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Mai. 2022

ARTE DA CAPA: PAULA CALLEJA


2 | MAIO DE 2022

eduardo ferreira ou seja, ante o processo natural de


evolução das línguas — sugere a
TRANSLATO crença numa época de ouro, retida
desde 8 de abril de 2000
num passado distante e idealizado.

PARALIPÔMENOS
A crítica, em geral áci-
Rascunho é uma publicação mensal
da diante de qualquer versão, é da Editora Letras & Livros Ltda.
acentuada no caso do tradutor CNPJ: 03.797.664/0001-11
que se arroga o direito de interfe- Caixa Postal 18821
rir no original: “...corrigir e reela- 80430-970 | Curitiba - PR
borar seus autores [...] me parece

V
uma impertinência. Escreva seus rascunho@rascunho.com.br
olto à obra A arte de es- nessa concepção de linguagem é claro: embora re- próprios livros dignos de serem
www.rascunho.com.br
crever, que reúne en- presente a redução — e mesmo a corrupção — do traduzidos e deixe outras obras
saios escolhidos do livro pensamento, é a única maneira de preservá-lo. E a como elas são”. twitter.com/@jornalrascunho
Parerga und Paralipo- escritura — representação gráfica da linguagem — Boa parte das reflexões facebook.com/jornal.rascunho
mena, de Arthur Schopenhauer, é, ainda, a melhor forma de cristalizá-la, apesar da do filósofo alemão pode-se re- instagram.com/jornalrascunho
traduzidos do alemão por Pedro adulteração que isso acarreta. sumir nesta visão de patamares
whatsapp (41) 99109.4352
Süssekind. Como mencionei na É clara, assim, a valorização do texto como descendentes: do pensamento à
coluna anterior, trata-se de textos instrumento de comunicação e conservação da linguagem; das línguas clássicas
que provocam fundas reflexões so- mensagem: “A palavra dos homens é o material às modernas; do alemão às de-
EDITOR
bre a tradução e a linguagem. mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sen- mais línguas europeias; do origi- Rogério Pereira
Para começar, seria inte- sação passageira com as palavras mais apropriadas, nal à tradução.
ressante apontar a concepção de aquela sensação vive através de séculos nessas pala- Schopenhauer tinha, sem EDITOR-ASSISTENTE
Luiz Rebinski
linguagem cultivada por Schope- vras e é despertada novamente em cada leitor recep- dúvida, uma visão peculiar e pes-
nhauer. Segundo ele, “A vida au- tivo”. Há aqui um elogio, talvez não intencional, à simista sobre linguagem e tradu- EDITORA DE POESIA
Mariana Ianelli
têntica de um pensamento dura tradução que se dá nesse processo de passagem da ção, e expressava suas opiniões
até que ele chegue ao ponto em sensação à linguagem — com a dura ressalva que com tintas fortes. Mas podemos EDITOR DE FICÇÃO
Samarone Dias
que faz fronteira com as palavras: implica o adjetivo “apropriadas”. concluir com uma nota positiva,
ali se petrifica, e a partir de então Quanto ao passo seguinte, a tradução in- embora igualmente peculiar, ci- DIRETOR DE ARTE
está morto, entretanto é indes- terlinguística, o veredicto do filósofo é rigoro- tando um excerto em que o fi- Alexandre De Mari

trutível, da mesma maneira que so, com mais uma metáfora a acrescentar a nossa lósofo aponta para o ideal, em REDAÇÃO
os animais e plantas petrificados longa coleção: “Poemas não podem ser traduzi- plano quase metafísico: “... o do- João Lucas Dusi
Raissa Micheluzzi
da pré-história. Também se pode dos, mas apenas recriados poeticamente; e o re- mínio perfeito de uma língua só
comparar sua autêntica vida mo- sultado é sempre duvidoso. Mesmo na prosa as ocorre quando uma pessoa é ca- DESIGN
mentânea à do cristal no instante melhores traduções chegam, no máximo, a ter paz de traduzir não os livros, por Thapcom.com

de sua cristalização”. com o original uma relação semelhante à que exemplo, mas a si própria; desse IMPRESSÃO
A linguagem pareceria uma se estabelece entre uma certa peça musical e sua modo, sem sofrer nenhuma per- Press Alternativa
redução do pensamento, assim transposição para outro tom”. da de sua individualidade, ela COLUNISTAS
como o Logos se distorce ao ver- Nota-se matiz positivo, certamente não de- consegue se comunicar imediata- Alcir Pécora
ter-se em escritura. Ainda que re- liberado, quando o filósofo menciona a recriação mente na outra língua, agradan- Eduardo Ferreira
Fabiane Secches
duzido (“petrificado”), torna-se como processo indispensável à tradução da poesia. do tanto aos estrangeiros quanto João Cezar de Castro Rocha
repetível e preservável (“indes- Mas a perspectiva geral é negativa, e sua postura aos falantes nativos”. Quanto ha- José Castello
José Castilho
trutível”). O paradoxo enrustido pessimista ante a tradução e as línguas modernas — verá aqui de utopia? Luiz Antonio de Assis Brasil
Maíra Lacerda
Nelson de Oliveira
Nilma Lacerda
Noemi Jaffe
Ozias Filho
Raimundo Carrero
Rinaldo de Fernandes
Rogério Pereira
Tércia Montenegro
Wilberth Salgueiro

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

rinaldo de fernandes Alfred Starr Hamilton


Alonso Alvarez
André Caramuru Aubert
RODAPÉ Antonio Cestaro
Arthur Marchetto

UM CONTO DE
Carolina Vigna
Eloésio Paulo
Giovana Proença
Gisele Eberspächer
Heloiza Abdalla

EDUARDO SABINO
Hugo Langone
Iara Machado Pinheiro
João Lucas Dusi
Jonatan Silva
Maraíza Labanca
Márcia Lígia Guidin
Maria Carpi
Mariana Paz

L
Mario Newman de Queiroz
Michel Deguy
imbo (Caos & Letras), título, é o tempo — trata de um lugar onde o tem- e que a mãe dizia não existir. Um Patrícia Lavelle
Patricia Peterle
de Eduardo Sabino, traz po paralisou para os velhos e em que uma cápsu- pai que já construíra uma outra fa- Paulo Dutra
um conjunto consisten- la misteriosa pode conter o enigma que envolve os mília — a nova esposa é intempes- Valério Magrelli
Victor Simião
te de contos, mantendo o velhos que nunca adoecem; contos de técnica de- tiva, virulenta. Tudo narrado com Vivian Schlesinger
bom nível da produção anterior do purada, como As metamorfoses, que faz um inter- precisão cirúrgica, deixando para o
ILUSTRADORES
escritor mineiro. Contos com pe- texto com Kafka e que é narrado do ponto de vista leitor uma enorme carga de signifi- Aline Daka
gada de crônica, como O pracinha dos objetos de uma casa; contos bíblicos, como O cados acerca dos relacionamentos Dê Almeida
e Antônio Barbeiro; contos cômi- Gênesis segundo um andarilho e O evangelho segun- dificílimos entre o pai e suas mu- Denise Gonçalves
Eduardo Mussi
cos, como Querida, que tem co- do Dow Jones. Mas o conto que mais me chamou a lheres, entre a mãe e a nova esposa Eduardo Souza
mo protagonista um travesti que atenção é o primeiro do livro: O morto. Conto com do pai, entre o pai e o filho e ain- Fabio Abreu
Fabio Miraglia
quebra a austeridade de um veló- todos os elementos do conto bem realizado: com- da deste último com a mãe. Todo Juliano Soares
rio; contos fantásticos, como A ci- pactação, poder de sugestão e ponto de vista narra- um conflito familiar compactado Maíra Lacerda
dade do tempo estagnado, cujo tema tiva ajustado. A história é narrada por um menino numa página e meia de uma nar- Marcelo Frazão
Miguel Paiva
principal, como indica o próprio que vai ao enterro do pai que ele nunca tinha visto rativa singularíssima. Oliver Quinto
Paula Calleja
Pedro Leobons
Tereza Yamashita
Thiago Lucas
MAIO DE 2022 | 3

eu, o leitor
ILUSTRAÇÃO: FABIO ABREU CHICO CERCHIARO

car tas@rascunho.com.br

Capa dura
6
Entrevista
19
Inquérito
Algumas edições do Rascunho Sigrid Nunez Tony Bellotto
deveriam vir com capa dura. A de
abril é uma delas. Destaque especial
para A chatice dos clássicos, do Alcir
Pécora; Flashback, do Assis Brasil;
Sem querer querendo, da Noemi Jaffe;
e a resenha sobre o Anthony
Bourdain, do João Lucas Dusi.
Milton Gurgel Filho • São Paulo – SP
FABIO MIRAGLIA

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Edição de março
Amigos, encômios entusiásticos ao
jornal: João Cezar, coragem de soltar
o verbo e cultura enciclopédica; Tércia
Montenegro, sempre magnífica com o O chiaroscuro
pecado; Assis Brasil e o autor iniciante (de) Machado
assim never give up; Caramuru
apresenta novo poeta; e muita atenção de Assis
ao Marcelino Freire, etc. Paulo Dutra
J. Fausto Toloy • Maringá – PR

De volta para o passado


Parabéns pela lindíssima crônica de
Rogério Pereira, na edição de março:
O álbum incompleto, sobre álbum da
Copa de 82. Um lindíssimo texto, DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO

levantando várias reflexões, acirrando e


muito o saudosismo. Quase completei
o meu álbum daquela que foi a minha
primeira e mais inesquecível Copa do
Mundo. Voltei no tempo.
Raimundo Sales • Caicó – RN

No Twitter
Apesar da pertinência do livro
Uma dor perfeita, de Ricardo
Lísicas, a capa está de doer.
28
O manual às avessas
32
O acontecimento,
Alessandro Dogman
de Szymborska de Annie Ernaux
Li o romance Copo vazio, Iara Machado Pinheiro Carolina Vigna
da Natalia Timerman, e adorei.
Giovana Madalosso

No Facebook
Não entendo. Uma hora dizem
que as vendas crescem, na outra
falam que o mercado tá quebrado.
9
Amores improváveis,
43
Peg pag
Vamos chegar a um acordo [sobre a de Edney Silvestre Alonso Alvarez
notícia “Mercado editorial já vendeu Márcia Lígia Guidin
10 milhões de livros em 2022”].
Ronaldo Santos Lage

Uma reflexão bem-vinda, embora doa


profundamente [sobre a crônica “Progresso
contra progresso”, de Julia Dantas]!
Fatima Mohamed Abrao
14
O resgate de Pagu
46
Fotos de
Giovana Proença Prisca Agustoni
No Instagram Ozias Filho
Vida longa ao Rascunho!

39
Jéssica Santos

Parabéns pelos 22 anos,


Rascunho! Vida longa.
Sofia Lopes

Onde morrem
Obrigado por existir! Amo o
Rascunho! Sempre depois de sair das os beija-flores
páginas de uma edição sinto meu rosto Antonio Cestaro
mais brilhante, encontro em mim

42
motivos para dizer: obrigado por me
ajudarem a ser uma pessoa melhor. arte da capa:
Vicente Netto PAULA CALLEJA

Obrigado pela persistência. Leitores


muito agradecidos aqui. Poemas
Michelle Michel Deguy
MAIO DE 2022 | 5

Ilustração: Miguel Paiva

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

O RAPTO DA
VERDADE
PELO TEMPO

A
os 93 anos de idade, mi-
nha madrinha, Maria
da Paz Guimarães, tem
covid-19. É internada.
Ninguém acredita que ela possa
sobreviver. Pois sobrevive. Ainda
depende de um balão de oxigênio,
alimenta-se só de líquidos, ou pa-
pas, mas resiste. Volta para a casa
de idosos em que vive, em Cam-
pinas. Está mais distante, desliga-
da, mas está ali.
A clínica nos adverte que
deve viver por pouco tempo. De-
cido me apressar, tomo a estrada
para Campinas e vou visitá-la. Sei
que não é só uma visita, mas uma
despedida. Ensaio cada palavra
que quero lhe dizer. Se eu errar,
não poderei mais corrigir.
No ônibus noturno que to-
mo no Rio de Janeiro, tento re-
constituir mentalmente a mulher
que encontrarei. Maria da Paz, a
Didi, foi uma pessoa fundamen-
tal em minha infância. Toda noite,
após o jantar, ia ao nosso aparta-
mento para ler contos de fadas, cochilando sob o sol. A pandemia meira e pergunta: “Por que esse riosa. É claro que eu não sou eu.
sem os quais eu e meus irmãos não me obriga não só a usar uma más- homem insiste em mentir?”. Volta Ou, pelo menos, não sou mais eu.
conseguíamos dormir. Eu tinha 5 cara especial, mas também uma a me encarar. Com a voz mais forte Acato sua decepção e recuo ain-
anos quando ela me matriculou larga bata branca, com mangas que consegue, pede: “Manda esse da mais. Agora puxo uma cadei-
em um conservatório de música. compridas e luvas grossas. Devo, homem embora. Eu não o conhe- ra para bem longe, do outro lado
Levou-me, pela primeira vez, ao ainda assim, me manter à distân- ço. Eu não quero falar com ele”. do pátio, e a observo em silêncio.
cinema. Abriu-me caminhos que cia. Sou um astronauta que de- Recuo lentamente a cadeira, Uma mulher enrolada em sua
ninguém mais abriu. sembarca em Marte. arrasto-a pela grama, mas não me manta e com a boca aberta.
Minha mãe, Lucy, era uma Ela me olha perplexa. Olhos ergo. Desvio os olhos, eu também, Chega a hora do almoço. A
mulher muito triste. Ninguém usa- arregalados, as mãos agarradas aos ensaiando um olhar casual, ou de- governanta traz uma segunda ca-
va essa palavra, ninguém ousava ou braços da cadeira, como que esbo- sinteressado. Também meu desin- deira e a acomoda na mesa, para
mesmo achava que deveria usá-la, çando uma fuga impossível. Treme, teresse não a convence. “Peça para que eu me sente. Não sei se devo
mas era, sim, uma depressão. Cui- não sei se de emoção, ou de medo. ele sair daqui agora”, ela insiste. A fazer isso, mas a mulher insiste e
dava de mim e de meus irmãos Uma enfermeira se aproxima e a enfermeira me faz um sinal para então faço. Almoçamos em abso-
com zelo extremo, mas com frieza ajuda. “Didi, você tem visita, é o que recue ainda mais. Ergo-me e luto silêncio. Mal consigo engolir
extrema também. Só muito depois, Zezinho.” Aos 71 anos, continuo me posto alguns passos atrás, de a comida. Velamos um laço que,
já na velhice, recuperou a ternura. a ser o menino para quem ela lia os pé, encostado a uma janela. em definitivo, se partiu. Nós nos
Em sua tristeza contínua, se via co- contos dos irmãos Grimm. Estarei forçando as coisas? despedimos. Só faltam as velas.
mo uma governanta exemplar. Im- Sem saber o que fazer diante — me pergunto. Não será melhor, Passo ainda um pedaço da
pecável, mas inacessível. de seu assombro, insisto: “Sou eu não será o correto, eu me despedir tarde, à distância, sem dizer nada,
Trabalhava, dia e noite, mas, sim, o Zezinho”. Detenho-me. Ela e ir embora? Mas vim de tão lon- sem tentar mais nada. Ela me ig-
afora as compras no mercado ou continua a me encarar em silêncio. ge e esperava tanto. A tensão que nora. De vez em quando, me olha
na farmácia, não saía de casa. Foi Examina-me de alto a baixo. Pro- minha madrinha traz nos olhos com a cara feia. Será essa a ima-
Maria da Paz quem me levou para cura alguma coisa. Alguma prova. também denuncia não tanto uma gem que levará de mim, a de um
o mundo. Tomou para si o papel Depois, se vira para a enfermeira e frustração, mas uma incapacidade teimoso, de um homem inopor-
de segunda mãe. Não posso dei- pergunta: “Quem é esse homem?”. de encarar o insuportável. Será que tuno, um intruso?
xar de pensar, apesar da dor que A enfermeira sugere que eu ela sabe que não nos veremos mais? Chega a hora de partir. Des-
isso envolve, que não é qualquer tire, por alguns instantes, a más- É a despedida que ela não suporta? peço-me, mas ela não reage. Con-
um que tem duas mães. cara. Faço isso. Maria da Paz me Mas não. Suas palavras são tinua enfezada. No aeroporto de
Uma visita miserável de encara em longa pausa, suspira claras. É evidente que eu não sou Viracopos, carrego a impressão do-
duas horas jamais pagará o que fundo e enfim diz: “Não é ele. Eu eu. Sou um falsário, me introme- lorida de que fui grosseiro, agres-
ela me deu. Ainda assim, preciso conheço o Zezinho. Quem é esse to em uma relação delicada e anti- sivo, de que cometi um pequeno
tentar. Não visitarei só minha ma- mentiroso?”. Recolo a máscara. A ga, estrago, com minha presença, crime. Chego em casa desolado.
drinha, visitarei a mim mesmo e a enfermeira puxa uma cadeira pa- um último sonho que ela deseja Poucas horas depois, rece-
meu passado. Tudo muito distante ra perto de minha madrinha. Não guardar. De alguma forma que bo uma mensagem da diretora da
e cinzento. Ali, porém, se guardam tão perto, mas o suficiente para não posso compreender, eu a de- clínica. Assim que fui embora, ela
minhas fundações espirituais. Ali, que ela possa me ouvir. Sento-me. cepciono. Simplesmente por estar a levou de volta a seu quarto pa-
com Maria da Paz, depois de qua- Digo: “Será que minha voz ali, por insistir em estar ali em um ra descansar. Só então, na penum-
se morrer durante um difícil parto, não a convence?”. Fechando a momento tão extremo, quando já bra do quarto, tremendo, minha
eu pela segunda vez nasci. cara, quase com uma careta, ela não deveria estar, eu a desaponto. madrinha lhe disse: “Eu sabia que
Encontro-a no jardim dos reclama: “Essa não é a voz do Ze- “Não quero mais esse ho- era ele. Eu sabia. Mas não aguen-
fundos, em sua cadeira de rodas, zinho”. Depois, olha para a enfer- mem aqui”, ela insiste, agora fu- tei dizer”. E desandou a chorar.
6 | MAIO DE 2022

entrevista
SIGRID NUNEZ

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Nu
rid
Sig

A graça nos

TEMPOS
SOMBRIOS
Norte-americana Sigrid Nunez fala de
seu romance mais recente, comenta os
caminhos atuais da literatura e diz o que
mudou após vencer o National Book Award

JOÃO LUCAS DUSI | CURITIBA – PR

Tradução: Vivian Schlesinger


MAIO DE 2022 | 7

H
á um bom tempo, e de e cenas do cotidiano. Como rias e várias vezes que ninguém nossa sociedade trata a mulher de-
especialmente depois fun­­ciona, para você, o equilíbrio poderia ter previsto a pandemia pois que ela ultrapassa certa idade
dos momentos mais en­­tre a observação do mundo e de covid-19. Por anos especialis- me interessam particularmente.
críticos da pandemia, o trabalho imaginativo na hora Você deve escrever tas em saúde pública haviam aler- Há muito sobre envelhecimen-
parece que não existem grandes de escrever? o que quer escrever, tado que outra pandemia da escala to que não pode ser considera-
motivos para achar graça das coi- Não tenho consciência de da Grande Gripe de 1918 não era do animador. Mas, como assunto
sas — seja no Brasil, país histori- fazer algum esforço específico e não o que acha uma questão de se, mas de quan- para ficção, é muito rico. De fa-
camente lesado por tudo quanto para equilibrar as duas coisas. É que outros querem do. Comecei a prestar atenção ao to, esta tem sido uma grande des-
é lado, ou nos Estados Unidos,
onde nasceu e vive a experiente
parte de como eu vivo e trabalho
todo dia. Quanto maior o poder
que você escreva.” trabalho do dr. Anthony Fauci
nos anos 1980, durante a crise da
coberta para mim na maturidade:
envelhecer pode ser muitas coisas,
romancista e professora de escri- de observação de um escritor, me- Aids. Li A grande gripe, de John mas entediante é que não é.
ta Sigrid Nunez. lhor escritor será. Quando escrevo M. Barry, quando foi lançado, em
Para a entrevistada desta é natural me basear naquilo que 2004. Eu sabia que a possibilida- • Apesar de passar por temas
edição do Rascunho, no entan- observo na vida ao meu redor, as- de de ocorrer uma pandemia ca- pesados, O que você está en-
to, é “importante lembrar o gran- sim como em minhas próprias tastrófica em algum momento na frentando tem trechos engra-
de papel do humor em todos os memórias e experiências pessoais. minha vida era tudo, menos im- çados. Como vê o papel do
aspectos da nossa vida”. Essa re- Ao mesmo tempo, escrevo porque provável. Mas Salvation City não humor na ficção?
flexão se estende à maneira que quero usar minha imaginação, pa- começou com a ideia de uma pan- Acho importante sempre
Sigrid encontrou para dar certa le- ra ser criativa e inventar histórias, demia; começou com uma ideia lembrar o grande papel do hu-
veza ao seu romance mais recen- para escrever sobre coisas que para um personagem. Após ter es- mor em todos os aspectos da nos-
te, O que você está enfrentando. nunca aconteceram. Meu papel é crito cinco romances com prota- sa vida. Quando leio um romance
Em uma narrativa que tem encontrar um caminho para cons- gonistas femininas, queria criar que não inclui humor me parece
“tanto a ver com doença, morte e truir a narrativa de modo a conter uma história sobre um persona- que algo essencial ficou de fora.
tristeza”, nas palavras da autora, todos esses elementos. gem masculino — um menino. Mesmo experiências trágicas ge-
os momentos cômicos são obri- Eu me dava conta que, durante a ralmente contêm alguns elemen-
gatórios. Esse recurso impediu • Os discursos apocalípticos, gripe de 1918, um grande núme- tos cômicos. Pense em todas as
— numa história que traz desde como o ministrado por um pa- ro de crianças ficaram órfãs — a piadas excelentes que viralizaram
um discurso de abertura apoca- lestrante na abertura de O que autora Mary McCarthy foi uma durante a pandemia e o lockdown.
líptico, ministrado por um aca- você está enfrentando, te assus- delas. A mãe de outro grande au- E um livro como O que você es-
dêmico muito certo das coisas, e tam? Dos anos 1990, quando tor americano, William Maxwell, tá enfrentando, que tem tanto
se desenvolve por meio da rela- lançou seu primeiro livro, até também foi uma vítima daque- a ver com doença, morte e tris-
ção entre a narradora e uma ami- a publicação do trabalho mais la gripe. Com dez anos na épo- teza, obrigatoriamente precisaria
ga com câncer terminal — que o recente, eles aumentaram? ca, Maxwell nunca se recuperou de momentos de leveza para im-
livro se tornasse “implacavelmen- Sim, fico assustada pelo da perda, e sua dor incessante es- pedir que se tornasse implacavel-
te pesado e sombrio”. Não que ela que o palestrante tem a dizer so- tá no coração de toda sua obra. mente pesado e sombrio.
já não tivesse entrado em lugares bre o destino da Terra e da hu- O que você está enfrentando Tentei imaginar como seria para
sombrios anteriormente. manidade. Me assusto porque SIGRID NUNEZ
meu protagonista, um garoto de • Em um trecho do romance,
No romance O amigo, ven- ele está correto sobre as ameaças Trad.: Carla Fortino treze anos chamado Cole, passar há uma brincadeira sobre não
cedor do National Book Award que estamos encarando. E ape- Instante por essa provação. E assim nasceu haver mais tempo para se ler
2018, Sigrid escreveu sobre sui- sar de todas as palavras de adver- 176 págs. Salvation City. livros tão grandes como Gra-
cídio — “o maior dos mistérios”, tência e evidências científicas que ça infinita, do David Foster
conforme explica, já que o ser recebemos por décadas, agora — • Casamento, ter ou não filhos Wallace. Acha que há alguma
humano é o único capaz desse desde bem antes dos anos 1990 e o envelhecimento da mulher verdade nisso? As redes sociais,
ato, o “menos natural que pode- — continuamos em negação. Em são temas que aparecem em O por exemplo, podem ser inimi-
ria haver”. Além disso, conheceu vez de minorar a ameaça, temos que você está enfrentando. Há gas da literatura?
pessoas próximas que tiraram a permitido que se tornem mais e mais espaço, hoje, para discu- Eu mesma não tenho difi-
própria vida e relata que, nos Es- mais terríveis. Então, a essa altu- tir essas questões? A literatura culdade em encontrar tempo pa-
tados Unidos, o suicídio vem au- ra é difícil não concluir que a hu- pode ser uma ferramenta para ra ler livros grandes, mas com o
mentando nas últimas décadas. manidade simplesmente não tem contornar tabus? passar dos anos tenho achado ca-
Por mais que a professo- a vontade coletiva para impedir a Há um longo registro das da vez mais difícil pedir a meus
ra de escrita pareça ter predile- catástrofe futura. tentativas da literatura não só con- alunos que leiam livros que não
ção por assuntos espinhosos, ela tornar os tabus como quebrá-los, sejam curtos. A maioria deles re-
não vê essa mesma espécie de co- • Qual a relevância da litera- e claro, há muitos assuntos ho- siste até mesmo contra uma quan-
ragem de assumir riscos em seus tura em um cenário como o de O amigo je amplamente abordados na li- tidade moderada de leitura para
alunos. “Em vez disso, colocam hoje, em que a guerra nuclear é SIGRID NUNEZ
teratura sobre os quais nenhum um curso. E apesar de as redes so-
cada vez mais fé em ficar ali- novamente uma ameaça próxi- Trad.: Carla Fortino autor poderia escrever e sair ile- ciais serem uma parte enorme do
nhados, aderir ao que eles veem ma e a pandemia atormentou o Instante so no passado. Em romances vi- problema, isso não começou com
como ‘as regras’”, explica. “Que- ser humano? 216 págs. torianos, por exemplo, as pessoas elas. Mesmo antes da existência da
rem sucesso, mas também que- A literatura é sempre rele- parecem ter filhos sem jamais ter internet notei que os alunos che-
rem segurança.” vante porque lida com seres hu- feito sexo. Apesar de o casamen- gavam à universidade cada vez
E para não deixar de apro- manos e a experiência humana. No to ter sido sempre um grande as- menos interessados em literatu-
veitar os mais de 25 anos de expe- entanto, não acredito que a litera- sunto para a literatura, até pouco ra e suas habilidades na leitura e
riência da ficcionista, que estreou tura possa mudar o mundo. O que tempo a maternidade não o era. escrita eram cada vez mais fracas.
em 1995 com A feather on the romancistas podem fazer é explorar Também é verdade que uma he-
breath of God, o Rascunho pediu e iluminar o que está acontecendo roína com uma opinião negativa • Vencer o National Book
que Sigrid deixasse algumas pala- no mundo em um dado momen- sobre casamento e maternidade Award de 2018 com O amigo
vras a quem está começando nesse to histórico. O que eles não po- não seria aceitável para a maioria adicionou algum tipo de ten-
meio repleto de ódio, rivalidade e dem fazer é criar um mundo mais dos leitores. Isso mudou. Nos Es- são a mais na hora de escrever?
ciúme, conforme constatou John justo, ético ou moral, apesar de es- tados Unidos, livros sobre ques- O que o prêmio representou
Updike e com o que, com triste- ses serem assuntos frequentemen- tões da mulher e que focam em para você?
za, ela concorda. te abordados nas obras de ficção. personagens que nem sempre se Fiquei extremamente grata
“Um conselho que sempre Também acredito que, por maior enquadram na heroína feminina pelo reconhecimento. Honesta-
dou a escritores iniciantes é que que seja o desespero, as pessoas vão tradicional, simpática, agradável, mente não pensei que o receberia,
leiam o máximo possível. É assim continuar a escrever. Penso nas fa- têm sido publicados em grande porque nenhum dos meus livros
que se aprende a escrever, não fa- mosas palavras de Brecht: “Em número. Desnecessário dizer que anteriores foi sequer finalista de
zendo cursos ou participando de tempos sombrios/ haverá canto?/ a audiência para esses livros é qua- algum prêmio importante. Tal-
encontros literários, mas lendo Sim, também haverá canto./ Sobre se exclusivamente feminina. Mas vez, se tivesse ganhado o prêmio
outros autores”, diz. Ela comple- os tempos sombrios”. Não acredito que na comunidade literária esse tra- mais cedo na carreira, ele teria um
ta, ainda, sugerindo que é preciso a literatura possa balho é agora tratado com uma efeito maior sobre mim, mas nada
ter cuidado ao escolher as obras e • Seu romance de 2010, Salva- mudar o mundo. O que seriedade e respeito que não re- na maneira que escrevo ou pen-
que a motivação para escrever não tion City, trata de uma pande- romancistas podem cebiam antes. Envelhecer é uma so a escrita mudou como conse-
deve estar ligada com a ideia de mia de gripe. Chegou a revisitar fazer é explorar e das maiores experiências da vida, quência de vencer em 2018. Além
publicar ou fazer sucesso. esse trabalho após o coronaví- então como poderia deixar de ser de vendas muito maiores nos Es-
rus? O que te levou a escrever
iluminar o que está interessante, digno de se pensar e tados Unidos, a maior diferença
• O que você está enfrentan- sobre isso naquela época? acontecendo no escrever? E por eu ser mulher, na- foi no número de edições estran-
do apresenta diversas histórias, Me enfurecia ouvir gente mundo em um dado turalmente a maneira em que en- geiras do meu trabalho que surgi-
análises diferentes da realida- como Donald Trump repetir vá- momento histórico.” velhecer afeta a mulher e como ram desde então.
8 | MAIO DE 2022

DIVULGAÇÃO

Por maior que


seja o desespero,
as pessoas vão
continuar a
escrever.”

• O espanhol Javier Cercas disse, • O amigo discute suicídio. Co- que ele precisa dominar para escre- Sim, sempre as mesmas di-
em entrevista ao Rascunho, que mo foi mergulhar em um tema ver como um profissional, e não é ficuldades. Sei o que sinto e sei
o sucesso pode destruir um es- como esse? Diria que há algu- assim, de forma alguma, que nas- o que quero dizer, mas como é
critor. Como vê essa afirmação? ma espécie de fixação dos escri- ce um escritor interessante. Mas difícil encontrar as palavras cer-
Certamente já vi isso acon- tores por esse tema? o que mais atrapalha escritores tas, criar frases belas e precisas.
tecer a alguns escritores. E você Não acho que escritores te- atualmente é o medo muito real E ainda há a questão de encon-
sabe o que se diz sobre o Prê- nham mais fixação em suicídio do de serem atacados publicamente, trar a forma certa, a melhor for-
mio Nobel ser o “beijo da mor- que outras pessoas. É só que sabe- de serem humilhados, banidos, e ma possível para a história que se
te”, porque há vários escritores mos como eles pensam porque es- silenciados para sempre por terem quer contar. Se você não acerta is-
que nunca mais escreveram tão crevem sobre isso. Penso muito expressado uma opinião diferente so desde o começo, pode se depa-
bem como escreviam após rece- sobre o que disse Camus, que há de outros e que, portanto, seja não rar com um combate imenso.
bê-lo. Mas não podemos esquecer apenas uma questão filosófica sé- só inaceitável mas castigável. Meus
que muito da melhor literatu- ria: cometer suicídio ou não. Em alunos de escrita sempre falam em • O que diria para quem está
ra do mundo foi escrita por pes- outras palavras, se a vida vale viver mostrar sua melhor face, como se começando na literatura, con-
soas que tiveram sucesso. Talvez ou não. Mas também vejo suicídio diz, querendo escrever de tal for- siderando seus mais de 25 anos
não seja uma questão de sucesso, como o maior mistério. Autoassas- ma a receber a aprovação, ou no de experiência?
e sim de fama. Há uma passagem sinato é o ato menos natural que mínimo evitar a reprovação. Mas Um conselho que sempre
em Os cadernos de Malte Lau- poderia haver — e, claro, nós hu- como diz Rachel Cusk, querer que dou a escritores iniciantes é que
rids Brigge, de Rilke, no qual ele manos somos o único animal que o gostem do que você escreve cor- leiam o máximo possível. É assim
lista todas as maneiras com que comete. Conheço algumas pessoas rompe sua escrita. Meus alunos que se aprende a escrever, não fa-
as pessoas tentam e torturam o que tiraram sua própria vida, e uma atualmente têm medo de assumir zendo cursos ou participando de
“solitário” — que para ele, clara- das razões que comecei a escrever quaisquer riscos. Em vez disso, co- encontros literários, mas lendo
mente, refere-se ao escritor — pa- O amigo foi que me chamou a locam cada vez mais fé em ficar outros autores. E deve-se tomar
ra destruí-lo. No fim, ele escreve, atenção que entre meus amigos e alinhados, aderir ao que eles veem muito cuidado com o que se lê,
as pessoas tentam mais uma coi- conhecidos havia vários que, mes- como “as regras”. Querem sucesso, porque, ao final, como disse An-
sa: a fama. “E com esse barulho, mo não estando frente a um peri- mas também querem segurança. nie Dillard, o que você lê é o que
quase todo mundo já levantou a go iminente, estavam convencidos Tenho que dizer que são tempos você vai escrever — da mesma
cabeça e se distraiu.” de que em algum momento no fu- muito desafiadores para qualquer forma que o que você aprende
turo eles iriam se matar. Nos Esta- tipo de escritor dissidente. é o que você saberá. Ainda di-
• Emprestando uma pergunta dos Unidos, aproximadamente nas ria que você deve escrever o que
que surge em O amigo: é verda- duas últimas décadas, a taxa de sui- • Há algum tipo de lição que quer escrever, e não o que acha
de que o mundo literário é um cídio aumentou em cerca de 30%. aprendeu com seus alunos de que outros querem que você es-
lugar de ódio, em que rivalidade Infelizmente, as pressões extraor- escrita ao longo dos anos, em creva. E, finalmente, se você vai
e ciúme estão sempre em jogo? dinárias do presente tendem a au- diferentes instituições de pres- escrever, deveria certificar-se de
Essa é, na verdade, uma ci- mentar esse número. tígio? O mestre pode ser in- que entre suas razões haja uma
tação de uma entrevista de rádio fluenciado pelo aprendiz? que nada tem a ver com publi-
com o autor John Updike. O en- • Pensar a literatura academi- Com certeza. Passo muito car ou com sucesso literário. Em
trevistador fez essa pergunta e ele camente pode, de alguma for- tempo lendo atentamente os ma- outras palavras, além de todas as
respondeu, sim, é verdade. Não ma, atrapalhar a criação? Com nuscritos dos alunos, tentando ver o outras considerações, escrever
deveria ser assim, disse Updike, tantos cursos e recursos à dis- que o autor pretendia para determi- tem de te dar algo de valor pe-
porque a literatura não deveria ser posição, ainda há espaço para nar o que funciona e o que não fun- la simples prática. Todo escritor
uma competição. Ele compara a o escritor “rebelde”? ciona, e por que algo funciona ou deveria contemplar a seguinte ci-
situação a um bote que está afun- Acho, sim, que em alguns não. Esse tipo de atenção é necessa- tação do Bhagavid Gita (das es-
dando porque muita gente está casos as oficinas de escrita e ma- riamente útil para afiar minhas pró- crituras sagradas hindu): “Você
tentando subir, e cada um pensa nuais de como escrever bem po- prias habilidades como escritora. tem o direito de trabalhar, mas
que empurrar o outro fará o bo- dem confundir e inibir uma apenas em nome do trabalho.
te subir um pouco mais do seu la- mente literária original e particu- • Após publicar oito romances, Você não tem o direito aos frutos
do. Há muita inveja e inimizade, larizada. O escritor iniciante co- ainda há dificuldades na hora do trabalho. Desejo pelos frutos
disse Updike. E, que tristeza, tam- meça a acreditar que existe um de começar a criar uma nova do trabalho nunca deve ser seu
bém descobri que isso é verdade. método habitualmente confiável história? motivo para trabalhar”.
MAIO DE 2022 | 9

Marcas de
grafe de Gabriele d’Annunzio re-
força ao leitor essa definição:

Nossa vida é uma obra mági-

um Brasil
ca, que escapa ao reflexo da razão e
mais rica se torna quanto mais dela
se afasta, abraça o oculto e vai con-
tra a ordem aparente das leis.

interiorano Sob moral e ordem (só)


aparentes, o interior do Brasil vai
se modernizando. Porém, num
trecho marcante da obra, subsis-
Amores improváveis
EDNEY SILVESTRE
Globo Livros
194 págs.
tem aleivosias e a devassidão se-
Novo romance de Edney Silvestre, com extravagante xual dos padres no interior do
país, com seus escravos, e sob a
composição gráfica, acompanha a trajetória de quatro vista grossa dos moradores, prote-
mulheres em meio aos duros valores do século 19 gidos pela submissão absurda dos
atingidos nesse cenário.

MÁRCIA LÍGIA GUIDIN | SÃO PAULO – SP Casal improvável


O protagonista — por
quem se apaixonará a primogê-
nita das meninas, Emiliana — é
Felício, órfão, cafuzo escuro, tra-

Q
VICTOR POLLAK zido para um sítio da paróquia
uem não se lembra da Amores onde cria porcos e que, mesmo xando a irmã enlutada e destruí-
polêmica que o Jabu- O breve romance está con- tão jovem, assumirá perante a ci- da. A informação do casamento
ti criou ao premiar co- centrado em temáticas que, em- dade a paternidade dos filhos que civil deste casal (fuga moralizada,
mo livro do ano, em bora já conheçamos bem — do o padre vinha gerando com Do- portanto) e a consequente puni-
2010, Leite derramado, de Chi- século 19, escravista, ao 20, repu- zinha, filha adolescente da zela- ção desta moça nos pesam pela
co Buarque, e não o próprio ven- blicano, com imigração europeia dora silenciosa da paróquia. Um certeza de que as convenções mo-
cedor na categoria romance: Se como força de trabalho, mistura casamento aparente. Esse sórdi- rais italo-brasileiras vigem muito
eu fechar os olhos, de Edney de línguas, valores, culinária e mo- do mundo que conhecemos desde mais que a libertação de uma mu-
Silvestre? Eram dois romances, ralismos, sobretudo italianos —, Machado e Lima Barreto se torna lher em busca do próprio destino
duas visões diferentes do Brasil e são tratadas aqui com concisão e forte na obra. Emiliana, destinada — que nem as sofridas cartas à fa-
muita ideologia marcando a pre- firmeza narrativa. Diz o autor que pela tradição a se manter solteira mília caçula conseguiram minimi-
miação — pela eleição iminente fez muitas pesquisas. “para cuidar da casa e dos pais”, zar. É uma boa narrativa, que teria
de Dilma Rousseff dias depois. Muitas obras entre nós fa- começa a compreender na ado- fôlego para ser mais longa.
As editoras de ambos considera- lam da imigração italiana, árabe, lescência o desejo sexual a partir
ram gravíssimo o episódio e se in- japonesa, judia, húngara, alemã de uma pungente analogia ao co- Composição gráfica
dispuseram uma contra a outra e — algumas delas inesquecíveis. A nhecer o jovem: “A pele desse mo- Quanto à composição grá-
ambas contra o Jabuti. qualidade deste texto, porém, é ço tem cor de jabuticaba”. Ou, na fica da obra, em capa dura e em
Mas foi bom para Silvestre, tentar valorizar algo novo a partir bela imagem do narrador, cores, elogiada por resenhistas e
que levou seu primeiro romance dos amores femininos (não femi- pelo autor, me parece gratuita. Pa-
a best-seller. Muito lida até hoje, a nistas) de sotaque italiano porém O fruto mordiscado de leve ra que este texto seja também um
obra fala de homofobia, racismo, já tão brasileiros, numa cultura para a casca espessa se abrir e soltar “objeto” estético? Ora, o texto en-
crimes e política brasileira num miscigenada que se ampliou a entre os dentes e a língua o líquido xuto, mas firme, não precisava de
período histórico determinado passos largos. grosso de um caroço rijo, envolto em tais enfeites. Há quase uma inver-
— o que harmoniza tematica- A narrativa é dividida em ca- macia polpa branca, de saber doce, são: um capítulo para cada ima-
mente com Amores improváveis pítulos, em geral de uma página, mas não muito. gem, fotos ou ilustrações (várias
(2021). Desde então, o estilo se introduzidos por fotos e imagens sobejamente conhecidas nos acer-
aperfeiçoou — com frases entre- escolhidas pela designer do livro, Será este um amor impro- vos do país — Rugendas, Marc
cortadas, virguladas e longas, que cujo trabalho o autor agradece. vável. O negro Felício, criador de Ferrez, Otto Hees —, alugadas
causam inquietação positiva no Silvestre traz um casal de porcos, casado e pai, um dia não em bancos de imagens).
leitor. E neste romance, com ca- italianos sardos que imigra no mais desviará o olhar da moça loi- Não, a iconografia não traz
pítulos muito curtos, o ritmo sin- fim do século 19 para o interior ra. Senti falta de mais foco nes- “harmonia e composição”; nada
tático peculiar faz ampliar cenas e de Minas, onde, como tantos ou- te amor erotizado, tão silencioso, agrega à história nem tece a ima-
narração. Foi um bom ganho na tros, foi tratado sob os vícios da tão intenso. Esses amantes, afi- ginação de um leitor exigente. As
obra de Silvestre: escravidão. E como outros tantos, nal, são o produto mais desven- imagens são óbvias e ingênuas:
o casal encontraria o caminho de turado de suas prisões sociais. Ele, quando se fala da pele cor de ja-
Ao embarcarem em Caglia- subsistência em outro local, num pai de filhos que nunca teve, e ela, buticaba, a imagem é a própria
ri para uma temporada de trabalho armazém de secos e molhados, na apenas a tia, estão brutalmente fruta; quando se fala em noivado,
de três anos na América do Sul, com fictícia cidade de Ourinho. Ali resignados a seus papéis numa so- o leitor vê duas alianças; quando
a roupa do corpo e mais os poucos criarão as quatro filhas (duas gê- ciedade hipócrita. Só uma vez por se fala em estradas de ferro, lá es-
pertences num único baú de couro, meas ao meio da prole), protago- ano nascem as jabuticabas, e Emi- tá um trem; quando se fala dos
ao lado de outros sardos, em segui- nistas da obra: são elas que vivem liana, que tanto trepara em árvo- belos cabelos das irmãs, mostra-
da juntando-se a genoveses e sicilia- seus amores improváveis — que res brasileiras para colher o fruto, -se uma fivela antiga. Isso é ruim.
nos no porto de Nápoles rumo ao o autor define, ao fim da obra, deixará a adolescência para se es- É assim que se destroem as metá-
outro lado do mundo, Vincenzo e quando afirma que “a primeira conder nesse amor. foras e se emperra um bom texto
Concetta, agora Vivacqua, não po- pessoa a quem associei as palavras Outros amores dividem a no plano denotativo.
deriam imaginar suas vidas entrela- improvável e amor” obra e a família. As gêmeas en- Houve quem dissesse que se
çadas à do rapazinho nomeado oito contraram (como manda o figuri- aplicou aqui a “écfrase” — recurso
anos antes como Felício Theodoro, era uma voluptuosa mulher O AUTOR no) em dois engenheiros italianos, retórico no qual uma arte se rela-
já então devida e definitivamente italiana, que esperava o amante, ci- EDNEY SILVESTRE aqui a trabalho, os noivos para os ciona com outra para definir for-
transferido para o Sitio Santa Zita. dadão casado e pai de família, com quais a tradição rigorosa sorria. ma e essência. Não. Estes trechos
a porta aberta altas horas da noite. Nasceu em Valença (RJ), em 1950. Um dos casais iria a Manaus (pe- da história do Brasil, insisto, so-
Como em obra anterior, Quando saí de lá, já adolescente, ela Tem longa trajetória no jornalismo, la construção da Madeira-Mamo- brevivem sem adereços e para isso
Edney fixa-se no Brasil interio- e o senhor O. provavelmente conti- com destaque para sua atuação como ré), outro a São Paulo (crescendo serve a literatura. O livro sem elas
rano (aqui mineiro) e analisa a nuavam a se ver pelas madrugadas, correspondente da Rede Globo em como metrópole). E as gêmeas, é curto demais? Que o autor o fa-
Nova York. Dedica-se à ficção desde
vida adolescente com seus pri- num improvável amor estável e sa- apaixonadas, e no papel de um ca- ça crescer, como parte do interes-
2009, quando lançou Se eu fechar os
meiros amores para mostrar a tisfatório (...). samento italiano, treinavam com se pelo Brasil e por brasileiros. E
olhos agora — vencedor do Prêmio
transformação de uma socieda- São Paulo de Literatura e Jabuti. O
a mãe a culinária das regiões ita- como o livro não é autoficção, me
de semirrural, de fim de século, Amores improváveis são ilí- último dia da inocência (romance, lianas, que agregariam ao enxoval. atrevo dizer: Edney Silvestre, ana-
que, marcada por duros valores, citos, ocultos, desprovidos de sen- 2019) e Welcome to Copacabana & Entretanto, num amor im- lise menos sua obra dentro da pró-
se vê modernizada pela proximi- so moral ou limites. Mesmo assim, outras histórias (conto, 2016) são dois provável, um dos noivos foge com pria obra. Fale menos sobre ela.
dade do século 20. seriam intensos ou longos. A epí- de seus outros títulos publicados. a irmã mais nova, Fortunata, dei- Cabe a nós, leitores, fazer isso.
10 | MAIO DE 2022

A mística da
O foco do guia muda quando
a Revolução de 1917 toma conta da
cultura soviética, já que, como des-
creve Irineu, “a maior preocupação

literatura russa
dos escritores russos era a mesma
dos demais habitantes do país: so-
breviver” — por essa tensão, muitas
vezes escritores questionaram o pro-
jeto utópico, como visto nas páginas
de Nós, de Zamiátin (1884-1937),
Guia de Irineu Franco Perpétuo serve ao leitor que principal nome no desenvolvimento Como ler os russos
IRINEU FRANCO PERPÉTUO
deseja desbravar uma produção que passou por da distopia moderna, ou de O Mes-
tre e Margarida, de Mikhail Bulgá- Todavia
diversas fases e busca, hoje, se reinventar kov (1891-1940). 304 págs.

Em oposição aos escritores


contrarrevolucionários, a literatu-
ARTHUR MARCHETTO | SANTO ANDRÉ – SP ra oficial tratou de apresentar uto-
pias possíveis do regime soviético.
Apesar de começar sem uma linha
estética definida, Stalin instaurou

A
a União de Escritores Soviéticos e
literatura russa sempre foi um espaço fér- Irineu Franco Perpétuo, ao apresentou como método artístico
til para a reflexão sobre relações de poder e citar o poeta e crítico literário rus- único o realismo socialista. A par-
imbricações do território geográfico — não so Vladislav Khodassevitch, co- tir daí, essa literatura se tornou um
só dentro das narrativas, mas também pela menta que “em nenhum lugar “modo de produzir socialismo, a
própria configuração do campo. Svetlana Aleksiévitch, fora da Rússia as pessoas foram tão máquina de transformar a realida-
uma das poucas ganhadora do Nobel de Literatura longe, por quaisquer meios possí- de soviética em socialismo”, como
com obras de não ficção, é um dos vários exemplos. veis, para destruir seus escritores. descreveu Dobrenko.
Nascida na Ucrânia e nacionalizada na Bie- E, todavia, isso não é causa de ver- Aos que não se adaptavam ao
lorrússia, foi laureada com o prêmio em 2015 pela gonha, mas pode até ser causa de compromisso ideológico e ao su-
sua obra — escrita em russo. Ao longo de cinco li- orgulho. Isso acontece porque ne- per-realismo monumental e he-
vros, Svetlana escreveu e refletiu sobre diversos even- nhuma outra literatura (estou fa- roico, restava a emigração — e a
tos icônicos na história do colapso soviético e que lando em geral) foi tão profética clandestinidade. As publicações
ecoam até hoje. Esse engajamento político e social é quanto a literatura russa”. paralelas, tanto em revista como
um dos elementos que compõem a mística da litera- Nas páginas escritas durante em livro, chamadas de samizdat
tura russa — junto do alfabeto cirílico e dos calha- a Era de Ouro da literatura russa e tamizdat, tiveram um papel for-
maços repletos de personagens com nomes difíceis. surgiam embates entre autores e as te na produção literária russa. Em
O AUTOR
“O escritor russo sempre foi visto como um formas que buscavam para orga- períodos de degelo, livros outro-
profeta ou pregador, um livre-pensador perigoso, nizar a sociedade em que viviam. ra proibidos também foram publi- IRINEU FRANCO PERPÉTUO
ou um revolucionário. A própria habilidade em De um lado, tramas russófilas que cados, como Arquipélago Gulag,
Nasceu em São Paulo (SP), em
manipular palavras e articular pensamentos colo- idealizavam o espaço rural e a vi- de Soljenítsyn (1918-2008), ou
1971. É responsável pela tradução
cava o indivíduo em uma posição suspeita”, escre- da do camponês russo, o mujique. os Contos de Kolimá, de Varlam de diversas obras do russo, como
ve Irineu Franco Perpétuo, jornalista e tradutor do Do outro, uma literatura que va- Chalámov (1907-1982). Memórias de um caçador (2013),
russo, em Como ler os russos. lorizava a abertura europeia e um Os que não furaram essa bar- de Ivan Turguêniev, O Mestre
O livro faz companhia às Aulas de literatu- progressivo processo de ociden- reira foram publicados no exterior, e Margarida (2014), de Mikhail
ra russa: de Púchkin a Gorenstein, da professora talização. Surgem também ima- como é o caso do Doutor Jivago, Bulgákov, e Anna Kariênina (2021), de
e tradutora Aurora Fornoni Bernardini, publicado gens que perdurariam por anos a de Boris Pasternak (1890-1960). A Lev Tolstói, e Memórias do subsolo
em 2018 pela Kalinka. Em Como ler os russos, fio nas letras eslavas, como a figura publicação do romance foi tão com- (2016), de Fiódor Dostoiévski.
Irineu elabora um guia voltado para o leitor brasi- dos homens supérfluos, persona- plicada que foi vista como afronta
leiro que quer começar na literatura russa — e, por gens que “não se identificam com — inclusive, manifestações para a
isso, segue as traduções e recepções dos escritores o mundo em que habitam mas, privação da cidadania soviética. Por
russos em solo nacional. ao mesmo tempo, mostram-se in- fim, Irineu nos leva até a literatura
Apesar de bastante presente no nosso merca- capazes de realizar algum tipo de pós-soviética, momento em que au-
do literário, servindo de inspiração para escritores ação social efetiva”. tores podem publicar oficialmente
como Machado de Assis e Lima Barreto, “não che- Esse momento da literatu- textos não permitidos antes. É o ca-
gamos a ponderar no que há de espantoso em sua ra, que contou com autores como so da já citada Svetlana Aleksiévitch
inserção [da literatura russa] numa sociedade em Liev Tolstói (1828-1910), Fiódor (1948-), Liudmila Petruchévskaia
que a parcela de imigrantes russos ou descendentes Dostoiévski (1821-1881), Ivan (1938-) e Tatiana Tolstáia (1951-).
russos é tão escassa”, diz Irineu. O guia contextuali- Turguêniev (1818-1883) e Ivan
za e apresenta questões que, pela distância geográ- Gontcharóv (1812-1891), tem Centrismo literário
fica e temporal, podem se perder. o processo concluído com Anton Na conclusão desse trajeto,
Tchékhov (1860-1904). Médico, brevemente apresentado, Irineu Per-
Trajetos Tchékhov precisava trabalhar para péuto descreve o “fim do centrismo
Quando falamos de literatura russa, “estamos escrever, diferentemente de outros literário” na cultura russa. Estran- TRECHO
falando de um país em que atores dão recitais de escritores do período, e foi atender geiros, principalmente brasileiros,
poesia, em que a televisão tem mesas-redondas dis- à população no interior da Rússia. quando visitam a Rússia, sentem o Como ler os russos
cutindo a literatura e em que escritores fazem con- Suas experiências tiraram o gla- papel de protagonista da literatura,
corridas conferências com cobrança de ingressos. E, mour que pairava sobre a miséria mas a percepção não é a mesma pa- A literatura da Rússia
se não mais ocupam, por muito tempo ocuparam do mujique e também lançou ba- ra um cidadão russo.
vem sendo, há mais de um
posição privilegiada”, escreve o autor. ses para uma poética do século 20, Citando uma entrevista de
No século 17, a Rússia enfrentou um proces- um trabalho que fez diferença tan- Ievguêni Dobrenko à Folha de século, companheira tão
so de ocidentalização, passando a valorizar moldes to na prosa como na dramaturgia S. Paulo em 2016, Irineu escre- constante de nossas jornadas
artísticos europeus. No campo da literatura, signifi- e em não ficção. ve que “a literatura na Rússia ho- intelectuais que não chegamos
cou que as tradições orais perdiam espaço para uma Com a morte de médico, o je é livre porque ninguém precisa
a ponderar no que há de
cultura impressa. Em um século, um cenário pro- fim da prosa realista deu lugar à dela. As funções de propaganda
pício surgiu para a configuração de um pai criador configuração da Era de Prata na e luta política saíram da literatu- espantoso em sua inserção
da literatura, espaço que Aleksandr Púchkin (1799- literatura russa. Em primeiro lu- ra para outras mídias”. Diz, ainda, numa sociedade em que a
1837) ocupou com uma biografia quase mítica. gar, vemos o desenvolvimento da que “transformados de profetas em parcela de imigrantes russos
A partir daí, a literatura se estabiliza como poesia mística do simbolismo rus- mercadoria, os escritores russos es-
ou descendentes de russos é
uma arte central na sociedade russa ao mesmo so — e o destrinchar dessa cor- tão tendo que se reinventar”. Mas,
tempo em que, pelos longos regimes de censura, rente em outros movimentos, depois de acompanhar Irineu pe- tão escassa. (...) A literatura
se tornam o espaço onde as discussões intelectuais como o futurismo e o acmeísmo. lo livro, não é difícil visualizar a li- russa, como, digamos, o
acontecem. Por isso, os escritores eram vistos como Surgem nomes como os de Fió- teratura russa correndo por outros cinema norte-americano e a
profetas ou filósofos que dissecavam aquilo em voga dor Sologub (1863-1927), An- lugares, em caminhos subterrâneos
música pop britânica, parece
na sociedade. As tramas eram lidas como tratados e, na Akhmátova (1889-1966) e — esperando o momento ideal pa-
nessa lógica, os críticos eram respeitados como in- Maiakóvski (1893-1930) — for- ra florescer novamente. Basta saber nos pertencer tanto quanto a
térpretes desses textos sagrados. tes indicativos do período. quando e como. seu país de origem.
MAIO DE 2022 | 11

luiz antonio de assis brasil


TRAMAS & PERSONAGENS

RITMO
Ilustração: Eduardo Souza subordinação do que períodos co-
nectados por coordenação, e mais
extensos do que costumamos usar.
A melhor estratégia, depois dessas,
é utilizar vocábulos que denotem
lentidão, como caracol ou sécu-
lo. Justo contrário acontece com
as cenas de ações rápidas, em que
faremos predominar frases mais
curtas, bom como a coordenação
sintática e palavras que denotem
1. agilidade, como raio ou queda. Aí
É possível que um ficcionis- entra a imaginação e o conheci-
ta passe toda sua vida sem dar por mento de quem escreve.
ele: o ritmo que impõe às suas fra-
ses. Como se trata de uma palavra 8.
plurivalente do ponto de vista se- [Um bom dicionário é de
mântico, vamos entender “ritmo”, grande ajuda, e não há vergonha
aqui, como a relação entre o ma- em que ele nos lembre do que já
terial narrado e a maior ou menor sabemos. Grande papel desem-
rapidez com que o leitor a perce- penham os dicionários analógi-
be. Tudo parte do princípio de cos, que apresentam as palavras e
que persiste, subterrâneo, o hábi- expressões inseridas em seu cam-
to ancestral de ler em voz alta; não po semântico, independentemen-
esqueçamos: a leitura silenciosa é te da categoria gramatical a que
uma conquista da cultura que se pertencem. Um desses é o Dicio-
costuma a atribuir, com boa do- nário analógico da língua por-
se de incerteza, a Santo Ambrósio. tuguesa, de Francisco Ferreira
dos Santos Azevedo, com prefá-
2. cio de Chico Buarque, no qual o
Não é intenção desta colu- grande artista diz da utilidade des-
na entrar em aspectos fonéticos ou sa obra para o acabamento de seus
fonológicos, mas, apenas, dizer al- romances e letras de música. Ex-
go de útil a quem escreve ficção ou perimente abrir o verbete número
está à busca de uma melhor ex- 31, “Grandeza” para assombrar-
pressividade às suas narrativas. -se com as quantas páginas a que
ele nos leva].
3.
O texto escrito é coisa nova, 9.
novíssima, em termos históricos. Nem tudo é tão matemáti-
E os primeiros, isso avançan- co, porém; uma ação brevíssima
do longamente até o século 18, pode ser contada em 10 páginas
apresentavam uma pontuação e uma ação lenta pode transcor-
anárquica, ou sequer tinham pon- rer em apenas cinco linhas; a ques-
tuação. Os textos medievais, por tão, como dito no parágrafo 7, é
exemplo, eram um continuum de levarmos o leitor a sentir a lentidão
frases que se emendavam umas às ou a presteza, independentemen-
outras; a leitura ficava por conta te de o texto ser longo ou curto. O
de quem tinha de lhes decifrar al- ficcionista é que, considerando o
gum sentido. A conhecida carta conflito, determinará qual a natu-
de Pero Vaz de Caminha, em sua reza da sensação que deseja perce-
versão original, é uma verdadei- bida, e que nem sempre pode ser
ra confusão sintática, e isso expli- definida como agilidade ou lenti-
ca as adaptações que sofre, tendo dão, mas que podem ser conside-
como objetivo dar-lhe um ritmo radas ainda a hesitação, a ênfase,
adequado ao leitor de hoje. a dúvida, circunstâncias que estão
presentes em quaisquer cenas nar-
4. rativas. Essas zonas crepusculares
Falamos em sintaxe, porém fazem a delícia do leitor e exigem
não exatamente sob o aspecto lin- de um sumário. Uma narrativa Andrei Tarkóvski em O sacrifício, ou Lars von Trier, a habilidade do escritor.
guístico, mas, mais adequada- não tem o ritmo de uma marcha no início de Melancolia. Ou os clássicos da Nou-
mente, gramatical, um domínio militar 1-2- 1-2. Temos momentos velle Vague, com Agnès Varda, Resnais, Truffaut, 10.
conhecido de quem teve a opor- em que a personagem está mais re- Godard. Já hoje, salvas as exceções que o cinéfilo Uma das boas práticas, para
tunidade de transitar por uma es- flexiva; noutros, a personagem está adora, predomina um ritmo célere, com tomadas ficcionistas iniciantes — e não só
cola. Essa gramática nos ensina em ação, e, por vezes, em ação fre- de poucos segundos, e isso porque privilegiam-se — é a leitura em voz alta de suas
muitas coisas que jamais esquece- nética. Nossa marcha militar não as ações agilíssimas das personagens. E como tudo próprias narrativas. Reiteramos o já
mos, tal como a básica regra: não resolverá a necessária adequação que se refere à estética, isso não é bom nem mau; é visto noutra coluna: ler em voz al-
se colocam vírgulas entre sujeitos e entre texto e seu conteúdo. Des- o que é. Cabe ver o que podemos aprender disso. ta foi um hábito que persistiu até
predicados. Já aqui vamos em bus- de que foi inventada a pontuação, a Idade Média; não se lia de outra
ca do que funciona e do que não os ficcionistas procuraram subver- 7. forma. Com isso, será recuperada
funciona no texto literário; daí tê-la, não por uma insurreição in- Em relação à narrativa literária, temos a con- a “presença física”, [ou fonética] do
que temos de nos despir das re- fantil, mas porque precisavam de siderar cenas que desejamos lentas, mas não deve- texto, sendo possível dar-lhe o rit-
gras mais duras e ir ao encontro, maiores recursos para dar conta da mos, ou não podemos, punir o leitor com longas mo mais adequado à matéria de
ou melhor, ir à busca de criação expressividade pretendida. descrições de espaço nem de gestos, ou, a morte da que trata. Imagino que aquele leitor
de recursos que façam nosso texto ficção: com reflexões e evocações estáticas da perso- “antigo” não lia da mesma forma a
mais expressivo. E é disso que fa- 6. nagem. O que podemos é dissimular tais momen- descrição de uma batalha da Ilíada
lamos quando falamos em ritmo. O cinema, como sempre, tos, de modo a que a lentidão seja sentida, mas não ou um texto de amor de Ovídio.
tem muito a nos ensinar quanto “lida”. Aí é que entra a técnica do escritor profis- Pode não ser uma solução absoluta,
5. às soluções técnicas que envolvem sional, que tem uma caixa de ferramentas à dispo- mas por certo propiciará, a quem
Refinando nosso campo ci- a gramática narrativa. O especta- sição e, dentre elas algumas enferrujadas, tais como começa, a ideia da inelutável moda-
rúrgico, vamos pensar no que se dor de hoje sabe perfeitamen- a forma infinitiva do gerúndio [“a cantar” em vez lização das sentenças e das palavras.
está narrando, e mais ainda, na ra- te que, nos momentos reflexivos de “cantando”]. A par disso, do ponto de vista sin- Talvez isso implique romper ad hoc
pidez ou lentidão de uma cena ou a câmara estaciona, tal como faz tático, poderá usar mais períodos conectados por com a gramática vigente.
12 | MAIO DE 2022

alcir pécora tar. Com isso, produzia uma du-


pla redução: tanto de seu talento
CONVERSA, ESCUTA como ator como da complexidade
psicológica de suas personagens.

PIADAS QUE PENSAM


Era um recurso de autoironia, co-
mo é fácil notar, mas também de
ironia diante das perguntas usuais
sobre a violência de suas peças.
Além disso, se puxarmos o fio im-
plícito na ideia de “redução” não

P
para a ironia, mas para a sua dra-
iadas que exigem que se ta, herói ou o de comportar-se co- interesse pelo lumpesinato — ca- maturgia, a piada pode acentuar
pense para achar graça, mo um ser humano exemplar, mas tadores de papel, noias, chapas, um ponto fulcral de sua criação:
em geral, são apenas pia- o de ter habilidade para dar forma batedores de carteiras, desempre- a economia de recursos. Poucos
das sem graça. As piadas objetiva a suas inquietações mais gados crônicos etc. —, que não é atores, cenografia mínima, obje-
que Plínio Marcos contava não difíceis de partilhar, justamen- tratado por ele como fenômeno tos ordinários com função tran-
eram assim: ele as deixava escapar te porque ainda não há lingua- marginal, mas como efeito lógi- sitiva, pouco tempo de duração
como se fossem a coisa mais natu- gem para elas. Insisto em que esse co do desarranjo socioeconômico das peças etc. — tudo isso favore-
ral do mundo, e quase sempre ar- ponto do domínio técnico não es- do país, tão longe da livre com- ce a reductio ad essentiam do tea-
rancavam gargalhadas imediatas. tá bastante esclarecido em relação petição como do trabalho organi- tro de Plínio. Sem essa redução,
E, no entanto, passada a corrente à dramaturgia de Plínio, muitas zado. Para Plínio Marcos, o que dificilmente seria possível susten-
irresistível de riso, quem ainda ti- vezes tomada como fruto espon- havia — e isso agora está mani- tar a intensidade que ele alcança,
vesse fôlego, podia desconfiar que tâneo de sua “autenticidade” ou festo para quem quiser ver nas das aberturas in medias res aos fi-
talvez não tivesse entendido toda a de seu talento “natural”. Sem des- ruas de qualquer grande cidade nais explosivos.
extensão delas. Talvez até descon- denhar de ambos, é fundamental — era um processo de exclusão Já no tocante à qualida-
fiasse que that joke was on me, co- perceber que Plínio se inicia mui- estrutural no cerne da urbaniza- de de Plínio Marcos como ator,
mo no célebre refrão. to jovem ainda no ofício de dra- ção e da industrialização brasilei- vale lembrar que, em suas pe-
Uma das piadas que Plí- maturgo, como artista e palhaço ra. O que parecia visão periférica ças, o protagonismo cabe mes-
nio contava repetidamente era de circo, atividade profissional de Plínio ou uma descrição res- mo a personagens com traços de
a de que a sua obra continuava que o preparou, mais que nenhu- trita a guetos — o que o levou clown, cuja função, associada ao
atual porque o Brasil não muda- ma outra, para representar e deba- mesmo a ser acusado de olhar humorismo, é articular o realis-
va. Se pensarmos no Brasil de ho- ter as misérias do Brasil. apenas para o pior lado da cida- mo das peças a certo elemento
je, com o retorno de um governo Falei antes na atenção ex- de — agora está claro que ocupa metateatral, de comentário cor-
quase inteiramente militar e com cepcional que ele deu ao caso do o núcleo de um capitalismo au- rosivo sobre o próprio lugar dos
ideias toscamente regressivas, a candidato Enéas, mas há muitas toritário, predatório e desigual. espectadores na representação das
piada é mais do que verossímil. outras situações tratadas em suas Voltando ao tema da piada catástrofes a que aparentemente
Aliás, considerando a boçalidade peças que apenas agora se percebe que pensa: outra dessas que Plínio apenas assistem, comovidos e so-
reinante no Brasil atual, pode-se o quanto diziam respeito a fenô- Marcos costumava contar era a de lidários. Todos os palhaços que ele
mesmo dizer que, se o país mu- menos históricos centrais na for- que apenas criava personagens que convoca para atuar evidenciam o
dou, foi para pior — o que Plínio mação do país. É o caso do seu ele próprio fosse capaz de interpre- mesmo: que a plateia deve vir pa-
também não deixou de prognos- ra o centro do palco — e, no caso
ticar com todas as letras em dois de Plínio, ocupar o centro é sem-
sketches políticos hilariantes, Lei- pre estar na berlinda.
tura capilar e No que vai dar isso, É verdade que esse aspecto
ambos jamais montados. autoirônico e metateatral, muito
Surpreendentemente esses claro nas peças de Plínio, jamais
dois sketches centravam-se na fi- Ilustração: Thiago Lucas foi destacado pela crítica. Até cer-
gura histriônica e fascistoide de to ponto é compreensível, pois
Enéas Carneiro, que havia sido o elas trouxeram para o palco uma
terceiro colocado da eleição pre- brutalidade inédita nos palcos
sidencial de 1994, à frente de po- brasileiros, e nada pareceu mais
líticos tradicionais importantes visível do que a violência física e
como Orestes Quércia e Ulisses vocabular. Certamente, nada pro-
Guimarães. Hoje está bem mais vocou mais escândalo. Daí até a
fácil ver o que só Plínio Marcos hiperdeterminação de um Plínio
viu naquele momento: o resul- “maldito”, ou “marginal”, foi um
tado era mais do que uma zebra pulo. A meu ver, um pulo de mau
ocasional ou um voto cacareco, jeito, pois o seu teatro nunca quis
entre anárquico e gozador. O que se ocupar de nichos, mas sim do
se apresentava ali ao Brasil da No- que afetava o núcleo da organiza-
va República era o vírus da vio- ção social do país.
lência ressentida e preconceituosa Peças como Navalha na car-
que penetrava todas as classes so- ne, Dois perdidos numa noite su-
ciais, cujo contágio fora amplifica- ja, Barrela, Abajur lilás, Querô,
do pela ditadura militar. Ou seja, Quando as máquinas param, Jor-
agora que vivemos a catástrofe nada de um imbecil até o enten-
eleitoral de 2018, está bem claro dimento, Oração para um pé de
que aquela eleição de 1994 já sig- chinelo, Homens de papel etc. pro-
nificou um primeiro lampejo te- duzem duas viradas históricas na
nebroso da Era Bozo. dramaturgia brasileira: uma, na
Por essa e por outras razões, visada idealista do proletariado
fica cada vez mais claro por que mantida pelo teatro militante de
a obra teatral de Plínio Marcos é esquerda; outra, no viés conser-
chave em termos de compreen- vador de um teatro de repertório
são do Brasil profundo: ninguém que supunha possível conciliar,
mais, como ele, teve cabeça e es- com arte e benignidade, as con-
tômago para revelar algumas das tradições sociais do país.
suas raízes mais repulsivas. Mas Em suma, ao abrir a cena pa-
atenção: conquanto fosse um pra- ra o calão, a gíria, o despojamen-
ticante declarado do tarô, a revela- to cru, o riso ofensivo e absurdo,
ção que nos propiciou tem menos Plínio Marcos criou um teatro
a ver com vidência esotérica do contemporâneo vigorosamente
que com a junção aguda de sen- pensante, ainda enraizado no texto,
sibilidade política e de domínio mas livre tanto de uma concepção
técnico que o artista tinha do seu normativa de língua e de cultura,
ofício. Pois o poder de um artista como de uma totalização benigna
excepcional não é o de ser profe- do caráter “brasileiro”.
22anos
LITERATURA QUE

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O JORNAL DE LITERATURA DO BRASIL


Ilustração: Eloar Guazzelli
14 | MAIO DE 2022

Ilustração: Dê Almeida

Revolução O primeiro, Parque in-


dustrial, é seu romance de es-
treia. Escrito quando a autora

em forma de
tinha 22 anos, o livro foi publi-

MULHER
cado com o pseudônimo de Ma-
ra Lobo — uma das muitas faces
de Patrícia Galvão. Já em Pagu
no metrô, a escritora e pesquisa-
dora Adriana Armony desvenda
a temporada que a militante bra-
sileira passou na França, em uma
obra que transita entre o biográ-
fico e o ficcional.
Os dois livros desvelam
a trajetória da pioneira Pagu.
Considerada polêmica por seus
afetos, agora a escritora e mili-
tante é colocada nos holofotes
por causa de sua produção inte-
lectual, em um bem-vindo revi-
sionismo histórico.
Antes, é preciso fazer uma
observação. Patrícia Galvão não
participou da Semana de Arte
Moderna. Nascida em 1910, ela

P
tinha apenas doze anos quando o
Reedição de Parque industrial, atrícia Galvão se tornou Pagu por um evento aconteceu. Isso não impe-
equívoco de Raul Bopp. O poeta gaúcho diu, contudo, que Pagu bebesse na
primeiro romance proletário do acreditava que o sobrenome de Patrícia fonte dos modernistas de 22, de
Brasil, e lançamento de Pagu era Goulart, o que explica a segunda síla- modo que a autora foi uma entu-
ba do célebre apelido, registrado no poema O coco siasta do movimento antropofági-
no metrô, de Adriana Armony, de Pagu. Mas Bopp não sabia que a homenagem à co. Quando perguntada sobre o
põem a emblemática Patrícia amiga, alçada ao posto de musa dos modernistas, que pensa da antropofagia, ela re-
imortalizaria a alcunha de uma das mais emblemá- bateu: “Eu não penso: eu gosto”.
Galvão em cena novamente ticas figuras culturais brasileiras.
Efervescente, Pagu causou um estrondo nos Romance proletário
âmbitos literários e políticos do país, em um perío- “São Paulo é o maior par-
GIOVANA PROENÇA | TAUBATÉ – SP do de grandes insurreições culturais, com o advento que industrial da América do Sul.”
do Modernismo — já consolidado na Europa — e Assim se apresenta Parque indus-
da revalorização da cultura nacional. Uma revolu- trial, publicado em 1933. Primei-
ção em forma de mulher, Patrícia Galvão ganha, no ro romance proletário brasileiro, o
centenário da Semana de Arte Moderna, dois lan- livro se debruça no cotidiano das
çamentos que gravitam em seu entorno. operárias do Brás. Pagu nos ofe-
MAIO DE 2022 | 15

TRECHOS
É certo que a dicotomia en- ano após a publicação de Par-
tre a vilania dos que mandam no Parque industrial que industrial, é para lá que Pa-
capital e a elevação dos que não gu vai, em estadia que se estende
se submetem a essa lógica impe- Pelas ruas do Brás, a longa fila até 1935. Os anos que a escrito-
de uma possível complexidade do ra e militante política passou em
enredo. Entretanto, não estamos dos filhos naturais da sociedade. Paris são o tema de Pagu no me-
diante de um romance psicológi- Filhos naturais porque se trô, romance de Adriana Armony.
co, composto com artífices como distinguem dos outros que têm Em paralelo com a trajetó-
o fluxo de consciência, a exemplo heranças fartas e comodidade ria de Pagu, apresentada na acurada
do modernismo europeu. Em Par- pesquisa de Armony, conhecemos
Parque industrial que industrial, não há espaço para de tudo na vida. A burguesia também a autora, que se coloca co-
PAGU grandes mergulhos na interiorida- tem sempre filhos legítimos. mo narradora e personagem den-
Companhia das Letras de das personagens, de modo que tro do texto. Entre fatos como as
Mesmo que as esposas virtuosas
112 págs.
o idealismo se expressa na demons- sejam adúlteras comuns. manifestações dos Gilets Jaunes e o
tração crua da realidade social. incêndio na Catedral de Notre-Da-
me, temos relatos e encontros que
Termos estéticos Pagu no metrô podem muito bem ser puramente
O romance de Pagu segue ficção, mas que dão uma nova ca-
a tendência da década de 1930 de mada ao romance, de modo que
destacar o recrudescimento das for- De novo no metrô, estação seguimos os passos de Armony
ças ideológicas. Ainda que Parque République. Já me acostumei com o mesmo gosto com que ela
industrial possa ser visto como com o ritmo regular dos passos persegue os rastros de Pagu.
uma contraposição à Geração de O livro adquire contor-
que martelam os corredores.
30, por focar na realidade urbana nos quase investigativos, em re-
e na metrópole em profusão, o li- Tlac tlac tlac. Mulheres de ferência às narrativas que Patrícia
vro se localiza dentro dos moldes de salto, jovens de tênis, homens Galvão escreveu para a revista De-
seu decênio no que se refere ao teor apressados, turistas, todo um tective, editada por Nelson Rodri-
Pagu no metrô de denúncia social. Pagu nos colo- gues. Como boa pesquisadora,
ADRIANA ARMONY
pequeno exército de pessoas que
ca, então, diante do neorrealismo. Armony traz à luz detalhes da li-
Nós O Brás de Rosinha Lituana, conhecem o seu destino. Eu gação de Pagu com os surrealis-
144 págs. também tenho o meu, só não
Otávia, Corina e Eleonora ressoa, tas franceses, como René Crevel e
em passagens, O cortiço de Aluísio sei ainda por onde começar. André Breton, e os embates entre
Azevedo. De fora da perspectiva do esses artistas e o Partido Comunis-
Sudeste, pode-se pensar em Par- ta. Como boa ficcionista, incorpo-
que industrial como uma espécie ra traços do surrealismo dentro de
de regionalismo paulistano. Com a sua obra, com visões de Pagu espa-
crueza de um Graciliano Ramos, e lhadas por vagões de metrô e por
alguns tons a mais de ousadia, se- sonhos intranquilos.
melhante à crônica de costumes de A velocidade futurista, pró-
Nelson Rodrigues, Pagu expõe as pria da literatura estreante de Gal-
condições do sexo feminino den- vão, também marca as páginas do
tro do capitalismo, sem medo de romance de Armony. A trama se-
cair em um romance panfletário. gue bem conduzida entre a efeme-
Em termos estéticos, Pa- ridade da Paris em movimento e
AS AUTORAS
rece um narrador com pleno en- gu se vale das vanguardas euro- as necessárias explicações acerca
tendimento da realidade feminina peias. Em especial, do futurismo. do percurso intelectual e biográ-
dentro do capitalismo. Apesar da Enquanto as operárias das fábri- fico de Patrícia Galvão.
distância anunciada pela terceira cas têxteis do Brás trabalham em O título do romance evoca
pessoa, a voz do texto compreen- seus teares, Galvão tece a urdidu- o jovem clássico Zazie no metrô
de os amores e desejos das mulhe- ra de seu panorama da vida prole- (1959), de Raymond Queneau.
res proletárias, bem como as suas tária. No melhor artífice literário O francês, assim como Galvão,
lutas e reivindicações. da obra, a velocidade do roman- foi próximo dos surrealistas, e sua
O comunismo, estrela guia ce traduz a vida na metrópole icônica personagem é considerada
de Pagu — a ideologia que nor- em ascensão e o ritmo das fábri- uma menina malcomportada, ró-
teou a maior parte da sua vida cas, com suas frases curtas e cará- tulo que muitas vezes foi também
política — está fundido na urdi- ter fragmentário, como cortes de PATRÍCIA GALVÃO atribuído à Pagu.
dura da trama. Quadros vívidos um filme fotográfico. “De novo no metrô, estação
Mais conhecida como Pagu, nasceu
da mesquinhez burguesa e da hi- A tradição do romance pro- République.” Com esta senten-
em 1910, em São João da Boa Vista
pocrisia da classe dominante são letário passa por grandes nomes co- ça, Armony introduz sua narra-
(SP). Natural de uma família abastada,
pintados pelo narrador, em con- mo Isaac Babel e John dos Passos, foi escritora, jornalista e militante
tiva. As linhas de metrô são mais
fronto com a postura combativa desaguando no Brasil, para além comunista. Em 1933, publica o romance do que o meio que leva a autora
das mulheres proletárias. O erotis- de Pagu, em Jorge Amado. A lite- Parque industrial, considerado o até as fontes de sua pesquisa. São
mo é um bom exemplo da régua ratura socialmente engajada con- primeiro romance proletário nacional. também o cenário dos encontros
moral burguesa. A exploração dos ta ainda com Émile Zola, Charles Morreu em 1962, com apenas 52 anos. imaginários com Pagu, e o sím-
desejos é permitida apenas àque- Dickens e Ivan Turguêniev. Outros bolo da intricada malha de cone-
les, e em especial àquelas, que es- falharam ao recair na exacerbação xões que Armony encontra em
tão no topo da pirâmide social. do documento social, como o rus- sua investigação. Pouco impor-
A imigrante Rosinha Litua- so Nikolay Chernyshevsky, autor ta se estamos diante de uma obra
na vê a atividade sindical como do malvisto Que fazer? (1863). de ficção ou não ficção, ou se Ar-
salvação, mas acaba expatriada Não é o caso de Patrícia mony é autora ou narradora-per-
por causa de sua militância. Cori- Galvão. Criticada por alas do Par- sonagem. O que nos interessa é a
na é demitida quando descobrem tido Comunista por causa de sua devoção apaixonada com que ela
sua gravidez e precisa se prostituir militância, que se voltava à situa- persegue a figura de Pagu.
para garantir o sustento. É con- ção feminina, e vista com descon- A redescoberta de Patrícia
denada, ainda, pelo nascimento fianças por suas origens burguesas, Galvão, mais de um século após o
do filho natimorto. A normalis- Pagu conheceu a realidade sobre seu nascimento, impulsiona a edi-
ta Eleonora se torna a “madame a qual escreveu ao se mudar para ção dos escritos da autora, assim
Alfredo Rocha” e “passa com ele uma vila operária em 1932, seme- ADRIANA ARMONY como a produção de obras sobre
as portas de ouro da grande bur- lhante à francófona Simone Weil. ela. Se Parque industrial é colo-
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ),
guesia”. Após o casamento, con- cado como “um documento social
em 1969. É escritora e doutora em
tudo, esboça um relacionamento Visões de Pagu e literário” e Pagu no metrô está
Literatura Comparada pela UFRJ,
lésbico com a amiga Matilde. Já Em 1934, uma brasilei- com pós-doutorado na Sorbonne
entre a biografia e a ficção, as duas
Alfredo abandona a esposa pa- ra chega em terras francesas. O Nouvelle. Publicou os romances obras nos mostram a renovação da
ra ir atrás do idealismo político país, palco de grandes revoluções A fome de Nelson (Record, 2005), literatura, incapaz de se restringir
de Otávia. Ela, por sua vez, trai o e de manifestos inflamados, pare- Judite no país do futuro (Record, a rótulos. Assim também é Pagu,
companheiro — a favor do Par- ce ser o cenário ideal para uma fi- 2008), Estranhos no aquário (Record, a versátil mulher de muitos nomes
tido que o acusa de Trotskismo. gura como Patrícia Galvão. Um 2012) e A feira (7Letras, 2017) por trás do batom púrpura.
16 | MAIO DE 2022

josé castilho
LEITURAS COMPARTILHADAS Ilustração: Aline Daka

REGRESSAREMOS
ÀS INDULGÊNCIAS?

P
ara o historiador do fu- interesses particulares e, teorica-
turo esses anos bolso­­ mente, entrávamos na defesa da
na­­r istas certamente coisa pública com a imprescindí-
pro­­­­vocarão increduli- vel figura do “cidadão”, ativo, par-
dade pelo sufocante grau de ab- ticipante, que opina e se faz ouvir
surdos e inevitáveis comparações pelos mandatários eleitos e rotati-
com outros períodos obscuran- vos no poder de Estado. Era um
tistas da humanidade, como se novo horizonte a se conquistar.
retornássemos a um passado ab- Dentre os muitos golpes e
jeto. A incapacidade de parte sig- as incontáveis conspirações polí-
nificativa da população brasileira ticas, civis e militares, que sempre
que ainda apoia o aspirante a dés- ocorreram no Brasil quando este
pota em compreender o real sig- novo sistema de organização da
nificado de sua política regressiva sociedade e do Estado começava
é assustadora, e somente pode ser a ganhar corpo e voz com conse-
atribuída ao secular atraso edu- quências sensíveis — avanços nos
cacional e de acesso à leitura que direitos humanos, inclusão econô-
as elites econômicas, daqui e de mica, social, cultural, educacional
além-mar, impuseram à maioria etc. —, nada se compara ao que
do nosso povo nos últimos 500 estamos vivenciando desde o úl-
anos. É uma história conhecida, timo golpe desferido diretamente
dissecada em textos e livros por sobre a primeira mulher que ha-
historiadores e cientistas políticos via conseguido conquistar o posto
de grande respeitabilidade. de presidente da República. Mu-
Na vida como ela é as atro- lher no poder supremo do país,
cidades seguem se multiplican- Dilma tornou-se, ela própria, um
do pelas mãos dos representantes símbolo a ser derrubado pelo atra-
do desgoverno, a maior parte so das elites nacionais. Se o leitor
atingindo frontalmente os direi- tem dúvidas sobre isso, convém a
tos humanos e as conquistas so- leitura dos textos e documentá-
ciais lentamente arrancadas pelos rios que demonstram o afã vil e
movimentos sociais à ganân- antifeminista no processo de im-
cia espoliadora de um capitalis- pedimento, ou mesmo lembrar os ser garroteada e monitorada com punhos fortes. E blia do latim para o alemão, po-
mo selvagem e sem riscos para os xingamentos de ódio sexista que a para isso acontecer é preciso colocar seus protago- pularizando o texto e fazendo sua
menos de 1% que detém, de fa- presidenta recebeu da Câmara Fe- nistas de joelhos, fragilizados. Ministério historica- leitura ser possível sem a interme-
to, a riqueza nacional. Um enor- deral aos estádios. mente débil na história da República, minimizado diação dos religiosos.
me aparato de truculência direta, Se o golpe forjado em frá- pela maioria dos presidentes, não foi tarefa difícil Toda essa revolução religio-
ameaças parcialmente veladas geis “pedaladas fiscais” da presi- para o capitão aposentado colocar boçais em série sa, tecnológica, cultural e educa-
ou explícitas das forças armadas, denta, agora também derrubadas para dirigir a nova secretaria encarregada da cultu- cional contribuiu sobremaneira
compromissos dos estratos mais pelas cortes supremas, foi o pre- ra, arrebentando o bom trabalho iniciado na ges- para as modernas e contemporâ-
refinados dos poderes em seguir lúdio da truculência bestial do tão do imortal Gilberto Gil que, só para recordar, neas concepções de Estado e de
no jogo da política como se vi- período posterior contra a Cons- colocou a questão cultural no seu eixo contempo- República em suas inúmeras teo-
vêssemos sempre na normalidade tituição Republicana, penso que râneo e estratégico: a cultura como valor simbóli- rias, conceitos e práticas. E seus
constitucional, acordos espúrios nada é tão perigoso e tão regressi- co, como direito da cidadania e como economia. reflexos são perceptíveis nas polí-
com forças políticas populares vo a nossa democracia e à organi- No MEC, segundo maior orçamento da Re- ticas públicas pelo menos desde a
corrompidas, tudo isso e muitos zação do Estado brasileiro do que pública, a questão se tornou mais complicada, mas Revolução Francesa e o auge da
outros indicativos fizeram e ainda as tentativas cada vez mais agressi- teve igual tratamento demolidor. A sucessão de mi- Modernidade. Toda essa heran-
fazem parte da enorme constru- vas na área da Educação e da Cul- nistros alinhados com o que há de pior na contem- ça cultural foi deliberadamente
ção da frágil democracia brasileira tura no desgoverno bolsonarista. porânea reflexão autoritária e reacionária acabou se descartada pelo ex-ministro pas-
desde a Proclamação da Repúbli- Articulados como objetos cristalizando no último período pela invasão dos tor e seus colegas pastores traves-
ca no século 19. principais do que os protofascis- chamados “pastores” que, abrigados em suas igre- tidos de redentores populistas e
É importante neste 2022 tas deste governo classificaram co- jas fundamentalistas, procuraram atingir o coração que atuam, conforme denúncia
realçar o estratégico 15 de novem- mo “guerra ideológica ou guerra daquilo que forma a cidadania pátria: a formação em curso, sob as famosas trinta
bro de 1899, mais uma quartelada cultural”, os ministérios da Educa- escolar e a exigência do ensino laico. Este último, moedas que marcam a história do
para muitos analistas. Apesar dis- ção e o da Cultura estão sob ataque por sua vez, baseado na pesquisa científica inde- cristianismo de maneira vil.
so, a data continua a ser a marca constante e severo da escumalha. pendente e nas melhores inteligências que a civili- De todo esse cenário he-
simbólica da entrada do Brasil em O objetivo é um só: destruir para zação humana produziu. diondo, no qual o risco da extin-
um novo patamar de organização perverter, subverter a razão, a ciên- Poderíamos dizer aqui, se olharmos de ma- ção do ensino laico se combina
do Estado, com a separação da cia, a impessoalidade possível na neira macro a origem do universo religioso des- com o ataque à ciência e à tec-
Igreja do poder político, a afirma- República e substituí-las pela cren- ses falsos profetas bolsonaristas, que eles traem sua nologia, a cidadania lúcida tem
ção do estado laico e a supremacia ça de alguns, pela irracionalidade própria história. Foi no século 16, mais precisa- o dever do combate acirrado,
da vontade dos cidadãos consoli- do ódio aos diferentes, pela pessoa- mente em 1517, que Martinho Lutero inicia sua permanente, resiliente. Barrar o
dada em uma Constituição Fe- lidade dos governantes de plantão. caminhada de rompimento com a Igreja Católi- desmonte do estado laico, obje-
deral republicana, lei maior que Em uma palavra, a destruição do ca romana e o Papa, escreve suas 95 teses e lide- tivo mais avançado desse proces-
deveria nos governar tendo como estado democrático e do contradi- ra a maior cisão enfrentada pelo poder religioso so embrionário que tem início na
base os direitos e deveres estipu- tório na multidiversidade. hegemônico no Ocidente que exercia fortíssima educação e na cultura, é tarefa ur-
lados por ela. A elite governan- O MinC foi extinto e sobre influência nos Estados reais e oligárquicos naque- gente do Brasil que lê em defesa
te optava, naquele final de século suas ruínas impuseram uma secre- le período. Importante lembrar que foi graças aos dos concidadãos que ainda não ti-
19, assumir a “coisa pública”, is- taria de cultural instalada sob um instrumentos de desenvolvimento tecnológico que veram o direito à leitura assegu-
to é, a “res publica”, expressão lati- ministério do Turismo, esdrúxu- permitiram a reprodutibilidade de textos impres- rado. Tema, aliás, que ainda está
na que etimologicamente explica la ideia do grupo dominante, mas sos com a invenção da máquina de impressão de ausente nos programas mais avan-
o conceito de república. Saíamos que atende a concepção fascistoi- tipos móveis por Johannes Gutenberg, em 1430, çados dos postulantes em disputa
de uma monarquia que atendia a de de que a ação cultural precisa que Lutero pôde fazer circular sua tradução da Bí- nas eleições deste 2022.
MAIO DE 2022 | 17

tércia montenegro dições): “(...) era pois na infância


(na minha), eu não tinha dúvi-
TUDO É NARRATIVA da, que se localizava o mundo das
Ilustração: Marcelo Frazão ideias, acabadas, perfeitas, incon-

LAVRAR
testáveis, e que eu agora — na mi-
nha confusão — mal vislumbrava
através da lembrança”.

A CÓLERA
Um copo de cólera, no
entanto, tem as suas peculiaridades
— e a questão do jogo é uma delas.
O jogo cênico, o jogo verbal, o
jogo sexual: tudo se relaciona
numa rede de aparências e

V
esconderijos, onde mais vale dar
imos no texto anterior a entender do que se confessar.
desta série como o fa- Dessa maneira, na briga entre os
to de o protagonista, amantes, o narrador deixa claras
na história de Um co- suas estratégias de fingimento,
po de cólera, não aparecer de- como quando diz: “(...) fiz aliás
signado por um nome próprio que partia pro bate-boca, fiz que
contribui para a identificação que ia na dela (...), mas fui montado
poderíamos fazer com o escritor nos meus cálculos”.
que se oculta na obra. Entretan- O disfarce que cada um as-
to, a ausência do nome também sume, as artimanhas de ataque e
pode ser vista como um desejo defesa, entram no livro como uma
de universalismo, simplesmente. verdadeira estratégia cênica. Pode-
O livro trata dos conflitos e dis- mos lembrar as palavras de Mikhail
putas vivenciados por um casal, e Bakhtin, ao dizer, a respeito do dis-
o homem — ou a mulher — em curso de Rabelais, que “o exagero,
questão poderia, simbolicamente, o hiperbolismo, a profusão, o ex-
ser qualquer um de nós. cesso são, segundo opinião geral, os
Voltemos, porém, ao paren- sinais característicos mais marcan-
tesco entre a personagem masculi- tes do estilo grotesco”. Vejamos se tal
na colérica e o adolescente André. estilo também não pode ser apro-
Não são o mesmo indivíduo: sa- priado à descrição seguinte:
bemos, em determinada altura de
Um copo de cólera, que o ho- (...) você me faz pensar no ho-
mem ficou órfão de pai aos tre- mem que se veste de mulher no car-
ze anos, enquanto que André, aos naval: o sujeito usa enormes conchas
dezessete, enfrenta os conselhos e de borracha à guisa de seios, dese-
a fúria do patriarca de sua famí- nha duas rodelas de carmim nas fa-
lia. Embora sejam então persona- ces, riscos pesados de carvão no lugar
gens diferentes, e não uma única das pestanas, avoluma ainda com
personagem em duas etapas de almofadas as bochechas das náde-
vida, existem os laços literários gas, e sai depois por aí com reque-
a uni-los. Produtos de um mes- bros de cadeira (...); com traços tão
mo autor, só podem assemelhar- fortes, o cara consegue ser — embo-
-se, como irmãos de arte. Assim é ra se traia nos pelos das pernas e nos
que, em determinado instante, o pelos do peito — mais mulher que
discurso do homem parece retira- materna, que vê o homem como (...) pensei também na página mais intensa do mulher de verdade.
do de Lavoura arcaica: um menino e sabe receber “aque- seu livro de sabedoria (ao lado da pregação contra o
le enorme feto”, mas, ao mesmo egoísmo), ela que ainda era, com a dispersão da pro- A sátira com que o narrador
(...) sim, eu, o extraviado, tempo, sabe fazer-se ameaçadora: le, a depositária espiritual de um patrimônio escasso, se refere à companheira é uma ca-
sim, eu, o individualista exacer- “era um inseto, era uma formiga”. a lição que ela repetia sempre nas raras vezes que me ricatura que nos leva novamente
bado, eu, o inimigo do povo, eu, o Quando o narrador identifica a via, um filho só abandona a casa quando toma mu- ao neobarroco, se atentarmos pa-
irracionalista, eu, o devasso, eu, a mulher com a formiga, é como se lher por esposa e levanta outra casa para nela procria- ra a explicação bakhtiniana: exis-
epilepsia, o delírio e o desatino, eu, o reconhecesse no sexo feminino a rem, e seus filhos, outros filhos, era esse o movimento te uma “ambivalência profunda e
apaixonado (...) eu, o pavio convul- intrínseca capacidade de ataque, espontâneo da natureza, procriar e com trabalho pro- essencial do grotesco”. Onde nor-
so, eu, a centelha da desordem, eu, a o poder de abrir brechas na cer- ver o sustento da família. malmente se percebe apenas uma
matéria inflamada, eu, o calor per- cadura do homem. exageração realizada com finalida-
pétuo, a chama que solapa (...) eu, Entretanto, esta mulher- Não admira que a disputa entre homem e des estritamente satíricas, há espa-
o manipulador provecto do triden- -inseto, em outras vezes, é vista mulher se faça tão intensa e teatral quanto o con- ço para o humor, o riso e a festa.
te, eu, que cozinho uma enorme cal- com a singeleza de uma ave, lem- flito entre pai e filho: a oposição entre os sexos po- A ambiguidade satírica da carna-
deira de enxofre (...) eu, o quisto, a brando a cena de Lavoura ar- de ser muito parecida com a distância que permeia valização é, portanto, um sinal
chaga, o cancro, a úlcera, o tumor, caica, quando André via a irmã duas gerações. O fazendeiro de Um copo de có- da dubiedade barroca. O termo
a ferida, o câncer do corpo. caminhar por uma armadilha de lera, aliás, não parece ter tido uma infância muito grotesco, aliás, é usado no teatro
sedução, feito uma pomba a ser diferente daquela em que o menino André estive- como referência ao drama român-
O desejo de declarar-se mal- aprisionada: “(...) os peitos empi- ra adormecido: tico, que com frequência transi-
dito colabora para a intensidade nados subindo e descendo, as pe- tava da tragédia para a comédia,
dramática e para o conflito que o nas todas do corpo mobilizadas, (...) tínhamos então as pernas curtas, mas de- completando assim um circuito
homem estabelece com a parceira. tanto faria dizer no caso que a ave baixo desse teto cada passo nosso era seguro, nos pare- de opostos que outra vez nos le-
Esta, aliás, também é vista de ma- já tinha o voo pronto, ou que a cendo sempre lúcida a mão maciça que nos conduzia, va aos extremos barrocos.
neira ambígua, assim como Ana, de ave tinha antes as asas arriadas”. era sem dúvida gratificante a solidez dessa corrente, Travestir-se de palavras,
Lavoura arcaica. Mistura de santa Mas a mulher de Um co- as mãos dadas, a mesa austera, a roupa asseada, a pa- criar seu próprio carnaval, faz
e pecadora, a irmã de André contra- po de cólera, longe de ser a cam- lavra medida, as unhas aparadas, tudo tão delimita- parte das ardilezas do combate
cenava secundariamente no livro, ponesa incorporada por Ana, faz do, tudo acontecendo num círculo de luz, contraposto narrativo. A linguagem tem im-
surgindo como a razão do conflito, parte de um universo bem dife- com rigor — sem áreas de penumbra — à zona escu- portância decisiva na encenação
concentrado no amor incestuoso. rente do rural. Jornalista, femi- ra dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do da cólera, na obra de Raduan Nas-
Entretanto, a mulher de nista, democrata, seu discurso se demônio toda mancha de imprecisão. sar. O próprio texto acentua esta
Um copo de cólera é bem mais faz ouvir como uma fala autô- característica: “(...) eu disse tro-
ativa e participante da história, noma, que constrói o seu perfil Se a infância parece ser o momento da se- cando de repente de retórica (...),
ainda que durante a maior parte de personagem. Porém, em de- gurança e do aconchego familiar, se o homem re- argamassando o discurso com ou-
do livro o narrador seja o homem. terminados momentos, as ideias corda o menino como um ser tranquilo em seus tra liga, me reservando uma hóstia
A ambiguidade desta nova perso- que ela defende, as regras que es- limites de criança, depois da perda da inocência tu- casta e um soberbo cálice de vi-
nagem feminina está não apenas tabelece, soam como uma nova do se transtorna. É assim que o narrador constata nho enquanto entrava firme e coe-
do seu perfil de fragilidade e for- lavoura arcaica, semelhante à que que a maturidade traz incertezas (da mesma for- so (além de magistral, como ator)
ça. Ela é, por um lado, a figura pregava o pai de André: ma que a adolescência de André lhe trouxe contra- na liturgia duma missa negra”.
18 | MAIO DE 2022

wilberth salgueiro

HÁ,
SOB A PELE DAS PALAVRAS

grassam por aí. O leitor deverá os- que têm presas no olhar” serão se- Homens voláteis, dispen-
cilar entre o espanto de identifi- dutores? “Os prósperos desprepa- sáveis, tímidos, românticos, sen-
car amigos definidos nas frases e o rados” serão meritocratas, ricos suais, racionais, carentes, falsos,
espanto de se reconhecer, com al- mas incompetentes? “Os que vão violentos, oportunistas, calculis-
gum mal-estar, em algumas delas. lamber o limbo”: insignificantes, tas, pedantes, delicados, chatos,
Nos 33 versos em forma de prosa, que ficarão esquecidos? “Os belos narcisistas, sedutores, delicados,
há de tudo um muito. atormentados” serão narcisistas hipócritas, fofoqueiros: de tudo
A impressão de poema não em crise? “Os previsíveis sem sal” há em Há. Esse poema dialoga,
vem somente do fato de o texto se assemelham a chatos. Mas “ter- estreitamente, com o também

DE LEDUSHA
estar em livro catalogado como nos de abraço manso” lembram poema em prosa Rombos, em
“poesia”, e assim estar rodeado de pessoas delicadas. Já os que “usam que Ledusha enumera mulheres
poemas em versos. Há uma de- o saber como arma de poder” lem- e atitudes: “Marta é tão delica-

SPINARDI
liberada elaboração rímica e rít- bram o final da Lição de Barthes: da que escolheu deixar saudades.
mica, portanto, sonora. Quase são arrogantes. Um pouco paren- Lia comprou palmeiras e depois
todos os versos possuem sete síla- tes daqueles que citam sem parar: cadê varanda? (...) Lídia aboliu
bas, e alguns outros, oito; o ver- pedantes. Há “os que gostam de o sexo e agora só vai de ópera e
so mais longo — “Os que usam mulheres” e “os que gostam das dieta à base de aipo. Silvia tro-
o saber como arma de poder” — mulheres”, isto é, os que as veem cará as cortinas e as próteses ma-
pode ser lido como se fora dois como objeto ou como sujeito. “Os márias. Dulce deixou a análise e
versos heptassílabos. As 33 rimas mitos desamparados” serão gênios mandou o fulaninho, de carri-
Os que só tragam com filtro. externas têm como tônicas as vo- incompreendidos? Em “vampiros nho, enfim, às favas. (...) Renata
Os que conduzem a dança. Os de gais: “i a a i a i a a i a a a e a e e a por trás de lentes” algo soa bem nem pensa em ter filhos, apesar
papo requentado. Os que espalham e a e a i a i o i e a i a a e a”, ou se- enigmático: será uma figura fria do alto salário. Norma diz que
o conflito. Os grosseiros de foulard. ja, até o longo verso supracitado, e calculista? “Os que só querem se mata caso o cachorro só lata.
Os que fazem as cutículas. Os que com rima interna em /e/ (saber, mamar” são, salvo engano, apro- Rita rendeu-se ao gringo, ago-
têm presas no olhar. Os prósperos poder), há 12 versos só com rimas veitadores e oportunistas. “Os que ra que ficou surda”. A epígrafe
despreparados. Os que vão lamber em /i/ e /a/; depois, se alternam portam falos bélicos” devem por- de Lacan — “La femme n’existe
o limbo. Os belos atormentados. sequências de rimas em /a-e/, em tar violência e tristeza. “Os ma- pas” — amplia a provocação.
Os previsíveis sem sal. Os ternos /a-i/ e novamente /a-e/. Há ape- rinheiros sem mar” podem ser Essa técnica da enumeração
de abraço manso. Os que usam nas uma rima (aparentemente) falsos, demagógicos. Tudo é e não a poeta também utilizou em be-
o saber como arma de poder. Os isolada em /o/ — “Os que devo- é, diria Riobaldo. líssimo poema, Imaginar, do livro
que citam sem parar. Os que gos- ram” — que, na verdade, dialoga A essa altura, enredado, não A lua na jaula, finalista do Jabu-
tam de mulheres. Os que gostam semanticamente com o verso an- há mais volta para o leitor. O jogo ti em 2019, em que vai aludindo
das mulheres. Os mitos desampa- terior — “Os que decifram”. exige que o leitor vá — em fren- a Drummond, Torquato Neto,
rados. Vampiros por trás de len- É bom reforçar toda essa su- te. “Os que nos devolvem o riso” Emily Dickinson, Manuel Ban-
tes. Os que só querem mamar. Os til mas firme estrutura, resultado serão solidários ou, ao contrário, deira, Ana Cristina Cesar, Oswald
que portam falos bélicos. Os ma- da referida reescritura (do jornal rancorosos? “Sensíveis sem onde de Andrade, Hilda Hilst. Os ver-
rinheiros sem mar. Os que nos de- ao livro), pois isso retira a impres- morar”: carentes? Há “os que de- sos que dedica a Ana C. são dos
volvem o riso. Sensíveis sem onde são de mera enumeração espon- cifram e os que devoram”: enigma mais belos em língua portugue-
morar. Os que decifram. Os que taneísta. Em Minima moralia, e intérprete. “Casados infantiliza- sa: “as asas de lava de Ana Cristina
devoram. Casados infantiliza- Theodor Adorno diz que “Os tex- dos” parece paradoxal, parece al- zumbindo no ar/ e se espalhando
dos. Os que consertam cadeiras. tos assaz elaborados são como as guém que adentrou uma ordem sobre as ruínas de Copacabana”.
Os indeléveis carnais. Os de cora- teias de aranha: densos, concên- que não domina. “Os que con- A propósito, parte do ostracismo
ção falido. Raros sexys calados. Os tricos, transparentes, bem arqui- sertam cadeiras” são práticos. “Os a que a crítica tem injustamente
gananciosos banais. Marxistas que travados e firmes. Absorvem em si indeléveis carnais” são sensuais. deixado a obra poética de Ledu-
espancam mulheres. Os que se des- tudo quanto ali vive. As metáforas “Os de coração falido” talvez sha talvez se deva a uma incons-
mancham no ar. que esquivamente passam por eles sejam românticos — ou desi- ciente comparação entre as duas

E
convertem-se em presa nutritiva”. ludidos do amor. “Raros sexys ca- obras. Ambas, Ledusha e Ana
sse poema em prosa Há, aqui, uma síntese do que faz o lados” são também sensuais, mas C., têm muitas afinidades, tive-
foi publicado no livro texto de Ledusha: atrai o leitor-in- tímidos. “Os gananciosos ba- ram suas obras publicadas na cé-
Exercícios de levita- seto, agora presa. Importa, sobre- nais” são capitalistas sem escrú- lebre coleção Cantadas literárias,
ção, de Ledusha Spi- tudo, seguindo o espírito do livro pulos. “Marxistas que espancam da Brasiliense: a paulista, com Fi-
nardi, em 2002. Antes, contudo, como um todo e de seu título — mulheres” envergonham a causa nesse & fissura, em 1984; a ca-
apareceu na coluna Risco no dis- Exercícios de levitação — dei- e a humanidade. rioca, com A teus pés, em 1982.
co, jornal Folha de S. Paulo, em xar-se levar pelas imagens, pelas A última frase-verso, “Os A crítica de poesia, radicada na
25 de outubro de 1998. Do jor- metáforas que as frases desenham que se desmancham no ar”, não universidade, ficou e é fascinada
nal ao livro, alguns “versos” (isto e insinuam, tentando desentra- só recupera a penúltima, porque pela poesia de Ana C., e isso pode
é, algumas frases) sumiram, outros nhar sentidos delas, sabendo-se, vem da famosa máxima do Ma- ter contribuído para ofuscar poé-
entraram; alguns mudaram de lu- desde sempre, estar sendo captu- nifesto Comunista de Marx: “tu- ticas semelhantes.
gar, outros foram reescritos. Em rado pela teia da aranha. O que do o que é sólido se desmancha Mas nem tão semelhante
síntese, dois sumiram, cinco en- será esse tipo de homem “que só no ar”, mas sintetiza o espírito do assim. Ana C. dificilmente assi-
traram, três foram remanejados e traga com filtro”? Machões, for- poema Há. Na máxima de Marx, naria alguns dos clássicos e deli-
três ganharam nova versão. Trata- tes, destemidos? E homens “que lida sob múltiplas perspectivas, ciosos poemas curtos de Ledusha,
-se, portanto, de um novo texto, conduzem a dança” serão líderes, sobressai a ideia de que, se mes- como: De leve: “feminista sába-
e o trabalho de reelaboração já diz pessoas com iniciativa? E aqueles mo as coisas sólidas são passíveis do domingo segunda terça quar-
bastante do teor geral do poema, de “papo requentado” serão sujei- de transformação, as coisas em ta quinta e na sexta/ lobiswoman”,
que fala da diversidade, mas mais tos tautológicos, repetitivos, pre- tese abstratas, como as comple- ou Nocaute: “exagerei no decote/
ainda da adversidade dos homens. cários intelectualmente? xas relações sociais, por exemplo, sapequei-lhe/ um verso de goethe/
Entre o título — o verbo O gosto e o desafio de des- são mais ainda, e portanto ideias, saí de fininho”; ou Finesse e fissu-
“Há” — e os versos, quase todos vendar cada frase grudam no lei- crenças, sistemas estão submeti- ra: “melindre da língua/ fetiche do
iniciados pelo pronome “Os”, tor, que vai se perguntando: “os dos a transformações regidas, ao meu verso que aflora/ minha fi-
uma elipse se evidencia, e a pa- que espalham o conflito” se- fim e ao cabo, pelo movimento nesse que finda/ minha tendres-
lavra que pulula a cada sentença rão intrigueiros, fofoqueiros? Se- da história e de suas lutas. As- se que míngua/ minha fissura
é mesmo “homens”: “há homens rão hipócritas ou anacrônicos sim, no poema em prosa de Le- que implora”. Em ambas, contu-
que só tragam com filtro”, “há “os grosseiros de foulard”, ou se- dusha, o último verso (“Os que do, e com certeza, a ternura ri-
homens que conduzem a dan- ja, alguém que veste algo, uma se desmancham no ar”) pode es- ma com ironia, a elegância com
ça”, “há homens de papo requen- echarpe, que não lhe cai bem? Os tar se referindo, crítica e paro- contundência, a delicadeza com
tado”, “há homens que espalham homens que fazem as cutículas se- dicamente à frase de Marx, mas engenho. Ledusha trama: não
conflito”, e assim por diante. A rão delicados, civilizados, quiçá fe- também, considerando o con- desmancha. Ledusha levita, ris-
escritora faz um mapa bastante ministas? E assim vamos, verso a junto do poema, a homens vo- ca, enjaula. Há muita Ledusha,
amplo dos tipos de homens que verso, na dança das hipóteses: “Os láteis ou dispensáveis. aranha, à espera da sua fissura.
MAIO DE 2022 | 19

CHICO CERCHIARO

inquérito
TONY BELLOTTO

O MELHOR
POSSÍVEL

A
o descobrir que havia al-
guém por trás da criação
de histórias, o paulistano
Tony Bellotto soube que
precisaria trilhar o caminho de fic-
cionista — aberto a qualquer as-
sunto, indiferente à inspiração e
guiado por “todas as dúvidas, ne-
nhuma certeza”, em busca de fazer
o melhor possível. Além de uma
trajetória longa no Titãs, Bel-
lotto se dedica à literatura des-
de 1995, quando lançou Bellini
e a esfinge, e segue produzindo
até hoje. Sua publicação mais re-
cente, Dom (2020), foi adaptada
para uma série original da Ama-
zon Prime Video, criada por Bre-
no Silveira e com Gabriel Leone
no papel principal.

• Quando se deu conta de que


queria ser escritor?
Quando descobri que al-
guém escrevia as histórias.

• Quais são suas manias e ob-


sessões literárias?
Minha obsessão literária é a
família. Minha mania é reler, re-
ler, reler.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou
• Que leitura é imprescindível inspiração?
no seu dia a dia? Caixa de sucrilhos Kellogg’s.
Cada dia, um dia. Hoje é a
Consciência de Zeno. • Quando a inspiração não vem...
Escreva do mesmo jeito.
• Se pudesse recomendar um li-
vro ao presidente Jair Bolsona- • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de
ro, qual seria? convidar para um café?
Um manual irresistível de Tolstói.
autoimolação. Dom
TONY BELLOTTO • O que é um bom leitor?
• Quais são as circunstâncias Companhia das Letras Aquele que se lembra de levar o livro para a
344 págs.
ideais para escrever? sala de espera do dentista.
Vontade.
• O que te dá medo?
• Quais são as circunstâncias A possibilidade do Bolsonaro se reeleger.
ideais de leitura?
Todas. • Um autor em quem se deveria • O que te faz feliz?
prestar mais atenção. Botar o ponto final num romance.
• O que considera um dia de John Fante.
trabalho produtivo? • Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Aquele em que é possível • Um livro imprescindível e um Nenhuma certeza, todas as dúvidas.
avançar alguns parágrafos. descartável.
Pedro Páramo, do Juan • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
• O que lhe dá mais prazer no Rulfo, é imprescindível. Nenhum Fazer o melhor possível.
processo de escrita? livro é descartável.
Encadear uma frase na ou- • A literatura tem alguma obrigação?
tra e observá-las depois. • Que defeito é capaz de des- Não pode ser chata.
truir ou comprometer um li-
• Qual o maior inimigo de um vro? • Qual o limite da ficção?
escritor? Excesso de informação téc- Não tem limite.
Basicamente, tudo. As pes- nica. Não destruiu nem compro-
soas, os compromissos, o celular, meteu qualquer livro de Tolstói, • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse
o estresse, a fome, o sono, os acon- mas torna algumas passagens “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
tecimentos. chatas. Diria que não tenho líder e desconsidero o
conceito.
• O que mais lhe incomoda no • Que assunto nunca entraria
meio literário? em sua literatura? • O que você espera da eternidade?
Gosto do meio literário, não Ela está aberta a qualquer Que me seja breve e acabe num suspiro in-
me incomoda. assunto. dolor.
20 | MAIO DE 2022

Ilustração: Juliano Soares

nelson de oliveira
SIMETRIAS DISSONANTES

PLANETA
ANZOLIN:
UMA ÓRBITA
[Warning: algumas cenas contêm efeitos estroboscó-
picos que podem afetar-infectar espectadores fotossensíveis.]

Gravitando
(Por que é tão difícil andar a pé?)
Na mesma órbita de nosso planeta
Gravitando. E cantando. E seguindo a canção
Viaja nosso planeta-irmão, o planeta Anzolin
Liberando um rastro de graças e desgraças. Infinitas
Na mesma velocidade veloz. E no mesmo senti-
do sintático que nosso planeta terrestre
Mas tendo sempre a estrela-sol matematicamen-
te posicionada entre ambos…
(Essa oposição sideral é bastante benéfica, acre-
ditem)
Juro pra vocês: bilhões de anzolins habitam ale-
gremente os muitos continentes do planeta Anzolin
Uma cantora magra com cabelo escorrido e ves-
tido de veludo molhado sem cor definida
Cantora Anzolin
Umas putas quase invisíveis sob uma marqui-
se revitalizada
Putas Anzolins
Um poeta saturado da própria poesia senta no
chão, afaga um gato
Poeta Anzolin, patafísico. Um presente preso a
passado e futuro
Gato Anzolin, peripatético. Uma agulha de vi-
trola em disco riscado
A arte não é dura, é tratamento
Diz o gato que já leu Ulysses
A vida não é bula, é alimento
Diz o gato que já leu Infinite jest
A memória é vidro fino: elixir do exílio
Diz o gato que já leu Ducks, Newburyport
Tudo se move. Sempre. Até demais
Enquanto isso o segredo da coca-cola ronca ao
meu lado. Ronca doce, até onde pode ser doce o roncar
De uma cloaca
No planeta Anzolin
No hemisfério norte e no hemisfério sul
Juro pra vocês, em cada esquina há um Amaril-
do Anzolin cochichando no ouvido de outro Amaril- No planeta Anzolin Juro pra vocês: nas asas da aya- A rima de Cazuza com Ezequiel Neves
do Anzolin Nosso planeta-irmão. Sim! huasca Afinal quando o tempo para?
Não falha nunca É preciso viver Meus sentidos Quando saber como ainda se faz o que tem
Um Amarildo Anzolin cochichando que Antô- Achar um jeito de matar o Ora orbitam ora habitam que fazer?
nio Houaiss falou a Manoel de Barros que contou ao tempo O planeta Anzolin, que gri- Desde quando você ouve
Douglas Diegues que disse ao Amarildo Anzolin, numa Mas a morte cabe no bolso ta-grita: a voz do mar?
conversa, que o nome que se dá ao fenômeno da grande >Por que nasci se não seria Como saber quando Como aprender o que a escola
recorrência de certas palavras em quase todos os poe- pra sempre? não há mais o que fazer? ensina sem olhar o mar?
tas, uma espécie de perseguição vocabular, é arquissema Sonhei que estava morto Como parar o mar Como saber como fazer?
Os dentes do sol rasgam o dia Desde criança tenho a im- que não para? Se você está no meio do caminho?
Dentes de Anzolin. Sinestésicos. Humores mu- pressão de que a morte e tudo que Como apagar o sol As cinzas de Bolaño ensinam o Mediter-
tilados. Vertigem vertical a cerca é em preto e branco, com que não desce? râneo
Juro pra vocês: os dentes do sol rasgam o dia matizes aqui e ali em cinza e ro- Como saber onde começa O corpo de Parra olha o mar desde o pátio
Pessoas morrem xo; as mínimas alças das urnas ou se o caminho está no meio?
Prédios nascem as grafias nas faixas condolentes As pedras que não param Um aviso de nosso comandante > Que-
Dylan é preciso me pareciam querer dourar a pí- vão rolando para o abismo ridos passageiros, o desvario que os senhores aca-
Nobel não é preciso lula da perda Cinquenta para Bolaño baram de contemplar demonstra o que acontece
O passado tá passando rápido demais > Toda a vida é sonho, e os Mais de cem para Parra quando, numa viagem de ayahuasca, o psiconau-
Diz o gato Anzolin que já leu Rayuela sonhos, sonhos são? Mais cinquenta para Violeta ta examina, noite adentro, um livro tão poderoso
(Por que é tão difícil andar a pé?) Sonhei que estava morto Clarice morreu um dia antes quanto a coletânea Central de Despachos Nossa
Ele: o planeta Anzolin… Me convenci de nascer Senhora das Graças, de Amarildo Anzolin. No
Gravitando e cantando e seguindo a canção Quando me vi ali no caixão Mark morreu cantando na depoimento acima — uma espécie de plano de
Bem que colocava o fardão Nariz a postos rodeado de Itália voo interdimensional com a brevíssima partici-
Pagava de Beatle flores Mário e Leila explodiram no ar pação de Melville, Ionesco, Calderón e Sheldon
Ghost brand? Concreta macumba? >Não somos nada além de Bashô: mil anos de haiku em Solomon — se misturam linhas do metaviajan-
> Eu preferiria não fazer peças de carne conscientes que meio século te psicodélico e versos do protopoeta igualmente
É preciso viver? respiram e defecam e que podem A tanatossintonia de Antonio- psicodélico. Os leitores mais escolados certamen-
> Eu preferiria não fazer morrer a qualquer momento ni e Bergman te souberam distinguir uma autoria da outra.
MAIO DE 2022 | 21

joão cezar de castro rocha


NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO

MIDIOSFERA
te, já não se pode distinguir com za-se pela busca do choque, numa
clareza quem é quem nesse uni- visão neutra, ou, num olhar mais
verso de um eterno aqui e agora. cético, pela escalada sem limites da

BOLSONARISTA
A dinâmica expiatória da cultura violência simbólica.
do cancelamento inscreve-se nes- De novo, o efeito, em si, não
sa pura lógica dos afetos. é inédito. A chamada imprensa

E DISSONÂNCIA
marrom sempre soube lançar mão
(Crise de indiferenciação: de manchetes sensacionalistas para
conceito-chave na teoria miméti- atrair o público leitor. A TV aberta

COGNITIVA (8)
ca girardiana; antessala da explo- recorre a idêntico expediente sem
são de violência que só se resolve constrangimento algum. O mi-
com o recurso arcaico ao mecanis- lagre da multiplicação dos reality
mo do bode expiatório.) shows seria incompreensível sem
o apelo muitas vezes a situações
Em segundo lugar, tende a francamente grotescas.
desaparecer a figura do tradicio- Porém... e não posso senão
nal mediador entre a miríade de entoar o samba de uma nota só:
Economia da atenção pela primeira vez os livros chega- conteúdo oferecido e o público, a simultaneidade do circuito co-
e universo digital ram às nascentes massas urbanas, em tese incapaz de por si só sele- municativo do universo digital
A virulência do universo di- graças a novas técnicas que bara- cionar o que merece sua atenção. favoreceu níveis de violência coti-
gital já se tornou parte intrínse- tearam muito o preço do objeto Essa configuração simplesmente diana numa proporção desconhe-
ca do caos nosso de cada dia. As livro, teve início uma revolução não faz o menor sentido na dinâ- cida. Os efeitos, em boa medida,
redes sociais são os centros con- na produção e sobretudo circu- mica das redes sociais. Isto é, o associam-se ao avanço transnacio-
temporâneos de maior violência lação do conhecimento. Trata-se mediador do outro cede lugar ao nal da extrema direita.
simbólica, seja por meio de cance- de uma constante antropológi- curador de si mesmo. Aliás, a su- Pensemos somente na cir-
lamentos sucessivos, seja por meio ca: uma tecnologia inovadora de pressão de todas as mediações é o cunstância dos infindáveis cance-
de uma linguagem sempre mais comunicação tende a produzir projeto político autoritário da ex- lamentos.
vitimária e próxima aos pressu- um grande impacto na difusão trema direita, que, aqui também Não é verdade que sua viru-
postos da teoria mimética, tal co- do ideias e de sentimentos, jus- encontra uma afinidade estrutu- lência é indissociável da ação si-
mo desenvolvida pelo pensador tamente por meio da ampliação ral com a dinâmica do universo multânea de um número sempre
francês René Girard, e que pro- da capacidade de contágio propi- digital. Daí sua força surpreen- crescente de atores envolvidos no
põe a centralidade do mecanismo ciada pelo próprio meio. dente nas duas primeiras déca- ato? Basta que um perfil anônimo
do bode expiatório na constitui- Na passagem do século 18 das do século 21. inicie um linchamento virtual; se
ção da cultura. para o 19, a economia da aten- Por fim, vale lembrar a lição dois ou três perfis se juntarem à
ção já estava em voga: qual livro de Karl Marx ao tratar de um tra- lapidação moral, pronto!, a bo-
(Um pouco de paciência: comprar, ou seja, qual romance ço definidor da produção capita- la de neve se converte numa fra-
tratarei da teoria mimética na con- ler diante do dilúvio de novos tí- lista, qual seja, se é indispensável ção de minutos num Himalaia de
clusão desta série.) tulos? A crítica literária moderna considerar a diferença substanti- insultos, ameaças e toda sorte de
surge também como uma resposta va entre mudanças quantitativas arbitrariedade. O segredo é a vira-
Em alguma medida, o fenô- à angústia provocada pelo excesso e transformações qualitativas, em lização da ofensa, que, numa con-
meno se relaciona à economia da de possibilidades: cabia ao crítico certas condições, contudo, é igual- taminação sem freios, empolga as
atenção — palavra-valise do cená- nem tanto indicar o que deveria mente imperioso observar que, se redes até que se mude o alvo do
rio presente. Ora, dado que nossa ser lido quanto, e especialmente, o acréscimo da quantidade pro- cancelamento.
capacidade de assimilação de in- sugerir o que se podia ignorar. O duzida superar um determinado
formação é necessariamente limi- papel mediador da crítica, con- nível, então, estaremos diante de (Repare-se no vocabulário
tada, e que inversamente o volume cebida tradicionalmente, relacio- um relevante câmbio na qualida- que naturalizamos: linchamento,
de dados disponíveis é na prática nava-se com essa necessidade de de das relações de produção e in- viralização. É como se a violência
infinito, a disputa pelo tempo dos orientação, engendrada por um clusive de padrões de consumo. cotidiana tivesse virado mera res-
usuários das mais variadas plata- poderoso novo meio de comuni- Eis exatamente o que tem ocorri- piração artificial.)
forma tornou-se propriamente fe- cação e o dilúvio de novos dados do com a economia da atenção no
roz. Nessa autêntica selva selvaggia, lançados no espaço público. mundo contemporâneo. Não há quem deixe de re-
e sem guia algum para orientar De volta ao presente: no A violência extrema do uni- parar nesse traço inquietante das
nas veredas mais estreitas, como universo digital, três características verso digital, se não me equivo- redes sociais e como um bom Tar-
se destacar de modo a não se per- definem uma paisagem realmente co, aí encontra seu combustível tufo, que naturalmente nunca leu
der na invisibilidade de mil e uma inédita, cujo agonismo resultante permanente, acendendo um ras- Molière, critica o que no entan-
ofertas simultaneamente apresen- é de difícil controle. tilho de pólvora que num piscar to pratica. Na esfera da política,
tadas e a todo o tempo em reno- Vejamos. de olhos se metamorfoseia num a extrema direita se notabiliza pe-
vação ininterrupta? Em primeiro lugar, retorno grande incêndio. De fato, o uni- lo uso programático da violência
Um passo atrás: seria in- ao eixo de simultaneidade inau- verso digital é um local privile- simbólica como forma de instru-
gênuo atribuir esse fenômeno à gurado pelas plataformas digi- giado para o estudo do contágio mentalização dessa lógica bélica da
emergência da internet num dia tais, destacando seus efeitos ainda mimético e de seus desdobramen- economia da atenção. Guerreiros
a dia planetário de homogeneiza- não estudados com profundidade. tos mais temíveis, qual seja, a crise do éter, cruzados do universo di-
ção quase absoluta de estilos de vi- Uma oferta de conteúdo — seja de indiferenciação que se costuma gital, tornaram a ágora virtual um
da — no fundo, e cada vez mais, um “produto” do marketing digi- resolver pelo recurso ao mito ar- campo minado em permanente
de estilos de sobrevivência. Em al- tal, direcionado para a venda, se- caico do bode expiatório. explosão. Não nos enganemos: de-
guma medida, esse dilema esteve ja uma postagem de rede social, mocracia alguma pode resistir ao
presente em outras constelações voltada para obter o capital sim- (Em termos contemporâ- par monetização da política e es-
históricas, embora, claro está, em bólico das curtidas — é recebida neos: a cultura do cancelamento.) calada da violência digital.
proporções muito diversas. e, em geral, imediatamente uma Por quê?
Nesse sentido, respeitando- resposta é acionada, antes mes- Extrema direita A resposta demanda um
-se as especificidades de contextos mo que se deixe passar o mínimo e violência digital desvio no meu raciocínio — mas
diferentes, a invenção da tecnolo- de tempo preciso para uma inter- A reunião dos três elemen- nunca um atalho.
gia dos tipos móveis produziu um pretação, mesmo que ligeira. O tos elencados acima estimulou
impacto até então inédito nos cir- universo é mesmo digital, pois é uma resposta — certamente não (Talvez dois ou três desvios,
cuitos de comunicação. Uma vez como se coubesse à celeridade dos a única, mas em boa medida a para ser honesto.)
impressos e não mais manuscri- dedos no teclado a reação imedia- mais fácil.
tos, os textos começaram a via- ta ao fluxo ingovernável de estí- Eis: dada a aguda, agudíssi- Coda
jar numa celeridade que causava mulos. A tal ponto a engrenagem ma, competição pelo tempo dos Sim: você já sabe muito bem
vertigem na República das Letras. confia na simultaneidade dos po- usuários das redes sociais, a lingua- aonde vou, você pode até duvidar,
No século 18, momento em que los de ação e reação, que, no limi- gem do universo digital notabili- mas sigo na próxima coluna.
22 | MAIO DE 2022

nilma lacerda e maíra lacerda Entre as folhas do verde O deixa ou-


vir o diálogo ainda impossível en-
quadro aterrador lá estará, imóvel
na parede. “Eu corto grama de te-
CALEIDOSCÓPIO tre príncipe e mulher-corça: “Mas sourinha”, disse a autora, em certa
o príncipe tinha a chave da porta. E palestra, confessando o laborioso

O BATER DAS ASAS


ela não tinha o segredo da palavra”. trabalho para chegar à perplexi-
O diálogo virá após nu- dade, que nos pega de chofre. O
merosos ensaios, em processo de universo habitado por seres míti-

DA BORBOLETA
mútua educação, com evidência, cos, que permanecem no imagi-
porém, da certeza feminina quan- nário humano apesar de toda a
to à direção e coerência do cami- evolução tecnológica, é um dos
nho, como se lê no conto Entre grandes trunfos das suas narra-
a espada e a rosa. Espírito sensí- tivas em prosa poética, inscritas
vel às questões contemporâneas no que há de melhor na literatu-

E
e permanentes do ser humano, ra brasileira, e de que se pode des-
ste texto é homenagem do que se ocupar com os relatos Marina retoma Orlando, de Vir- frutar em Mais de 100 histórias
a uma autora que vem biográficos, descrevendo formas ginia Woolf, Grande sertão: vere- maravilhosas, empreendimento
criança para o Brasil, e de pensar e de viver. A primeira das, de Guimarães Rosa, e outras editorial adequado à leitura do
atribui a escolha do país obra citada deixa ver a jornalista narrativas populares, para discu- público adulto.
a um episódio familiar banal, bem à frente do texto, no detalhamen- tir travestimento feminino, tran- A história da formação vi-
encaixado na teoria do efeito bor- to minucioso da ação intervento- sexualidade, afirmando a mulher sual da artista é contemplada em
boleta. Não fora o avô paterno ter ra do Estado sobre a propriedade como senhora do seu destino, te- Vozes de batalha e o resultado
vindo ao casamento da irmã, a fa- privada, ocasionando a destrui- celã do percurso que deseja. Hábil se reflete na imagética com que
mília Colasanti, compreenden- ção de um extraordinário traba- Vozes de batalha condutora de metáforas, elabora ilustra muitos de seus livros. O
do as crianças Arduíno e Marina, lho empresarial. A admiração por MARINA COLASANTI bem os finais envoltos em senti- ambiente dos contos clássicos, re-
talvez permanecesse na Itália ou Henrique Lage, em seu visionaris- Tusquets dos simbólicos, que costumam produzido em admiráveis gravuras
escolhesse outro destino. Aque- mo e ação, e a crítica à dilapidação 304 págs. dar algum trabalho aos leitores e em metal e em madeira, por vezes
la que é hoje consagrada escrito- do país ao próprio patrimônio, às leitoras. Autora de ensaios lite- em aquarelas, evidencia um tem-
ra revela em um “livro familiar”, humano e material, são patentes. rários em que a recepção da leitu- po que se faz desejado pela força
dedicado à memória de Gabriella A voz de Colasanti chegou ra é bem abordada, ela “recebeu de de uma atmosfera. Histórias como
Besanzoni, tia-avó e responsável inicialmente ao grande público volta” o próprio enigma narrati- Ofélia, a ovelha são recontadas, no
por lições de vida e arte à menina, por suas crônicas e narrativas sin- vo, em um conto escrito e ilustra- manejo do material plástico a ser-
os rumos tomados a partir des- gulares, nas quais um imaginá- do por jovens leitores, em visita a viço de uma fábrica de narrativas,
sa decisão. Se as manifestações rio reconfigurado trouxe frescor e uma escola pública municipal do cujo exercício admirável pode ser
estéticas pairam além do restri- conformação inédita à nossa lite- Rio de Janeiro, nos anos 1980. constatado em Cinco ciprestes, ve-
to conceito de pátria, mas com- ratura. Fadas, mas mulheres; mu- Nos principais volumes de zes dois, em que os elementos são
preendem as heranças advindas lheres, mas artesãs que tomam a contos, Uma ideia toda azul, retomados e reorganizados em um
de uma e outra cultura em cujas existência em suas linhas mestras e Doze reis e a moça no labirin- segundo relato, lembrando ensi-
fontes uma autora bebe, Marina bordam a trama do próprio desti- to do vento, Entre a espada e a namentos de Italo Calvino.
traduz o legado clássico europeu, no. Em muitos de seus contos que rosa, encontra-se a sintaxe cultu- A escolha pelos chamados
mas indica a perfeita inserção na crianças e jovens costumam ler, o ral de uma perspectiva ecológi- contos de fada não exclui a cruel-
cultura brasileira, manifesta no ato de tecer é referência dominan- ca e feminista: Além do bastidor, dade presente no humano nem a
trabalho jornalístico e na atuação te, coerente com um momento de A moça tecelã, A mulher ramada justaposição das camadas signifi-
notável da escritora em variados ressignificação do lugar e da ação têm em sua base a potência do fa- cacionais. Uma ideia toda azul dá
espaços de produção. da mulher na sociedade, no qual zer silencioso e determinado de à criança a possibilidade de abrir
Vozes de batalha pode ser fazeres antigos sofrem apropriação tempos tão antigos, mas renova- uma janela, mais ou menos am-
lido como sequência de Minha oportuna. São inúmeros os textos dos. A jornada pode, no entanto, pla, conforme as experiências de
guerra alheia, memórias da in- publicados sobre esta nova mulher envolver emboscadas e entre espe- leitura. Na clareza de que arte tem
fância durante a Segunda Guerra e a estranheza que inspira. A litera- lho e fios acontecer prisão ou mor- por função comover e mover, ori-
Mundial e no meio de livros. Em tura propicia a articulação do ser te, que chegará em passos suaves, ginando emoção e empatia, Co-
ambos, a narrativa faz bem mais híbrido, parte domável, parte não. sem prenunciar sustos. Ao final, o lasanti submete experiência e
criação à gratuidade estética, sem
transigir com essas condições,
Ilustração: Maíra Lacerda
qualquer que seja a idade de quem
lê. As crônicas e os poemas abrem-
-se, por sua vez, para um público
mais experiente, enquanto as tra-
duções abrangem O leopardo, de
Lampedusa, As aventuras de Pi-
nóquio, de Collodi, A pequena
Alice no país das maravilhas, de
Lewis Carroll, entre outras.
Fiel às origens daquele avô
historiador de arte que colabora,
sem o saber, para o destino da ne-
ta ainda não nascida, Marina Co-
lasanti tece a atuação de feminista,
poeta e autora em vasto projeto,
em que muitos são os textos ofer-
tados à fruição de crianças e jo-
vens. A menina vinda da Itália
atingida pelos efeitos da guerra
chega, aos 11 anos, no Rio de Ja-
neiro, e considera, ao passar por
uma demolição: “Aqui também
houve bombardeios!”. O olhar
original, adubado pela literatura,
mantém-se viçoso, capaz de fazer
aninhar na sensibilidade cenas da
infância e juventude “recortadas a
tesourinha”, no meio da grama vi-
çosa do parque que Henrique deu
à Gabriella, e, por meio de Mari-
na, a todo o país.
O efeito borboleta é parte
de uma teoria. Marina Colasan-
ti é uma evidência na cultura e na
arte brasileiras.
MAIO DE 2022 | 23

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL HQS

Edição ampliada de uma HQ que, lançada originalmente em 2017, Quando o trabalho de um dos grandes
ganhou vários prêmios — LeBlanc, Minuano de Literatura e Troféu nomes da ficção científica e fantasia é
HQMix — e foi finalista do Jabuti. Ao abarcar um contexto de mais trazido para o português por alguém
de 500 anos, Aguiar mostra como as crianças brasileiras enfrentam como Raquel de Queiroz, o resultado
violentos obstáculos sociais desde o século 16 — a começar pelo parto, só pode ser positivo. O livro, lançado
que também prejudicava as mães. No período colonial, os pequenos originalmente em 1876 e ambientado
eram vistos nas ruas das principais cidades e a posse dos menores era no Império Russo, conta o périplo de
disputada por colonizadores e jesuítas. Adiante, até o final do século Miguel Strogoff em meio ao frio da
A infância do Brasil 19, a escravidão é que passou a atormentar as crianças — e também Sibéria. A caminho de entregar uma Miguel Strogoff — O
JOSÉ AGUIAR os adultos, submetidos aos tratamentos mais desumanos. E com a carta ao Czar, ele encontra Nádia correio do Czar
Nemo urbanização e crescente desigualdade social, no século 20, a situação Fédor e a narrativa ganhas outros JÚLIO VERNE
128 págs. não fica muito melhor. “Viajar ao passado, pelas mãos das crianças, e contornos, mais amenos, quando o Trad.: Rachel de Queiroz
enxergá-las, além dos clichês, nos dias de hoje: esse é o convite que nos personagem se aproxima da jovem de José Olympio
faz José Aguiar em mais uma história em quadrinhos simplesmente maneira definitiva. 208 págs.
espetacular!”, anota Mary del Priore no prefácio.

REPRODUÇÃO/ JOSÉ AGUIAR

Um dos clássicos do inglês George


Orwell desembarca em território
nordestino. Adaptada para cordel,
a história da revolução encabeçada
pelos animais da Granja do Solar
— cansados do tratamento de
recebiam do dono bêbado e
relapso — ganha ares brasileiros.
A universalidade da obra, no A revolução dos
entanto, não se perde: continua bichos em cordel
tratando de como os mais fracos JOSUÉ LIMEIRA
são explorados e como, em uma Ilustrações: Vladimir Barros
triste inversão, os oprimidos Yellowfante
podem se tornar opressores. 112 págs.

As palavras — ditas, não digitadas


— ainda têm relevância em
um mundo dominado pela
tecnologia? O terceiro livro
infantil da autora pernambucana
mostra que sim. Sejam grandes ou
pequenas, complexas ou simples,
são elas que permitem expressar
quem somos e quem queremos A palavra da boca pra fora
ser. “A palavra sempre foi CLARA ANGÉLICA
companhia de uma vida inteira, Ilustrações: Rodrigo Fischer
principalmente a escrita. E é Cepe
prazeroso buscar essa aproximação 36 págs.
com as crianças”, diz a autora.

Nascida e criada no chão de terreiro,


de acordo com informações da
Pallas, a autora se baseou na própria
trajetória ao escrever este livro
Incidentes da noite Olhe pela janela infantil. Na história, Janaína narra
DAVID B. KATERINA GORELIK o caminho de um sapato em busca
Trad.: Maria Clara Carneiro Trad.: Gilda de Aquino dos pés de uma Makota, figura
Veneta Brinque-Book central nos rituais de religiões
216 págs. 60 págs. africanas. “Busquei flagrar o Sapatinho de Makota
olhar das crianças sobre as religiões JANAÍNA DE FIGUEIREDO
“Um deleite para devoradores de histórias Indicado para leitores a partir de 3 anos, afro-brasileiras”, explica. “Elas Ilustrações: Camilo Martins
adultas sobre mistérios bizarros”, anota o Library este livro interativo é um prato cheio para enxergam este universo de uma Pallas
Journal sobre o trabalho de um dos maiores os curiosos. Valendo-se dos mais diversos forma muito especial.” 32 págs.
quadrinistas europeus contemporâneos. A artifícios para instigar a imaginação dos
história revela como as vinte livrarias escondidas pequenos, a premiada autora e ilustradora
por Paris, uma em cada arrondissement, nascida na Rússia, em 1980, mostra que há
trabalham para proteger a cidade e estão diferentes maneiras de se enxergar as coisas Assinada pelos premiados irmãos
relacionadas com algumas figuras bem — sejam elas boas ou ruins. Já no início do gêmeos, que têm dois prêmios Eisner
conhecidas, como Napoleão Bonaparte, e livro, uma surpresa: a silhueta em frente à casa no currículo, esta versão em HQ de
também com impérios inteiros. Para completar pode parecer de uma senhora pacífica, mas um clássico de Machado de Assis
a “loucura”, a trama policial, que não deixa de logo se revela que é uma bruxa determinada foi lançada originalmente em 2007,
carregar um forte clima onírico, acena para a transformar seus convidados em baratas. pela Agir, e ganhou o Jabuti. Agora,
escritores do calibre Jorge Luis Borges, Victor Além da clássica bruxa má, habitam as páginas em nova roupagem, a história do
Hugo, Umberto Eco e Simenon. “Grande figura da obra outras figuras conhecidas, como a médico Simão Bacamarte — um
dos quadrinhos franceses da atualidade, David Chapeuzinho Vermelho e os Sete Cabritinhos. dos personagens mais marcantes O alienista
B. entrega um de seus livros mais cativantes, Sem contar, é claro, com a presença de ratos e da literatura nacional, responsável FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
homenageando os temas que o fascinam e morcegos. Graduada na British Higher School por fundar o hospício Casa Verde Quadrinhos na Cia.
perseguem: morte, livros, marginalizados, contos of Art & Design, do Reino Unido, Katerina se — volta a circular. E uma das 72 págs.
épicos e Paris”, escreveu o site ActuaBD sobre a dedica às narrativas para crianças desde 2015 principais questões levantadas pela
HQ. “Um livro fundamental, que abre as portas e seu trabalho está traduzido na França, Itália, obra persiste: quem são realmente os
ao prazer literário.” Portugal, Coreia e China. loucos na sociedade?
24 | MAIO DE 2022

A
inda hoje há quem se
admire ao saber que o
nosso maior autor, Ma-
chado de Assis (1839-
1908), não era um homem
branco. Dois dos fatores que con-
tribuem para a produção de tal
estupefação podem ser elenca-
dos prontamente. Um deles é o
fato de que durante o século 20
sua aparência física passou por um
processo cosmético de branquea-
mento tão eficaz ao ponto de se-
lecionarem um ator branco para
representá-lo num comercial tele-
visivo em 2011. O outro, do qual
este é um dos desdobramentos,
configura-se naquela — imagina-
da e implementada como verdade
inexorável — noção de inferiori-
dade das pessoas de ascendên-
cia africana que foi arquitetada e Machado de Assis por Fabio Miraglia
construída no processo de colo-
nização. Foi aplicando essa lógica
que se chegou à conclusão de que
um grande autor no/do século 19
só poderia ser uma pessoa branca.
Isso porque se trata de um
país cuja maioria da população
proclama não ser racista e afir-
ma que a cor da pele é irrelevan-
te, mas empenha-se, consciente
ou inconscientemente, em to-
das as frontes, para se alinhar fí-
sica e simbolicamente (por meio
de procedimentos cosméticos e
normas de conduta variadas) ao
modelo de civilização oriundo e
constituído como parte indisso-
ciável da expansão da branqui-
tude. Nesse cenário não se pode
desprezar as medidas coercitivas
de branqueamento perpetradas
por instituições oficiais que de-
monizam a aparência, práticas e
costumes afro-brasileiros, dificul-
tando o ingresso a seus quadros
àquelas pessoas que não se sub-
metam a essa regra tácita.
Tais fatores exerceram papel
importante na recepção de obra
de Machado de Assis, que por
muito tempo foi lida como pro-
duto exclusivo da genialidade de
um autor filiado à tradição literá-
ria e filosófica ocidental, branco e
alheio à escravidão e seus legados,
desconsiderando-se o seu entorno.
Contudo, motivado por linhas re-
centes de pesquisas acadêmicas
inauguradas faz parcos 20 anos,
fiz um levantamento que abran-
geu todos os romances, livros de
conto, poesia e teatro publicados Vinte anos de pesquisas acadêmicas derrubam
em vida (totalizando 25 títulos),
para averiguar a frequência de re- o mito de que a obra do maior escritor brasileiro
ferências à escravidão e às pessoas é alheia à escravidão e a seus legados
de ascendência africana. Ao fazer
uma leitura com olhar mais atento
a ocorrências de personagens afri-

chiaroscuro
PAULO DUTRA | ALBUQUERQUE – EUA
canas e afro-brasileiras, assim co-
mo a instâncias em que o sistema
escravocrata se faz presente em sua
obra, deparei-me com um resulta-
do que revela uma faceta distinta
da amiúde difundida.
Machado delineou perso-
nagens africanas e afrodescen-

(DE) MACHADO DE ASSIS


dentes em todas as possibilidades
que seu mundo lhe oferecia, in-
cluindo as que não estavam em
condição física e simbólica de es-
MAIO DE 2022 | 25

cravidão (feito ele mesmo). Em se podem citar Raimundo, do ro- menos abastadas possuíam “escra- Neves, que caça pessoas sem auto-
alguns momentos lhes designou mance Iaiá Garcia, e Chico, do vos” ou se valiam de seu trabalho rização oficial (o que não era inco-
protagonismo, como no caso de conto Um erradio, que eram li- de alguma maneira. mum, pois uma gama de pessoas
Sabina do poema homônimo, ou vres, mas que, assim como várias Salvo engano, o autor lan- de várias “raças” e posições, co-
(ainda que, desta feita, de ma- personagens, viviam em situação ça mão de todo o inventário le- mo feitores, indígenas, “escravos”
neira deliciosa e dissimulada) no de escravidão de facto. Este úl- xical disponível à época para e os próprios “donos”, entre ou-
do marinheiro Deolindo Venta- timo, inclusive, sendo vendido referir-se a essas personagens e is- tros, fazia esse trabalho informal).
-Grande do conto Noite de al- na condição de escravizado para so não é apenas um dado curioso Mais importante ainda é que não
mirante. Isso sem mencionar os que a importância recebida por que ilustra seu trabalho meticu- há descrição física da personagem.
casos em que Machado não pro- ele fosse fonte para o pagamento loso, mas também um registro Ainda assim, leitores/as lhe confe-
videncia descrição física de perso- de seu próprio ordenado por seus das nomenclaturas utilizadas e rem uma determinada raça, o que
nagens protagonistas e que ainda patrões falidos. Em outras pala- seus significados específicos. Suas se explica devido a preconcepções,
assim têm sido lidas como bran- vras, um homem livre voltou à es- personagens eram: escravos/as, aplicadas à leitura, fundamentadas
cas, como Janjão, de Teoria do cravidão para poder se livrar de moleques, mucamas, pretos/as, nos desdobramentos do século 20
medalhão, Nogueira, de Missa do seus patrões inadimplentes. Essas forros/as, libertos, criados, mu- em relação a questões raciais e sua
galo, Damião, de O caso da va- nuanças são exemplos de como latinha, pajens, crioulos e negros. percepção no século 19.
ra, e — impossível não me adian- Machado, ironicamente, apon- E se, com o passar do tempo, al- As alegações de absenteísmo
tar e omiti-lo aqui — Cândido tava o alcance do dano psicoló- guns vocábulos cobraram outro de Machado de Assis em relação
Neves, de Pai contra mãe, entre gico de caráter irreparável a curto significado, como “moleque” ao tema são decorrentes de leitu-
outros. Ademais, o sistema de re- prazo e que ainda hoje assombra por exemplo, enquanto outros ras que ao mesmo tempo em que
lação servil — que proporciona- algumas pessoas afrodescenden- se fundiram em um campo se- louvam sua capacidade de nunca
va aos abastados uma vida alheia tes séculos depois do começo do mântico único, raramente esses ser explícito, como a famosa hipo-
a preocupações cotidianas em re- processo de desumanização a que termos eram empregados por crisia de Brás Cubas ou a desfaça-
lação ao trabalho, mesmo quan- elas foram submetidas. Machado como sinônimos. tez de Bento Santiago (que levou
do de caráter intelectual — está Até mesmo o ilustre médi- O substantivo “negro”, por leitores/as a condenarem Capi-
presente na maioria de seus tex- co Simão Bacamarte, tido como exemplo, é empregado duas ve- tu), fazem vista grossa em relação
tos narrativos examinados e em grande cientista, inteligentíssi- zes para referir-se aos sequestra- a outras situações. A ambiguida-
alguns dos demais gêneros nos mo, esclarecido, estudioso das dos que ou estavam a caminho de de Cândido Neves e seu pa-
quais o autor exercitou sua pena, enfermidades mentais, fundador nos navios ou que haviam recen- pel “racial” no desfecho trágico
especialmente a da galhofa. e administrador da Casa Verde temente aportado, mesmo com a de Arminda são ou apagados ou
A corriqueira afirmação de do famoso e — merecidamente criminalização do tráfico. Portan- unilateralizados, e assim a com-
que Machado não se preocupa- — aplaudido conto O alienista to, na sua obra nenhum brasileiro plicadíssima dinâmica social tra-
va com a questão racial ou com possuía “escravos” que serviam a era “negro” como (infelizmente) zida pela escravidão e seus legados,
a escravidão, espalhada aos qua- sua esposa. Aliás, enquanto, com hoje em dia é o caso de empre- que Machado testemunhava e fic-
tro ventos, além de não ter fun- a ajuda da “mucama”, D. Evarista gar-se tal substantivo abertamen- cionalizava como ninguém, se tor-
damento no texto machadiano ajustava a bainha de um dos seus te. Uma conclusão a que se pode na um mundo simplista e binário
e de, em última análise, ser con- 37 vestidos, foi que, por meio do chegar é que Machado procurou em que todas as pessoas brancas
traditória — se queremos con- “moleque”, de quem ela duvidou, bosquejar cada uma das funções e eram más e as afrodescendentes
tinuar enaltecendo-o como o e que por isso depois experimen- condições/situações, por meio do eram meras vítimas, completa-
nosso maior autor e “homem de tou um átimo de triunfo quando léxico disponível, a que tais pes- mente submissas.
seu tempo” —, reproduz o desejo se constatou que ele dizia a verda- soas eram submetidas. Por fim, não esqueçamos
dessa sociedade que tenta apagar de, lhe chegou a notícia sobre a re- A presença de pessoas de as- que o sistema escravocrata foi
do registro histórico e da me- belião que havia começado. cendência africana não se resume orquestrado e amparado dentro
mória do país o opróbrio da es- Nada nessa sociedade fun- às passagens famosas. Estas são, da(s) lei(s) e era parte insepará-
cravidão, uma vez que, sendo a cionava sem a intervenção dos/as em geral, atreladas a descrições de vel do tecido sócio-histórico da-
questão mais importante do nos- afrodescendentes que, diga-se de violência racial, como em O caso quela sociedade, como atesta uma
so Oitocentos e força-motriz das passagem, sempre estavam a par da vara, ou no do “moleque” Pru- leitura da obra de Machado livre
mudanças políticas ocorridas, ela de todos os segredos e assuntos, dêncio que, uma vez alforriado, dos pressupostos do processo de
foi matéria inevitável e intranspo- públicos e privados, como ates- adquire um “escravo” e nele des- branqueamento. Por conseguin-
nível de (e para) quase todos os ta a personagem “mulatinha al- forra a violência física e simbólica te, reduzir o problema a uma ação
autores e autoras oitocentistas. A ta e elegante” do conto A parasita perpetrada por Brás Cubas. Nem isolada de alguns homens-bran-
grande diferença, no caso de Ma- azul, única conhecedora do misté- sempre, porém, a configuração cos-e-desalmados tão somente ser-
chado de Assis, se dá no seu esti- rio que envolve a narrativa. Como racial é explícita, como nos casos ve ao propósito de reforçar o mito
lo literário, enaltecido por leitores se sabe, mesmo na chamada Guer- do já citado marinheiro Deolin- de que a escravidão teria sido uma
no Brasil e no mundo, que o des- ra do Paraguai eles tomaram parte do Venta-Grande, e do ambíguo fortuita eventualidade que pode
taca de todos os demais. ativa e Machado menciona tal fato Cândido Neves do também am- com facilidade ser apagada, co-
no conto Galeria póstuma, em que bíguo conto Pai contra mãe. Con- mo um deslize circunstancial co-
Hipocrisia desvelada o protagonista “dá” libertos para to e personagem que talvez sejam metido por algumas pessoas, uma
Quanto à escravidão em si o conflito e por isso recebe uma o suprassumo da ironia e da técni- manchinha do passado para a qual
e ao tratamento que sua socieda- comenda, o que demonstra mais ca machadiana quando o que está uma borrifada de água sanitária
de lhe dispensava, Machado criou uma vez sua condição precária de em jogo é a bastante mesclada so- ou qualquer outro alvejante que
cenas que a apresentam constan- escravidão simbólica. ciedade fluminense. o valha seria a solução.
temente como pano de fundo e Historicamente, desenvol-
assunto dos debates sobre temas Em toda obra veu-se o juízo de que Candinho
cotidianos como o governo, as As personagens africanas e seria branco e Capitão do Mato,
eleições, a economia, os aconte- afrodescendentes se distribuem sem que haja absolutamente na-
cimentos no estrangeiro, entre por toda sua obra, muitas vezes da no texto — nem seu sobreno-
outros, além, ainda, de recorrer em forma de menção direta e ou- me, “Neves”, que induziu muitos
com frequência (demasiada pa- tras de forma menos explícita, e a concluírem ser ele branco, nem
ra que fosse por acaso) à metáfo- até mesmo invisíveis, mas detec- sua ocupação — que abone tais
ra do amor ou do relacionamento táveis no contexto de cenas coti- suposições. Além de o narrador
amoroso como um “cativeiro”. dianas, já que o chá da “Sinhá” nunca se referir a Neves como tal,
Machado desvela a hipocri- não se preparava sozinho ou che- o posto de Capitão do Mato era
sia de todos (e de todas), sem ex- gava à sala de visitas por suas pró- regulamentado e comissionado PAULO DUTRA
ceção: tanto dos abolicionistas, prias pernas. Nos casos explícitos, a certos indivíduos, alguns de as- É professor na Universidade do Novo México
quanto dos escravocratas e dos exercendo as mais variadas fun- cendência africana, como o regis- (EUA), doutor em literatura Latino-Americana
ditos neutros. A exemplo deste, ções, desde o trabalho nas fazen- tro histórico confirma. Dado esse (Purdue University EUA) e pesquisador de
questões raciais na obra de Machado de Assis
há Rubião, herdeiro de Quincas das e nos domicílios, a amas de que levou algumas pessoas a afir- e no rap dos Racionais MC’s. É também autor
Borba no romance homônimo, leite e aos chamados “escravos” de marem ser ele afrodescendente, de Aversão oficial: resumida (2018, contos)
que não queria ter “escravos”, mas ganho, formando a base de sus- porque, se o Capitão do Mato o e abliterações (2019, poesia). É consultor da
coleção Todos os livros de Machado de Assis,
não se importava com a escravi- tentação da sociedade fluminen- era, Neves também teria que ter a ser publicada em 2023 pela Todavia
dão como instituição. Ou ainda se, já que mesmo as personagens sido. Contudo esse não é o caso de com apoio do Itaú Cultural.
26 | MAIO DE 2022

raimundo carrero
LUTA VERBAL

O DILEMA DO ARTISTA QUANDO JOVEM

Ilustração: Eduardo Mussi

E
sta é a verdade absoluta: no começo o ar- classificou “o sorriso da socieda- comum os estudantes morarem em Era o longo caminho em torno da
tista, sobretudo o escritor, enfrenta este de”, realizam o que Sartre conde- repúblicas — pensões dedicadas a obra. A questão, agora, era esca-
dilema: qual o caminho a seguir? O que nou como literatura. hospedar jovens vindos do interior par das modas e dos modismos.
dependerá definitivamente do sucesso de Como as escolas do passa- — e ali começavam as discussões. Henry Miller, de um lado; Santa
sua obra. Sucesso? O que é isso? O barulho ensur- do não ensinavam literatura co- Éramos eu, Jaci Bezerra, Alberto Tereza, de outro.
decedor das plateias aos beijos, abraços, autógra- mo um grito de dor, mas como Cunha Melo, Fernando Montei- Na definição regional:
fos, selfies, entrevistas, amores, escândalos? Vendas, este deletério sorriso, a literatu- ro e Elói, um pouco mais velho, Hermilo Borba Filho e Ariano
vendas, vendas? Ou o silêncio cada vez maior do ra se transformou num ajuntado bem empregado com ótimo salá- Suassuna, dois mestres, dois com-
público ou dos leitores que fingem nunca ter ou- de palavras em vez de enfrentar o rio e que, por isso mesmo, termi- panheiros. Hermilo acompanhava
vido o seu nome? E dos críticos, que nunca citam mundo, a busca de justiça social, nou se transformando em editor Sartre e abria a metralhadora lite-
seu nome? E da falta de prêmios... a possibilidade de uma convivên- do grupo, depois chamado de Ge- rária para todos os lados; Ariano
Tudo isso inquieta o jovem artista. Como cia pacífica entre nós. Denunciar ração 65, que congregou inúmeros voltou-se inteiramente para a cul-
escrever, por exemplo, a primeira obra? Como as dores do mundo é, na verda- escritores — poetas e prosadores, tura popular e para a literatura de
chegar às livrarias? O sucesso do escritor não de, a principal missão do artista, em princípio sob a orientação de cordel, seguindo a trilha familiar,
reclama barulho e assovios, beijos e autógrafos. sobretudo do escritor, se há que César Leal, com alguma ajuda de destacando a influência do pai.
Por tudo isso, costumo dizer que escritor não existe mesmo uma missão. Princi- Pessoa de Moraes, um sociólogo Agora o dilema começava a
faz sucesso, tem reconhecimento. Se existe su- palmente esta missão social. ligado à sociologia da literatura. se desfazer porque a ditadura com a
cesso, o do escritor consiste em atingir o coração Este dilema continua e é Leal era um grande poeta experi- sua draconiana censura empurrava
do leitor pela qualidade questionadora de sua eterno. Somente quando percebeu mentalista e diretor do Curso de os jovens para a contestação do re-
obra ou pela qualidade estética. O que, em úl- que a arte é revolucionária porque Letras da Universidade Federal de gime e para a luta pelos direitos hu-
tima análise, responderá à pergunta angustian- denuncia e enfrenta as dores do Pernambuco, além de jornalista manos. Optei pela luta ao lado de
te: forma ou conteúdo? A forma seria apenas a mundo é que o artista construiu responsável pelo editoria de Cul- Ariano e o movimento Armorial,
busca da beleza subjetiva, muitas vezes objetiva a necessidade da obra. Mesmo as- tura do Diário de Pernambuco. Foi escrevendo e publicando A histó-
com resultado encantatório, magnífico, de olhos sim as adversidades são grandes, aí que publicou e revelou os poe- ria de Bernarda Soledade — nar-
voltados para a satisfação interior, de fazer so- surgindo de todos os lados com mas do grupo, principalmente os rativa de um grupo de camponeses
nhar e se deslumbrar? censuras e patrulhamentos, o que sonetos de Jaci Bezerra. contra os poderosos, numa espécie
Mas, enfim, como é que se faz isso? E o con- leva a novos questionamentos, Surge, então, o dilema, ou de guerrilha no campo. Sempre se-
teúdo? dúvidas e dilemas. A luta verbal ressurge: Jaci (lírico) e Alberto guindo o folheto de cordel.
Há, ainda, os que não pensam numa coi- é, com certeza, uma necessidade (político/religioso). O primeiro Definido o meu caminho,
sa nem em noutra. Colocam-se na mera posição imediata. Urgente e fundamental. formal e o segundo, conteudísti- pude então construir a minha
de borrões e enchem centenas de páginas com No começo de minha for- co. A luta de sempre recomeçava. obra, que condensei na tetralo-
sinais gráficos e juntam letras, palavras, juntam mação literária, encontrei uma ge- E não mais em torno de cervejas e gia Condenados à vida, publi-
daqui, juntam dali, suspeitam histórias, borram, ração inteira inquieta com estas conversas. Encontravam-se os ca- cada em 2017 pela Cepe, editora
borram, borram. São ditos escritores, chamados dúvidas, o que nos levava a grandes minhos — cada escritor construía pernambucana de imensa quali-
escritores, sabem que são borrões e investem ca- debates e conversas sem fim. Sobre- o próprio caminho, decidiam-se dade, com exemplar prefácio de
da mais para realizar aquilo que Afrânio Peixoto tudo em mesa de bar. Na época, era e, mais do que isso, definiam-se. José Castello.
MAIO DE 2022 | 27

rascunho recomenda
DIVULGAÇÃO

Vencedor do Prêmio Açorianos,


o romance de estreia da gaúcha
acompanha a dinâmica de uma
família que precisa lidar com os graves
problemas de saúde de Rui, caçula da
casa. A iminência da morte, anunciada
desde as primeiras páginas, paira sobre
a narrativa — contada a partir do olhar
infantil de Maria, irmã do menino, em Dias de se fazer silêncio
um ambiente rural. “Eis uma autora CAMILA MACCARI
excepcional, que detém por completo o Class
domínio da história e sabe como contá- 138 págs.
la”, diz Luiz Antonio de Assis Brasil,
colunista do Rascunho, sobre a obra.

O sentido da vida é, sem dúvida, uma


das perguntas mais aterrorizantes para
o ser humano. A melhor forma de
enfrentá-la, porém, é sem medo — e, de
preferência, com o apoio de nomes como
Ai Weiwei, Paul Auster, Roger Scruton,
Élisabeth Roudinesco e Catherine
Millet, alguns dos artistas, escritores e
pensadores presentes nesta coletânea. Fronteiras do
O segundo romance da cronista do Rascunho conduz o leitor “Cada um dos pensadores selecionados Pensamento debate
pelas ruas de Porto Alegre, acompanhando o protagonista, para a obra traz a sua percepção singular os sentidos da vida
Murilo, e Rodolfo, uma tartaruga. Ele recebe instruções de para este debate sobre o passado, o ORG.: FERNANDO SCHÜLER
Francesca — dona do apartamento que alugou e no qual em presente e — é claro — o futuro da Arquipélago
princípio não consegue entrar — sobre o que fazer com o réptil. humanidade”, explica o organizador. 256 págs.
Se a situação não gera estranhamento o bastante, adicione à
narrativa o fato de que Murilo vive um relacionamento em
crise com a namorada, sendo acusado de ser frágil demais,
sensível demais, homem de menos. Entre portas abertas e outras Ela se chama Rodolfo A nova peça do professor e crítico
fechadas, Julia Dantas — que estreou na narrativa de fôlego JULIA DANTAS literário traz o testemunho de um
com Ruína y leveza, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura DBA veterano de 1964 sobre os últimos
2016 — trata das fragilidades humanas e dos impasses que 264 págs. — e para lá de turbulentos — anos
costumam acompanhar as relações sociais. “Comovente, no Brasil. É algo semelhante ao que o
espirituoso, inesperado, o segundo romance da autora é narrado autor fez em 1977, quando publicou
de forma tão firme que poderia ser utilizado em aulas sobre A lata de lixo da história, texto teatral
como contar uma história, criar cenas perfeitas, compor um sobre o golpe de 1964. “O leitor vai
personagem”, anota Moema Vilela sobre a obra. reconhecer pessoas em personagens Rainha lira
mas, à maneira das peças de Brecht, ROBERTO SCHWARZ
aqui elas são figuras dos interesses de Editora 34
classe que se engalfinharam desde as 128 págs.
manifestações de rua em 2013”, diz o
texto de orelha do livro.

Roberto Bevilacqua se sente meio


perdido: após ser obrigado a se aposentar
da empresa em que trabalhou a vida
Mundo omissíssimo O livro das personagens esquecidas toda, precisa achar uma nova maneira
TEREZA YAMASHITA CÍCERO BELMAR de se posicionar no mundo. Decidido
Líquido Editorial Cepe a partir para a Itália, ele está certo de
180 págs. 144 págs. que viverá de remédios e lembranças. O
cotidiano, porém, ainda reserva surpresas
para o personagem. “Já havia gostado Brava Serena
Coisas e transformações estranhas compõem Memória e esquecimento habitam as páginas muito de Pasta senza vino, seu livro de EDUARDO KRAUSE
o novo trabalho da escritora e ilustradora do terceiro livro de contos do pernambucano. estreia, mas Brava Serena, pelo ritmo de Dublinense
paulistana. Nos contos fantásticos, sempre “A memória é uma cúmplice da literatura, desenvolvimento e, sobretudo, pelo final 320 págs.
acompanhados de artes da própria autora, o e a literatura é uma cúmplice da memória tocante e inesperado, é simplesmente
real e o insólito se misturam — o que parece também”, explica o autor em entrevista à Cepe. sensacional”, diz Antônio Hohlfeldt.
condizer com a maneira que Tereza, “que não “Tem muita coisa que volta da nossa memória
se decidiu ainda se é vegetal ou mineral, mas como escritor. São coisas que eu vi, que li,
está tentando virar zen-budista”, se posiciona que aprendi com a vida. Estou escrevendo em
no mundo. Planejamos... e os deuses riem, cima disso.” Para além das recordações, Belmar Textos do chileno Raúl Rodríguez
Adoráveis invisíveis, O horizonte é uma ilusão, utiliza seu faro de jornalista para compor as 25 e dos críticos Maria Esther Maciel e
Alyens phemynistas, A melhor queda é cair histórias breves da obra, buscando personagens João Cezar de Castro Rocha, colunista
em si e Cagando pro mundo são algumas das interessantes na realidade estampada nos do Rascunho, estão nas páginas
narrativas breves deste Mundo omissíssimo, veículos de notícias e no cotidiano. A ideia para desta coletânea que homenageia a
repleto de “histórias gritadas, líquidas e Buracos de lataria, por exemplo, que conta de produção de Evando Nascimento.
redondas”, como a autora define a própria quando Fidel Castro visitou Pernambuco, surgiu Os trabalhos, que buscam analisar a
ficção. Yamashita, uma das vencedoras do de uma conversa ouvida no ônibus. A política, obra múltipla do baiano sob os mais
Prêmio Jabuti 2016 com Mãos mágicas, em um momento tão turbulento quanto o de diversos enfoques, foram apresentados Caleidoscópio: 60 anos
mantém o blog Abraços dobrados e colabora agora, não poderia ficar de fora — ainda mais durante um colóquio internacional. de Evando Nascimento
regularmente com artes para o Rascunho. considerando que o conjunto começou a ser Diários de Vincent: impressões do ORG.: CÁSSIA LOPES, EVELINA
HOISEL, VICTOR COUTINHO LAGE E
Seu trabalho mais recente é dedicado aos compilado, com a ajuda de colegas que fazem estrangeiro, Retrato desnatural e WALLYSON FRANCIS SOARES
seus aventureiros avós, que vieram lá do parte da oficina Autoajuda Literária, logo depois Cantos do mundo são alguns dos Edufba
outro lado do mundo. do impeachment da presidente Dilma Rousseff. livros de Nascimento. 282 págs.
28 | MAIO DE 2022

Um manual
DIVULGAÇÃO

às avessas
Correio literário, que reúne cartas
enviadas por Wislawa Szymborska a
escritores iniciantes, mostra a elegância
irônica da Nobel de Literatura de 1996

IARA MACHADO PINHEIRO | SÃO PAULO – SP

E
m um ensaio chama- pacidade de sentir e pensar, é ne-
do O valor do riso, Vir- cessário também “que o poeta fale
ginia Woolf diz que o a língua da sua época”. Por um la-
riso “preserva o nosso do, trata-se do trânsito entre o que
senso de proporção”, de modo que é experimentado profundamente
quando perdemos a capacidade de e subjetivamente e a sensibilidade
encontrar graça, perdemos tam- de captar as condições de vida de
bém “o nosso senso de realidade”. determinado tempo. Por outro, o
É um bom ponto de partida para que está em questão é realmente
ler o Correio literário, de Wislawa ter algo a dizer, que não seja o ran-
Szymborska, um breve volume com cor nem o exibicionismo de erudi-
as respostas da poeta a escritores as- ção com um tipo de orgulho que
pirantes que enviavam seus textos não passa do acúmulo de referên-
à revista polonesa Vida literária. O cias ou a reprodução do que foi
senso de humor e as ótimas analo- anteriormente consagrado.
gias, elementos também presentes Outro obstáculo para a ca-
em seus poemas, divertem enquan- pacidade de realmente conseguir
to fazem pensar sobre a seriedade ver, destacada no Correio, é o im-
envolvida no ofício da escrita. pulso de castigar os personagens
Correio literário contém até o ponto em que perdem qual-
cartas escritas ao longo da déca- quer traço humano. Seja por causa
da de 1960, e lê-las em 2022 é de uma associação simplista entre
bastante intrigante. Embora a sofrimento e arte, seja uma tenta-
perspicácia e a firmeza de Szym- tiva malsucedida de criticar a ba-
borska tenham um valor anacrô- nalidade alheia — isentando-se de
nico, é mesmo de se pensar se tal afetos rebaixados ou mesquinhos
agudeza de juízo encontra espaço —, o resultado costuma ser um
em um mundo como o nosso, ca- desfile de marionetes incapazes de
racterizado por uma difusa aspira- expressar qualquer coisa que con-
ção de diferenciar-se do todo, ao cerna verdadeiramente à vida.
mesmo tempo em que a prolifera- Eventualmente, é o estabele-
ção de cursos e workshops quer nos cimento de saída de um propósito
levar a crer que a obra-prima está ou de um estilo que enrijece e este-
apenas a algumas aulas de distân- riliza um projeto literário. Escrever
cia da concretização bem-sucedi- uma história realista, por exemplo,
da. Talvez precisamente por isso “só se torna realizável lá onde ter-
valha a pena lê-lo nos dias de hoje. mina o esquema e as pessoas que
A AUTORA
A elegância irônica da escri- entram em ação começam a pen- de chofre a sentar e tentar colocar no papel aquela en-
tora é tão divertida e assertiva que sar e sentir mais ou menos à seme- xurrada surpreendente de nexos e imagens que vêm à WISLAWA SZYMBORSKA
prefiro desempenhar o papel de lhança das pessoas vivas”. Ainda mente, até porque parece que se esperar um segundo
Nasceu em 1923, em Bnin (Polônia).
curadora e propor uma seleção de que o ponto de partida seja a ari- a mais aquilo tudo pode se perder. De fato, é extrema-
Publicou doze coletânea de poemas
fragmentos. É curioso notar como dez e a desilusão, o vigor é neces- mente prazeroso quando nossa cabeça é invadida pela e ganhou o Nobel de Literatura em
os nãos sobressaem às indicações sário, porque “até sobre o tédio é vitalidade, no entanto, a injeção de ideias costuma ser 1996. Poemas (2011), Um amor feliz
ou às diretrizes imperativas. Tal- preciso escrever com paixão”. um início em potencial, não o fim. (2016), Para o meu coração num
vez porque não exista um mapa O trecho acima é apenas um dos exemplos de domingo (2020) e Riminhas para
para estradas que nunca são com- A inspiração fragmentos do Correio que fazem menção a textos crianças grandes (2018) são seus
pletamente percorridas, mas, com Lemos e lemos, avançamos mal-acabados, quase ilegíveis, cheios de erros ortográ- outros livros traduzidos no Brasil. A
o desejo como bússola, pode ser com dificuldade pelas paginazi- ficos. Se a escrita apressada com um computador ten- biografia da poeta, Quinquilharias e
possível encontrar eventualmen- nhas cheias de manchas e rabiscos de a ser um pouco menos cruel com os olhos de um recordações (2020), escrita por Anna
te alguma direção. negros, e de repente um pensamen- primeiro leitor, a premência de trabalhar um texto an- Bikont e Joanna Szcesna, também está
to nos deslumbra: por que não po- tes de sequer considerar publicá-lo não depende da fer- disponível em português. Szymborska
morreu em 2012, na Cracóvia.
Saber ver deríamos nos render à frustração? ramenta usada para redigi-lo, porque “a pressa, salvo
Não tente ser poética a qual- Outros podem e nós não? Por que raríssimos casos, cria produtos semiacabados”. Até mes-
quer preço; a poeticidade é chata, temos de querer ler isso, se tudo in- mo a mais frutífera visita da musa inspiradora carece
porque é sempre secundária. A poe- dica que nem o autor se interessou de tempo, cuidado e atenção para virar alguma coisa,
sia, como, aliás, toda a literatura, em passar o texto a limpo? o que não é exclusividade do ofício literário.
retira suas forças vitais do mun-
do em que vivemos, das vivências O contrário da seriedade Quer ser poeta?
realmente vividas, das experiências não é humor, é desleixo. E o deslei- Em primeiro lugar, deveria se preocupar se tem al-
realmente sofridas e dos pensamen- xo às vezes pode tentar usar fanta- go a dizer. Sob esse aspecto, esses poemas são estéreis, o que
tos que nós mesmos pensamos. sias rebuscadas ou vistosas, como a nenhum truque formal no mundo vai disfarçar. “Quero
inspiração, quando alguém é aco- ser poeta...” E essa agora? De novo o senhor está pegando
Ao passo que a literatura metido por uma corrente de pen- as coisas pelo lado errado. Sem dúvida, preferimos aqueles
retira suas “forças vitais” da ca- samentos fervorosos que o obriga que simplesmente “querem escrever”. Somente isso é sério.
MAIO DE 2022 | 29

rei a beber, deixarei de acreditar no


sentido da minha própria existência
etc. etc. O redator então não sabe o
Sem o frescor
que fazer. O que quer que venha a
escrever pode ser perigoso. Se escrever
que os poemas ou a prosa são ruins,
da novidade
está armada uma grande tragédia.
Se escrever que são bons, o autor vai VICTOR SIMIÃO | MARINGÁ – PR
pirar de vez com sua suposta apti-
dão (já houve casos assim).
Correio literário — ou como se
tornar (ou não) um escritor A projeção da atividade do

V
WISLAWA SZYMBORSKA escritor como o mais edificante dos
Trad.: Eneida Favre ofícios parece gerar a expectativa de iagem ao país do futu-
Âyiné que um elogio seja o equivalente a ro reúne 12 ensaios-re-
128 págs. um passe livre para o Olimpo. Para portagens da jornalista
além da desproporção do peso atri- portuguesa Isabel Lu-
buído à recepção, ao invés da de- cas. Anteriormente publicados
dicação ao processo de execução, a nos jornais Suplemento Pernam-
resposta jocosa de Szymborska faz buco e Público, de Portugal, o fo-
pensar sobre como é perigoso pren- co do trabalho é tentar entender o
der-se às coisas como se fôssemos Brasil real a partir de livros clássi-
um náufrago que agarra um tron- cos e contemporâneos. O desafio
O senso de humor e as co para sobreviver em meio à de- é interessante. O resultado, en- Viagem ao país do futuro
ISABEL LUCAS
riva, em vez de ligar-se a elas por tretanto, não traz surpresas. São
ótimas analogias, elementos amor, o que, mais uma vez, extra- lembrados, entre outros nomes, Cepe
328 págs.
também presentes em seus pola a profissão de escritor.
Por que o diagnóstico posi-
Euclides da Cunha, Lygia Fagun-
des Telles, Clarice Lispector, Ra-
poemas, divertem enquanto tivo de um terceiro deveria ser tão
determinantes para sustentar uma
duan Nassar, Guimarães Rosa e
Dalton Trevisan.
fazem pensar sobre a escolha? A aprovação dos outros Os textos são majoritaria-
seriedade envolvida no seria a confirmação de que não so-
mos apenas mais um na multidão?
mente ensaísticos. Embora ela
entreviste moradores, professores
ofício da escrita. Não seria esta uma agonia com-
partilhada? Não seriam precisa-
e afins, o foco, aparentemente, es-
tá na visão dela, uma portuguesa,
mente as agonias compartilhadas, sobre o Brasil real. “Será possível
embora tão difíceis de nomear, conhecer o Brasil através de sua
um dos alimentos da criação lite- literatura?”, Isabel escreve na in-
A reação à idealização do ofício do escritor talvez rária? Será que temer tanto assim trodução do livro. Ela sabe que
seja o aspecto mais recorrente das respostas de Szym- a banalidade da vida é realmente não, mas encara a viagem mesmo
borska. Quando querer ser poeta se sobrepõe ao efetivo congruente com a inclinação para assim. “Perdi-me no país saben-
desejo de escrever, em geral o texto sofre os efeitos por narrar as vicissitudes da existência? do agora o que sabia quando es-
causa das marcas da preocupação não com a expressão E o que é, afinal, o talento? Seria ta viagem começou: que no fim
em si, mas com “estar sendo ou não suficientemente realmente um atributo inato? eu seria derrotada. Continuo com
poeta”. A artificialidade tende a resultar em uma escri- Szymborska acredita que poucas respostas. Sei apenas fazer
A AUTORA
ta esquecível. Pretensiosa porque pretende deliberada- sim. Ela afirma essa ideia em al- mais perguntas.”
mente causar espanto ou emoção no leitor, ou confusa gumas das respostas e também na O título do livro, conforme ISABEL LUCAS
porque as palavras são amontoadas “em pilhas tão al- entrevista concedida a Teresa Wa- a autora, vem de uma frase do aus-
É formada em Comunicação Social
tas de metáforas soltas que estas impedem a visão do las, a responsável pela organização tríaco Stefan Sweig, que via, no sé-
pela Universidade Nova de Lisboa.
mundo além delas”. do volume, que abre a edição bra- culo 20, o Brasil como o país que Seu trabalho jornalístico é focado
Escrever imaginando um público que “vai à lou- sileira do Correio literário. Pare- viria a ser referência. Além dos en- nas áreas de cultura e viagens.
cura, uma multidão atrás de autógrafos, fotografias nos ce, no entanto, que a escritora não saios-reportagens, há uma espécie
jornais, entrevistas” é tentar garantir certa dignidade a encara o talento apenas como uma de diário de viagem da autora.
tolas, embora compreensíveis, fantasias de reconheci- dádiva do destino concedida a al- Ela já havia feito algo semelhan-
mento. Possivelmente, em cada um de nós exista uma guns poucos iluminados, até por- te anos antes, quando publicou o
parte sedenta por reforço positivo, só que provavelmen- que sempre existirá um preço bem livro Viagem ao sonho america-
te não é esta parte que pode gerar um texto capaz de alto a ser pago. Em diversos mo- no, lançado apenas em Portugal.
comunicar alguma coisa para um outro. mentos, o ofício do poeta é apro-
Em geral, é uma operação que não dá certo, e ximado de outras profissões por Análises
mesmo que consiga prosperar de algum modo é pro- meio da premissa de que o valor de Vários são os livros escolhi-
vável que o texto fique restrito à particularidade do au- um trabalho reside na qualidade dos pela jornalista para (tentar)
tor, porque a projeção imaginária se alimenta demais de sua execução, e não em sua na- compreender o Brasil. Nada mais
de frustrações individuais para viabilizar que alguém tureza: “Ainda persiste a ideia ro- significativo que abrir o volume a
medite sobre o que realmente importa. Já o desejo de mântica de que ser poeta é a maior partir d’Os sertões, de Euclides da Há ao menos uma exceção
escrever... deve viver em outro habitat e se abastecer de glória e honra, enquanto a maior Cunha, viajando para o nordeste louvável: o texto sobre Raduan
outra substância, que não a frustração, uma capaz de glória e honra é fazer com excelên- brasileiro, onde ocorreu a Guerra Nassar, principalmente porque o
permitir que o impulso de dar forma à beleza e ao ab- cia aquilo que se sabe fazer”. de Canudos no final do século 19. autor de Lavoura arcaica dá en-
surdo da vida resista aos períodos infrutíferos. No final das contas, o com- Em um depoimento, a escritora trevista. Interessante como o es-
Uma das analogias de Szymborska é particular- prometimento, embora não ga- houve de uma mulher que “An- critor prefere falar de qualquer
mente divertida e clara quando o assunto é a insufi- ranta nada, é incontornável. E o tônio Conselheiro ia ser um Lula outra coisa que não literatura
ciência da aspiração de ser poeta: “Julgam que as boas talento talvez só consiga encon- da vida”. Ali, ela ainda vê a misé- — mesmo sabendo que esse se-
intenções automaticamente decidem sobre a forma. trar um solo fértil para criar raízes ria e, de certa forma, entende co- rá um dos tópicos.
E, no entanto, para se tornar um sapateiro decente, na capacidade de atribuir nobreza mo o Brasil está fadado a sempre Outro destaque é o tex-
não basta ser um entusiasta do pé humano”. Diverti- a um ofício através da dedicação esperar por algo messiânico. to sobre Milton Hatoum, um
da porque aproxima coisas diferentes e surpreenden- investida no processo, sem condi- Ao tentar captar os senti- dos principais nomes da literatu-
tes; clara porque dá o sentido de trabalho ao ofício cionar os esforços a uma palavra dos de Machado de Assis, ela vai ra contemporânea. Juntos, Isabel
da escrita, e assim a necessidade de preparo, dedica- elogiosa ou aos bons ventos cir- ao Rio de Janeiro; ao falar sobre Lucas e o autor de Dois irmãos
ção, fazer e refazer. cunstanciais. Associar a alegria à Dalton Trevisan, viaja a Curitiba; passeiam por Manaus, a capital
exceção em geral é bem arrisca- quando aborda Jorge Amado, vai amazonense. A partir dos locais
O valor dos outros do, porque a ordem rotineira, por à Bahia, etc. Por serem textos com que visitam, a jornalista escre-
Acontece com bastante frequência de o redator deste contraste, só tem como adquirir objetivos semelhantes a leitura me ve sobre a obra do manauara e as
Correio ler cartas com ameaças. Essas cartas dizem mais um juízo fatalmente penoso. Já soou cansativa em determinados mudanças do presente nas estru-
ou menos o seguinte: por favor, me diga se os meus textos quando o processo consegue ter momentos: é como se ela citasse turas do passado.
valem alguma coisa, porque se não tiverem darei imedia- mais valor que o fim, o ritmo co- algo do livro e aí comparasse com Para leitores de Jorge Ama-
tamente um fim nisso, rasgarei tudo, jogarei no lixo, vou tidiano da execução pode ter co- a vida real. Depois do terceiro en- do, Guimarães Rosa e afins, os en-
me despedir dos meus sonhos de fama, vou ficar desespera- mo componente alguma graça saio, sem o frescor da novidade, fi- saios não trazem novidades, mas o
do, vou duvidar de mim mesmo, terei um colapso, começa- que brota da própria realização. ca difícil manter o foco. livro vale pela proposta.
MAIO DE 2022 | 31

O som do trovão
acusados de espionagem. Pouco depois, por insis-
tência do filho mais novo, Georgi, Marina retorna
também a Moscou. Longe de qualquer aprovação
oficial, sob suspeita, passa a viver com o caçula de
modo mais miserável do que nunca.
Em junho de 1941, os exércitos alemães ini-
Antologia mostra a poderosa simplicidade da russa ciam a Operação Barba Rossa, invadindo a União
Marina Tsvetáeva, que exerceu rigoroso despojamento Soviética. Dentro de um plano nacional de remo-
ção da população, Marina e o filho são deslocados
formal e se tornou uma das principais poetas do século 20 para Elabuga, no Tartaristão. Em 31 de agosto, sob
fome extrema, a poeta se suicida (ou terá sido mor-
ta?). Ela tinha 48 anos. Sua filha, Ariadna, presa
MARIO NEWMAN DE QUEIROZ | RIO DE JANEIRO – RJ desde 1939, será liberta dentro das políticas de re-
visão e condenação dos crimes de Joseph Stalin, no
governo de Nikita Khrushchov, em 1955. Ariadna
é o fio que permitiu resgatar em grande parte a obra
de Tsvetáeva. Poesia do exercício mais rigoroso de
Aos meus versos, escritos tão cedo, despojamento formal, como só a temos no melhor
quando eu nem sabia, eu — poeta, de Manuel Bandeira e Mario Quintana.
a jorrar, como pingos de uma fonte,
como faíscas de um foguete, Tradução
a pular, como pequenos diabos, Quando ocorre a ausculta e vibração da poe-
no santuário, onde há sono e incenso, sia, com versos vindos de terras distantes, há de se
aos meus versos de juventude e morte — apreciar também a arte de quem os trouxe supe-
versos nunca lidos! rando as distâncias e fazendo eclodir na nossa lín-
espalhados em estantes empoeiradas gua a poesia construída em outra. O trabalho de
— onde ninguém os pegou e nem os pegará — tradução direta do idioma original, pela doutora
Aos meus versos, escritos tão A AUTORA
aos meus versos, como os vinhos raros, em língua e literatura russa Verônica Filíppovna,
chegará a sua hora cedo... chegará a sua hora MARINA TSVETÁEVA estudiosa e tradutora da poeta desde 2006, mere-

E
MARINA TSVETÁEVA ce destaque especial. É trabalho de poeta nas duas
Trad.: Verônica Filíppovna Nasceu em Moscou,
sse poema propicia encontros. Diz com na Rússia, em 1892. É
línguas: verteu poesia em poesia. Fez com a leitu-
PontoEdita
exatidão o que todo poeta em certo mo- considerada uma das ra poesia, lá na língua de terras distantes, e fez aqui
192 págs.
mento gostaria de dizer, mas lhe falta cla- principais poetas do poesia em nossa língua. A poeta escreveria em meio
reza, força ou honestidade. Quando nos século 20, com uma às agruras de 1940:
deparamos com um poema assim, que gostaríamos produção iniciada
LEIA TAMBÉM
de ter escrito, quando um poema que acabamos de aos 16 anos de idade. — Chegou a hora! Para este fogo —
ler passa a ser nosso é porque transpôs barreiras — de Viveu grande parte Estou velha!
pessoa, de identidades, de vida, de tempo, de cultu- da vida no exterior, — O amor é — mais velho que eu!
ra e, caso provindo de um lugar distante, de frontei- na Tchecoslováquia
e França, e se
ras geográficas e diferenças idiomáticas —, transpôs — Uma montanha
suicidou em 1941.
barreiras e a poesia se fez em plenitude. De cinquenta janeiros!
Assim é a poesia de Marina Tsvetáeva: simpli- — O amor é — ainda mais velho!
cidade poderosa. Poeta e tradutora russa, nasceu em Velho, como a cavalinha, velho, como a serpente,
1892, em Moscou, de família nobre — voltada à ar- Mais velho que o âmbar da Livônia,
te, cultura e ao conhecimento. Viveu num perío- Mais velho que todos os navios
do extremamente turbulento da história da Rússia. Fantasmas! — As pedras velhas — os mares...
Além das enormes agruras por que todos passaram Elos líricos Mas a dor que tenho no peito —
por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), MARINA TSVETÁIEVA É mais velha que o amor, mais velha.
com a revolução soviética (1917) ela perde tudo que Trad.: Paula Vaz de Almeida
herdara. Seus pais e seus avós doaram bibliotecas pa- Bazar do Tempo Pouco a pouco, a obra de Tsvetáeva foi se tor-
ra museus, ela vendeu a dela para fugir da fome. Em 208 págs. nando conhecida, admirada. Hoje, ela é uma das
1913, quando escreve essa metáfora amorosa “E co- mais aclamadas poetas do século 20. No Brasil, teve
mo meu coração ficou em chamas/ com essa pólvora poemas traduzidos, na coletânea Poesia russa mo-
desperdiçada em vão”, não se imaginava no mundo derna, por Augusto de Campos, Haroldo de Cam-
de pólvora que entraria em breve. Ou, pitonisa, já pos e Boris Schnaiderman. Augusto de Campos,
antevia no amplo horizonte o movimento do futuro? “Passo a pão e água/ Amargura-pesar, amargura-triste- mais uma vez, em Poesia da recusa. Décio Pigna-
za./ Cresce uma erva como esta/ Em teus prados, Ó Rússia” tari, em Marina. Aurora Fornoni Bernardini, em
Tu, que tens sonhos eternos, (10/06/1917); ou pouco após o Outubro, “Passei o ano- Indícios flutuantes, O poeta e o tempo (ensaio)
Que te movimentas em silêncio, -novo sozinha./ Eu, rica, fui pobre,/ Eu, alada, fui, maldita e Vivendo sob o fogo: confissões (correspondên-
Vai para a travessa das Três Fontes (31/12/1917). Passar como o que o tempo lhe recusa, “Meu cia selecionada por Tzvetan Todorov). Agora, Aos
Se amas meus versos. caminho não passa pela casa — tua./ Meu caminho não passa meus versos escritos tão cedo... chegará a sua ho-
pela casa — de ninguém” (27/04/1920). Abandono extremo, ra e Elos líricos – Poemas e prosa a grandes poe-
(...) de quem teve o marido desaparecido na guerra com o exér- tas, com tradução de Paula Vaz de Almeida.
cito dos “russos brancos”, uma filha morta de fome (Irina).
Em breve esse mundo será destruído, Em 1920, em meio aos gestos de recusa, a poeta pa- Voz presente
Contempla-o em segredo recia antever que o pior ainda viria. “Não quero nem amo- Niterói, Rio de Janeiro, março de 2022. Lon-
Enquanto o álamo ainda não foi cortado res, nem honras/ (...) Não quero nem uma maçã/ (...) Atrás ge, muito longe da Rússia, da guerra na Ucrânia,
E a nossa casa ainda não foi vendida. de mim arrastam-se correntes, logo romperá o som do tro- mais ainda daquela Guerra Patriótica contra os na-
vão”. E há o passar da brevidade da vida, passar é próprio zistas de 1941 a 1945. Mais ainda das guerras re-
(...) do tempo, é da vida no tempo. volucionárias iniciadas em 1917. Chego à janela e
vejo a moça deslizar, pés nos pedais, numa das mãos
Este mundo inexoravelmente belo Pela terra passei dançando! — Filha do céu! um celular, noutra o guidão da bicicleta. Um olho
Tu ainda encontrarás, apressa-te! Com um avental cheio de rosas! — Sem nenhuma a brotar! no aplicativo, outro no trânsito. Na garupa, a caixa
Vai para a travessa das Três Fontes Sei, morrerei no lusco-fusco! — Para a noite do falcão de entrega de comida. A voz de Tsvetáeva está ali,
Para a alma da minha alma. Deus não me dará alma de cisne! muito próxima dela, nunca próxima dos homens
que decidem pôr populações em guerra, não im-
Este poema também é de 1913. Ela escrevia de Exílio e morte porta em que época.
uma borda do tempo secular, jovem, sem poder su- Depois de reencontrar o marido, Serguei Efron, Ma-
por a dimensão da tragédia pessoal e global que au- rina Tsvetáeva, a partir de 1922, passará 17 anos no exílio, Os dias se arrastam feito caracol,
gurava. A nova situação social do nascente estado entre Praga, Berlim e Paris, sob condições de subsistência ... Linhas diárias da costureira ...
soviético, se não adotara a revolução permanente de difíceis. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, como Que importa minha vida?
Trotsky, nunca deixará de parecer estar em perma- ocorreu com milhões de pessoas pelo mundo, o ritmo da Se não é minha nem tua.
nente guerra para o povo, tais os níveis de dificulda- tragédia na vida da poeta se acelera e se intensifica.
de pelos quais passavam. “Passar”, nos versos que nos Antes contrário aos bolcheviques, Serguei muda de E que importam meus
traz a antologia, é um verbo em evidência... Passar no posição. Acusado de assassinato na França, volta a Moscou, Problemas... — Comer? Sonhar?
momento, como escrevia em plena guerra que suga- agora URSS, com sua filha Ariadna, onde viverá de 1939 Que importa a morte do meu corpo?
va a população e estimularia a Revolução. a 1941. Logo que chegam, seu marido e filha serão presos, Se não é meu nem teu.
32 | MAIO DE 2022

Legítima E
m O acontecimento, a
francesa Annie Ernaux
repete a construção e o
tom dos anteriores Os
anos e O lugar. A autora escre-
ve a partir de cicatrizes. É forte, é
bom, mas não é novo.
O acontecimento — cuja

defesa
adaptação cinematográfica, diri-
gida por Audrey Diwan em 2021,
venceu o Leão de Ouro, em Ve-
neza — narra a vivência de um
Em O acontecimento, aborto que a escritora fez em
1964, época em que a prática ain-
assim como em outros da era ilegal na França. Sem apoio
livros, a francesa Annie do namorado, da família e mui-
to menos da sociedade, ela encara
Ernaux elabora uma tudo em absoluta solidão. Desde
escrita íntima, pessoal, 1975, as francesas podem esco-
lher o que fazer com seu próprio
política e feminista corpo. A solidão que as mulhe-
res enfrentam quando o primeiro
problema surge, entretanto, per-
CAROLINA VIGNA | SÃO PAULO – SP manece universal.
O viés feminista é bem ób-
vio, assim como o autobiográfi-
co. Como não há possibilidade
de um trabalho artístico não ser
biográfico, tratarei isso como fa-
Annie Ernaux por to dado. A criatividade depende,
Oliver Quinto necessariamente, de quem a exer-
ce. Podemos até mesmo ampliar
a questão de que não existe pro-
dução humana impessoal, mas es-
se debate é para outro momento.
Mais do que “autoficção”, o
que ela faz é política. Ernaux se
refere à sua escrita como sendo
“uma atividade política”, confor-
me diz no livro L’écriture comme
un couteau (2003).
A francesa costura entra-
das de diário, memórias, ficção e
pesquisa em um curto e claríssi-
mo retrato do que é passar por um
aborto. A clandestinidade do ato é
um agravante, mas a ferida aberta
é a construção identitária femini-
na. Foram aproximadamente 30
anos até que a autora conseguisse
materializar a história vivida em
um livro e isso, por si, já deixa cla-
ro o peso da experiência.
Talvez a minha birra com o
termo “autoficção” seja pelo fato
de eu ser mulher. Mesmo conside-
rando autoras como a Marguerite
Duras, conhecida por transitar en-
tre a autobiografia e a autoficção,
é, para mim, um termo masculino.
A construção identitária feminina
não é fictícia. Pode ser ficcionali-
zante, mas jamais fictícia.
A literatura de Annie Ernaux
é de uma solidão terrível e isso pa-
rece espantar as pessoas. O estar no
mundo feminino é solitário.
O masculino vem, gradati-
vamente e inexoravelmente, per-
dendo seus referenciais desde a
década de 1960. Não é mais o lí-
der da matilha. Não é mais o pro-
vedor. Não é mais o sexo forte, se
é que algum dia foi. Todas as cons-
truções identitárias masculinas es-
tão em xeque. Judith Butler fala
sobre isso em Problemas de gê-
nero: feminismo e subversão da
identidade (2003): “O ‘sujeito’
masculino é uma construção fictí-
cia, produzida pela lei que proíbe
o incesto e impõe um desloca-
mento infinito do desejo heteros-
sexualizante”. O sujeito feminino,
ao contrário do masculino, por ter
sido construído a fórceps, não é
fictício, não é frágil.
MAIO DE 2022 | 33

Por esse motivo, a voz femi- Essa passagem rápida entre


nina, frente a ausências, abando-
nos e violências sofridos, traz em
a descrição da cena e o relato emo-
cional de uma sensação interna é
A literatura de Annie
si uma clareza quase redundante.
As mulheres, por nunca terem si-
uma das marcas literárias de Er- Ernaux é de uma solidão
naux. Não há um limite nítido en-
do sujeito, por terem sempre esta- tre o dentro e o fora, são camadas terrível e isso parece
do na periferia, construíram a sua
espantar as pessoas.
de um mesmo estar no mundo.
identidade, o seu sujeito, à força e
na dúvida. A vantagem de se cons- Colagem
truir em dúvida é que quando essa Construímos nossa bio-
construção é questionada não há O acontecimento grafia e, tão importante quanto,
choque, não há surpresa. ANNIE ERNAUX a memória de nossa biografia em
O masculino, por não ter si- Trad.: Isadora de Araújo Pontes colagens de si próprias. Por esse
Fósforo
do colocado em dúvida anterior- motivo, inclusive, ocasionalmen- vem dramas pessoais, também
80 págs.
mente, não sabe o que fazer. E, tal te temos as lembranças a nos en- dimensiona a importância que de
qual o menino na escola que não ganar. Todos que já passaram por fato ocupam:
sabe como se comportar, reage algum processo de terapia ou psi-
com agressão. Não que a violência canálise sabem que muitas vezes, Escrevi para P. dizendo que
deva ou possa ser perdoada, esque- ao revisitar memórias, as ressigni- estava grávida e que não queria o
cida. Não é esse o ponto. A ques- ficamos. Percebemos tardiamen- filho. Tínhamos nos despedido sem
tão é perceber a fraqueza no ato do te como um evento nos afetou. certezas sobre a nossa relação, e eu
abandono, da traição, da ausência, Entendemos, às vezes décadas senti certa satisfação em incomodar
da recusa, da falência do apoio. To- depois do fato, que compreen- a sua tranquilidade, mesmo não
dos atos de violência emocional, demos algo equivocadamente. tendo nenhuma ilusão sobre o pro-
fracos e covardes, exercidos por Esquecemos os primeiros anos de fundo alívio que lhe causaria a mi-
homúnculos fracos e covardes. nossas vidas e muitas lembranças nha decisão de abortar.
Há concretude na existên- antigas que temos não são nos- Uma semana depois, Kennedy
cia do feminino. Ernaux sabe dis- sas. É o chamado “efeito con- foi assassinado em Dallas. Mas isso já
so no corpo, como diria Lacan. fabulação”, em que assumimos não me despertava nenhum interesse.
como uma memória vivida algo (O acontecimento)
Histórias vividas que nos foi contado muitas ve-
A maior parte de fortuna zes. Aqui, finalmente, entra o ele- Os acontecimentos políticos
crítica de Ernaux fala em enfren- mento ficcional: a memória nos só existem como detalhes: na tevê,
tamentos por meio da escrita, em trai. Somos todos literatura. durante a campanha presidencial,
uma literatura “crua”, “brutal”, A questão da memória é im- a visão aterradora da dupla Men-
A AUTORA
esquecendo que o existir femini- portante para Ernaux e a autora dès France-Defferre, o pensamen-
no já é um ato de resistência. Nos- ANNIE ERNAUX trata do assunto em diversos mo- to que lhe ocorreu na época, “mas
sa única alternativa é, tal qual a mentos, como em O lugar: por que Pierre Mendès France não
Nasceu em 1940, em Lillebonne, na
Terceira Lei de Newton, enfren- se apresenta sozinho?”, e o momento
França. Estudou na universidade
tar a sociedade masculina — mi- de Rouen e foi professora do Centre
Interpretar esses detalhes é um em que Alain Poher, no último dis-
sógina e opressora. National d’Enseignement par gesto que agora se impõe a mim com curso antes do segundo turno, coça
Certa vez um homem, fa- Correspondance por mais de trinta uma urgência maior do que aque- o nariz, e a impressão que ela teve
lando sobre homofobia, me dis- anos. Seus livros são considerados la que me levou a um dia reprimi- de que, por causa desse gesto feito na
se que eu não sabia o que era ter clássicos modernos em seu país de -los, tão segura estava eu, na época, frente de todos os espectadores, ele se-
medo de sair sozinha à noite. Eu origem. Em 2017, Ernaux recebeu de sua insignificância. Apenas uma ria derrotado por Pompidou.
ri. De forma alguma diminuindo o prêmio Marguerite Yourcenar memória humilhada podia ter feito (Os anos)
a gravidade ou a importância da pelo conjunto de sua obra. com que eu os conservasse. Me sub-
questão, mas ri. Ri por desistên- meti às vontades do mundo em que O acontecimento é políti-
cia. Ri por saber que explicação vivo, que se esforça para que todos se co, histórico e feminista. É, tam-
nenhuma daria conta. Talvez a li- esqueçam das lembranças de uma vi- bém, íntimo e pessoal. Muitos
teratura de Ernaux dê conta. Tal- da com hábitos mais simples, como críticos se referem a essa exposi-
vez seja essa a resposta. se fossem uma coisa de mau gosto. ção como um ato de coragem, se
Seus livros tratam de histó- esquecendo que a única arma que
rias vividas. Ela utiliza um recur- Ou, falando diretamente a um escritor tem é essa. Não é co-
so que me é particularmente caro, respeito, em entrevista à Veja: “Es- ragem, é sobrevivência. É, no fim,
o da construção de significado por crevendo, sempre surge a questão legítima defesa.
meio da colagem. Une trechos e da evidência: além do diário e da
pedaços de imagens de forma a agenda do período, acho que não Se eu tivesse descoberto o no-
construir e desencadear tanto o TRECHO
disponho de nenhuma certeza a me desse residente de plantão da
mundo à sua volta quanto o mun- respeito dos sentimentos e pensa- noite do dia 20 ao 21 de janeiro de
do dentro de si. O recurso às vezes O acontecimento mentos, devido à imaterialidade e 1964, e se me lembrasse dele, não
é tão claro que chega a ser didáti- à evanescência daquilo que atra- hesitaria em registrá-lo aqui. Mas
co, como no início de Os anos: Estamos as duas no meu vessa a mente”. seria uma vingança inútil e in-
Ela escreve em 1999 algo justa na medida em que seu com-
quarto. Estou sentada na cama
Todas as imagens vão desa- ocorrido em 1963. Por mais vivi- portamento devia ser apenas uma
parecer. com o feto entre as pernas. do que tenha sido, aqui certamente amostra de uma prática geral.
(...) Não sabemos o que fazer. entra mais um elemento da cola- (O acontecimento)
Molly Bloom deitada ao la- Digo a O. que é preciso cortar gem. A história é o resultado da
do do marido se lembrando da pri- soma de seus registros em diários, Entendo isso visceralmente.
o cordão. Ela pega a tesoura,
meira vez em que um menino deu anotações, suas lembranças com, Em 2017, fiz uma exposição indi-
um beijo nela e ela disse sim isso sim não sabemos em que lugar certamente, alguma pesquisa. vidual no MIS de Campinas in-
sim sim cortar, mas ela o faz. Olhamos titulada Não me depilei para isso,
Elizabeth Drummond mor- o corpo minúsculo, com uma História é literatura que tratava de (devolvia as) violên-
ta com os pais em uma estrada em Talvez seja relevante me posi- cias emocionais recebidas.
grande cabeça, os olhos são duas
Lurs, em 1952 cionar nesse ponto, para clareza do O que fica de mais con-
as imagens reais ou imaginá- manchas azuis sob as pálpebras leitor. Sou da política de que His- tundente em O acontecimento
rias, que permanecem conosco du- transparentes. Parecia uma tória é literatura e de que não existe é o relato de abandono, da falta
rante o sono boneca indiana. Olhamos o imparcialidade. Não existem limi- de apoio, da solidão. O que Er-
tes muito nítidos entre literatura, naux expõe não é um aconteci-
sexo. Temos a impressão de ver
Às vezes um pouco mais su- história, jornalismo, sociologia, fic- mento pessoal, individual. O que
til, como em O acontecimento: um início de pênis. Então eu ção, etc. Da mesma forma, toda li- ela escancara é a violência com
tinha sido capaz de fabricar teratura tem algo de biográfico. que a sociedade abandona a mu-
Quando acabou seus san- isso. O. senta no banco, chora. Professora, Ernaux conhece lher à própria sorte. A solidão é
duíches, Jean T. afundou na cadei- intimamente o valor de uma boa um acontecimento feminino uni-
Choramos silenciosamente. É
ra sorrindo com os dentes à mostra: pesquisa. Ela explicita com acon- versal. E isso toda mulher conhe-
“Como é bom comer”. Estava enjoa- uma cena sem nome, a vida e a tecimentos mundiais o período ce, tendo ou não passado por um
da e me senti sozinha. morte ao mesmo tempo. que vive. E, como todos que vi- aborto. Tanto faz.
34 | MAIO DE 2022

Na periferia
Outra coisa que se torna ca- ponto de vista de quem não sa-
da vez mais evidente é o ponto de be de tudo isso, mas descobre
vista da narrativa. Em primeira enquanto narra. É justamente
pessoa, vemos que há algo de ino- o que traz o fator surpresa pa-

do real
cente na personagem narradora. É ra a leitura. Isso fica um tan-
uma sensação muito parecida com to evidente, por exemplo, com
ler obras com narradores infantis, o uso frequente de substanti-
com crianças que acompanham vos comuns com letras maiús-
um evento que não têm ainda ca- culas, o que sugere que Piranesi
pacidade completa de entender, toma para si a função adâmica
O surpreende e sutil Piranesi, da A AUTORA
mas que transparecem vários in- de entender, nomear e classifi-
inglesa Susanna Clarke, é uma SUSANNA CLARKE dícios que deixam certas situações
muito claras para o leitor antes de-
car aquele mundo — apesar de
fazer isso com conceitos e cate-
fantasia marcada pelo esquecimento, Nasceu em Nottingham, na Inglaterra,
em 1959. É autora dos romances
les mesmos entenderem. gorias que já conhece desde sem-
isolamento e limitação de escolhas Jonathan Strange e Mr. Norrell (2004)
Piranesi é mais ou menos
assim: aos poucos começamos a
pre. A questão é que ele não se
lembra de nada disso, e sente co-
e Piranesi (2020) e do livro de contos
The Ladies of Grace Adieu and Other ter indícios de que há muito mais mo se realmente tivesse desco-
Stories (2006), inédito no Brasil. acontecendo para além do que brindo tudo pela primeira vez.
GISELE EBERSPÄCHER | CURITIBA – PR
a personagem é capaz de perce- O espaço labiríntico é, as-
ber. Temos, assim, esse explora- sim, uma espécie de periferia do
dor deslumbrado que transforma mundo real — acessado por pou-
o espaço onde habita, o qual cha- cos, à margem do litoral, é um

P
ma muito economicamente de A mundo para onde se vai esque-
or vezes, temos a difícil E agora façamos um acordo: Casa, em sua existência. cer e ser esquecido. Piranesi passa
tarefa de falar a respeito vou começar a falar sobre o livro Mas agora é hora de se per- por um isolamento de vários ti-
de um livro sobre o qual de maneira um tanto vaga, de pro- der um pouco mais no labirinto. pos. É isolado de sua família (que
seria melhor não falar. pósito. Nesse momento, você po- o considera desaparecido), isolado
Ou pelo menos não falar muito. de descobrir se é algo que você quer Não diga que não avisei de seus pares, mas também isola-
Não por ser chato ou desnecessá- ler. Depois, vou começar a falar em Como um labirinto, a Casa do de si mesmo e sua consciência.
rio, mas porque a surpresa, o ines- mais detalhes — caso você ainda é um espaço que limita as opções Se em Jonathan Strange e
perado e surpreendente do livro é não tenha se convencido ou caso já da personagem. Pesquisar, escre- Mr. Norrell Clarke cria uma ima-
justamente passar pela experiên- tenha lido a obra e queira saber ou- ver o diário, se preocupar com sua gem de magia grandiosa, históri-
cia de se descobrir sobre o que ele tra percepção. Combinado? existência, procurar suprimentos ca e documentável (ainda que o
trata. Pense em Clube da luta — Piranesi para se alimentar e espaços para isolamento e o esquecimento já
livro de Chuck Palahniuk ou fil- Fantástico e improvável SUSANNA CLARKE se proteger das marés — essa é a tenham sido explorados nos en-
me do David Fincher, tanto faz. O livro tem formato de diá- Trad.: Heci Regina Candiani rotina de Piranesi. Além, claro, de redos secundários de algumas
Morro Branco
É o caso de Piranesi, de Susan- rio e é escrito por uma persona- adorá-la: adorar o espaço que lhe das personagens do romance),
256 págs.
na Clarke. Vale um comentário: já gem identificada como Piranesi, fornece abrigo, proteção, comida. Piranesi mostra a magia da in-
se tornou um clichê começar rese- nome que recebeu do Outro, a Esta é, no fim, uma eco- trospecção e do esquecimento. A
nhas sobre o livro com esse aviso. única pessoa com quem intera- nomia de obra bastante simples. escolha do ponto de vista ressalta
Piranesi é o segundo ro- ge. E Piranesi está em um mun- Apesar do mundo deslumbrante esse aspecto, é claro, mas o espa-
mance de Clarke, e é definido pela do muito diferente, mas que ele visualmente, há duas personagens ço também desempenha um pa-
própria autora como a história de parece entender, ou busca enten- dedicadas a um fim (entender a pel crucial nessa narrativa, já que
TRECHO
um homem em uma casa na qual der, ou ao menos aceita como sta- Casa e procurar a Verdade) em o labirinto é em si o símbolo des-
o mar está aprisionado. O primeiro tus quo da existência. Piranesi um espaço limitado com ações li- se esquecimento, isolamento e li-
livro de Clarke, Jonathan Stran- Isso já se revela na primei- mitadas. O próprio Piranesi pare- mitação de escolhas.
ge e Mr. Norrell, é de 2004. Além ra frase: ce limitado como narrador: conta Numa leitura que aproxi-
Certa vez, sem comer há
disso, já publicou um conjunto de seu cotidiano de maneira direta ma o livro da biografia da auto-
contos (inédito em português). Quando a Lua surgiu no Ter- dois dias, decidi ir aos Salões e simples, sem aprofundamentos ra, vale mencionar que Clarke,
Jonathan Strange e Mr. ceiro Salão do Norte, fui ao Nono Inundados para achar alguma e referências a um passado (que entre os 16 anos que separam o
Norrell é um belo calhamaço. O Vestíbulo para testemunhar o encon- comida. Subi aos Salões ele mesmo parece não estar cons- lançamento de seus romances, so-
romance é uma espécie de relato tro de três Marés. Algo que só acon- ciente de ter). Isso fica evidente freu profundamente de síndrome
Superiores. Isso, por si só,
acadêmico fictício sobre o encon- tece uma vez a cada oito anos. O nas interações com o Outro, no- de fadiga crônica, condição ainda
tro de dois magos, os que dão tí- Nono Vestíbulo é singular devido às não foi fácil para alguém na me dado à única outra pessoa vi- sem tratamento. A autora já afir-
tulo ao livro, que buscam trazer a três grandes Escadarias que abriga. minha condição debilitada. va no espaço por ser justamente mou o quanto a doença a afastou
magia de volta para a Inglaterra — As Paredes são cobertas por Estátuas As Escadarias, embora variem aquele que não é eu. Ao mesmo do mundo e do convívio em ge-
na economia da obra, a magia já de mármore, centenas e centenas de- tempo, há certos indícios que ra- ral. Em uma entrevista para Justi-
em tamanho, são, em maioria,
estivera presente no país mas sua las, fileiras e mais fileiras, que acen- pidamente são compreendidos ne Jordan, do The Guardian, diz
prática se perdera, e os magos con- dem às alturas mais remotas. construídas na mesma escala pelo leitor como elementos des- que se sentia alheia ao mundo e
temporâneos atuavam apenas de generosa do restante da casa, e locados na narrativa — o fato, condenada a ficar em um mesmo
forma teórica. O que faz do livro E é assim, com descrições cada Degrau tem quase o dobro por exemplo, em um mundo tão lugar. Piranesi se aproxima pro-
tão bem-feito é a grande habilida- muito assertivas, que o mundo extraordinário, de o Outro trazer fundamente desse sentimento —
da altura que me é confortável.
de com que a autora cria o mundo extraordinário se constrói como e insistir que Piranesi tome regu- alguém que se desconecta de si
e as personagens. O tom acadêmi- completamente ordinário para a (É como se no início Deus tivesse larmente seus multivitamínicos. mesmo por uma força maior, sem
co cria a sensação de que o leitor personagem em questão. construído a Casa pretendendo Se você leu a resenha até entender o que está acontecendo e
já sabe, ao menos em linhas gerais, Aqui, Clarke se distancia um povoá-la com Gigantes e depois aqui, imagino que talvez já te- sem ser capaz de sair desse círculo
do que o acontecimento se trata, e pouco de um dos narradores mais nha lido o livro ou não se im- vicioso, tendo até dificuldades de
tivesse mudado de Ideia sem
as notas de rodapé criam com fre- comuns da ficção especulativa: a porte com isso. Um pouco de entender o que os outros desem-
quência adiantamentos pontuais personagem estrangeira, advin- motivo algum). contexto, se for o segundo ca- penham ao seu redor.
da história e aprofundamentos da de outro espaço social, planeta so: A Casa se trata de um mun- Eventualmente, Piranesi
dos contextos que fazem com que ou mundo fantástico, que descreve do mágico, acessado apenas pelos é encontrado e lentamente con-
o mundo criado por Clarke seja uma sociedade nova com olhos não poucos que descobriram como segue retornar ao seu mundo
cada vez mais convincente. acostumados a ela. Piranesi, apesar chegar lá e que leva pessoas ao anterior. Mas é profundamen-
Piranesi não foge tanto de de não entender seu mundo em sua esquecimento depois de estadias te marcado pela experiência da
algum desses temas, apesar de Su- completude, está inteiramente acos- longas. Piranesi era um jornalis- Casa e também já não consegue
sanna basicamente ter ido de 800 tumado a ele e o considera sua casa. ta que investigava o tema quando mais se desapegar disso. O mun-
para 80 páginas. (Ok, exagero E este é justamente um mun- é levado e deixado lá pelo Outro do e suas inúmeras possibilida-
meu: a edição brasileira ficou com do que se confunde com uma casa, A parte inicial do romance para desenvolver pesquisas e bus- des, sem contar o grande número
256. Mas, vamos lá, perdoem a re- mas é uma espécie de labirinto qua- se destaca justamente pela criação car a verdade para tudo (teoria do de pessoas (“Quase me esqueci de
senhista em busca de gracinhas.) se inabitado composto por grandes de mundo realizada pela autora. Outro, diga-se). Aos poucos, per- respirar. Por um instante, tive no-
Acontece que explorar um forma- salões, cheios de estátuas, invadido São inúmeras descrições de está- deu totalmente a consciência de ção de como seria o Mundo se, em
to mais curto não mudou em na- periodicamente por marés. Pirane- tuas, estrutura do céu e das águas, si mesmo — que retoma parcial- vez de duas pessoas, houvesse mi-
da a capacidade de a autora criar si parece investido em entendê-lo, dos resquícios de vida que ainda mente quando reencontra seus lhares”), o assustam. No conto Os
e manipular um mundo fantásti- catalogá-lo, explorá-lo — no senti- ocupam o espaço que se mostra diários e quando uma policial do dois reis e os dois labirintos, Borges
co com grande maestria — ain- do mais tradicional do viajante que mais imaginativo e engenhoso a mundo “real” vai em sua busca. mostra que o labirinto mais difí-
da que, neste novo romance, seja cria mapas, dá nome aos seres, não cada página. Um mundo tão fan- A grande questão do livro cil do mundo é a eterna possibili-
bem mais sutil. no sentido mais capitalista atual. tástico quanto improvável. é justamente essa construção do dade de um deserto.
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DIVULGAÇÃO

O autor de 1Q84 é habili-


O AUTOR
doso ao explorar a dualidade entre
HARUKI MURAKAMI desejo e memória como cerne do
romance. O não dito ganha ain-
Nasceu em Kyoto, no Japão, em
da mais importância do que tudo
1949. Seu primeiro romance,
Ouça a canção do vento, foi
o que está escrito. O silêncio, uma
publicado em 1979 e ganhou
espécie de chave-mestra para des-
um importante prêmio. A partir vendar os mundos de Murakami,
de então, passou a se dedicar é também um fator essencial em
integralmente à literatura. Já Sul da fronteira, oeste do sol.
foram publicados no Brasil: Todas as perguntas de Hajime são Sul da fronteira, oeste do sol
Kafka à beira-mar, Caçando respondidas somente quando ele HARUKI MURAKAMI
carneiros, Dance, dance, também se cala. Trad.: Rita Kohl
dance, O elefante desaparece, Alfaguara
Em um momento, o perso-
Do que eu falo quando falo de 176 págs.
nagem diz:
corrida e 1Q84, entre outros.

Não tenho muito para con-


tar sobre os quatro anos que passei
na faculdade.

E afirma:

Encarei longamente meus


olhos no espelho, como não fazia há
muito. Mas eles não refletiam nada TRECHO
de quem eu era. Apoiei as mãos na
pia e respirei fundo. Sul da fronteira, oeste do sol

O peso do
Esses são dois momentos Shimamoto já havia mudado
em que o vazio é mais importan-
de escola muitas vezes, por causa
te que todo o resto. É na ausência
que Murakami ergue sua história do trabalho do pai. Não lembro
e faz seu personagem se confron- direito o que ele fazia. Ela me

silêncio
tar, antes de tudo, consigo mes- explicou em detalhes uma vez
mo. Mais uma herança muito
mas, assim como a maioria das
clara de Franz Kafka.
crianças, eu não ligava muito
Homens sem cor para a profissão dos pais dos
Murakami não é um escri- meus amigos. Sei que era um
Sul da fronteira, oeste do sol traz elementos que tor de frases perfeitas, esculpidas,
trabalho especializado, algo a
deram um tom único à literatura de Haruki Murakami, como Kawabata ou Mishima. Sua
literatura é mais bruta, cotidiana. ver com bancos, ou a receita
com destaque para a importância dos não ditos Os tons ocidentais que o afastam federal, algo assim.
da literatura clássica japonesa re-
verberam em Sul da fronteira,
JONATAN SILVA | CURITIBA – PR oeste do sol. Seja por sempre es-
crever fora do Japão ou por não
ter um conterrâneo como mode-
lo, como explica em Romancis-

H
ta como vocação, Murakami se
omens enigmáticos e Em Sul da fronteira..., Murakami conta a histó- transformou em um autor uni- rejeite qualquer influência direta
em crise. Mulheres mis- ria de Hajime, dono de um bar de jazz em Tóquio cuja versal. É difícil imaginar que es- dos estudos de Freud, é impossí-
teriosas. Questões do vida pacata e bem-comportada é transformada pelo sas mesmas queixas recaiam sobre vel não enxergar relações mesmo
presente e do passado reencontro com Shimamoto, amiga de infância e pri- o também universalizado Kazuo involuntárias. Quando o conflito
em aberto. Realidades paralelas — meira paixão do narrador. Hajime é um homem fragi- Ishiguro. Murakami, talvez, tenha não se dá na perspectiva do sonho,
muitas vezes uma espécie de saudo- lizado, nulo, salvo de uma vida medíocre pelo sogro, um caráter popular demais. acontece fora do que podemos en-
sismo desenfreado. Jazz. Baseball. E mas afundado em um cotidiano que julga muito maior Sul da fronteira, oeste do tender como real.
literatura norte-americana. Haru- do que verdadeiramente merecia. sol se assemelha a O incolor Tsu-
ki Murakami, assim como Woody Tendo como pano de fundo o Japão sob os trau- kuru Tazaki e seus anos de pe- Tradição
Allen, Philip Roth, Pedro Almo- mas silenciados do pós-guerra, Murakami personi- regrinação — uma das melhores O que une todas as narrati-
dóvar ou mesmo Morrissey, criou fica em seu protagonista a culpa e as obsessões que obras de Murakami — ao pro- vas ficcionais de Murakami pare-
em torno de sua obra um itinerário alimentaram a sociedade nipônica naquele período. por um personagem adulto miti- ce ser seu ardor por O apanhador
bastante específico: são elementos Shimamoto representa a fuga desse labirinto de soli- gado pelas feridas da juventude. no campo de centeio. O clássico
comuns, que formam a identida- dão. Como em Um corpo de que cai, de Hitchcock, ou Tsukuru, como Hajime, é um de Salinger ressoa em boa parte
de de seus personagens, o tom de Trágica obsessão, de Brian De Palma, ao sair da inércia homem estabelecido, obcecado da literatura do japonês. Seus an-
suas narrativas e a construção do Hajime mergulha de cabeça em uma espiral de estra- por trens e metrôs, e por enten- ti-heróis são como Holden, mas
espaço ficcional singular. Acres- nheza e segredos. der o motivo pelo qual seus qua- a rebeldia não costuma se dar no
cente também porções surrealistas tro melhores amigos passaram a plano visível: está sempre escon-
e uma prosódia muito semelhante Bonita, mas coxa ignorá-lo. Para além do passado dida pela tradição e organização
a uma conversa informal. Hajime lembra da amiga como uma menina in- em suspenso, uma ferida aberta, do seu país.
Sul da fronteira, oes- teligente e sensível, com quem compartilha seu gosto os dois protagonistas são sujeitos Hajime, que não era tão
te do sol — publicado no Japão por literatura e música. Os dois passavam as tardes es- sem cores, perdidos no cinza da mau aluno quanto Caulfield e
em 1992 e que só agora chega cutando a coleção de discos do pai de Shimamoto, mas cidade. Toru Okada, de Crônica nem tão inteligente, guarda para si
ao Brasil — reúne todos os ele- o que ainda permanece como mais forte traço da ga- do pássaro de corda, e o prota- a insatisfação e a vontade de poder
mentos clássicos de um livro de rota é a perna que arrasta. O andar peculiar de Shima- gonista de O assassinato do co- — para usar um termo nietzschia-
Murakami, sobretudo dos anos moto perseguiu Hajime até a meia-idade. As mulheres mendador também. no —, mas engata, igualmente, a
iniciais. O escritor japonês divide com condições semelhantes produzem nele um efeito Se à primeira vista esse pa- literatura de formação. Como di-
opiniões, principalmente no seu devastador, porém silencioso. rece ser uma narrativa realista co- to antes, é no silêncio que as coisas
país. Enquanto a crítica o conde- No conto Samsa apaixonado, que integra o mo Norwegian wood — obra realmente acontecem para Haru-
na por ser ocidental demais, os lei- volume Homens sem mulheres e retoma o leit- que colocou o autor no mapa —, ki Murakami.
tores veem em seus livros ecos de motiv kafkiano, Murakami também explora a ideia a história de Hajime é muito mais Sul da fronteira, oeste do
suas próprias vidas. Esse jogo de de identidade e corpo. Essa fascinação de Hajime noir, psicanalítica e profunda do sol, apesar do lapso de três déca-
cena, de ame-o ou deixe-o, vem à pelo detalhe que todos consideravam um defeito que parece. Flutuando entre rea- das chega ao país em boa hora, e é
tona a cada lançamento ou a cada — e que colocava Shimamoto à margem na esco- lidade e memória, Hajime está uma das obras mais bem acabadas
vez que o autor de Kafka à beira- la — é salvação e perdição, ao mesmo tempo em completamente subjugado pela de seu autor, e é também aquela
-mar é cotado para o Nobel — o que coloca o personagem numa perpétua situação incompreensão e desentendimen- que dosa com exatidão os elemen-
que acontece todos os anos. de tentativa e erro. to humano. Ainda que Murakami tos que integram seu cardápio.
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TIO DIETER
ELOÉSIO PAULO
Ilustração: Denise Gonçalves

N
ão acredito em predes- era tio de um amigo, mas vários camadas de tempo que a tornaram da calça — que correia ele não usa-
tinação, espiritismo de nós, minha turma de colégio, (como a mim mesmo, provavel- va, por isso vez por outra andava
nem nada parecido. o adotamos como parente por ad- mente) irreconhecível para quem com a bunda meio de fora, espe-
Acho que o mundo e miração — ou seria espanto? — não a veja todo dia. O cotidiano cialmente quando bebia. E como
a vida devem não fazer nenhum do seu jeito de ser, para o qual a é a única continuidade que existe, bebia, foi algo em que se especiali-
sentido, e na maior parte do tem- melhor definição quem deu foi o resto é caos e... “mistério”! Afi- zou desde seu casamento com uma
po até torço para que não façam. minha mãe. Ele era roliço sem nal, parece que o cônego Benedi- moça a que se afeiçoou mais pelo
Mas admito que há situações em banda. Roliço sem banda queria to estava certo. costume e pela inércia do que por
que o Mistério parece ser a úni- dizer alguém que “não tinha lado Dieter era descendente de encantos que ela tivesse. No inte-
ca explicação. Aliás, elas não são da gente chegar”, especificando alemão, daí o nome, mas de ale- rior, muitas vezes o sujeito se casa-
poucas. Conheci um velho cône- melhor o conceito de Dona Es- mão não tinha nem aparência nem va mais com o sogro e os cunhados
go que dava aulas numa faculda- colástica, cujo nome combinava espírito. Era, e tornou-se ainda do que com a consorte afinal esco-
de interiorana e, a cada pergunta bem com a mania e o talento, que mais ao longo da vida, um típico lhida, até mais aceita por decurso
embaraçosa que um aluno lhe fa- ela inegavelmente os tinha, de ro- habitante do sul de Minas Gerais; de prazo do que pela constância do
zia, sempre se saía com esta: “O tular coisas e pessoas. Combinava quer dizer, meio caipira paulista, amor e das afinidades.
Homem é um mistério”. também com nossa cidadezinha meio citadino mineiro. Tal como Roliço sem banda, isso ele
Não sei se o homem, mas perdida entre montanhas acanha- o recordo, já bem para além dos 30 era e ficou muito mais. Ainda
com certeza meu tio Dieter, que das, quase uns outeiros, que não anos, era quase careca e tinha uma solteiro, trabalhava num negócio
para começar nem era meu tio; existe mais, pois foi recoberta por barriga já desabando sobre o cós que todo mundo chamava de res-
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friador. Resfriador era um lugar balhar, de ter onde tirar o susten- o verdadeiro nome, talvez, mas
onde o leite recolhido nas fazen- to da família, isso cada vez menos, era uma expressão de estilo seme-
das da região ficava à espera do até chegar ao nada. Junto chegou lhante). De novo, a sorte: não era
caminhão que o levaria ao laticí- a necessidade de vender as terras, noite de culto. Esses detalhes eu
nio. Nesse tempo, contava meu e então a espiral da ruína se pro- só conto por conta de os ter ou-
amigo seu sobrinho, começou a longou por mais alguns anos na vido tantas vezes do Márcio, que
destoar dos irmãos morigerados gastança do capital que sobrou. ria muito ao relatá-los. Ele dizia
— pois Dieter tinha dois irmãos, O filho não queria vir, para isso que enquanto estava lá, tentan-
ambos empregados de um posto tendo boas razões em sua insis- do fazer uma média com os poli-
de gasolina, que eram o retrato tente inexistência. ciais militares chamados a registrar
irretocável das virtudes interio- Dieter, no entanto, era um a ocorrência, Dieter andava de lá
ranas; nem bebiam, nem ficavam coração extremamente generoso. para cá e duas vezes falou ao ouvi-
até tarde pela rua, nem pulavam Tinha capacidade de trabalhar de do do sobrinho: “Não gosto desse
cerca. Nem nada. graça o dia todo, laçando e amar- bicho!”. Os homens da lei, é cla-
Pouco antes de se casar, Die- rando novilhos para serem vaci- ro, escutavam, mas isso deve ter ti-
ter entrou de sócio num açougue nados na fazenda de um primo do pouca ou nenhuma influência
e logo depois ficou dono sozinho. ou tio. Certa vez, viajou de car- a respeito da noite que passou na
Talvez porque o parceiro já o tenha ro mais de 100 quilômetros para cadeia. Tampouco essa noite lhe
achado roliço sem banda. Por con- ajudar um sobrinho recém-casado teve mais valia do que passar 15
ta disso já o conheci sem a meta- a mudar-se de casa. Defendia os dias escondido em casa, morto de
de do dedo médio da mão direita, fracos em brigas de bar, arranjan- vergonha, não querendo ver nem
torado no toco usado para picar as do inimigos de um lado e admira- ser visto por ninguém.
reses e o porcos abatidos. Claro, ele dores do outro. Em compensação, Teve o epílogo, e nele mais
precisava de ser canhoto. jactava-se de haver tirado a virgin- uma vez se conjugaram a tragédia
O açougue durou pouco. dade de uma moça da roça que financeira com a existencial. Die-
Tio Dieter havia herdado, com depois o chamou para padrinho ter tinha vendido sua casa com a
a morte da mãe, uns alqueires de de casamento. intenção de construir outra, de-
terra onde começou a criar seus Já não tinha trator nem ter- pois vendê-la e construir duas,
próprios bois. Comprou também ras. Uns poucos bois que às vezes muito parecido com aquele con-
um trator, e andava arando e gra- comprava, engordava-os em pas- to da mulher que levava na cabe-
deando terras alheias. Logo em to alugado. Foi quando lhe ocor- ça um jarro de leite. Ocorreu que,
seguida, entrou a negociar com reu o primeiro acidente de carro: como parte do pagamento, en-
automóveis. Enfim, um empreen- capotou uma Kombi, que havia trou no negócio um Vectra quase
dedor. Só que em poucos meses, comprado sabe-se lá por quê, e fi- zero-quilômetro. O tipo do car-
quanto mais crescia o tédio do ca- cou prensado entre um barranco e ro que ele nunca teria para uso.
samento, mais aumentava a fatia uma porta do veículo meio derrea- Só que, quando passou adian-
da semana que ele passava sumi- do. Mas era um cavalo de tão for- te o carrão, recebeu como paga-
do o dia todo, chegando a casa al- te. Ficou meio estropiado uns dias, mento um cheque sem fundos.
tas horas, sempre caindo na cama passou, voltou forte como sempre. E o safado do comprador, por si-
sem banho, de roupa e tudo. Mais grave foi quando atro- nal seu velho conhecido, como se
Diriam alguns que o pro- pelou um garoto. Descia uma la- diz voou na capoeira. Ficou pou-
blema era a falta de um filho. deira a bordo do fusca da vez, o co mais da metade do dinheiro da
Diriam outros que estava a mani- menino atravessou a rua corren- casa, e dentro do peito um vazio
festar-se a herança genética, pois do atrás de um cachorrinho fu- que não podia ser preenchido se-
seu pai havia sido um consuma- gido. Foi muita sorte o moleque não com cachaça. Cachaça bara-
do paranoico, dormia com o re- não ter quebrado nada. Mais sor- ta, que Dieter já estava quase no
vólver debaixo do travesseiro e te ainda, Dieter não estava bêba- ponto de engolir querosene, como
acusava a mulher de ser outro o do. Eram duas da tarde. certos bebuns em fim de carreira.
genitor do filho mais novo, jus- Mas, então, de remedia- Mesmo assim, podia ter sido
tamente Dieter. As sabidas e con- do, estava quase chegando a po- diferente. Podia, se ele fosse outra
sabidas virtudes matrimoniais de bre. Roliço, a barriga sempre a pessoa. Então, sua mania ambula-
dona Emerenciana desautoriza- crescer não desmentia; sem ban- tória ficou ainda mais intensa, não
vam a suspeita, isso era publica- da, também foi ficando cada dia havia um dia em que não saísse ce-
mente admitido. Então, podia ser mais, porque a ruína o ia tornan- dinho e voltasse só perto da meia-
que estivesse começando a germi- do intratável até mesmo para as -noite. E gasolina, como se sabe,
nar o grãozinho de loucura trazido pessoas de quem mais gostava. também custa dinheiro.
de além-mar (a loucura do avô, es- Nunca maltratou fisicamente a Certa noite, voltando de
sa é outra história). Mas o que di- mulher, mas quem poderia adivi- uma cidade vizinha aonde vagas
zer da exemplaridade insossa dos nhar como ela se sentia? Nunca razões o haviam conduzido, en-
dois irmãos mais velhos? ela se queixava, a ponto de nem trou na sua frente um carro com
Havia a festa de São Pedro, se precisar aqui mencionar seu no- os faróis apagados. Ele não teve
que consistia em uma semana de me. Tudo tem significado quando chance de se desviar; com a ba-
atividade simoníaca direta e indi- se conta uma história. tida, seu Uno Mille rodopiou na
reta plantada, na forma de bar- Foi quando ocorreu o pe- rodovia e foi bater numa retroes-
racas disso e daquilo, mais um núltimo capítulo. Dieter vinha cavadeira estacionada ao lado do
pequeno parque de diversões, no voltando de sua ronda diária restaurante Peixe Frito, àquelas
campo de futebol da nossa cidade- quando passou ao lado de uma la- horas ainda cheio de fregueses.
zinha. Em certo domingo, Dieter voura de milho. Eram oito da noi- Mesmo assim, podia ter si-
entrou nela com seu trator e gra- te, hora de estar no último boteco do diferente se...
deou o campo, levando engancha- para não chegar muito ruim em ...se Dieter usasse cinto de
das na rabeira várias barracas. Foi casa. Lembrou-lhe que uma das segurança. Mas ele não usava, e
a primeira coincidência notável cunhadas gostava demais de fazer por isso, foi lançado de costas con-
de seu destrambelho com a tragé- curau de milho, mas morava nu- tra uma enorme pedra. Ainda era
dia financeira, pois, honesto até a ma casa cujo quintalejo mal dava forte como um cavalo; quebrou
medula, uma vez saído da carras- para criar três ou quatro galinhas. várias costelas, que lhe perfuraram
pana ele procurou todos os preju- Na sua moral rascunhada, duzen- os pulmões, passou mais de uma
dicados e pagou-lhes pelos danos, tas espigas não fariam falta a quem semana no hospital. Aí, morreu,
“choro em cima do defunto”, co- tinha tantos alqueires de milho. não dos ferimentos, mas da uma
mo ele gostava de dizer, e seu re- Também, se ficassem sabendo e infecção que eles causaram. Nun-
pertório de expressões figuradas lhe cobrassem, pagaria sem recla- ca vi tanta gente chorando como
também é uma outra história. mar, choro em cima do defunto. em seu enterro. Acho que as pes- ELOÉSIO PAULO
Daí por diante, ladeira abai- A parte de trás da Brasília 77 ficou soas choravam, em sua maioria,
Nasceu em Areado (MG), em 1965. Doutor em
xo. Emprestava cheques e depois atopetada de milho verde. sem saber por quê. Talvez porque Teoria Literária pela Unicamp é, desde 2006,
não se lembrava a quem. Com- Ao sair do bar, errou feio tivessem a intuição de que algo ali, professor da Universidade Federal de Alfenas.
prava e vendia na certeza do lucro, uma curva e entrou com o car- algo que não compreendiam, di- Autor de Questões abertas sobre O alienista
(2020, ensaio), O casamento da bruxa com
mas ao fazer as contas os números ro bem na parede da igreja pente- zia respeito a um mistério do qual Papai Noel (2019, infantil) e O amor é um
vinham dizer-lhe o oposto. E tra- costal Línguas de Fogo (não esse cada um fazia parte. assunto imbecil (2020, poesia), entre outros.
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DIVULGAÇÃO

VALÉRIO
MAGRELLI
Tradução e seleção: Patricia Peterle

V
alerio Magrelli nasceu em Roma (Itália), em
1957. É uma das vozes mais atentas do panora-
ma italiano contemporâneo. No final de 2021,
publicou seu livro mais recente, Exfanzia, pela
famosa coleção Bianca, da Einaudi. Os sete poemas aqui
traduzidos foram retirados desse livro. Exfanzia não trata
da infância, nada de nostalgias ou sentimentalismos. O
que está em jogo é uma expulsão da infância e, portanto,
ganham espaço a velhice e a proximidade com a morte.
Tudo lido pelo crivo de muita ironia, sarcasmo, ao lado
de um refinamento literário, que se esconde atrás da apa-
rente e enganadora simplicidade. Uma poesia que aposta
em materiais que escapam ao lirismo e perseguem o ras- Diceva un vecchio amico: “Vorrei essere
tro do antipoético. Um exemplo é o poema Etimologia. morto, ma non si può avere tutto nella vita”
Nesses versos, a poesia é o resultado de uma inflamação, Dorme in un sacco a pelo
poesia, diz Magrelli, “vem de pus”. No Brasil, está tra- sopra la scalinata di una chiesa. Io, quando morirò, penserò, a te:
duzida a antologia 66 poemas (Rafael Copetti Editor). Le birre, tutto intorno,
Fanno da candelabri. operaio che mi montasti la cucina lasciando in mezzo alla
Ho sempre il terrore di essere io. strada le scatole d’imballaggio col mio nome, ragion
per cui ricevetti una multa di duecento mila lire;
ottico al quale chiesi di pulirmi le lenti, e che quelle
Che sorrisone faccio, nella foto! Num saco de dormir fica stesse lenti mi fondesti, procurandomi un danno di
Sta per iniziare la gita em cima da escadaria de uma igreja, cinquecento euro;
e scherzo con gli amicix. as cervejas, em torno, meccanico n.1, che eseguisti malamente la riparazione
Tra mezz’ora, cadendo, parecem candelabros. della cinghia di trasmissione, lasciandomi in auto-
mi romperò una spalla Tenho sempre o terror de ser eu. strada con l’aiuto in fiamme e mille euro di spese;
e poi sarò operato per due volte. meccanico n.2, che mi montasti un carburatore
Ma che sorriso faccio, nella foto! sbagliato, facendomi percorrere seicento chilometri
Arreso, felice, imbecille. in oltre ventidue ore;
Perché, se stiamo bene, ortopedico che in una banale operazione riuscisti a
abbiamo sempre l’aria da imbecilli. paralizzarmi un dito per sempre.
Una foto qualsiasi, una storia qualsiasi.
Tendini come versi, lunghi e fragili. Penserò a voi, a voi tutti e ai vostri simili,
Siamo fatti di vetro soffiato: da cui la mi vita è stata avvelenata
l’unica cosa buona sta nel soffio. per errore.
Penserò a voi, quando dovrò morire,
Il turista della vita non ai miei cari:
Que grande sorriso faço, na foto! solamente a voi.
logo vai iniciar o passeio Ma quante scale avete fatto mai, Vorrò essere allegro il più possibile,
e brinco com os amigos. zampette mie?, mi chiedo perché la mia dipartita sia più lieve.
Daqui a meia hora, caindo, mentre attacco quest’altra, nuova rampa. Vi penserò col cuore
vou quebrar um ombro Torri, tante — piramidi, Traboccante di gioia:
e operado vou ser depois duas vezes. fortezze, campanili, almeno, non dovrò incontrarvi più.
Mas que sorriso revelo, na foto! e sempre con quell’ansia di chi vuole
Rendido, feliz, imbecil.
Porque, se estamos bem, vedere ancora e ancora… Dizia um velho amigo: “Gostaria de estar
sempre ficamos com o ar de imbecis. Sei contento?, mi ripeto ogni volta Morto, mas não é possível ter tudo na vida”
Uma foto qualquer, uma história qualquer. che arrivo in cima.
Tendões como versos, longos e frágeis. Fino a che arriverà l’ultima volta, Eu, quando morrer, vou pensar em você:
Somos feitos de vidro soprado: l’ultima cima.
a única coisa boa está no sopro. E qui lo dico con quasi sollievo. operário que me montou a cozinha deixando no meio da
rua as caixas da embalagem com meu nome, razão
pela qual recebi uma multa de duzentas mil liras;
O turista da vida ótico pra quem pedi para limpar as lentes, e que aquelas
Etimologia mesmas lentes me fundiu, me causando um dano de
Mas quantos degraus vocês já fizeram quinhentos euros;
“Poesia” viene da pus: minhas pernas?, me pergunto mecânico n.1, que executou muito mal o conserto
non te l’aspettavi? enquanto ataco essa outra, nova rampa. da correia de transmissão, deixando-me na
E quanto ci hai messo, ad accorgertene! Torres, muitas — pirâmides, rodovia com o carro em chamas e mil euros de gasto;
Poetare-suppurare-suppoetare, fortes, campanários, mecânico n. 2, que me montou um carburador
tipica infiammazione del linguaggio. e sempre com aquela ânsia de quem quer errado, e me fez percorrer seiscentos quilômetros
“Ascesi, flemmoni, osteomieliti, ecc.: em mais de vinte e duas horas;
per eliminare la suppurazione, ver mais e mais... ortopédico que numa banal operação conseguiu
la piaga è stata disinfettata con cura” Está feliz?, repito pra mim a cada vez paralisar meu dedo para sempre;
que chego no topo
Até que chegará a última vez, Pensarei em vocês, em todos vocês e em seus semelhantes,
Etimologia o último topo. que a minha vida envenenaram
E aqui digo isso com quase alívio. por erro.
“Poesia” vem de pus: Pensarei em vocês, quando terei de morrer,
isso te surpreende? não nos meus caros:
E quanto tempo passou, até cair a ficha! somente em vocês.
Poetar-supurar-supoetar, Vou querer estar o mais alegre possível,
típica inflamação da linguagem. para que a minha partida seja mais leve.
“Asceses, fleimões, osteomielite, etc.: Pensarei em vocês com o coração
Para eliminar a supuração, Leia mais em transbordante de alegria:
a chaga foi desinfetada com cuidado” rascunho.com.br pelo menos, não terei de encontrá-los mais.
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ONDE MORREM
OS BEIJA-FLORES
ANTONIO CESTARO
Ilustração: Pedro Leobons

É
agradável observar o
movimento. Pessoas
apressadas que cruzam
a rua, outras relaxadas
passeando com o cachorro; um
cara de bigode amarelado puxa
um trago e solta uma baforada
de fumaça que incomoda a se-
nhorinha bem-vestidinha com
sotaque português que caminha
logo atrás. Raios, onde foi parar
o respeito?
O prazer desses momentos
por vezes supera o sabor do prato
servido, sem nenhum custo adi-
cional à conta. Pode acontecer de
chover e respingar forte na me-
sa. Uma tempestade repentina é
ainda pior, especialmente quan-
do o interior do restaurante está
lotado… Era nisso que pensava o
cronista quando um sujeito gor-
dinho — no bom sentido, porque
atualmente o cronista tem que to-
mar cuidado com as palavras, so-
bretudo quando forem adjetivos
— de seus 40 anos, voz dengosa,
se colocou ao centro do recinto
e pediu um minuto de atenção a
todos os fregueses:
— Geeente, eu queria pe-
dir pra vocês uma ajudinha pra
eu comprar o meu almoço, vocês
me ajudam?
Silêncio no salão. — Aqui não é lugar pra is- cabeleireiro! — A mulher se levan- to pegava o copo com refrigerante
— Geeente, eu não quero so. Você deixa a gente trabalhar? ta coagida, segura na mão da filha de um dos rapazes e o atirava com
atrapalhar o almoço de ninguém, — Eu só tô pedindo uma e as duas entram na área interna força na calçada do outro lado da
só queria uma ajudinha pra com- ajudinha, dá licença? Tira a mão do local. rua, produzindo uma centena de
prar a minha comida, vocês po- de mim. Eu venho aqui quando eu — Ei, desculpe, mas você es- cacos com o impacto. — “Cha-
dem me ajudar? quiser — protestou o sujeito en- tá atrapalhando o nosso trabalho! mar polícia” é o meu cu!! Eu não
Silêncio. quanto se dirigia à porta de vidro — “Trabalho” é o meu cu! tô roubando, só tô pedindo! Eu
— Gente, eu não sou ban- que dava acesso ao interior da casa. Eu venho aqui na hora que eu tenho direito!! E o senhor, vai po-
dido! Eu tô pedindo, não tô rou- — Aqui não vai poder en- quiser! Não sou bandido, não! Es- der me ajudar!?
bando, não, tá!? Alguém pode me trar, não! — contestou o garçom tou pedindo, não estou roubando, O cronista pousou a cane-
ajudar? já contando com a ajuda de um não!… “Respeito” é o meu cu!! ta, olhou firme nos olhos do su-
Silêncio... e um resmunga- segundo funcionário. Os gritos chamavam a jeito e lhe disse:
do baixo do garçom que veio para — Eu venho aqui na hora atenção de gente que parava pa- — Dar dinheiro eu não
contornar o potencial constran- que eu quero! “Não vai poder” é ra entender a situação, e o sujeito, vou, não, mas se você me ajudar
gimento. o meu cu!! — disse o sujeito an- muito bravo, não dava sinal de ce- a esclarecer uma dúvida, eu pos-
— Gente, eu só quero co- dando para a calçada e se dirigin- der aos apelos fracassados dos gar- so lhe pagar por isso — comple-
mer! Vocês acham que eu não te- do, já do lado de fora, a uma das çons e do gerente na tentativa de tou, colocando uma nota de dez
nho direito!? Ei, você aí, que está mesas protegidas apenas por um contornar o inconveniente. reais na mesa.
comendo gostoso — disse se di- balaústre baixo. — “Passando dos limites” é — E o que é que eu tenho
rigindo a um rapaz que dividia a — E a senhora, pode me o meu cu!! — disse avançando pa- que fazer, moço?
mesa com outros dois prováveis ajudar? — A senhora sentada com ra uma outra mesa rente à calçada — É só me dizer se sabe on-
colegas de trabalho. — Você pode a filha, uma jovem de uniforme onde dois rapazes comiam a so- de morrem os beija-flores.
me ajudar? — continuou ele, des- escolar, entre o embaraço e a dú- bremesa. — Ei, vocês vão me aju- — Ah, isso eu não sei, não,
sa vez com a voz modulada e den- vida, abre uma pequena bolsa e ti- dar!? Eu não tô roubando, eu só moço. É muito difícil, pergunta
gosa como no início. — Geeente, ra um molho de chaves, batom, tô pedindo, vocês não querem me outra.
eu não tô roubando, só tô pedin- ANTONIO CESTARO caneta e, finalmente, uma moeda ajudar? — Mas é isso que eu preciso
do uma ajudinha. E você, com es- É empresário do setor editorial e diretor do de um real. Silêncio. Assim como todos saber para continuar o meu conto!
se cabelo lindo, não pode me dar selo de literatura Tordesilhas. Estreou como — Só isso!? Um real? O que os presentes, os rapazes se limita- — Beija-flor não sei, não.
uma ajudinha? escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma eu compro com um real? A se- vam a respirar. Acho que nem morrem. Gente, al-
porta para um quarto escuro. Foi finalista do
O garçom, num resmunga- Prêmio São Paulo de Literatura, em 2017, com nhora não tem mais um pouco? — Vocês não vão me aju- guém pode me ajudar? Alguém sa-
do agora um pouco mais definido: o romance Arco de virar réu. Aposto que gastou uma nota no dar!? — repetiu o sujeito enquan- be onde morrem os beija-flores?
40 | MAIO DE 2022

poesia brasileira
EDIÇÃO: MARIANA IANELLI

HELOIZA ABDALLA
(São Paulo – SP)

Sexto canto

Discutimos profundamente o tempo durante nossos O rito foi ali naquela passagem. Eu cantava o canto da minha cura.
caminhos. Agora o eclipse queima as águas. Enquanto no silêncio mais gritante ouvi uma
Os portais da memória. Enquanto essa pedra espera — eu sonho teu mulher sussurrar o poema feito loba neruda.
Você nos lembrou outros mundos. círculo ardente — olhos parados — tapetes — o Sussurrou. Fitei o horizonte.
Eu talvez tenha te dito os meus diários. tempo. Olhou firme para mim.
Eles seguem aqui enquanto escrevo. Eu saí e fui me encontrar com outra de mim. Respira feito mulher na rua — nua: sente o
Eu quis estar contigo desde a primeira palavra. Sonhava você caminhando e me encontrando ainda vento, a tarefa, o encontro.
Fala. uma e outra vez. Crua, sopra outra vez.
Quero te escutar — mais. Não vou viver o mundo sem você. Não introduzir mercadorias como o faziam os
Todos sabem: há um ventre: no amor mora nós. Tu não vai me esquecer. colonizadores.
Eu vim fazer amor por anos. Começou nosso encontro. Nu — teu verso livre — juta é medida.
Corpo, porra! Movimento. Eu recebi o presente. Quando dei por mim, estava de pé.
Palavra. Chorei. Continuei a dançar. A rua. Feito pessoa parindo o semblante a dizer casa.
Sim, sou um ser livre. Falei poesia no final da noite quando o som Toda a sua víscera.
Teu corpo terra perto do meu. todavia deixou de tocar. Ela outra vez.
Diz: nos basta essa pedra? Falamos juntos todos os versos presos que Vocês me deem licença nas terras onde os povos
Deita um pouco e sonha comigo? sabíamos. se dizem por seus cantos corpos poemas.
Respiro. Vazio. Movimento. Nossos versos presos ali fazendo festa. Chorei um ventre verdade.
Aprendi a alma habita os encontros. Caminho. Pra nunca mais ser cinza.
Aprendi a força ali. O lenço vermelho no chão. Amor. Tem uma vida real se abrindo.
Trabalho nisso há anos. Ninguém parece se incomodar. Há poucos. Parecem
Há entre nós: raiz. muitos.
Eu escutei uma semente ao longe. Frestas.
Refazer o mundo. São três da manhã de um sábado já sendo
Vamos dançar? domingo. HELOIZA ABDALLA
Ser o amor comovente que o tempo abriu? Eu respiro fundo quando dou pelo que aconteceu. Nasceu em 1987, em Mogi das Cruzes (SP).
Viver nossos pertencimentos irmãos e ir bem Uma mulher e o canto da semente. Estreou na poesia com Ana Flor da água da
devagar pela vida. Ali naquela fogueira com todas as outras terra (2016). O inédito aqui publicado integra o
livro Sala azul vermelha, que teve sua primeira
Há flores. fogueiras vividas um pouco antes e depois leitura pública no espaço Garganta (SP), na lua
Nós estamos começando uma longa viagem. daquela viagem. cheia do mês de março deste ano.

MARAÍZA LABANCA
(Belo Horizonte – MG)

Futuro do pretérito Pressa Ogiva

esta ciência selvagem de investigar a força não temos mais pressa o corpo de todos
por dentro dos olhos, como a astros. mas temos uma coisa imensa os ângulos inaugura um campo
chamada urgência sonoro, novo, um idioma
então, eu começaria pelos anjos, pelo vento, pela extração velho, a dicção de uma lentidão primeira
de um perfil no espaço; palavras em francês, baças, lembro que você tinha o corpo
banheiro, lágrimas, os ombros tocados, quente e nele alguma se entro na ogiva, sou arrastada — pelos braços —
o assombro com as pequenas sílabas, os átomos de luz, coisa ao jeito de gramíneas até as anêmonas, depois das ramas,
a sua, tão minha, atenção aos detalhes: de ar livre vento fresco anêmonas e algas, a cara
uma só fatia de lua, na varanda estreita, na pele vincada. pluma naufragada nos ombros
transformados em escarpas
inventamos um jeito de tocar o sagrado, lembro que você gostava que escalo
compusemos o salmo, o cântico largo, em todas as quartas, da palavra falésias
os gestos, sem finalidade, e o pressentimento era assim no plural e o meu peito à sua boca, plasmado
de todas as coisas sem pecado. como se as letras escorregassem como a peça de uma máquina
para fora dela obturando a morte
teríamos dado o acento justo ao lodaçal com a outra mão
da frase, ao juramento em frente à chave, você fazia um penhasco entre
ao rudimento de tudo que começa a língua e os lábios para pronunciá-la: a recorrer a um fora quase
sem margem, dos quadris às escarpas era parecido com o início dentro, de uma janela aposta
que sustinham meu peito ferido, tão cheio de vales. do sexo entre meus dedos, como quem namora
os vãos e os hiatos, que há no nome
diríamos está frio, e eu prepararia a cama, o café coado, — eu desejei ser essa palavra. próprio, as dunas sem pouso
uma manhã sem susto, algum sono, remendo o mangue
na cortina, um infinito pavio e o lance de dados.
(o amor em colapso, em extremo
a dor no peito se transfiguraria em arrebentação por inteiro)
de alegria, por fora e por dentro,
porque, na agudeza de toda uma vida, acende e apaga, feito luas no corpo
eu lhe daria o meu corpo aliado. natal prolongado, farol
dos barcos, a borra, a curva,
você diria antes e uma vez mais MARAÍZA LABANCA
segura a tarde para mim porque que estou chegando, Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1984. o furo do conceito.
desde a música distante dos seus lábios. Uma das editoras da Cas’a edições, é
autora de Refratário (2012), Rés – livro das
contaminações (com Erick Costa, 2014),
agora, tenho medo de que a paisagem, de que o peso Partitura (2018), Exceto na região da noite
da tarde, soterre os meus braços. (2019) e A terra O corpo (2021).
MAIO DE 2022 | 41

HUGO LANGONE
(São Paulo – SP)

***
O que a poesia me segredou eu traio.
Sou o traidor da intimidade noturna. É preciso perdoar tudo.
Adverte-te, mundo: É preciso perdoar — mesmo — este não saber dizer teu nome
Ela vem com seus braços brancos E ser ouvido.
Para que neles te fixes enquanto molha-te a língua. Perdoa-o, cumpriram-se as Escrituras: temem o teu nome e o poeta,
(Fácil é descuidares deste gosto fugaz de Deus: Se o grita, ouvem murmúrio e só
A beleza pode conter o céu e o inferno, adverte-te também.) Que volteia o sol poente.
E nada mais: vai-se quando ciciam os sabiás: Ao chão descer incólume,
“Chega já a aurora” — Ser sussurrado no quarto
E assim não vê nunca a que cantou Homero, Como confidência,
A dos dedos róseos, O que resta é isso a este nome que fica
Esta que cedo desponta. Para desdobrar a folha da vida,
Mais: para que tenha só frente, folha branca
*** Sem verso.

Ouvistes o que foi dito, isto ***


De que faríeis coisas
Maiores que estas. Hoje (como autor de diário escrevo),
HUGO LANGONE
Ora, é bem verdade, Na segunda vigília o visito,
Mas operamos também nós Nela — mais: — o tateio Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em
1987. É autor dos livros de poesia Do
Nossos pequenos milagres de baixeza: (Tendo corpo por cais eu redijo) nascer ao pôr do sol, um sacrifício
O converter em chão cintilante Porto de solo sequioso, perfeito (2015) e A descida do
Este solo lodoso que pisamos, Ancoradouro achado que beijo, Monte Tabor (2021). Como ensaísta,
publicou Chorar por Dido é inútil:
Que de quatro damos à boca O que quer o orvalho completo, Santo Agostinho, as Confissões e o
Em disfarces de delicadeza. Este errante, úmido, inteiro. manejo da literatura pagã (2018).

MARIANA PAZ
(Brumadinho – MG)

o lenço sobre o rosto *** *** ***


o seio torcido entre as mãos
espera na água fresca manta pousada sigo os ossos
a manivela do tempo o poema esquecido na placidez do sonho atmosférico
entre os nãos e as pontas renda a contornar o vazio
a mão alcançando da rede as plêiades a forma sobre o tempo
não a súplica
mas a ordem os músculos tesos rendas da escritura a olhar o que permanece em órbita e
seu peso sobre as coxas oculta entre os mundos brilha — a estrela
a sorte é uma vela acesa trago do rio o que fenece e torna a nascer — a flor
o invisível assume aqui
ah se eu pudesse correr mais rápido e construir o a rede pesa e estala a lágrima visível
 [mundo contra o mundo um vento
ah se eu pudesse gritar mais baixo — o sussurro um abraço extático na terra
MARIANA PAZ
espiam os lobos
ser tocada pela mão que vigia o dia o pelo a romper o pescoço Nasceu em Minas Gerais, em 1976.
Escritora e artista plástica, é autora dos
e dispor da carta para ungir o selo sobre a bainha livros de poesia Verbo do rio (2019) e A
a ferida noturna a cela a anoitecer matéria mais suja do dia (2021).

o pão a partir-se todo


a voz em missão de gênese

MARIA CARPI ***


(Porto Alegre – RS)
Aceito ser poeta da escrita
ausente. Aceito ser o conduto

das águas e a água da travessia.


O instrumento da melodia Cartilha de tombos
Quando te retiras das tarefas cotidianas
e pequenas coisas, não entras em solidão. e a melodia perdida, o lombo A melhor aprendizagem está na Cartilha
do mensageiro, seus bolsos dos tombos. Os joelhos bem o sabem.
Quando te isolas das pessoas, não entras
em solidão. Ou te fechas em preocupações e sapatos, sua manta e chapéu, Cada tombo é uma escada reversa, MARIA CARPI
seus remendos e cicatrizes. com flores e ascensão mais funda.
Nasceu em Guaporé (RS), em 1939. É
e trabalhos, mesmo escrevendo livros, autora de Nos gerais da dor, Desiderium
não entras em solidão. Ou te trancas O mensageiro da mensagem O tombo tem vários tomos de sabedoria desideravi, Os cantares da semente,
adiada, cifrada, engolida, e lágrimas em revelo de alegrias. O caderno das águas, As sombras da
vinha, Abraão e a encarnação do verbo,
em teu quarto ou em teu coração, não A chama azul, O cego e a natureza morta,
abres a porta da solidão. A solidão é uma da carta extraviada, do envelope Tombo da janela para o pátio. Tombo entre outros. Obteve o Prêmio Revelação
lacrado na correnteza. Aceito da quimera para a realidade. Tombo Poesia/90 da APCA, por seu livro de
estreia, Nos gerais da dor, traduzido por
Frondosa Árvore que te cobre de sombra Brunello de Cusatis e editado na Itália sob
na inclemência e te abastece de frutos, dobras e dobras de um papiro do amor para os desamores. Tombo o título Nel dolore sconfinato.
a ser desenrolado e alguém diverso fruta madura, da árvore para o chão
fortalecendo para o encontro. O desejo
arde de amor no desamor. A figura de mim, apartado de mim, e germino. Tombo de dentro de mim
disperso de meu ciclo, algures, em pedacinhos para o encontro.
na desfigura ganha rosto, o gosto antes
insonso ganha sabor e o verbo, carne. além, inventar quem eu sou. Tombo dos desencontros para o Livro.
42 | MAIO DE 2022

MICHEL DEGUY
DIVULGAÇÃO

Tradução e apresentação: Patrícia Lavelle

M
ichel Deguy faleceu em fevereiro de 2022, aos 91 anos,
deixando uma das obras poéticas mais importantes do
século 20 na França. Sua poesia, reconhecida com os
prêmios Goncourt, em 2020, e Balzac da Academia
Francesa de Letras, em 2021, inclui dezenas de coletâneas. Entre-
tanto, apenas dois volumes foram publicados no Brasil: A rosa das
línguas e Reabertura após obras, ambos com tradução de Mar-
cos Siscar e Paula Glenadel.
Deguy deixou também quase duzentas edições da revista
Po&sie, que fundou em 1977 e dirigiu até o fim, publicando tan-
to ensaios filosóficos e textos críticos, quanto traduções de poesia
e poemas inéditos. Ele participou ainda dos comitês editoriais de
outros dois importantes periódicos literários franceses, Critique e
Les temps modernes, além de ter sido professor de filosofia, editor
na Gallimard, ensaísta, exímio tradutor de Safo e de Góngora, e
um grande leitor de Baudelaire.
Nos poemas aqui traduzidos — publicados entre 2018 e La belle cuillère
2022 nas revistas Po&sie e Critique —, a voz lírica é atravessada
por inúmeras outras. Como um trapeiro baudelairiano, Deguy co- Il y a dans la cuisine une belle cuillère
leciona citações e referências que remetem, por exemplo, a versos En doux argent flexible mince
de Mallarmé ou ao Angelus Novus, de Paul Klee. Ele também relê Bien profilé comme les grâces devant Pâris
com olhar estrangeiro certas passagens de seus próprios poemas. Ce matin elle me dicte:
L’imitation n’est pas reproduction
Le regard sur la belle cuillère
N’est pas une sensation mais une dilection
Ouvrage d’art un point c’est tout pensée non
technophobe
L’Ordonnance Leçon de choses pour le poéticien

La mort acouphène siffle son train à l’oreille


L’ankylose me passe la menotte des fourmis A bela colher
Les organes murmurent la sentence de Leriche
Juin reverdit mais la licorne fouille Há na cozinha uma bela colher
Em doce prata flexível magra
L’intestin s’extravase et pend à la ceinture Bem perfilada como as graças diante de Páris
Comme dans la fable de Poe les prothèses redressent Esta manhã ela me dita:
L’alité A imitação não é reprodução
Et la chimique est remboursée O olhar sobre a bela colher
Loxen Hypertium Tahor e Zopiclone Não é uma sensação mas uma dileção
Obra de arte e ponto final pensamento não tecnofóbico
L’asexuation de l’âge abonde le cauchemar Lição de coisas para o poeticante
Les riches heures de la vie antérieure
Prennent possession des neurones nocturnes
L’anamnèse infinie somnolente reparle

L’annonciation de l’Ange inverse à droite Poème philosophique


Et tournant le dos à la nuit des temps à venir
Qui retourne ses ailes prophétise L’âme immortelle en vie
Que le messie est au présent à la mort elle rend l’âme
Ange sœur elle nous escorta comme la peinture
Le ciel n’est pas le ciel que vous croyez
Receita médica Mais il est le ciel

O zumbido da morte apita seu trem no ouvido Un rais fait la raie du cosmos
Anquilose me põe algemas de formigas Une tige de scintillement descend la lune à ma vue
Os órgãos murmuram a sentença de Leriche Reflétant l’être
Junho renova mas o unicórnio cava
Un ange de lumière jette l’échelle pour Jacob
O intestino se extravasa e pende à cintura chaque-un monte au ciel sur l’axe qui le regarde
Como na fábula de Poe próteses levantam si proche de l’autre en différence numérique
o aleitado qu’indiscernables leibniziens comme les morts
E a química é reembolsada
Loxen Hyperium Tahor e Zopiclone Leia mais em
rascunho.com.br Poema filosófico
Assexuação da idade enche o pesadelo
As ricas horas da vida anterior A alma imortal em vida
Tomam possessão dos neurônios noturnos na morte entrega a alma
A anamnese infinita sonolenta refala Anjo irmã nos acompanhou como a pintura
O céu não é o céu que você crê
A anunciação do Anjo inversa à direita1 Mas ele é o céu
E virando as costas à noite dos tempos porvir
Que revira suas asas profetisa Um raio faz o risco do cosmos
Que o messias está no presente Uma haste cintilante desce a lua à minha vista
refletindo o ser

Um anjo de luz joga a escada pra Jacob


cada um sobe ao céu pelo eixo que lhe concerne
NOTA
tão próximo do outro em diferença numérica
1. A expressão faz referência ao princípio matemático da função inversa. quanto indiscerníveis leibnizianos como os mortos
MAIO DE 2022 | 43

PEG PAG
ALONSO ALVAREZ
Ilustração: Tereza Yamashita

1.
(Quarta-feira, 20h06)

Rubem Glück estava com


pressa, mas evitava parar na vaga
preferencial. Fazia parte da regra
não infringir leis e nem chamar a
atenção, pois, como sempre, che-
gava silenciosamente dirigindo a
sua Tucson preta. Também não
podia ficar dando várias voltas no
estacionamento atrás de uma boa
vaga. Era recomendável não parar
em lugar muito iluminado.
Desceu sem causar suspeita,
como sempre, à vontade em seu
corpo de trinta e quatro anos, um
metro e oitenta de altura, magro,
nada atlético, mas saudável; cabe-
los negros, fartos e aparados. Ves-
tia uma roupa informal e simples,
neutra: calça jeans, camisa preta,
tênis preto de sola branca. Rara-
mente dava o golpe usando algum
tecido estampado, nem gostava de
se vestir assim. A tatuagem no an-
tebraço esquerdo estava sempre
escondida sob a manga compri-
da da camisa.
ALONSO ALVAREZ
Nessa noite de quarta, dia de
jogo, ele não podia demorar. Pre- Nasceu em São Paulo (SP). É escritor,
editor e ex-livreiro, fundador da Livraria
cisava ser rápido, ágil e ter sorte. artepaubrasil. Publicou, entre outros, o
Não deu para escolher ou- juvenil O encanto da lua nova, e o infantil Era
tro supermercado. Teve que ser uma vez duas linhas. Estreou no teatro, em
2012, com a peça A saga da Bruxa Morgana
naquele, e logo aquele que sem- e a Família Real. O romance Peg pag será
pre estava muito cheio. Por um publicado em breve pela Iluminuras.
lado, era bom: a multidão o pro-
tegia e seria fácil de encontrar a
sua vítima. Mas era a terceira vez
no mês que ele se arriscava nes- Se no seu ofício ele é rigo- culinária. Virou-se e olhou para a se aproximar e perguntar se o car-
se supermercado perto do bairro roso para inventar histórias, não ex-dona do carrinho, ainda entre- rinho era dela, que o encontrara
onde morava e ainda tinha que seria uma garota com aparelho tida na seção das frutas escolhen- abandonado ali por perto. Mas a
responder a um monte de per- nos dentes, cabelo preso com do bananas. regra era clara: nada de contato.
guntas no caixa antes e após pas- tiara, vestindo uma camiseta la- Mesmo distante, imaginou Nunca. Deveria pagar a compra
sar os produtos e pagar. Uma das ranja com a promoção do mês o aroma das bananas se mistu- e ir embora, sem olhar para trás.
regras o proibia de expor as su- na estampa, que haveria de cau- rando ao perfume do corpo de- Dispensou as sacolas de
as preferências: compra desper- sar algum embaraço ao seu golpe, la, alvo, jovem, pequeno, frágil e plástico e colocou toda a com-
sonalizada, sem deixar vestígios. havia anos tão bem inventado, magro, enfiado num vestido cur- pra dentro de uma caixa de pape-
Apenas gentil, com um mero planejado e executado. Com cer- tíssimo, verde-folha, estampado lão vazia que encontrou perto do
“boa-tarde” ou “boa-noite”, um teza, nunca a tinha visto ou ela o com bolinhas brancas, pendura- caixa. Não era muita coisa, mas o
simples “sim” ou “não”. Sem cor- atendera antes. do apenas por duas alças, finas e suficiente para dar conta da sua
tesias exageradas, opiniões sobre Ela então se percebeu indis- brancas, ameaçando escorregar fome e deixá-lo alimentado du-
o tempo, política e futebol. creta, ficou sem jeito e tratou de dos ombros salpicado com sar- rante o jogo de futebol na TV. E
“É cliente M? CPF na no- passar a embalagem com o apa- das. Calçava sandálias, sem esmal- não se incomodou por lembrar
ta? Não vai informar o CPF? Vai relho de depilar Gillette recarre- te nas unhas; o cabelo ruivo, farto que faria a barba, na manhã se-
querer sacola de plástico? Vai gável Venus Breeze pelo leitor de e comprido, quase na cintura, sol- guinte, com o aparelho de depila-
participar do concurso? Vai que- código de barras. Em seguida, es- to, que ela afastava com delicade- ção da vegana do cabelo de fogo.
rer selo de desconto? Vai validar ticou o braço para alcançar o pa- za para trás das orelhas enquanto Recusou os selinhos da pro-
o tíquete do estacionamento? cote de tofu. escolhia as bananas. moção e, como sempre, pagou
Passou de uma hora? Quer apro- “Tofu?!” Nunca tinha lhe aconteci- com dinheiro. A regra era nun-
veitar e doar os centavos do tro- Foi então que ele olhou pa- do isso, mas enquanto a operado- ca pagar com cartão de crédito ou
co para a caridade?” ra as coisas que já havia tirado do ra do caixa passava os produtos, débito; compra sem identificação,
“Não. Não. Não. Não. Não. carrinho, sem examinar, como ele admirava a jovem vegana que, sem deixar rastro.
Não. Não. Não. Não.” sempre fazia (outra regra: passar à distância, misturava ao verde e Rubem Glück avistou pela
A atendente no caixa o tudo, sem olhar), e observou que amarelo o seu vermelho-fogo e se última vez a jovem vegana, que
olhou de viés com algum espan- dessa vez aquela compra só po- movia com leveza. agora olhava ao redor procuran-
to juvenil no rosto. Por um ins- deria ser de uma pessoa vegana. Ficou com vontade de co- do o seu carrinho, com um ca-
tante, ele se alarmou. Teria sido Até gostou da surpresa e da opor- nhecê-la. Poderia simplesmente cho de banana-da-terra nas
imprudente? tunidade de experimentar essa colocar tudo de volta no carrinho, mãos. E se foi.
44 | MAIO DE 2022

DIVULGAÇÃO

ALFRED STARR
HAMILTON
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Swan in June

The moon is a swan in June


The moon can paddle and paddle
And be the moon all night long

Um cisne em junho

A lua é um cisne em junho


A lua pode remar e remar
E ser a lua, a noite toda

April lights Anything remembered

But nevertheless there are some other kinds of blue skies One cloud, one day
Some other way of counting the summer clouds that stayed Came as a shadow in my life
And then left, and came back again; and stayed
There is the red moon, by October

Some other kind of February lights Qualquer coisa lembrada


Some other kind of January darkness that is deeper
Uma nuvem, um dia
A bronze rake — Chegou como uma sombra em minha vida
A winding road to where we are this evening E então se foi, e depois voltou; e ficou

Luzes de abril

Mas no entanto há alguns outros tipos de céus azuis


Algumas outras maneiras de contar as nuvens de verão que ficaram

Há a lua vermelha, lá por outubro

Alguns outros tipos de luzes em fevereiro


Alguns outros tipos de escuridão em janeiro, mais profundas

Um declínio bronze
Uma estrada sinuosa para onde à noite estamos
MAIO DE 2022 | 45

Old songs Blizzard

Take me back to the days moreover


of why I talked to the moon creeps over
Of the immoveable church the barren astonished earth
When she moved moreover that is a cat’s white velvet claw
But the church was immoveable that can have been named after the white and drifting snow
But the church was your neighbor

Take me back to the days A nevasca


Of an old walnetto song
To a walnetto blonde além disso
That pinned the white blossoms over the blossom, se arrasta
and pulled at the heart’s strings of the world na estéril e atônita terra
além disso há a aveludada garra branca de um gato
That said your best heart que pode ter recebido seu nome por causa da neve branca a flutuar
Is your neighbor of old

Antigas canções

Leve-me de volta aos dias


em que falei para a lua
Da igreja imóvel
Quando se moveu
Mas se a igreja era imóvel
Mas se a igreja era sua vizinha

Leve-me de volta aos dias For Main St.


De uma velha canção de bala de caramelo
Para a loira da bala de caramelo now, if you took all of Main St, as long as it is
Que prendeu as flores brancas sobre a flor, all over the world, and took all of that lone way of being,
e trouxe ao coração os fios do mundo less understandably, and wound it around the moon,
for a banker has escaped from a farmer
Que disse que o melhor coração for a banker has been collecting more of our stars
É do seu vizinho de antes

Já que a rua principal

agora, se você pega a rua principal até o fim, longa como ela é
através do mundo, e pega todo aquele jeito solitário de ser,
menos compreensivelmente, e amarra em volta da lua,
já que o banqueiro escapou do fazendeiro
já que o banqueiro está pegando as nossas estrelas

Christmas Eve

I wondered once if they were going


To put a very skimpy tree in the parlor
I wondered of the floor wax over the bare floor
I knew this was going to be a very slim Christmas
But I knew they were very poor people
I wondered if I put a diamond on top of a paper dollie
I wondered if that’s all I could do too

Véspera de Natal
ALFRED STARR HAMILTON
Naquela vez pensei se eles iriam Nasceu em 1914 numa família rica da Nova Inglaterra, a qual,
Colocar na sala uma árvore muito acanhada como muitas outras, perdeu quase tudo na crise de 1929-30.
Desajustado desde a infância, levou uma vida de crescente
Pensei na cera sobre o piso nu solidão, vindo a morrer em 2005, sozinho e esquecido, em um
Eu sabia que aquele Natal seria muito magro asilo. Com um lirismo conciso e elaborado, por vezes flertando
Mas sabia que aquelas pessoas eram muito pobres com o surrealismo, Hamilton publicou muito pouco em
vida, mas nos últimos anos sua obra tem sido cada vez mais
Pensei que se eu colocasse um diamante no alto de uma boneca de papel celebrada. Quando morreu, a maior parte de seus poemas
Pensei se isso era tudo que eu podia fazer estava em cadernos, totalmente inéditos.
46 | MAIO DE 2022

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

PRISCA
AGUSTONI
PRISCA AGUSTONI
Nasceu em Lugano, Suíça italiana, em 1975. Viveu nove anos em
Genebra, onde se formou em Letras e Filosofia e desde 2003 vive
entre a Suíça e o Brasil, onde trabalha como professora de literatura
comparada e escrita criativa na Universidade Federal de Juiz de
Fora e como tradutora. Poeta e autora de obras para crianças, ela
escreve e se autotraduz em italiano, francês e português e faz desse
lugar intersticial entre as línguas e as culturas seu motor de criação.
Entre suas obras destacam-se Casa dos ossos (Macondo, 2017,
semifinalista Prêmio Oceanos), O mundo mutilado (Quelônio, 2020,
finalista Prêmio Jabuti), O gosto amargo dos metais (7Letras, 2022,
Prêmio Cidade de Belo Horizonte de poesia). No momento se dedica
à escrita do seu primeiro romance.

Veja mais em
rascunho.com.br
MAIO DE 2022 | 47

rogério pereira Sentada próxima à jane-


la, uma mulher olha o celular. O
SUJEITO OCULTO semblante é triste e preocupado. É
a filha do homem de boca desden-

TARTARUGAS
tada. Ele caiu em casa e também
bateu a cabeça. Mas tem a descul-
pa dos 84 anos e um derrame no
meio do seu caminho de tartaruga.
Outra enfermeira — jo-
vem, calça apertada a realçar o

A
contorno das nádegas — deixa
fenda na camisola des- Ilustração: Guilherme Paixão uma cadeira de rodas no quarto.
cortina o sexo do pai. “É para levar ele.” “Levá-lo”, pen-
No átimo de tempo que so com certa arrogância. Olha-
presencia a nossa mútua mos, eu e o pai, ao mesmo tempo
vergonha, a mão direita arrasta o para as rodas da cadeira. Um pe-
tecido frágil sobre as pernas. Es- daço de esparadrapo deixa um
conde-se um antigo e indestrutí- rastro no pneu fino. Deve ser de
vel silêncio. Da boca de poucos e algum curativo que se soltou. Pe-
podres dentes sai apenas um sil- lo menos, não há sangue aparente.
vo incompreensível — passari- De repente, surge outra en-
nho a agonizar após a pedrada fermeira (quantas existirão neste
certeira. Não entendo os grunhi- hospital?) e leva embora em silên-
dos. Desnecessária comunicação cio a cadeira de rodas. Sem saber
que nunca existiu. Lá fora a chuva o que fazer, ajudo o pai. Ele faz
constante segue a tilintar na calha. questão de colocar as calças. Eu
De longe parece bonito. As finjo desviar o olhar. Nunca ti-
linhas retas sobressaem na pai- vemos nenhuma intimidade, ne-
sagem da pequena cidade. O ar- nhuma conversa de pai e filho,
quiteto projetou com mestria os nenhuma brincadeira só nossa,
espaços vazios, a leveza do imen- nenhum segredo compartilhado.
so pé-direito. Um lago em frente Nunca fomos pai e filho. Ao colo-
transmite uma paz artificial. Dei- car a camisa da seleção brasileira,
xo o carro no estacionamento e penso nos milhões que vale o fute-
caminho sob a chuva até a entra- bol e na miséria que nos acompa-
da B. Uma pequena fila é a indi- nhou da roça à cidade grande. Um
cação de que terei de pegar uma pensamento ingênuo enquanto a
senha e esperar. O pai chegou ao chuva segue a marulhar na calha.
hospital há quatro dias após cair Quando a enfermeira retor-
na rua e bater a cabeça. A nuca na e vê o vazio da cadeira de rodas,
desenhou um risco vermelho na digo “levaram”. Ela me olha com
calçada. Há algum tempo, ca- certo desalento, estica o pescoço
minha feito um animal cansado, de tartaruga para o corredor. “Es-
sem rumo, sem qualquer perspec- tá vindo”, diz. Penso: “Quem es-
tiva de encontrar o dono. A ero- tá vindo?”. Era a outra enfermeira
são do corpo — terra sem viço, empurrando o breve furto. Joga-
castigada pelos excessos munda- mos, não sem dificuldades, o pai
nos e etílicos — foi abrupta. Tor- sobre a cadeira de rodas. Ele se en-
nou-se infértil, nada vinga ali, a colhe todo ao atestar a derrota de
plantação é apenas uma ausência que não consegue caminhar. “Mas
permanente. De repente, transfor- o que ele tem?”, pergunto. “Não
mou-se num homem triste, cam- sei”, responde a enfermeira. “Mas
baio a arrastar um corpo frágil, a e os exames?”, pergunto. “Não de-
transbordar pecados. Já tornaram- ram nada”, responde a enfermei-
-se comuns as quedas. Eu e meu ra. “Mas ele não consegue andar.
sobrinho, de tempos em tempos, O que eu faço?”, pergunto. “Ele
somos transformados em peque- só precisa tomar estes remédios”,
nas gruas a erguer uma delicada responde a enfermeira. E começa
árvore genealógica. a ler a receita. Noto que lê com a
Meu avô paterno, espécie de liga: “Encontraram o vô caído lá perto da rodoviá- uma camisa da seleção brasileira ponta dos dedos, contando as le-
patriarca de um reino inexistente, ria”. Não tenho forças para percorrer quase 30 qui- (que um dia fora minha) e uma tras, com muita dificuldade. En-
foi encontrado morto ainda jovem lômetros e resgatar o homem cujo fim vem sendo calça de moletom com vários fu- fermeiras deveriam ler melhor,
caído numa encosta. Há muito construído desde sempre. Antes, muito antes, eram ros. Um chinelo de dedos está no penso. Mas não digo nada. Estou
tempo, carregamos no lombo de socos, pontapés e ofensas contra a mãe e os três filhos chão. Penso em perguntar “não cansado e só quero arrastar o pai
uma garrafa de cachaça a maldi- — eu, infelizmente, era um deles. A esposa, minha estava usando cueca, pai?”. Mas para bem longe. Vou levá-lo a um
ção doméstica. mãe, morreu. A filha, minha irmã, morreu. O filho, seria algo um tanto constrange- novo médico em breve.
As enfermeiras conversam meu irmão, toma dez comprimidos diários para vá- dor. Na cama ao lado, um velho No início da rampa, a enfer-
animadamente sobre um assunto rias doenças. Ele, o pai, está morrendo. Eu, o outro banguela — a boca a mastigar o meira pede que o pai tenha cuida-
banal: a traição de algum famoso filho, sou abstêmio há vinte e dois anos. Ao que pa- vazio — tenta levantar a cabeça: do, que mantenha o corpo firme.
da tevê. Não identifico o persona- rece, se tiver alguma sorte, serei o vencedor de nosso lembra uma tartaruga estropiada. Isso me parece uma ironia. E em-
gem, mas sorrio antes de anunciar jogo de resta um familiar. Um vencedor sem glórias. Por coincidência, estou purra a cadeira de rodas com um
o nome do pai. “Vim buscá-lo”, “Vai lá e cuida disso, por favor”, digo num lendo um livro cujo protagonis- pai feito tartaruga ladeira abaixo.
digo como se solicitasse uma en- misto de raiva e agonia. Ele vai e cuida da melhor ta busca se livrar de uma tarta-
comenda perdida em algum de- maneira possível. Uma ambulância leva o avô — ruga. O bicho fora deixado no PS. Estendo a receita ao
pósito. Uma das enfermeiras meu pai — para o hospital de linhas retas a despon- apartamento que ele, o protago- atendente da farmácia. “Este me-
manuseia poucas folhas de papel tar diante do lago. nista, alugara. Agora, troca estra- dicamento não existe mais”, diz
numa prancheta. “Ele já está de Estou escorado, o corpo meio de lado, no nhos e-mails com a senhoria: uma ele. Meu olhar incrédulo o faz
alta”, diz sem me olhar. Penso em batente da porta quando uma enfermeira apon- mulher enigmática que passa ins- agir com rapidez: “Leve este aqui.
dizer “eu sei, por isso estou aqui”. ta a cabeça no final do corredor e grita “trouxe truções de quem poderia ficar com É o mesmo princípio ativo. Já
Mas apenas balanço a cabeça em roupa pra levar ele?”. Imagino que “ele” seja meu a tartaruga. Depois de muitas ten- avisei várias vezes ali no hospital
um sinal que tenta ser simpático. pai e que poderia ter dito “levá-lo”. Ameaço um tativas, o protagonista tem uma para não receitar mais este aqui,
Estou cansado e evito conversar. “ele chegou aqui pelado?”, mas evito o embate um estranha surpresa também num mas acho que eles esquecem”, diz
Vou ao quarto número setenta e tanto grosseiro. Apenas balanço a cabeça em res- hospital. É um belo romance: não apontando a receita. Tento afun-
quatro. Quando entro, vejo o se- posta negativa — o meu silêncio é sinal de que a sobre tartarugas, mas sobre nós, os dar a cabeça entre os ombros e
xo flácido do pai. batalha está perdida há muito tempo. Na cama, seres humanos. A realidade me pa- desaparecer. Mas preciso de mais
Estou com minha filha de o pai grunhe algo como “a roupa está ali” e me- rece sempre um espelho da ficção. treino. Ainda sou uma tartaruga
cinco anos quando meu sobrinho neia o queixo em direção a um armário. Encontro Ou ao contrário, não sei. incompleta.
VAMOS RECONHECER OS QUE
NOS TOCARAM O CORAÇÃO
EM BOM PORTUGUÊS

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