Você está na página 1de 150

12º CAFÉ COM PESQUISA CADERNO DE RESUMOS IAU-USP 2017

ORGANIZAÇÃO2017
Amanda Mitre
Marina Lages
Nayara Benatti 12º CAFÉ COM PESQUISA
Ana Luísa Figueiredo Raiane Rosi
Fabiana Andresa Sanane Sampaio
Guilherme Cuoghi Tainá Hermoso
CADERNO DE RESUMOS
Jessica Seabra Yara Bragatto av trabalhador são carlense 400 são carlos sp cafécompesquisa
CADERNO DE RESUMOS

Café com Pesquisa


12º Edição

Universidade de São Paulo


Instituto de Arquitetura e Urbanismo
Programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
São Carlos, 2017
Catalogação na Publicação
Biblioteca do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo
___________________________________________________________
C122
Caderno de Resumos do 12º Café com Pesquisa [recurso
eletrônico] : Brasil - IAU-USP 2017 / [editores deste caderno de
resumos: Ana Luísa Figueiredo... [et al.]] . -- São Carlos :
IAU/USP, 2018.
149 p.

ISBN 978-85-66624-16-8

1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Pesquisa. I. Figueiredo, Ana Luísa, ed.


II. Título.
CDD 711.063

___________________________________________________________
Bibliotecária responsável pela estrutura de catalogação da publicação de acordo com a
AACR2:
Brianda de Oliveira Ordonho Sígolo - CRB - 8/8229
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor Prof. Tit. Marco Antonio Zago
Vice-Reitor Prof. Tit. Vahan Agopyan
Pró-Reitor Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Jr.
Pró-Reitor Adjunto Prof. Dr. Marcio de Castro Silva Filho

INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO


Diretor Prof. Assoc. Miguel Antonio Buzzar
Vice-Diretor Prof. Assoc. Joubert Jose Lancha

Comissão de Pós-Graduação do IAU USP


Presidente Prof.ª Tit. Cibele Saliba Rizek
Vice-Presidente Prof.ª Assoc. Akemi Ino

Comissão de Pesquisa do IAU USP:


Presidente Prof. Dr. Márcio Minto Fabricio
Vice-Presidente Prof.ª Dra. Karin Maria S. Chvatal

Comissão de Cultura e Extensão do IAU USP


Presidente Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes
Vice-Presidente Prof. Dr. Francisco Sales Trajano Filho

EDITORES DO CADERNO DE RESUMOS


Amanda Mitre
Ana Luísa Figueiredo
Guilherme Cuoghi
Jessica Seabra
Marina Lages
Nayara Benatti
Raiane Rosi Duque

COMISSÃO ORGANIZADORA CAFÉ COM PESQUISA 2017


Amanda Mitre
Ana Luísa Figueiredo
Fabiana Andresa
Guilherme Cuoghi
Jessica Seabra
Marina Lages
Nayara Benatti
Raiane Rosi Duque
Sanane Sampaio
Tainá Hermoso
Yara Bragatto

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.


O envio é de escolha de cada autor, podendo não ocorrer por motivos diversos.
SUMÁRIO

7 APRESENTAÇÃO
9 TRABALHOS APRESENTADOS
12 RESUMOS EXPANDIDOS

13 Maíra Cristo Daitx


Quando a realidade cruza o imaginário: a aplicabilidade da
arquitetura móvel nas cidades contemporâneas

19 Maria Julia Stella Martins


Entre-meios: corpo, cidade, performance e imagem digital

24 Jessica Seabra
Práticas curatoriais na 27º Bienal de São Paulo: relações com Kassel

28 Soyani Tardiolli
A construção da crítica ao movimento moderno a partir dos casos de
implosão dos conjuntos habitacionais Pruitt-Igoe/EUA (1972) e
Carapicuíba/SP (1991)

31 Maryá de Sousa Aldrigue


Sob os olhos de quem vê: arquitetura residencial latino-americana nas
publicações do MoMA

36 Paula Ramos Pacheco


Design (em) aberto: uma investigação sobre movimentos colaborativos em
design

40 Esther Encinas Audibert


Gleba Palhano em Londrina-PR: da mercadoria habitação ao cotidiano
urbano

46 Natália Pauletto Fragalle


London Calling: o papel da cultura e da “criatividade” na gestão de uma
cidade-marca
53 Ana Maria Beraldo
O programa Minha Casa Minha Vida em Sertãozinho – SP: habitação e
planejamento urbano

57 Vinícius Gomes de Almeida


A utilização da tecnologia BIM para a análise do desempenho térmico de
edificações habitacionais

60 Marília Reis Sé
Transformações urbanas e processos socioespaciais: práticas e
apropriações do/no espaço urbano

66 Talita Ines Heleodoro


Desenhos de ruas: concepções urbanísticas e significados sociais

71 Yara Boscolo Bragatto


O edifício “arto” e a casa “véia”: desenvolvimento urbanístico e cultura
urbana na São Paulo de Adoniran Barbosa

76 Amanda Halda
A forma urbana conjunto habitacional na atuação da CECAP/CDHU em
Ribeirão Preto/SP de 1967 a 2002

81 Janaína Andréa Cucato


Contradições no zoneamento de interesse social (ZEIS) em Votuporanga-
SP (1996-2012)

87 Maria Cecília Pedro Bom de Lima


Entre conflito e congruência: diálogos possíveis entre rede hídrica e forma
urbana em São Carlos, SP

93 Ana Luiza Vieira Gonçalves


Remoções e financeirização da cidade contemporânea: o caso da Favela do
Moinho
97 Bárbara Helena Almeida Carmo
Patrimônio Cultural e planejamento urbano: PCH (Programa Integrado de
Reconstrução de Cidades Históricas), Programa Monumenta e PAC –
Cidades Históricas

103 Cristina Akemi Goldschmidt Kiminami


Contracartografias: práticas críticas em um mundo hiper-mapeado

107 Flávia Marcarine Arruda


Ciganos em Macafé (Serra – ES) e Bubu (Cariacica – ES): acampamentos e
e deslocamentos

112 Gabriele do Rosario Landim


Design computacional: processo de projeto e interfaces de programação

118 Tássia Borges de Vasconselos


Mapeamento sobre os níveis de interações entre o designer e o ambiente
digital no ensino de arquitetura

123 Daniela Sarone Fiori


Políticas de habitação social: permanências de tipologias em um século de
experiências – um estudo em São Carlos

129 Érica Emi Takahashi Nakamine


Condomínios residenciais e novas espacialidades urbanas: privatizações e
transformações territoriais em Palmas

135 Mariana Garcia de Abreu


Diferenças e similidades entre as modalidades Entidades e Empresas: o
Programa Minha Casa Minha Vida em São João da Boa Vista/SP

141 Marisa Elisabete Ferreira Candido


Conservação e preservação - A importância do engenho São Jorge dos
Erasmos
7

APRESENTAÇÃO

O Café com Pesquisa é um evento organizado por alunos do programa de


Pós-Graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (IAU-USP) e tem como objetivo ampliar a divulgação e os debates em torno
de trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores vinculados ao programa.
Constitui-se, portanto, como um instrumento que propicia contatos entre os
pesquisadores de forma a divulgar suas pesquisas. Na edição de 2017 foram aceitos
também trabalhos de iniciação científica desenvolvidos pelos alunos de graduação
do IAU USP como uma forma de estimula-los a continuar suas pesquisas e ingressar
na carreira acadêmica.

Ganha destaque o fato de que as sessões do Café com Pesquisa operam


como momentos de discussão coletiva e não transversal, trazendo, por vezes,
contribuições que permitem enriquecer resultados empíricos e dimensões
analíticas.

A Comissão também foi responsável pela elaboração de gráficos


relacionando os dados coletados durante a edição de 2017, a fim de compreender
a composição dos pesquisadores que apresentaram os trabalhos. Por meio deles é
possível perceber que os pesquisadores são, majoritariamente: da área de Teoria e
História da Arquitetura e do Urbanismo, em nível de mestrado; e mulheres.
8

Em sua 12ª edição, o Café com Pesquisa contou com nove sessões
totalizando trinta e uma apresentações. Cada sessão foi composta por três a cinco
pesquisadores vinculados ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP e contou
com o acompanhamento de ao menos dois componentes da Comissão de
Organização. Por fim, este caderno reúne os resumos de alguns trabalhos
apresentados no ano de 2017, sendo o envio opcional. Portanto, a relação entre
trabalhos apresentados e resumos disponíveis não será a mesma.

A Comissão do Café com Pesquisa 2017


9

TRABALHOS APRESENTADOS

ABRIL19
Barbara Oliveira Silva | Estudo e implementação de solução de realidade aumentada para
visita virtual às dependências do IAU-USP
Elza Luli Miyasaka | Projeto para a Produção de Formas Complexas
Maíra Cristo Daitx | Quando a realidade cruza o imaginário: a aplicabilidade da arquitetura
móvel nas cidades contemporâneas
Maria Julia Stella Martins | Entre-meios: corpo, cidade, performance e meios digitais

MAIO10
Jessica Seabra | Práticas curatoriais na 27ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo:
relações com Kassel
Maryá de Sousa Aldrigue | Sob os olhos de quem vê: arquitetura residencial latino-
americana nas publicações do MoMA
Paula Ramos Pacheco | Design (em) aberto: uma investigação sobre movimentos de
ampliação do design
Soyani Tardiolli de Figueiredo | A construção da crítica ao movimento moderno a partir
dos casos de implosão dos conjuntos habitacionais Pruitt-Igoe/EUA (1972) e
Carapicuíba/SP (1991)

JUNHO07
Ana Maria Beraldo | Habitação e Cidade: o Programa Minha Casa Minha Vida em
Sertãozinho (SP)
Aline Gouvêa Leite | Estudo sobre a viabilidade e desempenho de coletor solar com
transmissão de luz em fibra óptica para iluminação natural em ambientes
Esther Encinas Audibert | Gleba Palhano: cidade e mercadoria. A produção de um
fragmento de Londrina
Huana Assanuma Ota de Carvalho | Financeirização e mutações internacionais do
financiamento e da produção da habitação na França e no Brasil
Natália Pauletto Fragalle | London Calling: o papel da cultura e da "criatividade" na
gestão de uma cidade-marca

JUNHO21
Vinícius Gomes de Almeida | A utilização da Tecnologia BIM para a análise do
Desempenho Térmico de Edificações Habitacionais
ArqTeMa | Desenvolvimento de produtos, sistemas e processos construtivos: Estudo da
caracterização técnica de painéis de vedação confeccionados a partir de compósitos
desenvolvidos por meio da reciclagem de resíduos sólidos e seu potencial de aplicação na
construção civil
Gabriela Henriques Camelo | As normativas de projeto para arquitetura hospitalar no
Brasil e no Reino Unido em relação às sistematizações do Evidence-Based Design
10

JULHO05
Marília Reis Sé | Transformações urbanas no Baixo Augusta - SP: um estudo sobre a
apropriação no espaço urbano
Talita Ines Heleodoro | Desenho de Ruas: concepções urbanísticas e significados sociais
Yara Boscolo Bragatto | O edifício “arto” e a casa “véia” - desenvolvimento urbanístico e
cultura urbana na São Paulo de Adoniran Barbosa

AGOSTO02
Amanda Halda | A forma urbana conjunto habitacional na produção da CECAP/CDHU em
Ribeirão Preto/SP de 1967 a 2002
Danilo Brich dos Santos | O papel da COHAB-RP na produção do espaço urbano em
Ribeirão Preto
Janaina Andréa Cucato | As disputas pelo território no espaço urbano de
Votuporanga/SP -Contradições no zoneamento de interesse social (ZEIS), 1996-2012
Maria Cecília Pedro Bom de Lima | Entre conflito e congruência: diálogos possíveis entre
rede hídrica e forma urbana em São Carlos, SP

SETEMBRO13
Ana Luiza Vieira Gonçalves | Remoções e financeirização da cidade contemporânea: o
caso da favela do Moinho
Bárbara Helena Almeida Carmo | O Patrimônio Cultural e sua relação com o espaço
urbano: PCH, Programa Monumenta e PAC-Cidades Históricas
Cristina A. G. Kiminami | Dos pontos aos mapas: mídias locativas e [contra] cartografias
Flávia Marcarine Arruda | Territorialidades ciganas: O acampamento em Macafé (ES)
Guilherme Nelli Zaratine | Agências multilaterais, Estado e capital imobiliário:
reestruturação urbana e remoções forçadas no Município de São José dos Campos – SP

OUTUBRO25
Dyego Digiandomenico | Processo de projeto: pensamento algorítmico, parametrização e
performance
Gabriele do Rosário Landim | Uso de dados no processo de projeto: programação visual e
modelagem de informação
Tássia Borges de Vasconselos | Níveis de computabilidade em processo de projeto:
mapeamento e reflexão sobre ensino de projeto de Arquitetura e Urbanismo em ambiente
digital no Brasil

NOVEMBRO22
Daniela Sarone Fiori | Políticas de habitação social: permanência de tipologias em um
século de experiências - um estudo em São Carlos
11

Érica Emi Takahashi Nakamine | Condomínios residenciais e novas espacialidades


urbanas, privatizações e transformações territoriais em Palmas
Mariana Garcia de Abreu | O programa Minha Casa Minha Vida em São João da Boa
Vista/SP: comparação dos processos e dos produtos habitacionais produzidos pelas
diferentes modalidades - Entidades e Empresas
Marisa Elisabete Ferreira Candido | Engenho São Jorge dos Erasmos: Teoria e prática de
restauro
12

RESUMOS EXPANDIDOS
13

Quando a realidade cruza o imaginário: a


aplicabilidade da arquitetura móvel nas cidades
contemporâneas
When reality meets the imaginary: applicability of mobile architecture
in contemporary cities

Maíra Cristo Daitx


mairadaitx@usp.br
lattes.cnpq.br/4838087428730811

Orientação
Manoel Antonio Lopes Rodrigues Alves
mra@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7815309672113678

RESUMO

Este resumo baseia-se parcialmente no conteúdo apresentado na


Dissertação de Mestrado da autora, intitulada “Quando a realidade cruza o
imaginário: a aplicabilidade da arquitetura móvel nas cidades contemporâneas”, a
qual recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), entre junho e novembro de 2014, e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de janeiro de 2015 a junho de 2016
(Processo 2014/14900-6). O material aqui apresentado traz trechos da dissertação,
modificados e atualizados, não contemplando todo o tema abrangido por ela. As
opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são
de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da CAPES
ou da FAPESP.

Introdução

O avanço tecnológico recente em infraestruturas de transportes, informação


e redes de comunicação e suas respectivas transformações socioculturais
proporcionaram a sensação de um encurtamento das distâncias reais, o que
chamamos, hoje, de compressão espaço-temporal (HARVEY, 2002). Uma maior
acessibilidade espacial resultante destes processos, por consequência, vem
instigando novas formas de habitar, determinadas pelo movimento. Um habitar
contemporâneo que mescla, portanto, as necessidades do deslocamento com
experiências sensitivas de pertencimento, através da conexão virtual-tecnológica
com sujeitos e espaços fisicamente distantes.

Desde o final do século XIX que a mobilidade de edificações – enquanto


habilidade para se mover – tem sido um tema recorrente e inspirador nos modos
de reflexão, investigação e produção da Arquitetura e do Urbanismo. Em variados
graus de criação, sua utilização como partido projetual, iniciou-se dentro dos
avanços na industrialização da construção civil, ganhando força com seu
desenvolvimento tecnológico e com o pensamento racionalista. Posteriormente, foi
explorado no campo teórico, com abstrações exponenciais dentro das produções
“futuristas”, em meados do século XX. Atualmente, pode-se afirmar que a
habilidade para se mover não é mais algo estático a espera de um impulso, de uma
força que a transforme em movimento – ela deixou de ser uma abstração ou
exploração conceitual. O movimento de edificações já pode ser observado na
realidade de algumas cidades contemporâneas, e configura mudanças que não são
14

mais somente de caráter tecnológico, mas principalmente social e cultural,


interferindo na relação do próprio habitar.

Houve um aumento significativo nos últimos anos no número de produções


bibliográficas e publicações em veículos midiáticos digitais que reúnem projetos
intitulados, em diferentes graus e formas de aplicação, de arquitetura móvel ou
arquitetura nômade (o próprio termo sendo um desafio de compreensão teórica).
O crescimento deste nicho e a importância que lhe tem sido depositada
demonstram que atualmente nos encontramos num estágio de singularidades
sobre sua produção, que proporciona percepções concretas sobre ideologias antes
tão distantes da realidade.

A vida em movimento

Space is at once result and cause, product and producer; it is also a


stake, the locus of projects and actions deployed as part of specific
strategies, and hence, also the object of wagers on the future –
wagers which are articulated, if never completely. (LEFEBVRE, 1991
[1974], p. 142)

Para Lefebvre (1991) o espaço deveria ser compreendido levando-se em


consideração três campos: o físico (a natureza, o Cosmos); o mental, que inclui
abstrações lógicas e formais; e o social, que contempla as práticas sociais, os
fenômenos sensoriais, e também os “produtos da imaginação, como projetos e
projeções, símbolos e utopias” (LEFEBVRE, 1991, p. 12, tradução nossa).

Entendendo, portanto, o espaço a partir de seus aspectos físicos ou


materiais, e também de toda a sua imaterialidade representada na cultura, práticas
sociais e políticas, o espaço urbano é aquele que compreende todo o espaço
construído ou modificado pelo homem à sua ordem – produto e obra,
simultaneamente – ou seja, o próprio espaço social. Contempla uma multiplicidade
de camadas sobrepostas e interpenetradas que se comunicam e, pela presença de
sujeitos e forças de domínio e poder, se conflitam.

Atualmente, pode-se observar que ambas as matrizes material e imaterial do


espaço urbano têm passado por transformações: materialmente, na maneira como
as cidades são concebidas e organizadas; imaterialmente, na maneira com que elas
são idealizadas e pela qual o espaço urbano, cidade ou território, é apropriado,
entendido e conformado pelos sujeitos, cotidianamente ou através da memória. É
através da correlação material-imaterial, e não isoladamente, que podemos
observar, assim, uma transformação também das percepções subjetivas do próprio
espaço-tempo. Com as atuais transformações de comportamentos sociais
resultantes das evoluções tecnológicas digitais e reestruturações políticas e
econômicas, podemos afirmar que o espaço físico urbano é percebido como uma
entidade de distâncias mais curtas (HARVEY, 2002), realidades simultâneas e
situações efêmeras, além de relacionar-se cada vez mais com o espaço
adimensional das tecnologias de comunicação e informação (CASTELLS, 1996), que
afetam parte de sua experiência sensível; o tempo urbano – como entidade
perceptiva do deslocamento (através do espaço) –, por sua vez, se acelera, sendo
apreendido de uma maneira cada vez mais instantânea (LIPOVETSKY, 2004;
BAUMAN, 2001, 2010) e homogênea (CRARY, 2014). É inerente dizer que essas
formas de apreensão do espaço e do tempo também irão proporcionar mudanças
na maneira como as cidades são produzidas, em suas formas e ideologias
(CACCIARI, 2010). A arquitetura, como produto cultural e campo criativo que
recorrentemente busca se atualizar, renovar, se adequar ao contemporâneo, irá
virar seus olhos para entender o presente, (re)produzindo espaços que simbolizem
“novas” formas de habitar o urbano (o territoriante, de MUÑOZ, 2008; e visões
sobre o nomadismo, de DELEUZE & GUATTARI, 1997).
15

Assim, alguns processos de produção e fenômenos urbanos resultantes das


evoluções tecnológicas no campo dos transportes, da informação e da
comunicação, e da aceleração dos ciclos de produção e consumo irão definir
formas de habitar cada vez mais pautadas pelo movimento (cujo tempo-espaço é
cada vez mais acelerado e efêmero) (VIRILIO, 1984, 1995; HARVEY, 2002),
modificar morfologias urbanas, comportamentos socioespaciais e processos de
subjetivação, e fabricar sujeitos abstratos e personagens reais. Este conjunto de
transformações complexas deve ser entendido como a base sociocultural e,
principalmente, ideológica que a produção recente de arquitetura móvel tem se
apoiado, como: (1) solução para problemas urbanos contemporâneos, onde os
arquitetos e urbanistas veem nesta tipologia uma possibilidade de inserção
socioespacial e de adaptabilidade a novos habitares urbanos; (2) novo nicho de
inserção no mercado, cujos produtores (empresas que comercializam essas
unidades) também contribuem na fabricação de um sujeito “nômade
contemporâneo” e de consumidores de experiências urbanas efêmeras; (3) ponto
de discussão e reflexão para o campo do planejamento urbano, que ordena o
espaço sobre bases mais flexíveis e com planos de curto prazo, unindo a solução
de problemas sociais a interesses de proprietários de terras; (4) novo território de
expansão para o capital, que busca aumentar a rentabilidade de alguns espaços
urbanos, explorando inserções temporalizadas em localidades antes inatingíveis.

O espaço em movimento

Independentemente dos reflexos destas novas produções e reproduções do


espaço urbano, a mobilidade expandiu-se para o campo da arquitetura e do design
não só como um mecanismo de controle flexível, mas também uma limitação
humana a ser vencida. Assim como os indivíduos errantes, as edificações possuem
uma capacidade de se deslocar no território e relacionar-se de maneira efêmera
com o espaço urbano, possibilitando experiências temporais distintas, entre este
espaço móvel e seus dialogantes.

O espaço em movimento é capaz de alterar a relação que o corpo, máquina


sensível do indivíduo, tem com o sentido convencional de habitar e morar (aqui
empregado tanto no sentido de pertencimento, quanto de permanência),
construindo possibilidades de vínculos com seu espaço pessoal, ao mesmo tempo
em que permite a desterritorialização urbana. Através da interferência de forças
hegemônicas, ele [o espaço em movimento] é também parte de um processo de
produção do urbano que valoriza experiências temporárias e efêmeras, sendo
utilizado como mecanismo de ampliação da acumulação capitalista, ao desviar-se
temporalmente de potenciais conflitos territoriais.

Em suas múltiplas faces, os espaços pensados para valorizar a figura do


nômade e as relações experienciais temporárias, efêmeras e desvinculadas com o
território, têm ganhado importância no debate atual sobre novas formas de habitar
e se multiplicado conceitual e fisicamente. Entretanto, a transcrição de um
imaginário em objetos concretos, que interagem e conformam o espaço real,
trazem à tona certas questões conflitantes com este mundo contemporâneo
“acelerado”, “efêmero” e “desterritorializado”, mostrando que, apesar de estarmos
avançando para esta realidade, as formas de controle e poder herdadas da
modernidade, ainda que mais flexíveis, continuam delineando limites para a sua
total transformação.

Assim, através de uma análise do discurso apresentado pela prática, foram


observados os aspectos comuns que reúnem esta constelação de projetos como
tipologia, mas também suas especificidades. Aprofundaram-se dois exemplos com
comportamentos divergentes: as habitações móveis holandesas, expostas aqui nas
Spaceboxes e TempoHousing; e uma habitação móvel unifamiliar de luxo, a
MiniMOD, exemplo brasileiro mais significativo até então. Esta análise bilateral
16

mostra que os contextos locais interferem diretamente não só no pensamento


atrelado à sua produção (um tipo de herança cultural), mas também em sua
liberdade de movimento e instalação. Supostamente buscando propiciar novas
formas de habitar, mais condizentes ao indivíduo altamente mobilizado e suas
experiências sensíveis, é possível ver-se que esta tipologia relaciona-se mais com
explorações técnicas e formais no campo da Arquitetura e Urbanismo, voltadas a
uma lógica rentista de produção do espaço, não trazendo, por muitas vezes,
soluções para os problemas específicos de nossa contemporaneidade.

Figuras 1 e 2: Spacebox, à esquerda, e TempoHousing, à direita. Ambos são conjuntos de residências


estudantis móveis sob administração de uma corporação habitacional. O conjunto da Spacebox foi
removido no final de 2016 e o da TempoHousing está em fase de remoção (até 2018). (Fonte: Maíra
Cristo Daitx, fotos tiradas em 29 e 31 de março/2016, respectivamente).

Figura 3: Primeira versão da MiniMOD. Esta casa foi um protótipo financiado pelo escritório como
forma de teste de um sistema construtivo pensado para ser transportado para locais de difícil
acesso. (Fonte: Leonardo Finotti ©)

Conclusões

1 Sedentarização e deslocamento de edificações móveis

A sedentarização das edificações móveis observadas na análise conjetural


acontece por haver uma assincronia entre as temporalidades dos indivíduos e dos
objetos construídos, uma vez que aqueles já estão mais bem adaptados a uma
superestrutura de serviços que possibilita a realização de ciclos de deslocamento
cada vez mais curtos e diversificados, o que difere da velocidade da circulação de
bens duráveis. Já a mobilidade do objeto edificado só se concretizou, nos exemplos
estudados, quando era parte integrante de uma lógica de produção e reprodução
do espaço urbano que ainda se baseia na extração de renda sobre infraestruturas
fixas, sendo a temporalidade do objeto móvel simultânea e cooperativa a esta.
17

2 Impactos diretos e indiretos da inserção de edificações móveis no


espaço urbano

Esta tipologia opera muito mais como reforço e consolidação de alguns


padrões – consumo do espaço, desprendimento territorial, mobilidade residencial,
etc. – que já existiam antes e, até mesmo, sem a sua participação nos processos de
subjetivação e construção de experiências urbanas. Ao ganharem proeminência,
essa tipologia reforçou tais costumes, ampliando-os e consolidando-os, através da
criação de uma base urbana e arquitetônica para problemas anteriormente restritos
a esferas não espaciais – enfraquecimento de vínculos pessoais e profissionais,
descartabilidade dos bens de consumo, etc. Nos exemplos de habitação móvel
estudantis holandesas, houve uma cooperação entre produção, demanda e
legislação que impactou consideravelmente os “modos de habitar” holandeses.
Estas formas de apropriação temporária passaram a fazer parte de uma política
habitacional, dialogando diretamente com algumas políticas urbanas, como a
revisão das normativas de “uso e ocupação” do solo. Assim sendo, a
temporariedade das edificações móveis operou como neutralizador de potenciais
conflitos entre as partes envolvidas. No Brasil, o exemplo estudado mostrou que as
principais barreiras enfrentadas para que esta tipologia seja mais aplicada é a mão
de obra, a aceitação pública e a legislação nacional. O pensamento atual local deste
tipo de arquitetura questiona os sistemas de produção de edificações – debatendo
novos materiais, sistemas construtivos, etc. –, mas não as formas hegemônicas de
uso e dominação do espaço urbano. Suas consequências socioculturais e espaciais
ainda não podem ser previstas porque sua produção ainda é muito incipiente,
podendo resultar como uma “moda importada” que não gerará grandes impactos.
Entretanto, se continuarem crescendo e se atendo ao seu padrão de criação,
atuarão como reforço de um mercado de luxo de experiências espaço-temporais
“alternativas", bem como mecanismo de ampliação de novas “colonizações”
espaciais socialmente seletivas, de áreas antes inatingíveis pelo homem e pela
construção civil.

3 Arquitetura móvel como prática desviatória - Prospecções

Os edifícios móveis são uma alternativa flexível na construção de espaços


que, de certa maneira, buscam fugir da lógica da destruição criativa inerente de
nossas cidades e seus processos de transformação e "desenvolvimento". Portanto,
se um determinado espaço construído torna-se obsoleto naquele local e tempo,
pode ser deslocado para outro no qual continuaria tendo uma utilidade.

Esses edifícios também podem ser feitos como mecanismo de viabilização


de espaços de morar, ao driblar altos preços resultados da especulação imobiliária
e ver-se livre de sistemas de hipotecas (no caso dos EUA e da Europa, por
exemplo). Ao desafixarem-se, retiram de si o valor "imóvel" da terra, configurando-
se como espaços construídos e pensados para se morar de forma mais barata. Sua
mobilidade só possui importância como regulação dentro de legislações
específicas. Ou seja, a casa pode ficar parada no mesmo local pra sempre, o que
interessaria, neste caso, é o enquadramento habitacional que impede que seja
tomada por bancos ou pelo Estado na ocasião do não pagamento da dívida de um
empréstimo, por exemplo – esses agentes não conseguiriam retirar seu direito de
“morar”. Para que se encaixem, precisam possuir “rodas”, o que também possibilita
que circulem entre espaços públicos (vias de trânsito), sem que haja a necessidade
de aquisição de terrenos no mercado. Ao driblarem a legislação para garantir o
direito humano da moradia, ela configura-se como prática desviatória.
18

Palavras-chave: Habitação; Cidade contemporânea; Arquitetura móvel; Produção do espaço


urbano; Nomadismo contemporâneo.

Keywords: dwelling; contemporary city; mobile architecture; urban space production;


contemporary nomadism.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

__________. Mundo Consumo. Madri: Paidós Contextos, 2010.

CACCIARI, M. La Ciudad. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010.

CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

CRARY, J. 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
(Versão digital e-book)

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Edito-ra
34,1997.

HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

LEFEBVRE, H. The Production of Space. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1991 [1974].

LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.


São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

MUÑOZ, F. Urbanalización. Paisages comunes, lugares globales. Barcelona: Gustavo Gili,


2008.

VIRILIO, P. L'espace critique. Paris, Christian Bourgeois, 1984.


19

Entre-meios: corpo, cidade, performance e


imagem digital
Among means: body, city, performance and
digital image

Maria Julia Stella Martins


majumartins@usp.br
lattes.cnpq.br/5300492254060589

Orientação
Marcelo Tramontano
tramont@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/1999154589439118

Introdução

Um dos aspectos que caracteriza as experiências urbanas contemporâneas


é a constatação da presença de imagens digitais sendo produzidas e
compartilhadas todos os instantes através de smartphones e câmeras de
segurança, por exemplo. A experiência de se viver em grandes cidades é a
experiência de habitar espacialidades híbridas nas quais as fronteiras e os limites
estão em constante disputa e definição gerando reconfigurações em diversos
aspectos concernentes à esfera pública e privada, às espacialidades e aos corpos.
As implicações trazidas por estas novas configurações não significam alterações
apenas para a composição do espaço físico, que passa a existir com “capacidades
computacionais ampliadas”, uma vez que, os sistemas digitais estão se
complexificando cada vez mais, mas, dizem respeito, também, às alterações em
camadas mais profundas no modo de operar e viver das pessoas, pois, interferem
diretamente nas normas sociais, de interação, nos limites de conformações da
esfera pública; o que significa transformações profundas para a vida cotidiana.

Diversos autores afirmam, ainda que com diferentes aproximações, que as


cidades são compostas de mais do que de seus espaços construídos (HARVEY,
2012; JACOBS, 2000; LEFEBVRE, 1991): tão importantes quanto os elementos
concretos da cidade, são as ações, dinâmicas e comportamentos das pessoas,
formando um todo através da interação entre as diferentes partes que o
constituem. No final século XX e nas primeiras décadas do século XXI, os elementos
digitais e virtuais passaram a ser elementos constitutivos da experiência urbana.
Para pensarmos os espaços, em especial os espaços públicos urbanos, é necessário
que pensemos nas densidades que se formam a partir das relações, dos múltiplos
elementos, concretos e simbólicos, que se entrecruzam com a concretude que se
apresenta e que constitui lugares em constante construção e transformação.

...um mesmo espaço pode ser a matriz de distintas espacialidades,


ou seja, modos diferentes de como percebemos, entendemos e nos
comportamos em um espaço, dependendo de como seus objetos e
ações (fixos e fluxos) são apreendidos, codificados e vivenciados – e
nessa multiplicidade espacial dois fatores relevantes são os filtros
culturais e os instrumentos tecnológicos. (DUTRA e FIRMINO, 2010,
p. 94).

O espaço não é um dado concreto e encerrado, e, sim, eventualidade, onde


“as identidades e as inter-relações são constituídas juntas” (MASSEY, 2008, p. 30).
Eles são construções sociais que fazem emergir atributos culturais, o encontro de
diferentes formas de ver e compreender o mundo. Nessa perspectiva, encerra
20

dentro de si toda forma de existência e, portanto, de reprodução do mundo. Na


relação entre corpo, espaço e meio digital, um é a continuidade do outro, um
contém o outro e se afetam constantemente, em um diálogo contínuo de trocas,
de interpretações, de significações, de ações, de possibilidades de coexistência e
de movimento. CUFF (2003) argumenta que a era da computação pervasiva e da
experiência ubíqua são imanentes e, o que podemos observar atualmente é apenas
o início de suas implicações para a arquitetura e para a cidade.
“It is clear that ubiquitous and obile systems will alter fundamental ideas about
public and private, civic life, invisibility, and environmental agency” (CUFF, 2003, p.
48)1

Atualmente a arquitetura é entendida como um campo expandido que se


depara com os desafios de projetar espacialidades capazes de assegurar a
continuidade da trama social que pressupõe a existência de espacialidades e seres
híbridos, constituídos de atributos concretos, virtuais, sociais, culturais,
econômicos, entre outros, mediados, cada vez mais, por meios digitais, o que
significa projetar habitares pervasivos.

Objetivo

O que é proposto do âmbito desta pesquisa de doutorado é analisar, propor,


observar e estabelecer relações que derivem de processos criativos em
Performance Art e intervenções urbanas considerando as composições entre
corpo, espacialidades e produção de imagens digitais a fim de apresentar
propostas metodológicas que signifiquem possibilidades de intervenções e leituras
acerca de dinâmicas urbanas através da produção e leitura de imagens.

Assim, a partir de uma perspectiva transdisciplinar busca-se estabelecer


relações de complementariedade entre os campos da Arquitetura e do
Urbanismo no que se refere às relações entre corpo e cidade; da Arte,
especificamente da Performance Art como prática artística
que buscar problematizar e ressignificar os conceitos corpo, espacialidades e
objetos e, suas relações; da fotografia e do cinema, especificamente o filme
documentário, enquanto métodos para ler cidades e locus de produção de
imaginário urbano e suas diversas camadas constituintes, a fim de contribuir com
as reflexões e discussões sobre a processos e métodos de pesquisa e ensino em
arquitetura e urbanismo.

Métodos

A partir do termo ciborgue, como foi apresentado por Donna Haraway em ‘o


Manifesto Ciborgue’, publicado pela primeira vez em 1985, e das possibilidades
conceituais e estéticas que dele derivem busca-se questionar e refletir acerca dos
modos e tendências de existências que se configuram nas primeiras décadas do
século XXI. Neste estudo nos deteremos, especificamente, às composições geradas
das relações estabelecidas entre corpo, espacialidades e produção de imagem
digital. Buscando, menos, definições precisas destes conceitos vistos de forma
isolada e, mais, a busca por avistar os pontos em que estes conceitos se aproximam,
confundem e recompõem. Deste ponto de partida desdobraram-se questões que
vêm norteando as investigações:

- O conceito ciborgue pode contribuir para leituras e estudos das dinâmicas urbanas
contemporâneas na medida em que possibilita a reflexão acerca as relações entre
ambiência digital, corpo e espacialidades?

1Está claro que sistemas móveis e ubíquos irão alterar as ideias fundamentais sobre público e
privado, vida cívica, invisibilidade e agenciamento ambiental (tradução livre).
21

- A apropriação do conceito ciborgue pelo discurso da arte pode potencializar


interferências nos discursos hegemônicos da cidade e do corpo, possibilitando
diferentes usos, conexões e composições entre meios digitais, objetos, espacialidades
e corpos?

- Ações culturais de intervenção urbana performática mediadas por meios digitais são
capazes de estimular a apropriação e a produção de conhecimento, em especial,
acerca da relação entre corpo, espacialidades, meios digitais e processos
comunicacionais?

- O uso de meios digitais nos processos criativos de intervenções urbanas


performáticas pode diversificar e ampliar níveis de comunicação e usos dos
espaços?

- Em que medida ações dessa natureza podem contribuir para as pesquisas e o


ensino de Arquitetura e Urbanismo?

Para buscar respostas para essas perguntas a pesquisa se desenvolve a partir


de uma estreita relação entre estudos teóricos e experimentos práticos. A partir da
consulta à fontes primárias e secundárias foram gerados estudos e análises de
temáticas relacionadas ao corpo na contemporaneidade, às tendências, conceitos
e técnicas da arte digital, às relações entre produção de imagens e memória, ao
conceito ciborgue, ás potencialidades que ações culturais e intervenções urbanas
possam ter para o entendimento de dinâmicas urbanas; bem como, as temáticas
relacionadas aos estudos urbanos e aos métodos de pesquisa e ensino em
Arquitetura e Urbanismo visando explorar e analisar procedimentos
transdisciplinares de pesquisa acadêmica e artística.
Os experimentos práticos estiveram centrados na exploração de procedimentos
metodológicos para intervenções transdisciplinares temporárias em espaços
públicos urbanos e no estudo e experimentação de processos de realização de
imagens estáticas (foto) e em movimento (vídeo) como locus de comunicação e
reflexão acerca das relações entre corpo, cidade e meio digital.

Experimentos Práticos

Desde o início da pesquisa de doutorado, vem-se procurando investigar, em


teoria e em experimentos práticos, as potencialidades do uso da fotografia e do
audiovisual, especificamente, o documentário enquanto métodos para ler cidades
e locus de produção de imaginário sobre o urbano e suas diversas camadas
constituintes.
Dentre as atividades já realizadas, a Frontier Zones Internacional Summer
School tem, sem dúvida, importância central por ter permitido a interlocução com
profissionais e acadêmicos de várias áreas, tendo como foco central de discussão
e prática a exploração da linguagem cinematográfica do documentário como
método de construção de leituras urbanas, seguindo as proposições do grupo de
pesquisa que busca lançar mão da linguagem audiovisual como método de
pesquisa e produção de conhecimento. A captação, registro e análise de dinâmicas
urbanas, cada vez mais virtualizadas e complexas revela-se um desafio para os
métodos convencionais de pesquisa, despertando a necessidade de se buscar
outras estratégias de narrativas que evidenciem esses cenários urbanos públicos
contemporâneos.
O projeto Frontier Zones International Summer School caracteriza-se como
uma atividade de pesquisa e extensão que nasce da parceria entre IAU/USP,
Leuphana Universität e Havencity University – Alemanha. Contou com o
financiamento do DAAD, Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico, e pelo
Ministério Alemão de Educação e Pesquisa; trouxe professores de 5 universidades
alemães para coordenarem atividades realizadas em São Carlos e São Paulo. O
22

objetivo deste workshop foi, por um lado, problematizar e refletir sobre o conceito
“fronteira”, buscando através das lentes, observar fronteiras físicas, culturais,
materiais e simbólicas que compõem uma cidade. E, por outro, desenvolver
habilidades técnicas de captação de imagem e som e de processos de edição e
composição. Os processos de análise e discussão dos filmes produzidos serão
realizados na etapa final da pesquisa.

Outro experimento central que constitui a pesquisa é a série, ‘Autorretrato


sobre vidro’, de Lou Granada. A série ‘Autorretrato sobre vidro’, é produzida por
uma identidade em performance que cria o alter ego, Lou Granada. O exercício
performático consiste no esgarçamento das noções identitárias, tanto no que tange
a criação da alteridade “Lou Granada”, quanto na produção de seus autorretratos.
Nos retratos a autoria é eximida pelo apagamento de qualquer persona essencial
ou contínua, um rosto ou cidade reconhecíveis, o que se busca é produzir
desdobramentos imagéticos e reflexivos a partir do exercício performático e
fotográfico. É a arte contemporânea que da forma mais radical analisa a violência
ou a banalidade das imagens. “Em um tipo de prática visual da iconologia, artistas
aboliram a distinção aceita entre a teoria da imagem e a teoria da arte, sendo a
última uma subcategoria nobre da primeira”. (BELTING, 2010).

Os disparos de Lou Granada são interrupções que materializam memórias e


composições da relação entre corpo e câmera. Suas fotos são fragmentos de
memória de relações e composições e não, representações de paisagens,
personagens ou acontecimentos. O que Granada registra não é perceptível de
outro modo senão no jogo entre corpo, cidade e câmera.

Este experimento é fortemente influenciado pelo pensamento e prática dos


Situacinistas. Tanto no que toca as proposições acerca de novas perspectivas para
a experiência da cidade pautadas na psicogeografia e nas derivas, quanto, ao que
concerne à base teórica crítica e propositiva pautada em um pensamento singular
e inovador, que poderia ainda hoje inspirar novas experiências, interessantes e
originais, de apreensão do espaço urbano. “O pensamento urbano situacionista, e
principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje,
pelo próprio “campo” do urbanismo, como um convite à reflexão, à autocrítica e ao
debate” (JACQUES, 2012). Através dos autorretratos busca-se registrar ambiências
psíquicas geradas nas deambulações urbanas para expressar e refletir emergências
urbanas da cidade contemporânea.

A realização e análise de experimentos práticos justifica a realização desta


pesquisa como parte dos estudos realizados pelo grupo Nomas.usp - Núcleo de
Estudos de Habitares Interativos da Universidade de São Paulo, cujo histórico de
pesquisas é transdisciplinar. O grupo tem produzido leituras sobre a temática do
habitar contemporâneo, relacionando-a com diferentes áreas de conhecimento,
como arquitetura, arte, computação, design, estudos culturais, filosofia, ciências
sociais entre outras. O habitar é considerado, principalmente, um sistema onde se
desenvolvem múltiplos aspectos do quotidiano do habitante urbano, ligados a
ações nos espaços concretos, virtuais e híbridos que se combinam e interagem,
constituindo a atual matéria prima da arquitetura e do design. A emergência das
diversidades culturais em grupos e comunidades, e as potencialidades de
coexistência de diferenças em meio urbano fazem parte dos objetivos do núcleo
que tem utilizado a linguagem audiovisual como parte importante no
desenvolvimento das metodologias das pesquisas. O grupo vem trabalhando há
mais de uma década em uma perspectiva transdisciplinar com os temas espaço,
meios digitais, políticas públicas e corpo, analisando o impacto que estas
composições trazem para os modos de vida na contemporaneidade. Para tanto,
dispõe de metodologias variadas que lançam mão dos meios digitais para ampliar
as possibilidades de olhares para estas questões.
23

Resultados Esperados

Alguns dos resultados esperados são:

- Produzir experimentos práticos de intervenção performática e produção de imagem


em espaço público mediados por meios digitais;

- Analisar as contribuições e limites da produção de foto, do filme documental, de


práticas em Performance e de narrativas audiovisuais no ensino e pesquisa em
Arquitetura e Urbanismo;

- Contribuir para a ampliação do entendimento que se tem em Arquitetura das


relações entre corpo, cidade e produção de imagens digitais;

- Contribuir para a ampliação dos meios utilizados para a compreensão dos espaços
urbanos em Arquitetura e Urbanismo;

Palavras-chave: Corpo; Imagem Digital; Dinâmicas Urbanas; Performance Art.

Keywords: body; Digital Image; Urban Dynamics; Performance Art.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: Uma nova abordagem à Iconologia. Disponível
em: <http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh8/artigo.php?dir=artigos&id=belting_1#_ftn7>

CUFF, Dana. Immanent Domain: Pervasive Computing and the Public Realm, Journal of
Architectural education, v.57, n I, p.43-49, 2003.

DUTRA, Fábio e FIRMINO, Rodrigo. Espaço, visibilidade e tecnologias: (re)caracterizando


a experiência urbana. In BRUNO, F. KANASHIRO, M. e FIRMINO, R. (ORG.) Vigilância e
Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010.

HARAWAY, Dona.; KUNZRU, Hari. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. In: HARVEY, David
et al. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos Errantes. Salvador. EDUFBA, 2012.

LEFEBVRE, Henri. Da cidade à sociedade urbana. In: LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2008.
24

Práticas curatoriais na 27ª Bienal de São Paulo:


relações com Kassel
Curatorial practices at the 27th São Paulo Biennial:
relations with Kassel

Jessica Seabra
jessica.seabra@usp.br
lattes.cnpq.br/1485109054536917

Orientação
Ruy Sardinha Lopes
rsard@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/4355973632621156

RESUMO
A pesquisa analisa, através de um viés crítico, a proposta curatorial da 27ª
Bienal de Arte de São Paulo, intitulada “Como viver junto”. Esta bienal é
considerada precursora, estabelecendo e institucionalizando algumas mudanças
curatoriais que já haviam sido apontadas em edições anteriores da Bienal de São
Paulo, como o fim das representações nacionais. É notória também a inserção e um
diálogo com temas e abordagens críticas presentes em um contexto global de
exposições de arte contemporânea, identificadas na pesquisa através da “crítica
institucional”, da “participação” e do fortalecimento das questões educacionais
nesta mostra. Estas mudanças afetaram as edições seguintes da Bienal e são
decorrentes de um contexto sociocultural mais amplo, amparado por uma
conjuntura cultural e econômica local e internacional que envolve questões como
a globalização cultural, mudanças nas políticas culturais e nas relações de mediação
entre artista, obra e público.

Desde meados da década de 1990 vem ocorrendo uma enorme expansão da


quantidade de exposições internacionais no mundo. Marieke van Hal, diretora
fundadora da Biennial Foundation2 e pesquisadora do departamento de curadoria
do Royal College of Art, aponta que nesse período surgiram aproximadamente cem
bienais de arte contemporânea, inseridas no que pode ser considerado um
processo de globalização do sistema artístico internacional até então restrito aos
grandes centros da arte moderna: Nova York, Londres, Paris e Berlim. Com isso,
países e regiões emergentes possuem bienais criadas recentemente, tais como
Bruxelas, capital da União Europeia; Rússia, Índia e China, pertencentes aos BRICS;
Singapura, pertencente aos Tigres Asiáticos, além de países do Oriente Médio.

A proliferação de bienais e “as controvérsias em torno dos papéis dessas


exposições em um contexto de globalização cultural e reordenação das relações
de poder entre [os ditos] centro e periferia” (SPRICIGO, 2009, p.19) vêm ganhando
grande destaque nas discussões sobre arte contemporânea. Bienais como a
Documenta de Kassel e a Bienal de Veneza adquiriram uma enorme visibilidade em
um contexto global e galgaram uma cena artística para a arte contemporânea,
antes restrita a pequenos grupos de especialistas e artistas. Essa visibilidade
transformou as bienais em desejáveis instrumentos de geração de renda para os
setores públicos e privados, contribuindo no valor simbólico das cidades que as
cediam, em um contexto turístico global. Dentro do âmbito propriamente artístico,

2Organização independente que opera como uma plataforma para coletar e difundir informações
sobre as bienais. Mais informações no site.
25

essa visibilidade possibilita a esse tipo de exposição dar vazão a novas práticas
curatoriais e artísticas que reúnem e mesmo imiscuem num mesmo espaço as
esferas da produção e da crítica.

Na apresentação para o Café com Pesquisa 2017 foi mostrado o início da


pesquisa, então já consolidado, realizando um breve panorama da Bienal de Arte
de São Paulo, desde a gênese do projeto de criação das Bienais, com a chegada do
modernismo ao Brasil e a criação dos museus de arte em São Paulo; passando pela
“era Matarazzo” no decorrer da década de 60 e 70, em que foi criada a Fundação
Bienal e a gestão centrou-se na figura de Ciccillo Matarazz; até a chamada “era dos
curadores”, anos em que a estrutura da mostra se modifica substancialmente tanto
em termos de gestão, voltando-se cada vez mais para o apoio da iniciativa privada,
quanto em termos estéticos, com a ascensão do curador, inicialmente na figura de
Walter Zanini. Este panorama foi realizado com base na periodização proposta
pelos historiadores Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004) de modo que
em seguida pôde ser proposto uma continuação desta periodização, abrindo um
subtópico no último período proposto por Alambert e Canhête: “A Era dos
curadores”, reconhecendo que o papel do curador continua relevante nas Bienais,
mas mudou, ampliando-se e colocando-se cada vez mais em diálogo com um
sistema global de arte. Com isso a 27ª Bienal de Artes de São Paulo foi inserida
nesse panorama.

Em seguida foi abordado como algumas questões presentes na curadoria da


27ª edição da Bienal estão presentes em outras exposições internacionais
contemporâneas, como as Documenta X, 11 e 12, demonstrando uma espécie de
tendência curatorial que reverbera em um sistema global da arte desde meados
dos anos 2000. Apesar de institucionalmente diversas, estas exposições
internacionais se relacionam através de redes de agentes que nelas atuam, como
os curadores. Nesse sentido, novas estratégias curatoriais circulam em rede e a
partir dos anos 2000 algumas tendências começaram a se delinear globalmente.
Um aparato discursivo foi desenvolvido pelas curadorias - que passaram a se
compor como equipes colaborativas -, ampliando o espaço e a importância de
seminários, conferências, simpósios, workshops, publicações e de programas
dispersos geograficamente, ocupando as cidades onde as bienais se inscrevem ou
mesmo outras cidades.

Dentro do contexto desta discursividade expandida, a “participação”, a


“crítica institucional” e a “virada educacional” foram identificadas como elementos
recorrentes e constituintes de estratégias curatoriais nas bienais.

De acordo com Claire Bishop, a participação está presente em práticas


artísticas desde 1960, em uma narrativa ainda pouco familiar à historiografia da
arte. O termo é atribuído a práticas que "se aproximam das formas sociais como
uma maneira de aproximar a arte à vida cotidiana" e que, dessa maneira, exploram
a "colaboração e a dimensão coletiva da experiência social" como questões de
interesse estético. (2006, p.10, tradução nossa).

A crítica institucional, por sua vez, é um conceito cunhado a partir de estudos


sobre as neovanguardas artísticas da virada da década de 1960-70, momento em
que muitos artistas tomaram consciência de uma crise. Nas palavras de Andrea
Fraser esta crise refere-se ao “caráter parcial e ideológico da autonomia artística”
(2014, p.2), uma vez que toda arte poderia tornar-se commoditie, podendo ser
exploradas e gerar lucros econômicos e simbólicos. Então, “(…) a Crítica
Institucional desenvolveu-se não como mais um ataque a essa autonomia, mas,
antes, como uma defesa da arte (e das instituições da arte) contra tal exploração”
(FRASER, 2014, p.2) econômica que subverte o fim e altera o valor da arte. A partir
disso a produção artística, e depois também as instituições, passaram a incitar
reflexões acerca do fazer artístico; a obra deixou de ser um fim em si mesma e
26

passou a discutir contextos, em uma espécie de autocrítica das condições e das


possibilidades do fazer artístico/curatorial e suas condições de produção.

E a virada educacional, de acordo com Mônica Hoff (2014), tem diversas


origens possíveis, destacando a chamada virada social e uma crítica ao mercado de
arte e ao capital cultural. A virada educacional consiste, segundo a autora, “em uma
mudança radical nas maneiras de atuar e existir, principalmente, de artistas e
curadores, em que o foco da criação e organização de objetos de arte se desloca
para a produção de espaços dialógicos e situações de convívio” (GONÇALVES,
2014, p.17-18). As experiências reunidas no que veio a ser identificado como virada
educacional tem em comum “a pedagogia crítica e investigações experimentais e
mais radicais realizadas no campo da educação na década de 1970” (GONÇALVES,
2014, p.17-18) como as principais bases teóricas.

Foi mostrado como os curadores das Documenta X, 11 e 12 articularam as três


estratégias identificadas mencionadas acima – crítica institucional, participação e
educação. Estas três estratégias são advindas de abordagens inicialmente artísticas
no mundo da arte e compõem juntas “um campo discursivo da prática relacional,
antagonista e dialógica” (BEECH, 2010, p.51) que se replica, ainda que com
formatos variados, em bienais ao redor do mundo. Espaços dialógicos foram
construídos com a seleção de instalações artísticas que propõem a participação do
visitante, algo que se vê cada vez com mais frequência, ainda que o grau de
participação, interação ou colaboração varie em cada proposta. E para além das
proposições artísticas, a curadoria de cada uma destas exposições propôs espaços
citados brevemente a seguir.

A Documenta X, em 1997, curada por Catherine David, contou com o


programa em formato de fórum aberto denominado “100 Days - 100 Guests” (100
Dias – 100 Convidados), de forma a ampliar a exposição de evento para produtora
de conteúdo cultural. Todas as noites a Documenta recebia convidados que
realizavam uma apresentação de 40 minutos e em seguida a audiência tinha a
oportunidade de conversar com eles e a equipe da Documenta.

Filmes documentários, Plataformas de discussão e publicações foram


estratégias com viés educativo na Documenta 11 e que serviram para tirar a ênfase
na fetichização de objetos coletados de lugares exóticos, em direção a uma relação
independente entre arte e discurso global - político, cultural e econômico. Para Irit
Rogoff (In: O’NEILL, 2012) a mostra realizou uma “desterritorialização” bem
sucedida de seu discurso, pois nem o tempo, nem o espaço da exibição na cidade
de Kassel teriam operado como um nódulo territorial para o discurso.

A Documenta 12 ficou conhecida por seu caráter educativo. Apesar da


presença de plataformas discursivas na Documenta desde 1997, apenas na
Documenta 12, em 2007, um ano após a 27ª Bienal de Artes de São Paulo, portanto,
o problema da comunicação discursiva da arte, e consequentemente da educação
estética foi colocado como um pilar da exposição. A mediação nesta exposição era
parte integrante do projeto curatorial desde o inicio, e não um serviço agregado
posteriormente à exposição. Era inédito na história da Documenta a existência de
uma conferência de imprensa “exclusivamente dedicada a discutir sobre mediação
e educação em museus” e a educação e a mediação sendo “tema de pesquisa
levada a cabo paralelamente a sua prática” (MÖRSCH, 2009, s.p.).

As aproximações entre o fazer curatorial e educacional, com estratégias


advindas da crítica institucional e com modelos participativos nessas exposições
contemporâneas entre si –27ª Bienais de Artes de São Paulo e Documentas de
Kassel X, 11 e 12 - sugerem que nesta época iniciou-se a constituição de uma espécie
de Novo Institucionalismo que encoraja um certo nível de “desacordos, incoerência,
incerteza e resultados imprevisíveis” (ESCHE, 2004) e traz, a partir de uma
27

ampliação da discursividade, a participação, a colaboração com questões sociais


ou ainda modelos pedagógicos críticos, não apenas uma nova tendência do mundo
da arte, mas respostas de seus atores às estruturas de poder dispostas, seja na
esfera privada ou pública, dentro e fora do universo expositivo.

Palavras-chaves: 27ª Bienal de Arte de São Paulo, arte contemporânea, globalização,


curadoria, crítica institucional, participação, virada educacional.

Key words: 27th São Paulo Art Biennial, contemporary art, globalization, curatorship,
institutional critique, participation, educational turn.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. As Bienais de São Paulo: da era dos museus à era
dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004.

BEECH, Dave. Weberian Lessons: Art, Pedagogy and Managerialism. In: O’NEILL, P.; WILSON,
M. Curating and the educational turn. Londres: Open Editions; Amsterdam: De Appel, 2010,
p.47-60

ESCHE, C. et al. (org.) (2014). Catálogo da 31ª. Bienal de São Paulo. São Paulo, Fundação
Bienal de SP.

FRASER, A. O que é crítica institucional? In: Revista Concinnitas, ano 15, vol. 02, nº 24,
dezembro de 2014. Tradução de Daniel Jablonski.

GONÇALVES, Hoff Mônica. A virada educacional nas práticas artísticas e curatoriais


contemporâneas e o contexto de arte brasileiro. [Dissertação de mestrado]. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

MÖRSCH, C. (2009). Numa encruzilhada de quatro discursos. Mediação e educação na


documenta 12: entre Afirmação, Reprodução, Desconstrução e Transformação. Tradução de
Mônica Hoff. Originalmente In: MÖRSCH, Carmen (Org.). Vol. 2. Documenta 12 education II.
between Criticam Practice and Visitor Services Results of a Research Project. Institute of Art
Education /Diaphanes, Zurich, Berlin, 2009, pp. 9-31.

ROGOFF, I. Turning. In: O’NEILL, P.; WILSON, M. Curating and the educational turn. Londres:
Open Editions; Amsterdam: De Appel, 2010.

SPRICIGO, Vinicius. Relato de outra modernidade: contribuições para uma reflexão crítica
sobre a mediação da arte no contexto da globalização cultural. [tese de doutorado] São
Paulo, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2009.

VAN HAL, Marieke. Rethinking the Biennial. Royal College of Art, London, Reino Unido 2010.
Disponível em:
http://researchonline.rca.ac.uk/1350/1/VAN%20HAL%20Marieke%20Thesis.pdf
28

A construção da crítica ao movimento moderno a


partir dos casos de implosão dos conjuntos
habitacionais Pruitt-Igoe/EUA (1972) e
Carapicuíba/SP (1991)
The construction of the critique of the modern movement from
the implosion of the Pruitt-Igoe / USA (1972) and
Carapicuíba / SP (1991)

Soyani Tardiolli
soyani_tardiolli@usp.br
lattes.cnpq.br/9360897728073216

Orientação
Eulalia Portela Negrelos
negrelos@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7745281336239073

RESUMO
A produção de habitação social consolidou-se na Europa a partir do século
XIX e, posteriormente, manifestou-se na América do Sul devido aos processos
resultantes da imigração e da expansão do setor industrial, que impulsionaram a
criação de moradias improvisadas de baixo padrão construtivo e condições de
higiene. No Brasil, precisamente na cidade de São Paulo, o intenso crescimento
populacional, segundo Bonduki (1998), desencadeou a primeira crise de habitação,
em que situações críticas ocorreram nos bairros dos trabalhadores, onde não havia
esgoto sanitário e existia o risco significativo de contaminação através da água. O
debate em torno da questão da habitação tentou incorporar os conceitos de
unidade, infraestrutura urbana e serviços e colocá-los em prática na produção
habitacional dessa época, o que não foi efetivado.
A necessidade de fornecer casas a todos em condições de higiene e
salubridade e permitindo diferentes ‘Standards’ de vida constitui um
dos maiores problemas a enfrentar. O urbanismo moderno é de início
um urbanismo habitacional, quer pela importância do alojamento e
da área habitacional quer porque estes temas conduzirão até a
invenção de novas tipologias construtivas: o bloco, a torre, o
conjunto (LAMAS, 1993, p.300).

A intervenção do Estado na política urbana e habitacional no período da


ditadura militar se concentra em uma política institucional direcionada ao
financiamento habitacional; um dos recursos criados são as Companhias de
Habitação Popular (COHABs), fundadas como agentes operadores, financiando
moradias às famílias com renda entre um e cinco salários mínimos. Na cidade de
São Paulo, parte dos conjuntos habitacionais criados pela COHAB-SP estão
concentrados na região leste da cidade, englobando vinte e nove conjuntos
habitacionais para atender a uma população de 440 mil pessoas, com proximidade
com a zona industrial das cidades do ABC paulista que empregavam parte
considerável dos moradores da COHAB-SP, acomodando a população próxima aos
grandes 2 centros de produção industrial, diminuindo, assim, o custo do
deslocamento e manutenção da força de trabalho empregada nessas indústrias.
Quanto aos conjuntos habitacionais erguidos pela COHAB-SP na Região
Metropolitana de São Paulo, estes estão concentrados nas cidades de Guarulhos,
29

Itapevi e Carapicuíba, sendo que nesta última, segundo as análises historiográficas


que precederam a pesquisa, ocorreu a implosão de mais de uma dezena de edifícios
em 1991, devido a uma falência estrutural.
Este estudo busca compreender o processo de construção da crítica a esses
conjuntos habitacionais, muitos deles considerados degradados, buscando as
causas dessa degradação e analisando os efeitos dessa forma urbana habitacional
nos âmbitos urbano, econômico e social. Mesmo com a produção em massa de
conjuntos habitacionais, algumas experiências serviram como base de análise, tanto
em escala nacional como em escala mundial, sendo um exemplo o conjunto
habitacional Pruitt-Igoe (1954) que foi considerado um dos lugares mais violentos
e marginalizados da cidade de St. Louis, no Estado do Missouri, Estados Unidos; sua
implosão, em 1972, foi considerada por Charles Jencks, como a morte da arquitetura
moderna.
O posicionamento de Jencks ganhou espaço na década de 1970, adensando
a contestação dos valores do modernismo iniciada já na década anterior, criando-
se uma forte discussão em torno do fracasso do Pruitt-Igoe e suas consequências.
A pesquisa procura, assim, entender os fatores que teriam levado alguns dos
conjuntos habitacionais à degradação, culminando com a implosão de alguns deles
nesse período, inclusive na Europa, abordando como isso influiu na construção da
crítica a essa forma urbana.
A pesquisa tem como objetivo principal compreender o processo de
degradação real e a interpretação da crítica dos conjuntos habitacionais escolhidos
como estudo de caso e busca identificar e comparar os padrões e técnicas de
projeto estabelecidas na produção habitacional dos conjuntos que sofreram um
processo de degradação. É indispensável, mesmo que em um primeiro momento, a
compreensão desse processo de degradação na escala da cidade e o quanto isso
interferiu na forma urbana do espaço de inserção dos projetos abordados.
Os materiais e métodos utilizados neste estudo são constituídos pelos
seguintes procedimentos:
- Leituras referentes ao tema dos conjuntos habitacionais implodidos para a
elaboração de um quadro consistente de referências teórico-metodológicas;
- Levantamento de documentos referentes aos conjuntos habitacionais estudados,
principalmente no que diz respeito ao processo de implosão.
- Análise do processo administrativo da implosão do Setor VII do Conjunto
Habitacional Castelo Branco, em Carapicuíba/SP, cedido para consulta pela
COHAB-SP.
- Construção de diagrama de justificativas das implosões dos conjuntos, conforme
segue:
30

Palavras-chave: Implosão; Produção Habitacional; Degradação.

Keywords: Implosion; Housing Production; Degradation.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JENCKS, Charles. The new paradigm in architecture: the language of postmodernism. Yale
University Press, 2002.

LAMAS, J. M. R. G. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Textos Universitários
de Ciências Sociais e Humanas.1993.

NEGRELOS, Eulalia P. 2010. Habitação Social Pós-1964 no Município de São Paulo.


Contribuições ao Debate sobre o Moderno e a Produção da Cidade. In Anais do XI
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo: a Construção da Cidade e do Urbanismo:
Ideias Têm Lugar, Vitória/ES, 5-8/out.
31

Sob os olhos de quem vê: arquitetura residencial


latino-americana nas publicações do MoMA
Under the eyes of the beholder: Latin American
residential architecture in the MoMA publications

Maryá de Sousa Aldrigue


maryaaldrigue@usp.br
lattes.cnpq.br/1346202666421359

Orientação
Carlos Alberto Ferreira Martins
cmartins@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7689101674915215

RESUMO

Assumindo o potencial da casa unifamiliar - reconhecida por diversos


autores como o programa fundamental do século XX e elemento essencial de
construção da narrativa da arquitetura moderna - como objeto mediador da
investigação proposta, nosso interesse é estudar a casa moderna latino-americana
a partir dos exemplares incluídos nos catálogos das exposições do Museum of
Modern Art (MoMA, Nova York) que tratam da arquitetura latino-americana: (1)
Brazil Builds: architecture new and old 1652-1942 (GOODWIN, 1943), a primeira
publicação sobre arquitetura brasileira, responsável por atrair a atenção
internacional e divulgar sua produção moderna; (2) Latin American Architecture
since 1945 (HITCHCOCK, 1955); e (3) Latin America in Construction: architecture
1955-1980 (BERGDOLL; COMAS; LIERNUR; DEL REAL, 2015).

Enquanto, as duas primeiras publicações inauguraram a trama narrativa que


seria incorporada e repetida nas reflexões seguintes (MARTINS, 1987), a mais
recente (2015) vem recolocar, através de uma abordagem crítica, algumas dessas
“verdades (até então) instituídas”, revendo, ampliando e questionando a narrativa
canônica e propondo novas contribuições. Assim, de modo geral, essas três
publicações estabeleceram as bases da historiografia brasileira sobre a arquitetura
moderna latino-americana.

Este resumo é resultado parcial de uma pesquisa de doutorado em


andamento que parte da necessidade de reflexão ou de (re)descoberta da
arquitetura latino-americana a partir da narrativa formulada por esses textos,
reforçando a importância de explorar uma base documental - que traz uma
narrativa panorâmica e abrangente sobre o tema. O objetivo é analisar a produção
residencial moderna presente nos catálogos das exposições promovidas pelo
MoMA associadas ao tema da América Latina, a fim de investigar as semelhanças e
divergências subjacentes à sua concepção e refletir sobre a imagem de arquitetura
latino-americana que essas publicações procuraram transmitir.

As principais questões que procuramos desenvolver são: como as discussões


internacionais, representadas nas publicações do MoMA, contribuem para pensar a
arquitetura na América Latina? Existe uma dimensão latino-americana,
considerando o projeto residencial unifamiliar moderno? Qual ideia de América
Latina essas publicações transmitiam, para "consumo" local/interno e
internacional/externo?
32

A oscilação entre o interesse e o desinteresse dos pesquisadores - críticos,


historiadores e arquitetos - estrangeiros e instituições pela arquitetura latino-
americana e sua contribuição ao movimento moderno teve altos e baixos ao longo
do século XX (SEGRE, 1991)3. O fato é que a produção moderna brasileira, em um
primeiro momento, e latino-americana depois, levou os europeus e norte-
americanos a olhar para nós e ver além da imagem estereotipada da América Latina
- exótica, tropical, sensual - projetada ao mundo por exploradores, escritores e
cineastas, que fundamentou a construção de mitos e imagens recorrentes que
povoaram (e provavelmente, ainda povoam) o imaginário do estrangeiro sobre o
latino-americano e que viria a refletir o modo como o próprio latino-americano se
vê.

Em meados do século XX, questionamentos como os de Goodwin (1943) e


Giedion - no prefácio do livro de Mindlin ([1956] 2000) - acerca de como um país
como o Brasil, com uma indústria deficitária e uma economia oscilante, seria capaz
de produzir uma arquitetura moderna por excelência e de qualidade, rondavam o
pensamento de muitos desses pesquisadores. Esse misto de surpresa e admiração
foi incorporado nas primeiras leituras, que passaram a interpretar a produção local
como resultado de uma forte influência e presença estrangeira, estabelecendo as
bases para a mitificação da arquitetura carioca e seus cânones. A necessidade de
revisão dos postulados historiográficos que questionem essa versão hegemônica
de matriz corbusiana, está diretamente ligada a urgência de compreender outros
fatores de influência da arquitetura moderna brasileira, permitindo inclusive,
abranger os diálogos com os países vizinhos, lacuna ainda persistente em nossas
pesquisas.

A corrente da história da arquitetura construída com base na antiguidade


clássica e nos modelos ocidentais impediu durante muitos anos que ela fosse
contada a partir das preexistências e das condições próprias da América Latina. A
possibilidade de construir uma outra história, não implica valoração ou disputa com
a chamada história universal europeia, mas a simples constatação de que nossa
história não é aquela, mas outra, muito embora relacionem-se em muitos pontos
(WAISNAM, 2013)4. No Brasil, esse caminho etnocêntrico é agravado pela
percepção de que o país não pertence à América Latina, em função do prestígio e
abertura internacionais da arquitetura nacional e da ausência de identificação com
a cultura latino-americana, considerada atrasada e estranha - porque o familiar era
a cultura parisiense. Com efeito, durante muitos anos, o Brasil pareceu se esgotar
nele mesmo, compartilhando apenas um estranhamento recíproco com seus
vizinhos, responsável por distanciar países limítrofes e por gerar um
desconhecimento e desinteresse interno. Essas relações conflituosas marcaram
nossa história mascarando as semelhanças que nos unem.

Apenas recentemente pesquisadores brasileiros se inseriram, de modo mais


sistemático - ainda que fragmentado -, no caminho traçado desde os anos 1980 em

3A abordagem inicial da construção de uma base bibliográfica sobre a arquitetura da América


Latina a partir de especialistas locais se deu em torno da resolução da Conferência Geral da Unesco
realizada em Paris em 1966, "quando se definiu o projeto de estudo das culturas latino-americanas a
partir de sua literatura e de suas artes" (AMARAL, 2006, p.129). As reuniões que ocorreram em Lima
(1967) e Quito (1970) consolidariam os objetivos iniciais em uma série de livros intitulada América
Latina en su Cultura e publicada na década de 1970. América Latina en su arquitectura foi publicado
em 1975 sob a coordenação de Roberto Segre.
4Ainda nos anos 1940, o pioneirismo do gesto simbólico do pintor uruguaio Joaquín Torres-García -
que representou o continente invertido na obra "Mapa Invertido da América do Sul", com a
Patagônia apontada para o norte - revela que a necessidade de se pensar a América Latina a partir
de seus próprios parâmetros não é um fenômeno recente. Naquele momento, a ideia do movimento
de afirmação cultural que vinha emergindo em diversos países do continente era tornar a arte latino-
americana independente da influência colonial europeia, colocando a tradição local como ponto de
partida para a moderna produção artística da região.
33

alguns países da região, se voltando para reflexões que vão além dos limites
nacionais, situando nossa produção em um debate ampliado sobre a América.

Nesse sentido, a identificação e a análise das semelhanças e das divergências


que caracterizam essas produções poderiam ser a chave para se chegar às
respostas (ou às perguntas) que viriam a contribuir para um entendimento mais
amplo de suas realidades e realizações. Os projetos reunidos nos catálogos se
desenvolveram separadamente - temporal, espacial e culturalmente - mas tanto o
que compartilham como o que os distinguem, podem revelar, a partir de uma
análise comparativa, novas elucidações sobre a produção dessa parte do
continente americano.

Nossa hipótese é que a análise das residências latino-americanas pode expor


achados distintos daqueles legitimados por críticos e historiadores europeus e
norte-americanos que se dedicaram ao tema. Apesar da unidade evidenciada
nessas publicações - até hoje tidas como referência - acerca da produção
residencial moderna latino-americana, as casas revelam particularidades - com
maior ou menor intensidade - em sua concepção que as distingue de determinadas
práticas estabelecidas pela tradição moderna no âmbito internacional. Nesse
sentido, acreditamos que o discurso de aparente homogeneidade na produção dos
países que integram a região não se sustenta em uma análise mais aprofundada
desses projetos. Em outras palavras, defendemos que a produção residencial latino-
americana não se deu de modo uniforme, mas corresponderam, em maior ou menor
grau, às especificidades locais. Assim, a identidade latino-americana, enquanto
referência de homogeneidade em sua produção, é menos forte, do que se supunha
inicialmente, sobretudo se analisada à luz de seu programa arquitetônico mais
comum, a casa.

Stinco (2010) traz constatações interessantes ao analisar quatro casas


construídas em quatro países da América Latina (Argentina, Uruguai, Brasil e
México) no período inicial de implantação da arquitetura moderna na região,
especialmente no que tange aos questionamentos à versão historiográfica
estabelecida de que essa produção afirmaria e reproduziria os princípios
estabelecidos pelo movimento moderno:
Ao entendimento trivial de que teria havido uma importação quase
que direta dos exemplares estrangeiros, constatou-se que nos
projetos inaugurais de arquitetura moderna das casas analisadas
houve manifestações, quer de programa, quer de possibilidades
construtivas, quer de soluções formais, que revelaram, de certo
modo, singularidades e contribuições já distintas dentro das
proposições arquitetônicas modernas (STINCO, 2010, p.23).

Acreditamos que fenômeno semelhante acontece e se instaura à medida que


essa produção se consolida e se estabelece.

Cabe ressaltar que essa hipótese de pesquisa não procura afirmar uma
possível ausência de convergências ou semelhanças de soluções projetuais e
contextos, sobretudo político-econômicos, entre os países agrupados sob o rótulo
de "latino-americanos". Apenas pretendemos ressaltar que para conhecer a fundo
sua produção - e esse trabalho não esgota essa intenção - é necessário escapar das
ideias pré-estabelecidas e consolidadas, e compreender além da imagem de
homogeneidade dessa arquitetura que foi (e provavelmente, com algumas
exceções, ainda é) apresentada para dentro e fora de suas fronteiras.

Partindo desses pressupostos, a proposta é rever conceitos, produções e


trajetórias profissionais com o intuito de superar, nesse esforço coletivo de estudos,
alguns equívocos e generalizações das grandes narrativas da arquitetura moderna
latino-americana. A imersão em um tema tão abrangente revela-se uma proposta
34

arriscada. É necessário ter cautela com as generalizações, inerentes ao tema.


Estamos cientes das limitações e dos riscos de se analisar uma produção
"multinacional" - ainda que façamos parte dela - com os questionamentos
produzidos a partir do universo intelectual e de valores brasileiros. Em outras
palavras, medindo o outro com a régua que dispomos.

Palavras-chave: América Latina; Arquitetura residencial; Catálogos de exposições (MoMA);


Arquitetura moderna.

Keywords: Latin America; Domestic Architecture; Exhibition catalogs (MoMA); Modern


Architecture.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005).
Circuitos de arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006. v. 2.

BERGDOLL, Barry; COMAS, Carlos Eduardo; LIERNUR, Jorge Francisco; DEL REAL,
Patricio. Latin America in construction: architecture 1955-1980. New York: MoMA, 2015.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BULLRICH, Francisco. Arquitectura latinoamericana 1930/1970. Buenos Aires: Editorial


Sudamericana, 1969.

CARRANZA, Luis; LARA, Fernando Luis. Modern Architecture in Latin America: Art,
Technology and Utopia. Austin: University of Texas Press, 2014.

DEL REAL, Patricio. Building a Continent: the idea of Latin American Architecture in the
early Postwar. New York: Columbia University, 2012.

GOODWIN, Philip L. Brazil Builds: architecture new and old 1652-1942. New York: The
Museum of Modern Art, 1943.

GORELIK, Adriàn. Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetura na América


Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitectura latino-americana: textos para reflexão e polêmica. São


Paulo: Nobel, 1989.

HITCHCOCK, Henry-Russell. Latin American Architecture since 1945. New York: MoMA,
1955.

LIERNUR, Jorge Francisco. "The South American Way". Block, Buenos Aires, n.4, p. 23-41,
dez. 1999.

MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Arquitetura e Estado no Brasil: elementos para uma
investigação sobre a constituição do discurso moderno no Brasil; a obra de Lucio Costa
1924/1952. 1987. 182 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.

MINDLIN, Henrique E. Arquitetura moderna no Brasil. Tradução: Paulo Pedreira. 2. ed. Rio
de Janeiro: Aeroplano/IPHAN, 2000.

MONTANER, Josep Maria. Arquitetura e crítica na América Latina. São Paulo: Romano
Guerra, 2014.
35

SEGRE, Roberto. América Latina en su arquitectura. 6. ed. Paris: UNESCO, 1985.

SEGRE, Roberto. América Latina, fim de milênio: raízes e perspectivas de sua arquitetura.
São Paulo: Studio Nobel, 1991.

STINCO, Claudia Virginia. Quatro interpretações da casa moderna na América Latina.


2009. 343 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
2010.

WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-


americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
36

Design (em) aberto: uma investigação sobre


movimentos colaborativos em design
Open design: an investigation about collaborative
movements in design

Paula Ramos Pacheco


paula.pacheco@usp.br
lattes.cnpq.br/8870582007656307

Orientação
David Moreno Sperling
sperling@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/9764445070503572

RESUMO

O presente trabalho parte da suposição de que o design é uma disciplina em


constante transformação, que acompanha mudanças em esferas variadas, o que
pode ser percebido pela diversidade de definições pelas quais responde ao longo
do tempo (sendo estas elaboradas por autores que se ocupam da teoria sobre o
tema ou mesmo em caráter oficial divulgadas pela instituição internacional que
busca unir os profissionais - o ICSID, International Council of Societies of Industrial
Design).

O trabalho traz algumas definições para o design encontradas ao longo do


tempo e também precedências históricas da participação aplicada ao campo de
práticas estéticas e do design, permeadas por contextualizações industriais e
econômicas, considerando a perspectiva da emergência da participação na década
de 60 como manifestação contracultural e o surgimento do tópico da colaboração
na atualidade como desdobramento desse conceito, somado a outros aspectos
econômicos e culturais.
Um panorama inicial é traçado a partir de diferentes definições encontradas
para disciplina do design encontradas ao longo do tempo, sejam as veiculadas por
instituições oficiais de profissionais da área ou as elaboradas por teóricos que se
ocupam do tema, notando-se gradualmente uma aproximação do design com
preocupações mais relacionadas ao ser humano. Tendo o contexto de referência
inicial da pesquisa se fixado nas décadas de 60 e 70, vê-se necessária também a
preparação de um aprofundamento econômico e social a respeito do período (que
ficou caracterizado pela emergência de movimentos contraculturais de diversas
ordens cujos impulsos também impeliram manifestações dissonantes na área da
arte e do design), tomando por base principalmente o posicionamento de Luc
Boltanski e Ève Chiapello (2009) sobre a alternância do fortalecimento e
enfraquecimento da crítica desde a década de 60 em vista dos processos de
transformação do capitalismo.

Isto colocado, é apresentada então a questão da participação no design


nesse intervalo de tempo, sob a forma de projetos de faça-você-mesmo, veiculados
principalmente de forma impressa, como uma tentativa de dissociar a indústria das
necessidades pessoais dos consumidores, ao dotá-los de capacidade para construir
seus próprios objetos. Podem ser citados alguns autores empenhados nessas
iniciativas para terem seus trabalhos mais profundamente analisados como
prenunciadores de manifestações da cultura faça-você-mesmo na atualidade, como
Victor Papanek e James Hennessey, cujos trabalhos apresentam alternativas para
uma vida nômade, amparada por mobiliários de fácil confecção, desmontagem e
37

transporte; bem como Ken Isaacs, cuja carreira é dedicada à formulação de


sistemas flexíveis de construção descomplicada que atuam como mobiliários.

Identifica-se, entretanto, ao final da década de 60, certo esvaziamento das


movimentações contraculturais e um enfraquecimento da crítica. Em paralelo,
verifica-se um período de estagnação no desenvolvimento de novas definições de
caráter oficial para a disciplina pelo International Council of Societies of Industrial
Design, durante a qual o design passará por modificações bastante estruturais que
se manifestarão de maneira mais clara a partir da década de 90.
Uma vez trazido à tona este panorama histórico, o trabalho trata da temática
da colaboração na atualidade, em um contexto que supostamente se conformou a
partir de um conjunto de fatores, tais como avanços tecnológicos e trajetórias da
crítica e da economia, culminando em um momento em que se identifica
determinada assimilação de elementos que eram, na década de 60, anti-sistêmicos.
Tendo em mente tal possibilidade, analisam-se manifestações que se intitulam
como pertencentes a um movimento de abertura do design na atualidade, com o
objetivo de demonstrar como mudanças culturais com base no desenvolvimento
recente das tecnologias da informação e comunicação sugerem que o
conhecimento seja difundido com menor controle e maior acessibilidade a nível
global, possibilitando a geração de comunidades organizadas com objetivos
específicos, como o de compartilhar conhecimento e permitir inovação. Por conta
disso, os processos de colaboração estariam ganhando visibilidade e assumindo
uma importante posição na ruptura de sistemas fechados e lançamento de novas
propostas e alternativas para a criação e fabricação de objetos, organização de
sistemas, e gestão de cidades e sociedades.
Para fins de exemplificação, podemos citar algumas comunidades atuais que
se organizam através da rede e assumem forte papel no contexto de ruptura de
paradigmas e constituição de novas propostas e frentes de aberturas em design.
Dentre eles, o denominado Movimento Maker é responsável por reunir pessoas
interessadas em - colocando-se de maneira simples - construir coisas por si
mesmas. Baseado sobre os princípios da colaboração, são incentivadas pelo
movimento ações de compartilhamento de resultados e conhecimento, em uma
comunidade que se afirma tratar de um interesse comum, o de produzir de forma
pessoal, livre e, principalmente, compartilhada. Neste quadro, também são
destacadas algumas redes e plataformas destinadas ao compartilhamento de
conhecimento, dados, projetos e formas de produção, cujo sistema de
funcionamento baseado na coletividade se torna responsável por uma
transformação em que o termo “DIY” (do it yourself, ou faça você mesmo) começa
a ser substituído por outro, DIWO (do it with others, ou faça com os outros);
e determinados espaços físicos destinados à colaboração, makerspaces,
hackerspaces e FabLabs – laboratórios de fabricação digital cuja primeira unidade
surge no Center for Bits and Atoms (CBA) do Massachusetts Institute of Technology
(MIT) sob orientação de Neil Gershenfeld, e mais tarde se expande em uma rede
mundial.

Hal Foster (2002) delineia um contexto atual em que as mercadorias podem


ser constantemente modificadas e os mercados subdivididos em nichos, de
maneira que mesmo que um produto possa ser considerado “de massa” devido à
quantidade de cópias produzidas, ele parecerá sempre atualizado, personalizado e
preciso em seu endereçamento a uma parcela específica de consumidores, devido
às variabilidades incorporadas em seu desenho e às flexibilidades de produção
implantadas pelos sistemas pós-fordistas. Além disso, ainda que o cerne do
movimento maker esteja no trabalho de amadores, o surgimento de novas
tecnologias produtivas também estimula o aparecimento de pequenas empresas e
iniciativas privadas baseadas em inovação, de forma que se torna perceptível a
existência de duas vertentes do movimento maker: uma que visa a democratização
38

da produção industrial (vinculada a uma crítica à sociedade de consumo), e uma


que busca aproximar essas novas tecnologias de fabricação de novos modelos de
negócios (SODERBERG, 2013).
Seria possível pensar outros ciclos para o design, novas possibilidades, sua
dimensão social, e apontar caminhos que tensionem o quadro que se configura
hoje. Parece claro que os movimentos que se classificam como pertencentes ao
universo do design aberto na atualidade tomam como ponto de partida a
característica emancipatória que a atividade estaria trazendo ao usuário, quando
assumem as ferramentas de projeto e produção de uma maneira que se pretende
acessível, colaborativa e independente da indústria de massa. É igualmente
perceptível que algumas críticas a respeito do movimento têm se desenhado,
baseando-se em certa distância que por vezes tem se estabelecido entre discursos
e práticas. Enquanto alguns autores nomeiam esse novo período como a 3ª
Revolução Industrial (ou mesmo como a 4ª), utilizando o termo em um contexto
otimista, é interessante notar que outros começam a olhar os termos com certa
dose de crítica: se as questões relativas ao design aberto e ao movimento maker
surgem baseadas em uma inquietação com a forma como é conduzido um processo
produtivo – a indústria –, seria incongruente que os resultados desse processo de
abertura levassem a uma condição que ainda é tratada como uma revolução. A
cultura maker, incorporada pelas grandes corporações – como se tem observado,
não responderia mais às suas premissas iniciais e também necessitaria de uma
adaptação na forma como vem sendo conduzida.
Sobre a inquietação de que parte dos objetos não seriam pessoais ou
personalizáveis, é possível observar um ponto no qual a crítica se dá de maneira
mais forte: sob essa perspectiva, ações como a modificação artesanal de objetos
produzidos industrialmente e, principalmente, o compartilhamento de processos e
resultados, surgem para possibilitar que mais pessoas possam aplicar os mesmos
procedimentos, ou desenvolver outros baseados no primeiro.
Esse processo de apropriação, adaptação, transformação de produtos por
indivíduos e comunidades é um fenômeno recente que atende pelo nome hack, em
uma alusão à dimensão dos softwares. Apesar do termo hack ter adquirido
popularmente uma conotação negativa que remete ao ato de invadir
computadores e redes com intuito de se apropriar ou expor informações,
originalmente o significado se atém à ação de abrir alguma coisa para que se
compreenda melhor seus componentes, em manifestações predominantemente
externas ao ambiente empresarial e comercial (VAN HOLM, 2014).

Ao se iniciar com um panorama histórico e contextual para a disciplina,


espera-se oferecer base para a compreensão dos processos e mecanismos que
foram de importância para configurar a colaboração como agente definidor do
design como se vê hoje. As manifestações estéticas participativas contraculturais
se apresentam como aporte para o entendimento da cultura do faça-você-mesmo
na década de 60, para que depois possa ser melhor compreendida a constituição
de formas de colaboração em design na contemporaneidade, quando se acrescenta
o emprego de tecnologias digitais e comunicacionais que se popularizam a partir
da década de 90. Enquanto isso, a contextualização econômica e histórica
corrobora para o entendimento sobre como indicações que são, a princípio, anti-
sistêmicas são incorporadas pelo capitalismo e oferecem ao sistema novas formas
de ação.

Palavras-chave: design aberto; colaboração; faça-você-mesmo; movimento maker.

Keywords: open design; collaboration; do-it-yourself; maker movement.


39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.

FOSTER, Hal. Design and Crime: And Others Diatribes. London: Verso, 2002.

HAGEL, John; BROWN, John Seely; KULASOORIYA, Duleesha. A movement in the


making. Delloite Press. Disponível em <http://d27n205l7rookf.cloudfront.net/wp-
content/uploads/2014/01/DUP_689_movement_in_the_making_FINAL2.pdf>. Acesso em
01 jul. 2016.

HATCH, Mark. The Maker Movement Manifesto: Rules for Innovation in the New World of
Crafters, Hackers, and Tinkerers. New York: McGrawHill Education, 2014.

ICSID. Industrial Design Definition History. 2015. Disponível em


<http://www.icsid.org/about/definition/industrial-design-definition-history/>. Acesso em
01 jul. 2016.

ISAACS, Ken. How to build your own living structures. New York: Crown Publishers, 1974.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. O capitalismo artista. In: A estetização do mundo:


viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MOE, Kiel. Automation takes command. In: CORSER, R. (Ed.). Fabricating Architecture:
Selected Readings in Digital Design and Manufacturing. New York: Princeton Architectural
Press, 2010. p. 152–167.

PAPANEK, Victor. Design for the Real World: Human Ecology and Social Change, New
York, Pantheon Books. 1971.

PAPANEK, Victor; HENNESSEY, James. Nomadic furniture: how to build and where to buy
lightweight furniture that folds, collapses, stacks, knocks-down, inflates or can be thrown
away and re-cycled. New York, Pantheon Books. 1973.

SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da


informação digital e genética. São Paulo: editora 34, 2003.

SODERBERG, Johan. A ilusória emancipação por meio da tecnologia. Le Monde


Diplomatique Brasil, 07 jan. 2013. Disponível em
<http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1339>. Acesso em 06 out. 2016.

VAN HOLM, Eric Joseph. What are Makerspaces, Hackerspaces, and Fab Labs? 2014.
Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2548211>. Acesso em 04 out. 2016.

WALTER-HERRMANN, Julia; BÜCHING, Corine. FabLabs: Of Machines, Makers and


Inventors.Transcript-Verlag. 2013.
40

Gleba Palhano em Londrina-PR: da mercadoria


habitação ao cotidiano urbano
Gleba Palhano in Londrina-PR: from the
housing commodity to daily urban life

Esther Encinas Audibert


estheraudibet@usp.br
lattes.cnpq.br/7844015103230945

Orientação
Cibele Saliba Rizek
cibelesr@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/0540870380815135

RESUMO

Pensar a cidade supõe compreender processos e relações sociais no tempo


e no espaço e reconhecer a dimensão determinante do sistema econômico na
conformação das cidades contemporâneas. A presente pesquisa enquadra-se
nessa temática, junto a um grupo de pesquisadores que vêm investigando os
processos de mercadorização e seus impactos na produção urbana, tomando como
objeto empírico a Gleba Palhano, localizada na zona sudoeste da cidade de
Londrina – PR. A Palhano começou a se consolidar somente a partir da década de
2000 e pode ser associada às expressões do boom experimentado pelas
metrópoles brasileiras com a ascensão das políticas neoliberais de abertura aos
investimentos no setor imobiliário (SANFELICI, 2013).

Para uma breve contextualização, o município que hoje, com uma população
de 506,7 mil habitantes é a quarta maior cidade do Sul do país e a segunda maior
do Estado do Paraná (PERFIL, 2013), foi construído a partir de um pré-projeto em
1932. O projeto era parte do processo de colonização dirigido pela Companhia de
Terras Norte do Paraná, que conectava a região às atividades econômicas de São
Paulo no contexto histórico do café. Aliando esse fator à expansão das atividades
urbanas, advindas de investimentos locais e à oferta de infraestrutura, a cidade se
inseriu rapidamente em uma dinâmica econômica e social e acelerou seu
crescimento populacional, físico-territorial e de oferta de bens e serviços à
população. Os anos que se seguiram foram assinalados por um crescimento urbano
ao redor desse núcleo planejado, mas já na década de 1950 começaram a se
consolidar as zonas leste, oeste e norte da cidade e surgiram os primeiros edifícios
verticais, no intuito de traduzir ao observador a modernidade contida na gênese da
cidade nova. A ocupação efetiva da zona sudoeste inicia-se somente após a
inauguração do Shopping Center Catuaí em 1990, o primeiro grande centro de
compras da região norte do Paraná. Segundo Alcantara (2015), o empreendimento
foi parte de uma estratégia imobiliária que agregava interesses de diferentes
agentes para valorizar uma extensa área localizada entre o Centro Principal e o
Shopping. O espaço originou-se da fazenda Palhano, propriedade dos irmãos
Palhano com 1.200 alqueires, e até então, era composto por pequenas chácaras de
uso residencial e cultivo de hortaliças e cereais. Os incorporadores, atraídos pelo
potencial de desenvolvimento vertical, lotes grandes, proximidades do centro,
facilidade de acesso, vista proporcionada pela topografia – região alta, permite
visualização de todo o skyline da cidade –, proximidade do Lago Igapó,
proximidade do Shopping Catuaí e da Universidade Estadual de Londrina, puseram
em prática seu projeto de tornar a área uma região nobre da cidade (FRESCA,
2002; YAMAKI, 2003; OURA, 2007; TOWS, MENDES, VERCEZI, 2010).
41

A valorização do local, com atuação do capital público e privado, ocorreu


sob o marketing da qualidade de vida. A Gleba Palhano tornou-se assim,
especialmente o trecho nordeste da Gleba, alvo de intensa ocupação por edifícios
altos, de até 37 pavimentos, com elevado status social. Ao sul do Catuaí Shopping,
foram construídos condomínios horizontais e loteamentos fechados de alto padrão,
de capitais locais e nacionais. E permanecem na região também algumas chácaras
de lazer, além de um comércio especializado para atender o público ali residente.
A zona destaca-se por seu crescimento acelerado e o apelo do mercado imobiliário
coloca como primordial a localização, objeto de grande valorização fundiária, de
forma que atualmente é a região mais valorizada da cidade (ALCANTARA, 2015;
FRESCA, 2002; TOWS, MENDES, VERCEZI, 2010; OURA, 2007).

A atuação do Estado para o desenvolvimento da Gleba Palhano também foi


fundamental. A interferência tem início já na construção do Lago Igapó, inaugurado
na década de 1950 e permanece a ocorrer em obras de infraestrutura. Para vários
autores, como Tows, Mendes e Vercezi (2010) e Oura (2007), os investimentos
ilustram uma atuação segregacionista, privilegiando os interesses imobiliários
dominantes. Da mesma forma, a atuação seletiva do mercado imobiliário na cidade
opera sobre bairros específicos, demonstrando interesse para além do centro, por
áreas também periféricas (ALCANTARA, 2015). Tais agentes imobiliários planejam,
monopolizam e criam o espaço urbano da cidade, na medida em que orientam o
tipo de classe que ocupará as parcelas desse espaço (BORTOLO, 2010).

Partindo da hipótese de que o espaço urbano da Gleba Palhano produzido


como mercadoria, ampliando a segregação socioespacial, tem redefinido o modo
de vida urbano e as relações entre os habitantes e dos habitantes com esse espaço,
de forma que as novas conformações urbanas e novas formas de uso desenhariam
um cotidiano que parece apontar para a diminuição das relações de vizinhança,
privatização da vida coletiva e considerável rotatividade da unidade habitacional
entre seus moradores, a pesquisa trouxe como objetivo geral identificar as
consequências urbanas do processo de produção da Gleba Palhano tanto no
ambiente físico construído, quanto no cotidiano desse espaço. Enquanto objetivo
específico tinha-se: compreender as dinâmicas urbanas e imobiliárias decorrentes
da produção da Gleba Palhano em escala municipal; estabelecer uma relação entre
os agentes do processo de produção da Gleba Palhano e os processos e políticas
públicas imobiliárias responsáveis pelo boom nas cidades brasileiras; e identificar
as sociabilidades produzidas dentro desse espaço urbano e como se dá a
cotidianeidade diante desse novo modo de vida (uso dos espaços públicos,
relações de vizinhança, intenção de permanência na área e na unidade
habitacional).

A análise ocorreu, então, sob duas chaves teóricas principais, já chamadas


no título deste trabalho. A primeira refere-se à expressão “mercadoria habitação”.
Estudos como o de Brenner, Marcuse e Mayer (2012) e Harvey (2011; 2013)
destacam que a urbanização assume papel central no processo de mobilização,
produção, apropriação e absorção de excedentes econômicos e que o espaço
urbano sob a atuação do capitalismo é continuamente formulado e reformulado
através do confronto das forças sociais opostas orientadas, respectivamente, em
direção ao valor de troca (com fins lucrativos) e valor de uso (vida cotidiana). Assim
sugeriram Brenner, Marcuse e Mayer (2012, p.3) que “as cidades capitalistas não
são apenas arenas em que ocorre mercantilização, elas próprias são intensamente
mercantilizadas”. Para Vainer (2000) a nova questão urbana tem como nexo
central a produtividade e competitividade e os governos municipais têm findado as
bases do planejamento estratégico sobre a paradoxal articulação de três analogias
constitutivas: a cidade é uma mercadoria, um objeto de luxo para ser vendido em
um mercado extremamente competitivo, destinada a um grupo de elite; a cidade
mimetiza uma empresa, que sai da forma passiva de objeto e assume a forma ativa
de sujeito, competindo para atrair investimentos, tecnologia, etc.; e, a cidade é uma
42

pátria, na qual a construção de consensos cria “política e intelectualmente as


condições de legitimação de um projeto de encolhimento tão radical do espaço
público” (VAINER, 2000, p.91).

No contexto brasileiro, o urbanismo produzido nesta virada do século XXI, a


que Ferreira (2010) intitula “urbanismo de mercado”, se afina com o espetáculo da
globalização para concepção de “cidades globais”. A atuação livre do mercado
imobiliário na construção de bairros verticalizados e o uso da cultura como
alavanca para valorização fundiária se intensificam com as novas medidas
regulatórias definidas pelos últimos governos. Shimbo (2010) observa a confluência
entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro, afirmando haver uma
articulação recente entre Estado e mercado na política habitacional. Com a política
habitacional de 2004 ampliaram-se os financiamentos habitacionais através de
recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e do SBPE (Sistema
Brasileiro de Poupança e Empréstimo), com o objetivo de subsidiar a produção da
habitação e fomentar o mercado privado de habitação.

A segunda chave de leitura está associada à expressão “cotidiano urbano”.


Lefèbvre (1991) expõe a vida cotidiana como reveladora da forma de dominação
que as forças produtivas passam a produzir sobre a sociedade atual. Para Carlos
(2007, p.187), ao olhar para a cidade sob o signo de suas transformações, observa-
se que com a modernidade, o tempo das transformações se acelera. O capitalismo
permanece produzindo um novo espaço-tempo, que se expressa tanto na forma
física da cidade como nas reformulações do modo de vida urbano, uma vez que a
realidade urbana é prática sócio-espacial. Segundo a autora, a extensão do
capitalismo, com o desenvolvimento do valor de troca e necessidade ininterrupta
de valorização interfere diretamente na produção e apropriação de espaços
públicos e privados. A vida se realiza cada vez mais no âmbito dos espaços
privados. Assim, o momento presente sinaliza uma profunda crise social que se
expressa na deterioração das relações sociais, tendência ao escasseamento das
relações de vizinhança, deterioração dos espaços públicos, isolamento e um
urbanismo de mercado que nega por essência o urbano e a vida urbana (CARLOS,
2007).

A pesquisa foi desenvolvida sob o método de Pesquisa de Campo


(Qualitativa), somadas algumas incursões de caráter etnográfico, utilizando como
ferramentas o levantamento bibliográfico de natureza conceitual; levantamento
documental: bibliográfico e iconográfico sobre a formação e ocupação recente de
Londrina e da Gleba Palhano (na Prefeitura Municipal de Londrina, Biblioteca
Pública e Museu Histórico), das legislações urbanísticas que interferiram e
interferem na produção desse espaço (na PML, Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Londrina e Câmara Municipal de Londrina), dos
loteamentos aprovados e dos imóveis verticais construídos na zona Sudoeste de
Londrina (na Diretoria de Loteamentos e Cadastro de Obras da PML);
levantamentos dos empreendimentos lançados na grande imprensa e da
valorização fundiária local. Foram também realizadas entrevistas semi-estruturadas
com moradores, com os principais agentes imobiliários que atuaram na área e com
o secretário da Associação de Condomínios da Gleba (ConGP), que junto das
observações de natureza etnográfica compuseram as análises do cotidiano local.

Na análise do desenvolvimento da área, a investigação revelou difusas


fronteiras entre legalismos e ilegalismos que tornaram o processo de urbanização
local diferente do ocorrido no restante da cidade. A história da Fazenda se deu
paralelamente à fundação do Município e somente se cruzaram na década de 1970,
quando o poder público criou a Lei nº 1794/70 para aceitar o já realizado e vendido
loteamento da Palhano. Pela Lei, cada proprietário ficou responsável pela
construção da infraestrutura e doação de área ao Município de seu respectivo
imóvel. Mas os lotes, em sua maioria já menores do que 5.000 m², enquadraram-se
43

na Lei de Parcelamento vigente de forma a precisarem doar apenas área de rua,


tendo como consequência uma extensa área sem praças, postos de saúde, escolas
públicas, etc. A urbanização da Gleba ocorreu, assim, de forma fragmentada e com
a instituição das leis de zoneamento de 1984, que permitiu pela primeira vez em
Londrina a verticalização de áreas periféricas, da lei de parcelamento de 1994, que
regulava a construção de loteamentos fechados e das leis de zoneamento e
parcelamento de 1998, que aderiram à questão dos loteamentos fechados e
aumentaram ainda mais o gabarito permitido para a ocupação na área, apresentou-
se uma hegemonia do tipo “condomínio” como modo da vida na Gleba e como
consequência uma grande privatização do espaço urbano.

É assim configurado o bairro vertical entre o Shopping Catuaí e o Lago Igapó


II, cuja atuação imobiliária destaca as construtoras e incorporadoras Plaenge e A.
Yoshii, empresas locais que cresceram muito nas últimas décadas visto o momento
político e econômico brasileiro, responsáveis por quase 50% de um total de 150
empreendimentos verticais encontrados na Palhano, 93% destes com uso
residencial. Os empreendimentos deram “tão certo” que se espraiaram para o
interior do espaço da Gleba, em áreas próximas ao Shopping e à Universidade e
alguns trechos adjacentes, já dentro da Gleba Cambé. Da mesma forma, os nichos
de mercado foram ampliados para atender também uma classe média menos
abastada, com especial atenção ao público jovem, sob o slogan publicitário do
“primeiro imóvel”. Assim, as pessoas de renda mais alta se concentraram próximas
do Lago, enquanto as de renda média e média baixa foram deslocadas para áreas
mais distantes do centro de Londrina. Quanto à periodização de construção dos
condomínios verticais, tendo-se os anos de Habite-se como referência, observou-
se que, enquanto apenas 6% foram construídos até o ano de 1998, 36% são
posteriores a 2011 e 29% ainda estão em construção. Tal fator é importante por
revelar que os impactos do adensamento na região sentidos até o momento
poderão duplicar em menos de 5 anos.

As entrevistas com moradores realizadas até então sinalizaram uma maioria


de apartamentos adquiridos parte na planta, direto com a construtora e parte com
financiamento. Todos os entrevistados escolheram a Gleba pela localização e todos
pretendem mudar-se para uma casa em condomínio ou apartamento maior na
mesma região, sem, no entanto, definir um tempo para concretização desse plano.
Com os apartamentos adquiridos recentemente (no máximo 4 anos), para a maioria
é seu primeiro imóvel. Em geral, a renda familiar dos entrevistados girou em torno
de 10 a 20 mil reais.

Apesar de muitos usarem os espaços de lazer do prédio (construídos com


tipologia tipo “clube” 5), não relataram relações com a vizinhança, apenas com
amigos e/ou parentes que coincidentemente foram residir na mesma região.
Também não sentem falta de espaços públicos, utilizando o Lago para caminhadas.
As respostas dos moradores dos condomínios verticais distantes do Lago, no bairro
Aurora ou Terra Bonita, no entanto, foram discrepantes. Estes reclamaram de falta
de infraestrutura viária e áreas públicas de lazer. No núcleo próximo do Lago, as
maiores críticas dos moradores à região foram quanto ao trânsito e iluminação das
ruas. O grande número de apartamentos com uma única vaga de garagem também
dificulta o estacionamento, de forma que “está difícil encontrar vagas nas ruas” (fala
de uma entrevistada).

Apareceram como iniciativas que de certa forma integram os habitantes da


área, o Conselho dos Condomínios Residenciais da Gleba Palhano (ConGP) e o

5Conceito tratado por Silva e Carvalho em “Ecoville e Gleba Palhano: Uma análise da produção do
espaço urbano a partir dos edifícios de alto padrão” (Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 154.02,
Vitruvius, mar. 2013).
44

veículo de comunicação Jornal da Gleba, periódico mensal de distribuição gratuita,


ambos criados em 2009. Em entrevista concedida à pesquisadora, Amaro (2016)
evidenciou como conquista do Conselho a luta pelo impedimento do aumento do
IPTU da cidade que se pretendeu realizar no ano de 2009 e que segundo Amaro, a
Associação comprovou não ser oportuno. A última Planta de Valores do IPTU de
Londrina data de 2001, quando a Gleba era ainda rural e todas as tentativas de
atualização foram barradas, permitindo uma situação de injustiça fiscal. Amaro
também citou o projeto de segurança elaborado pela ConGP, com instalação de
câmeras e empresa de ronda para o bairro, projeto este que também aponta para
a privatização do espaço urbano, estabelecendo controle privado sobre vias
públicas de acesso.

Conclui-se, assim, que a Gleba Palhano foi produzida pela atuação do


mercado privado e da especulação imobiliária como uma mercadoria de luxo, cujo
uso e apropriação foram pensados como privados, voltada para um público
específico, onde não há espaço para áreas, bens e serviços públicos, nem mesmo
para impostos. Na Gleba, que historicamente já nasce fragmentada, parece
estabelecido também um vínculo dos moradores com a região, em contraposição
a falta de intenção de permanência na unidade habitacional. A pesquisa vem, então,
questionar a atuação seletiva e excludente da produção urbana e especialmente da
oferta da habitação no Brasil, e de igual forma em Londrina-PR, dialogando acerca
da complexidade do urbano, das estruturas definidoras do espaço, das
especificidades da produção da Gleba e das experiências urbanas que entremeiam
toda a adversidade de agentes e atores.

Palavras-chave: Mercado imobiliário; Fragmento Urbano; Vida cotidiana; Lógica do


Condomínio; Privatização do espaço público.

Keywords: Real estate market; Urban Fragment; Daily life; Logic of the Condominium;
Privatization of public space.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALCANTARA, D. M. A atuação seletiva do mercado imobiliário em cidades médias. Revista
Ra’e Ga. Curitiba, v.33, p.120-141, Abr. 2015.

BORTOLO, C. A. Do espaço produzido ao espaço consumido: a produção e apropriação


do entorno do Lago Igapó – Londrina-PR. Revista GeoAtos, Departamento de Geografia
da FCT/UNESP, Presidente Prudente, n.10, v.2, p. 36-53, julho a dez. 2010.

BRENNER, N.; MARCUSE, P.; MAYER, M. An Introduction. In: ________.(Org.). Cities For
People, Not For Profit. London: Routledge, 2012. p. 1-10.

CARLOS, A. F. A. Metamorfoses Urbanas. In: GeoTextos, vol.3, n. 1 e 2, 2007. p. 187-200.

FERREIRA, J. S. W. Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das


cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”. In: OLIVEIRA, F.; BRAGA, R.;
RIZEK, C. Hegemonia as avessas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

FRESCA, T. M. Mudanças recentes na expansão físico-territorial de Londrina. Geografia


(Londrina), Londrina, v. 11, n. 2, p. 241-264, 2002.

HARVEY, D. O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo. Tradução de João Alexandre


Peschanski. São Paulo, SP: Boitempo, 2011. 224p. Título original:
The Enigma of Capital and the Crises of Capitalism [2010].
45

________. Os Limites do Capital. Tradução de Magda Lopes. São Paulo, SP: Boitempo,
2013. 592p. Título original: The Limits to Capital [1982].

LEFÈBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991

OURA, K. Y. Verticalização em Londrina – Paraná (1950-2005): a produção do espaço


urbano e seu desenvolvimento pelos edifícios verticais. 2007. 156f. Dissertação (Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo) – FAU, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
2007.

PERFIL DO MUNICÍPIO DE LONDRINA – 2013 (Ano-Base 2012). Secretaria Municipal de


Planejamento Orçamento e Tecnologia – DP/GPI. Disponível em:
<http://www1.londrina.pr.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=546:pe
rfil-de-londrina&catid=21:planejamento-&Itemid=147>. Acesso em 13 jul. 2014.

SANFELICI, D. M. A metrópole sob o ritmo das finanças: implicações socioespaciais da


expansão imobiliária no Brasil. 2013. 307p. Tese (Doutorado em Geografia Humana)–
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo. 2013.

SHIMBO, L. Z. Habitação social, habitação de mercado: a confluência entre estado,


empresas construtoras e capital financeiro. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo)
- Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010.

TOWS, R. L.; MENDES, C. M; VERCEZI, J. T. A cidade como negócio: os casos de Londrina-


PR e de Maringá-PR. Boletim de Geografia, Maringá, v. 28, n. 1, p. 91-103, 2010.

VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia


discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO,
E. A cidade do pensamento único: Desmanchando consensos. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000. p. 75-103.

YAMAKI, H. Iconografia Londrinense: Mapas Iniciais 1930-50. Londrina: Edições


Humanidades, 2003.
46

London calling: o papel da cultura e da “criatividade”


na gestão de uma cidade-marca6
London calling: the role of culture and ‘creativity’
in the management of a city brand

Natália Pauletto Fragalle


natalia.fragalle@usp.br
lattes.cnpq.br/5642032190016733

Orientação
Ruy Sardinha Lopes
rsard@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/4355973632621156

RESUMO
A presente pesquisa pretende refletir, a partir do conceito de “cidade
criativa”, sobre o processo de construção e gestão de uma cidade-marca e os seus
consequentes impactos nas políticas urbanas. Para tanto, toma-se como estudo de
caso a cidade de Londres, capital do país pioneiro na implementação do discurso
da “criatividade” em suas políticas públicas e grande centro de poder e controle
global na virada do século XXI. Neste sentido busca-se compreender o que tal
cidade representa e explica sobre o capitalismo contemporâneo, inserida em um
processo de reprodução, extensão e transformação do sistema neoliberal.
Procura-se evidenciar, primeiramente, o papel significativo da urbanização
no sistema capitalista, funcionando como um importante meio de absorção de
excedente de capital (HARVEY, 2014) através do investimento em grandes projetos
que não apenas transformam as infraestruturas urbanas, como também produzem
novos estilos de vida, com novos produtos e necessidades. Isso se mostra evidente
a partir da crise avassaladora pelas quais passavam as economias dos países ditos
desenvolvidos na década de 70, com o esgotamento do modelo fordista de
produção e a transição para o que Harvey (1989) chamou de estágio de
“acumulação flexível” do capitalismo, caracterizado pela superação da rigidez
fordista, pela internacionalização da economia, por uma maior velocidade na
circulação de mercadorias, por um consumo ampliado não mais apenas de bens,
mas também de serviços e por uma aceleração da acumulação de capital, gerando
mudanças na relação capital-trabalho e uma adesão desenfreada a
comportamentos competitivos (HARVEY, 1994; SÁNCHEZ, 2010).
Tais mudanças estavam ainda ligadas a um reposicionamento do papel do
Estado – que parecia se afastar das políticas de matriz keynesiana que marcaram
sobretudo a recuperação das economias no pós-guerra – que passa a agir não mais
como um “obstáculo” ao processo de acumulação, mas sim como um facilitador e
coordenador de tal processo7 (HARVEY, 2006), intervindo de forma ativa a partir

6 Pesquisa financiada pela FAPESP.


7No Reino Unido, isso se manifesta a partir do governo da Primeira Ministra Margaret Thatcher, que
assume o governo pelo Partido Conservador em 1979 tendo de lidar com o avassalador processo de
desindustrialização que assolava o país em detrimento da migração das indústrias para localidades
com menores custos de produção e reprodução. Neste sentido, Thatcher atuou a partir de uma
estratégia que não pretendia resgatar a indústria em declínio e na qual não bastava frear o
crescimento dos gastos públicos, mas sim alterar profundamente o modo de gestão e da ação
pública (DARDOT, LAVAL, 2016), impulsionando uma economia mais livre, aberta e competitiva
com o objetivo de atingir alcance global, através de políticas que se distanciavam do welfare state,
pautando-se na internacionalização do capital, na mudança do foco econômico para o setor
47

de um sistema normativo construído que busca estender a lógica concorrencial


capitalista para além da esfera econômica de modo a produzir novos tipos de
relações sociais e novas subjetividades, configurando, dessa forma, uma nova razão
neoliberal na década de 80 (DARDOT, LAVAL, 2016). Neste sentido, cabe ao Estado
assumir um papel “empreendedor”, constitucionalizando a concorrência e
conduzindo os indivíduos a atuarem também como “empreendedores”, através de
ideais de flexibilidade, adaptabilidade, competitividade e inovação.
A lógica concorrencial ganhou força também com o fenômeno da
globalização que, impulsionado pela busca de redução de custos de produção e
pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, promoveu
um grau de integração econômica, política e cultural entre as nações sem
precedentes que transcendeu as transformações estritamente econômicas,
provocando mudanças também no tecido social, cultural, político e ideológico,
influenciando, dessa forma, os processos de urbanização (SÁNCHEZ, 2010). Desse
modo, as cidades passaram em investir em ações de planejamento estratégico –
inspiradas no modo de gestão empresarial – no sentido de se mostrarem
individualmente atrativas ao capital, com o objetivo de gerar respostas
competitivas aos novos desafios econômicos, de modo a atrair novos investimentos
e uma força de trabalho altamente qualificada.
Desse modo, busca-se, então, compreender como a “criatividade” assumiu o
protagonismo em um circuito de valorização do capital que, desde a segunda
metade do século XX, veio justapondo às suas bases tradicionais novos elementos,
observando a cultura como um novo campo a ser “colonizado”. Dessa forma, o
“simbólico” se tornou “pró-ativo” (ARANTES, 2000): mais determinante de valor
do que elementos derivados do processo de produção, o que contribuiu para a
configuração de uma economia cada vez mais fortemente especulativa, que
acarretou novas especificidades como a questão da “identidade”, que passou a ser
um elemento produzido e ofertado pelo capital.
Com isso, a cultura passa a ser uma poderosa ferramenta para tornar uma
cidade mais atrativa, tendo sido usada como força motriz de uma série de projetos
de renovação urbana, que, em geral, buscavam reutilizar antigas áreas industriais
em processo de degradação, mas com baixos custos de aquisição, qualidade
arquitetônica e valor histórico, dando a elas novas funções “estratégicas” e, dessa
forma, aumentando o valor de uso de determinada cidade ou região8.
Entretanto, ao ser encarada como chave para o desenvolvimento
econômico, a cultura foi rapidamente incorporada a outras matrizes, como a
“inovação”, o que deu origem às discussões acerca da “criatividade” como resposta
ao fenômeno da globalização e o processo de desindustrialização dos países
desenvolvidos. Apesar de ser um termo utilizado primeiramente na Austrália9, foi
no Reino Unido, com a eleição do Primeiro Ministro trabalhista Tony Blair e a sua

terciário, e sobretudo de serviços altamente qualificados, nas privatizações e em cortes de gastos


com programas e benefícios sociais, e, ao mesmo tempo, na promoção da imagem do país enquanto
competitivo e em ações de reforço da identidade britânica.
8 Tal estratégia teve origem sobretudo nas experiências americanas realizadas nas cidades de
Baltimore e Boston na segunda metade do século XX, nas quais as suas regiões portuárias foram
remodeladas – acompanhadas de processos estratégicos de planejamento, marketing, gestão e
monitoramento – com a intenção de construir uma nova imagem urbana, voltada para a atração de
novos investimentos para essas áreas (DEL RIO, 2001). Além disso, muito contribuíram as ações
realizadas na França durante o governo do Presidente Mitterand e o Ministro da Cultura Jack Lang,
que, em resposta às forças da globalização, procuraram criar uma série de marcos culturais e
arquitetônicos na cidade de Paris com o intuito de identificar a cidade, o que a tornaria também
competitiva para atrair novos investimentos.

9
Em 1994, o então Primeiro Ministro Australiano Paul Keating, utilizou o termo em uma política
cultural que pretendia enfatizar a abertura do país para o mundo, intitulada “Nação Criativa”.
48

política que ficou conhecida como New Labour10, que a “criatividade” foi de fato
acionada como estratégia discursiva alternativa às práticas neoliberais tradicionais
e utilizada como mecanismo para aumentar a competitividade econômica mundial
do Reino Unido11. Por intermédio de profissionais do eixo Austrália – Reino Unido –
Estados Unidos – Canadá, advindos de áreas como urbanismo, economia e
sociologia (sobretudo no campo cultural), não tardou até que essa discussão se
voltasse para o planejamento e a gestão de cidades, dando origem ao termo cidade
criativa, segundo o qual a “criatividade” seria condicionante da forma como o
planejamento urbano e o desenvolvimento econômico deveriam ser abordados
(LANDRY, 2008).
A partir disso, observa-se então, como tais processos se materializaram na
cidade de Londres – onde tais “indústrias” já conformavam o terceiro maior setor
econômico da cidade, principalmente devido ao seu status de “cidade global”, que
a ligava aos setores financeiros e de serviços, além de sua história, seu prestígio
cultural e sua infraestrutura – através de deslocamentos de políticas públicas em
direção aos setores “criativos”. Neste sentido, uma importante manobra realizada
pelo governo Blair foi a instauração, em 2000, da Greater London Authority (GLA):
o novo poder executivo da cidade, que passou a centralizar novamente as
atividades até então realizadas no âmbito dos distritos londrinos12, sob o comando
do também trabalhista Ken Livingstone. Dessa forma, com a reconfiguração política
e econômica do país, aliada aos atributos culturais já existentes na cidade, Londres
se privilegiou, na virada do século XXI, com o auge do movimento Cool Britannia13,
de um forte interesse público e privado em investir em um processo de
reconstrução da sua imagem, identificando-a como mais próxima dos novos valores
contemporâneos – que priorizavam a diversidade, a inovação, a globalização – com

10Mais ligada a uma posição política de centro, tal proposta apresentava o compromisso de
melhorar o dinamismo do mercado, fazendo uma crítica às práticas conservadoras dos governos
anteriores que, segundo o New Labour, eram “liberais” ao implementarem políticas que ainda
apresentavam uma importante dimensão de autorregulação do mercado (PHILPOT, 2013). Neste
sentido, Blair propunha um papel mais forte para os governos locais, o fim da licitação competitiva,
uma maior participação da comunidade e uma maior integração entre os fundos de regeneração
urbana (COLOMB, 2007), implementando políticas não tão ligadas ao welfare state, mas sim a uma
maior abertura econômica que promovesse e integrasse o país em um contexto global, explorando
questões como a diversidade cultural e a inovação tecnológica. Contudo, é possível enxergar nas
práticas políticas de Blair uma certa continuidade das ações iniciadas pelos governos anteriores,
uma vez que o New Labour só se configurou em decorrência da virada neoliberal iniciada por
Thatcher na década de 80 e as suas principais reformas foram mantidas.

11
O recém criado Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do governo Blair realizou uma análise
para identificar as tendências econômicas globais e compará-las às contas do Reino Unido,
verificando assim quais seriam as vantagens competitivas nacionais. A partir dessa análise, foram
identificados treze setores de grande potencial para a economia britânica, chamados indústrias
criativas, os quais possuíam um potencial para riqueza e criação de empregos através da geração e
exploração da propriedade intelectual.
12
Em 1979, com a vitória de Thatcher como Primeira Ministra, promoveu-se uma mudança na
legislação que aboliu, em nome da racionalidade operativa e da concentração de custos (LEVY,
1997), o Greater London Council (Conselho da Grande Londres): organização que coordenava o
poder local em toda a área londrina, descentralizando o poder municipal, que foi redistribuído aos
33 distritos (ou boroughs) de Londres. Tal mudança, ao mesmo tempo, fortaleceu o poder estatal
sobre a cidade, com uma grande parte das atribuições dos órgãos extintos transferidas a entidades
que escapavam do controle publico, principalmente por serem lideradas por pessoas não-eleitas
(LEVY, 1997). Com isso, as políticas-chave de atuação em Londres passaram a ficar a cargo do
governo central.

13
O termo Cool Britannia é uma alusão à canção patriótica Rule, Britannia!, do século XVI, associada
às forças armadas do país e aos valores tradicionais, e refere-se ao movimento de renascimento
cultural do Reino Unido na década de 90, inspirado diretamente na cultura pop dos anos 60, com o
surgimento de novas importantes figuras na cena musical, nas artes visuais e na moda, elevando
novamente o status do país enquanto importante polo produtor e exportador de “cultura jovem”.
49

o objetivo de atrair novos investidores.


Neste sentido, busca-se compreender melhor a importância do conceito de
marketing14, que, tendo se tornado indispensável às atividades empresariais nas
últimas décadas do século XX, foi também transportado à gestão das cidades a
partir da década de 80, como elemento central no planejamento urbano
(KAVARATZIS, 2004) através do conceito de city marketing, que tinha como
objetivo atrair investimentos através da gestão de uma imagem forte da cidade, no
intuito de impulsionar exportações e atrair ou reter investidores, turistas, residentes
e eventos, tomando como ponto de partida a compreensão das necessidades e
demandas dos “clientes em potencial”.
Tal processo levou, na década de 90, ao desenvolvimento do conceito de
city branding, uma perspectiva mais atual em relação às ações de marketing no
território urbano, que constitui o processo de elaboração e gestão de uma “marca”
de cidade, que tem como objetivo diferenciar a cidade da concorrência, elaborando
suas ações a partir do nível da identidade e valores da cidade e representando,
portanto, não apenas os seus atributos funcionais, mas, sobretudo, os significados
simbólicos associados principalmente à “qualidade de vida” em um momento no
qual valorizava-se cada vez mais o acesso às atividades de lazer, indo muito além
de um “tempo livre” e se tornando determinadoras de identidades sociais (METZ,
2002 apud JENSEN, 2005, p.6).
Riza (2015) destaca o papel da cultura nesse processo, funcionando como
um eixo estratégico do processo de criação e gestão de uma marca competitiva de
cidade, sendo valorizada como o campo onde deve ser construído o consenso
social, afirmando visões de mundo, noções e imagens e produzindo um espaço que
é “moldado às necessidades da acumulação” (SÁNCHEZ, 2010, p. 45), no qual o
“valor de troca” impera sobre o “valor de uso” a partir de um movimento do “espaço
de consumo” para o “consumo do espaço” (LEFEBVRE apud SÁNCHEZ, 2010).
Neste sentido, a pesquisa busca analisar o processo de construção,
consolidação e exportação da “marca Londres”, culminando na recepção dos Jogos
Olímpicos de 2012, quando, mais do que o aumento do turismo, as aspirações da
prefeitura estavam focadas na expansão do setor de negócios, de forma a atrair
grandes eventos de cunho empresarial (JONES, 2012). Dessa forma, a cidade
investiu na promoção da sua imagem através da London Development Agency
(LDA), agência criada em 2000 que tinha por objetivo conceber e implementar
estratégias de longo prazo voltadas à erradicação de carências estruturais da
economia da cidade, implementando, dentre outras ações, políticas pautadas na
“criatividade” do espaço urbano (REIS, 2012).
Contudo, com a crise econômica de 2008 e as mudanças políticas ocorridas
na cidade e no país, com a ascensão do partido conservador ao poder nacional,
com David Cameron, e local com Boris Johnson, importantes modificações
administrativas foram realizadas, dentre elas o encerramento das atividades da
LDA e a criação da agência London & Partners, parceria público-privada sem fins
lucrativos que tem como principal objetivo ser a “agência promocional oficial da
Prefeitura de Londres”, divulgando-a como o melhor lugar do mundo para se
investir, trabalhar, estudar e visitar, tendo até o momento acrescentado 1.2 bilhões

14O conceito de marketing tem sua origem ainda na primeira metade do século XX, apresentando
como mote a inversão da lógica tradicional de venda de produtos que consiste em produzir primeiro
e depois convencer o consumidor a realizar a compra. O objetivo do marketing, desenvolvido ao
longo do século, centrou-se em tornar a venda supérflua (DRUCKER 1954, apud KOTLER,
ARMSTRONG, 2008) ao se concentrar na compreensão e antecipação das necessidades e dos
desejos dos clientes em potencial de modo a obter lucro não a partir das características físicas do
produto (valor de uso), mas a partir da satisfação dos consumidores (valor percebido).
50

de libras na economia da cidade (LONDON & PARTNERS, 2017).


Nesse sentido, a solução encontrada para promover Londres – em um
processo que se iniciou a partir das ações promovidas pelo New Labour – foi
montar uma estratégia que apresentasse ao mundo uma Londres multifacetada
(JONES, 2012), que concilia o seu passado cultural e o seu presente baseado na
diversidade e na inovação ao abrigar eventos e manifestações das categorias mais
variadas. Estas iniciativas, aliadas à vinda dos Jogos Olímpicos e a criação da
London & Partners, acabaram por regenerar a imagem da cidade transmitida
internacionalmente, resultando em um numero recorde de visitantes entre os anos
de 2012 e 2013 (McCLORY, 2015).
Contudo, ao se apresentar como uma cidade aberta à diversidade e ao
internacionalismo, observa-se que Londres aparenta excluir das suas estratégias de
branding uma parte significativa da população que não vivencia a Londres
divulgada internacionalmente e tampouco se identifica com ela, uma vez que os
maiores projetos realizados na cidade para a vinda das Olimpíadas apresentaram
pouca preocupação com as necessidades locais, deixando de lado os benefícios
que essa população poderia receber com as novas instalações, o que gera, a médio
e longo prazo, potenciais efeitos colaterais perversos, como a alta dos custos de
moradia, gentrificação, especulação imobiliária e a consequente substituição da
população residente na área.
Tais ações parecem tornar evidente o quanto a “criatividade”, alinhada às
práticas de branding da cidade, não foi capaz de solucionar, e talvez tenha até
mesmo evidenciado, os graves problemas de desigualdade social que persistem em
Londres, uma vez que os novos tipos de demanda dos consumidores-alvo misturam
e recombinam os domínios de experiência – tais como compras, lazer, educação ou
entretenimento – o que, por sua vez, requer novos tipos de espaços urbanos:
espaços de “multiconsumo”, que são alimentados pela crescente mobilidade de
pessoas que desejam viver múltiplas facetas da experiência urbana (SALO, 2012).
Essa estratégia de reconstrução da imagem das cidades, teria, portanto, o objetivo
de atrair uma “classe criativa”15 que, em um processo de retroalimentação, iria
reforçar a marca a ser divulgada.
Através desse estudo, busca-se, por fim, analisar os limites do modelo
“criativo” e o quanto a “marca” Londres ainda se mantem forte nacional e
internacionalmente em um novo cenário de instabilidade e incertezas, marcado
sobretudo pelo processo em curso de retirada do país da União Europeia, que
parece simbolizar de forma marcante o quanto os valores promovidos há vinte anos
atrás perderam força na atualidade, apesar dos esforços do novo prefeito
trabalhista Sadiq Khan em enfatizar que a cidade de Londres “continua aberta”16.

Palavras-chave: cidade criativa; cidade-marca; Londres.

Keywords: creative city; city branding; London.

15O consultor norte-americano Richard Florida cunhou o termo “classe criativa” para designar os
profissionais totalmente engajados nas atividades criativas (artistas, designers, arquitetos) e as
pessoas que trabalham em uma ampla gama de indústrias intensivas em conhecimento (como
serviços financeiros, setores de alta tecnologia, profissionais legais e de saúde, bem como gerentes
de negócios). Florida (2011) aponta a necessidade de se proporcionar as condições necessárias para
se atrair essa população de “talento móvel” considerada por ele como motor de transformação
urbana, através de investimentos para a criação de um ambiente urbano propício ao estilo de vida
dessas pessoas, com uma ampla oferta cultural e ênfase na diversidade.
16Logo após a realização do referendo popular em junho de 2016, a Prefeitura de Londres lançou a
campanha #LondonIsOpen, no intuito de comunicar ao mundo – e sobretudo aos investidores
internacionais – que a cidade continua aberta a novos negócios, valorizando a “criatividade” e a
“diversidade” (https://www.london.gov.uk/about-us/mayor-london/londonisopen)
51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Otília B. F. “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”. In:

ARANTES, O. B. F.; MARICATO, E.; VAINER, C. A cidade do pensamento único:


desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

COLOMB, C. Unpacking New Labour’s “Urban Renaissance” Agenda: Towards a Socially


Sustainable Reurbanization of British cities? Planning Practice & Research. Nº 22, p.1–24,
2007.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEL RIO, V. Voltando às origens – a revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos.
Arquitextos [online], ano 02, 2001. Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.015/859 Acesso em: 15 jun
2017.

FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Porto Alegre: L&PM, 2011.

HARVEY, David. The condition of post-modernity. Oxford: Blackwell, 1989.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.

KAVARATZIS, Michalis. From city marketing to city branding: towards a theoretical


framework for developing city brands. Place Branding. Vol. 1, nº1:58-73, 2004.

KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Princípios de Marketing. São Paulo: Prentice Hall,
2008.

JENSEN, O. B. Branding the Contemporary City - Urban branding as Regional Growth


Agenda? Regional Studies Association Conference 'Regional Growth Agenda. Aalborg:
Maio de 2005. Disponível
em:https://www.academia.edu/984594/Branding_the_contemporary_city-
urban_branding_as_regional_growth_agenda Acesso em: 12/12/2016.

JONES, Sam. Branding London: selling an Olympic city of contradictions. The Guardian
[online]. 16 de Julho de 2012. Disponível em:
http://www.theguardian.com/uk/2012/jul/16/london-2012-olympics-marketing-capital
Acesso em: 01/07/2015.

LANDRY, Charles. The Creative City: a toolkit for urban innovators. Londres: Earthscan,
2008.

LEVY, Evelyn. Democracia nas cidades globais: um estudo sobre Londres e São Paulo. São
Paulo: Studio Nobel, 1997.

LONDON & PARTNERS. Site oficial. Disponível em: http://londonandpartners.com/ Acesso


em: 10/04/2017.

McCLORY, Jonathan. What can place branding do for London? CityMetric [online]. 29 de
Abril de 2015. Disponível em: http://www.citymetric.com/horizons/what-can-place-
branding-do-london-986 Acesso em: 01/07/2015.

PHILPOT, Robert. Blair and Thatcher: what’s the difference? The Huffington Post [online].
15 de Abril de 2013. Disponível em: http://www.huffingtonpost.co.uk/robert-philpot/blair-
thatcher-whats-the-difference_b_3083654.html Acesso em: 27/06/2016.
52

REIS, Ana Carla F. Cidades Criativas: da teoria à prática. São Paulo: SESI- SP Editora, 2012.

SALO, L. Building a Creative City Brand through an International Mega-Event. Case: World
Design Capital Helsinki 2012. Dissertação de Mestrado. Turku School of Economics, Turku:
2012.

SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. 2.ed. Chapecó:
Argos, 2010.
53

O Programa Minha Casa Minha Vida em Sertãozinho –


SP: habitação e planejamento urbano
The Program Minha Casa Minha Vida in Sertãozinho – SP:
housing and urban planning

Ana Maria Beraldo


ana.beraldo@usp.br
lattes.cnpq.br/9343075058974745

Orientação
Miguel Antônio Buzzar
mbuzzar@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/2534049526509532

RESUMO

O desenvolvimentismo do capitalismo brasileiro, baseado na industrialização


com baixos salários, em uma das sociedades mais desiguais do mundo, consolidou
um modelo de desenvolvimento urbano nas regiões metropolitanas, baseado na
segregação socioespacial e incentivou a ocupação de áreas periféricas, seja através
da autoconstrução ou através da promoção de conjuntos habitacionais realizados
pelo poder público. Com a justificativa de que a terra é mais barata em regiões
periféricas, essa forma de provisão habitacional predominou no cenário brasileiro e
continua a se manifestar no programa habitacional Minha Casa Minha Vida. Assim,
o programa reforçou o modelo socioespacial vigente, produzindo novas manchas
urbanas monofuncionais ou aumentando a densidade populacional de zonas
“guetificadas” já existentes.

Se a intensa produção de moradia em territórios afastados dos centros


urbanos ou mesmo fora da mancha urbana da cidade, incentivada ao longo de
décadas, gerou uma ampla segregação espacial e uma série de problemas sociais
que trouxeram ônus significativos para o poder público, também não é segredo que
a acumulação de capital na periferia do sistema sempre teve o Estado como
alavanca. A modernização conservadora, profundada com o golpe militar de 1964,
escancarou a intervenção do Estado em prol da acumulação de capital e da
apropriação do excedente no sistema de financiamento da habitação no Brasil.

Nos anos 1980, desenvolveu-se uma base jurídica, através da Constituição


de 1988 e do Estatuto da Cidade, que pretendia trazer melhorias e mudanças
prioritariamente à cidade informal. No entanto, ao longo dos anos 1990, nos
primeiros anos do governo FHC, houve a implementação do projeto neoliberal, a
estratégia governamental consistia na retração da intervenção estatal em diversos
setores, dessa forma a promoção de direitos sociais reconhecidos pela Constituição
e a implementação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade não tiveram
grande expressão. Houve a consolidação de instituições de mercado, associado a
uma ampla flexibilização na economia, a fim de ceder lugar a base financeiro-
especulativa.

No que tange as políticas habitacionais e urbanas, o projeto neoliberal


operou ativamente no sentido de criar as condições para transformar territórios em
ativos abstratos, ou seja, potencializou a expansão do complexo imobiliário-
financeiro no Brasil e agudizou a valorização da terra urbana e da moradia.

Se havia esperanças de que reformas significativas aconteceriam com a


vitória do Partido dos Trabalhadores e de seu candidato Luís Inácio Lula da Silva
54

nas eleições presidenciais de 2002, tais mudanças não ocorreram da forma como
era esperado, a vitória de Lula representou uma acomodação de interesses através
do que foi denominado por André Singer (2012) como "reformismo fraco", por meio
de um programa de reformas gradual e cauteloso, comprometido com o respeito
às instituições de mercado e a manutenção da estabilidade macroeconômica.

As medidas macroeconômicas vieram acompanhadas por políticas de


transferência de renda, através de programas como o Bolsa Família, Minha Casa
Minha Vida, este integrando o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com
o objetivo de expandir o mercado interno de consumo, através do desenvolvimento
econômico da classe pobre.

Excetuando-se o período de atuação do BNH, jamais, na história do país, um


único programa de provisão de habitação social construiu tanto como PMCMV,
nesse sentido seu sucesso é inquestionável, no entanto, o programa não aponta
mudanças para o modelo brasileiro de ocupação das cidades, baseado nas
desigualdades socioespaciais e no espraiamento urbano, como também, ratifica os
interesses de mercado e o imperativo econômico de produção imobiliária, tornando
a iniciativa privada, definitivamente, protagonista do processo, trazendo
consequências nefastas à produção do espaço urbano.

A expansão e a maior disponibilidade de subsídios públicos ao crédito para


a produção habitacional, associadas ao crescimento da economia, provocou um
dos maiores ciclos de crescimento do setor imobiliário nas cidades. (ROLNIK, 2015,
PG 265)

O fenômeno de crescimento do setor imobiliário nas cidades e a segregação


socioespacial encontrada na construção do espaço urbano vem se demonstrando
presente não só nos grandes e médios centros urbanos, como também, nas cidades
que se encontram fora dos contextos metropolitanos.

Dessa forma, após analisar alguns processos que impactam a conformação


atual dos espaços urbanos das metrópoles brasileiras, suas continuidades,
transformações e dimensões socioculturais, este trabalho pretende investigar
dimensões da política habitacional que impactam a produção e reprodução do
espaço urbano na cidade de Sertãozinho – SP.

Assim, cabe discutir e a analisar a produção de habitações de interesse social


pelo PMCMV no município de Sertãozinho, identificando como tal produção
interfere nos processos de planejamento e conformação urbanos e a forma como
ratifica e intensifica a segregação sócio-espacial.

A investigação e análise da produção habitacional será associada à análise


do Plano Diretor de Sertãozinho, do PLHIS, juntamente com as Legislações urbanas
e sociais do Município, visando compreender a efetividade de tais instrumentos
quanto à democratização da produção do espaço urbano e do acesso à moradia.
Assim como, pretende-se analisar de que forma as políticas públicas incentivam ou
não a segregação sócio-espacial, levando-se em consideração o valor da terra e os
arranjos institucionais traçados no município, e a comparação de onde moram as
pessoas no município, baseado em sua faixa de renda, como também, a valorização
imobiliária na cidade.
55

Figura 1 Mapa de Expansão dos Conjuntos Habitacionais e Lotes (1976 a 2009)


Fonte Plano Local de Habitação de Interesse Social de Sertãozinho

Ainda que se possa reconhecer o PLHIS como uma possiblidade de avanço


institucional importante, cujo potencial seria o de contribuir para “modernizar” a
máquina pública e impactar positivamente o atendimento habitacional, percebe-se,
ao analisar seu resultado final, como também após analisar o Plano Diretor e as Leis
Municipais, que a política habitacional parece não ser pensada para além da
produção de unidades habitacionais, ou seja, faltam instâncias de planejamento
urbano, que dentre outras questões desestimulem a criação de bolsões de pobreza,
segregação espacial e especulação tão presentes no município.

O gráfico 1 expõe uma análise comparativa entre a atual oferta Privada, da


CDHU e PMCMV, demonstrando a perspectiva de crescimento ainda maior de
empreendimentos deste último tipo, assim como a oferta de lotes para a classe
média.
56

Gráfico 1 Comparação entre Oferta Privada, PMCMV e CDHU


Fonte Secretaria Municipal de Obras e Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de
Sertãozinho (2016).

Os dados apresentados no Gráfico 1 revelam o impacto que o PMCMV tem


causado no município de Sertãozinho. A expansão imobiliária verificada a partir do
lançamento do PMCMV é bastante significativa, movimentando um enorme
montante de capital. Levando em conta que durante 10 anos (2000 à 2010) a
construção de habitações de interesse social foi quase inexistente na cidade, a
produção alavancada de PMCMV tem aquecido o setor da construção civil e
imobiliário. A definição dos empreendimentos e a construção dessas unidades
habitacionais está a cargo das construtoras, desta forma, a expansão urbana, tanto
do município como de muitas cidades brasileiras, está fortemente atrelada às
decisões tomadas pelas empresas, impactando as decisões do poder público
municipal e, em muitos casos, gerando situações contraditórias frente as diretrizes
urbanas estabelecidas pelo poder público.

Palavras-chave: desigualdade socioespacial; Programa Minha Casa Minha Vida;


planejamento urbano; Sertãozinho-SP

Keywords: socio-spatial inequality; Program Minha Casa Minha Vida; urban planning;
Sertãozinho-SP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
IANNI, Octávio. Origens Agrárias do Estado Brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo,
Companhia das Letras, 2012.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Stúdio Nobel: FAPESP, 1998.
Documentos:
Plano Local de Habitação de Interesse Social de Sertãozinho-SP, 2011.
57

A utilização da Tecnologia BIM para a análise do


desempenho térmico de edificações habitacionais
Use of BIM technology for termal performance analysis
of housing buildings

Vinícius Gomes de Almeida


vgalmeida@usp.br
lattes.cnpq.br/3437798073768170

Orientação
Kelen Almeida Dornelles
kelend@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/4576117054220288

RESUMO

O surgimento da NBR 15575:2013 reforçou as discussões acerca do


Desempenho Térmico das edificações habitacionais, entendido como um dos
requisitos indispensáveis para o conforto e bem-estar dos usuários. A análise do
desempenho térmico das edificações passa a ser subsidiado por procedimentos de
avaliação descritos na NBR 15575, que passarão a integrar o desenvolvimento dos
projetos em busca do atendimento aos critérios de desempenho.

A simulação computacional, um dos métodos propostos para a análise


térmica, não está totalmente incorporado às rotinas dos projetistas por conta da
complexidade dos softwares específicos e da distância que o processo de
simulação possui das fases iniciais do projeto. Neste sentido, a Tecnologia BIM, que
possui como principal função a redistribuição dos esforços da atividade projetual,
dando maior ênfase à etapa de concepção do produto, surge como um facilitador
para as análises de desempenho. Assim, este projeto de pesquisa tem por objetivo
investigar o uso da Tecnologia BIM para a simulação do Desempenho Térmico de
Edificações Habitacionais ainda na fase de concepção do projeto. Para isso, é
proposta uma pesquisa experimental para comparar resultados de medições em
campo das condições térmicas de uma habitação existente na cidade de São Luís-
MA, em relação à simulação computacional de desempenho térmico a partir da
Tecnologia BIM.

Os resultados da pesquisa permitirão verificar a usabilidade e confiabilidade


da Tecnologia BIM neste tipo de avaliação. Pretende-se, ao final desta pesquisa,
avaliar o uso da Tecnologia BIM para a análise do desempenho térmico de
edificações nas fases iniciais do projeto, de tal forma a incentivar o uso desta
tecnologia por projetistas e proporcionar o desenvolvimento de edificações
confortáveis e energeticamente eficientes.

O exercício profissional da Arquitetura se viu intensamente transformado


durante as últimas décadas, em virtude das novas tecnologias que foram
incorporadas ao ofício e dos novos conceitos e demandas solicitados pelo mercado,
que influenciam diretamente nos projetos, planejamento e execução das
edificações habitacionais.

A Tecnologia BIM, termo em inglês para Building Information Modeling, ou


Modelagem da Informação da Construção, pode ser considerada como uma grande
responsável pela transformação que vem ocorrendo nos processos produtivos da
indústria da construção civil, sendo definida como um conjunto inter-relacionado
de políticas, processos e tecnologias que geram uma metodologia para gerenciar a
58

essência de projeto da edificação e seus dados associados, através de um modelo


digital e durante todo ciclo de vida da edificação (SUCCAR, 2009).

O BIM vem à tona como um processo interativo de construção digital,


promovendo o envolvimento das diversas disciplinas da construção civil, através
da criação de um modelo digital que é abastecido com todas as informações
necessárias das diversas especialidades da construção, para subsidiar as etapas de
planejamento, execução e manutenção da obra. Através deste processo, estas
etapas ocorrem de forma mais integrada, pois informações de normas técnicas,
projetos complementares, cronogramas, orçamentos, podem ser atribuídos ao
modelo digital, o que facilita a visualização do que será executado, além de permitir
simulações de desempenho, que concedem uma análise preliminar do
comportamento em uso da edificação, criando a possibilidade de avaliar os
sistemas construtivos, minimizando erros e custos.

A norma ABNT NBR 15575 – Desempenho de Edificações Habitacionais, que


foi revisada e entrou em vigor em Julho de 2013, ainda é vista como um desafio
para os principais agentes envolvidos no processo da produção habitacional,
mesmo trazendo benefícios tanto para o setor produtivo como para os clientes
finais.

A Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (CBIC)17 comenta que a


norma é um indutor para desenvolver novos produtos e melhorar a construção em
geral, de forma que quem produz vai poder atestar a qualidade de seu produto
demonstrando o atendimento aos critérios de desempenho. “Além disso, quando
falamos em durabilidade dos sistemas, estamos falando em sustentabilidade. A
ideia é prevenir a reposição de materiais e proteger os recursos do meio ambiente”
(CBIC, 2014, p. 03).

O desempenho térmico, citado nas partes 1, 4 e 5 da NBR 15575, é um


requisito de extrema importância para a usabilidade da habitação, pois está
diretamente associado ao conforto e bem-estar do usuário, além de contribuir para
o consumo energético da edificação, tendo em vista que as edificações residenciais
são responsáveis pelo consumo de mais de 25% (vinte e cinco por cento) de toda
a energia elétrica produzida no país (EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA, 2017).

Um dos métodos de se avaliar o desempenho térmico é através da simulação


computacional, onde podem ser definidas estratégias e soluções projetuais que
minimizem o impacto da radiação solar na edificação e melhorem as condições de
conforto térmico dos usuários. “Esse processo de análise-síntese deve prosseguir
até que um desempenho razoável seja atingido. Quanto antes o arquiteto iniciar
este processo, melhor e mais facilmente encontrará bons resultados” (LAMBERTS
et al., 2014). Estas avaliações podem ser realizadas em softwares BIM, permitindo
a análise térmica dos elementos construtivos da edificação ainda nas etapas
preliminares de projeto. A capacidade de utilizar ferramentas de análise de
desempenho térmico no modelo digital cria oportunidades de melhorar a qualidade
final da edificação (EASTMAN et al., 2011).

Em um momento em que o desempenho das edificações habitacionais passa


a ser questionado e subsidiado pela NBR 15575, o desenvolvimento de novas
metodologias projetuais auxilia o agente produtor, neste caso o projetista, a
atender a esta demanda. A Tecnologia BIM é uma ferramenta eficiente que os

17CBIC. O Brasil adota novos Padrões de Qualidade para Construção de Casa e Apartamentos. 2014.
Disponível em:
<http://www.cbic.org.br/sites/default/files/Lan%C3%A7amento%20do%20Guia%20Orientativo%20
da%20Norma%20de%20Desempenho.pdf > Acesso em 01 jun. 2015
59

projetistas dispõem, e que permite que usuários com pouca experiência em


programação e Tecnologia da Informação possam realizar ajustes no modelo digital
e definir regras e simulações que possam auxiliar no desenvolvimento dos projetos,
neste caso o atendimento às especificações de Desempenho Térmico da ABNT
NBR 15575.

Dispondo-se dos conceitos de Tecnologia BIM, desempenho das edificações


habitacionais e simulação térmica, este trabalho tem a finalidade de avaliar o uso
da tecnologia BIM para a análise térmica de edificações habitacionais, ainda durante
a etapa projetual, e evidenciar uma nova metodologia para os profissionais de
Arquitetura, Engenharia e Construção (AEC) realizarem simulações térmicas
durante as etapas iniciais de concepção do projeto, permitindo uma melhoria na
avaliação do desempenho térmico e na qualidade do objeto a ser construído.

Palavras-chave: Tecnologia BIM; Desempenho Térmico; Conforto Térmico; Simulação


Computacional.

Keywords: BIM Technology; Thermal Performance; Thermal Confort; Computational


Simulation.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 15575: Partes 1 a 6:


Desempenho das Edificações Habitacionais. Rio de Janeiro, 2013.

CBIC. O Brasil adota novos Padrões de Qualidade para Construção de Casa e


Apartamentos.2014. Disponível em:
<http://www.cbic.org.br/sites/default/files/Lan%C3%A7amento%20do%20Guia%20Orient
ativo%20da%20Norma%20de%20Desempenho.pdf > Acesso em 01 Jun. 2015

EASTMAN, C. et al. Manual de BIM: um guia de modelagem da informação da construção


para arquitetos, engenheiros, gerentes, construtores e incorporadores. Porto Alegre:
Bookman, 2013. 500p.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Balanço Energético Nacional 2017: Ano base 2016.
Rio de Janeiro: EPE, 2017.

LAMBERTS, R.; et al. Eficiência energética na arquitetura. 3. ed. Rio de Janeiro:


ELETROBRAS/PROCEL, 2014. Disponível em:
<http://www.labeee.ufsc.br/sites/default/files/apostilas/eficiencia_energetica_na_arquite
tura.pdf>, Acesso em 05 Out. 2016

SUCCAR,B. Building Information Modelling Framework: A research and delivery


foundation for industry stakeholders. Automation in Construction, n.18,p.357‐ 375,2009.
60

Transformações urbanas e processos socioespaciais:


práticas e apropriações do/no espaço urbano
Urban transformaticon and sociospatial processes:
practices and appropriation from/in the urban space

Marília Reis Sé
marilia.se@usp.br
lattes.cnpq.br/5549917592207160

Orientação
Manoel Rodrigues Alves
mra@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7815309672113678

RESUMO

I O habitar contemporâneo

Frente a uma mudança de paradigma sem precedentes, iniciada nas últimas


décadas do século XX e recentemente ampliada a uma escala irrestrita, o
paradigma em virtude do qual se construiu a cidade em sua configuração anterior
– moderna e industrial – é hoje antiquado e inútil para que a cidade atual possa
enfrentar os desafios do futuro (Pardo, 2011). No entanto, a instalação – ainda não
terminada – desse paradigma gera uma sensação “incómoda pero por otra parte
familiar” de que a cidade está permanentemente em construção e, por outro lado
também, em destruição. Nesse duplo aspecto de construção-destruição,
considera-se não apenas o tecido urbano, mas também “outros tecidos”, como o
civil e o político (Pardo, 2011).

Além disso, o espaço urbano encontra-se cada vez mais mediado por lógicas
privadas de produção, conformação e de uso, as quais implicam necessariamente
na (re)significação da noção de espaço público assim como do privado. A condição
contemporânea do habitar, portanto, encontra-se mediada por tendências de
“dissolução” ou “sufocamento” dos lugares em detrimento a espaços urbanos cada
vez mais indefinidos e homogêneos, caracterizados muito mais pelo intercâmbio
de mercadorias e expressões de mobilidade do que por expressões culturais
apoiadas na identidade e na memória, por exemplo. Para Cacciari (2011), “no cabe
duda alguna de que el territorio donde vivimos constituye un desafío radical a todas
las formas tradicionales de la vida comunitaria. El es real.” (p. 35).

Neste sentido, indaga-se sobre as formas como se dá o habitar a cidade


frente às tendências comentadas: permanece a necessidade básica de construção
de identidade nos lugares, que deve então construir-se sobre outras bases
simbólicas, assim como o caráter de coletividade inerente ao espaço urbano
público? Ou concretiza-se a “perda de identidade” numa condição permanente de
“estar-se em trânsito” (em movimento) entre espaços indefinidos e homogêneos, e
cada vez mais mediados pelo consumo nos quais a individualização se manifestaria
de modo unívoco?

Considerando o questionamento apresentado, porém sem o intuito de


solucioná-lo por meio de resposta única, pode-se afirmar que o habitar
contemporâneo, portanto, constitui-se em função de transformações nos ritmos e
modos de vida, assim como na maneira em que seus habitantes se relacionam entre
si e com o espaço urbano.
61

II Apropriação, consumo e conflito no espaço urbano

Nessa perspectiva, para Cacciari (2011), a cidade está “submetida a


perguntas contraditórias” por parte de seus habitantes, de modo que tentativas de
superar tais contradições seriam um equívoco, uma vez que a cidade,
historicamente, é “el experimento perenne para dar forma a la contradicción, al
conflicto" (p. 7). Nesse sentido, as formas urbanas ocidentais contemporâneas,
ainda que diversas e diferenciadas, assim como suas respectivas formas de vida
urbana, apresentam como caráter comum o dinamismo extremo (Cacciari, 2010), o
qual potencializa a natureza contraditória e conflituosa da cidade. Ou seja, a
agregação de conteúdos espaciais e temporais heterogêneos, combinada à
mobilidade extrema – material (de produtos e pessoas) e imaterial (de
informações) – compõe o dinamismo extremo notável nos espaços urbanos
contemporâneos. Considerando-se o caráter dinâmico da cidade no contexto do
atual paradigma, portanto, afirma-se que as dimensões da contradição e do conflito
são inerentes aos espaços urbanos contemporâneos e, por extensão, são condições
do próprio habitar contemporâneo.

Para Lefebvre (1978), a apropriação dos espaços urbanos coincide com a


noção do habitar, uma vez que habitar é “apropriar-se de um espaço”, incluindo a
dimensão do conflito. A noção de apropriação, portanto, coloca-se como
fundamental nessa discussão, pois se caracteriza como o sentido e a finalidade da
vida social, na qual se dá a ação de grupos humanos sobre a natureza material
através de suas práticas e de suas relações. A apropriação pressupõe o conflito,
uma vez que, sem ela, restaria apenas a expressão do que “tende à
homogeneidade”, ou seja, à dominação. Assim, na vida social, o caráter conflituoso
compõe o habitar, tanto para “pequenos grupos” quanto para “grandes grupos
sociais” de uma cidade ou região.

Desse modo, então, se apresenta a potência do apropriar-se/habitar como


ação que introduz a dimensão do prático, do concreto, do vivido no plano do
cotidiano como campo ativo e dinâmico das práticas sociais e seus
desdobramentos (Lefebvre, 1991), ou seja, onde acontece a vida. Segundo Sobarzo
(2006), na obra de Lefebvre, as coações estão ligadas à dominação, enquanto que
as possibilidades de transformação da realidade e o potencial de subversão, que se
contrapõem às tendências de dominação, relacionam-se com a apropriação. Por
isso, a apropriação, manifestando-se no espaço urbano, configura-se como o
negativo da propriedade privada e também do que é programado.

Desse modo, na apropriação (do tempo, do espaço, do corpo, do desejo)


reside o sentido da cidade como obra. Assim temos que a dominação, expressa
pelas relações de propriedade, e na qual reside o sentido da cidade enquanto
produto, muitas vezes pode “sufocar ou inviabilizar” a apropriação do espaço,
sobretudo público.

A dominação, baseada nas relações de propriedade, cada vez mais se


incorpora às formas de existência humana, refletindo e reproduzindo valores de
uma nova razão de mundo (Laval & Dardot, 2013) ou novo paradigma (Pardo, 2011).
A dominação, portanto, pode expressar-se no plano da vida cotidiana, através das
práticas socioespaciais de consumo – do tempo e do espaço – alimentando a
tendência de homogeneização dos espaços urbanos. A apropriação do e no espaço
urbano, assim, abriga as ideias de: resistência e potencial de subversão, em
detrimento às tendências de homogeneização e abstração dos espaços urbanos;
potencialização das diferenças e a variedade de práticas socioespaciais dos
habitantes da cidade; e, por fim, manutenção das expressões do conflito em
diversas escalas e envolvendo atores e agentes diversos no espaço urbano (tais
como habitantes e grupos sociais, o Estado e instituições públicas, o poder privado
e instituições privadas, entre outros).
62

Como foco, no prosseguimento da reflexão, buscar-se-á observar os recortes


empíricos eleitos a partir das práticas socioespaciais de seus habitantes que
conformam espaços urbanos, tentando identificar expressões diversas: de
apropriação, que “desestabilizam” esses espaços; de consumo nesses e desses
espaços, que tendem a concentrar pessoas em pontos do espaço; além de
situações que expressem seu caráter conflituoso.

III Práticas socioespaciais e conformação de espaços urbanos

As práticas socioespaciais geram espacialidades e temporalidades,


exploradas como processos que ocorrem de modo indissociável, assim como
tempo é indissociável de espaço (Lefebvre, 1978). Portanto, espacialidades e
temporalidades distintas, impressas nos espaços urbanos a partir das práticas
socioespaciais e de suas expressões diversas (de modo simplificado: apropriação,
consumo e conflitos decorrentes), geram urbanidade (Netto, 2012). Tal palavra é
entendida aqui como um fenômeno produzido nas relações entre o social e o
espacial (Netto, 2012) e que, em última instância, tem a potência de demonstrar o
que “faz” desses espaços urbanos o que eles “são” (no momento de observação e
análise): em suas particularidades por um lado; e, por outro, o que neles pode dizer
respeito à problemática da cidade contemporânea de modo mais amplo.

Frente à problemática anteriormente apresentada, e ponderando-se sobre


os graus distintos de análise conferidos aos objetos empíricos eleitos (recorte
espacial e temporal), notam-se indícios que sinalizam transformações relevantes,
tanto no que diz respeito ao “tecido urbano” quanto aos outros “tecidos”, desde os
anos 2000 e especialmente no pós-crise de 2009. Em outras palavras, tanto no
Baixo Augusta - São Paulo (Brasil)18 quanto na Alameda de Hércules - Sevilha
(Espanha)19 , observam-se transformações morfológicas, entre outros fatores,
frutos de: novas legislações urbanísticas; atuação do mercado imobiliário; novos
estabelecimentos comerciais e de serviço destinados certos tipos de público;
reformas e “melhoramentos” promovidos tanto pelo poder público como por

18O Baixo Augusta é uma porção de território localizada na região central da cidade de São Paulo -
Brasil, entre duas centralidades, a partir da teoria de Centralidade Em São Paulo (Frúgoli Jr., 2000):
o próprio Centro Histórico (centralidade única até a década de 1960) e a Avenida Paulista (principal
centralidade econômica durante década de 1970). A denominação Baixo Augusta como é conhecida
hoje, no entanto, não tem reconhecimento político-administrativo, ainda que recentemente tenha
sido incluída no Google Maps®, em 2015. Baixo Augusta tem como principal referência para ser
nomeado a Rua Augusta e a diferenciação entre dois trechos: “Alta” e “Baixa”. Especialmente a
partir dos anos 2000, ocorre uma nova valorização imobiliária da região como um todo desde o
centro até as imediações da Avenida Paulista e reversão do esvaziamento do centro que passa
novamente a receber novos moradores e frequentadores. Antes reconhecida como área
“decadente” e local de prostituição, a região passa a receber novos estabelecimentos voltados ao
entretenimento noturno e atraindo, sobretudo jovens, de “diversas tribos urbanas” atuantes na vida
noturna da região. A dissertação de Mestrado de Felipe Pissardo, intitulada A RUA APROPRIADA:
Um Estudo Sobre As Transformações E Usos Urbanos Na Rua Augusta (SÃO PAULO, 1891-2012)
(2013) aborda algumas questões relativas à área.

19A Alameda de Hércules é um importante espaço público da cidade de Sevilha que se localiza no
Casco Histórico, na região central. Originalmente construída no século XVI como um jardim público
de 480m de extensão, um dos primeiros da Europa, passou por inúmeras transformações em sua
história. Focando-se em período mais recente, desde a década de 1970 o espaço passou por
mudanças mais significativas em sua forma física, usos e público frequentador. Reconhecida como
área de prostituição muito menos notável, e mais delimitada a alguns lugares específicos,
atualmente é referencial pelo entretenimento noturno pela grande oferta de bares e restaurantes em
funcionamento e constantemente “em renovação”. No ano de 2008, foram concluídas as últimas
obras de remodelação urbanística da área, as quais lhe atribuíram sua forma atual. O processo de
uso intenso se manteve ainda que com a “chegada” de novos atores que habitam/frequentam a
área, seja de modo assíduo ou eventual. O livro Como nació, creció y se resiste a ser comido el gran
pollo de la Alameda: una docena de años de lucha social en el barrio de la Alameda, Sevilla (2006)
coordenado por Santiago Barber, Victoria Frensel e María José Romero trabalha diversas questões
relativas à área.
63

agentes privados; reivindicações e resistências da própria comunidade civil e


movimentos sociais (pela manutenção ou alteração de certos espaços); além de
transformações de aspecto social e subjetivo refletido nas práticas socioespaciais
dos novos habitantes presentes nesses espaços (seja de modo frequente, seja de
modo eventual), assim como novos arranjos, muitas vezes inesperados, entre
indivíduos e grupos da sociedade civil, de modo geral.

Em ambos os objetos empíricos, localizados em regiões centrais das cidades,


identifica-se um evidente redimensionamento de funções, atividades e relações
existentes, com destaque às atividades comerciais e de serviços, notável
especialmente na grande oferta de estabelecimentos voltados ao lazer,
entretenimento, cultura e turismo. O consumo se faz presente, portanto, em
atividades programadas ligadas aos tipos de estabelecimentos existentes, e,
sobretudo, na valorização desses espaços urbanos, expressada tanto no valor do
solo urbano quanto simbolicamente em termos de seu reconhecimento como áreas
“da moda” as quais “se deseja frequentar”, seja por moradores locais, seja por
visitantes. Assim, ainda que de modos diferentes, ambos os espaços urbanos em
questão “atraem”, além de moradores, cada vez mais novos frequentadores que se
deslocam de pontos diversos da cidade para consumir, assim como visitantes e
turistas de outras cidades e de outras nacionalidades.

Entendendo as atividades programadas, geralmente ligadas ao consumo


desses e nesses espaços urbanos, aborda-se a apropriação em certo sentido como
o inverso, ou seja, como a expressão do “não-programado” e do “não esperado”.
Especificamente nos objetos empíricos trabalhados, em função de sua
conformação, consumo e apropriação, manifestam-se muitas vezes de modo
concomitante e podem compor juntos as atividades e interações de indivíduos e
grupos entre si e em relação ao espaço urbano. Assim, a expressão de consumo
nesses espaços urbanos muitas vezes leva à agregação de pessoas e grupos em
torno de atividades específicas como comer, beber, divertir-se, por exemplo. Por
um lado, neste caso, pode-se potencializar a homogeneização de atividades em
torno de uma mesma função; por outro, ao contrário, pela própria concentração de
pessoas, pode-se induzir à heterogeneização, observada em comportamentos,
ações e interações que revelam situações e arranjos inesperados e, geralmente,
conflituosos nesses espaços urbanos.

A apropriação e o consumo em ambos os objetos empíricos, portanto,


manifestam-se de modo intenso e variado, porém, de modo desigual, espacial e
temporalmente. Em campo, em função da variação dos períodos de observação,
nota-se que espacialmente alguns lugares “destacam-se” mais do que outros e são
“ativados” em função da intensidade dos usos, do tipo das práticas socioespaciais.
Temporalmente, tais espaços urbanos podem ser lidos, portanto, como suportes de
múltiplas temporalidades em função dos diferentes usos temporais que se faz do
mesmo (Muñoz, 2008), em função especialmente da heterogeneidade dos atores
presentes e de sua complexidade.

IV Abordagem e método experimentais para uma cartografia socioespacial do


urbano

Assim sendo, busca-se entender o habitar contemporâneo a partir da


observação de espaços urbanos, onde práticas socioespaciais diversas ocorrem e
são reconhecidas tanto por habitantes quanto por pesquisadores, podendo
constituir-se como totalidades empiricamente definidas (Magnani, 2002). Para
tanto, a elaboração de um conjunto de procedimentos adequados e estratégias de
aproximação aos objetos empíricos se mostra também indispensável, em conjunto
com o referencial teórico mobilizado. De modo amplo, portanto, na pesquisa de
mestrado, empregam-se abordagem e método experimentais sobre espaços
urbanos onde há potência de análise, como meio de construção de um olhar que
64

busque tornar visíveis aspectos e processos que não dizem respeito somente a
contextos urbanos particulares, mas que também permitam a abordagem da
problemática da cidade contemporânea.

Palavras-chave: cidade contemporânea, práticas socioespaciais, apropriação, consumo,


conflito.

Keywords: Contemporary city, socio-spatial practices, appropriation, consumption, conflict.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CACCIARI, M. (2010). La ciudad. Barcelona: Editorial Gustavo Gili.

___________ (2011). La ciudad-territorio (O La Post-Metropoli). In Planos de


inter(sección): Materiales Para Un Diálogo Entre Filosofía Y Arquitectura (pp. 32-45).
Madrid: Lampreave.

Instituto de Estudios Regionales Universidad de Antioquia. (2016). Cartografias, nuevos


mapas y contramapas. IV Seminario Internacional de Estudios Socioespaciales. 16 a 18 de
março de 2016. Medellín, Colômbia.

COSTA, J. F. (2004). Declínio do comprador, ascensão do consumidor. In J. F. Costa, O


vestígio e a aura: Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo (pp.131-184). Rio de
Janeiro: Editora Garamond.

___________. A personalidade somática de nosso tempo. In J. F. Costa, O vestígio e a


aura: Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo (pp.185-203). Rio de Janeiro: Editora
Garamond.

HARVEY, D. (2011). O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo.

HARVEY, D., Watchsmuth, D. (2012). What is to be done? And who the hell is going to do
it? In N. Brenner, P. Marcuse & M. Mayer. Cities for people, not for profit. London:
Routledge,

LAVAL, C., Dardot, P. (2013). La nueva razón del mundo. Barcelona: Editorial Gedisa.

LEFEBVRE, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática.

____________(1978). De lo rural a lo urbano. Antología preparada por Mario Gavíria.


Barcelona: Península.

MAGNANI, J. G. C. (2002). De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.


[versão eletrónica]. Revista Brasileira de Ciências Sociais, V(17), n. 49. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092002000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

MUÑOZ, Francesc. UrBANALización. Paisajes comunes, lugares globales. Barcelona:


Gustavo Gili, 2008.

NETTO, V. (2012) A urbanidade como devir do urbano. In D. Aguiar & V. Netto (orgs.),
Urbanidades. (pp. 33-60). Rio de Janeiro: Folio Digital

PARDO, J. L. (2011). Disculpen las molestias. Estamos Transitando Hacia Un Nuevo


Paradigma. In Planos de inter(sección): Materiales Para Un Diálogo Entre Filosofía Y
Arquitectura (pp. 354-355). Madrid: Lampreave.
65

KITCHIN, R. (2010). Post-representational Cartography. In Explorations in Space and


Society/Maps: Beyond the Artifact, n. 15, 7-9. Disponível em:
http://www.losquaderno.professionaldreamers.net/wp-
content/uploads/2010/02/losquaderno15.pdf

SERPA, A. (2004). Espaço público e acessibilidade: notas para uma abordagem


geográfica. Revista GEOUSP - Espaço e Tempo, n. 15, 21 - 37. doi:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2004.123865

SOBARZO, O. (2006). A produção do espaço público: da dominação à apropriação.


Revista GEOUSP - Espaço e Tempo, n. 19, 93 - 111. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-
0892.geousp.2006.73992
66

Desenhos de ruas: concepções urbanísticas e


significados sociais
Street designs: urbanistic conceptions and social meanings

Talita Ines Heleodoro


talita.heleodoro@usp.br
lattes.cnpq.br/3282768319786017

Orientação
Luciana Bongiovanni Martins Schenk
lucianas@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/3384491853267540

RESUMOS

O presente trabalho pretende abordar a temática da rua dentro da História


da Cidade e do Urbanismo, com o objetivo de demonstrar as diferentes
representações urbanas das ruas ao longo do tempo. Ou seja, como as ruas
deixaram de figurar nas regras da beleza e da perspectiva espaços pitorescos ou
monumentais para tornarem-se segundo os ideais do urbanismo funcionalista em
apenas meios de circulação de automóveis. Realizar-se-á um esforço de analisar
tanto os diferentes desenhos de ruas quanto os padrões formados por essas redes
em algumas morfologias urbanas. Pretende-se, assim, abarcar a apreensão que se
tinha desse espaço, como as suas principais funções sociais e a sua
representatividade como espaço público - lócus de urbanidade e vida social.

Para melhor ambientar as qualidades e nuances de tais concepções


urbanísticas e, buscando demonstrar um paralelo entre o desenho de ruas e a
representação de sua urbanidade, a narrativa foi dividida nestas duas chaves de
entendimento: desenho e significados sociais. Assim, busca-se uma compreensão
da cidade através dos seus desenhos urbanos e de cada um dos contextos
históricos em que se construíram tais representações urbanísticas (Idade Média;
Modernidade; Contemporaneidade). As escolhas narrativas da pesquisa, que irão
caracterizar os recortes historiográficos, também darão o sentido das concepções
de ruas que pretendemos demonstrar, sendo, portanto, uma construção que coteja
desenhos urbanos, ideias urbanísticas e a cidade em suas relações sociais.

Por meio de uma interseção de campos disciplinares, com categorias


analíticas da história cultural e o uso de uma historiografia das cidades e do
urbanismo, pretende-se estudar diferentes realidades urbanas num longo período
temporal. O trabalho propõe a construção de quatro períodos nos quais a rua foi
representada de diferentes maneiras: i) por volta do século XI nota-se o advento
da grande permeabilidade das ruas que estruturavam as comunas medievais ii)
durante o Iluminismo se inaugura a série de desmontes dos espaços de convívio
legados pelas comunas medievais no momento em que Paris atravessa o processo
de geometrização de suas ruas para conter as ebulições populares; iii) o
fracionamento dos usos condensados da rua dá o tom do urbanismo funcionalista
da primeira metade do século XX, num período em que a rua é esvaziada dos seus
inúmeros significados sociais para se tornar meio de circulação de automóveis; iv)
por fim, diante do esvaziamento dos espaços públicos e do aumento dos
congestionamentos, observa-se um movimento de retorno à ideia de comunidade,
através das propostas de desenvolvimento espontâneo das ruas como a matriz de
uma vitalidade fragmentada das cidades. A justificativa, portanto, para abranger
um período tão longo é a de explicitar que a noção de rua, como uma construção
67

cultural, possui inúmeros significados sociais que ainda sobrevivem e se atualizam


na contemporaneidade.

Rua e urbanidade

Para falarmos sobre o tema da rua, abordaremos primeiramente a distinção


que Henri Lefebvre faz, em sua obra O direito à cidade, entre a cidade e o urbano.
Tal distinção se torna fundamental para entender a morfologia urbana como
resultado de sua configuração social. Assim, o termo cidade aludiria mais aos
aspectos físicos e construídos do espaço. Já a noção de urbano seria a “realidade
social composta de relações a serem concebidas, construídas ou reconstruídas pelo
pensamento” (LEFEBVRE, 2001, p. 54). Entretanto, dialeticamente, uma não
sobreviveria sem a outra, pois a vida urbana não acontece sem uma base prático-
sensível. A correspondência entre os dois fenômenos definiria o que Lefebvre
chama de urbanidade.

Todavia, segundo Lefevbre, esse ideal de urbanidade irá perder força,


principalmente na conjuntura do que ele caracteriza como a crise da cidade.
Embora essa qualidade - a urbanidade - não tenha desaparecido por completo, o
processo de industrialização do século XIX promoverá a diminuição da dimensão
urbana da cidade. Algo que esteve associado à surpreendente expansão urbana,
que colocou a classe miserável ao lado da burguesia enriquecida, promovendo a
fragmentação do tecido urbano. Essa disputa pela cidade, aliada ao medo, deu o
tom do decaimento daquela noção de urbanidade.

Sendo assim, cidade – o meio – padece, ficando comprometido justamente


aquilo que a metrópole oferecia como mais importante aos seus habitantes - o
convívio de diferentes expressões culturais, a possibilidade das trocas entre a
diversidade de seres, ideias e experiências. O espaço público vira um espaço
amortizado, pobre culturalmente por uma vida pública esvaziada. A partir dessa
leitura de Lefebvre, portanto, se nota que a noção de urbanidade se torna central
para entender a cidade e, particularmente, os significados sociais das ruas em
diferentes temporalidades.

A rua, portanto, será o tema de uma investigação sobre as representações


de urbanidade em diferentes contextos históricos. Na rua, as dimensões sociais
tomam espacialidade e concretude, através de uma apropriação que não apenas
suscita a vivência, mas também modifica a cidade e os próprios sujeitos.

Perfis de ruas na história urbana

O primeiro perfil de rua refere-se a uma rua característica das cidades da


Idade Média – é o perfil da ruela estreita e sinuosa, margeada por edificações com
as quais mantém relações, formando uma forma urbana de alta densidade
construtiva, que constitui uma malha de ruas labiríntica e que demonstram uma
aparente desordem, principalmente no centro dessas cidades, no interior de suas
muralhas.

Trata-se de uma parte apenas das cidades do medievo que se


desenvolveram a partir de aglomerações ao redor de núcleos pré-urbanos, e que
assim foram crescendo de maneira um pouco mais “livre” e orgânica. Ou no caso
de algumas cidades que se formaram como cidades novas – as bastides – a partir
de um desenho original e com uma ocupação mais dispersa no tempo e mais
espontânea.

O segundo perfil de rua tem como grande representante a rua


haussmanniana da Paris do século XIX. Trata-se de uma oposta tipologia de rua,
68

ampla e de esplendorosa retidão, que usa do artifício da perspectiva para criar um


aspecto monumental.

As novas ruas e a nova morfologia urbana surgidas com as reformas de


Haussmann foi um dos principais legados desse período em Paris. A nova rua
oitocentista destrói a rua medieval, alargando os antigos caminhos, reconstruindo
e regularizando as fachadas e rasgando a malha irregular com avenidas retilíneas.
O ordenamento do espaço urbano segue a tradição renascentista do desenho
perspéctico em grande escala dos dois séculos passados.

Haussmann não apenas manteve um sistema de perspectivas nos traçados,


quarteirões, ruas e praças já presentes na expressão barroca, como buscou
enriquecer a estrutura urbana com parques, passeios públicos e bulevares –
inovações espaciais.

O terceiro perfil de rua está relacionado ao fracionamento dos usos


condensados da rua pelo urbanismo funcionalista, resultando em uma rua que
atende exclusivamente ao propósito da circulação, sendo esvaziada de outros
significados.

O urbanismo funcionalista provocou a ruptura com a cidade tradicional, na


qual o quarteirão e a rua foram os principais elementos a serem criticados e
combatidos. Também a disposição dos edifícios como acontecia na cidade
tradicional foi abandonada; eles estavam próximos demais da rua e sofriam com os
problemas do tráfego intenso.

Le Corbusier criticava o sinuoso traçado das cidades medievais, com suas


ruas curvas e estreitas, como se tivessem sido traçadas a partir do caminho de
mulas ziguezagueando sem destino certo. A cidade e o homem modernos deveriam
pautar-se pela linha reta, fruto da racionalidade e da sensatez humana. O pitoresco
das ruas deveria ser substituído pela forma pura e racional com referência à
quadrícula romana que havia sido retomada desde as reformas de Haussmann. Os
grands travaux seriam comparados, segundo Corbusier, a uma cirurgia contra a
doença do labirinto medieval de Paris.

A cidade tradicional não servia mais ao novo tipo de deslocamento individual


e motorizado que estava se difundindo e tornando-se o meio de transporte
predominante. As ruas demasiado estreitas, as curvas acentuadas, os frequentes
cruzamentos entre vias, tudo isso não era compatível com a velocidade do
automóvel, e tornava-o mesmo perigoso: “os automóveis continuarão a perturbar
perigosamente um regime equilibrado e estabelecido em tempos passados: um
regime de habitação, e não de circulação” (LE CORBUSIER, 1994, p.172).

O quarto perfil de rua está muito mais relacionado a uma ideia do que a uma
forma ou a um desenho de uma só tipologia de rua. Trata-se de pensar a rua como
um espaço público importante para a vitalidade da cidade.

Esse novo pensamento buscou retomar da cidade tradicional essa vida


urbana desejada, retomando suas qualidades espaciais e o potencial de gerar
encontros e animação. Jane Jacobs mostrou-se como uma grande representante
dessa tendência, colocando/expondo de forma clara os anseios de sua época. Uma
de suas principais críticas ao urbanismo moderno e funcionalismo foi a supressão
da rua tradicional, e as consequências de não mais ter este espaço urbano regado
por residências, comércios e serviços.

Jacobs considerava o espaço da rua como o elemento urbano principal, um


intrínseco balé responsável pela vitalidade da cidade e o principal lugar onde
ocorrem os contatos sociais cotidianos, que deveria abrigar as pessoas e suas
69

atividades rotineiras. Por isso criticava a rua moderna, que servia apenas ao tráfego
de veículos e também o planejamento urbano de Robert Moses, que rasgava a
cidade para a construção de autoestradas de circulação de veículos motorizados.
Nas cidades tradicionais este espaço seria o lugar tanto do trânsito de pedestres,
quanto das brincadeiras das crianças, da sociabilidade, da arborização, da
segurança do espaço urbano entre outros. Para isso, bastava que a rua tivesse 10 a
12 metros de largura, não mais. Ruas mais largas, como as modernas, privilegiariam
apenas o carro e sua velocidade.

A vitalidade urbana defendida por Jacobs era característica das metrópoles,


onde existiria grande concentração de pessoas, permitindo a diversidade cultural
numa mesma área. Sua crítica ao funcionalismo provinha da fragmentação que o
zoneamento causava nas grandes aglomerações, comprometendo a rica e essencial
vida urbana oferecida por esses lugares. A multiplicidade de usos nunca seria
possível em cidades zoneadas, repartidas espacialmente pela função. Sua crítica à
Le Corbusier apontava a exacerbação da circulação em seus projetos, as grandes
vias para automóveis; era exatamente o que Jane Jacobs queria combater em Nova
York nos anos 1960. Surge, dessa maneira, uma nova representação urbana que
pregará o retorno à ideia de comunidade, ou de um urbanismo espontâneo definido
de maneira orgânica pela localidade.

Outra vertente pela qual foi retomada a admiração e entusiasmo pela


morfologia tradicional, em especial a das cidades do medievo, referenciando o
discurso de Camillo Sitte, foi aquela traçada por Gordon Cullen em Townscape.
Através da visão serial da perspectiva do pedestre, e, portanto, da pequena escala,
Cullen trabalha com as sequências espaciais, enfatizando todos os aspectos do
cenário urbano, até mesmo seus pormenores. Cullen dá preferência à cidade
orgânica, em detrimento daquelas de trama mais reticulares, e busca nelas as
qualidades do pitoresco. O universo da rua deveria estar relacionado à pequena
escala – a escala humana por excelência – na qual a cidade se mostra em suas
particularidades e em suas riquezas (LAMAS, 2004).

Assim, coloca-se como um crítico das transformações que a vida moderna


provocou nas cidades, principalmente em seus centros históricos, criticando a
exacerbação da técnica por cima dos efeitos estéticos no planejamento urbano. O
espaço urbano deveria ser pensado de modo a provocar um impacto emocional em
seus habitantes.

A rua e seus significados: apropriações e potencialidades

A análise formal e historiográfica feita dará as bases para construir uma


discussão sobres os aspectos sociais, políticos e culturais da rua, seus usos,
significados e apropriações em consonância com seus desenhos e concepções. A
iluminação das qualidades metafísicas das ruas ajudará na compreensão da
diminuição de sua potencialidade como espaço de sociabilidade, lazer e vivência
do urbano.

Assim como Lefebvre, após fazer sua distinção da cidade e do urbano,


ressaltou a interdependência de ambos, um não podendo existir e se passar sem o
outro, pretende-se aqui aliar o que se estudou sobre a rua - como cidade, sua forma,
o dado presente e imediato, com os usos e apropriações desse espaço – o urbano,
suas potencialidades e possibilidades, futuro. Ressaltar que a rua, mais do que um
espaço de travessia, é um espaço construído culturalmente e sua concepção está
atrelada a esses dois aspectos do qual fala Lefebvre.

Desse modo, buscar-se-á destacar a rua como um reflexo da urbanidade e


vivência urbana propiciados pelo espaço da cidade e por sua sociedade. Se criamos
cidades principalmente para o desenvolvimento de uma vitalidade social, política e
70

cultural, o espaço livre público adquire uma importância notável como lócus que
abriga e suscita o livre desenvolvimento dessa urbanidade.

Palavras-chave: ruas; desenhos de ruas; morfologia urbana; história da cidade e do


urbanismo.

Keywords: streets; street design; urban morphology; city and urbanism history.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, Stanford. On Streets. Cambridge: MIT Press, 1978.


BENEVOLO, Leonardo. A cidade na História da Europa. Lisboa: Editora Presença, 1995.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2009.
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Porto:
Fundaão Calouste Gulbenkian, 2004.
LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São
Paulo: Martins Fontes, 1982.
SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização occidental. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo:
Editora Ática, 1992.
71

O edifício “arto” e a casa “véia”: desenvolvimento


urbanístico e cultura urbana na São Paulo de
Adoniran Barbosa
The “arto” build and the “véia” house: urban development and urban culture
in the point of view of Adoniran Barbosa from
São Paulo

Yara Boscolo Bragatto


yara.bragatto@usp.br
lattes.cnpq.br/3295296843496026

Orientação
Ruy Sardinha Lopes
rsard@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/4355973632621156

RESUMO

O presente trabalho concentra esforços em mostrar o desenvolvimento


urbano da cidade de São Paulo durante o século XX. Toma-se como ponto focal a
segunda metade do século, principalmente após os anos de 1950 e se detém até o
final dos anos 1970. Tal recorte temporal é realizado pois nele se encontra o maior
número de canções produzidas por Adoniran Barbosa. No presente trabalho,
Adoniran é visto como chave de leitura da cidade, e através das análises de algumas
de suas canções.

Em um primeiro momento busca-se compreender como a cidade de São


Paulo adquiriu o status de metrópole e o que levou a seu intenso crescimento
urbano. Nesse sentido, vale ressaltar que por “crescimento urbano” não se limita
apenas ao traçado das ruas e à verticalidade dos edifícios, embora muitas vezes,
esses sejam os maiores símbolos – ou pelo menos os mais óbvios – mas também a
maneira como a cidade influencia e o impacto que ela tem na vida das pessoas que
a habitam. Busca-se compreender como o ideário metropolitano se tornou tão
grande a ponto de ser praticamente unânime, e o espírito ufanista tomou conta dos
pensamentos predominantes na cidade. Acreditava-se em um modelo de progresso
ligado ao trabalho e ao intenso e acelerado desenvolvimento urbano. Acredita-se
que existem características que são inerentes a um ambiente metropolitano, e
apenas habitando-o elas são percebidas e assimiladas.

Parte-se então para um segundo momento de análise onde a cidade de São


Paulo é vista pelo seu lado não tão ufanista. Busca-se compreender como o mesmo
progresso pode não ter sido homogêneo nem ter contemplado a todos habitantes
da metrópole de maneira igualitária e benéfica. Compreende-se que a cidade se
torna um terreno fértil para diversas manifestações culturais, sejam elas de caráter
popular ou erudito, coletivas ou individuais, busca-se compreender algumas dessas
manifestações e seus agentes, no sentido de enxergar um outro lado da mesma
história.

Finalmente, toma-se como ferramenta de leitura desse lado menos


favorecido as canções de Adoniran Barbosa, buscando enxergar, em uma via de
mão dupla onde a cidade influencia o autor e o autor influencia a cidade com sua
produção, um outro ponto de vista sobre a metrópole paulistana.
72

Não se trata de contrapontos, muito menos de subjulgar nenhuma teoria


histórica. O que se pretende é ouvir algumas vozes que muitas vezes são abafadas
pelo barulho acelerado e nada harmônico do progresso.

A cidade de São Paulo passou por um processo de modernização ao longo


do século XX que a fez se transformar de centro comercial relacionado ao café para
uma das grandes metrópoles da América do Sul, abrigando um grande centro
industrial e todos os aparatos necessários para isso. Também teve seu número de
habitantes aumentado vertiginosamente, motivado principalmente pela vinda de
imigrantes de diversas partes do mundo e do país.

As transformações econômicas que fizeram com que a cidade se tronasse


uma grande metrópole foram motivadas por fatores internos e externos, que
impulsionaram a cidade para um caminho de industrialização e modernização. A
industrialização chegava à cidade pelas linhas do trem, e posteriormente pelas
rodovias que cortavam a cidade, e sua diversificação fez com a cidade abrigasse
um extenso parque industrial, que se concentrava em alguns bairros já
consolidados e centrais, como Brás e Barra Funda, mas também fez surgir novos
núcleos que concentravam produções variadas.

Para se igualar às grandes metrópoles mundiais, São Paulo precisava se


verticalizar, e os grandes edifícios foram surgindo no lugar dos antigos casarões,
mudando a paisagem da cidade e transformando-a em um constante canteiro de
obras.

[...] percebe-se uma cidade convulsionada pelo binômio demolição-


construção. Ao mesmo tempo, nota-se como gradativamente foram
se desentranhando desse cotidiano efervescente e turbulento as
noções inventadas de “São Paulo, a cidade que não pára” ou de
“cidade do futuro”, nas quais presente e futuro confundem-se
permanentemente. Parece mesmo que os paulistanos gabavam-se
desse clima de agitação e das numerosas construções existentes na
cidade [...]. (MORAES, 2000. P. 133)

A cidade também teve grande expansão horizontal e muitos bairros surgiam,


sempre para abrigar o grande número de pessoas, e sempre com características
distintas: bairros como Jardins e Pinheiros surgiam ao mesmo tempo que favelas e
ocupações ilegais; o ABC paulista ia se formando enquanto outros municípios do
entorno, com características mais rurais iam se modificando. A cidade caminhava
para o progresso enquanto abria avenidas e enchia suas ruas de bondes, depois
substituídos por automóveis e ônibus. Sempre acelerados e sempre insuficientes
para as promessas de prosperidade e para o grande número de pessoas que
chegavam à cidade.

Já na década de 1950 a cidade já possuía uma industrialização avançada e


as celebrações do IV Centenário no ano de 1954 fizeram com que o espírito ufanista
e positivo em relação ao progresso fosse ainda mais difundido e propagado. Fazia
parte do espírito da época acreditar que todo o processo de modernização da
cidade era benéfico para todos e positivo. Essa idealização da metrópole foi
inserida na mentalidade de muitos paulistanos.

Mas a metrópole do progresso também era desigual, e por vezes cruel. Com
a chegada de tantos imigrantes para a capital, consequentemente nem todos
conseguiam habitações minimamente decentes, e muitos de amontoavam em
cortiços e ocupações irregulares. Para as comemorações do IV Centenário da
cidade, por exemplo, foi construído o Parque do Ibirapuera, grande centro de lazer
e cultura da cidade, mas que para tal implantação, precisou desmanchar uma
ocupação que havia no lugar, e muitas famílias ficaram sem ter onde morar. O
progresso avassalador e rápido também não se importava com o modo como as
73

pessoas se relacionavam com a cidade, e muitos elementos significativos na


memória da cidade foram deixados parar trás.

A modernidade paulistana apresentou um caráter complexo e plural, e que


muitas vezes ignorava seus problemas decorrentes do próprio processo de
desenvolvimento, quase sempre buscando evitar que esses “atrasos” interferissem
na imagem que se tinha da cidade.

Sobre o desenvolvimento acelerado e nada homogêneo da cidade de São


Paulo, Sevcenko (1992) discorre sobre a dificuldade de seus habitantes em se
orientarem em um espaço em constantes mudanças, e por consequência,
orientarem-se como indivíduos. A diversidade espacial e funcional de uma
metrópole não auxilia o sujeito nem na busca por identificações externas a ele, nem
em estabelecer relações internas.

Nesse cenário complexo e ambíguo surge uma figura que ficou famosa nos
rádios da cidade, e posteriormente, adquiriu destaque nacional: Adoniran Barbosa.
Ele nasceu como João Rubinato em 1911 no interior de São Paulo, e era filho de
imigrantes italianos. Foi para a capital ainda jovem, e embora muito incentivado
pelo seu pai, que não queria ter filhos desocupados, nunca foi muito adepto do
trabalho pesado. Teve várias ocupações ao longo da vida, mas em todas elas
sempre dava “seu jeito”, fosse surrupiando bolinhos das marmitas que entregava,
seja fingindo que sabia ser garçom para comer de graça nas festas. Fato é que
Rubinato cresceu e se interessou por trabalhar no rádio. Queria ser cantor e ficar
famoso, mas até alcançar tal objetivo, trilhou um caminho cheio de decepções.

Foi por conta de uma decepção que achou melhor mudar de nome: agora
era Adoniran Barbosa. Ia cantar nos programas de calouros, até ser chamado em
um deles e começar a integrar o elenco fixo de uma famosa rádio da capital. Mais
pra frente conheceu grandes parceiros de trabalho e de vida, entre eles, os
Demônios da Garoa, que gravavam grande parte das composições de Adoniran, e
Osvaldo Moles, diretor, roteirista - e tantas outras funções criativas – da rádio
Record, grande parceiro de Adoniran, e para quem escrevia notórios textos de
personagens que Adoniran executava com maestria. Eram tipos paulistanos, como
judeus comerciantes, italianos motoristas, malandros moradores das malocas, entre
tantos outros que fizeram com que Adoniran conquistasse seu espaço e sua fama
no rádio.

Adoniran também era um grande ouvinte e frequentador assíduo doas bares


e conversas do centro da cidade. Era em suas caminhadas que encontrava
inspiração para escrever suas canções que falavam da cidade, e para a cidade.
Ouvia histórias, observava fatos e tudo que lhe parecia interessante sobre o
cotidiano de uma cidade em constante transformação poderia se transformar em
assunto de canção. Uma delas, conta a história de uma moça que foi atropelada na
Avenida São João às vésperas de seu casamento. A inspiração Adoniran havia
tirado de uma notícia de jornal, mas o fator cômico sobre um evento trágico era
dado por ele mesmo.

Iracema (1956)

Iracema / Eu nunca mais eu te vi / Iracema / Meu grande amor foi


embora / Chorei / Eu chorei de dor porque / Iracema meu grande
amor foi você / Iracema / Eu sempre dizia / Cuidado ao travessar
essas ruas / Eu falava / Mas você não me escuitava não / Iracema
você travessou contramão / E hoje ela vive lá no céu / Ela vive / Bem
juntinho de Nosso Senhor / De lembrança guardo somente / Suas
meia e seu sapato / Iracema eu perdi o seu retrato / Iracema /
Faltava vinte dias pro nosso casamento / Que nóis ia se casar / Você
travessou a rua São João / Um carro te pega e te pincha no chão /
74

Você foi pra assistência, Iracema / O chofer não teve culpa, Iracema
/ Paciência, Iracema. Paciência.

A letra carregada de dor e tristeza é cantada como um samba alegre,


demonstrando, logo como primeira impressão, as contrariedades urbanas
paulistanas. O narrador da história se dirige à amada falecida, quase que num
momento de contar para si mesmo como se deu o incidente. Ele relata ter alertado
a amada sobre os perigos das ruas movimentas, e diz “[...] Eu sempre dizia /
Cuidado ao travessar essas ruas [...]”, quase como em forma de alerta que as novas
conformações urbanas agora exigiam maior atenção, ou seja, era necessário agora,
olhar para atravessar as ruas das cidades, pois justamente talvez agora elas fossem
mais violentas.

A tristeza continua ao dizer que da amada, não sobra nenhuma lembrança a


não ser as meias e os sapatos, dando a ideia que, provavelmente não eram pessoas
de muitas posses, já que o único retrato que existia da amada fora perdido. A
proximidade do casamento também só acrescenta pesar a quem ouve.

Mas o narrador busca se consolar e dizer que não há nada a se fazer, nem
mesmo se revoltar com o motorista que a atropelou, pois afinal ele “[...] não teve
culpa, Iracema [...]”. Talvez o momento em que a culpa do motorista é retirada seja
o mais icônico e possível de se traçar uma analogia com a modernidade. Ao dizer
que o motorista não teve culpa, e quem era a única responsável era a própria
“vítima”, subverte-se a posição de culpa e a modernidade avassaladora surge na
figura do motorista, enquanto que os que habitam a metrópole são os únicos
responsáveis por não acompanhá-la.

É lugar comum colocar Adoniran Barbosa como propagador de um discurso


conformista com o desenvolvimento da metrópole, como se não fosse possível agir
de outra maneira a não ser a de se conformar que o progresso chegou e que ele é
ruim para alguns. Mesmo que o desenvolvimento urbano seja desigual, é necessário
notar que, o fato de cantar sobre tragédias cotidianas, de transformá-las em música
de caráter altamente popular (e até certo ponto, mercadológico também),
Adoniran está realizando um processo de tradução do cotidiano metropolitano, e
funcionando como denúncia das movimentações urbanas. Claramente que a morte
da amada às vésperas do casamento dificilmente iria gerar um sentimento de
conformismo, como também não seria esperado que a se colocasse a culpa em
quem acabara de falecer. Porém, ao ser paciente e tentar mostrar que a cidade não
era culpada, talvez Adoniran estivesse fazendo uma crítica ao modo como é
esperado que as pessoas agissem, ou seja, o modo como as classes governamentais
e dominantes esperam que os mais simples ou menos favorecidos ajam dentro
desse cenário de mudanças, sempre se adaptando e “esperando” o próximo
acidente.

Não se trata de uma visão contraditória da cidade, nem tão pouco pretende
desmistificar os ideais considerados “homogêneos”, mas sim dar luz e voz a outras
maneiras de apreensão da cidade, olhando de baixo pra cima, sempre com os pés
no chão do cotidiano, ouvidos e olhos bem atentos e aquele leve saudosismo de
uma cidade que não existe mais.

Palavras-chave: São Paulo; Metrópole; Adoniran Barbosa; História.

Keywords: São Paulo; Metropolis; Adoniran Barbosa; History.


75

REFERËNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS JUNIOR, Celso de. Adoniran - uma biografia. São Paulo: Globo, 2010.

FRITH, Simon. “Music and Identity.” In: Questions of Cultural Identity, por Stuart HALL e
Paul DU GAY. Londres: SAGE Publications, 1996.

GAMA, Lúcia Helena. Nos Bares da Vida. São Paulo, SP: SENAC, 1998.

MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular
na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: o poeta da cidade: trajetória e obra do radioator e


cancionista: os anos 1950. Cotia: Atelie Editorial, 2002.
76

A forma urbana conjunto habitacional na atuação da


CECAP/CDHU em Ribeirão Preto/SP
de 1967 a 2002
The urban form housing set in the production
of CECAP/CDHU in Ribeirão Preto
from 1967 to 2002

Amanda Halda
amanda.halda@usp.br
lattes.cnpq.br/4314200292346376

Orientação
Eulalia Portela Negrelos
negrelos@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7745281336239073

RESUMO

A presente pesquisa propõe um estudo sobre a atuação da Companhia de


Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) através
da sua produção na cidade de Ribeirão Preto buscando vincular sua produção com
a trajetória do conjunto habitacional como forma urbana na produção de habitação
de interesse social no Brasil.

As técnicas de pesquisa empregadas na presente investigação constituem-


se dos seguintes componentes: levantamento de material referente à habitação
social no período de 1967 a 2002; mapeamento dos empreendimentos da CDHU
entregues durante o recorte temporal em Ribeirão Preto; visitas técnicas ao
escritório regional da CDHU em Ribeirão Preto e aos conjuntos habitacionais
selecionados como estudos de caso e análise dos dados arquitetônicos e
urbanísticos dos empreendimentos.

Diante desta proposta de pesquisa desenvolveu-se uma contextualização


histórica da produção da habitação social no Brasil a partir de 1964 a fim de melhor
compreender o processo da política habitacional do estado de São Paulo,
notadamente, na estruturação da CDHU. Esta teve antecedentes na autarquia Caixa
Estadual de Casas para o Povo (CECAP). A CECAP passou por um processo de
transformação com o regime militar: agente promotor do SFH/BNH em 1964;
empresa de economia mista (Companhia. Estadual de Casas Populares) em 1975;
CODESPAULO (Companhia de Desenvolvimento de São Paulo) em 1981 e, em 1984,
CDH (Companhia de Desenvolvimento Habitacional). Com a redemocratização
brasileira conforma-se como CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional
e Urbano do Estado de São Paulo): uma empresa pública com recursos próprios do
estado de São Paulo (ICMS-Habitação) que se mantém até o presente. Dessa
forma, ao analisar a história da CECAP/CDHU pode-se entender a política
habitacional estadual de São Paulo e, consequentemente, os momentos de
centralização (ditadura militar) e descentralização (pós-regime militar) das
políticas habitacionais do país.

No que se refere à atuação da CECAP/CDHU na cidade de Ribeirão Preto


adotou-se três casos para análise delimitando um período de estudo que se inicia
com a CECAP na ditadura militar e finaliza com a CDHU no governo de Fernando
Henrique Cardoso. Formulando, assim, um estudo da evolução da CECAP/CDHU na
cidade.
77

O primeiro é o Conjunto Habitacional da Vila Virgínia (1967) o qual enquadra-


se na ação da CECAP com recursos da Caixa Econômica do Estado de São Paulo
(CEESP). O CEE foi vigente de 1967 a 1983, teve sua atuação, principalmente, no
interior do estado e a construção ocorria por meio de empreitada global em
terrenos advindos dos municípios e comercializados pela autarquia (DENIZO,
2002). No Vila Virgínia, o terreno era de domínio do estado de São Paulo e foi
contratada a construtora Balbo para a realização do empreendimento (CROSTA,
2000). É importante destacar que 1967 foi o primeiro ano em que as unidades da
autarquia sob o comando da ditadura militar foram entregues, dentre elas estão as
104 UHs em Ribeirão Preto.

A lista de candidatos a mutuários foi advinda de diversos sindicatos (do


comércio, da construção civil, bancário etc.). Horácio de Salles Cunha Jr, presidente
da comissão de seleção, apontou que entre os critérios de escolha estava a renda
familiar, idade (mais idoso) e quantidade de filhos menores de 18 anos (CROSTA,
2000). O conjunto apresenta tipologia unifamiliar horizontal (no tipo de casas
geminadas duas a duas), englobando seis quadras delimitadas pela Avenida Pio XII
e Ruas Visconde de Inhomerim, Nabuco de Araújo e Franco da Rocha. Além de três
ruas internas (Ruas Conde de Irajá, Madre Francesinha e Padre Sena Freitas) e uma
praça (Professor Sálk).

O segundo caso é o Conjunto Habitacional Professor João Rossi em 1994 e


1996. Este enquadra-se no programa SH3 quando o órgão já atuava como CDHU.
O empreendimento ocorreu num terreno (379152,38 m²) de doação da Fazenda do
Estado de São Paulo à CODESPAULO (R.1/45.558 de 17 de novembro de 1982). O
Conjunto Habitacional João Rossi apresenta 73 blocos de 4 pavimentos, sendo 8
apartamentos por andar, totalizando 2336 unidades habitacionais em 112.558.36 m²
de área edificada. A distribuição inicial constituía-se em 8 condomínios (30, 61, 130,
151, 171, 200, 201, 301) e 70 blocos e, posteriormente, foi desenvolvido o nono
condomínio (190) com 3 blocos. Os condomínios 60, 61, 130, 151, 171, 200, 201 e 301
estão enquadrados no programa SH3 e na modalidade Empreitada Global,
constituindo um Consórcio Habitacional denominado Independência. O contrato de
empreitada celebrado com a CDHU para a realização de obras de terraplenagem,
infraestrutura e construção das 2336 unidades habitacionais era constituído pela
Schain Cury Engenharia e Comércio Ltda. (sede na Av. São Luiz n.112, 2º andar, São
Paulo), Lagoinha Construtora Ltda. (sede na Av. Presidente Kennedy n.2634,
Ribeirão Preto), Múltipla Engenharia Ltda. (sede na Av. São Remo n.378, São Paulo)
e L. Castela Engenharia e Construção Ltda. (sede na Rua Engenheiro Américo da
Graça Martins n.354, São Paulo).

Os primeiros empreendimentos do Conjunto Habitacional João Rossi foram


entregues em 17 de dezembro de 1994 (2.240 UHs). Devido aos atrasos nas obras,
as últimas unidades habitacionais (os antigos blocos 190A, 190B e 190C que
equivalem a 96 apartamentos) foram finalizados apenas em 1/08/1996. Conquanto,
o Consórcio Habitacional Independência manteve-se na realização destas unidades
apesar de não integrarem o programa SH3, como ocorrera nos blocos inicialmente
entregues. Nos blocos 190, 6 unidades foram destinadas a inscritos da COHAB e as
restantes foram distribuídas igualmente entre os grupos de funcionários públicos
estaduais, municipais e do Hospital Santa Tereza (30 apartamentos para cada
segmento).

E por último, a entrega de 2002 do Conjunto Habitacional Jardim Paiva I


(Fazenda Baixadão). A gleba de terras urbanas (aproximadamente 99,3 hectares)
na qual foi construído o empreendimento era de domínio da Prefeitura Municipal
de Ribeirão Preto (matrícula 95.021), sendo loteada em 24 de fevereiro de 2000
com os 2.095 lotes matriculados com registro da hipoteca em 16 de fevereiro de
2001. Dessa maneira, a área não foi doada à CDHU e, sim, hipotecada como foi
observado nos documentos da CDHU-RP referente ao empreendimento.
78

A obra do conjunto foi dividida em três etapas: a primeira referente a 569


UHs entregues em 5 de fevereiro de 2002; a segunda de 846 UHs sendo 187
entregues em 7 de novembro de 2003, 365 em 28 de maio de 2004 e 294 UHs
entregues em 18 de abril de 2005; a última, de 680 UHs divididas em 119 UHs, em 2
de dezembro de 2006, 114 UHs em 18 de maio de 2007, 153 UHs em 21 de dezembro
de 2007, 76 UHs em 1 de maio de 2008, 108 UHs em 4 de agosto de 2008 e 110 UHs
em 26 de setembro de 2008 (CDHU).20

Nos documentos analisados nas visitas ao escritório regional da CDHU


encontrou-se uma divergência de informações em relação ao regime de construção
do Conjunto Habitacional Jardim Paiva I: no contrato de convênio entre a CDHU e
a Prefeitura Municipal (convênio nº 1.2.00.00/1.0.00.00/172/98 e ato nº 8115) refere-
se à autoconstrução, já na declaração do prefeito Luiz Roberto Jábali em 22 de
maio de 2000 sobre o empreendimento remete ao Programa Cesta Básica de
Materiais de Construção em regime de mutirão. Ao recorrer à bibliografia sobre o
tema, obteve-se as informações de que o Programa (CMC) estava relacionado com
o programa Habiteto e a execução das habitações pelos próprios mutuários por
meio da autoconstrução (ROYER, 2002; DENIZO, 2007; ROSSI, 2012). Dessa
maneira, formulou-se a ideia de que o "Ribeirão Preto D" foi viabilizado pelo
programa Habiteto que teve como área de atuação o interior do estado de São
Paulo. Este foi um programa implantado em 1995 pelo governador Mário Covas que
reformulou o Cesta de Material de Construção. O funcionamento se dá a partir do
financiamento de recursos para a construção de unidades habitacionais, tanto em
regime de autoconstrução. Assim, o Habiteto era uma alternativa de oferta de
habitação social com infraestrutura adequada e custos menores para uma
população de baixa renda. O Programa Habiteto em novembro de 2004 é
substituído pelo Pró-Lar Autoconstrução (DENIZO, 2007) sendo mantida a forma
de atuação, com o acréscimo do atendimento às populações rural, indígena e
quilombola e a possibilidade dos recursos da CDHU serem utilizados também para
a administração da obra (como o treinamento da mão de obra).

Ao analisar os estudos de caso no que se refere à constituição da cidade,


notou-se a permanência de dois itens: a sua localização periférica na época da
construção e posteriormente, uma inserção na mancha urbana de Ribeirão Preto e
a ausência de equipamentos sociais, institucionais e comerciais. No CECAP Vila
Virgínia, as vias não apresentavam iluminação pública e pavimentação. Estas foram
asfaltadas no ano seguinte da entrega (1968) com verba da Prefeitura Municipal
(gestão Welson Gasparini 1964-1969) (CROSTA, 2000). A ausência de
equipamentos atualmente está parcialmente suprimida na região como foi
verificado durante a visita técnica. No projeto inicial do Conjunto Habitacional
Professor João Rossi estava previsto a implantação de um centro comercial, um
centro comunitário e uma creche do modelo CP3A. Apesar dos atrasos nas obras,
foi entregue a creche/pré-escola (EMEI Prof. Zilda Cossa D'Avila). Por outro lado,
não foram construídos os centros comercial e comunitário. Apenas em julho de
2008 (processo nº 02.08.030261.7) foi aprovada concessão à Associação de
Moradores do Conjunto Habitacional Professor João Rossi de uma área na Rua da
Fazenda (1.309,77 m²) para a construção da sede de um Centro Comunitário a fim
de proporcionar, gratuitamente, atividades para o desenvolvimento social,
profissional e cidadania dos moradores do bairro. Na visita realizada com a
orientadora em maio de 2017, foi possível notar a carência do equipamento de
comércio: em diversas ruas havia trailers do ramo alimentício (padaria, lanchonete

20
Produção Habitacional da CDHU. Disponível em: <http://www.cdhu.sp.gov.br/producao-
new/producao-habitacional.asp?Pag=producao-
habitacional&DestHab=1&municipio=412&Nome=RIBEIRAO%20PRETO>.
Acesso em: 15 dez. de 2017.
79

e quitanda). O Conjunto Habitacional Jardim Paiva I é um empreendimento recente


e ainda apresenta uma carência significativa de equipamentos sociais, institucionais
e comerciais. Algumas habitações sofreram alterações abrigando atualmente
atividades comerciais (como: marcenaria, mercado e restaurante) na parte
posterior do lote.

VILA VIRGÍNIA PROFESSOR JOÃO ROSSI JARDIM PAIVA I


Órgão CECAP Codespaulo/CDHU CDHU
executor
Fonte de CEESP (Caixa ICMS-Habitação ICMS-Habitação
recursos Econômica do
Estado de São
Paulo)
Programa CEE SH3 (2240 UHs) Habiteto/ Pró-Lar
Não integram nenhum
programa (90 UHs)
Modalidade Empreitada Global Empreitada Global Mutirão
de
construção
Terreno Estado Doação da Fazenda do Inicialmente da Prefeitura e
Estado de São Paulo a doado para a CDHU após a
Codespaulo construção das UHs a fim de
serem comercializadas
Edificação Construtora Balbo Consórcio Independência Mutuários
Escolha dos Lista de inscritos Sorteio a partir da lista de
futuros enviada por inscritos existente na
mutuários sindicatos e havia COHAB-Ribeirão Preto
critérios de escolha
Data de 01/01/1967 17/12/1994 (2240 UHs) 5/02/2002 (569 UHs)
entrega 1/08/1996 (96 UHs) 7/11/2003 (187 UHs)
28/05/04 (365 UHs)
18/03/05 (294 UHs)
02/12/06 (119 UHs)
18/05/07 (114 UHs)
21/12/07 (153 UHs)
01/05/08 (76 UHs)
04 /08/08(108 UHs)
26/09/08 (110 UHs)
UHs 104 2336 2095
Tipologia Unifamiliar Multifamiliar vertical Unifamiliar
Tipo (Casa térrea (Lâmina com 4 (Casa térrea isolada)
geminada duas a pavimentos) TI24C
duas) VG22A
A VG22B
B VI33A
C
Área 57,37 m² 45,74 m² 39,57 m²
57,50 m² 45,36 m²
57,50 m² 62,68 m²

Dados comparativos entre os casos de estudo. Fonte: Elaboração própria.

Pautando-se nos elementos analíticos usufruídos por Negrelos (2014), há


uma provável redução do modo de morar moderno na produção da CECAP/CDHU
em Ribeirão Preto em diferentes intensidades. No Conjunto Habitacional Professor
João Rossi, a tipologia multifamiliar laminar desenvolvida em blocos, assim como,
o projeto para o uso do solo com equipamentos coletivos (mesmo que não
concretizado) conformando uma unidade de vizinhança evidenciam essa
característica redutora. A a implantação segregada do traçado urbano existente
está presente nas três produções da empresa estudadas em Ribeirão Preto.
Contudo, nos Conjuntos Habitacionais CECAP Vila Virgínia e Jardim Paiva I devido
às consideráveis modificações nas habitações e no entorno dificultou-se a
constituição de unidade dos empreendimentos e consequentemente, de conjunto
habitacional. No Conjunto Habitacional Jardim João Rossi, é marcante a ideia de
conjunto habitacional com características que se assemelham às diretrizes
80

modernas de morar. Dessa maneira, a concepção de conjunto habitacional


mostrou-se mais perceptível nos edifícios multifamiliares verticais do que nas
habitações unifamiliares horizontais.

Palavras-chave: forma urbana; conjunto habitacional; CDHU.

Keywords: urban form; housing set; CDHU.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONDUKI, N. G. Os pioneiros da habitação social. Volume 1 – Cem anos de política pública
no Brasil. São Paulo: Editora Unesp: Edições Sesc São Paulo, 2012.

CROSTA, P. P. Casas para o povo: uma visão sobre seus espaços. São Carlos: EESC-USP,
2000.

DENIZO, V. Os produtos da Política Estadual de Habitação na Região Metropolitana de


São Paulo: Elementos para análise de uma política metropolitana de habitação. Tese
(Doutorado) - FAU-USP. São Paulo, 2007.

NEGRELOS, E. P.; FERRARI, C. Resiliência de tipologias habitacionais e urbanas do


alojamento popular no Brasil. In Anais do XV ENANPUR - Desenvolvimento, planejamento
e governança. 30 anos da ANPUR. Recife, 2013

ROSSI, M. T. B. Habitação social e gestão associativa: avaliação dos programas


promovidos pelo governo do Estado de São Paulo no período 1990 a 2008. Tese
(Doutorado) - FAU-USP. São Paulo, 2012.

ROYER, L. Política Habitacional no Estado de São Paulo: Estudo sobre a Companhia de


Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, CDHU. Dissertação
(Mestrado) – FAU-USP. São Paulo, 2002.
81

Contradições no zoneamento de interesse social


(ZEIS) em Votuporanga – SP (1996-2012)
Contradictions in the Zoning of Social Interest (ZEIS) in
Votuporanga – SP (1996-2012)

Janaina Andréa Cucato


jcucato@usp.br
lattes.cnpq.br/6036319790811602

Orientação
Eulalia Portela Negrelos
negrelos@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7745281336239073

RESUMO

A partir de uma compreensão linear estabelecida pelos estudos e análises


dos processos que contribuíram para as contradições de uso nas ZEIS em
Votuporanga (oeste paulista), bem como os agentes, a dinâmica e lógica envolvida
neste processo, e os desdobramentos de sua ocupação pela classe média, este
breve estudo retoma questões discutidas no 3º capítulo da dissertação de
mestrado defendida no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (USP)21, e estrutura-
se num recorte que permeia as ZEIS gravadas em 1996 e as ZEIS de 2012, com
aprovação do “Mapa das ZEIS” - Anexo VIII da Lei n. 106/2007, que incorpora novas
áreas ao perímetro urbano do município. Estas áreas são na sua grande maioria,
demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social, inclusive alterando o
zoneamento de áreas já instituídas no município de Votuporanga, transformando-
as em ZEIS, e reforçando as ZEIS consolidadas, ainda que de forma distorcida.

Durante a pesquisa de mestrado foram eleitos alguns casos analisados


criteriosamente e metodologicamente divididos em ZEIS para regularização
fundiária (caso da Vila Carvalho); ZEIS em áreas periféricas (1996); ZEIS em vazios
intraurbanos (1996) e ZEIS posteriores ao PDM-1996 até 2012 - ZEIS periféricas, as
quais comprovam nitidamente que as novas ZEIS, gravadas em 2012 atuam como
motor da Expansão Urbana. Ainda como critério metodológico, os casos foram
amparados na leitura dos Planos diretores e legislações afins, hermeneuticamente
trabalhadas (LEPETIT, 2001).

Em Votuporanga as ZEIS foram inicialmente gravadas em 1996 a partir do


seu segundo plano diretor municipal22 e são descritas como “zonas do território da
cidade definidas em função do interesse social que buscam o crescimento
complementar à malha urbana evitando-se os vazios; o uso urbano compatível com
a capacidade instalada dos equipamentos e serviços públicos; a produção de
habitações de interesse social” (Lei n. 2.830/1996 - do Zoneamento
Municipal, Seção V - Das Zonas Especiais, Artigo 12, II).

21Intitulada
“As disputas pelo território no espaço urbano e Votuporanga-SP - Contradições no
zoneamento de Interesse Social (ZEIS), 1996-2012”, 2015.
22Votuporanga
teve seu primeiro Plano Diretor aprovado em 1971, subsidiado a partir das práticas e
das proposições desenvolvidas na Prefeitura Municipal de Votuporanga, influenciados pelo IBAM,
financiados inicialmente, com recursos oriundos do FIPLAN - Fundo de Financiamento de Planos de
Desenvolvimento Local Integrado, no período do SERFHAU.
82

Um segundo momento de gravação das ZEIS no município foi em 2004


quando a Vila Carvalho, Vilarejo centenário, em condição de irregularidade
fundiária e com alta vulnerabilidade social econômica, foi gravado como ZEIS pela
Lei n. 3.750/2004.

Com a “notícia” da regularização das terras, ao local apesar de carregar forte


característica rural e marcas da pobreza, passou a atrair a atenção dos empresários
do mercado imobiliário que passaram a buscar por áreas internas e nas imediações
do assentamento com interesse de renegociá-las com a prefeitura, para futura
implantação de conjuntos habitacionais para população de baixa renda. Até o
momento, não passam de intenções, porém várias atividades vêm se instalando na
Vila e entorno como é o caso de dois templos religiosos, uma indústria de rações
para animais, casas de veraneio para aluguéis nos finais de semana e pequenos
comércios de bebida e alimento.

Esta questão corrobora com as análises de Rolnik (2015, p. 152-153) quando


compreende que “programas de titulação podem contribuir para espoliar os ativos
territoriais dos mais pobres, capturando uma reserva de terra para a expansão das
fronteiras do capital”. Ainda para o mesmo autor, “em tempos de capitalismo
financeirizado, em que a extração da renda se sobrepõe ao mais valor do capital
produtivo, terras urbanas e rurais tornaram-se ativos altamente disputados”.

Em 2012, define-se o terceiro momento de implantação da ZEIS no município


a partir da aprovação do anexo VIII - “Mapa das ZEIS”, da lei 106/2007 (Plano
Diretor Participativo). Destaca-se ainda a Lei nº 218 de 05/12/2012, que também
altera a Lei Complementar n. 106 de 08 de novembro de 2007 e altera o anexo VIII
previsto pela Lei nº 216/2012.

Não se tem histórico da localização das ZEIS em mapa específico durante,


nem nos quatro anos que sucederam a aprovação da Lei n. 106/2007 - Plano Diretor
Participativo de 2007, constando apenas suas classificações, categorizadas como
ZEIS 01 e ZEIS 02. “Apenas no ano de 2012 estas vieram a aparecer oficialmente,
através do ‘Mapa das ZEIS” (Anexo VIII, alteração 26/10/2012, 216/2012), que
incorpora novas áreas ao perímetro urbano do município. Sobre esta questão, a Lei
n. 106/2007 faz a seguinte abordagem: “A delimitação e mapeamento da ZEIS
obedecerão a classificação prevista no artigo anterior e será feita por lei municipal
específica de iniciativa do Poder Executivo”. (Plano Diretor Participativo - Lei
106/2007, Cap. V, Seção I, Art. 109).

Contudo, as ZEIS de que se trata aqui, são aquelas apenas descritas e não
gravadas pela Lei n. 106/2007 que segundo sua categorização, são subdivididas
em ZEIS 01 e ZEIS 02, cujo artigo 108 assim nos coloca:
Art. 108 - A Zona Especial de Interesse Social pode ser classificada nas
seguintes categorias:

I - ZEIS 1 - são áreas públicas ou particulares ocupadas por assentamentos


de população de baixa renda, devendo o Poder Público promover a
urbanização e a regularização fundiária, com implantação de equipamentos
públicos, de recreação e lazer e de comércio e serviços de caráter local,
desde que essas áreas não estejam localizadas na zona de recuperação e
ocupação controlada em áreas de preservação ambiental (APP) ou de
interesse público;

II - ZEIS 2 - são glebas onde haja interesse público na elaboração de


programas habitacionais de interesse social (HIS), de equipamentos
comunitários, incluindo comércio e serviços de caráter local. Parágrafo único
- A criação de cada ZEIS 2 deverá ser aprovada pelo Conselho da Cidade.
83

As “novas” ZEIS criadas no município de Votuporanga, articuladas à


expansão do perímetro urbano, apresentam-se numa dinâmica de caráter
indissociável. O mapa abaixo aponta para a divisão da ZEIS no município desde
1996, quando foram inicialmente implantadas, até 2012, quando se dá a elaboração
do mapa das ZEIS, conforme discorrido anteriormente.

Figura 1 Mapa de Localização das ZEIS 1996 e 2012.


Fonte Autoria /2015 sobre mapa de 2012 e mapa das ZEIS - PMV

O processo expansivo de inserção das ZEIS em Votuporanga é (poderia ser)


justificado, a princípio, pelo discurso do déficit habitacional no município
(diagnóstico do PDM-1996 e PLHIS-2010), orientado pelo movimento de oferta e
procura - necessidade real por moradia e objetivo de fazer prosperar o capital
imobiliário (CUCATO, 2015). Com intuito de avaliar a real necessidade de moradia
no município, em 2010 foi elaborado pelo PLHIS (Planos Locais de Habitação de
Interesse Social): “Os Planos seriam os responsáveis por definir claramente as
necessidades habitacionais de cada município, bem como apresentar uma
estratégia para enfrentá-las (AMORE, 2015, p. 16).

Porém a cidade tem se expandido acelerada e continuamente e de acordo


com entrevista realizada em 2012 com representante de uma empresa do mercado
imobiliário que atua em Votuporanga e região, havia a previsão para a aquisição de
várias glebas que seriam incorporadas à malha urbana. (CUCATO, 2015).

Dentre os casos analisados durante a pesquisa encerrada em 2014 e


defendida em 2015, serão aqui retomados dois deles, a saber, o loteamento Jardim
do Ipês e um conjunto de loteamento em ZEIS, a ser explicado na sequência. O caso
do loteamento Jardim do Ipês destaca-se pelo fato de ter sido implantado em área
gravada como ZEIS pelo PDM/1996, e que continuou seu processo de ocupação
pela classe média até os dias atuais. Aponta-se ainda que tal situação tem sido
percebida em todos os casos analisados de 2012 a 2014, porém o caso do jardim
dos Ipês é o mais emblemático pelo alto padrão das construções ali implantadas
como se observa nas imagens abaixo:
84

Figura 2 Residências - Jardim dos Ipês


Fonte: Autoria-Out/2016

Neste loteamento, legalmente implantado em uma ZEIS, tanto o padrão do


parcelamento do solo, quanto às características das habitações ali instaladas, com
lotes que variam entre de 300 m² a 450 m² e áreas ajardinadas formando alamedas
e que não se alinham aos padrões das camadas populares estabelecidas nas áreas
vizinhas ao loteamento que acomoda no entorno imediato conjuntos habitacionais
como se observa na imagem abaixo.

Figura 3 Imagem de satélite do Loteamento (destaque em vermelho) e o Conjunto Habitacional


presente no entorno imediato (destaque em amarelo)
Fonte Google Earth-Pró (2016). Intervenção: Autoria /2015-2016

O loteamento foi concebido com uma tipologia de parcelamento com


parâmetros diferenciados dos projetos de loteamento comumente implantados em
Votuporanga, com lotes de dimensões superiores àquelas indicadas para as ZEIS,
estruturado inclusive a partir de grandes áreas arborizadas e faixas non aedificandi
de 3,00 metros nas testadas dos lotes propostos, com lotes de variações de área
entre 300,00 a 450,00 m². O resultado foi um número menor de lotes com preços
acima daqueles para a habitação de interesse social. Na pesquisa de campo e em
entrevista com proprietários de terrenos e imobiliária (nov. /2016), verificou-se que
atualmente o lote com aproximadamente 340 m² têm uma variação entre
R$160.000,00 e R$180.000,00 (pesquisa com proprietários de terrenos/2016).

Tal constatação corrobora para que se compreenda o processo de


implantação do Loteamento Jardim dos Ipês como ZEIS no espaço intraurbano de
Votuporanga como um nítido caso do processo de “elitização” das ZEIS no
município. Extrai-se disso que, a classe média se instala e usufrui deste espaço,
numa conformação que se divide numa estrutura dupla onde, na superfície
contempla-se uma paisagem elitizada, formada por um conjunto arquitetônico que
reúne padrões que só a reconhecida “classe média” pode dispor, mas, por outro,
assentadas em terras que estão distantes de atenderem ao especial interesse.
85

Desta forma, a implantação do Jardim dos Ipês marcou o fim do período de


“preconceito” dos empreendedores em relação às ZEIS, pois mesmo tratando-se
de uma demarcação por esse instrumento, por meio do zoneamento do PDM-1996,
percebeu-se a possibilidade de implantar um empreendimento com um desenho
urbano diferenciado, hoje o mais agradável e bonito da cidade, com lotes com áreas
médias muito superiores àquelas oferecidas pelo mercado imobiliário local naquele
momento.

Conforme já mencionado, utiliza-se aqui ainda, outro caso que comprova a


hipótese de distorção das ZEIS e tratado na já referida dissertação como “conjunto
de loteamento em ZEIS”, que reúne os Loteamentos Vila Residencial Bortoloti; Vila
Residencial Morini II e Vila Residencial Orlando Nogueira Cardoso, localizados na
zona norte da cidade, área atualmente ocupada por unidades unifamiliares de
padrão alto ou médio alto, exatamente como se configuram outros bairros
tradicionais da Zona Sul23, ocupado entre as décadas de 1950-70, que durante
muito tempo se configurou como tradicional reduto dos mais ricos.

Figura 4 Imagens dos Loteamentos Vila Residencial Bortoloti; Vila Residencial Morini II e Vila
Residencial Orlando Nogueira Cardoso.
Fonte: Autoria, 2012 a 2016.

Constata-se desta forma, que as ZEIS têm a estereotipia que permeia seu
processo de implantação desmontada pelo processo de mercantilização e com o
passar do tempo, nem se percebe que ali originalmente, era um lugar
disponibilizado para o interesse social, pois agora a paisagem se mescla,
combinando as representações dos valores, das várias origens socioeconômicas
dos indivíduos que nela habitam.

Nos processos de demarcação e produção das ZEIS, especialmente nos


últimos tempos, tem-se presenciado ações de mercantilização das habitações
sociais produzidas nestas parcelas da cidade fruto da valorização imobiliária da
região e de fato, o preço do solo urbanizado no interior das áreas especiais de
interesse social, tende a elevar-se consideravelmente em todo o território
municipal. O subsídio destinado à população de baixa renda acaba beneficiando
especialmente a classe média. Esta é a lógica que orquestra o mercado de terras
no Brasil (ABRAMO, 1999), paralelamente à lógica da necessidade e à lógica do
Estado que definem como e para quem será dado o acesso à terra urbana. Na visão
de Abramo (2007) os mercados se desdobram para obter seus lucros.

Palavras-chave: Zona Especial de Interesse Social; Expansão Periférica; Mercado Imobiliário;


Legislação urbana.

Keywords: Special Zone of Social Interest; Peripheral expansion; Real Estate Market; Urban
legislation.

23Como é o caso do Bairro Marão, um dos metros quadrados mais caros do município, conforme se
constatou durante a pesquisa.
86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, Pedro. Entrevistas sobre informes sobre as pesquisas. Infosolo e Infomercado,


Land Lines, Cambridge-MA, v.19, n.1, 2007.

AMORE,Caio Santo; SHIMBO Lúcia Zanin; RUFINO, Maria Beatriz Cruz. (Org.). Minha casa...
e a cidade? Avaliação do programa minha casa minha vida em seis estados brasileiros. Rio
de Janeiro: Letra Capital, 2015.

CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2004.

CUCATO, Janaina Andrea. As contradições no zoneamento de interesse social (ZEIS) no


processo capitalista de (re)produção do espaço urbano: agentes e processos. XVII
Enanpur - São Paulo. 2016.

CUCATO, Janaina Andrea. As disputas pelo território no espaço urbano de


Votuporanga/SP. Contradições no zoneamento de Interesse social. (ZEIS), 1996-2012.
2015. 431f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São
Paulo. São Carlos. 2015.

LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Tradução: Cely Arena. São Paulo: USP,
2001.

MAUTNER, Yvonne. A periferia como fronteira de expansão do capital. In: DEAK, Csaba;
SCHIFFER, Sueli R. (Orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo:
EDUSP/FUPAM, 2010. p. 169-244.

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.

SINGER, Paul Israel. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: MARICATO, Ermínia
(Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Alfa-
Omega, 1979. v. 1.

VOTUPORANGA. Lei complementar n. 216, de 15de agosto de 2012, e sua justificativa -


(Dispõe sobre alteração da Lei Complementar nº. 106 de 08 de novembro de 2007.

VOTUPORANGA. Lei complementar n. 218, de 05 de dezembro de 2012 (Dispõe sobre


alteração da Lei Complementar nº. 106 de 08 de novembro de 2007).

VOTUPORANGA. PDM - Plano Diretor Municipal. Prefeitura do Município de Votuporanga,


Lei n 2830/1996.

VOTUPORANGA. PDPV - Plano Diretor Participativo de Votuporanga. Prefeitura do


Município de Votuporanga, Lei n. 106/2007.
87

Entre conflito e congruência: diálogos possíveis entre


rede hídrica e forma urbana em São Carlos, SP
Between conflict and coherence: possible dialogues between
rivers and urban forma in São Carlos, SP

Maria Cecília Pedro Bom de Lima


maria.lima@usp.br
lattes.cnpq.br/6095849314099214

Orientação
Luciana Bongiovanni Martins Schenk
lucianas@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/3384491853267540

RESUMO

Introdução e objetivos

Esta pesquisa consiste em um estudo sobre a relação entre rios e cidades,


partindo da ideia de paisagem como construção cultural (BERQUE, 1994),
multifacetada, que envolve fatores sociais, ambientais, políticos e econômicos,
segundo o repertório de diversos campos disciplinares (BESSE, 2009). Com esse
tema, buscamos investigar as possibilidades de atuação no campo da arquitetura
da paisagem, considerando o contexto contemporâneo, especificamente da cidade
de São Carlos, SP.

A relação entre rios e cidade foi sendo transformada a partir do


desenvolvimento da indústria e aceleração do processo de urbanização. Foram
elaboradas técnicas de construção e organização do espaço urbano, tais como
drenagem subterrânea das águas pluviais, construção de avenidas marginais, obras
de canalização e tamponamento de cursos d’água, que contribuíram para a
construção de uma relação conflituosa entre rios e cidades (SPIRN, 1984). O
ocultamento de processos naturais que dão suporte a vida foi um dos fatores que
possibilitaram a continuidade de determinadas lógicas de construção da forma
urbana que proporcionaram um crescente desequilíbrio entre cidade e meio
ambiente (HOUGH, 1984).

No contexto brasileiro, rios e córregos foram gradativamente ocultos do


cotidiano urbano, principalmente a partir da segunda metade do século XX, sendo
relacionados, sobretudo, a seus aspectos negativos como mau cheiro, enchentes,
fragmentação do espaço, entre outros (GORSKI, 2010). Enquanto a “rede hídrica
estrutural” foi sendo controlada pelas avenidas marginais e canalizações, a “rede
hídrica capilar” foi facilmente suprimida da paisagem urbana; porém, persistem
manifestações sutis de sua existência, como observa Vladimir Bartalini (2009) a
respeito do contexto paulistano.

No contexto internacional, as técnicas convencionais de construção do


espaço urbano passaram a ser questionadas na década de 1960, sendo um dos
principais autores Ian McHarg (1969), o qual propõe um estudo de compatibilidade
entre usos e características ambientais e socioeconômicas para o planejamento
urbano, realizado a partir da sobreposição de cartografias. Autores como Anne
Spirn e Michael Hough deram continuidade ao discurso de McHarg na década de
1980 e propuseram modos de construir a cidade que intentam considerar o
funcionamento equilibrado de processos naturais e urbanos.
88

Essa abordagem dá suporte para os atuais estudos sobre o conceito de


infraestrutura verde, que se contrapõe à chamada “infraestrutura cinza”. A primeira
pretende pensar as questões urbanas de mobilidade, drenagem, sobre bases
ecológicas, considerando os conceitos de resiliência e sustentabilidade. (HERZOG
e ROSA, 2010).

Identificando os limites da interpretação ecológica da ideia de paisagem no


contexto complexo da cidade contemporânea, buscamos elaborar um estudo sobre
a rede hídrica de São Carlos segundo uma complementação entre o viés ecológico
e sociocultural da paisagem. Para tanto, reconhecemos nos espaços livres da
cidade, lugares com o potencial de mediar processos naturais e urbanos.

Assim, buscamos investigar as possibilidades de atuação no campo da


arquitetura da paisagem como uma das frentes para a identificação e revelação dos
testemunhos da rede hídrica suprimida da paisagem urbana, dos quais fala Vladimir
Bartalini.

O objetivo geral da pesquisa é investigar o potencial da rede hídrica que


compõe a bacia hidrográfica do Córrego Monjolinho em São Carlos, SP, em
estruturar um Sistema de Espaços Livres que promova a mediação entre os
processos naturais e urbanos. A pesquisa apresenta, portanto, uma dimensão
propositiva, no sentido de definir diretrizes para esse possível Sistema de Espaços
Livres, que levem em consideração as características específicas de cada espaço e
seu papel a ser desempenhado dentro do sistema.

Figura 1 Principais córregos da sub-bacia hidrográfica do Córrego Monjolinho.


Fonte Elaborado a partir de base do Google Earth e carta de hidrografia do IBGE. 2017.

Metodologia e resultados

A pesquisa é organizada segundo dois conjuntos de procedimentos que são


realizados concomitantemente. Um deles consiste em um estudo historiográfico,
vinculado à chave de leitura da “paisagem como infraestrutura”, que reúne autores
que questionam o modo como as cidades foram construídas sem considerar as
características ambientais de seu território (SPIRN, 1984; HOUGH, 1984; GORSKI,
2010); com o estudo historiográfico pretendemos identificar valores e agentes que
contribuíram para construção da relação entre córregos e a cidade de São Carlos.
89

O outro conjunto de procedimentos diz respeito a um estudo de campo,


vinculado à chave de leitura da “paisagem como fruição estética”, a qual conta com
autores que tratam da relação entre homem e mundo e evidenciam a dimensão
sociocultural e de experiência contida na ideia de paisagem (BERQUE, 1994;
DARDEL, 1952; BESSE, 2009); o estudo de campo é pautado pelo Método
Cartográfico e busca investigar a relação entre córregos e cidade na escala do
cotidiano, ou como define Michel de Certeau (1980) “embaixo”, onde se desenrolam
as ações microbianas dos praticantes ordinários da cidade e onde podem ser
explicitados os espaços indefinidos que aparentemente não fazem parte de uma
lógica dominante de organização da cidade.

O Método Cartográfico deriva dos conceitos de Deleuze e Guattari


desenvolvidos na obra Mil Platôs (1980) e orienta a frequentação dos espaços
estudados, que é realizada por meio de caminhadas, registros fotográficos e
registros em caderno. Destacamos três principais propostas do Método
Cartográfico a serem aplicadas nesta pesquisa: a reversão metodológica, isto é, são
os processos que moldam as metas (BARROS e KASTRUP, 2015); habitar um
território existencial (ALVAREZ e PASSOS, 2015) considerando o funcionamento
da atenção na pesquisa de campo como captação de pontas de processo em curso
(KASTRUP, 2015). Este modo de frequentar o espaço busca identificar as frestas,
os espaços de margem que se distanciam ou subvertem as lógicas predominantes
de organização da cidade.

Dentro do estudo historiográfico foram consultados livros, teses e


dissertações que tiveram como objeto de estudo o processo de urbanização de São
Carlos, de modo a identificar em suas distintas abordagens questões relacionadas
aos cursos d’água. Também foram consultados jornais e imagens históricas
arquivados na Fundação Pró Memória de São Carlos. Sem um recorte temporal,
esse estudo busca formular uma visão geral das transformações da relação entre
rede hídrica e cidade ao longo de seu desenvolvimento.

Assim, sob o ponto de vista da apropriação dos cursos d’água, foram


identificados três momentos principais que caracterizaram a relação entre córregos
e cidade:

Desde a origem das primeiras ocupações até 1940, a cidade teve


crescimento lento, mas a construção de seu espaço já denotou ações que buscaram
controlar determinados aspectos dos cursos d’água existentes no território
ocupado. As principais ações sobre a rede hídrica identificadas nesse período foram
o surgimento das primeiras ocupações que dariam origem à cidade de São Carlos
no encontro do Picadão de Cuiabá com o Córrego Gregório (DEVESCOVI, 1987);
construção de malha ortogonal de vias que se sobrepuseram às características
naturais do território (BISINOTTO, 1988); a construção da ferrovia e ocupação das
margens do Córrego Gregório, que denotaram o princípio de uma segregação
socioespacial, sendo que nas proximidades da estação ferroviária e das várzeas se
localizavam as moradias da classe operária e o comércio popular e nas cotas mais
elevadas na porção norte da microbacia do Córrego do Gregório, distantes dos já
recorrentes problemas de enchentes (O Correio de São Carlos, 24 de novembro de
1899), localizavam-se as residências dos barões do café, em torno da Catedral, e o
comércio de luxo (BISINOTTO, 1988).

O período compreendido entre 1940 e 1980 foi caracterizado pela ascensão


da indústria e aceleração do processo de urbanização segundo leis permissivas e
acordos entre Prefeitura e proprietários de terra (LIMA, 2008). Algumas das ações
que envolveram a rede hídrica foram a elaboração dos primeiros Planos Diretores
(1962 e 1971) que buscaram controlar o crescimento irregular dos loteamentos, mas
que não foram integralmente implementados; uma das repercussões desses planos
90

no tecido urbano foi a construção das avenidas marginais nos Córregos Gregório,
Monjolinho e Tijuco Preto (LIMA, 2008).

De 1980 aos dias atuais ocorreu o espraiamento da cidade e a tentativa de


introdução de novas lógicas de planejamento urbano. Em 2005 foi elaborado um
Termo de Ajustamento de Conduta referente à construção das avenidas de fundo
de vale sem o devido licenciamento ambiental, a partir do qual foram possibilitadas
obras de avenidas que resguardassem áreas de Preservação Permanente em
trechos dos Córregos Gregório, Tijuco Preto e Monjolinho (ANELLI, 2007). No
mesmo ano foi elaborado o Plano Diretor de 2005 que traz em suas cartografias e
diretrizes o reconhecimento de fragilidades socioambientais no território de São
Carlos. O processo de revisão deste Plano Diretor, concluído em 2016, apresentou
negociações entre agentes que buscaram dar continuidade aos esforços iniciados
pelo PD de 2005 e agentes que defenderam os interesses do mercado imobiliário
(SCHENK, PERES, FANTIN, 2015).

Ao longo do estudo historiográfico, foram sendo realizadas as visitas a


campo, as quais, em um primeiro momento, concentraram-se ao longo dos fundos
de vale e, posteriormente, foram organizadas de modo a se distanciar do curso
d’água em si e abarcar as microbacias com maior abrangência. Os registros
realizados buscaram capturar características da relação entre cidade e cursos
d’água, associadas a espaços que passam despercebidos no cotidiano urbano, mas
que têm o potencial de criar novas paisagens que não estejam submetidas somente
à uma lógica utilitarista representada pela predominância do automóvel e pela
rentabilidade da terra.

Com as visitas e os registros fotográficos, foram identificadas algumas


categorias, isto é, características recorrentes nos diversos espaços frequentados,
que podem ser apropriadas na definição de diretrizes para o sistema de espaços
livres que a pesquisa pretende propor.

Figura 3 categorias

Figura 2 visitas a campo

Confrontando os dados e questões levantados no estudo historiográfico e


no estudo de campo, a pesquisa pretende estabelecer uma base de informações
que sirva de suporte para a definição de diretrizes para a conformação de um
Sistema de Espaços Livres estruturado pela rede hídrica da sub-bacia do Córrego
Monjolinho.
91

Palavras-chave: paisagem; rede hídrica; espaços livres.

Keywords: landscape; rivers; open spaces.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial. In


PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015,
p. 131 – 149.

ANELLI, R. L. S. Recuperação de cursos d´água e nascentes associada à revisão da


ocupação viária estrutural de Fundo de Vale em São Carlos/SP (2001-2005). In: APP
Urbana 2007 - Seminário Nacional sobre o tratamento de áreas de preservação
permanente em meio urbano e restrições ambientais ao parcelamento do solo. São Paulo:
FAU USP, 2007.

BARROS Regina B. de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In


PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015,
p. 52 – 75.

BARTALINI, Vladimir. A trama capilar das águas na visão cotidiana da paisagem. São
Paulo: REVISTA USP, n. 70, p. 88-97, junho/agosto 2006. Disponível em
<https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13534/15352> Acesso em: 14 ago.2017.

BERQUE, Augustin. Paysage, milieu, histoire. In BERQUE, A. (org.) Cinq propositions pour
une théorie du paysage. Mayenne: Champ Vallon, 1994.

BESSE, Jean-Marc (2009). O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro:


Eduerj: 2014.

BISINOTTO, Dagmar A. Evolução urbana de São Carlos. Trabalho de iniciação científica.


São Carlos: EESC/USP, 1988.

CERTEAU. Michel de (1980). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora


Vozes, 2007.

DARDEL, Eric (1952). O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo:
Perspectiva, 2011.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1980). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1995.

DEVESCOVI, Regina C. B. Urbanização e acumulação: um estudo sobre a cidade de São


Carlos. São Carlos: UFSCar, 1987.

GORSKI, Maria Cecília B. Rios e cidades: ruptura e reconciliação. São Paulo: Senac, 2010.

HERZOG, Cecília Polacow; ROSA, Lourdes Zunino. Infraestrutura Verde: Sustentabilidade e


resiliência para a paisagem urbana. Revista LABVERDE, São Paulo, n. 1, p. 92-115, set. 2010.
ISSN 2179-2275. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/revistalabverde/article/view/61281/64217>. Acesso em: 14
ago. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-2275.v0i1p92-115.

HOUGH, Michael (1984). Naturaleza y ciudad. Barcelona: GG, 1998.


92

KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In PASSOS,


Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015,
p. 32 – 51.

LIMA, Renata. P. Limites da legislação e do (des) controle da expansão urbana: São Carlos
(1857-1977). São Carlos: EduFSCar, 2008.

MCHARG, Ian (1969). Design with Nature. Jonh Wiley & Sons Inc., 1992.

SCHENK, Luciana B. M.; PERES, Renata. B.; FANTIN, Marcel. A Revisão do Plano Diretor da
Cidade de São Carlos e as Novas Formas Urbanas em Curso. In: X Colóquio QUAPÁ - SEL,
Forma Urbana Contemporânea Brasileira: Espaços Livres, Produção e Apropriação, 2015,
Brasília. X Colóquio QUAPÁ - SEL, Forma Urbana Contemporânea Brasileira: Espaços
Livres, Produção e Apropriação, 2015.

SPIRN, Anne (1984). W. O jardim de Granito. São Paulo: Edusp, 1995.


Setembro
93

Remoções e a financeirização da cidade


contemporânea: o caso da Favela do Moinho
Removals and financialization of the contemporary city:
the Favela Moinho case

Ana Luiza Vieira Gonçalves


ana.luiza.goncalves@usp.br
lattes.cnpq.br/5172871967900730

Orientação
Cibele Saliba Rizek
cibelesr@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/0540870380815135

RESUMO

A cidade de São Paulo é o grande marco do processo de financeirização


urbana no Brasil. A subordinação dos interesses da cidade ao capital constrói novas
relações de poder, contrastando interesses privados e populares. As remoções são
usadas como instrumento desse processo, possibilitando a reocupação de áreas de
acordo com os interesses do mercado e a consequente expulsão da população
pobre de regiões de interesse econômico, acrescendo a periferização da população
de baixa renda. O processo de remoção da favela do Moinho em São Paulo expõe
essas contradições urbanas e possibilita o entendimento da financeirização, a partir
de suas especificidades e do como a remoção se dá na comunidade, sendo a última
favela do centro de São Paulo.

A mercantilização de equipamentos públicos e a sujeição da população ao


mercado imobiliário são alguns dos aspectos que permeiam a produção das
cidades brasileiras na atualidade, consolidando um novo modelo urbano que não
engloba a população de baixa renda e, mais que isso, intensifica a pobreza nas
grandes cidades, enfraquece políticas públicas voltadas a população pobre e trava
melhorias no extrato social, seja com projetos urbanísticos ou de habitação,
barrados por responderem a demandas das comunidades e não do capital e das
classes dominantes. A substituição das habitações sociais de aluguel por vendas
subsidiadas marca o novo modelo de produção de habitação no Brasil, em uma
nova visão do Estado sobre a habitação.

O processo de financeirização da cidade, tema aprofundado por Rolnik


(2015) é visível na capital paulista, quando nos referimos a infraestrutura construída
para megaeventos como a Copa do Mundo, ao crescimento das favelas paulistanas,
ao aumento do número de remoções e à construção de grandes complexos de
habitações de interesse social nas periferias da cidade para abarcar a população
expulsa de regiões valorizadas, removidas de áreas de risco ou de interesse do
mercado imobiliário.

A favela do Moinho, em São Paulo se destaca como caso símbolo desse


processo, com diversas contradições, fazendo parte do processo de financeirização
de São Paulo e sendo um marco de resistência, por ser a única favela remanescente
no centro da cidade. Ainda assim, o Moinho enfrenta um processo contrário ao do
resto da cidade. O centro de São Paulopassahojeporum processo de esvaziamento,
no sentido da saída do chamado terceiro setor do local. Em “Responsabilidades das
elites e a decadência do centro do Rio e de São Paulo”, Flávio Villaça compara a
importância que o centro tem para cada uma das cidades, mostrando
estatisticamente a saída do comércio do centro paulistano, a diminuição do uso das
94

igrejas do centro de São Paulo pelas elites e outros indicadores da decadência do


centro paulistano. O esvaziamento do centro de São Paulo não significa a perda de
importância, mas a falta de interesse das classes dominantes e, portanto, a falta de
investimento público para a revitalização, a melhoria da infraestrutura e de
equipamentos públicos, prejudicando a permanência da população no centro,
principalmente da população de baixa renda, uma vez que os processos de
renovação urbana são feitos para as elites (Ana Fani, 2001), priorizando a
construção de vias de carros e não de transportes públicos e coletivos.

O caso da favela no Moinho é emblemático na realidade de Paulistana. A


comunidade há anos enfrenta um processo de remoção, baseada em interesses
econômicos e devido à sua localização e da disputa da posse da terra por diversas
esferas (particular, municipal, estadual e federal), próxima a região da Luz e entre
duas linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Não só as
especificidades da comunidade do Moinho são essenciais para se entender o
processo atual de produção da cidade, mas também sua remoção interessa para
perceber a relação entre interesses privados e políticas públicas nas grandes
cidades, entendendo as remoções e o processo de financeirização da cidade de
São Paulo, a partir do caso específico da favela do Moinho.

Além da luta pela permanência da favela, os moradores convivem com


esgotos a céu aberto, falta de água encanada, falta de energia elétrica, violência
polícia e abstenção do poder público. As precárias condições de permanência da
comunidade foram evidenciadas em dezembro de 2011 quando a favela foi atingida
por um incêndio que começou no prédio do antigo Moinho Matarazzo, onde
residiam de 450 famílias da comunidade, cerca de 1800 pessoas. As lideranças do
movimento Moinho Vivo afirmam que o incêndio foi criminoso, com o objetivo de
desocupar uma parcela da favela, enfraquecendo o movimento de resistência.
Apesar do auxílio de advogados populares, não foi possível provar que os incêndios
foram criminosos, ainda que esses estejam inseridos no contexto de uma série de
incêndios que ocorreram em São Paulo nesse período (Mapa de Incêndios das
favelas paulistanas desde 2009, http://fogonobarraco.laboratorio.us). Os incêndios
em favelas, em geral tem mais relação com a falta de saneamento e infraestrutura
adequada, fazendo com que problemas elétricos possam desencadear um incêndio
e a dificuldade de acesso a grandes quantidades de água dificultem que o fogo seja
apagado. No caso do Moinho, essa dificuldade é ainda melhor, uma vez que a
comunidade está isolada entre linhas de trem e o viaduto Orlando Murgel. Para
evitar que a parcela destruída pelo incêndio fosse reocupada, a prefeitura construiu
um muro isolando a área atingida pelo incêndio do restante da favela. Com a
construção do muro, a favela ficou sem uma rota de fuga em caso de novos
incêndios, agravando ainda mais a situação e as consequências de um novo
incêndio ocorrido menos de um ano depois.

O estudo do caso do Moinho se propõe a explicar o processo de


financeirização das cidades, sendo não um exemplo, mas parte desse processo, que
reestrutura as cidades contemporâneas e a forma de vida de seus habitantes, sendo
mais intensa nas metrópoles, como São Paulo. O entendimento do processo de
remoção da favela possibilita compreender a produção e reurbanização das
cidades, a partir dos interesses do capital, o processo de apropriação dos serviços
públicos (saúde, transporte, educação, moradia) e da terra pelo mercado, fazendo
com que esses deixassem de ser bens e passassem a ser serviços. Sendo assim, a
proposta é entender o processo de financeirização, na sua relação com as
remoções de favela, com enfoque na cidade de São Paulo, tendo o Moinho como
base de estudo.

Esse estudo se insere em uma discussão que vai muito além do que ele
mesmo trata. A relação entre todos os elementos que se envolvem para tecer a
história de uma comunidade pobre, no centro de uma grande cidade como São
95

Paulo, lutando para se manter em uma localidade que apresenta diversos riscos e
potencialidades, tanto para a comunidade como para o poder público e a iniciativa
privada. A história da Favela do Moinho se insere na disputa por um modelo de
Estado, na discussão sobre direito à cidade, no entrave entre interesses públicos e
privados, na eficiência – ou não – do Estatuto das Cidades e em diversas outras
questões mencionadas – e frequentemente pouco trabalhadas ao longo desse um
ano de pesquisa.

O estudo do caso da favela do Moinho em sua inserção no processo de


financeirização da cidade de São Paulo, levanta outras questões que não haviam
sido inicialmente consideradas como relevantes, tais como o envolvimento de
questões judiciais de posse de terra, inserção do tráfico de drogas e da polícia
militar na comunidade e dos conflitos causados pelo embate entre eles, disputa
entre as esferas de poder – União, estado e prefeitura –, além do recente processo
iniciado – ou retomado – pela gestão de João Doria, que resultou numa série de
acontecimentos, como entradas na comunidade, abertura de novos processos
judiciais, maior influência da iniciativa privada e a difícil situação da Cracolândia.

Frente a esse cenário, a questão dos incêndios, tanto no Moinho como em


outras favelas paulistanas – como retratado no documentário “Limpam com fogo”
e pelo levantamento feito pelo “Fogo no Barraco”, não mais disponível para acesso
–, antes vista como central, foi deixando de ser o foco da análise, cedendo lugar
para as questões jurídicas e programas municipais de estaduais de intervenção na
comunidade – que não necessariamente não se conectam com os incêndios, tendo
em vista acusação de que alguns deles são criminosos e do como esses são usados
pelo poder público para justificar ações invasivas nas comunidades.

O trabalho abre espaço para análise do que foi feito no âmbito de políticas
públicas na cidade de São Paulo, não só no que diz respeito a regularização
fundiária e remoções, mas também com relação a pessoas em situação de rua,
usuários de drogas, políticas de diminuição de risco, relação entre Estado e polícia.
Trabalhar, articular e aprofundar todos esses elementos não foi uma tarefa fácil e
nem conclusiva, entretanto a tomada de consciência de todos esses elementos foi
de extrema importância para uma mínima compreensão de como os processos se
dão na cidade de São Paulo, estimulando a continuidade do processo de pesquisa.

A escolha da comunidade do Moinho como estudo de caso foi controversa,


ao mesmo tempo possibilitou de diversas questões fossem trazidas ao processo de
pesquisa, como já dito anteriormente, e foi um limitador, o perigo de entrar na
comunidade, impossibilitando entrevistas com os moradores, dificuldade de
encontrar informações concretas e documentos sobre o caso, fazendo com que
muitas informações tenham sido encontradas em reportagens e notícias e,
principalmente, o dinamismo da situação da comunidade, que mudava
consideravelmente, em especial com relação a condição jurídica, com uma
frequência difícil de acompanhar.

Todas essas questões são parte importante do processo de pesquisa, que


foram centrais para estabelecer novas frentes de trabalho, com atenção especial
para a legislação de remoções e regularização fundiária, programas municipais,
estaduais e nacionais de habitação social e políticas públicas da cidade de São
Paulo com relação ao tema.

Palavras-chave: financeirização, remoções, favela, São Paulo.

Keywords: financerization, removals, slum, São Paulo.


96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARICATO, Ermínia. Os impasses da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes. 2011.

MARICATO, Ermínia. Para entender a Crise Urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo. 2015.
97

Patrimônio Cultural e Planejamento Urbano: PCH


(Programa Integrado de Reconstrução de Cidades
Históricas), Programa Monumenta e
PAC – Cidades Históricas
Cultural Heritage and Urban Planning: PCH (Integrated Program of Historic Cities
Reconstruction), Monumenta Program
and PAC - Historic Cities

Bárbara Helena Almeida Carmo


barbara.hac@usp.br
lattes.cnpq.br/5985136760452234

Orientação
Sarah Feldman
sarahfel@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/3933100104810939

RESUMO

Esta pesquisa volta-se para o estudo de três programas de preservação do


patrimônio no Brasil: o Programa Integrado de Reconstrução de Cidades Históricas
(PCH), que se iniciou em 1973, durante a Ditadura civil-militar (1964-1985) e
permaneceu até 1983; o Programa Monumenta, que se oficializou em 1999 e
perdurou por cerca de dez anos; e o PAC-Cidades Históricas (PAC-CH), lançado
oficialmente em 2013, que persiste até os dias de hoje.

A revisão bibliográfica já realizada até o momento indica que estes três


programas vêm sendo estudados a partir de vários enfoques. Partimos da análise
em paralelo dos três programas, abordagem ainda não identificada na bibliografia
estudada. Além disso, temos como pressuposto que apesar dos intervalos
temporais e dos diferentes contextos políticos em que foram efetivados, além do
entendimento dos objetos de intervenção para além do monumento em si ou a
própria cidade entendida como objeto de intervenção, se mantém nas concepções
dos três programas o diálogo entre as diferentes instâncias de governo (federal,
estadual e municipal) tendo o IPHAN como agente estruturante, e a abrangência
ao território nacional. Estes são elementos utilizados como escalas de análise nessa
pesquisa e que colocam a perspectiva de patrimônio como política pública, em
estreita relação com o planejamento urbano.

O estudo das ideias e práticas nos três programas constitui-se o objetivo


geral da pesquisa. Buscamos estudar também as referências mobilizadas na
formulação dos três programas, recorrendo às Cartas Patrimoniais, Declarações,
Compromissos, Normas, Recomendações, Tratados etc.; além dos referenciais
teóricos da trajetória das políticas de preservação do patrimônio cultural (nacionais
e internacionais). A pesquisa investiga também o papel do IPHAN, bem como dos
demais agentes envolvidos em cada programa; e as relações entre as diferentes
instâncias de governo (federal, estadual e municipal) e suas relações com os órgãos
de planejamento. Por fim, buscamos compreender as relações entre as instâncias
de governo estadual e municipal, como desdobramento das estratégias de
98

preservação e planejamento a partir das diretrizes estabelecidas pelos programas


federais, tendo como foco a cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. Para alcançar os
objetivos propostos estão sendo utilizados e articulados dois eixos analíticos: os
programas de preservação mencionados em escala nacional, e as ideias e
concepções aplicadas ao nível municipal.

Optou-se por estudar Ouro Preto por entender que a esfera municipal
emerge como ponto crucial para a viabilização das ações concretas e o
estabelecimento dos mecanismos de definição da ação prática e esta pode ser
entendida como uma cidade representativa nesse sentido. Estudamos, então, a
relação entre a Prefeitura Municipal, o instituto estadual de preservação em Minas
Gerais (IEPHA) e o IPHAN no que se refere à visão integrada de planejamento e
patrimônio nas realidades de intervenção territorial. Nesse sentido, em 2006, em
um processo discutido e entendido como exemplar, o governo local rearticulou a
Secretaria Municipal de Cultura e Patrimônio (SMCP), transformando-a em
Secretaria de Patrimônio e Desenvolvimento Urbano (SMPDU), consolidando um
entendimento de integração que havia sido solidificado na Declaração de
Amsterdam e que vinha sendo cada vez mais debatido no Brasil. Além disso, em
decorrência dos frutos já conhecidos dos programas de preservação encampados
na cidade, estão sendo estudados os processos que levaram à criação dos setores
de execução de projetos e outras de unidades vinculadas à administração
municipal, no âmbito do Programa Monumenta.

A pesquisa está sendo desenvolvida por meio de levantamento bibliográfico,


levantamento documental, pesquisa em periódicos e jornais, além de entrevistas.

O levantamento bibliográfico abrange a trajetória da preservação do


Patrimônio Cultural e suas relações com o espaço urbano nas Cartas Patrimoniais
e referenciais teóricos do campo da preservação do patrimônio e do planejamento
urbano no Brasil e no mundo; concepções e contextualização dos programas de
preservação em foco na pesquisa, a atuação do IPHAN e demais instâncias de
governo, universo de cidades contempladas historicamente pelas políticas de
preservação e abordagem em relação ao objeto de intervenção; processo e
contextualização da criação dos setores de proteção e pesquisa do patrimônio, de
execução de projetos, e outras unidades vinculadas à administração municipal; e a
transformação da SMCP em SMPDU, em Ouro Preto.

Na revisão bibliográfica realizada até o momento sobre os programas em


tela foi possível identificar alguns trabalhos que lançam luz sobre os objetivos e as
realizações do PCH e do Programa Monumenta. Os trabalhos sobre esses dois
programas apontam para o fato de que foram estruturados a partir da reflexão
sobre as práticas e soma dos resultados obtidos pelos anteriores, baseando-se
principalmente no acúmulo de experiências e na presença constante do IPHAN, e
obedecendo ao contexto político e econômico no qual se inseriram. Os estudos
sobre o PAC-CH ainda estão em desenvolvimento.

Sobre o trato da informação reunida na revisão bibliográfica, Bernard Lepetit


(2016) destaca em sua obra uma questão que ganha grande importância no nosso
estudo: os eventos do passado possuem uma vasta possibilidade de interpretação
no presente histórico, pois o espaço urbano tem a potencialidade de reunir
99

diferentes dimensões, que se combinam e se contrapõe, configurando novas


normas de leitura, segundo práticas do presente. Essas práticas são tão diversas e
numerosas quanto grupos sociais e as memórias que carregam e produzem, pois a
“sociedade remaneja suas lembranças a fim de adequá-las às condições
momentâneas de seu funcionamento” (LEPETIT, 2016, p. 220). Nessa pesquisa o
saber é construído, então, a partir dessa perspectiva: que entende as formas
passadas (não só o território, mas as normas, as instituições e os objetos) como
passíveis de serem permanentemente reelaborados, a partir da renovação dos
sentidos atribuídos aos mesmos. Este processo é aqui utilizado como um ponto de
vista sobre o objeto de estudo e é percebido nas formulações dos três programas,
na utilização das referências mobilizadas em cada um, nas escolhas dos bens a
serem contemplados nos programas e ao longo destes, bem como nos processos
de centralização e descentralização das ações empreendidas. A escala municipal é
aqui colocada em acomodação óptica permanente com a escala mais abrangente
de compreensão das ideias/concepções, assimilação dos agentes/instituições e
produção do espaço urbano nos três programas de preservação em estudo. O
passado, reconfigurado pela ótica desta pesquisa, adquire um “estatuto
hipotético”, pois coloca-se como “perpetuamente revisável” (LEPETIT, 2016, p.
223).

O levantamento documental conta com coleta, sistematização e estudo dos


documentos com origem nas instituições públicas (de elaboração, criação,
desenvolvimento e balanço dos programas). O material é coletado nos sites da
UNESCO, do IPHAN, Ministério do Planejamento, Tribunal de Contas e Diário Oficial
da União, e em arquivos, tais como os da superintendência do IPHAN em Ouro
Preto, da Sede do IPHAN/MG em Belo Horizonte, do Arquivo Público Municipal de
Ouro Preto, do Arquivo Público Mineiro e do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura
(IFAC/UFOP). Os documentos relativos à cidade de Ouro Preto (decretos, normas
de funcionamento, correspondências, relatórios de atividades etc.) são acessados
principalmente nos arquivos municipais, do IPHAN e online. A pesquisa em jornais
tem a finalidade de detectar o debate sobre a criação dos setores de patrimônio e
planejamento urbano na prefeitura municipal, entender sua importância para a
dinâmica urbana e suas repercussões nos níveis local e nacional, bem como analisar
as repercussões dos três programas na escala local sob este ponto de vista. Ainda
serão realizadas entrevistas com agentes envolvidos no PCH, Programa
Monumenta e PAC-CH como forma de complementar e confrontar as informações
com a documentação pesquisada.

As Cartas Patrimoniais, Declarações, Compromissos, Normas,


Recomendações e Tratados abordados neste texto possuem contextos históricos
e textos distintos, embora seja possível agrupar algumas semelhanças e perceber
o percurso dos conceitos. Destacamos na pesquisa as diferentes temporalidades,
contextualizando o momento histórico em que cada documento foi elaborado,
separando-os em dois grupos: os produzidos em escala mundial e os elaborados
no Brasil. Dentro destes grupos os documentos são apresentados em ordem
cronológica e destacamos como as três escalas de análise delineadas nesta
pesquisa são abordadas em cada documento, abordando questões que sejam
consideradas relevantes e ajudem a entender o processo de institucionalização do
patrimônio no Brasil.
100

No contexto europeu, destacamos a Carta de Atenas (1931) e a Carta de


Veneza (1964) pelo pioneirismo e pela relevância que adquiriu; a Resolução de
Cáceres (1967), a Recomendação de Paris (1972) e a Declaração de Amsterdã
(1975), que consolidam o pensamento da associação do patrimônio com o
planejamento de áreas urbanas e físico territorial; a Recomendação de Nairóbi
(1976) e a Carta de Burra (1979), que trazem perspectivas fora do eixo europeu; e,
por fim, ainda em âmbito mundial, a Carta de Washington (1987), o Documento de
Nara (1994) e a Declaração de Sófia (1996), que reforçam novos olhares sobre a
discussão do patrimônio urbano e os critérios de atribuição de valor.
Posteriormente (e retrocedendo na linha cronológica), já no contexto latino-
americano, tratamos das Normas de Quito (1967).

A reinterpretação dessas cartas internacionais em um contexto local,


somadas à forte demanda pelo cuidado com o patrimônio, verificada no Brasil,
impulsionaram reuniões específicas para tratar do tema em território nacional.
Entre estes encontros destacam-se os Encontros de Governadores, que produziram
o Compromisso de Brasília (1970) e o Compromisso de Salvador (1971), que
representam enormes avanços no que se refere à institucionalização do patrimônio
no Brasil, a Carta de Petrópolis (1987) e as Declarações de São Paulo (1989 e 1996),
que são preparações para as reuniões do ICOMOS e compreensões trazidas das
mesmas.

A partir do estudo das recomendações nacionais e internacionais, dos


posicionamentos teóricos da trajetória da preservação do patrimônio cultural no
mundo e do estudo das ideias e práticas concebidas pelo PCH, Programa
Monumenta e PAC-CH verificamos que uma cultura da preservação foi se
solidificando e ganhando adeptos no Brasil inteiro. Essa onda estabeleceu diretrizes
de ação em quase todo o território nacional e impulsionou a criação de órgãos e
instituições de preservação estaduais e municipais. No entanto, a reflexão sobre a
ampliação do campo do patrimônio no Brasil (a intensificação das discussões entre
gestores, técnicos e pesquisadores da área, o aumento da ênfase em outros
aspectos da cultura – como o patrimônio imaterial – e a incorporação do discurso
da relação do monumento com a cidade) se deu de forma gradual e foi ganhando
força e espaço somente à medida que os programas foram se desenrolando.

O estudo dos processos no plano político e institucional do município de


Ouro preto nos permitiu observar que a cidade vivenciou avanços e retrocessos,
com presença forte e constante do governo federal em alguns momentos e com o
abrandamento das redes de estruturação institucional em outros. Estas reflexões
conduzem para o entendimento da instância municipal como lugar institucional
onde se manifestam mais claramente as contradições dos processos de
descentralização nos programas de preservação encampados pelo governo
federal. A presença do IPHAN ao longo de toda a trajetória da preservação foi
marcante, porém inserido na trama de interesses estratégicos do governo federal,
das instituições de financiamento e também da política local.

O trabalho realizado até o momento apontou que as relações entre as Cartas


Patrimoniais e os três programas de preservação em estudo são concretas e
merecem maior destaque no desenvolvimento do trabalho. A investigação dessas
relações traz à tona uma grande riqueza conceitual, especialmente quando se
101

confronta esses documentos com os documentos de formulação dos programas. A


exploração da dimensão local também tem se mostrado como um caminho frutífero
na pesquisa, pois aproxima as ideias da dimensão concreta e permite estabelecer
vínculos entre os critérios de seleção dos bens, as formas de apreensão dos objetos
de intervenção selecionados, a permeabilidade e participação das diferentes
esferas governamentais e a dimensão territorial, ou seja, permite, entre outras
inúmeras possibilidades, reconhecer e explorar os vínculos entre patrimônio
cultural e planejamento urbano.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Planejamento Urbano; Programas de preservação;


Ouro Preto.

Keywords: Cultural Heritage; Urban Planning; Preservation Programs; Ouro Preto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARMO, Bárbara Helena Almeida. Os Programas de Preservação do Patrimônio Cultural


(PCH, Monumenta e PAC-CH) e a esfera municipal: aproximações em Ouro Preto. In Anais
do XVII ENANPUR. São Paulo, 2017.

CORRÊA, Sandra Rafaela Magalhães. O Programa de Cidades Históricas (PCH):por uma


política integrada de preservação do Patrimônio Cultural – 1973/1979. Brasília:
Universidade de Brasília, 2012. (Dissertação de mestrado)

LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica,
prefácio e apresentação Heliana Angotti-Salgueiro; Tradução Cely Arena. 2. ed. rev. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de


preservação de áreas urbanas no Brasil (1937-1990). Salvador: Oiti Editora, 2014.

TEIXEIRA, Ricardo dos Santos. Uma conjuntura de aparências: a não construção de um


sistema municipal de planejamento urbano em Ouro Preto. Belo Horizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais, 2015. (Tese de Doutorado).

Cartas Patrimoniais

ESCRITÓRIO DOS MUSEUS DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Carta de Atenas. Atenas: 1931.
Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201931.pd
f>. Acesso em 10 abr. 2017.

ICOMOS. Venice Charter. Venice: 1964. Disponível em:


<http://www.icomos.org/charters/venice_f.pdf>. Acesso em 15 fev. 2017.

OEA. Normas de Quito. Equador, 1967. Disponível em: <


http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Normas%20de%20Quito%201967.p
df>. Acesso em 15 fev. 2017.

IPHAN. Encontro de Governadores. Compromisso de Brasília. Brasília, 1970. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Compromisso%20de%20Brasilia%2
01970.pdf>. Acesso em 12 fev. 2017.

IPHAN. Encontro de Governadores. Compromisso de Salvador. Salvador, 1971. Disponível


em:
102

<//portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Compromisso%20de%20salvador%201
971.pdf>. Acesso em 12 fev. 2017.

IPHAN. Anais do II Encontro de Governadores. Salvador, 1971. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Anais_II_Encontro_Governadores
%201971.pdf>. Acesso em 12 fev. 2017.

CONSELHO DA EUROPA. Declaração de Amsterdã. In Congresso do Patrimônio


arquitetônico europeu. Conselho da Europa: Amsterdã, 1975. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Amsterda%
CC%83%201975.pdf>. Acesso em 15 abr. 2017.

UNESCO. Recomendação de Nairóbi. Nairóbi, 1976. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%20Nairobi
%201976.pdf>. Acesso em 15 abr. 2017.

ICOMOS. The Burra Charter. Burra, Austrália, 1980. Disponível em: <
http://www.icomos.org/charters/burra1999_fre.pdf>. Acesso em 15 fev. 2017.

ICOMOS. Washington Charter. Washington, 1986. Disponível em:


<http://www.icomos.org/charters/towns_f.pdf>. Acesso em 15 fev. 2017.

IPHAN. Carta de Petrópolis. Petrópolis: 1987. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Petropolis%20198
7.pdf>. Acesso em 10 abr. 2017.

CB/ICOMOS. Declaração de São Paulo. São Paulo, 1989. Disponível em: <
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Sao%20Paulo
%201989.pdf >. Acesso em 15 abr. 2017.

ICOMOS. The Nara Document on Authenticity. Nara, 1994. Disponível em:


<2017.http://www.icomos.org/charters/nara-e.pdf>. Acesso em 15 fev.

ICOMOS. Declaração de Sófia. Bulgária, 1996. Disponível em: <


http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Sofia%201996
.pdf>. Acesso em 15 fev. 2017.

IPHAN. Declaração de São Paulo II. São Paulo, 1996. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Sao%20Paulo
%201996.pdf >. Acesso em 15 abr. 2017.
103

Contracartografias: práticas críticas em um


mundo hiper-mapeado
Countercartographies: critical practices in
a hyper-mapped world

Cristina Akemi Goldschmidt Kiminami


criskimi@usp.br
lattes.cnpq.br/8255977477472767

Orientação
David Moreno Sperling
sperling@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/9764445070503572

RESUMO

As indagações e questionamentos que construíram o eixo desta pesquisa foi


buscar entender como em um contexto contemporâneo, em que há uma saturação
informacional e um convívio hiper-mediado por tecnologias geolocativas, o homem
se localiza diante sua esfera física, política, econômica, cultural e dentre tantos
outros âmbitos que compõe seu posicionamento social. Desse modo, para uma
leitura crítica do contexto, uma segunda questão vem a complementar este eixo.
Entender como em tempos dessa grande profusão de mapas digitais, mapas
colaborativos e dados georreferenciados os aspectos de visibilidade e invisibilidade
acontecem, quem se ocupa em desafiar esses aspectos e como o fazem.

Para conduzir a pesquisa foram estabelecidos três pontos de aproximação


do desenvolvimento da pesquisa que são: Cartografias; Mídias Locativas;
Contracartografias (por ativistas/ por artistas). No primeiro momento do trabalho
a primeira aproximação é com ‘Cartografias’, ponto base para o desenvolvimento
estrutural do trabalho como um todo. Foi uma disciplina que foi preciso desbravar,
conhecer e discernir que vozes e questões da geografia seriam matrizes para que
eu delineasse o eixo afim de discorrer às questões acima.

A investigação iniciou em uma varredura histórica e cronológica do


desenvolvimento da representação da localização. Através de uma extensa
pesquisa bibliográfica na literatura da geografia, foi possível traçar precedência
histórica do desenvolvimento da representação da localização até o recorte
temporal proposto da pesquisa. O interesse foi nos momentos de transformações
epistemológicas significativas que ocorreram e alteraram o modo de entender e
representar localização. Entender como o contexto de cada época destacada foi
determinante para grandes mudanças no que concerne entender, representar o
mundo e como o impacto dessas mudanças possui um vínculo com questões de
poder e domínio tecnológico. Para todas essas contextualizações da cartografia e
de seus respectivos períodos foram articulados historiadores e geógrafos
especialistas, como por exemplo: Catherine Smith (1987), Alessandro Scaffi (1999),
J.B. Harley (1989) e David Woodward (2007).

Para todas essas contextualizações da cartografia e de seus respectivos


períodos foi possível notar um desenvolvimento da cartografia deixando de ser
apenas um instrumento de decodificação/registro e adquirindo um caráter de
representação cientificista, até que em uma crise de representação durante o Pós-
104

Guerra a cartografia entra em um momento de reflexão crítica quanto ao seu poder


e limitação representativa.

Em seguida, foi abordado a chegada das informações georreferenciadas.


Considerando o contexto da popularização da tecnologia GIS – e de como se dá o
mapeamento informacional que se desenvolve conjuntamente neste momento.
Além de delinear seu desenvolvimento, também foram abordados os impactos que
ela promoveu na contemporaneidade, especialmente sobre relações entre
localização e controle e sua implicação na circulação de informações.

Para desenvolver esse contexto foram citados eventos significativos em que


a localização se converteu em variável chave. Dentre eles, por exemplo, a foto AS8-
14-238324 (tirada na missão Apollo 8 – ao contornar a Lua) e a foto AS17-148-2272725
(conhecida como Blue Marble) tirada na missão Apollo 17. Fotos que pela primeira
vez permitiram o planeta ser visto do ‘lado de fora’. E surge uma consciência do
todo em que a humanidade está inserida - uma nova perspectiva de ‘onde se está’.
A abordagem desta análise foi articulada com o contraponto das recentes imagens
do planeta Terra que são uma montagem de fotos realizadas via satélite (Blue
Marble Next Generation). Desenvolvendo discussões e reflexões sobre novas
representações e tecnologias locativas.

Essa discussão conduziu a uma outra frente de aproximação, que foram o


desenvolvimento de visões críticas dentro da geografia e como as indagações e
questionamentos vêm atuando, no sentido de posicionar a representação e a
localização em uma perspectiva política. Momento chave para entender como se
desenvolve as lentes críticas sobre a cartografia e também uma a primeira
aproximação ao tema contracartografia.

Entre as referências bibliográficas deste tópico estão alguns dos principais


cartógrafos críticos do século XX, como J. B. Harley (1989), Jeremy Crampton e
John Krygier (2006) e Denis Wood (2012). Os questionamentos levantados pelos
autores ampliam e direcionam a temas como o emissor, o contexto em que a
cartografia é produzida e até mesmo a desconstrução da neutralidade dos mapas.
O segundo momento do trabalho contou com a contextualização mais detalhada
da pervasividade informacional e das mediações através de mídias locativas. Foram
abordados os mapas colaborativos e suas influências sociais, econômicas e politicas
no cotidiano contemporâneo.
A internet é o vetor de uma nova geografia - não só porque isso
evoca realidades virtuais, mas porque também, dá forma à nossa
sociedade – transforma nossas cidades, e desloca nossa percepção
sob nossos pés. Redes se tornaram estruturas dominantes de poder
cultural, econômico e militar. Entretanto esse poder permanece
amplamente invisível.26 (HOLMES, 2006, p.20, Tradução Nossa)

Em sequencia aproxima-se ao terceiro ponto: contracartografias ativistas. A


finalidade foi de investigar como grupos e organizações ativistas se utilizam dos
mapas colaborativos para levantar suas questões e suas reivindicações. Para trazer
esta investigação para uma dimensão mais palpável, foram apresentados alguns
exemplos reais de contracartografias ativistas. Esta amostra, em uma leitura
conjunta trouxe interessantes tensões e evidencias de ações de visibilidade a um
universo que costuma ser velado em mídia e mapas hegemônicos. Para este

24
Foto AS8-14-2383- Realizada em 24 de dezembro de 1968
25
Foto foto AS17-148-22727 (Blue Marble) Realizada 7 de dezembro de 1972
26 “The internet is the vector of a new geography - not only because it conjures up virtual realities,
but also because it shapes our lives in society transforms our cities, and shifts our perception along
with the ground beneath our feet. Networks have become the dominant structures of cultural,
economic and military Power. Yet this Power remains largely invisible.” (HOLMES, 2006, p. 20)
105

momento foram apresentados: Ushahidi, Arriving in Berlim, nós por nós, entre
outros.

Sequencialmente o interesse se concentrou nas contracartografias no


âmbito artístico. Buscar entender como a arte contribuiu em suas ações
contracartográficas cpm Mediaão de mídias locativas. Para este momento da
pesquisa o intuito foi observar como artistas lidam com os aspectos de visibilidade
e invisibilidade informacionais, e além disso, como exploram várias dinâmicas
possibilitadas pelas mídias locativas.

Pesquisadores de Comunicação e estudos de Mídias, Paraskevopoulou,


Charitos e Rizoupoulos, consideram significativo que na maioria das vezes os
artistas possuem como motivação “a perspectiva de sensibilizar o público sobre
várias questões, como o processo de criação de mapas, localização e
posicionamento preciso, a capacidade de formar redes sociais na rede urbana, a
vigilância, o rastreamento de corpos ou objetos humanos ou como todas essas
questões afetam as escolhas dos povos e vida cotidiana”27 (PARASKEVOPOULOU;
CHARITOS; RIZOUPOULOS, 2008, p. 2, Tradução Nossa).

Para isso foram apresentados quatro projetos artísticos que através da


mediação de mídias locativas discutem desde a estrutura de representação do
mundo a partir das noções de percurso, até a dinâmica imposta pelos poderes
vigentes. Os projetos artísticos elencados para este trabalho foram: eles: Meridians
(Jeremy Wood); Monochrome Landscapes (Laura Kurgan); Projeto
correspondência (Manuela Costalima) e Canal Motoboy (Antoni Abad). Cada um
com uma linha de ação distinta, além de possuírem uma relevância e
potencialidades de práticas contracartográficas. As quatro práticas elencadas
foram aprofundadas individualmente e posteriormente realizado uma leitura
conjunta e articulada entre si.

Palavras-chave: Cartografias; Contracartografias, Mídias locativas, geolocalização; Arte;


Ativismo

Keywords: Cartographies; Countercartographies; Locative media; geolocation; Art; Activist

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRAMPTON, Jeremy; KRYGIER, John. An Introduction to Critical Cartography. An


International E-Journal for Critical Geographies, V.4, n1, p.11-33, 2006. Disponível em:
http://ojs.unbc.ca/index.php/acme/index. Acesso em: Mar.2015.

CRAMPTON, Jeremy W. Mapping: A Critical Introduction to Cartography and GIS. Wiley-


Blackwell Publication, 2010.

FARMAN, Jason; Mapping the digital empire: Google Earth and the process of postmodern
cartography. Sage Journals- New Media & Society - vol.12, 2010.

HARLEY, J.B. Text and Contexts in the interpretation of Early Maps. LAXTON,
Paul.(Ed.).The New Nature of Maps. Baltimore. The Johns Hopkins University Press,
2001.P.33-50.

____________. Deconstructing the Map. LAXTON, Paul.(Ed.).The New Nature of Maps.

27“the prospect of raising public awareness on various issues such as process of map-making, location
and precise positioning, the ability to form social networks in the urban grid, survaillance, the tracking
of human bodies or objects or how all these issues affect people choices and everyday life.”
(PARASKEVOPOULOU; CHARITOS; RIZOUPOULOS, 2008, p. 2)
106

Baltimore. The Johns Hopkins University Press, 2001.P.149-168.

HOLMES, Brian. Counter Cartographies in Else /Where: Mapping news cartographies of


networks territories. Minessota, University of Minessota Design Institute, 2006.

SCAFFI, A. Mapping Eden: Cartographies of the Earthly Paradise. In COSGROVE, Denis.


Mappings. London: Reaktion Books Ltd, 1999. P.50-70.

SMITH, C.D. Prehistoric Maps and the History of Cartography: An Introduction. In HARLEY,
J.B.; WOODWARD, D. (Ed.). The History of Cartography – vol.1 Cartography in Prehistoric,
Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean. Chicago: University of Chicago
Press, 1987. V1. P.45-49

WOOD, Denis. Rethinking The Power of Maps. New York: The Guildford Press, 2012.

WOODWARD, D. Cartography and the Renaissance: Continuity and Change. In


WOODWARD, D. (Ed). The History of Cartography – vol.3 Cartography in the European
Renaissance Part 1. Chicago: University of Chicago Press, 2007. V3. P 3-24.
107

Ciganos em Macafé (Serra – ES) e Bubu (Cariacica –


ES): acampamentos e deslocamentos
Gypsies in Macafé (Serra – ES) and Bubu (Cariacica – ES):
camps and displacements

Flávia Marcarine Arruda


flaviamarcarine@usp.br
lattes.cnpq.br/5511651720955062

Orientação
Carlos Roberto Monteiro de Andrade
candrade@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/1617988034944297

RESUMO

Esta pesquisa é um estudo dos deslocamentos e acampamentos dos ciganos


acampados em Macafé (Serra - ES) e em Bubu (Cariacica - ES) a partir da
comparação entre o que as bibliografias especializadas tem dito sobre o tema e o
que foi observado em campo através da inserção etnográfica com suporte na
antropologia simétrica, a fim de repensar os modos de apreensão empregados pela
ciganologia.

Segundo o senso comum e grande parte da ciganologia, se o cigano pratica


o deslocamento é considerado nômade, e se permanece fixado em um só lugar é
considerado sedentário. Categorizar os ciganos como sedentários ou nômades diz
muito pouco sobre o deslocamento dos ciganos no território, esvazia a
possibilidade de uma análise aprofundada e reproduz uma postura baseada em
estereótipos binários e homogeneizadores que tendem a considerar como “menos
ciganos” aqueles que se inclinam a uma vida “sedentária”.

Por isso, para dissertar sobre os acampamentos e os deslocamentos ciganos,


essa pesquisa buscou uma dupla perspectiva que tensiona pontos de vista ao
atentar não só para os conceitos e justificativas já desenvolvidos por teóricos sobre
o tema, mas também para as concepções e os motivos dos deslocamentos
empregados pelos ciganos. Tal postura justifica-se pela necessidade da revisão
desses conceitos, sobretudo do binômio nomadismo/sedentarismo, devido
algumas razões apontadas nessa pesquisa, como o desconhecimento de certas
terminologias pelos ciganos acampados em Macafé e Bubu.

Interessa saber, sobretudo, a dinâmica desses deslocamentos: quais os


motivos determinantes aos deslocamentos? Os deslocamentos são uma
característica cultural intrínseca a esses ciganos, como muitos autores acreditam
ser, ou são uma condição a que eles estão submetidos? É impulsionada por fatores
diversos, como os econômicos, sociais ou culturais? São deslocamentos
compulsórios ou voluntários? Essa itinerância ultrapassa o âmbito territorial e se
manifesta em outras esferas da vida? É uma forma de resistência ao modo de vida
imposto pela sociedade hegemônica?

A partir das concepções teóricas da “antropologia simétrica”, a experiência


em campo e a busca pelas concepções dos ciganos é guiada pela ideia de que o
conhecimento produzido é uma tentativa de “simetrizar” as concepções do sujeito
que observa com a dos sujeitos observados.
108

O conceito de “nomadismo” foi explorado por diversos autores que tem se


apropriado de tal conceito para analisar as territorialidades ciganas, porém essa
pesquisa procura problematizar e indicar limitações do emprego desse conceito
para tratar das territorialidades ciganas pelos motivos que seguem abaixo.

A palavra “nomadismo” deriva do vocábulo “nomos” que em grego


denomina pasto e do verbo “nemein” que designa pastar ou o ato de distribuir
sobretudo terras, carnes e bebidas. Nômade é então o chefe que organiza a
distribuição dos pastos (CARERI, 2013). E a causa do nomadismo pastoril, segundo
Terán (1953) teria se dado pela necessidade de alimentar os rebanhos.

A atividade pastoril é uma domesticação de animais - como a ovelha, a cabra,


o burro, o camelo e alguns animais bovinos, incluindo animais como o boi, o iaque
e o búfalo - que pudessem suprir a necessidade do homem, como na provisão de
alimentos; de recursos materiais como lã, couro, chifres e ossos para a fabricação
de roupas, calçados, habitações; de meios de transporte e combate; e fontes de
recursos para rituais de sacrifício animais. A alimentação suprida pelo pastoreio,
mais do que pelo fornecimento de carne que era mais consumida em grandes
cerimonias, consistia em leite e derivados. Em períodos de seca, era comum que o
nômade recorresse à colheita silvestre, e durante verão, ao cultivo de alimentos de
amadurecimento precoce, como alguns chás e farinha (Terán, 1953).

São muitos os autores que associam o nomadismo àqueles que praticam o


pastoreio ou a caça e o sedentarismo àqueles ligados à atividade agrícola, ainda
que nem toda vida pastoril seja nômade (TERÁN, 1953). Mesmo assim, deve-se
problematizar o uso do termo “nomadismo” quando se refere ao deslocamento
cigano. Pesquisas linguísticas sobre o vocabulário mais remoto dos ciganos
constataram a inexistência de qualquer palavra relacionada com atividades
produtivas como caça, pesca, agricultura, pecuária, propriedade da terra ou
artesanato. Apenas palavras para designar produtos feitos, como carne, ovo,
farinha, roupas e etc., possuem traduções na língua ancestral dos ciganos, o
sânscrito (VEKERDI, 1988).

Tais constatações se assemelham aos testemunhos de fontes em sânscrito


sobre os Domas (outra designação para os ciganos) e ajudaram na concepção das
teorias de que os ciganos não se envolviam com nenhuma produção
autossuficiente e sim com atividades a partir do que foi produzido por outras
sociedades, como através de serviços ou mendicâncias. Assim, os ciganos seriam
dependentes e só poderiam sobreviver dentro de uma sociedade preexistente de
economia consolidada (OKELY, 1983, p. 30). A condição geográfica parece ter
influenciado o modo de vida de certas populações, mas nem tanto para os ciganos
que se envolveram com atividades econômicas que não dependiam exclusivamente
das condições do solo, e sim de condições econômicas preexistentes para que
pudessem praticar o comércio por exemplo.

Os primeiros registros sobre a presença de ciganos na Europa, informam


ciganos envolvidos com atividades ambulantes, como artistas, músicos, sapateiros,
amoladores de facas, médicos, veterinários, leitura da sina, cartomancia,
contrabando, e etc. Há também relatos de grupos de ciganos que possuíam uma
quantidade significativa de cavalos, usados como transporte e negociados para
vendas, porém não mencionam essa atividade como uma forma de subsistência de
caráter pastoril (MOONEN, 2013). A criação dos animais equinos (cavalos,
jumentos, burros) funcionava como uma moeda de troca por outros produtos,
então por mais que precisassem de pasto para os animais, também era necessário
que estivessem perto de lugares onde pudessem comercializá-los (BORGES;
COSTA, 2011).
109

Por conta das controvérsias no uso desse conceito, alguns autores consideram
adequado que este termo só se mencionasse ao nomadismo que fosse pastoril, uma
vez que a raiz etimológica se refere a essa atividade.

Como o deslocamento cigano se relaciona muito mais com motivos sociais


do que naturais, alguns autores vão propor diferenciar o nomadismo relacionado
com as atividades produtivas primárias das atividades não-primárias. Ao invés de
denominar os ciganos como nômades ou itinerantes, eles seriam classificados como
grupos peripatéticos. Segundo Berland e Rao (2004), essa categoria melhor
descreve o deslocamento porque especifica sob qual razão econômica teria se
dado e diferencia do nomadismo pastoril e caçador/coletor. Para esta categoria
outros autores também irão empregar termos como “nômades comerciantes”,
“nômades não-produtores de comida” ou “nômades simbióticos”.

Mesmo que conceito de nomadismo tenha adquirido uma abrangência de


outras atividades econômicas e não só a pastoril, e mesmo que alguns autores
considerem não haver relação entre a ordem econômica e a condição nômade,
questiona-se se o atual sentido de nomadismo é suficiente para abarcar o
nomadismo cigano já que originalmente esse conceito parece não ter sido pensado
para o deslocamento dos ciganos.

O senso comum e alguns autores empregam o conceito de nomadismo com


facilidade quando se trata de grupos possíveis de serem recortados etnicamente e
que não são considerados como integrantes da nação onde vivem. Segundo Terán
(1953), o nomadismo não pode ser explicado sob uma justificativa étnica, pois em
um mesmo grupo étnico pode haver sedentários e nômades. No Norte da África,
tanto entre os árabes como entre os berberes pode-se encontrar nômades e
sedentários.

Maffesoli (2001) considera que a errância, ou nomadismo (qualquer nome


que se possa dar) não é exclusividade de nenhum grupo, é algo da estrutura mental
de natureza humana que todos praticam cotidianamente, seja nas migrações diárias
do trabalho ou do consumo, ou nas migrações sazonais das viagens, e seja por
vontade ou por obrigação. Apesar da “pulsão migratória” habitar a sociedade como
um todo, alguns grupos vivem essa pulsão de forma mais consciente.

Nota-se nessas definições a diferenciação identitária dentro de um recorte


étnico como um critério para considerar certos povos como nômades. O emprego
da noção de nomadismo passa pela compressão de que as culturas nômades se
fazem a partir da ideia do exótico, cujas diferenças em relação a cultura ocidental
as fazem serem percebidas como outra cultura. Mas, e quando esses nômades
vivem na mesma cidade, falam o mesmo idioma, tem a mesma religião, comem a
mesma comida que a nossa? Empregar o conceito de nomadismo carrega muitas
definições a priori, como o recorte étnico que enquadra os nômades como exóticos
e anulam a especificidade de cada grupo estudado. Considera-se importante
desconfiar das semelhanças e das diferenças, e é indispensável um olhar atento
para compreender os deslocamentos nas suas especificidades.

Apesar da tentativa de alguns autores em problematizar o conceito


nomadismo, este é um conceito que sequer faz parte do vocabulário dos ciganos
acampados em Bubu e em Macafé. A categoria “nomadismo” tende a totalizar e
enxergar o grupo estudado como um grupo homogêneo além de multiplicar um
discurso monopolizador, apenas sob o ponto de vista dos pesquisadores, que
divulgam a ideia de haver comportamentos universais. Nem mesmo os ciganos se
enxergam como um grupo homogêneo, e há uma disputa entre aqueles que seriam
os autênticos ciganos.
110

Gilbert (2014) concorda que o conceito de nomadismo não contribui muito


para a compreensão de pessoas “nômades”, pois é um conceito genérico e reforça
uma postura baseada em rotulá-los como sociedades primitivas que evoluiria para
uma sociedade civilizada e sedentária.

Não só teorias sociais, como também mitologias e lendas teriam contribuído


para a discriminação dos nômades. No mito de Caim e Abel, que terminou no
assassinato de Abel por Caim, Caim foi punido a andar errante pelo mundo sem
poder cultivar o solo (SAGRADA, 1991). É muito comum em mitologias o
nomadismo estar associado a uma condição punitiva.

Um discurso nunca é neutro e os esquemas de classificação modelam as


percepções dos leitores. Chartier (2004) reconhece que a produção literária do
século XV ao século XVII, empenhada em descrever os “marginais” difunde
representações que sugerem uma percepção da “realidade” do mundo para os
leitores. A literatura da marginalidade circunscreve e classificava os marginais
como “ladrões” e os isola do mundo, na medida em que autentifica um discurso do
marginal como “perigoso”. A classificação dos povos nômades como nômades não
está muito distante dessa perspectiva, ambos são reflexos de processos de
diferenciação por parte de grupos dominantes em relação aqueles que divergem
da ordem da sociedade e compõem ordenações do mundo de acordo com suas
próprias categorias. Até que ponto essas classificações correspondem ao modo de
vida dos “outros”? Bastaria dizer que essas etnias não tem uma habitação fixa e por
isso são nômades?

As representações sociais sobre a imagem dos ciganos empregados pelo


senso comum e pelo saber científico legitimou um discurso assimétrico, onde o
tratamento erudito se sobressai sobre o ponto de vista dos ciganos. Nesse cenário,
o nomadismo cigano adquire um estado mitológico através da narrativa no qual o
nomadismo seria uma punição divina de errância eterna pela terra aos ciganos pois
teriam roubado o quarto cravo destinado à crucificação de Jesus e os pés tiveram
que ser pregados apenas com um cravo, pois os outros dois estavam nas mãos
(FAZITO, 2006). Há também uma versão contrária desse mito, como conta o
professor de literatura Ático Vilas-Boas da Mota e membro do Centro de Estudos
Ciganos de Paris, de que o cigano que teria roubado o quarto cravo o teria feito
para que Jesus não sofresse tanto, e por isso teria sido perdoado e não punido
(CARVALHO, 1989). Porém, não há nenhuma menção aos ciganos no Novo
Testamento e provavelmente não havia ciganos durante a crucificação de Cristo, já
que teriam migrado da Índia só mil anos depois (MOONEN, 2013).

Categorizações, como o “nomadismo” justificado pelo viés mitológico da


errância como punição, contribuíram para caracterizar os ciganos através de
atributos negativos que teriam justificado a violência simbólica contra eles. Por isso,
as categorizações são mais do que regimes discursivos sobre as divisões
classificatórias do mundo, e podem se constituir como formas “legítimas” e
monopolizadoras do modo de se representar a imagem dos ciganos. Há também
uma associação da itinerância a preguiça e ociosidade: “Os ciganos [...] pelo hábito
de vagabundagem não gostam de ofícios sedentários...” (O Estandarte, 1871 apud
Durante, 2014, p. 95).

Os discursos, seja aquele empregado pelo senso comum ou pela tradição


erudita se inscrevem em relações de poder onde o nomadismo comparece como
um símbolo na representação dos ciganos. Por isso, as categorias possuem muitas
armadilhas e é importante simetrizar o conhecimento popular e o erudito. Ao invés
de tentar entender outras culturas apenas através da nossa cultura, esta pesquisa
se esforça em questionar sobre a validade das nossas categorias e considerar o
modo como os ciganos estudados compreendem a condição de deslocamento.
Com essa intenção, a próxima fase da pesquisa terá continuidade a partir das
111

experiências nos acampamentos e abordará o modo como os ciganos estudados


se referem aos seus deslocamentos e acampamentos.

Palavras-chave: Ciganos; Nomadismo; Sedentarismo; Acampamento.

Keywords: Gypsies; Nomadism; Sedentary; Camps.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLAND, Joseph C.; RAO, Aparna (Ed.). Customary Strangers: new perspectives on
peripatetic peoples in the Middle East, Africa, and Asia. Greenwood Publishing Group,
2004.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Edição pastoral. São Paulo: Paulus, 1991.

BORGES, Franco Andrei; COSTA, Kely Alves. Um pouco sobre os ciganos em Uberlândia-
MG. Revista Percurso, Maringá, v. 3, n. 2, p. 149-165, 2011.

CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Editora
Gustavo Gili, 2013.

CARVALHO, Rosangela. O Universo mágico dos ciganos. Revista THOT, n. 51, 1989.

CHARTIER, Roger. A construção estética da realidade–vagabundos e pícaros na idade


moderna. Revista Tempo: Dossiê Narrativas e Fontes Literárias, v. 9, n. 17, 2004.

DURANTE, Daniela Simiqueli. Ciganos nas terras do Espírito Santo: representações sócio-
políticas (1870-1936). Dissertação. (Mestrado em História Social das Relações Políticas) –
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

FAZITO, Dimitri. A identidade cigana e o efeito de “nomeação”: deslocamento das


representações numa teia de discursos mitológico-científicos e práticas sociais. Revista de
Antropologia. Vol. 49. N. 2. São Paulo, dec. 2006.

GILBERT, Jérémie. Nomadic peoples and human rights. Routledge, 2014.

OKELY, Judith. The traveller-gypsies. Cambridge: University Press, 1983.

MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro:


Record, 2001.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: os Ciganos na Europa e no Brasil. Recife: 2013.

TERÁN, Manuel de. Vida pastoril y nomadismo. Revista de la Universidad de Madrid, v. 1, n.


3, p. 375-393, 1953.

VEKERDI, Jozsef. The Gypsies and the Gypsy problem in Hungary. Hungarian Studies
Review, v. 15, n. 2, p. 13-26, 1988.
112

Design Computacional: processo de projeto e


interfaces de programação
Computational Design: design process and
programming interfaces

Gabriele do Rosario Landim


gabriele.landim@usp.br
lattes.cnpq.br/8489380996993463

Orientação
David MorenoSperling
sperling@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/0359360551958223
Co-orientação
Cláudio Toledo
claudio@icmc.usp.br
lattes.cnpq.br/0359360551958225

RESUMO

A pesquisa está inserida na área de Design Computacional através da


programação visual e textual, que permite investigar a adaptabilidade do processo
de projeto. O enfoque é em projetos que consideram integrar concepção,
performance e otimização em arquitetura, conhecidos como projetos orientados
ao desempenho (ou performance-driven architectural design).

Embora o design computacional seja tornado possível pela tecnologia, ele é


considerado uma metodologia de resolução de problemas (MILLER, 2016). O
arquiteto centrado em projetar a partir do pensamento computacional deverá ser
capaz de descrever problemas de projeto e a maneira como desenvolvem fluxos
de trabalhos para auxiliar em suas resoluções (BENJAMIN, 2012; MILLER, 2016).
Além disso, devido as potencialidades de ser mediado por regras e estabelecer
relações entre todas as partes do projeto, desde relações geométricas até as de
performance e desempenho, seu potencial está direcionado em conseguir prover
soluções mais completas e otimizar variáveis de maneira holística.

O uso da programação para resolução de problemas na arquitetura e design


é uma prática conhecida na área acadêmica desde a década de 1960 (KNUTH, 1968;
WEIZENBAUM, 1976; WINOGRAD, 1986; MITCHELL, 1987 apud BURRY, 1997) e
usada no processo de projetos arquitetônicos com mais frequência a partir da
década de 1990 (NATIVIDADE, 2010).

Impacto das Linguagens de Programação no Processo de Projeto em Arquitetura

Um dos eventos que impulsionaram a adoção do uso da computação no


processo de projeto em arquitetura, é o uso de linguagens de programação visual
(Visual Programming Languages ou VPLs). Trata-se de uma linguagem que permite
aos usuários manipular elementos graficamente ao invés de especificá-los
textualmente (Figura 1) e está presente em muitas áreas de conhecimento. Sua
popularização na arquitetura aconteceu principalmente após o lançamento dos
programas mais usados até agora, como GenerativeComponents (Bentley),
lançado em 2003 (AEC MAGAZINE, 2005), Grasshopper (McNeel), lançado em
setembro de 2007 e Dynamo para o programa BIM (Building Information Modeling)
113

Revit (Autodesk), lançado em 2011. O uso desses programas tornou a computação


acessível a um público mais vasto de arquitetos não programadores (AISH, 2013).

Figura 1 SEQ Figura \* ARABIC 1: Algoritmo descrito em programação textual (Design Script) e
programação visual (DynamoBIM).
Fonte adaptado de Modelab - DynamoPrimer http://dynamoprimer.com/index.html

Termos, conceitos e processos que são vistos por um projetista


humano como inconcebíveis, imprevisíveis ou simplesmente
impossíveis podem ser explorados, implementados e desenvolvidos
em estratégias de projeto totalmente novas dentro do mundo digital.
Em vez disso, o que está acontecendo é o uso de computadores
como ferramenta de marketing de formas estranhas cuja origem,
processo ou racionalidade de geração são inteiramente
desconhecidos e, portanto, são julgadas com base em sua aparência,
muitas vezes utilizando textos místicos, enigmáticos ou ofuscantes
para explicação. Nas duas últimas décadas, a arquitetura
transformou-se de uma profissão de design e prática baseada em
ferramentas orientada manualmente para um design baseado em
formas e uma prática global baseada em computador. Essa
transformação, embora impressionante, ainda não atingiu todo seu
potencial. Parcialmente devido à falta de educação computacional
de arquitetos ou à abundância de literatura confusa em design
digital, dificilmente há exemplos claros em como usar computadores
em todo o seu potencial como ferramentas de design (TERZIDIS,
2006, p. 39-40, tradução nossa28).

Embora publicado há pouco mais de uma década, algumas das inquietações


do arquiteto e professor grego Kostas Terzidis, autor do livro "Algorithmic
Architecture", permanecem atuais e ainda não foram totalmente esclarecidas nas
pesquisas da área de design computacional.

Existem duas principais limitações no uso de processos computacionais em


projetos de arquitetura. A primeira é a restrição geralmente observada em

28Do original em inglês: “Terms, concepts, and processes that are seen as inconceivable,
unpredictable, or simply impossible by a human designer can be explored, implemented, and
developed into entirely new design strategies within the digital world. Instead, what is happening is
the use of computers as marketing tools of strange forms whose origin, process, or rationale of
generation is entirely unknown and so they are judged on the basis of their appearance often
utilizing mystic, cryptic, or obfuscating texts for explanation. In the last two decades, architecture
has transformed from a manually driven tool-based design and practice profession to a computer-
driven form-based design and global practice. This transformation, while impressive, has not yet
reached its full potential. Partially because of the lack of computational education of architects or
the plethora of confusing literature on digital design, there is hardly any bright examples of using
computers in their full potential as design tools.”
114

programas CAD e BIM, que oferecem ferramentas pré-definidas para a construção


e edição de geometrias tridimensionais. O arquiteto e professor Mark Burry (1997)
define que o software feito sob medida para arquitetos geralmente são prescritivos,
ou seja, determinam uma ordem, norma ou regra de uso, e que projetos de
arquitetura podem estar orientados a essas limitações, mesmo sem intenção. Para
evitar ser inadvertidamente restringido, arquitetos podem aprender programação
e personalizar os programas para atender outras necessidades do projeto de
arquitetura (BURRY, 1997).

A segunda restrição já considera o uso da programação por arquitetos,


principalmente com o uso da programação visual. É comum que o arquiteto se
depare com problemas de lógica, de linguagem de programação e de estrutura de
dados, motivado por desconhecimento de bases comuns na área da computação.
Isso, muitas vezes, o induz a realizar mudanças no processo para acomodar erros
de código e resultados inesperados no projeto.

Existem evidências na literatura de arquitetura que indicam a tendência que


o projetista tem em modificar o processo de projeto para acomodar esses
problemas com o uso de programas (TERZIDIS, 2006; DAVIS, 2013; LEITÃO, 2013).

O professor português e pesquisador António Leitão (2013), observa que as


operações e geometrias primitivas disponíveis em programas CAD (Computer
Aided Design ou Desenho Assistido por Computador) podem influenciar o processo
de projeto: “os usuários tendem a adotar as técnicas de modelagem que eles sabem
que são uma boa aposta para a ferramenta de CAD particular que eles estão
usando, ao invés de se concentrar nas técnicas de modelagem que melhorem o
problema de design que eles têm” (LEITÃO, 2013, p.97, tradução nossa29).

Terzidis (2006) indica que a partir do uso da computação em projetos, a


origem, processo ou racionalidade de geração do objeto final pode ser inteiramente
desconhecidos (TERZIDIS, 2006, p. 40) e critica a falta de transparência do
processo de projeto por entender que muitas vezes os projetos são justificados
com base no resultado final, resultado de um processo que não esteve
necessariamente dentro dos controles do projetista.

O arquiteto e pesquisador Daniel Davis (2013), ao analisar a flexibilidade da


modelagem paramétrica escrita através de linguagens de programação visual,
indica que quando o projetista encontra problemas com o código, geralmente
precisa escolher entre reconstruir o modelo ou “comprometer suas intenções de
design para atender às limitações de um modelo paramétrico existente” (DAVIS,
2013, p. 42, tradução nossa30).

Limitações similares – que influenciam no processo de projeto – também são


relatadas no processo de desenvolvimento de software, através das linguagens de
programação textual (SEBESTA, 2011). Por exemplo, algoritmos podem estar
limitados por restrições nos tipos de estruturas de controle, estrutura de dados e
abstrações devido a linguagem escolhida para o desenvolvimento (SEBESTA, 2011).
Isso se dá pela capacidade que as pessoas têm em expressar ideias, ou seja, sua
linguagem:

29 Do original em inglês: “[…] users tend to adopt the modeling techniques that they know are a good bet for the
particular CAD tool they are using, instead of focusing on the modeling techniques that better solve the design
problem they have.”

30 Do original em inglês: “[…] compromising your design intentions to fit the limitations of an existing parametric
model.”
115

Acredita-se que a profundidade com a qual as pessoas podem pensar


é influenciada pelo poder de expressividade da linguagem que elas
usam para comunicar seus pensamentos. As pessoas que têm apenas
um fraco entendimento da linguagem natural são limitadas na
complexidade de seus pensamentos, particularmente na
profundidade de abstração (SEBESTA, 2011, p. 20)

Neste sentido:

Uma linguagem de programação é um meio formal para expressar


ideias e não apenas uma maneira em que um computador executa
operações. Isso significa que as linguagens de programação devem
corresponder ao processo de pensamento humano, que inclui a
capacidade de combinar ideias simples para formar formas
complexas e a capacidade de abstrair ideias complexas para que elas
se tornem mais gerais. (LOCKE, 1690, in LEITÃO; SANTOS; LOPES,
2011, p. 550, tradução nossa31)

Isso indica que conhecer mais amplamente a variedade de recursos de


linguagens de programação pode aumentar o domínio de processos mentais, ao
possibilitar que o programador aprenda outras construções de linguagem
(SEBESTA, 2011):

[...] o estudo de conceitos de linguagens de programação constrói


uma apreciação de recursos e construções valiosas das linguagens e
incentiva os programadores a usá-las, mesmo quando a linguagem
utilizada não oferece suporte direto para esses recursos e
construções (SEBESTA, 2011, p. 20).

Sendo assim, essa pesquisa busca se aproximar do desenvolvimento prático


através de algoritmos descritos por linguagens de programação visuais e textuais
em sistemas de modelagem paramétrica e generativa. Rolan Hudson (2010),
arquiteto e atualmente professor na Dalhousie University no Canadá, argumenta
que o conhecimento atrelado ao design computacional não pode ser adquirido
somente a partir de revisões de literaturas teóricas:

Vários acadêmicos pediram um vínculo mais forte entre pesquisa e


prática, Kvan (2004) sugeriu benefícios no fortalecimento de
vínculos entre pesquisa e prática em design assistido por
computador. Martens et al. (2007) recomendam que os arquitetos
precisam se envolver com o software e enfatizar a importância da
pesquisa em computadores e design (HUDSON, 2010, p. 32-33,
tradução nossa32).

Somente mais recentemente estão sendo estruturados conhecimentos mais


atrelados à prática da programação e computação onde arquitetos esclarecem os
pontos críticos das limitações de linguagens e paradigmas de programação
(WOODBURY, 2010; JANSSEN; WEE, 2011; DAVIS, 2013; JANSSEN; STOUFFS,
2015).

31Do original em inglês: “A programming language is a formal medium for expressing ideas and not
just a way to get a computer to perform operations. This means that programming languages should
match the human thinking process, which includes the ability to combine simple ideas to form
compound ones and the ability to abstract complex ideas so that they become more general (Locke,
1690).”

32Do original em inglês: “Various academics have called for a stronger link betweenresearch and
practice, Kvan (2004) suggested benefits in strengthening links between research and practice in
computer aided design. Martens et al. (2007) recommend that architects need to engage with
software and emphasise the importance of research in computers and design.”
116

Neste sentido, reunir detalhes sobre o funcionamento da computação


aplicada ao processo de projeto em arquitetura pode contribuir no entendimento
de como algoritmos e tipos de linguagens de programação podem apoiar o
pensamento do projetista na concepção e resolução de problemas em projetos.
Tornando o processo de projetar menos restringido por software e com as menores
limitações possíveis.

Palavras-chave: Programação; Design Computacional; Dados; Processo de projeto;


Performance-driven

Keywords: Programming; Computational Design; Data; Design process; Performance-driven.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AISH, R. First Build Your Tools. Inside Smartgeometry: Expanding the Architectural
Possibilities of Computational Design, v. 9781118522, p. 36–49, 2013.

BENJAMIN, D. Beyond efficiency. In: SCOTT MARBLE (Ed.). Digital Workflows in


Architecture : Design – Assembly – Industry. [s.l.] Birkhäuser, 2012. p. 14–25.

BURRY, M. Narrowing the Gap between CAAD and Computer ProgrammingProceedings


of the CAADRIA Conference, 1997.

DAVIS, D. Modelled on Software Engineering : Flexible Parametric Models in the Practice


of Architecture. 2013. RMIT University, 2013. Disponível em:
<http://www.danieldavis.com/papers/danieldavis_thesis.pdf>.

HUDSON, R. Strategies for parametric design in architecture: An application of practice


led research. 2010. University of Bath, 2010.

JANSSEN, P.; STOUFFS, R. Types of parametric modelling. CAADRIA 2015 - 20th


International Conference on Computer-Aided Architectural Design Research in Asia:
Emerging Experiences in the Past, Present and Future of Digital Architecture, n. May, p.
157–166, 2015.

JANSSEN, P.; WEE, C. K. Visual Dataflow Modelling: A Comparison of Three Systems.


Proceedings of the 14th International Conference on Computer Aided Architectural Design
Futures, p. 801–816, 2011. Disponível em:

]<http://cumincad.scix.net/cgi-bin/works/Show?_id=cf2011_p075>.

LEITÃO, A. Teaching Computer Science for Architecture: a proposal. Future Traditions:


1ST eCAADe Regional International Workshop, p. 95–104, 2013.

LEITÃO, A.; FERNANDES, R.; SANTOS, L. Pushing the Envelope: Stretching the Limits of
Generative Design. Knowledge-based Design - Proceedings of the 17th Conference of the
Iberoamerican Society of Digital Graphics SIGRADI. Valparaiso, Chile, p. 235–238, 2013.
Disponível em: <www.proceedings.blucher.com.br/article-details/pushing-the-envelope-
stretching-the-limits-of-generative-design-14129>.

MILLER, N. Positioning Computational Designers in your Business – 4 Things to Consider.


Disponível em: <https://provingground.io/2017/02/15/positioning-
computationaldesigners-%0Ain-your-business-4-things-to-consider/%0A>.

NATIVIDADE, V. G. Fraturas metodológicas nas arquiteturas digitais. p. 302, 2011.


Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16138/tde-16062010-
153027/pt-br.php>.
117

SEBESTA, R. W. Conceitos de linguagens de programação. [s.l: s.n.]

TERZIDIS, K. Algorithmic Architecture. First Edit ed. Oxford: Elsevier, 2006.

WOODBURY, R. Elements Of Parametric Design. New York: Routledge, 2010.


118

Mapeamento sobre os níveis de interações entre o


designer e o ambiente digital no
ensino de arquitetura
Mapping the levels of interactions between the designer and the digital
environment in the context of teaching in architecture

Tássia Borges de Vasconselos


tassiav.arq@usp.br
lattes.cnpq.br/1945299521663592

Orientação
David Moreno Sperling
sperling@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/0359360551958223

RESUMO

A representação de um objeto idealizado, inerente ao processo de projeto


em arquitetura, há décadas atrás era compreendida apenas como o resultado da
interação de um designer/arquiteto com o desenho em um papel Woodbury (2010),
muitas vezes fazendo parte do processo projetual, o famoso “croqui” como descrito
em Shenk (2010). Nesta direção Ching (2010) indica o papel importante da
representação, ainda em termos analógicos e podendo ser transposto ao digital,
como meio de exploração, desenvolvimento do projeto e comunicação de ideias.

Com a emergência de uma arquitetura embebida por uma revolução digital


surgem novas possibilidades de representação utilizando-se dos meios digitais
(KOLAREVIC, 2003). Assim, compreende-se a existência de um processo também
na interação entre o arquiteto e a representação digital. Florio (2009) esclarece a
importância da tecnologia no contexto da arquitetura a partir da década de 90,
auxiliando a exploração de formas complexas e consequentemente ampliando a
liberdade formal.

Diante destas novas experimentações que se desenvolvem a partir da


interação entre o projetista e a representação, Oxman (2006) avança no tema
sobre a evolução do processo de projeto no contexto de arquitetura. Assim
observa, principalmente, como distinguir o processo de projeto baseado nesta
interação, permitindo a identificação de quatro classes de interações: a) “Interação
com representação baseada no papel”, b) “Interação com representação digital”,
c) “Interação com a geração da representação digital” e d) “Interação com o
ambiente digital”.

Este estudo tem interesse nas interações realizadas por meio do ambiente
digital no âmbito da produção do ambiente didático em arquitetura, desta forma, a
primeira interação, estabelecida no papel e que não requer a utilização do ambiente
digital, não foi abordada neste momento.

As outras três classes descritas por Oxman (2006) foram posteriormente


denominadas por Kotnik (2010) como: representacional, paramétrica e algorítmica.
A interação representacional, é aquela realizada a partir de um esboço, desenho ou
modelo digital, cujo processo de projeto transpõe uma abordagem de
design/projeto convencional em papel para o espaço digital, podendo se assimilar
a composição de uma escultura. A interação paramétrica é uma representação
digital gerada por regras pré-definidas, onde as possibilidades podem ser
119

diferenciadas dentro de um espectro de variações dos parâmetros. A algorítmica é


caracterizada pela descrição formal gerada como uma estratégia de
projeto/design, sendo desenvolvida por meio de operações algébricas, analíticas e
geométricas que resultam em uma forma arquitetônica.

Embora existam essas classes, não foi encontrado a identificação ou


mapeamento dos tipos de interações que estão difundidos nas escolas de
Arquitetura, os quais terão grande influência no tipo de arquitetura que será
produzido em um país. Compreendendo a importância do estudo sobre os
processos de apropriação de tecnologia computacional, este trabalho tem o
propósito de realizar uma revisão sistemática para elaboração de um panorama
destas interações. O trabalho tem um foco no processo de ensino na graduação em
Arquitetura e Urbanismo, e utilizou-se da classificação apresentada anteriormente.

No presente estudo, foi desenvolvida uma metodologia que se baseia em


uma pesquisa descritiva em âmbito exploratório como descrito em Gil (2010), com
o objetivo primordial de explicitar e classificar experimentações no ensino de
arquitetura que se aproximem ao processo projetual por meio de tecnologias
digitais. Assim, foi realizada uma revisão sistemática, a qual se estabelece na
literatura por ser replicável e transparente (SAMPAIO E MANCINE, 2007). Para esta
revisão, foram realizadas cinco etapas:

A. Seleção da base de dados: Foi selecionado o repositório de artigos internacionais


CUMINCAD devido a sua importância específica na área de Computer Aided
Architectural Design. É importante destacar a abrangência mundial deste
repositório escolhido para apresentar um panorama real do tema, segundo
indicações de Webster e Watson (2002).

B. Identificação dos artigos: A busca na base de dados foi realizada em inglês no


repositório CUMINCAD, por meio de um grupo de palavras-chave que diz respeito
às questões de ensino, contendo quatro palavras-chave, em seu radical, conforme
o indicado pelo repositório: educa* (education, educate...), teach* (teaching,
teacher...), learn* (learning, leared...) e dida* (didatic). É importante destacar que as
palavras CAD, CAAD e DAD estão implícitas ao acervo em questão. Após a
identificação inicial dos artigos por meio das palavras chaves, foram excluídos os
duplicados.

C. Seleção dos artigos: A partir dos artigos inicialmente identificados, procedeu-se


a uma etapa de leitura de títulos e resumos. Foram selecionados estudos publicados
no período (2006- 2015), buscando dados atuais ao encontro da emergência do
tema. Não foram selecionados os anos de 2016 e 2017 pois os mesmos não estavam
completos no repositório. Os critérios de inclusão, devido ao enfoque deste
trabalho, foram: estudos estabelecidos em cursos de graduação em Arquitetura e
Urbanismo na América Latina, podendo ser atividades desenvolvidas nas disciplinas
ou cursos experimentais e workshops, além de estudos que descrevessem o
contexto de práticas de ensino, cujas comunicações fossem em língua inglesa,
espanhola ou portuguesa.

D. Inclusão dos artigos: A partir dos artigos selecionados, após a leitura de título e
resumo, foi realizada uma leitura completa dos artigos, sendo incluídos apenas os
que cumprissem especificamente os critérios anteriormente citados.

E. Classificação: Com base no estudo de Oxman (2006) sobre os avanços do


processo de projeto estabelecidos em ambiente digital, e as categorias descritas
anteriormente por Kotnik (2010), foi realizada a classificação dos processos digitais
de projeto desenvolvidos nas práticas de ensino relatadas pelos artigos
selecionados na amostra, dividindo-os em: representacional, paramétrico e
algorítmico.
120

No processo de desenvolvimento da revisão sistemática, diante de um


universo de 13052, foram incluídos 93 artigos. Todo o desenvolvimento destas
etapas de trabalho foi apresentado minuciosamente em Vasconselos e Sperling
(2017).

Durante a classificação e mapeamento dos artigos incluídos, observou-se


que as classes de interação (representacional, paramétrica, algorítmica) não
correspondem completamente à variedade de casos encontrados. Pois em muitos
dos casos relatados existia a coexistência e/ou a transição entre classes, nesta
direção foi decidido estender a classificação inicialmente prevista, incluindo duas
categorias intermediárias. Assim, a classificação estabelecida foi constituída por:
Interação Representacional; Interação representacional e Paramétrica; Interação
paramétrica; Interação Paramétrica e algorítmica; Interação Algorítmica. Diante
desta classificação, foi desenvolvido o mapeamento geográfico dos artigos
incluídos, apresentado na Figura 1, de acordo com a nacionalidade dos
experimentos e dos estudos descritivos de contextos didáticos, no contexto da
América Latina.

Alguns artigos apresentaram experiências realizadas em cooperação entre


instituições de países distintos. Então, para melhor apresentar o contexto real de
cada país, estes experimentos / descrição de contexto foram contabilizados mais
de uma vez, totalizando uma amostra de 113 experimentos / descrição de contexto.
O resultado é subdividido da seguinte forma: 54 casos apresentam experiências no
Brasil, 19 na Argentina, 11 no Chile, 7 no Peru e Venezuela, 5 na Colômbia, 4 no
México, 2 na Guatemala, 2 no Uruguai e 1 na Costa Rica, conforme apresentado na
Figura 1.

A partir do mapeamento constituído na Figura 1, podemos identificar


cenários bastante distintos considerando individualmente cada país. Identifica-se
alguns países como mais ativos na produção de artigos, considerando os artigos
incluídos no estudo diante do repositório utilizado. Pode-se ressaltar inicialmente o
Brasil com 47,8%, a Argentina com 16,8 % e o Chile com 9,7%, totalizando quase
75% das experiências incluídas. Estes são os mesmos países que apresentam uma
maior variedade de abordagens para as interações, sejam focadas em uma
abordagem ou em abordagens combinadas. Nesses países, as interações com um
nível de computação mais avançado são mais de 45% de sua amostra. No lado
oposto estão os países da região que publicam menos, principalmente com
abordagens que transpõem métodos analógicos para o processo de design na
mídia digital, indicando que eles ainda não incorporaram o DAD de forma efetiva.
Costa Rica (0,9%), Uruguai e Guatemala (1,8% cada) são exemplos dessa condição.
O Equador (0,9%) tem participação numérica similar na amostra, mas mostra uma
experiência de ensino que combina interações representacionais e paramétricas.

O Peru e a Venezuela (6,8% cada), seguido pela Colômbia (4,4%), estão em


posição intermediária em termos numéricos, embora apresentam situações muito
diferentes. Enquanto a Venezuela mantém uma imagem integral de experimentos
com interações representacionais, na Colômbia e no Peru, experiências envolvendo
algum tipo de interação paramétrica representam respectivamente 60% e 43% de
sua amostra, colocando-as em condições semelhantes ao primeiro grupo.

O cenário do México (3,5%) é bastante diferente do resto. Sua amostra foi


bastante alterada devido à incorporação de uma oficina de verão proposta por um
professor temporário com formação fora da América Latina, que afirmou que essa
experimentação algorítmica não seria representativa do contexto local. Sem
contabilizar esta atividade - que não produziu nenhum efeito posterior medido por
este mapeamento - o cenário mexicano nesta amostra se torna apenas de
interações representacionais.
121

Figura 1 Mapeamento das interações na América Latina.


Fonte adaptado de (VASCONSELOS e SPERLING, 2017).

Os resultados que foram apresentados neste momento, são correspondentes


a uma das etapas do desenvolvimento de uma tese, porém acreditamos que este
estudo já fornece subsídios para uma compreensão inicial do contexto de ensino
de projeto em ambiente digital da América Latina. Acredita-se, ainda, que o estudo
futuramente poderá contribuir para motivar a inserção das diferentes classes de
interações digitais no processo de projeto nos contextos de ensino que ainda não
o fazem.

Ainda diante dos resultados apresentados, podemos compreender que a


revisão sistemática como metodologia de pesquisa, e consequentemente o
resultado principal deste trabalho que se estabeleceu como um mapeamento
mostraram ser um modo relevante de pesquisa. A coleta e conexão de informações
dispersas é uma maneira relevante de produzir novos conhecimentos para a
tomada de decisões em uma era em que informações são caracterizadas pela
quantidade e dispersão. Este mapeamento teve como objetivo avançar na
compreensão do estado da arte sobre o ensino de design em mídia digital na
América Latina, levando os conceitos e procedimentos associados às três classes
de interações de design digital propostas por Kotnik (2010) de Oxman (2006).
Consideramos também que o estudo avança identificando nuances não imaginados
em seu princípio, como a existência de estratégias de ensino que utilizam mais de
uma interação na mesma atividade.
122

Pretende-se com a continuidade deste trabalho avançar no entendimento


das consequências da apropriação dos conceitos e procedimentos associados aos
diferentes níveis de interações.

Palavras-chave: Design arquitetônico assistido por computador; Níveis de Computabilidade


de Design; América Latina; Mapeamento.

Keywords: Computer Aided Architectural Design; Levels Of Design Computability; Latin


America; Mapping.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHING, F. Representação Gráfica em Arquitetura. Tradução técnica: Alexandre Salvaterra


– 5.ed. Porto Alegre: Bookman, 2011.

FLORIO, W. Modelagem Paramétrica no Processo de Projeto em Arquitetura. In: SBPQ


2009, São Carlos: USP, 2009, p. 571-582.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.

KOLAREVIC, B.: Architecture in the digital age: Design and manufacturing. Abingdom,
Oxon: Taylor & Frances (2003).

KOTNIK, T.: Digital Architectural Design as Exploration of Computable Functions, in


International Journal of Architectural Computing vol. 8 - no. 1, 1-16 (2010).

OXMAN, R.: Theory and design in the first digital age. DESIGN STUDIES 27. Londres:
Elsevier (2006).

SAMPAIO R. F., MANCINI M. C. Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese


criteriosa da evidência científica. Rev Bras Fisioter. 2007;11(1):83-9.

SHENK, L. R.: Os croquis na concepção de arquitetura. São Paulo: ANNABLUME (2010).

VASCONSELOS, T. B.; SPERLING, D. M. From representational to parametric and


algorithmic interactions: A panorama of Digital Architectural Design teaching in Latin
America. International Journal of Architectural Computing, p. 147807711773465-15, 2017

WEBSTER, J. and WATSON, J.T.: Analyzing the past to prepare for the future: writing a
literature review. MIS Quarterly & The Society for Information Management, v.26, n.2,
pp.13-23, 2002.

WOODBURY R. Elements of Parametric Design. New York: Routledge, 2010.


123

Políticas de habitação social: permanências de


tipologias em um século de experências –
um estudo em São Carlos
Social housing policies: permanency of
typologies through a century of experiences–
a study in SãoCarlos

Daniela Sarone Fiori


daniela.fiori@usp.br
lattes.cnpq.br/7135510360671801

Orientação
Eulalia Portela Negrelos
negrelos@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7745281336239073

RESUMO

Aliar crescimento econômico à melhores condições sociais, especialmente


de habitação, é o grande desafio do Brasil (Souza, 2008). Mesmo sendo um Direito
Social defendido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e estando
presente na Constituição da República Federativa do Brasil a partir de fevereiro de
2000, o problema do déficit habitacional brasileiro e da falta de moradia digna,
ainda afeta 90% das famílias mais pobres (BRASIL, 2011 apud REIS,2013).

A presente pesquisa centra-se em um registro da trajetória dos cem anos de


produção de habitação de interesse social do Brasil (periodização segundo
Bonduki, 2014) buscando resgatar sua memória e refletir sobre os distintos
períodos que foram essenciais para sua construção, buscando um melhor
entendimento sobre a questão e contribuindo para uma visão mais detalhada do
curso da política pública habitacional, acreditando-se que “não se avançará no
enfrentamento do problema habitacional brasileiro, com a qualidade que tem
faltado, sem a memória e a reflexão sobre o que já se produziu.” (BONDUKI, 2014,
s/p.)

Para o estudo em questão, adotamos o caso do município de São Carlos


onde a concepção de sua política de habitação de interesse social acompanhou o
desenrolar e asrepercussões de diferentes períodos históricos. A alteração de seu
espaço urbano, fruto de intensas transformações ocasionadas pelo processo de
industrialização e resultado do investimento da economia cafeeira em
infraestrutura e modernizações, provoca um exponencial crescimento demográfico
e traz consigo a emergência de um novo tipo de cidade e, consequentemente,
problemas habitacionais.

Assim, recorremos a quatro procedimentos que combinados entre si, nos


proporcionariamas condições necessárias para o entendimento da temática.
Relacionamos a trajetória da habitação de interesse social no Brasil à trajetória
construída em São Carlos; dividimos o estudo em quatro períodos diferentes que
foram essenciais para a configuração do quadro atual da habitação social no Brasil
e em São Carlos; Pautamo-nos em um quadro de referênciasteórico–
metodológicoconsistente;emapeamososconjuntosproduzidosemSão Carlos desde
1930 até 2014, tentando comprovar a proposição central do estudo: a existência de
uma recorrência tipológica, nos conjuntos habitacionais promovidos pelo
124

Programa Minha Casa Minha Vida, mesmo após um século de experiências de


habitação social noBrasil.

A periodização foi baseada nos estudos de Nabil Bonduki apresenta dos no


livro “Os pioneiros da habitação social – Cem anos de política pública no Brasil” e é
dividida em:

1889 - 1930 “A produção rentista da habitação”: Industrialização e sua interferência


nas cidades. Brasil como um Estado liberal. Reconhecimento dos problemas
habitacionais, provocados pelo despreparo das cidades perante a modernização,
como grave ameaça para a saúde pública.

Em SãoCarlos, as várias epidemias que abalaram a cidade, como o primeiro


surto de varíola em 1874, e depois em 1879 e em 1911, e a de febre amarela de 1895
a 1898 ao mesmo tempo em que mataram muitas pessoas e espantaram outras
tantas para cidades vizinhas, estimularam a preocupação da administração local
através da determinação de normas e medidas sanitaristas que pretendiam
“minimizar a precariedade das condições de higiene”. (BORTOLUCCI,1991, p.16). Os
cortiços, mesmo proibidos por lei municipal se multiplicavam pela Rua General
Osório e arredores, tornando-se uma das principais preocupações da burguesia e
das camadas médias locais que exigiam um maior estímulo da Prefeitura para a
construção de casas populares. (DEVESCOVI,1987)

É nesse contexto que começarão a surgir na cidade questionamentos


relativos à carência de habitação e à precariedade das existentes, que farão com
que os governantes, pressionados pela burguesia, incentivem a construção de
moradias operárias de aluguel, através de atos promulgados pela CâmaraMunicipal.

1930 – 1964 “Primórdios da ação do Estado na questão habitacional”: Nova e


significativa abordagem para o problema habitacional. Difusão do ideal de casa
própria, dos direitos dos trabalhadores, inclusive à moradia digna, e da arquitetura
Moderna. Criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s) e da
Fundação da Casa Popular (FCP).

Em São Carlos, os movimentos industrializantes chegaram com intensidade


um tanto quanto significativa a partir dos anos de 1940. Até os anos de 1920, as
atividades industriais que se desenvolviam na cidade estavam relacionadas à
dinâmica econômica do complexo cafeeiro. No final dos anos de 1930 e início da
década de 1940 irá se iniciar um processo de reorganização e reestruturação da
base produtiva em São Carlos, com bases industriais em detrimento da burguesia
agrária. São Carlos urbanizava-se rapidamente, espontaneamente e de forma não
planejada. A cidade configurou-se em uma malha quadrangular a partir do eixo
principal norte-sul marcado pela Avenida São Carlos. Na década de 1940 já se havia
a preocupação com a enorme quantidade de terrenos desocupados no interior da
cidade que se deu, entre outros motivos, pelos interesses particulares dos
proprietários fundiários. (DEVESCOVI,1987)

Embora não tenha se tornado uma política habitacional efetiva devido à falta
de uma estratégia e de um órgão forte de construção de habitações em nível
nacional, aprodução de moradias dos anos de 1940 e 1950 se destacou devido à
sua qualidade de projeto que definiu “novas tipologias de ocupação do espaço
urbano e tendências urbanísticas inovadoras” (BONDUKI, 2014, p.50). Muito
influenciada pela arquitetura moderna, grande parte da produção habitacional
desse período foi projetada por arquitetos modernistas que se preocupavam em
proporcionar um lugar favorável ao modo de vida operário, além de se atentar-se
à implantação de equipamentos sociais, de recreação e espaços livres de uso
comum, e de propor uma experimentação de novos tipos de materiais construtivos,
aliando racionalidade, modernidade e viabilidade econômica. (SOUZA, 2007)
125

Para análise, foi escolhido o Núcleo Residencial São Carlos, localizado no


Jardim Macarengo SãoCarlos, SP, onde foram construídas 27 unidades
habitacionais pela Fundação da Casa.

1964 – 1986 “Política habitacional do Regime Militar”: Consolidação de uma política


habitacional iniciada no período anterior. Modelada de acordo com a ideologia do
regime, tentava solucionar o problema habitacional que ia se intensificando.
Criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e das Companhias de Habitação
(COHABs), no quadro de um novo Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e do
Saneamento (SFS).

Apesar de ter sido positiva a criação de uma política habitacional com


recursos permanentes de financiamento de habitações de interesse social pelo
regime militar, a produção massiva de moradias na grande maioria dos conjuntos
habitacionais produzidos nesse período, aliada à sua localização nas periferias da
cidade; ao desenvolvimento de projetos mínimos com poucas alternativas
tipológicas arquitetônicas ou urbanísticas (NEGRELOS, 2010); ao desrespeito à
identidade cultural dos habitantes; à imposição governamental de produção do
maior número possível de moradias; e à desconsideração da importância da
participação popular no planejamento do conjunto fizeram com que muitos
estudiosos considerassem “a experiência do BNH um desastre absoluto”
(BONDUKI, 2014) que viabilizou “megaconjuntos habitacionais com ‘projetos-
padrão’ baseados no esquema ‘terra arrasada + unidade mínima’”.
(NEGRELOS,2010)

Para análise, foram escolhidos o “Conjunto Residencial Castelo Branco”


(1976), resultado da atuação da Cohab Bandeirante no município de São Carlos. A
construção de 277 unidades habitacionais unifamiliar horizontal é exemplo da
característica de produção massiva e extensiva do período.

1986 - 2002 “Novas perspectivas para a questão habitacional”: Redemocratização


do país a partir de ideais de participação popular conduzindo às iniciativas mais
democráticas e de escalas mais reduzidas com recursos próprios ou com fontes
alternativas de financiamento, possibilitando novas experimentações com
propostas vindas da sociedade para a construção de novos modelos de política
urbana e habitacional. (SANVITTO, 2010; BONDUKI, 2014) As novas propostas de
políticas habitacionais baseavam-se em paradigmas como “a função social da
propriedade, o direito à habitação digna, a universalização do acesso ao
saneamento básico e ao transporte público de qualidade e a gestão democrática
da cidade” (BONDUKI, 2014, p.80), apresentando uma maior participação popular
e significando um grande avanço se comparado com as propostas da política
habitacionalanterior.

Entretanto, em São Carlos, apesar da existência de processos participativos,


os conjuntos construídos sob a forma de mutirão não previam a participação da
população na elaboração do projeto das unidades e nas decisões relativas ao lugar
que ela iria morar, mas sim, utilizava-se da forma de autoconstrução para redução
do valor da obra, dado os poucos recursos destinados à implantação de Conjuntos
Habitacionais da época.

Para estudo de caso, foram escolhidos o Conjunto São Carlos III – Vila Felícia
(1987), de responsabilidade da PROHAB (Progresso e Habitação São Carlos), criada
em 1985, para lidar com a política habitacional do município; e o Conjunto São
Carlos V – Arnon de Melo (1996), de responsabilidade da COHAB RibeirãoPreto.

2003 – 2010 “O direito à habitação e suas contradições”: Introdução do direito à


habitação na Constituição, formulando–se uma nova política habitacional. A
inclusão do direito à moradia (2000), a aprovação do Estatuto da Cidade (2001), a
126

criação do Ministério das Cidades (2003) e a formulação de uma nova Política


Nacional de Habitação (2004) e do Plano Nacional de Habitação (2008) são
marcos importantes do período. (BONDUKI,2014)

Em São Carlos, 2010, consoante com as diretrizes estabelecidas pelo


Ministério das Cidades através da Secretaria Nacional de Habitação e com as
instruções do Manual de Apresentação de Propostas (2007) é elaborado pela Teia
Casa de Criação, equipe de assessoria contratada pela Prefeitura Municipal de São
Carlos através da Progresso e Habitação de São Carlos S/A (PROHAB), um
diagnóstico sobre a questão habitacional na cidade de São Carlos, o Plano Local de
Habitação de Interesse Social (PLHIS).

Na segunda metade de 2008, a crise internacional chega ao Brasil


estagnando o setor imobiliário e gerando incertezas para o setor através da queda
no valor das ações das empresas imobiliárias. (REIS, 2013) O Programa Minha Casa
Minha Vida surge em meio à esse quadro desfavorável, como um programa
econômico de ação emergencial apresentado como Medida Provisória para o
enfrentamento da crise de 2009 que ficou conhecida como crisedos
“subprimesamericanos”, aliando política habitacional e ativação da economia
através da geração de empregos em toda a cadeia do setor construção civil.
(AMOREet al., 2015)

Analisando o PMCMV na cidade de São Carlos, LOPES e SHIMBO (2015)


perceberam as contradições do programa que, ao proporcionar a produção de um
número expressivo de unidades habitacionais na cidade, só fez agravar problemas
como a segregação espacial ea desigualdade social. Analisando a quantidade de
unidades construídas, foi possível notar que a cidade “cresceu” 10% em apenas 3
anos de atuação do programa, ou seja, foram construídas 7 mil unidades em uma
cidade que registrava, em 2010, 70 mil domicílios, enquanto que a população
cresceu apenas 15%, ocasionando, segundo eles, uma intensa “produção de cidade”
e o mais preocupante: esses conjuntos nem sempre eram construídos em lugares
adequados e na maioria das vezes, não atendiam à demanda dos mais necessitados.

O programa foi, inquestionavelmente, um marco importante para a


introdução do subsídio com elemento essencial para a produção de uma política
habitacional mais inclusiva, retomando a produção em massa e produzindo entre
2009 e 2010 mais de um milhão de unidades habitacionais destinadas à diferentes
faixas de renda. Entretanto, se deu muito mais importância às questões
quantitativas e aos impactos diretos na economia através do aquecimento do
mercado da construção civil e da geração de empregos, deixando-se de lado os
aspectos qualitativos, produzindo habitações sem qualidade arquitetônica e
urbanística, despreocupadas com diferenças sócio-culturais, desarticuladas da
malha urbana e sem identidade com as comunidades locais. (BONDUKI,2014)

Para análise, foram escolhidos o Condomínio Residencial Oscar Barros


(2004) e o Condomínio Residencial Jardim das Torres (2005), ambos financiados
pelo Programa de Arrendamento Residencial (PAR); São Carlos VIII, com a
construção de 224 unidades habitacionais nas quadras 15 e 16 financiadas pelo
mesmo programa, e as quadras 8 e 9, destinadas ao Projeto Moradia Solidária
(2004), para a construção de 224 unidades construídas sob o sistema de mutirão.
O Residencial Jardim Deputado José Zavaglia (Jardim Gramado), primeiro
conjunto construído pelo PMCMV em São Carlos, sendo inaugurado em 2011, um
dos maiores conjuntos habitacionais de São Carlos, foi estudado com mais cuidado,
por exemplificar toda a tese discutida nesta pesquisa. Foram construídas mil
unidades habitacionais destinadas a famílias faixa 1, localizado fora da malha
urbana, não possuindo equipamentos públicos como escolas, unidades de saúde e
creches quando fora inaugurado.
127

Foi possível perceber, através do estudo feito neste trabalho, que a trajetória
da política habitacional brasileira é marcada por alterações no modo de intervenção
do Estado que, sem êxito na redução do déficit habitacional, produziu de forma
maciça (com algumas exceções) cidades desiguais, colocando a população mais
pobre nas piores condições urbanas, nas franjas da cidade, em conjuntos
habitacionais com o mínimo de infra-estrutura e sem equipamentos de lazer,
educação e saúde, e com transporte público precário que não atende às exigências
de uma população que depende dos serviçospúblicos.

A implantação do Conjunto Habitacional Jardim Zavaglia marca, em São


Carlos, a “reutilização de tipologias habitacionais que pensávamos ‘arquivadas’ em
um passado de produção massiva, repetitiva e periférica, após o importante
percurso da Reforma Urbana no país” (NEGRELOS; FERRARI 2013, p. 15) indicando
uma recorrência da lógica do padrão extensivo horizontal (como foi possível
observar no decorrer da elaboração deste trabalho, em que essa tipologia é
grandemente difundida nos conjuntos habitacionais da cidade), com unidades
isoladas no lote, marcando um modelo de produção que é pautado pela grande
quantidade de unidades produzidas em terra barata através da racionalização
produtiva e econômica.

Palavras-chave: Políticas de Habitação Social; trajetória; permanência de tipologias

Keywords: Social Housing Policies; trajectory; permanency of typologies

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C. Minha casa... E a cidade? Avaliação do


Programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. RJ: Letra Capital, 2015

SOUZA, M. D. [Des]interesse social: procedimentos metodológicos para análise de peças


gráficas de apartamentos.2007.Dissertação(Mestrado em Teoria e História da Arquitetura
e do Urbanismo) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São
Carlos,2007

SOUZA, S. U. N. Direito à moradia e de habitação: Análise comparativa e suas implicações


teóricas e práticas com os direitos da personalidade. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
tribunais, 2008.

BONDUKI, N. Os pioneiros da habitação social – cem anos de política pública no Brasil.


Editora UNESP. São Paulo –SP. 2014

BORTOLUCCI, M.A.P.C.S. MORADIAS URBANAS construídas em São Carlos no período


cafeeiro. Tese (doutorado em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) –
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.

DEVESCOVI,R.C.B.Urbanização e Acumulação: Um estudo sobre a cidade de SãoCarlos.


Arquivo de História Contemporânea – UFSCar, São Carlos,1987.

REIS, F. N. S. C. Programa “Minha Casa, Minha Vida”: estrutura lógica, focalização e


percepção dos beneficiários. Dissertação apresentada à Universidade Federal de Viçosa,
como parte das exigências do Programa de Pós – Graduação em Administração, para
obtenção do título de Magister Scientiae. Viçosa, 2013.
128

NEGRELOS,E.P.HabitaçãoSocialpós–1964nomunicípiodeSãoPaulo.Contribuiçõesao
debatesobreomodernoeaproduçãodacidade.XISEMINÁRIODEHISTÓRIADACIDADE E DO
URBANISMO: IDEIAS TEM LUGAR? Espírito Santo,2010.

NEGRELOS, E. P.; FERRARI, C. Resiliência de tipologias habitacionais e urbanas do


alojamento popular no Brasil. In Anais do XV ENANPUR - Desenvolvimento, planejamento
e governança. 30 anos da ANPUR. Recife, 2013.

SANVITTO, M.L.A. Habitação coletiva econômica na arquitetura moderna brasileira entre


1964 e 1986. Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Programa de Pesquisa e Pós- Graduação em Arquitetura (PROPAR). Tese de Doutorado.
Porto Alegre, 2010.
129

Condomínios residenciais e novas espacialidades


urbanas: privatizações e transformações
territoriais em Palmas
Gated communities and new urban spatialities: privatization and territorial
transformations in Palmas

Érica Emi Takahashi Nakamine


erica_tak@usp.br
lattes.cnpq.br/2742972964414298

Orientação
Manoel Rodrigues Alves
mra@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/7815309672113678

RESUMO

Ao discutir a produção do espaço urbano contemporâneo, a ascensão da


esfera privada colonizando espaço e relações sociais evoca questionamentos sobre
que cidade e que tipos de relação sociespaciais estão sendo construídas. A exemplo
dessa dominação da esfera privada, os condomínios horizontais
fechados, shopping centers e espaços de lazer privados são notadamente produtos
imobiliário de grande impacto no cenário urbano brasileiro nas últimas décadas. A
ascensão da procura e consumo destes espaços-produto, pode ser vista por
diversos olhares: da produção do espaço urbano - ordenado em função de espaços
privados, da segregação socioespacial, da relação destes elementos com seu
entorno urbano; bem como através do olhar das subjetividades e comportamentos
que atravessam esses processos – a lógica do consumo, medo e normativas sociais,
as inferências da tecnologia e cyberspace, processos de individualização, entre
outros. Este estudo tem como objeto a capital do Estado do Tocantins, Palmas,
cidade planejada e efetivamente ocupada no contexto do Brasil a partir dos anos
1990.

Tal contexto nos remete a investigar uma capital planejada - considerando


as nuances inerentes à essa condição -, de projeto com feições modernistas, mas
corporificada em um contexto social, político, econômico e cultural transformado,
influenciado pelos paradigmas da vida contemporânea em suas diversas formas,
em um ambiente de convergência de pessoas e culturas de todo Brasil. Busca-se
estudar os usos e apropriações em algumas quadras palmenses, observando as
dinâmicas que tencionam ou mesmo potencializam determinadas espacialidades,
bem como as transformações espaciais decorrentes dessas interações cotidianas.
A realização de forças homogeneizadoras, das privatizações do espaço e a relação
com as formas de viver mais privadas (subjetividades, normativas, entre outros),
análogas aos condomínios horizontais fechados, também serão exploradas.

Para tanto, analisa-se dentro do processo de urbanização da capital


tocantinense, as principais transformações espaciais frente ao projeto urbano, os
desdobramentos socioespaciais do modelo de ocupação operado nos primeiros
anos da capital, bem como a produção de espaços privados como os condomínios
horizontais fechados no contexto de uma cidade planejada (à luz de um
modernismo extemporâneo). Perpassando a discussão sobre as subjetividades
contemporâneas que conformam um novo viver no mundo, passando pelos seus
desdobramentos na condição socioespacial de Palmas, o trabalho de campo
130

desponta como dimensão empírica-analítica revelando o peso das interações


sociais que se sobrepõem ao espaço planejado, revelando particularidades de usos
e apropriações e questionando a correspondência entre qualidade dos aspectos
físicos (do ponto de vista das proposições do projeto para Palmas e também de
recomendações para cidades seguras e com vitalidade urbana) e urbanidade nas
localidades analisadas.

Introdução

O estudo das cidades contemporâneas tem discutido muito a emergência da


produção de espaços e subjetividades colonizados pela dimensão privada. A
tendência de produção de espaços urbanos com “um novo padrão de segregação
urbana, mais fragmentados e dispersos” (FREITAS, 2008, p.13), tem relação direta
com a hegemonia do consumo, atrelada a um processo global econômico-
produtivo que tende a padronizar diversas dimensões da vida urbana, dirimindo a
diversidade na sobreposição das diversas camadas histórico-culturais que
caracterizam determinadas sociedades. Esta hegemonia tem implicações nas novas
sociabilidades e consequentemente o espaço produzido e percebido.

Com base nisto, este trabalho explora as subjetividades refletidas no


comportamento e a complexidade desses processos em interface com o espaço,
na produção do espaço urbano. Para além da questão da segregação sociespacial
- associada aos condomínios fechados e enfatizada por diversos autores –
relacionada diretamente à aspectos como: os muros, a localização, a tecnologia
securitária pervasiva, a interação com seu entorno imediato e o controle de entrada
e saída de pessoas; busca-se identificar o que estas características representam
para o âmbito social, simbólico e de apropriação do espaço, e como normativas
sociais e paradigmas de produção do espaço são absorvidos e reproduzidos.

O contexto a que se propõe o estudo é o espaço urbano de Palmas,


Tocantins, capital brasileira planejada fundada em 1989. As particularidades de um
traçado baseado em pressupostos e concepções do urbanismo moderno
(anacrônico, perpetuando um modelo historicamente esgotado) (REIS, 2011), frente
às condicionantes de ocupação e apropriação da cidade - trajetória política,
econômica, condicionantes culturais e sociais – delineiam o interesse acerca das
espacialidades e transformações do espaço urbano em Palmas.

O espaço público urbano, sobretudo seu papel na conformação da cidade e


suas relações, vem sendo discutido frente à emergência e colonização dos espaços
privados e das normativas sociais segregadoras. Somado a isso, a ocorrência de
publicações como o texto do cineasta Henrique Goldman que descreve Palmas
como:

(...) esta nova Brasília da era da internet (...) Há bairros inteiros de


classe média com casas idênticas, sem uma única árvore para lembrar
que estamos no Cerrado. As casas não têm fachadas. São escondidas
por muros altos com cercas eletrificadas porque vive-se com medo da
própria sombra. Por dentro também são iguais, sem um móvel antigo
que pertenceu à avó, sem livros, revistas ou qualquer material
impresso (...)

E ainda outras publicações como o artigo “Palmas: entre muros, vazios


urbanos e ausência de Vitalidade” de Patrícia Orfila Barros dos Reis, que destaca a
imagem dos muros, das dificuldades de apropriação no espaço, da sensação de
falta de vitalidade e legibilidade urbana (orientação) ao transitar pela cidade,
relacionadas ao modelo e desenho urbano da cidade. Estas manifestações
demonstram o anseio de discutir as espacialidades e percepções do espaço urbano
da capital tocantinense, onde questiona-se: até onde o condomínio transforma ou
131

reproduz a lógica da cidade? Qual o papel do espaço programado enquanto


condicionante para a promoção da urbanidade?

Este trabalho no contexto de Palmas, se mostra importante para enriquecer


o debate sobre a produção do espaço urbano da cidade sobretudo dos
desdobramentos a respeito dos usos e apropriações do espaço público, em uma
cidade planejada no norte do Brasil - campo não amplamente explorado na
academia - mas principalmente por colocar em pauta as dinâmicas socioespaciais
frente às determinações de projeto urbano, em uma cidade que ainda possui muitos
vazios urbanos a serem parcelados e ocupados, oportunizando aos leitores a
reflexão e proposição de novas formas de produzir e ocupar esta capital.

Metodologia

A partir de uma revisão bibliográfica histórica e teórica com levantamentos


em fontes primárias e secundárias, o trabalho inicialmente discute a produção da
cidade contemporânea atravessada por subjetividades transformadas frente à
consolidação do neoliberalismo, consumo, tecnologia e a evidência da
individualidade. Apresenta enunciados que colonizam a conjuntura contemporânea
das cidades - como a sensação de insegurança urbana, a dificuldade de lidar com
alteridades, a individualidade - que incidem diretamente no debate sobre espaço
público e formas privadas de sociabilidade e espacialidades.

No contexto de Palmas, apresenta o histórico de planejamento, as principais


proposições para o projeto de Palmas e os processos estruturantes na construção
e consolidação da capital tocantinense. Destaca-se o olhar para um contexto
específico e ao mesmo tempo muito comum à urbanização brasileira, que dá
margem para discutir contradições e desigualdades, diante de uma cidade fundada
sob o marco do conflito fundiário. A partir do histórico de ocupação da cidade,
discute-se os principais processos e impactos da ocupação urbana dispersa,
pontuando as principais transformações no espaço urbano, com foco nos arranjos
de formas de vida privada, na proliferação de condomínios fechados, formas de
lazer e consumo privadas, entre outros espaços.

A partir do repertório construídos ao longo dos capítulos - sobre


subjetividades, histórico de formação da cidade e de seus territórios - direciona-se
o estudo para o trabalho de campo, buscando nos ritos cotidianos, a retificação ou
ratificação de muitos questionamentos que motivaram esta pesquisa, bem como
da emergência de novas questões colocadas a partir da vivência em campo.

Foram escolhidas seis quadras (similares à Unidades de Vizinhança) visando


diferentes contextos – urbanos (localização, usos e equipamentos),
socioeconômicos e do desenho urbano. Tais quadras foram agrupadas em duplas,
de acordo com a similaridade no desenho urbano. Cada dupla, no entanto,
apresenta diferenças nos padrões socioeconômicos de seus moradores, bem como
no nível de transformação do projeto das quadras, além da localização. Esta
estratégia propõe verificar as implicações destes diversos contextos, com
propósito de identificar tipos ou níveis de apropriação e mesmo encontrar padrões
ou episódios comuns nas diferentes quadras.

Propõe-se a leitura do espaço considerando de aspectos qualitativos do


espaço: contexto urbano macro e local, desenho urbano das quadras, uso do solo,
conexão visual e física entre espaços públicos e privado, locais sombreados – em
algumas oportunidades contraponto o espaço em projeto e o espaço da cidade
construída e apropriada – o olhar sobre esses aspectos não busca a razão
condicionante e inerente entre aspectos físicos e interações socioespaciais, mas sim
de como esses aspectos tendenciam certas situações como a escolha de trajetos
ou locais de permanência. A segunda forma de leitura, do trabalho de campo em si,
132

utiliza a cartografia como ferramenta de representação, na tentativa de traduzir os


registros e experiências em campo, representando as práticas e modos de
apropriação do/no espaço (as permanência e trajetos e situações cotidianos em
função das atividades e períodos específicos). Para análise, relaciona-se os
principais elementos estruturantes da vida urbana nas diferentes quadras, sejam
eles sociais, subjetivos ou relacionados à materialidade - relacionando o quadro de
interações socioespaciais às configurações propostas pelo projeto das respectivas
quadras.

Resultados e discussão

Em relação aos elementos mais preponderantes dos ritos cotidianos, não


surpreendentemente o clima-tempo figura como elemento proeminente para a
intensidade e densidade de atividades e pessoas no espaço público das quadras
observadas. O conforto segundo Carmona et Al. (2010), é “um pré-requisito de
sucesso para espaços públicos. A duração de tempo que as pessoas ficam no
espaço público é uma função e um indicador de seu conforto” (ibidem, p. 165,
tradução da autora). A sombra (principalmente de arborização massiva, pela sua
capacidade de modificar o microclima local) se configura como atributo do espaço
público influente no trânsito e permanência de pessoas - especialmente em Palmas
-, considerando a temperatura máxima média de 32,1 graus Celsius, podendo
chegar a máximas absolutas de 41,9 graus Celsius nos meses mais quentes. Durante
a noite observou-se de maneira geral, um aumento considerável no fluxo de
pessoas e também nas atividades de permanência - principalmente relacionadas a
atividades que envolvem trocas e interações sociais.

Na cidade real, fora da prancheta, o processo de conformação e as dinâmicas


sociais determinaram as diferenças entre as quadras (como citado acima) e colocou
em voga também as limitações do modelo proposto para elas. As transformações
que subverteram usos do solo, formas de ocupação, ou mesmo o traçado urbano,
podem ser analisadas de óticas distintas e opostas: no primeiro caso, a partir de
intenções e necessidades advindas da apropriação coletiva autêntica e no segundo
caso, a partir de gestos programados, criando oportunidades para ação do capital.

Das áreas estudadas, é possível identificar para o primeiro caso, a quadra


307 norte, 504 sul (em medida) e a porção leste da quadra 606 sul, em que usos,
percursos e formas de ocupação dos lotes foram modificadas em função de
dinâmicas criadas na apropriação destes espaços, de forma muitas vezes informal,
improvisada. E que estas quadras possuem uma vitalidade urbana ativa mesmo
durante o dia, com interação ativa entre seus moradores. A quadra 110 norte não
teve modificações espaciais significativas em relação a seu projeto, mas nas
observações em campo apresentou durante o período noturno e nos finais de
semana, uma significativa movimentação na praça central da quadra reunindo
moradores em diversas atividades.

Para o segundo caso, aponta-se as quadras 204 sul e 404 sul (esta em menor
medida), com modificações nos usos e também na implantação nos terrenos,
executados para a criação de empreendimentos comerciais e de serviço, com
caráter mais formal e voltado para o público com maior poder aquisitivo. Estas
quadras demonstraram pouca vitalidade urbana e características de espacialidades
análogas aos condomínios fechados. O alto padrão das edificações, a preocupação
com a segurança de forma pervasiva e invasiva (com presença ativa de equipes de
segurança), a ausência de moradores no espaço público, tendo como atores
majoritariamente trabalhadores da construção civil e do comércio local e
empregadas domésticas, indicam uma atmosfera autosegregadora dos moradores
e avessa aos conflitos possíveis no espaço público.
133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Palmas percebeu-se a repetição de processos reproduzidos no Brasil,


como a congruência entre mercado imobiliário e Estado na produção de uma
cidade mercantilizada. No entanto a própria forma urbana e os processos de
ocupação e formação de sua cultura local a diferem das demais das cidades
brasileiras. Observou-se especificidades em relação aos condomínios, alguns dos
quais dentro da cidade – em forma de condomínios em lotes Multifamiliares ou no
fechamento de quadras inteiras. A possibilidade de aglomerar lotes multifamiliares,
o uso dos mesmos para a tipologia condomínio horizontal fechado e o desenho
urbano não-permeável de algumas quadras, evidencia que o projeto urbano de
Palmas admite formas condominiais.

Em Palmas, a conformação política, social, cultura, econômica, espacial e


fundiária da cidade determinou formas de segregação socioespacial, que se
aprofundam nos processos de especulação imobiliária, na gestão da pobreza e
invisibilidade nas áreas de baixa renda (RIZEK, 2015), na transformação das quadras
em enclaves (tanto pelo fechamento de quadras inteiras, quanto de lotes
multifamiliares contíguos e dos muros voltados para as quadras). As formas de
segregação transformam o espaço – modificando a arquitetura e a relação desta
com o espaço urbano –, materializando subjetividades – o medo do outro, do
imprevisível, o desejo por controle e espaços homogêneos (RODRIGUES, 2013). A
predominância de muros em Palmas impede a potencialidade dos espaços
construídos de “se apropriarem da generosidade dos locais abertos” (COCOZZA,
2007, p. 239) e imprimirem uma nova condição na paisagem urbana. Os muros e
as tipologias do condomínio horizontal são reproduzidas sem precedentes, desde
as camadas mais ricas às camadas de perfil socioeconômico mais baixo (como se
vê pelo Brasil, exemplos dos condomínios do Minha Casa Minha Vida) – dentro e
fora da Palmas planejada.

Com o trabalho de campo notou-se que nas quadras mais ricas, alvo da
fetichização e valorização imobiliária, os espaços privados e públicos estão
condicionados a processos de homogeneização e pasteurização de diversas
dimensões da vida, passando por um empobrecimento das relações sociais no
espaço público, atravessados pelo medo urbano e a dificuldade de lidar com
alteridades, bem como da reprodução de paradigmas arquitetônicos - que incluem
aparatos de segurança, muros e cercas elétricas. Nas demais quadras observa-se
(em medida) a reprodução do paradigma das formas arquitetônicas de casas
muradas, contrapondo-se à um quadro de autênticas práticas sociais no espaço
público, apesar de este, em muitos casos, ser precário ou desprovido de
características relacionadas ao fomento da vitalidade urbana, como por exemplo a
presença de mobiliário urbano adequado e calçadas contínuas e acessíveis. No
primeiro caso, as alterações de uso do solo, formas de ocupação dos lotes e mesmo
bem-feitorias no espaço público das quadras, foram gestos programados, do
empenho do empresariado a favor do consumo. No segundo caso, nota-se que as
principais alterações de uso do solo, formas de ocupação dos lotes, alterações de
estruturas espaciais como ruas e quarteirões e adaptações realizadas nos espaços
públicos decorrem das necessidades e desejos que emergem a partir do cotidiano
e das apropriações nestes espaços.

Mesmo quadras que se inserem-se no mesmo contexto urbano apresentam


características de conformação espacial e social muito distintas, logo, de formas de
uso e apropriação do espaço urbano público diferentes. Quadras com traçados
similares têm um cotidiano e relações distintas com o espaço. A ‘diversidade’
populacional e de traçados urbanos, foi o mote dos autores do projeto de Palmas,
134

ao defender que as diferentes quadras fossem projetadas por diferentes autores,


oportunizando uma variedade de desenhos e tipologias habitacionais e também de
estratos socioeconômicos em cada quadra. No entanto na atual Palmas é possível
notar a homogeneidade construtiva e socioeconômica dos moradores em uma
mesma quadra, figurando como enclaves, principalmente devido às dificuldades de
estabelecer conexões visuais, físicas e mesmo de trocas entre as quadras vizinhas.

Palavras-chave: Palmas; privatização; espaço público; cidade planejada; sociabilidade


urbana.

Keywords: Palmas; privatization; public space; planned city, urban sociability.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARMONA, M. et al. Public spaces, urban spaces: the dimension of urban design.
Routledge, London, 2010.

COCOZZA, Glauco de Paula. Paisagem e urbanidade: os limites do projeto urbano na


conformação de lugares em Palmas. Tese (Doutorado). FAUUSP, São Paulo, 2007

FREITAS, Eleusina de L. Hollanda de. Loteamentos fechados. 203 p. Tese (Doutorado) –


FAUUSP, São Paulo, 2008

REIS, Patrícia Orfila Barros dos. Modernidades tardias no cerrado: discursos e práticas na
história de Palmas-TO (1990—2010). Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011

Rizek, C. S. Teorias e concepções da Modernidade. Notas de aula. São Carlos: IAU/USP-SC,


2015.

RODRIGUES, Arlete Moysés. Loteamentos murados e condomínios fechados: propriedade


fundiária urbana e segregação socioespacial. In: VASCONCELOS, Pedro de Almeida;
CORRÊA, Roberto Lobato; PINTAUDI, Silvana Maria. A Cidade Contemporânea:
segregação espacial. São Paulo: Contexto, 2013.
135

Diferenças e similidades entre as modalidades


Entidades e Empresas: o Programa Minha Casa
Minha Vida em São João as Boa Vista/SP
Differences and similarities between modalities Entidades e Empresas:
the Program Minha Casa Minha Vida
in São João da Boa Vista/SP

Mariana Garcia de Abreu


marianagdeabreu@usp.br
lattes.cnpq.br/9886325371741624

Orientação
Miguel Antonio Buzzar
mbuzzar@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/2534049526509532

RESUMO

O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) foi lançado em 2009 pelo
governo federal com objetivo de aquecer a atividade da construção civil, como
resposta declarada à crise econômica global e com a promessa inicial de construir
um milhão de casas e destiná-las inclusive aos mais necessitados. No início do
programa as críticas já identificavam os possíveis conflitos urbanos, sociais e
econômicos que iam ser produzidos através do “pacote habitacional”. Os impactos
urbanísticos negativos, já vivenciados no BNH, foram adiantados nas falas de Rolnik
e Nakano (2009), e a maior preocupação era na proporção que esses erros iam se
repetir devido à grande escala do programa. Ferreira (2012) relata que o impulso
da construção civil causado pelo lançamento do programa desenfreou em todo
país uma “euforia construtiva”, desencadeando a construção de novos bairros em
áreas distantes e sem acesso a urbanização, alinhando centenas de casas idênticas
e minúsculas, ou enfileirando torres habitacionais com sofrível padrão construtivo
e urbanístico, causando, consequentemente, grande impacto negativo nas cidades
e quem vive nelas.

A questão social dentro PMCMV destacou-se através do grande montante


de recursos e da incorporação de subsídios destinados à classe de baixa renda, um
marco na política habitacional inclusiva. Embora o programa tenha sido apoiado na
retórica da superação do déficit habitacional desta camada, já que 90% do déficit
estava nas faixas de renda de até três salários mínimos, apenas 40% das unidades
foram direcionadas a esta faixa, conforme descrevem Arantes e Fix (2009). Cunha
(2014) afirma que, o déficit habitacional em “prol da classe mais desfavorecida”
garante uma justificativa consensual para um fluxo de caixa dos recursos públicos
que alimenta a intensa produção privada de moradias através do programa.

Uma das inovações do Programa foi a determinação de duas possibilidades


distintas de financiamento para um mesmo seguimento de renda, denominado
Faixa 1 (de zero a três salários mínimos), caracterizada de fato como habitação de
interesse social. A primeira possibilidade se dá com recursos oriundos do Fundo de
Arrendamento Residencial (FAR), em que os empreendimentos devem ser
integralmente concebidos e executados pelas construtoras, denominado PMCMV -
Empresas. A segunda possibilidade se dá com recursos do Fundo de
Desenvolvimento Social (FDS), em que os empreendimentos devem ser de
responsabilidade de entidades sem fins lucrativos, denominado PMCMV -
136

Entidades. Jesus (2015) aponta, em suas entrevistas de campo, a vitória dos


Movimentos Sociais de Moradia por uma parcela, mesmo que mínima, dos recursos
do PMCMV. Arantes e Fix (2009) colocam que 97% do subsídio público
disponibilizado pelo pacote habitacional, com recursos da União e do FGTS, são
destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas, e apenas 3% a
entidades sem fins lucrativos, cooperativas e movimentos sociais, para produção
de habitação urbana e rural por autogestão, o que relativiza e muito a dimensão da
vitória apontada por Jesus.

Neste contexto, o trabalho está direcionado, principalmente, na discussão


sobre o direito da moradia, segundo o qual a política deveria ter como objetivo
garantir o provimento habitacional, elevar o padrão social e a cidadania dos sujeitos
e não os confinar em edificações com condições precárias de habitabilidade, tanto
da unidade, como urbana e tem como objetivo investigar as principais diferenças
entre as modalidades do programa, verificando se estas diferenças permitem inferir
que, no seu conjunto, os programas comportam-se qualitativamente de forma
distinta, configurando, assim, programas também distintos. Tendo como questão
de fundo a permanente assimetria social, a hipótese do trabalho aponta que a
provisão habitacional, ocorrendo subordinada à lógica de mercado, acaba por
inscrever o PMCMV-Entidades na órbita dos interesses e arranjos do PMCMV-
Empresas, limitando os ganhos que o Entidades, por ventura, possam permitir,
como uma melhor qualidade do produto e no fortalecimento das relações sociais.

Para a decisão sobre os casos que seriam estudados foram compiladas as


cidades que executaram empreendimentos por ambas modalidades, destinados
exclusivamente à faixa 1 e fossem localizados dentro do Estado de São Paulo. A
partir de uma base de dados do PMCMV disponibilizada pela CAIXA a cidade de
São João da Boa Vista foi escolhida por possuir os empreendimentos conforme
desejado, ser uma cidade de pequeno porte, sem tradição de movimentos sociais,
e contar com dois empreendimentos geridos por entidades, um atual através do
PMCMV - Entidades e outro através do Programa Carta de Crédito Associativo -
(PCCA) - criado no governo Fernando Henrique Cardoso, um caso atípico frente às
realidades do Estado. Sendo assim, um objeto interessante porque toda a discussão
sobre o PMCMV-Entidades gera em torno dos movimentos de moradia e no local
não havia registros de organizações atuantes, ser um universo pequeno onde seria
possível comparar as mesmas variáveis dentro dos conjuntos e além disso não
possuir muitas referencias bibliográficas sobre a questão habitacional do município.

Para a consecução desta pesquisa, foi necessário desenvolver um estudo


aplicado de abordagem qualitativa com sentido exploratório, pois proporcionou
maior familiaridade com os “objetos”, com vistas a torná-los mais explícitos
(reconhecíveis) e a torná-los possíveis de serem confrontados com a hipótese da
pesquisa e de construir hipóteses ideais sobre os objetos estudados. Os objetos
estudados na pesquisa foram empreendimentos habitacionais de interesse social
localizados em São João da Boa Vista/SP (SJBV). Ambos foram destinados às
famílias com renda mensal de até três salários mínimos promovidos através do
PMCMV, um na modalidade Entidades e outro na Empresas. Em função das
questões formuladas anteriormente, que alimentam a indagação principal, a
operacionalização metodológica foi desenvolvida para que privilegie uma
abordagem mais ampla das mesmas questões, com o intuito de captar o contexto
de cada realidade, de buscar compreender a totalidade do fenômeno,
principalmente de seus objetos específicos. A partir destas questões, ainda foram
verificados objeto por objeto em suas dimensões e aspectos gerais e específicos, e
quais as técnicas de investigação mais apropriadas no sentido de requalificar dados
já existentes, fazendo-os “falar” de acordo com as próprias questões e quesitos e
produzindo dados quando for o caso. As investigações aconteceram,
principalmente, através de pesquisas em campo e entrevistas com os atores chaves
na produção dos objetos empíricos.
137

O PMCMV promoveu na cidade três conjuntos habitacionais: o Jardim das


Azaleias (etapa I - PMCMV 1 e etapa II - PMCMV 2), na modalidade Entidades, com
recursos do FDS para famílias de renda bruta limitada a R$1.395,00; e na sequência
o Parque Resedás, pelo PMCMV 2-Empresas, destinado à faixa 1, que enquadrou
famílias com renda entre zero e três salários mínimos com fundos do FAR e o mais
atual, com previsão de entrega para setembro de 2017, Jardim Aurora Residencial,
também pelo PMCMV 2-Empresas, destinado à faixa 2, que atendeu famílias de três
a seis salários mínimos. Os objetos de estudo foram os dois primeiros - Jardim das
Azaleias e Parque Resedás, pois são conjuntos já entregues e que atendeu a
população de mais baixa renda da cidade. Nesses dois empreendimentos, a
demanda habitacional foi formada pela prefeitura, que doou o terreno, deu
incentivos fiscais, suporte técnico e serviços, além de tornar-se responsável pelas
EO. Por fim, as análises contribuíram para comparar as principais diferenças entre
as modalidades do programa, no caso especifico da cidade.

A cidade tinha tido a experiência (PCCA) recente e anterior ao PMCMV,


“...eles já tinham a expertise, já tinham trabalhado com EO, sabiam como era a
gestão...”, segundo Borges (2016), na construção do Jardim Europa. Surgiu a
chance de captar recursos oriundos de um programa específico com recursos do
FDS, e a prefeitura de SJBV conseguiu se enquadrar no programa e lançou o Jardim
Azaleias, que totalizou 196 unidades de casas térreas. O empreendimento foi
dividido em duas operações, Jardim Azaleias I e II: a primeira foi contratada em
fevereiro de 2010, sob a responsabilidade da Associação Organizadora e
Construtora do Conjunto Habitacional Popular Jardim das Azaleias; a fase II
aconteceu em dezembro de 2011, com a Associação dos Sem Casa de São João da
Boa Vista.

Nos mesmos moldes da EO do Jardim Europa, a associação do Jardim


Azaleias I foi criada, especificamente, para obter recursos do PMCMV-Entidades,
que tinha como objetivo “...tornar acessível para a população cuja renda familiar
mensal bruta não ultrapassasse R$ 1.395,00, organizadas em cooperativas
habitacionais ou mistas, associações e demais entidades privadas sem fins
lucrativos visando a produção e aquisição de novas habitações.”. Diferente do que
acontece nos grandes centros, onde existe lutas de movimentos sociais por
moradia, em SJBV foi a prefeitura que criou e se tornou a responsável pela EO. A
filiação na entidade era induzida na atualização do cadastral das famílias que
procuravam o setor para participar do processo de seleção para o
empreendimento; a população, muitas vezes, não tinha nem consciência do que
estava assinando, muito menos do que se tratava a EO, pela sede também de
pertencer ao mesmo endereço deste setor e pelo presidente ser o assessor ,
segundo Aguiar (2015): “...a associação anda a reboque da prefeitura, é um pouco
porque a prefeitura toma frente destas coisas; eu represento a associação e
represento a prefeitura.”. Para a aprovação do Jardim Azaleias II dentro do PMCMV-
Entidade, a prefeitura teve que fazer uso de uma associação já existente, pois o
Ministério das Cidades mudou as normas de habilitação das EO: “...não se aceitava
mais a união de moradores para criar uma entidade nova, como foi feito no Jardim
Europa I e II e no Jardim Azaleias I; o governo/CAIXA exigia que tivesse uma
entidade com três anos de experiência.”, relatou Aguiar (2015). Fizeram uso da
Associação dos Sem Casa de São João da Boa Vista, que foi criada em 2001 para a
construção dos lotes urbanizados do Jardim das Amoreiras, uma associação
legalizada que permitiu dar continuidade ao Jardim Azaleias II.

O Parque Resedás, aprovado em 2012 no PMCMV 2 e destinado a famílias de


faixa 1 (zero a três salários mínimos), foi o maior conjunto já construído na cidade,
com 926 unidades térreas em lotes individualizados. Com recursos do FAR,
financiado pela CAIXA, em uma parceria com o Programa Casa Paulista33 na
33 Secretaria da Habitação do Governo do Estado de São Paulo. Disponível em:
138

modalidade Parceria Governo Federal, e pela prefeitura municipal, e executado pela


empresa privada aqui denominada por Construtora E, foi entregue em três etapas.
Um conjunto com grande número de unidades habitacionais, sem nenhuma
diversificação, com projetos únicos, o típico projeto carimbo de HIS herdado da era
BNH.

Após a análise dos conjuntos habitacionais, é oportuno uma síntese para


resgatar os objetivos da pesquisa e o real interesse da pesquisa. A questão é
mostrar que mesmo se tratando de programas tão distintos não há uma grande
diversidade entre eles. No caso de São João da Boa Vista isso se deve,
principalmente, pelo fato da prefeitura ter sido responsável por todas as funções
da EO durante o processo de idealização à execução do conjunto habitacional do
PMCMV - Entidades. Vale destacar que o difere a natureza e a proporção dos
problemas dentro dos conjuntos é a grandiosidade do Parque Resedás, a
aglomeração jamais vista na cidade ocasionou, também, situações inéditas nesse
território. O PMCMV oportunizou um caos nas cidades brasileiras, dando a
possibilidade de uma modalidade favorecer situações "fictícias" e da outra a
implantação de conjuntos desproporcionais em números de unidades, e, todo esse
cenário sendo amparado pelo arcabouço legal do programa.

Na cidade como de praxe no país estes novos conjuntos foram instalados


nas regiões mais distantes do centro urbanizado e limites com a área rural. A
aglomeração de conjunto populares na mesma localidade intensificou as
desigualdades sociais já existentes e induziu a especulação imobiliária para além
do perímetro urbano. Após a implantação desses empreendimentos as glebas
limítrofes foram loteadas e comercializadas, atualmente, há um grande número de
imóveis à venda e um novo conjunto popular sendo entregue com 500 unidades,
mas com aprovação para 1279 lotes no total, seguindo a lógica dos milhares que foi
findada a partir do PMCMV na cidade. Indícios que comprovam, também, a força
da dinâmica imobiliária ajunto aos conjuntos de HIS.

O Jardim Azaleias não teve tanta repercussão no cenário local, pois seguiu a
lógica popular que vinha sido desenvolvidas pelas gestões municipais, já o Parque
Resedás impactou por ter sido uma experiência única. Em números isso significa a
movimentação de cerca de 7 milhões de reais para o conjunto do PMCMV -
Entidades e 78 milhões de reaia para o PMCMV - Empresas, portanto o Resedás
teve um montante onze vezes maior que o Azaleias. Em percentuais a modalidade
Empresas destinou valores maiores à infraestrutura, devido ao relevo íngreme da
gleba, cerca de 80% à construções das unidades e 0,6% a legalização, o que
resultou um valor final de 85mil reais por habitação para dados de financiamento,
já os da modalidade Entidades teve quase totalidade dos recursos para as
edificações, com pouco percentual para legislação e baixa infraestrutura resultado
valores de unidades entre 34 e 38 mil reais. Independente dos fundos envolvidos
para cada conjunto é importante evidenciar que preço definido para unidade
habitacional do maior conjunto é cerca de 55% superior ao menor. São quantias
desproporcionais se for levado em conta que houve apenas um ano de diferença
entre as datas de aprovações dos empreendimentos de cada modalidade.
Verificou-se que essa diferença de preços das unidades não representou ganhos
em qualidade construtiva, mesmo que não tenha sido avaliada à fundo, tanto os
moradores quanto as visitas de campo mostram o contrário, as habitações do
Jardim Azaleias são superiores em materiais, sistema construtivo,
dimensionamento e flexibilidade do projeto arquitetônico. Portanto, esse
superfaturamento ao valor do metro quadrado não beneficiou o usuário e

<http://www.habitacao.sp.gov.br/casapaulista/programas_habitacionais_casa_paulista.aspx >
Acesso em: 08 de março de 2016.A integração entre os programas federais e estaduais é um dos
principais focos de ação da Casa Paulista. A proposta é complementar os recursos de investimento
e subsídios necessários para a produção de moradias de qualidade nos municípios paulistas com
grande demanda habitacional.
139

favoreceu a margem de lucro das empresas e/ou outras instituições que possam
ter sido envolvidas nesse processo, permitindo assim que o Estado repasse fundos
públicos ao setor privado, seguindo as regras e o poder do capital.

Além da precariedade urbana os bairros foram construídos com unidades


habitacionais que deixam a desejar, como acontece desde a era BNH e foi
intensificada nos conjuntos do PMCMV por todo o país, continua-se a reproduzir
projetos sem qualidade e sem o mínimo de condições de habitabilidade. As famílias,
na sua maioria, numerosas são obrigadas a rearranjar-se dentro dos 50m² que lhes
foram confinadas. Com habitações sem muros e sem acesso pavimentado até o
corpo principal da edificação os moradores de ambos os conjuntos são induzidos
pelo ideário da casa própria e se conformam com o bem adquirido, pois
independente de quais condições esse bem foi financiado, doado, ou subsidiado
ele deveria cumprir além dos requisitos mínimos estabelecidos pela CAIXA, pois
eles não são suficientes para garantir a qualidade desse tipo de produto. Desse
modo, mesmo que os dois empreendimentos tenham seguido as especificações
técnicas, o Jardim Azaleias foi até além em alguns dimensionamentos, não foram
capazes de reverter a falta de arquitetura nos projetos habitacionais. Com isso,
reforça-se que esse tipo de provisão continua ocorrendo subordinada, quase que
exclusivamente, a mando da lógica de mercado, onde vende-se mais caro por um
produto cada vez mais inferior.

Comparar casos de dimensões tão distintas é um processo complexo que


envolve dimensões econômica, e, principalmente, sociais. Juntas revelaram o quão
delicado foi a implantação dos dois conjuntos habitacional destinados as classes de
baixa renda da cidade, cada qual com suas especificidades. As análises não tratou
apenas de números de unidades, habitantes, tipo da construção, metragem
quadrada, implantação, infraestrutura e orçamento mas tentou abordar o indivíduo
e todas as relações sociais que eles foram inseridos, seguindo a perspectiva
levantadas pelas ciências sociais no meio urbano, onde fica pertinente retomar as
reflexões de Guerra (2002: s/p): “Construir habitações econômicas é fazer, ao
mesmo tempo e necessariamente, urbanismo” e de Bolaffi (1982:63) “planejamento
urbano e habitação – popular, não popular ou impopular – constitui, na realidade
um mesmo problema”.

Palavras-chave: Política Habitacional, Programa Minha Casa Minha Vida, Habitação de


Interesse Social, PMCMV- Entidades; PMCMV- Empresas.

Keywords: Housing Policy, Housing Program Minha Casa Minha Vida, Social Housing,
PMCMV- Entidades e PMCMV- Empresas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, A. N. Habitação de Interesse Social em São João da Boa Vista. Assessor do Setor
de Habitação de São João da Boa Vista. Depoimento [ago. 2015]. Entrevista concedida à
tese.

ARANTES, P. F.; FIX, M. Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação.
Brasil de fato, São Paulo, 31 jul. 2009.

BOLAFFI, G. Habitação e Urbanismo: o Problema e o Falso Problema. In: MARICATO,


Ermínia (org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. 2ª edição.
São Paulo: Editora Alfa-ômega, 1982. pp. 53, 54;
140

BORGES, A. S. O Programa Minha Casa Minha Vida em São João da Boa Vista. Gerente da
Filial Caixa Piracicaba. Depoimento [mar. 2016]. Entrevista concedida à tese.

CUNHA, G. R. de. O Programa Minha Casa Minha Vida em São José do Rio Preto/SP:
Estado Mercado, Planejamento Urbano e Habitação. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Carlos, 2014.

FERREIRA, J. S. W. (coord.). Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo


Brasil urbano. Parâmetros de qualidade para a implementação de projetos habitacionais e
urbanos. São Paulo, LABHAB: FUPAM, 2012.

GUERRA, A. Política habitacional e arquitetura. Resenhas Online, São Paulo, 01.001,


Vitruvius, jan. 2002.

JESUS, P. M. de. Programa Minha Casa Minha Vida Entidades no Município de São Paulo.
Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Carlos, São Paulo, 2015.

ROLNIK, R.; NAKANO, A. K. As armadilhas do pacote habitacional. Le monde


diplomatique, mar. 2009. p. 1-5.
141

Conservação e preservação - A importância do


Engenho São Jorge dos Erasmos
Conservation and Preservation - The importance of the
Engenho São Jorge dos Erasmos

Marisa Elisabete Ferreira Candido


marisa.candido@usp.br
lattes.cnpq.br/5560941542119305

Orientação
Carlos Roberto Monteiro de Andrade
candrade@sc.usp.br
lattes.cnpq.br/1617988034944297

RESUMO

O Engenho São Jorge dos Erasmos é uma construção que se encontra


atualmente em estágio de ruínas, porém sua história é marcada pela importância
econômica e social que ele apresenta para a antiga Capitania de São Vicente, e para
a atual cidade de Santos. Construído em 1534 a mando de Martim Afonso de Souza,
donatário da capitania de São Vicente, o Engenho é único remanescente desse tipo
de construção na região, que funcionava como polo comercial do Brasil no período
colonial.

Devido a alteração constante de proprietários, parece válido destacar


somente os principais nomes que tiveram a posse dessa construção. O segundo
nome importante, que merece ser citado após a saída de Martim Afonso do Brasil,
em viagem as índias, é o comerciante da Antuérpia chamado Erasmos Schetz.
Erasmos era um comerciante inserido nas transações de comércio de açúcar, e
adquirir o Engenho foi importante para que o mesmo diminuísse algumas etapas
da comercialização desse produto, barateando sua produção. O sítio foi comprado
por ele em 1542 e passou alguns anos sobre seus cuidados e de sua família, porém,
se tratando de uma administração à distância, acabou provocando diversos
problemas, como vendas ilegais e desinteresse no final de sua posse.

Devido aos problemas administrativos o local foi vendido, passando por uma
série de proprietários que se alteraram em pequenos intervalos de tempo sem se
preocupar com o crescimento do local, resultando na degradação do sítio.

Para o desenvolvimento desse trabalho é importante destacar o último


proprietário do Engenho, responsável por reavivar a importância da construção e
da região circundante. Otávio Ribeiro de Araújo, dono do Engenho entre os anos
de 1943 e 1958, foi responsável pelo período de limpeza e loteamento do local os
quais ocasionaram a descoberta de restos ósseos humanos de diferentes etnias
enterradas na região da “capela”, objetos de uso cotidiano antigos e um Santo
Antônio de terracota. Esses achados resultaram em um interesse externo por parte
de historiadores e antropólogos que posteriormente fariam pesquisas no local,
tornando o sítio um ponto atrativo para pesquisas regionais. As ruínas, juntamente
com parcela do território, foram doadas à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP em 1958, que ficou responsável pela sua administração e a preservação do
local durante alguns anos.

Devido a peculiaridade de ser o único remanescente desse tipo de


construção na região e por englobar em sua existência um exemplo de monumento
142

em ruínas pouco comum no Brasil, o sítio também ganhou destaque arquitetônico,


sendo alvo de pesquisas e ações preservacionistas coordenadas pela USP e pelo
atual IPHAN.

Dentre os anos de 1960 a 1966 Luís Saia, um engenheiro-arquiteto membro


do IPHAN, e com experiência em alguns restauros feitos no estado de São Paulo,
ficou responsável pela coordenação das intervenções feitas no local, que incluíam
a limpeza do terreno e das pedras da construção; a consolidação de estruturas mais
danificadas; escavações e levantamento de objetos encontrados no local; a
construção de uma cobertura, estrutura que ficou conhecida posteriormente como
Pavilhão Saia, elemento mais polêmico de seu projeto. Em 1963 as ruínas do
Engenho São Jorge dos Erasmos foram tombadas em âmbito nacional pelo IPHAN,
sendo tombadas também em âmbito estadual e municipal posteriormente.

Levando em consideração sua história, a importância que o local teve em


uma colônia movida pelo comércio de açúcar, suas transformações e ações de
restauro, conservação e preservação sofridas, foram desenvolvidas duas pesquisas
de iniciação científica. Esses trabalhos, intitulados “Conservação E Preservação: A
Importância Do Engenho São Jorge Dos Erasmos” e “Engenho São Jorge Dos
Erasmos: Teoria e Prática De Restauro”, estão vinculados a FAPESP e analisam o
mesmo objeto de estudo. Em ambas iniciações o tema foi direcionado ao restauro
feito por Luís Saia na década de 1960 e algumas intervenções feitas pela
administração atual, criando pontos de aproximação entre as ações propostas para
as ruínas e os princípios descritos pelos principais nomes do restauro e pelas cartas
patrimoniais.

A metodologia é dividida em três etapas, a primeira referente a revisão


bibliográfica que contava com a leitura de livros sobre a história do Engenho e as
principais obras escritas pelos teóricos do restauro europeus. Também foi
executada uma etapa de levantamento de documentos importantes para o local e
visitas ao sítio, permitindo a observação de elementos que haviam sido destacados
nas leituras. A última etapa consistia na análise e na descrição de aproximações
existentes entre a teoria e prática preservacionista aplicada no local, o que
observaremos a seguir.

Foram escolhidos quatro autores importantes do restauro, entre eles Viollet


Le-Duc, John Ruskin e Camillo Boito (CHOAY, 2003), teóricos analisados na
primeira iniciação científica finalizada em 2015. Já na segunda iniciação científica,
foram analisados os princípios descritos por Gustavo Giovannoni e as indicações
feitas em cartas patrimoniais, documentos importantes para a difusão do discurso
sobre a preservação de edifícios e monumentos históricos.

Inicialmente podemos citar o arquiteto e crítico francês Viollet-Le-Duc que


atuou no final do séc. XIX e início do XX, sendo um dos principais responsáveis pela
conformação do restauro moderno como disciplina. Sua teoria é considerada
altamente intervencionista, propondo em alguns restauros a reconstrução total do
edifício. Em seus escritos ele descrevia que o arquiteto restaurador deveria se
colocar no lugar do arquiteto projetista original, tentando compreender da melhor
forma como aquele edifício deveria ser, o que poderia resultar em alguns casos em
um projeto “fantasioso”, originando falsos históricos.

Dentre suas aproximações com Saia podemos citar a proposta de


reconstrução feita no Pavilhão Saia, que usou como base o desenho remanescente
das antigas paredes da sala de moagem e caldeira, além de reconstruir uma parte
do pilar central e a cobertura que conta com algumas telhas encontradas no local.

Outra aproximação entre a prática de restauro no Engenho e os princípios teóricos


de Viollet-Le-Duc, diz respeito a proposta de reutilização do local, que no caso do
143

Engenho, acabou resultando em um centro de educação patrimonial e um “museu


a céu aberto”, mostrando para a comunidade e para outros visitantes a importância
do local e o dever de cada um para preservá-lo, auxiliando na manutenção da vida
e da dinâmica do local.

Direcionando para uma vertente oposta, encontramos o teórico inglês John


Ruskin, um crítico que se posicionava de maneira contraria a Le-Duc, seguindo uma
linha anti-intervencionista. Em seus escritos era possível observar como Ruskin
tinha uma percepção própria dos monumentos e da forma como eles se davam no
presente histórico, aproximando a vida da construção ao funcionamento do corpo
humano, que nascia, se desenvolvia e morria, dessa forma ele acreditava que
mesmo com o mínimo de conservação, quando chegasse a hora do edifício morrer
não deveria haver impedimentos para essa morte. Saia em suas propostas busca
evitar a morte do edifício, assim como as administrações atuais, executando
intervenções de restauro, consolidação e manutenção, posicionando-se contrário a
esse princípio.

Dentre os pontos de aproximação entre os princípios mais restritivos de


Ruskin e a atuação de Saia podemos citar a decisão da manutenção da pátina, uma
camada física que mostra a passagem do tempo sobre a construção, além de
funcionar como uma camada protetora. O arquiteto optou pela preservação da
mesma, sendo notada sobre todas as ruínas, mas principalmente na região do
Pavilhão Saia, que apresenta dois tons de pátina: a das paredes remanescentes
originais e da construção proposta por Saia.

Ruskin também apresenta outra preocupação, retomada posteriormente em


outros documentos, em relação à preservação do entorno do edifício, pois, ele
acreditava que a natureza ao redor da construção auxilia na melhor leitura sobre a
história do local. E de fato, no tombamento feito pelo próprio IPHAN, foi delimitada
uma área natural que foi preservada, além disso, a costa com a vegetação da Mata
Atlântica ainda preservada guarda um pouco da história do local.

Finalizando os teóricos do restauro estudados na primeira pesquisa temos o


arquiteto italiano Camillo Boito, que tenta entrar em um consenso sobre as
propostas feitas pelos estudiosos anteriores. Sua atuação está presente no início
do séc. XX e apresenta uma linha intermediária a qual visa a preservação dos
monumentos históricos, evitando a sua degradação total, ao mesmo tempo que se
coloca contrário a intervenções e reconstruções estilísticas. Boito recordava da
necessidade de respeitar a conformação presente da construção, mas ressaltava
que se fosse necessário fossem feitas pequenas intervenções de manutenção e de
consolidação, respeitando sempre os dados obtidos por levantamento histórico e
fotográfico, evitando a criação de falsos históricos.

Com exceção da construção da cobertura, as propostas de Saia se encaixam


bem nos princípios apresentados por Boito, pois dentre as ações descritas, grande
parte são seguidas no restauro do Engenho. Outro ponto de aproximação diz
respeito a importância que o arquiteto italiano dá a documentação feita do
restauro, tanto no que diz respeito a fase anterior e os processos desenvolvidos ao
longo da intervenção. Tanto o IPHAN quanto Saia se aproximam dessa proposta,
pois arquivam e catalogam processos e documentos referentes ao sítio, além do
caderno de obras elaborado por Saia que mostra diferentes ações feitas no local,
seguidas por fotografias.

Seguindo para a segunda iniciação científica, foi analisada a produção de


Gustavo Giovannoni, um arquiteto italiano, que assim como Camillo Boito segue
uma linha intermediária, desenvolvendo também pesquisas sobre a preservação do
entorno do patrimônio, tendo grande parte de sua produção difundida na primeira
metade do séc. XX.
144

Giovannoni também apresenta em sua teoria diferentes formas de


restauração, mas para fins de aproximação com o Engenho é valido destacar a ideia
do restauro de recomposição ou anastilose “no qual elementos, normalmente de
pedra, encontrados no local de intervenção são recolocados na sua localização
original” (Giovannoni in Kuhl, 2013). De acordo com Camila Corsi Ferreira (2015),
Saia fez uso de pedras encontradas no local na reconstrução do Pavilhão Saia,
usando elementos neutros para a ligação, mostrando sua aproximação com o
arquiteto italiano.

No que diz respeito a sua preocupação com o ambiente, Giovannoni


ressaltava a importância da preservação do edifício juntamente com a conformação
de seu entorno, tanto no que diz respeito a natureza, quanto as formas e volumes
existentes em território urbano. Ele acreditava que a alteração dessa relação
poderia ser prejudicial na leitura do monumento, proposta seguida na preservação
do Engenho e que deu origem a diversos documentos e produções sobre o tema
na Itália.

Diferentemente da primeira pesquisa foram analisados outros tipos de


documentos, como as cartas patrimoniais, importantes pela sua conformação e por
sintetizar os pensamentos e as linhas projetais que estavam sendo usadas pelos
profissionais em cada época, além de ser um retrato da situação sócio e econômica
vivida por eles. É importante destacar que as cartas patrimoniais não têm função
normativa, mas funcionam como um guia para a salvaguarda das pré-existências,
mostrando como os arquitetos e outros profissionais devem agir em determinados
casos.

Para essa pesquisa foram analisadas três cartas, selecionadas por seu
pioneirismo, aproximação com os teóricos anteriores e destaque na discussão
desse tema, entre elas temos a Carta de Atenas (1931), a Carta Italiana de Restauro
(1932) e a Carta de Veneza (1964), sendo apresentadas a seguir apenas a primeira
e a última que tiveram mais destaque internacional.

A Carta de Atenas foi o primeiro documento desse tipo elaborado na Europa,


escrito durante a Conferência Internacional de Atenas, em 1931, ela foi um ponto de
conversão dos pensamentos que rondavam a questão do restauro e da preservação
de monumentos históricos, mostrando que mesmo com as mudanças
socioeconômicas que estavam acontecendo naquele período era importante
manter ativa a discussão sobre a preservação do passado. Sua elaboração contou
com a participação de grandes nomes da arquitetura como Le Corbusier e Gustavo
Giovannoni, além de profissionais brasileiros.

Os princípios apresentados nela seguiam a vertente apresentada por Boito e


Giovannoni, voltado para uma linha intermediária que respeita o patrimônio,
priorizando a manutenção e a consolidação e evitando o restauro. Esse pensamento
também era aplicado no tratamento das ruínas, afirmando a necessidade de
conservar e consolidar os elementos, e que caso exista a possibilidade a anastilose,
a mesma deve ser executada, como feito no Pavilhão Saia.

A Carta também apresenta a importância de se manter ou propor um novo


uso para a construção a ser restaurada, influenciando na dinâmica e na preservação
do local, criando um vínculo edifício-comunidade, fazendo com que a população se
ligasse ao local, sentindo-se no dever de preserva-lo. Na tentativa de despertar esse
sentimento de pertencimento, o Engenho foi alvo de várias práticas de educação
patrimonial, eventos e visitas, que dão dinamicidade ao patrimônio, mantendo-se
até hoje. Para recepcionar melhor a população também foi construído um anexo
em uma cota mais baixa e respeitando as formas e alturas do Engenho, permitindo
a atração de uma quantidade maior de pessoas sem danificar as ruínas.
145

Já na segunda metade do século XX foi elaborada no II Congresso


Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, em 1964, a Carta
de Veneza, que passou a englobar a preservação de “bens culturais” e não somente
de monumentos. Outro ponto importante dessa Carta é sua ligação com o restauro
critico, o qual afirmava que cada intervenção de restauro era específica para uma
determinada realidade, não sendo possível classificá-las em categorias fechadas, o
arquiteto responsável pela restauração, levando em consideração sua sensibilidade
histórico-critica e sua capacidade técnica, deveria interpretar a construção para
aplicar as ações que melhor se adequassem a cada caso (CARBONARA, 1997).

As propostas de Luís Saia podem ser lidas com o olhar do restauro crítico,
pois em suas intervenções ele observa as possibilidades de cada elemento,
designando ações diferentes para determinadas partes da construção. Esse caráter
multifacetado que ele apresenta é uma forma do arquiteto-restaurador se adequar
as diferentes realidades existentes.

A Carta também retoma a importância da preservação do entorno, além da


proposta de reutilização e da reafirmação das necessidades de manutenções
periódicas no local, para que ele tenha sua existência prolongada, princípio que tem
participação ativa nas administrações atuais do Engenho.

Pode-se concluir com base no texto apresentado que as intervenções de Luís


Saia apresentam aproximações com as teorias de restauro vigentes no final do séc.
XIX e início do XX, mostrando como algumas dessas produções europeias tiveram
reflexo nos países periféricos. É possível notar também nas propostas feitas por
Luís Saia a inexistência de um único partido que englobasse todas as intervenções,
mostrando exemplos tangíveis a diversas teorias na tentativa de preservar as ruínas
da melhor maneira possível, diversificando ainda mais a leitura das ruínas do
Engenho. Essa diversidade de ações acaba aumentando a importância do local, que
acaba se tornando um exemplo vivo de como propostas preservacionistas podem
ser usadas na prática, mostrando para estudiosos do assunto, assim como para
moradores da região e visitantes, quais são as possibilidades para se intervir e
preservar a história dessa construção.

Palavras-chave: Engenho; Ruínas; Património; Preservação; Restauro.

Keywords: Sugar mill; Ruins; Patrimony; Preservation; Restoration.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, C. R. M. (coord.); FILHO, S. T. F. (coord.); TRINDADE, J. B. (coord.);


MASSERAN, P. R. (coord.). Luís Saia [catálogo de exposição]: memória e política. Brasília:
IPHAN, 2014, 100p.

BOITO, Camillo. Os restauradores: conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho


de 1884.Tradução de Paulo Mugayar Kuhl e Beatriz Mugayar Kuhl. 3.ed. Cotia: Ateliê
Editorial, 2003. 63p. (Artes & Ofícios, 3).

CARBONARA, Giovanni. Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti, Napoli


1997.

CHOAY, Françoise. A alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2003.

CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; DE MELLO, André Muller. Monumento Nacional ruínas


Engenho São Jorge dos Erasmos – entre a teoria e a prática preservacionista. Revista
Histórica. Santana, n.47, abril/2011. Disponível em:
146

http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao47/materia03/.
Acesso em: 25 abril 2014.

CURY, ISABELLE; INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL


(BRASIL). Cartas patrimoniais. Brasília: IPHAN, 2004. 3. Ed., rev. e aum. p.13.

FERREIRA, Camila Corsi. Interlocuções entre a prática de restauração de Luís Saia e as


teorias de restauro: São Paulo, 1937-1975. Diss. Tese de Doutorado no Instituto de
Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo – USP. 2015.

GEAMPAULO, Victor Lordani. Engenho São Jorge dos Erasmos: aproximações acerca da
morte e da vida no complexo açucareiro vicentino (séculos XVI-XVII). São Paulo, 2013.

KÜHL, B. M. (org.) — Gustavo Giovannoni. Textos escolhidos. São Paulo: Ateliê Editorial,
col. Artes&Ofícios, 2013. [Cf. GIOVANNONI: 1931.]

RUSKIN, John. Le sette lampade dell'architettura. Milano: Jaca Book, 1981, 2007.

VIOLLET-LE-DUC, Eugène. Restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kuhl. 3.ed. São


Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 76p. (Artes & Ofícios, 1).
147
148
149

Você também pode gostar