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ABORDAGENS

Artigos do I Congresso Nacional de Literatura E Intersemiose


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
—————————————————————————————

INTERSEMIÓTICAS
Abordagens intersemióticas [livro eletrônico] : artigos do I
congresso nacional de literatura e intersemiose / Ângela Freire
Prysthon ... [et al.] ; organização Ermelinda Maria Araújo Ferreira.
-- 1. ed. -- Recife, PE : Ermelinda Maria Araújo Ferreira, 2021.
PDF

ISBN 978-65-00-14961-6 ARTIGOS DO I CONGRESSO NACIONAL DE LITERATURA E INTERSEMIOSE

org. Ermelinda Maria Araújo Ferreira


1. Comunicação 2. Ensaios brasileiros 3. Linguagem
4. Semiótica - Discursos, ensaios I. Prysthon, Ângela
Freire. II. Ferreira, Ermelinda Maria Araújo. III.
Título.

NÚCLEO DE ESTUDOS DE LITERATURA E INTERSEMIOSE — 2021


20-53447 / CDD-401.41
—————————————————————————————
Índices para catálogo sistemático: 1. Semiótica : Linguagem e comuni-
cação 401.41 / Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

apoio

incentivo
ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS

realização

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Eduardo Sterzi

A PELE DO POEMA:
Quando leio a expressão “pele das palavras”, no poema de
Drummond, sou levado a pensar, pela tentação do quiasmo, em pala-
vras sobre a pele: por mais que sejam fundamentais os vínculos entre
linguagem e interioridade (entre linguagem e intimidade, segredo,

a dimensão tátil da
subjetividade...), as palavras também são movidas, sobretudo na sua
forma escrita, por um ímpeto de exteriorização. Todo texto escrito
tem um quê de tatuagem e de grafite. A flor de “A flor e a náusea”

poesia dita visual


pode ser vista, ao par da metáfora política evidente, como uma ale-
goria dessa exteriorização intrínseca ao poema: a “flor” que “nasceu
na rua” – a flor que “ilude a polícia, rompe o asfalto” – é não só
imagem da força utópica socialista (a “rosa do povo” de que fala o
título do livro em que o poema foi publicado), mas também figura
do próprio poema, flor e poema convergindo em ser “forma inse-
gura” que permite, porém, na sua insegurança, “soletra[r] o mundo”
de um modo diferente, não só complementar, mas verdadeiramente
alternativo ao modo como permitem soletrá-lo os jornais (que tanta
presença têm na poesia de Drummond deste período)02 ou qualquer
outro meio utilitário e informativo. Algo do que é a poesia – algo
A PELE DAS PALAVRAS E A do seu ser e do seu mistério, mas também da sua nudez e do seu
esplendor – se deixa vislumbrar e apreender nessa passagem do
EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS interior ao exterior, do coração à pele, da subjetividade à superfície:
passagem que exige um movimento correspondente do leitor (e
Escreve Drummond, na terceira estrofe de “A flor e a náusea”: “Sob a pele das palavras há
sobretudo do leitor crítico), um transporte que, para retomarmos

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cifras e códigos”.01 E sobre a pele – podemos nos perguntar – o que há? O que se exibe, ali,
uma formulação célebre de Susan Sontag, vai de uma hermenêutica,
sem subterfúgios, como plena exposição? O que se dá a ver, antes de se dar a ler? O que,
atenta às profundidades e às profundezas (e, portanto, às “cifras e
nas palavras – e, especialmente, nas palavras do poema –, já deixou para trás, na medida do
códigos”), a uma erótica.03 Passagem, aliás, nunca completada, nunca
possível, “cifras e códigos”, e aspira a ser pura evidência? O que, nelas, pulsa como desejo de
percorrida de todo e de uma vez por todas: passagem que é, na
legibilidade imediata? (Nem pura evidência, nem legibilidade imediata existem realmente –
mas existe a aspiração, existe o desejo, e isso, muitas vezes, basta ao poeta, e basta ao leitor 02 Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea” cit., pp. 310-312.
de poesia, como senha para a possibilidade de uma outra linguagem, de um outra escrita.) Cf. “Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam
jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem”.

01 Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”, in A rosa do povo (1945), hoje em Poesia 1930-62: de 03 Susan Sontag, “Contra a interpretação” (1964), in Contra a interpreta-
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Alguma poesia a Lição de coisas, ed. crítica Júlio Castañon Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 310. ção, trad. Ana Maria Capovilla, Porto Alegre: L&PM, 1987, pp. 11-23.
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verdade, uma oscilação, um vaivém entre o Sentido (o contato por meio do atrito? Já sugeria o pioneiro teórico das mídias
significado, o conteúdo, o que isso ou aquilo “quer-di- eletrônicas, Marshall McLuhan, que “o meio é a massagem”.04)
zer”) e os sentidos (os órgãos da percepção e as facul- Poesia talvez seja precisamente o nome que damos para o tipo
dades a eles associadas, as múltiplas formas de sensibili- de jogo ou trabalho de quem, ao lidar com as palavras, produz essa
dade e sensorialidade). superfície – e, sobretudo, chama atenção para ela. Parece ser cons-
Se falo, depois de Drummond, “pele das palavras”, titutivo da poesia um certo horizonte de sinestesia, em que sempre
estou pressupondo uma dimensão física para a lingua- mais de um sentido é convocado. Nunca só o olhar, nunca só a audi-
gem, uma materialidade, uma encarnação e, portanto, ção, sentidos habituais para a linguagem: as palavras do poema têm
alguma carne; o papel, material de origem vegetal em cheiro, têm gosto, são agradáveis ou desagradáveis ao toque, são
que a humanidade leu, ao longo de séculos, a maioria lisas, são ásperas. É por isso que lê mal um poema aquele que o lê
das palavras que lhe chegaram escritas, e que traz já com pressa, sem saborear as palavras, sem se espantar com adstrin-
no nome a lembrança dos papiros antigos, coexistiu, gência de algumas, com o peso de outras, sem experimentar a carí-
durante um bom tempo, com o pergaminho, a pele cia do começo de um verso ou o soco do final de um outro. Daí que
de ovelha ou cabra preparada com leite de cal para a possamos talvez considerar aquelas pessoas que sofrem de sinestesia
escrita. Hoje, depois que passamos a ler grande parte – isto, aquelas pessoas que, por algum problema neurológico cujas
das palavras em telas de computadores, que suposta- origens são ainda pouca conhecidas, ouvem cores ou cheiram sons
mente poderiam nos libertar da linearidade da escrita, – como concretizações biopsíquicas daquilo que o poeta projeta e
persistem, contudo, como formas de ordenação do pratica como utopia. Só lê realmente um poema aquele que aprende
fluxo textual, as velhas configurações que são as páginas a conviver com a estranheza mais radical, que é aquela que pulsa
e mesmo os livros (falamos, por exemplo, em ­e-books). dentro do que nos parece mais familiar, mais definidor de nossa
Mas podemos nos perguntar: nessa memória material própria existência, de nossa própria suposta singularidade de animais
que continua a informar a escrita, nessa sobrevivência com linguagem (o zoon phonanta ou zoon logon ekhon de que falavam
fantasmática de suportes em alguma medida arcaicos os gregos).

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ou ultrapassados, onde brota o vegetal do papel ou por Mas, se as palavras têm pele, e se pele carrega palavras, como
onde anda o animal do pergaminho? Onde está, em garantir que esta seja uma pele exclusivamente humana? Jorge Luis
suma, a pele das palavras, agora que – mais uma vez, Borges, o imenso poeta, ensaísta e contista argentino, nos convida
como sempre fizemos, na medida de cada época, ao a essa indagação quando, no conto “La escritura del dios”, do livro
longo de toda a história da metafísica do pensamento e El Aleph, põe o seu narrador – Tzinacán, um sacerdote indígena da
da linguagem – desmaterializamos a escrita? Onde está região que hoje é a Guatemala, encarcerado pelos conquistadores
aquilo que, na escrita, não se contenta com a visão, mas espanhóis – a imaginar que um deus elaborara uma sentença mágica
convoca o tato? Para onde deslocamos a superfície de
contato da linguagem? (Não será o vozerio das redes 04 Marshall McLuhan e Quentin Fiore, O meio é a massagem (1967), trad.
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sociais, sempre tão crispado, uma tentativa de renovar o Sergio Flaksman, São Paulo: Ubu, 2018. Grifo meu.
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para conjurar “as muitas desventuras e ruínas” do fim tribunos – isto é, diante dos convites, antagônicos, mas também
dos tempos e que ocultara essa mensagem, para que complementares, da religião e da política –, recusassem a escolha e
atravessasse os séculos, na “pele viva dos jaguares”: as se ativessem ao limiar entre um e outro. “Uma faca só lâmina”, disse
manchas do pêlo das onças seriam como as letras dessa o pernambucano João Cabral, figurando como nenhum outro poeta
escrita do deus.05 Os anos se passam no esforço de a dificuldade de equilibrar-se neste gume.
compreender a mensagem, de decifrar a sentença, ou Com Borges e seu sacerdote, mas sobretudo com Borges e seus
antes: de ver com alguma clareza tais palavras (há um tigres, entramos numa zona obscura, que pode ser ao mesmo tempo
jaguar na cela ao lado). É num momento de êxtase – de templo e cárcere06, na qual deparamos com uma pele – ainda a “pele
união com a divindade e com o universo – que o sacer- das palavras” – que não é exclusivamente nem animal, nem divina,
dote-narrador enfim consegue “entender a escritura nem humana, mas que pode combinar os aspectos mais extremos
do tigre”; e é decisivo que esse conhecimento extático de uma dessas instâncias: deparamos, em suma, com um monstro.
conjugue o trivial com o absoluto: “É uma fórmula de Digamos: o monstro do poema. Observemos, pois, a pele mons-
quatorze palavras casuais (que parecem casuais), e me truosa do poema. Tentemos tocar a pele monstruosa do poema.
bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso”. Um momento decisivo para a história da poesia brasileira
Também decisiva, para que o conto adquira a força de moderna e contemporânea – momento, aliás, ainda pouquíssimo
sugestão que tem, é a decisão tomada por Tzinacán em estudado e compreendido – é aquele em que os poetas concre-
seguida à decifração de não pronunciar as palavras da tos, depois de anos de progressiva racionalização e geometrização
sentença mágica – e, com seu silêncio, não salvar nem o das formas, alcançaram um limite a partir do qual, sob a pressão
seu mundo, nem a si mesmo. Nesta decisão, as palavras do real, se viram como que forçados a absorver o informe nos
divinas como que deixam de ser palavras para conti- seus poemas. Uma interpretação fácil, mas já consolidada deste
nuarem a ser manchas na pele viva de todos os jagua- momento, nos levaria a identificar as origens de tal distensão na
res que já existiram e que ainda existirão. Renuncia-se necessidade de responder criativamente à dissidência neoconcre-
novamente, como tantas vezes fizeram os poetas, às tista assim como no encontro com a Tropicália (isto é, na dinâmica

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“cifras e códigos” de que falava Drummond – e não de influências mútuas que este encontro inaugura). Porém, se essa
porque eram incompreensíveis, mas justamente porque interpretação é, como disse, fácil, é porque ela é, em larga medida,
seu significado tinha sido intuído e a linguagem, agora, circular ou tautológica: o salto necessário para se compreen-
poderia realizar seu encontro total com o mundo ao der o que aí está em questão começa, a meu ver, por perguntar
salvá-lo. O que aconteceu aqui? É como se os poetas, que exigência epocal determinou a passagem do concretismo ao
diante do esoterismo dos místicos e do exoterismo dos
06 Como não recordar aqui, com alguma distância e ironia, o título do
05 Jorge Luis Borges, “La escritura del dios” (1949), in El estudo de Fredric Jameson sobre o estrutalismo e o formalismo russo?
Aleph (1949), hoje em Obras completas 1923-1972, Buenos Cf. The Prison-House of Language. A Critical Account of Structuralism and
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Aires: Emecé, 1974, pp. 596-599. Russian Formalism (1972), Princeton: Princeton University Press, 1974.
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neoconcretismo e, por outro lado, que novo qua- às vezes de modo residual, às vezes com muita intensidade. Mas,
dro sócio-cultural não só permitiu, como, em alguma de fato, com base nos poemas concretistas da década de 50, era
medida, estimulou que os praticantes da poética ante- impossível prever a força do retorno do corpo nas obras dos mes-
cedente respondessem, de modo criativo, às posições mos autores a partir de meados da década de 60 – e sobretudo
agora em ascensão. a partir dos últimos anos dessa década. A verdade, que a história
Para se contar essa história, talvez seja preciso toda da humanidade (e, particularmente, a história das artes) con-
recuar um pouco mais. Há toda uma dimensão do firma, é que o corpo sempre volta. Esta constatação está, a meu ver,
toque e do contato – mas também do choque e do na base do uso que um Haroldo de Campos já tardio fará de uma
impacto – que as estéticas e poéticas convencionais frase luminosa de Marx, frase da qual ele extraiu o título de um
costumam deixar de lado. E se assim o fazem, acredito de seus livros de poemas: “A educação dos cinco sentidos é tra-
eu, é porque a matriz idealista e idealizante dessas balho de toda a história universal até agora”. 07 Porém, muito antes
estéticas depende de uma eliminação crescente do desse livro de 1985, o corpo com seus cinco sentidos já fizera seu
corpo: a experiência corporal – o fato de que não ape- regresso triunfal nas obras de Haroldo e dos outros concretistas
nas temos um corpo, mas somos um corpo – revela-se – assim como, sobretudo, nas daqueles que com eles aprenderam.
um estorvo, é fonte de mal-entendidos e inquietações. É o que se vê nas Galáxias, este “livro de ensaios”, para usar for-
O sujeito ideal da estética vive uma existência descar- mulação do próprio autor, em que a tensão entre vida e escrita se
nada – na verdade, nem mesmo vive, no sentido pleno resolve na invenção de uma prosa poética especialmente fluida e
do verbo. Esta é a condição para se supor milagres flexível, em que o começo nunca começa de todo, porque tam-
como a “finalidade sem fim” e a satisfação destituída bém o fim jamais findará por completo, resposta singular – a um
de interesse, necessária e universal que caracteriza- só tempo augural e agônica – que o poeta brasileiro oferece para
ria a beleza segundo Kant. O sujeito da estética não o desafio do epos que lhe chegou como uma das grandes heran-
vive: seu mundo ascético e rarefeito situa-se fora das ças inquietantes da modernidade (desafio que vem de Mallarmé,
dimensões da vida e da morte: ele não goza nem se de Eliot, de Joyce, de Pound, mas também do Sousândrade do

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putrefaz. Essa subjetividade incorpórea e despojada Guesa ou do Mário de Andrade do Macunaíma). É o que se encontra
de experiência fez uma de suas últimas grandes apari- nos popcretos de Augusto de Campos, assim como na sua “prosa
ções no auge geometrizante e combinatório da poesia porosa” (por exemplo, nos poemas-ensaios depois reunidos em O
concreta – que corresponde, assinale-se, a uns poucos anticrítico). Augusto também acabará por introduzir a datilografia
anos da produção dos poetas do grupo Noigandres, na sua obra (por exemplo, no poema dedicado a Décio Pignatari,
mas que forneceu o padrão a partir do qual suas obras, “dp”, ou no poema-sequência “não”), como invocação de uma
em alguma medida, são lidas e avaliadas até hoje. Antes dimensão agora já arcaica da própria modernidade (a máquina de
e depois desse momento de radicalização construti-
vista, e mesmo em algumas brechas dessa arquitetura 07 Karl Marx apud Haroldo de Campos, A educação dos cinco sentidos, São
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aparentemente tão cerrada, o corpo esteve presente, Paulo: Brasiliense, 1985, p. 5.


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escrever é uma grande tecnologia da afirmação da neste contexto que Augusto de Campos passará a falar em “antipoe-
modernidade e, por isso mesmo, um signo eloquente sia”, por exemplo no título de Poesia antipoesia antropofagia, mas já,
do tempo que passa 08). antes, no próprio Poetamenos – e, a partir daí, em Despoesia etc.).
Lembremos que, na poesia concreta stricto sensu, os poemas
vinham a público, na maioria das vezes, compostos em letraset, na
O SEGREDO DA MÚMIA E tipologia Futura, modo de reivindicar para o grupo Noigandres uma
determinada ascendência, aquela dos construtivistas da Bauhaus
O FANTASMA DA POESIA (de fato, a fonte foi criada em 1927, por Paul Renner, com base
nos ensinamentos dos professores da escola alemã). Augusto de
Contudo, é, a meu ver, a incorporação (ou, mais Campos, na introdução de Poetamenos, impresso em seis cores, dizia
exatamente, reincorporação) da escrita à mão à prática almejar a “luminosos, ou filmletras”, numa manifestação inegável
textual de concretistas e pós-concretistas que marcará de um desejo de radicalização da modernidade.09 Ora, os poemas
uma virada crucial. Essa reemergência da mão se fará sobre os quais gostaria de refletir apresentam uma diferença fun-
acompanhar, não por acaso, de um questionamento damental com relação a esse momento. Agora, estamos diante de
intenso, sobretudo porque interno à prática artística, da textos grafados muitas vezes à mão, ou em alguma técnica marca-
própria categoria poesia. Não podemos esquecer, porém, damente low tech. São inúmeros os exemplos, já na década de 60,
que a poesia concreta tem início justamente numa série mas também nas de 70, 80, 90. Por vezes, podem confundir-se com
de poemas chamada Poetamenos – e que, ao longo da tra- evocações da técnica poundiana de inserção de ideogramas e outros
jetória inicial dessa poética, houve a tentativa de conciliar fragmentos imagéticos nos Cantos – é o que se vê, por exemplo, em
duas proposições, a meu ver, inconciliáveis a respeito Max Martins. Mas, na maioria das vezes, a intenção e o efeito são
da poesia: uma segundo a qual a poesia se tornaria mais outros. Décio Pignatari tem um exemplo crucial no seu Oswald psi-
forte conforme os poemas se reduzissem ao que pode- cografado por Signatari, no qual se põe a escrever textos não escritos
mos chamar de propriamente poético (é neste contexto por Oswald, num curioso exercício de apocrifia. E não é realmente

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que os poetas concretos reivindicam a teorização de surpreendente que este tipo de texto, em que a técnica aparece
Roman Jakobson a propósito da “função poética” da lin- quase como contratécnica (como se fosse possível uma técnica não
guagem, trazendo de reboque todo o debate formalista ser técnica: outra ficção), o próprio ato de escrita se torne um tema
sobre a literariedade e a poeticidade); a segunda proposi- recorrente: veja-se, por exemplo, um texto como “Entre as estre-
ção sendo aquela segundo a qual quanto menos poética las”: “Entre as estrelas descobri o carvão: o pêncil da criação e do
uma obra fosse ou parecesse, mais poética ela seria (é coração”. Para ficar apenas em dois extremos etários de poetas que
conviveram com os concretos, podemos lembrar os casos de Edgard
08 Cf. Cristina Zhou, “A máquina triunfal: a importância
da máquina de escrever na proliferação heteronímica de 09 Augusto de Campos, Poetamenos (1953), in: Viva vaia. Poesia 1949-1979
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Fernando Pessoa”, MATLIT, 1.1 (2013), pp. 125-133. (1979), São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 65.
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Braga e de Arnaldo Antunes. As Tatuagens de Edgard mais exatamente – para usar uma expressão do próprio cineasta –
Braga nos colocam diante de toda uma dimensão da de um filme de terrir. Refiro-me a O segredo da múmia, filme dirigido
poesia visual que foge ao geométrico –­ e que tende a por Ivan Cardoso e lançado em 1982. Ivan Cardoso, é preciso dizer,
uma tatuagem que também não quer a fixidez da tatua- não é apenas um cineasta de filmes que misturam comédia e ter-
gem propriamente dita, uma tatuagem que experimenta ror – foi também um grande interlocutor de artistas plásticos como
a vertigem do provisório, não menor que a vertigem Hélio Oiticica e Carlos Vergara, assim como dos poetas concretos.
da fixação definitiva, do compromisso. Já de Arnaldo E – detalhe menos conhecido de sua trajetória – contou com a
Antunes apresento dois poemas de seu livro Tudos, de colaboração de Eduardo Viveiros de Castro, hoje um dos antro-
1990: “Derme/verme” e “Humanos”. pólogos mais influentes do mundo, como fotógrafo de cena, mas
Mas o que importa dizer aqui é que a escrita à mão também como autor de argumentos e roteiros para alguns de seus
é o próprio corpo aparecendo no texto como dimensão filmes. É o caso de O segredo da múmia. O próprio Ivan relembra:
intrinsecamente monstruosa (sobretudo neste contexto “Um certo dia, o Eduardo Viveiros de Castro, que já estudava antro-
de hipertecnologia maquinal real ou mesmo apenas pologia no Museu Nacional, me veio com a seguinte sugestão: Acho
ansiada, como vimos com o prefácio de Poetamenos). O que você deveria fazer um filme de múmia. É um personagem que será
sono ou sonho da razão construtivista produz poemas- só seu. Ninguém vai querer fazer um filme de múmia no Brasil. De fato,
-monstros, poemas que muitas vezes nem foram pensa- era uma coisa bem sarcástica. O Viveiros sacou que a múmia era o
dos como poemas – e tão mais poéticos (e monstruo- meu personagem”.11 Noutro ponto de seu depoimento, Ivan retoma
sos) parecem ser justamente por isso. A fuga da poesia as considerações sobre a colaboração com Viveiros de Castro: “A
se torna o assunto poético por excelência. É o que se parceria com o Viveiros é outra coisa da qual me orgulho. O pró-
vê, por exemplo, no final de um poema (ou não-poema) prio Lévy-Strauss o considera seu herdeiro intelectual. O Viveiros,
de Rogério Duarte publicado na revista Navilouca, edi- nas férias, nas horas vagas e nos finais de semana, se voltava total-
tada por Waly Salomão e Torquato Neto, e cujo único mente para o cinema. Foi o Eduardo que desenhou aquele mapa
número saiu depois da morte de Torquato, ainda em na careca do Felipe. Ele queria aprender a tirar fotografia e ensinei,

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1972; diz o poema de Rogério Duarte: “POR ISSO NÃO mais ou menos, o que eu sabia. O Viveiros acabou se tornando um
ME POVOA MAIS / O FANTASMA DA POESIA”.10 excelente fotógrafo”.12
Mas é precisamente de um fantasma da poesia que É no “mapa na careca do Felipe”, desenhado por Viveiros
quero falar aqui, por meio de um desvio pelo cinema de Castro (e por ele fotografado), que quero me deter. Felipe
e pela fotografia. E, já que estamos tratando de uma é o ator Felipe Falcão, que interpreta o ajudante do professor
dimensão em alguma medida monstruosa, nada mais Expedito Vitus, feito, por sua vez, por Wilson Grey. Não é qualquer
adequado do que falarmos de um filme de terror, ou
11 Ivan Cardoso apud Remier, Ivan Cardoso. O mestre do terrir, São Paulo:

10 Rogério Duarte, “E”, Navilouca, 1 [primeira edição / Imprensa Oficial, 2008, p. 121.
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única] (1974), p. não numerada. 12 Id., p. 201.


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ajudante: é ele mesmo, em alguma medida, um mons- de cena que Eduardo Viveiros de Castro produziu e que retrata o
tro. Trata-se de um morto que foi ressuscitado pelo desenho que fez na cabeça do ator, percebemos que há pelo menos
professor com o seu elixir da vida – e que, por isso, se duas versões do mapa – detalhe: o filme se inicia justamente com
torna um servidor fidelíssimo do cientista, a ponto de uma cena em que outro mapa, o mapa que aponta a localização da
assassinar quem se ponha no caminho do patrão. Ele múmia de Runamb, é dividido em pedaços e cada pedaço entregue
não é o único morto trazido novamente à vida pelo a um portador (todos eles serão mortos pelo professor Vitus, que
professor Vitus: o outro é uma múmia egípcia, a múmia acaba descobrindo a múmia com base no mapa reconstituído). Essa
de Runamb. O ajudante e a múmia atuam como duplos proliferação de mapas, a meu ver, não é um detalhe menor para
na economia narrativa do filme. Em alguma medida, um a interpretação que estamos propondo – se pensarmos nos poe-
complementa o outro, especialmente quando o espe- mas concretos da fase mais ortodoxa como mapas, eles são mapas
lhamento comporta algumas inversões significativas únicos e íntegros, que, pelo menos idealmente, não comportam
para a nossa análise. Por exemplo, muito da força do variações e divisões. Estamos agora, por contraste, num mundo
personagem Igor vem da alopecia universal que parece poético e imagético completamente diferente. A variante volta a
afetar não só o personagem, mas o próprio ator – ele ser a norma – como fora em momentos de efervescência poética
não é só calvo na cabeça, mas parece não ter nenhum com grande proeminência do corpo (na “literatura medieval”, por
outro pelo no corpo. Isso faz de sua pele uma espécie exemplo; ou nas “manifestações literárias” que precederam a litera-
de suporte total, sem entrave de pêlo algum. A múmia tura propriamente formada e dita, na descrição de Antonio Candido
é, neste sentido, o exato contrário – dela, não se vê contra a qual se insurgiu Haroldo de Campos – isto é, no Barroco de
nenhuma nesga de pele, pois está, o tempo todo, com- um Gregório de Mattos, por exemplo13). Mas voltemos para a análise
pletamente recoberta pelas bandagens que a caracteri- do mapa na careca de Igor. Na fotografia, grande parte da área ocu-
zam. Porém, é justamente esta cobertura, que oculta o pada, no filme, pela palavra tara, é ocupada agora por outra palavra:
corpo, que faz com que a múmia tenha a aparência de poesia. Eis o “fantasma da poesia” povoando o monstro, ainda.
uma página em branco em ruínas. Quando olhamos para o mapa desenhado por Viveiros de

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No caso de Igor, vemos na tela a aplicação do elixir Castro na cabeça do ator, impossível não lembrar imediatamente
da vida no centro de sua careca. E é nesta cena que dos esquemas que mostram as localizações dos diferentes cortes
aparece o mapa desenhado por Viveiros de Castro a de carnes no corpo de um boi ou de qualquer outro animal. Talvez
que se refere Ivan Cardoso no seu depoimento. O mapa estejamos diante de uma alusão, e não de uma semelhança casual.
supostamente identificaria os lugares do cérebro desti-
nados a cada função: razão, emoção, amor, ódio, sexo 13 Antonio Candido, Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos
(sexo e ódio aparecem escritos pelo menos em duas 1750-1880 (1959), São Paulo: Ouro sobre Azul e Fapesp, 2017, pp. 25-27.
regiões diferentes) – e tara. É exatamente na região da Haroldo de Campos, O sequestro do Barroco na Formação da literatura
palavra tara que vemos a agulha da injeção entrar. Assim brasileira: o caso Gregório de Mattos, Salvador: Fundação Casa de Jorge
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ocorre no filme. Se, no entanto, pegamos a fotografia Amado, 1989.


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de uma tese de doutorado defendida em 1998)16: o neologismo, em
que se cruzam monstro e construtivismo, depreendido de um texto
de Kurt Schwitters, autor estudado e traduzido pioneiramente
Afinal, foi a propósito do cinema de Ivan Cardoso que por Haroldo de Campos no Brasil, é precioso. E é significativo, a
Haroldo de Campos chegou a esta magistral propo- meu ver, que depois de servir como uma das epígrafes gerais do
sição: “Pelo açougue também se chega a Mondrian”. volume, a frase volte – agora, curiosamente só atribuída ao próprio
Sabemos dessa frase por intermédio do próprio Ivan, Ivan – como epígrafe do capítulo dedicado ao filme “Nosferato no
que, em texto publicado em 11 de janeiro de 1972 na Brasil”.17 Digo que é significativo porque, a meu ver, a frase resume
coluna Geléia geral, mantida por Torquato Neto no bem mais do que a obra de Ivan. Viveiros de Castro, por exemplo,
jornal Última hora, conta que exibiu três filmes seus – dirá que esse “Mondrian no açougue” (a fórmula sintética é dele) é
Piratas do sexo voltam a matar, Amor & tara e Nosferato também um bom resumo do projeto das Mitológicas de Lévi-Strauss.
no Brasil – para Décio Pignatari e Haroldo, numa ses- Relembrando o modo como ele mesmo se iniciou na antropolo-
são privada realizada em São Paulo. Um dos comen- gia por meio de um grupo de estudos das Mitológicas coordenado
tários de Haroldo, segundo Ivan, teria sido este.14 No por Luiz Costa Lima, Viveiros de Castro assinala: “Fiquei fascinado
mesmo ano, num texto publicado na Navilouca, Hélio com os mitos. Eram rabelaisianos, mas tinham uma lógica formal,
Oiticica anota outra consideração de Haroldo de por causa das combinações, das permutações. Eram ‘Mondrian no
Campos sobre Ivan Cardoso que vai no mesmo sentido: açougue’, como os filmes do Ivan. Aquilo tinha uma relação com as
“HAROLDO DE CAMPOS: NOSTORQUATU É COMO SE coisas que eu lia nos suplementos e de que gostava. Em particular a
MALEVITCH TIVESSE FEITO SEU QUADRADO BRANCO linguística. E os concretistas. Havia uma afinidade, não direta, mas
DE KETCHUP OU SANGUE VIVO”.15 Não por acaso, a havia, entre concretistas, tropicalismo e estruturalismo”.18 O que
frase de Haroldo de Campos – “Pelo açougue também Viveiros de Castro não diz aí – mas que aprendemos ao ler textos
se chega a Mondrian” – é uma das epígrafes de um seus em que aborda as Mitológicas – é que este conjunto de livros de
livro fundamental para se compreender o que está aqui Lévi-Strauss não é mais exatamente estruturalista, mas, em alguma
em questão. É o livro Monstrutivismo: reta e curva das medida, é já pós-estruturalista – daí que possa estar na base, em
vanguardas, de Lúcio Agra, publicado em 2010 (a partir alguma medida, da verdadeira revolução epistemológica que, em
diálogo constante com o pensamento de Deleuze, o próprio Viveiros

ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS
de Castro promoverá na antropologia, ao priorizar o xamanismo
contra o totemismo e o rito contra o mito – o que se deve com-
preender no âmbito de um percurso etnológico e teórico marcado
14 Haroldo de Campos, segundo Ivan Cardoso, in
Torquato Neto, “Mixagem alta não salva burrice”, publi-
cado originalmente em 11 jan. 1972, hoje em Torquatália, 16 Lúcio Agra, Monstrutivismo: reta e curva das vanguardas, São Paulo:

v. 2: Geléia geral, org. Paulo Roberto Pires, Rio de Janeiro: Perspectiva e Fapesp, 2010.

Rocco, 2004, p. 346. 17 Id., p. 83.

15 Hélio Oiticica, “Lamber o fio da gilete: gelida gelatina 18 Eduardo Viveiros de Castro apud Rafael Cariello, “O antropólogo con-
97

gelete”, Navilouca cit., p. não numerada. tra o Estado”, Piauí, 88 (jan. 2014).
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decisivamente por uma importância cada vez maior
conferida ao corpo. Assim como o corpo volta na poesia
pós-concreta, também volta no pós-estruturalismo. Não
estou querendo sugerir que uma coisa se reduza a outra, e Eduardo Viveiros de Castro, o filme After midnight, que, ao que
mas não deixa de ser curioso que Eduardo Viveiros de parece – não consegui encontrar ainda nenhuma cópia do filme – é
Castro, ao desenhar o mapa na cabeça do ajudante também uma resposta à frase de Haroldo de Campos. De fato, sua
do cientista louco, se coloque ao mesmo tempo numa sinopse publicada no livro Ivampirismo começa justamente pela frase
ponta e noutra desse movimento que é global na cultura citada e assim continua: “Documentário table top com fotografias
da época (não podemos esquecer da importância que de filmes de terror, histórias em quadrinhos, O ESTRANHO MUNDO
o corpo terá em todas as manifestações artísticas que DE ZÉ DO CAIXÃO e o quadro BROADWAY BOOGIE-WOOGIE de
fogem à objetualidade: na performance, no happening, MONDRIAN”.20 De Mondrian no açougue a Mondrian no caixão.
em suma, em todas as formas de ritualização profana
que se espalham pelos meios artísticos (não podemos
esquecer também que o primeiro projeto de pesquisa A REIVINDICAÇÃO DA PELE E
concebido por Viveiros de Castro ao ingressar no mes-
trado em antropologia tinha como objetivo estudar a A INVENÇÃO DA LINGUAGEM
cultura da droga entre os jovens da Zona Sul carioca;
era o momento em que a cultura do rock e o movi- Talvez seja hora de retornarmos à noção de “educação dos cinco
mento hippie inventavam experiências corporais inéditas sentidos” de Marx e Haroldo de Campos e retornarmos à pele. É
– mas é importante também frisar que, entre o 1972 da no âmbito dessa educação – isto é, de uma superação das esté-
Navilouca e o 1982 de O segredo da múmia, uma década se ticas, mas também das ontologias, idealistas – que se deve ler
passou, uma década que já começa mal pelo recrudesci- a estupenda reivindicação da pele feita pelo filósofo Emanuele
mento da ditadura, que empurrou muitos jovens justa- Coccia em A vida sensível:
mente para alguma forma de fuga já que os cenários de
luta estavam impedidos – o próprio Viveiros de Castro Se viver significa aparecer é porque tudo aquilo que
fala da antropologia como uma “fuga do Brasil” oficial –, vive tem uma pele, vive à flor da pele. É, antes de

ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS
mas também pelo suicídio de Torquato Neto, persona- tudo, a pele que permite a constituição do animal
gem fundamental da passagem do concretismo ao que como ente que vive apenas da e na própria aparência.
veio depois19). [...] Tudo acontece no momento em que a superfície
Valeria trazer ainda à baila, nessa leitura cruzada do animal perde sua transparência e se faz opaca,
de obras, a informação de que, também em 1972, Ivan tornando-se ela mesma visível e um meio no qual o
Cardoso realizou, em parceria com Carlos Vergara vivente pode fazer-se visibilidade em ato. A partir
desse instante, o animal passa a viver de sua própria
19 Augusto de Campos, “Como é Torquato” (1972),
Balanço da bossa e outras bossas, São Paulo: Perspectiva, 20 Ivan Cardoso e R. F. Lucchetti, Ivampirismo. O cinema em pânico, Rio de
99

1974, pp. 307-310. Janeiro: Brasil-América, 1990, p. 366.


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artificiais da pele, mas, sim, como outras peles de todo direito, tão
decisivas para a determinação do nosso modo de ser no mundo
como a pele com que nascemos:

aparência, a sentir nela a sua própria respiração. “O Uma roupa é, antes de tudo, um corpo. Em qualquer
fato de que a superfície que delimita o animal se roupa fazemos experiência de um corpo que não
torne opaca determina todo um mundo de novas coincide com nosso corpo anatômico. Vestir-se sig-
possibilidades relacionais”. A pele deixa de consti- nifica, assim, completar nosso corpo, acrescentar-lhe
tuir-se simplesmente como um limite de proteção uma consistência ulterior feita dos objetos e materiais
para transformar-se em um órgão especial “que, mais disparatados possíveis cujo único objetivo é o de
em primeiro lugar e dos modos mais diversos, serve nos fazer aparecer. Esse corpo secundário que cada
para construir a aparência”. O limite do organismo, o vez se encarna na roupa (sempre sustentado pelo
lugar em que ele se diferencia do resto e, ao mesmo corpo anatômico) não é feito de carne, mas somente
tempo, trava contato com ele, “torna-se um órgão”, de aparência. E é sempre no meio desse corpo não-a-
um lugar de existência e de vida, um órgão do orna- natômico que o corpo anatômico aparece, se faz ver,
mento no qual “aquilo que é mais exterior fala daquilo se revela. Se, como sugeria Portmann, todo animal
que é mais interior” e em que a interioridade é tão possui uma faculdade suprema através da qual produz
somente a fábula e o mito que nossa forma não para a si mesmo enquanto imagem – o fânero –, a roupa
de narrar. Graças à pele, o corpo inteiro se torna é o lugar onde essa faculdade age não mais direta­
simples organe à être vu, pulmão metafísico que inspira mente sobre o próprio corpo anatômico ou sobre os
luzes e imagens para apropriar-se delas, para trans- meios que a circundam, senão incorporando fragmen-
formá-las, para dar-lhes um modo. Se aquilo que vive tos de mundos estranhos, corpos outros através dos
é aquilo que tem pele, é porque vive apenas aquele que é quais faz aparecer a si mesmo. A corpo­reidade encar-
capaz de relacionar-se com a própria aparência – a pró- nada pela roupa existe especialmente como espaço
pria espécie [specie] – como uma faculdade e não como vazio, algo que deve ser ocupado por certa parcela de
uma simples propriedade. A forma de um vivente (o seu mundo, algo onde tudo pode atuar como nosso fânero.
eidos, a sua natureza) é a sua aparência, de tal sorte que, Entendida como facul­dade, potência que se suben-

ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS
em todo vivente, a aparência (e, portanto, a sua espécie tende pelo fato de ter (necessidade de) roupas [abiti],
[specie]) é uma faculdade, uma potência, um órgão.21 ela é a técnica que permite transformar qual­quer
objeto em pele. A roupa é um corpo transformado
Esta é uma filosofia das aparências e, pois, da radical mundani- em nossa própria pele, é a faculdade de transformar o
dade e superficialidade dos seres. Não surpreende, portanto, que o impróprio absoluto no absolutamente próprio; e, vice-versa,
elogio da pele não se deixe paralisar por nenhuma ideologia do natu- de transferir (alienar) o próprio (enquanto o que há de
ral – e que as roupas possam ser vistas não como meros sucedâneos mais íntimo) naquilo que lhe é absolutamente estranho.22

21 Emanuele Coccia, A vida sensível, trad. Diego Cervelin, Desterro


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[Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010, pp. 77-78. 22 Id., pp. 83-84.


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Para além das nossas roupas do dia a dia, o que aqui
se lê me parece fundamental para se compreender, por
exemplo, a invenção dos parangolés por Hélio Oiticica,
exatamente no âmbito do momento histórico que esta-
mos examinando. Oiticica, vale lembrar, não só atua de carnaval”.24 (Na arte de Oiticica, passista da escola de samba da
como coadjuvante, quase apenas figurante, em O segredo Mangueira, essa distinção entre “trajes espaciais” e “máscaras de
da múmia, como alguns de seus retratos mais célebres – carnaval” se faz bem menos nítida do que nas metafísicas ameríndias.)
assim como alguns dos registros mais conhecidos dos Mas voltemos a Coccia. Suas considerações também nos permi-
parangolés em movimento – foram feitos por Eduardo tem entender com maior amplitude todas as formas de escrita no
Viveiros de Castro em seu trabalho como fotógrafo de corpo, todas as tatuagens permanentes ou transitórias, que seriam
cena dos filmes de Ivan Cardoso. Viveiros de Castro, aliás, outras variantes dessa noção expandida de pele25:
descreve os parangolés de Oiticica como “estranhas
roupas que não são uma roupa, que não escondem o Se [...] a pele é o órgão da aparência, no homem, pele
corpo, que deformam o corpo, que liberam um corpo que e imaginação (ou mesmo pele e linguagem) se entre-
se move dentro da roupa, em vez de a roupa prender o laçam em uma ligação extremamente profunda. Do
corpo”.23 Essa caracterização dos parangolés nos per- mesmo modo que a roupa exprime a faculdade de
mitem aproximá-los das vestimentas e máscaras indíge- transformar em próprio corpo – em pele – um objeto
nas tais como definidas nas considerações do mesmo mundano estranho, a linguagem é a faculdade de
Viveiros de Castro sobre a “doutrina das roupas animais” fazer de nossa aparência (nesse caso, de nossa apa-
inerente ao perspectivismo ameríndio: “Trata-se menos rência sonora, de nossa pele fônica) uma parcela de
de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo. [...] mundo. Falar significa fazer com que nossa pele exista
Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência fora de nós, alienar nossa pele. A linguagem não é
humana sob uma aparência animal que ativar os pode- senão uma pele móvel. A linguagem humana está para
res de um corpo outro. As roupas animais que os xamãs a roupa assim como a voz dos animais está para a sua
utilizam para se deslocar pelo cosmos não são fantasias, pelagem. Ou então: a pelagem está para a moda assim
mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos como a voz dos animais está para a linguagem.26
de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras

ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS 24 Eduardo Viveiros de Castro, “Perspectivismo e multinaturalismo na


América indígena” (1996), in A inconstância da alma selvagem. E outros
ensaios de antropologia (2002), São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 393-394.
23 Eduardo Viveiros de Castro, “Corpo a corpos”, in
Eduardo Sterzi e Veronica Stigger (org.), Variações do 25 “Sonho, pele, moda e desenho, tatuagem, experiência, linguagem ou

corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo, reprodução biológica: há uma ligação entre vida e imagens que supera

São Paulo: Sesc São Paulo, 2017, p. 11. Cf. Veronica a simples articulação entre substância e acidente ou entre natureza e

Stigger, “O parangolé e a dança dos olhares”, id., pp. operação.” Emanuele Coccia, A vida sensível cit., p. 94.
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22-27. 26 Id., p. 87.


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A partir do que acabamos de ler em Coccia, mas todo o João Gilberto Noll, em tantos outros. É uma
também a partir do percurso labiríntico que fiz até aqui, linha dionisíaca, que não perde de vista que Dioniso
gostaria de propor algumas conclusões: é também destruição).
01. que, para se compreender todo o alcance da virada
pós-concreta que busquei ler a partir dessa imagem 02. O que vimos aqui muda a maneira como com-
marginal que é o mapa desenhado e fotografado preendemos a poesia e as artes daquele momento,
por Eduardo Viveiros de Castro, é preciso levar a a começar pelas relações entre poesia concreta e
sério essas considerações de Coccia sobre pele e poesia marginal: temos menos oposição simples
imaginação, roupa e linguagem. Porque me parece do que uma dialética complexa, cujas sínteses são
muito evidente que um deslocamento fundamental usualmente precárias e provisórias. Mas também nos
que ocorre no período aqui examinado é aquele que permite recuar no tempo e verificar como sempre
faz com que grande parte da poesia brasileira mais houve uma tendência física e sobretudo corpórea
interessante dos anos 70 em diante não seja mais muito forte na poesia brasileira desde pelo menos
escrita por poetas, mas, sim, por artistas plásticos e o modernismo – ver Manuel Bandeira (“os corpos
por criadores inclassificáveis, e que neles a palavra se entendem, mas as almas não”); ver Drummond
escrita esteja sempre entrelaçada com a materia- deixando os poemas eróticos como prenda póstuma;
lidade complexa dos suportes, que rompem, aliás, mas ver também, fora da poesia (mas ainda com
tantas vezes com a própria ideia de suporte como relação forte com a escrita), Flávio de Carvalho ou
instância secundária, e que frequentemente são Maria Martins: é como se a tendência performática
tecidos ou mesmo roupas. Penso em Mira Schendel, que é constitutiva do modernismo nos seus inícios –
mas penso sobretudo em Artur Bispo do Rosário, é a forma mesma da sua emergência, no evento que
Hudinilson Jr. e Leonilson. Mas a lista poderia ser foi a Semana de 1922, segundo a leitura de Osvaldo
muito mais extensa. E talvez pudéssemos conectar Manuel Silvestre e Abel Barros Baptista27 – estivesse

ABORDAGENS INTERSEMIÓTICAS
o que aqui se diz com um constelação de autores sempre lá, como uma espécie de recalcado a retor-
– das mais diversas artes – para os quais corpo e nar sempre de novo.
linguagem se mostram inseparáveis, especialmente
na forma de uma exuberância indomável, que dança
à beira do abismo (penso na Hilda Hilst da prosa,
na Clarice mais espinosana, na Lygia Clark que vai
deixando a arte para trás, no canto-balé de Ney 27 Abel Barros Baptista e Osvaldo Manuel Silvestre,
Matogrosso, nas fotografias de Miguel Rio Branco, “Conversa interessantíssima”, in Seria uma rima, não seria
no Arthur Omar da Antropologia da face gloriosa, no uma solução. A poesia modernista, Lisboa: Cotovia, 2005,
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Rubem Fonseca dos halterofilistas e boxeadores, em pp. 28-29.

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