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| wida colidiana ( o centro de iuu_rcsse dos dois

Iericas imprescindíveis para o seu (-s.ludo, e qual a


releváncia para todos os que investem na transforn a
a sociedade sio as questoes enfrentadas neste pequet
livro.
X partir de referenciais teóricos clássicos no deba
solbre a vida cotidiana (Lukács, Lefêbvre, Heller), os
mtores, com entoques diferentes, abordam uma temáti
que. extremamente atual, tem as maiores lmpllcaçqqg 5
práticas para assistentes sociais, educadores e cu:nn,g_

|VNn
ISBN 978-85-249-0092-1
d

7885241900921
COTIDIANO:
Conhecimento
e critica M

Ddgn
J. P. Netto
M.C. Brant de Carvalho
Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carvalho, Maria do Carmo Brant de.


Fl64v Cotidiano : conhecimento e critica / Maria do Carmo Brant de
Carvalho, José Paulo Netto. — 7. ed. — São Paulo, Cortez, 2007.

COTIDIANO:
Bibliografia
ISBN 978-85-249-0092-1
1. Escola marxis de sociologia
ta 2. Fenomenologia existencial
3. Lukics, Gydrgy, 1885-1971 4. Serviço Socia
— Filosofia
l
1. Netto, José Paulo, 1947- I1. Titulo.

CDD -361.001
-142.7
-142.78
Conhecimento
87-1064
-301.092
-335.438301 e critica
indices para catalogo sistematico:
Existencialismo osofia 14278
. Fenomenologia existencial : Filosofia 142.7
7 edição
TR,

Marxismo e sociologia 335.438301


Servigo Social : Filosofia 361.001
Sociologia marxista 35.438301
. Socidlogos : Biografia e obra 301.092

CORTEZ
E EDITORA
COTIDIANO: conhecimeno e criti
ca
José Paulo Netto
MAriudnClnnnBflmdeCam]bo

Capa: Carlos Clémen


Revisão: Ana Maria Barbosa
Composigio: Dany Editora Ltda.
Coordenagio editorial- Dani
lo A. Q. Morales

Sumário

Preflcio . ........ .. ... .. ... ... . ... ... 9

O conhecimento da vida cotidiana: base neces


siria
à pritica social
Maria do Carmo Brant de Carvatho
13
1 — Vida cotidiana: o centro de atengdo de
hoje 17
I — O que é a vida cotidiana?
23
Il — A vida cotidiana em nosso mu:
relevantes
31
IV — O cotidiano e a prética social dos
assistentes sociais . . 51
Bibliografia . .......... . ..... ... ..... . 62

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduz Para a critica da vida cotidiana
expressa dos autores e do editor.
ida ou duplicada sem autorização
José Paulo Newo .. ... ... . . . . . 64
© 1987 by Autores As determinagdes fundamentais da cotidianid
ade 65
A postura_tedrico-metodolégica
Dircitos para esta edição n
As categorias centrais
CORTEZ EDITORA 76
Rua Bartira, 317 - Perdizes A crítica da vida cotidiana
85
05009-000 — São Paulo — SP BibUografia aaam e
Tel: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 91
E-mail: cortez@eortezeditora.com.br
Www.cortezeditora.com.br

Impresso no Brasil - março de 2007


Nota a terceira edição

Quando, em principios de 1987, preparamos os ensaios


que compdem este pequeno livro, sabiamos que estivamos
atendendo a uma demanda clara entre os assistentes sociais
(mas que também existia em outras dreas das ciéncias
sociais): a discussdo sobre o cotidiano ganhava espago e
havia pouco material brasileiro incidente sobre a polémica.
Neste sentido, cabia inteiramente um volumito enfeixando
dois escritos muito diferentes: um texto que derivava de
um exercicio académico (o de Brant de Carvalho, inserido
numa investigagdo patrocinada pelo CNPq) e outro, que nio
se propunha mais que ser um “ensaio de ocasião” (o de
Netto). Numa palavra, nós pretendiamos tao-somente oferecer
uma contribui¢io conjuntural ao debate que entdo se aden-
sava.

Compreensivelmente, fomos surpreendidos pela aceita-


ção de Cotidiano: conhecimento e critica — de fato, nunca
pensamos que haverfamos de ter o prazer de vé-lo em
terceira edição. A recepção que o livrinho continua a ter
sinaliza muitas coisas — até mesmo o equivoco de nossas
projeções sobre o futuro desses escritos —, e talvez a mais
importante seja não só a continuidade da demanda original,
mas, especialmente, a exigéncia de uma bibliografia rigorosa
e atualizada.
_Enlrelamo, nada modificamos nos
textos originais: o
conjunto sai em terceira edicio
sem qualquer alteragio
(conservado, inclusive, o generoso
preficio com que, em
1987, nos obsequiou Michael Lowy),
exceto a correção de
gralhas que escaparam nas edições
anteriores. Ainda que
cgnsuderando 0S avanços nesta área
de pesquisa e o cres-
cimento ponderdvel da bibliografia pert
inente, julgamos que
mod?ficaçõcs significativas implicariam
a redação de outros Prefacio
ensaios. E, como todo material post
o à prova do juízo
público, este também tem a sua história
e as suas limitações
— e não cremos de bom alvitre
revisá-las, até porque
continuamos acreditando na essência
do que aqui foi ex-
plicitado.
Maria do Carmo Brant de Carvalho é autora de trabalhos
José Paulo Netto sobre os movimentos sociais urbanos, inspirados por um
Maria do ponto de vista que rejeita a pretensa neutralidade positivista
Carmo Brant de Carvalho
e toma partido pela auto-organizagio popular. José Paulo
Rio de Janeiro/Sao Paulo, Jjaneiro de 1994, Netto € conhecido filésofo marxista e autor, entre outros
escritos, de um notdvel livro sobre capitalismo e reificago.
Vindos de horizontes diversos, mas partilhando uma visão
critica da realidade social contemporinea, eles reuniram,
neste inteligente e útil livrinho, dois ensaios sobre a vida
cotidiana. A forma ensaio, segundo a bela definigio de
Lukdcs, na Alma e as Formas, foge à “perfeigio fria e
definitiva” do sistema: forma aberta e inacabada, ela permite
entretanto uma “reordenagio inteligivel” da vida. Este é o
sentido que tém os dois trabalhos aqui publicados: provocar
uma abertura da reflexdo sobre a vida cotidiana, e não
“fechar a questão” com uma formulagio de tido sistemdtico.
Apesar da diversidade entre os dois ensaios, este livro
apresenta uma evidente coeréncia; isto resulta do fato que
tanto Maria do Carmo quanto José Paulo utilizam o mesmo
enfoque metodolGgico e se referem à mesma corrente de
pensamento: a tendéncia dialética/revoluciondria dentro do

9
marxismo, inaugurada por Lukács e continuada por Henri Alguns anos mais tarde, ao escrever Histéria e Cons-
Lefebvre, Lucien Goldmann, Karel Kosik e Agnes Heller. ciéncia de Classe (1923), Lukács integra estas intuigdes
Para o marxismo vulgar — em suas vérias versoes: profundas, mas supera o enfoque demasiado metafisico de
economicismo, materialismo abstrato, semipositivismo “cien- seus ensaios de juventude: ele descobre na reificagdo das
tifico”, estruturalismo, stalinismo — a vida cotidiana não relações entre os individuos o “tipico da vida cotidiana
aparece como objeto digno de estudo. Impossivel de en- contemporinea” (José Paulo Netto). E a ruptura dialética
quadrar no sistema rigido das estruturas, ou no arcabougo com a reificagdo cotidiana já não é a espera desesperada
esquemitico da contradigdo entre forgas e relagoes de pro- do acaso ou do milagre, mas sim a prdxis revoluciondria,
dugdo, ela escapa ao horizonte do diamat e do histmat. a ação emancipadora da classe oprimida.
Não é por acaso que a teoria critica que parte de uma Nos seus dltimos escritos, a Estética e a Ontologia do
visdo dialética da rotalidade social é a única capaz de Ser Social, Lukács volta a abordar, sob um angulo diferente,
abordd-la com rigor e profundidade.
a questio da vida cotidiana. Analisando estas obras, José
Os dois ensaios se referem sobretudo aos escritos Paulo Netto observa que para Lukdcs existem trés formas
marxistas de Lukdcs. Mas mesmo no seu periodo “idealista™ privilegiadas de objetivação que permitem suspender a he-
ou neo-roméntico (antes de 1919) encontramos observagoes terogeneidade da vida cotidiana: o trabalho criador, a arte
interessantes sobre o problema da vida cotidiana. Por exem- e a ciéncia. Esta posigao vai inspirar diretamente os trabalhos
plo, na Alma e as Formas (1911), no ensaio sobre de Agnes Heller: para a filósofa hiingara, como bem o
a
metafisica da tragédia, Lukdcs desenvolve uma fascinante mostra o estudo de Maria do Carmo Brant de Carvalho,
critica €tico-social à vida empirica, que ele define como existem guatro formas de suspensdo da vida cotidiana, de
“uma anarquia do claro-escuro”. Nesta vida habitual (i.e. passagem do meramente singular ao humano genérico: o
cotidiana) “nada se realiza totalmente, e nada Jjamais trabalho, a arte, a ciéncia e a moral.
é
levado a seu termo... Tudo escorre, tudo se mistura sem
Ora, o que me parece faltar neste tipo de colocagio,
freios e forma uma aliagem impura; tudo é destruido, tudo
tanto no “velho” Lukdcs como em Agnes Heller, é preci-
é desmantelado, jamais coisa alguma não floresce até samente aquela forma de suspensdo do cotidiano, de obje-
a vida verdadeira. Viver é poder viver algo até o fim tivagdo social, de passagem do singular ao genérico, que
(ausleben)... A verdadeira vida é sempre irreal, sempre ocupa o lugar central em Histdria e Consciéncia de Classe:
impossivel para a vida empirica. Algo resplandece, brilha
a agdo coletiva, a prixis libertadora, a transformagio dos
como um relimpago por cima dos caminhos batidos; algo
_explorados em sujeitos histéricos conscientes. Esta ação não
que perturba e seduz, algo de perigoso e surpreendente, o
conduz evidentemente a negação da cotidianidade — cate-
acaso, o grande instante, o milagre (das Wunder)". (Georg
goria insuprimivel da vida social como o constata com
Lukdcs, Die Seele und die Formen, Berlin, Luchterhand,
razdo o último Lukdcs —, mas a sua suspensão durante o
1971, p. 219.)
momento revoluciondrio, e, sobretudo, a mais longo prazo,
10
à superação da natureza reificada das relagdes sociais co-
tidianas.
Se' consideramos, como José Paulo, que a
perspectiva
l'E.V()lUCIOIlfi]‘ifl € o ponto arquimédico do pensamento mar-
Xista, e, como Maria do Carmo, que a prdtica social das
classes oprlimjdas € a que tem a possibilidad
e de conquistar
para o conjunto da sociedade um nivel supe
rior de liberdade
e realizagio humana, não podemos deixar de constatar a O Conhecimento da Vida Cotidiana:
atualidade das formulagdes de Lukdcs em
1923. Base Necessaria a Pritica Social*
, Estas considerações aparentemente abstr
atas e “euro-
pems”_ tém, entretanto, implicagdes evidente
s para o Brasil
de hoje. A preocupagio com a realidade Maria do Carmo Brant de Carvalho
brasileira é, alids,
um dos principais fios condutores deste
livro...

“0 filósofo e a filosofia ndo podem mais se isolar, nem se


Michael Liwy mascarar, nem se esconder. E isso precisamente porque em última
instdncia a vida cotidiana julga a sabedoria, o conhecimento e
o poder” (Lefebvre, 1961, N.

Até um passado recente, poucos pensadores se detinham


a estudar a vida cotidiana: ela era especialmente apresentada
por romancistas ou ainda por historiadores enquanto registro
de uma dada época histérica.
Já em Marx, a busca do conhecimento sobre a vida
cotidiana aparece como preocupagio filoséfica, pois nele a
filosofia toma explicitamente nova direg;‘uff “Os filésofos se
limitaram a interpretar o mun_do diferentemente, cabe trans-
formd-lo (Marx, 1978b: 53). )

* Este relatério sucinto foi elaborado com dois objetivos: primeiro,


submeter ao CNPq uma sintese dos estudos que, sob seus auspicios, realizamos
sobre a vida cotidiana. O segundo, apresentar um quadro referencial gerador
de questdes que motivem alunos e docentes a pesquisar esta temática de interesse
do Programa de Pós-Graduação em Servigo Social da PUC-SP.
13
..—
am a
nemHo;e, las obras artístico-literárias acumuladas e presentes Todos os estudos sobre a vida, cotidiana indic
« ste de de seu con-
século, os É estudos S realizad os, as legisla gdes iintrodu- -
islações complexidade, contraditoriedade e ambigiiida
todos os dias
zxdl.a;: as Produqoc's de bens e servigos voltados para a vida teúdo. E o que é mais importante, a vida de
conhecimento
otidiana introduziram uma percepção ampliada do que se não pode ser recusada ou negada como fonte de
pode compreender como vida cotidiana. e prática social.
A vida cotidiana, esta vida de todos os dias e de todos cotidiana —
” . É : É nesta relação — prática social e vida
)hc_)mens. é percebida e apresentada diversamente nas suas
a origem motivacional de nosso estudo. Nossa
que está
miiltiplas cores e faces: faz com e na

A
social, como assistentes sociais, se
prática
idos.
* a vida
d dos gestos, 3 relagdes
G S e ativida
1V
tividad es rotinei ras
eiras d de vida de todos os dias dos grupos sociais oprim
nte em
Este estudo buscou apoio teórico especialme
* um mundo de alienagdo; e Agnes Heller, embora outros pensadores
Henri Lefebvre
atenção enquanto
* um espago do banal, da rotina e da mediocridade; (ver Bibliografia) tenham merecido certa
Lefebvre e Agnes
atualização do tema. Os estudos de Henri
-* 0 espago privado de cad la um, rico ultrapassados.
i i
em ambivalé ncj Heller são de riqueza e avanço ainda não
tragicidades, sonhos, ilusdes; RT ; A tt elementos que
Esta reflexão contém uma síntese dos
cone . [umhmodo Ade existénci
istê
a1; social ficticio/real, abstrato/ cotidiana em relação
comportam esta totalidade chamada vida
1 | /

reto, heterogéneo/homogéneo, fragmentdrio/hierarquico; capitalista.


à totalidade mais ampla: o mundo moderno
a possibilidade ilimitada de consumo sempre renovivel; a vida cotidiana
. . ó Na primeira parte, buscamos ressaltar
car:'[" o (;mcromundo social que contém e estudo não só
É ameagas e, 8 portanto h como fonte permanente de investigação
e de controle e programação política e econômica; dê-la e retirá-la da
para intelectuais que aspiram a compreen
e para as forças
ik% * um espaç
paç ode resistên
resistênci
cia e possibilidade transforma- obscuridade, mas igualmente para o Estado
-la, controlá-la
produtivas capitalistas que aspiram a programá
e melhor aproveitá-la para seus fins.
vida cotidiana
- A vida cotidiana é também vista como um espago Na segunda parte, buscamos falar da
Nossa intenção foi
nde
desco: a
rZ:CdSO,i o l'nesperado,
o prazer profundo em si mesma: o que é vida cotidiana.
as características e
de repente
" _de o num dia qualquer, eleva os homens dessa coti- a de apresentar, de forma didática,
ianidade, cotidiana, valendo-nos particularmente
retornando a ela de forma modificada conteúdos da vida
dos estudos realizados por Agnes Heller.
ve E um palco possível dei jr_lsprreição:' jd que nele atra- parte elegemos algumas temáticas impor-
Na terceira
ssam informagdes, buscas, trocas, que fermentam entre o mundo do cotidiano e
tantes, contidas na relação
transformagao. " o mundo mais amplo da modernidade.

14 15
Por fim, na quarta parte, introduzimos algumas das
muitas questdes referentes a intervenção dos profissionais
na vida cotidiana dos grupos sociais oprimidos.
A seqiiéncia adotada traz uma reflexdo em espiral,
onde afirmagdes já colocadas sio retomadas em novas
dimensdes.
1
Vida Cotidiana:
o Centro de Atenção de Hoje

Antes, parecia que somente os poetas, pintores, teatró-


logos e romancistas buscavam captar, expressar ou denunciar
a vida cotidiana; ou, então, jornalistas interessados em relatar
algumas das banalidades, tragicidades ou situações cômicas
(quando vistas do exterior) que atravessam a cotidianidade.
Mas não é verdade.
A vida cotidiana, faz algum tempo, é sobretudo o
centro de atenção do Estado e da produção capitalista de
bens de consumo.
Conforme Henri Lefebvre (1981: 126), o Estado mo-
derno gere o cotidiano seja direta ou indiretamente. Dire-
tamente pelos regulamentos e leis, pelas proibições ou
intervenções múltiplas, pela fiscalização, pelos aparelhos da
Justiça, pela orientação da mídia, pelo controle das infor-
magoes etc...
“O que é que escapa ao Estado? O insignificante, as mi-
núsculas decisdes nas quais se encontra e experimenta a liberdade
(...). Se é verdadeiro que o Estado deixa fora apenas o insignificante,
é igualmente verdadeiro que o edificio politico-burocrético sempre

17
tem fissuras, vãos e intervalos. De um lado, a atividade adminis- A méquina vende estes e outros produtos, eliminando
trativa se dedica a tapar esses buracos, deixando cada vez menos não só a mao-de-obra humana, mas igualmente muitas das
esperanga e possibilidades ao que podemos chamar de liberdade rotineiras relagdes humanas face a face, de todos os dias.
intersticial. De outro lado, o individuo procura alargar estas fissuras
e passar pelos vãos” (Lefebvre, 1981, UI: 126-7). A sedução agressiva dos meios publicitdrios (e o crédito
colocado à disposigdo...) quebram todos os obsticulos ao
Para Lefebvre, as relagdes sociais de dominagio ¢ a mais consumir, o que permite introduzir “estes fantdsticos
reprodugdo destas relagdes conquistaram, ao curso de grandes ¢ ilusérios bens de consumo” a qualquer individuo de
conflitos e acontecimentos, a prioridade sobre as relagoes
qualquer classe social em qualquer condigdo.
de produgdo que elas implicam e, à sua maneira, as contém.
“(..) um grande nimero de casais trabalhadores tem uma máquina
% É assim que o Estado modemo assume o papel de de lavar, uma televisio, um carro. Mas os interessados têm
gestor da sociedade. Esta gestdo repousa sobre o cotidiano, geralmente sacrificado outra coisa a este equipamento, por exemplo:
(Lefebvre, 1981, III: 122). a vinda de uma crianga (...)" (Lefebvre, 1, 1961: 16).
tem por base a cotidianidade

Para a produção capitalista de bens de consumo, também Não só se introduziram utensilios e máquinas de uso
o cotidiano é um centro de atenção, uma base de rentabilidade cotidiano, mas também os conselhos e receitas, como mer-
econdmica inesgotdvel. cadorias altamente lucrativas. Estas vão desde a arte de
limpar e decorar o lar, cozinhar, medicar, até o nivel da
Técnicas publicitdrias, as mais sofisticadas, introduzem manipulagio dos sonhos e das fantasias. Receitas inspiradas
na vida cotidiana o fabuloso progresso das mdquinas e na vulgarizagio da ciéncia, na astrologia, na clarividéncia,
capazes de transformar radicalmente
utensilios domésticos, na natureza, nas divindades espirituais as mais diversas.
a paisagem da vida cotidiana, seja dos ricos, seja dos pobres.
Toda receita pode ser encontrada no mercado para
Através dos meios de comunicação, tais mdquinas e “curar” qualquer mal existencial ou material do cotidiano.
utensilios (a televisio, o aparelho de som, o forno de
O corpo, por exemplo, a partir de sua mais refinada
microondas, o videocassete, o microcomputador, o automével, exploragio comercial, ¢ seduzido por uma rede de produtos
os instrumentos de “bricolagem”, os cremes de beleza, os
altamente sofisticados, desde os estéticos até os sensuais e
congelados, etc...) se apresentam como sedução permanente
eréticos, acompanhados sempre de receitas, experiéncias e
ao prético, ao pragmitico, ao mágico, ilusério.
valores capazes de atender todas as buscas de satisfagdo e
Consumi-los torna-se imperativo da era tecnológica insatisfagdo no cotidiano.
e condicionante ao chamado homem atual.
moderna Vista sob um certo ângulo, a vida cotidiana é em si
As miquinas adentram também os espaços coletivos o espaço modelado (pelo Estado e pela produção capitalista)
(pragas, estagdes de metrô, instituigdes, empresas, etc...), para erigir o homem em robô: um robô capaz de consumismo
substituindo os pequenos vendedores de sanduiche, café, dócil e voraz, de eficiência produtiva e que abdicou de sua
cigarro, chocolate, etc... condição de sujeito, cidadão.

18 19
É assim que a vida cotidiana ¢, para o Estado e para A partir dos estudos de Lefebvre é possivel inferir
as forgas capitalistas, fonte de exploragio e espago a ser que, para apreender a vida cotidiana, trés perspectivas con-
controlado, organizado e programado. vergentes devem ser consideradas.

Nesse processo gerenciador e controlador, as classes A primeira delas diz respeito à busca do real e da
médias foram instituidas como ponto de apoio e mediagdo. realidade. Nessa busca, é preciso ter claro que a vida
cotidiana compreende o dado sensivel e pritico, o vivido,
No mundo moderno, elas são o veiculo através do a subjetividade fugitiva, as emogdes, os afetos, hdbitos e
qual se expande e se homogeneiza um modo de vida comportamentos, e o dado abstrato, isto €, as representagoes
cotidiano. A moda que elas trazem, intitulada muitas vezes e imagens que fazem parte do real cotidiano, sem, no
como revolugio cultural, nada mais €, na maioria das vezes, entanto, perder-se no imagindrio (Lefebvre, 1981, III: 11).
que um reformismo carregado de ilusio e reforgador do
A segunda perspectiva diz respeito a fotalidade. Con-
consumismo alienante.
forme Lukdcs, somente no contexto “que integra os diferentes
Foi nas últimas décadas que filésofos e cientistas sociais fatos da vida social (enquanto elementos do devir histérico)
passaram a tomar a vida cotidiana como objeto importante numa totalidade, se torna possivel o conhecimento dos fatos
de investigagio e reflexao. como conhecimento da realidade”. As partes encontram no
todo o seu conceito e a sua verdade. O todo não é a soma
Ao estudar esta vida cotidiana muitos deles buscam das partes (Lukdcs, 1974: 23-4).
apreendé-la em sua totalidade. Alguns chegam lá. Outros a
perdem no discurso fragmentdrio das ciéncias sociais. Assim, E preciso também lembrar que a totalidade estd sempre
a alguns o cotidiano parece como restrito a fendmenos em processo de estruturagdo e desestruturagio. Ela é historica.
microssociais opostos ao macrossocial, sindnimo de global Assim, é preciso captar o seu movimento e a sua direção
e universal. Outros se limitam a contestd-la e a recusd-la. enquanto devir histdrico.
Como diz Lefebvre, o conceito de cotidiano é global,
Como constata Lefebvre, na maioria dos estudos sobre
“ele se refere e questiona a totalidade no curso de seu
o cotidiano a questdo politica ndo aparece, como se nao
1981, III: desenvolvimento™.
existisse; o pragmatismo os contagia (Lefebvre,
10). Ou, ainda, uma certa paixdo otimista e cinica sobre o Querer busci-lo e defini-lo em sua escala aparente —
cotidiano nega qualquer possibilidade de andlise e critica. as microdecisdes, os microefeitos — é deixd-lo fugir; querer
buscar o global sem ele é também deixar fugir a totalidade
O quadro assim apontado indica a importincia de dar
(Lefebvre, 1981, III: 162).
continuidade e avangar nos estudos sobre a vida cotidiana.
As investigagdes existentes que buscaram apreendé-la em A terceira perspectiva diz respeito às possibilidades da
sua totalidade ainda não esgotaram toda a gama de questdes vida cotidiana enquanto motora de transformagées globais.
que ela suscita. A vida cotidiana tem se insinuado como um dos centros
20 21
motores das atuais possibilidades de transformagdo da so-
ciedade. A raiz desta intuigio estd no fato de que não sio
as relagoes de produgdo, mas sim as relagdes sociais de
dominagio e poder que têm sua primazia na modernidade.
Sendo assim, um dos focos estratégicos da prixis revolu-
e
ciondria terá que ser o cotidiano vivido pelas classes
grupos sociais oprimidos. 1T
O que é a Vida Cotidiana?

A vida cotidiana é aquela vida dos mesmos gestos,


ritos e ritmos de todos os dias: é levantar nas horas certas,
dar conta das atividades caseiras, ir para o trabalho, para
a escola, para a igreja, cuidar das crianças, fazer o café da
manhã, fumar o cigarro, almogar, jantar, tomar a cerveja,
a pinga ou o vinho, ver televisdo, praticar um esporte de
sempre, ler o jornal, sair para um “papo” de sempre, etc...
Nessas atividades, ¢ mais o gesto mecinico e automatizado
que as dirige que a consciéncia.
Mesmo os sonhos e desejos construidos dia a dia, no
siléncio e no devaneio, nao representam um ato de cons-
ciéncia.
O jogo dos sonhos e atividades rotineiras produz in-
satisfagdes, angistias, opressão, mas também seguranga.
Raras são as pessoas que ndo se deixam intoxicar por
esse cotidiano. Raras sdo as pessoas que o rompem ou o
suspendem, concentrando todas as suas forgas em atividades
que as elevem deste mesmo cotidiano e lhes permitam a
sensagio e a consciéncia do ser homem total, em plena
relagio com o humano e a humanidade de seu tempo.

23
22
Para explicitar o cotidiano, vamos trazer aqui o pen- “O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O ama-
samento de Agnes Heller. durecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o
individuo adquire todas as habilidades imprescindiveis para a vida
O cotidiano é a vida de todos os dias e de todos os cotidiana da sociedade (camada social) em questão.
homens em qualquer época histdrica que possamos analisar.
(.ÍL É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua
Não existe vida humana sem o cotidiano e a cotidia- cotidianidade” (Heller, 1972: 18).
nidade. O cotidiano estd presente em todas as esferas de
A vida cotidiana é heterogênea e também hierárquica.
vida do individuo, seja no trabalho, na vida familiar, nas
Isto é, a vida cotidiana é caracterizada por um conjunto de
suas relagdes sociais, lazer, elc...
ações e relações heterogéneas que contêm em seu bojo uma
O cotidiano e a cotidianidade existem, penetram eter- certa hierarquia. Esta não é rígida nem imutável, como diz
namente em todas as esferas da vida do homem. Agnes Heller. Ela se altera seja em função dos valores de
vA histéria e o progresso transformam continuamente uma dada época histórica, seja em função das particularidades
sua paisagem, mas não o exlerminam. e interesses de cada indivíduo e nas diferentes etapas de
sua vida.
Em cada época histérica os ritmos e as regularidades
da vida cotidiana se distinguem, se tornam diferencidveis. Por exemplo, até pouco tempo, nós vivíamos num
A vivéncia e experiéncia da cotidianidade também é dife- século em que o trabalho humano tinha valor, determinando
rencidvel segundo os grupos ou classes sociais a que os hierarquicamente a sua primazia na heterogénea vida coti-
individuos pertencem e em cada modelo societdrio existente. diana. Esta ordem hierárquica garante a organicidade da
“A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o vida cotidiana e “esse funcionamento rotineiro da hierarquia
homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua espontânea é igualmente necessário para que as esferas
individualidade, de sua personalidade. heterogêneas se mantenham em movimento simultâneo”
Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, (Heller, 1972: 18). '
todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipu-
Esta heterogeneidade hierarquizada — em movimento
lativas, seus sentimentos, paixdes, idéias, ideologias. O fato de
— da vida cotidiana introduz uma certa sucessão linear de
que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento
determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, gestos, atos e atividades repetitivas no dia-a-dia. A rotina,
nem de longe, em toda a sua intensidade™ (Heller, 1972: 17). característica da cotidianidade, é feita exatamente desta
sucessão linear e repetitiva.
Na cotidianidade, o homem se põe numa superficialidade
fluida, ativa e receptiva que mobiliza sua atengdo. Joga É característica igualmente da vida cotidiana a sua
nela todas as suas forças, mas não toda a sua forca.* imediaticidade e o pensamento manipulador. No plano da
cotidianidade o útil é o verdadeiro, porque é este o critério
de eficácia. O critério de validez no cotidiano é o da
* Ver artigo de José Paulo Netto neste volume. funcionalidade.
24 25
vital do genérico e do particular a forma característica da inteira
A esfera do cotidiano é uma esfera precisa; € a esfera vida” (Heller, 1972: 23).
ano
do homem concreto. A objetivagio que se passa no cotidi Na vida dos indivíduos é um fato excepcional a elevação
te
é aquela em que o homem faz do mundo o seu ambien do indivíduo ao gênero; a esmagadora maioria dos homens
imediato. não realiza essa experiência. Não chega à consciência,
ca-
A vida cotidiana é o conjunto de atividades que “mantém-se muda unidade vital de particularidade e gene-
por seu ricidade”. Este fato deixa de ser excepcional quando há
racteriza a reprodugdo dos homens singulares que,
turno, criam a possibilidade da reprodução social. situações históricas excepcionais; mesmo aqui, esta possibi-
na vida cotidiana, o individuo se lidade atinge poucos.
Isso significa que,
individuo e reproduz indire- Também “os choques entre particularidade e generici-
reproduz diretamente enquanto
tamente a totalidade social. dade não costumam tornar-se conscientes na vida cotidiana;
ambas submetem-se sucessivamente uma a outra do aludido
Toda a reprodugdo que ultrapassa o imediato na vida
modo, ou seja mudamente” (Heller, 1972: 23).
cotidiana deixa de ser cotidiana.
A grande questdo passa a ser a passagem do homem
Na vida cotidiana o homem aprende as relagdes sociais
inteiro (muda relação de sua particularidade e genericidade)
e as reproduz enquanto instrumento de sobrevivéncia. para o inteiramente homem (unidade consciente do particular
Mas o homem ndo é só sobrevivéncia, só singularidade. e do genérico). Esta passagem ocorre, como diz Agnes
Apenas,
O homem é, ao mesmo tempo, singular e genérico. Heller, quando se rompe com a cotidianidade; quando um
do
na vida cotidiana, este ser genérico, co-participante projeto, uma obra ou um ideal convoca a inteireza de nossas
ia, nem
coletivo, da humanidade, se encontra em poténc forgas e então suprime a heterogeneidade. Há nesse momento
ar.
sempre realizdvel. Na vida cotidiana só se percebe o singul uma objetivação. A homogeneizagio ¢ a mediação necessdria
individuo (a individualidade) contém tanto a particul
a- para suspender a cotidianidade.
“O
genérico que funcion a conscie nte e
ridade quanto o homem Este processo de homogeneizagdo só ocorre quando o
do individ uo
inconscientemente no homem (...). O desenvolvimento individuo concentra toda sua energia e a utiliza numa
te,
é antes de mais nada, mas de nenhum modo exclusivamen genérica que escolhe consciente e auto-
ou de suas possibi lidades de atividade humana
função de sua liberdade fitica
nomamente (Heller, 1972: 27).
liberdade.
dessas possibilidades de liberdade origina, A intensidade de uma grande paixdo, um grande amor,
A explicitagio
ou menor medida, a unidade do individuo, a ‘alianga’ o trabalho livre e prazeroso, uma intensa motivagio do
em maior
de particularidade e genericidade para produzir uma individualidad
e homem pelo humano genérico resultam na suspensao do
unitdria. cotidiano.
Quanto mais unitdria for essa individualidade
(pois essa Há, segundo Agnes Heller, quatro formas de suspensao
tendénc ia, mais ou menos cons- singular ao
unidade, naturalmente, é apenas da vida cotidiana, de passagem do meramente
deixa de ser aquela muda união
ciente), tanto mais rapidamente
27
26
humano genérico. São elas: o trabalho, a arte, a ciéncia e heterogénea estrutura social” e a “continuidade de valores”,
a moral. chama-se histéria.
Esta suspensio da vida cotidiana não é fuga: é um Assim, a histéria é a substincia da sociedade (Heller,
circuito, porque se sai dela e se retorna a ela de forma 1972: 20).
modificada. À medida que estas suspensoes se tornam A continuidade dos valores é questdo fundamental nos
fregiientes, a reapropriagio do ser genérico é mais profunda estudos de A. Heller: é a presenga deles que determina um
e a percepgdo do cotidiano fica mais enriquecida. modo de vida cotidiana favorecedor, em maior ou menor
Nesta suspensdo, a singularidade se conhece como intensidade, da esséncia humana.
participe da universalidade (totalidade). O individuo sente, Agnes Heller cita os cinco atributos (a partir de Marx)
mesmo que temporariamente, a plenitude existencial, a ple- que definem essa esséncia humana: o trabalho, a socialidade,
nitude de comunhdo consigo préprio, com os homens a universalidade, a consciéncia e a liberdade. Estes atributos
e
com o mundo. encontram-se em poténcia, podendo ou não se converterem
em realidade. São possibilidades.
Esta suspensdo é temporiria, mas a apreensio de ple-
nitude obtida permite ganhos de consciéncia e possibilidade *O valor é tudo aquilo que favorece o desenvolvimento
dessa esséncia humana:%Os valores não desparecem da
de transformagdo do cotidiano singular e coletivo.
sociedade. Eles existem, mas podem estar abafados uns em
“A vida cotidiana não estd *fora' da historia, mas no “centro’ relação a outros. O valor é fundamental para entender a
do acontecer histérico: é a verdadeira ‘esséncia’ da substancia histéria como espago de emergéncia do género.
social. Nesse sentido, Cincinato é um simbolo. As grandes ações
ndo-cotidianas que são contadas nos livros de histéria partem da f A vida cotidiana, portanto, se insere na histéria, se
vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande faganha histérica modifica e modifica as relagdes sociais. Mas a direção
concreta torna-se particular e historica precisamente gragas a seu destas modificagoes depende estritamente da consciéncia
posterior efeito na cotidianidade. O que assimila a cotidianidade que os homens portam de sua “esséncia” e dos valores
de sua época assimila também, com isso, o passado da humanidade, presentes ou ndo ao seu desenvolvimento.
embora tal assimilagio possa não ser consciente, mas apenas ‘em
si”” (Heller, 1972: 20).

A substincia social de que fala A. Heller são os


homens, pois estes são os “portadores da objetividade social”,
sdo eles que constroem uma dada estrutura social e a
transmitem. São eles, enfim, os motores e depositdrios da
“infinitude extensiva das relagdes sociais”.
Ora, este movimento da substincia que contém “não
apenas o essencial, mas também a continuidade de toda a

28 29
nas teias mais fortes (fordismo e americanismo), o capitalismo Para melhor compreender esta questdo vale a pena
pode se reestruturar aproveitando-se tanto da prépria crise do
descrever as caracteristicas dessa revolução passiva, ainda
movimento operério, agindo sobre o proletariado em todos os
niveis, da divisio do trabalho ao Estado. A classe dominante,
que sumariamente, através de alguns de seus principais
para continuar a dirigir e dominar, torna-se ‘revoluciondria’: ela indicadores:
revoluciona suas proprias bases materiais e politicas, oferecendo * a evolução de um capitalismo individualista, selvagem,
as outras classes uma nova perspectiva” (Buci-Glucksmann & deixado às suas préprias forgas, para um capitalismo pla-
Therborn, 1981: 141).
nificado, transnacional, monopolista;
O consentimento das classes trabalhadoras a esta re- * a generalizagio e mundialização do assalariado;
volugiio passiva sem diivida se deu, de inicio, porque, de
* a forte expansio das fungdes do Estado. O Estado
certa maneira, estas mesmas classes renunciaram a buscar
assume as funções de mediação entre capital e trabalho,
outros modelos de sociedade alternativa face aos horrores
intervindo tantp na racionalizagio e planificagio econdmica
do fascismo e do stalinismo e à possibilidade de um pacto quanto na proteção social e no jogo e direcio das relagdes
com a sociedade capitalista. sociais. Em outras palavras, o Estado se torna presente
Reportando-se ainda à reflexdo realizada por Christine como sujeito econdmico e sujeito socializante;
Buci-Glucksmann, a revolução passiva contém uma soma * a introdução de um pacto social com as classes
de contradi¢oes ndo-resolvidas: uma revolugdo passiva que trabalhadoras, coroldrio de pressdes e conflitos não-contro-
opera pela neutralizagdo de toda iniciativa popular real, ldveis sem negociagoes efetivas. Deste pacto resulta a ex-
minando a explosio ou generalizacio das autonomias de pansão e fortalecimento do chamado Estado-Providéncia,
classe por um reformismo moderado. Este reformismo mo- que assume progressivamente as fungoes de reprodução da
derado se traduz na satisfagio de reivindicagGes, mas em forga de trabalho (educagiio, sadde, etc.), produz maior
pequenas doses, legalmente, de maneira reformista, apoian- eqiiidade social, expande a demanda de consumo de bens
do-se no Estado e resolvendo através do Estado as tarefas produzidos pelo sistema capitalista, assim como processa a
histéricas e progressivas de uma classe (Buci-Glucksmann difusão uniformizante de um consumo de massa. Deste
& Therborn, 1981: 139).* pacto resultou também a introdução de uma prixis politica
democrata, duradoura e extensiva (em maior ou menor grau),
“E por isso que, para Gramsci, a revolução passiva sugere
os primeiros delineamentos de uma teoria da subalternidade social em todos os paises capitalistas desenvolvidos;
e politica que excede o campo classista da exploragio de classe * as relações de dominação e poder tomam uma forma
e somente os paises capitalistas desenyolvidos™ (Buci-Glucksmann corporalivista, funcional, triangular (sindicatos, Estado, bur-
& Therborn, 1981: 145).
guesia monopolista), tendo o Estado como figurante mediador
principal. Ao corporativizar e institucionalizar a presenga e
* É importante assinalar que Gramsci e Lefebvre, embora partindo de participagdo das classes através de suas organizagdes e
uma mesma fonte — Marx —, pensam o Estado com algumas diferengas. Para liderangas, se alteram as condi¢des mesmas da pritica politica
o presente estudo, no entanto, estas diferengas ndo são relevantes. e as formas que tomam as relages sociais de dominagdo.
32 33
ao se mostram mais agudos e têm repercussões diretas na
Uma das alteragdes, nesse novo processo, é a despolarizag
com prática social e na vida cotidiana:
das relagoes capital/trabalho e Estado/classe dominante,
trabal hadora /Estad o. As
o fortalecimento das relações classe * o enfraquecimento da classe trabalhadora como sujeito
es de
formas modernas em que se apresentam as relago político real;
aí intro-
dominação e as estratégicas de negociagao sociais
veis * o esvaziamento progressivo do exercício da cidadania;
duzidas tornaram progressivamente opacas ou quase invisi
as questdes da luta de classes. * a substituição quase total de um processo de solida-
O pensamento keynesiano forneceu as bases tedric
as a riedade espontâneá por um processo de solidariedade me-
s tenha
este processo de revolução passiva. Embora Keyne cânica emanada do Estado;
dos anos 30, somente após a
escrito no contexto de crise
e de um “ a perda de visibilidade dos valores essenciais ao
última guerra, ou seja, somente após a necessidad desenvolvimento do homem enquanto ser singular e social
joga
pacto social com a classe trabalhadora, seu pensamento eles, a perda de referências para a transformação
e, com
um papel fundamental. da sociedade.
sua
O pensamento de Keynes pode ser resumido em a voz do coletivo,
entre os A voz das bases trabalhadoras,
afirmação clássica de que há uma correspondência
imperativos do crescimento econômico e as exigê
ncias de perdeu muito de sua importância à medida que um processo
uma maior eqiiidade social. Esta correspondência
deve ser ativo de negociações sociais passou a operar via Estado e
assegurada por um Estado econômica e socialment
e ativo. de forma corporativista.
estão
Para Keynes, eficácia econômica e progresso social Ora, com esse mecanismo, um processo decisério de-
logicamente ligados (Rosanvallon, 1983: 49-55). mocritico de “baixo para cima” se converteu, progressiva-
Com Keynes, o Estado e a economia capitalista re- mente, em processo democrdtico de “cima para baixo”.
pousam doravante sobre o saber científico.
E assim que as bases perderam também progressivamente
Esta revolução passiva permitiu, sem dúvida, uma plena seu alimento vivo que é a reflexão e a participação real
expansão da economia, da técnica, do saber científico e do
real das no processo de construção da sociedade.
progresso, assim como introduziu uma melhoria
s, con- Por outro lado, o Estado moderno reificou o seu
condições materiais de vida das classes trabalhadora
iu maior o individuo e, com ele, a afir-
sagrou uma série de conquistas trabalhistas e produz complemento fundamental:
eqúidade social nos países capitalistas desenvolvidos. mação do indivíduo total, descartando o coletivo e atomizando
es o social.
Mas, ao mesmo tempo, introduziu novas contradiçõ
es que
e efeitos perversos,* dos quais vamos nos ater àquel Como diz Pierre Rosanvallon (1983: 44-5):
a
“p Estado moderno não pode existir, numa palavra, sem economi
o isto é, sem a afirmação do indivíduo
* Por exemplo, a desigualdade gritante entre países desenvolvidos e
e sociedade de mercado,
como categoria econômica central.
Terceiro Mundo.
34 35
O Estado-Providéncia não faz sendo prosseguir e ampliar torna-se mais abstrata. O Estado-Providéncia procede mecanica-
esse movimento de proteção do individuo como figura central do mente a um verdadeiro embagamento das relagdes sociais”.
Social. (...) O Estado-Providéncia quer libertar o individuo sim-
plificando o social. Para ele, trata-se de destruir o conjunto de Mas as conseqiiéncias dessa revolugio passiva são mais
estruturas, profissionais e sociais que limitam a autonomia do claras no periodo atual, pés-keynesiano, periodo em que a
individuo. A liberdade é concebida como o advento do individuo crise da acumulagio capitalista desnuda suas contradições
integral”. e resultados, ameagando todo um processo de conquista
É assim que o Estado-Providéncia toma o individuo realizado e de paz interclasses.
como unidade básica de destinação e oferta de seus servigos. A crise do Estado keynesiano dos últimos quinze anos
Nesse processo de individualizagdo, o social e o préprio põe em questdo todos os beneficios sociais e as negociações
individuo foram fragmentados e parcelados: os servigos e pactos mantidos no periodo do grande crescimento eco-
sociais se destinam à crianga, à mulher, ao desempregado, nômico capitalista.
ao carente, ao idoso, ao deficiente, ao jovem, etc... E de Observa-se cada vez mais intensamente não apenas a
tal forma o complexo aparelho estatal de protegdo social redugdo das margens de negociagio dos diferentes compro-
operacionalizou a destinação de seus servigos (burocratizagio, missos institucionais, mas a emergéncia clara de antigos e
setorizagdo, etc.), que estas unidades — crianga, mulher, novos grupos oprimidos e excluidos.
idoso, etc. — ndo aparecem nem mesmo enquanto totalidades,
Observa-se igualmente uma virada autoritdria do Estado.
mas como um somatério de necessidades e caréncias.
Hoje esse Estado moderno — caracterizado pelas suas
Nesse processo de reificagio do individuo, o usudrio fungdes de regulagdo, planificagdo, direção, mediagdo entre
emerge com voz e voto na destinagio e uso dos servigos capital e trabalho, proteção social e redistribuigio — estd
sociais. O cidaddo deixa de ter significado e expressão, o em»questfio‘ assim como as sociais-democracias que a ele
que parece consegiiéncia natural: o exercicio da cidadania se incorporaram.
só pode existir no contexto de uma sociedade civil viva, A reapari¢io de correntes liberais conservadoras, a
presente através de seu corpo social miltiplo e expressivo. critica ao Estado-Providéncia no que se refere a sua burocracia
O Estado-Providéncia introduziu igualmente um processo e a seu custo elevado, as tendéncias autoritdrias emergentes
de solidariedade mecânica que substitui — quase que to- são alguns dos sintomas que indicam que a viabilidade e
talmente — os processos naturais e espontineos de solida- o dinamismo de um certo pacto social entre a classe
riedade humana e social. trabalhadora e o Estado estd intrinsecamente ligada a um
Para Pierre Rosanvallon (1983: 41), capitalismo em pleno sucesso (Buci-Glucksmann & Therborn,
1981: 17-8).
*o Estado-Providéncia, como agente central de redistribuigio e,
portanto, de organizagio da solidariedade, funciona como uma ) Resta uma questdo fundamental: as medidas restritivas
grande interface: ele se substitui ao face a face dos individuos e já em vigor, a redução clara das margens de negociagio e
grupos. (...) Separada das relações sociais reais que a estruturam, o autoritarismo presente na condução do social não vém
a organizagio da solidariedade que este Estado-Providéncia adota suscitando reagdes significativas nos paises desenvolvidos.
36 37
E como se todo um povo dormisse um sono profundo O ritmo que esta modernizagdo e progresso imprimem
do qual não quer acordar. à vida cotidiana é tal que parece que nada de antigo se
Algumas hipéteses se colocam para explicar este sono mantém e nada de novo chega a criar raizes; parece que
profundo: tudo se encontra de passagem e ndo vem para ficar. Conforme
Marshall Berman
* um individualismo exacerbado com um conseqiiente
egoismo generalizado; “(...) a modernidade nos despeja a todos num turbilhio de per-
manente desintegragio e mudanga, de luta e contradigio, de
* uma passividade, produto de uma massificagio e ambigiiidade e angistia. Ser moderno é fazer parte de um universo
alienação generalizadas; no qual, como disse Marx, tudo que é sélido desmancha no ar”
(Berman, 1987: 15).
* 0s novos segmentos — jovens, desempregados, mi-
grantes e outros — atingidos pela opressão e exclusdo ainda As novas condigdes de existéncia social criam uma
ndo se reconheceram como coletivos oprimidos e em con- complexidade e confusio que afetam diretamente o com-
seqiiéncia se encontram desarticulados;* portamento dos individuos. Para Lefebvre,
* o pensamento revoluciondrio de esquerda se mantém Mos homens créem na independéncia das idéias, dos sentimentos
amarrado as antigas formas, modelos e contetidos de supe- e da consciéncia (...) Consciéncia da vida? Temos consciéncia de
ração revoluciondria da atual crise, inibindo um pensamento nossa vida? Não. Nossa vida não estd realizada e nossa consciéncia
inovador capaz de fornecer a motivação, a esperanca e a é falsa.
diregdo a um novo arranque revolucionirio;
TrNão é somente nossa consciéncia que é falsa: ela é falsa
* a pouca visibilidade dos valores fundamentais à porque nossa vida permanece alienada (Falsas representagdes apor-
emergéncia do ser total explica igualmente a dificuldade de Éngmmmmirhlsr—de—lmm'án irrealizada; elas não
sair deste sono profundo. A dessocialização a que assistimos, aportam a consciéncia da irrealizagiio (do grau de irrealizagio) da
vida humana: elas a apresentam seja como realizada (portando
processada na modernidade, abafou a existéncia de tais
uma satisfação vulgar ou moral) seja como irrealizdvel (aportando
valores e, com eles, as condigdes para buscar e direcionar a angistia ou o desejo de outra vida).
projetos alternativos de transformagdo da humanidade.
Mais precisamente, não se sabe como vive” (Lefebvre, 1961,
1: 205 e 208).
2. A modernizagdo, o progresso e o fantdstico desen-
volvimento tecnolégico são a outra face da moeda desta Uma das grandes invengdes do progresso é a informdtica
revolugio passiva operada pela burguesia capitalista. e a telemática, que introduzem uma vertiginosa alteração
na vida societdria.
* A recente manifestagio dos jovens na Franga, assim como alguns outros “De um lado, os processos do trabalho produtivo se modi-
movimentos sociais espontincos que vém emergindo neste e em outros pafses ficam, pondo em questão as antigas divisGes do trabalho. De outro
europeus, parece indicar que os grupos oprimidos e, com eles, a sociedade civil lado, os que trabalham em informdtica anunciam a generalizagio
despertam deste sono buscando uma rearticulagio e expressando uma certa de seu saber teórico e pritico à toda a sociedade” (Lefebvre,
consciéncia dessa opressão. 1981, 1II: 135).

38 39
A informagio deixou de ser um simples instrumento movendo-os a uma ação de | transformação radical.
para produzir mercadorias e seduzir ao seu consumo, mas
ela propria transformou-se em produto que se produz, se 3. A alienação contamina e sufoca a vida cotidiana
consome, se vende e se compra. — A alienação é tratada em Marx em seu duplo sentido:
objetivo e subjetivo.
A informdtica passa a ser também um poderoso ins-
trumento politico utilizado no controle e na formagdo do Ela é sobejamente discutida e descrita em numerosas
“consenso”. Como diz Umberto Eco: produções teóricas. Mas é necessário introduzir um pensa-
de quem tem em mãos os mento sintético sobre ela, já que a alienação é ingrediente
“quando o poder econdmico passa
meios de produção para quem detém os meios de informagio que essencial da vida cotidiana. Vista no mundo de hoje, é
podem determinar o controle dos meios de produção, também o possível dizer que este fenômeno recorrente, função das
problema da alienagio muda de significado. Diante da sombra de relações sociais de produção e dominação, se apresenta:
uma rede de comunicação que se estende para abragar o universo,
— Na objetivação do trabalho: o trabalho deixa de ser
cada cidaddo do mundo torna-se membro de um novo proletariado.
uma atividade vital, criadora, prazerosa, para se tornar um
proletariado nenhum manifesto revoluciondrio
Mas a esse mero meio de subsisténcia. O trabalho perdeu seu valor.
poderia langar o apelo ‘Proletdrios de todo o mundo, uni-vos!”
Resta apenas o emprego e este é escasso no mundo tec-
Porque, mesmo se os meios de comunicagio, enquanto meios de
nolégico moderno, criando uma nova cisão alienante: os
produção, mudassem de dono, a situação de sujeigao não mudaria.
No miximo, é licito suspeitar que os meios de comunicagio
empregados passam a ser encarados como privilegiados, os
seriam meios alienantes ainda se pertencessem à comunidade” não-empregados como marginais. Mas mantém-se a afirmação
(Eco, 1984: 166). básica de Marx: o homem percebe o trabalho como algo
o exercicio da alheio e externo a ele. O trabalho alienado não só produz
A socialidade dos individuos e mesmo
mercadorias como produz o próprio homem como mercadoria.
cidadania correm o risco de se alterarem e se perderem
drasticamente. — Na objetivação das relações sociais estas deixam
de se apresentar como históricas, conscientes, livres, igua-
Basta lembrar algumas imagens da ficção: o individuo
litárias, afetivas, criadoras, integradoras, para se reduzirem
diante dos virios botdes de um computador através do qual
a instrumentos de dominação e opressão.
ele gere sua vida, seus negdcios, seus amores, a0 mesmo
tempo que dispde de todas as informagdes e deformagGes A relação alienada entre os homens se transforma
que a telemdtica lhe traz. Este quadro parece reforcar a em relação entre estranhos e o próprio homem em estranho
solidão e o isolamento que já atinge a maioria dos individuos para si próprio. A sociedade deixa de ser um constitutivo
nos paises capitalistas avancados. Parece igualmente anular de cidadãos e de vinculações coletivo-comunitárias, livres
toda possibilidade de o homem suspender-se desse cotidiano e solidárias, para se transformar em massa alimentada
para sentir e apreender o ser plenamente homem. Ou talvez pela fetichização: “O homem alienado de si mesmo é
produza uma tal pressio que leve os homens a negação
radical deste sistema que, sutil mas drasticamente, os oprime,
40 41
se anuncia ao longe como o fim do trabalho como valor é o fim
também o pensador alienado de sua esséncia ()” (Marx,
do trabalho como sentido e finalidade, em si e por si mesmo™
1978b: 47). (Lefebvre, 1981, III: 169-70).
É assim que a vida cotidiana é também o espaço da
Acrescente-se ainda a este vazio: a desesperan¢a na
mediocridade. Os gestos comuns, a uniformidade e a pa-
possibilidade de os homens coletivamente desejarem, que-
dronizagio dos desejos e necessidades reificados, fetichizados
rerem e realizarem a transformagio do mundo em direção
e controlados reproduzem, a todo momento. os opressores
a uma plena humanização. Um olhar para trds, para o
e oprimidos, determinando, através da massificagdo, com-
portamentos acriticos e andmicos. Alguns valores presentes passado, e outro para o presente aí colocado, confirma a
tese de Walter Benjamin: “a histéria é uma sucessão de
no mundo moderno capitalista — individualismo, neutrali-
dade, competigio — reforgam a mediocridade, deixando as derrotas dos oprimidos e não dos opressores”.*
grandes decisdes politicas, econdmicas, culturais, existencials As grandes lutas do passado, a conquista do presente
e mesmo espirituais ao sabor dos agentes mandantes. É (o Estado-Providéncia para os paises desenvolvidos capita-
através da mediocridade que o cotidiano se normaliza ao listas, o socialismo ndo-consumado em verdadeiro comunismo
gosto das classes dominantes. nos chamados paises socialistas), acrescidas da pobreza
A insatisfação (manifesta na contestação ou na passi- exacerbada no Terceiro Mundo, introduziram a diivida sobre
vidade), a ambivaléncia e os sonhos contidos na vida o valor destas mesmas conquistas.
cotidiana, ao mesmo tempo que mascaram essa mediocridade, Os homens, no passado, conquistaram através de fortes
germinam o desejo de ruptura, o desejo e a procura de lutas uma existéncia humano-social mais igualitiria e livre.
autenticidade do ser homem inteiramente. Mas as relagoes de dominagio persistem e com elas os
limites e ameagas sempre presentes a uma existéncia efeti-
4. O grande vazio —\A vida cotidiana, como diz
vamente igualitdria e livre. A opressdo ainda não foi su-
Lefebvre, modificada e contraditoriamente modificada, não primida.
desapareceu no mundo moderno.
Ora, a compreensio dessa realidade, embagada pela
As técnicas a penetraram, mas não suprimiram seus
alienagdo, não emerge conscientemente, persistindo apenas
aspectos, mesmo os mais triviais.
o sentimento confuso dela, expresso hoje na defesa do
Reduzindo, por exemplo, o tempo consagrado a trabalhos singular e na busca de libertagdes singulares.
fastidiosos, estas técnicas põem com acuidade o problema
A privacidade passa a ter valor na vida cotidiana
do tempo livre. Elas não transformaram a cotidianidade em
moderna: privacidade que contém o profundo da insatisfagao,
atividade criadora superior; contrariamente, elas abriram um
grande vazio. E se acrescente a este vazio:
“O desaparecimento do trabalho se anuncia como um processo * Anotagdes de semindrios e exposições feitas por Michael Liwy sobre
longo e dificil que a cotidianidade já atravessa e que terd moda- as Theses sur la philosophie de I'histoire, de Walter Benjamin, Ecole des
lidades muito diferentes, aperfeicoamentos e degradagoes. O que Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1985-86.

42 43
da ambivaléncia, do sonho, da magia, do desejo, da soliddo, Este territériol terrestre apresentado como imagem e
da busca do ser e do não ser, inferno e paz, prazer e informagdo entra no cotidiano e na cotidianidade seja como
desespero. Parece claro, na vida cotidiana de nossos dias, elemento de ameaga (guerra, terrorismo, pobreza, radiativi-
a existéncia de uma cisdo entre: dade...), seja como fonte de sonho, de imagit 0, seja ainda
como mercadoria a usufruir num pacote turistico.
* existéncia e subsisténcia;
* material e espiritual; Dada a cisão presente na vida cotidiana moderna, esse
territdrio terrestre raramente é percebido na sua globalidade
* singular e genérico/coletivo;
e historicidade a que pertencemos todos, mas como algo
* local e global; estranho ao espago e historia privada de cada um.
* igual e diferente; A amplitude do espago terrestre entra no cotidiano
* individuo e cidaddo; como informagdo ndo-vivida. A relação deste com o espago
* parte e todo. reduzido real vivido introduz repercussdes nefastas no co-
tidiano.
Somente com o término desta cisdo, onde estes termos
possam ser vividos na sua unidade e dinamismo dialético, O espago deixa de representar seguranga, liberdade,
é possivel buscar saidas libertadoras coletivo-comunitdrias. movimento, descoberta e expansdo, para se transformar em
Ou retomar a esperanga que Marx e Nietzsche depositavam elemento de confinamento.
numa Como diz Henri Lefebvre (1981, III: 128), o espago
“nova espécie de homem que terd coragem e imaginagio para transformou lentamente, mas profundamente o cotidiano.
de que o homem e a mulher modernos
criar novos valores O direito a diferenga na desigualdade (e ndo na igual-
necessitam para abrir seu caminho através dos perigosos infinitos dade) transforma o chamado Estado nacional em territério
em que vivem” (Berman, 1987: 22).
privado onde os imigrantes, os estrangeiros aparecem como
ameaga ou impertinéncia, com os quais as relagoes devem
5. Espago e tempo — As pessoas habitam nas grandes ser de dominagdo/subordinagdo, desconfianga e, raramente,
cidades em pequenos espagos de um conjunto padronizado convivéncia.
e uniforme. Os espagos livres deixam de ser livres para O mundo é, assim, um mundo partido, fragmentado,
serem piiblicos, o que significa espagos controlados cuja
passivel de aliangas mercantis e politicas onde o poder
utilizagdo é determinada e programada, onde as pessoas não
econdmico e politico sobrepuja qualquer outro ingrediente
se senlem co-proprictdrias ou comungando um espago co-
possivel nessa relagdo.
mum, mas usudrias.
As miltiplas dimensdes do tempo atravessam o coti-
O hibitat nesse conjunto uniforme toma um significado
diano.
opressivo e privado. Ao lado desse pequeno espago privado,
o territério terrestre lhes aparece como “totalmente desco- “Os miltiplos ritmos e ciclos de origem natural, que se
berto, desnudado e possuido” (Lefebvre, 1981, IIL: 128). transformaram pela vida social, interferem nos processos e

44 45
sucessoes lineares dos gestos e atos de todos os dias™ (Lefebvre, * o valor da libérdade individual, reforgando parado-
1981, 1: 129). xalmente o singular, o particular, o privado, e opondo-os
ao outro, ao comunitdrio, ao coletivo, ao genérico;
O linear repetitivo parece pesar e obscurecer as outras
dimensoes do tempo na vida cotidiana. O relégio ilustra * a reificagio do usudrio de direito dos servigos e
bem este linear repetitivo, quantificivel e homogéneo, que beneficios do Estado-Providéncia; as necessidades de segu-
rege a vida cotidiana. ranga e bem-estar são buscadas no Estado e não mais no
e outro, ou na comunidade e no coletivo.
Mas as outras dimensdes do tempo estdo presentes
A quebra do pacto de complementariedade duradoura
se chocam a esse ciclico e linear repetitivo, mesmo que de
resultou ndo tanto no aumento quantitativo de divércios,
forma obscura e abafada.
separagdes, familias monoparentais, mas no aumento signi-
O passado dos homens e do mundo ¢ vivido também
ficativo de pessoas sos.
no cotidiano de todos.
O isolamento e a soliddo sdo caracteristicas marcantes
Uma fotografia, um monumento, uma velha igreja ou na vida cotidiana moderna dos paises desenvolvidos.
fortaleza atestam uma histéria passada coletiva vivida no
cotidiano, mesmo que de forma debilitada e abafada. Mesmo 7. O Estado-Providéncia cunhou o usudrio de servigos
que de forma debilitada, este passado é percebido ndo e beneficios. O cidaddo foi progressivamente substituido
apenas como nostalgia de uma época, mas como desejo de pelo usudrio.
redimi-lo. A cidadania, condição tão falada como possibilidade
As suspensdes do cotidiano, que se operam à passagem realizada nas sociais-democracias do mundo moderno de-
do homem inteiro para o inteiramente homem, fazem emergir senvolvido, ¢ de fato uma ilusdo.
o tempo na sua dimensdo histérica a ser resgatada. Com o progresso, as relagdes sociais de dominagdo se
aperfeigoaram e se refinaram ao ponto de o próprio cidadao
6. A queda do pacto de complementariedade — Uma não perceber que deixou de ser cidaddo: ele é apenas usudrio
das caracteristicas da vida cotidiana de nossos dias é a servil dos servigos e beneficios do Estado do Bem-Estar
quebra do pacto de complementariedade entre as pessoas. Social.
Em geral, esta quebra é explicada em razio da liberdade Ele conquistou os direitos sociais, mas perdeu sua
sexual, da liberdade alcangada pelas mulberes, etc... Em condição de sujeito politico. Os cidaddos só aparecem nos
realidade, a dificuldade de manter um pacto de complemen- discursos da social-democracia, na prática eles não existem.
tariedade duradouro ¢ devida a valores e condições reforgadas Paradoxalmente, no Terceiro Mundo, os cidaddos são
na vida moderna:
chamados de “cidaddos de segunda classe” porque não
* o direito a diferenga, que, paradoxalmente, em vez conquistaram os chamados direitos sociais. Mas os chamados
de aproximar no complementar, afastou na oposigao e cidaddos de segunda classe do Terceiro Mundo, oprimidos
intolerdncia do diferente; pela exclusio e pela auséncia de direitos, vivem a sua

46 47
condigio de cidadania, mesmo que reprimida, num coletivo 9. O sagrado e o espiritual no cotidiano.
soliddrio consciente da opressdo. *(...) a religido persiste por diversos procedimentos: ritos e gestos,
mas também palavras, sacralizagdo, logo, valorização dos instantes
A vida cotidiana, nos paises capitalistas desenvolvidos, decisivos da existéncia. Esta consagragio dos comegos e dos fins
controlada e programada, transformou-se, abalando assim o paradoxalmente assegura a continuidade do cotidiano, a0 mesmo
exercicio da cidadania. tempo que intensifica os momentos, os dramatiza e confere a eles
uma espécie de importincia césmica, sob o olhar do ‘deus es-
condido”” (Lefebvre, 1981, III: 64).
8. A modernidade e a sociedade pés-industrial, com
seus poderosos meios de informdtica e telemitica, expandem, Os ritos sagrados ou os gestos de pedido de ajuda e
mesmo para o Terceiro Mundo, e agudizam, para os paises béngdo ao divino, presentes nos momentos marcanies ou
desenvolvidos, o desencantamento, a desconfianca e a de- rotineiros da vida cotidiana, ndo sdo apenas manifestações
sesperanga nas ideologias, na teoria, no global, no poder de uma religiosidade aparente, cultural ou migica. Não é
politico e no Estado. tampouco uma simples expressdo de apego à magia, mistério
¢ medo do mundo temporal e transcendente.
Paradoxalmente, ela reforca uma esperanga e uma con-
fianga nas microdecisbes, nos microefeitos, nas microcadeias Há uma espiritualidade aí escondida, tal qual o Dieu
caché. Ou, há uma débil espiritualidade acorrentada a um
de relacionamento. Daí a intuição bdsica de que a pritica
social transformadora ndo pode ignorar o cotidiano e a forte deus do progresso, do conforto, da preguiça e alienação.
cotidianidade dos microgrupos. O sagrado e o espiritual são temas constantes nos
“(..) a confianga social, ainda que persista, vai sobretudo ao que estudos realizados sobre a vida cotidiana, mas não explorados
é proximo, local; € este que se beneficia de uma hipétese favoravel. suficientemente enquanto motores de transformações.
(...) Em duas palavras, é préxima do cotidiano™ (Lefebvre, 1981, O espiritual é vivido no cotidiano como energia da
M 99). vida. Este espiritual nem sempre é reconhecido como força
Nio que os fendmenos macrossociais não sensibilizem positiva. E nem pode ser: ele apresenta fortes contradições.
e atinjam os individuos, mas a desesperanga criou um hiato Ele é utilizado pela maioria das pessoas como “ópio da
entre 0 macro e o micro, entre o institucional e o cotidiano. vida”, reforçando um processo de fuga alienante ou, ainda,
um processo de libertação, onde o comunitário é o apoio,
Como diz Lefebvre, é como se as pessoas, no cotidiano, coletiva.
e não o processo de caminhada
para evitar as armadilhas e desenganos, para melhor utilizarem
as circunstincias evitando os inconvenientes, enxergassem Hoje, esta busca do espiritual é absolutamente relevante
e expandida: os indivíduos o buscam nas seitas, nas igrejas
a sociedade como dual: de uma parte os circuitos dominantes mais diversas,
majoritárias, na magia, nas divindades as
e instituidos, de outra parte, os circuitos exteriores, as trocas
diretas, as ligagdes mais ou menos clandestinas. incluindo-se entre elas a propria psicandlise.
Esta busca é sem divida, para as forgas produtivas
“(...) o que dá por vezes a impressdo de que as relagdes *sub-
terrineas’ não são exteriores aquelas que se estabelecem na capitalistas, uma de suas aquisições mais lucrativas no
claridade oficial, mas penetram e talvez as vivifiquem” (Lefebvre. mundo moderno. Ela é a religiosidade do vazio que predomina
1981, 1II: 100). no mundo contemporineo.

48 49
Ela ¢, por um lado, como diz Umberto Eco:
o:
“o sintoma de uma crise das ideologias otimistas do progress
tanto a positivista tecnoldgica, que queria construir um mundo
,
melhor com o auxilio da ciéncia; quanto a materialista histdrica
gio
que queria construir uma sociedade perfeita por meio da interven
revoluciondria” (Eco, 1984: 112).

A desesperanga nesse mundo transformado que está aí


cria sem dúvida o espaço para fermentar um sagrado, uma
IV
mística ou uma magia das libertações individuais. O Cotidiano e a Prática Social
É sabido, historicamente, que, quando um povo sofre dos Assistentes Sociais
claramente a opressão, a exclusão, a pobreza, este espiritual
é percebido como força mística de transformação do coletivo;
a transformagio do mundo é germinada nesta propria energia.
Veja-se, por exemplo, na América Latina, a emergéncia de
L .Esle texto foi especialmente escrito para nos ajudar
uma teologia da libertação de um povo, enraizada nas
a relfleur e compreender a vida cotidiana, espaço da práxis
condigdes materiais de vida e nas exigéncias de uma préxis
realizada pelos assistentes sociais.
revoluciondria.
: A vida cotidiana não tem sido objeto de estudos e
O espiritual precisa ser desvelado no seu pleno signi-
o, investigações por parte destes profissionais e, no entanto,
ficado. Ele possivelmente é a tinica forga, no mundo modern
capaz de motivar o surgimento de valores de expressdo e
ela é, como pudemos verificar, questão fundamental.
expansio do ser e de*mover a caminhada dos oprimidos. E nela que se consolidam, se perpetuam ou se trans-
O espiritual € a forga possivel na transformagao do formam, no mundo moderno, as condições de vida mais
amplas. E é nela e sobre ela que realizamos nossa prática.
cotidiano e igualmente na supressdo coletiva da opressao.
Como diz Walter Benjamin (cf. Michel Lowy), não Muitas vezes, buscamos nosso referencial de ação nas
haverd revolugio real das condições materiais de vida e çomplexas relações sociais de reprodução e dominação,
ignorando o cotidiano como palco onde estas mesmas relações
supressdo da opressdo sem a forga do espiritual.
Se concretizam e se afirmam.
Para finalizar as reflexdes aqui expostas, é interessante
/» Muitas vezes, buscamos a totalidade fora da vida
acrescentar uma das afirmagoes de Lefebvre:
_otldígna, esquecendo que esta mesma vida contém a tota-
“A programagio do cotidiano dispoe de meios poderosos:
idade e nela é que se processam muitas das mediações
ela tem seus acasos, mas também a iniciativa, o impulso na ‘base’
ntre o particular e o global, entre o singular e o coletivo.
que faz balangar todo o edificio.
permanecerd o 2. O assistente social é um dos mediadores privilegiados
Seja o que vier, a mudanga no cotidiano
critério da mudanga” (Lefebvre, 1981, III: 46).
navrelação entre população dominada, oprimida ou excluída,

50 51
|
e o Estado. Esta afirmagdo, voz corrente entre assistentes
sociais, merece ser retomada de forma explicitadora.
O Servigo Social é uma profissio que tem caracteristi
cas
singulares. Ela ndo atua sobre uma tinica necessidad
e humana
(tal qual o dentista, o médico, o pedagogo...) nem
tampouco
se destina a todos os homens de uma socie
dade, sem
distingdo de renda ou classe. Sua especificidade está
no
fato de atuar sobre todas as necessidades humanas
de uma As atividades desenvolvidas
dada classe social, ou seja, aquela formada pelo Serviço Social
pelos grupos traduzem em mediações de dois se
subalternos, pauperizados ou excluidos dos bens, níveis:
servigos
e riquezas dessa mesma sociedade, S * a passagem da exclusão, do não-uso ou usufruto de
E por isso que os profissionais de Servico Social atuam bens e serviços da sociedade, para a inclusão e usufruto
basicamente na trama das relações de conquista e efetivo;
apropriagio
de servigos e poder pela populagdo excluida e domin
ada. * a apreensão, a nível da con
sciência, das relações e
E por isso que falamos em mediagdo. Quando determinantes existentes entr
falamos e o destino singular sentido
em mediagdo, estamos vivido por cada um e o dest e
nos referindo a uma categoria da ino de classe social a que
prixis presente em nossa prética, que tem dimen pertencem. Esta apreensão faz
sdes mais a passagem singular/coletivo.
profundas e um cardter eminentemente politico.
3. Na mediação, o assistente social trabalha duas di-
Sartre vale-se do termo mediagdo para expressar mensões da população Pauper
a izada ou excluída, que com-
passagem. E com este significado que ele emprega portam grandes contradições:
o termo
quando defende o método psicanalitico como
mediação * a de usuário dos serviços
privilegiada que permitiria passar das determinag do Estado;
des gerais
¢ abstratas a certos tragos do individuo singular * a de satisfação de necessida
(Sartre, des.
1979).
: Nós já refletimos anteriorment
A e a substituição progres-
mediagdo diz respeito aos processos de passagem. siva da figura de cidadão
pela de usuário. Basta aqui
Como diz Guiomar de Mello, a mediagdo acrescentar outra afirmação
se refere a de Lefebvre:
processos existentes na realidade objetiva, presentes nas “No início, ela
relagdes que ocorrem entre partes, forgas e fenémenos (a representação do
pareceu a usuário)
de expressão de uma força reivindicati
va capaz de agir na e sobre
uma totalidade. Tais processos são extremamente a cotidianidade. Ela pareceu subv
dindmicos ersiva no que dizia respeito aos
€, como ndo existe um momento especifico múltiplos serviços exteriores ao trab
da mediagdo, alho produtivo, mas indispen-
mas tdo-somente o movimento, os atributos sávei; à produção e à reprodução
deste, abstraidos, das relações sociais, no que
podem ser sintetizados sob o termo mediação constitui a organização social
(Mello, 1982). da cotidianidade: transportes
municações, habitação, saúde, e co-
etc.
52
53
O usudrio, nesta perspectiva, iria se tornar o elemento ¢oes, submetendo-se em todas elas a um mesmo ritual de
primordial de uma forga construtiva e critica, que reabilitaria o selegdo, onde aprenderdo em geral as estratégias de sucesso
valor de uso, subordinado ao valor de troca e à troca, até o ponto para obter satisfagdo de suas reivindicagoes: estratégias essas,
de ser apenas seu suporte” (Lefebvre, 1981, ITI: 80).
em geral, baseadas na alienagdo, privilégio ou asticia in-
No entanto, não encontramos hoje este resultado. Ao dividual ou coletiva. Uma vez satisfeitos, eles aspirardo a
contrério, nós já vimos, o Estado do Bem-Estar Social e a outras necessidades, induzidos pela privação opressora e,
produção capitalista cunharam um usudrio servil, voraz e igualmente, pela sociedade consumista moderna.
individual, que busca a satisfação de necessidades. O Estado Separar o joio do trigo não é tarefa ficil. Aprender o
e a produgdo capitalista moderna engendraram na vida caminho coletivo da conquista, sem cair na alienação, exige
cotidiana atual, aparentemente, um tnico valor: a satisfagao. dos assistentes sociais e militantes politicos estratégias de
“Ser satisfeito, eis o modelo geral de ser e de viver, do ação baseadas na leitura desta mesma realidade e poder de
gual os promotores e apoiadores não véem que ele engendra o interferéncia sobre os sistemas que mantém este Estado.
mal-estar. Porque a busca da satisfagio e o fato de ser satisfeito
do 'ser em atividades, em intengdes, 4. O assistente social atua no cotidiano dos grupos
pressupde a fragmentagio
em necessidades, todas bem determinadas, isoladas, separiveis e sociais oprimidos, introduzindo, na maioria das vezes, mesmo
separadas do Todo™ (Lefebvre, 1981, III: 83). sob a roupagem de uma ação revoluciondria, o progresso,
o conforto, como fins em si proprios.
A provisio ou negociagdes da provisão das necessidades
da populagio pauperizada ¢ uma das fungdes do A conquista singular ou coletiva da habitagdo, da creche,
bisicas
Servigo Social. do seguro-desemprego, etc. podem sempre resultar em avango
simplesmente do progresso ou representar rupturas e saltos
Sabemos que o atendimento dessas ‘necessidades é
a nivel da consciéncia e de poder dos grupos oprimidos.
realizado de forma setorizada, fragmentada, como se o
A direção social que se dá a pritica é sem divida
individuo fosse um somatério de necessidades a serem
uma questdo fundamental. Temos certeza que desejamos
satisfeitas, cada uma delas pela superposição de instituigdes
revolucionar radicalmente nossa realidade brasileira com
especificas. Sabemos igualmente que, no caso brasileiro, o
vistas a suprimir a opressão e a desigualdade. Mas o que
atendimento a estas necessidades é pulverizado e individua-
sempre uma sele¢io ou triagem que é revolucionar radicalmente? Serd tdo-somente conquistar
lizado, requerendo
melhores condigdes de vida material? Obter acesso efetivo
confirme o mérito ou validade do pedido de atendimento.
a bens, servigos e riqueza de nossa sociedade? Conquistar
Esta seleção e triagem conduzem a um afunilamento uma real distribui¢ao da renda e riqueza nacional? Segundo
da demanda, da qual são atendidos 5 a 10% dos solicitantes, que modelos? O modelo do Estado do Bem-Estar Social?
mas que permite concretizar uma realidade, mesmo que O dos chamados paises socialistas? Parece que não. Nesses
ilusoria, de atendimento. dois modelos, o Estado assume abusivamente o controle e
Sabemos, por fim, que os pauperizados e oprimidos a geréncia do coletivo, invadindo mesmo a vida cotidiana
deverdo realizar uma verdadeira peregrinagdo pelas institui- de todos os dias e de todos os homens.

54 55
Outra questdo: vamos querer um desenvolvimento eco- trolam e, porque controlam, parecem escapar a manipulações
nômico, social e politico que aniquile algumas das estratégias maiores.
de sobrevivéncia dos oprimidos no Terceiro Mundo, pautadas, E assim que nossa prática precisa dar atenção igualmente
por exemplo, na solidariedade, complementariedade, no co- aos níveis microssociais e rever as estratégias e processos
munitdrio e no coletivo como relagio querida? de ação para esses níveis. Parece se insinuar como funda-
Há que se considerar (e ela é tão esquecida como mental o resgate do trabalho competente junto aos pequenos
forga traigoeira!) a forga da direção social dada pela prépria grupos e a articulação igualmente competente entre estes,
sociedade capitalista transnacional. Ela é fortemente pene- de forma a introduzir uma rede de relações capaz de
trante em nosso cotidiano, como sedugdo constante do introduzir e solidificar um processo de identificação e con-
progresso, de possuir e usufruir bens materiais que encarnam fiança entre os oprimidos. É a famosa relação dialética entre
o “todo dia”, ameagando outras diregdes sociais possiveis; o singular e o coletivo, entre o micro e o macrossocial. A
mesmo porque ela tem um instrumento poderoso: a infor- prática não pode dicotomizar essas instâncias.
mação e a informdtica.
6. Nesse processo de pensar a prática social, no contexto
É preciso pensarmos de forma mais clara e menos
de nossas reflexões, parece se insinuar como estratégia
leviana a direção social de nossa pritica. Não só porque
principal de ação a revalorização e reforço de uma diversa
trabalhamos especialmente na mediagdo dominados/dominan- e extensa rede de relações sociais, A força da prática social
tes, mas também porque parece que a leitura da realidade estd no desenvolvimento de um processo aberto, mobilizador
complexa que vivemos hoje e o avenir sdo tarefas dificeis, de relações, reflexão e ação intergrupos. É a ação conjugada
assim como a escolha dos processos e das estratégias de de um corpo social múltiplo e expressivo que introduz
ação. efeitos transformadores a nível do coletivo.
O esforço e seriedade para pensá-la deve ser coletivo, Como diz Pierre Rosanvallon, a multissocialização é
envolvendo sobretudo a própria população nessa reflexão. importante e se processa através de um pluralismo de formas
e expressões de sociabilidade:
5. A outra questão, que parece menor, se insinua, no
“São todas estas formas de socialização transversais, que
entanto, como de importância progressiva na práxis social:
vão da associação formalizada à ação comum informal de prestação
a questão da confiança social. Nós já falamos dela, mas é de serviços, que podem permitir recolocar a solidariedade na
necessário reintroduzi-la aqui. sociedade. (...) Esta reaproximagdo da sociedade dela mesma não
deve ser, portanto, compreendida num sentido estreito (constituigao
A confiança social no mundo moderno parece se des- de microcoletividades estiveis e fechadas). Ela passa, ao contrário,*
locar. Os indivíduos e grupos estão deixando de creditar
confiança no saber teórico, nas ideologias, nas grandes
instituições, no Estado. * Esta afirmação de Rosanvallon não é de todo clara ou correta. A
reaproximagio da sociedade dela mesma envolve ambos os caminhos: as
A confiança parece ser creditada no próximo, no local, organizagdes estiveis e as tempordrias, nio-formais. Qualguer caminho exclusivista
nas pequenas organizações que os próprios indivíduos con- nos faria recair em novo empobrecimento.
56 57
agdes tempordrias ou limitadas” sujeitos que nela interagem. É por isso que o “dever ser”
pela multiplicagio das particip
, 1984: 122). da prática social está em disputa. Não há um único “dever
(Ros anva llon
ssério descartar idéias ser.
Nesse contexto, é igualmente nece
i : Em síntese, toda prática social é determinada: por um
herméticas, tais como:
mercantil = igualdade jogo de forças (interesses, motivações, intencionalidades);
serviço coletivo = Estado = não-
o = desigualdade pelo grau de consciência de seus atores; pela visão de
serviço privado = mercantil = lucr
1983: 123). mundo que os orienta; pelo contexto onde esta prática se
(Rosanvallon,
propostos e ge!'idos dá; pelas necessidades e possibilidades próprias a seus atores
Os equipamentos e serviços sociais e próprias à realidade em que se situam.
rnativa possivel, exigem
pela comunidade usudria, como alte
ticas sociais. Somente assim, As diversas práticas sociais tomam diferentes signifi-
uma nova flexibilidade das poli
itir vôos mais criativos cados. Elas podem expressar um sentido apenas utilitarista
parece, a pritica social pode se perm
e, portanto, uma ação restrita ao utilitário. Podem valorar
e expressivos.
apenas o gesto espontaneísta. Podem, ainda, se limitar ao
(e a vida cotid‘:am‘l) plano da afetividade, etc.
7. Ao repensar a pritica social
significado e .abmngcncm
torna-se importante recolocar o A prática social pode tomar, igualmente, uma direção
que tem mfilupla's abran-
do préprio termo prética social, mais profunda e global. É a esta que podemos denominar
social desenvo’l\.'lda pe‘lo
géncias. Ele designa a pritica mais precisamente de práxis social. Ela supõe um processo
designa a pratica social
Estado ou pela iniciativa privada; de reflexão/ação em espiral e, sobretudo, supõe uma atividade
ica desenvolvida por agenlcfs humana que se despojou da consciência comum, da prática
institucionalizada ou não, a prét -
grupos rel_igiosos. filantró utilitária, espontaneísta, e galgou um nível superior de
profissionais, militantes politicos,
os dominantes € pelos
picos, a desenvolvida pelos grup consciência, que se expressa em ação criadora, transfor-
grupos dominados. madora, realizante (produtiva) e gratificante (expõe o su-
natural busc_a dg jeito como ser total no mundo e com o mundo) (Vázquez,
A pritica social tem sua origem na
e efetivada por indi- 1986: 19).
subsistência e existéncia em sociedad
oram e realizam uma
víduos e grupos sociais. Estes elab A práxis social não é jamais um ato do ser singular
es de .comgreensa.o e isolado. Ela é expressão do sujeito coletivo, transindividual.
prática social nascida de suas possibilidad
as à satisfação mais
e intervenção na realidade com vist Como Goldmann afirma, há inúmeros sujeitos transindivi-

plena de suas necessidades e


motivações. duais (família, grupos de amigos, grupo profissional, etc.),
múltiplos, a,s$im como cujas ações se intercruzam e constituem a trama da sociedade
Os sujeitos da prática social são
vam. Toda prallca social global. Mas há uma categoria de sujeitos transindividuais
as práticas sociais que deles deri
, um movimento é um cuja ação tem uma pertinência particular nas transformações
tem uma intenção, um dinamismo históricas: são os grupos sociais cuja práxis e consciência
O movimento presente à prál?ca social
fluxo de relações. e dos são orientadas não para um setor particular da sociedade,
do “vir a ser” constante desta prática
é expressão
59
58
mas para o conjunto das relagGes inter-humanas, seja para esta pritica tem que estar embasada numa visdo de mundo.
conservá-las, seja para transformd-las. Tais grupos sociais É esta visio de mundo que, em dltima instancia, fornece
sdo, para Goldmann, assim como para Marx, as classes os horizontes, a direção e as estratégias de agdo. Fornece,
sociais (Lowy et alii, 1973: 33). igualmente, as bases de um ato reflexivo partilhado, portanto,
coletivo, consciente e criativo.
Também para eles, somente as classes oprimidas pos-
suem potencialmente a possibilidade de revolucionar a so- É ainda importante dizer que toda prética social eficaz
ciedade, suprimindo a opressdo e conquistando para o todo é produto igualmente da “paixdo
social niveis mais plenos de liberdade e realização humana. »“Se amas sem despertar amor, isto €, se teu amor, enquanto- amor,
Somente tais grupos podem realizar uma práxis social que não produz amor reciproco, se mediante sua exteriorizagdo de
vida como homem amante não te convertes em homem amado,
“afirma como valor supremo a realizagdo histérica de uma
teu amor € impotente, uma desgraga” (Marx, 1978a).
comunidade humana auténtica que s6 pode existir entre homens
inteiramente livres, comunidade que pressupde a supressio de
todos os entraves sociais, juridicos e ‘econdmicos à liberdade, Março de 1987
a supressio das classes sociais e da exploragio” (Goldmann,
1979: 33).

Uma prixis social é sempre movida por uma visao de


homem-mundo:
“Uma visio de mundo é precisamentc esse conjunto de
aspiragoes, de sentimentos e de idéias que redne os membros de
um grupo (mais freqiientemente, de uma classe social) e os opõe
aos outros grupos” (Goldmann, 1979: 20).

Esta visio de mundo corresponde sempre ao méximo


de consciéncia possivel destes mesmos sujeitos coletivos.
A pritica social exercida pelos profissionais de Servigo
Social se articula às demais priticas, mas, sobretudo, ela
deve se articular e buscar seu horizonte e sua direção nas
priticas movidas pelos grupos sociais oprimidos, pois são
estes os portadores possiveis do máximo de consciéncia
sobre as direções alternativas do caminhar histérico revo-
luciondrio.
Finalizando, é necessdrio que tenhamos uma direção e
uma concepgio clara de nossa pritica profissional. Ela não
pode ser, e nem ¢, neutra. Para cumprir seu papel mediador,
60 61
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62
63
moléstia positivista) e da derivagio irracionalista (v.g, a
vertente fenomenoldgica), por outra parte abre uma alternativa
preciosa: a de uma apropriagio séria e responsivel do ar-
senal critico da teoria social de Marx, especialmente do
complexo categorial que esta elaborou para dar conta do
modo de ser e reproduzir-se do ser social.

Para a Critica da Vida Cotidiana


As determinações fundamentais da cotidianidade

José Paulo Netto A tradição marxista acumulou, nas últimas quatro dé-
cadas, uma significativa massa critica, apta a configurar —
num espectro heuristico diferenciado, que vai do historicismo
à impostagdo ontológica — os componentes essenciais de
uma teoria da vida cotidiana.'
No interior deste acervo, a contribuigio mais decisiva
para uma tal teoria está contida nos trabalhos derradeiros
O interesse crescente que a temdtica da cotidianidade
de G. Lukdcs, fundamentalmente naqueles em que o filésofo
vem adquirindo entre os assistentes sociais, nos anos mais
hingaro procurou embasar o que chamou de “a peculiaridade
recentes, ¢ um dado a ser tomado a sério pelos analistas
do estético”.? O que é especialmente relevante no contributo
do Servigo Social.
de Lukács — sobre o qual, alids, repousa o essencial dos
Na dinâmica de uma profissdo que se tem desenvolvido trabalhos de Heller sobre a cotidianidade® — é, precisamente,
freqiientemente com a incorporagdo acritica dos mais variados a rigueza categorial: a pesquisa lukacsiana da ontologia do
modismos intelectuais, a aquisicio de outro dernier cri ser social, concretizada inicialmente na investigagdo sobre
poderia merecer apenas um sorriso cético. No entanto, pela
significagio imanente da problemitica da vida cotidiana, a
nova coqueluche não oferece somente a oportunidade para 1. Cf,, por exemplo, Henri Lefebvre (1968-1981 e 1968); Karel Kosik
(1969); Agnes Heller (1975 e 1972).
a reiteragdo de condutas ji conhecidas, quase todas concor-
2. Cf. G. Lukics (1966). Para uma didática síntese da obra tedrica deste
rentes para aquela velha sindrome das teorizações da profissão filésofo, o leitor pode recorrer a0 meu opisculo George Lukdics. O guerreiro
— o ecletismo mais chio. sem repouso. São Paulo, Brasiliense, 1983a (Colegio Encanto Radical, nº 28)
Com efeito, a colocagio da cotidianidade no campo
3. De fato, até inicios da década de 70 (periodo em que redige os textos
citados na nota 1). Heller era uma fiel discipula de Lukics — como, alids, a
de reflexdo do Servigo Social se reatualiza simultaneamente chamada “escola de Budapeste": sua evolugio posterior, porém, conduziu-a a
com os riscos polares do racionalismo limitado (v.g., a um progressivo afastamento das posições lukacsianas (e, mesmo, do marxismo).

64 65
a cotidianidade, é um monumento teérico no que toca ao a) a heterogeneidade: a vida cotidiana configura o mundo
resgate e à reelaboragio de categorias histérico-sistematicas.* da heterogeneidade. Intersegdo das atividades que com-
Esbocemos, primeiramente e de forma mais que sumadria,
põem o conjunto das objetivagdes do ser social, o cardter
o tratamento que Lukdcs oferece da cotidianidade. heteróclito da vida cotidiana constitui um universo em
que, simultaneamente, se movimentam fendmenos e pro-
Na ótica lukacsiana, a vida cotidiana é insuprimivel. cessos de natureza compésita (linguagem, trabalho, inte-
Nio há sociedade sem cotidianidade, não há homem sem
ração, jogo, vida politica e vida privada, etc.);ó
vida cotidiana. Enquanto espago-tempo de constituicdo, pro-
dução e reprodugdo do ser social, a vida cotidiana é b) a imediaticidade: como os homens estio agindo na vida
inelimindvel. O que, em Lukdcs, ndo lhe confere nenhum cotidiana, e esta ação significa responder ativamente.! o
cardter meta-histérico: se em foda sociedade existe e se põe padrio de comportamento préprio da cotidianidade é a
a cotidianidade, em cada uma delas a estrutura da vida relação direta entre pensamento e ação; a conduta espe-
cotidiana é distinta quanto ao seu dmbito, aos seus ritmos cifica da cotidianidade é a conduta imediata, sem a qual
e regularidades e aos comportamentos diferenciados dos 0s automatismos e o espontaneismo necessérios à repro-
sujeitos coletivos (grupos, classes, etc.) em face da cotidia- dugdo do individuo enquanto tal seriam invidveis;
nidade. c) a superficialidade extensiva: a vida cotidiana mobiliza
A vida cotidiana, posta assim em sua insuprimibilidade em cada homem todas as atenções e todas as forgas,
ontolégica, não se mantém como numa relagio seccionada m§ não toda a atenção e toda a força; a sua heteroge-
com a história. O cotidiano não se descola do histérico — neidade e imediaticidade implicam que o indivíduo res-
antes, é um dos seus niveis constitutivos: o nivel em que ponda levando em conta o somatório dos fenômenos que
a reprodugio social se realiza na reprodugdo dos individuos comparecem em cada situação precisa, sem considerar as
enquanto tais.ó relações que os vinculam.
E quais s@o, para Lukdcs, as determinagdes fundamentais Estas determinações fundamentais da cotidianidade —
da cotidianidade? Ei-las: mais exatamente: estes componentes ontológico-estruturais
da vida cotidiana — ganham uma importância primária na
4. A mesma Heller realgou esta rigueza categorial (1986). Cabe lembrar escala em que, segundo Lukács, a vida cotidiana é o alfa
que a Estética, alids inacabada, já está enformada pelas preocupagdes que
tomardo corpo na última grande e ambiciosa obra de Lukics, a Ontologia do
ser social (Ontologia dell’essere sociale, Roma, Riuniti, 1976-1980; fragmentos §. .Esm heterogeneidade e um dado ontoldgico da vida cotidiana, que
deste texto estio vertidos em Oniologia do ser social. A falsa e a verdadeira não çhmma. antes supõe, uma hierarquia entre as diferentes atividades que
ontologia de Hegel e Ontologia do ser social. Os principios ontoldgicos constituem a cotidianidade. A hierarquia é uma função estritamente sócio-histórica;
fundamentais de Marx, Sio Paulo, Ciéncias Humanas, 1979). cf. Heller (1972: 18).
)
5. Aprofundando essa determinagio, Heller desenvolverd o tema do 7. Nas disquisicdes sobre a ontologia do ser social avangadas em
cotidiano como nivel de reprodução direta do individuo enquanto tal no mesmo Conversando com Lukdcs (Virios, 1969), o homem é compreendido como “o
processo em que este reproduz indiretamente a sociedade. ser que dá respostas”.

66 67
aaa PE
e o ômega da existéncia de todo e cada individuo. Nenhuma Já se referiu ao fato de, na cotidianidade, o indivíduo

e
existéncia individual cancela a cotidianidade. Dai que esta ter mobilizadas todas as suas forças e todas as suas atenções;
imponha aos individuos um padrio de comportamento que a heterogeneidade própria à vida cotidiana tensiona o indi-
apresenta modos tipicos de realizagdo, assentados em ca- víduo de forma abrangente, faz com que ele atue inclusi-
racteristicas especificas que cristalizam uma modalidade de vamente como uma unidade (exceto ao custo do seu esti-
ser do ser social no cotidiano, figurada especialmente num lhaçamento enquanto indivíduo). Ele opera como um todo:
pensamento e numa prdtica peculiares. Ambos se expressam, atua, nas suas objetivações cotidianas, como um homem
liminarmente, num materialismo espontdneo e num tendencial inteiro — mas sempre no âmbito da singularidade. Ora, o
pragmatismo. Os constrangimentos da dindmica cotidiana acesso à consciência humano-genérica não se realiza neste
exigem que os individuos respondam a eles sem pôr em comportamento: só se dá quando o indivíduo pode superar
causa a sua objetividade material — mesmo o solipsista a singularidade, quando ascende ao comportamento no qual
mais extremo, atravessando uma avenida, estuga o passo joga não todas as suas forças, mas toda sua for¢a numa
para escapar de um veiculo, sem questionar a natureza da objetivação duradoura (menos instrumental, menos imediata),
sua representagio mental. A mesma dinimica requisita dos trata-se, então, de uma mobilizagdo animica que suspende
individuos respostas funcionais às situagdes, que ndo de- a heterogeneidade da vida cotidiana — que homogeneiza
mandam o seu conhecimento interno, mas tdo-somente a todas as faculdades do individuo e as direciona num projeto
manipulagio de varidveis para a consecução de resultados em que ele transcende a sua singularidade numa objetivagao
eficazes — o que conta não é a reprodugio veraz do na qual se reconhece como portador da consciéncia huma-
no-genérica. Nesta suspensdo (da heterogeneidade) da coti-
processo que leva a um desfecho pretendido, porém o
dianidade, o individuo se instaura como particularidade,
desfecho em si; no plano da cotidianidade, o critério da
espago de mediagio entre o singular e o universal, e
utilidade confunde-se com o da verdade.
comporta-se como inteiramente homem.®
Há mais, todavia: aquelas determinagdes da cotidiani-
De acordo com Lukics, há trés formas privilegiadas
dade fazem com que todo e cada individuo só se perceba
de objetivação nas quais os procedimentos homogeneizadores
como ser singular® vale dizer: a dimensdo genérica (a
superam a cotidianidade: o trabalho criador,” a arte e a
referéncia à pertinéncia ao humano-genérico) aparece sub-
sumida, na vida cotidiana, à dimensdo da singularidade. A
vida cotidiana não equivale a vida privada, mas a vida . 119. Grosseiramente, pois, na-vida colidiana o individuo é homem inteiro;
equacionada a partir da perspectiva estrita da singl_xlaridn.de. nas’suspensdes — veremos, quais em seguida —, é inteiramente homem. No
primeiro; caso, a singularidade, mesmo contendo as determinagBes
Este passo do pensamento lukacsiano tem as maiores im- néricas, permanece inultrapassada; no segundo, supera-se na particularidade (na
humano-ge-

plicações. Sociologia..., Heller, 1975, que desenvolve especialmente estas questoes, vale-se
de uma nomenclatura um pouco diferenciada).
10. Trata-se, obviamente, do trabalho posto como objetivagdo nao-alienada
8. Para a categorização lukacsiana da singularidade, da universalidade e (work,; não: labour). Alids, o trabalho, é situado por Lukics — na melhor
da particularidade, cf. especialmente Lukács, 1970. inspiragio marxiana — como a objetivagdo privilegiada do ser social, como o

68 69
a vida cotidiana permanece inelimindvel e inultrapassivel,
ciéncia. Estas trés objetivagdes mais altas constituem esferas
mas o sujeito que a ela regressa estd modificado. A dialética
que se destacaram das objetivagdes cotidianas gragas a um
longo processo histérico de complexa diferenciagdo, adqui- cotidianidade/suspensiio é a dialética da processualidade da
rindo autonomia e legalidade próprias!! — processo que, constituigao e do desenvolvimento do ser social.
em si mesmo, é o da constituigio do ser social. Resta insistir em que, para Lukdcs, a vida cotidiana
estas objetivagdes, con- contém, na sua objetividade heteréclita, todos os componentes
As suspensdes que engendram
a cotidianidade (insuprimivel e ine- que cada uma daquelas esferas reproduz e reelabora segundo
tudo, ndo corlam com
da cotidianida- a sua legalidade especifica — as determinagdes e configu-
limindvel) — sdo, justamente, “suspensdes
aos individuos, via homoge- rações do trabalho, da ciéncia e da arte estdo postas na
de”.? Elas — que permitem
realidade mesma.” De fato, todas as determinagGes a que
neização, assumirem-se como Seres humano-genéricos — a razão tedrica e a reflexdo
a pritica da transformagio,
não podem ser continuas: estabelecem um circuito de retorno formulação especifica jazem no espago
estética conferem
à cotidianidade; ao efetuar este retorno, o individuo enquanto
do que Marx designou como o metabolismo entre sociedade
tal comporta-se cotidianamente com mais eficcia e, ao e natureza.
mesmo tempo, percebe a cotidianidade diferencialmente:
pode concebé-la como espago compulsório de humanizagdo
(de enriquecimento e ampliação do ser social). Estd contida A postura tedrico-metodologica
aqui, nitidamente, uma dialética de tensdes: o retorno a
cotidianidade apés uma suspensdo (seja criativa, seja fruidora) O esquemdtico (e até tosco) excurso precedente não

supõe a alternativa de um individuo mais refinado, educado pretendeu sumariar a concepgdo lukacsiana da cotidianidade.
(justamente porque se algou à consciéncia humano-genérica); Anles, teve como objetivo sugerir — ainda que nos marcos
sindlicos deste texto de ocasido — que o tratamento con-
e
seqiiente da vida cotidiana reclama um aparato categorial e
modelo da prática social, já que nele comparece cristalinamente a teleologia liminarmente os pro-
fundam a socialidade e a comunicagao interindividual. um referencial teérico que cancelam
a valoragae que
cedimentos costumeiros de que os assistentes sociais langamos
11. Na anilise genético-estrutural (historico-sistemdtica) da constituição
dessas esferas reside um dos mais sélidos méritos da investigagio do último
mio com freqiiéncia.
Lukics e é impossivel resumi-la em poucas linhas. Mas é de salientar a estrutura Parece-me que nele estão embutidas trés interdigoes
e a funcionalidade diversas que elas possuem, ainda que — como Lukdcs
que vale a pena salientar.
reiteradamente enfatiza — remetam à unidade ontolégica da realidade. Esta
pontuagio é tanto mais importante quanto ele distingue a arte, como processo
de autoconsciéncia da humanidade (portanto, um reflexo antropomorfizador da
realidade), da ciéncia, como processo de conhecimento da estrutura objetiva da 13. A problemitica religiosa — que ndo pode ser eludida nestas consi-
natureza, da sociedade e do seu intercimbio (portanto, um reflexo desantropo- deragoes — recebe um amplo tratamento na parte final da Ontologia do ser
morfizador da realidade) social. Quanto à ascensio o humano-genérico por via da moral (que nio
constitui uma esfera, mas uma relação entre esferas), quem a tematizou espe-
12. O proprio Lukdcs adverte que ndo existe uma muralha chinesa
separando os comportamentos cotidianos dos que não o sio cialmente foi Heller (1975).

70 71
Em primeiro lugar, cumpre realgar que não se legitima
consiste, sobretudo, na concepção da fatic
a análise da vida cotidiana sendo quando se superam as idade imediata
como a fronteira logicizdvel do pensamento
balizas do pensamento cotidiano — no bojo do qual os .’s A “decodifi-
cação” do cotidiano através de formas légicas
procedimentos analégicos, as tendéncias antropomorficas e — e nexos
causais — que só o repdem no plano do
o materialismo espontineo e pragmitico se entrecruzam para pensamento é,
com efeito, a cilada a que não escapa a reflexdo
plasmar representagdes puramente instrumentais de interação condenada
a sacralizar a sua estrutura.
do indivíduo com o mundo (natural e social).
Em segundo lugar, naquele excurso está posto o limite
Não está em jogo, aqui, apenas a infirmação das noções
infranquedvel que restringe o alcance das abordagens
¢ representações gestadas no quadro da cotidianidade, das so-
ciolégicas (quando não sociologistas) e antropolégicas
quais o preconceito é a figura mais tipica." Nem, igualmente, da
vida cotidiana.'* No geral operando ao nivel descri
a da romântica e inepta apologia do “saber prático” de tivo-mo-
nogrifico, tais abordagens atém-se ao que hd de perfunctério
segmentos da população — grosseiro viés que anda a na cotidianidade.”” O reducionismo de que se nutrem dilui
permear certas formulações que têm livre curso entre todas as determinagGes estruturais e ontolégicas da vida
as-
sistentes sociais (e não só). Substantivamente, o que cotidiana, subsumindo-as ou num culturalismo que hipertr
está ofia
em causa é o largo espectro de posturas positivistas 0s seus contetidos simbélicos ou numa sucessio de eventos
e
neopositivistas, fundamentadas na recepção da objetividade manipulados que promove a evicção das reais (e operantes)
imediata dos processos e fenômenos sociais como possibilidades de intervenção dos sujeitos sociais. Nem
sendo a
Sua realidade estrutural. Mesmo que veladas por sofisti mesmo o ativismo que animou a Internacional Situacionista
cações
formalistas (metodologistas, epistemologistas), estas permitiu uma critica da vida cotidiana assentada em algo
posturas
não rompem com a faticidade empírica em que mais que o voluntarismo subjetivista
se dá a (Gombin, 1972), como
imediaticidade da vida cotidiana. O tratamento 0 atesta uma de suas produções candnicas, que compartilha
positivista e
neopositivista da cotidianidade consagra a sua imediaticida dos vicios do sociologismo (Debord,
de 1972). Neste, a calei-
como instância de verificabilidade e controle doscópica e impressionista descrigio da modernidade opera
das formulações
abstratas (quando não reduz a prova destas como o sucedineo da andlise estrutural e cabe levantar a
a equações
semânticas), identificando na objetividade
dada imediata-
mente (a pseudoconcreticidade, como a batizou
Kosik) a 15. A complementaridade entre a razão formal
concreção da realidade. Nunca será demasiado assim limitada (a “miséria
reiterar que da razão”) e as tendéncias irracionalistas (a “destruigao da razão”) foi compe-
a filiação positivista da reflexão independe da remissão a tentemente abordada por Carlos Nelson Coutinho (1972). Quanto à estrutura
uma “escola” — seja comteana, seja derivação imanente do positivismo e suas derivações em face da faticidade, cf. Leo Kofler
neokantiana,
seja a filosofia analítica, seja o estruturalismo, (S. Warynski), 1968,
etc. —, mas
16. O mesmo vale para as aproximagdes de natureza fenomenolégica, as
quais, por oulra parte — e mesmo rechagando grosseiro —, não superam
os
14. Um belo ensaio sobre o preconceito, visualizado como a constrangimentos da faticidade. O exemplo canénico, aqui, € o de Schutz.
do pensamento e do comportamento cotidianos”, encontr
“categoria 17. Cf., por exemplo, H. Garfinkel (1967) e E. Goffman
a-se em Heller (1972). (1973). Para
observagdes criticas. cf. A. Gouldner (1971) e B. Smart (1976).
72
73
reserva que — noutro contexto e visando outro adversdrio dialético formulado por Hegel) e instaurando como operag
ao
— Sartre formulou: o cinema é substituido pela lanterna- fundamental a andlise hist6rico-sistematica dos Processos
mdgica. sociais. Ela implica a construgio de uma imagem rigorosa
do homem como ser prático e social, produzindo-se a si
Enfim, releva observar — e este aspecto me parece
mesmo através de suas objetivações (a práxis, de que o
significativo no marco das preocupagdes vigentes em amplos
processo do trabalho é o modelo privilegiado) e organizando
setores da categoria profissional dos assistentes sociais —
as suas relações com os outros homens e com a natureza
que o tratamento conseqiiente da vida cotidiana não é tanto
conforme o nível de desenvolvimento dos meios pelos quais
função de um ponto de vista de classe quanto do acervo
se mantém e reproduz enquanto homem. Isto é: há aqui
teérico de que se socorre. Não se trata, ¢ óbvio, de
uma antropologia cuja ontologia é a matéria da histéria,'?
desqualificar o ponto de vista de classe como componente
indescartdvel da produgao tedrica — já há meio século esta Trata-se de uma postura teórico-metodológica stricto
questdo foi solucionada: sabemos, por exemplo, que a sensu: o método não é um componente alienável da teoria.
perspectiva da totalidade, na sociedade contemporinea, só Ele não se forja, também, independentemente do objeto que
é uma alternativa acessivel ao investigador que se situe a se pesquisa — é uma relação necessária pela qual o sujeito
partir do ponto de vista do proletariado (Lukdcs, 1974). que investiga pode re-produzir intelectualmente o processo
Entretanto, este ponto de vista não representa nenhuma do objeto investigado, para apanhar o movimento constitutivo
do ser social — e a reprodugio intelectual deste configura
garantia se ndo se implementa, heuristicamente, com o
a base da teoria mesma. O circuito investigativo, recorrendo
resgate e a recuperagdo criticos dos instrumentos teóricos
acumulados no bojo da heranga cultural da humanidade, e compulsoriamente à abstragdo, avança do empirico (os “fa-
tos”), apreende as suas relações com outros
que se independizaram da sua base classista. Desprovido conjuntos em-
dessa relação necessdria com a heranga cultural, o ponto piricos, pesquisa a sua génese histérica e o seu desenvol-
vimento interno — e reconstréi, no plano
de vista de classe do proletariado se degrada em obreirismo, do pensamento,
envergonhado ou descarado; ele só expressa um elemento todo este processo. E, ao fim e ao cabo, por aproximagoes
dinamizador do conhecimento se, e na medida em que, sucessivas, regressa ao seu ponto de partida; mas os “fatos”,
a cada nova e subsegiiente abordagem, mostram-se produtos
polariza a massa critica disponivel num momento histérico
determinado.'® de relações históricas crescentemente complexas e mediati-
zadas, podendo ser contextualizados de modo concreto e
Pois bem: com isto se clarifica a postura teérico-me-
todolégica requisitada para o tratamento conseqiiente da vida
cotidiana — a postura inaugurada com a obra marxiana, 19. Eis por que se pode falar de esséncia humana (hwnanitas) sem
recuperando precisamente a filosofia clissica alema (o método qualquer concessão ao a-historicismo, a uma pretensa “condigio humana”. Ao
contrério, a esséncia humana — atributos que o ser social produz na sua histéria
40 se desenvolver — é uma estrutura dinâmica de possibilidades que se dio
no desenrolar da histéria. Segundo G. Markus (1975), ela se caracteriza por
18. Para ser curto e grosso: o ponto de vista do proletariado só é
cinco componentes: o trabalho, a socialidade, a universalidade, a consciéncia e
significativo para a razio tedrica na escala em que seu sujeilo se revelar o
a liberdade.
herdeiro da filosofia clissica alema (Engels).

74 75
inseridos no movimento macroscépico que os engendra e o Lukdcs de 1923, reside exclusivamente no problema do
de que são indices. método.” Sem aquele resgate e este rompimento, torna-se
Uma tal postura teérico-metodolégica rompe radical- visceralmente problemdtico o tratamento conseqiiente da
mente com a faticidade — daf o seu trago negativo.?® Nada cotidianidade, mantendo-se a tendéncia de colmatar as pre-
concede ao empirico, ao dado — nega-o para apanhar o tensas e/ou eventuais lacunas da teoria social de Marx com
seu movimento, a sua tendencialidade. Contudo, ao apreender produtos elaborados segundo parimetros teóricos que, em
a historicidade dos processos simultaneamente às suas par- verdade, os convertem em apéndices que, além de desne-
ticularidades internas, preserva as suas especificidades. Donde cessdrios, são incompativeis com a matriz marxiana.º
a sua aplidio para operar o tratamento conseqiiente e
adequado da cotidianidade: preserva o seu ser existente —
O sentido desta requisição — talvez não seja supérfluo
espago de reprodução do individuo enquanto tal —, reen- esclarecé-lo — nada tem a ver com uma concepgao conclusa
viando-o ao processo inclusivo do qual é apenas um nivel, e acabada da teoria marxiana. Muito ao contrério: quem
um momento, processo que é o da produção do ser social supuser que os problemas tedricos e priticos postos pelo
como humano-genérico. mundo contemporaneo têm a sua solução inscrita em Marx
(ou, em geral, nos “cldssicos™) seguramente não se norteard
As categorias centrais na complexidade deste final de século.* A questdo não se
coloca em termos de pretensas solugdes definitivas de Marx;
Claro estd, a esta altura, que os procedimentos criti- coloca-se no enfrentamento dos novos problemas (ou de
co-analiticos em questdo implicam o resgate da fonte original problemas descurados ou maltratados pelos “clássicos”) a
marxiana em sua estreita conexdo (que se constitui da partir da perspectiva critico-dialética por ele inaugurada.
cldssica superagdo [Aufheben]) com a formulagio da dialética
hegeliana. Nesse sentido, é urgente romper com as várias Esta perspectiva, que embasa a postura tedrico-meto-
interpretagoes positivistas e neopositivistas dos marxistas dolégica atrds mencionada, assenta, de um lado, num ponto
posteriores,”’ para reencontrar a “ortodoxia” que, conforme
22. Cf. o primeiro ensaio de Histéria e consciéncia de classe (Lukdcs,
20. Trago que é conforme à natureza da razão: “O intelecto determina 1974).
e mantém firmes as determinagdes. A razão é negativa e dialética, porque
resolve no nada as determinagdes do intelecto; é positiva, porque cria o universal 23. Basta verificar o uso recente, em textos da bibliografia profissional,
de autores como Foucault (foi preciso que José Guilherme Merquior desse
e nele compreende o particular” (Hegel, 1968: 29). à
luz o seu Foucault ou o niilismo de cdtedra, 1986, para ajudar a desfazer os
21. Se, em larga medida. cafram em descrédito, no Ambito do Servigo equivocos mais grosseiros) para avaliar da procedéncia desta notagdo. Especial-
Social, as formulagdes grossciramente mecanicistas do género Segunda Interna- mente no que tange à problemdtica do individuo, sua socializagio e a estrutura
cional. a verdade é que a esterilidade althusseriana ainda marca entre nós uma da sua personalidade é que as contrafagbes se revelam mais assombrosas,
presenga dolorosa (para a critica das deformagdes praticadas por Althusser, cf. ignorando-se a polémica e a produgio que se desenvolveram de Adam Schaff
especialmente E. P. Thompson, 1983; e A. S. Vizquez, 1980; ver também a (1967) a Lucien Séve (1972).
obra de Coutinho, 1972). Por outro lado, as versdes vulgarizadas do pensamento 24. Noutro lugar. tive oportunidade de afirmar, em relação a Marx, que
de Gramsci não favorecem um desenvolvimento adequado das possibilidades a sua obra é necessdria, “mas não suficiente para explicarfcompreender e
da matriz marxiana, revolucionar o mundo contemporineo™ (Netto, 1985: 8).

76 T7
de vista de classe — o do proletariado enquanto sujeito
histérico revoluciondrio. Retire-se da obra de Marx o ponto — que Marx parte para construir a teoria
social que é a
arquimédico que a perspectiva da revolugio lhe oferece e própria autoconsciência do mundo burguês.
teremos um Marx sociélogo, economista, filésofo — ou o Evidentemente, não é este o lugar para
esboçar o
especialista que melhor agradar ao gosto do mandarinato conjunto categorial, e a sua peculiar articulação,
que emerge
académico. na consecução da pesquisa marxiana. No entan
to, cumpre
O citado ponto de vista, porém, ndo se perfila como mencionar algumas das suas características
medulares e
uma relagdo extrinseca entre a obra de Marx e a classe salientar aquelas que são axiais.
operdria, ou uma relagio politica; em troca, temos em tela O cariz da teoria social marxiana é de natureza
onto-
um nexo imanente, uma relagio genética e metodolGgica lógica.* O que nela se visa é a realidade — o ser social
entre Marx e o proletariado — ainda que este ndo cumpra (sua produção e reprodução). E esta realidade é sempre,
com a “missdo histérica” que aquele lhe atribui, o nexo ontológica e historicamente, uma totalidade.
estd dado porquanto € o proletariado, enquanto classe em A categoria de totalidade — extraída pela razão teóric
si, que, pela sua mera existéncia, viabiliza a dialética social
a
da estrutura do real, e não posta como modelo abstrato ou
a partir da perspectiva do processo do trabalho. A assunção hipótese reflexiva? — é uma das categorias centrais de
do ponto de vista histórico da classe operária, inde- Marx** porque “a totalidade concreta é (...) a categoria
pendentemente do trânsito desta à condição de classe para fundamental da realidade” (Lukács, 1974: 24-5).
A totalidade
si, é que possibilitou a arquitetura marxiana. A relação entre não se identifica meramente com o todo:
significa, antes,
a teoria social e o proletariado, pois, envolve mediações a “realidade como um todo estruturado, dialét
ico, no qual
lógico-históricas.” ou do qual um fato qualquer (classes de fatos,
conjuntos
Mas o ponto de vista de classe — explícito e assumido de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendi
do” (Kosik,
— é somente um aspecto que funda a teoria
1969: 35).
marxiana, e
pouco ou nada renderia não fora o aproveitamento crítico
que Marx realiza do patrimônio cultural que já encontra 26 “... Qualquer leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que
elaborado. É num confronto polêmico com ele, numa con- todos os seus enunciados concretos, se interpr
etados corretamente (...) são
flituosa relação de aceitação, recusa e ultrapassagem, que entendidos (...) como enunciados diretos sobre
um certo tipo de ser, ou seja,
Marx instaura uma nova inteligibilidade da realidade histó- são afirmações ontológicas” (Lukács, 1979, II: 11).

rico-social. É deste acervo, desta herança profundamente 27, Recorde-se: “as categorias exprimem (...) formas
de modos de ser,
determinações de existência...” (Marx, 1982: 18).
reelaborada — que remaneja, a que preenche com novos
28. Já em 1923, Lukdcs observava: “¢ o ponto de vista
conteúdos, num movimento crítico de extrema complexidade não a predomindncia das causas econdmicas na explica
da totalidade, e
gio da história, que
distingue o marxismo da ciéncia burguesa. A categoria
da totalidade (... constitui)
a esséncia do método que Marx tomou de Hegel e (...)
transformou de maneira
25. Para o desenvolvimento deste ponto, cf. o meu artigo “Teoria original para dele fazer o fundamento de uma ciéncia inteira
e mente nova. (...)
revolução em Marx" (Netto, 1990: O reino da categoria da totalidade é o portador do principio
61-67). revoluciondrio
da ciéncia” (Lukdcs, 1974: 41).
78
79
Exclusivamente no ambito da apreensdo da realidade categoria de mediação (Vermittelung), que,
como totalidade (concreta, estruturada, igualmente, Marx
dinimica e não in- tomou de Hegel' Sem a mediagdo, de um
diferenciada, mas com niveis regidos por legalidade lado, a prépria
prépria®® estrutura da realidade, tomada como
e lendéncias detectiveis de desenvolvimento) totalidade concreta,
é que se estaria despida da sua inerente complexi
revestem de sentido as demais categorias l6gico-dialéticas dade; e, por outro,
(reflexivas) que a categoria (e a realidade ontolégica)
a razão teérica elabora, construidas a partir da negagio — outro
da abstração do componente elementar da realidade e do
movimento real.’® sistema categorial
— se esvaziaria.
No tocante à categorizagio concreto-abstrato, objeto de
tanta degradagiio no jargão profissional dos assistentes sociais, Voltemos brevemente à estrutura da reali
dade. Na sua
o cânone marxiano é cristalino: imanéncia, na sua contraditéria complexidade
“O concreto é concreto — isto é,
porque € a sintese de muitas determinagdes, “como relação complexo-dinimica entre comp
isto €, unidade lexos dinami-
do diverso” (Marx, cos” (Lukics, 1979: 97) —, a totalidade é
1982: 14). Vale dizer: a célebre assertiva a concreta unidade
concernente ao método que vai do abstrato (inidéntica) da interagio de contradigdes
ao concreto e se apresenta
significa a captura das determinagdes (obti constituida de complexos com maior ou
das através da menor grau de
andlise das relagdes efetivas) pela razdo teóric complexidade;? ou seja: trata-se de uma
a; o concreto, complexidade de
pois, não se mostra faticamente, segundo grau — da totalidade em si e dos
na empiria, imediatamente complexos que
— ¢, justamente, a ultrapassagem da a constituem. Ora, a relação entre os comp
faticidade, a sua lexos e no seu
dissolução (evoque-se o trago negativo da interior, na escala em que desborda o leito da conexdo
razio em face
do entendimento) na descoberta das determinagde mecinica, unilinear e unidimensional,
s e relações; efetiva-se e garante-se
a famosa indagacio acerca das condições em por passagens e conversões — determinante
que um negro s e determinadas
Éé um escravo (ou em que uma máquina é — que se devem exatamente aos processo
capital) atesta-o s de mediação:
inequivocamente (Marx, 1965, I: 212). E neles se contêm “todas as forças, processos,
a superagdo do etc., que
abstrato — este sim, pondo-se empirica, determinam objetivamente o nascimento, o funcionamento
faticamente — que
permite & razio teórica reconstruir e recapturar € o ser-precisamente-assim de um complexo”.”*
o concreto. Nesse sentido,
No mesmo ambito da totalidade concreta, todavia, é
que se reveste da sua inteira relevéncia a
categoria sem a 31. A Vermittelung aparece na obra hegeliana
especialmente no período
qual carecem de efetividade todas as outras. de Jena, ocupando lugar proeminente na Fenom
Trata-se da enologia do espírito, onde é
conceitualizada como “a igualdade-consigo-me
smo em movimento” (Hegel, s.d.,
1: 19); para um estudo exaustivo e brilhante
deste texto, cf. Lukdcs (1968).
29 “Do ponto de vista ontológico, legalidade significa simplesmen Há um estudo monográfico sobre a categoria
da mediação em Hegel: Henri
no interior de um complexo ou na relação recipro
te que, Neil (1945), mas inteiramente comprometido
ca de dois ou mais complexos, pelos preconceitos do autor.
a presenga fatual de determinadas condições implic 32. Para ver como, já nos anos 40, Lukdcs desenv
a necessariamente, ainda que olvia neste sentido a
apenas como tendéncia, determinadas conseqiiénci categoria de totalidade concreta como complexo
as™ (Lukdcs, 1979: 104). de complexos, cf. 1. Mézsáros
(1972: Cap. 6).
30. Quanto aos procedimentos desta elaboragio,
cf. o texto marxiano
citado na nota 27. No texto citado sobre a ontologia hegelia 33. Lukies (1979, 1: 90). Em seguida, Lukács acresce
na, Lukdcs dis ingue é uma categoria objetiva, ontológica, que tem
nta: “A mediação
com nitidez as categorias ontológicas daquelas purame de estar presente em qualquer
nte reflexivas.
realidade, independentemente do sujeito™
80
81
a totalidade concreta é, também, um sistema dfnâflllco e parciais cmergem, se consolidam, entram em colapso, etc.,
movente de mediações. O movimento e as lçndcncms que garantida a especificidade da legalida
de de seus niveis
tensionam e transformam a totalidade impllc@,_ para se particulares, etc. Na reconstrugio do movi
mento da totalidade
realizarem contraditoriamente, o sistema de. mediações, sem- concreta, é a categoria da mediagio que
assegura a alternativa
pre aberto. A totalidade sem mediação _é inerte: as cuntríl— da “sintese das muitas determinagdes”,
ou seja, a elevagio
dições — a negatividade que a permeia e responde pelo do abstrato ao concreto — mais €Xat
amente, assegurando
devir — não se desenvolveriam em encadean!entos e séries a apreensio da processualidade que
os fatos empiricos
determinadas e determinantes, nem apresentanamlcaraler de (abstratos) não sinalizam diretamente.
necessidade. À mediação, por seu turno, só existe nos e
entre os complexos constitutivos da totalidade — carece de É inteiramente supérfluo indicar que o
sistema categorial
efetividade fora da sua dialética imanente. em que se funda a teoria social de Marx
® nem de longe
S€ esgota nas categorias que salientei
Cabe notar que, no plano reflexivo (e já se referiu aqui — estas foram
mencionadas porque ocupam uma posi
que a mediação, à diferença da imediaticidade, é não s?mente ção privilegiada no
andamento teérico-metodoldgico. Mas é
uma categoria reflexiva, do pensamento, mas lambgm on- necessário pontuar
que este sistema categorial não se ergu
tolégica), a mediagdo expressa o algar-se do entendimento eu segundo uma
lógica reflexiva: a “inversio™ operada na
(Verstand) a razao (Vernunft)** Por outra parte, ç en} dialética hegeliana
por Marx — para além da atribuição,
decorréncia do estatuto diferencial das duas categorias, é na génese e no
desenvolvimento da realidade, do primado
extremamente importante observar que, na mlalida_de con- ontolégico ao ser
material — consiste em que a sua elaboragio
creta, nenhum objeto — ou fato — é realmente lmedmt'o expurgou
qualquer componente especulativo. Desde
(isto é: nenhum objeto se põe ao pensamento se‘m que seja o seu primeiro
produto, resultado de mediações); o que ocorre € que, para
o sujeito cognoscente, ele pode apresem.ar-se‘ assim. _A 35. Não € este o lugar para discutir em que
medida a ontologia do ser
social estd conectada a ontologia do ser natural
imediaticidade é uma função da consciência teórica e não (orginico e inorgânico). Ao
determinar o contributo de Marx como teoria
um dado ontológico. social — teoria de um ser social
determinado historicamente, aquele posto pelo
ordenamento societdrio burgués
(mas que permite a iluminagiio de sua génese
A centralidade da categoria de mediação reside em que , cum grano salis) —, não se
elude uma conexão com a ontologia da natureza,
mas se demarca esta interpretagio
— na estrutura ontológica da realidade e na sua repx:oíluçao da escolistica da dialética da natureza.
pela razão teórica — só ela permite viabilizar a Éhnamlr:a 36. Haveria que tematizar categorias como
objetivagio, lei, subsungio,
da totalidade concreta. Na estrutura da reajidade: c':'nmves em si, para si, para nés, etc., e polaridades como
esséncia. fenomeno, conteú-
do-forma, necessidade-contingéncia, qualidade-quantidade,
do sistema de mediagbes que o movimento dialético se pos idade-realidade,
possivel-proviivel, etc., além das conexdes singularidade-part
realiza: os processos ontologicos se desenvolvem, estruturas icularidade-univer.
salidade, etc. Uma útil tentativa de aproximagio à problemtica
da, af embuti
encontra-a o leitor em Henri Lefebvre (1969).
Uma aproximagio aos mesmos
temas, segundo um ponto de vista “marxista-le
ninista”, é acessivel em A
34. Cf. nota 20. Cheptu
lin (1982)

| 82 83
acerto de contas com Hegel, em Kreuznach, em 1843, o esta interpretação),** quer no posf
projeto marxiano tendia a articular o sistema categorial à áéL &I
AiBi
nk ieichs] do
livio I d'O capital (Marx, 1983, 1, º 1533010110 0 19up
base exclusiva da diniimica do ser social. O desdobramento
wmilsi
)
onabns o 190p
deste projeto — que aparecerd com seu perfil definido em p olsueds onsm
1847 e ganhard um rosto nitido a partir de 1857-1859 —, A crítica da vida cotidianaDO!
) ("TwilAnsT
a reconstrugdo tedrica do movimento constitutivo do ser sisibitos ghiv
social posto pelo capitalismo, vai desvendar este movimento E fempo de regressar ao pretexto dest
as dikqi iis’i’sr‘kgs'
que, expressando-se sob formas econdmicas, politicas e ocasionais: a andlise critico-dialética da cot
culturais, extravasa todas elas nas mediagdes que unificam :
idi ani dai s™" '
Exceto se se quiser arcar com os ônus ad
a lotalidade concreta — sistema dindmico e contraditério do socio](;gi§mq
(cgm a descrição impressionista
de relagdes articuladas que se implicam e se explicam e inorgânica de traços,
epidérmicos da cotidianidade), do
estruturalmente — e constituem o conduto do seu devir. A positivismo e suas deri-,
vações (o registro “objetivo” das
remissdo ontoldgica da teoria — e do sistema categorial características fatuais da
cotidianidade, tomadas na sua imed
— & totalidade e as mediagdes se revela na recusa radical iaticidade) ou do ten-
dencial irracionalismo fenomenológico
de qualquer fatorialismo: a andlise da organizagdo da eco- (com a instauração
de “mediações” evanescentes, incontro
nomia (a critica da economia politica) é o ponto de irradiagio láveis na sua redução
especulativa), o tratamento
para a andlise da estrutura de classes e da funcionalidade conseqiiente
a da vida cotidian
requisita o arsenal heurístico elab
do poder (a crilica do Estado) e das constelagdes juridico- orado por Marx. E seu
ponto de partida — não mais que
politicas (a critica da ideologia) — com a pesquisa das isto — não pode ser
dimensdes e niveis especificos do movimento do ser social outro que a crítica (contemporânea)
da economia política
remetendo-se de uns a outros (a andlise do movimento do do capitalismo (tardio).?º
capital remete à andlise do movimento das classes, etc.). . A problemática axial da vida cotidiana
contemporânea
Como se verifica, na obra marxiana, se se a submete a um é Pcm diversa daquela que Marx
conheceu diretamente;
exame rigoroso e livre dos preconceitos acumulados pelas reside não casualmente no conjunto
de processos e fenômenos
chamadas ciéncias sociais, a construgdo categorial, na sua conducentes a uma forma peculiar de
alienação, a reificação*
articulagdo, na sua disposição e na sua hierarquia, obedece
à racionalidade do real — e Marx explicitou-o suficiente-
38. Cr. nota 27. Para compreender em profundidade
mente, quer na “Introdugdo” de 1857 (texto basilar para da economia política na elaboração categorial
o papel da crítica
e na construção teórico-metodológica
de Marx, cf. Lukács (1979, I1)
39. Na sua diferencialidade, são imprescind
íveis aqui as análises de
Baran -Sweezy e E. Mandel
37 Cf, para uma visio abrangente da critica filosófica do Marx de 40. A andlise luminosa da reificagio
então, Lukács (1978). Para uma avaliagio polémica do “manuscrito de 1843”, .Mw çimdo na nota 28). Uma
foi mérito do Lukdcs
análise didática e valiosa é a de L
de 1923 (cf.
cf. o meu texto (Netto. 1983b) e a réplica de Benedicto A. Sampaio e Celso “A reificação” (1967). Tratei do problema no meu Goldmann,
Frederico (1986) (1981), do qual se resga
Capit alism o e reificação
tam algumas idéias aqui expostas.
84
85
7 por mais distintos que sejam os enfoques da cotidianidade
todos os poros da vida e se instila em todas as manifest
(quer o ontolégico operado por Heller a partir de Lukács, ações
anímicas e todas as instancias que outrora
quer o tendencialmente historicista de Kosik, quer o trata- o individuo podia
reservm‘?sc como dreas de autonomia (a cons
mento abstrato que lhe oferecem textos da “escola de telagdo familiar,
a organizagdo doméstica, a fruigao
Frankfurt™), todos coincidem nesta diagnose: o tipico
estética, o erotismo, a
da criagdo de imagindrios, a gratuidade do
vida cotidiana contempordnea, aquela prépria do capitalismo ócio, etc.) conver-
lem-se em limbos programáveis.
tardio, € a reificagdo das relagdes que o individuo enquanto
tal desenvolve."! A planificagiio global — aqui necessariamente
vertical
Enquanto a organizagio capitalista da vida social não e burocrdtica — cobre a vida como um
todo: da distribuigio
invade e ocupa todos os espagos da existéncia individual, (destruigio) ecoldgica ao conteúdo do
lazer, do controle da
como ocorre nos periodos de emergéncia e consolidagio do mobilidade da forga de trabalho ao
continuum instrução
capitalismo (nas etapas, sobretudo, do capitalismo comercial formal/informal, etc. A organização capit
alista (monopolista)
e do capitalismo industrial-concorrencial), ao individuo sem- da grande inddstria moderna modela. a orga
nizagdo inteira
pre resta um campo de manobra ou jogo, onde ele pode da sociedade macroscépica, impinge-lhe
os seus ritmos e
exercitar minimamente a sua autonomia e o seu poder de 0s seus ciclos, introduz com a sua lógica implacdvel o
decisão, onde lhe é acessivel um ambito de retotalizagio relé.gio de ponto e os seus padroes em todas as microor-
humana que compensa e reduz as mutilagdes e o prosaismo ganizagoes.
da divisdo social do trabalho, do automatismo que ela exige
A osmose generalizada desta lógica afeta
¢ impde, etc. Na idade avangada no monopélio, a organizagio até os “mundos
paralelos” — ela os instrumentaliza a todos, inclu
capitalista da vida social preenche todos os espagos e penetra sive aqueles
que se arrogam o projeto de um romantic
todos os intersticios da existéncia individual: a manipulagio o escapismo. E
mesmo as organizagdes que se colocam como
desborda a esfera da produção, domina a circulagio e o razão de ser
consumo e articula uma indugio comportamental que permeia e teleologia a sua ultrapassagem carregam o seu
selo indelével
a totalidade da existéncia dos agentes sociais particulares® — hierarquias, estratificações, centralismos
, fluxos dirigidos
— é o inteiro cotidiano dos individuos que se torna admi- de informação —, sem o que se
lhes volatiza qualquer
nistrado,”® um difuso terrorismo psicossocial se destila de chance de eficácia.*
Num quadro sócio-cultural como este — que a mor-
dacidade de Trotignon descreveu como
41. Há poucas andlises desenvolvidas especificamente sobre a problemitica a hospedaria uni-
da alienagio e da reificagdo nas sociedades pas-capitalistas. Um esforgo nesta
diregdo, fé-lo Heller, quando ji se distanciando da postura do velho Lukdcs,
no texto “Fetichismo o alienacion™ (1980). 44. Entre outros fenômenos, inscreve-se
aqui o da transformação dos
42. Uma bela aproximagio a esta problemitica se encontra em Carlos partidos operdrios revolucionários do século
XIX (“contra-sociedades”) nos
Nelson Coutinho, “Kafka: pressupostos historicos e reposição estética™ (1978). aparatos do século XX (“contra-Estados”). Pode-s
e lamentar nostalgicamente
que esses partidos tenham perdido o caráter
43. Sabe-se que uma das teses centrais de Marcuse (1967) é precisamente de instincias de retotalizagio
a de que, a partir de um dado nivel de desenvolvimento da sociedade capitalista, humana dos individuos — evoque-se a comov
ente descrigio de Marx, de 1844,
das reunides operdrias —, mas a tarefa
a dominagiio se escamoteia em administragio. da teoria consiste em investigar a
compatibilidade de tais organizações com o mundo burguês tardio.
86
87
versal, dormitério do género humano —, somente o recurso tincias, implementos.*s A prépria fantasia, infinito do pos-
à critica da economia politica marxiana (com o aparato sivel, se abastarda; fuga, perde o himus da historicidade.
categorial e tedrico-metodolégico por ela desenvolvido) pode A ubigiiidade do poder — inconcreto, gasoso e onipotente
abrir a via à sua inteligéncia, porque o que aqui se uni- — esconde o poder na ubigiiidade.
versalizou, na imediaticidade da vida social, são os processos,
peculiares ao modo de produgio capitalista, que se encontram O caos imediato em que se configura o cotidiano da
massa dos homens, porém, parece feito de coisas — mas
na base do mistério da forma mercadoria — que, entio, não de coisas que se relacionam à natureza, ao mundo
dominam toda a organiza¢io social. Tais processos nao
envolvem apenas os produtores diretos: penetram e confor- extra-humano. Ele é vivido e percepcionado como um
conglomerado de coisas, dados e Jatos sociais.
mam a totalidade das relagdes de produgdo social e das Esta faticidade
pela qual o ser social se revela na cotidianidade
relages que viabilizam a sua reprodugdo. Sob o salariato € o trago
pertinente do capitalismo tardio.
não se encontra mais apenas a classe operdria, mas a
esmagadora maioria dos homens; a rigida e extrema divisio Enquanto a produgdo mercantil transitava pela
manu-
social do trabalho subordina todas as atividades, “produtivas™ fatura e pela industrializagdo incipiente, o traba
lhador tinha
¢ “improdutivas™; a disciplina burocrética transcende o do- a impressio de que o seu trabalho e o produto
dele lhe
minio do trabalho (labour) para regular a vida inteira de eram estranhos porque outro (o capitalista, que ele
identi-
quase todos os homens. E mais, fenémeno peculiarfssimos ficava como uma pessoa ou um grupo de pesso
as) os
a visibilidade do poder opressivo (outrora, por exemplo, o expropriava; na sociedade burguesa madura, além desta
capitalista) se esvaneceu — ele é tanto mais realidade, a esmagadora maioria dos homens, prolet
eficiente em ários e
suas manifestagoes econdmicas, sociais, politicas e culturais não-proletários, tem a impressão de que a sua
existência
quanto menos é localizdvel; mais funciona, (mais que o seu trabalho e os frutos dele) é direcionada
menos é iden-
tificivel. A ubigiiidade deste poder, desta weberiana auto- por uma instância alheia, incógnita, impessoal —
uma
ridade “racional” e sem rosto, instala-se nos trilhos porque instância fatual, que se manifesta pelo conta-gotas do
ins-
onde escorre o cotidiano (porque, aqui, a vida parece toda titucionalizado: coisas organizadas como a família, a empre
sa,
reduzida ao cotidiano, e este parece só configurar um eterno o colégio, o banco, a universidade, a companhia,
o exército,
retorno, uma plena tautologia), surge nas agdes da bolsa, etc. (mil etc.). E, obviamente, esta outra coisa contr
a a qual
nos regulamentos, no talondrio de cheques, nas portarias, ninguém pode nada, o Estado.
nos documentos, nos certificados — instala-se na paraferndlia O que estd em jogo, no centro da cotidianidade con-
que valida a cidadania. Está em todas as partes e não reside tempordnea, € a universalizagio do mistério que
Marx
em lugar algum. Escamoteia os fluxos, as continuidades e
as rupturas: dd ao viver a seqiiéncia da lanterna magica —
normas, trabalho, lazer, etc., tudo é uma mescla inorgénica
45. Sucessdo aparentemente caótica, que viabiliza uma estratégia de
classe (burguesa) — que é impotente para impedir crises, fraturas,
cujo único enlace é a sucessio no tempo e no espago: a deteriorações
€ sincopes, mas que se tem revelado capaz de conviver com elas e, até, de
vida cotidiana se torna uma justaposigio de objetos, subs- administri-las.

88 89
localizou na forma mercadoria: a especifica objeti
vidade
imediata instaurada nas formações econdmico-socia
is onde
o modo de produgio capitalista consolidou concl
usiva e
desenvolvidamente a sua domindncia. Sem os instr
umentos
tedricos elaborados pela critica da economia politica marxi
ana
¢ impensivel o desvelamento da faticidade em quest
io e
todas as suas decorréncias na estruturagdo da vida cotidi
ana
contemporinea.
A tomada da realidade de que a cotidianidade contem- Bibliografia
poranea é um nivel constitutivo supõe a reconstrugio
reflexiva
da sua ontologia, da totalidade concreta prépria
da sociedade
burguesa madura. E a caga mais pertinaz das mediagdes
é CHEPTULIN, A. A dialética materialista. São Paulo,
um imperativo para que a dissolução da opaci Alfa-Omega, 1982.
dade imediata COUTINHO,
dos “fatos™ cotidianos não redunde numa indif Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razdo.
erenciagdo Rio de Janciro, Paz e Terra, 1972.
que substitui as passagens e conversdes efetivas
e reais que - Kafka: pressupostos histéricos e reposição estétic
mantém tenso o tecido social. a. In: Temas
de Ciéncias Humanas. Sio Paulo, Ciéncias Human
as, 1978,
Exceto se nés, assistentes sociais, quisermos nos deter, DEBORD, G. A sociedade do espetdculo. Lisboa, Afrodite,
1972.
na condição de profissionais que “programam” (ou conco GARFINKEL,
rrem H. Studies in ethnometodology. Englewoord,
Prentice
para tal) a cotidianidade, nos umbrais da faticidade que poe Hall, 1967.
a pseudoconcreticidade, a tinica alternativa para GOFFMAN, E. La mise en scéne de la vie quotidienne. Paris,
um trata- Minuit,
mento consegiiente dela é exercitar uma anilise que, 1973.
em si
mesma, plasma uma critica da vida cotidiana. Para GOLDMANN, L. Dialética e cultura. Rio de Janeiro, Paz
tanto, e Terra,
¢ irremedidvel o apelo a uma postura tedrico-metodol 1967.
égica
e a uma sistema categorial — GOMBIN, Richard. Les origines du gauchisme. Paris, Seuil,
aqueles que peculiarizam a 1972,
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definitivamente, são alheios à nossa of western sociology. Londres,
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