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Jan. 2024

ARTE DA CAPA: THIAGO LUCAS


2 | JANEIRO DE 2024

eduardo ferreira
TRANSLATO

A TRADUÇÃO
DE GILGÁMESH
desde 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal


da Editora Letras & Livros Ltda.
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ma das tarefas mais fas- para apontar decisões que tomara do’ das coisas e do mundo, nou-
cinantes da tradução é na construção de sua versão. tros termos, um ‘ver em abismo’”. rascunho@rascunho.com.br
recuperar textos anti- Explica o tradutor que suas As decisões do tradutor, na-
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gos escritos em línguas anotações não constituem mero turalmente, embutem riscos que
mortas. Não se trata de empre- apêndice, devendo, portanto, ser não podem ser ignorados, por twitter.com/@jornalrascunho
sa fácil: além dos naturais empe- parte da leitura, para uma melhor constituírem parte do próprio facebook.com/jornal.rascunho
cilhos encontráveis na tradução compreensão do conjunto da obra: processo de qualquer interpreta- instagram.com/jornalrascunho
entre quaisquer línguas, temos “pretendi escrever não simples no- ção. Brandão, assim, admite que
whatsapp (41) 99109.4352
adicionalmente, trabalhando con- tas de pé de páginas, mas comen- suas escolhas, por mais que bem
tra a transparência, as grandes dis- tários de pleno direito, envolvendo justificadas, incluem índice variá-
tâncias culturais e temporais e a não só informações, mas aborda- vel de discricionariedade: “A cada
EDITOR
necessidade de desenterrar e iden- gens críticas que procuram levar uma delas, privilegio algo, descar-
Rogério Pereira
tificar os restos de um idioma há em conta o que se tem escrito sobre tando algo, apenas porque o que
muito tempo abandonado. o texto de diferentes perspectivas”. privilegio me parece mais relevan-
EDITOR-ASSISTENTE
Foi nesse empreendimento Os apontamentos do tra- te da perspectiva de um certo en-
Luiz Rebinski
que embarcou o tradutor Jacyn- dutor são particularmente impor- tendimento do poema”.
tho Lins Brandão ao verter para tantes em razão de estar o original As escolhas de Brandão in-
EDITOR DE FICÇÃO
o português, diretamente do acá- corrompido em diversos trechos, cluíram não apenas questões le-
Samarone Dias
dio, Ele que o abismo viu: epo- com grande número de lacunas, xicais, mas também sintáticas e
peia de Gilgámesh, publicado o que torna a versão muitas vezes editoriais — todas elas com rele-
DIRETOR DE ARTE
pela Autêntica, em 2021. A obra conjectural. vante impacto sobre o texto final
Alexandre De Mari
é baseada em matriz suméria e Seus comentários, conforme e, portanto, sobre o resultado da
atribuída a Sin-léqi-unnínni, que Brandão, também lhe permitiram leitura. O tradutor, assim, intro-
DESIGN
a teria redigido possivelmente no “proceder às escolhas que elenquei duziu títulos de seções e a divisão
Thapcom.com
século 14 a.C. [...] sem condenar o texto a uma do texto em estrofes, ambos ine-
Para superar esses 35 sécu- única leitura”. Um bom exemplo xistentes no original, enquanto, ao
IMPRESSÃO
los que nos separam do original, dessas escolhas foi a decisão relati- mesmo tempo, ignorou nuanças
Press Alternativa
Brandão teve que fazer uma série va ao próprio título em português, métricas em benefício da ordem
de escolhas difíceis, que revelou vertido como “ele que o abismo original das palavras. COLUNISTAS
em suas anotações. Uma dessas viu” e não “ele que tudo viu”. Pon- Em outros casos, o tradutor, Alcir Pécora
escolhas foi a estratégia de publi- dera o tradutor que a possibilidade confrontado com as arestas de um Eduardo Ferreira
car comentários sobre os versos e de ler o título do poema de duas texto fragmentado pelo tempo, pre- Fabiane Secches
suas traduções, em seção separa- formas distintas, “ambas legítimas, feriu evitar soluções reconstrutoras José Castello
da, em vez de notas aplicadas di- não constitui nenhum descalabro, artificiais. A alternativa: manter a José Castilho
retamente ao texto. Isso lhe deu bastando considerar que ‘ver tudo’ dificuldade de interpretação, com- Luiz Antonio de Assis Brasil
amplitude conveniente tanto para não necessariamente implica ver partilhando-a com o leitor. Assim, Maíra Lacerda
explicar detalhes do texto, incluin- cada uma das coisas, mas ‘ver em a este caberá a decisão e a interpre- Nilma Lacerda
do sua evolução histórica, quanto profundidade’, ‘conhecer a fun- tação finais, como deve ser. Olyveira Daemon
Ozias Filho
Raimundo Carrero
Rinaldo de Fernandes
Rogério Pereira
Tércia Montenegro

rinaldo de fernandes
Wilberth Salgueiro

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO


RODAPÉ
Adriano Cirino

A ARTIMANHA DE
Allysson Casais
André Caramuru Aubert
Bruno Inácio

CÂNDIDO NEVES (2)


Bruno Nogueira
Cristiano de Sales
Haron Gamal
Henrique Marques Samyn
Jeová Santana

C
Jonatan Silva
Luiza Fariello
ontinuando a leitura um personagem denso, cresce hu- ra o aborto sofrido por Arminda. Mariana Ianelli
de Cândido Neves, do manamente aos olhos do leitor. É Daí sua frase final: “Nem todas Pablo Gonçalo
conto Pai contra mãe, forte o seu sentimento de pai pe- as crianças vingam”. Frase com- Renan Nuernberger
de Machado de Assis. lo único filho. Na situação-limite pensatória, que justifica a cruel- Wallace Stevens
Aumenta a dificuldade financei- em que se encontra, luta desespe- dade da situação de quem tem
ra do personagem por conta da radamente contra a ideia de levar o filho salvo enquanto a escrava ILUSTRADORES
concorrência. E Cândido Neves é a criança à Roda dos Enjeitados. perde o seu. E o recado de Ma- Bruno Schier
inapto para outros ofícios que não Daí sua “comoção enorme” ao chado de Assis fica claro: Cândi- Carina S. Santos
o de caçar escravos: “Não acha- avistar Arminda, a escrava fugiti- do Neves adota o ponto de vista Carne Levare
va à mão negócio que aprendesse va. Registram-se aqui duas fúrias: daquele que, sistemicamente, o Carolina Vigna
depressa”. E mais: a “cegueira da a “fúria de amor”, ao pegar o filho subjuga, o submete à penúria fi- Eduardo Mussi
necessidade” o faz capturar escra- de volta X a fúria ao capturar a es- nanceira. Desloca-se da posição Marcelo Frazão
vos errados. E aí surge a esperan- crava. Depois de capturá-la e rece- de dominado para a de domina- Mello
ça de uma saída: a escrava fugida ber a recompensa, Cândido Neves dor. Adere, despudoradamente, Miguel Rodrigues
Arminda, cuja recompensa pela reencontra o filho, beija-o, “entre à posição do senhor que nunca Oliver Quinto
captura é de cem mil-réis. Nes- lágrimas verdadeiras”, abençoa foi. Enfim, incorpora a posição Ramon Muniz
te passo Cândido Neves torna-se a fuga da escrava e não conside- de um escravocrata. Thiago Lucas
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LUIZ CAU ILUSTRAÇÃO: RAMON MUNIZ

10
As viúvas
passam
bem, de
Marta Barbosa Stephens
Allysson Casais

6
Entrevista:
11
Engenheiro fantasma,
de Fabrício Corsaletti
João Silvério Cristiano de Sales
Trevisan

13
Bruno Inácio

14
A poesia de Donizete Galvão
Pistas falsas, de José
Eduardo Gonçalves
Adriano Cirino

22
Renan Nuernberger

DIVULGAÇÃO RENATO PARADA

Anistia,
de Pedro Süssekind
Bruno Nogueira

27
Sempre Susan,

17
de Sigrid Nunez
Mariana Ianelli

Inquérito
Nivaldo Tenório 31
20
Parto
Luiza Fariello

O mestre negro
Oswaldo de Camargo
Henrique Marques Samyn

32
DIVULGAÇÃO

O pouso dos vaga-lumes


Pablo Gonçalo

ILUSTRAÇÃO: MARCELO FRAZÃO

36
Poemas
ARTE DA CAPA:
Wallace Stevens THIAGO LUCAS
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josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

MEDITAÇÕES EM TRÂNSITO
Ilustração: Carne Levare

certo: enquanto a realidade per-


manece estagnada, o tempo des-
penca como um meteoro na noite.
Despenca, explode e some. E a
noite permanece. E pesa também.
O rapaz liga o rádio. Há um
debate sobre futebol. Enfurecidos,
os comentaristas se xingam. “Dá
para desligar isso aí?” — eu peço.
Ele não gosta, mas desliga. “Na
verdade, não me importo. Eles
passam a manhã inteira discutin-
do sobre o nada, enquanto eu me
esfalfo no trânsito.”
Pergunto se gostaria de tra-
balhar na rádio. Ser comentarista
de futebol, por exemplo. “Tanto
faz. Eu não ia ser feliz mesmo.”
Só agora entendo que a medita-
ção sobre o tempo é uma manei-
ra que o rapaz encontra para falar
da infelicidade. O que o atormen-
ta? Penso, mas não devo pergun-
tar. E então espero.
“Se eu tivesse um proble-
ma a resolver... Uma dívida, uma
mulher que me traísse, uma de-
cepção de família...” O pior é is-
so: nada o atormenta. E, se nada
o atormenta, nada pode solucio-
nar. Talvez seja o tédio mesmo, e
não a infelicidade, concluo. Não
é fácil passar o dia como motoris-
ta de aplicativo.
“Eu fico aqui, atolado nes-
se carro, enquanto a vida me es-
capa”, filosofa. “A vida passa e eu
nem sinto. Passa, mas não pa-
ra mim.” Eu ia dizer que ele é jo-
vem, que tem a vida pela frente,
e outras asneiras. Contenho-me.
Espero. Volta ao tema do tempo:

O
“O senhor percebe como o tem-
s carros não se movem. onde o tempo não passasse”, ele me diz. Paramos de chicletes?”. Ele não responde. Não po passa rápido enquanto estou
O jovem motorista es- novo, agora bloqueados por uma linha férrea. Preciso quer vender, quer ser visto. Sua preso nessa gaiola?”.
tá fora de si. Bufa, sua, dizer alguma coisa — o rapaz espera que eu diga algu- presença muda é um grito. Não sei mais o que dizer.
buzina. Balbucia sons ma coisa. “Parece que você sonha com a eternidade”, “Amanhã esse moleque vai Nada tenho a dizer. O certo é dei-
inaudíveis, parece xingar alguém. eu arrisco. “Tem desejo de morrer?” estar roubando”, o motorista diz, xar o rapaz às voltas com sua so-
Trato de conservar a calma, sei “Já estou quase morto”, dramatiza. Diz que gos- enfurecido. É disso que falávamos: lidão. Nada posso fazer por ele.
que não é comigo. Até que, vi- ta de viver, mas que sua vida não é vida. Passa os dias de um tempo que se acelera e des- Mas isso não é uma prova de que
rando-se, ele me pergunta: “O se- dentro do carro, que nem é seu, e o carro está sempre penca, que se desmancha e que, estou imóvel, ao contrário, é uma
nhor não acha que o tempo está atolado no trânsito. Nada se move. Só o tempo, com no entanto, leva ao mesmo lugar. prova de que nós dois despenca-
acelerado demais?”. sua fúria, ignora a pasmaceira e avança enlouquecido. Ou a um lugar ainda pior. “Como mos no abismo do tempo. So-
Deve estar brincando co- Avança, mas nada muda. você pode saber?” — eu o provo- mos arrastados. A voragem, é só
migo. Debochando do velho Chegamos a um impasse. Acelerado demais, o co. “Já não sei mais de nada”, ad- isso. Um sorvedouro. A velocida-
que é obrigado a transportar pe- tempo entra em estado de estagnação. Tudo se move, mite, encabulado. de brutal do tempo, contudo, não
las ruas de Curitiba. Ainda assim, mas nada se movimenta. A aceleração desmedida só Acaba comprando uma cai- nos faz avançar.
resolvo levar a sério sua pergunta. leva à repetição. “Que embrulhada”, o rapaz comen- xa de chicletes. Eu compro ou- “Você me deixaria na próxi-
Achei que reclamaria da imobili- ta, com uma gargalhada de alívio. “Já não se consegue tra. O menino desaparece entre ma esquina?” — eu peço. “Resolvi
dade, mas reclama, ao contrário, nem mais pensar direito.” De fato, a realidade anda in- os carros. Agora mascamos chi- caminhar um pouco.” Aproxima-
da velocidade. “Parece que a ex- compreensível. Se é que anda — parece mais despencar. cletes velhos, enquanto o trânsito -se da calçada. Então, um outro
pansão do universo é, cada vez, Um garoto se aproxima. Vende chicletes. Posta-se não avança. “É como o chiclete”, menino chega com sua caixa de
maior”, arrisco-me a dizer. “As diante da janela, exibe sua caixa de trabalho, está pálido. o rapaz me diz. Não entendi. “Vo- balas. Vem aos pulos, corre entre
galáxias se afastam em uma velo- E a palidez não o deixa dizer nada, a palidez o dissolve cê masca, masca, só para, no fim, os carros. Dependura seus paco-
cidade descontrolada.” em um borrão de luz negra. De fato, o sol está bem for- jogar fora. A vida é isso.” Pergunto tes de doces nos retrovisores. Sua.
O rapaz se vira e me olha te. O sol pesa como uma pedra. “Cai fora, moleque”, se ele quer me dizer que o tempo Ninguém compra suas balas.
espantado. “O senhor é cientis- o rapaz diz. Mas o menino o ignora. Será que o ouve? não serve para nada. Que o tempo “É isso, o senhor vê?” —
ta?” Não é preciso ser um cien- O garoto é só uma peça do impasse em que vive- não existe, mas só o tédio. Talvez o motorista me pergunta. “Toda
tista para perceber que o tempo mos. É muito novo, tem todo o tempo pela frente. No não o tédio, mas a tristeza. essa correria para nada.” Despe-
se acelera, que está desordenado, entanto, de que serve esse tempo, se ele não o levará a Nesse ritmo, chegarei atra- ço-me, desejo boa sorte e salto.
que a realidade despenca no va- lugar algum? Então, com sua bandeja de chicletes, ele se sado ao médico. Dane-se o médi- Logo entendo que estou a duas
zio. “Sou só um velho”, respondo. arrisca entre os carros. Ficar ali parado diante do vidro co. É só uma consulta de rotina, quadras da catedral. Não tenho
“Nem assim me acostumo com a é sua forma de protestar. Talvez a única que lhe resta. a que os velhos se submetem por religião, sou agnóstico, mas é na
passagem do tempo.” Nada o atinge — a realidade já o perfurou por to- mania. Por tédio. Depois rece- grande nave que me abrigo. A ca-
Suspira, não sei se de alí- dos os lados. Está invulnerável porque está quase mor- bem elogios dos mais jovens. “O tedral está vazia e silenciosa. Ali
vio, ou de ódio. “Queria viver no to. Mas o rapaz não percebe isso, acha que é só teimosia senhor se cuida muito bem.” E de dentro, enfim, o tempo parece
campo, entre vacas e pinheiros, de criança. Tento ajudar: “Quanto custa uma caixa de que isso serve? O motorista está estancar.
6 | JANEIRO DE 2024

LUIZ CAU

Em Meu irmão, eu mesmo,


entrevista segundo livro da trilogia de
romances autobiográficos,
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN João Silvério Trevisan percorre
as tragédias familiares
em torno da morte

BRUNO INÁCIO | UBERLÂNDIA – MG

S
eis anos depois de ter publicado Pai, pai, João
Silvério Trevisan volta a abordar temas ligados
à própria família em Meu irmão, eu mesmo,
romance que foca na relação do autor com
Cláudio, seu irmão que faleceu em 1996, vítima de
um câncer linfático fulminante.
Com capítulos curtos e linguagem densa e poé-
tica, a obra também passa pelo momento em que João
Silvério Trevisan descobriu a infeção pelo vírus HIV,
em 1992, e pelos primeiros passos como autor e ati-
vista em defesa dos direitos de pessoas LGBTQIAP+,
nos anos de 1970.
Agora, ele prepara Antropofágico amor, livro de
encerramento de uma trilogia que, segundo o próprio
autor, vem da necessidade de fazer um balanço sobre sua
vida. “Meu irmão, eu mesmo é um projeto que já tem
30 anos e parte exatamente do período em que houve
a revelação, a descoberta da minha infecção por HIV
e do câncer linfático do meu irmão. Mas o primeiro,
Pai, pai, não estava nos meus planos e acabou sendo
ele o responsável por deflagrar toda a trilogia”, conta.
Além da obra autobiográfica, foi publicada em
2022 a segunda edição de Vagas notícias de Meli-
nha Marchiotti, romance lançado originalmente em
1984 e considerado um importante marco na trajetó-
ria do escritor por conta de sua transgressão linguísti-
ca e estilística.
Sua literatura, a relação com a morte, um do-
loroso desamor, o ativismo, a política, o caos e até o
movimento Red Pill foram abordados ao longo desta
entrevista realizada em Uberlândia (MG), quando João
Silvério Trevisan esteve na cidade para receber o título
de doutor honoris causa, concedido pela Universida-
de Federal de Uberlândia (UFU).

• Em Meu irmão, eu mesmo, você aborda o círculo


familiar de forma bastante pessoal e intimista, as-
sim como fez em Pai, pai. Quando percebeu que
era o momento de contar essas histórias?
Não sei dizer ao certo, mas tenho esses proje-
tos há muito tempo. Assim como o terceiro da trilo-
gia, Antropofágico amor, no qual estou trabalhando
agora. Meu irmão, eu mesmo é um projeto que já tem
30 anos e parte exatamente do período em que houve

O caos
a revelação, a descoberta da minha infecção por HIV
e do câncer linfático do meu irmão. Mas o primeiro,
Pai, pai, não estava nos meus planos e acabou sendo o
responsável por deflagrar a trilogia. Acredito que Pai,
pai tenha a ver com a necessidade, talvez não tão cons-
ciente e não tão deliberada, de fazer um balanço. Em
2017, eu já estava com 73 anos e tenho a consciência
muito clara a respeito da questão da morte. Em Meu
irmão, eu mesmo falo muito sobre isso. É, na verdade,
o livro que aborda esse tema de maneira mais frontal.
Conto como há muito tempo, inclusive em períodos

como fonte
de análise, venho tentando abordar como estou peran-
te a minha morte. Não acho que seja uma coisa doen-
tia, longe disso, eu tenho que pensar na minha morte
porque ela faz parte da minha vida. Na verdade, tenho
que pensar na minha vida e a minha vida não é eterna.
Ela implica, necessariamente, o fim. E é um fim pavo-

de criação
roso, ninguém quer saber do seu fim, ninguém quer
morrer. Nós somos muito preciosos de fato, cada vi-
da é muito preciosa e única. Mas isso é inevitável, is-
so acontecerá. Então, tenho a impressão de que talvez,
não tão deliberadamente, pensei em fazer um balan-
ço. A partir daí veio o Pai, pai — afinal a presença do
meu pai era muito marcante pela sua ausência. E, ob-
viamente, isso tudo tinha e tem a ver com o impacto
provocado pela questão da violência paterna. A morte e
a violência paterna têm uma proximidade muito gran-
de, muito sólida. E aí, o que você encontra é, de fato,
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a necessidade de fazer um balan- que deu cria], por exemplo, feito • Pai, pai e Meu irmão, eu mesmo são os dois pri-
ço e foi basicamente isso que de- durante a ditadura, quando eu ti- meiros livros de uma trilogia de romances autobio-
sencadeou a trilogia. nha 26 anos, já tem essa mesma gráficos. Poderia falar um pouco sobre o terceiro?
radicalidade. Isso foi em 1971, em A ficção tem Posso falar um pouco, mas não vou adiantar de-
• Em um trecho do novo ro-
mance, você diz que ao escre-
plena ditadura. E os censores en-
tenderam, claro que entenderam
um elemento mais. É o mais político de todos. E o mais ficcional.
Chamo todos eles de romances autobiográficos, mas
ver esse relato íntimo de grande do seu ponto de vista, e proibiram de mentira que esse é o mais ficcional porque vou escrever em tercei-
dor, talvez você estivesse perse- o filme por conta da pornografia. ra pessoa. Exceto a mim, que sou João, todos os outros
guindo um resgate em busca de Acho que eles disseram “obsceno é crucial para personagens terão outros nomes, mas não outras per-
sentido. Esse resgate aconteceu?
Eu tinha uma pretensão. Eu
em quase toda a sua totalidade”.
Mas o que para eles era obsceni-
chegar mais sonalidades. Estou usando outros nomes justamente
para proteger essas pessoas e para me proteger, já que
não tenho certeza se fui pretensio- dade e pornografia, para mim era próximo da estarei falando de pessoas vivas, provavelmente. Estou
so, num mau sentido. Mas a mi- poesia. Apenas a nossa linguagem usando esse recurso para me dar mais espaço e mais jo-
nha ideia talvez tenha sido buscar era muito diferente, a nossa per- verdade.” go de cintura, para não mentir. Estou usando apenas
esse sentido. Eu mencionei muito cepção era muito diferente. Claro, um nome fantasia dessas pessoas, mas a realidade vai ser
ontem [no discurso da cerimônia aí vinha a minha diferença com exatamente a mesma. E por outro lado, vai ser o mais
de outorga do título conferido pe- a censura. Cada vez mais acredi- político porque ele se passa durante o período da di-
la Universidade Federal de Uber- to que a expressão pornográfica tadura, no coração da luta pelos direitos LGBT. Toda
lândia a João Silvério Trevisan] a é uma expressão muito próxima história é uma história que se cruza com a fundação do
pergunta do Caetano Veloso, na da poesia. E quando falo em por- Grupo Somos [grupo em defesa dos direitos homosse-
Cajuína: existirmos, a que será nografia, seja ela uma pornografia xuais, fundado em 1978], a fundação do Lampião da
que se destina? Essa é uma per- comercial, padronizada, cheia de Esquina [jornal criado em 1978 e considerado a primei-
gunta que atravessa a nossa traje- preconceitos, ou uma pornogra- ra publicação homossexual do país] e o meu ativismo.
tória de vida. E é uma pergunta fia poética, você tem sempre que Porque há uma história de amor que se entrecruza aí. E
que não tem resposta. A gente po- pensar no corpo. A ideia é: o nos- é uma história de amor muito dolorosa, de abandono,
deria viver mais uma vida e mais so corpo é pornográfico? É mes- justamente porque envolvia uma radicalidade sobre o
uma vida e continuaria a pergun- mo? Quem falou? Quando nasci, amor, envolvia uma abordagem radical sobre o amor.
tar. Porque lá vem outra vez: “Ca- eu já era pornográfico? Por que Nós estávamos lutando pelo nosso amor e eu levei um
minante, no hay camino se hace me tornei pornográfico? Porque chute na bunda daquele que estava lutando comigo.
camino al andar” [trecho de poe- sou homossexual? Porque eu tran- Um chute na bunda de uma maneira, isso vai espantar
ma de Antonio Machado]. Então, so numa posição diferenciada? Eu muito as pessoas, de uma maneira cruel, grotesca e até
o sentido da vida você vai encon- uso partes do meu corpo que não desumana. Essa história é a mais dolorosa de todas. Te-
trando à medida que busca o sen- são convencionais, padronizadas nho pacotes de diários do período que eu não conseguia
tido da vida. A vida é uma busca ou permitidas? Então, me con- mexer. A história não está por último apenas porque é
de sentido, na verdade. Acredito frontar com essa possibilidade da a mais antiga, mas é porque não conseguia mexer nela,
que não apenas este romance, mas pornografia poética era realmente de um ponto de vista emocional. Quando começava a
toda a minha obra, toda a minha uma maneira de chegar mais per- mexer, tudo aquilo voltava como se tivesse acontecido
produção, e acredito que toda a to ainda do meu sentido, do sen- ontem. Tal foi o impacto na minha vida, que a minha
produção que a gente faça visan- tido da minha vida. E para isso ferida de exílio homossexual realmente tomou uma di-
do uma expressão mais próxima eu tinha que tirar a roupa. Muitas Em nenhum momento, mensão extraordinária por conta desse fato. Entrei com
da poesia, é sempre uma busca de vezes não foi fácil, mas confesso tudo nessa ideia do ativismo que vai nos libertar para
sentido mais aprofundada. Porque que, quando leio, fico muito fe-
me senti paralisado no que a gente possa amar. E esse tudo que eu joguei na
você está tentando verbalizar, ten- liz de ter feito isso. Acho que con- governo Bolsonaro. Pelo mesa foi jogado no lixo. Por um parceiro. O parceiro
tando apresentar para fora de vo- segui encontrar uma veia minha, contrário, eu estava em do meu amor. Não é pouco. Enfim, é tão duro que não
cê alguma coisa que está tentando um nervo meu que dá para mexer. estado de fúria. Aliás, vejo palavras que possam explicar ou resumir a força, o
descobrir lá dentro. É um pouco Dá para mexer de uma maneira quando falo esse nome, impacto, a dureza daquilo que aconteceu. Já estou tra-
o que eu mencionei no Ana em radical, muito legítima. tenho vontade de limpar balhando no livro, já tenho contrato com a Alfaguara e
Veneza, que é o estandarte rubro tenho muita coisa já escrita, mas não vou dar mais de-
da poesia. Esse estandarte rubro • Ainda em Meu irmão, eu mes-
a minha boca.” talhes da estrutura que será bem diferente dos outros
da poesia, que vai passando de sé- mo, você conta que se sentia dois, que são diferentes entre si. Tenho já muita coisa
culo em século, é a pergunta que na fila da morte após desco- anotada e continuo tomando nota. O que está me sur-
os poetas estão fazendo. Existir- brir a contaminação pelo vírus preendendo é que não achava que fosse sair tão políti-
mos a que será que se destina? E HIV, em 1992. No entanto, foi co quanto está me exigindo. Estou entrando muito na
essa busca é expressa em forma de Cláudio, seu irmão, que faleceu área da minha prática de esquerda, da minha vivência
poesia. Porque, me parece, é a ma- poucos anos depois, vítima de enquanto homossexual dentro da esquerda, porque foi
neira mais precisa possível de vo- um câncer linfático fulminante. inevitável. É inevitável tocar nisto: o embate que hou-
cê buscar a sua expressão. E, claro, A vida e a morte surpreendem ve entre os meus supostos companheiros e o meu de-
a expressão do seu sentido. Toda mais que a ficção? chegando nesse ponto em que vo- samor à minha maneira.
a minha obra, obviamente, se en- Eu não tenho certeza. Acho cê tem que se desnudar, você acaba
cadeia em função dessa busca de que a ficção é muito poderosa, mas encontrando aquela pornogra- • Trabalhos como Devassos no Paraíso são cons-
sentido. E eu, nessa trilogia, o que a vida é muito exclusiva. Cada vi- fia poética há também na ficção. tantemente referenciados em pesquisas sobre gê-
talvez tenha descoberto é que só da é uma vida completamente di- Então, acabam se equivalendo, nero no Brasil, enquanto romances como Rei do
conseguiria chegar mais perto do ferente e ela dá um chacoalhão na dependendo de como se vai me- cheiro denunciam a arrogância de intelectuais e os
sentido se eu fizesse um strip-tease. ficção. Mas também é verdade que xer com as duas coisas. Tem fic- riscos do discurso meritocrático. Suas obras ficcio-
Pai, pai, Meu irmão, eu mesmo a ficção dá um puta chacoalhão na ção muito vagabunda, tem ficção nais são tão políticas quanto as não ficcionais?
e esse terceiro que estou escreven- vida. Porque a ficção tem um ele- muito convencional, e tem narra- São mais políticas do que as não-ficcionais. E por
do têm uma técnica e estruturas mento de mentira que é crucial tiva autobiográfica extremamente isso, a conspiração do silêncio, que eu sei de onde vem.
bem diferenciadas. Estou realmen- para chegar mais próximo da ver- poética, mas também muito con- Sei exatamente que a direita não tem nenhum interes-
te buscando me despir até onde é dade. Esse é o grande lance da li- vencional. Muito fácil escrever a se, nunca vai ter, na minha obra. E conto com o interes-
possível para mim, até onde é con- teratura. Na verdade, o que você autobiografia de um modo con- se daqueles que são meus companheiros, com os quais
fortável. A minha questão, quando chama de ficção, eu chamaria exa- vencional, tentando vender o peixe tenho uma interlocução. Não que eu esteja escrevendo
comecei a trilogia, era a seguinte: tamente de poesia. Na vida que mentirosamente quando se deve- apenas para essas pessoas, mas tenho certeza que a direi-
ou escrevo dessa maneira ou não nós vivemos, nós não encontra- ria, numa autobiografia, estar sen- ta não gosta do que eu faço. E não vai gostar, porque nós
escrevo. E o resultado disso tem mos poesia, em geral, no cotidia- do muito sincero com quem está temos uma diferença simplesmente radical, de raiz. E
mexido muito com as pessoas. no. Mas isso que a gente chama de compartilhando com você aque- uma das questões que quero debater, e tenho debatido,
Muita gente me acessa e diz “João, ficção, e que está no mesmo pa- la história. Mas se você consegue é que a esquerda não tem direito de exigir que ela é do-
eu estou muito perturbado com tamar da poesia, ou poderá estar, realmente se despir, você vai che- na da verdade. É assim que frequentemente a esquerda
a sua capacidade de mergulhar”. porque ela trabalha com o imagi- gar próximo da poesia, e essa poe- se comporta. A minha esquerda, a nossa esquerda, na
E essa foi uma escolha deliberada. nário, com a fantasia, que é uma sia está também muito próxima da verdade, um determinado tipo de esquerda, com o qual
Essa, sim, foi muito deliberada, parte da nossa vida que a gente ficção, caso você tome consciência tenho muita dificuldade, que é a esquerda autoritária.
porque era a maneira que eu, nes- quase nunca mete a mão, aí nes- disso, de que a ficção é um espa- E menciono em tudo quanto é palestra, e acho que em
te momento da minha vida, teria se momento começam a aparecer ço, é um terreno muito acima da- livros meus, inclusive em Meu irmão, eu mesmo, que
de buscar o sentido da forma mais coisas que você não estava se dan- quele real cotidiano, daquele dia a sinto fedor de dogmatismo de longe. Por quê? Porque
efetiva possível. A partir daí não do conta. Revelações. E a poesia é dia bobo, ridículo, diante do qual fui treinado a sentir esse cheiro dentro do seminário.
tem mais o que fazer. E é algo que pura revelação. A poesia é ilumi- a gente perde as referências. A fic- Dez anos, massacrado por dogmas católicos, qualquer
vem de toda a minha trajetória. nação. Iluminação transgressiva, ção, através da poesia, impõe de um sai com um diploma de doutorado em dogmatis-
O meu filme [Orgia ou o homem muito frequentemente. Acho que volta as referências. mo. Percebo claramente quando há dificuldade de diá-
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logo, quando há dificuldade de admitir a sua lembro se no Estadão ou na Folha, to, dizendo algo como “olha que
imperfeição. Passei anos da minha vida fazendo aná- que a grande notícia do final do eleição maravilhosa, todos que es-
lise para tentar entender a minha imperfeição. A mi- ano de 1994 não era o Ministério tão competindo são de esquerda”.
nha morte é a maior das imperfeições, mas não é a de Fernando Henrique Cardoso, Nós tínhamos essa doce ilusão.
única. Todos os dias estou tropeçando na minha im- mas um romance chamado Ana Mas a nossa reação foi à altura. Is-
perfeição. Não sou o único imperfeito do gênero em Veneza. Foi um puta auê de so eu falo muito já na nova edição
humano. O gênero humano é imperfeito. Por que, gente correndo atrás de mim pra do Devassos no Paraíso, em que
então, a esquerda tem que ser perfeita? É a pior ma- me entrevistar. Mas era uma outra eu abordo o período da eleição. Já
neira de se relacionar com a sociedade. É achar que coisa, era uma história do Brasil, era estava previsível o que ia aconte-
você é dono da verdade. Inclusive, esse é um ponto uma abordagem histórica, um cer, apesar de nós não gostarmos
de partida da direita mais radical. Ela não quer sa- Meu irmão, eu mesmo olhar histórico para tentar entender e não querermos. Eu pego toda
ber o que você faz. Ela tem a sua verdade e você tem JOÃO SILVÉRIO TREVISAN o que estava acontecendo no Bra- a história de 90 e pouco, quan-
que observá-la. O nazismo e os vários tipos de fas- Alfaguara sil. Tanto que o final do romance do o Edir Macedo cria o disparo,
256 págs.
cismo nos deixam clara essa ideia. Então, como é tem aquela passagem de 1891 re- muito consciente e muito propo-
que nós vamos imitar a direita se nós queremos ser pentinamente para 1991. Mas era sital, da tomada de poder. Tenho
exatamente o oposto dela? Nós estamos usando os uma meditação, uma longa medi- uma parte inteirinha sobre a direi-
mesmos padrões, isso me aflige profundamente. Por tação sobre o que é o Brasil. Den- ta radical, a nova direita, a direita
isso, nos meus romances, frequentemente meto o tro da minha obra que aborda toda evangélica, por exemplo, no De-
dedo na ferida. E aí percebo a conspiração do silên- a questão brasileira tem uma peça vassos no Paraíso e na segunda
cio, que é crudelíssima. Os prêmios que recebi são de teatro, o Ana em Veneza, o Rei edição de Seis balas num buraco
todos honoríficos. A única vez que recebi um prê- do cheiro e A idade de ouro do só: a crise do masculino, que saiu
mio em dinheiro que me era muito importante pa- Brasil, todos cruciais para mim, em 2021. Ali já tem claramente o
ra sobreviver, foram R$ 350 do Ana em Veneza, do porque sou um homossexual dia- Bolsonaro, pintando e bordando.
Prêmio Jabuti, que eu fiquei tão absurdado que fui logando com o meu país, porra. Tem capítulos inteiros analisan-
comprar a obra completa do Freud, em espanhol, Tenho um ponto de vista da mar- do o bolsonarismo. E analisando
que na época o real estava equiparado ao dólar. En- gem que o país deve olhar, porque com uma navalha, não deixando
tão dava para comprar três volumões no espanhol, estou dizendo alguma coisa que passar nada, porque o que acon-
que é uma tradução magnífica, porque naquela épo- quem está no mainstream não tem teceu com o bolsonarismo foi que
ca a tradução brasileira era muito ruim, feita do in- condições de ver. E estou vendo da o masculino tóxico tomou o po-
glês, e eu tinha dificuldade para entender. Aí fui ler margem. Então, para mim, é mui- der. E ele está disposto a tudo. Ele
o Freud em espanhol e, porra, percebi que estava Vagas notícias de to duro. Tenho que brigar com a mostrou que ele está disposto a tu-
diante de um poeta. Então, essa é uma constatação, Melinha Marchiotti minha mágoa por conta disso. do para não perder o trono. Mas
para mim, palpável dessa conspiração. Nos perío- JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Não quero me machucar por con- a reação foi maravilhosa. E aí eu
dos do PT no governo, o Brasil foi tema da Festa do Record
ta da mágoa porque eu estou sen- conto com mais detalhes essa rea-
350 págs.
Livro de Bogotá, de Guadalajara e da Feira Interna- do magoado. E não quero ção anti-hegemônica nova, total-
cional do Livro de Frankfurt. Tenho livro em espa- aprofundar essa mágoa, mas a mente nova, com os novos grupos
nhol, tenho livro em alemão, tenho livro em inglês. marca é muito dolorosa. de movimentos sociais que se en-
Alguém me convidou para representar o Brasil? Vo- corparam, se enriqueceram, se
cê tem ideia de como isso doeu? Não sou trouxa, • Durante a ditadura, seus tex- opondo à hegemonia do mascu-
não sou otário ou babaca. Percebo claramente o que tos foram censurados e consi- lino tóxico. Por exemplo, todo o
isso quer dizer. Eu já perdi prêmio, porque teve vo- derados uma afronta aos “bons espaço da transexualidade e trans-
tação enganosa, que me foi comunicada por um mundo da história em quadri- costumes”. Nos últimos anos, generidade, que foi uma novidade
membro do júri, que percebeu que alguém estava nhos. O romance começa justa- especialmente durante o gover- que nós estamos vivendo dentro
dando nota alta para a sua eleita, e naquele momen- mente com a indústria cultural da no Bolsonaro, adjetivos como das políticas LGBTs.
to o Pai, pai, que estava lá em cima, desceu. Então, década de 50 no Brasil. Tem um “subversivo” e “imoral” volta-
porra, tenho que conviver com isso e não vou fechar capítulo em que meu personagem ram a ganhar força, inclusive • Seis balas num buraco só: a
os olhos. Isso é uma das coisas que eu estou fazen- está sofrendo muito porque foi para classificar artistas consi- crise do masculino evidencia
do. Em Antropofágico amor, vou falar disso tudo, abandonado pela mulher e porque derados perigosos pela extrema os riscos do projeto do “ho-
vou botar tudo na mesa. Aqui está a maneira como o filho foi sequestrado. E ele só direita. Quando você percebeu mem ideal” para a sociedade,
eu fui tratado. Aliás, Rei do cheiro foi totalmente consegue falar através de trechos que isso estava acontecendo, te- especialmente no que se refere
ignorado. Só saiu no Rascunho uma merda de uma de música de dor de cotovelo. Ele ve medo de a história se repetir? à consequente violência con-
resenha [#118, de fevereiro de 2010. O editor concor- não consegue expressar suas pró- Eu não sei se a palavra é me- tra mulheres e pessoas LGB-
da com o democrático direito à reclamação após quase prias emoções. Então, tive uma fe- do, porque, em nenhum momen- TQIAP+. Nesse sentido, o
14 anos. Afinal, o direito à opinião e ao ressentimento licidade escrevendo esse romance. to, me senti paralisado no governo movimento Red Pill, formado
é legítimo. Não é mesmo, João?], de uma pessoa in- Foram pesquisas, assim, brutais Bolsonaro. Pelo contrário, eu esta- por homens que defendem uma
competente, acabando com o livro. Não sobrava na- para chegar àquele resultado. E aí va em estado de fúria. Aliás, quan- “masculinidade dominante”, o
da do livro. Essa pessoa não entendeu, tomou o eu encontro essa resenha no Ras- do falo esse nome, tenho vontade preocupa? É uma nova crise das
romance do século 19 como parâmetro para anali- cunho e não teve uma resposta que de limpar a minha boca. Até ho- masculinidades ou apenas um
sar o Rei do cheiro, que cancelava o narrador em pudesse discordar [Nota do editor: je. Porque é um lixo. É um ab- novo desdobramento?
terceira pessoa. Eu não queria trabalhar nesse livro o Rascunho, ao longo de sua histó- surdo tentar compreender como Eu não dou muita impor-
com o narrador em terceira pessoa. Queria fazer ria, sempre acolheu réplicas, mesmo é que esse cara foi parar onde foi tância, francamente, porque acho
múltiplas vozes, fazer uma sociedade coralizada. que tardias]. Eu só fiquei sabendo parar. O que significa que o Bra- que é uma fase do armário. O ar-
Tanto que fui naquela época, na internet, não tinha muito tempo depois, inclusive. O sil é um absurdo, porque foi uma mário não vai existir do mesmo
ainda a deep web, fui buscar canções do PCC, pe- Rascunho não chegava até mim verdade: ele ganhou a eleição. Do jeito que resistia no passado. Ele
dindo para cortar a cabeça de juízes, porque ainda naquele tempo. Agora, eu recebo jeito dele, claro. E queria ganhar vai encontrar, digamos, manei-
estavam disponíveis, e inseri como parte dessa vo- em casa. Mas só fiquei sabendo de novo, fez de tudo para roubar ras um pouco mais integradas de
calização de uma sociedade em pânico, uma socie- muito tempo depois e eu não tive a eleição. Em todo caso, eu esta- conviver socialmente, o que signi-
dade absolutamente pedindo socorro para não sei como responder. Porque, em geral, va sempre ali, instigado, então me fica que ele vai se diluindo cada vez
quem. Era uma sociedade, obviamente, à beira do se a crítica é babaca, eu vou lá e di- assustava, estava assustado, mas mais. Essa importância que as pes-
buraco, numa circunstância dessa, que foi exata- go. Quem escreveu tem um proje- não creio que eu tivesse medo. soas dão não apenas socialmente,
mente quando termina a narrativa do Rei do chei- to de romance na cabeça e acha Conheço muita gente que estava e não apenas politicamente, mas
ro, que é quando o PCC fez aquele ataque brutal, que todas as obras têm que corres- com muito medo, antes mesmo sobretudo psicologicamente ao
em 2006, em São Paulo, em que parou tudo, botou ponder. Foi exatamente isso que de ele ter sido eleito. Dá pena. Eu armário. Conheço um monte de
fogo em tudo quanto era coisa que encontraram pe- essa crítica fez. E foi a única rese- me lembro de um debate em Ara- viado bolsonarista. Qual é a ca-
la frente, matavam policiais, ameaçavam juízes, po- nha que saiu. A única. Eu entrei caju, em que no meio do debate, racterística que perpassa todos
líticos, etc. E eu fiz um livro em que fui buscar em depressão. Um dos meus vários de repente aparece uma pesquisa eles? É viver escondido como ho-
inspiração em John Dos Passos [romancista e pin- períodos de depressão. Por conta dizendo que ele havia disparado mossexual. Podem até ter vivido
tor estadunidense], por exemplo. Nem sei se a pes- do silêncio em torno do romance. nas pesquisas. As pessoas estavam 30 anos com o parceiro, mas dor-
soa que escreveu sabe que existiu um John Dos E não foi o único. A idade de ou- enlouquecidas e eu disse: “Olha, mindo em cama diferente. Podem
Passos que tinha uma pegada muito parecida. Foi a ro do Brasil, que também tem ele vai nos fazer um favor de mos- até “desmonhecar”, mas isso é um
minha inspiração. De criar uma voz da sociedade. uma pegada política cortante. Ca- trar agora o que é o Brasil”. Por- passatempo. Então, a questão séria
E aí fui chamado de “alguém que não sabe criar per- dê A idade de ouro do Brasil? Di- que nós estávamos na nossa bolha é ser um personagem integrado à
sonagens”, porque meus personagens eram todos gamos que Ana em Veneza foi e achávamos que isso estava supe- sua sociedade, o que significa con-
personagens vazios. Ora, eu estava mimetizando his- uma exceção, porque o Elio Gas- rado. Tanto que em A idade de formar-se a essa sociedade cheia de
tória em quadrinhos, tanto que cheguei a pensar em pari [jornalista e escritor] fez uma ouro do Brasil, eu falo do presi- homofobia e extremamente con-
colocar uma parte do romance como história em resenha no final de 1994, quando dente Lula, não me lembro se no servadora. O masculino tóxico, tal
quadrinhos. Porque o meu personagem vive no o romance saiu, e disse, não me primeiro ou no segundo manda- como eu abordo a partir de pes-
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quisas, ele tem medo de dedo. Ele to pedagógico. Vocês não estão de estudantes protestando, protes-
tem medo de um dedo no cu, pa- fora do mundo, vocês estão num tando violentamente, e vê esse ga-
ra fazer exame de toque retal, para mundo muito perigoso. Então, es- roto. E fica muito impressionado
saber como é que está o estado da ses embates são muito produtivos. com o discurso que o garoto faz.
próstata. Eu consultei entrevistas A história é sábia porque ela não Então procura esse rapaz para que
de médicos especialistas em torno é previsível, ela é constituída por escreva com ele o libreto da sua
do câncer de próstata, e o grande multidões que criam a história. peça brasileira, pois quer se redi-
problema é a resistência de certo E que não são apenas os líderes, mir perante o Brasil. E a minha
tipo de homem, ou seja, a gran- ou que não são sequer, sobretudo, peça é um debate entre a visão do
de maioria, que é tóxica, de fazer os líderes. Há populações inteiras Álvares de Azevedo, um jovem su-
o exame de toque retal. Agora, me que estão mobilizando a história, postamente revolucionário, e um
diga uma coisa, por que tanto me- muito frequentemente, de uma senhor no fim da vida tentando
do? Você acha que você vai perder maneira não deliberada, incons- se redimir de uma história que ele
a virgindade por um dedo? Você ciente, por exemplo, todo o pro- não considera muito aprazível pa-
vai perder a sua virilidade por con- cesso migratório que nós estamos ra deixar para o Brasil. E os dois
ta de um dedo? Que virilidade é vivendo hoje no mundo. É uma têm um embate muito grande en-
essa? Que diabo de masculinida- mudança histórica brutal, mas es- tre duas visões de Brasil, a partir
de é essa? Por isso ela é comple- sas pessoas estão fazendo por pu- do quê? Da história do J. J. Maia.
tamente defensiva e fragilizada. E ra necessidade de sobrevivência. E O jovem quer adaptar a história
mentirosa, claro. Ela vive de trás elas estão mudando a história. A do J. J. Maia para uma peça, para
de um cascão. Que é o cascão, jus- Europa está vendo uma situação uma ópera. E o Carlos Gomes diz
tamente, da hegemonia masculi- internacional com a qual ela nun- que tudo bem, mas reluta com as
na que cria o homem ideal. Que ca se confrontou antes. Antes ela sugestões que o rapazinho dá. En-
é o fortão, que é o que não vai pa- colonizava, agora os ex-coloniza- tão, o que nós vemos na peça são
ra o hospital, que é o que enfren- dos estão indo colonizar a Euro- representações da visão da ópera
ta, que mostra a arminha o tempo pa e ela está se cagando de medo. do Carlos Gomes e da visão do ra-
todo, para mostrar que é macho. Tem medo de perder as suas carac- pazinho revolucionário. E aí co-
Essa arminha, ela tem a forma do terísticas históricas. O que são ca- meça o caos. É uma peça sobre o
pinto. Não precisa nem um Freud racterísticas históricas? A história É preciso não ter medo do caos. Na caos brasileiro. Tem, por exemplo,
voltar para explicar. Essas pessoas está em permanente devir. Eu acre- verdade, o caos é a fonte de toda criação.” a Tia Anastásia, que é empregada
estão obcecadas por um problema dito na história, acredito no real do Carlos Gomes. Eu jogo perso-
que elas não conseguem resolver, que a história produz e que é mui- nagens e coloco muitas questões
que é basicamente o seu medo de to complicado de você aquilatar, relacionadas com o imaginário e
serem passivas. E por isso odeiam de você apalpar. Porque é um atro- com a mitologia brasileira, pre-
tanto as mulheres. Por isso maltra- pelo. A história é totalmente atro- Jefferson. J. J. Maia [José Joaquim Maia e Barbalho, sente já na nossa história de uma
tam tanto. Por isso matam. Por is- pelada o tempo todo. Ela não está que usava o pseudônimo Vendek] era um jovem maneira bem significativa. E o fi-
so estupram. Porque consideram a em manuais. Você está pensando brasileiro que no século 19 foi estudar em Lisboa. nal é um final carnavalesco, em
mulher uma coisa de segunda ca- que ela vai por aqui, ela vai por ali. Era muito comum que pessoas mais abastadas ou que todos esses personagens apa-
tegoria. O coitado do pinto nem Você pode até fazer suposições, fa- de famílias mais abastadas estudassem em Lisboa. recem, como Peri, Ceci, Iracema.
sabe o que está acontecendo. Ele zer análises de possibilidades, mas E lá ele conseguiu contato com o Thomas Jeffer- E há uma grande conglomeração
tem vontade própria porque tem quantas análises de grandes inte- son, que era o embaixador americano na França. E e um grande debate sobre o que
um organismo inteiro mobilizado. lectuais aí que não deram com os os Estados Unidos tinham acabado de fazer a revo- seria o Brasil. Partindo do pressu-
E esse masculino tóxico, inclusive, burros n’água? Então, essa humil- lução americana e se separado da Inglaterra. E pa- posto de que estamos vivendo um
não consegue conduzir, de acordo dade que a história pede é essencial ra os estudantes que estavam em Lisboa, era uma país caótico, mas um país tão caó-
com a sua vontade, esse pobrezi- para que possamos olhá-la. grande expectativa a possibilidade de criar essa mes- tico que produziu o carnaval. E eu
nho desse pênis. Então é muita po- ma revolução no Brasil contra Portugal. Então o J. dei um final a essa história, mas eu
breza. E é em cima dessa pobreza • Para encerrar, devolvo uma J. Maia entrou em contato com o Thomas Jeffer- não estou satisfeito com ele. En-
que eu faço a reflexão de que as no- das perguntas presentes na son para discutir a revolução de independência do fim, não sei o que acontecerá, mas
vas gerações têm comprovado co- quarta capa de seu livro Pedaço Brasil. A partir daí, resolvi escrever essa peça em que acredito piamente na criatividade
mo isso vai caindo por terra. Na de mim: em que sentido o caos um personagem baseado no Carlos Gomes volta do caos brasileiro. Eu não tenho
verdade, o que me preocupa mais brasileiro pode dar certo? da Itália depois de todo o sucesso enquanto com- medo. Cada um de nós é super-
é o que vem depois. Por exemplo, Eu teria que reler o Peda- positor brasileiro de óperas italianas. Ele volta para caótico. Temos um caos lá dentro,
hoje nós temos uma grande quan- ço de mim, teria que reler Ana o Brasil muito compungido, já doente. Então ele se um caldeirão fervilhando. E é de
tidade de pessoas fora do armário em Veneza, A idade de ouro do encontra com um personagem que seria o Álvares lá que a gente tira a nossa persona-
que são conformistas. Elas querem Brasil e uma peça, que ganhei um de Azevedo. Vale lembrar que os dois nunca se en- lidade, de lá que a gente tira nosso
saber do seu aplicativo, elas que- prêmio da Funarte e que não con- contraram na vida real e eram, inclusive, de gera- imaginário, de lá que a gente tira
rem saber da sua transa, como se sidero que esteja pronta. É uma ções diferentes. Na peça, esse encontro acontece em a nossa expressividade. É preciso
vivessem fora do armário. E nesse peça histórica chamada Correspon- São Paulo, quando o Carlos Gomes estava passan- não ter medo do caos. Na verdade,
sentido, o bolsonarismo foi mui- dência entre J. J. Maia e Thomas do pela Faculdade de Direito e encontra um grupo o caos é a fonte de toda criação.

raimundo carrero
LUTA VERBAL

PALAVRINHA C
omeço a escrever este é saber quais os olhos que vão en- o palavrão na literatura. Pode ser
artigo — cujo assunto frentá-la. Temendo o censor, que assunto velho demais, no míni-
é o palavrão na litera- de repente habita o escritor, não mo fora de hora. Convenço-me,

OU PALAVRÃO
tura — e me dou con- seria aconselhável mudar de as- no entanto, de que os conservado-
ta de que algumas palavras nem sunto? Ainda mais radical. res circulam muito por aí num de-
precisam ser escritas para provo- Daí porque os censores — safio permanente. O palavrão que

– EIS A
car os olhos do leitor. Acompanhe armados de tesoura ou caneta nos eu nem chamo de palavrão nem de
por favor: “vá tomar no” esta pa- tempos da ditadura — temem as palavrinha, basta palavra — é fun-
lavrinha — ou palavrão? — pre- palavras escritas ou ditas — quem damental porque é o mote justo,

QUESTÃO
cisa mesmo ser escrita ou basta sabe, representadas num simples de que falavam os franceses, a pala-
cortá-la? Pronto. O problema es- movimento de mão com o indi- vra exata, a palavra insubstituível.
tá criado. Esta palavrinha – será cador e o polegar numa luta que Não é assunto fora de moda
palavrão? — palavrinha ou pala- não tem fim, ainda hoje inescru- porque se trata da palavra e a pala-
vrão, mesmo dita por um perso- pulosos e vingativos. Agora ainda vra é eterna.
nagem, precisa ser escrita ou em estou preocupado, muito preocu- Sem esquecer que um dos
silêncio continua devastadora. pado. Queima-me a ideia de que melhores livros de Lobo Antunes
Sim, poderia ser evitada, devo mudar de assunto, ou sim- se chama Os cus de Judas.
mudar de frase, aí atua o censor plesmente esquecer a frase. Se o personagem não a pro-
que resolve radicalmente cortar a Bem, quero tratar aqui, en- nuncia está na hora de levá-lo ao
frase inteira. A minha inquietação fim, deste assunto tão necessário: psiquiatra.
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Vida após a morte


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Em As viúvas passam bem, sões dos eventos não são comple-


tamente confiáveis. Em As viúvas
Marta Barbosa Stephens explora passam bem, Stephens constrói a
as contradições humanas e a descrença através de uma narrado-
ra com memória falha.
busca por algum sentido na vida O que descrevo a seguir,
permita-me alertar, tem origem
no olhar de uma menina de 13
ALLYSSON CASAIS | NITERÓI – RJ anos, abobalhada pelas descober-
tas de sua idade e curiosa por tudo
o que não lhe era familiar. Possi-
velmente, muita coisa foi fanta-

A
siada. Não posso me assegurar de
publicação de um toda a verdade com tantos anos de
segundo romance é distância. Ainda mais por ter sido
aguardada com an- uma adolescente presa no mundo
tecipação. Em certos paralelo das histórias e persona-
casos existe a expectativa de alcan- gens que criava, e só eu via.
çar um público leitor maior. Em O distanciamento tempo-
outros, se a primeira obra obteve ral é maneira conhecida de gerar
grande sucesso, há a dúvida se o dúvidas sobre as recordações de
novo livro realizará o mesmo feito. um narrador. Lacunar, a memó-
Mais comum, entretanto, é o inte- ria se torna mais imprecisa com o
As viúvas passam bem
resse da crítica pela elucidação do tempo. As lembranças da narra-
MARTA BARBOSA STEPHENS
projeto literário em construção. dora de As viúvas passam bem
Folhas de Relva
Com a leitura do segundo livro, 124 págs.
são figuradas como incertas por-
é possível averiguar os fios de li- que décadas separam os aconteci-
gação entre ele e o anterior, com- mentos e o momento de escrita.
preendendo-se temas e estratégias A caracterização da personagem
de escrita caras ao autor. Tal é o como imaginativa desde a juven-
caso de As viúvas passam bem, tude dá outra dobra à descrença
romance mais recente de Marta por parte do leitor. O mais in-
Barbosa Stephens. trigante é tais características se-
Situado no Recife dos anos rem apresentadas abertamente.
1990, As viúvas passam bem, fi- No romance, a desconfiança não
nalista do Prêmio LeYa de 2021, é construída aos poucos, pois de
narra a história de Margarete e largada a narradora declara não
Guiomar, duas mulheres torna- ter nenhum compromisso com a
das inimigas após seus maridos veracidade do relato.
se matarem durante uma discus- A dubiedade da palavra da
são. Vizinhas, as viúvas reali- narradora oferece maior liberda-
A AUTORA
zam pequenas e bizarras vinganças de a Stephens na construção da
uma contra a outra, marcando o narrativa. A estrutura de uma MARTHA BARBOSA STEPHENS
cotidiano da pequena vila — “A narradora que escreve lembran-
É jornalista e crítica literária com mestrado pela Pontifícia
história delas era um patrimônio ças sobre a vida alheia também
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Nasceu
público no bairro”. O romance está presente em Desamores da no Recife (PE) e mora na Inglaterra. É autora de Voo
é conduzido em primeira pessoa portuguesa. Lá, ela conta dos en- luminoso de alma sonhadora (2013) e Desamores da
por uma narradora não nomeada, contros com uma portuguesa que portuguesa (2015). Tem contos publicados em diversas
que escreve suas memórias adoles- desabafa sobre desilusões amoro- coletâneas, entre elas Feliz aniversário, Clarice (2020) .
centes de Margarete e Guiomar. sas. Em dado momento, o enredo
Neste sentido, há elos importan- se expande para tratar de outras
tes entre o livro e Desamores da mulheres para além da portu-
portuguesa, primeiro romance de guesa. O movimento é desajeita- a importância das conexões humanas. Após o fale-
Stephens, que confirmam aspec- do, outras histórias dificilmente cimento dos maridos, Margarete e Guiomar pas-
tos de interesse na escrita da au- encaixando-se dentro da estrei- sam por um processo de descoberta de si. Quem
tora: a estrutura narrativa em que ta estrutura narrativa. Com uma são elas fora do casamento? Ódio e vingança são os
a narradora escreve histórias que narradora distanciada no tempo motivos encontrados para continuarem a viver em
escutou e a figuração de persona- dos acontecimentos e que fabula um primeiro momento, mas logo se mostram li-
gens em busca de algum sentido abertamente, As viúvas passam mitantes. O sentido da vida passa por outro lugar.
na vida. Características que, ao bem escapa de tal restrição. As viúvas passam bem é um romance sobre
que tudo indica, serão recorren- O enredo do romance se afeto. É na troca com o outro que o renascimento
tes na sua literatura. amplia para apresentar sujeitos das viúvas ocorre. E é também na relação com elas
ao redor das viúvas. A expansão que esses outros sujeitos se encontram. Contudo,
Desconfiança e afeto é feita de maneira hábil. Com Stephens não trata do tema de maneira simplista. O
TRECHO
Uma narradora suspei- menções a comentários de outros amor, romântico ou não, no livro é plasmado como
ta ocupa o centro de As viúvas As viúvas passam bem personagens, entende-se que a his- confuso e contraditório. A obra demonstra como
passam bem. Há tempos a lite- tória é composta pela recordação é possível, por exemplo, que mãe e filho se amem,
ratura deixou de lado o narrador de eventos presenciados pela nar- mas não se gostem, ou que desejos e expectativas
As viúvas nunca se perdoaram.
tradicional, dono de toda razão radora e por boatos difundidos em um relacionamento mudem ao longo do tem-
e inquestionável. Na produção Não espere ao final deste relato entre os moradores da vila. “Nun- po, tornando-se o oposto do que eram no início.
contemporânea, eventos são nar- um abraço afetuoso, um olhar ca parei de saber delas”, a narrado- Ao representar as relações humanas como
rados por sujeitos parciais, indeci- de cumplicidade de quem deixa ra informa ao leitor, “nem mesmo complexas, Stephens evade qualquer maniqueís-
sos e mentirosos. O papel do leitor quando deixei o Recife e me ca- mo. Os personagens do romance são gentis, mas
no passado as mágoas e é capaz
passou a ser desconfiar e questio- sei em São Paulo”. Desse modo, também mesquinhos e rancorosos. Eles se impor-
nar quem narra. Essa é a postura de enxergar outra vez beleza a estrutura narrativa possibilita a tam com quem amam ao mesmo tempo que são
possível perante narradores como, no vidro em cacos. Isso nunca Stephens representar a intimidade profundamente egoístas. E por serem contraditó-
por exemplo, o paranoico Daniel, aconteceu. Nunca acontecerá. não só das viúvas, mas também de rios conquistam a empatia do leitor. Em tempos
de Teatro, de Bernardo Carvalho, outros personagens. em que um certo moralismo afeta o meio literário,
Morrerão se odiando. Morrerão
ou a ambivalente Shirley Marlo- Com a figuração das rela- As viúvas passam bem exemplifica como a litera-
ne, de Deixei ele lá e vim, de tentando destruir uma à outra. ções entre as protagonistas e ou- tura mais interessante ainda está na exploração das
Elvira Vigna. Indivíduos cujas vi- Não há final feliz, antecipo. tros indivíduos, Stephens tematiza contradições humanas.
JANEIRO DE 2024 | 11

De sobretudo
e all star
Com um lirismo agudo e melancólico, O AUTOR

Engenheiro fantasma, de Fabrício Corsaletti, FABRÍCIO CORSALETTI

traz Bob Dylan flanando por Buenos Aires Nasceu em Santo Anastácio, oeste
paulista, em 1978. Desde 1997 reside
em São Paulo. Formado em letras pela
USP, publicou, em 2007, Estudos para
CRISTIANO DE SALES | CURITIBA – PR o seu corpo, que reuniu seus quatro
primeiros livros de poesia. Escreveu
King Kong e cervejas, livro de contos
publicados em 2008, e a novela Golpe

B
de ar (2009). Em 2010 sai Esquimó
uenos Aires é uma ci- a favor de uma leitura previsível, com respeito aos cortes (poesia), pelo qual recebeu o prêmio E ainda, como tem sido frequente na poé-
dade editada entre o de fim de versos, mas a constante variação nos acentos cha- Bravo!. Publicou também Quadras tica de Corsaletti, há em Engenheiro fantasma
monumental de suas ma para outra cadência. Uma em que a plasticidade não paulistanas (2013), Baladas (2016), Todo um lirismo agudo e melancólico, como podemos
poeta é um bar (2018) e Roendo unha
paredes estatuárias e a será apenas visual, ou o som, apenas música, mas sim em ver no soneto, a meu ver, mais bonito do livro,
(2019). De crônicas publicou Ela me dá
coisa ruidosa da contradição ur- que ambas (pintura e música) compõem a paisagem so- o de número 55, que merece ser lido na íntegra.
capim e eu zurro (2014) e Perambule
bana. Tem sons de bares, cafés, nora contrastante. Insinuando-se ora heroico, ora sáfico, (2018). Também escreve para público
carros, artistas, protestos, varia- ainda parece prevalecer uma mistura nesses acentos, o que infantil: Zoo (2005), Zoo zureta nuvens correm por trilhos transparentes
ções da mesma língua, sinos e deporia a favor da tensão criada no livro, variação entre o (2010), Zoo zoado (2014) e Poemas existe um imã entre mim e elas
gritos de gol. Até mesmo o cemi- cerimonioso e a visceralidade urbana portenha. com macarrão (2018). Uma antologia sento no parapeito da janela
tério mistura o tempo silencioso Na mesma esteira de coisa menos óbvia, o que se bilíngue de seus poemas, com tradução e deslizamos juntos, sempre em frente
das esculturas com o entusiasmo impõe de prosaico não é, por sua vez, um chamado à lei- para o espanhol de Mário Cámara e
barulhento do turista. Tem cerve- tura sintática, mas sim uma estratégia de estruturação Paloma Vidal, saiu na Argentina sob rótulos podem te deixar doente
ja, vinho e muita carne. Humana. narrativa que não depende apenas dos enjambements, e o título Feliz con mis orejas (2016). o silêncio da aranha é parte dela
Tensão entre o moderno sim se desenvolve pela composição de diálogos: trabalhei cinco meses numa tela
desmemoriado, mania de euro- não falei com amigos nem parentes
peu, e o ameríndio que vende [...]
símbolos dos Andes, se não na “você precisa ouvir Cesária Évora” minha vizinha conversa com plantas
calçada, na face. Até mesmo de meu barbeiro só diz o preço e a hora
deus, Maradona. Tem o lixo acu- ela me diz, vendo que estou nervoso Hermes levava os mortos para o Hades
mulado nas calçadas do centro, onde enfie minha capa de chuva?
onde pingos de ares-condiciona- [...] eu pego a frigideira e faço a janta
dos nos sacaneiam e tem a média de sobremesa chupo umas amoras
alta da sociedade cool de Palermo. Cinema a chuva cai de pé feito uma grade
Enfim, essa cidade entre o som e A sequência nesses versos não é induzida pelas ora-
o silêncio, entre a plástica e a mú- ções, mas sim pelo processo de edição mais semelhante Grandes dramas
sica, talvez caiba bem em um so- ao cinema, arte da imagem em movimento. Esse tom es- Aqui, o contraste não remete a cenas ex-
neto, ou em 56. tá muito presente no Engenheiro como um todo (e aí ternas da cidade. Ele se dá no recolhimento do
Assim nos entregou Fabrí- já estaríamos falando de uma quarta arte num mesmo artista em estado melancólico, deprimido (suici-
cio Corsaletti seu Engenheiro objeto; fenômeno do qual a poesia contemporânea nem da?) e manifesta o monumental na imagem das
fantasma, que acaba de ganhar o tem mais como escapar). nuvens e dos grandes dramas. Evoca a mitologia
Jabuti nas categorias poesia e livro O sujeito que não apenas percebe a cidade em vol- grega por meio do personagem da morte. Já o or-
do ano. Os contrastes catalisados ta, mas que também a vai pintando com cores e vozes dinário aparece no jantar feito em frigideira, bem
num sujeito lírico inusitado, Bob sujas, caminha como quem veste um sobretudo monó- como em amoras de sobremesa. Sem chave-de-
Dylan, que nasce onírico, mas de- tono e calça um par de all star surrado. Come medialuna -ouro, o poema se encerra em si mesmo, na dor
pois vai pintando e cantando uma e exala álcool. Lê jornal pensando em poesia. Cata pala- do sujeito. Em meio à crise se manifesta também
paisagem bastante concreta, apa- vras em praça alheia para juntá-las num bar. Pensa uma a tentativa de fazer uma obra de arte e de frontei-
recem formalmente trabalhados canção... para tinta óleo. ra, entre a tela e a teia (texto), sempre em silêncio.
por Corsaletti na tradicional for- Também tem política, sem militância. Se os moder- No entanto, vêm da solução formal das es-
ma cerimoniosa do soneto. Porém nismos e a modernização argentina passaram ao longe da trofes índices sutis de hesitações que vão se reali-
este, como já é praxe na contem- exaltação andina, de seu passado ameríndio, isso não pas- zando na plasticidade do soneto — que, como já
poraneidade, não obedece ao es- sa despercebido aos olhos do poeta/cantor/pintor exilado. disse, não é apenas visual, mas também sonora.
quema rítmico estrófico que nos Qual seja, quase todas as rimas não combinam
levaria direto à tradição. Tam- [...] em número, vacilam entre o singular e o plural
bém não é o caso de vermos os subo num ônibus sentido cais mostrando que há um descompasso interno no
versos correrem prosaicos, sintá- vejo as luzes da noite na janela sujeito que, enquanto trabalha sua obra, pen-
ticos. Tem algo nos sonetos desse ao meu lado uma índia dorme e fala sa em se matar.
livro que mistura a continuidade Mas nos enganamos se pensarmos que o
da música com a visualidade mais saudade dos meus filhos, dos meus pais tom melancólico do poema está confinado no du-
comum às artes plásticas. eu deveria acender uma vela plo exílio do artista (exilado na cidade e, dentro
O Dylan de Engenheiro queimar meu passaporte e minha mala desta, no ateliê), pois a vizinha e o barbeiro tam-
fantasma não é apenas o músico, bém compõem seus silêncios. De barulho aqui, só
ou o vencedor do Nobel, é tam- À semelhança do que ocorre no Brasil, onde se faz o que vai dentro, solidão, dor, isolamento.
bém e, com muita força, aque- de conta que indígenas integram apenas a história e as Este é o penúltimo soneto do livro. Ele
le que pinta quadros, “era preta a florestas, e não o presente da paisagem urbana, o poeta alerta para o fim do exílio. No derradeiro poema,
cerveja, verde a grama/ meus olhos vê na indígena da cena um pouco do outro exílio, aque- vemos a partida de Buenos Aires. Como Rim-
de pintor são sempre orgânicos”. le mais semelhante ao refúgio proveniente de genocídios. baud, poeta talvez mais moderno que os mo-
Então notamos no livro um ritmo Ou seja, um exílio bem menos blasé do que seu típico dernos, o artista sai da paisagem deixando o olho
particular, entre o estrófico (con- recolhimento de ídolo norte-americano na América do do leitor empedrado num passado monumental.
templativo) e o narrativo (da músi- Sul. Pois o exílio dela revela a perda do passado e do fu- Quando sai de cena, do quadro, da canção
ca canção). E tudo isso trabalhado turo, “saudade dos meus filhos, dos meus pais”, bem co- e do poema, o sujeito lírico, catalisador das im-
em bem pensada poesia, terceira mo uma vela que não simboliza fé alguma, antes, desejo purezas e dos contrastes da cidade em pulso, dei-
das artes articuladas pelo icônico de destruição da própria história. Puxemos também pe- Engenheiro xa o leitor desamparado diante apenas do “peso
sujeito lírico norte-americano in- la sonoridade da rima, “janela” com “vela”, para vermos fantasma de granito”, ou seja, nem mais o sangue corren-
ventado por Corsaletti. que se o poeta em seu exílio ainda vive uma possibilidade FABRÍCIO CORSALETTI do quente nas veias, nem mais o que preenche
A regularidade das rimas contemplativa dentro do ônibus, para a “índia” o sonho é Companhia das Letras subjetivamente um monumento. Só a pedra sem
(mais para toantes) poderia depor apagamento, incêndio na história. Um terceto fortíssimo! 123 págs. um poeta. O que, sabemos, é o fim.
12 | JANEIRO DE 2024

olyveira daemon
SIMETRIAS DISSONANTES

{ADORÁVEIS
>o famoso romance Pacien- cabo. o mais chocante é consta- Jones; Não me abandone jamais,
te 67, de Dennis Lehane, lançado tar que todas as pessoas ao seu re- 2010, de Mark Romanek; Obli-
em 2003, apresenta a mesma es- dor, incluindo sua mulher, estão vion, 2013, de Joseph Kosinski; e

IMPOSTORES,
tratégia o caçador é a própria ca- simplesmente atuando. {Calma, The reconstruction of William Zero,
ça. esse romance foi adaptado para pessoal, ainda não é O show de 2015, de Dan Bush.
as telas por Martin Scorsese, em Truman.} sem que soubesse, sua

ADMIRÁVEIS
2010, com o título de Ilha do me- rotina era transmitida vinte e qua- >mais uma troca
do. {outros filmes de sucesso em tro horas por dia, sete dias por se- de identidade
que, nos minutos finais, o prota- mana, e assistida por milhões de >no romance satírico Sub-

IMPOSTURAS} (2)
gonista leva um soco na cara, des- telespectadores pagantes. {Serviço solo infinito, de 2000, Olyvei-
ferido pela realidade sacana: O especial foi ao ar em 1989.} ra Daemon parodiou e inverteu
sexto sentido, 1999, de M. Night a história de William Hjortsberg
Shyamalan, Os outros, 2001, de >mais uma armação (Coração satânico). agora é o pro-
Alejandro Amenábar, A chave mes- da família e tagonista furioso que vai ao infer-
tra, 2005, de Iain Softley…} da comunidade no (A divina comédia e Viagem
>agora sim: no filme O ao centro da Terra) em busca do
Nada é mais real que nada. >uma armação show de Truman, dirigido por Pe- diabo, para descobrir, no final, que
Malone morre da família ter Weir, com roteiro de Andrew ele mesmo, protagonista-caçador, é
Laerte Coutinho é autora Niccol, o protagonista vive nu- o próprio diabo-caça. tadam! um
>uma armação dos sentidos de uma das narrativas mais fas- ma cidade cenográfica, cercado impostor involuntário, sofrendo de
>na primeira parte do romance A lua vem da cinantes no campo da autocons- de atores, câmeras e microfones amnésia. um diabo meio bobalhão
Ásia, de Campos de Carvalho, lançado em 1956, ciência radical. sua história em ocultos, mas somente ele não sa- e incompetente, que foi enganado
o protagonista pensa estar hospedado num hotel quadrinhos A insustentável leveza be que o artificial é artificial. que logo após ter firmado um pacto de-
internacional, mas depois acredita ser prisioneiro do ser, publicada em 1987 na re- a simulação é uma simulação. que moníaco (Fausto e Grande sertão:
num campo de concentração, até ser atravessado vista Circo, é simplesmente genial. a impostura é uma impostura. ele veredas). ¡¿Hollywood ainda não
pela suspeita de que talvez esteja internado num em poucas páginas — apenas seis realmente acredita que sua famí- adaptou esse livro para as telonas?!
hospital de alienados. {impostores & imposturas — temos um jovem protagonista lia, seu casamento, sua comuni- alô, David Cronenberg!
não são o assunto principal desse romance, mas eu atingido com violência pela verda- dade, é tudo real. toda a sua vida
o menciono porque, afinal, um romance de Cam- de da vida: seu pai não é seu pai, nesse imenso estúdio de televisão >no conto Duzentas mil ho-
pos de Carvalho é sempre uma narrativa sobre as é uma mulher disfarçada de ho- — vida real para ele, mas secreta- ras, de Olyveira Daemon {adoro
armações dos sentidos em conluio com a lógica mem; sua mãe não é sua mãe, é mente roteirizada, com intervalos falar de mim na terceira pessoa},
mais absurda. e porque nas páginas de A lua vem um homem disfarçado de mulher; comerciais — vem sendo monito- seis personagens — marido, mu-
da Ásia já temos a premissa delirante, por exem- sua irmã atual é uma de muitas rada e transmitida em rede nacio- lher, filha, filho, namorada do
plo, do romance Paciente 67, de Dennis Lehane.} atrizes contratadas pra interpretar nal há três décadas. o programa O filho e amiga da família — desco-
o papel de irmã… e no final, após show de Truman é um sucesso es- brem, estarrecidos, que todos os
>uma armação de si mesmo nosso herói descobrir que não é trondoso. {o longa-metragem foi seis são impostores. não se trata
>no conto de Robert A. Heinlein intitula- um jovem branco, mas um jovem lançado em 1998.} agora de uma conspiração do des-
do All you zombies, de 1959, um homem é filho preto retinto, a grande revelação: tino, da família ou da comunida-
de si mesmo. exatamente: ele é seu pai e sua mãe, e a cidade é uma pintura na parede. >uma armação corporativa de, mas de uma tendência natural
também outros personagens da narrativa, dos dois “o mundo é falso.” >exatamente. não podemos dos indivíduos — na verdade, es-
sexos, em diferentes momentos de sua vida, mas esquecer da engenhosa clonagem- tátuas de cera ambulantes — de
apenas sua versão masculina mais velha sabe dis- >uma armação da família -sapiens… quando a fabricação de trocar a antiga vida por uma no-
so. as outras versões não suspeitam de nada. de que e da comunidade seres humanos se torna uma ati- va, fingindo ser outra pessoa, em
maneira essa excentricidade aconteceu? o homem é >na série de televisão The vidade institucional deveras lu- outro lugar, em outra família.
um viajante no tempo, é claro. {esse conto foi leva- twilight zone, o episódio escri- crativa, sempre há o risco de você pensando bem, no total são do-
do às telas com o título O predestinado, em 2014, to por Joseph Straczynski, inti- ser você e também uma cópia de ze impostores, certo? seis presentes
pelos irmãos Spierig.} tulado Serviço especial, oferece outra pessoa. Exemplos que mais no palco narrativo e seis ausentes.
uma premissa semelhante. Nes- me agradaram: o romance Não {a sogra também é um impostora,
>outra armação dos sentidos se episódio bem-humorado, o me abandone jamais, 2005, de mas ninguém sabe disso.} Netflix
>impossível não indicar com muita ênfase o protagonista descobre que nos Kazuo Ishiguro, e os longas-me- ainda não adaptou para as telinhas
sensacional romance satírico de Stanislaw Lem, O últimos cinco anos fez parte de tragens A ilha, 2005, de Michael esse delicioso conto publicado em
congresso de futurologia, lançado em 1971. si- um programa ao vivo de tevê a Bay; Lunar, 2009, de Duncan 2000. estão atrasados.
nopse: num futuro distópico, um coquetel de po-
derosas drogas psicotrópicas é usado pra falsificar
radicalmente a percepção das pessoas, disfarçando Ilustração: Eduardo Mussi
a realidade miserável em que vivem. a nova ordem
mundial é uma quimiocracia de vinte bilhões de
seres humanos. enganados pelos sentidos quimi-
camente alterados, todos acreditam viver numa so-
ciedade suntuosa, sem escassez alguma, enquanto o
mundo real segue em franca degradação. {na verda-
de, são sessenta e nove bilhões de habitantes regis-
trados legalmente e aproximadamente vinte e seis
bilhões de clandestinos, mas a superdroga mascon
também mascara essa hiperpopulação.}

>uma armação dos amigos


>no romance Coração satânico, de William
Hjortsberg, o protagonista, Harry Angel, é um de-
tetive particular contratado para encontrar Johnny
Favorite, um famoso músico que desapareceu após
a segunda guerra mundial. é uma história circular,
em que a cobra morde a própria cauda. no final
desse romance lançado em 1978, o protagonista e
os leitores descobrem, estupefatos, que Harry An-
gel é o amaldiçoado Johnny Favorite. {Alan Parker
dirigiu a versão para o cinema, lançada em 1987}
¿se até então Harry Angel não sabia que ele mesmo
era o famigerado Johnny Favorite, quem me garan-
te que eu sou eu? ¿quem te garante que você é você?
ultimamente tenho pensado muito nisso. ¿quem te
garante que você não é outra pessoa? ¿alguém que
ainda não sabe que é você?
JANEIRO DE 2024 | 13

Selva devoradora
Entre as influências literárias citadas, direta ou indi-
retamente, estão Carlos Drummond de Andrade, Murilo
Rubião e Clarice Lispector; Kafka, Hemingway e Borges.
Intuímos ou pressentimos aqui um caso particu-
lar de realismo mágico ou maravilhoso — classificação
inesperada, arriscada e instigante (“Não sei se me filio
Em Pistas falsas, de José Eduardo Gonçalves, muita a alguma tradição”, declarou José Eduardo em entrevis-
gente desaparece ou se perde de vista em contos ta ao jornal Estado de Minas, em junho de 2023. “Mas
eu não seria nada sem Cortázar e Kafka, autores da mi-
em franco diálogo com o realismo mágico nha vida inteira.”)

O tigre e outros bichos


ADRIANO CIRINO | BELO HORIZONTE – MG O tigre é uma releitura do conto O búfalo, de Cla-
rice Lispector (Laços de família). Estes animais selva-
gens, quando enjaulados no zoológico ou “solto[s] [...]
em meio à folhagem densa de uma mata qualquer”, são

N
como um espelho e uma esfinge para quem os contem-
a trilha do ensaio Si- oposto), é um exercício de autoa- pla, ainda quando no sonho das feras: “Uma folha se me-
nais: raízes de um pa- nálise ou escrita terapêutica. Trata xe, percebo que já não o vejo mais. Então, ele me devora”.
radigma indiciário do fim do amor e do luto através
(1979), no qual Car- de um ritual simbólico. “Corto os Espantos
lo Ginzburg compara o historia- meus cabelos porque talvez assim Drones é ambíguo. IA, sim, mas qual: invasão alie-
dor de arte Giovanni Morelli e o eu consiga dizer a ele que não o nígena ou inteligência artificial?
psicanalista Sigmund Freud ao amo mais”, diz ela. O tema do “duplo” faz-se presente em A festa, con-
detetive Sherlock Holmes, o títu- Hora que oculta e revela, to ferino, hilariante, intrigante. “Sou conhecido por mi-
lo Pistas falsas, do mineiro José “entre a dormência e a lucidez”, nhas opiniões francas, incisivas, mas nunca enquanto
Eduardo Gonçalves, convida-nos o Crepúsculo é um símbolo do desfruto da hospitalidade alheia”, diz o narrador. “Minha
O AUTOR
a ocupar o lugar de leitores-dete- erótico e do transcendente (“os acidez está reservada para as notas que destilo em mi-
tives, porém fadados ao fracasso: buracos negros que sugam todos JOSÉ EDUARDO GONÇALVES nha coluna.” A tese implícita é de que o escritor é aque-
nossas análises e interpretações os desejos”). le que se divide em dois: um que experimenta, vivencia;
Nascido em 1957, em São João del-Rei
— conto a conto, peça por peça Encerrando a seção, A carta outro que escuta, observa e toma nota. “Quem poderá,
(MG), o jornalista, escritor e editor José
— não resolvem seu suposto que- não é exatamente “de amor”; além Eduardo Gonçalves é autor do livro
de fato e ao final, narrar o que se passou?”, questiona-se
bra-cabeça, que nos devora feito disso, inverte o chavão: “E quan- de contos Cartas do Paraíso (Mazza,
ele, retoricamente.
uma esfinge. Na página final do do ela chegar em suas mãos, acre- 1998) e do romance Vertigem (Record, Discurso de um morto (como Memórias póstu-
livro — fonte branca sobre fundo dite, eu estarei vivo”. 2003), além de organizador do volume mas de Brás Cubas, por exemplo), O condenado também
negro, a sugerir mistério ou segre- Ofício da palavra (Autêntica, 2014), lembra O processo e O estrangeiro, de Kafka e Camus,
do e a demarcar a voz do próprio Só garotos premiado na categoria Melhor Livro respectivamente, na medida em que trata de um conde-
autor —, ele afirma que “estamos No conto O pai, o filho, os Teórico pela Fundação Nacional do nado à morte — a pena inexiste no Brasil — por uma
perdidos. Não há pistas confiáveis, sapatos do primeiro adquirem va- Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) em 2015. sentença injusta, absurda mesmo: o réu diz que roubou
sinais por onde ir sem se machu- lor de herança afetivo para o se- para comer e dar de comer à família faminta (não vamos
car, alertas de precipícios ou de gundo (“o legado das ninharias”). nos esquecer ainda de Um artista da fome). A descrição de
inimigos inesperados”. Na Praia, outro pai, entretido com seu caminho rumo à execução é dilacerante: “Dei a todos
Deduz-se da declaração um “livro ruim”, no instante em um dia de festa e júbilo”, ele comenta, com mordacidade.
— misto de confissão e visão de que perde de vista seu menino, es-
mundo — de José Eduardo que te quase se afoga no mar. Por fim, Nocautes
as “pistas falsas” são “os jogos de quando o garoto Davi desapare- Seção reservada a cinco microcontos que, apesar
engano, as ofertas falsas de brilho” ce em um shopping (com três ca- do nome, não dão “nocautes”; na melhor das hipóteses,
(inclusive as oriundas dos “habi- pítulos e dois pontos de vista, este fazem cosquinhas ou deixam uma pulga atrás da orelha.
tantes de um inferno particular”), conto de seis páginas mais parece
as quais nos conduzem aonde me- um esboço de novela), são poli- Pistas falsas
nos esperamos, de onde às vezes ciais que encontram “algumas pis- A última seção dá título ao livro e contém
não saímos ilesos. “Tudo é e não tas. Até então, todas falsas”. A selva, conto que inspirou a ilustração da capa: um re-
é assim!”, anuncia uma das epí- lato de viagem — memória e testemunho — de um
grafes, extraída de novela russa Estética e projeto repórter, enviado especial a África, “lugar inóspito e in-
O processo do tenente Ieláguin, A própria prosa de José compreensível, ardilosamente silencioso, habitado por
de Ivan Búnin. Eduardo oferece pistas sobre sua predadores famintos”. Os pigmeus brincam com ele em
Pistas falsas (título colhido estética e seu projeto literário em um balanço, tomam-lhe o relógio “que brilhava esquisi-
de um verso da canção Luz e misté- Pistas falsas. Desde já vamos ana- to” e não sorriem para as fotos.
rio, de Beto Guedes e Caetano Ve- lisá-las, a fim de ensaiarmos uma A África surge como um símbolo de selva, do sel-
loso) possui 53 contos e divide-se classificação ou filiação do autor, vagem — uma alegoria para o instinto, a pulsão e o in-
nas seis seções que se seguem co- antes de prosseguirmos com os co- consciente. Diz o homem, no conto:
mentadas (antes de devorar o ins- mentários, de modo mais claro e
tigante livro, o miolo do exemplar enfocado — ao modo de um ex- Por essa razão, tenho visitado a África com frequên-
deste crítico descolou). Maria Es- plorador que encontra, a meio ca- cia. Não aquela, a da mata espessa e de gente miúda que
ther Maciel assina o texto da ore- minho, uma lanterna no fundo de abria o caminho a machadadas, mas esta que ainda resis-
lha; Milton Hatoum, o da quarta uma caverna ou selva escura, que te em mim, na qual me sinto balançar de um lado a ou-
capa — dois indícios favoráveis. lhe revela sinais até então invisí- tro em uma certa tarde cinzenta, a selva que se adensa em
veis, ilumina seus passos cegos e o mim, que não deixa entrever e nem nunca se revela, esta
Vidas em desalinho guia até seu destino final. sim, incompreensível.
Já no primeiro conto do li- Em Pistas falsas, os contos
vro, A casa, temos um prodígio. Se- são breves (três páginas, em mé- Tomando de empréstimo as palavras do crítico
rá que Luísa, a mãe desaparecida dia); os parágrafos, longos (efeito Luis Leal (El realismo mágico en la literatura hispanoame-
“sem explicação — nenhum reca- de fluxo da consciência). O estilo ricana), esse narrador-testemunha “enfrenta a realidade e
do, nenhuma pista, nenhum con- é culto, médio; o foco ou ponto nela trata de desentranhar, de descobrir o que há de mis-
tato posterior —”, sequestrou os de vista, a primeira pessoa; o tom, terioso nas coisas, na vida, nas ações humanas”. [Tradu-
próprios filhos da casa do pai? Não. confessional ou memorialístico; a ção livre] Nesse sentido, “o realismo mágico é, antes de
Eles sumiram num passe de mágica voz, às vezes, feminina; os desfe- mais nada, uma atitude ante a realidade. [...] o principal
ocultista infantil. Nas entrelinhas, chos, desconcertantes, marcados não é a criação de seres ou mundos imaginados, mas sim
está o tema do abandono, da se- por reviravoltas. o descobrimento da misteriosa relação que existe entre o
paração, da solidão e da chamada Os temas são o cotidiano (“os homem e sua circunstância”.
“síndrome do ninho vazio”. textos podem ser lidos como contos Na última página de Pistas falsas — aquela de
Mentiras, confissão de uma ou crônicas”, segundo Hatoum); fonte branca sobre fundo negro —, José Eduardo dá
voz feminina (aqui e em outros as relações familiares ou relacio- sua definição para a vida e a escrita, e aproxima am-
contos, o autor assemelha-se a namentos amorosos; os sumiços e Pistas falsas bas. “Escrever é um ato selvagem, radical”, defende ele
Chico Buarque em Folhetim desaparecimentos misteriosos (“si- JOSÉ EDUARDO GONÇALVES (como Marguerite Duras ou Clarice Lispector, por si-
e tantas outras canções, tama- tuações inesperadas e imprevistas”, Patuá nal). “A vida insana, é o que se escreve quando se en-
nha sua sensibilidade para o sexo de acordo com Maciel). 172 págs. frenta a selva.”
14 | JANEIRO DE 2024

J
á se repetiu à exaustão que os poe-
tas são antenas. No entanto, mais
do que simplesmente retransmitir
os valores de uma época, os gran-
Donizete Galvão por
des poetas são capazes de captar ondas
Ramon Muniz
muito sutis, cujos mínimos sinais revelam
uma nova figuração das coisas cotidianas,
projetando-as num horizonte ainda pou-
co vislumbrado. A aguardada reunião da
poesia de Donizete Galvão confirma essa
capacidade do autor de formular profun-
damente o mundo, plasmando uma decan-
tada atenção ao aparentemente banal com
uma consciência desencantada diante da
vida social em latente colapso.
Organizado por Paulo Ferraz e Tarso
de Melo, o volume Poesia reunida traz em
ordem cronológica a produção de Donize-
te Galvão, desde sua estreia em Azul nava-
lha (1988) até o derradeiro O antipássaro
(2018). Desse modo, a publicação apresen-
ta o poeta a uma nova geração de leitoras e
leitores, além de permitir uma revisão coe-
rente da obra, apreendida agora em sua to-
talidade. Nesse sentido, é possível perceber
melhor como alguns motivos atravessam os
livros, engendrando modulações que dina-
mizam a escrita do poeta, a começar por
seu constante diálogo com as artes visuais.
As “certas sedes de azul”, anuncia-
das no poema De fora, de Azul navalha,
desdobram-se em As faces do rio (1991),
em poemas como International Klein Blue
— “Azul borracha./ Anula as outras cores
e inaugura o reino do um” —, ganhando
ainda mais força na imagem da “pedra de
anil”, de Pontos de luz:

A pedra de anil
atirada na água
cria fiapos de cor
até que ondas de azul
tinjam toda a vasilha.

A beleza epifânica das “ondas de


azul”, construída lentamente por “fia-
pos de cor”, é indissociável da diluição
da pedra de anil para a lavagem de rou-
pas. Por sua vez, essa ação doméstica é re-
plicada nos gestos de artistas plásticos em
poemas como Anil, de Do silêncio da
pedra (1996) — “Pedra tocada por Yves
Klein,/ em que borda do poço/ se per-
deu?” — ou o incrível Blues para Niura, de
O homem inacabado (2011):
1
na geométrica
pedra de anil
— objeto virtuoso —
o menino descobre
o que não havia:
o azul absoluto
sua cosmogonia

Entre o azul
2
mergulhe as pastilhas
azuis na água da bacia
inaugura-se um mar

absoluto e os
miudinho
(antecipação dele)
em meio à serrania

[...]

seres rejeitados 5
a caneta bic azul explode no bolso
da camisa branca de uniforme
o corpo fica poroso ao azul
bebe dessas efêmeras alquimias
Poesia reunida confirma a capacidade de Donizete 6
Galvão de formular profundamente o mundo curar as feridas
da boca
com azul de metileno
RENAN NUERNBERGER | SÃO PAULO – SP a cor que persiste na língua
vem de um tempo sem memória
antes da primeira palavra
JANEIRO DE 2024 | 15

A lembrança do menino descobrindo Nesse espaço de desagrega- nunca perdeu, de todo, o empe-
o “azul absoluto” é reconstituída pela refle- ção, o sujeito alijado não encon- nho de captar alguma beleza nas
xão do homem cultivado, fazendo uma sínte- tra nenhum refúgio, tecendo, por diminutas frestas do cotidiano
se entre o conhecimento prático do trabalho vezes, uma frágil identificação opressor. Afinal, como nos en-
manual e a linguagem especulativa da medi- com outros seres rejeitados, co- sina o poema Entre noites, entre
tação poética. Mais que isso, a materialidade mo a “pomba lerda”, de Deforma- uma e outra escuridão, há sem-
do azul atravessa o corpo do sujeito, entra- ção (“eh pomba lerda/ viu o que pre o “voo/ breve/ sob/ o sol”.
nhando a experiência sensorial na ambígua a cidade lhe fez?/ Bem feito pa- Há, obviamente, muitos ou-
“língua”, a qual cristaliza concretamente o ra você./ Viu o que a cidade nos tros percursos em Poesia reunida,
Poesia reunida acontecimento enquanto poema e, ao mesmo fez?”), de Mundo mudo (2003). que as leitoras e os leitores pode-
DONIZETE GALVÃO
tempo, aponta para um “tempo sem memó- Tal violência do espaço urbano, rão explorar. Um último comentá-
Círculo de Poemas ria”. Sem o corpo, portanto, o poema jamais implacável com os desajustados, rio, porém, me parece pertinente.
526 págs. teria sua centelha de descoberta — mas é so- será radicalizada no último livro, Olhando em retrospectiva, a traje-
mente por meio do poema que essa centelha O antipássaro, a partir de uma re- tória poética de Donizete Galvão
se ilumina novamente, sendo agora partilha- visitação dos motivos da própria coincide com o arco da chamada
da com todas e todos que o leem. obra, com a qual Donizete Galvão Nova República, entre a promul-
Essa valorização do corpo a corpo com coloca em questão aquele esforço gação da Constituição de 1988 e o
o mundo, marcada pelo trabalho físico, como de construção de beleza presente golpe institucional de 2016. Trata-
lição material de poética é recorrente em to- nos primeiros livros. -se de um raro momento de esta-
da a obra de Donizete Galvão, como aparece Isso fica evidente em Flora bilidade democrática no país, cuja
em Jardinagem, de A carne e o tempo (1997): urbana (que, aliás, entre parênte- história é marcada por uma série de
ses, pode ser comparado a alguns intervenções autoritárias. No cená-
Cuide do esterco, sem asco. poemas de Caçambas, de Ruy rio poético, grosso modo, esta esta-
Carregue o estrume de vaca Proença, dando a ver as afinida- bilidade comparece na diversidade
e vá fazendo um monturo. des entre os dois poetas), no qual das propostas estéticas, fomentada
Deixe que a mistura arda, o conhecimento prático sobre bo- de maneira consciente pelas mais
que o cheiro acre entre nas narinas. tânica, parodiado em dicção en- importantes revistas literárias da vi-
Depois, revolva tudo com as mãos ciclopédica, nutre a imaginação rada entre anos 1990 e 2000.
mesmo que o esterco penetre nas unhas. poética na descrição das máqui- Sem participar diretamente
Fira a terra com a enxada, nas e dos objetos: de nenhuma destas revistas, a poe-
espalhe o esterco pelos canteiros. As caçambas vivem nas sia de Donizete Galvão fez parte
Deixe que seus cabelos se enrosquem ruas, principalmente em casas que desse ambiente pluralizado, mas
na testa e na nuca suadas. passam por reformas. Devoram sempre manteve também, por sua
A roseira lhe trará azulejos, tijolos, pisos quebrados, própria condição interna de desa-
rosas mais perfumadas. a memória da família que habitou juste, certo grau de afastamento
aquela casa. Todas trazem em suas dos valores em voga nos princi-
Palavras simples pétalas números de telefones gra- pais círculos literários do período,
Nesse processo de exaustiva construção vados. Esporádicas, não têm data ocupando, assim, um espaço sin-
da beleza, Galvão reabilita as palavras mais certa para florir. São um monu- gular dentro do panorama poéti-
simples e, muitas vezes, consegue suspender, mento ao provisório. São flores co contemporâneo. Tentar sondar,
ainda que momentaneamente, a cisão entre eu pesadas, difíceis de serem remo- nessa tensão entre o azul absoluto
e mundo — como nos versos finais de O poço: vidas ou roubadas. e os seres rejeitados, uma imagem
“Enquanto se engole a água, as costelas roçam Todavia, apesar da melan- consistente da vida social brasilei-
o chão./ Não se sabe se o pulsar é dela, terra, colia dos últimos livros, é pre- ra nas últimas décadas pode ser al-
ou dele, coração”. Isso não significa, por ou- ciso dizer que Donizete Galvão go revelador.
tro lado, que essa seja uma poética de absoluta
integração com o que chamamos de natureza.
Ao contrário, na maioria dos poemas, a rela-
ção do eu com o mundo é marcada por vio-
lentas reações externas contra o homem, como
em Oceano cinza, no qual o olhar do outro é,
em si mesmo, um ataque (“Mil olhos nos fi-
tam./ Mil olhos nos furam”), que culmina nos
“Olhos de gaivota/ que rejeitam o peixe/ e mi-
ram o fígado/ do homem na areia”.
Que o título do poema remeta a Ocean Nina Simone Escoiceados
Greyness, quadro de Jackson Pollock, sendo, Voz de taturana Meu pai e eu
portanto, um sugestivo exercício de écfrase, que deixa um rastro de fogo nunca subimos
não relativiza a tensão corporal entre sujeito por onde passa. num alazão
e objeto. Mediada pela referência artística, Voz de soda cáustica que galopasse
esta tensão se intensifica na medida mesmo roendo a carne ao vento.
em que inverte os polos da relação, uma vez até cavar um fosso. Tínhamos
que aqui é somente o quadro que nos olha. Voz púrpura um burro
Assim, o poema aproxima a reflexão sobre a das cinco chagas cinza malhado:
imagem não-figurativa do artista norte-ame- da paixão. o Ligeiro.
ricano ao delírio de uma cena na praia na Voz de aço Foi apanhado
qual todos os entes (sal, chuva, limão, gaivo- temperado com bourbon. de um conhecido
ta, oceano) voltam-se contra o homem inde- Voz de avatar, por ninharia.
feso, cuja imagem, por sua vez, torna-se uma de deus Vishnu, Chegou com fama
versão reduzida, e sem nenhum heroísmo, do de San Juan de la Cruz de sistemático,
mito de Prometeu. cantando blues. cheio de refugos.
No entanto, são os embates da vida na Voz de negra veia, De trote tão curto
metrópole que produzem os poemas mais an- voz de lobisomem que dava dor
O AUTOR gustiantes, relevando o desterro do mineiro de uivando para a lua cheia. nas costelas.
DONIZETE GALVÃO Borda da Mata na cidade de São Paulo. Se é De certa vez,
verdade que, em muitos momentos, Galvão caímos do burro.
Nasceu em Borda da Mata (MG), em demonstra um desajuste de origem, como Meu pai e eu.
1955. Mudou-se para São Paulo (SP), no poema-título de Ruminações (1999) — Eu e meu pai.
em 1979, onde trabalhou como “Nunca saí dessa roceira Minas/ que nos dá Embolados.
jornalista e publicitário. Recebeu
aflição e dor como herança./ [...]/ Vidas aca- Joelhos esfolados
o prêmio APCA de autor revelação
nhadas atrás de janelas/ na cidade que não de- no pedregulho.
por Azul navalha (1988). Publicou
nove livros de poemas, agora
finha nem prospera” —, não se pode negar que Levamos
coligidos em Poesia reunida. o espaço urbano mostra-se ainda mais doloro- bons coices.
É autor dos infantis O sapo so, uma vez que atravanca a própria experiên- Meu pai e eu.
apaixonado (2007), Mania de cia sensorial, como em A cidade no corpo, de Os dois
bicho (2010) e Escoiceados Pelo corpo (2002): “Esta cidade: minha ce- nunca subimos
(2014). Faleceu em 2014. la./ Habita em mim/ sem que eu habite nela”. na vida.
16 | JANEIRO DE 2024

josé castilho miraculosamente, novos leitores?


Ou inovar seria introduzir em es-
LEITURAS COMPARTILHADAS cala nacional a leitura reflexiva, a
leitura literária no coletivo desde os

QUAL NOVO EM 2024?


primeiros anos da criança na famí-
lia e na escola e sem outro objeti-
vo a não ser ler e desfrutar? Inovar
não seria também aumentarmos
cada vez mais as experiências li-
terárias dos slams, dos saraus, dos

E
Ilustração: Miguel Rodrigues
encontros presenciais nas livrarias
ste 1º de janeiro tem um e bibliotecas e animá-los com con-
novo número: 2024. vívio musical, gastronômico, afeti-
Impositivo, regulará vo, participativo da vida das mais
nossas vidas nos próxi- diversas comunidades? Inovar não
mos 366 dias. Em outros calen- seria ampliarmos o que está dan-
dários, diferentes do gregoriano, do certo na formação de leitores e
estaremos ou à frente, como o is- leitoras com cidadania, empatia,
lâmico que marca o ano de 1445- compromisso coletivo, coisa que
1446 no mesmo período, ou atrás, já acontece aos milhares no Bra-
como no chinês, que apontará o sil em muitas comunidades, em
ano de 4721 a partir do nosso 10 bibliotecas de acesso público, em
de fevereiro. Lembro que estamos escolas que não se corromperam
no mesmo planeta e os números para o produtivismo, entre tantos
em litígio nos contam histórias e outros espaços?
civilizações milenares que foram Talvez essas incômodas refle-
se construindo e produzindo sim- xões não sejam a melhor sobreme-
bologias, cenários e futuros dese- sa para o almoço do primeiro dia
nhados pelo que acumularam. do novo ano, mas ao nos aproxi-
Esses acúmulos, e a história marmos do final da primeira qua-
pesquisada pelas diversas discipli- dra deste século 21, que deveria ser
nas das humanidades, das ciências do conhecimento e da informação,
físicas, biológicas e exatas, nos per- temos que ter a responsabilidade de
mitem dizer: feliz ano novo para defender e procurar construir uma
todos e todas cada vez que um des- sociedade que se distancie cada vez
ses calendários iniciarem um novo mais dos representantes populistas
ciclo de contagem dos nossos dias. e fascistas que insistem em ser he-
O aparente conflito dos números, gemônicos em nosso país e em
na verdade, demonstra uma tra- muitos outros pontos do globo. E
jetória do ser humano no tempo não faremos isso se não enfrentar-
contabilizado por suas culturas em mos o que os impulsiona: a manu-
suas diversidades históricas, antro- tenção das desigualdades. Ou, para
pológicas, filosóficas, geográficas, não perder o mote desta coluna, o
entre tantas outras possibilidades medo do verdadeiro novo, daque-
objetivas e subjetivas. le que pode transformar.
Parece um final feliz termos Não sou um otimista, sou
a possibilidade lógica de dizer Fe- mais adepto do esperançar freiria-
liz ano novo! no, da ação ativa que pode pro-
O que me pergunto é de vocar mudanças substantivas.
qual novo estamos tratando quan- Em outros períodos afirmei que
do nos cumprimentamos: o que passávamos por tempos de opor-
diz respeito a algo que acabou de do novo que nos falta sempre que Começaremos o novo ano de 2024 modifican- tunidades, kayrós. Naquele perío-
surgir no tempo, como um objeto nos cumprimentamos com olhos do nossos sistemas de produção de riquezas e bens? do construímos o PNLL (Plano
adquirido recém-saído da fábrica, de esperança. Teremos crescimento com sustentabilidade ambien- Nacional do Livro e Leitura) re-
ou algo que apesar de já ter sur- Começaremos o novo ano tal e humana, com equidade nas oportunidades, ao sultando em pequeno, mas signi-
gido no tempo e no espaço con- de 2024 interrompendo o ge- contrário do que se pratica hoje com a exaltação da ficativo avanço nessa área. Gosto
segue se renovar, se oxigenar, se nocídio de Gaza e a guerra na nefasta meritocracia neoliberal? Estaremos ecologica- de pensar que mais um tempo si-
recompor para melhor? Ucrânia que já mataram milha- mente equilibrados para sobrevivermos como espécie milar, embora não tão profundo,
Não é uma reflexão simples, res, principalmente crianças? Ou e restaurarmos o já destruído planeta como apregoam se abriu, e que é preciso atuar com
mas convivemos com ela na mú- equalizando as oportunidades pa- as várias conferências climáticas? firmeza e construir possibilidades.
sica que cola nos brasileiros todos ra todos e todas que estão sem te- Começaremos o ano de 2024 encarando a reso- Apesar do cenário de des-
os anos neste período de festas: to, sem comida, sem trabalho, lução para problemas tão básicos quanto necessários a truição após o banditismo que
“hoje é um novo dia, de um novo sem escola, sem acesso aos direi- uma humanidade renovada? Me refiro ao direito à edu- assaltou a república nos últimos
tempo...”. A bem produzida men- tos básicos da cidadania? Eco- cação de excelência para todas as pessoas, com a valo- anos, é possível tornar 2024 um
sagem nos sorri com rostos conhe- nomistas, planejadores sociais, rização da cultura, da leitura e da escrita, do respeito a marco de transformação impor-
cidos todos os anos e, no entanto, políticos de vários matizes ideo- todos os gêneros, raças e opções sexuais, assim como o tante na reconstrução do país. As
os mesmos produtores do “no- lógicas já demonstraram que uma respeito aos que creem e aos que não creem na prática de notícias do final de 2023 na ma-
vo tempo” fazem tudo igual ano pequena transferência de riqueza sua religiosidade desligada de fanatismos e radicalidades croeconomia foram animadoras
após ano: noticiários que se con- do 1% do topo da pirâmide so- discriminatórias e destrutivas. Instaurar o respeito pelo até nas análises de jornalistas e
fundem com editoriais da empre- cial para a base miserável erradi- outro significa optar pela alteridade e não pelo egocen- economistas conservadores, com
sa; entretenimento quase sempre caria a fome dos sem futuro. trismo dominante que impede que nos vejamos como inflação sob controle e expectati-
alienante; parcialidade na exalta- Começaremos o novo ano seres coletivos, comunitários, gregários por natureza. va de crescimento. Este fato pa-
ção de valores sociais conservado- de 2024 desarmando o planeta Fala-se muito em inovação como o conceito trans- vimenta outras ações de políticas
res, entre outros procedimentos que acumula recordes de assassi- formador necessário ao nosso tempo. Abstratamente públicas que podem caracterizar
estrategicamente projetados em natos pela via do banditismo na posso concordar, mas é importante localizá-lo no coti- avanços pontuais, mas estratégi-
seus planos de negócios. Ou seja, sociedade ou do banditismo dos diano das pessoas e nas práticas sociais que vivemos neste cos, como o direito à leitura.
o novo aqui é apenas novidade e Estados e seus exércitos alimenta- tempo de sombras. Muitas vezes inovar significa recu- Com este espírito de ação é
tem como missão central preser- dos pela indústria armamentista perar, reconhecer, restaurar práticas e valores individuais que abraço neste 2024 os que lu-
var o status quo que sustenta todas que cresce vertiginosamente to- e sociais que a humanidade se viu coagida a abandonar tam em funções públicas ou na
as feridas à mostra no flagelado dos os anos? Valorizaremos a vi- por interesses pautados pela voracidade anti-humanitá- sociedade pela formação de leito-
planeta que habitamos. da no lugar da morte provocada ria dos que visam apenas seus lucros financeiros concen- res e leitoras. Já anunciado pelo
Tudo isso seria um exercí- por doenças e repressão xenofó- tradores de riqueza como nunca praticada em tal escala. MinC e MEC, espero festejar a
cio diletante se não implicasse nas bica aos milhões de migrantes de Tomo como exemplo a necessária valorização aplicação da Lei da PNLE (Polí-
nossas vidas. O exemplo acima é suas terras? Ou por balas perdidas da leitura literária. Inovar seria descobrir um método tica Nacional de Leitura e Escri-
ilustrativo, talvez didático, mas es- dirigidas aos jovens, pretos, peri- ou aparelho infalível que ganhe a competição junto ta) e ver elaborado e promulgado
tá longe de ser o mais significati- féricos e que nada têm a não ser a aos jovens e adultos pela satisfação da ansiedade insa- o novo PNLL decenal. Sem es-
vo ao ocultar o verdadeiro sentido justa ânsia de viver? na proporcionada pelos gadgets eletrônicos e conquiste, morecimentos!
JANEIRO DE 2024 | 17

inquérito • Um autor em quem se deveria prestar mais


MARIA FERNANDA ELIAS MAGLIO
atenção.
Francisco de Morais Mendes.

COM O CONTO NA ALMA • Um livro imprescindível e um descartável.


Imprescindível: Nove, novena, do Osman
Lins; Descartável: O iluminado, de Stephen King.

O
DIVULGAÇÃO • Que defeito é capaz de destruir ou compro-
contista Nivaldo Te- meter um livro?
nório nasceu em Ga- Engajamento político, a ideia de que a litera-
ranhuns, no Agreste tura não passa de um meio de propagar uma ideia,
pernambucano, a mes- por melhor que seja.
ma região de onde o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva migrou • Que assunto nunca entraria em sua literatura?
nos anos 1950. Se hoje o escritor Mensagens edificantes, otimismo desarra-
pudesse recomendar um livro ao zoado.
conterrâneo, seria O outono do
patriarca, romance em que Ga- • Qual foi o lugar mais inusitado de onde ti-
briel García Márquez cria uma rou inspiração?
alegoria a respeito do autoritaris- Quando se fala em inspiração, pensa-se logo
mo na América Latina. em algo bom e belo, quiçá virtuoso, o que normal-
“Com um pouco de sorte mente me inspira passa longe disso, e buscando o
ele gosta e recomenda ao [Nico- teatro onde vive e se relaciona o bicho homem, fui
lás] Maduro”, diz neste Inquérito capaz até de me inspirar num quartel do exército,
o autor da coletânea de contos Ve- quando ali servi como recruta numa Companhia
rão, lançada em 2022 pela Cepe. de fuzileiros.
Formado em Letras pe-
la Universidade de Pernambuco • Quando a inspiração não vem...
(UPE), Tenório se dedica exclu- Ela nunca vem, eu que sou teimoso e tenho
sivamente às narrativas breves, de correr atrás.
o que é pouco comum na ficção
brasileira contemporânea. • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria
“Quando estou escreven- de convidar para um café?
do um conto, sinto que ele só vai Gosto de escritores que se orgulham dos li-
pra frente se eu adoecer dele”, diz. vros que leram, mas Borges parecia muito centra-
“Quando vou dormir e acordo do em si mesmo, devia ser bom para encontros
pensando nele, nesse momento com seus eus no futuro ou no passado, então esco-
as circunstâncias não importam e lho Antonio Tabucchi, que também foi um leitor
consigo escrever até com barulho.” apaixonado, do tipo que gostava de ouvir enquan-
Além do mais recente Ve- to tomava uma xícara de café.
rão, o escritor publicou ainda
Dias de febre na cabeça (2012) e • O que é um bom leitor?
Ninguém detém a noite (2017). Aquele que compra o livro pelo simples pra-
Livros em que o leitor en- zer de ler e que o lê preocupado com as nuances
contra as pegadas de Katherine ali escondidas.
Mansfield e Tchekhov, mestres
das narrativas breves e que inspi- nhãs, tenho a mesma mania, leio e • Quais são as circunstâncias • O que te dá medo?
ram Tenório a buscar uma litera- releio trechos de contos bem fami- ideais de leitura? Morrer de repente.
tura com alto poder de síntese, em liares, K. Mansfield e Tchekhov re- Gosto do livro físico, feito
um estilo enxuto. “Meus livros de vezam na maioria das vezes. por um editor que gosta de livros, • O que te faz feliz?
contos são concebidos como um um livro bem diagramado etc., o Ultimamente tem sido meu neto.
todo, sendo assim, pra mim, co- • Que leitura é imprescindível resto fica por conta da minha pol-
mo para o romancista, o mais di- no seu dia a dia? trona e do silêncio. • Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
fícil é sempre começar.” Ultimamente tem sido a Acho que as dúvidas que surgem na hora da
E quando o trabalho engre- Legenda áurea, de Jacopo de • O que considera um dia de escrita, de como tomar as melhores decisões na car-
na, sua maior preocupação é “não Varazze. trabalho produtivo? pintaria do conto, e não me refiro somente a es-
dizer tudo, esconder com sutileza, Quando escrevo e termino trutura e ritmo, há tantas coisas que cabem e não
não subestimar a inteligência do • Se pudesse recomendar um o dia ainda com vontade de es- cabem num conto, são elas responsáveis em me fa-
leitor, mas também não o tomar livro ao presidente Lula, qual crever. zer escrever um único conto às vezes por meses a fio.
por um novo Einstein”. seria?
Além de seu método de es- Dizem que Lula aprendeu a • O que lhe dá mais prazer no • Qual a sua maior preocupação ao escrever?
crita, Nivaldo Tenório fala sobre ler na prisão, o certo é que lá pô- processo de escrita? Não dizer tudo, esconder com sutileza, não
livros imprescindíveis e descartá- de dispor de tempo e ao que pare- Meus livros de contos são subestimar a inteligência do leitor, mas também
veis, um autor para ficar de olho e ce soube utilizar na leitura de bons concebidos como um todo, sen- não o tomar por um novo Einstein.
os limites da ficção. livros, agora está chegando aos 80 do assim, para mim, como para o
anos e voltou a ser presidente num romancista, o mais difícil é sem- • A literatura tem alguma obrigação?
• Quando se deu conta de que tempo e numa América do Sul que pre começar, mas quando o traba- Parafraseando Oscar Wilde, apenas a de ser
queria ser escritor? ainda acolhe ditadores, então tal- lho está adiantado, quando noto bem escrita.
Escrevia versos anacrônicos vez eu recomendasse O outono do que as personagens se sustentam
inspirados em Poe e Álvares de patriarca [Gabriel García Már- de pé e a atmosfera que as envol- • Qual o limite da ficção?
Azevedo. Acho que me dei con- quez], com um pouco de sorte ele vem tem potencial para envolver A ficção não tem limites, ela vem em nosso
ta de que queria ser escritor quan- gosta e recomenda ao Maduro. o leitor, sinto nessa etapa do tra- socorro quando a realidade se esgota.
do reconheci o quão ruins eram balho um prazer que se renova a
os versos. • Quais são as circunstâncias cada página concluída. • Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse
ideais para escrever? “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
• Quais são suas manias e ob- Quando estou escrevendo • Qual o maior inimigo de um A Maviael Medeiros, meu professor da séti-
sessões literárias? um conto, sinto que ele só vai pra escritor? ma série, mas parece que ele se encantou. Depois
Elias Canetti nos conta que frente se eu adoecer dele, quan- A indisciplina, acho, de muitas tentativas, conseguiu finalmente cons-
todas as manhãs lia algumas pá- do vou dormir e acordo pensando e a morte. truir sua máquina do tempo e se mudou para a
ginas de O vermelho e o negro. nele, nesse momento as circuns- Belle Époque, onde vive um caso de amor com
Fazia isso como se buscasse ali o rit- tâncias não importam e consi- • O que mais lhe incomoda no Jeanne Duval.
mo ou o tom de que precisasse para go escrever até com barulho, mas meio literário?
compor o seu Auto de fé. Quando gosto da manhã, na minha casa, Não frequento o meio lite- • O que você espera da eternidade?
estou escrevendo, durante as ma- gosto do silêncio que reina aqui. rário, e fujo das redes sociais. Sou ateu, logo não espero nada.
18 | JANEIRO DE 2024

rascunho recomenda NACIONAL

Um dos livros mais importante da carreira do carioca Alberto Mussa, Conhecido principalmente pelos
o romance Meu destino é ser onça ganha uma nova edição. Após romances e por livros de poesia, o
estudar os fragmentos de registros sobre a cultura indígena da baía gaúcho Paulo Scott estreia como
de Guanabara, feitos pelo frade André Thevet, em 1550, e cotejá- dramaturgo. Na peça Crucial dois
los com as demais fontes dos séculos 16 e 17, Mussa reconstitui o um, o escritor tece um universo
que teria sido o texto original de uma narrativa tupinambá. Esses dividido por “muros intransponíveis”,
escritos decifram o mundo construído pelas divindades Maíra e regido pela disputa econômica por
Sumé, além de informar sobre o surgimento desse povo nativo que água potável. A trama ganha contornos
se estabeleceu no litoral. Vindos da Amazônia, onde viviam há pelo distópicos quando somos apresentados
menos 11 mil anos, os tupinambás se constituíam em grupos diversos ao programa Retorno Vinte e Um, cujo Crucial dois um
Meu destino
e autônomos, falantes do tupi-guarani, que se espalharam pelo país. objetivo é proporcionar 21 horas de PAULO SCOTT
é ser onça
Eles acumularam um conhecimento tão precioso sobre o território sobrevida para que sua seleta clientela Cobogó
ALBERTO MUSSA 136 págs.
que se tornou base para o estabelecimento de nossos primeiros Record
possa atender pendências burocráticas,
centros coloniais do século 16. Influenciaram, assim, a língua falada, 208 págs. profissionais e pessoais.
as trocas comerciais, o nomes topográficos, as disputas territoriais,
a administração de aldeamentos e feitorias, a alimentação, e demais
costumes dos brasileiros, entre eles, o banho e a depilação. Risos no hospício é o 18º livro de
Carlos Castelo, um dos criadores do
DIVULGAÇÃO grupo de humor musical Língua de
Trapo. São 53 crônicas e 104 aforismos
que exibem a habilidade de garimpar o
humor do cotidiano e lançar luz sobre
a política, a economia, a polarização e
os costumes em voga. “Carlos Castelo
é um dos mais brilhantes cronistas em
atividade. Seja nas máximas cheias
Risos no hospício
de verve e ironia, seja nos textos mais
CARLOS CASTELO
longos, papeia com o leitor como se
Urutau
estivesse à mesa do bar, de bermuda e 140 págs.
chinelos…”, escreve sobre o autor o
também cronista Marcelo Moutinho.

A partir do diálogo com a série Twin


Peaks, de David Lynch e Mark Frost,
O corpo de Laura se debruça sobre
a pesquisa poética que a autora vem
empreendendo desde 2021, que
compreende a linguagem como
acontecimento do corpo a partir da
perspectiva feminista contemporânea,
sendo também um campo de
O corpo de Laura
articulação e transformação política.
LAURA REDFERN NAVARRO
A partir da investigação entre escrita e
Mocho
fotografia, O corpo de Laura consiste 150 págs.
na publicação deste livro e de uma
plaquete homônima.

O demônio da inquietude faz


um recorte de três décadas de
atividade do crítico André Seffrin,
que durante esse período tem se
debruçado sobre a produção dos
autores contemporâneos no Brasil.
A atuação de Seffrin não se resume
Escrita em movimento: sete A cabeça do pai
princípios do fazer literário apenas à atividade em periódicos,
DENISE SANT’ANNA
mas sobretudo a de organizador
NOEMI JAFFE Todavia
Companhia das Letras 128 págs.
de antologias e obras completas de O demônio da inquietude
192 págs. grandes poetas e prosadores, a de
ANDRÉ SEFFRIN
coordenador de edições e coleções, Rosmaninho
Voltado a escritores iniciantes ou experientes, Em seu primeiro livro de ficção, a professora além de algumas atividades paralelas, 280 págs.
Escrita em movimento sintetiza em sete e historiadora Denise Sant’Anna parte do fato como a de crítico de arte, igualmente
princípios o pensamento de Noemi Jaffe sobre de que o pai da narradora, idoso e exausto de presente em neste volume.
o fazer literário. A partir de sua experiência cuidar da esposa com Alzheimer, sofre um AVC
conduzindo oficinas literárias, a escritora hemorrágico. O trágico episódio abre uma
propõe uma jornada pela exploração e pelo janela para a memória afetiva, descortinando Neste romance, Dag Bandeira aborda
desenvolvimento da voz literária única de cada uma teia de relações familiares e sociais acerca os bastidores do mundo das gravadoras
artista através da conscientização dos próprios da consciência da morte — embora nem e das pessoas que trabalham e vivem
processos. Desde que as oficinas literárias tudo seja assombrado pela presença dela. A em torno delas. O enredo, que se passa
surgiram, debate-se uma questão central: é descoberta do sexo, o nascimento de amizades e em junho de 1973, em plena ditadura
possível aprender a produzir ficção, da mesma a relação madura que constituímos com nossos militar, é revelado por Liz Cerqueira
maneira como se estuda outros ofícios? Se existe pais quando envelhecemos também aparecem Briston, uma assistente de relações
uma forma de transmitir esse conhecimento, no livro. A narradora parece acreditar que por públicas, recém-contratada pela
não é com regras e truques de manual, e sim detrás de nossa fragilidade há uma potência Sound & Music. Bandeira constrói
pensando a escrita de modo aberto e livre, quase infinita: a capacidade que temos de uma protagonista confinada em seu Trilha sonora
através de preceitos norteadores que perpassam contar a nossa própria história e a daqueles que drama pessoal e alheia à repressão. Ao DAG BANDEIRA
a linguagem. E é essa a proposta de Jaffe: uma nos deixaram. Outro ponto alto do romance lado do marido, um empresário que Cambucá
reflexão sobre o próprio processo de escrever — é a linguagem empreendida pela autora: uma serve à ditadura militar, Liz trama 248 págs.
da escolha cuidadosa das palavras à intenção por mistura de relato pessoal, memorialismo e contra o sistema imposto a ela, sem
trás de cada texto, da busca pela originalidade ao ficção. O livro foi finalista do Prêmio São Paulo compreender que suas ações teriam
mergulho corajoso na experimentação literária. de Literatura em 2023. desdobramentos extremos.
20 | JANEIRO DE 2024

Reconhecer um
Projeto estético
Para tratar de 30 poemas de um negro bra-

MESTRE NEGRO
sileiro, é necessário dizer algo sobre as primei-
ras obras publicadas por Oswaldo de Camargo. A
primeira, datada de 1959, foi Um homem tenta
ser anjo; conquanto traga as marcas de um autor
jovem e estreante, já se fazem presentes aspectos
formais e temáticos característicos de sua produ-
ção literária — o que apenas evidencia o fato de
que aquele jovem de vinte e poucos anos já ges-
tava um projeto estético que se concretizaria nas
décadas subsequentes. O texto de orelha de 15
poemas negros, publicado dois anos depois, tra-
zia relevantes informações sobre um negro que
Seja na prosa, seja na poesia, Oswaldo de Camargo é, sem dúvida, procurava o seu lugar no mundo — resgatando a
sua internação no Preventório Imaculada Con-
um dos principais escritores brasileiros de todos os tempos ceição de Bragança Paulista e o seu ingresso em
um ambiente de “estrutura quase setecentista”,
o que lhe amoldaria a alma “para o arcaísmo, o
HENRIQUE MARQUES SAMYN | RIO DE JANEIRO – RJ barroco e pristinas épocas”; sua afeição por figu-
ras de destaque no imaginário católico da época;
e a “forte tendência ao misticismo” que o levaria
a tentar a admissão em diversos seminários, nos

M
quais não seria aceito por ser negro — quer di-
ais de 60 anos já se (2023); e da coletânea poética 30 zer: por apresentar um suposto pendor à sensua-
passaram desde a pu- poemas de um negro brasileiro lidade incompatível com o que se esperava de um
blicação daquele livro (2022). Por um lado, há que se padre. Isso ensejaria a “volta ao mundo” de Os-
assinado por um “poe- reconhecer a importância dessas waldo, propiciando o seu profundo comprome-
ta da jovem geração negra brasilei- publicações — que, embora tar- timento existencial com uma militância literária
ra” que, apesar da “fala simples”, diamente, propiciarão o conheci- que, como reconheceria o próprio autor, conser-
produzia versos nos quais trans- mento da obra de um mestre de va algo desse apostolado.
parecia “um desejo vivo de ascen- nossa literatura por um público Esse percurso transparece não apenas no tí-
são social”, consoante o texto de mais amplo. Por outro lado, há tulo de Um homem tenta ser anjo, mas também
orelha assinado por Sérgio Milliet que se ponderar que o tratamen- nos poemas da obra — cuja incipiência não obsta
— e que, embora ainda deixasse to dispensado pela editora a esses O carro do êxito a construção de versos poderosos:
a desejar no que tange à “técnica livros permanece aquém da im- OSWALDO DE CAMARGO
do verso”, apresentava a “afirma- portância de Oswaldo de Camar- Companhia das Letras Meu Deus! meu Deus! com que pareço!?
143 págs.
ção de uma atitude diante da vi- go para a literatura brasileira. […]
da e dos problemas de sua raça”. Nesse sentido, a nova edi- Vós me destes uma alma, Vós me destes
O poeta era Oswaldo de Camar- ção de O carro do êxito alcan- e eu nem sei onde está…
go; o livro era 15 poemas negros, ça melhor resultado, por contar Vós me destes um rosto de homem,
publicado em 1961, ainda no mo- com um excelente prefácio assina- mas a treva caiu
mento inicial da trajetória literária do pelo escritor e intelectual ne- sobre ele, Deus meu, vede que triste,
de um dos mais importantes no- gro Mário Augusto Medeiros da todo preto ele está!
mes da literatura negra brasileira. Silva. Intitulado Buscas na vida
Na verdade, é graças à pro- rota, o texto traz elementos fun- Se nos versos de 15 poemas negros transpa-
dução crítica assinada por figu- damentais para o entendimento rece um nítido amadurecimento, bem como um
ras como Oswaldo de Camargo dos contextos de produção e de rigor na estruturação do discurso lírico, uma força
que hoje podemos assim designar publicação da obra, resgata a sua plástica e um manejo de recursos retóricos que já
uma tradição literária autônoma, trajetória editorial e sugere impor- chancelavam a inscrição de Oswaldo entre os no-
caracterizada por um conjunto de tantes caminhos para a leitura dos mes maiores de nossa poesia (“Vê:/ A manhã se es-
elementos temáticos e formais; re- contos, satisfatoriamente comple- 30 poemas de um palha nos quintais, alegra-se a cidade e há cantigas/
cordem-se a antologia A razão da mentados pelas notas de Oswaldo negro brasileiro no ar…/ Tenho em meus gestos um rebanho in-
chama (1986), o seminal volume de Camargo. Com isso, quem tem OSWALDO DE CAMARGO teiro/ de atitudes brancas, sem sentido,/ que não
O negro escrito (1987) e o ensaio em mãos o livro dispõe de impor- Companhia das Letras sabem falar…// Eu penso que a manhã não in-
116 págs.
A mão afro-brasileira em nossa lite- tantes subsídios para lidar com as terpreta bem/ a superfície escura desta pele,/ que
ratura, este coligido na obra cole- narrativas nele coligidas — como pássaro nela vai pousar?”), são perceptíveis os tra-
tiva A mão afro-brasileira (1988), a trajetória do “menino do Oboé”, ços de continuidade em relação à obra anterior, o
fundamentais pilares para uma em meio às expectativas e tensões que nos leva a questionar: por que em 30 poemas
tentativa de construção do que se políticas da comunidade negra; a de um negro brasileiro não há peças de Um ho-
poderia considerar um repertório comovente viagem de João para mem tenta ser anjo, mas apenas composições de
canônico negro brasileiro. Maralinga, à procura de uma vi- 15 poemas negros, além de outros quinze poemas
Desde então, aquele jovem da melhor para o seu filho — an- publicados nos posteriores volumes O estranho
que passara a primeira infância tevéspera da despedida e começo (1984) e Luz & breu (2017)? Trata-se de uma op-
na fazenda Sinhazinha Félix, “en- de um incerto percurso; ou a si- ção autoral? Que tipo de decisão foi tomada acer-
tre as rudezas da Serra da Bocaina nistra sina de Genoveva, a “mulata ca do poema Procura?
e seus verdes cafezais” — segun- linda” que desaparece misteriosa- O volume editado pela Companhia das Le-
do lemos no mencionado texto mente após ser convidada pela si- tras reproduz o prefácio presente na primeira edi-
de orelha —, vem construindo nhazinha ao casarão, vitimada por ção de 15 poemas negros, assinado por Florestan
uma trajetória que, por suas rele- acontecimentos enunciados nas A descoberta do frio Fernandes, com o acréscimo de uma valiosa carta-
vância e consistência, demanda o entrelinhas. Também as belíssimas OSWALDO DE CAMARGO -resposta assinada por Oswaldo de Camargo; mas
reconhecimento de Oswaldo de ilustrações de Marcelo D’Salete e Companhia das Letras não há textos assinados por nomes da crítica ne-
133 págs.
Camargo como um dos mais im- a quarta capa, assinada por Jefer- gra atual, e a apresentação da trajetória do autor
portantes intelectuais brasileiros son Tenório, valorizam inegavel- se resume ao que está nas orelhas do livro. Desse
vivos, em que pese a indolência de mente o volume. Não obstante, modo, a obra poética camarguiana não recebe a
nossos meios literários e acadêmi- pode-se ponderar: houve um con- valorização que merece, ainda que a sensibilidade
cos, nada surpreendente quando vite para incluir um texto assinado leitora inevitavelmente receba o impacto de versos
consideramos o racismo historica- pelo próprio Oswaldo de Camar- poderosos (“Eu tenho a alma e o peito descober-
mente presente no Brasil. go, que lhe facultasse dissertar so- tos/ à sorte de ser homem, homem negro,/ pri-
Cerca de seis décadas após bre a construção do livro até a sua meiro imitador da noite e seus mistérios.”, lemos
a sua estreia literária, as obras de primeira publicação, em 1972, e em Atitude; ou, em Antigamente: “Antigamente
Oswaldo de Camargo finalmen- os posteriores processos associa- eu morria,/ antigamente eu amava/ antigamen-
te chegam a uma grande editora dos à sua republicação (alterações te eu sabia/ qual é o chão que resvala/ se o passo
brasileira — com a publicação, nas narrativas; inclusão e exclusão da gente pesa.”). Cabe mencionar, não obstante,
pela Companhia das Letras, de de contos), assim produzindo um as poderosas imagens de capa e quarta capa, de
novas edições de O carro do êxi- documento de crucial importân- O Bastardo, que recriam fotografias históricas de
to (2021) e A descoberta do frio cia para pesquisadores? Oswaldo de Camargo.
JANEIRO DE 2024 | 21

Uma obra-prima A imposição de lidar com “o que procurava entender e lidar com o fenômeno. importa ressaltar, trazem capas e
A reedição mais recente de A descoberta do frio velho, alvo e impiedoso frio” mo- Muitas, portanto, as questões que A descoberta do ilustrações de artistas negros. Não
— primorosamente ilustrada por Kika Carvalho, tam- biliza a comunidade negra; em ter- frio nos propõe: como entender os sentidos alegóri- obstante, caberia à Companhia das
bém autora da imagem de capa — oferece ao público mos literários, isso nos possibilita cos da doença imaginada por Oswaldo de Camargo? Letras demonstrar seu efetivo reco-
brasileiro uma nova oportunidade para conhecer um apreciar o domínio de Oswaldo de Como analisar a riqueza formal e estilística da narra- nhecimento da importância de um
livro que, publicado pela primeira vez em 1979 (e não Camargo na arte da criação de per- tiva, que incorpora elementos cronísticos e poéticos? escritor e intelectual diversas vezes
1978, como afirma a orelha da edição da Companhia sonagens e o seu fundamental papel Como dimensionar seu impacto para a tradição negra laureado (inclusive por serviços
das Letras), merece, sem favores, a qualificação de obra- como memorialista. O embate en- brasileira, bem como sua relação com vertentes esté- prestados à literatura negra brasi-
-prima. No centro da narrativa, está um magistral re- tre diferentes coletividades, em uma ticas e filosóficas como o afropessimismo ou a ficção leira, como a Medalha de Mérito
curso alegórico: a aparição de um frio que só acomete pluralidade de cenários (o Grupo especulativa negra? A edição da Companhia das Le- Cruz e Sousa e a Medalha Zumbi
pessoas negras, a exemplo do menino Josué Estêvão — Malungo, que se reunia no bar de tras não abre espaço para questionamentos desse tipo, dos Palmares), fomentando a am-
que, embora utilizando três gorros, cobrindo as mãos mesmo nome; a associação de be- uma vez que se limita a reproduzir o prefácio publi- pliação de sua fortuna crítica e ofe-
com retalhos de flanela e metendo nos tênis várias ti- letristas frequentadora da Toca das cado na edição de 1979, assinado por Clóvis Mou- recendo subsídios que propiciem
ras de couro de gato, tremia e batia os queixos a pon- Ocaias; os “pretos velhos” do “Mo- ra — que, embora aborde aspectos relevantes, é um a sua recepção contemporânea —
to de sequer conseguir falar. Assim como, nas obras de vimento Participação Negra”; os produto de seu tempo (vejam-se as observações so- inclusive no que tange a uma tra-
Carolina Maria de Jesus, a fome não é apenas uma sen- “Vigilantes Escolhidos” que se en- bre Machado de Assis e Castro Alves). dição crítica negra produzida por
sação física, o frio que encontramos no livro de Oswal- contravam na casa de Joana Laurea- É inegavelmente importante que as obras de intelectuais que percorrem as tri-
do de Camargo demanda uma interpretação atenta a no), compõe um riquíssimo retrato Oswaldo de Camargo sejam publicadas por uma lhas abertas por precursores como
condicionamentos existenciais e políticos. Quem so- de uma geração de pessoas negras gigante editorial brasileira — e em volumes que, o próprio Oswaldo de Camargo
fre o frio “esfria, gela, chora. Quer desaparecer e desa- ou, para citar nomes constantes
parece”. O universitário Laudino da Silva, que anuncia das dedicatórias de alguns dos li-
o frio logo depois de Zé Antunes, afirma: vros aqui comentados, Cuti e Hen-
Oswaldo de Camargo rique Cunha. Assim, seria possível
Um malungo nesse estado não mostra a cara ao sol. por Oliver Quinto acreditar num real comprome-
Ele pensa que fede. É muita desgraça. Ele vira micróbio, timento com a valorização
anda no meio dos micróbios. Se o cara crê em Deus, sua de um amplo contingen-
reza só pode ser esta; Meu Deus, me descrie, me descrie! te de escritoras e escri-
A zabumba do desespero bate na alma do infeliz. É isso! tores historicamente
menosprezados pe-
Não obstante, o frio é “coisa velha”, a tal pon- lo mercado edito-
to que negros mais velhos sequer o veem (“pois o frio rial brasileiro, por
há tempo senta-se à mesa com eles, vigia à sua porta, razões que mes-
ri… Veem talvez o frio como geada, gélida ventania. tre Oswaldo nos
Mas o frio, tirando o caso singular do Josué, se dis- ensinou a reco-
farça de brisa, e venta, e estraçalha, e desbasta a espe- nhecer.
rança da gente”).

O AUTOR

OSWALDO DE CAMARGO

Nasceu em Bragança Paulista


(SP), em 1936. Foi revisor do jornal
O Estado de S. Paulo, redator do
Jornal da Tarde, diretor de cultura
da Associação Cultural do Negro e
um dos principais colaboradores
de periódicos da imprensa negra.

TRECHO

A descoberta do frio

Ninguém sabia donde


viera o frio.

Para uns, ele já se havia


instalado, desde muitíssimo
tempo, no país e engordara, sem
que as autoridades percebessem.
Achavam outros que elas
não viam razão para deter
o frio de que alguns negros
se queixavam, vez ou outra,
em páginas de jornais ou em
depoimentos aos estudiosos
que pesquisavam os efeitos
do friíssimo bafo.
22 | JANEIRO DE 2024

Morte ou
Ainda assim, não consi- perseguições, torturas e assassina-
go pensar em outro aspecto do tos, em que a desigualdade social
romance que me pareceu artifi- cresceu brutalmente. Ou pelo me-
cial. Muito pelo contrário: o en- nos, espero que você não precise

sumiço
redo flui e suas peças se encaixam que eu diga isso. É difícil ter cer-
de maneira bastante natural. Os teza numa época em que verda-
personagens são bem-feitos, e as des históricas que imaginávamos
reviravoltas bem plantadas o su- incontestáveis são questionadas.
ficiente para que eu aposte: vão Em que radicais da extrema di-
surpreender muitos leitores, em- reita e revisionistas tentam res-
Anistia, de Pedro Süssekind, narra a bora os mais atentos possam pre- gatar um dos mais sanguinários
ver certas descobertas. O foco do períodos da história brasileira e
potente história de um desaparecimento romance, afinal, não são grandes Anistia ressignificá-lo, justificá-lo, trans-
na ditadura brasileira acontecimentos nacionais ou glo- PEDRO SÜSSEKIND formá-lo em algo menos que um
bais, mas a maneira como uma HarperCollins conjunto de crimes hediondos,
família foi desmontada e ferida 176 págs. praticados por quem deveria de-
BRUNO NOGUEIRA | UBERABA – MG física, mental e socialmente pe- fender o país, com apoio de seus
las ações de um governo auto- maiores empresários.
ritário — e como resta algo de São as recentes tentativas de
esperança a essa família. Anistia negar esses crimes e esse trauma

A
é, basicamente, a história de um que tornam necessárias obras co-
palavra Anistia, em sua contrário: a abordagem do autor desaparecimento e de uma dese- mo a de Pedro Süssekind, obras
simplicidade, é título é sub-reptícia. O leitor fica pela jada volta para casa — mas con- que resgatam os acontecimentos
potente para uma obra. história interessante e porque o tada do ponto de vista daqueles e não se resumem a relatar a his-
Em sete letras se evoca enredo desperta a sua curiosida- que esperam. tória de nosso país, que permitem
momentos complexos e contur- de, a tal ponto que quase não per- que o leitor se identifique com
bados da história brasileira. Nelas cebe que aprendeu alguma coisa Referências personagens enquanto eles atra-
estão escondidas uma ditadura — e se descrevo assim o efeito, Assim como Luís Riva, pai vessam concretamente um tem-
empresarial-militar e a vergonha é para deixar claro que o livro, de Emílio, Anistia faz muitas re- po em que os crimes da ditadura
não termos punidos os assassinos embora traga informações que ferências à mais clássica história eram uma realidade. Essas obras
e torturadores que a perpetraram, frequentemente vemos em livros de volta a casa: a Odisseia. E, não só reativam nossa memória
e ainda menos os grandes empre- de História, foge por completo mais uma vez, o faz de maneira sobre o período traumático, co-
sários que a financiaram. Entre do didatismo. O nome das abje- sutil. Se você conhece a epopeia mo também transmitem, na me-
essas letras se escondem décadas tas criaturas envolvidas direta ou de Homero — e dado o públi- dida do possível, um pouco dessa
de repressão, censura, violência. indiretamente nas torturas e as- co de um jornal literário como o experiência àqueles que a subesti-
É uma palavra densa em conteú- sassinatos na época é mencionado Rascunho, não parece tão impro- mam ou não conseguem visuali-
do, mas concisa; polêmica e forte com a mesma naturalidade com vável — certamente vai entender zar bem a crueldade exercida no
em suas implicações, mas discreta; que mencionamos hoje os nossos alguns significados e, por que não período ditatorial. O nosso des-
uma palavra que mostra a necessi- governantes: enquanto realidade dizer, encontrar algum prazer em O AUTOR
conforto com cenas mais fortes
dade de se adaptar um tema que, material daquele tempo e influên- desvendar as inúmeras referên- de violência e nosso esforço pa-
por deturpações de nossa memó- cia na sociedade de então. cias espalhadas de forma orgâ- PEDRO SÜSSEKIND ra evitá-las significa que, mesmo
ria, conseguiu se tornar polêmico Anistia não fala da dita- nica pelo romance. Se algo que Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em
quando nos referimos ao perío-
— e ainda assim, a palavra parece dura, mas mostra pessoas viven- eu disse até agora apelou a você, 1973. É doutor em Filosofia pela do, evitamos descrever de maneira
tão despretensiosa. Todas essas ca- do sob seu jugo ou sendo mortas recomendo que salte o parágra- Universidade Federal do Rio de muito explícita os atos praticados
racterísticas, que dão sentido e en- por ela. Mostra esperança, e a luz fo abaixo e leia. Essas referências Janeiro (UFRJ) e professor associado então. Assim, nos voltamos a es-
riquecem um termo tão simples, embaçada e distante que a Lei estão nas páginas do romance, da Universidade Federal Fluminense tatísticas e descrições mais genéri-
também estão presentes ao longo da Anistia representou, embora e prometo que será muito mais (UFF), onde atua na área de Estética cas que inevitavelmente suavizam
da narrativa de Pedro Süssekind. não fuja de descrições fortes da satisfatório que ler minha breve e Filosofia da Arte. Além de ter os acontecimentos, apagando no-
Desde o primeiro capítulo is- repressão e suas arbitrariedades, descrição, em que enumero pou- trabalhado em diversas traduções mes e impedindo que as ações ga-
so é perceptível. O autor demons- assassinatos e tortura. Não vemos cas delas como exemplo da na- e artigos acadêmicos, já publicou nhem um contorno bem definido.
ensaios, romance e livros de contos.
tra concisão singular, nos contando uma explicação sobre a História, turalidade com que Süssekind Isso não é dizer que Süssekind des-
muito ao mostrar pouco — talento e sim, uma história vivida naque- consegue inseri-las em sua obra. creve a tortura e as mortes de ma-
que, numa história em que ausên- les idos — o que me leva a co- Rebeca, mãe de Emílio (e, neira extremamente gráfica; mas
cias e segredos são tão importantes, mentar outro aspecto da obra: a portanto, nossa Penélope), é esti- ele descreve o suficiente. Não dei-
ganha ainda mais relevo. caracterização da época. lista, e se divide entre o trabalho xa que a forte realidade desses mo-
Anistia segue a história de A maneira como Süssekind elaborado com tecido e festas em mentos passe em branco.
Emílio, jovem cujo pai, revolto- coloca seu leitor naquele período que dispensa seus pretendentes; Se tenho uma reclamação, é
so contra a ditadura, desapare- histórico se assemelha ao estilo Emílio, ao descobrir que seu pai a de que Süssekind, apesar das ex-
cera em 1969. Quando a Lei da da obra como um todo: discreta, pode estar vivo, sai em viagem e pectativas que seu título desperta
Anistia começa a ser discutida e mas eficiente. Objetos e atos re- encontra Nestor, que lutou ao lado no leitor, discute muito superfi-
o retorno de muitos exilados e fu- lativamente recentes mas em de- de seu pai. Nestor o encaminha, cialmente a questão da anistia en-
gitivos ao Brasil se torna possível, suso, como orelhões e a busca de junto ao filho, a casa de um outro TRECHO quanto perdão aos militares que
a possibilidade de uma sobrevida jornais em bancas de revista, divi- combatente da ditadura, um ho- Anistia cometeram crimes durante a di-
de Luís, seu pai, começa a parecer dem espaço com câmeras fotográ- mem casado com a mais bela mu- tadura. O tema não passa com-
mais verossímil. Com isso, Emí- ficas antigas e vitrolas rodando o lher que já viram — mulher que pletamente batido, mas quase. E
lio passa a buscar notícias com vinil de Miles Davis. Claro, hoje foi salva das mãos dos militares por Será que a mãe chegaria a se é verdade que o foco do roman-
outras pessoas que voltavam do em dia voltam a aparecer versões um estratagema de Luís que faz re- se casar de novo um dia? ce é o perdão daqueles considera-
exílio após combaterem a ditadu- mais tecnológicas das vitrolas e do ferência a certo plano muito famo- A pergunta repentina lhe dos criminosos por se revoltarem
ra ao lado de seu pai, um profes- vinil, mas o leitor, consciente da so do Ulisses grego. contra a ditadura, seu título ine-
ocorreu acompanhada por
sor de literatura especializado em data mostrada nos jornais que as Dependendo de sua fami- vitavelmente nos faz pensar em
Homero, cujo codinome, entre os personagens leem, consegue partir liaridade com a Odisseia, a des- uma sensação inquietante. todos os assassinos e torturadores
outros revoltosos, era Ulisses. E as- dessas indicações, dadas com na- crição acima pode parecer ter Sem atinar com o motivo, que, assim como seus financiado-
sim, repleto de referências à vida turalidade, para se colocar no am- muitas ou poucas referências ao lembrou-se da expressão de res e comandantes, nunca foram
na época, à história e à literatu- biente descrito. poema grego, mas digo com tran- punidos por seus crimes. O ro-
espanto no rosto dela quando
ra, segue o romance de Süssekind. A única coisa sobre a qual a quilidade: o livro carrega muitas mance, me parece, poderia ter
mão de Süssekind às vezes pesa são outras, várias delas bem mais dis- abriu a porta do ateliê, se aprofundado um pouco mais
Sem hermetismo determinados diálogos — espe- cretas que as que citei e inseridas naquele dia em que foi levar nesse aspecto do problema —
Antes de mais nada, alerto: cialmente entre personagens mais com um bom gosto cuidadoso na o almoço. Sentiu um pouco até como forma de tirar proveito
não fique com a impressão de que jovens, que manjam de muita coi- tessitura do romance. da presença dos amigos de Emí-
de pena dela; não exatamente
Süssekind é o tipo de autor que sa porreta, putzgrila, e falam des- lio, únicos personagens que, por
arremessa enciclopédias na dire- se modo que, independentemente A ditadura pena, mas uma espécie de vezes, parecem um tanto desne-
ção do leitor. A escrita não é na- do quão historicamente acurado Você não precisa de mim compaixão enternecida, cessários ao desenvolvimento da
da hermética, e não acredito que, possa ser, soa artificial. Mas são ca- para dizer que a ditadura empresa- porque podia vagamente ação. Independentemente disso,
para acompanhar o enredo e o de- sos raros, e não duvido que pos- rial-militar que imperou no Brasil recomendo fortemente a leitura
imaginar como deveria ser
senvolvimento do romance, seja sam ecoar de maneira mais natural entre 1964 e 1985 foi um perío- de Anistia — tanto pela quali-
necessário conhecimento prévio para quem chegou a ter familiari- do de repressão traumático para ficar presa ao passado, a uma dade da escrita, quanto pela im-
sobre qualquer tema. Muito pelo dade com esses termos. o país. Um período de censuras, coisa não resolvida. portância do tema de que trata.
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alcir pécora
CONVERSA, ESCUTA
DIVULGAÇÃO

UM VIGARISTA
CHAMADO JORGE (1)

J
E cá estou eu de novo a fa-
orge Mautner é conhe- lar de Mautner. Desta vez, para
cido sobretudo como fazer alguns comentários sobre
músico. Ao menos uma Vigarista Jorge, um texto seu
canção dele, Maracatu publicado em 1965 e escrito ao
atômico, é muito conhecida, com longo do ano anterior, o fatídi-
diversas regravações, como a de co ano de 1964, quando o Brasil
Chico Science & Nação Zumbi, teve um pico autoritário que até
que a adaptou maravilhosamen- hoje tem ressonâncias graves, co-
te ao baticum fuzzy do mangue mo as que recentemente nos fize-
beat. Se Maracatu atômico não ram chafurdar no reino do Bozo.
chega a ser one-hit wonder, é cer- Um dos motivos de eu escolher
to que fez mais sucesso do que falar de Vigarista Jorge é precisa-
todas as outras músicas que Maut- mente este: a sua datação, visto ser
ner compôs. Também O vampi- uma obra escrita em pleno tumul-
ro, na voz de Caetano Veloso, não to do golpe militar. Aliás, imagino
na de Mautner, teve boa repercus- que seria um projeto interessante
são pública, a seu tempo. Mautner, mapear as obras literárias escritas
porém, compôs inúmeras outras nesse ano em que o país teve sub-
canções ótimas e gravou vários be- traída de si a possibilidade de au-
los álbuns autorais que estão longe togoverno. Talvez isso ajudasse a
de ser apreciados como mereciam. saber ao menos como essa catás-
E se a sua atividade como músico é trofe histórica e política foi assi-
a sua faceta mais conhecida, o que milada pela literatura, a qual, por
dizer de sua atividade como escri- sua vez, como era de esperar, não
tor? Pois a escrita de Mautner coe- teve poder algum para contê-la.
xistiu sempre com a sua música. Nem antes, nem agora. A misé-
Criador prolífico, Mautner, ain- ria bolsonarista, no fundo, ainda
da muito jovem, já anunciava ter foi um efeito do golpe militar de
a ambição de escrever um milhão 1964, não obstante a entrada rele-
de páginas. E, de fato, tudo na es- vante de outros fatores na equação
crita dele tem um curioso acento do desastre, como o das milícias e
quantitativo, que permeia o efeito o do neopentecostalismo.
divertido e absurdo — por vezes Naquele ano de 1964, ain-
até absurdamente divertido — que da estávamos aprendendo o que O músico e escritor Jorge Mautner, autor de Vigarista Jorge
sempre parece haver no que faz. fosse democracia, e, depois dele,
Li quase todos os livros de a desentendemos de vez. Mesmo
Mautner porque sempre o achei quando ela existe, como agora —
uma figura algo indecifrável, e graças a um personagem único na ocasião, brincou que, a seu tem- tipo de narrativa produzida por
gostava de sua música. Li-o, em história do Brasil, e sem substituto po, era considerado comunista e Mautner. Esse método é compli-
diversos momentos do humor e à vista, como Lula —, a democra- nazista ao mesmo tempo. cado, eu disse, porque o enredo
da idade, e, de fato, confesso que cia brasileira parece sempre muito Certo mesmo é que há um do livro está longe de ser claro.
nunca gostei de nenhum de seus frágil, sofrendo ataques contínuos encanto único em Mautner, que Além da novela não ser realista,
livros. Como escritor, sempre me de agentes e órgãos que suposta- pode ser percebido em muitos lu- o seu gênero de fato ainda preci-
pareceu quase canhestro. Mas, por mente deveriam protegê-la, como gares. Por exemplo, num docu- sa ser determinado — ou, talvez,
outro lado, eis o paradoxo, nunca justiça, congresso e até imprensa. mentário recente a que assisti, uma seria mais correto falar de gêne-
deixei de gostar de o ler. Manti- No fundo — digo isso com mui- filha dele, em certo momento, lhe ros, no plural, pois está evidente
ve a curiosidade pelo que escre- ta tristeza —, a maioria do país, pergunta se ele não se dava conta que o conjunto admite variações
via: havia um lado amalucado em como do mundo, se tornou mais de que não era normal ter um pai importantes que vão do diário ao
suas histórias e teorias que sempre defensor do mercado do que de que andava pelado em casa e que ia epistolário; da autobiografia ao
guardavam alguma graça esquisi- qualquer outra coisa. E, para não de cueca levar a filha na escola. Ela ensaio, e dele ao que atualmen-
ta, voluntária ou involuntária, sentar no próprio rabo, convém ainda declara que fez anos de tera- te se chamaria de “autoficção”.
nunca consegui realmente saber. reconhecer que também os pro- pia por conta disso, o que não che- Aliás, a primeira observação
As suas teorias sobre o Bra- fessores universitários ganharam ga a alterar a expressão de Mautner, estrutural a fazer sobre Vigaris-
sil, que juntam o inajuntável, co- um lastimável ar de microempre- que diz algo a respeito de estar tu- ta Jorge é que não se trata de um
mo o marxismo e o esoterismo, sários. Até alunos de graduação já do certo. Está bem claro, portan- texto contínuo, mas um compos-
sob o amálgama batido das mi- se pensam como microempreen- to, que Mautner não é, nem nunca to de sete conjuntos de textos que
tologias do Brasil mestiço e do dedores. Eu me tornei professor foi, uma figura convencional. Até se alternam em primeira e tercei-
país do futuro, me parecem in- justamente para não ter de lidar admira que tenha conseguido se ra pessoas, por vezes, dentro do
sustentáveis, conceitualmente e com nada que tivesse a ver com manter bem e trabalhando regu- mesmo texto. Em comum, os
historicamente, mas, ainda as- negócio, e agora reencontro o co- larmente até hoje, usualmente fo- sete conjuntos contêm um pro-
sim, quando ele as enuncia, têm mércio dentro da própria univer- ra do mainstream comercial. tagonista chamado Jorge, com vá-
graça, tanto no sentido de serem sidade: o academic business é uma Pois bem, vou esboçar aqui rios elementos autobiográficos de
engraçadas, como no de compo- praga impossível de deter. uma apresentação de Vigaris- Mautner. Não sei se isso compõe
rem uma insensatez, digamos, Tornando, porém, a Viga- ta Jorge adotando talvez o mé- os primórdios do gênero da au-
sistemática. Mautner é realmente rista Jorge: na época, a obra foi todo mais complicado, e talvez toficção, no Brasil, mas é prová-
muito metódico na sua loucura, enquadrada na chamada Lei de Se- mesmo o menos adequado para vel que sim, embora o rótulo se
o que costuma ser sempre interes- gurança Nacional, e a sua circula- abordar o livro, qual seja o de pu- aplique com alguma dificuldade,
sante como objeto de estudo. Por ção foi proibida. Mautner chegou xar os fios de enredo que existem dada a mistura de gêneros. O pri-
isso, creio, nunca consegui deixar a ser preso, aparentemente por ter no meio do verdadeiro cipoal de meiro texto dos sete é justamen-
a literatura dele de lado, como já ligações com o Partido Comunista, eventos existentes nele. Mas pre- te Vigarista Jorge, que dá título ao
fiz tantas vezes, sem remorso, com mas foi solto logo depois. Ele mes- tendo fazer isso apenas na pri- volume todo. Na próxima colu-
a de tantos outros autores melho- mo conta que teve algum tipo de meira parte dele, que é mais do na, tentarei uma abordagem dele
res do que ele. “proteção” no exército; em outra que suficiente como amostra do em close reading.
24 | JANEIRO DE 2024

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL + HQ + JOVEM

Em seu mais recente livro, o quadrinista André Dahmer toca Quando as pessoas olham para Melissa,
em um tema central no mundo de hoje: como os algoritmos acham que veem um menino chamado
ditam a vida, o consumo e o prazer do mundo todo. Nas mais George. Mas ela sabe que não é um
de duzentas tiras de Quadrinhos dos anos 20, ele retrata a vida menino. Sabe que é uma menina.
consumida por celulares e redes sociais. Trajado com um macacão Melissa acha que vai ter que guardar
e capacete laranjas, como aqueles feitos para lidar com materiais esse segredo para sempre. Mas então a
tóxicos, o vilão de Dahmer dissemina desinformação, estimula sua professora anuncia que a turma irá
Quadrinhos dos anos 20
comportamentos extremistas, corrói nossa concentração e encenar A teia de Charlotte. E Melissa
incentiva o consumismo — tudo isso com o humor característico ANDRÉ DAHMER quer muito fazer o papel de Charlotte,
Quadrinhos na Cia.
do autor. Ancoradas no aqui e agora, as tiras do artista carioca são protagonista da peça. Só que a professora Melissa
240 págs.
uma crônica mordaz da realidade, combinadas com altas doses diz que Melissa não pode fazer o teste
ALEX GINO
de sarcasmo, acidez e poesia. Dessa maneira, Dahmer provoca para a personagem porque... ela é um Trad.: Regiane Winarski
reflexão para além da cortina de likes e compartilhamentos que menino. Com a ajuda de Kelly, sua Galera Júnior
tomou de assalto a nossa época. melhor amiga, Melissa elabora um 142 págs.
plano. Não apenas para ela poder ser
DIVULGAÇÃO
Charlotte — mas para que todos saibam,
de uma vez por todas, quem ela é.

Noite de brinquedo apresenta a


jornada de Maria, uma menina
rainha que cresceu brincando reisado
— folguedo que é uma mistura de
teatro, brincadeira e festejo. Até
que um dia, assim como manda a
tradição desse brinquedo popular,
ela precisa passar a coroa para uma
menina mais nova. Não bastasse o Noite de brinquedo
desafio de viver esse rito de passagem ANTONIA MATTOS E
e crescer, coisas estranhas acontecem GABRIELA ROMEU
no terreiro de Yayá, a avó de Maria, e Ilustrações: Luci Sacoleira
ela é convocada a atravessar o sertão Peirópolis
numa noite escura sem fim. 128 págs.

Aos 19 anos, Sofia, uma brasileira que


mora com a família em Dublin, se
vê às voltas com o desaparecimento
dos avós, professores universitários
progressistas que somem
misteriosamente, sem deixar pistas,
durante a pandemia de covid-19.
Quando recebe um enigmático
bilhete da avó, Sofia, com o apoio da
família, decide partir à procura dos A estranha viagem da
dois. Ela então vai refazer as etapas de garota de cabelo azul
uma viagem que, ainda adolescente, BEL BRUNACCI
fez com a avó: Paris, Londres, Ilustrações: Christiane
Edimburgo. Ao longo do percurso, Costa
pistas nem sempre muito claras, Yellowfante
orientam os passos da garota. 128 págs.

Este é o primeiro livro do cartunista


Madeleine, resistente Onde vivem os monstros argentino Tute publicado no Brasil.
A ROSA ENGATILHADA MAURICE SENDAK
Seus quadrinhos abordam, com
Dominique Bertail, Jean-David Morvan e Madeleine Riffaud Trad.: Heloisa Jahn muito humor e ironia, o mundo da
Trad.: Renata Silveira Companhia das Letrinhas psicanálise e, por extensão, nossa
Nemo 48 págs. condição existencial, a complexidade
128 págs. das relações interpessoais e amorosas.
Suas belas imagens, que vão do
Nascida em 1924, Madeleine Riffaud vivia uma Quando Max veste sua fantasia de lobo, acaba grotesco ao singelo, do sintético
vida feliz ao lado de seu amado avô e de seus pais fazendo tanta bagunça e malcriação que sua ao poético, se combinam num Tua terapia
professores. No entanto, a crueldade da Segunda mãe o manda dormir sem jantar. Ao entrar diálogo vivo e surpreendente TUTE
Guerra Mundial separou essa convivência no quarto, porém, Max embarca em uma com o texto, revelando todo um Trad.: Anna Turriani
familiar. Posteriormente, sua batalha contra a viagem até a ilha onde vivem os monstros. Lá, subterrâneo de significados que Perspectiva
tuberculose a confinou em um sanatório. Apesar o menino é nomeado rei e se torna livre para encantam e divertem. 160 págs.
do ambiente desafiador, esse local inapropriado mandar, desmandar e fazer o que bem entender,
não foi capaz de deter a determinação da sem se preocupar com regras impostas por
adolescente obstinada, que nutria um projeto outras pessoas. Mas a alegria do reinado de Max Marina tem um monstro
ousado, porém essencial: ingressar na Resistência fica estremecida quando o menino sente, do de imaginação. Ele tem
Francesa. Sob o codinome “Rainer”, Madeleine outro lado do mundo, o cheiro de um jantar comportamentos estranhos, então
se tornou uma testemunha privilegiada de seu quentinho... E, assim, ele precisará refletir sobre Marina não sabe muito bem como
tempo. Além de sua valentia como resistente, sua partida (e suas escolhas). Essa é uma obra nomeá-lo. Insegurança, ansiedade,
ela é reconhecida como uma talentosa poetisa sobre o conflito entre a liberdade desejada pelas vergonha? Todos são nomes ótimos,
e jornalista. Agora, aos 98 anos de idade, crianças e a autoridade imposta pelos adultos. e por isso tudo fica tão confuso para
Madeleine compartilha os momentos marcantes Ao longo dos anos, Onde vivem os monstros ela. Nesta história, as irmãs Bete e
de sua vida por meio de uma trilogia apresentada se tornou um dos mais aclamados e traduzidos Marcia Tiburi propõem uma reflexão Marina e o monstro
no formato de graphic novel. Os detalhes dessa livros ilustrados de todos os tempos. Depois de sobre como lidar com os sentimentos BETE TIBURI
autobiografia são enriquecidos pelo roteiro extrapolar as fronteiras do livro para virar filme, difíceis que, se encarados com amor, Ilustrações: Marcia Tiburi
de Jean-David Morvan e as ilustrações de ópera e teatro, agora a obra está de volta ao podem ser uma grande fonte de PequeNós
Dominique Bertail. Brasil em nova edição. amadurecimento. 48 págs.
JANEIRO DE 2024 | 25

luiz antonio de assis brasil


O CÂNONE NA MOCHILA

A MORTE EM VENEZA
REPRODUÇÃO

1. 6.
Nada mais contraditório do Tudo se transforma, porém,
que juntar a Veneza-clichê com a quando descobre e examina à dis-
morte de seus visitantes — essa tris- tância Tadzio, o adolescente, filho
te singularidade, entretanto, foi pro- de uma refinada família polonesa,
tagonizada por Richard Wagner, que e que o conquista pela quase insu-
ali faleceu em 1883, de ataque car- portável perfeição de rosto e cor-
díaco. O mesmo aconteceu com o po. Vêm à tona todas as analogias
ser ficcional Gustav von Aschen- estéticas e mitológicas que habita-
bach, criatura de Thomas Mann, vam esse homem saturado de cul-
três décadas depois, mas de uma epi- tura e civilização. Ao vê-lo, cede a
demia. Curiosamente, ambos eram um pensamento espontâneo, con-
alemães e artistas: Wagner, vulcâni- tudo previamente lapidado pelo
co músico e poeta; von Aschenbach, exercício da análise erudita:
escritor, deprimido, esteta, irritadiço
e hipersensível, paranoico. Sobre o colarinho, que, po-
rém, nada tinha de elegante ou
2. combinado com o talhe do terno,
Em Aschenbach, essa comple- repousava a flor da cabeça num en-
xa questão essencial é que motiva a canto incomparável — a cabeça de
novela A morte em Veneza — de Eros, com o brilho amarelado do
que já tratei muito de passagem na mármore de Paros, com sobrance-
coluna de junho de 2020 —, a qual lhas finas e sérias, têmporas e orelhas
é deflagrada por uma situação crí- cobertas pela entrada retangular dos
tica constituída pelo enamoramen- anéis de cabelo escuro e macio.
to tardio e platônico de Aschenbach
[tinha 60 anos] por um adolescente 7.
hospedado no mesmo hotel. Veneza, [Do ponto de vista da foca-
nos verões dos inícios do século 20, lização, o autor constrói um pro-
atraía a nobreza e os burgueses ricos digioso artifício técnico, que se
de toda Europa, que vinham ocupar constitui em contar a história em
os hotéis mais luxuosos. Essa Veneza terceira pessoa, mas com tal adensa-
festiva da novela, porém, é assolada mento no vórtice psicológico que o
por uma epidemia, que, longe de ser leitor se sente perante um texto em
uma gripezinha, matava as pessoas, primeira pessoa e assim, o pudico
que morriam como moscas entre as Thomas Mann consegue esconder-
ruelas cobertas de esbranquiçadas -se, e de maneira brilhante, de uma
lagoas de inúteis desinfetantes. A exposição escandalosa. Mas disso
questão era fugir, sair dali o quanto também é feita a literatura, nada
antes, coisa que Aschenbach não faz, mau para os iniciantes meditarem.]
deixando-se ficar para a morte certa,
num verdadeiro suicídio. E deixa-se 8.
ficar por quê? Por um amor impos- Thomas Mann, autor de A morte em Veneza Mas voltando a Tadzio: essa
sível. A morte, enfim, realiza o de- admiração intelectual, aos poucos,
sejo do escritor. ganha cobiçada e desejável carna-
ção humana, deixando von As-
3. 4. sas abstratas e transcendentais, me- chenbach siderado, preso de modo
Desde que fiquei consciente Gustav von Aschenbach, ditou sobre a misteriosa relação que obsessivo à figura flexível que se
que seria escritor, nunca tive proble- personagem, evidencia um con- a legalidade tinha de manter com a exercita em jogos juvenis com ou-
ma com spoilers. Gosto de começar junto de circunstâncias interio- individualidade, a fim de nascer a tros hóspedes. É nesse momento em
um livro já sabendo como termina; res que, somadas e misturadas em beleza humana; daí chegou aos pro- que come um morango comprado
assim, posso acompanhar, passo a sua atormentada psiquê [“alma”, blemas gerais, e achou, finalmente, a um ambulante: devorava simbo-
passo, as decisões narrativas e estru- eu preferiria dizer], é propício a que suas descobertas e certas insi- licamente o corpo de Tadzio, e, jun-
turais tomadas pelo ficcionista para desencadear qualquer catástro- nuações aparentemente felizes do to, infestava-se pela cólera hindu,
chegar àquele final, e assim aprender fe coletiva, e, inclusivamente, sua sonho, as quais, a uma mente só- que começava a avançar pela cidade
com quem escreve melhor do que eu desgraça pessoal. Digamos: ele foi bria demonstravam ser completa- já pútrida pelo verão e pelo siroco
[uma legião!]. No caso de A morte para Veneza para morrer, e Tho- mente insípidas e inúteis. que soprava do norte da África. Daí
em Veneza, Thomas Mann, já no tí- mas Mann dotou-o da sensibilida- por diante, é a ladeira para o fim,
tulo, diz o desfecho. O mesmo acon- de necessária para isso. Digamos: 5. que já sabemos qual é. Depois de
tece em Morte no Nilo, mas há uma onde estiver, Aschenbach leva um Essa mente nervosa e imagi- murmurar um inaudível “Amo-te”
diferença: trata-se de uma novela po- universo e suas circunstâncias. Isso nativa faz com que viva em cons- destinado a Tadzio, revelando a si
licial, e de Agatha Christie, em que a já aparece no início, ainda na Ale- tante estado de epifania: qualquer mesmo a natureza de seu excrucian-
morte acontece no decorrer da narra- manha, quando caminha próximo objeto, desde os mais corriquei- te sentimento, entrega-se ao desti-
tiva, e o enredo é para descobrir o as- a um cemitério e julga ver um ho- ros até as mais sublimes perspec- no, e morre numa rua sombria.
sassino. Já em A morte em Veneza, a mem que lhe lembrava coisas si- tivas arquitetônicas, faz com que
morte acontece ao final, e não se tra- nistras; depois, já na gôndola, em passe por diversos planos de per- 9.
ta de descobrir quem matou quem, Veneza, assusta-se com o aspecto cepção, construindo universos A morte em Veneza, com
mas de percorrer as razões internas de fúnebre das madeiras negras, lus- móveis de sensibilidade; isso, no o artigo definido, nos leva a uma
quem entregou-se de vontade própria trosas. Mas ele mesmo sabe que entanto, não o faz feliz, ao con- obra única da literatura, plena de
ao desenlace fatal. Ambas as obras sua sensibilidade é incontrolá- trário: as diferentes estesias que sentidos, acessível às pessoas que
exigem participação ativa do leitor; vel, e assim divaga após o jantar lhe proporcionam a cidade turís- não se contentam com uma leitu-
no caso de Agatha Christie, o leitor no hotel: tica deixam-no exausto, não da ra, nem com duas, à busca da sen-
é puxado especialmente pela lógica; conhecida síndrome de Stendhal sibilidade que eventualmente anda
em Thomas Mann, pela sensibilida- Cansado, e, contudo, espiri- — quem já a experimentou, sabe esquecida num canto qualquer da
de. E é considerando a sensibilida- tualmente emocionado, distraiu-se, como é terrível — mas de um pos- alma. Se essa novela não for para a
de que posso ensaiar algumas notas. durante a morosa refeição, com coi- sível e ameaçador embotamento. mochila, nenhuma deve ir.
26 | JANEIRO DE 2024

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

ESCREVER DORMINDO
Ilustração: Carina S. Santos

D
ormir é bom para os vez que “desligamos”. Wittgens- de que o inconsciente é muito cia da sua parte, e completamente
chacras e para a glându- tein, nos seus Diários, concorda: mais ficcional que o consciente. fora de seu controle. Grandes paisa-
la pineal. É bom para o Toda poética do devaneio se ba- gens criam-se por si mesmas, imen-
corpo horizontalizar-se [...] poder trabalhar asseme- seia neste princípio, aliás, e há inú- sas e esplêndidas vistas, cores ricas e
e despir-se, em contraste com as lha-se em tantos aspectos ao poder meros artistas (não só das palavras) sutis, estradas, casas, que ele nunca
demandas opostas da vigília. Mas adormecer. Se pensarmos na defi- que desenvolvem técnicas de so- viu ou ouviu falar. Estranhos sur-
você já pensou que o repouso tam- nição freudiana de sono, podería- nambulismo, meditação transcen- gem e são amigos ou inimigos, em-
bém contribui — e bastante — mos dizer que em ambas as coisas dental ou estratégias para alcançar bora a pessoa que sonha nunca lhes
para a literatura? trata-se de um deslocamento massi- sonhos lúcidos, tendo em vista o tenha feito nada. Ideias de fugas e
A vida é sonho, dizia Cal- vo do interesse (Em um caso, trata- aperfeiçoamento de sua criativida- perseguições são recorrentes nos so-
derón de la Barca; os livros, igual- -se de uma mera retirada, em outro de. Existem estudos sobre a qua- nhos e igualmente arrebatadoras.
mente. Não se pode criar uma de uma retirada & concentração em lidade particularmente exótica de Comentários excelentes e espirituo-
obra artística sem imaginação — outro lugar). ideias hipnopômpicas — aquelas sos são feitos por todos. É bem ver-
e quase sempre ela habita os re- relativas ao período entre vigília e dade que, se relembrados durante o
cônditos da mente, acessados em Em outra entrada dos Diá- sono. O grande problema, neste dia, eles desbotam e perdem o senti-
momentos descontraídos. rios, ele reitera: “Sob muitos pon- caso, é manejar a transição, agarrar do, pois pertencem a um plano di-
Freud, eternamente asso- tos de vista, o sonho & o trabalho o tema antes que se ele perca nas verso, mas assim que o sonhador se
ciado à interpretação dos sonhos, intelectual se assemelham. Mani- brumas do sono efetivo — e sem deita à noite, a corrente é de novo li-
foi cogitado para o Nobel de Li- festamente em função de ambos deixar que ele se racionalize, tor- gada e ele se lembra de como eram
teratura, e na mesma linha pode- implicarem uma ausência de aten- ne-se censurado e conformado às excelentes. A todo momento, o sen-
mos ler os Seminários de Lacan: ção em relação a certas coisas”. O expectativas óbvias de um assun- timento de uma imensa liberdade
pelo seu valor poético, além de flow, a concentração obsessiva nu- to que se molda numa fórmula. o circunda e o trespassa como o ar e
psicanalítico. A psicanálise sem- ma atividade específica, é o procedi- Voltando à psicanálise, La- a luz, uma beatitude sobrenatural.
pre se interessou pela literatura, mento comum entre criar e sonhar can recorda, nos seus Escritos: Ele é um privilegiado, aquele que
e o principal motivo é que a li- — além do uso da imaginação. nada tem a fazer, mas para cujo en-
teratura vem dos sonhos. O seu O sono profundo é um re- [...] continuam raras, senão riquecimento e prazer todas as coisas
método de composição em pro- quisito para a saúde, e a ciência pobres, as pesquisas sobre o espaço e são reunidas; os reis de Társis virão
sa assemelha-se a uma narrativa inclusive mostra como ele pode o tempo no sonho, sobre seu estofo lhe trazer presentes. Ele participa de
onírica: com condensação, des- proteger até contra o Alzheimer. sensorial, sonho em cores ou atonal uma grande batalha ou de um bai-
locamento etc. Eliminando os resíduos criados — e o odorífero, o saboroso e a pi- le, e admira-se de, em meio a esses
Lacan comenta, em Função pelo funcionamento do cérebro tada táctil porventura entram nele, acontecimentos, desfrutar do enor-
e campo da fala e da linguagem, em vigília, a proteína beta-amiloi- se o vertiginoso, o túrgido e o pesa- me privilégio de continuar deitado.
texto publicado nos seus Escritos: de — que se acumula, nos casos do ali estão?
“Elipse e pleonasmo, hipérbato ou da citada doença — não chega a Parece não haver desvan-
silepse, regressão, repetição, apo- níveis anormais. Esse é um proce- A sinestesia também é um tagens em dormir (embora al-
sição, são esses os deslocamentos dimento que ocorre na parte sem território rico (e pouco considera- gumas vítimas do capitalismo
sintáticos, e metáfora, catacrese, sonhos da noite, o “sono de ondas do) nas histórias sonhadas. E Ka- considerem o ato um desperdí-
antonomásia, alegoria, metoní- lentas”: algo funcional para o or- ren Blixen, na Fazenda africana, cio). Por experiência própria, eu
mia e sinédoque, as condensações ganismo. A parte com sonhos, que lembra maravilhosamente como me tornei uma defensora das lon-
semânticas em que Freud nos en- envolve o REM, seria então a fase dormir pode ser — além de um gas noites de repouso, e hoje con-
sina a ler as intenções ostentatórias estética do dormir — na medida trabalho artístico e uma necessida- sidero a falta de criatividade como
ou demonstrativas, dissimulado- em que se criam “filmes”, “cenas” de orgânica — um verdadeiro en- sendo essencialmente um proble-
ras ou persuasivas, retaliadoras ou ou “histórias” no inconsciente. tretenimento, uma viagem: ma de insônia. Em última instân-
sedutoras com o que sujeito mo- Essa percepção do valor ar- cia, bastaria ao sonhador aguçar o
dula seu discurso onírico”. tístico dos sonhos, naturalmente, O prazer do verdadeiro so- senso de observação — e, sobretu-
Freud mencionara o Trau- não é nova. O automatismo psí- nhador não está na substância do do, a memória — para constatar
marbeit, o trabalho do sonho. Há quico do Surrealismo, lá pelo iní- sonho, mas no fato de que tais coisas com que eficiência se pode escre-
uma narrativa em potencial a cada cio do século 20, reforçou a ideia acontecem sem a menor interferên- ver dormindo.
JANEIRO DE 2024 | 27

Uma careta
de um “divaísmo”. A autora joga
com essas ambiguidades o tempo
todo, se comenta eventualmen-
te sobre o “privilégio enorme”

viril, engraçada
de ter podido ouvir Susan e Jo-
seph Brodsky conversando, logo
em seguida lança seu juízo sobre
eles e cuida de temperar seu re-

e maliciosa
lato com aspas de piadas inapro-
priadas e outras grosserias que
Sempre Susan: um olhar ouviu. Sobre as grosserias de Su-
sobre Susan Sontag san com estranhos, Sigrid arre-
SIGRID NUNEZ mata com esta:
Trad.: Carla Fortin
Instante
Com o esmero de uma escuta clandestina, Sigrid 128 págs.
Eu pensava que um homem
que se comportasse como ela pro-
Nunez registra a intimidade de Susan Sontag vavelmente teria aprendido muito
tempo antes, pelas mãos de outro
homem, uma ou duas coisas sobre
MARIANA IANELLI | SÃO PAULO – SP respeito.

Anedota
Toda essa costura de lem-

O
branças envolvendo nomes co-
reduto das intimidades A menção de Sigrid a esses como eu era quando você me co- nhecidos do meio literário (como
processadas em literatu- namoros paralelos é emblemáti- nheceu”, ao que Fornés respon- desforra incidental, Sigrid se dá
ra anda bem iluminado ca de um espelhamento pratica- de, detonando o riso em Susan: conta, enquanto escreve, mais de
nas vitrines das livrarias. do em seu livro também sob a “Ela era uma idiota”. Ou ainda trinta anos depois, de que “estão
Na seara do relato pessoal, Sem- forma de uma interlocução lite- o título atribuído a Sigrid den- todos mortos”), toda essa trama
pre Susan: um olhar sobre Su- rária. Mas não custa o mínimo tro do trio formado juntamente de aspas, fora do âmbito das en-
san Sontag traz as lembranças que pudor de observar que a rela- com David: “o duque, a duquesa trevistas, essa trama de entranhas,
a autora Sigrid Nunez guarda do ção entre Sigrid e Susan não se e a patinha de Riverside Drive”. de falas captadas na intimidade
seu período de convívio com a es- configurava numa relação entre Podemos estender o gosto desse ou ditos inéditos, sabemos que
critora Susan Sontag. Mesmo o re- colegas. Pode provocar uma im- humor amargo e acrescentar que, atende sempre muito bem ao
A AUTORA
lato sendo breve e ligeira a leitura, pressão de coleguismo, por exem- para “uma aspirante a escritora”, gosto popular pela anedota. Si-
não é sem desconforto que fecha- plo, quando a autora se lembra de essas doses de provocação de sua SIGRID NUNEZ grid ela mesma, antes de conhe-
mos essas páginas. estar com Susan na St. Mark’s Pla- “mentora” não seriam em vão: se cer Susan Sontag, ouvia rumores
Nasceu em Nova York, em 1951.
Sigrid era uma jovem de 25 ce e ela apontar para “duas mu- não lhe serviram para matar a vo- sobre o que se passava na cober-
Graduada em 1972, obteve mestrado
anos, com mestrado recém-con- lheres com aparência excêntrica, cação, a puseram à prova e ago- tura da Riverside Drive, e de-
na Universidade Columbia em 1975.
cluído, quando aceitou o “bico” uma de meia-idade, a outra ido- ra se dispõem ao uso, por armas Estreou no romance em 1995 com A
pois de morar lá se viu cercada
de trabalhar para Susan Sontag, sa, ambas vestidas como ciganas”, também verbais. feather on the breath of God e, desde de curiosos por fofocas e infor-
então recém-saída de uma mas- dizendo em tom de brincadeira: Dentro do jogo que ambas então, segue publicando outros livros mações de bastidor.
tectomia, ajudando-a a liquidar a “Nós duas daqui a trinta anos”. parecem jogar, Susan Sontag te- de ficção, como o romance The last Descortinar a privacida-
correspondência acumulada. Si- Ou o fato de Sigrid dispor de um ria se sentido “vingada” quando of her kind, em 2006, e Salvation de de alguém que consideramos
grid “datilografava e morava por quarto a mais no apartamento Sigrid não se deu bem num re- city, de 2010. Recebeu diversos nosso mentor, mesmo dosan-
perto”, por isso a haviam indicado de Susan para seu próprio escri- tiro de escritores. E “magoada” prêmios literários, entre os quais do decepção e apreço, há de co-
a Susan. O que se desdobra entre tório, ou de ser confundida com por Sigrid não acatar suas suges- o Berlin Prize, bolsa de estudos laborar em suprimir distâncias,
quatro paredes, a partir dessa re- a escritora, certa feita, numa fes- tões sobre um dos seus rascu- concedida pela American Academy redimensionar grandezas, além
em Berlim, em 2005. No Brasil, além
lação, primeiramente entre uma ta em Nova Orleans, por um ho- nhos, a ponto de ignorar todos de facilitar alguns espelhamen-
de Sempre Susan, foram publicados
escritora e sua assistente, duran- mem embriagado. os seus textos dali para frente. O tos muito humanos. Essa im-
pela Instante: O amigo (2019) e O
te não mais que três ou quatro contra-ataque vem com teor crí- que você está enfrentando (2021).
pressão de proximidade também
encontros, depois, entre Susan e a Íntimo inevitável tico-literário: embora considere atende bem a possíveis novas ge-
namorada de seu filho (Sigrid co- Essa era uma relação con- Susan de fato sua mentora, Si- rações de escritores autoconfian-
meçaria a namorar David e a mo- fusa por natureza e circunstân- grid “não confiava” no que ela tes. De qualquer modo, seja qual
rar na casa de Susan), é registrado cia, que transitava entre o íntimo tinha a dizer sobre escrita, por for sua razão de ser, Sempre Su-
nessas breves memórias com o es- inevitável da vida de Susan Son- não gostar de sua ficção nem de san dá à autora a credencial de ter
mero de uma escuta clandestina. tag em sua casa e seus círculos seu estilo, considerava-a insegu- feito parte de um período da vi-
Conversas telefônicas (lite- de amigos, e leituras, reflexões, ra por se preocupar com cada vír- da de Susan Sontag, e talvez seja
ralmente), meandros psíquicos conversas que nutriam e atiça- gula e depender de um leitor por essa, também para alguns jovens
de relações familiares e amoro- vam uma escritora principiante, perto durante o processo de es- leitores, a porta de acesso a ou-
sas, espontaneidades de ocasião, por um momento ali, parte e tes- crita. Além disso, a “patinha de tros livros seus (lançados no Bra-
engraçadas ou virulentas (ou temunha do dia a dia no aparta- Riverside Drive” também se di- sil também pela Instante).
uma mistura de ambas), tudo mento da Riverside Drive, parte vertia com David cunhando um Nos diários de Susan Son-
o que foi captado pela observa- e testemunha de uma vívida cir- título para Susan: “nossa enfant TRECHO tag, há uma curiosa menção a Si-
ção aguçada da autora, enquan- culação de ideias e pessoas, rápi- terrible” — a que tinha alma de Sempre Susan grid, entre novembro e dezembro
to ela frequentou a casa de Susan, das refeições desleixadas, chistes eterna estudante, a que buscava de 1976: “‘Isto não é um tema:
vai temperando a dedo esse caldo e críticas misturados, recorren- aprovação e “não suportava ficar uma sensibilidade delicada em
de lembranças, que tem início na tes jogos psicológicos. Havia sozinha”, a que se levava dema- É claro que ser inteligente, confronto com o mundo visco-
primavera novaiorquina de 1976, sim pequenas mágoas e peque- siado a sério, nada maternal, ir- talentosa e muito bem- so, sem coração, frustrante. Vá
no número 340 da Riverside Dri- nas desforras na dinâmica desses ritável, elitista, tão suscetível à sucedida não necessariamente arranjar um conflito para você.’
ve. Era a época da primeira luta jogos, e isso nós acompanha- beleza que “se a pessoa fosse lin- torna uma pessoa segura. Por (eu para Sigrid)”. Encontramos,
de Susan contra o câncer, doen- mos de perto nas ambivalências da, não precisava ser nem um ainda, nos diários, a mesma “pia-
ça que passaria a ocupá-la como do relato de Sigrid, que não se pouco inteligente”, a de inimigos acaso, eu a vi logo depois que da casual” de Joseph Brodsky que
motivo de estudo e escrita, épo- furta a revelar, por exemplo, o entre os próprios amigos, des- terminou de escrever aquele aparece nas páginas de Sempre
ca em que, nas palavras de Sigrid, deboche que Susan lhe fez, um contente por não ter sido mais que é provavelmente seu Susan: “se você quer ser citado,
“em parte graças a seus ensaios dia, na frente de várias pessoas, artista do que crítica, famosa por conto mais admirado, “Assim não cite”. Também nas anotações
altamente conceituados e popu- dizendo: “Todo mundo publica seus ensaios, mas frustrantemen- de 1976, Susan registra uma de-
lares sobre fotografia e em parte suas porcarias. Por que você não te pouco reputada por seus ro- vivemos agora”. finição para a escrita: “Escrever é
por causa de sua franqueza so- publica as suas também?”. mances e contos. fazer uma careta — viril, engraça-
“Eu o escrevi muito rápido”,
bre ter câncer, Susan surfava em Há outros episódios, diga- Assim a autora vai com- da, astuta. Não desdenhosa. Ma-
uma segunda onda de celebrida- mos, carinhosamente humilhan- pondo seu retrato particular de ela disse, “e pela primeira vez liciosa”. Pensando em Sempre
de”. Também época de presenças tes sob o alvo da zombaria de Susan Sontag, essa “sempre Su- soube na hora que era bom. Susan e na influência da escrito-
importantes em sua vida cotidia- Susan, como quando a própria san” por David jamais tê-la cha- Porque normalmente, você ra sobre o modo de pensar e es-
na, como a do poeta russo Jose- compara a jovem que ela foi com mado de mãe, essa “sempre crever de Sigrid, essa é uma visão
sabe, meu primeiro sentimento
ph Brodsky, que viria a namorar Sigrid, e, na sequência, na presen- Susan” como possível expres- afinal bastante oportuna. Uma
Susan à mesma altura em que Si- ça da ex-companheira Maria Ire- são de afeto, porém igualmente sobre tudo o que escrevo é que é careta viril, engraçada, astuta.
grid começava a namorar David. ne Fornés, incita: “Diga a Sigrid guardando aí o sentido irônico uma merda”. Sim: maliciosa.
UM GRANDE CLÁSSICO
DO SÉCULO 20

DE F. SCOTT FITZGERALD

B A I XA R E B O O K
G R ÁT I S

g azet a d opovo.com. br/ogran d egat sby

PROMOÇÃO GRATUITA DA GAZETA DO POVO


JANEIRO DE 2024 | 29

Arqueologia
O ressentimento e a culpa, çou com uma foto”, escreve lo-
de ambos os lados, também po- go na primeira linha. Ora, esse
voam os espaços que separam pai é o método que Ernaux também
e filho. E tudo isso está na constru- se vale. Em A outra filha, a au-

de si mesmo
ção da narrativa, uma carta kafkia- tora — vencedora do Nobel de
na dirigida ao pai. Diferentemente Literatura em 2022 — usa uma
do tcheco, Édouard Louis não sen- fotografia como estopim para in-
tia apenas medo, mas compaixão, vestigar o passado da irmã, que
tentando entender o que estava morreu anos antes que ela nasces-
por trás de toda aquela agitação se. Ernaux e Louis são arquitetos
O francês Édouard Louis (re)constrói Quem matou meu pai negativa. A narração é povoada de da simplicidade, parte de ques-
ÉDOUARD LOUIS
a história da sua família, marcada pela Trad.: Marília Scalzo
datas ou marcações temporais que
situam o leitor no tempo e no es-
tões cotidianas para chegar a pro-
fundidades abissais.
violência e pela ausência de afeto Todavia
72 págs.
paço, que ajudam a conceber tam- Os dois fazem dos seus li-
bém um senso rítmico. vros cartas e testemunhos, uma
ação deliberada de dar voz a um
JONATAN SILVA | CURITIBA – PR Círculo de imperfeições mundo de excluídos. Tanto um
Dentro de casa, Louis tinha quanto outro também se dis-
uma amostra do que vivia na esco- tancia do melodrama fácil, da
la: a violência e o bullying desper- banalidade do sofrimento e da
tados pela sua homossexualidade, baixeza das intrigas familiares.
And when you want to live porém, escondida. Partindo da a intriga diante do que é desco- Louis, quando escreve sobre a
How do you start? complexa relação com um pai nhecido. A família, que morava mãe, fala sobre uma mulher so-
Where do you go? abusivo, ausente e homofóbico, em uma cidade pequena, vivia sob berana que, a despeito de todas
Who do you need to know? o livro tenta reconstruir a dis- a égide dos costumes do pensa- as cicatrizes — muitas delas do
Morrissey senção do elo familiar. O ho- mento raso e da negação de tudo primeiro casamento, antes de se
mem que outrora era alegre e o que não é perfeito dentro da- encontrar com Bellegueule — so-

“T
gostava de receber os amigos Lutas e metamorfoses quele pequeno círculo de imper- nha em voltar a viver.
alento é sorte”, es- e dançar havia se transforma- de uma mulher feições. Esse era o modus operandi Lutas e metamorfoses
creve Woody Allen do em um sujeito amargura- ÉDOUARD LOUIS da região, como se fosse impres- de uma mulher vai explorando
em Manhattan, um Trad.: Marília Scalzo cindível estar em um mundo sem os aspectos sinuosos de uma fa-
do e violento, que reprimia a
Todavia
de seus melhores e sua emoção e os seus sentimen- 112 págs.
mudança, sem qualquer alteração, mília em degradação e, simul-
mais importantes filmes. “O que tos, assim como o de toda a fa- sem coisa alguma que pudesse tra- taneamente, a inocência de um
importa mesmo é coragem.” Em mília. Ao narrar a brutalidade zer o mínimo sinal de perigo. O menino em formação. Dessa jun-
seus dois livros mais recentes, o dessa relação, Louis humaniza resultado de toda essa equação de ção, o leitor se depara com cenas
francês Édouard Louis confir- alguém que, por anos a fio, vi- traumas é a solidão, que Louis so- que entrelaçam o cômico e o me-
ma que tem ambas as caracte- via sob uma forma monstruo- fria todos os dias. lancólico, algo que Elena Ferran-
rísticas. Quem matou meu pai sa da existência. Quem matou meu pai é te havia também encenado em
— uma afirmação — e Lutas e E ao mesmo tempo em uma obra assombrosa, triste e co- Um amor incômodo, sobretudo
metamorfoses de uma mulher que nomeia cada uma das vio- movente, porém, consegue esta- quando a filha se sente excitada
continuam o projeto que Louis lências e humilhações que so- belecer um pensamento sólido durante o velório da mãe.
começou com O fim de Eddy e freu desse pai, o autor o perdoa acerca da maneira como as crian- Louis, porém, consegue dar
História da violência: transfor- e o revela em uma névoa de fra- ças veem o mundo. Escutando o vida a uma cena, esta real, tão dila-
ma a sua própria vida em matéria- gilidades sociais acachapantes podcast Projeto humanos: O caso cerante quanto a de Ferrante:
-prima para o fazer literário, algo — o que alivia a gravidade de Leandro Bossi, que tenta desven-
que o faz pertencer à linhagem de todos os traumas que produ- dar o assassinato de uma criança Um dia eu falei, diante de to-
Annie Ernaux, por exemplo. ziu na família, mas traça um em Guaratuba (litoral do Para- da a família reunida, que adora-
Toda a literatura de Édou- itinerário, por exemplo, do ná), cujo corpo foi encontrado ria que srta. Berthe, professora de
O AUTOR
ard Louis é a arqueologia de si olhar conversador de um ho- não muito longe de onde acha- história da escola, fosse minha mãe.
mesmo: uma busca centrífu- mem massacrado pelo governo. ÉDOUARD LOUIS ram o cadáver de Evandro Ramos Eu devia ter onze anos. Meu irmão
ga de entendimento de mun- A gota d’água é um acidente de Caetano, é impossível não pensar mais velho, que estava comendo ao
Nasceu em Hallencourt (França),
do. Tanto assim que em O fim trabalho que destrói de vez o que Louis também poderia ter si- meu lado, se assustou: Não se deve
em 1992. É conhecido por seu
de Eddy, narra a dissolução de seu corpo e a sua saúde. Nesse do vítima de algo parecido. dizer essas coisas, é errado!
impactante trabalho literário que
sua própria identidade, a trans- ponto, o pai está cada vez mais aborda questões sociais, identidade
Claro, uma coisa não tem, Antes dessa cena não fazia
formação de Eddy Bellegueule envolvido com a bebida e com e classe. Seu primeiro romance, necessariamente, a ver com a ou- ideia de que era errado querer ou-
— o sobrenome em uma tradu- a impossibilidade de ser e estar O fim de Eddy (2014), oferece uma tra, entretanto, o silêncio das tra mãe.
ção literal significa rosto bonito no mundo. Enquanto definha, visão penetrante de sua experiência crianças parece revelar o que a so-
— para Édouard Louis. Abando- leva tudo à sua volta consigo e crescente em uma família operária no ciedade pós-moderna e líquida Como se vê, Édouard
nar seu nome de batismo é a pri- faz da decadência uma narrati- norte da França, explorando temas guarda de pior. E essa é a sensação Louis tenta encontrar os limites
meira de muitas rupturas que irá va particular, íntima, como se como homofobia e pobreza. Seu amarga da literatura de Édouard da ética familiar, da necessidade
tensionar. Depois, História da fosse parte intrínseca de estar trabalho é elogiado pela crítica por sua Louis, de que sempre existe uma de colocar os papéis sobre a mesa
violência é um mergulho som- vivo ou, ao menos, existindo. honestidade e impacto emocional. selvageria escamoteada sob o ver- e, cada um a seu modo, interpre-
brio e lírico em uma experiência- Louis, desde criança, sen- niz das convenções e da hipocrisia tá-los. Em alguma medida, tanto
-limite: o estupro e a tentativa de tia o peso dessa relação: fosse e que, de um jeito ou de outro, le- Quem matou meu pai quanto
assassinato de que foi vítima na num “show de mentira” duran- va tudo para o buraco. Lutas e metamorfoses de uma
véspera do Natal de 2012. te um jantar para amigos, em mulher são a síntese dos encon-
Louis é jovem, nasceu em que o menino cantou Barbie Arquitetura tros e desencontros da vida real,
1992, mas parece ter se jogado no girl, deixando o pai constrangi- TRECHO da simplicidade do colapso equivocado dos ideais
mundo de uma maneira única, e do, fosse na languidez com que Se Quem matou meu pai e da sensação torpe a respeito do
Quem matou meu pai
não como mero espectador, mas voltava para casa da escola. O é uma tentativa de retomar uma que é a vida nas cidades. No ca-
como alguém capaz de ler e inter- medo e a vergonha são o lega- relação rompida, Lutas e meta- so da família do autor, a liberta-
pretar a realidade singularmente. do dos Bellegueule e, quem sa- Numa noite em que fiquei morfoses de uma mulher é uma ção só acontece quando a mãe
A sua literatura reflete a necessida- be, isso não explica o porquê da sozinho porque vocês foram carta à mãe, também visceral e joga todas as roupas do pai por-
de de observar tudo ao seu redor troca de nomes. ainda mais emotiva, pois, assim ta afora e não o deixa entrar no-
comer na casa de uns amigos
e devolver um olhar a partir do como Louis, ela também foi uma vamente. O pai, entendendo o
self. Seguindo os passos do cine- No dia do show de menti- e eu não quis ir junto — das vítimas de um homem que que está acontecendo, não insis-
asta Jean-Luc Godard, a literatura ra, fui atrás de você lá fora, você lembro do fogão a lenha que marginalizou a si mesmo. E é en- te, a mãe, lutando contra si mes-
de Édouard Louis que não aceita fumava compulsivamente, estava espalhava por toda casa seu graçado como o escritor vai reve- ma, vai em frente e, mais tarde,
meios termos, que não se contenta sozinho, de camiseta, fazia frio, lando os fatos mais íntimos com encontra outro homem e se mu-
cheiro de cinzas e sua luz
com o que já está posto, ao contrá- a rua estava deserta e a ausência uma naturalidade intensa, ainda da para Paris.
rio, precisa promover o desconfor- de barulhos era quase infinita, suavemente alaranjada —, que o leitor perceba que, em reali- É engraçado porque, apesar
to, o incômodo e a interrupção do eu sentia o silêncio entrando pela encontrei, em um velho álbum dade, está testemunhando a aber- de ter vivido sempre na mesma re-
fluxo comum das coisas. boca e pelos ouvidos. Você olhava de família roído pelas traças tura de uma caixa de Pandora. gião, somente quando passa a ha-
Por isso, quando escreveu para o chão. Eu dizia: Desculpa, Mais uma vez, Louis está bitar a capital é que deixa de se
e pela umidade, fotos em que
Quem matou meu pai não per- papai. Você me abraçou e disse, em uma caça arqueológica, revi- sentir uma estrangeira. E é a pri-
mitiu que essa fosse uma pergun- Não foi nada, não foi nada. Não você aparecia fantasiado de rando o passando para tentar dar meira vez em que se sente real-
ta, pois a resposta já está ali, dada, se preocupe, não foi nada. mulher, de baliza. conta do presente. “Tudo come- mente quem é.
30 | JANEIRO DE 2024

rascunho recomenda INTERNACIONAL

Em seu novo romance, Lucía Puenzo aborda o tema da infância A escritora Toni Morrison foi quem
roubada a partir da perspectiva de dois adolescentes e um menino de descobriu Gayl Jones e editou seu pri-
seis anos que, vivendo nas ruas de Buenos Aires, são recrutados por meiro romance, Corregidora, publica-
indicação de um ex-policial que se tornou segurança privado, para do em 1975. Apanhadora de pássaros
realizar uma série de delitos em residências de luxo na capital argentina é um livro sobre a ambivalente amizade
e em Punta del Este, no Uruguai. Corrupção, desamparo, violência e entre duas mulheres negras. Nele, Jones
desigualdade social são temas centrais da obra, que também destaca a tece reflexões sobre criatividade femini-
inocência da infância. Aos 46 anos, Puenzo é um nome em evidência na, papéis de gênero e as vicissitudes da
na Argentina e transita com igual desenvoltura entre a literatura e o natureza humana. Ambientada sobretu-
cinema. Em 2010, teve um conto seu selecionado para a primeira do em Ibiza, com passagens que têm co- Apanhadora de
Os invisíveis pássaros
edição de Os melhores jovens escritores em língua espanhola, da mo cenário os Estados Unidos, o Brasil
LUCÍA PUENZO GAYL JONES
revista literária inglesa Granta. Um de seus romances mais conhecidos, e Madagascar, a história é narrada por
Trad.: João Ricardo Trad.: Nina Rizzi
O médico alemão, foi adaptado ao cinema, e a autora também ficou Milliet Amanda Wordlaw, escritora que acom-
Instante
à frente do roteiro e da direção do longa, que arrematou 11 prêmios Gryphus panha o casal Catherine e Ernest Shuger 224 págs.
cinematográficos em festivais ao redor do mundo. 160 págs. em suas andanças pelo mundo.

DIVULGAÇÃO

Colson Whitehead é um fenômeno


literário nos Estados Unidos. Por duas
vezes o autor venceu o Pulitzer, mais
prestigioso prêmio literário do país. Em
Setor Um, os EUA passam por uma
“praga” e zumbis povoam as ruas. As
forças armadas estão encarregadas de
retomar a parte sul da ilha de Manhattan,
área conhecida como Setor Um. E Mark
Spitz é membro de uma das unidades de
Setor Um
varredores responsáveis por se livrar dos
COLSON WHITEHEAD
últimos zumbis que ainda habitam as
Trad.: Érico Assis
ruas desertas dessa Nova York distópica. HarperCollins
No entanto, os resquícios de vidas 334 págs.
passadas que encontra pelo caminho o
levarão a questionar as próprias ações.

Quando Hisham Matar, escritor estaduni-


dense de origem libanesa, era um estudan-
te universitário de 19 anos na Inglaterra,
seu pai desapareceu em circunstâncias mis-
teriosas. Hisham nunca mais o veria, mas
não perdeu a esperança de que o pai ain-
da estivesse vivo. Vinte e dois anos depois,
ele voltou para sua Líbia natal em busca da
verdade por trás desse desaparecimento. O O retorno
retorno fala sobre o que o autor encontrou HISHAM MATAR
lá. Chamada de “memória eloquente”, a Trad.: Odorico Leal
obra foi bastante aclamada pela imprensa Âyiné
mundial e venceu o prêmio Pulitzer. 272 págs.

Paul Renoir é reverenciado por celebrida-


des e, no início deste romance, é eleito o
melhor chef do mundo por seus pares —
Margens e travessias A menina que não fui
a consagração definitiva. Alguém poderia
BOAVENTURA CARDOSO HAN RYNER
querer mais? Contudo, o mundo da alta
Kapulana Trad.: Régis Mikail
448 págs. Ercolano
gastronomia não é o que parece, e a bus-
256 págs. ca pela excelência absoluta e pela perfei-
ção está destinada ao fracasso… Gautier
Boaventura Cardoso é um dos mais importantes A menina que não fui, de Han Ryner, é um Battistella, jornalista, romancista e crítico Chef
escritores da literatura angolana. E no romance romance precursor da literatura LGBTI+, até gastronômico francês, narra o cotidiano e GAUTIER BATTISTELLA
Margens e travessias, o protagonista é então inédito em língua portuguesa. Por meio o fim trágico de um grande chef, e esbo- Trad.: Julia da Rosa Simões
justamente o povo de Angola. O escritor, de de cartas, diários e confissões, Taulane narra ça um painel da gastronomia francesa ao L&PM
forma ficcional, conta a história da formação em primeira pessoa os diversos impasses que longo de quase 60 anos. 264 págs.
de seu país. Para isso, serve-se das lembranças enfrentou em sua vida, não apenas devido a seus
de Kitekulu, um soba (chefe tradicional), e desejos, mas também à sua própria identidade.
Manimaza, filho das águas. Suas conversas Homossexual e órfão, ele é atormentado desde Neste romance autoficcional, o leitor
acontecem enquanto percorrem os rios de Angola a infância por sua atração pelo sexo masculino acompanha uma jovem que encontra na
e suas aldeias ribeirinhas, de forma que os fatos e por um possível desconforto em seu gênero. prostituição uma fonte de prazer e de po-
e mitos do país, desde os tempos pré-coloniais Nas primeiras páginas, o leitor se depara com der. Intrigada com as mulheres que têm
até o período pós-independência, chegam ao uma pessoa que decide contar por escrito como profissão a comercialização do pró-
leitor pelas vozes das personagens do romance. seus conflitos internos numa sociedade ainda prio corpo, e tendo a intenção de escrever
Histórias contadas pelas personagens, troca de hipócrita, que hesitava entre religião e laicidade, um romance, a escritora e estudante pa-
mensagens e cartas entre o soba, chefe de uma e que via na homossexualidade uma patologia. risiense Emma Becker se mudou, aos 25
Zona de Acção, e o Comissário Distrital, relatos François é apelidado de “mulherzinha” e de anos, para Berlim, onde a prostituição é
de uma mãe à espera de seu filho, e as lembranças “rainha Françoise” pelos colegas que por ele legalizada. Sob o nome de Justine, perso- La Maison – minha
e conversas entre Kitekulu e Manimaza formam sentiam tanto desprezo quanto atração. A nagem de Marquês de Sade, começou a história na prostituição
o panorama da história de Angola. Os rios e suas edição também traz uma série de aparatos trabalhar na Maison, um bordel que da- EMMA BECKER
margens não são meros acidentes geográficos. críticos, como o caderno de imagens coloridas, e va especial liberdade às suas funcionárias. Trad.: Alessandra Bonr-
São fios condutores das vivências e narrativas das textos de apoio para a leitura como o prefácio de Nos dois anos em que trabalhou como ruquer
personagens. A dinâmica da narrativa acontece João Silvério Trevisan, O menino que era rainha, prostituta, Emma conviveu com mulheres Record
conforme os rios se formam e são percorridos além do posfácio escrito pelo pesquisador e que eram mães, estudantes e até esposas 192 págs.
pelas personagens. tradutor do livro, Régis Mikail. que escondiam dos maridos sua ocupação.
JANEIRO DE 2024 | 31

PARTO
LUIZA FARIELLO
Ilustração: Mello

— Pra que serve isso aí? — Você quer ver meus dis- — Essa capa aí é legal, a loi- — Tem algum lugar aqui
Lenice suspirou fundo como cos? ra com asa de anjo e esses cabelu- para eu ficar sozinha?
quem se prepara para uma longa expli- Raquel bufou, levantou-se dos. Parece um grafite que eu vi Raquel não esperou pela res-
cação. A menina mantinha os braços com a rapidez que só aos doze é no muro. posta e seguiu pelo corredor, até
cruzados desde que entrara em casa. possível e colocou-se ao lado de- Lenice retirou o disco com encontrar a porta com o enfeite
— É uma vitrola, antigamen- la. Por um instante os cotovelos cuidado e a menina agarrou-o, pendurado — dois passarinhos
te era assim que ouvíamos música. das duas chegaram a se tocar; Ra- lendo com dificuldade: “Mu-tan- angelicais sustentavam pelo bico
A gente coloca os discos para tocar, quel se afastou um pouco dando -tes”. Depois ergueu as sobrance- o seu nome bordado, adorno típi-
o som sai por aqui ó — as mãos um um passinho em diagonal para lhas e encarou Lenice; em vez de co de porta de maternidade.
pouco trêmulas apontaram a caixa trás. Lenice abriu uma grande oferecer alguma explicação, ela Lenice fez o jantar em silên-
de som. gaveta em que os discos estavam retirou o vinil e colocou para ro- cio. Depois chamou a menina, e
— Mas por que você ainda organizados verticalmente por dar no aparelho. A menina seguiu nada. Comeu só. Caminhou até a
tem isso? ordem alfabética; um ou outro com o olhar as mãos da mulher porta do quarto, fechada. Colo-
Lenice balbuciou algo como fazia com que ela se detivesse — apertando e girando botões: cou a mão na maçaneta, retirou
“eu gosto, eu escuto sempre”, mas “há quanto tempo eu não escu- — Você é muito branquela. antes da ação. Bateu. Nem sinal.
Raquel já tinha virado as costas e pe- to esse…”, “esse daqui é especial, “Dizem que sou louco por Estaria dormindo? Pensou em li-
rambulava pela sala. Sentou-se no so- veja!”. A menina espiava as capas, pensar assim/ Se sou muito louco gar para Mariana, a amiga cuja fi-
fá, pisando com o tênis no estofado em seguida buscava qualquer coi- por eu ser feliz...” lha mais velha tinha a idade de
azul-turquesa. Lenice fixou o olhar sa no céu lá fora, ainda não havia Lenice aumentou um pou- Raquel. Apanhou o celular e tor-
nos pés da garota. explorado a varanda. co o volume. Com uma careta que nou a deixá-lo na mesa — isso
entortou o rosto, Raquel foi ao seria já de saída colocar-se em po-
mesmo botão e girou até o final: sição inferior, ou ainda supor que
— Música só é boa mui- uma pessoa sabe sempre como en-
to alta! frentar problemas com os filhos
Lenice tapou discretamente biológicos, o que, como qualquer
os ouvidos, aos poucos foi retiran- um sabe, é mentira.
do os dedos; aguentou até o final, — Eu só quero avisar que o
cantou — “eu sou feliz…” —, le- jantar está pronto — Lenice co-
vantou a agulha e sorriu. loca as mãos na porta, afagando a
— No abrigo você podia madeira. E insiste:
ouvir música nessa altura? — Se você quiser, é só es-
— Não, no abrigo não dei- quentar um pouco no micro, eu
xavam nada. Mas onde eu morava te ajudo.
antes, cada um ouvia o que que- Por fim a menina abre. Pare-
ria ao mesmo tempo e bem alto. ce que diminuiu de tamanho, está
— E não dava briga? — Le- tão criança agora! O cabelo preso,
nice perguntou já rumo à cozinha. uma mecha caindo em caracol de
— Dava, sim. Facão, garra- cada lado.
fada, tiro até. Muito mais legal do — Depois eu como. Ainda
que aqui. não estou com fome, mãe.
A menina estalou os dedos, Paralisada, Lenice não sa-
sentou desta vez no chão, próxima be o que fazer com aquela pala-
ao corredor e disparou: vra. Quer vesti-la feito uma roupa,
— E se eu colocar fogo na mas tem medo de o tecido rasgar,
casa? não servir em seu corpo imenso.
Lenice quebrou no meio o Quer engoli-la, mas dessa forma a
sorriso, encarou-a: palavra perderia sua natureza, des-
— Seria uma pena porque dobraria em outra, se emendaria
nós duas ficaríamos sem ter on- em frases. Então escolhe isto: na-
de morar. da. Fica apenas admirando as três
A menina abaixou a cabe- letras boiando no ar, subindo pe-
ça entre as pernas. Lenice deu las paredes da casa, agora delas.
um passo meio dançante e abriu
a geladeira, apanhou o filé mig-
non para fritar — queria fazer
um belo bife à parmegiana com
batata. Pela manhã, foi questio-
nada pelo açougueiro do super-
mercado por causa da quantidade
pedida em dobro: “Dessa vez vai
receber alguém?”. A resposta en-
talada dava-lhe um gosto amar-
go na boca. Há anos comprava o
mesmo tanto de carne, no mes-
mo lugar, toda segunda-feira, pa- LUIZA FARIELLO
ra passar a semana. Cortou com
É autora do livro de contos Essa palavra eu
precisão o bife, a faca afiadíssima não falo (Patuá), semifinalista do Prêmio
— “na certa ele deve ter pensa- Oceanos e finalista do Prêmio Candango de
do que eu arrumei um namorado Literatura. É professora de língua portuguesa
da rede pública do Distrito Federal. O conto
no Tinder. E falado: aquela baleia Parto integra seu novo livro, ainda sem data
achou alguém!”. prevista de publicação.
32 | JANEIRO DE 2024

O POUSO DOS
VAGA-LUMES
PABLO GONÇALO
Ilustração: Marcelo Frazão

O
carro é um Santana 87, verde fosco, meio abre um pote de sorvete de bauni-
rebaixado. Balança horrores na estrada de lha. Devora tudo que tem dentro,
terra. Chacoalhamos no mesmo ritmo trancado no quarto do meu tio.
do terço, pendurado no retrovisor. Di- Fica com a cara amarela e as bo-
go em voz alta: “Adedooo-nha!”. Sozinha, estendo chechas grudentas. Betinho nem
a mão esquerda junto com três dedos da direita. divide o pote com ninguém. De-
Conto até a letra H, que é péssima. Ninguém ani- pois aparece com uma caganeira
ma. Fico olhando pro adesivo de Nossa Senhora da dos infernos. É aí que minha mãe
Aparecida, colado no vidro da frente. entra em cena e briga com meu
O meu tio Jorge comprou o Santana faz tio, no meio da sala da chácara.
pouco tempo. Ainda tem um cheiro de novo, mis- — Puta que pariu, como é
turado com o fedor do cinzeiro, cheio de bitucas. que você deixa as crianças larga-
Não é o meu tio que dirige; é o Kleber, nosso adul- das assim?
to preferido. Forte e magro, suas veias saltam do A fúria da minha mãe é fa-
braço. Ele tem o cabelo reto, a orelha ralada pe- mosa, sempre comentada à boca
lo tatame dos treinos de jiu-jítsu. Kleber gosta de miúda da família. frio da piscina. Acontecia de os ra- do o carro. Kleber tira o pé do ace-
contrair o braço, faz um muque e fica mostran- — Se liga, Rê! Não vou dei- pazes ficarem de pinto duro. Da- lerador. Deixa no ponto morto.
do a tatuagem com o símbolo do Yin e Yang, que xar de ir pras minhas festas pra va pra ver a cabeça do pinto de Passa devagar por um quebra-mo-
cresce e diminui, quando brincamos de guerra de você ficar batendo perna por aí um deles, vermelhinha, como car- las. Conduz o carro ao lado de um
travesseiros, montinhos de corpos e empurra-em- — provoca meu tio. ne viva, pedindo espaço para pular montinho de terra, com um mato
purra na varanda da chácara. “Bater perna.” Minha mãe para fora daquela pele fina. alto. Ele para e espera. Há um có-
Somos cinco piás espremidos no banco de bufava quando ouvia isso. Mal Naquele dia, meu tio Jorge digo. Eu sei que há. Eu sinto. Esse
trás. Meus primos formam um trio. A Mayra é a chegava em Goiânia e já deixava não vacila, e parece considerar as código me atrai; eu quero prestar
filha do meio do tio Jorge. Tem os olhos verdes co- eu e o Betinho com os tios ou os queixas da minha mãe: não que- atenção nele. Betinho e Dinaldo
mo os da mãe, a Jamila, ex do meu tio. Ela esfrega avós. Aí diziam: “Lá vai a Rê bater ria deixar o Betinho só na cháca- dormem, abraçados e desmilin-
suas coxas suadas nas minhas. Eu sou a mais velha perna”. Ela seguia para encontrar ra. Ele pega toda a gurizada e mete guidos. Continuariam na mesma
e o Lúcio Flávio é o primeiro do lado do meu tio. as amigas do colegial. Ia jogar con- no Santana novo, que já vivia su- posição até se chovesse granizo.
Ele anda coçando o buço, que começou a aparecer. versa fora, saber das fofocas. Fu- jo de terra e lama. Tio Jorge — Não faço a mínima ideia do que
Está cada dia mais calado e tem me olhado fundo, mava como uma chaminé e comia meio veio outra lembrança — era Kleber e meu tio vieram catar nes-
de um jeito misterioso. um churrasquinho de gato pelos conhecido pelo apelido de Con- se diacho de fim de mundo.
Moreninha, a Mayra fala numa voz fina, que lados da rua doze, no centro. de. Zombavam dizendo que ele Digo diacho porque gosto.
irrita. No canto dela, estão os dois caçulas, o Dinal- A gente ficava lá na cháca- nasceu com alma de rico e bolso Vi alguma atriz da novela das oi-
do e o Beto, meu irmão, sempre sem camisa e com ra do tio Jorge, esperando minha de pobre. Um aristocrata fora de to dizer “diacho”. Uma parente da
a aba do boné virada pra trás. Faz questão de tentar mãe voltar. Às vezes ela demorava época que só comprava perfumes Tieta. Peguei gosto de dizer dia-
ser descolado. Eles nos chutam o tempo todo, pe- uns três dias. Ninguém insistia pra importados, da Saint Laurent. cho mesmo que não pronuncie
dindo espaço, deitando sobre nossas pernas e om- gente dormir. Íamos até o último Diziam que meu tio tinha três diacho direito. Forço o sotaque.
bros. Vão amassando e se enganchando nos meus programa de televisão, quando cartões de crédito. Quando um Diacho lembra um diabo cheio
cabelos e acabam me machucando. os canais se desmanchavam num estourava, começava a usar o ou- de achismos. Mas é uma palavra
— Quero todo mundo quieto. Agora! Parem chiado sem sinal. Os pontinhos tro. Fazia malabares com os limi- curta. Alguém lá junta diabo com
com essa arruaça! pretos e brancos, serelepes, na tela. tes dos bancos. Pagava as dívidas acho? Junta não. Penso e não digo.
Tio Jorge dá uns gritos que gelam a espinha. No jardim, os primos in- pegando causa de alguma multi- Então, penso calada. Logo, digo
É pros filhos dele, mas parece pra gente também. ventavam de caçar vaga-lumes. nacional, prima ou irmã da Mon- diacho. E penso diacho quando
O carro salta sobre os buracos, os mata-burros, as Pegávamos uma das caixas de fós- santo. Aí torrava tudo de novo. vejo meu tio abrindo a porta. Al-
costelas de vacas. Pra zoar, Kleber lembra o “Om”, foros do fogão. Esvaziávamos. Meu tio é falador, mas des- guém vem lá no fundo. Parece que
o “Aum”, um mantra de yoga que ensina pra quie- Ao nos distanciarmos da casa, o sa vez está mais quieto, e, do ban- há um encontro marcado.
tar a gente, antes de dormir. Na estrada, come- céu preenchia tudo. Eram tantos co dos passageiros, nos observa Tem sim. Um menino, acho
çamos a fazer o aaaaauuuumm, aaaaauuuumm, pontinhos brancos que o escuro um pouco. Kleber deixa o car- que da minha idade. Ele olha pa-
mas vem um buraco e altera a frequência do co- sumia. No meio dos sons de gri- ro urrando nas marchas, indo ao ra os dois lados. Sai da casa de re-
ro: AUUUUUUUM, AAAAAAAAAUM, los, sapos, pios de corujas: a mata máximo que o motor permite. Vi- boco. No carro, agora somos eu,
AUMMMMMMM. Entrando na brinca- existia. Era quando a luz vinda do bramos quando ele alcança os 120 o Lúcio Flávio e a Mayra que es-
deira, meu tio põe um “Z” no mantra. Vira bucho dos vaga-lumes começava quilômetros por hora. Kleber vira preitamos a cena. Sinto um cala-
ZZZUUUMMMM. No universo paralelo do ban- a aparecer. A regra dos madruga- um herói, uma espécie de Ayrton frio. Parece que Mayra tem medo.
co de trás, gargalhamos. dores era conhecida. Bastava pegar Senna. Na BR, pela janela, vejo Meu tio Jorge tira a carteira.
Meu tio Jorge é pançudo. Tem fama de assar três vaga-lumes e enfiá-los numa o gado nelore, branco, marcado, Ele dá um amontoado de notas de
a melhor leitoa daquelas roças. Ele costuma ron- caixa de fósforo. pastando atrás das cercas tortas. cem cruzeiros pro menino. Tenho
car alto enquanto vemos TV com o Kleber. O car- Quem vencia, escolhia um Faz um sol de rachar. certeza que eram daquelas verdes.
ro finalmente alcança o asfalto. Vem um alívio, e prêmio, ou uma prenda. Um bei- — Acho que é por ali — diz Meu tio pega um pacote. Volta.
um silêncio. Eu não fazia a mínima ideia aonde ía- jo de língua, abaixar a cueca, co- meu tio. — Pode virar à esquer- Chama o Kleber, que sai do carro.
mos. Nem imaginava por que meu tio não deixou mo eu, uma vez, pedi ao Lúcio da que eu vou dar um sinal pro Os dois mexem naquilo que meu
a gente na chácara. Talvez tenha sido por conta de Flávio. A gente fugia pro banhei- menino. tio veio comprar ali. Eles estão eu-
uma briga dele com a minha mãe. ro de tijolinhos marrons, que era O Santana passa por um fóricos, como ficamos nos dias de
Todos chamam o Beto de Betinho. Acho fo- escondido e raramente um adul- cruzamento. Casas caídas, mos- desembrulhar os presentes de na-
fo: esses diminutivos que deixam o apelido mais to passava por lá. Todos os primos trando o reboco. Pipas voando no tal. O ânimo logo vira afobação.
longo. Betinho é guloso. Distante dos adultos, ele se amontoavam pra escapulir do céu. Pessoas desconfiadas, olhan- Eles entram no carro. Meu tio vas-
JANEIRO DE 2024 | 33

culha o porta-luvas. Kleber abre o Com o que escuto, brotam cenas. quero saber o que Kleber e meu cupada, minha mãe se agiliza e de menininho, diz Arlete, ele era
porta-malas. Remexe. Eles fungam. Muito. Estão ofe- tio estão fazendo. Viro um pou- consegue um tratamento de pon- louco por girafas. É meu primeiro
— Tem nada liso aí por perto? gantes. “Nó”, diz o Kleber. “Pa- co o pescoço. Vejo meu tio acari- ta pro meu tio, que embarca pra velório e estranho as pessoas dan-
— Calma, Klebinho, não rada forte!”, é a voz do meu tio. ciando a mão de Kleber, no topo Paris. Ele vai tomar um coquetel do “os pêsames” para o paren-
dá pra ser agora. As crianças es- Acho que se abraçaram. Deram da marcha. Fico assustada. Volto com remédios experimentais. tes. Minha mãe ri com os olhos
tão vendo. tapas estranhos. Dá para ouvir para reparar se tinha algum cami- Kleber morre poucos dias úmidos porque me vesti toda de
A frase me atinge. Meu tio um som de couro sendo batido. nhão, ou outro carro ligeiro. En- depois do meu tio voltar da Euro- preto — os sapatos, a pulseira,
vai fazer algo que a gente não po- Talvez da jaqueta preta que meu tramos na estrada de terra. pa. Na mala, o tio Jorge traz um os brincos, e até a tiara —, doi-
de ver. Se a gente dormisse, como o tio gosta de vestir nos fins de se- — É hora do OM, meninada! autorama pros nossos primos. Lú- da pra imitar as cenas de enterro
Betinho e o Dinaldo, talvez a gente mana. Eles voltam pro carro. Es- — AAUUMMM! cio, Dinaldo e Mayra ficam exibi- que assistia nas novelas. Faltaram
se safasse. A Mayra já está de olhos tão falantes e risonhos. Kleber dá A A U U M M M ! dos com o brinquedo raro, vindo os óculos escuros.
fechados. O Lúcio Flávio também. partida no Santana. Meu tio liga ZZZZUUUMMM! de longe. Meu tio arruma o ve- Só tenho uma curiosidade.
Não dava para saber direito quem o som. Bota uma fita k7. Somos um coro de abelhas. lório, na casa dos pais do Kleber, Quero saber como está a tatuagem
fechava os olhos por sono mesmo, — Acorda molecada!!! O balançar do carro faz com que perto do estádio do Vila Nova de de Yin e Yang. De rabo de olho:
ou quem fingia que dormia. Nes- Kleber grita enquanto dá a o corpo de Lúcio pese mais sobre Goiás. Ele escolhe as coroas de o Kleber veste uma camisa bran-
sas horas, fingir é bom. O Lúcio ré. Sai cantando pneus e cata uma o meu. Estamos quase encaixados. flores mais vistosas e contrata um ca, de manga curta, com um jeans
encosta a sua cabeça no meu om- guia, na calçada. Todos desper- Eu acho esquisito. Fico quieta, sa- violinista da orquestra da cidade que ele realmente gostava de usar.
bro. Gosto disso. Recosto nele. Es- tam. Os que dormiam — e os que cando até onde aquilo poderia ir. para tocar algo não “fúnebre”. En- O braço fino, rente aos ossos. To-
colho fechar os olhos. fingiam. Pega rapaz, meu cabelo à Sinto algo diferente atrás das mi- comenda os famosos salgadinhos co no corpo, que está frio. Afasto
Mas pisco, disfarçando. Sei la garçonne é a música que toca. nhas coxas. Deve ser uma par- da Vó Benta. Serve café pra Jami- um pouco o braço direito e vejo: a
que o Kleber está puxando o re- A gente se anima. Ri. O te dele, que mexe um pouco, nos la, sua ex, e os amigos dele e do tatuagem está murcha, meio apa-
trovisor do carro. Ele tem força pa- Santana já está na estrada. Atinge pequenos pulos do Santana. Meu Kleber, que frequentavam as fes- gada, e os pontos pretos e brancos
ra arrancar aquilo de uma vez, mas 120 quilômetros por hora. Meu coração fica acelerado, junto a um tinhas da chácara. Estavam todos encolheram. Nunca soube onde
acho que não queria fazer muito tio pega o maço de Carlton. Tira calor que se espalha, uma febre, só pele e osso, entrando e saindo foi parar o muque dele.
barulho para não assustar as crian- um cigarro. Acende. Fuma. Beti- da barriga à boca. De olhos fecha- de hospital. Meu tio perfumou os
ças que dormiam, nem a gente, nho levanta o pescoço. Procura al- dos, quero o voo dos vaga-lumes. três filhos, e chegou a alugar sa-
que fingia dormir. O braço de Kle- go no carro. Pela janela, uma brisa Quando o AAUUMM acaba, eu patos para irem bem arrumados.
ber se contrai. A tatuagem cresce. espalha o cheiro da nicotina. Vem guardo o instante. Preciso descer Meu tio abraça a Arlete,
Pá. Pá. Pá. Paaaaaa. PRUM, o es- a sensação de estarmos num filme. do carro e abrir a porteira. mãe do Kleber. Num misto de
pelho do carro é arrancado. — Tio, cadê o retrovisor? culpa, alívio e desespero, ele quer
Baita estrondo do cão. O É Betinho. Sempre incon- No ano seguinte, minha esconder seu rosto naqueles om-
Santana sacode como num em- veniente. mãe vem me dar uma notícia. bros. Arlete é uma dona de casa,
purra-empurra. Eu e o Lúcio ten- — Quebrou! Agora vocês Meu tio Jorge anda magro, e vi- que mal cabia naqueles vestidos
tamos não dar bandeira. Abro só são nossos retrovisores. ve internado. Então não vai rolar largos e estampados, conhecida
um dos olhos e vejo o Kleber sain- De frente, de trás, eu te amo a libertinagem das férias por lá. O pelos doces de abóbora na Feira da
do com o retrovisor todo na mão. cada vez mais, mais, mais. A músi- problema desse vírus, ela emenda, Lua, aos domingos. Chora num
Depois, ele e meu tio vão para um ca continua a tocar, enquanto Kle- é que com ele não se morre nem se lenço quadriculado. Do lado de-
canto, perto do carro. Despejam ber passa a quinta. Ele ultrapassa mata de verdade, nem de uma vez la, o seu João, o pai do Kleber, um
uma poeirinha branca no vidro do um caminhão cegonha, carregan- só. É tudo aos tiquinhos. O bicho motorista da caminhonete do gás.
espelho. Parece açúcar, ou algum do uma dúzia de carros zero. é tinhoso, uma porta de entrada Estava arrasado, como ninguém
tempero, mas acho que não é algo — Olhem pra trás! Avisem pra um monte de infecções peri- nunca viu antes.
de comer. Eles enrolam uma das quando avistarem um carro mais gosas. Tio Jorge e Kleber tinham Aos soluços, minha mãe fa-
PABLO GONÇALO
notas verdes, que ficam finas, tipo rápido que o Santaninha. a mesma doença, ouvi minha mãe la que tem dó do meu tio. Ele não
um canudinho. Eles não põem as Os cincos piás se viram. dizendo pra irmã deles, no telefo- merece aquele sofrimento. Em ci- Nasceu em Goiânia (GO), cresceu e vive em
Brasília (DF). É professor de Audiovisual da
notas na boca. Kleber enfia a nota Uma brincadeira nova: espiar ne, jurando que tava falando es- ma do caixão, na parte que tinha Universidade de Brasília (UnB). Autor dos
com a forma de canudinho dentro carros na BR. É meio entediante, condida. Ninguém sabe quem um castiçal de prata, meu tio pen- livros O cinema como refúgio da escrita:
do nariz dele. Eca! Dá nojo. mas tá valendo. Lúcio se aproxi- pegou de quem. Uma parada no- durou uma foto do Kleber perto roteiros e paisagens em Peter Handke e
Wim Wenders (2016) e Hollywood de papel:
Tenho medo do que vou ma. Sinto o peso do seu corpo ba- va, desconhecida, que tem dado de uma girafa, quando visitaram roteiros não filmados de Ben Hecht,
ver. Fecho os olhos novamente. lançando contra o meu. Também um auê no mundo todo. Preo- o zoológico de Buenos Aires. Des- Billy Wilder e Wim Wenders (2022).
34 | JANEIRO DE 2024

BÁRBARA
JEOVÁ SANTANA
Ilustração: Bruno Schier

A Rinaldo de Fernandes fizeram os equívocos, disseram de sua natureza. Mas a gente sa- tio meu envolvido na mutreta.
às autoridades constituídas que be que não é bem assim. Está na Chegou ao desplante de montar
Quer saber? Sim, é mui- se tratava de um ensaio para a memória de todos a força dos pu- campana para saber dos horários.
to ódio. Mas não tenho dúvida formação de um grupo de tea- nhos no instante em que é neces- Fala em beber sangue. Fica posses-
que há também uma arretada do- tro amador. sário não levar desaforo para casa. so quando alguém lhe sopra o tal
sagem de inveja. Do nada, uma Nutro, confesso, uma ad- Há de se pensar em pre- do nome artístico. Só vai no cipó
pessoa que fez parte de uma qua- miração silenciosa por seu deste- meditação ao se aproveitar o caboclo! E tome murro na mesa
dra significativa de nossa juventu- mor, inteligência e sensibilidade. dia da procissão da padroeira. que faz garrafas e copos improvi-
de, que dividiu algumas séries na De outra feita, todos tiveram que A chance de não haver testemu- sarem um balé desastrado. Difícil
mesma escola, promover uma re- engolir sua performance num nha na rua sempre tranquila, prever o desfecho. Pode faltar um
volução que contraria a moral, os programa de entrevistas na TV. O com umas três casas do tempo cabelinho de sapo para trucidar e
bons costumes, os valores da fa- que deveria servir de orgulho para antigo, que parecem saídas dos jogar no lixão. Multidão sem peia
mília. Puta que pariu! Rolou um a comunidade, diante do seu co- desenhos coloridos das crianças. é porco selvagem cutucado no cu.
afastamento total. Do grupo mais nhecimento sobre a arte em geral Nesses tempos de bagulho lou- Preciso fazer alguma coisa
próximo sou o único que ainda e a literatura em particular, só fez co, infelizmente a religião não é sobretudo porque o olhar peno-
lhe estende algum cumprimento crescer a maré dos ressentimen- barragem de contenção. Portan- so não desapareceu com a dure-
formal, distante e frio. Não foram tos. Mas nunca baixou a cabe- to, não seria surpresa se alguns za dos anos. Faz-me lembrar o da
poucas as vezes que parei em fren- ça. Anda com o nariz para cima, dos agressores, antes das atroci- menina que minha mãe criou no
te a sua casa, uma vontade enor- na linha do não devo nada a nin- dades prometidas, segurarem o dia em que lhe ergui a mão. Não,
me de entrar para bater um papo, guém, metam-se com suas vidas, andor ou baterem no peito na você não! Congelei. De lá para
mas me limito a contemplar o seu vão para a casa do caralho! hora dos cânticos, com os olhos cá, não aturo nem o de bichos co-
jardinzinho sempre bem cuidado, Faz tempo que passou a fre- contritos voltados para o alto. Na mo cães e gatos de rua, quanto
cheio de flores com nomes engra- quentar os perigos da noite. Para hora da brabeza, pulam num pé o mais de alguém que tem tope-
çados, tipo madressilva, miosótis tirar godô, sai de casa no próprio só, ficam pinotando feito bode. te para enfrentar as barbeiragens
e maria-sem-vergonha. carro. Uber somente em último Fiquei sabendo que a or- desse mundo. Não tenho como
Quando começaram os caso. Não tem medo de com- dem é lhe dar um susto, queimar peitar sozinho essa horda de lou-
grupos de whatsapp instalou-se prar cigarros nos bares mais fre- livros e vestidos, arrancar cartazes, cos espremida na nau dos insen-
o inferno. A maledicência passou quentados. Nem aí para os tantos rasgar álbuns, despedaçar o altar- satos. Sei que minha mãe, pelo
a correr solta. O caso mais gra- olhos a destilarem desprezo, de ci- zinho onde São Jorge e Ieman- amor que tem ao irmão, será ca-
ve foi a denúncia de sedução de ma abaixo, sobre a indumentária já convivem numa boa. Além de JEOVÁ SANTANA paz de ter um troço, ficar morre
menores. Rolou batida policial e de godês, babados e trancelins. O tudo, ainda faz macumba! teria não morre se souber que fui eu
Nasceu em Maruim (SE), em 1961. É professor
o diabo. Naquela tarde, mães fu- que me deixa de queixo caído é a gritado um deles, policial aposen- titular da Universidade Estadual de Alagoas. quem o denunciou. Foda-se! Di-
ribundas arrastaram filhas ainda habilidade de andar sobre os sal- tado, reaça e cheio das fobias, no Publicou Dentro da casca (1993), A ossatura zem que a poesia não serve pa-
carregadas de maquiagem e pe- tos-plataforma, ora pretos, ora meio da bebedeira em que acerta- (2002), Inventário de ranhuras (2006), ra porra nenhuma, mas pulsa em
Poemas passageiros (2011), Solo de rangidos
daços de figurinos. Só se salvou vermelhos, com uma leveza que ram o Dia D no boteco do Frei. (2016), Estilhaços (2021) e Rasuras do mim o último verso de Pessoa em
porque as raparigas em flor des- parece fazer parte, desde sempre, Quanta barbaridade! Há até um imaginário (2023), entre outros. “Nevoeiro”.
36 | JANEIRO DE 2024

A child asleep in its own life

Among the old men that you know,


There is one, unnamed, that broods

WALLACE
On all the rest, in heavy thought.

They are nothing, except in the universe

STEVENS
Of that single mind. He regards them
Outwardly and knows them inwardly,

The sole emperor of what they are,


Distant, yet close enough to wake
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert The chords above your bed to-night.

Uma criança dorme em sua própria vida

Entre os velhos que você conhece,


Há um, sem nome, que se aninha
Sobre todos os outros, em pensamentos profundos.

Eles nada são, exceto no universo


Daquela mente única. Ele os considera
Por fora e os conhece por dentro,

O único imperador do que eles são,


Distante, mas perto o suficiente para despertar
Os acordes sobre a sua cama esta noite.

In the Carolinas

The lilacs wither in the Carolinas. The river of rivers in Connecticut


Already the butterflies flutter above the cabins.
Already the new-born children interpret love There is a great river this side of Stygia,
In the voices of mothers. Before one comes to the first black cataracts
And trees that lack the intelligence of trees.
Timeless mother,
How is it that your aspic nipples In that river, far this side of Stygia,
For once vent honey? The mere flowing of the water is a gayety,
Flashing and flashing in the sun. On its banks,
The pin-tree sweetens my body.
The white iris beautifies me. No shadow walks. The river is fateful,
Like the last one. But there is no ferryman.
He could not bend against its propelling force.
Nas Carolinas
It is not to be seen beneath the appearances
Lilases murcham nas Carolinas. That tell of it. The steeple at Farmington
Borboletas já batem asas sobre os chalés. Stands glistening and Haddam shines and sways.
Crianças recém-nascidas já interpretam o amor
Nas vozes das suas mães. It is the third commonness with light and air,
A curriculum, a vigor, a local abstraction...
Mãe atemporal, Call it, once more, a river, an unnamed flowing,
Como é que seus mamilos de alfazema
Desta vez suspiram mel? Space-filled, reflecting the seasons, the folk-lore
Of each of the senses; call it, again and again,
Os pinheirais fazem doce o meu corpo. The river that flows nowhere, like a sea.
As brancas íris me fazem belo.

O rio dos rios em Connecticut

Existe um grande rio do lado de cá de Estige,


Idiom of the hero O idioma do herói Antes que se chegue às primeiras cataratas negras
E às árvores que não têm a inteligência das árvores.
I hear two workers say, “This chaos Ouço dois trabalhadores dizendo, “Esse caos
Will soon be ended”. Vai logo estar encerrado”. Naquele rio, bem deste lado de Estige,
O mero fluir da água é uma alegria,
This chaos will not be ended, Esse caos não será encerrado, Reluzindo e reluzindo ao sol. Em suas margens,
The red and the blue house blended, A casa vermelha e a azul, misturadas,
Nenhuma sombra caminha. O rio é fatídico,
Not ended, never and never ended, Não encerradas, nunca nunca encerradas, Como se fosse o último. Mas não há balseiro.
The weak man mended, O homem fraco reparado, Ele não se curvaria à sua força propulsora.

The man that is poor at night O homem pobre à noite Não é para que seja visto sob as aparências
Attended Amparado Que falam disso. O campanário em Farmington
Fica reluzindo, e Haddam brilha e chacoalha.
Like the man that is rich and right. Como o homem que é rico e correto.
The great men will not be blended… Os grandes homens não serão misturados... A terceira trivialidade com ar e luz,
Um currículo, uma força, uma abstração local...
I am the poorest of all. Sou o mais pobre de todos. Chame-o, mais uma vez, de rio, um fluxo sem nome,
I know that I cannot be mended, Sei que não posso ser reparado,
Repleto de espaço, refletindo as estações, o folclore
Out of the clouds, pomp in the air, Saindo das nuvens, esplendor no ar, De casa um dos sentidos; chame-o, de novo e de novo,
By which at least I am befriended. Pelo que sou pelo menos bem relacionado. O rio que corre para lugar algum, como um mar.
JANEIRO DE 2024 | 37

The poem that took the place of a mountain O poema que ficou no lugar da montanha

There it was, word for word, E assim foi, palavra por palavra,
The poem that took the place of a mountain. O poema que ficou no lugar da montanha.

He breathed its oxygen, Respirou o oxigênio dela,


Even when the book lay turned in the dust of his table. Mesmo quando o livro ficou aberto sobre a poeira da mesa.

It reminded him how he had needed Aquilo o lembrou do quanto ele precisava
A place to go to in his own direction, De um lugar para onde ir, por conta própria,

How he had recomposed the pines, De como ele rearranjou os pinheiros,


Shifted the rocks and picked his way among clouds, Moveu as pedras e abriu caminho entre as nuvens,

For the outlook that would be right, Para a perspectiva que seria a correta,
Where he would be complete in an unexplained completion: Onde ele se tornaria pleno de um jeito inexplicado:

The exact rock that would be right, A exata pedra que seria a correta,
Would discover, at last, the view toward which they had edged, Descobriria, por fim, a vista em direção à qual eles se foram,

Where he could lie and, gazing down at the sea, Onde ele poderia descansar e, contemplando, lá embaixo, o mar,
Recognize his unique and solitary home. Reconhecer seu exclusivo e solitário lar.

WALLACE STEVENS
Nasceu em Reading,
Pensilvânia (EUA),
em 1879. Foi um dos
principais poetas norte-
americanos do século
20. Esteticamente
identificado com o
modernismo, Stevens
era, na realidade, um
artista independente,
vivendo longe de
panelinhas e rodas
literárias. Ainda assim,
era admirado, influente
e ganhou prêmios
importantes, como o
Pulitzer, o Bollingen e o
National Book Award.
Estudou em Harvard e
na New York Law School.
Morreu em 1955.

An old man asleep Um velho dormindo

The two worlds are asleep, are sleeping, now. Os dois mundos dormem, estão dormindo, agora.
A dumb sense possesses them in a kind of solemnity. Um sentido estúpido os possui com alguma solenidade.

The self and the earth—your thoughts, your feelings, O eu e a terra – seus pensamentos, suas sensações,
Your beliefs and disbeliefs, your whole peculiar plot; Suas crenças e descrenças, sua trama totalmente particular;

The redness of your reddish chestnuts trees, A vermelhidão de suas avermelhadas castanheiras,
The river motion, the drowsy motion of the river R. O movimento do rio, o sonolento movimento do rio R.
38 | JANEIRO DE 2024

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

MARIA QUINTANS

Veja mais em
rascunho.com.br

MARIA QUINTANS
Poeta, dramaturga, faz parte da criação da
revista Inútil, da qual foi diretora editorial.
Teve várias editoras. Tem publicados os
livros de poesia Apoplexia da ideia; Chama-
me Constança; O silêncio; A pata da cabra;
Décimo terceiro andamento & Chama-me
Constança; Se me empurrares eu vou; La
poesia es una mujer dispierta (editado na
Colômbia). Inicia-se na escrita de dramaturgia
em 2015, com o monólogo Décimo terceiro
andamento. Continua este percurso com a peça
Este não sou eu, A síndrome da culpa, OCO, Os
demónios não gostam de ar fresco, esta sobre
o universo de Ingmar Bergman. Tem poemas
incluídos em várias antologias e revistas
portuguesas, brasileiras e espanholas.
JANEIRO DE 2024 | 39

rogério pereira
SUJEITO OCULTO

NA PANÇA DA SUCURI Ilustração: Carolina Vigna

N
o ônibus, cada um é
infeliz à sua maneira.
Nunca encontrei leito-
res de Tolstói a bordo.
A paisagem tampouco são as es-
tepes russas de Tchékhov. Apenas
carregamos no lombo uma tristeza
cansada, espécie de desânimo en-
tranhado nas vísceras, uma indo-
lência severina de tanto sacolejar
os corpos nos arroubos desta bes-
ta enfurecida: o ônibus. Persona-
gens de uma ópera-bufa-operária,
agarramo-nos ao aço sórdido pa-
ra, em pé, tentar equilibrar uma
silhueta em franco desalinho. Lá
fora, os bonecos de posto tripu-
diam sobre nossa infâmia. Os fe-
lizardos — e nem por isso felizes
—, cujos corpos desmazelados
encontram um banco disponível,
dormitam muitas vezes ou são
conduzidos pelo barqueiro pelos
rios de Hades nas telas brilhan-
tes dos celulares. O importante
é esquecer que somos todos pri-
sioneiros de uma tristeza coletiva.
Depois de muitos anos —
mais de duas décadas —, voltei a
encarar as aventuras do transpor-
te coletivo. Já não sou aquele ado-
lescente de cabelos compridos e
leituras excitantes em situações
extremas de equilíbrio. Nem as pital. Em geral, há pouco espaço, O homem lia um clássico de -lhe terreno para que conte sua
mais indecentes curvas eram ca- mas nossa fauna é desavergonha- Stendhal, equilibrando-se com o aventura amorosa. Conheci uma
pazes de deslocar meus olhos das da. Quando o corpo sucumbe ao corpo amparado na sanfona que mulher e agora vou ali encontrar
páginas do livro para a paisagem cansaço, o chão do ônibus trans- divide o ônibus. Algum gênio da com ela. E como a conheceu? No
de uma cidade que crescia com fú- forma-se em refúgio à penúria. engenharia mecânica um dia in- Facebook, nem sei muito bem co-
ria e desordem, apesar da propa- Eu, talvez por certo recato peque- ventou de colar dois ônibus para, mo ela é. Solta um riso entre ner-
ganda oficial tentar nos convencer no-burguês, mantenho-me hirto com isso, levar mais passageiros a voso e aliviado. Mas a gente precisa
do contrário. Como é fácil criar sobre as pernas, mas com o olhar cada viagem. O lucro é um gran- arriscar, não é mesmo? Ela trabalha
uma ilha da fantasia numa terra esticado aos esparramados. Eles de mecenas da criatividade. Ali, na perto do terminal. Então, marca-
de cegos. Agora, sou um homem me comovem. Apesar da melan- sanfona, M., minha pequena fi- mos ali. Olho-o com sincero inte-
rumo ao fim da vida, esta fase em colia das viagens e de seus via- lha, diverte-se entre o equilíbrio resse. Ele prossegue a detalhar seu
que já se viveu mais do que se vi- jantes, em geral, divirto-me com delicado e o tombo inevitável nas encontro com a desconhecida, pos-
verá, quando o tempo ganha ou- certa pilhéria que escorre entre curvas e trancos mais acentuados. sivelmente confortável no anoni-
tra dimensão e os segundos são nós. Rimos de nós mesmos, da É o circo particular de M., feito mato que nos envolve. E se ela for
ouro de tolo escorregadio pelos nossa situação precária, talvez da de palhaços e equilibristas. Eu es- muito diferente da foto do Face?,
dias contados na ilusão da eterni- nossa teimosa resistência diante de tava sentado. Toquei levemente o pergunta-me. Apenas o encaro, de-
dade. O corpo continua magro, um mundo hostil. braço do homem-leitor, cuja ex- senho um esgar no canto da boca e
os cabelos encurtaram e ganham Aquelas duas mulheres es- pressão de cansaço naquele início levanto os ombros. Uma espécie de
a brancura célere de uma velhice tão sempre no ônibus. Nossos de noite era evidente. O constran- resposta sem resposta alguma. Não
que se avizinha, a miopia intensi- horários coincidem com alguma gimento parecia forçá-lo a negar importa, prossegue. Não importa
ficou-se. O daltonismo segue cau- frequência. Inclusive um leve me- a oferta inusitada. Afinal, só en- nada disso. Eu não tinha nada pra
sando embaraços cromáticos. As neio de cabeça já se transforma tregamos nosso sagrado banco fazer e precisava mesmo vir para es-
dores no corpo surgem numa ro- em estranha saudação. Elas inun- em situações extremas. Ler nunca tes lados visitar minha avó. Então,
tina burlesca. Ler em pé no ônibus dam a boca de palavrões, são umas é uma situação extrema. Mas ele não tenho nada a perder, diz, como
tornou-se um desafio, quase uma pervertidas: filho da puta, desgra- aceitou a possibilidade de viajar se tentasse convencer a si mesmo.
batalha perdida. Alegro-me quan- çado, merda, bosta, caralho e pu- sentado. Afinal, o cansaço sempre Quando chegamos ao ter-
do um banco vazio reluz na pança ta que pariu, para enumerar os vence o constrangimento. E reco- minal, ele afasta-se rapidamente
inchada da sucuri que nos carre- mais populares. Às vezes, um dia- lheu-se nas páginas de Stendhal. entre a pequena multidão. Saem
ga rumo à capital. O trajeto é de nho escapa entre gargalhadas. As Como chegara àquele livro? todos em desabalada euforia. Eu
vinte e cinco quilômetros, numa mulheres disfarçam a tristeza com A tarde quente nos obriga permaneço no ônibus que seguirá
paisagem monótona feita no in- ofensas desferidas para todos os a abrir todas as janelas do ônibus. agora para C., onde moram meus
terlúdio entre o campo e a cidade. lados. Ninguém escapa da sanha Estou de pé quando ouço uma voz filhos. Pela janela, vejo-o prestes
Somos uma selva de estra- escatológica. O rosário de uma meio esganiçada: calor dos diabos, a atravessar a rua. Noto que ele
nhos irmanados pela vontade de oração devassa alegra o vazio do né? Sim, concordo com palavras manca um pouco da perna es-
chegar logo. Cada um com a sua fim de tarde. Na conversa, insulta- que mais parecem um silvo. A pró- querda. O ônibus bufa, está no-
pressa, seu cansaço, suas tristezas, vam os (ex)maridos (aqueles mer- xima parada é no terminal, certo?, vamente lotado. Encosto-me na
suas histórias. No divertido zoo- das); os políticos (aqueles filhos da diz o rapaz, quase um menino, de janela e abro um livro. Cerca de
lógico humano, há um pouco puta); o calor (esta bosta insupor- corpo franzino flutuando numa trinta minutos de leitura na pança
de tudo: do estudante de cabelo tável); o prefeito (aquele imbecil). calça larga, boné de um time nor- da sucuri faminta. Do outro lado,
alaranjado à velhinha de benga- E riam sem qualquer vergonha do te-americano de basquete na ca- na calçada, uma moça de cabelos
la. Mas a maioria é de operários e vocabulário arquitetado em golfa- beça de cabelos raspados na nuca. azuis acena com alegria. Ele apres-
comerciários que saem da peque- das pândegas. São duas persona- Tenho um encontro, diz sem qual- sa o passo. Ela talvez não seja tão
na cidade rumo ao trabalho na ca- gens nesta plêiade maltrapilha. quer cerimônia. É mesmo?, dou- diferente da fotografia.

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