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Fundada em 1950

VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR
BETTMANN/GETTY IMAGES

“AÇÃO AFIRMATIVA” Dorothy Counts, de 15 anos,


fotografada em 1957 chegando a um colégio de brancos sob
vaias e humilhações: a origem da ideia é americana

APRENDIZADO
NECESSÁRIO
A POLÍTICA DE COTAS — implementada no Brasil em
2012 e renovada no ano passado por pelo menos mais dez
anos, com pequenas correções — é decisão que faz o Bra-

1|4
sil aprender, entre avanços e recuos, enquanto a história
caminha diante de nossos olhos. Em pouco mais de uma
década de vigência, os resultados romperam os precon-
ceitos de quem a considerava uma decisão equivocada —
e, nesse processo, a sociedade já pode vê-la de outro mo-
do, ancorada em estatísticas. Dizia-se que, dadas as con-
dições precárias dos favorecidos, a qualidade do ensino
superior cairia, a evasão escolar aumentaria e haveria um
acirramento dos conflitos raciais. Nada disso aconteceu.
Levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-
sas Educacionais (Inep) revela que os estudantes benefi-
ciados pelas cotas têm desempenho igual ou superior aos
dos que ingressaram pelo sistema de ampla concorrência.
A taxa de permanência e conclusão é 10% superior entre
os cotistas, justamente pela chance que lhes é aberta de
ascensão. Em 2012, exatos 40 661 alunos cursaram a gra-
duação apoiados em caminho de ação afirmativa. Em
2022, foram 108 616, crescimento de 167%.
A ampliação do alcance da iniciativa não concede imu-
nidade a tropeços. Recentemente, um comitê da USP re-
chaçou a matrícula de dois estudantes que se autodeclara-
ram cotistas, por considerar que eles não atendiam aos re-
quisitos para ter direito a uma vaga destinada a pessoas
pardas ou negras. A avaliação é feita a partir das caracte-
rísticas físicas, e não da ancestralidade dos candidatos. A
Justiça, acertadamente, pediu a reintegração de ambos.
Os meninos sofrem na pele por serem pardos — aos olhos

2|4
FRONTEIRA FECHADA A NOSSA GUANTÁNAMO
Até que ponto o projeto de Trump afeta Como vivem os primeiros brasileiros
quem quer morar nos Estados Unidos adeptos do Islã condenados por terrorismo
Editora ABRIL
edição 2543 - ano 50 - nº- 33
16 de agosto de 2017

www.veja.com
O AVANÇO DAS COTAS
Para avaliar a política que abre as universidades a negros e pobres,
VEJA examinou uma dezena de estudos e pesquisou o desempenho
de 300 diplomados — e o resultado é surpreendente

REALIDADE As capas de VEJA de 2007, quando a política de


cotas ainda estava sendo avaliada, e de 2017: a estatística
permitiu mudar as ideias preconcebidas

da sociedade, não são negros o suficiente para terem aces-


so imediato à positiva engrenagem das cotas, nem bran-
cos o bastante para escaparem do racismo estrutural (leia
a reportagem “Uma questão de pele”).
Muitos obstáculos ainda despontarão no horizonte,
considerando-se a delicadeza do tema. Mesmo nos EUA
— onde nasceu a expressão “ação afirmativa”, criada por
John Kennedy depois de um episódio em 1957 com uma
menina negra, Dorothy Counts, de 15 anos, recebida com

3|4
vaias em um colégio majoritariamente de brancos —, há
curvas sinuosas. No ano passado, a Suprema Corte, de
maioria conservadora, decidiu banir a política de cotas
das instituições de ensino. Entre os americanos, porém,
tanto tempo de compensação (desde meados da década
de 1960) autoriza o abandono da regra, com a emergên-
cia de uma classe média negra consolidada com a ajuda
das cotas.
O Brasil parece ainda viver no passado, em flagrante
atraso. O ideal, a rigor, seria a inexistência das políticas
compensatórias — solução provisória para abrandar as de-
sigualdades. Sua implantação é expressão do terrível dese-
quilíbrio étnico e social do país. As cotas, raciais ou so-
ciais, são, portanto, atalho para desatar um triste (e históri-
co) nó. O desejável é que elas sejam temporárias e, em seu
lugar, abram-se escolas de qualidade para todos, negros e
brancos, pobres e ricos, de modo que as oportunidades se-
jam iguais para todos — e o mérito de cada um, apenas o
mérito, torne-se a medida do triunfo individual. Infeliz-
mente, estamos longe desse tão sonhado momento. ƒ

4|4
ENTREVISTA SIMONE TEBET
RUY BARON/BARONIMAGENS

NÃO É SÓ A
ECONOMIA
A ministra fala do desafio de cumprir a meta de
déficit zero, rebate a versão de que o impeachment
de Dilma Rousseff foi golpe e diz que a pauta de
costumes será decisiva em 2026

LARYSSA BORGES

1 | 10
RESPONSÁVEL dentro do governo por controlar com
mão de ferro os gastos públicos, a ministra do Planejamen-
to, Simone Tebet, se equilibra entre um governo de centro-
-esquerda, ao qual aderiu na construção de uma frente am-
pla para frear as chances de vitória de Jair Bolsonaro, e as
próprias convicções liberais, forjadas ao longo de 35 anos
de carreira pública em um estado conservador e eleitor pre-
ferencial do ex-presidente. Essa aliança mudou a vida da
ex-senadora, que precisou usar disfarce para andar nas ruas
de Mato Grosso do Sul sem ser hostilizada. Com a meta de
sanear as contas públicas e pavimentar um cenário fiscal
favorável ao projeto de Lula para um quarto mandato, Te-
bet diz que, diante do alto grau de calcificação dos interes-
ses do eleitor médio, um cenário econômico favorável, co-
mo o registrado recentemente em relação aos índices de in-
flação e desemprego, não pode mais ser tratado como re-
ceita certa para o sucesso eleitoral, inclusive para uma
eventual reeleição do petista. Em um momento em que
pesquisas de opinião mostram queda na popularidade pre-
sidencial mesmo com boas variáveis econômicas, a minis-
tra afirma que a pauta de costumes terá papel crucial na es-
colha de quem governará o país a partir de janeiro de 2027.
“No mundo polarizado, só economia não ganha eleição.” A
seguir, os principais trechos da entrevista.

A senhora tem como missão enxugar o orçamento, o


que sempre é uma tarefa complicada e impopular. Co-

2 | 10
mo lida com isso? O Brasil tem de parar de olhar pelo
retrovisor e começar a trabalhar para o presente. Em um
país desigual como o nosso, que ainda não saiu do mapa
da fome, temos diversas maneiras de revisar o gasto sem
ter de cortar políticas públicas. Veja o caso dos precató-
rios: no orçamento, temos 60 bilhões de reais para inves-
tir e 90 bilhões em dívidas com precatórios, ações que
tramitaram anos e anos na Justiça, que embutem juros,
honorários advocatícios, custas processuais. São, em
muitos casos, causas que já nascem perdidas. Ora, por
que não antecipar e bater o martelo em questões em que
já sabemos que vamos ser derrotados? Só isso já geraria
uma economia de bilhões de reais.

“A economia não ganha eleição


nessa polarização. Sem economia
não há reeleição, mas só ela não
é suficiente. Há um elemento
novo, a pauta de costumes. Isso
deve ser levado em conta”
3 | 10
Com uma regra fiscal rigorosa e a meta de déficit fis-
cal zero, cortar despesas não é uma exigência? Con-
tinuo defendendo a meta zero até o final. A regra fiscal
empodera a avaliação de políticas públicas porque faz
cada ministério sair da zona de conforto para que gaste-
mos bem os recursos que temos. O problema não é gas-
tar muito, é gastar mal. Houve fraude em alguns progra-
mas no governo passado e ainda estamos investigando
se tem mais. Estamos procurando no INSS, em paga-
mentos de seguro-defeso, em cadastros do Bolsa Famí-
lia. Temos de enfrentar não só os erros do passado, mas
as políticas que já foram boas e estão sendo ineficientes
neste momento. Estamos atacando em todas as frentes.

Como a senhora, ex-senadora, tem lidado com as pres-


sões políticas? Não sofro pressão. Pelo lado da equipe
econômica, até para que não tenhamos de fazer contin-
genciamento nem bloqueio e possamos aplicar os recur-
sos para investimentos públicos, tenho um apoio que eu
não esperava em torno da revisão de gastos. O ano pas-
sado foi o momento de repor políticas públicas, este ano
é o de discutir a eficiência e a qualidade do gasto, e o ano
de 2025 será o de analisar se essas políticas públicas es-
tão chegando na ponta, se merecem continuar, e se cer-
tos benefícios devem continuar indexados ao salário mí-
nimo. Será nesse momento, em 2025, que pode ser que
eu sofra mais pressão.

4 | 10
Há quem diga dentro do governo que é necessário discu-
tir o piso dos profissionais da educação e da saúde, o que
significa, óbvio, aumento de gastos. Eu não discuto isso
por uma razão muito simples: não passaria nunca no Con-
gresso. Mas temos condições de discutir, por exemplo, como
é aplicado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica. Hoje, 50% dos problemas de qualidade do
ensino fundamental estão relacionados à qualidade do pro-
fessor. Os recursos do Fundeb podem ser usados para incen-
tivar jovens talentos a seguir a carreira do magistério. Por
que não usar o dinheiro para custear bolsas para quem tem
nota acima da média no Enem? Isso permite colocar um
professor bem preparado em sala de aula. Podemos, dessa
forma, mudar a realidade da educação no Brasil em quatro
anos. A qualidade do gasto público é uma obsessão do Mi-
nistério do Planejamento.

Se o foco é arrumar as contas públicas, como cumprir a


promessa de campanha do presidente de isenção de
imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais? Te-
mos de escolher batalhas. Aprovamos a reforma tributá-
ria do consumo, mas ela precisa ser regulamentada em
2024. Corretamente, o ministro Haddad entendeu que
não dá para mandar imediatamente para o Congresso um
projeto de lei mexendo na renda. É uma questão de cro-
nograma. O presidente ainda tem três anos para cumprir
essa promessa.

5 | 10
Mudou de opinião em relação à autonomia do Banco Cen-
tral? Sou a favor da autonomia do Banco Central, que é
garantia de estabilidade e credibilidade, mas talvez precise-
mos avaliar se é o caso de o presidente do BC ser indicado
por um presidente e ficar dois anos no governo do sucessor.
Pode ser interessante fazer uma pequena alteração: um ano
com um período de transição.

Na campanha de 2022, a senhora se apresentava como a


candidata que poderia pacificar o país. Se eleita, teria
feito algo diferente do que o governo Lula faz hoje? A
realidade é que temos um presidente democraticamente
eleito em uma frente ampla. Infelizmente, a polarização e a
visão ideológica de parte do Congresso atrapalham a go-
vernabilidade. Muitas vezes a parte econômica anda a pas-
sos mais lentos em função de a oposição sempre trazer o
viés ideológico para o processo. A lua de mel entre o Con-
gresso e o governo a gente sabe que acabou, mas a equipe
econômica aprendeu a dialogar. O presidente também está
vindo para a mesa de conversas e negociação. Vai viajar pe-
lo Brasil e fazer menos viagens internacionais. Os resulta-
dos estão aí. Estamos indo bem.

A senhora vem de um dos estados mais bolsonaristas da


federação. Aderir ao governo Lula foi uma boa deci-
são? O ano de 2023 foi muito difícil para mim. Era difícil
andar na rua, era difícil descer em um aeroporto, era difícil

6 | 10
andar no elevador do meu prédio. Sinto o ambiente mais
tranquilo, apesar de o centro estar espremido pela polari-
zação, e o centro ideológico ainda mais. Se o país não está
pacificado, o ambiente agora pelo menos está mais civiliza-
do. Talvez até por medo da Justiça, porque agora os extre-
mistas sabem que não podem caluniar, difamar ou agredir
qualquer cidadão, seja autoridade ou não. Hoje já consigo
sair sem boné e óculos escuros no meu estado.

Algumas lideranças importantes do MDB já se articulam


visando a uma aliança com o PT em 2026 para a disputa
da reeleição de Lula. É uma boa estratégia? Não adianta
ser vice para perder a eleição. O vice do presidente Lula
tem de ser alguém que possa ajudá-lo a ganhar a disputa. A

“Dilma é uma pessoa honesta,


mas o processo de impeachment
é baseado em uma lei que define
como crime de responsabilidade
a contabilidade criativa e a
pedalada fiscal”
7 | 10
pesquisa é quem vai dizer se o MDB pode ter essa função.
Não será uma eleição simples. A economia vai estar bem,
mas se há um recado que precisamos entender é que só a
economia não ganha eleição neste país polarizado. En-
quanto houver polarização, ainda que em menor grau, a
economia é apenas a base. Sem economia não há reeleição,
mas só ela não é suficiente. Hoje há um elemento novo, que
é a pauta de costumes. Isso tem de ser levado em conta.

A senhora vê clima político para a aprovação no médio


prazo de uma anistia via Congresso para os condenados
pelo 8 de Janeiro ou mesmo para o ex-presidente Bolso-
naro? O Congresso Nacional é movido a rua e, fora algu-
mas bolhas muito pontuais, não consigo ver pessoas na rua
pedindo por uma anistia. Houve um movimento significa-
tivo na Paulista, ninguém nega, mas estamos falando de
um universo de 205 milhões de brasileiros. As pesquisas
mostram que a popularidade do ex-presidente Bolsonaro
caiu drasticamente, e ele não tem maioria para chegar a
convencer o Congresso de uma pauta como essa. Quem
quer que atente contra o Estado democrático de direito
precisa ser punido nos rigores da lei, seja ele financiador,
agente político ou massa de manobra, como lamentavel-
mente uns poucos foram.

Como defensora da equidade de gênero, a senhora acha


que este governo atende plenamente a essa pauta?

8 | 10
Não, e sei que o governo tem consciência disso. O presiden-
te Lula teve de fazer uma escolha diante da situação adver-
sa em que pegou o governo. Adversa na questão institucio-
nal, na relação com o Congresso Nacional e na polarização.
Temos um Congresso que exigiu mais ministérios. Ocorre-
ram as saídas de ministras mulheres porque o cenário era
adverso, mas podem ter certeza de que não foi uma vonta-
de política do presidente. O presidente precisou adequar
seus compromissos à realidade.

A senhora já foi chamada de golpista por ter endossado o


impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi um erro
afastar a presidente? Não. Ali nós tínhamos todos os ele-
mentos constitucionais. E não foi um erro quem votou con-
tra também. O que deu elementos de constitucionalidade
para o impeachment foram os aspectos jurídicos de crime
de responsabilidade, contabilidade criativa e pedalada fis-
cal, aliados ao fator político: uma economia em frangalhos.
Essas duas coisas provocam o impeachment de qualquer
pessoa, seja homem ou mulher, no Brasil. A presidente Dil-
ma é uma pessoa honesta. A questão é que o processo de
impeachment é baseado em uma lei que define como crime
de responsabilidade, entre outras coisas, contabilidade
criativa e pedalada fiscal.

Por ter apoiado o impeachment, a senhora não tem a


simpatia dos petistas. Ao aliar-se a Lula, atraiu a antipa-

9 | 10
tia do eleitorado mais conservador. Dá por encerrada
sua carreira política? Não, mas não tenho isso como pre-
missa na minha vida, não está no meu radar. Por tudo o que
eu representei na eleição majoritária e pelo reconhecimen-
to das mulheres de que nós podemos muito, de que mere-
cemos ser respeitadas, de que lugar de mulher é onde ela
quiser, tenho de ter a dimensão de que minha missão não
está cumprida. Vejo hoje o Brasil com muitas necessidades
e temos condições de ajudar tanto no aspecto social quanto
no civilizatório. Pode ser que eu precise não ser candidata
para cumprir uma missão. Mas não descarto nada.

O Brasil está preparado para ter novamente uma mulher


na Presidência? Espero que esteja. Tem de estar. ƒ

10 | 10
IMAGEM DA SEMANA

NA TRILHA DE JOSEF STALIN

A ENCRUZILHADA era clara, e as duas estradas levariam


a um mesmo destino: ou as eleições presidenciais da Rússia
seriam um jogo de cartas marcadas, fraudulento, ou então —
ainda que o sufrágio corresse dentro de lei — a população
seria enganada por outro tipo de mentira, a do nacionalismo
em torno da invasão da Ucrânia. Os dois movimentos,
simultâneos, elegeram o presidente Vladimir Putin para o
SEFA KARACAN/ANADOLU/GETTY IMAGES

1|2
quinto mandato no Kremlin. Ele venceu com 87% dos
votos. Ao fim do próximo período, e com direito a
reeleição, chegaria a 2030 com um recorde: mais tempo no
poder do que Josef Stalin — a quem se associa no panteão
dos ditadores. O bigodudo esteve no comando, entre 1924 e
1953, até morrer, durante exatos 29 anos e um mês. Putin
chegaria a trinta anos e sete meses. É tempo demais, retrato
do modo autocrático pelo qual manda e desmanda no país,
ancorado no clássico roteiro do déspota que pede socorro a
uma guerra para domar os cidadãos. Nas palavras de
Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura, o mundo não
percebeu que “Putin é como Hitler com novas tecnologias”.
Pôr o nome do Führer na mesa é recurso para provocar
discussões — mas a metáfora, nesse caso, é cabível. Basta
ver o que Putin reserva aos opositores. O chefe do grupo
mercenário Wagner, Yevgeny Prigozhin, que liderara uma
revolta, perdeu a vida em um acidente de avião mal
explicado. Alexei Navalny, o mais ferrenho adversário do
neoczar, morreu numa colônia penal no Ártico. Gélido,
Putin nega qualquer envolvimento nas duas situações. Quem
acredita no que ele diz? ƒ

Ernesto Neves

2|2
CONVERSA DANIEL TREISMAN
STEFANI DIANI

PSEUDODEMOCRACIA De Hitler a Orbán:


professor avalia evolução de autocratas

“A VITÓRIA DE TRUMP
SERIA BEM-VINDA
A DITADORES”
Autor de um livro que destrincha os tiranos do século XXI,
o cientista político americano comenta o impacto das
guerras e das redes sociais nos regimes autoritários e o
novo fôlego de líderes populistas

1|3
Em Democracia Fake (Editora Vestígio), o senhor e o eco-
nomista Sergei Guriev defendem uma ideia: as ditaduras
baseadas no medo deram lugar àquelas que manipulam
a opinião pública. Como as guerras atuais mexem com
esse cenário? Elas fornecem cobertura para que os tiranos
manipuladores se transformem em ditadores do medo. Essa
pode ser inclusive uma das razões para que iniciem os confli-
tos. As guerras são um sinal de fracasso. Se pudessem conti-
nuar a projetar uma imagem de competência, desviando a
atenção do povo e marginalizando seus rivais políticos, não
precisariam delas. No fim, esses governantes provocam uma
crise internacional para justificar a repressão interna. Ou, de
forma menos dramática, assustam os cidadãos com avisos
sobre inimigos externos. Em Israel, Benjamin Netanyahu es-
pera claramente que a guerra contra o Hamas o mantenha no
poder. Ele é um grande sobrevivente. Mas a própria guerra
expôs suas fraquezas e minou sua imagem.

As redes sociais são uma arma na mão de tiranias popu-


listas? São uma faca de dois gumes. Por um lado, os novos
ditadores usam essas ferramentas com habilidade para au-
mentar sua popularidade, controlar as narrativas políticas e
monitorar os oponentes. Por outro, percebem que as redes
sociais podem ser usadas contra eles. As mentiras e a cor-
rupção desses governantes tendem a ser expostas. Na Rús-
sia, o opositor Alexei Navalny publicou vídeos que foram
vistos dezenas de milhões de vezes, o que assustou o

2|3
Kremlin. É decepcionante que as grandes empresas respon-
sáveis por essas tecnologias não tenham feito mais para im-
pedir que líderes autoritários utilizem suas invenções para
espalhar mentira e medo.

O que será do futuro da democracia se Trump vencer as


eleições nos EUA? Se ele ganhar, tentará transformar uma
democracia numa ditadura baseada em manipulação. Duvi-
do que consiga, mas será um processo destrutivo se ele tiver
a chance de tentar. Uma vitória de Trump revigoraria outros
populistas mundo afora e faria Pequim e Moscou estourarem
champanhe. Seria bem-vinda a todos os tipos de ditadores —
e nada positiva para a democracia.

O que tem a dizer sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro,


acusado de tramar um golpe no Brasil? Golpes não combi-
nam nem com esse novo modelo de ditadura, ancorada na ma-
nipulação do público. Se tiver de usar as Forças Armadas, é
difícil se afirmar democrata e ser genuinamente popular entre
os eleitores. Parece que Bolsonaro esperava empregar sua po-
pularidade para centralizar o poder, como fez Viktor Orbán na
Hungria. Mas ele falhou. Perdeu força, e muitos brasileiros pas-
saram a resistir ao seu jeito de governar. Em democracias com
tradição, populistas de direita como Bolsonaro e Trump enca-
ram obstáculos. Às vezes vencem, mas nem sempre é assim. ƒ

Diogo Sponchiato

3|3
DATAS

ERIK S. LESSER/AP/IMAGEPLUS

CONSCIÊNCIA O primatólogo De Waal:


“Não podemos tratá-los como máquinas”

O MELHOR AMIGO
DOS ANIMAIS
Os bichos — a quem hoje a humanidade entrega cari-
nho e paixão — podem agradecer ao primatólogo holan-
dês Frans de Waal. Ao longo da história, a civilização es-

1|4
teve ancorada em uma máxima do filósofo alemão Imma-
nuel Kant (1724-1804): “O fato de que o ser humano con-
segue ter a representação do ‘eu’ o eleva infinitamente aci-
ma de outros seres na Terra”. De Waal mudou um tanti-
nho dessa percepção, a partir de estudos com macacos
bonobos. Direto ao ponto: animais também têm consciên-
cia de si mesmos — golfinhos e primatas se reconhecem
em espelhos. “Não podemos tratá-los como máquinas.
Tanto que hoje existem leis que os protegem, como as que
proíbem, nos Estados Unidos, testes com símios”, disse De
Waal a VEJA, em 2018.
Aliás, numa de suas obras mais conhecidas, A Era da Em-
patia (2009), ele mostrou, por meio de pesquisas, que a maio-
ria dos mamíferos tem habilidades cognitivas similares às dos
humanos. Em Política dos Chimpanzés (1982), fruto de um
estudo de seis anos, tinha revelado a capacidade da fauna de
constituir sociedades. Seus trabalhos — associados aos de no-
mes como a americana Dian Fossey (1932-1985) e a inglesa
Jane Goodall, ajudaram a consagrar descobertas que mos-
traram ao mundo como os animais, incluindo os domésticos,
expressam comportamentos e sentimentos que, no passado,
eram considerados exclusivamente humanos, como amar e
odiar. Sim, temos mais semelhanças com os bichos do mar,
do céu e da terra do que diferenças — e isso, em vez de nos
diminuir, só nos engrandece. De Waal morreu em 14 de mar-
ço, aos 75 anos, em Atlanta, nos Estados Unidos, em decor-
rência de câncer de estômago.

2|4
PARA SOLTAR A VOZ
Era uma vez um engenheiro de uma empresa de objetos
de consumo que cantava mal, mas muito mal mesmo. Ri-
dicularizado por amigos, ele teve um lampejo. E então, em
1967, o japonês Shigeichi Negishi pediu a um amigo sabi-
chão que desenvolvesse
um protótipo capaz de re-
produzir músicas instru-
mentais com um amplifi-
cador de microfone e uma
mesa de mixagem. O pri-
meiro produto foi um
cubo de 30 centímetros
de lado com um painel de
luzinhas coloridas que
acendiam ao ritmo da
melodia. Nascera, com
pompa e circunstância, o
karaokê. Da próxima vez
que você for cantar Pense
em Mim, de Leandro &
Leonardo, pense nele. Ne-
REPRODUÇÃO

gishi morreu aos 100


anos, de causas naturais, REI DA NOITE
em 26 de janeiro — mas a Negishi: inventor
notícia só foi divulgada do aparelho de
na semana passada. karaokê, em 1967

3|4
LEO MARTINS

CONHECIMENTO Pedro Herz, da


Livraria Cultura: lojas em todo o país

CARINHO PELOS LIVROS


O negócio começou com a mãe, Eva, idealizadora de uma
biblioteca circulante que funcionava na casa da família, em
São Paulo. O passo seguinte, depois do sucesso inicial, foi a
criação da Livraria Cultura, em 1969, comandada por Pedro
Herz e um irmão. A Cultura chegou a ter dezoito lojas em to-
do o país e mais de 9 milhões de livros no catálogo. Era pon-
to obrigatório de quem buscava conhecimento e atendimento
delicado, muitas vezes do próprio Herz. Mas o inchaço e al-
guns erros de gestão inauguraram uma crise sem fim. Em
2018, com uma dívida de 285 milhões de reais, a livraria en-
trou em recuperação judicial. A falência mostrou-se inevitá-
vel. Herz morreu em 19 de março, aos 83 anos. ƒ

4|4
FERNANDO SCHÜLER

CRENÇAS DE LUXO
“NOSSO PEDIDO é simples: nos imponham impostos”,
dizia o manifesto lançado por um grupo de milionários,
o Proud To Pay More, ou “Orgulho em pagar mais”, no
Fórum de Davos. Do grupo, fazem parte a herdeira da
Disney, Abigail Disney, o ator Brian Cox e outros baca-
nas. “Só em Davos”, pensei, uma ideia como aquela, dese-
jo de pagar mais impostos, faria sentido. O curioso foi ler
a justificativa. A ideia de que dar mais dinheiro aos go-
vernos transformaria uma “riqueza privada extrema e
improdutiva em investimento para o futuro democrático
comum”. Como assim? Esse pessoal não investe o pró-
prio dinheiro? Deixa embaixo de um colchão? Seus in-
vestimentos não geram empregos, novos negócios, novas
tecnologias? Se o sujeito tem alguns milhões sobrando,
por que não cria um fundo para investir em startups que
podem descobrir a cura para o câncer? Ou quem sabe um
fundo de endowment, com dinheiro aplicado no merca-
do, como fez, lá atrás, Andrew Carnegie, e financiar bol-
sas de estudos para quem não pode pagar a faculdade?
Essa turma de fato acredita na sabedoria dos governos
para “investir em nosso futuro”?

1|6
Ok, eles não são brasileiros. Não conhecem nossos políti-
cos. Nosso modelo de distribuir dinheiro do contribuinte via
emendas parlamentares, nossos 15 000 juízes ganhando
acima do teto do setor público. Talvez o Brasil seja realmen-
te uma exceção à regra, na política global. Quem sabe seja
isso. Essa ideia de “pagar mais impostos”, sem pensar em re-
formas e como o dinheiro é gasto, no mundo político, é
exemplo do que o psicólogo social Rob Henderson chama
de luxury beliefs, ou crenças de luxo. Henderson é persona-
gem improvável. Quando criança, morou no meio do lixo,
em Los Angeles. Pulou de casa em casa, como filho adotivo,
se meteu com drogas e por muito pouco não se perdeu. Um
dia fez o alistamento militar e deu sua virada. Conquistou
uma bolsa para Yale, depois para Cambridge. Hoje é respei-
tado, com textos no The New York Times. E com um deta-
lhe: ao contrário de muitos de seus colegas intelectuais que
dão receitas aos mais pobres, ele viveu, de fato, a vida dos
miseráveis. Na linguagem da moda, adquiriu um “lugar de
fala” para não engolir conversa fiada que soa bacana em um
auditório na Suíça ou em Boston, mas que na prática inferni-
za ainda mais os que pretensamente deveriam ser ajudados.
Henderson diz que as crenças de luxo vão tomando o lu-
gar dos bens de luxo, em nossa cultura. Por muito tempo, exi-
bir uma bolsa Birkin, da Hermès, era uma boa estratégia de
distinção. Hoje, funciona bem menos. Na cena pública, o que
gera distinção é a adesão a um certo tipo de retórica. Dizer
que “a família tradicional está superada”, como ele escutou

2|6
PROPOSTA No Fórum de Davos: “Nosso
pedido: nos imponham impostos”

de uma colega bacana, em Yale. Moça que havia sido criada


em uma boa família tradicional e que pretendia, ela própria,
criar a sua. Henderson sabia o quanto havia lhe custado ter
pulado de galho em galho, em meio a famílias desestrutura-
das, na sua formação. Percebeu como era fácil dizer alguma
coisa a custo zero, para si mesmo, ainda que complicada para
um bocado de gente. Na prática, um tipo de irresponsabilida-
de intelectual. Algo que ganhou força com a revolução digi-
tal. Com este mundo em que todos estamos conectados, sob
ISTOCK/GETTY IMAGES

3|6
“Para quem já está
com a vida ganha,
o tema do mérito
não faz diferença”
intensa vigilância, e onde tendemos a agir como “retóricos”.
Como pequenos políticos, tentando agradar a alguma au-
diência, fazendo “sinalizações de virtude”. Por estes tempos
me dei conta disso de um jeito um tanto cruel. Me deparava
com um “eu amo o SUS”, seguido de um coraçãozinho, na re-
de social de um sujeito que frequentava o Hospital Albert
Einstein, no terceiro espirro, enquanto um bom amigo de es-
cola, sem grana ou plano de saúde, esperava exatos quatro
meses e doze dias para iniciar seu tratamento no sistema pú-
blico, depois do diagnóstico de um câncer pesado.
Uma das crenças de luxo preferidas de Henderson é o de-
fund the police. A pregação feita pelos ativistas em regra mais
ricos e instruídos sobre retirar recursos das polícias. “Pessoas
vivendo em bairros seguros”, diz ele, “querem uma política
cujo resultado é tornar ainda mais vulneráveis os que vivem
em bairros de maior criminalidade”. No Brasil, meu exemplo
favorito é a defesa que nossa elite faz do sistema estatal de
educação, a “escola pública”. O modelo que defendemos, em

4|6
que colocamos o tal coraçãozinho, mas no qual, por nada
deste mundo, matricularíamos nossos próprios filhos. Hen-
derson vê algo semelhante no discurso contra a meritocracia,
uma “crença mais comum entre meus colegas em Yale do
que entre as crianças com quem cresci”. A lição: para quem já
está com a vida ganha, o tema do mérito não faz diferença.
Para alguém que “vem de baixo”, como Henderson, é a única
aposta. Ir atrás, buscar alternativas, como ele fez, com a car-
reira militar, depois com as bolsas, e por aí foi.
Crenças de luxo não são de esquerda ou de direita. Tem-
pos atrás, escutava de um simpático “libertário” a tese de
que não deveria existir nenhuma política social, nem mesmo
apoio público à educação. “O mercado resolve”, dizia ele. É
um tipo de crença de luxo, sem audiência. A vantagem da
esquerda vem de seu controle sobre o mundo da opinião.
Em Harvard, talvez o maior “centro de distinção” intelec-
tual do mundo, 75% dos professores são “progressistas”. Es-
tudo feito em 48 grandes universidades anglo-saxônicas,
que realmente podem irradiar prestígio intelectual a uma
ideia, mostra o mesmo quadro. Não é difícil entender por
que um empresário bacana pede para pagar mais impostos,
mesmo sabendo o que os políticos fazem com o dinheiro.
Ou que nossos parlamentares façam juras de amor ao SUS,
sem dispensar o plano de saúde do Congresso. Ou ainda que
uma intelectual diga, em um bom jornal, que o “capitalismo
é incompatível com a democracia”, ela mesma vivendo, feliz
da vida, em uma democracia capitalista, na Europa.

5|6
Não há nada ilógico nessa desconexão entre retórica e es-
colhas individuais. O mercado remunera bem as crenças de
luxo, ainda que elas envolvam um claro nó ético. Foi este o
tema do discurso de Max Weber sobre “A vocação da políti-
ca”, há 100 anos, sugerindo a ideia de uma “ética da respon-
sabilidade”. Uma ética daquele que não se deixa levar pela
“excitação estéril”, que está aberto a mudar de ideia, que
presta atenção às consequências que suas visões de mundo
produzirão. E que está disposto a fazer isto mesmo ficando
em minoria. Perdendo seu prestígio e, quem sabe, sendo
desconvidado de algum jantar elegante, em Davos ou em
São Paulo. Conheço gente assim. Talvez sejam eles que te-
nham descoberto um secreto sentido da ideia de luxo, que,
não tenho dúvidas, deveríamos cultivar. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
SOBEDESCE

SOBE
MARINA SILVA
A ministra do Meio Ambiente
conseguiu uma importante vitória na
luta pela preservação da Amazônia:
o primeiro bimestre registrou a
menor taxa de desmatamento da
floresta dos últimos seis anos.

EMBRAER
A empresa obteve lucro líquido
ajustado de 350,6 milhões de
reais no quarto trimestre de 2023,
55% a mais em relação a 2022.

CAETANO E BETHÂNIA
Em poucos dias, foram
comercializados mais de 80 000
ingressos na pré-venda para a
turnê dos irmãos artistas, que
começa em agosto.

1|2
DESCE
VALDEMAR COSTA NETO
Mais uma encrenca para o
cacique do PL: o MP solicitou a
inclusão do partido como réu em
uma ação civil que pede que os
envolvidos nos atos golpistas de
8 de janeiro sejam condenados a
pagar 100 milhões de reais.

PAULO MALUF
A Justiça da Suíça determinou
a devolução ao Brasil de 82
milhões de reais bloqueados
em contas bancárias ligadas
ao ex-prefeito de São Paulo.

JEJUM INTERMITENTE
Um novo estudo mostrou que a dieta
pode estar relacionada à morte por
doenças cardiovasculares.

2|2
VEJA ESSA
ELIJAH NOUVELAGE/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

“Eu preferiria que investíssemos na


preservação do planeta aqui
embaixo. A razão pela qual vamos
para o espaço é pela descoberta,
pelo conhecimento, não porque
vamos criar uma situação melhor lá.
Fomos feitos para este lugar e seria
bom que o preservássemos.”
BARACK OBAMA, ex-presidente dos Estados Unidos,
ao refutar a ideia de que habitar Marte um dia pode
vir a ser uma alternativa para a vidinha aqui na Terra

1|3
“Vocês não podem dormir com os caras da
indústria de combustíveis que estão
destruindo tudo.”
JANE FONDA, 86 anos, atriz e ativista, em palestra no festival
SXSW, em Austin, no Colorado

“Não deve ser surpresa que


eu não apoiarei
Donald Trump este ano.”
MIKE PENCE, vice de Trump durante os quatro anos de
presidência na Casa Branca

“O STF ajudou aenterrar a Lava-Jato.”


MARCO AURÉLIO MELLO, ex-ministro do STF, de 1990 a 2021

“Isso é um absurdo.”
MARINA HELENA, pré-candidata à prefeitura
de São Paulo pelo Novo, a respeito da hipótese
de ter sido confundida com a ministra Marina Silva, do
Meio Ambiente, nas pesquisas de intenção de voto

“Independentemente da minha
consciência de ser feminista,
somos todos machistas em desconstrução.”
DANIELLE WINITS, atriz

2|3
“Arte. É a minha
maneira de
me expressar
no mundo.”
TATIANA WESTON-
WEBB, surfista brasileira
que participará da Olimpíada
de Paris, ao definir sua
atividade esportiva

“O passado é
passado.”
LUIZA ERUNDINA, ao
lamentar a volta de Marta
Suplicy ao PT como candidata
a vice na chapa de Guilherme
Boulos, do PSOL, para a
prefeitura de São Paulo

“Me sinto mais sexy


agora, que tenho
alguns segredos e
algum mistério.”
PAMELA ANDERSON, 56
anos, a estrela canadense da
série S.O.S. Malibu

INSTAGRAM @TATIWEST

3|3
RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Nicholas Shores


e Ramiro Brites

Anatomia de um desastre
Citado na delação de Mauro Cid como um dos generais que
trataram do plano de golpe de Estado com Jair Bolsonaro,
Eduardo Pazuello tem outros motivos para se preocupar
no STF. Ele acaba de virar investigado por uma das tragé-
dias mais marcantes da pandemia: as mortes de pacientes
por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus.
GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO

SEM AR Pazuello: ele é investigado no


STF pela tragédia de Manaus na pandemia

1|6
Negligência fatal ro no caso das fraudes em
A investigação do caso che- cartões de vacina, a PF vai
gou ao STF e foi entregue a acelerar o caso das joias. Os
Gilmar Mendes, que já é re- investigadores irão aos EUA
lator do inquérito que apura reconstituir detalhes impor-
a negligência de Pazuello e tantes do esquema.
de Bolsonaro durante a pan-
demia de Covid-19. Todo o cuidado é pouco
Freire Gomes e Baptista Ju-
Perdas irreparáveis nior, os ex-comandantes
Uma apuração do Ministé- que barraram a trama gol-
rio Público identificou que pista na gestão Bolsonaro,
31 pessoas morreram por vivem agora com segurança
falta de oxigênio em Ma- reforçada.
naus nos dias 14 e 15 de ja-
neiro de 2021, quando o sis- Lata de lixo da história
tema de saúde colapsou. Se for banido da carreira mi-
litar por ser condenado por
Eles sabiam golpismo, Walter Braga Net-
Um documento da AGU ad- to perderá 22 condecorações.
mitiu que a gestão Pazuello
sabia do “iminente colapso do Dinheiro parado
sistema de saúde” do Amazo- Ricardo Lewandowski vai
nas dez dias antes da tragédia. cobrar dos governadores o
uso de 4 bilhões de reais li-
Rota do ouro berados pelo seu ministério
Depois de indiciar Bolsona- para investimentos em se-

2|6
gurança. A grana saiu, mas nário no Ministério da Saú-
não chegou na ponta. de de Nísia Trindade.

Sob sigilo Escola sem partido


Em plena pandemia, Cris- Num documento sobre o
tiana Prestes, uma empresá- Plano Nacional de Educa-
ria envolvida na compra ir- ção, o MEC resgata os ve-
regular de respiradores para lhos tempos de aparelha-
o Consórcio Nordeste, fe- mento ideológico do setor.
chou delação. O material se- O papelório acusa Michel
gue distante da luz do dia. Temer e Bolsonaro de pro-
vocarem “retrocessos na
Fim da linha agenda nacional”.
Dalva Sele, chefe de uma
ONG que delatou desvios no Cheiro de mofo
governo da Bahia, morreu O documento, apresentado
no ano passado, sem que ao setor privado de ensino,
suas revelações ganhassem a exalta a “presidenta Dil-
luz do dia. As três delações ma” e diz que Temer e Bol-
miravam figurões do PT. sonaro “acentuaram ações
neoliberais como expres-
Mais problemas sões hegemônicas do ideá-
O TCU acaba de abrir uma rio da extrema direita”. Co-
investigação para apurar ir- mo não poderia ser dife-
regularidades na gestão de rente, o texto do MEC re-
hospitais universitários, que gistra que Lula voltou para
possuem orçamento bilio- salvar a todos.

3|6
Graves acusações
Ex-titular da Lava-Jato, o juiz
Eduardo Appio prestou um
depoimento de seis horas aos
ROQUE DE SÁ/AGÊNCIA SENADO

investigadores do CNJ e aos


delegados que investigam
Moro no gabinete de Toffoli
ALVO Moro: delator pede a no STF.
Toffoli novo inquérito contra o
ex-juiz no STF Grampos secretos
Além de apontar desvios na in-
Mais um na fila vestigação, Appio revelou a
Um dos delatores da Lava- existência de um arquivo secre-
Jato, Júlio Camargo recor- to de grampos realizados du-
reu a Dias Toffoli, no STF, rante a Lava-Jato e, até hoje,
para trancar os processos mantidos ocultos na repartição.
que pesam contra ele na
Justiça. Diz que foi coagido Pode bater
por Sergio Moro. Detestado no Senado, Rui
Costa, diz Jaques Wagner, se-
Hora da vingança gue popular com Lula. “Recla-
Além de tentar sepultar os mam do estilo dele, mas quem
processos, Camargo pede a interessa está gostando”, diz.
Toffoli que abra um novo
inquérito contra Moro para Só no home office
apurar os supostos crimes Com o afastamento oficial de
do ex-juiz. Luciano Bivar, Antonio Rue-

4|6
da assumiu o comando do Thiago Pampolha, escalou
União Brasil. Jurado de mor-advogados pesos-pesados
para defendê-lo numa ação
te, não usará o escritório da
sigla. eleitoral que assombra a eli-
te política do estado. Bruno
Aleluia, irmãos Calfat, Sérgio Banhos e
Escanteado por Arthur Lira, Carlos Horbach têm a mis-
Alexandre Padilha tem se são de garantir sua candida-
dedicado a aproximar o go- tura em 2026.
verno da bancada evangélica
no Parlamento. Parada dura.
Para sair da crise
No sacrifício A Americanas reforçou o
Tabata Amaral derrubou um estoque de Páscoa. Além de
peso de academia de 20 qui- 11 milhões de ovos, acaba
los no pé. Vai usar bota orto- de comprar meio milhão de
pédica por duas semanas. coelhos de pelúcia da Chi-
na. As vendas já são 134%
A força do agro maiores do que em 2023.
Carlos Fávaro vai anunciar
um socorro a produtores afe- A volta da Sinha Vitória
tados pelo clima extremo: pa- O selo Temporalis, da Cita-
cote de crédito com mais par- del Grupo Editorial, lança
celas e juros mais baixos. nos próximos dias uma edi-
ção única de Vidas Secas e
Tripla proteção S. Bernardo, de Graciliano
O vice-governador do Rio, Ramos.

5|6
CAIO GIRARDI

REI Roberto Carlos: ex-empresário


conta histórias do cantor em livro

Emoções eu vivi
A Matrix Editora lança, em maio, o livro Dody Sirena — Os
Bastidores do Show Business. Por trinta anos, Dody foi em-
presário do rei Roberto Carlos, trabalhou com Julio Igle-
sias e trouxe ao Brasil nomes como Michael Jackson e Pa-
varotti. Na obra, ele vai revelar histórias inéditas — e sabo-
rosas — vividas com essas estrelas. ƒ

6|6
BRASIL EXCLUSIVO

AS DUAS FACES
DE MAURO CID
Enquanto suas informações ajudam a desnudar
a tentativa de golpe militar e comprometem
Jair Bolsonaro, o tenente-coronel, em conversas
gravadas a que VEJA teve acesso, detona o trabalho
da Polícia Federal e do ministro Alexandre de Moraes

ROBSON BONIN, LARYSSA BORGES


E MARCELA MATTOS

EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO

1 | 12
M
auro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bol-
sonaro, já prestou seis depoimentos à Polícia
Federal depois de assinar um acordo de cola-
boração premiada. Em troca de benefícios,
comprometeu-se a dizer a verdade. As revela-
ções feitas pelo tenente-coronel, que compartilhou da inti-
midade do ex-presidente durante os quatro anos de gover-
no, foram fundamentais para a elucidação da trama golpis-
ta urdida pelo seu antigo chefe, um grupo de assessores e
militares de alta patente. Graças às informações prestadas
por Cid, sabe-se hoje que a democracia esteve ameaçada
após as eleições de 2022. Sabem-se os detalhes dos planos
mirabolantes que foram traçados para não permitir que
Lula subisse a rampa do Palácio do Planalto. Sabe-se que
entre as sandices articuladas estava a detenção de adver-
sários políticos e juízes. As informações de Mauro Cid dei-
xaram Bolsonaro numa situação jurídica extremamente
delicada, a ponto de seus próprios apoiadores não descar-
tarem a possibilidade de uma prisão iminente. Deve-se ao
tenente-coronel, portanto, muito do que se descobriu e
muito do que ainda pode emergir da tentativa de golpe.
Nos bastidores, no entanto, quando os policiais saem e
ele volta para seu círculo mais íntimo, existe um outro
Mauro Cid. Depois de relatar que o ex-presidente discutiu
planos golpistas com os comandantes militares no Palácio
da Alvorada e que um deles chegou a colocar as tropas à
disposição para executar a missão, Mauro Cid tem dito a

2 | 12
pessoas próximas que suas declarações foram distorcidas,
certas informações tiradas de contexto e outras convenien-
temente omitidas pela Polícia Federal. VEJA teve acesso à
gravação de uma dessas conversas (os áudios de alguns
trechos estão disponíveis em VEJA.com). Nela, o ex-aju-
dante de ordens dispara petardos contra os agentes e con-
tra a investigação. Diz, por exemplo, que a polícia o pres-
sionou a relatar fatos que simplesmente não aconteceram e
detalhar eventos sobre os quais não tinha conhecimento. O
tenente-coronel afirmou que policiais o induziram a corro-
borar declarações de testemunhas e apontou um delegado
que o teria constrangido a reproduzir informações especí-
ficas, sob pena de perder os benefícios do acordo. “Eles (os
policiais) queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que
não aconteceu”, contou. “Você pode falar o que quiser. Eles
não aceitavam e discutiam. E discutiam que a minha ver-
são não era a verdadeira, que não podia ter sido assim, que
eu estava mentindo”, completou.
A gravação foi realizada na semana passada, depois que
Mauro Cid prestou depoimento à PF, na segunda-feira 11.
Na condição de colaborador e obrigado a falar a verdade,
ele foi ouvido por nove horas seguidas. Depois, em uma
conversa com um amigo, desabafou por quase uma hora.
“Eles estão com a narrativa pronta. Eles não queriam saber
a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa
deles. Entendeu? É isso que eles queriam. E todas as vezes
eles falavam: ‘Ó, mas a sua colaboração. Ó, a sua colabora-

3 | 12
ALVO
Moraes: responsável
pelo inquérito,
ministro recebeu
pesadas críticas
de Mauro Cid
RUY BARON

“O Alexandre de Moraes é a lei.


Ele prende, ele solta, quando
ele quiser, como ele quiser.
Com Ministério Público,
sem Ministério Público,
com acusação, sem acusação.”

4 | 12
ção está muito boa’. Ele (o delegado) até falou: ‘Vacina, por
exemplo, você vai ser indiciado por nove negócios de vaci-
na, nove tentativas de falsificação de vacina. Vai ser indi-
ciado por associação criminosa e mais um termo lá’. Ele fa-
lou assim: ‘Só essa brincadeira são trinta anos para você’.”
Cid disse que os delegados encarregados do caso só regis-
travam as informações que se encaixavam naquilo que ele
chama de “narrativa”. “Eu vou dizer o que eu senti: já estão
com a narrativa pronta deles, é só fechar, e eles querem o
máximo possível de gente para confirmar a narrativa de-
les. É isso que eles querem”, ressaltou.
Na conversa, o ex-ajudante de ordens também faz críti-
cas pesadas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos que apu-
ram a tentativa de golpe, a venda de joias do acervo presi-
dencial e a falsificação de registros de vacina, casos que têm
Jair Bolsonaro como investigado. O objetivo de tudo, segun-
do ele, seria pegar o ex-presidente. “O Alexandre de Moraes
é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele qui-
ser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com
acusação, sem acusação”, afirmou o tenente-coronel. Para
mostrar ao interlocutor que haveria uma filtragem das infor-
mações que são oficializadas pela PF, Cid fala de um supos-
to encontro entre o ministro e Jair Bolsonaro, que não ficou
registrado nos seus depoimentos. “Eu falei daquele encontro
do Alexandre de Moraes com o presidente, eles ficaram des-
concertados, desconcertados. Eu falei: ‘Quer que eu fale?’.”

5 | 12
RAFA NEDDERMEYER/AGÊNCIA BRASIL
ATAQUE Operação da PF: na conversa gravada, o tenente-
coronel diz que os investigadores conduzem seu depoimento

“Eles (Polícia Federal)


estão com a narrativa pronta.
Eles não queriam saber a verdade,
eles queriam que eu confirmasse
a narrativa deles.”

6 | 12
Na tentativa de se defender junto ao interlocutor, o ex-a-
judante de ordens ainda faz uma série de considerações so-
bre a condução dos processos. “O Alexandre de Moraes já
tem a sentença dele pronta, acho que essa é que é a grande
verdade. Ele já tem a sentença dele pronta. Só tá esperando
passar um tempo. O momento que ele achar conveniente,
denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende to-
do mundo.” Ouvindo a conversa, a impressão que se tem é
que há dois Cids diferentes na mesma pessoa — o colabo-
rador, cujas informações têm sido fundamentais para des-
nudar a tentativa de golpe, e o injustiçado, cujas palavras
estão sendo modificadas por policiais enviesados. Um de-
les, evidentemente, não diz a verdade.
Em setembro do ano passado, depois de passar 129 dias
preso, o ex-ajudante de ordens assinou um acordo de cola-
boração premiada com a Justiça. Ele se comprometeu a
contar o que sabia e, em troca, no final dos processos, caso
seja condenado, vai cumprir uma pena de, no máximo,
dois anos de prisão. Em seus depoimentos, Cid descreveu
pormenores de reuniões no Palácio da Alvorada, em que
Bolsonaro pressionou militares de alta patente a aderir a
um golpe de Estado, listou personagens — entre assesso-
res, políticos e integrantes das Forças Armadas — que
atuaram para anular as eleições presidenciais e explicou
como figuras hostis ao capitão eram desqualificadas e
transformadas em alvos a serem abatidos. A partir de tudo
o que relatou, autoridades que orbitavam Bolsonaro, in-

7 | 12
ISAC NÓBREGA/PR
REVELAÇÃO Bolsonaro e os chefes militares: no depoimento
à PF, ficou clara a movimentação para um golpe de Estado

“Você pode falar o que quiser.


Eles (os policiais) não aceitavam
e discutiam. E discutiam que
a minha versão não era a verdadeira,
que não podia ter sido assim,
que eu estava mentindo.”

8 | 12
cluindo o próprio ex-presidente, sofreram buscas ou pri-
sões no âmbito dos inquéritos conduzidos pelo ministro
Alexandre de Moraes. As informações prestadas por Cid
são, sem dúvida, a coluna vertebral da investigação sobre o
golpe — e mostraram-se verdadeiras.
Confrontados, os então comandantes do Exército, gene-
ral Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Bap-
tista Junior, confirmaram as reuniões em que foram discu-
tidos com o então presidente esboços de decretos que, entre
outras medidas, previam a instituição do estado de defesa e
do estado de sítio, instrumentos típicos de regimes de exce-
ção que autorizam que prisões sejam feitas sem ordem judi-
cial. Os dois oficiais também confirmaram que o almirante
Almir Garnier, à época comandante da Marinha, ao con-
trário deles, colocou as tropas à disposição de Bolsonaro —
informação importantíssima que chegou ao conhecimento
das autoridades por meio de Cid, que também revelou que a
empreitada golpista só não foi adiante porque o Alto-Co-
mando do Exército não apoiou. As declarações do Cid cola-
borador, que não pode mentir, estão documentadas e, na
última segunda-feira, 18, inclusive resultaram no indicia-
mento de Bolsonaro e mais dezesseis pessoas no inquérito
que apura a falsificação de certificados de vacina.
Longe dos depoimentos, porém, o comportamento de
Cid tem sido muito diferente. Aos amigos, ele procura
desmentir até informações que estão assinadas por ele
nos encontros com os investigadores. De acordo com sua

9 | 12
EVARISTO SÁ/AFP
RESULTADO 8 de Janeiro: os ataques
aos prédios públicos em Brasília foram a última
tentativa para subverter a democracia

“Eu vou dizer o que eu senti: já


estão com a narrativa pronta
deles, é só fechar, e eles querem o
máximo possível de gente para
confirmar a narrativa deles.
É isso que eles querem.”

10 | 12
fala na PF, pouco antes de deixar o governo, em dezem-
bro de 2022, Bolsonaro teria solicitado a Cid um docu-
mento atestando que ele e sua filha haviam sido vacina-
dos contra a Covid-19. O tenente-coronel, em sua colabo-
ração, confirmou ter recebido a ordem do ex-presidente
para produzir a falsificação — detalhe fundamental para
que o ex-chefe fosse indiciado no caso. Nas conversas
com os amigos, no entanto, Cid garante que nunca ouviu
tal determinação. Também afirma que nunca falou em
golpe de Estado ou na existência de uma minuta que su-
gerisse algo ilegal. Garnier, nessa versão adocicada, seria
apenas um bravateiro.
Na cultura militar, o delator é considerado um traidor,
um pária, alguém que não merece a farda que veste. Isso
talvez explique essa postura esquizofrênica de Cid. O me-
do também pode ter influenciado esse jogo duplo do ex-
ajudante de ordens. Desde que assumiu o papel de colabo-
rador, ele sofre ameaças pelas redes sociais e teme ser alvo
de algum atentado. Na conversa com o interlocutor, ele fa-
la sobre sua situação: “Quem mais se f. fui eu. Quem mais
perdeu coisa fui eu. O único que teve pai, filha, esposa en-
volvido, o único que perdeu a carreira, o único que perdeu
a vida financeira fui eu”. E também deixa escapar a má-
goa: “Ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida fi-
nanceira como eu perdi. Todo mundo já era quatro estre-
las, já tinha atingido o topo, né? O presidente teve Pix de
milhões, ficou milionário, né?”.

11 | 12
Para ter direito aos benefícios do acordo, a colaboração
do ex-ajudante de ordens precisa de efetividade — o que
ela já demonstrou. O prêmio será definido pelo ministro
Alexandre Moraes, mas só no final do processo. Na grava-
ção, Cid explica por que decidiu colaborar com a polícia:
“Se eu não colaborar, vou pegar trinta, quarenta anos. Por-
que eu estou em vacina, eu estou em joia...”. E faz uma pre-
visão: “Vai entrar todo mundo em tudo. Vai somar as pe-
nas lá, vai dar mais de 100 anos para todo mundo. Enten-
deu?”. O interlocutor parece concordar. O tenente-coronel
então conclui: “A cama está toda armada. E vou dizer: os
bagrinhos estão pegando dezessete anos. Teoricamente, os
mais altos vão pegar quantos?”. A pergunta não é difícil de
ser respondida. O Cid colaborador pode até escapar da pri-
são. Já o Cid que emerge da conversa com o amigo certa-
mente terá enormes problemas pela frente. ƒ

12 | 12
BRASIL PODER

ONDA CONSERVADORA
Os interesses por trás dos projetos que
criminalizam o uso de drogas, endurecem as
regras para a realização de aborto e restringem
direitos de criminosos DANIEL PEREIRA
RICARDO STUCKERT/PR

1|8
CHEFE DA CASA Ci-
vil no primeiro manda-
to de Lula, o petista Jo-
sé Dirceu, condenado à
prisão nos escândalos
do mensalão e do pe-
trolão, ainda é uma fi-
gura proeminente em
Brasília, como ficou
claro em sua recente
festa de aniversário,
prestigiada por inte-
grantes das cúpulas dos
três poderes. Um dos
NÃO É COMIGO Lula:
mais afiados analistas
popularidade em baixa
políticos do país, Dir-
e distância estratégica
ceu tem associado a
dos embates sobre a
queda de popularidade
pauta de costumes
do presidente da Repú-
blica e do governo a
uma série de fatores, mas sempre dá destaque à força do
conservadorismo e à capacidade da “extrema direita” de
usar determinadas pautas para espalhar “pânico moral” e
desgastar a gestão petista. Outros integrantes influentes
do PT concordam com essa análise e compartilham da te-
se de que Lula e a legenda estão perdendo o debate em te-
mas importantes para os adversários nas redes sociais. Há

2|8
MELINA D’LOURDES/ATO PRESS/AGÊNCIA O GLOBO

AFAGO Evangélicos: governo anunciou que


pretende ampliar isenção tributária das igrejas

consenso no diagnóstico. O problema está na dúvida so-


bre como reagir. Até agora, os governistas não definiram
nem um discurso nem uma estratégia eficientes para es-
tancar a sangria — entre evangélicos, por exemplo — e
evitar que bandeiras caras ao ex-presidente Jair Bolsona-
ro avancem no Congresso.
Com a esquerda em minoria no Legislativo, o conserva-
dorismo não tem encontrado dificuldade para prevalecer
em votações importantes, mesmo quando defende políti-
cas públicas consideradas controversas. Na quarta-feira

3|8
20, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que extingue
a saída temporária de presos em regime semiaberto, exce-
to, em casos bem específicos, para estudar (leia reporta-
gem “Com bala na agulha”). “O projeto não resolve a ques-
tão da segurança pública, mas é um primeiro e grande pas-
so no combate à impunidade”, disse o relator do texto, de-
putado Guilherme Derrite (PL-SP), que se licenciou do
cargo de secretário de Segurança Pública do Estado de São
Paulo só para participar da votação. Da tribuna, Derrite ci-
tou casos de presos beneficiados pela chamada saidinha
que cometeram crimes. Sua fala foi ponderada para os pa-
drões do bolsonarismo, que lançou mão do caso nas redes
sociais para acusar o governo Lula e o PT de defenderem
“bandido” e “vagabundo”. A questão não é tão simples e
objetiva assim, mas os governistas, com medo do desgaste
de imagem, não se esforçaram para fazer o debate de méri-
to. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-
CE), nem sequer fez uso da palavra e terceirizou a tarefa
para o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).
Autor do projeto original, apresentado em 2011, Pedro
Paulo discursou contra a restrição à saída temporária, ale-
gando que a medida dificulta a ressocialização de presos
do semiaberto. Afirmou ainda que, no feriado do Natal do
ano passado, apenas 5% dos beneficiados pela regra não
voltaram para a cadeia no tempo devido — e que, no esta-
do de São Paulo, só 0,23% cometeu algum delito durante
a saidinha. De nada adiantou. Os deputados aprovaram o

4|8
projeto em votação simbólica, que é adotada quando há
amplo apoio à iniciativa e os congressistas não fazem
questão de registrar seu posicionamento no painel eletrô-
nico. No Senado, no final de fevereiro, o placar final foi de
62 a 2. Na ocasião, o líder do governo na Casa, Jaques
Wagner (PT-BA), liberou os aliados de Lula a votar como
quisessem e disse que não sabia se o presidente da Repú-
blica vetará o texto. Com a segurança pública no topo das
preocupações da população, segundo pesquisa divulgada
recentemente pela AtlasIntel, a conveniência política pode
levar Lula — mesmo considerando a iniciativa uma espé-
cie de “populismo penal” — a sancionar a restrição à saí-
da temporária. O mandatário gostaria mesmo é de não li-
dar com pautas desse tipo, mas ele não terá descanso.
O Senado está prestes a aprovar uma proposta de
emenda constitucional (PEC) que criminaliza a posse e o
porte de qualquer quantidade de drogas. Assinada pelo
presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a PEC é
uma reação a um julgamento em curso no Supremo Tri-
bunal Federal (STF) que caminha para descriminalizar o
porte de pequena quantidade de maconha para consumo
próprio. Além disso, é uma das apostas de Pacheco para
se aproximar do eleitorado de Bolsonaro em Minas Ge-
rais, onde o senador deve disputar o governo estadual em
2026. “A descriminalização leva à liberação do consumo,
mas a droga continua ilícita. Você não vai encontrar ela
em mercado. Você não vai encontrar ela em farmácia. Só

5|8
existe o tráfico para poder adquirir. Portanto, descrimina-
lizar é fortalecer o tráfico”, declarou o relator, senador
Efraim Filho (União Brasil-PB), durante a votação na Co-
missão de Constituição e Justiça, na qual o texto também
foi aprovado em votação simbólica.
Como determina o regimento, a PEC já está em discus-
são no plenário, onde o resultado da votação é uma barbada.
Historicamente, o PT é simpático à descriminalização de
certas drogas e alega por exemplo que, com base nas regras
atuais, a polícia só prende usuários pobres e pretos, que, ao
serem encarcerados, trocam a condição de usuários pela de
mão de obra do crime organizado. O tema é polêmico, e Lu-
la, de novo, não quer o governo envolvido no debate. Depois
da última leva de pesquisas, finalmente caiu a ficha no Palá-
cio do Planalto sobre o peso da pauta de costumes. Esse é
um dos motivos pelos quais o presidente veta toda e qual-
quer iniciativa de flexibilização das regras de aborto legal.
No fim de fevereiro, a equipe da ministra da Saúde, Nísia
Trindade, divulgou uma nota técnica dizendo que não há li-
mite temporal para a interrupção da gravidez nos casos pre-
vistos em lei e, na prática, anulando uma decisão da gestão
Bolsonaro que permitia o procedimento apenas até 21 se-
manas e seis dias de gestação. O caso logo foi usado como
munição pelos bolsonaristas nas redes sociais, o que levou o
ministério a suspender os efeitos da nota técnica sob a justi-
ficativa de que não havia sido analisada por “todas as esfe-
ras necessárias” e pela consultoria jurídica da pasta.

6|8
INACIO TEIXEIRA/AP/IMAGEPLUS

SEM RESISTÊNCIA Presídios: Câmara dos Deputados


aprovou projeto que restringe a saída temporária de presos

Foi uma tentativa de conter danos, sobretudo entre os


evangélicos, segmento em que a reprovação ao trabalho de
Lula passou de 52% em outubro de 2023 para 62% em fe-
vereiro, segundo levantamento da Genial/Quaest. No elei-
torado em geral, a reprovação saltou, no mesmo período,
de 42% para 46%. Tendo como pano de fundo justamente
a queda na popularidade, Lula realizou na segunda-feira
18 sua primeira reunião ministerial neste ano. No encon-
tro, ficou patente a preocupação com o crescimento da re-
jeição entre os evangélicos. “Que a fé seja exercitada na

7|8
mais plena liberdade das pessoas que queiram exercê-la. A
gente não pode compreender a religião sendo manipulada
da forma vil e baixa como está sendo neste país”, declarou
o presidente. O discurso foi acompanhado de ação. No dia
seguinte, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre
Padilha, anunciou que o governo fechou um acordo com
líderes evangélicos para votar uma proposta de emenda
constitucional que amplia a isenção tributária das igrejas.
Na reunião ministerial, também houve a constatação
de que, como alertou José Dirceu, o bolsonarismo, ou a
extrema direita, está ganhando a guerra de narrativas nas
redes sociais, pegando carona em temas como criminali-
dade e drogas. Por isso, o presidente cobrou melhora na
comunicação do governo, com a produção de peças seg-
mentadas para públicos específicos. Em seus dois manda-
tos anteriores, Lula apostou em programas sociais e no
que chama de crescimento com inclusão social. Deu certo.
Ele deixou o Planalto, em 2010, como recordista de popu-
laridade. Na época, o país não vivia um clima de polariza-
ção tão cristalizada e radicalizada como agora, e a pauta
de costumes não tinha tanto peso. Hoje, o cenário é com-
pletamente diferente — e nele, como bem diz a ministra
Simone Tebet, em entrevista às Páginas Amarelas desta
edição, só a economia já não basta para garantir populari-
dade e sucesso eleitoral. O conservadorismo, apropriado
pelo bolsonarismo, tornou-se definitivamente protagonis-
ta no debate político. ƒ

8|8
MURILLO DE ARAGÃO

POPULARIDADE
E PRAGMATISMO
Os dilemas que o presidente
Lula terá de enfrentar

O RECENTE DECLÍNIO da popularidade do presidente Lula


(PT) acionou alertas dentro do governo, precipitando uma série
de reuniões de emergência. Circulam especulações até sobre a
possível contratação de um consultor de marketing para revisar
a estratégia de comunicação. As soluções propostas, por serem
convencionais, parecem pouco promissoras para mudar o atual
cenário. Diante dessa queda de popularidade, surgem questões
cruciais: como o governo pode recuperar o apoio perdido e
quais são as consequências dessa perda de apoio?
Vamos tentar desdobrar tais questões. Para começar, é
crucial entender que a perda de popularidade do presidente
Lula ocorre principalmente entre aqueles que não se identifi-
cam diretamente com ele, mas que o elegeram como uma
alternativa ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A distância
crescente entre esses eleitores e o presidente se deve, em
grande parte, à percepção de que as propostas do governo
pendem excessivamente para a esquerda, contrastando com
suas expectativas. Essa situação sugere que Lula, assim como

1|3
Bolsonaro fazia, pode estar falhando ao priorizar o diálogo
com seu círculo de apoio direto, em detrimento de uma abor-
dagem que poderia manter e até expandir sua base.
O presidente enfrenta um dilema: governar exclusivamente
para a sua base de apoio ou adotar uma postura mais abran-
gente e inclusiva. E o fato é que, sem uma mudança de estraté-
gia, o capital político de Lula pode se esgotar rapidamente.
Então, qual o caminho a seguir? A lógica sugere a segunda op-
ção, ou seja, uma governança voltada para o conjunto da socie-
dade, superando controvérsias e extremismos. Para isso Lula
precisaria, primeiro, reorganizar sua administração, focando
em resultados concretos e limitando a sua narrativa a aspectos
positivos. Seria desejável também manter as ações do governo
alinhadas às prioridades de desenvolvimento econômico e so-
cial, dentro de um quadro de responsabilidade fiscal. Além
disso, a comunicação deveria evitar abordagens puramente

“O fato é que, sem uma


mudança de estratégia,
o capital político de Lula
pode se esgotar
rapidamente”
2|3
mercadológicas ou populistas, tendo em vista alcançar um pú-
blico mais amplo, com uma visão holística da comunicação.
O que seria isso? Seria, basicamente, considerar que a co-
municação inclui um conjunto de iniciativas que vão desde o
simples diálogo até estratégias de divulgação das ações go-
vernamentais. As críticas a mercados, a elites e a supostas
conspirações internacionais já não têm o mesmo impacto em
um contexto de informação saturada. O público quer resulta-
dos objetivos e bem definidos. Outro ponto controverso refe-
re-se à ambiguidade ao defender a democracia no Brasil e ser
complacente com regimes autocratas. O governo também es-
tá devendo à população narrativas mais consistentes quanto
à segurança e à saúde públicas.
O presidente está em meio a escolhas de Sofia — um dilema
moral extremamente doloroso. Basicamente, Lula tem que es-
colher entre ser pragmático e organizado, estabelecendo pa-
drões de eficiência e entrega aos cidadãos, ou ficar preso a nar-
rativas que são caras a padrões ideológicos com os quais histo-
ricamente se identifica. Por fim, é sempre bom lembrar que
para ser um governo popular não é necessário que o presiden-
te seja populista. Basta que ataque os problemas que mais preo-
cupam os brasileiros. ƒ

3|3
BRASIL SAÚDE

CONTAMINAÇÃO
POLÍTICA
Recorde de casos de dengue abre nova crise sanitária
no país, vira arma da oposição a Lula e deixa a ministra
Nísia Trindade cada vez mais sob pressão
ADRIANA FERRAZ E BRUNO CANIATO

FAB

EMERGÊNCIA Hospital em Brasília:


1 000 atendimentos por dia

1|9
OS NÚMEROS assustam. Com 1,9 milhão de casos em
menos de três meses, o Brasil já registra hoje a maior epi-
demia de dengue de sua história — e a situação vai piorar.
Estima-se que, até dezembro, esse número supere a marca
de 4 milhões, aumentando ainda mais a dimensão da tra-
gédia. De janeiro pra cá, foram 656 óbitos confirmados e
há outros 1 025 em investigação. Nove estados — a maioria
no Sul e Sudeste — e o Distrito Federal decretaram situa-
ção de emergência. Na
capital nacional, um
hospital de campanha
atende quase 1 000 pa-
cientes por dia. Apesar
de ter atingido um pata-
mar inédito, a escalada
da doença não começou
agora. Nos últimos doze
anos, o Brasil registrou,
em méd ia , ma is de
1,1 milhão de casos por
ano e 7 000 mortos no
total. O número de víti-
TON MOLINA/FOTOARENA

mas do mosquito Aedes


aegypti chegou a recuar
FERIDA Nísia Trindade: em 2021, mas voltou a
choro em reunião após subir no final do gover-
cobrança do presidente no Jair Bolsonaro e iní-

2|9
cio do mandato de Lula (veja o quadro abaixo). Infelizmente,
as estatísticas alarmantes não serviram de lição para que o
país evitasse o atual cenário de descalabro.
Não bastasse a crise sanitária, as picadas do mosquito
abriram também uma ferida política. A alta de casos virou
munição para a oposição, que tenta tirar uma casquinha da
situação. No caso da ala bolsonarista, o caso virou uma es-
pécie de revanche (guardadas as devidas proporções) às crí-
ticas sofridas durante o combate ao coronavírus na gestão
do ex-presidente. Após anos desdenhando da vacina contra

MOSQUITO EM ALTA
A evolução dos casos de dengue no Brasil
e a preocupação com a falta de vacina

1,978
2,0
C A S O S (em m ilhõe s)

1,45 4

1,0

0,5

2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024*
*Até 21/3

3|9
a Covid-19, ironia das ironias, bolsonaristas agora exigem
celeridade na compra de imunizantes. Um dos membros
dessa claque é o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga,
pré-candidato à prefeitura de João Pessoa pelo PL e defen-
sor, durante a pandemia, da autonomia do médico para re-
ceitar cloroquina (sem eficácia comprovada) contra o vírus.
Agora, Queiroga diz que o governo esnobou as vacinas con-
tra a dengue e retardou a incorporação delas ao SUS. Além
disso, prossegue ele, em face do número ínfimo de doses ad-
quiridas, restringiu demasiadamente o público-alvo. “A mi-
nistra Nísia Trindade relativizou a importância da vacina na
contenção da epidemia”, escreveu Queiroga nas redes.

1200
MORTES

1000

6 56 6 56

400

200

2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024*
*Até 21/3

4|9
Independentemente do fato de esse tipo de crítica ser jus-
ta, o fato é que Nísia está cada vez mais no alvo. A coman-
dante da pasta da Saúde não recebe reprimendas só dos po-
líticos de oposição, mas do próprio Lula. Na reunião minis-
terial de segunda-feira, 18, a ministra se emocionou e, se-
gundo relatos, chorou após ser cobrada publicamente sobre
a escalada da dengue. O presidente se irritou, especialmente
com o fato de o governo ter passado a impressão de que ha-
veria vacina para todos. A ministra já enfrentava a artilharia

RR AP

AM PA MA RN
CE

PI PB
AC PE
TO
AL
RO
BA SE
MT
DF

GO
MG
E S TA D O S Q U E MS
ES
D E C R E TA R A M SP
EMERGÊNCIA RJ
PR
E S TA D O S Q U E
RECEBERAM SC
VA C I N A S
RS
Fonte: Ministério da Saúde

5|9
pesada do Centrão, que cobiça o seu cargo e a chave de um
cofre que tem 218 bilhões de reais por ano — e agora vê na
crise sanitária a oportunidade perfeita para convencer o go-
verno da necessidade de mudança.
Embora o bolsonarismo faça barulho nas redes, a pressão
política maior vem de outros agentes, mais qualificados. Re-
unidos em um consórcio, os governadores do Sul e Sudeste,
que decretaram emergência em todos os estados, emitiram
uma carta conjunta na qual pedem que a distribuição de va-
cinas “atenda a critérios transparentes pactuados com os en-
tes da federação” e a “atualização dos critérios de distribui-
ção de recursos federais para a realidade atual”. A chiadeira é
justa. Em meados de fevereiro, o ministério anunciou ajuda
extra de 1,5 bilhão de reais a estados e municípios, mas, se-
gundo a própria pasta, apenas 79 milhões de reais foram de
fato repassados. Parte dos pleitos foi atendida na quarta, 20,
em anúncio feito pela própria Nísia, que aceitou transferir as
doses não utilizadas até aqui — a adesão média da população
é de apenas 36% — para municípios que também decretaram
emergência dentro dos estados já contemplados. As cidades
com mais casos terão acesso a 300 milhões de reais para a
compra de medicamentos e soro, sob a promessa de agilida-
de. “Optamos por atender a demanda”, explicou a ministra,
sem esconder o fator político da decisão.
A polêmica em torno da vacinação ajudou a aumentar o
bombardeio político, mas a importância do imunizante é
bastante relativa na atual emergência. A única vacina dispo-

6|9
RICARDO RIMOLI/GOVERNO DO ESTADO DE SP
PRESSÃO Governadores do Sul e Sudeste: em carta, eles
cobraram mudança na política da gestão Lula contra a doença

nível no mundo é a Qdenga, fabricada pelo laboratório japo-


nês Takeda. Ela foi lançada no ano passado e tem disponibi-
lidade limitada. Foi aprovada pela Anvisa (Agência Nacio-
nal de Vigilância Sanitária) em maio de 2023 e incorporada
ao Programa Nacional de Imunizações do SUS em dezem-
bro, após um longo processo burocrático no governo. O Mi-
nistério da Saúde afirma ter adquirido todo o estoque possí-
vel para 2024 e 2025. Neste ano, receberá 6,5 milhões de
unidades, permitindo imunizar 3,2 milhões de pessoas em
esquema de duas doses — ou seja, apenas 1,5% da popula-
ção. Para 2025, além de dobrar a quantidade comprada da
Takeda, o governo aposta na disponibilização de uma vaci-
na pelo Instituto Butantan, cujo desenvolvimento está na fa-
se final. “A vacina é, sem dúvida, um avanço enorme nesse
controle, tendo em vista que estamos sendo ineficazes nas
demais estratégias. Mas não há expectativa, neste momento,

7|9
de que ela ajude no controle da doença em função da quanti-
dade disponível. Pressionar por vacinas agora é pura políti-
ca”, diz o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-
presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Sem o benefício de uma ampla cobertura vacinal, o po-
der público deveria ter se concentrado no que é sua respon-
sabilidade há tempos: barrar o mosquito. Segundo especia-
listas, todos os atores governamentais (União, estados e pre-
feituras) falharam, mas a maior cobrança pode — e deve —
ser feita ao governo federal. A transmissão da dengue é evi-
tada com rede de água e esgoto de boa qualidade, destina-
ção adequada do lixo e moradias seguras. São investimentos
caros, que requerem manutenção permanente, têm pouco
retorno eleitoral e exigem ações sistemáticas e interministe-
riais. Além disso, a União é a maior responsável pelo moni-
toramento da doença. “O mosquito não respeita fronteiras
municipais e estaduais”, afirma a médica especialista em
saúde pública Ligia Bahia, da UFRJ.
Dados da OMS indicam que a escalada da dengue é mun-
dial, impulsionada em grande parte pelo aquecimento glo-
bal. Em 2023, foram relatados 5 milhões de casos e 5 000
mortes em todo o planeta, sendo 80% nas Américas. O con-
trole adotado por Singapura, cidade-estado do Sudeste Asiá-
tico, é tido como referência. Ali, agentes de saúde têm aval
para vistoriar casas e ordenar que os moradores tomem me-
didas imediatas de erradicação, sob pena de multa. Outro
exemplo é o Chile, único país da América do Sul que não

8|9
PAULO PINTO/AGÊNCIA BRASIL
NO FRONT Agentes em ação em São Paulo:
cidade em situação de emergência

tem dengue, em especial porque o clima frio e seco na maior


parte do território leva o mosquito a se concentrar em áreas
portuárias. Na década de 1940, as autoridades identificaram
os focos de reprodução e implementaram campanhas de ex-
termínio com uso controlado de pesticida nos aquíferos, re-
sultando na erradicação do inseto no país em 1961.
Como se vê, o Brasil não aprendeu nada com as crises do
passado, tampouco tirou lições úteis desses bons exemplos do
exterior nessa questão. A complexidade das causas que resul-
taram no registro recorde de casos de dengue não comporta
cobranças políticas simplistas e oportunistas, mas também
não tolera nenhuma negligência com o trabalho básico que se
espera do poder público — e assim, em pleno século XXI, va-
mos perdendo a batalha contra um mosquito. Um vexame
que vai ganhando proporções cada vez mais trágicas. ƒ

9|9
NUNCA ANTES
NESTE PAÍS
Pela primeira vez, tudo indica
que um golpe não ficará impune

COISAS ESTRANHAS, nunca vistas na história deste


país, estão acontecendo. A Polícia Federal anda investi-
gando uma tentativa de golpe militar. Convocou oficiais
generais para dar depoimento. Em um inquérito que inves-
tiga oficiais generais. Que investiga ex-comandantes das
Forças Armadas. E os generais foram. Dois falaram. Acu-
saram outros oficiais generais. Inclusive um ex-comandan-
te da Marinha. Inclusive um ex-comandante do Exército.
Que foi ministro da Defesa.
Diante da ordem verbal para um golpe militar, o então
comandante da Aeronáutica se recusou a receber o plano e
retirou-se da sala e o então comandante do Exército aler-
tou o comandante-em-chefe das Forças Armadas (um mi-
litar) de que, se insistisse no plano, seria preso.
Enquanto isso... as Forças Armadas estão em silêncio.
Só quem fala é o presidente do Superior Tribunal Militar, o
brigadeiro Joseli Camelo (que é da ativa). E o que ele diz é
que é isso mesmo, que os militares que cometeram crimes

1|3
serão punidos pela Justiça comum. As Forças Armadas
não são Poder Moderador coisa nenhuma. Quem tem a úl-
tima palavra é o Supremo Tribunal Federal. E quem não
estiver satisfeito que vá se queixar ao bispo.
A tradição brasileira é que militares dão golpes quan-
do querem e, bem-sucedidos ou não, ficam sempre impu-
nes. Desta vez, a perspectiva é que os golpistas irão para
a cadeia para cumprir penas pesadas. Incluindo ao me-
nos quatro ou cinco oficiais generais e mais dúzia e meia
de oficiais de menor patente. Algo inimaginável até mui-
to recentemente.
É interessante que o cerco aos militares golpistas coin-
cida com o cerco aos assassinos de Marielle Franco — ou-
tro caso como nunca se viu.
Bolsonaro e o assassino da vereadora moravam no
mesmo condomínio. Um porteiro afirmou que o motorista

“Os ataques ao
Estado brasileiro,
resultantes de uma
cultura de impunidade,
precisam acabar”
2|3
Élcio Queiroz procurou o ex-presidente em casa no dia do
crime. O então presidente mandou a PF interrogar o assas-
sino e intimidar o porteiro (que sumiu). O bolsonarismo
desfechou contra Marielle uma das maiores campanhas de
fake news já vistas.
O ex-governador Wilson Witzel afirmou que Bolsona-
ro fez um acordo com seu sucessor, Cláudio Castro, para
barrar as investigações; as procuradoras abandonaram o
caso por “interferência externa”; a investigação só voltou a
andar quando Bolsonaro saiu do poder.
Ronnie Lessa menciona pessoas que ocupam cargos
importantes no Estado brasileiro, têm fortes conexões po-
líticas e grande capacidade de ingerência nas três esferas
de poder da República.
A tentativa de golpe de Estado e o assassinato de Ma-
rielle Franco têm mais em comum do que parece à primei-
ra vista: ambos ataques ao Estado brasileiro, resultantes de
uma cultura de patrimonialismo, autoritarismo, violência e
impunidade própria de um Estado pré-moderno. Uma cul-
tura que precisa acabar.
O avanço das investigações, nos dois casos, deve ser co-
memorado. Mas ele não prova que tudo está bem: a puni-
ção dos golpistas será apenas o primeiro passo na efetiva
profissionalização das Forças Armadas; a punição dos as-
sassinos será um passo importante no combate à promis-
cuidade entre o crime organizado e o Estado brasileiro.
Há um longo caminho à frente. ƒ

3|3
BRASIL SEGURANÇA
INSTAGRAM @ROTA_BTA

NA MIRA PM em São Paulo: políticos conservadores


apoiam o endurecimento

COM BALA
NA AGULHA
Em meio à onda de criminalidade, a bancada da
bala ganha comissões relevantes na Câmara e
alavanca a pauta que aumenta o punitivismo no país
VICTORIA BECHARA E VALMAR HUPSEL FILHO

1|6
QUANDO CHEGOU à Presidência em 2018, Jair Bolsona-
ro provocou uma onda eleitoral que levou ao Legislativo fe-
deral centenas de candidatos que carregavam não só o dis-
curso conservador nos costumes, mas também um olhar
para a área de segurança pública que prega o aumento da
força e do punitivismo como principal arma de combate à
criminalidade. Durante o governo passado, propostas desse
tipo foram apresentadas em grande quantidade, mas não
andaram porque não encontraram o necessário apoio no
Legislativo. O cenário, no entanto, começa a mudar. Em
meio à atual crise de segurança, a célebre bancada da bala
passou a dar as cartas no assunto, ao se estabelecer no co-
mando de duas das comissões mais importantes da Câma-
ra: a de Constituição e Justiça, com Caroline de Toni (PL-
-SC), e a de Segurança Pública, com Alberto Fraga (PL-DF).
A poderosa CCJ, aliás, era comandada até então pelo PT. Na
sua estreia na comissão, Caroline de Toni já priorizou proje-
tos para endurecer penas a quem comete crimes com reinci-
dência ou contra pessoas vulneráveis. “Uma boa parcela da
sociedade entende como necessárias as pautas que a gente
defende: de vida, liberdade, propriedade, defesa do agro”,
disse a deputada ao programa Os Três Poderes, de VEJA.
Embora algumas manobras regimentais possam retardar a
tramitação de algumas dessas pautas, a sensação é de que o em-
poderamento da bancada da bala será difícil de confrontar. Há
um pacote robusto em andamento nas duas comissões com
medidas mais duras no combate à violência — em contraste

2|6
com a agenda de direitos humanos que o governo Lula tenta
priorizar. Exemplos das medidas em discussão: elevar a pena
máxima de trinta para oitenta anos — o que, na prática, seria a
adoção da pena perpétua — e o fim de benefícios aos presos,
como as saídas temporárias, as progressões de regime e a remi-
ção de penas. Há, ainda, uma ofensiva contra movimentos de
esquerda, como os dos sem-terra, visando classificá-los como
terroristas ou permitir ao proprietário que recupere a fazenda
tomada com o uso da própria força (veja o quadro abaixo).
Acenar ao cidadão acuado pelo aumento da criminalida-
de é algo que movimenta a classe política, ainda mais em
ano eleitoral. “O atual modelo de segurança não está funcio-

DIREITA, RESTRIÇÃO
ÀS DROGAS

VOLVER! Proposta de autoria do


presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco
As apostas (PSD-MG), apoiada pelos
da bancada parlamentares do centro à
conservadora direita, prevê a
na área de criminalização da posse
segurança de qualquer quantidade de
pública droga – ela já foi aprovada
na CCJ da Casa e agora
vai ao plenário

3|6
nando”, afirma Alberto Fraga. No início do mês, os coman-
dantes dos estados do Sul e do Sudeste, reunidos em um
consórcio, firmaram um pacto regional que propõe o endu-
recimento das leis penais. Outro exemplo que ilustra bem o
apelo da pauta é o do projeto que acaba com as “saidinhas”
de presos. A iniciativa andou — já foi aprovada no Congres-
so — porque foi bancada por governadores como Tarcísio de
Freitas (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais) e Ronaldo
Caiado (Goiás), todos potenciais presidenciáveis em 2026.
O alvoroço em torno do fim da saidinha foi tão grande que
Guilherme Derrite, secretário da Segurança Pública de São
Paulo, mesmo no olho do furacão por conta das críticas que

TRANCA PENAS
FECHADA MAIS DURAS
Bandeira apoiada por Projetos visam ao aumento
governadores de de penas para alguns
centro-direita, a restrição à crimes, como estelionato
saída temporária de presos para fins de exploração
foi aprovada no Senado e na sexual, violência contra
Câmara, em uma importante mulheres e crianças, tráfico
vitória da oposição no de pessoas e golpes
Congresso. Agora, vai para praticados contra
o presidente Lula, que terá vulneráveis (idosos, crianças
quinze dias para decidir se ou pessoas com pouca
sanciona ou não o projeto instrução educacional)

4|6
vem recebendo pelo saldo macabro dos enfrentamentos da
PM com o crime organizado na Baixada Santista (mais de
quarenta mortes desde o começo do ano), pediu licença do car-
go e voltou à Câmara para retomar o papel de relator do proje-
to. A proposta inicial, de 2011, promovia apenas mudanças nas
regras, como a previsão de monitoramento por tornozeleira
eletrônica. Segundo o texto aprovado no Senado, que é bem
mais radical, o benefício fica restrito aos presos em regime se-
miaberto que frequentem curso supletivo profissionalizante ou
de instrução do ensino médio ou superior. Na quarta 20, a Câ-
mara aprovou o texto em votação simbólica. Agora o projeto
será submetido à sanção (ou veto) de Luiz Inácio Lula da Silva.

MENOS CAMPO
BENEFÍCIOS MINADO
Propostas limitam as Pacote capitaneado pela
atenuantes por condenados, bancada ruralista visa
como a fixação de pena transformar invasão de
mínima de 25 anos a ser terra em crime de
cumprida em caso de três terrorismo, elevar a pena na
reincidências, o veto à hipótese de uso de violência
progressão para condenados ou grave ameaça e autorizar
a mais de trinta anos e o fim o dono da propriedade a
do direito à audiência de usar a própria força ou a
custódia no caso da prática ajuda policial sem
repetida de um crime autorização judicial

5|6
BRUNO SPADA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

GUINADA Caroline de Toni, à frente da CCJ:


colegiado era presidido pelo PT

O assunto chega à mesa do presidente num momento de-


licado, pois a atual crise de segurança afeta os índices de
aprovação do governo. Embora existam bons argumentos
em defesa da manutenção da saidinha, esse direito não é bem
entendido por grande parte da população — e casos de pre-
sos que voltam a cometer crimes nesse período colocam
sempre fogo ao debate. Se decidir vetar o projeto (o prazo de
apreciação é de quinze dias), além de bancar uma decisão
impopular, Lula irá bater de frente com a vontade do Con-
gresso, o que está longe de ser bom para um governo com
enorme dificuldade em sustentar uma base parlamentar. É
positivo que autoridades priorizem medidas para combater a
criminalidade, mas elas precisam ter amplo embasamento
técnico, de forma a se afastarem do simples apelo demagógi-
co. Não é apenas invertendo a bússola ideológica, da esquer-
da (dos “direitos humanos”) para a direita (da lei do “bandido
bom é bandido morto”), que o Brasil terá paz nessa área. ƒ

6|6
BRASIL ELEIÇÕES

CONFUSÃO
NA LARGADA
A seis meses da votação, disputa pela prefeitura de Curitiba
é marcada pela pulverização dos votos e pela intensa troca
de farpas nos bastidores, até dentro da mesma sigla
LAÍSA DALL’AGNOL
INSTAGRAM @EDUARDOPIMENTEL_

POPULARIDADE Ratinho Jr. e Pimentel:


a aprovação é o maior trunfo na eleição

1|6
O ELEITORADO de Curitiba tem uma tradição recente
de decidir rápido quem irá administrar a cidade. Desde
1992, quando passou a ter dois turnos nas eleições munici-
pais, em quatro oportunidades o eleitor liquidou a disputa
na primeira votação, inclusive na última, quando reelegeu
Rafael Greca (PSD) com 60% dos votos. Na disputa deste
ano, no entanto, pelo menos na largada, o cenário parece
diferente: nada menos que cinco pré-candidatos estão em-
patados tecnicamente, segundo levantamento divulgado
na quinta, 21, pelo Paraná Pesquisas. A esse congestiona-
mento incomum no grid de largada soma-se ainda o clima
para lá de quente — também inusual para Curitiba —que
tomou conta dos bastidores dos principais partidos nos úl-
timos dias, marcados por caneladas, não só entre adversá-
rios, mas até entre companheiros do mesmo partido.
A disputa se acirrou muito pelo fato de personagens re-
levantes terem mexido peças no tabuleiro. Uma das movi-
mentações que provocaram mais barulho foi a não filiação
do ex-governador Beto Richa, que decidira trocar o PSDB
pelo PL de Jair Bolsonaro. Pega de surpresa, a cúpula do
PSDB mandou avisar que não daria carta de anuência e
que, se ele fizesse essa movimentação, perderia o mandato
de deputado. No PL, a provável chegada gerou dedo na ca-
ra e gritaria. O ápice foi o vazamento de um vídeo — atri-
buído ao deputado estadual Ricardo Arruda (PL), pré-can-
didato à prefeitura e que agora corre risco de expulsão —
que mostrava Richa saindo do encontro com Valdemar

2|6
DISPUTA EMBOLADA
Veja como está a corrida pela prefeitura de Curitiba

EDUARDO PIMENTEL (PSD)


17,4%
LUCIANO DUCCI (PSB)
15,9%
BETO RICHA (PSDB)
14,5%
NEY LEPREVOST (UNIÃO BRASIL)
13,1%
DELTAN DALLAGNOL (NOVO)
11%
GOURA NATARAJ (PDT)
5,6%
PAULO MARTINS (PL)
4,9%
CRISTINA GRAEML (PMB)
2,8%
LUIZÃO GOULART (SOLIDARIEDADE)
1,9%
NENHUM/BRANCO/NULO
Fonte: Paraná
7,4% Pesquisas, feita entre os
NÃO SABEM/NÃO RESPONDERAM dias 15 e 20 de março. A
margem de erro é de 3,5
5,6% pontos percentuais

3|6
Costa Neto, chefe do PL, e Bolsonaro. Em meio ao barulho,
Richa desistiu de mudar de legenda, mas segue pré-candi-
dato. “Estava tentando construir um leque maior, com
mais tempo de TV, estrutura, militância e vereadores do
nosso lado. Foi quando vazaram o vídeo e azedou a situa-
ção”, diz o tucano que tentou bater asas, mas segue tucano.
Em uma sinalização de que até as rusgas são democrá-
ticas em Curitiba, na mesma semana o clima esquentou
pelos lados do petismo. Uma comissão nacional chefiada
pelo senador Humberto Costa (PT-PE) decidiu intervir no
diretório local para determinar que a decisão sobre a elei-
ção local seja tomada pela Executiva Nacional. A ideia é
sacramentar uma aliança com o ex-prefeito Luciano Ducci
(PSB), o que poderia resultar no apoio socialista a uma
eventual candidatura de Gleisi Hoffmann, presidente da si-
gla, ao Senado caso Sergio Moro (União Brasil-PR) seja
cassado pela Justiça. A intervenção despertou a fúria de
alguns petistas, como Zeca Dirceu (PT-PR), líder do parti-
do na Câmara e pré-candidato à prefeitura. “Fiquei saben-
do pela imprensa”, afirmou.
O personagem-chave da corrida, no entanto, não está
na esfera de influência do bolsonarismo e muito menos do
petismo. O governador Ratinho Jr. (PSD), cuja gestão é
aprovada por 75% dos curitibanos, apoia o vice-prefeito
Eduardo Pimentel, que é do PSD, também sigla de Greca,
que tem 73% de aprovação. Com esses padrinhos, ele apa-
rece numericamente à frente na pesquisa. A candidatura

4|6
PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO

ORDEM DE CIMA Gleisi e Humberto Costa:


o PT intervém no diretório local

dele pode atrair ainda o apoio do bolsonarismo, pois Paulo


Martins, que pleiteia a vaga, tem cargo na gestão de Rati-
nho e ainda pode disputar a eventual vaga de Moro — ele
ficou em segundo em 2022 e, caso o ex-juiz seja cassado,
assume o posto até nova eleição.
Outro embate curioso envolve os escombros da outrora
poderosa “República de Curitiba”, epíteto que a cidade ga-
nhou nos tempos da Lava-Jato. Após perder o mandato de
deputado por uma decisão do TSE, o ex-chefe da força-ta-
refa, Deltan Dallagnol, está no páreo curitibano graças à
Justiça Eleitoral, mas do Paraná. Ao julgar uma ação do
PT contra a inclusão de Dallagnol nas pesquisas, ela con-

5|6
cluiu que ele não está inelegível. Se for candidato, vai en-
frentar um dos caciques que a Lava-Jato mandou para as
grades — Richa foi preso duas vezes pela operação e viu
seu cacife entrar em declínio com a investigação.
Com várias candidaturas do centro à direita — herdei-
ras do lavajatismo ou do bolsonarismo ou apoiada na po-
pularidade de Ratinho e Greca, a esquerda acredita que
pode até vencer, algo que não consegue desde 2012, com
Gustavo Fruet (PDT) — o PT nunca governou Curitiba.
“Quanto mais esse campo estiver dividido, mais chances
a esquerda terá de levar uma candidatura ao segundo
turno”, acredita Angelo Vanhoni, presidente do diretório
municipal do PT.
Palco dessa disputa, Curitiba ganhou projeção nas últi-
mas décadas como um lugar de boas ideias urbanísticas, so-
ciais e ambientais que ajudaram a melhorar a vida no local.
Ela ostenta o quarto melhor IDH (Índice de Desenvolvimen-
to Humano) entre as capitais brasileiras e tem uma das mais
baixas taxas de homicídios entre grandes metrópoles. Para
decidir quem irá comandar a partir de 2025 uma cidade tão
pacata e organizada, o clima nunca foi tão quente. ƒ

6|6
BRASIL PARTIDOS

ALIANÇA EM RISCO
Depois de perder espaço no governo, o PSB se mobiliza
contra articulações que miram o posto
de vice-presidente na chapa que disputará a reeleição
de Lula em 2026 MARCELA MATTOS

PARCEIRO FIEL Geraldo Alckmin: desempenho até aqui mostra


que a parceria com o presidente está mais que consolidada

VALDENIO VIEIRA/SEAUD

1|6
PARA DERROTAR Jair Bolsonaro nas eleições de 2022,
o presidente Lula superou uma rivalidade histórica e for-
mou uma chapa com o ex-adversário Geraldo Alckmin
(PSB). A solidez da aliança sempre foi motivo de especu-
lação. Havia quem apostasse — e ainda há quem aposte —
que ela tem prazo de validade. Até aqui, os sinais apon-
tam na direção oposta. Logo após a vitória nas urnas, o
petista deu ao vice a missão de conduzir a transição do
governo e, na sequência, o pomposo Ministério de Desen-
volvimento, Indústria, Comércio e Serviços. No primeiro
ano de mandato, ocupado com sua agenda internacional,
o presidente entregou ao vice as chaves do seu gabinete
mais de quinze vezes. Em todas elas, sabedor das teorias
conspiratórias que rondam o governo, Alckmin cumpriu a
missão com extrema discrição, evitando até mesmo usar a
cadeira do chefe. Tanto do lado do presidente quanto do
vice são recorrentes os sinais de que a parceria está mais
do que consolidada — e será repetida em 2026. Falta ape-
nas combinar com os outros aliados.
De maneira nada discreta, o MDB, por exemplo, já se
articula para voltar ao centro do poder e quer fazer isso
usando a Vice-Presidência como escada em 2026, quando
é dada como certa a tentativa de reeleição de Lula. A ini-
ciativa seria apenas um passo rumo a 2030, quando o pe-
tista estará fora do páreo e a legenda poderia ocupar,
quem sabe, a dianteira em uma chapa presidencial. Ao
menos três emedebistas são cotados para encabeçar o

2|6
FÁTIMA MEIRA/AGÊNCIA ENQUADRAR/AGÊNCIA O GLOBO

ENCOLHEU França e Dino: o ex-governador perdeu o


Ministério dos Portos e o partido perdeu o Ministério da Justiça
LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL

3|6
projeto: os ministros Renan Filho (Transportes) e Simone
Tebet (Planejamento) e o governador do Pará, Helder Bar-
balho. “Não adianta ser vice para perder a eleição. O vice
do presidente Lula tem de ser alguém que possa ajudá-lo a
ganhar a disputa”, diz Tebet em entrevista nas Páginas
Amarelas de VEJA (leia “Não é só a economia”). Em ou-
tras palavras, o “Zero Dois” do presidente tem de ser al-
guém que lhe traga votos. E é justamente esse ativo que
alguns emedebistas juram ter de sobra, enquanto faltaria
popularidade a Geraldo Alckmin, derrotado na disputa à
Presidência por duas vezes e cuja carreira política era da-
da por encerrada até o início de 2022.
A intriga, claro, já chegou aos ouvidos do próprio vice-
-presidente, de seus assessores e da cúpula do seu partido.
A interlocutores, Alckmin costuma esquivar-se do assun-
to dizendo que esse “não é um problema posto”. Uma res-
posta mais contundente fica a cargo de Carlos Siqueira,
dirigente do PSB, legenda à qual Alckmin se filiou para
facilitar a composição com Lula. “É um assunto comple-
tamente fora de contexto. Mas, já que o MDB inventou de
fazer a reivindicação da vaga, é bom que o PT fique de
olho, porque a experiência com eles no passado não foi
das melhores. É bom lembrar do (Michel) Temer antes de
ficar falando disso”, provoca Siqueira, ao rememorar o
fantasma do impeachment de Dilma Rousseff. O líder so-
cialista chama a aliança Lula-Alckmin de “casamento
perfeito”. “O Alckmin veio para representar setores que o

4|6
INDIRETA Carlos
Siqueira, sobre desejo
do MDB: “É bom
lembrar do Temer antes
de ficar falando disso”
TON MOLINA/FOTOARENA

PT não tinha a confiabilidade nem representaria jamais —


nem representará”, afirma, citando o agronegócio e os
evangélicos, ambos apoiadores de Bolsonaro e mais refra-
tários a Lula. O partido, porém, está em estado de alerta.
Desde o início do governo, o PSB foi a agremiação que
mais encolheu na Esplanada. Dos originalmente três mi-
nistérios que comandava, restou, na prática, apenas o de
Alckmin. O Ministério de Portos e Aeroportos, antes co-
mandado pelo ex-governador Márcio França, acabou en-
trando nas negociações políticas e foi entregue a Silvio
Costa, do Republicanos. Restou a França, fiel aliado do
vice-presidente, uma secretaria transformada (só no no-
me) em ministério, o de Empreendedorismo. Já o ex-mi-
nistro da Justiça Flávio Dino, que era tido como a promes-

5|6
sa do partido para suceder Lula na Presidência, foi indica-
do para o Supremo Tribunal Federal — uma mudança es-
tratégica, dizem observadores da política, para tirar de
campo um forte adversário contra o PT em 2030.
Indiferente à cobiça pelo seu posto, Alckmin se mostra
cada vez mais à vontade no governo. Viaja pelo país re-
presentando o presidente, participa dos mais importantes
encontros com ministros e aproximou-se de petistas como
Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann. Na reunião ministe-
rial de segunda-feira 18, por exemplo, o presidente Lula
enviou um bilhete ao chefe da Casa Civil, Rui Costa, que
fazia um arrastado balanço do governo, clamando por
“mais entusiasmo”. Desconcertado, Rui Costa leu o reca-
do no microfone, e ao fundo avisaram que, na verdade,
Alckmin era o emissário do pedido — não era, mas troças
do tipo se tornaram comuns por parte do vice. Precavido,
o PSB já enviou recados aos aliados de que está atento aos
movimentos e que qualquer discussão sobre o futuro do
vice, além de extemporânea, é inconveniente, inoportuna
e pode gerar uma situação desagradável para um governo
que ainda nem chegou à metade. O aviso foi claro. ƒ

6|6
RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes,


Felipe Erlich e Juliana Machado
ENGIE BRASIL

IMPULSO Parque eólico da Engie: empresa


investirá 20 bilhões de reais no Brasil

Energia de sobra Vento e sol a favor


Em reunião realizada em O plano inclui a construção
Houston, nos Estados Uni- de um parque de geração
dos, Catherine MacGregor, eólica na Bahia e outros
presidente global da em- dois no Rio Grande do Nor-
presa francesa de energia te, de energia solar e eólica.
Engie, comunicou ao mi- Também prevê a instalação
nistro de Minas e Energia, de 1 000 quilômetros de li-
Alexandre Silveira, a inten- nhas de transmissão nos es-
ção de investir 20 bilhões tados da Bahia, de Minas
de reais no Brasil. Gerais e do Espírito Santo.

1|3
Sob os holofotes viços de energia no estado
O investidor Winston Ling, do Rio de Janeiro.
responsável por apresentar
Paulo Guedes a Jair Bolso- Reforma urgente
naro, está produzindo um Há alguns dias, o presidente
documentário sobre o tra- do Banco Central, Roberto
balho de Guedes no Minis- Campos Neto, mandou, por
tério da Economia. WhatsApp, uma mensagem
incisiva para um amigo:
Sem politicagem “Nós precisamos desespe-
Paulo Guedes garante que a radamente de uma reforma
produção terá viés estrita- administrativa e financeira”.
mente técnico e evitará, in-
clusive, citar o nome de po- Desconfiança
líticos — para o bem e para O receio de ingerência po-
o mal. O lançamento está lítica na Petrobras levou al-
previsto para este ano. guns gestores a montar po-
sições que ganham com a
Luz no fim do túnel desvalorização das ações
A Light prepara um plano — no jargão do mercado,
de saída do processo de re- optam por estar “vendi-
cuperação judicial, mas ele dos” nos papéis. “Por en-
ainda enfrenta resistência quanto, o assunto é ruído,
por parte de credores. O mas e se virar fato?”, co-
cerne da proposta envolve a menta um profissional de
manutenção pela compa- um grande fundo de inves-
nhia da concessão dos ser- timento multimercado.

2|3
Saúde em dia nas para pessoas físicas. A
A Vivo quer reforçar a startup tem 200 000 usuá-
atuação na área de saúde. rios pagantes.
Depois de comprar a star-
tup Vale Saúde no ano pas- Contas fechadas
sado, a operadora de tele- Uma pesquisa inédita do
fonia definiu uma nova es- Mercado Pago, braço finan-
tratégia para a plataforma ceiro do Mercado Livre,
que funciona como um aponta que 82% dos brasi-
marketplace de oferta de leiros estão planejando suas
serviços médicos. contas. E mais: 21% querem
dar entrada em um imóvel e
Novo foco 16% pretendem comprar
A ideia é oferecer os serviços um carro. ƒ
da Vale Saúde, que conta
com 3 000 clínicas parceiras, OFERECIMENTO
também para pequenas e
médias empresas, e não ape-

3|3
ECONOMIA AGRONEGÓCIO

UMA SAFRA RUIM


Depois de quebrar recordes em 2023, a agricultura
brasileira sofre agora com crédito caro e
condições climáticas desfavoráveis. O cenário é
difícil, mas o setor deve superar a má fase
LUANA ZANOBIA E PEDRO GIL

DE GRÃO EM GRÃO Produção agrícola:


a situação é pior para os pequenos agricultores

SILVIO AVILA/AFP

1|8
E
m dezembro último, a Justiça do Paraná homolo-
gou o plano de recuperação judicial pedido pela
Sperafico Agroindustrial, um dos mais tradicionais
grupos empresariais do agronegócio brasileiro.
Fundada em 1957, a empresa já atuou, com suces-
so, em diversas frentes do setor, incluindo venda de insu-
mos, plantio de soja, milho e trigo, produção de alimentos
para animais e administração de condomínios agrícolas,
para citar apenas alguns exemplos. Nos últimos meses,
contudo, diversos fatores associados fizeram com que a
companhia enfrentasse um ciclo inédito de dificuldades.
Perdas parciais da safra de soja, motivadas sobretudo pe-
los extremos do clima, e os juros altos, que encareceram o
crédito, foram decisivos para que as dívidas da Sperafico
alcançassem a marca de 1,3 bilhão de reais. Nesse contex-
to, a única saída encontrada pelos administradores foi re-
correr à recuperação judicial. “O momento é crítico, tudo
joga contra”, afirma Dilceu Sperafico, que foi um dos her-
deiros do grupo e deputado federal pelo PP do Paraná.
A história relatada é exemplo de uma situação que se tor-
nou comum recentemente. Segundo um levantamento feito
pela empresa de análise de crédito Serasa Experian, os pedi-
dos de recuperação judicial no agro avançaram no ano pas-
sado 535% ante 2022. “A velocidade com que essas solicita-
ções vêm aumentando é muito preocupante”, diz Marcelo Pi-
menta, chefe de agronegócio da Serasa Experian. Os alertas,
de fato, estão por toda a parte. “A onda de recuperação judi-

2|8
cial traz insegurança para o financiador”, disse Paulo Sousa,
presidente da americana Cargill, uma das maiores processa-
doras de soja, em evento realizado há alguns dias em São
Paulo. “Teve muito dinheiro novo entrando no agro brasilei-
ro nos últimos anos, mas isso também é um risco. É preciso
ter cuidado com o crédito.” O problema afeta a cadeia produ-
tiva. A John Deere, fabricante americana de tratores agríco-
las, suspendeu a produção por sessenta dias em sua fábrica
de Horizontina, no Rio Grande do Sul. De fato, a atividade
está mais fraca: o mercado estima que as vendas de máqui-
nas agrícolas cairão 11% neste ano em relação a 2023.

CRISE NO CAMPO
O crescimento dos pedidos de recuperação 47
judicial no setor
29
32

17
9
5 5 5 2 4
3
0

1º TRI 2º TRI 3º TRI 4º TRI 1º TRI 2º TRI 3º TRI 4º TRI 1º TRI 2º TRI 3º TRI 4º TRI
2021 2022 2023
Fonte: Serasa Experian

3|8
Sob diversos aspectos, o agronegócio brasileiro tem sido ví-
tima de seu próprio sucesso. O ano de 2023 ficou marcado por
diversos recordes quebrados pelo setor. A safra de 320 milhões
de toneladas de grãos foi a maior da história, enquanto as ex-
portações atingiram 166 bilhões de dólares, o nível mais alto
de todos os tempos. Não à toa, o PIB do agro representou 24%
da economia brasileira, consolidando-se mais uma vez como
um motor vital do país. Sem a força do campo, aponte-se, o
PIB do Brasil não teria crescido quase 3% em 2023.
Nesse contexto, muitos produtores apostaram alto demais,
acreditando que o desempenho extraordinário seria mantido
indefinidamente. Na expectativa de cres-
cer sem limites, houve quem con-
traísse crédito em excesso — estes fi-
caram “alavancados”, para usar um
jargão do mercado financeiro. Com a ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA

disparada da Selic, a taxa básica de


juros da economia, entre 2022 e
2023, os financiamentos se
tornaram mais caros, e
os níveis de endivida-

SOCORRO
O ministro Fávaro:
governo vai lançar
plano de ajuda aos
endividados

4|8
mento subiram. O resultado desse processo é a disparada do
número de solicitações de recuperação judicial, um movimen-
to que tem se intensificado nos últimos meses.
O estudo da Serasa indica que o cenário é mais alarmante
para os pequenos agricultores. Isso porque o levantamento
abrange os proprietários rurais que atuam como pessoas físi-
cas, sendo que muitos deles se enquadram na categoria de mi-
croempreendedores individuais (MEI). Eles, naturalmente, têm
menos fôlego para suportar as pressões trazidas pelo contexto
de custo mais alto e produção menor. Portanto, acabam sofren-
do mais. “Quando os produtores têm uma renda menor, sua ca-

PODERIO ECONÔMICO
30 A participação do agronegócio no PIB brasileiro
(em %)

25
24

18

15

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: Cepea

5|8
pacidade de investimento na próxima safra fica comprometi-
da”, diz Felippe Serigati, pesquisador de agronegócio da Funda-
ção Getulio Vargas. Na lógica econômica, se o setor produz me-
nos, os preços sobem. Tanto é assim que a inflação de alimen-
tos e bebidas foi de 2,95% em janeiro e fevereiro, mais que o
dobro do 1,25% medido pelo IPCA, o índice oficial de inflação
do país. Detalhe: os preços de alimentos indispensáveis como
feijão, arroz, batata e cenoura subiram acima de 10% em 2024.
Para lidar com o problema, o governo promete lançar,
nos próximos dias, uma linha de crédito do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de 2 bi-

ALIMENTO PARA O MUNDO


200
O aumento das exportações do setor
(em bilhões de dólares)
175
166
150

97
100

75

50

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: Ministério da Agricultura / AgroStat

6|8
lhões de dólares, voltada para
produtores rurais que tiveram
problemas na safra e perda de
rentabilidade. “A quebra de
produção acende uma luz no
mínimo amarela, se não ver-
melha, e exige a adoção de

CARGILL/DIVULGAÇÃO
providências rápidas”, disse o
ministro da Agricultura, Car-
los Fávaro. Uma alternativa RISCOS Paulo Sousa,
em estudo é a implementação presidente da Cargill:
de um pacote de ajuda que onda de insegurança
permita a renegociação de dí-
vidas e a extensão de prazos ao agricultor. De seu lado, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estuda reformular
o Proagro, programa de seguro rural bancado com subsí-
dios públicos. “O governo procura alternativas, mas demo-
ra a agir e o setor se desespera”, disse a VEJA Roberto Ro-
drigues, ex- ministro da Agricultura. O Banco do Brasil, lí-
der na concessão de crédito ao agronegócio, destinou 150
bilhões de reais em linhas de financiamento na atual safra,
8% a mais que no mesmo período anterior. “Encaramos
com naturalidade os ciclos da atividade rural, é um risco
muito bem administrado”, disse o banco em nota.
Por sua natureza, a atividade rural é cíclica e está sujeita
aos humores do clima e a eventos imprevisíveis, inclusive de
ordem geopolítica — como a guerra entre Rússia e Ucrânia,

7|8
DEERE & COMPANY
LINHA PARADA Trator da John Deere: com queda
de vendas, a empresa interrompeu a produção

que afetou a oferta de fertilizantes. Contudo, não é exagero


dizer que o agro brasileiro vive um freio de arrumação mo-
mentâneo. A safra 2024 indica que o cenário permanece di-
fícil, mas não se trata de uma terra arrasada. Longe disso.
De acordo com projeção da Companhia Nacional de Abas-
tecimento, a produção brasileira de grãos deverá chegar a
296 milhões de toneladas, uma queda de 7% versus o volu-
me colhido no ciclo anterior. Mas isso não poderá ser consi-
derado um resultado tão ruim: afinal, 2023 foi o ano dos re-
cordes. A despeito da fotografia atual, o vigor do agronegó-
cio é incontestável e os estudos olhando à frente indicam
que o potencial de expansão segue enorme. É só uma ques-
tão de tempo, novos recordes virão. Para alívio do Brasil —
e do mundo que precisa de alimentos. ƒ

8|8
ALEXANDRE SCHWARTSMAN

UMA PIADA
SEM GRAÇA
Projeções oficiais me fariam rir,
se não vivesse aqui

A PRIMEIRA piada de economista que ouvi, ainda calou-


ro, relatava a desventura de três náufragos: um físico, um
químico e um economista, na proverbial ilha deserta, tendo
como alimento apenas as latas de comida que salvaram do
navio. O problema, claro, era como abrir as latas para evitar
a morte por inanição. O físico propôs o uso de pedras, que
em alguns meses abririam as latas. “Tarde demais”, disse o
químico, que aconselhou o uso de água salgada para anteci-
par a abertura da lata, mas por pequena margem. Ao que o
economista, insatisfeito, sugeriu: “Supondo que tivéssemos
um abridor de latas, comeríamos agora mesmo”.
Não é muito engraçada, confesso, mas foi a primeira coi-
sa que me passou pela cabeça ao ler o recém-publicado Re-
latório de Projeções Fiscais, preparado pela Secretaria do
Tesouro Nacional, trazendo as previsões para o decênio
2024-2033. Como hipocrisia é a homenagem que o vício
presta à virtude, o relatório manteve a ficção de déficit zero
em 2024, embora até os tijolos da STN saibam que a mu-

1|3
dança da meta para este ano é questão de tempo; não agora
em março, mas provavelmente em maio ou julho.
Não é esse, porém, o maior problema. Em seu “cenário
base”, apesar de supor crescimento robusto do Produto
Interno Bruto, na casa de 2,5% ao ano, inflação próxima
à meta a partir de 2025 e consequente redução da Selic
para 7% ao ano em 2026, a STN projeta déficits em 2025
e 2026, equivalentes a respectivamente 0,5% e 0,4% do
PIB. Já a meta fiscal para esses anos requer superávits de
0,25% e 0,5% do PIB.
Daí a adoção de um outro cenário, dito “de referência”,
que presume receitas adicionais equivalentes a 1% do PIB
em 2025 (126 bilhões de reais) e 1,3% do PIB em 2026
(172 bilhões), além de um tanto mais em 2027 e 2028.
Neste caso teríamos resultados fiscais positivos e próxi-
mos à meta em 2025 e 2026.

“O Tesouro prevê
receitas crescentes e
dívida caindo até 2033.
Falta combinar com os
russos do Planalto”
2|3
Mais importante, a dívida do governo, que no cenário ba-
se cresceria ininterruptamente até 80% do PIB em 2026, se
estabilizaria já em 2025 perto de 78% do PIB, para então en-
trar em trajetória de queda persistente até 2033.
Vale dizer, o Tesouro Nacional recorreu ao velho abri-
dor de latas para “resolver” nosso problema de endivida-
mento crescente. Não conseguimos cortar gastos? Então
presumimos que — de alguma forma — as receitas au-
mentarão para cobrir o estrago e evitar que a dívida siga
em trajetória ascendente.
E noto que, além das receitas mágicas, as projeções da
STN também apelam a Hog warts no que diz respeito à
evolução das despesas. Sendo obrigadas a respeitar por
um lado a trajetória imposta aos gastos pelo “novo arca-
bouço fiscal” (que limita seu crescimento a 2,5% ao ano
além da inflação) e por outro a expansão dos chamados
gastos obrigatórios (previdência, funcionalismo, Bolsa-
Família, etc.) na casa de 2,7% ao ano, a STN prevê redu-
ção sem precedentes das despesas discricionárias: de
1,7% do PIB a 0,7% entre 2024 e 2033.
Falta combinar com os russos da Esplanada, principal-
mente os do Palácio do Planalto.
Pensando bem, o principal motivo de não ver muita
graça na piada dos náufragos é exatamente associá-la ao
país em que vivo. ƒ

3|3
ECONOMIA FINANÇAS

QUANDO É BOM
SER SÓCIO
No vácuo deixado pela Petrobras, ficou mais
difícil receber dividendos gordos no Brasil.
A fartura diminuiu, mas é possível encontrar boas
oportunidades no mercado JULIANA MACHADO

FARTURA Satya Nadella, presidente


da Microsoft: mais proventos em 2024

DAVID PAUL MORRIS/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

1|7
NÃO BASTA ser um gigante de tecnologia do Vale Silício,
nos Estados Unidos. A Microsoft também foi a maior pa-
gadora de dividendos do mundo em 2023, com a expecta-
tiva de mais distribuição de proventos aos investidores
neste ano, conforme revelação feita pelo presidente da
empresa, o indiano Satya Nadella. Trata-se de uma reali-
dade animadora para quem é acionista da companhia — e
bem diferente daquela que estão enfrentando os que apos-
taram nos titãs da bolsa no Brasil, como a Petrobras. Com
o vácuo deixado pela estatal, que anunciou recentemente
a decisão de não pagar dividendos extraordinários — uma
determinação do presidente Lula que contrariou o próprio
presidente da petrolífera, Jean Paul Prates —, ficou mais
difícil obter proventos gordos no mercado acionário brasi-
leiro. Mas não impossível.
O Brasil está entre as nações que mais distribuíram di-
videndos em 2023 na comparação com outros emergen-
tes, perdendo para a China e a Índia. No entanto, o volu-
me pago aqui diminuiu 40% ante 2022 devido principal-
mente ao corte de 10 bilhões de dólares da Petrobras e de
1,2 bilhão de dólares da Vale, além de uma pequena redu-
ção feita pela Ambev, segundo pesquisa da consultoria in-
ternacional Janus Henderson.
Nesse contexto, tanto Vale quanto Petrobras, pelo seu
tamanho, aparecem em boa parte dos portfólios de divi-
dendos dos analistas de mercado. Ainda assim, eles apon-
tam alternativas. Entre os nomes preferidos estão as insti-

2|7
MENOS DINHEIRO
NO BOLSO
Os dividendos anuais pagos
pelas empresas de capital aberto no
Brasil caíram 40% no ano passado
(em bilhões de dólares)

40
35
35

29
30

25
21
20

15
10
10
8

2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: Janus Henderson

3|7
TITÃS DO
MERCADO
As maiores pagadoras de
dividendos do mundo em 2023

VALOR PAGO
(em bilhões de dólares)

Microsoft
21
Apple
15
ExxonMobil
14
China Construction Bank
13
PetroChina
12

0 5 10 15 20 25

Fontes: Janus Henderson e B3

4|7
DOUGLAS MAGNO/AFP
CARTEIRA RECHEADA Tarciana,
presidente do BB: dividendo mantido

tuições financeiras, com destaque para o Banco do Brasil,


e empresas dos setores de energia e commodities. “O Ban-
co do Brasil é uma estatal, mas a governança parece bem
isolada de ruídos políticos neste momento”, afirma Ricar-
do Peretti, estrategista de ações da Santander Corretora.
Nas contas dele, o dividend yield a ser distribuído pelo BB
em 2024 será de 10% — o dividend yield é um índice que
mede a rentabilidade dos dividendos em relação ao preço
da ação na bolsa. Em termos simples: quanto maior o in-
dicador, melhor para quem busca rechear o cofre.
O BB também está presente na carteira recomendada
de dividendos do Itaú BBA, que privilegia companhias
com geração de caixa previsível e que têm, por isso, ca-
racterísticas defensivas no portfólio. A expectativa positi-

5|7
F. CARTER SMITH/BLOOMBERG/GETTY IMAGES
CORTE POLÊMICO Prates, CEO
da Petrobras: visão diferente de Lula

va dos analistas com os dividendos do BB é endossada pe-


la própria instituição. Após os eventos negativos da Petro-
bras, a presidente do banco, Tarciana Medeiros, negou
que haveria alteração na política de distribuição de pro-
ventos, que foram elevados de 40% para 45% do lucro em
2024 — uma ótima notícia para os rentistas.
Em outra frente, as apostas no setor de energia tam-
bém se aglomeram nas carteiras recomendadas dos ana-
listas. Entre as citadas, a Eletrobras é um dos destaques,
em especial pela avaliação de que as ações da empresa es-
tão subvalorizadas diante dos bons resultados no ano pas-
sado, além do avanço no programa de desinvestimentos e
redução de despesas, conforme destaca o banco BTG Pac-
tual. “Não é para 2024, mas gostamos da Eletrobras”,

6|7
afirma Peretti. “O dividend yield é menor, mas é uma em-
presa que tende a pagar mais dividendos no longo prazo
se houver venda de ativos e renegociação de dívidas.” O
setor de commodities também aparece entre os mais cita-
dos, na figura da própria Petrobras e da Vale. Especialis-
tas consultados por VEJA foram unânimes em mencionar
que o mercado parece dar o benefício da dúvida para a es-
tatal de petróleo, na esperança de que a empresa ainda fa-
ça um pagamento extraordinário de dividendos. Nos cál-
culos do mercado, se houver distribuição extra, o índice
da Petrobras poderá chegar a 15% do valor da ação, ver-
sus 9% caso o pagamento não ocorra.
Para a Vale, presente na maioria das carteiras dos ges-
tores, a maior preocupação é com a queda dos preços do
minério de ferro, o que pode afetar a lucratividade — e,
consequentemente, comprometer o dividend yield de
2024, projetado atualmente em 9%. Nesse caso, os olhos
se voltam para a China, a maior cliente da companhia. “As
perspectivas atuais são boas, mas tudo está condicionado
às políticas de crescimento chinesas”, diz Alex Nery, pro-
fessor da FIA Business School e pesquisador do tema.
Portanto, mesmo com a queda dos dividendos distribuí-
dos no Brasil, os investidores ainda encontram boas opor-
tunidades disponíveis no mercado. ƒ

7|7
INTERNACIONAL GEOPOLÍTICA

NÃO TOQUE NO
MEU TIKTOK
Usuários revoltados protestam contra projeto de
lei nos Estados Unidos que pode banir a rede
social em nome da segurança nacional
ERNESTO NEVES

AMEAÇA NO AR Manifestação em Washington:


americanos não querem perder o acesso ao TikTok

BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

1|4
J
á abriu seu TikTok hoje? Pode imaginar a vida sem
ele? Pois a ameaça pesa sobre a cabeça dos 170 mi-
lhões de americanos que acessam diariamente o apli-
cativo depois que a Câmara dos Deputados, em um
raríssimo consenso entre republicanos e democratas,
aprovou por 352 votos a 65 um projeto de lei que proíbe as
empresas de distribuir, manter ou atualizar aplicativos “con-
trolados por um adversário estrangeiro” — no caso, a China,
terra natal da dona do TikTok, a ByteDance, e rival dos Es-
tados Unidos na ferrenha batalha pela hegemonia global. A
briga está só começando e muitos vídeos de dancinhas ain-
da vão rolar na plataforma antes que o Congresso decida a
questão. E mesmo depois disso, se a lei for promulgada e im-
pedir o TikTok de existir tal qual o conhecemos, a Justiça
certamente será acionada para se pronunciar sobre o supos-
to atropelo da sagrada liberdade de expressão — ainda que
em prol da segurança nacional. A simples ameaça, porém, já
levou usuários revoltados às ruas, em manifestações ruido-
sas convocadas, claro, pela rede social.
O TikTok tem hoje 1,5 bilhão de usuários e é a quinta
maior rede social — um feito e tanto para uma plataforma
lançada internacionalmente há apenas sete anos (a campeã,
o envelhecido Facebook, com 3 bilhões, acabou de completar
duas décadas). Segundo seus detratores, entre eles o diretor
do FBI, Christopher Wray, e o presidente Joe Biden, que
anunciou assinar a lei se ela chegar à sua mesa (embora, ren-
dendo-se às exigências de campanha, tenha um perfil lá), o

2|4
CHIP SOMODEVILLA/GETTY IMAGES

VIRA-CASACA Trump: autor da ideia,


agora a favor “dos jovens”

aplicativo representa séria ameaça à soberania e aos interes-


ses dos americanos, por expor dados privados ao governo da
China, que também estaria manipulando as postagens.
O projeto, que está no Senado (aparentemente bem me-
nos propenso à sua aprovação), dá à Casa Branca o poder
de vetar plataformas de comunicação com mais de 1 mi-
lhão de usuários administradas fora do país. No caso do
TikTok, a ByteDance, gigante de tecnologia avaliada em
270 bilhões de dólares, teria 180 dias para vendê-lo a uma
empresa americana. Caso contrário, o TikTok seria remo-
vido das lojas de aplicativos. “A proibição, se acontecer, de-
ve resultar em uma piora da guerra comercial entre China
e Estados Unidos”, diz James Lewis, do Center for Strate-
gic and International Studies, de Washington.
O argumento para punir o TikTok é que ele não resguar-
da a privacidade dos usuários do tremendo sistema de pa-

3|4
trulhamento digital do Partido Comunista chinês. Pela mes-
ma razão, países como Austrália, Nova Zelândia, Reino Uni-
do e os próprios Estados Unidos já vetam o aplicativo nos
celulares de uso de parlamentares e funcionários públicos.
A máquina do PC também teria meios de, através do Tik-
Tok, manipular a opinião pública, espalhar fake news e in-
terferir em votações. Levantamentos apontam, por exem-
plo, que, desde o ataque do Hamas em Israel, os vídeos com
hashtags pró-Palestina ganharam muito mais visualizações
do que os favoráveis a Israel. Já tópicos sensíveis para o go-
verno chinês, como os protestos em Hong Kong e o massa-
cre na Praça da Paz Celestial, misteriosamente não apare-
cem na plataforma que ecoa tudo, a todo momento.
A primeira investida americana contra o TikTok aconte-
ceu durante o governo de Donald Trump, que, na sua furio-
sa ofensiva comercial contra a China, primeiro teve a ideia
de obrigar a ByteDance a vender a plataforma. Para apazi-
guar os ânimos, a empresa passou a armazenar dados de
usuários na americana Oracle e abriu uma subsidiária com
sede em Los Angeles. Agora Trump, com os olhos pregados
na eleição de novembro, mudou de tom: diz que “os jovens
ficariam malucos” com a proibição e que o TikTok tem fun-
ção importante na contenção do Facebook, para ele o verda-
deiro inimigo da nação. Em última instância, a ByteDance
certamente vai recorrer aos tribunais. Em suma: o caso po-
de se arrastar tanto tempo que, quando for decidido, o Tik-
Tok poderá já ter saído de moda. ƒ

4|4
INTERNACIONAL RELIGIÃO

O EQUILIBRISTA
Em uma autobiografia, o papa deixa entrever
um pouco da intimidade e revela seu esforço
em arejar a Igreja Católica, a mais tradicional
das instituições AMANDA PÉCHY

VIDA DURA Francisco: tentativa de conexão com


as massas num momento em que o rebanho encolhe

VATICAN MEDIA/GETTY IMAGES

1|6
EM SEUS recém-completos onze anos de pontificado, o
papa Francisco, de 87 anos, vem se equilibrando entre os
dogmas compulsórios da Igreja Católica e a necessidade de
arejar com os ventos da modernidade uma instituição de
mais de 2 000 anos de existência. Eis a marca registrada de
uma trajetória que não se distancia da liturgia, disciplina-
damente cultivada, mas caminha tracejada por um líder re-
ligioso com os pés enraizados em um mundo em incansá-
vel transformação — equação delicada para a obra e o lega-
do do argentino nascido Jorge Maria Bergoglio. O difícil
equilíbrio atravessa as páginas da autobiografia Vida: Mi-
nha História Através da História (HarperCollins Brasil),
com lançamento previsto para 15 de abril. O livro, escrito
ao lado do vaticanista italiano Fabio Marchese Ragona
(leia entrevista no quadro), esclarece como deseja ser visto
sob a luz da história — um pontífice atento às ambiguida-
des humanas e guiado por um pragmatismo que o faz se
voltar para os fiéis com olhos mais abertos do que os de an-
tecessores presos ao seu próprio tempo.
O volume entrelaça o percurso do papa com grandes
eventos que sacudiram o planeta, ajudando a decifrar sua vi-
são filosófica e política. Na passagem sobre a Segunda Guer-
ra, ele expõe sua repulsa ao antissemitismo, modalidade de
racismo que compara “a uma doença elevada à última potên-
cia por Hitler”. Quando adentra o sombrio período de dita-
dura na Argentina (1976-1983), o jesuíta que confrontou o re-
gime rememora a amizade com uma professora comunista, a

2|6
quem protegeu ao esconder dos militares sua compromete-
dora coleção de livros. Aproveita esse trecho para afastar de
si a definição de comunista. “A Igreja não tem nem pode ter
ideologia e reduzir tudo a questões de esquerda e direita.
Compartilhar é cristianismo no estado mais puro”, registra.
O pontífice não se expressa como um teólogo, o que tanto
caracterizava Bento XVI, a quem sucedeu. “Fatos são mais
importantes que ideias”, pontua.
A biografia é enfática ao mostrar que a face empática do
papa, sensível a tormentas individuais, não significa pendor
para remexer preceitos seculares. Ele sai em defesa da decisão
de dar bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas de-
marca fronteiras. “O matrimônio é um dos sete sacramentos e
prevê o casamento apenas entre homem e mulher. Isso é into-
cável”, escreve ele, que considera “pecadores” os que condu-
zem arranjos diferentes, embora os acolha. “Jesus ia ao encon-
tro de gente que vivia nas periferias existenciais, e é isso o que
a Igreja deveria fazer com a comunidade LGBTQIA+”. Noutro
pedaço, lembra que permitiu, em 2015, o perdão a grávidas
que interrompem a gestação, sem diminuir sua aversão ao ato:
“O aborto é um homicídio, um gesto criminoso”, dispara.
O que soa como uma eterna gangorra traduz, na verdade,
o poder de um homem cercado por intrincadas circunstân-
cias. O contingente de católicos declina em pontos do globo
em que parecia inabalável, como no Brasil, e Francisco reve-
la ter consciência da missão de aliar a veia humanista ao
pragmatismo, sem ferir o que é milenar. Com uma lingua-

3|6
gem simples e direta, mira jovens leitores. “Eles são essen-
ciais numa era em que o rebanho diminui”, diz Brenda Dávi-
la, especialista em história social da Uerj.
Observador da marcha feminina, o papa pede que se
abram cada vez mais janelas às mulheres nas engessadas es-
truturas eclesiásticas — a inédita presença delas no último
Sínodo dos Bispos, espécie de órgão consultivo da Santa Sé,
representou um salutar avanço nesta direção. Francisco é
ainda intransigente ao cutucar o vespeiro do abuso sexual
infantil por sacerdotes, tema que encarou nesses anos ao
criar uma comissão interna no Vaticano para auditar igrejas
e modernizar o código penal da cúria. “Quem é considerado
culpado por um tribunal deverá pagar sua pena”, anota, criti-
cando clérigos bons de papo, mas incapazes de desatar o nó.
Em sua intenção de se apresentar como alguém comum,
suscetível às intempéries da existência, ele relata como ficou
balançado por uma menina que quase o fez abandonar o se-
minário. Também entrega seu fascínio por Diego Maradona,
fala das saudades de dançar tango com os amigos e conta
que, durante o conclave que o fez papa em 2013, teve medo
de entrar na sala de votação — não queria ganhar, jura. Em
certo ponto, Francisco tenta sintetizar seu olhar em uma fra-
se: “É fundamental abandonar a rigidez do passado e distan-
ciar-se de uma Igreja que aponta o dedo e condena os ou-
tros”, diz o pontífice, que afasta no livro a ideia da renúncia
que não raro o envolve. Por ora, o que ele parece querer mes-
mo é deixar sua marca. ƒ

4|6
“ELE MUDOU AS REGRAS DO JOGO”
O jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, que propôs ao papa es-
crever a autobiografia, falou a VEJA por videochamada de seu escri-
tório em Roma.

Foi difícil convencer o papa a escrever o livro? Francisco


confia em mim. Mantemos relação próxima desde que o entrevistei
para a TV italiana, em 2021. Ele gostou da ideia sobretudo porque eu
quis direcionar o livro aos jovens, de quem quer se aproximar.

Ele se preocupa com o fato de as novas gerações esta-


rem mais afastadas da Igreja? A diminuição do rebanho é
certamente uma preocupação de Francisco. Mas esse papa é muito
bom em se fazer ouvir. Não por acaso, tem até perfil no Instagram.

O senhor também acompanhou o papado de


Bento XVI. Quais as diferenças entre Francis-
RONI BINTANG/GETTY IMAGES

co e seu antecessor? Todas. Francisco mudou as


regras do jogo no Trono de Pedro. Nunca tinha visto um
papa se encontrar com um embaixador pedindo para
interromper uma guerra, como fez no caso da
Ucrânia, por exemplo.

PARCEIRO O vaticanista Ragona,


coautor do livro: proximidade desde 2021

5|6
Até que ponto ele conseguiu transformar a Igreja? Essa
é uma instituição que não muda do dia para a noite, mas é possível
começar a plantar sementes nesta direção. Já foi um grande passo
deixar bem claro que pessoas trans e homossexuais, antes vistas
pelo Vaticano como maçãs podres, devem ser tão acolhidas quanto
qualquer outro fiel.

Algo o surpreendeu ao escrever a biografia? Nunca


imaginei que o papa pudesse ter tido uma paixão quando já era se-
minarista. Ele me disse: “Eu também sou ser humano, isso pode
acontecer”.

O pontífice mencionou brevemente no livro o presiden-


te argentino Javier Milei. Revelou ao senhor o que pensa
sobre ele? Ele disse com todas as letras que Milei foi descortês e
que o chamou de imbecil. Mas, com serenidade, Francisco reconhe-
ceu que o que um candidato fala durante a campanha, fica na cam-
panha. Ele sabe que política é assim.

O senhor mudou sua percepção sobre o papa? Pas-


samos um ano escrevendo juntos. Ao longo desse tempo, per-
cebi que é uma pessoa realmente humilde, não é só fachada.
Uma vez, ficamos até tarde em sua casa corrigindo o texto. Olhei
para o relógio, não queria ser um estorvo. Aí Francisco pergun-
tou: “Está com pressa? Quer ir embora?”, pensando ser ele
quem estava me atrapalhando. Está para nascer outro papa tão
pé no chão.

6|6
GENTE
VALMIR MORATELLI

INSTAGRAM @IZA
SAÍDA DE CENA
Depois de uma separação nada amigável, IZA, 33 anos, tomou ins-
piração nos dissabores do matrimônio e lançou canções repletas
de farpas que logo viraram sucesso. Não demorou muito e engatou
um namoro com o jogador de futebol Yuri Lima, 29, do Mirassol, que,
ao que parece, também lhe fornece boas ideias. “A energia sexual é
criativa”, diz a cantora, que esbanja toda essa alegria nas redes. Eis
que, de repente, ela precisou misteriosamente dar um freio na agen-
da, desmarcando shows pelo Nordeste. Envolta em mistério, a súbi-
ta decisão tem a ver com saúde: Iza sofreu um mal-estar e o médico
pediu repouso absoluto, segundo revela sua assessoria, sem forne-
cer mais detalhes. Holofotes, por ora, nem pensar.

1|5
UNIFORME DA DISCÓRDIA
Uma contenda fora das quadras envolve, de um lado, a organização
americana de beisebol profissional, a MLB, e,
de outro, as marcas Fanatics e Nike, que
juntas investiram 1 bilhão de dólares em
patrocínios. A discórdia gira em torno da
calça dos atletas para a temporada que
se inicia no final do mês. De um tecido finís-
simo, ela chega a ser transparente sob a
luz. Já tem quem compare o
novo look, com o qual o jo-
gador SI X T O SA N -
CHEZ, 25 anos, posa
abaixo, a “uma linge-
rie”. Os atletas não
escondem a indigna-
ção. “Ninguém pediu is-
so. Não somos velocistas
olímpicos”, indignou-se Daniel Bard, ar-
remessador do Colorado Rockies,
dando voz aos colegas. Em comunica-
do, a Nike afirma que esses são “os uni-
formes mais avançados da história, le-
ves e flexíveis”. Preparem-se para al-
tas silhuetas à mostra.
JEFF ROBERSON/AP/IMAGEPLUS

2|5
BATE MAIS
Tradição no agreste per-
nambucano, a encenação
da Paixão de Cristo, na
Semana Santa, ganhou
novos ares. No lugar dos
usuais protagonistas loi-
ros de olhos azuis, o es-
calado neste ano é
ALLAN SOUZA LIMA,
38 anos, também às vol-
tas com a segunda tem-
porada da bem-sucedida
série Cangaço Novo, do
Prime Video. “Quero para
mim justamente esse
personagem sujo, um Je-
KIKE TAVARES

sus com poeira no rosto.


Me encaixo muito bem no
papel, tenho traços do Oriente Médio”, avalia. Para dar vida ao
Messias, ele dispensou maquiagem e, nos ensaios sob sol escal-
dante, explica que resolveu se entregar por completo à experiên-
cia. “Falei ao diretor: ‘Me trate como Jesus. Na hora da chibatada,
pode bater’ ”, conta Allan, que, com orgulho, relata ter ficado com
feridas nas costas. “Precisava sentir isso”, diz.

3|5
EFEITO COLATERAL
Ao aceitar ser o primeiro
entrevistado do progra-
ma do jornalista-celebri-
dade Don Lemon, que se-
ria lançado em sua pró-
pria plataforma, o X,
ELON MUSK, 52 anos,
estava aparentemente
desavisado do roteiro. Ao
ser indagado sobre o
consumo de drogas va-
riadas — segundo relatos
de quadros da Tesla, ele
seria usuário habitual de
STR/NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

cocaína, LSD e outros e


ainda incentivaria a práti-
ca na empresa —, mos-
trou-se irritado. “É bas-
tante privado perguntar isso a alguém”, respondeu, confirmando
apenas o uso de quetamina, substância anestésica para pessoas e
animais. “Há momentos em que tenho estado químico negativo no
cérebro, como depressão. Mas não sou médico, sugiro que con-
verse com um”, disse. Não demorou, e logo apareceu a notícia de
que Musk havia mandado cancelar o programa.

4|5
A REVOLTA DAS RÃS
Todo tipo de manifestação desá-
gua no Palácio Élysée, a sede do
governo francês, em Paris. Nes-
tes dias, o teor dos protestos,
uma espécie de esporte nacional,
tem a ver com algo que desde
sempre mobiliza os locais — a
gastronomia. A ira de ativistas
ambientais e cientistas, que en-
viaram uma carta ao presidente
EMMANUEL MACRON, 46
anos, tem como combustível a
permanência nos menus das tra-
dicionais cuisses de grenouille, as
pernas de rã, o que estaria amea-
çando a existência de distintas
CHRISTIAN LIEWIG/CORBIS/GETTY IMAGES

espécies do anfíbio na Ásia. A


contenda ganhou inclusive con-
tornos geopolíticos. “É um absur-
do. As populações naturais de rãs
estão protegidas pela legislação
na Europa, que ainda tolera a importação de milhões desses ani-
mais de tantos países”, disparou Sandra Altherr, da ONG Pro Wil-
dlife. Macron preferiu não se pronunciar. ƒ

5|5
GERAL ESPECIAL

UMA QUESTÃO DE PELE


A recusa de vagas no sistema de cotas a estudantes pardos
expõe o preconceito mais dissimulado, porém intenso, contra
quem não é nem preto nem branco — a maioria dos brasileiros
RICARDO FERRAZ, AMANDA PÉCHY E ERNESTO NEVES

1 | 14
ANGÉLICA DASS

PALETA DIVERSA Montagem sobre imagem


do Projeto Humanae, de Angélica Dass, que
clicou 2 500 brasileiros: em meio à multiplicidade
de tons, os pardos predominam na população

E
m nenhum lugar do mundo pessoas de diferentes
etnias se misturaram tanto quanto no Brasil. Um
giro pelo centro urbano de qualquer grande cidade
do país revela uma vasta paleta de tons de pele,
fruto da mistura praticada aqui das características
de ao menos 54 populações espalhadas pelo globo, confor-
me aponta o projeto DNA Brasil, da USP, que investiga o

2 | 14
genoma do povo brasileiro. Do caldeirão da miscigenação,
inflamado desde os tempos do descobrimento pela tensão
social entre europeus colonizadores, africanos escraviza-
dos e povos originários, surgiu uma significativa parcela
da sociedade nem nitidamente branca, nem explicitamente
preta, que se optou por reunir sob uma única definição:
parda. Por motivos diversos, sendo o mais visível deles um
progressivo — e altivo — reconhecimento dos antepassa-
dos, os pardos se tornaram maioria da população. Pela pri-
meira vez desde o Censo demográfico pioneiro, de 1872,
um total de 92,1 milhões de pessoas assim se declaram, o
que corresponde a 45,3% dos brasileiros, ultrapassando os
43,1% de brancos (veja no gráfico ao lado).
Trata-se, sem dúvida, de um avanço: os pardos estão
perdendo a vergonha da definição e se mostrando cada vez
mais dispostos a alardear as raízes. Ao mesmo tempo, po-
rém, a virada escancara os preconceitos e as dificuldades
enfrentadas por essa maioria de brasileiros que não se si-
tua nem lá, nem cá na conflituosa questão racial. Os dile-
mas da “parditude” foram expostos neste início de ano es-
colar nos casos de candidatos que recorreram às cotas ra-
ciais para concorrer a uma vaga na universidade, foram
aprovados em todas as etapas do processo e acabaram
barrados na última — uma comissão criada para evitar
fraudes. Depois de garantir seu lugar no concorrido curso
de direito da Universidade de São Paulo (USP), Glauco Da-
lalio do Livramento, 18 anos, filho de um auxiliar de pe-

3 | 14
SEMPRE EM FRENTE
A cada década mais brasileiros se
identificam como pardos e, pela primeira
vez, eles ultrapassaram os brancos
(em milhões de habitantes)
91
BRANCOS
PARDOS
PRETOS 87
65
60

47
43
40

31
20
20 20
13 6 7
0 5,7

1950 1960 1970* 1980 1990 2000 2010 2022

* Não houve levantamento Fonte: Censo/IBGE

dreiro também pardo, teve a matrícula negada por não


atender aos critérios da chamada banca de heteroidentifi-
cação, que bate o martelo do acesso ou não à vaga com ba-
se nos traços físicos mostrados em uma foto do candidato.
“Fiquei chocado, porque desde sempre sofro com o racis-
mo”, disse Livramento a VEJA. “Já fui alvo de muito xinga-
mento.” A situação só foi revertida por decisão da 14ª Vara

4 | 14
da Fazenda de São Paulo, que entendeu ser o pai do estu-
dante, sim, de raça negra. “Comemorei a decisão como se
tivesse sido aprovado de novo no vestibular”, afirma o jo-
vem, que sonha em ingressar na magistratura. Dos 1 606
vestibulandos cotistas analisados na USP em 2024, 187
(12%) foram rejeitados e uma parte do grupo planeja in-
gressar com uma ação coletiva contra a universidade.
Implantada desde 2012 no país, a lei de cotas vem cum-
prindo seu objetivo de abrir oportunidades para uma parce-
la da população consistentemente excluída do ensino supe-
rior e que, ao chegar lá, mostrou talento, esforço e até mais
persistência do que alunos não cotistas. No processo de in-
gresso, o aspecto racial é a última peneira — antes dele, le-
va-se em conta se o candidato é egresso de escolas públicas
e se a renda familiar por pessoa é inferior a um salário míni-
mo. Na etapa final, analisa-se se ele se enquadra na defini-
ção de preto, pardo ou indígena, reunidos sob a sigla PPI, e
aí a situação dos pardos — indivíduos de feições mescladas
— se complica. “Não analisamos apenas o tom da pele, mas
como o indivíduo é percebido pela sociedade, já que o racis-
mo se apresenta no Brasil pela aparência”, diz Ana Paula da
Silva, da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e
Equidade da Universidade Federal Fluminense (UFF). A
metodologia, longe de infalível, vira e mexe promove distor-
ções. Filho de pai preto e mãe branca, Pedro Vaz, 28 anos,
viu-se na esdrúxula situação de ser reprovado pela comissão
que analisou seu ingresso no curso de direito depois de ter

5 | 14
ARQUIVO PESSOAL

BRANCA DEMAIS PARA USAR TRANÇAS


Durante quase toda a adolescência, Ana Clara
Rodrigues, 21 anos, usou um filtro de fotos nas redes
sociais que deixava a pele mais branca. Quando finalmente
aceitou sua condição de parda, trançou o cabelo para
celebrar sua ancestralidade e foi criticada: “Ouvi que não
iam levar a sério uma branca com esse penteado”.

6 | 14
se graduado em educação física como cotista. “Senti minha
identidade e história negadas. Foi humilhante”, desabafa
Vaz, que levou o caso à Justiça.
Os pardos foram incluídos na política de cotas porque a
análise de indicadores sociais mostra que a sua realidade es-
tá muito próxima da dos pretos. “Em todos os parâmetros
relevantes para a mobilidade social — educação, moradia,
renda, entre outros — se observa uma semelhança inequívo-
ca entre os dois grupos”, aponta o economista Ricardo Hen-
riques, autor de diversos estudos sobre raça no sistema de
ensino. Nas bancas universitárias, contudo, os pardos per-
dem chances porque são muitas vezes enquadrados como
“quase brancos” e, portanto, supostamente mais favoreci-
dos. Diversos integrantes de comissões admitiram à repor-
tagem de VEJA, sob condição de anonimato, que colegas
ligados ao movimento negro não reconhecem as dores de
quem tem pele mais clara. “Existe uma ilusão de que os
pardos gozam de certos privilégios por possuírem traços
brancos, o que não é verdade”, diz Beatriz Bueno, pesqui-
sadora da UFF que compartilha no Instagram reflexões
sobre essa classificação racial.
Para definir quem é branco ou preto, outras nações
multirraciais, como Estados Unidos e África do Sul, ado-
tam o método conhecido como “única gota de sangue”, em
que a ascendência determina a etnia, independentemente
dos traços físicos. O método é aceito porque neles a misci-
genação é exceção, levantando poucas dúvidas sobre o

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COTISTA OU NÃO
COTISTA?
Formado em educação
física pela USP no sistema
de cotas, Pedro Vaz, 28
anos, buscou dar um novo
rumo na vida prestando
vestibular para o curso de
direito. Dessa vez, porém,
não foi aceito pela banca
de identificação racial.
“Me senti humilhado.
Passei a ter crise de
ansiedade e perdi 7 quilos
enquanto aguardo meu
ARQUIVO PESSOAL

caso se desenrolar na
Justiça”, diz.

DNA do indivíduo — o que tem o efeito colateral de tornar


a discriminação mais explícita. Já a adoção de característi-
cas físicas para definir quem tem acesso às políticas afir-
mativas é uma dinâmica exclusivamente brasileira, que
põe na berlinda um imenso contingente de brasileiros que
não são nem brancos, nem pretos. É munição ao precon-
ceito. Ativistas têm alertado para os perigos da hierarqui-
zação de tons de pele para definir como pessoas negras são
tratadas, um fenômeno que ganhou o nome de “coloris-
mo”. “Não adianta criar espaços para pretos se o mesmo

8 | 14
gradiente de cores seguir pregando a falsa ideia de supe-
rioridade branca em relação aos pardos”, diz a advogada
Alessandra Devulsky, autora de um livro sobre o tema. “Ou
destruímos essa ideia, ou não combateremos o racismo.”
Em Casa-Grande & Senzala, uma das mais relevantes
obras da sociologia nacional, lançada na década de 1930,
Gilberto Freyre (1900-1987) estabeleceu que a mestiçagem
era um fator capaz de mitigar a violência imposta pelos
brancos durante a colonização europeia. O conceito foi tra-
duzido por outros pensadores como “democracia racial”,
que só anos mais tarde passou a ser contestado por uma no-
va corrente de pensamento, encabeçada por Florestan Fer-
nandes (1920-1995), para quem o racismo no país era esca-
moteado por relações de dominação menos explícitas. Li-
vres dos grilhões do período colonial e do império, os ne-
gros foram aprisionados nas margens da sociedade e, com
eles, muitos “mulatos” — designação de escravos libertos,
frutos de relações sexuais nem sempre consentidas entre ho-
mens brancos e mulheres pretas. A palavra, hoje devida-
mente banida do vocabulário civilizado, deriva de mula,
animal resultante do cruzamento de cavalos com jumentos.
Nos tempos atuais, em que a questão racial vem sendo
discutida de maneira mais aberta e explosiva, declarar-se
pardo virou questão de honra para muita gente. Durante to-
da a infância, a consultora Ana Carolina Rodrigues, 29
anos, parda, ouviu da avó branca que era a neta com “um
pezinho na senzala”. “Ia à praia de jeans porque não queria

9 | 14
ARQUIVO PESSOAL
SÓ A APARÊNCIA IMPORTA
Após ter a matrícula cancelada no curso de direito da
USP, por considerarem que sua aparência não o torna
alvo de racismo, Glauco Dalalio do Livramento, 18
anos, reverteu a situação nos tribunais: “Desde que me
conheço por gente, sofro com preconceito. Fui alvo até
de xingamentos”, conta o estudante de Bauru, que
é filho de ajudante de pedreiro

ficar com a pele mais escura”, conta Ana, que vestiu biquíni
pela primeira vez aos 20 anos, depois que passou a frequen-
tar coletivos do movimento negro na faculdade. “Nas famí-
lias inter-raciais, é comum que a herança africana seja apre-
sentada apenas sob o filtro da escravidão ou do sofrimento
do racismo”, aponta Lia Vainer, professora de psicologia da
UFSC. Quem é acusado de ter “tinta fraca”, outro termo pe-
jorativo comum na vida dos pardos, sente rejeição de todos
os lados. “Quando finalmente resolvi assumir minha cor, fiz
tranças afro no cabelo, mas fui hostilizada por pessoas pre-

10 | 14
tas, que me acusaram de apropriação cultural”, relata a estu-
dante Ana Clara Cunha Rodrigues, 21 anos.
A emergência de reflexões sobre a “parditude” estimula
um debate necessário em um mundo ainda marcado por pro-
fundas desigualdades raciais, mas a contrapartida, neste pla-
neta rachado pela polarização, são assustadoras ameaças a di-
reitos civis conquistados a duras penas. Nos Estados Unidos, a
Suprema Corte, de maioria conservadora, declarou inconstitu-
cional a política de cotas em vigor nas mais conceituadas uni-
versidades americanas desde a década de 1960. Na Flórida,
comandada pelo republicano Ron DeSantis, o governo proi-
biu que sejam abordados criticamente temas como o racis-
mo nas escolas, sob pena de ferir uma certa “lei de liberdade
individual”, criada para impedir que os alunos “sintam cul-
pa ou vergonha” de sua raça por causa de eventos históricos
como a escravidão. Cursos avançados sobre história da Áfri-
ca também foram banidos das universidades estaduais.
No Brasil, autoridades de certos estados decidiram retirar
das salas de aula, sob a alegação de conteúdo impróprio, o
bem-sucedido livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório,
que trata justamente de racismo (leia a entrevista). Em pleno
século XXI, pareceria inadmissível recorrer ao conceito de
raça — circunstância que não muda em absolutamente nada
a capacidade do indivíduo — para classificar a humanidade.
No entanto, ele está aí, vivo e presente, atropelando as opor-
tunidades de quem mais precisa, e é urgente revê-lo. Afinal,
nenhum ponto dessa discussão é preto no branco. ƒ

11 | 14
CARLOS MACEDO/DIVULGAÇÃO
BANIDO Tenório: “Vetar a leitura do livro
é por si só um ato racista”

“CENSURAM A REFLEXÃO”
Autor de O Avesso da Pele (Companhia das Letras), vencedor
do Prêmio Jabuti de melhor romance literário, Jeferson Tenó-
rio se viu arrastado para o centro de uma polêmica que refor-
ça quanto ainda é difícil cutucar o racismo no Brasil. Por ini-
ciativa de governos estaduais, seus livros foram banidos de

12 | 14
escolas públicas do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás, sob a
alegação de conter conteúdo “pornográfico” e servir para “dou-
trinar” os estudantes em relação à violência racial. Ele concedeu
a VEJA a seguinte entrevista.

Em que medida o recolhimento de seu livro das salas


de aula mostra a dificuldade de tratar do racismo no
país? Entendo esse gesto, de essência autoritária, como uma
total inaptidão em abordar um tema ainda hoje tão necessário.
Não à toa, aconteceu em estados de pendor mais conservador.
Vetar sua leitura é um ato por si só racista.

Uma justificativa para a medida é um suposto teor


sexual na obra. Isso procede em algum grau? Não faz
nenhum sentido. O leitor que procurar erotismo ali vai ficar frus-
trado. As cenas mais explícitas têm o propósito intelectual de
promover uma reflexão sobre como corpos negros são vistos
por pessoas brancas, que se referem a eles de forma crua, vio-
lenta e às vezes chula.

Criticam o livro por doutrinação. Ele acaba tendo um


único viés? Estão fazendo uma leitura equivocada, esta sim en-
viesada pelo olhar da extrema direita. Ela entende a escola como um
lugar “higienizado”, e não como um palco para discussões mais am-
plas. Agora, o racismo é mesmo intolerável e aí reside um nó gravís-

13 | 14
simo de nossa sociedade. É
essa violência racial, para a
qual chamo atenção, que
deveria chocar.

Como compara esse


episódio à censura de
obras de Monteiro Lo-
bato no passado? Sou
contra qualquer forma de
censura, mesmo que não
concorde com o conteúdo.
Havia, sim, um racismo em
Monteiro Lobato, mas acho NA MIRA O premiado
que a solução nunca é vetar O Avesso da Pele:
a leitura de um livro. A ideia é vetado de redes públicas,
justamente usá-lo para enri- o texto toca no preconceito
quecer a conversa. ainda latente

Racismo deveria ser parte do currículo escolar,


como matemática ou português? Sem dúvida. O pa-
pel da educação é também preparar crianças e jovens para
semear um mundo com menos preconceito.

Mafê Firpo

14 | 14
GERAL SAÚDE
KATERYNA KON/SCIENCE PHOTO LIBRARY

CAÇADA AO CÂNCER
Há dez anos no SUS, a vacina contra o vírus HPV,
que causa o tumor de colo de útero, esbarra em
uma cobertura abaixo da meta. Vencer essa barreira
é crucial para eliminar a doença PAULA FELIX

1|6
DISSEMINADO
HPV: vírus presente em uma
de cada três pessoas

HÁ CINQUENTA ANOS, o cientista alemão Harald zur


Hausen sugeriu pela primeira vez que um patógeno altamente
transmissível, o papilomavírus humano, estaria por trás do
câncer de colo de útero, um dos mais prevalentes entre as mu-
lheres. Ele levou uma década para provar sua hipótese. Gra-
ças a essa descoberta, reverenciada com o Nobel de medicina

2|6
em 2008, o mundo tomou conhecimento de que o HPV abria
caminho a tumores e que seria possível desenvolver uma va-
cina que, ao bloquear o vírus, preveniria o câncer. Essa arma
se tornou uma realidade e, neste mês, completa dez anos de
distribuição gratuita pelo governo brasileiro. Trata-se de uma
estratégia segura e eficaz que, no entanto, patina nas taxas de
cobertura por ser alvo de ignorância e fake news, o que põe
em risco a imunização e a proteção do público a que se desti-
na o produto, meninas e meninos de 9 a 14 anos.
A literatura médica aponta que até 12% dos cânceres têm re-
lação com algum tipo de vírus. O HPV é um deles. Nem sempre
a infecção terá grandes repercussões — muitas vezes, será debe-
lada pelo próprio organismo. Ocorre que alguns subtipos virais,
os mesmos contemplados na vacina, aumentam a propensão a
tumores no útero, na boca, na garganta, na vagina, no pênis e
no ânus — sem falar que outras variantes do micróbio causam
verrugas genitais. O ponto é que a maioria das pessoas com vi-
da sexual ativa trava contato com o HPV, e o preservativo não é
uma barreira 100% eficiente contra a transmissão.
Daí a relevância de um imunizante largamente testado
para essa finalidade. Suas doses permitem reduzir drastica-
mente o perigo de uma condição com impactos agressivos do
ponto de vista tanto individual como da saúde pública — a
projeção é de 17 000 novos casos de tumores de colo de útero
por ano no Brasil. Ter à mão uma fórmula anticâncer, contu-
do, não foi suficiente para o êxito da campanha de vacinação.
Episódios de jovens no Acre que apresentaram dor de cabe-

3|6
RODRIGO NUNES/MS

PREVENÇÃO De graça: imunizante é


ofertado a meninas e meninos de 9 a 14 anos

ça, desmaios e convulsões após as doses levaram a um temor


coletivo que ainda hoje depõe contra a vacina — um estudo
da USP comprovou que as reações foram apenas efeitos psi-
cológicos. Soma-se a isso o receio de alguns pais de que o
imunizante instigue os jovens a iniciar a vida sexual mais ce-
do, outro argumento desmentido por pesquisas. Com a inter-
rupção da vacinação nas escolas, a adesão só piorou. O ba-
lanço do Ministério da Saúde, com dados de 2014 a 2023,
mostra que, entre as meninas, a cobertura vacinal da primei-
ra dose é de 75%, índice que cai para 58% na segunda. Entre
os meninos, as taxas são de 52% e 33%, respectivamente.
Os números abaixo da meta tornam distante por aqui a
execução do plano da Organização Mundial da Saúde (OMS)
de eliminar a doença que mata uma mulher a cada dois minu-
tos no globo até 2030. Há muito trabalho pela frente. “As ex-
periências de sucesso com a vacinação, como as taxas de 90%

4|6
BAIXA ADESÃO
Doses aplicadas têm queda entre meninas; o pico
entre meninos ocorreu em 2017
MENINAS
7 948 224

3 300 008
2 223 380
MENINOS
40 453
0
2 091 409

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

600 MILHÕES DE DÓLARES


SERÁ O VALOR INVESTIDO PELO BANCO
MUNDIAL E OUTRAS ENTIDADES PARA AÇÕES
CONTRA O VÍRUS NOS PRÓXIMOS TRÊS ANOS

45 MILHÕES DE MORTES
PODEM SER EVITADAS EM 100 ANOS SE
90% DAS MENINAS FOREM VACINADAS
ATÉ OS 15 ANOS
Fontes: DataSUS; Organização Mundial da Saúde (OMS)

5|6
na Austrália, ocorrem em locais que imunizam as crianças
nas escolas”, diz a oncologista Angélica Nogueira Rodrigues,
do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA). Mes-
mo com índices abaixo do ideal, o imunizante quadrivalente
disponível na rede pública e a versão nonavalente ofertada pe-
la rede privada têm impactado nas infecções. Um estudo com
a população brasileira atestou o poder do imunizante na vida
real. Ao comparar jovens de 15 a 26 anos não vacinados com
aqueles imunizados, notou-se uma diferença significativa na
incidência do HPV: 15% no primeiro grupo, ante 3% no se-
gundo. “Quando diminuímos a circulação do vírus, até quem
não foi vacinado acaba protegido”, afirma Eliana Wendland,
epidemiologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Ale-
gre, e líder da investigação.
Além da aplicação da vacina, o cerco ao patógeno cancerí-
geno se amplia com uma nova tecnologia que passará a ser for-
necida pelo sistema público. É o teste molecular para detecção
do HPV, capaz de antecipar em dez anos o diagnóstico de le-
sões e uma alternativa ao método tradicional, o papanicolau,
nem sempre acessível. Nos estudos científicos, outra proposta é
mapear moléculas no sangue que ajudem a nortear o trata-
mento assim que o tumor é identificado. “Nossa ideia é encon-
trar biomarcadores ligados à resposta imune das pacientes”,
diz o pesquisador Kenneth Gollob, do Hospital Israelita Albert
Einstein, em São Paulo. Sim, a caçada se intensificou. Resta às
autoridades e famílias fazerem sua parte. Afinal, há uma vaci-
na contra o câncer no SUS. ƒ

6|6
GERAL COMPORTAMENTO

ABRIR OU
NÃO ABRIR?
EIS A QUESTÃO
Numa era de
variados arranjos,
cada vez mais
gente decide selar
relações não
monogâmicas —
opção nada fácil,
sobre a qual um
novo livro lança
luz MAFÊ FIRPO

ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES

1|6
A IDEIA DO AMOR romântico, calcada no disseminado
conceito da cara-metade, em que uma parte se funde har-
moniosamente à outra formando uma só, vem permeando
as sociedades ao longo dos tempos. Sua semente foi plan-
tada em um passado medieval, lá pelo século XII, quando
as uniões unicamente por conveniência se somaram àque-
las movidas por sentimentos genuínos, paixões às quais
os trovadores deram voz. Desde aí, o mundo girou de for-
ma revolucionária, registrando avanços notáveis no cam-
po dos enlaces afetivos, no qual passou a caber um vasto
leque de arranjos — entre eles, o relacionamento aberto,
em que os pilares da monogamia e da fidelidade são pos-
tos de lado enquanto a liberdade de dar vazão ao desejo
entra em cena. À primeira vista, pode soar como uma tri-
lha na direção de mais franqueza, e assim é para muita
gente. Mas a equação que se põe à mesa da modernidade
não é nada simples para quem embarca nesse tipo de rela-
ção, trazendo uma sorte de incômodos e dores a quem na-
vega nessas águas.
O debate incendiou as redes recentemente, com o lan-
çamento nos Estados Unidos do livro More: A Memoir of
an Open Relationship, logo alçado às prateleiras dos best-
sellers. A autora, a professora de inglês Molly Roden Win-
ter, 51 anos, elevou a fervura ao falar com rara honestida-
de de seu próprio casamento, que já dura duas décadas.
Em 2008, conta que se interessou por um homem com
quem esbarrou num bar e resolveu dividir a história com

2|6
ARQUIVO PESSOAL

MARCHA A RÉ Thaís: “Meus parceiros


quebravam as regras e voltei atrás”, diz

o marido, Stewart, de quem se sentia à época afastada.


Decidiram então flexibilizar a relação, e isso lhe abriu
uma janela para casuais encontros, dos quais não se arre-
pende. “Estou determinada a fazer o casamento aberto
funcionar para dar mais espontaneidade e aventura à mi-
nha vida”, afirma Molly, que enfatiza outra face do acerto,
esta de menos leveza. Volta e meia, a autora se vê angus-
tiada, insegura e tomada de ciúme e ressentimento. “Te-
nho medo de me machucar”, admite.

3|6
ARQUIVO PESSOAL

EQUILÍBRIO Carina e Felipe: dezessete


anos de uma relação fincada na confiança

A literatura sobre tão delicado tema mergulha nos des-


dobramentos da difícil decisão, que vem cercada de confli-
tos. “Muitas vezes, esse tipo de relacionamento desemboca
no temor de ser abandonado ou substituído”, diz a psiquia-
tra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos
em Sexualidade do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Ela, porém, pondera: mesmo com uniões fincadas na mo-
nogamia, nada é garantido. Ouvida sobre suas relações
abertas, muita gente expressa a dura experiência de ser

4|6
confrontada com um dos mais humanos dos instintos — o
de posse. “Por mais confiante que seja e por mais equilí-
brio emocional que alguém tenha, é inevitável não ficar
ansioso com a constatação de que o parceiro se relaciona
com outras pessoas”, afirma Carmita. O caminho para en-
contrar paz nesses arranjos, sustentam os especialistas, é
manter a conversa sempre acesa. “Precisa haver muita
confiança”, resume a filósofa Carina Blacutt, 40 anos e
mãe de três filhos, que há dezessete vive um feliz matrimô-
nio aberto com o também filósofo Felipe do Nascimento.
Os conflitos são inevitáveis, mas a turma que insiste
em engatar nesse modelo elenca o lado bom, enfatizan-
do como, não raro, o elo com o parceiro se torna mais
firme. “Estamos no meio de uma mudança entre antigos
e novos valores e, sendo ainda recente, não existem pa-
râmetros bem estabelecidos para os relacionamentos
não monogâmicos, o que aos poucos acontecerá”, diz a
psicóloga Regina Navarro Lins, autora de livros sobre o
assunto. “Só não dá para achar que a fórmula é a respos-
ta absoluta para todas as insatisfações”, afirma. Nessa
estrada de casórios e namoros mais livres, criam-se
acordos e regras entre quatro paredes. Uma ala prefere
não ouvir do cônjuge sobre as experiências fora do casa-
mento, ao passo que outros mantêm tudo às claras. Há
uma profusão de variáveis nesse terreno, como bem ilus-
tra a estudante de direito Lara Benevides, 23 anos. “Tive
um namorado que não queria que eu me relacionasse

5|6
com pessoas próximas a ele, e eu entendi e respeitei. O
importante é cada um impor seus limites”, diz.
As estatísticas sobre essa fatia da população revelam
que, sobretudo os jovens, consideram com cada vez mais
frequência o relacionamento aberto — tópico, aliás, que
registrou entre brasileiros uma subida de 70% em buscas
no Google no último ano. Nos Estados Unidos, 25% dos
entrevistados em uma pesquisa do YouGov declaram “es-
tar dispostos” a enveredar por essa trilha, patamar que al-
cança 31% no Reino Unido, segundo um levantamento do
aplicativo de encontros OkCupid. Uma leva dos que já ten-
taram relata o quão complicado é frear sentimentos que
podem aflorar no meio do caminho. No livro, Molly diz
ter nutrido uma “paixonite” por um recém-divorciado,
que pediu que ela se separasse do marido. O coração ba-
lançou, mas ela permaneceu em casa.
Não é sempre que funciona, o que faz muita gente re-
pensar. “Tive relacionamento aberto duas vezes, mas falta-
va sinceridade. Eles preferiram quebrar acordos a ter uma
conversa desconfortável sobre mudar as regras”, relata a
advogada Thaís Martins, 30 anos, que aderiu à monoga-
mia. Na ausência de script, vale voltar às raízes do que une
duas pessoas revisitando Simone de Beauvoir (1908-1986),
que por mais de meio século viveu um intenso e doloroso
casamento aberto com Jean-Paul Sartre (1905-1980), filó-
sofo existencialista como ela: “O casal feliz que se reconhe-
ce no amor desafia o universo e o tempo”. ƒ

6|6
GERAL ESPORTE
JULIAN MARQUES/FOLHAPRESS

CADEIA Robinho: o ex-atacante chegou até a alegar suposto


racismo ao defender-se em vídeo

O JOGO PRECISA
MUDAR
Robinho cumprirá pena no Brasil e Daniel Alves sairá
da prisão ao pagar fiança — as decisões, de sinal
invertido, ajudam a apontar o dedo para o crime de
agressão sexual LUIZ PAULO SOUZA

1|6
ALBERTO ESTÉVEZ/AFP

LIBERDADE Daniel Alves: fiança de 1 milhão de euros para


sair da prisão depois de catorze meses detido

FOI O MELHOR dos dias, foi o pior dos dias. A quarta-


feira 20 de março entrará para a história da luta contra as
agressões sexuais a que as mulheres são submetidas pela
gangorra emocional impulsionada por duas decisões de
sinal invertido. No fim da tarde, com o largo placar de 9 a
2, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em Bra-
sília, confirmaram a prisão em solo brasileiro do ex-joga-
dor Robinho, 40, condenado na Itália a nove anos de ca-

2|6
deia por estupro coletivo de uma moça albanesa de 23
anos, em 2013, quando atuava pelo Milan — até o fecha-
mento desta edição de VEJA, a Justiça Federal de Santos
ainda não tinha expedido mandado de prisão. “O Brasil
não pode ser refúgio para criminosos”, disse o ministro
Mauro Campbell, ao revelar seu voto.
Algumas horas antes, o Brasil havia acordado com um
anúncio feito em Barcelona, na Espanha: o lateral-direito
Daniel Alves, também de 40 anos, condenado a quatro
anos e meio de cana por ter agredido sexualmente uma
mulher numa boate chique da capital catalã, poderia vol-
tar para casa mediante o pagamento de uma fiança de
1 milhão de euros, o equivalente a pouco mais de 5,4 mi-
lhões de reais. Ele teve os passaportes brasileiro e espa-
nhol retidos, está impedido de se aproximar a menos de
1 quilômetro da vítima sem que ela autorize, mas dentro
de um mês (ele já ficou treze trancafiado) deixará de ver o
sol nascer quadrado — embora o Ministério Público possa
recorrer. No caso de Daniel, cabe a pergunta irônica se-
guida de resposta reveladora: quanto vale um estupro?
Um milhão de euros. O veredicto de Robinho merece cele-
bração, ainda que em futuro breve ele também possa aces-
sar algum recurso que diminua a temporada de presídio.
Os dois episódios — embora um deles, o espanhol, te-
nha soado como impunidade — levam a uma constata-
ção: os homens, em especial os jogadores de futebol que
vivem em um mundo paralelo, animados por áulicos, os

3|6
GABRIEL MACHADO/AGIF/AFP

ENFIM O treinador Cuca, agora no Athletico-PR:


carta de arrependimento

“parças”, não podem mais se esconder atrás do dinheiro e


da postura misógina que os conduz. Robinho, aliás, des-
feriu em entrevista uma das frases mais ridículas que al-
guém poderia dizer: “Infelizmente existe o movimento
feminista. Muitas mulheres, às vezes, não são mulheres,
para falar o português claro”.
Para falar o português claro, ele tentou se defender de
um crime ensaiando outro. E não parou por aí. Robinho,
meses antes do julgamento, vivia como se nada houvesse.

4|6
Em fevereiro, serelepe, participou de um churrasco orga-
nizado pela diretoria do Santos, time que já foi de Pelé.
Diante da má repercussão, o clube praiano apressou-se
em desmentir o que todo mundo viu. Como derradeira
boia da salvação, antes da decisão do STJ, voltou a se ma-
nifestar por meio de um vídeo. Disse ter sofrido racismo
na Europa, alegou premeditação da moça estuprada e as-
segurou nunca ter sido encontrado seu DNA no vestido
da vítima. E — tal qual Daniel Alves — ancorou-se na ba-
lela do sexo consentido. Não deu certo.
A história, enfim, começa a andar para a frente, a
passo de tartaruga. “Os homens agressores poderosos,
ricos e influentes, percebem que estão sujeitos a pagar
pelos seus crimes”, diz Luciana Terra, especialista em
direito das mulheres e diretora do braço brasileiro do
movimento #MeToo, nascido nos Estados Unidos contra
os predadores de Hollywood. Há, reafirme-se, sutis si-
nais de mudança de humores. Um outro episódio de
agressão sexual abafado foi o do treinador Cuca. Em
1987, ele e outros três colegas do Grêmio — clube pelo
qual jogava — foram condenados por estupro de menor
de idade na Suíça. O processo seria depois extinto por-
que o tribunal regional do distrito de Berna-Mittelland
acatou o argumento da defesa, segundo a qual ele teria
virado réu sem representação legal, à revelia.
No ano passado, contratado para dirigir o Corinthians,
ficou no cargo durante apenas dois jogos — pressionado,

5|6
especialmente pelas fãs da equipe feminina, apelidada de
“as brabas”, pediu para sair. Retornou, agora, como téc-
nico do Athletico Paranaense — ancorando-se na decisão
dos tribunais suíços. Logo depois da estreia, Cuca leu um
texto, que disse ter escrito ao lado da mulher e das filhas.
Eis parte do que escreveram: “Eu pude levar minha vida
contornando a história porque o mundo do futebol e dos
homens em que vivo não tinha me cobrado nada. (...) mas
o mundo está mudando, acho que para melhor, e por isso
estou me dando conta de que não adianta eu entender o
que é ser um grande treinador, pai, avô e esposo se eu não
entender que o mundo é feito de outras coisas além do fu-
tebol, e que eu faço parte disso também”.
Foi de bom-tom, mas longe, muito longe, de autorizar o
esquecimento do passado. Seria conveniente que tanto Ro-
binho quanto Daniel Alves ensaiassem postura semelhante,
mas não. Brota, então, uma certeza: eles serão para sempre
símbolos de desonra — e quem haverá de lembrar que joga-
ram bola e não foram campeões do mundo pelo Brasil?
Poucos, a não ser quem fecha os olhos para a agressão se-
xual e prefere se calar. O jogo precisa mudar. No Brasil, a
cada oito minutos uma mulher é estuprada. ƒ

6|6
PRIMEIRA PESSOA

ANSELMO CUNHA

1|4
MINHA CABEÇA
NÃO PARA
A gaúcha Maria Eduarda Tischler, 9 anos,
conta como chegou ao topo do pódio no xadrez

O XADREZ entrou na minha vida aos 4 anos. Meu pai


estava no meio de uma partida na internet, e eu adorei
aquele jogo. Comecei a pedir para jogar com ele e, aos
poucos, fui aprendendo as regras, os movimentos das pe-
ças. Tive a sorte de ter esse ótimo professor: meu pai
sempre me ensinou de forma divertida. No início, ele até
deixava eu ganhar. Era a maneira de me incentivar e me
manter interessada, motivada a querer mais. E funcio-
nou. Sempre gostei de fazer atividades fora da escola —
teatro, dança, flauta, piano, tae kwon do, inglês. Mas na-
da, nada mesmo se compara ao xadrez. O que mais me
atrai é pensar durante horas nas estratégias. Só que, de
repente, nada sai como o previsto, e aí o legal é refazer a
tática, uma brincadeira viciante. Tanto que ficava horas

2|4
jogando com meu pai, e ele viu um futuro em mim. Pro-
curou, então, uma treinadora e, com ela, minhas habili-
dades foram melhorando.
Virou uma coisa mais séria em janeiro de 2022, quando
participei do meu primeiro torneio. Estava fazendo aula com
essa minha treinadora e ela contou que iria disputar o Floripa
Chess Open, uma competição relevante no circuito brasilei-
ro. Fiquei tão empolgada com a ideia que perguntei se tinha
para a minha idade. Tinha. E lá fui eu com meu pai, enfren-
tar gente desconhecida pela primeira vez. Dos quatorze joga-
dores, era a única menina e uma das raras novatas ali. Ainda
assim, levei o quarto lugar. Foi nesse momento que coloquei
na cabeça o objetivo de ser a primeira, o que aconteceu uns
meses depois: virei a campeã brasileira entre as meninas de 8
anos. Logo viajei para o Pan-Americano, no Uruguai, e para
o Sul-Americano, no Paraguai, onde subi ao pódio como
campeã. Mais tarde, em 2023, me tornei a número 1 do ran-
king da América Latina na minha idade. E não parei.
Sempre que sinto que está ficando fácil, busco complicar.
Por isso, decidi avançar uma categoria, para duelar com pes-
soas um pouco mais velhas, de 10 anos. Uma grande vitória
veio este mês, com o título de mestre nacional, que em geral
dão a adultos. Sou a mais jovem menina a receber essa láurea
no país, num ambiente dominado por meninos. Me dou bem
com eles e acaba me batendo aquela vontade ainda maior de
vencer. Em geral, são supercompetitivos. Não é um proble-
ma, entro na briga. Se eles debocham de mim, o que às vezes

3|4
acontece, devolvo na hora e levo na brincadeira. Vou cres-
cendo assim. Seria legal ter mais mulheres no xadrez. A gen-
te fica assistindo às grandes partidas e cadê elas? São mino-
ria. Sem perceber, o preconceito está vivo. Uma vez, o pai de
um dos competidores falou a meu pai que eu era tão boa que
me tornaria a mais forte jogadora na raia feminina. Meu pai
reagiu na hora. Disse que, na verdade, eu despontaria como a
melhor de todos, entre homens e mulheres.
O xadrez me abriu muitas portas. Fiz amigos do mundo
todo — peruanos, colombianos, americanos. Você tem con-
tato com outras culturas e ainda conhece colegas com os
quais um dia vai competir. Quero muito seguir como jogado-
ra profissional. Sei que eu sou nova e que todo mundo pensa:
calma que tudo muda. Mas o que tive a sorte de descobrir tão
cedo — um incentivo para o meu raciocínio que tanto me di-
verte — parece ser mesmo o meu caminho. Até na escola isso
me ajuda. Em matemática, por exemplo, crio minhas pró-
prias fórmulas para resolver os problemas. O xadrez deixa
minha cabeça em ação constante. No ano passado, tive a
oportunidade de jogar com o melhor brasileiro do ranking
hoje, o Luis Paulo Supi, só de brincadeira, para treinar. Perdi,
claro, mas a derrota vai formando uma casca e servindo de
empurrão. Quero — e vou — chegar cada vez mais longe. ƒ

Depoimento dado a Mafê Firpo

4|4
GERAL CARROS

MARCHA A RÉ
A decisão de uma reputada agência europeia,
ao frear o uso exagerado das centrais
multimídia, encaminha uma dúvida: o que será
dos veículos sem motorista? ANDRÉ SOLLITTO

MINIMALISMO Model 3, da Tesla: no sedã, até o acionamento


do câmbio automático é feito por toques na tela central
ISTOCK/GETTY IMAGES

1|6
É GRANDE A LISTA de equipamentos levados à obso-
lescência com as novas tecnologias. No universo dos car-
ros, os veículos elétricos parecem decretar o fim do ronco
barulhento dos motores a combustão. A expansão a bordo
de telas de touch screen, como as dos tablets e smartpho-
nes, a um toque de dedo, anunciam a morte dos indicado-
res analógicos. Ao visual futurista das chamadas “centrais
multimídia”, soma-se uma necessidade econômica: as
montadoras gastam menos ao reunir os comandos em um
único painel digital, sem a pletora de botões e alavancas
que nos conduziram até aqui. Tudo muito prático e boni-
to, em ritmo acelerado a caminho do amanhã, até um ór-
gão de regulamentação europeu indicar a marcha a ré.
O European New Car Assessment Programme (Euro
NCAP), imbuído de analisar a segurança dos veículos lan-
çados no mercado da Europa, decidiu que a partir de ja-
neiro de 2026 exigirá controles físicos nos carros que cir-
culam pelo continente — sem os quais não serão concedi-
das as avaliações de cinco estrelas, reconhecimento máxi-
mo de qualidade. A motivação soa nítida. “O uso excessi-
vo de telas sensíveis ao toque é um problema, com quase
todos os fabricantes de veículos transferindo os principais
controles para telas, obrigando os motoristas a tirar os
olhos da estrada, distraídos”, disse Matthew Avery, dire-
tor de desenvolvimento estratégico do Euro NCAP, ao The
Times. Pode ser o início do fim de uma era da civilização
que mal começou.

2|6
ZOOX/DIVULGAÇÃO

CONCEITO O Zoox, da Amazon: o táxi-


robô parece o que é, coisa do futuro

A participação no teste de segurança sugerido pelo Eu-


ro NCAP não é obrigatória. Muitas montadoras, contudo,
usam os resultados positivos como estratégia para aumen-
tar as vendas. A primeira leva de exigências forçará dis-
positivos mecânicos — como os de antigamente — para o
pisca-alerta, os limpadores do para-brisa e a buzina. E lá
vamos nós de volta para o futuro, em movimento comum,
de namoro com a ciência de ponta e alguma piscadela pa-
ra a nostalgia.
As vantagens das telas sensíveis ao toque são inegáveis
e têm história. A ideia original foi registrada em 1965 pelo

3|6
engenheiro britânico Eric Arthur Johnson. Contudo, a
tecnologia só passou a ser produzida em larga escala a
partir de 2007. Naquele ano, Steve Jobs (1955-2011) apre-
sentou o primeiro iPhone, cuja tela já não pede descrição,
dada a onipresença. No começo, o movimento de pinça
com os dedos fazia aproximar mapas e fotos de modo um
tantinho tosco — mas nada como o passar do tempo...
Desde aquela sacada inicial, obsessão de Jobs, as telas
se infiltraram em cada elemento da vida cotidiana, dos to-
tens para pedir um lanche nas redes de fast-food a coman-
dos dentro de quartos de hotéis. Mas por que, afinal de
contas, a indústria automotiva é a primeira a sentir o chei-
ro de recuo? Há, por óbvio, o zelo pela vida, por serem co-
mo armas que podem matar caso algo dê muito errado no
controle das máquinas sobre quatro rodas. Mas brotou
também algum exagero, dada a oferta de facilidades in-
cluídas na touch screen. “Acaba-se perdendo um pouco a
mão”, resume Milad Kalume Neto, da consultoria automo-
tiva Jato Dynamics. No final dos anos 1980 e começo de
1990, deu-se a primeira grande adaptação, movida a eletri-
cidade, para baixar e levantar os vidros, mas também para
ativar o desembaçador e o ar-condicionado. Eram mudan-
ças tecnológicas bem-vindas, que pegaram e estão até hoje
por aí. No mergulho multimídia, contudo, a ambição tal-
vez tenha ido longe demais, como mostra o recente freio.
Nenhum outro fabricante de veículos foi tão radical na
dependência das centrais multimídia quanto a Tesla. Em

4|6
setembro do ano passa-
do, a montadora do fan-
farrão e faz-tudo Elon
Musk apresentou a nova
versão do luxuoso sedã
Model 3. A alavanca da
seta foi abolida, e o mo-
torista precisa usar dois
minúsculos botões no
volante para sinalizar se
pretende fazer uma con-
versão. Até o câmbio au-
tomático é acionado por

GARY REYES/MERCURY NEWS/GETTY IMAGES


toques digitais. O siste-
ma é adotado também
na nova picape da em-
presa, a Cybertruck.
Nem mesmo os áulicos PIONEIRO Steve Jobs
que cercam Musk, como com o iPhone: o primeiro
a um rei que precise de celular com tela sensível
bobos da corte, aprova-
ram os retoques, exagerada guinada em hábitos de dire-
ção estabelecidos desde sempre. Não por acaso, na No-
ruega, onde modelos da Tesla são usados até mesmo em
autoescolas, os botões de tela para informar o lado para
onde se pretende virar, à esquerda ou à direita, foram jul-
gados perigosos e banidos.

5|6
O espanto do novo exigindo uma parada para acerto
parece encaminhar um paradoxo, ao interromper o traje-
to natural dos badalados carros autônomos. Se eles pres-
supõem a saída de cena de nós, seres humanos, o que di-
zer das traquitanas manuais? E, no entanto, apesar do
susto imposto pela exigência de cuidados manuais de uma
decisiva instituição europeia, os laboratórios de inovação
dos autônomos seguem firmes e fortes. A Tesla, aliás, aca-
bou de divulgar uma nova atualização de seu sistema ope-
racional, que permite o teste em pista com o piloto auto-
mático mais avançado que existe, ainda distante de certe-
zas. Em teoria, o sistema do automóvel sem motorista se-
ria capaz de acionar a seta, frear, acelerar e desviar de ou-
tros veículos e pedestres sem a participação de gente de
carne e osso. E tem mais: os táxis-robôs da Zoox, empresa
que pertence à Amazon, e da Waymo, da Alphabet, dona
do Google, já circulam em cidades americanas de modo
experimental. Em breve, devem rodar em áreas mais am-
plas, em velocidades mais altas e até à noite. Mas antes é
preciso resolver a contradição levada à ribalta: é para ha-
ver menos ou mais interação das mãos em carros? O futu-
ro será fascinante. ƒ

6|6
GERAL AMBIENTE

SOPA NO MEL
Um estudo mostra que o risco de extinção
da espécie mais comum de abelhas é
preocupação exagerada. As nativas é que
merecem atenção MARÍLIA MONITCHELE
BESTAMI BODRUK/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

ALARME FALSO A Apis mellifera, a mais conhecida:


a população quase dobrou em sessenta anos

1|5
PERGUNTE às flores, porque elas sabem: as abelhas são
fundamentais para o equilíbrio do meio ambiente. Polini-
zadoras obsessivas, elas são responsáveis pela multiplica-
ção de plantas e alimentos essenciais para a sobrevivência
do mundo ao nosso redor. Por isso, a ideia de que estejam
em perigo soa como tragédia. Há imenso zumbido, espe-
cialmente a partir de levantamentos feitos nos Estados
Unidos e na Europa, em torno do sumiço da Apis mellife-
ra, a mais conhecida.
Teme-se a extinção da espécie, atalho para danos eco-
lógicos e, claro, falta de mel, o fluido viscoso e doce pro-
duzido pelas melíferas. Convém, contudo, saber que há
muito exagero acerca da fragilidade desse grupo domésti-
co, de picada que incomoda, ardida mesmo, mas onipre-
sente em desenhos e livros infantis. O perigo mora ao la-
do, nos enxames das chamadas abelhas selvagens, menos
conhecidas. Elas, sim, um tanto apartadas de trabalhos
científicos de controle ambiental, merecem atenção espe-
cial, para evitar que desapareçam. Um estudo publicado
na revista Nature mostra que, no intervalo de quase ses-
senta anos, o número de Apis mellifera, também alcunha-
da de africanizada ou europeia, quase duplicou em todo o
planeta: a produção de mel triplicou e a de cera mais do
que dobrou. Os autores do artigo basearam-se em dados
recolhidos pela Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), de
1961 a 2017.

2|5
Deve-se, portanto, separar o joio do trigo, evitando alar-
me desnecessário com um pedaço da fauna ainda controla-
da, apesar do estardalhaço. Há 20 000 espécies de abelhas
anotadas, catalogadas e reconhecíveis. Apenas uma peque-
na parte produz mel, mas todas, sem exceção, realizam po-
linização. Embora as abelhas sejam conhecidas por formar
colmeias comandadas por rainhas, somente 5% delas têm
vida social complexa. As outras, as mais silvestres, são soli-
tárias ou vivem em sociedades rudimentares.
O Brasil tem fauna apícola muito rica, com aproxima-
damente 2 000 tipos. As sociais são conhecidas como
abelhas-nativas-sem-ferrão, das quais foram identificadas
260 espécies — 36% delas ainda não foram descritas. E
todas desse time são nativas, como a Melipona capixaba
ou uruçu-preto, encontrada no Espírito Santo (veja no
quadro ao lado). “Destas espécies, 35% estão nas listas es-
taduais ou federal de animais ameaçados de extinção”, diz
Fábia de Mello Pereira, pesquisadora da reputada Empre-
sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
A atenção é fundamental. Os animais polinizadores
contribuíram para que a agricultura brasileira, em 2018,
faturasse um valor estimado em 43 bilhões de reais. No
país, 66% dos polinizadores são abelhas, sendo as selva-
gens mais eficientes que a Apis mellifera. A maior parte
das plantas das quais nos alimentamos, ressalte-se, só dá
frutos em decorrência desse processo da natureza. Se isso
não acontecer, elas não frutificam, atalho para a queda

3|5
PERIGO REAL
Espécies brasileiras que estão
de fato ameaçadas

Melipona scutellaris
(Norte e Nordeste)

Melipona capixaba
ou uruçu-preto (Espírito Santo)

Melipona rufiventris
(Cerrado)

Partamona littoralis
(Mata Atlântica)
Fonte: Ministério do Meio Ambiente
e Mudança do Clima

4|5
das safras de alimentos. No Brasil, já que as melíferas não
estão em todo lugar, é comum que o processo de transfe-
rência de grãos de pólen da parte masculina para a parte
feminina das plantas — eis a mágica — seja feita pelas
abelhas sem ferrão, que exigem cuidado para não desapa-
recerem do mapa. “As abelhas nativas adoram pólen de
café e pólen de laranja, cuja produção recebe contribuição
fundamental dos insetos voadores”, diz Leonardo Cam-
pana, biólogo e doutorando em genética da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, da USP.
Não se pode desdenhar dos riscos que ameaçam a Apis
mellifera — elas também pedem cuidado. Mas, reafirme-
se, a atenção precisa ser deslocada para as nativas. Um
problema comum a todas é o uso exagerado de agrotóxi-
cos, proibidos em vários países. “Aqui no Brasil eles são li-
berados e usados em larga escala”, diz Campana. Algu-
mas leis indicam o uso mais restrito de pesticidas em
áreas próximas às colmeias. Os apicultores também de-
vem se proteger. É zelo fundamental, mas talvez seja pou-
co para evitar a subtração de bichinhos tão essenciais. É
preciso dar uma ferroada nesse problema, sem esquecer
as “mais queridas” nem as solitárias. ƒ

5|5
GERAL SOCIEDADE
MICHEL MAKO/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

CALMA APARENTE O casal esteve junto


de 1943 a 1953: dois filhos

RETOQUE HISTÓRICO
Em movimento louvável, o Museu Picasso de Paris
inaugura uma sala dedicada a Françoise Gilot, a mulher
que teve coragem de dizer não para o gênio machista
MARÍLIA MONITCHELE

1|5
ELES SE CONHECERAM em 1943, durante a ocupação
nazista da França. Pablo Picasso tinha 61 anos e já era o
grande nome da pintura ocidental, incensado e temido —
homem dado a colecionar amantes e depois rejeitá-las
como quem atirava ao lixo uma paleta de tintas carcomi-
da pelo tempo. Françoise Gilot, de 21 anos, olhos verdes
cintilantes, filha de uma família muito rica, alimentava o
sonho da carreira artística, entre telas e cerâmicas. No
início, foi o melhor dos mundos — o gênio espanhol che-
gou a desenhá-la como uma flor. Tiveram dois filhos
(Claude e Paloma), viveram juntos dez anos, mas havia
algo de muito errado no relacionamento conduzido pela
arrogância, grosseria e violência do marido, cuja arte pa-
recia andar na contramão de sua intimidade. No auge de
uma discussão — e invariavelmente elas começavam com
a descoberta de traição — Picasso ameaçou queimá-la
com a ponta acesa de um cigarro.
Gilot desistiu. Fez as malas, levou as crianças e abando-
nou a casa em Vallauris, na Riviera Francesa. “Nenhuma
mulher deixa um homem como eu”, disse ele, segundo rela-
to da ex-mulher, publicado no livro A Minha Vida com Pi-
casso, best-seller internacional lançado em 1964 (mais de
1 milhão de exemplares vendidos) e que os advogados dele
tentaram por pelo menos três vezes barrar nos tribunais.
“Você acha que alguém vai se interessar por você? Mesmo
as pessoas que te apreciam terão apenas uma espécie de
curiosidade por uma pessoa cuja vida tocou a minha tão in-

2|5
PL GOULD/IMAGES/GETTY IMAGES

FUGA FORÇADA A artista, com uma de suas telas:


exílio nos Estados Unidos

timamente”, esbravejou o machão, como se pudesse reinven-


tar o passado e esculpir o futuro.
A vingança é prato que se come frio. Os curadores do
Museu Picasso, em Paris, acabam de anunciar a abertura
de uma sala dedicada à obra de Françoise Gilot, que mor-
reu em junho de 2023, aos 101 anos. Em pouco mais de
uma dezena de telas, há alternância entre o abstracionismo
e o figurativismo, as cores vivas e o cinza, em obras de ex-
celência (em junho de 2021, um de seus quadros, Paloma à

3|5
la Guitare, de 1965, foi leiloado na Sotheby’s americana
por 1,3 milhão de dólares). Não se trata, no salão parisien-
se dentro de uma bela mansão do bairro do Marais, é bom
lembrar, de recuperação e compilação dos óleos de Picasso
inspirados por Gilot. O jogo mudou; trata-se agora de reto-
car a história, em correção de um destino construído com
sordidez. “A maneira de Gilot ver o mundo, em trabalhos
de qualidade, era muito diferente da de Picasso”, disse a
VEJA Malte Herwig, autor de The Woman Who Says No,
ainda sem tradução para o português.
Ter Gilot como criadora e não como satélite subjugado a
Picasso é movimento extraordinário — conversa com os hu-
mores de nosso tempo, ao apartar a abjeta misoginia e bar-
rar a ideia de que os homens têm o direito de olhar para as
mulheres a partir da torre de marfim. Não pode ser assim, e
soa tola a convicção tão espraiada de que o jeito de Picasso
era retrato daquele tempo. O machismo não pode ser de
tempo algum. Não é o caso, também, de diminuir o tama-
nho de um dos grandes personagens do século XX, o autor
de Les Demoiselles d’Avignon e de Guernica. O mundo seria
pior, feio e insosso, sem o edifício de beleza erguido pela arte
de Picasso — e muito melhor se ele tivesse a hombridade de
respeitar as companheiras.
Picasso fez de tudo para destruir a carreira de Gilot. Pressio-
nou os donos de galerias e colecionadores a evitar os trabalhos
da mãe de seus filhos. Decidiu nunca mais vê-los — postura de-
pois confirmada com o lançamento do detalhado livro de me-

4|5
mórias. Françoise Gilot
deveria ser posta no lim-
bo, a mando do pintor. A
influência de seu nome
fez com que mais de oi-
tenta intelectuais france-
ses — todos homens —

SOTHEBYS/DIVULGAÇÃO
rubricassem um abaixo-
assinado contra a mulher
que teve coragem de di- ILUSÃO A tela A Mulher na
zer não e o mandou pas- Poltrona, a companheira pelo
sear. Viver na França, traço do pintor espanhol: a arte
portanto, era uma im- não imitava a vida
possibilidade. Gilot mu-
dou-se para os Estados Unidos, onde viria a se casar com o vi-
rologista americano Jonas Salk, o inventor da primeira vacina
antipólio. Reconstruir a vida era o único modo de imunizar-se.
Entrar na sala dedicada a Gilot e depois seguir pelo Museu
Picasso é fazer justiça. É caminho que pode ser traduzido por
uma frase de Paloma, a filha que ficou ao lado da mãe e nunca
deixou de criticar o comportamento do pai. Disse Paloma, lo-
go depois do ruidoso volume autobiográfico de Gilot: “Ela não
fez um livro contra Picasso, ela fez um livro que humanizou
Picasso. Por que ele deveria ser um homem perfeito? Torná-lo
uma espécie de Deus incontornável era um modo de lhe tirar
a humanidade”. Pôr as telas de Gilot ao lado das dele é manei-
ra de tirar o verniz do passado e iluminar o inaceitável. ƒ

5|5
CULTURA MÚSICA

OUSADIA
Beyoncé:
nova bandeira
identitária
INSTAGRAM @BEYONCE

a ser louvada

BOIADEIRA
EMPODERADA
Com novo disco country, Beyoncé desafia a
indústria pop e resgata as origens africanas
do gênero dominado por brancos — um passado
que expõe o modus operandi do racismo
RAQUEL CARNEIRO

1|6
A
o volante de um táxi, Beyoncé roda pela paisa-
gem desértica do sul dos Estados Unidos. O rá-
dio toca faixas de Charles Anderson e Son Hou-
se, precursores do blues na virada do século XX,
seguidas por Chuck Berry, pioneiro do rock nos
anos 1950. Além de inovadores, os três eram negros. De
repente, um grupo de homens surge em cena, e a divisão
entre eles é clara: de um lado estão brancos e do outro,
negros. Conforme a câmera se afasta, outros tipos sur-
gem e a separação de cores desaparece. Juntos, eles mi-
ram atônitos um outdoor com a cantora trajando apenas
lingerie e chapéu, e o título de sua nova canção, a dan-
çante Texas Hold ’Em. O vídeo de 57 segundos, exibido
no intervalo do badalado evento esportivo Super Bowl,
em fevereiro, foi o vislumbre inicial de Cowboy Carter,
primeiro álbum country de Beyoncé, que será lançado na
próxima sexta, 29. O clipe evidencia as intenções da es-
trela texana: ousada como de praxe, Beyoncé não quer só
mostrar mais um lado de sua versatilidade, mas mexer no
vespeiro do racismo por meio de um gênero musical caro
aos americanos.
Dominante em regiões historicamente preconceituosas
dos Estados Unidos, a música country é parte indissociável
do cotidiano da população branca. De Tim McGraw a
Dolly Parton, seus ídolos maiores têm pele alva — e recen-
temente surgiu até uma popular vertente de extrema direita
do country. O gênero é, por fim, símbolo da dita white cul-

2|6
BLOUNT COUNTY PUBLIC LIBRARY PHOTO

PIONEIRISMO Artistas afro-americanos:


ritmos iniciados nas senzalas do sul

ture — que defende a “brancura” como bandeira identitária


a ser louvada, assim como sua produção artística e sua car-
tilha moral particular. A ousadia de Beyoncé, previsivel-
mente, logo instaurou uma celeuma. Das redes sociais aos
corredores acadêmicos, a nova provocação da estrela pop
negra trouxe à tona velhas feridas raciais e ainda iluminou
estudos e teorias sobre as raízes do country — assim como

3|6
as talentosas mãos negras que
ajudaram a moldá-lo.
Esse resgate do passado
segue um caminho tortuoso.
O marco zero do country co-
meça com o banjo, instru-
mento de cordas feito a partir
da casca da cabaça, trazido
da África ocidental por escra-
vizados ao continente ameri-
cano. Eventualmente, o banjo
ganhou a companhia do vio-
lão, do violino e do bandolim,

JASON KOERNER/GETTY IMAGES


misturando referências musi-
cais africanas com a de imi-
grantes irlandeses e escoce-
ses. De tão atrelado aos ne- CRIATIVO
gros, o ritmo dedilhado e Lil Nas X: cantor desafia
dançante virou trilha sonora estereótipos de gênero —
dos lamentáveis shows cômi- tanto musical quanto sexual
cos de menestréis brancos,
que pintavam a cara de preto e dançavam em apresenta-
ções que ironizavam os africanos.
Eventualmente, a mistura de referências virou estilo e ga-
nhou o apelido de hillbilly — termo pejorativo que se referia às
canções populares feitas em regiões rurais e pobres. Suas le-
tras de fácil identificação, sobre dilemas morais e financeiros,

4|6
romances frustrados e a busca
por redenção religiosa, se espa-
lharam pelos Estados Unidos
dos anos 1920 e 1930, sob a
sombra da Primeira Guerra e
da Grande Depressão. Não de-
morou para a tendência ser
abraçada pela indústria fono-
gráfica — que rebatizou, em
1949, o hillbilly de country
music, expressão que evoca as
tradições e os costumes da vi-
da simples no interior. A exclu-
ETHAN MILLER/GETTY IMAGES

são definitiva de artistas negros


do meio se deu com a política
de segregação: rádios e grava-
ADAPTADO Garth doras priorizavam cantores
Brooks: maior astro do brancos — enquanto toda a
country atual se rebelou produção negra era comerciali-
contra preconceitos zada sob o selo de race music,
ou música racial.
Mesmo distante, a história se repete. Beyoncé experi-
mentou tal resistência recentemente, quando uma rádio no
meio-oeste americano se recusou a tocar Texas Hold ’Em.
“Somos uma rádio country”, explicou a estação de forma
ríspida. Em 2016, quando lançou a música Daddy Lessons,
seu primeiro flerte com o ritmo, o Grammy barrou a ins-

5|6
crição da faixa na categoria country. Três anos depois, ou-
tro impropério: o jovem cantor Lil Nas X, que desafia to-
das as barreiras de gênero — tanto musicais quanto se-
xuais —, foi retirado da parada country da Billboard pelo
hit Old Town Road, mesmo sendo uma parceria com Billy
Ray Cyrus, um astro (branco) do filão.
Se o racismo surge sem ser chamado, os bastidores tra-
zem sinais de otimismo. Assim como Lil Nas X e Cyrus, ou-
tras parcerias mostram o poder da união entre os diferentes.
Estrela incontestável do gênero, Johnny Cash (1932-2003)
foi pupilo de Gus Cannon (1883-1979), mestre negro do ban-
jo. Cantor com a maior vendagem da história do country,
Garth Brooks, republicano assumido, recentemente defen-
deu uma marca de cerveja “cancelada” por trazer uma mu-
lher trans no comercial. Ele, então, afirmou que, se o coun-
try é uma reunião de preconceitos, então não era mais parte
da trupe — rejeitando, assim, a fama de reaça. Beyoncé exi-
giu o direito de pisar com bota e chapéu nesse terreno mina-
do, e não vai parar por aí: rumores sugerem que seu próxi-
mo álbum será de rock, outro gênero de origem negra. Co-
mo boa boiadeira, ela pega o que é seu no laço. ƒ

6|6
CULTURA CINEMA
A24 FILMS

PESADELO SURREAL
No filme O Homem dos Sonhos, Nicolas Cage
vive um sujeito apagado que invade a mente
de milhões — uma sátira à cultura da fama
que é mais um passo no resgate do astro

1|4
ONÍRICO E
CANASTRÃO
Nicolas Cage como
Paul Matthews:
professor vai do
deslumbramento
ao cancelamento

PAUL MATTHEWS (Nicolas Cage) é o clássico zé-nin-


guém. Professor universitário de uma disciplina tediosa,
ele só desperta sono e desdém nos alunos, que mal lem-
bram seu nome. Certo dia, porém, algo insólito sacode sua
vida: Paul é informado por pessoas próximas que ele vem
aparecendo, do nada, nos sonhos delas. O relato mais elo-
quente é o de uma namoradinha da adolescência que ele

2|4
não vê há anos e o aborda na saída do cinema para narrar
suas visões noturnas do ex. Envaidecido com a situação,
ele topa um encontro com a amiga — mas logo descobre,
constrangidíssimo, que ela busca apenas autorização para
escrever um artigo sobre os tais sonhos num jornal on-li-
ne. Após a publicação, Matthews vê sua história viralizar
nas redes sociais. Redes de TV o convidam para entrevis-
tas e grandes marcas o cortejam para garoto-propaganda.
De uma hora para outra, sua vida vira de cabeça para bai-
xo e ele se torna uma celebridade global.
A premissa de O Homem dos Sonhos, que estreia nos ci-
nemas na quinta-feira 28, é curiosa: o longa bebe dos postu-
lados da psicanálise para tecer uma sátira da indústria da
fama na era digital. No enredo, especialistas levantam hipó-
teses sobre o fenômeno que atinge o apagado Paul e os ou-
tros milhões de seres humanos que o veem das mais diver-
sas formas em seus sonhos (ainda que sempre numa posição
de figurante “neutro”). Sobram explicações que envolvem as
teorias de Sigmund Freud (1856-1939), mas nenhuma delas
soa minimamente plausível. “Devo ser especial”, opina o
personagem num momento de deslumbre com o sucesso.
Embora contenha elementos cômicos, O Homem dos So-
nhos passa longe do riso fácil. Aos poucos, o filme do diretor
norueguês Kristoffer Borgli e do produtor americano Ari
Aster, do perturbador Midsommar, desvela a sina sombria
por trás do personagem. De repente, os sonhos se transfor-
mam em pesadelos e ninguém quer mais estar perto dele.

3|4
Para além do inexplicável fenômeno onírico, o tema de fun-
do é a gangorra cruel da internet: assim como ocorre com
tantos influencers, o homem sem qualidades invade a mente
das pessoas de forma irresistível, mas acaba julgado e can-
celado no tribunal das redes.
Careca, barbudo e barrigudo, Nicolas Cage vai bem no
papel do tiozão canastrão alheio ao mundo moderno mas
que se torna vítima dele. Com a estampa de loser (ou perde-
dor), ele dá mais um passo no resgate de sua imagem de as-
tro caído, processo iniciado em produções como Pig (2021)
e O Peso do Talento (2022). Contido e discreto em cena, Ca-
ge gera desconforto genuíno — o que nem Freud explica. ƒ

Felipe Branco Cruz

4|4
CULTURA STREAMING
APPLE TV+

COMPLÔ CONTRA
A AMÉRICA
Ao narrar a impiedosa caçada ao assassino
de Lincoln, a série Último Ato expõe a penosa
reconstrução da democracia dos Estados
Unidos após a guerra civil AMANDA CAPUANO

1|6
VILÃO EM CENA
Anthony Boyle como
Booth: assassino
apoiava as forças
confederadas

NA NOITE de 14 de abril de 1865, cinco dias após o fim da


Guerra de Secessão, o então vitorioso presidente americano
Abraham Lincoln (1809-1865) e sua esposa, Mary, se dirigi-
ram ao Ford’s Theatre, em Washington, para assistir à peça
Our American Cousin. Além do casal, estavam no camarote
o major Henry Rathbone e sua noiva, Clara Harris, que pre-
senciaram um dos momentos mais decisivos — e assus-
tadores — da história dos Estados Unidos. Pouco depois das
22 horas, enquanto a plateia ria em coro, o ator John Wilkes

2|6
Booth (1838-1865) — que não estava no elenco — se posicio-
nou atrás da cortina do camarote e desferiu um tiro na nuca
de Lincoln. Após o atentado, bradou frases como “liberdade
para o sul” e “assim sempre aos tiranos”, fugindo do local
em seguida. Gravemente ferido, Lincoln morreu poucas ho-
ras depois, e iniciou-se uma caçada a seu assassino. A corri-
da para capturar Booth e todos que participaram do plano
conspiratório é apresentada na afiada Último Ato, série da
Apple TV+ que acaba de chegar ao streaming, com episó-
dios semanais às sextas-feiras.
Inspirada no livro A Caçada ao Assassino de Lincoln: 12
Dias que Abalaram os EUA (Record), do historiador James
L. Swanson, a trama da Apple é o exemplar mais recente de
um filão vigoroso na plataforma: a ficção histórica que ilu-
mina figuras e momentos importantes dos Estados Unidos,
extraindo do passado lições valiosas para o presente. Recen-
temente, Mestres do Ar levou para as telas a história do 100º
Grupo de Bombardeiros, aviadores que combateram os na-
zistas durante a Segunda Guerra Mundial. Em abril, lançará
a minissérie Franklin, focada na influência que Benjamin
Franklin e sua aliança com os iluministas franceses teve na
independência americana. No mês seguinte, chega The Big
Cigar, drama que narra a fuga do líder dos Panteras Negras,
Huey P. Newton, para Cuba.
No caso de Último Ato, a contribuição para se conhecer
em profundidade a história americana é dupla: a série retrata
os esforços de reconstrução do país nos tempos que se segui-

3|6
COURTESY OF THE NATIONAL ARCHIVES/NEWSMAKERS/GETTY IMAGES

HISTÓRIA O Lincoln real: primeiro presidente


assassinado no país

ram ao fim da guerra civil e à morte de Lincoln — e expõe a


biografia e as ideias tortas de seu assassino. Ator de carreira,
Booth (Anthony Boyle) tinha obsessão pela fama, e matar o
presidente faria dele um homem conhecido no país. Essa, no
entanto, não foi sua única motivação: em uma nação polari-
zada, Booth era simpatizante ferrenho dos confederados, que
estavam revoltados com os esforços de Lincoln pelo fim da
escravidão e a promoção de direitos aos negros americanos.

4|6
Foi nesse contexto que ele conseguiu angariar um grupo
de apoiadores para um plano que, caso desse certo, teria lan-
çado o país no caos: sua intenção era matar não só o presi-
dente, mas também o vice, Andrew Johnson (Glenn Mor-
shower), e o secretário de Estado, William Seward (Larry
Pine), deixando os Estados Unidos sem um líder imediato.
Mas Booth foi o único a completar a tarefa: Seward foi esfa-
queado, mas sobreviveu, e Johnson nem sequer foi ferido —
o encarregado de matá-lo teria se embriagado e perdido a
coragem de cometer o crime.
O protagonista de fato da série é o secretário da Guerra,
Edwin Stanton (Tobias Menzies), braço direito de Lincoln
(Hamish Linklater) e líder da operação de caça ao assassino.
Com Stanton em sua cola, Booth se escondeu por doze dias,
mas acabou cercado pelas forças da União num celeiro na
Virgínia. A ideia era capturá-lo vivo, mas ele foi morto com
um tiro na nuca, assim como matara Lincoln. Controverso,
o tribunal militar ouviu quase 400 pessoas, entre elas Mary
Simms (Lovie Simone), que depôs contra o homem que a es-
cravizou. Ao final, outras oito pessoas foram condenadas
por conspiração, quatro à forca e os demais à prisão. Um es-
pião chegou a dizer que o presidente confederado, Jefferson
Davis, estava envolvido, mas não havia evidências de que ele
tivesse relação com o assassinato.
O que veio a partir daí foi um processo de reconstrução
cercado de ameaças: assumindo o cargo após a morte de Lin-
coln, o vice Johnson perdoou uma série de confederados con-

5|6
APPLE TV+

HORA TRÁGICA Lincoln (Hamish Linklater, à dir.)


e a esposa, Mary: tiro na nuca

denados, inclusive pelo complô que matou seu antecessor, e


se opôs a leis que davam direitos aos negros, entrando em ro-
ta de colisão com o Congresso — que, felizmente, ratificou a
abolição. Johnson quase sofreu um impeachment, mas faltou
um voto para que fosse retirado do cargo, e, assim como Do-
nald Trump faria mais de um século depois, se recusou a
comparecer à posse do sucessor. Algumas coisas não mudam
— e conhecer o passado é um alerta instrutivo. ƒ

6|6
CULTURA LIVROS

PÁGINAS DE
CONFORTO
O êxito de obras como Antes que o Café Esfrie e
A Biblioteca da Meia-Noite expõe força de novo
fenômeno: a “literatura de cura”, que une tramas
inspiradoras a cenários fofos KELLY MIYASHIRO

VIAGEM NO TEMPO O filme Antes que o Café Esfrie:


romance virou série

DIVULGAÇÃO

1|5
APÓS DESCOBRIR que seu ex-namorado ficou noivo de
uma colega de trabalho, Takako pede demissão para não to-
par com o casal nos corredores da empresa. Desolada e sem
perspectiva, a jovem de 25 anos recebe a inesperada propos-
ta de trabalhar com um tio excêntrico e distante, Satoru, do-
no de uma livraria capenga em Jinbôchô — bairro de Tó-
quio tomado por sebos e cafés. Apesar da relutância em re-
construir sua relação com o parente e da aversão à leitura
até então, Takako encontra forças para se reerguer com a
ajuda dos livros empoeirados e das pessoas peculiares da
pequena comunidade japonesa. Com esse enredo prosaico,
o romance Meus Dias na Livraria Morisaki, de Satoshi Ya-
gisawa, chegou longe. Publicada no Japão em 2009, a obra
foi traduzida para mais de vinte línguas. Quando enfim de-
sembarcou no país, em novembro do ano passado (pelo selo
Bertrand Brasil, da Record), já exibia a aura de fenômeno
editorial: o livro foi um dos pioneiros do subgênero conheci-
do como healing fiction, ou ficção de cura, tendência que
vem atraindo leitores ao redor do mundo.
O termo surgiu pela primeira vez em uma publicação de
1998 do psicólogo americano James Hillman (1926-2011),
que estudava narrativas literárias de propriedades suposta-
mente terapêuticas. A expressão logo foi tomada de emprés-
timo pelo mercado livreiro para classificar obras de ficção
que se valem de um cenário simples e inspirador — pode ser
uma livraria simpática, uma biblioteca ou o mero balcão de
um café descolado — para tecer narrativas de superação e

2|5
COREANA
Hwang Bo-reum:
engenheira vertida
em escritora
SEONG JI/DIVULGAÇÃO

reencontro do amor-próprio. Em suma, algo que una uma


história fácil de digerir a uma pitada disfarçada (mas nem
tanto) de autoajuda motivacional.
Num mundo cheio de pessoas ansiosas em razão de fato-
res tão diversos quanto as sequelas psicológicas da pande-
mia ou o consumo desenfreado das redes sociais, a procura
por tramas cotidianas e descomplicadas veio ocupar espaço
rentável no mercado. A onda importada é propulsionada
principalmente por escritores orientais. O também japonês
Toshikazu Kawaguchi virou best-seller com a série Antes
que o Café Esfrie. A franquia já vendeu mais de 3 milhões de
cópias de seus três volumes no mundo — sendo 200 000 só
no Brasil, segundo a editora Valentina, que publica a versão
nacional. Na história, pessoas vão a uma cafeteria de pro-
priedades mágicas, que lhes permite viajar ao passado en-
quanto tomam uma xícara de café, mas sob a condição de

3|5
que não será possível alterar o
futuro — os frequentadores vão
ao encontro de entes queridos
apenas para buscar certas res-
postas. A obra virou filme de

MARIKO TOSA/DIVULGAÇÃO
sucesso no Japão em 2018.
Não é difícil detectar o apelo
universal desses romances.
Com sua simplicidade e aceno a HIT ORIENTAL Michiko:
uma vida mais tranquila, eles uma biblioteca e sonhos
atraem jovens de países asiáti-
cos em que, apesar do nível educacional altíssimo, o desa-
lento econômico é uma triste realidade para muitos. Bem-
vindos à Livraria Hyunam-dong, da sul-coreana Hwang Bo
-reum e publicado aqui pela Intrínseca, vendeu mais de
250 000 cópias só em seu país de origem. No enredo, a per-
sonagem Yeongju realiza o sonho de abrir uma livraria após
se sentir frustrada com a carreira e a pressão de ser bem-su-
cedida. “Muitos coreanos expressaram que a obra os ajudou.
Talvez seja porque poucas pessoas na nossa cultura contem
histórias assim”, diz Hwang — que, além de escritora, é en-
genheira de software. Para a autora, o ponto de vista corea-
no de sua criação, em que a excelência acadêmica e profis-
sional é cobrada pelos pais desde a infância, tocou também
o público do Ocidente.
Originalidade nos cenários não é, pelo jeito, uma preocu-
pação aqui: bibliotecas, por exemplo, são tema de mais de

4|5
um sucesso do gênero. A japo-
nesa Michiko Aoyama já ven-
deu mais de 250 000 cópias de
A Biblioteca dos Sonhos Secre-
tos, que reúne histórias de per-
sonagens conectados entre si
por livros. Escritores não orien-

DIVULGAÇÃO
tais também tiram sua casqui-
nha. A Biblioteca da Meia-Noi- PIONEIRO Satoshi: livro
te, do inglês Matt Haig, acumu- japonês ganhou o mundo
la 600 000 unidades vendidas e
figura há 89 semanas nos Mais Vendidos de VEJA. Nele,
uma mulher de 35 anos está prestes a cometer um ato extre-
mo, até que encontra em uma biblioteca a possibilidade de
experienciar todas as vidas que poderia ter tido. O best-sel-
ler é exemplo de outra tática vitoriosa das obras de cura: a
categoria se destaca pelas capas com estética oriental de co-
res claras e traços minimalistas.
Para especialistas do setor, o crescimento do nicho ex-
põe uma mudança no humor dos leitores. “São obras sensí-
veis que nos convidam a refletir”, pontua Talitha Perissé,
editora da Intrínseca. “O fenômeno ganhou tração porque,
em tempos aflitivos, as pessoas acham nessas obras tran-
quilidade, conforto e redenção”, completa Cassiano Elek
Machado, diretor do Grupo Record. A literatura que cura
a alma também faz um bem danado, claro, aos balanços
das editoras. ƒ

5|5
CULTURA VEJA RECOMENDA
IMAGEM FILMES

AMIZADE ABALADA Anne Hathaway e Jessica Chastain:


atrizes brilham em thriller psicológico

CINEMA
INSTINTO MATERNO
(Mothers’ Instinct, Estados Unidos, 2024. Estreia na quinta-feira, 28)
A vida de Alice e Celine — vividas com brilho por Jessica
Chastain e Anne Hathaway, respectivamente — beira a per-
feição. Vizinhas em um bairro idílico, elas são melhores
amigas, quase irmãs — boa relação que se estende aos mari-
dos e aos filhos, dois meninos adoráveis da mesma idade. A
proximidade é abalada por uma tragédia envolvendo uma
das crianças. Ambas se sentem responsáveis pelo ocorrido
— ao mesmo tempo que, secretamente, culpam uma à outra.
O que se complica quando Alice desconfia da índole da ami-
ga — início de um ciclo de paranoias que dá o tom do thril-
ler psicológico do diretor Benoît Delhomme. Adaptação do
livro da belga Barbara Abel, a produção se ampara na força
das duas protagonistas, enquanto discorre sobre os limites
dos papéis femininos e o peso da maternidade.

1|8
COMBATENTE
Gyllenhaal no filme:
lutador aposentado
bancando o herói
LAURA RADFORD/PRIME VIDEO

TELEVISÃO
MATADOR DE ALUGUEL
(Road House, Estados Unidos, 2024. Disponível no Amazon Prime Video)
Lutador de UFC aposentado após um acidente que o atormen-
ta, Dalton (Jake Gyllenhaal) ganha seu sustento brigando
com fortões amadores por dinheiro. Depois de quase ti-
rar a própria vida, ele decide aceitar a proposta de em-
prego de Frankie (Jessica Williams), dona de um bar de
beira de estrada, para dar um jeito nos arruaceiros que
andam perturbando a paz do local. Sua presença em Flo-
rida Keys, porém, irrita ricaços mal-intencionados e ban-
didos. No remake do filme estrelado por Patrick Swayze
em 1989, um musculoso Gyllenhaal impressiona nas ce-
nas com o lutador real Conor McGregor.

2|8
DISCO
HAPPINESS BASTARDS,
de The Black Crowes
(nas plataformas de streaming)
Desde que fizeram as pazes, em 2019, os irmãos Chris e Ri-
ch Robinson têm realizado só shows celebrando os trinta
anos do álbum de estreia dos Black Crowes, Shake Your Mo-
ney Maker. Agora, enfim, lançam seu primeiro disco inédito
em quinze anos, resgatando sua sonoridade calcada no hard
rock dos anos 1970, mas com toque moderno. Cross Your
Fingers soa como se o violão dos Allman Brothers se mes-
classe à potência de Led Zeppelin. No blues Bleed It Dry, o
piano é tocado ao curioso estilo honky-tonk. ƒ

3|8
CULTURA OS MAIS VENDIDOS

OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 tuDo é rio
Carla Madeira [7 | 77#] RECORD

2 é assim Que Começa


Colleen Hoover [8 | 69] GALERA RECORD

3 é assim Que aCaba


Colleen Hoover [6 | 131#] GALERA RECORD

4 a biblioteCa Da meia-noite
Matt Haig [2 | 89#] BERTRAND BRASIL

5 VeritY
Colleen Hoover [5 | 101#] GALERA RECORD

6 a natureZa Da morDiDa
Carla Madeira [0 | 1] RECORD

7 a PaCiente silenCiosa
Alex Michaelides [0 | 30#] RECORD

8 VésPera
Carla Madeira [0 | 2#] RECORD

9 toDas as suas imPerfeições


Colleen Hoover [0 | 99#] GALERA RECORD

10 o aVesso Da Pele
Jeferson Tenório [1 | 3#] COMPANHIA DAS LETRAS

4|8
NÃO FICÇÃO
1 em busCa De mim
Viola Davis [10 | 71#] BEST SELLER

2 saPiens: uma breVe História Da HumaniDaDe


Yuval Noah Harari [0 | 360#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

3 o PaCto Da branQuituDe
Cida Bento [8 | 13#] COMPANHIA DAS LETRAS

4 ráPiDo e DeVagar
Daniel Kahneman [0 | 190#] OBJETIVA

5 se não eu, Quem Vai faZer VoCê feliZ?


Graziela Gonçalves [7 | 10#] PARALELA

6 boX biblioteCa estoiCa: granDes mestres


Vários autores [9 | 32#] CAMELOT EDITORA

7 amigos, amores e aQuela Coisa terríVel


Matthew Perry [0 | 10#] BEST SELLER

8 a ViDa não é útil


Ailton Krenak [0 | 8#] COMPANHIA DAS LETRAS

9 mulHeres Que Correm Com os lobos


Clarissa Pinkola Estés [1 | 181#] ROCCO

10 o Diário De anne franK


Anne Frank [0 | 319#] VÁRIAS EDITORAS

5|8
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Júnior Rostirola [1 | 13#] VÉLOS

2 essenCialismo
Greg McKeown [7 | 35#] SEXTANTE/GMT

3 Hábitos atômiCos
James Clear [6 | 40#] ALTA BOOKS

4 a gente mira no amor e aCerta na soliDão


Ana Suy [0 | 2#] PAIDÓS

5 o Homem mais riCo Da babilônia


George S. Clason [3 | 160#] HARPERCOLLINS BRASIL

6 aurora
Marcela Ceribelli [0 | 1] HARPERCOLLINS BRASIL

7 as Coisas Que VoCê só Vê QuanDo DesaCelera


Haemin Sunim [0 | 9#] SEXTANTE

8 os segreDos Da mente milionária


T. Harv Eker [9 | 451#] SEXTANTE

9 a Coragem De ser imPerfeito


Brené Brown [0 | 72#] SEXTANTE

10 minDset
Carol S. Dweck [0 | 132#] OBJETIVA

6|8
INFANTOJUVENIL
1 até o Verão terminar
Colleen Hoover [0 | 85#] GALERA RECORD

2 Kit HoPeless
Colleen Hoover [0 | 7#] GALERA RECORD

3 o PeQueno PrínCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [1 | 410#] VÁRIAS EDITORAS

4 noVembro, 9
Colleen Hoover [0 | 44#] GALERA RECORD

5 CiDaDe Da lua CresCente: Casa De Céu e soPro


Sarah J. Mass [0 | 3#] GALERA RECORD

6 amênDoas
Won-pyung Sohn [0 | 19#] ROCCO

7 minHa ViDa fora De série


Paula Pimenta [0 | 1] GUTENBERG

8 Corte De esPinHos e rosas


Sarah J. Maas [0 | 57#] GALERA RECORD

9 as CrôniCas De nárnia: PrínCiPe CasPian


C.S. Lewis [0 | 2#] HARPERCOLLINS BRASIL

10 emoCionário
Cristina Núñez Pereira [0 | 8#] SEXTANTE

7|8
[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas
o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita:
Real Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte:
Disal, Jenipapo, Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos,
Betim: Leitura, Blumenau: Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS,
Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas:
Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande:
Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas:
Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página,
Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro,
Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar,
Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Frederico Westphalen: Vitrola,
Garopaba: Livraria Navegar, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares:
Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos:
Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa
Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura,
Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba,
Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente, Maringá: Curitiba,
Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal: Leitura, Niterói: Blooks, Palmas:
Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis: Vozes, Poços de Caldas:
Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Disal, Leitura,
Macun Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho: Leitura,
Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Rio Claro:
Livruz, Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci,
Odontomedi, SBS, Rio Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura,
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Santos: Loyola, São Bernardo do Campo: Leitura, São Caetano do Sul: Disal, Livraria da
Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página, Curitiba, São José do Rio Preto:
Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba, Leitura, São José dos Pinhais: Curitiba,
São Luís: Hélio Books, Leitura, São Paulo: A Página, B307, Círculo, Cult Café Livro
Música, Curitiba, Disal, Dois Pontos, Drummond, Essência, HiperLivros,
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Santuário, SBS, Simples, Vozes, Vida, WMF Martins Fontes, Serra: Leitura,
Sete Lagoas: Leitura, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura,
Teresina: Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura,
Vitória: Leitura, SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: Amazon, A Página,
Authentic E-commerce, Boa Viagem E-commerce, Canal dos Livros, Curitiba,
Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza, Sinopsys, Submarino, Travessa, Um Livro,
Vanguarda, WMF Martins Fontes

8|8
JOSÉ CASADO

CRISE SEM FIM


NUM SÁBADO de verão do ano passado, Lula viajou a
Boa Vista. Saiu da paisagem depredada das sedes do gover-
no, do Judiciário e do Congresso, alvos da insurreição bol-
sonarista frustrada duas semanas antes. Foi ver de perto
outra emergência nacional, a tragédia humanitária no pe-
daço da Amazônia ocupado pelos ianomâmis, que tem o
tamanho de Pernambuco.
O chefe dos “naba”, como os não indígenas são chamados
pelos nativos, levou sete ministros ao posto de saúde que
atende comunidades isoladas, distantes dez dias a pé flores-
ta adentro. Todos se chocaram com a devastação causada
pela malária e a desnutrição em sete de cada dez nativos. Ele
discursou, prometeu comida, saúde e segurança. No fim do
dia retornou ao cenário de palácios pilhados em Brasília.
Ainda não completara três semanas do terceiro mandato.
Em reunião na semana passada, ele quis saber da minis-
tra da Saúde, Nísia Trindade, e do chefe da Casa Civil, Rui
Costa, por que o governo segue patinando na crise humani-
tária amazônica, enquanto a mineração ilegal de ouro avan-
ça, derrubando a floresta e contaminando os rios. O minis-
tro hesitou, a ministra lacrimejou, o presidente isentou-se.

1|4
Resposta objetiva está em recente relatório da Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos, sediada em Washing-
ton: o governo atropelou-se numa teia burocrática de “gabi-
netes interministeriais”, “comitês de crise” e “salas de situa-
ção” com dezoito órgãos federais e 233 planos “emergen-
ciais” e “estruturantes” para a tragédia dos ianomâmis.
Coisa parecida aconteceu duas décadas atrás com o Fo-
me Zero. Em janeiro de 2003, Lula anunciou o programa
como “grande causa nacional, como foram a criação da
Petrobras e a memorável luta pela redemocratização do
país”. Antes de completar 100 dias do mandato inaugural
no Planalto, o epílogo do Fome Zero já transparecia nas di-
ficuldades operacionais — em março, por exemplo, o Ban-
co do Brasil e a Caixa Econômica desconheciam o sistema
para doações financeiras.
Lula costuma driblar com habilidade a inoperância ao
redor, que nunca foi exclusividade das suas administra-
ções e atravessa o espelho do tempo de diferentes gover-
nos. Nessas situações recorre sempre ao manual do “pai
dos pobres”, um clássico de Getúlio Vargas, realçando “o
olhar (na Presidência) mais generoso para aquelas pes-
soas que mais necessitam”. Na semana passada, lembrou
aos 39 ministros: “Essa é uma marca que eu consegui fa-
zer com que desse certo no governo, nos meus dois pri-
meiros mandatos, e eu voltei para garantir isso outra vez”.
Eles entenderam, dispensando menções à campanha pre-
sidencial de 2026.

2|4
“Loteamento político
da saúde pública
só ajuda grupos de
interesses privados”
O melhor discurso, no entanto, perde eficácia quando as
pesquisas registram aumento na insatisfação dos eleitores
com a incúria no balcão das políticas públicas. Na saúde co-
letiva, por exemplo, não há retórica eloquente capaz de su-
perar a realidade recorrente nas imagens de indígenas ama-
zônicos empalidecidos, em pele sobre ossos, ou de cadeiran-
tes cariocas se arrastando na escadaria de hospitais federais,
porque o elevador não funciona, na luta para entrar na fila
de 9 000 pessoas que há mais de um ano esperam por cirur-
gia de coluna, cotovelo, joelho e ombro.
A indigência sanitária federal não é novidade, já faz
parte da paisagem nos 5 000 quilômetros entre a Baía de
Guanabara e a bacia da Amazônia. Por trás, percebe-se
um enredo comum e determinante da má gestão: o lotea-
mento político da saúde pública que permite o predomínio
de interesses privados no manejo do terceiro maior orça-
mento da Esplanada dos Ministérios (cerca de 230 bilhões
de reais por ano). Oligarquias e máfias negociam o con-

3|4
trole dos postos de saúde indígenas na floresta e da rede
hospitalar federal na cidade do Rio.
Dois anos atrás, a CPI da Pandemia mapeou o conluio de
37 empresas na partilha dos contratos de serviços aos seis
hospitais e três institutos federais do Rio, inclusive na lava-
gem de lucros no Uruguai e em Portugal. Cada governo tro-
ca a guarda partidária, mas os negócios seguem fluentes no
sucateamento da rede de saúde. Já nem é preciso contrata-
ção direta com o ministério em Brasília, as irregularidades
ocorrem nas relações locais entre algumas organizações so-
ciais, empresas de serviços, administradores e “agentes polí-
ticos diretamente interessados nos esquemas”.
Nessa política de saúde coletiva, onde o interesse público
é partidário e mafiosamente privatizado, não há discurso
capaz de driblar a realidade de 80% dos eleitores que só têm
o Sistema Único de Saúde como primeiro e último recurso. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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