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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, no. 2, p. 161-170, jul./dez.

, 2010

SOBRE A EXPRESSÃO
DO ESPÍRITO
NA OBR
OBRAA DE AR TE
ARTE

Felipe de Andrade A breu e LLima


Abreu ima*
ima*

Sobre a expressão Sobre Arte e Espírito mito de Fedro, a filosofia platônica já demons-
do espírito
na obra de arte “Ars longa, vita brevis” trou esta problemática de alhures. Formas ou
Sêneca, De brevitate vitae ideias, problemas de expressão ou de per-
Initium dimidium facit, diziam os latinos. cepção; l’œil de l’âme.
Felipe de Andrade
Abreu e Lima Inicio com esta citação a vereda de escre- O processo dialético, a busca da verdade
ver este ensaio sobre o presente tema e, e do conhecimento encontra-se refletido na
ainda, apresento minha opinião individual linguagem de muitas culturas. Dialética: ,
acerca de um ponto que considero relevan- tese, antítese, nova tese e síntese. O proces-
te aos leitores. Venho por meio de minhas so de discussão dialética é indefinido, pois
palavras tentar tornar inteligível algo que a busca do conhecimento pressupõe o que
pertence ao campo do ininteligível. Sendo Platão chamou de dialética ( ),
mais preciso, venho defender a ideia de que a constante contradição de ideias que pro-
há espírito no ser humano, e este espírito se duzem outras novas.
manifesta por obras de arte de relevante Uma cultura e outras culturas, tempos e
valor estético. Apenas devo lembrar que há espaço diferentes e a mesma ideia, que,
um grande problema na relação entre o mun- apesar de mutável, carrega em si a mesma
do sensível e o inteligível: o problema da ex- especificidade: a ideia que iniciar um pro-
pressão e recepção do espírito por meio da cesso dialético converge para seu aprimo-
linguagem sensível. A alegoria da caverna, o ramento. Apesar de estarmos falando de

* Doutor em Arquitetura e professor da FAU/USP.

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coisas antagônicas, ou seja, de espírito e de entrada para a perfeita compreensão da rea-
matéria, há algo a uni-lo, pois é na matéria lidade material, para o real significado e en-
que o espírito se materializa, por uma deter- tendimento da arte6. O belo, para Hegel,
minada linguagem que varia com as cate- possui vida na aparência, sua fonte é o mun-
gorias apriorísticas tempo e espaço. do da fantasia e das criações (Einbildungen),
Mas há, de acordo com nosso ponto de e o pensamento humano as interpreta de
vista, ideias imutáveis; formas eternas de onde acordo com sua forma ou seu conteúdo. A
toda arte de valor estético deriva, além do tem- arte, ou melhor, a bela arte – pois Hegel só
po e o espaço que a produziu. “O Uno, único considera a bela arte como campo de es-
sábio, quer e não quer ser chamado Zeus”, tudo científico da Ästhetik – é a expressão
assim denominou Heráclito de Éfeso a en- autêntica da filosofia da bela arte entendida
tidade superior que rege o espírito. Lembra- como fenômeno espiritual. Contudo, Hegel
mos que as concepções do sistema do saber, coloca as dificuldades de estabelecerem-
conceituadas pelo filósofo Georg Hegel1, di- se critérios válidos para expressarmos e per-
videm-se em três categorias: as ideias de va- cebermos as leis naturais do espírito, visto
lidade universal; as de validade temporária; e que este não segue regras do mundo sen-
a ideia de dialética do saber, da sophia, con- sível. Assim mencionou Hegel:
siderando que o conhecimento segue varia- Mas no espírito em geral e sobretudo na
ções ao longo do tempo e do espaço. Nesse imaginação parece que, em comparação
sentido chegados até agora devemos con- com a natureza, reside claramente o ar-
ceber, a princípio, que as ideias são forma- bítrio e o desregramento, o que por si só
das por visões de mundo, como é também a impede qualquer fundamentação cien-
tífica. Segundo todos estes aspectos pa-
tese do filósofo-sociólogo defendida por Karl
rece que toda bela arte, tanto em sua
Mannheim2 no início do século XX. As “inteli- origem quanto em seu efeito e âmbito
gências flutuantes” (freischwebend Intelli- de abrangência, em vez de se mostrar
genz), menos escravas das regras superficiais adequada ao esforço científico, antes
do conhecimento social, tendem a superar reside em sua autonomia contra a ati-
Sobre a expressão
os “obstáculos epistemológicos”3 que nos im- vidade reguladora do pensamento e não do espírito
pedem de perceber e manifestar o espírito na se mostra adequada à autêntica inves- na obra de arte

obra de arte. Outra problemática surgida é o tigação científica.7


fato de não nos ser ensinado, nas instituições Acreditemos, portanto, que a arte pos- Felipe de Andrade
promotoras do saber, perceber a manifesta- sui duas dimensões: uma material e outra Abreu e Lima
ção espiritual na matéria sensível, pois, como espiritual, mesmo que sua apreensão ou
mencionou Bacon, expressão apresente dificuldades no que
“nos costumes e instituições de escolas, toca à linguagem. A primeira dimensão está
academias, colégios e corpos semelhan- relacionada com telas, tintas, tijolos e qual-
tes, destinados a abrigar homens de sa- quer outro material que venha a ser usado
ber e ao cultivo do conhecimento, tudo pelo artista. A segunda está relacionada
parece adverso ao progresso do conhe- com o conteúdo intrínseco: com o espírito
cimento”.4 do autor-artista. É exatamente na relação
Após considerarmos haver, em verdade, entre esses dois momentos que se encon-
uma manifestação do espírito possível na tra a : a percepção harmônica. A
obra de arte, podemos interpretar a lição beleza perfeita é a adequada percepção des-
hegeliana exposta em Vorlesungen über die se momento. Nesse momento, a espirituali-
Ästhetik 5, na qual o autor demonstra a re- dade é materializada, transformando o infinito
lação entre matéria e espírito, ou seja, entre em finito, o ininteligível em inteligível.
corporalidade e ideal. Nesse ponto, a esté- É fato que essa relação matéria-espírito
tica é entendida por Hegel como a porta de não é sempre perfeita, de modo que o artista

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não percebe sempre o espírito de modo os meios científicos de observação de suas
completo nem consegue materializá-lo per- manifestações. Vem à tona o paralelismo ou
feitamente em sua obra de arte. Há, ao lon- comparação (paragone) entre pintura e poe-
go da história, exemplos de predomínio de sia, ut pictura poesis; apenas pontual na Ars
uma sobre a outra e vice-versa. Percebe-se horaciana. Se a pintura se constitui de três
haver uma relação dialética ( ) no categorias básicas, como entendiam os an-
fenômeno de busca por uma ciência que tigos – circunscrição, composição e luzes –
descreva a beleza. Enfim, entendemos que a retórica compõe-se de cinco: invenção,
o estudo da beleza, visto como ciência esté- disposição, elocução, ação e memória. Não
tica, é um processo dialético cujos cânones há, ao menos hoje, paralelismo possível, mas
variam ao longo do tempo e do espaço. Há apenas ars lunga, pois o ideal de concin-
momentos, ao longo da história, nos quais a nitas – harmonia – habita o âmago do artista
materialidade predomina sobre a espiritua- que as compõe. A compositio rege-se com a
lidade e momentos em que o espírito reina mesma finalidade, a causa é a mesma e o
sobre a matéria. Nesse percurso, o ser hu- objetivo final é a beleza. O mesmo ideal de
mano busca a si mesmo pela arte. A arte comparação podemos ver em Dante, o qual
perfeita, para Hegel, é a arte realista, a re- em seu De Monarchia escreveu:
presentar da forma mais similar possível a Eis portanto o que devemos saber: assim
realidade e o ser humano. Apenas nesse como a arte encontra-se em três níveis,
contexto podemos atingir a máxima com- isto é, no espírito do artista, no instru-
preensão de nós mesmos e, consequente- mento e na matéria enformada pela arte,
também podemos contemplar a natureza
mente, da divindade que nos encerra. É no
em três graus diferentes. (A saber: em
Renascimento que podemos perceber a arte Deus como seu criador, no céu como seu
com um momento de transformação do es- instrumento e na matéria).8
pírito do homem. É quando percebemos
Retornando ao problema de apreensão
que a matéria é encarada de forma divina,
do espírito na obra, devemos conceber que,
na qual surge a verdadeira poesia da arte na
como tentou demonstrar Hegel, as teorias
Sobre a expressão materialidade da vida.
do espírito da história e do conhecimento tendem a
na obra de arte A verdadeira função da arte é, pois, levar tornar-se mais amplas e unitárias, gerando
à consciência os verdadeiros valores do es- sua própria ruína e fragmentação9. A chave
pírito, com um modo inteligível, mas nem da liberdade da consciência humana, sua
Felipe de Andrade sempre compreendido por todos. Compre-
Abreu e Lima superação para percepção de valores ima-
endemos, portanto, que a arte é um produto teriais dentro da própria matéria, ou me-
espiritual, gerada e manifestada por ele, im- lhor, manifestados nesta, tende a gerar sua
pregnando o sensível de espírito imaterial. própria negação enquanto manifestação do
Nesse sentido, a arte é matéria mais do que espírito; consequentemente, a dependência
se pode perceber, pois a partir do momento humana gera a chave de sua própria cons-
em que é transformada pela ação do ima- ciência e liberdade. O processo dialético
terial, agrega valores substanciais que a tor- do conhecimento traz, imediatamente, em
nam superior em sua inteligibilidade. Apesar si, sua negação como consciência liberta-
de um inicial estranhamento (Entfremdung), dora do saber. Contudo, o fato de tornar-se
a força do espírito reside sempre na forma um ser pensante sob uso da dialética para
e no conteúdo da obra material, superan- tomar consciência do saber, traz consigo o
do a alienação ( ) e falta de movimento negativo de não ultrapassar a di-
compreensão das intenções do espírito. alética, ou seja, de não superar a visão posi-
No momento seguinte de percebermos tiva do conhecimento. Pode-se concluir, ao
haver valores imateriais e intenções do espí- menos em termos filosóficos, a tendência
rito na obra de arte, precisamos estabelecer natural que há em todos os movimentos

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sociais, culturais e intelectuais de regredir dadeiro significado de uma obra de arte
após sua evolução. O “devir do saber” (das está, portanto, sempre além da matéria em
werdende wissen) parece ser a chave da si, mas sempre se manifesta por meio
superação da própria dialética. A encruzi- dela. O que é interior e ininteligível se apre-
lhada do conhecimento, desse labirinto, só senta de forma inteligível no exterior. Ape-
pode ser superada por uma “teoria crítica” nas nesse sentido e contexto é possível,
da própria ideia de dialética, podendo, as- em nosso entender, compreender a ver-
sim, superar sua limitação epistemológica. dadeira essência do belo artístico, a real
Enfim, neste ponto de estudo, a visão crí- manifestação do espírito na arte. Obvia-
tica da própria crítica, da própria história e mente, precisamos ter, em nós mesmos,
do próprio processo de apreensão, repro- a idea prima do belo em si, semelhante ao
dução ou criação (para os mais otimistas) modelo platônico de pensar-se idealis-
do conhecimento devem reger nossa aná- ticamente. Nesse sentido, cabe-nos refletir
lise hermenêutica. sobre isso. “Arte laboratum nulla, simu-
Iniciemos esse processo de autocrítica laverat artem Ingenio Natura suo”, assim
hermenêutica com a percepção de a meta- Ovídio descreve a gruta de Diana, suge-
ciência de nosso cotidiano não apresentar rindo que a Natura quis imitar a arte11. Não
meios de julgar o belo da arte, ou seja, a há contradição. A ideia é a origem de todo
manifestação do espírito nas obras. Para o processo dialético, mas não é possível
conseguirmos tal escopo, faz-se necessá- atingi-la a não ser pelo espírito. Cícero,
rio conhecermos o contexto histórico do em seu De oratore, afirma:
objeto tratado e do autor da obra, ou seja, a Penso que não existe em parte alguma
– cultura. Em segundo lugar, su- algo de tão belo cujo original de que foi
perar as intenções pessoais de análise e ave- copiado não seja ainda mais belo, como
riguar, hermeneuticamente, as intenções do é o caso de um rosto em relação ao seu
artista. Superar o conceito ou a ideia de belo retrato; mas não podemos apreende este
que está além das categorias tempo e lugar, novo objeto nem pela visão, nem pela
audição ou qualquer dos outros sentidos;
sem esquecer que os limites da matéria não Sobre a expressão
ao contrário, é apenas em espírito e em
estão presentes no imaterial e ininteligível do espírito
pensamento que o conhecemos.12 na obra de arte
do espírito. Precisamos descobrir, enfim, o
que é belo e imaterial na obra de arte, ou Bem antes de Cícero, Aristóteles já havia
seja, o que de espírito se mostrou na ma- distinguido o mundo sensível e material do
Felipe de Andrade
téria. O conteúdo da obra, a forma como se mundo do ininteligível ou imaterial. No que Abreu e Lima

manifestou e como foi apresentado e apre- toca à concepção do mundo da natureza e


endido pelo espectador. Nesse ponto, me- da arte, também reconhece a necessidade
recemos citar uma passagem de Hegel a de “forma” e “matéria”, visto tudo ser produto
esclarecer-nos esse processo, afirmando: do suporte e da forma13. Já Sêneca, em uma
de suas epístolas, concordando quase ple-
Numa obra de arte partimos daquilo que
namente com a visão aristotélica, anuncia
nos é apresentado de modo imediato e
somente então perguntamos por sua sig-
que a arte contém, em si,
nificação ou conteúdo. A exterioridade em a matéria de que é produzida, o artista
sua imediatez não tem valor para nós, mas por quem é produzida, a forma em que
admitimos que por trás dela haja algo de é produzida e o fim em vista do qual é
interior, um significado, por meio do qual a produzida” 14,
aparição exterior ( )é reafirmando quatro de suas cinco cate-
espiritualizada. A exterioridade aponta gorias. Obviamente, as opiniões acerca do
para o que é sua alma.10 espírito não se esgotam, e o sensível mate-
O real significado da obra está sem- rial (aisthéton) não se desvaloriza em relação
pre além da apreensão imediata. O ver- ao ideal imaterial (noéton).

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A parábola latina: “arte sem ciência não dero rico um pequeno passeio em algumas
é nada” (ars sine scientia nihil est) atingiu linhas antes de falarmos sobre a possibili-
seu ápice como categoria de análise do dade de arquitetar o espírito através com a
saber em nosso discurso, neste instante. obra de arte de alto valor estético. Nesse
Contudo, ao longo do tempo, podemos per- sentido, falemos de arte, em especial das
ceber que seu sentido não poderia mais artes em sentido de liberais, ou melhor, de
ser aplicado sem sua própria negação. artes intelectuais.
Seria mais correto, talvez, a afirmação de a A pintura, por exemplo, tomada como ex-
ciência sem a arte não ser nada (scientia pressão artística de alto valor estético, deve
sine ars nihil est)15, já que toda a expressão expressar uma ideia por meio dos elemen-
do espírito produzida precisa da matéria tos físicos, simbólicos e compositivos. Os
para se manifestar, criando sua própria li- aspectos físicos de uma pintura são o mate-
mitação material. Essa distinção parece rial pictórico, o objeto no qual se pintou e as
superar-se apenas com o “devir do saber” diversas características de cada elemento
(das werdende wissen), como chave da da pintura. Os aspectos simbólicos en-
superação dialética desse fenômeno na globam, além das diversas cores e suas in-
arte. Concluímos apenas o que já foi dito tenções, os valores que são tratados e
inicialmente: a arte é longa e a vida breve. expressos nas obras, como os temas, a re-
Arquitetar o Espírito lação compositiva, os efeitos de luz e som-
bra, de claro-escuro, de precisão do traço
Imagina que alguém expõe por escrito as regras da sua
arte e um outro aceita o livro como sendo a expressão ou efeitos de realismo figurativo. Por fim, os
de uma doutrina clara e profunda; esse homem seria elementos compositivos são os que preten-
um tolo, pois não entendendo a advertência profética
de Ámon, atribuiria a teorias não escritas mais valor
dem, com o uso dos elementos físicos e sim-
do que o de um simples lembrete do assunto tratado. bólicos, expressar algo de alto valor estético.
Uma vez escrito, o discurso sai a vagar por toda parte, Nesse sentido, a composição é a máxima
não só entre os conhecedores mas também entre os
que não entendem, e nunca se pode dizer para
emulação da obra por meio dos aspectos ma-
quem serve e para quem não serve. teriais, é aquela ferramenta na qual o espírito
Platão pode se manifestar mais claramente.
Sobre a expressão
do espírito Mas há ainda outras particularidades
na obra de arte Num amplo contexto, ainda tão com- nesses elementos da pintura, pois, quase
plexo, de tentativas, estilos e meios, de novas sempre, eles estão relacionados entre si,
expressões artísticas e teóricas pelas quais a sem podermos pensá-los separadamen-
Felipe de Andrade
Abreu e Lima
arte e, como pretendo usar como modelo, a te. Compor uma tela com paisagens traz
arquitetura em espacial, passaram desde a obrigação de pensar-se os efeitos de luz
suas primitivas manifestações – ou como as e sombra, as diversas tonalidades da mes-
recentes manifestações do futurismo italiano ma cor ou sua variação, os planos pictó-
após 1909, a Deutscher Werkbund, antes da ricos, a relação de todos esses elementos
guerra na Alemanha, e até mesmo o art déco entre si. A perspectiva, quando pensada
em seus segundos passos, ainda outros fau- intencionalmente, também deve considerar
vistas e cubistas – podemos anunciar que o os efeitos de visão e suas variações a par-
artista pretende fazer algo além do material tir do plano do observador. E ainda mais: o
em suas simples facetas industriais: ele pre- interior do artista.
tende formar um estilo pessoal de formação O tema do interior ou do espírito do ar-
espiritual. O futuro de minha arte é a tradição. tista, expresso na obra de arte, é mais com-
Olhar o passado para pensar o futuro. Essas plexo do que os elementos mencionados
parecem ser palavras que artistas pensariam anteriormente, pois o imaterial de uma obra
antes de executar suas obras. é, definitivamente, omnia materia exclusa –
Imagino que o leitor esteja familiari- além de toda a matéria. A pintura ou qual-
zado com a temática da arte, mas consi- quer outra arte ou expressão deve surgir a

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partir da ação de seu autor, obviamente. jetivo final é sempre a expressão da har-
Contudo, antes de ser expressa pelo ato, ela monia (concinnitas), por intermédio da
surge de uma intenção, de um processo de dialética ( ). A ( )a
emulatio, ou melhor, de uma tradução e percepção harmônica nasce no momento
emulação do autor de seus pensamentos. em que a espiritualidade do artista é
Assim sendo, a ideia a ser expressa está, materializada, transformando o infinito em
em um primeiro momento, no interior do ar- finito, o ininteligível em inteligível. Platão e
tista, mas é expressa apenas pelo ato e fa- Aristóteles confirmam todas as variáveis
zendo uso dos elementos físicos. Para contidas para a compreensão da arte como
expressar conceitos e ideias, valores e vir- expressão de algo maior, algo imaterial.
tudes, o artista deve emular seus pensamen- Platão, por exemplo, menciona:
tos por meio dos elementos pictóricos e ... as artes ou as ciências que se relacio-
ajustá-los em uma composição. O ato deve nam com a arquitetura ou com qualquer
existir para que haja a arte, mas sem a ideia outra forma de construção manual, estão
interior do espírito do artista não há como ligadas originalmente à ação e seu con-
agir. É nesse ponto que entra o juízo estético curso à ciência faz com que sejam produ-
do artista, pelo qual seleciona e arquiteta as zidos corpos que antes não existiam.17
ideias através de seus atos. Os sonetos do Arquitetar é criar percepções de espaço.
florentino Michelangelo Buonarroti expres- O termo arkhitekhton, em Platão e Aristóteles,
sam bem esta percepção da expressão do designa o profissional que dirige os trabalhos
espírito por meio da arte. No soneto LXII de a partir de sua concepção intelectual. Para
1533-1534 escreveu: Aristóteles, por exemplo, o arquiteto é o mais
Dimmi di grazie, Amor, se gli occhi mei sábio projetista. Em sua Metafísica Aristóteles
Veggon ’l ver della beltà, ch’aspiro, mencionou, por exemplo, que o homem de
O s’io l’ho dentro, allor che, dov’io miro, experiência parece ser superior ao possui-
Veggio scolpito el viso di costei. dor de conhecimentos sensíveis, o artista ao
Fala-me por graça, Amor, se meus olhos homem de experiência, o arquiteto ao artí-
Vêem realmente a beleza, que aspiro, fice, e as ciências teóricas às ciências prá-
Sobre a expressão
Ou se eu a tenho dentro de mim, quando, ticas.18 O primeiro teórico da arquitetura, do espírito
onde eu olho, Vitrúvio, autor do célebre De architectura libri na obra de arte
Vejo esculpido o rosto dela.16 decem, diz: A arquitetura depende da ordem
Pensar o espaço no mundo atual, (ordinatione), da simetria (eurythmia et sym- Felipe de Andrade
baseado num contexto matemático de es- metria et decore et distributione), da proprie- Abreu e Lima
paço, reduz-se a geometrizar o espaço pro- dade (dispositione), da economia e do ritmo.19
jetado e tentar refletir uma ideia central: Pintar murais, projetar mobiliário, de-
transformar o homem por meio da arte e senhar pisos, criar composições, essas são
conduzi-lo a uma transformação interior. A todas as mesmas coisas: pensar o espaço
percepção matemática do espaço, atingi- do Homem. Projetar o uso e seu ambiente:
da pelo instinto geométrico, evidencia uma coordenar processos interiores e criar su-
concepção de que, por um processo de gestões. Esta é uma das funções do arqui-
emulação, pode-se perceber a realidade teto: sugerir. O arquiteto é, sob esse ponto
de modo unívoco. A percepção do espaço, de vista, responsável por aqueles que irão
sendo diretamente expressa pela arte, e de fazer uso dos espaços que projetou.
sua concepção artística, conduz o artista A arte do arquiteto e demais artistas de
ao posto de criador de percepções, pois, a modo amplo existe no desejo de moldar os
arte se torna a expressão de algo imaterial espíritos através de sua expressão. Arquitetar
por meio do que há de material, ou melhor, é pensar no que há de mais interno e íntimo
do ideal imaterial (noéton) por meio do do ser, é pensar o seu espírito, aquilo que é
material (aisthéton); lembrando que o ob- além das categorias tempo e espaço.

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Consideração final Nesse mesmo caminho atual de crítica
A água do mar é a mais pura e a mais poluída; para social no qual devemos repensar a formação
os peixes, é potável e salutar, mas para os homens é dos artistas, podemos anunciar a necessi-
impotável e deletéria. O quente é o mesmo que o frio,
pois o frio é o quente quando muda.
dade de reler e emular os conceitos clássicos
de ordem (ordinatione), da simetria (symme-
Heráclito de Éfeso
tria), ritmo (dispositione) e outros mais, sem
Conceber o espaço a partir de preceitos sermos extensivos. A superação do atual con-
matemáticos e geométricos. A antropome- texto artístico é reflexo do mundo social que
tria se torna evidente e é, sem dúvida, ine- vivemos e produzimos. A superação parece
vitável quando se pensa o espaço e seu estar plena de tradição clássica, e esse fato
uso através do Homem, pois este deve ser justifica nossa capacidade de inovar, pois só
a medida de todo o projeto. Essa é já, por si há inovação com a superação das tradições.
só, uma ideia dos antigos helenísticos. De fato, não se pode superar o que não se
Nesse mesmo sentido, os conceitos de com- conhece ou domina – essa é uma das má-
positio e concinnitas refletem-se por meio ximas do processo dialético.
de uma constante busca da harmonia do O “devir do saber” (das werdende wis-
conjunto projetado. sen) parece ser, definitivamente, a chave
A ideia que o espírito se manifestar pela da superação da própria dialética. Dialé-
matéria pode ser coloca em cheque, mas tica: ( ): , tese, antítese,
sua eliminação anula a ideia de arte e de nova tese e síntese. O processo dialético é,
expressão individual. Ao contrário, pensar mesmo, indefinido, o conhecimento pres-
que o imaterial (noéton) pode ser expres- supõe a constante contradição de ideias.
so pelo material (aisthéton) conduz-nos a Para tal escopo, basta haver o que os latinos
um constante processo interior de dialética chamam de:
( ). Initium…

Sobre a expressão
do espírito
na obra de arte

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Notas

1 10
HEGEL, Georg W.. Fenomenologia do espírito. Petrópo- Idem. Cursos de estética. Introdução, v.I, p.43.
lis: Vozes, 2000. A tese principal da qual se ocupa o texto 11
OVÍDIO. Metamorfose. Livro III, 158. Tradução nossa.
é, em nosso entender, a ideia de divisão categórica do 12
CÍCERO. Orator ad brutum, II, 7, apud: PANOFSKY,
conhecimento nas categorias apresentadas de validade
Erwin. Idea: A evolução do conceito de belo. São Paulo:
universal, temporária e dialética.
Martins Fontes, 2000, p.162.
2
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Porto Alegre: Glo- 13
As cinco categorias metafísicas de Aristóteles são:
bo, 1952, p. 137-138.
“matéria”, “forma”, “causa”, “fim” e “motor”. Ver: ARIS-
3
O termo citado foi anunciado pela primeira vez, em TÓTELES. Metafísica. VII, 7, 1032.
meados de 1930, pelo filósofo e cientista francês Gaston 14
SÊNECA. Epístolas. LXV, 2. “Nossos estóicos afir-
Bachelard.
mam, como sabes, que na natureza das coisas existem
4
Apud: BURKE, Peter. Uma história social do conheci- duas delas: a causa e a matéria. A matéria é inerte; é uma
mento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.12. coisa passível de receber todas as formas e que não
5
HEGEL. G.W.F. Cursos de estética. São Paulo: Edusp, agiria se ninguém a pusesse em movimento. Em troca, a
2000. causa, isto é, a razão, informa a matéria e dá a ela a
6 feição que lhe agrada; a partir desta, ela produz obras
A estética, como ciência propriamente dita e ensinada em
diversas. Devem portanto necessariamente existir aquilo
universidades, surgiu em meados de 1740. Seu fundador,
de que é feita e aquilo que a faz. No segundo caso, trata-
o filósofo Baumgarten (1714-1762) referia-se à estética como
se da causa; no primeiro, da matéria”, apud: PANOFSKY,
a faculdade interior do ser humano em conhecer a per-
Erwin. Idea: A evolução do conceito de belo. São Paulo:
cepção da harmonia universal (em grego , ou
Martins Fontes, 2000, p.165.
seja, percepção harmônica).
15
7 Scientia sine ars nihil est – Construção nossa.
Idem. Cursos de estética. Introdução, v. I, p.31.
16
8
MICHELANGELO, Buonarroti. Sonetos, apud: BLUNT,
Alighieri, Dante. De monarchia. II, 2. Ver também a
Anthony. Teoria artística na Itália. 1450-1600. São Paulo:
colocação de São Tomás de Aquino: “Daí que os produtos
Cosac & Naify, 2001, p.89. Tradução nossa.
da arte sejam chamados de verdadeiros em razão da
17
ordem que ocupam em relação ao nosso intelecto: uma PLATÃO. Diálogos. Porto Alegre: Globo, 1961, p.271
casa, com efeito, é chamada uma verdadeira casa quan- 18
ARISTÓTELES. Metafísica. Madrid: Gredos, 1987, p.7.
do consegue se assemelhar à forma imanente ao espírito 19
Texto original: Architectura autem constat ex ordinatio-
do artista.” Suma teológica, I, 1, 16, artigo 1. Fretté-Maré, ne, quae graece ôqîéò dicitur, et ex dispositione, hanc au-
I, apud: PANOFSKY, Erwin. Idea: A evolução do conceito tem Graeci vocitant, et eurythmia et symmetria
de belo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.186-187. et decore et distributione, quae graece dicitur
9
Ibidem. Fenomenologia do espírito. Capítulo IV. Petrópo- (Vitrúvio. Livro I, Parte II). Tradução nossa. Os textos
Sobre a expressão
lis: Vozes, 2000. em grego são incluídos no texto em latim, por Vitrúvio.
do espírito
na obra de arte

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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, no. 2, p. 161-170, jul./dez., 2010
Referências Bibliográficas

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