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Caderno CRH 19, Salvador, 1993

enigmático na persistência de uma


pobreza tão imensa e sempre cres-
cente em uma sociedade que pas-
sou por décadas de industrializa-
ção, urbanização e modernização
institucional, uma sociedade que
proclamou direitos, montou um
formidável aparato de Previdência
Social, que passou pela experiên-
cia de conflitos e mobilizações
populares e construiu mecanismos
factíveis de negociação de interes-
ses. Na verdade, a pobreza con-
temporânea parece se constituir
numa espécie de ponto cego que
escapa ao já sabido e previsto por
teorias e paradigmas conhecidos
Pobreza e de explicação. Ponto cego instau-
rado no centro mesmo de um Brasil
cidadania moderno, a pobreza atual arma um
novo campo de questões ao trans-
bordar dos lugares nos quais esteve
"desde sempre" configurada: nas
Dilemas do Brasil franjas do mercado de trabalho, no
submundo do mercado informal,
contemporâneo nos confins do mundo rural, num
Nordeste de pesada herança
oligárquica, em tudo o mais, en-
Vera da Silva Telles * fim, que fornecia (e ainda fornece)
as evidências da lógica excludente
Este artigo aborda o enigma da própria das circunstâncias históri-
persistência e crescimento da po cas que presidiram a entrada do
breza no Brasil, que atinge até país no mundo capitalista. De fato,
mesmo os trabalhadores urba ao lado da persistência de uma
nos integrados nos centros dinâ pobreza de raízes seculares, a face
micos da economia do país. Ao moderna da pobreza aparece regis-
analisá-lo,destaca o trada no empobrecimento dos tra-
autoritarismo, a excludência e a balhadores urbanos integrados nos
incivilidade da sociedade brasi- centros dinâmicos da economia do
leira, mostrando como isto se re- país.
flete na vida dos trabalhadores e
de suas famílias. É certo que em tudo isso se tem os
efeitos mais evidentes de uma in-
A pobreza brasileira é imensa. Pode flação que corrói salários, de uma
parecer que ao dizer isso não se crise prolongada e de políticas eco-
está mais do que reafirmando nômicas que provocaram recessão
obviedade. No entanto, há algo de e desemprego, que induziram a um
arrocho salarial sem proporções
em outros períodos da nossa histó-
* Professora do Departamento de ria, que levaram à redução dos
Sociologia da Universidade de São Paulo. gastos sociais e provocaram a dete-
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rioração de já precários e insufici- tico, a pobreza é e sempre foi nota-


entes serviços públicos. No entan- da, registrada e documentada.
to, se isso explica muito dos dile- Poder-se-ia mesmo dizer que, tal
mas atuais, não é suficiente para como uma sombra, a pobreza acom-
explicar as dimensões da pobreza panha a história brasileira, com-
contemporânea. A chamada dívida pondo o elenco dos problemas,
social aumentou muito nesses anos, impasses e também virtualidades
mas suas origens vêm de mais lon- de um país que fez e ainda faz do
ge. E é precisamente nisso que progresso um projeto nacional. É
começa a se armar o enigma da isso propriamente que especifica o
pobreza brasileira. Nos últimos 30 enigma da pobreza brasileira. Pois
anos, e isso é consenso entre ana- espanta que essa pobreza persis-
listas, o país construiu base econô- tente, conhecida, registrada e alvo
mica e institucional para melhorar do discurso político, não tenha sido
as condições de vida da população suficiente para constituir uma opi-
brasileira, diminuir a escala das nião pública crítica capaz de mobi-
desigualdades sociais e viabilizar lizar vontades políticas na defesa
programas de erradicação da po- de padrões mínimos de vida para
breza. Se nos anos de crescimento que esse país mereça ser chamado
econômico as chances não foram de civilizado. Sobretudo espanta
aproveitadas, isso não se deveu, que o aumento visível da pobreza
portanto, à lógica cega da econo- no correr do anos nunca tenha sus-
mia, mas a um jogo político muito citado um debate público sobre a
excludente, que repõe velhos pri- justiça e a igualdade, pondo em
vilégios, cria outros tantos e exclui foco as iniquidades inscritas na
as maiorias. Se a pobreza contem- trama social.
porânea diz respeito aos impasses
do crescimento econômico num Como problema que inquieta e
país situado na periferia do mundo choca a sociedade, a pobreza é
capitalista, põe em foco sobretudo percebida como o efeito indesejado
a tradição conservadora e autoritá- de uma história sem autores e res-
ria dessa sociedade. ponsabilidades. Nesse registro,
aparece como chaga aberta a lem-
Porém, ainda assim o enigma per brar a todos o atraso que envergo-
manece. Pois, conservadora e au nha um país que se acostumou a se
toritária, a sociedade brasileira sem pensar como o "país do futuro", de
pre teve, para o bem ou para o mal, tal modo que a eliminação das de-
a questão social no seu horizonte sigualdades é projetada para a
político. É uma sociedade na qual ação esclarecida de um Estado
sempre existiu uma consciência capaz de promover crescimento e
pública de uma pobreza persisten progresso que haverão de
te - a pobreza sempre apareceu no absorver os que foram até agora
discurso oficial, mas também nas deles excluídos. Como
falas públicas de representantes espetáculo, visível por todos os
políticos e até mesmo de lideran lados, a pobreza aparece, no
ças empresariais, como sinal de entanto, no registro da patologia,
desigualdades sociais seja nas evidências da destituição
indefensáveis num país que se quer dos miseráveis, que clamam pela
à altura das nações do Primeiro ação protetora e assistencial do
Mundo. Tema do debate público e Estado, seja nas imagens da vio-
alvo privilegiado do discurso polí- lência associadas à pobreza des-
mesurada e que apelam para a in-
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tervenção estatal preventiva, mas brasileira. A exploração selvagem


sobretudo repressiva. Num regis- nas relações de trabalho é o seu
tro e no outro, a pobreza é transfor- exemplo paradigmático. Mas tam-
mada em natureza, resíduo que bém o são a prepotência e o
escapou à potência civilizadora da autoritarismo nas relações de man-
modernização e que ainda tem que do, para não falar do reiterado des-
ser capturado e transformado pelo respeito aos direitos civis das po-
progresso. Nas suas múltiplas evi- pulações trabalhadoras. Incivilida-
dências, é fixada como paisagem. de que se ancora num imaginário
Paisagem que rememora as ori- persistente que fixa a pobreza como
gens e que projeta no futuro as marca da inferioridade, modo de
possibilidades de sua redenção, a ser que descredencia indivíduos
pobreza não se atualiza como pre- para o exercício de seus direitos, já
sente, ou seja, nas imagens do atra- que percebidos numa diferença in-
so, aparece como sinal de uma comensurável, aquém das regras
ausência. E é esse o ponto: entre a da equivalência que a formalidade
imagem do atraso e o horizonte da lei supõe e o exercício dos direi-
idealizado do progresso, a pobreza tos deveriam concretizar, do que é
é encenada como algo externo a prova evidente a violência policial
um mundo propriamente social, que declara publicamente que nem
como algo que não diz respeito aos todos são iguais perante a lei e que
parâmetros que regem as relações os mais elementares direitos civis
sociais. só valem para os que detém os
atributos de respeitabilidade, per-
As figuras de uma pobreza despo- cebidos como monopólio das "clas-
jada de dimensão ética e transfor- ses superiores", reservando às "clas-
mada em natureza fornecem, tal- ses baixas" a imposição autoritária
vez, uma chave para elucidar a da ordem.
persistência de uma pobreza em
um país que, afinal de contas, dei- Seria um equívoco creditar tudo
xou para trás o estreito figurino da isso a persistência de
Republica oligárquica. Seria pos- tradicionalismo de tempos passa-
sível dizer que essa figuração pú- dos, resíduos de um Brasil arcaico.
blica da pobreza diz algo de uma Pois são esses termos que constro-
sociedade na qual as distâncias em a peculiaridade do Brasil mo-
sociais são tão grandes e brutais derno. É certo que a sociedade
que parece não ser plausível uma brasileira carrega todo o peso da
medida comum que permita que a tradição de um país com passado
questão da justiça se coloque como escravagista e que fez sua entrada
problema e critério de julgamento na modernidade capitalista no in-
nas relações sociais. Diz algo de terior de uma concepção patriarcal
uma sociedade em que vigoram as de mando e autoridade, concepção
regras culturais de uma tradição esta que traduz diferenças e desi-
hierárquica, plasmadas em um pa- gualdades no registro de hierarqui-
drão de sociabilidade que obsta a as que criam a figura do inferior
construção de um princípio de re- que tem o dever da obediência, que
ciprocidade que confira ao outro o merece o favor e proteção, mas
estatuto de sujeito de interesses jamais os direitos. No entanto, se
válidos e direitos legítimos. Essa é tradições persistem, isso não
a matriz da incivilidade que atra- independe do modo como, aqui, a
vessa de ponta a ponta a vida social cidadania foi formulada e
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institucionalizada. E é nisso que se nas noções de igualdade e projeta-


aloja todo o paradoxo da sociedade da como tarefa exclusiva do Esta-
brasileira. Paradoxo de um projeto do, corresponde uma sociedade que
de modernidade que desfez as re- não consegue se constituir plena-
gras da República oligárquica, que mente como sociedade civil, se por
desencadeou um vigoroso proces- isso entendermos não apenas uma
so de modernização econômica, sociedade que se estrutura nas re-
social e institucional, mas que re- gras que organizam interesses pri-
pôs a incivilidade nas relações so- vados, mas uma sociedade na qual
ciais. Pois, nos anos 30, a conces- as relações sociais sejam mediadas
são de direitos trabalhistas e a mon- pelo reconhecimento de direitos e
tagem de um formidável sistema representação de interesses, de tal
de proteção social tiraram a popu- modo que se torne factível a cons-
lação trabalhadora do arbítrio, até trução de espaços públicos que con-
então sem limites, do poder patro- firam legitimidade aos conflitos e
nal, para jogá-la por inteiro sob a nos quais a medida do justo e do
tutela estatal. Trata-se de um pecu- injusto venha a ser objeto do deba-
liar modelo de cidadania, te e de uma permanente negocia-
dissociado dos direitos políticos e ção.
também das regra da equivalência
jurídica, tendo sido definida estri- É certo que no transcorrer dos anos
tamente nos termos de um igual 80, avanços notáveis ocorreram
direito à proteção do Estado, atra- nesse sentido. O fortalecimento de
vés dos direitos sociais, como re- organizações sindicais e associa-
compensa ao cumprimento com o ções populares, a multiplicação de
dever do trabalho. greves e movimentos sociais, con-
formaram os termos de uma expe-
Se é possível falar de um paradoxo riência inédita na história brasilei-
da sociedade brasileira, este não ra, em que a cidadania é buscada
está propriamente no descompasso como luta e conquista e a reivindi-
entre a existência formal de direi- cação interpela a sociedade na exi-
tos e a realidade da destituição das gência de uma negociação possí-
maiorias, mas no que esse vel, aberta ao reconhecimento dos
descompasso revela da lógica que interesses e das razões que dão
preside a atribuição de direitos. O plausibilidade às aspirações por um
paradoxo está nesse modelo de ci- trabalho mais digno, por uma vida
dadania que proclama a justiça mais decente e por uma sociedade
como dever do Estado, mas desfaz mais civilizada nas suas formas de
os efeitos igualitários dos direitos e sociabilidade. No entanto, é preci-
repõe na esfera social desigualda- so que se diga que os avanços são
des, hierarquias e exclusões. É nes- frágeis e as conquistas são difíceis
sa trama de que são feitos os direi- numa sociedade regida por uma
tos que também se explicita o pon- gramática social muito excludente,
to cego de nossa ainda recente de- em que o eventual atendimento de
mocracia. Pois essa é uma experi- reivindicações está longe de con-
ência de cidadania que não cons- solidar direitos como referência
truiu um vínculo propriamente ci- normativa nas relações sociais, em
vil entre indivíduos, grupos e clas- que, por isso mesmo, práticas de
ses. Sob o risco do exagero, se representação e negociação se ge-
poderia dizer que a essa concepção neralizam com dificuldade para
de justiça desvinculada das moder- além dos grupos mais organizados.
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E disso, as tendências em curso no São esses os termos pelos quais


mercado de trabalho são provam ais vem sendo aplicada a chamada
do que evidente. No início dos anos flexibilização do trabalho, modo
80, o fortalecimento dos sindicatos de escapar da pressão sindical, de
e das organizações operárias, num se liberar dos custos trabalhistas e
contexto de democratização da ampliar ainda mais a autonomia
sociedade brasileira, tornaram nas práticas de demissão (Cf.
inviável a manutenção de um pa- Troyanno, 1991.
drão despótico de organização do
trabalho, de tal modo que as em- E isso já nos introduz ao núcleo
presas se viram constrangidas a se mesmo da questão. Pois essa soci-
abrirem às gráfica de negociação. edade civil por assim dizer
Mas isso não foi suficiente para inacabada, se projeta por inteiro na
atingir trabalhadores fora da área pauperização que define o hori-
de atuação dos sindicatos mais ati- zonte mais do que provável de
vos, trabalhadores que experimen- parcelas majoritárias aos trabalha-
tam periférica ou intermitentemen- dores integrados no mercado de
te a mobilização operária e que trabalho. Com exceção talvez de
vivem circunstâncias de trabalho e um segmento mais qualificado,
de vida subtraídas do poder de in- mais valorizado e mais preservado
terpelação da reivindicação sindi- em seus empregos, uma ampla
cal. E tampouco foi suficiente para maioria dos trabalhadores tem uma
democratizar o espaço fabril. O trajetória regida pela insegurança,
autoritarismo permanece, o arbí- pela instabilidade e mesmo preca-
trio patronal e mais do que fre- riedade nos vínculos que chegam a
quente e as práticas de negociação estabelecer com o trabalho1. São
não chegaram a redefinir um pa- trabalhadores que transitam o tem-
drão de gestão da força de trabalho, po todo entre empresas diferentes,
regido pelo controle disciplinar, que permanecem muito pouco tem-
pela contenção dos salários em es- po nos empregos que conseguem,
calas sempre muito baixas e pela que têm, por isso mesmo, poucas
prática rotineira da rotatividade chances de se fixar em profissões
(Carvalho, Schimith, 1990; Gui- ou ocupações definidas e que estão
marães, Castro, 1990). Com o sempre, real ou virtualmente,
aprofundamento da crise econômi- tangenciando o mercado informal
ca, há exemplos conhecidos de através do trabalho irregular e pre-
empresas que retrocederam na aber- cário como alternativa de sobrevi-
tura às negociações e há indicações vência nas circunstâncias de de-
de que para se ajustar às circuns- semprego prolongado. O que cha-
tancias adversas da economia, o ma a atenção nisso tudo é a vigên-
desemprego ainda é, como sempre cia de um padrão de funcionamen-
foi, a estratégia que predomina, to do mercado de trabalho que não
mas com a peculiaridade de que
vem se associando, cada vez mais,
ao uso crescente de mão de obra
fora dos padrões convencionais de 1. As questões apresentadas a seguir, bem
contrato, seja pelo emprego sem como a base empírica que as sustenta, foram
vínculo legal de trabalho, seja pela apresentadas e desenvolvidas in: TELLES,
prática da subcontratação, seja ain- Vera da Silva. A cidadania inexistente: inci-
da pelo uso do trabalho temporário vilidade e pobreza. São Paulo: Tese (Douto-
em atividades ligadas à produção. rado) Universidade de São Paulo, 1992.
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preserva, expulsa e, no limite, sentes no mercado de trabalho, suas


dilapida o potencial produtivo da identidades não se completam in-
força de trabalho. É isso certamen- teiramente, já que privados dessa
te a contrapartida de um capitalis- espécie de acabamento simbólico
mo que construiu um padrão histó- implicado no exercício de direitos
rico de acumulação sustentado e na prática da representação sindi-
numa força de trabalho barata, cal, acabamento simbólico que
abundante e facilmente constrói parâmetros de semelhan-
substituível. Mas isso é sobretudo ça, identificação e reconhecimen-
revelador de uma trama social que to. Sem essa mediação representa-
se abre com dificuldades para a tiva - representativa no duplo sen-
mediação representativa de inte- tido - em um mercado que desfaz,
resses. E isso é importante de se o tempo todo, a trama por onde
notar. É aqui que se especifica a identidades se completam ou po-
pobreza como algo que diz respei- deriam se completar nas formas de
to não apenas à legião dos miserá- seu reconhecimento, esses traba-
veis, esses que já ultrapassaram o lhadores, se já não estão efetiva-
que se convencionou definir como mente, estão sempre no limiar des-
linha da pobreza. A pobreza não é sa fronteira além da qual ganham
simplesmente fruto de circunstân- forma as figuras de uma pobreza
cias que afetam determinados indi- incivil. Figuras estas que acionam
víduos (ou famílias) desprovidos um imaginário coletivo que asso-
de recursos que o qualifiquem para cia desordem, violência e crime a
o mercado de trabalho. O essa gente percebida sem lugar na
pauperismo está inscrito nas regras sociedade.
que organizam a vida social. É isso
que permite dizer que a pobreza Nisso se explicita o sentido mais
não e apenas uma condição de ca- perverso de uma tradição de cida-
rência, passível de ser medida por dania fundada no trabalho regular
indicadores sociais. É antes de mais e regulamentado por lei, como con-
nada uma condição de privação de dição de acesso aos direitos soci-
direitos, que define formas de exis- ais. A posse de uma carteira de
tência e modos de sociabilidade. trabalho, mais do que uma evidên-
cia trabalhista, opera como uma
Parece claro que salários baixos, espécie de rito de passagem para a
instabilidade, desemprego e existência civil. Rito de passagem
subemprego são circunstâncias que revela o que Bourdieu define
geradoras de pauperização. Porém como poder simbólico de nomea-
esta não significa apenas degrada- ção, que cria identidades sociais,
ção de condições materiais de vida. que faz indivíduos, grupos ou clas-
Pois esses trabalhadores que pas- ses existirem socialmente, que lhes
sam de um emprego a outro, que atribui um modo de ser em socie-
têm trajetórias descontínuas, mar- dade, mas que no mesmo ato, joga
cadas pelo desemprego e pelas al- para uma existência bastarda,
ternativas de trabalho fora das re- indiferenciada, todos os que não
gras formais de contrato, no limite, foram ungidos pelo poder do nome.
perdem o estatuto mesmo de traba- Na tradição brasileira, a regra for-
lhador, em função desse perma- mal que prescreve o acesso aos
nente curto-circuito que o mercado direitos sociais desdobra-se em algo
produz no vínculo que chegam a como uma lei moral que julga a
estabelecer com o trabalho. Pre- pertinência do indivíduo na vida
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em sociedade, o seu direito a exis- define o cidadão pela ordem de


tir socialmente e a ser reconhecido suas obrigações e que contêm na
como cidadão: para ter direitos e própria enunciação dos direitos, o
acesso a uma existência legítima, o princípio da criminalização.
indivíduo tem que provar ser um
trabalhador responsável, com uma A perda do estatuto de trabalhador
trajetória ocupacional identificável significa a perda do estatuto de
em seus registros, persistente na cidadania. Aqui, se faz notar a ou-
vida laboriosa e cumpridor de seus tra ponta em que uma experiência
deveres. De que isso seja de cidadania que não é conjugada
consubstanciai a essa espécie de com direitos civis, mostra seus efei-
"ritual de instituição", criador de tos. É curioso perceber como os
identidades sociais legítimas e re- avanços das lutas sociais no país
conhecidas, é prova a suspeita que não corresponderam a movimen-
recai sobre todos os que não apre- tos pela defesa dos direitos civis. Já
sentam os credenciais de reconhe- se notou que no imaginário coleti-
cimento e que têm, por isso mes- vo, os direitos sociais são especial-
mo, uma existência social mente valorizados, sem que o mes-
indiferenciada na sua ilegitimida- mo ocorra com os direitos indivi-
de, sempre sujeitos à repressão duais. Estes, quando não são sim-
policial. De que isso forneça os plesmente desconhecidos, são per-
critérios e categorias através dos cebidos numa lógica muito peculi-
quais as diferenças sociais são per- ar, no registro do privilégio dos que
cebidas e julgadas na vida social é detêm posições de poder na socie-
prova a aceitação tácita na socie- dade. Daí essa expressão - "a justi-
dade brasileira da carteira de traba- ça é coisa de rico" - tão corriqueira
lho como sinal de uma respeitabi- no universo popular. Mas daí tam-
lidade e honestidade que redime o bém o espantoso deslizamento que
trabalhador do estigma da pobreza. sofre o discurso dos direitos huma-
De que isso, ainda, componha os nos quando este ganha a cena pú-
horizontes simbólicos do mundo blica, entrando em um terreno mi-
social, é prova essa curiosa expres- nado em que experiência, tradi-
são popular do "procurar os direi- ções e o imaginário se encontram
tos". No universo cultural popular, para decodificar os direitos civis
os direitos são percebidos como nos termos de uma defesa do crime
prerrogativa exclusiva daqueles e dos criminosos, na percepção de
que, por oposição aos que "não são que esses direitos nada mais ser-
direitos", se sabem bons cidadãos vem do que para acobertar a impu-
porque trabalham honestamente, nidade e defender aqueles que não
cumprem suas obrigações, têm fi- merecem mais do que a repressão
cha limpa na polícia e carteira de aberta e a punição exemplar (Cf.
trabalhado assinada (Cf. Caldeira, Caldeira, 1991). Certamente, isso
1984). tem a ver com uma experiência
histórica que se fez ao revés da
Singular percepção dos direitos essa tradição liberal da equivalência
que não traduz uma consciência jurídica formal e que construiu a
cidadã, mas que é formulada nos figura do indivíduo, base da mo-
termos do dever e da prescrição derna concepção de direitos. A ri-
moral, no que se explicita uma gor, este não tem lugar na socieda-
experiência histórica de cidadania de brasileira, já que sua identidade
que foi escrita em negativo, que é atribuída pelo vínculo profissio-
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nal sacramentado pela lei e que o perdendo o vínculo formal com o


qualifica para o exercício dos di- trabalho, perde seu lugar na socie-
reitos. Porém, talvez o mais impor- dade: não é trabalhador, não é cida-
tante, é que isso traduz a matriz dão e não tem existência civil. Se-
histórica de uma sociedade que ria possível argumentar que, ape-
não foi submetida à revolução igua- sar de representarem uma parcela
litária de que falava Tocqueville e considerável - e crescente, nesses
na qual as leis, ao contrário dos anos de recessão - da população
modelos clássicos conhecidos, não trabalhadora, estão longe de cons-
foram feitas para dissolver, mas tituírem uma maioria, ao menos
para preservar privilégios dos "do- numa cidade como São Paulo, ca-
nos do poder" (Cf. Da Matta, 1987; racterizada por um mercado de tra-
Chauí, 1987). Essa matriz históri- balho estruturado e onde o vínculo
ca, sempre reatualizada na história formal de trabalho predomina (ain-
brasileira e isso ainda hoje, se tra- da predomina) de modo inequívo-
duz numa experiência da legalida- co. Porém, se a referência a esses
de que se faz como experiência do trabalhadores interessa, é porque,
arbítrio, nos usos autoritários da lei no seu paroxismo, põem em foco a
que, ao invés de igualar e garantir dinâmica de uma sociedade que,
direitos, é utilizada freqüentemente no limite, joga as maiorias numa
como instrumento de sujeição, re- espécie de estado de natureza. Ao
pondo hierarquias onde deveriam contrário, portanto, da imagem -
prevalecer os valores modernos da imagem recorrente na tradição bra-
igualdade e da justiça. sileira - de uma oposição entre
Brasil legal e Brasil real, não se
Numa sociedade que instituiu a trata de leis que não funcionam e
experiência insólita do arbítrio le- que são como que revogadas soci-
gal (Cf. Chauí, 1987), é obstruída a ologicamente por uma realidade
construção da lei como referência que não se ajusta à racionalidade
- referência real, referência simbó- abstrata das regras formais. Pois
lica - de uma igualdade prometida exclusões e hierarquias são repos-
para todos, alimentando a crença tas no modo mesmo como a legali-
na capacidade da legalidade de di- dade se institui na sociedade brasi-
rimir conflitos, impor limites ao leira. Em outros termos, é na pró-
arbítrio do poder e garantir as reci- pria experiência do mundo público
procidades que a noção de igualda- da lei, que o trabalhador é destitu-
de supõe. Sem isso, é difícil ído dos credenciais de reconheci-
imagi-nar o surgimento de uma mento, é transfigurado nas ima-
cultura cívica e de movimentos gens do pobre inferior - e, para
pela defesa de direitos civis. muitos, do pobre incivil.
Poder-se-ia dizer que nessa
equação entre cidadania e civismo Se é possível falar de um estado de
que não se realiza, se aloja boa natureza, não é porque aqui vigo-
parte das dificuldades de ram a violência e a desordem, sen-
enraizamento da democracia do estas, nunca é demais enfatizar,
brasileira nas práticas sociais, nas imagens que se desenham num
dificuldades que isso introduz para horizonte simbólico que atualiza a
a generalização de uma consciên- persistente tradição de
cia de direitos. criminalização da pobreza e, por
essa via, produz as evidências que
Mas é aqui também que se esclare- alimentam a certeza de que o "po-
ce o drama desse trabalhador que,
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bre" não está credenciado para a instável e pelo desemprego perió-


vida civilizada. Esse estado de na- dico.
tureza diz respeito a um mundo
social no qual os direitos não exis- No ponto em que os imperativos da
tem como regra de sociabilidade; sobrevivência se encontram com
um mundo no qual a Justiça não as regras culturais que organizam
existe como instância conhecida e modos de vida, se estrutura um
reconhecida na sua capacidade de universo moral que faz da família
dirimir conflitos e garantir direitos algo como uma garantia ética num
nas circunstâncias de quebra das mundo em que tudo parece amea-
regras da equidade; um mundo so- çar as possibilidades de uma vida
cial no qual a lei não existe como digna. A valorização da "família
referência a partir da qual os sofri- unida", tão presente no universo
mentos cotidianos possam ser tra- popular, pode ser tomado como
duzidos (e desprivatizados) na lin- indicação nesse sentido. O material
guagem pública da igualdade e da etnográfico hoje disponível mostra
justiça. Um mundo no qual a sobre- que a casa limpa e bem cuidada,
vivência cotidiana depende intei- atributos associados a uma família
ramente dos recursos materiais, das organizada em suas hierarquias
energias morais e das solidarieda- internas, constroem as referências
des que cada qual é capaz de mobi- tangíveis a partir dos quais homens
lizar e que se organiza em torno de e mulheres se reconhecem como
princípios inteiramente projetados sujeitos morais, capazes de fazer
da vida privada, com suas lealda- frente às adversidades da vida e,
des e fidelidades pessoais, com "apesar da pobreza", garantir uma
seus vínculos afetivos e sua teia dignidade e respeitabilidade, que
multifacetada de identificações e os diferenciam moralmente dos que
sociabilidade. foram pegos pela "maldição da
pobreza", que sucumbiram diante
É aqui que se determina toda a dos azares do destino, que vivem à
importância que a família, ainda deriva dos acasos da vida, sem
hoje no Brasil moderno, ocupa nas conseguir estruturar suas vidas em
formas de vida das classes traba- torno do trabalho regular e da famí-
lhadoras. Numa sociedade que não lia organizada (Cf. Caldeira, 1984;
abre lugar para o indivíduo e o Zaluar, 1985). É nesse jogo ambi-
cidadão, uma sociedade na qual a valente de identificações e diferen-
insegurança, a violência e a incivi- ciações que são construídas as fi-
lidade são a regra da vida social, é guras do "pobre porém honesto" e
em torno da família que homens e do "trabalhador responsável" por-
mulheres constroem uma ordem que cumpridor de seus deveres e
plausível de vida: é espaço que a compromissos familiares. Mais do
viabiliza a sobrevivência cotidiana que a incorporação evidente dos
através do esforço coletivo de to- estigmas da pobreza, chama aten-
dos os seus membros; é espaço no ção nisso tudo a construção de uma
qual constroem os sinais de uma ordem de vida inteiramente proje-
respeitabilidade que neutraliza o tada das reciprocidades morais da
estigma da pobreza; é espaço ainda vida privada. É nisso que se faz ver
no qual elaboram um sentido de os sinais de uma privatização de
dignidade que compensa moral- experiências que não conseguem
mente as adversidades impostas ser formuladas na linguagem pú-
pelos salários baixos, pelo trabalho blica dos direitos. Aqui, a privação
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de direitos transparece por inteiro que carregam o peso de toda uma


num horizonte simbólico de causa- tradição histórica. Seja como for, é
lidades e responsabilidades que na dinâmica mesmo da sociedade,
transfere para a ordem moral pri- dinâmica feita na interseção entre
vada as condições de possibilidade a lei e a cultura, a norma e as
de uma vida "bem sucedida". tradições, a experiência e o imagi-
nário, que se circunscreve a pobre-
A importância da família como za como condição de existência.
ordem de vida coloca algumas Para retomar as questões aqui dis-
questões para serem discutidas. cutidas, nesse ponto em que direi-
Mostra que direitos, lei e cidadania tos (ou melhor, a inexistência de-
dizem respeito a algo mais do que les) afetam formas de vida, a ques-
os problemas da engenharia tão da família pode esclarecer algo
institucional da qual depende uma do drama da pobreza, para além
forma de governo. Inscrevem-se das referências genéricas aos salá-
por inteiro nos modos de existên- rios baixos, ao desemprego e ao
cia, nas formas de vida e nas regras trabalho instável.
da sociabilidade, no modo como
identidades são construídas e per- Em primeiro lugar, no que se refere
cebidos os lugares simbólicos de às condições materiais de vida, a
pertinência na vida social. É por importância da família põe em foco
esse ângulo que se faz notar os o frágil equilíbrio em que estão
efeitos dessa peculiar experiência estruturadas as condições da vida
de cidadania que não generaliza familiar. Qualquer "acaso", seja o
direitos, que não chega a plasmar desemprego ou a deterioração das
as regras da civilidade e os termos condições de salário e trabalho,
de identidades cidadãs. É preciso seja a doença, a invalidez ou a
que se diga, também, que é por esse morte dos provedores principais,
ângulo que se pode identificar o pode jogar as famílias nas frontei-
ineditismo das lutas sociais recen- ras da miséria. Em outras palavras,
tes, ineditismo pelo que rompem se a sobrevivência cotidiana de-
ou prometem romper com o peso pende de um esforço coletivo, as
dessa tradição enraizada na dinâ- condições vigentes no mercado (e
mica mesmo da sociedade, mon- na sociedade) terminam por desfa-
tando referências identificatórias e zer - real ou virtualmente - a eficá-
construindo uma teia representati- cia possível das estratégias famili-
va por onde circulam reivindica- ares. É isso que permite dizer que
ções e por onde homens e mulheres a insegurança é elemento definidor
podem virtualmente se reconhe- de formas de vida. É isso sobretudo
cer, para usar os termos de Hannah que permite dizer que as histórias
Arendt, no seu direito a ter direitos. familiares transcorrem nessa
É por esse ângulo, enfim, que a liminaridade, em que a ameaça da
sociedade brasileira contemporâ- miséria não significa apenas de-
nea se abre à percepção de todas as gradação de condições de vida,
suas ambivalências, numa promes- mas se projeta no horizonte dessa
sa de modernidade capaz de rede- pobreza incivil que fornece a or-
finir direitos, lei e justiça como dem das razões para toda a suspeita
parâmetro nas relações sociais e que recai sobre suas vidas, de tal
que convive, numa combinação por forma que a batalha pela sobrevi-
vezes desconcertante, com privilé- vência e também esforço, sempre
gios, exclusões e discriminações reiterado, para garantir uma digni-
Caderno CRH 19, Salvador, 1993

dade ameaçada. Talvez por aí se sem que haja regras que definam as
tenha uma chave para compreen- condições de entrada e saída do
der a valorização da família unida, mercado. Os únicos limites são
bem como as figuras do "pobre dados por essa esfera em que natu
honesto" e do "trabalhador respon- reza e cultura se encontram na cons
sável" que povoam o universo po- tituição da família como espaço de
pular. São valores e representações sobrevivência, mas também de so-
que prescrevem as fronteiras do ciabilidade e construção de identi
que homens e mulheres percebem dades. Limites, portanto, fora, de
como uma ordem legítima de vida. um espaço propriamente civil, es
Mas que também podem ser toma- paço construído pelo "artifício hu
dos como sinais de uma experiên- mano" que são as leis e os direitos
cia de insegurança e de ameaça que regem - ou deveriam reger - a
constante de pauperização que fi- vida social, fornecendo ao mesmo
cam sem palavras para serem no- tempo os parâmetros e a medida a
meadas fora de um sentido de des- partir da qual situações de vida e
tino construído na dimensão priva- trabalho possam ser
da da vida social. problematizadas e julgadas nas suas
exigências de equidade. E esse é o
E isso já nos introduz a uma segun- ponto sobre o qual valeria se deter.
da questão. Sabe-se que as necessi-
dades da sobrevivência terminam Sabemos que a teia de desigualda-
por mobilizar todos os membros des e exclusões plasmadas no mer-
familiares para o mercado de tra- cado afeta diferenciadamente ho-
balho. Isso pode parecer uma mens e mulheres, adultos, jovens e
obviedade, tal a evidência dos fa- crianças, numa lógica em que a
tos. Mas há nisso algo mais do que privação de direitos se articula com
uma simples trivialidade. Pois na estigmas de sexo e idade (e outros,
ausência de direitos que garantam como os de cor e origem) que
poder de barganha no mercado de sedimentam diferenças em discri-
trabalho, ou seja, salários decentes minações diversas. Sabemos tam-
e garantias de emprego, na ausên- bém que são inúmeras as clivagens
cia de políticas sociais que garan- de qualificação e salário produzi-
tam a sobrevivência nas situações das por um processo de trabalho
de desemprego, mas também de que diferencia e hierarquiza a força
doença, de invalidez e de velhice, de trabalho sob critérios no mais
nessas circunstâncias todos - ho- das vezes arbitrários, mas regidos
mens e mulheres, adultos, crianças por uma razão disciplinadora. No
e velhos - são virtualmente trans- entanto, na ausência de uma medi-
formados em força de trabalho ati- da possível de equivalência entre
va no mercado. É certo que para a situações diversas, medida esta que
entrada no mercado de trabalho só poderia ser dada pelos direitos,
não há a compulsão cega e muda medida portanto que só poderia
das necessidades. Além dos limi- existir por referência aos valores
tes próprios ao ciclo vital de cada de justiça e igualdade, as desigual-
um, atuam disposições normativas, dades e discriminações se pulveri-
normas culturais e valores morais zam em diferenciações que pare-
que definem a disponibilidade de cem nada mais do que corresponder
cada um para o mercado. Seja aos azares de cada um e às diferen-
como for, o processo de ças naturais de vocação, talento,
proletarização mobiliza a família capacidade e disposição para o tra-
como coletivo,
Caderno CRH 19, Salvador, 1993

balho. Nesse caso, o chamado mer- trabalho que não é valorizado, na


cado informal é elucidativo: esse é remuneração que não corresponde
um mundo que parece flutuar ao à dignidade de um chefe de famí-
acaso de circunstâncias sem lia, nas autoridades que tratam o
explicitar suas relações com as es- trabalhador honesto como margi-
truturas de poder e dominação na nal, no desrespeito e descaso que
sociedade, um mundo onde não recebem em troca do "dever cum-
existe contrato formal de trabalho, prido", na polícia que confunde o
direitos sociais e representação pro- trabalhador com o bandido, na lei
fissional, um mundo, portanto, sem que penaliza os fracos e protege os
medida por onde necessidades e poderosos, na justiça que não fun-
interesses possam se universalizar ciona, que condena os desgraçados
como demandas e reivindicações da sorte e deixa impunes os crimi-
coletivas. nosos.
Porém, nem por isso a experiência Impossível, aqui, deixar de comen-
que esses homens e mulheres fa- tar que, se existe alguma relação
zem da sociedade se fecha à per- entre pobreza e criminalidade, esta
cepção de uma injustiça inscrita relação está configurada em uma
em suas vidas. Num certo sentido, sociedade que rompe, o tempo todo,
a importância da família e dos có- com o que se poderia chamar, tal-
digos morais que estruturam suas vez com alguma imprecisão, de
vidas, podem ser tomados como um pacto social implícito que cons-
sinal de uma privatização que pa- trói um sentido de pertinência e dá
rece fixá-los no mundo das dife- uma medida de plausibilidade à
renças e hierarquias naturais. No vida em sociedade. Essa é uma
entanto, esse é um mundo que não questão que se coloca abertamente
se fecha inteiramente como natu- para os mais jovens, que se lançam
reza. Diante do destino comum do no mercado de trabalho sem en-
"ser pobre", há a percepção de um contrar muitas alternativas além
espaço de autonomia no qual atra- do trabalho desqualificado, instá-
vés da ação, deliberação e vel e precário, que são duramente
discernimento podem se afirmar e atingidos pelo desemprego, que são
se reconhecer como sujeitos que, vistos com suspeita, sendo alvo
pelas suas qualidades e virtudes privilegiado da violência policial,
morais, são capazes de contornar precisamente porque não carregam
as adversidades da vida. Se a ótica os sinais de respeitabilidade asso-
moral predomina, isso não seria ciados ao "trabalhador honesto" e
possível sem uma noção de indiví- "chefe de família responsável". As
duo capaz de deliberação e esco- pesquisas mostram, de fato, que é
lha. É nesse modo de se perceber nessa difícil passagem para a mai-
nas virtualidades de um sujeito oridade que a delinqüência se colo-
moral que a experiência da pobre- ca no horizonte desses jovens que
za se abre a percepção de uma não enxergam muitas possibilida-
injustiça instalada no mundo. Mas des de organizar suas vidas em
é uma injustiça percebida do ponto torno de um trabalho promissor e
de vista da moralidade pessoal. para os quais, ainda, a família está
Aparece como ruptura das recipro- distante de se constituir nessa espé-
cidades morais que se espera numa cie de recompensa moral aos "tem-
vida em sociedade, ruptura vivida pos difíceis" (Cf. Zaluar, 1985).
no esforço não recompensado, no No interior da família, a
Caderno CRH 19, Salvador, 1993

ambivalência inscrita na trajetória governo justiceiro traduzem uma


desses jovens transparece, por in- noção de justiça que se elabora no
teiro, no temor que homens e mu- interior de um universo moral e se
lheres manifestam quanto ao de- articula com as esperanças de re-
semprego e subemprego de seus denção alimentadas na crença em
filhos, situações percebidas como uma Providência, instrumento do
fonte de ameaça de desestruturação Bem e da Justiça no mundo dos
de um projeto de vida que se orga- homens. É nessa articulação que se
niza quase que exclusivamente nes- ergue a expectativa de que surja
sa frágil - e difícil - relação entre o uma vontade generosa, capaz de
trabalho regular e a família organi- resolver o paradoxo ético da virtu-
zada. de não recompensada e da vitória
da injustiça, restaurando os equilí-
Seja como for, se a experiência que brios morais desfeitos pela malda-
fazem da sociedade existe como de, avareza e ganância dos homens
insegurança, quando não de vio- (Cf. Montes, 1983). Como parece
lência, aqui, nesse registro, da rup- claro, a tradição tutelar brasileira
tura das reciprocidades esperadas encontra ressonância nesse univer-
na vida social, aparece como de- so cultural, de tal modo que não
sordem. Desordem que desestrutura deveria causar estranheza o
estratégias de vida através das quais surgimento periódico na nossa his-
buscam conferir dignidade às suas tória, incluindo os anos mais re-
vidas. Desordem, também e sobre- centes, de figuras públicas trans-
tudo, que rompe com os equilíbrios formadas em "heróis salvadores",
morais projetados da vida privada da mesma forma que não deveria
e por onde imaginam uma ordem causar espanto o apelo popular que,
social justa que retribua a cada um ainda hoje, no Brasil moderno, tem
conforme o seu valor e o seu esfor- o discurso populista.
ço. O problema aqui não é a exis-
tência de uma noção de justiça Arcaísmos da sociedade brasilei-
pensada nos termos das reciproci- ra? Talvez. Porém, seria mais pro-
dades morais, mesmo porque esse dutivo pensar que o problema não
é o substrato de toda reivindicação está num suposto atraso e
por igualdade e justiça. O proble- tradicionalismo das classes popu-
ma está na dificuldade de investir a lares, que esse arcaísmo, se é que
esperança de justiça na esfera mun- faz sentido colocar nesses termos,
dana das leis e traduzi-las na lin- está alojado no interior de uma
guagem pública dos direitos, como modernidade incompleta, travada,
exigência coletiva que cobra da que não se realiza plenamente, no
sociedade suas responsabilidades sentido da constituição de uma so-
nas circunstâncias que afetam suas ciedade na qual homens e mulhe-
vidas. Não é de estranhar, portanto, res pudessem descobrir o sentido
que no imaginário popular as ex- do espaço público como espaço no
pectativas de justiça sejam qual a igualdade e a justiça se
transferidas para a idéia de um realizam na prática democrática da
governo forte e onisciente, capaz permanente e reiterada negocia-
de ouvir as necessidades dos mais ção.
fracos e restaurar os equilíbrios
desfeitos pela ganância dos ricos e
abuso dos poderosos. As pesquisas
mostram que as imagens de um
Caderno CRH 19, Salvador, 1993

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