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Nº 149 - Julho 2018 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

KARINA FREITAS

CRÍTICA HOJE:
QUEM ENTRAR,
PODE ENTRAR
DOSSIÊ RETRATA AS QUESTÕES MAIS
URGENTES NAS MEDIAÇÕES ENTRE OS
AUTORES E SEUS POSSÍVEIS LEITORES

HILDA HILST E RICARDO GUILHERME DICKE | A OBRA REUNIDA DE RAIMUNDO CARRERO


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PERNAMBUCO, JULHO 2018

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

J
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
á tem um tempo que a crítica literária feita 2018 dentro de uma programação que inclui outro
nas universidades deixou de ser a mediadora lançamento:Condenados à vida, reunião de quatro Vice-governador
Raul Henry
entre público e literatura. É uma certeza romances de Raimundo Carrero que mostram os
notória e foi a partir disso que pensamos principais tons de sua obra. Junto com a resenha Secretário da Casa Civil
André Wilson de Queiroz Campos
a atual edição: quais os desafios da crítica da página 28, temos o curta-metragem Carrero, o
literária hoje? Wander Melo Miranda e Eneida áspero amável, de Luci Alcântara, um panorama dos COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
Maria de Souza compõem um especial que procedimentos do autor. O filme recebeu apoio da Presidente
debate a pulverização da criação de sentido Cepe Editora e vem encartado neste Pernambuco. Ricardo Leitão
em “comunidades aleatórias”; as reconfigurações Para celebrar Hilda Hilst, dois textos: José Castello Diretor de Produção e Edição
ocorridas por conta da proximidade de leitores e pensa a autora a partir de sua imagem; e Rodrigo Simon Ricardo Melo
escritores criada pelas redes sociais; a participação da fala das admirações entre Hilda e Ricardo Guilherme Diretor Administrativo e Financeiro
mídia e de outras instâncias de consumo no acesso Dicke, escritor ainda desconhecido do público. Bráulio Meneses
à literatura. A arte de Karina Freitas nos traz essa E mais: a literatura uruguaia de Felisberto Hernandéz
dispersão com soltos na imensidão: estamos sob a e Marosa di Giorgio; os bastidores de uma antologia de
ocorrência da fragmentação, gostemos ou não. poemas sobre HIV/Aids; a importância de Água funda e
A entrevista da edição é com Eliane Robert Moraes, de sua autora, Ruth Guimarães; as potências de Lesley
Uma publicação da Cepe Editora
uma das grandes pesquisadoras de literatura erótica Nneka Arimah, autora de O que acontece quando um homem Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
do país. Ela lança pelo Selo Suplemento Pernambuco cai do céu; Alcir Pécora fala sobre Outros cantos, de Maria Pernambuco – CEP: 50100-140
o livro O corpo descoberto, seleta de contos eróticos Valéria Rezende – a obra esteve no centro de uma Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
brasileiros que vai de 1852 a 1922. Eliane fala de celeuma sobre crítica, o que nos motivou a convidar
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
como essa produção se deu sob o império da alusão: Pécora para assinar um texto sobre o livro. Luiz Arrais
a moral levava autores a falarem de corpo e sexo
EDITOR
de formas discretas. A obra será lançada na Flip Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hana Luzia, Janio Santos, Maria Júlia Moreira
e Luisa Vasconcelos
Allan da Rosa, Eneida Maria de Souza, Wander Melo TRATAMENTO DE IMAGEM
escritor, angoleiro, professora emérita Miranda, professor Agelson Soares
arte-educador da UFMG, autora de emérito da UFMG, REVISÃO
popular e doutorando Crítica cult autor de Crítica Maria Helena Pôrto
em Educação e coleção
COLUNISTAS
pela USP, autor de Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
Reza de mãe
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Alcir Pécora, professor e pesquisador (Unicamp); Fernanda Miranda, doutoranda em Letras (USP), com tese sobre e Sóstenes Fernandes
romances escritos por autoras negras; Karina Freitas, designer; Priscilla Campos, jornalista e mestra em Teoria Literária MARKETING E VENDAS
(UFPE); Ramon Nunes Mello, poeta, autor de Há um mar no fundo de cada sonho; Rodrigo Simon, jornalista e doutorando Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
em Teoria e História Literária (Unicamp) E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

BASTIDORES

“A linguagem
HANA LUZIA E MARIA JÚLIA MOREIRA

é um vírus do
espaço sideral”
Linguagem, memória e
corpo em uma antologia
que reúne poemas sobre
hiv/aids. Uma ampla seleta
que procura trazer mais
perguntas que respostas

Nesta “era pós-coquetel” e com o aumento de


Ramon Nunes Mello
retrocessos, inclusive em relação às políticas públicas
relacionadas ao hiv/aids, espero que esse livro possa
Ao escrever este texto me surge um verso – VIDA- ampliar as vozes para além dos dados médicos e
MORTE – da poeta e amiga querida Bruna Beber, lido estatísticos, nos trazer mais perguntas do que res-
na parede de seu apartamento em São Paulo, em 2010, postas: Como a literatura, sobretudo, poética, tem
quando eu não sonhava com uma sorologia positiva e registrado as formas de apreensão da infecção? As
muito menos tinha a intenção de organizar um livro de notícias de imprensa, as experimentações poéticas,
poemas em torno do hiv/aids1. Esse verso, que traduz o as narrativas ficcionais e os relatos biográficos podem
sentido da curadoria de Tente entender o que tento dizer: poe- ser considerados corpos textuais da história do hiv/
sia + hiv /aids, me voltou a memória durante um debate aids? A temática do hiv/aids nas artes pode ser lida
sobre o livro e a “literatura pós-coquetel”, quando o como estratégia política de atuação e visibilidade? A
poeta Silviano Santiago afirmou que o convite para poesia pode ser vista como forma de reação ao diag-
participar da antologia fez com que ele voltasse a nóstico? É possível uma literatura “pós-coquetel”?
escrever poemas e, sobretudo, a compreender que O livro é dedicado a autores, artistas e ativistas
na vida estamos iminentes: programados para amar que influenciaram minha leitura sobre o hiv/aids,
e morrer. VIDAMORTE. mas sobretudo me marcaram Herbert Daniel e
Quando resolvi organizar Tente entender o que tento Betinho (fundadores da ABIA: Associação Brasileira
dizer: poesia + hiv / aids já havia tido o prazer de ler Interdisciplinar de Aids). Com eles amadureci a
textos inspiradores sobre o tema, desde os mais minha percepção sobre o tabu em torno do assunto.
poéticos e pulsantes aos mais históricos e técnicos. Foi pensando neles que, no dia do lançamento do
Entre os principais autores, estavam Caio Fernando livro, tive a ideia de doar o percentual de direitos
Abreu, Herbert Daniel, Betinho, Bernardo Carva- autorais da organização do livro para a ABIA, nada
lho, Silviano Santiago, Alexandre Nunes de Sousa, mais justo. Organizar esta antologia é a minha
Denilson Lopes, Eduardo Jardim, Marcelo Secron forma de agradecer pelo trabalho desenvolvido
Bessa e João Silvério Trevisan. Aliando reflexões por essa instituição, pelos trabalhos de escritores
sobre o vírus/linguagem, as indagações do meu e ativistas com o tema e, sobretudo, uma forma
processo de viver com hiv e para a poesia, e a per- de exercitar a minha fé na poesia e também na
cepção do hiato do hiv/aids na literatura brasileira solidariedade – “a grande vacina contra a aids”,
cheguei à decisão de elaborar esse projeto tomando como ensinou Herbert Daniel.
como norte o verso a linguagem / o verdadeiro / vírus, Nesta reunião de poemas, a doença é a lingua-
que publiquei no livro Há um mar no fundo de cada sonho gem, a linguagem é o vírus, a memória é corpo, e
(Verso Brasil, 2016). Trata-se de um diálogo com o corpo é o texto.
o escritor norte-americano William S. Burroughs
que sentenciou aquilo que só compreenderia ao 1. Tanto neste texto como no título do livro em questão,
ler o resultado “reagente” para o meu exame de optei por grafar as siglas hiv e aids em minúsculas.
hiv: language is a virus from outer space. Acompanho a posição adotada pelo escritor e ati-
Não restringi a seleta de poemas apenas para pes- vista Herbert Daniel em seus ensaios e manifestos,
soas que vivem com hiv/aids, pois compreendo que referindo-me assim ao fenômeno ideológico e político
todos lidamos direta ou indiretamente com o vírus: do hiv/aids, na intenção de diminuir o protagonismo
um flagelo da humanidade. Entendo as questões de da doença em si frente à vida do indivíduo (Cf. H.
cada grupo social e a urgência dos discursos diante Daniel; R. Parker, Aids: dois olhares se cruzam numa
das mortes que ainda ocorrem em decorrência da noite suja – a terceira epidemia. Ensaios e tentativas.
aids – principalmente entre as populações mais vul- São Paulo: Iglu, 1991, p. 47-52).
neráveis como negros, pobres e gays –, contudo, optei
por apresentar uma cartografia de poetas de diferentes
gerações e sorologias e suas percepções sobre o tema. O LIVRO
Ou seja, ainda que a polifonia de representativida- Tente entender o que tento dizer
de seja um fator contemplado neste trabalho, o fio Editora Bazar do Tempo
condutor da curadoria foi a proposta estética, a qual Páginas 256
apresento dividida em três grandes eixos: linguagem, Preço R$ 48
memória e corpo. Sendo assim, os desdobramentos
sociopolíticos que, por ventura, possam ser levantados
devem ser lidos como resultado da força da poesia.
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ARTIGO

Unidos pelo No dia 27 de março de 1986, Hilda Hilst anotou na


agenda que utilizava como diário: “Carta do escri-
tor Ricardo Guilherme Dicke. Livros. Lindíssima

exercício
linguagem”. Em tinta esferográfica vermelha, a
caligrafia difícil marca o primeiro contato da au-
tora homenageada pela Flip 2018 com aquele que
considerava um dos maiores escritores do Brasil.
Fato desconhecido por muitos, foi em um ma-

da procura
togrossense que jamais pertenceu ao cânone da
literatura brasileira que Hilst encontrou algumas
de suas mais profundas afinidades literárias: “Seu
texto é mais bonito que o de Guimarães Rosa”,
declarou ao Jornal do Brasil em 1989.
Afinidades e admirações Em Por que ler Hilda Hilst, Luisa Destri e Cristiano
Diniz apontam que duas imagens bastam para ilus-

entre Hilda Hilst e o escritor trar a mitologia criada em torno da autora: a “vovó
da sacanagem” e “a escritora isolada e cercada por

Ricardo Guilherme Dicke


cães em seu sítio no interior de São Paulo”, ambas
impulsionadas pela própria durante o período de
lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby, no início
da década de 1990. Às duas, podemos acrescentar
Rodrigo Simon uma terceira, essa fomentada pela crítica e retomada
agora por conta de sua homenagem na Flip: “a autora
de múltiplas e sofisticadas influências literárias”.
Não por acaso, no anúncio de Hilst como home-
nageada da Feira Literária Internacional de Paraty, seu
diretor-geral, Mauro Munhoz, disse que a escolha
da autora se deu pelo fato de sua obra extrapolar
fronteiras: “assim como outros poetas brasileiros,
leu Drummond, Bandeira e Cabral, mas leu também
Fernando Pessoa, o francês Saint-John Perse e o
alemão Rainer Maria Rilke”.
O empenho em desvendar as influências hils-
tianas não vem de hoje. Em março de 1974, por
ocasião do lançamento de Kadosh, Nelly Novaes
Coelho defendeu que identificar convergências
de ordem literária e existenciais forneceriam as
“‘chaves’ para melhor penetração no insólito mun-
do romanesco de Hilda Hilst”. No artigo publicado
em O Estado de S. Paulo, a professora da USP retomava
o prefácio que Anatol Rosenfeld havia escrito para
Fluxo-floema quatro anos antes. Nele, o crítico dizia
que Hilst amava poetas como Hölderlin, John Don-
ne, Eliot e René Char, cujos escritos “afinam, em
maior ou menor grau, com as tendências místicas
e metafísicas” de seu próprio trabalho. No entanto,
a “experiência decisiva, não só de ordem literária
e sim ‘existencial’”, dizem os professores, foi a
leitura de Nikos Kazantzákis.
As mesmas razões que levaram Hilst ao escritor
e filósofo grego podem tê-la levado também a
Ricardo Guilherme Dicke. Se em Kazantzákis ela
encontrou a “paixão em contraponto à impassibi-
lidade contida”, no brasileiro descobriu, segundo gem daqueles livros que só se revelam plenamente
identificou Hélio Pólvora em Grande e grandioso em a partir da decifração de determinadas ‘chaves”.
todos os sentidos, um escritor “mais intuitivo que Por fim, se uma particular concepção de erotismo
intelectual, cuja emoção que sente passa ao que pode se aplicar ao conjunto da obra de Hilst, “é tam-
escreve, inunda o texto”. Se em Carta a El Greco vis- bém com o erotismo que Dicke procura contar para
lumbrou “a religiosidade apaixonada e herética”, se arremeter contra a mesmice da literatura brasileira
em Madona dos Páramos deparou com personagens contemporânea”, segundo apontou Antonio Olinto
que seguem “invadindo fazendas, matando, apri- no prefácio a seu primeiro romance, Deus de Caim.
sionando a mulher que haverá de se transfigurar Em 2 de agosto de 1991, na Casa do Sol, onde viveu
para dar religiosidade à nossa dor instintiva”. E com Hilst por quatro anos, Jurandy Valença anotou
mais: se a ligação com Kazantzákis foi, segundo em seu diário: “Leio Ricardo Guilherme Dicke, que
Rosenfeld, “fundamentalmente mística”, com Hilda tanto me pede”. Ele diz que “Hilda sempre
Dicke ela se estendeu a afinidades biográficas, falava efusivamente de Dicke, que para ela estava
intelectuais e literárias. no mesmo nível de Malcolm Lowry e Faulkner”.
Em Por que ler Hilda Hilst, Alcir Pécora diz que a obra Valença me disse em entrevista não ter dúvidas de
da escritora, ao contrário de sua imagem, segue que “a obra de Dicke inspirou e influenciou Hilda, um
desconhecida. No caso de Dicke, segundo apontou dos poucos autores que ela relia sempre, e a cada (re)
Nelly Novaes Coelho em seu Escritores brasileiros do leitura falava do deslumbramento que experimentava”.
século XX, “apesar da grandeza de sua obra, o seu Apresentada aos livros de Dicke pelo crítico Léo
amplo reconhecimento pela crítica e pelo público Gilson Ribeiro, o arrebatamento foi tanto, que fez
tem sido escasso”. com que ela escrevesse ao recém-conhecido es-
O desdém de crítica e público pela obra de ambos critor, algo digno de nota, “pois Hilda só se corres-
têm raízes que perpassam posições pessoais e pon- -pondia com poucos eleitos”, diz Valença. Passou a
tos centrais da literatura dos dois. Enquanto Hilst se insistir com os amigos para que lessem Dicke. Lygia
refugiou, a partir de 1966, em um sítio no interior Fagundes Telles, Massao Ohno e Roswitha Kempf
de São Paulo, Dicke, depois de uma temporada de foram também apresentados à obra do escritor. Em
uma década no Rio de Janeiro, onde escreveu seus maio de 1987, indicou ao Jornal do Brasil o nome de
três primeiros romances, decidiu voltar a Cuiabá, Dicke como “Intelectual do ano”.
o que levou o jornal O Globo, em 2004, a publicar Por meio de Caio Fernando Abreu, declarou publi-
que “o autor que Hilda Hilst considerava um dos camente seu encantamento. Em entrevista realizada
grandes do Brasil vive esquecido no Mato Grosso”. em 1987, Hilst definiu sua própria literatura como
Enquanto contra Hilst pesava, de acordo com “a procura do centro, uma espécie de tranquilidade,
Pécora, “a dificuldade de leitura de seus textos, dada mas ao mesmo tempo esse passional que você tem
a sua exigência de erudição literária, filosófica e dentro o tempo inteiro”, local onde nem Joyce, Ka-
até científica”, a prosa de Dicke, para Nelly Novaes fka, Proust ou Virgínia Woolf teriam chegado. “Eles
Coelho, se apresentava como “pertencente à linha- se aproximam, mas têm muita inquietação fora do
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HANA LUZIA

centro. Eu tenho ojeriza pelo relato. Me interessam


mais os estados emocionais”. E quem teria con-
seguido na literatura brasileira?, pergunta Caio, ao
Hilst e Dicke só ENCONTRO
Apesar da admiração mútua, Hilst e Dicke estive-
ram juntos uma única vez. Em dezembro de 1992,
que Hilst responde certeira: “O Ricardo Guilherme
Dicke, um homem impressionantemente prolixo,
com uma linguagem que tem uma oleosidade fas-
estiveram juntos o escritor encarou as 20 horas necessárias para
vencer, de ônibus, os quase 1.500 km que separam
Cuiabá de Campinas.
cinante. Numa novela chamada Madona dos Páramos,
ele conseguiu o centro dele: esse centro prolixo, uma única vez, A grande timidez do escritor, no entanto, não
permitiu que Dicke ficasse à vontade diante daquela

em 1992. A ele,
complexo, onde existe a volúpia da palavra”. que foi sua grande incentivadora. Tal qual Mário de
Leitora sofisticada, enquanto a crítica ainda não Andrade, o escritor se abria em cartas, mas não sabia
sabia bem como analisar a prosa dickiana – “Trata-se se confessar em corpo presente. “Depois que eles

Hilda dedicou o
de obra concebida fora dos esquadros pelos quais se foram embora, lembro de Hilda comentar que ele
pauta a produção literária mais recente”, apontou o personificava o outsider verdadeiro, aquele descrito por
Jornal do Brasil em 1978 –, a escritora viu no excesso Colin Wilson em O outsider: o drama moderno da aliena-
sua grande qualidade.
Assim como Hilst, Ricardo Guilherme Dicke nunca
se deixou enquadrar pela literatura de dicção na-
poema Sobre tua ção e da criação, uma das obras principais do cânone
literário de Hilda”, relembra Jurandy Valença.
Hilst e Dicke mantiveram a amizade e a admi-
turalista, especialmente no que toca à questão do
conteúdo “nacional” e à certa busca por apagar o
caráter mediador da linguagem. De forte carga poéti-
grande face ração até o fim da vida da escritora. Em sua últi-
ma entrevista, concedida em dezembro de 2003
ao jornal O Globo, perguntada sobre quem seriam
ca, sua prosa usa figuras de linguagem que remetem a natureza do Mato Grosso, passou ao largo de um os grandes escritores brasileiros, respondeu: “Sei
diretamente ao literário, como na abertura de Madona realismo fundado sobre a observação das relações que sou um deles. Guimarães Rosa, Machado de
dos Páramos: “Martelo. Um som de martelo martelando econômicas da região retratada, como preconizava Assis. O Guilherme Dicke, que praticamente não
ferradura em alguma ferraria próxima. Meio-dia de o próprio Graciliano Ramos. é conhecido, também é um gigante”. O escritor
sol untando de quente. Martelo no meio-dia. Mar- Filósofo formado pela UFRJ, com mestrado em mato-grossense guardou a entrevista até seu último
telando, martelando. Meio-dia e martelo. Bigorna”. Estética e especialização nas obras de Heidegger e dia. Faleceu em Cuiabá, em julho de 2008. Quis
Se algumas grandes obras, como a de Graciliano Merleau-Ponty, se voltou às questões metafísicas, o destino que a homenagem da Flip à sua grande
Ramos, foram escritas de maneira contida, seca, a em especial à experiência do homem com o tempo. amiga e admiradora acontecesse exatos 10 anos
de Dicke é o oposto, caudalosa como um rio, busca Diferentemente de Proust e Faulkner, no entanto, após sua morte.
preencher até mesmo a ausência sonora: “A nervo- que localizaram no próprio tempo as reflexões sobre Em seu diário, no registro do primeiro contato,
sia do martelo se acabara, agora só o som das patas sua essência “real” ou “pura”, foi na natureza mato- Hilst anotou também: “Escrevi um poema. ‘Vem
do cavalo sobre sua sombra no chão, as cigarras, as -grossense que Dicke buscou a transcendência do apenas de mim, ó Cara Escura’”. O verso compõe
seriemas, e som de tudo que é um som de silêncio, tempo além do relógio. Afinal, como diz no conto A a sexta estrofe de Sobre a tua grande face. Publicado
mais que ruído ou voz, que se distinga na solidão”. noite, “As horas do lado de cá e as horas do lado de naquele mesmo ano, o poema foi dedicado “a
Ainda que em seus três primeiros livros tenham lá: cheiro de flor de laranjeira à meia-noite, tudo é Ricardo Guilherme Dicke, por identificação no
tratado da dura vida dos homens simples em meio profundo sob a Lua: o pensamento e a realidade”. exercício da procura”.
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ARTIGO

Dos fragmentos Em Espetáculos sobre la realidad: ensayos sobre la literatura


latinoamericana de las últimas dos décadas, Reinaldo Laddaga
analisa a relação entre arte contemporânea, literatura

que nos chegam


e autonomia a partir de César Aira, João Gilberto Noll e
Mario Bellatin. Na introdução de seu estudo, Laddaga
afirma algumas “fórmulas” aplicadas ao exercício da
literatura latino-americana que se propõe a construir
textos por meio de perspectivas abertas de criação, fora

com o vento sul


das condições aplicadas à lógica produtor – receptor.
Assim, tal produção, de certa maneira, vai “contra”
os limites do objeto livro, tendendo a modificá-lo e
afastá-lo da ideia de acabamento definitivo. Dessa
maneira, o teórico argentino formula: “Toda literatura
A literatura uruguaia a aspira à condição de mutante”; “toda literatura aspira
à indução de um transe”.

partir de Marosa di Giorgio Para Laddaga, esse transe surge por meio da von-
tade e do poder que alguém emana durante um

e Felisberto Hernandéz
“momento de extinção”. Ou seja, o transe acontece
quando, diante de algum tipo de dissolução, o escritor
consegue somar novas aspirações ao mundo, aplicar,
por fim, o transe. Apesar do título delimitativo em
Priscilla Campos termos de recorte cronológico, as investigações do
teórico argentino são pertinentes para pensar al-
guns termos da poética uruguaia de outras décadas
do século XX. Para dar sequência ao pensamento
de Laddaga, a leitura feita por Sylvia Molloy, em
Dos lecturas del cisne: Rubén Darío y Delmira Agustini, é um
contraponto que se faz necessário. Em seu texto,
publicado nos anos 1980, Molloy pergunta-se: nós
estamos pensando no Uruguai como terra privi-
legiada de escritores raros e precursores originais?
Esse questionamento foi, ao longo das últimas
três décadas, repensado por alguns teóricos como
Ángel Rama, Valentina Litvan e Javier Uriarte.
A classificação de uma escrita como da ordem
do “incomum”, hoje, já não tem força teórica ou
mesmo de alteridade. O excêntrico, na literatura
uruguaia, foi exaltado em diversos textos que pre-
tendem analisá-la e não é essa a intenção deste.
Porém, a ideia de que a “raridade” significa, de
certa maneira, um movimento de exclusão e in-
clusão, faz com que se torne factível relacioná-la
às características mutante e indutiva da literatura.
De que maneira o elemento de primeira estranheza Através de narrativas para as quais notas musicais e
causado por escritores como Mario Levrero, Juan corpos de meninas “voando” pelas árvores são guias
Carlos Onetti, Felisberto Hernandéz, Marosa di de linguagem, Felisberto e Marosa deixaram obras que
Giorgio, entre outros, dialoga com as aspirações não se detêm diante das premissas institucionais do
de um mecanismo literário que pretende somar literário e que encontram, no texto fragmentado, as
novos mundos à extinção? ganas e os métodos para exercer sequências de transe.
A estrutura do texto – uma espécie de não apologia A partir das leituras de seus livros, ergue-se um terri-
à completude da narrativa – une os quatro escri- tório que se assemelha a uma concha: algo sussurra,
tores citados. Os aspectos de fragmentos, relatos e mas não se entende muito bem o que diz. E aí está,
contos permeiam muitas de suas obras e as tornam, no barulho surdo que não se mostra na linguagem, o
em certo modo, escritos que são caracterizados na desenvolver-se dessa poética que se pretende zunindo
constância de um misterioso contrafluxo. Não se compassado entre os corpos, a paisagem e as coisas.
trata de livros para os quais existe uma preocupa-
ção explícita em vivenciar a vanguarda ou reiniciar FANTASMAGORIAS DE UM PIANISTA
definições de linguagem, mas, sim, de estabelecer Anos antes do boom latino-americano e do exaltado
que os anti-heróis, talvez tão óbvios, são os que mais realismo fantástico e suas novidades revolucionárias
possuem manejos de exercitar o silêncio estrondoso para a literatura no continente, Felisberto Hernandéz
das tensões ficcionais uruguaias. cruzava o cone sul latino-americano para tocar piano.
Para reorganizar o literário, não é sempre neces- A música está presente em seus textos de maneira
sário criar monumentais estratégias. Como observa variada; personagens estão em contínua busca pelo
Laddaga, as aspirações da escritura e seu caráter ra- aprendizado do som ou são guiados por um “senti-
refeito são ótimas pistas sobre os anseios da literatura do distraído”, como escreve Enriqueta Morillas em
no continente latino-americano. Assim, em meio a edição de Nadie encendía las lámparas.
tipos que vão desde o mais monótono passante que De acordo com Morillas, o ritmo musical e a or-
atravessa a Plaza Independencia, em Montevidéu, ganização das palavras, para Felisberto, seguem as
até santas diabólicas em um jardim descrito de forma pautas de deslocamentos das “novas distribuições” da
minuciosa, uma espécie de poética aérea surge à beira música contemporânea. Assim, a sua escrita acontece
do Rio da Prata. a partir de um tipo de liberdade compositiva, base da
Nesse contexto, apesar da distância geracional, Fe- sua técnica antirrealista. Em seus textos, Felisberto
lisberto Hernandéz (1902-1964) e Marosa di Giorgio exprime um incômodo com as convenções sociais e
(1932-2004) são exemplos que oferecem um pano- o curso “normal” da vida, questionando-os por meio
rama de pontos que se expõem como importantes de memórias de sua infância – temática que compõe
para a literatura uruguaia. Ambos são escritores com toda a sua obra – como no trecho de El caballo perdido
pouca ou nenhuma difusão no mercado editorial bra- (1943) em que o narrador descreve uma de suas aulas
sileiro e, ao longo de sua produção, foram interpreta- de piano: Celina me fazia pôr as mãos abertas sobre as teclas e
dos como “estranhos” e de difícil leitura pela crítica. com seus dedos levantava os meus, como se ensinasse uma aranha
Em seus livros, por meio da escrita fragmentária, a mover as patas. Ela se entendia com minhas mãos melhor do que
montam o espaço narrativo possível para mundos eu mesmo. Quando as fazia andar com lentidão de caranguejos
que, em um primeiro olhar, são muito distintos – entre pedrinhas brancas e pretas, de pronto as mãos encontravam
Felisberto, pianista, nascido na capital uruguaia, sons que encantavam tudo o que havia ao redor do abajur, e os
morreu no início da ditadura militar; Marosa, nascida objetos ficavam cobertos por uma simpatia nova.
em Salto, atravessou o período ditatorial em meio à De certa maneira, a música também é uma forma
convivência com a sua família católica – porém, que de anotação e ali, já no começo de sua produção
se acabam por encontrar no eixo de uma vivência literária, Felisberto desenvolveu a prática da escrita
relacionada à loucura, à memória da infância e a algo a partir de um pensamento como o de Wittgenstein.
abstrato, etéreo, pairando no ar gelado pelo vento sur. No trabalho do alemão, a ideia de fragmento, de vá-
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HANA LUZIA

rias anotações que apontam para o problema – suas


investigações filosóficas, por exemplo – tem papel
central na estruturação da linguagem.
Os mundos de sistema determina. Em resumo, a uruguaia utiliza
diversos ícones religiosos clássicos, por exemplo,
para construir um cenário que, a princípio, parece
Assim, Felisberto dialoga com Wittgenstein não
só pela sua inclinação ao fragmentário, algo que faz
parte do universo da literatura latino-americana e,
Felisberto e Marosa obedecer às experiências conservadoras.
Então, a narrativa alerta o leitor de que aquele
espaço, o jardim cheio de diversos tipos de rosas,
em especial, uruguaia. Para além, existe um aspecto
de incomunicabilidade com o mundo que parece são distintos, mas árvores, vegetais, é também o espaço do horror e
da aflição, como neste trecho de Los papeles salvajes

se encontram
rondar a sua literatura como rondou a construção (1989): Domingo à tarde e eu atravesso o quintal sem recordar
filosófica wittgensteiniana. Em seus livros, existe a como saí e cheguei até aqui. O céu é de ouro, deslumbrante,
“vontade criativa” de outras descobertas de narração, e das laranjeiras caem frutas e flores. (...) Ao descer, já vejo

no eixo de uma
de novos modos de pensar a partir dos problemas da um cadáver. Vestido e na horizontal. E, mais à frente, outro. E
língua. Para Felisberto, o corpo da linguagem que nós outro. Por todos os lados, aparecem. E cada um com o fígado
somos, no mundo, assim como para Wittgenstein, destroçado ou o coração. Mas, quem são? Acaso não percebi
não está consolidado. Dessa forma, o escritor uru-
guaio volta-se para o moderno com um olhar “de
canto”, algo de sua inquietude diante da realidade
vivência da loucura que houve uma breve guerra?
Entre compilações e reedições, Marosa publicou
cerca de 20 livros de poesias, fragmentos, relatos e
latino-americana afasta-se do centro onde a obra é
tida como totalizadora. Assim, seus narradores são
vozes que aspiram à literatura como formadora de
e da memória contos. Um dos destaques de sua obra são as suas
narrativas eróticas – reunidas em El gran ratón dorado,
el gran ratón de lilas (2008) – nas quais as principais
linguagem, o seu transe é também a uma maneira Giorgio. As duas primeiras são de contexto estético: questões passam por episódios que abordam gênero,
de resistir à língua. a escrita da uruguaia está ligada à influência gótica identidade e animalidade. Dessa maneira, Marosa
Na década de 1940, Felisberto abandona o piano e e neobarroca, apresentando um universo para o coloca o corpo em evidência quando performa a sua
dedica-se, com exclusividade, à literatura. Essa etapa qual a presença de elementos pós-modernos em aspiração literária. Se toda literatura tem a condição
de sua produção é marcada, em definitivo, pela volta diálogo com o Barroco e a constante referência à de mutante, todo corpo também a tem. Assim, os
à infância, adolescência e memórias familiares. O simbologia medieval – igrejas, florestas, ruínas – e personagens estão em constante processo de mo-
cunho biográfico e a presença de personagens que ao imaginário sobrenatural – monstros, demônios, dificação e, na sua obra, isso é possível por meio
marcaram a vida do escritor tornam-se o centro de fantasmas, signos religiosos – é de extrema impor- de uma junção máxima com a natureza.
seus livros que, no período, lembram alguns textos tância. As outras duas são de tipo temático e estão Nos jardins e descampados, o seu modo de narrar
de Luigi Pirandello e Marcel Cohen. ligadas às questões da animalidade e do corpo. Em encontra espaços que, se nas linhas iniciais, apre-
Felisberto tornou-se um dos símbolos dos “pre- seus livros, pessoas se misturam e se transformam sentam ares de pacatez e beleza, logo são povoados
cursores uruguaios”, aos quais Sylvia Molloy fez em plantas, animais, santos, seres vampirescos e por cadáveres e situações de violência direcionado
referência no texto já citado, pois desenvolveu demoníacos, pondo em xeque a maneira como ao corpo da mulher. Em sua obra, Marosa di Giorgio
formas de dialogar com a vanguarda a partir de esses corpos não padronizados e bárbaros levam ecoa o horror das brutalidades vividas na América
perspectivas que envolviam, por fim, aglutiná- ao limite a ideia do que é a performance do humano Latina por meio de uma ambientação mística na
-las ao seu próprio universo ficcional. Ele não a na esfera social. qual os tipos de plantas e a anatomia das mariposas
anula, renega ou reproduz: a vanguarda é uma, Por meio de tais elementos estéticos e temáticos, são parte de um todo onde o transe reverbera, en-
entre tantas outras formas, de atacar o problema as influências europeias – também do Surrealismo fim, muito dolorido e vivo. Em No develarás el misterio
(a linguagem). Assim, sua obra vagueia entre as e de outros movimentos – aparecem na obra de (2010), livro que reúne várias de suas entrevistas,
características do estranho e do mutante com o Marosa não apenas como referências de contexto ela afirma ter relação perfeita consigo mesma, mas,
intuito de reorganização dos espaços da língua e, teórico-estético ou intenção de juntar sua escri- “de vez em quando, ocorre um tumulto. Minha
por consequência, do som. ta, em certo grau, à experiência do cânone. Pelo identidade é segura e trêmula”. De certo modo, sua
contrário, o tom de seus fragmentos, poemas e poética corresponde a tal definição – entre o ar e
PAPÉIS SELVAGENS E TRANSMUTAÇÕES textos eróticos é burlesco e expressa, às vezes e de a terra, encontram-se os corpos e é lá que se deve
Em um primeiro momento, pode-se delimitar qua- modo perturbador, as formas de opressão usadas somar os desejos, mesmo que tantos processos de
tro tipos de aproximação para a obra de Marosa di pelo patriarcado e as vertentes de domínio que o extinção estejam à espreita.
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

ENTREVISTA
Eliane Robert Moraes

Das várias formas


de falar sobre
desejo, corpo e sexo
O conto erótico brasileiro dos séculos XIX e XX visto sob a
ótica de uma das grandes especialistas do assunto no país,
no mais novo livro do selo literário do Pernambuco
FABIO SEIXO / DIVULGAÇÃO

como é a literatura? Creio que este livro toca


justamente nesse ponto e tento explicar por
quê. O “corpo descoberto” ao qual alude
o título supõe a descoberta do corpo pelas
palavras. As enormes restrições morais no
Brasil daquelas décadas – no caso, de 1852
a 1922 –, impediam a literatura de abordar
o corpo erótico por meio das palavras
obscenas, ou seja, de empregar os termos
que designam de forma direta as partes
e os atos corporais ligados ao sexo. Assim,
os escritores do período eram obrigados
a “dizer de outro modo”, por vezes fazendo
malabarismos extraordinários... Mas, o
esforço de descobrir outras formas para
dizer o sexo terminou por exceder o próprio
intento original de burlar a censura. Foi
essa a minha descoberta nessa pesquisa.
Assim, ao lançar mão de toda sorte de
procedimentos alusivos, a literatura acabou
por desvendar também novas virtualidades
do corpo, criando fantasias até então
impensadas e ampliando os horizontes
do erotismo.

Essa é uma coletânea marcada por textos


curtos, vários publicados em jornais. A
categoria de conto nesse livro pode ser
pensada também como uma produção,
de certa forma, lateral desses autores,
mento, conversei com a pesquisadora sobre as se pensarmos o status que a categoria
Entrevista a Schneider Carpeggiani descobertas que seu novo projeto propõe para romance sempre teve. O fato de serem
o estudo desse período que foi fundamental textos “laterais” possibilitava uma
A professora e pesquisadora da USP, Eliane para estruturar o que hoje entendemos por liberdade maior por parte dos autores
Robert Moraes, é nome incontornável quan- literatura brasileira. na hora da escrita?
do se fala de literatura erótica. Seus estudos É verdade que, no século XIX, o conto
ajudaram a divulgar a obra do divino Marquês O título dessa seleta soa, em certos está longe de partilhar a reputação “nobre”
de Sade no Brasil (é dela o posfácio da edição momentos, como uma ironia em relação atribuída ao romance. Mas, nem por isso
mais recente de 120 dias de Sodoma). Sua Antologia ao conteúdo do livro, O corpo descoberto.  o gênero está mais livre para se abandonar
da poesia erótica brasileira há pouco foi lançada Há pouca carne nesses contos. Há, por às temáticas eróticas... Até pelo contrário.
em Portugal pela Tinta da China. No final de outro lado, muita insinuação, muita tara, Basta pensarmos em romances tão prenhes
2017, numa conversa informal com Eliane, obsessões de vários tipos. Qual o corpo de erotismo como Lucíola, de José de Alencar,
tive a ideia de convidá-la para escrever um que você descobriu no processo ou O bom crioulo, de Adolfo Caminha, ou
dos livros do selo do Pernambuco. Surgia de pesquisar esse livro? ainda O cortiço, de Aluísio Azevedo.
assim a seleta O corpo descoberto – Contos eróticos Haverá mesmo “pouca carne” nesses De certa forma, tirando a pornografia mais
brasileiros (1852–1922), que é lançada este mês contos? Tenho dúvidas... De toda forma, popular do período, o conto se mantém
reunindo “taras” pouco conhecidas de nomes a questão dá muito o que pensar. Afinal, o mais tímido, mais contido mesmo. Há um
como Olavo Bilac e resgatando personagens que é efetivamente “orgânico” quando se paralelo interessante que se revela neste
como Coelho Neto. Aproveitando o lança- está diante de uma realidade de palavras, livro, que diz respeito à prática do conto
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

Com procedimentos A literatura erótica


alusivos, os contos é um dos lugares
desvendaram onde se evidencia
novas virtualidades a eficácia dos
do corpo, criando mecanismos
fantasias até então repressores sobre
impensáveis nossas escritoras
e à tematização do erotismo. Só há uma mulher presente de Júlia Lopes de Almeida nesta esboçadas por Aluísio Azevedo. Modernismo, um texto com
Ora, no período romântico na seleção, que é a Júlia Lopes coletânea só nos faz lembrar Mas, colocadas lado a lado, esta cenas bem mais explícitas.
não tivemos muitos contistas de Almeida, que aparece que muitas outras mulheres não explica aquela? E mais: um texto que termina
e tampouco tivemos muitos com dois textos – inclusive poderiam figurar no livro em dizendo que a protagonista
autores interessados na um deles, O caso de Ruth, pé de igualdade com nossos No processo de leitura desses seria infeliz para sempre.
erótica. A sexualidade ganha é bastante trágico. Você melhores escritores, não fossem contos do livro, o que achei Por que encerrar o livro
mais espaço mais tarde, com veria alguma diferença da os absurdos mecanismos de mais curioso foi a forma como com O besouro e a rosa?
o Realismo e o Naturalismo, abordagem dela em relação exclusão de nossa atrasada sua seleção nos guia pelo Por tudo isso que você
quando o conto passa a ser à abordagem do restante sociedade patriarcal. Fora isso, olhar, nos faz ver um erotismo aponta na questão. De um
igualmente mais praticado. dos autores? a boa literatura não tem sexo. antes insuspeito. Você pensou lado, a quebra do paradigma
Acho que esse paralelo nos Esse é um ponto sempre um pouco nisso na hora de romântico que sobreviveu
explica, em parte, porque o delicado. Se já temos tão pouca O ensaio O império da alusão, reunir esses textos, de que durante muito tempo entre
conto erótico tende a ser mais notícia de mulheres fazendo que é usado como prefácio para o livro seria uma conversa nós, obrigando as heroínas a
contido antes do Modernismo. literatura no século XIX, a obra, se detém no exemplo de sua com o leitor? destinos melodramáticos. No
imagine então o que acontece Machado de Assis. E o curioso Todo livro é uma conversa conto de Mário, a infelicidade
Você já fez um projeto de com a literatura erótica! é que a sombra de Machado com o leitor, não é? Gosto aparece sem a grandiloquência
reunir o erotismo na poesia É realmente um dos lugares parece se lançar sobremaneira de pensar assim. Isso me que marca muitos textos do
brasileira, num processo onde se evidencia a eficácia sobre essa seleção. Você faz recordar uma passagem século XIX e “ser infeliz para
que ia dos primórdios da dos mecanismos repressores poderia comentar um pouco encantadora de Stendhal sempre” é apenas um atributo
literatura brasileira até os sobre nossas escritoras. E como! da importância de Machado em De l’ amour, quando ele diz da nossa humana condição. De
dias atuais. Até que ponto esse Sem falar que, no caso do Brasil para esse livro? que só escreve “para aquelas outro, sendo um conto quase
processo de poesia lhe ajudou e da maior parte dos países Machado é Machado... E como pessoas infelizes, amáveis, contemporâneo da Semana
na “colheita” desses contos? sul-americanos, esse quadro há erotismo em seus contos! encantadoras, nem um pouco de 1922, já estamos mesmo
Passei quase 10 anos pouco se altera com a passagem Confesso que, para mim, ter de hipócritas, nem um pouco em “puro modernismo”. Em
realizando a “colheita” para a ao século XX. Em Modernidade fazer escolhas entre eles foi um morais às quais eu gostaria termos de erótica, isso supõe
Antologia da poesia erótica brasileira, periférica, Beatriz Sarlo faz uma dos momentos mais difíceis da de agradar; conheço apenas uma expressiva mudança
que publiquei pela Ateliê análise muito fina do lugar da composição do livro. Os contos uma ou duas delas”. Ora, de patamar. Nunca é demais
Editorial aqui (Brasil), em voz feminina na Argentina machadianos são exemplares a escrita permite fazer amigos lembrar que o movimento
2015, e dois anos depois pela modernista, chegando a em diversos sentidos, e também que não conhecemos, mas modernista reunia duas
Tinta da China, em Portugal. conclusões que valeriam muito no sentido erótico, porque tudo com quem nos identificamos: preocupações fundamentais:
Foi uma longa pesquisa e, bem para o Brasil. Diz ela que é muito velado e, ao mesmo para Stendhal, são as “almas primeiro, a conquista de um
ao longo desse tempo, muito algumas escritoras do período tempo, muito pulsante. Por sensíveis”, as pessoas de novo olhar para o Brasil que
material me caiu às mãos, se veem obrigadas a lançar mão isso, os textos do autor de “sentimentos delicados”, levasse em conta formas
e nem sempre em forma de de imagens e procedimentos Causa secreta muitas vezes nos aquelas “trinta ou quarenta mais “rebaixadas” de cultura;
poemas. A rigor, esses anos tradicionais para “tornar explicam os outros textos do pessoas de Paris que eu segundo, a busca de uma
me foram muito valiosos decente o sensível e o erótico”, volume. Creio que esse diálogo, nunca conhecerei, que amo sintonia com as vanguardas
para conhecer a erótica ou seja, tendo que pagar um ora manifesto, ora latente, é loucamente”. Adoro isso. europeias que, em grande parte,
brasileira de uma forma pedágio por ser mulher... Creio um dos aspectos mais ricos da Acho que estamos sempre se voltavam com particular
plural, inclusive excedendo a que é esse o caso de Júlia Lopes coletânea. Até porque aqui se implicados no livro. No caso interesse para as expressões
literatura, o que me permitiu de Almeida, que comparece está sempre numa rua de mão de uma coletânea, como do erotismo. Não surpreende
um contato intenso também nessa seleta com dois contos dupla. Tome-se, por exemplo, O corpo descoberto, a conversa que o sexo seja abordado com
com a dramaturgia, a pintura, muito bem-acabados, mas a seção do livro intitulada inclui mais gente e o contato maior naturalidade pelos
a gravura e até o cinema sem marcar diferença de seus De viúvas e viúvos: a formosa e se amplia: afinal, nas seletas nossos modernistas. Por fim,
erótico do país. Os contos me colegas masculinos de ofício. circunspecta Conceição de Missa e antologias a gente apresenta eu diria ainda que, ao encerrar
apareceram nesse processo e, Gosto disso. Afinal, por que do galo comparece ali ao lado os amigos de leitura aos este livro com um conto de
a bem da verdade, a “colheita” deveria ela fazer diferença? de outras viúvas cuja disposição amigos leitores, não é? Mário de Andrade, estou
segue seu rumo... A paisagem Só por ser mulher? Como sensual é muito mais evidente, secretamente iniciando outro
sensível sempre nos oferece não acredito em “literatura como é o caso da fogosa O livro termina com um texto que, por sinal, começa com
novos frutos. feminina”, creio que a presença signatária das Notas de uma viúva do Mário de Andrade, já puro um conto de Mário de Andrade!
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

HANA LUZIA

Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br

Escrever como
A TV mostra a reportagem sobre a surfista Maya o que lhe custou horas de trabalho. Uma espécie
Gabeira. Primeiro, o acidente na Praia de Nazaré, em de iniciação para quem um dia terá de enfrentar a
Portugal, quando ela é arremessada por uma “morra”, maior das “morras”, da qual nem mesmo o melhor
onda gigante que lá ultrapassa os 30m. Depois, sua surfista consegue sair de seu “tubo”.

surfar em
volta ao lugar de partida, onde reza numa igrejinha O filme Sociedade dos poetas mortos trata sobre isso.
para começar tudo de novo, fiel às marés que no seu Nele, o ator Robin Williams faz o papel do professor
movimento sugerem a vida em permanente recomeço. que vai ensinar numa escola de meninos ricos. Abre
A matéria faz pensar na relação entre o exercício sua primeira aula recitando Walt Whitman para os

manobras
do surfista deslizando sobre as águas e o do poeta alunos, O Captain! my Captain! our fearful trip is done; / The
equilibrando-se entre palavras. Frases e versos, ship has weather’d every rack, the prize we sought is won.(…).
pranchas sobre as quais a poesia faz acrobacias com
pensamentos e emoções. Do mesmo jeito que o “Capitão, meu capitão! nossa temível
surfista rima sobre o líquido da página. Ao se lançar [viagem finda;
na crista de uma onda, ele é como o poeta contando O navio resistiu toda a tormenta, o prêmio
sílabas, ouvindo dançar a música de versos que [que buscamos foi ganho;

De quando o esporte nos também lhe chegam em vagas. Uma mesma procura
de ritmo, de equilíbrio, recolhimento, concentração.
O porto está próximo, escuto os sinos,
[a multidão aplaude,

ajuda a entender alguns


O surfista, além de conhecer os riscos de seu ofício, Enquanto o olhar segue a quilha firme,
sabe o quanto a arte do instante é ingrata. Quando [a nave sombria e ousada:
uma façanha que se julgava inatingível acontece, Mas ó! coração! coração! coração!
aspectos da criação literária nem sempre é possível de ser registrada. O autor da
proeza é, às vezes, sua única testemunha. É como se
Ó! as gotas sangrentas de vermelho.
Ali, no convés, meu capitão jaz,
alguém, após escrever um texto, perdesse, de repente, Caído, morto e frio.”(...)
DIVULGAÇÃO

NOVIDADES
Wellington Cepe Editora lança livros na Flip 2018
de Melo
A antologia O corpo descoberto: colunista do Pernambuco, e
contos eróticos brasileiros (1852-1922), traz a edição definitiva de quatro
organizada pela pesquisadora romances do autor: Maçã agreste
Eliane Robert Moraes (leia (1989), Somos pedras que se consomem
entrevista na páginas 8 e 9 desta (1995), O amor não tem bons
edição) e a tetralogia Condenados sentimentos (2008) e Tangolomango
à vida, de Raimundo Carrero, (2013), cujo fio condutor é a
serão lançados na Flip deste nefasta família do patriarca
ano. Além deles, será lançado Ernesto Cavalcante do Rego.
MERCADO no evento o Antologia fantástica da
República brasileira, de José Luiz
Nas palavras de Carrero, trata-se
de “uma longa e corrosiva crítica

EDITORIAL Passos (foto), também pela Cepe


Editora. O livro de Carrero conta
social à elite nordestina em
absoluta decadência” (leia mais
com prefácio de José Castello, na página 28).
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
escrita e para a música, para a obra do carpinteiro
ou do pedreiro. Somos iguais em ofícios diversos e I Os originais de livros submetidos à Companhia
há um diapasão invisível medindo timbres, versos, Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
notas de nossa humana sinfonia. Diretoria considera projetos da própria Editora, são
Gustave Flaubert, o romancista francês, é um bom analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
exemplo de surfista das palavras. Sua correspon- partir dos seguintes critérios:
dência é repleta de comentários sobre o ritmo, o
equilíbrio da fala, o andamento das frases. Na casa
dele havia um lugar especial onde lia em voz alta as 1. Contribuição relevante à cultura.
páginas que escrevia. A empregada que lhe atendia
era sua ouvinte preferida. Quando terminava a lei- 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
tura, ele perguntava se tudo parecia de seu agrado. que privilegia:
Se a resposta dela fosse “não”, ele insistia no traba-
lho, recortava palavras, remendava textos, suprimia
parágrafos. Assim construiu Madame Bovary, romance a) A edição de obras inéditas, escritas ou
importante da literatura ocidental. traduzidas em português, com relevância
Em Bouvard e Pécuchet, nomes dos dois persona- cultural nos vários campos do
gens e título da obra que Flaubert nunca terminou, conhecimento, suscetíveis de serem
há uma passagem sobre a maneira como os dois apreciadas pelo leitor e que preencham os
leem em voz alta o trecho de uma peça de Raci-
seguintes requisitos: originalidade,
ne. Bouvard recita bem e Pécuchet tenta imitá-lo.
Mas o resultado é tão medíocre e a voz dele tão adequação da linguagem, coerência
monótona que se perde numa espécie de sussurro. e criatividade;
Então Bouvard explica-lhe como um texto deve
ser interpretado. A leitura, diz, precisa ser iniciada b) A reedição de obras de qualquer gênero da
de um jeito mais suave, evoluir de um tom mais
criação artística ou área do conhecimento
baixo ao mais alto, a voz emitida em duas gamas
diferenciadas, uma crescente, outra decrescente. científico, consideradas fundamentais para o
E Flaubert, ao comentar essa passagem do livro, patrimônio cultural;
confessa que ele próprio fazia esse exercício todos
os dias pela manhã, deitado na cama, ainda de 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
pijama, imitando o que já era aconselhado pelos sem as modificações necessárias à edição e que
antigos gregos.
contemplem a ampliação do universo de leitores,
Muitas vezes o impacto da beleza de uma arte não
depende de seu entendimento. É assim quando ou- visando à democratização do conhecimento.
vimos um texto recitado ou vemos a bela manobra
O poema tem três estrofes, cada uma com dois de um surfista. Há um deleite na observação de um II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
quartetos, e trata da viagem do capitão do navio que, jogo de corpo. Também na escuta de um poema, sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
após vencer a terrível tempestade, consegue alcançar mesmo quando a língua nos é desconhecida. Em
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
o porto. A multidão o aguarda no cais, com flores e alguns lugares, os exercícios que eram feitos por
aplausos, mas ninguém sabe que ele está morto. A Flaubert vêm ganhando espaço. Está na moda a sobre a publicação.
metáfora alude à morte de Abraham Lincoln, o pre- leitura de textos clássicos em grego e latim. Nessas
sidente dos Estados Unidos, assassinado em 1865. sessões são respeitados a cadência dos versos, a III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
O navio é o país do qual foi presidente. O professor melodia e os ritmos, num processo de educação papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
mostra aos jovens fotos de antigos alunos da escola, da dicção e da escuta. Pouco importa se o leitor Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
gente que fazia parte de uma sociedade rica e con- entende esses idiomas ou se sabe o que significa
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
servadora. Todos mortos. É a tentativa pedagógica do um “hexâmetro datílico”. O que importa é assimi-
mestre de despertar os alunos para a importância da lar a beleza, o ritmo e “dar corpo” às línguas que for o caso, índices e bibliografias apresentados
poesia e de curtirem a vida derrubando convenções. fundaram nossas literaturas. conforme as normas técnicas em vigor.
Usufruir a alegria do instante de criação é comum Um colega iraniano certa vez me disse que não
ao escritor e ao surfista. Para o surfista, é a sensação sabia se eu conseguiria entender o que ele iria recitar, IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
de navegar uma crista de onda, dentro de um ritmo, mas queria demonstrar o quanto a sua língua era
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
num diálogo perfeito entre a mente e o corpo, amol- bela. E disse de cor uns versos em persa, sem sequer
dando-se a um compasso. Alinhar com perfeição os mencionar nome de autor. Sua voz veio modulada violência e as diversas formas de preconceito.
movimentos quando executa uma “cavada” ou uma de tal jeito que, mesmo sem entender o poema, fi-
“troca de borda”. Assim também ocorre com quem cou a impressão de que deveria tratar-se de alguma V Os originais devem ser encaminhados à
compõe um texto, as palavras harmonizando-se obra-prima da literatura de seu povo. Voz de uma Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
ao pensamento de quem escreve. Tais movimentos onda ou marola roçando uma quilha. Versos de um seguir, sob registro de correio ou protocolo,
fazem parte de uma ginástica eterna. Valem para a Omar Khayyam ou de Hafiz.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

CASA DOS DESEJOS FEIRAS & FESTAS


Companhia Editora de Pernambuco
Espaço movimenta Paraty As alternativas ajudam, mas não dão conta de tudo Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Raimundo Carrero, Eliane A participação em eventos é fábula dizer que formam CEP 50100-140
Robert Moraes e José Luiz Passos literários é uma alternativa leitores – uma das principais Recife - Pernambuco
participam da série de debates que editoras independentes preocupações no campo literário
coordenada pelo Pernambuco têm utilizado para fazer frente na atualidade. No máximo,
na Casa dos Desejos, espaço ao modelo de vendas tradicional qualificam-nos e estimulam
que promete ser ponto alto da das prateleiras e das gôndolas — novos diálogos (o que não é
programação paralela da festa. muitas bem latifundiadas. pouco), mas a vantagem das
Nele, mais de uma dezena de Há editoras que até promovem feiras e festas é a oportunidade
editoras de todo o país lançarão suas próprias feiras coletivas, de trabalhar um evento
livros e discutirão literatura. como é o exemplo da feira comercial na perspectiva dos
Além da Cepe Editora, integram Miolo(s), tocada pela Lote 42. “microespaços”, que aproxima
a programação da Casa a Patuá, Se o modelo de feiras e eventos leitores de catálogos pouco
PUC-SP, Moinhos, Quase oito, de menor porte parece dar conhecidos e permite fruir
Urutau, entre outras. um novo fôlego ao segmento, produtos editoriais mais ousados.
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

CAPA

Sobre o significado e
as formas de criá-lo
A crítica literária diante dos Há muito a crítica literária deixou de ser a mediadora
por excelência da relação entre o texto e o leitor.
resultantes de redes digitais e processos geográficos
– ou de significação – pós-nacionais. Assim é que as

desafios impostos por novas


Confinada no meio acadêmico e dirigida ao público “disjunções nos vínculos entre espaço, lugar, cidada-
universitário, viu-se substituída pelo jornalismo nia e nacionalidade”, nas palavras de Arjun Appadurai,
cultural que, na grande imprensa e mesmo em su- implicam, no nosso caso, em formas de legitimação
relações de escrita e leitura plementos especializados, criou formas discursivas
apropriadas para a divulgação do livro a uma camada
móveis e sujeitas a um arbítrio generalizado, não mais
dependente da relação entre pares como na academia
mais ampla de leitores, literários ou não. ou do julgamento soberano do crítico de rodapé dos
Wander Melo Miranda Esse deslocamento propiciou a formação de um jornais, como ocorria décadas atrás.
horizonte de expectativa em que modos de dizer e Talvez por isso o texto contemporâneo que se quer
formas de inteligibilidade se acomodaram em ni- literário, no sentido forte – ou excludente – do ter-
chos específicos de recepção, por obra do mercado mo, é autorreferencial, como forma de distinção
editorial, que se viu, então, obrigado a preenchê- ou sobrevivência. Livros recentes de Nuno Ramos e
-los segundo seus próprios interesses. Trata-se de Silviano Santiago, Mario Bellatin e César Aira produ-
um regime de produção e recepção textual, a um só zem interrogações radicais sobre o ato de escrever,
tempo expandido e fragmentado, tendo em vista a tomado como um gesto de despersonalização no qual
heterogeneidade do produto-livro que é oferecido se pluraliza o dom e a obrigação para com o outro,
ao consumidor-leitor, desdobrado em múltiplas numa comunidade de autores, textos e leitores que
posições nesse circuito. se expõem mutuamente: são corpos bioficcionais,
A legitimidade do texto, antes resultado do julga- ou seja, “compartilham suas condições impróprias
mento crítico segundo parâmetros compartilhados e impessoais”, conforme Guilherme Zubaran. São
por uma comunidade específica, passa a depender textos movidos pela descrença no sujeito, na re-
prioritariamente da capacidade de atender à flutu- presentação e na identidade. Por isso também são
ação convergente do gosto, da mídia e do mercado. transposições de fronteiras, rupturas com maneiras
À primeira vista pode parecer que o valor – literário anteriores de ver, sentir e dizer; são uma sorte de
ou artístico – esteja atrelado a uma camisa de força instalação – “espetáculo de realidade”, no dizer de
ou ao beco sem saída de uma imposição mercado- Reinaldo Laddaga, que a escrita performa mais para
lógica, mas a mobilidade incessante desse sistema ser experimentada do que julgada e no qual papéis
torna qualquer avaliação que não leve em conta esses e identidades do autor e do leitor trocam incessan-
dados de certa forma destinada ao fracasso. temente de lugar.
Num espaço assim configurado, a margem de ma-
nobra do escritor é, ao contrário, maior do que antes, VALOR RELACIONAL
pois está aberta ao inespecífico que, de certa maneira, A quem, na verdade, um texto é endereçado? A quem
passa a compor a equação, que só na aparência é deve sua visibilidade ou seu “valor de exposição”?
paradoxal: quanto mais de acordo com o horizonte de Quem é responsável, afinal, por sua potência de
expectativa – em constante transformação –, maior significação? Dois textos muito diferentes – e se-
a liberdade de circulação do texto, agora aberto, além melhantes em alguns aspectos – podem nos apontar
do mais, à sua inscrição nos meios digitais. A salu- caminhos: Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, publi-
ausência de lei ou de regra tar anomia aí vigente desfaz de uma vez por todas cado pela primeira vez em 1961; Rolézim, de Geovani
a posição antes fixa de autoria, instaurando novas Martins, um dos contos de O sol na cabeça, de 2018. Em
possibilidades de criação artística de uma comuni- ambos, a estranheza do título lança desde logo um
dade heterogênea e aleatória de autores e leitores. sinal de alerta ao leitor ansioso por traduzi-los para
Por sua vez, a voga dos estudos culturais nos anos sua língua de uso: num, a palavra em língua tupi,
1990, a partir da querela com os estudos literários vinda do interior do país; no outro, gíria de morro
tradicionais, trouxe para o debate algumas questões carioca, com um inesperado sufixo dialetal mineiro.
que, longe de restringirem os critérios de avaliação, No texto de Guimarães Rosa, Tonho Tigreiro, em sua
trouxeram novos elementos a serem considerados. tapera, conta para um visitante, interlocutor silencioso,
Os qualificativos que então emergiram ou se afirma- sua experiência como caçador de onças. A narrativa
ram para identificar a procedência do texto literário vai num crescendo de expectativa até a transformação
– afrodescendente, indígena, feminino, gay, por final do onceiro em onça e sua morte pelo visitante,
exemplo – relativizam, por assim dizer, sua auto- numa inversão de papeis (caçador/caçado) que, desde
nomia, contribuindo para colocar em xeque a noção o início, mimetiza a situação enunciativa aberta ao
antes bem-definida de objeto literário (moderno). leitor tornado ouvinte do onceiro: “– Hum? Eh-eh... É.
A chamada pós-autonomia da literatura, defendida Nhor sim. Ã-hã, quer entrar, pode entrar...”. A entrada
principalmente por Josefina Ludmer, permitiu avançar do leitor na história se dá pela partilha de uma língua
na questão, mas não a resolveu de todo. Não basta híbrida, na qual sintaxe e termos indígenas parecem
dizer que tudo é literário ou ficcional – modalidade estar ali para repelir/atrair o leitor ou aumentar a carga
de anulação ou relativização máxima do valor estético de mistério que a história encerra.
– para que se possa legitimar coletivos de enunciação Não é o caso aqui de fazer uma análise detalhada
que estão por toda parte nas redes sociais, nos blogs, do conto, já objeto das mais variadas leituras críticas,
sites e comunidades que discutem, de forma não ca- mas destacar a oposição simétrica e invertida de
nônica, livros e textos. A “partilha do sensível” que narrador/visitante e leitor/ouvinte, facultada pela
aí se dá, para usar livremente a expressão de Jacques oralidade ficcionalizada, que perfaz uma situação
Rancière, produz linhas de fratura ou de incorporação/ exemplar de produção e recepção textual comunitária e
desincorporação de sentidos comunitários, nos quais desfaz a separação entre dentro e fora do texto. Como
se afirma muito mais a diferença do que a igualdade numa instalação, somos chamados a participar –
dos envolvidos na atividade de leitura. como o visitante silencioso – mais do que de uma
A transformação do crítico literário em qualquer um na situação narrativa, de uma língua outra, estranha
contemporaneidade se dá em ambientes translocais, ao leitor moderno e que, no entanto, sobrevive em
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fragmentos, em restos que se disseminam pela his- condições estilizadas, objetos e processos dos quais é Diferentes respostas à questão são possíveis. Uma
tória contada, em parte intraduzível para o leitor, seja difícil dizer se são naturais ou artificiais, simulados ou delas, que interessa aqui mais de perto, diz respeito
comum ou erudito. A “desierarquização” da leitura reais”, segundo Reinaldo Laddaga, – são realidadeficção, ao fato de que redes de sociabilidade facultam o
cumpre-se, paradoxalmente, pelo hermetismo da para usar o neologismo criado por Josefina Ludmer. trânsito de informações heterogêneas, formadoras
elaboração textual. Apontam, assim, para uma nova espécie de literatura, de opiniões e de certo gosto, que poderíamos chamar
Não é muito diferente a situação narrativa de Ro- na qual público e privado, autor e personagem, vida e sem nenhum constrangimento de estético.
lézim, no que pese a grande diferença em relação ao obra tornam-se indiscerníveis e indissociáveis. Haveria, pois, uma estética disseminada, em
Iauaretê. O texto dirige-se a um “tu” não identificado Vê-se que a questão do valor continua a ser uma trânsito incessante e em fuga, capaz de constituir
– “Pra tu ter uma ideia, até o vento que vinha do questão relacional, comparativa. Requer o domínio de uma distribuição mais democrática de modos de
ventilador era quente, que nem o bafo do capeta” um repertório de lugares múltiplos e diferenciados de experiências sensíveis, “inovadores de antecipação
– para quem o narrador conta uma ida à praia com enunciação para que se possam constituir parâmetros da comunidade por vir”, uma vez que subvertem
os amigos. Aqui também se exige a partilha de um de avaliação mais condizentes com as entradas que oposições do tipo alto e baixo, erudito e popular,
código linguístico outro e se propõe uma situação se oferecem ao leitor no circuito narrativo, também singular e anônimo. A revolução estética “é antes
enunciativa dialógica, embora o interlocutor per- elas multifacetadas. Se o texto moderno – a leitura de tudo a glória de qualquer um”, segundo Jacques
maneça ausente. Esse lugar vazio – pleno de signi- moderna – supõe o domínio de um código restrito de Rancière, sendo sintomático, em todos os sentidos
ficações – presume a superação da posição excluído/ uma comunidade exclusiva e facilmente identificável da palavra, que o banal tenha se tornado belo como
excludente, pela sua reversão simétrica, na verdade de iniciados, como no Ulysses, de James Joyce, na con- “rastro do verdadeiro”. A realidadeficção é o resultado
o apelo maior do conto. O grande interesse pelo livro temporaneidade as possibilidades de acesso textual de uma nova maneira de contar (inventar) histórias,
de estreia do jovem escritor, com tradução vendida dependem de variáveis capazes de acolher qualquer de rearranjar signos e imagens, de potencializar a
para mais de oito países, pode ter surgido não só pela tipo de leitor. O nome da rosa, de Umberto Eco, grande “nova racionalidade do banal e do obscuro”.
origem periférica do autor, mas pela matéria narrada, sucesso de público e crítica nos anos 1980, acolhia Pode-se chamar essa nova conjuntura de auto-
aparentemente “macumba pra turista”. públicos distintos, que podem ler o livro como nar- ficcional, se levarmos exclusivamente em conta a
A sofisticação e pertinência no uso escrito da ora- rativa policial, romance histórico ou discussão filosó- subjetividade que narra, entendida como instância
lidade desfaz a impressão desfavorável. O narrador fica, de acordo com o campo de interesse e saber de intransferível de enunciação. Melhor seria considerá-
está sempre com pressa, como se vivesse fugin- cada leitor, sem prejuízo para a leitura. A “avaliação” -la bioficcional, por se construir enfatizando o corpo,
do – “larguei o chinelo lá mermo e saí voado” –, o do livro, no caso, depende do reconhecimento de a vida como potência impessoal e diferença, ao revés
que imprime ao texto um ritmo vertiginoso, que diz possibilidades diferentes de legitimação, como se o da base epistemológica constituída pela crença no
muito da urgência de comunicação singular de uma “avaliador” fosse convocado não para demonstrar sua sujeito, na representação e na identidade. Como
vivência violenta e excludente, que a mídia diaria- expertise num campo determinado, mas para abrir-se mostra Bruno Alvarenga Souza, ao ler Machado, de
mente banaliza ao extremo. A língua local do conto a experiência de outra leitura que não a sua. Silviano Santiago, o escritor propõe outra forma de
adquire, assim, legitimidade literária, por efeito de A pergunta que se coloca é de que maneira as vá- fazer biografia, “que se desloca da vivência histórica
superposição à língua geral, deslocada, desconstruída rias comunidades ou coletivos de enunciação atuais, não apenas por ser uma escrita pelo outro e não uma
e disseminada como resto sobrevivente no novo re- formados geralmente por jovens universitários ou escrita do outro, o que se diferencia na medida em que
gistro. Autor e leitor se tornam entidades reversíveis. moradores da periferia das grandes cidades brasileiras, o próprio autor se insere no texto como produtor de
Ao dramatizarem situações narrativas que colocam dispersos por “territórios” muitas vezes inacessíveis si e de Machado (de Assis), como também por utili-
em questão a própria condição de sua existência, os dois um ao outro, não estariam, de fato, reafirmando o zar um aspecto biológico (a epilepsia da qual sofria
textos se pautam pela ambivalência, sendo que o escrito processo de produção e recepção setorizado, como Machado) para recriar uma vida que não se reduz
de Geovani Martins se insere no universo daqueles os nichos editoriais e mercadológicos apontados ini- apenas à obra literária pela qual ficou conhecida.
“empenhados em montar cenas nas quais exibem, em cialmente parecem demonstrar, de outra perspectiva. Silviano mostra Machado como um corpo antes de
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o mostrar como escritor. A pessoalidade do sujeito


histórico é superada em prol da impessoalidade da
vida atravessada pela doença”.
A produção literária na falta e na incompletude” (Guilherme Zubaran).
Nessa circunstância, o leitor crítico, se ainda cabe
o qualificativo, se veria lançado em meio à potência
O que pode um corpo? – pergunta-se em Machado.
Corpos – o do autor, do personagem e do leitor – são
blocos narrativos que se mostram como formas de
da atualidade é de significação incontrolável do texto “comunitário”
e seu desamparo diante das instâncias de legitima-
ção constituídas – a academia, a mídia, o mercado
inscrição dos sentidos da comunidade, “desenhada
tão somente pela circulação aleatória da letra”, in- inesperada, incerta. –, não para reafirmá-las, mas para conduzi-las ao
extremo da sua dissolução. Movimento abusivo

É fruto da circulação
siste Rancière. Uma comunidade letrada é agora não e arriscado, minoritário, posiciona-se numa en-
o reduto de formas a priori legitimadas, mas espaço de cruzilhada que aponta caminhos que não levam
distribuição de vozes enunciativas que se superpõem, a nenhuma parte, a não ser a da transvaloração

aleatória da letra,
se conectam e se atravessam, como se diz de uma nietzschiana de todos os valores.
música que atravessou. O movimento dos corpos Talvez seja essa a razão principal da já referida cons-
comunitários presume, portanto, certo desacordo ou tituição autorreferencial da narrativa contemporânea
assincronia no corpo a corpo com a letra, adiando
para um depois que nunca chega a pacificação dos
sentidos e da leitura numa forma acabada.
não mais ligada a e mesmo dos textos canônicos, se lidos com os olhos
de hoje. Sua inevitável natureza teórica, expressa ou
alusiva, como que singulariza e ao mesmo tempo
Os textos do escritor peruano-mexicano Mario
Bellatin são exemplares nesse sentido. A repetição
serial em que consiste sua obra retoma sempre um
um circuito exclusivo universaliza novos modos de ler, que tornam ana-
crônicas anteriores prescrições de sentido e valor. São
modos de ler inevitavelmente heterogêneos, não custa
mesmo e outro corpo ao qual falta uma e mesma do inusitado da situação que o livro transforma em repetir, que fazem da leitura um conflito permanente
parte – “chave inconfessada e aberta”, nas palavras “intratável beleza”, para empregar a expressão de e insanável – “o conflito romanesco é, em forma de
de Reinaldo Laddaga, não de um sentido oculto, mas Graciliano Ramos usada em outro contexto. intriga uma cópia do conflito da leitura. Ficção só
das condições “biográficas” de produção textual. Esse A encenação da morte ou da sua iminência é aqui existe quando há conflito, quando forças diferentes
espaço em branco de uma ausência que a escrita só emblemática das perspectivas de enunciação do digladiam-se no interior do livro e no processo de
faz retificar funciona, paradoxalmente, como uma comum de que estamos tratando. Traduz a despos- sua circulação pela sociedade”, diz o personagem-
sorte de buraco negro para o qual o leitor é atraído e sessão de si e o compartilhamento de um espaço -narrador de Em liberdade, de Silviano Santiago.
onde se abole toda diferença entre natural e artificial, impróprio, no qual o contato com a diferença sinaliza O corpus textual contemporâneo na sua enorme
biológico e protético. Salão de beleza, talvez seu livro um movimento para fora, uma “potência de desa- capacidade de diferenciação é, portanto, inesperado,
mais conhecido, é uma comunidade espectral de propriação” (Rancière) que o anonimato dos corpos incerto, contingente. Resulta da produção e circula-
corpos deteriorados, à beira da morte, invertendo a anuncia. Essa conjuntura narrativa extrema “não é ção aleatória da letra e de suas diferentes formas de
função originalmente própria ao antigo estabeleci- uma dinâmica de aquisição de alguma propriedade recepção, não mais atreladas a um circuito exclusivo;
mento, transformado ou travestido em Morredouro: recebida e acumulada, mas um ato de doar e de dar carrega marcas ou peculiaridades culturais e políticas
“um espaço usado exclusivamente para morrer em cuja característica de reciprocidade pressupõe a sub- intransferíveis, embora toda forma de identificação
companhia”, diz o narrador que, na juventude, saía tração, a perda e a transferência. Assim, os sujeitos não escape de todo à performance, à metamorfose ou
“à noite vestido de mulher”. A identificação do leitor são unidos pelo dever de compartilhar o dom para ao travestimento. Constitui, afinal, um espaço de so-
com a matéria narrada, sua inclusão nela mediante com o outro de maneira que esse compartilhamento brevivência do que Georges Didi-Huberman chama
a união entre saber e sofrimento, se dá por um ato do dom se configura não como a adição de objetos, de “saber-vagalume”, razão principal da existência
ambivalente de solidariedade e estranhamento diante mas como uma modalidade de convivência baseada da literatura em tempos sombrios como o nosso.
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CAPA

Quando a alta- É fútil o que aparentemente não tem, não terá consequência.
Mas, para mim, sujeito amoroso, tudo o que é novo, tudo o que
desarranja, é recebido, não sob a forma de um fato, mas sob a

costura pode
forma de um signo que é preciso interpretar.
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso1

Por ocasião das comemorações do centenário de


Roland Barthes, em 2015, a marca francesa Hermès

levar à leitura
lançou o lenço “Roland Barthes – Fragmentos de
um discurso amoroso”, ornamentado por pequenos
quadros e remetendo tanto à ideia de texto como de
fragmento. Ao lado de outras homenagens feitas à

Uma breve discussão sobre data, como seminários, publicação de livros, edi-
ção de textos inéditos, o crítico foi lembrado como
expressão significativa do reino da moda, por meio
a crítica e formas massivas do livro mais acessível ao público não acadêmico.
A inscrição do título e de seu autor no objeto a ser

de acessar textos literários comerciável e exposto como mercadoria burguesa


permite associações as mais variadas, notadamente
quanto ao lugar da literatura e da crítica na sociedade
de consumo e no espaço acadêmico. Como entender
Eneida Maria de Souza a relação da crítica com a escolha de um objeto,
feito de seda, tecido igualmente nobre e deslizante
e que se destina a compor elegantemente o corpo de
quem o veste? Como não remeter ao termo tecido,
no sentido barthesiano de texto, conjunção mais do
que óbvia entre a peculiar escrita do autor, marcada
pelo cuidado e zelo com a linguagem, e o objeto? O
texto Fragmentos de um discurso amoroso transforma-se,
literal e metaforicamente, em lenço a ser manuseado
e exposto pelos mais distintos usuários e relido sob
a forma de outro meio de comunicação.
Representante da crítica semiológica e do estu-
do da cultura em todas as suas formas, como arte,
literatura, cinema, fotografia, design, moda, Barthes
introduziu uma série de conceitos que permanecem
até hoje nos anais da crítica, como o da morte do
autor, texto legível e o escrevível, prazer do texto, o
biografema. A homenagem confirma a generosidade
do escritor para as demais manifestações que não
se circunscrevem à autonomia da literatura, uma
forma de alertar para o aspecto impuro e múltiplo
da maioria dos discursos. O diálogo interdiscursivo
e cultural convida os representantes contemporâ-
neos da crítica a romper os limites disciplinares e a comunicação. Estética não designaria a ciência ou a
se lançarem no espaço heterogêneo das produções disciplina que se ocupa da arte, ainda com Rancière,
artísticas e midiáticas. Há muito essas barreiras já mas “um modo de pensamento que se desenvolve
começaram a se diluir, comprometendo a defesa da sobre as coisas da arte e que procura dizer em que
homogeneidade dos discursos e se opondo à crítica elas consistem enquanto coisas do pensamento”3. A
voltada apenas para a elucidação dos procedimentos prática da vanguarda, iniciada no início do século XX,
literários, esquecendo-se de compreendê-la como já acenava para a supressão da arte como atividade
integrante de uma visão cultural capaz de atingir separada, devolvendo-a à própria experiência, à
outros aparatos e desdobramentos. vida que elabora seu sentido. Como “modo de pen-
Embora o exemplo da homenagem a Barthes pela samento”, a prática estética tem a liberdade de atuar
Casa Hermès possa traduzir a distância entre culturas nos mais diversos discursos, sejam eles considerados
e meios de se chegar à alta-costura/cultura, como “nobres” ou “marginais”, o que permite a fruição
indicador da “fina” crítica francesa e da diferença e a produção mais democrática das manifestações
em relação ao exercício da crítica nos países peri- literárias e midiáticas.
féricos, consegue-se criar o paralelo entre as duas A escolha do lenço barthesiano como objeto teó-
situações. É inegável admitir a dimensão da contri- rico para a construção de uma das faces da estética
buição do pensamento francês para a formação de vinculada à literatura e à moda confere legitimidade
várias gerações de críticos latino-americanos, sem à esperada ruptura da crítica literária com o espaço
mencionar a permanência do discurso filosófico na fechado de recepção pelos leitores, por dirigir-se ao
constituição do imaginário teórico entre nós. Se os ambiente público do consumo. Como peça fetiche,
conceitos transitam em várias áreas e se completam voltada para um número talvez reduzido de usuários,
na abordagem heteróclita do texto literário, não há a compra do Fragmentos de um discurso amoroso traduziria
como escapar da existência da abertura disciplinar o desejo de se apoderar, mesmo que parcialmente,
e da relativização dos empréstimos retirados aqui e do objeto amado, pela desejável junção entre sujeito
ali de outras áreas. e objeto. O fetichismo do mercado é responsável pela
Nesse sentido, Barthes transita de modo des- sensação ilusória de posse do produto, à medida que
contraído tanto na compra pelos usuários do lenço a compra do lenço significaria a conquista de um
Hermès quanto na adaptação tupiniquim de seus bem cultural (leio Barthes por meio do tecido de seda
aportes teóricos. O que entra em pauta é a distinta que envolve meu corpo, posso ter uma experiência
e desejável fruição do objeto estético, entendido sensível com a crítica e não mais encará-la como
na sua peculiaridade e diferença quanto às antigas afastada do cotidiano e da recepção individual de
e hierárquicas concepções do termo, confundido cada um). Não seria esta uma das saídas também
com a alta-costura/cultura. Jacques Rancière já nos esperadas para que se entenda a possibilidade de
alertava sobre as políticas da escrita e a partilha do ser a literatura usufruída de outras maneiras, por
sensível, entendendo ser o regime estético das ar- comunidades distintas, sem que se privilegie esta
tes o ruído no sistema da representação, à medida ou aquela interpretação? Embora pareça temerária a
que “uma época e uma sociedade possam ser lidas alguns a aceitação do papel da mídia e do consumo
nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo como mediadores da aproximação do público leigo
qualquer (Balzac)”2. com a crítica, seria ainda desejável incentivar o diálogo
A democratização e ampliação do conceito de entre núcleos heterogêneos de leitores, a fim de obter,
estético contribuem igualmente para o abalo de por essa razão, respostas que não sejam unívocas.
parâmetros relativos às diferentes concepções de A associação mais próxima da tradução do livro de
gosto e fruição, entendendo ser impossível restringir Barthes em adorno corporal reside na atitude trans-
a noção a discursos desvinculados de forte ten- formadora de sua linguagem crítica como inserção
dência laboral, inseridos na exclusividade de sua do sujeito no gesto enunciativo, fruto da reunião da
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experiência pessoal com a teórica. Defensor da es-


crita que se inscreve sob a marca do corpo, do toque
sensível na página em branco, pela contaminação
Hoje, a literatura e captação dos intervalos do saber, na aceitação do
ritmo intermitente entre a luz e a escuridão.
Os saberes contemporâneos se produzem por meio
entre sujeito e objeto, o crítico francês abriu portas
tanto para exageros interpretativos cometidos pelos
seguidores, como ampliou a dimensão rarefeita dos
a crítica perdem a da relação contraditória entre o traço pessoal/im-
pessoal do já feito, do já dito, do ready-made – objeto
consagrado tanto pela vanguarda quanto pela prática
estudos literários. A crítica contemporânea, guardadas
as distintas tendências, reveste-se do estatuto ambi- hegemonia e viram experimental da bricolagem e da singularidade da
assinatura do sujeito no reencontro do novo e da in-

práticas culturais
valente de uma linguagem entre ensaio e ficção, teoria venção. A relação estreita que aqui se propõe entre arte
e autobiografia, narrativa e documento. Diante da pre- e ciência pauta-se pela utilização do procedimento de
cariedade dos meios e dos suportes comunicativos, a apropriação de materiais consagrados ou rejeitados

compatíveis com
literatura, o livro e a crítica perdem a antiga hegemonia pela tradição, com vistas a redimensioná-los. O olhar
e se transformam em práticas culturais, compatíveis singular do sujeito diante da proliferação de resíduos e
com outros textos e despidos de autonomia. traços culturais existentes constitui a marca da diferen-
A presença autoral, antes marcada pelo domínio
da escrita e sua propriedade, cede lugar à enunciação
coletiva, à mistura dos gêneros e à dicção narrativa
outros textos e sem ça e do trabalho de interação com o já dito. O silêncio,
o não saber, assim como a fugacidade e a precariedade
dos valores e dos objetos de análise tornam-se matéria
da crítica. A separação heterodoxa entre ensaio e
ficção é substituída pela concepção de uma lingua-
gem que desconfia da natureza científica do texto
autonomia digna de ser expressa, seja por meio da retomada do
direito à repetição do impensável, seja como resistência
ao lugar-comum. Construir, pela bricolagem de ma-
crítico, atribuindo-lhe maleabilidade no trato com mente fraca –, agimos, na prática, de forma ambígua, teriais em processo de rearranjo, novos objetos, reside
os temas, sem colocá-los em situação exclusiva. optando pelo brilho e a excelência. A reflexão sobre os no deslocamento contínuo dos lugares fixos, na prática
Os leitores atuais se interessam pela gama variada impasses sofridos pelas mudanças ocorridas nos últi- do diálogo metafórico criado pela arte da imaginação.
de manifestações artísticas ou não, por fragmentos mos anos no meio acadêmico torna-se também obri- Gesto ambíguo de afastamento e de afirmação de si,
textuais pertencentes a outras disciplinas, causan- gatória para a retomada da categoria da sobrevivência de participação da experiência do outro.
do a percepção fraturada e serial do pensamento. do intelectual, muitas vezes imerso no pessimismo e A retomada da imagem do lenço barthesiano, no
A literatura e a estética tornam-se independentes sujeito às oscilações das ações afirmativas. início do século XXI, como ícone da proliferação do
dos suportes tradicionais e se integram ao circuito Se a tecnologia franqueou horizontes e transfor- discurso crítico no interior da mídia e do consumo,
aleatório das forças expressivas da atualidade, como mou os saberes em jogos e arranjos à disposição de representa não só a apropriação do valor conferido a
as intervenções midiáticas das redes sociais. todos os que frequentam a academia, não será apenas outros campos como alerta ao espírito conservador,
Para se discutir hoje as dinâmicas das humanidades por esta via que a universidade terá firmado, nos dias na luta pela autonomia da literatura e da impessoali-
no Brasil, nada mais estimulante do que pensar de atuais, seu perfil. Impossível negar a necessidade dade da crítica. Os temas literários ganham espaço e
forma positiva quanto aos destinos da criação e da de engenho e arte na pesquisa, o lance pessoal na se instalam de modo atuante o na recepção de novos
imaginação nas artes, na crítica e nas ciências, com construção de saberes. Na crítica literária, campo leitores, admitindo-se a abertura discursiva para os
o objetivo de acreditar na flexibilidade e na ausência de minha atuação, são vários os caminhos para se demais registros do saber, sejam eles aceitos ou não
de barreiras entre as subjetividades e o espírito de conseguir impor a pesquisa, sem que o apelo à no- pela tradição acadêmica.
pesquisa. Não seguimos mais a cartilha da univer- vidade esbarre no lugar-comum, na repetição do já
sidade moderna, pautada pela rigidez dos campos dito e do consagrado. O que é indispensável, nesta 1. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoro-
disciplinares e subjugada pelo horizonte estreito da empresa, é a restauração e singularização do novo, so. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo:
especialização e da exclusão. Adeptos, na teoria, da sem correr risco de continuar reproduzindo conhe- Martins Fontes, 2003, p.76. (Coleção Roland Barthes)
abertura transdisciplinar e da aceitação do outro como cimentos. Uma vez mais, a técnica da bricolagem 2. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética
parte integrante do processo civilizatório – quando deverá atuar como traço capaz de dar sobrevida aos e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo;
a universidade passa a aceitar no seu corpo discente objetos esquecidos pela crítica e rever tradições. O EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p. 47.
representantes das minorias sociais, pessoas cuja processo ambivalente de lembrar e esquecer modelos 3. RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. Tradução
experiência poderia ser considerada preconceituosa- impostos pelo pensamento hegemônico resulta na de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 11.
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RESENHA

Um mergulho Palmeiras (1925), de Tarsila do Amaral, ilustra a


capa da 3ª edição de Água funda (1946), de Ruth
Guimarães, lançada pela Editora 34 na Academia

na ficção de
Paulista de Letras, em 14 de junho de 2018 – um
dia depois da data de aniversário da autora, que
faria, se estivesse viva, 98 anos.
A arte de Tarsila na capa do livro inscreve o
romance na cartografia modernista da qual Ruth

fluxo contínuo
Guimarães foi parte, situando a obra no tempo e no
território cultural e estético na qual ela foi criada
e primeiramente recebida.
Palmeiras, enquanto signo, reescreve um texto dos
mais reproduzidos na configuração/produção do
Água funda e sua autora, nacional – eterno retorno da canção do exílio. De
lá da Europa, em carta escrita durante seu período

Ruth Guimarães: dois mar- de formação em Paris, Tarsila do Amaral fala a


respeito das negociações com o nacional, diante,

cos da literatura brasileira


inclusive, das solicitações europeias por identidade:
Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora
de minha terra. Como agradeço por ter passado na fazenda
a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão
Fernanda Miranda se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a cai-
pirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato,
como no último quadro que estou pintando. Não pensem
que essa tendência é malvista aqui. Pelo contrário. O que se
quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio
país. Assim se explicam os sucessos dos bailados russos, das
gravuraras japonesas e da música negra. Paris está farta de
arte parisiense.1
Como Tarsila, de Capivari (SP), Ruth Guimarães
também viveu numa fazenda no interior paulista-
no. Mas, diferentemente da pintora, nunca saiu do
Brasil – viveu 93 anos e morreu no mesmo lugar
em que nasceu. O território moldou largamente
seu universo autoral: experimentou e pesquisou
o mundo caipira, tomando-o por conteúdo e dic-
ção na ficção. Em carta que escreveu a Mário de
Andrade, seu grande mestre, ela diz: Acabei tirando
da gaveta os originais de um romance, em que, ah! você ia
se admirar, tenho a certeza, eu escrevia do jeitinho que você
recomendava: fácil, sincera, descuidada, prosa brasileira
sem nada dentro, mas com aquela filosofia que somente se
encontra na linguagem do povo. E tudo isso não por mérito
meu, mas porque, modéstia à parte, eu sou caipira mesmo, e
era, então, uma caipirinha sem nenhum polimento.
Comparando os trechos das epístolas, vê-se que
o lócus de enunciação e a linguagem que Ruth
Guimarães inscreve na ficção corresponde ao con-
teúdo nacional vivo que a pintora modernista bus-
cava como formalização estética e representação
artística. Esse é o ponto tangente entre as duas
criadoras. O mais é distância. A romancista negra
tem sido mantida à margem do cânone nacional. Jamil Almansur Haddad; Leão Machado, recém-
Por isso, celebremos a reedição do livro, que o -vindo do interior com vários romances na gaveta;
coloca novamente em circulação. Maurício de Moraes; Hildebrando de Lima; o repórter
Maurício Loureiro Gama; o escritor Mário Donato;
*** Orígenes Lessa; João de Araújo Nabuco; Edmundo
Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, Rossi; a romancista Ruth Guimarães, às voltas com
em 1920. Aos 18 anos, mudou-se para a cidade seu estudo folclórico sobre o Diabo; Oswald de An-
de São Paulo, depois de ter perdido a mãe. Seus drade, que queria fundar a Academia Baruel  e fazer dela
primeiros tempos na “terra da garoa” foram di- uma espécie de Goncourt bandeirante que ofuscasse
fíceis, solitários: a Academia Paulista de Letras; e mais Paulo César
Eu não conhecia ninguém, a não ser dos livros, lidos no da Silva, Nelson Palma Travassos, James Amado,
silêncio da noite, no meu quartinho de dois passos de largura, Nelson Werneck Sodré, Sérgio Milliet e Mário de
sublocado nos fundos de uma casa de família. Lia, depois Andrade, que aparecia raramente, mas mandava
de um dia inteiro batendo listas de cobrança e calculando cartas ao Amadeu Bueno, o mais velho da roda.
colunas de algarismos nos borderôs de bancos. Sozinha, nem Compareciam também, entre tanta gente que fre-
parentes nem amigos, e pobre de doer, de dinheiro e de tudo quentava a farmácia, cada grupo com seu inflexível
o mais (nessa grande São Paulo). Ao mesmo tempo, rica de horário, algumas veneráveis figuras que os jovens
certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu? irreverentemente alcunhavam os “canastrões do
sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como Instituto Histórico (e Geográfico Brasileiro)”.3
uma grande aventura.2 Uma escritora negra jovem, que chega na roda
Já era escritora e sabia o que queria. Assim que da intelectualidade paulista, literalmente no centro
chega à Pauliceia, se dirige, com seus textos e sua do território – citadino e intelectual – dominado
voz, à célebre casa da Rua Lopes Chaves, na Barra pela elite de homens majoritariamente brancos, e
Funda, e bate à porta do escritor Mário de Andrade, se estabelece. Amadeu de Queiroz, que encami-
empunhando debaixo do braço um caderno com nhou os originais do romance para o editor Edgar
manuscritos de sua pesquisa sobre a presença do Cavalheiro (representante da livraria O Globo, de
Demônio na cultura do Vale do Paraíba. Porto Alegre, que publicou Água funda), registrou
Mário encaminhou Ruth à Roda da Baruel, um sua primeira leitura dos manuscritos do romance
ponto de encontro de escritores e artistas nos ar- nestes termos: “Não encontrei nele o que censurar, supri-
redores da Rua Direita, no centro da cidade, mais mir, acrescentar – a escritora havia escrito um romance, e
precisamente na Drogaria Baruel. Lá se reuniu a dizendo isto tenho dito tudo. (...) Não descobri nem emendei,
intelectualidade paulista de 1935 a 1945. Nas palavras não corrigi nem apadrinhei a escritora Ruth Guimarães,
de Mário da Silva Brito, um de seus membros, pela encontrei-a moça de vinte anos e já romancista”.
Roda da Baruel passavam – uns com regularida- Mário de Andrade morreu em 1945, sem ter visto
de  diária, outros de quando em quando – Edgar o romance publicado. Foi definitivamente o grande
Cavalheiro, escritor, jornalista e editor; o romancista mestre da escritora, como ela disse-lhe em carta:
Antonio Constantino; o jornalista Fernando Góes; Havia aprendido com você duas verdades: uma, que só tem direito
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ACERVO RUTH GUIMARÃES / DIVULGAÇÃO

Ruth Guimarães
(centro) em 1956,
no lançamento
de Corpo de baile,
de Guimarães
Rosa (à direita)

de errar quem sabe o certo. A outra é que o certo eu mesma é que


deveria encontrar. E eu procurei, padrinho Mário. Eu procurei.4
Água funda foi publicado em 1946, e Ruth Guima-
Água funda é de a própria Mãe de Ouro, figura mítica impassível e
irremediável, que funciona na economia do enredo
como uma representação do Destino.
rães tornou-se a primeira escritora negra brasi-
leira a ter projeção nacional. Alguns anos depois,
ela se forma pela Faculdade de Filosofia da USP,
1946 e pesquisas Em termos da autoria de mulheres negras na lite-
ratura brasileira, Água funda ocupa lugar histórico de
relevo, pois, segundo o que as pesquisas apontam, é
onde cursou Letras Clássicas e também cursos de
Folclore e Estética. Chamava Roger Bastide, seu apontam ser a o primeiro romance publicado por uma autora negra
depois do término do período de cativeiro no Brasil,

primeira obra
orientador, de Bastidinho. em 1888. Quando foi lançado, a liberdade no país só
Passou a vida escrevendo. Publicou dezenas de existia formalmente há 58 anos. Até onde sabemos,
obras, entre ficção, não ficção, e tradução (do fran- Ruth Guimarães é a segunda romancista negra da

escrita por uma


cês, do russo, do latim). Durante muitos anos foi literatura brasileira. Água funda aparece quase um
colunista nos grandes jornais da imprensa paulista, século após o surgimento do romance Úrsula (1859),
como Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo, publicando de Maria Firmina dos Reis, nossa grande pioneira.
crônicas. Água funda é seu único romance. Em junho
de 2008, aos 88 anos, foi empossada na Academia
Paulista de Letras. A primeira – e ainda a única –
autora negra depois O romance da escritora paulista, articulando águas
profundas do Brasil libertado, trata, sobretudo, de
processos históricos continuados, muitas vezes
escritora negra imortal da APL.
A segunda edição de seu romance foi publicada
meio século depois da primeira, pela Editora Nova
da Abolição semelhantes a águas paradas.
O engenho é do tempo da escravatura. Seu Pedro Gomes,
o morador mais antigo do lugar, ainda se lembra quando o
Fronteira, em 2003. Essa edição foi revista pela grande chance de o narrador do romance ativar paiol, perto da casa-grande, era senzala. Antes disso, era
autora e prefaciada por Antonio Candido, que sua memória afetiva de volta à roda para ouvir só um rancho de tropa, na baixada, e mato virgem subindo
também escrevera um comentário crítico à altura sua/seu mais velha/o. Água funda é um roman- morro. A casa-grande pode-se dizer que é de ontem. Tem
que o romance surgiu, em 1946. Tanto o prefácio ce narrado em terceira pessoa, por um narrador pouco mais de cem anos e ainda dura outros cem. (Água
quanto o comentário do crítico estão republica- onisciente que tudo vê, tudo sabe e tudo lembra. funda, 2018, p. 18).
dos na nova publicação da Editora 34, que traz Uma voz com feitio de contadora de casos, que
um apêndice com entrevista com a autora e um a todo tempo lança um “ouvi dizer”, “o povo é 1. Aracy Amaral. Tarsila, sua obra e seu tempo. Editora
apanhado de sua fortuna crítica. quem diz”, ou ainda: “Homem! Como não faço fé 34/EDUSP: São Paulo, [1975] 2003, p. 78.)
em gente sem boca!” 2. Ruth Guimarães. Cartas a Mario de Andrade. Ângulo,
ÁGUA FUNDA A estória se passa no sul de Minas Gerais, nos n. 137, 2015. Disponível em: < http://www.unifatea.edu.
A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. arredores da fazenda Olhos D’água, entre o fim br/seer/index.php/angulo/article/viewArticle/1345).
A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando do período escravocrata e as primeiras décadas A citação está na página 52.
alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso do século XX. O enredo destaca a história do casal 3. Mário da Silva Brito. Diário intemporal. Rio de Ja-
também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo Joca e Curiango, permeada pela presença de figuras neiro: Civilização brasileira, 1970.
no mesmo outra vez (Água funda, 2018, p. 53). como o Inácio Bugre, um índio independente da 4. Cartas de Ruth Guimarães a Mario de Andrade,
Se a leitora ou leitor for, ou já tiver sido, neta/o comunidade, e a Sinhá, que atravessa os tempos do disponíveis no link da nota 2 deste texto. A citação em
de uma avó ou um avô contador/a de histórias, há romance. A protagonista da história, no entanto, é questão está na página 51.
20
PERNAMBUCO, JULHO 2018

RESENHA

Encanta com Chapei no livro de Lesley Nneka Arimah. De 12 con-


tos, pelo menos oito são obras primas. Tu bambeia,
se espanta e arde as narinas. Escritora minuciosa do

detalhes e afia
desespero, contempla ziquiziras e reviravoltas do
Tempo. Faz rir, morder o lábio e xingar sussurrado
quem tu passou a amar em poucos parágrafos. A
criatividade da autora dá xeque-mate e vibra mes-
mo é no domínio do trivial, do que é improvável

com enredos
mas lógico, quando empunha sua lupa diante do
corriqueiro que adentra suas estórias insólitas ou de
ficção científica. Ah... como Arimah passa longe do
maniqueísmo. Provavelmente, aqui seria intragável
a uma determinada patrulha ideológica ou, propa-
As forças de O que acontece gada com a foto muito citada e nem lida, já colocada
na vitrine dos slogans, mesmo que isso a desagrade,

quando um homem cai do como denota em suas entrevistas quando se apresenta


contrária ao didatismo que parecem esperar de sua

céu, de Lesley N. Arimah


obra, alérgica aos enredos previsíveis. É muito capaz
que no Brasil a enganchem na gaveta das demandas
e cartazes rasos que sempre destinam às artistas afri-
canas e afro-brasileiras, seja a da palidez racista ou a
Allan da Rosa de quem repete chavões compreensíveis, mas óbvios
e insuficientes nas lutas contra a morte simbólica e
social que acomete nossa estética política.
Uma esgarçada noção de representatividade, su-
perficial e estrita apenas ao que seja presença ilustra-
tiva pra compor foto na coluninha, cadeira no salão
ou um canto de câmera não a contempla porque a
grandeza de sua obra é a linguagem, a representação,
a inventividade, a sagacidade e a exatidão da poesia
afiada dos detalhes. A enxada varando e futucando a
humanidade de suas personagens maliciosas, inve-
josas, truqueiras, impiedosas ou hesitantes diante de
miúdas e acachapantes injustiças e prazeres. Lesley,
sua obra e nome não sejam estofo para um minuto no
show ininterrupto dos graúdos que faz tempo já sabem
assimilar a cobrança de “diversidade” e “representa-
tividade”, anunciando um ou dois peões novos, mas
mantendo o mesmíssimo tabuleiro, regras e jeitos de
jogar. Também certamente será grampeada na sanha
de exotismo que o circuito editorial dos iluminados
letrados daqui não consegue largar, porque o carra-
pato da ignorância sobre o que seja negro e não se
congela em folclórico ou tribal ainda estoura, mas não Várias histórias traçam os conflitos rasgados entre
desgarra. O que pouco sabem e tanto querem limitar mães e filhas, às vezes borbulhando sob uma manta
é que conheçamos uma letra dessas eletrizante e tam- hipócrita de mansidão. O que acontece quando um homem
bém serena, de inteligência e sensibilidade siderais, cai do céu é um livro lambuzado de crueldade e de
firmada num cosmopolitismo e nas frestas urbanas desentendimento de senhoras que botam suas ado-
que conhece os passos e angústias de migrantes que lescentes ou pequenotas pra correr, voar ou tomar
trocam suor, tédio ou solidão por dólares nos EUA literais tombos violentos se vislumbrarem aí uma
ou na Europa. negociata, um processo. Mães já enterradas que retor-
Lesley Arimah é da estirpe de Machado de Assis, nam à penteadeira pra remexer o quarto e espezinhar
de Chester Himes e Ahmadou Kourouma pela ironia mais as meninas que ainda lambem rancores. Mães
que sopra acendendo e deslindando o patético das que aprimoram a decepção e o escárnio como a ponte
vaidades. Ou pela às vezes inusitada sátira até quando entre elas e suas jovens. Porém, há raras e estupendas
mira os abismos e o desespero de quem só tem a que- personagens em seu livro que, além de lidar sozinhas
da como movimento e a resignação para respirar, já com o peso da culpa e da subsistência da família, nu-
quase asfixiada. Recorda Toni Morrison por mesclar trem afeto por suas crias, às vezes habitando de favor
ao seu estilete a profundidade de uma escavadeira fina no redemoinho da humilhação que vem de irmãs ou
subindo com lanhos e coágulos da complexidade cati- cunhados. Acolhidas entre ferros e lâminas, colocadas
vante e às vezes asquerosa da intimidade do ser gente, em sinucas de bico, persistem contra a fragmentação
mas mantendo o primor da mestra estadunidense em familiar até onde conseguem, vitaminadas pelo mel
demonstrar as garras e redemoinhos das estruturas. do amor infantil que pode se tornar repentinamente
Ou seja, critica os alicerces do sistema com argúcia, um adeus e um resto de tempo seco, vencido.
mas não passa pano pros gestos e responsas de suas As coadjuvantes das histórias são escabrosas.
personagens. Não tutela nem escarra, mas em frases Pulsam sutis e delineiam sustos, impelem atos
lapidares que seriam cristais de poemas clássicos lastimáveis das protagonistas ou arrombam rumos
distribuídos em seus parágrafos, deixa nítido como retos dos contos enquanto sussurram, traquinam
os contextos estão arrumados pelos dentes pontudos ou apresentam espaços que já percorreram com
e unhas de sempre na família, na escola, na aldeia, façanhas ou vergonhas. Às vezes aparecem no
no estado e no mercado. Assim, sem cartilha nem futuro, nas suposições oniscientes de Lesley Ari-
moralismo sopra sua empatia aos dramas das mais mah, que sabe trançar épocas pra entendermos
fracas chicoteadas pelos pilares da cidade ou esta- cada uma delas. Suas coadjuvantes são a mode-
peadas pela arrogância de quem tem costas quentes, lagem da argila que quebra na mão de quem quer
mesmo que apenas no próprio barraco. chegar mais perto. Nas passagens contadas ou
Ainda no campo das grandes referências, fluir na levadas por elas às protagonistas, a autora rege seu
obra de Arimah lembra a altura das ideias e do faro talento imenso em pincelar com frieza detalhes
de Célestin Monga, que detalha filosoficamente em febris ocultos sob a melancolia e a rotina. Homem,
Niilismo e negritude relações pragmáticas que guiam escasso no livro, é pastor abusador sexual, é ve-
quem ainda pode rastejar ou quem domina a lei, terano de guerra distribuindo histórias e ternuras
mesmo que nos pequeninos latifúndios traçados no soturnas, é o riquinho mimado que assassina ou é
cotidiano de casa, da feira, das festas, da escola ou dos pai pra comover. Assim ocorre no conto Luz, que
escritórios africanos. Com coloridas réstias de alegria a escritora já inicia nos apresentando a lástima
em pleno pesar cotidiano, com as tramas por legados do fim da história, quando o pai “murchará como
de potência, capta-se no que as íris e as linhas de uma planta sedenta” após toda sua luta e graça
Lesley Arimah filtram um princípio de Axé e também solitária por passagens deliciosas, estabanadas ou
de Carpe Diem. Um pelo cultivo persistente do princípio habilidosas e tido como impotente para manter sua
da Força Vital, outro pelo hedonismo nas beiradinhas filha consigo diante das pressões de quem o julga
que mal acolhem quem pode desacreditar do amanhã. despreparado para a função: “Quando Enebeli
21
PERNAMBUCO, JULHO 2018

DIVULGAÇÃO

Britânica de origem
nigeriana, Lesley
Arimah estreou
com O que acontece
quando um homem
cai do céu

Okwara soltou a filha no mundo, ele não sabia o


que o mundo fazia com as meninas. Ele não sabia
quão rápido o orvalho dela evaporaria, como ela
Assim como Toni dos enquanto seu algoz, nomeada Mama (?!) lhe cobra
com sentenças tão improváveis, diretas e perfeitas
quanto algumas falas infantis: “Então me pague com a
retornaria oca, sem as suas melhores partes”.
Em Acidente, outra história formidável, calmamente
eletrizante, pinta um final magnífico sobre as estripu-
Morrison, Lesley sua alegria, menina” ou “Será que eu posso pegar um
pouco de sua felicidade?”. E que golaço Lesley Arimah
compor uma jovem que é mártir, que é sanguessugada
lias do destino, após conhecermos mãe e filha numa
inesquecível relação de subsistência orquestrada Arimah mostra até a medula, mas que constrange prazerosamente ou
estapeia quem parecer mais frágil. Que é nitidamente

as garras das
em supermercados: “Você aprendeu a cair por uma interesseira ao expor o desejo de ser mãe de uma
questão de autopreservação, já que sua mãe empur- prenda cara porque só assim seria muito confortada
rava muito forte, derrubava de muito alto. Vocês se no futuro, o que implica apostar certo no material da

estruturas sociais e
sustentam dessas quedas há anos, às vezes ela caía, criança a quem também irá cobrar forte:
mas, na maior parte das vezes, era você (…). Cair é uma “Havia motivos para Ogechi levantar o lenço e não
ciência. Não se pode tropeçar no próprio pé, cair com deixar Mama ver a criança. Primeiro, ele seria feito
a cara no chão, e esperar uma recompensa. Primeiro,
encontre (ou crie) algum tipo de poça. Fure o filme
plástico de um ou dois pacotes de frango congelado
a complexidade do com itens encontrados na loja de Mama e, mesmo que
eles fossem lixo, Mama os adicionaria ao seu registro
de débitos. Em segundo lugar, todo mundo sabia
e, discretamente, deixe os fluidos se acumularem no
chão. Quando a queda iniciar, pense nela como uma
dança (...) para melhorar o efeito, faça uma criança
que é ser humano como era arriscado fazer uma criança com cabelos,
impregnada com a identidade da pessoa de quem
tinham caído. Mas uma criança feita dos cabelos de
chorar junto ou, melhor ainda, solte-a durante a a uma gravura básica dentro dum sistema de com- várias pessoas? Era proibido”.
queda, deixe-a escorregar do seu quadril. O bônus preensão histórica que não cabe nos modelos de ra- Lesley Arimah abre o ser humano como uma ce-
é que os machucados dela vão ser verdadeiros (…). cionalidade ocidental e colonialista. Lidando com a bola. Despetala, corta, pica e não perdemos seu ar-
Você prefere acreditar que aquela primeira queda, a ficção científica, mesmo não sendo isso o principal dor. Conta histórias com excelência e seus enredos
que deixou uma órtese permanente em seu tornozelo, e mais atrativo em sua obra, a autora cria ambientes magnetizam quem ouve, como tirei a prova lendo
foi real. Que ela estava tentando alcançar a maior e e épocas bizarras para nos pinicar com arestas e la- em aulas pra turma e em casa pro meu guri. Mas
mais bonita berinjela da prateleira, mas tropeçou e, baredas finas, quase imperceptíveis, de tão comuns. como ela domina sobretudo a linguagem da escrita
merda, deixou o bebê cair”. Apresenta sonhos e vergonhas, ganância e solidarie- por seus ritmos e imagens, referências e funduras,
Em outro conto, Descontrolada, mergulhamos na dade, em condições extravagantes para escancarar encanta a cabeça e infla o peito de quem a lê em
espinhosa dissimulação familiar com Ada, uma garota como somos cobertos de valores estapafúrdios e gestos silêncio, desenhando no seu tempo e na sua mente
que desobedece a moral dos sistemas educacionais dos que de canibalescos só faltam usar a boca. O conto as figuras e passagens que nos entortam no desfrute
EUA antes de ser exilada por sua mãe à Nigéria, onde a Quem vai te receber em casa seria o mais engenhoso e nem sempre doce. Com apenas este livro, compilação,
nova casa tida como lar aprumado e afável será tanto tocante dos seus chamados contos fantásticos. Nele, Lesley Arimah já é uma das grandes.
uma tutoria quanto um vexame. Ada ali pareia com a cabe uma versão de ancestralidade e de tempo que
prima Chinyere, propagada como angelical, mas que conforma, além dos que já se foram, também os que Leia um conto do livro no site do Pernambuco (suple-
tem a mentira e a coitadice grudada nos dentes, além já estão aqui antes mesmo de chegarem. Ogechi é mentopernambuco.com.br).
da canga já acostumada às pancadas de sua mãe, Ugo: uma moça oprimida e endividada pela patroa que é
“Chi-chi, cuida do seu irmão – a Tia Ugo disse, dona também do muquifo onde a jovem sorve sua
e pelo ritmo do pedido eu percebi que era usual. O raiva e desonra. Como todas as futuras mães dali, é O LIVRO
menino tinha um ano de idade, olhos grandes e era necessário manufaturar um boneco que, antes de ser O que acontece quando um homem
bem fofo. Minha mãe tinha avisado para acompanhar parido e tornar-se gente, será por um ano embalado, cai do céu
o fingimento em público, mas eu não achava que sustentado e amadrinhado nos ônibus pelas mulheres Editora Kapulana
mesmo na privacidade da casa nós fingiríamos que da comunidade, com a cantoria de pergunta-resposta Páginas 168
o bebê não era filho da Chinyere”. que intitula o conto. Ogechi, entre mil embaraços e Preço R$ 39,90
Já sabemos que o qualificado volta e meia como atribulações, aninha seu bebê antes do nascimento
“fantástico”, também em literatura, pode se referir que parece nunca chegar, o guardando de maus olha-
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

O INQUISIDOR OS FILHOS DO DESERTO MIRÓ ATÉ AGORA


Ângelo Monteiro COMBATEM NA SOLIDÃO Miró
Lourenço Cazarré
Ângelo Monteiro, um dos expoentes Reúne livros de Miró, em que é possível
da Geração 65, é lembrado como um Cazarré retorna à época da escravidão enxergar o ritmo, a voz e seu gestual
“vulcão”, tal é a efervescência e o calor que no Brasil para contá-la através de um performático: dizCrição, Quase crônico,Tu
emanam de sua obra. Os poemas deste menino, feito prisioneiro na África para tás aonde?, Onde estará Norma?, Pra
livro ganham figuras e formas através do ser vendido a homens brancos no país. não dizer que não falei de flúor, Poemas
pano de fundo do regime militar do Brasil, Mas Kandimba torna-se protegido da para sentir tesão ou não, Quebra a direita,
provando que a alcunha atribuída ao poeta poderosa Dona Joana, uma rica mestiça segue a esquerda e vai em frente, Flagrante
faz todo o sentido. que, além de cuidar dele, vai apresentá- deleito, Ilusão de ética, São Paulo é
lo ao maravilhoso mundo da leitura. fogo e Quem descobriu o azul anil?
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1817 - AMOR E REVOLUÇÃO CURSO DE ESCRITA DE QUEM É ESSA MULHER? - A


Paulo Santos ROMANCE NIVEL 2 ALTERIDADE DO FEMININO
Álvaro Filho NA OBRA MUSICAL DE CHICO
HQ baseada no livro A noiva da Revolução, BUARQUE DE HOLANDA
de Paulo Santos, com roteiro do autor e Vencedor do IV Prêmio Pernambuco de Alberto da Costa Lima
ilustrações de Pedro Zenival. Os fatos Literatura, apresenta um escritor que se
históricos são narrados pelo líder da envolve na narrativa, mesclando ficção e Um mergulho na obra de Chico Buarque,
Revolução Pernambucana, Domingos realidade. Com elementos fantásticos e tido como o grande intérprete da alma
Martins, e sua esposa, a portuguesa Maria muita autoironia, o autor brinca com os feminina e uma das maiores expressões da
Teodora da Costa. O amor dos dois, que clichês dos romances policiais noir, num MPB, que analisa a condição da mulher em
enfrentou preconceitos, acontece durante a jogo metanarrativo com a estrutura do suas músicas e identifica como o discurso ali
primeira revolução republicana do Brasil. gênero, pondo em discussão o processo de presente a aborda como ser humano e social.
criação e os limites entre o real e o ficcional.
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GORDOS, MAGROS E GUENZOS JOSÉ PIMENTEL: ALÉM DAS OUTRO LUGAR


José Almino de Alencar PAIXÕES Luis S. Krausz
Cleodon Coelho
Miscelânea composta de crônicas, reflexões Vencedor do Prêmio Cepe Nacional de
literárias, pequenas narrativas, relatos Perfil do ator, diretor, escritor, poeta, professor Literatura em 2016, o romance de Luís
históricos e memórias de José Almino. e jornalista José Pimentel, memória viva Sérgio Krausz inicia com uma viagem a
Como uma variação do brilho de sua obra do teatro pernambucano desde os anos Nova York, numa narrativa vertiginosa
poética, as crônicas parecem transitar 1950, quando novas concepções cênicas rumo ao desconhecido. O livro é construído
entre poesia e prosa, sem que haja risco conquistaram o respeito do Brasil. Após através de palavras inacreditavelmente
na mudança de gênero, com refinada integrar a Paixão de Cristo de Nova conscientes, torpes, profundas e friamente
sensibilidade aos tipos populares ou Jerusalém por mais de 20 anos, encenou críticas ao homem, que buscam levar seu
elitistas que permeiam sua imaginação. a Paixão de Cristo do Recife, vista por protagonista em uma viagem incerta.
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Primeiro volume da coleção Frevo Livro-reportagem que tenta esclarecer
Memória Viva, o livro focaliza um dos episódios de violência
vida e obra de Ademir Araújo, imposta aos militantes de oposição
o Maestro Formiga, compositor, pela ditadura brasileira, quando seis
instrumentista, arranjador, regente componentes da Vanguarda Popular
e pesquisador que, com espírito Revolucionária foram encontrados com
inovador, muito tem contribuído sinais de execução sumária, entre eles a
para a cultura musical do estado, companheira do agente infiltrado Cabo
o que lhe fez conquistar o título de Anselmo, que teria comandado a trama.
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23
PERNAMBUCO, JULHO 2018

José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
MARIA JÚLIA MOREIRA

Existem escritores que suplantam a própria mentos do sueco Friedrich Jurgenson, o autor estão preparados para a intensidade; ainda
obra – que a ultrapassam e a engolem. Existem de Telefone para o além, que gravava as vozes mais, que hoje a maior parte deles busca nos
escritores de todos os tipos. Alguns, como dos mortos e de quem Hilda se considerava livros apenas fuga e diversão. Na raiz de sua
Raduan Nassar, ou Dalton Trevisan, se escon- uma abnegada discípula – mas, de forma escrita, porém, se guarda a loucura, tanto
dem sob a obra, como meninos emburrados e mais simples, mais banal, através de Fico besta que só começou a escrever depois que o pai
teimosos, que renegam seus tesouros. Outros, quando me entendem, coletânea de suas entre- enlouqueceu. Escrever foi, em consequência,
como Clarice Lispector ou João Gilberto Noll, vistas organizada por Cristiano Diniz em 2013 uma forma de enlouquecer também. Exigia
a ela se misturam para sempre; com o avançar para o selo Biblioteca Azul. E quantas vozes, que sua escrita tivesse “razão, fantasia e pro-
dos anos, como se fossem as duas faces de um fortes, discrepantes, até antagônicas, Hilda porção”, mas sabia também que a fantasia
mesmo disco, fica cada vez mais difícil separá- carrega. Foi uma leitora apaixonada da Carta e a hiperlucidez são muito mais do que a
-los. Outros, ainda, e aqui só posso pensar em a El Greco, de Níkos Kazantzákis, livro que é condição humana pode suportar.
Hilda Hilst, superam a obra, ultrapassam-na uma homenagem ao grande pintor místico Os leitores de beira de piscina não suportam
com tal velocidade, que, apesar de sua inegável El Greco, nascido na ilha de Creta. Disse El Hilda Hilst. E ela mesma, cheia de culpa, se
grandeza (como é o caso evidente de Hilda), Greco certa vez: “Uma chama atravessa as perguntava até que ponto tinha o direito de
ela fica para trás, esfumaçada, perdida não sob pedras, os homens, os anjos, isto é o que atingi-los e de atordoá-los. Repetiu muitas
os grandes personagens que a habitam, como quero pintar”. Era sobre essa chama invisível, vezes que escrevia “um segundo antes da fle-
Kadosh ou A obscena senhora D., mas sob o grande mas contundente, que Hilda sempre desejou cha ser lançada”. Isto é, em estado de máxima
personagem, a feiticeira genial que a criou. escrever, e por isso o livro de Kazantzákis, ela tensão, de completo atordoamento, à beira de
Ainda hoje, para o bem e para mal, isso dizia, mudou sua vida. uma explosão. Como Clarice, mais uma vez,
acontece com Hilda Hilst, e a proliferação da Sempre acreditou, portanto, na potência escreveu para “ir além da linguagem” e para
internet, com suas divas e celebridades, só radical da literatura, em sua força devasta- lutar contra “o saber enjaulado da academia”.
acentua isso. Como efeito, e certamente como dora, em seu poder ambíguo de construir, Escreveu, também, contra a ideia da eficiência
um defeito meu, uma espécie de vício inte- mas também de destruir. “Para ter um filho, e do contemporâneo. Tinha consciência do tor-
lectual, sempre que penso em Hilda, penso a mãe precisa, violentamente, entre san- mento em que, muitas vezes, sobretudo para
nela mesma, a mulher corajosa e frenética, gue e fezes, expulsá-lo de si”, um dia ela os leitores mais banais, sua escrita se trans-
a escritora falante, a revoltada que se isolou me disse. Por isso, nos deixou uma literatura forma. “Sou esquecida porque todos os meus
do mundo para conversar com os mortos, em atordoante. Numa das entrevistas, Hilda afir- personagens têm o mau hábito de pensar.”
especial com o pai esquizofrênico, Apolônio, e ma: “Os prudentes nos têm acusado de dar Poucas semanas antes de morrer, em 2004
que sempre, sempre, mesmo depois de velha asas demasiado grandes aos anjos e de ter a aos 74 anos, em um telefonema noturno Hilda
e um tanto triste, nunca perdeu a audácia imprudência de querer lançar nossa flecha me disse: “Eu me olhei no espelho e estou
intelectual e a fúria que a definem. mais além das fronteiras do humano”. Hilda horrenda. Virei uma velha coroca. Agora me
Em geral, associamos a expansão do mundo buscava, sobretudo, o inumano; o que é bem assusto comigo mesma”. Apesar disso, sem-
virtual às luzes – dos computadores, smarthpho- diferente do desumano, porque, enquanto pre defendeu a ideia de que o que mais falta
nes, tablets. Mas me arrisco a pensar ao contrá- este destrói o humano, aquele o ultrapassa. às pessoas é a noção do transitório. Estamos
rio: dissolvidos em uma massa disforme de Como El Greco, escreveu em busca de todos em trânsito, Hilda dizia – e, quando
informações, sites, blogs, páginas do Facebook, “uma ascensão, um abismo, um deserto”. a ouvia falar, também no transe, eu pensa-
seguidores, milhares de personagens ilustres, Disse El Greco ainda: “Existe sob as cartas va. Seu grande personagem, imitando o pai
a internet às vezes me dá a sensação de uma algo imortal. É isso o que busco. O que quero Apolônio, não foi essa ou aquela pessoa, mas
grande noite, em meio à qual poucas coisas pintar”. A busca de Hilda, porém, estava os estados extremos do ser que todos nós,
conseguimos ver. Hilda é uma dessas imagens além da metafísica, tanto que estudou sem em alguns momentos da vida, horrorizados,
de exceção que emergem em meio à noite vir- parar a física quântica, em busca de uma experimentamos. Reencontrar Hilda Hilst, em
tual. Que propaga sua voz e que nos espanta, imagem material da alma. Não, não é qual- tempos mornos e apáticos como o nosso, só
sobretudo espanta. Mesmo antes da internet, quer leitor que pode suportá-la, e eu mesmo, pode nos enriquecer. À questão ética – será que
ela sempre soube dos riscos inerentes a essa admito, muitas e muitas vezes não a suporto. o leitor suporta a intensidade? – ela respondeu,
superexposição, mas nunca desistiu de si. A escrita de Hilda Hilst busca a intensidade sempre, com mais coragem e mais fúria. E por
Tento ouvi-la, mais uma vez, não através – a tal chama escondida de que falava El Gre- isso se agigantou, e por isso se coloca, ainda
das ondas de rádio – seguindo os ensina- co. Sabia, porém, que nem todos os leitores hoje, à frente de seus extraordinários livros.
24
PERNAMBUCO, JULHO 2018

INÉDITOS João Paulo Parisio

José K.
Através da porta corrediça da varanda, Kafka, um a cada átomo correspondia um autor do cânone.
rapazinho franzino e introvertido, observava as duas No centro dessa colmeia, por exemplo, figurava
mulheres que se enxugavam na borda da piscina do Homero. O que viera antes dele era considerado
prédio ao lado do prédio em frente. Para a época – protoliterário, com as raízes ainda afundadas no
estavam no fim do ano –, fazia uma tarde anormal- pensamento mitológico. O absurdo kafkiano fora o
mente nublada e pesarosa. Quando as mulheres se canto do cisne, o que vinha depois era pós-literário.
vestiram por cima dos biquínis e entraram, Kafka Assim, Jorge Luis Borges seria apenas um comen-
se ergueu, oscilante, parecendo mal suster-se nos tador da história da literatura, ainda que perspicaz
pés, e se internou, tristonho, no apartamento. Aca- e até brilhante em alguns momentos, ao passo que
bou encaminhando-se para a biblioteca do pai, um a estética radical de uma Clarice Lispector consti-
quarto adaptado, as quatro paredes cobertas pelos tuiria uma experiência extraliterária, fruto de seu
maiores clássicos da literatura universal, partindo desespero por intuir, sensitiva como era, não haver
da Ilíada e culminando com a obra completa de Franz mais nada a ser feito no campo daquela arte, e isso
Kafka, além de todas as biografias e ensaios a seu apenas corroborava sua teoria. Quanto ao dito boom
respeito, isso porque seu pai sustentava a tese de latino-americano, não passava de uma jogada de
que o escritor tcheco decretara o fim da literatura; marketing orquestrada pelos próprios heróis. Não por
com seu concurso, ela se tornara um parlamento acaso, pululavam os romances e contos – pseudor-
sem lugares vagos. Tudo que se escrevera de pre- romances, pseudocontos – alusivos a Kafka, em
tensamente artístico após 3 de junho de 1924 não muitos casos ostentando-o no título, prática adotada
SOBRE O TEXTO passava de falsificação, emulação, distorção, de- por figuras de Isaac Bashevis Singer a Haruki Mu-
gradação, pastiche, no máximo glosa do conteúdo rakami. O Brasil, e não poderia ser diferente, tinha
Ao lado, um trecho do do que ele, num célebre paper, De Ulisses a Samsa: as representantes. Moacyr Scliar não estava sozinho,
conto José K., presente metamorfoses da literatura e por que essa odisseia acabou, havia a qualquer momento gente usando o nome de
no livro Homens e outros chamara de Molécula Esférica Literária – MEL –, Kafka em vão. Depois do Corvo de Praga, afirmara
animais fabulosos, que será com direito a um diagrama onde se via uma esfera noutro artigo, Literatura, o zumbi de um gigante, onde
lançado pela editora Patuá dividida em quatro setores (poesia, dramaturgia, destrinchava suas ideias demasiado sofisticadas para
neste ano. romance e conto, tendo por núcleo a epopeia) e cada o público leigo, que escrever em qualquer gênero
um desses em seus próprios gomos, até que no fim moderno tornara-se tão extemporâneo quanto urdir
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HANA LUZIA

Seu pai queria dizer


que Kafka tinha
zerado a literatura.
Para Kafka, isso
não tornava menos
obscura a figura
do homônimo
A modalidade era barrinha; metas pequenas, sem
goleiro. Apenas três jogadores de cada lado. A forma-
ção clássica, um recuado e dois abrindo pelas pontas.
As laterais eram os muros dos imóveis vizinhos, e
se a bola batia neles, continuava em jogo. Passando
por cima deles, o que não era incomum, aí, sim, o
jogo parava até a devolução, resgate ou substituição.
Kafka era um prodígio. Sabia dar dribles atordoan-
tes, inverossímeis, passes e lançamentos precisos,
tinha senso de equipe e, pasmem, de liderança,
além de velocidade, resistência, boa colocação em
campo, oportunismo e altruísmo na medida certa.
Seu temido chute era certeiro e potente, ou, se assim
o quisesse, cheio de efeito. Em batidas cruzadas e
coberturas à distância, também era expert. Venceu.
Um time desafiante entrou em campo.
Logo de começo, driblou o galalau adventício por
duas vezes. Ele tentava cometer faltas maliciosas,
dar rasteiras e toques letais no calcanhar, mas seu
alvo, grave e safo, desvencilhava-se e seguia. Dado
momento, pouco depois de Kafka marcar um gol, a
bola espirrou para um ponto equidistante entre os
dois, ao pé do muro mais alto, coroado pela fronde
de uma mangueira. O desconhecido arremeteu,
tencionando imprensar o mais novo desafeto con-
tra a parede. No último instante antes do choque,
entretanto, Kafka esticou a perna esquerda e deu
um toque sutil na bola, que passou entre as pernas
do oponente, recuperou-a do outro lado e investiu
na direção da barra. Uma saia! Houve levante na
plateia – os meninos, adolescentes e até adultos que
esperavam as próximas – e entre os que estavam
em campo, exceto o sabujo da vítima do drible.
Oê!, exclamaram em uníssono. Touro ludibriado, o
intruso contornou o próprio eixo e lançou-se em
perseguição ao artilheiro. A distância diminuiu se-
gundo após segundo e quando os companheiros
tentaram advertir com um Ó o ladrão! já fora posta
em andamento a voadora que explodiu nas costas
de Kafka. Ele voou e tombou dois metros adiante,
arqueado como alguém no último estágio do tétano,
os olhos esbugalhados e fixos, produzindo um ruído
angustiante ao tentar puxar o ar, em vão. Houve
rebuliço, o campo foi invadido, o agressor chegou a
uma epopeia, e o fato de não haver surgido sequer Na sala havia uma imagem maior de Jesus, aquela ser derrubado e chutado, mas sacou um canivete e
em germe um novo gênero era um dos sintomas do toda em tons de azul encontrável em muitos lares, escapou pulando o muro.
encerramento do ciclo. a moldura de madeira clara, com um friso. Uma Embora Kafka se sentisse bem quando a mãe vol-
Para um colega da escola, seu pai queria dizer que prerrogativa da mãe, naturalmente. Ao contrário de tou da feira, ela achou prudente levá-lo ao hospital.
Kafka tinha zerado a literatura. Uma mina esgota- Cristo, que parecia ter o olhar perdido nos lírios do Ao fim da bateria de exames o médico a convidou
da, como se o cara explorasse todo o mapa de um campo, Kafka correspondia à sua atenção. Era um para uma conversa privada. Mãos entrelaçadas so-
jogo, Donkey Kong, por exemplo. CDF, acrescentava: já jovem – o seu tanto estrábico? – de rosto a um tempo bre a escrivaninha de compensado, esclareceu que
acontecera em ao menos mais uma arte, a pintura, ordinário e esquisito, animalesco e frágil, impene- o incidente não acarretaria nenhum dano à saúde
inaugurada no tempo das cavernas. Talvez a huma- trável e simpático. Lembrava-lhe algum mamífero de Kafka, porém, mal sua interlocutora suspirou de
nidade estivesse entrando numa era pós-artística. pequeno, algum daqueles com os quais se faziam alívio e esboçou um sorriso de gratidão, comunicou-
Para Kafka, isso não tornava menos obscura a figura casacos, chapéus e echarpes para mulheres grã-finas. -lhe que os mesmíssimos exames haviam revelado
do homônimo, e o pai apenas piorava a situação com — Kafka! Kafkaaaaa! acidentalmente um grave mal congênito. A mãe,
proparoxítonas difíceis: metafórico, metafísico, onírico, Acudiu para a varanda e viu os meninos com quem tendo levado a mão ao coração à primeira notícia,
alegórico, paroxístico. Não o reputava ainda maduro para costumava jogar bola espalhados na rua. Um deles não chegou a tirá-la de lá. No momento em que o pai
ler nem os primeiros contos. Certa vez, numa ocasião ergueu as mãos acima da cabeça e bateu três vezes recebeu a notícia da internação do filho, não estava
parecida com aquela, ele abrira na surdina O castelo, com a parte externa dos dedos da direita na palma em condições de deixar de imediato a universidade.
na expectativa de encontrar uma aventura com ma- da esquerda, de baixo para cima. Sem dizer nada, Ao deitar no leito, Kafka não sentia nenhuma
tizes de gótico medieval. No entanto, não havia um Kafka assentiu, e desceu às pressas os caracóis da indisposição. A visão de um tubo cravado no braço,
cavaleiro, um guerreiro, um arqueiro, um monge ou escadaria, saltando degraus, lances inteiros. Juntou- ou a substância que fluía através dele, desenca-
um mago, havia um raio de agrimensor, e o castelo -se a eles e os conduziu ao campinho dos fundos deou-a. Pouco depois que acabou dormindo, um
não era um castelo, era uma propaganda enganosa. do edifício. Só lá se deu conta da presença de dois jovem enfermeiro moreno de dentes imaculados
Teve de dar-lhe razão, embora no fundo achasse que estranhos. A ética dos peladeiros, entretanto, não deteve-se antes de sair do quarto, segurando junto
tudo aquilo era conversa pra boi dormir, e tanto Kafka exige credenciais. Na hora de tirar os times, foi o ao quadril uma bandeja reluzente, e perguntou à
quanto seu pai não diziam nada com nada, achando primeiro a ser escolhido, e um dos estrangeiros fez mãe como se chamava o paciente. Ela, sem retornar
que diziam. Eram charlatães involuntários. Para ele, ao escudeiro um sucinto comentário depreciando a por completo do território nebuloso onde vagueava
havia estórias boas e estórias ruins. Cefini. triste figura de Kafka: sua alma, o charco de uma oração que volta e meia
A única coisa que lhe dava uma ideia clara do — Que porra de nome é esse? Ó a trepeça. se perdia em censuras e acusações, murmurou José
Artista da Fome, pois ele fora sempre, segundo o Teve a entusiástica anuência do outro, um gordote. em resposta. No princípio da gravidez quisera dar ao
pai,“um faquir existencial”, era o quadro que dominava Ele próprio era alto, amarelo, forte e seco, a cara filho o nome desse santo de sua especial devoção,
a micropaisagem da biblioteca, acima e atrás do oleosa, o cabelo a máquina quatro. Não foi escolhi- e ainda o chamava assim em pensamento às vezes,
birô, um retrato dele em preto e branco com mais do para nenhum dos dois times iniciais, tendo que mas despertando de estalo recobrou-se e corrigiu:
ou menos dois palmos de altura e moldura metálica. resignar-se a esperar a próxima. — Kafka! Com K.
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INÉDITOS
Igiaba Scego
Tradução de Francesca Cricelli

Ainda hoje a bossa nova encanta. quista. E desnuda-se da sua precisão para correr
Ouvir João Gilberto é uma experiência mística. atrás daquela musa desobediente, que desafine,
Pelo menos para mim. como diz em Desafinado:
Caetano Veloso se depara com a música de João
Gilberto em 1959. Um amigo o levou para ouvir É que os desafinados também têm um coração.
num dia em que andavam ao léu, e ele, Caetano,
ficou enfeitiçado. Nada do que ele conhecia podia Caetano aprende a desafinar no ritmo da bossa
prepará-lo para tanta modernidade, e cabe ressaltar nova. Começa a misturar os antigos sambas da sua
que o adolescente de Santo Amaro chafurdava na mãe com o estilo trazido por João Gilberto.
modernidade. Sentia-se atraído de forma intensa Ainda hoje ele é sua referência. É sempre aque-
e inexorável. Era um chamado que ele sentiu em la fonte da qual ele bebe para ser realmente ele
suas vísceras, o moderno atravessando seus ossos mesmo, realmente moderno, realmente Caetano
como uma rodovia. Amava a pintura abstrata que Veloso. Sempre pode aprender algo com ele. João
lhe parecia magnífica pois era como a música, não Gilberto é o seu pai musical e o seu mestre supre-
significava nada e ao mesmo tempo significava mo. É o seu passado e o seu futuro. Sem aquele
tudo. Amava o cinema de Godard e a Nouvelle Vague. encontro em 1959, talvez não houvesse Caetano
Fellini e Antonioni o fascinavam com seus giros de Veloso algum hoje em dia.
câmera. E depois, em 1964, com o golpe militar, Tampouco haveria Caetano Veloso algum sem
chegaram também as primeiras ações contrarre- Gilberto Gil.
volucionárias. Isso também é modernidade. Penso Gilberto Gil e Caetano Veloso são como John Len-
na loucura de uma revista como Pif-Paf, do Millôr non e Paul McCartney, mas menos desgastados, mais
Fernandes, que, com as suas cores psicodélicas e amigos, mais cúmplices. Sua amizade completou
seu jornalismo engajado tornou-se uma referên- quase meio século da mesma forma que suas car-
cia para os jovens brasileiros politizados. Durou reiras. Para entender o quão profundas são as raízes
somente oito edições, apenas quatro meses, mas dessa camaradagem, basta olhar os milhares de
foi como um relâmpago num deserto de confor- vídeos de suas apresentações no YouTube, ou sim-
mismo. É claro que Caetano Veloso não perdeu plesmente vê-los se moverem pelo palco. A amizade
nenhum número da Pif-Paf. Como aquela revista, ele e a admiração se escondem nos olhares diverti-
também estava em ebulição. Estava aturdido com dos, naquele conhecer-se de cor, no antecipar-se
toda aquela novidade que girava como uma galáxia continuamente, na risada contagiosa. Querem-se
enlouquecida ao seu redor. Tudo o confundia. bem. Humanamente e musicalmente. Fundem-se
Um dia sonhava em pintar e no outro em fazer e confundem-se, permanecendo sempre o que são.
um filme. Entretanto, continuava cantando os seus Caetano Veloso amava loucamente Gilberto Gil,
sambas com a tia (quando os pais o mandaram para mesmo antes de conhecê-lo. Ainda garoto, apren-
o Rio devido à sua saúde frágil e às péssimas notas dera de cor o velho samba Serenata em teleco-teco, um
na escola), e não perdia nenhuma apresentação no dos sambas em que o ritmo é ditado pelo violão
SOBRE O TEXTO
auditório da Rádio Nacional. Ali, viu de perto Nora numa eterna corrida contra si mesmo. Gilberto Gil
Ao lado, um trecho do livro Ney, Cauby Peixoto, Ângela Maria e a bela e sensua- tinha um toque mágico, a um só tempo angelical e
Caminhando contra o vento, líssima Marlene, e adorava aquela música que havia infernal. E fazia dançar, ah, como ele fazia dançar.
da escritora italiana Igiaba se tornado algo tão familiar para ele. Porém, quando É impossível resistir ao seu ritmo, que chega até os
Scego, que participa da chegou João Gilberto, tudo aquilo que se agitava em ossos e faz remexer como um terremoto. Eu, por
Flip 2018. A obra é lançada seu peito de jovem desassossegado começou a fazer exemplo, quando estou me sentindo para baixo,
pela editora Nós neste sentido, a girar na direção certa. Pode-se dizer que ouço Expresso 2222 e a tristeza se joga pela janela,
mês e nela a autora faz um Caetano Veloso nasceu pela segunda vez em 1959, frustrada, por não conseguir se apossar de mim.
ensaio-depoimento para diretamente da cabeça de João Gilberto, mais ou Gilberto Gil traz em si a força luminosa do otimismo
homenagear o cantor e menos como Minerva nasce da cabeça de Zeus. e da força de vontade. Ele não conta mentiras, não
compositor Caetano Veloso. João Gilberto é preciso, mas sabe também que a afirma que o mundo irá te salvar, mas pouco afir-
música é imprecisa, desordenada, rebelde, anar- ma que a vida acabou. Seu violão maluco sempre
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HANA LUZIA

oferece uma possibilidade, uma oportunidade, uma


esperança. Gilberto Gil te faz acreditar no mundo.
No Brasil, a anedota é famosa, tanto que, anos
Graças à biblioteca Roma. Era o bairro da criminalidade, o bairro da
pobreza absoluta. Roma ainda não sabia que, aos
poucos, aquele bairro tentava se transformar em
depois, Daniela Mercury até fez uma música sobre
isso. Caetano Veloso já amava o ritmo de tamborim
do Gil. Já tinha ouvido ele no rádio, no ubíquo rádio.
de Primavalle, algo diferente. E se transformou com os pouquís-
simos locais públicos de cultura, como a Bibliote-
ca Franco Basaglia na Rua Federico Borromeo, por
Bastaram poucas notas para que Gil se tornasse
seu novo herói. Depois, um dia, Dona Canô o viu respirei o ar do exemplo. Mas por que estou falando de Primavalle
num livro sobre Caetano Veloso? Porque na Bahia,

mundo. Santo
na televisão e começou a gritar: “Caetano, venha ver da mesma forma que em Primavalle, são os pontos
aquele preto que você gosta!” Os dois se encontrariam de civilização em meio aos lugares mais carentes e
em breve. Um encontro estranho, em Salvador, em bagunçados que fazem toda a diferença, que podem

Amaro e Salvador
plena rua. Alguém os apresenta. oferecer alguma possibilidade. Primavalle salvou
No começo, Veloso se sente intimidado por Gil, minha vida. Graças àquela biblioteca, respirei o ar
parece-lhe impossível que seu mito do violão estivesse do mundo, viajei por tantos países, projetei centenas
assim, a dois passos dele. Conversa em voz baixa,
quase incrédulo. O ano é 1963, nenhum dos dois sabe
o que vão fazer a seguir. São apenas duas pessoas que
foram algo parecido de aventuras, vivi mil vidas. Santo Amaro, depois
Salvador, foram para Caetano Veloso algo um pouco
parecido. Lá, ele respirava o mundo. Como naque-
compartilham o mesmo demônio. E é a partir desse
ano que Caetano Veloso começa a aprender a tocar
violão. No início, não sabia absolutamente nada. Com
para Caetano la noite quando, ainda adolescente, viu La Strada
de Fellini e se trancou em seu quarto sem comer.
Zampanó interpretado por Anthony Quinn tinha
alguns acordes de base, arranhava algo aqui e ali, mas um fenômeno que foi presente nessas terras entre atingido o seu coração, aquele homem que jamais
pouca coisa. Depois, porém, Caetano canibaliza Gil os séculos XIX e XX. Na Bahia, a música nasce olhava para o céu, salvo na cena final. Tudo para ele se
com os olhos e, observando-o, aprende, aprende, dessa mistura entre culturas distintas, nasce desse fazia sentimento. Ser Fellini era um sentimento. Ser
aprende e, no final, torna-se realmente bom. mesclar-se continuamente. Godard era um sentimento. Também Gilberto Gil era
Naquele ano, Caetano Veloso encontra, também, Gal Ao contrário do que ocorre hoje nas periferias um sentimento. Sem entender aquela efervescência
Costa, a voz para quem irá escrever muitas músicas. do mundo, a Bahia, e principalmente a sua capital, cultural e política, aqueles pontos de cultura numa
Uma camaradagem diferente da que tinha com Salvador, nunca estiveram à margem das coisas. terra difícil e periférica como a Bahia, não podería-
Gilberto Gil, mas tão potente quanto aquela. É Dedé Em Salvador, podia-se encontrar o melhor da cul- mos de fato colher aquilo que movia Caetano Veloso.
Gadelha, futura primeira mulher de Caetano, que tura brasileira produzida naquela época. Assim, A Bahia mistura mistura tudo, esse é o seu apaná-
os apresenta. Há uma faísca musical fortíssima Caetano Veloso, com sua irmã Bethânia, com Gil gio. E quem é de lá sabe como viver como equilibris-
entre os dois. Caetano encontra naquela mulher e Gal Costa, podiam usufruir de tudo que o mundo ta sobre a arquitetura de um mundo em dissolução.
uma amiga e, principalmente, uma companheira tinha para lhes oferecer. Pois o mundo em que cresceram Caetano Veloso,
musical das mais precisas e atentas. Refletindo sobre a Bahia dos anos 1960, meu pen- sua irmã Maria Bethânia e os amigos Gilberto Gil
Salvador não era o centro do mundo. Não era o samento viaja até Primavalle, o bairro de Roma em e Gal Costa era um mundo que estava acabando.
centro nem mesmo do Brasil. A cultura acontecia que me criei. Eu e minha família fomos um pouco Tinham celebrado sua forma de estar — e fazer
no Rio e em São Paulo. nômades. Não encontramos de imediato uma boa — juntos num espetáculo, o primeiro de muitos,
Geograficamente, Salvador encontra-se no norte. colocação na capital. Os meus pais vinham de outro em quarteto (que anos depois se chamará Doces
Uma das áreas mais pobres daquele país-mundo, país e também de outra classe. Na Somália, desfru- bárbaros) ao qual irão se juntar Tom Zé e Os Mutantes.
mas também um dos lugares com a maior tensão tavam de uma boa condição, mas chegaram à Itália Sobem ao palco com um espetáculo intitulado Nós,
criativa. A Bahia foi o último estado a se unir à como refugiados, tendo perdido tudo num piscar por exemplo, no qual o próprio Caetano Veloso será
federação brasileira, e o estado com a mais forte de olhos. Em Roma, tiveram que criar novamente autor, diretor e apresentador de um show em que
matriz africana, devido à antiga rota dos escravos. uma vida como subproletários, refugiados, pessoas cada um, mas principalmente ele, queria que tudo
Nota-se isso na cultura sincrética que ainda hoje carentes de tudo. Por onde começar? Em que bairro? saísse de forma esplêndida.
permeia o território. Vê-se isso no candomblé, nas Atravessaram muitas dificuldades: do fascismo à
roupas tradicionais das mulheres e nos traços de Balduina,1 passando por uma casa úmida em Trion- 1. Balduina é uma área urbana do município de Roma
urbanística que não deixam dúvidas. Um território fale, depois, finalmente, pela periferia de Primavalle, pertencente ao bairro Trionfale. Está situada no lado
negro e mestiço no qual — ensina-nos Jorge Ama- em uma casa digna e com vizinhos muito simpáticos. sul de Monte Mario e, com os seus 139 metros de altura,
do — há uma forte imigração da Síria e do Líbano, Numa certa época, Primavalle provocava medo em é o ponto mais alto de Roma.
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RESENHAS
CIETE SILVÉRIO / DIVULGAÇÃO

domar a linguagem, por


colocá-la inteiramente
à disposição dos seus
personagens. Tangolomango
está longe de ser um
dos seus livros mais
conhecidos. Mas é,
com certeza, um dos
mais eloquentes para
decifrarmos sua literatura.
“Amor de verdade
tem cara de humilhação,
você sabe, não sabe,
Guilhermina dizia,
fazendo as unhas ou
bebendo um novo gole,
fingindo desleixo”,
assim descreve o
narrador as lembranças
que acompanham a
personagem pelas ruas
atulhadas de gente,
durante o que pode ser
seu último Carnaval.
O “insuportável”,
detectado por Castello,
esmigalhando qualquer
vislumbre de êxtase.
É que, para Tia
Guilhermina, “hoje é
dia de sofrer”, enquanto
“instalava-se no bar
da calçada na Rua da

O grande corpo A obra de Raimundo


Carrero sempre me fez
pensar em A morte de Ivan
A unidade dos livros
reunidos em Condenados à
vida é destacada por um
abre vias mágicas, mas
também descerra alçapões
que nos engolem. É
Aurora, o Brahma Chopp,
vizinho ao cinema São
Luiz, às margens do

que agora nos


Ilitch, de Tolstói. Essa longo prefácio de José preciso pagar esse preço: Rio Capibaribe com
novela sobre o corpo, os Castello, que realinha e nenhuma maravilha é ramagens debruçando-
seus usos, seus fracassos e elenca diversos pontos de graça. Poucas páginas se sobre as águas, copos

chega por inteiro


o seu fim, que nos atraca já soltos da escrita desse à frente, o personagem e garçons bem limpos,
no veredito inicial de que que é um dos nomes mais não suporta encarar as ocupava uma mesa
“Meus senhores, morreu potentes da literatura jovens prostitutas que, na calçada e bebia,
Ivan Ilitch”. É o corpo do brasileira contemporânea. vendidas a mendigos bebia cerveja, bebia
Condenados à vida reúne morto no centro da sala,
no centro da narrativa,
Castello lê Carrero com a
propriedade de um leitor
ou ladrões, rastejam
por alguma comida”,
chope, bebia, comprava
fichas para a radiola
romances que dão a dimensão como um imã gigantesco antigo, que sabe estar escreve Castello sobre e fumava (...) ouvia
arrastando tudo o que diante de uma produção de Maçã agreste, romance que a mesma música até
da obra de Raimundo Carrero pode. A aproximação com trato difícil, cujo fascínio abre de forma cronológica a exaustão. Os olhos
o clássico russo fica mais reside justamente em seu Condenados à vida (é marejados de lágrimas,
Schneider Carpeggiani evidente em Condenados jogo constante de atração preciso destacar que Maçã o soluço estrangulado
à vida, edição que reúne e repulsa. “A leitura agreste tem por epígrafe na garganta, recitando
quatro romances de desses quatro grandes uma frase do escritor eu vivo porque morri? É
momentos distintos da sua romances de Carrero argentino Ernesto Sábato assim mesmo.”- pontua
carreira, mas que formam dilacera. Rasga a proteção a nos lembrar de que o narrador, numa das
um só grande livro, um só íntima que costumamos “fazemos sofrer, gritamos, passagens que melhor
grande corpo - Maçã agreste usar para nos defender morremos, morrem uns iluminam o porquê da
(1989), Somos pedras que se do mundo. A verdade é: enquanto outros nascem, sentença de condenação
consomem (1995), O amor não eles nos atordoam”, nos para tornar a começar à vida dos quatro
tem bons sentimentos (2007) adverte no prefácio. a comédia inútil” – romances aqui reunidos.
e Tangolomango (2013). Munido dessa nenhuma outra epígrafe E de um dos títulos
Em suas entrevistas, perspectiva, o jornalista poderia dizer tanto da de capítulos da odisseia
Carrero sempre ressaltou vai ao centro da questão- forma como Carrero vem de Tia Guilhermina
o caráter de unidade Carrero, ao eleger o enxergando o humano e podemos extrair ainda
que atravessa a vasta “insuportável” como seu corpo findo, ano após a melhor descrição
produção iniciada por ele o tema a costurar seus ano, livro após livro). para o corpo exposto
no começo da década de livros. Em Carrero, A inútil comédia em Condenados à vida.
1970 com Bernarda Soledade pontua Castello, a humana guia o recente Trata-se de um corpo
(1975), ainda escrito experiência humana Tangolomango, com “Triste, sujo e belo”.
sob o signo do armorial. acaba encostando em algo a sobrevivente Tia
No entanto, essa vasta inumano de tão jocoso. Guilhermina, que já
produção acabou ficando Nos romances, até existe assombrava O amor não tem
dispersa, com vários o êxtase (tanto o religioso bons sentimentos, apaixonada
títulos fora de catálogo, quanto o sexual), mas ele pelo sobrinho e sujeito de
graças às inúmeras trocas se perde muito rápido, uma tragédia familiar. Tia
de editoras pelas quais desaparece no ar, parece Guilhermina, com a alma
o escritor passou ao não valer a pena quando, infectada por boleros,
longo dos anos. Assim, enfim, é alcançado. É que pelas letras tristes dos
acabaram caindo no estar condenado à vida frevos pernambucanos
esquecimento obras implica a consciência da e suas saudades em
como Maçã agreste, talvez finitude do corpo. Mais eterno gerúndio, vaga por
um dos seus trabalhos uma vez penso no terror um carnaval de corpos
mais bem realizados, do personagem de Tolstói. suados, corpos à venda,
que até a presente Mais uma vez escuto corpos à disposição ou
reedição havia se “Meus senhores, morreu apenas maltratados pelo FICÇÃO
tornado raridade para Ivan Ilitch” ao ler Carrero. êxtase, durante um dia
colecionadores em sebos “Já nesse romance que insiste em varar o que Condenados à vida
Veja mais sobre o autor (nem o próprio Carrero de 1989, o grande tema sobrou da personagem. Autor - Raimundo Carrero
no filme Carrero, o áspero dispunha de mais de um é a experiência do É nesse curto romance Editora - Cepe
amável, de Luci Alcântara, exemplar do romance insuportável. A literatura, que Carrero expõe como Páginas - 704
encartado nesta edição. em sua biblioteca). a grande literatura, nos nunca sua fixação por Preço - R$ 80
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Possibilidades de vivenciar o difícil PRATELEIRA


Clarice, de Roger Mello fornece ao leitor longo do livro mostra de vivências das DA PROSA
com ilustrações de Felipe infantojuvenil elementos o peso do que está personagens”, como diz o Todos os títulos da lavra ficcional de Hilda Hilst
Cavalcante, começa mais consistentes para sendo vivenciado. texto de Volnei Canônica (1930-2004) estão reunidos neste box com
com duas mulheres entender o ambiente Pode-se dizer que na contracapa. Adultos dois volumes. Desde sua estreia na prosa, com
jogando livros em um complexo da trama. as cores e ilustrações podem se interessar pelo Fluxo floema, até seu último livro, Estar sendo. Tendo
rio. Amarram os volumes A construção do enredo de Felipe Cavalcante, conteúdo, mas arrisco sido, o que se percebe é um texto com forte teor
a tijolos e os sacodem é delicada: enquanto as como em todo bom livro dizer que ele chega mais poético. Mesmo com as mudanças temáticas
na água. Uma criança crianças permanecem na ilustrado, complementam forte no seu público- a partir da década de 1990 (quando passaria
testemunha tudo e se ignorância, os elementos e, em paralelo, expandem alvo, o infantojuvenil, a se dedicar à sua trilogia erótica), é possível
põe a questionar os (comportamento dos os sentidos do que ali está por estimular as perceber que Hilda se manteve uma escritora
motivos do ato. Daí em adultos e lembranças) posto. Construídas no possibilidades de fabular autêntica, transgressora e, sobretudo, atual.
diante, segue-se uma que as fazem estranhar jogo entre o azul, branco em meio à densidade
trama em que o leitor o que veem e ouvem e laranja vivo, com breves em que vivemos – algo
vai descobrindo, por vão descortinando o usos de texturas (em azul desejável para quem,
meio dos olhos infantis cenário. Tudo é sugerido, e branco), as imagens nos em breve, terá de
da protagonista Clarice, alusivo. A criança trazem esses elementos lidar de forma mais
um contexto agreste de Clarice foi batizada em entre o denso real e o ativa com o complexo
ausências preenchidas homenagem à Lispector olhar criativo da menina. Brasil (Igor Gomes). Autora: Hilda Hilst
pela imaginação. E, como e, tal qual as ficções da O mesmo azul que às Editora: Companhia das Letras
é hábito das crianças, escritora, sua história vezes parece sugerir a Páginas: 888 (dois livros)
nesse olhar que fica entre nos traz o incômodo de obscuridade da Brasília Preço: R$ 89,90
o brincar e a realidade um mundo tranquilo daqueles tempos também
são soltas delicadas breve ou constantemente serve como a noite na CONTOS REUNIDOS
faíscas: “Quando os invadido por um real qual se descortinam A coletânea organizada pela professora Fátima
adultos chegam ao ponto cru, desestabilizador, os sonhos com o pai e Bianchi (USP) reúne os 28 contos escritos por
de amarrar livros com inquietante, que agride mãe desaparecidos. O Dostoiévski durante sua vida, traduzidos do
pedras, falam coisas sem o humano por meio de vibrante laranja nos dá russo e entendidos numa concepção ampla,
sentido”, diz Clarice. detalhes e aparições. a potência infantil para que inclui novelas, narrativas em romances
A obra se passa na Se na autora de A hora criar e recriar as situações e jornalismo de viés ficcional. Vários contos
Brasília dos tempos da da estrela o incômodo e com as quais se depara. são inéditos no Brasil. O livro traz uma visão
ditadura militar. Pessoas a densidade chegam Os traços delicados ficam renovada da obra do escritor, que se inspirava
referidas como E.L.E.S a níveis altos, no entre o realista e o onírico, em notícias do cotidiano e polêmicas literárias
ou VOCÊ SABE QUEM trabalho de Roger Mello reforçando o tom entre como laboratório de criação.
buscam os que são delicadeza e densidade o real e o imaginário. INFANTOJUVENIL
próximos à protagonista. se estruturam como em Por habitar esse
No caso do segundo um iceberg – a parte de lugar, o enredo de Clarice
nome, o paralelo com o fora, pequena, são os Clarice de fato surge Autor - Roger Mello
vilão de Harry Potter (Você estranhamentos e sonhos sem a “preocupação Editora - Global
Sabe Quem é um epíteto da criança, enquanto de entregar fatos, mas, Páginas - 124
do Lord Voldemort) o que é sugerido ao sim, possibilidades Preço - R$ 59,90 Autor: Fiódor Dostoiévski
Editora: 34
Páginas: 552
Preço: R$ 89

O sonho sonhado Sobre um jovem UM DIA LUMINOSO


Uma menina curiosa, que adora ciência, inspira
uma história em que a luz e a natureza são os
“A arte se torna um jogo é de leitura acessível. A Entre os lançamentos é inteiramente dedicado personagens. O projeto, com tecnologia QR
ligeiramente fantástico nós interessa, é claro, as que celebram os 200 a esse período de code e ilustrações de Bruno Assis Fonseca, dá
com o tempo: é a ideias. Devo dizer que anos de nascimento formação – que, em acesso a arquivos de música, poesia, animação e
documentação de algo interessa em particular a de Karl Marx está o geral, é minimizado textos científicos sobre temas como fotossíntese,
que foi, e, ao mesmo forma como ele as lança primeiro volume da nas biografias. Um eletricidade, arco-íris e outros. Os autores são
tempo, a promessa de a nós. Existe algo de jogo. ambiciosa biografia elemento interessante educadores mineiros que participaram de um
algo que será”, diz César E se chama a reprodução de Michael Heinrich, do livro é o apêndice no concurso para escrever sobre o tema “luz” e se
Aira em algum momento da arte de “sonho não cientista político qual Heinrich discute o inspiraram nos seus alunos de escolas públicas.
do seu ensaio Sobre a arte sonhado”, seu ensaio é referencial nos estudos esforço biográfico e as
contemporânea, escrito um sonho sonhado – e, da teoria marxiana. possibilidades de uma
em 2010 e lançado há como o onírico, surge “Ambiciosa” porque biografia de Marx hoje.
pouco no Brasil. O autor com vistas a tocar o intenta investigar em Ao revelar suas costuras,
argentino lança neste real, confessadamente profundidade a vida segue à risca a ideia Autores: Adlane Vilas-Boas
breve texto algumas ideias ciente da incapacidade e obra do filósofo à marxiana de que toda e Fabrício Fidélis
sobre origem, originais de segurá-lo. O texto está luz de seu tempo: produção intelectual Editora: UFMG
e reprodução na arte de disponível gratuitamente situando-o nele, mas está ligada a um período Páginas: 32
hoje. A frase que abre esta no site zazie.com.br (I.G.). também lançando-o específico (I.G.). Preço: R$ 22
texto se destina a tratar das ao presente. A
estratégias lançadas pelos diferença de Karl Marx e MINHA MÃE E OUTRAS MULHERES
artistas para se manter à o nascimento da sociedade O autor pernambucano radicado no Rio
frente das reproduções. moderna começa no de Janeiro apresenta uma coletânea de contos
Diz ele que as estratégias escopo: a atenção cujos personagens desafiadores vivenciam
para reprodução da dada à juventude diversas facetas da condição humana. Sua
arte não conseguem de Marx e de seus narrativa poética cativa o leitor, mostrando
acompanhar o ritmo das antecedentes até sua equilíbrio entre o conto e as diferentes vozes
formas (ele usa o exemplo primeira publicação e perspectivas de outras artes com as quais
da fotografia que, em seu autônoma (sua tese se conecta, convidando à reflexão acerca das
ato reprodutor, jamais de doutoramento, de mazelas e das “elevações espirituais” a que
conseguirá alcançar a 1841), como forma todos parecemos estar sujeitos.
potência da instalação de tentar entender o
artística). As ideias surgimento de uma
continuam até ele falar obra cuja morte já
no Inimigo da Arte ou da ENSAIO fora proclamada BIOGRAFIA
dificuldade de a literatura algumas vezes, sem
ser contemporânea (é Sobre a arte contemporânea sucesso. O primeiro Karl Marx e o nascimento ... (vol. 1)
mais feita de ausência Autor- César Aira tomo (são três os Autor - Michael Heinrich Autor: Fabiano Costa Coelho
que de presença, cria Editora - Zazie volumes previstos, Editora - Boitempo Editora: Confraria do Vento
seu passado e seus Páginas - 40 os outros dois ainda Páginas - 472 Páginas: 168
precursores). O escrito Preço - Gratuito não foram lançados) Preço - R$ 69 Preço: R$ 47
30
PERNAMBUCO, JULHO 2018

RESENHAS
PEDRO VASCONCELOS / ARQUIVO PERNAMBUCO

outros desertos: o Saara da memória, que pensa e


argelino e o de Zacoteca, aprofunda a experiência
no México. Já pelas enquanto realimenta
analogias entre os lugares a saudade dos tempos
de escassez, percebe-se vividos em Olho d´Água.
que o acento simbólico O grande trunfo dessa
do deserto como espaço narrativa fundada em
de provação é essencial lembranças, porém, é a
– ainda que, exatamente sua condução não linear,
como nas alegorias obtida pela aplicação
bíblicas, o simbólico de uma espécie de
jamais possa prescindir procedural play, isto é,
de sua concretude por uma rotina quase
existencial e histórica. aleatória representada
Em meio às recordações pelo manuseio de objetos
de Olho d´Água, escondidos numa caixa
revela-se a identidade de guardados – mais
da protagonista como precisamente, sete
militante massista (termo objetos ou “amuletos”
de época que identificava –, todos eles ganhos
a tendência oposta às por Maria, em tempos
facções militaristas do e lugares diversos, mas
movimento clandestino sempre em situações de
de resistência à ditadura), pressa e perigo, no âmbito
incumbida de misturar- da clandestinidade.
se à população sertaneja, E, mais importante,
disfarçada de professora são objetos ganhos
voluntária do Mobral. sempre de um mesmo
O objetivo de sua homem. Ainda que a
ação seria preparar o cada vez atenda por
terreno para a vinda de um nome diferente,
outros companheiros ele é reconhecível pelo
e conscientizar os mesmo olhar penetrante
sertanejos sobre os e imperioso, que paralisa
desmandos dos coronéis ou adoece Maria e que
da terra (“o Dono”) a faz entrever, como
e, por extensão, as num raptus místico, a
contradições do Poder. consumação de suas
A narração evidencia esperanças. Há algo

Do presente Maria Valéria Rezende


tem uma história de
vida incomum para uma
protagonista de Outros cantos
(2016), quarto romance
de Maria Valéria, seja
o choque cultural
inicial entre Maria e os
camponeses, seguido de
nele de angélico (não à
toa, por vezes se chama
Miguel ou Michel), ou

que nos é dado


escritora contemporânea. uma criação que se nutre um difícil processo físico e de cristológico: uma
Nascida no porto paulista das próprias memórias espiritual de aprendizado, presença epifânica tão
de Santos, em 1942, da autora, ainda que o no qual a arrogância de perturbadora, ainda

pela memória
entrou para a Congregação livro não se apresente quem pensa ter vindo que brevíssima, que
de Nossa Senhora, como autobiografia ou exclusivamente para basta para suspender a
tornando-se cônega relato memorialístico. ensinar e dar consciência, lida cotidiana como um
de Santo Agostinho em No entanto, basta ler paulatinamente cede incêndio de paixão.
Sobre Outros cantos, um 1965. Para quem nunca
ouviu falar, trata-se de
algumas páginas dele
para sentir o ritmo de
espaço à humildade
diante da complexidade
Ali, em Olho d´Água, essa
presença manifestara-se
premiado romance que “dispõe uma ordem religiosa uma criação que dispõe do saber arcaico dos na figura de Antonio, um
fundada na França, no de sua própria verdade, costumes locais. Quer “vaqueiro encantado”,
de sua própria verdade” século XVI, com nítida sem precisar escorar-se dizer, aos poucos, na como Maria o pensava,
inspiração jesuítica e numa história alheia à entrega radical do próprio e que se generaliza como
Alcir Pécora especialmente dedicada de suas personagens. corpo ao trabalho, Maria um misterioso aboio,
ao ensino das crianças e Explico-me melhor. supera a incompreensão o chamado do vaqueiro
ao auxílio aos doentes. A narrativa, que venceu entre as teses estudantis ao seu rebanho já ao
Segundo fontes o Prêmio São Paulo e a lida implacável entardecer de mais um
genéricas, Maria Valéria de Literatura no ano da gente do sertão. dia de labuta. É talvez
participou da resistência passado, se orienta pelas O relato corre rápido, o mesmo aboio que
contra a ditadura e viajou lembranças de Maria, porém seguro no emprego espera ouvir a qualquer
para vários lugares do septuagenária que perfaz de um léxico original, instante do vaqueiro
mundo em diversas uma longa viagem de castiço, sobretudo quando que ocupa a cadeira ao
atividades missionárias. ônibus, sertão nordestino referente às operações seu lado no ônibus que
A partir do início dos adentro, até a sede de um manuais dolorosas de a conduz, na velhice,
anos 1970, incumbiu- sindicato de trabalhadores confecção das redes, ao seu sertão original.
se de trabalhos de rurais que a convidara nos quais a protagonista
educação popular no para fazer “uma reflexão gradativamente passa a
interior de Pernambuco, crítica sobre o pensamento reconhecer a precisão
tendo posteriormente se dominante e a influência dos gestos, a beleza das
transferido para o sertão televisiva”, e ajudar na formas, e até a fugidia
paraibano, onde esteve até elaboração de “uma presença divina, num
1988, quando se mudou proposta educacional ambiente nos limites de
para João Pessoa, lugar adequada à realidade sobrevivência, onde as
em que vive desde então. sertaneja”. Como se letras que pretende ensinar
Ao que tudo indica, vê, os termos que dão a parecem sinais longínquos
estamos falando de razão da viagem atual são de “ilhas de privilégios”.
uma mulher culta e genéricos, quase chavões Particularmente sutil é
de ânimo espevitado, programáticos, mas não a composição da ideia de
com vocação religiosa assim as vivas lembranças sacralidade da água nos
e militância política que se sucedem ao desertos, obtida mediante
firmemente provadas longo de seu trajeto. a equivocação (a figura
junto à população mais Predominam as que de linguagem equivocatio) ROMANCE
miserável, não apenas referem à chegada de de dois sentidos
do Brasil, mas de vários Maria a Olho d´Água, um articulados na noção de Outros cantos
lugares do mundo. vilarejo do alto sertão “presente”: primeiro, Autora - Maria Valéria Rezende
Tendo isso em mente, nordestino, há 40 anos, o tempo presente dos Editora - Alfaguara
é difícil não pensar e, em segundo plano, as extremos climáticos; Páginas - 152
também que a narradora e de suas andanças por dois depois, a oferta, o dom Preço - R$ 32,90
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PERNAMBUCO, JULHO 2018

Quando as mentiras interessam PRATELEIRA


Mente melhor quem mente lançam sobre a arte e, mulher que não liga para para isso dois fatores: FRANTZ FANON – UM REVOLUCIONÁRIO
baseado em fatos reais, até certo ponto, sobre as a alcunha infeliz que lhe ser a protagonista uma PARTICULARMENTE NEGRO
diz Rabudinha, a pessoas. Rabudinha está dão, desde que paguem moça do interior, que Deivison Mendes Faustino apresenta a trajetória
protagonista de Tudo pode entre dois extremos: o pelo furto encomendado; observa São Paulo política e teórica de Frantz Fanon (1925-1961),
ser roubado. A garçonete, professor que idolatra a da outra que está à beira de forma deslocada, um dos intelectuais mais importantes do século
que sempre está à literatura e o colecionador da morte e quer novas sem naturalizar sua XX, desde a sua infância na Martinica até a
procura de homens e que a transforma experiências; o artista fauna e forma; e as participação nos movimentos de libertação
mulheres para seduzi- em troféu estéril. de jeito instável; os profissões de garçonete na África. Neste ensaio, a obra de Fanon é
los e roubá-los, cria Ela aceita sem que se relacionam em e meliante – ambas revisitada com vistas à sua biografia, de forma
um personagem para questionar o epíteto poliamor. A divisa do demandam o exercício a oferecer ao leitor brasileiro um panorama
fisgar um professor. reificante que lhe segue livro parece ser a frase de observação do outro mais amplo a respeito do contexto e dos
O objetivo é afanar por toda a narrativa, que abre este texto. para sua boa execução. dilemas enfrentados por ele nos momentos
dele um raro exemplar talvez porque se permita Ela entra e sai dessas Tudo pode ser roubado de escrita de cada um de seus textos.
d’O Guarani, de José de ser coisificada sem situações e pessoas é o primeiro romance
Alencar, e entregá-lo a questionamentos da fazendo tanto avaliações de Giovana Madalosso.
um colecionador cuja mesma forma como pragmáticas (como Um bom começo.
descrição física lembra coisifica o outro. O categorizar alunos de (Igor Gomes)
Charles Cosac. A frase livro é construído uma rica faculdade em
entrega algo do que é nesse espaço em que roubáveis, não roubáveis
pensado na trama. as pessoas, ao mesmo e afins pelo vestuário), Autor: Deivison Mendes Faustino
Rabudinha cria tempo, são objetos e quanto considerações Editora: Ciclo Contínuo Editorial
histórias para seus furtos são humanas – ainda mais sensíveis: Pensei que, Páginas: 144
e tem ácidas opiniões que haja momentos de como sempre, o Cícero até tinha Preço: R$ 43
sobre outras ficções – empatia com as vítimas, um ponto, mas era lamentável
notadamente os clássicos o outro é sempre uma que sua cultura servisse ROSA VERMELHA
da literatura do século fonte de renda. Esses para produzir julgamentos. Elogiada pela crítica internacional, esta biografia
XIX. Não é insensível a momentos e a relação Muitas de suas avaliações em quadrinhos apresenta o mundo intelectual
elas, apenas parece não com Tiana, mulher trans são irônicas e ácidas. de Rosa Luxemburgo (1871-1919), importante
ter muita paciência. O que compra os itens Os capítulos curtos, pensadora que fez-se ouvir em uma época em
olhar é como o de alguém furtados para vendê-los a ausência de aspas que mulheres não tinham visibilidade. No caso
enfadado pela obrigação no brechó, nos mostram e travessões, a não de Luxemburgo, o silenciamento era agravado
de ter que lidar com esses uma narrativa que não diferenciação dos por ela ser judia e portar deficiência física. Foi
conhecimentos. A trama é insensível. A proposta diálogos dentro de fundadora do Partido Comunista da Alemanha
se baseia nas mentiras parece ser pensar o alguns parágrafos ROMANCE e assassinada por suas ideias revolucionárias.
criadas pela garçonete humano nas questões conferem ao romance
e pelo comparsa Biel, comportamentais do o ritmo fluido de uma Tudo pode ser roubado
que se chocam de forma cotidiano sem ponderar sucessão de crônicas ou Autora - Giovana Madalosso
fluida e bem-humorada profundamente as capítulos de minissérie Editora - Todavia
com o olhar depreciativo estruturas sociais: vemos (a autora é roteirista Páginas - 192
e objetificante que desejos e escolhas da de TV). Contribuem Preço - R$ 49,90
Autor: Kate Evans
Editora: Martins Fontes
Páginas: 232

Um amor sóbrio Há cinco décadas Preço: R$ 44,90

PRISIONEIROS DA GEOGRAFIA
Por entender que os limites geográficos
A reedição de Carta a nos leva a todo instante a Em Um ano depois, sentir falta de algo que vá determinam as decisões governamentais,
D. traz ao público um pensar nas formas de se a escritora Anne além do tom de crônica em inúmeros setores da vida, o jornalista
texto sóbrio, sincero relacionar com o outro Wiazemsky (1947- – entretanto, essa falta Tim Marshall explica a geopolítica global a
e pungente sobre os e, claro, pensar sobre 2017) conseguiu pode ser suprida por partir da análise de 10 mapas das principais
meandros afetivos de como somos passageiros. criar um panorama outras publicações que regiões estratégicas. Ele abrange desde a
um casamento de quase A presente edição é do maio de 1968 a abordam 1968 por um formação de nações, no passado; situações do
60 anos. O jornalista e sóbria, como o texto. partir de sua situação viés mais sociológico. O presente, como os distúrbios na Ucrânia e o
sociólogo André Gorz O livro pode parecer bastante privilegiada: livro se sustenta apenas papel da China; até questões do futuro, como
(1923-2007), autor de caro, mas isso pode ser casada com Jean-Luc nas histórias relatadas: a crescente competição no território ártico.
Critica da divisão do trabalho, explicado pelo fato de ter Godard, ela transitava o texto de Wiazemsky
cuidava de Dorine, sua sido pensado de forma livremente nos é apenas regular, sem
esposa, acometida por coerente como produto – círculos mais altos qualquer tipo de trato
uma doença degenrativa a capa pouco chamativa é das artes francesas. estético mais elaborado.
incurável. Fragilizados balanceada com o box de Já tinha estrelado Não é envolvente e
pela experiência da cor goiaba que o envolve filmes com diretores chega, por vezes, a ser
precariedade do corpo, e dá destaque (I.G.). importantes. Ela bastante tedioso (I.G.). Autor: Tim Marshall
cometem suicídio abre sua relação Editora: Zahar
juntos. Antes disso, em com Godard naquele Páginas: 288
2006, Gorz escreve uma período turbulento. Preço: R$ 49,90
missiva confessional para Aos que se interessam
Dorine, relembrando por bastidores dessa DICIONÁRIO DA ESCRAVIDÃO E LIBERDADE
os principais pontos classe – como a Cinquenta ensaios procuram aprofundar os
da relação, pedindo história do fracassado estudos sobre a abolição da escravatura no
desculpas por seus erros. projeto de juntar Brasil. Diversos especialistas escrevem sobre a
O amor dele é erotizado Godard e Os Beatles, concepção de liberdade, focalizando desde seu
e, numa sociedade que ou ainda os diálogos entendimento como antônimo de escravidão
enxerga as pessoas idosas com o melancólico até as lutas do passado para obtê-la, as novas
sob vários estereótipos, e machista Jacques formas de trabalho escravo, e as mudanças e
é interessante ver um Brel, por exemplo, perspectivas de futuro para pessoas negras.
homem com mais 80 a obra se torna um
anos ver a esposa dessa prato cheio. Ela não
forma (ainda que esse esboça qualquer tipo
tom seja discreto). Gorz CARTAS de salto interpretativo MEMÓRIA
parte da materialidade do sobre aquele período,
presente corpo idoso para Carta a D. - História de um amor valendo por registrar Um ano depois Orgs: Lilia Moritz Schwarcz
tratar de sentimentos. Autor - André Gorz as reações e dinâmicas Autora - Anne Wiazemsky e Flávio dos Santos Gomes
A carta é para Dorine e Editora - Companhia das Letras de um grupo social Editora - Todavia Editora: Companhia das Letras
para nós, que estamos Páginas - 104 bastante cultuado. Páginas - 176 Páginas: 560
aqui: a correspondência Preço - R$ 44,90 Alguns leitores podem Preço - R$ 49,90 Preço: R$ 74,90

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