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Revista Eletrônica de Gestão e Tecnologias Ambientais (GESTA)

DÉFICIT NA DRENAGEM URBANA: buscando o entendimento e contribuindo para a


definição

Vladimir Caramori Borges de Souza


Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental/UFRGS. Centro de Tecnologia da Universidade Federal de
Alagoas. (vcaramori@yahoo.com)

Luiz Roberto Santos Moraes


PhD em Saúde Ambiental/University of London-UK. Departamento de Engenharia Ambiental da Escola Politécnica da
Universidade Federal da Bahia. (moraes@ufba.br)

Patrícia Campos Borja


Doutora em Arquitetura e Urbanismo/UFBA. Departamento de Engenharia Ambiental da Escola Politécnica da
Universidade Federal da Bahia. (borja@ufba.br)

Resumo
A abordagem tradicional brasileira sobre a drenagem urbana indica que os corpos d’água devem ser
saneados; e, nesse aspecto, sanear tem sido entendido como drenar, no sentido de criar estruturas de
micro e macrodrenagem para conduzir a água aos pontos mais distantes possíveis. Em uma visão
moderna, o sistema de drenagem deve ser tratado como um dos componentes do espaço urbano, sendo
impossível dissociá-lo da infraestrutura das cidades. Para avaliar esses sistemas, os indicadores
tradicionais (tais como aqueles baseados em cobertura de rede ou atendimento per capita) não são
capazes de retratar sua condição (eficiência ou déficit). Esse artigo busca definir o conceito de déficit em
drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, tentando estabelecer as relações entre o conceito em si, as
noções de risco utilizadas em dimensionamento de redes, a cobertura do sistema, as tecnologias para
drenagem das águas pluviais, a informação disponível, o estado (de degradação) dos corpos d’água e as
estruturas técnico-institucionais. Observa-se que a definição conceitual de déficit relacionado às águas
pluviais é complexa e se relaciona a vários aspectos da infraestrutura e da política urbanas, não podendo
estar restrita à cobertura de rede.

Palavras-chave: Manejo de águas pluviais, déficit em drenagem urbana, águas urbanas.

Abstract
The traditional approach in Brazilian urban drainage suggests that water bodies should have their
conveyance improved (with micro and macro drainage structures) in order to carry, as fast as possible, water
out of the cities. In a modern view, it was realized that drainage system is part of urban landscape, not only
by technical reasons related to hydraulic conveyance, but also by improving or degrading life quality. To
evaluate these systems, traditional indicators (based on network coverage or per capita attendance) are not
able to represent their efficiency or deficit. This paper proposes a new approach to define the deficit concept
related to urban drainage systems. It is established the relationships between the concept itself, the risk
notion used in drainage design, the network coverage, the technologies used in stormwater management,
the available information, the of water quality aspects and the technical and institutional structures. It was
observed that the concept of deficit related to stormwater is complex and it concerns to various aspects of
urban infrastructure and urban policy that can not be restricted to network coverage.

Keywords: Stormwater management, deficit in urban drainage systems, urban waters.

Gesta, v. 1, n. 2 – Souza, Moraes e Borja, p. 162-175, 2013 – ISSN: 2317-563X 162


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INTRODUÇÃO sua valorização (quando bem integrada ao


urbanismo) ou sua degradação (quando o sistema
A abordagem tradicional sobre o sistema de drenagem está degradado). Neste sentido, seu
de drenagem urbana, representada no Brasil pela conceito deve ser ampliado, não estando
busca de um sistema hidráulico mais eficiente, representado apenas pelos elementos de
resulta da necessidade de sempre drenar o infraestrutura. Em uma abordagem com foco na
ambiente. As águas urbanas são consideradas sustentabilidade, o conceito de drenagem urbana
indesejadas em função do seu alto grau de pode ser entendido como o “conjunto de medidas
degradação e, portanto, os corpos d’água devem, que tem como finalidade a minimização dos riscos
de acordo com tal visão, ser submetidos a obras aos quais a sociedade está sujeita e a diminuição
de retificação, canalização e recobrimento. Sanear dos prejuízos causados pelas inundações,
o ambiente, no que se refere à drenagem pluvial, possibilitando o desenvolvimento urbano da forma
tem sido entendido como drenar, no sentido de mais harmônica possível, articulado com as outras
criar estruturas (micro e macro) para conduzir a atividades urbanas” (PORTO et al., 1997, p. 805).
água aos pontos mais distantes possíveis. Com essa nova visão, ou seja, que os
Essa abordagem resulta do próprio problemas são integrados e que, portanto, as
conceito de sistema de drenagem urbana adotado políticas públicas também deveriam ser, a
no Brasil, presente na maioria dos manuais de degradação do ambiente se destaca. Alguns
drenagem urbana, como o conjunto de elementos autores, como Chebbo et al. (2001), na França, e
destinados a recolher as águas pluviais Ide (1984), Neves (2006) e Pimentel (2009), no
precipitadas sobre uma determinada região e que Brasil, apresentaram estudos para avaliar a
escorrem sobre sua superfície, conduzindo-as a qualidade das águas no sistema de drenagem
um destino final. Segundo Botelho (1998, p. 75), pluvial, ficando evidente a relação entre as águas
os sistemas de drenagem pluvial devem ser pluviais e os outros componentes do saneamento
dimensionados com base na máxima “pegar e básico, com destaque para a presença
largar rápido”, ou seja, recolher as águas da chuva significativa de resíduos sólidos, que exercem
e conduzi-las para jusante o mais rapidamente papel importante no mau funcionamento das redes
possível. Nesse sentido, as cidades são espaços de drenagem, e para o esgotamento sanitário, cuja
de negação da natureza, como discutem Carvalho mistura nos corpos d’água urbanos provoca a
e Braga (2009), não sendo considerados aspectos degradação das águas e cria um importante
da dinâmica natural que poderiam ser mais argumento para sua canalização.
facilmente resolvidos pela simples observância de Um aspecto interessante a ser observado
instrumentos legais, como o Código Florestal é que as novas estratégias de manejo das águas
1
Brasileiro (BRASIL, 1965). Observa-se, portanto, pluviais (WSUD, LID e SUDS) surgiram a partir
uma grande distância entre os ideais da dos anos 1990 como necessidade de tratamento
sustentabilidade, os instrumentos da política da água de escoamento. O controle de vazões de
urbana e a prática da Engenharia, no que se pico era objetivo secundário, como destacado por
refere às águas urbanas. Burns et al. (2012), em uma clara referência à
Numa perspectiva moderna, o sistema de relação entre os diferentes componentes do
drenagem deve ser visto como um dos saneamento básico.
componentes do espaço urbano, uma vez que é Por outro lado, diferentes indicadores
impossível dissociá-lo da infraestrutura das relacionados ao saneamento básico têm sido
cidades. O sistema de drenagem de águas utilizados para diagnosticar o percentual de
pluviais compõe a paisagem urbana, promovendo atendimento e a qualidade do serviço prestado à
sociedade, especialmente os de água, esgotos e
1
resíduos sólidos (BRASIL, 2010b). No que se
Apesar de o Código Florestal Brasileiro (Lei no 4.771/1965)
ter sido revogado pela Lei no 12.651/2012 (BRASIL, 2012), a
refere ao déficit em saneamento básico, o
referência a ele se justifica em função de o estado atual dos Panorama do Saneamento Básico no Brasil –
sistemas de drenagem urbana ser decorrente do processo Plansab (BRASIL, 2011) adotou uma conceituação
histórico de ocupação das cidades e, no caso, a Lei atual ainda
não influenciou as intervenções no espaço.
que considera, além da oferta do serviço

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(infraestrutura), aspectos referentes ao uso da diferentes em sua relação com o desenvolvimento


solução ofertada e à qualidade desta oferta urbano, conforme apresentado por Tucci (2002).
(aspectos socioeconômicos e culturais), Desta forma, esse artigo busca
destacando, entretanto, que a natureza dos estabelecer uma definição para déficit em
serviços de drenagem e manejo de águas pluviais drenagem e manejo de águas pluviais urbanas
não permite a utilização de indicadores que contemple outros aspectos do funcionamento
semelhantes. Observa-se, portanto, não haver dos sistemas de drenagem, além do
consenso em relação ao conceito de déficit na estabelecimento de indicadores de existência
drenagem urbana e aos indicadores de avaliação (cobertura) ou atendimento per capita.
dos sistemas de drenagem.
A avaliação do sistema de drenagem e
manejo de águas pluviais é mais complexa, devido FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
à impossibilidade de analisar seu funcionamento
ou eficiência apenas por índices de cobertura de Os indicadores em saneamento básico
rede ou pelo atendimento per capita: a existência têm sido utilizados para diversas finalidades,
de rede não garante a ausência de alagamentos, podendo ser destacadas a avaliação (diagnóstico)
assim como a avaliação per capita não é possível na prestação dos serviços (BRASIL, 2010b) e o
uma vez que a drenagem é analisada em contexto estabelecimento de regras para priorização de
de bacia hidrográfica contribuinte. Por essas políticas públicas, como o Índice de Salubridade
razões, o SNIS (BRASIL, 2010b) não apresentou, Ambiental adotado pela Prefeitura Municipal de
até agora, diagnóstico sobre os serviços públicos Belo Horizonte (BELO HORIZONTE, 2008),
de drenagem baseado em conceito de estando sempre vinculados aos conceitos de
indicadores, e tampouco é possível analisar o déficit ou de eficiência. No caso da drenagem
conceito de déficit na drenagem apenas com urbana, Kolsky e Butler (2002) destacam que a
esses elementos. própria definição de desempenho não é simples,
O Plano Nacional de Recursos Hídricos – dependendo, inclusive, da identificação dos
PNRH (BRASIL, 2006) apresentou alguns objetivos do sistema de drenagem (funções de
indicadores de drenagem baseados na existência drenagem, composição paisagística, manutenção
de estruturas de drenagem, mostrando que 79% de processos hidrológicos, entre outras) e da
dos municípios brasileiros dispunham de sistema forma como a comunidade percebe a melhoria da
de drenagem em 2006. A simples existência do qualidade de vida promovida por ele.
sistema de drenagem nada representa em relação Os sistemas de drenagem de águas
às questões relacionadas a ele, uma vez que os pluviais, como definido na maioria dos manuais
maiores problemas de escoamento das águas técnicos, estão associados a obras de canalização
pluviais, geralmente, estão associados à (BOTELHO, 1998; DAEE/CETESB, 1980), mais
existência de grandes estruturas de drenagem, recentemente combinados com estruturas de
abertas ou fechadas. Paradoxalmente, onde há armazenamento para amortecimento de vazões.
mais infraestrutura de drenagem, parece ser o Seu dimensionamento é feito com base em alguns
lugar em que mais ocorrem falhas. Todos os elementos principais: chuva de projeto (baseado
indicadores apresentados pelo PNRH estão em uma curva Intensidade-Duração-Frequência),
relacionados à existência de estruturas de características da área contribuinte (expressas
drenagem do tipo canalização (aberta ou fechada, pelo coeficiente de escoamento superficial e pelo
em forma de galerias) ou bacias de detenção, o tempo de concentração) e tempo de retorno de
que indica um viés conceitual na drenagem para projeto. A partir da estimativa da vazão máxima,
medidas estruturais. O viés (ou falha) conceitual com base na equação do Método Racional, utiliza-
do PNRH continua na apresentação dos se a equação de Manning para determinar as
indicadores de problemas de inundação, não dimensões que comportam a vazão calculada, do
havendo distinção entre inundações ribeirinhas e ponto de vista hidráulico.
alagamentos ou inundações urbanas, cujos Essa forma de abordagem dos sistemas
mecanismos de formação são completamente de drenagem resulta na seguinte conclusão: os

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sistemas de drenagem de águas pluviais foram redução do tc pelo processo de ampliação


planejados e dimensionados para falhar. Tal da urbanização. Nesse caso, destaca-se a
afirmação pode ser avaliada a partir dos seguintes equação de Kirpich, que foi desenvolvida
elementos principais: para bacias rurais, mas que é comumente
1) sem outras interferências, o utilizada nas áreas urbanas;
sistema de drenagem deverá falhar para 5) os sistemas de drenagem são
eventos de tempo de recorrência dimensionados para transportar água de
superiores ao tempo de retorno de projeto chuva, mas o que se observa,
(Tr). Essa conclusão está, obviamente, efetivamente, é uma grande mistura da
associada ao risco assumido de falha, água de chuva, de esgotos, sedimentos e
associado ao Tr; resíduos sólidos (alguns de grandes
2) as curvas IDF são obtidas a partir dimensões como móveis), cujo resultado é
de análise estatística de dados de chuva, a obstrução ou o aumento da rugosidade
que apresentam alto grau de incerteza, das redes. Neves (2006), por exemplo,
especialmente para áreas distantes das apresenta uma caracterização dos
grandes cidades. De fato, diversas cidades resíduos sólidos encontrados na rede de
brasileiras ainda utilizam as equações drenagem em Porto Alegre.
apresentadas por Pfafstetter em 1957
(PFAFSTETTER, 1982) para calcular as A maioria dos manuais de projeto de
chuvas de projeto e poucas são aquelas sistemas de drenagem de águas pluviais no Brasil
que atualizaram suas curvas IDF. Nesse apresenta afirmações que conduzem às seguintes
caso, destaca-se, ainda, que o interpretações:
crescimento das cidades pode provocar  a melhor drenagem é aquela que escoa
mudanças nos padrões de chuva, com a água da chuva o mais rápido possível para
aumento da intensidade dos eventos jusante;
extremos;  uma boa solução para integração
3) o cálculo da vazão de projeto urbana é por meio de avenidas de fundo de vale,
utiliza o valor do Coeficiente de associadas à canalização dos corpos d’água;
Escoamento Superficial (C): esse valor  o fechamento do canal permite ganhar
apresenta, em geral, um retrato do espaço sobre o rio, esconde a poluição e promove
instante em que está sendo avaliado o a melhoria urbana local, a partir de obras de
projeto do sistema de drenagem, o qual, urbanização dos corpos d’água.
com o passar do tempo, aumenta com a
ampliação da impermeabilização do solo. Esse tipo de abordagem conduziu a um
Deve-se observar, ainda, que esse valor processo sistemático de canalização e
não consegue, em grande parte dos recobrimento dos corpos d’água, como uma forma
casos, retratar a real característica da de livrar a cidade de um elemento que provoca a
bacia, uma vez que o C não é função degradação do ambiente. A solução se assemelha
apenas do uso e ocupação do solo e que ao tradicional “varrer para baixo do tapete”.
as tabelas utilizadas uniformizam seu valor No Brasil, essa discussão ganhou espaço
apenas para essa característica. Ressalta- a partir do final dos anos 80, mas foi incorporada,
se, também, que as condições de uso e de fato, apenas no final dos anos 90,
ocupação reais, normalmente, apresentam especialmente no meio acadêmico. A percepção
maiores taxas de impermeabilização do da complexidade dos sistemas e da
que aquelas de projeto (previstas em insustentabilidade na abordagem tradicional gerou
Planos Diretores Urbanos); um grande esforço por mudanças conceituais.
4) o cálculo do tempo de Esse fato está, de certa forma, traduzido na Lei
concentração da bacia (tc) é feito a partir Nacional de Saneamento Básico (BRASIL, 2007,
de equações empíricas que, dificilmente, artigo 3o., inciso I, alínea d) quando se coloca
representam as condições de projeto e a como um dos componentes do saneamento básico

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a “drenagem e manejo de águas pluviais urbanas”. fortalecendo o senso comum da necessidade de


Formalmente, o termo “manejo” aparece pela ampliação de galerias e execução de obras de
primeira vez associado à drenagem, quebrando o canalização e retificação de corpos d’água. Os
paradigma de que drenar é necessário. Apresenta- conceitos de déficit no sistema de drenagem
se a noção da necessidade de gerir ou manejar as pluvial, na visão tradicional, estão associados aos
águas urbanas como importante elemento da alagamentos causados pela inexistência de redes,
paisagem uma vez que os corpos d’água, sua insuficiência ou obstrução (os indicadores do
inegavelmente, estão integrados à cidade, PNRH estão sempre associados à existência de
valorizando ou deteriorando o espaço. Com essa redes de drenagem). A Figura 1 apresenta as
nova abordagem, busca-se visualizar os alterações provocadas pela urbanização sobre os
processos naturais, em particular o ciclo hidrogramas de cheias, considerando a
hidrológico, e os impactos que a cidade causou abordagem tradicional da drenagem urbana, por
sobre eles. Busca-se, portanto, a compensação de meio de canalizações. Pode ser observado que o
efeitos da urbanização ou, ainda, uma forma de crescimento da cidade cria e amplia pontos de
urbanização que minimize os impactos sobre os alagamentos e que o tratamento dos problemas
processos naturais (TUCCI; BERTONI, 2003). por canalização apenas transfere os volumes de
As cidades brasileiras, em geral, têm um ponto a outro, criando uma falsa sensação de
sofrido, sistematicamente, com as falhas dos segurança, o que permite a ocupação cada vez
sistemas de drenagem, com grandes prejuízos mais próxima dos corpos d’água.
materiais e risco à saúde e à vida da população,

Figura 1: A abordagem tradicional da drenagem urbana e sua relação com os alagamentos. Fonte: adaptado pelos
autores com base em Tucci e Bertoni (2003).

A A

Estágio 1
Estágio 2
Legenda

Canal

Área alagada

Estágio 3 Área urbana

Estágio 2

Estágio 1

Estágio 3

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A associação das falhas no sistema de 3) o espaço natural tem pontos, também


drenagem com a ausência ou insuficiência de naturais, de alagamentos e sua ocupação
redes é proveniente do tratamento que o sistema é garantia de falhas futuras no sistema de
de drenagem pluvial sempre recebeu, ou seja, drenagem;
como um acessório do sistema viário, cujo 4) a abordagem tradicional, com base na
planejamento, execução e gestão estão eficiência hidráulica de redes, transfere
vinculados aos órgãos municipais de obras, não impactos para jusante;
havendo um planejamento sistemático da 5) o dimensionamento de redes considera
drenagem, com visualização da bacia hidrográfica risco de falha ao utilizar o conceito de
como elemento de análise. Nessas situações, o Tempo de Retorno para projeto. Dessa
conceito de déficit está associado, tão somente, à forma, os projetos de drenagem já estão
ausência ou insuficiência dos canais de drenagem associados com uma garantia de falha
pluvial, indicando sua implantação ou ampliação. para eventos superiores aos de projeto
Numa perspectiva mais abrangente, a (além de outros fatores, já discutidos
partir da percepção da bacia hidrográfica como acima);
sistema (já determinados na Lei das Águas 6) a urbanização pode gerar mudanças
[BRASIL, 1997] e na Lei Nacional de Saneamento locais de clima (mudanças nas relações
Básico [BRASIL, 2007]), o conceito do déficit no intensidade-duração-frequência),
sistema de drenagem pluvial se associa com o modificando o regime pluviométrico local
próprio conceito do sistema de drenagem e e, consequentemente, modificando as
manejo de águas pluviais. Ao visualizar a relações de risco de falha do sistema;
complexidade desse sistema e as suas relações e 7) a base de informações da infraestrutura
interferências com os demais elementos do da cidade é essencial para a gestão das
espaço urbano, com importante impacto na águas pluviais;
qualidade de vida, percebe-se a necessidade de 8) a relação com outros elementos
analisar os tipos de falhas associados aos (esgotos, sedimentos e resíduos sólidos) é
sistemas de drenagem e as relações que geram fundamental para o funcionamento dos
tais falhas. Dessa forma, é necessário destacar sistemas de drenagem pluvial.
que:
1) nem sempre quem gera o alagamento Considerando-se os elementos
sofre suas consequências diretas, uma apresentados, observa-se a necessidade de
vez que o aumento das vazões tem analisar o conceito de déficit nos sistemas de
impacto à jusante de sua geração e está drenagem e manejo de águas pluviais em relação
associado à impermeabilização do solo, a uma série de elementos que extrapola apenas
determinada pelos padrões atuais de uso as questões hidráulicas. Um conceito mais
e ocupação do solo. Da mesma forma, abrangente deve considerar a cobertura do
nem sempre quem sofre com os sistema, a tecnologia utilizada para a gestão das
alagamentos teve responsabilidade direta águas pluviais, a informação disponível, a
com a ampliação do escoamento degradação dos corpos d’água e as estruturas
superficial natural; técnico-institucionais.
2) o processo de ampliação da cheia
natural, provocado pela urbanização, pode
ser controlado no próprio local de geração, METODOLOGIA
por meio de técnicas de desenvolvimento
de baixo impacto e de medidas Para a elaboração deste artigo, foi
compensatórias dos efeitos da realizada revisão bibliográfica e análise da
urbanização sobre o ciclo hidrológico; legislação pertinente ao funcionamento dos
sistemas de drenagem e manejo de águas

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pluviais, considerando a experiência dos autores  déficit qualitativo, considerando que as


na área. Em função da evolução conceitual intervenções na drenagem urbana têm tido
relativa ao tema, especialmente aquelas exclusiva preocupação com aspectos de
introduzidas pela Lei Nacional de Saneamento quantidade (vazões máximas e,
Básico (BRASIL, 2007), as discussões conduzidas eventualmente, volumes), provocando a
adotam a seguinte terminologia: degradação das águas nos corpos d'água
1) sistemas de drenagem (ou sistemas urbanos;
de drenagem pluvial): quando estiver  déficit tecnológico, considerando que a
sendo abordado o sistema solução para resolver problemas de
tradicionalmente utilizado, com base na escoamento das águas pluviais tem sido,
eficiência hidráulica e com a noção exclusivamente, em forma estrutural do tipo
específica (e explícita) de drenagem, sem canalização e, eventualmente, amortecimento;
preocupação com outras funções dos  déficit técnico-institucional, considerando a
sistemas de drenagem urbana; fragilidade institucional para tratar de forma
2) sistemas de drenagem e manejo de integrada as questões de drenagem e manejo
águas pluviais: quando estiver sendo de águas pluviais;
abordada uma nova concepção, que  déficit de cobertura, considerando a existência
busca a integração das águas pluviais ao adequada das redes, onde elas se fazem
ambiente urbano, de forma mais ampla. necessárias (a ausência de rede não significa,
necessariamente, déficit);
A definição do déficit em drenagem urbana  déficit de concepção e comunicação (ou
e manejo de águas pluviais levou em participativo), considerando que as soluções
consideração a evolução conceitual observada na para os problemas de drenagem, de maneira
abordagem da drenagem pluvial, com a introdução geral, são concebidas exclusivamente em
em Lei de aspectos multifuncionais do sistema e ambiente técnico, sem considerar as efetivas
de integração em âmbito urbano (recorte demandas da sociedade.
urbanístico) e ambiental (recorte da bacia
hidrográfica). A conceituação apresentada indica,
portanto, caminhos para a definição de RESULTADOS E DISCUSSÃO
indicadores que permitam avaliar o estado
(diagnóstico) de tais sistemas e metodologias de O déficit na drenagem urbana está
priorização de ações em políticas públicas, relacionado a vários aspectos técnicos, legais,
extrapolando a simples análise de cobertura de sociais, financeiros e culturais, relacionados à
redes e de ocorrência de alagamentos ou realidade local, os quais dificultam a adoção de
inundações. Observa-se, igualmente, a indicação novos conceitos, como destacam Goldenfum et al.
da diferenciação dos mecanismos de formação (2007). Desta forma, o desenvolvimento de planos
dos problemas urbanos relacionados ao integrados (especialmente os de saneamento
escoamento superficial, como as inundações básico e desenvolvimento urbano) esbarra em
ribeirinhas e cheias ou alagamentos urbanos problemas como o baixo nível de controle sobre a
(TUCCI, 2002), que também devem estar expansão urbana e a deficiência da informação.
representados nos indicadores. Essas questões estão representadas nos
Para a discussão dos resultados, diferentes aspectos do déficit em drenagem, que
abordagens diferentes e complementares do serão discutidos a seguir.
déficit foram estabelecidas:
 déficit de informação, considerando o tipo, a 4.1. Déficit de informação
qualidade e acessibilidade da informação No que se refere à informação, o déficit
sobre os sistemas de drenagem e manejo de está associado ao pouco conhecimento efetivo
águas pluviais, e a necessidade desta dos sistemas de drenagem, incluindo as bacias
informação para intervenção adequada; hidrográficas contribuintes como um todo. Assim,
o déficit de informação está relacionado:

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1) à caracterização das bacias e sub- infraestrutura urbana (só é possível intervir


bacias urbanas, incluindo detalhamento da adequadamente se o sistema é bem conhecido),
hidrografia natural; mas também por fomentar o debate junto à
2) ao cadastro de redes de drenagem e sociedade com base em informações
dos demais elementos da infraestrutura consistentes, realistas e que possibilitem a
urbana (esgotamento sanitário, avaliação de todas as alternativas possíveis (não
abastecimento de água, telefonia, só das soluções tradicionais).
eletricidade, gás, entre outros). Essa
informação é necessária para analisar o 4.2. Déficit qualitativo
funcionamento do sistema e para o No que se refere à degradação dos corpos
planejamento de intervenções que se d’água, o déficit está associado à própria
façam necessárias; qualidade das águas pluviais. Até recentemente,
3) ao uso e ocupação do solo: havia o entendimento de que as águas pluviais
geralmente, a ocupação real promove eram mais limpas. Entretanto, alguns autores
maiores taxas de impermeabilização do como Chebbo et al. (2001), Neves (2006) e
que o previsto nos instrumentos do Pimentel (2009), citados anteriormente, mostraram
planejamento urbano, como mostrou que a qualidade da água proveniente do
Carvalho (2012), os quais são utilizados escoamento superficial também é bastante ruim,
no projeto dos sistemas de drenagem. contendo grande quantidade de metais pesados,
Entretanto, dificilmente, essa informação óleos, graxas, sedimentos e todo tipo de resíduo
está disponível; sólido urbano, sobretudo durante o período inicial
4) aos indicadores socioambientais: as da chuva. Associa-se a esses elementos o
intervenções nos sistemas de drenagem e lançamento de esgotos domésticos ou industriais
manejo de águas pluviais devem ser diretamente nos corpos d’água urbanos ou, ainda,
priorizadas de acordo com indicadores na própria rede de drenagem. Neste sentido, o
associados aos riscos que a sociedade déficit qualitativo do sistema de drenagem e
está sujeita no caso da ocorrência de manejo de águas pluviais se refere à combinação
eventos extremos vinculados à rede de do déficit aos demais elementos do saneamento
drenagem. No caso dos sistemas de básico e à baixa qualidade do escoamento
drenagem, esses indicadores podem estar superficial provocada pela lavagem das
associados a: densidade populacional, superfícies.
estado de degradação/salubridade do A avaliação desse tipo de déficit terá
ambiente, ocorrência de alagamentos relação direta com o funcionamento hidráulico das
(com definição de nível e frequência), redes de drenagem, uma vez que a presença de
entre outros. Entretanto, esse tipo de sedimentos, resíduos sólidos e esgotos na rede de
informação, dificilmente, está disponível ou drenagem provoca mudanças importantes no
é levado em consideração para avaliação funcionamento da drenagem, a saber:
dos sistemas de drenagem de águas 1) a presença de sedimentos e resíduos
pluviais, apesar de sua caracterização ser sólidos obstrui a rede e provoca aumento
importante para avaliar a deficiência na na rugosidade, diminuindo a capacidade
infraestrutura urbana. hidráulica de transporte de vazão e,
consequentemente, provocando
Nesse aspecto do déficit, Goldenfum et al. insuficiência das redes;
(2007) destacam, especialmente, a precariedade 2) a degradação dos cursos d’água, em
das informações hidrológicas e hidráulicas que função do déficit qualitativo, provoca uma
permitam avaliar as condições atuais (diagnóstico) sensação de rejeição por parte da
e os cenários futuros de planejamento e sociedade, que passa a entender esse
intervenção. Tal aspecto está mais relacionado ao ambiente como um “esgoto a céu aberto” e
Poder Público, responsável não só por manter um não mais como um “curso d’água”. Desta
acervo que permita intervenções adequadas na forma, a tendência é de maior aceitação

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ao conceito “drenar” do que ao conceito financiamento do Governo Federal, com vistas à


“manejar” as águas de chuva. intervenção em drenagem pluvial. Apesar de
deixar claro que as soluções baseadas em redes
4.3. Déficit tecnológico ou em canalização de cursos d’água (base em
Tradicionalmente, no Brasil, a tecnologia eficiência hidráulica) não devem ser prioridade,
utilizada para o manejo das águas pluviais é a sendo sua utilização aceita apenas em casos
drenagem (por condutos) propriamente dita, ou específicos onde as técnicas compensatórias não
seja, parte-se do pressuposto que “drenar é sejam possíveis, não houve mudança efetiva na
necessário”, conforme já foi discutido prática, e várias cidades brasileiras continuam
anteriormente. A dificuldade de relacionar a forma fazendo intervenção, com recursos desses
de urbanização com os problemas associados à ministérios, com base nas mesmas técnicas
falha nos sistemas de drenagem conduz a um tradicionais de drenagem.
tratamento pontual dos alagamentos (conforme Evidentemente, a mudança da solução
mostrado na Figura 1). A tecnologia utilizada é tecnológica esbarra em questões como a
sempre a de canalização do escoamento interação com outros elementos do saneamento
superficial, com os sistemas de microdrenagem básico (e, consequentemente, os aspectos de
contribuindo para os sistemas de macrodrenagem qualidade da água limitam determinados tipos de
que, por sua vez, têm a função de eliminar, o mais solução), a capacitação técnica para projetos de
rapidamente possível, a água dos centros dispositivos compensatórios, a inexistência de
urbanos. Esse tipo de abordagem apresenta suas instrumentos de avaliação sistemática das
limitações, uma vez que apenas transfere os soluções adotadas, a fragilidade institucional
alagamentos para jusante, não havendo (déficit técnico-institucional) para avaliar medidas
sustentabilidade em longo prazo. Neste sentido, distribuídas na bacia, entre outros, como
pode-se definir o déficit tecnológico a partir da destacado por Goldenfum et al. (2007).
ausência de utilização de soluções e técnicas de
drenagem e manejo de águas pluviais mais 4.4. Déficit técnico-institucional
integradas ao contexto das cidades, como as As mudanças de paradigmas no
soluções compensatórias do efeito da urbanização tratamento das questões relacionadas à
ou, ainda, as técnicas de desenvolvimento urbano infraestrutura urbana esbarram em outra questão
de baixo impacto (LID – Low Impact importante: o déficit técnico-institucional em
Development). relação às águas pluviais. Na maioria dos
Nesse caso, é interessante observar que municípios brasileiros, com poucas exceções
já existe um importante reconhecimento das (como Porto Alegre), a drenagem das águas
limitações tecnológicas dos sistemas tradicionais, pluviais é de responsabilidade dos órgãos
mas que ainda não se traduz em incorporação municipais de obras e/ou infraestrutura viária.
efetiva de novas tecnologias. Desta forma, o sistema de drenagem passa a ser
Em 2006, o Ministério das Cidades e o visto como “um apêndice” do sistema viário e não
Ministério da Integração Nacional lançaram o como um elemento da infraestrutura que deve ser
"Programa 1138 – Drenagem Urbana e Controle trabalhado com atenção especial. Via de regra, o
da Erosão Marítima e Fluvial: manual para corpo técnico desses órgãos não tem a
2
apresentação de propostas" (BRASIL, 2009, atualização necessária para fazer uma abordagem
2010a), trazendo uma série de diretrizes do manejo das águas pluviais dentro de uma visão
relacionadas à concepção dos sistemas de mais integral do sistema, conforme a definição de
drenagem como condicionantes para conseguir Porto et al. (1997). Outro aspecto que merece
destaque é o fato de não haver atualização do
2
corpo técnico permanente, já que parte
A versão do Programa 1138 datada de 2006 era intitulada
“Programa 1138 – Drenagem Urbana Sustentável: manual
significativa dos técnicos municipais não pertence
para apresentação de propostas”, sendo posteriormente ao quadro permanente das prefeituras, resultando
complementada para incluir o controle de erosão, que se em dificuldade de continuidade das políticas
tornou mais genérica nos aspectos relacionados à drenagem
urbana.
públicas urbanas.

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Mesmo onde há estrutura institucional expansão espontânea, sem observância de regras


específica para a gestão das águas pluviais, não ou padrões urbanos.
há consenso sobre as responsabilidades
compartilhadas. Goldenfum et al. (2007) destacam 4.5. Déficit de cobertura
a dificuldade de integração entre órgãos do Quanto à abrangência da rede, tem-se o
mesmo nível de governo para a gerenciamento déficit de cobertura, que se relaciona ao alcance
dos sistemas de drenagem em Porto Alegre, no do sistema de drenagem e sua eficiência no
caso de estruturas que compartilham o espaço sentido de minimizar os riscos que a sociedade
urbano e as funções (e.g. bacias de detenção em está sujeita no que se refere aos alagamentos.
praças). Esses riscos estão associados à ocorrência de
Ainda em relação ao déficit institucional, o eventos de alagamentos, mas também a questões
Ministério das Cidades vem tratando a questão do sanitárias, uma vez que, geralmente, as águas nos
planejamento urbano, em todos os seus aspectos, sistemas de drenagem possuem alto grau de
como prioridade. Entretanto, o alcance desse poluição/contaminação. Um sistema de drenagem
planejamento, na maioria das cidades brasileiras, urbana e manejo de águas pluviais, avaliado em
é limitado no que se refere ao manejo das águas toda a sua complexidade, deve ser composto –
pluviais. Os Planos Diretores das Cidades, em aqui sendo destacados apenas os aspectos
geral, apesar de terem um forte discurso vinculados à tecnologia para drenagem e manejo
ambiental, ignoram o traçado natural dos corpos das águas pluviais – por:
d’água, havendo poucas restrições para ocupação 1. sistemas de micro e macro-drenagem,
de áreas de risco relacionado às águas pluviais incluindo as sarjetas nas ruas, as galerias
(FERNANDES et al., 2011). No mesmo sentido, os de águas pluviais e as estruturas de
Planos Diretores de Drenagem Urbana (ou Planos acesso (bocas de lobo, poços de visita
Municipais de Saneamento Básico), obrigatórios etc.);
para demandar recursos federais, ainda têm 2. bacias de detenção e retenção de
tratado a questão apenas do ponto de vista das águas pluviais;
obras de canalização. Poucos Planos Diretores de 3. bacias, trincheiras, valos e poços de
Drenagem Urbana têm incorporado a ideia da infiltração de águas pluviais;
conservação do ciclo hidrológico natural, 4. pavimentos permeáveis;
restringindo a ocupação das áreas de risco ou 5. parques lineares ao longo dos corpos
exigindo a compensação dos efeitos da d’água, associados às zonas de maior
urbanização sobre o ciclo hidrológico. Neste risco de alagamentos;
aspecto, deve-se destacar que o 6. elementos de controle da geração de
dimensionamento de obras de canalização para a escoamento superficial na fonte (áreas
drenagem pluvial é garantia de falha, pela própria permeáveis nos lotes, microrreservatórios
definição do tempo de retorno de projeto das de detenção, elementos de infiltração no
obras e por outros aspectos já discutidos lote etc.).
anteriormente.
Deve-se considerar, ainda, a dificuldade Destaca-se, nesse caso, que a cobertura
das municipalidades em observar as regras da dos sistemas de drenagem, hoje, está fortemente
expansão urbana, ainda que não muito bem associada apenas à primeira técnica apresentada
definidas no que se refere aos processos e, em alguns casos, à utilização da segunda.
hidrológicos, estabelecidas nos Planos Diretores. Normalmente, os sistemas de drenagem têm sido
Como bem observam Goldenfum et al. (2007), implantados apenas quando iniciam os problemas
trabalhar a mínima interferência no ciclo localizados de alagamentos, não havendo
hidrológico em escala de bacia torna-se mais difícil avaliação prévia de sua necessidade.
quando apenas uma parte da bacia hidrográfica (a Considerando o próprio conceito de
chamada cidade formal) segue as regras definidas sistema de drenagem, apresentado por Porto et al.
no planejamento, havendo parcela significativa de (1997), o déficit de cobertura deve ser analisado a
partir de indicadores de falha do sistema

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(funcionamento hidráulico associado a outros chuva, bem representada no noticiário cotidiano


elementos da infraestrutura) e de degradação (ou em períodos chuvosos (SILVEIRA; PARREIRAS,
salubridade) dos corpos d’água. Neste aspecto, 2011), sem a percepção de que a condição atual é
devem ser utilizados indicadores que relacionem a resultante de um processo histórico de décadas,
abrangência, a frequência e a magnitude das conforme está bem ilustrado em Polignano (2008).
falhas, conforme apresentado por Holz (2010), e A aversão ao risco e a rejeição a soluções
seus impactos (prejuízos financeiros, risco à vida, não estruturais estão bem representadas nas
à saúde e ao ambiente, entre outros) em relação à medidas de adaptação (também componentes do
infraestrutura existente e ao uso e ocupação do sistema de drenagem e manejo de águas pluviais)
solo, conforme apresentado no Plano Municipal de adotadas, recentemente, em Belo Horizonte. A
Saneamento de Belo Horizonte. percepção da incapacidade de combater as cheias
e da insustentabilidade das soluções tradicionais
4.6. Déficit de concepção e comunicação (ou no longo prazo levou a municipalidade a elaborar
participativo) a Carta de Inundações (BELO HORIZONTE,
Por fim, podem-se acrescentar, para 2009) e, a partir dela, informar a sociedade, por
análise do déficit, os elementos relacionados à meio da instalação de placas de sinalização nos
abordagem técnica tradicionalmente utilizada. locais de risco (comunicação do risco). A medida
Nesse caso, pode-se definir como déficit de foi imediatamente rejeitada pela população, que
concepção e comunicação aquele relacionado a esperava por ações estruturais imediatas, como
dois elementos principais: ampliação dos canais e galerias, como forma de
1) à ideia de que a solução técnica (de preparação da Cidade para os períodos chuvosos,
engenharia) é sempre melhor do que a cobrando soluções amplas e seguras em curto
solução concebida de forma participativa espaço de tempo. Destaca-se, nesse caso, que há
(envolvendo a sociedade); uma tendência a esperar que as cidades estejam
2) à rejeição popular a medidas de "preparadas estruturalmente" para garantir que,
adaptação não estruturais ou durante eventos extremos, não ocorram
estruturantes. alagamentos ou inundações. Um exemplo do que
tem sido mostrado com frequência na mídia em
O primeiro elemento conduz a uma geral pode ser encontrado em Silveira e Parreiras
rejeição pela sociedade de soluções que poderiam (2011) sobre o combate a enchentes: todas as
ser tecnicamente boas se houvesse um processo medidas de preparação da cidade demandadas
de participação na análise dos problemas e pela sociedade se referem a obras de canalização
concepção das soluções. Aparentemente, há um como solução, não havendo compreensão pelas
consenso no meio técnico de que as boas medidas não estruturais ou estruturantes, o que
soluções podem ser concebidas, apenas, a partir denota a incapacidade (ou déficit) de concepção e
do conhecimento técnico de engenharia. Esse comunicação das alternativas à canalização.
caso pode ser muito bem ilustrado nas escadarias
drenantes de Salvador, como destacou Mangieri
(2012), onde houve rejeição das soluções por CONCLUSÃO
detalhes de concepção que não foram avaliados
na fase de projeto. Tendo em vista esses diferentes e
O segundo elemento, também associado a complementares conceitos de déficit associados
outros aspectos do déficit, vincula-se ao estado às águas pluviais, entende-se, portanto, que o
atual dos cursos d’água urbanos e a uma déficit da drenagem está relacionado à
expectativa de eliminação desse elemento (o rio degradação da água no espaço urbano e aos
em si) de degradação: não há percepção da riscos que a sociedade está sujeita na
possibilidade de reinserção da água como eventualidade de ocorrência de eventos de
elemento de composição (agradável) da alagamentos. Destaca-se que o conceito de déficit
paisagem. Há uma forte demanda da sociedade relacionado às águas pluviais não é possível de
pela eliminação imediata dos riscos relacionados à ser estabelecido com a utilização de população

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coberta por redes de drenagem ou por valores per controle da vazão de pico e do volume, conforme
capita. Tratar esse déficit significa trabalhar a metodologia apresentada por Silveira e Goldenfum
valorização da água nas cidades, com a (2007).
valorização do próprio ambiente, utilizando-se Segundo Burns et al. (2012), apesar dos
soluções que sejam integradas a esse ambiente, avanços das últimas décadas, com o
que minimizem os impactos sobre os processos reconhecimento das questões de qualidade, tanto
naturais, em geral, e sobre o ciclo hidrológico, em a abordagem tradicional de eficiência hidráulica
particular, e que permitam, sobretudo, a quanto o controle da qualidade da água do
convivência da população com esses processos escoamento ainda falham por considerar aspectos
naturais. A percepção dos processos naturais por ecológicos apenas com base no regime de
parte do cidadão deve fazer com que ele se sinta vazões. Nesse sentido, a ampliação da discussão
mais responsável pelas falhas do sistema. conceitual sobre o déficit na drenagem urbana
Deve-se observar que a conceituação aqui deve considerar os efeitos de escala nos
apresentada não esgota o assunto. Não foram processos (quantitativos e qualitativos) com
levantados, por exemplo, os aspectos abordagem ecológica, incorporando os efeitos de
relacionados à questão legal, o que deve abrir um escala das soluções adotadas (parcela,
novo espaço para discussão. Há uma série de microdrenagem, macrodrenagem, bacia
instrumentos legais que interferem na questão das hidrográfica), conforme destacado por Marsalek e
águas pluviais urbanas – Código Florestal, Lei de Schreier (2009) e Burns et al. (2012).
Parcelamento do Solo Urbano, Lei Nacional de Historicamente, as soluções tradicionais,
Saneamento Básico, Estatuto da Cidade, Planos baseadas em eficiência hidráulica, focam a grande
Diretores de Desenvolvimento Urbano ou escala, ou seja, os efeitos na macrodrenagem, o
Municipal, entre outros –, e que não têm sido que parece indicar um importante aspecto do
efetivamente observados. Para citar apenas um déficit (concepção). De acordo com Burns et al.
exemplo, tanto o Código Florestal quanto a Lei de (2012), os estudos mais recentes mostram que,
Parcelamento do Solo Urbano tratam da restrição aparentemente, recuperar os balanços hídricos em
à ocupação de bordas de cursos d’água e de escala local pode ser uma estratégia para a escala
encostas, mas essas áreas continuam sendo de bacia no sentido da recuperação das condições
sistematicamente ocupadas, tanto pela cidade naturais, mas ainda há necessidade de
oficial/formal (com registro e licenças municipais), aprofundamento no assunto, especialmente no
quanto pela cidade não-oficial/informal (de que se refere aos arranjos institucionais para tratar
ocupações espontâneas), o que mostra a as questões de uso difuso e de aspectos de
deficiência na observância dos instrumentos da manutenção das soluções adotadas.
política urbana. Este artigo buscou, portanto, estabelecer
Da mesma forma, as questões um novo foco de discussão para definição de
relacionadas aos aspectos ecológicos, como déficit em drenagem urbana e manejo de águas
alteração do ambiente natural e consequente pluviais, como uma forma de contribuir para o
perda de biodiversidade, abre um novo espaço de estabelecimento de critérios de avaliação desses
discussão sobre os conceitos de déficit na sistemas. Observa-se que não há um aspecto
drenagem urbana. Como foi ressaltado por Burns único a ser observado, em função da
et al. (2012), as mudanças nos processos complexidade do sistema e da dificuldade de tratá-
hidrológicos (vazões, volumes, tempos de lo de forma integral, o que levou à fragmentação
resposta do escoamento) e na qualidade da água das abordagens.
não estão sendo tratadas de forma integral pelas
soluções adotadas na drenagem urbana. As
soluções tradicionais priorizam o escoamento, REFERÊNCIAS
enquanto as soluções compensatórias priorizam a
qualidade da água, apesar de no Brasil o BELO HORIZONTE. Plano Municipal de
dimensionamento das soluções compensatórias Saneamento de Belo Horizonte 2008/2011. Belo
estar sendo realizado apenas com base no

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