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o jornal de literatura do Brasil

desde abril de 2000


178
curitiba, fevereiro de 2015 | www.rascunho.com.br

Arte: Theo Szczepanski

Entrevista
A delicadeza
poética de
Carrascoza • 6

Resenha
Réquiem
para Ivan
Junqueira • 12

Ensaio
A obra-prima
de Aleksandr
Solzhenitsyn • 36
2| | fevereiro de 2015

translato | Eduardo Ferreira

O tradutor como o jornal de literatura do Brasil


fundado em 8 de abril de 2000

protagonista
Rascunho é uma publicação mensal
da Editora Letras & Livros Ltda.
Caixa Postal 18821
CEP: 80430-970

T
Curitiba - PR

rascunho@rascunho.com.br
radutor não tem voca- xões. A história de um tradutor que como intérprete”.
rascunho.com.br
ção para protagonista, romântico, vítima de sua grande Abro parêntese para men-
nem mesmo quando paixão adolescente. Duas paixões cionar que a comparação do tra-
se trata de seus pró- principais: a “niña mala” e Paris. dutor/intérprete a um fantasma Editor
prios textos. Mario Paixões que determinaram clara- é recorrente no livro. Mais uma Rogério Pereira
Vargas Llosa, contudo, mesmo mente seu destino. Uma tercei- metáfora que procura indicar a
sem ignorar esse fato tão óbvio, ra paixão, embora não tão clara ocultação do tradutor detrás da
fez de um intérprete/tradutor o quanto as duas primeiras, se es- obra original. Editor-assistente
personagem central do roman- gueira pelas margens do livro: a Somocurcio, em frases ta- Samarone Dias
ce Travesuras de la niña mala. própria tradução, a qual, mais lhadas pela longa experiência
A escolha não foi fortuita, certa- que mero pano de fundo, é ele- (por sua vez fundada na vivência
mente, pois o Nobel de Litera- mento que permeia todo o livro. do próprio Vargas Llosa), pro- Colunistas
tura foi ele mesmo tradutor, na Os momentos de recolhi- curou delimitar, na tradução li- Affonso Romano de Sant’Anna
mesma Unesco e na mesma Paris mento da paixão pela “niña mala” terária, um claro espaço para a
Alberto Mussa
de Ricardo Somocurcio. são aqueles de grande dedicação criação: “Tinha que tomar de-
São bastante óbvios os tra- ao ofício tradutório: o estudo das cisões, explorar o espanhol em Eduardo Ferreira
ços biográficos do romance. Além línguas e a prática mesma da tra- busca de matizes e cadências que Fernando Monteiro
de tradutores, ambos — Vargas dução. São os momentos em que correspondessem às sutilezas e
Llosa e Somocurcio — viveram essa terceira paixão aparece com velaturas semânticas — a mara- João Cezar de Castro Rocha
no bairro limenho de Miraflores e toda a sua força. vilhosa arte da alusão e da evasão José Castello
compartilhavam o sonho de esta- Não faltam, no livro, re- da prosa de Tchecov — e tam- Luiz Bras
belecer-se na Cidade Luz. Porém, flexões sobre o ofício tradutório. bém às suntuosidades retóricas
Somocurcio e Vargas Llosa reve- Ricardo Somocurcio, quando da língua literária russa. Um ver- Raimundo Carrero
lam níveis de ambição bastante evolui de tradutor (de textos es- dadeiro prazer”. Rinaldo de Fernandes
distintos. Enquanto o protago- critos) a intérprete simultâneo, A menção a “tomar deci- Rogério Pereira
nista de Travesuras se contentou rotula o “salto” de “êxito medío- sões” é crucial, aqui, para entender
em permanecer tradutor por toda cre” — qualificação significativa a diferenciação que o narrador de
a vida — contanto que continu- para ambas as profissões. Vargas Llosa faz entre a tradução Projeto gráfico e programação visual
asse em Paris —, Varguitas (vide Mas houve outro salto, va- técnica/burocrática e a literária. Rogério Pereira / Alexandre De Mari
La tía Julia y el escribidor) exer- lorado com mais otimismo pe- A tradução literária, em-
ceu a tradução como ganha-pão lo protagonista/narrador do bora não lhe proporcionasse a
temporário, enquanto se prepara- romance: a passagem de tradu- mesma renda que a interpretação Colaboradores desta edição
va para viver da literatura. tor/intérprete de textos burocrá- simultânea e até que as tradu- Adriane Garcia
O fato é que o tradutor, em ticos a tradutor de literatura. Tal ções de textos burocráticos, cer-
André Caramuru Aubert
Travesuras, é, sim, o grande pro- movimento foi celebrado pelo tamente dava ao protagonista de
tagonista. Trata-se, basicamente, personagem com uma frase ex- Travesuras gratificação mais ver- Arthur Tertuliano
de um romance sobre um gran- pressiva: “como tradutor literá- dadeira. E melhor: lhe dava espa- Carolina Vigna
de amor — ou sobre grandes pai- rio, me senti menos fantasmal ço para criar. Clayton de Souza
Henrique Marques Samyn
James Schuyler
Leyla Perrone-Moisés

rodapé | Rinaldo de Fernandes Luiz Horácio


Luiz Paulo Faccioli

Anotações sobre
Marcos Alvito
Marcos Pasche
Mariana Sanchez
Márwio Câmara

romances (18)
Maurício Melo Júnior
Nelson Alexandre
Patricia Peterle

E
Rodrigo Casarin
Rodrigo Garcia Lopes
m Os dias rouba- condenação logo a partir dos pri- trata na verdade da autobiografia Rodrigo Gurgel
dos, de Carlos Va- meiros indícios”. Um jovem pro- do protagonista, que, na prisão, Hugo Estenssoro
zconcelos, fica-se motor é quem “investiga a falsa e fazendo de tudo para preservar
Vivian Schlesinger
sabendo que a con- sentença” e consegue retirar o pro- seus papéis, seus manuscritos,
denação do prota- tagonista da prisão. O romance de tornara-se escritor. Tornara-se es-
gonista se deu por “ações” de um Carlos Vazconcelos é agudo na te- critor para denunciar a injustiça ILUSTRADORES
deputado sórdido, pai de Águida: mática e bem elaborado na forma, que o fez padecer durante quin-
Dê Almeida
“Mostrou-me a foto de jornal. Era com uma técnica inventiva. No ze anos — e que, liberto, não o
o deputado Jairo Filgueira, pai de final é que é revelado, por meio recompôs como indivíduo, fratu- Fábio Abreu
Águida. Eu já sabia que a família de um “posfácio” produzido por rou de vez sua identidade. Carlos Felipe Rodrigues
me odiava e que havia trabalha- um dos organizadores do volume, Vazconcelos, que tem mestrado Osvalter
do incansavelmente pela minha que a narrativa que lemos (frag- em Literatura Comparada pela
Ramon Muniz
prisão, mas não conhecia os de- mentada, e o recurso soa perfeito, Universidade Federal do Ceará
talhes sórdidos da empreitada, os por conta do arranjo que foi pos- e produz e apresenta um evento Robson Vilalba
atalhos, as manobras, a compra de sível ser montado pelos organi- literário no SESC-CE, se inicia Theo Szczepanski
todos os envolvidos para minha zadores do material recolhido) se muito bem no romance.
fevereiro de 2015 | |3

14
O oitavo selo
17Inquérito
25
Os luminares
32
Poemas franceses
Heloisa Seixas Bernardo Carvalho Eleanor Catton Fernando Pessoa

cartas vidraça
cartas@rascunho.com.br

Livros no Mato
NOVO RASCUNHO Houellebecq na Alfaguara Grosso do Sul
Há pouco assinante, um Divulgação Acontece entre 26 de
esboço de ideia insistente a fevereiro e 1º de março,
cada Rascunho recebido: em Campo Grande, a
“tão grandão e desajeito, (mas?) primeira edição da Feira
e tão querido”. Hoje: alvíssara! Literária Internacional
Delineados estão os rumores do Mato Grosso do Sul.
de minha vontade. Remeteram- Entre os convidados estão
me o desengonçado melhor Antonio Carlos Secchin,
aprumado às minhas práticas de Marina Colasanti e Tizuka
leitora-contorcionista em tempo Yamasaki. O evento
e espaço miúdos (e menos terá entrada gratuita,
denunciante das desabilidades diariamente das 10h às 22h,
que tenho em ser... engonçada!). e homenageará Manoel de
Ainda com dúvida sobre tratar-se Barros e a professora Maria
de uma remessa especialíssima, da Glória Sá Rosa.
desembrulhei o baixinho. Logo
nas boas-vindas, a boa-nova: “É
do designer Alexandre De Mari. E Os quadrinhos
não tem volta”. Não acredito em da Pólen
coincidências. Portanto, obrigada A Pólen resolveu apostar
por ouvirem a insistência desse O novo romance de Michel Houellebecq (foto) será publicado no Brasil pela também nas HQs. Um dos
esboço de ideia intrusa. Gostei. Alfaguara em breve. Submissão se passa na França em 2022, governada por livros escolhidos para marcar
Juliana de Almeida Valverde • um presidente muçulmano, e cedendo gradualmente à lei islâmica. Num artigo a estreia é Eu sou um pastor
São Paulo - SP para o Le Monde, Emmanuel Carrère comparou Submissão a 1984, de George alemão, do ilustrador e
Orwell, e a Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e disse: “Se há qualquer diretor de arte Murilo
Recebo o Rascunho há muitos um hoje em dia, não só na literatura francesa, mas na mundial, que reflita sobre Martins. A obra foi lançada
anos e fiquei surpreso quando a a enorme mutação em curso que todos nós sentimos, e que não sabemos como originalmente em inglês,
edição de novembro chegou aqui analisar, esse escritor é Houellebecq”. de maneira independente,
em casa. Com o novo formato na Toronto Comics Arts
berliner, vocês conseguiram Festival, no Canadá. O
melhorar o que já era excelente. livro tem a costura lateral
Parabéns! Prêmio Sesc só online aparente, que será uma das
André Luis Mansur • Rio de Janeiro - RJ Basta de calhamaços de papel. Iniciadas em 19 de janeiro, as inscrições para marcas da Pólen. A outra
o Prêmio Sesc de Literatura 2015 serão realizadas somente pela internet. Os aposta da editora é Cidade
É com alegria que recebemos o vencedores, cujos livros são publicados pela Record, serão anunciados em julho das Águas, adaptação da
Rascunho e este novo formato durante a Flip. Serão selecionados dois autores inéditos nas categorias Conto e peça de teatro Origem
muito nos agradou. Além de ser Romance. Para participar, os candidatos deverão inscrever um romance ou coletânea Destino, escrita por Marcos
leitura obrigatória, o Rascunho de contos inéditos. O autor pode concorrer nas duas categorias desde que tenha Gomes e dirigida por
é matéria de estudo para 40 obras nunca publicadas em ambas. O edital completo está disponível em www.sesc. Andrea Tedesco. A graphic
alunos do núcleo de literatura com.br/premiosesc. Informações também pelo e-mail literatura@sesc.com.br. novel é mais uma parceria
do projeto Batuque na Caixa. do ilustrador Guilherme
Agradecemos por seu conteúdo Caldas e do roteirista
sempre diverso e fundamental e Mário vai a Paraty Olavo Rocha.
que certamente contribuiu para Mário de Andrade será o autor homenageado da 13ª edição da Flip, entre 1
que o Batuque conquistasse e 5 de julho. E sua obra e ideias já começam a circular por Paraty. A atuação
o Prêmio Leitura para todos, do escritor nas questões ligadas a patrimônio inspirara a exposição Histórias Em busca
do Minc, que reconheceu as e Ofícios do Território. Inaugurada em dezembro, a mostra está em cartaz no de autores
melhores práticas de acesso Espaço Experimental de Cultura — Cinema da Praça até 8 de março. Segundo A 11 Editora está recebendo
e incentivo à leitura no Brasil. o curador da Flip 2015, Paulo Werneck, “Mário é um autor para o Brasil do originais inéditos nos
Obrigado e vida longa ao século 21, com vida e obra a serem redescobertas, rediscutidas, postas em gêneros romance, conto e
Rascunho! debate”. A homenagem prevê, entre outras ações, uma conferência de abertura, crônica. Também irá avaliar
Aldo Moraes • Londrina - PR mesas sobre o autor na programação principal e na FlipMais (programação da trabalhos de conclusão
Casa da Cultura) e uma exposição. O curador também pretende levar novas de cursos acadêmicos ou
gerações de intérpretes de sua obra literária e poética. teses que se enquadrem
na categoria livro-
reportagem. A intenção
Harry Potter ilustrado é abrir espaço a novos
reprodução

A Rocco publicará a edição ilustrada autores, especialmente


de Harry Potter e a pedra filosofal. A aos estreantes. Como
nova edição trará ilustrações de Jim Kay, pagamento de direitos
ganhador da Kate Greenaway Medal. A autorais, o autor receberá
editora britânica Bloomsbury já divulgou uma porcentagem dos
as primeiras imagens, retratando quatro exemplares impressos.
importantes personagens da série: Rubeus Os textos podem ser
Envie e-mail para cartas@rascunho.com.br Hagrid, Hermione Granger, Draco Malfoy enviados por e-mail para
com nome completo, endereço e telefone. e Ron Weasley. O livro será lançado na originais@11editora.com.
Sem alterar o conteúdo, o Rascunho se Inglaterra e nos Estados Unidos em outubro br. Mais informações:
reserva o direito de adaptar os textos. deste ano e no Brasil em 2016. www.11editora.com.br.
4| | fevereiro de 2015

manual de garimpo | Alberto Mussa experiência do exílio, que não foi escrava nem é
filha de ex-escravos — embora viva num tempo
em que as antigas realezas já não têm mais força
política.

O rei de Keto
É a partir de Abionan que Olinto penetra nas
profundezas e contradições da sensibilidade ioru-
bá e nos revela um mundo a um só tempo mara-
vilhoso e tragicamente verdadeiro. Abionan (que
quer dizer “nascida na rua” ou “na estrada”) sonha

O
ser mãe do futuro rei de Keto, presa que ainda está
à vida tradicional e às grandezas do passado. Após
uço dizer às ve- dupla nacionalidade, ou con- de adeptos do Santo Daime; em perder seu primogênito (sepultado no mesmo pon-
zes que todo crí- tinentalidade: pertence tanto Tempo de palhaço, que trata da to da estrada em que ela nascera), procura retomar
tico literário é à literatura brasileira quanto formação intelectual e ética da o convívio do marido e conceber um outro filho,
um ficcionista, a africanas — porque trata de geração de 60; e em Alcácer-Ki- dar à luz um novo rei para Keto.
um poeta ou um um episódio histórico ainda bir, romance mais estritamente O romance — que tem uma das aberturas
dramaturgo frustrado; que só pouco conhecido e estudado: o filiado ao gênero histórico. mais lindas da literatura brasileira — se passa em
se tornou crítico por não saber do retorno maciço, logo após Mas o universo fascinante cinco dias, começando e terminando no dia de
escrever. Poderia combater tal a Abolição, de africanos escra- de A Casa da Água continuou Ifá e Exu (o primeiro da semana iorubá de qua-
ideia com diversos argumentos vizados no Brasil para a África presente na sensibilidade do ro- tro dias). Em cada um deles, Abionan vende seus
teóricos. Nenhum deles, con- Ocidental, assim como de al- mancista — e acabou se expan- inhames num mercado diferente, em cidades di-
tudo, é mais forte do que um guns brasileiros descendentes de dindo numa trilogia, formada ferentes, conversa com diferentes clientes e com-
contraexemplo. africanos. A Casa da Água re- com O rei de Keto e Trono de panheiras de trabalho — e fundamentalmente
Antônio Olinto, minei- cria ficcionalmente essas vidas, vidro. Esse último, de tom mais lembra. Surgem, assim, inúmeras cenas e figuras,
ro de Ubá, talvez já nem seja revelando que a experiência do político, é uma continuação personagens extraordinárias (inclusive as duas Ma-
lembrado como crítico e mui- exílio é indelével, que os estran- propriamente dita de A Casa rianas), numa espécie de mosaico que não respeita
to menos como poeta, apesar geiros que retornam permane- da Água, pois seus protagonis- cronologia — e nos permite viver o experimento
de ter começado sua atividade cem estrangeiros... tas são as duas inesquecíveis Ma- indispensável da alteridade. O fim do livro é má-
intelectual exatamente nessas Olinto explorou depois rianas, a avó e a neta. Já em O gico, comovente, triunfal, quando Abionan se dei-
áreas. Passou vinte anos como outros temas, em O cinema de rei de Keto, a personagem cen- ta com o marido no mesmo lugar onde nasceu e
poeta e crítico antes de estrear Ubá e Copacabana, livros de tral, Abionan, é uma vendedora enterrou seu primogênito, para gerar o futuro rei.
na ficção. E seu primeiro ro- fundo mais memorialista; em de inhames, pertencente à famí- O rei de Keto saiu em 1980 pela Nórdica
mance é justamente a sua obra- Sangue na floresta, aventu- lia real de Keto (cidade de etnia e depois pela Bertrand, como segundo volume da
-prima: A Casa da Água. ra amazônica, cujo protagonis- iorubá que fica hoje no Benin), trilogia Alma africana. Os exemplares em bom es-
Já se disse ser obra com ta é líder de uma comunidade que portanto não passou pela tado estão entre R$20,00 e R$ 40,00.

quase diário | Affonso Romano de Sant’Anna Os egípcios vivendo a mesma


ambiguidade dos brasileiros:
cutir uma citação do professor
Duverger, citado por Rezek, so-
cosmopolitas numa cultura se- bre a questão das fronteiras.
mibárbara. Ilhas. Uma situação Depois, eu e Nilo Nemer

Viagem ao Egito
paradoxal. O embaixador egíp- fomos solicitados a falar sobre a
cio, jovem, moreno, charmoso, parte cultural e comercial. Limi-
desinibidamente narcisista. Dis- tei-me a citar os textos da pro-
cursa. Rezek discursa e mencio- posta egípcia, destacando uns
na o meu nome, com destaque, itens que apoiamos. Acrescentei
dizendo que a minha presença uma série de pontos relativos à
significa o nosso interesse na Bi- Biblioteca de Alexandria, ressal-
08.11.1991 ristas em todas as partes e nossa Depois fomos passear no blioteca de Alexandria. tando que poderíamos fornecer-
Encontrei com Francisco comitiva com batedores, moto- Rio Nilo, num barco, também, Fico surpreso e comovido -lhes strong suport. Eles têm na
Rezek (ministro das Relações Ex- ciclistas, chamando atenção de aluguel da embaixada — duran- com a homenagem. verdade uma biblioteca como
teriores) no hall do hotel quando todos, seja no meio das ruas api- te três horas. Almoço magnífi- Na verdade, o responsá- um símbolo. Pouco fizeram até
ele chegou com a comitiva às 10 nhadas, seja entre as pirâmides. co, com garçons e tudo. Rezek vel por Alexandria não apareceu agora. Querem é dinheiro para
horas. Foi gentil. Nunca havia Na verdade, antes fomos relaxado. Uns cinco jornalistas ainda. O acordo será prejudica- investimento.
estado com ele e agora estou em ao Museu Nacional, agora em juntos. Passamos diante de uma do. Só será assinado depois. Eu poderia (perdi a opor-
sua comitiva. Havia, sim, escrito comitiva oficial, o diretor do casa, beira-rio, hoje uma igreja, (Enquanto escrevo aqui tunidade) ter lido/falado meu
uma crônica n’O Globo quando Museu nos explicando todo o se- que dizem ter sido uma estala- no hotel, vejo TV, canais euro- texto já publicado sobre as bi-
ele tinha que decidir no STF se tor de Tutankamon: as três urnas gem onde José e Maria pousa- peus, ora a BBC, Paris, Suíça, bliotecas hoje em dia e qual o
o Silvio Santos podia ou não ser gigantescas que estavam dentro ram no caminho de Belém. etc. Gosto disto: cultura e in- seu papel. Mas fui pego de sur-
candidato — o que tumultuaria de outras (cobertas de ouro), nas Depois, cortejo de buzinas formação) presa. Não sabia que deveria fa-
por completo o quadro eleitoral. quais estavam os três sarcófagos, e batedoress para a Mesquita do lar. Nem levei o tal documento.
Com Rezek estava o Carlos um dentro do outro, onde estava Sultão (?) na Cidadela. Lindíssi- 10.11.1991 Poderia ter ressaltado também
Pellegrino, que trabalhou com o corpo de Queóps, que morreu ma. O sol se punha. A mesquita Ontem foi um dia formal- como secretário executivo da
ele e foi colega dele na UFMG, aos 20 anos. Fotos nas paredes, é tão grande quanto as de Istam- mente movimentado. Vi como é Abinia (que reúne 22 biblio-
ao tempo do Márcio Penido, sobre como em 1923 o túmulo bul. A região é fantástica. Casas, o encontro de ministros das re- tecas nacionais ibero-america-
Adão Ventura e outros. Curiosa foi descoberto por um inglês. Ri- mesquitas da cor da terra, mar- lações exteriores. No belo prédio nas), poderia aliciar apoio para
sensação de revê-lo não como o queza extraordinária. Seu peque- rom. Casas da cidade velha, com estilo francês — do Ministério essa iniciativa, etc.
ministro austero que eu via na no trono revestido de ouro. As cara árabe, parecendo meio deser- das Relações Exteriores do Egito, À noite, jantar na casa do
TV, mas como um contempo- duas estátuas revestidas de ouro tas, abandonadas, mas deve ser ali uma longa mesa com dez pessoas embaixador Márcio Dias, bela
râneo que não conheci em BH. na entrada da tumba/sala. Se ele que vive o povo mais pobre. de cada lado (as pastas) e os dois casa de dois andares à beira do
Dizem-me que ele escreveu tam- morreu aos 20 anos, pergunto, Depois voltei/fui com a ministros um diante do outro. Nilo. E a mulher — Walkiria,
bém ficção na revista Porta, de quando começaram a elaborar comitiva a Al Khalili, onde, de O do Egito dirigiu a pa- gentilmente dizendo-se minha
que também não me lembrava. tudo isso? É trabalho para déca- novo, estavam a alegria, a vivaci- lavra abrindo a seção. Colocou leitora e convidando-me para
Começamos pela manhã das. Dizem-me que a exemplo de dade, a luminosidade. uma série de questões, que eu voltar com Marina. A filha deles,
indo em cinco carros alugados Queóps, começavam a construir À noite, mais caravana pensava seriam tratadas em par- jovem, contou uma coisa boni-
pela embaixada, para conhecer as tumbas desde cedo, quando a com buzinas pela cidade pa- ticular: Irã, Cuba, Nações Uni- ta: o programa, o barato mesmo,
as pirâmides/esfinge, que já havia pessoa ainda era criança. ra um jantar no Clube Demo- das. Foi quase uma sabatina era ver o sol nascer junto às pi-
visto à noite. É um cenário des- De novo: uma visão con- crático. Longas mesas com uns da qual Rezek, com elegância, râmides. Quando viu isso a pri-
lumbrante, mágico. Tirei fotos, sagrada à morte. A morte dando 40 homens lado a lado. Pen- saiu-se bem, com seu inglês de meira vez, exclamou: “Mas isso
camelo, vimos o barco gigantes- sentido à vida. Daí o Livro dos sei: é o único lugar limpo do Oxford. O ministro egípcio teve acontece todos os dias da vida e
co de Queóps. Milhares de tu- mortos, hoje tão vivo. país. E, claro, dos diplomatas. até a indelicadeza de querer dis- eu não tinha visto ainda!”.
6| | fevereiro de 2015
divulgação

entrevista | João Anzanello Carrascoza

Miudezas
poéticas
Márwio Câmara | Rio de Janeiro - RJ

P
ara quem traz na
bagagem o florescer
artístico de um
poeta, e que acabou
se descobrindo
um notório prosador, não é de
se estranhar que prosa e verso
caminhem lado a lado na obra
de João Anzanello Carrascoza.
Nascido em Cravinhos,
interior de São Paulo, o escritor,
formado em Publicidade
e Propaganda, doutor em
Ciências da Comunicação
pela USP, integra o time dos
grandes prosadores da literatura
brasileira contemporânea. Em
2014, publicou Caderno de
um ausente (leia resenha na
página 9), romance intimista
sobre um homem de meia-idade
em intenso diálogo com a filha
recém-nascida.
A narrativa, confluída por
elementos de tessitura poética e
de fino trato com a linguagem,
manifesta-se como uma espécie
de preparação ante ao futuro
e às inúmeras possibilidades
reservadas à pequena Julia.
Mas, além disso, também se
trata da despedida deste pai,
que tem consciência de que
amanhã não estará mais presente
para acompanhar a trajetória
existencial da filha.
Na entrevista a seguir,
Carrascoza fala sobre seu
romance e os processos
introspectivos ligados à literatura.

fevereiro de 2015 | |7

• Como foi o processo de pro- linha totalmente autobiográfi- “O que me interessa Costumo chamar de famílias li- recebendo assuntos e temas pos-
dução de Caderno de um au- ca. É autobiográfico como toda num ficcionista é terárias. Não só como leitor, vo- síveis para trabalhar, e o escritor
sente? obra de alguma forma é, trazen- a forma como ele cê lê as coisas que te tocam, mas tem uma vida só. O importan-
O Caderno parte da ideia de do vivências transfiguradas de acaba se incluindo como aqueles te é você seguir o seu caminho.
uma estória que se alonga pelo um determinado autor. trabalha a sua ficção. que produzem. Me senti muito O mundo está circulando e vo-
período de um ano na vida de um Como consegue filiado, filho dessa família que cê precisa viajar, fazer um monte
personagem cuja filha acaba de • Pode nos contar sobre o seu fabular, construir o seu tem Clarice Lispector, Guima- de coisas. O mundo está lá, mas
nascer. O livro é uma espécie de trajeto inicial como escritor? próprio mundo.” rães Rosa, Carlos Drummond, é preciso estar conectado consigo
boas-vindas a ela, mas também Como se deu esse encontro William Faulkner, a criatividade quando se está escrevendo.
uma arqueologia desse próprio com a literatura? desconcertante e aqueles jogos
personagem, uma vez que, como O ato da escritura surgiu junto de forma como os do Cortázar. • Retomando o Caderno de um
ele é pai, está revendo sua própria com a leitura. Quando aprendi ausente, você poderia falar so-
vida com o nascimento da filha. a ler, foi um deslumbramento. • Autores de linguagem... bre os espaçamentos utilizados
Obviamente, há a possibilidade A possibilidade de me enveredar Exatamente. Autores que têm no romance? Sobre esse pro-
de ele rever sua própria trajetó- em outros universos. Comecei um trabalho mais sofisticado, cesso de estruturação estética
ria, revalorizar o seu instante e lendo vários livros da bibliote- que não se preocupam exatamen- onde a diagramação do livro
entender de novo sua própria vi- ca do colégio de minha cidade, te em contar estórias e acabam acaba, de certa forma, comuni-
da. Minha matriz foi o Morte e no interior de São Paulo, e ouvia criando um estilo muito próprio. cando-se com a narrativa? Esses
vida Severina, que começa com muitas estórias de minha região. As pessoas vão entendendo as ra- recursos gráficos também po-
a morte e ao final vemos Severi- Pegava As mil e uma noites, o ízes que você encontrou no seu dem ser vistos no seu livro an-
no descobrindo e festejando uma Simbá, o Robson Crusoé ou os caminho e que foram se assen- terior (Aos 7 e aos 40), através
vida. Porém, em meu livro acon- poemas do Drummond, e me tando no solo de sua criatividade, da distinção de cores das pági-
tece de forma contrária. Come- sentia em outro mundo. Come- de sua inspiração e continuam te nas, e que se refletem na duali-
ço com uma vida chegando, mas cei a escrever a partir da leitura. alimentando. O que me interessa dade das vozes narrativas.
já sobrepondo sobre essa vida a Uma vez que eu lia, queria es- num ficcionista é a forma como Acredito que a estória pedia um
ideia da morte. De uma vida que crever coisas parecidas ou dife- ele trabalha a sua ficção. Como pouco disso. Quando comecei a
recomeça através da morte. rentes, ou queria dar outro fim ele consegue fabular, construir o escrever o Caderno, os espaços se
às coisas que lia. Comecei es- seu próprio mundo. definiam com as pausas do narra-
• Por que Caderno de um au- crevendo inicialmente poesia, dor, ao mesmo tempo em que se
sente? aí mais adiante enveredei para • Como a publicidade entra em configuravam como as ausências.
Fui montando o texto desta for- a prosa. Meu começo foi como sua literatura, se é que entra? Não é um trabalho de vanguar-
ma, buscando deixar esse per- poeta, mas não publiquei nada. A publicidade me ensinou mui- da, mas o próprio texto pedia is-
sonagem falar determinados Lá pelos vinte anos, comecei a tas coisas: a precisão e a concisão so. Esses recursos não são a priori,
assuntos que fossem inquietan- escrever contos. Passei a parti- na hora de fazer o texto. Você o texto que te traz alguma ideia
tes. Então, ele não tem uma ló- cipar de concursos de um con- acaba aprendendo a tomar mais de como fazer. É claro que eu
gica, por isso se chama Caderno to só, e quando eles passaram a cuidado com a escolha lexical, vim da publicidade. A gente vê
de um ausente, porque num ca- ser premiados, vi que eu era mais com as redes semânticas. O que o espaço da letra, a tipologia, a
derno você anota coisas, às ve- prosador do que poeta. Mas ve- você escolhe para escrever, tu- cor, tudo isso conta. Como vo-
zes, à revelia ou meio a esmo, ja que nunca abandonei a poesia. do tem que fazer sentido. En- cê citou que também ocorre no
há uma certa desordem, embo- Minha prosa tem uma abertura tão, acho que isso depois acabou meu outro romance, além da dia-
ra haja uma intenção. Você só para o mundo lírico, não apenas passando para o meu texto. Sou gramação, as páginas são verdes,
expressa e materializa o que, de para a estória em si. Minha nar- muito cuidadoso, vou e volto o mas em duas cores: o verde-claro
fato, te toca. Os capítulos do li- rativa tem a função de ser como tempo todo com o texto. E tam- e o verde-escuro. No Caderno, a
vro são curtos. Então eles vão o verso. Ela ecoa também feito bém ajudou a entender que vo- cor das folhas remete à cor da pe-
seguindo essa lógica de que são verso. A poesia é a partilha de cê pode mudar o texto, e que ele le, porque é algo para tocar, é um
pequenos fragmentos dessas uma certa vivência, de um certo não vem pronto. Fora a questão livro que está à flor da pele. Acho
sensações e estados de espírito. “eu”. E se consigo fazer isso, me da disciplina. A narrativa publi- que esses recursos dialogam com
Há coisas que ele quer falar para encanta mais. Porém, pode ser citária se apoia numa narrativa o que quero dizer.
a filha e também para si mesmo. uma característica do indivíduo, realista. Você constrói estórias
A filha é a vida que chega, e ele, seu jeito de olhar a vida. com certa verossimilhança, • Um trecho de um livro que fa-
uma vida que se renova com a com a utilização de detalhes ex- ça parte de sua vida e de seu re-
chegada de outra, embora tam- • Quais são suas referências li- pressivos. E, obviamente, pre- lacionamento com a literatura.
bém seja uma vida que prenun- terárias? Os autores que real- cisa saber contar estórias. O Uma frase do Tao te ching que
cia seu fim, a sua ausência. mente fizeram a sua cabeça e publicitário tem que saber con- me encaminha muito ao traba-
que, de certa forma, influen- tar estórias. E o trato com a lho que faço na literatura, des-
• Existe algum tipo de referên- ciaram em sua produção. literatura diária me ajudou tam- sa coisa do menor: “Quem se dá
cia autobiográfica neste ro- Comecei lendo de forma bem bém nesse sentido. Acho que es- muita importância, não tem im-
mance? O fato de o narrador caótica. Lia tudo que encontra- sas águas se misturaram. portância nenhuma”. Em outras
se chamar João, ser um homem va nas bibliotecas das escolas e palavras, se você acha que certas
de meia-idade... da minha cidade. Li muita lite- • Quais são as maiores dificul- coisas são muito significativas,
São alguns sinais de elementos ratura brasileira contemporâ- dades durante o processo cria- elas são insignificantes. E eu tra-
isotópicos que podem dar a ideia nea. Era o “boom” do conto, na tivo? balho um pouco com essa vida,
de que tem a ver com a minha época. Então li muitos contos. É meio misterioso quando as es- com as coisas pequenas, a miude-
vida. Dediquei este livro a mi- Havia uma coleção da Ática de tórias vêm. Mas quando elas za. O nosso instante que, por um
nha esposa Juliana. Inclusive, autores brasileiros, e li quase to- começam a se formar, é preci- momento, pode parecer nada,
usei o nome dela na personagem dos. Depois descobri a literatu- so sensibilidade para saber se mas é o instante da nossa vida,
que é a mãe no romance. Esses ra latino-americana, que estava elas resistem. As estórias preci- é a nossa riqueza, e que a gente
índices isotópicos já fazem parte vivendo seu “boom” também, sam ter um tempo de envelheci- não sabe se continuará no dia
da literatura, de uma forma ge- com o García Márquez; o Cor- mento. Não tem aquela frase do seguinte. É você vivendo aquele
ral. Mas não tive nenhuma in- tázar, que se tornou uma grande Nelson Rodrigues: “jovens, enve- instante e ser grato. Por isso es-
tenção de utilizar a história da referência na minha trajetória; lheçam!”? As estórias precisam en- crevo sobre epifania, revelações.
minha vida. Tem gente que leu o Borges; Mario Vargas Llosa;
“Nunca abandonei a velhecer ou o escritor envelhecer, Às vezes, as coisas que não pare-
e achou o livro tão forte que me Onetti. Então fui para os clás- poesia. Minha prosa para entender se elas estão prontas cem nada, você se dá conta que é
perguntou sobre como anda a sicos europeus, franceses, espa- tem uma abertura para para o mundo. Porque é você que tudo o que tem. Uma outra fra-
Beatriz, se estou bem viúvo. É nhóis e italianos. E também a o mundo lírico, não as dará à luz. E tem a questão do se de que gosto muito é do Pla-
claro que há elementos autobio- literatura norte-americana. É apenas para a estória cotidiano. A sua própria vida atra- tão: “O tempo é a eternidade em
gráficos no sentido de você usar claro que, quando você lê, há vessa a sua estória. Uma das maio- movimento”. É uma coisa que
suas experiências, fatos... Posso aqueles autores que praticamen- em si. Minha narrativa res dificuldades para o escritor me pauta muito. O milagre de
utilizar traços de pessoas que co- te trazem uma certa sensibili- tem a função de ser talvez seja a concentração. Hoje estarmos aqui me interessa mui-
nheço e amo. Mas não há uma dade com a qual você partilha. como o verso.” em dia, estamos o tempo todo to na literatura.
8| | fevereiro de 2015

João Anzanello
Carrascoza por
Osvalter

A força da
delicadeza
Caderno de um ausente
João Anzanello Carrascoza
Cosac Naify
128 págs.

As palavras são o antídoto para a morte em Caderno


de um ausente, de João Anzanello Carrascoza

Vivian Schlesinger | São Paulo - SP


fevereiro de 2015 | |9

F
ilha, acabas de nas- das tripas, coração, para alegrar jedoura. É uma imagem plena o autor
cer, mal eu te peguei a neta enquanto cuida da filha. de significados. Se por um lado João Anzanello
no colo, e pronto, já Mas a libra da carne o narrador é impossível transferir experiên- Carrascoza
chega, disse a enfer- cobra de si próprio, ao confessar cia, por outro, compartilha-se a
meira, e te recolheu seu passado de adultério, luxú- emoção, poetizando. Vida menos Nasceu em Cravinhos
de mim [...] Assim nasce o Ca- ria, mentira e soberba. Tão abje- poesia igual vazio, diz o autor. (SP), em 1962. É contista,
derno de um ausente, segun- to é seu pecado que nem mesmo Poesia é o que se lê na pro- romancista, redator publicitário,
do romance de João Anzanello a mulher toda perdão [conseguiu] sa de Caderno de um ausente: professor universitário. Nos
Carrascoza. É a primeira linha retirar dele a cruz que lhe segue acriançaremos novamente. Há um anos 1980, publicou histórias
de um caderno onde um profes- pregada aos ombros [...] Pelas pa- coro de vozes roseanas, mas tam- em jornais de São Paulo e
sor, aos cinquenta anos, escreve lavras roucas, sussurradas quase bém clariceanas, e de Mia Cou- Minas Gerais e frequentou a
suas reflexões à filha que acaba que a embalar a nenê, ouve-se to, a quem, tal como Carrascoza, oficina ministrada por João
de nascer. Movido pelo temor um sentimento de proporções a convivência entre numerosas Silvério Trevisan. Estreou
de não estar presente enquanto bíblicas. Coerente, Carrasco- mulheres desde a infância, pare- em 1991 com o romance
a menina crescer, transforma as za diz, em entrevista no projeto ce ter nutrido o universo poético. infantojuvenil As flores do
impressões da vida e a história Paiol Literário, em setembro de A intimidade do “tu”, o tom de lado de baixo. Reuniu
da família em uma carta de edu- 2013: “Não trabalho com fatos, canção de ninar, os aforismos tão histórias para seu primeiro
cação sentimental. O resultado e sim com sentimentos”. numerosos que desafiam o cole- livro de contos, Hotel
é prosa poética da mais delica- cionador, tudo lembra um aco- Solidão, concluído em
da, e por isso, da mais contun- Ninharias lhimento materno, uma relação 1992, foi premiado no
dente, onde [...] subitamente, a Nas águas desse lirismo costurada muito antes de a crian- Concurso Nacional de
linguagem frutifica, vazando pri- também desembocam as ninha- ça nascer: [...] a tua vida, filha, é Contos do Paraná. É
mavera por todos os poros, porque rias do instante: sandálias, um re- um texto que há tempos começa- autor ainda de O vaso
é mais digno se molhar no sangue lógio de bolso, bichos de pelúcia, mos a escrever [...] Essa ourivesa- azul, Duas tardes, Dias
do presente do que no pó dourado [...] e logo será o tempo dos lápis ria vem a um custo. Segundo o raros, entre outros.
do passado [...] de cor, dos brinquedos eletrônicos, próprio autor, ele escreve deva-
Como de costume na obra do garfo e faca [...] A partir dessas gar, uma página por dia, [...] as
de Carrascoza, desde a primei- ninharias, o autor organiza suas palavras grafadas com limpidez,
ra linha há o presságio da perda: memórias, costura histórias cuja igual água dentro do vidro, exibin-
[...] as únicas palavras que valem raiz é a realidade, inclusive a de- do toda a transparência de sua es-
para sempre [...] são aquelas, Bia, le próprio, mas “o tronco é o das critura líquida e, ao mesmo tempo,
que anunciam o adeus. Ostensi- relações afetivas; de pessoas que escondendo resíduos de substâncias,
vamente, é de sua própria morte se falam ou não [...] que podem milagrosas ou nocivas [...]
que fala o narrador, mas de fato aprender a dizer não só com as A delicadeza do cristal per-
é da onipresença da morte. Para palavras, mas com outras formas meia todo o romance na esco-
ele, as palavras da memória são o de dizer”. E uma forma de dizer, lha das palavras, nos volteios das
único refúgio possível: memórias bem a caráter desse autor, é si- frases, na letra miúda. Ao leitor
de visitas da tia, da história dos lenciar. Tudo nesse testamento é oferecido um olhar entre fres-
avós, do amor à terra que culti- é um ode ao silêncio; do título, tas, mas sem qualquer tinta de
vavam, do cheiro da terra, me- Caderno de um ausente, que malícia, seja em relatos das có-
mória até daquilo que o narrador remete ao silêncio deixado por licas da nenê, seja para prenun-
nunca viu. Bia, [...], já estou te alguém que não está, aos espa- ciar, temerosamente, a morte
perdendo, já te perdi por tudo o ços brancos que parecem surgir que virá, onde, revelar a mor-
que vivestes até este instante, mas aleatoriamente em cada página; te é comparado a uma sangria
eu te recupero com as palavras, da voz silenciosa desse narra- causada por uma faca, que é a
Bia, [...] Esse Caderno, então, dor que nunca usa exclamação, verdade. João, já de posse dessa
vem para resguardar a presença e com raras exceções, nem mai- faca, gostaria de asfixiar as pala-
do pai na vida da filha, e da filha úsculas, ao maior silêncio do vras que trarão a sangria. Mas o
trecho
na memória do pai. Mas é muito mundo, que é a morte. leitor também já possui a faca, e
mais do que um caderno. Silencioso, mas nem por pressente a vizinhança da morte. Caderno de
um ausente
As palavras vêm, riacho isso, menos eloquente. João quer Desde o começo, o autor avisa,
miúdo que vai ficando mais deixar para Bia sua experiência, [...] eu te peço perdão, filha, por
fundo do que largo. A corren- enquanto sabe que ela é o vivi- não ser o anfitrião ideal [...] mas [...] é no silêncio que se pede
teza, quase imperceptível da do intransferível. Igual a qualquer não há como esconder a morte an- perdão, Bia, é no silêncio
superfície, toma força de ma- pai, quer proteger a filha de to- te a estreia de uma vida. que podes descobrir nas
ré. Engana-se o leitor que pen- do sofrimento; quer que ela se Ao final, nem todo o amor
tuas entranhas as minhas
sa poder caminhar de uma sinta protegida, e para isso bus- da família, nem a nuvem de me-
margem a outra. Uma vez os ca a imagem mais forte de uma mórias fazem frente ao grande fragilidades, é nele, no
pés dentro da água, é deixar- criança no Cristianismo, em lin- ladrão da vida. A surpresa, ape- silêncio, que o nada se
-se levar. Pouco a pouco vai guagem que lembra as escrituras: sar dos presságios, vem para to- exalta, e a súplica se renova,
encontrar a família de João, o [...] eis o teu pai e a tua mãe, Bia, dos, mostrando que por mais
e a opressão se dissolve, é no
narrador, e Bia, sua filha; paren- um de cada lado do teu berço, em preparados que estejamos, nun-
tes vivos e falecidos, de quem torno do qual não há reis magos ca é o suficiente. Na vida, as- silêncio, Bia, que a memória
conta o nome, parentesco, e um [...] que não se assemelha a nenhu- sim como no amor e na morte, resume as horas vividas, é no
detalhe aqui, outro ali; um tio ma manjedoura [...] A simples há espaços que se abrem e su- silêncio que o rio nos salpica
alcoólatra, outro, trovador; uma alusão aos reis magos e à man- gam o que ali havia. Resta-nos
o rosto com suas gotas, é no
tia freira, outra, fugida. Como jedoura estabelece precisamente preencher com o toque da pele,
indivíduos, pouco representam, o paralelo que o pai nega, e esse palavras preciosas e doação os mais depurado silêncio que
mas perfazem o mosaico cimen- berço torna-se, sim, uma man- espaços entre as ausências. se irrigam os vazios [...]
tado por encontros familiares,
nascimentos, fotos e migrações.
Em suma, o ciclo da vida.
[...]não há como secar em
nós o licor da história familiar
[...] Relações familiares são um
dos temas importantes em toda
a obra de Carrascoza. Diferen-
temente de muito da nossa lite-
ratura contemporânea, aqui o
mote é a doação de uns aos ou-
tros. Assim como no Cristianis- Relações familiares são um dos temas importantes
mo, o ato de suprema doação é em toda a obra de Carrascoza. Diferentemente de
o da mãe que, para dar vida à fi- muito da nossa literatura contemporânea, aqui o
lha, enfrenta cada dia com mui-
to mais coragem do que saúde. mote é a doação de uns aos outros.
Há também a avó Helena, mui-
to presente e generosa, que faz
10 | | fevereiro de 2015

Já Palavra na berlinda,

A celebração
como anuncia o título, traz po-
emas de pendor reflexivo que
têm como objeto privilegiado a
linguagem e a criação literária.
Se nem o tom meditativo, nem
o discurso metapoético são pro-
priamente elementos novos no

da poesia
universo lírico de Astrid Cabral, Infância em franjas
o fato de a obra inscrever-se nes- Astrid Cabral
te momento em que a trajetória Editora KD
da autora completa dez lustros, 64 págs.
como anteriormente menciona-
do, concede-lhe decerto um va-
lor particular; por outro lado, e Palavra na berlinda
Astrid Cabral
como efeito da densidade dessa
Ibis Libris
reflexão, os poemas reunidos no
82 págs.
Livros mais recentes de Astrid Cabral têm o volume frequentemente avan-
çam para um questionamen-
tempo e a própria poesia como principais temas to em torno dos liames entre
o silêncio, a palavra e a poesia. Coeur sans frein/
Coração à solta
Consciente de seu ofício, Astrid Astrid Cabral
Henrique Marques-Samyn | Rio de Janeiro - RJ enfrenta algumas das mais per- Les Arêtes
sistentes questões em torno da 105 págs.

P
natureza específica da criação po-
divulgação ética, desde o inusitado da inspi-
ublicados entre 2011 ração (“A poesia me pede a mão/
e 2014, os três li- sussurrando ao pé do ouvido:/
vros de que trata es- pega caneta e folha. Tira/ a rou-
ta resenha podem pa que te atrapalha./ Joga fora a
ser percebidos como máscara diária./ [...]”, lemos nos
marcos celebratórios de uma car- versos iniciais de A poesia me pe-
reira literária que já se estende de a mão) até a lida com a maté-
por meio século. Foi com o livro ria textual (“O poema, esse fruto/
de contos Alameda, publicado que não dá em árvore,/ carece de
em 1963, que Astrid Cabral sur- mão e mente/ para que possa nas-
giu como escritora; já era então cer. / [...] / Demorado ou breve/ trecho
uma mulher casada, que se mu- será o trabalho/ de apartá-lo das
Infância em franjas
dara para Brasília com o marido, trevas/ e em berço de papel dei-
o poeta Afonso Félix de Sousa, tá-lo / [...]”, lemos em Poema).
para integrar a primeira turma Aprofundando ainda mais a re- Uma cratera tão funda
de docentes da recém-fundada flexão, na segunda parte da obra, furando o chão norte a sul
Universidade de Brasília. A pró- Avesso, Astrid se dedica a pensar
pria escritora ressaltaria, pos- poeticamente o silêncio, cuja re-
Estrelas a me piscarem
teriormente, que a estreia fora lação com a poesia é inelutável —
condicionada pelas demandas da visto que nele “latentes,/ jazem de lá do altíssimo azul
vida familiar e pelos afazeres pro- todas as palavras” (Silêncio).
fissionais, que não lhe permitiam Finalmente, Infância em Plantas e bichos falando
dedicar o tempo necessário à li- franjas é um retorno a tempos
língua que eu entenderia
teratura; não obstante, os “anos passados; uma visita ao “armário
de silêncio e aridez” dariam lu- de lembranças-fantasmas”, co-
gar, a partir de 1979, a um perí- mo lemos no pequeno texto pre- Caravelas me levando
odo produtivo do qual nasceria a autora ambular à obra. Muito já foi dito a terras fora do mapa
uma obra poética inscrita entre Astrid Cabral sobre o valor da infância para
as mais representativas da lite- quem se dedica à criação literá-
ratura contemporânea brasilei- ria; a esse propósito, pode ser in- Gente grande generosa
ra, composta por títulos como Nasceu em Manaus (AM), em 1936, onde integrou o movimento teressante relembrar as palavras que tudo me ensinaria
Visgo da terra (1986), Rasos Clube da Madrugada. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, de Manuel Bandeira, em Iti-
d’água (2003) e Jaula (2006), diplomou-se em Letras Neolatinas na atual UFRJ. Integrou a primeira nerário de Pasárgada, quando
Meu anjo da guarda que
entre outros. A antologia bilín- turma de docentes da Universidade de Brasília, saindo em 1965, compara quatro anos de menini-
gue Coeur sans frein/Coração em decorrência do golpe militar; seria integrada à Universidade ce aos da vida de adulto, revelan- seu rosto me mostraria.
à solta (Les Arêtes, 2012), com em 1988, após a anistia. Sua obra literária, composta por mais do-se “espantado do vazio desses (Crenças caducas)
versões de poemas preparados de dez livros, já foi contemplada com diversos prêmios. últimos em cotejo com a densi-
pela própria Astrid Cabral, jun- dade daquela quadra distante”.
to dos livros de inéditos Palavra A pletora de episódios liricamen-
na berlinda (Ibis Libris, 2011) te resgatados por Astrid Cabral,
e Infância em franjas (Editora 50 poemas escolhidos pelo autor (Galo Branco, que ensejam poemas nos quais palavras eram mágicas./ As coi-
KD, 2014, com ilustrações de 2008). Para além de constituir uma rica apresen- entrevemos incontáveis motivos sas podiam ser ditas/ de maneira
Mariana Félix) vem, por conse- tação de alguns dos motivos centrais de sua obra, fundamentais daquela produção enviesada./ De brinca o mundo
guinte, somar-se à obra de uma concedendo ênfase a poemas em torno do temário literária que viria à luz quando podia/ ser mostrado à vera.”; em
autora que pacientemente aguar- amoroso e erótico — e recolhendo peças da altu- ela, já mulher adulta, publicasse Mágoas, a percepção infantil do
dou o momento mais propício ra de Certos amores (“[...] / Certos amores não cres- os seus primeiros livros, permite- desajuste das coisas — “O que
para a eclosão do lirismo; e, tal- cem./ Hibernam pura promessa/ de fogo a arder. -nos supor que sua experiência machucava/ não era palmada/
vez não por acaso, o tempo e a Aguardam/ só que o fósforo do acaso/ risque a fa- pessoal se aproxime daquela re- nem mesmo surra./ A carne da
própria poesia estão entre os gulha da chama.”), Deserto doméstico (“Moravam na ferida pelo autor de Libertina- bunda/ não tinha memória./ O
principais temas desses mais re- mesma casa/ mas em variados mundos./ Viviam ao gem. Em A mágica das palavras, que machucava/ sim, era a injus-
centes volumes. mesmo tempo/ mas em horários diversos./ Falavam Astrid Cabral registra o momen- tiça/ ou a desmedida/ entre cul-
Recolhendo poemas de di- a mesma língua/ só que em registros distintos./ [...]) to em que, menina, depara-se pa e castigo/ seguida do perdão/
versos momentos da trajetória e Amor no píer (“[...] // Meu amor ficou no meio/ com a natureza da linguagem sonegado ou adiado/ por conta
poética de Astrid Cabral, Coeur refém do medo de risco./ Queria apenas passeio/ poética — “A mulher chegou do orgulho/ da autoridade ofen-
sans frein/Coração à solta se a bordo escuna sem lastro./ Nunca a viagem de fa- da rua/ falando: de uma cajada- dida./ [...]”. Se a poesia é o ma-
inscreve entre as diversas anto- to.”) —, Coeur sans frein/Coração à solta poderá da/ matei dois coelhos./ Pensei: nejo da linguagem para dar voz
logias já publicadas de sua obra, constituir um valioso objeto de análise a quem se que mentirosa!/ Quer me fazer às inquietações humanas, talvez
desde De déu em déu (Sette Le- interessa por estudos de tradução, precisamente por de boba!/ Onde já se viu coelho/ este poema registre o nascimento
tras/BN, 1998) até Antologia apresentar poemas vertidos pela própria escritora, andando pela cidade?/ E on- da escritora que, agora, celebra
pessoal (Thesaurus, 2008) e o assim oferecendo um vislumbre de soluções auto- de arranjou cajado?// [...] // Foi os cinquenta anos de uma singu-
volume a ela dedicado na coleção rais para questões particulares do fazer lírico. quando me dei conta/ de que lar trajetória literária.
fevereiro de 2015 | | 11

E
m 1902, o engenhei-

Um século
ro Pereira Passos as-
sumiu a prefeitura
do Rio de Janeiro,
nomeado pelo en-
tão presidente da República Ro-
drigues Alves. Encontrou uma
cidade degradada, ainda bem

de misérias
parecida com os cenários descri-
tos por Luís Edmundo no clássi-
co O Rio de Janeiro no tempo
dos vice-reis. Uma urbe insalu-
bre recheada de cortiços, celeiro
perfeito para a febre amarela, a
varíola, o cólera. Era conhecida
como a cidade da morte.
Instigado pelas teorias sa-
nitárias do médico Oswaldo O maniqueísmo transforma Uma ladeira para
Cruz, Pereira Passos abriu uma
intensa batalha para sanear o Rio lugar nenhum num romance anacrônico
de Janeiro. Derrubou cortiços,
alargou ruas, criou novas aveni-
das, implantou parques urbanos, Maurício Melo Júnior | Brasília - DF
melhorou os sistemas de abas-
tecimento de luz e água. O Rio
civiliza-se, estampavam os jor-
nais. E neste ritmo estava selado todos os moradores do morro, menos os supe-
o destino do Morro do Castelo, riores do padre Ernesto, também poderosos, que
uma área de favela bem em frente abrigam o convento jesuíta que ali existia. Isso po-
à avenida Central. Seria demoli- deria ter ganhado méritos não fosse o citado exa-
do sob a alegação de que impedia gero e o fato de estar dito de maneira tão explícita.
os ventos marinhos de melhorar Até mesmo o português do armazém, Aurélio, que
o microclima da cidade. vivia bêbado, batia na mulher e caminhava para
As condicionantes so- uma inevitável falência, era mais uma vítima das
ciais desta demolição são a ba- Uma ladeira para arbitrárias decisões governamentais que faziam ra- o autor
se do enredo do novo romance lugar nenhum rear sua freguesia. Marco Carvalho
Marco Carvalho
de Marco Carvalho, Uma la- O maniqueísmo, enfim, torna o livro um
Record
deira para lugar nenhum. No tanto anacrônico. E o autor poderia se livrar da
159 págs.
entanto, talvez apenas a tragédia armadilha explorando um pouco mais os fatores Nasceu no Rio de Janeiro.
social, histórica e ecológica da históricos e como eles interferem na vida do cida- Foi cartunista do semanário
demolição do morro, que se deu dão comum. Em alguns momentos Marco Carva- Pasquim, Jornal do Brasil e O
entre os anos de 1920 e 1922 lho chega bem perto disso, como no instante em Dia, entre outros. Publicou seu
sob a alegação de que era neces- que descreve o processo de demolição do morro e a primeiro romance, Feijoada no
sário abrir espaço para a exposi- transferência do convento, da igreja e até dos ossos paraíso, em 2002. O livro foi
ção comemorativa ao centenário de Estácio de Sá, o fundador da cidade, para bair- adaptado para o cinema, com
da independência, não fosse su- ros distantes. Mas este investimento é tímido. o título de Besouro, em 2009.
ficiente para sustentar o roman- Dois romances lançados relativamente há
ce. Assim, Carvalho criou dois pouco tempo fazem muito bem esta aliança entre
protagonistas, a mulata Maria os jogos do poder e a vida cotidiana dentro de am-
Idalina Rosário Gonçalves e o biente histórico, O senhor do Lado Esquerdo, de
padre Ernesto, que vivem uma Alberto Mussa, e O bibliotecário do imperador,
intensa paixão entre as vielas e de Marco Lucchesi.
os subterrâneos do morro. Uma ladeira para lugar nenhum sobressai
Esta paixão enriquece o mesmo como um livro que alia entretenimento
andamento do livro, oferece com denúncia social. E aí reside seu principal mé-
uma dinâmica que envolve o rito. O fim do Morro do Castelo foi uma tragédia
leitor, sobretudo pelos contras- social e Marco Carvalho a denuncia de forma inci-
tes que carrega. Ernesto se mar- siva. Por outro lado, manipulando o caso amoroso
tiriza entre o voto de castidade trecho de um padre com uma mulata, cria uma expecta-
e as delícias dos encontros com tiva envolvente no leitor. Isso promove uma leitu-
Uma ladeira para
Rosário que, casada e católica lugar nenhum ra agradável e divertida, além de enriquecida pelo
praticante, é também adepta do ambiente histórico que, mesmo pálido, ainda tem
candomblé. Carvalho prefere, importância em todo enredo.
Os arranjos escusos dos
no entanto, limitar o romance Resta também uma linguagem bem fluente.
do padre com a mulata e tudo governantes sustentando as Sem muito rebuscamento, prefere se valer do hu- Uma ladeira para
termina no necessário pragma- decisões de poucos sobre os mor como base para transmitir com segurança uma lugar nenhum
tismo da moça. Daí o autor se destinos de todos enchiam de mensagem de indignação, mas também de prazer.
volta mesmo para as questões
sobressai mesmo
indignação ou de tédio os mais como um livro que
sociais que envolvem a demoli- Aquele gotejar de felicidade num mundo seco de
ção do morro. E salienta as per- novos e de ingratas recordações afeto e de carne, a vida de renúncias e sacrifícios para alia entretenimento
das, inclusive as históricas, já os mais antigos. O mito do se atingir a beatitude pregada pela religião, minava com denúncia
que o morro abrigava a primeira progresso servindo como um suas convicções, que já não eram mais assim tão fir- social. E aí reside
igreja da cidade aproximando- mes. Para quem ama e conhece o vale das ternuras,
-se assim do chamado romance
biombo cambeta à dependência,
a felicidade é inadiável, e a eternidade, com todos os
seu principal mérito.
social muito em voga na década quando não à franca seus anjos, não vale um peido da mulher amada.
de 1930 e que gerou vários clás- subserviência cultural. Tudo cada
sicos de nossa literatura. vez mais veloz e acelerado de Sem se concluir como romance histórico, Uma
Neste caminho chega ladeira para lugar nenhum resgata a literatura social
modernidades, mas tristemente
mesmo a ressuscitar um mani- para falar de misérias que, de certa forma, ainda asso-
queísmo exagerado. Todo po- igual no modo particular de lam aquela gente que Graciliano Ramos chamou de
der público é mau e são bons tratar o que era público. “desgraçados”.
12 | | fevereiro de 2015

E
m 3 de julho de antigos), literatura (Nauro Ma-

Réquiem
2014, o Brasil perdeu chado e a poesia brasileira) e ciên-
um homem de letras cias humanas (Gilberto Freyre e o
dos mais notáveis em colonizador português).
toda a sua história. A fim de ilustrar na prática
Falecido no Rio de Janeiro, aos a argúcia interpretativa de Ivan
79 anos, Ivan Junqueira marcou Junqueira, destaco sua percepção
presença na literatura brasileira de elementos que não se apresen-

ao poeta
atuando com fecundidade e ex- tam tão claramente em poemas
trema competência nas áreas da e narrativas, e também sua capa-
tradução, do ensaísmo e da po- cidade de analisar textos ou po-
esia. Destas duas últimas ver- éticas por perspectivas variadas,
tentes, o autor deixou prontos, com o que o crítico evita posi-
respectivamente, Reflexos do cionamentos estreitos e aumenta
sol-posto e Essa música, que o sentido das obras que contem-
simbolizam o desfecho triunfan- pla. Como exemplo da fina ob-
te de uma trajetória bibliográfica servação, sublinho um trecho de
marcada pela densidade reflexiva Obra de Ivan Junqueira é marcada pela densidade Machado de Assis e a arte do conto:
e por um agudíssimo senso esté- “Na verdade, sempre que os bra-
tico no trato com a escrita, quer reflexiva e por um agudíssimo senso estético ços sobem à cena na ficção ma-
crítica, quer literária. chadiana, não são apenas eles que
Aqui me ocuparei dos dois estão nus, mas sim todo o corpo
livros recentemente lançados, Marcos Pasche | Rio de Janeiro - RJ de suas personagens femininas”.
tratando primeiramente do en- Quanto à análise de uma obra
saístico e, posteriormente, do por inteiro, acerca da qual Ivan
poético. Como Ivan Junqueira relativiza opiniões de outros es-
me parece um poeta menos ex- tudiosos para demonstrar proce-
plorado do que justifica a impor- dentes possibilidades de leitura,
tância de sua obra (embora ela cito um fragmento de Riacho do-
não seja ignorada), e sendo mais ce: lição de maturidade, em que o
Essa música mais expressivo do crítico fala a respeito da ficção do
que Reflexos do sol-posto, vou paraibano José Lins do Rego:
dar mais espaço à poesia do que
ao ensaio, aproveitando para in- Não são poucos, entretan-
serir no texto uma ou outra par- to, os que denunciam em Lins do
te que funcione como panorama Rego certa adiposidade expressiva,
geral da obra do poeta e de seu além e contumazes descuidos com a
lugar na contemporaneidade. linguagem e estilo. Sustentam, ain-
da, que se trata de um autor cuja
Põe-se o sol formação literária pagaria óbvio
Reflexos do sol-posto re- tributo à pressa e à leviandade jor-
úne vinte e sete textos críticos nalística e que lhe faltaria, a rigor,
que Ivan Junqueira publicou dis- o embasamento filosófico e cultural
persamente, em forma de confe- de uma visão de mundo capaz de
rências, prefácios, depoimentos, absorver, no plano ficcional, toda a
orelhas de livro, etc. Embora o complexidade do homem contem-
volume não traga textos por as- porâneo. Mas, se analisado apenas
sim dizer definitivos enquanto Ivan Junqueira sob esse ângulo, perder-se-á o que de
meditação literária, a exemplo por Robson mais puro existia no escritor: aquele
de Intertextualismo e poesia con- Vilalba transbordamento a um tempo lírico
temporânea, de O encantador e telúrico que foi o seu traço mais
de serpentes (1987), e de tudo genuíno e ao qual, sabiamente, o
o que compõe o livro Baudelai- ficcionista jamais renunciou.
re, Eliot, Dylan Thomas: três
visões da modernidade (2000), A exemplo do que já ha-
nele estão presentes os fatores via feito em nota a O fio de
que conferem alto quilate à prosa Dédalo (1998), Ivan Junqueira
ensaística de Ivan Junqueira. Falo anunciou Reflexos do sol-pos-
da erudição, que o habilita a ci- to como o seu último livro en-
tar poetas e pensadores alemães saístico, por já ter abandonado
(cf. Da utilidade do útil) e a co- há muito a escrita sistemática de
mentar novelas brasileiras com crítica literária em jornais e re-
a mesma propriedade (cf. Do fo- vistas, em que ele atuou regular-
lhetim à novela de televisão). Falo mente por cerca de trinta anos.
também da elegância e da clareza Ao antever a conclusão de sua
redacionais, sem o que a erudição bibliografia crítica — com “qua-
pode facilmente caminhar pa- se a plena certeza”, conforme
ra o exibicionismo fútil: “Como diz na nota prévia —, talvez ele
Aleijadinho, Machado de Assis sentisse a aproximação da morte
é um milagre, e digo-o aqui por- (da qual, aliás, sua poesia é tão
que as épocas em que ambos vi- íntima). O certo é que tal con-
veram, aquele ao longo do século clusão confirma a excelência de
18, este na segunda metade do seu trabalho e a autonomia de
século 19, não pressupunham a seu pensamento, confirmando
obra que realizariam, seja por seu também a inestimável contri-
ineditismo criador, seja por sua buição que seu pouco explorado
consecução formal” (Machado ensaísmo pode dar aos estudio-
de Assis: 170 anos). Falo, por fim, sos de literatura.
da argúcia crítica consorciada à
abertura intelectual, o que o le- Entoa-se a música
va a escrever de modo penetran- De acordo com Per Johns,
te sobre poetas (O papel do Rio um de seus maiores intérpretes
na poesia de Manuel Bandeira) e e maior amigo, a poesia de Ivan
ficcionistas (Riacho doce: lição de Junqueira é um “dédalo de arcai-
maturidade), autores canônicos cas escrituras”. É um dédalo por
(Gonçalves Dias e o Romantismo) seu caráter labiríntico, que faz da
e novatos (Marques-Samyn: temas linguagem poética uma tradução
fevereiro de 2015 | | 13

do mistério, sendo também ela ras como Joana d’Arc e Jesus de Nazaré, conforme
— a linguagem poética — um ocorre em Essa música, no qual figura sem rebuços
enigma particular; é arcaica por “E então mais uma vez me fiz antigo”?
seu deliberado e inconteste vín- Não há passadismo em Ivan Junqueira. Sua
culo com a ancestralidade — dos escrita, apinhada de elementos associados à tradi-
castelos, das masmorras, dos reis ção, em nenhum momento faz irrefletido ou gra-
e dos abades; e é escritura porque tuito louvor ao tradicionalismo. Há, sim, uma
seu traço verbal se revela perso- escolha pelo poético, e não pelos dogmas de qual-
Essa música nalíssimo e, pelo seu requinte, quer espécie que se formam acerca dele. Há, tam- o autor
Ivan Junqueira torna a escrita literária um ato de bém, uma densa concepção artística, de acordo Ivan Junqueira
Rocco sacralidade cultural. com a qual modernidade e contemporaneidade in-
96 págs. Ler Ivan Junqueira é aden- dependem de traços dicotomizantes.
trar o reino da monumentalida- Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1934.
de artística. Atrevo-me a dizer Obra eterna Estudou Medicina e Filosofia, mas teve o
que seria impossível não encon- Ainda que não lhe fosse corrente o vocabu- jornalismo como ofício. Publicou mais de
trar em qualquer um dos seus lário informal, tampouco quisesse fazer barulho trinta livros, entre tradução, volumes de
volumes de poesia textos que sistemático contra as vanguardas e seus continu- ensaios e de poemas, tendo sido premiado
não causem no leitor a sensação adores, é possível supor que Ivan Junqueira tenha em todas as vertentes de produção literária
de impacto — pela contundên- percebido algumas chatices da contemporaneida- de que se ocupou. Foi, por catorze anos,
cia das imagens, pelo estoicismo de e, assim, tenha decidido fazer uma obra eterna. ocupante da cadeira 37 da Academia
da voz que as apresenta e, prin- Por isso é que o vemos, em sua extraordinária atu- Brasileira de Letras. Morreu em 2014.
cipalmente, pela construção de ação ensaística, estudioso dos antigos, dos moder-
um discurso exato e magnífico. nos e dos recentes, e também é por isso que vemos
A título de exemplo, destaco po- em sua poesia a manifestação de modernidade sem
emas como Esse punhado de ossos, viés programático, isenta dos maniqueísmos que
E se eu disser e Vai longe o tem- pretendem separar de modo absoluto o velho e o
Reflexos do sol-posto po, extraídos de A sagração dos novo, o passado e o presente, o sim e o não.
Ivan Junqueira
ossos (1994), ponto culminante Acerca disso, sua presença na literatura brasi-
Rocco
de uma bibliografia em invariá- leira ilustra, a um só tempo, um modo contraditó-
304 págs.
vel estado de culminância. rio e lógico de exprimir atualidade, algo reiterado
Essa música, o derradeiro por Essa música: contraditório porque a força de
volume de poesia do autor de O sua obra não se abastece das linhas correntes da po-
grifo, saído quatro meses após a ética hodierna, ou seja, o boicote de categorias te-
sua morte, só reforça a excelên- óricas, o experimentalismo devotado e a recusa à
cia bibliográfica de Ivan Junquei- comunicabilidade. Isso dá à sua poesia um espíri-
ra. Composto por trinta poemas, to contracontemporâneo ou não contemporâneo.
Essa música traz consigo a con- Porém, tomando o fenômeno pelo ponto de vis-
firmação de que a poesia assoma ta da, por assim dizer, atualidade oficial, veremos
em parte pelo fazer do poeta, em em Ivan um poeta perfeitamente contemporâneo,
parte pela manifestação do que e por uma razão relativamente simples: se o crité-
extrapola os olhos e o intelecto. rio de pertença ao presente literário é a diferença, a
É o que se pode concluir da lei- maneira como Ivan se distingue da poesia corrente
tura de O poema, que abre o vo- dá a ele uma propriedade ímpar, pois raramente se
lume: “Não sou eu que escrevo o encontra em nosso panorama literário obra que se
meu poema:/ ele é que se escreve assemelhe à sua, que, diga-se de passagem, não se
trecho
e que se pensa,/ como um polvo exime da assimilação de concepções ideológicas e
a distender-se, lento,/ no fundo recursos poéticos prestigiados no século 20, como, Essa música
das águas, entre anêmonas,/ que por exemplo, a recusa de valores consagrados pela
nos abismos do mar despencam”. convenção, o verso livre e a intertextualidade (Cf. É tudo amor, e mais coisa nenhuma
Para a crítica literária, Cidade). A mais, há em sua obra uma leitura trans- de que sequer se guarde uma lembrança,
a obra do autor de Os mortos temporal da marcha humana (marcando princi-
um traço, o fluido passo de uma dança,
pode denotar um problema dos palmente suas vilezas) que dificilmente encontrará
mais intrincados, referente à re- paralelo entre seus coetâneos, como se pode ler nes- uma canção que foge em meio à bruma.
lação de pertencimento entre ta contundente passagem de Joana d’Arc: “Já estava É tudo o que há na ponta de uma lança
autor e época. Por mais que se tudo acertado/ entre os ingleses e os padres./ A sen- que nos fere como áspera verruma
empreguem termos como “plu- tença veio rápida:/ morte nas chamas vorazes.// E o
e, quando fere, ninguém mais se apruma,
ralidade”, “diversidade” e “he- mais não há quem saiba:/ ardi no fogo, nas brasas,/
terogeneidade” para classificar nas labaredas da praça/ até que fui cinza. E nada”. nem que o conserte o gáudio da vingança.
a poesia contemporânea, é pos- Uma significativa forma de inserção na con- É tudo e apenas o que não se alcança,
sível verificar com clareza que temporaneidade pode se dar pelo viés contrário o que, às vezes tão próximo, se esfuma
os mecanismos de legitimação ao das peças de seu jogo, a exemplo de um corpo
e escorre mais depressa do que a espuma
social da literatura — as gran- estranho. Por mais simples que pareça, um fator
des editoras, as feiras do ramo, elementar dessa inserção é o dizer possível — e ne- com que tecem as ondas sua trança.
os prêmios mais badalados, os cessário — da poesia, fator que a coloca num pata- É a chaga que, sendo fugaz, perdura
suplementos jornalísticos e as mar de recusa, tanto em relação às crenças gerais, e nos dói como um mal que não tem cura.
ementas universitárias — ten- porque sempre prontas, quanto às crenças da litera-
dem a endossar como autênti- tura de departamento, pela desconstrução perfunc-
cos representantes do presente tória. É pelo seu dizer pensante que o poeta pode
autores e obras explicitamente esbarrar no homem como não o faz a retórica para
herdeiros do Modernismo (falo a massa, que a todos vê com os olhos da generali-
do Modernismo mais festivo e zação; e é pelo seu dizer sensível que o poeta ain- trecho
iconoclasta). da pode lançar o homem à dimensão emotiva do Reflexos do sol-posto
Por essa perspectiva, não intelecto, quando o discurso do absolutismo teóri-
há razão para ver como “de hoje” co mostra-se insuficiente para alcançar o que esteja
O que de fato interessa em Augusto dos
um poeta que em 1980 publi- um palmo além de seus domínios: “Este homem,
ca um livro intitulado A rainha que hoje se esquece,/ já não mais se reconhece// a Anjos são a competência intrínseca e
arcaica, que em tudo parece de- si ou à sua história,/ ao ser humano, essa escória.// orgânica do verso e, tanto quanto esta,
monstrar uma opção pelo pas- No entanto, vê-se que ele ora/ por nós agora e na algo de que hoje já pouca gente se lembra
Essa música traz
sadismo, tanto na forma (um hora// da minha e da tua morte,/ mesmo que isto
consigo a confirmação e que tanta falta faz a qualquer poesia que
conjunto de catorze sonetos), não te importe”, diz Ecce homo.
de que a poesia assoma quanto no tema (a evocação de Ivan Junqueira agora habita o mundo de que se pretenda mais universal e duradoura
em parte pelo fazer Inês de Castro, a rainha galega sua poesia foi música constante — o mundo dos do que os rebentos enfezados de nossa
do poeta, em parte medieval que baila entre a his- mortos. Que desse mundo inaudito e misterioso, andrógina e prolífica produção lírica: a
tória e a lenda). Ainda com tal onde o sol é já posto, soe essa música capaz de fazer
pela manifestação do perspectiva, como verificar con- ouvir e ver o que há para além do visível e dos có-
noção, nele muito aguda, de que a poesia,
que extrapola os olhos temporaneidade numa poesia digos que insistem em restringir a visão mais densa se se faz com palavras, como queria
e o intelecto. que em forma fixa aborda figu- — a que comove, redime e liberta. Mallarmé, faz-se também com ideias.
14 | | fevereiro de 2015

que é a partir da palavra que dão

Recriação
sentido ao mundo.
A ligação é tão forte que,
em entrevista para O Globo, He-
loisa afirma comparar Ruy Cas-
tro com Sherazade: “Durante
muitas situações extremamente
complicadas pelas quais passa-

pela palavra
mos, eu chegava à conclusão de
que ele só não morria porque
tinha uma história para contar,
exatamente como a Sherazade”.
Um dos momentos em
que isso fica mais evidente (e que
se torna uma das cenas mais for-
tes do livro) é o ano em que Ruy
luta contra o câncer de língua e
No limite entre ficção e realidade, Heloisa Seixas escreve a biografia de Carmen
Miranda — boa parte das 632
narra os confrontos de Ruy Castro com a morte páginas do livro foram escritas
em meio de 34 sessões de radio-
terapia e sete de quimioterapia,
Gisele Eberspächer | Curitiba - PR entre outros procedimentos (os
dados foram contabilizados pela

L
própria Heloisa).
A narrativa de O oitavo se-
ivros sobre a morte não fim do livro, essas experiências lo cria a sensação de que escrever
são novidade. Em uma são doenças com danos físicos durante o tratamento e levar as fo-
rápida olhada na estan- reais, como se a morte estivesse lhas prontas para revisão no hospi-
te, identifico A morte cada vez mais próxima. Aos pou- tal parece ter dado forças para Ruy.
do pai, de Karl Ove cos, a história fica mais sombria.
Knausgard, A redoma de vidro, Recriação da vida
de Sylvia Plath, As virgens sui- Narrativa Um dos aspectos inte-
cidas, de Jeffrey Eugenides, e In- O livro é narrado em tercei- ressantes do livro é a maneira
termitências da morte, de José ra pessoa. Nos três primeiros se- O oitavo selo como a autora recria a vida —
Heloisa Seixas
Saramago. Fato é que o tema não los, sabemos das experiências de tanto a parte em que ela estava
Cosac Naify
fascina somente escritores — ele Ruy com alguns personagens de presente como a que estava au-
190 págs.
intriga também os leitores. fundo, sendo que poucos deles sente — de Ruy Castro.
Os confrontos com a morte são nomeados ou explorados de Nas três primeiras partes
são o tema de O oitavo selo, de maneira mais intensa. O narrador da narrativa, enquanto eles ainda
Heloisa Seixas. Para desenvolver a permanece sutil e estável perante não se conheciam, ela recria a vi-
sua história, a autora parte de du- as dificuldades do personagem. da e personalidade dele, tentando
as referências principais — Shera- Porém, a partir do quar- imaginar como teria enfrentado
zade, narradora de As mil e uma to selo, Heloisa está presente as situações e enumerando namo-
noites, que conta histórias diaria- na vida de Ruy e se torna uma radas, fraquezas, acontecimentos
mente para prolongar seu tempo personagem importante na nar- e crescimentos pessoais.
de vida, e o filme O sétimo selo, rativa. A autora apresenta mais Depois disso, nas três par-
de Ingmar Bergman, em que um sentimentos próprios, com suas tes seguintes, Heloisa é uma fi-
homem condenado joga xadrez reações diante do que acontece gura presente e importante na
com a morte para ganhar tempo. com o marido. Ao expor medos vida de Ruy. Ela então recria o
Em paralelo às duas refe- próprios, mesmo que em terceira que viveram juntos a partir de
rências, Heloisa nos apresenta pessoa, ela deixa a história mais seus próprios olhos.
seu marido, Ruy Castro, tam- densa. Além disso, essa nova ca- Uma das características
bém escritor e jornalista. De- mada de história entrega perso- principais adotadas pela autora
finido por ela como um quase nagens mais interessantes. a autora na estrutura do livro é explicita-
romance, a proposta é narrar os Uma das características que Heloísa Seixas da durante a narrativa. Em de-
confrontos de Ruy com a morte, a narrativa atribui a Ruy é seu terminado momento, ela analisa
em um formato que mistura os bom humor. Isso se reflete princi- a maneira com que vive perante
limites de ficção e realidade. palmente em trechos em primei- Nasceu e mora no Rio de Janeiro. os problemas de saúde do mari-
(Pode-se pensar sim em ra pessoa inseridos ao longo da Jornalista por formação, publicou do: em trechos, marcados ou por
autoficção — a diferença é que narrativa. São parágrafos escritos seu primeiro livro em 1995 — a experiências com a morte ou por
nesse livro, a matéria-prima usa- tanto por Ruy como por Heloisa coletânea de contos Pente de datas mais pragmáticas, como
da é a vida de alguém próximo, e com uma identificação gráfica Vênus. Desde então, publicou prazos médicos e tempo de espe-
e não a vida da própria autora, diferente na mancha do livro. dez livros entre romances, ra até um próximo exame.
que só se torna um personagem Essas “intromissões” são novelas e contos. Foi finalista
do livro na metade da narrativa). opiniões ou comentários sobre do Prêmio Jabuti três vezes. Seis meses. Mais uma vez a
Em referência ao filme de os fatos narrados, com um tom vida parecia acontecer para ela as-
Bergman, cada um dos confron- mais coloquial e espontâneo do sim, aos pedaços, a metade de um
tos com a morte é chamado de que o tom usado pelo narrador ano sempre como uma marca a ser
selo, funcionando como uma em terceira pessoa. De acordo vencida, ou retardada, ou esqueci-
marca deixada no corpo e na com os assuntos tratados, cabe a da — ou lembrada para sempre.
mente do personagem. Ao todo, esses comentários a sinceridade.
sete são narrados na obra — e fica Eles trazem humor e também Essa mesma estrutura,
Trecho
explícito que o oitavo está por vir. um tanto de melancolia. identificada na vida real, acaba
Intitulados Sangue, Nariz, Como exemplo, Ruy: “E, O oitavo selo sendo usada como estrutura da
Fígado, Língua, Coração, Sexo e na ida a Madureira, quase fi- narrativa. Cada um dos selos nar-
Cérebro, os capítulos contam sobre quei decepcionado porque a No passado, ele bebera com ra um desses trechos de vida, com
a morte da irmã de Ruy, seu con- pessoa que nos vendeu o pó era astros de Hollywood, cantores todos os seus obstáculos vividos
tato com drogas e álcool e as ba- uma senhora com varizes, como — os sete selos. É subentendido:
de Nova York, grandes nomes
talhas que travou contra o câncer. as vizinhas gordas e patuscas de um oitavo selo ainda está por vir.
Esses encontros com a Nelson Rodrigues”. da bossa nova, diplomatas, Ao fim, a sensação mais
morte ficam cada vez mais for- políticos, escritores, jornalistas forte é que a própria Heloisa usa
tes, causando mais dor ao per- Palavra internacionais, mulheres o artifício da palavra para con-
sonagem e a outros envolvidos. Tanto Heloisa como Ruy tinuar. A escrita é uma maneira
bonitas. Mas a bebida era só
No início, a morte acontece com são jornalistas e escritores — de digerir os acontecimentos e
outro — e experimentada pelo pessoas que trabalham com a pa- um elemento no quadro, e nem emoções e talvez até de se prepa-
ponto de vista dos vivos. Para o lavra. Mais que isso, ouso dizer parecia o mais importante. rar para o oitavo selo.
fevereiro de 2015 | | 15

S
egundo um antigo

A realidade
senso comum (que
tem lá sua parcela
de preconceito —
como, aliás, ocorre
em grande parte deles), o crí-
tico em seu ostensivo e impla-
cável exercício é, no fundo, um

em xeque
artista frustrado. Maneja arbitra-
riamente suas noções de deter-
minada área da arte a fim apenas
de desancar qualquer eventual
candidato à láurea desejada.
É uma ideia curiosa, so-
bretudo se levarmos em conta
que todo o artista, seja na lei-
tura de outra obra, seja na pro-
dução da sua própria, lida com Nos contos de Urgentes preparativos para
os meandros dessa arte, faz es-
colhas criteriosas, reflete sobre o fim do mundo, o real finca raízes no absurdo
as implicações delas ou de suas
impressões, enfim: o artista é ele
próprio um crítico. E a crítica Clayton de Souza | São Paulo – SP
pode, ela própria, ser uma ar-
te, pois se bem praticada permi-
te vislumbrar num filme, num
livro ou pintura uma dimen- e espaço), seja utilizando o narrador/testemunha cientista inconformado com as
são de significado que por nós (que, em A parte da sombra, é capital para estabe- pífias conquistas da ciência em
mesmos não teríamos alcançado lecer a incógnita do personagem principal bem co- face do universo incomensurá-
(como o escritor que, através de mo a alienação de seus entes e do narrador em face vel. Verdadeira elegia aos limites
sua arte, faz o mesmo em rela- de sua singular percepção da existência). Nesse cognitivos da humanidade.
ção à existência). quesito sobressai outra das qualidades do volume: Nos contos que dialogam
É o caso de Inácio Araújo, a alteridade do autor com os personagens. com fatos marcantes do passa-
nome caro à crítica cinematográ- Atualmente é moeda corrente na crítica do histórico há uma tendência
fica brasileira, como o são Luiz Urgentes preparativos literária a ideia de que a grande incidência de paradoxal: à concretude des-
Zanin Oricchio, Sérgio Alpen- para o fim do mundo narrativas em primeira pessoa corresponde ao ad- ses fatos opõe-se o equívoco
dre e mais recentemente, com Inácio Araujo vento da autoficção, que é o recriar em bases fic- de identidade dos personagens
seu Na sala escura, Chico Lo- Iluminuras cionais experiências particulares do mesmo autor. que ali desempenharam algum
160 págs.
pes, entre outros. O leitor habi- Mas na obra, onde predomina esse foco narrativo papel. No homem de negócios
tual de suas críticas na Folha de em grande parte dos contos, constata-se o inver- alemão que no Brasil é tido por
S. Paulo constatará a continui- so: o narrador em primeira pessoa aliena a figu- um nazista facínora, em O car-
dade existente, em termos de ra do autor, plasmando sentimentos e reflexões rasco alemão; no religioso cató-
sólido conhecimento sócio-his- dos personagens de forma bastante convincente, lico cuja ladainha triunfalista,
tórico e da psique humana, en- trecho fugindo do pedantismo onde este mais espreita, “a guerra nós vencemos” (con-
tre suas análises de cinema e sua Urgentes preparativos ameaçador (por exemplo, nos contos cujo con- tra o comunismo e as tendên-
prosa, em seu mais recente livro para o fim do mundo texto remonta a grandes fatos históricos nacio- cias liberais), torna-se o único
de contos Urgentes preparati- nais). Essa alteridade é o principal trunfo em consolo em face do que, na
vos para o fim do mundo. Nosso país já não possui contos como Os pequenos, onde o leitor imerge, prática, precipitou o mundo
É boa oportunidade pa- a esperança eufórica, que por força da autoridade estética, no íntimo do numa degeneração maior, me-
ra conferir o que o crítico tem a anão da estória, concebendo a existência pelo fil- nos aceitável sem dúvida que a
alimentávamos quando Antonia
oferecer no campo artístico, ain- tro de suas limitações, observando a sordidez dos moralidade militar da ditadura
da que num âmbito diverso ao deixou nossa casa, de que homens de um outro ângulo. com a qual ele próprio compac-
de seu trabalho mais conhecido. um regime baseado na ordem Talvez por tal motivo o jogo de xadrez seja tuou (como isso nos soa atu-
e na hierarquia levaria ao presença recorrente em alguns contos. Este não de- al nesses dias!); por fim, em Os
Alteridade manda, em sua essência, uma sintonia fina com o insepultos, todas as convulsões
desenvolvimento e à realização
O livro é constituído por outro, a fim de captar sua linha de raciocínio e sua político-sociais antes e depois
treze contos de temática varia- do grande destino nacional de visão de jogo? da revolução constitucionalista
da, mas uma linha sólida une que tanto sempre ouvi falar. de 32 são meros detalhes para a
as partes: a decomposição e o Da história ao absurdo obsessão de um rapaz por uma
desregramento íntimo do in- O leitor que se aventurar por essas páginas jovem ativista pró-revolução,
divíduo em face de um mundo de uma prosa enxuta e fluente, sem experimen- o que torna irônica sua con-
com valores voláteis, fugazes ou talismos, irá identificar, sob o motivo maior da decoração após um ferimento
duvidosos. Esses alicerces da so- análise humana no aspecto social e intimista (di- causado por um ataque aéreo,
ciedade são retratados em níveis mensões essas não excludentes), duas variações: porque nesse conto é Eros, e
crescentes de absurdo, como é o os contos que se alicerçam em eventos históricos não algum senso de heroísmo,
caso dos contos Os conspirado- expressivos, e os mais ligados à vida cotidiana, quem dita as ações, mesmo do
res, onde grupos sociais hostili- envolta por instituições cujas demandas, sempre ativista mais empedernido.
zam um suposto “delator” que alheias às particularidades dos homens, se im- Em todos esses exemplos,
ironicamente lhes fundamenta põem numa intensidade tal que converte a rea- as motivações íntimas e mundi-
a existência, e Kafka, o terrível lidade em absurdo. vidências chocam-se com a in-
e onírico relato de um desafor- o autor São os casos de Kafka, onde o absurdo se ma- terpretação oficial cristalizada
tunado cujo nome é o mesmo Inácio Araújo terializa na procrastinação burocrática do processo pelos compêndios de história.
do grande escritor tcheco, e que no fórum; Procura-se uma virgem, onde a mora- Entrecortando essas pe-
trava uma batalha jurídica inútil lidade repressora da instituição familiar, na figu- quenas narrativas sobre os rumos
com o fim de mudá-lo. É crítico de cinema do jornal ra do pai autoritário, não se contenta apenas em dos homens, tem-se ainda refle-
Os relatos ganham em for- Folha de S. Paulo. Foi montador, conseguir um partido ultracatólico para a filha li- xões dessa natureza:
ça pelas opções formais delibe- roteirista e, eventualmente, beral, mas também lhe impõe uma cirurgia para
radas de Inácio Araújo. A fim diretor de cinema. Casa de reimplante do hímen; e de O recluso, onde o leitor E nós não encontramos na-
de intensificar as experiências meninas (1987) foi sua estreia compactua da solidão de um preso que é repelido da, nada, só um nada depois de
pelas quais passam seus perso- na ficção, romance laureado pelos colegas de cárcere e pelos guardas, numa pe- outro nada, um vazio depois de
nagens no espírito do leitor, o com o prêmio de autor revelação na que se prolonga indefinidamente, a tal ponto outro vazio.
autor seleciona criteriosamente pela Associação Paulista de que o próprio condenado mal se lembra da trans-
o foco narrativo, seja utilizando Críticos de Arte. Sobre cinema, gressão que cometera, etc. Essas máximas parecem
o narrador em primeira pessoa publicou Hitchcock, o mestre Digno de nota ainda é A parte da sombra, sintetizar o livro que nasce sim de
(em Os insepultos tal foco ex- do medo, O cinema – O fantasia que parece unir A terceira margem do rio, um implacável exercício, não do
pressa bem a consciência de de- mundo em movimento e A de Guimarães Rosa, com O artista da fome kafkia- crítico ressentido, mas do obser-
sintegração de valores no tempo crítica de Inácio Araújo. no, onde se relata o progressivo isolamento de um vador cáustico da existência.
16 | | fevereiro de 2015

divulgação

Muito além
do papel
Poética do ciborgue apresenta um histórico da poesia
visual e de outros experimentos anteriores à arte digital

Marcos Alvito | Rio de Janeiro - RJ

A
gora somos todos ci- Pode-se dizer que a sua
borgues, seres híbridos premissa já estava presente em
provenientes da fusão um texto de 1965:
homem+máquina.
Há muito que nos Quando digo que se apro-
preocupamos com a possível hu- xima a exaustão de uma deter-
manização das máquinas e com minada maneira de o homem se
os efeitos disso, vide o Blade Run- exprimir, não faço mais do que re- o autor
ner de Ridley Scott. Poética do Poética do ciborgue gistrar um fato sobejamente com- Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro
ciborgue trata do reverso da me- E. M. de Melo e Castro provado em todo o mundo e que
dalha: de que forma as máquinas Confraria do Vento provém diretamente da já referida
tornam-se uma extensão do nos- 194 págs. aceleração constante do processo nasceu em Covilhã (Portugal) em 1932. É engenheiro e doutor em
so corpo, alterando nossa sensi- tecnológico-econômico que vivemos. literatura pela USP, poeta experimental, crítico, ensaísta e artista
bilidade, nossa percepção e, por plástico. É um dos nomes mais importantes da poesia experimental
fim, mas não menos importan- A esta profunda transfor- portuguesa, relacionada à poesia concreta. Publicou mais de
trecho
te, nossa capacidade de criação e mação do mundo corresponde- cinquenta livros entre obras de poesia, ensaios e teoria literária.
invenção. Por exemplo: o uso do Poética do ciborgue riam “novos gêneros poéticos e
computador altera todo o pro- artísticos”, situados sobretudo
cesso da escrita, não somente em Dizer e escrever o que nunca “naquela região híbrida do en-
termos técnicos da possibilidade foi dito nem escrito, ou fazê- trecruzamento do texto literário vas poéticas digitais”. Ele se pauta “arte digital”. Muitos extrema-
bem mais rápida de edição, mas e das artes plásticas”. O autor es- por um fragmento de Heráclito: mente criativos e interessantes,
lo de um modo diferente,
inclusive acelerando “a elaboração creve com a autoridade do cria- “Se não esperares o inesperado, incitando à reflexão. Concor-
mental do texto”. Isto fica ainda penso ser a única tarefa dor de Roda Lume, em 1968, nunca o acharás. Ele é penoso e do que a “poesia eletrônica” seja
mais claro citando-se um trecho verdadeiramente poética dos considerado o primeiro videopo- difícil de encontrar. O chão não “uma complexa e múltipla pro-
do poema Lírica do ciborgue: poetas, isto porque tudo o que ema. Nesta forma de expressão, cultivado nada produzirá”. Ad- posta em aberto: um constante
colocam-se novas questões como mite, todavia, que estes novos repto à nossa imaginação criado-
se diz de um modo será melhor
o ciborgue habita o tempo de exibição, regulan- meios digitais têm sido utilizados ra, conceitual e visual”.
debaixo da tua pele dito de um modo diferente, do até certo ponto a percepção muito mais para a banalização e Agora somos todos “Homo
porque assim se aumentam as por parte do leitor. Explicando: vulgarização do que para a inven- Sapiens Ciborgue”? Talvez. Não
pouco a pouco possibilidades do sentido. “um tempo rápido resulta nu- ção e para as “novas possibilida- creio, todavia, que seja uma ques-
ele toma conta ma percepção visual instantânea, des criativas”. O problema é que tão de opor a poesia-poesia à arte
de todos os teus tendendo no limite para o su- estas novas formas exigem um digital, fruto da fusão entre ciên-
sentidos e não sentidos bliminar”, enquanto “um tem- outro tipo de “leitor”, uma no- cia e poesia. O entrecruzamento
po lento tenderá a propor uma va sensibilidade. A respeito, ele do texto literário e das artes plásti-
(...) poética diferente”. Daí a necessi- leitura interiorizada, abrindo-se lembra um poema de Álvaro de cas é uma proposta extremamente
dade de uma nova poética, que para a fruição subjetiva”. Campos (Fernando Pessoa) data- válida e que tem sido praticada há
trilhões das tuas células dê conta da complexidade deri- Outros exemplos, como do de 1917, Ultimatum: décadas, mas é uma possibilidade
serão sutilmente alteradas vada da sinergia entre homem e os poemas visuais do português e não uma fatalidade.
e as funções dos teus órgãos máquina, espelhada na videopo- Almada Negreiros, os poemas Proclamo em primeiro lugar a lei Esgotamento das possibili-
serão novas esia, na telearte, na infopoesia, concretos, infopoemas e os video- de Malthus da Sensibilidade; dades da escrita, incapaz de dar
na holopoesia “e de tantas outras poemas do próprio autor, são di- Os estímulos da sensibilidade au- conta de uma pós-modernidade
quando já não terás formas de potenciar e transfor- fíceis de descrever sem o suporte mentam marcada pela aceleração, frag-
um só eu mar a relação dos homens com o visual presente no livro. Menos em progressão geométrica; a pró- mentação e complexidade? Pode
mundo e consigo próprios”. ainda práticas ainda mais van- pria sensibilidade ser. Mas aqui dou meu humil-
mas vários eus Trata-se de uma antologia guardistas como “as performan- apenas em progressão aritmética. de testemunho de leitor. Talvez
que nem sequer de textos do artista múltiplo e te- ces sinestésicas de Márcio-André”, a minha sensibilidade ainda se-
serás órico português E. M. de Melo uma verdadeira “encruzilhada Apesar das dificuldades, ca- ja muito século 20 e em mim o
e Castro, alguns publicados há sensorial” composta de violino beria ao poeta perseverar em ta- processo de ciborguização ainda
é com eles quase meio século, outros iné- eletrônico e a projeção simultânea refas “paradoxais” como “sentir o esteja em um estágio incipiente.
que para sempre ditos. Os vinte e dois artigos são de imagens de poetas discursando que está para além dos sentidos, O fato é que nenhum destes no-
viverás muito variados quanto à exten- (Haroldo de Campos, Erza Pound pensar o que se nunca pensou, vos artefatos foi capaz de gerar
para além do óbvio são e profundidade de análise, e Paulo Leminski entre outros), inventar o novo (...) comunicar em mim o mesmo tipo de emo-
alguns para jornais, outros ca- vídeos de trens se deslocando em o incomunicável”. Isso não seria ção estética e existencial propor-
O outro conceito funda- tálogos de exposição e alguns vários sentidos e velocidades e de mais possível de fazer com a lite- cionado pela leitura de um breve
mental é a tecnopoiesis: “os pro- com maior fôlego teórico. Me- um bailarino percutindo seu cor- ratura verbal e escrita, pois na sua poema de Mário de Sá-Carneiro,
cessos tecnológicos utilizados lo e Castro faz um histórico da po com as mãos. Talvez fosse até o fixidez ela não se adaptaria mais aliás citado pelo autor:
para produzir obras de arte e po- poesia visual e de outros experi- caso de complementar o livro com “às situações plurais e abertas das
esia visual”. Não seria simples- mentos anteriores à arte digital, um DVD, o que facilitaria o aces- transformações epistemológicas Eu não sou eu nem o outro,
mente uma experimentação de fornece e analisa exemplos varia- so aos casos mais performáticos. da sociedade e cultura atuais”. Sou qualquer coisa de intermédio:
novos instrumentos, e sim uma dos destas novas formas poéticas Melo e Castro é, acima de Poética do ciborgue dá Pilar da ponte do tédio
“abertura para uma percepção e teoriza a respeito. tudo, um entusiasta destas “no- dezenas de exemplos dessa nova Que vai de mim para o outro.
fevereiro de 2015 | | 17

inquérito
francesco gattoni

bernardo carvalho

Muitas
dúvidas

B
ernardo Carvalho é um dos mais im-
portantes autores contemporâne-
os brasileiros. Nascido em 1960, no
Rio de Janeiro, estreou com os con-
tos de Aberração, em 1993. A partir
de Onze (1995), passa a se dedicar integralmente
ao romance. Desde então, publicou outros dez li-
vros, com destaque para Mongólia (2003) e Nove
noites (2002). Sua obra está traduzida para o in-
glês, francês, espanhol, italiano, entre outras lín-
guas. E já recebeu os principais prêmios literários
do Brasil. Em 2013, Reprodução venceu o Jabuti
na categoria romance.

• Quando se deu conta de que queria ser es- • O que mais o incomoda no meio literário? • O que te dá medo?
critor? Levar-se demasiado a sério. Parar de escrever.
Quando entendi que não sabia fazer outra coisa.
• Um autor em quem se deveria prestar mais • O que te faz feliz?
• Quais são suas manias e obsessões literárias? atenção. Escrever.
Que manias? Os poetas, em geral.
• Qual dúvida ou certeza guia
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia? • Um livro imprescindível e um descartável. seu trabalho?
Jornal e ficção. À sombra do vulcão [de Malcolm Lowry]. Os de Muitas dúvidas.
autoajuda, em geral.
• Se pudesse recomendar um livro à presidente • Qual a sua maior preocupa-
Dilma, qual seria? • Que defeito é capaz de destruir ou comprome- ção ao escrever?
Ilusões perdidas [de Balzac]. ter um livro? Não pensar nisso.
A autoindulgência.
• Quais são as circunstâncias ideais para escre- • A literatura tem alguma obri-
ver? • Que assunto nunca entraria em sua literatura? gação?
Longe daquilo sobre o que eu escrevo. Todos entram. Não.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura? • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou • Qual o limite da ficção?
Silêncio. inspiração? Ser ficção.
Não lembro. Talvez “São Paulo” (como o Bussunda,
• O que considera um dia de trabalho produti- falando sobre o lugar mais inusitado onde fez sexo). • Se um ET aparecesse na sua
vo? frente e pedisse “leve-me ao seu
Duas páginas e alguma ideia sobre as duas no dia • Quando a inspiração não vem... líder”, a quem você o levaria?
seguinte. Tento trabalhar. Dependendo das intenções de-
le, levaria ao Jair Bolsonaro, ao
• O que lhe dá mais prazer no processo de es- • Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de Marco Feliciano, ao Silas Mala-
crita? convidar para um café? faia ou a algum de seus colegas.
Fazer sentido. Herman Melville.
• O que você espera da eterni-
• Qual o maior inimigo de um escritor? • O que é um bom leitor? dade?
A impaciência. O que lê sem preconceito. Voltar sempre.
18 | | fevereiro de 2015

ilustração: FP Rodrigues

Mais um naturalista
A “fatalidade geográfica” torna Puçanga, de Peregrino Júnior,
num enfadonho amontoado de palavras

Rodrigo Gurgel | São Paulo - SP

E
m seu famoso texto sobre O primo Ba- […] A nova poética é isto, e nessas reflexões — lembremos escritores: em 1895, meia década
sílio, de Eça de Queirós, Machado de só chegará à perfeição no dia em que que Memórias póstumas de depois de O cortiço, deu vida à
Assis refere-se a esse romance natura- nos disser o número exato dos fios Brás Cubas sairia no formato subliteratura de Adolfo Caminha
lista como uma “imitação” de La Fau- de que se compõe um lenço de cam- de livro em 1881 —, o acerto e seu Bom crioulo; em 1902, de-
te de l’abbé Mouret, de Émile Zola. É braia ou um esfregão de cozinha. da crítica mostra-se incontestá- terminismo e hereditariedade se
sua observação mais branda. Publicada em duas vel. O naturalismo, entre nós, refestelam em Canaã, de Gra-
partes, nos dias 16 e 30 de abril de 1878, a crítica O acerto das repreensões se restringiu a apresentar o ho- ça Aranha; 25 anos após Aluísio
afirma, sem dissimulação: machadianas — para ele, “o pe- mem como escravo dos carac- Azevedo ter abandonado a litera-
rigo do momento realista é haver teres hereditários e do meio, da tura pela carreira diplomática, ela
Não se conhecia no nosso idioma aquela repro- quem suponha que o traço gros- natureza, utilizando um monis- ressurge, em 1920, no romance
dução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignó- so é o traço exato” — se confir- mo vulgar, que via apenas os as- Fruta do mato, de Afrânio Pei-
beis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o maria poucos anos mais tarde, pectos patológicos do indivíduo xoto. Antes, no ano de 1913,
escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos com Aluísio Azevedo, obceca- e da realidade; como afirmo, ali- contribuiu para transformar
de repelir a doutrina, não o talento, e menos o ho- do por tudo que representasse ás, em Muita retórica — Pouca Aves de arribação, de Antônio
mem —, em que o escuso e o torpe eram tratados com “esfregão de cozinha”, sempre literatura, no capítulo dedicado Sales, num exemplo perfeito da
um carinho minucioso e relacionados com uma exa- pronto a tratar seus personagens a O cortiço. pior literatice. E em 1928, pas-
ção de inventário. como exemplos de uma inesca- Essa escola literária, que sados seis anos da supostamente
pável depravação, física e moral. naufraga nos estereótipos e na au- revolucionária Semana de 22 —
E conclui, ainda referindo-se, com ironia, ao À parte o que Machado sência de livre-arbítrio dos perso- que, segundo alguns desvairados
“inventário”: anuncia de sua própria estética nagens, fez sucesso entre nossos papagueadores, salvou a litera-
fevereiro de 2015 | | 19

tura nacional — o naturalismo nel José Caruana e seu ganancioso sem alegria, mas também sem tris- Não consigo imaginar um sorri- o autor
apresentou-se, vivíssimo, intacto, sócio, o médico Vicente Dória, teza, incapaz integralmente de re- so que, ao menos, não prenuncie um Peregrino Júnior
em A Bagaceira, de José Améri- ação ou cólera. círculo — e desconheço piruetas que
co de Almeida. a procissão macabra das mi- sejam de tristeza. Logo a seguir, na
Na verdade, a vida literária sérias humanas. Leprosos, tísicos, Insatisfeito com o quadro mesma página, de maneira a não per- João Peregrino da Rocha
se submeteu de bom grado, em opilados, papudos, herniados, idio- negativo, o narrador ainda com- mitir possíveis dúvidas, o narrador Fagundes Jr. nasceu em
nosso país, à visão determinista, tas — aqueles sinistros rebotalhos pleta: “Arreganhava os dentes enfatiza: o personagem carrega “uma Natal (RN), em 12 de
ao cientificismo. E alguns desses da espécie, que a Natureza, na sua num sorriso que era um vestígio alegria ridícula e sorridente escancarada março de 1898, e faleceu
escritores, talvez exatamente por inexorável sabedoria, em proporções simiesco da careta antropoide”. em todas as rugas da cara”. no Rio de Janeiro (RJ),
seu pessimismo — sem esquecer úteis tinha condenado ao aniquila- Resta, a Antônio e Josino, Esse infeliz personagem, o dr. em 12 de outubro de
Euclides da Cunha e Os sertões mento — subiam e desciam inces- seguirem obedecendo o que a ge- Dória, usa “uma dialética untuosa e 1983. Viveu a juventude
—, continuam a ser exaltados santemente as escadas do Hotel, em nética inscreveu em suas células, sonora” e desdobra, diante do possí- em Belém do Pará, onde
pela crítica. Todos eles repetem, busca de cura ou alívio para as suas nada mais. Tal determinação es- vel sócio, “uma longa série persuasiva conheceu de perto os
como se anunciassem alguma mazelas irremediáveis. Era doloro- vazia inclusive o porquê da narra- de argumentos de peso”. Segundo a costumes amazônicos.
verdade milenar, a fala de Milkau so e era repulsivo. Uma parada os- tiva, afinal, se os personagens são estranha lógica do autor, argumentos Mudou-se para o Rio em
em Canaã, que vê no seu guia, tensiva de decadências físicas. desprovidos de vontade própria, de peso não são persuasivos, mesmo 1920 e passou a trabalhar
um pobre menino brasileiro, não há sentido em apenas repro- que em série... como cronista em jornais.
Não bastasse a redun- duzir seus automatismos. Mais à frente, um leproso “con- Em 1929, concluiu o
o rebento fanado de uma dância do período, que abre e Raimundo Turuna, prota- duzia com gravidade sinistra pelas ru- curso de Medicina,
raça que ia se extinguindo na dor termina com a mesma ideia — gonista de Ladrão de mulheres, as da cidade o espetáculo macabro de dedicando-se, então,
surda e inconsciente das espécies procissão/parada; misérias hu- sofre do mesmo mal: sua decomposição itinerante”. Ora, se ao magistério e à clínica.
que nunca chegam a uma flores- manas/decadência físicas —, ele “conduz pela cidade”, com certeza Foi docente de Clínica
cência superior, a uma plena ex- reencontramos essa natureza tão Nascido e criado no noma- é “itinerante” — e se é “sinistro” tam- Médica e de Biometria da
pansão da individualidade. sábia e sádica, capaz de distribuir dismo profissional da vida de ca- bém é “macabro”. Faculdade Nacional de
doenças em “proporções úteis”, noeiro — correndo mundo sem No início das peripécias em tor- Medicina, onde chegou
Não é à toa que, em 1926 lembrando que, também para se levantar do bailéu do barco — no do “elixir indígena”, somos avisados a catedrático; e também
e 1936, o fascista Filippo Mari- benefício da estética naturalista, acostumado desde curumim ao iso- sobre o “castigo emoliente” do “sol do professor da Faculdade
netti, ao visitar o Brasil, foi acla- as mazelas são “irremediáveis”. lamento e à imobilidade das longas meio-dia”. Passam-se cinco páginas e Fluminense de Medicina
mado como um gênio. A mística Na história seguinte, Areia viagens, deixou-se inconsciente- o narrador, desconfiado da nossa fraca e professor emérito da
exaltada do fascismo, que pre- gulosa, o autor se rende ao esque- mente penetrar de um instintivo memória, ressalta, mais uma vez, a “ho- Universidade do Brasil.
tende criar uma nova nação, matismo e cria um par de per- sentimento de fatalismo, que o tor- ra implacável de calor emoliente”. Além de ensaios e livros
uma comunidade étnica perfei- sonagens opostos: Josino, um na indiferente aos riscos da vida, e Encontramos outro exemplo de de medicina, deixou
ta, seja lá o que isso for, amolda- tapuio do Baixo Amazonas, pre- que seria fácil de confundir com o redundância massacrante em O puti- obras de ficção: Vida
-se perfeitamente ao derrotismo, guiçoso e supersticioso, e An- prazer voluptuoso da preguiça, se rum dos espectros. Diz o narrador: “O fútil (1923); Jardim da
à autocomiseração de parcela da tônio, cearense do Rio Grande não fosse a ágil presteza com que ele petardo da notícia estourou no serin- melancolia (1926); O
nossa elite literária — que se en- do Norte, corajoso, trabalhador, se transforma, de repente, quando gal com estrupício”. Seria surpreen- cangaceiro Zé Favela
carregou de acrescentar à receita quase um semideus. acaso sobrevém o perigo, seja a cóle- dente se um petardo estourasse em (1928); Um drama no
a morbidez naturalista, a tendên- Antônio recebe os encô- ra do homem bruto, seja a fúria do silêncio, de maneira que só temos a seringal (1929); Matupá
cia, como denunciou Machado, mios retóricos e inconvincentes mar bravo, revelando-lhe no corpo agradecer ao escritor por insistir na re- (1933); Histórias da
de tratar “o escuso e o torpe com do narrador: mole de caboclo indolente as ener- petição da ideia. Amazônia (1936); e A
um carinho minucioso”. gias latentes que dormiam silencio- Certa família é tratada como mata submersa (1960).
Bicho forte e valente, […] sas no seu sangue… uma “tribo espectral de múmias”.
Leis da fisiologia possui músculos encordoados e ten- Não bastasse o exagero da figura, ela
As narrativas que compõem dões tesos. Tem o olhar vivo e fran- Agitado ou em calma, o retorna, poucos parágrafos adiante, a
Puçanga, de Peregrino Júnior, co; seus gestos elásticos são ágeis; a personagem obedece não à sua fechar a narrativa: “[…] a miséria da-
publicado em 1929, confirmam palavra dele é fácil, a voz segura, vontade, à decisão tomada em quelas múmias ambulantes”.
o exposto acima. Aliás, o próprio a expressão pitoresca. A todo ins- seu íntimo, mas apenas a ímpe- Às vezes, o autor consegue elabo-
verbete biográfico do escritor, pu- tante confessa, no que diz e no que tos irracionais, ditados pelo ins- rar certa imagem curiosa: “A sombra
blicado no sítio da Academia Bra- faz, que guardou no sangue o ca- tinto, pelas leis da fisiologia. coagulada das mangueiras, esmagan-
sileira de Letras, salienta, entre os lor do sol implacável e na alma a Páginas à frente, na mes- do os paralelepípedos da avenida […]”
temas centrais de sua obra, a “fa- lição útil dos trabalhos e das pro- ma narrativa, o autor não deixa (em Feitiço). Mas, páginas à frente, fra- trecho
talidade geográfica”. vações duras do sertão estorricado dúvidas em relação ao seu deter- co de imaginação e memória, o autor Puçanga
Termo repisado em Os donde a seca o expulsou sem pie- minismo: decepciona e repete a figura: “As som-
sertões, a ideia embutida nos dade. Exuberante, falastrão, bra- bras do crepúsculo esmagavam a flores-
Derramou três garrafas
vocábulos “fatalidade” e “fata- vateiro, gosta de contar histórias, Ali é a geografia que ex- ta” (em O espritado).
lismo” é a melhor desculpa para e sabe ilustrar as coisas engraçadas plica o homem. A tristeza e o De resto, temos lugares-comuns: de querosene na fogueira,
um povo treinado no apadrinha- que diz com o desenho decorativo fatalismo, a indiferença e a con- cujo miolo era de lenha
mento de coronéis e nas benes- dos gestos amplos. Cabra disposto e fiança — são qualidades que só …Aquilo tudo despertava, na seca da melhor. Foi
ses governamentais. Se tudo está resoluto, é capaz de matar um cris- se compreendem, contemplando intimidade profunda do seu ser, sen-
buscar calmamente a
prescrito com antecedência pela tão por um dez réis de mel coado. a topografia da região. A paisa- sualidades adormecidas e ignoradas,
natureza, qual o sentido de lutar, gem obedece à monotonia de pla- que agora flutuavam, exaltadas, numa caixa de fósforos, entrou,
qual o sentido de erguer a cabe- Quanto ao tapuio, a este o nos geométricos invariáveis: para tempestade de desejos, nos seus olhos de barriga no chão, no
ça, com suas próprias forças, aci- narrador reserva os males, igual- fora, mar e céu, até onde a vista iluminados… buraco da fogueira. A
ma da pobreza? Se nada pode mente inverossímeis, da heredi- alcança; para dentro, as margens
pilha de madeira, alta
modificar o rumo dos aconteci- tariedade: daquelas intermináveis águas su- Ou a frase de matriz euclidiana:
mentos, é preferível que o gover- jas são extensas tarjas atolentas e larga, cobria-lhe o
no, na sua imaculada bondade, Cherimbado do gerente, de tijuco preto. […] Os jejuns prolongados galva- corpo todo, da cabeça
conceda-me o Bolsa Família e conseguiu Josino a vida que sonha- nizaram-lhes nas fisionomias mumifica- aos pés. Era como se
deixe-me aqui, sempre disposto va: vivia na sua choça, de barriga Da construção da frase das a resignação imóvel dos faquires.
estivesse dentro de uma
a me tornar o personagem ideal no chão, pescando e dormindo. à escolha lexical, passando pe-
de uma literatura pequena. Não fazia nada. lo eco das teorias cientificistas e Merece leitura apenas a narra- catacumba de pau.
Assim ocorre com os perso- Malandro e solerte, de pelas generalizações, o parágrafo tiva que fecha o volume: A fogueira de Quando se acomodou
nagens de Peregrino Júnior, que quando em vez tecia uma esteira transpira, do começo ao fim, Eu- Guajará — desprezando-se, é claro, os dentro da fogueira, botou
recusou as lições de Inglês de Sou- ou fazia uma cuia para o capataz clides da Cunha. trechos pleonásticos, a adjetivação exa-
os braços p’ra fora, riscou
za em Contos amazônicos, obra Mergulhão. gerada e as páginas em que o autor co-
publicada no ano de 1893, ainda Deste tamanho, mirrado, Redundâncias pia uma série de cantigas populares. um palito e ateou fogo
hoje erroneamente classificada co- amarelo, carnes bambas, pele suja, Encontramos, num dos na lenha. Encolheu os
mo naturalista pelos nossos acadê- olhos apagados, cabelos estirados, exemplos acima, o uso da redun- braços, estirou as pernas,
micos, mas em tudo superior às lábios grossos, traz na cara mon- dância. É uma das constantes do
encostou a cara no
historietas de Puçanga. gólica os estigmas visíveis da opila- autor. Veja-se este trecho:
A narrativa que abre o volu- ção, do etilismo, da malária. NOTA chão, calou-se, imóvel,
me não deixa espaço a dúvidas. O A alma espelha as mazelas Enfeitou a cara redon- embaixo da pilha de
“elixir indígena”, poção mágica, espoliantes do corpo. da com um sorriso circular. Uma Desde a edição 122 do Rascunho (junho lenha, e esperou que ela
“maior descoberta do século”, que Temperamento madraço, in- ideia inesperada e excitante, fa- de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve
ardesse, sem um gesto,
oferece a “cura radical” até mesmo color e amorfo, duma passividade zendo-lhe piruetas contentes nas a respeito dos principais prosadores da
da lepra, reúne à porta do Hotel congênita, é resignado e tranqui- rugas da testa, deu-lhe piparotes literatura brasileira. Na próxima edição, sem um gemido. (de A
América, sob o comando do coro- lo, aceitando tudo, o bem e o mal, na imaginação. Rachel de Queiroz e O quinze. fogueira de Guajará)
20 | | fevereiro de 2015

nossa américa, nosso tempo | João Cezar de Castro Rocha

Poética da emulação:
um quadro teórico1
Rivalidade como forma ilustração: Tiago Silva
A forma mais econômica
de apresentar o projeto que estru-
tura o quadro teórico que propus
em livro recente consiste em rela-
cionar uma série de exposições,
cujo eixo evoca a teoria mimética,
tal como desenvolvida pelo pen-
sador francês René Girard.
Em 2002, organizou-se
uma exibição inovadora: Matis-
se Picasso. A relação sinuosa dos
dois artistas parece feita sob me-
dida para iluminar as afinidades
eletivas entre teoria mimética e o
conjunto de procedimentos esté-
ticos e intelectuais que proponho
denominar poética da emulação.
Nas palavras de John Golding:
“Esta exibição trata de um dos
mais fascinantes e instrutivos epi-
sódios da história da arte”.
De fato.
O episódio trouxe à su-
perfície o circuito que, de forma
aberta ou subterrânea, moldou a
concepção de arte na cultura oci-
dental. Refiro-me ao par imitatio
e aemulatio, dominante espe-
cialmente a partir da cultura la-
tina, dado o desafio de assimilar
as técnicas e as obras da cultura
grega e do legado helenístico.
Nesse registro estético, estamos
às voltas com a triangularidade
do desejo mimético, tal como
identificada por René Girard em
Mensonge romantique et vérité
romanesque (1961).
Recordo, telegraficamente,
a teorização do pensador francês.
O desejo humano, propõe Gi-
rard, é fruto da presença de um
mediador. Não desejamos direta,
mas indiretamente, e o alvo de
nosso desejo é determinado me-
nos por nós mesmos do que pelas
redes tramadas pelas mediações
que nos envolvem. O desejo, as-
sim, sempre implica mediações
entre o sujeito, o objeto desejado
e, sobretudo, o mediador, isto é, isso, a possibilidade de conflito é inexistente. De doze anos mais jovem, ainda não estudou as minhas mais cuida-
o modelo adotado para a defini- outro, a mediação interna, na qual, pelo contrário, contava com a aura do mestre. dosamente do que ele”.
ção do desejo, que, desse modo, sujeito e modelo encontram-se no mesmo plano. Naturalmente, nesse primeiro
depende de uma relação de trian- Portanto, esta última forma de mediação é local de momento, o espanhol assimilou (A pulsão mimética, como
gularidade. Nesse horizonte, o conflitos potenciais, dada a proximidade entre su- avidamente as lições do francês. se percebe, contagia a própria
estudo das mediações é decisivo, jeito e modelo. E isso também no plano estético. Porém, muito rapidamente, na frase de Picasso.)
pois o sujeito tenderá a disputar Senão vejamos: o novo artista (sujeito), a fim de pro- verdade, no ano seguinte, Picas-
com o modelo a posse do objeto, duzir sua obra (objeto), necessita calibrar seu enten- so reinventou-se com a produ- Ora, não será excessivo su-
cujo interesse, reitere-se, foi des- dimento seja da tradição como um todo, seja de um ção de Les demoiselles d’Avignon. por que um dos capítulos decisi-
pertado pelo próprio modelo. artista determinado, em geral, um contemporâneo O impacto da tela é sobejamente vos da história da arte moderna
Daí, a dimensão confliti- consagrado, isto é, um modelo. E, assim como o de- conhecido. Mas vale notar que foi escrito com pinceladas deci-
va do circuito mimético, assi- sejo mimético engendra rivalidades e uma eventual Matisse passou a observar com didamente miméticas.
nalando a força da concepção escalada da violência (física), a rivalidade artística e atenção redobrada o trabalho do Uma segunda exposição le-
girardiana, ao localizar o caráter intelectual também favorece um alto nível de vio- outro pintor. A tensão produtiva vou essa noção ao conjunto da
estrutural da violência na míme- lência (simbólica). se instalou, como a lembrança obra do espanhol. Penso em Pi-
sis nossa de cada dia. Não surpreende descobrir que, no tocante ao de Picasso esclarece: “É neces- casso et les maîtres, organizada em
Girard identificou duas contato entre Picasso e Matisse, “os dois homens sário imaginar, lado a lado, tudo 2008. Mais uma vez, o pintor de-
formas de mediação. tornaram-se os mais importantes pontos fixos em que Matisse e eu fizemos nessa monstrou plena consciência do
De um lado, a mediação suas carreiras artísticas”. Em março de 1906, os época. Ninguém estudou as pin- processo: “Somos nós, os pintores,
externa, na qual sujeito e mode- dois pintores se encontraram pela primeira vez. Aos turas de Matisse mais cuidado- os verdadeiros herdeiros, aque-
lo ocupam esferas distintas e, por 37 anos, Matisse já era um “chef d’école”. Picasso, samente do que eu; e ninguém les que continuam a pintar. So-
fevereiro de 2015 | | 21

mos os herdeiros de Rembrandt, sou seu quadro-manifesto reci- O desejo humano, Assis: por uma poética da emu- buições da escola de Rafael, pre-
Velázquez, Cézanne, Matisse. Um clando obra de Tiziano e gravura propõe Girard, é lação, pretendi oferecer um no- servando porém elementos tanto
pintor sempre tem uma mãe e um de Marcantonio Raimondi. E vo retrato de Machado de Assis da tradição bizantina quanto da
fruto da presença de
pai; ele não surge do nada…” como se não fosse bastante, Rai- mediante o resgate de sua com- pintura veneziana.
No fundo, não é casual que mondi inspirou-se em tela de um mediador. Não plexa relação com Eça de Quei- Fiel à vocação peregrina,
estejamos lidando com a pintu- Rafael... Vale dizer, o circuito desejamos direta, mas rós, momento em que o autor de favorecedora de uma capacidade
ra. Em pleno século 19, mesmo mimético apenas se intensifica, indiretamente, e o Dom Casmurro principia a res- onívora de assimilação de proce-
após a eclosão do Romantismo, “nesse exercício do copiador co- alvo de nosso desejo gatar conscientemente a técnica dimentos artísticos e princípios
e a consequente obliteração tan- piado” — na expressão maliciosa da aemulatio. estéticos, El Greco conheceu
é determinado menos
to dos modelos retóricos quan- de Laurence Madeline. Pois bem: uma exposição uma curta permanência em Ma-
to da centralidade da técnica da É evidente que estamos por nós mesmos do que realizada em 2009, enfatizou o dri, antes de finalmente fixar re-
imitatio e da aemulatio na prá- longe da noção de “anxiety of pelas redes tramadas tema. Penso em Titian. Tintoret- sidência em Toledo.
tica artística, o aprendizado nas influence”, de Harold Bloom, pelas mediações que to, Veronese: Rivals in Renaissance Lugar simbólico, cenário
escolas de pintura preservou o ou da ideia do “burden of the nos envolvem. Venice. Nas palavras reveladoras da primeira experiência decidi-
hábito de copiar obras-primas past”, de W. Jackson Bate. Pe- do curador Frederick Ilchman: damente multicultural da civili-
da tradição, propiciando a apro- lo contrário, em diálogo com os zação europeia, cujo momento
priação de modelos, passo indis- pressupostos da teoria mimética, O Cinquecento, ou o século mais expressivo continua sen-
pensável para a invenção. Aliás, a poética da emulação permite 16, foi uma era de rivalidade artís- do a “Escuela de Traductores de
o tipo de educação formal que imaginar a “produtividade da in- tica em Veneza. Os melhores pin- Toledo”. Nos séculos 12 e 13,
Picasso conheceu muito bem em fluência”, pois a tradição, menos tores floresceram nesse contexto de sábios árabes, judeus e cristãos
sua cidade natal, Málaga. do que um peso, aparece como ambição, inveja e pressão. A histó- trabalharam juntos num pro-
Marie-Laure Bernadac sin- ponto de partida incontornável. ria desse tempo é povoada de ane- cesso exemplar de tradução e re-
tetizou o procedimento do pintor: Como no universo da ars dotas e expressões que esclarecem tradução trilíngue. Desse modo,
combinatoria: a existência de re- um ponto fundamental: os pinto- preservou-se o legado da cultu-
Sua relação com os pintores gras é condição de liberdade. res, seus mecenas, e o público, todos ra grega clássica, ampliando-se,
do passado evoca mais o canibalis- Como no jazz: o improviso mais, mas também de assimilar e entenderam que a competição e a e muito, o futuro repertório
mo, a iconofagia, do que o pastiche demanda o rigor da disciplina. modernizar o ideal clássico”. demanda crescente por quadros fa- humanístico europeu. Toledo
ou a paráfrase. Não se trata so- Eis outra instância em que voreceram o pleno desenvolvimento tornou-se uma autêntica cidade-
mente de uma relação entre telas, Emulação como procedi- rivalidade mimética resulta em dos artistas, fazendo de Veneza um -ponte entre as tradições cultu-
mas de um diálogo entre pintores, mento fecundidade artística. centro não apenas comercial mas rais do Oriente e do Ocidente.
de uma identificação verdadeira, Outra exposição ajuda Obcecado com o paralelo, também artístico. Por isso mesmo, El Greco
quase afetiva, com os artistas que a esclarecer ainda mais minha Turner deixou ao governo bri- não poderia ter imaginado lugar
ele admira e que formam seu pan- perspectiva. tânico um legado especial: du- Essa passagem ilumina o mais propício para encerrar sua
teão artístico. Refiro-me à exibição Tur- as telas de Claude e dois de seus aspecto potencialmente produ- carreira e criar algumas de suas te-
ner and the Masters, realizada em quadros para serem expostos na tivo do desejo mimético. Nas las mais celebradas; afinal, ele e a
No âmbito dessa exposi- 2009, cujo título, por si só, eviden- National Gallery. O pintor im- relações miméticas, em geral, su- cidade de Toledo são duas faces da
ção, organizou-se uma mostra cia a proximidade de procedimen- pôs somente uma condição: as jeito e modelo encontram-se a mesma moeda, cuja circulação es-
temática, dedicada à obsessão do tos miméticos — seja no século 19 obras de Claude, Paysage avec tal ponto concentrados numa es- teve inscrita desde os primórdios
espanhol com a tela emblemá- inglês ou no século 20 parisiense. mariage d’Isaac et Rebecca (1648) piral de rivalidades que tendem a de seu percurso. Essa dimensão
tica de Manet, Le Déjeneur sur Exatamente como ocorreria e Port de mer et l’embarquement esquecer o objeto de desejo. No foi destacada na retrospectiva El
l’herbe, apresentada em 1863 no com Picasso, a carreira de Turner de la reine de Saba (1648), de- entanto, o procedimento artís- Greco, organizada em 2003.
Salon des Refusés. Em 1932, por consistiu numa série de apropria- veriam ser colocadas lado a lado tico definidor da emulação im- Nas palavras de John H.
ocasião de uma retrospectiva, Pi- ções de obras-primas, estimula- com suas próprias criações, Sun plica o retorno do objeto, pois, Elliott:
casso sentiu-se particularmente da por uma rivalidade constante rising through Vapour (1807) e nesse caso, a rivalidade só tem
desafiado pela tela. Um pouco com seus contemporâneos: a téc- Dido building Carthage (1815). sentido se resultar na produção O mundo do Mediterrâ-
mais de duas décadas depois, em nica da imitatio e da aemulatio Turner desejava explicitar de uma nova obra. neo do século 16 — o mundo de
1954, principiou a apropriar- forneceu a régua e o compasso do seu diálogo com Claude, e, ao Veneza tornou-se, assim, o El Greco — testemunhou a coe-
-se da obra por meio de esboços esforço do “Painter of Light”. mesmo tempo, esclarecer o êxi- palco de um vigoroso sistema in- xistência de três civilizações, que
e desenhos que dialogavam com David Solkin anotou com to de sua emulação. A comple- terno de emulação, antecipando interagiram e se enfrentaram: o
a distribuição dos volumes na cores fortes o éthos do pintor: xidade do movimento originou em séculos o duelo Matisse Picasso. Ocidente latino, a ortodoxia gre-
composição do francês. O proce- “No final do século 18, sua re- em 2012 uma nova exposição: E não é tudo. ga oriental e a civilização islâmi-
dimento, agora, conheceu uma putação como um prodígio da Turner Inspired: In the Light of O século 16 italiano colo- ca. Como cretense, logo, sujeito à
síntese de grande interesse. Lau- aquarela começou a ser eclipsa- Claude — cujo título é um acha- cou em cena uma polêmica entre República de Veneza, Domenikos
rence Madeline explica: “Picasso da pela estrela ascendente de seu do feliz, pois subverte a ideia as escolas romana e veneziana, Theotokopoulos, conhecido como
se apossa da obra de Manet: sua bom amigo Thomas Girtin… romântica de inspiração, relacio- vale dizer, entre o primado me- El Greco (1541-1614), pertenceu
composição, seus personagens, a Infelizmente, em 1802, a morte nando-a intrinsecamente com a ticuloso do desenho e a relativa tanto à Grécia quanto à Cristan-
relação entre eles, que Picasso já prematura do rival fez com que apropriação de um modelo. autonomia da cor na composi- dade latina. Ele e sua geração pas-
havia desenvolvido. Ele copia e essa competição produtiva ter- Nesse ponto, duas obser- ção: numa palavra, a disputa en- saram a maior parte de suas vidas
interpreta ao mesmo tempo”. minasse antes mesmo de ter real- vações se impõem. tre Rafael e Tiziano. Emulação às à sombra do confronto entre cris-
mente principiado”. Picasso et les maîtres. avessas, decerto, pois opostos os tianismo e islamismo.
(Mestre consumado, Picas- Porém, o contratempo não Turner and the Masters. rumos, mas, nem por isso, me-
so inventou uma forma de con- chegou a diminuir a centralidade As duas exibições possuem nos competitiva. A poética da emulação pre-
centração capaz de reunir, num da emulação na prática artística exatamente o mesmo título e A referência à rivalidade tende oferecer um quadro teórico
único traço, os atos de imitatio e de Turner. Afinal, ela orientou idêntica orientação, sugerindo a das escolas italianas permite tra- capaz de lidar com as circunstân-
aemulatio!) seu entendimento do sistema das afinidade estrutural que informa zer à discussão um nome-chave cias do cruzamento de culturas,
artes, especialmente no que se a poética da emulação. para o ulterior aprofundamen- tradições e opções estéticas.
Depois de adestrar-se nos refere ao pintor francês do século Assinale-se, ainda, um as- to do quadro teórico inaugura-
desenhos e esboços, em 1960 17, Claude Lorrain. pecto decisivo: pelo menos par- do pela poética da emulação: El (No mundo contempo-
o espanhol finalmente recriou Tratava-se de tema delica- cialmente, Turner talvez tenha Greco. Aliás, o epíteto dado ao râneo, tal poética deveria trans-
a tela de Manet em sua própria do: se, para o grande público, a concedido importância central cretense Domenikos Theotoko- formar-se em política cultural
pintura — e isso apenas pela pri- marca-d’água do estilo de Turner à emulação porque, no sistema poulos equivale a uma involun- — cada dia mais necessária.)
meira vez, pois ele repetiu o ges- é a intensidade da luz que parece de artes europeu, a pintura bri- tária metonímia de sua trajetória.
to inúmeras vezes. Por fim, em ser irradiada pela tela em direção tânica nunca ocupou uma po- Na época, Creta era co-
1962, Picasso produziu maque- ao espectador, a principal contri- sição canônica. Daí, a aguda lônia de Veneza. Por isso, não Notas
tes das personagens do quadro buição de Claude à história da necessidade de confronto com surpreende que El Greco tenha
de Manet, tornando seus volu- arte foi precisamente o desenvol- os modelos hegemônicos de seu viajado para a metrópole a fim 1. Parte de texto escrito como
mes na tela projeções ideais no vimento de uma técnica capaz tempo: as tradições pictóricas de ampliar o horizonte de suas prefácio à edição norte-americana
espaço. E, com base nesse traba- de gerar efeito idêntico. Antes italiana, holandesa e francesa. realizações. E, como um autên- de Machado de Assis: por uma
lho, Carl Nesjar criou esculturas mesmo de Turner merecer o epí- tico “wheeling stranger of here poética da emulação. A edição em
que, hoje, estão dispostas, lado a teto de “Painter of Light”, o pin- (Exatamente como, ainda and everywhere”,2 ele permane- inglês, Machado de Assis: Toward
lado, no Moderna Museet, em tor francês inaugurara o modelo. hoje, comporta-se um artista ou ceu na cidade tempo suficien- a Poetics of Emulation, será
Estocolmo. O círculo se comple- Na avaliação de Kathleen intelectual latino-americano.) te para dominar o novo estilo lançada este ano pela Michigan State
tou: da tela de Manet à obsessão Nicholson, o gesto de Turner não veneziano. Sua próxima parada University Press
de Picasso, terminando na mate- poderia ser senão “compreender David Solkin intuiu com conduziu o cretense à cidade de 2. William Shakespeare. Othello.
rialidade de esculturas ao ar livre. os procedimentos mentais e ar- agudeza a associação entre emu- Roma, onde permaneceu apro- Edited by Norman Sanders.
Nem sequer mencionei tísticos de Claude, a fim de não lação e rivalidade na arte de Tur- ximadamente cinco anos. Mais Cambridge: Cambridge University
que, por seu turno, Manet pen- apenas replicá-los em termos for- ner; no fundo, em Machado de uma vez, ele assimilou as contri- Press, 2003, 1.1, p. 71.
22 | | fevereiro de 2015

palavra por palavra | Raimundo Carrero ça, por exemplo, com a epopeia
e chega ao momento supremo
com o romance do século 19, o
conhecido século de ouro da fic-

A simplicidade
ção com russos, franceses e in-
gleses disputando a sua melhor
qualidade com Dostoiévski, Tols-
toi, Victor Hugo, Zola, Dickens

da escrita na
A feijoada e e outros devastando as almas dos
outros contos personagens e dando sobretudo
Luiz Vilela ao romance a totalidade do ser.
Sesi-SP Editora A partir de Flaubert, a ficção pas-

obra de Vilela
109 págs.
sa a ser mais artística, mais ela-
borada, mais próxima da poesia.
Escritores do porte de Flaubert,
Maupassant e Tchekhov trans-
formam pequenas histórias em

A
enredos notáveis, com perso-
nagens particularizando o tex-
simplicidade é um segue conciliar a qualidade do ritmo interior do personagem to ficcional, concentrando em si
dos maiores desa- texto com o caráter do persona- — que aliás, nem tem nome —, mesmos a densidade da história.
fios do ficcionista. gem, o que resulta na simplici- de forma a se integrar no tempo Tudo de acordo com a ciência
Alguns autores fin- dade com sofisticação. Aí está a psicológico do leitor, ele próprio nova e decisiva — a psicologia.
gem uma sofistica- questão. Sofisticar não significa já agora na expectativa do texto. Os grandes romances, então, fo-
ção vaidosa que não é outra coisa apenas criar situações esquisitas, A onomatopeia, finalmen- ram perdendo a importância e a
senão a máscara da incompetên- que foram chamadas de vanguar- te, faz o leitor viver com o per- totalidade do ser concentrou-se
cia. Existem aqueles que não sa- da, de forma a entortar a cabeça sonagem. Daí a eficiência da em poucos personagens e, por-
bem sequer contar uma história, do leitor ou a ferir os olhos. narrativa construída na simpli- tanto, reduzindo a importância
por mais singela que seja. No A sofisticação surge desta cidade com sofisticação. Esta do enredo mirabolante e com
entanto, simplicidade não sig- aproximação do texto com o es- é a razão por que Luiz Vilela é, um tempo enorme.
nifica mediocridade, linearidade pírito do personagem, que leva desde a sua estreia, um dos nos- Foi sem dúvida um grande
ou pressa de relatório. Até por- ao tempo psicológico do leitor. sos narradores mais eficientes. E susto e chegou-se a proclamar o
que há quem confunda narrativa Podemos observar, por exemplo, por isso mesmo, um dos nossos fim do romance. Os equívocos
com alinhamento de fatos e de este breve texto do conto A feijo- maiores escritores. foram pouco a pouco desfeitos
informações. ada, que dá título ao livro: Além do mais, destaque- até que chegamos ao roman-
Por isso percebe-se, com a -se que há , hoje, sobretudo no ce absolutamente técnico ou de
maior clareza, que os narradores Ao acabar, limpou, com o Brasil, a instalação do que cos- vanguarda como se convencio-
contemporâneos procuram es- resto da cerveja, o gosto da boca. tumamos chamar de estética nou chamar. Vindo ainda à fic-
crever boas frases que resultam Encostou-se então à cadeira e res- individual — ou seja, a estéti- ção episódica — isto é, reduzida
em bons textos, em até ótimos pirou fundo: sentia-se cheio, quase ca ficcionista que reduz o tex- a um ou dois episódios, quase
textos, mas esquecendo que a empanzinado. Comera demais. Se to a um único personagem, ou, sem enredo, quase sem intriga,
ficção lida com o humano, com desse um arroto; um arrotozinho quando muito, a dois ou três mas agora mostrando-se inteira
o questionamento humano e só... E então sentiu que ele vinha, personagens, o que faz com que no ser, contando até com a in-
não somente com boas palavras, ia chegando: Oohhhh...., arrotou críticos e até leitores chamem a fluência decisiva da tragédia gre-
o que exige maior atenção com o com vontade. literatura ficcional de decaden- ga ou do teatro de Shakespeare,
personagem. A pulsação narrati- te. Absoluta falta de compreen- com longos monólogos e soli-
va começa com o personagem e Narrativa precisa, correta, são do fenômeno literário. Não NOTA lóquios. Assim o conto ganhou
não somente com a palavra, com justa, com uma boa sequencia há aí nenhuma decadência, mas O texto A simplicidade da força e foi transformado em po-
a frase, com o parágrafo. de frases na variedade da pon- uma mudança sistemática de escrita na obra de Vilela foi ema. É o que acontece, hoje, no
O mineiro Luiz Vilela é tuação — pontos, dois pontos, foco narrativo. publicado originalmente no Brasil, sobretudo com autores do
um dos raros brasileiros que con- reticência, em que se verifica o A literatura ficcional come- suplemento Pernambuco. nível e do porte de Luiz Vilela.
fevereiro de 2015 | | 23

sob efeito do álcool, André recebe a

À parte
visita de um conhecido que ele ha-
via chamado a participar da reunião.
O amigo chega atrasado, com uma
garota a tiracolo e alguns papelotes
de cocaína. A casa já está dilapidada.
Sentam-se junto à lareira, acendem-
-na com um resto de lenha, bebem o

qualquer
Biofobia que sobrou nas garrafas quase vazias,
Santiago Nazarian cheiram a droga, passam a alimen-
Record tar o fogo com livros que ninguém
239 págs. se interessou em levar – e aqui Na-
zarian faz uma brincadeira ao citar
vários autores brasileiros contempo-
râneos cujas obras terminam impie-

bizarrice
dosamente na fogueira. O que vem a
seguir é passível de várias interpreta-
ções. Ou melhor: é certo que André
embarca numa viagem alucinada,
efeito da droga e do álcool; o proble-
ma é distinguir o que de fato aconte-
ce do que não passa de mero delírio
do personagem.
o autor André estranha a ausência de
Em Biofobia, de Santiago Nazarian, Santiago Nazarian insetos numa casa no meio do ma-
to, embora seus sons, e também os
situações cada vez mais esquisitas vão Aos 37 anos, o paulista Santiago de pássaros, sejam ouvidos lá fora.
dando um rumo inesperado à narrativa Nazarian já tem publicados
sete romances, dentre eles
Há o cão, que o recebe no primeiro
dia para depois sumir. Um pica-pau
Feriado de mim mesmo, morto há dias é encontrado num
Mastigando humanos e A banheiro; seu som característico,
Luiz Paulo Faccioli | Porto Alegre - RS
morte sem nome, e um livro contudo, segue assombrando o hós-
de contos, Pornofantasma. Foi pede. O mato parece querer inva-

U
considerado um dos escritores dir a casa, e uma árvore cujos galhos
jovens mais importantes da avançam acintosamente por uma ja-
ma das experiências Os dois irmãos têm pouco ou quase nada em América Latina pelo júri do nela aberta só reforçam tal percep-
mais dolorosas pelas comum além dos laços de sangue que os unem. Hay Festival de Bogotá. É ção. A única televisão da casa é um
quais um ser huma- Ela, mais velha, é casada, mãe de dois filhos e vive também tradutor e roteirista. aparelho pequeno em preto e branco
no pode passar é ter uma vida convencional de classe média paulistana. que não sintoniza canal algum, mas
de desmontar a casa Ele, prestes a entrar na fatídica idade dos quaren- que André imagina ter surpreendido
de um ente querido que acabou ta, é um roqueiro decadente que nunca fez muito transmitindo uma entrevista da mãe
de falecer e dar destino a seus per- sucesso com sua música, conseguiu gravar três ál- onde ela conta a absurda história de
trecho
tences. Vasculhar a intimidade de buns, bebeu, cheirou e fumou o que pôde e mais um filho doente que mantém preso
quem não optou por escancará- um pouco, teve casos patéticos com fãs nos quinze Biofobia no porão – frases transcritas dessa
-la poderia ser apenas um gran- minutos das vacas gordas, falhou nas poucas tenta- entrevista, em outra brincadeira do
de constrangimento, mas ele vem tivas de relacionamento amoroso e vive agora sozi- O que fazer com tudo aquilo? O autor, vêm na realidade daquela fa-
acompanhado de um inevitável nho num minúsculo e desmobiliado apartamento que fazer com o cadáver de uma mosa concedida por Clarice Lispec-
reencontro com o passado, com da capital paulista, esperando um renascimento da tor à TV Cultura em 1977, pouco
casa, uma vida, a mãe morta?
boas e más recordações, com as carreira que jamais acontecerá. antes de sua morte.
histórias que contam os objetos O fracassado e egocêntrico André, protago- Enterro ou cremação? Criogenia Situações cada vez mais esqui-
à medida que vão sendo resgata- nista do romance Biofobia, de Santiago Nazarian, ou canibalismo? Incêndio e sitas vão dando um rumo inesperado
dos, a vida que um dia pulsou em é o único dos personagens a merecer um nome pró- demolição. Cortar seu corpo em à narrativa e a levam a um território
cada escaninho do que agora se prio, todos os demais são referidos, muito apro- para o qual o termo “existencialismo
pedaços e servir ao cachorro.
vê súbita e tristemente transfor- priadamente, por suas relações com o principal: a bizarro”, criado pelo próprio autor
mado em espólio. mãe, o pai, a irmã, o cunhado, o amigo, a ex-na- Entregar peça por peça aos para definir seu estilo literário e re-
A mãe de André planejou morada. Ele chega de ônibus à casa materna numa parentes e amigos ¾ distribuir os ferido em Biofobia, cai como uma
para sua vida um final diferente. sexta-feira, véspera do dia marcado para a reunião livros, os vestidos. Vender tudo. luva. A certa altura, André entra em
Escritora de sucesso, havia mais da partilha, tendo de vencer a pé, morro acima, os luta física contra a casa, um emba-
de dez anos mudara-se de São dois quilômetros de terra que separam a parada da te sem dúvida desigual que é na ver-
Paulo para uma casa no meio do porta da casa. A irmã só chegará no dia seguinte, de dade contra si mesmo ou qualquer
mato, a 60 quilômetros da ca- carro, um veículo grande e confortável para abrigar pessoa no seu entorno e que justifica
pital, construída de acordo com tudo o que planeja transportar na volta. André traz mais uma vez o título do romance.
o que ela desejava para viver e umas poucas roupas velhas na mochila e não pare- O que mais impressiona nes-
produzir em paz: silêncio, con- ce interessado em levar muita coisa dali. O que ele natureza o agride. Está louco por sa obra incomum é sua organicida-
tato com a natureza, muitos li- realmente quer é receber logo sua herança em di- um cigarro, que não trouxe, por- de: todos os elementos estão de tal
vros e discos. Ela conseguiu sua nheiro e com ela tentar se reerguer como artista. A que tenta em vão parar de fumar. maneira amarrados que um não se
casa no campo que ainda é o so- ação principal transcorre no fim de semana, parte Outro fracasso. Até quando se move um milímetro sem afetar to-
nho de consumo de muito es- do qual André passará sozinho numa casa que não trata de suicídio, a mãe é o opos- do o conjunto. E o conjunto está
critor citadino. Talvez a vocação é a de sua infância, ainda que lhe pareça a um só to do filho em matéria de êxito. a serviço de 240 páginas de ação,
de ficcionista para criar enredos tempo estranha e familiar. André busca aliviar suas frustra- que o leitor vence num piscar de
a tenha sugerido a romper a bar- ções com o que resta de bebida olhos querendo mais. Mas se exis-
reira do natural e escrever o pró- Momento doído na cristaleira, três cigarros ve- tencialismo bizarro pode servir
prio desfecho. Em pleno gozo Chegar à casa e dar com a falta de sua do- lhos de um maço que encontra como uma ótima definição, por as-
de sua capacidade física e men- na é um momento doído, até mesmo para quem esquecido numa gaveta e o tele- sim dizer, metafórica, tecnicamen-
tal, decidiu que não experimen- sempre viveu focado no próprio umbigo. A primei- fonema para uma ex-namorada te Biofobia está mais próximo de
taria o revés da decrepitude. E ra sensação é o vazio. Aos poucos, porém, a pre- com quem rompeu há seis anos. um romance naturalista. Embora
antes de pôr fim à própria vida, sença da mãe começa a se manifestar em todos os No dia seguinte, a irmã a aparente contradição do título,
deixou a herança organizada e já cantos e, é claro, a contrastar com a personalidade chega mais cedo para organizar instinto e desejo são as únicas for-
dividida entre os filhos, além de do filho. Até aqui, nada de sobrenatural ou anti- o evento, chegam em seguida os ças que movem André, retratado
instruções de como gostaria que natural. O tosco e maltratado André banha-se no parentes e amigos, e nosso herói por Nazarian em toda sua crueza
seus pertences pessoais fossem banheira da mãe, seca-se com suas toalhas recen- consegue a proeza de se embria- animalesca. É um personagem com
distribuídos: André e a irmã de- dendo a amaciante, aspira seus produtos de toalete, gar de caipirinha e cair no sono o qual o leitor não vai estabelecer
veriam convidar parentes e ami- chega a experimentar um de seus cremes antirru- com os convidados ainda na sala. a menor empatia, isso será quase
gos a participarem da divisão, de gas. O luto responde por essa tentativa de aproxi- Acorda quando todos já foram impossível. Mas ainda assim, um
forma que cada um pudesse es- mação com um mundo em tudo diferente do seu. embora, e então começa a segun- grande personagem, porque veros-
colher livremente o que levar de Mas ela não evolui. André sente falta de barulho, da e mais agitada parte do ro- símil e extremamente humano por
dentro de sua preciosa casa. de poluição, de química. O ar puro lhe faz mal, a mance. Sozinho outra vez, ainda trás de qualquer bizarrice.
24 | | fevereiro de 2015
divulgação

o autor
Toni Hill

Toni Hill nasceu em


ver — e os cachorros de ponta Barcelona, em 1966, e se

O relativo
cabeça na capa — sim, sei que formou em psicologia. Atua
não se deve julgar livro algum como tradutor de obras
pela capa, mas ter algum interes- literárias há mais de dez
se por ele por causa de sua cara anos. Seu primeiro romance,
pode, né!? A sinopse não me de- O verão das bonecas
sagradara: a investigação de três mortas, foi publicado em
supostos suicídios de pessoas de 2013 pela Tordesilhas.

valor da vida
uma mesma empresa após um fi- Os bons suicidas é seu
nal de semana de treinamentos. segundo romance.
Não conhecia o autor e sua obra,
mas logo descobri que o livro é
o segundo volume de uma série
protagonizada pelo inspetor de
polícia Héctor Salgado, que es-
treara, bem como seu criador, em
O verão das bonecas mortas.
Os bons suicidas, de Toni Hill, é apenas Pois bem. Peguei, li, ano-
tei e... creio que Hill deveria ter
uma narrativa policial bastante convencional seguido um caminho diferente
em Os bons suicidas, por isso
todos os exemplos acima. Deixa-
Rodrigo Casarin | São Paulo – SP rei detalhes de lado para não aca- Os bons suicidas
bar com a graça de quem ainda Toni Hill

“H
for ler o livro, mas seria muito Trad.: Fátima Couto
Tordesilhas
mais interessante se o autor op-
392 págs.
oje mamãe carnificina. Contando com os Auschwitz em 1944 e, quase mi- tasse por explicitar crime prati-
morreu. Ou polícias que mataram na fuga, lagrosamente, deixou o campo cado para adentrar à mente de
talvez ontem, ao todo, em um primeiro mo- de concentração no ano seguin- seus personagens, daqueles que leia também
não sei. Recebi mento, tivemos 12 mortos e 11 te, quando pôde retornar ao seu concretizaram o ato em ques-
um telegrama feridos. O objetivo era, suposta- país natal. Foi um dos raríssimos tão, mostrando suas reações, co- O verão das
bonecas mortas
do asilo: ‘Mãe morta. Enterro mente, vingar o profeta Maomé, sobreviventes do mais famoso mo passaram a viver com o peso Toni Hill
amanhã. Sinceros sentimentos’. alvo de charges que o satirizavam centro de extermínio do exército do que fizeram, como justificam Trad.: Fátima Couto
Isso não quer dizer nada. Talvez feitas por colaboradores do jor- de Adolf Hitler. Na obra, relata para si o que fizeram (sim, a pre- Tordesilhas
tenha sido ontem.” A reação de nal. Dias depois, os dois crimi- sua história na filial do inferno. missa de Crime e castigo). Dis- 372 págs.
indiferença de Meursault à mor- nosos são cercados por polícias Em 2013, a jornalista mi- so, surgiria a oportunidade de
te de sua mãe faz com que não em uma empresa e, em seguida, neira Daniela Arbex lançou Ho- termos algo que mostre como vi-
nos espantemos após o persona- mortos — dizem que houve tro- locausto brasileiro, sobre uma das humanas normalmente pos-
gem assassinar um árabe a tiros ca de tiros. Ao mesmo tempo, outra filial do inferno, em Bar- suem valores diferentes, que varia
em uma praia. Apesar da descul- outros policiais acabavam com bacena, onde milhares de bra- conforme algumas questões —
pa de ter agido sob delírio pro- um sequestro que um parceiro sileiros foram internados por, onde a pessoa nasceu, cor de pe-
vocado pelo calor, isso não quer da dupla executava em um mer- segundo alguns, apresentarem le, renda... enfim, variáveis que Trecho
dizer que sentia algum remorso cado judaico. Na ação, ao todos desvios mentais. Por lá, chegavam todos sabem quais são, seja por Os bons suicidas
pelo que fez — Meursault não é cinco pessoas são mortas. Duas a comer pomba crua que caça- conta da teoria, seja pela prática.
um homem de sentimentos, de- semanas depois, o assunto con- vam no pátio e a beber a própria Mas não, o que Hill entre- Não há nada pior que uma
finitivamente. É o gatilho da his- tinua constantemente na mídia. urina para que não morressem de ga é uma narrativa policial bas-
verdade que parece uma
tória do clássico O estrangeiro, Mais ou menos na mesma sede — ainda assim, podiam ter tante convencional, com uma
lançado em 1942 e escrito pelo época, na Nigéria, cerca de duas sua morte induzida para que, em série de crimes ou suicídios sen- mentira, pensou Héctor. Por
franco-argelino Albert Camus, mil pessoas morreram após ata- seguida, seus ossos fossem comer- do investigados por um detetive mais argumentos que desse, o
que recebeu o Nobel de Litera- ques do Boko Haram, grupo ar- cializados. Mais de 60 mil pessoas — e seus comparsas nem sempre delegado se mostrara impossível
tura de 1957 “por sua importan- mado que deseja implementar a perderam a vida no lugar. tão comparsas assim — que se-
de comover, e, além de tudo,
te produção literária, que, com “lei do Islã” no país. Por aí, difícil Muita gente não importa gue o estilo muito antes já vis-
seriedade lúcida ilumina os pro- encontrar o nome de uma vítima em sujar suas mãos, desde que to em livros do tipo. Acaba por o havia acusado de utilizar a
blemas da consciência humana sequer. As milhares de mortes não com a anuência de algo superior entregar ao leitor uma obra ra- subinspetora Andreu para levar a
em nossos tempos”. Camus sa- encontraram grande repercussão. — nos dois casos, o estado —, zoável, que tem seus bons mo- cabo “o que você não teve colhões
bia que, para algumas pessoas, Vidas de irrisória importância. para aniquilar a vida de milhares mentos, cuja leitura flui, mas
para fazer sozinho”. Héctor,
qualquer vida vale muito pouco ••• ou milhões de pessoas. que se encerra assim que a últi-
ou absolutamente nada. Em 1947, o escritor e ••• ma linha da última página é li- que tinha ligado para Martina
••• químico italiano Primo Levi Duas coisas me chamaram da. Para não ser radical e apostar Andreu duas vezes desde a noite
No dia 7 de janeiro, dois lançou É isto um homem?, pro- atenção para que eu sugerisse no “nada”, creio que pouca coi- anterior sem obter resposta,
homens com rostos cobertos e vavelmente o melhor livro que uma resenha de Os bons suici- sa deva permanecer na cabeça de
reiterou seu desconhecimento,
fortemente armados entraram há sobre o sofrimento de judeus das, do espanhol Toni Hill, ao quem ler Os bons suicidas, ain-
na sede do jornal Charlie Heb- ao longo da Segunda Guerra editor deste Rascunho: o título da mais passada uma semana da mas lhe doeu ver que Savall não
do, em Paris, e promoveram uma Mundial. Levi foi enviado para — um tanto instigante, ao meu conclusão da leitura. acreditava nele.
fevereiro de 2015 | | 25

divulgação

Sob o céu
infinito
Os luminares, de Eleanor Catton, é estruturado em doze
partes, assim como doze são os signos zodiacais

Arthur Tertuliano | Recife - PE


a autora

A
Eleanor
Catton
reputação de um ro- perturbam a rotina do povoado se costuram à principal, afluentes dela, por tempo
mance como Os lu- de Hokitica em 1866, próximo às suficiente para o esquecimento, até que outro dos Filha de
minares, de Eleanor regiões de descoberta e extração doze homens no salão interrompa Balfour e dê se- neozelan­
Catton, o precede. de ouro. “As posições estelares e guimento à narração do que os intriga. deses, Eleanor
Mesmo para o leitor planetárias mencionadas neste li- Catton nasceu
que o descobriu na prateleira da vro foram astronomicamente de- Foi nesse ponto que o papel de Balfour como nar- no Canadá
livraria: a capa informa que o livro terminadas”, avisa a autora: o céu rador foi usurpado — uma mudança marcada, no em 1985. Seu
foi vencedor do Man Booker Pri- sobre a Nova Zelândia naquele que tangia ao agente portuário, pelo acender de um primeiro livro,
ze 2013, enquanto a orelha apon- ano foi estudado de forma a ter Os luminares novo cigarro, o encher de uma nova taça e um anima- O ensaio
Eleanor Catton
ta que a autora foi a pessoa mais sua influência representada nos do “Agora, corrijam-me se estiver errado, rapazes!”. (2008), foi
Trad.: Fábio Bonillo
jovem a ganhar o prêmio (aos 28 personagens criados por Catton. escrito como
Biblioteca Azul
anos, idade recém-alcançada por A curiosidade do leitor que des- As descrições de Catton, em um estilo que mui- dissertação
886 págs.
este resenhista) e que sua obra foi conhece as implicações de cunho to se assemelha ao dos romances vitorianos, ajudam- de mestrado
a mais longa a ser contemplada. astrológico é aguçada no decorrer -nos a conhecer os personagens tanto física quando em Escrita
Além disso, a edição brasi- da leitura — quais nuances esta- psicologicamente de modo a podermos apreciar a Criativa pela
leira do romance foi lançada pe- ria perdendo? complexidade interna deles, quando fazem algo ines- universidade
trecho
la Biblioteca Azul a tempo de ser perado. Entendemos até seus mínimos tiques. de Victo­ria.
autografada em Paraty, durante a Walter Moody não era su- Os luminares Recebeu o
participação da escritora na Flip. persticioso, ainda que se divertisse Ele sentiu apenas alívio. Uma ordem invisível Man Booker
O discurso impecável de Catton com as superstições das outras pes- Te Rau Tauwhare suspirou. havia sido restaurada: o mesmo tipo de ordem que ga- Prize por Os
certamente levou muitos leitores soas, e não era facilmente iludido Hokitika. Ele sabia o significado, rantia que seu ovo quente estaria pronto todas as ma- luminares,
a se interessarem pelas quase 900 pelas impressões, embora tomasse nhãs e que seus pratos seriam lavados. em 2013.
mas não sua tradução. Isso
páginas desse calhamaço de sur- bastante cuidado ao formar as su-
preendente leveza. O maior in- as próprias. acontecia muito entre a língua Parte de mim lamenta que não haja mais per-
teresse do público se refletiu em inglesa e a maori: as palavras sonagens femininas no romance. A falta, porém,
um maior número de críticas — É com Moody adentrando de uma nunca encontravam um não deixa de ser compreensível: tanto pelo cenário
entre elas, uma particularmen- no salão de fumantes do Crown escolhido — em plena corrida pelo ouro — quanto
equivalente preciso na outra,
te infeliz, que dissertava sobre Hotel que o leitor mergulha na pela falta de documentação sobre a vida das mulhe-
como a obra seria fora de moda complexa trama tecida pela es- assim como não havia planta res em tal época naquele lugar — algo que Virginia
e perguntava quem teria, atual- critora. Como único estranho medicinal alguma que pudesse Woolf questiona em Um teto todo seu.
mente, acompanhar uma histó- no recinto, a atenção dos demais perfeitamente substituir a puha,
ria por tantas páginas. homens é voltada — ainda que Ele tinha uma queda por notícias fúteis, e ficou
nem pão algum que trouxesse
Mas isso que denomi- disfarçadamente — para ele en- surpreso ao ver que a “dançarina mais atraente” da ci-
nei “reputação” não passa de quanto Thomas Balfour conversa exatamente à lembrança o dade também divulgava seus serviços como a “parteira
conversa fiada para quem já se com ele para conhecê-lo melhor. rewena pararoa; por mais mais discreta” da cidade.
aventurou por Os luminares. A rememoração dos eventos que próximo que fosse o conceito,
Mudando de contexto uma ci- antecederam o momento em que Mas é no embate entre os diferentes tipos cria-
havia sempre algo aproximado,
tação da Nota ao leitor no início passou a ser interrogado é acom- dos pela autora que podemos ver “tenacidade, ins-
do romance, a obra talvez “possa panhada pelo leitor por algumas algo imaginado ou algo perdido. tinto, fraternidade e coisas ocultas”, termos que
ser chamada de pisciana em sua páginas até que ele volta “ao pre- Crosbie Wells compreendera-o. reutilizei para descrever a obra. Assim como os astros
qualidade — emblemática, de sente com uma sacudidela” e per- se relacionam no céu infinito e os acontecimentos na
fato, como as pessoas nascidas cebe que seu interlocutor “ainda trama, as linhas dos personagens se cruzam de modo
durante a Era de Peixes, uma era estava olhando para ele, com a formarem um tecido primoroso — e vivo.
de espelhos, tenacidade, instin- uma expressão de expectativa in-
to, fraternidade e coisas ocultas. trigada no rosto”. É sempre um momento nitidamente particular
Essa noção nos satisfaz. Ela afir- aquele em que um político percebe pela primeira vez
ma ainda nossa profunda cren- A cena era como um mun- o sujeito à sua frente como um homem — talvez não
ça na notória influência exercida do minúsculo, refletiu Moody, do- O leitor de vez em quan- como um igual, mas pelo menos como um ser, irredu-
por esse céu infinito”. no de dimensões próprias. Uma do é lembrado de que, na origem tível, repleto de fragilidades, arrebatamentos, com um
O destaque dado ao “céu quantidade qualquer de tempo daquela narrativa, há alguém — passado real e um futuro incerto. Alistair Lauderback
infinito”, que se descola do pará- podia passar quando sua mente seja em pensamento, como no sentiu a aridez desse momento e se envergonhou. Ele
grafo que o precede e se alinha à por lá perambulava. Havia este caso citado, seja explicitamente, viu que Balfour havia oferecido sua amizade e que
direita, não se dá apenas nessa no- mundo maior, que avançava no como se dá a seguir, com Bal- ele tinha aceitado apenas auxílio; que Balfour havia
ta ou no título do livro. O roman- tempo e pulava espaços, e aque- four pondo o estranho a par das oferecido gentileza e que ele tinha aceitado apenas seu
ce é estruturado em doze partes, le mundo imóvel de desconforto e notícias que causaram burbu- benefício prático.
assim como doze são os signos terror; eles cabiam um dentro do rinho pelo povoado: um assas-
zodiacais que regem as vidas do outro, uma esfera dentro de outra sinato, um desaparecimento, a Passagens como essa são uma constante no
mesmo número de personagens esfera. Que estranho, Balfour a ob- descoberta de uma fortuna. Por romance. Creio firmemente que, se o conhecimen-
que, mais próximos do leitor, in- servá-lo assim; o tempo real devia vezes somos levados a esquecer to da desenvoltura da autora fizesse parte da repu-
terferem na percepção deste acer- estar passando — revolvendo em de que é ele que conta a histó- tação da obra, ninguém cogitaria perguntar se o
ca da série de acontecimentos que volta dele, ao mesmo tempo… ria; outras narrativas detalhadas leitor de hoje teria tempo para calhamaços.
26 | | fevereiro de 2015
fevereiro de 2015 | | 27

o escritor fala sem tê-los lido e

Nas mãos
coloca algumas questões cruciais
para o campo literário.
Se por um lado a carta
aberta de Baricco pode colocar
o dedo na ferida de uma acade-
mia que não se renova e vive em
seus grupos fechados (o que em

do leitor
parte pode ser verdade), por ou- Mr. Gwyn
tro nunca foi termo de medida Alessandro Baricco
para a qualidade de um escritor a Trad.: Joana Angélica d’Avila Melo
quantidade de livros que escreve Alfaguara
ou vende. O escritor, certamen- 224 págs.
te, não é uma máquina de escrita.
A discussão é muito complexa e
não deixa de ser atual, mas nes-
sa sede não interessa repercorrer
Novo romance de Alessandro Baricco discute os meandros desse debate que
poder ser recuperado pelos tex-
os tormentos causados por uma decisão radical tos disponíveis em vários sites.
O que podemos lembrar aqui encontrar-se com turmas de es-
é do texto Outubro retalhado, tudantes fingindo-se seguro de si.
Patricia Peterle | Pescara - Itália de Silviano Santiago, de 2003, A trigésima primeira, ser fotogra-
apresentado no seminário inter- fado com a mão no queixo, pen-

A
nacional O papel do intelectual sativo. A quadragésima sétima,
hoje, organizado por Izabel Mar- esforçar-se para ser cordial com
lessandro Baricco é gato e Renato Cordeiro Gomes, colegas que na verdade o despre-
um autor bastante o autor na PUC-Rio, posteriormen- zavam. A última era: escrever li-
conhecido do leitor Alessandro Baricco te publicado na Folha e no livro vros. De certo modo, fechava a
brasileiro. Não só pe- homônimo que saiu pela Edito- vaga que a penúltima podia ter
los livros. Além das Nasceu em Turim (Itália), em 1958. Estudou filosofia com Gianni ra UFMG (mais tarde integrou deixado: publicar livros.”
adaptações cinematográficas co- Vattimo. Como crítico de música colaborou com os jornais ainda o volume O cosmopolitis- Os primeiros dias são vivi-
mo A lenda do pianista do mar, La Repubblica e La Stampa. Teve também uma importante mo do pobre). Nele, Santiago, dos com alegria e prazer, porém,
de Giuseppe Tornatore, baseado participação em alguns programas da televisão italiana. Sua um dos nossos maiores críticos, depois de algum tempo, começa
em Novecentos, não se pode es- carreira inicia com grande sucesso de público na década ao tratar dos prêmios concedidos a sentir falta de escrever, do gesto
quecer de sua participação na de 1990, com Novecentos, Seda e City. Escreve para o a J. M. Coetze, Susan Sontag e que o fazia organizar com aten-
Flip 2008. Agora, seu romance teatro e, em 2008, estreia como diretor cinematográfico. Paulo Coelho, coloca em evidên- ção e cuidado os pensamentos,
Mr. Gwyn acaba de ser traduzido. cia, por um lado, a tensão que colocando-os linearmente numa
Na Itália a sua grande di- se estabeleceu entre Baricco e os frase. Uma ação cotidiana que de
vulgação se deve ao programa críticos italianos (sem esquecer, repente tinha sido cortada e não
de televisão Pickwick, de mea- é claro, as possíveis diferenças). fazia mais parte da sua rotina.
dos dos anos 1990, dedicado à Diz Santiago: “Dois quesitos tra- Contudo a sensação da ausência
literatura, e às colaborações com dicionais vêm sendo e foram de do ato de escrever vai, cada vez
jornais como La Repubblica e La novo derrubados em Estocolmo: mais, aumentando e se agravan-
Stampa. O seu primeiro livro de o da popularidade do autor e o do, até o ponto em que ele passa
ficção é de 1991, Castelli di ra- da qualidade inquestionável da a ter crises de pânico. Para ten-
bbia, mas antes disso havia pu- obra. O segundo prêmio é con- tar remediar a situação, pensa na
blicado alguns ensaios, desde o cedido indiretamente pela indús- possibilidade de ser um copista,
final da década de 1970. Baricco tria cultural, isto é, pelos editores atividade que lhe daria a possibi-
é sem dúvida um autor reconhe- e livreiros. É corriqueiro entre lidade de manter o contato com
cido, que possui um amplo le- desportistas e glutões; é novidade os antigos instrumentos de tra-
que de leitores, basta fazer uma no campo literário”. balho. Dessa primeira ideia, de-
visita às livrarias (está traduzido pois de alguns encontros, passa
e circula em muitas culturas) ou Fim da escrita para uma outra, a de escrever re-
ainda dar uma olhada nos blogs. De todo modo, Mr. Gwyn tratos, com um objetivo muito
É um dos autores italianos con- é mais um livro dos muitos tra- ambicioso. O escopo desses re-
temporâneos mais conhecidos duzidos, o que indica um motor tratos é o de tirar a máscara que
no exterior. Em termos de nú- em atividade no nosso mercado as pessoas têm no dia a dia e que
mero de livros traduzidos, pode- editorial. Nessas páginas, o per- esconde a verdadeira essência de
ria estar ao lado de Umberto Eco sonagem não tem um papel fácil: cada uma delas (e de nós).
ou de Italo Calvino. é mais um protagonista escritor e O lugar onde são feitos
Porém, nem tudo é um seu nome é Jasper Gwyn. O cená- os retratos é pensado por Mr.
mar de rosas, e aqui não pode- rio não é o de nenhuma cidade- Gwyn e os clientes devem res-
ria deixar de lembrar da enorme zinha italiana — é uma metrópole peitar um acordo um tanto es-
polêmica, de 2006, comentada moderna e contemporânea, tranho. Durante um mês, todas
por boa parte da imprensa ita- Londres. Escritor de sucesso e muito as tardes durante quatro horas
liana, que teve como protago- conhecido, Mr. Gwyn, aos 43 anos, devem ficar andando no cômo-
nistas Alessandro Baricco e dois decide parar de escrever. do quase sem decoração. Apenas
dos maiores críticos literários da- Já na primeira página te- um detalhe, sem roupas.
quele país, Giulio Ferroni e Pie- mos a seguinte descrição: “Assim, A nova profissão satisfaz, há
tro Citati. O texto de Baricco, de volta para casa, pôs-se a escre- clientes e inclusive uma secretária
uma carta aberta aos dois críti- ver um artigo que depois impri- de nome, que foi o seu primei-
cos e, mais ainda, a toda uma ca- miu, enfiou em um envelope e ro modelo, até que ele se depara
tegoria, inicia com as seguintes levou pessoalmente, atravessando com um cliente de caráter bastan-
palavras: “Caros críticos, vendo a cidade, à redação do Guardian. te difícil, uma moça, e depois de
milhões de cópias e sou tradu- Era conhecido ali. De vez em uma série de desventuras, ele sim-
zido no mundo inteiro: se vocês quando colaborava com eles. Per- plesmente desaparece. Aqui a tra-
não amam os meus livros, tenho guntou se era possível esperá-lo”. ma passa a ter uma história quase
o direito de ser reprovado”. Nas Firme da sua escolha, o texto con- “policial”, já que é a secretária a
páginas de La Repubblica, o autor tinha uma lista com todas as mo- investigar o desaparecimento do
de Seda se lamenta das referên- tivações que o levaram a tomar tal chefe, depois de encontrar algu-
cias sempre negativas e en pas- atitude. “O artigo consistia numa mas pitas e seguir outros indícios.
sant feitas pelos dois críticos em lista de cinquenta e duas coisas A descoberta no final po-
dois artigos. Ferroni, com outra que Jasper Gwyn se comprome- de ser surpreendente ou pode
carta aberta, dá a sua opinião dos tia a não fazer nunca mais. A pri- decepcionar. A palavra final está
eventos, elenca os textos escritos meira era escrever artigos para o com o leitor, seja ele mais ou me-
por ele sobre Baricco, afirma que Guardian. A décima terceira era nos atento.
28 | | fevereiro de 2015

Voltamos ao assunto interrompido. Poe-

Amor aos
mas de Umberto Saba.
Caso tenha pensado em La Fontaine, es-
queça. Mas esquecer não implica desvalorizar o
mestre das fábulas, implica ler Saba também por
esse viés. Embora utilizem formas de expressão
bem diferentes, e por isso a sugestão de não com-
pará-los, vale a pena ler os poemas dedicados aos

animais
animais como “quase fábulas”.

Reflexo do homem
Não pense que essa coletânea de poemas
de Umberto Saba apresenta sempre o animal
como centro das atenções, o protagonista. Vai
muito além, arrisco dizer que na maioria dos
poemas o animal é o reflexo do homem, ou
quem sabe o homem reflita o animal no espelho
Destituídos de artifícios melodramáticos, poemas do italiano de suas ações diárias. Sem demérito a qualquer
dos protagonistas.
Umberto Saba são aparentemente despretensiosos
Olho, mulher, para teu cão que adorado
te adora. E eu... se penso em minha vida!
Luiz Horácio | Florianópolis - SC Agi variadamente, se mal ou bem
não saberia; sabe-o Deus, ou mais ninguém,

Q
quem sabe. Nunca a alguém pertenci, nem nunca
a alguma coisa. Fui sempre
uando o assunto rá que eu não escrevi isso. Mas (“culpa tua” tu me respondes) um pobre cão de rua.
é poesia, as coisas se não escrevi foi por pouco. É
nunca são o que quase isso. Os poemas de Saba são de uma delicade-
parecem. Geral- Voltemos a Umberto Saba. za incomum. Importante ressaltar que tal delica-
mente costumam O leitor encontrará po- deza não implica banalidades. A edição bilingue
ser bem piores. O poeta, enten- emas aparentemente despre- enseja o contato/cotejo com a língua original. O
da-se a maioria, considera-se tensiosos. Aparentemente. O homem e os animais é obra a ser saudada, a ser
um ser iluminado e isso lhes dá poeta não faz uso de artifícios estudada, entre as questões a pesquisar: como a
o salvo conduto para escrever e melodramáticos, tampouco O homem e os animais simplicidade pode ser tão profunda?
Umberto Saba
dizer besteiras só porque as dis- perceberá poemas onde o dis- Vale destacar a sensibilidade das organi-
Trad.: Aurora F. Bernardini
tribui em rimas. Raríssimas ex- tanciamento, tão cantado e de- zadoras desta coletânea de Umberto Saba, não
UFSC
ceções, mas raríssimas mesmo, cantado, produz peças insossas. 157 págs.
se percebe uma nota destoante, o agrupamento
valem o tempo destinado à sua Umberto Saba trata a tudo e a dos poemas confere-lhes unidade e permite ao
leitura. Repare que me refiro ao todos com o máximo respeito leitor a familiaridade com aquele ponto de vis-
universo brasileiro. Mariana Ia- e importância conferida aos se- ta do eu lírico. Não se trata de uma obra solar,
nelli, nossa poeta maior, Luís res e coisas que compõem o dia longe disso, percebem-se momentos crepus-
Augusto Cassas, Gullar, Tanussi a dia dos humanos dotados de culares, aos quais todos estamos sujeitos, mas
Cardoso, Celso de Alencar. E fi- sensibilidade capaz de valori- despidos de ranços apocalípticos. O poeta faz
camos por aqui. zar o imaterial e de entender os o mea culpa por nós, caro leitor. Acredite. A
Carlos Nejar tem se dedi- sentimentos de um pintarroxo partir de suas confissões, as mais pessoais, ele
cado mais à prosa. E Carpinejar, e um melro. confessa por nós.
dos brilhantes Biografia de uma Sempre que abordadas, O poeta testemunha os acontecimentos, no
árvore e Terceira sede, atual- as questões acerca do tratamen- mais das vezes sórdidos, que fazem o nosso mun-
mente pode ser lido na forma de to que dispensamos aos animais do, esse “mesmo mundo”, e dele extrai sensações
cronista/humorista. provocam reações belicosas. Se- e conclusões onde percebe-se a ausência dos tão
Parte da paisagem, de ja de parte dos defensores dos comuns laivos de pieguice que costumam invadir
Adriana Lisboa, é uma luz na animais, e pergunto como agir a poesia de um modo geral.
poesia brasileira. É isso. E esta- de forma diferente ao enfrentar o autor Saba coloca o homem, mais precisamente
mos conversados. O mais é pura um perverso, um cretino capaz Umberto Saba a condição humana, no centro de sua poética e
desolação. de tirar o couro de um gato vi- curiosamente se afasta do senso comum que en-
Mas digamos que vo- vo? Outra reação, ainda mais co- Nasceu em Trieste (Itália), em 1883. E morreu fadonhamente descreve o ser humano sem a pers-
cê, assim como este aprendiz, mum, tem origem no medíocre em Gorizia, em 1957. Não tardou a ter o valor pectiva do futuro. O poeta não indica caminhos,
goste de ler poesia e não tenha que vislumbra o absurdo e cria o de sua obra reconhecido. Saba foi vendedor embora não esconda a realidade, muito pelo con-
acesso à poesia estrangeira, por confronto ser humano x animal: de material elétrico, depois funcionário público trário, parte dela para a luta imprescindível de vi-
não ler na língua de origem, “Onde se viu gastar com animais durante a Primeira Guerra Mundial e, por fim, ver com poesia. A poesia como arma.
por não ter edição em portu- enquanto crianças morrem de livreiro até que as leis raciais o obrigaram Além dos animais que “animam” vários po-
guês, o que fazer? Afaste-se do fome?”. Esses gênios só atuam no — sendo judeu — à fuga, inicialmente para emas da coletânea, o leitor deve prestar redobra-
gênero. Volte quando o poeta confronto pois se fossem tão pre- Florença e depois para Roma. A obra poética da atenção àqueles onde Saba “anima” a cidade.
merecer sua atenção. ocupados com o ser vivo, inde- de Saba (de Trieste e una donna até Nada a dever ao flâneur de Baudelaire, embora o
Exemplos: as edições bi- pendentemente de humano ou Epigrafe) foi por ele reunida em Canzoniere. eu lírico de Saba, diferente daquele de Baudelai-
língues de Um lance de dados, não, tentariam ajudar a todos. re, deixa nítido seu compromisso, sua expectati-
de Stéphane Mallarmé, e O ho- Mas é isso, caro leitor, basta falar va, para com sua Trieste.
mem e os animais, poemas de em tratamento digno para ani-
Umberto Saba. mais que vozes roucas e patéticas Minha cidade que em toda parte é viva
A maioria dos poetas gas- se fazem ouvir. Ao mesmo tem- tem seu cantinho afeito a mim, à minha vida
ta tempo, tinta e papel em pró- po que alguns lutam pela digni- pensativa e esquiva.
digas repetições, mestres das dade animal, paradoxalmente, trecho
aliterações, são concorrentes à os números da produção animal O homem e os animais Caro leitor, está valendo a promessa de tra-
altura dos dormonid, lexotan e para consumo humano aumen- duzir o livro de Matthieu Ricard. Enquanto isso,
seus congêneres. ta significativamente a cada ano, Há tanto alpiste na janela. E os pássaros leia e releia O homem e os animais. Fiz isso, fa-
O homem e os animais devido à crescente demanda dos ço isso, olho nos olhos de meus cães e gatos, olho
brigam entre si; na gaiola, dois
chega ao leitor via Editora países emergentes. nos olhos do garoto que vende balas no semáfo-
UFSC. Entenda-se, editora Sobre esse tema, sugiro vagos bichinhos que pensei juntos, ro, minha culpa só aumenta. Para a maioria vale
preocupada com a qualidade a leitura de Plaidoyer pour les fazendo seu ninho. É tudo um grito o que disse Matthieu: “Uma das vantagens de ser
em primeiro lugar. Antes que animaux, de Matthieu Ricard, de cólera. E a comida sempre sobra, uma criatura racional é encontrar uma justificati-
você me acuse de ter dito que doutor em genética celular e va para tudo o que quero fazer”.
jogada. Que para nós não seja, e esses pequenos,
só editoras com essa caracte- monge budista. Não sei de edi- A poesia — mesmo a de Mariana, Cassas,
rística estão preocupadas com ção brasileira, mas encomende uma razão de guerra, um pretexto? Alencar, Adriana, Saba — não pode fazer nada
a qualidade, releia e percebe- que me comprometo a traduzir. (do poema Pretexto) por nós.
fevereiro de 2015 | | 29

a literatura na poltrona | José Castello prateleira | nacional

Literatura
e contágio

S
Amores, truques e outras versões
Alex Andrade
Confraria do Vento
into-me inquieto A literatura ração: “Por mais que esse objeto
107 págs.
com certa tendência “bem feita” de seja poético, pareça autêntico,
burocrática — a es- impressionante ou interessante,
crita como um “de- hoje despreza não será uma obra de arte se não A proposta da editora era publicar um
ver a cumprir”, um esses sentimentos despertar no homem aquela sen- livro “com linguagem atual, que falasse dos
“trabalho de casa” — que perce- radicais. Busca, sação muito peculiar de felicida- relacionamentos do mundo tecnológico”.
bo na literatura brasileira con- ao contrário, a de, de comunhão espiritual com Com este propósito, o autor pesquisou o tema
temporânea. Ficções bem feitas, o outro (autor) (...) que contem- e conversou com usuários de aplicativos. No
arrematadas com competência,
competência e o plam a mesma obra de arte”. posfácio, Ronaldo Cagiano garante que Alex
revisadas com afinco — mas va- equilíbrio. Quer O contágio não se dá gra- Andrade “radicaliza seu olhar sobre a crueza da
zias. Isso, de fato, me aborrece. acertar — ou, pelo tuitamente. Sua primeira condi- realidade quotidiana, extraindo da fugacidade
Creio que é, antes de tudo, uma menos, não errar. ção, ele nos diz, é a “necessidade dos relacionamentos homo ou heteroafetivos
deformação de mercado. Autores interior”. A sinceridade exigida matéria e circunstância para a confecção de
escrevendo para agradar editores. do escritor é simples: que escre- uma narrativa pungente e dilaceradora”.
Para chegar às listas de mais ven- va para si mesmo — e não para
didos. Para praticar o tal “estilo as gôndolas das livrarias, ou pa-
internacional”. Na esperança to- ra as páginas do sucesso. Singu-
la de conseguir traduções e adap- laridade, clareza e sinceridade
tações rápidas. Em resumo: para seriam, para Tolstói, princípios
“cumprir tarefa” e exibir depois o essenciais da arte. “Trata-se de
título de “competentes”. três condições cuja presença se-
Sempre achei que litera- para a arte de suas falsificações
tura e competência se excluem. e, ao mesmo tempo, determina
Não é pelo “bem feito” que uma o valor de qualquer obra de arte,
ficção arrebata o leitor. Não se a despeito de seu conteúdo.” Per-
trata de determinação, ou de ção que experimentou seu autor gunto-me, um tanto perplexo, se
aplicação. A literatura não tem — isso é a arte”. Há na arte (na os autores contemporâneos atri- O céu da amarelinha
Carlos Eduardo Leal
relação alguma com o bom com- literatura), sim, um movimen- buem algum valor às indicações
Rocco
portamento. Em contato diário to de comunicação. Não a troca de Tolstói. Parece que não. Se-
142 págs.
com a produção de hoje, e en- aplicada, formal e coerente de rão, provavelmente, consideradas
quanto fuço minha biblioteca, mensagens objetivas, mas uma antigas e sem propósito. Inúteis.
o azar (a sorte) me leva a Os úl- troca desregrada de impulsos e Pois eu as releio com entusias- Lívia está muito perto de chegar ao céu da
timos dias, reunião de textos de de sustos. Novamente: o contá- mo e fervor. Continuo a buscar primeira amarelinha que desenhou sozinha.
Liev Tolstói publicada pela Pen- gio. Escreve Tolstói: “O princi- caminhos para me libertar do De repente, ouve o grito de socorro da mãe.
guin/Companhia das Letras em pal é que a arte não é o prazer, “congelamento” que define nosso Algo havia acontecido com Santiago, pai
2009. Ainda guiado pelo acaso, mas um meio de comunicação tempo. Muita agitação — para da menina. A partir desta tragédia familiar,
abro o livro justamente na pági- que, unindo pessoas pelos mes- nada. Muitos avanços — para o Lívia será tomada por vários sentimentos,
na 95, onde está um breve tre- mos sentimentos, é indispensável retrocesso? Muitas novidades — principalmente o de impotência diante da
cho de O que é a arte?, livro que para a vida e o progresso de cada para continuar no mesmo lugar. ausência do pai, levado às pressas para o
Tolstói publicou em 1896. A tra- indivíduo e de toda a humanida- Talvez eu esteja muito pes- hospital. Acompanhamos as descobertas da
dução é de Anastassia Bytsenko. de”. Vejo a literatura como uma simista. Ainda assim, a ideia do protagonista enquanto Santiago está preso
Uma ideia, de imedia- espécie de empurrão. Algo nos ti- contágio pode ser muito útil pa- à cama, seu novo mundo.
to, se destaca: a do “contágio”. ra do lugar — eis um livro. Algo ra os escritores contemporâneos.
Sim, não nos aproximamos ver- nos agita e desassossega. Con- Que deixem de lado seus pro-
dadeiramente de um livro por tudo, a literatura “bem feita” de jetos de sucesso e de aceitação.
“aplicação”, mas por “contágio”, hoje despreza esses sentimentos Que se esqueçam, um pouco, da
defende Tolstói. “Nessa capaci- radicais. Busca, ao contrário, a opinião alheia para pensar em si
dade das pessoas de se contagiar competência e o equilíbrio. Quer mesmos. Aprecio os escritores si-
com sentimentos de outras pesso- acertar — ou, pelo menos, não lenciosos, que trabalham serena-
as se fundamenta a ação da arte.” errar. Por isso se torna, tantas ve- mente em seus escritos, quietos
A literatura “bem feita” — como zes, uma literatura escolar. “Para em seu canto, sem pirotecnias
um terno bem cortado — pode professores” — no sentido em ou estardalhaços. Recentemente,
preencher nossas expectativas de que é escrita para agradar os mes- perdemos um escritor — grande
correção, de elegância e até de vi- tres (editores, críticos, jurados de poeta — que agia exatamente as-
da impecável. Mas simplesmen- prêmios literários, etc.). sim: Manoel de Barros. Por isso O avião de Noé
Fernando Vita
te não arrebata — isto é, não nos Insiste, ainda, Tolstói: talvez, infelizmente, e apesar de
Geração Editorial
arrasta. Arrebatar é nos arrancar “Existe um indício incontestá- sua inegável grandeza, ele tenha
239 págs.
com violência de uma certa estag- vel que distingue a arte verdadei- sido tão desprezado.
nação. O mundo contemporâneo ra da falsa — o contágio”. Ou o
— veloz, agitado, hiper ativo — leitor é contaminado e abalado Todavia é a cidade ficcional por aonde
tende, porém, à estagnação e ao pelo que lê, ou não lê. A litera- transita a obra de Fernando Vita. Agora,
marasmo. Precisamos da arte (da tura se parece, assim, com uma o ano é 1958. Uma fábrica de fogos
literatura) para acordar. doença. Que provoca dor, ine- NOTA explode. Mas todas na cidade acreditam
Insiste Tolstói, falando da vitável, desgaste, mas que tam- O texto Literatura e contágio foi que o barulho é devido às comemorações
arte em geral: “No momento em bém nos empurra para a frente. publicado originalmente no blog A pela vitória do Brasil na final da Copa.
que os espectadores e os ouvintes Daí, alerta Tolstói, a necessidade literatura na poltrona, do caderno O responsável: um enfermeiro. Ali,
se contagiam pela mesma sensa- de separar a arte de sua adulte- Prosa, do jornal O Globo. um inventor improvisado acredita que
poderá construir um helicóptero com
sucatas. A geringonça voará? Este e
outros relatos desfilam numa sucessão
de acontecimentos vertiginosos na
cidadezinha imaginária baiana.
30 | | fevereiro de 2015

fora de sequência | Fernando Monteiro prateleira | internacional

Dias de febre
de literatura na
cabeça (final) Um ano sobre o Altiplano
Emilio Lussu
Trad.: Ugo Giorgetti
Mundaréu
206 págs.

A
lém do prazer com a leitu- (boas e más) e presa do tempo Emilio Lussu foi oficial do exército italiano
ra do livro de contos de Ni- que lhe seria negado para algu- durante a Primeira Guerra Mundial. Da sua
valdo Tenório, também tive ma final realização qualquer. Tais experiência no front, ele narra um ano (1916-
motivos para comemorar, rastros, na areia móvel do tempo, 1917) da luta contra o exército austro-húngaro
em 2014, a estreia de Jo- são as marcas que se encontram, nas montanhas do norte da Itália. O romance
sias Teófilo como autor de O cinema neste O cinema sonhado, atrás concentra-se no cotidiano dos soldados.
sonhado — um híbrido (se não estra- de portas e dentro de gavetas de Com estilo direto e frases curtas, expõe a
nho) ensaio de intenção biográfica que incertezas e anseios da imagina- irracionalidade que guiam muitas decisões
o jovem cineasta — neto do tão prolífi- ção fuçados (é a palavra) pelo no campo de batalha. Lussu tece o drama e o
co quanto frustrado diretor Pedro Teófi- biógrafo-narrador que, ainda jo- destino de homens que, para seus superiores,
lo —, publicado pela nova editora Lavra vem, nos faz entrever um possí- pareciam objetos descartáveis.
(SP), de Wagner Carelli, com o incenti- vel ficcionista futuro que ajude
vo do Funcultura. a nos tirar do atoleiro do atual
Trata-se de uma viagem meta-en- romance brasuca feito, aparente-
saística de Josias Teófilo que tenta res- mente, para “agradar editores” e
ponder a uma indagação do neto de um mimetizar uma espécie de “mo-
desconhecido: quem foi “Pedro Teófilo”? delo internacional” (?), no cre-
Também os leitores não sabem. púsculo daquela literatura que
E só passam a ficar sabendo na medida costumava atender a pulsões es-
em que as páginas do livro vão lhe dan- tranhas e inexplicáveis e fora das
do existência mais real — na evocação gaiolas — sempre — que o mer-
de um passado relativamente recente cado ou a conveniência queiram
— e que atravessa, certamente, um li- impingir a novos autores origi-
mite como o daquele quase quase ver- nais e criativos (helás!) como Ni- Precisamos de novos nomes
NoViolet Bulawayo
so composto pelo ator Robert de Niro, valdo Tenório e Josias Teófilo,
Trad.: Adriana Lisboa
quando de uma entrevista na qual per- surgindo fora do “esquema” que
Biblioteca Azul
guntaram sobre o seu pai e o “touro José Castello descreveu com jus- 253 págs.
indomável” respondeu, sem firulas, a tas palavras, em 31 de dezembro
respeito do fantasma borrado que lhe passado, no seu blog A Literatura
deu a existência: “Meu pai? Ele sumiu na Poltrona (leia texto na íntegra Darling, Bastard, Chipo, Godknows, Sbho e Stina
na espuma do nada”. na página 29 deste Rascunho): — crianças de nomes peculiares — tentam todos
O Teófilo neto se recusou a ver “Sinto-me inquieto com os dias fugir do Paraíso — o irônico nome de
o Teófilo avô sumido assim, sem mais certa tendência burocrática um aglomerado de barracos de zinco em Harare,
aquela. E, movido do interesse de res- — a escrita como um ‘dever a Zimbábue. Vivem ali desde que suas antigas casas
gatá-lo, primeiro pretendeu (quase cumprir’, um ‘trabalho de casa’ foram destruídas violentamente pelo governo.
brancaleonicamente) fazer um docu- — que percebo na literatura bra- Fogem para Budapeste, o bairro vizinho, onde
mentário de longa-metragem em tor- sileira contemporânea. Ficções roubam frutas para comer. São divertidas as tardes
no dele. Depois, abandonou essa ideia bem feitas, arrematadas com de fuga. Um dia, Darling consegue ir muito mais
— que dependia de financiamentos, competência, revisadas com afin- longe. Chega aos Estados Unidos.
etc. — e partiu para escrever esse livro, co, mas vazias. Isso, de fato, me
cujas idas e vindas entre biografia, cita- aborrece. Creio que é, antes de
ção de pensadores e autores variados, in- tudo, uma deformação de mer-
teresse por arquitetura e história local, cado. Autores escrevendo para
tenta tirar do anonimato um rosto que, agradar editores. Para chegar às
na multidão, disfarçava projetos na ca- listas de mais vendidos. Para pra-
beça, escondia sonhos irrealizados e até ticar o tal ‘estilo internacional’.
visões insuspeitadas, que seu neto cuida Na esperança tola de conseguir
de expor, explicar e até defender para si traduções e adaptações rápidas.
mesmo, sem omitir as muitas maneiras Em resumo: para ‘cumprir tarefa’
imaginosas pelas quais patinou, numa e exibir depois o título de compe-
“espuma do nada”, sim, a cercar o Teó- tentes. Sempre achei que literatu-
filo-madeleine das páginas que indagam ra e competência se excluem. Não O fundo do céu
Rodrigo Fresán
sobre um “retrato na parede”. é pelo ‘bem feito’ que uma ficção
Trad.: Antônio Xerxenesky
Sob o sol do trópico e longe de arrebata o leitor. Não se trata de
Cosac Naify
biscoitos num frasco, é uma biografia determinação, ou de aplicação. A 347 págs.
lateral bem brasileira, reunindo “cacos” literatura não tem relação alguma
como se fosse possível formar um par- com o bom comportamento. (...)
que Güell da implosão de um edifício Aprecio os escritores silenciosos, John Banville considera Rodrigo Fresán
de azulejos de Delfim Amorim (assunto que trabalham serenamente em “um escritor maravilhoso, herdeiro direto
do curta-metragem que Josias dedicou seus escritos, quietos em seu can- de Bioy Casares e Borges, mas com uma voz
a um verdadeiro “esquecido” da nos- to, sem pirotecnias ou estarda- própria, dono de uma visão tão divertida
sa memória impiedosa como um trator lhaços. Recentemente, perdemos como profunda”. Neste O fundo do céu, ele
por sobre delfins & pedros). um escritor — grande poeta — cria um romance não linear que homenageia
Por isso, acompanha-se com in- que agia exatamente assim: Ma- a ficção científica e presta tributo aos grandes
teresse este caso do cineasta-inventor- noel de Barros. Por isso talvez, mestres do gênero, como Philip K. Dick e
-vendedor-teosofista-aviador de passos infelizmente, e apesar de sua ine- Ray Bradbury. Na história, dois jovens amigos
borrados pela indiferença dos que o vi- gável grandeza, ele tenha sido tão compartilham também o trágico amor por
ram passar, entre inquietado por ideias desprezado.” uma mesma menina, linda e misteriosa.
L A N ÇA
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32 | | fevereiro de 2015

Fernando Pessoa
por Fábio Abreu

Um Pessoa
francês
Num trabalho de argúcia e persistência,
coletânea apresenta os poemas escritos
em francês por Fernando Pessoa
fevereiro de 2015 | | 33

Leyla Perrone-Moisés | por Pessoa, figura um francês, rá aos apaixonados pelo poeta, que já constituem
São Paulo - SP Jean Seul de Méluret, ensaísta e uma multidão internacional.

A
autor de alguns manifestos. Mas A edição é prefaciada por Patrick Quillier,
não há indícios de que os poe- tradutor e editor de Pessoa na coleção Pléiade da
obra de Fernando mas pertençam a esse pseudô- editora Gallimard. Além de profundo conhecedor
Pessoa tem tido, ao nimo. Alguns dos mais antigos, da obra pessoana, Quillier é músico, o que lhe per-
longo dos anos, uma datados de 1908, são assinados mite formular observações relevantes sobre a mu-
prodigiosa expansão. pelo heterônimo anglófono Ale- sicalidade, os ritmos e os silêncios desses poemas.
Expansão não ape- xander Search. Uma única vez, Poèmes français Aos especialistas, eles fornecem muitas sugestões
nas em termos de público lei- em 1923, o poeta publicou po- Fernando Pessoa de pesquisa no campo da literatura comparada e
tor, mas em termos de obra, já emas em francês: Trois chansons Éditions de la Différence dos estudos de intertextualidade. Como aponta
que numerosos inéditos do poe- mortes, na revista lisboeta Con- 413 págs. Quillier, podemos ver nesses poemas o aproveita-
ta foram sendo revelados e con- temporânea. São poemas gracio- mento e apropriação das leituras francesas do poe-
tinuam aparecendo a cada dia. sos, que ele mesmo qualificou de ta: Baudelaire, Verlaine, Mallarmé e outros.
Enquanto isso, os heterônimos “brincadeiras”. Os que ele não Os poemas incompletos, que são muitos, ofe-
passaram dos três inicialmente editou, e até mesmo os que dei- recem indicações sobre o método de composição
conhecidos a 74, segundo Te- xou incompletos são melhores do poeta. Trata-se, muitas vezes, de arcabouços de
resa Rita Lopes, e ao fantástico do que esses. poemas metrificados e rimados, com muitos espa-
número de 127, segundo seu Tem sido opinião corren- ços deixados em branco. Geralmente temos o pri-
biógrafo brasileiro, José Paulo te, entre os leitores de Pessoa, que meiro verso (dom dos deuses, segundo Valéry), e
Cavalcanti Filho. Muitos textos a escassa produção de Pessoa em depois só alguns fragmentos e as palavras finais que
vieram à luz nas últimas décadas: francês é literariamente fraca, se deverão rimar. Fica claro, nesses rascunhos, que o
escritos psicografados, mapas as- comparada à sua produção em ritmo e a musicalidade pressentidas eram mais im-
trológicos, textos misóginos, ar- português e em inglês. Ora, uma portantes, para o poeta, do que o léxico. Deixados
gumentos cinematográficos... nova edição desses poemas pode assim, esses rascunhos parecem espectros poéticos,
Como se sabe, ao morrer nuançar esse juízo. O pesquisa- desafiando os leitores para que os completem.
em 1935, Pessoa deixou uma dor Patricio Ferrari efetuou um E para todo ou qualquer leitor de poesia, eles
arca cheia de papéis. A esses se levantamento exaustivo nos ar- oferecem belas surpresas: versos maravilhosos per-
juntaram outros que estavam fo- quivos pessoanos e acaba de pu- feitamente franceses, ou “erros” que constituem
ra dela, até chegar-se à soma de blicar a primeira edição completa inovações da língua. Alguns exemplos: “L’infini de
27.543 textos e seis documen- dos textos pessoanos em francês. la mer troublée d’aucun humain/ Et la splendeur sans
tos (acervo da Biblioteca Na- Pessoa escreveu poemas fond du ciel ému d’étoiles”; “Mon âme aux volets clos
cional de Lisboa). O poeta tão nessa língua desde sua juventu- sent la vie au dehors”; “Il fait douleur. L’espoir se serre
prolífico havia publicado relati- de, em Durban, até os últimos tel un noeud” ; “La chaste extension turbulente des
vamente pouco: três plaquetes anos de sua vida. Em seu arqui- blés”; “Je ne savais pas que l’amour était si réel”.
com poemas em inglês, um livro vo, Ferrari encontrou 33 poe- Ou esta pequena estrofe extraordinária, que
patriótico-sebastianista e textos mas completos e cerca de 200 “desenha” o tema como um ideograma:
dispersos em jornais e revistas. textos em francês, divididos en-
Mas foi guardando tudo o tre poemas incompletos, frag- Et aussi la pluie...
que escrevia naquela arca. Os pa- mentos de poemas, traduções, Aux vitres la nuit
péis ali depositados têm os mais frases ou versos isolados. O pró- Une goutte luit
variados suportes (cadernos, fo- prio editor observa que se trata Par mon oeil sentie,
lhas avulsas de tamanho normal de “um corpus em grande par- Suivie... finit...
ou simples bilhetes). São ora da- te desagregado e inacabado”.
tilografados, ora manuscritos, ora Numa cuidadosa apresentação, A temática é, em geral, a mesma dos poemas
mistos. Às vezes, têm o aspecto de Ferrari retraça a história das pu- em português: a tristeza, a sensação de vazio e de
textos acabados, mas muitos de- blicações anteriores de poemas inexistência individual, a superioridade do sonho
les são apenas apontamentos e ra- pessoanos em francês, de 1952 sobre a realidade, as dificuldades do relacionamen-
biscos. Os manuscritos oferecem até a presente data, e retifica al- to amoroso. Um exemplo disso é este pequeno po-
grande dificuldade de leitura. Um guns enganos nessas publica- ema tão pessoano:
verdadeiro exército de pessoanos, ções, como a atribuição a Pessoa
agora oriundos de diversos países, de traduções efetuadas por ele. Assis au rêve de penser,
tem-se dedicado à tarefa de os de- O trabalho de Ferrari é Mon cœur regarde l’eau couler...
cifrar e publicar. uma proeza de argúcia e persis- Je me vois dans l’eau bleue qui coule
Mais um trabalho impor- tência. Trata-se de uma edição Tel que je n’ai jamais été...
tante acaba de ser publicado: o crítica com notas e variantes,
conjunto de poemas franceses de mas destinada, segundo o editor, Por vezes, vemos surgir um Ricardo Reis francês:
Pessoa. Para o poeta, o francês era a “um público leitor mais amplo
uma língua secundária, não arrai- que os círculos especializados na Caressons l’heure. Elle est brève
gada à sua personalidade como obra de Fernando Pessoa”. Per- Mon amour n’est que mon rêve
era o inglês. Embora ele tenha li- mito-me duvidar um pouco do Mon rêve de ton amour
do muita literatura francesa, sua interesse de leitores pouco afeitos
prática escrita da língua se reduzia à obra pessoana por sua poesia Mas a prova de que, para escrever em francês,
a cartas comerciais. Mesmo as- em francês. Os textos apresenta- Pessoa se colocava dentro dessa língua, de sua sintaxe e
sim, entre seus múltiplos projetos dos nessa antologia são desiguais sua sonoridade, é que uma retroversão deste ou de ou-
irrealizados constava a publicação e, na maioria, apenas esboçados, tros poemas não daria bom resultado em português.
de seus poemas franceses, alguns como esquemas vazios preenchi- Na infância, Pessoa inventara um compa-
reunidos num envelope com a dos por alguns versos e algumas Tem sido opinião nheiro francês, o Chevalier de Pas. É interessante
rubrica: French Poems. rimas. Os leitores de língua fran- corrente, entre os notar a frequência, nesses poemas, da palavra pas
No Brasil, conhecemos, cesa poderão se indispor diante leitores de Pessoa, como substantivo [passo ou passos] ou como advér-
desde a edição da Obra poética, de erros e estranhezas sintáticas. bio de negação. Os passos são os da morte (“Seule
realizada por Maria Eliete Ga- Os de língua portuguesa, por sua
que a escassa la mort ne porte a notre ouïe/ Le grand silence de son
lhoz para a Editora Aguilar, em vez, poderão comparar esses po- produção de pas”), ou de um deus silencioso (“Nous regardions
1960, alguns poemas em fran- emas com aqueles escritos em Pessoa em francês dans l’ombre où Dieu s’est tu./ Et il n’y avait de bruit
cês. Em outras edições de suas português, e considerá-los me- é literariamente que la fuite de pas”). Já o advérbio, este rima com las
obras, esses poemas foram geral- nores. O mesmo pode ocorrer fraca, se comparada [cansado] (“Ne chantez pas!/ Votre voix enchanteresse/
mente relegados a um apêndice com os apreciadores de seus po- Me laisse/ las”) ou com bas [baixo] (“Notre savoir ne
ou a notas. Progressivamente, emas em inglês. Entretanto, is-
à sua produção em le sait pas!/ Parlez plus bas”).
outros foram aparecendo. Entre so em nada afeta a importância português Enfim, vale a pena seguir os passos do Che-
os diversos pseudônimos usados desta edição, pois ela interessa- e em inglês. valier de Pas e ler os poemas franceses de Pessoa.
34 | | fevereiro de 2015

ruído branco | Luiz Bras

Mensagem aberta

A
o professor-pesqui- significativas, a quase totalidade Post-scriptum ce de Guilherme Kujawski
sador que estuda a da universidade brasileira ain- Messias, my dear, na vira- (Francisco Alves, 1994)
literatura brasileira da enxerga a ficção científica do da do ano, essa carta aberta foi Santa Clara Polter-
contemporânea. mesmo modo reducionista que enviada por e-mail a duas dúzias geist, romance de Faus-
o senso comum. Confunde, por de professores-pesquisadores do to Fawcett (Edição Eco,
Prezado professor, sauda- exemplo, a ficção científica lite- Brasil e do exterior, e publicada 1990) relançado em 2014
ções! rária, mais refinada e arrojada, em meu blogue. pela Encrenca: Literatura
com a cinematográfica, mais es- O objetivo foi alertar a de Invenção.
O pequeno grupo de pro- tereotipada e conservadora. parcela mais esclarecida da co-
fessores-pesquisadores ao qual Ignora que o gênero tem munidade acadêmica sobre o É importante salientar,
você pertence sempre esteve uma longa história (ainda secre- textismo involuntário que a FC querido, que o preconceito
atento ao cânone, mas sem des- ta) no Brasil, a ponto de já exibir brasileira vem sofrendo. Textis- contra a ficção científica não
cuidar do contemporâneo. Gra- características nacionais. mo no sentido de racismo tex- é uma invenção brasileira. Ele
ças a esse grupo, o estudo da De modo geral, a universi- tual, conforme a reflexão da ocorre até mesmo no mercado
literatura brasileira do século 21 dade brasileira e o senso comum acadêmica Marleen S. Barr. editorial anglófono, em que o
vem ganhando espaço na esfera ignoram sua atualidade. Acre- Meia dúzia dos professo- gênero prosperou e venceu.
acadêmica. ditam que a ficção científica de res contatados interessou-se pela Sempre que um ta-
Tempos atrás era muito hoje e a dos anos 50 e 60 são a questão e até me pediu que pas- lentoso autor britânico ou
forte a resistência da universida- mesma coisa. Esse é um grande sasse uma lista de livros recentes norte-americano lança um
de em refletir sobre a literatura e trágico engano que poderia ser de ficção científica brasuca. romance literariamente vi-
brasileira contemporânea. Às ve- evitado de maneira muito sim- Nas últimas duas décadas goroso, de ficção científica,
zes passava pelo filtro um ou ou- ples: pela leitura. foram publicados centenas de logo surge um crítico qual-
tro autor (ainda) vivo, apesar da Brasileiros talentosos estão livros, a maioria por editoras al- quer dizendo que “esse livro,
idade. Mas um autor jovem… escrevendo com afinco. Grandes ternativas. É óbvio que não con- apesar de ser de ficção cientí-
nem pensar. romances e coletâneas de contos segui ler e comparar todos. fica, é excelente”.
Enquanto perdurou, essa de ficção científica foram publi- Feita essa ressalva, uma boa Quando não surge um
ojeriza institucional aos novís- cados nos últimos vinte anos. lista inicial de FC brasileira re- crítico qualquer dizendo que,
simos escritores foi muito cri- Mas não receberam a merecida cente incluiria, em minha opi- apesar das astronaves e dos
ticada. Principalmente pelos atenção da imprensa. Também nião, os seguintes títulos: alienígenas, “o livro parece ser
novíssimos. não estão recebendo a merecida de ficção científica, mas não
Em respeito ao protocolo atenção da universidade. Histórias para lembrar é, não exatamente”. Gostaria
acadêmico, graduandos e pós- A simples classificação — dormindo, minicontos de Brau- de saber qual seria pra esse
-graduandos viviam apenas em ficção científica brasileira — os lio Tavares (Casa da Palavra, 2014) crítico a melhor definição de
função do cânone. Consagravam torna invisíveis. O veredicto Mnemomáquina, roman- ficção científica.
autores e obras consagrados, não-li-e-não-gostei é dado. E o ce de Ronaldo Bressane (Demô- Porque definições há
num círculo de consagração. preconceito perdura. nio Negro, 2014) muitas, mon cher, da mais
Mas nas últimas duas dé- Faço um apelo ao bom O alienado, romance de inclusiva à mais esotéri-
cadas a situação se modificou. senso incomum, contra o mau Cirilo S. Lemos (Draco, 2012) ca, da mais restritiva à mais
Suspeito que por insistência da senso comum: não despreze, sem Campo total, contos de acadêmica. Umas objetivas,
nova geração de pesquisadores. ao menos ler. Os melhores livros Carlos Orsi (Draco, 2013) outras subjetivas. Tem pra
Devagar, os romances e publicados neste início de século O triângulo de Einstein, vários paladares.
as coletâneas de contos ou po- 21, de ficção científica brasileira, contos de Ataide Tartari (Nova A minha, de uso pesso-
emas da geração mais jovem de não merecem a invisibilidade. Espiral, 2013) al, é talvez a mais inclusiva,
ficcionistas e poetas começaram Na verdade, esses livros so- Selva Brasil, romance de Messias.
a ser analisados. Não apenas em mam força com os da literatura Roberto de Sousa Causo (Draco, Considero ficção cien-
TCCs e artigos acadêmicos, mas não estigmatizada. Eles ampliam 2010) tífica qualquer narrativa que
também em dissertações e teses. o leque temático, inserindo ques- Os dias da peste, roman- apresente ao menos uma des-
Hoje, a queixa de que a tões que não são abordadas pela ir- ce de Fábio Fernandes (Tarja, sas três características:
universidade trabalha apenas mã rica: biotecnologia, engenharia 2009) 1. Elementos da ciên-
com as obras e os autores canoni- genética, informática, inteligência Fábulas do tempo e da cia e da tecnologia funda-
zados não se justifica. Muitos fic- artificial, cosmologia, etc. eternidade, contos de Cristina mentando o enredo.
cionistas e poetas que estrearam Fazem isso com uma lin- Lasaitis (Tarja, 2008) 2. Ícones, tipos e este-
em livro nos últimos vinte anos guagem afiada, você logo verá, Confissões do inexplicá- reótipos ligados à ciência e à
também já estão sendo estuda- sem abrir mão dos temas tradi- vel, contos de André Carneiro tecnologia: a astronave, o alie-
dos. Até mesmo nas universida- cionais de nossa problemática re- (Devir, 2007) nígena, o androide, o cibor-
des mais conservadoras do país. alidade político-social-tropical. E, se não for muito atrevi- gue, a inteligência artificial, a
Porém, uma minoria fi- Em resumo, fazem o que mento, meu amigo, eu também máquina do tempo, etc.
cou de fora dessa abertura polí- os bons livros sempre fizeram, incluiria nessa lista meus ro- 3. Uma grande refor-
tica. Se um velho preconceito foi não importando o gênero: in- mances Distrito federal (Patuá, mulação da sociedade, de na-
dissolvido, outro ainda continua vestigam o drama humano. 2014) e Sozinho no deserto ex- tureza utópica ou distópica.
intacto. Refiro-me ao tradicional Questionam seus sistemas, de- tremo (Prumo, 2012). A ficção científica é
preconceito contra a ficção cien- nunciam as armadilhas. Há ainda esses clássicos um dos gêneros mais hos-
tífica brasileira. Se esse apelo à leitura im- dos anos 90, pouco conhecidos: pitaleiros & democráticos
Esse gênero literário evo- parcial, sem preconceito, for Amorquia, romance de que existem, meu caro. Ela
luiu muito nas últimas décadas. atendido, mais uma injustiça his- André Carneiro (Aleph, 1991) aceita muito bem a contri-
Sensível às sucessivas renovações tórica será finalmente banida dos A espinha dorsal da me- buição de outros gêneros
estéticas promovidas ao longo do centros acadêmicos de reflexão. mória e Mundo fantasmo, literários (policial, terror,
século 20, sua linguagem amadu- contos de Braulio Tavares (Roc- fantasia, político, erótico,
receu, sua temática se atualizou. Um abraço, co, 1996) etc.), porém o contrário
Apesar dessas mudanças Luiz Bras Piritas siderais, roman- nem sempre acontece.
fevereiro de 2015 | | 35

Uma crônica. QUARTA-FEIRA


Uma ilUstração. Fabrício Carpinejar
todo dia. Eduardo Nasi

DOMINGO QUINTA-FEIRA

Ivana Arruda Leite Mário Araújo


Dê Almeida Fábio Abreu

SEGUNDA-FEIRA SEXTA-FEIRA

Rogério Pereira Humberto Werneck


Theo Szczepanski Carolina Vigna

TERÇA-FEIRA SÁBADO
José Castello Marcelo Moutinho
Tiago Silva Hallina Beltrão

www.vidabreve.com.br
36 | | fevereiro de 2015

A palavra e a história
Arquipélago Gulag, de Aleksandr Solzhenitsyn, é uma
obra-prima que escancara o horror produzido pelo comunismo

Hugo Estenssoro | Sait Louis – EUA

ilustrações: Theo Szczepanski

tradução: Mariana Sanchez

E
m 1922 foi publicado um livro cujo tí- Gulag era um tabu. Esta rixa, que (1998), negando sua antiga mera as características essenciais
tulo é mais lembrado do que a própria raras vezes chegou a ser debatida, afirmação de que o comunis- e distintivas dos campos de con-
obra: O estúpido século XIX. O autor está sendo decidida por morte mo fosse “um grande ideal” mal centração nazistas poderia estar
era Léon Daudet, um dos príncipes da natural, embora ainda agonizan- aplicado, em comparação com falando de Gulag. Já em Os afo-
reação francesa, filho de Alphonse Dau- te. No entanto, a comparação e o nazismo “teoricamente falso e gados e os sobreviventes (1986),
det — já à época um clássico do século 19 —, que identificação entre ambas ide- moralmente mau”; ambos con- porém, Levi cita Solzhenitsyn,
prosperou com sua reputação de polemista voluvel- ologias e regimes eram moeda ceitos eram igualmente perver- aparentemente sem perceber que
mente furibundo. Para muitos, e não somente os corrente nas décadas anteriores sos. A questão do Holocausto/ ao fazê-lo se contradiz. Em seu
de direita, o título marcou as interpretações do in- à Segunda Guerra Mundial, in- Gulag não foi menos difusa. primeiro livro, Levi afirma que a
gênuo século 19 como a cicatriz de uma chicotada. clusive na esquerda (Léon Blum, O que melhor ilustra suas principal diferença entre os cam-
Hoje sabemos que era uma calúnia daqueles que Victor Serge). Mas talvez a úl- ambiguidades é a atitude de Primo pos do socialismo soviético e os
conseguiram fazer do século 20 a mais desnecessá- tima figura importante a quem Levi, sobrevivente de Auschwitz e do nacional-socialismo “consiste
ria carnificina da história. Não dispomos, para re- tolerou-se falar do fenômeno grande escritor de irrefutável inte- em sua finalidade”: nos campos
sumir sua arrogância sanguinária, de outro título como dois lados de uma mes- gridade. Em um apêndice incluí- soviéticos “não se buscava expres-
tão memorável. Mas dispomos de uma obra que o ma moeda, sem ser acusada de do em 1976 no livro É isto um samente, nem mesmo nos anos
retrata e define com a indignação bíblica que um afinidades fascistas e de antico- homem? (1947), Levi afirma que mais obscuros do stalinismo, a
crime destas proporções exige: Arquipélago Gu- munismo “profissional” (ou seja, os campos soviéticos “nada têm a morte dos prisioneiros”. Dez anos
lag, de Aleksandr Solzhenitsyn. Com menos sono- mercenário) foi Hanna Arendt, ver com o socialismo, pelo con- depois, no segundo livro cita-
ridade, mas irrefutável justiça, podemos chamar o antes de a Guerra Fria esquentar. trário: destacam-se no socialismo do, apoia-se em uma citação de
século 20 de “o século do Gulag”. Um autor tão ecumenicamente soviético como uma mancha hor- Solzhenitsyn que, falando do
Tocamos aqui em um tema que já foi espi- respeitado como Norberto Bob- rível. (...) Não se pode imaginar, Gulag, diz: “Porque os Lager (so-
nhoso. Por várias gerações, ao longo da Guerra Fria, bio só se atreveu a tomar partido por outro lado, o nazismo sem viéticos) são de extermínio, não
relacionar nazismo/comunismo com Holocausto/ in extremis, meio século depois Lager”. Embora sempre que enu- podemos esquecer”.
fevereiro de 2015 | | 37

Verdade inegável Sabemos também que isso que, no caso do nazismo, como foi percebido cumprido, como Solzhenitsyn,
Nem todos foram tão can- a “polêmica” sobre por muitos, a incredulidade tinha que esquivar ou a ambição nietzschiana de fazer
didamente equânimes como solapar as declarações gritantemente explícitas dos de sua vida uma obra de arte.
a comparação dos
Levi, que procurava a verdade escritos de Hitler e os anúncios oficiais do regime Isso não se perdoa. É por
honesta e confusamente. E ago- campos comunistas com nacional-socialista. Além disso, o nazismo não con- isso que o último capítulo de
ra que finalmente a verdade é os nazistas era em parte tava com a simpatia militante de um setor escanda- The soul and the barbed wire
inegável — documentada nos fraudulenta: o que se losamente numeroso da intelectualidade ocidental, — cujos autores analisam um
próprios arquivos soviéticos —, procurava por um lado interessado em defender a imagem do regime. O por um todos os livros dele —
sabemos também que a “polêmi- caso do regime socialista russo é diametralmen- é dedicado à recepção da obra
era esconder a verdade.
ca” sobre a comparação dos cam- te oposto. Gozando do mesmo escudo da incre- de Solzhenitsyn no ocidente. É
pos comunistas com os nazistas dulidade, tinha além de tudo o apoio, a simpatia um texto obrigatório para en-
era em parte fraudulenta: o que e obediência de muitas das vozes mais prestigiadas tender os avatares de sua reputa-
se procurava por um lado era es- do Ocidente. Mas acima de tudo tinha a vantagem ção. O rancor parte da política,
conder a verdade. Indelevelmen- formal de identificar-se (e ser identificado) com as mas vai além. Mary McCarthy,
te, para Sartre era tão intolerável mais nobres e justas causas da política da época. E cuja incursão jornalística a Ha-
quanto o sofrimento e a morte tanto o regime como seus defensores eram since- nói durante a guerra do Vietnã
nos campos o fato de a impren- ros: não se cometiam crimes, defendia-se e anteci- ofereceu menos perigos do que
sa ocidental se permitir mencio- pava-se pela imprensa — inclusive o crime, que ao suas heroicas brigas domésticas
ná-los. Um crítico tão refinado ser justificado deixava de ser crime — uma causa com Edmund Wilson, o definiu
como George Steiner perpetrou cuja grandeza moral era reconhecida até mesmo com sua notória franqueza: “Sol-
a vulgaridade de repetir, ao re- por seus inimigos. A Rússia foi um dos aliados vi- zhenitsyn, para ser direta, é des-
senhar Arquipélago Gulag, um toriosos na guerra, e não houve tropas estrangeiras cortês e injusto em seu romance
grosseiro lugar-comum stalinista que descobrissem à força os horrores dos campos [Agosto 1914] com toda uma
do qual deve ter se arrependido soviéticos, nem o público ocidental teve de acei- classe da sociedade: os ’liberais’ e
três décadas depois: “Dizer que tar a contragosto provas patentes e irrefutáveis que os ’círculos avançados’ de 1914.
o terror soviético é tão horren- nunca foram filmadas livremente. O regime socia- […]. Quer se vingar, assim com
do quanto o hitlerismo é não só lista durou até 1991, como um despotismo putre- se vingaria de nós se pudesse nos
uma simplificação brutal como fato no qual os verdugos morriam na cama depois ouvir falar”. (É preciso levar em
também uma indecência moral”. de uma longa e confortável aposentadoria paga por conta que, na terminologia ame-
No entanto, um de seus ídolos suas vítimas. Ao instalar no imaginário mundial ricana de McCarthy, “liberais”
morais, Andrei Sajárov, não ape- a dantesca visão colossal de um sistema gêmeo ao significa esquerda e “círculos
nas o dizia como também con- nazista e com um número de vítimas várias vezes avançados” significa revolucio-
siderava os campos soviéticos maior, Solzhenitsyn consumou com apenas lápis e nários.) Este infundado, calu-
“protótipos dos campos de ex- papel um feito solitário que desencadeou, no caso nioso rancor — se Agosto 1914
termínio nazistas”. Solzhenitsyn, do nazismo, uma guerra mundial. tem um “herói político” é Pyo-
por sua vez, não hesita na com- tr Stolypin, o Primeiro Ministro
paração, que reitera e justifica Justiceiros da história liberal (no sentido estrito da pa-
constantemente. Os presos, diz, É o que explica a fervorosa ojeriza que lhe de- lavra), assassinado em 1911 por
com uma concisão quevadiana, dicaram todos os escritores que se consideravam os um dos membros dos “círculos
morriam “no forno gelado do justiceiros da história e os colecionadores de aven- avançados” — tem explicação.
desflorestamento ou asfixiados turas políticas com passagens de ida e volta em que Se a obra de Solzhenitsyn, para
na câmara de gás de uma mi- só os nativos perecem. Para eles, era um absurdo ele, tem um sentido geral e ab-
na”. Inclusive, vai implacavel- intolerável que o ideal do escritor como legisla- soluto é o de não deixar esque-
mente além. Uma das poucas dor secreto (ou não tão secreto) do mundo fosse cer, pace Primo Levi, que não
pessoas com experiência tanto encarnado por um reacionário, um “anticomunis- se pode imaginar um socialis-
em campos soviéticos quanto ta profissional”, um crente religioso praticante. E mo radical sem Gulag. Essa opi-
nazistas, que viveu para formu- O fato é que tanto ainda pior: do ponto de vista estético, a vida de nião, longe de ser isoladamente
lar isso com clareza, Margarete no caso do nazismo Solzhenitsyn — os perigos mortais dos quais se excêntrica, é compartilhada por
Buber-Neumann diz que é “difí- quanto do comunismo salvou por milagre, os sofrimentos que soube su- uma esmagadora maioria de es-
cil dizer o que é mais desumano: o resto do mundo se perar sozinho, sua rebeldia indomável, o sacrifício pecialistas, incluindo a grande
matar com gás em cinco minu- sobre-humano que encarou ao enfrentar, anôni- historiadora do assunto, Anne
tos ou estrangular ao longo de
negou a acreditar na mo e inerme, o Leviatã soviético, assim como seu Applebaum. Em Gulag: A His-
três meses”. Sem tê-la lido, Sol- magnitude e no horror triunfo final — talvez não tenha paralelo na histó- tory (2003), Applebaum — co-
zhenitsyn explica: “Era uma má- dos crimes. ria da literatura. Não há outro escritor que tenha lunista do Washington Post, um
quina de extermínio declarada, jornal de centro-esquerda —
mas, seguindo a tradição do Gu- confirma com todo o aparato da
lag, de ação prolongada para que historiografia anglosaxã a com-
os condenados sofressem mais e paração milimétrica, a partir do
ainda trabalhassem um pouco verão de 1918, que Solzhenitsyn
antes de morrer”. Stalin, conclui, faz entre o socialismo soviético e
mandava os russos para morre- o sistema concentracionário (o
rem no Gulag “com a garantia de sistema chinês seria desenvolvi-
uma câmara de gás, só que mais do com equipe e know-how sovi-
barata”. Os nazistas não eram éticos). Os prisioneiros também
piores; simplesmente contavam pensavam assim: em sua gíria,
com uma indústria mais eficaz e sair do Gulag para a “liberda-
produtiva: “para montar câmaras de” da sociedade comunista era
faltava-nos o gás”. apenas passar da “área peque-
O fato é que tanto no caso na” à “área grande”, onde — co-
do nazismo quanto do comunis- mo diz o verso de Ana Ajmátova
mo o resto do mundo se negou a — “os únicos que sorriam eram
acreditar na magnitude e no hor- os mortos, felizes por poderem
ror dos crimes. Nem os relatórios descansar”. Estas últimas, natu-
da clandestinidade organiza- ralmente, não são opiniões im-
da, nem os testemunhos pesso- parciais; mas sua parcialidade
ais que chegavam aos governos não é a dos verdugos ou seus teó-
e à opinião pública do Ocidente ricos, e sim das vítimas.
atenuaram a minuciosa incredu- Agora fica claro por que
lidade que inspirava a escala ge- Solzhenitsyn foi o autor mais de-
nocida (sequer existia a palavra monizado da literatura mundial
“genocídio”) dos despotismos depois de Voltaire. A explicação
totalitários. Somente a liberação mais corajosa e cabal talvez seja a
dos campos nazistas pelas tropas de Octavio Paz, que parece diri-
aliadas e os registros fotográfico e gida a todos os Steiner e McCar-
cinematográfico obtidos à época thy: “Nossas opiniões sobre este
conseguiram impor a verdade. E assunto não foram meros erros,
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foram um pecado, no antigo sentido religioso da A vida de Solzhenitsyn re uma das manobras táticas des- anos memorizou milhares de
palavra: algo que afeta todo o ser. […] Esse peca- — os perigos mortais critas nas memórias, em que a versos e diversas obras de teatro
do nos manchou e, fatalmente, manchou também terminologia estratégica é mais porque não podia escrevê-los em
dos quais se salvou por
os nossos escritos”. A imagem religiosa — de um frequente do que a religiosa. Da um campo; quando era possível
autor serenamente descrente — não é gratuita. O milagre, os sofrimentos clandestinidade, o escritor está fazê-lo, em letra microscópica,
diplomata americano e sovietólogo George Ken- que soube superar permanentemente preparando tinha de queimar imediatamen-
nan definiu de maneira célebre a publicação de Ar- sozinho, sua rebeldia ofensivas de opinião, mobilizan- te os minúsculos papeizinhos,
quipélago Gulag como “a maior e mais poderosa indomável, o sacrifício do batalhões de amigos e sim- ou enterrá-los em uma garra-
denúncia individual de um regime político jamais patizantes, recolhendo baterias fa para um secular leitor futuro.
sobre-humano que
feita nos tempos modernos”. E o historiador Mar- literárias, organizando retiradas. Na prisão ou na aldeia perdida
tin Malia, aderindo ao tom de Solzhenitsyn, diz encarou ao enfrentar, Receber Putin, então presiden- de seu “exílio perpétuo” as pers-
que o Arquipélago é o que mais se aproxima de anônimo e inerme, o te, e aceitar a maior condecora- pectivas de publicar em vida, ou
um Julgamento de Nuremberg do socialismo. Mas Leviatã soviético, assim ção nacional era uma maneira de algum dia, eram nulas. A glória
Solzhenitsyn vai mais longe, como diz em sua au- como seu triunfo final resgatar a adormecida atenção só era concebível como arma. É
tobiografia literária O carvalho e o bezerro, pa- nacional, voltar a ser lido, fazer por isso que quando este Monte
rafraseando o governo soviético: “Arquipélago
— talvez não tenha seu desprezado testemunho ser Cristo da literatura recebe, com
Gulag é a acusação com que inicia vosso juízo em paralelo na história ouvido novamente. Com a ga- a improvável teatralidade de um
nome da raça humana”. da literatura. rantia de que quem o ler saberá episódio folhetinesco, o Prêmio
sem dúvida nenhuma que um Nobel apenas dez anos depois de
Vencer o mal homem como ele — que por ra- publicar seu primeiro livro, sua
A esfera em que Solzhenitsyn combate é na- zões táticas já esteve disposto a reação é exclamar: “Agora pos-
da menos do que metafísica. Não está enfrentan- negociar com Brejnev, que esta- so falar com o governo de igual
do apenas um regime político ou uma ideologia va disposto a receber um Prêmio para igual!”. Diante de uma su-
assassina, o que seria uma mera revolução. Depois Lênin para tornar ouvida a voz perpotência mundial, um regi-
de desmascarar o adversário, Solzhenitsyn tem a dos mortos — podia apertar a me blindado contra todo tipo
grandeza de declará-lo um homem, como nós, em mão de Putin sem se sujar. de ataques internos políticos ou
cujo peito coexistem o bem e o mal. Solzhenitsyn de força, Solzhenitsyn chega à
não quer subjugar este homem, mas vencer o mal A glória como arma conclusão — um tanto batida
que o subjuga: “as revoluções destroem somente os Sabemos disso porque em outros contextos — de que
agentes do mal”. Como disse ele em seu discurso uma obra é um homem, assim só a literatura pode transformar
ao receber o Nobel: “Não se trata apenas de que a como o homem é a obra. No ca- a sociedade. “Todo aquele que
força bruta seja vitoriosa no mundo moderno, mas so de Solzhenitsyn isso se dá em tenha proclamado a violência
também de sua clamorosa justificação”. É por isso grau superlativo; caso que, co- como método deve inexoravel-
que não apenas comissários e aparatchiks e agen- mo disse Saul Bellow, justifica ti- mente optar pela mentira como
tes assalariados e militares se viram ameaçados por rar a poeira da palavra herói. São princípio”, declara. O modo de
Solzhenitsyn; também se sentiram vulneráveis os poucas e mal contadas as vezes vencê-la é “ver o presente à luz
justificadores, não necessariamente comunistas, em que a literatura se viu hon- da eternidade”.
aqueles “homens livres bem alimentados”, aqueles rada com um escritor total co- A literatura nada deve a
“teóricos que nos explicavam por que deveríamos mo Solzhenitsyn. Ao longo dos Solzhenitsyn como o feito de
apodrecer em um campo”. cumprir com seus propósitos
Tudo isso já cumpriu o ciclo enunciado por extraliterários — de vencer a
Humboldt para sempre: primeiro as pessoas negam mentira para desmascarar a for-
as coisas, depois lhes dão importância e, por fim, as ça — sem outros recursos que os
declaram amplamente conhecidas, que não interes- literários. É fácil esquecer que o
sam a mais ninguém e é melhor esquecê-las. Hoje mais influente de todos seus li-
em dia é possível declarar que o regime soviético vros (e na Rússia certamente
foi, com toda modéstia, um simples “experimen- mais que todos seus panfletos e
to social” (Eric Hobsbawn), como se se tratasse da discursos) é a novela Um dia na
social-democracia europeia. Mas na Rússia vive-se vida de Ivan Denissovitch, es-
uma etapa mais avançada. Agora há novos teóri- crita em uma arrebatada epifania
cos que explicam à juventude russa por que seus de quarenta dias. Tão perfeita e
avós faziam bem em apodrecer nos campos: “Ha- transparente é sua arte que o re-
via razões lógicas por trás do uso da violência pa- gime acreditou que poderia pu-
ra obter um máximo de eficácia”. (Uma história blicá-la impunemente. Seus dois
moderna da Rússia: 1945-2006, texto escolar de romances “polifônicos”, O pri-
Alexander Filippov). E um ex-verdugo, Vladimir meiro círculo (1968) e O pa-
Putin, persuadiu outros historiadores russos a não vilhão dos cancerosos (1968)
se deterem em algumas “páginas problemáticas” da estão entre os mais notáveis do
história do país. “Não podemos permitir que nos século 20 graças ao detalhe ain-
imponham um sentimento de culpa.” Não é des- da mais notável de que ninguém
cabido pensar que se referisse, entre outros, a Sol- isento de malícia pensaria em
zhenitsyn, que se deu ao trabalho de aceitar um classificá-los estritamente co-
prêmio nacional em 2007. Há quem prefira pen- mo “romances políticos”. Seu
sar que aceitá-lo foi um erro de Solzhenitsyn ou, tema são as relações do homem
pior, um revelador gesto político de apoio a uma com o mal, ou seja, com sua al-
ditadura nacionalista e reacionária. São os mesmos ma. Ao mesmo tempo que são
que diziam que Solzhenitsyn, como nacionalista políticos, sim, “à luz da eterni-
e reacionário, mentia sobre o Gulag. Além disso, dade”. O primeiro círculo foi
querem condená-lo duplamente, pois se trata de confirmado em sua estrita vera-
um governo que constrói museus a Stalin, reabilita cidade humana e social por dois
seu regime em campanhas de televisão e livros es- dos colegas de prisão de Solzhe-
colares, e confisca os arquivos das testemunhas do nitsyn que aparecem como per-
Gulag (a organização Memorial). sonagens. O estupendo livro de
O leitor de Solzhenitsyn goza do privilé- memórias de um deles, Lev Ko-
gio de sorrir. Sabe que a mensagem implacável e pelev (Ease my sorrows, 1983,
atordoante de Arquipélago Gulag é a de que os último de três volumes), nos
crimes do regime soviético não apenas devem ser oferece distraidamente uma li-
denunciados, como também — e a linguagem é ção sobre a arte de Solzhenitsyn.
religiosa, embora não agrade a nós, descrentes — Ele conta essencialmente a mes-
ser aceitos como culpa e remidos pelo arrependi- ma experiência com os mesmos
mento. Tem mais. Para quem leu as memórias de personagens, não sem brio, exa-
O carvalho e o bezerro (1975) e sua continuação tidão e profundidade, mas não
Invisible Allies (1995) — uma das autobiografias chega aos pés da versão borgeana
literárias mais extraordinárias, com mais aventuras do inferno (“perfecto dolor sin
e suspense do que uma estante inteira de thrillers destrucción”) do romance de seu
—, Solzhenitsyn ter recebido Putin em casa suge- amigo. Já O pavilhão dos can-
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cerosos, que encantou Edmund acontecesse. E a diplomacia da


Wilson por prender sua aten- força — a União Soviética vivia
ção ao longo de 700 páginas nas seu auge imperial, como contam
quais nada acontece, consegue o os três volumes de The Mi-
milagre cervantino de transfor- trokhin Archive (1999-2005)
mar-se em uma das grandes me- — requeria os serviços da menti-
táforas da história da literatura: o ra perante seus justificadores do
câncer como doença do espírito Ocidente. O fato de ignorar o
que é o Estado totalitário. mecanismo básico da incomum
É importante destacar aqui atenuação do regime dá a medi-
que os três livros, assim como es- da de coragem e audácia de Sol-
te prodigioso conto que é A casa zhenitsyn. Mas sua temeridade
de Matriona, são minuciosamen- tinha a lógica do zek (prisioneiro
te autobiográficos. Mas a obra de do Gulag) que vê a vida “lá fo-
arte que é a vida de Solzhenitsyn ra” como uma mera pausa, “uma
supera epicamente estas experi- rara e temporária anomalia”, en-
ências. O regime soviético foi, tre os campos e prisões em que
depois do próprio Solzhenitsyn, a vida era vivida no socialismo
o primeiro a notar isso. É verda- russo. A temperança adquirida
de que sua independência sel- nessas circunstâncias é expres-
vagem e sua insolência de haut sada em uma das passagens fi-
en bas ao lidar com as autorida- nais de O primeiro círculo, que
des — eram elas, ainda no po- narra um episódio autobiográ-
der, que tinham de se curvar, elas fico. Quando vários reclusos de
que deviam se declarar culpadas uma sharaska (prisão de regime
e pedir perdão ao povo — te- especial para cientistas e técni-
riam terminado abrupta e ano- cos a quem era permitido tra-
nimamente com um noturno balhar em suas especialidades)
tiro na nuca nos tempos de Sta- encaram seu translado aos cam-
lin. Mas não só os tempos eram pos árticos, ou seja, ao trabalho
outros, como também o medo físico escravo e à morte certa, o
que os verdugos tinham entre si romancista comenta: “Nenhum
impedia a restauração dos bons destino na terra podia ser pior.
e velhos métodos: o socialismo No entanto, estavam em paz
stalinista, por definição, exige consigo mesmos, eram tão au-
um Stalin e todo o terror res- daciosos como poderiam ser ho-
tante. Um livro extraordinário, mens que perderam tudo”. O diplomata boradoras, que imprudentemen- Dragão soviético
The Solzhenitsyn Files (1995), Há quem veja na atitude americano George te guardou uma cópia que havia The oak and the calf e In-
compilado pelo primeiro bió- e atrevimento de Solzhenitsyn Kennan definiu de datilografado clandestinamente visible Allies, que na edição de-
grafo de Solzhenitsyn, Michael uma teatralidade dotada de vai- e que tinha ordens de destruir. finitiva em russo compõem um
Scammel, recupera as minutas e dade e ambição, e nem todos maneira célebre Talvez o defeito mais gra- único livro, contam a epopeia
documentos das deliberações da pertencem à tribo dos justifica- a publicação de ve de biografias como a de Jose- (qualquer outro termo soaria
cúpula soviética sobre o roman- dores de verdugos. Lev Kopelev Arquipélago Gulag ph Pearce, Solzhenitsyn: A Soul menor) do enfrentamento de
cista. Depois de ter criado uma zombava carinhosamente dos como “a maior e mais in Exile, seja que em nenhum Solzhenitsyn com o dragão sovi-
unidade do KGB para se ocupar ares de zek calejado e destemido momento transmite a tensão ético a partir de seu ataque ao es-
poderosa denúncia
exclusivamente de Solzhenitsyn que Solzhenitsyn cultivava den- dramática — às vezes trágica e tablishment literário soviético em
— a quem tentaram assassinar tro e fora da prisão. O excelente individual de um épica, e também repentinamen- 1961 e a publicação russa de Um
injetando rícino —, em dado romancista Vladimir Voinovich regime político jamais te folhetinesca — da aventu- dia na vida de Ivan Denisso-
momento Brejnev arengou os satirizou o escritor em seu ro- feita nos tempos ra vital do escritor. É possível, vitch em 1962 até a publicação
membros do Politburo. Lem- mance Moscow 2042 (1986) modernos”. porém, que Pearce não o tenha em Paris de Arquipélago Gulag
brando-lhes que, afinal de con- com um personagem chamado proposto, contentando-se com em dezembro de 1973 e seu des-
tas, o regime havia enfrentado a Sim Simych Karnavalov, “o ter- uma narrativa comum e sem terro em 1974. Seu valor estético
crise do exílio da filha de Stalin e rivelmente assustador chefe de sobressaltos, porque seu objeti- é comparável ao de seus roman-
conseguido reprimir a contra-re- um execrável nacionalismo rus- vo é outro: recuperar toda a di- ces, embora a intenção original
volução na Checoslováquia em so”. Mas não sem antes ter re- mensão espiritual e religiosa de fosse a de preservar e apresen-
1968, declarou que havia che- conhecido que Solzhenitsyn “se Solzhenitsyn que seus biógrafos tar uma versão do combate que
gado o momento de enfrentar comporta com valentia, não se anteriores, em especial o me- confrontasse a falsidade das ver-
Solzhenitsyn, um simples escri- curva ante a autoridade ou evita lhor deles, Michael Scammel, te- sões oficiais: assim como os na-
tor armado de lápis e papel: “Já o perigo, e está sempre disposto nham eludido ou escamoteado. zistas, os soviéticos registravam
aguentamos de tudo. Acho que a se sacrificar”. O que é eviden- Com efeito, Solzhenitsyn é qua- e arquivavam tudo em um fala-
sobreviveremos neste caso tam- te é que se as ambições de Sol- se inexplicável sem essa dimen- cioso simulacro de legitimidade.
bém”. Estava enganado, mas ao zhenitsyn eram fama, riqueza são por assim dizer metafísica, Como Ivan e Arquipélago, estes
dizê-lo expressou a mais distinta e reconhecimento, podia tê-las como veremos. Mas o gênero textos autobiográficos foram es-
homenagem que a força bruta já saciado facilmente entendendo- apropriado para tratá-lo é o en- critos de uma tacada só, cuja in-
prestou às letras. -se com o regime, até mesmo saio interpretativo. É isso o que tensidade é compartilhada pelo
forjando uma elegante imagem fazem Edward E. Ericson e Ale- leitor. Não se pode resumir uma
Peça minúscula de rebelde, como o poeta Ye- xis Klimoff em The soul and bar- obra de arte, mas é indispensá-
Por outro lado, o regime vtushenko. Igualmente eviden- bed wire em um capítulo de 30 vel vislumbrar a importância dos
não era tão covarde nem tão in- tes eram os riscos que corria. páginas, que encerra um estudo elementos biográficos em Ar-
competente quanto parecia. Bre- Antigo zek, podia ser enviado livro a livro feito sobre a obra de quipélago Gulag.
jnev e o chefe da KGB Andropov de volta ao Gulag sem maiores Solzhenitsyn; o capítulo biográ- Em 1961, Solzhenitsyn era
— que seria um de seus sucesso- trâmites. Conforme conta um fico que o precede, de mais de um ex-presidiário que lecionava
res — viam Solzhenitsyn apenas dos agentes do KGB que parti- 60 páginas, compete com van- matemática numa escola provin-
como uma peça minúscula no cipou do atentado contra sua vi- tagem com o volume de Pearce ciana próxima a Moscou. Clan-
grande tabuleiro estratégico em da, Solzhenitsyn sobreviveu por (igualmente informativa é a in- destinamente, passava a limpo o
que a União Soviética jogava sua pura sorte (um dos tantos mi- trodução do mesmo Ericson e que havia composto mentalmen-
política imperial. O que Solzhe- lagres — como sua cura de um seu coautor Daniel J. Mahoney te nos campos e escrevia novos
nitsyn ignorava era que o regime câncer tratado no Gulag e em da excelente antologia publica- livros de improvável publicação.
sabia desde 1965, quando gra- um rudimentar hospital do inte- da em 2007, The Solzhenitsyn Mas desde 1956 o país vivia um
vou uma conversa dele com um rior — com que a providência o reader). Mas nada se compara, precário “esfriamento” político
amigo, que estava escrevendo o distinguiu para sua missão). E a naturalmente, aos dois tomos que Solzhenitsyn intuía como
que seria o Arquipélago Gulag, publicação de Arquipélago Gu- autobiográficos mencionados favorável e animou-se, cansado
e, principalmente, que já havia lag no ocidente (1973), progra- anteriormente, obras-primas do de viver à margem da história,
enviado parte do trabalho ao mada para um futuro incerto, foi gênero às que apenas se aproxi- a tentar publicar seu Ivan. Ko-
Ocidente com ordens de publi- antecipada pela prisão, tortura e mam os três vertiginosos volu- pelev levou-o à principal revis-
cá-lo imediatamente se algo lhe assassinato de uma de suas cola- mes de Arthur Koestler. ta literária, Novy Mir, bastião da
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so sozinho. Sua grande série no-


velística de vinte volumes sobre
a Revolução Bolchevique teria
de esperar. E teria de escrevê-la
enquanto enfrentava desarmado
um regime todo-poderoso. Um
romancista ocidental seria ridi-
cularizado se propusesse um ar-
gumento tão absurdo.

Pequenos exércitos
Desde abril de 1958, Sol-
zhenitsyn estivera organizan-
do notas sobre o tema, mais por
uma questão de consciência do
que como projeto real. A partir
de 1962, coloca-se em campa-
nha — o vocabulário militar é
imprescindível — com sua im-
pressionante obstinação criti-
cada por tantas boas almas. Sua
experiência como escritor secre-
to (revelar microfilme à luz da
lua, colar páginas de papel vege-
tal para escondê-las em encader-
nações, mandar mensagens na
coleira de um cachorro) foi um
fator decisivo. A admiração que
o escritor desperta lhe permite
recrutar colaboradores (sobre-
tudo colaboradoras) dispostos a
arriscar sua liberdade e o bem-
-estar de suas famílias. Uma de-
las diz, inesquecivelmente, que
ajudava para compensar o fato
de não ter estado no Gulag. Pe-
quenos exércitos de datilógrafos,
fotógrafos (para o microfilme),
pesquisadores e mensageiros se
submetem à ferrenha e minu-
ciosa disciplina da clandestini-
dade. O trabalho era abundante,
pesado e perigoso, além de re-
petitivo (era necessário copiar
várias vezes cada texto, incluin-
do as ficções de Solzhenitsyn,
cujo arsenal era a literatura).
A segurança impunha compli-
cações maçantes: construir es-
conderijos, evitar quartos com
microfones, queimar todo o pa-
pel carbono — algo nem sempre
fácil em moradias comunitárias
—, reuniões secretas em estações
de metrô desertas. Diplomatas,
vanguarda antistalinista cultural, sua narrativa era um piedoso resgate da memória, São poucas e mal jornalistas e freiras transporta-
dirigida por um poeta atormen- uma homenagem aos mortos. Depois se censuraria contadas as vezes em vam manuscritos ao ocidente.
tado, Alexandr Tvardovski, que implacavelmente pelo erro. Cartas de outros sobre- Na primavera de 1968, Solzhe-
que a literatura se
se refugiou do “reino desumano viventes de todos os cantos da Rússia começaram nitsyn levou três datilógrafas à
da mentira” soviética (Pasternak a chegar a ele e, o que é mais importante, cartas e viu honrada com um Estônia, onde, em 35 dias, pas-
dixit) na probidade estética e no anotações — em miseráveis pedaços de papel sujos escritor total como saram a limpo mais de mil e qui-
álcool. Douto nas vias tortuosas e rotos, às vezes com uma única frase — de presos Solzhenitsyn. Ao longo nhentas cartilhas sem espaço
do despotismo, Tvardovski fez que denunciavam a existência de um Gulag que, dos anos memorizou entre as linhas, sempre com as
o próprio Jruschov ler o manus- como um espelho turvo e maligno, correspondia janelas fechadas para que os vizi-
milhares de versos
crito, quem aprovou pessoal- ao mundo descrito no romance. Só então Solzhe- nhos não ouvissem as máquinas
mente a publicação como uma nitsyn soube por que havia nascido e milagrosa- e diversas obras de de escrever metralhando. Solzhe-
manobra política contra os sta- mente sobrevivido até ali: os zeks ainda vivos e em teatro porque não nitsyn redigia na solidão de uma
linistas que ainda assediavam sofrimento, e o Gulag em atividade (ainda hoje podia escrevê-los cabana próxima, em jornadas de
o Kremlin. Como Byron, um vivem zeks no círculo Ártico, reabilitados embora em um campo. 18 horas, numa epifania similar
belo dia Solzhenitsyn amanhe- não possam voltar a seus países) confirmavam que à da escrita de Ivan.
ceu “o homem mais célebre da o socialismo soviético e o universo concentracio- A história de como soube
terra”, nas palavras da poeta Aj- nário constituíam uma unidade indissolúvel. Sol- que a KGB havia apreendido um
mátova. Nunca mais publicaria zhenitsyn sempre havia se considerado antes de dos manuscritos de Arquipélago
nada na Rússia, exceto nos za- tudo um escritor. Mas Chejov já havia dito que os Gulag é um thriller com felizes
misdat clandestinos, até pouco grandes escritores devem se meter na política “para coincidências à la Dickens: estra-
antes da queda do império sovi- defender o povo da política”. O tratamento roma- nhos que sabem estar vinculados
ético. E, usado como uma arma nesco era uma imperdoável vaidade literária. Ha- por um segredo encontram-se
por Jruschov, tornou-se alvo fá- via toda uma “nação zek” cuja maioria, os mortos, por acaso em um necrotério e
cil dos neoestalinistas. tinha de falar com sua própria voz. Envergonha- percorrem metade da cidade sem
O mal-entendido da pu- do por ter cedido à “tentação da barriga cheia” (co- se identificarem — em caso de
blicação de Ivan era duplo. Não mo o amigo com quem havia sido condenado ao infiltração —, atrás de um cadá-
apenas Jruschov acreditava que Gulag), Solzhenitsyn declara-se “cidadão zek” pa- ver ambulante que as autoridades
Ivan encarnava o superado pas- ra sempre. Consciente da grandeza da empreitada, queriam enterrar com discrição;
sado stalinista (foi por isso que Solzhenitsyn procurou a ajuda de outros — in- noites de trem indo e voltando
mandou publicá-lo), como o cluindo o sofrido cronista dos campos de Kolima, entre Moscou e Leningrado pa-
próprio Solzhenitsyn achava que Varlam Shalamov —, mas viu que teria de fazer is- ra decifrar uma simples letra de
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uma mensagem em código bal- sem que o autor o propusesse, é croscópico, mítico e denso como toda a narrativa como uma linha
buciado confusamente... Um Arquipélago Gulag, e ao mes- a nervura de uma folha amplia- vermelha, tecendo um verdadei-
folhetim rocambolesco que con- mo tempo é um dos livros mais da por uma gota d’água. A exa- ro bildungsroman autobiográfi-
seguiu despistar a KGB e detonar originais e extraordinários de to- tidão ressonante daqueles textos co. Mas é o coro das narrativas
um ataque ante a opinião pública da a história da literatura, ape- despertaria em Lukacs a tardia e biográficas dos zeks que consti-
mundial que determinou o co- nas comparável ao Memórias sofística esperança de que o rea- tui sua estrutura, com o baixo
meço do fim do reino da menti- do duque de Saint-Simon, que lismo socialista pudesse aspirar contínuo da “construção do so-
ra soviética: Arquipélago Gulag às vezes é confundido com um a uma autêntica arte maior. As cialismo”, que se relaciona e se
conseguiu persuadir o estado documento histórico, ou a Ana- dificuldades em imaginar um confunde com a construção do
maior dos justificadores ociden- tomia da melancolia, de Ro- argumento, continua Solzhe- Gulag. É através dele que pode-
tais, a intelectualidade francesa. bert Burton, que já passou por nitsyn, foram curadas com ape- mos acompanhar como experi-
A indelével e retumban- um estrambólico tratado sobre nas dois anos de Gulag. Mas isso ência real as diferentes tramas
te importância histórica de Ar- a depressão. Solzhenitsyn pre- criava um dilema: “o Arquipé- narrativas: a prisão, os interro-
quipélago Gulag teve um efeito vê o mal-entendido e trata de lago oferecia uma possibilidade gatórios, as confissões forçadas,
deformante. Apesar de ter ven- esclarecê-lo já no subtítulo: Ar- única e exclusiva a nossa litera- os procedimentos fraudulentos
dido mais de trinta milhões de quipélago Gulag é um Ensaio de tura, e também à mundial: essa ou simplesmente inescrupulo-
exemplares em mais de trinta investigação literária. Evidente- inaudita escravidão nos primór- sos, a indiferente rotina de sen-
idiomas, pesa sobre o livro um mente, diante do blindado des- dios do século 20, em um sen- tenças aviltantes, os transportes
mal-entendido tão sério quanto potismo soviético, o autor não tido único que nada redimia, e prisões de passagem, a brutal
o que acometeu Um dia na vi- podia aspirar a outra coisa (em- abria aos escritores um cami- guerra perpétua contra os crimi-
da de Ivan Denissovitch quan- bora os especialistas se surpreen- nho frutífero, embora funesto”. nosos comuns — privilegiados
do foi publicado com a vênia de deram pelo tanto que conseguiu Para além de sua experiência pelo regime, com involuntária
Jruchov. Um número talvez ma- desenterrar sem acesso a fon- pessoal, no entanto, ficciona- ironia, como “socialmente afins”
joritário do público leitor o con- tes primárias), mas é importan- lizar o Gulag seria banalizá-lo. —, o regime de trabalho, condi-
sidera um livro de história para te lembrar que tampouco queria O principal personagem de O Aleksandr Solzhenitsyn, autor ções de vida e métodos de sobre-
especialistas. Até a editora res- outra coisa. Solzhenitsyn pode- primeiro círculo, Nerzhin (que de Arquipélago Gulag. vivência. Com mão de mestre,
ponsável pela magnífica edição ria ter definido seu livro com as pode ser relacionado com Sol- Solzhenitsyn se permite, sempre
espanhola usada para este ensaio palavras de Tolstoi: “Guerra e zhenitsyn), havia formulado com sucesso, quebrar a cronolo-
o classifica como tal na capa. paz não é um romance, muito outra possibilidade: “a dor que gia, embaralhar assuntos, alon-
Como alguém já disse, não sem menos um poema [épico], e me- experimentei e que vejo nos ou- gar-se em detalhes minúsculos
ironia, é preciso distinguir entre nos ainda uma crônica históri- tros não poderia ser um gatilho e condensar décadas em uma
uma história da guerra de Troia ca. Guerra e paz é o que o autor poderoso para minhas especula- página. Sua eficácia e elegância
e a epopeia homérica. Quem queria e podia expressar, na for- ções sobre a história?”. podem ser ilustradas com um
quiser uma simples história do ma em que foi expressado”. Ao começar a escrever Ar- exemplo. Solzhenitsyn permite-
Gulag estará melhor servido len- Solzhenitsyn diz que pre- quipélago Gulag, anos depois, -se virtualmente ignorar Stalin
do Applebaum. fere não pensar em que tipo de Solzhenitsyn compreendeu que no texto principal, relegando-
O biógrafo Michael Scam- escritor teria sido, incapaz que seu sofrimento pessoal não pas- -o quase que exclusivamente
mel, sem ter sido o primeiro, é era para imaginar um argumen- sava de um dos temas de uma às notas; com isso, reforça seu
o que melhor apontou que, com to, se não o tivessem prendido empreitada gigantesca, um ele- papel secundário na criação
a perspectiva do tempo, é inevi- arbitrariamente. De fato, suas mento técnico que lhe permitia do sistema socialista e em seu
tável chegar à conclusão de que primeiras ficções são claustrofo- retratar milhões de pessoas sem sustentáculo, o Gulag: “Stalin
Arquipélago Gulag é a obra- bicamente autobiográficas. Sua cair na abstração: sua vida e suas contribuiu com um toque de
-prima literária de Solzhenitsyn, força vem de um realismo mi- experiências pessoais atravessam densa estupidez, despotismo
mesmo levando em conta que mesquinho e autoadulação. Em
seus romances ocupam um lugar todo o restante, limitou-se a se-
obrigatório na ficção do sécu- guir pelo caminho que já havia
lo 20. Ao justificar esta opinião, sido traçado”.
aproveita para explicar brilhan- Naturalmente, Solzhe-
temente por que as seis mil pá- nitsyn também usa seu ins-
ginas de Roda vermelha — a trumental de romancista com
série sobre a revolução, que Sol- grande efeito. Sua capacidade
zhenitsyn considerava o magnun de evocar aqueles momentos em
opus de sua carreira — fracas- que o homem esquadrinha sua
sam, embora gloriosamente, se condição humana e se equipara
comparadas com seus outros com o cosmo são momentos me-
romances e, em especial, com o moráveis em seus romances, co-
Arquipélago. Solzhenitsyn con- mo a caminhada de Kostoglotov
cebeu a ideia em 1936, quando (que pode ser relacionado com
ainda era um leal cidadão sovi- o autor) ao sair do pavilhão dos
ético e marxista, convencido de cancerosos, ou o passeio de Ru-
que Lênin e sua revolução inau- bin pelo jardim, sob a neve, em
guravam uma nova e definitiva O primeiro círculo. Em Ar-
era humana. Mas quando final- quipélago Gulag, ao retornar à
mente se senta para escrever, to- sinistra prisão moscovita de Bu-
da sua vida, experiência e ideias tyrki, Solzhenitsyn sente o equi-
desmentem radicalmente essa valente à epifania de quem “volta
concepção inicial. A ideia origi- para casa”, entrando nela com
nal é virada do avesso (a revolu- os passos ansiosos do exilado
ção destrói a Rússia e envenena o que volta à pátria, onde encon-
mundo como um câncer) e perde trará seus irmãos e semelhantes,
sua razão de ser. Toda a arte e a os zeks. Como um apreciador
famosa teimosia de Solzhenitsyn exigente, julga a qualidade das
apenas conseguem dar um so- celas, e quando o levam pela
pro de vida novelesca a episódios primeira vez à Lubianka, o con-
frequentes, porém insuficien- sidera uma verdadeira honra.
tes. Confesso ter lido somen- Um trecho extraordinário é O
te os dois primeiros volumes, o gatinho branco, que ocupa quase
bastante para eu concordar com 50 páginas do terceiro volume
Scammel. É de se imaginar que e é um relato de aventuras dig-
Solzhenitsyn tenha chegado à no de Kipling. Nele, narra uma
mesma conclusão quando desis- fuga fracassada de seu amigo es-
tiu de completar a série. toniano Georgi Tenno, um vir-
tuoso na arte da fuga, que um
Original e extraordinário editor perspicaz deveria publi-
O grande livro de Solzhe- car em um livrinho separado,
nitsyn sobre a revolução russa, como fazem com o relato da
42 | | fevereiro de 2015

fuga de I Piombi, que é um dos para dar uma dimensão imagi- nas toma para si a missão de salvar a memória do NOTA
melhores capítulos das memó- nável ao Gulag — muitos prisio- Gulag, como também a de salvar o passado, todo
rias de Casanova. neiros não conseguiam acreditar o passado: dos provérbios e vocábulos descartados Para este ensaio
ou entender o que estava acon- pela gíria ideológica até as tradições, a religião e, se foram consultados:
A voz do autor tecendo com eles —, Solzhe- necessário, a falta de outro genuíno passado histó-
A técnica “polifônica” que nitsyn desenvolveu uma retórica rico russo, o czarismo (que prova, com documen- Archipiélago Gulag: Ensayo
Solzhenitsyn usa em seus ro- de “heterogeneidade caleidos- tos soviéticos, ter sido menos cruel e nocivo que de investigación literaria
mances é aplicada com sucesso cópica”. (Quando a ladainha de o socialismo). Não se pode esquecer que a forma- (1918-1965), três volumes,
ainda maior em Arquipélago violência e sofrimento parece ção intelectual de Solzhenitsyn, toda sua formação de Aleksandr Solzhenitsyn.
Gulag. À qual é preciso acres- maçante, o autor esclarece: “Não intelectual, foi marxista. E que ao repudiá-la teve Tradução de Josep Maria Güell,
centar um elemento crucial, que sou eu que me repito, é o Gulag de escavar os escombros do “liberalismo das cata- revisão de Juan Francisco García
volta a aparecer somente nos que se repete”). A cavalgada apo- cumbas” (Robert Conquest) para buscar alternati- e supervisão de Ricardo San
magníficos volumes de memó- calíptica a que Solzhenitsyn nos vas. Mas sua experiência como zek lhe oferecia um Vicente. Tusquets, 2007.
rias: a voz do autor. Solzhenitsyn submete é frenética, mantendo- exemplo concreto: os que melhor e com mais inte-
relembra os 146 dias em que es- -nos alertas ao alternar histórias gridade resistiam aos embates do mal em situações O carvalho e o bezerro (Difel,
creveu o Arquipélago, entre pessoais com amplos panoramas extremas do Gulag eram os crentes religiosos. Na São Paulo, 1976), Invisible
1965 e 1967, como um período históricos, análises sociológi- tábula rasa moral do totalitarismo, Solzhenitsyn Allies (Counterpoint, Washington,
de iluminação: “Parecia até mes- cas, indagações jurídicas, ensaios percebeu, como Platão depois da demolição epis- 1995), Un día de la vida de Ivan
mo que não era eu quem escre- antropológicos sobre a “pode- temológica socrática, que as verdades essenciais Denisovich (1962), La casa
via; na verdade me deixava levar, rosa e singular estirpe da nação devem ser conhecidas previamente: não as desco- de Matriona (1963), El primer
com uma força externa que guia- zek”, etc. Não obstante, Ericson brimos, as reconhecemos. círculo y Pabellón de cáncer
va minha mão”. Encontramos aponta que as sete partes do li- “A justiça”, diz Nerhin em O primeiro círcu- (1968), August 1914 (edição
um eco daquele êxtase na voz do vro se dividem simetricamente, lo, “é a pedra fundamental, a fundação do univer- completa de 1984), March 1917
autor, que raras vezes transpare- girando em torno de um eixo, a so”. Solzhenitsyn encerra o Arquipélago pedindo (1990), de Alexandr Solzhenitsyn.
ce ou se deixa ouvir em primeiro quarta parte, intitulada A alma a lei, pedindo justiça aos vivos e os mortos. Mas The Solzhenitsyn Reader, de
plano, exclamando, exortando, e o arame farpado. Nela, conclui as mil e oitocentas páginas de seu livro se referem Edward E. Ericson e Daniel J.
denunciando, apostrofando, in- a descida aos infernos e começa a uma injustiça suprema, velha como o homem, Mahoney (ISI Books, 2006). The
terpelando (“Ei, Tribunal de um “movimento de ascensão”, embora apenas a modernidade a tenha entroniza- Solzhenitsyn Files, organizado
Crimes de Guerra de Bertrand em que o sofrimento se transfi- do como dogma ideológico: a injustiça máxima de por Michael Scammell (Edition q,
Russel! Por que não usa isso co- gura em esperança com o episó- que falava Platão, quando o injusto é considerado Chicago, 1995).
mo argumento? Ou será que não dio épico das rebeliões no Gulag. justo. Que é quando o único refúgio possível e de-
lhe convém?”), irrompendo em A aguda observação de sejado pelos justos é a prisão. Solzhenitsyn: A Biography,
ironias e destilando sarcasmo. A Ericson permite uma visão glo- de Michael Scammell (Paladin,
indignação dá o tom, ensurdece- bal de Arquipélago Gulag e do Londres, 1986). The Soul
dor como um megafone; mas no que Solzhenitsyn representa pa- and the Barbed Wire: An
engenhoso autor de A casa de ra a literatura do século 20. Na Introduction to Solzhenitsyn,
Matriona — obra de sustenida seção destacada por Ericson, de Edward E. Ericson e Alexis
delicadeza chejoviana — não há encontramos a chave do que Klimoff. ISI Books, Delaware,
como confundi-lo com decibéis Solzhenitsyn tentou fazer e os USA, 2008. Solzhenitsyn: A
descontrolados: como as lon- caminhos que seguiu. É aí que Soul in Exile, de Joseph Pearce.
gueurs de Balzac, seu objetivo é Solzhenitsyn diz: “Gradualmen- HarperCollins 1999.
assustar os frívolos. te fui descobrindo que a linha
A excelente tradução para que separa o bem do mal não
o castelhano captura como ne- passa entre os Estados, nem en-
nhuma outra este tom, que dá tre as classes ou os partidos: pas-
unidade e continuidade essen- sa por todos e por cada um dos
ciais ao livro. Línguas mais po- corações humanos. [...] A partir
lidas e menos enraizadas na fala de então, descobri a mentira de
popular do que o russo, como todas as revoluções da história:
o francês ou o inglês, dão uma limitam-se a destruir os agentes
falsa impressão de vociferante do mal que lhes são contemporâ-
grandiloquência ou vulgarida- neos (sem distinguir, em sua pre-
de (Solzhenitsyn brinca, pedin- cipitação, os agentes do bem),
do desculpas por “não ter tido mas o mal propriamente, porém
tempo” de escrever com maior aumentado, é recebido como
refinamento). A intensidade re- herança”. E a conclusão é ines-
tórica de Arquipélago, incisiva perada: diante do mal que tudo
e obsessiva, lembra curiosamen- domina, a única salvação possí-
te a prosa febril de Simenon, vel está com as vítimas. “Bendi-
também escrita em breves, alu- ta seja, prisão, por ter estado em
cinantes semanas de trabalho minha vida.” À mesma conclu-
ininterrupto. No mais, a barba são (que Ericson não menciona)
longa e a cabeleira bíblicas de havia chegado o herói de O pri-
Solzhenitsyn sobressaem enga- meiro círculo, Nerzhin: “Graças
nosamente ao considerarmos a Deus pela prisão! Ela me deu a
seu estilo. Há uma aparente ci- oportunidade de pensar definiti-
são entre o severo, carrancudo vamente sobre as coisas”.
profeta das fotografias e a ubér- O mal total que Solzhe-
rima abundância retórica de nitsyn teve de enfrentar — não
sua prosa, utilizada em todos só no Gulag, mas em todas as
seus registros, dos delicados e decisões morais de sua vida co-
musicais aos brutalmente zom- mo cidadão soviético, quando
beteiros. O contraste é falso. encontrou o mal não apenas nos
Segundo seus colegas de prisão, outros, mas em si mesmo — exi-
como conta Pearce, Solzhe- gia uma negativa igualmente to-
nitsyn tinha um agudo senso de tal. Isso explica seu repúdio pela
humor e era um hilariante imi- modernidade, quando a “auto-
tador de gestos e entonações, de -deificação da humanidade”
contundente precisão satírica. (Kolakowski) aboliu o próprio
Em The soul and bar- conceito do mal. Octavio Paz
bed wire (assim como em The foi o único, que eu saiba, a notar
Solzhenitsyn Reader), Edward que Solzhenitsyn chegou a ser,
Ericson percebeu, além do efeito por decisão calculada, um ho-
unificador da voz do autor, uma mem pré-moderno: “sua voz não
estrutura formal em Arquipéla- é moderna, mas antiga”. É por
go Gulag. Ericson observa que, isso que Solzhenitsyn não ape-
fevereiro de 2015 | | 43

rabisco prateleirinha
literatura infantil e juvenil

F
elizmente o 4 contos,

Final feliz
de e. e. cummings, não
cai naquele saco de
textos de autores con-
sagrados que acham
que, apenas por este motivo,
sabem escrever para crianças. Orie
Lúcia Hiratsuka
Talvez um fator determinante
Pequena Zahar

possível
seja que cummings escreveu es-
52 págs.
te livro para a filha e para o neto,
portanto com um envolvimento
emocional, com uma “verdade”, Orie é uma menina e vai descobrir o
e não para cumprir uma necessi- mundo que está ao alcance de seus olhos. A
dade/oportunidade mercadoló- curiosidade a guia. Com os pais, pega um
gica. Eu tinha lido no original, barco e viaja. O remo é de bambu. O barco
uns bons anos atrás e já gostava navega lentamente. Orie vê os peixes fazendo
do texto. Quando meu editor o o caminho contrário ao dela. Chega a uma
colocou na pauta, fiquei ansiosa Em 4 contos, e. e. cummings se afasta de qualquer cidade. A paisagem bucólica de pássaros,
para conhecer a tradução. Clau- vegetação e peixes dá lugar à balbúrdia de
dio Marcondes fez um traba- indício de tom condescendente com o leitor gente. Outras descobertas são possíveis
lho primoroso, desses raros que em meio a roupas, perfumes, fumaça e
fazem com que a tradução seja brincadeiras. É hora de retornar. Outras
tão boa ou melhor que o origi- Carolina Vigna | São Paulo – SP surpresas estão no caminho de Orie.
nal. As ilustrações do Guazzelli
também somam e a decisão pe-
lo ton sur ton foi acertadíssima e
imprime a leveza necessária para
não competir com o texto e nem
ficar aquém dele. lizante que tanto odeio. O conto A casa que
No posfácio, George James comeu torta de mosquito termina lindamen-
Firmage nos conta que a mãe te, com “e viveram juntos tão felizes quanto é
de Nancy, filha de cummings, possível ser feliz”.
ocultou dela que ele era seu pai. Não vou dar aqui uma de Adorno (escre-
Nancy soube apenas em 1948, ver poesia depois de Auschwitz é uma barbárie)
com então 28 anos, enquanto ele mas parece-me impossível a manutenção da Gol de letra
Homero Fonseca
pintava seu retrato e lhe contou. fórmula do final feliz em pleno 2015. Sim, eu
Ilustrações: Walther Moreira Santos
Após uma análise da cronologia sei que estes textos não foram escritos agora, 4 contos
Casa Projetos Culturais
e da biografia de ambos, Firma- mas eles são importantes agora. Vivemos uma e. e. cummings
27 págs.
ge concluiu que os três primeiros falência mundial de modelos e a literatura, es- Ilustrações Guazzelli
contos foram escritos para a filha pecialmente a infantil, precisa acompanhar es- Trad.: Claudio Alves Marcondes
e que O elefante e a borboleta, pa- ta mudança de paradigmas. O final feliz tem, Cosac Naify Manuca sonha um dia ser Neymar. O
48 págs.
ra o neto. Tenho cá meus proble- em si, uma ideologia (um sistema de ideias) e menino leva jeito. É o craque do timinho
mas com pais que se afastam de que traça um único objetivo possível. Se for- Unidos da Vila Futebol Clube. O pai dele,
filhos, ou que se permitem afas- mos analisar com calma, é uma mensagem seu Antônio, também é louco por futebol.
tar. Então, não vou dourar esses bastante TFP (“Tradição, Família e Proprieda- Os outros filhos se chamam Romário,
28 anos. Não acho que isso faça de”, termo usado aqui em um sentido assumi- Ronaldo e Marta. Manuca joga futebol
dos contos melhores ou piores damente pejorativo). Para a criança ser aceita o autor o dia todo. E à noite sonha que está em
do que são. Não acho que isso na sociedade, precisa cumprir os pré-requisi- e. e. cummings estádios a fazer gols. Um dia, a mãe leva
faça do cummings mais ou me- tos do que se supõe ser um final feliz. Muitos Manuca ao trabalho. Ela é doméstica. Na
nos humano do que foi. problemas aí. Para começar, o conceito de fi- Edward Estlin Cummings (1894- casa dos patrões, o menino faz amizade
É inegável, entretanto, a nal é estranho. Um conto de fadas que termi- 1962), mais conhecido como e. com Gabriel. Logo, grandes alegrias
qualidade literária de seu traba- na com um casamento reforça a noção de que e. cummings (em caixa baixa), transformariam a vida de Manuca.
lho. Não falo do conjunto de sua o casamento é o final de algo. Some a isso o foi poeta, escritor, dramaturgo
obra, analiso o título pelo título. fato de a protagonista ser mulher, o final vito- e pintor norte-americano. Estes
Falo apenas deste livro, que seria rioso — do casamento, só para ficar no mes- contos são seus únicos trabalhos
o suficiente, caso eu nunca tives- mo exemplo — é a derrota de seu contraponto infantis, escritos originalmente
se ouvido falar em e. e. cummin- dramático na narrativa, o homem. São cama- para a filha e para o neto.
gs, para gostar dele. das e mais camadas de reforços ideológicos a
Adoro o (ab)uso das fun- serviço do capitalismo, onde o bom mesmo é
ções rítmicas, coisas de quem já ter posses, ser rico, casar e ter filhos, consumir.
era poeta. Exemplos: Ok, talvez um pouco adorniana.
trecho
Saindo um pouco da narrativa e fican-
Então o homenzinho mui- do apenas no ritmo, cabe aqui a lembrança 4 contos
to mas muito muito muito muito de Apollinaire, Baudelaire, Whitman, Rilke
muito muito velho abriu um sor- Verlaine, Maiakovski e Mallarmé, colegas de Assim, em seguida, o passarinho O medo que mora embaixo da cama
Mariza Tavares
riso e, encarando o elfo, perguntou: cummings na adoção da narrativa intertex- voltou a sair e capturou um monte Ilustrações: Nina Millen
“Por quê?”. (O velho que só per- tual, d’après Saussure. Forçando um pouco a de mosquitos, tantos que dava Globinho
guntava por quê?) barra, mas não muito, estes poetas escreveram 32 págs.
Aí o elefante e a borboleta fo- em uma estrutura bem próxima ao hipertex- muito bem para fazer uma torta,
ram descendo pelas curvas do cami- to, que usamos hoje na internet. Então, todo e os levou para a casa, e a casa os
nho. (O elefante e a borboleta). esse blablablá teórico é bem mais próximo do cozinhou com bastante açúcar e os João é uma criança. E tem medos. No escuro
que você imagina. do quarto, antes de dormir, ele imagina
usou como recheio da torta. Com
Em alguns momentos, ele Há, então, em cummings, pelo menos coisas terríveis, monstros horripilantes à sua
é mais explícito, como na cons- para mim, uma beleza estética. Este é um título isso, o passarinho e a casa comeram volta. Imagina um polvo gigantesco a enrolar
trução em versos, com direito a que merece estar na biblioteca dos seus peque- cada um três grandes pedaços da os tentáculos em sua coberta. O ronco de
uma aliteração cá e lá, como em nos. Ou na sua, se você compartilhar a minha deliciosa torta de mosquito (e é um dragão estremece as paredes. Aos poucos,
A menininha chamada eu. paixão por livros infantis. João descobre que seus medos podem ser
preciso dizer que depois eles se
Ainda por cima, e. e. Fico aqui, então, comemorando (fugindo divertidos. O que era medo vira brincadeira.
cummings faz isso sem aquele d)o carnaval, sem vergonha de ser feliz, o quan- sentiram muito satisfeitos). (A casa E suas noites nunca mais serão as mesmas,
tom condescendente imbeci- to é possível ser feliz. que comeu torta de mosquito) cercado por amigos na escuridão.
3
44 | | fevereiro de 2015

poetas RODRIGO GARCIA LOPES

Guarujá Salem

linchada por um boato


numa tarde de sábado
NELSON ALEXANDRE mundo-barbárie

fabiane
Poeta local
ainda ergue a cabeça
Eu mando poemas para ela para um último olhar
Como também mando lamúrias à multidão de agressores
Em vozes engarrafadas destinadas ao seu endereço
Que são recebidas como chuva no deserto filmando com celulares
No oco da criação e smartphones

Ela me compreende em minha insignificante


ADRIANE GARCIA Trajetória de poeta local Matrix
Ela me estimula a ferir os tendões de Platão
Rasgar a preciosidade anacrônica de Homero Chegou tenso e tomou um Xanax.
...Se ficar o bicho come Jogar o salva-vidas para Camões Na secretária a mensagem da ex,
Duvidar da idoneidade dos títulos e prêmios No quarto da filha um céu de starfix,
Era um bezerro fracote Ao abrir sua biografia caseira Agora crescida trabalha na Fox.
Por sorte, à fortuna da roda Como quem abre uma lata de atum Em casa só usava sabonete Lux.
Deixou de ser bife à mesa Num convite mediterrâneo
Para comer Seu verdadeiro nome era Max,
Cresceu O âmago de sua vida Quando nasceu não existia telex.
Virou boi de piranha. Cortaram sua Megapix, sua Netflix.
Ela me intitula de “meu querido Rocky” Gerente num China in Box
Me incentiva a incendiar a cripta em construção Deve grana preta pra Electrolux.
O que é Da minha escrita local
O “escritor maringaense” vira universal Torcedor fanático do Ajax,
Assim como em todos os dias Quando ela pede garra Acha que a vida é um gibi do Tex.
Os peixes nadam Pede para que meus poros sangrem Nunca ouviu falar da deusa Nix.
Os pássaros voam Que a hecatombe principie no horizonte da nossa cidade Bebe, bate a cabeça no box
Os mamíferos têm filhos E que sejamos Sem devolver Apocalypse Now Redux.
Dependurados em tetas Maiores do que ela.
Assim como nascem e morrem células
E se reproduzem bactérias Sentados olhando para os postais da Ilha do Mel Solilóquio
Assim como sai vida Eu me sinto uma espécie de poeta local abençoado
De ovos Pois a cada significativa permissão que tenho para poder amá-la Querido pensamento,
E da terra brotam Não me sinto mais um excomungado nunca fomos tão nós
Sementes Pela vida e pela fé quando estivemos a sós
Eu sofro Quando ela me dá sinal verde para a carne e para o amor no instante de seu advento.
Ser de minha natureza. Eu reinvento a própria crença
Ao constatar que Foi pouco, me lembro,
Somente a essa mortal sua face, de relance:
Ego Devo me curvar. mas como estar, inteiro,
em dois lugares
Se ferisse como a pomba branca ao mesmo tempo?
No chão deitada, o dorso vermelho À garota que ouve The Police
Calma, quieta, sem culpar o mundo Simples.
Apenas poupando o ar que resta. Antes que o tempo me faça Sempre estivemos a sós.
Mas não, sangra como búfalo Nau dos homens Pensar é o nome desse osso.
Como touro espanhol, de ventas Sem bússolas Corpo a seu lado, quente a nuca, Rodrigo
Quentes, sangue pisado Aparecerá na orla mas a mente, aqui quase nunca, Garcia
Durando mais que uma luta. Da praia sempre em algum lugar do passado, Lopes
Gárgulas fantasmas em hokkaido, almeria, terra do fogo.
Unificando É escritor,
Necrose O real e o irreal Viajo a seu lado, parado. compositor,
Todos os sítios são este. jornalista e
Tem coisa que dá errada, Assim Mesmo olhos nos olhos tradutor (Whitman,
É certo Náufrago sou cego aos seus pensamentos Rimbaud,
É saber escrever, dar ponto Deitado sobre a areia da esperança e você aos meus. Ginsberg, Plath,
Final com linha cirúrgica A minha busca será você Mútuo degredo. Apollinaire,
Torcer que feche e ajudar Liberdade Tateio o mundo em transe Riding, entre
Não abrindo com os dedos Que nunca tive sem poder sair da cabeça. outros). É autor
Ferida Urdindo seu nome Nutro um segredo. de Solarium,
Mas cheia de apego, a memória Pelos quatro cantos do mundo Estou no topo de mim, Visibilia, Estúdio
Quer a sobra do amor Eternamente no exílio, quem sabe. realidade e O
E gangrena. Silenciosamente. trovador, entre
Então, de novo, sozinhos, outros. Edita, com
quando menos se espera, Marcos Losnak e
aliviados, percebemos: Ademir Assunção,
Adriane Garcia Nelson Alexandre outros nos habitam. a revista Coyote.
Os poemas
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1973. É Nasceu em Maringá (PR). É autor de Paridos Solidão, sólida e real, aqui publicados
historiadora, funcionária pública e atriz. Venceu o e rejeitados (contos, 2012) e Poemas para e a consciência pertencem a
Prêmio Paraná de Literatura em 2013, na categoria quem não me quer (poesia, 2013). Integra o nome dessa experiência, dessa demência, Experiências
poesia, com Fábulas para adulto perder o a coletânea 101 Poetas Paranaenses, o nome dessa conversa que levamos conosco extraordinárias,
sono. Os poemas aqui publicados pertencem a O organizada por Ademir Demarchi e publicada pela o tempo todo a ser lançado
nome do mundo, a ser lançado em breve. Biblioteca Pública do Paraná em 2014.
fevereiro de 2015 | | 45

hq | ramon muniz
46 | | fevereiro de 2015

James Schuyler
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

J
ames Schuyler (1923-1991) foi uma das figuras cen-
trais na chamada New York School, que, entre as dé- Daylight Luz do dia
cadas de 50 e 70, juntando poetas, artistas plásticos,
músicos, dramaturgos e coreógrafos, colocou Nova And when I thought, E quando eu pensei,
York decididamente no centro da arte de vanguarda
mundial. Ali estavam, colaborando mutuamente, centenas de ar- “Our love might end” “Nosso amor pode acabar”
tistas, como John Cage, Merce Cunningham e Jackson Pollock. the sun o sol
O Cool Jazz, a Pop Art e o Abstracionismo explodiam, e os po- went right on shining entrou direto brilhando
etas da cidade respiravam e transpiravam aquele ar. Como seu
amigo Frank O’Hara, Schuyler foi curador do MoMA e também
tinha as artes plásticas como muito mais do que fonte de inspi-
ração. Um exemplo é o poema curto Daylight que abre esta co-
letânea, e que foi conjuntamente trabalhado com a pintora Joan
Mitchell, resultando numa belíssima aquarela. Mas os artistas da
New York School, apesar de compartilharem a mesma cidade (e
seus bares, suas galerias e suas festas), desenvolviam estilos pecu-
liares, e Schuyler se destaca por sua escrita introspectiva e conti-
At the Beach
da, que por vezes me faz lembrar os clássicos chineses; só que, em
vez de montanhas, lagos e alamedas de bambus, aqui aparecem On the Fourth of July at the beach,
Manhattan, seus apartamentos, suas ruas e suas solidões.
the kids from the next cottage
lit sparklers. As fast as they
ran, they seemed from our porch
not to run fast at all (Spark
stars wavering, the detonating
Bom dia waves, a hot sky, little wind.)
Good morning
We sat on the porch in the dark
manhã, ou angústia. De after the last sparklers, each
morning, or heartache. In
noite choveu speaking in turn till the wind
the night it rained
ficou nublado. As calçadas rose, then went in ourselves.
it misted. The walks
are dark with it, the grass estão escuras, a grama
está escura. Com Na Praia
is thick with it. In
resignation I resignação, eu
tiro meus shorts de caminhar, No feriado de 4 de julho, na praia,
doff my walking shorts,
visto roupa de couro, as crianças do chalé vizinho
put on elephant hide,
ou Levi’s. Café amargo. acendem fogos de artifício. Por mais rápido
or Levi’s. Bitter coffe.
que eles corram, parecem, da nossa varanda
Rae se volta para mim e não correr nada rápido (Estrelas
Rae turns to me and
fala de sua raiva de fogos flutuando, as ondas de
speaks her rage
mas suavemente como uma suave detonação, um céu quente, pouco vento.)
but gently as gentle
mulher faria. A enfermeira noturna Nós nos sentamos na varanda, no escuro
woman would. The night
se comporta bem, tem alguma depois dos últimos estouros, um por vez
nurse means well, is
outra coisa batendo falando até que ventasse
something else jabbering
forte no corredor mais forte, e então nós entramos.
loudly in the hall
at night. An over- à noite. Uma bana-
ripe banana. I have yet to learn na passada. Eu ainda tenho que
to speak my rage. aprender a externar minha raiva.

Where I go books Aonde quer que eu vá os livros


pile up. Constable’s se empilham. Cartas de
letters, Balzac, Constable, Balzac,
Afternoon Men. It’s Afternoon Men. Faz
cool enough to frio a ponto de se
shut the window. So fechar a janela. Então eu
I do. Silver day o faço. Dia prateado,
how shall I polish you? como eu poderei polir você?
fevereiro de 2015 | | 47

The sky eats up the trees O céu devora as árvores

The newspaper comes. It O jornal chega. Ele


has a bellyful of bad news. está empanturrado de más notícias.
The sun is not where it was. O sol não está onde estava.
Nor is the moon. Once so Nem a lua. Antes tão
flat, now so round. A man plana, agora tão redonda. Um homem
carries papers out of the carrega papéis para fora da October
house. Which makes a small casa. O que provoca uma pequena
change. I read at night. mudança. Eu leio à noite. Books litter the bed,
I take the train and go Eu pego o trem e vou leaves the lawn. It
to the city. Then I come à cidade. E depois eu lightly rains. Fall has
back. Mastic Shirley, volto. Mastic Shirley, come: unpatterned, in
Patchogue, Quogue. And for Patchogue, Quogue. E mesmo the shedding leaves.
all the times I’ve tendo parado tantas
stopped, hundreds, at their vezes, centenas, em suas The maples ripen. Apples
stations, that’s all estações, isso é tudo come home crisp in bags.
I know. One has o que eu sei. Uma tem This pear tastes good.
a lumberyard. The sun uma madeireira. O sol It rains lightly on the
puts on its smile. mostra seu sorriso. random leaf patterns.
The day had a bulge O dia se expande
around three p.m. After, por volta das três da tarde. Depois, The nimbus is spread
it slips, cold and quiet, ele desliza, frio e calmo, above our island. Rain
into night. I read rumo à noite. Eu leio lightly patters on un-
in bed. And in the a.m. na cama. E de madrugada shed leaves. The books
put a record on to eu ponho um disco para of fall litter the bed.
shave to. Uptown in a me barbear. Na cidade numa
shop a man has blue loja um homem tem olhos
eyes that enchant. He azuis que encantam. Ele Outubro
is friendly and inter- é amigável e me parece interes-
esting to me, though he is sante, ainda que não seja Livros bagunçam a cama,
not an interesting man. um homem interessante. folhas, o gramado. Cai
Bad news is a funny kind Notícia ruim é um tipo engraçado uma chuva fina. O outono
of breakfast. An addict de café da manhã. Viciado, chegou: atípico, nas
I can scarcely eat my eu mal consigo comer minha folhas que caem.
daily crumble without ração diária sem
its bulk. I read at seu recheio. Eu leio à Os plátanos amadurecem. Maçãs
night and shave when noite e me barbeio quando vêm para casa suculentas em sacolas.
I get up. That’s true. me levanto. Isso é verdade. Esta pêra está gostosa.
Life will change and A vida vai mudar e Chove fraco sobre
I am part of it and eu sou parte disso e as folhas desarrumadas.
will change too. So vou mudar também. E também
will you, and you, and você, e você, e A nuvem pesada se espalha
you, the secret — what’s você, o secreto — o que é Por sobre nossa ilha. A chuva
a secret? — center of secreto? — centro da tamborila levemente nas fo-
my life, your name and minha vida, seu nome e lhas que não caíram. Os livros
voice engraved like voz entalhados como de outono bagunçam a cama.
record grooves upon as ranhuras de um LP na
my life, spinning its minha vida, rodando sua
tune between the lines música entre as linhas
I read at night, a Eu leio à noite, um
graffito on the walls grafite nas paredes
of flowered paper I de papel florido eu
see, looking up from pages vejo, olhando por sobre as páginas
of Lady Mary de Lady Mary
Wortley Montague or Wortley Montague ou de
a yellow back novel. um romance antigo barato.
A quiet praise, yes Um silencioso louvor, sim,
that’s it, between the é o que é, entre as
lines I read at night. entre as linhas que leio à noite. Leia mais em www.rascunho.com.br
48 | | fevereiro de 2015

ilustração: Dê Almeida

sujeito oculto | Rogério Pereira Para aquele jogo — após


muitas derrotas —, decidi que
certeiro. Vai a bola. O chinelo,
saudoso, segue junto. Um gol de
deveríamos ter uma camisa, um chinelo vale dois. Enfim, éramos
uniforme do San Remo. Risível um pequeno exército de indi-

Dizem que o
armadura contra a lança adver- gentes, pedintes à espera de um
sária. Estava cansado de jogar milagre. Mas Deus e o padre tor-
sem camisa — o peito magrice- ciam sempre com muita fé para
la, as costelas rasgando a pele, o adversário.

abacate é verde
açoitado pelo vento e pelas bo- Perdemos. A derrota não
ladas inimigas. Nossos jogado- nos envergonhou. Uma diferen-
res (meninos entre 9 e 12 anos) ça pequena. Dois ou três gols.
teriam de providenciar uma ca- Lutamos ferozes na estreia do
miseta branca. Não poderia ser a único uniforme que tivemos.
da escola. O símbolo do colégio Não fomos moldados para vitó-

N
estadual estragaria tudo. Bran- rias. Perder era nossa sina. Vol-
ão eram nossos ami- poso: San Remo. Copiei-o des- o mundo não passa de uma sar- ca, totalmente branca. Não po- tamos para casa aos farrapos. Os
gos. Mas não vivía- caradamente da fachada de uma cástica ironia cromática. Enfim, deriam esperar outra cor de um números alaranjados pendiam
mos sem eles. Do alto, loja de roupas no centro de C., o verde da camisa lembrava um daltônico. Recebi trapos com para os lados.
do morro de nossas na rua próxima aos pontos de abacate. Ou talvez fosse o miolo. as deformidades dos corpos de Às vezes, ainda passo pe-
casas, descíamos em disparada prostitutas gordas, feias e seben- Aquela gosma esmagada que se criança. Com potinhos de tinta lo campo de batalha. A velha
em direção ao campinho de terra tas. O San Remo ganhara poucas come com açúcar, leite ou sal. De (comprados com muita dificul- igreja foi derrubada. Em seu lu-
atrás da igreja de madeira e mi- partidas. Não tinha uniforme. verdade, não me pareciam oito dade), pintamos os números às gar, uma nova casa para Deus,
lagres dominicais. Nem sempre Chuteira era uma palavra que abacates em campo (não cabiam costas. Meu irmão me ajudou. cuja torre acaricia as barbas de
jogávamos contra o feroz adver- não sabíamos se era com x ou ch. onze jogadores de cada lado na Dois invejáveis designers. Ele, São Pedro. O padre morreu. Es-
sário. Tínhamos receio da pere- Até hoje, a maioria daquele time estreita faixa de terra entre a rua meu irmão, era o goleiro. En- tá sentado à direita de deus-pai-
ne e desastrosa vergonha que nos desconhece a palavra escrita. A e a igreja). Mas sobre este assun- tão, uma blusa sovada preta com -todo-poderoso. No campinho
assombraria os passos até a esco- ignorância é uma pedra que se to, tenho de me calar. Até hoje, o número um alaranjado. A nu- de terra nasceu um condomínio
la durante a semana. A zomba- joga na porta do inferno na ten- acho que fui um traidor ao colo- meração não ficou muito simé- de pequenas casas iguais. O ti-
ria infantil é a porta do inferno tativa de arrombá-la. car o caroço de abacate num co- trica. Cada camiseta levava um me do Abacate acabou. O nosso
sempre escancarada. Mas íamos Não sei quem começou a po d’água sobre a pia da cozinha. número de tamanho distinto. também. A loja San Remo fe-
confiantes. E perdíamos quase chamar nosso temido adversário Em alguns dias, um talo com- Carregávamos às costas o peso chou. Quinquilharias chinesas
sempre. Não me recordo de vi- de Abacate. Desta proeza, não prido roçava as bordas do copo e da nossa ignorância. Os calções agora se amontoam ali. Nunca
tórias. Um ou dois empates. De posso me ufanar: sou daltônico. uma pequena árvore espiava pela eram de tergal, fabricados pelas mais encontrei nenhum jogador
resto, derrotas incontáveis pe- A razão é simples: a camisa do ti- janela. Era como brincar de Deus mães em velhas máquinas Sin- do time. A mãe morreu. A velha
rante os olhos inclementes de me do Abacate (sim, eles tinham — e eis a vida. Mas sem ter de se ger. Nos pés, conga, kichute ou Singer está em algum cemitério
Deus a nos vigiar do altar de so- camisa; e com número às cos- preocupar com a legião de peca- chinelo-de-dedo. Alguns, descal- de máquinas de costura. Ainda
nolentas missas. Estropiados, tas) era verde. É o que carrego na dores (eu, incluído) a zanzar pe- ços. É bem engraçado jogar fu- não tenho certeza de que o aba-
éramos um time de nome pom- memória esfarelada para quem las ruas da minha infância. tebol de chinelo. Vem o chute cate é verde.

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