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1.

Boitempo, Carlos Drummond de Andrade

Após sua fase de maior consciência – A Rosa do Povo –, Drummond volta a


visitar seu passado como motivo poético. Boitempo, uma coletânea de livros anteriores
do poeta mineiro, é um livro de poemas amparado na memória, uma espécie de “resumo
do existido”, no dizer de Drummond. A poesia de Boitempo busca resgatar a paisagem
de sua infância, como Itabira, cidade natal, em Minas Gerais. O resultado é que, junto
aos poemas, emerge um espesso painel da tradição, do povo, dos bichos e da cultura da
região. É o adulto que, vislumbrando seu passado, parece ser arrastado até ele:
“- Você deve calar urgentemente
as lembranças bobocas de menino.
- Impossível. Eu conto o meu presente.
Com Volúpia voltei a ser menino” (Intimição)

O livro se divide em cinco momentos distintos do passado que Drummond irá


resgatar:
a) Pretérito mais-que-perfeito: apresenta as lembranças de um passado bem
distante, partindo da infância como se fosse um “nascer de novo”. Desfilam os bichos,
as piadas, os personagens que compunham o cenário da época, dando cores ao retrato de
sua terra e até mesmo sabor, como o da cachaça. É ela a parte mais saudosa do poema
que estabelece paródia com a clássica Canção do Exílio de Gonçalves Dias:
Fazendeiros de Cana
Minha terra tem palmeiras?
Não. Minha terra tem engenhos de rapadura e cachaça
e açúcar marrom, tiquinho, para o gasto.
Canavial se alastra pela serra do Onça,
Vai ao Mutum, ao Sarcundo,
clareia Morro Escuro, Queixadas, Sete Cachoeiras.
Capitão-do-Mato enverdece de cana madura,
tem cheiro de parati no Bananal e no Lava,
no Piçarrão, nas Cobras, no Toco,
no Alegre, na Mumbaça.
Tem rolete de cana chamando para chupar
nas abóboras, no Quenta-Sol, nas Botas.
Tem cana caiana e cana crioula,
cana-pitu, cana rajada, cana-do-governo
e muitas outras canas e garapas,
e bagaço para os porcos em assembléia grunhidora
diante da moenda
movida gravemente pela junta de bois
de sólida tristeza e resignação.

As fazendas misturam dor e consolo


em caldo verde-garrafa
e sessenta mil-réis de imposto.

b) Fazenda dos 12 vinténs ou do Pontal: aqui Drummond recupera a paisagem


da fazenda de sua memória – as caçambas, as botas, o café, os roçados com seu boi a
ruminar o tempo:
Boitempo
Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas,
e o dia e um pasto azul
que o gado reconquista.

c) Morar nesta casa: nessa parte estão vários poemas que testemunham a
atmosfera pacata da casa onde o poeta provavelmente vivia. Trata-se de um paisagem
pastosa, num tempo variado que naturalmente escapa a esquematismos e à linearidade.
Há a abordagem de algumas peças da casa e de certos costumes que viravam rituais até
serem quebrados por alguém que vinha de fora e trazia um pouco do tempo estranho da
cidade:
Novo horário
Rosa trouxe costumes elegantes
da capital.
Já não se almoça às 9 da manhã
e não se janta às 4.
(O resto, o dia imenso, todo meu.)
Esse café do meio-dia quando sai?
Tudo é mais tarde, lento,
e há uma fome! uma fome!

Rosa trouxe a moda, com requintes


de enfeites e maneiras. Há um silêncio
de colégio francês no mastigar.
Certas comidas surgem transformadas,
muda o gosto,
muda a vida.

Azulou a divina liberdade.


d) Notícias de clã: surgem os membros da família como motivo poético – suas
origens, a profissão de cada um, as lembranças que se arrastam com a velhice. Andrade
do dicionário é a reflexão sobre o nome que praticamente significaria poesia (haja vista
os inúmeros poetas Andrade), mas que em Drummond significa Minas, com seus
morros e ribeirões:
Andrade no dicionário
Afinal
que é andrade? andrade é árvore
de folhas alterna flores pálidas
hermafroditas
de semente grande
andrade é córrego é arroio é riacho
igarapé ribeirão rio corredeira
andrade é morro
povoado
ilha
perdidos na geografia, no sangue.

e) O Menino e os grandes: temos aqui o menino menor que aprende com os


adultos e os meninos mais velhos os segredos da vida. É o menino que tem medo de
escorpião, que enfia um carretel no rabo do gato e vê a piedade de outra mão que o
salva. È o menino que torce na escada pra ver as pernas das moças de saia que sobem. O
menino que começa a conhecer a literatura. O menino que, mesmo sendo menor, desafia
os maiores pra briga, tentando evitar de chamar o irmão mais velho:
Inimigo
Vou brigar contigo.
Vou apanhar e vou sangrar
mas vou brigar.
Tenho de lutar contigo, tenho
de gritar bem alto nomes feios
que sobem à garganta.
Eles crescerão no ar da rua,
subirão às sacadas dos sobrados
e todos ouvirão.
Fui eu quem disse. O magricela. O triste.
Tenho de brigar,
rolar no chão contigo, intimamente
abraçados na raiva. Tenho de
a pontapé ferir o teu escroto.
Pouco importa me batas pelo dobro.
Pouco importa me arrases. Meu irmão
não chamo a socorrer-me. Quero ser
o perdedor que ganha de seu medo.

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