Você está na página 1de 8

A Pandemia do Covid-19, autoritarismo conservador, moradia e

as cidades no Brasil

Pedro da Luz Moreira – Professor Associado da Escola de


Arquitetura e Urbanismo da UFF
A epidemia do Covid-19
radicaliza uma presença
constante da era moderna
e contemporânea, o
impulso de conhecer e
problematizar a sociedade
em que vivemos, na sua
operação, principalmente
no que se refere a sua
capacidade de distribuir
felicidade e bem estar
entre todos. É claro
também, que a aspiração
a sua transformação em
algo diverso do existente
Figura 1 A pandemia de Covid-19 escancarou nas cidades decorre de uma
contemporâneas, em todo o mundo, a necessidade de bens diversidade de visões e
sociais não comerciáveis, como a moradia para todos narrativas, que disputam o
metabolismo social, todas
almejando ser compartilhada pela maior parcela. Há uma clássica divisão entre os
conhecimentos ou as narrativas, que disputam a opinião social. De um lado, uma
parcela dita progressista, que luta contra a manutenção de sua forma operativa;
alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade e do bem estar. E, de
outro lado, uma parcela conservadora, que reafirma que a forma de funcionar da
sociedade contemporânea competitiva é adequada, e que, não deve ser questionada,
pois sua própria reprodução permitirá alcançar a felicidade e o bem estar. Há um pós
epidemia colocado no futuro, que várias correntes disputam qual será sua
configuração, numa disputa de narrativas que se sobrepõe, repetindo como será
nosso "novo normal". Como ele se reestruturaria? Havendo, claramente um paradoxo,
nessa expressão "novo normal", uma vez que, se verdadeiramente "novo" deveria não
ser "normal". Será, já um direcionamento em favor do conservadorismo? No Brasil, o
discurso conservador ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o
processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos; as
tradições estruturais do autoritarismo brasileiro, a longa recusa do enfrentamento em
nossa história desse mesmo autoritarismo, o capital rentista que apura valores
exorbitantes sem produzir nada e a curta conjuntura de emergência de grupos
milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política pós
constituinte de 1988. Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa
sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas.

"O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas.
Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas
relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de
whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos
pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo. O mesmo
ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos
homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não
por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode
levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão
de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano...O
“brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena
a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes,
tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que
condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas
percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de
oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas
acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo
benefício.” LAGO 2020

Figura 2: Charge
coletada no site
Jornalistas Livres, na
matéria; Moro versus
Bolsonaro no site
Jornalistas Livres

A narrativa de que havíamos superado o autoritarismo, a partir da eleição de uma


sequência de opositores históricos à Ditadura Civil-Militar de 1964 como; Fernando
Henrique Cardoso, Lula e Dilma era muitas vezes formulada pelo conservadorismo,
como uma radicalização, que chegava ao ápice numa "guerrilheira", (Dilma) que havia
pegado em armas contra o regime de exceção. Na verdade, hoje percebemos como
essa narrativa bloqueava a elucidação dos crimes de tortura da ditadura, que não
foram ainda integralmente enfrentados. Ao contrário, do que aconteceu com nossos
vizinhos, - Argentina e Chile - que qualificaram como crimes, responsabilizando de
forma clara suas forças armadas e setores sociais específicos, que operaram um
terrorismo de Estado. Mesmo, Dilma nossa presidenta que pegou em armas do lado
da resistência à ditadura, e que constituiu a Comissão da Verdade tergiversou nesse
enfrentamento usando sempre o argumento da responsabilidade do gerenciamento do
Estado. As forças ocultas e subterrâneas, que são usadas de diferentes maneiras,
pelos conservadores parecem nunca vir a público, mantendo o Estado brasileiro refém
de uma lógica autoritária sempre presente, e que agora mostra sua cara de forma
mais explícita. Na verdade, é preciso qualificar de forma correta esses governos de;
FHC, Lula e Dilma, que não ultrapassaram o reformismo conservador, e que operaram
uma governança inercial, pouco inovadora e comportada. Mas não se trata aqui de
descartar essas forças políticas, estratégia recorrente desse mesmo autoritarismo, que
volta e meia reinventa o anti-político, como novidade anti-establishment, de Collor a
Bolsonaro. Buscando uma novidade, aparentemente fora do cenário político brasileiro,
que se mostra ser a estratégia repetida pelos conservadores, que arrebatou uma
massa eleitoral cansada do reformismo do PSDB e do PT. A eleição de 2018
assinalou uma convergência inusitada; o partido da Grande Mídia, o partido da Justiça
ou o Lava-Jatismo, e o Bolsonarismo se articularam atraindo empresários variados,
banqueiros, rentistas, agro negócio, grilheiros, policiais, milícias, num arco grande
impaciente com a democracia e com as conquistas sociais da Constituição de 1988. A
fórmula se repete desde de Janio Quadros, com nomes diferentes, disputando sempre
um falso ineditismo anti-establisment. Sempre, vendidos como imunes a política,
particularmente o Lava-Jatismo associado à Grande Imprensa se revestiu de um
caráter técnico-jurídico, isento e desgarrado da política, apesar das proteções
interessadas que havia concedido a alguns políticos;

"Primeiro, o Lava-Jatismo. A Operação Lava-Jato se construiu como força


determinante do jogo político não apenas por sua função judicial-investigativa, mas por
seu apelo midiático, como nos mostram as pesquisas do cientista político André
Singer. A grande imprensa narrou a Lava-Jato para a população a colocando como se
estivesse imune à podridão política, capaz de cumprir um papel saneador a atacar o
maior dos problemas brasileiros, a corrupção. Transformou ações policiais em
espetáculos televisivos, impôs o consenso da isenção e despolitização dos órgãos do
Judiciário, traduziu à sua maneira o vocabulário jurídico (especializado) para o grande
público consumidor de notícias. Quem não se lembra das operações da Lava-Jato às
6h, 7h da manhã transmitidas ao vivo como grande furo e notícia do dia?" PINHA
2020, artigo no Jornalistas Livres

Por outro lado, o Bolsonarismo envolve uma certa nostalgia da Ditadura Militar, seus
rompantes autoritários e uma revolta contra a liberalização geral das diversidades
comportamentais, que toda sociedade moderna apresenta e permite. O combate ao
que se convencionou chamar de ideologia de gênero, um ressentimento geral quanto
a uma suposta perda de valores morais presos a família patriarcal, branca e
conservadora é claramente alardeado numa semelhança assustadora com o nacional-
socialismo da década de 30 na Alemanha. Já fiz aqui no blog, uma analogia entre as
origens autoritárias do Estado alemão e o brasileiro no texto; Esclarecimento e
Barbárie, Democracia e Bolsonarismo, que aliás era a tese da via prussiana de
Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré e Luiz Werneck Vianna, o texto está
disponível em
link; https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2020/04/esclarecimento-e-barbarie-
democracia-
e.html?spref=fb&fbclid=IwAR2EE8qbLzefZDLSnS6JiIODbWyqw3X_EeINOFihWjJ-
RYQKYUmS9iJjg4g. Mas o Bolsonarismo articula grupos, que não saíram das trevas
tais como; torturadores, elaboradores de atentados como os que o então capitão do
exército, Jair Bolsonaro, elaborou para obtenção de aumento de salário em 1987,
policiais dos mais diversos matizes, que se consideram desprestigiados a partir dos
ganhos de direitos da Constituição de 88, promovendo uma celebração do
autoritarismo como panacéia para resolução dos problemas do país. É preciso
também reconhecer que, o Bolsonarismo e esse movimento conservador não mais se
apoia na Grande Mídia, como a Lava Jato, se utilizando de forma intensa das mídias
sociais, criando factóides falsos ou verdadeiros, que pela eficiente reprodução tornam-
se debates de destaque, apesar de seu conteúdo primário vazio, tais como; o kit-gay,
anti-Ptismo, anti-MST, atentado a faca em Juiz de Fora, mamadeira de piroca, nova
política, etc... A eficiência na manipulação das mídias sociais traz para o campo da
informação um debate fundamental, aonde o discurso conservador se utiliza de uma
estratégia de combate constante, que já havia conseguido sucesso no Brexit e na
eleição de Trump nos EUA. Essa última característica deu ao Bolsonarismo sua
aparência anti-sistêmica, apesar de seu vínculo histórico com o baixo clero do
legislativo nacional, nos medíocres 28 anos da sua atuação parlamentar. Portanto, a
atual crise política parece apontar, que Moro e o Lava-Jatismo se mantém apoiado
pela grande imprensa e pelo judiciário, enquanto Bolsonaro ainda mantém os grupos
que operam a violência do Estado, se aproxima do chamado Centrão no Poder
Legislativo, o agro negócio mais atrasado, desmatadores e as milícias digitais. Os
dois, Moro e Bolsonaro, parecem não mais caminhar juntos.

"A princípio, contra Bolsonaro, Moro dispõe dos mesmos instrumentos de que
dispunha contra Dilma e Lula: grande mídia e judiciário. Por um lado, não possui mais
o cargo de juiz e a narrativa em torno da Operação Lava-Jato. Por outro, mantém
prestígio popular acumulado da Lava-Jato, a despeito do escândalo (materialmente
comprovado) da Vaza-Jato pelo site The Intercept Brasil. Judiciário, sobretudo STF,
parece disposto a segui-lo. Nesta direção estão as decisões dos ministros Alexandre
Moraes, impedimento da posse de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia
Federal, e Celso de Mello, pelo andamento do processo de investigação das
denúncias feitas por Moro.
Bolsonaro não formou base parlamentar no ano passado e parece disposto a fazer
este movimento agora, mas não sabemos se isto será suficiente para deter um
processo de impedimento. Terá ao seu lado, militância e milícia digital, que vão narrar
essa experiência em contraponto à grande mídia. O “combate à corrupção” perde
força, não só pela queda de Moro, mas pela aproximação com os parlamentares do
“centrão”. Os dois ressentimentos antidemocráticos, no entanto, se mantém intactos. A
tendência é que o discurso bolsonarista avance ainda mais nas pautas de ordem
moral..." PINHA2020 em artigo do Jornalistas Livres

Mas não esqueçamos dos dois partidos reformistas, PSDB e PT, que sofreram
derrotas marcantes nas eleições de 2018, mas que se mantém como forças políticas
potencialmente aglutinadoras de votos, o primeiro mais enfraquecido que o segundo,
mas ambas ainda atuantes e constituídas. E, que dominaram o cenário da Nova
República, a partir do Impeachment de Collor, tendo tido sua parcela de contribuição
na deterioração do sistema criado pela Constituição de 1988. O chamado
Presidencialismo de coalizão configurou uma importância para o Poder Legislativo,
que se manteve operando com uma maioria invisível, que usa de expedientes pouco
republicanos sempre barganhando a operação dos governos reformistas
conservadores dos dois partidos. No entanto, a proximidade programática nunca
reuniu as duas forças políticas, que em todas as eleições do período pós Collor se
colocaram disputando o segundo turno do pleito à presidência, exceto em 2018. Tal
condição, criou rusgas e atritos incontornáveis sempre aproveitada pela maioria
invisível do Centrão, muitas vezes materializadas pelo DEM ou pelo PMDB, que
comandaram verbas e recursos de maneira pouco republicana, e sempre
conservadora. Mas, essa forma de atuação conjuntural também deteriorou a confiança
geral da sociedade no sistema da Constituição Cidadã de 1988, fazendo com que as
reformas impactassem muito pouco na vida cotidiana da grande massa da população
brasileira, que permanece com índices de desigualdade explosivos, apesar de tímidos
avanços.

"Para a compreensão do bolsonarismo eu tenho introduzido a necessidade de refletir


sobre duas outras dimensões, sem desprezar essa tradição estrutural (autoritária).
Uma delas é o que eu chamo da grande conjuntura, que vai desde o processo da
transição para a democracia até o ano de 2018, quando houve as eleições que
consagraram Bolsonaro. É uma grande conjuntura de 30 anos, no contexto da qual
você teve muitas decisões políticas que foram contribuindo gradativamente para, de
um lado, a manutenção dessas tradições autoritárias e, de outro lado, uma certa
desilusão do sistema que foi sendo construído com base na Constituição de 1988.
Esse sistema já teve muito prestígio, já teve muita adesão, mas progressivamente a
confiança nele foi sendo corroída e isso, ao meu ver, deveu-se ao fato de que o nosso
processo de redemocratização, a chamada Nova República, gerou dois partidos com
vocações reformistas, o PT e o PSDB. Esses dois partidos nasceram anunciando
projetos reformistas e, ao longo do tempo em que governaram, apesar de terem
realizados algumas coisas bem positivas, eles não conseguiram empreender as
reformas que anunciavam e que a população esperava. Reformas que pudessem
realmente transformar esse país, que apresenta índices de desigualdade dos mais
extremados no mundo. A reforma política é um exemplo." REIS 2020, entrevista ao
Marco Zero

No campo da ordenação espacial, um certo incômodo, com o estágio de


desenvolvimento da ordenação societária, principalmente no que se refere a
distribuição das riquezas, em ítens como; o acesso a bens, benefícios e confortos,
concretamente materializados em; moradia, saneamento, mobilidade, saúde, lazer,
ensino, cultura se generaliza. No Brasil e no mundo, a pandemia escancarou as
condições diferenciadas das cidades, deixando claro níveis de acesso à qualidade da
habitação, à urbanidade, aos bens simbólicos e à saúde. Há muito tempo, que as
transformações sociais, sejam deliberadas, inconscientes, evolutivas ou
revolucionárias, do tempo moderno, para se tornarem efetivas dependem de
mudanças de elementos culturais e comportamentais. Assim, aquilo que se
convencionou chamar de crítica social foi acrescido da crítica da cultura, que na
verdade radicaliza a mudança, uma vez que envolve muito mais esferas, muito além
do economicismo. Em nossas cidades, as práticas diárias enraizadas em costumes
naturalizados e culturais sempre construíram e continuam materializando condições
diferenciadas de acesso, tais como; condomínios de alto luxo exclusivos, super infra
estruturados, contrapostos a contínuos periféricos auto-construídos, sem qualquer
comodidade. É sempre importante lembrar que, a porcentagem da população
brasileira que acessa o mercado imobiliário constituído e formal não passa de 30%,
mostrando-nos que 70% de nossas cidades empreende a auto-construção de sua
própria casa, aluga no mercado informal, vive de favor ou na rua. E, aqui fica claro que
as condições de habitabilidade da cidade brasileira não melhoraram expressivamente
nos tempos dos governos reformistas, mesmo com Lula e Dilma, que ampliaram o
acesso a casa própria de forma expressiva como o MCMV, não houveram grandes
mudanças. A questão do acesso às centralidades, que são as áreas mais
infraestruturadas de nossas cidades, e por isso, mais valorizadas, permaneceu
intocada nesses governos. É sintomático, que mesmo os governos Ptistas tenham
administrado o Ministério das Cidades como moeda de barganha com os grupos das
maiorias silenciosas parlamentares, que junto com prefeitos conservadores se
recusaram a usar os instrumentos legais do Estatuto das Cidades, que promoviam o
papel social da propriedade privada. E, aqui é fundamental assinalar que o
desenvolvimento econômico verdadeiro não é obtido apenas pelo incremento do PIB,
ou de índices econômicos abstratos, mas da sensação de conforto e bem viver
propiciado pela vida nas cidades.

"Mas a pandemia pôs a nu nossas fragilidades urbanas. Mostrou as enormes


desigualdades no acesso às infraestruturas, aos bens e aos serviços públicos. É que o
Brasil, vendo o desenvolvimento apenas como crescimento econômico, sem projeto de
país, deixou de lado suas cidades. Delegou-se ao PIB suprir as deficiências quando
ele viesse a ser maravilhoso. Nosso maior patrimônio material está relegado há
décadas, sem nunca ter sido cuidado. Mas é nele que vivem quase todos os
brasileiros e se produz a maior parte da riqueza do país. Assim, nossas grandes
cidades estão mal. São Paulo e Rio, por serem megacidades, têm um enorme
potencial de interesse mundial, hoje bastante sufocado. Perde-se parte expressiva de
seu valor porque regiões inteiras não oferecem condições para que os pequenos
negócios e as famílias progridam. E não oferecem porque lhes faltam infraestrutura,
serviços públicos, segurança, lhes falta Constituição.
E a energia empreendedora dessas famílias, fundamental para a mobilidade social e
progresso da cidade, fica represada. Uma energia poderosa represada injustamente. É
na cidade inteira cuidada, com os serviços públicos universalizados, sob domínio do
Estado, e não da bandidagem, que está o lugar do desenvolvimento." MAGALHÃES O
Globo 09-05-2020

Agora, com a vitória do conservadorismo de Bolsonaro, muitos falam em rever o artigo


180 da nossa constituição (1), que justamente firma o princípio do direito da
propriedade privada, desde que cumpra seu papel social. Sem que ele tenha sido
usado de forma mais ampla e disseminada nas cidades brasileiras. Um princípio, que
governa mesmo cidades capitalistas avançadas, que sempre viram o capital imobiliário
com desconfiança, uma vez que produtor de valor, não apenas a partir da produção,
mas pelo estoque de terra armazenada. Interessante assinalar, que em tempos
pretéritos no século XIX, economistas liberais como Henry George (1839-1897) (1)
tenham defendido a tese da improdutividade do capital imobiliário, apontando seu
caráter inevitavelmente especulativo e desvencilhado da produção efetiva de riquezas.
No Brasil, há anos o também economista Paul Singer comandante no governo Lula do
programa economia solidária, defendia a mesma tese apontando a injustiça da
acumulação pela simples reserva imobiliária. Um mecanismo, comprovado de
concentração de renda, uma vez que muito da valorização é obtida por investimentos
públicos, como as infraestruturas urbanas (transporte, arruamento, iluminação,
segurança, etc...), que depois são apropriadas pelos donos da terra ou dos imóveis da
área. Nesse sentido, a luta pela aprovação do Estatuto da Cidade é por si só um
exemplo notável da presença do pensamento conservador no Brasil, afinal nossa
Constituição foi aprovada em 1988, e essa lei que regulamentou-a foi materializada
apenas em 2001. Deixando claro o poder da articulação conservadora no país, que
demonstra suas resistências em 13 anos a uma regulação que pretende apenas
capturar o lucro imobiliário da produção da cidade capitalista. Aliás, cabe aqui a
menção a política urbana da Colômbia, implantada e tão celebrada em Bogotá e
Medellin, a partir dos anos 2000, aonde uma lei muito semelhante ao Estatuto da
Cidade brasileiro foi aprovada em 1997, a Lei 388 regulando a apropriação do lucro
imobiliário para a produção de habitação social e outros benefícios espaciais. Foi essa
lei, que reverteu a imensa violência dos cartéis de droga instalada nas favelas de
Medellin e Bogotá, com suas massivas intervenções nas áreas de habitação social,
transportes (metrô e teleférico) e equipamentos culturais (bibliotecas parques)
capturadas dos lucros imobiliários. A experiência colombiana nos mostra, como a
ordenação espacial das nossas grandes cidades possuem um enorme potencial, para
materializar uma sociedade com melhor distribuição de renda, muito além dos indices
meramente econômicos como o PIB. Mas na verdade é forçoso reconhecer que no
cenário atual, a exceção à regra talvez seja mesmo a Colômbia, pois o mundo neo
liberal de forma geral parece se entregar a lógica do capital imobiliário,
desregulamentando os mecanismo de apropriação do lucro, mesmo em locais aonde
ele já foi corriqueiro.

"Agosto de 2013. Quando entrei no salão oitocentista situado numa antiga fábrica
convertida em centro cultural e de eventos em Manchester, por dois segundos lembrei-
me dos textos de Friedrich Engels, e pensei foi aqui o começo dessa saga... Pela
paredes, cartazes marcados por pincel atômico definiam estratégias e cronogramas de
mobilização para os próximos meses: era um dos encontros regionais da campanha
contra a chamada bedroom tax (taxa de quarto), uma das medidas de austeridade
fiscal recém implantadas pelo governo que, mais uma vez, atingiam os moradores de
conjuntos habitacionais públicos britânicos... As cenas que acabamos de descrever -
em regiões tão distintas como a Europa, os Estados Unidos, a América Latina, o
Oriente Médio e a Ásia - são a expressão e o resultado, a partir da primeira década do
século XXI, de um longo processo de desconstrução da habitação como bem social e
de sua transformação em mercadoria e ativo financeiro." ROLNIK 2015 página25

Essas condições de exclusão de parcelas significativas da população está presente


em todo o mundo, a partir do final e começo dos anos 80 e 90, mas assume
caracteres dramáticos num país como o Brasil, no qual a divisão de renda é péssima.
A doutrina do neo liberalismo, que se propaga pelo mundo a partir da Inglaterra e
EUA, com os governos de Thatcher e Reagan desmonta as taxações progressivas
sobre fortunas e grandes posses, destruindo o atendimento social mesmo nas
economias centrais. Essa doutrina vem sendo contestada por diferentes pensadores, e
parece ser agora mais fortemente questionada pelo recém acontecimento da
pandemia de Covid-19. A partir da qual parece ficar claro, que a demanda dos
serviços públicos de saúde, de promoção habitacional, da oferta do saneamento, da
implantação de mobilidade precisam ser universalizadas. Pois a pandemia deixa claro
que a financeirização e a privatização de alguns benefícios, outrora considerados bens
sociais no tempo do Welfare State, não podem ser entregues a empreendedores, pois
a lógica competitiva desses nos lança numa selvageria, que bloqueia seu combate
efetivo. A epidemia parece comprovar de forma biológica e natural a dificuldade moral
e ética do cercamento e da comercialização da vida humana, impondo a absoluta
necessidade da solidariedade. A narrativa neo liberal, quase que inquestionável antes
da pandemia, que impedia a ampliação de impostos e taxas parece ter sido
desmascarada, em nome de que os bens sociais necessários ao seu enfrentamento
só poderão ser alcançados pelo Estado.

"É isso que eu não vejo. Não vejo isso com Trump. Eu realmente não vejo isso com
Macron. É claro que ambos os presidentes são, supostamente, muito diferentes, como
todos sabemos, mas ao mesmo tempo, há um importante ponto em comum. É que
eles começaram seu mandato, promovendo um grande corte de impostos para os
ricos, para resumir. Na França, houve uma revogação do imposto sobre a riqueza. Nos
EUA, houve um grande corte de impostos para contribuintes de renda muito alta e
para grandes corporações. Trump também queria se livrar do imposto imobiliário. Ele
não conseguiu aprovar, mas esse era seu plano. Os dois presidentes fizeram esses
enormes cortes de impostos para os ricos... Essa é uma lição muito geral da história,
que o nível de desigualdade social nas sociedades depende principalmente da
mobilização política e da mudança ideológica, em vez de determinantes econômicos
ou tecnológicos puros." PIKETI 2020, publicado por Democracy Now e traduzido para
a Revista Carta Maior

Diante desse cenário, não podemos tergiversar e compreender que a narrativa


explicadora dos impasses do desenvolvimento do mundo contemporâneo estão em
disputa, de um lado conservadores que pregam a manutenção do status quo
competitivo, de outro progressistas que apontam a emergência da solidariedade. A
grave crise política que o Brasil enfrenta não será resolvida sem considerar os atores e
agentes listados acima, a luta pela permanência democrática e a resistência ao
endurecimento do regime precisa se fazer a partir de uma lógica de ampliação da
inclusão social no Brasil. O plano e o projeto da cidade brasileira precisam mudar seu
rumo inercial de exclusão e segregação, sinalizando um esforço claro e objetivo na
inclusão de todos pela saúde, habitação, mobilidade, segurança, cultura, educação e
lazer. Todos esses ítens materializados na espacialidade concreta de nossas cidades,
que simplesmente precisa passar a compreender que a vida humana não pode ser
mais comercializada.
NOTAS:

(1) O Senador Flavio Bolsonaro é autor de projeto de revisão da Constituição de 1988,


no seu artigo 180, que justamente firma o papel social do direito à propriedade
privada.
(2) Henry George (1839-1897) economista liberal americano que defendia o Single
Tax (taxação simples) sobre todo o solo privado, para que mais recursos fossem
invertidos na produção verdadeiramente capitalista, que poderia remediar a
recorrência de crises e a desigualdade gerada pelo sistema. Foi autor do
livro Progress and Poverty de 1879, no qual defendia a ideia de que cada um é dono
do que cria, mas que a terra e a natureza pertencem a toda a humanidade.

BIBLIOGRAFIA:

FERNANDES, Florestan - Apontamentos sobre a "Teoria do Autoritarismo" -


Editora Expressão Popular São Paulo 2019

LAGO, Ivann - O Jair que há em nós - artigo publicado em carta maior coletado em
maio de 2020 em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-
Jair-que-ha-em-nos/52/47388

MAGALHÃES, Sérgio - O Corona e a cidade 21 - artigo publicado no jornal o Globo


em 09-05-2020, coletado em 19-05-2020 https://www.uia2021rio.archi/noticia

PINHA, Daniel - Moro versus Bolsonaro: peças da crise democrática - Em


Jornalistas Livres, professor de história da UERJ no
site https://jornalistaslivres.org/moro-versus-bolsonaro-pecas-da-crise-democratica/

PIKETI, Thomas - Entrevista a Democracy Now, traduzida em Carta Naior - disponível


no link: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Thomas-Piketty-a-
pandemia-expos-a-violencia-da-desigualdade-social-/6/47383, coletado me 05/05/2020

REIS, Aarão - As milícias bolsonaristas não vão aceitar a derrota e as esquerdas


precisam se precaver - Entrevista Marco Zero, recolhido no
site; http://marcozero.org/entrevista-daniel-aarao-reis/

SODRÉ, Nelson Werneck - Introdução à Revolução Brasileira - Livraria José Olimpo


Rio de Janeiro 1958

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva, Iberismo e americanismo no Brasil -


Editora Revan Rio de Janeiro 1997

ROLNIK, Raquel - A guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na


era das finanças - Editora Boitempo São Paulo 2015

Você também pode gostar