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dade ameaçada. Talvez por aí se sem que haja regras que definam as
tenha uma chave para compreen- condições de entrada e saída do
der a valorização da família unida, mercado. Os únicos limites são
bem como as figuras do "pobre dados por essa esfera em que natu
honesto" e do "trabalhador respon- reza e cultura se encontram na cons
sável" que povoam o universo po- tituição da família como espaço de
pular. São valores e representações sobrevivência, mas também de so-
que prescrevem as fronteiras do ciabilidade e construção de identi
que homens e mulheres percebem dades. Limites, portanto, fora, de
como uma ordem legítima de vida. um espaço propriamente civil, es
Mas que também podem ser toma- paço construído pelo "artifício hu
dos como sinais de uma experiên- mano" que são as leis e os direitos
cia de insegurança e de ameaça que regem - ou deveriam reger - a
constante de pauperização que fi- vida social, fornecendo ao mesmo
cam sem palavras para serem no- tempo os parâmetros e a medida a
meadas fora de um sentido de des- partir da qual situações de vida e
tino construído na dimensão priva- trabalho possam ser
da da vida social. problematizadas e julgadas nas suas
exigências de equidade. E esse é o
E isso já nos introduz a uma segun- ponto sobre o qual valeria se deter.
da questão. Sabe-se que as necessi-
dades da sobrevivência terminam Sabemos que a teia de desigualda-
por mobilizar todos os membros des e exclusões plasmadas no mer-
familiares para o mercado de tra- cado afeta diferenciadamente ho-
balho. Isso pode parecer uma mens e mulheres, adultos, jovens e
obviedade, tal a evidência dos fa- crianças, numa lógica em que a
tos. Mas há nisso algo mais do que privação de direitos se articula com
uma simples trivialidade. Pois na estigmas de sexo e idade (e outros,
ausência de direitos que garantam como os de cor e origem) que
poder de barganha no mercado de sedimentam diferenças em discri-
trabalho, ou seja, salários decentes minações diversas. Sabemos tam-
e garantias de emprego, na ausên- bém que são inúmeras as clivagens
cia de políticas sociais que garan- de qualificação e salário produzi-
tam a sobrevivência nas situações das por um processo de trabalho
de desemprego, mas também de que diferencia e hierarquiza a força
doença, de invalidez e de velhice, de trabalho sob critérios no mais
nessas circunstâncias todos - ho- das vezes arbitrários, mas regidos
mens e mulheres, adultos, crianças por uma razão disciplinadora. No
e velhos - são virtualmente trans- entanto, na ausência de uma medi-
formados em força de trabalho ati- da possível de equivalência entre
va no mercado. É certo que para a situações diversas, medida esta que
entrada no mercado de trabalho só poderia ser dada pelos direitos,
não há a compulsão cega e muda medida portanto que só poderia
das necessidades. Além dos limi- existir por referência aos valores
tes próprios ao ciclo vital de cada de justiça e igualdade, as desigual-
um, atuam disposições normativas, dades e discriminações se pulveri-
normas culturais e valores morais zam em diferenciações que pare-
que definem a disponibilidade de cem nada mais do que corresponder
cada um para o mercado. Seja aos azares de cada um e às diferen-
como for, o processo de ças naturais de vocação, talento,
proletarização mobiliza a família capacidade e disposição para o tra-
como coletivo,
Caderno CRH 19, Salvador, 1993
DA MATTA, Roberto.
1987 A casa e a rua: espaço,
cidadania, mulher e morte no Brasil. São
Paulo: Brasiliense.