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CARTA AO LEITOR

ANTONIO MOURA/AG. O GLOBO RAPHAEL RIBEIRO/BCB

FANTASMA DO PASSADO Remarcação de preços em


supermercados e Campos Neto: atuação firme do BC
controlou a inflação

UMA BELA VITÓRIA


NÃO É NENHUM EXAGERO dizer que a inflação, mais
até do que guerras e desastres naturais, está entre os
maiores pesadelos dos brasileiros. Cidadãos com mais de
50 anos de idade se lembram das altas taxas atingidas
mês a mês, do descontrole na remarcação de preços e do
caos provocado nas finanças pessoais e públicas. Os mais

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desfavorecidos sofriam em dobro. Sem ter como se prote-


ger da majoração diária, viam sua renda ser dilacerada
pelo faminto dragão inflacionário — 30%, 40%, até 80%
em apenas trinta dias. Pacotes e pacotes foram lançados.
Nada funcionava. O quadro era absolutamente desolador
até que finalmente o Plano Real conseguiu debelar o pro-
blema, em julho de 1994.
De lá para cá, algumas recaídas aconteceram (nada
próximo do descontrole anterior, é verdade). Uma delas,
porém, tinha potencial para causar estragos. Alimentado
pelo fim da pandemia, com a enxurrada de recursos públi-
cos para recuperar a economia e a explosão do consumo, o
dragão da inflação voltou a soltar labaredas pelas ventas.
O fenômeno, por sinal, foi mundial. Mesmo países com um
histórico de estabilidade no tema — Estados Unidos, Reino
Unido, França — passaram a conviver com taxas bem aci-
ma do recomendável. No Brasil, a meta inflacionária foi ul-
trapassada, dando sinais preocupantes sobre o que poderia
vir pela frente. Momentos de triste memória voltaram a
atemorizar o consumidor brasileiro.
É sempre bom ter cautela em assuntos econômicos,
mas já é possível dizer que o dragão, por ora, está doma-
do. A reportagem que começa na página 50 traz os deta-
lhes dessa batalha travada nos últimos dois anos. Em re-
sumo, trata-se de um trabalho muito bem-sucedido con-
duzido pelo Banco Central e seu presidente, Roberto
Campos Neto. Baseado em critérios técnicos, sem nenhu-

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ma interferência política, o BC manteve o animal perver-


so na jaula subindo os juros, mesmo em um ano de eleição
(2022) e em meio a muita controvérsia na condução eco-
nômica (2023). O resultado cristalizou-se em dois núme-
ros divulgados na semana passada. Nos últimos doze me-
ses, a inflação brasileira está em 4,68%, dentro da meta
estabelecida. Na quarta, ministrando uma dose cada vez
menor do remédio, o BC baixou, mais uma vez, os juros,
de 12,25% ao ano para 11,75%.
Os neoespecialistas em política e os críticos de plantão
dizem que a “mídia”, numa generalização descabida, não
sabe reconhecer trabalhos bem-feitos, demonstrando re-
sistência em elogiar atuações de autoridades públicas. Ao
longo dos seus 55 anos, VEJA definitivamente nunca se
encaixou nessa descrição. Com a mesma ênfase com que
apontamos os erros, reconhecemos os méritos do Plano
Real, a força das instituições brasileiras, as conquistas do
agronegócio e os avanços da agenda verde no país, para ci-
tar apenas algumas pautas. Pela mesma razão, damos pa-
rabéns ao presidente do BC, Roberto Campos Neto. Que
bela vitória sobre essa recaída de surto inflacionário. Infe-
lizmente, no entanto, a vigilância precisa ser permanente.
Tomara que o governo Lula não caia na tentação do gasto
público em 2024 e reverta essa relevante conquista. ƒ

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ENTREVISTA AÉCIO NEVES
RUY BARON/BARONIMAGENS

O PT É DO CENTRÃO
Após anos de ostracismo, deputado volta a dar as
cartas no PSDB e promete liderar a oposição, dizendo
que o presidente Lula exagera na irresponsabilidade
fiscal e no pragmatismo político
LAÍSA DALL’AGNOL

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RECÉM-ELEITO para comandar o Instituto Teotônio Vile-


la, braço de formação política do PSDB, o deputado federal
Aécio Neves avalia com muito otimismo as perspectivas da
sigla. Entre os planos estão a reconstrução de um partido fra-
turado por disputas internas e debilitado pela perda de pres-
tígio entre o eleitorado. Um baque que se confunde com a tra-
jetória do ex-governador mineiro, que experimentou dias de
ostracismo após ser flagrado em gravação pedindo dinheiro
ao empresário Joesley Batista. Absolvido pela Justiça em ju-
lho, ele retomou o protagonismo no partido, ao articular a
eleição da nova direção nacional, e prepara novos voos polí-
ticos tanto para ele, que pretende retornar ao comando de
Minas, quanto para a legenda, que planeja colocar na linha
de frente da oposição ao governo Lula. Em entrevista a VE-
JA, o deputado criticou duramente o presidente — que acusa
de irresponsabilidade fiscal e de promover uma agenda do
atraso — e a polarização entre petismo e bolsonarismo. Tam-
bém relembrou o quanto esteve perto de ser presidente da
República em 2014 e se disse vítima dos “abusos” da Lava-
Jato: “Existia um projeto político por trás da operação, que
custou caro ao país e que deu espaço a projetos mirabolan-
tes”. Confira a seguir os melhores trechos da conversa.

O PSDB tem chances reais de recuperar a relevância?


O PSDB tem feito um esforço hercúleo para superar equí-
vocos que cometeu no passado recente, como ao não lan-
çar candidato à Presidência da República, o que levou ao

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pior desempenho eleitoral em anos. A história da legen-


da é o seu passaporte para o futuro e é isso que é precisa-
mos fazer: voltar a falar com os brasileiros que, por mui-
to tempo, votaram no PSDB. O partido deve liderar um
novo caminho para o país.

O senhor está à frente do Instituto Teotônio Vilela, braço


de formação política da sigla. Quais serão as suas priori-
dades? O ITV terá a missão, em primeiro lugar, de criar o
que chamo de “farol da oposição”. Já em janeiro vamos reu-
nir uma equipe de economistas, intelectuais, pessoas liga-
das a movimentos sociais, para construir o novo discurso
do PSDB. E vamos formar quadros qualificados, tanto para
as eleições do ano que vem, quanto para a de 2026. Repito:
não poderemos cometer os erros do passado. Lançaremos
candidato à Presidência, e essa construção começa agora.

“O PT tem em seu DNA a crença de


que o equilíbrio fiscal não é tão
relevante assim. A agenda do governo
é a da gastança. Quarenta ministérios
ou algo próximo a isso é um acinte”
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Como explicar o fato de o PSDB ter feito prévias para lan-


çar um candidato em 2022 e o vitorioso acabar tendo a
candidatura inviabilizada, pouco depois do início da cam-
panha? Eu dizia que o João Doria era um “não candidato” à
Presidência, essa candidatura nunca existiu. E o impedi-
mento dessa candidatura prejudicou muito a nossa banca-
da. Ao contrário do que muitos pensam, Doria não deixou
de ser candidato por causa dos seus adversários, entre eles
eu, que não acreditavam na candidatura. Foram os pró-
prios aliados dele que o forçaram a desistir.

Ficou algum ressentimento em relação a Doria e a Geral-


do Alckmin, outro tucano que deixou o ninho? Não. O Do-
ria é que deve ter ficado com alguns ressentimentos, uma
vez que ele foi impedido até de ficar no governo para o qual
se elegeu, mas isso foi uma decisão local. Em relação ao Al-
ckmin, foi uma situação diferente. Lamentei muito a sua
saída, mas ele foi compelido a deixar o partido, devido à
ausência de espaço no PSDB. Hoje ele certamente é uma
voz de bom senso e de equilíbrio no governo Lula.

Sobre a necessidade de um nome tucano ao Planalto


em 2026, quem seria a figura ideal? O PSDB tem um no-
me colocado hoje, que é o do governador do Rio Grande
do Sul, Eduardo Leite. Ele mostrou maturidade ao abdi-
car da presidência do partido para se dedicar ao governo,
cujos bons resultados serão muito importantes para a

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disputa em 2026. Ele fala para a juventude, tem uma


agenda moderna, tem experiência de gestão. É ele a nos-
sa aposta e estamos todos afinados.

Ao mesmo tempo, fala-se nos bastidores sobre uma no-


va candidatura sua. Existe essa possibilidade? Com toda
a sinceridade, não penso nisso. Tive a oportunidade de dis-
putar a Presidência, fiz uma campanha defendendo o que
acreditava e que me ensinou muito. Lamento que o resulta-
do tenha impedido o Brasil de entrar em um círculo virtuo-
so, mas acho que hoje o país precisa de uma candidatura
renovada. Me sinto extremamente confortável podendo
ajudar na consolidação de um nome como o do Leite.

Quais são seus planos para 2026? Eu sou mineiro, não é?


O mineiro diz que não se pode colocar o carro na frente dos
bois. Há em Minas um sentimento de resgate do que foram
os nossos governos. Saí do comando do estado com mais
de 90% de aprovação. Depois, a gestão do PT foi desastro-
sa. E o governo Romeu Zema é protocolar, sem projeto de
estado, sem capacidade de se articular politicamente a fa-
vor dos interesses de Minas Gerais. Então, há realmente
um clima de saudosismo, mas não penso nisso agora.

O senhor diz que o partido deve ser oposição a Lula.


Quais os principais erros do atual governo? Primeiro, a
gastança desenfreada. O governo busca equilibrar as con-

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tas esperando aumento de receita, sem diminuição de des-


pesas. Isso não existe. O PT tem em seu DNA a crença de
que o equilíbrio fiscal não é tão relevante assim. A agenda
do governo é a da gastança. Quarenta ministérios ou algo
próximo a isso é um acinte. E não é para trazer eficiência à
máquina pública, é para garantir emprego aos aliados. O
próprio Lula respondeu, antes da posse, que seu ministe-
riado seria do tamanho necessário para acomodar a base. E
não é essa a resposta correta. A forma de governo é: o PT
para o PT, sempre antes do Brasil.

Há outros pontos que merecem críticas mais duras? To-


memos como exemplo a educação. Os indicadores do Pisa
são vergonhosos. Há também a questão da segurança, a co-
meçar pelo que acontece na Bahia, há anos governada pelo
PT. No plano nacional, nossas fronteiras viraram uma
grande peneira: entra com drogas, sai com armas, sem que
o governo tenha nenhuma política estratégica efetiva.

É possível comparar o governo Lula com o de Bolsonaro?


O Brasil, infelizmente, saiu de uma política externa coman-
dada pelo bolsonarismo, de um alinhamento ideológico à
direita, que nos isolou no mundo, e agora vai ao outro ex-
tremo, porque a política externa de Lula é atrasada. Claro
que ele faz uma certa reconciliação do Brasil com o mundo
civilizado, por exemplo, na questão ambiental, dado o es-
trago que foi feito no governo passado. Mas ele não conse-

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gue se distanciar das ditaduras amigas. O discurso aqui


dentro é de defesa da democracia permanente, mas o ali-
nhamento com as ditaduras amigas fazem muito mal.

Mesmo com dificuldades, o governo Lula tem consegui-


do articular uma base no Congresso. Haverá espaço
para o PSDB ser oposição? O que vai definir o PSDB
não é o tamanho de sua bancada. Temos legendas na Câ-
mara que terão muita dificuldade de liderar um projeto
nacional. Há hoje uma inundação de partidos que cres-
cem na busca de parlamentares, engrossam o fundo elei-
toral e fazem mais e mais parlamentares para apoiar o
governo de plantão. É um conjunto de partidos, que in-
clui o próprio PT. Acredito que hoje o PT faz parte do
Centrão. São poucos os partidos programáticos hoje no
país e, goste-se ou não, o PSDB é um deles.

“Eu fui vítima de uma ação criminosa


da Lava-Jato, que me custou muito,
mas tenho a serenidade de que a
sociedade vai compreender que existia
um projeto político por trás disso”
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Muito se falava de uma terceira via, ao centro, que anta-


gonizasse com o petismo e o bolsonarismo. Ainda é
possível? As duas agendas colocadas hoje são muito po-
bres em ideias. Não é justo com o Brasil nem com as no-
vas gerações que eternizemos essa polarização. Existe vi-
da inteligente entre esses extremos, e o PSDB tem a res-
ponsabilidade de liderar um novo caminho, radicalizando
ao centro e construindo uma agenda propositiva. O PSDB
tem que ser lembrado como o partido da responsabilida-
de fiscal, do equilíbrio das contas públicas, do Plano Real,
das reformas estruturantes, das privatizações. É essa a
nova via, e que deve ser liderada pelo PSDB: um projeto
liberal na economia e inclusivo do ponto de vista social,
focado na geração de emprego e de renda.

Como conquistar o eleitor de centro? Tivemos nas elei-


ções a prevalência do voto “não”. Agora, é hora de o PSDB
dar a chance às pessoas de votarem “sim”, a um novo e au-
dacioso projeto.

Em 2014, o senhor esteve a 3 pontos porcentuais de


ser presidente e foi ultrapassado na reta final. Ainda
pensa naquele momento? Encontro gente do país intei-
ro e o que eu mais ouço é: “O Brasil seria outro”. E ga-
ranto que seria diferente. Reuni a mais talentosa equipe
nas áreas econômica e social. E havia guardado para
aquela noite um anúncio: teríamos o ex-presidente FHC

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como chanceler, ele já havia aceitado. Nós faríamos um


governo de excelência.

A ascensão do bolsonarismo teria sido evitada? Sem


dúvidas. Assim como também teria sido sepultado o
projeto nacional do PT.

Também em 2014, o senhor questionou as urnas. Acha


que abriu caminho para os arroubos antidemocráticos
do governo Bolsonaro? Infelizmente, há uma narrativa do
PT de que “o Aécio pediu recontagem de votos”, e não foi
isso. Reconheci a vitória de Dilma naquela mesma noite e
nunca coloquei em dúvida as urnas. Quando estava na pre-
sidência da Câmara, recebi questionamentos e decidimos
fazer uma auditoria, mostrar que as urnas são inexpugná-
veis. Perdi as eleições porque me faltaram votos.

O senhor foi absolvido das acusações da Lava-Jato. Há


temor que o episódio respingue no seu futuro político?
Não tenho o menor receio. Ficou claro que fui absolvido e
que fui vítima de ação criminosa perpetrada pela Procura-
doria-Geral da República em parceria com os irmãos Batis-
ta, que teve como consequência a imunidade absoluta de
centenas de crimes que haviam cometido. Essa ação crimi-
nosa da Lava-Jato me custou muito, mas tenho a serenida-
de de que a sociedade vai compreender que existia um pro-
jeto político por trás disso.

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O que seria esse projeto político? Depois do impeach-


ment de Dilma, os três nomes que eram citados como
candidatos acabaram alijados das eleições de 2018: o
meu, o de Lula e o de Michel Temer. Lula foi preso. Temer
se viu acossado de forma extremamente injusta por duas
denúncias que quase derrubam o seu governo. E eu fui ví-
tima dessa atrocidade, repito, criminosa. E vai chegar o
momento de os responsáveis pagarem também na Justiça
pelos danos que me causaram. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

O FIM DE UMA ERA?

“A IDADE DA PEDRA não acabou pela falta de pedra, e a


Idade do Petróleo acabará muito antes que o mundo fique
sem petróleo.” A frase, dita em 1973 pelo xeique Ahmed Zaki
Yamani, ministro de Energia da Arábia Saudita, ruidosa
naquele tempo de guerra de preços entre os produtores do
Oriente Médio e os consumidores do Ocidente, andava um
tanto esquecida — mas soa, agora, premonitória, embora
MARTIN DIVISEK/EPA/EFE

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muito óleo ainda venha a ser queimado. Na madrugada da


quarta-feira 13, as lideranças da Conferência das Partes,
a COP28, realizada em Dubai, anunciaram um relatório
com um quê de ineditismo: pela primeira vez desde que, há
quase trinta anos, as nações se reúnem para tratar das
mudanças climáticas, diplomatas de 200 países aprovaram
um pacto global que apela explicitamente para a “transição
dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de uma
forma justa, ordenada e equitativa”. Os líderes europeus e de
países mais vulneráveis tentaram um texto mais incisivo, em
que aparecesse a expressão “eliminação progressiva”. Depois
de muito conflito, ela foi subtraída, o que tira um pouco do
impacto do documento, mas não seu imenso simbolismo. Foi,
enfim, uma vitória do bom senso, das pressões de
ativistas, apesar das lacunas — e derrota para os
exportadores de petróleo, como a Arábia Saudita e o Iraque,
que preferiam ir mais devagar. O enviado dos EUA para o
encontro, John Kerry, celebrou o anúncio: “Em um mundo
com guerras e os desafios de um planeta que está
naufragando, este é um momento em que o multilateralismo
tentou definir o bem comum”. É cedo ainda para festejos
definitivos, o documento tem poder de orientação apenas,
mas foi dado um grande passo de respeito ao ambiente. O
xeique Yamani pode ter visto antes o fim de uma era. Vale
acompanhar os próximos episódios. ƒ

Fábio Altman

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CONVERSA MARIA FERNANDA CÂNDIDO

“CONTRACENAR COM A
BARATA FOI INTENSO”
A atriz de 49 anos fala da experiência de
estrelar o filme A Paixão Segundo
G.H., adaptação do livro de Clarice
Lispector dirigida por Luiz
Fernando Carvalho — e de seu
retorno à TV com Renascer

LITERÁRIA Maria
Fernanda: preparação intensa
com insetos para clássico
de Lispector, ativista em
Renascer e apoio
aos LGBTs
JAIRO GOLDFLUS

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Seu novo filme, A Paixão Segundo G.H. — que chegará


aos cinemas em 2024 —, é adaptação da obra de Clarice
Lispector. Como essa autora impactou sua vida? Ela
chegou à minha vida quando tinha 18 anos e li A Hora da
Estrela. Aos 29, conheci A Paixão Segundo G.H. e foi uma
experiência potente. Jamais imaginei que interpretaria essa
personagem um dia. Até que, em 2017, o Luiz Fernando
Carvalho me convidou para fazer o filme.

Como foi sua preparação — e como lidou com a barata


em cena, já que o livro de Clarice conta como a protago-
nista interage com o inseto? Foi uma experiência muito
desafiadora, que me mudou como profissional e mulher.
Precisei ter coragem de me entregar ao desconhecido em
um processo artesanal. O laboratório contou com oficinas,
workshops, leituras e inúmeras aulas de corpo e voz.
Durou um ano. Já as cenas com a barata foram
muito intensas também. Me lembro até hoje da
sensação e do cheiro do material usado,
ainda mais por se tratar de uma passa-
gem importante no livro e no filme.
O resultado é incrível.

Esse é um projeto com Luiz Fer-


nando Carvalho, diretor “denso”
com quem já trabalhou outras vezes.
O que a atrai na parceria? Nossa re-

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lação é marcada pelo encontro com a literatura brasileira.


Estivemos juntos em vários trabalhos, como na minissérie
da Globo Capitu, personagem de Machado de Assis, um
trabalho que debato com as pessoas até hoje. O Luiz é um
diretor rigoroso, ao mesmo tempo que é muito livre, então
temos uma liberdade de criação infinita.

Sua volta às novelas — após um hiato de sete anos — é


com o remake de Renascer, que estreia na Globo em ja-
neiro. Por que essa trama? Foi um verdadeiro presente
do diretor-geral Gustavo Fernandez. É uma oportunidade
de me reconectar com o universo de Benedito Ruy Barbo-
sa, autor fundamental em minha trajetória. Interpretarei a
Cândida, uma personagem inspiradora, que teve uma vida
dedicada à preservação do meio ambiente. E é uma alegria
contracenar pela primeira vez com Humberto Carrão, que
fará o José Inocêncio.

No ano passado, você estrelou o filme Animais Fantásticos


— Os Segredos de Dumbledore. O que pensa sobre as decla-
rações consideradas transfóbicas da autora do universo de
Harry Potter, J.K. Rowling? Eu não faço minhas as palavras
dela, jamais. Tenho uma outra cabeça e maneira de pensar,
sou uma pessoa muito aberta para esse tipo de questão. Res-
peito e tenho admiração pela comunidade LGBTQIA+. ƒ

Kelly Miyashiro

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DATAS

HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

VAIVÉM Ryan O’Neal: fama nas telas


e nos episódios de drama familiar

DO AMOR À VIOLÊNCIA
A vida do ator americano Ryan O’Neal daria um filme — ou
vários, dado o vaivém de sua existência, feito de quedas e recu-
perações. Filho de uma atriz e de um roteirista de cinema, ele
começou a vida adulta como lutador de boxe, um meio de ex-
travasar sua permanente irritação. Em tempo de calma, caía-

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lhe bem um personagem romântico como o Oliver de Love


Story, sucesso de 1970, um Romeu e Julieta moderno. Como
pai, poderia ser o Moses Pray de Lua de Papel, de 1973, no qual
contracenou com a filha Tatum. Ela, aliás, conquistou o Oscar
de melhor atriz pelo trabalho, aos 10 anos de idade. Soaria mais
adequado, contudo, o protagonismo em produções violentas,
de pancadaria. O’Neal nunca escondeu a postura mercurial,
que o levaria diversas vezes a ser detido, seja por violência, se-
ja por envolvimento com drogas.
Não seria exagero dizer que, em Hollywood, seu desequilí-
brio no cotidiano era tão famoso quanto a infinita capacidade
de mudar de estilo diante das câmeras. Levado ao ostracismo
— tê-lo por perto era encrenca na certa —, foi recuperado para
a fama ao ser convidado pelo britânico Stanley Kubrick para
estrelar Barry Lyndon, clássico de 1975. Nele, O’Neal incorpo-
ra um aventureiro inglês do século XVIII condenado ao de-
gredo. Mas ele volta, fingindo-se aristocrata. Voltar era o que
O’Neal fez desde sempre, em meio a dramas familiares. Admi-
tiu, certa vez, ter assediado a própria filha Tatum — a quem
não reconheceu, drogado e alcoolizado, ao sair do velório de
uma ex-mulher. Com Farrah Fawcet, com quem conviveu 24
anos, meteu-se em brigas homéricas. Um filho, Griffin, dirigia
a lancha que, em 1986, provocou a morte do primogênito de
Francis Ford Coppola. Com Griffin, chegou a trocar tiros, am-
bos fadados ao eterno desencontro. O’Neal morreu em 8 de
dezembro, aos 82 anos. Tinha uma leucemia, tratada durante
muito tempo, mas morreu de câncer na próstata.

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NOTIMEX/AFP

FAMÍLIA Juanita com Fidel: contratada pela CIA para


trabalhar contra o regime dos barbudos

A IRMÃ EXILADA
No início, ela ajudou com dinheiro que conseguiu amealhar
nos Estados Unidos. Foi decisiva na construção de hospitais e
escolas. Juntou-se aos barbudos. Contudo, pouco tempo depois
da Revolução Cubana de 1959, Juanita Castro, irmã mais no-
va de Fidel, rompeu com o movimento. Dizia-se desgostosa
com o andamento autoritário do que nascera como democráti-
co. Irritou-se com a reforma agrária que alcançou inclusive ter-
ras da família. Em 1964, exilou-se em Miami. Ali começou a
colaborar com a CIA. “Sofri mais do que o restante da popula-
ção exilada, porque em nenhum lugar do Estreito da Flórida
me dão trégua, e poucos são os que entendem o paradoxo da
minha vida”, escreveu em seu livro de memórias. “Para quem
ficou em Cuba, sou uma desertora porque saí e denunciei o re-
gime. Para muitos em Miami, sou persona non grata, irmã de
Fidel e Raúl.” Morreu em 4 de dezembro, aos 90 anos, mas a
notícia só foi confirmada na semana passada.

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UMA VOZ
NECESSÁRIA
Nos anos 1990, no silêncio
imposto pela ditadura da
China, a ginecologista Gao
Yaojie identificou a explo-
são do número de casos de
aids nas regiões rurais do
país. Depois de cruzar infor-
mações e ouvir milhares de

MARK RALSTON/AFP
envolvidos, ela descobriu a
origem da contaminação: o
vírus estava se espalhando CHINA Gao Yaojie:
em decorrência do descon- revelação de descaso
trole dos centros de transfu- nas transfusões
são de sangue, que não fa-
ziam os testes necessários. Para o governo — em evidente
postura negacionista —, apenas as relações sexuais levariam
à contaminação. Em 2009, Yaojie foi forçada ao exílio, nos
Estados Unidos. Suas denúncias, contudo, surtiram algum
efeito — e a China tratou de modernizar seu sistema de saú-
de, movimento seguido por outros países. “A aids destruiu
inúmeras famílias. Foi uma catástrofe provocada pelo ho-
mem. No entanto, as pessoas responsáveis por isso nunca
foram responsabilizadas, nem proferiram uma única pala-
vra de desculpas”, disse em 2016. Ela morreu em 10 de de-
zembro, aos 95 anos, em Nova York. ƒ

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FERNANDO SCHÜLER

O NATAL CANCELADO
“DEPENDE DO CONTEXTO”, respondeu a reitora da
Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magill, no Congres-
so americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de
judeus” na universidade. Acabou renunciando. Numa alega-
ção puramente formal, seria possível sustentar que a retóri-
ca de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação con-
tra esse ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emen-
da, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isso
que estava em jogo. Se a pergunta fosse “Você considera ad-
missível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou
pessoas negras na universidade?”, é difícil imaginar que a
reitora (ou qualquer pessoa razoável) fizesse a relativização.
A conclusão é a de que o antissemitismo seria menos “pro-
blemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí
chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado.
O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a
discriminação saiu do universo do campus e foi para o Con-
gresso. Para o grande debate na sociedade. É algo comum
no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada
pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e
cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero,

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raça e orientação sexual. Nessa lógica, pouco importa que o


Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquini-
nha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opres-
sor”, aliado do Ocidente. E a violência do outro lado um tipo
de “reação”. Ou ainda: uma reação justificada, quiçá de “in-
teira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos
estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado,
todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas
doações das universidades. Niall Ferguson resumiu a ques-
tão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um
movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita
gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez
seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insa-
no que vivemos nos últimos anos. É possível que Ferguson
tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como
os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “ra-
cismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos gran-
des jornais a partir dos anos 2010. Agora os ventos muda-
ram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pes-
quisas mostrando que aqueles temas perderam terreno. “A
terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drastica-
mente a procura por executivos de “diversidade” nas empre-
sas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no
freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e en-
tender o que as pessoas de fora estão dizendo”, em vez de
impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões
ideológicas apresentaram um recuo.

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JINGLE BELLS O gorro do Papai Noel: seria


inaceitável manifestação religiosa?

Explicar esse fenômeno nos faz voltar ao tema dos limi-


tes. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingle-
ses anunciando que o imperador romano Heliogábalo, no
século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias co-
mo essa, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de
palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, pas-
saram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma
agenda legítima de inclusão foi se convertendo em um ra-
dicalismo avesso ao bom senso. A partir daí, a reação difu-
CYANO66/GETTY IMAGES

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“Os pais tentam


reagir à
imposição de
agendas políticas”
sa na sociedade. Muitos intelectuais tomaram a frente, mas
a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é
mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e aconteci-
mentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão
pateticamente ideológica, no último Enem, sobre o agrone-
gócio. A cada semana observo esse conflito silencioso nas
escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas
políticas. Por vezes é a imposição de uma educação “étni-
co-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gê-
nero, enviesados; em outros casos é a mais pura mesqui-
nharia, como vi ainda nesta semana em uma escola bacana
de São Paulo proibindo uma foto das crianças com aqueles
gorrinhos de Papai Noel, para celebrar o fim de ano, no
que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só
uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”,
me disse, desanimada, a mãe de uma aluna. O que se ob-
serva nesses casos é uma marca de nossa época: a dicoto-
mia entre a cultura dos ativistas e os valores do common

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sense. Uma pesquisa mostrou que os “ativistas progressis-


tas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são
ativos no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultracon-
servadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam
perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento,
e não por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou
“exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma
situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que
lê nas redes sociais, terá uma visão distorcida e radical do
que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A
maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoá-
veis, dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militan-
te. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês. E por
nada desse mundo revisará seus bem consolidados pontos
de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que
pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “er-
ro”. E, como tal, precisam ser corrigidos.
Vai aí um desafio. Em especial, na educação. Ele foi for-
mulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades
deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política”
e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e
aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo:
universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se
virar sozinhas. O inaceitável é que a doutrinação seja feita
nas escolas, com crianças sem capacidade de se contrapor à
“autoridade intelectual” de um professor. Foi esse o ponto
de Weber em A Ciência como Vocação. Weber faz seu ar-

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gumento iluminista, segundo o qual não cabe ao professor


agir como “profeta ou demagogo”, nem usar sua autoridade
diante de alunos. Cada um que fique com suas crenças. Mas
tirem as mãos de nossas crianças.
Conversando com os pais de alunos, angustiados com o
que se passa em nossa educação, sempre me dou conta: o
que eles desejam não é uma escola “conservadora” ou “pro-
gressista”. Que induza crianças e adolescentes a essa ou
àquela orientação sexual ou a alguma crença moral que pai-
ra na cabeça de uma minoria ativista. Desejam uma escola
voltada para o conhecimento e espírito crítico. Para o hu-
man flourishing, na tradição iluminista de Von Humboldt,
Mill e Isaiah Berlin. O direito irrenunciável à autonomia in-
dividual, nossa melhor herança moderna. Da qual somos
herdeiros. E, mais importante, somos fiadores de sua preser-
vação e cultivo, para os que vêm à frente. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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SOBEDESCE

SOBE
RONALDO CAIADO
No comando do estado de Goiás,
o político do União Brasil é um
dos governadores mais bem
avaliados do país, com aprovação
de 81,4%, segundo levantamento
do Paraná Pesquisas.

PASSAGENS
A alta de 19,12% nos bilhetes foi
responsável por metade de toda
a inflação em novembro. Se não
fossem os bilhetes aéreos, o
IPCA teria sido ainda menor.

BARBIE
O filme encabeçou a lista de indicados
aos prêmios do Globo de Ouro, com
nove indicações, superando as oito
do drama histórico Oppenheimer.

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DESCE
CONSELHO FEDERAL
DE ECONOMIA
A entidade concedeu à ex-presidente
Dilma Rousseff, que levou o
Brasil à pior recessão de sua
história, o prêmio Mulher
Economista 2023. Não era piada.

CBF
Responsável pelo futebol
brasileiro, a Confederação é só
bola fora: está sem presidente e
a seleção, em crise profunda,
não tem sequer um técnico.

CRÍTICOS DE JAVIER MILEI


O novo presidente argentino anunciou
um pacote de medidas austeras para
recuperar a economia do país. Não
será fácil, mas esse é o caminho.

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VEJA ESSA

“Muitos dos autores que mais admiro


não têm o Nobel, como Lorca, Proust
ou Kafka. O que eles têm em comum
é que morreram muito jovens. Eu estou
na média, 60 e tantos anos.”
JON FOSSE, poeta e escritor norueguês, 64 anos, vencedor
do Nobel de Literatura de 2023. Em 10 de dezembro ele recebeu
a condecoração em Estocolmo

JONATHAN NACKSTRAND/AFP

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“Adoro toda a atenção, pessoal, obrigado.”


NIKKI HALEY, ex-embaixadora americana na ONU, depois de
ser massacrada por adversários políticos em um debate do
Partido Republicano. Ela tem se apresentado como uma
alternativa a Donald Trump para as eleições de 2024

“Se o discurso se transformar em conduta,


pode ser perseguição. Depende do contexto.”
ELIZABETH MAGILL, presidente da Universidade da
Pensilvânia, em audição no Congresso americano, ao relativizar
o discurso negacionista em torno do Holocausto contra os
judeus na II Guerra Mundial. No sábado, 9, pressionada por seus
pares, ela pediria demissão do posto

“Gente, se cair a popularidade do presidente


Lula, vocês não têm dúvida sobre o que o
Congresso Nacional pode fazer. Fizeram
com Dilma. Se acontecer qualquer
problema, esse Congresso engole a gente.”
GLEISI HOFFMANN, presidente do PT

“No Campeonato Brasileiro, enquanto não


subir, nós não atuaremos com a camisa 10.”
MARCELO TEIXEIRA, presidente eleito do Santos, que caiu
para a série B do Campeonato Brasileiro. A ideia é aposentar o
lendário número de Pelé até que a equipe volte para a elite do futebol

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“São os filhos do Bolsa Família que


não fez controle de natalidade.”
BETTY FARIA, atriz, 82 anos, na plataforma X, em
comentário absurdo e preconceituoso a respeito dos
casos de violência no Rio de Janeiro. Depois, ela
pediria desculpa: “Muito errada”

“Ele me dava um valor que achava justo


nos cálculos dele. Eu sempre aceitei tudo
pois o amava, mas de uns tempos para cá
já estava esgotada.”
SUSANA WERNER, que acaba de confirmar o divórcio de
Julio Cesar, ex-goleiro da seleção brasileira. Ela o acusa de
“abuso patrimonial”

“Tenho uma depressão sazonal muito


forte, então o clima está bom para mim
aqui. Às vezes é estranho, porque sou
muito britânica.”
ADELE, cantora, que desde 2016 vive em Los Angeles,
nos Estados Unidos

“Crianças, não tentem fazer


isso em casa.”
JULIA ROBERTS, atriz, depois de dizer que a droga
mais pesada que experimentou foram cogumelos

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EMMA MCINTYRE/GETTY IMAGES

“Isso é realmente puritano? Não quero


que meus filhos vejam isso.”
NATALIE PORTMAN, atriz. Instada a dizer que tipo de cena
nunca gravaria, ela cravou: “Hum... mostrar meus seios”

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RADAR
VICTOR IRAJÁ

Gustavo Maia, Nicholas Shores


e Ramiro Brites

Pane seca Prêmio de consolação


O ministro da Casa Civil, Rui Tem gente no governo já
Costa, e o ex-presidente da preparando o discurso e
Petrobras Sérgio Gabrielli falando em “saída honro-
estão se mexendo pela indi- sa”, com o desenho da can-
cação de aliados ao posto de didatura do petista à pre-
Jean Paul Prates, presidente feitura de Natal no ano
da estatal, em janeiro. que vem.
MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

MOVIMENTO Costa: ministro quer indicar nome de


confiança à sucessão na Petrobras

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Vou voltar …E assopra


Ex-presidente do Senado, Em paralelo, Arthur Lira
Davi Alcolumbre está se teve o aval de Valdemar
movimentando forte para Costa Neto para acelerar a
retornar ao posto em 2025. tramitação do PL da Mo-
A estratégia, porém, para deração dos Poderes antes
conquistar apoio será dife- de a deputada bolsonaris-
rente da usual… ta Caroline de Toni assu-
mir a CCJ.
Caminho contrário
Alcolumbre vai começar a Atende o telefone
flertar com a oposição, para A oposição até que tentou,
depois mirar o Centrão e, só mas não conseguiu conven-
aí, chegar à base do gover- cer o Senado a rejeitar a in-
no — caminho inverso à ar- dicação de Flávio Dino ao
ticulação “normal”, quando STF. Só o gabinete de uma
se conquistam os aliados do senadora recebeu cerca de
governo antes. 300 ligações na terça-feira,
véspera da votação. Além
Morde… disso, mais de 2 000 e-mails
Esquentou, por sinal, a ar- contra o ministro foram pa-
ticulação entre ele e o rar na caixa de spam.
atual presidente do Sena-
do, Rodrigo Pacheco, pela Só isso?
votação de mandatos de Até esta semana, o Con-
quinze anos para minis- gresso havia realizado ape-
tros do STF. nas quatro sessões conjun-

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tas desde o início do gover- e “politicamente muito


no Lula, para análises de ruim” para o governador
vetos presidenciais e proje- de São Paulo.
tos orçamentários.
Era melhor ficar em casa
Queda brusca Um aliado próximo do ex-
Em 2023, o número de reu- -presidente comentou, por
niões de deputados e sena- exemplo, que Jorginho
dores despencou em rela- Mello “fez certo” ao enviar
ção às dezessete de 2019, um secretário para repre-
primeiro ano de Bolsonaro sentá-lo no evento com
no Planalto, quando o chefe bancos públicos em Brasí-
do Legislativo era Davi Al- lia. E que o ex-ministro da
columbre. No ano passado, Infraestrutura do governo
já sob a presidência de Ro- Bolsonaro poderia e deve-
drigo Pacheco, foram onze. ria ter feito o mesmo.
Com a palavra, o líder do
governo no Congresso, Não basta
Randolfe Rodrigues. Gesto do novo presidente
argentino para aproximar-
Erro de cálculo se de Lula, a manutenção
A troca de afagos entre Lu- do peronista Daniel Scioli
la e Tarcísio de Freitas no como embaixador no Brasil
Planalto, na terça-feira 12, foi vista no Palácio do Pla-
pegou mal no entorno de nalto como um movimento
Bolsonaro, que avaliou a muito tímido. Querem mais
cena como “injustificável” do hermano…

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EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO

De outros Carnavais
A relação de Adriano da
Nóbrega com o clã Bolso-
naro começa após o primo-
gênito, Flávio Bolsonaro,
ter tido um carro roubado
no Rio em 2002.

Diga-me com
quem andas…
Após o episódio, o milicia-
no passou a fazer seguran-
ça informal do jovem de-
putado estadual. As infor-
mações estão no livro De-
caído, de Sérgio Ramalho, MEU LUGAR Calheiros:
que será lançado na pri- brigando pelo protagonismo
meira semana de janeiro na CPI da Braskem
pela editora Matrix.
xandre Ramagem à prefei-
Ele é o cara tura do Rio. Ainda não tem
Cláudio Castro quer que nada certo.
Paulo Vasconcelos, mar-
queteiro responsável pela Rachadura à vista
empreitada presidencial de Na briga pela relatoria da
Aécio Neves, em 2014, as- CPI da Braskem, Renan
suma a campanha de Ale- Calheiros quer sondar

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qual a totalidade de bair- bares e restaurantes e ga-


ros de Maceió atingidos rante acesso a fontes de
pelo impacto das opera- energia solar e eólica.
ções da petroquímica,
mas que não tenham ava- Presença estelar
rias perceptíveis. O bilionário José Manuel
Entre canales, um do s
Saideira verde maiores empresários da
A Heineken fechou o ano Espanha e chairman da
de 2023 celebrando mais Acciona, será um dos pa-
de 30 000 contratos para lestrantes do Brazil Eco-
facilitação do acesso à nomic Forum, evento VE-
energia renovável para ba- JA/Lide que será realizado
res e restaurantes. Desde o na Suíça.
seu lançamento, o progra-
ma da cervejaria gerou Assinando a carteira
uma economia de 2 mi- O estado de São Paulo ba-
lhões de reais e evitou a teu recorde no número de
emissão de 2 milhões de abertura de empresas,
toneladas de CO2. com 283 000 constitui-
ções de janeiro a novem-
Iluminado bro. É o melhor desempe-
Parceria entre a Heineken nho do período registrado
e empresas como a Ultra- nos últimos 25 anos. O le-
gaz e a Raízen, a iniciativa vantamento é da Junta
tem dado descontos de até Comercial do Estado de
20% na conta de luz para São Paulo (Jucesp).

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FORA, FISCO
Deborah Secco:
expectativa
de vitória
dos globais
no STF
INSTAGRAM @DEDESECCO

Xô, Leão ma da Corte deve terminar


O STF enviou sinais de alí- de julgar nesta segunda, 18,
vio para artistas globais co- um recurso da União contra
mo Deborah Secco, Rey- uma decisão de Cristiano
naldo Gianecchini e Mateus Zanin que proibiu ações da
Solano. Se nenhum ministro Receita contra a pejotização
pedir vista, a Primeira Tur- para serviços artísticos. ƒ

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BRASIL GOVERNO

UM PRESENTE
DE GREGO?
Depois das conquistas de 2023, a combinação de
propostas populistas com recaídas ideológicas e
interesses meramente eleitorais pode botar tudo a perder
DANIEL PEREIRA

ISTOCKPHOTO/GETTY IMAGES; RICARDO STUCKERT/PR

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O
presidente Lula enfrentou um turbilhão entre a sua
saída, em 2010, e o seu retorno, em 2023, ao Palá-
cio do Planalto. Nesse período, ele deixou o cargo
como recordista de popularidade, elegeu e reelegeu
uma neófita como sucessora, fracassou na tentativa
de impedir o impeachment de Dilma Rousseff, tornou-se al-
vo da Lava-Jato, acabou preso por decisão do então juiz Ser-
gio Moro e, da carceragem da Polícia Federal em Curitiba,
viu Jair Bolsonaro chegar à Presidência da República. O pe-
tista foi da glória à derrocada num ritmo alucinante — e, de-
pois disso, em outra reviravolta, conseguiu a redenção ao re-
cuperar a liberdade e os direitos políticos, impedir a recondu-
ção de Bolsonaro e conquistar seu terceiro mandato presi-
dencial. A vitória nas urnas deu a Lula a oportunidade de es-
crever o capítulo final de sua biografia. Entre as suas priori-
dades estão promover um ciclo de crescimento econômico
com redução da desigualdade, fortalecer a democracia e bar-
rar a volta da extrema direita ao poder. São objetivos ambi-
ciosos, para os quais foram dados passos importantes neste
ano, mas que ainda estão longe de serem alcançados. Como
em todo o enredo, o sucesso do protagonista — e também do
governo — dependerá de seus próximos passos.
O primeiro grande feito de Lula parece banal, mas não é.
Eleito com o apoio de uma frente ampla, o presidente conse-
guiu restabelecer um clima de estabilidade política no país.
Em quatro anos de mandato, seu antecessor Jair Bolsonaro
atacou instituições, declarou guerra ao Supremo Tribunal

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MATEUS BONOMI/AGIF/AFP

BOM EXEMPLO Lula e Tarcísio de Freitas: a desejável


— e possível — relação civilizada entre adversários políticos

Federal (STF), ameaçou descumprir decisões judiciais, pre-


gou contra o sistema eleitoral brasileiro e até sabotou reco-
mendações sanitárias em plena pandemia. As suspeitas in-
fundadas levantadas pelo capitão sobre a confiabilidade das
urnas eletrônicas ajudaram a incendiar o país, motivaram a
decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de suspender
os seus direitos políticos e serviram de combustível para que
radicais bolsonaristas invadissem e depredassem as sedes
dos Três Poderes em 8 de janeiro. Os atos antidemocráticos
renderam a abertura de uma investigação no STF, na qual
Bolsonaro figura como suspeito de instigar crimes, e permi-
tiram a Lula reunir os chefes dos Poderes, representantes da
sociedade civil e até líderes oposicionistas em defesa da de-
mocracia. Foi um importante ponto de partida para a pacifi-
cação — ou, pelo menos, para redução do clima de belige-
rância reinante até então.

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JONAS PEREIRA/AGÊNCIA SENADO

ESTABILIDADE Congresso: negociações legítimas


resultaram na aprovação de projetos importantes para o país

Hoje, o país continua dividido, mas não há mais ameaças


recorrentes às instituições, e a civilidade marca as conversas
até entre adversários políticos. Numa cerimônia no Palácio
do Planalto na última terça-feira sobre investimentos de
bancos públicos nos estados, Lula convidou para discursar
Tarcísio Gomes de Freitas, governador de São Paulo, que re-
ceberá 10 bilhões de reais para aplicar no setor de transpor-
tes, segundo a nova versão do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). “O presidente me escolheu porque es-
tou levando o maior cheque”, declarou, em tom de brinca-
deira, Tarcísio, afilhado político de Bolsonaro e um dos
principais nomes da oposição. Recorrendo a uma metáfora
futebolística, algo que agrada tanto a Bolsonaro quanto a
Lula, é como se tivesse saído de campo um jogador que gos-
ta de distribuir caneladas e intimidar o juiz e entrado em seu
lugar um que, após um longo período de suspensão, joga na

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bola e respeita as regras — pelo menos, até aqui. “Depois


dos acontecimentos de 8 de janeiro, pode-se dizer que o go-
verno Lula foi capaz, junto com as instituições do estado de-
mocrático brasileiro, de impedir uma ruptura. O primeiro
aspecto positivo é a defesa das instituições”, diz Alberto
Aggio, professor de Ciências Políticas da Unesp.
A retomada da normalidade não livrou o presidente de
desafios nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Ape-
sar de os Poderes, segundo a Constituição, serem harmôni-
cos e independentes, Lula apostou numa relação de parceria
com alguns ministros do Supremo para deter pautas da di-
reita que tramitam no Congresso, conseguir decisões judi-
ciais favoráveis aos cofres da União e manter Bolsonaro em
estado permanente de pressão. De olho nesse tipo de ajuda,
o presidente tem ouvido magistrados ao escolher nomes pa-
ra cargos relevantes de primeiro escalão. Os ministros do
STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, por exemplo,
aprovaram as indicações de Flávio Dino para o Supremo e
de Paulo Gonet para comandar a Procuradoria-Geral da
República (PGR). No campo institucional, Lula representou
um avanço sobre Bolsonaro, mas não sem arranhões. Escal-
dado pelos 580 dias de prisão na Lava-Jato, ele fez duas in-
dicações para o Supremo levando em consideração princi-
palmente o critério da lealdade. Lula cumpriu os requisitos
constitucionais, mas buscou antes de qualquer coisa prote-
ção pessoal. Além disso, ao contrário do que ocorreu em
seus mandatos anteriores, escolheu para chefiar a PGR um

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nome que não constava da lista tríplice — de novo, por uma


conveniência política.
A estabilidade contribuiu para outro avanço obtido pelo
governo. A economia brasileira fechará 2023 melhor do que
se imaginava no começo do ano — e aquém do que poderia,
não tivesse sido muitas vezes sabotada pelo próprio presi-
dente e seus colegas de partido. O crescimento será de cerca
de 3%, ante estimativas iniciais de 1%. A inflação ficará den-
tro da meta estabelecida pelo Banco Central. O desemprego
está em queda. Mudanças estruturantes avançaram, como o
novo marco fiscal e a reforma tributária. Escalado para o
Ministério da Fazenda, Fernando Haddad conseguiu anga-
riar prestígio e credibilidade entre atores importantes do
PIB que duvidavam de sua força para manter uma política
econômica responsável. Haddad, por sinal, é protagonista e
peça-chave no destino da atual gestão, principalmente no
próximo ano. A depender do trabalho dele, de sua capacida-
de de resistir ao fogo amigo e de convencer diferentes seto-
res, a balança da política econômica penderá ou para a gas-
tança, ou para a austeridade, ou encontrará um necessário
ponto de equilíbrio. É uma equação complicada tanto no as-
pecto econômico quanto no político.
Apesar da pressão de petistas e de colegas de governo, o
ministro convenceu Lula a não mudar por enquanto a meta
de déficit zero em 2024, sob a alegação de que, antes de re-
visar esse objetivo, é preciso saber quanto o governo arreca-
dará no próximo ano. Só dois projetos em tramitação no

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DIOGO ZACARIAS/MF
AVANÇOS Haddad: o ministro enfrenta resistências
internas para manter uma política econômica responsável

Congresso podem gerar uma receita extra de 45 bilhões de


reais, segundo as projeções da Fazenda. Sem uma base par-
lamentar consolidada, o governo penava para votá-los até o
fechamento desta edição. Mesmo que sejam aprovados, Ha-
ddad terá dificuldade para manter a meta de déficit zero. O
motivo é simples: ela só será alcançada com corte de gastos
no ano que vem. Projeções dão conta de uma tesourada en-
tre 25 bilhões e 55 bilhões de reais, que poderia afetar inves-
timentos em saúde, educação e no novo PAC. Lula, o chefe
da Casa Civil, Rui Costa, e a presidente do PT, deputada
Gleisi Hoffmann, já deixaram claro que não concordam com
isso. Preferem mudar a meta para permitir mais gastos — e,
consequentemente, mais endividamento — num ano de elei-
ção municipal.
Alguns petistas, quando o assunto é aumentar o gasto
público, preferem lançar mão de escaramuças retóricas

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ALESSANDRO DANTAS

SABOTAGEM Gleisi: de olho apenas nas eleições, a


presidente do PT defende o aumento de gastos do governo

para esconder suas reais intenções. Não é o caso do líder


do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-
CE). Mais sincero que muitos de seus companheiros, ele
afirmou recentemente que, se preciso, haverá, sim, déficit
no orçamento do ano que vem. E por quê? A meta de zerar
o rombo das contas públicas, segundo ele, pode levar o PT
a colher maus resultados nas eleições municipais. “Se tiver
que fazer déficit, nós vamos ter que fazer. Senão, a gente
não ganha a eleição em 2024”, disse o parlamentar sem
meias-palavras, durante a conferência eleitoral que o par-
tido realizou no último fim de semana. Guimarães, assim
como Gleisi Hoffmann, não emite apenas uma opinião pes-
soal. A intenção de sabotar o esforço de Haddad para equi-
librar as contas tem a simpatia do próprio presidente da
República. “Se for necessário este país fazer endividamen-
to para crescer, qual o problema?”, perguntou Lula na

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terça-feira 12, durante uma reunião do Conselho de De-


senvolvimento Econômico e Social, no Palácio do Planal-
to. Sua antecessora Dilma Rousseff, que legou uma reces-
são histórica ao país, sabe a resposta.
Dias antes, um documento oficial do PT já havia retoma-
do a pressão sobre Haddad, apesar de não criticá-lo direta-
mente. “Não faz nenhum sentido, neste cenário, a pressão
por arrocho fiscal exercida pelo comando do Banco Central,
rentistas e seus porta-vozes na mídia e no mercado. O Brasil
precisa se libertar, urgentemente, da ditadura do BC inde-
pendente e do austericídio fiscal ou não teremos como res-
ponder às necessidades do país.” Não é um embate qualquer.
Aos trancos e barrancos, o ministro conseguiu melhorar a
percepção sobre o ambiente econômico e uma série de indi-
cadores que afetam o bolso dos brasileiros, mas dados re-
centes mostram perda de fôlego da economia. No começo
de 2024, o PIB tende a andar mais devagar e, por isso, deve
aumentar a pressão de Lula, Rui Costa e companhia para
que Haddad solte a rédea dos gastos. A forma como o gover-
no lidará com o fantasma do “pibinho” é uma das principais
incógnitas do próximo ano e terá impacto não apenas no
curto prazo.
Outra dúvida, igualmente relevante, diz respeito à rela-
ção com o Congresso. Em 2022, o PT e os partidos de es-
querda elegeram bancadas minoritárias na Câmara. Para
construir maiorias em um Congresso controlado atualmen-
te pela centro-direita, Lula usou sua habilidade para nego-

9 | 11
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ciar uma aliança com legendas de centro, como MDB e PSD,


e com dois alvos preferenciais de suas críticas durante a
campanha: o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o bloco
controlado por ele, o notório Centrão. Recentemente, o pre-
sidente abriu espaço no ministério para Republicanos e Pro-
gressistas, que apoiaram Bolsonaro na administração passa-
da, e ainda entregou o comando da Caixa a um afilhado po-
lítico de Lira. O problema é a forma como muitas dessas ne-
gociações têm sido realizadas. Em seu terceiro mandato, Lu-
la jura que não pratica o toma lá dá cá, mas continua refém
da lógica segundo a qual só contrapartidas generosas garan-
tem votos favoráveis nos plenários da Câmara e do Senado.
Em outra área sensível, o presidente conseguiu avançar com
menos sobressaltos.
Lula priorizou em 2023 a reinserção do Brasil no ce-
nário global. O presidente visitou mais de vinte países,
participou de encontros multilaterais, fechou acordos de
cooperação e tentou mediar negociações de paz. Apesar
de tropeços diplomáticos, como emprestar apoio ao dita-
dor venezuelano Nicolás Maduro e dar declarações de-
sastradas sobre os conflitos entre Ucrânia e Rússia e Is-
rael e Hamas, o petista retomou relações que estavam es-
tremecidas e, na prática, fez o país voltar ao jogo. Não foi
em grande estilo, mas Lula, como de costume, se benefi-
cia da comparação com Bolsonaro, cuja gestão se gabava
de ser pária internacional. “O Brasil teve uma atuação
anêmica no cenário internacional durante o governo pas-

10 | 11
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sado. Já Lula tem se empenhado em colocar o país nas


principais mesas de negociação. A pauta internacional é
dominada pela agenda ESG, em que a questão ambiental
tem a maior relevância. Ao retomar o protagonismo nes-
sa questão, o Brasil volta a ser visto com bons olhos, o
que pode gerar novas oportunidades de cooperação e in-
vestimento”, diz Fernando Guarnieri, professor de Ciên-
cias Políticas da Uerj.
Pouco mais de um ano após as eleições mais disputadas
desde a redemocratização, o país continua dividido entre
bolsonaristas, petistas e eleitores moderados que, ao pender
para um lado ou outro, continuam a ser decisivos. Segundo
pesquisa Datafolha divulgada no início de dezembro, a ava-
liação do governo se manteve estável ao longo do ano. Do
total de entrevistados, 38% consideram a gestão Lula ótima
ou boa, 30% avaliam como regular e outros 30% como
ruim ou péssima. O presidente está distante dos mais de
80% de aprovação que tinha ao concluir seu segundo man-
dato e ainda tem que lidar com a força da direita nas ruas e
no Congresso. Seus auxiliares querem que a máquina públi-
ca rode com mais velocidade e dizem que falta uma marca
popular para este terceiro mandato, como já foi o Bolsa Fa-
mília no passado. Pregações como essa, especialmente às
vésperas de eleição, dão margem a ideias mirabolantes, cau-
sam ansiedade e apreensão e podem acabar num belo pre-
sente de grego. É tudo que o Brasil definitivamente não pre-
cisa no próximo ano. ƒ

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BRASIL POLÍTICA

OBSTÁCULOS
NA LARGADA
Ancorados em Lula e Bolsonaro, PT e PL têm
planos ambiciosos para as disputas municipais
de 2024, mas enfrentam dificuldades nos principais
colégios eleitorais do país ADRIANA FERRAZ
ALESSANDRO DANTAS

ESTRATÉGIA Tatto e Hoffmann:


cúpula da sigla quer apoio do governo

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“SERÁ OUTRA vez Lula e Bolsonaro disputando em


2024”, anunciou o presidente da República à militância de
seu partido durante a Conferência Eleitoral do PT em Bra-
sília, no último fim de semana, dando a largada para a cor-
rida às prefeituras do ano que vem. O embate direto com a
direita é a aposta da sigla de esquerda para dar a volta por
cima em relação a 2020, quando teve o pior desempenho
da história, não elegendo sequer um prefeito nas capitais. O
PL do ex-presidente Jair Bolsonaro tem a mesma estratégia
para alavancar os votos nos municípios. Ancorado em seu
maior cabo eleitoral, a agremiação tem a ousada meta de
quadruplicar o número de prefeituras (elegeu 349 há três
anos) e se firmar como o principal contraponto ao PT no
país. Mas, às vésperas do ano eleitoral, ambos os partidos
encontram-se às voltas ainda com disputas internas e
cheios de dúvidas sobre alianças competitivas em algumas
das mais importantes cidades.
De volta ao Palácio do Planalto após seis anos, o PT acu-
mula indefinições. Nos cinco maiores colégios eleitorais, só
tem pré-candidato em Belo Horizonte, com o deputado fe-
deral Rogério Correia, mas até isso pode mudar se algum
aliado com mais chances de vitória exigir o apoio como
moeda de troca no cenário nacional. Levando-se em conta
as dez metrópoles mais populosas, o partido definiu candi-
datura própria também em Porto Alegre, com a deputada
Maria do Rosário. Em outras, como Salvador e Fortaleza, há
divergências sobre o caminho a seguir.

2|7
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GABRIEL PAIVA

EXCEÇÃO Maria do Rosário: uma das


poucas candidaturas certas do petismo

Na capital da Bahia, que o PT comanda desde 2007, o


governador Jerônimo Rodrigues quer lançar o seu vice, Ge-
raldo Júnior (MDB) — e com isso, manter o apoio emedebis-
ta a sua gestão —, embora o PT já tenha escolhido o deputa-
do estadual Robinson Almeida, que é bancado pelo senador
Jaques Wagner. O cenário em Fortaleza é igualmente con-
turbado. Ali, o diretório adiou a decisão sobre ter candidato
para o ano que vem, enquanto negocia com o PDT um nome
comum às duas siglas e tenta apaziguar o interesse de três
filiados que querem a indicação.
Nas capitais onde o PT já definiu que não terá postulante
próprio, como São Paulo, Rio e Recife, a legenda enfrenta
problemas para indicar o vice. Em São Paulo, a vaga na cha-
pa de Guilherme Boulos (PSOL) está garantida, mas o nome
petista ainda não existe. A lista de possibilidades inclui a
professora Ana Estela Haddad, mulher do ministro Fernan-

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do Haddad, e até a ex-prefeita Marta Suplicy, hoje secretária


da gestão Ricardo Nunes (MDB). No Rio e em Recife,
Eduardo Paes (PSD) e João Campos (PSB) resistem à ideia
de entregar o posto aos petistas — os dois são nomes quase
certos na corrida aos governos do Rio e de Pernambuco em
2026, o que eleva o valor do posto. “Eles querem os votos do
PT, mas querem esconder a aliança. Se não tivermos as vi-
ces, vamos ter de negociar outras condições de participação
nos governos para manter o apoio”, diz um assessor do co-
mitê criado pela sigla para organizar as campanhas.
Do lado bolsonarista, as coisas também não andam
bem. Um dos gargalos é a dificuldade dos dois principais
nomes do PL — Bolsonaro e o presidente da sigla, Valde-
mar Costa Neto — de formar consensos. A eleição em São
Paulo é um bom exemplo. Há poucos dias, o ex-presidente
verbalizou, mais uma vez, o apoio ao deputado Ricardo
Salles, seu ex-ministro e representante do bolsonarismo
raiz, que tanto agrada a parte expressiva da direita. Já Val-
demar, que havia dado sinal verde para Salles procurar ou-
tra sigla, prefere o acerto com o atual prefeito Ricardo Nu-
nes, de quem espera indicar o vice.
O ex-presidente admite o enrosco e já disse que, às vezes,
tem de “engolir” o candidato do aliado, e vice-versa. “Nós
temos realmente tido problemas com vários nomes para dis-
putar a prefeitura na mesma cidade. Isso não é fácil, mas pa-
ra podermos crescer temos de abrir mão. Então, por vezes,
eu engulo o candidato do Valdemar e ele engole o candidato

4|7
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INSTAGRAM @CLAUDIOCASTRORJ

TIME Cláudio Castro, Ramagem e Bolsonaro (sentados): PL


tenta caminhar unido no Rio para enfrentar Eduardo Paes (PSD)

meu”, disse, durante evento do PL. Para a prefeitura do Rio,


por exemplo, após o general Walter Braga Netto ter ficado
inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, o gru-
po bolsonarista emplacou, ao menos por ora, o nome do de-
putado Alexandre Ramagem. O ex-chefe da Agência Brasi-
leira de Inteligência (Abin) já recebeu o apoio do governador
fluminense, Cláudio Castro (PL). “Nós achamos um nome
que convergiu. Teremos um candidato e acredito que o Ra-
magem tem tudo para se viabilizar”, afirmou Castro.
Nomes que passaram pelo governo Bolsonaro ou se ele-
geram no embalo da onda bolsonarista são apostas no PL
em outras capitais. Ex-ministros como Gilson Machado
(Turismo) e Marcelo Queiroga (Saúde) devem ser candida-
tos em Recife e João Pessoa, respectivamente. O partido
também tende a escolher parlamentares bem colocados
em 2022 para assumir pré-candidaturas em cidades com

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horário político próprio. Em Goiânia, o deputado federal


Gustavo Gayer, segundo mais votado do estado, assumiu a
direção municipal da legenda com o aval de organizar sua
própria campanha. Mas investir em nomes já testados nas
urnas não é, ao menos por enquanto, garantia de sucesso.
Em Belo Horizonte, o deputado estadual Bruno Engler, re-
cordista de votos para a Assembleia, está apenas em quar-
to lugar, com 10%, segundo pesquisa Real Time Big Data
de novembro.
Tanto PT quanto PL correm para resolver a tempo os im-
bróglios e indefinições atuais e escoram suas ambições para
2024 em dois fatores. Um deles é o dinheiro. Donos das
maiores bancadas eleitas para a Câmara, PL e PT terão as
maiores fatias do fundo eleitoral e maior tempo de rádio e
TV. O outro é o peso dos seus cabos eleitorais, mas a polari-
zação política pode ter limites quando o que está em jogo são
as disputas municipais. “A preocupação é outra, diz respeito
à qualidade do atendimento no posto de saúde, no transporte
público e na escola dos filhos”, aponta o cientista político
Adriano Oliveira, da Universidade Federal de Pernambuco.
As urnas também mostram que, ao menos nas últimas dispu-
tas, o eleitor optou por partidos mais ao centro do espectro
ideológico: tanto em 2016 quanto em 2020, as siglas com
mais prefeitos eleitos foram MDB, PP, PSD e PSDB.
Para Lula e Bolsonaro, investir em 2024 é estratégico
para os seus planos eleitorais. Ambos indicam que irão en-
trar de cabeça nas principais disputas municipais de olho

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MATHEUS W. ALVES/FUTURA PRESS

DESAFIANTE Ricardo Salles: apoio do


ex-presidente para a disputa paulistana

em um bom desempenho que fortaleça as suas posições pa-


ra a eleição nacional de 2026. Como mostrou a Conferência
Eleitoral do PT, a sigla vai explorar fortemente os investi-
mentos do governo federal para alavancar seus candidatos.
Uma das ferramentas, por exemplo, é um aplicativo que irá
dar a cada candidato da legenda as obras e programas to-
cados pela gestão Lula em seus municípios. “A pessoa não
terá nem de produzir o material, basta clicar e a propagan-
da sairá pronta”, diz o secretário nacional de comunicação
do partido, Jilmar Tatto. Já Bolsonaro, animado com a vitó-
ria de Javier Milei na Argentina, se prepara para voltar a
rodar o país levando a tiracolo a ex-primeira-dama Michel-
le, outro trunfo eleitoral do PL. Tanto Lula quanto o ex-
presidente confiam em suas respectivas capacidades de li-
derança para corrigir os rumos dessa confusa largada. As
urnas dirão se eles estão certos. ƒ

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O FIM DA HISTÓRIA?
O mundo vive hoje os maiores
desafios de sua existência

“O FIM DA HISTÓRIA?”, cogitou, em 1989, o cientista


político Francis Fukuyama. Ele retomava a tese do filósofo
Friedrich Hegel, mais tarde adotada e propalada por Karl
Marx, de que a História teria um propósito evolutivo, um
modelo que não pudesse ser superado. Esse ponto marca-
ria o “fim da História”.
Fukuyama defendia que esse modelo era a democracia
liberal, não por ser perfeito, mas porque nenhum outro po-
deria entregar estágios superiores de liberdade, igualdade,
conforto. O liberalismo havia derrotado o absolutismo e o
fascismo, o comunismo era inviável. Não sobrava nada.
Fukuyama foi muito atacado, em particular pela es-
querda, que acreditava na tese do fim da História, mas via
o modelo definitivo como sendo o comunismo. Pouco de-
pois, no entanto, o Muro de Berlim caiu e a URSS se desin-
tegrou. O mundo parecia fadado a ser democrático.
Mas a História é famosa por ser trapaceira. A democra-
tização e a globalização criaram ressentimentos em ricos e
pobres. A intolerância nacionalista e/ou religiosa ressurgiu.

1|3
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A Bósnia submergiu em um banho de sangue. A Rússia


retomou um czarismo despótico e brutal. O terrorismo de
extremistas árabes se espalhou pelo mundo, a islamofobia
cresceu. A Guerra do Iraque criou o Estado Islâmico.
A Primavera Árabe, que prometia a democratização, criou
novas ditaduras. A Líbia e a Síria mergulharam em guerra
civil. A migração de refugiados para a Europa abriu espa-
ço para o discurso xenófobo e racista. O Talibã retomou o
Afeganistão. A Rússia invadiu a Ucrânia. Israel sofreu re-
centemente o pior ataque de sua história e a guerra de Ne-
tanyahu contra o Hamas está dizimando a população em
geral. O antissemitismo cresce. A China ameaça Taiwan,
Maduro ameaça a Guiana. Biden é um presidente fraco, e
Trump é favorito para a eleição de 2024.
O mundo vive os maiores desafios de sua história: o
aquecimento global, que pode aniquilar a humanidade, e a

“A fé de que a democracia
logo se espalharia era
precipitada, mas em
trinta anos não surgiu
modelo melhor”
2|3
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revolução tecnológica, destruidora de empregos e portado-


ra de outros riscos que ninguém alcança.
O panorama é de insatisfação, ressentimento, incerteza,
insegurança, risco. A urgência pede respostas rápidas e
decididas, mas a complexidade exige tempo e reflexão. Li-
berais não têm respostas rápidas para problemas comple-
xos, para os quais as soluções fáceis são sempre erradas.
Populistas, sim, têm soluções fáceis e erradas para tudo, e
a polarização trazida pelas redes sociais só os ajuda. Não
por acaso, eles estão por aí: Putin, Erdogan, Orbán, Duda,
Netanyahu, Le Pen, Trump, Bolsonaro. Antidemocráticos,
intolerantes e, em geral, incompetentes.
A fé de que a democracia logo se espalharia pelo mundo
era precipitada, mas a tese de que ela representava o “fim
da História” não estava necessariamente errada. Nesses
trinta anos de muito som e fúria, não surgiu modelo me-
lhor. Para superar os graves desafios que temos pela frente,
precisamos de boa-fé, tolerância, debate, negociação, con-
senso — características típicas da democracia liberal. A es-
perança está na democracia: é necessário preservá-la.
É isso — tolerância, compreensão, democracia — que de-
sejo a todos nós a partir do ano que vem. Feliz ano novo. ƒ

3|3
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BRASIL CONGRESSO

A BANCADA DOS
NÃO ELEITOS
Com a ida de Dino ao STF, Ana Paula Lobato terá oito
anos no Senado, engrossando a lista dos que chegam à
Casa sem o crivo das urnas ISABELLA ALONSO PANHO

COMEMORAÇÃO
Ana Paula, ao
assumir o mandato:
aliança política com
o novo ministro do
Supremo
MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO

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EM OUTUBRO DE 2022, Flávio Dino foi ungido sena-


dor pelos eleitores do Maranhão com um apoio acacha-
pante: ex-governador por dois mandatos, com uma gestão
bem avaliada, ele obteve 62% dos votos nas urnas. Nem
chegara a ser empossado, no entanto, e já tinha tomado
outra direção: foi indicado ministro da Justiça e Seguran-
ça Pública pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, posto
importante que o alçou à condição de um dos rostos mais
conhecidos da gestão. Após menos de um ano na função,
tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal ao ser
aprovado na última quarta-feira, 13, pelo mesmo Senado
onde nunca exerceu o mandato outorgado pelo eleitor.
Com a sua renúncia, a primeira suplente, Ana Paula Loba-
to (PSB), que já vinha atuando no cargo, ganhou um man-
dato inteiro, que vai até fevereiro de 2031.
Aos 39 anos de idade, senadora mais jovem da legisla-
tura, Ana Paula se junta a um time de parlamentares que
chegaram ao mandato na Casa Alta do Parlamento brasi-
leiro sem nunca terem se submetido ao crivo direto dos
eleitores. Além da substituta de Dino, agora efetivada, o
Senado tem mais oito suplentes (mais de 10% do total) no
exercício do cargo — a maioria nunca disputou uma elei-
ção ou, se disputou, não conseguiu se eleger nem para car-
gos de menor envergadura.
É o caso de Ana Paula. Na única vez em que tentou um
mandato legislativo, de deputada estadual pelo Maranhão
em 2014, obteve 29 votos. A sua única vitória nas urnas

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ANTONIO MOLINA/FOTOARENA

HISTÓRICO Portinho: tentativa frustrada


de emplacar como vereador

veio em 2020, quando virou vice-prefeita da cidade mara-


nhense de Pinheiro, de 83 000 habitantes. A carreira mo-
desta, no entanto, não mostra o peso da aliança política
que ela representa. A senadora é casada com o deputado
estadual Othelino Neto (PCdoB-MA), que está no seu
quarto mandato parlamentar e já foi presidente da Assem-
bleia Legislativa do Maranhão. Ana Paula virou suplente
de Dino na negociação eleitoral para que Othelino apoias-
se a aliança em torno de Carlos Brandão (PSB) ao gover-
no do estado — que acabou eleito.
A lógica das articulações políticas, como no caso de
Ana Paula, é um dos fatores levados em conta na hora da
montagem das chapas para o Senado, que sempre têm

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dois suplentes. As eleições são majoritárias, diferentemen-


te da votação para a Câmara dos Deputados, que são pro-
porcionais. Não há nenhum critério para a escolha dos su-
plentes, tanto que há até quem indique parentes de primei-
ro grau para a função. Ciro Nogueira (PP-PI), por exem-
plo, tem a mãe, Eliane, nessa vaga — ela foi senadora en-
tre 2021 e 2022, quando o filho virou ministro da Casa

CONGRESSISTAS SEM VOTO


Os suplentes que assumiram
mandatos no Senado

ANA PAULA LOBATO


(PSB)
Enfermeira, 39 anos

Ocupa o cargo desde o início do mandato,


com a ida de Flávio Dino para o governo.
Com a aprovação do seu nome para o
STF, ela será senadora até 2031

DESEMPENHO NAS URNAS

2014: teve 29 votos para deputada


estadual no Maranhão
2020: eleita vice-prefeita de Pinheiro (MA)

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CARLOS PORTINHO
(PL-RJ)
Advogado, 50 anos

Assumiu o posto com a morte de


Arolde de Oliveira, em outubro de
2020. Tem mandato até 2027

DESEMPENHO NAS URNAS

2016: teve 7 104 votos para


vereador no Rio de Janeiro
e não se elegeu

ALEXANDRE GIORDANO
(MDB-SP)
Empresário, 50 anos

É senador efetivo desde a morte


de Major Olimpio, em março de
2021. Tem mandato até 2027

DESEMPENHO NAS URNAS

Nunca disputou outra eleição

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IVETE DA SILVEIRA
(MDB-SC)
Professora, 80 anos

Tornou-se senadora com a


renúncia de Jorginho Mello (PL),
que foi eleito governador de SC
em outubro de 2022. Tem
mandato até 2027

DESEMPENHO NAS URNAS

Nunca disputou outra eleição

FERNANDO DUEIRE
(MDB-PE)
Economista, 64 anos

Assumiu com a renúncia de Jarbas


Vasconcelos (MDB-PE), em setembro
deste ano. Tem mandato até 2027

DESEMPENHO NAS URNAS

Nunca disputou outra eleição

6 | 13
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JUSSARA LIMA
(PSD-PI)
Socióloga, 63 anos

Atua na vaga de Wellington Dias,


que foi para o ministério de Lula

DESEMPENHO NAS URNAS

1988: eleita vereadora


de Fronteiras (PI)
2011: eleita vice-prefeita
da mesma cidade

FERNANDO FARIAS
(MDB-AL)
Empresário, 71 anos

Está no lugar de Renan Filho,


nomeado ministro, desde o início do
mandato, em fevereiro deste ano

DESEMPENHO NAS URNAS

Nunca disputou outra eleição

7 | 13
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AUGUSTA BRITO
(PT-CE)
Enfermeira, 47 anos

Assumiu o posto com a ida de


Camilo Santana para o
governo Lula

DESEMPENHO NAS URNAS

2004: eleita prefeita de


Graça (CE)
2014: eleita deputada estadual

MARGARETH BUZETTI
(PSD-MT)
Empresária, 64 anos

Ocupa o lugar de Carlos Fávaro,


que virou ministro
DESEMPENHO NAS URNAS

Nunca disputou outra eleição

Fontes: TSE e Senado

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Civil de Jair Bolsonaro. O senador Davi Alcolumbre


(União Brasil-AP) tem o irmão, Josiel, como primeiro
substituto. O mais comum, no entanto, é que os suplentes
sejam apoiadores, pessoas importantes do mesmo grupo
político ou financiadores de campanha, que recebem a su-
plência como uma espécie de “prêmio” pela ajuda finan-
ceira à chapa.
Os exemplos de articulações políticas que acabam le-
vando pessoas sem experiência eletiva a um dos postos
mais relevantes da República — e o mandato político mais
longo do país, de oito anos — são abundantes. Um deles é
o da professora Ivete da Silveira, que se tornou senadora
após o titular, Jorginho Mello, ter sido eleito governador
de Santa Catarina. Aos 80 anos de idade, ela ganhou um
mandato na Casa até 2027 sem nunca ter tido qualquer
experiência eleitoral. Sua única ligação com a política é
ter sido casada com o ex-governador de Santa Catarina
Luiz Henrique da Silveira, que morreu em 2015. Outro
que nunca teve votos e ganhou sete anos de mandato é o
empresário Alexandre Giordano (MDB), companheiro de
chapa de Major Olimpio, que morreu em março de 2021
— Giordano nunca disputara uma eleição na vida até ser
levado à condição de suplente de Olimpio em razão de ser
um dirigente do PSL paulista.
Outros até tentaram a sorte nas urnas, mas não foram
muito bem. É o caso de Carlos Portinho (PL-RJ), que era
conhecido por ser advogado de clubes como o Flamengo

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VALERIE PLESCH/BLOOMBERG/GETTY IMAGES


OUTRO MODELO Senado dos EUA:
nova eleição em caso de vacância

e o Fluminense. Em 2016, ele buscou uma vaga de verea-


dor no Rio de Janeiro, mas obteve 7 104 votos, o que foi
insuficiente. Embora inexpressivo nas urnas, Portinho ti-
nha uma participação política ativa, ocupando cargos nas
gestões de Luiz Fernando Pezão (governo), Eduardo Paes
e Marcelo Crivella (prefeitura). Ajudou a fundar o PSD
no estado e, em razão disso, virou suplente do senador
Arolde de Oliveira (PSD), que morreu em 2020, abrindo
caminho para ele no Senado, onde chegou a líder do PL.
“Eu dividi a campanha com o Arolde na rua. Arregacei
as mangas e fui buscar voto. Tenho uma trajetória políti-
ca, tive vida partidária e ocupei cargos no Executivo”,
afirma Portinho.

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Nenhum desses casos citados é ilegal, mas contribuem


para distanciar o eleitor da vida política. “As regras atuais
colocam ali pessoas que não são conhecidas do eleitor”,
critica o cientista político Pedro Neiva, autor do estudo Os
Sem-Voto do Legislativo Brasileiro, publicado pelo Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Não é ra-
ro, inclusive, que os suplentes não participem da campa-
nha com os titulares. “A democracia tem como princípio a
eleição. O eleitor não tem noção de quem é o suplente. An-
tes, ele nem aparecia na cédula”, afirma Neiva. O advoga-
do e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
Joelson Costa Dias defende que a escolha dos suplentes
deveria ser avalizada diretamente pelos eleitores. “É uma
questão de educação para a cidadania”, diz.
O modelo brasileiro de suplentes adotado atualmente é
o mesmo desde 1946. Antes disso, desde a época do Im-
pério, o cargo era vitalício — se um parlamentar da Casa
morresse no curso do mandato, o substituto precisava ser
eleito e só poderia ficar na cadeira pelo tempo que o titu-
lar da vaga ficaria. Na Era Vargas, o Parlamento foi dis-
solvido. Com o fim do Estado Novo, em 1945, a Consti-
tuinte do ano seguinte procurou uma forma de agilizar o
processo de substituição dos senadores e estabeleceu o
modelo usado até hoje.
A existência de suplentes de senador nas maiores de-
mocracias do mundo não é uma unanimidade. Nos Esta-
dos Unidos, por exemplo, a figura não existe: se um sena-

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JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO

EM FAMÍLIA Ciro Nogueira e a mãe,


Eliane: senadora entre 2021 e 2022

dor não pode terminar o mandato, o governador de seu es-


tado de origem pode indicar um substituto ou fazer uma
nova eleição. Na França, o suplente só assume se o titular
deixar o cargo para assumir alguma função no governo —
nas demais hipóteses, entra o segundo mais votado na elei-
ção. Na Inglaterra parlamentarista, não existem suplentes,
pois os senadores, que integram a Câmara dos Lordes, são
indicados pela realeza e pela Igreja, e não eleitos.
Peculiar em comparação com outros países, o modelo
brasileiro volta e meia é posto em xeque. Há atualmente
quatro Propostas de Emenda à Constituição (PECs) no
Congresso Nacional sobre o tema, todas com o objetivo de
colocar critérios para a escolha dos suplentes. Infelizmen-

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te, nenhuma delas está em vias de ser votada. Iniciativas


semelhantes já surgiram em outras oportunidades, mas
nunca prosperaram. “Essa pauta reaparece quando há um
suplente que não agrada”, afirma José Dantas Filho, con-
sultor jurídico da Casa.
Uma das instituições mais antigas da República, o Se-
nado sempre teve inegável importância para a garantia do
equilíbrio federativo — cada estado tem o mesmo número
de representantes (três) — e da vida democrática do país.
Entre as suas funções primordiais estão votar o impeach-
ment de presidentes e a nomeação de altos cargos da Re-
pública, entre eles os de ministros do STF e de procurador-
geral da República — como o de Paulo Gonet, confirmado
também na quarta-feira, junto com Flávio Dino. Ajudaria a
fortalecer a instituição se todos os membros dessa Casa do
Congresso tivessem o respaldo do eleitor, que afinal é o
maior personagem de qualquer democracia. ƒ

13 | 13
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A CONTA POLÍTICA
EM 2024
Ela tende a aumentar se cair
a popularidade do governo

VOLTO A TRATAR da teoria do custo e da inflação polí-


tica, destacando a sua natureza transacional. Apoios, mo-
vimentos ou ações em favor de alguém geralmente exi-
gem retribuições aos envolvidos na transação, como car-
gos, verbas e programas do governo. Essa troca implica a
existência de crédito político e a capacidade de cumprir
com o que foi acertado. Credibilidade é honrar acordos
com contrapartidas equilibradas, sem prejudicar o políti-
co ou o governo.
Em um cenário adequado, ideias, programas, narrati-
vas e ideologias deveriam prevalecer, mas a realidade po-
lítica é frequentemente movida por interesses, desconsi-
derando a ética que sugere um processo baseado apenas
em valores e ideais. Mas não funciona assim, sobretudo
em um ambiente politicamente fragmentado.
A teoria do custo econômico diferencia valores explí-
citos (tangíveis e diretos) dos implícitos (perdas de opor-
tunidades, gasto de energia etc.). Similarmente, na teoria

1|3
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que proponho, existem custos explícitos e implícitos. Os


primeiros incluem a alocação de recursos e a oferta de va-
gas na administração pública, enquanto para o político
são os benefícios recebidos pelo seu apoio. Os custos im-
plícitos estão ligados ao desgaste de imagem, tanto para o
governo, ao ceder verbas e espaços, quanto para o políti-
co, ao apoiar propostas polêmicas ou impopulares.
A agenda do próximo ano é politicamente inflacioná-
ria no sentido de que vão custar caro os apoios necessá-
rios para gerenciar temas complexos. Especialmente se
houver um declínio na popularidade do governo.
A pauta política do novo ano é complexa: cumprir a
meta fiscal, progredir nas regulamentações da reforma
tributária, aumentar a arrecadação, enfrentar questões
ambientais, navegar em um mundo turbulento e ainda li-
dar com as eleições municipais. Sabe-se que aliados vão

“O tema mais desafiador


será o início do
debate sobre as
trocas de comando
do Congresso”
2|3
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se enfrentar nas urnas. Integrantes do governo já estão em


disputa por causa da corrida eleitoral e é desafiador aten-
der a todas as demandas.
Teremos ainda a escolha do novo presidente do Banco
Central, com potencial impacto nas projeções econômicas
e do mercado financeiro. Uma escolha infeliz pode agra-
var as expectativas relacionadas à economia do país e afe-
tar o ânimo de investidores. Lembrando que já em 2023
tivemos um fluxo relativamente baixo de investimentos
diretos estrangeiros por causa de incertezas sobre a políti-
ca econômica.
Porém, o tema mais desafiador será o início do debate
sobre as trocas de comando do Congresso. A sucessão,
que ocorrerá em fevereiro de 2025, já está em curso com
articulações de bastidores que serão intensificadas ao lon-
go do ano. A disputa se revela crítica para o governo, pois
os novos líderes do Parlamento vão controlar a agenda le-
gislativa nos últimos dois anos do governo Lula.
Apesar dos acordos e cooptação de apoios no Legisla-
tivo, nem a base nem a coordenação política são estáveis o
suficiente para assegurar tranquilidade ao presidente. Ca-
so consiga domar os conflitos de aliados, executar os acor-
dos e ter um bom desempenho na economia, Lula terá um
grande ano. Não será fácil. Até mesmo pelo fato de que os
movimentos de 2024 anteciparão o debate sobre 2026. ƒ

3|3
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BRASIL EXCLUSIVO

PROBLEMAS
EM CASA
STJ recebe inquérito em que a esposa do ministro
do Desenvolvimento Social é acusada de corrupção
e lavagem de dinheiro no governo do Piauí
HUGO MARQUES

CONSTRANGIMENTO Dias e Rejane: fraudes teriam ocorrido


quando ele era governador e ela, secretária de Educação

DIVULGAÇÃO

1|5
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EM 2015, a Controladoria-Geral da União (CGU) descobriu que


algumas propostas feitas em um pregão para fornecimento de
transporte escolar no Piauí haviam sido desclassificadas sem ne-
nhuma razão aparente. Em certos casos, isso acontece por falta
de documentação adequada ou erros de procedimento. Os técni-
cos decidiram aprofundar um pouco mais a investigação e de-
tectaram que havia algo fora dos padrões: os preços oferecidos
pelos vencedores da licitação estavam em média 40% mais altos
em relação aos valores de referência — um indício de superfatu-
ramento. A Polícia Federal foi então acionada e, ao aprofundar a
apuração, descobriu que o contrato para atender os estudantes
carentes, mais do que superfaturado, escondia um genuíno es-
quema de corrupção. O inquérito com todos os detalhes dessa
trama contra os cofres públicos foi enviado recentemente ao Su-
perior Tribunal de Justiça (STJ). Sigiloso, ele tem ingredientes
para provocar, no mínimo, um grande constrangimento ao mi-
nistro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, responsável
pelos principais programas sociais do governo Lula.
Ao longo de oito anos de investigação, o Ministério Público
do Piauí denunciou quarenta pessoas por crimes de organiza-
ção criminosa, corrupção ativa, passiva e lavagem de dinhei-
ro. Em suma, um grupo de empresários combinava os preços,
contava com a ajuda de funcionários do governo estadual pa-
ra vencer a licitação e, depois, rateava entre todos os lucros do
negócio. O petista Wellington Dias, que era o governador
quando o esquema começou, não está entre os acusados, mas
o constrangimento se deve ao fato de sua esposa, Rejane Dias,

2|5
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encabeçar a lista dos beneficiários do caso que foi definido pe-


la Polícia Federal como o “maior esquema criminoso nas con-
tratações de transporte escolar que se tem notícia no país”. A
ex-primeira-dama ocupou o cargo de secretária de Educação
do governo do Piauí entre 2015 e 2018. Os investigadores co-
lheram provas de que ela recebeu vantagens financeiras da
quadrilha. Operações de busca e quebras de sigilo revelaram
que um irmão e um ex-assessor de Rejane estavam na lista de
pagamentos do grupo criminoso.
O esquema funcionava assim: locadoras de veículos eram
pré-selecionadas em pregões monitorados por funcionários
da Secretaria de Educação, comandada por Rejane, que ma-
nipulavam a concorrência. Ao receber os recursos dos pro-
gramas do governo federal para custear o transporte dos es-
tudantes, a secretaria repassava o dinheiro às empresas, que
subcontratavam serviços mais baratos de outras empresas e
embolsavam a maior parte do dinheiro sem precisar fazer
muito esforço. A CGU estima que apenas em um pregão frau-
dulento, realizado ainda em 2015 — há outros dez processos
em andamento —, os desvios ultrapassaram os 50 milhões de

3|5
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reais. A PF dedica algumas páginas do inquérito para expli-


car a conexão da quadrilha com a ex-secretária de Educação.
A partir do histórico de geolocalização dos celulares de dois
operadores financeiros do esquema, os policiais foram montan-
do o quebra-cabeça. Perceberam, por exemplo, uma coincidên-
cia muito interessante que acontecia nas datas de pagamento.
Quando o dinheiro era creditado, os operadores iam à agência
bancária, sacavam dinheiro, seguiam para a empresa, de lá pa-
ra a casa de um dos acusados de comandar a quadrilha, e, daí
em diante, para as duas últimas etapas do roteiro: o condomínio
onde morava Rejane Dias e o Palácio Karnak, a sede do gover-
no local. Um dos relatórios da polícia anexado ao processo re-
gistra que, no período em que a primeira-dama chefiava a Se-
cretaria de Educação, “as visitas possuíam frequência elevada,
relacionada a operações bancárias e à dinâmica de contratos
com o governo do estado do Piauí”. De acordo com a PF, foi de-
monstrado que também já existia uma “relação” antiga entre a
esposa do ministro e um dos líderes do esquema.
Antes de assumir a Secretaria de Educação, Rejane foi depu-
tada estadual pelo PT. Por coincidência, os carros utilizados pe-
lo gabinete dela na Assembleia Legislativa eram alugados da
mesma empresa que mais tarde venceria a licitação fraudulenta
dos ônibus escolares. Segundo a polícia, há uma segunda coin-
cidência: parte dos valores do contrato de locação eram devol-
vidos a um assessor da parlamentar — uma espécie de rachadi-
nha empresarial. Há ainda uma terceira coincidência: o dono da
empresa é um ex-professor lotado na Secretaria de Educação e

4|5
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foi filiado ao PT antes de decidir ingressar no rentável ramo da


locação de veículos. Um inquérito instaurado para apurar esse
caso específico concluiu que o aluguel dos automóveis era “for-
jado com a finalidade de desviar recursos públicos em favor das
empresas investigadas e da própria acusada”.
Empossada conselheira do Tribunal de Contas do Piauí no
início deste ano, quando já era investigada por corrupção, Reja-
ne Dias já foi alvo de busca. Em 2020, ela recorreu ao Supremo
Tribunal Federal (STF), argumentando que teria direito a foro
especial por ter sido eleita deputada federal. Ao analisar o caso,
a Procuradoria-Geral da República disse que os supostos deli-
tos teriam sido cometidos antes do mandato e reafirmou haver
“requisitos de lavagem de dinheiro e longa duração no tempo de
funcionamento do empreendimento criminoso”. No mês passa-
do, o juiz responsável pelo caso no Tribunal Regional Federal
enviou o inquérito ao STJ, dessa vez para decidir se Rejane, por
ter assumido o cargo de conselheira, teria direito a foro especial
naquela Corte. Em uma peça sigilosa anexada aos autos, a defe-
sa de Rejane Dias diz que a Polícia Federal atuou de forma “le-
viana” para tentar incriminar a conselheira e, por associação, o
próprio Wellington Dias. Os advogados da ex-deputada anexa-
ram informações de peritos particulares que contestam a análi-
se da geolocalização dos celulares dos investigados e dizem que
houve “provável manipulação de dados para legitimar conclu-
sões incriminatórias ilegais e abusivas, com potencial para alte-
rar a percepção do julgador e do titular da ação penal” sobre
Rejane. O ministro não quis se manifestar. ƒ

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BRASIL RACHADINHA

AMEAÇA
RECORRENTE
Fabrício Queiroz reclama do distanciamento da família
Bolsonaro, fala em ingratidão e diz que ainda espera um
aceno para resolver certas pendências do passado
RICARDO CHAPOLA

CABO DE GUERRA
Queiroz: o morde
e assopra se
estende por
quatro anos
INSTAGRAM @FABRICIOQUEIROZ_PATRIOTA

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NAS ÚLTIMAS semanas, o ex-policial militar Fabrício


Queiroz parecia de bem com a vida. Em suas redes so-
ciais, ele postou imagens degustando um vinho, jogando
futebol com os amigos, participando de solenidades e até
comemorando a permanência do Vasco na primeira divi-
são do Campeonato Brasileiro. Mas nem sempre é assim.
Vez por outra, o humor dele oscila. No fim do ano passa-
do, por exemplo, ele gravou um áudio reclamando de falta
de dinheiro, reclamando do abandono dos amigos e insi-
nuando que teria informações que poderiam comprome-
ter Jair Bolsonaro e sua família. “Tô passando uma difi-
culdade muito grande e tô precisando de um dinheiro, tá?
Natal chegando aqui... Eu vivo de fachada, todo mundo
acha que eu tenho dinheiro, mas só Deus sabe o quanto eu
e minha família estamos destruídos”, disse. E acrescen-
tou: “Eu era um cara feliz, sempre tive minha correria e
hoje sou um cara leproso. Fiquei hiperconhecido e não te-
nho apoio. Não adianta dar dinheiro, dinheiro não resol-
ve, tem que dar é moral, uma posição para trabalhar, para
encaixar meus filhos”.
Não foi a primeira vez que Queiroz faz alertas velados
dirigidos ao clã Bolsonaro. É uma rotina que se repete
desde que ele foi acusado de operar um esquema de racha-
dinhas no gabinete do então deputado estadual e hoje se-
nador Flávio Bolsonaro. Reza a lenda que Queiroz guarda
segredos capazes de levar tormentas ao ex-presidente e
seus filhos. Quando o ex-policial enfrenta algum proble-

2|7
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INSTAGRAM @FABRICIOQUEIROZ_PATRIOTA

AMIZADE ANTIGA Bolsonaro e


o ex-policial: alertas velados ao clã

ma, financeiro ou político, as memórias do passado aflo-


ram. Quando está tudo bem, o espírito é outro. E há perío-
dos de meio-termo. Na terça-feira da semana passada,
VEJA encontrou Queiroz num restaurante no Rio de Ja-
neiro. O lugar estava cheio, mas, apesar da fama, ninguém
aparentemente atentou para a presença do personagem
famoso que frequentou o noticiário nos últimos quatro
anos e disputou uma vaga de deputado estadual nas elei-
ções do ano passado. O anonimato agora incomoda. Mais
do que as finanças, ingressar na política é o objetivo nú-
mero 1 daquele que já foi considerado um dos principais
amigos do ex-presidente Bolsonaro.

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O fracasso em 2022 — ele conquistou apenas 6 700 vo-


tos — serviu de experiência. A próxima missão será dispu-
tar uma cadeira de vereador na Câmara Municipal do Rio
de Janeiro. Já trocou o PTB pelo Democracia Cristã, calcu-
la que terá de garimpar no mínimo 7 000 votos para se ele-
ger e, para isso, vai precisar de ajuda. O gatilho de mágoas
do passado dispara quando ele fala sobre esse assunto. O
ex-policial lembra que o apoio da família Bolsonaro era
decisivo para seus planos — apoio, segundo ele, que espe-
rou até o fim da eleição e que nunca veio. “Eles são do tipo
que valorizam aqueles que os traem”, ressalta. Queiroz não
nomina quem são os traidores, mas deixa claro que um dos
“eles” a que se refere é o ex-presidente Bolsonaro. “O Jair
não votou em mim no ano passado. Devia ter outros candi-
datos melhores do que eu.” O tom é de resignação. “Ele
mesmo (Bolsonaro) sempre me falava isso: ‘No dia em que
eu deixar de ser eleito é porque apareceu outro melhor’.
Então Lula é melhor do que ele, porque foi eleito”, alfineta.
Queiroz foi investigado pelo Ministério Público por su-
postamente recolher parte dos salários dos funcionários
do gabinete de Flávio Bolsonaro entre 2007 e 2018. A Jus-
tiça acabou anulando a denúncia contra o ex-policial e o
atual senador, acusados de peculato, lavagem de dinheiro,
apropriação indébita e organização criminosa. Com o fim
das investigações, em 2022, ele foi até Brasília para con-
versar sobre sua intenção em disputar a vaga no Congres-
so. Na ocasião, encontrou-se com Flávio, o último contato

4|7
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“O CASTIGO VEM A CAVALO”


Qual a relação do senhor com a família Bolso-
naro? Nunca mais falei com ninguém. A última vez foi
com o Flávio, no ano passado, na época em que eu que-
ria ser candidato a deputado. Depois disso, nunca mais
trocamos ideias. Queria muito o apoio deles para poder
ganhar a eleição, mas não forcei a barra.

Eles não apoiaram? Se o Jair acenasse para mim


com alguma coisa, com certeza eu seria deputado esta-
dual hoje. Agora, eles seguem a vida deles lá, estão nu-
ma fogueira danada. Pelo que conheço, acho que o Jair
se arrepende de ter sido presidente. Só está tomando
porrada, todos da família estão expostos. E o sistema
voltou.

Por que vocês se afastaram? Na política é assim


mesmo. Há um escândalo, afastam-se os assessores. O
escândalo me envolveu, por isso me afastaram. Jair
mesmo tinha dito que, enquanto eu não esclarecesse tu-
do, iria cortar relações. Então, eu não o procurei mais.
Nem vice-versa. Muita gente me diz que eles foram in-
gratos comigo.

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Dizem que o senhor guarda segredos que po-


dem comprometer a família. Não tenho nada para
falar deles. Não tem segredo nenhum comigo. E, se ti-
vesse… A família dele não é melhor que a minha para ele
sacrificar a minha família e a dele ficar bem. Porque a
dele está bem. Na dele, todos são políticos, todos ga-
nham bem. Vou segurar a viola deles para a minha se
ferrar? Jamais.

Isso parece uma advertência de quem tem o


que revelar. Ficam me cobrando isso. Eu sempre di-
go: vou inventar? Vão dizer que quero extorquir e chan-
tagear. Não tenho nada a dizer.

O senhor parece guardar muita mágoa em re-


lação ao ex-presidente. Bolsonaro foi presidente
da República. Poderia arrumar algum lugar para eu tra-
balhar. Já hospedei em casa o Jair Renan, a filha da Mi-
chelle... Mesmo assim, nunca tive aceno deles. Até mes-
mo se eu fosse bandido, não deveriam me abandonar.
Mas não tem mágoa com a família nesse sentido. Mas a
gente vê o que acontece quando tem ingratidão. O casti-
go vem a cavalo.

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direto que afirma ter tido com alguém da família Bolsona-


ro. O senador convenceu o ex-assessor de que seria mais
fácil conquistar uma vaga na Assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro. A contragosto, o ex-policial acatou a dica
na expectativa de que o apoio do clã lhe assegurasse uma
vitória. Mas o apoio não veio. Desde então, a derrota e as
dívidas que ficaram pelo caminho têm gerado boatos so-
bre o seu humor. Ele mesmo, quando perguntado, alimen-
ta as especulações. Primeiro, desconversa e garante que
não tem nenhuma revelação importante a fazer sobre o
passado. Depois, enigmático, lembra que enfrentou — e
ainda enfrenta — dificuldades financeiras, diz que os ami-
gos lhe deram as costas, reclama da ingratidão e, em tom
profético, repete um velho ditado: “O castigo vem a cavalo”
(leia a entrevista). ƒ

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RADAR ECONÔMICO
PEDRO GIL

Com reportagem de Diego Gimenes


e Felipe Erlich
MARCELLO DIAS/EURASIA/GETTY IMAGES

FORA DE CAMPO Atlético Mineiro: Menin, dono do time,


quer que o clube dê lucro

Em busca do gol Não me envolvo


O empresário Rubens Menin, O empresário garante que
dono da construtora MRV, es- não dá pitaco no dia a dia
pera que o Atlético-MG, sua do Galo, mas ele foi contra
mais nova aquisição, passe a a recente contratação de um
ter um resultado operacional craque pelo clube, que afi-
positivo a partir de 2024. A nal não deu certo no time.
dívida bruta do clube é de Menin foi voto vencido em
quase 2 bilhões de reais. reunião do Conselho.

1|3
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Tecnologia tupiniquim movimento para estender


De outro lado, a Resia, bra- na reforma tributária bene-
ço da MRV nos Estados fícios de ICMS e IPI no Nor-
Unidos, aposta em reduzir o deste até 2032. No Centro-
peso do material de cons- -Oeste, a Caoa e a Mitsu-
trução para baratear o pre- bishi também querem man-
ço do imóvel por lá. Para is- ter seu quinhão.
so, a empresa está finalizan-
do a construção de uma fá- Não concordo
brica em Atlanta. Na oposição, a Toyota quer
que o benefício, se mantido,
Conta outra seja apenas para veículos
Dono da transportadora elétricos e híbridos. “Ideal é
Itapemirim, Sidnei Piva não ter nenhum, mas o sen-
está contestando na Justi- timento é de retrocesso”,
ça as avaliações de preços diz Roberto Braun, diretor
dos imóveis do grupo, em da multinacional japonesa.
recuperação judicial. O
empresário argumenta Ao ataque
que os ativos estão subva- A guerra entre os bancos e
lorizados pelo leiloeiro as adquirentes de cartões
responsável, que recebe está declarada. Pano de
comissão pela venda. fundo: a suposta cobrança
de juros embutidos nos pre-
Preciso de incentivo ços ao consumidor por par-
A Stellantis e a BYD, recém- te de carteiras digitais e ma-
chegada à Bahia, lideram o quininhas de cartão de cré-

2|3
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dito. O varejo acompanha a mentos de compartilha-


disputa com preocupação, mento de dados até setem-
já que a briga deve respin- bro deste ano. Em 2022, fo-
gar no modelo de parcela- ram 9,2 milhões. A maior
mento sem juros. parte desse mercado ficou
concentrada no Nubank
Mina de ouro (47%), Itaú (15%) e Merca-
A Febraban, associação dos do Pago (9%). Os dados são
bancos, acusa empresas de da consultoria BIP.
maquininhas e carteiras di-
gitais de cobrar juros de Em recuperação
clientes em operações Pix e E m n ove m b ro , f o ra m
em compras parceladas, o anunciadas 114 operações
que é proibido por não se- de fusões e aquisições entre
rem financeiras. Em 2023, empresas de grande porte,
duas das principais adqui- com queda de 15% em
rentes do mercado registra- comparação ao mesmo pe-
riam prejuízo de mais de 1 ríodo do ano passado. Em
bilhão de reais se não fosse onze meses de 2023, foram
a cobrança indevida de ju- 1 279 negócios fechados —
ros que fazem dos consumi- 7,9% menos que no mesmo
dores, e dos juros que tam- período de 2022. Os dados
bém cobram dos varejistas. são da Kroll. ƒ

Abertura em alta OFERECIMENTO


O Open Finance alcançou
41,4 milhões de consenti-

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ECONOMIA CONJUNTURA

O DRAGÃO
ESTÁ DOMADO
A atuação independente do BC, que escapou
de pressões políticas, fará com que a inflação
fique dentro da meta pela primeira vez desde
2020. O risco fiscal, porém, demanda atenção
LUANA ZANOBIA E LARISSA QUINTINO
ANDRE COELHO/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

VITÓRIA Roberto Campos Neto: o Banco Central atuou


de forma técnica e agora colhe os frutos do trabalho

CAPA: ILUSTRAÇÃO DE ONIDESIGN/FREEPIK.COM

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N
os últimos dois anos, o presidente do Banco Central,
Roberto Campos Neto, teve um trabalho incômodo
em janeiro: escrever cartas a Paulo Guedes, ex-mi-
nistro da Economia, e a Fernando Haddad, o atual
ministro da Fazenda, detalhando os motivos pelos
quais a inflação fugiu da meta fixada pelo Conselho Monetá-
rio Nacional. A exigência, feita à autoridade monetária, tem
como objetivo proteger o poder de compra da moeda. Para o
começo de 2024, pelo visto, Campos Neto pode riscar a car-
tinha de sua lista de tarefas. Tudo indica que a inflação cami-
nha para ficar dentro dos limites estabelecidos para 2023. As
projeções do mercado financeiro apontam um índice oficial
de preços de 4,51% ao fim do ano, ultrapassando a meta de
3,25%, mas ainda abaixo do teto de 4,75% (a tolerância é de
1,5 ponto para cima ou para baixo do alvo).
Em doze meses encerrados em novembro, o IPCA, o
índice que representa a inflação do país, foi de 4,68%, já
dentro da tolerância. A desinflação é considerada uma
grande conquista do BC conduzido por Campos Neto na
batalha permanente contra a velha figura do dragão. A al-
ta de preços é um fenômeno que foi disseminado global-
mente devido, primeiro, aos impactos da pandemia e, de-
pois, também realimentado pela guerra no Leste Europeu.
“Encontrar uma inflação abaixo das expectativas para es-
te ano é, sem dúvida, uma vitória surpreendente”, afirma
Luiza Benamor, analista de inflação e contas públicas na
Tendências Consultoria.

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O PIOR FICA PARA TRÁS


Analistas projetam a volta da inflação à meta
depois de quase três anos (em %)

I N FL AÇÃ O N O AN O
C E NTRO DA ME TA
TE TO DA ME TA

10

6
5,75
4,75
4,31
4,51
4
4,25
3,25

2019 2020 2021 2022 2023

Fontes: Banco Central, Boletim Focus e Conselho Monetário Nacional

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COMBATE DURO
No período de inflação elevada, o BC teve
de aumentar a taxa Selic (em %)

15

12

9
6,5
6
4,25

3 2 2

FEV MAR MAI JUN JUL SET OUT DEZ FEV MAR MAI JUN AGO SET OUT DEZ JAN MAR MAI JUN
2019 2020 2021

Em evento no início do mês, quando foi homenageado


como personalidade econômica do ano pelo grupo empre-
sarial Lide, Campos Neto comemorou a desaceleração da
inflação, que chegara a 10,06% em 2021, mas considerou
que a luta ainda não está ganha. “Apesar de todas as con-
quistas, estamos cientes de que temos muito trabalho pela
frente”, disse.

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13,75 13,25
11,75
10,75
12,25

N AGO SET OUT DEZ FEV MAR MAI JUN AGO SET OUT DEZ FEV MAR MAI JUN AGO SET NOV DEZ
2022 2023
Fonte: Banco Central

A inflação desenfreada esteve durante muito tempo as-


sociada à vida brasileira. Segundo dados da Fundação Insti-
tuto de Pesquisas Econômicas (Fipe), entre 1980 e 1989, os
preços no país subiram, em média, 233% ao ano. Em 1989,
no último ano do governo de José Sarney, o índice chegou a
inacreditáveis 1 765%. O descontrole da remarcação de pre-
ços provocou danos imensos nas finanças públicas, das em-

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presas e dos cidadãos, prejudicando ainda mais as pessoas


pobres, já que a renda delas dificilmente acompanha a ca-
restia. Diversos pacotes foram lançados, mas os preços em
ascensão só seriam contidos pelo Plano Real, o processo de
estabilização econômica instituído nos anos FHC, que aca-
baria quebrando a espinha dorsal da inflação e trazendo, pe-
la primeira vez em muito tempo, tranquilidade ao país.
O BC chega ao fim de 2023 cumprindo a meta graças à
aplicação de um remédio amargo, mas necessário: a eleva-
ção dos juros. A taxa básica Selic saiu do seu menor patamar
histórico de 2%, em 2020, para 13,75%, em agosto de 2022
— nível em que ficou até agosto deste ano. A manutenção da
taxa fez com que o presidente do BC recebesse uma enxur-
rada de críticas pela condução da política monetária. Umas
mais sutis, como as do ex-presidente Jair Bolsonaro durante
o ano eleitoral, que desejava juros menores para estimular a
economia e conseguir mais votos. Já o presidente Luiz Iná-
cio Lula da Silva foi — e continua a ser — ácido. Lula não
deu trégua ao BC e a Roberto Campos Neto, pedindo celeri-
dade nos cortes e questionando até mesmo a autonomia da
instituição iniciada em 2021. A autoridade monetária não
cedeu. Seguiu de forma técnica e independente seu plano de
aguardar um processo contundente de desinflação para, aí
sim, começar a reduzir as taxas.
Na quarta-feira, o Comitê de Política Monetária do Ban-
co Central (Copom) realizou o quarto corte consecutivo na
Selic, baixando a taxa para 11,75%, o menor número em

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JIM LO SCALZO/EPA/EFE

SINAIS DE ALÍVIO Jerome Powell, presidente do Fed: ele


indicou que cortes nos juros finalmente estão no radar

quase dois anos. No mesmo dia, o Federal Reserve, o banco


central dos Estados Unidos, manteve seus juros inalterados,
na faixa de 5,25% a 5,50%, o maior nível desde 2001. Só de-
pois de um ano e meio de aperto monetário é que o Fed indi-
cou o início dos cortes, baseado em sinais de estabilização
da inflação, apesar de haver ainda certo aquecimento na
economia americana. Com isso, as bolsas mundo afora fo-
ram à euforia, e o Ibovespa, principal índice da B3, fechou
perto de sua máxima histórica, a 129 000 pontos.
Como disse Campos Neto, a luta não está ganha e por is-

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JUSTIN SULLIVAN/GETTY IMAGES

CAUTELA Cartaz de empresa contratando nos Estados


Unidos: a economia americana ainda se mostra aquecida

so a meta inflacionária será mais rigorosa em 2024, de 3% e


com um limite de até 4,5%. Algumas pressões de preços
bem claras no horizonte já mostram o desafio que será evi-
tar escapadas do dragão da toca. Entre as pressões estão o
aumento da alíquota básica do imposto sobre circulação de
mercadorias e serviços (ICMS) em seis estados do Sul e do
Sudeste. Essa medida, já implementada pelos outros vinte
estados no fim do ano passado, pode adicionar até 0,4 ponto
porcentual à inflação do próximo ano, conforme cálculos da
LCA Consultores. Considerando a projeção do Boletim Fo-

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AINDA FORA
Os Estados Unidos tentam voltar para
a meta de inflação (em %)

7
7 6,5
6

3 2,3 3,1*
2 2%
1,4 META DE INFLAÇÃO
1

2019 2020 2021 2022 2023


*Até novembro
Fontes: Departamento do Trabalho dos Estados
Unidos e Federal Reserve Bank

cus, um levantamento semanal feito com economistas, de


uma inflação de 3,93% para 2024, com esse adicional o IP-
CA escalaria para 4,33%.
Os efeitos climáticos do El Niño também devem compli-
car a equação. Neste ano, o preço dos alimentos caiu graças
à safra recorde colhida no campo. Mas isso não deve se re-

9 | 14
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petir no próximo ano. “É importante reconhecer que o me-


lhor momento dos alimentos ficou para trás. Esse parece ser
o principal desafio para 2024”, diz o economista Igor Cadi-
lhac, da carteira digital PicPay. Os efeitos climáticos são in-
controláveis e, por isso, é preciso que as autoridades colo-
quem as rédeas nas variáveis que podem ser domadas, como
o risco fiscal. Aí é que mora um grande perigo, especialmen-
te considerando que 2024 é ano de eleições e, portanto, de
impulsos por gastos no mundo político.
O governo vai encerrar o ano com um déficit projetado
de 177 bilhões de reais, equivalentes a 1,7% do PIB, e as pro-
messas de zerar o déficit em 2024 estão cada vez mais dis-
tantes. Apesar dos esforços do ministro da Fazenda, Fer-
nando Haddad, para aumentar a receita via aprovação no
Parlamento de pautas arrecadatórias (na semana foram
aprovadas as taxações de investimentos financeiros no exte-
rior e de fundos exclusivos dos ricos), isso não deve ser sufi-
ciente. Haddad enfrenta constante fogo amigo a sua conduta
da política econômica. A presidente do Partido dos Traba-
lhadores, Gleisi Hoffmann, defendeu um déficit de 1% a 2%
do PIB para impulsionar o crescimento econômico. Pior, o
presidente Lula, por sua vez, bradou que o setor público de-
ve ampliar sua dívida. “Por que este país não pode se endivi-
dar para crescer?”, disse. São receitas que já foram usadas
nos governos petistas anteriores, com resultados funestos e,
claro, inflacionários. “O desenho do novo arcabouço não
permite que o ajuste seja feito apenas pela receita, eles terão

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CRISTIANO MARIZ/AG. O GLOBO

DOIS LADOS Haddad: alfineta o BC,


mas pena para controlar o déficit fiscal

que lidar com reajustes nas despesas”, diz Alexandre Ma-


noel, economista-chefe da gestora de fundos AZ Quest e ex-
secretário do Ministério da Economia. A ala política do go-
verno reluta em realizar cortes, pois afetariam investimen-
tos do PAC e emendas parlamentares não impositivas em
ano de eleições municipais.
Recentemente, Haddad criticou a postura “durona” do
BC quanto ao corte dos juros. Um indicador justifica, em
parte, o apelo do ministro: o Brasil tem a segunda maior ta-
xa real de juros do mundo — calculada pela diferença entre
juros e inflação, essa taxa está agora em 6,1% ao ano. Had-

11 | 14
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dad lançou até uma provocação a Campos Neto, dizendo


que o Banco Central “precisa fazer seu trabalho” com o cor-
te da Selic para estimular o crescimento. Segundo o minis-
tro, o crescimento seria responsável por aumentar a arreca-
dação e acomodar a ambiciosa meta fiscal de 2024. Apesar
da cobrança recorrente, na verdade, é Haddad quem precisa
desempenhar o seu papel. Dos dois lados do barco da políti-
ca econômica, o monetário rema, enquanto o fiscal — sob
responsabilidade do ministro — não tem conseguido ajudar.
“À medida que a dívida continua a aumentar, todas as incer-
tezas relacionadas à sustentabilidade fiscal se refletem, no-
tadamente, na taxa de câmbio. A taxa de câmbio desempe-
nha um papel crucial na formação do cenário inflacionário”,
diz Bráulio Borges, especialista em contas públicas do insti-
tuto FGV-Ibre e da LCA Consultores. Segundo ele, se não
fossem os recentes ruídos em torno da meta fiscal do próxi-
mo ano, proferidos pelo próprio presidente Lula e sua “cor-
riola” política, o câmbio brasileiro poderia estar em torno de
4,50 reais por dólar, refletindo potencialmente numa menor
inflação para este e para o próximo ano. A moeda america-
na fechou a última quarta-feira cotada a 4,92 reais.
Infelizmente, o governo parece ignorar o impacto da po-
lítica fiscal na trajetória da inflação, já que as expectativas
de investidores e empresários com o cenário das contas pú-
blicas se refletem nos preços. Se a condução for negativa,
por consequência, ela afeta o ritmo imprimido pelo BC aos
cortes da taxa Selic. No limite, as desconfianças têm o po-

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O TAMANHO DO ROMBO
As contas públicas voltaram ao negativo
em 2023 após o superávit do ano passado
(em % do PIB)

1,3

2019 2020 2021 2023

2022
- 0,4
- 0,85
- 1,7

Fontes: Tesouro
Nacional e Ministério do
Planejamento e Orçamento

- 10

tencial de interromper o ciclo de alívio dos juros, desviando


a projeção atual de fechar o próximo ano com a taxa básica
em 9,25% ao ano. Ou seja: um tiro no próprio pé. “Uma pos-
sível piora na área fiscal pode influenciar negativamente a
Selic”, avalia Sergio Goldenstein, ex-diretor do Banco Cen-

13 | 14
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MAIOR QUE A ENCOMENDA


As revisões do déficit primário de 2023
ao longo do ano (em % do PIB)

Projeção da LOA (2,1)


BIMESTRE

1º 2º 3º 4º 5º

-1
- 1,3 - 1,4 - 1,3 - 1,7

tral e estrategista-chefe da gestora Warren Investimentos.


Mas há ainda mais um fator de imprevisibilidade: a troca de
comando no Banco Central, com o fim do mandato de Ro-
berto Campos Neto em dezembro de 2024. É uma soma de
motivos que deveria levar o governo a procurar maneiras de
gerar confiabilidade nos rumos — e não seguir na direção
oposta. Ao não contribuir para o equilíbrio, acaba colhendo
resultado contrário a seus objetivos para a economia brasi-
leira, incluindo o desejo de um juro menor. Pior para o país,
que pode usufruir do controle momentâneo da inflação, mas
vive ainda — graças a discursos desnecessários, inoportu-
nos e irresponsáveis — em meio à incerteza. ƒ

14 | 14
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MAÍLSON DA NÓBREGA

MILEI PRECISARÁ
DO BC
Várias de suas funções são
essenciais para a economia

COMO ACONTECE com populistas que conquistam o elei-


torado com ideias impraticáveis, o novo presidente da Ar-
gentina, Javier Milei, abandonou propostas inviáveis de
campanha como a de cortar relações com o Brasil e a China,
os dois principais mercados de exportação do país.
Logo depois de ganhar as eleições, ele manteve a propos-
ta de extinguir o Banco Central, afirmando que a medida se-
ria “inegociável”. Muitos não o levaram a sério, posição que
poderá vir a ser confirmada. Milei tende a abandonar essa
louca ideia, que se nutria de uma percepção correta: a infla-
ção descontrolada tem a ver, em grande parte, com o finan-
ciamento, pelo banco, de gastos excessivos do governo. Por
ora, anunciou-se, sensatamente, que o banco será proibido de
exercer esse papel. É o que fez a nossa Constituição, cujo Ar-
tigo 164, § 1º, diz que “é vedado ao Banco Central conceder,
direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional”.
A promessa de Milei levou analistas a mostrar que ne-
nhuma economia funciona sem um Banco Central, ao qual

1|3
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cabe regular a atividade bancária e dispor sobre capital mí-


nimo e redescontos, funções essenciais. Antes, Milei poderia
ter estudado o caso dos EUA, que admira. Após a Conven-
ção de Filadélfia (1787), criou-se o Banco dos Estados Uni-
dos, com atribuições semelhantes às de bancos centrais mo-
dernos, mas sem política monetária. Cabia-lhe receber a ar-
recadação federal e conceder empréstimos ao governo e ao
setor privado, vedada a aquisição de títulos públicos.
O mandato era de vinte anos, podendo ser renovado. Os
secretários James Madison e Thomas Jefferson se opuseram
à ideia, da lavra do titular do Tesouro, Alexander Hamilton.
Perderam. O banco nasceu e seu mandato foi renovado em
1816, mas não em 1836. Assim, por 77 anos (1836-1913) ine-
xistiu um regulador e emprestador de última instância aos
bancos. Durante esse período, a economia americana sofreu
fortes recessões, que poderiam ter sido minimizadas se ti-
vesse havido a renovação.

“A economia dos
EUA perdeu riqueza
no tempo em que
ficou sem uma
autoridade bancária”
2|3
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Diante do pânico de 1907, que se abateu sobre o mercado fi-


nanceiro, com queda de 50% na Bolsa de Valores, vários ban-
cos faliram, espalhando efeitos negativos sobre a economia. O
desastre não foi maior porque o banco J.P. Morgan decidiu re-
descontar títulos de instituições financeiras em dificuldades e
exercer o papel de coordenação típica de um banco central, in-
fluenciando outros estabelecimentos a fazer o mesmo.
A crise levou o Congresso a criar a Comissão Monetária
Nacional, que investigou as causas do pânico e propôs uma
lei para regular o sistema bancário. De suas conclusões nas-
ceu o Federal Reserve, o banco central americano, em 1913.
A economia americana seria hoje mais rica se tivesse con-
tornado as crises do período em que funcionou sem uma
autoridade monetária e um regulador da atividade bancá-
ria. Milei pode não conhecer essa história, mas tende, sem
querer, a considerar as lições dos Estados Unidos, evitando
extinguir o Banco Central. ƒ

3|3
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ECONOMIA PERFIL

O ZÉ FEZ UM IMPÉRIO
Há setenta anos, José Batista Sobrinho abriu um
açougue e deu o primeiro passo do J&F, grupo que hoje
é global e fatura quase 400 bilhões de reais. Aos 90 anos,
o fundador está firme PEDRO GIL

LIÇÕES VALIOSAS José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro:


“Pegar com as duas mãos” é uma de suas máximas preferidas

PAULO VITALE

1|6
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MAIOR GRUPO privado não financeiro do Brasil, com re-


ceita anual de 393 bilhões de reais. Maior empregador do
país, com 173 000 funcionários — são 278 000 no mundo.
Maior produtor de proteína animal do planeta, com 465 uni-
dades produtivas e escritórios comerciais. Negócios nos seto-
res de carnes, celulose, energia, mineração, cosméticos, fi-
nanças. Quem diria que esse império empresarial, sob a hol-
ding J&F, nasceu como um pequeno açougue no sertão do
Brasil? O “J” vem do nome do fundador, José Batista Sobri-
nho, o “F” é de sua mulher, Flora. O início foi com a abertura
da Casa de Carne Mineira em Anápolis, Goiás, há setenta
anos. Pela história que desde então se desenrolou, Zé Minei-
ro, como é carinhosamente chamado, se tornou um dos mais
destacados empresários do país. Sua fortuna não é conhecida,
mas dois de seus filhos, Wesley e Joesley, aparecem como do-
tados de 2,6 bilhões de dólares, na 18ª posição da lista de bra-
sileiros mais ricos da revista Forbes. No dia 18 de dezembro,
Zé completa 90 anos, ativo a ponto de ir todos os dias ao QG
de seu poderoso grupo, na Zona Norte de São Paulo.
Tudo começou em 1953. José, aos 20 anos, era o sétimo
entre os oito filhos de um fazendeiro que havia migrado de
Minas Gerais para o interior goiano. “Assim que eu voltei do
Exército, sem nada, meu pai deu a mim e a meu irmão um
jipe e falou pra gente usar. Foi aí que compramos três lotes
de novilha para vender carne”, diz Zé Mineiro. A freguesia,
lembra, era formada por donas de casa. O açougue ia bem,
mas o primeiro salto foi dado em 1957. Zé Mineiro enxergou

2|6
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ACERVO JBS

FOI LÁ NO SERTÃO DE GOIÁS Casa de Carne Mineira:


a origem do gigante

que a construção de Brasília, então no início, seria uma


grande oportunidade. Decidiu mudar para lá e começar a
fornecer carne para os acampamentos de operários das em-
preiteiras que erguiam a nova capital federal. A primeira
aquisição, movimento que é marca registrada do grupo, veio
em 1969, com a incorporação de um frigorífico em Formo-
sa, outra cidade goiana. Dali nasceu a Friboi, principal mar-
ca da JBS, a processadora de carnes do grupo.
Enquanto o pai expandia o negócio pelo Centro-Oeste,
os pequenos Wesley e Joesley cresciam em abatedouros

3|6
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JEFF KOWALSKY/AFP

FORA DAQUI Operação nos EUA: maior produtor


de proteína animal do planeta

junto ao irmão mais velho, José Batista Júnior, que já par-


ticipava das atividades. “Esses meninos não aprenderam
comigo atrás deles. Foram sozinhos”, afirma Zé Mineiro.
“Quando surgia um problema mais sério eu dizia para pro-
curarem um jeito de resolver. E deu certo, cada um se vi-
rou como podia.” Por mais que o pai diga o contrário, os
filhos dizem ter aprendido muito com o “Seu Zé”. Uma
lição que sobressai é a de “pegar com as duas mãos”. Wes-
ley explica: “Ele dizia que é como dirigir um carro: manter
duas mãos ao volante reduz o risco de um acidente”. Outro

4|6
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JOÉDSON ALVES/EFE

NO BRASIL Linha de produção da JBS no Paraná:


aqui são 173 000 funcionários

aprendizado foi o da delegação. “Meu pai viajava, não pa-


rava em casa, porque tinha que olhar gado para comprar.
Era um ritmo intenso, mas quando nós chegamos, meni-
nos ainda, ele começou a nos delegar”, diz Joesley. Em
1988, os filhos foram incumbidos dos frigoríficos. Zé Mi-
neiro permaneceu à frente do braço de pecuária. Ainda
hoje percorre as fazendas da família.
“Com as duas mãos”, os filhos internacionalizaram a
operação, primeiro com a compra da Swift, na Argentina,
em 2005, e depois com a da Pilgrim’s, nos Estados Unidos,

5|6
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em 2009. A JBS se consolidou como a segunda maior em-


presa de alimentos do mundo. Na trajetória ascendente,
veio um tropeço em 2016. Joesley e Wesley foram alvos da
Operação Lava-Jato e fecharam acordo de delação premia-
da com a Justiça. No âmbito do acordo, uma gravação de
Joesley com o presidente Michel Temer foi entregue, com
a indicação de uma suposta compra do silêncio do então
presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
Meses depois, já em 2017, eles foram presos por uso de
informação privilegiada para lucrar no mercado financeiro
com a divulgação da gravação, que provocou um baque na
bolsa de valores, no que ficou conhecido como o “Joesley
Day”. Recentemente, foram absolvidos da acusação pela
Comissão de Valores Mobiliários. “A prisão foi um momen-
to superdifícil, não nos orgulhamos, mas meu pai tem mui-
ta estabilidade emocional”, diz Wesley. “Nunca vi ele eufó-
rico nos momentos bons nem prostrado nos ruins.” Duran-
te esse período, que durou seis meses, o recado que o pai
fazia chegar aos filhos era “fiquem firmes”.
Aos 90 anos, Zé Mineiro conquistou tudo. Se pudesse
dar um presente ao pai, Wesley diz que daria “muitos anos
mais de vida”. “Ele é apaixonado por viver e sempre diz
que é uma pena ter tão pouco tempo restante.” Na quarta
13, os filhos fizeram uma festa na fazenda da família para
celebrar a data tão marcante. Evento à altura de quem
construiu um império: cerca de 1 000 convidados, entre
políticos, empresários e amigos. ƒ

6|6
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INTERNACIONAL ARGENTINA

APERTEM
OS CINTOS
O governo de Javier Milei anuncia as primeiras
medidas para tirar a economia do buraco — um
pacote duro, mas não tão radical quanto ele
prometia. Aplicá-las será a parte mais difícil

ERNESTO NEVES

VAI FICAR PIOR Milei na posse:


choque para salvar o país “em ruínas”

FACEBOOK @CASAROSADA

1|4
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N
ão será por falta de aviso. No discurso de posse pro-
ferido no domingo 10, no alto da escadaria do Con-
gresso Nacional perante uma multidão de apoiado-
res, Javier Milei, o novo presidente da Argentina,
antecipou que, sob seu bastão (adornado com a fi-
gura de seus cinco cachorros), a situação vai piorar antes de
melhorar. “Não há dinheiro. A Argentina está em ruínas”,
afirmou, repetindo a frase que virou bordão. Menos de 48
horas depois, o ministro da Economia, Luis Caputo, foi à TV
detalhar um pacote de medidas para tirar o país da UTI, em
clima de enorme ansiedade agravado pelo atraso de duas
horas no discurso, que ele teve de regravar várias vezes. Ne-
le, o ministro descortinou um receituário amargo, tido como
necessário por especialistas: para pôr as contas do governo
em ordem e tentar debelar a inflação de 150% ao ano, ante-
cipou uma drástica redução de gastos públicos e uma agen-
da radical de privatizações, ambas ainda sem metas defini-
das, e a desvalorização do peso, essa sim, explicitada: 120%.
Este pacotaço inicial, considerado menos ácido do que era
de se esperar de um anarcocapitalista, como Milei se define,
desfia o rosário do liberalismo ortodoxo com o intuito de rea-
nimar o setor produtivo. Segundo Caputo, a causa das sucessi-
vas crises que golpeiam a Argentina desde o início do século
XX é o desequilíbrio nas contas do governo — “a cultura polí-
tica de gastar sempre mais do que se arrecada”, disse, com ra-
zão — e a missão do novo governo será erradicar o problema.
Entre as dez providências anunciadas estão o corte de minis-

2|4
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OFICIAL Posando com chefes de Estado:


retórica contida para angariar apoios

térios, de dezoito para nove, redução de verbas repassadas às


províncias, suspensão de obras públicas, fim de subsídios pa-
ra energia e transportes, liberação de importações e aumento
de impostos. No câmbio oficial 1 dólar passou a ser cotado a
800 pesos, perto do valor no mercado paralelo. As medidas
foram elogiadas pela diretora do Fundo Monetário Interna-
cional (FMI), Kristalina Georgieva, a quem Buenos Aires de-
ve 44 bilhões de dólares e não tem como pagar.
Parte do pacote de Milei depende de aprovação do Con-
gresso e ela não será fácil: sua sigla, La Libertad Avanza, tem
39 das 257 cadeiras na Câmara e sete das 72 no Senado, en-
quanto a coalizão peronista Unión por la Patria, na oposição,
elegeu 105 deputados e 33 senadores. O bloco também se des-
taca pela capacidade de convocar greves e protestos capazes
de atormentar o cotidiano. Provavelmente para contornar es-
se pesadelo, Milei atenuou o discurso antissistema e se aproxi-

FACEBOOK @CASAROSADA

3|4
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mou de nomes tradicionais da direita, como Patricia Bullrich,


com quem disputou a Casa Rosada e que ganhou o Ministério
da Segurança, e o ex-presidente Mauricio Macri, que indicou
os principais nomes da gestão econômica, incluindo o minis-
tro Caputo e o presidente do Banco Central, Santiago Bausili.
Vem daí a varrida para debaixo do tapete, ao menos por hora,
das promessas de transformar o dólar em moeda corrente
(Caputo discorda) e de implodir o próprio BC (do qual Caputo
já foi presidente). “A única maneira de se aprovar uma agenda
tão ambiciosa é construir alianças no Congresso”, diz José
Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Eco-
nômica do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
A herança deixada pelo ex-presidente Alberto Fernández
é trágica (leia a coluna de Vilma Gryzinski). O déficit fiscal
alcança 5,5% do PIB (no Brasil, 1,1%) e as reservas do BC es-
tão negativas em 11 bilhões de dólares (as brasileiras são de
346 bilhões). Segundo pesquisa divulgada pela Universidade
Católica da Argentina, 45% da população está abaixo da li-
nha de pobreza, percentual que pode subir em 2024, já que
as medidas anunciadas, no curto prazo, devem resultar em
mais desemprego e inflação (precavendo-se, o novo governo
ampliou a ajuda financeira a famílias com filhos). “O ajuste
será muito duro, resta saber se a população vai aceitar seu
preço”, diz Fabio Giambiagi, especialista em finanças públi-
cas do FGV-Ibre. A primeira manifestação da turma do con-
tra está marcada para a semana que vem. É aconselhável que
Milei — e a Argentina — se preparem. ƒ

4|4
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INTERNACIONAL UCRÂNIA

PASSANDO O PIRES
Com a tropa desanimada pela falta de avanços, a
torneira de dólares fechada e uma outra guerra para
atrapalhar, Zelensky faz o que pode para seguir
resistindo à Rússia AMANDA PÉCHY

MÃOS ATADAS O ucraniano com Biden: pacotes de ajuda


do presidente são barrados pelos republicanos na Câmara

CHIP SOMODEVILLA/GETTY IMAGES

1|4
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DEPOIS DE PASSAR o ano 1 da guerra contra a Rússia


saudado como herói da resistência ao invasor, com presen-
ça requisitada, aplausos garantidos e apoio jorrando onde
quer que aparecesse, Volodymyr Zelensky, o presidente da
Ucrânia, acumulou dores de cabeça neste segundo ano de
combates. A caminho de mais um aniversário do ataque
deliberado e sem motivo plausível de Moscou, em 24 de fe-
vereiro, uma muito anunciada ofensiva para abrir uma bre-
cha no território ocupado fracassou e, em meio ao desâni-
mo da tropa e troca de farpas entre governo e militares, o
fluxo de suporte financeiro do maior aliado, os Estados
Unidos, está devagar, quase parando. De pires na mão, Ze-
lensky esteve em Washington na terça-feira 12, percorren-
do os corredores do poder para relembrar aos americanos
as ameaças do inimigo em comum. Embora tenha encon-
trado em Joe Biden o respaldo de sempre, foi recebido com
certa má vontade por uns poucos líderes que mal lhe de-
ram ouvidos no Congresso, responsável pela aprovação de
mais recursos para a guerra.
O fechamento da torneira de dólares para a Ucrânia é
obra do Partido Republicano (além, claro, do desgaste
de uma guerra emperrada), que desde que assumiu o
controle da Câmara, em janeiro, não aprovou nenhum
novo aporte. Nos últimos meses, a ala mais à direita, for-
talecida pela troca de liderança que colocou um inte-
grante do grupo na presidência da Casa, endureceu a
postura, de olho nas eleições de 2024: uma pesquisa re-

2|4
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OZGE ELIF KIZIL/ANADOLU/GETTY IMAGES


EM FRENTE Avdiivka: os russos avançam,
com alta perda de vidas

cente do Pew Research Center revelou que só metade


dos americanos apoia ampliar os 75 bilhões de dólares já
despejados na Ucrânia. Biden tentou driblar os deputa-
dos linha-dura encaminhando um superpacote de gastos
de 106 bilhões de dólares, dos quais 61 bilhões iriam pa-
ra a resistência ucraniana e o restante, dividido entre
Israel (outra guerra impopular, que acabou colocando a
invasão da Ucrânia em segundo plano) e medidas de se-
gurança interna. O projeto foi vetado sem debate — para
começar a considerar o gasto, os republicanos exigem
que o governo aperte até o último furo o cinturão de
controle da imigração ilegal na fronteira com o México,
uma espécie de “jabuti” que os democratas sabem que

3|4
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despertaria a ira de seus eleitores. De mãos atadas, Bi-


den recorreu a frases de efeito. “A história vai julgar
quem virar as costas à liberdade”, proclamou.
A Casa Branca corre para tentar aprovar mais recursos
antes do recesso do Congresso porque, segundo afirma,
as reservas existentes vão secar após o fim do ano. A
União Europeia prometeu uma contribuição de 50 bilhões
de euros a Kiev, mas a Hungria pretende bloquear sua
aprovação, que precisa ser unânime. Recostado em sua
cadeira no Kremlin, Vladimir Putin, bebericando cham-
panhe e gabando-se de seu Exército, declarou que a posi-
ção militar da Ucrânia não tem futuro, dada sua depen-
dência de ajuda externa — e aproveitando, de quebra, pa-
ra confirmar que vai concorrer à Presidência novamente
em 2024. Apesar das imensas perdas de vidas, Putin pa-
rece estar vencendo a disputa de quem pisca primeiro.
Moscou controla 20% do território ucraniano e intensifi-
cou a investida no leste: em Avdiivka, uma cidade fantas-
ma sob bombardeio constante, estima-se que quase 1 000
russos morrem por dia. “Mas essa é uma brutalidade que
os líderes militares parecem dispostos a aceitar para pro-
longar a guerra”, diz Jean de Glinasty, pesquisador do Ins-
tituto de Relações Internacionais e Estratégicas. Acuado,
com o inverno chegando e com ele as bombas russas so-
bre estruturas de abastecimento de água e luz, Zelensky é
hoje um pedinte em busca do apoio perdido. ƒ

4|4
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A ESTÁTUA MALDITA
DE NÉSTOR
Trajetória do monumento revela
os males da nossa América

POR QUE não damos certo? Por que as figuras sul-ameri-


canas mais faladas do momento são o novo presidente que
conversa com um cachorro morto e o veterano ditador que
inventou uma fictícia guerra no fim do mundo? Por que o
ensino no Brasil acabou com um exame de avaliação em que
o agronegócio é acusado de crimes como “a mecanização
pesada, a ‘pragatização’ dos seres humanos e não humanos,
a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de vene-
no”? E, nada surpreendentemente, os “pragatizados” são os
pobres estudantes brasileiros que produziram uma nota de
397 pontos no Pisa, contra os 560 de Singapura, 533 de
Taiwan e 523 da Coreia do Sul, nunca introduzidos às mara-
vilhas dos métodos para criar “cidadãos críticos” sem preci-
sar de banalidades como entender textos. Na temporada na-
cional de autoflagelação que o Pisa sempre desencadeia, o
“consolo” foi que a Argentina, que historicamente teve um
sistema educacional melhor do que o brasileiro, conseguiu
ficar pior ainda do que nós, com 396 pontos.

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A regressão da Argentina é um dos fenômenos mais


impressionantes da América que não dá certo. O início do
governo de Javier Milei obscureceu um fato anedótico
que, de maneira quase surreal, ilustra nossas misérias re-
centes. Antes de deixar a Vice-Presidência, Cristina Kir-
chner tomou importante providência: sequestrou a está-
tua do marido, Néstor. O monumento, feio de doer, tem
uma espécie de maldição. Foi uma doação feita em 2014
por Cristina, então presidente, à , um delírio bolivaria-
Unasul

nista. Participaram da inauguração Rafael Correa e Dil-


ma Rousseff, atingidos por derrotas políticas devastado-
ras. Com a derrocada de Correa, grupos de oposição a ele
e de exilados argentinos fizeram protestos em frente à se-
de da e até ameaçaram derrubar o abantesma. Em 2019,
Unasul

a estátua foi para um depósito, de onde saiu no ano se-


guinte, com Cristina de volta ao poder, e rumou para a

“A regressão da Argentina
é um dos fenômenos
mais impressionantes
da América que
não dá certo”
2|3
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Argentina, sendo instalada no Centro Cultural Kirchner.


Agora, com a ascensão de Milei, ela desapareceu de lá.
Uma funcionária esclareceu: “Cristina a levou”.
Milei está no comando de um país quebrado. Assim ex-
plicou a origem da crise o Financial Times, produzindo um
diagnóstico de males que deveriam servir de exemplo a
qualquer governante lúcido. “A raiz dos problemas da Ar-
gentina é o gasto excessivo crônico do governo. O tama-
nho do Estado dobrou nas duas últimas décadas. O empre-
go no setor público aumentou 34% entre 2011 e 2022, en-
quanto no setor privado cresceu apenas 3% no mesmo pe-
ríodo”, comparou o jornal. “O governo peronista recorreu
à emissão de dinheiro para financiar o déficit. A oferta mo-
netária disparou e o valor do peso desabou. A derrocada
do peso turbinou a inflação, uma das mais altas do mun-
do.” Precisa desenhar?
A estátua de Néstor Kirchner deve reaparecer em Santa
Cruz, o feudo do clã. Suas andanças são um retrato melhor
do que todas as explicações já especuladas sobre nossas
desgraças, desde o modelo colonial até a exploração dos
americanos malvados, passando pela teoria da dependên-
cia e a cultura clientelista. Será que algum dia terá a com-
panhia de uma estátua de Cristina, fazendo aquele gesto
feio com a mão? ƒ

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GENTE
VALMIR MORATELLI

A FAMÍLIA
VAI CRESCER
Na contagem regressiva para o
show de réveillon que deve reunir
para lá de 2 milhões de pessoas
nas areias de Copacabana,
LUDMILLA, 28 anos, revela o pro-
jeto de dar uma guinada na vida.
Casada desde 2019 com a bailarina
Brunna Gonçalves, 31, o plano para
o ano que se avizinha é aumentar a
família, objetivo que fez com que as
duas se despencassem para Mia-
mi, atrás de um renomado centro
de fertilização. A ideia é que Brun-
na engravide. “Estamos na etapa
dos exames, mas já estou louca
para ser mamãe”, conta a cantora,
que, com a agenda lotada para os
próximos meses, sabe que vai ter
de frear o ritmo e encarar fraldas e
INSTAGRAM @LUDMILLA

mamadeiras. “Ela vai precisar con-


ciliar os dias de descanso e de
trabalho, ter uma rotina mais
maleável”, avisa Brunna.

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HECTOR VIVAS/GETTY IMAGES

MISS REBELDE
Coroada Miss Universo, a nicaraguense SHEYNNIS PALACIOS,
23 anos, tem dado o que falar no país regido pela ditadura de Da-
niel Ortega, acusado de abafar direitos básicos, perseguir oposi-
tores e impor a censura. Pois a miss é falante, e já disparou em pú-
blico contra os desmandos por lá. Depois da coroa, porém, o clima
pesou. A diretora da versão local do concurso, Karen Celebertti,
foi acusada de fraudar a competição em prol da então candidata
alinhada à frente anti-Ortega. Apontada pela polícia por “conspira-
ção, difusão de informação falsa, traição e lavagem de dinheiro co-
mo parte de um complô para derrotar o governo”, ela teve sua en-
trada barrada na Nicarágua. Já Sheynnis fechou-se em silêncio e
segue nos Estados Unidos, sem passagem de volta à terra natal.

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DO PALCO À CASERNA
É regra na Coreia do Sul: todos os homens entre 18 e 28 anos devem
servir nas Forças Armadas. E vale para todos mesmo, inclusive JI-
MIN, 28 anos, JUNG KOOK, 26, RM, 29 (da esq. para a dir.), e V, 27
(de preto com gola branca), integrantes do BTS, a mais popular ban-
da de K-pop do planeta. Eles acabam de engatar no batente militar,
juntando-se assim aos outros três já aquartelados do grupo — J-HO-
PE (de branco), JIN e SUGA (à dir.). “Ficarei bem, exceto pelo fato de
não ter lembranças felizes com vocês por um tempo, o que é a parte
mais difícil”, desabafou V nas redes. Já RM externou o medo de se
sentir sozinho, mas pôs panos quentes: “Será uma chance de obter
inspiração e aprender coisas novas”, consolou-se. A banda, em pri-
meiro lugar do Spotify em 2023, promete retomar a turnê em 2025,
quando os integrantes marcharem do quartel novamente ao palco.
CINDY ORD/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

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CÓPIA FIEL
Lente azul nos olhos, peruca
que simula calvície, cabelos
descoloridos, menos 7 quilos na
balança, prótese dentária e na-
sal. Esses são alguns dos ingre-
dientes da metamorfose por
ESTEVAM AVELLAR/TV GLOBO; PEDRO SOTERO

que passou JULIO ANDRADE,


47 anos, para viver o sociólogo
Herbert de Souza na série Beti-
nho: No Fio da Navalha, do Glo-
boplay, sobre o fundador da
campanha de solidariedade
contra a fome e a miséria, mor-
to em 1997 (nas fotos, o antes e
o depois). O ator diz que, de tão
transformador o papel, também
passou a ver o mundo sob um
novo filtro. “Não foi só a careca.
Minha busca foi tentar entendê-
-lo, algo muito mais de dentro
para fora”, filosofa ele, que con-
tracenou com seu irmão, o ator
Ravel, 32, na pele do irmão ca-
çula de Betinho, Chico Mário.

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CASAL EM DÍVIDAS
Mergulhado em renhida bata-
lha judicial de milhões com a
ex Angelina Jolie, 48, BRAD
PITT, 59 anos, vem esticando
ao máximo a resolução da dis-
puta. Não é o único a ter as dí-
vidas expostas sob os impla-
cáveis holofotes — em escala
menor, sua namorada, a desig-
ner de joias INES DE RAMON, 33,
foi condenada a pagar 13 000 dólares
ao estado de Nova Jersey, referentes
a impostos atrasados de um imóvel.
Vice-presidente da grife de joias Ani-
ta Ko, ela resiste em abrir a carteira.
Esse ambiente em nada impede Pitt
de se arvorar de consultor financeiro
e insistir em fincar pé no nicho da ad-
Q.PICS/EVERETT/FOTOARENA; J. HEKIMIAN/GETTY IMAGES

ministração. Nos últimos tempos, ele


tem divulgado um curso on-line de
educação empresarial. “É para pes-
soas que desejam aprender a em-
preender com a ajuda de profissio-
nais”, explica. ƒ

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GERAL COMPORTAMENTO

SEMELHANÇA FATAL
Muita gente confunde as drogas K, também chamadas de
maconha sintética, com a Cannabis. Mas atenção: elas são
infinitamente mais potentes. Daí o sinal de alerta das
autoridades sanitárias à medida que se espalham pelo país
MAIÁ MENEZES E SOFIA CERQUEIRA

CUIDADO O entorpecente:
consumido de várias maneiras, é
difícil de ser rastreado e banido

R. PUTTAKUMWONG/GETTY IMAGES

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N
a terminologia grega, a palavra fármaco pode
significar tanto remédio quanto veneno. Foi nos
Estados Unidos dos anos 1960, depois na Euro-
pa, que um desses medicamentos, com esse du-
plo potencial, foi desenvolvido em laboratório, à
base de canabinoides sintéticos de conhecida função te-
rapêutica. A ideia era que as substâncias recriadas artifi-
cialmente para agir no cérebro de forma similar ao THC,
o princípio ativo da maconha, fossem empregadas em pa-
cientes com dores crônicas, distúrbios de ansiedade e so-
no, entre outros. Ao longo do tempo, porém, seu uso se
desvirtuou do propósito original, desaguando num mer-
cado paralelo sem nenhum controle. Agora, a explosão
da droga, ora conhecida como maconha sintética (mesmo
não tendo nada a ver com a planta da Cannabis e às ve-
zes nem mais conter o THC de laboratório), ora como K2,
K4, K9 ou spice, entrou no radar das autoridades no Bra-
sil. O motivo: pela primeira vez ela se espalha perigosa-
mente pelo país, por todas as classes sociais.

A LETRA DELA É K
Exemplar da droga:
a erva pode ser
borrifada por
centenas de
substâncias
sintéticas

ALAMY/FOTOARENA

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Produzido com fórmulas que se valem de até 300 dife-


rentes componentes e 100 vezes mais potente que a maco-
nha, o entorpecente da vez pode viciar em questão de
dias, levando a efeitos devastadores e imprevisíveis — daí
o recente alerta emitido pelo Ministério da Justiça para
tentar frear seu crescimento. Só em São Paulo, as apreen-
sões das drogas K subiram dez vezes neste ano. Secreta-
rias de Segurança de uma dezena de outros estados, como
Rio de Janeiro, Paraná e Acre, também registraram o co-
mércio dessas deletérias substâncias, que, num lance de
marketing, se vendem como um tipo de maconha, quando
não são. Embora tenha encontrado terreno fértil nas cra-
colândias, a droga vem sendo consumida em abundância
em eventos de concentração de jovens, como festas emba-
ladas a música eletrônica. Um recente estudo feito pela
Unicamp em raves de três capitais achou vestígios do te-
mido K em quatro de cada dez pessoas.
Um empurrão a seu ascendente mercado certamente é
o preço, entre 5 a 30 reais. Processada no estado líquido, a
droga pode ser fumada numa mescla com tabaco ou mes-
mo Cannabis, ingerida em papelotes borrifados, inalada
em pipetas ou adicionada a chás. Há casos até de uso em
cigarros eletrônicos. Não importa o caminho pelo qual to-
me contato com o organismo, é como um tsunami, capaz
de abalar a saúde de múltiplas maneiras. “Atuo há quatro
décadas na área e tenho presenciado o inferno provocado
por essa droga, que muitas vezes leva à UTI”, afirma Dar-

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DWPHOTOS/GETTY IMAGES

NA BALADA A deletéria droga adentrou o mundo das


festas: alto consumo entre jovens de classe média nas capitais

tiu Xavier da Silveira, coordenador do centro de trata-


mento de dependentes químicos da Unifesp.
Conforme a dose e frequência, o usuário apresenta
reações que vão de agressividade, alucinações auditivas e
visuais, convulsões e taquicardia a tendências suicidas,
complicações neurológicas e infarto agudo. Não raro, os

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consumidores mergulham em um estágio de letargia, o


“efeito zumbi”, que pode se estender por horas a fio. “É
extremamente perigosa, a pessoa se descola completa-
mente da realidade e perde o domínio físico e mental”,
diz o psiquiatra Jorge Jaber, dono de uma tradicional clí-
nica com seu nome, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que
desde o ano passado vem recebendo vítimas das nocivas
substâncias sintéticas.
As consequências para quem está sob seu efeito, ou na
fase de abstinência, são tão severas que é comum ver
usuários chegando às clínicas de ambulância. Depois de
ter experimentado a droga na Europa, onde morou por
quase dez anos, um especialista em TI, de 33, caiu na ar-
madilha de voltar a consumi-la no Brasil, no ano passado.
Desenrolou-se a partir daí um pesadelo, que pôs sua vida
em suspenso. “Primeiro, você tem uma sensação maravi-
lhosa, como se os problemas desaparecessem, mas depois
aquilo acaba com a sua vida. É pior do que o crack”, relata
ele, que foi internado. O calvário incluiu o drama da absti-
nência — febre, convulsão e diarreia, tudo ao mesmo tem-
po. Centros de atendimento a dependentes químicos, es-
pecialmente em São Paulo, onde a droga mais se dissemi-
nou, registram casos de moradores de bairros nobres que,
arrastados pelos sombrios desdobramentos da maconha
sintética, foram parar nas cracolândias.
Diversas histórias ouvidas por VEJA ajudam a dimen-
sionar o elevado poder de danos envolvido na experiência.

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WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS

FIM DE LINHA Cracolândia em São Paulo: muitos usuários


acabam parando lá

Não faz muito tempo, uma técnica de enfermagem de 46


anos, desesperada, decidiu ver como era, com o objetivo de
ajudar a filha, uma jovem de 21 que se tornara dependente
daquelas substâncias. Em três dias, a mãe se viciou, e as
duas seguem agora em tratamento. Como muitos que se
deixam aproximar da droga, ela subestimou seu potencial
destrutivo, impossível de controlar. “Além do vício, existe o
perigo de um quadro de psicose, com completa perda da
noção de realidade, em certos casos irreversível”, enfatiza o

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CLEARWATER POLICE DEPARTMENT

EFEITO ZUMBI Estados Unidos: a pessoa perde


o controle físico e mental

psiquiatra Fábio Pinheiro, à frente da Clínica Huxley, no in-


terior paulista, que neste ano internou quinze adeptos da
droga K. No pior cenário, ela leva à morte — só em 2023
houve o registro de dez óbitos na cidade de São Paulo, o que
os especialistas sabem ser subnotificado.
Um dos grandes desafios no combate ao entorpecente
é que sua produção não obedece a um padrão. Os trafi-
cantes se utilizam de centenas de matérias-primas que de-
sembarcam no país vindas de todo o canto — Ásia, Euro-

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pa, África, Paraguai e México — e são processadas em la-


boratórios de fundo de quintal. Uma investigação do Mi-
nistério Público paulista revelou que vários componentes
são também comprados na dark web, o obscuro subterrâ-
neo das redes, em sua maioria provenientes de indústrias
como a de derivados de petróleo e de itens têxteis. “Além
de ser uma droga de difícil apreensão por se apresentar
em variados formatos, alguns inodoros, ela está pulveri-
zada nas mãos de um mercado de microtraficantes”, afir-
ma o promotor Tiago Dutra Fonseca.
Nos Estados Unidos, os canabinoides sintéticos já to-
maram contornos de uma epidemia, drama que motivou
autoridades a instalar máquinas, parecidas com as de re-
frigerantes, com remédios para overdose. O primeiro re-
gistro de sua ocorrência no Brasil data de 2017 — uma ati-
vidade encabeçada, segundo o MP, pelo Primeiro Coman-
do da Capital, o PCC, maior facção criminosa do país. De
acordo com o inquérito, durante a pandemia, o grupo tes-
tou o entorpecente em presídios, que ali entrava escondi-
do em livros e cadernos. Diante da alta incidência da dro-
ga nas carceragens, o Ministério da Justiça e secretarias
de estado vetaram inclusive a entrada em suas unidades
de papel sulfite, usado como base para a substância borri-
fada. Como se vê, não faltam evidências de que a batalha
contra esse mal — que, como tantas drogas, traz consigo
uma ilusão de alegria, deixando um rastro de destruição
—se faz mais urgente do que nunca. ƒ

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GERAL SAÚDE

GUARDA-SOL
EM CÁPSULA
A prescrição de pílulas de proteção solar tem crescido
nos consultórios de dermatologia. Mas, cabe ressaltar,
elas não substituem o creme convencional
PAULA FELIX

DE RACHAR Sombra e escudo pastoso:


a única receita eficaz

ARTBOX/SHUTTERSTOCK

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DESDE A ANTIGUIDADE, o ser humano busca meios de


resguardar a pele do sol. Do azeite aplicado pelos gregos
nos idos de 500 a.C. ao primeiro filtro solar moderno no
fim dos anos 1940, as fórmulas e matérias-primas têm evo-
luído nos níveis de proteção. E não se trata apenas de cre-
mes para espalhar pelo corpo. Filtros solares hoje fazem
parte de batons, maquiagens e até roupas. Mas nem toda
inovação tem sido suficiente para blindar as pessoas dos
raios ultravioleta e reduzir a incidência do câncer de pele.
Com as sucessivas ondas de calor extremo, possível efeito
do aquecimento global, a ciência recruta reforços diante do
astro-rei. E uma das soluções mais estudadas e prescritas
ultimamente são os protetores orais, cápsulas que prome-
tem ampliar as defesas cutâneas.
O debate sobre as pílulas com essa ação chegou a ficar
meio adormecido, mas, com um período fértil de pesquisas
e os alertas das mudanças climáticas, a categoria foi reavi-
vada nos laboratórios e consultórios. A meta é prevenir da-
nos graves, sobretudo os tumores de pele, os mais frequen-
tes no planeta. Na mais recente edição do congresso da So-
ciedade Brasileira de Dermatologia (SBD), um painel foi de-
dicado ao tema. “A proposta é pensar na fotoproteção sistê-
mica, o que não quer dizer que vamos deixar de recomendar
o protetor solar tópico, mesmo sabendo que existe uma difi-
culdade para a população usar no dia a dia”, diz o dermato-
logista Roberto Tarlé, professor da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR).

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PUSHISHDONHONGSA/GETTY IMAGES

EM PÍLULA Efeito antioxidante: versão oral vem de


substâncias de origem vegetal

Na ocasião, foi discutida a indicação de cápsulas de nico-


tinamida, uma vitamina do complexo B, uma vez que ela já
demonstrou potencial para prevenir a proliferação de célu-
las cancerosas e promover a recuperação celular. Em um es-
tudo com 368 pacientes, o número de lesões malignas foi
23% menor nas pessoas que as ingeriram na comparação
com o grupo placebo (comprimidos sem princípio ativo). Di-
ferentemente do filtro em creme, que forma uma barreira fí-
sica e química na superfície cutânea, a versão oral busca cui-
dar do organismo de dentro para fora. “Verificar formas de
potencializar os benefícios do protetor tópico é uma tendên-
cia global”, diz Maurizio Pupo, farmacêutico especialista em
cosmetologia. “No pós-pandemia, os cientistas começaram
a estudar mais os efeitos das radiações solares, porque a ca-
mada de ozônio está ficando mais fina e o aquecimento do
planeta, aumentando.” Essa preocupação se fundamenta em
um cálculo resgatado em 2021, mas que data de 2011, se-

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ZEFART/GETTY IMAGES

INSUBSTITUÍVEL Indicação: produtos com


FPS a partir de 30 são os mais adequados

gundo o qual para cada redução de 1% da espessura da ca-


mada de ozônio, estima-se um aumento de 1% a 2% no tipo
mais grave de câncer de pele, o melanoma. Para os demais,
o índice varia entre 2,7% e 4,6%.
A principal base para as pílulas vem de uma samambaia
encontrada na América Central chamada Polypodium leuco-
tomos, usada há muito tempo. É saber ancestral que demons-
trou capacidade fotoprotetora em estudos modernos dentro e
fora do laboratório. Os componentes ativos da planta apre-
sentam propriedades antioxidantes que anulam os chamados
radicais livres, moléculas formadas naturalmente, mas insti-
gadas pela exposição à radiação ultravioleta, relacionadas
tanto ao envelhecimento precoce como aos danos capazes de
evoluir para tumores. Nessa esteira, outras substâncias ricas
em antioxidantes e encontradas originalmente em vegetais,
caso do licopeno e dos polifenóis, integram cápsulas que po-
dem ser indicadas como proteção adicional a quem fica ao ar

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livre boa parte do tempo, como agricultores, atletas e profis-


sionais de educação física — uma recomendação que tam-
bém se aplica a pessoas mais claras, com tendência ou histó-
rico de câncer de pele na família. Isso não quer dizer que os
suplementos devam ser consumidos apenas no verão. O cro-
nograma e a dosagem precisam ser estabelecidos por espe-
cialistas. E não se deve abrir mão do creme protetor.
Aí que está: o ganho de popularidade das pílulas não signi-
fica que as bisnagas de filtro solar podem ser deixadas de la-
do. Muito pelo contrário. Vários estudos apresentados recen-
temente sugerem que combinar é o melhor caminho. Fora is-
so, pesquisadores têm se debruçado sobre a melanina, o pig-
mento natural que nos defende dos raios solares, para o de-
senvolvimento de um bloqueador ainda mais potente. Inclusi-
ve uma versão sintética está sendo lapidada pela Universidade
Northwestern, nos Estados Unidos, com o objetivo de preve-
nir lesões e reparar a cútis queimada pelo sol — o creme, ain-
da em fase de testes, foi apelidado de “supermelanina”.
No Brasil, cientistas da USP constataram que a adição do
antioxidante ácido rosmarínico na proporção de 0,1% ao pro-
tetor clássico elevou em 41% o fator de proteção solar (FPS),
um elemento crítico para evitar as queimaduras. Sim, as op-
ções para evitar as agressões cometidas pela exposição solar
frequente ou exagerada devem se expandir nos próximos anos.
Mas, por ora, a prudência manda não esquecer o bom e velho
protetor solar, um chapéu e os óculos escuros em casa. E, sem-
pre que possível, procurar a sombra de um guarda-sol. ƒ

5|5
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GERAL HISTÓRIA

ATTENZIONE,
PICKPOCKET!
Os mármores de Elgin, retirados do Partenon,
na Grécia, parte do acervo do Museu Britânico,
reacendem uma guerra diplomática e iluminam
o futuro dos museus MARÍLIA MONITCHELE

IDENTIDADE Visitante observa as milenares esculturas


gregas: obras foram levadas para a Inglaterra no século XIX

DANIEL LEAL/AFP

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HÁ OS FURTOS comezinhos, desses que pululam nas ci-


dades europeias com grande afluxo de turistas — ficou fa-
moso, nas redes sociais, em 2023, o brado “Attenzione, pi-
ckpocket!”, da italiana que denunciava os bandidinhos de
Veneza. Mas há também esbulhos históricos, imunes ao
tempo, tratados como questão de Estado. Fazem parte dessa
categoria tungas recentes como a do fóssil do dinossauro
brasileiro Ubirajara jubatus, subtraído de um sítio paleonto-
lógico no Ceará em 1995 e só devolvido no início do ano pe-
lo museu alemão onde ficou anos depositado. Convém ilu-
minar, acima de tudo, pilhamentos antigos, como o dos cha-
mados mármores de Elgin, que ornamentavam o Partenon,
na Grécia, e foram levados para a Inglaterra no século XIX
pelo diplomata britânico Thomas Bruce (1766-1841), o Con-
de de Elgin — daí o nome. O conjunto milenar de esculturas
é hoje uma das principais atrações do reputado Museu Bri-
tânico, em Londres.
Em torno do Elgin brotou, agora, uma guerra fria, nó di-
plomático difícil de desatar. Rishi Sunak, primeiro-ministro
do Reino Unido, do Partido Conservador, se recusou a en-
contrar o homólogo grego, Kyriakos Mitsotakis, que estava
de passagem por Londres, no fim de novembro. O motivo?
Sunak queria evitar um debate público envolvendo as escul-
turas. Além de declarar publicamente que elas pertenciam
à Grécia e que foram “essencialmente roubadas”, Mitsotakis
havia se encontrado com o líder da oposição britânica, o tra-
balhista Keir Starmer, crime de lesa-pátria para o atual go-

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NICOLAS ECONOMOU/NURPHOTO/AFP

SAGRADO As ruínas do Partenon,


na Grécia: símbolo querido para o país

verno. Depois, o líder grego ainda autorizou a abertura de


negociações diretas com o presidente do Museu Britânico,
George Osborne, para desenhar a possibilidade de um acor-
do de empréstimo. Vale lembrar que os ingleses Starmer e
Osborne são contra a devolução dos objetos, cuja permanên-
cia na Inglaterra é protegida por lei, mas ambos criticaram a
atitude de Sunak. Consideraram a postura do premiê avessa
ao diálogo, arrogante e belicosa.
A trama é complexa. O caso dos mármores de Elgin é um
exemplo do que aconteceu durante a expansão colonial bri-
tânica e de outros países, e levanta questões éticas e de Justi-
ça. Mitsotakis comparou os pedaços dos mármores tirados

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do Partenon à “Mona Lisa cortada ao meio”, analogia que


ilumina o simbolismo dessas esculturas para a identidade
grega. Mesmo sem o vasto império de outrora, o Reino Uni-
do insiste na defesa da inviolabilidade do Museu Britânico.
É como se dissesse aos gregos que eles deveriam se orgulhar
ao verem suas relíquias ao lado de outras provenientes da
África e da Ásia, em ótimo estado de preservação.
O zelo é real, e merece aplausos. Mas não há como em-
purrar para debaixo do tapete uma verdade: as grandes co-
leções da Antiguidade são produtos do nacionalismo exalta-
do do século XIX. “Se olharmos para trás, percebemos que
esses museus tradicionais, produto do século das luzes, são
oriundos de saques e espólios”, diz Ana Karina Calmon,
professora de museologia da Universidade Federal de Sergi-
pe. “As primeiras coleções dessas instituições foram monta-
das dessa forma.”
A ideia de que milhões de objetos, criados em diferentes
culturas, devam permanecer confinados nos acervos de
instituições de países ricos está sendo desafiada. A maior
parte das obras foi feita para representar os valores e cren-
ças de diferentes povos, e não pode ser subtraída. É um
equívoco manter os objetos distantes de todo o repertório
cultural que proporcionou sua existência. “A ideia desses
museus como centros mundiais irradiando cultura para as
periferias não é mais aceitável”, afirma Antônio Álamo Sa-
raiva, curador do Museu de Paleontologia Plácido Cidade
Nuvens, da Universidade Regional do Cariri, que recebeu

4|5
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o fóssil Ubirajara jubatus.


“A devolução desses itens,
portanto, parece um mo-
vimento natural.”
São indícios de que a
noção dos museus como
os conhecemos hoje preci-
sa ser rediscutida. “Não
podem mais ser vistos co-
mo salvadores da cultura
mundial”, diz Saraiva. A
França e a Alemanha es-

SAM KOVAK/ALAMY/FOTOARENA
tão engajadas em progra-
mas significativos de re-
patriação de objetos cul-
turais. Apesar das preo- FOI ELE Thomas Bruce, o
cupações com segurança Conde de Elgin: o diplomata
e preservação, artefatos britânico responsável pela
africanos estão retornan- apropriação
do à África; cerâmicas, ao
Sudeste Asiático; e tesouros tribais, à Polinésia. Não se tra-
ta, claro, do fim dos grandes museus. Muitos deles têm
itens de sobra e seria benéfico compartilhá-los. O retorno
dos mármores do Partenon pode, de fato, estabelecer um
precedente extraordinário. Seria um manifesto em defesa
de uma nova ordem, um novo modo de encarar a riqueza
cultural da civilização. ƒ

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GERAL TECNOLOGIA

LUTO DIGITAL
Os recursos de inteligência artificial alimentam
aplicativos que permitem interagir com parentes
já falecidos. É um bonito passo, mas que
carrega questões éticas MARÍLIA MONITCHELE

MEMÓRIA VIVA Homem assiste à gravação de alguém que


já se foi: a possibilidade de interação atrai comovido interesse

BEBETO MATTHEWS/AP/IMAGEPLUS

1|5
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NO NATAL do ano passado, a família do comerciante Sal-


vador Portal se reuniu para ouvir a leitura de uma carta. Na
voz de Salvador, a missiva ganhou contornos emocionantes
para a mulher, Maria Catarina, enternecida com os agrade-
cimentos pelo companheirismo de uma vida inteira juntos.
Para os filhos Wagner e Angélica, também presentes ao en-
contro familiar, houve comoção idêntica. Choraram ao ou-
vir do pai quanto ambos o deixavam orgulhoso por tudo o
que alcançaram. Havia, contudo, algo diferente no ar. O lei-
tor em torno do qual todos se reuniram e por quem derruba-
ram lágrimas não está mais entre nós desde 13 de janeiro de
2022, quando morreu, aos 62 anos, em decorrência de com-
plicações cardíacas.
Salvador não havia deixado uma gravação da leitura
antes de morrer. Na verdade, ele nem sequer tinha escrito a
carta. Sua voz foi recriada com a ajuda de inteligência arti-
ficial (IA) para ler as palavras escritas por seu filho mais
novo. “Quando ele morreu, eu ficava escutando áudios”,
diz Wagner. “Era uma forma de lidar com a saudade. Até
que comecei a procurar aplicativos que pudessem reprodu-
zir textos com a voz dele.” O caçula não achou o que que-
ria, mas encontrou o Mr. Falante, projeto liderado pelo
professor Frederico Santos de Oliveira, na Universidade
Federal de Goiás, que visava a pesquisar, desenvolver e
treinar modelos para processamento da fala. Com doze áu-
dios de WhatsApp, foi possível recriar o tom e a cadência
da voz de Salvador.

2|5
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FERRANTRAITE/GETTY IMAGES

ÉTICA Imagens e sons deixados em


registros eletrônicos: até onde usá-los?

Aplicativos como o que Wagner buscava começam a fa-


zer sucesso, cada vez mais procurados. Eles compõem um
novíssimo e promissor segmento batizado de “tech do luto”.
Há infinitas e criativas possibilidades. No HereAfter, os
usuários podem gravar memórias em áudio — o que requer
algum desprendimento, sabendo-se que serão compartilha-
das após a morte. Os registros são depois carregados em um
programa capaz de montar um robô de IA, uma espécie de
sósia virtual afeito a contar histórias. Eis a oferta, de acordo

3|5
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com o site da empresa: “preservar memórias significativas


sobre sua vida e compartilhá-las de forma interativa com as
pessoas que você ama”. O StoryFile dá um outro passo, ao
autorizar conversas em vídeo com alguém que já morreu. O
empreendimento ganhou as manchetes depois que a ameri-
cana Marina Smith, uma avó de 87 anos, conseguiu “conver-
sar com os convidados em seu funeral”. A companhia, com
quarenta funcionários e uma receita anual de 10 milhões de
dólares, oferece uma versão interativa de parentes falecidos.
O modus operandi: uma sessão de perguntas e respostas de
uma hora com o indivíduo antes de sua morte, por óbvio.
No horizonte de recursos há a possibilidade de criação de
avatares, em forma de hologramas, afeitos a dialogar. “A
ideia é recorrente nos livros e filmes de ficção científica, e
hoje em dia, com chatbots como o ChatGPT, é desafio tec-
nológico razoavelmente simples”, diz Fernando Osório, pro-
fessor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computa-
ção e pesquisador do Centro de Inteligência Artificial da
Universidade de São Paulo.
Há casos mais simples, porém na mesma estrada. A per-
da do pai inspirou Mario Cassio Mauricio a criar a startup
brasileira Misyu. O aplicativo permite que o usuário faça
uma cápsula do tempo, com mensagens que podem ser en-
tregues depois da morte, em datas previamente agendadas.
Além disso, é possível deixar registradas as orientações para
o funeral e organizar o planejamento sucessório com o deta-
lhamento de apólices de seguro de vida e cópias do testa-

4|5
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mento. A empresa não tem como objetivo a criação de clo-


nes digitais feitos por IA, mas serve como repositório para
que o usuário possa legar algo para a família, muito além
dos objetos materiais. “Ainda há muito espaço para que gen-
te possa ser gente, sem a necessidade de uma criação vir-
tual”, defende Mauricio.
Parece não haver dúvida: são serviços reconfortantes e
de evidente utilidade, um modo extraordinário de apaziguar
os ânimos entristecidos. Atraem curiosidade e interesse por
oferecer, em termos, a eternidade. Há, contudo, evidentes
barreiras que precisam ser vencidas. Em primeiro lugar,
sublinhe-se que lidar com o luto é tabu imenso, e tê-lo atre-
lado a novíssimas tecnologias, ainda mais. Convém também
iluminar as questões éticas, que pululam, como se houvesse
algum tipo de comércio com a dor e a saudade. “Quem mor-
reu não tem como rebater o mau uso de sua imagem, com-
portamentos, conhecimentos e memórias”, diz o professor
Osório, da USP. Ele tem razão, mas os recursos de ponta,
acelerados e exponenciais, indicam a expansão do luto digi-
tal, em movimento irrefreável. Vale lembrar o perspicaz co-
mentário do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990): “A
morte é um problema dos vivos”. É uma verdade inegável, e
ela não tem nada de artificial. ƒ

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PRIMEIRA PESSOA

ARQUIVO PESSOAL

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O ESPAÇO É
O MEU LUGAR
Aos 20 anos, Laysa Peixoto lidera equipes científicas na
Nasa e trabalha duro para ser astronauta

SEMPRE QUIS ser astronauta. Era criança, e meu coração


batia diferente ao olhar o céu. Dava vontade de explorar
aquela imensidão, um mundo ainda hoje tão desconhecido.
Mas parecia tudo distante demais da minha realidade. Cres-
ci num bairro simples e violento da cidade de Contagem,
perto de Belo Horizonte, onde, além da barreira econômica,
faltavam referências de boas cabeças científicas ao meu re-
dor. Por incentivo de minha mãe e avó, encarei os estudos
no colégio público como um caminho que pudesse me abrir
portas. Estudava em tempo integral, conciliando as aulas re-
gulares com um curso técnico de informática. E foi aí que
despertei para as competições nacionais e internacionais de
ciências, astrofísica e astronomia, de onde decolei para voos
que transformariam minha vida.

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Era 2021, eu tinha 18 anos, e a Nasa lançou uma de suas


caçadas globais a um asteroide, quando gente do mundo in-
teiro se debruça sobre imagens que eles oferecem à procura
daquele ponto. Só descansei quando o encontrei, e valida-
ram o feito, colocando nele minhas iniciais, LPS 003. Mais
tarde, fui a única estrangeira selecionada para um treina-
mento nas instalações da agência espacial e ali estabeleci la-
ços que nunca se desfizeram. No início deste ano, veio um
convite especial — me tornei a primeira brasileira a coman-
dar uma equipe na Nasa voltada para a criação de tecnolo-
gias, como os dois modelos desenvolvidos para futuras ex-
pedições à Lua e a Marte dos quais me orgulho. Também
me recrutaram como uma das principais cientistas da turma
que anda às voltas com um equipamento que será enviado a
Enceladus, a lua de Saturno onde há maior possibilidade de
existência de vida — este um capítulo que me intriga e fasci-
na. Sabemos ainda tão pouco.
Até agora, a maior parte do trabalho é on-line, à frente de
vinte pesquisadores, mas logo farei simulações in loco, na
Nasa, em ambiente de gravidade zero. Ganhei recentemente
uma bolsa na Manhattan College, de Nova York, onde sigo
com o curso de física que iniciei na Federal de Minas Gerais.
Esse percurso cheio de vitórias, porém, sempre foi cercado
de desconfiança. Ao me dar conta de que lapidar habilida-
des de pilotagem e mergulho poderia ser fundamental à ob-
servação do universo, me olharam meio torto no Brasil. Pe-
sava o fato de ser jovem e também a falta do hábito de incen-

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tivar a ciência em todos os níveis no país. Cheguei a desacre-


ditar de mim, mas felizmente esbarrei com exemplos inspi-
radores de cérebros que tanto admiro, e fui adiante. Quando
ajudei a digitalizar para a Universidade Harvard dados da
astronomia publicados por mulheres do século XX ou assis-
ti a uma palestra da prêmio Nobel americana Andrea Ghez,
uma emocionante aula sobre a matéria escura, me imaginei
indo tão longe quanto elas.
Uma coisa vai levando a outra na ciência, e recebi convi-
tes para integrar fóruns das Nações Unidas nos quais procu-
rei destacar o papel da tecnologia produzida por jovens cien-
tistas em prol da preservação do planeta. Esses encontros
permitiram reunir uma centena de voluntários na platafor-
ma Elliptica, que idealizei para levar ensinamentos astrofísi-
cos e valores sustentáveis a crianças e adolescentes. Gosto
de transitar por diferentes áreas do conhecimento, mas con-
tinuo firme naquele desejo antigo, de um dia ser astronauta.
Sei que para mulheres, num meio ainda dominado por ho-
mens, é mais difícil. Nunca me via representada nos filmes e
livros de ciências da infância e mesmo agora, com tantos
avanços, a participação feminina nos corredores da Nasa
continua acanhada. Isso não me intimida. Trabalho todos os
dias para ser a primeira brasileira a cruzar mais essa frontei-
ra e fazer história no espaço. Esse é o meu lugar. ƒ

Depoimento dado a Henrique Barbi

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GERAL BEBIDAS

IN VINO VERITAS
A máxima em latim — a verdade está no vinho —
nem sempre se confirma, como mostra um
novo livro que promove um vasto mergulho por
sua história de falsificações AMANDA PÉCHY
ANTON PETRUS/GETTY IMAGES

WINEGATE Vinhedo em Bordeaux: o escândalo que


abalou o terroir francês

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CAPAZ DE proporcionar surpreendentes experiências ao


paladar, o universo dos bons vinhos habita o mundo dos
ritos prazerosos e do glamour. Há um choque, portanto,
quando as garrafas ocupam a parte menos elegante do
noticiário, sinônimo de espanto para sommeliers, enólo-
gos e gente comum que tem a vida alegrada pela bebida
cujos primeiros registros datam do Egito Antigo. Foi as-
sim no episódio em que o FBI deu uma batida na casa ca-
liforniana do colecionador e comerciante das mais raras
safras, o indonésio Rudy Kurniawan, 47 anos. A desco-
berta: ele encantava as papilas das altas rodas com meras
imitações. Garrafas, rolhas, rótulos e até receitas — tudo
era falso. No material apreendido havia inclusive receitas,
como a que reproduzia o lendário Mouton Rothschild de
1945 (cerca de 15 000 reais a unidade): duas partes de
Château Cos d’Estournel com uma de Château Palmer e
outra de cabernet da Califórnia, ensinava Kurniawan,
condenado a dez anos de prisão e obrigado a pagar o equi-
valente a 150 milhões de reais a quem ludibriou.
O caso virou um símbolo desses tempos de uma ativi-
dade que se confunde com a própria história da humani-
dade, tema de Vintage Crime, recém-lançado livro da bri-
tânica Rebecca Gibb, que promove um mergulho em
curiosas tramas de adulteração de vinhos e provoca a dis-
cussão: se o resultado é bom, não vale dar um gole? E ela
própria responde: desde que a pessoa saiba o que está le-
vando à boca, sim.

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RICARDO DEARATANHA/L.A. TIMES/GETTY IMAGES

ASSIM É SE LHE PARECE Rudy Kurniawan:


o mestre da adulteração

Houve um tempo em que falsificação era praticamente


a regra. No Império Romano, dois milênios antes de quí-
micos dominarem a ciência de transformar suco de uva em
vinho e entenderem como evitar que a mistura azede, viti-
cultores e comerciantes adicionavam ervas e especiarias
para tornar a bebida mais saborosa e durável. Um tinto po-
deria ser adoçado com mel, enquanto os brancos secos
mesclavam água do mar, feno-grego e raiz de lírio. Em ge-
ral, as ânforas continham ainda uma porção de redução de
suco de uva. À época, ninguém se indignava com o festival
de aditivos, cuja dosagem, de alguma forma, definia o es-
trato social do dono do copo.

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Soldados costumavam beber uma mistura avinagrada, e


os escravos tomavam uma à base de cascas de uva já pisa-
das. Só mesmo os mais ricos desfrutavam safras sem adulte-
ração, como as do cobiçado Falernian, que tem o nome eter-
nizado em ruínas de uma taverna de Pompeia. “Vinhos já
eram um grande símbolo de status, e a elite consumia o que
melhor refletisse sua fortuna e bom gosto”, contou a VEJA
Rebecca, que integra a seletíssima turma com o título de
master of wine. Em História Natural, Plínio, o Velho (23
d.C.-79 d.C.) já dizia que o que o povo bebericava “não po-
deria sequer ser denominado vinho”.
A maioria dos aditivos não representava riscos à saúde,
embora uma parcela menor escapasse à regra. Para adoçar
e ampliar o prazo de validade de uma garrafa, os romanos
aprenderam a fazer xarope de suco de uva em potes revesti-
dos de chumbo, metal que dava à mistura sabor açucarado,
porém era tóxico. A prática seria mantida por séculos. Bem
mais tarde, em 1498, o Vaticano chegou a emitir uma bula
papal proibindo o néctar fatal, o que atingiu o clero, motor
da produção vitivinícola da Europa. O veto, no entanto, não
impediu que, passados dois séculos, um comerciante de
Ulm, pequena cidade na Alemanha, acrescentasse ao vinho
o perigoso monóxido de chumbo — isso num momento em
que o país acabara de sair da Guerra dos Trinta Anos e, na
escassez, usavam-se uvas verdes mais ácidas. Não deu ou-
tra: a morte em série de monges católicos. Biógrafos suge-
rem que Beethoven (1770-1827), que além de um dos gran-

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des gênios da música era aficionado enófilo, teria ficado sur-


do devido à ingestão por anos do líquido venenoso. Apenas
em 1996 a FDA impôs normas rigorosas contra a presença
do metal pesado em bebidas, garrafas e decantadores.
A farra das falsificações sofreu um baque no século
XIX, quando se fincou um marco fundamental à indústria:
a bebida finalmente recebeu uma definição, a loi griffe, que
estabelecia que só o líquido composto de uvas frescas fer-
mentadas, sem adoçantes ou diluição, poderia ser chama-
do de vinho. Como toda lei, essa logo seria burlada por
charlatões que compravam uvas brancas de baixa qualida-
de e, após a fermentação, rotulavam o líquido de champa-
nhe. No início do século XX, quase metade de todas as
garrafas vendidas na França do egrégio espumante era fal-
sa, o que suscitou uma onda de revoltas por parte de pro-
dutores indignados. Algo semelhante ocorreu no capítulo
conhecido como Winegate, de 1973, quando comerciantes
foram desmascarados vendendo vinhos baratos da região
de Languedoc como se fossem preciosos bordeaux. “Gol-
pistas que fazem um rótulo se passar por outro costumam
atuar onde existe uma elite com dinheiro, vontade de se
exibir e falta de conhecimento”, diz Dirceu Vianna, único
brasileiro com o título de master of wine.
O mercado de falsificações foi se aprimorando e hoje não
envolve mais aditivos, baseando-se em rótulos que não con-
tam a verdade sobre o interior da garrafa. O naco dessas be-
bidas que ludibriam o consumidor representa em torno de

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10% da produção — na China, ponto fora da curva, mais de


25% dos locais de venda chegam a comercializar vinhos
fake. Em reação, respeitados produtores do país pedem para
ver suas garrafas quebradas após as degustações. É uma
praga difícil de coibir mesmo diante dos avanços tecnológi-
cos, como a criação de rótulos com marcas de verificação
semelhantes às de notas de dinheiro.
No fim, acaba funcionando como no mundo das artes: o
martelo decisivo ainda é dos especialistas e, numa ativida-
de de tal natureza, sempre há erros. “Tanto a fraude quanto
o equívoco de especialistas são dois lados do aspecto hu-
mano da história do vinho”, observa Rebecca, a autora de
Vintage Crime. “É verdade que a autenticidade nesse uni-
verso está relacionada às características singulares do local
e do produtor, o que os franceses chamam de terroir”, ex-
plica Michael Fontaine, da Universidade Cornell, nos Esta-
dos Unidos. “Mas e se uma garrafa falsa cumpre o seu pro-
pósito, de dar prazer, por que não tomar?”, provoca. Depor-
tado em 2021 para sua terra natal, a Indonésia, Rudy Kur-
niawan segue oferecendo jantares chiques regados a vinho,
hoje em Singapura. A diferença é que agora todo mundo
sabe do que se trata e não tem pudor em fazer tim-tim com
suas elogiadas contrafações. ƒ

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GERAL ESTILO

PERSONAL DE NATAL
Serviços de aluguel e montagem de árvores e enfeites
sob medida viram opção para quem não quer ter
trabalho no fim de ano, mas deseja surpreender
amigos e família VALÉRIA FRANÇA
FABIO MARTINS

AMBIENTE INTEIRO Luiza Fiorito: a decoradora monta


a mesa da ceia e os pinheiros

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PODE PARECER irônico, mas diz a lenda que Marti-


nho Lutero (1483-1546), o austero contestador da Igreja
Católica, foi quem enfeitou um pinheiro de Natal pela
primeira vez. Relatos históricos informam que, depois de
um passeio sob o céu estrelado, o monge alemão resol-
veu iluminar a árvore com velas. Mais de cinco séculos
se passaram, e as velas deram lugar a uma profusão de
enfeites, incluindo luzes de LED. Hoje são bolas, bichos
de pelúcia, flores, estrelas e até apetrechos da Disney di-
vidindo espaço com adornos clássicos e religiosos.
Quanto mais empetecado e imponente, melhor. Goste-se
ou não, fato é que o símbolo da grande celebração cristã
também se rendeu ao fast fashion, a onda de consumo
rápido das novas tendências de estilo e decoração. Com
um diferencial e tanto: agora, multiplicam-se serviços de
criação, montagem e aluguel de árvores e companhia
que atendem às demandas sob medida. Foi-se o tempo
de montar o pinheiro. Quem quer surpreender as visitas
pode contratar um “personal natalino”.
O céu é o limite. É possível escolher modelos do catálo-
go ou confeccionar peças exclusivas. Pioneira na área, a
paulistana Sabrina Guimarães, desenvolveu uma árvore
com base de madeira de 2,30 metros para sustentar diver-
sos brinquedos elétricos (de roda-gigante a trenzinho). Tu-
do se movimenta e se ilumina. A árvore virou uma obra de
arte — com preço que faz jus à comparação, 33 000 reais.
Ela criou essa peça para enfeitar a sala da xará, a apresen-

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FOTOS DIVULGAÇÃO

VARIEDADE Escolha:
modelos com brinquedos
elétricos, como o de
Sabrina Sato (à esq.), e os
de bolotas grandes

tadora Sabrina Sato. “As pessoas ficam encantadas”, diz


Guimarães, que se dedica a esse filão há cinco anos.
O encanto é real, mas o que vale mesmo é a praticida-
de. Quem aluga não desperdiça tempo para montar, des-
montar, embalar e depois achar um local para guardar a

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decoração, que vira um trambolhão no armário. Neste


Natal, a atriz Claudia Raia optou por passar as festas na
casa que a família tem em Bragança Paulista, no interior
de São Paulo, que já está arrumada para a ocasião com
uma árvore alugada. Trata-se de um pinheirão, com 3
metros de altura, enfeitado com bolas gigantes, pretas e
brancas, além de muito brilho — a tendência da estação.
A artista vai conferir a produção só quando chegar com
os filhos para as festas. Encerradas as comemorações,
uma equipe vai a Bragança retirar a árvore, que volta pa-
ra o galpão de 300 metros quadrados que Guimarães
mantém na capital paulista.
No cardápio natalino, há ainda a opção de alugar
apenas os enfeites da árvore ou mesmo estender a deco-
ração para outros ambientes. “Também faço a mesa da
ceia e dou um clima especial à sala, ao lavabo e à varan-
da, sempre de acordo com o perfil e o gosto do cliente”,
diz a decoradora Luiza Fiorito. O serviço vem ganhan-
do força e concorrentes. As casas de aluguel faturam,
em dois meses de atividade, novembro e dezembro,
800 000 reais em média, o suficiente para manter o ne-
gócio no resto do ano. “Em 2023, as vendas de decora-
ção natalina aumentaram 8%”, afirma Patrícia Brito,
gestora da ABCasa, a associação do setor. Martinho Lu-
tero, é natural, não poderia imaginar quantas alegrias e
movimentações financeiras sua ideia traria ao mundo,
todo santo Natal. ƒ

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LUCILIA DINIZ

A ALMA DO JOGO
Sentar-se diante de um pano verde é muito mais
que uma brincadeira

TALVEZ nessas próximas semanas de festas, um amigo


ou familiar proponha um jogo como diversão. Outro po-
de lembrar que, em um congresso recente, neurologistas
provaram que jogos de tabuleiro são bons para a saúde
mental. Eu digo simplesmente que, para mim, em qual-
quer época do ano, um jogo é muito mais que uma brin-
cadeira. É uma paixão na qual não estou sozinha. Desde
políticos até homens de negócios bem-sucedidos, muitos
são os que se sentam em torno de uma mesa, com toalha
de feltro ou um tabuleiro, não como um passatempo, mas
para um exercício mental.
Não é gratuito que haja tantas associações entre os
avanços no jogo e os progressos — e, é preciso dizer, tam-
bém os reveses — da vida. Podemos apostar todas as fi-
chas em uma ideia ou em uma pessoa. Ou, com franque-
za, colocar nossas cartas na mesa. Entrar num jogo para
ganhar, com garra total. Ou jogar com os números, figu-
ras e naipes que a vida nos deu, o que não denota resigna-
ção, mas inteligência. Reviravoltas, estresse, alegria, tudo
pode acontecer. Às vezes nos recolhemos e damos a im-

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pressão de estar perdendo energia. Mas estamos só à es-


pera do momento propício para, como diz outra expres-
são muito usual, voltar ao jogo.
De toda a gama de jogos, meus prediletos são os de
cartas. Em livros, muitas vezes elas se associam à agude-
za de pensamento, e não é à toa. Advogados e produtores
de cinema criados por Sidney Sheldon jogam gin rummy,
que lembra o buraco e adoramos aqui em casa; damas da
sociedade de romances ingleses, como os de Jane Austen,
jogam whist — que aliás é um desses que evoluíram ao
longo de séculos, mas não desapareceram, comprovando
sua atemporalidade.
Criado há 500 anos, ele é o antepassado do bridge, que o
suplantou no começo do século XX e que eu tanto aprecio.
É um gosto que vem não só do fato de o ter aprendido na
adolescência, mas principalmente pelo que ele exige de ra-

“Muitas vezes um colega


calado vai demonstrar
sanha ou agudezas que
você não imagina
no cotidiano”
2|3
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ciocínio. Nele, cada tomada de decisão depende de muita


lógica e dedução, da capacidade de excluir as hipóteses me-
nos plausíveis. O investidor Warren Buffett é um fã e não
duvido que ele entenda, como eu, que o bridge ensina para
a vida e os negócios. Ele nos obriga a avaliar situações e an-
tecipar cada lance. Caso também do xadrez, outro favorito
do meu marido. Quando se fala em xadrez político, não se
trata de uma tentativa de diminuição dos grandes fatos do
mundo, mas de dar a dimensão de complexidade que há no
embate entre peças brancas e pretas.
No bridge, no xadrez e em outros jogos de estratégia —
assim como na política e nos negócios — há que se levar
em conta também as atitudes do adversário para se ante-
cipar. Quem viu a série O Gambito da Rainha sabe quanto
uma partida dessas pode cobrar em termos psicológicos.
Esse é outro aspecto fascinante das mesas de jogo. Nelas
se desenrola o desnudamento de personalidades. Muitas
vezes, um colega calado vai demonstrar sanha ou agude-
zas que você não imagina no cotidiano.
Torneios de jogos de raciocínio podem levar dias — não é
exagero dizer que exigem que se esteja em forma. Adequa-
damente, o bridge e o xadrez, além das damas, do pôquer e
do go, são reconhecidos como atividades esportivas.
Por fim, um lembrete. O jogo tem alma. Se fechamos
os olhos para suas regras a fim de ajudar alguém, ou se
não nos dedicamos com afinco, ele se volta contra nós.
Como a vida, ele é coisa séria. ƒ

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CULTURA TELEVISÃO

INVASÃO EM MASSA
Vinte e três anos após mudar a animação,
A Fuga das Galinhas ganha sua aguardada
sequência na Netflix e prova ser possível inovar
até a velha magia do stop-motion
KELLY MIYASHIRO

FAMÍLIA FELIZ Rocky e Ginger (ao centro) recebem


a filha, Molly: nova aventura

AARDMAN/NETFLIX

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N
os anos 1950, após escapar do galinheiro de uma
fazendeira cruel, a franga Ginger conquistou o
que sempre almejou: a tão sonhada liberdade. De
brinde, construiu uma família com o galo Rocky e
deu à luz Molly, pequena aventureira e curiosa co-
mo a mãe. A adolescente cresceu dentro da comunidade
que seus pais e as outras galinhas fugitivas ergueram em
uma ilha idílica. Ironicamente, a jovem — dublada em in-
glês pela carismática Bella Ramsey — se sente prisioneira
desse mundo perfeito e faz de tudo para sair e explorar o
desconhecido. A aventura deflagrada pela rebeldia da filha
de Ginger faz de A Fuga das Galinhas: a Ameaça dos
Nuggets, já disponível na Netflix, uma sequência à altura —
e impagável — do filme lançado em 2000 que revolucionou
a indústria de animação em stop-motion.
Elevada ao estado da arte pelo estúdio inglês Aardman,
criador da franquia, a técnica consiste em capturar quadro a
quadro cada movimento dos personagens e cenários, usan-
do bonecos feitos de estrutura robótica e plasticina — uma
mistura de argila, cera e plástico modelável, popularmente
conhecida como “massinha”. A Fuga das Galinhas levou
cinco anos para ser produzido em função de sua filmagem
trabalhosa. Apostando em ação, lutas e cenas de voos hila-
riantes, a animação superou as expectativas. Com orçamen-
to de 45 milhões de dólares, o filme original rendeu uma bi-
lheteria de 220 milhões de dólares, tornando-se a obra de
stop-motion mais bem-sucedida da história. Na sequência, a

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RICHARD DAVIES/NETFLIX

DETALHES Arte feita na unha:


o filme conta com técnicas artesanais

Aardman produziu outros sucessos, Wallace & Gromit


(2005) e a série Shaun, O Carneiro (2011-2019). As galinhas
mudaram até a história do Oscar: após esnobar o primeiro
longa, a Academia de Hollywood decidiu criar, enfim, a ca-
tegoria de melhor animação, em 2002. Até então, desenhos
só ganhavam prêmios honorários — caso de A Branca de
Neve, em 1939, e Toy Story, em 1996.
A sequência levou seis anos para ser concluída e, para
além da nostalgia, traz um sopro de inovação à receita.
A Ameaça dos Nuggets contou com uma equipe de quarenta

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animadores e precisou de mais de 1,8 tonelada de plasticina


para conseguir criar 145 000 imagens individuais (são
24 quadros por segundo), e ainda tem efeitos visuais aprimo-
rados e fluidos. Fatores necessários para uma boa experiên-
cia no cinema ou no sofá de casa. “A técnica ainda é muito
manual, o tempo necessário para filmar segue demorado”,
explicou a VEJA Jon Biggins, supervisor de efeitos especiais
do filme. Apesar do espírito artesanal, o avanço da tecnolo-
gia facilitou o processo. “Antigamente era preciso esconder
manualmente as hastes usadas para fazer um personagem
pular, por exemplo. Com os softwares que temos agora, é
possível só apagá-las na pós-produção”, complementa Kirstie
Deane, produtora da Aardman.
A maternidade fez Ginger ficar cautelosa — afinal, ela
teme que Molly passe o mesmo terror que ela enfrentara.
Mas a franguinha fujona vai parar em uma granja que cria
“galinhas felizes” — apenas para o abate, é claro, em uma
ironia sobre as empresas que tentam emplacar a narrativa
“humanizada” para comercializar proteína animal. En-
quanto o primeiro filme era inspirado no thriller Fugindo
do Inferno (1963), sua sequência bebe de Missão Impossí-
vel (1996). Ginger precisa invadir a fazenda tecnológica
para resgatar a rebenta antes que ela vire recheio de
nuggets em um novo plano de negócios de Tweedy, vilã do
primeiro filme, que faz seu retorno ainda mais implacável.
A velha massinha de modelar invadiu a tela de novo — e
permanece inovadora e irresistível. ƒ

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CULTURA ENTRETENIMENTO

UNIVERSO EM
EXPANSÃO
Com o ruidoso Rebel Moon, o cineasta americano
Zack Snyder deixa de lado super-heróis e zumbis
para criar uma saga intergaláctica com sua
marca inconfundível AMANDA CAPUANO

ESPAÇO SEM LIMITE Os protagonistas de Rebel Moon:


novos planetas e culturas na tela

CLAY ENOS/NETFLIX

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NA PAISAGEM VASTA de Veldt, lua que orbita um gi-


gante planeta gasoso vermelho, os habitantes vivem de
maneira pacata, cultivando grãos para a subsistência e o
comércio. Imersa nessa rotina bucólica, a população de
Veldt tem sua paz interrompida pela chegada de visitan-
tes inesperados do Mundo Mãe, sede do império podero-
so que governa o universo com punho de ferro. Quando
soldados ordenam que os agricultores forneçam a eles
sua produção, condenando os locais à inanição, a miste-
riosa Kora (Sofia Boutella) se rebela e embarca em uma
viagem interplanetária ao lado de Gunnar (Michiel Huis-
man), congregando corajosos sem nada a perder em uma
rebelião quase suicida contra o império opressor. “Traba-
lhei essa ideia por muito tempo, em vários formatos. Sur-
giu como algo derivado de Star Wars, depois virou um
projeto de série, até eu finalmente decidir fazer um filme,
que é o que eu sei fazer”, contou a VEJA Zack Snyder, a
mente criativa por trás de Rebel Moon, saga de ficção
científica que chega à Netflix na sexta-feira 22, com uma
sequência já anunciada para 2024.
Batizada com o subtítulo A Menina do Fogo, a primei-
ra parte da aventura demarca também o início de uma
saga inteiramente concebida por Snyder fora dos domí-
nios dos super-heróis. Lançado à fama graças aos zumbis
de Madrugada dos Mortos (2004), Snyder se consolidou
nas telas por meio de adaptações de quadrinhos da DC,
com tramas violentas e sombrias que despertam amor e

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NETFLIX

REBELDE Sofia Boutella em cena: pancadaria


e combatente feminina

ódio na mesma intensidade. Goste-se ou não (e há no


mundo mais gente que gosta, definitivamente), Snyder in-
fundiu na ação e na aventura uma marca própria: com
sua explosão característica de testosterona, sangue e lu-
tas altamente coreografadas, os filmes do diretor são in-
confundíveis. Ao acumular a direção e a criação de Rebel
Moon, ele agora abre um caminho promissor para a ex-
pansão de seu universo particular — algo que se poderia
chamar de um “Snyderverso”.

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Nos últimos anos, o streaming deu ao diretor a chance de


desenvolver ideias autorais e voltar as lentes para outros te-
mas de apelo pop inescapável: antes de se dedicar à ficção
científica politizada, Snyder retomou a paixão pelos mortos-
vivos no sanguinolento Army of the Dead: Invasão em Las
Vegas, lançado em 2021 na Netflix. Menos consistente do
que o reino de zumbis, o filme inaugural de Rebel Moon pe-
ca por seu roteiro deveras previsível, mas o visual impres-
sionante e as dezenas de planetas e culturas a serem explo-
radas dão a Snyder uma folha em branco cheia de possibili-
dades para o futuro de sua grife. “Essa é a melhor parte de
um projeto original. Não temos uma série de livros com uma
história encerrada. O que temos feito agora é descobrir aon-
de essa história pode nos levar, e há várias ideias que eu acho
que o público vai gostar de ver”, diz o diretor.
O desvio de rota veio a calhar. Nos últimos anos, os he-
róis da Marvel e da DC dominaram os cinemas, mas a
overdose de produções do gênero transformou a tarefa de
renovar aquela exaurida fórmula de sucesso numa missão
quase impossível. Nesse contexto, tramas como Rebel
Moon apresentam-se como narrativas alternativas que,
com um tanto de esforço, buscam preencher as lacunas
abertas no campo da fantasia e da ficção científica. “Um
cenário de excesso dessas histórias no mundo ainda está
longe de acontecer. Há muito a ser ofertado no gênero”, ga-
rante o cineasta. Não será pela falta de imaginação do Sny-
derverso que essa fonte vai secar. ƒ

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CHRIS STROTHER/NETFLIX
EM CENA O diretor (à esq.) no set de Rebel Moon:
testosterona e fantasia

“ESTAMOS APENAS COMEÇANDO”


Prestes a estrear seu novo universo na Netflix, Zack Snyder fala
a VEJA sobre a trama e a crise dos filmes de heróis.

Rebel Moon é sobre pequenos agricultores que se


rebelam contra a opressão de um império. Consi-
derando os vários conflitos envolvendo a terra no
mundo atual, como a trama dialoga com a realida-
de? O que quer que aconteça no mundo, podemos usar os
mitos para nos enxergar neles. Qualquer saga dessa magni-
tude ressoa nas pessoas. Existem arquétipos atemporais, e

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eles são como são por um motivo. Sempre podemos virar o


espelho para nós, porque a mitologia é uma metáfora da ex-
periência humana.

O filme se junta a Duna como expoente das tramas


intergalácticas. É uma nova era para o gênero? Eu
não sei, mas é interessante pensar sobre isso. A ficção cien-
tífica não tem tanta oferta quanto os filmes de super-heróis.
Star Wars, Duna, Rebel Moon são tramas épicas, fantásticas
e atingem nichos que os heróis ocuparam. Não sei se penso
nisso como algo global, mas acho que podemos estar em um
momento de transição.

Você falou sobre a grande oferta dos filmes de he-


róis. A fórmula está saturada? Acho que esses filmes
precisam desafiar um pouco o público. As tramas de heróis es-
tão em um momento em que se entende o gênero bem demais.
As pessoas viram tantos filmes desse estilo que poderiam fazer
suas próprias tramas de super-heróis.

Rebel Moon já tem uma sequência programada


para abril de 2024. Como vê o futuro desse uni-
verso? É um futuro ilimitado. Temos um final aberto e sa-
bemos para onde a história vai caminhar. É animador, pois
estamos apenas começando.

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CULTURA CINEMA

A PLEBEIA E O REI
Em Priscilla, a cineasta Sofia Coppola retrata o
outro lado do casamento de Elvis Presley — uma
relação que, sob a ótica da esposa, nada se parecia
com um conto de fadas RAQUEL CARNEIRO

ILUSÃO Cailee Spaeny e Jacob Elordi na pele dos protagonistas:


enquanto ele brilhava, ela vivia numa gaiola dourada

PHILIPPE LE SOURD/A24

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“BONITA E BOBA” — assim Priscilla descreve como era


quando conheceu Elvis Presley, em 1959. Ela tinha 14
anos e o astro do rock, 24. Durante o flerte, ele quis dis-
crição. Priscilla não contou a ninguém que havia conheci-
do o ídolo, nunca compartilhou com uma amiga como fo-
ra seu primeiro beijo, muito menos como era a vida em
Graceland, a mansão de Elvis, para onde se mudou aos 17.
Isolada da família e sem laços de amizade, ela vivia em
função dos caprichos do namorado. O silêncio chegou ao
fim em 1985, oito anos após a morte do cantor, com a au-
tobiografia Elvis e Eu — relato vertido em uma controver-
sa série de mesmo nome, em 1988, que reforçava a ilusão
de um romance trágico, mas invejável. No filme Priscilla
(Estados Unidos, 2023), que estreia na quinta-feira 21 nos
cinemas, a diretora Sofia Coppola segue caminho comple-
tamente oposto — e bem mais realista.
A cineasta era também uma adolescente quando leu o
livro, e a identificação foi imediata: filha do aclamado
Francis Ford Coppola, Sofia conhecia bem a solidão e a
pressão sofridas por mulheres que orbitam em torno de
um astro de primeira grandeza. Priscilla e ela amadurece-
ram sob o escrutínio público e batalharam para ter auto-
nomia — mesmo assim, sabem que serão eternamente in-
dissociáveis dos homens com quem compartilham um so-
brenome. A conexão fez com que a ex-esposa do cantor
apoiasse a produção, apesar de empecilhos como a oposi-
ção ferrenha de Lisa Marie, morta no começo deste ano,

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SABRINA LANTOS/A24

SENSÍVEL Os atores e Sofia Coppola: olhar melancólico


sobre amadurecimento

única filha do casal, que vetou o uso das músicas do pai na


trilha e acusou Sofia de vilanizá-lo. Já Priscilla, hoje aos 78
anos, se sentiu enfim compreendida: “Você fez bem a lição
de casa”, disse ela à cineasta, após a estreia do filme.
Uma entre as ínfimas sete mulheres já indicadas ao Os-
car de direção, Sofia criou uma marca própria: suas produ-
ções são sensíveis e sutis, e narradas da perspectiva de jo-
vens ingênuas e sem voz. Até seu retrato de Maria Anto-

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nieta, a malfadada ra-


inha da França que
morreu na guilhotina,
mostrava quão impo-
tente ela era no palá-
cio, presa em gaiola de
ouro. Experiência si-
milar à de Priscilla: a
garota conheceu Elvis
numa festa na então
Alemanha Ocidental,
onde vivia com a mãe
e o padrasto militar, e
BETTMANN ARCHIVE/GETTY IMAGES

ele servia o Exército.


O cantor conquistou a
confiança da família e
a levou para morar HERDEIRA O casal real e Lisa
nos Estados Unidos. Marie: morta neste ano, única filha
Nos raros momen- de ambos foi contra o filme por
tos em que estava pre- “vilanizar” seu pai
sente, entre uma tur-
nê e outra, o roqueiro ia do amante carinhoso ao namo-
rado abusivo. Os encontros esporádicos ainda eram afe-
tados pelo vício: ele se dopava com drogas analgésicas, e
as apresentou à menina. Mesmo ausente, Elvis ditava co-
mo Priscilla deveria agir, qual a cor adequada de seu ca-
belo e, acima de tudo, como deveria guardar a virgindade

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para ele — os dois só tiveram uma relação sexual de fato


após o casamento, em 1967, quando ela tinha 21. Longe
de Graceland, o astro mantinha casos públicos. Quando
ela reclamava das traições, ameaçava devolvê-la aos pais.
Elvis sempre voltava atrás, pedia perdão, e o ciclo se re-
petia — até o dia em que a jovem, aos 27, pegou a filha e
partiu para não mais voltar.
Em entrevista a VEJA, Cailee Spaeny, que vive Priscil-
la, lembra de um pedido especial feito pela biografada:
“Ela me disse: ‘Deixe claro que existia amor entre nós’”. A
atriz cumpriu a missão: como em todo casal, a relação ti-
nha altos e baixos — mas esses foram acentuados pela fa-
ma explosiva de Elvis. O ator Jacob Elordi encarou tam-
bém uma dura missão, a de dar vida ao músico após a
atuação brilhante de Austin Butler no musical Elvis
(2022), de Baz Luhrmann. Sofia pensou que o longa do
colega ajudaria a tirar o seu do papel. Não foi bem assim.
A diretora sofreu para angariar o orçamento de 20 mi-
lhões de dólares — Elvis foi feito com 85 milhões. A inevi-
tável comparação entre os dois filmes é nublada por certa
miopia: não se trata de eleger qual é melhor, mas de cons-
tatar que eles retratam lados distintos da mesma relação.
Nas mãos de Luhrmann, Elvis foi brilhante, acelerado e
sofrido. Já Priscilla se encaixou na sobriedade melancóli-
ca de Sofia, que expôs a força misteriosa das mulheres que
se livram de uma relação tóxica. A plebeia amou o rei —
até o dia em que decidiu amar mais a si própria. ƒ

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CULTURA MÚSICA

LEGADO ROCK’N’ROLL
Sete meses após a morte de Rita Lee, Roberto de
Carvalho volta a tocar ao vivo e celebra a memória
da dupla com o resgate de um disco cultuado dos
anos 1990 FELIPE BRANCO CRUZ
GUILHERME SAMORA/DIVULGAÇÃO

RETOMADA O músico, compositor e, agora, guardião da


obra de Rita: “Só de falar dela, lágrimas começam a brotar”

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UNIDOS pelo casamento e parceria musical desde 1975,


Rita Lee e Roberto de Carvalho decidiram dar um tempo
como casal — e também das grandes turnês — no início
dos anos 1990. Rita “entrou numas” de investir na bossa
nova e em shows intimistas só com voz e violão. Roberto
se embrenhou numa jornada de autoconhecimento, com
longas viagens místicas pelo mundo afora. Mas a paixão
e, claro, a alma roqueira de ambos jamais arrefeceram, e
eles se reuniram de novo quando surgiu a chance de reali-
zar um sonho geracional: abrir os shows do grupo britâni-
co Rolling Stones no Brasil, em 1995.
Para a missão, Rita convocou Roberto a se unir a ela
no palco mais uma vez — e assim surgiu A Marca da Zor-
ra, show que transcendeu a temporada com os Stones pa-
ra se tornar a maior turnê de Rita desde sua explosão na-
cional com Flerte Fatal, nos anos 1980. O repertório pri-
vilegiava os rocks mais famosos da cantora desde os Mu-
tantes, passando pela banda Tutti Frutti, e até desaguar
nos hits antológicos criados em dupla com Roberto — to-
dos tocados com arranjos mais pesados. O show deu ori-
gem a um álbum gravado ao vivo no Canecão, no Rio de
Janeiro. Fora de catálogo há anos, A Marca da Zorra aca-
ba de chegar aos serviços de streaming, e tem relança-
mento em vinil previsto para o ano que vem, pela Univer-
sal Music. “Mesmo durante aquele período de distancia-
mento, estávamos em contato permanente, diário, e até fi-
zemos viagens juntos”, relembrou Roberto a VEJA.

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EMERSON SANTOS/FOTOARENA/AG. O GLOBO

RETORNO Roberto e Marisa Monte: ele tocou no show de


surpresa, em um belo tributo

Antenada com os humores daquele momento, Rita per-


cebeu que, ao contrário do pop dos 1980, havia uma deman-
da por guitarras distorcidas — e Roberto, cujos atributos co-
mo instrumentista sempre foram eclipsados pelo brilho e
carisma natural da esposa, poderia enfim demonstrar seu
talento nos solos e arranjos. No espetáculo, a cantora inves-
tiu na teatralidade ao montar um cenário grandioso, em-
preender trocas de roupas e deixar de lado seus “rockarna-
vais” — maneira como se referia aos hits Chega Mais, Ba-
nho de Espuma e Lança Perfume. “Eu lá querendo provar
que nem só de lanças-perfumes vive uma compositora de
sucesso”, disparou ela em 2016, na sua autobiografia.

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O relançamento faz parte de


um projeto maior que Roberto
assumiu após a morte de Rita, em
maio deste ano. O músico e viúvo
se tornou, inevitavelmente, guar-
dião do legado artístico da ro-
queira. No momento, está revi-
rando seus baús em busca de ma-
terial inédito. “Ano que vem sai OUSADA A capa de A
um disco ao vivo gravado fora do Marca da Zo gravação ao
rra:

Brasil. Mas é surpresa”, antecipa vivo de turnê inspirada


ele. Na vida pessoal, Roberto si- pelos Stones
naliza que as coisas começam a
entrar nos trilhos apesar do longo e doloroso processo de luto.
“Só de falar dela, lágrimas já começam a brotar”, afirma.
Roberto deu mostra dessa sutil mudança de astral no sába-
do 2, ao fazer uma aparição especial na apresentação de Mari-
sa Monte no festival Primavera Sound, em São Paulo. Ao can-
tar com Marisa em tributo a Rita, quebrou um jejum de dez
anos longe dos palcos, desde que ambos se aposentaram, em
2013. “Jamais imaginava voltar aos shows”, revela. Segundo o
guitarrista, o próximo passo será ainda mais ousado. Ele pre-
tende voltar a tocar com mais regularidade, participando da
turnê que o filho Beto Lee vem fazendo pelo país em homena-
gem à mãe, ao lado de músicos como o baixista Lee Marcucci,
que compôs várias canções com Rita. Aos 71 anos, Roberto
prova que a zorra — assim como a vida — continua. ƒ

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CRISTINA GRANATO

SIMBIOSE Com Rita no palco: após dar um tempo na


parceria, casal se reuniu graças aos Stones

“NOSSO AMOR É PARA SEMPRE”


Roberto de Carvalho, 71 anos, fala de disco ao vivo com Rita Lee
e da volta aos palcos após a morte da cantora:

O senhor e Rita estavam afastados antes de A Marca


da Zorra. O que motivou a separação? Estávamos numa

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época de transformação pessoal. Queríamos fazer coisas dife-


rentes. Entrei num período de longas viagens, pelo mundo afora e
para dentro: místicas, de estudos, enfim, uma jornada sabática.

O disco surgiu após Rita e o senhor abrirem o show


dos Rolling Stones. Como foi a experiência?
Confesso que era mais divertido só ver os Stones do que parti-
cipar. Menos tensão. Mas foi um barato ver Mick Jagger ali do
lado do palco. Rita adorou. Veio a vontade de fazer um show no-
vo no receituário deles, com uma coleção de hits.

Após dez anos longe dos palcos, o senhor fez uma


participação no show de Marisa Monte. Vai voltar a
tocar? Foi um pequeno milagre que só poderia ter aconteci-
do com Marisa, uma artista de quem eu e Rita sempre fomos
grandes admiradores. Na verdade, eu imaginava nunca mais
subir num palco. O coração bateu mais forte. Me prepararei
psicologicamente e tirei os instrumentos do armário. Quero fa-
zer algo com o Beto, meu filho, mas quero que seja especial.

Como o senhor está hoje? O luto é uma batalha que não vai
acabar nunca. Vou me acostumando a me relacionar com a presen-
ça impresente da pessoa que mais amei e admirei na vida. Sinto a Ri-
ta junto a mim o tempo todo. Nossa simbiose permanecerá intacta.
Nosso amor é de uma intensidade atômica. É para sempre.

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CULTURA VEJA RECOMENDA
AMAZON PRIME

QUESTÃO DE CLASSE Saltburn: loucuras e intrigas da


aristocracia em uma afiada comédia britânica

CINEMA
SALTBURN (Reino Unido/Estados Unidos, 2023.
Disponível no Amazon Prime Video a partir de sexta-feira 22)
Em 2007, Oliver (Barry Keoghan) chega à Universidade de
Oxford com roupas de brechó, óculos desengonçados e uma
bolsa de estudos — preenchendo todos os requisitos para se
tornar o pária da instituição elitizada. Ao comover o bonitão
Felix (Jacob Elordi) com sua história de vida, porém, ele é logo
convidado a passar as férias na mansão Saltburn, onde um
efeito dominó de intrigas econômicas, festas dionisíacas e ten-
sões eróticas se desenrola, perturbando sua bússola moral (e
sanidade). Escrito e dirigido por Emerald Fennel, ganhadora
do Oscar de melhor roteiro por Bela Vingança (2021), o filme
satiriza a pouca noção de realidade da aristocracia, mas tam-
bém mira nas ambições desenfreadas daqueles que querem
um lugar ao sol no universo dos privilegiados.

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TELEVISÃO
THE CROWN — PARTE 2 DA 6ª TEMPORADA
(disponível na Netflix)
Se a presença da princesa Diana (Elizabeth Debicki) deu o tom
da primeira parte da última temporada de The Crown, nesta
segunda leva Elizabeth II (Imelda Staunton) retoma seu prota-
gonismo após a trágica morte da ex-nora. Em crise de imagem,
ela busca se adaptar aos novos tempos, tendo de lidar com a
midiática presença do primeiro-ministro Tony Blair. É na eu-
foria em torno do neto e herdeiro ao trono, o príncipe William
(Ed McVey), e de seu namoro com Kate Middleton (Meg Bel-
lamy) que a rainha acha um sopro de esperança para a monar-
quia. Um final digno para a série que já deixa saudades.
JUSTIN DOWNING/NETFLIX

FINAL Elizabeth II (Imelda Staunton) e Philip (Jonathan


Pryce): rainha renovada

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DISCO
ESCURO BRILHANTE,
ÚLTIMO DIA NO ORFANATO TIA GUGA,
de Rico Dalasam (nas plataformas digitais)
Há muitos detalhes ocultos no título do novo ál-
bum do rapper paulistano. Da professora tia Guga,
que Rico Dalasam considerava uma terceira mãe
(além da adotiva e da biológica), ao orfanato onde
ele fez amigos — e os viu partir ao completarem 18
anos —, o mix de referências aponta para o tema
central do álbum: mesmo forçado, o amadureci-
mento é uma bênção. Misturando rap e hip-hop ao
soul e à MPB, ele canta sobre amor, liberdade e au-
tonomia — guinada notável após dois álbuns me-
lancólicos e poéticos. ƒ

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CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 a biblioteCa Da meia-noite
Matt Haig [1 | 68#] BERTRAND BRASIL

2 os sete mariDos De evelYn hugo


Taylor Jenkins Reid [7 | 106#] PARALELA

3 tuDo é rio
Carla Madeira [6 | 66#] RECORD

4 é assim Que aCaba


Colleen Hoover [2 | 120#] GALERA RECORD

5 é assim Que Começa


Colleen Hoover [3 | 58] GALERA RECORD

6 imPerfeitos
Christina Lauren [8 | 15#] FARO EDITORIAL

7 onDe estão as flores?


Ilko Minev [4 | 27#] BUZZ

8 antes Que o Café esfrie


Toshikazu Kawaguchi [9 | 7#] VALENTINA

9 veritY
Colleen Hoover [5 | 83#] GALERA RECORD

10 a revolução Dos biChos


George Orwell [0 | 237#] VÁRIAS EDITORAS

4|8
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NÃO FICÇÃO
1 amigos, amores e aQuela Coisa
terrível Matthew Perry [2 | 6] BEST SELLER

2 nação DoPamina
Anna Lembke [3 | 24#] VESTÍGIO

3 mulheres Que Correm Com os lobos


Clarissa Pinkola Estés [5 | 174#] ROCCO

4 Cabeça fria, Coração Quente


Abel Ferreira [0 | 26#] GAROA LIVROS

5 em busCa De mim
Viola Davis [0 | 61#] BEST SELLER

6 a terra Dá, a terra Quer


Antônio Bispo dos Santos e Santídio Pereira [0 | 1] UBU

7 o PrínCiPe
Nicolau Maquiavel [6 | 28#] VÁRIAS EDITORAS

8 laDY Killers: assassinas em série


Tori Telfer [0 | 98#] DARKSIDE

9 boX biblioteCa estoiCa: granDes mestres


Vários autores [0 | 22#] CAMELOT EDITORA

10 Quarto De DesPeJo — Diário De uma favelaDa


Carolina Maria de Jesus [0 | 57#] ÁTICA

5|8
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AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Júnior Rostirola [0 | 2#] VÉLOS

2 faça seus negóCios trabalharem Por voCê


Stanley Bittar [0 | 1] GENTE

3 hábitos atômiCos
James Clear [0 | 30#] ALTA BOOKS

4 Café Com Deus Pai: Porções Diárias De


renovação Júnior Rostirola [0 | 40#] VIDA

5 a biblioteCa Dos sonhos seCretos


Michiko Aoyama [0 | 1] SEXTANTE

6 os segreDos Da mente milionária


T. Harv Eker [6 | 443#] SEXTANTE

7 o homem mais riCo Da babilônia


George S. Clason [1 | 149#] HARPERCOLLINS BRASIL

8 a PsiCologia finanCeira
Morgan Housel [3 | 18#] HARPERCOLLINS BRASIL

9 mais esPerto Que o Diabo


Napoleon Hill [4 | 235#] CITADEL

10 Como faZer amigos & influenCiar Pessoas


Dale Carnegie [8 | 111#] SEXTANTE

6|8
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INFANTOJUVENIL
1 o PeQueno PrínCiPe Antoine de
Saint-Exupéry [1 | 399#] VÁRIAS EDITORAS

2 as aventuras De miKe 4 — a origem De robson


Gabriel Dearo e Manu Digilio [5 | 6] OUTRO PLANETA

3 Diário De um banana 18: Cabeça oCa


Jeff Kinney [8 | 5#] VR

4 as aventuras De miKe
Gabriel Dearo e Manu Digilio [9 | 18#] OUTRO PLANETA

5 a Cantiga Dos Pássaros e Das serPentes


Suzanne Collins [2 | 12#] ROCCO

6 harrY Potter e a PeDra filosofal


J.K. Rowling [6 | 408#] ROCCO

7 a malDição Do verDaDeiro amor


Stephanie Garber [4 | 2] GUTENBERG

8 Coleção harrY Potter


J.K. Rowling [0 | 151#] ROCCO

9 melhor Do Que nos filmes


Lynn Painter [0 | 2#] INTRÍNSECA

10 Diário De um banana
Jeff Kinney [0 | 21#] VR

7|8
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[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Livraria da Travessa, Belém: Leitura, SBS, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Travessa, Livraria da Vila, SBS, Vozes,
Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura,
Livraria da Vila, Loyola, Saber e Ler, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura,
Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas: Mania de Ler,
Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página, Colombo: A Página,
Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes,
Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis:
Curitiba, Catarinense, Fortaleza: Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Kunda
Livraria Universitária, Frederico Westphalen: Vitrola, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS,
Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página,
Guarulhos: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa
Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes,
Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba, Livraria da Vila,
Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica
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JOSÉ CASADO

RIQUEZA E AMBIÇÃO
NUMA NOITE de dezembro, quatro anos atrás, os 780 000
habitantes da Guiana ganharam o grande prêmio da loteria
geológica: na véspera do Natal o petróleo começou a jorrar
no mar em frente à capital Georgetown, na plataforma da
ExxonMobil que flutuava a 120 quilômetros da costa.
Desde então, vivem numa espécie de encanto. Ano passa-
do, a Guiana foi o país que mais cresceu no planeta: o Produ-
to Interno Bruto aumentou 62%, informa o Fundo Monetá-
rio Internacional. E segue crescendo em velocidade, com ex-
pansão da economia neste ano estimada em 38%.
Sonhos de prosperidade e riqueza emergiram das noites
“sem lua, sem nome” do “passado mais horrível, de pé nos qua-
tro cantos de minha vida”, nos versos de León-Gontran Damas
(1912-1978) para o ícone do jazz Louis Armstrong (1901-1971)
sobre a opressão colonial europeia numa sociedade construída
no sincretismo das culturas indígena, africana e indiana.
Quinze poços já abertos no pré-sal sugerem um sur-
preendente potencial de produção de combustível fóssil
num dos países mais pobres da América do Sul, lindeiro
do Brasil na Floresta Amazônica em 1 605 quilômetros de
fronteira com Roraima.

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Pelas contas do Banco Mundial, a Guiana tem reservas


equivalentes a 10 250 barris de petróleo por habitante. É
mais do que possuem os Emirados Árabes Unidos (10 100
barris per capita), a Arábia Saudita (8 100) e o incomodado
vizinho do norte, a Venezuela (9 500).
A Venezuela é quase cinco vezes mais extensa que a
Guiana, possui população 34 vezes maior e adormece em
berço esplêndido das maiores reservas de petróleo e gás na-
tural conhecidas no mundo. No entanto, a cleptocracia co-
mandada por Nicolás Maduro mantém o país asfixiado na
decadência política e econômica.
Em contraste, nos últimos quatro anos a Guiana tripli-
cou o tamanho da economia. Quando dezembro acabar, o
governo local terá fechado as contas com uma receita do
petróleo (12 bilhões de dólares) equivalente à que a ditadu-
ra venezuelana prevê arrecadar em 2024.
Isso, claro, renovou a cobiça da cleptocracia de Caracas.
Ela simplesmente fez evaporar um oceano de dinheiro (135
bilhões de dólares) originado na venda de petróleo e desvia-
do do orçamento público para obscuros fundos paraestatais,
via 781 “empreendimentos” sem prestação de contas — co-
mo constata a organização Transparência Internacional.
Maduro tem uma difícil reeleição pela frente, na hipóte-
se de uma disputa real e limpa no próximo ano com a can-
didata liberal María Corina Machado. Foi ao limite na
cooptação da maioria dos partidos de oposição. Agora, re-
solveu recorrer ao “inimigo externo”.

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“Maduro enredou
Lula num jogo
complicado com
os EUA na Guiana”
Ameaça invadir a Guiana para tomar-lhe dois terços do
território, onde estão os depósitos de petróleo. Essa receita
foi testada no início do século com relativo êxito nas elei-
ções locais pelo falecido coronel Hugo Chávez. Maduro já
contou ter o hábito de se inspirar em conversas matinais
com Chávez, a quem vê “incorporado” em passarinhos so-
brevoando os jardins do Palácio de Miraflores.
Nada estranho na paisagem do besteirol político latino
-americano. Há quem converse com cachorros (Javier Mi-
lei); sugira carne de porco como aditivo no sexo (Cristina
Kirchner); relacione alimentos transgênicos à calvície e à
homossexualidade (Evo Morales); considere o coronavírus
uma fantasia (Jair Bolsonaro); que Napoleão invadiu a Chi-
na ou, ainda, que o mensalão e o petrolão não passam de
invenção do imperialismo americano (Lula).
O problema, como sempre, é a realidade. Com a retórica
belicista, Maduro conseguiu o improvável: induzir os Esta-
dos Unidos à intervenção direta na Amazônia, desenvolven-

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do na Guiana uma versão moderna de protetorado militar.


A ExxonMobil animou-se a responder-lhe de forma direta,
na semana passada: “Não vamos a lugar nenhum.”
Maduro foi além. Enredou Lula, um raro aliado, num
jogo complicado. Na diplomacia, fomentou expectativa de
“liderança do Brasil”, como repete Irfaan Ali, presidente
guianês. Na política doméstica, porque o governo deseja
extrair petróleo na Amazônia, mas receia a reação mun-
dial. A ambição de Lula de turbinar seu mandato com a
Petrobras produzindo óleo na bacia amazônica se esvai
diante do compromisso global de precipitar o fim da era de
combustíveis fósseis. Nesse caso, a Guiana passa a ser a úl-
tima nova fronteira do petróleo na região. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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