas nos apresenta, portanto, uma teoria da democracia sob o ponto de vista de sua
legitimação a partir de um paradigma procedimentalista do direito como meio de possibilitar a
convivência harmônica numa sociedade complexa, onde convivem diferentes eticidades, sendo
certo que a canalização da competência legislativa do povo transfere-se ao legislativo pelo
princípio parlamentar, já que “as comunicações políticas dos cidadãos estendem-se a todos os
assuntos de interesse público; porém elas desaguam, no final das contas, nas decisões de
corporações legislativas”. 469
Afinal, a legitimidade somente pode ser obtida por meio de
processos comunicativos isentos de violência, de modo que sua expansão para além do mundo
da vida ocorre pela institucionalização de procedimentos de deliberação democrática. Desta
forma, o direito acaba, num certo sentido, extraindo sua legitimidade a partir da legalidade que
ele mesmo produziu.
Assim, na chamada esfera pública470, também reproduzida pelo agir comunicativo,
ocorre a interação comunicativa tendente a canalizar interesses por meio de entendimentos
aptos a serem transformados em poder administrativo. A sociedade civil (grupos e movimentos
sociais) transferem reações à esfera pública, numa tentativa de institucionalizar discursos por
meio de canais institucionalizados de deliberação democrática, com vistas a, no final, conceder
a devida legitimidade às decisões políticas. Cabe lembrar, neste contexto, que a partir da
repolitização das relações econômicas – dada a perda da legitimação “de baixo” típica do
capitalismo liberal – a dominação exercida por meio do Estado torna-se suscetível de pressões
políticas a serem exercidas pelas forças democráticas. 471
Em apertada síntese, poderíamos dizer que a legitimidade vista por Habermas funda-se
sobre o princípio do discurso “D”: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis
atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos
468
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 213.
469
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 214.
470
“A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de
posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
facticidade e validade, volume II. 1ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011,
p. 93).
471
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 79.
188
racionais.” 472
Este princípio assume, pela via da institucionalização jurídica, a figura de um
princípio da democracia, legitimando o processo de normatização, assim “O princípio da
democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica.”
473
472
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 142.
473
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 158.
474
“A ideia da autolegislação, que significa autonomia moral para a vontade particular, adquirida para a formação
coletiva da vontade o significado da autonomia política, porque o princípio do discurso encontra aplicação a outros
tipos de normas de ação, assumindo ele próprio uma figura jurídica ao lado do sistema de direitos.” (HABERMAS,
Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 197).
475
PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 80-81.
476
PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 54.
189
477
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 22-23.
478
Embora não deixa de pontuar a possibilidade de ruptura das estruturas normativas por meio do aumento da
complexidade das escolas de organização e da modernização (cf. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação
no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 24).
479
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 190.
190
Neste sentido, Habermas irá cunhar sua bastante repetida afirmação de que “o direito
detém uma função de charneira entre sistema e mundo da vida.”481 Também é dentro deste
contexto teórico que Habermas nos apresenta, em Direito e Democracia, uma tensão típica do
direito, referente à facticidade (Faktizität) e validade (Geltung). Do ponto de vista interno, isto
representa a tensão entre a facticidade da coerção e a validade da norma. Do ponto de vista
externo – afeto aos contextos sociais – trata-se da tensão entre a facticidade do poder e a
validade decorrente da autonomia política dos cidadãos.
A norma jurídica, portanto, não pode ser entendida a partir da mera positividade ou,
conforme visto na análise de Luhmann acima, a partir de sua função de controlar expectativas;
além da legalidade e da consequente coerção dela decorrente, o direito insere-se num meio
social muito mais amplo que o sistema legislativo formal. A compreensão integral do fenômeno
jurídico, portanto, transcende esta esfera e alcança o cotidiano, de onde deve extrair
legitimidade a partir das relações sociais comunicativas que, na visão habermasiana, devem ser
articuladas num modelo de democracia radical, em que direito e política são vistos a partir de
um paradigma procedimental.
A partir disso, verifica-se, no plano interno, que a dominação política deve ser
entendida, primeiramente, como decorrente de um poder juridicamente organizado e, portanto,
dotado de legalidade. A legalidade, assim, apresenta-se como fundamento inicial de qualquer
perspectiva de legitimidade, a qual deve estar vinculada à ideia de justiça, conforme expressão
de uma comunidade de pessoas organizadas que agem comunicativamente visando
entendimentos que dão o necessário suporte racional e deliberativo às decisões que fundam este
direito do qual emana a legalidade do poder.
480
VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Legalidade e legitimidade no pensamento de Jürgen Habermas. In: NOBRE,
Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 41.
481
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 83.
191
482
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 97.
483
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 50.
484
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 51.
192
485
HABERMAS, Jürgen. O conceito de poder em Hannah Arendt. In: FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sérgio
Paulo (Orgs.). Habermas: sociologia. Trad. Bárbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Ática, 1980, p.
101.
486
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.
228.
193
Assim, Habermas aponta sua visão acerca da estrutura racional que deve conter os
motivos da legitimação:
Neste sentido é que irá apresentar as condições formais da formação de consensos como
conservadores da força legitimadora, tratando-se de uma justificação, ou seja, “condições
formais de aceitabilidade das razões que emprestam eficácia às legitimações, ou seja, sua força
para produzir consenso e formar a motivação.” 488
Aqui Habermas apresenta entendimento similar aquele que aqui buscamos desenvolver,
ou seja, que a vinculação e o efetivo cumprimento (eficácia) depende de motivos extra-factuais
que emprestam eficácia à legitimação, o que, para o referido pensador consiste na aceitabilidade
das razões formadoras do consenso. Assim, os procedimentos pressupostos nesta
fundamentação fundam a validade da legitimidade, apresentando a visão habermasiana que
acordos livres, em supostas condições ideias, são a única base possível para a justificação
possível no ambiente pós-metafísico.
Em síntese, a justificação das normas jurídicas se dá como resultado de um processo
comunicativo do qual aquelas obtêm seu fundamento, conforme decorrente de um
reconhecimento intersubjetivo, de tal sorte que as normas apresentam-se aos seus destinatários
não só com a pretensão de legalidade, decorrente da coercibilidade – que alude ao cumprimento
orientado estrategicamente –, mas também com pretensão de legitimidade – que alude ao
reconhecimento racional de uma ordem política, conforme fundada em consensos valida e
racionalmente gerados conforme os procedimentos jurídicos típicos de um Estado democrático
de direito.
487
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,
2016, p. 388.
488
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,
2016, p. 390.
194
489
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 48.
490
ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 150.
491
“Com golpes de Estado e as barricadas não se chega a lugar algum. Toda transformação radical implica
mudanças de subjetividades: a revolução deve ser democrática. Sempre fui um antileninista. A ideia de que uma
elite se serve de instrumentos de produção para converter as massas parece-me completamente desacreditada. No
imediato, não sou um inimigo da social-democracia, se bem que me situe nitidamente mais à esquerda. Enquanto
não houver movimentos sociais dignos desse nome, o reformismo radical social-democrata é a única solução.
Depois das imensas decepções que a história do socialismo nos reservou, convém se mostrar prudente.” (Le
Monde. Entretiens avec le Monde. Paris, Ed. La Découverte, 1984, p. 226 apud ARAGÃO. Lucia. Habermas:
filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 152).
492
ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 150.
493
MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah
de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, passim.
195
expressivamente entre 1940 e 1966, a partir daquilo que denomina terceira revolução
tecnológica, bem como a partir de 1967 com o aumento da concorrência internacional.
Destacamos as análises de Mandel sobre Estado e ideologia, em que verifica uma diminuição
na crença da individualidade e competição (características típicas do capitalismo clássico) e
maior crença no desenvolvimento vertiginoso da ciência, elemento central do capitalismo
tardio.
No contexto da Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra, verificam-se as derrotas da
classe operária que possibilitam o aumento da mais-valia pelo fascismo e pela própria guerra,
bem como a acumulação do capital, o avanço da inovação tecnológica, a redução do tempo de
giro do capital fixo e a diminuição do trabalho gasto em produção e industrial, conjunto de
fatores que ocasionam a denominada terceira revolução tecnológica que acaba também por
494
permitir a reprodução do capital em escala internacional. Sob a ótica estatal, este conjunto
de fatores ocasiona uma ampliação das funções do Estado no âmbito do capitalismo tardio:
494
MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah
de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 311.
495
MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah
de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 339.
196
496
MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah
de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 351.
497
ARAGÃO, Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 162.
498
WEBER, Max. O direito na economia e na sociedade. Trad. Marsely De Marco Martins Dantas. São Paulo:
Ícone, 2011, p. 304.
499
“uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas fica a cargo de um aparelho impessoal
hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos racionais.” (MOTTA,
Fernando C. Prestes. O que é burocracia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 7).
197
coletivamente elaborado e compartilhado pelos seus membros.” 500 Este conceito refere-se ao
que comumente denominamos comunidade técnico-científica.
Para Habermas, o que de fato irá distinguir o capitalismo das fases históricas anteriores
é a expansão dos subsistemas e a pressão necessária que isso gera nas formas tradicionais de
legitimação. O ponto crítico encontra-se no grau de “colonização do mundo da vida”, na medida
em que técnica e ciência se tornam as principais forças produtivas, e “elas não servem mais aos
fins de um esclarecimento político como fundamento da crítica à legitimação vigente, mas se
transforma ela mesma em fundamento da legitimidade.” 501 Aí encontraremos a noção de que a
técnica e a ciência assumem o papel de legitimar a dominação. Assim sendo, a questão da
legitimidade aparece vinculada aos modelos de participação no âmbito de uma democracia
deliberativa e de justificação de atos a partir das esferas de conhecimento supostamente neutros.
Cuida-se aí de uma pressão de modernização, ou melhor, de racionalização, que somada
ao desencantamento formam uma crítica às teorias que sustentam a sociedade tradicional,
surgindo novas fontes de legitimação, que reivindicam cientificidade. Neste contexto, a ciência
assume inevitavelmente um papel central no aparato ideológico de dominação.
Neste cenário, o desenvolvimento tecnológico típico do século XX, bem como a
expansão desta lógica ao Estado, torna-o instrumento de resolução de problemas técnicos,
despolitizando as decisões.
Esta se afigura como a tese central da tecnocracia e que, ainda, possui força justificadora
do poder, afinal, as ciências modernas não só possuem um ferramental apto a criticar as formas
de legitimação tradicionais, mas propõe toda uma ressignificação destes modelos.
500
MARTINS, Carlos Estevam. Tecnocracia e capitalismo: a política dos técnicos no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1974, p. 42.
501
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,
2014, p. 79.
502
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,
2014, p. 109.
198
Neste contexto, as questões sociais que, na teoria democrática clássica, deveriam ser
resolvidas a partir de consultas populares diretas ou indiretas, apresentam-se como resolvidas
por critérios técnicos, detidos por aqueles que participam de tal comunidade. Assim: “a
expansão gradativa das esferas de ação social submetida aos critérios de controle racional e
científico, constitui uma as tendências mais marcantes da evolução das sociedades capitalistas
nas últimas décadas.” 503
Neste quadro conceitual, o problema social deixa de ser questão
política para ser administrado por especialistas na obtenção e processamento de informações.
Neste ponto assumem os tecnocratas504 papel central. Afinal, no âmbito das sociedades
complexas imersas no capitalismo tardio, podemos dividir três modos de lidar com questões
sociais relevantes505: A primeira maneira, seria tomar como premissa um conceito amplo de
democracia e, portanto, de participação popular nos processos decisórios e tratar as concepções
técnicas de forma pouco complexa, dado o predomínio da vontade popular. A segunda maneira
englobaria um conceito reduzido de democracia, tratando as questões técnicas como de média
complexidade. Neste caso, é possível que as questões sejam discutidas no âmbito de comissões,
porém com legitimidade democrática (ainda que teórica) concedida pelos mecanismos da
democracia indireta. Finalmente, a terceira maneira nos coloca diante de um conceito reduzido
de democracia – por vezes nulo – e de concepções teóricas de alta complexidade a serem
resolvidas com base em argumentos eminentemente técnicos, de tal sorte que as decisões sejam
tomadas sem qualquer respaldo democrático.
Diante disso, apenas a primeira abordagem cumpriria plenamente a premissa
democrática, alinhando as decisões do poder aos efetivos detentores do poder político. Resta
saber, neste caso, quais consequências decorrem da utilização destes modelos, sabendo-se que
a alta complexidade organizacional dos Estados tende a diminuir a possiblidade decisões
503
VELASCO E CRUZ, Sebastião C. Ciência e democracia: notas sobre Jürgen Habermas. In: Revista de Cultura
Vozes, nº 2, ano 71, Vol. LXXI, Vozes: 1977, p. 6.
504
“Importante anotar a diferença entre os tecnólogos e os tecnocratas: Os tecnólogos fazem parte do conjunto dos
recursos humanos disponíveis numa determinada sociedade. Na medida em que esse tipo específico de mão-de-
obra é recrutado, coordenado e posto a funcionar a serviço de organizações públicas e privadas, conviria dizer,
para assinalar esse fato, que tais organizações se apoiam em staffs técnico-científicos e que a sociedade como um
todo depende, para o seu funcionamento, da arregimentação do contingente técnico-científico com que é capaz de
contar. Quando nos referimos, por outro lado, a tecnocratas e tecnocracias, temos em mento um fenômeno de outra
ordem. Nesse caso, não estamos pura e simplesmente mencionando a presença de um contingente técnico-
científico num determinado contexto social; na verdade, estamos sugerindo, no mínimo, que os tecnólogos podem
ser apropriadamente descritos como sendo algo mais a assumiu, ou está em vias de assumir, as funções de uma
elite de poder.” (MARTINS, Carlos Estevam. Tecnocracia e capitalismo: a política dos técnicos no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1974, p. 18).
505
Esta construção é baseada em: NASCHOLD, Frieder. Democracia e complexidade: teses e exemplos para a
discussão teórica na Ciência Política. In: SENGHASS, Dieter; NARR, Wolf-Dieter; NASCHOLD, Frieder.
Análise de sistemas, tecnocracia e democracia: textos sobre a discussão teórica na Ciência Política Alemã. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p. 77.
199
democráticas desvinculadas de abordagens técnicas que são tomadas, nesta ótica, como
necessárias. Afinal, a escolha meramente política, neste contexto, deixa de ser livre para se
tornar refém das proposições técnicas, que a limitam. A técnica, em desenvolvimento, substitui
o papel da política e da ideologia; no limite, substitui as pessoas, de tal modo que a regência da
sociedade deixa de ser executada por pessoas e passa a ser conduzida pela técnica, impessoal e
objetiva; trata-se, em suma, de um processo de despolitização das decisões.
É notável, nesta discussão sobre a técnica e a tecnocracia, a visão de Marcuse, para o
qual “o universo totalitário da racionalidade tecnológica é a última transmutação da ideia de
Razão” 506 Neste sentido, irá apontar que:
506
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Trad.
Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 137.
507
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Trad.
Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 36.
508
MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. Trad. Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: UNESP,
1999, p. 84.
509
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,
2014, p. 73.
200
meio de uma revolução da própria ciência e da técnica510, questão que vai direto ao âmago do
projeto moderno e cujas possibilidades de superação, segundo Habermas511, acabam por
estarem sempre ancoradas no próprio discurso da modernidade.
De volta ao papel do indivíduo no âmbito da democracia contemporânea, Bobbio nos
faz importante alerta, ao dizer que “tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista
da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer.” 512
Ora, se a racionalidade tecnológica em expansão mitiga o individualismo e a concepção
kantiana de autonomia, ela acaba por colocar em cheque aspectos fundamentais do projeto
moderno, notadamente a própria noção de sujeito, à qual nos referimos anteriormente como
constructo central da filosofia moderna e que, de fato, será a base para o poder político das
democracias modernas a partir da noção de soberania popular decorrente da justificação
contratualista do Estado moderno. Acabará também por solapar qualquer funcionalidade dos
entendimentos intersubjetivos, posto que a opinião técnica tende a desbalancear e inviabilizar
o consenso válido e, portanto, acaba por minar todas as propostas de justificação do Estado e
da ordem jurídica, tanto as contratualistas, quanto as procedimentalistas.
Assim sendo, ainda que se garanta (e não se dê)513 aos indivíduos seus direitos
fundamentais, aquilo que constitui o centro do projeto político da modernidade, isto é, a
construção do corpo social pelo e para o povo, arruína-se gradativamente a partir de frutos da
própria modernidade, isto é, do avanço da técnica e sua inserção nos modos de produção, bem
como nos centros de decisão política.
510
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,
2014, p. 81.
511
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim.
512
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.
46.
513
“Aquilo que de bem grade se dá – não requer garantia. Sempre que se requer garantias há referência implícita
à ruptura de confiança”. (PUGLIESI, Marcio. Laís, Galharda e Pavana: por uma sociedade moribunda. In: Revista
Eletrônica Sapere Aude. Ano 1, Vol. 9, abril-2013, p. 2).
201
Com efeito, o processo de formação de consensos nas sociedades complexas atuais não
deriva de práticas argumentativas intersubjetivas construídas em ambientes de diálogo isentos
de violências diversas e falhas, mas de acertos, trade-offs, negociatas515 e, quando muito, de
lutas entre grupos que lutam pela imposição de pautas e concretização de projetos.
Assim sendo, naquilo que concerne à formação de consensos a partir da ação
comunicativa habermasiana e sua visão procedimental da democracia, cumpre-nos relembrar a
tradicional crítica acerca da posição e peso dos argumentos daqueles que se posicionam como
interlocutores dos processos de formação dos consensos e, mais, apontar como na atual
democracia há uma ilusão notória acerca da participação do indivíduo como construtor direto
ou indireto dos consensos que cuidam de transformar alguma argumentação em ação
administrativa, por meio de leis e similares.
Com isso intentamos dizer que, na modernidade tardia, a democracia não se faz por
meio de indivíduos, conforme inicialmente formulada, mas sim por esferas intermediárias entre
o indivíduo e os efetivos representantes do poder, o que nos coloca diante da ilusão do indivíduo
soberano – fundamental constructo moderno –, e perante os verdadeiros atores da democracia
hodierna, quais sejam, os grupos de interesse, grupos de pressão, os próprios partidos (que
514
ŽIŽEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção. Trad. Rogério
Bettoni. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 166.
515
Habermas, por sua vez, irá verificar negociações had hoc entre grupos em conflitos a partir de sua filosofia e,
portanto, ver neles uma espécie de “barganha justa”, uma espécie de acordo negociado (Vereinbarung), que
equilibra interesses em conflito. (HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse
Theory of Law and Democracy. Trad. William Rehg. Cambridge, MIT Press, 1998, p. 166).
202
seriam também grupos) e, por fim, a própria técnica, como artifício pseudo-neutro que suplanta
a vontade popular.
A partir disso, verificamos que os temas de importância para a sociedade democrática
são discutidos e resolvidos mediante o entendimento estabelecido entre os diversos grupos de
pressão mediante tratativas, acordos e outras formas de negociação pelos quais buscam
estabelecer consensos ou, conforme expõe Bobbio516, trata-se de pacto social referendado por
forças sociais, tais como os sindicatos, ou pactos políticos referendados pelas forças políticas,
os partidos e, em última instância, apareceria a constituição, resultado de um pacto nacional.
Neste sentido, Touraine nos diz que:
Desta forma, ficaria reduzida a participação do indivíduo como fonte do poder, de tal
sorte que, dentro do contexto comunicativo, a formação dos consensos resultaria da correlação
de forças dentro do próprio parlamento (não necessariamente atreladas ao indivíduo), bem
como, mais atualmente, das agendas propostas e trabalhadas pela mídia. Destaque-se, ainda, a
própria ideia da prevalência dos grupos organizados como forma de viabilizar influência
popular na formulação do direito, reduzindo, portanto, o papel concedido ao indivíduo singular
que, das teorias modernas até Habermas, ainda aparece de uma forma ou de outra como fonte
do poder político:
516
“De maneira mais geral, com respeito não tanto à relação pessoal ou personalizada entre classe política e
cidadãos, entre governantes e governados, mas à relação entre grandes grupos de interesse ou de poder que
caracterizam uma sociedade pluralista e poliárquica como é a das relações de troca contrapostas às relações de
dominação, de conflitos que se resolvem através de tratativas, transações, negociações, compromissos,
convenções, acordos e se concluem, ou se deseja que se concluam, num pacto social referendado pelas forças
sociais (os sindicatos) ou num pacto político referendado pelas forças políticas (os partidos), ou até mesmo num
pacto nacional referendado pela reforma constitucional.” (BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p. 144).
517
TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 159.
518
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 460.
203
Diante disso, o sujeito burguês, ora formador do todo social a partir do atomismo
político típico da modernidade, afasta-se gradativamente da centralidade do projeto para ser
mero partícipe, isto é, afasta-se da visão kantiana do sujeito autônomo, racional e, portanto,
capaz das condições necessárias para sua emancipação, e passa a figurar como aquele que
recebe ordens – expressas ou tácitas – de como se vestir, consumir e, em especial, se portar
frente a regras que acabam por aparecer como decorrência de sua autonomia política, mas que,
519
ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011,
p. 19.
520
PUGLIESI, Marcio. Laís, Galharda e Pavana: por uma sociedade moribunda. In: Revista Eletrônica Sapere
Aude. Ano 1, Vol. 9, abril-2013, p. 41.
204
CONCLUSÃO
Hobbes será o primeiro responsável por cumprir com este propósito e estabelecer as
bases do pensamento político da modernidade, sistematizando o pensamento contratualista a
partir do experimento mental do estado de natureza e do surgimento do corpo social como
decorrente de um pacto humano; alterará, portanto, toda problemática da sociabilidade humana,
conforme vista até então em perspectiva aristotélica. Trata-se aqui de uma mudança na teoria
política de suma importância para a compreensão do pensamento moderno, qual seja, o
abandono da lógica naturalista aristotélica e do organicismo dela decorrente, para uma visão da
sociedade como decorrente de pacto humano e, portanto, convencional. Se para Aristóteles, a
sociedade política é vista como um fim em si mesma, autárquica, como diria; para Hobbes ela
aparece como mero meio, isto é, instrumento para viabilizar a autoconservação do indivíduo –
única realidade política dada –, que sacrifica sua liberdade natural para sujeitar-se à liberdade
civil. A conversão do status naturalis em status civilis reflete a pendular relação liberdade-
segurança, que ditaria os rumos da filosofia e da prática política de toda modernidade, sem
perder o fôlego na atualidade.
Da supressão da causa final aristotélica como elemento do pensamento político decorre
a lógica mecânica típica da modernidade, baseada apenas em causas eficientes, esvaziando
axiologicamente a natureza humana e introduzindo a incerteza gerada pelo movimento sem
telos predeterminado. A isso se seguirá uma necessidade moderna de se estabelecer, por
mecanismo racionalmente construído, a segurança necessária à convivência, resposta dada pelo
Estado moderno e seu direito positivo.
Como é sabido, o modelo hobbesiano advogava pela manutenção do absolutismo e,
portanto, não recebeu a devida aderência da burguesia em ascensão. Neste tocante, Locke irá
apresentar um modelo contratualista valendo-se dos mesmos instrumentos metodológicos, mas
evidenciando o poder do consentimento e a proteção da propriedade, vida e liberdade como
motivo último da construção do corpo social e, portanto, o Estado como protetor dos direitos
naturais. Daí a importância fundamental dos primeiros diplomas jurídicos formadores do
modernismo jurídico, todos com forte influência lockeana, em especial a Declaração Universal
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e o Código Civil Napoleônico (1804), este
emblemático pelo tratamento concedido à propriedade.
Rousseau, por sua vez, verificará o contrato como pacto associativo, do qual decorre
uma cidadania ativa dos indivíduos e Kant evidenciará o direito como único fundamento
possível para a garantia da liberdade individual e para aquilo que denomina paz perpétua. A
proteção da propriedade de Locke, a vontade geral de Rousseau e a igualdade pressuposta na
transcendentalidade do sujeito kantiano delinearão as diretrizes constitutivas do Estado
208
moderno, já que o direito e a política devem ser vistos a partir de uma base de justificação
decorrente da expressão da autodeterminação de cidadãos.
Desta forma, a justificação das normas a que nos debruçamos neste trabalho aparecerá,
para Habermas, não só a partir de sua pretensão de legalidade e, portanto, do efeito coercitivo
que ensejará comportamentos orientados estrategicamente, mas também de sua pretensão de
legitimidade – no sentido do que aqui denominamos justificação – na medida em que alude ao
reconhecimento racional de uma ordem política e jurídica, conforme supostamente fundada em
consensos validos e racionais obtidos num ambiente isento de coação e regulado por
procedimentos típicos de um Estado democrático de direito.
Ainda que Habermas conceda importância à autonomia política, conforme seja expressa
em termos argumentativos e, portanto, voltada ao consenso coletivamente composto, o
princípio do discurso por ele apresentado alinha-se à ideia de autolegislação, típica do
contratualismo dos setecentos, ainda que de forma mais sofisticada.
Com esta visão, Habermas se torna um continuísta do projeto moderno e, portanto, um
interlocutor necessário para o que aqui buscamos demonstrar. Com efeito, o abandono da ação
instrumental e a aposta na ação comunicativa tira a centralidade e individualidade do sujeito
moderno kantiano, mas sua teoria do agir comunicativo não é isenta de críticas. Afinal, a própria
construção do horizonte comunicativo do chamado mundo da vida pode ser construída de forma
enviesada. Ademais, apontamos a influência da força argumentativa dos indivíduos em relação,
conforme conhecimentos técnicos, linguísticos e estruturais específicos daqueles que
participam do processo comunicativo como podem; o que dificultaria a aceitação do idealismo
habermasiano quanto à formação de consensos. Neste tocante, a teoria sistêmico-
construcionista de Márcio Pugliesi utilizada para verificar sujeitos como atmosferas semântico-
pragmáticas, torna o horizonte possível de comunicação limitado à intersecção entre as distintas
atmosferas em relação, afetando o processo comunicativo e, portanto, dificultando, ou até
mesmo impossibilitando, a formação de consensos, a depender das limitações pragmaticamente
verificadas caso a caso.
Assim sendo, a derradeira conclusão de nossa tese vai no sentido de apontar as tentativas
de justificação do Estado moderno e sua ordem jurídica como assentadas sobre bases
semelhantes, notadamente na ideia de formação de uma vontade única a partir da multiplicidade
típica da modernidade (o que aparece como vontade geral e, posteriormente, como consenso)
e, consequentemente, na ideia de autolegislação, de monumental relevância desde o início da
modernidade como forma de justificar toda e qualquer lei ou governo que decorra direta ou
211
Desta forma, o indivíduo, apontado pela filosofia moderna como verdadeiro detentor do
poder político a partir da soberania popular – e que cuida de fornecer a justificação do Estado
moderno a partir da ideia de autolegislação – será forçosamente suplantado pela racionalidade
técnica e diluído na tecnologia das novas mídias sociais. O centro do projeto político moderno,
isto é, a racionalidade autônoma do sujeito e suas funções ativa e passiva como cidadão,
encontram-se, portanto, solapados econômica e politicamente pelo desenvolvimento
tecnológico.
Quanto ao controverso papel da tecnologia no contexto tardio do projeto moderno,
embora Marcuse veja nela uma dominação enrustida, nós verificamos também uma
potencialidade de emancipação, na medida em que sua expansão poderá viabilizar uma efetiva
confluência da tecnologia com a participação democrática, que poderá ser empiricamente
possível em virtude de avanços tecnológicos que, ao contrário do que previa George Orwell,
poderão eventualmente ser utilizados pelo povo e não necessariamente contra este.
Diante disso, o sujeito burguês, ora formador do todo social a partir do atomismo
político típico da modernidade, afasta-se gradativamente da centralidade do projeto para ser
mero partícipe, isto é, afasta-se da visão kantiana do sujeito autônomo, racional e, portanto,
capaz das condições necessárias para sua emancipação, e passa a figurar como aquele que
recebe ordens – expressas ou tácitas – de como falar, vestir, consumir e, em especial, se portar
frente a regras que acabam por aparecer como decorrência de sua autonomia, mas que, em
verdade, surgem a partir de decisões técnicas despolitizadas ou decorrentes de entendimentos
de grupos dos quais não participa ou concorda.
Adicionalmente, a popularização da internet e das mídias sociais altera a materialidade
das relações e termina de liquidar o já debilitado capitalismo industrial, base econômica dada
para todas as teorias de justificação típicas da modernidade que, portanto, não possuem os
elementos necessários para responder aos anseios sociais sobre o papel da ciência e da
tecnologia no âmbito da produção e da democracia.
Diante desta complexidade, verificamos a insuficiência dos modelos de justificação do
Estado moderno, vez que não possuem o poder de articulação necessário para dar conta da
realidade em constante transformação, o que pode abalar a efetividade do Direito, bem como
acarreta as noticiadas crises de representação, que nos termos aqui trabalhados apresentam-se
como crises de justificação, ainda que as leis e a composição do governo tenham decorrido de
procedimentos democraticamente gerados e aplicados, remetendo-nos à problemática da
circularidade da justificação do Estado e do direito, cujas tentativas de imposição tencionam o
projeto moderno, podendo figurar como vetor determinante de sua ruptura.
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