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ATO DOS RIBEIROS

PANTOJA RAMOS

Belém - PA
2018

1
Pantoja Ramos c

Projeto Gráfico e Editoração


Amazônica Bookshelf
www.amazonicabookshelf.com

Capa
Moacir Pereira

Revisão
Carlos Augusto Pantoja Ramos
Moacir José Moraes Pereira

Editora
Ana Rosa Bentes Silva

Direitos reservados ao autor e à editora Amazônica Bookshelf.

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ATO DOS RIBEIROS
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PREFÁCIO

Eu cresci em uma grande contradição. Talvez seja fruto


desse substantivo. De criança que fui vi as florestas do Jari, tão
altas a parecer castelos imensos com seus cavaleiros, subjugadas
por soldadescos eucaliptos, plantados à força hegemônica. Nada
mais simbólico.
Ouvi de meu pai os acontecimentos madeireiros onde
nasci, Portel, no Marajó, os quais vivenciei e ainda vivencio,
característica maior do quanto somos irresponsáveis com a
natureza em nome da ganância. De uns poucos acima da Linha
da Cobiça que incrivelmente dominam a maioria das pessoas, que
assim se tornam pobres. Como pode? “O mundo é dos espertos”,
pessoas próximas a mim sempre disseram. Desculpem, mas o
conceito que criei sobre o que é Pobreza, a falta de escolhas, não
me permite admitir isso. Resistência.
Vi meu avô materno e minha mãe andarem juntos e
conversarem sobre suas histórias de mata, de situações da
floresta, do conviver com a natureza. E dura vida, partiram para
a cidade de Breves, palco das serrarias, que anos depois fecharam
suas cortinas, espetáculo cinzento que alguns ainda aplaudem
sem saber do caráter dos seus roteiristas.
E no mundo que viajei, constatei os ATOS DOS
RIBEIROS, não ribeirinhos, inhos, inhos, porém rebeldes,
esperançosos, legítimos da terra marajoara e estuarina a
questionar o motivo das maluquices das coisas. Neste ponto,
temos a mesma mania, seja pela métrica profissional, seja por
meio do caos da arte e do dia a dia.

Não são apóstolos, mas oxalá chegarão lá.

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Pantoja Ramos
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c ATO DOS RIBEIROS

AGRADECIMENTOS

À Deus, Bondoso Mistério que nos acompanha.


À Neriane Carvalho, amor meu.
Aos meus inúmeros amigos de sonhos e de cruz, cuja lista seria
de dezenas de páginas, caderno que continua aberto.
À Moacir Pereira, pela oportunidade de ter esta obra publicada.
Ao Mestre Tourinho, Mestre Fernando Jardim, Mestre Paulo
Oliveira, Mestra Maria Antônia, Mestra Arlete, Mestre José
Varella, Mestre Jorge Pinto, Mestre Pergentino, Mestra Fátima,
Mestra Irmã Rita. É preciso citar os mestres, pois você é resumo
deles.
Aos trabalhadores e trabalhadoras rurais do Marajó, do Estuário
do Rio Amazonas e do Jari.
Aos meus irmãos Ricardo, Luciana, Adriana e Eliane.
Às minhas filhas Bianca e Sabrina.
Aos meus filhos Marcus e Vicente.
Ao meu neto Heitor.
À minha família.
Ao meu Pai Waldir.
À minha Mãe Tereza.

Agradeço.

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c ATO DOS RIBEIROS

SUMÁRIO

MARAJONGADA ..................................................................... 9
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO
NUMA ÉPOCA DE INVERNO............................................... 51
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ............................ 87
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ, EM 5
ATOS...................................................................................... 123
SÃO TOMÉ ............................................................................ 139
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA... ........... 172
O URUBU DO LARANJEIRAS ............................................ 206

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MARAJONGADA

7 ATOS

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Pantoja Ramos

Inspirado na obra de José Saramago


“... Então a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um
metro, dois metros, a experimentar as forças. As cordas que
serviam de testemunhos, lançadas bordo a bordo, tal qual os
bombeiros fazem as paredes que apresentam rachas e ameaçam
desabar, rebentaram como simples cordéis, algumas mais sólidas
arrancaram pela raiz as árvores e os postes a que estavam atadas.
Houve depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande
sopro, como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a
massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques,
fábricas, matos bravios, campos cultivados, com sua gente e os
seus animais, começou-se a mover, barca que se afasta do porto
e aponta ao mar outra vez desconhecido...”.
Jangada de Pedra, Lisboa, 1980.

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c MARAJONGADA

MARAJONGADA

7 ATOS

Rio Pará, 22 de setembro de 2013.

ATO 1 – TODOS NA MESMA JANGADA

O galo tinha acabado de cantar no rio Pará. E olha que


nem é mesmo um rio. E olha que nem era mesmo um galo. Na
verdade, era uma baía que juntava as águas lá do rio Tocantins,
colhendo o vazamento do rio Amazonas pelo estreito de Breves
e recebido o volume do Atlântico com boa contribuição do rio
Guamá. Para falar o certo, era um mutum pretensiosamente a
inaugurar um novo dia. Para nós, nativos, funcionavam bem
como recurso hídrico e como pássaro despertador naquela
paragem qualquer do Marajó.
Sabá tinha ido visitar seu filho acidentado no hospital da
cidade de Melgaço, ausente a quinze dias de seu lar, no rio
Tajapuru, para tratar-se de uma queda de açaizeiro que deixara o
garoto com a bacia fraturada, cuidada pelas enfermeiras e pela
mãe Benedita. O marido ficara em casa a produzir dinheiro para
o sustento e para a compra dos remédios naquele resto de safra
de açaí, cujas chuvas de verão amazônico escorregariam o
moleque em final de tarde, último cacho do pretinho que seria
apanhado. Sabá viajou a Breves para comprar os medicamentos
contra inchaço e dor, pois a sede melgacence não dispunha
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Pantoja Ramos

naquele momento em seus postos de saúde. Foi isso mais as


despesas de combustível, comida e hospedagem, uma vez que
não contava parentes na cidade brevense.
Ananias em Soure se preparava para ir a faculdade da
região. Estava animado com aulas de seu último semestre,
principalmente porque já organizavam a festa de formatura. No
portão, deparou-se com funcionários sentados, jogando dominó,
iniciados naquele dia em sua greve por melhores salários e
condições de trabalho. Um homem esculhambava num
microfone os impropérios do governo, enquanto a maioria estava
concentrada mesmo era nas peças de osso a bater na mesa de
ferro enferrujada, o carrão de duque, o duque e o terno, o terno e
a sena, a sena e a barata. Ananias coçou a cabeça e viu atraso no
recebimento do canudo de geógrafo, mas não questionava os
grevistas, pois sabia que suas reivindicações eram legítimas
dadas a estrutura de sua escola superior e das reclamações diárias
sobre os proventos dos professores. Só pensava se haveria outra
forma de protestar que não impactasse tanto a vida dos alunos,
cada vez mais demandantes de universidades particulares.
Coçava a cabeça, enquanto a barata do dominó finalizava mais
uma rodada do jogo.
Em Curralinho, Odith se viu encurralada no vagão de sua
casa por Mambira, ainda tentou correr, mas foi segura pelo braço,
levando mais uma vez socos e pontapés do ex-marido, enfurecido
desta vez por tê-la visto passear com um representante comercial,
senhor que tinha ido a trabalho e ao sentar-se na praça, puxara
conversa com aquela mulher bonita, mas triste, despertando sua
curiosidade. E assim como veio, foi-se deixando-a na percepção
que existem bons homens. Voltou para o seu casebre, onde a
insanidade se esgueirava nas sombras de espreita. Depois de
agredida, foi à delegacia, mas a chacota do delegado a
desestimulou, ficando presa no seu lar que não era lar a remoer a
sua infelicidade. Concluiu finalmente que aquilo não era vida e
saiu resoluta de que era hora de mudar. Na feira da cidade,
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MARAJONGADA

comprou e colocou no rosto uns óculos escuros a vinte contos de


indignação.
Em Breves, o vereador Salazar chegou de viagem da
capital e percebeu de cara sua morada arrombada, levados os seus
pertences, da televisão ao botijão de gás. Até o botijão que hoje
em dia não se rouba tanto, mas que ainda é para os ladrões
importante símbolo da cultura de ser gatuno. Sabia que tinha sido
o Toque, o Demo e o Mariana, meninos que viu crescer e que
agora estão a definhar nos pós que são trazidos de Manaus a
Belém, com parada obrigatória na maior cidade do Marajó.
No interior de Bagre, professor Antônio Campos se
compadeceu das crianças naquele acordar tão cedo de quatro
horas de manhã para subir no barquinho que as levaria a escola.
Pensou nas lascas de giz que teria de aproveitar, nas pontes que
balançariam ao pisar dos meninos e do sol queimante das três da
tarde que as meninas enfrentariam naquele lado da sala de aula.
Em cima de todos, telhas de amianto.
Prefeito Josias recebeu com revolta o seu pedido negado
de abertura de agência bancária em seu município. Não
aguentava mais ter que buscar dinheiro em Breves ou Macapá,
expondo todos seus funcionários a um alto risco de assalto, tal o
que acontecera com Evaristo e sua família, que vinham satisfeitos
de Abaetetuba após vender suas latas de açaí, sendo mortos por
piratas na região do Ponta Negra.
Deputado Miranda Torres caiu da ponte em Santa Cruz
do Arari, acenando como se fosse o salvador, em evento de
políticos na sede do município, cumprindo a assembleia
legislativa itinerante, com pouca eficácia de resultados.
Menina Sueli, de Chaves, em um dessas noites ventiladas
de poesia sonhou que sua cidade viajaria para a Europa,
interessada ficou desde que o pai dissera da existência para
aquelas bandas do sem fim lá na frente a grande Paris, delineadas
em sua cabeça pela revistinha amarelada de moda que guardava

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Pantoja Ramos

há meses. Na rede em que dormia, pescou-lhe o sono imaginando


lá no breu distante as luzes impressas na gravura que namorava.
E sua vontade foi tamanha em sonho, tão convicta, que
estremeceu a terra em Bagre, Melgaço, Portel e Gurupá, a área
continental, estalando debaixo de todos nós a aspiração por dias
melhores. Um pensamento misteriosamente coincidente de
grande parte da população marajoara por um destino mais digno,
empurrando toneladas de terra de seu depósito, largando praias,
milhares de miritizeiros e jupatis, muitos aningais e aturiás com
seus bichos espantados à deriva do vazio que se formava. Uma
preguiça com sua pata lenta dava sinais de adeus à saída daquela
imensa jangada. Mãe Caruana saiu de sua casinha de palha lá em
Salvaterra, olhando em direção a Chaves, para o rumo de Afuá,
para o rumo de São Sebastião da Boa Vista, para dentro de
Anajás, alegrou-se e arrepiou-se: a maior das barcas tinha se
soltado.

ATO 2 – SOLTAR AS AMARRAS

Os apuizeiros que sufocavam a muiratinga de Melgaço


se viram arrancadas, os cipós cebolão e titica já não repousavam
na velha andirobeira de Gurupá, a sucupira de Bagre se sentia
livre das epífitas que a estrangulavam. Sabá vinha de Breves na
sua rabeta quando viu seu casco sendo arrastando não se sabe por
quem ou o que, como se fosse um peixe fisgado por pescador lá
de longe, do centro da ilha cuja linha pesava por baixo d´água,
erguendo seu barquinho, distanciando-se Melgaço, como uma
maquete a diminuir por mágica. Gritou pela mulher e pelo filho,
erguendo a sacola de remédios anestésicos e anti-inflamatórios
para seu pequeno, porém em vão, uma vez que seus queridos do
outro lado apenas viam a confusão de terra se mexer, sem

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MARAJONGADA

saberem que esposo/pai estava sendo arrastado para a Grande


Ilha Marajoara.
O mutum voou para o galho da sumaumeira mais alta, de
modo a ter segurança e não sendo cantor natural das manhãs,
cantou para espanto da natureza; e não sendo ave de arribação,
alçou voo inesperado para a copa vistosa, onde periquitos, bem-
te-vis e tesouras permaneciam receosos do ocorrido a pisar pra lá
e pra cá, sem o gritar dos papagaios a procurar frutos, pois todos
estavam tensos.
Vereador Salazar na correria dos tremores viu seus
pertences roubados deixados pelos bandidos algumas quadras de
sua residência, enxotados que foram pelo sair do Marajó de seu
estacionado. O botijão e o rádio chiavam, um a trazer perigo,
outro a informar perigo, que todos deveriam ficar em seus lares
a esperar providências das autoridades federais, pois nada, nada
poderiam fazer diante daquele fenômeno não explicado pela
ciência. E sentou-se vereador Salazar como cidadão comum que
não admitia ser, no momento pessoa comum como os pobres, os
religiosos, os políticos, os não políticos de seu município.
Percebeu que sua brabeza de nada resolveria, pois, a tribuna não
caberia ao fato que estava em curso.
No passear que avaliava o compasso e descompasso de
suas relações, Odith jogava pedra na água e a dita fez uma curva
normal de uma jogada quando o movimento se inicia. Verificou
que a ilha em frente a Curralinho ficara para trás, sem o sortilégio
de ser arrastada como fora a Ilha das Araras. Sim, porque
algumas ilhas se encontravam mexidas como se estivessem a
reboque, engatadas por baixo do rio Pará nos fios misteriosos que
eram encobertos pela água barrenta. Esta situação pegou de
surpresa inclusive prof. Antônio Campos que teve também a sua
ilhota antes localizada entre Bagre e Portel idem em rota de fuga
para o mar, junto a grande Ilha Marajoara, apelidada por Sueli, a
sonâmbula de Chaves, de Marajongada, a Jangada Marajó.

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Pantoja Ramos

A menina em transe vibrava com o vento batendo em seu


rosto adolescente mais forte que o de costume, desafiando como
se fosse cavalo das partes de Cachoeira do Arari: “eia,
Marajongada! Eia!”. A magnitude deste abalo trouxe junto Afuá
inteiro, só que aberto mais ainda o canal do Vieira, segurando por
esticados arames submersos os pedaços de terra alagável,
fazendo a maresia mudar de curso a todo instante, de um lado e
de outro as batidas fortes. A Ilha Grande de Gurupá estava a
acompanhar, como um enorme rabeta, de proa mais larga que a
popa, saltando camarões e carataís para todo lado, vermelhando
o céu, sob o olhar atônito dos moradores da região conhecida
como Itatupã.
Josias, lá de sua prefeitura, viu o alvoroço das nuvens e
concluiu que algo fantástico ocorrera. Chamou pelo boca-de-
ferro das ruas a população e recomendou calma, pois já caótica
estava a vida sem as condições de cidadania. Algazarra,
desespero e saques só serviriam para colocá-los no patamar não
mais humano, mas dos instintos animais e da destruição. Ligou
para o continente, contudo os sinais como de costume não vieram
lhe dar resposta e agora sim estavam oficialmente ilhados.
Miranda Torres quase foi acertado pelas tábuas da ponte
que rachara com os tremores de terra, enquanto ainda se limpava
na lama que caíra. De pregos mal colocados, de madeira mal
escolhida, madeira branca comprada na última hora só para
receber os próceres de Belém. Xingou os céus pelo
acontecimento e tentou subir na voadeira que o levaria de Santa
Cruz para Cachoeira do Arari e da lá para a capital, mas as águas
estavam com forte corrente e via espantado o lago Arari subir em
pequenos maremotos que o deixaram quieto novamente no porto
ele e seu piloto mudo como o próprio silêncio.
Ananias, em Soure, viu a terra ajeitar-se na horizontal.
Não era somente um avanço, mas um ajuste da Marajongada para
a viagem. O que antes era perto de Belém, se viu longe. Sentiu-
se neste instante tal qual morador de Chaves no isolamento
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MARAJONGADA

costumeiro, e graças a tudo que já detinham em estrutura,


montaram campo de batalha para a partida, percebendo-se que
estaria agora mais ao sul, na cabeça de Ananias sua região o leme.
Afuá, na região do Charapucu e cidade, juntando cidade de
Chaves a proa, espalhados ao lado direito as ilhas de Afuá e ao
esquerdo, a Ilha de Gurupá. Como barco do estuário, proa larga
e forte, popa mais fina.

ATO 3 – A MAIOR DAS MARESIAS ATÉ ENTÃO


ENFRENTADAS PELO MARAJÓ

Espécies de gaivotas de alto mar passaram pelas cabeças


de Curica e Antoniel, habitantes respectivamente da Ilha do Pará
e Ilha das Cinzas. De um remexer de repente que se transformou
em um turbilhão, Dona Cortês viu pular da água uma baleia, para
qualquer curioso da natureza o saltar de um dos seres mais
bonitos do planeta, não na opinião da senhora, o bicho mais
medonho que já tinha visto em sua vida, “é o leviantã! ”, gritou
com a bíblia no peito, logo ela que tinha medo de pirarara e não
gostava de arriscar mergulho sequer nos igarapés de sua morada
da Ilha da Roberta, em Breves. O céu girava o que indicava que
a grande canoa também, como casco em que um rema para um
lado, outro rema para outro. Assumia uma viagem sem rumo.
Odith em seus óculos escuros agora os utilizava como proteção
do sol, não mais por vergonha de ter sido violentada nas janelas
de sua alma, vendo as terras sumirem para longe de seu algoz,
foragido após a agressão, “vai infeliz, suma pra lá e encontres
uma doida que te reaja! ”, mostrando o braço em punho e o
vestido lilás naquele bar do seu Jair, à beira de Curralinho,
enquanto as águas mudavam de cor. Junto com centenas de
murumurus espinhosos, seu ex também fora.

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Pantoja Ramos

Marajongada a esta altura estaria perdida se não fosse


Sueli assumir o controle. Mesmo sonâmbula, segurou a roda de
uma máquina de costura como se fosse um timão, colocada na
varanda de sua casa de madeira, amplamente a ter o mar. Virou
sem saber para o lado direito a embarcação de terra em direção a
uma tempestade que se aproximava.
Do outro lado, em Soure, Ananias viu a terra a balançar,
as águas a agitarem-se e as palmeiras dançarem. Devoto dos
mistérios, em contradição com seu academicismo, foi perguntar
à Mãe Caruana como dominar a situação. “Fale com a menina
que tá lá na outra ponta, em Chaves”, disse a anciã. Mas como
avisar pessoalmente sobre a necessidade de virar para a esquerda
a Marajongada a fim de escapar do tempo feio? Mãe Caruana
pegou seu facão e bateu com ele no velho mututizeiro que
sombreava as plantas de seu terreiro. As raízes tabulares eram
perfeitas na acústica e soou longe seu bater naquela espécie de
tambor, ouvido pelo prefeito Josias lá no centro, despertando-o
de sua concentração em busca de soluções para sua gente, não
entendendo o significado do barulho. Precisava de um intérprete.
Miranda Torres desesperado correu de voadeira ao lado
da Marajongada, no desejo de chegar a Breves, local de maiores
condições de estadia e socorro. Por erro de cálculo do piloto
silencioso, acabara a gasolina no trajeto quase terminado e viu-
se obrigado a estacionar no mesmo porto em que se encontrava
Odith, a dona de óculos escuros e vestido lilás. Metido, pediu
informação sobre qual cidade se encontrava. “Curralinho”, disse
Odith, naquele rosto gélido para o visitante onde só se via o
movimento da boca. O político subiu no trapiche de madeira e
olhou para a cidadela com expressão de quem vira a ralé em
pessoa. Já tinha ido ao município em outra ocasião no objetivo
de discutir a pobreza do local, numa euforia de promessas de
obras que não passara disso: promessas. Ainda assim, a visita lhe
valeu votos que deviam ter sido importantes na contagem de sua
reeleição como legislativo do Grão Pará. Começou a puxar
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MARAJONGADA

conversa com Odith sobre a situação geral, que monossilábica


devolvia que sim ou que não, ou que talvez, ou que não sei,
impassível em sua expressão.
Prof. Antônio Campos movido por sua curiosidade
puxou-se pelos fios que ligavam a ilhota de Bagre/Portel à
Marajongada e pisou no barco maior de terra e barro. Escutou o
soar do mututizeiro vindo das bandas do sul e decifrou o código
de virar para a esquerda que se pedia, pois andava com os seus
alunos nas caçadas e acabou por decorar o trejeito de batidas para
comandos dentro da floresta. Como se repetiu várias vezes o
pedido, resolveu repetir a toada, procurando o mututi mais
próximo, por meio da mata de buçuzais e assim o achou. Gritou
para o dono de uma casinha que ficava por ali, seu Ezequiel, que
lhe emprestou o facão para bater na árvore apesar de desconfiado
pelo estranho na área. Antônio Campos pegou e “TAM, TAM-
TAM, TAM, TAM-TAM-TAM...”.
Antoniel, na Ilha Grande, experiente barqueiro que vivia
na rota Santana-Vitória do Xingu, reconheceu a solicitação de
virada de barco à esquerda e repetiu o bater até chegar a Nega
Jucá, da Ilha da Serraria Grande, que entendeu e prontamente
correu para seu mututizeiro a fazer par com a caxinguba,
batucando até chegar aos ouvidos do pai de Sueli, Seu Barbosa,
em Chaves.
Barbosa espiava assustado a filha virar para a direita e
tudo se mexer, como se tivesse visto uma visagem que tinha o
poder de inclinar as coisas. Ao movimento viam as praias se
incomodarem a rasgar-se em fendas para o lado que fora
comandado, engolindo peixes e pedaços de casas que se
desfaziam com a locomoção. Um batuque seco de lugar remoto
ouvia na sua cabeça de navegante, quase instintivo de que alguém
queria passar um recado. Fechando a mente na mensagem,
acocorou-se perto da filha sentada naquele carrinho embaixo da
máquina de costura, sussurrou à Sueli que virasse a roda para o

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Pantoja Ramos

lado esquerdo, prontamente atendido pela filha que brincava de


almirante de olhos cerrados, só lhe faltando o adorno na cabeça.
Marajongada virou-se para a esquerda devagar, o que
confundiu a todos na grande ilha. Miranda Torres viu a voadeira
desenhar outro contorno de carona, a engatar nas hélices grande
quantidade de mato vindo de todas as partes, de rio e de mar,
misturados um siri e um camarão de água-doce. Chegou junto a
Odith não para cortejo, mas para amenizar seu próprio medo
daquela virada. “E tu? Estás sozinha? Quem tem cuidas neste
momento? ”. Indagou à mulher. “Eu de mim mesma e somente.
”. Miranda Torres perguntou novamente, sempre com os olhos
vidrados nas nuvens a mexer-se mais “não tens medo do que se
passa? ”. Os olhos escuros refletiram o rosto do deputado. “Pelo
que andei passando, isto tudo é alforria! ”. E deixou Miranda
Torres agarrá-la mais forte pelo braço. Olhou para o mesmo e
teve a ideia de virar-lhe a mão na cara, mas o suor frio daquele
homem a removeu da ação, assustado que estava. Deixou.
No galho da sumaumeira em que parava, o mutum sentiu
as folhas balançarem sem parar, quebrando um ramo já estralado
que quase esmagou os caititus que andaram por aí perdidos,
guiados pelo chefe da vara. Este, por sua vez guiava-se pelo sol,
invertido para outro canto, sem querer colocando os demais
desbaratados a grunhir sem harmonia alguma, entrando na vila
dos homens, desordeiros e desesperados, logo mortos a metade
do grupo pelas pauladas arrematadas, gabolas os senhores para
contar mais tarde que não tinham deixado fugir aqueles porcos
do mato, desejosos apenas de voltar à vida normal suína, a fuçar
os cocos de murumurus e de buçus.
Prefeito Josias na sua cidade ordenou que todos deveriam
tentar se comunicar com o continente afim de saberem para onde
estariam indo. Sem os aparelhos celulares a funcionar,
recorreram ao rádio velho do seu Elias, o único que
misteriosamente funcionava. Não por pilhas, mas por uma placa
solar esquisita que lembrava as primeiras calculadoras do gênero.
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MARAJONGADA

Era um sinal fraquinho, quase voz de um tuberculoso que se


ouvia e Elias, de cabeça baixa, repetia o que lhe era entendido
pelas vozes além-mar. “Estamos indo para o lado do México”.
“Estaremos bem”. Repetiu Josias, tentando acalmar a população
que lotava a pequena praça central.
Na parte da popa, Ananias sentiu Marajongada dar de
esquerda e presumiu que iriam para o lado da América Central,
o que lhe despertou curiosidade de ver aquelas plagas e meteu a
mão na água, água esverdeada do Caribe, bonita, tão bonita que
pareciam os olhos de sua primeira namorada. Não demorou
muito tocando a água, um tubarão espreitava por ali e seu receio
reduziu as pirararas guardadas dos igarapés de Marajongada a
míseros peixes comuns comparados a seres aquáticos criados
para matar. Os poderosos tubarões viram alguns de seus
indivíduos morrerem nas mãos de pescadores, acostumados com
os cações que se enxeriam nas redes de Salvaterra e Soure. Deu
um pouco mais de trabalho, é verdade, mas o pescador Soureba
percebeu que era hora de usar a cartucheira pela primeira vez em
pescaria. E assim o fez.
Vereador Salazar imaginava que estavam em águas
estranhas a começar pela cor esverdeada que ganhava a cada
légua marinha. Não pensava mais no infortúnio de ter sido
roubado, agora queria comprar novos aparelhos, aproveitando
esta grande jangada de terra e sambaquis. Só temia pelo fato nesta
nova região não ser mais autoridade e isso de certa forma o
consumia. Quanto do edil haveria sido perdido nesta escrabosa
viagem? Desde os vinte e cinco anos sempre fora político e não
estando mais em terras brasileiras, como ter reconhecido seu
mandato? Muitas vezes teve que recorrer à humilhação de
socorrer famílias chorando por seus entes mortos, cuja
contrapartida era ser ovacionado homem que resolve ao cobrar a
devida atenção da funerária; ou de visitar presos; ou de fofocar e
ser relevado o pecado dos conterrâneos comuns na câmara de
vereadores.
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Pantoja Ramos

Sueli no seu timão ouvia do pai que Marajongada estava


indo para um porto próximo. Barbosa estava aliviado pela
possibilidade de logo saírem do mar desconhecido e atracarem.
A menina murmurou misurenta pergunta “Pai, outro lado? ”. O
velho pai não soubera responder. “Tem no outro lado? ”. Barbosa
disse que indagaria pelos mututizeiros, para ver se alguma mente
daria resposta, já passado o susto e quase entrando no grande
abraço daquilo conhecido como Golfo do México. “Mututi? ”.
“Tá bom”. E andou a procurar o mututizeiro que ficava na ponta
da cidadela de Chaves. Encontrou e tascou a questão. Em
caminho de volta, o batuque passou por Nega Jucá, Antoniel,
Prof. Antônio Campos, já entrosado com o dono da casa que lhe
dera de abrigo, até chegar a Ananias. “É a Europa lá longe! ”,
voltou a mensagem do geógrafo ao fim do canal. Para Mãe
Caruana, Ananias não deveria dar trela à pequena, pois confusão
ela ainda podia fazer. “Que nada, é só uma menina”. “Uma
menina que sonha alto demais...”, retruca a anciã.
Sueli recebeu a resposta. Era a Europa. E Prof. Antônio
Campos decidiu bater conversa com Ananias, um da popa, outro
do casco de Marajongada, outrazinha da proa, ajudada pelo pai,
Barbosa, que ia e vinha andando cansado a trazer os recados.
Antônio Campos achou que seria bom o Marajó visitar a Unesco.
Ananias achou que seria uma realização conhecer o Velho
Continente. Sueli pediu por Paris, em seu subconsciente que
fotografara a relação entre as palavras Paris e Europa da página
de sua revistinha amarelada pregada na parede da humilde sala
de madeira. Nega Jucá pediu para eles quietarem o facho. E Sueli
virou bruscamente Marajongada para a direita, sem o pai a
impedi-la devido ao cansaço daquele diálogo arbóreo, longe
estava naquele instante de sua casinha. “Bora para Paris! ”. O
México ficou novamente distante, correndo a Grande Ilha para
dentro do Oceano. “Dobramo de volta pro mar”, sentenciou o
radinho de Elias para a preocupação de Prefeito Josias e da
população.
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MARAJONGADA

As ondas começaram a gerar tontura em Sabá.


Marajongada se viu perto de um céu negro e de nuvens colossais,
como a querer engolir o mundo inteiro. “É o fim do mundo!!”,
gritou Dona Cortês agarrada na porta da casa como se quisesse
proteger sua morada do tufão. E os ventos bateram firme no
corpo de Odith que teve que segurar seus óculos para não se
perderem, a crescer em si o prazer de ser movimentada tão
fortemente em sua vida. Miranda Torres fez o papel de machão a
protegê-la, mas caiu logo a máscara do pavor diante dos grandes
objetos que se arrastavam a esmo. Uma cama. Um carrinho de
batata-frita. Um redemoinho de caroços de açaí que antes
estavam espalhados na rua. O vestido lilás de Odith subia e descia
de sua silhueta curvilínea, o que não a incomodava, pois isso era
nada perto do que fora exposta por seu ex-marido. Brincava de
sair voando, arrancando gritos de cuidado de Miranda Torres,
seguro na palmeira imperial que seguia na orla da cidade de
Curralinho enquanto a ventania molhada prosseguia. Odith
expulsou seus demônios e gargalhava, destacando a boca cheia
de dentes do rosto sem olhos. “Vamo deputado?! Vamo voar pelo
mundo! ”. Miranda Torres por alguns segundos desejou Odith e
seu vestido lilás dançante a mostrar a formosura da mulher.
Como agredir tão belo ser, violentar o lado da espécie humana
mais sagrada? Tão belo corpo que lhe satisfaria as ganâncias de
macho. Parou de pensar bruscamente. Um cachorro pirento que
voava perdido lhe bateu na testa, carimbando o cheiro de creolina
no nariz do deputado, sumindo com sua libido.
Prof. Antônio Campos se escondeu das árvores que
caíam com as ondas do mar no oco de uma enorme pracuubeira
que derrubada há anos. Mesmo com as águas invadindo a posse
de Ezequiel, o imenso tronco conseguiu evitar que inundassem
onde estavam e começou aquela turma a se aquecer do frio, uma
danada friagem que nunca tinham sentindo antes. Se não fosse a
resina do breu a crepitar na fogueirinha, teriam sofrido mais. O
tronco da pracuubeira até balançava de um lado, do outro, mas
23
Pantoja Ramos

não girava por sorte, dando-lhes a sensação de navegantes.


Antônio Campos e a família conversavam sobre o destino deles
diante daquela viagem. “A gente pode morrer afogado até, sabe
lá o risco que estas ondas trazem? ”. Seu Ezequiel olhou para os
filhos encolhidos do frio em suas camisas de eleições e festejos,
endurecidos pela vida de manter a sobrevivência e com
expressões serenas de que aquilo fazia parte. “Seus filhos são
fortes”. “Ensino eles para a dureza, o que posso mais eu oferecer
por aqui? ”. Antônio Campos lembrou-se dos pequenos que iam
para a sua escola, de quantos não iam e ali teve a certeza que
deveriam mesmo ir à Europa, à Paris se fosse preciso pedir ajuda
ao mundo, à UNESCO.
Marajongada começou a escalar aquela onda medonha e
o mutum escondeu-se junto com o gato maracajá no buraco da
sumaumeira. Ali não havia como manter as relações normais de
cadeia alimentar. O gato maracajá arranhava o tronco da árvore
para se segurar, com o mutum pulando a bater suas asas de parede
a parede. A ordem era sobreviver de um predador mais forte
ainda.
No pânico da cidade de Breves, feriam-se as pessoas a
cada tombada, vomitavam-se por todo o lado, iniciavam-se os
incêndios a cada vela derrubada e Sabá saia correndo a gritar por
ajuda médica, com a perna forçada no subir da ladeira por
Marajongada. No hospital, enfermeiros e médicos lutavam para
atender o público, mas faltavam gazes, faltavam os remédios de
enjoos, as queimaduras maltratavam as pessoas, as crianças
choravam em suas náuseas. A andiroba e a copaíba que Sabá
trazia no bolso eram logo requisitadas por quem as identificava.
“Passa na minha perna! ”. “Deixa eu botá na garganta? ”. “Me
empresta teu unguento? ”. E Sabá deixou a saudade de lado para
ajudar as pessoas com seus óleos estranhos que funcionavam
realmente para alguns, para outros, apenas placebo. E sua
contribuição foi para si mesmo um bálsamo.

24
MARAJONGADA

Vereador Salazar escrotiava com os deuses seguro no


poste em frente à câmara de vereadores, cujos papéis corriam nas
enxurradas do grande banzeiro, e viu passar os ofícios, a grande
quantidade de ofícios inúteis que pediam por sessões sem sentido
algum. Atas batiam em seu rosto como tabefes, por tanta falta de
comprometimento e omissão dos acordos feitos. Mas apesar da
humilhação, veio para perto de si uma das leis que ajudara a
aprovar, de garantia de direitos a idosos e tentou segurá-la,
esquecendo que estava por salvar-se: agarrou a lei, gritou por sua
mãe, escorregou do poste e veio cambaleando no seu pesadelo
daquilo que por dia ter feito e não fez, do pouco que mudou,
porém não valorizou, do vazio de suas falas que agora lhes eram
surdas o clamor, quando sua queda terminou em uma caixa
d´água aberta, que o interceptou de lançar-se ao mar, esta por sua
vez presa na forquilha de uma mangueira que firme aguentava a
alavanca da água em Marajongada. Vereador Salazar ficou
prostrado em sua nova proteção, enquanto via as pernas correrem
de um lado para o outro e corpos caindo para o oceano.
Sueli permanecia gélida enquanto a grande embarcação
subia a onda, e todas as maresias que já tinha visto acordada em
suas viagens a Belém agora eram somadas, mas ela não se
importava. A menina manteve o timão de sua máquina de costura
firme, firme mesmo, ajudada pelo braço do pai Barbosa, que mais
segurava como forma de segurar-se do que manter o rumo do
navio. Marajongada jogou sua popa meio pra esquerda enquanto
Ananias calculava quantos metros já tinham subido naquela
maresia, tal qual um tsunami e já duvidava de que sobreviveriam
quando chegasse a descida. Mãe Caruana iniciou uma lenta
amarração de seus braços às plantas que por ali cresciam,
entoando cânticos antigos de tribos viventes dos sambaquis
esquecidos pelos homens modernos. Tal como cipós, os vegetais
enrolavam em seus membros cada vez maiores, surgindo da terra,
como a nunca acabar. Tesa, Mãe Caruana forçou Marajongada
para a direita e depois pra esquerda, tentando deixar a todos
25
Pantoja Ramos

equilibrados, apesar do plano inclinado mais agudo ficar a cada


instante.
Na praça da cidade, Prefeito Josias e a população de seu
município seguiam na praça a esperar que tudo melhorasse, mas
o rádio de Elias teimava em manter-se pessimista, arrancando
gritos de pavor dos histéricos por um mundo a ruir. “Prefeito!
Resolve esta situação PelamordeDeus!!”. Josias não fora eleito
para aquele tipo de problema e emputecido largou sua segurança
para com a força dos dedos e das pernas escalar aquilo que era
antes o escanteio da praça e que agora lembrava um palanque.
Com o cuidado de não despencar, soltou a voz dos pulmões em
desabafo e ordem: “antes de ser prefeito, sou gente! Gente como
nós todos aqui! Nada posso fazer a não ser pedir que nos
juntemos e que ninguém morra da queda que virá com certeza!!
Vocês vêm? ”. E esticou a mão para Dona Lália, a fofoqueira da
cidade, a mais desconfiada figura de sua geração. Mesmo ela
arisca, deu a mão para Prefeito Josias e foram dando os braços
um a um, de cabeça contrária à subida de Marajongada, quando
ficaram aquelas milhares de pessoas em silêncio, deitados com
os pés para cima a olhar as nuvens tempestuosas de formas
fantasmagóricas, onde caiam gotas da chuva do tamanho de bolas
de bilhar para agredir suas peles, suas testas. Mantiveram-se com
os braços cruzados unidos, com as extremas pessoas ajeitadas nos
suportes que acharam e assim formaram a maior teia que fora
encontrada pela humanidade, potente como se aguardasse a sua
aranha-mãe. Marajongada alcançou o cume da onda, em quietude
aterradora, começando a descer pela enorme vaga e o que antes
era planta do pé no alto, tornou-se cocorutos, crescendo a
velocidade de um barco descendo para os confins de seu destino,
com gritos de pavor do vertiginoso que nunca antes alguém tinha
sofrido, em embriaguez nada imaginada por aqueles ousados nos
brinquedos do Círio de Nazaré. O rádio de Elias resolveu motivar
as pessoas a permanecerem em seus postos. Ninguém podia

26
MARAJONGADA

fraquejar, pois morreriam todos na queda. Marajongada descia


em velocidade arrepiante.
Pela primeira vez Ananias viu a situação lá do alto, ao
lado de Mãe Caruana, quando a popa empinou. Enxergou a pálida
Sueli a conduzir a embarcação, a teia de aranha enorme feita de
gente no meio de Marajongada, a pracuubeira rente a cair no mar
onde estavam Prof. Antônio Campos e a família que o acolhia.
Antoniel brigava com o mar para garantir que Itatupã ficasse
presa à Ilhona. Odith e Miranda Torres permaneciam trepados no
alto da igreja de Curralinho, ela a divertir-se a rodopiar no ar o
dedo pedindo mais balanços, ele todo mijado de medo agarrado
à sua perna. Neste momento Ananias percebeu como todos
estavam iguais e talvez sempre estivessem no mesmo peso e na
mesma medida. Percebeu que seria maior a pessoa de Sabá e seus
unguentos de andiroba e copaíba que o Vereador Salazar, viciado
na sua preocupação de se manter salvo na caixa d´água que o
prendia. Observou que até o mutum e o gato maracajá, sempre
inimigos, desta vez selaram uma trégua temporária, o gato a fixar
na árvore como um prego na tábua com suas garras, o mutum a
abraçá-lo de um jeito de ave que só para elas é possível, com as
penas a impermeabilizá-lo das águas frias que esta confusão
trazia.
No timão do navio, Sueli seguia com a mão reta, no
descer violento que se seguia. Na briga existencial entre o sonho
e a realidade ante à batida do grande bico no mar, pediu desculpas
ao pai por ter sido desobediente algumas vezes. Barbosa pediu
desculpas à filha por ter sido turrão e já se entregavam ao
arrependimento verdadeiro, quando o puxão de Mãe Caruana lá
do rabo da bicha levantou a proa com tanta força que
Marajongada saiu da super quebrada da onda e correu longe
empurrada pelas espumas que se fizeram. Dona Cortês viu sua
casa branqueada de repente, salgada a arder nos olhos e fugiu
para a cozinha a ajoelhar-se com os braços que encobriram a

27
Pantoja Ramos

cabeça. “Não vou virar sal! Não olharei para trás, meu Senhor!
Para frente, para frente é a vida! ”.
Tudo se consumou. Sabá levantou-se e achou seus
unguentos espalhados, tal qual as pessoas do hospital, chorosas
pelo trauma sofrido. Prof. Campos e a família que o abrigara
saíram da pracuubeira, todos tontos a despachar os últimos
vômitos do nervosismo que restara. Prefeito Josias e os demais
permaneciam parados, deitados, atônitos com a dor de braços
ajuntados, quase que soldados pelo sinistro da vertigem até a
chamada de atenção do rádio velho de Elias de que o pior já
passara. Odith percebe-se viva da loucura que lhe bateu, com
Miranda Torres soluçando como uma criança chamando pela
mãe. Ananias e Mãe Caruana desmaiaram de sono, empurrados
pela adrenalina caída bruscamente. O Mutum e o gato maracajá
sacudiram-se, ameaçaram assustar um ao outro, mas decidiram
cada um seguir para seu galho e daí o solo, andantes para os
deveres na cadeia alimentar, só que hoje em trégua. Sueli,
estática, resmungou algumas palavras da língua dos sonâmbulos
e o pai orgulhoso, disse que sua filha “é a maior das
comandantes! ”, pois levou na maior das ondas, o maior dos
barcos. Percebendo-a cansada, deitou-a no colo para voltar ao
sono mais profundo.

ATO 4 – ENCOSTANDO NO PORTO MAIS PRÓXIMO DA


UNESCO

Repetindo mais uma vez o teatro da vida que traz a


bonança surpreendente após as turbulências, o mar serenou e
ficou liso. Sem vento, nem brisa, a grande jangada estava imóvel,
com as pessoas passeando por toda Marajongada, caminhantes
de um ir e vir sem interrupção, tentando se encontrarem não

28
MARAJONGADA

somente na embarcação, mas na própria existência. Odith seria a


mais avançada neste dilema, sentada na pracinha de Curralinho a
cuidar das unhas que se sujaram naquele furacão de águas e lama
que catapultaram sua pena de si mesma léguas atrás. Pensava em
ter outro vestido além daquele lilás e considerava retirar os
óculos escuros, mas o sol a pino que se aproximava manteve os
aros no rosto. A questão seria desta vez zelar o seu olhar em luz
tão forte e não mais timidez causada da violência doméstica.
Miranda Torres a seguia por toda a parte, considerando-a segura
e confiante esta criatura.
Prefeito Josias e a população abatida pelo esforço de
estarem unidos no descer de Marajongada procuravam comida
para o caso de um novo desafio. Juntaram todas as latas de
sardinhas e outros enlatados para humildemente repartirem-se
em busca de um milagre que alcançasse a todas as barrigas. Os
homens de maneira cavalheiresca deram de comer primeiro às
crianças e mulheres, e mesmo com todo o mal humor que
ficavam, aguentavam na tolerância de um para com o outro o
incômodo do roído interno, evitando gastarem energia em tapas,
socos e até mesmo nervosismo em alta. Os pães vieram, as
mortadelas, as guarnições. Prefeito Josias coordenava o processo
de distribuição e armazenamento juntamente com um conselho
criado naturalmente nestas horas difíceis com pessoas
necessárias e líderes. Até Dona Lália despiu-se de sua leviandade
habitual para fazer parte deste colegiado de cuidado com os
víveres e alimentação dos habitantes.
Sabá andava com os outros habitantes de Breves à
procura de notícias sobre o andamento do fenômeno, mas era
óbvio concluir que estavam parados no tempo. Em sua mente
cravados estavam o filho e a esposa lá na sua Melgaço,
inadmissível contar que estariam melhores, no entanto estavam.
Ao menos poderiam ter a ajuda federal nos momentos de
urgência por estarem presos ao Brasil. E Marajongada estava à
deriva em águas estranhas de jurisdições estrangeiras sem pai
29
Pantoja Ramos

nem mãe, contando somente com as mãos marajoaras e energias


ocultas para navegar.
O mututizeiro voltou a ser usado. Prof. Campos e
Ananias discutiam a batuques como sair daquele marasmo, pois
mesmos como a comida sendo obtida na grande Ilha, a loucura
poderia ser a causa do autoextermínio dentro daquela
embarcação. Agindo como ilha verdadeiramente, as pessoas
ficam intoleráveis. De baque em baque debatiam que não haveria
motor possante o suficiente para empurrar a nau para a Europa,
nem muito menos voltar ao território brasileiro devido às
correntes marítimas. Mãe Caruana se meteu na conversa
batucada, apontando que as soluções estão no que mais simples
é. Antoniel concordou e perguntou se não haveria como velejar
naquela situação, acudido por Barbosa com duas propostas que
poderiam ser a solução se operacionalizadas ao mesmo tempo. A
fabricação de uma grande vela para Marajongada e da remação,
ambas as maneiras nos casos de não vento. Nega Jucá se
prontificou a chamar as mulheres para tecer a maior das redes,
mas precisaria do maior dos mastros. Os gurupaenses,
experientes por séculos em seu festejo a São Benedito, tratariam
de providenciar o esteio para a vela. Enquanto isso, os homens
mais fortes iriam para as bordas de Marajongada cuidar dos
remos. O rádio de Elias avisou ao prefeito Josias e demais que os
homens de maior força deveriam ir para as laterais, com a
preocupação de alguns permanecerem nos trabalhos de fixação
do mastro, na parte central da Ilha. Josias separou milhares de
bons cidadãos para os extremos e ficou com mil homens para o
soerguimento do eixo que daria suporte à vela.
Em dois dias, todos souberam da movimentação para
mover Marajongada. Vereador Salazar foi cuidar do setor lateral
esquerdo, juntando-se aos portelenses e brevenses no esforço de
remar a nau. Enquanto se preparavam aqueles milhares de braços
de um lado e de outro, cada uma com sua pá, tábua ou remo a
tentar moverem-se, os marajoaras de Santa Cruz do Arari
30
MARAJONGADA

resolveram a aplicar a alfaia, no âmbito da física mais


interessante de se aplicar uma remada, parecidos com que fazem
os remadores olímpicos em modalidade coletiva. Com as
engenhocas de polias e máquinas rústicas, todo aquele município
se esforçou em contribuir com a movimentação do grande barco,
em mutirão de vai-e-vem das palhetas em sobe e desce.
Odith, saída de Curralinho, foi para a ala direita, ajudar
as pessoas que por ali trabalhavam. Tratava-se de gente quieta e
apática, sem o sangue nos olhos para a tarefa que lhe foi dado,
pisados longos anos pelos sofistas e boçais poderosos da
economia e da política. Ananias, Josias, Prof. Campos, Nega Jucá
e Barbosa/ Sueli mantiveram a comunicação para entrosarem o
movimento, colaborados nos códigos Morse arbóreo por
colaboradores e seus tacapes a entoarem a percussão. No início
da remada, Marajongada aparentou mostrar suave giro, ação
típica das canoas onde um lado é mais fraco nos seus empurrões.
As informações vindas do mututizeiro diziam que estava tudo
bem a bombordo e que a alfaia de Santa Cruz do Arari estava
contribuindo bem, mas a estibordo não se respondia à altura.
Percebendo a inquietude das lideranças quanto à lentidão, Odith
puxou Miranda Torres pela mão e pediu “discursa! Inspira eles a
remarem! Tu não és líder? ”. Entretanto, Miranda Torres não
sabia elevar o espírito de ninguém, só de fazer os outros admirá-
lo, jogando um poder fictício que pode fazer isso e fazer aquilo.
Àquela ocasião não se podia usar este estratagema, pois eram
semelhantes ali a sofrer pela perdição de sumir no mar e em si
mesmos. Odith injuriada, subiu no auto do casebre improvisado
para abrigar os remadores, encurtou o vestido com uma amarra,
segredando as partes, mas mostrando as pernas bonitas a pescar
a cobiça da visão dos homens para ela. As mulheres viraram o
rosto e ruminaram variações para denominar as vacas. Para estas,
Odith retirou os óculos escuros e apresentou os roxos olhos e
sangue preso nas órbitas e ossos das maçãs da face, agredido que
fora cruelmente. Isto foi suficiente para chamar a atenção das
31
Pantoja Ramos

senhoras e moças. “Senhoras, senhores! Peço um pouco de olhar


para mim! Não sei o que tá faltando, mas é preciso remar esta
ilha para algum lugar, enxergam o movimento? Todos estão se
movimentando nos outros cantos! Uns empurram de lado, outros
do centro e nós estamos fraco neste jeito nosso! Eu não quero
ficar parada aqui! Eu já apanhei muito da vida para ter que morrer
rodando, rodando que nem uma doida! Eu penso! Vocês pensam!
Não sei que fizeram com vocês estes anos todos, mas ficar
barateado não vai mudar nossa vida! Aliás, nunca mudou! Eu
quero me mexer para apaixonar algum bom homem! Mulheres,
eu quero me mexer para não ter mais que sofrer humilhação! Eu
quero crescer, sair da morte que vivo! A gente merece sair
daquilo tudo que nos maltrata! Vamos nos mexer! Movimento!
Isso! Movimento! Movimento no braço, na perna! Sai barco, vai
barco, isso! Perdido é quem tá parado! Vamo! Vamo!”.
Os homens e mulheres olhavam para Odith, com os olhos
marejados de esforço e raiva, forçando Marajongada a
acompanhar o remo a bombordo e a alfaia, que saíra do lugar e
singrava lentamente o Atlântico. Deputado Miranda Torres
diante de sua inutilidade sentou em cima de um tronco
melancólico a jogar frutos de castanholeiras em direção ao mar.
Nega Jucá, milhares de outras mulheres e homens do
centro de Marajongada erguiam heroicamente a rede, armando-a
como se fosse a ilha de terra uma caravela, cujo mastro ficava em
terras do prefeito Josias. Três pequenos gurupaenses ficaram
responsáveis de fazer as amarras em cima, rápidos como macacos
de cheiro. Da mesma forma com que fizeram a teia de aranha, a
cidade mostrou-se competente em erguer o suporte da vela, feita
da junção de milhares de redes de dormir costuradas por mãos
como Dona Cortês, convencida da missão divina de mostrar que
tudo é possível para o ser coletivo. As costuras que uniam as
redes lembravam os símbolos do Marajó conhecidas como gregas
marajoaras.

32
MARAJONGADA

Um dia inteiro de remada e as pessoas estavam exaustas.


Era preciso neste momento contar com a vela. O vento começou
a inchar as redes juntas e Marajongada virou veleiro, não criando
o turbilhão de água em frente, mas espumando sim com certeza.
Menina Sueli, de volta à máquina de costura que detinha o timão,
seguia o curso sussurrado pelo pai Barbosa, segundo orientações
de Ananias, o Geógrafo, e Prof. Campos, o pedagogo.
Com os devidos cuidados e revezamentos entre braços e
vento, aportaram no Velho Continente, em Lisboa.

ATO 5 – A ENTREGA DE SUA CARTA À UNESCO

A parte de Marajongada em que se localiza a divisa entre


Soure e Chaves, ali na região da Ilha dos Camaleões foi palco do
encontro entre Prof. Campos, Ananias e Odith, que levavam cada
um consigo suas pessoas de colaboração, Jeco, o filho de
Ezequiel, Mãe Caruana, a sábia e Miranda Torres, o inócuo. A
missão do grupo era ir a Paris entregar a Carta do Marajó à
UNESCO, documento-resumo que expressou as aspirações da
assembleia ocorrente no dia em que aportaram. Sugerido por
várias lideranças, milhares de pessoas da grande embarcação
caminharam para a cidade de Prefeito Josias em encontro que
uniu todos num só pensamento e que se concluiu por uma carta.
Enquanto discutiam, toda Portugal se viu curiosa por fenômeno
tão interessante de tal placa de terra chegar à sua ilharga. Além
disso, os lusíadas escutaram aquele estranho sotaque de além-
mar a gritar por dias melhores em reino brasileiro, tão dito rico e
tão líder entre os G-20.
Corajosos nesta empreita, os emissários da Marajongada
partiram pelas estradas portuguesas, na cortesia do transporte
feita pelo embaixador do Brasil em Portugal, uma bonita van,
33
Pantoja Ramos

empurrada mais pela mídia que pelo governo brasileiro no


acompanhamento de tão mágica viagem. A mídia tupiniquim
como sempre não tinha a sensibilidade de entender
profundamente os motivos da entrega da carta à Unesco,
contudo, por ser o maior furo dos últimos tempos pelo
deslocamento daquela massa de terra, não hesitou em registrar o
trajeto de Campos, Ananias, Odith e seus parceiros rumo a Paris,
cortando as terras lusitanas e espanholas.
O trem partiria de Lisboa a Madri e daí para Barcelona
e Paris, destino final. A comitiva marajoara logo percebeu que os
portugueses eram gente boa, cujos preconceitos foram
minimizados instintivamente pelos genes que traziam dos
patrícios desde a colonização do Marajó. Com exceção de Mãe
Caruana, sangue indígena puro, que desconfiava do todo que se
conversava e das intenções dos anfitriões e do embaixador, a
junta de gente estava à vontade. Ao ver a Mãe Caruana
acabrunhada, Ananias tratou de lembrar à velha senhora da Pax
de Mapuá, marco importante para acalmar as almas entre as sete
aldeias Nheengaíbas da Ilha do Marajó e a coroa portuguesa,
moderada por Padre Antônio Vieira. Docemente pediu que o
fizesse o mesmo. “Sei do acordo e da honradez entre os que
selaram a paz lá no interior de Breves. Mas também sei outros
portugueses metidos a imperadores que nos fizeram mal. Fico
aqui catitando só pra precaver. Quem apanha não esquece. Só o
que bate”.
Os castelos de Sintra e dos Mouros foram visitados e só
não demoraram mais aí, porque Prof. Campos estava ávido por
seguir o objetivo da entrega da epístola. Tão história milenar, que
construções magníficas em pedra, tanto já passaram os ibéricos
que e a priori pensaríamos que somos uma criança de poucos
mais de 500 anos a lutar pelo desenvolvimento. Mas não é
desculpa. Como parte do Brasil saltou para níveis
socioeconômicos bem acima de Portugal e o Marajó ainda estava
como se estivesse no século XIX? Sim, pois tecnologias nos
34
MARAJONGADA

colocam nestes tempos, mas consideração dos oficiais seria


bastante atrasada, como se os marajoaras fossem apenas quadros
pitorescos de uma civilização que se identifica e se diz território
ou ilha. Ou uma grande embarcação, a Marajongada. E pouco
mais do que isso.
Passaram de Madri a Barcelona. Em solo madrileño,
Miranda Torres, o apático, se viu tonto nas vielas estreitas e de
grandes e altos prédios históricos. Jeco, filho de Ezequiel, sentiu
uma fisgada de discriminação por sua cor quando caminharam
em uma praça nos maus olhares, mas sendo a praça do povo,
como dizem os poetas, foi cumprimentado por vários sorrisos a
lhe dizerem “olá, de onde vocês são? ”, fortuitos, rápidos e
perceptíveis. Não se caracterizou menor que ninguém, então não
é justo dizer que os espanhóis são preconceituosos por uns e
outros bestas a irem a estádios zombar dos princípios universais
que norteiam a humanidade onde cada um é diferente e valioso.
Barcelona era um mundo de cores. Pareciam ser de outro
planeta mesmo para os representantes de Marajongada, tudo
limpo, arrumado, universal. A igreja La Sagrada Família
emocionou Ananias, aliás, tudo o emocionava nestas
descobertas, antes somente imagens de seu livro de geografia.
Nunca mais sentiria que estava a vender algo que não conhecia
aos alunos no que se refere ao Velho Mundo. É assim a Europa!
É assim Barcelona! É assim Afuá, porque já viu também e disso
também resolveu valorizar. O que enxergou a vida inteira é agora
um calço para as teorias mais bambas. Melhor ensinar o que se
avista, aquilo marcado na realidade. E Odith desfilava em seus
óculos escuros, desta vez justificados a utilização por se acreditar
estar na moda de Barcelona, em qualquer peça, em qualquer
estilo, coloridos.
O museu de Picasso marcou a todos. Prof. Campos se viu
intrigado com Terrats de Barcelona, pois parecia o desenho
azulado de um olhar de cima de Breves, do terraço do hotel que
o abrigara quando fez sua prova para passar ao cargo de professor
35
Pantoja Ramos

estadual em Bagre. Jeco se contorceu em desejos próprios da


juventude ao ver L´Ofrena, se era mesmo aquilo que estava
pensando. Mãe Caruana ficou desafiada pelo olhar instigador de
L´Espera (Margot). Nada como uma mulher sábia enfrentando
outra. Odith teve inveja de L´abraçada, a muito não amada nem
cortejada, ou simplesmente levada pela dança. Miranda Torres
pensava nos milhões de reais que valiam aqueles quadros. Não
era à toa que eram roubados e tinham fortíssimo esquema de
segurança. Ananias admirou a tudo, concluindo ser Picasso um
desses gênios que percorreram nossa era, tirando por sua própria
conclusão e não por ser levado a achar isso. Lembrou-se dos
meninos e suas lindas pinturas em Muaná, com toques pessoais
em gravuras imitando a água em seu comportamento de tomar
todas as formas possíveis, disformes os bichos, as paisagens, as
crianças, depositados em quadros ou simplesmente nas paredes
dos estabelecimentos como restaurantes.
Em Marajongada, enquanto isso, os líderes reuniam-se
em Chaves para decidir qual o destino da embarcação após a
entrega da carta, pois surgiram dúvidas sobre a necessidade de
retornar ao mesmo lugar de outrora. Barbosa, pai de Sueli, a
sonâmbula, era um dos mais instigadores deste possível processo
de rebelião. Enquanto jogava aos ares suas reclamações, sua filha
continuava a dormir, desta vez amparada por uma rede na sua
casinha. Homens, mulheres e até crianças de todas as partes da
grande ilha estavam concentradas na imensidão da orla de
Chaves protegida por seus pequenos canhões, carcomida muito
suas praias pela força da água, mas mantendo sua imensa terra a
receber os alísios e as maresias, agora ditas ondas. Os dezesseis
prefeitos estavam presentes ou representados, juntamente com
dirigentes de centenas de comunidades que foram para a proa de
Marajongada ver quais acontecimentos sucediam. Centenas de
meninos e meninas corriam maravilhadas por tanto vento, muitas
delas empinando rabiolas a pairar sobre todas aquelas almas, esta

36
MARAJONGADA

estranha conexão entre os deuses alados e nós seres humanos,


unidos por um fio de pureza.
“No meu achar a gente devia ficar por aqui, que tem mais
condições”. Este dizer era de Curica, daquelas ilhas a norte de
Gurupá em seu estado original, mas que neste momento eram
rebocados pelos arames misteriosos do fundo do oceano como se
fossem aquelas canoas presas nas lanchinhas. Uns tantos
concordaram com ele. Vereador Salazar fez o contraponto,
sentenciando que haveria muita história acumulada e sentimentos
para simplesmente darem as costas para o Brasil. Outros milhares
assobiaram em sinal de concordância com a argumentação do
edil. O rádio de Elias repetia os discursos do centro da assembleia
para a escuta de Prefeito Josias, acocorado com seus estrategistas
a tecer pensamentos sobre qual melhor solução para que não
houvesse uma debandada geral a partir da ruptura de se manter
Marajó. Ezequiel, o morador do tronco de pracuúba mantinha-se
em dilema. E de opiniões a opiniões, foi se varando a noite,
iluminada pelas luzes de Lisboa em suas descidas e subidas das
ladeiras. Muitos portugueses juntaram-se ao encontro,
agradavelmente surpreendidos por um povo inteiro a preocupar-
se com o futuro.
Na manhã seguinte, restaram ao palco central o prefeito
Josias, Barbosa, Curica, Sabá e Ezequiel. Josias pediu a palavra:
“senhores, não importa onde deveremos estar, somos
governantes de nós mesmos, não percebem? Para aqueles que
não viram, saibam que em nossa cidadela a união de forças nos
impediu de morrermos despencados quando esta grande ilha
desceu onda gigante abaixo. A sobrevivência daquele fato nos
clareou a moringa. Nem que doa o braço, tem que ficar
entrelaçado! ”. Tal ponto de vista gerou surpreendentemente uma
terceira via de explicação a orientar a todos. Barbosa e Curica
foram implacáveis, apontando em suas frases sem serem
professores de história que o desleixo foi tanto ao cúmulo de
fazer a própria terra rebelar-se e procurar novos logradouros para
37
Pantoja Ramos

uma melhor dignidade, sendo, pois, um sinal. Aplausos


misturados a queixas de discordância se ouviam a léguas dali.
Sabá se lembrou dos parentes e das pessoas queridas que
aguardavam no porto brasilis, os quais mendigavam notícias
mínimas que acalentassem cada dormida que tivessem quando
vencido o pesadelo da não mais volta dos perdidos ao mar. Se
não levantou tantos claps-claps de mãos, muito menos se viu
vaias, porque realmente a saudade estava ali, só empatada de sair
pelo medo de acidentes e morte. Por fim, Ezequiel lançou sua
flechada à multidão. “Pessoal, meus filhos como os de vocês são
os que mais sofrem com a falta das coisas, de remédio, de uma
escola, de ter um bem aqui, outro ali. Eu nunca vi muita saída na
vida nossa já achando que pobre nasceu, pobre vai morrer. Mas
ó, digo mesmo, pior pobre é o pobre de espírito! E foi preciso
uma confusão danada dessas pra me abrir os olhos! Coitadinho
que nada! Pobrezinho que nada! Sempre tive peixe, sempre
plantei e subi em açaizeiro. Meu aperreio é não ter as coisas que
dizem as leis que devia ter. Mas desconforto por desconforto, os
da cidade grande também tem os seus. A diferença é que o
interior que alimenta a cidade grande. Então porque a gente
sofreu tanto? Eu mesmo digo: inguinorância! Se assim, vamo
voltar, mas sabidos, sabidos de que falam bem do Brasil pra cá
que é rico e isso e aquilo, então vamo cobrar a nossa parte como
brasileiro! Se não nos dão de novo, tudo bem, desta vez não vamo
engolir merenda nas escolas vinda de fora perto de todo o nosso
açaí e camarão. Não vamo deixar barato linhão de energia ir pra
cidade passando por cima de nossa cabeça sem uma outra ideia
junto. Tanto sol. Tanto vento e até eu que sou inguinorante vi os
homem falando dessas tralha por aqui. Sou um pai de família
sofrido mas não abro da briga: é voltar e exigir o mínimo. O resto
é com a gente! Obrigado! ”.
Foi ovação, gritaria geral. Decidiu-se voltar.

38
MARAJONGADA

Quilômetros dali, por fim o grupo do Marajó chegou a


Paris. Prof. Campos contente estava pelo fim da jornada,
incomodado que estava por achar que estavam ali por uma tarefa
e não fazer turismo. Foi forçada de barra da mídia que mais uma
vez queria dizer ao Brasil “olha só, eles não conhecem o mundo,
que engraçado! ”. O embaixador se via já entediado, pois o
combustível da novidade já se esgotara lá atrás ainda, no falatório
sobre o atentado ao metrô de Madri, que vitimara milhares por
conta de motivos inexplicáveis, pior, inimagináveis para os
marajoaras atentos às palavras, pacatos por sua natureza de que
tudo se ajeita, é só esperar com paciência. “Pra quê tanta
violência? ”.
E avistaram a maior torre de transmissão de energia de
todos os tempos, “pensa só todo o Linhão? ”, segundo a
admiração de Jeco. Era a torre Eiffel, um dos prodígios da
espécie humana em engenharia e arquitetura, clássica, tão
emblemática para Paris como o Cristo Redentor para o Rio de
Janeiro, quanto o Forte de Santo Antônio para Gurupá, quanta a
estátua de Santana em Breves, quanto os faróis de Ponta de
Pedras, quanto o trapiche de Chaves. A diferença estava na
aplicação do amor no dia a dia da população ante seus símbolos,
cuja mudança de mentalidade tiraria um dia o Marajó de sua
subcondição como diria um sábio de Portel: “quando nos
livramos da nossa miserável pequenez na busca pela nossa
própria grandeza”.
Com o mapa da cidade em mãos, o embaixador que os
acompanhava desde Lisboa mostrava onde ficava na capital
francesa a sede da Unesco, mostrando por meio de seu Tablet
uma foto do prédio, tendo ao fundo a Torre Eiffel. Mãe Caruana,
no misto de desdém e gracejo comparou a instalação da
UNESCO a uma forquilha. Quando passaram por um dos
mercados de Paris, ficaram maravilhados com tantas bugigangas
a venda, de frutas, legumes, peixes e carnes aos artesanatos e
roupas usadas, misturas mundiais, os quais humilhavam os
39
Pantoja Ramos

marajoaras no pensar que eram restos usados e dispensados para


compra de terceiros, enquanto lhes seriam peças que durariam
certamente a vida inteira e caras à beça, pois lhes era hábito ter
roupas passadas pelo menos por uma geração à outra lá no
interior, um vestido, uma camisa, uma bermuda. Em um sinal de
trânsito avermelhado Odith pode observar a elegância de uma
moça alta, com saltos que ela nunca teria, que a fez sonhar com
aquela indumentária, a bolsa, a saia, a blusa fina e bem-acabada,
suspirou. Seu sonho se desfez quando a dita senhora despejou
toda a sua arrogância sobre um pobre garçom com cara de turco,
pois conhecia muitos que viviam em Breves, cujo pecado seria
ter balançado a xícara de café que entregaria à madame. Com a
cena, Odith cuspiu pra fora da van a inveja que por instantes a
tinha invadido. “Mulher Grossa! ”, dizia pelo canto da boca.
Na bela praça gramada em frente à Unesco, guardavam-
se bandeiras de quase todas as nações do planeta, a contar 195
Estados membros e 8 Estados associados. O embaixador de
Portugal que os servia de guia mostrou-se novamente atencioso,
não por zelo, mas pela frase marcada na Organização que o
atingia no peito, inflamando toda a sua formação diplomática que
o fez ecoar para fora aos ouvidos dos demais: “se a guerra nasce
na mente dos homens, é na mente dos homens que devem ser
erguidas as defesas da paz”. Em nova atitude, tomou energia para
assim articular a entrega da carta escrita à mão para o secretário
executivo da Unesco, seja pessoalmente, seja por meio de seus
assessores mais próximos.
A presidência da Unesco e os principais dirigentes
estavam fora do prédio, em suas agendas já comprometidas a
meses. Mesmo com o fenômeno da notícia que representantes de
uma terra viajante iriam à Paris para visitar sua instituição, não
foi suficiente para revirar o planejamento feito daquele órgão da
ONU. Os assistentes ouviram a fantástica história e se
comoveram, mas não tinham como refazer as atividades,
decepcionando a comitiva que viera de tão longe, enfrentara
40
MARAJONGADA

tantas dificuldades para no final não serem recebidos.


“Desculpem, não tem como ser diferente, vocês não agendaram”.
Ananias deu de ombros e todos entenderam, com exceção de
Miranda Torres que levantou a voz pela primeira vez dizendo ser
um absurdo que uma autoridade brasileira não seria atendida na
ONU. Iria reclamar nos Estados Unidos se fosse preciso. Ao
ouvir isso, o pensamento da assistente, do embaixador e de Mãe
Caruana foi simultâneo em suas cabeças a ironia “grandes
coisas...”.
Prof. Campos era o mais triste com aquela história, e não
se fazendo de rogado pediu uma fita adesiva para a assistente que
o atendeu prontamente sem entender. Com a fita na mão foi para
o corredor principal da sede da Unesco onde circulavam os
diplomatas, estudiosos e lideranças. Pronto! Pregou a Carta de
Marajongada na parede para que todos pudessem ler, com a
guarda local movimentando-se para prendê-lo por vandalismo ao
patrimônio mundial. Houve o começo de confusão, de empurra-
empurra, os guardas querendo acessar a carta e rasgá-la, os
demais impedindo tal brutalidade. Um assessor da presidência da
UNESCO que por ali passava reconheceu seu antigo colega
embaixador do Brasil em Portugal, que na universidade o livrara
várias vezes de ser expulso do albergue em que vivia pelos
excessos causados pela embriaguez de ambas as juventudes
enquanto estudavam em Londres. Em Francês o embaixador
explicara a situação, enquanto a comitiva protegia a parede que
mantinha a carta pregada, com o deputado Miranda Torres de
braços cruzados em tom de liderança, enquanto Odith e Ananias
ainda davam pequenos empurrões nos seguranças. O assessor
refletiu quieto e decidiu pedir aos guardas que deixassem o papel.
O guarda número 1 contra-argumentou que era do estatuto
daquela casa mantê-la limpa, sem pichações ou qualquer outra
coisa que arruinasse o garbo local. O assessor disse que seria sua
responsabilidade e trataria pessoalmente com o presidente da
Unesco. O guarda número 2 pediu que assinassem um termo de
41
Pantoja Ramos

responsabilidade e esta cena surpreendente para nós brasileiros


em aspectos de agilidade de burocracia ocorreu. Em questão de
poucos minutos, o assessor da presidência da Unesco assinou o
ofício e os guardas se afastaram só a distância para continuarem
vigiando, desconfiados principalmente do deputado Miranda
Torres, para eles, o mais suspeito de cometer ilegalidades.
A comitiva deixou o recinto e retornou para
Marajongada, que já estava avisada da entrega da carta e começa
a girar entorno de seu eixo, com Sueli, a sonâmbula em sua velha
máquina de costura, quer dizer, timão, rodar a nau para a
esquerda, enquanto os remadores da ala direita faziam sua
função. O embaixador de Portugal se afeiçoou aos representantes
de Marajongada, sobretudo à Odith, tratando-a como filha. Prof.
Campos, que além de Miranda Torres estava interessada na
mulher, ficou enciumado. Porém, todos ficaram senão amigos
como os de infância, amigos de aventura e levariam esta
cumplicidade para sempre. A mídia continuou sensacionalista
sobre o assunto sem entender patavinas sobre os sentimentos do
que havia ocorrido.
Três dias depois da partida de Marajongada de volta ao
Brasil, o presidente da Unesco foi ao corredor verificar a troca de
ofícios e acusações entre a guarda e a assessoria. Ao chegar à
parede onde estava o papel, leu a seguinte mensagem na
humildade de ser escrita de punho, tendo no final papéis com
centenas de milhares de assinaturas que assim registrava:

“Senhores que representam os países,

Somos moradores de uma região no Brasil chamada Marajó.


Somos moradores de campos, de floresta, de várzea, de terra-firme, de
rios e cidades cercadas por tudo isto que falamos. A maioria de nós
nunca soube de onde veio a ideia, mas o nome Marajó é marca que nos
une e ser marajoara é vestir uma mesma camisa. Talvez tenha sido o
rio Amazonas, tão grande que é a nos abraçar tanto que nos juntou de
42
MARAJONGADA

uma vez para sempre e assim seguimos. Fomos formados por vários
povos antigos, índios, africanos, europeus como são os brasileiros, sem
nenhum ser maior que o outro na contribuição deste sangue final, cor
que beira a do açaí, nosso santo vinho que nos alimenta e que livrou
muitas crianças da fome, amém.
Infelizmente, fomos despejados de nossos direitos sempre que
tentamos alcançá-los. Não somos muitos, não chegamos a um milhão
de viventes, porém, guardamos aquilo que a humanidade busca sem
cessar: a água e a floresta. E sendo uma sorte, também é maldição que
não deveria ser, pois fomos colocados como escravos do comércio,
onde os ricos ficaram mais ricos e nós mais ignorantes a cada vez que
vieram. É isso. Ignorantes. Ignorantes de nós mesmos e do que existe
ao nosso redor. E é tão bonito onde vivemos. E é tão bonita a nossa
gente...
Viemos aqui pedir auxílio. Pedir ajuda pela história, pois só
sabendo o que perdemos e o que deixamos de ganhar podemos ser
melhores como pessoas. E dizem que uma educação que nos torne
cidadãos e cidadãs pode ser a saída. Assim, pronto: pedimos educação.
Pedimos uma educação que nos faça não mais viver pra
comer, para sobreviver, mas para viver como diz a Carta da Onu dos
Direitos Humanos. Não pensar só hoje, mas também no amanhã.
Enriquecer todo mundo meio junto, não com uma ponta lá em cima e
várias pontas aqui embaixo, pois fica capenga de enfrentar as coisas
difíceis da vida. Podia ser feito este pedido ao nosso país, ao Estado
que nos abriga, mas passou o tempo e viemos mostrar nossas
aspirações a outro chefe maior, pois quem sabe o Brasil ouvirá melhor.
Se não formos ouvidos, estaremos convencidos de que serão os
próprios marajoaras a fazerem a sua mudança para melhor. Talvez
seja o nosso destino.
Senhor presidente, não sabemos nem como pedir nem como
deverá ser feito, mas queremos que nos seja entregue uma educação
com ciência de nosso presente e que também nos valorize o passado.
Se isso for conseguido estará muito bom. Deixa o futuro que a gente
resolve.

Muito obrigado pela atenção.

43
Pantoja Ramos

Assinam este documento


Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx...”

ATO 6 – VOLTA

Dizem que o retorno é sempre mais rápido que a ida e se


não foi mais veloz realmente, foi certamente mais aproveitada
pelos tripulantes de Marajongada, com maiores espaços e tempos
para entender melhor o Atlântico e seus lugares maravilhosos.
Bem verdade que enfrentaram novamente tufões e imensas
ondas, mas já sabiam da existência do inimigo, agora sem o
elemento surpresa em suas mentes. Entrosados estavam os
remadores, os gestores das velas, os alfaias de Santa Cruz, a popa
lá em Soure, o timão na mão de Sueli e do zelo de Barbosa. Nas
rodadas de conversa que se seguiam uma atrás de outra, Dona
Cortês escutou a lenda dos nobres de Mazagão expulsos pelos
mouros séculos antes e sua partida para o hoje estado do Amapá.
Sempre se perguntou o porquê de seu nome ser Cortês e naquela
mistureba ibérica ainda a formar os dois países, Portugal e
Espanha, provável que algum de sua linhagem se dirigiu até
Mazagão e de lá pra Breves, onde vivia. Gostava de acreditar
nesse encadeamento das gerações.
Cuba foi parada obrigatória. Queria saber Sabá se era
verídica a alta capacidade médica cubana que tanto falavam, pois
já se mexiam os papéis para mandarem médicos deste país para
a sua Melgaço. Muito educados e solícitos os cubanos,
mostraram como funcionava a sua saúde e a luta para ter
equipamentos que funcionassem para atender a população,
mesmo com todo o embargo comercial imposto pelos países
aliados aos EUA. Investiam mesmo era na medicina preventiva,

44
MARAJONGADA

centro e oitenta graus de diferença à medicina mercadológica do


remédio, você é culpado de ter a doença até que se prove o
contrário e por tanto precisa adquirir remédios. Os cuidados com
as crianças eram alentadoras. Dona de uma das menores taxas de
mortalidade infantil no mundo, Cuba acabou por inspirar muitos
tripulantes de Marajongada como Nega Jucá a se esgueirar ainda
mais nas trincheiras da Pastoral da Criança, entidade que muito
se orgulhava de atuar pelo enfrentamento da desnutrição infantil
no Brasil e países afora. Engraçado foi ouvir dos cubanos a
admiração por Zilda Arns e Paulo Freire e a crítica da pouca
valorização destes heróis em seu próprio país. “Aprendemos
muito com eles, vocês não? ”, indagavam os caribenhos.
Em direção à Linha do Equador, dando a volta pela
Guiana Francesa, Marajongada arrancou uma lágrima de Curica,
memória que tinha da aventura de ir para garimpos ao redor de
Caiena, dos amigos que fez e da agonia de ser preso e deportado.
Já em águas nacionais, escorregando pelo Amapá, terra irmã do
Marajó em algumas situações com maior consideração que o
próprio Pará, Antoniel decidiu ficar no Bailique para visitar a avó
que não se apresentava a tempos. Poderiam todos ficar por ali
mesmo a atracar após a foz do Araguari, entretanto, é melhor
voltar pra casa, pois os marajoaras não são diferentes dos demais
viajantes profissionais: apesar da comichão de fincar bandeira em
outro lugar pelo prazer da brincadeira, o lar é ímã que nos puxa
a todos.
Na mudança de cor de verde do mar para o barrento
Amazonas, já se viam os navios de guerra a escoltar
Marajongada, helicópteros a percorrer as áreas para ver se não
havia destruição e feridos, centenas de lanchas-patrulhas a
acompanhar o giro final, pois foi unânime a sentença que
Marajongada deveria ser atracada na mesma posição anterior a
partida. Sueli em prova cabal de seu arrojo de dirigir aquele
monstro de terras, palmeiras e cipós, foi girando o timão
lentamente de acordo com os dizeres de Barbosa e das batidas
45
Pantoja Ramos

dos mututizeiros, com Ananias e Mãe Caruana voltando ao seu


estado de Soure/Salvaterra perto das praias que se formariam
novamente. As ilhas satélites que seguiam Marajongada
voltaram aos seus municípios, somando-se a esta condição as
pessoas raptadas para o além-mar. Os laços que mantinham esta
junção se foram e tudo se desatrelou. Até Miranda Torres se
desvencilhou de Odith, o que na verdade foi o contrário: achando
que teria oportunidade com a moça, recebeu frase que mais
pareceu um tapa na nuca de vai-te-embora: “não! Tão nojento
quanto homem que bate em mulher é homem seco de ideais, só
potoca! Sai pra lá goela, tô dispensando! ”. A virada de rosto foi
tão cheia de atitude que fez rodar o vestido roxo como uma capa
daquelas de desenho animado a reluzir o sol em seus óculos
escuros. Recordou com aquele gesto as promessas que fizera a si
mesma quando Marajongada parasse: comprar um vestido
florido, maquiar-se com elegância e viajar a Bagre para
disfarçadamente visitar uma amiga e assim rever Prof. Campos,
que não desconfiava de nada. Mas esta é outra história.
Sabá a esta hora já se encontrava em Breves onde pegaria
seu rabeta com hábito daqueles furos que conhecia bem e
zarparia para Melgaço. Abraçaria a ambos, mulher e filho
apertadamente, mas com dó do menino, uma vez que ficara com
a sequela da queda e ele sem os ditos remédios que ficara de
trazer. Tudo bem, levá-lo-ia ao médico cubano que estava por lá
para trocar uma ideia sobre a saúde do rapaz.
Prof. Campos voltaria a Bagre, não sem deixar um
bilhete a Odith de “foi um prazer lhe conhecer” e com uma carta
mais bem elaborada à Ezequiel e família, que tanto lhe valeu.
Daria aulas diferentes, sem o tédio que o consumia há anos, pois
absorveu que o mundo se torna grandioso na medida em que o
valorizamos. Aquele seu mundo, seu novo Bagre.
Prefeito Josias sentou no banco da praça de sua cidade e
fez posição de descontração, levantando alto os braços pro céu se
espreguiçando. Com pequenos sorrisos nos cantos da boca
46
MARAJONGADA

lançados a ele após este sinal, seus conterrâneos voltaram às suas


vidas, mais orgulhosos e altivos e nunca mais seriam seres
rastejantes.
Vereador Salazar largou a política e retornou para
trabalhos em sua comunidade de origem, na estrada que ficava
dentro de Breves. Com esmero, passaram a ter pingos dia a dia
de autonomia até virar chuva de vez. E até ficou mais feliz.
O deputado Miranda Torres sumiu do Marajó, indo alçar
voo no sul do Pará, pois era de lá e lá estava seu curral. Reelegeu-
se deputado estadual mais uma vez e escolhido prefeito de uma
cidade próxima a Marabá. Quando foi constatado a sua ineficácia
enquanto homem público, foi deposto ainda no primeiro mandato
de sua prefeitura, não se elegendo sequer vereador. No entanto,
continuou metido na política de seu partido até corroer-se por
inteiro.
Ananias se formou finalmente em geografia. Entretanto,
já tinha se formado antes graças a Marajongada. Mãe Caruana
lhe mandou um muiraquitã de pedra para proteger seus dias e
seria seu afilhado para sempre. Ela recolheu-se em sua casa de
palha, fumando cachimbo dia após dia e lembrando-se das coisas
que vira e participara. Na praia, em cânticos antigos ora de pajés,
ora de velhos pretos, acalmou de vez Marajongada que tocou seu
posto finalmente num balanço de atraque, aliviando a todos no
término do fenômeno.
O mutum desceu do grosso galho da sumaumeira que
cuidara dele e de tantos outros animais que fugiam das incertezas
da viagem. Cheio de si pela façanha de ter sobrevivido, insistiu
na troça de imitar o galo, no seu canto feioso de ave que ressoara
longe, até Chaves.
Menina Sueli acordou de seu sono. Eram seis horas da
manhã quando levantou do chão próximo à máquina de costura
velha. Não entendeu. Ao chegar à cozinha viu o pai preparando
o café, sabedor que era do despertar da filha. “Pai, quanto tempo

47
Pantoja Ramos

eu dormi? ”. Calmamente, o velho puxou uma cadeira de madeira


para a menina se sentar e colocou na cabeça de Sueli o chapéu de
almirante doado a ela por um militar naval holandês que ouvira
falar da comandante sonâmbula e começou a explicar tudo o que
havia ocorrido em detalhes que demorariam horas, dias, semanas,
muito mais, a vida inteira em recordações dos acontecimentos
que os deixaram companheiros para sempre.

ATO 7 – DESTINO

O Marajó aguardou pacientemente a resposta da


UNESCO, do Brasil, do Pará. Sim, houveram mais projetos para
a região no sentido de melhorar a educação, em sua grande parte
incentivados pela representante da ONU. Por isso a carta obteve
êxito. Infelizmente, por dificuldade de absorver os projetos
investidos, os governos federal e estadual não aplicaram as
contrapartidas necessárias e assim a peleja continuou, porém,
com novos jogadores, mais firmes e exigentes dos direitos e
deveres que possuíam em relação à mesorregião. Não foi por
acaso que uma universidade para ciências marajoaras surgiu. A
primeira disciplina ofertada foi Cidadania. O tema da primeira
aula foi Percepção sobre a Própria Grandeza.

Décadas depois, todos falariam de aquecimento global.


Os países não se convenceriam. O consumo não se reduziria. O
oceano cresceria. As cidades próximas às costas marinhas
chorariam de medo pelo início do afogamento.
Em vez de temer, Sueli, agora anciã, decidiria sonhar
novamente com a mesma força poética que fizera a terra tremer
um dia. Marajongada, rebelde à mesmice geral, sairia mais uma

48
MARAJONGADA

vez de sua condição para evitar o pior. Desta vez, os tripulantes


marajoaras já estariam preparados. Até o mutum.

E Marajongada viajaria mundo afora, sem nunca mais


aportar.

49
Pantoja Ramos

50
NADA MAIS BONITO QUE UMAcTARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO
NUMA ÉPOCA DE INVERNO...
7 ATOS

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Pantoja Ramos

Colaboraram com o texto sobre a extração de palmito no


Marajó:
Teofro Lacerda – Portel
Eliana Barbosa – Gurupá

Dedicado à luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais do


Marajó pela terra.

Inspirado em relatos do Sindicato dos Trabalhadores e


Trabalhadoras Rurais de Afuá, companheiros bravos e
idealistas.
Ê Suprimo Erivelton, Suprimo Cuca, Suprimo Vitoriano,
Suprimo Antônio Batista, Suprima Vanda!! Um Abraço!

“O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”.


Jean Jacques Rosseau – Do Contrato Social.

52
c
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO
NUMA ÉPOCA DE INVERNO...

7 ATOS
Belém, 09 de janeiro de 2015.

ATO 1 – CALMA, ELE TÁ ASSUSTADO

Senhora??? Num entendi senhora??? Não, não, num


posso falar do que num me deixam. Seu Boiadeiro pode num
gostar. Eh me solta, eh me solta, macho! Ai! Rummmmm!
Rummmmmmm! Ai! Deixa eu ir, deixa? Cadê meus netos??
Quêde? Onde? Com quem? O Beto meu filho foi junto? Foi todo
mundo? Me solta!! Impinge, o João Impinge, cadê ele? Hum, tu
estás aí! Solta ele, solta ele que ele mesmo é que num vai falar
nada! Só sobrou nós dois? Bora, me solta! Num falo, num falo,
seu Boiadeiro me pega, hum. Deixa eu ir Dona, pelamordeDeus!
Quê que vocês quer?? pelamordeDeus! Isso é água? Tão
limpinha assim? Me dá água, quero água Dona. Água. Ahhhh.
Deus lhe pague.
Seu Boiadeiro tá por aí?? Ai se me pega! Ai se me pega!
Solta eu, solta? Rumm! Deixa eu ir pro meu Tapiri, deixa, Dona?
Dá água pro João, Dona. Ele tá te agradecendo. Me solta!!!!
Solta!!! Ai! PelamordeDeus!!! Me deixa...
Você tem bolacha? Me dá uma? Deus lhe pague. Deixa
eu ir pro meu Tapiri! Deixa? Já te falei que num quero falar...
Posso dormir? Deixa Dona? Deus lhe pague... Te arreda
daí João Impinge.

53
Pantoja Ramos

Senhora? De novo? Qué-que isso? Remédio? É sim,


senhora, sofro dos nervos. Vou melhorar? Tu diz? É água? Deus
lhe pague Dona. Meu nome? Nicanor do Divino Ferreira.
Quantos anos? Não sei, uns setenta pra cima. Nascido e criado
no Cajari, é sim, perto do Beiradão, sabe chegar? Num conhece?
Ahh, é Laranjal do Jari agora? Mas lá nem tem laranja?? Hum-
hum. Se tenho apelido? Sim, aqui por estas paragens me chamam
Seu Nico Caduco. Sei lá porquê? Num ri João, senão falo de ti.
O porquê de João Impinge? É nome mesmo dele, aí João Impinge
de Oliveira Pano Branco. Homem azarado esse suprimo João
Impinge tu nem sabe Dona. Panema...
Porquê Nico Caduco? Sei lá, só sei que fico pensando,
pensando e falando, falando, caducando quando se fica velho né?
Homem novo pensa, velho caduca, né? Rá! Não, Dona, me
chamaram de Nico Caduco quando vim pra cá. Quando? Acho
que já era no tempo do Sarney. Não, senhora, desde que cheguei
não saí daqui. Seu Boiadeiro não deixa. Eh tu não vai contar pra
ele né? Se me pega? Ai se me pega falando dele... Quê? Me
arranca o couro na certa e pendura lá no alto das copa da
sumaumeira pra humilhar. Arranca sim, João Impinge já até teve
essa dor, né Impinge? Quando? De surra de corda de nailom.
Tropeçou no assoalho do barco, queimou os dedos no cano da
descarga e no pular da dor derrubou umas 3 rasas de açaí por ali
empilhada perto da janela do barco do homem, thibum. Nessa
dita hora Seu Boiadeiro tinha acabado de acordar da pipira da
tarde, naquela dor de moleira do sol quente. Aí já viu né? Por isso
não conto nada. O que me garante Dona? A senhora? Seu
Boiadeiro tá preso? Mas quando já? Potoca sua. Potoca. Não é
potoca! Fiuuuuuu! Cadê ele? Tá preso? Num pode. Cês são
daonde? polícia daonde? Federal? Fiuuuuuu! Se eu disser, Seu
Boiadeiro vai saber? Olha... Dona, eu já estou bem velho, num
tenho força mais pra pegar pisa de ninguém. Quêde meus netos?
Quando eles voltam de Macapá? Eu vou pra lá também? Mas
quando, Não vou não. Mas vou poder vê eles? Tá bom, tá bom.
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
Quando o Beto vem me buscar? Na sexta, tá bom. Vou pra onde
me tratar? Faz muitos anos que não piso em Macapá. Não é mais
ponte de madeira? Rá! Mas tu sabe, eu volto pro meu Tapiri né?
Se eu falar não vai acontecer nada comigo? Tu diz? Não
adianta, se tiver que falar tem que ser eu, o João Impinge não
expressa nada. Eu mesmo nunca ouvi síbala dessa quase boca.
Quase boca? É que num tem dente, Dona, pode vê, abre aí João
Impinge. Coisa feia. Rá! Foi queda. Caiu com o queixo bem no
meio de tronqueira que tava num igarapé lá de cima. Lá de cima
do pé de açaí. Cortava palmito pulando de rama em rama, parecia
um capelão. Ele fazia isso sim. Pra não perder tempo e cortar
mais palmito. Um pessoal de Boa Vista tinha ensinado pra ele
essa arte. Ó, já tô falando muito. Se o seu Boiadeiro descobre, ai
se me pega! Se pega! Melhor parar. Tem merenda? Sardinha?
Serve sim, Dona. Tem farinha? Daqui que eu faço uma farofada.
Hummm. Deus lhe dê sustento. Ó, o João Impinge, já cortou o
beiço na lata de sardinha. Parece cachorro do Mazagão. Mas tu é
besta, hein? Rá! Tô com uns tremeliques Dona, me dá daquele
remédio? A senhora é uma santa.

ATO 2 – ELE DISSE COMO FORAM PARAR ALI

O que me mata essa boca que não se quieta, peste! Se a


senhora quer me ajudar, não me faz essas pregunta, não. Se tá
tudo resolvido, pregunta pras pessoas que moravam aqui.
Quantas? Trinta famílias. Sim, tudo moradora desta ilha dos
Catitus. Trabalhavam uns na fábrica que tinha de palmito aqui,
outros no corte do palmito. Quê? A maioria na derruba de açaí.
Eu? Ficava no palmital, cortando, cortando... aonde? No centro,
eu mais uns vinte machos. Quando? Sempre Dona, sempre. A
gente ficava mesmo era no inverno, que ali rimava com inferno.
55
Pantoja Ramos

Hum? Tu não sabe Dona o que é aperreio... ó, já tô falando muito.


A senhora tá me enrolando.
Tem café? Tem? Dá um pouquinho? Tem bolacha? Eu
gosto dessa aí de água e sal. A doce, não? Aumenta meu treme-
treme? Tá bom. Ó, eu vim com meu filho e minha nora os dois
novinhos ainda do Mazagão, não sei, acho que os dois tinham
uns vinte e poucos anos. Eram moços os dois. Eu já era veterano,
mas ainda vivia na sacanagem por aí, Rá! Não estufa os peito
João Impinge, tu ainda mijava nos cueiros. Sabia, Dona, que no
dia que ele estreiou nos puteiros do Beiradão, foi logo pegar a
Maria-Rasga-Bunda? Rá! Coitado! A senhora não acredita que
tem mulher assim? Pois o João Impinge viu hum-hum. Rá! Deixa
pra lá. A senhora parece daquelas que não merece esse tipo de
conto. Me discurpa. Ah tá! Nos três viemos no convidado de seu
Hilário pra vim pro trampo da fábrica daqui. A senhora sabe, em
inverno é difícil arrumar bóia e o trabalho era justamente neste
tempo. De empregado em firma já tinha trabalhado, lá no Jari e
bora que vai dar certo. Meu filho Beto era o único que me
acompanhava, os outro, Cláudio, Maria, Pedro e Diane era tudo
espalhado, uns pra Belém, outros pra Santarém. Diane foi pra
Portel. Minha mulher? Se chamava Antonieta. Morreu, Dona,
ainda nova, doença de mulher, saia muito sangue, uma lavagem
de sangue coitada dela. Sabecomoé, a gente não tinha condição
de procurar um bom médico. Demorou muito pra gente saber o
que era. Não teve jeito. Ah, Antonieta, Antonieta que Deus a
tenha... chega minha vista quase escureceu agora. Bom, era Deus
e chá que curavam a gente. Hoje, mudou né? Não? Tu diz que
saúde ainda tá encruada! Rá!
Chegamos Beto, minha nora Valéria e eu num meio de
uma chuvada medonha. Hilário estava ali esperando a gente no
porto da casa dele. Lembro que molhou toda a nossa boroca. É
muito ruim dormir em rede molhada. A senhora já dormiu?
Nunca? É agonia e frio no espinhaço, que vai tudo pras bacia,
numa vontade medonha do mijo. João Impinge conhece isso de
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
dormir no molhado. Uma vez ele arrumou de caçar, né, João, nas
terras alta do rio Jaburu. Pra evitar a onça, armou a rede bem nos
alto de uma pracuubeira. Mas quando, ispia que deu uma saída
da lua que se danou a encharcar e tudo e quando João Impinge
percebeu, tinha inundado quase tudo, era balde, rede boiando,
onça boiando bem no ladinho dele. Ele ali deitado na rede boiada
no rio, de noite, no escuro, escutando aquele esporro de onça
afogada que resolveu se prender na rede dele. Foi arranho pra
todo lado. Fechou a madrugada molhado e todo ferido da
bichona. A onça? Quando encostou nele pegou a panemice do
João Impinge e morreu afogada na hora. Pá-tche-béi. Esse Lepra
me atrapalha a conversa.
No outro dia fomo apresentado na fábrica. Tinha ali uns
trinta empregados. Seu Boiadeiro, tava ali, chapéu de fazendeiro,
eu mal podia ver a vista dele, era escura do chapéu que não dava
pra ver direito a beirada de baixo do olho. Passava malvadeza
naquela sombra. Tinha uns outro ali, cara feia, diziam ser o
Espinho, o Fogoió e o Jacuraru. Nunca soube o nome mesmo
deles Dona. De nenhum deles. Sebastião Cardoso dos Santos,
esse era o nome do Seu Boadeiro? Fiuuuuuuuuu!!! O tal gerente
da fábrica era Chico Santos, irmão do seu Boiadeiro, esse eu
sabia. Trampamos ali no primeiro dia, botando palmito nos vidro.
O palmito vinha numa polia porruda e nós botava rápido nos
potes. Ali ficamos os três uma semana mais ou menos. Aí eu
velho, quebrava de vez em quando uns potes e meu filho era
fortão do jeito que eu era quando molecão. Olhando tal jeito, Seu
Chico Santos mandou nós dois pro palmital e a Valéria ficou na
fábrica. Meu filho ele escolheu pro palmital por força, eu por
zarulhice.
O João Impinge? Quando chegou? Humm, acho que foi
uns cinco anos depois. Foi né, João? Foi. No pouco que falou na
vida para mim disse que tinha vindo lá de Tabatinga descendo o
rio Amazonas. Diz alguma coisa peste!! Viu só, nada. É muito

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Pantoja Ramos

difícil mesmo este macho falar. Até brinco que só fala quando
tem briga de jabuti. A senhora já viu briga de jabuti? É uma
desgraça de barulheira! E quase ninguém neste mundo de Deus
viu bestial coisa. Mas quem vê? Hum-hum, eu hein? Mas sim,
ele me falou que estava indo pra Belém, mas deu discunforme
cole, sabe o que é Dona? Cólera? Prefiro falar Cole. Pois é, deu
Cole no barco quando tava em Almeirim. Ele mesmo pegou a
praga e teve que ir tomar soro sem parar naquela cidade. Se
vazava todo naquele fedor de dentro do bucho. Quase bateu o
cacau. Ali acabou o dinheiro da passagem. O Impinge teve que
ficar por ali mesmo, mas uns garimpeiros daquelas bandas
juraram ele de morte e ele caiu no primeiro barco que ia pra
Santana. Sem as condição, escutou que tinha uma boa fábrica em
Afuá e veio pra aqui em busca de sorte. Se lascou! Rá!
Só sei que as coisas de repente ficaram mais feias ainda.
O Seu Hilário sumiu. Sumiu mesmo. E foi meu susto quando
voltei na casa dele pra visitar, a gente costuma visitar os amigos,
vocês fazem isso? Poisé, não vi ninguém na morada. Tudo
esquisito, fiquei umas quantas horas ali esperando, aporrinhado
já. Nada de Hilário, a mulher e as duas filhas aparecerem. Já com
fome, saí pra varrida e dei de cara ali, Dona, ali, com duas cruzes
fincadas no chão. Naquele meio breu de seis horas no mato. Ali,
Dona, ali! Me subiu um arrepio no cangote do que podia ser e saí
no disparo de volta. Até parecia que escutava o gemido das almas
a me pedir ajuda lá de longe onde estavam as cruz. Pra lá ficaram
as visagens. Acho que foi coisa dos três do Boiadeiro. Não, Dona,
só vi duas cruz, podia ser as meninas, vai saber? Quando cheguei
perto da casa do Hilário vi de longe Fogoió olhando pro meu
casco. Deitei na lama mesmo, no meio dos açaizeiros.
Putamerda! O peste subiu no porto e depois pro mato com uma
espingarda. Dona, eu num ia trocar tiro com ele, pois também
tinha minha cartucheira fiel. Me bateu o medo. Sou medroso, sou
de paz. Me escondi no pé de um mututizeiro que tava por ali por
horas até que Fogoió se foi. Acho que foi buscar alguém, o
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
sacana. No que tomei coragem, dei a volta na posse do Hilário
até chegar na costa da Ilha dos Catitus. Lá longe vinha um barco.
Fiquei quieto e vi o dito Fogoió com mais dois olhando pro mato.
Eu ali no meio do aturiá. Ainda bem que tava escurecido. E
lacraia me ferrando chega eu chorava fino. Larguei o casco de
mão. Voltei pelo palmital. Como achei de volta Dona? Olha, eu
tinha que achar senão iam desconfiar que eu tinha sumido. Nestas
horas nasce até inteligência na gente. Vixe, deu até uns beribéris
em mim agora falando nisso. Você tem aquele remédio Dona?
Deus lhe pague. João Impinge, calma João, deita aí na tua rede.
Acho que é fome Dona, tem aí o que comer?

ATO 3 – ELE DISSE COMO ERAM TRATADOS

Nem sei como abri boca dessas coisas Dona. A senhora


conseguiu arrancar de mim a fala né? Ó, lembra da promessa,
Seu Boiadeiro não pode saber que te falei viu? Se me pega, tu
num sabe...Como era o palmital? Bom ali tinha uns Tapiris pra
gente quietar, só os esteios de virola, palha de buçu como coberta
pra chuva e sereno, assoalhado de açaizeiro. Encerado, o que é
isso? Hum-hum. Só nossas redes, corda de cipó, o Tapiri, o facão,
uma espingarda, a poronga e a guarnição levantada dos bichos.
O que tinha lá na guarnição? Charque, sal, açúcar, café. Só. Carne
a gente tinha que arrumar no mato, uma cutia, um jacaré, um
camaleão, uma galinha d´água quando a gente via. Umas pacas.
Hummmm. Umas pacas. Dona que eu tinha faro pra caçar paca
gorda. Era eu meter a cabeça no mato, que elas se aperriavam,
saiam doidas pra lá Pei! Pra cá Pei! Rá! Era num tempo que tinha
muita, mas aí a gente não pensava nas prenhas. Como sabia?
Num sabia, desconfiava que tinha paca prenha quando dava
fevereiro, inverno crescendo. Mas a fome a senhora já viu né?
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Pantoja Ramos

Não dava pra ficar com murrinha de ir fazer varrida nem pensar
nas pacas que a gente caçava. Tinha que brigar pelo de comer.
Mas não era complicado, tinha muita paca. Muita cutia. Peixe
então, nem te falo! A gente fazia a tapagem dos igarapés com
pano de pari, na maré alta. Depois era só fiu!! Muito jaraqui, jiju,
jacundá. Era o que salvava a gente naquele tempo. A senhora já
trabalhou com fome e ter que contar que ia arrumar algum de
comer? Poisé, os macho sempre butucava sobre isso. Cachorro
que estava com a gente, o Saliente, era o melhor dos narizes e era
quem eu mais botava fé. Saliente? Sim, era o nome do cachorro
que a gente tinha. Bom, demos o nome de Saliente porque
gostava de montar nas caça abatida e tentar fazer filho nelas,
desde mirradinho o pulguento. Pois foi: Saliente. Era preto e
branco, seco, mas forte que nem eu fui a vida toda. João Impinge
bom caçador? Que nada. Uma vez conseguiu, tu acredita, pegar
uma peia de um mutum. Bicho brabo, mas não é pra tanto quando
se é macho. Mas João Impinge neste dia foi mexer no ninho da
fêmea e pegou bicada até não querer mais. Olhe Dona, correu
tanto que escorregou e descambou de um barranco em cima de
um pé de murumuru, foi espinho bem no meio da moleira. Rá!
Com a mão na cabeça em minha direção pra eu catar o espinho.
Abri a cabeça do danado e estavam ali o espinho, o piolho, a
pulga e uma tucandera. Valha-me-Deus! Que dei com o sumo de
anhinga na cabeça do infeliz pra espantar aquelas bichas. Só
faltava dar tapuru, hum não falta muito pra esse panema. Olha a
cara dele aí, senhora, todo desconfiado. Rá!
Dona, não pede pra respondê isso. Não quero. Chega me
deu beribéri. Tá na hora do meu remédio, né? Tô com sono. Posso
dormir?
Bom dia senhora. Bom dia. Bom dinha pra cá João
Impinge, Rá! Hein Dona, esses homi aí contigo não tem casa
não? A senhora não tem casa não? Eu tenho. Meu Tapiri. Fica ali
no centro de Ilha dos Catitus. Lá eu tenho minhas coisas, retrato
de Antonieta, minha Antonieta.
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...

Donzela, minha donzela,


No dia que fui pra guerra
Jurei voltar pra sua terra
Pra gente ter que casar...

Ah Antonieta, que saudade. A senhora é casada? Pudera.


Muito bonita. Eu fui casado. Sim, no tempo de Antonieta não
tinha outra mulher na história. Fui cabra direito. Depois. Bom.
Depois fui viver nas quebradas até chegar no Beiradão do Jari.
Ah, bons tempos de sacanagem. Quase me ajunto com Dinéia.
Foi quase. Eu até podia ter tirado ela daquela lida, mas num fui
homem de guerrear com os outros. A dona do puteiro, como
chamava ela? Como chamava? Paloma! Isso, Paloma. A porra da
Paloma tinha uma ciumeira da Dinéia, acho que era enrabichada
por ela. Mandou recado que seu fosse tirar a Dinéia de lá, uns
maranhenses facudo ia visitar minha rede e a dela. Larguei dela,
que chorou, me arranhou todo no peito pra eu ficar. Não dava.
Me fui. Sou muito medroso. Não. Outra vez mulher minha
morrendo não dá. Purquê digo? Vai que puxei pra panemice do
outro aí, o Impinge pra num ter sorte. Esse aí teve mulher sim,
umas quatro, mas foi corno de todas. Pra você vê, Impinge foi
bom, não batia, trabalhador, mas foi corno da ocasião. Pensa que
ficou cuíra e quis matança, que nada. Foi sempre pegando seus
panos de bunda e se mandando. João Impinge de Oliveira Pano
Branco. Aqui se juntou duas vezes o praga. Não diz isso, moça,
num tô enrolando a senhora não. Só não gosto de falar daqui.
Na fábrica, Valéria começou a recramar do trabalho.
Dizia que não davam nem água pra ela. Começava o trampo às
sete da manhã, almoçava um pouco e já caía na tarefa. Terminava
de noite a lida começada de manhã, deitando na rede bem lascada
do cansaço. Não sei nem se aguentava meu filho precisado. Ô
vida das mulhé! Hoje eu entendo, hum. Seu Boiadeiro? Tinha
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Pantoja Ramos

montado uma vila de um primeiro trapiche, e disso moravam lá


os funcionário. Pagamento? A gente recebia, mas devolvia para
pagar a comida que deixava em casa. Meus netos, Mário e
Mariana, já estavam correndo pela morada e precisavam de roupa
e comida. Passarinho quer comer, não quer saber. E Valéria tava
fininha, fininha como uma taboca. Foi quando teve os nenéns que
aproveitou o resguardo pra descansar. E ali ficou mufina a
Valéria de tanto trabalhar. Ganhava 100, devia 300 pro armazém
do Seu Boiadeiro. Foi se enrolando, enrolando. Tinha que
trabalhar mais e mais pra saldar a dívida. Aquilo num findava.
Quanto tempo durava um resguardo Dona? Na cidade é isso? O
nosso durava uns 90 dias no costume. Mas na terra de Seu
Boiadeiro, era só de um culto pra outro. E só.
O pessoal da vila também estava todo endividado. Não
tinham nada. Seu Carlos se emputeceu daquilo e tentou sair.
Disse que ia cair no mundo. Pegou os filhos e a mulher e saiu
numa casco dentro do igarapé do Hilário. Pegaram eles já na
praia do Visconde no outro lado. Os filhos ficaram. A mulher
também. Mas seu Carlos sumiu. Acho que fincaram mais uma
cruz por aí. Vixe! Daí tiraram a televisão da vila e a partir disso
a gente não sabia do mundo. Foi por isso que me apelidaram Nico
Caduco. A senhora vê, eu era a pessoa mais velha e que tinha
rodado. Conhecia uma mina de cidade. Quando eu falava de uma
fábrica que tinha o tamanho aqui ó da ponta da vila até a dobrada
naquela ponta ali ó, eles falavam que eu ia caducando. Devia tá.
Mas eu vi atracar aquela balsona lá no Jari. Quando falei isso,
que ela veio de balsa diz-que do Japão, aí que me chamaram de
Caduco. Só eu dizia as coisas do Brasil, os presidente, Médici,
Gaisel, Figueredo, Tancredo morreu coitado, Sarney, até quando
eu pude saber. Dali em diante fiquei fora do mundo. Pensa
naquelas crianças. Meu neto tem 14 anos. Minha neta tem 13.
Nunca botaram a vista numa televisão, acredita senhora? Não
estudavam, não sabem lê até hoje. Como é que eu podia ajudar?
Mal sei lê. Sei desenhar meu nome. Até comecei, mas eu mesmo
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
não sei direito escrever Mário e Mariana. Ô peste ... só falava pra
eles pra sonhar com a escola. Que iam virar doutô. Ele professor.
Ela enfermeira. Ah, quem odera. Mas eu pedia, sonha tu, sonha
ela, sonha tu, sonha ele. Pior. Já estava Mariana na fábrica. Já
estava Mário no centro cortando palmito. Foi quando vocês
apareceram.
Se o trabalho do palmito era ruim? Deixa eu te dizer
como era mais ou menos, é pusquê suprima, desculpe a
intimidade, Senhora, deixa eu te dizer, a gente vivia molhado.
Era uma vida na água. Da barriga da perna e da barriga sempre
com frio. Uma sensação insossa da vida, sabia? Vez em quando
uma beliscada na batata da perna, da friagem. Seu Boiadeiro
juntava os homens no trapiche da fábrica dele, dava a guarnição
naquela miséria, e nós a amolar o facão. A gente amolava o facão
enquanto ele falava. Nós de cabeça baixa amolando. Jurando.
Jurando. A gente sempre jurava, mas não cumpria o que vinha na
cabeça. Ele escrotiava com a gente, chamava de tiricentos, pra
ele todo mundo era preguiçoso ou corno. O Bixuga, coitado, já
tinha o pobrema da cara cheia daquelas bolotas, ainda tinha que
ouvir quieto o Boiadeiro falar do jeito dele. Dizia que era veado,
o que a gente já sabia e nem ligava, pois era pessoa boa e muito,
mas muito trabalhadora. Seu Boiadeiro fazia questão de
humilhar. O disgrama do Espinho, jagunço fedido, vivia batendo
no Bixuga, sei lá porque. Sem motivo. Te digo que teve vez que
ele foi lá no Tapiri só pra judiar no Bixuga, cê credita? A gente
amolava o terçado. Aquele Jacuraru com o revólver olhando pra
gente, reinando. Fogoió olhando pra mim, eu de cabeça baixa,
amolando, percebia. Beto sentado no porto com as pernas
balançando bestava olhando pro mato, vivia assim.
Do porto a gente caía no mato, tinha que ir lá pro centro.
A gente acordava antes no cagá-dos-pinto no alerta do Jacuraru,
dependendo da maré pra pegar de enchente até chegar no
palmital. Os cascos tudo ali na boca do igarapé do Hilário. Até

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Pantoja Ramos

lá a gente andava. Seguia na fila, sempre tinha uns dez armados


andando conosco. Quantos? Éramos vinte. Diabo do Boiadeiro
contava um armado pra dois com terçado, só pra ter certeza quem
ganhava no caso de um pára-pra-acertá. Se tinha bota? Rá! O
nosso sapato era o pé mesmo, vê aqui a grossura da sola do meu
pé, viu? Ó! Murumuru é brinquedo pra mim. Mas o João Impinge
coitado, mostra pra ela macho? Deu nojo? Isso é tudo buraco de
bicho que deu nele. Cabra com pezinho de moça. A Dona
acredita que ele pisou até em carataí?? Sei lá como se deu, só vi
quando o peste correu pra mim deu um pé só como saci. Rá! Esse
Impinge... mas o complicado era as cobras. Tem medo de cobra?
Nós também. Eu tenho um medo, medo, medonho. Combóia.
Coral. Surucucu. Jararaquinha. Vixe!
A combóia é bicho traiçoeiro. Tá sempre na espreita nos
pé de açaí, naquela ramada de baixo. Veneno forte daqueles que
apodrece onde pega. Se enrola de tal maneira que num se
percebe. Fica da cor de tudo a desgraçada. Na lama do chão, na
touceira, debaixo da paxiúba, ali no mututizeiro, dificilmente no
aturiá, num gosta muito eu acho. Seu Lau, um dos nossos, quando
estava pegando pela folha do açaí pra cortar, foi batido ainda bem
que na ponta do dedo fura-bolo, foi rápido Tchá e saiu dali sem
contar conversa, pegou o facão, torou a cabeça da bicha e ponta
do dedo envenenado. Vap. Andiroba aqui. Pracaxi ali, uma reza
do Xarles, nosso pajé, o fogo pra terminar de queimar o dedo pra
num dá tetanu e o homem ficava bom. Só que com o dedo que
parecia uma cabeça de jiju de tão feia. Remédio pra cobra se a
gente tinha? Rá! Hospital? Rá! No máximo a gente mandava
recado pro agente de saúde, o Ramalho, que mandava pra gente
ampola com negócio dentro. Não, ele não vinha aplicar, paresque
que seu Boiadeiro num deixava. Dava pro Xarles e ele se virava.
Mas isso quando chegava a notícia pra ele.
Coral era fogo. Tu num dá nada. Pequena, nem tem dente
pra fora. Anda quieta e nem te pula. Graças a Deus num te pula.
Tchá!Rá! Te assutei Dona? Rá! Tu acredita que o João Impinge
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
conseguiu se picado de coral? Num morreu num sei porquê,
achou uma rastejando em cima do short pendurado no varal e
começou a desafiar a coragem, brincou com ela, atazanou,
frescou com a cobrinha, dava beijo na cabeça da sujeita. Tava
porre? Pior que tava. Aliás, taí um homem que gosta de uma
cachaça! Nós gosta, mas ele quando vê uma cana cai de boca.
Nesse dia ele estava bem boneco mesmo. Bem boneco. Dançou
com a coralzinha, já emputecida se me permite pensar. Eu ficaria.
A senhora ficaria? Pois é, e num dormiu ali desbundado com a
cobrinha perto? Joguei longe. Mas acho que a coral tinha pegado
tanta corda do Impinge que veio devagar, devagar, veio pelo cipó
que amarrava a rede, desceu pelo punho e foi chupar bem devagar
o pobre do Impinge. Só de raiva. Dona, esse homem quase
morreu. Deu febre. Popocou braço do cabra. Olhava pra cima,
pra cima, queimando, queimando, os olhos tavam branquejado.
Achei que o sacana ia bater o cacau desta vez. Xarles começou
umas reza, uma folha, uns chás, uns restos de ampola na veia do
homi e foi e foi. A chuva pegava forte nesse tempo, a gente
chegou a cobrir o João Impinge com um ajuntamento de tururis
que acabou virando um porrudo lençol. Depois de sete dias
começou a melhorar. A febre indo, indo. Taí o peste se mostrando
pra senhora. Vai brincar com coral de novo, vai?
A surucucu, Dona? Ahh, aquela sim que mete medo. Eu
diria que a mãe das cobras. Peçonhenta! Filha duma água! Ela
persegue o caboclo. Num acredita? Pois digo e digo de novo, ela
te marca, te pega raiva, ela corre atrás de ti. Tava eu e o Valdo no
rastro de um tatu, quando escutamo se mexendo lá dum buraco
uma coisa. Valdo disse que o tatu escondia ali. Tá não, tá não, foi
pra ali. Bora? Ele teimou. Tá, dá uma cutucada com vareta que
eu vou ispiá lá por trás daquele pau-mulato ali. Valdo pegou da
vareta. Cutucou, mexeu. Cutucou. Mexeu. Resolveu pegar o tatu
na unha e lá no meio do esforço de chegar no fundo, um troço
pegou na chave da mão dele e puxou ele pra dentro. Ficou no

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Pantoja Ramos

buraco até o ombro. Puxou, repuxou, lutou. No grito dele eu vim


correndo e ele tirou o braço de dentro nas últimas. Perguntei que
foi Homi? Ele só disse que um troço mordeu e puxou ele. Nessa
hora saiu a bichona lá de dentro, Dona? Como é grande,
amarelona, pitú, pitiú que só a senhora vendo. E veio pra cima da
gente. Veio mesmo. E haja nós tentar dá com o facão. A
espingarda? Estava tudo já no chão e começamos a correr,
quando olhei pra trás, a maldita ali no nosso rastro. Deus que
carrera a minha e fumo embora que nem dois tijubina! Dizem que
a cobra quando não pega alguém fica com tanta raiva que começa
a se morder toda. Deve tá lá até hoje me esperando. Mas o Valdo,
coitado, levou mordida demais. A mão foi apodrecendo,
apodrecendo... ficou por ali com a gente cotoco do braço, aqui no
ombro. Ah, a Senhora conheceu ele? Pois é, aquilo foi surucucu.
Jararaquinha era o que mais pegava no pé. Pegava
mesmo. Havaiana, coitada, num tem como segurar e quase tudo
nós tinha fisgada de jararaquinha no calcanhar, no dedão. É
pequena a bichinha mas dá um prejuízo... Num dá pra brincar. Se
não cuidar morre mesmo sendo pequena a cobra. O filho do
Miguel, coitadinho, coitadinho Dona, coitadinho. Brincando no
terreiro de casa, num tinha nem dois anos. Num pode deixar
pequeninho andar pelo barro, num tem sustança pra essas coisas.
Ninguém entendia a febre, só a mãe olhou aqueles furinhos no
pezinho da criança. O bichinho gemia, Dona. Gemia até quietar
o suspiro. Ai meu Deus! Meu Deus! Ai que o mundo vira
carambela se as crianças se vão. Ai que tudo é só uma tristeza
medonha. Sem fim. Ai que o Miguel sofreu muito, ai que Dona
Marlene gritou, gritou chega a gente tapava as orelhas. Miguel
dava com a cabeça no esteio da casinha deles na vila com tanta
força que quase veio abaixo. Ai Dona, que dor. É assim mesmo
Dona, num chora. Era assim que eram as coisas. Tô com sono,
posso dormir? Deus lhe pague.
Bom dia, senhora. Bom dia Impinge, toma que chuva que
num pára, né? Daquelas cor-de-rato, passa agora não, Dona,
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DE INVERNO...
melhor continuar quieta na rede. Rá! Como a gente aguenta? A
gente se acostuma. É muita chuva na moleira. A gente pegava a
canoa de manhã e saía pro palmital. Tudo quieto, uma encarnada
aqui, outra piada ali. E a gente remando. Era pra passar o tempo.
Uma hora e meia de remada. Aquele frio que num passava, haja
café pra esquentar por dentro. Haja baforada da porronca nossa.
Eu remava com meu parceiro aqui, o Impinge, devagar, só na
manha pra poder reparar a lama no pé das plantas, como tem
planta nessa mata, tudo de um jeito diferente, nunca repetia. Pra
senhora repete, só que pra nós não. Tudo é novidade. Aquele
mulateiro esgalhado pra buscar o sol, por isso cambou pro lado
assim ó. Aquele assacuzeiro enorme que tinha um furo no meio.
Uma árvore deitada quem nem uma fêmea jeitosa. Desculpa o
atrevimento, Dona. A gente remava quieto depois da piada pra
guardar força pro trampo, cada um dos vinte pensando sei-lá-
num-sei-quê. Xarles pensava acho que nos remédio ali no mato e
vez em quando reparava um chicuã que só ele via, mais ninguém.
Se benzia. Dizia que era agouro. Mas aí olhava pro João Impinge
e ria. Valdo remava capenga de seu só braço, acho que ele
invejava os outros remando de cada lado, mas juro que a puxada
da água dele era mais forte. Ele num queria perder pro outro. Era
a peconha mais segura. Era a melhor terçadada no palmital. Sei
lá, era meio que com raiva. Bixuga era calado, mas sempre a
oferecer café pra esquentar a gente, vez ou outra pegava ele
olhando para a cor dos tajás, as flor que dá pro ali. Bromélia,
Dona? Pra nós, tajá. Rá! Ele olhava, olhava, como se quisesse
tirar mais cor daquelas flor eu digo até bonita. Ele sempre catava
e plantava no Tapiri. No início a gente brigava com ele pra num
empatar nossa ida pro palmital, mas ele ia assim mesmo e caia na
água e de lá um jeito de trepar nas árvore. Trazia na camisa
aquele mato velho. Mas num é que dava uma florada bonita,
como é qui pode daquele musgo saí uma flor daquela? Só Deus.

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Só Deus mesmo. Paramo de pegar no pé dele depois disso. Num


fazia mal pra ninguém e o porra do Espinho a atazanar ele.
Osmar era outro que pegava coisa do mato. Tava sempre
na parceria com seu Lau, o do dedo torado da combóia, lembra?
Mas Osmar pegava peixe. Era um bom pescador. Sempre na
linha, no caminho das canoas estava ali na busca pela jatuarana.
Eita peixe gostoso. Num gostava de tapagem, dizia ser uma
covardia no enfrentar do peixe, ele queria té-ti-a-té-ti. Contava
prosa que lá em Almeirim, era terra de jatuarana graúda. Lá dos
igarapés que chegam no Lago Branco. Eu concordava com ele.
Comi muito desse peixe por lá quando fui mais novo. João
Impinge fazia cara de fome quando a gente falava desse pescado.
Rá! Ispia, que nem essa. Tem bolacha, Dona? Dá uma pra ele.
Rá! Sei lá, não tinha a mesma graça. A jatuarana quando se
pegava ia pro casco e do casco pro fogo, moqueado. Mas num
tinha o mesmo sal. Lá em Almeirim quando lembro a gente ria
no comer, pois depois da bóia, cada um rumava pro seu destino,
como apontava na venta, livre. Aqui não, sempre meio tristeza e
esse frio nas pernas. É de perder o sal. Nem vento chega na testa
da gente por aqui. Nós tudo pensando na família da gente sem
uma vida que prestasse. Naquele silêncio a turma remava.
Naquele molhado sem fim. Naquela toada plóft, plóft de remo
sem alegria. Vez em quando pulava o macaco de cheiro por entre
as cabeças nossas, nem prestavam a atenção na gente. O pé nosso
sempre friorento, esbarrando na cuia que tirava a água da canoa.
A bunda sempre aguada do limo do sentador da montaria.
Saliente naquela tremedeira de frio de cachorro. Cabelo da gente
sempre lavado da galhada batida por nossa cabeça e vinha
aquelas muitas gotas de água a nos benzer. E tinha um ingazeiro
no meio do rio, uma ucuúba, mututi. Quando o facão não liberava
aquele impedimento, os machos iam pra água pra acertar de
machado ou até pra botar em riba das tronqueiras nossas canoas.
O Flaviano tinha uma gripe que num passava o abençoado. Era
aquela tosse de cão perdido. Sabe quem é? Aquele mesmo que
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vocês levaram com passamento. Hum, tuberculose? A Senhora
diz que ele tinha? Bem que ele tossia muito. É mesmo, mais
tossia do que falava. Quando começou? Por causa desse aí, o
Impinge. Numa das viagens, a gente se viu olhando aquele veado
grandão, vermelhão ali por cima de uma restinga. Saímos com a
cartucheira, pulamos dos cascos pra cercar o bicho. O cachorro
Saliente combinou conosco que iria pelo outro lado trazer ele pra
essa banda. Nós concordamos. O seu Lau, de cá, o Impinge de
acolá por dentro do igarapé, a água malmente aparecendo a boca
dele. Quando percebemo tava o João ali parado no pé da
paxiubeira inundada, olhão aberto, quando o Valdo chegou perto
gritou Puraquêêê!! Olha o sacana pretão ali por perto dando
choque no Impinge. Ele ali preso ó disgraça no meio daquela raiz
toda pontuda. Eu fico hoje imaginando como esse piolho do João
se mete nessas coisas? Tentamos espantar, jogamos o remo pro
peste fugir e nada! O Saliente veio desembestado latir, e ficou
por ali na redondeza né, já na proa do casco, num é besta né? Foi
quando Flaviano deu com terçado no cocorote do Puraquê, que
foi ele voar como se uma maresia de navio tivesse jogado ele
oitos braças pra trás. O danado rabiou e saiu por dentro duma
caída. Pegamos o João. Por pouco não bateu o cacau. De novo!
Flaviano ficou na febre. Na febre, uma fraqueza no peito. Deu
uns pigarros sempre por ali a partir daquele susto. Até parou da
porronca. Tosse. Tosse. Tosse. Eu bem que achava ele meio
magrelo depois disso, chega aparecia as costelas todas pra
contagem. E molhado. Encharcado. Como todos nós sempre
naquela labuta. Viu o que tu fizeste João? Impinge de Oliveira
Pano Branco. Mas quê Dona? Como num brigar com ele, é cheio
de arrumação. Vai ficando com dó, vai? Ele te passa a chaga dele.
Rá!
Aí Senhora, quando enxergava o Tapiri, ai que festa. Era
ficar menos molhado, até seco por umas horas. Dormir cansado
da lida, ali naquele ajuntamento de redes, de toalha e roupas ali

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Pantoja Ramos

penduradas, tudo com pouca cor, retiradas por tanta água. Eram
quatro casinhas, cada cinco num Tapiri. Mas a gente repartia
tudo. Era uma turma unida. Nunca puxamos briga um com outro.
Não. Minto pra Senhora. Teve só um caso, quando o Valdo se
estranhou com o Mundico. Mundico era muito bafento. Daquele
tamanho, queria ser patrão de nós. Faz isso, faz aquilo. E um dia
soltou um porra quando o Valdo deixou cair a água da panela no
fogo que cozinhava. Sabe aquela cara de Ei-seu-aleijado! Vê se
olha! Pois o Valdo olhou sério pra ele e foi cortar lenha. Pegou o
machado e veio de um jeito que a gente se arrumou pra evitar o
pior, mas o homem passou pelo Mundico, que ficou ali parado,
todo cagado. Valdo parou perto de cepo de um matamatá. Cada
braçada era uma lenha! Cada braçada uma lenha pro fogo. Valdo
mirava Mundico. Mundico não mexeu mais. Tirando isso, todo
mundo trabalhava em paz. Nossa bronca era com o Espinho,
Fogoió e Jacuraru. Eu por eles amolava o terçado.
Nossa matemática era assim, muito palmito. Cada três de
nós tinha que fazer um milheiro por dia. Vap. Vap. Do sol saindo
até noite. Os três homem do Seu Boiadeiro espiavam se a gente
estava matando rancho. Quando, Dona? Ali mesmo no inverno.
É quando as água fazia chegar nos centros. Um imenso dum
açaizal a perder de vista, parecia que era uma vida inteira para
cortar. Vap. Vap. Cortava o açaizeiro ali caindo um por cima do
outro. Vap. Vap. Tirava a cabeça, fazia o descasco e com o facão
mesmo empurrava num canto o resto daquele refugo. Os pés de
açaí maiores, os mais criados, a gente torava de machado. João
Impinge arrumava as pilhas de palmito. Quando eu cansava,
trocava com ele ou com o Valdo, nós formava nosso trio.
Trezentos pra mim, trezentos pra João, trezentos pra Valdo no
mínimo, depois a gente metia lenha pra mais cem, fechava o
milheiro. Era cota feita. No outro dia, a gente só fazia se benzer
e de novo e de novo. Muitos anos assim foi a vida. Tudo por
causa de um troço que nem é bom de comer! A senhora gosta de
palmito, Dona? Eu não! Nenhum de nós comia palmito. E vivia
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
nas portas da morte por ele. Nunca entendi nem pra onde ia. Pra
São Paulo? Hum. Às vezes o Osmar mascava um, sei lá, era uma
misura dele.
Como se trabalhava muito naquele tempo. Milheiro e
mais milheiro. E quando chegava o tempo das carapanãs?
Quando era? O ano todo! Rá! É por isso que a gente fumava
tanto. Pra espantar aquelas praga do mal. Zunindo. Ai meu Deus,
como cantava no ouvido Tá ali!! Tá ali!! Nico! Nico! Peste de
carapanã naquele canto lá dentro da alma. Aquilo não é bicho de
Deus não. Deve ter saído de um buraco para azucrinar Adão
quando saiu do Paraíso, só pode! Uma vez Dona, deu tanto
carapanã, mas tanto que num dava pra abri a boca! Miséria! Foi
quando eu vi, naquele bando de açaizeiro cortado aqueles copos
que a gente deixou nos açaizeiros abandonados, ó que dançavam
os filhote de carapanã. Olhei pra frente e vi aquele mundo de açaí
cortado. Um mundo de copinhos naquelas touças cortadas. Muito
carapanã pra nascer ali. Combinou a gente que o corte do palmito
seria pra fazer um bico de gaita, pra escorrer a aguinha nas
touceiras mortas, isso pra tentar diminuir aquelas fera. Nesse dia
que a gente não abriu a boca, o João Impinge achou de trampar
com camisa preta. Toma que ficou aperreado mais ainda. E corria
e corria, e aquela nuvem perseguindo ele. O Saliente latindo
atrás. Todo mundo rindo. Naquela noite foi dormir todo pirento,
popocado. Nossa sorte é que eu sabia fazer fumaça com o bagaço
da semente da andiroba. Ela espanta carapanã. Quem me
ensinou? Uma senhora lá do rio Ipixuna, lá pra banda do Lontra
da Pedreira, no Amapá. Muito carapanã. E muita malária dava lá.
Tive, Senhora, tive uma dez malária. Toda gente tinha malária
aqui no palmital. Foi o que matou a Glorinha, Oh meu pai, tão
bonitinha a pequena. Foi no tempo que as mulheres começaram
a vir pro palmital. E se vinha mulher? Vinha... depois conto pra
Senhora.

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Pantoja Ramos

Mas quando não era moriçoca, era mutuca. Ahh,


desgraça é mutuca. Ah dialho de sujeita. É mosca sem vergonha,
vai ali, te ferra, e sai. Te ferra de novo, e sai. Tu ralha. Ela volta
na cara-de-macaco. E dói a danada. A Senhora já pensou no meio
daquele sono bom, de costela com quem a gente se enrabicha, no
bom no bom, e vem aquela agulha por debaixo da tua rede te ferra
bem na costa, eita dialho. Mas tem coisa pior... Quando o
Mundico morreu... é Dona, morreu. Foi um negócio esquisito.
Começou a babar, a golfar, uma alta febre. Xarles disse que
aquilo era veneno de sapo. Só se ele lambeu a costa dum, disse o
Valdo. Nada. Nada. Foi mutuca que passou veneno de sapo pra
ele. O enterro foi ali na posse do Hilário. Fizemos daquilo nosso
cemitério. Que Deus tenha todos eles. No dia do funeral do
Mundico, tinha acabado a porronca que a gente fumava. Olhando
pra cova e se batendo todo pelas muriçocas, seu Lau disse que
aquilo num era vida. Nesta hora, Todos nós puxamos fundo ar
pro peito com um punhado de inseto junto.

ATO 4 – ELES NÃO SABIAM DOS ROUBOS

A senhora gosta mesmo de anotar as coisas, né? E eu


falando todo tempo nesse meio jeito cabocão. A senhora me
perdoa tá? Queria ter estudado mais, mas você vê que aqui o
pessoal me achava sabido. Vem cá, quando a gente vai pra
Macapá mesmo? Humm, atrasou né? Num carece pedir perdão,
a gente entende, né João? A Senhora é boa pessoa. O quê?
Cadeira de roda? Que é isso? Pra eu usar? Rá! Num carece, num
carece. É por isso o atraso? Dona Sílvia, posso te chamar pelo
nome? Posso? A senhora é uma santa de verdade. Toma do café
porreta! Sabe quem fazia um café assim? Seu Apóstolo. Ele tinha

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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
umas mistura com erva-doce. Dona Sílvia sabe quem é? Pois é.
A gente conheceu aquele justo homem.
Num dia, todo mundo ali danado no corte do palmito.
Vap. Vap. Lá no meio da tarde, veio os capangas do Seu
Boiadeiro chamar a turma pro Tapiri. Pensei que era um dia de
cobrança da guarnição, só pra endividar mais ainda. Quando
chegamos lá tinha mais uns sete cabras, tudo armado de revólver.
Disse o Fogoió Olha esses homem aqui vão ficar com vocês uns
dia aí viu? Num pergunta quem é pra quê nem qual foi que num
interessa entendido estamos?? E deixaram eles ali, com uma
penca de rancho a Senhora imagina? Sardinha, conserva,
margarina, mortadela, bolachona salgada, doce. Hummm. Só pra
eles. Enxotaram oito de suas casinhas e nós tivemos que ficar
amontoado nas outras. Ficaram ali uns sete dias. Nós cortando
palmito e eles nos Tapiris só ali, fumando, conversando baixinho,
parece que bolando arrumação ruim pro mundo inteiro. Vixe! No
dia que o Espinho e o Jacuraru vieram falar com eles, mandaram
nós ir pra casa da fábrica também. Fizeram questão de passar
conosco na posse do Hilário, ai meu Deus do céu, que arrepiava.
Chegando perto da fábrica deram umas pás pra uns cinco da
gente e os outros foram lá pro porto. E haja força suprimo,
traziam uns motor de embarcação, dois, três, quatro, cinco... nove
motor. Pediram pra enterrar essas máquinas. Hunf, que fiquei
com medo de uma pazada dar em defunto lá embaixo na terra. A
gente só fazia enterrar. E falaram pra num preguntar o que era.
Logo nós... os sete homem se foram. Aliás, iam e vinham sempre.
Se tocaiava ali com a gente e aparecia mais motor. Vez em
quando o pessoal desenterrava uns dois ou três, acho que pra
vender, só pode.
Num desses dias de trampo, percebemos alguém se
aproximando. Pensamos que era os sete mal-encarados mais os
três do Boiadeiro. Não. Era só um. Um homem alto, de barbona
branca até chegar por aqui no meio do peito, pele escura, rosto

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Pantoja Ramos

sério com um par de olhinhos e cabelo da cor da barba. Tossindo,


Flaviano falou olha lá, será um dos apóstolos? Eu ri, mas ri meio
desconfiado que poderia ser mesmo naquele nosso fim e do
mundo trazida a notícia por um profeta. Ele chegou e disse Êh, a
gente Êh. Fumo puxando prosa. Ele disse que seu nome era
Belquior e tinha achado o barco dele sem motor parado lá na
praia do outro lado, quando viu um pedaço de camisa amarrado
na rama de um aturiá e decidiu seguir o igarapé até bater no nosso
Tapiri. Tu é doido, seu Apóstolo? Se espantou o Bixuga. Pronto,
ficou o apelido de Apóstolo. Vaitimbora que se os homem te
pega... avisou seu Lau. Mas o João Impinge estava tão
empolgado e eu também tamanho velho veja só que começamos
a perguntar das coisas que nem a Senhora faz com a gente. De
noite, foi ele quem começou a nos tirar a resposta. Seu Apóstolo
mostrou uma cara braba quando soube como a gente vivia no
Tapiri. Mais ainda quando soube de mulher e criança que vivia
presa na vila da fábrica. Dormimos tarde essa noite. De manhã
fez seu primeiro café com aquele cheiro cheiroso. Hum. Disse
que era erva-doce. Que sempre carregava o próprio café,
encomendado de um senhor morador das bandas que reparte o
Pará do Maranhão, terra quilombola. Ispia que queria um
daquele. A senhora já provou café assim? Seu Apóstolo aparecia
quando a gente menos esperava. Acho que ele vinha umas quatro
vezes por ano. É sim. Eu falei que o Seu Apóstolo parecia Papai
Noel. Os outros me perguntaram quem é esse Papai Noel.
Quando disse quem era, disseram que eu era caduco, onde já
alguém espalhar brinquedo de graça pra criança? Aquilo não
existia. Perguntaram se eu vi. Disse que não. Taí. Nunca vi. Uma
vez Seu Apóstolo varou com a mulher dele, Dona Estela. Uma
senhora muito bonita mesmo com a idade madura que já tinha.
Os dois traziam mortadela pra gente, tabaco do bom, isqueiro
novo, uma vez trouxeram até feijão. Mas ah que João Impinge
num queimou a comida na primeira e única vez que fizeram de
cozinheiro. Ah credo, que o Valdo pegou Impinge cozinhado e
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
coçando o saco, cozinhando e coçando. Ainda bem que o feijão
queimou. Imagina a pimenta cominho de onde vinha, disse o
Bixuga. Rá! Seu Apóstolo dava cada gaitada. Dona Estela duma
panelada fez um negócio com macarrão, com mais conserva, que
juntamos rapidinho com um jacaré desfiado pegado pelo Osmar.
Humm. Que bóia boa naquele dia, né João? Seu Apóstolo era um
homem da lei do céu. Aconselhava, dava força. Falava umas
frases bonitas que só a Senhora vendo. Não, não parecia ser
pregação de igreja. Dizia que a felicidade é quando a alma nela
mesmo se ajeita. A gente ouvia quieto, parado. Beto meu filho
parecia abobado naquela prosa. A liberdade vem de dentro, não
é questão de capricho, falava. Quando ele vinha, a gente ficava
mais leve. Mas Seu Apóstolo e Dona Estela se iam deixando
sempre saudade. Bixuga repetia, a felicidade é quando a alma
nela mesmo se ajeita e começou a fazer um jiral ali numa canoa
velha, haja cebolinha, chicória, erva-cidreira, hortelãzinha, essas
plantas, que ele cuidava, cuidava.

ATO 5 – GANÂNCIA, GENTE, GANÂNCIA

Os sete cabra dos motores de repente ficaram passando


mais tempo com a gente. Iam pra vila e ali ficavam. Eu acho que
eles eram parente do Seu Boiadeiro, porque um deles pedia
benção, vê se pode uma peste daquela pedir bença o desnaturado
de tão ruim! Chamavam de tio. Tio Boiadeiro. E foram ficando.
Piorou até pra gente beber açaí. Antes até que sobrava metade
pra gente beber, a outra metade das rasas era do seu Boiadeiro.
Mas aí com a chegada dos sete, nem isso. Quando se ficava com
uma rasa era sorte, os pestes botavam no barco da fábrica e iam
vender longe. Acho que pra Santana, não sei direito. Não era
bom. Cortava palmito, não tinha fruto, chegava safra, mal tinha
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Pantoja Ramos

fruto e ainda tinha que dá assim ó pra aqueles sujeitos! Vivia


tomando açaí parau escondido. Mas tomava! Rá!
Numa época o palmital começou a diminuir na Ilha dos
Catitus. Pudera né? Tantos anos cortando. Desta feita,
começaram a levar uns da gente pra cortar em outro lugar, na Ilha
do Paraíba. Eu mesmo nunca fui. Osmar foi. João Impinge foi.
Mambira foi. Mambira? Mambira era um cara esperto daqueles,
era o melhor de ficar ali por cima dos açaizeiros cortando lá por
cima. O apelido era pra ser guariba. Tem vez que passava uma
tarde inteira sem pisar no barro, vinha limpo. Sempre falava que
avistava longe os barcos passando pra lá e pra cá. E até um barco
de ferro dos grandes avistou. Olhava para os periquitos que
passavam por cima, e ralhava com eles, numa conversa que via
bem ao lado dele, mas não entendia o que passava. Depois
paresque que já entendia a prosa daquele finalzinho de sol.
Mambira e os periquitos a conversar ali naquela cor-de-céu
alaranjada, nem frio, nem quente, do jeito que a vista da gente
gostava. Mas olha, Mambira preferia ficar lá em riba. Porque
Dona? Algum de nós invadia a posse dos outros lá na Ilha do
Paraíba, forçado pelo Seu Boiadeiro. Coitados, só iam cortar. Os
sete e o Jacuraru mandavam bilhete pra pessoa avisando que iam
cortar palmito lá e que não era pra ter reação. A Senhora imagina?
Eu penso nos pai de família enraivado de querer mandar fogo
naqueles safados. Já pensou se pega no João, no Osmar, no
Mambira que num tem nada a ver com a reza? Estão a mando.
Pra senhora ver. Era muito o abuso. Mandavam bilhete que iam
roubar o palmito e tudo que tinha na casa de valor. Só que um dia
um senhor lá da divisa com Breves não contou conversa e Pei!,
mandou chumbo neles. Morreu um pelo que eu soube depois, ao
menos não nenhum de nós. Piratas? Era isso que chamavam
eles? Eu ia botar um apelido desse neles, mas aí iam me chamar
de caduco de novo.
É Dona Sílvia. Ganância. Botaram as mulheres pro
palmital. As crianças. Desembestou o seu Boiadeiro. Eu via
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DE INVERNO...
Mário e Mariana no suor dos dias sem poder fazer nada. O fel me
vinha na língua quando eu pegava um dos sete menos um que
morreu em Breves, acho que chamavam de Cutelo, olhando pra
minha neta com aqueles olhos de urubu, chega eu reinava. Ele
olhava pra ela toda, do fio de cabelo ao dedinho do pé, quem nem
uma envira rasgando devagar. Valéria puxava ela pra perto e o
Beto chegava junto. Por mais que eles tivessem arma, mexer na
alma de um pai pro causa da filha não é bom negócio de mexer.
Pra num ter a confusão de macho precisado, Seu
Boiadeiro mandava trazer umas pequenas de Macapá, Santarém,
até de Belém. Juntou uma vez quatros moças para os seis levar
pro Tapiri. Glorinha, Dalva, Nicéia e Solange. Se eram mulher
da vida? Duas eu digo que sim, a Dalva e Nicéia, mas Solange e
a Glorinha eu duvidava que fosse, mas sei lá. Só sei que duas se
fartavam nos homem do seu Boiadeiro, não pelo apego, mas pelo
dinheiro que mostravam pra elas. Escancaram uma boca de
poucos dentes de gosto e pediam pra gente botar música no rádio.
Eu só fazia mudar a estação xiiii-xiiii pra uma que só tocava
lambada do Caribe. Como eu sei?? Ih, Dona, as lambada de hoje
vieram de Caiena tu não sabe?. Ó Impinge, dança aí,
Ipithipithiiiiiii. Esse Impinge! Rá! E os homem dos motor e as
mulher ficavam ali na sacanagem. João Impinge até tentou dá
uma, mas a Dalva e o Fogoió lhe deram uma remada de lá que
teve que se esvaziar na mão mesmo. Rá! Nós tudo vendo,
Glorinha e Solange tudo vendo. Solange fazia mais na calada da
noite, no hu-hu do jacaré. Glorinha era arisca. Acho que não era
do ramo.
Não, Senhora, Glorinha era moça direita. Tava ali não sei
porque. Ela se deu com o Mambira. Até deixou o peste de
conversar com os periquitos. Mambira ficava ali amuado de ver
o Jacuraru levar ela pro meio do mato. Dizia ela que ia pegar
cacau para não ofender o Mambira. Êta homem bobo que não
entendia nada. Ele até me contou que a pequena veio da cidade

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Pantoja Ramos

de Belém, fugida de outras confusão por lá por causa dos irmãos.


Como foi prometida de morte por conta dos manos dela, pediu
ajuda pra uma amiga, que disse a uma comadre, que indicou pra
uma vizinha, que a destinou para uma madame, que ofereceu à
mulher oficial de Seu Boiadeiro os préstimos de Glorinha, ela ali
toda durinha a provocar os caboclos. Quando se espantou, a moça
tava embarcando pra nossa ilha, no jeito de pagar as dívidas de
comida e roupa que lhe davam. Esse Boiadeiro é o filho do cão!
Os seis homem e o três capangas já não saiam do Tapiri,
tudo de pimba desembestada pras mulher. Quer dizer, nem tanto
o Espinho, que parecia mais dar surra nelas do que se fartar. Teve
dia que a gente ralhou com o Bixuga, que falhava no comer da
gente quando voltava da empreita por causa que estava cuidando
do olho roxo da Solange. Nicéia e Dalva não falavam nada.
Apanhavam. Ali quietas ficavam. E deu a febre nelas, a febre
certinha de poente. Era maleita. Foi nisso que Glorinha morreu,
abobando palavra, palavra abobando. Ai mano, ai mãe, ai pai que
a gente vai quando andar de carrossel?? Olha o cavalinho azul
que roda que roda! Vai mano, joga a peteca lá, lá. Pai e mãe tão
vindo aí? Êêêêê... todo dia a falar mais baixo, mais baixinho de
bater os dentes do falso frio da febre. Mambira ali no lado dela
foi testemunha de seu riso derradeiro, olhando pra ele com aquele
olhão de gratidão, parecia duas sementes de olho-de-boi viajantes
da baía do Vieira. Foi mufinando, mufinando. E morreu aquela
flor. Mambira, Osmar e seu Lau ajudaram no enterro. Depois
dessa morte, Seu Boiadeiro deu sumiço nas pequenas. Mambira
voltou a ficar lá em cima nos pé de açaí, chorando ao lado dos
periquitos, que retribuíam o choro do amigo. Era de arrepiar a
espinha aquela lamúria de fim de dia. Ó Dona, deu moleza no
corpo, posso me deitar? Agradecido Dona.

Mas eu esqueci de falar ontem, Dona, a Solange foi


levada por seu Apóstolo e Dona Estela. Como? Quando ele veio
nos visitar, encontrou a mulher ali na rede ardendo na malária.
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
Perguntou quem era ela? Dissemos Solange e só. Como
Boiadeiro tinha levado primeiro a Dalva e depois a Nicéia para
não atrapalhar algum curioso do bater de dentes delas em dizer
da morte da Glorinha, na vez da terceira seu Apóstolo veio ver a
gente, justo quando os seis tinham caído na patifania de mais
roubo. Perguntou De onde veio a Solange? Ela mesmo disse no
febril lascado, de Macapá, das bandas que vinham do Oiapoque,
acho que da estrada. Dona Estela agasalhou a moça em duas
redes mais um lençol da gente, aprumaram-se na canoa e
seguiram adiante pro rumo da Ilha deles. Seu Apóstolo disse que
tava na hora de alguém tomar uma posição daquilo tudo. Meu
filho Beto até quis ir com ele, mas achou melhor não ir pra não
me deixar só ali. Por mim ele sumia e levava meus netos.
Dona Sílvia, o tempo depois do fato da Glorinha ficou
muito pior. Os machos não só cortavam palmito e enterravam
assalto de motor, já escondia também outros pertences dos
outros. Quando voltava pra fábrica, era o aumentar da tristeza do
pessoal que tava nos potes de palmito mais magro, mais
necessitado. Valéria e algumas outras senhoras reclamavam já de
falta de comida pra elas, pros meninos, pros machos do palmital.
Só que ali tava o Jacuraru mostrando o dente de ouro, a pulseira
de ouro. Fogoió era até discreto. Mas tava lá o Espinho com um
relojão daqueles, camisa pra dentro da calça, de botão, sapato
fino. Só não dava a coragem nele de botar chapelão, porque aí o
próprio Boiadeiro ia ficar enciumado de sua gabolice, querendo
ser mais patrão do que o patrão. Tanta pavulagem e perdia tempo
fazendo maldade nos outros, no Bixuga o alvo. João Impinge tá
rindo olha a cara do sacana. Porque Dona? Ahhhhh, sei lá se
conto. Conto Impinge? Conto. E num dia desses de vap vap de
palmito, veio o João Impinge numa cara abestalhada, do tipo que
viu briga de jabutis. O que foi Impinge? Apontou pro rumo do
rio Canhoto, veio de água que passa uns cem passos de
caminhada do Tapiri, onde a gente costuma fazer tapagem para

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Pantoja Ramos

pescar. Lá o Bixuga costuma lavar as louça, pois diz que a modo


que a água é mais limpa. Pois foi Impinge atrás de uma paca que
tinha topado pelo caminho do palmital. Olha se eu não digo pra
ele ir atrás da bichinha, tinha perdido a história! Impinge vem
devagar no silencioso dele viu de longe aquele movimento de
roupa lá longe, veio de butuca, desconfiado. Rá! Desenhou e fez
os gestos que quando eu entendi cai na gargalhada, eu e mais o
resto dos machos do palmital. Até os carapanãs pararam pra
escutar. Mostrou Impinge que o Bixuga tava montando até o toco
no Espinho, ajeitado numa sapopema de mututi. Rá! Soube de
onde vinha o teima-teima do Espinho com o Bixuga! Rá!
Impinge fez gesto que o Espinho suava! Rá! Quando voltamos,
tudo tava normal. Tudo no seu costume. O Espinho tinha caído
fora. Bixuga ali com cara desconfiada. Disfarçada. Perguntamos
E aí? Bixuga disse com a cara avermelhada de bolotas: A comida
foi feita do jeito. Osmar disse Aposto que sim. Todos riram. Rá!
Ó Dona Silvia, o Impinge chorando de rir.
São essas coisa, Senhora, o que fazia a vida ter um gosto
mais de mel, menos de fel. A encarnação, a brincadeira, ninguém
pegava desavença, tudo na paz. Só não teve paz pro seu Apóstolo.
Não deviam ter levado a Solange. Deviam era tá até hoje com a
gente, contando prosa, ensinando as palavras bonitas. A gente
falava que ele era um homem sabido. Só dizia assim Tudo que
sei é que nada sei. Seu Lau repetia, todo pavo. Dizia que a
liberdade era o nosso destino e depois a nossa desgraça, como
pode? Ser livre é ser marcado na vida? Ele dizia que é um fardo
pesado ser livre, era bom, era preciso ser livre, mas também era
carga decidir sozinho o caminho, sem ninguém pra levar a canoa,
sem um leme, era nós todos desembestados nesse mundão, sem
eira nem beira. Mambira lá de cima do açaizeiro até esquecia um
pouco da Glorinha. Até ria de canto de boca. Voltava depois pros
os periquitos dele.
Seu Apóstolo foi homem de fato. Depois do acontecido,
soubemos que ele foi até Macapá levar a Solange e dar denúncia
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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
da situação da moça largada a morrer de sezão na terra do
Boiadeiro. Quem contou? O Ramalho, lembra? Depois do
Belquior Apóstolo era o que mais dava as notícias. E nos contou
que Apóstolo tava marcado, ai que já tinha ido na delegacia falar
dos roubo de palmito em outras posses. Ai que delatou a venda
dos motores e da pirataria dos seis. Ai que encontrou na rua
passando o Boiadeiro no lado do Fogoió, que esbarraram no seu
ombro e disseram com aquele ódio dos traidores pra ele, Sim, Tu
tá queimado! Ai que Apóstolo foi pra casa na enchente da maré
das seis, levando rancho da venda do camarão naquela safra de
agosto. Ai.
Ai que Belquior tava na janta com a Estela, mais netinha
Lucinha, mais a Solange que tinham se afeiçoado e tido como
filha mais velha. Ai que os cabra e o Fogoió chegaram de
mansinho, combóias se esgueirando pela lama da maré vazante,
por meio da anhinga fedida de terra, nem os tralhotos tinham
coragem de chegar perto naquele deslizar da folha de mamorana
no meio para não fazer o barulho e assim espantar os que
moravam naquela casa de Deus. Ai que os seis subiram como
onças cheio das fomes, esgalamidos no dentar das pacas, boca
babando na carne dos jacarés na brecha que acharam no couro.
Malditos. Ai que chutaram a porta velha de madeira, entrando
pelo salão da casa, batendo em todas as paredes, o oco, o oco,
oco, cai o motorádio, cai o retrato de sua mãe, Belquior, ai que
caiu o retrato de cara pro chão, graças por ela não ver o que se
passaria. No que se espantou Apóstolo, não deu nem tempo de
pegar a cartucheira, já estavam todos os braços maus por cima de
sua goela, num suor de gente ruim a se engatar no seu Belquior.
Pega perna. Pega pé. Pega braço. Segura cabeça. Ai que as
mulheres correram pro mato porque seu Apóstolo pediu naquele
derradeiro grito Corre! mal saído de sua goela esprimida! Ai que
ali mesmo bateram nele, judiaram mesmo, deram um tiro no
queixo dele, lá vai a boca de lado de dor, ai que deram nele com

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Pantoja Ramos

o cabo de um machado, sangraram a cabeça dele até o homem


desmaiar. Ai que deram mais um tiro por dentro da boca dele. O
sangue deixou Fogoió porre daquele cheiro, parecia que tinha
cheirado tóxico. Amalucou ou já era assim como vai sabê?
Resolveu pegar gasolina, se deu o trabalho de ir no porto do
homem procurar e achar o petróleo, empapou a barba de seu
Apóstolo ali no morre-num-morre. Ai, ai, ai, tacaram fogo
naquela cabeleira, naquela barbona, numa arribação de fogaréu
que botou a casa toda a arder, começou pelo calendário de Jesus
Cristo e de Nossa Senhora ali no testemunho dos mártires. Já não
era mais o corpo do Belquior, mas um bicho judiado por aqueles
pestes. Não isso não. Nem caça morta tem aquele fim sem
respeito. Ai.
E as mulheres? Fizeram o que seu Apóstolo pediu e
sumiram por entre o mato, no pique que podia, caíram numa
ribanceira até a lama quase afogar suas caras. A pequena Lucinha
chorava, Solange e Dona Estela tapavam a boca da menina e
vejam o que é a precisão: arrumaram um jeito e ficaram deitadas
por vários dias ali por dentro de um burutizeiro junto com as
aranhas, as lacraias e as cobras cipós, graças ao bom Deus era só
cobra cipó. Quietas enxergavam passar de vez em quando um
homem por ali procurando por elas, as vezes viam que era um
dos seis, mas nunca o Fogoió, ó bom Deus graças! Se fosse esse,
ia de bater o olho nelas, sujeito de pacto do mal que a tudo via.
Acho que foi dar sumiço no corpo de Seu Apóstolo. Ai, ai, ai.
Ramalho nos contou tudo depressa, Dona, sem disse-me-
disse, foi matando a gente com as palavras. Quanta judiação!
Achou as três balançando a camisa pro barco dele, no medonho
jeito de contar com a sorte que podia ser gente não do Boiadeiro.
E se fosse o Jacuraru? Ou Espinho? E se fosse um dos seis? Não
foi, era Ramalho. Contaram o fato pra ele, chorosas, a menina se
tremendo, Solange quieta a contar com a voz tremida. Como elas
sabiam do jeito que Apóstolo morreu? Dona Estela ouviu de
longe os gritos, parava no correr, olhava pra trás, escutava
82
NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
naquelas braças corridas Queima a Barba Dele! Queima a Barba
Dele!! Ai que queria voltar, morrer e matar por seu amor, ali
espocado a nuca dos chumbos, queimado na covardia. Ali passou
num repente aquela lembrança do jovem Belquior catando a flor
do jambeiro para lhe colocar na beira da orelha presa naquele
cabelo liso de índia moça dos olhinhos miúdos e cabelo dos
graúdos, ali pegou a mão dela pra passear por aquele caminho de
flor avermelhado, parecia Estela a rainha do mundo e era. Ali
ficou sua fotografia pro resto dos dias. Disse ela a Ramalho isso,
sem mais a vergonha das coisas do amor. Agora, só homenagem.
E nisso, Senhora Sílvia, nós adoecemos todos por dentro.
Foi um quebranto geral, até o Impinge ficou sem comer ou fazer
perturbação, todo mundo mofinou. Eu te digo, Dona, que a vida
ficou com gosto de lima daquelas bem sem graça. Ali eu comecei
a adoecer. Me começou os beribéri. Uns tempos depois, a
fraqueza chegou nas pernas, chegou nos braços, só fiquei no
Tapiri. Nem dava pra chegar um e dizer Ei Macho, levanta! Tudo
mundo tava baquiado. Nunca vi o jiral do Bixuga cheio de mato
como ficou depois disso, nem tajá, nem as cebolinha. Tudo
acabou. Desde agosto foi essa terminação. Calado acordava,
calado a gente dormia. Eu sei, Dona, eu sei, a gente devia de ter
força pra reação, mas o Boiadeiro acertou em cheio. Passamos
meses nesse medo, palmito, palmito. Lá na fábrica, as mulher
tudo humilhada naquele abrir de pote e fechar de pote sem fim,
as crianças sem futuro, a salmoura a ferver a derreter a vida. Nem
o Ramalho apareceu mais, acho que por desconfiança de morrer,
eu não condeno o amigo. Eu sem poder mais nada do doente que
estava, ali fiquei largado no Tapiri, nem ia mais pra fábrica, acho
que tavam me matando aos poucos. O pessoal me carregava no
caso das situações, melhor do que cagar todo o Tapiri. Um dia
Osmar me levava, outro dia, Seu Lau, outro dia o Bixuga, O Beto
ali sempre fiel meu filho também no trabalho de me depositar

83
Pantoja Ramos

naquele buritizeiro de bubuia. Lá ficava e me lavava. Saliente me


reparava. Foi quando o Beto sumiu.
O que aconteceu Dona? Ah que a gente foi apontado de
tudo quanto é jeito pelos seis, pelo Fogoió, cadê o Beto? Cadê o
Beto? Pior que não sabia. Eu via ele sempre olhar o mato ali
quieto, butucando e de momento fiuuuuu. Seu Boiadeiro se
destacou de lá pra tomar satisfação. Ficamo sem o rancho que já
não tinha. Aí a fome apertou. Mas quer saber a senhora, demos
um jeito assim mesmo. Discunforme. Valdo zagaiava. Osmar
caçava. Mambira mariscava. Seu Lau cozinhava junto com
Bixuga. Xarles preparava os chás pras caganeras. Todo mundo
se virava. Até eu de cartucheira lá da minha rede matei umas e
outras galinhas d´água que ciscavam por ali. Era garça. Era
mutum. Tudo ave por que eu só mirava pra cima. Rá! Saliente
vinha com bicho do tamanho da brabeza dele, um tijubina, um
camaleão, um filhote de jacaré-tinga. A gente cozinhava. João
Impinge deu de pegar poraquê, já tinha virado macho mesmo e
senhor de sua panemice, cacetava os bichos sem medo nenhum.
Nós comia. Breu não faltava para continuar o fogo. Nem
coragem. E isso foi crescendo na gente, começou pequeno e foi
aumentando tal o rasgo da envira preta. E veio a lembrança do
seu Apóstolo. E a lembrança da Glorinha. E do Hilário. E Dona
Estela. E Valdo olhava pro braço dele. E Mambira se convencia
da raiva. E Seu Lau do dedo dele. E Osmar lembrava da
Jatuarana. E Bixuga se revoltava. E Xarles rezava. E nós com a
pergunta sobre o Beto, o que de repente sem combinação geral
ficou a ter a resposta na mente que podia ter ele podido buscar
ajuda. Eu não tava caducando sozinho, começou a nascer
esperança!!

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NADA MAIS BONITO QUE UMA TARDE DE VERÃO NUMA ÉPOCA
DE INVERNO...
ATO 6 – NÓS CHEGAMOS TARDE

Dona Sílvia, quando vocês vieram rapiscobra todo


mundo saiu da rede apressado naquela barulheira de motor de
avião. Eu não sei se era trovão ou se era o fim do mundo! No
meio daquele céu cinzento de maio veio umas pázona do nada!
Não era avião? Era o quê? Licópi? Poisé, esse bichão aí jogou
vento pra tudo quanto é lado, toma que a pororoca dos céus
chegou e eu gritei! E foi o corre-corre que nem um bando de
catitu perdido do chefe, Rá! João Impinge deu com a cabeça
numa paxiubeira, a mesma que prendeu ele lá pro poraquê, não
gosta dele mesmo Rá! Saliente se mandou pra banda da fábrica.
Mas olha daqui eu vi o Valdo, o Osmar, o Mambira, o
Bixuga e o Seu Lau não saírem de susto, cada um pegou o terçado
e se espalharam na ilha. De lá do Tapiri eu vi, deitado naquela
minha rede velha fedida de mijo. Me imaginei indo, e peguei o
terçado ao menos pra amolar. Sabia o que era, queria ir com eles.
O que Dona Sílvia? Me diz como o pessoal do Boiadeiro reagiu?
Quê?? Só de cueca??!! Saco de dinheiro?? Boiadeiro ofereceu??
E vocês?? Toma-te!! Cadeia! Queria ter visto a humilhação? E
os outros? Quantos morreram? Só dois dos seis? Foi tiro? Não?
Terçadada? Soltaram o Valdo? Não sabe? Ele é boa pessoa. Não
merece. E o Jacuraru? Não acharam? Vocês viram o Mambira?
Não? Hummmm... entendi.
E o Espinho? Rá! Como é? Vocês pegaram ele pegando
uma surra do Osmar e do Bixuga. Com a chapa do terçado?
Pelado? Vixe!
E o Fogoió? Não entendi. E o Fogoió? O quê? Atrás do
Beto meu filho?? Queéisso!! Ele não tava com vocês?? Meu
Deus! Como foi isso?? Ele tá bem?? Tá bem?? Meu Deus que
homem do tinhoso! Agarrados no mesmo facão, quem sangrou?
Os dois? Ai que Beto morreu? Não? E quem acudiu ele?
85
Pantoja Ramos

Arrastando pro lado dele? Cobra, é uma cobra este peste! O Seu
Lau chegou? A Valéria? Na hora!! Cortaram a cabeça do Fogoió?
Fiuuuuuuuuuuuuu... a senhora vai fazer o quê com eles? Não
sabe? Hum-hum.
Como tão meus netos? Quietos? Não falam nada.
Assustados? Ô, meu Deus! Vocês chegaram tarde...

ATO 7 – O QUE APRENDI COM ELES

Dona, é assim, a senhora me leva pra ver meu filho,


minha nora e meus netos e eu volto pro meu Tapiri, tá? Cadeira
de roda, coisa bacana... mas não acostumo. Por que voltar? Sei
lá, ficar com minhas coisas, em paz agora, lembrar das pessoas,
de Antonieta, quietar com minhas caduquices naquele silêncio da
mata que enche e vaza. Pra mim basta o barulho do quiquió. Só
vou dar trabalho pra onde for. Chega. Sim, Dona Sílvia, pode
ficar com o Saliente... O Impinge? Sei lá, onde ele ficar tá bom
pra ele. Ele é um cabra que tem felicidade. Não é isso que o seu
Apóstolo falava? A felicidade é quando a alma nela mesmo se
ajeita. Esse tem jeito próprio do querer bem das coisas. Onde é
aquilo? Macapá? Aquilo é um homem? Quem é aquele homem
lá longe no meio do rio senhora?? É santo?? É São José?? Um
Santo no meio das águas! Não tô caduco! Não Tô caduco! Acena
também Dona Sílvia! João Impinge, acena!! Olha só a boca sem
dente escancarada dele!! Rá! Ispia que Céu Azul Impinge! Má
Rapá que Sol de Deus! Quié Impinge? Larga meu braço! Quié
macho? João? Vai falar João? João? Vai Homi! Fala!!

NADA... NADA...

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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

7 ATOS

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Pantoja Ramos

“- Por exemplo, se as duas crianças quiserem ajoelhar-se ao


mesmo tempo para adorar o Criador. Aí está um certo conflito,
mas de conflito espiritual, cujos processos escapam à
sagacidade humana. Também poderia ser um motivo temporal.
Suponhamos a necessidade de se acotovelarem para ficar
melhor acomodados; é uma hipótese que a ciência aceitaria;
isto é, não sei...”.
Esaú e Jacó – Machado de Assis.

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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ


7 ATOS

Almeirim, 06 de janeiro de 2015.

ATO 1 – DA MESMA MÃE

Estas duas senhoras nasceram da mesma mãe terra.


Contam hoje meio século de vida e somados os dissabores,
conflitos, perrengues e dores diríamos que até tiveram uma boa
passagem no tempo. Só não teriam o mérito daquilo que se
classificaria como uma vivência exemplar do ponto de vista
moral, cívico e religioso por terem destilado venenos uma à outra
a cada ano, a cada dia, a cada ocasião menor que fosse,
comparadas eram à cicuta. Foram, portanto, rivais.
Uma veio no início de maio, quando o verão amazônico
começa a ficar enxerido, das terras ainda encharcadas daquele rio
em Ponta de Pedras, por dentro da Ilha Santana. Também aí
nasceu a outra, em novembro, durante pacuema rigorosa que
atrapalhou o viajar de muitos barqueiros travados nos bancos de
areia enlameados naquele mesmo ano de 1964, quando todo o
Brasil se espantava com o domínio repentino de militares,
revirando o país de cabeça para baixo numa camisa de força.
Com um período tão pesado, de energias altamente negativas
tanto para os espíritas quanto para os descrentes das coisas
metafísicas, Dona Ceres e Dona Guiomar, mulheres ditas
sensitivas, absorveram no éter as radiações hostis que pairavam
no ar e deram à luz a duas meninas brigonas.
Nunca se soube onde iniciara a longa disputa que as
marcariam. Nete e Lene até brincaram juntas naquela tenra idade
de quatro anos, no coletivo de meninas que dançavam as bonecas
89
Pantoja Ramos

para lá e para cá e na sociedade imaginária destes brinquedos e


suas festas permanentes. Sim, porque a vida das bonecas é uma
atividade social constante a aproximar suas condutoras e assim
iniciar inúmeros casos de amizade. Em um destes diálogos de
cordialidade, as pequenas Lene e Nete se desentenderam e não
faziam muitos minutos de brincadeira deram as cabeças das
bonecas de encontro entre si como dois búfalos brabos na peleja
pela fêmea. E dos vestidinhos de panos e tururis rasgados,
passaram à pele, foram à unha, forçaram os cabelos em puxões,
raivou-se os gritinhos e dentes até a intervenção da Do Carmo,
criança maior que beirava os dez anos que pelas tranças levou
uma para o lado, outra pro outro. A surra das mães foi o desfecho
daquela tarde para as briguentas, cujos choros das pernas riscadas
pelos galinhos de goiabeira e peão roxo acabaram por amaldiçoar
cada contrária e assim passaram a se maldizer mundo afora.
Desta maneira, caracteriza-se a inquisilha como diziam os
antigos; daquilo que se sente de mais amargo possível a um
desafeto, sempre a careta ao mencionar os nomes Nete ou Lene
a depender dos ouvidos.
A Ilha Santana conheceu estas duas adolescentes viçosas
e atraentes em suas especialidades. Nete era morena, mais alta,
cabelo liso, magra e de cintura fina. Uma cabocla esguia, suave
e bonita de saltar a delicadeza por cima de nossas cabeças. Lene
era alva, de pernas fortes e grossas, cabelos volumosos, mais
carnuda, de destaque glúteo presente. Moça de beleza generosa,
firme. Ambas detinham os olhares dos rapazes que
experimentavam as predileções sobre as mulheres: sou mais a
morena, sou mais a branca, sou mais a de cintura fina, sou mais
a massa para aperto. Os moleques iam largando pela rua suas
bobas palavras que tanto irritam as mulheres como se estas
fossem apenas pedaços de carne que não o são, pois não há
melhor pensador neste mundo do que a fêmea humana, general
dos detalhes para perpetuação de sua espécie e almirante dos
sentimentos muito ou pouco manejados, sempre a serviço de
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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

nossa permanência enquanto civilização. Conduzidos são os


homens no final das contas, não obstante a força física e a ilusão
de ser o chefe da casa. Um cantinho da casa: é isso o que lhes
resta no final das contas.
Indiferentes aos sussurros masculinos, Nete e Lene
participavam ativamente da rotina social da Ilha Santana, com
suas preces dos domingos e datas especiais; das celebrações
durante as festas de santos e novenas. Fizeram primeira
comunhão juntas, perseveraram nos salmos e reuniões da
paróquia, terminaram a crisma, sempre dispostas como retas
paralelas nos bancos da igreja para nunca se cruzarem, pois em
uma destas Lene riu da hóstia caída da mão de Nete, espalhando
que a dita cuja era a pecadora dos séculos; Nete vingou-se dando
a primeira risada como rastilho da gargalhada geral quando Lene
falou em voz alta “Carta aos Corinthianos” no lugar de Coríntios.
Com certa habilidade conseguiram afastar-se entre si, sem a
pressão do padre para as orações aos domingos em jogral. Era
sempre Nete na primeira leitura e Lene na leitura do Evangelho.
Ou Nete no Salmo Responsarial, ou Lene levantando Hosana à
multidão de fiéis.
Em juventude namoraram distintamente. Nete era
singela, seletiva, rigorosa quanto à compatibilidade entre os
encontros e os horários de suas funções e humores. É hora de
dormir. É hora de ir para a igreja. É hora de entrar. “É momento
de você ir para a sua casa”, quando as coisas esquentavam.
Gostava de rapazes discretos e trabalhadores, mas não se
enganava, tinha que ter a relação no cabresto, rija em sua
concepção. Foi seu projeto de vida conjugal.
Lene era serelepe, beijoqueira, imprecisa e variante dos
sabores de saliva. Imprevisível, deixava os moços fulos da vida
por marcar e não ir, por provocar e não terminar, por apaixonar e
entediar. “Não me lembro de ter jurado o céu...”, dizia quando
cobravam seriedade no namorico. Era moça que cultuava o
presente e disto não abria mão, misturando quietos, raivosos,
91
Pantoja Ramos

espertos, apáticos, esnobes, humildes, conquistadores baratos e


românticos, tudo num saco de milho balançado e sorteado pela
mão de Lene.
Nete se viu caída por um estrangeiro de sua ilha,
dançarino e sedutor, cuja soberba a desconcertou no primeiro ato
de conversa que tiveram quando relatou sua profissão de
liderança comunitária lá para as bandas de Marabá. Podia ser
inconstante, mas mantinha o foco da transformação que queria,
dizendo a Nete que ela era certa demais, o que óbvio a irritou.
Fugindo às horas que tinha para tudo, até da idade ideal para
casamento projetada para os 30, juntou-se sem igreja à
companhia de Max aos 20 anos. Um escândalo.
Quando o jovem Otávio terminou a casa de sua mãe,
quase toda feita de pracuúba, com estilo, cuidado e zelo, Lene se
viu apegada de vez. E aí parou. A ferramenta de nível que usava
equilibrava também a vida do rapaz, sóbrio e prudente, reto e
regular, impossível antes de se imaginar extrair suspiros da
danada Lene. Os dois cuidaram de preparar o casamento,
indicando os convidados, o tipo de vestido, o bolo que ele queria.
Não viria fulano que é muito cachaceiro, porém, ciclano podia
entrar, pois era primo da cunhada do irmão da noiva; Beltrana
seria convidada já que era boa em enfeites de cerimônias e assim
por diante. Aos 20 anos também, Lene iniciava matrimônio com
direito a pó de arroz e tudo com o jovem senhor Otávio, o
carpinteiro-pedreiro.

92
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

ATO 2 – O MEU TACACÁ É MELHOR QUE O SEU VATAPÁ

O Marajó, não muito diferente dos demais territórios


tradicionais, sofreu mudanças sensíveis nos anos 1970, revirando
o destino de muitas pessoas, em tendências que as levariam à
procura dos centros urbanos, pelo clássico capitalismo
desmedido. Tais vidas são pequenas histórias brasileiras que
fazem também parte do tecido da humanidade, logo postas de
lado pelos vencedores que registram os fatos como a mostrar
somente o pano final da cena produzida, sem considerar na
grande maioria das vezes as linhas que trabalharam arduamente
para costurar as emendas. Vai para os livros o resumo daqueles
que enxergam de fora a batalha. E muitas pessoas rodam de
acordo com os humores das politicagens e consumos. Basta que
haja algum fenômeno mercadológico para lançar os homens e
mulheres para um novo lugar, como aves de arribação. Mesmo
os que dizem ter nascido e criado em determinado lugar, em certo
momento se viu influenciado pela moda de movimento das
cidades. Neste caso, os maridos de Nete e Lene saíram para
procurar emprego no frenético vai-vem das balsas madeireiras de
Breves, levando suas jovens esposas para esta localidade, no
intuito de construírem a sorte. A consideração sobre Nete, Lene,
Max, Otávio, você e eu existirmos dependerá do quanto
escreveremos sobre nós mesmos.
Max logo percebeu que não seria fácil se acostumar à
rotina diária de bater cartão em nome da assistência
administrativa de uma firma. Trabalhava como um tipo de
anotador, a assinalar as entradas e saídas de todas as toras que
chegavam, organizando as informações em pastas e ajudando a
escrita das correspondências, os recados, até mesmo documentos
de compra e venda de terra. Ao chegar uma jangada de madeira
fosse a hora que fosse, lá estava Max no meio da madrugada, da

93
Pantoja Ramos

chuva ou no meio das duas juntas para fazer o controle do volume


e passar aos seus encarregados mais tarde, dormidos bem em suas
casas teladas contra carapanã. Apesar do labor duro, o numerário
para Max era pouco, mas cumpria os requisitos de alimentar
esposa e ele, não sobrando muita coisa para o enxoval da criança
que esperavam. Nete resolveu ajudar nas finanças e no preparo
do futuro filho em três meses de barriga quase imperceptíveis
pelo perfil da senhora. Com a recomendação da mãe conseguiu
ser ajudante de Dona Zilu, tacacazeira de mão cheia que acudia
com sua cheirosa sopa a boca da noite brevense, sobretudo nos
finais de semana. Lavando cuias e mais cuias, catando os
camarões ainda pescados graúdos naqueles tempos e
providenciando o jambu foi aprendendo do ofício de servir o
tacacá. Fez cálculos matemáticos e de aptidão para prever o
tempo necessário para se tornar uma mestra no assunto. Foram
quatro anos de insistência, até ter seu próprio negócio. Max
motivava a mulher, não queria que ela dependesse tanto dele
financeiramente. Nete era notável em finanças e organização, o
que compensava não produzir o melhor tacacá da região.
Também era asseada e atenciosa, convicta de que o bom
tratamento é metade do gosto do freguês, cuias limpas com água
clara e não do tipo barrenta lavadas pela sua antiga professora,
coletadas então no rio Parahuahu; mantinha cuidado com o
adquirir de palitos de dentes encomendados ao senhor Barreiro,
pai de Max que trabalhava em navios que ligavam o Pará ao
Amazonas, guardadas as pecinhas de madeira dentro de
pequenos saleiros em cada mesa servida, exclusivas para esta
função, tirando-se a mistura dos banquinhos serem usados para
assento e apoio de materiais, o que enojava a nova tacacazeira.
Um kit em que faziam parte a cuia, um aparador desta para não
queimar as mãos do freguês feito de talas de buriti, um paliteiro,
um pedaço de pano limpo cortado em quadrado e colocado em
bacia de água com quiboa após o uso, tal qual um lenço.
Estranhariam os de hoje se vissem tal cena do paninho, mas
94
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

lembre-se que eram tempos de 1988, onde os lencinhos de papel


ainda não tinham sido disseminados como material de bons
modos. Ainda assim, a higiene de Nete passava longe do único
pano oferecido por Velha Zilu e seu tacacá, tecido velho que ela
própria limpava os cotovelos, a bancada, o suor da testa e surrava
o gato provador de baratas que por ali passeava.
Os clientes gostavam do atendimento feito por Nete, o
que oferecia mais gostosura àquele manjar naturalmente sedutor.
As amigas tomavam o tacacá quentinho a misturar as sensações
na boca, do azedinho, do ardor ao tremelique final dos lábios,
cutucadas pelo salgado do camarão e admiradas do garbo em
pessoa que as servia. Nem parecia que se tratava da colega Nete
e sim uma mescla de artista e enfermeira, tão branco avental e
tão sincronizado os movimentos de entrega da cuia servido em
um sorriso jovial.
O apelido de Nete do Tacacá foi fácil de pegar.
Incomodou, no entanto, o aparecimento de tal Lene do Vatapá, a
mesma desavença de Ponta de Pedras que disputaria com ela a
freguesia de saída da igreja, nos bater de perna da meninada e de
seus pais trajados de vestidos comportados e calças retas, com
camisa de botão para dentro das calças, elevadas à altura do
umbigo e roupas femininas a dar castidade aos joelhos. Nete
Lembrou-se do dia que viu pela primeira vez a armação das
panelas de Lene e criou bronca na prefeitura pelo direito de ter
chegado primeiro naquele ponto da cidade, assim não poderia ter
mais ninguém a vender algo. Pensou consigo que aquelas panelas
velhas não eram dignas de alimentar o povo. “Aquela Porca”.
Diante do queixume, o Prefeito disse simplesmente “a praça é do
povo.”, enquanto iniciava a conversa com uma senhora que ali
estava para pedir um tambor de presente. Referir-se à palavra
praça era talvez um exagero do prefeito, pois se tratava apenas
de uma figura geométrica para passantes, um banco aqui, outro
acolá para os namoros já saidinhos de boca e abraço na frente de
todos. Independente disso era o fato de ser o local de maior
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Pantoja Ramos

movimento da cidade. Nete saiu do gabinete bufando e teve sua


enxaqueca crônica aumentada em dez níveis naquele dia.
Talvez sua dor de cabeça terminasse em vinte vezes em
relação à sua primeira insatisfação. Ao chegar à casa, veio
escutando a conversa de pai e filho, Barreiro e Max, sobre a
gastura do segundo no trampo que fazia. Queria viajar como seu
genitor fazia. “Te quieta, homi”. Ou voltar para Marabá e
ingressar nas brigas por segurança da terra que por lá se fazia em
favor dos agricultores familiares. “Não esquece que o Capa-gato
ainda tá por lá e se te pega tu não escapa desta vez... tu tá bem
aqui”. Capa-gato era pistoleiro que fazia vítimas vindas do
movimento social que clamavam por justiça no campo. Max era
dos jovens mais panfletários da região. Logo caiu na lista negra
do fezendeiro Schiavelli, que por uma quantia de 70 contos de
covardia pedira a Capa-gato que metesse uma bala na cabeça do
agora esposo de Nete. Fugido, subiu no mapa do Pará até o
Marajó e daí a Ponta de Pedras.
Nete vem para a conversa dos dois escrotiando em um
“que negócio é esse? Quer ir morrê pra lá! E eu nessa história,
como fico?”. “Tu vais comigo”, foi a resposta. “Ah, mas num
vou mermo!”. Bateu com a caneca de tanta angústia na garrafa
de café que caiu sobre a mesa, derramando o caldo quente que
rápido escorreu para as pernas de Barreiro. Foi pulo rápido de
queimada. Max pediu calma à esposa e disse que se não dava para
mudarem de morada, tudo bem, a barriga já ia alta de sua
gravidez, melhor não contrariar a mulher. Já lhe tinham dito que
as mulheres estão certas em três “P” que nunca se devia debater:
na Prenhez, na Pré-menstruação e no “Por que Sim!”, assim
exclamados. Remoeu por longos meses aquele diálogo toda vez
que tinha que passar a limpo no caderno principal da firma a
cubagem, tora por tora, daquele romaneio feito com letras
ilegíveis dos quase analfabetos que por ali também tinham
emprego, um cinco que parecia um dois, um quatro que
aparentava ser um nove. Sonhava acordado com bandeiras de
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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

revolução sopradas ao vento lá no sudeste do Pará, de um lado os


camponeses pobres, organizados e vencedores, de outro a surdina
da mídia e dos fazendeiros como Schiavelli, amedrontados,
derrotados. Capa-gato em seus sonhos teria morte certa nos
passos largos e convictos dos revolucionários. Sonho.
A tacacazeira permanecia cismada com a aventureira
vontade de Max em ganhar o mundo. Para suportar a convivência
com os devaneios do marido, caía na função de suas vendas.
Enquanto fazia a renda, relaxava a mente com as prosas dos
fregueses, lendas, verdades, traumas, acudindo quando solicitada
com conselhos dos mais variados possíveis, da culinária aos
temas morais e sociais. Como da vez que dois senhores
reclamavam do irmão que deixava a filha de 13 anos a andar nas
balsas para venda de palmito. “Os homi não ficam interessado no
palmito, é noutra coisa. Vê só uma pequena daquele tamanho a
visitá gente que não se conhece. É perigo. O Bené tá é doido de
deixá”. “Êh-êh...”. Nete, já agoniada com o diálogo, interrompe:
“vocês dois já falaram pro pai? É bom falá, senão sabe lá o que
podi acontecê?”. Os dois confirmaram com a cabeça. “Inda mais
com um velho que tem por lá, rapá, que não só pega as menina
como já aponta pros outros que chegam onde tá o fácil...”. “Sabe
o nome do velho?”, disse Nete. “Num sabemu, hum-hum”.
Da sobra de tempo entre a casa e a venda, procurou saber
mais sobre o assunto. Descobriu nas rodas de tacacá que o pai se
chamava Bené e a filha Graça, moradores do Tajapuru, no médio
rio. Como periodicamente os brevenses do interior vinham à
cidade para compras de rancho e sempre passavam pelo centro
onde estava a tacacazeira, pensou em reparar se os homens
daquela tarde que falaram das meninas e das balsas andariam
com alguém parecido com eles a dar a possibilidade de ser irmão
e mais ainda, o referido Bené. E um dia topou ver os três
semelhantes a caminhar vindo da parte baixa direita da cidade,
do ponto de vista igreja matriz, carregando cada um uma saca.
“Talvez aquele do meio seja o Bené”, avaliou Nete. Esperou
97
Pantoja Ramos

passarem para invocar o seu produto, “e aí senhores, aproveita


que o tacacá tá do jeito hoje!”. Os senhores não resistiram,
carecidos de uma bebida que devolvesse a sustança a eles.
Sentaram no banquinho de madeira, cada um com seu kit para
manjar a sopa e seus detalhes em jambu, goma e camarão. De
papo em papo, do assunto da madeira ao preço do palmito foram
tocando a bebida, com Nete botando lenha nos assuntos como o
mercado, o sujeito que foi demitido, a falta do açaí na feira. E foi
rodeando, caçando, espreitando nas frases a oportunidade de
introduzir o tema que queria, agachando nas entrelinhas como a
onça antes de dar o bote na capivara. E na metida das palavras
balsa e venda por um dos irmãos, jogou-se como a predadora que
era. “Seu Bené, os homens das balsas gostam do palmito que
vocês vendem?”. “Alguns sim, mas é mais pra levá pra Manaus”.
“O senhor é que vende?”. “Não, não, os meninos que vende”. Os
dois outros se olharam e perceberam que Bené ia se entregar
logo, logo. “Menino é danado pra vendê né?”. “Hunf, tu tem que
ver a Gracinha”. “Gracinha, quantos anos ela tem?”. “Acho que
uns treze ou quatorze, num me alembro, tu acredita?”. “Tu num
tem medo da menina tão nova no meio daqueles homi”. “É a
precisão minha senhora dela vendê, senão como a gente fica?”.
“Fica com uma criança esperando outra criança daqui a pouco
pra tu cuidar. ”, responde seco Nete. Os irmãos concordaram.
Bené sentiu-se contrariado e humilhado, como sempre. Aquele
homem tinha crescido na presença de patrões que tudo
provinham, alimentado e vestido pelo quase nada. De cabeça
baixa, definhou ouvindo o ralho do madeireiro, do marreteiro,
dos balseiros, com seu dinheiro ganho por poucos potes de
palmitos entregues por Gracinha, magra a cada dia, como se
estivesse sendo sugada por um morcego dos piores hematófagos.
Sua intuição de pai sabia que aquilo era errado, mas permanecia
no cerrar de olhos ao receber o triste numerário que mal dava
para manter o arroz por sete dias. Olhando para um lado e para o
outro, com a certeza de ninguém mais a escutaria além dos outros
98
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

dois, Nete soprou com voz singela tão convicta que estremeceu
os três homens. “Ispia, ou tu tira essa menina dessa vida, ou eu
vou lá na delegacia dar parte de ti! E vê que isso é pro teu bem e
mais do que isso pro dela! ”. Um irmão depositou a mão no
ombro de Bené e disse sereno que era o certo a fazer, tudo se dava
um jeito para alimentar a família, menos acabar com os filhos,
cujos irmãos de Gracinha já mostravam revoltas no silêncio da
situação e futuramente descontariam estes sentimentos ocultos
que traziam nas brigas e nas facadas das festas dos anos 1990,
meio que culpa. Pararam a conversa quando chegara a
companheira de Bené e a prole. Nete viu a magreza e a expressão
triste de Gracinha, facilmente identificada naquele número de
sete, três rapazes e quatro mocinhas. Bené pela primeira vez
enveredou no fundo dos olhos de Gracinha, percebendo a loucura
do mundo dos crápulas no objetivo de massacrar os inocentes.
Não chorou naquele momento, mas descambou em cachoeira
quando se viu sozinho no final do mercadinho enquanto separava
o arroz da semana. Só o filho mais velho viu a cena. Teve junção
de raiva e dó daquele pai naquele instante.
Nete passou a ter mais papos sobre este assunto. De boca
em boca, de cochicho a cochicho, chegou à conclusão o caso de
Gracinha não era o único. E foi mexendo no novelo, centímetro
a centímetro, uma envira que se esticava até chegar ao delegado,
tão sabedor quanto usuário da inocência de meninas. A fita da
envira naquela trama passava por dois vereadores, por um
policial, articulado tudo por alguém que não conseguira entender
e ali ficou o nó impedindo mais acessos, pois ficou aquela
situação como cobra fugidia a enrolar-se. Falou para Max que se
viu revoltado. “Égua, num pode!”. Como tinha contatos entre
promotores, iniciados nos momentos de ameaça de morte em
Marabá, Max prometeu escrever uma carta para um conhecido
na justiça cobrando providências. Na mesma mesa que falavam
sobre isso, Barreiro tocava galhofa enquanto derramava o café na
xícara, “pra tu vê como tem gente que oferece fácil as filhas e
99
Pantoja Ramos

elas até gostam.”. “Desculpe, meu sogro, mas isso não é coisa
que se diga.”. Parou o assunto ali mesmo.
No somar das entrevistas, juntou algumas mulheres da
paróquia para denunciar o que estava acontecendo, a maioria
participante da roda das novenas que timidamente acreditaram
que se podia fazer diferença. Com boa mobilização, escreveram
juntas documento apontando para a tragédia humana de crianças
violentadas no corpo e na alma naquele estreito de Breves onde
circulavam as embarcações entre Manaus e Belém. As coisas iam
bem naquela empreita de investigação e registro, quando Nete
percebeu que Lene estava à frente de outro grupo de mulheres,
colocado na responsabilidade de recolher as assinaturas na
avenida central da cidade. Orientava um determinado comando,
mas era feito por outro jeito. Nete pedia para colocar tudo em um
só documento, e na pequena assembleia outra opinião dizia
melhor mandar carta a cada instituição separadamente.
Incomodada com os diferentes encaminhamentos, Nete foi se
esgueirando até deixar a liderança do percurso, desmotivando
outras até o documento final ter somente trinta assinaturas das
mais de duzentas que haviam planejado e que poderia chamar a
atenção das autoridades naqueles derradeiros anos da década
1980. Desmobilização. Esquecimento. E a tragédia voltou a
acontecer, desta vez com a menina Nanda, irmã de Gracinha,
engravidando de um sujeito que trabalhava nos empurradores das
balsas de madeira como ajudante de máquinas. O pai, Bené,
soube-se mais tarde, morreu abandonado pelos filhos em uma
casa fedendo a mijo de rato, engasgado com o remorso e com o
vômito trazido pela leptospirose adquirida.
Nete alimentou a responsabilidade pela desistência da
luta em Lene, a do vatapá, tentando desculpar-se com Max,
animado que estava com a causa da esposa. “Culpa da
Tanajura...”. O marido ficara decepcionado com esta paralisação,
escutando do Velho Barreiro a frase “mas quando que mulher se
organiza, preto. Tem que cuidar da casa e dos filhos. Nada
100
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

mais...”. Nete xingava o sogro por estes comentários em


sussurros para não sujar o pobre ouvido do seu filho, o
Andrezinho.
Voltando ao seu trabalho de tacacazeira e somente deste
serviço, Nete trabalhava dia a dia e odiava os leilões que
ocorriam nos festejos de santo. Era o período que seu produto
não era tão disputado, pois o fervor dos munícipes orientava para
outras comidas, motivado pelos desejos de angariar fundos para
as paróquias. “Quem dá mais por este frango rodeado na farofa,
feito por dona Célia? 20 contos? Eu ouvi 20 contos?”, dizia Bira,
o pregoeiro. “30 contos!”. “30 trintas contos, quem dá mais,
quem dá mais, ali pro senhor Cazuza, morador da estrada: 40
contos!”. Mas Nete não suportava mesmo era o fato de Lene
conseguir a proeza de incluir o seu vatapá na lista dos leiloáveis.
Sua comida era feita para voar entre as mesas. “Quem qué este
prato de vatapá dos camarões graúdos da Lene do Vatapá?
Hummm, como tá cheiroso...”. Nete pede para sua amiga
Antonina gritar “1 conto!”. “Só isso?? Não acredito, quem dá
mais?”. “10 conto!”, grita do meio da comunidade a Do Carmo,
já senhora do que se passava entre as duas jovens senhoras, como
sempre. “10 contos, 10 contos...”. “20 contos!”. “40 conto!”. “50
conto!”. Silêncio. “Dou-lhe uma, dou-lhe duas se tiver leite do
Amapá...”. Risadas. “brincadeira, viu gente, vendido para seu
Oséas do Mapuá o vatapá da Lene por 50 conto!”. Nete saiu
emburrada. Max, sabedor da briga com a vatapazeira, balançou a
cabeça negativamente.
No inverno, era a glória de Nete. De tempos chuvosos,
de um frio incomodante à pele acostumada com a quentura do
Equador, os ribeiros corriam para o tacacá de Nete, acolhedora
bebida a esquentar os então esfriados estômagos dos rezadores
pingados. Mesmo nos dias de chuvisco da cor de rato, aqueles
que não cessam pelo dia inteiro, lá estavam o vigário, o prefeito,
a juíza que vez ou outra visitava Breves, todos a tomarem a
deliciosa beberagem. Sim, sua iguaria convidava as pessoas.
101
Pantoja Ramos

Eram momentos de pura informação à vendedora, já que estes


líderes falavam das situações do Marajó, Brasil e do mundo. “Vai
ter um curso para as parteiras com certificado e tudo. ”. “O
governador vem a Breves a convite da Firma NorteCerne em
novembro. ”. Enquanto ouvia, mexia a panela para a goma ficar
no ponto certo. “Põe cuia cheia aí, Nete”, pedia o padre, que
benzia a bebida quente, mistura de sinal da cruz e de polegar
positivo.

ATO 3 – SOU MAIS O MEU VATAPÁ

Otávio se viu adaptado ao serviço de operador das


laminadoras, afinando as grossas toras de virola para a condição
de tecidos de madeira que seriam exportados para Belém e daí
para o mundo. Lene adorava fazer almoço para os amigos de
labor de Otávio e suas famílias. Neste revezamento de visitas,
procurava dispor daquilo que mais cultivasse os paladares alheios
e assim tentou com o bolo de tapioca, sem sucesso. Lançou um
prato arrojado envolvendo galinha desfiada, arroz e ervas: sem
graça. Já estava descendo ladeira abaixo na escala das mulheres
prendadas, cujos defeitos culinários já andavam nas bocas das
comadres de ocasião. E certa vez arriscou um vatapá, humilde,
equilibrado em seus ingredientes que levantou suspiros na casa
de um colega de Otávio que habitava aquele casebre na rua
central de Breves, lá nos fundos da cidade, mistura de mato e
barro. Foi um prato amarelado de vatapá aprendido com Dona
Guiomar que por sua vez tinha pegado a receita com um casal de
nordestinos que teimosamente permaneciam juntos, ela baiana,
ele maranhense que misturaram de tal forma o prato a base de
trigo, dendê na medida certa, arroz branco e camarões carnudos,
nada daquelas securas salgadíssimas, o que surtiu efeito

102
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

espetacular ao paladar dos amigos de Lene. A esta riqueza, a


jovem senhora incorporou o jambu do norte, devidamente
selecionado das boas hortas da estrada de Breves. A sensação de
dormência da língua surpreendeu os degustadores, que disseram
“ei Lene! Tem gente que compra um prato dêsse!”. “Quem
odera...”, respondia. Nos meses seguintes insistiram na tese de
que seu vatapá deveria ser vendido, o que poderia trazer um
dinheirinho a mais para o lar. Otávio motivava com seu modo
calado de ser. Ia à beira, selecionava o camarão pescado,
separava o arroz melhor, trazia tudo no lombo da bicicleta para a
esposa, que agradecia nas beijocas que lhe dava, deixando-o
vermelho na mistura de cores com o crustáceo que trazia.
Certo dia, Lene resolveu sair da varanda de sua casinhola
para ir à praça e vender seu prato. Seguiu com suas panelas para
a matriz, na frente da igreja de Santa Ana, a padroeira da cidade.
Quando chegou à praça, reparou na outra ponta a moça esguia e
séria vendendo tacacá, olhando de butuca, sempre de butuca.
Lene avaliou ser aquela do outro lado metida a enfermeira, cheia
de frescura com os detalhes de seu canto de venda. “Olha quem
tá ali, a fresca...” resmungou a si mesma Lene, enquanto cobria a
mesa com a toalha estampada que trazia de casa, pratos azuis
empilhados, colheres e garfos separados, panela com água para
lavar por ali mesmo os utensílios. Compensava o fato de não ser
cem por cento higiênica como Nete com a galhofada de suas
conversas, teretetê, teretetê, risos fartos que saiam da boca das
senhoras que lá iam. Soube da bronca que a rival criara na
prefeitura e foi ao gabinete municipal pedir informações se tinha
surtido efeito a acusação de Nete. Encontrou o prefeito agoniado
para sair da conversa com uma senhorinha que lhe cobrava um
tambor prometido em época de campanha como reservatório de
água e não dando atenção à conversa das duas que pediam água
e situações, disse: “tô ocupado, tá, tá, te arranjo um tambor e pra
ti a praça é do povo”. Lene ali saiu feliz.

103
Pantoja Ramos

Alegre na casa, percebeu Otávio incomodado com aquela


euforia. O rapaz não entendia como alguém vinha do trabalho
esbanjando sorriso largo e dentes a todos enquanto ele chegava
suado, cansado e ranzinza do trampo seu. Aliás, isso de quando
em vez mexia no cotidiano do casal, ele sempre sério, agravado
o mau-humor no fim de dia, ela a querer contar piadas e gracejar
sobre os fatos vistos no centro da cidade. “Tatá, sabia que foram
reclamar de mim pro prefeito? Foi bem aquela criatura pitiú com
certeza”. Queria começar a interlocução para assim delinear todo
o seu dia e seus detalhes acompanhantes com o prazer de
destrinchar cada matéria à mostra ou submersa nos fenômenos
que vivia. Porém, de Otávio ouvia seco: “Deixa pra lá, cuida do
teu serviço!”. Murchava Lene. Cinco minutos de apatia, Lene
estava de volta, com atenção voltada para a televisão da vizinha
às oito horas da noite. Lá se ia para a torcida diária da novela da
moda, não sem antes deixar a janta do marido pronta, terminando
seus pareceres sobre o capítulo do dia no último enxague da louça
deixada.
No que se refere ao dormir, não tinha Lene muita
satisfação, pois o marido não conseguia entorpecê-la. No
máximo cinco minutos de vai-e-vem e pronto hora de dormir.
Admitia que Otávio era trabalhador e grande parceiro de seu
negócio, sobretudo na logística, contudo, não conseguia a tempos
tornar quente a cama de Lene. Para a sorte do esposo, qualquer
passarinho cantor tirava a atenção de Lene para pensamentos de
frustação carnal. Tinha um gostar da vida naturalmente e assim
se transportava.
Mesmo com todo o gracejo que lhe era nato, ficou
injuriada ao ouvir a história de uma garota, máximo de quatorze
anos de idade, que chorava no porto da cidade, na ocasião em que
Lene foi buscar sozinha, pequeno saco de arroz que lhe tinham
trazido do Jari. Indagou pelo nome da menina, respondida por
Gracinha. A lágrima escorria pela face encabelada da menina,
nuns fios que se juntavam para enfim curvar por sobre o lábio
104
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

superior arroxeado que era. Lene puxou conversa, “que foi


pequena, o que te aperreia? ”. Só teve como retorno um olhar
para outro ponto fixo da parte portuária, do rio para as palafitas,
da palafita para o rio, enquanto uns tralhotos brincavam de pira
naquela quase água parada de maré vazante. Mais de uma hora
de insistência, agoniada que Lene já estava com o momento da
janta do marido, a mocinha soltou frase rápida que estava com
dor. “Com dor aonde? ”. “No meio da perna”. Resolveu receber
a bronca de Otávio mais tarde e escutar o resto do agravo de
Gracinha. A pequena explicou que tinha um homem mexido forte
com ela quando foram se deitar na rede. “Quem foi? ”. “Não
conheço, lá das balsa ele passa...”. Numa espetada aqui e ali foi
criando a imagem do que se sucedera. As mulheres são peritas
em palavras não acabadas, ditas só por meio termo, por meia
frase, por metade de um olhar, um terço de palavras, um quarto
de feições e aí está a sua prova de suficiência em pré-
pensamentos ou intuições. Concluído o quadro triste de
envolvimento daquela criança com sujeitos que viajavam de
Belém a Manaus a levar mercadorias, quase vomitou ao saber
que a família conhecia dos atos e nada faziam. Revoltada,
perguntou pelo pai da garota pronta para ir ao encontro deste
naquele instante mesmo. E nas frases jogadas ao ar de
indignação, não reparou Gracinha ganhando a rua quase correndo
e assim Lene viu aquele pedaço de gente se distanciar cada vez
mais, levando a pergunta com ela do sentido daquilo tudo, quase
que flutuando em direção à esquina próxima. Chegando em casa
foi dizer o motivo de atraso, mas foi cortada por Otávio na
acusação que era enxerida.
Em dias de final de mês encontrava assim de longe
Gracinha e não escondia a vontade de tirar mais detalhes daquele
assunto. Quando enxergava a menina no porto parada, sentava ao
lado dela, a contar piadas sobre as vidas de Breves. “E aí moleca,
já tomou açaí, hoje??”. “Já”. “De onde?”. “Da Dona Sinésia”.
“Tu é lesa, pequena, vai lá não”. “Pur quê?”. “Purquê uma vez o
105
Pantoja Ramos

gato dela caiu na bacia pra pegá o açaí da batedeira, e não contou
conversa, pegou o bicho pelo rabo todo banhado de açaí mesmo,
espremeu o bichano xingando ‘égua de gato num passa por aqui
já num te falei’ e aí devolvia o açaí pra vasilha pra depois vendê”.
“Avimaria”. Cuspe e risadas. Indagou na lata mesmo se a dor nas
partes de Gracinha tinha diminuído ao que recebera como
resposta um sim, já sem o gracejo. Mas vira e mexe voltava. Era
só cair na rede dos homens e tudo doía novamente. Quis saber do
pai da garota e lhe foi devolvido o nome de Bené. Era a família
do rio Tajapuru, comprava no armazém central e retornava quase
que imediatamente feito o rancho do mês. Foi o bastante para
Lene bater lá e encontrar o pai Bené a escolher arroz cabisbaixo
no fundo do mercado. “Tu és o Bené, pai da Gracinha??”. “É”.
Tapa. Perplexidade do atingido. “Isso é pra tu aprender a não
fazer a filha de putinha, desgraçado! E sabe o que mais, vou no
delegado agora te entregá!!”. O homem, rasgado por dentro pelo
remorso de envolver sua pequena naquela tragédia, foi mais para
o fundo da loja a escolher o arroz, misturar, escolher, misturar,
escolher enquanto chorava. O filho mais velho chegou ao
mercadinho no momento que uma fera chamada Lene saíra de
dentro a passos firmes, numa ombrada que quase o derrubou.
Ao chegar na delegacia, sozinha e mulher, sentiu os
ávidos olhares para sua silhueta e mal pode explicar ao delegado
a situação, foi logo recebendo deste o veredicto que aquilo era
caso de família e só se houvesse estupro seria forçado a se meter.
Desejou repetir a tapa que dera em Bené, mas sua intenção foi
substituída pela intuição de que ali não estava protegida, não
naquela barra de saia da lei, ao contrário, viu rodear sobre si as
caras dos presos dali a intimidá-la, as coxas, as nádegas, o busto,
tudo lhe deixou reprimida e de lá saiu, agoniada e com olhos
marejados. Imaginou com razão a piscadela do delegado para o
homem que varria uma das celas, enquanto ela saia
envergonhada. Otávio brigou com ela, disse que ali não era local
de mulher ficar. Que se alguém mexesse com ela ia ter morte.
106
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

Enquanto o marido discorria sua palestra para o esteio da casa,


Lene só lembrava-se de Gracinha humilhada, vendo-a pedir
socorro ao pai por debaixo de gordo homem, que frouxo, nada
respondia. “O mundo é assim mulhé”. Voltou a si. “Não! Não
pode ser assim!”. Deitou-se na rede a cobrir com as franjas o resto
do mundo e lá ficou a digerir a injustiça. Naquela noite não teve
nada para Otávio.
Lene do vatapá organizou um grupo atiçado para mostrar
a revolta das mulheres de Breves em relação aquele estado de
coisas. Foi na câmara de vereadores, com alguns comerciantes,
fez um abaixo-assinado para que fosse levado ao Governador do
Pará, aos juízes, às rádios de Belém o conhecimento a exploração
sexual infantil crescente na região. Estava com suas amigas
animadas porém sentiu a dúvida pairar nelas quando surgiam
outras opiniões de primeiro fazerem assembleias para uma única
carta, lideradas por Nete, de longe. Lene não concordava, queria
espalhar a todos aquele crime. E com o titubear das amigas, foi
perdendo em contingente de pessoas para realizar a dura tarefa
de correr entre as instituições para apelo. Não suportando
também a cobrança do companheiro por sua presença, foi
cansando e deixando aquela batalha aos poucos.
Desviada a atenção tempos depois, caprichava para fazer
de seu vatapá o mais cobiçado nos leilões que se aproximavam,
naquele mês de Santa Ana, em julho. Tudo certo, tudo completo,
tão animada estava que nem o período de cólicas menstruais
diminuía sua empolgação na elaboração de seus pratos. Otávio
levava o carrinho fumegante de arroz e massa de amido para a
comunidade, cujo cheiro levantava os narizes dos presentes. “Tá
com um cheiro..., bora logo jogar no povo”, admirava Bira,
entusiasmando Lene, que batia palminhas, tão menina e senhora
que era no mesmo corpo e mente, contida só pelo olhar de Otávio
para quietar-se.
“Quem qué este prato de vatapá dos camarões graúdos
da Lene do Vatapá? Hummm, como tá cheiroso...”, suspirava
107
Pantoja Ramos

Bira. A maioria cochichava para ver no bolso e na carteira quanto


apostariam. Era um jogo de orgulho, pois arrematar no leilão ao
maior preço era forma das famílias se destacarem, mesmo que
não tivessem dinheiro depois. Ao se realizar o arremate,
lançavam-se os olhares de todos para determinada mesa
vencedora da disputa, onde ali estavam tradicional família, os
Castro, Os Matias, Os Cardoso, etc. Assim, fincavam-se
bandeiras de sua presença na sociedade brevense, do carreteiro
humilde ao comerciante abastado. “1 Conto!!”. “Só isso?? Não
acredito, quem dá mais?”. Lene olha para a moçoila que dera o
lance e mais ao lado Nete. “Tinha que ser a jia metendo na cabeça
da outra! ”, torceu a boca e o nariz para a esquerda. Do Carmo,
observadora do desfilar dos comportamentos ali no banquinho de
madeira quadrado no fim do salão, percebeu a provocação de
Nete, balançou a cabeça e gritou por dez conto, não sem antes
lançar julgamento silencioso à Nete, que só olhou pro lado,
cínica. “... vendido para seu Oséas do Mapuá o vatapá da Lene
por 50 conto!”. Que alegria pra Lene. Era só o primeiro prato da
noite.
No inverno amazônico, as vendas de seu vatapá caiam.
Sem circulação de dinheiro, sem açaí, a praça e o comércio não
eram tão procurados. A maioria das pessoas de Breves, cidade e
interior, lutavam para ter dinheiro e comprar o básico do rancho,
pouco sobrava para ir à pracinha comprar camarão. Lene olhava
com inveja para a venda da tacacazeira, pois esta juntava as
autoridades do município a beber de seu tacacá quente e
revigorante, até com benção do padre. “Punha-mesa”,
resmungava. Com pouco numerário adquirido nessa época,
Otávio era praticamente o único provedor da casa, ocasião em
que trabalhava bastante, esgotado por conta de transferência de
local para as áreas de extração de madeira, lá para as bandas do
Aramã. Passava até 15 dias fora, enciumado de tudo, desconfiado
de todos, até do rapazote que vendia pão na porta de sua casa e
que tinha amizade com Lene. Era entregar o pão e sair na
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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

bicicleta na carreira quando percebia que Otávio estava em casa.


Lene estranhava porquê de vez em quando mal via o garoto.

ATO 4 – TONI, PESCADOR DE CAMARÃO

No mês de maio chegava a safra do camarão. Jupatis


eram cortados, as braças e matapis eram encomendados.
Cupuranas eram retiradas, as folhas e rações de babaçu vinham
do Maranhão, juntos folhas e ração a formar a poqueca,
amarrados em laços folhados nos matapis e assim seduziam-se
os camarões para a armadilha. Toni, o camaroeiro da Ilha das
Araras ganhava seu quinhão vendendo camarão em Breves ou
entregando para os barcos que seguiam para Belém, cozidos na
sua bacia escurecida pelos longos anos de fogo e brasa naqueles
dias a repartir a tarefa com o irmão. Quem vende o crustáceo
nesta maneira não tem tempo para fazer as coisas de mariscar,
cozinhar, viajar, vender e retornar com compras. Carece de um
filho, um irmão, um pai, uma filha, esposa, alguém que lhe seja
parceiro ou parceira na lida de catar os apetrechos presos pelas
cordinhas no rio Amazonas.
Toni tinha sensibilidade para separar os graúdos
camarões. Se lhe reviravam o paneiro, da cabeça ao fundo
mantinha a mesma medida de esporão ao rabo, ali por uns nove
centímetros em média. Ao contrário dos demais pescadores que
misturavam os tamanhos, descartava para o rio ainda no matapi
os pequenininhos. Embora vendesse menos, possuía por esta
qualidade a fidelidade de seus fregueses.
Nete era uma das compradoras mais fiéis, chegando cedo
à feira para ter bons camarões para seu tacacá. Somente quando
Toni não estava que recorria aos demais, dando mais trabalho
para evitar piticós que lhe ofereciam por preço menor, mas
109
Pantoja Ramos

mantinha a posição de ter sua bebida quente com padrão e disso


não abria mão. Lene era outra assídua freguesa, na figura de
Otávio que se dava bem com Toni nas características de dois
homens de meia idade que se respeitavam e que preferiam a
sensatez a falar pelos cotovelos. Assim, Nete e seu Tacacá, Lene
e seu Vatapá eram unidos pelo camarão de Toni.
Apenas nisso. Os fornecedores de Nete e aqueles que
abasteciam Lene eram divididos em turmas para cada uma,
montados em anos de estratégia na composição dos grupos. Certa
vez, Otávio entregou a pedido de Lene uma garrafinha de Dendê
para o dono da baiúca que vendia babaçu, dendê e outras coisas
do nordeste. O comerciante, sabendo o que era, repassou a
garrafinha para Nete, que assim fez o primeiro vatapá a base de
dendê e andiroba juntos, um fedor danado quando ferveu.
“Tanajura da peste!”. Outro dia, numa distração de Otávio, pediu
pra um carreteiro misturar baratas na saca de camarão que trazia.
Lene irritou-se ao achar aqueles bichos nojentos no catar dos
camarões, ficando no prejuízo. “Punha-mesa duma égua!”. E
assim mostra-se misteriosamente a vontade feminina de formar
exércitos, bem menos à mostra quando comparada à soberba
masculina. Os melhores generais seriam as mulheres se lhe
dessem oportunidades históricas, propensas não às armas e
mortandades, porém aos estratagemas e poder sobre o processo a
guiar os demais, com especial atenção às novas líderes jovens
respeitosas da condição estabelecida. O ciúme de não aumentar
seu time por uma força de mesma magnitude do outro lado
aumenta a competividade de Nete e Lene. Era convocar ouvidos
e raciocínio para concluir que uma parte da feira estava com a
tacacazeira, outra com a dona do vatapá.
Toni, o camaroeiro, estava sempre bem no meio desta
campanha. Era líder nato, trabalhador, inteligente e
absolutamente independente. Nete e Lene o disputavam como
fornecedor e não havia cerimônia de nenhuma das duas em
demonstrar isso. Como sujeito feioso que era, cheio das
110
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

expressões faciais próprias de quem vivia em raciocínios e


sentenças, não entendiam os vendedores a causa de tanta
pavulagem vindas das duas senhoras. “É só Toni chegar na feira
que as duas ficam toda-toda”. Impensáveis para estes
comentaristas que os segredos não eram sexuais e sim de
arrebanhar o melhor para um dos lados e tendo este objetivo
surge o charme, a finura da voz, na linha de pensamento de que
é preciso alcançar o objetivo de reforçar o time, mais nada. Nete
até fazia-se leve, passando a mão na cabeça a arrumar o cabelo,
a fingir jogar um de seus paninhos no rosto de Toni, “vende só
pra mim, tá? Só pra mim, viu?”. Lene ficava mais contida, de
elegante dama a chamar de Seu Toni com voz meiga, olhar
agraudado e curvas dobradas discretamente. “Espero que este
camarão melhor seja pra mim, Seu Toni.”.
Neste interim, Toni refletia sobre as cortesias estranhas
fora do contexto daquilo que descreviam sobre tais mulheres,
“Hum-Hum...”, filosofava. E no caminhar daqueles dias,
enquanto guardava o dinheiro da venda de camarão dentro do
barco, lembrou-se que tinha deixado o último paneiro ainda no
porto e lá de sua embarcação escutou o bate-boca que vinha do
trapiche. Nete e Lene discutiam na frente de todos, inclusive de
Max e Otávio sobre a compra dos últimos camarões graúdos. Os
de Nete davam razão a ela, claro, os de Lene diziam que esta
estava certa. “Eu nem te vejo aqui na feira, Tanajura, pra comprar
camarão?? Nem coragem de sair do mosquiteiro tu tem e manda
teu homi coitado aqui todo dia a levar tuas coisas!! Eu venho aqui
todo-santo-dia então eu levo!!”. “Punha-mesa, se eu não venho
aqui é pruquê tenho o que fazê e não fico aí bestando a ficar
batendo perna na rua! Eu vi o paneiro primeiro, pois levo eu!”.
“olha que eu não sou de fazer confusão, mas eu tô cheia
de tu ficar se metendo na minha frente, pensa que eu não sei que
foi tu que mandou aquele moleque do Paçoca aguar minha goma?
Quem disse, foi o próprio Paçoca depois que eu peguei ele pela
segunda vez! Peituda que nem as vaca!”. Risadas.
111
Pantoja Ramos

“Olha quem fala de criar confusão? Mandou seu leva-e-


traz do Rosário jogar pimenta maldita na minha panela outro dia
e quase afogou o padre que num pode comer dessas coisas?
Vocês sabiam??”. O lado de Lene gritava NÃÃÃO. “Seca Velha
da ruindade!!”. Risadas.
“Diz se não é tu, Tanajura, que pede pro porre do Serrão
vir perturbar minha freguesia todo dia??”. “Eu não”. Risinhos.
“Por isso que tu merece a ferrada de caba de vez em
quando!”. “Ah, pois agora entendi, Punha-mesa, é tu que manda
moleque balá essas praga pra cima da minha banca”. Risinhos.
No bate-boca, Max e Otávio ficam ali envergonhados,
tentando tirar as esposas de cena, mas não adianta muito.
As palavras no vento prendiam-nas na peleja.

“Bunda de Tanajura”.
“Bunda de Cutaca”.

“Égua parida”.
“Cachorra doente”.

“Capivara”.
“Mucura”.

“Botijão”.
“Beribéri”.

“Varejeira”.
“Turu”.

“Tamoatá”.
“Caranguejeira”.

112
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

“Coceira de Aninga”.
“Ferrada de Arraia”.

“Remosa”.
“Panema”.

“Tambor de ferrugem”.
“Castilho podre”.

“Vatapá diarreia”.
“Tacacá da doença”.

“Tiricirenta”.
“Tralhota”.

“Paca Velha”.
“Carataí”.

“PUTINHA POR AÍ!!!!”.


“FOLÓ DE TODOS!!!!”.

Aí tudo parou. Max e Otávio largaram as duas, os


homens que estavam em seus grupos saíram de lado, indignados
com as últimas palavras tão impactantes aos machões. Por um
instante, aquelas nuvens se dissiparam e as duas viram os olhares
negativos saírem para elas e não para as palavras que proferiam,
parando as risadas. Toni pegou o último paneiro e disse
calmamente: “se esses camarões é o que faz a briga, então não
tem pra nenhuma das duas”. De um empurrão com o pé, derrubou
o paneiro do alto do trapiche municipal. Os peixes e mesmo
outros da mesma espécie comeram a mercadoria, sob a vista dos
homens e de Nete e Lene, indignadas com a audácia de Toni. As

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Pantoja Ramos

rugas da testa agora arquejadas davam ao camoreiro sua


independência daquele fandango e assim entrou no seu barco.
Toni passou a ir direto para Portel sem parar em Breves a partir
de então, onde a demanda portelense trouxera-lhe bastante
sucesso como pescador. Até comprou outro barco dois anos
depois e seguiu sua vida ainda mais para longe, indo morar para
as bandas de Gurupá.

ATO 5 – A UNIÃO POR INSTINTO

“A briga pelo Toni” como ficou conhecido o episódio


deixou os maridos bastante contrariados, gerando contendas em
casa, cada um, Max e Otávio a reagir à sua maneira. Ambos,
aproveitaram para expor suas insatisfações guardadas algum
tempo.
Max disse à esposa que o que ocorrera no porto foi muito
constrangedor, que achava que aquela rixa tinha que acabar ou
eles se mudarem, dando Marabá como alternativa de nova vida.
“Lá vem tu misturar as coisas, doido que tá pra fazê tuas briga
por lá, né??”, reagiu Nete. Max deixou claro que estava
aguentando até agora aquela cidade e aquele trabalho, mas com
a peleja escancarada, pior seria pra suportar toda a guerra que só
aumentaria. “Tu te deste ao trabalho de jogar pimenta no vatapá
da outra??”. “Tu sabe que não sou assim!”. Mentira. Saiu o
esposo porta afora. Emburrado por dias, Max decidiu viajar
sozinho para Belém e de lá para Marabá, avisou que queria passar
uma semana por lá para esfriar a mente. Capa-gato, o pistoleiro,
soube de sua visita ao assentamento Esperança e tentou matá-lo.
Max não morreu, ao contrário, teve a sorte de seu quase algoz ser
morto por um agricultor naqueles dias em que estava no ramal.
Schiavelli, o fazendeiro, culpou Max de crime premeditado,

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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

colocou seus advogados para processá-lo, pagou o delegado para


criar provas do nada, mimou o juiz com jantares e assim
prenderam o esposo de Nete para julgamento. Se não fosse a
confissão do verdadeiro autor da morte de Capa-gato, seria
certamente condenado. Nesta confusão, passou dois anos na
prisão do município de Americano apanhando quase toda semana
a mando de Schiavelli. Só teve paz a partir da morte do
fazendeiro na pistola de Velho Barreiro, que usou uma menina
de 14 anos para seduzir e matar um dos maiores donos de terra
de Marabá. Max não agradeceu ao pai, consumido pela vergonha
que trazia dentro da cela.
Situação que soubera da carta de Nete meses antes do
assassinato do fazendeiro, explicado na letra triste à caneta preta
escrita fina do dia em que flagrou o pai de Max. O velho estava
montado em uma garota que não tinha sequer 12 anos, crente que
estava que a nora não chegaria mais cedo à sua casa, ainda mais
agora ocupada em vender tacacá para não pensar no esposo
distante. Da cena aterradora veio a lógica que era Barreiro quem
organizava o acesso de balseiros às meninas do interior, daí
atentar Nete agora para as garrafas no quintal separadas de óleo
diesel, um litro, mais um litro, mais um litro, muitos litros em
separado. Achava que era avareza. Era sexo em troca de diesel.
“Desgraçado!!! Vou te entregar!”. “Não te mete Nete, não te
mete viu?”. “Tamanho velho sem-vergonha indecente!! Vai
procurar mulher do seu tipo!”. Barreiro, pegava a camisa, a meia,
vestia a calça, ajeitava o cinto no momento que a nora gritava. A
menina já estava a quadras dali sem rumo, suja de lama de vala
que mergulhara, tão desembestada estava. “Fala Baixo, porra!”,
Barreiro segurou com as unhas o antebraço de Nete, que reagiu
dando tapas no peito do homem até acertar seu rosto. Barreiro
irado empurrou a mulher que foi ao chão, batendo com a nuca na
quina do fogão enferrujado. Foi sangue no mesmo instante. O
velho pedófilo saiu correndo e caiu no mundo, escondido e
ajudado por aqueles envolvidos também com a exploração
115
Pantoja Ramos

sexual. No modesto hospital de Breves enfaixaram sua cabeça.


Ficou no leito observada pelas enfermeiras. “Foi isso, Max, foi
isso que aconteceu... adeus”. Max, envergonhado pelo pai e
marcado pela falsa acusação que sofrera não voltou mais para
Breves. Nem para Marabá.
Após alta do hospital, Lene observou Nete enfaixada do
outro lado que ficavam. Soube da situação envolvendo Max e
Velho Barreiro, imaginou que se anos atrás fossem adiante no
caso de Gracinha, não haveriam novas meninas violentadas.
Culpou-se pela intransigência. Reparou o tacacá meio
desorganizado em sua entrega, rosto triste, pálido, olhar longe,
talvez de ter tido um monstro em sua casa. Ou da saudade do
marido que sumira de casa coincidentemente após “a briga pelo
Toni”. Sentiu pena. Até pensou em atravessar a pracinha e puxar
conversa. Esquece. Baixou a cabeça e começou mais cedo a
desfazer a sua banca.
Vatapá só amanhã.
Para Otávio, a “briga pelo Toni” foi a maior vergonha
que tinha passado na vida. Chegou em casa e acusou Lene de ser
oferecida. “Ela te chamou de Foló de todos!”. “Tu me respeita,
Otávio, que eu sou mulher de bem!”. “Imagina se eu deixasse tu
ir todo dia na feira, o que não iam falar de tu, hein?”. “Como
assim?”. “Toda despachada tu sabe que eu nunca gostei. “Num
acredito que tu pensa isso de mim?”. “De agora em diante tu não
sai de casa! Só sai quando eu mandar!”. Lene ficou estática,
surpresa desta sentença. Para evitar confusão, parou a briga por
ali mesmo ao não mais retrucar.
Dias depois, o ciúme de Otávio aflorou mais ainda,
motivado pelo menino do pão, agora um rapazote que foi
entregar o troco à Lene no momento em que Otávio saia para o
trabalho. “Quê que tu qué aqui??”. O rapaz em seus hormônios e
posicionamento de novo homem respondeu num “ê rapá, pára
com essa misura, tua mulhé é direita, eu só tô entregando o

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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

troco!”. “Cala a boca e sai!”. Lene viu tudo aquilo negando a cena
como absurda. Otávio pegou a marmita e saiu apontando para
Lene.
O casal não tinha filhos, mantendo Lene na silhueta de
jovem mesmo com o passar do tempo, na mesma generosidade
corporal. Otávio ficava inseguro e passou a tentar enfilhar Lene
a todo custo sem sucesso, acumulando ciumeira. Ficou doente
nesses pensamentos. Os sogros tentaram conversar com o filho,
que recusava aceitar o fato de ficar neurótico. No dia em que
Lene ousou tomar banho no quintal de sua casa de cuia e tambor,
com os devidos cuidados de short e camisa estarem cobrindo-a,
Otávio foi avisado na firma que uns moleques estavam olhando-
a do alto de uma mangueira. Ao chegar em casa foi acusando, foi
metendo o dedo em riste, deu um tapa, outro tapa, mais um tapa,
sem chance da mulher perceber seu ódio na trinca dos dentes.
Lene foi ao hospital fazer curativos e receber unguentos para os
inchaços. De alegre que era sua vida, passou à depressão. Os
sogros se revoltaram e denunciaram o próprio filho, que fugiu
para a capital e de lá para Cametá. Soube-se que Otávio casou
mais três vezes, até a última furar-lhe um dos olhos com as unhas,
enquanto tentava se livrar do estrangulamento dele. Aliás,
sempre foi um cego.
Naquela tarde na pracinha, Nete avaliava o quanto Lene
deve ter apanhado, marcada no rosto, na alma, nos olhos, com as
maçãs do rosto inchadas, arroxeadas. Ficou pensando as agruras
que deve ter passado por anos a fio. Ainda bem que não tinha
filhos com aquele peste. Não devia ter exposta Lene para um
marido tão ciumento naquele episódio do camarão. Seu vatapá
aparentava sem gosto, sem sal, camarões pálidos a não agradar
os fregueses. Quis pedir desculpas e atravessar a pracinha, mas o
pensamento empacou.
Baixou a cabeça e começou cedo a desfazer a sua banca.
Tacacá só amanhã.

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Pantoja Ramos

ATO 6 – TRÉGUA?

Alguns anos se foram rápidos, Nete e Lene com mais de


35 anos, quietas cada uma no seu canto, sem brigas, sem planos,
sem estratégias. A praça tinha crescido, a rua estava cheia de
comércios, os vendedores se espalhavam pelas esquinas, carurus,
mingaus, sucos, coxinhas, pastéis, tacacás e vatapás. Com
concorrência, Nete e Lene se viram pessoas normais diante de
todo o mercado, de toda a feira. Sem mais, nem menos.
Nete vivia com dores de cabeça, sequelas do
sangramento da nuca, bem magra do sofrimento que se empunha
pela solidão e pelo conhecimento que meninas visitavam as
balsas em troca de dinheiro e óleo. Focava no dinheiro para
manter Andrezinho e dos custos fixos da casinhola, cheia de
mofo e infiltrações desde que o marido a deixara. Era um tacacá
mal servido e até com baixos padrões de higiene. Lene não casou
novamente, vá lá, com visitas de namorados para não perder o
hábito, porém, sem fazer questão de dominar os bobos como em
sua juventude. Fazia sabe-se lá porque motivo, não explicado
nem para ela mesma. Mantinha o corpo voluptuoso, mas os olhos
não seduziam a ninguém, deprimida que estava. Mantinha o lar,
seu sofá, sua cama, sua televisão, seu rádio, suas panelas. Não ria
mais, nem galhofava para a alegria dos homens, penosos de sua
condição. As fofocas diziam que vivia a custas de chá de
camomila para não acordar no meio da noite com os socos de
Otávio. Seu vatapá ficou triste.
Num domingo de pleno sol foram comprar camarão na
feira e queixosas ficaram com o fim do estoque ainda às 10 da
manhã. Nete deu com os ombros. Lene soprou pra cima. Tudo
para não ter que voltar a vista uma para outra, mas sabedoras das
inconvenientes presenças por ali. Nete jogou conversa fora com
um vendedor de chopi, com agonia de ver o modo com que este

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NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

vendedor passava a mão de dedos sujos dentro da cuba para pegar


os geladinhos aos que compravam, naquela água amarelada.
Lene incomodava-se com o ancião sentado a tentar inutilmente
ter a mão do adolescente, deveria ser um neto, a abrir sorrisão e
peitoral de pinto para as moçoilas enquanto o avô lutava para
erguer-se, apoiando-se em um paneiro ali, cheio de camarões
bonitos, carnudos, avermelhados. Na tentativa de pôr-se de pé, o
velhinho derrubou de lado o paneiro, esparramando os crustáceos
pelo caminho dos feirantes, todos graúdos, limpos, sem a
sujeirinha da cabeça como da lenda dos camarões de Gurupá
criados em viveiro. Nete amarrou o cabelo, se aproximou
imediatamente, esguia e elegante a desfilar, abaixando-se
devagar para catar alguns deles. Pediu ao chopeiro um saco. Lene
pisou forte em direção aos camarões, chamando a atenção pelo
farto traseiro levantado a juntar os pequeninos na sua sacola.
Nete e Lene entreolharam-se enquanto coletavam do chão os
esparramados, mais rápido, mais rápido, crescente íris, braços
mais rijos, mais rápido, mais acelerado, rápido e toda a memória
veio à tona, da rixa, do olhar raivoso, da disputa, reinventada na
tentativa de jogar para dentro de sua sacola o máximo possível
de crustáceos, joga, joga, joga, sem pensar na dor das ferroadas
dos defuntos camarões em dedos tão marcados. “Peituda...”,
“Perna de taboca...”, resmungavam alto para serem escutadas. O
chopeiro começou a torcer “Vai mulhé, vai, Nete!”, “Umbora,
Umbora, Lene!”, torcia o velhinho de voz tremida e já
empolgada. O ajuntamento de pessoas se formou tanto que em
raio de dez metros não dava pra ver as autoras daquela algazarra.
Só enxergavam melhor as moças que deram um jeito de subir em
cima de um muro para aquela tomada de mulheres brigando pelos
camarões, firmes e fortes a demonstrar suas posições. O rapaz do
pão dava pulos em seu lugar para admirar o empenho de Lene. O
padre veio correndo mais como torcedor de Nete do que para
julgar qual a mais pecadora. Os camarões que tinham
escorregado pelos cotovelos das duas eram trazidos pelos
119
Pantoja Ramos

meninos como se fossem uma gincana de escola, ao ar livre, sem


nota, só pela diversão. Os que se esconderam nas frestas do
trapiche eram buscados pelos homens e trazidos para o meio da
luta. Não tendo que fazer, a mulher do tambor despeja toda a água
de seu camburão no meio daquela confusão e foi gente
escorregando, camarão fugindo, lama se fazendo, pisoteio
respingando água suja na juíza que veio resolver a situação. Nete
ria de canto da boca, mas só ela sabia o quanto estava feliz
naquele momento de luta. Lene gritava seus rá-rás para disfarçar
a alegria da peleja. Suadas, ofegantes, encheram suas sacas como
a provocar cada uma e seguiram para suas vendas. Toni espiava
longe de seu barco. Naquele dia teve Tacacá do bom e vatapá
delicioso. “Olha o tacacá, cheiroso, limpinho que nem a dona!!”,
gritou às seis horas da tarde Nete na saída da missa. “Bora pegar
do melhor vatapá da cidade e do Marajó!”, bradava Lene. A
multidão se dividia. “Deixa a velha vaca pra lá e toma meu
tacacá!”. Risadas. “Larga a ripa-velha rapá e prove o meu
vatapá!”. Outras risadas. E foram se provocando nos anos
vindouros.

ATO 7 – CADA DESTINO NO SEU GALHO

O destino nos presenteia com as pessoas que nos darão


graça à vida, de uma forma ou de outra. A primeira tentativa é a
família. Filhos. Pais. Mães. Primos e primas. Avós e netos. A
segunda tentativa são os amigos, esposos, esposas. Em terceiro
lugar, ficam aqueles que não se dão bem e paradoxalmente
trazem benefícios um ao outro. Assim tentam mostrar os autores
de histórias em quadrinhos nos contrários. Na vida real, talvez
não seja o caso de bem contra o mal; talvez concretamente fosse
o que Sidarta Gautama, o Buda, referia-se: uma disputa eterna

120
NETE DO TACACÁ, LENE DO VATAPÁ

entre o conhecimento e ignorância. Agora Nete e Lene se


conhecem, sabem como fazem falta uma a outra, num amor
disfarçado de discórdia só descoberto com o tempo. Não
admitiam ninguém falar mal da outra, só Nete e Lene podia fazer
tal ato; tinham adquirido este direito ao longo da vida. Uma
amizade estranha de misturas como seus pratos, saborosa para
quem testemunha.
Duas meninas brincavam na praça com suas bonecas
quando se desentenderam. Saíram chorando para o lado das
mães. Olhando de cada lado da praça, pela primeira vez, Nete e
Lene sorriram uma para a outra.

“Tanajura.”.

“Punha-mesa”.

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Pantoja Ramos

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O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

EM 5 ATOS

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Pantoja Ramos

Serra, serra
Serrador
Quantas serras
Já serrou?
Serra, serra
Serrador
Serra a madeira com seu avô...

(Cantiga de sapecar bebês)

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O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

EM 5 ATOS

Portel, 05 de março de 2013.

ATO 1 – NASCER

Nenê nasceu naqueles idos de 1998. Época de verão


moderado, mas de muita poeira e muinha espalhada pela cidade
de Portel, naquele mês de junho. Seu Frank passando de bicicleta
virou a cabeça para perguntar a si mesmo o motivo de tanta
gritaria da moça Gracieli muito nova, naquele casebre que mal se
via, apertada por duas outras moradias no lado das estâncias a
receber madeira serrada. Estava para dar a luz a um pequeno, mas
ela mesma era ainda pequena em sua idade, chute-se no máximo
uns 16 anos porque não se deve perguntar a idade às mulheres
nem dizer assim de graça. O pai, Dagoberto, futuramente
conhecido como Viracopo, pede para Agenor e seu táxi velho,
um Chevette 1980, levarem a quase parida para o hospital
portelense. O motorista chega rápido na casa de moça Gracieli,
porém na hora da saída com a gestante encrenca o carro e obriga
aos dois homens que por ventura passavam por ali, um carreteiro
levando areia e um prestação, no obséquio de empurrar o
calhambeque, batendo-se chave e pegando a bateria na terceira
tentativa num “vamo que vamo”. E partiram pulando o pai, a mãe
e a barriga nos buracos agoniando ainda mais a mãe Gracieli, em
meio aquele cheiro de gasolina, estofado velho e tetânico do
veículo que percorria o corredor de casas e galpões que abriam
frestas para o rio de vez em quando e jogavam ao ar o barulho
das pequenas serrarias a produzirem tábuas. Os homens que
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Pantoja Ramos

entulhavam a madeira pararam por um instante ao perceberem o


choro da vizinha que rasgava a tarde.
A enfermeira jovem corre para a enfermeira chefe e diz
do acompanhamento da parteira à moça Gracieli, que segundo
dizem, apontava para criança virada. A parteira, Velha Silvana,
deixou escrito que talvez tivesse tido sucesso em desvirar o nenê,
registrado naquele bilhete com pontas meladas de copaíba e
andiroba juntas, antes de partir para o Médio Camarapi, onde
morava quase escondida de todos e só se permitiu cuidar da moça
Gracieli porque esta era sobrinha de uma grande comadre sua,
amigas que ficaram dos antigos cursos de reconhecimento das
parteiras.
A enfermeira chefe torceu a toalha para a moça Gracieli
morder, pois só assim, no urro e no dente, o menino sairia. Na
maca dançante e enferrujada em suas quatro bases, a quase mãe
botava todos os santos pra fora, o que fizera fugir até as aranhas,
impregnadas ali faziam tempos nos escanteios da sala de parto.
“Meu Deus!”, pedia ao Supremo que resolvesse a questão,
enquanto a enfermeira chefe escroteava com a pequena exigindo
mais força para expulsar a criança. “bora, enfrenta, antes só bem
bom, agora aguenta!”. “Vai pra merda”, respondeu moça
Gracieli, quando surge a cabeça. “Tá enrolado o pescoço no
cordão!”, alerta a enfermeira jovem. A enfermeira chefe nos altos
de seus 30 anos de trabalho, com muita habilidade traz a cabeça
da criança sem magoá-lo no umbilical cordão até o ponto de
achar que poderia ainda com o rebento não saído inteiro meter-
lhe a tesoura e separá-lo da mãe fisicamente. Assim o fez. Veio
um menino. Um pequeno meio engasgado pelo resto de cordão
que prontamente foi-lhe aliviado. Levaram-no ao colo da mãe
Gracieli quase desfalecida e os dois ficaram ali parados,
soluçando um para o lado, um para o outro, solidários entre si no
cansaço. Três horas depois, brigou pelo primeiro leite o pequeno
Samuel, futuro Nenê Ripa.

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O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

ATO 2 – CRESCER NA PRAIA E NAS TÁBUAS

Primeiro chamaram-lhe de Nenê. Miúdo talvez da


dificuldade da mãe Gracieli em alimentar-se direito durante a
gravidez, por causa do excesso de enjoos que a perseguiram nos
nove meses e que a fizeram ter asco de quase tudo, até de
Dagoberto e seu perfume de Alfazema. Não foi por falta de
comida oferecida à mãe que nasceu o bebê magrelo. Dagoberto
era funcionário da Madeireira Locama e naquele ano de
nascimento de Nenê a firma estava em pleno funcionamento,
vendendo madeira branca e madeira de lei sem maiores
problemas. Contudo, sabiam que estavam indo mais longe do que
o costume para buscar angelim e maçaranduba, nas cabeceiras do
Camarapi e Pacajá. A virola estava começando a escassear nas
bandas de Breves, do Mapuá ao Jupatituba. Vinham serrando e
laminando sem maiores atropelos. Com pagamento em dia
quinzenalmente, recebia os vales e mandava ver nos ranchos.
Bebia só em momentos realmente especiais, até porque era
vidrado mesmo no trabalho, das oito às dezoito horas, e na sua
esposa Gracieli, colocado muito jovem à condição de
encarregado na empresa. Para exercitar o corpo, jogava bola no
campo do Camel. Era um apurado na bola e um bom serrador,
conhecedor dos lari-laris das madeiras que teimavam algumas em
rachar.
Nenê dos quatro aos sete anos, quando já se saía da mãe
Gracieli, corria por entre as tábuas da estância do tio Bosque
próximo à sua casinhola. O tio era homem grandão, brincalhão e
barrigão que “Ispia menino, cuidado com essas tábua”. Não tinha
como evitá-lo. Menino que se preze quer espaço e sua residência
mal dava pra ele disparar. Era ter a porta aberta e mergulhar por
entre as pilhas de ripas, tábuas, pernamancas, flexais, esteios. Era
perito em esconder-se dentro delas, muitas vezes deitado numa

127
Pantoja Ramos

perfeita camuflagem. Esguio, serelepe e com odor de serragem


de tanto se misturar, acabou Tio Bosque lhe rendendo o apelido
de Nenê Ripa.
Outros moleques também brincavam naquela confusão,
convidando agora Nenê Ripa para sair para as praias. Mãe
Gracieli só o deixava ir na praia próxima, do Joãozinho, com
cuidado a observar as marés secas que chamavam as arraias.
Botava medo nele que ferrada de arraia dói até depois de sarado,
só de lembrar-se do sofrimento. E pior que pinica mesmo. A praia
do Joãzinho depois dos grandões terminarem a sua bola virava
um paraíso pra aquela meninada: era um show de acrobacias, de
pega-pegas, de nadadas rápidas, de gargalhadas. Nenê Ripa já se
destacava pela capacidade atlética de torcer o corpo em
carambelas. Ia feliz e voltava feliz.
Tempos depois passou a chegar tristonho, já aos sete
anos. Fugia para não escutar a briga dos pais, onde Dagoberto,
agora apelidado de Viracopo, ameaçava bater em mãe Gracieli,
caso ela não desse o dinheiro pra ele beber dois dedos de cachaça,
“Mulhé, e só!”. As coisas tinham piorado no trabalho da
madeireira. O salário tinha baixado e colegas seus foram
demitidos, agora bebedores além do final de semana e que
traziam Dagoberto para esta nova fase de sua vida. Tal a sua
vontade ficou em beber cachaça, tal a desenvoltura nos
minicampeonatos de tragos, que não demorou a lhe darem o
epíteto Viracopo. Não jogava mais bola, sua vergonha na última
tentativa de conciliar futebol e álcool terminara ao quebrar a
perna de um adolescente, uma promessa, que lhe dera uns aviões
humilhantes. Foi banido futebolisticamente do Camel.
E isso refletia em Nenê Ripa. Agora, revoltado com a
situação do seu lar, que aos poucos estava virando apenas casa, o
menino começou a puxar confusão, partindo pros socos na
primeira encarnação ou brincadeira com os pais. E nem
importava o tamanho do adversário. Se apanhava, corria pra
estância e trazia uma ripa. As coisas aí ficavam igualadas. Passou
128
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

a ser temido e virou um magrelo fanfarrão, intimando os filhos


pacatos dos outros e fazendo-se líder das cambadas que iam
brincar de polícia e ladrão. Tio Bosque estava decepcionado com
o menino. Era o único que deixava o moleque sem jeito com suas
esculhambações. Quietava. Batia no filho do diretor da escola.
Quietava. Balava calango só para ajeitar a mira. Ralhavam-lhe.
Quietava. Espantava a velha Tonha com máscara de carnaval no
dia de Finados. Surravam-lhe. Quietava. Quebrava o supercílio
na guerra de castanhola. Quietava. Dedava a Rosa no corredor da
escola. Apanhava. Quietava. Pisou em prego enferrujado quando
tentava olhar a Raimunda se vestindo. Medicavam-lhe. Parava.
Apossou-se do relógio de seu Eurico esquecido dentro do
banheiro de um barco. Apanhava. E assim foi levando a infância.

ATO 3 – O ACERTO COM OS ARREDIOS

Mal se falava em Samuel. Na grande maioria das vezes


citavam Nenê Ripa. Aos dez anos seu pai Viracopo já estava no
terceiro ano de desemprego formal, um ajuntamento de renda que
ia do carregar de seixo ao carregar de malas nos portos da cidade.
Não se conformava em não ser mais homem fichado com salário
constante e supervisor. Culpava o Ibama pela decadência das
madeireiras de tanto mandarem multa e prisão das balsas. Tio
Bosque avisava que o Ibama era só uma das causas, que os
próprios madeireiros tinham se fartado tanto e levado seu
dinheiro ganho pra outro lugar, sem se preocupar em plantar, “só
queriam tirar”. Dizia que o mercado da madeira lá fora também
estava ruim, pois escutou isto do Velho Frank, o homem que mais
sabia do mundo em Portel. Viracopo não ouviu nada, pois já
estava na metade da garrafa de aguardente e continuava a culpar
a humanidade por sua desgraça.

129
Pantoja Ramos

Muitos outros pais estavam na mesma situação e esse


problema causava um desvio de comportamento aos seus filhos:
de serem arredios às suas figuras paternas. “Não quero buscar
ele, ele tá porre”. “Mana, o pai te mexeu?”. “Mãe, porque você
tá chorando?”. “Sou o Miquéias, não o João”. “Pai, não me bate
pai, não, pai!!”.
Assim os arredios foram se encontrando, se acertando.
Passaram a só andarem juntos. Uns queriam ser iguais aos pais e
um dia que eles não esquecem, o Tarugo veio com cinco latas de
cerveja. Tarugo, Miquéias, Sombra, Jabota e Nenê Ripa
provaram do suco alcoólico. Ali selaram o pacto. Continuariam
a ter lazer, mas conversariam coisas de adultos sem que ninguém
percebesse, fariam saliências ao mesmo tempo com a Celina da
rua do cemitério, roubariam as galinhas do seu Ramos, dariam
porrada nos irmãos Camelos, jogariam no time do Dudu e
beberiam com dinheiro dos pais bebuns. Nenê Ripa sem querer
liderava a palavra final aos atos. Cresceram nestes estratagemas.

ATO 4 – SER CONVENCIDO PARA O DESESPERO

Nenê Ripa e os 4. Não era uma banda de rock. Era uma


pequena turma formada que aos quatorze anos de cada um
badernavam na cidade e já no interior. Foi num cascudo dado em
Jabota por um professor que começou de fato a fama dessa trupe.
Ao darem uma surra no professor Laurelino, percebeu-se o
quanto tinham ficado perigosos, sem atenção dos pais e da
sociedade local nos últimos anos, crescendo silenciosamente na
vontade de bater nos seres humanos, muitas vezes sem causa
aparente. Apesar da luta dos educadores em formá-los
dignamente e com todas as dificuldades existentes, foi no
despreparo de um que surgiu a notoriedade infeliz de Nenê Ripa,

130
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

o primeiro a socar Laurelino, logo depois os 4. E passaram a ser


párias temidos, com o preconceito gratuito de meninos
encrenqueiros e nada mais.
Um dia Sebo de Holanda chegou a Portel. Vindo de
Abaetetuba trazendo maconha e umas petecas de cocaína,
chegou-se primeiro aos adultos alcoólatras. Não foi investimento
para seus planos funcionarem. Teve dificuldade pelo já estado
deplorável de homens como Viracopo que não renderiam nada,
nem tinham mais forças para roubar. Pesquisando na saída das
escolas e andando pela praia, já naquele sereno de sábado, viu os
cinco garotos bebendo cerveja na praia do Arucará perto da
antiga igreja. “E aí, que é que tá pegando?”. “Nada”. “Olha que
eu tenho aqui. Melhor do que cerveja”. “Que é isso?”.
“Maconha”. “É isso que é maconha?”. “Gala Seca tu nunca
viu?”. “AH-AH-AH-AH”. “Toma estes cinco cigarro, se
quiserem mais, tô parando ali no bairro Muruci perto da Caixa
D´água. É só perguntar pelo Sebo de Holanda”. E o homem fedia
a sebo mesmo.
Nenê Ripa e os 4 pegaram os cigarros, mas não tiveram
coragem. Não entendiam o motivo, mas sabiam que tinham na
mão algo mais poderoso que a bebida, segundo pensavam.
Voltaram para suas casas, guardando cada um o cigarro em
diferentes lugares, por entre os esteios, em uma caixa atrás do
sanitário do quintal, na casa do Tio Bosque que estava em viagem
para Macapá, na mesma mala que guardava as revistas de
sacanagem já descoberta pela mãe e que já não ligava, dentro de
um saquinho plástico colocado dentro do caderno. Em ocasiões
acumuladas fatidicamente nos próximos meses, os meninos se
revoltam de vez e decidem vingar-se do mundo experimentando
a maconha dada por Sebo de Holanda.
Tarugo teve a irmã abusada pelo pai novamente.
Miquéias não recebeu os parabéns do pai por não ter
repetido de ano na escola. Só o irmão João.

131
Pantoja Ramos

Jabota viu o pai bater na mãe novamente.


Sombra enxotou os urubus que confundiram o pai
dormindo bêbado com um cadáver.
Nenê Ripa apanhou do pai de corda de náilon até as
costas parecem uma seringueira riscada, só que o látex era
vermelho.
Em cima do barco que sempre ficava ancorado lá na praia
do Arucará, o senhor Desespero os convenceu que a vida estava
péssima e sem alternativas. O melhor era fugir dela. Decidiram
fumar maconha. Todos juntos em sinal de protesto. E ficaram
altos. E beberam. E riram feito abestados. E falaram fino. E
meteram cerveja em cima. E Jabota vomitou pra caramba. E
Sombra quase morreu afogado. E deitaram na proa deste barco
até o dia amanhecer.
Procuraram Sebo de Holanda. Não o acharam no Muruci.
Souberam que estava na frente de Portel dando um tempo por ter
esfaqueado um rapaz que não pagou direitinho suas dívidas.
Nenê Ripa e os 4 foram até lá pedir por mais maconha. “Como é
que vocês vão me pagar? ”. “Não sei, com venda de picolé? ”.
“Gala Seca mesmo tu é, hein Jabota!?”. “Toma, mas me paguem
com a televisão da casa do Seu Brito, que mora a quatro casas no
mesmo lado da rua da farmácia do Quincas”. “Quero com o
controle remoto, viu? ”.
Discutiram se valia a pena. “Eh, Nenê, se a polícia pega
a gente? ”. “Pega nada Jabota”.
Naquela noite sem luar, Sombra fincou acampamento do
alto do galho da mangueira que ficava em frente à casa do Seu
Brito. Observava e daria o sinal quando na casa ficasse quieto e
a luz da frente apagada. Desde já não dava pra vê-lo. Jabota
estava na outra esquina e quando avisado receberia a televisão da
sala do lado de fora e sairia já que era o mais forçudo. Como
preparação, Tarugo ainda de dia, daria uma balada no cachorro
de Dona Vanda e outra na lâmpada do poste que costuma

132
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

iluminar aquela parte da rua da farmácia. Miquéias e Nenê Ripa


aproveitariam a barulhada para tirar pregos da tábua meio solta
no assoalho da casa de modo que um menino magrelo passasse.
Pegariam a chance da ida apressada dos entes da casa de seu Brito
no susto de ouvir o grito do cachorro Araqueto. Para dar certo,
contavam com o escândalo habitual de Dona Vanda a gritar
contra a danadice dos moleques contra seu animal e a apontar o
poste. Ela não decepcionou. Fez o maior escarcéu e os moleques
enfraqueceram o assoalho.
De noite, Sombra percebeu a quietude e deu apenas um
sinal de lanterna, apenas o suficiente para chamar a atenção dos
pequenos comparsas. Eram duas da manhã entrando-se já no alto
sono. Nenê Ripa esgueirou-se pelo quintal e usou seu próprio
corpo para arrecadar a tábua do assoalho com a ajuda de
Miquéias, cumprindo mais uma vez seu destino de ripa e
confundiu-se com a madeira. Com o sofrimento de vinte minutos
de varar pela fresta, enfim chegou à sala. Cuidadosamente pegou
a televisão LED de trinta e duas polegadas e foi para a janela da
casa. Pegou o óleo de máquina que tinha no bolso, passou nas
dobradiças da janela para evitar o ranger e arredou para cima o
ferrolho, abrindo-a. Jabota já estava embaixo para receber o
aparelho, aguentando a duras penas o peso. Pulou a janela e
caíram no mundo.
E caíram esquecendo o controle remoto. “Porra! ”,
resolve Nenê voltar para pegar o dito. Tarugo pede para os outros
irem embora e fica para esperar Nenê. O cachorro Araqueto
reconhece Tarugo. “Agora me vingo! ”, pensou o cão e late, late,
late, late, late, late. Acordou Dona Vanda que pegou os meninos
no ato. “Quem taí? Quem taí? ”. Sombra e Nenê disparam pelo
quintal da senhora, Araqueto e latir, Dona Vanda a gritar ladrão.
Agora sim o controle nas mãos. E nas mãos de Sebo de Holanda
passaram a TV. Feito o pagamento.
Nenê Ripa e os 4 sentiram-se indestrutíveis. Intocáveis.
Os mais espertos do mundo nas suas concepções. Arrogantes.
133
Pantoja Ramos

ATO 5 – FIM

Naqueles tempos, tudo se percebia sinistro. O vento do


inverno passava frio em Portel e mostrava a escuridão da baía do
Camarapi, assobios vindos de não-sei-quem. As pessoas
evitavam estar nas ruas depois das vinte duas horas. Até os bares
com suas músicas andavam tenebrosas, por mais que tocassem
os mesmos tecnobregas e melodys. Tudo por causa das turmas
que bebiam por ali. Como zumbis, andavam de um lado a outro
pela rua da praia, parecendo gostarem de pousar na praia da
igrejinha, o local mais escuro daquelas paragens. Desde a morte
de um senhor alvejado por tiros em sua casa por ladrões surgidos
do rio próximo, seria um lugar de más lembranças e alerta para
as pessoas que não faziam mal a ninguém.
Nenê Ripa e os 4 mantinham-se na concorrência,
maiores, mais perigosos e mais audaciosos. Quando Sebo de
Holanda fugiu pra Belém a partir do vazamento que a polícia o
tinha mapeado no Marajó, entre Breves-Melgaço-Portel, deixou
como aviãozinho-mor ou chefe de boca interino o jovem Nenê.
Maltratava assim o coração de mãe Gracieli, alguns anos
sobrevivendo dos enganos de si mesma em relação às atividades
do filho. O pai, Viracopo, vivia em frangalhos pela cirrose
adquirida faziam ano e meio. Além do chefinho, Sombra,
Tarugo, Jabota e Miquéias mantinham agora a rotina de beber no
Arucará, vender “produto” na Portelinha e roubar no resto da
cidade.
No carnaval, sangraram um menino até a morte durante
a passagem do Bloco do Porco, simplesmente pela vítima ter
atraído a atenção da namorada de Tarugo, Condessa. Todos
sabiam que foram Nenê e sua turma, só que nada de justiça,
inebriados estavam a população por aquele festejo. Vendiam
bebidas aos jovens, outros apontavam que os jovens eram a causa

134
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

da situação caótica, outros culpavam o governo, aqueles


xingavam o presidente, já os sabidos achavam que era um
fenômeno explicado pela sociologia; indiferentes estes ficavam a
contemplar a situação, ali em cima do cadáver. Apenas seu Frank
avisava que em seus tempos de sobrevivência à segunda guerra
mundial, percebia a mesma indolência da população europeia em
relação aos problemas sociais e que isto era caldo fértil para
ditadores. Tio Bosque falava da perda de 3 gerações por conta da
falta de um gostar maior de Portel. Os esclarecidos que poderiam
mudar a situação brigavam muito entre si.
Naquele mês de março, um segundo sábado, chovia na
noite portelense. Assim mesmo, no Mormaço, fazia-se o
campeonato local de Treme, dança coqueluche no Pará. Tarugo
era o cara nesse sentido. Nenê dava o jeito dos bons concorrentes
abandonarem a competição. Tudo estava armado, mas o China,
garoto da Portelinha, resolveu talvez por ingenuidade dos seus 13
anos, vencer a competição. Ficou marcado por Nenê e os 4.
Como vingança, entrariam na maior na casa de China e
roubariam o que viesse pela frente.
Letrados na arte do roubo e da intimidação ainda
precoces, Nenê Ripa e os 4 foram ao bar, compraram umas
cervejas, beberam e cheiraram ali mesmo na calçada. Pegaram
das pistolas, meteram debaixo da bermuda frouxa e meteram suas
cabeças pintadas para o rumo do lado oposto da cidade.
Chegando à Portelinha, foram andando por entre as vielas,
cabeças erguidas, passos dançantes, com as pessoas se
escondendo em suas casas, pois sabiam que ali tinha confusão.
Nenê na frente. Sombra fazendo a retaguarda. Jabota tropeçando.
Tarugo com a mão dentro da bermuda. Miquéias empurrando o
casal que teimava em não sair do caminho.
Na casinha de madeira feita de guajará e marupá, China
assistia televisão enquanto o pai escutava o rádio Am com as
últimas notícias do clássico Remo e Payssandu.

135
Pantoja Ramos

“Ei! Te arreda daí, te arreda daí! ”. “Como é que é? ”.


Tapa. China: “que foi? ”. Tapa. Tapa na mãe. Tapa na filha.
“Bora, cada um pega o que der...”. O pai de China corre pra
cozinha. “Ê rapá, quer morrer??!!”, berra Nenê Ripa. E segue o
velho com a arma em punho. Quando chega à cozinha, recebe um
canhão no meio do peito da espingarda doze que arrebenta o peito
magrelo de Nenê, fazendo cair ali no corredorzinho,
estrebuchando. O pai de China cria toda a coragem que lhe
restava e sai atirando em tudo que se mexa na sala, até quase
acerta a filha. Jabota pega um tiro na perna e sai mancando.
Sombra puxa o revólver, mas a mãe de China se enrosca com ele,
e na briga com a senhora atira em si mesmo, no queixo. Tarugo
dá um tiro no velho, mas erra, e na reação do dono da casa, pega
um tiro na barriga, se socorrendo no pé de mangueira novo que
vigiava por ali, abraçando-o. Miquéias sai correndo pro mundo.
E some. Jabota quase é linchado pela população, mas graças ao
policial que chegara no local, livrou-se do fatal.
Por milagre, Sombra e Tarugo sobrevivem. O primeiro
perdera a língua. O segundo carregaria os chumbos por toda a
vida até a úlcera final. Jabota passaria a mancar e a engordar,
castigando o lado esquerdo do corpo. Miquéias realmente sumira.
Nenê Ripa morrera. Viracopo, desesperado com a morte do filho,
se encheu de uma falsa razão e matou o pai de China com uma
facada no pescoço, quando este saía da igreja. Foi preso e
mandado para o presídio de Americana, em Belém. Por lá se
desfez.
No enterro de Nenê, só estavam mãe Gracieli e Tio
Bosque. De mãe Gracieli só escorriam as lágrimas, pouco
barulho havia, pois seu menino a muito não era mais seu.
Ao ver Nenê Ripa e caixão que mais parecia um caixote,
Tio Bosque lamentava-se: “Não foi uma ripa. Foi apenas uma
árvore maltratada”.

136
O MENINO NENÊ RIPA DE PORTEL, MARAJÓ

Miquéias foi morar no Maranhão, lá pras bandas de


Imperatriz. Converteu-se ao protestantismo. Casou-se. Teve
filhos. Mas ao ouvir rádio Am, quando escutava uma faixa
paraense, chorava copiosamente na música de seu Gilberto:

“já não aguento,


toda essa ansiedade,
tô morrendo de saudade,
com vontade de voltar,
pra minha terra,
minha gente, meu Portel,
meu pedacinho do céu,
no recanto do Pará...”.

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Pantoja Ramos

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SÃO TOMÉ

SÃO TOMÉ

6 ATOS

Pantoja Ramos

139
Pantoja Ramos

“... Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui


outros cinco talentos que granjeei com eles. E o
seu senhor lhe disse: Bem está, servo bom e fiel.
Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te
colocarei...
E, chegando também o que tinha recebido dois
talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois
talentos; eis que com eles granjeei outros dois
talentos. Disse-lhe o seu senhor: Bem está, bom e
fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te
colocarei...
Mas, chegando também o que recebera um
talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um
homem duro, que ceifas onde não semeaste e
ajuntas onde não espalhaste; E, atemorizado,
escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é
teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe:
Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não
semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então
ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando
eu viesse, receberia o meu com os juros. Tirai-lhe
pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos.
Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em
abundância; mas ao que não tiver até o que tem
ser-lhe-á tirado. Lançai, pois, o servo inútil nas
trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de
dentes...”.
Evangelho de São Mateus – 25:14-30.

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SÃO TOMÉ

SÃO TOMÉ

6 ATOS
Pantoja Ramos
Belém, 09 de outubro de 2015.

ATO 1 – QUEIMA, PLANTIO E ESPERANÇA

No dia mais quente do ano, na hora mais tensa do dia, de


um ano quentura soberba, quatro irmãos removiam a terra em seu
conflito. O carvão das toras caídas testemunhava a cena grotesca,
de homens seminus envoltos de cinza, folhas secas e suores
preguentos a se debaterem uns nas caras dos outros, três no
intuito de agredir em pisadas e cotoveladas, apenas um no tentar
desapartar, num murro recebido no começo do queixo, tudo ali
num redemoinho de poeira de intransigência e irracionalidade.
Chegaram ao ponto extremo.
Parados e queimados estavam os pés de açaí do irmão
Iranelson, que na parentada quase nunca assim lhe davam graça
desse nome e sim o apelido intrafamiliar de Botão, advindo de
uma antiga habilidade nos jogos de botão, futebolísticos
brinquedos que já não são tão vistos atualmente. Ali jazia
chamuscada a maniva de Iranil, conhecido como Atalaia,
herdado epíteto do falecido pai pescador da praia de Salinas e que
morreu gurupaense por conta da procura amazônica pelo bem-
estar. Era o mais velho dos irmãos. A cana de açúcar de Irênio, o
Catitu, foi calcinada, tão viçosa que estava, tão doce que poderia
ser e que não será a animar a molecada antes e depois das peladas
que ali exigiam os carboidratos para os plenos sóis. Os paus
mortos por ali, no rastro dos cumaruzeiros, ingazeiros e
cajuízeiros encarvoados rastreavam do lado de Iredson, o Quase
141
Pantoja Ramos

- renda, batizado de uma teima com um técnico da Emater sobre


a viabilidade de se produzir farinha de mandioca. Quando teimou
dizer que dava lucro, o técnico contou que na ponta do lápis não
conseguiria. Que não lhe seria renda, mas uma quase-renda.
Nem se aprofundou o debate, os meninos que escutavam a
conversa começaram a chamar-lhe Quase-renda, só pelo prazer
de achar um apelido ao molecão que na época não possuía ainda
alcunha.
E assim brigavam Iranelson, Iranil, Irênio e Iredson,
Botão, Atalaia, Catitu e Quase-renda.
A paisagem daquela parte da posse, denominada de São
Tomé, era de uma profunda desolação. Tal como se recebesse um
bombardeio, rodeada pela floresta densa daquelas plagas da terra
firme de Gurupá, era um vasto campo queimado do toque de fogo
não controlado com o qual tudo veio abaixo num cheiro de
fumaça, numa agonia calorenta. Em pé, cadáveres de colossais
árvores cujos diâmetros salivariam a boca do menor dos
madeireiros gananciosos que cercavam a região. Misturados os
bichos carbonizados dos diversos tipos, nas expressões de
desespero diante da morte ali paralisadas, em exemplo um tatu
que saíra tranquilamente naquele meio dia a caçar insetos.
Imagine-se o despedir trivial à companheira tatu-fêmea e dos
filhotes para mais um dia de labuta pela sobrevivência. No meio
do caçar de insetos, viu-se cercado num repentino cinturão de
labaredas, e não tendo forças pra cavar o chão, logo empatou o
galho acendido de uma faveira em forquilha e assim rodando
sobre si mesmo, rodando foi até ser consumido pelas chamas. A
faveira dona da galhada fatal ao tatu contorcia - se no queimar do
tronco e folhas. Até pensou que se as raízes permanecessem
firmes, haveria de regenerar - se. Porém, alastrou - se por debaixo
do solo a tragédia e desta maneira, a faveira, jovem ainda,
aguardou serenamente seu fim.
Os quatro irmãos rolavam no preto terreno já fantasiados
em rostos enegrecidos de um ódio e ranger de dentes, engasgado
142
SÃO TOMÉ

Botão, esmurrado Quase-renda, esmagado Atalaia, sufocado


Catitu. As mulheres e filhos de cada um imploravam o fim da
peleja, mas tal qual búfalos brabos, consumiam-se como se
fossem um só corpo masoquista, encaracolados a decidir o mais
forte, ou matar, ou mesmo morrer, feridos todos nos espinhos e
tocos afiados expostos. Ninguém de fora tinha coragem de tentar
a separação dos brigões, ali animais selvagens que escoiceavam
tudo que se aproximasse. Dona Cota, mãe daqueles seres, surgida
do caminho de sua casa em passos firmes de genitora, trouxera à
mão uma panela de água fervida temperada com folha e frutos de
peão roxo, jogou o líquido efervescente no cálculo de queda de
cima para baixo, tal uma chuva maldita para derreter os
pecadores. Grita para os céus: “Sai daí!!!!”. As gotas doídas nas
costas, pescoços, pernas, barrigas, fazem o caracol se desfazer
num correr de cabras em aperreio de dor. Buscam entre si quem
os agrediu para o revide em punhos cerrados, mas param diante
dos olhos gigantes, gigante pessoa de um metro e meio, a mãe,
Dona Cota, Cotíssima, na legitimidade implacável daquela que
os pôs no mundo. “Bora pará de se cutelarem, seus pragas, que é
isso gente de Deus???”. Exigindo a paz corre com a panela de
alumínio vazia para dar pancada em cada um, que escapolem
para os cantos diversos do medo inato da surra da mamãe, mais
pela dor moral, menos pela física. Comportavam-se como onças
espantadas.
Dona Cota exige-lhes presença, obedecidos foram em
posições afastadas entre si, cada um reinando ódio para os
irmãos. Olhavam para baixo como as crianças em julgamento
materno ou paterno, a esconder as mãos para trás, um pau, outro
pau, um pedaço de cana, uma pedra mal-intencionada. “Por que
esse fóli??? Bora, fala!”. Atalaia, o mais velho puxa a resposta
por conta da queimada geral das plantações, provocada por um
deles, “Não fui eu, não! ”, “Não fui”. “Olha só o prejuízo, mãe,
da minha cana”. “E do meu açaí, tu não diz? ”. Um apontou para
o outro o início do incêndio, no ato que desacordou o trato pelo
143
Pantoja Ramos

aceiro, a fim de evitar fogaréu sem controle. “Agora deu, que


todo mundo quer se meter no trampo de todo mundo”, expressou
opinião Quase-renda, se entregando. “Ora foi tu peste! ”, correu
Catitu no pescoço do irmão, parado no meio do caminho pelos
demais e pela panelada de Dona Cota. “O que a gente acertou, ah
dialho??!!”, apontou Atalaia. “Ei, tenho que me manter né? Não
tenho culpa se o fogo varou pra vocês! E no mais essa parte aqui
é minha, faço o que me der na venta”. Nesta sentença, os ânimos
voltaram a exaltar-se. “Comequié, tu tá leso! Nosso pai deu o de
cada um e tu já devia sabê disso! ”. “Vai tu a porra, que aquela
castanheira ali é a marca do meu terreno! ”. “Qual castanheira?
Aquela ali que tu queimou seu praga? ”, protestou Botão. “Nem
nunca, aquela varrida ali é que marca minha posse”. Catitu pula
longe. “Sai pra lá panema, que é aquele Olho D´água ali que
marca onde é meu retiro”, e mostrou o indicador em direção ao
pequeno nascedouro de água agora escaldado pelo sol exposto e
pela brasa do fogo passado. E voltaram a se empurrar. Se
provocar.
“Pára-pára!!”, gritou mãe Cota no balançar de seus
velhos braços. “Felipe, vai ali e me corta um cepo de pau, do que
tu achar primeiro”. O menino de doze anos amorenado pelo sol
comia um maracujá cortado pela metade, jogado açúcar no meio
do fruto como se fosse um copo e uma colher a levar-lhe à boca
a polpa adocicada, na felicidade das lombrigas que lhe surgiam
frequentemente. Felipe pega o facão e corta um cepo de
Taperebazeiro, árvore de morte difícil, mesmo anelado. Fez corte
embaixo como a produzir uma ponta, tchá-tchá-tchá-tchá, já
mostrando a mesma habilidade do pai Atalaia nas tarefas
agrícolas. A mão do menino fere-se com os falsos espinhos do
cepo, que ali reclama, porém produz pedaço da arvoreta de cerca
de dois metros para servir de estaca e de guia para os tios e pai.
“Deixa Felipe que eu mesmo finco! ”, diz a avó para o neto. E no
espantar dos filhos marmanjos, observou-se aquela senhorinha
mostrar um pouco da juventude forte e guerreira, capaz de criar
144
SÃO TOMÉ

sua prole em meio à tanta dificuldade natural de quem vive no


meio rural. Ali depurou a andiroba para curar dos baques de seus
meninos, ali roçou o alimento de todos eles, lavou seus cueiros,
espremera suas redes sem fazer cara feia, pesados panos, pegou
água em lata na cabeça, cuidou de suas febres, foi ao mato
procurar remédios, terçadou jararacas, subiu em açaizeiros, ficou
sem comer para dar o arroz para suas crianças, martelou as tábuas
de sua casinha, tudo em esforço para substituir o marido jovem
acometido de um derrame, morto quando os filhos ainda
adolescentes. Pegando o cepo de Taperebazeiro, exclamou:
“Tá aqui a divisa!!!!”. Jogou toda a força do corpo para
fincar de maneira categórica o pequeno mastro. Quatro
movimentos de cima pra baixo e o pau foi firmado, regados por
um suor indignado de mãe decidida a manter a ordem. Pronto.
Voltou-se para Atalaia: “Iranil, pra ti e pra Preta daqui até aquele
cumaruzeiro lá longe é teu!”. Olhou para Botão: “Iranelson,
daqui até o começo dos caranazeiro é teu e da Francisca”. Para
Catitu: “Irênio, tua marca e da tua mulher Maria Benedita vai
daqui até aquela maparajuba lá longe”. Para Quase-renda:
“Iredson, daqui deste cepo tua posse e da Dorilena vai até a beira
do Tabocal”. “Do Tabocal?? Mas eu também uso do outro lado
do igarapé??”. “Te cala, que de onde eu falei pra frente ainda é
meu e do teu pai. Quando eu me for, vocês terminam de
repartir...”. Virou de costas e seguiu para sua casinhola no limite
dos caranazeiros, agora terra de Botão. Era vizinha do filho e da
nora Francisca, jovem casal que construíra família sem netos por
enquanto para Dona Cota.
Os filhos entenderam a lei, alguns mais resignados que
outros, Quase-renda bufando. Saíram para suas moradas de novas
fronteiras e de velhos confinantes.
Quando todos foram embora, restaram o cepo de
Taperebazeiro, o Olho D'água agonizante e Sementes de
Maracujá deixadas por Felipe ali por perto espalhadas, os três

145
Pantoja Ramos

muito próximos a protegerem-se, num estranho pacto pela vida.


O decepado, o maltratado e o frágil nascente.
Para evitar novas contendas, nenhum dos filhos voltou
ao local, ainda em respeito à raiva aflorada de mãe Cota.
Enquanto isso, do decepado pau nasceu um galinho esverdeado,
delicado como um fiozinho de cabelo. Do maltratado Olho
D´água, manteve-se aquele filete de água teimoso a escorrer,
como a arrastar-se. Do frágil nascente, brotou plântula
enxeridinha que se encostou ao suporte vegetal de taperebá,
capengante. Foram mais menos noventa dias ali sem
movimentação humana, sequer uma revoada de meninos
serelepes que pudessem tropeçar naquelas redondezas. Não
obstante o silêncio humano, a vida continuava nos seus
conversês.

ATO 2 – SOMBRA E ÁGUA FRESCA

A sinfonia da vida exige que se movimentem os seres,


que se teime em sobreviver, que o ato de germinar seja inevitável,
na atitude de multiplicar as células daquele que sente a
necessidade de estar no mundo, pois como diria Leonardo Boff,
a Vida quer a Vida. Após dezoito dias da contenda dos filhos de
mãe Cota, surge uma plantinha mimosa, faceira, no calor do sol
ofertado pela grande clareira da queimada, contraponto de tudo
que ali era morto, solitariamente verde em tanto cinza. Recebeu
ajuda incondicional do Olho D´água, pobre de água e assim
mesmo convicto de sua função de apoiar os vivos. Seu filete
líquido rodeou a semente de modo cuidadoso a não encharcar
demais o pequeno vivente, no ajeitamento do terreno tal qual uma
fechadura com a plantinha no meio, na suficiência de mantê-lo a
salvo da secura imposta pelo alto incidente sol do Equador em

146
SÃO TOMÉ

terreno por demais quente. Legítima da terra, aguada, serenada,


observada por Gaia, ofereceu-se condições às sementes jogadas
por Felipe, mascadas por este, friccionados e retirados os arilos
no seu roer; quem dera que fosse um número maior de nascidas,
contudo, o esquentamento da terra foi mortal para quase todas.
Na sabedoria da natureza jogam-se muitos frutos para que alguns
vinguem; na inteligência também se lançam várias ideias para
que ao menos uma venha como segura e genial. A ideia e a
semente têm algo a priori em comum, a tentativa, o esforço. As
ideais não nascem geniais, elas batalham para serem geniais. As
sementes lutam para manter a ideia de planta, no final, árvores-
mães geniais.
O Olho D´água aquecido naquela posição da luz solar
impedia que doenças tivessem feito mal à sementinha, cuja
situação de quentura passava ali por meia hora no máximo de
modo a não magoar o movimento de nascença do maracujá. Logo
após a sombra reta, provocada pelo cepo de taperebá e por outros
cernes mortos do fogaréu de outrora. O embrião fora cuidado
com zelo. A radícula aparece para encontrar a terra, hipocótilo
para procurar a luminosidade e assim foi se confirmando a
presença do pequeno pé-de-maracujá, reforçada pelas folhas
primárias saídas dos cotilédones. Dias um pouco a mais, a gema
apical assume a coordenação do crescimento.
O cepo de taperebá pouco se importou com o andamento
do desenvolver do maracujá, pois muito ocupado estava em
multiplicar suas células regenerativas para modificar sua
condição de simples esteio. Por ter sido retirado de uma árvore
jovem, em galho grosso em sua base, achou forças para logo
enraizar. Auxinas provocadas pela atividade regenerativa
trouxeram gemas e destas, as folhas, pronto: não se tratava mais
um pedaço de pau estéril, porém uma reação verde na cabeça do
marcador das divisas dos quatro homens irmãos. Uma folha, duas
folhas e deste modo foi se recuperando para voltar ao seu destino
teimoso: de ser uma árvore, ou melhor, uma reárvore.
147
Pantoja Ramos

A pequena sombra do Taperebazeiro mudou o


microclima daqueles três. Temperatura à parte, retirou a patente
do sol de escaldante para simplesmente sol, até ainda queimador,
só que agora dependia do ângulo certo. Nas horas de tarde, o
pequeno Olho D´água ficava protegido, num devolver para o ar
a umidade que produzia, a qual batia nas folhas e voltava, num
ciclo de frescura e sais minerais que eram vantajosos para o
Taperebazeiro e para o pé-de-maracujá, pequeníssimo
ecossistema daqueles vizinhos. Insetos começaram a trocar
conversa com os três, de pouco em pouco, uma formiga, um
mosquito, uma abelha daquelas sem ferrão, do gênero trigona
visitou a área e retornou à sua colmeia no objetivo de contar que
um novo local de flores estava se preparando, de maneira que as
operárias traçaram nova rota para coletar néctar.
Já não eram somente sobreviventes. Neste momento, o
Olho D´água, o Taperebazeiro e o pé-de-maracujá viabilizavam
outras vidas.

ATO 3 – FRUTIFICAI-VOS

Alguns meses se passaram, o Olho D´água iniciava o seu


borbulhar de fonte hídrica, bem verdade que tímida ainda, mas
com o sonho mantido de readquirir-se como no tempo em que
abundava naquele local, a encharcar a terra por uma boa área, de
folhas murchas a decomporem-se lentamente para afofar o
terreno, na gratidão das demais plantas nutridas por seus sais,
interrompidas estas relações por um fogaréu provocado certa
tarde vindo da tarefa preparada por Quase-renda para mais um
plantio de mandioca. Destas lembranças boas, o Olho D´água
mantinha-se amigo e trabalhava para restabelecer a mata.
Também saudade tinha Botão de seus açaizeiros molhados por

148
SÃO TOMÉ

santa terra, naquele baixio próprio para o crescimento de suas


palmeiras valiosas, cujo chaco provinha daquele manancial,
poderoso, implacável em sua simplicidade misteriosa de chegar
longe do que se espera sem pressa e sempre. Tal como a água, a
vontade de espalhar o que somos. Pelo menos, deveria ser deste
modo.
Para Botão, a umidade verificada na ponta dos dedos ao
pegar a amostra de terra era justificativa para uma nova tentativa
de plantar açaí. Trouxe os caroços roídos de sua esposa
Francisca, na simpatia de que grelassem e por sua vez se
fecundasse aquela mulher, preocupada dos anos casada sem
filhos. Botão semeou lá e cá. O Olho D´água crescia em volume
de água duzentos metros dali. Plantinhas de açaí mostravam a
folhagem risonha para o mundo, separadas de três em três metros,
Botão e Francisca aguardavam que seus frutos coincidissem com
um bebê a caminho. O inverno amazônico regava as esperanças.
O Taperebazeiro, uma reárvore sabida apenas por ela,
mostrava sua imensa composição de folíolos às outras, de
diferentes direcionamentos, de norte, de sudoeste, de nordeste,
na complexidade das contas que faz para diversificar seus galhos.
Formigas desfilavam no seu tronco. Inflorescências branquinhas
salpicavam em toda a ramada, de cotonetes estrategicamente
formados a milhões de anos para o pouso dos polinizadores.
Trigonas campeiras iam e vinham, no sagrado ato de coletar
açúcares para sua rainha, fazendo o favor de misturar os pólens
no masculino e feminino de cada flor. Tempos após, frutos
amarelos e ácidos surgiam para a alegria dos primeiros pássaros
descobridores deste manjar, o que chamou a atenção de Irênio
Catitu, ainda bronqueado pela perda da cana de açúcar que tinha
perdido no incêndio.
Cai um fruto. Caiu mais um fruto. Mais dez. Mais vinte.
Em certa manhã de passeio, um amontoado de taperebás fazia o
caminho de Catitu, num amarelar que fazia bom contraste com o
verde das folhagens. Não teve dúvida, pediu à filha Benedita que
149
Pantoja Ramos

arrumasse um balde pra trazer até a boca de frutos. A esposa


duvidou que seria tudo isso. No final do dia, da caçada ainda
fraca pela fugidia dos animais, retornou com o balde derramando
frutinhos a marcar de ouro sua varrida, num pula-pula de
pássaros e de cutias luxentas que vinham para roer o caroço até
ali a poucos metros do jirau de seu casebre de madeira e palha.
Atirou numa cutia desavisada, sacrifício desta para que outras
fugissem. Do balde de frutos, a esposa fez o suco mais forte que
tinha feito, realmente mais para vinho mesmo, de um colorido
dourado intenso. Para a criançada que juntava os que caiam do
balde para a mesa, era engraçado a expressão da cara provocada
pelo azedume dos taperebás. Caretas. Risadas. Catitu disse que
podia comer muitos, mas não faria careta. Apostou com a família
ali da cabeceira da mesa, enquanto os meninos riam balançando
as pernetas no banco. Só Maria Benedita desafiou: “Mas quando?
“. Só de mordiscar a casca fina do fruto, Catitu se rendeu e fez
uma carranca feiosa. Todos riram. A pequena filha Benedita de
tanto rir quase caiu da parte do banco, o que puxou mais risos
ainda que tatuou a memória deles vida afora.
O pé-de-maracujá mostrava-se garboso em suas flores do
Santíssimo Sacramento. Atalaia, Felipe e Dona Cota
surpreenderam-se com o Maracujazeiro desenvolvido, sobretudo
com tão distinta flor, cheio de detalhes intencionais para algo que
não sabiam. A matriarca lembrou-se de um trecho de poesia que
uma professora de sua infância leu para ela, de autoria de
Fagundes Varela, tão bonita lírica que Mãe Cota guardou na
memória:

Por tudo o que o céu revela,


Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está! …
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!
150
SÃO TOMÉ

Felipe achou bonita a rima, Atalaia completou que o


menino estava na frente da Flor da Paixão, memória de Deus na
terra dos homens do sacrifício de Cristo. Pela quantidade de
flores surgida, geraram a expectativa de inúmeros frutos, o que
não aconteceu no tempo que calcularam. As flores não
fecundadas caiam tristes no solo, apodrecendo juntamente com
as demais folhas caídas, num musgo-musgo de logo tornar-se
húmus. Felipe decepcionou-se. “De tanta flor, de nada fruto”.
Dona Cota pediu paciência, que mais cedo ou mais tarde uma
vingaria. O que faltava? Nem a experiente avó sabia, mistério da
natureza. E Gaia respondeu um certo dia para Felipe, sentado que
estava antes das sete horas da manhã naquela sua curiosidade
própria das crianças a olhar a vida no raiar do dia. Um Bzzzzz
apalermou sua cabeça, “Sai, sai!!”, naquela implicância de
besouro a sobrevoar seu cocoruto. Na maldade que se preparou
para chicotear com a camisa seu desafeto inseto, percebeu aquele
solitário voo em direção de uma flor de maracujá. E como as asas
bateram na flor. Ficou ali apreciando a imagem e nem percebeu
a chegada de seu pai Atalaia. “Felipe, o besourão que tá ali
voando na flor deve ser o tal Mamangava”. “ Bença-pai, maman
o quê? ”. “Deus-te-dê-boa-sorte, o bicho que faz o fruto do
maracujá. Meu-pai-seu-avô dizia que isso é tipo de abelha, da
graúda.”. “Por que ele dizia? ”. “Lá em Salinas é terra de mel
discunforme. Ele criava abelha com ferrão e sem ferrão. Sabia
tudo de abelha e de florada. Daí me disse que bicha era essa, a
mamangava. ”. A solitária abelha, que mais parecia um besouro
de tão grande, solenemente pousava, fazia seu trabalho e seguia
para outra flor. Era abelhão sério, sem muita conversa com as
outras abelhinhas que por ali circulavam, sisuda ao que parecia
ser na sociedade animal, saindo para um lugar qualquer, sem
dizer precisamente a que horas voltaria no dia seguinte, diferente
dos outros polinizadores. Mamangava não era muito de se

151
Pantoja Ramos

misturar. Só trabalhar, decidido a visitar o nectário da flor


sagrada.
Semanas decorridos da visita da mamangava, maracujás
apresentavam-se para a alegria do menino Felipe, ansioso por
comer a polpa dentro da própria cuia do fruto misturado com
açúcar. Um, dois, três, quatro, cinco...doze, treze, quatorze,
quinze..., vinte e seis, vinte e sete... quarenta, quarenta e um! Vó
Cota fazia o suco fresco com aqueles carocinhos mesmo, que o
menino gostava de engolir, puro da terra que conhecia.
Desconfiava que havia umas cinco mamangavas rodeando o pé-
de-maracujá, mas não soube comprovar, tudo igual, tudo jururus
no comportamento. A primeira safra de maracujá dava fim à era
da terra arrasada, agora um mato, até certo ponto organizado,
pássaros, cutacas, mucurinhas, cobrinhas, açaizeiros com suas
primeiras espadas, lagartas, canto de Fifiós! Sim! Canto de Fifió
dizendo a todos que ali tinha água e que podiam se chegar os
viajantes sedentos. Fiu-Fiu!! Saudou o passarinho, mundiando a
todos. Do Olho D´água poderia haver uma lágrima de alegria
disfarçada caída para o lado esquerdo de seu pequeno leito, agora
sim, promovido enfim a centro de vida oficialmente pelo pássaro
assoviador. Tanta luta. Tanta dedicação. O Taperebazeiro jogou
uma ramada de saudação em homenagem. O Maracujazeiro
ofereceu-lhe a Flor da Paixão. Uma brisa fazia todos
comemorarem. Francisca, esposa de Botão, ajeitou o cabelo para
atrás da orelha. Queria melhor olhar para sua barriga apontada de
três meses.

ATO 4 – RAMOS E LAÇOS

Quase-renda também teve encaminhamentos do Olho


D´água, do Taperebazeiro e do Pé-de-maracujá. Não ficou
satisfeito, pois o Maracujazeiro estava misturando-se com seu

152
SÃO TOMÉ

plantio de mandioca e temia ele que aquela planta invasora o


prejudicasse enquanto produção. Cortou os ramos até onde
conseguiu. Sua posse era de capoeira e maniva, maniva e
capoeira praticamente. Roçara o mandiocal tempo todo a deixar
livre de vizinhos vegetais, mesmo próximo ao Olho D´água, que
ali sentia o esturricar. Matava por ali mesmo suas caças, próximo
ao Taperebazeiro. As cutias, a água e o maracujá evitavam o lado
que assim iniciava a posse de Quase-renda. Até o pé-de-taperebá
preferia jogar seus frutinhos do lado de lá. A mandioca produzida
pelo posseiro era medianamente viçosa e se oferecia para ser
vendida enquanto raiz, mas para Quase-renda, o decisivo se fazia
no forno para a farinha. Dias, semanas, meses, um ano
praticamente inteiro trabalhava nisso. Comia, vendia, mas não
crescia. Dona Cota até alertou se o filho anotava as coisas.
“Precisa não mãe, faço de cabeça”. “Olha, num sei ler, malmente
fazer o nome, mas tenho boa cabeça, Iredson. A Francisca do
Botão anota as coisa e eu matuto. Aí a gente come né? Gasta
muito tempo até colhê e até vender a farinha, já foi. Pensa que é
broca, queima, coivara, tira maniva, roçado, capina, capina.
Carece de ter outras coisas pra valer o almoço. Até caça tu num
tem poraqui direito, que já quebrava um pouco o frango do
marreteiro. Não se pode só se valer da farinha. Num adianta”.
“Hum-hum”, respondeu Quase-renda. “Mas se é o que vende,
mãe. Pode botá o fardo lá na feira da cidade que é venda na certa.
”. “Mas desse jeito aí, bolenta e empretada? ”. “Mãe, é do jeito
que sei fazer, tá? ” e deixou cai a pá do forno de farinha de
propósito. “Tu me respeita...”, avisa Cotíssima. E balançando a
cabeça negativamente fechou a conversa: “Hum-hum”.
Naquele sexto mês de gravidez para o casal, Francisca e
Botão preparavam-se para a semana santa, tudo ajeitado para o
almoço daqueles dias. Enquanto tratava dos peixes e dali colocá-
los no gelo para o dia seguinte, pois não se pode pegar em facas
no Dia Santo segundo os respeitosos antigos, de seu jiral, a
grávida notou cachos de açaí formados em plena entressafra em
153
Pantoja Ramos

uma touceira, molhado por veio de água que seguia em direção


lá longe do pé-de-taperebá. Lembrou que era uma touceira
sofrida da seca passada, a dar um facão miséria e que agora ali
mostrava-se forte, com um cacho de açaí do tamanho de dona
Cota, porruda, de uma fresca polpa a saltar as vistas no ângulo
observado de baixo da palmeira. Então teriam peixe. Então
teriam açaí. Então teriam peixe com açaí. Pediu para o marido
subir logo no açaizeiro para não ocorrer em pecado na Sexta-feira
da Paixão. “Botão, pega logo aquele cacho ali? Homi, tu
reparaste que ele é do graúdo? ”. “E num é? ”. Iranelson trepa na
touceira e avista não somente um, porém dezenas de touceiras
cacheadas, numa estranha sequência que acompanhava o Olho
D´água, em trilho verde e preto visto de cima. Saindo do trilho,
tudo era mirradinho, voltando ao caminho do Olho D´água, tudo
viçoso. Desceu espantando que pensou que iria queimar o peito.
Qual nada. O estipe era de descida macia, parecia até acolchoada,
o que o estranhou não ter avermelhado o peito. “Mulher, ispia
aqui. ”. Segurando a mão da esposa, seguiram olhando pra cima
e para frente, num corredor de estipes com cheios de frutos tuíras
e de bom tamanho para os especialistas em coleta de açaí, cuja
rota do pretinho acompanhava o trajeto encharcado, curvando
quando necessário, conforme aquele já considerado curso
d´água. Um pretejamento de açaizeiro escolhido que deixou
Botão e Francisca boquiabertos; até os periquitos pareciam
respeitar aquele estirão de touceiras separadas para aquela
família e seus grandes frutos, ou para venda ou para comer, ou
para renda, ou para lutar contra a carestia. A esposa agradecida
pela gravidez e por tão linda cena, lança a voz em cantiga,
segurando a barriga como se a ninasse, numa simplória de poucos
versos para encantar e ninar os ouvidos, como assim temos nas
baladas de infância rememoradas,

“Pretejar
Seu olhar
154
SÃO TOMÉ

Cachear
Caminhar...”

Botão maravilhado, perguntou para Francisca: “tu já


viste isso??”. “Eu não? ”. “Ah o Mateus por aqui um dia trepando
nos açaizeiros? Vai ser um fóli danado! Rá-Rá-Rá! ”. “Botão,
mas pode ser a Madalena, lembra? ”. “É, né? ”. “Mas não te
preocupa, ela vai pegar açaí melhor que tu! ”. “Agora eu vi...”.
“Ei, bora aproveitar e catar por aí uns cacau? ”. “Te aquieta...”,
sorri marotamente Francisca.
Atalaia, Dona Cota e Felipe também na Semana Santa
providenciaram o seu pescado para o Dia Sagrado, naquele
tucunaré ticado e temperado para o cozidão. Cebolinhas, cheiro-
verde, a pimenta da amarela e o tucupi comporiam o manjar
daquele almoço futuro, silencioso no respeito ao Sacrifício do
Senhor. Falava-se baixinho, pois Deus estava com dor de cabeça
naquele dia por conta da maldade dos homens de todos os
tempos. Antes da refeição, o rezar puxado pelo dono da casa, a
cabeça entre as mãos, enquanto Felipe sentia o bom cheiro do
cozido entranhar no seu nariz de menino saudável que gosta de
almoçar bem, aquela carne alva macia, mergulhada naquele
caldo, as folhinhas de cheiro-verde a flutuar e temperar, uns
pingos de limão espalhados a dar sabor azedo suave de um
combater do pitiú, mas é apenas uma desculpa para misturar as
sensações gustativas. A esposa de Atalaia, Preta, após o término
da oração, coloca a primeira concha no prato do esfomeado.
“Cuidado com espinha, pequeno”, avisou a mãe. O vapor da
panela inebriava os presentes, sem gula, com sobriedade, porém,
contentes com mais um dia de prato servido. Uma pimenta
amarela amassada no canto redondo do prato para o toque final
servido apenas aos adultos de tão queimosa que era.
Após o almoço, dona Cota contou a história de Jesus,
lendo passagem da Bíblia no Evangelho de Mateus, a prisão de

155
Pantoja Ramos

Cristo, o açoitamento, a apresentação a Pôncio Pilatos, sua


condenação, a Via Crucis, a crucificação, as três horas da agonia.
Uma penumbra que tomou conta da Terra após tão grande
injustiça dos homens àquele inocente. Acrescentou a boca
sexagenária as ladainhas “Pietá Nossa Senhora Regina Mater
Christi Mater Divinae Graties Filho Redentor Munde Deus...”,
aprendido de seu pai. Finalizou nesta parte, dizendo ao neto que
iria ler a Ressurreição no Domingo. Atalaia cutucou com o
cotovelo o menino e apontou com o beiço para o lado de fora.
Felipe reparou nas inúmeras flores do Maracujazeiro surgidas,
centenas a perder de vista, num caminho de gavinhas e folhas que
tinham origem lá no pé-de-taperebá e chegavam à sua casa de tão
distante. Que protegiam seu caminho do sol, sombra agradável
para as tarefas de quintal, deste modo ficava o sol apenas no
aquecer das roupas, poupando Dona Preta de costas ardidas. Num
desses corredores de folhas e espirais do maracujá, jurou ter visto
uma mamangava taciturna em meio a outros insetos tumultuados
como se o estivessem praguejando o bando que até lhe batiam as
asas violentamente sem motivo nenhum algum na opinião do
pequeno o observador e ele, mamangava sóbria, seguia seu voo
firme como a ter um propósito real. Um passarinho veio bicar,
até o acertou, mas a carapaça mesmo ferida manteve a
mamangava no objetivo de chegar à mais bonita flor do maracujá
daquele terreno, ampla, roxeada, ali os pregos, a coroa de
espinhos, a cruz. A mamangava sofria no ataque de seus
predadores e por fim sobrevoou cuidadosamente os estigmas e
anteras, polinizando a flor e fecundado seu escondido ovário, que
viria a ser fruto, que viria a ser doce, que viria a ser semente, que
traria à terra outro pé-de-maracujá, que até alimentaria os
pássaros que predariam outros polinizadores. Não aguentando as
asas e partes do corpo bicadas e atacadas, até por outras abelhas
e insetos, parou a mamangava morta no entrelaço de um galho,
forma cruzada, nesta cena que paralisou Felipe por breves
minutos a entender que tudo tem um objetivo para um bem maior.
156
SÃO TOMÉ

Dona Cota terminou a leitura e ouviu do neto a imitação do verso


que aprendeu com ela:
“Por tudo o que o céu revela,
Por tudo o que a terra dá
Guarda contigo este ‘embrema’
Da flor do maracujá!”

Na casa de Irênio Catitu, sua família não sentia mais falta


da cana-de-açúcar, adocicados que estavam com o Taperebazeiro
e outras frutíferas que prosperavam no terreno. Um pé de
graviola, uma carambola, uma goiaba araçá. O que virava lama
era mesmo taperebá. Seus meninos até enjoavam de comê-los e
por outro lado, não gripavam: eram corados e sadios. Vez ou
outra brincavam de contar frutas, num coro de meninada que
dava gosto de escutar. Até Catitu entrava na roda assim que
chegava da roça,
“Contamo amarela
Contamo na panela
Quem é que acerta
Chega pela canela
E quantas graviola?
Quantas carambola?
Conferi num vou errá
Trinta e nove araçá
Vou espremer no alguidar
Uns mil taperebá”

No Domingo de Páscoa, os irmãos reuniram-se na casa


de Botão para comemorar a Ressureição, as famílias proseando,
alegres, aliviadas em seus pensamento e fé por Cristo ter
renovado a vida. Quase-renda, ficava em sua casa, sozinho,
alfinetando a própria sorte, mas permitia a ida de Dorilena e
filhos irem abraçar seus parentes naquele dominical. Quase-
renda sentia tédio daquelas conversas para ele tolas, em sua
157
Pantoja Ramos

concepção o presente devia ser somente para trabalhar, o passado


pra conferir, o futuro à sorte devia. Naquele ano, todavia, não era
um trê-lê-lê qualquer de sua parentada, eram um
compartilhamento de espantos e impressões do mistério da
natureza.
“Pretejar
Seu olhar
Cachear
Caminhar...”.

“Contamo amarela
Contamo na panela
Quem é que acerta
Chega pela canela
E quantas graviola?
Quantas carambola?
Conferi num vou errá
Trinta e nove araçá
Vou espremer no alguidar
Mil e pouco taperebá”.

“Por tudo o que o céu revela,


Por tudo o que a terra dá
Guarda contigo este ‘emblema’
Da flor do maracujá!”.

“Pretejar
Seu olhar
Cachear
Caminhar...”.

158
SÃO TOMÉ

Quando retornou à sua casa, Felipe viu o belo frutinho de


maracujá surgido no mesmo local onde divagou cenas sagradas.
“Nasceu de novo a mamangava”, concluiu.

ATO 5 – A PARTE QUE CABE AO HOMEM

Quase-renda desde a quinta-feira da Paixão vinha


tricotando pensamentos entre um golpe de foice e outro no seu
mandiocal. No formigal de fogo que vinham doer-lhe o pé a subir
o ácido fórmico pelo corpo, acordava de divagações sobre como
ganharia mais dinheiro com a farinha. “É coisa boa, é gostosa,
então por que não ganho mais?”. De maneira até certo ponto
compulsiva, arranca com as mãos os matos ali nascidos, não
importando se era barba-de-bode, camapu ou pezinhos de bacuri.
Sim, pois aqueles pezinhos que poderiam produzir grandes e
rentáveis frutos futuros foram sugeridos de serem mantidos por
Mãe Cota, mas qual nada, arrancava-os com raiva das
intromissões maternas.
No labor das doze horas, já terminado o prazo gástrico
da farofada comida de manhã cedo e iniciando a segunda fome
do dia, acelerou os golpes de foice para logo caminhar à casa e
saciar-se com a guariba salgada que caçou outro dia já no terreno
de Atalaia. No avanço do trampo, chegou próximo à reárvore de
taperebá, que se pudesse ter pelos, tinha mostrado o arrepio em
sentir a presença de Quase-renda nas proximidades. Olhando de
um canto, para o outro, o posseiro viu nas quatro outras
vizinhanças o floreio, o farfalhar das folhas, aquela mata
recuperada, enquanto do seu lado só o mandiocal de queima
ainda marcante. “Só mato... ô povo preguiçoso”, desdenhou.
Seguiu pelo caminho do Olho D´água até encontrar a trilha de
açaí de Francisca e Botão, assustado ficou com tanto cacho tuíra

159
Pantoja Ramos

que davam três quartos de seu tamanho. Voltou por um atalho,


viu as frutas diversas e lideradas pelo Maracujazeiro, que dava as
gavinhas como se fossem mãos a brincar de roda na posse de
Atalaia, querendo alcançar a posse de Catitu, num esticar
gracioso de quem viu o galho da graviola, que juntava com a da
carambola, que juntava com a do araçá até chegar no taperebá,
tudo meio unido, num movimento revolucionário de aumentar a
vida na região. “Mas que porra é essa?”, deu de novo no
mandiocal, esquálido se pudesse ser descrito como pessoa, só
aquilo, só aquilo. Quase-renda reinou com dentes trincados pela
alegria dos irmãos, gabolas das vendas na feira de Gurupá, até
limão, até acerola, até as esposas com suas hortinhas de
cebolinha, cheiro-verde e chicória, mesmo macaxeira e mandioca
e terra bem preparada sem a queima de outrora. Por outro lado,
Quase-renda na sua empreita limitada de quarenta contos o fardo
por colheita, humilhado sempre pelos atravessadores sobre a
qualidade de sua farinha. “Égua, Quase-renda, que bicho feioso
de se comer! É pros porcos? Rá-Rá-Rá! Coitado deles! ”. Iredson
consumia-se por dentro, onde não estava com a cabeça para não
dar uma braçada no pé-da-orelha daquele marreteiro, o Zeferino.
“Desgraçado! ”. Pensou em tocar fogo em tudo novamente pra
acabar com aquela alegria no terrenos dos manos seus, “Ispia que
até as cutia diz-que vai na porta ser abatida, conversa”. Fazia o
monólogo.
Na Sexta-feira Santa, enquanto os demais parentes
estavam retirados espiritualmente para uma profunda reflexão
em si mesmos sobre Quem foi Jesus, o que é a Verdade, o que
somos, para onde vamos, como podemos ser pessoas melhores,
cada um na sua rede, na mesa, todos juntos em meditação, Quase-
renda ficava sentado em cima de um cumaruzeiro morto da
queimada apreciando seu plantio. “Não, eu não vou ficar no rabo
da fila”, matutava. Decidiu que iria tocar fogo novamente na
mata para que todos ficassem necessitados no mesmo nível, meio
que acidente, não seria estranho para ele, no anterior caso teve o
160
SÃO TOMÉ

mesmo ímpeto ainda que na intuição, um pensamento a priori de


não ficar para trás em relação aos demais irmãos. Porém, pensou
na Mãe Cota e no seu pai falecido. “Não, deixa quieto”. “Peste,
bem que podia nascer essas planta por aqui, porque só pra
eles??”. Olhou pro céu em desavença, olhou pra terra em
desprezo. “Quero saber se minha terra é pior do que a deles, por
que eu não ganho mais que eles?? As boca que eu tenho que
manter pede mais dinheiro pra eu ter, é na farinha que eu vou me
fiar. Vê o Esteves lá do outro lado do rio, vende que é uma beleza,
tudo amarelinha, dá gosto de ver, torradinha, torradinha, pega
fácil oitenta conto no fardo e eu só quarenta?? Só quarenta??
Deve ser as peneira, isso, esse deve ser o segredo do Esteves. Já
tirei tudo, plantei tudo, tudinho, mais de trinta e duas tarefas
botado no chão já esperando pra plantar, fora a outra metade já
plantado e no ponto de colher. Agora faço dinheiro, num pode dá
errado. Se der errado, boto fogo nisso tudo, boto fogo até na casa
e caio no mundo!! Ah eu juro. Ara, Dorilena fica de bico comigo
dos plantio, diz-que tá tudo feio, as galinha dela tudo magra, os
pato tudo fujão pra área do Botão, mulé besta! Quero ver quem
paga o rancho se não esta farinha que faço. Bolenta..., feiosa,
feioso é o teu rabo, Zeferino!!. Filho duma égua! Tá combinado
com a mãe pra me agoniá, ah, mãe, às vez, às vez, sei que é
pecado, perdoa papai. Ah, pai, se o senhor tivesse aqui, eu taria
melhor, taria sim. Desculpa, pai, desculpa, não queria que o
senhor me visse daquele jeito. Não fui o ladrão pai, foi outro, foi
coisa do Atalaia. Era pusquê eu precisava de dinheiro pra
comprar uma bola, pai. Desculpa, não queria que o senhor
adoecesse, mas antes ter me dado uma surra de cipó-de-fogo. Se
eu roubei, meu pai, era pros seu remédio. Não se alembra que o
delegado disse que era coisa de moleque? Desculpe a vergonha
pai. Pai, porque o senhor se foi... Mas olha, não vou faltar com
os meus, como o senhor me faltou, vou ganhar mais dinheiro,
isso, tenho que ganhar mais dinheiro. Prometo que não vou

161
Pantoja Ramos

roubá, vai ser do suor. Peste de terra disgramada que não dá


nada!! Huuumm. As terras do meus irmão, se eu comprá?”.
No Domingo de Páscoa, continuou nos seus
pensamentos, todos fora, apenas Quase-renda solitário em seu
casebre projetando comprar a posse dos irmãos. Faria a cada um
uma oferta. “Mas eles não vendiam não, não. Não vão topar. ”.
Calculou os valores, imaginou as propostas de compra,
raciocinou os pagamentos. De tudo que planejava, andava,
andava e voltava ao mesmo ponto: Atalaia, Botão e Catitu não
desejariam largar sua posse. Para que a posse São Tomé fosse
sua, teriam eles que ir embora. Como?
O macabro foi tomando conta de sua mente, em repentes
de ideias que nasciam e morriam conforme seu próprio senso do
que é justo conduzia. Repentes de contratar pistoleiros, num
acordo de meio-a-meio nas terras, repentes de sumir com a Mãe
Cota e assim livrar-se do juiz daquela família, repentes de ter o
poder de enviar uma praga de carapanãs do tamanho de
passarinhos para sugar o sangue de todos, afugentando-os,
repentes de uma onça enorme montada apenas por ele a atacar as
casas, “vaitimbora, vaitimbora!!”, gritaria. Num repensar e
pensar em caos, um estratagema de causar o maior fogaréu já
visto em Gurupá a consumir com suas chamas toda a posse São
Tomé, desvalorizando-a. Tão arrasados ficariam os irmãos e Mãe
Cota, que concordariam com qualquer boró dado pelo corajoso
Quase-renda a querer só ele permanecer naquela terra devastada,
tão corajoso, tão esperto, tão inteligente empreendedor que faria
até os donos de grandes embarcações tirarem o chapéu diante de
tão prodigiosa capacidade administrativa, “veja ali a posse Toda-
renda, aquela que era antes a São Tomé, de onde sai a melhor
farinha do Marajó e do Xingu juntas. Um dia esse Iredson ainda
vai ser prefeito! Se ele tá velho, que nada, tu nem sabe a murra
de mulher que anda atrás dele. Dizem que a farinha dele é
abençoada...”.

162
SÃO TOMÉ

Quando Dorilena e as crianças chegaram em casa,


pegaram Quase-renda vestido com camisa de botão, calça
comprida e sapato bico fino, vestimenta que só costuma usar em
batizado, como se desfilasse no meio do povo como uma
autoridade. “Que é isso homem? ”. Surpreendido, Quase-renda
disfarçou: “a gente não vai pro culto? ”. “Foi de manhã, homi,
mas tu nem gosta de igreja... hum-hum”.
No início do verão amazônico, pesquisou entre os irmãos
se não havia algum que desejasse mudar-se e assim dar o bote da
compra da terra. Qual nada, todos satisfeitos, produtivos,
fruticultores, bons de açaí, até conciliando a produção entre si,
sem minúscula sombra de um queixume sobre a terra, sobre a
vida. Pagou às escondidas o marreteiro Zeferino a jogar conversa
com os três irmãos seus para dali entender qual a dificuldade,
quais os sonhos, o que lhe empatavam ter mais numerário.
“Quase-renda, hum-hum, que nada disseram de ruim das terra
deles, tudo contente eles tão.”. “Nada mermo?”. “Nada.”. “Se tu
quiser, eu conheço uns cabra cortador de dormente de pracuúba
que vez em quando bota serviço de dar jeito nas pessoa.”. “Não,
isso não. Fica estranho só eu ficar depois né. Vão desconfiar”.
“Hum, mas e o negócio do fogo?”. “Tô pensando, tô pensando”.
“Se tu me der a parte do Botão, eu te arrumo a gasolina. “Do
Botão, não, te passo a do Atalaia, quer?”. “Fechado”. “Fechado”.
“Olha, que quando for o dia eu trago os tambor cheio de gasosa
até a boca e botamo em quatro paragem, Tudo bota fogo em dois
lados, eu mais dois lados. ”. “Tá certo, agora te vai que lá vem a
Dorilena ou muda de assunto. ”. “Ei Quase-renda, tua farinha
ainda tá panema, já pensou em largar essa vida e virar pescador?
”. “Tu é doido, peste, que a terra sustenta todo mundo tu vai ver
e o meu tá guardado...”. Dorilena virou o nariz pra Zeferino e
levou seu marido pelo braço. “Num dá conversa pra esse homem,
Iredson.”.
Em outubro daquele ano, num verão aparentemente mais
tórrido que o do ano anterior, muitos sofriam com o forte calor e
163
Pantoja Ramos

morte das plantações por falta de irrigação. Em São Tomé,


entretanto, o verdejar das árvores em seus portes alto, médio e
pequeno mostravam a contramão do sofrimento vegetal, pouco a
pouco espalhando-se do leito do igarapé Olho D´água para as
pontas da posse ainda ressequidas, bem verdade, só que havia
reação, havia esperança. Canais feitos pelos irmãos partindo do
leito do igarapé garantiam a umidade para enfrentar a morte, em
pontos estrategicamente cavados. Atalaia testou a junção de
bomba sapo e bateria para colocar água em uma caixa d´água e
assim irrigar suas plantas. Botão e Catitu logo aderiram.
Quebravam a cabeça em como alimentar a bateria lá mesmo, pois
a ida e vinda destes pesos limitavam muito o manejar dos
plantios. Botão sugeriu a compra de um motor portátil a diesel.
“Tá bom, mas o disel tá tão caro, né?”, avaliou Atalaia. “E se a
gente arrumasse outro jeito? ”. “Que jeito? ”. “Macho, lembra
dos rádio que o Anjo-da-Guarda tinha?”. “Sim”. “Poisé, aquilo
era placa que mantinha a bateria. ”. “Que placa? ”. “Placa solar.
”. “Placa solar? ”. “É, num sei como funciona, mas é botar no sol
que gera energia.”. “E de noite? ”. “Pra que serve a bateria, seu
besta? ”. “É, né, Rá-Rá-Rá.”. “Rá-Rá-Rá”. “O Zeferino, o
Zeferino arruma uma pra gente, bora encomendar uma”. E
Zeferino arrumou a placa, vendeu caro, mas os três irmãos
repartiram a despesa, convidaram Quase-renda que não deu
importância da engenhoca. O marreteiro até ajudou a montar o
equipamento de bateria e bomba sapo. Ainda alertou: “Ispia, é só
colocar direto na bomba que acho que já dá jeito”. O teste foi um
sucesso! Revezavam Atalaia, Catitu e Botão o espalhar da
irrigação, cada um com sua caixa d´agua taticamente instaladas
para melhor aproveitamento da posse São Tomé, menos a parte
de Iredson.
No dia de Finados, marcado não pela chuva tradicional
daquele feriado e sim o estorricar das folhas e do endurecimento
do chão, a família de Mãe Cota foi à Gurupá prestar homenagem
ao esposo e pai. Antes de ir, Quase-renda começou a materializar
164
SÃO TOMÉ

seu plano, ajudado pelo feriado, pela visita conjunta ao túmulo


do pai, o que faria o comparsa Zeferino ficar à vontade para
incendiar São Tomé. Com muito esforço rodou cada tambor, num
desajeitado derramar do combustível nos três primeiros
momentos, pois esquecera de levar uma simples panela para
melhor área a ser queimada. Mesmo nesse contratempo, o fogo
rapidamente veio a disseminar, atacando rapidamente,
consumindo as regiões sofridas da estiagem, num fogo que
parecia um animal faminto por carne fresca, digerindo o
caranazal, os tachizeiros, os lacres, as barbas-de-bodes em
labaredas que queimavam também as embaubeiras que estalavam
de dor, incêndio este que mirou sua insaciável vontade para a
direção da mata esverdeada, naquele corredor florestal e
agroflorestal agora largo que começava lá no igarapé Olho
D´água. Zeferino estava na posse de Quase-renda, cansado e
tremendo do esforço que era arredar os pesados tambores. “Só
falta um”. Aqui o fogo vai rápido, raciocinou sobre o mandiocal
seco que avistava, “vou deixar o tambor inteiro, quero ver a
popocada. ”. Acendeu o fósforo, enquanto sentia os primeiros
sinais de fumaça na venta vindos das partes de Botão, Atalaia,
Catitu. “Tomara que a do Atalaia, não se estrague tudo”. Pisando
em cima de um formigueiro sem dar conta, recebe ataque feroz
dos soldados, no dedão, no tornozelo, veio-lhe ferradas até no
meio da canela, em tempo recorde próprio desses ataques, como
lembra nossos pobres pés de menino desavisado. Zeferino
surpreendido pela dor lancinante deixa cair o fósforo na roupa
melada de gasolina, que como uma tocha lhe queima o peito.
Bate-bate para espantar o fogo debaixo do queixo e sem se dar
conta se apoia no tambor, que ali tinha a boca aberta para receber
o fogo vizinho.
Explosão!!

As plantas todas em alerta percebiam o aproximar do


incêndio que fatalmente as eliminaria, em primeiro instante
165
Pantoja Ramos

desesperaram para um novo acerto com o ciclo da vida. O igarapé


Olho D´água ordenou que todos ficassem calmos e pediu para os
açaizeiros dessem a pauta para os periquitos: avisar os homens
de que algo estava acontecendo. Os açaizeiros e outras palmeiras
faziam a resistência ao fogo, num combate silencioso entre ele e
os braços esverdeados. Mumbacas, inajás e tucumãs formavam a
linha de frente desta infantaria, atrasando o avanço inimigo para
uma trincheira molhada, comandada pelos miritizeiros,
açaizeiros, paxiúbas e jupatis. O ramo de maracujá conversou
com os periquitos voantes num balançar que encontrou
ressonância no Taperebazeiro que junto com as gravioleiras e pés
de carambola deram ordens para as demais espécies de
passarinhos acompanharem a revoada de periquitos. Finalmente,
o jambeiro expulsou seus morcegos para ajudarem aquela tropa.
No ônibus velho que trazia da cidade os trabalhadores e
trabalhadoras rurais da cidade, mais propriamente do cemitério
de Gurupá, Mãe Cota e família perceberam a passarada e
aglomeração de morcegos num só revoada estranha, daqueles
que juntavam pela primeira oportunidade os adoradores do Dia e
da Noite. “Ispia, que essa revoada vem lá da terra da gente”.
“Ave-maria, será? ”, se apavora Francisca. “Calma, Chica, que a
gente vai logo ver”, tenta acalmá-la o marido. À medida em que
a fumaça negra deduzia a posse São Tomé, aumentava a agonia.
Catitu aponta para o fogo mais forte no lado de Atalaia. Traçaram
o plano ali mesmo no ônibus disparado para o local do incêndio,
com os vizinhos presentes dispostos a auxiliar os três irmãos.
Quase-renda tentava mostrar-se consternado e como era péssimo
ator, atraiu olhares de Mãe Cota desconfiada da situação passada.
“Quié, num tá vendo que eu tô aqui com vocês??!!”. Apresentou
seu forte álibi.
O ônibus velho mal parou no início do ramal que dava
entrada à posse São Tomé, todos desceram e seguiram para
lugares diferentes. Um grupo liderado por Botão seguiu para ver
a situação de seus lados, entendendo que o charco dos açaizeiros
166
SÃO TOMÉ

impediria por enquanto a propagação do fogaréu. Os homens e


mulheres que seguiram Atalaia levaram consigo a bomba sapo e
a bateria para os lados seus para travar diretamente batalha entre
água e fogo. Catitu, seus companheiros e todas as enxadas
possíveis foram para os aceiros e vassouras, para baixo isolar as
chamas, para cima aplacar a queimação dos galhos.
Na parte de Quase-renda, as brasas voadoras indicavam
já muito carvão produzido, no maior dos incêndios que já tinha
visto: olhou aterrorizado o alto fogaréu se formar com a silhueta
fantasmagórica de seu pai, que nem reparou todo o mandiocal
consumido, nada a sobrar para dizer como foi possível resistir a
tal destruição. Os homens tentavam tapar a boca e os olhos
invadidos pela fumaça para logo escaparem daquilo tudo
imediatamente, sem repararem que nessa confusão Quase-renda
andava vagarosamente e ficava para trás, num diálogo silencioso
com a monstruosa figura de seu pai apontando com o dedo
disforme para ele. Em lenta marcha ré, tropeça e cai por cima de
uma galhada que prendia um animalzinho, uma cigana que estava
presa entre o lume de uma embaubeira. O pássaro saltita até ficar
em segurança, trazendo consigo o olhar de Quase-renda até um
pedaço de árvore, um toco que se contorcia. “Jesus! ”. O toco que
não era mais toco movendo-se em sua direção até chegar ao seu
pé estático de medo de perceber a misura que se encontrava
Zeferino, arrastando-se para pedir-lhe socorro da explosão que
sofreu, estrebuchando com a cabeça-de-cara-pra-terra a
instintivamente querer chegar até ao tornozelo daquele homem,
não importando quem fosse. Num último ato de força, virou-se e
revelou a tragédia de um rosto não rosto, resto de gente, derretida
face horrenda a mostrar a arcada dentária para Quase-renda. “Sai
disgraça!!”. Quase-renda pegou a enxada que trazia e bateu,
bateu no absurdo ser até não haver mais movimento deste.
“Zeferino, era Zeferino!”, correu abobalhado enquanto o fogo
misturava embaubeira, marreteiro e terra em uma só substância,
no destacar do potássio.
167
Pantoja Ramos

Na angústia de Quase-renda, sem sentir mais as brasas


por baixo dos pés enegrecidos, apoiou-se nos acúleos do pé-de-
taperebá, olhou para cima, aquela árvore vistosa e valente a
enfrentar e vencer o fogo aparentemente, com o pai sentado entre
as galhadas mostrando a soma de todas as feições terríveis para
um filho ou filha: Atalaia-Pai castigava-o com expressões de
ironia, raiva, desapontamento, apatia, desprezo, mágoa,
animalidade, num giro do mundo inteiro em uma só cabeça
perturbada. Quase-renda começou a sentir o braço direito que o
apoiava no tronco do Taperebazeiro enfraquecer, um amolecer
repentino, o rosto cambado para o lado esquerdo, a vontade de
xingar aquele maldito ex-cepo que parecia zombava dele neste
instante a lhe cair frutinhos na cabeça dormente. De sua boca e
língua torta enxurrou a fúria em direção à arvore e ao pai daquele
sofrimento: “Dinheiro!!!”. Caiu de lado.
A chuva de Finados enfim apareceu.
Uma chuva de pingos graúdos, que deram intensidade à
aguada de mangueira da turma de Atalaia, que fortaleceu as
palmeiras que defendiam a casa de Botão, que resolveram a
questão de Catitu, em enxurradas de água por dentro dos aceiros
feitos pelos seus parceiros.
Quando a fumaça passou, a companheirada descobriu
Quase-renda respirando por pouco próximo ao pé-de-taperebá,
cheio de folhas a esquentarem do frio e de um pequeno filete de
água a lhe esfriar do calor braseiro, o resto tudo carbonizado.
Passado o pior, as mamangavas e outros insetos saíram
daquele buraco no tronco de uma grande maparajuba. O
Maracujazeiro cansado, por uns dias não quis esticar-se. O Olho
D´água serenamente escorria para alimentar os seus e cuidar de
seus feridos com seus sais minerais carreados.

168
SÃO TOMÉ

ATO 6 – SÃO TOMÉ

O menino Felipe percorria a posse São Tomé para ver os


estragos do fogo, pouca coisa significativa nos lados dos tios
Botão, Catitu e do pai Atalaia. A destruição ficou por conta da
posse do tio Quase-renda, um campo lunar a trazer até onde a
vista conseguia chegar a tristeza de tanto cinza dominante. Aos
poucos a vida retornava à normalidade, até parecia que mais
mamangavas visitavam o pé-de-maracujá e sua flor da Paixão.
Botão subia e descia para garantir a venda de suas latas
de açaí, comprando assim fraldas, roupinhas para a sua
Madalena, menina serelepe e que apesar de um mês somente de
nascida, dava todos os apontamentos de moleca que subiria em
cacho de açaí a humilhar os demais meninos. Na caminha de
colchão fino que possuíam, Botão quis passar com o dedo melado
de açaí na boquinha da pequena. “Pára Botão, que a bichinha é
pequena demais pra açaí.”, ralha Francisca. “Ispia, que ela já
toma”. “Como assim?”. “Ulha, que tu não tomas açaí todo dia??
Então ele passa no leite teu pra ela. Só estou adiantando...”. “Esse
teu pai, Madalena...”.
Irênio e filhos colocavam as cestas de frutas no ônibus
que seguia para a feira de Gurupá, num colorido trabalho que
pintavam a cada carrada as suas camisas, nódoa boa de quem
tinha sucesso na fruticultura. De limoeiros em pés de laranja, na
técnica da enxertia aprendida pelo filho que estudava a pouco
tempo na Casa Familiar Rural de Gurupá. Das graviolas,
carambolas, bacuris e tucumãs que chegavam às escolas. Mas
Catitu era famoso pela quantia enorme de taperebás que
garantiam o suco da meninada nas escolas próximas. Pensou em
fazer polpas e começou a juntar dinheiro pra comprar placas
solares. “Com disel num dá, né, Maria?”, falou outro dia para sua
esposa que era craque em fazer compotas.

169
Pantoja Ramos

Iranil e sua Preta orgulhosamente sorriam para Felipe,


que ganhou convite para estudar na Casa Familiar Rural de
Gurupá mesmo sendo de pouca idade, por sua vivacidade e
inteligência. Dizia que queria ser estudioso das plantas, “um
biólogo botânico” depois lhe diria um professor. “Podia ser isso
ou engenheiro da natureza pra aprender com ela. ”. Mãe Cota
ficava toda besta com as frases do neto.
O paralítico Iredson, sobrevivente por sorte de um
derrame, fruto do colapso nervoso ao ver sua plantação
devastada, segundo opinião de Dorilena e filhos, mantinha a
carranca sua olhando em direção ao seu mandiocal. Apenas ele
sabia de seu crime, silenciado naquela prisão no corpo sem
mexer-se, nem manifestar sua indignação da sua falta de sorte,
da falta de dinheiro para um melhor tratamento à sua condição,
apesar dos irmãos manterem os remédios e os custeios da viagem
da médica cubana e de uma enfermeira até sua casa. Queria
xingar a médica que lhe falava espanhol, xingar a coceira que lhe
pegava a parte sensível do corpo, naquele canto das nádegas,
xingar a falta de trabalho, amaldiçoar a própria vida que lhe
condenava daquela forma. Não pensava em Deus, tinha muita
mágoa. Quando lhe arrumaram uma cadeira de rodas, ficava a
contemplar o horizonte de sua parte, não mais cinzenta, mas um
propagar do verde trazido pela ramada de maracujá que parecia
querer se aproximar. Quando se preparava para xingar aquele
vegetal, lembrou-se de seu estado quase vegetal. “Malditas
plantas! Que se eu tivesse bom eu queimava vocês tudo de novo!!
Mas não adianta, vocês tudo volta, tudo volta”, gritava em
pensamento e espelia o som “hummmmm hummmmm
hummmmm”. Baixando o olhar, naquilo que podia movimentar
o corpo, viu o Maracujazeiro com suas gavinhas esforçando-se
para chegar no seu rosto paralítico. Aliás, era de um esforço
enorme e implacável. De repente, brotou uma flor, cujo
desabrochar foi imitando a silhueta do pai de Iredson com jeito
brincalhão, naquele lapso de tempo testemunhado tempos atrás
170
SÃO TOMÉ

por Felipe. Quase-renda instintivamente mexeu a ponta do dedo


para pegá-la, surpreendendo-o pelo fato de que pela primeira vez
em tantos meses, moveu uma parte do corpo além dos olhos. E
destes, escorreram lágrimas de emoção. Quando morreu, três
anos depois, obteve sua vitória ao declarar para sua genitora no
momento do fim: “Mãe Cota, Mãe Terra, Perdão”.
Vinte anos depois, Felipe tornou-se um dos donos da
posse junto com as primas Madalena e Benedita, já que os demais
primos decidiram seguir vida em outros lugares de Gurupá e do
Marajó, respeitadas as heranças de cada um antes da partida, no
zelo de diferenciar o que era justo para quem ficava e para quem
partia, tudo muito bem costurado. Aproveitando a negociação,
sugeriu-se a mudança de nome da posse, que não fosse mais São
Tomé, nada contra o santo, somente pelos fenômenos que
aconteceram naquelas paragens e que precisariam serem sempre
lembradas. Felipe propôs o novo nome da posse, um consenso na
família.
Na placa pregada no tronco do Taperebazeiro,
emoldurada pelas ramas de maracujá e com o frescor ofertado
pelo Olho D´água aos passantes está escrito:

“Aqui prospera a Posse Renascer”.

171
Pantoja Ramos

172
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

7 ATOS

173
Pantoja Ramos

“... Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa


importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto
da gente do que outras de recente data. Assim é que eu acho,
assim é que eu conto. O senhor mesmo sabe; e se sabe, me
entende. Toda saudade é uma espécie de velhice”.
João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas.

“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê..


É preciso transver o mundo..”.
Manoel De Barros – O Livro Sobre Nada.

174
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA

7 ATOS
Pantoja Ramos
Belém, 30 de março de 2016.

ATO 1 –AZAMOR E O AFILHADO DA VELHA POBRE

Repasso o que me contaram.

Relataram tempo atrás para mim tal acontecido o


Tancredo, o Tio Lanterna, o Marildo, o Suzano, o Berdão e o
Juruti. Mesmo eu não gostando que eles me chamassem de “Seu
dotô”, escutava aquela estória mágica como um menino
escutando da mãe como conhecera o pai, bastante ansioso pelas
próximas tramas, escanteiando as racionalidades que ofuscam o
belo que é imaginar. Parecia que estava com rádio na orelha
escutando futebol, talvez nem fosse aquilo tudo, porém, na minha
cabeça faiscavam imagens ariscas fugindo da senhora lógica, esta
toda sem graça. Por outro lado, pedia aos caçadores para não
desaparecerem de vez com suas palavras do que realmente
tivesse ocorrido. Difícil segurar aquela barragem de palavras.
Tancredo, o mais velho, respeitável senhor de barba
branca somente na parte que cabe às bochechas, magrelo e alto
acanelado como uma saracura, contou que certa vez a Velha
Pobre ali da Serra que ela empresta o nome em Almeirim, teve
um afilhado de nome Azamor. E por mais que tentasse protegê-
lo como boa madrinha que era, fechá-lo o corpo, mesmo com sua
pajelança, cresceu um homem de muitos problemas, motivo fosse
o nome que lembrava a má sorte, erro de raiz que lhe fazia carma.
Tancredo simulava o braço torto do sujeito Azamor, adquirido de
175
Pantoja Ramos

um tiro da própria espingarda armadilhada na mata, um bodogue,


que judiou o braço esquerdo, num movimento que o levava todo
molengó para cima e para baixo. Tancredo disse que era
engraçado vê-lo correr, parecia um animal abatido. Homem feito,
Azamor casou com uma mulher belíssima, chamada Carmem,
porém de muita maldade para com ele. Era Azamor ir caçar e os
compadres visitarem sua esposa na rede do próprio. A Velha
Pobre até fazia os passa-pé-de-pano, beberagens que fariam
entanguir até o mais asilado dos cabras, mas não surtia efeito na
chaga de Azamor. Quando um circo chegou no Jari, início dos
tempos dos portugueses, a mulher de Azamor fugiu com o
domador dos dois fedorentos leões que atraíam o público. Para
não ter tragédia, Velha Pobre dera uns amansa-cornos para
Azamor se quietar na sua baladeira e se conformar, escutando as
músicas sertanejas que choraram no seu radinho sharpinho, num
blém-blém de Tonico-Tinoco, enquanto vinha na sua mente
aquela Carmem assistindo a carne daquele domador na lona do
circo ou na lona da barraca. Suava de sofrimento.
Azamor era mantido na integridade física, corpo
fechado, porém sofrido por estar destinado ao ramo das caças.
Era um gateiro, homem especializado em matar onças,
Suçuaranas e gatos-maracajá no propósito comercial de tirar e
vender suas peles nos tempos em que tais felinos eram
abundantes por toda a Amazônia antes das grandes estradas
federais. Não arrumou outra serventia, dizia Tancredo que o
conheceu, uma sina a colocá-lo sempre em perigo, jovem ainda
ganhou algum trocado dos seus patrões e no esforço de
sobreviver, não tocou mais nada na vida. Nos tiros que dava,
estragava muitas vezes a pele das onças, diminuindo seu valor,
eis um sujeito que conhecia o ofício, mas habilidade não lhe
acompanhava, talvez fosse o braço de vitrola que possuía. Vez
ou outra matava uma fêmea prenha, o que lhe rendia escrotiadas
da Velha Pobre. “Assim não dá pra te ajudar, tu num larga dessa
teima, judia da mata, o que te piora, Azamor”. Vivia amiúde,
176
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

sozinho. Porronca, casebre, café do rio Paru e charque eram sua


companhia.
Certo dia, contando ainda Tancredo, Azamor estava na
montagem do sharpinho que tinha caído e espalhado em suas
peças, acocorado como todo fumante de um sítio fica, à vontade,
quando sentiu a presença de pessoas, não levantou, apenas trouxe
a cartucheira mais pra perto de si, vista cerrada e focada. De lá
mesmo da folhagem veio o chamado: “Credo, Azamor, compra
um calção decente pra ti, tá aparecendo tudo, tu não toma
jeito...”. Era Carmem, no lado um menino que mal andava ainda.
Azamor de tão surpreendido esqueceu a fúria incubada de anos
da enganação que sofrera, a testa ainda a doer, disse Tancredo.
Ainda por cima pediu a folgada, “Tem café? Tem bolacha pro
menino? ”.
Carmem e o garoto passaram a noite no retiro do marido-
ex-marido-sei-lá. Quando o pequeno dormiu, pediu perdão pro
companheiro, disse que foi abandonada pelo domador de leões,
o tal de Sacramenta, que tinha uma doença incurável na porta do
coração, e mostrou o grande inchaço em um dos seios, aquele que
ele mais gostava de beijar, agora meio disforme. Ardia em uma
febre que não cedia. “Trouxe o teu menino, ele é teu”. “Meu? Tu
tá de lári-lari! ”, e arredou-se para cuspir na parte de trás de
casinha para não reagir pior. “É teu sim, e mesmo que num seja
de sangue, é meu, e tu gosta de mim, cuida dele já que eu me
vou...”. O olhar doce de Carmem mirando-o adocicaria até o mais
amargo café, não carecia de erva-doce, aquele cheiro dela de
alfazema voando até o nariz de Azamor acalmava. “Num sei,
num sei, sou homem brabo, o menino tão miúdo assim, num dou
conta”. “Dá sim, e tem a Velha Pobre, tua madrinha que vai criar
também. Te peço, Azamor, quer que eu me ajoelhe??”. Fez o
gesto de ajoelhar-se, mas a tontura da fraqueza da doença a comê-
la por dentro a fez desfalecer. O caçador rápido levou-a para sua
rede. “Deita aí, amanhã a gente conversa. Só espera eu fazer um
chá de verônica pra ti”. Enquanto fazia a quente bebida, esticou
177
Pantoja Ramos

o pescoço para ver o menino, frágil criatura que ele imaginava


num repente ser seu, de até parecer com ele. A dúvida encolhia o
pescoço. A curiosidade esticava para ver novamente as feições
da criança, que serenamente dormia o sono dos justos naquela
rede sua. Tancredo achava um dó danado aquele seu azar de
esposo traído agora no dilema de criar ou não um bacuri sem
saber se dele era. Viver é administrar dilemas, meio que pensou
deste jeito.
No dia seguinte, Azamor sentou perto da rede onde se
recuperava Carmem, no ato de lhe dar uma cuia com água. “Olha,
tá certo, a madrinha há de gostar também. Nisso tu vai ter tempo
de se tratar, né? ”. “Vou sim, Azamor, tu é um bom sujeito”.
Palavras aquelas que pareciam ter sido um beijo nele, naquela
face barbada. “Qual o nome dele? ”. “Não tem ainda”. “Não tem?
Como não tem, hunf! ”. “Coisa do Sacramenta, que queria batizar
e registrar com a sua gente cigana, mas que na verdade tava era
enrolando até o pequeno parecer ou não com ele”. “Tá bom, ele
vai ter um nome caprichado, diferente do meu”. “Aza-mor...”,
sorriu Carmem tentando brincar com o ex-companheiro para
depois ter um acesso de tosse seca, guaribada. “Vou pra Santarém
me tratar, manda uma carta dizendo o nome que vocês puseram
no meu filho”. “Escolhe logo um agora quié...”. “Não, não, quero
saber quando tiver já nas últimas pra eu morrer sonhando e
dizendo a graça dele”.
Quando Carmem viajou, Azamor imediatamente levou o
pequeno para a Velha Pobre. Não era criança reclamante dos
afetos e atendimento nas horas de fome, sede, frio. Era calmo e
ao mesmo tempo, ágil. “Eu queria dizer que tu parece um saco
de farinha por não reclamar de nada, mas eu enxergo que tu tá
mais pra gato-maracajá. Toma-teu-termo, menino!”. Velha Pobre
quando o viu, levantou-o nos braços já como se fosse seu sangue,
num contato instantâneo de afinidade. “Meninão bonito, bonito
bacuri!”, se enterneceu a senhora. “Qual o nome dele?”. “Tem
nome não”. “Num tem???, ah, mas vai já ter”. Enquanto servia
178
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

chá de canela para os dois, Velha Pobre sentenciou: “Toma teu


chá, Manoel SorteAmor, que teu nome é esse”. O menino
atendeu ao chamado naquele andar bambo e paradoxalmente
gracioso de gente que começa a ser andarilha. “SorteAmor??”.
“Sim, Azamor, tu não queres o melhor pro teu filho?”. O gateiro
olhou pro garotinho com a ternura mal jeitosa que só os brutos
lançam, esquecendo até seu orgulho ferido de macho traído. “É,
a madrinha tá certa, chega de sina. SorteAmor, vem cá vem, toma
essa bolachinha”. O menino chupou a bolachinha até ela derreter
por completo na pequenina mão amorenada e naqueles olhões
lindos de criança. Quem vê uma criancinha comendo bolacha
sabe quanto o mundo fica cheio de belezura, dizia o contador
Tancredo. Carmem soube do nome da criança, depositada na casa
de uma vizinha, alguns meses depois naquela rede curvada de dor
e quase sem embalo, acompanhando o ranger da escápula num
sorriso último de canto de boca a murmurar, “SorteAmor,
SorteAmor, meu SorteAmor...”.
Veja só, Tancredo me disse que Manoel SorteAmor
quando cresceu, virou um raro caçador, diferente. Rápido como
um gato, valente que só ele, chegou a engasgar surucuru na unha,
da raiva de ter batido seu companheiro de caçada. Quando jovem,
trabalhava também como gateiro, mas foi deixando aos poucos.
Dizia que era judiação com os bichos. Não usava bodoque,
pensava ser um pega de traição. Se fosse pra caçar, era té-ti-a-té-
ti. E tem mais, por precisão, não por ganância de dinheiro. “Se
todo mundo for caçar onça, não vai ter mais daqui há uns tempo”,
previa. Os patrões achavam que era frescura dele e até
duvidavam ser ele tão bom assim como diziam. Seu velho pai
Azamor perguntava, “mas será, filho? ”. “Será sim, pai”,
respondia.

179
Pantoja Ramos

ATO 2 – A ORGIA DA NATUREZA

Juruti tomou a vez pra falar. Homem nervoso, espantado


por natureza naqueles seus olhos esbugalhados, cara redonda,
jeito esparrento, cabelo nos cachos uma bagunça só, na
malandragem fixada no bigode ralo. Disse que para entender o
quanto Manoel SorteAmor era bom caçador, era preciso
conhecer sua pior inimiga, a Onçarana. Também carecia de saber
do seu amor, a Airumã. De um lado e do outro, parecia que a
natureza estava na farra naqueles tempos e gerou duas criaturas
que só na vida de Manoel SorteAmor poderiam aparecer. Depois
disso, aí sim veio a lenda deste desbravador, um pouco verdade,
um tanto exagero e tudo fazendo parte da vida dos caçadores e
dos pescadores de Almeirim.
Juruti olhou pra cada um de nós e jogou direto no assunto
da Onçarana arquejando no ar uma misura espectral, o bicho mais
medonho que brotara naquele Vale do Jari de Deus. Imagina uma
porruda de uma onça cruzar com um leão. Eu mesmo já iniciei
não acreditando naquela conversa. Pois Juruti bradou testemunho
de seu pai que estava no circo batendo prosa com um dos anões
de lá conhecido como Ginásio, quando veio a gritaria de que um
dos leões tinha se soltado e caído mato adentro. Aí que o
Sacramenta chamou os homens e foram armados até os dentes
pra matar o bicho antes que ele comesse alguém. Era um perigo.
Nessa época SorteAmor estava na casa dos vinte anos e já
mostrava boa arte da espingarda. Foi logo convidado junto com
o pai Azamor para correr atrás da fera, embrenhada ali pelas
matas do Bituba. Naqueles dias, os castanheiros ficaram
apavorados e se negaram a entrar na mata, mesmo na ordem dos
patrões portugueses, em pleno mês de março. Ainda mais porque
também andava nas cercanias uma onça brabona, que já tinha
matado uns três cachorros de bom porte. Os caboclos

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QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

perseguiram o leão por uma semana sem achar nada. Só


encontraram as carcaças comidas de pacas e uma anta daquelas
bem gordas, do tamanho das vacas, dizia Juruti, abrindo os
braços como se estivesse medindo um terreno.
No quarto dia, de acordo com o contador, um grupo de
caçadores no qual se achava SorteAmor avistou o leão em
descampado nas paragens do Chicaia, marcado de burutizal na
boca da noite, aquele leão a modo montado em outro bicho, no
enlameado terreno cheio de bicos-de-guará, altos. “Atira
enquanto ele tá entertido atacando o outro bicho...”, disseram pro
Manoelzinho que já mirava. SorteAmor mirou, mirou, percebeu,
analisou e disse sussurrando: “Rapá, o leão tá é cruzando”. “O
quê??”. Os homens se espremeram pra junto da mira de
SorteAmor. “Ispia lá”. Se concentraram na visão de fim de dia,
naquele céu azulando que atrapalha o foco das coisas, na ajuda
as flores laranjas para o devido destaque da cena e constataram
boquiabertos que o leão estava metendo em uma, em uma, em
uma onça! Gritou Juruti. “E agora? O que eu faço? ”, perguntou
entre os dentes o jovem SorteAmor. “Atira, homi! ”. A noite
estava tomando conta do ambiente, os sapos-bois deram o
primeiro canto, o vento soprou anunciando a parte noturna,
levando o odor suado dos caçadores até as fuças do leão e da
onça. Ela intuiu o perigo, caiu na floresta como um corisco e o
leão num ato de fúria pelo atrapalhado de ter sido em mais um
gozo, partiu em direção dos homens. Nem bem saiu do chaco
para pegar velocidade a partir de um buritizeiro ali caído e
estraçalhar com suas garras seus adversários, recebera um tiro
entre a testa e o focinho, a uns cinquenta metros do cano de
Manoel SorteAmor que o fez cambalear. O grupo terminou o
serviço nos doze que traziam. Sobre a onça, Juruti disse que não
fizeram questão de ir atrás, estavam entusiasmados demais com
o fim da triste trajetória do leão. Um leão africano, capturado,
trazido para o Brasil, judiado, mal alimentado, preso em jaula,
provocado pelos moleques, antes o rei de suas savanas,
181
Pantoja Ramos

imponente, para morrer na Amazônia, cheio de maus tratos, no


Jari, depois de ter cruzado com uma outra fêmea de felino. “Esse
aí teve uma vida bagunçada, o pobre”, disse Juruti. “Ao menos,
trepou no final”, emendou Tancredo. Juruti riu alto e nós junto
com seu esparro.
Aproveitando o gracejo, Tio Lanterna pediu licença pra
contar da chegada de Airumã na vida de SorteAmor. Juruti
concedeu. O novo contador, um baixinho de espessa barba com
cara talhada como se fosse uma lata, expressão de quem vive de
bem com a vida e forte como um porcão do mato, relatou que
quando ficaram ali os caçadores curtindo a pele do leão para
depois ganhar algum trocado, que sem dúvida aconteceria pela
lenda que se tornou, avistaram lá da Serra da Velha Pobre um
barco a vapor daqueles que iam e vinham pra Belém e Santarém,
naquelas viagens vagarosas de antigamente a riscar a água. Na
Praia Verde, próximo dali, parou a embarcação, provavelmente
para algum reparo ou pescaria dos viajantes, o que oportunizou
aos gateiros a chance de oferecer para venda as peles dos grandes
gatos que lhes eram posse, que boa região de comércio e
estratégica eram as plagas do Botafogo, Santo Antônio, na boca
do Paru, do Chicaia, até chegar na cidadela de Almeirim.
Na nau vinda de Santarém parada na Praia Verde, as
pessoas estavam em sua popa, arrodeando uma jovem sentada a
amarrar as tranças de cabeça baixa. As mulheres faziam o
primeiro muro de conversa, onde estava a mãe, com os homens
adultos no segundo grupo de defesa, o pai da moça entre eles a
contar conversa fora. Manoel SorteAmor entrou na embarcação
para oferecer a pele do leão, só a pele, pois a cabeça ficara com
um ricaço da região, que se gabaria pelos quatro cantos como se
fosse um dos valentes caçadores que testemunharam o rei da
selva montado em uma onça, na pura potoca dos bufões. No
naviozinho, os viajantes ficaram interessados no objeto, a bater
papo longamente pra saber da aventura da caçada a qual
SorteAmor detalhava com paciência, sem soberba, descrevendo
182
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

para dar motivação àqueles ouvintes para traçarem as perguntas


de preços de negociação, pedido de descontos, tudo entre as
baforadas de cachimbo e outros fumos. O jovem caçador nem
percebia a presença das mulheres, tão concentrado que estava no
convencer da venda. Um dos homens aceita o preço de
SorteAmor que sorrindo e solícito ajeita a grande pele abaixando-
se para mostrar um dos tiros que acertara, no entremeio daquelas
pernas e calças, vestidos e risadas. Neste interim, avista a
moçoila de longas tranças no canto que levanta a cabeça para
olhá-lo. Um susto na vista e no coração do caçador vindo
daqueles olhos luminosos, não normais de azuis, pois já vira os
dos portugueses, mas o próprio céu sem nuvens no dia da
Ascensão de Nosso Senhor ali resumida naquelas pupilas, algo
indescritível, não poderia ser humano aquilo, faróis de lâmpadas
azuladas a clarear naquelas horas de fim de tarde, no começo
sereno daquela alma de mulher adolescente a trocar
profundamente os dois cristalinos, aparentava possuir o abrir de
janela da casa escura invadida pela manhã enchida agora de sol.
Um farol na penumbra do rio-mar que evitava os naufrágios,
porém, como não se sentir náufrago diante daquela explosão da
íris? SorteAmor chegou a sentar no chão de tão abalado,
enquanto os homens gritavam. “Ê rapá!!”, toma teu dinheiro, tu
não qué??!!. Manoelzinho acordou daquela magia e pegou o
numerário, até tonto parecia estar. As mulheres trataram de
escondê-la no grupo delas, o pai fizera cara feia e assim
SorteAmor saiu da embarcação.
Na casa da madrinha Velha Pobre, o jovem pediu para
que esta lhe fizesse um chá de capim-marinho, pois estava
mofino. “Acho que peguei febre da chuva de ontem”, disse
Manoelzinho. “Mas tu nem adoece, desde quando rapaz? ”,
pegou na testa do afilhado a senhora preocupada. “Madrinha, sei
lá, de repente me veio essa febre, começou agora, logo depois
daquilo que eu vi”. “Êh menino, foi coisa de inhanha? ”. “Não,
senhora, acho que vi a Iara, só que ela tava num barco e não num
183
Pantoja Ramos

rio”. Depois de contado onde viu a suposta Iara, a Velha Pobre


respondeu que conhecia a moça. “Ahhh, é a Airumã, vou te
contar dela”. Começou a trabalhar a cabacinha com o chá de
capim santo, e andava para lá e para cá em panelas, jirau e água
quente enquanto falava, nas pisadas sonoras da tábua da casa.
“Airumã é uma pequena que veio das bandas do Marajó, ali por
Portel ou Melgaço, num sei, quase uma índia que veio muito
criança com os pais dela morar em Santarém. Eles dois
escondiam a menina por causa dos olhos dela, tu viste? Poisé,
parece duas lanternas naquela pelezinha morena, morena de
cabelo bem pretinho. Tu viu que ela tava com muita gente no
redor? É assim, ninguém dá sossego, acham ela tão diferente, até
pedem benção, acham que é uma santinha, santinha dos olhos da
luz. Ela sempre faz Santarém pra Belém para fazer exame com
os médicos, sei lá. Acho que é pra estudá ela, a moça não tem
paz, eu hein? Mas antes ter nascido com vista normal, era menos
gente perturbando, nasceu assim, sem explicação”. SorteAmor
não disse nada, só escutou, tomou o chá e com dois dias depois
estava no mato caçando de novo para garantir o sustento. Quando
melhorou, a Velha Pobre avisou, “olha, Manoel, tu num é de
adoecer, nunca te vi naquela quentura que tu chegou outro dia,
então vê se não chega perto da Airumã se tu não se acostuma, tá?
É coisa do outro mundo aquela ali”. SorteAmor concordou e
tocou a vida pra frente, encucado com aqueles pontos luminosos
em um ser.
Tomou a palavra para continuar a prosa o Berdão,
grandão taciturno, careca no meio da cabeça, com voz trovoada,
tal qual uma toada fúnebre, entrou no meio da roda a contar da
Onçarana. Disse ele que passado uns cinco anos daqueles
acontecimentos, ninguém falava muito no rotineiro dos dias
sobre a lenda do leão cruzado com uma onça. Somente se
escutava nos conversês dos caçadores que acocoravam no escuro
breu a alimentar as fogueiras com a lenha dos terçados, enquanto
mordiam e esticavam a carne nos dentes defeituosos seus,
184
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

regados a cantarolas de cutacas, grilos e guaribas. Berdão imitava


estes mamíferos. Falou que o grupo de SorteAmor tinha matado
uma grande onça outro dia nas várzeas chicaianas divisa com
Lago Grande, já meio envelhecida a gatona, diziam ser a dita
deitada com o leão, um tanto manca e resignada quando ergueu
a cabeça para ver seus algozes, enquanto mantinha a boca cheia
das tripas do bezerro recém-morto. Decidiram dormir por ali para
ajeitar a pele na manhã seguinte, nas redes altas de alguns
ingazeiros que vizinhavam a campinarana. Berdão depôs que
conheceu Neto Bumba, um dos gateiros que andavam com
SorteAmor, cara simples, de hábitos saudáveis de dormir e
acordar cedo. E no cantar do galo imaginável na sua cabeça,
costumava lavar de alvorada as roupas de baixo no riozinho que
dava de beber ao acampamento e neste dito dia não voltou mais,
nem para eles, nem para seu pai, nem para sua mãe. “Êh Bumba,
cadê o café??!”, gritou espreguiçando SorteAmor sem resposta.
Como tais falhas não eram da prática de Neto Bumba, sentiram
que algo estava errado e saíram para procurá-lo. Na correnteza
do igarapé viram muito sangue espalhado na parte capinzal, na
parte nas sororocas sombreadas da mata, já a andar as primeiras
formigas e por meia hora não avistaram, dizendo Berdão em tom
grave com estas palavras, seu corpo despedido da alma, até que
encontraram o cadáver no pé duma mungubeira, arrancadas uma
perna na altura das coxas, a expressão do horrendo na face morta
antes de expelir o último ar, com um arranhão no meio da cara e
um pedaço considerável faltando na altura da garganta, numa
lama ensanguentada. Da conta disso, o grupo armou-se para
caçar a fera, sem sucesso, pouco rastro pois de uma chuva
torrencial que apagara as marcas de pisadas. Retornaram à cidade
de Almeirim com as carcaças da onça abatida na véspera e de
Neto Bumba, um defunto malvestido pela falta das partes que
felizmente não foram mostradas à sua mãe, nem ao seu pai até
fechar a tampa silenciosa do caixão, até porque carecia de um
rosto que no mínimo prestasse, como comentou Berdão, com a
185
Pantoja Ramos

digna face do desencarnado. Uma cabeça enfaixada por trapos da


família foi o presente derradeiro de Neto Bumba, panos do tempo
de avô Bumba. Desta feita, finalizou por hora Berdão,
balançando a cabeça em sinais de sim, que apareceu na região
uma bestial Onçarana.

ATO 3 – É NOITE DA ONÇARANA CAÇAR

Enquanto as labaredas fantasiavam-se de faíscas para


ganhar o mundo, no ajuste que fizera Marildo ao cutucar com a
vara o braseiro que fervia a água para mais uma garrafada de café
e da carne cheirosa assada do veado abatido, tomou a parte este
caçador de continuar o conto que nem tinha muito o jeito de um.
Sujeito sempre de camisa de mangas compridas, quadriculadas,
pouca barba, somente alguns fiapos mais expressivos no queixo,
fala de quem quase terminara o ensino médio, mas devido as
omissões governamentais e dos pais, não chegara lá. Marildo foi
cantador que a Onçarana era nascida da misturada do Leão do
Circo de Sacramenta com uma Grande Onça do Jari. Um enorme
felino macho, pintado como uma onça, puxado à mãe, cujo
malhado era mais suave, já entrando na parda pele do leão. A
cabeçona do gato era do tipo jaguar, mas no alto para a nuca
sobressaíram-se tufos de pelos a lembrar a juba leonina, não
circular como um girassol a rodear o crânio, aquela coroa que dá
fama ao real felino e sim uma cabeleira destacada como as de um
roqueiro envelhecido que teima em permanecer cabeludo, com a
testa denunciado a calvície por mais que tente esconder o senil.
Marildo assim descrevia o imenso bichano, dando
destaque ainda para o tamanho acima da média daquela categoria
de panthera, patas mais fortes, uma musculatura invejável de
animal predador, um ensaio de rugido rouco e o principal: o olhar

186
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

enlouquecido. Perguntei como seria essa característica, ao que


Marildo respondeu dizendo ser a expressão de quem não tem
nada a perder, e era no sumo do enredo, uma fera degenerada.
Acreditava ser uma das causas certamente do manquejar da onça-
fêmea sua mãe, e sendo nem leão, nem onça, ao mesmo tempo
os dois juntos, não tinha se encontrado no mundo, não adentrando
em maiores obrigações em relação à sua genitora. Impedido de
futuramente gerar crias, uma vez que era estéril, fêmeas da sua
semi-espécie lhe davam desprezo. Uma ânsia de fecundar o
acompanhava sempre, e sempre frustrado, crescia na Onçarana a
selvageria durante a matança que distribuía, muitas vezes
gratuitas do animal que não sentia outro prazer a não ser matar.
Marildo relatou dos restos de catitus espalhados na mata
que um dia Azamor, já velho, avistou junto com sua turma,
quando seguiam pelo Repartimento dos Pilões. Parece que tinha
passado um furacão que só roubara as almas e deixara os corpos
suínos, mordidos e deixados, deixados e mordidos, alguns
estraçalhados. “Rapá, que onça é esta que os catitus não metem
medo? ”. Azamor gelou. Seus companheiros já haviam escutados
contos de uma onça-leão que por ali passeava e sem perder
conversa, retornavam imediatamente às suas casas na primeira
folga, lembrando o fim trágico de Neto Bumba. No meio do
caminho, na pequena trilha de mumbacas, caferanas e
piquiazeiros de grande porte, um vulto passou pela turma de
Azamor a cerca de cem metros, o que na floresta é como passar
rente pela gente. Um dos homens gritou: “É Suçuarana! ”. Este
ao baixar para ver mais de perto onde estava a onça-parda, recebe
a mais forte patada de sua vida, caindo pelo barranco da serra até
o igarapé que descia lá embaixo. Mesmo com a cara cheia de
sangue, avista descendo em sua direção aquela onça imensa com
a cabeleira por trás da cabeça. Azamor e seu braço desajeitado
acerta um tiro na sapucaia em que a Onçarana se apoiava para o
salto na goela do pobre moribundo quase cego, o que a fez recuar.
Os demais companheiros chegaram na distância mínima para os
187
Pantoja Ramos

tiros e pressentindo a desvantagem, chispou a Onçarana


embrenhando-se por dentro das tabocas que escondiam a curva
do rio. A vítima do felino perdera a visão do olho direito com a
patada e torcera o braço na queda do barranco. Carregando o
pobre, viram uma Suçuarana escapar por cima da caída de um
angelinzeiro. “Desgraçada! Andam juntas as duas! ”, apostou
Azamor.
O Gado do Capitão Nogueira era um dos que mais sofria
nos ataques. Tempos em tempos, a Onçarana visitava a fazenda,
obviamente matando para comer, mas mordendo também a
jugular dos outros bezerrinhos só por pessimidade. Até o Mestre-
Breu, o búfalo forte e brabo das redondezas, respeitava a fúria da
Onçarana. No dia em que se enfrentaram, Mestre-Breu errou
muitas chifradas, coisa rara, parecia que a Onçarana sabia lidar
com a arma do bovino, talvez trouxesse lembranças nos genes
africanos, que presenciam a disputa pela vida envolvendo leões
e búfalos. A besta acertou os dentes na coxa do animal que se
caísse era morte certa, pois espreitava a fiel Suçuarana pronta pro
bote de suporte. Num último esforço, Mestre-Breu tendo a
Onçarana em seu acem, catapulta a fera bem alto, jogando-a em
meio à lama que a faz escorregar e dar com o focinho no
encharcado, fazendo-a perder tempo em aprumar-se. Mestre-
Breu dá uma escorada que a faz cambalear pra dentro de um
laguinho próximo, mergulhando na lama preta dos pisoteios dos
búfalos. Enquanto o búfalo-rei mantém a posição de expulsar a
Onçarana, avançando no barro em sua agora vantagem, a
Suçuarana arrastava um filhote do gado para o meio das árvores.
Cumprida a trama, Onçarana recua até encontrar chão firme e
some. Quando os gateiros contratados pelo senhor Nogueira
chegaram na fazenda, aqueles grandes gatos já tinham ido buscar
confusão em outras paragens, não sem antes se fartar no
bezerrinho de búfalo arrastado naquela estratégia das duas.
O caçador Marildo tomava o café como estivesse
testando a qualidade deste, procurando o tanto de borra no fundo
188
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

da caneca. Em movimentos circulares, disse: “Hoje é noite de


Onçarana caçar... assim estrelada e quieta”. Suzano, o fininho,
como assim o chamavam, era sujeito experiente no ofício das
caçadas, da mesma idade de Tancredo, barba preta, cabelo preto,
nem um fio de cabelo branco naquela cara cheia de pelos e
sobrancelhas. Só as rugas inúmeras na testa lhe entregavam o
tempo vivido em suas preocupações, friagens e noites mal
dormidas. Falava pigarreando. Relatou que na comunidade
vizinha a que vivia se viu o susto da Onçarana na vila, no dia em
que Dona Marta morreu do coração. Apontou para os lados da
Estrada Nova, onde um novo vilarejo se construía naquela época.
Eram cinco famílias, tendo Dona Marta como a liderança maior.
Suzano falou que era normal fazer mucuras, aquelas festinhas
para não se perder o gosto dos grandes folguedos. Pouca bebida,
contudo, muita dança. Suzano lembrou da dita mucura e do
ocorrido. Depois do agitado, todos deitados em suas redes
cansados da brincadeira, Dona Marta sai para fazer suas
necessidades na pequenina tapera de fim de quintal. Na
lamparina que carregava, escutou um barulho perto das
laranjeiras que mantinha. Até achou que fosse cachorro
começando algazarra e apontou a rala luz que tinha pro meio do
mexe-mexe. Viu um cachorro seu sendo estraçalhado na boca de
uma onça porruda, a Onçarana e a Suçuarana ali parada
esperando as sobras. “Valha-me Deus! ”. Saiu correndo com o
coração na boca até a porta, escorregando de costas no castilho
até o chão, segurando o lado esquerdo do peito tentando gritar o
que não podia. Uma das netas que saíra para urinar deu com a
avó ali caída, morta. Na manhã seguinte, em meio ao desespero,
restos de dois cães denunciavam o motivo do susto. O pior é não
ter havido latido nenhum, tudo de um ataque muito bem feito.
Quase visagens.

Suzano e Marildo concordavam que circulavam dois


animais inteligentes. No início eram afoitos. Faziam baderna nas
189
Pantoja Ramos

matanças, enfrentavam os tiros dos caçadores, enquanto


perseguiam os bois e vacas. Onçarana e sua parceira tiravam
vantagem de atacar quando o sol se ia, e de dia escondiam-se.
Como o homem é uma espécie que não enxerga durante à noite
sem apetrechos, bastava um pouco de tática para tripudiar com
eles. Foi fruto da loucura da Onçarana estes planos? Talvez, disse
o Tancredo, pois a inquietude de sua mente mesmo sendo bicho
lhe arrumou estalos de ideias. A loucura virou gênio. A
Suçuarana sem pensar muito entendeu que isso lhe seria
vantagem. Não sentia gostar um pelo outro, aliás, imagine-se que
a Onçarana vez ou outra queria matar a parceira. Apenas havia a
sensação de que um podia ganhar com o outra. Tudo é meio só
no trisco, doidice e pensamento, disse o velho Tancredo. Juruti
opinou que assim era fácil comer jabuti. Com certeza a
Suçuarana apoiava os jabutis com suas patas para a mordida
forçuda da Onçarana, naquela dentição de meio-leão quebrar o
casco. E talvez se fazia a festa quando encontravam dois jabutis
brigando. Um pra você, um pra mim. Difícil passarem fome.
Coitadas das antas, dizia o Tio lanterna. Já é complicado
escapar das onças comuns, ainda mais destes dois bichos. Uma
besta imensa de gato e uma que aprendia fácil. Certo que naquela
época, sumiram-se as antas, umas tantas devoradas, outras
fugidas pros altos rios Jari e Paru. Todo mundo andava com
medo. Os balateiros então? Disse Tio Lanterna que o Januário
sumiu nesse período. Apesar da carreira de balateiro estar
decaindo, insistia em subir o rio para trazer o produto pra cidade.
Andava, claro, com sua espingarda mas acabou por desaparecer.
Acharam sua ossada e pedaços de roupas rasgadas na varrida que
sempre percorria, em local passando um dia de remada da
cachoeira do Panama para quem vai encontrar os índios Wayana.
Muito longe.
Pegar castanha também passou a ser uma atividade com
receio dentro do jamanxim. Era um bilhete de azar bem verdade
ter seu castanhal visitado pela Onçarana e sua comparsa. Haja
190
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

cachorro pra afugentar, fez sinal de ajuntamento das coisas o


Juruti. Aquela matilha toda não era páreo. Em vez de um ou dois
morrerem numa emboscada de onça, normal que fosse naquelas
patadas, com as duas medonhas era quase perder todos os cães e
ainda por cima arriscar-se levar o farelo também naquela bocarra.
Olha, a danada uma vez foi buscar uma preguiça real na copa de
uma timborana, tu acredita? Eu disse que mais ou menos
acreditava. Pois acredite, lá foi a bicha lutando, lutando, as
unhonas cravando na casca do pau até chegar na preguiça que
nem aí estava. Sei lá, acho que não esperava em tão alto ser pega
por baixo. Tá sempre prestando atenção em gavião real. Foi vap!
E despencou a coitada pra morrer nas raízes lá embaixo. A
Suçuarana nem se mexeu. Só cravou dentes depois que a
Onçarana começou a comer. Dois malfeitores fugitivos a judiar
com o mundo, maldade nascida de um, aprendida com a outra. E
pra descer? Tu pergunta doutor, e pra descer da timborana? Se já
é fácil descer de bunda pra baixo de uma árvore a pantera normal,
ainda mais com aquelas pernonas de meio-leão. Não existe altura
que resistisse. Marildo apontou com o bico da boca para o
empolgado Juruti.

ATO 4 – A FECHADURA DE SORTEAMOR

Tio Lanterna voltou do mijo atrás da embaubeira, sentou


no tronco caído que servia de assento coletivo e pediu a palavra.
Continuou em seu conhecimento que Airumã era a moça mais
bonita de Almeirim, mas também a de maior mistério. Nem
precisava da ferramenta do olhar mágico que possuía. Sua
silhueta de mulher bonita misturada à quietude já bastava. Não
saia muito de casa e quando o fazia, era uma multidão de mulher

191
Pantoja Ramos

acompanhando, o que atrapalhava os planos dos jovens


mancebos de se aprochegar e cortejar.
Na festa dos balateiros daquele ano, Airumã foi levada
pelos pais àquela comemoração. Almeirim ficava alegre, todos
de volta de suas sagas de balata, assim como também juntavam
os castanheiros, os pescadores, os gateiros. Tanta dança, tantos
músicos, os patrões, fazendeiros, os peões de fazenda, os
extrativistas, numa cumbuca só a tagarelar suas aventuras e
potocas.
Com seu vestido florido, Airumã caminhava com as
primas no meio da festa e evitava levantar a cabeça para não
assustar os passantes, voltada a vista para as pernas e assoalhos.
Não era timidez. Era prudência. Prudência inclusive para não se
voltar para as frases dos rapazes cheias de hormônios e não
poucas vezes desagradáveis aos ouvidos femininos. Não ligava
para os simultâneos apelos de baile e convites para trocar alguma
conversa, impassível percorria a praça com os cabelos lisos
escondendo o sol que detinha no rosto. E no meio de tantas
falácias, conchavos, absurdos de velhos e velhacos, lhe é dirigida
frase: “Uma mulher de vestido é um jardim caminhante! ”. Pára
e com muito cuidado tenta entender de onde veio a sentença. De
soslaio nota um jovem senhor sentado em uma cadeira. “No seu
caso, flor e luz que dão inveja pra lua, que não pode passear aqui
na terra que nem tu...”. Era SorteAmor, poeta aprendiz das
palavras soldadas com arte, fruto do convívio com a Velha Pobre.
Entendendo que chamara a atenção de Airumã, ousou se
aproximar, “você não me assusta mais, viu? ”. Ela sorriu. “Já te
assustei? ”. “Já sim, lá na Praia Verde quando fui entregar uma
pele de leão”. “Ah, tu é o moço da pele do leão, né? Me alembro”.
“Lembra? ”. “Alembro sim, os homens não paravam de falar do
caçador de leão, mas eu achava que tu era um velhão desses. Aí
disseram que era um rapazote, num acreditei”. “Mas já faz tempo
né? O quê? Uns cincos anos? ”. “Acho que sim”. Aquela prosa
corria ali, ele sentado, ela de pé, de prontidão para seguir em
192
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

frente caso surgisse má frase dele, o que não ocorreu e assim


aceitou o pedido de tomar assento na cadeira ao lado. As primas
ficaram ao redor, na vigia. “E tu? Do que te lembra de mim? ”,
indagou Airumã, na indagação temperada com um sorriso de
canto. “Da última vez te vi com longas tranças, ajeitando elas”.
“Mais nada? ”. “Mais nada”. Airumã enrubesceu de chateação.
“Ah, tinha duas estrelas onde era pra ter teus olhos, acho né? Tu
ajeitou eles? ”. Airumã mudou rapidamente pro risinho. “Não,
ainda tenho eles aqui ó”, e levantou o rosto para mais uma vez
encantar SorteAmor. “Tenho medo de soprar pra tirar um cisco
teu e pegar fogo tudo isso aqui, já pensou se é que nem brasa? ”.
Airumã sorriu novamente e os dois assuntaram até a Estrela
Dalva partir e as primas dormirem sentadas em suas cadeiras de
tanta monotonia, poucos convites de danças. Coitadas.
Os meses se passaram e desdobraram-se em amor.
SorteAmor e Airumã se preferiram, trocaram cartas, tiveram
beijos furtivos e declararam suas vontades aos seus responsáveis.
Os pais de Airumã, Velha Pobre e Azamor discutiram os termos
do namoro desde que logo virasse casório. E assim se fez.
Tio Lanterna iluminou o céu noturno trepidando como se
simulasse a noiva bailando pra lá e prá no seu casamento, aqueles
olhões libertos para espalhar pro mundo o fenômeno que era,
mais diferenciada por sua felicidade a flamular o vestido branco.
Ah se SorteAmor tivesse os mesmos olhos, com certeza ganharia
de Airumã em luminosidade do amor que sentia. Todos bebiam
dessa alegria, numa Almeirim que estava acastelada em contos
de fadas. Nome-do-pai-filho-espírito-santo fechou a noite do
casal naquela casinha cedida pelos pais dela. Mergulharam cada
um no outro como se buscassem o fim do universo, os planetas
brincavam de rodeá-los, enquanto luas e cometas cutucavam seus
corpos em seus frenesis até a explosão de uma super-nova. E tudo
adormeceu.
No outro dia, de manhã ainda, Velha Pobre foi levar os
muiraquitãs e águas-bentas para dar escuderia àquele amor.
193
Pantoja Ramos

Benzeu, fez as preces para o lado de Airumã. SorteAmor


estranhou. “Num te aperreia, rapaz, que teu corpo já nasceu
fechado pelo nome que tu tem e agora com a Estrela D´Alva em
forma de gente na tua vida, há de ser mais forte”, arrematou a
madrinha. “Verdade, sou Sortudo no Amor”. “SorteAmor”,
sussurrou Airumã, ali parada enquanto as folhas de arruda e peão
roxo molhadas deslizavam na aura auspiciosa escorrida da sua
pele, benzida.

ATO 5 – ONÇARANA REINANTE

Naturalmente SorteAmor quis conhecer mais de perto a


família de Airumã, espalhados que são, levaram o casal a passar
temporada primeiramente na divisa de Santarém com Mojuí dos
Campos onde estavam os pais e depois na terra original da jovem
senhora onde estavam os avós paternos e maternos, num igarapé
que desemboca nas Areias, ali pra banda de Melgaço, no Marajó,
disse Juruti. Quase seis meses de conhecimento da nova família
de Manoel SorteAmor.
Neste hiato das coisas, acabou a Onçarana por reinar
entre os gateiros locais. Soberana, entrava e saia pela roça dos
moradores num despejo geral de medo, ai daqueles que se
atrevessem a enfrentá-la. Jacinto, seringueiro do Caracuru, levou
a patada fatal quando correu de faca atrás da Suçuarana e não
percebeu o monstrengo de dois metros saído de trás do
piquiazeiro, pulado das carnes de um veado por ali estraçalhado.
Azamor e os demais companheiros só tiveram o trabalho de pegar
as coisas da vítima para devolver pra esposa. Juruti falou que a
faquinha de seringa que acharam do Jacinto era menor que o
canino da Onçarana e assim nunca ia dar certo tal enfrentamento.

194
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

Tancredo contou que fez parte da volante que caçava a


fera, época de desaparecimento de muitos pequenos bubalinos.
Espertalhões aproveitaram para aumentar o negócio de roubo de
gado, colocando a culpa na Onçarana e aumentando a fama dos
gatos, dando-lhes feições de flagelos vivos, no contar que
arrepiava a cabeleira da criançada. As diligências ora
procuravam a besta e sua parceira parda, ora investigavam os
ladrões de fazendas. Lembra este contador do dia que prenderam
João Ceru, chefe de quadrilha que desviava búfalos de Almeirim
para Porto de Moz, numa estratégia de rumá-los para Gurupá e
daí para as plagas de Chaves. No barco-maromba em que
viajavam tranquilos em águas gurupaenses entre a Ilha Grande
de Gurupá e a ilha do Urutaí, foram surpreendidos quando
aportaram na boca do rio Mararu. Esperavam Tancredo e uma
murra de jagunços que seguiam o rastro dos fugitivos. Sem muita
resistência, amarraram e levaram os cinco comparsas de volta
para Almeirim. João Ceru foi morto amarrado num pau no meio
do mato em plena Jarilândia ainda e espalhada a conversa que
fora da Onçarana mais uma vítima. Tancredo encerrou essa parte
de maneira melancólica para sua consciência de culpa assassina
do jovem que foi. Um arrependido que agora olhava fixamente
para o meio da fogueira, imaginado escutar os gritos de Ceru
enquanto o capitão de sua tropa passava o facão na goela do
coitado.
Marildo recordou que quando criança topou com o
assombro da Onçarana naquele vilarejo do Braço, no derradeiro
cair das castanhas no mês de março. Contou que ele e seus primos
pararam de ir para os castanhais, proibidos por suas mães depois
de um amiguinho morto talvez por uma onça-parda, diziam eles.
No que os homens caçaram a vingança, a Onçarana sumiu com o
Armandão, figura calada que vivia em companhia do menino
vítima para cima e para baixo. Nunca mais se soube dele.
Onçarana deve tê-lo devorado as tripas. Foi o que relataram junto
ao comissário local.
195
Pantoja Ramos

Suzano acrescentou que durante o reinado da Onçarana,


seu vizinho Caribé tornou-se desaparecido após topá-la no Baixo
Rio Caracuru. Andava ele juntamente com o Olavo, compadre
seu que tinha uma linda mulher amorenada de pernas
generosamente torneadas e uma pulseira com caroços de açaí no
tornozelo que a enfeitavam lindamente. Como era bonito ver
Caribé e Olavo com suas esposas nas noites de mucura, uma
amizade em que um vivia na casa do outro. E como a mulher de
Olavo dançava! Sem um filho sequer ainda, toda jeitosa e dona
das boas carnes. E assim, assim, de repente, parou aquilo tudo
quando Onçarana pulou na jugular de Caribé enquanto este
enchia o pucuru de água no corrente Caracuru. Olavo disse que
só ouviu o berro de dor, que quando chegou, só uma camisa
rasgada ali pelo galho da caferana na beira do rio. Foi o que ele
disse pra família da vítima.
Tio Lanterna descreveu o sumiço de Adelaide. Para o
contador, foi um verdadeiro suicídio. Cansada de apanhar do
marido, o Bené Preguiça, ameaçava constantemente se matar se
o peste continuasse a surrá-la. Juquira, sua comadre, tomava as
dores de Adelaide, dizendo que ia denuncia o Bené pro delegado.
Eram muito próximas. Toda vez que aquela apanhava, esta
tratava de levá-la para casa para sarar seus hematomas. Quando
soube que a Onçarana espreitava por ali e tinha matado um búfalo
enorme, Adelaide não teve dúvidas e se lançou no mato para
morrer nas garras da fera. Juquira ao saber da notícia
desesperadamente correu para salvar a amiga e ambas sumiram
na floresta, nas bandas do Beiradinho. Só encontraram uma blusa
pendurada na rama de um ingazeiro. Dizem que a Onçarana e a
Suçuarana se fartaram no comer de tais mulheres. O fato era que
Adelaide e Juquira nunca mais foram vistas no Jari.
Juruti reclamou que era um tempo de muito pouco
trabalho na comunidade Padaria. Era molecão e trampava por ali.
Todo mundo amedrontado que espantava o serviço. Vivia
praticamente na rede, até o patrão andava cabreiro. Se
196
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

planejavam alguma tocada de boi ou búfalo, algum serviço de


obter alguma pele de onça, mesmo uma roça, logo parava tudo.
A Onçarana resolvera passar temporada nas ditas paragens, de
acordo com a notícias. O jeito era ficar quieto esperando, jogando
conversa com as moças da comunidade. O Patrão estava para
falir de tanto alimentar gente que não produzia. Juruti aconselhou
seu senhor que era melhor aguardar até que a situação melhorasse
e os sinais da Onçarana dessem conta de seu deslocamento. O
valente Juruti se prontificava diretamente por tais pistas e
encarava muitas vezes sozinho a busca, voltando sempre com o
boletim falado de rastros dos grandes gatos naquela divisa Pará-
Amapá. Foram meses de espera, rede esticada e namoricos. Juruti
assim descrevia.
Para Berdão, restou contar da chaga de Azamor,
escorrida ferida que desgraçadamente iria lhe pinicar o restante
da vida, na linfa perene trazida pela Onçarana. Expôs que
Azamor estava caçando um capelão para comer, um bicho
danado de sabido que pulava de galho em galho até
estrategicamente se esconder na ramada de uma tatajuba.
Azamor olhou, olhou até perceber a ponta da traseira daquela
guariba, só vista pela visão treinada de caçador no meio de um
tronco escuro misturado com folha molhada, a mata já
anoitecendo. Pegou a doze, concentrou a respiração, que por sua
vez controlou a batida cardíaca e num tum-tum-tum de gente
quase dormida sapecou-lhe o balaço. Errou. Ô peste! O macacão
saltitou pra longe. Tão entretido com sua caçada, absorto no céu
varado no meio das copas, veio-lhe a lente de uma maparajuba
caída muito longe e dois animais a correr em sua direção. “Ave-
Maria!!!”, Onçarana enorme e sua escudeira parda. Azamor
largou a espingarda e saiu em disparada no sentido contrário,
pobre homem de duas pernas somente para escapar de felinos em
suas quatro pernas musculosas, pra piorar aquele braço de vitrola
torto empatando. Mesmo assim, aos sessenta e dois anos se
apresentou um corredor adolescente, motorizado pelo medo.
197
Pantoja Ramos

Avistando o precipício da serra em que se encontrava, não teve


escolha a não ser despencar, não sem antes receber na costa uma
patada que lhe arrancou um naco de carne na região entre o
ombro e a omoplata, caindo pelo meio dos troncos e galhos a
ferir-lhe o rosto e barriga. Anestesiado pela queda,
instintivamente seguiu para junto de uma pequena cachoeira e
escorregou por ela até ganhar com a correnteza um pouco mais
de distância, batendo não poucas vezes a nuca nas pedras. Por
pouco não desmaiou, o que seria fatal. Onçarana e sua parceira
reinaram de ódio pela presa fugida. Berdão falou que Azamor
sofreu muito dias com a dor recente do talho no corpo, porém,
sofrimento maior foi sua diabete, que sádica, alimentou-se da
ferida de Azamor nas costas em uma podridão fedorenta até o
final de sua passagem por esta terra, como narrou este prosador.

ATO 6 – A SURPRESA DA SUÇUARANA

O sol começava a meter a cabeça no horizonte florestal


de Almeirim, quando Suzano veio do igarapé pingando de frio na
coragem que teve de meter-se na água neblinada. Lá do varal
improvisado de enxugamento dos trapos gritou na discordância
de que o reinado da Onçarana algum dia existiu. Ajeitando os
víveres da guarnição, explicou que no momento que Manoel
SorteAmor voltou da casa da família de Airumã, tudo se desfez
pra fera e pra sua parceira. Raivoso do ferimento do pai,
SorteAmor intensificou a busca pelas danadas, crescendo a
confiança dos gateiros pela coordenação agora de seu mais
habilidoso colega.
Suzano reportou que a Onçarana andava na preferência
de comer cachorro. Isso mesmo! A cachorrada passou a ter medo,
não se sabe se eles se fofocavam desta ameaça, mas parecia até.

198
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

Pobre do Rói-Tripa, bom vira-lata que tanto doou ternura à


família de Dona Marta, parecia sina daqueles cães. Não bastava
o pai e a mãe devorados no episódio da morte de Marta, agora foi
o próprio Rói-Tripa. E pra tudo haveria de ter final, como foi a
suspeita de SorteAmor de que a Onçarana apreciava desfilar nos
arredores e tal ocasião tinha que ser bem aproveitada.
Na mente rápida do chefe dos gateiros, era preciso ter a
oportunidade e mirá-la sem pestanejar. Foi o que aconteceu. Já
tinha montado a estratégia de botar uma isca para a Onçarana,
contudo, como fazê-lo em forma de animal da mata? Difícil de
achar. Sacrificar um dos cachorros era ideia, porém, não
concordada pelos seus donos, apreço que tinham. Pensou no
bodoque, mas temia que as crianças se ferissem em seu inocente
passeio pelas varridas. Pouca opção. Muita questão. E nesse
andar no meio da mata com grupo, próximo da estradinha do
Recreio, gritou o companheiro caçador do fim da fila.

“SU!!”.

Todos dispararam pelo sinal. “Su” era o diminutivo de


“Surucucu”, cobra maldita a perseguir os homens, tanto ódio que
tem na Humanidade. Até alertar a todos de um su-ru-cu-cu nas
imediações, o veneno já havia fincado na perna de algum
desavisado. “Su!” era mais ágil e conveniente. Só esquecera o
instinto o De-Quem, cachorro de um tio de Juruti que andava na
trupe. Pego na anca pela serpente, disparou primeiramente pro
meio da estradinha para fugir da morte, que o alcançou na trilha
de transeuntes que levavam castanha para o Paru ou de volta pro
Jari, mais longe. E gritando, gritando, chamou a atenção da
Onçarana que viu a chance de mais uma refeição à base de
canino. De-quem debatia-se na estrada, Onçarana saltou para lhe
comer. Suçuarana atrás como sempre. Nas primeiras rasgadas de
carne, os gatos perceberam o veneno da cobra espalhado nos

199
Pantoja Ramos

músculos do animal morto e se afastaram, dando ao encontro de


uma nova direção do vento que denunciou o cheiro de
SorteAmor, mirante na cabeça da Onçarana pelo rumo do ouvido
do animal. Salto do felino de escape. Uma bala acerta a pata
dianteira direita próximo ao chão, que desequilibra a fera maior,
esquivando-se no mesmo matagal da qual surgira. Suçuarana e
Onçarana correm desembestadas, seguidas a menos de duzentos
metros pelos caçadores que certamente irão alcançar o ferido em
menos de dez minutos de perseguição. Suçuarana faz as vezes de
técnico, tentando motivar o parceiro para não desistir de sua fuga.
Num ato inesperado, Onçarana acerta forte patada na cara da
própria parceira, que sem entender, cai pra trás cega de um lado
do olho e com o nariz arrebentado a atrapalhar o olfato sensível
pela enxurrada de sangue, enquanto a capenga Onçarana foge
pelo lado de um tauari, acolá um igarapé que lhe daria o sumiço
dos rastros.
Os gateiros se aproximam da Suçuarana, estonteada pelo
golpe quase fatal a emitir uma espécie de espirros miados de dor,
um dos glóbulos oculares pendurados na ensanguentada cabeça.
Não reagia. Só espirrar, passando a pata grossa na tentativa de
limpar a sujeira vermelha e afastar a dor. O tio de Juruti dá o
comando para Manoel SorteAmor arrematar o tiro de
misericórdia. O caçador se aproxima, com a arma em posição. Se
acocora com a espingarda em apoio. Observa. Suçuarana neste
momento pára de se mal limpar, de lado fica a esperar a sentença.
Sabe que estão a julgando, todas as pistas dão conta de sua
punição de morte. Manoel SorteAmor se levanta, vira as costas e
se retira. “Ô, macho, dá uma sapecada nela, nessa desgraçada!!”,
grita um gateiro. Manoel SorteAmor em poucas palavras
palestra: “Ispia que ela tá toda arrebentada. Não vai mais caçar
nada que não seja pequeno e fácil de pegar. Não é mais um
perigo. Se topar com uma tropa de catitu, vai morrer por não
saber de onde vem um, vem outro, nessa quase cegueira dela.
Dessa cara aleijada e cheiro de sangue sempre nas fuças, vai
200
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

nessa agonia. Nem dá graça agora um tiro. Bora atrás da fera


quié. Aquela sim”.
Suçuarana permaneceu impassível, nem notou que os
caçadores não rodeavam mais. Ficou só a respirar sua condição,
até poderíamos dizer tristeza profunda da traição que sofreu. Que
virou podridão. Que bichou. Que a devorou internamente,
assustando muitos castanheiros que se depararam com tal
imagem repugnante de ser vivo em decomposição, os ossos de
meia cara de fora. Calada morreu sem protestar com a vida. A
vara de porcos-do-mato pisoteou o cadáver daquela que um dia
foi a onça parda mais famosa no Jari.

A ingrata Onçarana desaparecera.

ATO 7 – A GUIA DE AIRUMÃ

Naquela noite, transmitiu Tancredo que tudo estava


nublado, penumbra frienta daquele mês de julho chuvoso, do tipo
dos julhos que muito havia antes. Manoel SorteAmor e Azamor
estavam no marisco de camarão próximo da Praia Verde, no
adiantar do serviço da comida, pois trabalhariam de dia na
empreita de uma pequena roça de Azamor. Manoel e o pai
conversavam sobre a ideia de virar de vez agricultores, ambos
cansados da lida de gateiros, um por velhice, outro por nunca
gostar da profissão, só em casos de guerra como que viviam, o
que somava com a vontade de se quietar junto da mulher e do
filho que estava por vir na barriga de seis meses de Airumã.
Fariam uma cooperação naquele mandiocal, quem sabe também
plantar milho, quem sabe jerimum, melancia, laranjas, cacaus,
mariscar. Caçar só pra comer. “Quer saber, pai, já judiamo muito
da mata. Tá na hora de dá um descanso pra ela”. Azamor
201
Pantoja Ramos

concordava, baforando pro alto sua porronca que espantava as


carapanãs afiadas daquela beira de Rio Amazonas. O lampião
mostrava os matapis lançando os crustáceos pra dentro da canoa,
que enchiam a popa de pulos desesperados para voltar para a
água. SorteAmor e Azamor catavam os bichinhos para dentro do
paneiro e assim retornar à casa de Velha Pobre.
No jirau da casa de sua madrinha, Airumã terminaria de
lavar as panelas, agora na vontade de urinar logo agora que iria
passar o pano para enxugar a louça. Desceu a escadinha fininha
de madeira mal se apoiando, pisando em falso e dobrando o
tornozelo inchado de mulher grávida no chão de terra embaixo.
“Ai, madrinha! ”. “Que foi minha filha?”. Mostrou a dor no pé
insuportável que sofria à Velha Pobre. “Deixa que eu te levo.
Deixa eu pegá um remo pra ajudá. Isso. Bota o braço por cima de
mim”. Velha Pobre e Airumã apoiada numa muleta improvisada
vagarosamente desfizeram o caminho para a cintina e se
dispuseram próximo da própria morada mesmo para cumprir as
necessidades da bexiga. Velha Pobre de lampião na mão. Airumã
enxergando tudo naquele breu todo, desviando das lamas do jirau
e dos cocôs do porquinho que era recente no terreiro.
Enquanto Airumã se vestia, com o remo lhe dando
suporte em um dos braços e Velha Pobre no outro lado do corpo,
viu um vulto na direção da casinha do fundo do quintal,
combinado com o grunhido do porquinho que desesperadamente
coriscou por debaixo do casebre de madeira. Tentou avisar a
madrinha, porém, era tarde. No espectro que conseguia e somente
ela conseguia avistar, empurrou a madrinha de lado com tanta
força que esta gritou mais de surpresa, bem a tempo de esquivá-
la do salto daquela imensa onça bestial, a Onçarana! O empurrão
fez a velha senhora cair com a bacia no toco de uma goiabeira,
contorcendo-a de dor. Na volta do salto, Onçarana disparou sua
corrida manquejante para Airumã, que segurou seu apoio na
posição certa e disparou uma remada na cabeçona da bicha que
não esperava tal reação uma vez que gente não enxerga no
202
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

escuro. Velha Pobre esgueirando-se gritava por Airumã sem nada


entender naquele noturno, com Airumã punhando o remo para
proteger sua madrinha em sua falsa espada de madeira. Onçarana
encarava Airumã. Airumã encarava Onçarana. Airumã andando
para trás até o tornozelo traí-la, caiu em solo ainda empunhando
o remo, atrás Velha Pobre clamando o nome da afilhada.
Onçarana notou que aquela jovem mulher estava de cria.
Seriam três presas para seu manjar. Não são vocês humanos que
de vez em quando matam animais prenhas para saciar a fome,
mais por capricho do que por necessidade? Dali seria um
exemplo interessante do que acontece aos animais nas caçadas
gananciosas. Não que fosse um justiceiro, nos faróis de Onçarana
lampejavam a curiosidade sádica de cometer o mesmo com a
humanidade. Seus olhos transportavam a morte, sua boca a
salivar, o meio-urro de leão saiu daquela garganta tal a lascívia
de cravar os dentes. A pata direita dianteira torta do último
encontro com caçadores se ajeitando para aquele salto, fácil
vítima ali sentada de uma nova carnificina.
“AIRUMÃ!!”. Gritou de longe Manoel SorteAmor,
numa distância até o porto da casa, a uns centro e vinte metros,
alertado instintivamente do perigo pelos gritos da madrinha.

“AIRUMÃ!!”.

Airumã e a Onçarana cara a cara. Brilho a brilho se


enfrentando. A fera mira sem disfarçar para o ser dentro da jovem
senhora, a loucura estampada de animal louco por sangue.
Airumã não é mais menina. Não é mais mocinha. Agora
é aquela que deve proteger seu bebê, leoa, onça, mulher, onça-
mulher que junta as forças do corpo e da natureza para um urro
altíssimo de combate, num emanar das írises que explodem em
Sol para iluminar todo o quintal.

203
Pantoja Ramos

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Juruti.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Tancredo.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Berdão.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Tio Lanterna.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Suzano.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, disse Marildo.

Quando Airumã alumiou a Onçarana, rasteiro tiro de


cartucheira lanhou a noite por debaixo da casa erguida de Velha
Pobre, habilidoso raio entre os esteios para acertar em cheio o
esquerdo ouvido da Onçarana, no outro extremo da cena um
SorteAmor centrado, deitado no chão de terra batida. No
estrebucho de mortalmente ferida, Onçarana mordia o ar e batia
o terreiro com as patonas para rasgar alguma carne,
enlouquecida, procurando vingança. Manoel SorteAmor sentiu a
maldade daquele ser grotesco que matava por prazer, em raiva
incontida que tinha do mundo. Diferentemente da Suçuarana,
não havia uma segunda chance.

PÔÔôô!!

Espantou-se a bicharada.

Sossegou-se a noite.

Berdão levantou a cabeça para avisar que avistava no


horizonte sem fim um navio talvez do destino. Quando a

204
QUANDO AIRUMÃ ALUMIOU A ONÇARANA...

embarcação se aproximou, rodamos nossas camisas para chamar


a atenção daqueles tripulantes. Aportaram ali pela Praia Verde,
sentaram conosco, ajudaram a consertar nosso barco que nos
forçou a passar a noite na Praia Verde. Segui com o navio para
as bandas de Santarém, enquanto meus amigos voltaram para
Almeirim, naquele fim de prosa sobre caçadas, no grande espaço
e tempo em que esperávamos ajuda.
Ao atar minha rede na embarcação, fiquei vizinho de
uma família, dois idosos e acho que a terceira pessoa era a neta
deles, talvez uns quinze ou dezesseis anos de idade. A avó pede:
“Naara, vai pegar um copo d´água pro teu avô? ”. Viu? Acertei.
Avô, avó e neta.
A avó com os olhos luminosos, de espantar. A neta com
olhos da cor violeta, cintilantes. O avô com cara de quem teve
uma sorte danada na vida que teve.

Sua expressão misturava o sorriso e o sereno.

205
Pantoja Ramos

206
O URUBU DO LARANJEIRAS

O URUBU DO LARANJEIRAS

3 ATOS

207
Pantoja Ramos

“...O que efetivamente conta não são as coisas que nos


acontecem. Mas, sobretudo, a nossa reação frente a elas...”.
Leonardo Boff – A Águia e Galinha.

208
O URUBU DO LARANJEIRAS

O URUBU DAS LARANJEIRAS1

3 ATOS
Pantoja Ramos
Belém, 05 de fevereiro de 2017.

ATO 1 – BENS COMUNS

Sendo uma vez2 um urubu, do tipo mais feio entre os


urubus, branquelo quase albino entre os de sua espécie quando
nasceu, conto aqui sua trajetória. Veio naquela ninhada na ilharga
do lixão daquela cidade, que poderia ser a sede do meu
município, mas que podia ser também do seu3. Quebrou a casca
juntamente com outros três filhotes, irmãos para cada lado desde
sempre. No tocante a que lhe cabe nos instintos, nosso pequeno
urubu depois de alguns meses começou a voar e abrigar-se no
vento, descobrindo o horizonte até mais perto que os homens,
mesmo que estivessem em suas máquinas voadoras (uma delas
quase o triturou lá em cima). Talvez o ajudasse a pensar melhor
a corrente de ar e filosofar sobre a vida, vai saber o que passa na
mente de um urubu lá no alto planando.

1
Texto elaborado para o Congresso 2017 da Federação dos Trabalhadores e
Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Pará - FETAGRI.
2
Não pode ser “era uma vez”, porque ainda o continua esta ideia com todas as
características que é proliferar-se a população de urubus onde aglomeram-se os homens,
que teimam alguns indivíduos em dar-lhe má fama.
3
Cerca de 75 milhões de brasileiros usam, provavelmente sem saber, os 3.000 lixões ou
aterros inadequados ativos no país e são afetados pelos danos ambientais causados por
eles: contaminação do ar, da água, do solo, da fauna e da flora por substâncias tóxicas e
cancerígenas. Um novo estudo fez a conta do impacto do problema no sistema de saúde
do país: R$ 1,5 bilhão por ano. Se os lixões continuarem abertos, em cinco anos, o custo
chegará a R$ 7,4 bilhões - https://www.organicsnewsbrasil.com.br/meio-
ambiente/especial-lixoes/lixoes-ainda-fazem-parte-da-realidade-do-brasil-2/
209
Pantoja Ramos

Como em toda sociedade, nosso urubu se tornou distinto


entre os seus. Apesar do lixão próximo, sem esforço de voo e
andada para conseguir o que comer, nosso urubu assim que
dominou os céus, resolveu conhecer outras paragens, de um
incômodo por mudança que lhe era constante como o batimento
do coração ou o respirar. Os acomodados estranharam sua
viagem. Os meio-acomodados tinham inveja por aquela fração
de coragem faltante. Os meio-corajosos motivaram-no avisando
que um dia chegariam sua vez. O corajoso bateu asas4.
No que voou, desfez a ideia que era um ser nojento e que
seria justificável as pedras que lhe eram jogadas pelos moleques.
Ah, moleques, não tem o que fazer não? Se não sou meus irmãos
e eu, o que seria da podridão que seus pais jogam a esmo? Se não
nos querem por perto, não nos atraiam, ou comam o gato podre
que estava naquela sacola abandonada no lixão. Se não querem,
nós, os urubus, queremos. Somos os primeiros a acelerar a
decomposição5, às vezes, antes das bactérias (sei ser pretensioso
também), pois avistamos logo o cheiro podre de quem se vai.
Você cospe. Eu salivo. Não nos avacalhe de malditos, a morte é
um bem-comum, sabia? Urubuservou o nosso pequeno urubu.
A vida é um bem-comum, concluiu.
Voava em cima da Amazônia, o Sol escalando o céu,
iluminando a mata até seus raios chegarem numa caída de árvore,
dando a força necessária para aquela semente germinar, saída da
digestão bem-feita da cutia, ali uma futura grande andirobeira,
que útil seria para uma vovó que faria o óleo dela ou quem sabe

4
Tal qual na famosa “Parábola da Caverna” de Platão, alguns homens precisam ir além
do medo e acomodação para provar que o mundo pode ser melhor. Aquilo que Platão
descreve é o percurso do filósofo, desde as opiniões confusas até às ideias reais por detrás
da natureza. Nosso Urubu se inquieta, busca outras fontes, não admite o absolutismo das
opiniões. Ler O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
5
A depender da democracia, outros tipos de urubus, não úteis à vida, entram em ação:
sentem a decomposição da sociedade e esperam pacientemente esta agonizar para devorá-
la - http://www.ocafezinho.com/2015/06/03/vox-popoli-confirma-ibope-midia-e-urubu-
e-desinforma/
210
O URUBU DO LARANJEIRAS

um flechal6. Outra dispersora, uma paca, ziguezagueava no


terreno até ser surpreendida por uma surucucu em um bote, mas
seu fel a protegia do veneno fatal, coisa mágica. Não teve a
mesma sorte um papagaio que se deliciava no alto de uma
bacabeira, que ao pular para um galho de parapará no intuito de
comer sua guloseima, recebeu o pulo do gato-maracajá que
espreitava. Este não comeu tudo. Nosso urubu comeria as sobras.
Era aquele local um rio conhecido como Laranjeiras.
Feito o importante serviço de limpeza de carcaças, o
urubu (que agora chamo de “Urubu do Laranjeiras”) raspou a
perneta num bodoque7 e péeeeeeii, levou um balaço em uma das
asas, por sua sorte uma parte do chumbo, o que permitiu que
tentasse fugir em meio à dor. Por ali passeavam duas pessoas, pai
e filho, que perceberam a ave agonizando e reclamando no seu
idioma urubulês. Quem é que põe uma coisa para matar sem
critério, sem mesmo saber se o faz por fome daquele momento?
E se fosse teu filho acertado?? Olha o que me fizeram? Tu nem
aprecia a minha carne? Por que? Por que?

6
No município de Portel, foram extraídos em 2015, mais de 980 mil metros cúbicos de
madeira, entre elas, a andiroba, o angelim, a cupiúba, o louro-vermelho, o ipê, a
maçaranduba. O IBGE estima que 191 milhões de reais circularam neste ano com esta
comercialização, feita principalmente de madeira em tora. Para Portel, sequer 1% desse
valor ficou para melhorar as condições de vida do município -
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/home.php?lang=_EN . Uma andirobeira, se
valorizada as sementes, tem mais importância que a sua madeira, caída, traçada, serrada
e fim. Sementes, por outro lado, caem todos os anos enquanto ela é produtiva. No Plano
de Manejo Florestal Comunitário de São João do Jaburu localizada na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Itatupã-Baquiá, em Gurupá, uma posse de 10 hectares
poderia gerar 200 litros de óleo por ano retirada das sementes
(http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/3845261 ), ou seja, se comercializada a
R$20,00/litro, estima-se a receita bruta de R$4.000,00/ano.
7
O bodoque é uma armadilha utilizada por caçadores, com a arma em posição de atirar,
esperando que algum animal passe pela corda que segura o gatilho. Em muitas
localidades, como as comunidades Repartimento dos Pilões, em Almeirim-Pa e
comunidades do rio Acangatá, em Portel, já proibiram o seu uso, aprovado e registrado
nos seus planos de uso dos recursos naturais -
http://meioambienteacaiefarinha.blogspot.com.br/2016/05/plano-de-uso-dos-castanhais-
do-avanco.html; http://www.iieb.org.br/index.php/notcias/portel-discute-manejo-
florestal-comunitario/ .
211
Pantoja Ramos

O filhote humano convenceu o pai a levar o Urubu do


Laranjeiras para a morada deles, colocado numa saca velha
cheirando a mandioca. Urubu do Laranjeiras bicou forte até
rasgar uma parte do saco. Enquanto ia, viu o resto do papagaio
no terreiro da mata, a cutia arisca comendo outra castanha de
andiroba, a surucucu espreitando desta vez o gato-maracajá, que
no contravento, não percebia o pitiú da cobra por trás. Todos na
luta pela sobrevivência somente para ter o necessário. Só os
homens deixam armadilhas para matar sem critério.
A vida e a morte são bens comuns a todos, provou.
Contudo, estes primatas não entenderam esta lei, urubuservou8.

8
O escritor Daniel Quinn, no seu livro Ismael, traçou reflexão sobre a luta pela terra e
pelos recursos naturais na Amazônia. A obra remete à análise da condição humana sobre
a Terra, divididos em Pegadores e Largadores. Largadores seriam as pessoas que viveram
ou vivem da natureza, entendendo ser parte dela, culturalmente integrados aos recursos
naturais locais, onde valorizam a fauna, a flora e o que fornece a terra, sem ambições
desmedidas de serem proprietárias da mesma. Sua passagem vem de milhões de anos e
ainda hoje podem ser visualizados nos indígenas amazônicos, nos aborígenes da Oceania
e nas tribos africanas. Em comum, a relação de equilíbrio entre homem versus natureza.
Estão em evolução e permitem a evolução das demais criaturas como um direito
universal. O personagem Ismael acha-os parecidos com a figura bíblica de Abel, do
pastoreio, da simplicidade. Já os Pegadores seriam aqueles que nos últimos 4 milênios
tem desenvolvidos tecnologias, sistemas de uso da terra e cultura pautados no acúmulo
inventados por eles mesmos como riquezas. Assim indicam o papel-moeda, o ouro e
recentemente lastros virtuais como fontes de enriquecimento, observando de modo
secundário os demais recursos afetados pela obtenção daquilo que julga prioritário para
o status quo. Tendem a se apropriar dos territórios, entendendo serem os valores
financeiros acima de outros valores, sobretudo no que diz respeito à biodiversidade, no
equilíbrio entre os seres vivos e na cultura dos povos Largadores. Interferem
decisivamente na evolução das outras espécies e ameaçam a própria existência humana
pela negligência dos impactos ambientais que causam. Ismael vê o personagem Caim
como um típico Pegador - http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5225528
212
O URUBU DO LARANJEIRAS

ATO 2 – A HISTÓRIA SEM VERDADE

Estranhos esses humanos, disse para si mesmo o Urubu


do Laranjeiras. Precisam de algo que os proteja, aquilo que
chamam de casa, pois não dispõem de uma pele peluda de um
cachorro ou uma penugem como a que possuo9. Que sorte a
chuva sair fora de mim fácil, mais sorte ainda tem os patos,
aqueles quá-quás calmos com a vida que tem. Humm. Os
patinhos são gostosos. Podia ir pegar um. Esquece, as bicadas das
mães-patas doem mais que o gosto daquelezinhos, melhor só
urubuservar. Vá que eu tenho alguma chance mais tarde de pegar
algum distraído.
Como eu dizia, pobres humanos e suas casas. E que
engraçado, não sei o motivo, alguns poucos têm moradas
grandiosas e complexas para a minha pobre mente de urubu,
parece que são até deuses10. A maioria como estes que me
resgataram tem estas simples habitações, palha, roletes de açaí,
palha, mais roletes, aqui e ali um pedaço de madeira mais firme,
hummm, acho que Guajará-vermelho. Se eu tivesse essa mão
humana fazia uma igualzinha. Mas pra que mesmo? Lembrei que
não preciso. Os humanos que vivem nesta casa, uma humana que
deve ser a mãe, outra humana mais jovem, o homenzarrão e seu
pequeno homem não reclamam destas condições. Aqui dentro
parecem contentes. Só não deixam eu entrar, então por que
deixam entrar as galinhas??

9
No país onde moram os humanos brasileiros, o Governo Federal em 2015 não investiu
em Habitação, segundo o Orçamento Geral da União daquele ano. Entretanto, só neste
ano 1 trilhão de reais foi gasto pelo Estado Brasileiro para pagar juros e amortecimentos
da dívida pública brasileira -
http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2016/12/08/auditoria-das-dividas-publicas-tem-
importante-missao-de-desmascarar-esquema-de-corrupcao-legalizada/ , direto para os
bancos privados, que dão braçadas de lucros em meio à crise financeira nacional.
10
Passamos por uma era de grande concentração de riqueza financeira. Como podem 8
homens apenas ter a mesma quantia financeira que a soma de 3,6 bilhões de humanos -
http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/13/economia/1484311487_191821.html.
213
Pantoja Ramos

Que humilhação. Colocaram-me entre as galinhas. Essas


tolas galinhas. Criadas para serem comidas e nem atinam pra
isso. Aliás, esses humanos aqui do Laranjeiras também não
possuem vida fácil. São contentes dentro de sua casinhola, mas
fora dela, vivem recebendo nas fuças o urro de um outro humano,
grandão, de um imenso volume na barriga. Pelo armar dos braços
parece ameaçar. Deixa eu urubuservar direito. Hum. Parece dizer
que tudo isso é dele11. Demarcou com o dedo que a parte dos
meus chegados humanos são da beira até o açaizal ali pertinho.
Mas como pode ser dele?? Nem o vejo por aqui. Até percebo o
homem da casinha subir nos açaizeiros lá longe, o porco dele
correr por aí, um punhado de milho no chão mais acolá. Não é
dele? É do homem grandão barrigudo. Que gula?? Que coisa, os
humanos que convivo tudo cabeça baixa, mas o outro é apenas
um. E o Homem do Bucho Inchado continua a meter medo
naqueles pobres12. Não entendo.
Pelo que percebo, tem uns outros lá naquele troço que
búia e que faz um barulho danado. Parece que andam com o
Homem do Bucho Inchado. Olha só, reconheço aquele troço que
carregam, é sim, a mesma coisa que me feriu. É armadilha, só
que solta na mão deles. Ei! Cuidado com essa armadilha viu?
Pode fazer um estrago muito feio!! E esses homens esquisitos
visitam outras casinhas ali, ali e acolá. Deixa eu fazer a conta.

11
O Movimento dos Sem-Terra denunciou em 2015 o aumento da concentração de terras
no país, o que agrava os conflitos fundiários e mortes no campo -
http://www.mst.org.br/2015/03/03/relatorio-mostra-aumento-na-concentracao-de-terras-
do-brasil.html. Para tentar diminuir a propaganda negativa, o agronegócio montou a
estratégia com a Grande Mídia Brasileira de trazer a reboque a agricultura familiar, como
se fosse uma parceira, do tipo daquele chato que nos usam para melhorar sua imagem?
Conheces? A Globo, emissora-mor dos últimos dois Golpes de Estado que tivemos (1964
e 2016), joga na TV Globinho a imagem de que AGRO É POP, AGRO É TECH, uma
estratégia de marketing que procurar esconder da população os maus-feitos ambientais,
econômicos e sociais do agronegócio brasileiro - https://medium.com/democratize-
m%C3%ADdia/agro-%C3%A9-pop-por-tr%C3%A1s-da-propaganda-bancada-pela-
globo-para-o-agroneg%C3%B3cio-fb6d7eadb4f2#.b4gi3cogs
12
Como fim da Ouvidoria Agrária Nacional em 2016, fecha-se o ouvido oficial no Brasil
para as atrocidades que ocorrem e ocorrerão no campo -
http://alertasocial.com.br/?p=2176.
214
O URUBU DO LARANJEIRAS

São acho que... droga não tenho dedos (maldita evolução que não
me deixa ter logo meus dedos e mãos!!). Sei que os que moram
nestas pequenas moradas são em número bem maior do que estes
que vieram com o Homem do Bucho Inchado. Muito mais. Só
urubuservo.
Olha o humano menor querendo que eu seja que nem
galinha. Não quero, não quero. Não gosto de milho, tu não vê,
seu animal??!! Lá vem a humana mãe, eita, tripa de galinha, eita,
joga a pele, joga, eita. Dá mais? Dá mais? Pra que a ameaça,
humana? Não vou comer teu patinho. É só continuar a me dar
essas tripas e estamos conversados.
O homem maior e o homenzinho me pegaram um dia.
Arrumaram um jeito (nada digno para mim) de me colocar no
alto da casa deles. É pra que? Não entendi. É pra voar? Não
consigo, sumano, minha asa não tá sarada. Não força, caboclo,
vap vap, eita que vou pro chão! Te sai galinha besta!! Caí sem
querer nas flores da Mãe Humana! Não me bate Dona! Égua de
vocês! Num falei que num tava pronto ainda? Meu bico tá cheio
agora cheio de lama. Satisfeitos? Ah, vocês riem, é? Rá-Rá-Rá.
Tá bom, já que vocês me ajudam, deixa eu retribuir o
favor. Espiem, não aceito aquela humilhação que vocês passaram
a frente daquele homem lá, o do Bucho Inchado.
Olha pra mim, Homem maior, isso. Olha minha asa
levantada. Isso, homenzinho, ri aí. Presta atenção no que vou
falar. É isso que dissemos quando nos chamam de feiosos e
fedorentos, querendo diminuir a nós, os urubus. A passarada me
esnoba, mas tô nem aí, como a carne morta cedo ou tarde. Por
isso declamo. Depois disso, vocês vão botar aquele barrigão pra
correr daqui com mais de mil. Repitam comigo (vou perder meu
tempo sei, mas tá tudo bem).
Vai...

215
Pantoja Ramos

VOA CRIATURA, VOA!


NÃO ÉS TÃO FEIO NEM TÃO INDIGNO QUE NÃO
POSSAS ALÇAR AO CÉU!
SE O VENTO SOPRA A VIDA, SINAL QUE UM
DIA PODERÁS ACOMPANHÁ-LO E ATÉ ARRASTÁ-LO!
O HORIZONTE É LONGE, MAS DO ALTO, É UM
COMPANHEIRO DE VIAGEM.
O DESTINO É ALGO SUPREMO TANTO QUANTO
É A VIAGEM.
QUEM PODE VER ISSO??
SOMENTE OS QUE VOAM!
VOA CRIATURA VOA!!

Que interessante. Meu quase esforço de voar, sim, eu


confesso que me empolguei com o meu discurso e até subi um
pouco do chão, acabou por fazer os humanos me mostrarem os
dentes tal como fazem os cachorros quando estão abanando o
rabo. Mas foi diferente. Não era só o brilho no olhar. Tinha algo
mais que só os humanos têm, ah se eu tivesse aquilo, algo sem
explicação. Como chama isso? Sei lá. O medo eu vi nos olhos
deles diante do Homem do Bucho Inchado e logo identifiquei,
uma vez que os urubus possuem também esse sentimento, as
galinhas têm, a cutia ô se tem, o periquito tem. Medo.
Urubuservo, a maioria dos bichos se péla de medo. Mas esse
olhar humano é algo que não sei explicar. Urubuservo e não
concluo. É como se esperassem algo. Não, não, não é só espera.
Tem mais. Tem uma ação escondida, um salto se preparando que
nem daquele gato-maracajá. A mãe humana tem isso fácil, fácil.
É só urubuservar como ela urubuserva seus filhotes. É uma
espera que age. Uma espera que vai fazer. Uma espera que faz.
Vou inventar o nome disso: “Esperafaz”13.

13
É possível que o Urubu do Laranjeiras se refira à Esperança. Diz o filósofo Espinoza
que esta e o Medo são duas emoções básicas poderosas dos seres humanos. A incerteza é
216
O URUBU DO LARANJEIRAS

Com os dias se passando, eu ia melhorando as asas.


Sarando.
O homem maior pedia pra eu voar.
Eu dizia pra ele também voar.
Ele fazia um barulho engraçado com a boca.
Eu o incentivava.
Outros humanos começaram a circular na casa em que eu
me recuperava. Lá do galinheiro, eu saía sorrateiro para ver
aquela movimentação. Vai que é um festival de comilança e
resolvem atacar as aves para um banquete de última hora.
Galinhas imbecis! Pelo menos eu estou acordado e vigilante. Não
ouço as vozes dos homens. Só que eles estão lá. Hoje foi assim.
Hoje de novo. Hoje de novo. E mais hoje.
No dia em que sarei, já me preparando para finalmente
partir, o Homem do Bucho Inchado chegou com uns outros
homens verdes, cor de periquitos velhos. Cercaram os humanos
da casa que eu parava. Tentou o Homem do Bucho Inchado
berrar como fez da última vez, mas a humana mãe gritou, o
pequeno humano gritou, a humana fêmea menor também se
encorajou diante daqueles outros humanos esquisitos. O humano
pai da casa, não gritou, mas não temia. Saiu de sua boca um som
firme e longo, parece que era algum tipo de discurso. O Homem
do Bucho Inchado riu e fez com o braço para os homens
periquitos avançassem em direção aos meus chegados humanos.
Foi quando surgiram outros humanos das outras casinhas pobres
aqui, ali, acolá e lá longe. Ah se eu tivesse mão humana. Era
preciso ser mais de um humano para ter as mãos suficientes a
conferir quantos estavam ali. Todos firmes. Todos com aquele

a vivência das possibilidades que saem destes dois sentimentos, de Medo e Esperança.
Sendo diferentes essas relações, diferentes são os tipos de incerteza que geram. Para o
filósofo e sociólogo Boaventura dos Santos, vivemos em uma época de extremos entre o
mundo do medo sem esperança e o mundo da esperança sem medo, ou seja, um mundo
em que as incertezas que geram são cada vez mais profundas -
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-incerteza-entre-o-medo-e-a-
esperanca/6/36871 .
217
Pantoja Ramos

olhar decidido14. O Homem do Bucho Inchado mostrou sua


armadilha, os humanos periquitos também. Os Homens e
Mulheres (é isso que se chamam na verdade os espécimes
humanos quando estão completos, não é?) deram um passo pra
frente em direção aos que tinham armadilha. Daqui urubuservei
o gelo na espinha do Homem do Bucho Inchado. Os humanos
vestidos de verde-periquito-velho deixaram vazar receio na vista.
Foram embora com suas armadilhas.

Um pouco depois, o dia iniciou a parir o sol, então decidi


ficar em cima da casinha de palha, que agora mais parecia a
morada dos deuses. Sei lá, outra aura pairava naquela habitação.
Os meus chegados humanos bateram as asas para voar. Acho que
eu deveria fazer o mesmo.
Daquele alto, bem alto daquela dignidade, armei as asas,
o sol a surgir, devagar, devagar, explodindo em luz!
Os quatro humanos estavam me urubuservando. Nunca
me trataram menos. Sempre me trataram mais. Com aquela
Esperafaz nos olhos, parece que rezavam para mim. Declamamos
juntos:

VOA CRIATURA, VOA!


NÃO ÉS TÃO FEIO NEM TÃO INDIGNO QUE NÃO
POSSAS ALÇAR AO CÉU!

14
Reconheço nos indígenas um dos atores sociais mais decididos quando se trata pela
defesa de seus territórios. Os povos indígenas estão lutando por um direito conquistado
na Constituição Federal de 1988: o reconhecimento e a demarcação das terras
tradicionalmente ocupada pelos seus povos. A Carta Magna, no artigo 231, incorporou
essa reivindicação histórica das lutas indígenas e se mostrou sensível à necessidade de
assegurar um modo de vida social aos herdeiros dessas terras. Hoje, 13% do território
nacional estão demarcados e homologados como reservas indígenas. Cerca de 98%
dessas terras estão localizadas na chamada Amazônia Legal. Os que esbravejam
contra a quantidade de terras constitucionalmente assegurada aos índios, esquecem,
ou propositalmente ignoram, que 46% das terras agrícolas estão nas mãos de 1%
dos proprietários rurais, cerca de 50 mil latifundiários. Ninguém diz, nesse caso, que
“há muita terra para pouco índio” - https://www.brasildefato.com.br/node/13208/ . Coisa
da História Sem a Verdade.
218
O URUBU DO LARANJEIRAS

SE O VENTO SOPRA A VIDA, SINAL QUE UM


DIA PODERÁS ACOMPANHÁ-LO E ATÉ ARRASTÁ-LO!
O HORIZONTE É LONGE, MAS DO ALTO, É UM
COMPANHEIRO DE VIAGEM.
O DESTINO É ALGO SUPREMO TANTO QUANTO
É A VIAGEM.
QUEM PODE VER ISSO??
SOMENTE OS QUE VOAM!
VOA CRIATURA VOA!!

E, ave, voei.

ATO 3 – BEM-VIVER

O Urubu do Laranjeiras voltou para o seu antigo lixão.


Anos passaram-se desde a partida da casa daqueles humanos que
respeitou um dia, no rio das Laranjeiras. São tempos em que as
cidades estavam sujas, abandonadas, assim como as pessoas, sem
saúde, sem educação, sem empregos. Nos lixões, passeavam
novamente as crianças. Conviviam com os urubus e outros
ignóbeis seres, homens que as exploravam de perto, que as
exploravam também à distância15. Entre elas, circulava a humana
filha do rio das Laranjeiras e uma pequena humana, talvez filha
desta. Urubu do Laranjeira, urubuservando, reconheceu a antiga
adolescente agora mulher.

15
O capitalismo no ano de Golpe de 2016 tornou a Democracia Brasileira refém a partir
de três jagunços: o capitalista financeiro, o patriarca e o colonialista -
http://refletindomuito.blogspot.com.br/2017/01/boaventura-de-sousa-santos-
mundo.html . As Bancadas Congressistas BBB (Boi, Bala e Bíblia) se consolidaram (por
hora) num organismo monstruoso de três cabeças a dominar os incautos da Classe Média
Brasileira, como Cérbero, o cão da agonia enfrentado por Hércules.
219
Pantoja Ramos

Urubu do Laranjeira se aproximou e fez o gesto singular


do voo da liberdade, ao que imediatamente a mulher recordou.
Eram conhecidos e felizes neste reencontro. Contou ao urubu-
amigo que morava naquela cidade há cinco anos, vindo com o
marido do rio Laranjeira em busca de trabalho. Como seu
companheiro não achou emprego, ficou a fazer bicos,
transportando carga para os navios. Num dia exaustivo de
trabalho de subir e descer com sacas de cimento, escorregou seu
esposo da tábua que ligava o porto ao navio, caindo de costas em
toco que parado recebeu toda a bacia daquele homem, agora
praticamente estatelado em uma cadeira de rodas, doada por um
vereador em troca de votos de sua família inteira.
Sem trabalho, sem dinheiro e com vergonha, o marido da
amiga do Urubu do Laranjeira despencou no álcool, aguardente
mesmo, até imediata intoxicação alcoólica num homem que era
diabético naturalmente e sabia que se tratava de uma espécie de
suicídio, só que aos poucos. Ficou cego tempos depois.
A esposa e a filha desesperaram-se. Não tinham mais o
olhar que tanto encantou o amigo urubu. Passaram a catar lixo
naquele monte de podridão, fraldas descartáveis, garrafas
descartáveis, seringas e gazes usadas, bichos mortos, ratos,
baratas. A praga maior eram as carapanãs, proliferadas pelos
poucos agentes de saúde, o que aumentou os casos de dengue.
Até a malária voltara, sem o combate efetivo das autoridades,
indiferentes16. A população anestesiada pela sujeira ou bebia
cerveja, ou enriquecia as igrejas, ou escutava as baladas de
origem estadunidense e no meio de tudo, escorria dinheiro por

16
O Projeto de Emenda Constitucional 55, apelidada pelos trabalhadores de PEC da
Morte, foi aprovado pelos três poderes da República num ato de selvageria com a nação:
congelaria os gastos básicos com a população por 20 anos, mas não mexerá com os
grandes sonegadores da União, ao contrário, incentivará a isenção fiscal daqueles
empresários que tem um travesseiro diferente, ao que parece, do travesseiro da maioria
dos brasileiros. 2016 já mostrou investimento menor em saúde e educação – ver exemplo
em http://meioambienteacaiefarinha.blogspot.com.br/2017/01/sobre-os-repasses-
federais-ao-marajo-no.html .
220
O URUBU DO LARANJEIRAS

sua mão. Mas não ficava nesta mesma mão, era quimera. O fim
das finanças encontrava ilustres pouquíssimos, que tornavam o
mundo um grande blefe enquanto justiça social.
O mérito virou blefe.
A comunicação virou potoca.
A nação ficou abestada.
Os urubus piscavam entre si.
Enquanto isso, naquela cena, Urubu do Laranjeira teve
dó daquelas criaturas, sentimento que adquirira do convívio com
os pais dela. As duas não estavam preparadas para tal vida, para
aquele fedor, o que seria normal para o amigo urubu, porém a
adoecer os humanos, principalmente uma menina. “Vocês não
são fortes como nós urubus para sobreviverem desta maneira.
Cada um na sua...”, pensou o urubu.
O velho Homem do Bucho Inchado, o mesmo que
perturbara aquelas famílias anos atrás, cortejava a mãe da
menina, pois era uma forma de se vingar da perda da dita terra
que nunca foi sua de fato e de direito. Ofereceu dinheiro,
compraria a alma da mãe facilmente. Depois de usá-la e enxotá-
la, ficaria com a menina para suas monstruosidades.
O poder, o fetiche e o dinheiro foram oferecidos pelo
Homem do Bucho Inchado, de dentro do carro luxuoso que
possuía. A mulher foi pedir conselho ao Urubu do Laranjeira lá
no lixão.
O urubu percebera o assédio do vil homem. Queria
poder falar o que pensava à jovem senhora, mas grunhidos de ave
não bastavam. Teve a ideia. Bateu asas. Voou até o rio
Laranjeiras. No final da tarde, com as horas se aproximando para
a decisão junto ao Homem do Bucho Inchado, pousa o Urubu da
Laranjeira ao lado da mulher e descarrega de seu bico uma flor
branca e pedaço de palha, certamente do jardim e da cobertura da
casinha do lar de seus pais.

221
Pantoja Ramos

A mulher pega a palhinha, trançada aquelas folhas de


buçuzeiro com tanto esforço pelo pai e pala mãe, o irmão a
brincar de carregar os estipes de açaí, a mulher naquele tempo
adolescente a ajudar na cozinha, preparando o almoço, um cozido
de tatu, caçado na mata do terreiro. Cheira a flor e passa
maciamente os dedos em suas pétalas com a ternura que a
saudade boa exige. Lembrou-se das abelhas. Lembrou-se de sua
História. Não havia energia elétrica, bem verdade, mas existia
energia nos braços. Não havia dinheiro, mas haviam recursos da
natureza. Eram pobres sim, mas sua casa esquentava nos dias de
chuva. A fome dependia do esforço. A dignidade não pagava
pedágio. Até a capela era cheia de simplicidade e amor. Parecia
com o que pregava o Filho do Homem de 2017 anos. Se chovia
e molhava as roupas, o Sol secava. Se estava muito quente, o
vento logo refrescava. Se estava frio de inverno amazônico, duas
redes abrigavam quatro pessoas, no quentinho.
Assim era bom viver.
Assim era Bem-Viver17.
Quando Homem do Bucho Inchado chegou e cobrou a
decisão, a jovem senhora informou que estava voltando para o
rio Laranjeiras e não aceitaria seu pedido. O homenzarrão ficou
furioso e quis apertar o braço da mulher afirmando que seria ela
dele, sua escrava, fazendo chorar a pequena menina que nada
entendia. Na terceira torção de braço daquela mulher, veio uma
bicada do Urubu do Laranjeiras no olho direito do Homem do
Bucho Inchado, arrancando-lhe o glóbulo ocular. Sua cegueira
de dor e sangue trouxe outros urubus para o banquete. Aquelas

17
Mas, o que vem a ser o Bem Viver? Mais do que um “princípio restrito ao ambiente
andino e amazônico (...) o Bem Viver é uma filosofia em construção, e universal, que
parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, mas que está presente nas mais
diversas culturas (...) no Brasil, com o teko porã dos guaranis (...) na ética e na filosofia
africana do ubuntu – “eu sou porque nós somos” (...) está no fazer solidário do povo, nos
mutirões em vilas, favelas ou comunidades rurais e na minga ou mika andina. Está
presente na roda de samba, na roda de capoeira, no jongo, nas cirandas e no candomblé”
- http://www.raiz.org.br/o-bem-viver-uma-resposta-para-o-capitalismo
222
O URUBU DO LARANJEIRAS

rapinas saíram em disparada. Umas para comer, outra para


escapar.
Mãe e filha voltaram para o rio Laranjeiras. Ali o Sol as
recebeu de braços abertos, bem como seus pais. Até a lua mais
tarde deu-lhes as boas vidas.
E o Urubu do Laranjeira voou para visitar seus chegados
humanos frequentemente até pousar de vez no terreiro da casa,
anos depois, quando não mais dava conta de singrar os céus.
A menina, agora moça, e o avô construíram uma casinha
de palha para o Urubu do Laranjeira, agora envelhecido, num
andar manso de abutre filósofo. Botaram um pequeno poleiro lá
dentro.
Só que o Urubu do Laranjeiras não entrava na casinha.

Preferia ficar em cima dela como se esperasse recuperar


as asas para o voo definitivo.

E, ave, voou de vez.

Curralinho, 08 de setembro de 2016.

223
Pantoja Ramos

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