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Amanda Ramalho de Freitas Brito

Luiz Felipe Verçosa da Silva


José Antonio Santos de Oliveira
[Orgs.]

Poéticas da
intersecção
ensaios de literatura comparada

TUTÓIA-MA, 2021
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

CONSELHO EDITORIAL
Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp)
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
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(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

P745
Poéticas da intersecção [livro eletrônico] : ensaios de literatura com-
parada / Organizadores Amanda Ramalho de Freitas Brito, Luiz Felipe
Verçosa da Silva, José Antonio Santos de Oliveira. – Tu-tóia, MA:
Diálogos, 2021.

Formato: PDF
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Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-36-9

1. Literatura comparada. 2. Poesia. 3. Literatura – História e críti-ca. I.
Brito, Amanda Ramalho de Freitas. II. Silva, Luiz Felipe Verçosa da. III.
Oliveira, José Antonio Santos de.
CDD 809

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

https://doi.org/10.52788/9786589932369

Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário

Cocar de Maenduassaba: diálogos e sentidos na literatura ���������8

1 - A erotização do feminino nas relações interartes: de O Amor


Natural, de Carlos Drummond de Andrade a Vênus e Pássaro, de
Milton Dacosta................................................................................................................. 16
Roney Jesus Ribeiro

2 - A tragédia na novela passional Amor de Perdição, de Camilo


Castelo Branco: uma comparação com Romeu e Julieta.............38
Yélnya Pereira dos Santos Costa

3 - As formas múltiplas do poetrix..................................................................54


João Goulart de Souza Gomes
Pedro Cardoso

4 - Diálogos e tradução: Chaplin pelas luzes de Drummond e


Castro Pinto....................................................................................................................... 79
Amanda Ramalho de Freitas Brito

5 - Dicionário de Hieróglifos: as cores representando a memória


da fronteira ....................................................................................................................... 97
Sirley da Silva Rojas Oliveira

6 - Intertextualidade, música e poesia: Caetano Veloso faz a


ressignificação do poema “à cidade da Bahia”, de Gregório de
Matos......................................................................................................................................115
Andreza da Silva
Claudia Lopes dos Santos
7 - O Homem medíocre no mundo moderno: uma análise
sobre “Os Ratos”, de Dyonelio Machado, e “A Queda”, de Albert
Camus................................................................................................................................ 140
Marileia de Oliveira Souza

8 - O Grande Mentecapto: entre a peregrinação do pícaro e a


deambulação de Dom Quixote, a crítica social de personagens
itinerantes.........................................................................................................................157
Valdirene Rosa da Silva Melo

9 - A identidade nordestina em três narrativas de ficção


científica............................................................................................................................ 177
Ingrid Vanessa Souza Santos
Rosângela de Melo Rodrigues

10 - Sobre as cartas-ensaio de José de Alencar: apontamentos �� 199


Patrícia Regina Cavaleiro Pereira

11 - Entre intertextualidade e cinema: Nelson pereira dos Santos


faz a ressignificação do conto “A terceira margem do rio”, de
Guimarães rosa.............................................................................................................214
Andreza da Silva

12 - A monumentalização da literatura: a crônica e a memória


como ferramenta literária no debate entre história e ficção �� 238
May Fran Selares Facundes

13 - Como que cifrado entre as feridas do luto.................................... 258


Gustavo Augusto de Abreu Clevelares

14 - Da lírica provençal à languidez florbeliana: o cruzamento de


vozes em Soneto, de Gilka Machado........................................................... 276
Luiz Felipe Verçosa da Silva
15 - O maravilhoso em “A Bela e a Fera”: uma análise
comparativa do conto ao cinema............................................................... 302
Andressa Rayane de Brito Barbosa Costa

16 - A perda paterna em José Luís Peixoto e Chimamanda Ngozi


Adichie.................................................................................................................................317
José Antonio Santos de Oliveira

17 - A poesia diaspórica de Solano Trindade e Elisa Lucinda � 339


Elaine Morais Lourenço
Amanda Ramalho de Freitas Brito

18 - Permanências e continuidades da estética hegeliana na


crítica poética de Octávio Paz [1914-1998]............................................. 355
Maycon da Silva Tannis

19 - Poetnografias do Gozo: o Voyeurismo catártico na poética


decolonial de Elisa Lucinda................................................................................ 378
Pedro Henrique Sales Pereira
Amanda Ramalho Freitas Britto

20 - Vozes insólitas da literatura brasileira: pessimismo e


melancolia em Augusto dos Anjos e Machado de Assis............. 395
Aline Ferreira Pereira
Amanda Ramalho de Freitas Brito

21 - Narrativas da diversidade: identidade diaspórica nos contos


de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane.................................................411
Ronaldo Gomes dos Santos

Sobre os organizadores........................................................................................ 437

Sobre os autores e autoras.................................................................................438

Índice remissivo..........................................................................................................445
Cocar de Maenduassaba1:
diálogos e sentidos na literatura

"Memória iluminada, galeria onde vaga a sombra do que espero


Não é verdade que virá. Não é verdade que não virá"

- Alejandra Pizarnik

A edição deste volume surgiu das nossas pesquisas sobre Lite-


ratura Comparada na Contemporaneidade, que têm sido desenvol-
vidas desde 2017 no Grupo de Estudos em Literatura Comparada (GE-
LIC), coordenado pela professora de Literaturas de Língua Portuguesa,
Dra. Amanda Ramalho (UFPB), em colaboração com os pesquisado-
res José Antonio e Felipe Verçosa (UFPE). Nos rastros do dialogismo,
da intertextualidade, da intersemiose e do antropofagismo literário,
propomos a crítica comparada como itinerância de leituras e olhares
diversos sobre o fenômeno literário que perfaz a encruzilhada das lin-
guagens e das áreas plurais do conhecimento crítico e científico.
Em Estudos Comparados: teoria, crítica e metodologia, Abdala
Junior (2014, p. 11) nos diz que “o conhecimento de uma literatura en-
volve o estudo das redes que ela estabelece no plano interno e ex-
terno de uma região ou nacionalidade e, simultaneamente, nas re-
des mantidas com outras áreas do conhecimento”. Eis a justificativa
que move as nossas atividades de leitura e de recepção da Literatura,
sobretudo, da Literatura Contemporânea, uma vez que pela fronteira
da dialogia, encontramos a escritura-réplica da história, da cultura

1 Palavra do tupi usada para nomear a memória. In: BARBOSA, A. Lemos. Pequeno vocabulário tupi-
português. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1951, p. 82.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 8


e da sociedade numa compreensão sincrônica e comunicativa de-
terminada pelas relações estabelecidas entre as literaturas e entre
as literaturas e as culturas e as artes. Por isso, consideramos a críti-
ca comparativa como metacrítica, a que perfila a consciência textual
através das remissões ou da intersecção de memórias, quer seja do
extraliterário ou das efabulações estéticas.
Considerando o caráter intervalar da literatura, o que está na lite-
ratura, mas é mais do que literatura, como arguiu João Alexandre Bar-
bosa, em A leitura do intervalo (1990), propõe-se a leitura do intervalo
(dos espaços que precisam ser preenchidos pelo leitor/pesquisador)
a partir de uma crítica comparada que nomeamos sincrônico-recep-
tiva, uma vez que analisa o texto literário pelas bordas da memória-
-percepção, ou das relações que nem sempre são coordenadas pelo
texto, mas, percebidas, nas literaturas, pelo contexto da recepção,
erguida pela intersecção de memórias como um cocar que borda o
tempo presente enquanto traduz o passado.
Os textos presentes nesta coletânea foram escritos por diferen-
tes autores e autoras que desenvolvem pesquisas na graduação e na
pós-graduação, envolvidos ou não com o Grupo de Estudo GELIC. São
apresentadas diferentes abordagens críticas, teóricas e metodológi-
cas, que se aproximam pela movência do diálogo. Nesse sentido, res-
saltamos que o leitor poderá ler este livro de modo não linear, aglu-
tinando-se à perspectiva da literatura como obra intervalar e aberta
e à metacrítica comparativa, que lhe convida a compreender o diá-
logo como espaço autêntico de leitura, por isso, dispensa métodos
sequenciais de interpretação e recepção. Assim, Poéticas da inter-
secção: ensaios de literatura comparada reúne textos críticos sobre
diferentes literaturas e temas.
O artigo de Roney Jesus Ribeiro, A erotização do feminino nas rela-
ções interartes: de O Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade
a Vênus e Pássaro, de Milton Dacosta, sintetiza a aura deste e-book:
refletir as linguagens a partir dos seus elos multimodais e multivo-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 9


cais. Sua proposta compreende as pulsões sexuais por meio de uma
perspectiva intersemiótica, que une o texto drummondiano à imagem
poética de Milton Dacosta.
Seguindo esta mesma linha de análise comparativa, A tragédia
na novela passional "Amor de perdição", de Camilo Castelo Branco:
uma comparação com "Romeu e Julieta", de Yélnya Pereira dos San-
tos Costa, leva-nos a uma reflexão: qual o limite do amor? E assim
como no texto de Ribeiro, vemos uma similaridade na temática do
afeto, que mesmo se manifestando por várias perspectivas, está re-
fletido, nas duas análises, a partir de sua configuração mais intensa:
o desejo. Entretanto, a destacar, Costa mostra como essa face do de-
sejo se torna uma tragédia ao passo em que rompe com a estrutura
racional da modernidade.
Já João Goulart de Souza Gomes e Pedro Cardoso, autores de As
formas múltiplas do poetrix, pensam a linguagem em sua via de con-
fluência. Pois a poetrix, forma de escrita poética dialógica,é construída
e se reverbera pelo espaço da expressão, ou seja, a poetrix é um ca-
minho de sentir e captar a linguagem em todos os seus processos de
significação. Sem se limitar, portanto, a um campo estético-literário,
conjugando experiências sínteses do fazer poético.
Exercício crítico percebido, também, no trabalho de Amanda Ra-
malho de Freitas Brito: Diálogos e tradução: Chaplin pelas luzes de
Drummond e Castro Pinto, que, ao estabelecer uma correlação entre
Chaplin, Drummond e o paraibano Sérgio de Castro Pinto, nos sinaliza
para a própria condição da linguagem enquanto elemento enuncia-
tivo: que é a sua possibilidade de pensamento e representação de
signos e símbolos do mundo e do viver.
O traço da dialogia marca o fio condutor do artigo Dicionário de
Hieróglifos: as cores representando a memória da fronteira, de Sirley
da Silva Rojas Oliveira, que se centra na análise das marcas da escri-
ta do sul mato-grossense Sérgio Medeiros, que traduz a oralidade de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 10


sua terra natal para as linhas da arte, em uma poesia visual que ma-
peia as cartografias de suas reminiscências.
As marcas geográficas e sensoriais também estão presentes no
texto: Intertextualidade, música e poesia: Caetano Veloso faz a res-
significação do poema “à cidade da Bahia”, de Gregório de Matos,
escritos por Andreza da Silva e Claudia Lopes dos Santos. As autoras
observam a simbiose musical que Caetano Veloso faz do poema de
Gregório de Matos, conduzindo-nos a sentir e  visualizar as veredas da
cidade de Bahia: com suas belezas e mazelas sociais.
Em O Homem medíocre no mundo moderno: uma análise so-
bre “Os Ratos”, de Dyonelio Machado, e “A Queda”, de Albert Camus,
Marileia de Oliveira Souza discute, comparativamente, a condição do
sujeito na modernidade. A pesquisadora propõe um debate sobre os
desdobramentos da sociedade moderna, abordando as suas contra-
dições e implicações no processo constitutivo da mediocridade. Os
protagonistas dos romances, ainda que em contextos distintos, mos-
tram-se fragmentados, o personagem de Os Ratos se encontra con-
finado diante das complicações do presente, enquanto o de A queda
mostra-se submergido em conflitos existenciais, em ruminações do
passado. Assim, apreendemos a crítica temporal da modernidade a
partir da impossível vida distópica.
No capítulo O Grande Mentecapto:  entre a peregrinação do píca-
ro e a deambulação de Dom Quixote, a crítica social de personagens
itinerantes, Valdirene Rosa da Silva Melo produz uma leitura dialógica
de O grande mentecapto, de Fernando Sabino, a partir de reflexões em
torno do romance picaresco e da clássica obra de Cervantes. A leitu-
ra da autora granjeia densidade na medida em que a pesquisadora
problematiza a complexidade do personagem Viramundo, haja vista
que este não consegue se limitar às especificidades de um pícaro,
pois também apresenta, por meio da intertextualidade, semelhanças
com Dom Quixote, dentre as quais se ressalta a temática do desloca-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 11


mento geográfico movido pelo sentimento de não pertencimento e
pela busca utópica de um espaço que é mais interior do que exterior.
O capítulo A identidade nordestina em três narrativas de ficção
científica, das autoras Ingrid Vanessa Souza Santos e Rosângela de
Melo Rodrigues, propõe discussão relevante sobre o sertãopunk como
marcas da ficção científica nordestina e sobre a quebra de estereóti-
pos xenofóbicos, no qual se enfatiza a leitura de Bacurau (2019), Morte
Matada (2020) e Virou mar (2020). O ensaio aborda a mudança ocor-
rida no cinema nordestino – ao introduzir aspectos de ficção científica
impulsionada pelo clima político opressor da contemporaneidade ou
da modernidade tardia. Por essa razão, as narrativas cinematográfi-
cas estudadas encontram-se tingidas pelas tintas da distopia.
No capítulo Sobre as cartas-ensaio de José de Alencar: aponta-
mentos, Patrícia Regina Cavaleiro Pereira discorre sobre a produção
epistolar do século XIX, sistematizando-as em públicas e privada. Em
seguida, reflete a respeito das cartas de José de Alencar, sobre como
suas cartas privadas estão desprovidas de preocupação estilístico-
-literária, ao passo em que, nas publicadas nos jornais, vê-se como o
prosador romântico pondera sobre sua concepção de literatura, seu
crivo e, por conseguinte, elementos que apontam para a sua criação
literária.
A relação da literatura com outras artes é estudada novamente
no artigo Entre intertextualidade e cinema: Nelson pereira dos santos
faz a ressignificação do conto “A terceira margem do rio” de Gui-
marães rosa, no qual Andreza da Silva analisa a adaptação do conto
rosiano a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin e Julia
Kristeva. Nesse contexto, por meio da intertextualidade entre as obras,
verificam-se vários elementos similares, mas a pesquisadora ressalta
também os acréscimos/modificações pelos quais perpassou a nar-
rativa, ao mesmo tempo em que chama atenção para o pastiche –
técnica usada por Nelson Pereira - o qual possibilita a concatenação

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 12


de fragmentos de textos – neste caso, recorte dos contos de Guima-
rães Rosa, para criação do enredo cinematográfico.
Uma abertura para pensar as aproximações do texto literário com
outras disciplinas pode ser apreciada em A moumentalização da li-
teratura: a crônica e a memória como ferramenta literária no debate
entre história e ficção, em que May Fran Selares Facundes apresen-
ta, por meio do gênero crônica, a relação crítica entre a Literatura e
a História. Para essa reflexão, Fecundes aproxima o conceito de Mo-
numento ao de Literatura, a fim de problematizar como a atividade
literária tem a capacidade de legitimar as narrativas históricas. Essa
ideia angaria forma à medida que o pesquisador compreende a lite-
ratura no seu estreitamento com a realidade, o qual concede à obra
literária, mesmo com sua subjetividade, a capacidade de ser instru-
mento histórico.
Como que cifrado entre as feridas do luto, o autor Gustavo Au-
gusto de Abreu Clevelares interpreta e analisa o sentido antitético do
signo pallaksch, retirado poema vanguardista de Paul celan, Tübingen
Janeiro, como rastros de uma língua estranha, infamiliar, que nomeia
a experiência plástico-poética do luto na obra Diários públicos (2013)
de Leila Danziger.
No capítulo Da lírica provençal à languidez florbeliana: o cruza-
mento de vozes em soneto, de Gilka Machado, Luiz Felipe Verçosa da
Silva propõe uma leitura intersecional em torno das poesias de Gilka
Machado e de Florbela Espanca. Para isso, o pesquisador recorre aos
aspectos biográficos das autoras mencionadas, bem como aos mo-
vimentos literários com os quais elas dialogam, ressaltando, assim, o
Trovadorismo e o Simbolismo. Nesse sentido, as poéticas das autoras,
apesar de apresentarem uma estrutura clássica, confluem ao poten-
cializarem o caráter transgressor de suas temáticas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 13


O ensaio O maravilhoso em “A Bela e a Fera”: uma análise com-
parativa do conto ao cinema, de Andressa Rayane de Brito Barbosa,
traça uma leitura dialógica entre as narrativas literárias e cinemato-
gráficas. O texto desdobra-se, sobremodo, na presença do maravi-
lhoso, que se constrói, dentre vários aspectos, na figura emblemática
da fada. A análise mostra as vicissitudes sofridas pelo longa-metra-
gem, que inseriu novas personagens em seu enredo, ao passo em que
diminuiu a presença – não a importância – da fada para a constru-
ção da narrativa. Neste trabalho, portanto, verifica-se o processo de
adaptação como possibilidade de leitura comparativa.
Em A perda paterna de José Luís Peixoto e Chimamanda Ngozi
Adichie, José Antonio Santos de Oliveira percorre as veredas da dor de
perder o ser amado, verificando como os traços biográficos dos au-
tores emergem em suas narrativas. Além de problematizar a relação
entre o amor à imagem do pai e o luto, o ensaio verifica um conjun-
to de semelhanças entre as obras estudadas, já que tanto o escritor
português quanto a autora nigeriana apresentam o cenário inerente
à dor da perda e o uso da memória para evocar os tempos com os
pais falecidos.
O A poesia diáspora de Solano Trindade e Elisa Lucinda, de Elai-
ne Morais Lourenço e Amanda Ramalho de Freitas Brito, apresenta a
confluência temática da literatura afro-brasileira, levando em con-
sideração como os poetas estudados partem de um conjunto com-
partilhado de imagens, o qual encontra sua gênese no fato de serem
pessoas negras que escrevem a partir de suas identidades, ainda que
em tempos distintos. O recorte usado pelas pesquisadoras depreen-
de como a poesia de Lucinda e Trindade possuem aspectos comuns,
a exemplo da musicalidade, ancestralidade e memória.
O ensaio Permanências e continuidades da estética hegeliana na
crítica poética de Octavio Paz [1914-1998], de Maicon da Silva Tannis,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 14


propõe a metacrítica do diálogo entre Paz e Hegel para fundamentar
reflexões percucientes sobre o próprio fazer literário.
Em Poetnografias do Gozo: O Voyeurismo catártico na poética
decolonial de Elisa Lucinda, Pedro Henrique Sales Pereira e Amanda
Ramalho Freitas Britto encetam suas elucubrações a partir dos imbri-
camentos entre os conceitos de poesia e erotismo, para, em seguida,
desnudarem as nuances da poesia de Elisa Lucinda. O ensaio, além
de discutir sobre o caráter verossímil de O jardim das cartas (2016),
aponta como a obra fomenta no leitor o sentimento de Voyeurismo.
O capítulo Vozes insólitas da literatura brasileira: pessimismo e
melancolia em Augusto dos Anjos e Machado de Assis, de Aline Ferrei-
ra Pereira e Amanda Ramalho de Freitas Brito, apresenta, embasado
no pensamento de Schopenhauer, o pessimismo como ponto de con-
vergência entre as obras de Machado e Augusto dos Anjos, inclusive
porque ambos os autores recuperam a mesma imagem: a do verme,
cuja semântica aponta para o efêmero da vida e, destarte, destruição
da matéria. A diferença entre as duas obras é oriunda da melancolia,
pois o protagonista do romance machadiano rechaça essa condição,
enquanto o eu lírico do poeta paraibano a cultua.
No último texto, Narrativas da diversidade: Identidade diaspórica
nos contos de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, Ronaldo Gomes
dos Santos compara obras de mulheres negras do Brasil e de Mo-
çambique, ao mesmo tempo em que enfatiza a presença pujante da
escrita feminina na contemporaneidade. Em seguida, o autor observa
como escritoras, mesmo distantes geograficamente, convergem nas
formas e nas temáticas presentes em suas narrativas, uma vez que se
insurgem diante das diversas formas de exclusões sociais, quebrando
estereótipos, sobretudo, no que concerne à figura da mulher negra. A
busca de uma identidade, nessa perspectiva, verifica-se recorrente
tanto em Evaristo quanto em Chiziane, a qual se verifica na medida
em as personagens não se restringem aos valores conservadores de
uma sociedade falocêntrica.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 15


CAPÍTULO 1

A erotização do feminino
nas relações interartes:
de O Amor Natural, de Carlos
Drummond de Andrade a Vênus e
Pássaro, de Milton Dacosta
Roney Jesus Ribeiro

DOI: 10.52788/9786589932369.1-1
Introdução

Este estudo tem como objetivo apresentar algumas discussões


concernentes as relações interartes1 na erotização do feminino entre
ilustração da série Vênus e Pássaro, de Milton Dacosta e, poesias da
obra O Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade. Este estudo
se justifica do interesse em apresentar discussões acerca do concei-
to de homologias, para explicar à semelhança, a aproximação, a fu-
são ou os limites fronteiriços entre duas ou mais linguagens artísticas.
Neste sentido trabalharemos na perspectiva das relações interartes
entre a poesia e ilustração. Para aprofundar as discussões, refletire-
mos acerca do diálogo entre a pintura e poesia tendo pelo víeis das
tradições que concebem maiores similaridades e proximidades entre
estas representações estéticas. Depois realizaremos uma interpreta-
ção estética nos atentando às relações interartes entre as ilustrações
e poesias.
Este artigo se constituirá de algumas percepções acerca da re-
lação interartes, ou em outras palavras, estudos comparados, acerca
da relação entre ilustração e poesia. Por isso, apesar de a temática
em questão nos parecer instigante e de grande relevância não con-
seguiremos expandi-la da forma como gostaríamos. Isso nos exigiria
espaço e tempo maior para as devidas discussões. Sendo assim, este
artigo levará em conta algumas interpretações estéticas acerca da
ilustração e da poesia enquanto elementos de uma construção sim-
bólica cujo diálogo se fera real a partir da relação interartes.

1 Termo que vem sendo usado com frequência no âmbito dos estudos que se dedicam a pesquisar
a relação de sentido, proximidade, complementaridade entre duas ou mais linguagens artísticas.
Comumente conhecido como estudos comparados, interssemiose, entre outros. Clüver (1997) define
que a relação interartes é “a investigação das inter-relações entre as “artes” e a abordagem de
assuntos em estudos culturais e outros discursos transdiciplinares envolvendo textos em vários
“artes””. Conforme reitera o autor, “focalizando a primeira orientação de cunho primariamente
semiótico, trata de questões de representação, intertextualidade, combinação e fusão de códigos,
ekphrasis, transposição intersemiótica, adaptação e o papel do leitor” (CLÜVER, 1997, p. 37).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 17


O discurso verbal da normal culta da língua possibilita grande
riqueza na construção e sentido da poesia. Em sentido contrário, a
poesia, a pintura, a ilustração, a serigrafia e, demais estéticas da vi-
sualidade percorre caminho distinto para sua realização. As repre-
sentações da visualidade se constituem a partir da relação de traços
e cores e, a poesia de esquemas e palavras. Mesmo que a tradução
das linguagens visuais não se dê por meio do discurso verbal, elas
não deixam de ter forte carga estética e simbólica.
O estudo se dividirá em três tópicos que serão desenvolvidos da
seguinte forma: Inicialmente falaremos sobre as relações de homo-
logias, tratando dos aspectos históricos que conferem proximidade
entre linguagens artísticas. Depois trataremos dos diálogos e relações
linguagens artísticas, mais especificamente entre a pintura e poe-
sia. Por fim, realizaremos uma interpretação entre poesias de Carlos
Drummond de Andrade em diálogo com as ilustrações de Milton Da-
costa. O estudo bibliográfico que realizaremos tem como corpus a
obra poética O Amor Natural, escrita pelo poeta no decorrer de sua
vida, porém publicada postumamente a sua morte. A obra poética é
composta por poemas de evocações eróticos intimamente ligados
ao corpo e desejo feminino. A obra em discurso foi a convite do poeta,
ilustrada por artista Milton Dacosta, artista modernista brasileiro.
Empenhados em realizar uma interceptação que desvele esteti-
camente a relação de sentido e complementaridade entre poesias e
ilustrações para o conjunto da obra O Amor Natural, o presente estudo
se desenvolverá a luz das contribuições teóricas, críticas e estéticas
de Basbaum (2012), Dalvi (2009), Du Bos (2005), Cortez (2009), Frei-
tas (2009), Gonçalvez (1994), Lichtestein (2005), McLuhan (1998; 1999),
Mello (2004), Muhana (2002), Prado (2009), Ricoeur (2000) e, outros.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 18


Homologias entre pintura e poesia

No processo que envolve a evolução da Literatura e da História da


Arte muitos autores e artistas plásticos produziram obras que, mes-
mo sem sua intenção, retomava a outra obra na mesma linguagem
ou não. Nas palavras de Alexandre Siqueira de Freitas (2009, p. 145),
isso ocorria porque as “metáforas fazem o elo entre as artes e pare-
cem trazer consigo algum tipo de tradução”. As linguagens artísticas
podem retomar uma a outra. Esse processo se constitui em uma tra-
dução, o que, contribui para reverberar uma a outra. Conforme acres-
centa Freitas “[...] podemos crer que as linguagens artísticas guardam
uma correspondência essencial na expressão de conteúdos cultu-
rais”. Essas correspondências nascem “da história e transitam pelas
várias linguagens, que guardam entre si uma afinidade, não uma se-
melhança, por estarem carregadas das intenções daquela situação
de tempo e espaço” (REIS apud FREITAS, 2009, p. 145).
Embora tenhamos uma ideia distinta da defendida, não descon-
sideramos as colocações realizadas por Freitas (2009). Acreditamos
que a relação interartes transcende ao que pesquisador compreende
como tradução estética. As linguagens artísticas funcionam como re-
presentações simbólicas capazes de transpor umas às outras. Entre
algumas manifestações ou linguagens artísticas pode haver grande
semelhança. Os estudos comparados em artes2 buscam mecanismos
capazes de explicar a possibilidade de proximidade entre as artes por
meio dos estudos analíticos, que visam questionar as características
expressivas das linguagens artísticas. É na Antiguidade Clássica a
partir dos estudos de Platão que, surgem às primeiras experimenta-
ções estéticas acerca da imbricação de interpretações, analogias e

2 Compreendemos por artes todas as linguagens artísticas relacionadas a literatura, a música, as


artes cênicas, as artes visuais e plásticas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 19


comparação entre poesia e pintura. Posteriormente, Aristóteles ins-
pirado nos estudos de Platão, amplia (ou aprofunda) as reflexões de
seu mestre, colocando novas proposições no tocante as relações de
semelhanças entre artes.
Esclarecendo melhor sobre o surgimento dos estudos da proximi-
dade (ou similaridade) entre as artes, Lichtenstein (2009, p. 9), diz que
“a partir do Renascimento, a maioria das pessoas que escrevem so-
bre pintura irá se dedicar a um exercício literário que, além do artifício
retórico típico do discurso do elogio, adquire rapidamente o estatuto
de um gênero: a comparação entre artes”. De acordo com Recoeur
(2000), neste período eram vastos os números de teóricos da poesia
que defendiam a grande semelhança entre as artes (escultura, pin-
tura, dança, teatro, poesia, etc.). Os apontamentos e defesas acerca
dessa semelhança eram realizados calcados sob a perspectiva me-
tafórica. Isso ocorria porque no período ainda não havia um conheci-
mento especificamente teórico concernente a arte pictórica. Confor-
me Fraga (2018) nos,

[...] no símile Ut pictura poesis (HORÁCIO, 1984), nos três caracteres peculiares
da pintura, em primeiro lugar: a distância, a luz e o deleite. A pintura e a poesia
assemelham-se na criação de imagens que evocam o olhar, diferenciando-se
apenas no seu objeto. Enquanto a poesia se ocupa da imagem pela explora-
ção da palavra, a pintura utiliza-se de elementos: espaço, cor, linha, forma, nos
quais se instauram o visual (FRAGA, 2018, n.p.).

Um estudioso que tem se dedicado a ampliar percepções críti-


cas acerca do símile Ut Pictura Poesis, que problematiza a perspectiva
histórica da semelhança e proximidade entre literatura e as artes é
Aguinaldo José Gonçalves. Em Laokoon Revisitado: Relações homoló-
gicas entre texto e imagem, Gonçalvez (1997), nos presenteia com a
oportunidade de melhor compreensão das relações de homologias
entre pintura e poesia. Na obra em questão, são investigadas a pin-
turas e poesias de grandes nomes da arte e da literatura mundial.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 20


Conforme defende Gonçalves, “não há necessidade de se consultar
nenhum tratado de estética comparada, para que seja possível per-
ceber as relações mais imediatas entre as artes, em geral, e entre li-
teratura e pintura, em particular” (GONÇALVES, 1997, p. 18).
Sobre a relação de proximidade e correspondência entre a pin-
tura e a poesia, Souza (2016, p. 95), “ponderou acerca da poesia não
ser apenas texto e sobre a pintura não se reduzir à representação de
imagens. Essa perspectiva teórica tem um longo percurso e traçar o
seu roteiro é acompanhar a própria história da poesia, da pintura e
das reflexões sobre as duas artes”. Isso contribui para o reconheci-
mento de que há uma longa tradição nos esforços para explicar a
construção da correspondência entre a pintura e poesia. Para alguns
teóricos a proximidade entre tais linguagens é um movimento inevi-
tável e, que tornou os estudos comparados da literatura e artes cada
vez mais possíveis.
Segundo Mello (2004, p. 9), as “influências recíprocas da literatu-
ra e da pintura, em uma tradição humanista, inscrevem-se no recur-
so retórico clássico de ekphrasis”. Na tentativa de explicar e pudesse
exemplificar este recurso retórico, acessamos a descrição do escudo
de Aquiles na passagem de Ilíada, de Homero poeta épico da Grécia
Antiga. Acreditamos que a respectiva passagem seja um exemplo
claro de ekphrasis. Reitera Souza (2016, p. 96), que em ilíada, Homero
“[...] nos leva a perceber detalhes do objeto em concomitância com
o desenvolvimento das ações a partir da combinação da poeticidade
plástica com a linguagem poética, o que configura a continuidade da
homologia estética entre o verbal e o visual”. Muitos textos literários na-
turalmente criam as imagens pictóricas, assim como, muitas pinturas a
partir da linguagem visual permitem a construção de um texto literário.
Tais recursos são importantes para a realização do diálogo interartes.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 21


Justifica Fraga (2018), que desta homologia, a pintura e a poesia
são representações estéticas que se relacionam. A proximidade entre
a pintura e a poesia decorre do fato de haver certo distanciamento
com profunda figuração e abstração, de modo que estas linguagens
artísticas, mesmo com formas de constituição distintas, são espe-
cificamente próximas esteticamente. Por isso, surgirão curiosidades
quanto ao fato de muitos poetas serem pintores (e vice-versas) que
faziam uso dos dois modos de expressão artística (GONÇALVES, 1994).

Diálogos interartísticos: a pintura e a poesia

Ampliando os diálogos inicias acerca das homologias entre pin-


tura e poesia, enfocaremos aqui mais especificamente sobre os diálo-
gos interartísticos que a pintura pode estabelecer com a poesia. Nes-
se sentido, buscaremos explicar que as representações artísticas são
manifestações que dialogam incessantemente entre si. Como discu-
tido, a poesia faz parte de uma construção sígnica onde os recursos
sintáticos e lexicais de sua construção se combinam. Essa combina-
ção é o que possibilita grande multiplicidade interpretativa poética.
A elasticidade estética da língua materna, atribuir maior riqueza ao
sentido do texto poético. Diferente da poesia, a pintura segue outro
caminho na construção de sentidos. Como representação própria da
visualidade, ela se constrói a partir da junção de traços, de cores e do
simbólico. Mesmo que a pintura não se manifeste pelo discurso ver-
bal, ela não deixa de portar forte carga expressiva.
O diálogo entre as linguagens artísticas a partir das relações in-
terares não se esgotam e não se limitam apenas à pintura e a poe-
sia, ou seja, os estudos comparados podem ocorrer na relação entre
diversas outras linguagens artísticas. Como nosso interesse se pauta
em analisar as relações entre a ilustração e a poesia, daremos maior

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 22


atenção a essas linguagens artísticas. As linguagens verbais e visuais
estão espalhadas por toda parte. Elas se inserem todos os contex-
tos, por mais distintos que eles sejam. No processo comunicativo e
de interação social os seres humanos fazem uso destas linguagens o
tempo todo. As placas de trânsito, a buzina de carro, o semáforo, os
autdoors, as fachadas de estabelecimentos comerciais e demais si-
nalização são símbolos de comunicação que nos orienta socialmente
a partir do código verbal ou visual. Acerca disso Cortez (2009), explica
que,

O nosso alimento interior não se resume mais nos textos. O momento histórico
atual é conduzido pelos choques sensoriais, em especial pelos olhos e ouvidos.
Ao simples toque de uma tecla, chegam-nos imagens e sons de qualquer parte
do mundo. Este processo é, sem dúvida, irreversível (CORTEZ, 2009, p. 360).

Nos dias hodiernos o apelo visual na sociedade é dinâmico e fre-


nético. A visão é o sentido corporal caracterizador do momento atual.
Isso ocorre porque a visualidade além de uma ação imediata, seu uso
cresceu consideravelmente. Isso justifica a valoração dos aspectos
da visualidade com o surgimento da pintura, uma linguagem artísti-
ca carregada de expressão estética, que exigia do espectador maior
exercício e disciplina do olhar. Também justifica o esgarçamento da
pintura, ação que deu espaço ao surgimento da fotografia, depois o
cinema e, recentemente o celular e a internet. Essas linguagens artís-
ticas e recursos geram forte concorrência, forçando o consumidor a
se apropriar cada vez mais dos aspectos visuais, deixa a linguagem
verbal em segundo plano.
De acordo com Kroin e Cruz (2017, p. 73), “a linguagem verbal não
se mantém estanque, isso ocorre evidentemente com grande de-
senvolvimento na instância do artístico, espaço em que ela coexiste
numa relação de proximidade indelével com o visual”. Ao tentarmos
estabelecer relações entre diferentes linguagens artísticas caminha-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 23


mos rumo à aproximação entre elas. A pintura e a poesia são repre-
sentações artísticas que apresentam grande proximidade. Entretanto,
é fundamental observar suas particularidades “mas tendo-as como
complexos criacionais da sensibilidade humana, linguagens diferen-
tes de o homem se expressar pelo sublime que se configura a arte. É
ressaltar a heterogeneidade dos sistemas sígnicos e comensurar a
relação entre eles” (Ibid, 2017, p. 73).
O homem não se constitui sujeito social isolado do mundo e das
interações. Para ser criativo, ele precisa existir nas relações sociais, a
partir da comunicação com outras pessoas. Criando arte o homem
deixa de ser autônomo porque pratica o efeito criativo estético e tam-
bém transmite informações artísticas para outras pessoas ou artistas.
Essas informações são absorvidas pelo código verbal, pelo visual ou
na relação entre os dois. Sendo assim, daí é surge à necessidade do
fazer artísticos, como possibilidades de aproximação, comparações
e intertextualidade entre o código verbal e o visual. Entretanto, “o que
se cria não se cria e nem se sustenta no vazio; depende das relações
e as relações são essenciais, sem elas acaba-se a arte, acaba-se o
homem” (KROIN; CRUZ, p. 73).
A pintura e a poesia têm foca estética separadamente. Mas jun-
tas, essas linguagens revelam as expressões do ser humano enquanto
sujeito imperfeito, inquieto e, em constante transformação. Juntas es-
sas linguagens, revelam a essência humana. A pintura e a poesia dão
“forma às coisas a partir de seu olhar particular, também de chamar
a atenção ao seu próximo, dar um “toque de Midas” e, assim, impres-
sionar de diversas formas os outros homens. Deleitá-los, instigá-los,
tocá-los em sua sensibilidade, entre outras ações possibilitadas pelo
fazer artístico” (KROIN e CRUZ, 2017, p. 73). Ao tentar relacionar a pintura
e a poesias, muitos teóricos defendem que a relação interartes é uma
das provas mais autenticas do fazer-se humano. Isso ocorre porque a

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 24


possibilidade dos estudos comparados ou relação entre estéticas ar-
tísticas é uma ação inerente ao homem. No que tange a equivalência
entre a pintura e a poesia, Muhana (2002) acrescenta que,

Assim como o pintor imita a natureza, ações e semelhanças de homem ou de


qualquer animal, ou parte da terra, ou do mar, assim a pena retrata tudo [...] da
poesia é próprio uma muda facúndia, da pintura um eloquente silêncio: este
se cala naquela, e aquela razoa neste [...] a pintura [...] deleita a doutos e a
ignorantes, o mesmo obra em ambos a poesia, porque os doutos se recreiam
com a boa invenção e sua alegoria, e os ignorantes com as cadências do verso
(MUHANA, 2002, p. 72).

Aproximando a relação de correspondência entre pintura e po-


esia ao que propomos neste artigo, interpretamos que, a poesia de
Carlos Drummond de Andrade e a ilustração de Milton Dacosta são
linguagens extraídas no plano da significação estético-cultural. Como
discutido, cada uma dessas representações segue caminhos distin-
tos e se realizar no plano estético. Embora, essas linguagens artísti-
cas tenham particularidades distintas, elas se relacionam. A pintura
se constitui do código visual e, a poesia se realiza a partir da verbal.
Embora essas expressões estéticas sigam caminhos diferentes em
seu ato de existir no mundo cultural, elas podem se aproximar a partir
de elementos simbólicos. Tal questão é percebida em algumas ilus-
trações e poemas da obra O amor Natural, de Carlos Drummond de
Andrade, que interpretaremos a diante.

A erotização do feminino nas relações interartes:


a ilustração e a poesia

A ilustração e a pintura seguem o mesmo trânsito sígnico para


sua realização no plano visual. Mesmo que a homologia tenha se pre-
ocupado em explicar as aproximações ente pintura e poesia, aqui nos

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 25


dedicaremos a realizar interpretações acerca da aproximação en-
tre a ilustração e a poesia reunidas na obra poética O Amor Natural3,
de autoria de Carlos Drummond de Andrade. A obra em questão traz
ilustrações da série Vênus e Pássaro, produzidas por artista Milton Da-
costa. Como discutido, os estudos comparados ou relação interarte
entre representações artísticas de dois ou mais artistas é uma estra-
tégia muito recorrente no cenário artístico. Por isso, neste tópico de
nosso estudo, tentaremos nos auxiliar nas considerações acerca das
homologias e nas relações interartes para interpretar o diálogo entre
o código visual e verbal em O Amor Natural, de modo a tentar mostrar
que, as ilustrações e as poesias são quase inseparáveis no conjunto
da obra em questão.

Figura 1 - Capa de O Amor Natural (1993). Brasil.

3 De acordo com Dalvi (2009), o poeta se encarregou de ordenar os textos e organizar a publicação,
mas por motivos particulares, preferiu adiar a publicação da obra que se concretizou em 1992,
aproximadamente cinco anos após sua morte. Em 1993, a obra foi reeditada duas vezes. No projeto
original da obra há 18 ilustrações de Milton Dacota, inspirados na série Vênus e Pássaro

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 26


Nas ilustrações da série Vênus e Pássaro, Dacosta dá novo senti-
do a deusa mitológica, imprimindo nela um esplendor sensual capaz
de desconstruir muitos estereótipos estéticos. A obra poética O Amor
Natural se constitui da reunião de poemas com forte pulsão erótica.
Conforme Prado (2009) e Santos (2018), nos poemas da obra, Drum-
mond imprimiu um discurso próprio e por vezes muito pessoal. Os po-
emas são repletos de vivacidade e de uma expressiva sensualidade
descomunal. Nesses poemas, o poeta desbrava o corpo feminino, na
medida em que busca na fluidez e sensualidade do discurso poético, a
nudez da própria alma. Acerca da obra O Amor Natural, enfocaremos
a relação de diálogos entre as ilustrações, de Dacosta e as poesias de,
Drummond. Para isso, realizaremos algumas interpretações em torno
do discurso verbal e visual nos atentando ao erotismo presentes nas
respectivas linguagens.
O erotismo e a mulher são denominadores comum nos poemas
e nas ilustrações da obra. A forma como os poemas drummondia-
nos foram escritos conferem características da visualidade nos tex-
tos. O discurso poético em O Amor Natural, nos remete a visalidade
da vaolúpia e fulgo da mulher em cenas eróticas. Isso ocorre porque,
ao acessarmos os poemas da obra, somos sensorialmente levados a
imaginar as mais fogosas poses da mulher em coito sexual. Os poe-
mas, ao lado das ilustrações de Dacosta ficam sensorialmente mais
compreensíveis. Segundo Sergio Basbaum (2012), essa percepção si-
nestésica ocorre porque,

[...] não importa o quanto nos afastemos da experiência direta, entretan-


to, as associações cross-modais permanecem na linguagem ordinária -
metáforas já apresentadas o demonstram. Embora a linguagem seja, ao
mesmo tempo, representacional e criativa, permitindo jogos e paradoxos,
gerando novos tipos de significado (BASBAUM, 2012, p. 249-250).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 27


Nesse sentido, a linguagem poética na obra O Amor Natural, nos
remete uma imagem visual que só é possível na presentação criativa.
Com foco na sinestesia, Marshall McLuhan (1999) e Eric McLuhan (1998)
reforçam que a “linguagem” é sem dúvidas “uma espécie de tesouro
da percepção operante na cultura” (BARBAUM, 2012, p. 250). A lingua-
gem é o meio pelo qual as experiências sinestésicas se realizam. Sem
ela, não há sensação sinestésica. O fato de lermos a poesia erótica de
Drummond e sermos transportados ao universo imaginários das ima-
gens mentais da mulher em suas mais íntimas incursões sexuais é um
expressivo exemplo das experiências sinestésica e sensoriais.
Como defendido em estudos anteriores, o carater erótico dos po-
emas de O Amor Natural se dá em função da obra se aproximar do
limiar entre erotismo e pornografia. Essa proximidade do erótico ao
pornográfico está presente tanto nos poemas drummondianos, quan-
to nas ilustrações de Dacosta (RIBEIRO, 2020). Na linguagem poética,
essas questões se traduzem com maior expressividade. A obra O Amor
Natural, está longe de ser uma espécie de kama sutra. Mesmo assim,
suas poesias dão pistas de como amar sexualmente4 uma mulher. As
mesmas situações são trazidas nas ilustrações de Milton Dacosta. As
ilustrações das Vênus estão na maior parte das vezes acompanha-
das de um pássaro que, vai aos poucos se engendrando entre suas
pernas ou nádegas. Sendo assim, passamos as interpretações acer-
ca do diálogo entre as ilustrações e os poemas em O Amor Natural.
A ilustração de Vênus [Figura 2] acompanha o poema Sugar e ser
sugado pelo amor. Em seu aspecto estrutural, a ilustração apresenta
traços trêmulos, o que confere certa volúpia a Vênus. Entre as pernas
da deusa há uma figura que se parece ou a um pássaro. Mas, “há
dois outros traços característicos, que nos revelam que a Vênus este-
ja desfrutando de um momento de volúpia: o fato de ser sugada pelo

4A realização do mapeamento milimetricamente do corpo da mulher, descobrindo nelas a


localização dos prazeres, desejos e, as curvas do corpo feminino.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 28


pássaro e o fato de retorcer a cabeça, pôr as mãos sobre a cabeça e
ao fechar os olhos” (RIBEIRO, 2020, p. 172).

Figura 2 - Milton Dacosta, Vênus e Pássaro (s/d.). Brasil.

A Vênus aparentemente está numa espécie de êxtase. Ela parece


ser sugada por pássaro que está engendrado entre suas pernas. Seus
olhos estão fechados de modo a desviar olhares do expectador. Esse
comportamento se assemelha ao das Vênus pudicas da Antiguida-
de Clássica. O poema e a ilustração estabelecem grande relação de
complementaridade, ou seja, um completa o sentido do outro. Acerca
da relação interartes entre a ilustração e o poema, Dalvi (2009) ana-
lisa que,

Trata-se igualmente de uma Vênus, que se expõe ao público de ponta-cabeça,


no ato mesmo de “sugar e ser sugada” pelo amor, talvez ludido pela figura do
pássaro que põe entre suas pernas, na altura de seu púbis, como anuncia o
poema a que antecede, um dos primeiros a recorrer a recursos visuais [...]. Um
jogo interessante se estabelece entre conteúdo dos versos e a imagem, uma
vez que o poema refere-se à posição sexual conhecida famosamente como
“sessenta-e-nove” (DALVI, 2009, p. 120).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 29


A relação de sentido, a ilustração [Figura 2] e os versos “Sugar e
ser sugado pelo amor / no mesmo instante boca milvalente / o cor-
po dois em um o gozo pleno” (ANDRADE, 1993, p. 45), sugerem a rea-
lização de uma prática simultânea e altamente recíproca, onde um
proporciona intenso prazer ao outro. O coito entre um casal busca
extrapolar os limites de seus corpos. A ilustração [Figura 2] funcio-
na como um convite para que expectador (o voyeur) se coloque no
lugar do pássaro. Em outras palavras, “a imagem de Vênus está ali
de ponta-cabeça, pois é como se aquele que contempla a imagem,
o leitor-espectador, se visse exatamente na posição predita” (DALVI,
2009, p. 120).
No conjunto da obra, o poema No pequeno museu sentimental
acompanha a ilustração que segue [Figura 3]. A figura feminina desta
e da ilustração anterior difere das deusas mitológicas da Antiguidade
Clássica que, eram esguias. Nas ilustrações de Milton Dacosta as Vê-
nus apresentam características roliças e corpulentas. No caso desta
representação da Vênus [Figura 3], percebemos traços fragmenta-
dos, trêmulos e aspectos experimentais.

Figura 3 - Milton Dacosta, Vênus e Pássaro (s/d.). Brasil.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 30


A ilustração [Figura 3] apresenta traços que se entrelaçam apre-
sentando pouca nitidez. Mas conseguimos identificar que o corpo da
figura feminina está envolto de panejamentos. Ao tentar aproximar a
ilustração [Figura 3] e o poema No pequeno museu sentimental, Dalvi
(2009, p. 121) afirma que é possível “identificar certo isomorfismo entre
a imagem e o conteúdo do poemático”. A ilustração e o poema cons-
tituem um conjunto isomórfico porque, tanto as memórias do eu lírico
e os limites da ilustração se desfazem, tendo o mesmo fim. O disposto
se confirma nos respectivos versos do poema em análise: “Os movi-
mentos vivos no pretérito / enroscam-se nos fios que me falam / de
perdidos arquejos renascentes / em beijos que da boca deslizavam
/ para o abismo de flores e resinas / Vou beijando a memória desses
beijos” (ANDRADE, 1993, p. 57).
O conjunto a ser interpretado na sequência é composto de uma
ilustração de uma Vênus solitária [Figura 4] e o poema A castida-
de com que abria as coxas. Como é possível observar, esta Vênus
e a da ilustração [Figura 2] apresentam traços característicos bem
semelhantes. As duas figuras se constituem de traços fragmentados,
trêmulos e contornos pouco nítidos. Distintamente das outras duas
ilustrações [Figuras 2 e 3], esta apresenta traços que formam uma
espécie de moldura.

Figura 4 - Milton Dacosta, Vênus e Pássaro (s/d.). Brasil.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 31


A figura feminina da ilustração [Figura 4] tem seu espaço rigi-
damente delimitado pela presença da moldura, o título do poema A
castidade com que abria as coxas, que faz par com ela faz todo sen-
tido. Acerca do aspecto visual marca a rigidez no isolamento da figu-
ra feminina da ilustração em relação à estrutura formal do poema,
Dalvi (2009, p. 122), observa que o soneto se encaixa “na roupagem
de uma das mais tradicionais formas fixas, o soneto italiano de versos
decassílabos; e, ainda, por este mesmo poema associar, em aparente
paradoxo, o abrir as coxas à castidade”. Sendo assim, interpretamos
que a escolha rigorosa escolha da ilustração se deve ao fato de ela
convergir com a proposta do poema em A castidade com que abria
as coxas.
A última ilustração [Figura 5] que trazemos para este estudo se
relaciona com os poemas: Mulheres gulosas e Você meu mundo meu
relógio de não marcar horas. A ilustração em questão é a mesma que
estampou a capa da obra poética [Figura 1] por meio de uma serigra-
fia em cor rosa. Entre as demais ilustrações interpretadas aqui, esta é
a que mais nos intriga por seus aspectos característicos. Diferente da
ilustração anterior [Figura 4], esta Vênus [Figura5] foi retratada fora
de uma moldura. Embora tal figura feminina ganhe “novos contornos,
cujos aspectos parecem devolver sua liberdade, já que ela não está
retida numa moldura. A possível liberdade atribuída à Vênus pode ser
descartada dependendo do que dizer o poema associado a ela” (RI-
BEIRO, 2020, p. 175-176).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 32


Figura 5 - Milton Dacosta, Vênus e Pássaro (s/d.). Brasil.

Na obra poética O Amor Natural, esta última Vênus precede os


poemas Mulheres gulosas e Você meu mundo meu relógio de não
marcar horas. Enfocando a relação interartes entre linguagem visual
e verbal, percebemos pouca articulação entre elas. No primeiro dos
dois poemas, os versos dizem: “As mulheres gulosas / que chupam
picolé / — diz um sábio que sabe — / são mulheres carentes / e o
chupam lentamente / qual se vara chupassem, / e ao chupá-lo já
sabem / que presto se desfaz / na falácia do gozo / o picolé fuginte /
como se desfaz na mente / o imaginário pênis.” (ANDRADE, 1993, p. 70).
O discurso em Mulheres gulosas apresenta forte desarticulação com
a ilustração da Vênus [Figura 5]. No que tange o discurso erótico ex-
presso no poema, os vocábulos “pênis” e “chupam” são os elementos
que intensificam a ideia de sexo oral. A ilustração, diferente do que re-
presenta ou é transmitido no poema, não esboça uma cena de sexo.
Com relação ao poema Você meu mundo meu relógio de não
marcar horas, observamos que seu discurso é atravessado por vo-
cábulos de ideias contrárias, tais como “comer e descomer”, “quente,
morno e frio”, “marcadas e desmarcam”. Ao dizer “Minha saliva minha
língua passeadeira possessiva meu esfregar de barriga em barriga”, o
sujeito lírico, dá pistas de que o coito sexual entre o casal se dá na so-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 33


breposição do corpo masculino sobre o feminino. Em narrativa acer-
ca do desfecho do ato sexual, o eu lírico segue: “Meu pênis submerso.
Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais mais. Meus
gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem
ahah minha evaporação meu suicídio gozoso glorioso.” (ANDRADE,
1993, p. 69).
Embora o coito ocorra nas duas linguagens, não observamos na
ilustração [Figura 5] a cena sexual que o ocorre no poema. Na ilus-
tração, o coito se dá de modo distinto, já que, o pássaro parece se
engendrar nas nádegas da Vênus. “Apesar de não haver um explícito
ou um diálogo direto entre as modalidades artísticas em jogo, ima-
gem e texto interferem-se mutuamente pelo simples fato de estarem
próximos, pois agregam sentidos, mesmo que, por vezes, sejam di-
fíceis de serem descritos” (RIBEIRO, 2020, p. 176). A relação interartes
entre as ilustrações e os poemas interpretados ocorre de forma fluida.
A complementaridade entre as duas linguagens artísticas reforça o
erotismo, o desejo sexual e a idealização do feminino na obra poética
O Amor Natural. Na obra em questão, Drummond e Dacosta contem-
plam a figura feminina por meio do desejo natural. Eles não buscam
compartimentar o corpo feminino para revelar seus desejos mais ín-
timos.

Considerações finais

Neste artigo apresentamos algumas percepções e olhares acer-


ca da relação de diálogo entre as ilustrações de Milton Dacosta e os
poemas de Carlos Drummond de Andrade no conjunto da O Amor
natural. A obra poetica em questão é constituída de uma série de po-
emas eróticos escritos por Carlos Drummond de Andrade no decorrer

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 34


de sua vida e publicado apenas depois de sua morte. O poeta odernou
os poemas na disposição de sua peferência deixando a obra pronta
para a publicação. O projeto original da previa a inserção do conjunto
de ilustrações de Milton Dacosta inspirados na Vênus mitológica. A
formação do pares entre poemas e ilustrações no conjunto de O Amor
natural é resultado de um caprichoso trabalho realizado pelo poeta.
Isso nos comprova, que além de criterioso, Drummond tinha bom co-
nhecimento de crítica e apreço por artes plásticas.
Para realizar as considerações desejadas acerca da relação in-
terarte e os dialogos entre ilustrações e poemas, traçamos um cami-
nho alicerçado nos estudo clássicos que se esforçaram em explicar
a similaridade entre as linguagens artísticas. Por isso, iniciamos este
texto falando sobre as homologias entre pintura e poesia à luz das
reflexões teóricas de pesquisadores contemporâneos inspirados em
Horácio. Depois, nos esforçamos na tentativa de aprofundar essas re-
flexões tratando dos possíveis diálogos interartísticos entre a pintura
e a poesia. Os dois tópicos temáticos iniciais serviram de base para
a realização da nossa discussão final sobre a erotização do feminino
nas relações interartes entre a ilustração de Milton Dacosta e a poesia
de Carlos Drummond de Andrade.
Para realização deste estudo selecionamos apenas quatro ilus-
trações e cinco poemas da obra poética O Amor Natural. As inter-
pretações que realizamos são algumas leituras em torno da relação
interartes e diálogos entre as ilustrações e os poemas estudados. Por
isso, nossos esforços não foram (e jamais seriam) suficientes para
exaurir a temática explorada. O que abre possibilidades de novos es-
tudos acerca do presente tema.
Analisamos ainda que, foi por perceber a mulher e o erotismo
como denominador comum entre seu conjunto de poemas e as ilus-
trações dacostianas que, Drummond reuniu tais linguagens artísticas

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 35


em O Amor Natural. Estas colocações, mais uma vez comprova o po-
eta tinha grande domínio da crítica, teoria e conhecimentos das artes
plásticas. É possível que o poeta tenha se inspirado nos estudos com-
parados entre artes para experimentar o encontro em seus poemas
eróticos com as ilustrações das Vênus dacostianas. Na relação de di-
álogo presente em O Amor Natural, a linguagem visual não substitui a
verbal, elas se complementam tornando-se indissociável no conjunto
da obra.

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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 37


CAPÍTULO 2

A tragédia na novela passional


Amor de Perdição, de Camilo Castelo
Branco: uma comparação com
Romeu e Julieta
Yélnya Pereira dos Santos Costa

DOI: 10.52788/9786589932369.1-2
Introdução

Este trabalho trata, principalmente, da obra Amor de Perdição, de


Camilo Castelo Branco, publicada no ano de 1862. Eentretanto, como
é percebido haver uma relação entre as obras citadas no título deste
artigo, foi feito um estudo comparativo entre os gêneros novela e tra-
gédia, com o intuito de compreender o diálogo entre o drama elisa-
betano de Shakespeare e a novela romântica portuguesa. O principal
eixo de análise centra-se no conflito dramático construído entre os
principais personagens, para isso, me utilizei do conceito de tragédia
de Aristóteles (2003), para além de discutir esta concepção presente
na própria obra, comparar as obras Romeu e Julieta de Shakespeare
(2012) e Amor de perdição de Castelo Branco (1973).
O interessante e capaz de chamar a devida atenção em favor de
um estudo mais aprofundado é o fato de a tragédia estar tão presen-
te na obra, mesmo quando esta é denominada passional, segundo
Lebrun (2009, p. 13) “devemos contar com as paixões. Devemos até
aprender a tirar proveito delas”, por isso se o texto é “subintitulado”
de tal forma é comum pensarmos que por mais trágico que seja o
amor superará toda dor que circunda a trama, mas, ao contrário dis-
so vemos o trágico se fazer mais presente de forma oposta a eleva-
ção tomada pelo amor. Tanto em Romeu e Julieta quanto em Amor
de Perdição, percebemos que todos os personagens que amam são
envolvidos pela tragédia representada pela morte.
Na visão de Gerard Lebrun (2009, p. 13) “a paixão é sempre pro-
vocada pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, ge-
ralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu vivo na depen-
dência permanente do outro”. Nas obras citadas podemos ver com
clareza essa dependência causada pela paixão, tanto que conduz os
personagens à morte e nisso se materializa a tragédia. Chega a ser

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 39


espantoso perceber que o trágico está presente na vida da maioria
dos personagens, principalmente na vida dos que amam no enredo.
“[...] A trama narra a história de amor de Simão e Teresa que, con-
trariado, leva o primeiro a morte e a segunda à loucura” (BRANCO,
1973, p. 19), neste entrelaço temos: Baltasar Coutinho amou Teresa e
acabou assassinado por Simão. Mariana amou Simão e suicidou-se
após o corpo de seu amado ser jogado ao mar. Simão amou Teresa
e por matar Baltasar foi exilado, adoecendo depois de receber a últi-
ma carta de sua amada, isto o levou a morte. Teresa amou Simão e
foi obrigada a estar em um convento por ordens de seu pai, morreu
de desgosto após ver seu amado partir para o exílio. Nessa enseada é
tecido o conceito de amor trágico.

Para Medeiros (2009, p. 20-21), a tragédia é como uma contradição que teria
expressão máxima na experiência do amor Eros, um fenômeno que reparte, di-
vide, e onde um destino fatídico acena como epílogo; a paixão é como situação
arrebatadora, uma espécie de estado de loucura na soleira da morte.

Com esta conceituação, Medeiros nos faz pensar o enredo dos


personagens conformado ao amor trágico e a maneira que ele se
projeta como uma condição do próprio espírito romântico.
Por fim, percebemos que há um diálogo estabelecido entre o amor
e o trágico, ele se dá por meio de vários aspectos e um deles é o título.
No título de Amor de Perdição o autor ressalta a qualidade do amor,
apontando para o final fatídico que os enamorados estavam conde-
nados a viver, já o de Romeu e Julieta aponta para os personagens
de modo que se a obra e o autor não fossem mundialmente conhe-
cidos, o leitor poderia facilmente pensar que esta construção de título
apontaria para um texto unicamente romântico. A essas interligações
ocorridas entre enredo, título e outros elementos que serão estudados
neste trabalho, chamamos intertextualidade e iremos discuti-la sob a
ótica da literatura comparada.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 40


Literatura Comparada: diálogos drama e a novela

O estudo comparativo que embasa nossa discussão centra-se


no livro “Literatura Comparada”, escrito por Carvalhal (2006), e pro-
cura discutir o que é a literatura comparada, sua origem e como ela
se insere no eixo do diálogo com outras literaturas. Assim, a autora
declara que “a literatura comparada é conhecida, de maneira geral,
como uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais
literaturas”. (CARVALHAL, 2006, p. 05). Para Guyard (1994), a literatura
comparada faz relação entre os elementos comuns do texto, podendo
ser autor e obra, autor e leitor e assim sucessivamente. Sabendo que
o objeto de estudo da literatura comparada é o próprio texto literário,
meu objeto de estudo são as obras Romeu e Julieta (2012) e Amor de
Perdição (1973), bem como, a relação dos elementos comuns, ou seja,
suas principais características estilísticas.
A literatura comparada tem um papel muito importante dentro
dos estudos literários, pois possibilita o estudo de várias obras com
o mesmo método ou de uma mesma obra com métodos diferentes
apontando suas semelhanças e/ou diferenças. “É importante ressal-
tar que comparar é um procedimento que faz parte da estrutura do
pensamento do homem e da organização da cultura” (CARVALHAL,
2006, p. 7), pois o homem tem dentro de si a arte de comparar, isso
integra a natureza humana e o seu desejo por conhecimento, a com-
paração com o outro, a comparação de objetos, e tantos outros tipos
de comparação evoluiu da trivialidade realizada no dia a dia para um
tipo de comparação mais complexa e que de alguma maneira pode
contribuir para o desejo de completude, compreensão de si mesmo
e da sociedade, ou seja, evoluiu para a comparação literária. Dan-
do continuidade a esta linha de pensamento Carvalhal (2006, p. 08)
aponta que “em síntese, a comparação, mesmo nos estudos compa-
rados, é um meio, não um fim”, o que a autora quer dizer é que não

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 41


se faz comparação só por fazer, mas que a comparação é o caminho
para se chegar à conclusão de algo.
Sendo assim, refletiremos criticamente com os estudos das re-
lações entre os gêneros definidas neste estudo que em Amor de Per-
dição existe traços trágicos e que Romeu e Julieta apresenta traços
do gênero novela. Nesse caso, faremos relação de uma obra com o
gênero da outra.
Arend e Alves (1999, p. 23) afirmam que “o romance romântico,
depois de passar por todo esquema diegético que o caracteriza, pode
ter dois finais: o da realização, popularmente conhecido como “final
feliz”, ou a tragédia, materializado na separação (morte ou afasta-
mento)”, Amor de Perdição seguiu a linha trágica, expondo a partir do
próprio espírito romântico os náufragos da alma, seguidos da condi-
ção humana limitada e oprimida pela própria estrutura racional da
época, colocada, em geral, como agente impossibilitador da vivência
plena das emoções.
A ação complexa presente na fábula, por exemplo, característica
do gênero tragédia, é um dos aspectos trágicos contidos em Amor de
Perdição, pois ela apresenta a mudança de felicidade para infelicidade
e vice-versa por meio do reconhecimento ou peripécia. O reconheci-
mento é encontrado no momento em que o pai de Simão descobre que
sua filha mais nova trocava conversa na janela com a filha do vizinho
inimigo, a irmã de Simão. Até então, mesmo com toda dificuldade da
espera, Simão e Teresa haviam combinado que ele iria para Coimbra,
estudar e buscar meios de se manter para ficarem juntos e na pior das
hipóteses, Teresa esperaria seu pai morrer para que os dois pudessem
se casar, porém, não foi o que aconteceu, devido ao que será narrado
a seguir percebemos que há uma mudança brusca de felicidade para
infelicidade, ou ao menos de esperança para desespero.

Numa dessas conversas, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi
ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita,
e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira da vizinha. Tanta foi sua cólera,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 42


que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida dos gritos dele,
correu ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela (BRANCO, 1973, p. 50).

A peripécia acontece em Amor de Perdição no momento em que


Simão, impaciente e movido pelo impulso, matou Baltasar, não fosse
isso a história possivelmente se resolveria dando aos enamorados um
final feliz, mesmo que demorasse. “[...] Mas é fato que foi pela impaci-
ência e orgulho de Simão que o amor entre os dois não pôde dar cer-
to” (JEFFREY, p. 05). Por sua vez, o patético é visto em vários momentos,
como na cena em que Simão para salvar sua amada do convento
mata Baltasar, ou no momento em que Teresa, ao ver Simão ser exila-
do, morre de amor, ou quando Simão ao saber que sua amada se foi,
morre dias depois e até mesmo quando Mariana se atira ao mar para
morrer junto de seu amado.
Em contrapartida, apresentarei agora Romeu e Julieta com ca-
racterísticas do gênero novela. Vejamos, a fábula corresponde, em
partes, ao enredo, pois ambos são a história contada, uma por meio
da ação dos personagens e a outra por meio da narrativa. As duas
histórias devem ser contadas de forma célere, tendo começo, meio e
fim. Romeu e Julieta apresenta, ainda, pluralidade dramática, ou seja,
a diversidade de conflitos, são eles: a inimizade entre as famílias, a
morte do primo de Julieta, Julieta dada em casamento a Paris, e a
morte do casal, todos esses conflitos tem começo, meio e fim. Esta
última característica comprova a sucessividade da obra. O tempo é
cronológico e corresponde aos cinco dias em que tudo começa e ter-
mina. O espaço em que as ações aconteceram foi em duas cidades
da Itália, apenas, Verona e Mântua.
Assim, ressaltando o que já foi dito por Rosenfed (1985) as obras
de Shakespeare embora pertençam ao gênero dramático ele muito
apresenta aspectos do gênero épico, como podemos ver a seguir:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 43


Os traços frequentemente épicos da obra Shaksperiana são, em geral, con-
trabalançados pela unidade da ação que se impõe aos elementos episódicos.
As peças têm início, meio e fim. A sua dramaturgia apresenta, sem dúvida, um
mundo em mais amplo e variado do que rigorosa. Suas peças são “abertas”,
em certa medida aristotélicas. Mas nem toda a dramaturgia aberta é acentu-
adamente épica (ROSENFELD, 1985, p. 72).

Desta forma, percebemos que um gênero apresenta característi-


cas do outro reafirmando o que disse Rosenfeld (1985, p. 16) “ademais,
não existe pureza de gênero em sentido absoluto”. Isso acontece por-
que há uma inter-relação entre os gêneros que se misturam, se co-
municam e se explicam.
Em suma, é importante discutirmos um pouco mais os traços es-
tilísticos de ambas as obras, por exemplo, ao que diz respeito ao gê-
nero épico:

O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente


imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em cer-
tas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador.
Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de
outros seres. Participa, contudo, em maior ou menos grau, dos seus destinos e
está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios per-
sonagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá a
palavra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações
como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc (ROSENFELD, 1985, p.
24).

Em contrapartida o autor do livro O Teatro Épico (1985), discorre


sobre o gênero dramático da seguinte maneira:

[...] Na dramática (de pureza ideal) não há mais que apresente os aconteci-
mentos; estes se apresentam por si mesmos, como na realidade fato esse que
explica a objetividade e, ao mesmo tempo a extrema força e intensidade do
gênero. A ação se apresenta como tal, não sendo aparentemente filtrada por
nenhum mediador. Isso se manifesta no texto pelo fato de somente os próprios
personagens se apresentarem dialogando sem interferência do “autor’’. Este
se manifesta apenas nas rubricas que, no palco, são absorvidas pelos atores e
cenários. Os cenários, por sua vez, “desaparecem” no palco, tornando-se am-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 44


biente; e da mesma forma desaparecem os atores, metamorfoseados em per-
sonagens; não vemos os atores (quando representam bem e quando não os
focalizamos especialmente), mas apenas os personagens, na plenitude da sua
objetividade fictícia (ROSENFELD, 1985, p. 29-30) .

Em continuidade ao nosso estudo, passaremos para uma etapa


muito importante que é a da intertextualidade, nela entenderemos o
que são estas semelhanças que encontramos nos textos em foco e
como o diálogo entre eles se estabelecem.

A intertextualidade

Pensar a intertextualidade é voltarmos a falar sobre imitação,


segundo Carvalhal (2006, p. 55) “a imitação é um procedimento de
criação literária”. Veremos que Amor de Perdição é constituído por in-
tertextualidade, ela é uma forma de mimese que usa em seu proce-
dimento de representação o diálogo com outras obras, desta forma é
por meio da intertextualidade que Amor de Perdição apresenta mui-
tas semelhanças com Romeu e Julieta, veremos isso ao acompanhar
a trajetória dos enamorados. Carvalhal (2006, p. 54) diz “a verdade é
que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior,
atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o reinventa”.
A respeito de Amor de Perdição (1973), Santana (2016, p. 118) diz: “a
história, centrada nos amores infelizes de dois jovens oriundos de fa-
mílias desavindas, é uma espécie de Romeu e Julieta transposto para
o contexto moderno”. Disto isto, vemos que é notória a intertextualida-
de presente em Amor de Perdição, percebida não apenas pela seme-
lhança do amor proibido gerada pela rivalidade entre as famílias, ri-
validade esta, que permite aos pais passar por cima dos sentimentos
dos filhos em prol de seus interesses mesquinhos, mas também por
outros pontos que apresentaremos a seguir.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 45


O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivos de li-
tígios, em que Domingos Botelho lhes deu sentenças contra. Afora isso, ainda
no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na
celebrada pancadaria da fonte [...] (BRANCO, 1973, p. 46).

Em Romeu e Julieta não temos um motivo propriamente dito


para a rivalidade entre as famílias, mas as típicas lutas por poder que
aconteciam na época nos deixam uma pista do motivo pelo qual essa
briga era mantida há tanto tempo. “Capuletos, de um lado, e Montec-
chios, de outro, viviam em constante guerra, do senhor ao menor dos
servidores”. (SHAKESPEARE, 2012, p. 19).
Existem outros pontos semelhantes que também chamam a
atenção, segue um dos episódios que marcou Amor de Perdição, nele
vemos Simão em uma briga na qual “muitas cabeças foram parti-
das”, conforme diz o narrador.

Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos


seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito,
deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez do parapeito do chafa-
riz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no. Simão
passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro que descravou de um carro, par-
tiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos
os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao
filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça
as portas do magistrado (BRANCO, 1973, p. 42).

Já em Romeu e Julieta vemos no primeiro ato uma briga inicial-


mente comandada por criados de ambas às partes e em seguida o
envolvimento dos membros das famílias, bem como a intervenção do
príncipe de Verona.

Espada nua e falar de paz? Odeio essa palavra, como odeio o inferno, todos os
Montecchios e tu! Em guarda, covarde! (Lutam. Chegam partidários de ambas
as famílias que tomam parte na refrega; em seguida, entram cidadãos e agen-
tes da polícia com bastões.) (SHAKESPEARE, 2012, p. 31).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 46


As histórias contadas narram fatos diferentes que têm suas se-
melhanças, dois elementos fundamentais existentes nas obras é o en-
volvimento dos criados nas brigas dos patrões, apresentados acima
e as intervenções tanto do Príncipe de Verona, em Romeu e Julieta,
quanto do corregedor em Amor de Perdição, apresentados a seguir:

Vassalos rebeldes, inimigos da paz, profanadores desse aço manchado com o


sangue de vossos vizinhos!... Não escutastes? Como! Homens, feras selvagens
que apagais o fogo de vosso furor insensato com purpúreas torrentes que bro-
tam de vossas veias, sob castigo de tortura, arrojai ao solo dessas mãos san-
guinolentas vossas mal temperadas armas e ouvi a sentença de vosso irritado
príncipe! (SHAKESPEARE, 2012, p. 32).

Outras pequenas semelhanças podem ser notadas ainda, como


a festa que é dada em casa de Teresa Albuquerque para comemorar
sua nova idade.

[...] Teresa não refletiu, respondendo a Simão, que naquela noite se festejavam
os seus anos, e se reuniam em casa os parentes (BRANCO, 1973, p. 62).

Da mesma maneira há também uma festa em casa de Julieta


Capuleto com o mesmo objetivo da festa realizada em casa de Tere-
sa.

[...] de todos os dias do ano, na véspera da festa, à noite, completará quatorze


(SHAKESPEARE, 2012, p. 42).

O amor é um dos temas principais que perpassa as obras, ele é


constituído de triângulos amorosos. Em Romeu e Julieta o triângulo
amoroso é entre Romeu, Julieta e Paris. O sentimento dos dois primei-
ros é mútuo, Paris, por sua vez, não é correspondido. Sobre o triângulo
presente em Amor de Perdição é dito por Arend e Alves (1999) que:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 47


Uma das marcas desse romance é a existência de dois triângulos amorosos.
Uma das relações é entre Simão, Teresa e Mariana, sendo que o sentimento
dos dois primeiros é mútuo, enquanto Mariana não é correspondida. Também
se pode considerar o triângulo composto por Teresa, Simão e Baltasar - aqui,
Baltasar não é correspondido (AREND e ALVES, 1999, p. 25).

Neste ensejo, observemos a figura a baixo, que corrobora para o


nosso entendimento de como se deu este amor triangular.

Figura 1 - Os Triângulos Amorosos em Amor de Perdição

Fonte: (AREND e ALVES, 1999, p. 25).

Se faz necessário lembrar o tão conhecido momento em que


“conseguindo penetrar o jardim dos Capuletos, o apaixonado Romeu
ouve a confissão de Julieta, que, não podendo fazê-la pessoalmente
ao seu amado, conta às estrelas sua paixão”. (SHAKESPEARE, 2012, p.
19). Este foi o lugar em que os enamorados puderam iniciar um diálo-
go. Na outra obra estudada o diálogo foi mantido por causa da janela
dos quartos, ela foi a principal responsável por permitir a comunica-
ção entre Simão e Teresa.

[...] Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la
sempre (BRANCO, 1973, p. 45).

Para encerrar este ciclo intertextual lembremo-nos das mortes


dos primos. Simão matou Baltasar e como pena recebeu o banimen-
to.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 48


Foi aviso ao intendente geral da polícia, e o nome de Simão Botelho foi inscrito
no catálogo dos degredados para a Índia (BRANCO, 1973, p. 195).

Romeu, por conseguinte, matou Teobaldo, como pena por este


assassinato ele foi exilado.

E por esta ofensa, imediatamente nós o exilamos daqui. [...] (SHAKESPEARE, 2012,
p. 92).

Por fim, sendo a “comparatividade” uma das principais bases de


nosso estudo, ressalto que a literatura camiliana também apresenta
traços daquela literatura da Idade Média, a literatura trovadoresca.
Como não associar o romantismo e principalmente a obra Amor de
Perdição àquelas cantigas que apresentavam a mulher como perfei-
ta e inalcançável?

No Romantismo, o amor vem à cena principal, via de regra avassalador, condu-


zindo à felicidade, quando abençoado pela sociedade, ou à loucura e à morte,
únicas soluções possíveis ao par amoroso que ousa desafiar a ordem estabe-
lecida, recuperando a coita medieval. Observa-se a fidelidade à eleição, con-
sagrando-se o amor para sempre, independente da possibilidade de um final
feliz com o objeto eleito (Michelli, 2004, p. 98).

Neste ponto do trabalho, abrimos espaço para falar sobre o dia-


logismo estudado por Bakhtin, apresentado “como princípio constitu-
tivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. Examina-se,
em primeiro lugar, o dialogismo discursivo, desdobrado em dois as-
pectos: o da interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do
texto, o da intertextualidade no interior do discurso”. (BARROS, 1994, p.
2). Como podemos perceber, o nosso foco foi, justamente, o último
ponto apresentado, ou seja, a intertextualidade do discurso, visto que
Amor de Perdição (1973) dialoga perfeitamente com Romeu e Julieta
(2012). A intertextualidade, aqui, é vista também por meio da intera-
ção verbal, percebemos isso levando em consideração o que é dito

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 49


por Barros (1994, p. 3) “explicam-se as frequentes referências que faz
Bakhitin ao papel do “outro” na constituição do sentido ou sua insis-
tência em afirmar que nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a
perspectiva de outra voz”, desta forma vemos que muito do discurso
de Romeu e Julieta (2012) se faz presente em Amor de Perdição (1973),
por isso “deve-se observar que a intertextualidade na obra de Bakhitin
é, antes de tudo, a intertextualidade “interna” das vozes que falam e
polemizam no texto, nele produzindo um diálogo com outros textos”.
(BARROS, 1994, p. 4).
Desta forma, ao fim deste capítulo percebemos que a intertex-
tualidade é muito mais que a relação entre os textos e o diálogo tra-
çado entre eles, às vezes de maneira muito clara e às vezes não, ne-
cessitando de um estudo mais aprofundado para assim se perceber
quando o texto conta a sua história ou a do outro em si mesmo, de
modo que os enredos dialogam mutuamente.

Considerações finais

O presente trabalho visou contribuir com os estudos compara-


tivos já existentes a respeito das obras Amor de predição e Romeu
e Julieta, muito já foi falado e muito ainda se falará sobre as seme-
lhanças e diferenças que as permeiam, pois a arte não cessa e cada
vez que se fala de determinado assunto isso sempre é feito por uma
perspectiva diferente, sob um novo olhar, mesmo que seja falado ou
lido várias vezes por uma mesma pessoa.
Com ajuda de Carvalhal (2006), Guyard (1994) Santana (2016) e
alguns outros autores, nós conseguimos encontrar aspectos da lite-
ratura comparada e conceituar o que é intertextualidade como es-
tratégia para chegarmos a nossa finalidade que era o estudo das

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 50


semelhanças apresentadas entre obras escritas por Camilo Castelo
Branco (1973) e William Shakespeare (2012) e a discussão do amor
trágico. Dentre as semelhanças encontradas em decorrência dos es-
tudos comparativos propostos, vemos que os personagens, o triân-
gulo amoroso e o enredo se destacaram. O enfoque mais gritante
nos enredos é a inimizade entre as famílias, inimizade esta que proibiu
o amor, fato que desencadeou a tragédia e a impossibilidade de se
alcançar a felicidade.
Os gêneros novela e tragédia são dois elementos preponderan-
tes e indispensáveis no seguimento deste estudo, desta maneira há
uma comprovação de que essa mistura de gêneros é algo possível
principalmente nos escritos mais modernos. Sobre o gênero novela
Santana diz:

Em suma, a novela, forma mais abreviada, mais tensa e aligeirada do que o


romance, permite uma estratégia comunicativa mais eficaz, ao mesmo tempo
que potencia o dramatismo e a expressão das emoções (SANTANA, 2016, p. 118).

A discussão sobre o gênero tragédia foi apresentada por meio de


alguns autores, mas o principal deles foi Aristóteles (2003) e Rosen-
feld (1985) que contribuíram para o entendimento do gênero propos-
to e em seguida ajudaram a compreender como Amor de Perdição
traz em sua essência traços deste gênero, por isso, os estudos trági-
cos auxiliados pelos autores citados foram relacionados aos estudos
comparativos para se chegar ao objetivo desejado que era fazer pon-
te entre duas obras, dois gêneros e dois autores diferentes. O estudo
das relações entre os gêneros é relevante por desmistificar o pensa-
mento de gênero puro, sobretudo nos escritos atuais. É muito comum
um texto fazer parte de um tempo ou de uma escola literária e mesmo
assim apresentar características de outro tempo ou escola, isso não
diminui o que ele é em sua essência, ele continua sendo o que é ape-
sar dos traços mistos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 51


Por fim, os pontos característicos mencionados anteriormente fo-
ram sumamente importantes, mas a discussão perpassou fatores por
vezes deixados de lado, pois o que é o amor e qual a importância de
trazer em questão um sentimento inexplicável? Paz (1994) responde
da seguinte maneira

O amor humano é o de dois seres sujeitos ao tempo e aos seus acidentes: a


mudança, as paixões, a doença, a morte. Embora não nos salve do tempo, o
entreabre para que, num relâmpago, apareça sua natureza contraditória, essa
vivacidade que sem parar se anula e renasce e que, sempre e ao mesmo tem-
po é agora e é nunca. Por isso, todo amor, incluindo o mais feliz, é trágico (PAZ,
1994, p. 101).

Aqui, o amor se tornou destaque por protagonizar a tragédia, essa


discussão é contínua e chega até os dias atuais, pois, nunca se falou
tanto em amor, amor patológico e em crime passional como tem se
falado atualmente, mas isso é uma discussão para outros estudos.

Referências

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dição, de Camilo Castelo Branco. ULBRA, Canoas, 1999. 23-28.
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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 52


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LTDA, 2012. 145 p.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 53


CAPÍTULO 3

As formas múltiplas do poetrix


João Goulart de Souza Gomes
Pedro Cardoso

DOI: 10.52788/9786589932369.1-3
Em 2020, a linguagem poética Poetrix completou 21 anos de exis-
tência, atingindo sua “maioridade” literária. Neste período, arregimen-
tou um importante contingente de poetas do Brasil e de outros países.
Ao longo de duas décadas, derivações transformadoras foram sur-
gindo e fortalecendo, ainda mais, o Poetrix. A estas derivações foram
dadas o nome de FORMAS MÚLTIPLAS, por seus praticantes.
As FORMAS MÚLTIPLAS já haviam sido referenciadas na Bula Poe-
trix, texto orientativo elaborado pelo então MIP – Movimento Interna-
cional Poetrix, em 2009, da seguinte forma:

As FORMAS MÚLTIPLAS são criadas em contextos comunicativos e constituídas


como derivações do POETRIX; sua elaboração tem como características bási-
cas o dialogismo, a intertextualidade e a polissemia da linguagem. Identifica-
das e reconhecidas pelo MIP como Duplix, Triplix e Multiplix são mesclagens de
dois ou mais Poetrix que se compõem com a participação obrigatória de varia-
dos autores e com suas poéticas formando sentidos complementares entre si
(individualidade-interação-universalidade).

Naquele momento, portanto, apenas três Formas Múltiplas eram


oficialmente reconhecidas por aquela entidade. Com o passar do
tempo, muitas outras formas foram sendo propostas pelos pratican-
tes do Poetrix (poetrixtas), adotadas em maior ou menor intensidade
pelos poetas seguidores desta linguagem poética.
Com a finalidade de melhor definir as derivações decorrentes
do Poetrix, procuramos, neste texto, apresentar algumas teorias que
contribuem para a melhor compreensão e criação das FORMAS MÚL-
TIPLAS, estabelecendo alguns critérios quanto à sua forma e conteú-
do, para que possam orientar os poetrixtas, principalmente os novos,
a fazer parte deste mundo minimalista, de forma orientativa e não
impositiva.
Primeiramente precisamos relembrar o conceito de Poetrix:

Poetrix (s.m.): poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas


em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 55


É a partir desta estrutura originária que as Formas Múltiplas são
desenvolvidas, ainda que muitas delas subvertam este modelo, como
veremos adiante. A exemplo do que ocorre com as ligações químicas,
nas quais as conjunções entre átomos vão dando origem a moléculas
e, estas, a outras estruturas, a junção do Poetrix com fotografias, de-
senhos, vídeos, com a poesia concreta e visual proporcionará o sur-
gimento de composições híbridas que irão de encontro à formulação
original do que é um Poetrix.
Se na Bula Poetrix foram apresentados dez elementos como base
teórica de criação para o Poetrix, sendo seis deles inspirados na obra
Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino (Leveza, Ra-
pidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência, aos quais
acrescentamos Concisão, Salto, Susto e Semântica), para as Formas
Múltiplas precisaremos acrescentar seis novos elementos, que possi-
bilitem contemplar a profusão de propostas poetríxticas formuladas
desde a publicação daquele texto inicial. Além de Intertextualidade,
Dialogismo e Polissemia da Linguagem, acrescentaremos Amistosi-
dade, Ludicidade e Conciabilidade, também já citados em um texto
anterior1.

Elementos teóricos das formas múltiplas

Intertextualidade

Intertextualidade é a relação que se estabelece entre dois tex-


tos, quando um texto já elaborado exerce influência na criação de um
novo texto. A intertextualidade pode ser explícita (no qual é estabele-
cida uma relação direta com o texto fonte, claramente identificado)

1 GOMES, Goulart. O Poetrix e o Nosso Milênio: amistosidade, ludicidade e conciabilidade.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 56


ou implícita (quando a relação não é demonstrada claramente). No
caso das formas múltiplas do Poetrix, a intertextualidade é sempre ex-
plícita, uma vez que todos os autores que participam do texto final de-
vem, obrigatoriamente, ser citados, sejam poetas, fotógrafos, artistas
plásticos, produtores de vídeo, etc.
Devemos a invenção do termo intertextualidade à filósofa, es-
critora, crítica literária e psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva,
para quem ”qualquer texto se constroi como um mosaico de citações
e transformação dum outro texto”. Para ela, intertextualidade designa
a transposição de um ou vários sistemas de signos em outro. Já Lau-
rent Jenny, ao complementar esse conceito, afirma que a intertextua-
lidade seria “como a irrupção transcendente dum texto noutro”2.
Um conceito mais simplificado de signo é expresso por Umber-
to Eco, para quem “o signo é usado para transmitir uma informação,
para indicar a alguém alguma coisa que um outro conhece e quer
que outros também conheçam”3.
Os seres humanos vivem envolvidos em um universo de formas
simbólicas, de tal maneira que essa interrelação entre ambos dá sen-
tido à sua própria humanidade. Para Daniel Bougnoux (1999, p. 49)
“poder-se-ia sustentar, com razão, que o homem descende mais do
signo do que do símio, e que deve sua humanidade a um certo regime
simbólico, ou significante”. Esta mesma opinião é afirmada por Um-
berto Eco, quando diz:

O homem, disse-se, é um animal simbólico, e neste sentido não só a linguagem


verbal mas toda a cultura, ritos, as instituições, as relações sociais, o costu-
me, etc., mais não são do que formas simbólicas nas quais ele encerra a sua
experiência para a tornar intermutável: instaura-se a humanidade quando se
instaura a sociedade, mas instaura-se a sociedade quando há comércio de
signos. Com o signo o homem destaca-se da percepção bruta, da experiência
do hic et nunc, e abstrai. Sem abstração não existe conceito, embora sem ela
nem sequer exista signo (op cit.).

2 JENNY, Laurent. A estratégia da forma IN POÉTIQUE, Revue de Théorie ET Analyse littéraires n. 27.
3 ECO, Umberto. O signo. Lisboa: Editorial Presença, 1973.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 57


Diversas formas múltiplas do Poetrix – a exemplo do Duplix, Triplix,
Multiplix, Grafitrix, Cirandas etc - passam por essa transposição de
sistemas de signos, citado por Kristeva, quando do envolvimento de
dois ou mais autores. A partir de um texto original, criado por um poe-
trixta, são criados outros, por autores diversos.
É importante ressaltar a necessidade de correspondência entre o
Poetrix fonte e os que são criados subsequentemente, dando coerên-
cia ao texto final, pois, como observa Laurent Jenny

[...] a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influên-


cias, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado
por um texto centralizador, que detém o comando do sentido (op. cit.).

A inovação, no caso específico dos Duplix, Triplix e Multiplix é que


o texto que surge não apenas é distinto do texto fonte, mas também
complementar a ele, dando a origem a um novo texto, que é a soma
dos dois ou mais Poetrix, o que nos leva ao item seguinte.
O Poetrix fonte é transmissor de uma mensagem, aqui entendida
como “um grupo finito e ordenado de elementos de percepção tira-
dos de um ‘repertório’ e reunidos numa estrutura”4., ou seja, quando o
Poetrix é criado ele tem “uma espécie de vocabulário, de estoque de
signos conhecidos e utilizados por um indivíduo”5, ele reúne um reper-
tório próprio, que é um conjunto de signos nele registrados, com um
propósito explícito ou implícito. Por sua vez, quando ele é lido por outro
poetrixta, estes signos serão compreendidos em função do repertório
do mesmo, que poderá ter uma amplitude maior ou menor. Devemos
lembrar que

[...] quanto maior o repertório de uma mensagem, menor será a sua audiência
e vice-versa, isto é, repertório e audiência estão numa proporção inversa um

4 MOLES, Abraham. Teoria da Informação e Percepção Estética. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1978.
5 COELHO NETTO, J. TEIXEIRA. Semiótica, informação e comunicação. Perspectiva: São Paulo, 2001.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 58


em relação ao outro. Isto significa que uma mensagem com extenso repertó-
rio tende a provocar mais modificações que outra de menor repertório, porém
provocará essas mudanças num número menor de receptores, numa audiên-
cia mais limitada (op.cit.).

Ou seja, quanto mais complexo é um Poetrix, menor a probabili-


dade que ele venha a provocar esta intertextualidade.

Dialogismo

O conceito de dialogismo foi elaborado pelo linguista russo Mi-


khail Bakhtin, que o explica como o mecanismo de interação textual
muito comum na polifonia, processo no qual um texto revela a exis-
tência de outras obras em seu interior, as quais lhe causam inspira-
ção ou algum influxo6.
Apesar de aparentemente semelhantes, intertextualidade e dia-
logismo são conceitos bem diferentes, pois Bakhtin diferencia o texto
do enunciado. Para ele, o texto é uma materialização do enunciado. A
intertextualidade refere-se às relações dialógicas materializadas em
textos.

Isso pressupõe que toda intertextualidade implica a existência de uma inter-


discursividade (relações entre enunciados), mas nem toda interdiscursividade
implica intertextualidade... Enunciado é um todo de sentido, uma posição assu-
mida pelo enunciador, “marcado pelo acabamento, dado pela possibilidade de
admitir uma réplica”, enquanto texto pertence ao domínio da materialidade, ou
seja, a um conjunto coerente de signos verbais e não verbais, é uma realidade
imediata. É a manifestação do enunciado7.

A elaboração de uma FORMA MÚLTIPLA vai além do texto, atin-


gindo o enunciado. Elas são elaboradas dentro de um contexto so-

6 Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/linguistica/dialogismo/


7 Fiorin, José Luiz (2016). Introdução ao pensamento de Bakhtin 2ª ed. São Paulo: Contexto, obtido em
Wikipedia, verbete Dialogismo.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 59


cial, em que ocorre um diálogo entre dois ou mais autores (poetrixtas)
“complementando e se construindo na interação... os enunciados são
proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o
discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva”8.

Polissemia da linguagem

A polissemia da linguagem é um elemento fundamental na pro-


dução poética, mas nas FORMAS MÚLTIPLAS ela ganha funções com-
plementares que podem ampliar o sentido do texto, possibilitando di-
versificadas interpretações por parte do leitor.
Entendemos por polissemia a capacidade que uma palavra tem
de apresentar diferentes significados. Por exemplo a palavra MANGA,
que pode significar uma fruta, uma parte do vestuário, um pedaço
de terra ou parte de uma tubulação. Mas, manuseada criativamen-
te pelo poetrixta, nas formas múltiplas, isso pode ter uma amplitu-
de ainda maior, como no caso dos PALAVRATRIX, aonde é ampliado o
sentido de uma palavra, fracionada em três versos. Vejam o exemplo
deste Palavratrix de Pedro Cardoso:

Intervalo

pausa
da
mente

A palavra “pausadamente” se transforma na frase “pausa da


mente”, que tem seu sentido complementado pelo título do Poetrix:
“Intervalo”.

8 Wikipedia, verbete Dialogismo.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 60


As FORMAS MÚLTIPLAS podem proporcionar infinitas possibilida-
des vocabulares, promovendo o uso da polissemia de tal forma que o
seu limite é apenas a criatividade do autor.

Amistosidade

Não é possível criar uma forma múltipla sem uma relação de afe-
to poético. Como afirma o poeta Mário Chagas

O poema, o museu, a história, o esquecimento e o patrimônio também são ilhas


de edição e, por isso, guardam potências de criação, de imaginações criativas
(afetos poéticos) e potências de resistência, de reinvenções sociais (afetos po-
líticos)9.

Para “apanhar” um texto poético de um autor, dialogar com ele,


incorporar os seus signos e produzir um outro texto, que interage com
o primeiro, é necessário haver um grande afeto, do segundo para o
primeiro, seja um afeto poético ou político, no sentido aristotélico do
termo, de indivíduos que compartilham uma mesma polis. Dialogan-
do com João Cabral de Melo Neto, em 2006, Goulart Gomes escreveu
o poema TECENDO UMA LINGUAGEM, no qual ele procura explicitar essa
relação amistosa, poética e política, existente nas formas múltiplas:

Um Poetrix sozinho não tece uma linguagem:


ele precisará sempre de outros Poetrix.
De um que apanhe esse grito
e o lance a outro; de um outro Duplix
que apanhe o grito que um Poetrix antes
e o lance a outro; e de outros Triplix
que com muitos outros Poetrix se cruzem
os fios de sol de seus gritos de Poetrix,

9 CHAGAS, Mário. Imaginação museal e museologia social: frag-mentos IN Lugar Comum – No. 56/
Dezembro de 2019.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 61


para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os Multiplix.

E se encorpando em estilo, entre todos,


se erguendo gênero, onde entrem todos,
se multiplixando para todos, no toldo
(a poesia) que plana livre de armação.
A poesia toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: inspiração.

Ludicidade

É a ludicidade, o que tem propiciado que crianças e adolescentes


sejam “iniciados” ao universo da arte não apenas pelas artes plásti-
cas, música e dança, mas também pela literatura.
“Ludicidade é um termo utilizado na educação infantil e que tem
origem na palavra latina “ludus”, que significa jogo. O conceito de lu-
dicidade compreende os jogos e brincadeiras, mas não se restringe a
elas”10. Sobre a ludicidade na educação infantil, transcrevemos texto
obtido no mesmo site:

As práticas lúdicas na educação infantil buscam romper com o modelo tradi-


cional da escola, em que o professor é o transmissor dos conteúdos e os alunos,
os receptores desse conhecimento. A ludicidade na educação compreende a
interação entre professores e alunos, a cooperação entre os educandos e o
estímulo à criatividade das crianças. Mais do que transmitir conteúdos, uma
educação baseada na ludicidade permite que o aluno desenvolva a sua ca-
pacidade cognitiva e seu senso crítico. O aprendizado deve sempre levar em
conta a individualidade de cada criança e suas experiências anteriores, que
são responsáveis pelo desenvolvimento e que servem como base para todo o
conteúdo que será absorvido por ela. As atividades lúdicas são pensadas para
desenvolver os indivíduos enquanto seres sociais. Assim, a cooperação nas ati-
vidades em grupo, a empatia e o diálogo, são elementos que devem ser consi-
derados pelos educadores. A ludicidade está presente nos jogos e brincadeiras,
mas também pode ser aplicada em atividades musicais, artísticas e na conta-
ção de histórias: tudo depende da imaginação e criatividade do professor.

10 Texto obtido em https://www.significados.com.br/ludicidade/

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 62


São inúmeros os relatos, provindos de diversas cidades do Brasil,
sobre exitosas oficinas de Poetrix - principalmente CIRANDAS DE POE-
TRIX - promovidas pelos(as) professores(as), com crianças de todas
as idades, chegando mesmo à publicaçao de livretos, estimulando a
criatividade e o conhecimento, permitindo interações, de uma forma
alegre e divertida, princípios fundamentais do “aprender com prazer”.
Esta vertente pedagógica do Poetrix, é surpreendente e gratifi-
cante, propulsionando-o a um “status” que jamais teríamos imagi-
nado. Desta prática pedagógica, já decorrem várias monografias e
trabalhos acadêmicos inspirados nos resultados obtidos.

Conciabilidade

A conciabilidade é a característica que faculta ao Poetrix e às suas


Formas Múltiplas o diálogo e a assimilação por todas as mídias, técni-
cas e tecnologias. Como texto, o Poetrix atende às limitações de um
Twitter ou SMS; como imagem, pode ser veiculado em um Instagram,
Facebook ou Whats App; pode ser pintado em uma tela, fotografado,
se tornar um móbile ou um banner, publicado no Pinterest; pode estar
escrito na efemeridade da areia ou na perenidade do granito.
Logo após a sua criação, em 1999, o POETRIX foi apelidado pe-
jorativamente de “poeminha da internet”. Hoje, para todos nós que
participamos da sua criação e desenvolvimento, este é um epíteto
que muito nos orgulha, por sabermos que fomos precursores de uma
linguagem poética, não apenas alinhada ao seu tempo, mas que an-
tecipou toda uma relação literária entre o homem contemporâneo e
as redes sociais.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 63


Diversidade das formas múltiplas

Uma vez abordadas as formulações teóricas que embasam as


formas múltiplas, podemos agora conhecer as principais delas. Para
esta seleção, consideramos dois critérios principais: popularidade e
inovação. Por popularidade entendemos a quantidade de poetrixtas
que praticam determinada forma múltipla, tomando como referência
a quantidade delas publicadas na internet, principalmente no portal
Recanto das Letras. Por inovação compreendemos o ineditismo da
proposta, tanto em relação a outras criadas anteriormente, quanto ao
que já foi produzido na literatura, em âmbito mundial.

Duplix (s.m.)
Poema composto pela junção de dois Poetrix (Poetrix fonte + Po-
etrix complementar) de autores diferentes, em que o título e os versos
se complementam, originando uma nova composição. O Duplix foi a
base para o surgimento do Triplix e Multiplix, como veremos a seguir.
Criadores: Pedro Cardoso e Tê Soares. São característica do Duplix:
a) os Poetrix que compõem um Duplix são separados pelos ca-
racteres // (duas barras);
b) o Duplix pode ser construído tanto do lado direito quanto do
esquerdo do Poetrix fonte, a critério do segundo autor;
c) é obrigatório que conste, no Duplix, o nome dos dois autores;
d) no Duplix, cada Poetrix é completo, mesmo quando apresen-
tado em separado, mas é também um texto aberto o suficiente
para aceitar a junção de outro Poetrix;
e) no caso de Duplix elaborados com Poetrix de idiomas diferen-
tes, não deve ser feita tradução do Poetrix fonte para o idioma do
autor do Poetrix complementar, o que, poderá descaracterizá-lo;
f) o poetrixta que cria o Poetrix complementar não pode alterar

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 64


em nada o Poetrix fonte, nem mesmo a sua pontuação;
g) o Duplix pode ter até 60 sílabas métricas, respeitado o limite
de 30 sílabas para cada Poetrix.

Exemplo:

Duplix:

Eu (Poetrix-fonte)

menino carente
feito pinto no lixo
rega a vida, enganando a boca

(Pedro Cardoso)

Eu (Poetrix-complemento)

menina contente
feito quem brinca de cochicho
negando a dor, veemente e louca

(Tê Soares)

Eu e Eu (primeiro Duplix)

menino carente//menina contente


feito pinto no lixo//feito quem brinca de cochicho
rega a vida, enganando a boca//negando a dor, veemente e louca

(Pedro Cardoso//Tê Soares)

Obs.: os dois poetrixtas usaram o mesmo nome para o título.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 65


Outro exemplo:

PESSOIX//PESSOIX

um terço de mim delira // a vida me convida


um terço de mim pondera // o medo me atrela
outro terço: ah! Quem dera! // sou inteira quimera...

(Goulart Gomes//Sara Fazib)

Obs.: os dois poetrixtas também usaram o mesmo nome para o título.

Mais um Duplix:

Convite alegre//Para festa final

No cemitério//Não há mistério
fazem baladas//Compõem toadas
almas penadas.//Nas noites enluaradas.
(Walter Cabral de Moura//Haroldo P. Barboza)

Obs.: aqui os autores usaram títulos diferentes, o que é mais comum.

Triplix (s.m.)
Poema composto pela junção de três Poetrix, de pelo menos dois
autores diferentes, em que o título e os versos se complementam, ori-
ginando uma nova composição. As características do Duplix são váli-
das para o Triplix. Criadores: Pedro Cardoso e Tê Soares.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 66


Exemplo:

FLAGRA//FLAGRA//FLAGRA

Me pegaram de jeito//vigilantes tecelãs//guardiãs da madrugada


osculando a manhã tecida//nos teares da alvorada,//na fina malha
do tempo
a ouro em pó e praia//sereias douradas//cavalgando o vento
(Amélia Alves//Walter Cabral de Moura//Sara Fazib)

Obs.: os três autores usaram novamente o mesmo título, sem proble-


mas.

Outro Triplix:

Fim da paixão//Solidão//Acidente

Acabou o incêndio.//é tudo silêncio e cinzas//o pavio aceso


Após o rescaldo,//o que sobra nos escombros://fora de hora
no chão, um coração morto.//o peito vazio//ceifou vidas

(Judith de Souza//Lílian Maial//Gilson Luiz Siqueira)

Obs.: neste caso, os títulos são todos diferentes.

Alguns dos títulos anteriores (e dos que virão a seguir) estão es-
critos com todas as letras maiúsculas, outros não. Foram respeitadas
as grafias originais. Isto fica a critério do(s) autor(es), por estilo, ou até
para reforçar algum aspecto do(s) poema(s).

Multiplix (s.m.)
Poema composto pela junção de quatro ou mais Poetrix, de pelo
menos dois autores diferentes, em que o título e os versos se com-
plementam, originando uma nova composição. As características do
Duplix são válidas para o Triplix. Criadores: Sávio Drummond, Sara Fa-
zib, Pedro Cardoso e Fausto Valle.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 67


Exemplo:

O primeiro Multiplix:

FEROHORMÔNIO MARINHEIRO

Pressinto-te no ar,//[ no mar ]//navego lentamente,//velas pandas


Farejo-te no vento.//[ sedento ]//me entrego,//em liberdade,
Qual bicho ao relento.//[ me rendo ]//como se você fosse uma deu-
sa.//grega.

(Sávio Drummond//Sara Fazib//Pedro Cardoso//Fausto)

Obs.: aqui, todos os autores usaram o mesmo título.

AMOR // DISTANTE // VOA // LONGE

Do outro lado do mar, //do outro lado do muro, //Junto ao coração,//


Saudade contida
Encontras tão longe...//fruto maduro. //Aflição na sedução...//Viagem
incontida
Cá estou a sonhar. //Com asas chego lá. //- Ícaro em ação! //Rumo
ao infinito!

Antônio Carlos Menezes//Sara Fazib//Oswaldo Martins//Yulo Cesare

Obs.: os autores usaram títulos diferentes.

Grafitrix (s.m.)
Poetrix graficamente ilustrado, seja com a adição de uma foto-
grafia ou desenho que interaja com o Poetrix. Observamos que o autor
da fotografia ou desenho deve ser sempre citado. Na impossibilidade,
citar a fonte onde foi obtido. Criador: Murillo Falangola.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 68


Exemplo:

Videotrix (s.m.)
Poetrix apresentado com a utilização de recursos audiovisuais ou
de animação. Criador: Murillo Falangola.

Clonix (s.m.)
Poetrix criado a partir de um original, com a devida permissão do
seu autor, onde é substituída uma ou mais palavras ou pontuação,
proporcionando uma nova leitura. Criadores: Goulart Gomes e Nathan
de Castro.
Exemplo:

Consulesa

se és causa e efeito
não me importo
eu sou o meio

(Goulart Gomes)

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 69


Consulesa

se és causa e efeito
não me importo
eu sou o fim

(Pedro Cardoso)

Letrix (s.m.)
Poetrix em que o título - de até sete letras - é disposto no sentido
vertical e as estrofes horizontais - de no máximo dezessete sílabas
cada - contém em cada linha um terceto com os versos separados
por //.  Criadores: Pedro Cardoso Machado,  Patrícia Essinger, Rejane
(Mel) Britto, Marco Bastos e Sandra Mamede. Estruturação, sistemati-
zação e nome Letrix: Marco Bastos.
Exemplo:

L
u
a
na boca da noite sou a sua estrela
(Pedro Cardoso)

Ao que Patrícia Essinger prontamente respondeu:

N
u
a
guia-me ao teu céu
(Paty Essinger)

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 70


Um outro exemplo, já mais elaborado:

(1) OÁSIS – Mardilê Fabre


(2) MICROCOSMO – Marco Bastos
(3) INFINITO – Regina Lyra
(4) ESTRADA – Marco Bastos

M
I
C
I R
NOO
EFCÁ
S IOS
TNS I
R I M S céu aberto//no meio do deserto//descanso certo
A T O areia e estrelas//OÁSIS, quase a um grito// tão perto o infinito!
D O lar de entrada//segue o MICROCOSMO//mesmo sem saída...
A para quem já quer sair //OÁSIS – INFINITO//de quem não precisa ir!

Palavratrix (s.m.)
Poetrix constituído por uma única palavra, segmentada em três
versos, de forma a produzir uma nova interpretação da mesma, sen-
do complementada pelo título. Esta nova modalidade consiste em
encontrar palavras, do nosso idioma, que apresentem novo sentido,
quando fracionadas em três versos. É preciso que se dê um título ao
poema para que ele não perca uma das características fundamen-
tais do Poetrix. Criador: Pedro Cardoso.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 71


Exemplo:
Político

  Ser
  tão
  Zinho
(Pedro Cardoso)

Outro exemplo:

COVID 19
A
VASSALA
DOR
(Pedro Cardoso)

Acrostrix (s.m.)
Poetrix em que as primeiras letras das três estrofes formam uma
palavra. É um acróstico em Poetrix. Criador: Alberto Valença Lima
Exemplo:

Era
Estava louco
Raras vezes me vi assim
Amei como poucos

(Pedro Cardoso)

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 72


Outro exemplo:

Rua
Rio de lama
Uma vergonha
A morte não tarda!

(Pedro Cardoso)

Tautotrix (s.m.)
Poetrix em que todas as palavras começam com uma mesma
letra. Tautograma em forma de Poetrix. Criador: Carlos Fiore.
Exemplos:

angústia

Amazônia agoniza
A água acabará?
Acordemos agora!

(Carlos Fiore)

Concretrix (s.m.)
Poetrix composto por caracteres ou disposições gráficas, à ex-
cessão do título. Criador: Pedro Cardoso.
Exemplos:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 73


Devolva-me
(Sonia Godoy)

     AS
        AS
          AS

Obs.: É importante notar que, mesmo sendo um poema concreto,


o título, neste caso, exerce papel fundamental na compreensão do
texto. Sem ele o entendimento seria impraticável. Outro ponto mar-
cante é que a autora não escreveu o texto na vertical, o que seria mais
lógico. Preferiu uma escrita na diagonal para nos passar a ideia de
que as suas inquietações estão em constante agitação, uma vez que:
“as asas” sugerem tais movimentos.

Abrindo a roupa

Z     RRR
 I  E
     P
(Pedro Cardoso)

Cruzadatrix
É composto de três palavras, em que pelo menos uma delas seja
escrita na vertical, para que se tenha versos perpendiculares e se crie
uma figura que lembre uma Palavra Cruzada. Podem ser utilizadas
cores para definir a ordem de leitura dos versos. O título é fundamen-
tal para o entendimento da composição. Ele tem que deixar clara a
ideia que se quer passar, pois constitui o mote do poema. Criador:
Pedro Cardoso.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 74


Exemplo:

Última flor do Lácio

   amo–te
   s
 d e s c o n h e c i d a
   i
     m
(Pedro Cardoso)

Grafotrix
O Grafotrix é uma variação do Concretrix, no qual as palavras
devem ser dispostas de forma a compor uma imagem que dialogue
com o texto. O texto e a figura se completam. É importante observar
que as imagens podem ser repetidas utilizadas por outros autores,
sem a preocupação de plágio. Criador: Pedro Cardoso.
Exemplos (autor: Pedro Cardoso):

 
Bala perdida
 
dor que ora me mata
                tiro
                       tiro

Obs.: No Grafotrix “Bala perdida” é possível ver a figura de uma pistola.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 75


Alpinista

             no
    pico        do Everest
o céu              de brigadeiro parece mais bonito

Obs.: No Grafotrix “Alpinista” é possível ver a figura de uma montanha.

Crosstrix
O Crosstrix é caracterizado pela desconstrução da palavra. Dife-
rente do Palavratrix, que se baseia no fracionamento de um vocábu-
lo em três versos, distintos e prontos. Criador: Pedro Cardoso.
Exemplo:

Político
(Pedro Cardoso)

ele
eleitoralmente
mente

Cumulatrix
As palavras final e inicial de cada verso se repetem. A intenção é
de dar a ideia de um continuum. Criador: Pedro Cardoso.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 76


Exemplo:

Cores
(Pedro Cardoso)

vi um pavão
pavão cheio de olhos
olhos de solidão

Culturatrix
No Culturatrix, a estrofe é formada através da junção de expres-
sões ou títulos de obras célebres, sendo uma em cada verso, de forma
a identificar uma personalidade de destaque na cultura mundial, que
é homenageada. Evidente que para a correta interpretação deste tipo
de Poetrix é fundamental o repertório do leitor.

Exemplos:

Alegoria

O Beijo
na Porta do Inferno
assustou o Pensador

(Pedro Cardoso)

Obs.: Neste Culturatrix temos os títulos de três importantes escul-


turas: O Beijo, Porta do Inferno e Pensador, do escultor francês Auguste
Rodin.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 77


Cirandas
O termo Ciranda, em seu sentido musical, é originário de Pernam-
buco, em que músicas e danças são compartilhadas coletivamente.
Apropriado pelo Poetrix, significa uma série de Poetrix temáticos, ela-
borados pode determinada coletividade, em um período de tempo
pré-determinado. São muito aplicadas em atividades didáticas, em
escolas, para crianças e jovens de todas as idades. Exemplos de Ci-
randas podem ser vistos em: www.cirandapoetrix.com.br.
Certamente novas formas múltiplas serão propostas e adotadas,
com o passar do tempo, provocando novas atualizações deste texto. E
este é o nosso convite aos poetrixtas: que mantenham esse dinamis-
mo típico do Poetrix, um processo literariamente revolucionário que
já traz em si o gérmen da própria contrarrevolução. Novos tempos
requerem novas formas de expressão e, com certeza, o Poetrix não se
furtará a adaptar-se a novos momentos.

Referências

CHAGAS, Mário. Imaginação museal e museologia social: fragmentos. Lu-


gar Comum. n. 56, dez., 2019.
COELHO NETTO, J. TEIXEIRA. Semiótica, informação e comunicação. Perspec-
tiva: São Paulo, 2001.
ECO, Umberto. O signo. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
FIORIN, José Luiz (2016). Introdução ao pensamento de Bakhtin 2ª ed. São
Paulo: Contexto, obtido em Wikipedia, verbete Dialogismo.
GOMES, Goulart. O Poetrix e o Nosso Milênio: amistosidade, ludicidade e
conciabilidade.
INFOESCOLA. Disponível em: https://www.infoescola.com/linguistica/dialo-
gismo/.
JENNY, Laurent. A estratégia da forma. Revue de Théorie ET Analyse littérai-
res n. 27.
MOLES, Abraham. Teoria da Informação e Percepção Estética. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1978.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 78


CAPÍTULO 4

Diálogos e tradução:
Chaplin pelas luzes de Drummond
e Castro Pinto
Amanda Ramalho de Freitas Brito

DOI: 10.52788/9786589932369.1-4
Introdução1

Para analisar ou investigar um texto poético, determina-se a utili-


zação de um método adequado, cujos pressupostos possibilitem uma
possível compreensão do objeto artístico em suas duas esferas de
comunicação: a estética e a referencial (no caso, o social). Isso reme-
te também para um exercício de metacrítica, posto que “no discur-
so crítico, transparecem então dois tipos de relação: uma relação da
metalinguagem com a linguagem-objeto e a relação da linguagem-
-objeto com o mundo” (PERRONE-MOISÉS, 1979, p. 215). Tal perspecti-
va surge dos desmembramentos semânticos e significativos amal-
gamados em torno das reflexões sobre os processos de composição
do texto, ratificando o duplo sentido do texto na esfera do que Irene
Machado (2007, p. 44) descreve como “a capacidade cognitiva por
excelência”. Essa capacidade seria euforicamente reveladora frente
ao conteúdo estruturalizante da poesia e de suas interfaces culturais,
articuladas no jogo dialético do eixo de seleção sobre o eixo de com-
binação, em que a cultura e a história são traduzidas criticamente.
No ensaio Linguística e poética, Jakobson ao refletir sobre a fun-
ção do texto poético remete para a sua composição a partir da re-
lação estabelecida entre o eixo de seleção (paradigma) e o eixo de
combinação (sintagma). Eixos que corporificam as possibilidades de
significação a partir da possibilidade de tradução do mundo no qual
se insere a criação poética. A linguagem poética é tradutora por na-
tureza ao recuperar a história e a sociedade a partir de uma lingua-
gem modelizante secundária2, ou seja, dotada de um modelo próprio.

1 Primeira versão publicada nos anais de Cultura & Tradução. João Pessoa, v.1, n.1, 2011.
2 “A linguagem verbal, por ser dotada de estrutura, é tomada como sistema modelizante primário.
Os outros sistemas da cultura, como é o caso da literatura, do mito, da religião e da arte, por serem
dotados, não de uma estrutura, mas por construírem uma estruturalidade, são denominados sistemas
modelizantes secundários. Modelizantes de segundo nível porque, construídos sobre o modelo da
língua verbal não remetem para ele em sua codificação e descodificação, uma vez que constroem o
seu próprio modelo” (MACHADO, 2007, p. 29).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 80


Considerando o método crítico e dialógico da Semiótica Cultural,
proponho uma leitura comparativa dos poemas Canto ao homem do
povo Charlie Chaplin (1945), de Drummond e Diante de um filme de
Carlitos (1993), de Sérgio de Castro Pinto. Procura-se entender como
a personagem cinematográfica é engendrada nas camadas dos sig-
nificantes dos respectivos textos que lapidam o conteúdo através de
modelos de seleção e combinação diferenciados, mas que conver-
gem para o mesmo objeto de contemplação, o Slapstick3 de Chaplin,
que tem a função sígnica de representar dentro do campo imagético
da poesia um olhar singularizado do mundo. Logo, é o mundo de “Car-
lito” ressignificado por meio do diálogo, da tradução. Esta, por sua vez
seria o mecanismo dinâmico da Semiótica da Cultura, à medida que
o texto é compreendido como um espaço semiosférico de interrela-
ções, que motiva o universo de significações de um modelo textual. De
acordo com Machado (2007) será precisamente a “multi-vocalidade”
aspecto essencialmente inerente ao texto, e, portanto, relevante para
a Semiótica da Cultura, e para a compreensão e entendimento do
mesmo.
Diante disso, procuro refletir como o discurso cinematográfico de
Chaplin, anteriormente reproduzido, é incorporado ao discurso poé-
tico, de modo que ele adquira conotações no espaço semiosférico,
local de encontro cultural. Trata-se da interrelação de sistemas de
signos diferentes, gerador de novos signos, quer dizer, a linguagem do
cinema e a ficção cinematográfica engendradas na poesia para ex-
pressar novas formas de ver e problematizar a história. Assim, os po-
emas modelizam o discurso poético a partir da inferência trágico-cô-
mica do discurso chapliniano. O que justifica já o título deste ensaio,
de maneira que as sugestões de significados dos referentes textos se
dão pelo diálogo com Chaplin.

3 Slapstick é um termo inglês utilizado para se referir à Comédia visual muda, da qual Chaplin foi
um esmero precursor. Tema discutido por Ronald Bergan. Ismos: para entender o cinema. São Paulo:
Globo, 2010.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 81


O cineasta inglês comunica no plano imagético do cinema, atra-
vés de “Carlitos”, a decadência material e humana da sociedade oci-
dental (no período de guerra e de pós-guerra) e a contranarrativa
a partir da representação epifânica de um herói-vagabundo, dando
voz na narrativa cinematográfica ao povo emudecido pelas forças
hegemônicas, e por sua vez, transformando-se em conteúdo no pla-
no expressivo de Drummond e de Castro Pinto.

Canto ao homem do Povo Charlie Chaplin:


Filme ao homem do Povo Drummond

O texto de Drummond, intitulado Canto ao homem do Povo Char-


lie Chaplin, conclui o livro A rosa do povo, publicado em 1945. Este
poema se divide em seis partes que se confluem para a representa-
tividade do filme, interiorizado ao canto drummondiano, que por sua
vez traduz o canto do povo:

I
Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns,
numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu
canto ora em

[torno de ti como um ramo de flores absurdas mandado por via


postal ao

[inventor dos jardins.


(DRUMMOND, 2003, p. 191).

O poema é uma ode no sentido ultramoderno do signo (irregu-


lar ou livre), que incorpora ao plano expressivo da linguagem poética

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 82


uma saudação ao homem Chaplin, ou seja, ao criador e não a criatu-
ra, embora o sujeito lírico se refira no plano secundário da linguagem
às experiências canalizadas pelo personagem criado, “Carlito”. A utili-
zação do termo ultramoderno para designar a poesia analisada nes-
se ensaio se deve a metacrítica de Octavio Paz (1993). Para o crítico a
terminologia designa melhor a função de uma poesia de convergên-
cia, e não de rupturas (modernidade), seria o ultramoderno definido
como aquele que une o diacrônico com o sincrônico, assim, o passa-
do em diálogo com o presente gera sentidos no espaço-temporal do
agora, momento contextual de interlocução do texto. Ora, o próprio
sujeito lírico drummondiano, ao refletir no poema que prefacia A rosa
do povo, nos diz: “As palavras não nascem amarradas,/ elas saltam,
se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por vezes um desenho,/ são pu-
ras, largas, autênticas, indevassáveis”. (Consideração do poema).
Ainda sobre a “saudação”, termo de dialogia entre Drummond e
Chaplin, se observa que ao se reportar ao criador, o sujeito lírico se
reporta à matéria artística dele, ou seja, ao filme do homem do povo,
Drummond, já que o poeta não tem objetivo de se reportar submissa-
mente ou divinamente a Chaplin, mas recompô-lo, à medida que ele
simboliza cinematograficamente o povo, o conteúdo ao qual o sujei-
to lírico se reporta ao saudar Chaplin. Isso sugere ainda o conteúdo
metapoético do texto, que define o seu objeto com o canto → poe-
sia, cujos signos que compõe esse canto adquirem significação no
discurso poético; Charlie infere sobre o povo, motivo de canto. Dessa
maneira, o poeta assume a função intransferível de mediador entre o
povo e Chaplin, entre o povo e a realidade:

I
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz
desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 83


são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.
Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os recalcados,
Os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, cismaremos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,


falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a
mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

(DRUMMOND, 2003, p. 191).

Aqui se percebe o processo de inversão do poema, que se dá do


“canto” para Chaplin e de Chaplin para o canto, o que constitui um
sistema modelizante do texto. Pois o sujeito lírico canta para Chaplin
através dos versos que representam as várias vozes, logo é o canto do
povo mediado pelo eu-lírico. Esse, por sua vez, é marcado na estrutura
pela desinência do verbo “canto” e pelo signo pronominal “mim”. Em
um processo inverso, o filme do homem do povo, Chaplin, se transfor-
ma no objeto de referência do “eu”, já que Drummond ao internalizar
o discurso do povo pela sua voz poética se coloca como homem do
povo e se identifica com o elemento extraverbal, o cinema de Char-
lie, recuperado pelas cores, pelo personagem Carlito e pela moldura
visual do filme, o homem do povo, simbolizando os abandonados, os
falidos, os “que comem na extrema penúria”.
No poema, o conteúdo modelizado se move em direção ao ato
de comunicar-se, é a voz do poeta que comunica a existência dos
simples de coração, dos mutilados, dos deficientes e dos recalcados,
pois “Ser significa comunicar-se. A morte absoluta (não-ser) é o não
ser ouvido, reconhecido, lembrado (...) Ser significa ser para o outro e,
através dele – para si” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 105).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 84


Desse modo, a poesia é o grito vertical dos oprimidos, dos solitá-
rios, dos indecisos, dos líricos, ecos do povo comum, cuja existência
está calada pelos declínios e pelas crises sociais engendrada pela
ideologia dominante. Embora a voz do sujeito lírico não possa ser es-
cutada, no plano da fala, pelo interlocutor, é uma voz silenciosa tal
como a do cinema mudo, com a qual o sujeito lírico dialoga, porém,
adquire significação no plano expressivo visual (na poesia e no cine-
ma), revelando-se sinestesicamente.

I
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso
[dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
(DRUMMOND, 2003, p. 190).

II
És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:

Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,


o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 85


e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. Ó rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

(DRUMMOND, 2003, p. 192).

Os versos inscritos, anteriormente, apresentam um antigo rapaz


de vinte anos, metonímia de um poeta que se confunde com o eu-lí-
rico, ou com o próprio poema. Nesse sentido, a criatura se confunde
com a criação, tal como Chaplin e Carlito. O poeta esfacelado pela
experiência em vários “eus”: poeta brasileiro, cantor teimoso, rapaz
de vinte anos, é unificado pela linguagem poética no diálogo com a
pantomima chapliniana, pois a pantomima converge as experiências
do eu-lírico, cujas várias faces estão presas ao gestual imagético de
Chaplin. Sendo assim, a imagem poética será significada pelos gestos
e pelas cores. Nesse sentido, o diálogo incidirá sob o olhar lírico frente
à imagem cinematográfica: as coisas ditas no plano da linguagem
poética serão tradutoras do paradoxo entre cor e ausência de cor,
interligando-se pela relação entre euforia (comédia) e disforia (tra-
gédia), recuperadas do enredo fílmico do personagem de Chaplin.
A consciência e a apreensão das coisas serão silenciadas no pla-
no discursivo da fala, mas significadas pela linguagem manifestada
pela dicotomia das cores – negro e branco, pela qual o silêncio ad-
quire expressividade.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 86


O silêncio que procuramos identificar na imagem negra e branca de Carlito não
é o silêncio de omissão e indiferença, mas o silêncio das emoções, da contem-
plação, da introspecção, da revolta e da resistência. O emudecimento do indi-
víduo, seja ele voluntário ou involuntário, não é capaz de anulá-lo por completo,
pois no silêncio, sentido e sujeito movem-se largamente. Um indivíduo mudo
não fala, mas significa (BORTONE & SILVA, 2004, p. 7).

O personagem “Carlito”, com suas vestimentas noturnas, metafo-


riza uma época de inquietação e declínio, situada entre duas guerras
mundiais, ampliando-se para uma época subsequente de conflitos
e angústias sociais, pois o homem simples da quase cartola traduz o
povo, o noturno cidadão representa uma república enlutada. A inde-
finição do artigo “uma” reitera o diálogo incidido entre o personagem
e o mundo, enquanto traduz qualquer república enlutada, prorrompi-
da aos olhos pessimistas do eu-lírico e aos olhos do povo, que assim
como “Carlito”: chega muito tarde a um mundo muito velho. Por isso o
nunca-mais, o pessimismo incorporado à descrição das vestimentas,
sapatos – calças – cartola. Assim, O plano metafórico revela o conte-
údo saturnino do sujeito diluído no escuro do beco da existência.
Eis que surge a função mediadora da metáfora entre homem e
arte, pois converge a experiência e a linguagem em um eixo de ima-
gem e sentido. Consoante com Lótman, a metáfora é um metamo-
delo que traceja uma ligação íntima entre o discurso verbal e o não
verbal (visual), e cria uma zona de aproximação entre o estado das
coisas pré-determinado pelo contexto cultural (NÖTH, 2007). Por isso,
as cores brancas e negras no poema remetem à soturnidade do su-
jeito e reconstitui uma imagem anterior, o vagabundo chapliniano,
socialmente desamparado.
Imagem descortinadora do sujeito inscrito disforicamente diante
do mundo dos que não foram chamados à ceia celeste ou industrial
(parte III, 2º e 3º verso). Reiterada pelo “O bigode negro”, que “cresce
em ti como um aviso, e logo se irrompe. É negro, curto, espesso”. O

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 87


“aviso” sugerido pelo “bigode negro” anuncia o tempo de experiência
do sujeito cinematográfico, marcado pela escassez de um curto que
remete à penúria talhada pelo desequilíbrio social, subentendido pela
referência ao personagem.
Euforicamente o plano gestual modelizado pelos olhos e pela
boca penetra a atmosfera de escuridão figurada pelo plano imagéti-
co e revela a aurora, renovação pelo ato de sorrir. Com efeito, sugere
o riso como uma manifestação de resistência à dor e ao caos ins-
taurado pelo esfacelamento social, integrado culturalmente ao “ca-
pitalismo selvagem”, tal como se percebe no filme Tempos Modernos
(1936), pois “Carlitos” ao incorporar, na ação visual, um maltrapilho
desajustado ao mundo mecanizado, do capitalismo, provoca uma
catarse pelo riso para todos àqueles inscritos historicamente à mar-
gem da sociedade. Tal desajustamento revela o gauche chapliniano:
“Ser tão sozinho em meio a tantos ombros, andar aos mil num corpo
só, franzino” (parte IV, 3ª estrofe). O riso gerado pelo desajustamento
do personagem provoca a catarse porque está intimamente interli-
gado com os conflitos cotidianos do homem comum.
O gauche, enquanto representação estética constrói uma dupli-
cidade discursiva, pois revela de um lado a solidão, e do outro a uni-
ficação que se dá a partir da tradução de uma cultura popular, inte-
grada aos mil num só corpo, “Carlitos”, e cuja significação é reiterada
no poema como metáfora da “rosa do povo” de Drummond, do mo-
tivo de resistência da poesia. Com efeito, o cinema mudo de Chaplin
se integra à consciência lírica do poeta, que une o trágico ao cômico
e a arte ao povo.
O riso na concepção bakhtiniana está relacionado à cultura po-
pular – é o “avesso” de um mundo desfolhado, pérfido: “a segunda
vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma
como paródia da vida ordinária, como um mundo ao revés.” (BAKHTIN,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 88


1987, p. 11). Além disso, a filmografia chapliniana é a moldura parado-
xal – trágico/cômico que incide sob a representação lírica de Drum-
mond: o que fica visível na quinta parte do poema:

V
Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas e fábricas
de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um
operário comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

(DRUMMOND, 2003, p. 196).

Nessa estrofe a antonímia é apresentada por personagens do fil-


me Luzes da cidade (1931) e pelos signos que alegorizam o homem, o
operário no contexto industrial em Tempos Modernos (1936). Na se-
miose tecida com o primeiro filme, o sujeito lírico cria um sistema de
aproximação entre a cega, o rico e a nossa percepção das coisas, ao
enfatizar que a confusão é nossa, porque somente somos capazes
de apreender a existência natural e terna das coisas a partir do não
visual e em álcool, ou seja, a cegueira e a embriaguez se manifestam
como um sistema de representação da epifania, de nossa percepção

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 89


pura, ampliada do homem, ou é a visão desnudada da malícia e do
grotesco, ou desvanecida da cor desbotada que nossa lucidez pro-
mulga. Lucidez aqui significada como nossa visão limitada das coisas
pelo que enxergamos através dos olhos e do dinheiro: uma cega te
ama, os olhos abrem-se, não, não te ama, ou um rico, em álcool, é teu
amigo e lúcido repele a tua riqueza. A riqueza repelida por essa luci-
dez limitada é a amizade de um vagabundo desprovido de bens ma-
teriais, mas rico de compaixão e solidariedade, sentimentos ou ações
amalgamadas por Carlitos, na terceira cena de City Lights.

Figura 1 – Terceira cena

Fonte: imagem recuperada do filme Luzes da


Cidade/Dvd Charlie Chaplin, volume 03.

O eu-lírico canta a Chaplin ou a Carlito de maneira dialógica, e


não contemplativa, aproximando, por meio da tradução, as diferentes
experiências artísticas, conservando o caráter inacabado da poesia,
e, por conseguinte, do sujeito, uma vez que “a relação dialógica seria
a única forma de relação como homem-pessoa que conserva a liber-
dade deste, e sua característica de algo não acabado” (SCHNAIDER-
MAN, 1983, p. 102).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 90


Nesse sentido, traduzir o personagem cinematográfico no espaço
da poesia, consiste em colocá-lo no sistema amplo da semiosfera,
para ressaltar a cultura popular, da qual o poeta se sente parte, e a
representa em seus versos ao recuperar Chaplin, o homem do povo:
“colo teus pedaços (...), e nós, que a cada passo nos cobrimos e nos
despimos e nos mascaramos, mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz – bombeiro– caixeiro – doceiro – emigrante – forçado” (par-
te V, 2ª estrofe).
Em diálogo com Luzes da Cidade, a cega e o rico representam o
povo e simbolizam as multifaces do povo, que manifesta ora a com-
paixão, ora a indiferença com o outrem. Isso se deve “aos mitos que
cultuamos falsos: “maquinismos...proibições...fábricas”. Esses mitos
representam uma cultura industrial responsável por automatizar de
tal forma o sujeito, que ele existe apenas para o ofício: “ficaste apenas
um operário, comandado pela voz colérica do megafone”, como Cha-
plin sugere em Tempos Modernos. Assim, a prisão, a não liberdade é
sugerida pela opressão da fala, da voz emudecida, porém reescritas
pelo cinema mudo e pela poesia: “ó palavras desmoralizadas, entre-
tanto salvas, ditas de novo. Poder da voz humana inventando novos
vocábulos e dando sopro aos exaustos” (parte VI, 3ª estrofe). Portanto,
a arte salva as palavras ao significá-las para o povo “contra a miséria
e a fúria dos ditadores”. Como se percebe no célere discurso do bar-
beiro em o Grande ditador (1939):

Mais do que maquinaria nós precisamos de humanidade (...). A infelicidade que


caiu sobre nós é consequência apenas da ambição, da angústia do homem
que teme os caminhos do progresso humano. O ódio dos homens irá passar. Os
ditadores morreram. E o poder que eles tiraram do povo retornará então para o
povo (CHAPLIN, 1930: O grande ditador).

O grande ditador já incorpora, ao seu discurso, o cinema falado,


mas ressignifica a palavra no sistema de representação, de modo que
traduz a liberdade, dando “sopro aos exaustos”, ao propor conotações

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 91


de “resistência numa estrada de pó e esperança”. Liberdade alcan-
çada intrinsecamente pela arte literária e cinematográfica, pois pelo
sistema modelizante secundário se pode alcançar níveis elevados de
significação ao se possuir um modelo próprio de elaboração da vida,
isto é, o texto artístico estimula a ocorrência da catarse do interlocutor
frente às imagens sugeridas por sua estruturalidade, projetando-se
na história pela diferença.

Sérgio de Castro Pinto diante de um filme de Carlitos

Figura 2 – cena de encontro do vagabundo com a florista cega

Fonte: imagem recuperada do filme Luzes da Cidade


/Dvd Charlie Chaplin, volume 03.

Sentava os olhos
E logo os dividia:
Chorava com o direito
E com o esquerdo sorria.

Os dois jamais sorriam


Ou choravam,
(sempre dividiam,
eram sempre estrábicos),
um era triste
e o outro palhaço.
(PINTO,2006, p. 66).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 92


O respectivo poema, do escritor paraibano, Sérgio de Castro Pin-
to, está inserido no livro poético Ilha na ostra, publicado em 1970, mas
reiterado no livro O cerco da memória em 1993. O diálogo com o filme
chapliniano se dá por meio da catarse provocada no eu-lírico pelos
planos imagéticos construídos figurativamente por Carlitos. Enquanto
Drummond recupera Carlitos através do seu criador, Chaplin, sugeri-
do como heterônimo do povo, pois o intuito é aproximar arte, homem
e sociedade; em Castro Pinto o eu-lírico se reporta diretamente ao
personagem mais célere da comédia pastelão, que ao intitular o poe-
ma cria um espaço-temporal de significação, já que as duas estrofes
do poema se colocam diante de um filme de Carlitos. Ora a estrutura
do poema singulariza a percepção, o olhar sinestésico do eu-lírico,
cuja onipresença é marcada desinencialmente pelo signo “Sentava”.
Nesse sentido, não se percebe uma arte cinematográfica que pa-
ralelamente está para o poeta e para o povo com sua experiência so-
ciocultural, revelada a partir da articulação de dois eixos expressivos:
de fora para dentro (extraverbal/cinema) – de dentro para fora (ver-
bal/linguagem literária). Mas uma arte fílmica que está tão somente
no plano castroniano para a experiência do sujeito lírico a partir da
convergência construída de fora para dentro, ou do filme para o su-
jeito poético. O título do livro, no qual o poema está inserido, já sugere
isso, porque a “ilha” remete à experiência, é o externo ou que está fora,
e o sujeito internaliza em sua consciência ou memória, alegorizada
pelo signo “ostra”. Prontamente, Chaplin não é traduzido em um con-
texto historicamente sugerido, entretanto, é assimilado, observado li-
ricamente no plano da semiosfera de diante de um filme de carlitos.
O título do poema se configura como o primeiro verso, porque
através do enjambement, promovido pelo paralelismo semântico, re-
presenta as percepções sinestésicas do eu-lírico, que em uma con-
dição de epifania tem o olhar duplicado frente à obra chapliniana:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 93


“sentava os olhos e logo os dividia: chorava com o direito e com o
esquerdo sorria”. A ação de sentar é personificada pelos olhos, à pro-
porção que eles representam o mecanismo de contemplação do su-
jeito, que diante do objeto se desfolha em sentimentos distintos, mas
colocados em eixos paralelos, onde cada parte independente dialoga
com o todo, o “eu”. Assim, “os dois jamais sorriam ou chorava (...) sem-
pre dividiam, eram sempre estrábicos”.
Esse desdobramento do olhar é modelado pelo plano da expres-
sividade chapliniana, incorporando, através de seu vagabundo Car-
litos, o trágico e o cômico, por isso diante de um filme de Carlitos. O
personagem carlitiano converge em sua pantomima o lado miserá-
vel da existência (singularizada pela fome e pela solidão) e o lado
engraçado que sugere a transcendência, então, nós apreendemos a
dor e a alegria. Isso resulta na catarse, na anestesia; “são duras horas
de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as
imagens - e te descobriram e salvaram-se” (Drummond, canto ao
homem do povo Charlie Chaplin). No poema a dor é configurada pelo
olho direito: “Chorava”, isto é, pelo olho da razão, da consciência, da
apreensão crua que se tem da realidade. E como o esquerdo é recor-
rentemente associado ao torto, então se tem a sugestão de um olhar
diferenciado, associado no plano da poesia ao cômico, traduzido pelo
riso, o riso transformador.
Para Tinianov há uma transversalidade entre o trágico e o cô-
mico, de tal forma que o “riso deforma intencionalmente o mundo,
faz experimentos com ele, priva o mundo de explicações racionais e
ligações de causa e efeito. Mas destruindo, o riso ao mesmo tempo
constrói (...) traz em si determinada concepção do universo” (SCHNAI-
DERMAN, 1983, p. 112). Essa perspectiva ambivalente, das coisas unifi-
cadas no poema a partir do cinema chapliniano, constitui o sistema
de representação castroniano, que sugere em sua poieses o lirismo

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 94


estrábico, observável em outros poemas de O cerco da memória, por
exemplo, no poema Etílico: “com o olho cheio de rum e o outro sem
rumo”. Portanto, o diálogo com Carlitos reitera a percepção estrábica
das coisas diante da experiência e do mundo. Por isso um olho “é triste
e o outro palhaço”.
Por fim, é importante destacar que o cinema de Chaplin apare-
ce nos poemas analisados como cinematismo4 da vida ensaiada,
aprofundada e liricamente esmiuçada pelo gesto, pelo tom de Car-
lito, vagabundo memorável que convida à sensibilização do olhar,
antes mecanizado pela invenção do desenvolvimento, uma vez que
foi descaracterizado pela política da morte, àquela que visa unica-
mente à lucratividade de poucos sobre o sacrifício do povo, corroído
pela fome e pelo desamparo que reverbera, entre tantas fragilidades,
a insegurança sanitária, refletida hoje pelo descaso com a pandemia
da Covid-19. À vista disso, pela voz de Chaplin, deixo o meu apelo às
antigas e novas gerações: “mais do que maquinaria nós precisamos
de humanidade (...). A infelicidade que caiu sobre nós é consequência
apenas da ambição, da angústia do homem que teme os caminhos
do progresso humano.”.(CHAPLIN, 1930, O grande ditador).

Referências

BAKHTIN, M. “Apresentação do problema”. In: A cultura popular na Idade


Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais. 4ª ed. Trad.
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BORTONEI, Márcia Elizabeth & SILVA, Carlos Augusto Moraes. Drummond
Canta Carlito. In: OPSIS – Revista do NIESC, Vol. 4. 2004.
CHAPLIN, Charlie. O grande ditador. Charlie Chaplin film corporation. EUA:
1940.

4 Termo utilizado pelo crítico e cineasta Eisenstein para falar do cinema que aparece na literatura.
Ver o livro A forma do filme (2002).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 95


DRUMMOND, Carlos. “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”. In: A rosa
do povo. Rio de Janeiro: Record, 2003.
MACHADO, Irene. “Circuitos dialógicos: para além da transmissão de men-
sagens”. In: Semiótica da cultura e semiosfera. São Paulo: Annablume/
FAPESP, 2007.
MACHADO, Irene. “Conhecimento linguístico como ato semiótico”. In: O fil-
me que Saussure não viu; o pensamento semiótico de Jakobson. Vinhedo
– São Paulo: Horizonte Editora, 2008.
NÖTH, Winfried. “Iúri Lótman: cultura e suas metáforas como semiosferas
auto referenciais”. In: MACHADO, Irene (org.). Semiótica da Cultura e Se-
miosfera. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2007.
PAZ, Octavio. “Ruptura e convergência”. In: A outra voz. Trad. Wladir Dupont.
São Paulo: Siciliano, 1993.
PINTO, Sérgio de Castro. “Diante de um filme de Carlitos”. In: O cerco da
memória. 2ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2006.
SCHNAIDERMAN, Boris. “Dialogismo, consciência, obra literária e paródia e
mundo do riso”. In: Turbilhão e semente; ensaios sobre Dostoiévski e Bakh-
tin. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 96


CAPÍTULO 5

Dicionário de Hieróglifos:
as cores representando a
memória da fronteira
Sirley da Silva Rojas Oliveira

DOI: 10.52788/9786589932369.1-5
Introdução

Sergio Medeiros é natural de Bela Vista Mato Grosso do Sul, mas


atualmente reside em Santa Catarina, onde atua como docente da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Medeiros é tradutor,
ensaísta e poeta e seus poemas que tratam muito da linguagem e
mitologia ameríndia são carregados de descrições que levam o leitor
a imaginar cenários, imagens e sons, o poeta cria também poemas
que intitula de caligramas, nos quais utiliza menos escrita e mais ima-
gens, cores e sons compondo uma poesia visual com menos lingua-
gem verbal.
Além de preocupar-se com a forma da poesia visual, Medeiros
também escreveu sobre a região em que veio, Bela Vista, no Mato
Grosso do Sul. Em seu livro Dicionário de Hieróglifos, o autor traz poe-
mas compostos pela palavra Apa grafada de diversas formas. Apa é
o rio que passa na cidade natal de Sérgio Medeiros e banha a fron-
teira entre Brasil e Paraguai. Usando a memória de seu local de ori-
gem, o autor cria uma obra em que o dissílabo que nomeia o rio que
atravessa Bela Vista aparece e desaparece de distintas formas e com
diversas cores, mostrando, assim, o percurso do Apa nas 72 páginas
da obra em questão.

Uma nova forma de poesia visual: os Caligramas coloridos


de Sergio Medeiros

O poeta Sérgio Medeiros partilha de um olhar para os seres não


humanos, assim como os ameríndios o fazem. Medeiros teve aproxi-
mação com a cultura indígena, a qual é nitidamente inspiração para
suas produções, nos anos 80, quando ouviu falar pela primeira vez
em Jerônimo Tsawé. O poeta era estudante das Faculdades Unidas

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 98


Católicas, em Campo Grande Mato Grosso do Sul, quando escutou
dos padres salesianos, autores da Enciclopédia Bororo, a história do
índio xavante de 100 anos, que era considerado profeta em sua al-
deia. Por causa dos padres, Medeiros conheceu as narrativas de Je-
rônimo Tsawé em dois volumes: Jerônimo Conta e Jerônimo Sonha,
publicadas pelos salesianos em 1975. Já na pós-graduação, Sergio
Medeiros começou a viajar até a aldeia onde Jerônimo morava, em
Mato Grosso, para estudar sobre as narrativas Xavantes. Foi em meio
a suas pesquisas que certa vez Medeiros recebeu uma folha de Jerô-
nimo Tsawé com grafismos, os quais o indígena dizia ser sua assina-
tura. Esta folha, além de ter se tornado inspiração para vários poemas
virou a capa de um dos livros de Sergio Medeiros exposta na Figura 1:

Figura 1 – Capa de Figurantes

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. Figurantes. São Paulo: Iluminuras, 2011.

Na capa deste livro, que apresenta a assinatura de Jerônimo


Tsawé, Medeiros, de forma reflexiva, como sugere Viveiros de Castro,
apropria-se da assinatura de Tsawé para colocar mais sobre a cultu-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 99


ra indígena em sua obra. Além de expor a cultura indígena vivenciada
em suas pesquisas de pós-graduação, Sérgio Medeiros também pas-
sou a criar uma poesia visual que utiliza mais imagens e cores, que
se distingue das poesias experimentais visuais criadas por Apollinaire,
as quais não utilizavam apenas sintagmas e vocábulos apresentados
em versos, mas desenhos e manchas traçados pelos próprios carac-
teres utilizados em sua composição.
Apollinaire buscou uma nova linguagem em seus Calligrammes,
segundo Hugo Friedrich, em sua Estruturas da Lírica Moderna, uma
linguagem brutalizada, dissonante e, em seguida, por outro lado, uma
linguagem divina: "Consoantes sem vogais, consoantes que soem
apagadas, sons como um pião, como o estalar da língua, como o ru-
ído de uma expectoração” (FRIEDRICH, 1978, p. 151). Seguindo as no-
vas ideias a poesia experimental, abriu espaço para outras culturas,
como explica Carlos Reis: “[...] a poesia experimental dos nossos dias
se abre a diversas influências culturais, cruzando-se ainda com outras
linguagens e materiais artísticos: as escritas ideográficas, a pintura, a
publicidade, a televisão etc” (REIS, 1999, p. 334). Essa poesia foi feita no
Brasil, inicialmente, pelos concretistas, os quais criaram poesias visu-
ais que usavam a linguagem e a partir dessa criavam imagens.
O poeta Sérgio Medeiros menciona em seus blogs e em seus li-
vros que tanto os simbolistas franceses Mallarmé e Apollinaire quanto
os concretistas brasileiros Augusto e Haroldo de Campos são funda-
mentais em seus poemas. Já na aba do livro Os Caminhos e o Rio o
poeta cita Apollinaire como um personagem fundamental de seu livro
“[...] Apollinaire, um típico francês imaginário nascido em Roma com
outro nome, sonhava colorir os seus famosos caligramas; aqui, to-
dos ou quase todos os caligramas estão doudamente coloridos” (ME-
DEIROS, 2019). No livro N Descritos (que aparece para leitura gratuita
em seu novo blog https://medeirossergio.blogspot.com/), o poeta faz

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 100


uma homenagem ao concretista Haroldo de Campos, no Prólogo do
livro há o seguinte: “Ao chegar aos 60 anos de idade em 2019, resolvi
não fazer uma antologia de minha poesia, mas sim homenagear o
mestre com quem aprendi tanta coisa Haroldo de Campos” (MEDEI-
ROS, 2020, p. 2).
No entanto, os poemas visuais de Sérgio Medeiros são diferen-
tes dos poemas dos simbolistas franceses e concretistas brasileiros,
aproximando-se mais das artes plásticas. Quando, em seu livro Os
Caminhos e o Rio, o poeta diz que seus caligramas são doudamente
coloridos como Apollinaire os sonhava colorir, Medeiros já está apon-
tando ao leitor a diferença de sua poesia visual. Um exemplo dos ca-
ligramas coloridos de Medeiros é o seguinte:

Figura 1 - Caligrama Colorido

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. Os Caminhos e o Rio. São Paulo: Iluminuras, 2019.

Este Caligrama, assim como os demais que aparecem na se-


gunda parte deste livro de Medeiros, são a representação de um rio
e alguns de seus caminhos. Além de uma nova linguagem de poe-
sia experimental, de poesia visual, uma das características mais per-
ceptíveis de Medeiros é atribuir particularidades humanas a seres não

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 101


humanos, o que vai de encontro ao perspectivismo ameríndio de Vi-
veiros de Castro, já que é perceptível na poesia de Medeiros a pre-
sença de características humanas atribuídas aos animais, às plantas,
às folhas, às árvores, o poeta tenta mostrar constantemente em sua
obra a comunicação presente em todos os elementos da natureza,
assim como Castro: “Se os animais são humanos, se as coisas podem
abrigar formas internas humanóides, se o trovão é uma pessoa, então
tudo comunica” (CASTRO apud CARVALHO, 2010, p. 84).

Dicionário de Hieróglifos: a memória da fronteira em


Sérigio Medeiros

É fato que os indígenas respeitam todos os seres que constituem


a natureza. A esse respeito, em seu livro Ideias para adiar o fim do
mundo, Ailton Krenak fala da relação que seu povo tem com o rio que
para eles é uma pessoa “O rio Doce, que nós, Krenak, chamamos de
Watu nosso avó, é uma pessoa, não um recurso como dizem os eco-
nomistas. Ele não é algo que alguém possa se apropriar” (KRENAK,
2020, p. 40). O indígena refere-se nesse trecho de seu livro ao aciden-
te que aconteceu na cidade de Mariana, em Minas Gerais, quando a
barragem da mineradora Samarco fez com que o Rio Doce ficasse
contaminado e agora as margens do rio estão sem vegetação. Logo,
quando chove, toda a lama cai dentro do rio novamente. Ao ser en-
trevistado pela rádio Brasil de Fato, em 06 de novembro de 2020, Ail-
ton Krenak respondeu que “O Watu é uma transcendência do sentido
físico material de um rio para uma entidade que é nosso parente.”
(KRENAK, 2020, p. 5) e completa que os Krenak chamam o Rio Doce de
avó e que eles conversam com o rio como com um parente. Ao nas-
cer uma criança, ela é apresentada ao rio, ao seu avô, e ao completar
trinta dias o bebê é mergulhado nas águas do Watu, a fim de vaciná-
-lo, dessa forma a criança estaria blindada de doenças por meio da
proteção do rio e ao crescerem essas crianças fortes pediam para o
rio o alimento, a saúde.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 102


Esse sentimento de que o rio é fundamental para a vida humana
também faz parte da obra do poeta Sérgio Medeiros, o qual escreve
um livro que além de mostrar o respeito do poeta pelo não huma-
no, em especial ao rio, enfatizando a importância daquele que passa
em sua cidade natal, Bela Vista, também mostra como o rio Apa não
deixa a memória de Medeiros. Em Dicionário de Hieróglifos, essa me-
mória se transforma em 72 páginas de poemas visuais, complemen-
tados pela palavra, torcando o livro um dicionário que indaga o que
vem primeiro, se a letra ou o hieróglifo. O livro foi publicado no blog
https://medeirossergio.blogspot.com, onde há vários outros livros de
poemas visuais que o leitor pode visualizar gratuitamente. Na posta-
gem do blog feita no sábado, 25 de abril de 2020, o leitor encontrará
ao lado da capa do livro a seguinte descrição:

Este livro de poesia visual é o catálogo de uma exposição e também a galeria


virtual do poeta e artista Sérgio Medeiros. Nas 72 imagens que cobrem as “pa-
redes” desta galeria, o dissílabo “apa” aparece caligrafado de várias formas e
prenuncia duas grandes palavras: “aparecer” e “desaparecer”, que nunca são
escritas. Linhas horizontais, cortadas por uma linha vertical, compõem o hieró-
glifo fundador que serve de suporte para as letras e para outros hieróglifos: é a
imagem do curso e das ondas do Apa, um rio dos confins do Brasil.

Conforme informado, o dissílabo apa aparece de diversas for-


mas no livro. Essa informação, disponibilizada inicialmente no blog, é
confirmada pelo autor no posfácio do livro onde consta: “O dissílabo
"apa", usado exaustivamente neste poema, prenuncia duas grandes
palavras: "'aparecer’ e ‘desaparecer’. Mas é bom lembrar que Apa,
com inicial maiúscula, é o nome do rio da minha cidade natal. Perto
dele repousam meu pai e minha irmã” (MEDEIROS, 2020). Usando o
dissílabo que forma o nome do rio de sua cidade natal o poeta colo-
ca em evidência a formação de palavras já que com o acréscimo de
sufixos e prefixos apa forma aparecer e desaparecer e embora esses
termos não aparecem escritos no livro/poema tanto o dissílabo apa
e o nome próprio Apa aparecem e desaparecem várias vezes no livro,
como segue exemplificado na figura 2:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 103


Figura 2 - página 28 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed. – São Paulo:
Iluminuras, 2020.

Na figura 2, no lado direito, é possível ver as letras que formam o


nome próprio Apa aparecendo na página, já ao lado esquerdo é pos-
sível ver o rio Apa representado pela cor azul comum das águas de
um rio e que se assemelham a cachoeiras que podem ser referências
ao trecho do rio conhecido como Parque Municipal Cachoeira do Apa,
apresentado na Figura 3.

Figura 3 - foto do Parque Municipal Cachoeira do Apa

Fonte: https://www.facebook.com/cachoeiraodoapa/ acessado em: 06, fev. 2021.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 104


Apesar deste trecho pertencer à cidade de Porto, Murtinho é um
ponto turístico do rio Apa que percorre 447 quilômetros e que cor-
re por um terreno muito plano, por isso o percurso é muito tortuoso,
apresentando muitos meandros até chegar ao rio Paraguai. Esse per-
curso tortuoso foi apresentado por Sérgio Medeiros dentre as 72 pági-
nas de seu Dicionário de Hieróglifos:

Figura 4 - Página

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed.


– São Paulo: Iluminuras, 2020.

Nesta poesia visual exposta na Figura 4, tanto o rio desenhado


quanto a letra que formam o nome Apa aparecem em curva, repre-
sentando o percurso tortuoso do rio que faz divisa com o Paraguai.
E muitas outras páginas trazem mais sobre as curvas e as histórias
desse rio, por meio de desenhos e letras, em um uso da palavra como
em um dicionário, a diferença aqui é que todas as páginas dizem res-
peito ao mesmo dissílabo: apa, que também é um nome próprio e
cada página além de mostrar um dos possíveis usos de apa também
traz um desenho coberto de cores. Como o poeta colocou no posfá-
cio de seu livro, de um lado aparece o rio desenhado, o hieróglifo, e
do outro o rio escrito, a letra sancionada, dessa forma desenhando e

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 105


escrevendo o poeta leva dias para criar seu livro. Um dicionário que
exaustivamente mostra o uso do dissílabo que faz parte da formação
de palavras e também é o nome próprio do rio que corta Bela Vista
e marca a fronteira entre Brasil e Paraguai. Medeiros questiona o que
veio primeiro o hieróglifo ou a letra e faz uma homenagem ao rio de
sua cidade:

Figura 5 - Posfácio de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed. – São Paulo:
Iluminuras, 2020.

E com muitas cores, frias e quentes, o poeta leva o leitor a ques-


tionar se veio primeiro a letra ou o hieróglifo, embaralhando-os em
algumas páginas, como acontece na figura 6.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 106


Figura 6 – Página 9 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed.


– São Paulo: Iluminuras, 2020.

Nesta imagem, figura 6, com o predomínio de cores quentes, mui-


to vivas e alegres dos dois lados, as letras a e p vem separadas e em-
baralhadas, com traços muito próximos em ambos os lados. Já em
outras páginas a separação entre hieróglifo e letras aparecem bem
definidas, como nas figuras 7 e 8 que seguem:

Figura 7 – Página 40 do livro Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed.


– São Paulo: Iluminuras, 2020.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 107


Figura 8 – Página 41 do livro Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed. – São Paulo:
Iluminuras, 2020.

Esses dois poemas aparecem um ao lado do outro no livro. Na


figura 7, é visível o dissílabo apa com a vogal “a” separada da síla-
ba “pa”, o que chama a atenção do leitor para as letras e seu uso na
formação de palavras, considerando que o “a” pode ser uma vogal
temática quando se une ao prefixo des e ao sufixo er como em desa-
parecer. Já na figura 8 um A maiúsculo começa a surgir no canto da
imagem, o nome do rio começa a aparecer no poema. Quanto às co-
res utilizadas, na figura 7, elas se mantém no desenho do rio e na es-
crita das letras onde há o predomínio de cores quentes. Já junto ao A
maiúsculo, que começa a surgir para trazer o substantivo próprio Apa,
na figura 8, foram usadas cores neutras, as quais parecem anunciar o
predomínio do preto que surgirá da página 17 a 24, da página 41 a 49
e voltará mais no fim do livro. A escolha da cor preta em grande parte
do livro pode ser remetida a um período bastante violento, do qual o
rio Apa e a cidade de Bela Vista foram palco.
Falando um pouco mais sobre a cidade onde nasceu Sérgio Me-
deiros, Bela Vista fica na região sudoeste do estado de Mato Grosso
do Sul, na fronteira entre Brasil e Paraguai, onde o rio Apa faz a divisa

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 108


entre a cidade brasileira e Bella Vista Norte, departamento de Amam-
bay, no Paraguai. Bela Vista do lado brasileiro teve início em 1908 e
antes de se tornar um município foi um povoado chamado Nunca-
-te-vi. Porém, sua história foi bastante conturbada, já que, apesar de
o tratado de Santo Ildefonso, em 1777, reconhecer "[...] os direitos do
Brasil sobre essa região, restabelecendo como linha de limite o Rio
Corrente, atual Rio Apa”1, em 1801, um capitão do exército espanhol,
Juan Caballero, atravessou as águas do rio Apa e fundou o Forte São
José, nas terras brasileiras. “O Capitão Juan Caballero, do exército es-
panhol, cruza o Rio Apa, funda o Forte São José e ali se instala.”2
Já no ano seguinte à fundação do Forte São José por Juan Ca-
ballero, forças brasileiras do presídio de Miranda, com a ajuda de ín-
dios Guaicurus atacaram o forte e tomaram a tropa. Neste confronto,
o capitão Juan Caballero morreu. Bela Vista, neste período, era uma
cidade bastante violenta, já que passava por essas disputas de terra
e logo em seguida aconteceu ali a Guerra do Paraguai que teve iní-
cio em 1864, na qual o rio Apa foi palco: “No dia 21 de abril de 1867, o
Coronel Camisão atravessa o Rio Apa, ocupa, no Paraguai, o Fortim
Bela Vista e marcha até Laguna, de onde inicia a épica Retirada”.3 Tal
episódio aconteceu na fazenda Laguna, quando soldados brasileiros
comandados pelo coronel Moraes Camisão atravessaram o rio Apa a
fim de chegar a fazenda Laguna, onde se alimentariam e em segui-
da iriam para cidade de Conception, também no Paraguai. Contudo,
além de não encontrarem alimentos suficientes, os soldados brasilei-
ros foram atacados pela tropa Paraguaia. Isso resultou na retirada de
volta ao Brasil, tudo aconteceu na cidade de Bela Vista.

1 Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrossodosul/belavista.pdf.


Acesso em: 03 fev. 2021.
2 Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrossodosul/belavista.pdf.
Acesso em 03 fev. 2021.
3 Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrossodosul/belavista.pdf.
Acesso em 03 fev. 2021.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 109


Essa parte da história que aconteceu na cidade natal de Medeiros
parece estar retrata no livro em algumas partes em que o rio aparece
pintado de preto, tanto em suas letras quanto em seus hieróglifos, e o
leitor que tem conhecimento sobre o episódio da retirada da laguna
pode remeter algumas páginas do livro a esses episódios tristes, vio-
lentos, que se passaram no rio Apa e que deixaram marcadas toda a
região sudoeste do Mato Grosso do Sul:

Figura 9 - Página 70 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed.


– São Paulo: Iluminuras, 2020.

Figura 10 - Página 71 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros 1.ed.


– São Paulo: Iluminuras, 2020.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 110


Essas duas páginas que antecedem a última do livro trazem o
rio todo representado de preto, na figura 9 é visível do lado esquerdo
um rio com traçados irregulares e do lado direito apenas dois traça-
dos circulares, são os dissílabos aparecendo na folha. Já na figura 10,
do lado esquerdo, há traçados mais regulares em linhas horizontais e
verticais, no lado direito a letra A do substantivo próprio Apa também
começa a aparecer na folha e vem, também, com um traço vertical e
um horizontal.

Figura 11 - Página 66 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros


1.ed. – São Paulo: Iluminuras, 2020.

Figura 12 - Página 67 de Dicionário de Hieróglifos

Fonte: MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. Sergio Medeiros


1.ed. – São Paulo: Iluminuras, 2020.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 111


Já em algumas páginas anteriores, 66 e 67, a composição dos
hieróglifos e letras aparecem desenhados com cores neutras, com o
predomínio do preto, parecem referir-se à Guerra do Paraguai. Na fi-
gura 11, o rio é desenhado do lado esquerdo com pontos, praticamen-
te enfileirados, como soldados se retirando do país vizinho para não
serem mortos, como aconteceu no episódio da Retirada da Laguna.
Ao lado direito o que geralmente traz a letra, o desenho parece mais
uma caixa ou uma prateleira, que poderiam servir de esconderijo para
os soldados ou um local onde se colocam armas, já que nos traçados
horizontais que terminam em dois traços verticais, há junto pontilha-
dos, que podem ser interpretados como armas em uma prateleira. Os
traçados verticais e horizontais lembram a letra A, porém de forma
bem menos clara do que nas demais imagens do livro que trazem o
dissílabo ou nome Apa. Já na figura 12, no lado esquerdo, o rio vem
representado por pinceladas que parecem a trajetória de balas de
revólver, e no lado direito, a letra A, do nome Apa, começa a aparecer
e vem acompanhando o mesmo traçado do rio, parecendo uma con-
tinuação deste, mantendo a mesma direção e seguindo a cor preta
que vai se tornando cinza e mais fina. Em ambas as páginas toda a
interpretação da referência aos episódios da Guerra que acontece-
ram no rio Apa é completado pelo tom rosa dos pontilhados na figura
11 e das pinceladas na figura 12 que parecem remeter ao sangue tão
comum em episódios de guerra e violência.

Considerações finais

Sérgio Medeiros é um poeta que vem da fronteira entre Brasil e


Paraguai e sua obra além de mostrar a cultura indígena rompe as
fronteiras com o que até agora foi posto como poesia experimental,
o que faz com que sua poética assuma também um lugar fronteiriço

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 112


no sentido da forma: imagem-palavra; palavra-imagem. Além disso
Medeiros retratou as memórias da sua região escrevendo Dicioná-
rio de Hieróglifos, onde, seguindo o exemplo dos indígenas que tanto
valorizam a natureza e chegam a considerar o rio como um parente
mostra a importância do rio Apa para a região de Bela Vista, sua ci-
dade natal.
Em Dicionário de Hieróglifo assim como em Os Caminhos e o Rio,
o poeta Sérgio Medeiros ressalta a importância do rio para o homem.
Com cores vivas e fortes o poeta consegue ressaltar a necessidade
da natureza para a vida humana, que sem ela não sobreviveria, já
com o preto o poeta parece lembrar de momentos tristes da história
humana em que o rio ali esteve e também foi fundamental. Hoje, vive-
mos em tempos difíceis, em que um vírus como um rio de águas vio-
lentas avança por todos os lugares do planeta e faz com que os hu-
manos revejam seus propósitos existenciais. Em um momento como
este é de fundamental importância rever as ações que são feitas pelo
homem no habitat em que vive e que trarão suas consequências por
muitos anos.

Referências

CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Brasiliense, 1986.


CARVALHO, Luis Felipe dos Santos. Na fronteira do outro – motins antropo-
fágicos. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio. Rio de Janeiro 2010, p. 83-115.
REIS, Carlos. Capítulo V – A poesia lírica. InREIS, Carlos. O conhecimento da
literatura. Introdução aos estudos literários. 2. ed. Coimbra: Almedina,1999.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,
1978.
MEDEIROS, Sérgio. Dicionário de Hieróglifos. [Recurso eletrônico on-line]/
Sergio Medeiros 1.ed. – Florianópolis : Rafael Copetti Editor, 2020. Disponível
em: https://medeirossergio.blogspot.com/. Acesso em: 10 ago. 2020.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 113


MEDEIROS, Sérgio. Figurantes. São Paulo: Iluminuras, 2011.
MEDEIROS, Sérgio. Os Caminhos e o Rio. São Paulo: Iluminuras, 2019.
MEDEIROS, Sérgio. N Descritos com rimas. [Recurso eletrônico on-line]/Ser-
gio Medeiros 1.ed. – São Paulo: Iluminuras, 2020. Disponível em: https://me-
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MEDEIROS, Sergio. Toten. Wordpress: 2019. Disponível em httpss://medeiros-
sergio.wordpress.com/page/2/> Acesso em: 24 jun. 2020.
Bela Vista Mato Grosso do Sul. Histórico. IBGE, 2017. Disponível em: https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrossodosul/belavista.pdf.
Acesso em: 03 fev. 2021.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 114


CAPÍTULO 6

Intertextualidade, música e poesia:


Caetano Veloso faz a ressignificação
do poema “à cidade da Bahia”,
de Gregório de Matos
Andreza da Silva
Claudia Lopes dos Santos

DOI: 10.52788/9786589932369.1-6
Considerações Iniciais

Dentre muitos poemas conhecidos de Gregório de Matos, des-


cobrimos que a partir do poema “À Cidade da Bahia” foi criado o in-
tertexto “Triste Bahia”, de autoria de Caetano Veloso. Tal fato aguçou
nossa curiosidade, pois, apesar de haver uma distância de dois sé-
culos entre os poemas, notamos que “À Cidade da Bahia”, de Gregóri
torna-se atemporal por condizer com a realidade política e social do
Brasil nos dias atuais, enquanto “Triste Bahia" reforça a ideia de que
nenhum texto nasce do nada ou se produz de forma vazia, todo texto
nasce explícita ou implicitamente de outros textos já existentes.
O presente trabalho apresenta ainda uma leitura cronológica, le-
vando em consideração a importância da literatura a partir dos per-
cursos das ideias mais antigas para as mais atuais, fazendo uso de
uma linguagem viva, elaborada e geradora de sentidos. Na análise
feita da música “Triste Bahia”, apresentamos que os traços poéticos
das canções populares não são apenas textos e sim práticas poéti-
cas da literatura.
Aqui faremos uma análise sobre a ressignificação de “À Cidade
da Bahia”, de Gregório de Matos, que Caetano Veloso faz ao criar o
seu: “Triste da Bahia”. Para isso, abordaremos as características da
literatura do período Barroco e das artes produzidas no movimento
Tropicalista. Não poderíamos deixar de falar sobre os tipos de inter-
textualidade, pois ela é fundamental para o entendimento da parte
analítica da nossa pesquisa.
Com esta pesquisa, esperamos acrescentar e contribuir para o
entendimento da intertextualidade e da capacidade de criar textos
com base em outros textos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 116


Panorama histórico-cultural do barroco

O barroco surge após as Reformas Religiosas vividas no século


XVI, nas quais a igreja católica perde o poder e espaço, porém ainda
prossegue no meio político econômico e religioso. Foi um movimento
artístico que surgiu na Itália no século XVII e se manifestou de início
nas artes plásticas e posteriormente na literatura, teatro e na música;
o movimento alcançou outros países europeus e no século XVII chega
a América Latina. Sendo um movimento artístico atrelado às incur-
sões culturais do catolicismo: “É na estufa da nobreza e do clero espa-
nhol, português e romano que se incuba a maneira barroco-jesuítica”.
O termo “Barroco” foi utilizado pelos críticos das artes plásticas do
século XVIII para desacreditar as obras que não obedeceram aos pa-
drões estéticos da Antiguidade clássica e da alta Renascença. De iní-
cio o estilo barroco não foi muito aceito, houve inclusive uma tentativa
de combate ao estilo, devido ele fugir dos padrões renascentistas e
provocar estranhamento com suas formas extravagantes. De acordo
com Gombrich (1979, p. 302), o “Barroco foi um termo empregado pe-
los críticos de um período ulterior que lutavam contra as tendências
seiscentistas e queriam expô-las ao ridículo”.
Nascido em meio a disputas culturais e políticas, o Barroco é, por
princípio, a Arte do conflito, utilizada pelos Jesuítas como instrumen-
to de afirmação e persuasão a fé Cristã. Logo no início, o movimento
já demonstrava a ideia do exagero, certo desequilíbrio quanto a sua
estética, evidenciado, assim, mau gosto e incoerência em suas obras
em relação ao estilo clássico do Renascimento. O exagero e o drama
das formas são suas principais características. Resgatou o gosto pelo
típico e original, pela movimentação das formas e pelo jogo cons-
tante de planos, mostrando as duas faces do homem da época, uma
ligada aos preceitos e ideais humanistas, ao passo que a outra face

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 117


estava presa à realidade do absolutismo e da Contra – Reforma es-
tabelecida pela igreja.
A época barroca é dualista, por sempre apresentar dois lados.
Foi um período marcado por contradição: de um lado, o Humanismo
clássico e o Renascimento, com apelos ao racionalismo, ao prazer e
ao apego aos bens materiais (Antropocentrismo). De outro lado, a re-
ligião falava mais alto. O homem é pressionado pela Igreja Católica a
voltar ao Teocentrismo medieval, à renúncia aos prazeres, à mortifi-
cação da carne. O Barroco Literário, então, convive com valores opos-
tos, com paradoxos que refletem a vida no contexto conflitante dos
séculos XVI e XVII: fé x razão, alma x corpo, bem x mal, perdão x peca-
do, espírito x matéria, Deus x homem, virtude x prazer.
O barroco surge com a proposta de uma arte rebuscada, deta-
lhista e extremamente expressiva, dando lugar em suas obras as sen-
sações e as emoções da vida e do ser humano, envolvendo novas
formas de literatura, arte e até filosofia. Vários artistas dessas fases
históricas, que expressaram sua emoção e demonstraram sua capa-
cidade profissional a serviço de princípios religiosos, permaneceram
anônimos, pois aquela foi uma época em que o artista criava obras
belíssimas para cumprir, normalmente, uma tarefa, algo que já esta-
va estabelecido, e não para expressar a sua subjetividade.

Literatura barroca: aspectos estilísticos

A literatura artística desse período reciclou, de certo modo, ideias


da tradição renascentista, porém levando em consideração as trans-
formações e inovações artísticas do período. Sobre isso Bosi (2006,
p. 30) reflete que “a atmosfera do Barroco está saturada pela expe-
riência do Renascimento e herda as formas de elocução maduras e
crepusculares: o classicismo e o maneirismo.” Essa consideração nos

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 118


chama atenção ainda para o caráter dialógico e intertextual do Bar-
roco, tema, aliás, que será abordado em nossa análise.
Os escritos barrocos utilizaram formas muito elaboradas, permi-
tindo ao leitor compreender as ideias estéticas, tendo como uma das
características o rebuscamento que, acaba refletindo a crise existen-
cial que o homem do século XVII vivia por não saber se desfrutava os
prazeres da vida ou se mantinha santo para a vida eterna. Na litera-
tura, o barroco caracterizou-se pelo emprego de algumas figuras de
linguagem como: hipérboles, antítese e anacolutos. Os temas acaba-
ram por ser bastante opostos, por exemplo, perdão e pecado, bem e
mal, espírito e matéria, céu e inferno. Isso acabou gerando a preocu-
pação com o fato de a vida ser breve, portanto deveria ser aprovei-
tada.
Uma das fortes características, dentre muitas, do Barroco presen-
te na composição poética de Gregório de Matos se define pela com-
posição estética do paradoxo. Abaixo veremos um poema de Gregó-
rio de Matos, no qual ficam visíveis as características do estilo barroco
dentro da escrita.

A Jesus Cristo Nosso Senhor 


Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Antes, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 119


O poema A Jesus Cristo nosso Senhor, é um texto que compõe a
poesia de caráter religioso de Gregório de Matos, composta por uma
regularidade formal (métrica e rítmica), que apresenta o caráter du-
alístico do barroco na discussão bíblica entre a fé e a razão, o homem
e Deus, questiona o mundo e os homens. Retratando dessa forma os
valores religiosos. A obra apresenta versos decassílabos (versos com
dez sílabas poéticas), rimas regulares, ou seja, rimas opostas ou inter-
poladas nos dois quartetos (ABBA/ABBA) e rimas mistas nos dois ter-
cetos (CDE/CDE). Segundo Bosi (2006, p. 39) “Alguns de seus sonetos
sacros e amorosos transpõem com brilho esquemas de Góngora e
de Quevedo e valem como exemplo do gosto seiscentista de compor
símiles e contrastes para enfunar de imagens e destrinçar conceitos.”
Abordando a religiosidade, o autor destaca o medo da punição
divina, o desejo desesperado pela busca do perdão mesmo depois
de ter cometido muitos pecados, mostrando o típico homem barro-
co, que geralmente vivia confuso, dividido entre a fé e a razão, entre o
pensamento mundano e a necessidade de voltar-se para Deus, bus-
cado sempre o perdão pelos pecados cometidos.
No referido soneto, podemos destacar, ainda, os recursos estilís-
ticos que enriquecem o poema: nos versos do primeiro quarteto, o
eu-lírico clama ao senhor afirmando ter pecado e logo em seguida
diz que, por mais pecados que cometa, ele não desiste do perdão de
Jesus, pois a divindade o ajuda, garantindo-o o perdão. Percebemos
que o autor faz uso de algumas figuras de linguagem ao longo do po-
ema, no verso “(...) quanto mais tenho delinquido, vos tenho a perdoar
(...)”, é possível destacar o perdão e o pecado, utilizando-se da figura
de linguagem antítese. O poeta fez uso, também da aliteração e da
assonância no poema, a fim de conferir efeito sonoro a ele. A alitera-
ção está presente na repetição da consoante P: Pequei, Porque, Peca-
do, Porque, Perdoar, Pecado culPa, Perdão, Perdida, Prazer, repentino,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 120


Pastor, Perder. A assonância fica evidente na repetição da vogal I, com
a intenção de produzir efeito sonoro pertinente: pequei, heI, clemên-
cIa, despido, maIs, delinquido, maIs, Irar, gemIdo, ofendIdo, lIsonjeado,
perdIda, glórIa, repentIno, afIrmaIs, hIstórIa, queIraIs, dIvIno, glórIa. Por
fim, notamos na última estrofe o uso da metáfora, quando o eu lírico
diz ao Senhor ser a ovelha desgarrada.
Procuramos ainda destacar que o Barroco na América Latina
apresenta diferenças em relação à proposta europeia. Por isso, Averi-
ni (2013) discute o Barroco a partir da sua territorialização, destacan-
do o que chama de “tropicalidade do Barroco”:

O Barroco dos países latino-americanos é a primeira forma de arte conatural e


legitima na qual se exprimem a progressiva ascensão daquelas populações e a
aspiração, que já não se pode deter, a uma estruturação social orgânica e civil,
diferenciada da metropolitana: delas nascerá a consciência de nacionalidades
autônomas e distintas. Por esta razão, o Barroco dos países latino-americanos,
depois da primeira fase de implantação, surge considerado como arte autóc-
tone e originária” (AVERINI, p. 26, 2013).

Essa consideração de Averini (2013) nos faz refletir sobre a própria


poética de Matos, que tem uma tonalidade nacional, refletida esteti-
camente pela sátira, o que pode ser observado no corpus de nossa
análise em Triste Bahia. Por meio do texto de Gregório somos levados
a refletir sobre a túnica social da Bahia como referência de uma iden-
tidade saqueada pela colonização. Em nosso escopo procuraremos
discutir como a estética barroca e os temas do poema de Matos são
transpostos e resinificados na canção Triste Bahia, de Caetano Veloso.
Por isso, no próximo tópico contextualizaremos o período de produção
do texto de Caetano como o Tropicalismo, movimento estético-cultu-
ral, que influencia a canção Triste Bahia.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 121


Tropicalismo

Foi um movimento cultural que explodiu nos anos 60 no cenário


artístico brasileiro. Trazia a ruptura estética e plural e estava mais vol-
tado para a Música Popular Brasileira, visto que seus integrantes eram
músicos, cantores e compositores. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
costa, Nara leão, Tom Zé, a banda os Mutantes, Torquato Neto, Rogério
Duprat, Capinam, Hélio Oiticica e Rogério Duarte.
De acordo com Brandão e Duarte (2011), é importante ter conhe-
cimento do contexto histórico pelo qual o Brasil passava, para enten-
dermos melhor o tropicalismo. Em 1964, o país passa a ser governado
por presidentes eleitos, enterrando a ditadura do Estado novo. Este
ano foi marcado pelo fim da democracia proposta pela constituição
de 1946. Em 1961, João Gulart sobe ao poder. Há uma desconfiança da
direita que está sendo fortemente confrontada pela esquerda orga-
nizada. É um momento em que os sindicatos, movimentos populares
e estudantis vivem um período de grande mobilização política. Pas-
samos pela Guerra fria entre as Américas e os Soviéticos pelo domínio
do planeta, já que em 1959 a América latina passa a sofrer maiores
pressões quando explode a revolução cubana de Fidel castro. Diante
do sucesso do governo socialista em cuba, faz a esquerda acreditar
na revolução para toda América.
Em 1964 há a radicalização da esquerda e da direita brasileira,
surgindo, assim, a o movimento militar de direita, culminado com o
golpe que depôs o presidente João Gulart. Os militares passam a ser
vistos como resposta aos comunistas que ameaçavam a segurança
da nação. A ditadura desarticula os movimentos sindicais e estudan-
tis, em nome da moral e dos bons costumes, colocando-os na clan-
destinidade, perseguindo-os, prendendo e cassando seus líderes em
nome da família, da moral de dos bons costumes.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 122


Conforme Brandão e Duarte (2011), os movimentos prosseguiram
na clandestinidade. O país passa por uma efervescência cultural in-
tensa, sob os olhos vigilantes da ditadura. É posterior ao período de 64
que surge o Cinema Novo, a jovem Guarda, o Teatro Arena e Opinião e
as produções do Teatro Oficina. Há ainda a grande explosão dos fes-
tivais de música e suas canções de protesto. Todos esses movimentos
culturais eram oriundos de artistas militantes da esquerda. O país vive
sua primeira fase da ditadura militar de 1964 a 1968. Os movimentos
culturais e seus intelectuais podem agir livremente, mas passando
por muitos problemas com a censura, e é nesse contexto que surge a
tropicália.
Os primeiros resquícios do movimento tropicalista surgem em
1967, a partir da apresentação do monumento penetrável de Hélio Oi-
ticica denominada de Tropicália, exibida no museu da arte moderna
do Rio de Janeiro, porém oficialmente o nascimento do Tropicalismo
surge no III Festival da MPB da Rede Record, em são Paulo, no qual
se apresentaram Caetano veloso e Gilberto Gil cantando as músicas
“Alegria, Alegria” e “Domingo no parque”. Foi um grande marco na
música popular brasileira, que desde a Bossa Nova não apresentava
nada tão carregado de expressividade. Com a tropicália, nasce um
novo conceito de se fazer música brasileira.
O Tropicalismo tem sua origem em meio à cultura pop, expres-
sando uma concepção de mundo urbana, moderna e universal. Seus
princípios estéticos partiram da indústria cultural e do youngpower-
sessentista (especialmente a produção musical). O movimento surge
com uma proposta de renovação cultural, no dizer de Caetano Velo-
so, do elemento cafona da nossa cultura, assumindo o caráter con-
testador dessa escolha. Holanda e Gonçalves (1982) afirmam que:

Havia toda uma área de afinidades no campo da produção cultural, envolven-


do uma geração sensibilizada pelo desejo de fazer da arte não mais um instru-
mento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um espaço

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 123


aberto à invenção, à provocação, à procura de novas possibilidades expres-
sivas, culturais, existenciais. O redimensionamento da relação com o público,
a crítica à militância conscientizadora, a valorização das realidades ‘menores’
ligadas à experiência cotidiana e a recusa do ideário nacional-populista, em
favor de uma brasilidade renovada (que buscava em Oswald de Andrade um
ponto de referência), definem, em linhas gerais, essa nova disposição (HOLAN-
DA E GONÇALVES, 1982, p. 44).

Acrescida de rock, psicodelismo e guitarras elétricas, as compo-


sições tropicalistas traziam uma linguagem nova que rompeu com
os padrões da cultura engajada de esquerda, identificava-se a cul-
tura hippie, a literatura de caráter mais erudito, combinada a literatu-
ra concretista brasileira e desta forma transformou as composições
musicais em verdadeiras poesias.
O tropicalismo deu origem a uma estética diferente das vistas
e seguidas até então. Criou uma estética antropofágica contempo-
rânea que procurava revolucionar a música popular brasileira, bus-
cando digerir a cultura propagada pelas potências culturais do mo-
mento, como os Estados Unidos e Europa para mesclar com a cultura
popular brasileira, criando uma relação de contrates entre o moderno
e o arcaico, o místico e o industrializado, o primitivo e o tecnológico.
Essa concepção antropofágica é assimilada pelos tropicalistas a par-
tir do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade. Falando sobre
a influência do antropofagismo no Tropicalismo, Caetano veloso nos
diz que:

O Antropófago desenvolve e explicita a metáfora da devorarão. Nós, brasileiros,


não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse.
(...) A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva.
Estávamos comendo os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra
a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação su-
cinta e exaustiva. Claro que passamos a aplica-la com largueza e intensidade,
mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que
adotamos. (...) Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre
a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonome-
cânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos se retraiu na constatação
de que as implicações maiores do movimento – e com isso Gil quer dizer suas

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 124


correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas.
(VELOSO, 2012, p. 54).

O antropofagismo não consistia na imitação do que havia de


bom, ele vem pra criar o novo, a partir da junção de tudo que há de
melhor na cultura mundial A grande preocupação dos compositores
da época era atualizar a música nacional, mas sem tirar sua origina-
lidade, sua brasilidade, visto que, para eles era sim possível ter uma
música universal sem que sua identidade fosse descaracterizada. O
movimento oscilante entre o nacional e o estrangeiro, entre a tradição
e o moderno não se limitou à música, principalmente quando falamos
de Caetano, que bebeu de várias fontes literárias para dar vida à mui-
tas de suas canções.
O objetivo principal do movimento não era utilizar a música como
uma arma para combater a ditadura militar que o Brasil enfrenta-
va, por este motivo, foi muito criticado por aqueles que defendiam as
músicas de protesto. Outro alvo de críticas foi o fato de o Tropicalismo
se utilizar das vanguardas europeias para criar um novo estilo brasi-
leiro. O uso de guitarras elétricas em suas canções fez com que mui-
tos músicos tradicionais e nacionalistas acreditassem que esta era
uma forte influência da cultura pop-rockamericana que prejudicava
a música popular brasileira.
Assim como afirma Brandão e Duarte (2011), as letras das músicas
eram inovadoras, com difícil interpretação, para conseguir decodifi-
car era necessária uma certa bagagem cultural, visto que as canções
apresentavam jogos de linguagem se aproximando da poesia con-
cretista, a exemplo da música "Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso
que não tinha sentido claro e óbvio, mas carrega em sua letra preo-
cupações da juventude de 60, que enfatizava o tormento da violência
da ditadura e o desejo de inovar e romper as barreiras.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 125


Alegria, Alegria
(Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro,
Eu vou.
 
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.
 
Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras,
Bomba e Brigitte Bardot.
 
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça.
Quem lê tanta notícia?
 
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.
 
Eu vou
Por que não? E por que não?
 
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou.
 
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 126


Uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.
 
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor.

 Eu vou
Por que não? E por que não

 A música "Alegria, Alegria" inaugurou a Tropicália e também aju-


dou a criar a nossa MPB. Apesar do título da música remeter a algo
bom, sua letra aborda algo totalmente contrário, retrata a situação
que o Brasil vivenciava no período militar e tudo isso foi estruturado a
partir de metáforas e expressões que em certos momentos parecem
não fazer sentido algum, tal estruturação se deve ao fato da censura
existente durante este período. Foram anos difíceis, não havia liberda-
de de expressão, tudo que contrariava a direita acabava sendo cen-
surado. A canção apresenta ainda uma forte crítica à cultura que era
importada e que alienava a maioria; uma crítica similar aparece em
“Triste Bahia”, onde nos primeiros versos Caetano relata a exploração
que Bahia sofria, e nos versos seguintes o compositor é irônico ao falar
que Pastinha preferiu ir à África que ficar no próprio país, visto que na-
quela época, durante a Ditadura Militar, a capoeira foi marginalizada
e perseguida.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 127


A música apresenta traços estilísticos que nos remete à estética
da poesia barroca, apresentando, por exemplo, jogos de palavras e
figuras de linguagem que dão vida a música como a metáfora pre-
sente nos versos “Caminhando contra o vento/sem lenço e sem do-
cumento” que se refere à violência praticada pelo regime. Ao dizer
“sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil”
revela a precariedade na educação brasileira proporcionada pela di-
tadura que queria pessoas alienadas.
As figuras de som também predominam, pois o ritmo é constan-
te, quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de
cada estrofe. A aliteração pode ser notada na repetição de sons con-
sonância quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos versos:
“Entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone,
no coração do Brasil.”: repetição do som do fonema “F”. Nos versos
“Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de
quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema /k/. Também
nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem
telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vo-
cálicos de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem
documento, no sol de quase dezembro”. Essa figuração rítmica e ima-
gética promove a forma lírica ou poética da canção.
Como dito antes, a música é composta por frases que parecem
não fazer nenhum sentido e estas são separadas por vírgulas, tal es-
truturação confere a música um sonoridade que parece um marchar
constante, além do que o uso das vírgulas também nos rementem a
continuidade dos acontecimentos, a narração de ações que não pa-
ram de acontecer, este efeito resultante do uso das vírgulas também
estará presente “Triste Bahia” como veremos ao analisá-la.
A música foi o que mais ganhou destaque dentro da estética Tro-
picalista, mas ela também se manifestou nas artes plásticas, sendo

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 128


identificado em algumas manifestações ambientais de Hélio Oiticica,
nas artes cênicas de Hélio Eichbauer e em pinturas como de Rubens
Gerchman e Carlos Vergara.

A intertextualidade

O primeiro teórico a abordar a intertextualidade, de acordo com


Fiorin (1994), foi Mikhaik Bakhtin, e nomeava esta relação de “dialo-
gismo”. Segundo o pensador russo, todo discurso se faz a partir de
outro e não sobre si mesmo. No discurso de qualquer falante, sempre
encontramos algo do discurso do outro, pois é o “outro” que nos com-
pleta, estabelecendo assim, relações dialógicas.
O dialogismo de Bakitin, recebeu o nome de intertextualidade em
1966, por Julia Kristeva kristeva. Para Kristeva “todo texto se constrói
como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transforma-
ção de outro texto” (apud Gouvêa 1974, p. 59). Ela afirma ainda que é
necessário que o leitor conheça outros textos para assim identificar
as relações intertextuais.
Ao longo do tempo, muitos estudiosos abordaram, questionaram
e transfomaram o termo e conceito de intertextualidade. Segundo Fá-
vero e Koch (1985), o conceito de intertextualidade abrange as várias
formas pelas quais a produção e a recepção de um texto pressupõe o
conhecimento de outros textos, isto é, “[...] diz respeito aos fatores que
tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais textos
previamente existentes” (1997, p. 88).
Koch(1986) foi mais além e ampliou o conceito de intertextuali-
dade, dividindo-a em um sentido amplo e um sentido restrito. Para
ela “em sentido amplo, é lícito afirmar que a intertextualidade se faz
presente em todo e qualquer texto” (1986, p. 40).
Pensando nas formas como a intertextualidade ocorre, sendo ela

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 129


explícita ou inplícita, Paulino, Walty e Cury (1995, p. 25-42) apresentam
oito formas de intertextualidade, “a epigrafe, a citação, a referência,
a alusão, paráfrase, a paródia, o pastiche e a tradução”. Sendo fruto
do uso da linguagem, a intertextualidade pode se manifestar no texto
de formas variadas. A primeira manifestação explicita da intertextu-
alidade é a epígrafe, o termo vem do grego epigraphe que significa
“escrita na posição superior”, faz uso de uma passagem de um texto
já existente para dar início ao seu próprio texto.
A citação é outro tipo de intertextualidade explícita. Nela o leitor
pode identificar que o texto é resultado de outro texto. É usada nor-
malmente para reafirmar uma ideia dita anteriormente. O terceiro
tipo de intertextualidade explícita é denominado de referência. Ela é
um intertexto que compara a obra de um autor com a de outro. Ge-
ralmente é utilizado em trabalhos acadêmicos.
Já como primeira manifestação implícita de intertextualidade
temos a alusão, que Paulino, Walty e Cury (1995, p. 29) denomina
como uma sutil menção a um texto ou a uma característica em um
novo texto. Outro tipo de se fazer intertextualidade é a paráfrase. Nela
acontece a apropriação, por parte do autor, de um texto já existente,
para reproduzir suas ideias com base no que foi dito antes, porém, de
uma nova maneira, mas mantendo ideia principal do texto original.
Conferindo caráter cômico, satírico ou irônico, temos a paródia
como um outro tipo de intertextualidade. A elaboração do intertexto
a partir da paródia pode acontecer por meio de estruturas textuais
escritas ou visuais que possam ser modificadas. Maingueneau e Gra-
ça Paulino (1996, p. 100) afirmam que “a paródia se manifesta quan-
do o texto que foge às intenções sérias do original e usa caricatura e
a intenção jocosa para com este”. Aqui, algumas características do
texto base são mantidas, mas existe a necessidade de ouvinte, leitor
ou espectador tenha conhecer previamente o texto que foi parodiado.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 130


Se construindo a partir de recortes de vários textos ou vários gê-
neros, temos o pastiche como mais uma forma de se criar intertextos.
O EdwuardLucie-Smith (1984, p. 141) diz que o pastiche é um traba-
lho de arte que toma emprestado o estilo e alguns elementos de ou-
tros trabalhos, mas sem necessariamente produzir. Rose (1993) tam-
bém se atém a definir o pastiche. Para ela, essa manifestação seria a
combinação de vários elementos textuais, vindos de diferentes obras
e que adiquierem novos sentidos à medida que são reorganizados e
ressignificados.
Como oitava manifestação de intertextualidade, temos a tra-
dução tipo de intertextualidade. Por meio dela, temos a tradução de
determinado texto de acordo com o idioma oficial do país em que a
obra é traduzida, como por exemplo, quando um livro em inglês é tra-
duzido para o português, mas também pode se compreender como
uma forma de adaptação, quando se trata da transformação de um
texto literário em texto fílmico, por exemplo, das relações entre dança
e música, cinema e pintura e etc.
Os tipos de intertextualidade apresentados mostram a importân-
cia de se conhecer as relações dialógicas existentes entre os textos.
No corpus de análise deste trabalho, traçaremos um paralelo entre o
poema de Gregório de Matos, “À Cidade da Bahia” e o intertexto “Triste
Bahia” de Caetano Veloso, mostraremos qual tipo de intertextualida-
de Caetano Veloso usa na construção do intertexto e falarmos ainda
dos versos próprios escritos pelo tropicalista para a ressignificação do
poema barroco.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 131


Análise intertextual: Caetano Veloso faz a ressignificação
do poema “À cidade da Bahia” de Gregório de Matos

Chegamos à parte analítica do nosso trabalho. Para início, con-


sideremos o poema abaixo, tomado da edição organizada por José
Miguel Wisnik (1976, p. 40):

À CIDADE DA BAHIA
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vê a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,


que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh! se quisera Deus que de repente


Um dia amanheceras tão sisuda
que fora de algodão o teu capote!

No soneto, o eu-poético faz um discurso de lamentação, demons-


trando estar desesperado com tal questão social que a Bahia passa-
va naquela época, demonstrando seu inconformismo em um voca-
bulário sutilmente agressivo, o extorquir dos “mercante/negociante”,
das riquezas contidas na Bahia e no contraste “branca/ arranca”, o
branco lembra pureza, limpidez em oposição “ao arranca”, tirar com
violência e “Brichote/capote” os exploradores usando capa, ou seja,
se auto protegendo através de aparências ou simulação.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 132


O eu-poético quer alertar e alerta, quando à decadência econô-
mica e social da Bahia, a fim de chamar a atenção do povo baiano
a refletir sobre tal sistema, apoiado pelos senhores nobres. Há, em “A
Cidade da Bahia”, um jogo feito pelo eu-poético: jogo do passado e
presente da sociedade (ou povo) baiano “Estás e estou de nosso anti-
go estado”, revelando unidade. “Rica te vi”, “A ti trocou-te...” e também
de um presente em continuidade “A mim foi-me trocando, e tem tro-
cado”. O eu-poético expressa que no passado e presente tudo con-
tinua igual, sem mudanças. Ele é observador e afirma que a riqueza,
devido à exploração comercial, ia e continuava indo e deseja ver a
Bahia mudar “Oh quisera Deus, de repente! um dia amanheceras tão
sisudo”. Ele deseja ver a Bahia sendo governada por uma sociedade
mais séria, “que fora de algodão o teu capote”, como no tempo em
que a comercialização de algodão trazia ao estado posição, de ser
respeitada, por sua muita produção e vantagem econômica.
O soneto requer uma leitura pausada, como recurso para isto foi
usadas as pontuações para que tivessem finalidade de melhor me-
ditação das mesmas, além disso, os sinais de pontuação no texto
demonstram também emotividade, por exemplo a presença de três
pontos de exclamação e a repetição da interjeição “ohh!” que por sua
natureza emotiva, reforça a tonalidade emotiva do poema, por ex-
pressar surpresa/ decepção no primeiro verso da primeira estrofe e
pena junto a desprezo no primeiro verso da última estrofe.
O emissor dirige-se à Bahia como se estivesse a se dirigir a al-
guém, o que nos revela a personificação do Estado, caracterizando-a
como triste, dessemelhante, rica x pobre, abelhuda, sisuda. Ainda na
primeira estrofe, também é veiculada pelo emissor a ideia de como
a Bahia o vê: empenhado (pobre), abundante (rico). Em suma: ele vê
a Bahia como a Bahia o vê, ou seja, um é reflexo e é espelho do que o
outro é. Tal ideia é expressa através da construção do 3° e do 4° verso:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 133


Pobre te vê a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante

A segunda e terceira estrofe remete ao período histórico que Gre-


gório viveu: o período das invasões e da monocultura da cana-de-
-açúcar. Na larga barra baiana0 entrava na máquina mercante, ou
seja, navios estrangeiros chegavam cheio de drogas inúteis e dela
saia igualmente cheio açúcar excelente este açúcar era trocado pe-
las drogas inúteis, negócio lucrativo para o sagaz brichote (estrangei-
ro esperto) a abelhuda Bahia está também trocando o emissor (na-
tivo) pelo negociante. Enfim, tudo que é brasileiro está sendo trocado
pelo que é estrangeira, a vantagem, portanto é do estrangeiro.
Na última estrofe, os verbos estão no pretérito-mais-que-perfei-
to, eles se referem a um passado distante. Ele utiliza do pretérito mais
que perfeito pra se referir a Bahia em um tempo muito distante, tem-
po esse em que a Bahia utilizava o capote, Que era o tecido produzido
pelos nativos, em vez do algodão, que é o tecido fino, vindo da Europa.
Comumente, Gregório de Matos elabora seus poemas mais longos
por um viés narrativo, o poema “à cidade da Bahia”, apesar de não ser
tão extenso, segue também a característica narrativa, visto que narra
a trajetória do estado da Bahia.
Apesar de existir uma diferença de dois séculos entre Gregório
de Matos e Caetano Veloso, os dois usam poemas semelhantes para
lançar uma grande crítica à Bahia. Gregório de Matos escreve o po-
ema “À Cidade da Bahia” que critica a situação financeira do estado
e Caetano Veloso usa algumas estrofes do poema de Gregório para
criar o seu, intitulado de “Triste Bahia” que apresenta uma forte crítica
político-social a qual a Bahia e o Brasil vivenciava naquele momento.
"Triste Bahia" é a terceira faixa do álbum Transa, de Caetano Ve-
loso (1972), segundo disco que o compositor gravou durante seu exílio
na Inglaterra. A direção musical do disco, fica por conta de Jards Ma-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 134


calé, além de ter contado com outros parceiros, Tutti Moreno, Áureo
de Souza, e Moacir Albuquerque.

Triste Bahia
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante

Triste, oh, quão dessemelhante, triste


Pastinha já foi à África
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra

Minha mãe, eu vou pra lua


Eu mais a minha mulher
Vamos fazer um ranchinho
Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua
E seja o que Deus quiser

Triste, oh, quão dessemelhante


ê, ô, galo canta
O galo cantou, camará
ê, cocorocô, ê cocorocô, camará
ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará
ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará
ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará
Bandeira branca enfiada em pau forte…

Afoxé leî, leî, leô…

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 135


Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte…
O vapor da cachoeira não navega mais no mar…
Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante
Maria pé no mato é hora…
Arriba a saia e vamo-nos embora…
Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…

Oh, virgem mãe puríssima…


Bandeira branca enfiada em pau forte…
Trago no peito a estrela do norte
Bandeira branca enfiada em pau forte…
Bandeira…

"Triste Bahia", de Caetano Veloso, aparece como um objeto es-


tético que consegue atingir seus ouvintes de diversas formas: agu-
çando a audição, devido à sonoridade, que faz lembrar muito um dos
grandes patrimônios culturais e imateriais da humanidade, a capoei-
ra, que diga-se de passagem é assunto obrigatório quando se pensa
no estado da Bahia. A música é um intertexto do poema de Gregório
de Matos. Caetano constrói seu poema musicado utilizando a inter-
textualidade explícita, mais especificamente a epígrafe nessa cons-
trução, ou seja, ele usa alguns versos de “À Cidade da Bahia” para dar
início a sua canção. O texto de Caetano Veloso é construído a partir
de repetições de alguns versos, porém o versos não são repetidos da
mesma maneira. A repetição no texto cria elementos novos, reforça
ideias e sentidos, estabelece ambiguidades, recria o sentido da pala-
vra dita dentro da canção, valoriza aspectos; dialoga com a tradição
literária colonial, o Barroco, evidente na linguagem medievalista do
texto, como na utilização do conceptismo, recurso que cria um jogo
verbal, o qual se estende a um jogo de ideias antitéticas “Triste Bahia,
oh quão dessemelhante”. Mais adiante, apenas um “Triste”, longo. E no
fim, “Triste recôncavo”.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 136


A produção do artista tropicalista consegue atingir o ouvinte ain-
da, no que tange ao senso crítico e à capacidade de pensar no cole-
tivo e na relação passado e presente ainda no início com o uso dos
versos escrito por Matos: Caetano mostra que, apesar dos séculos,
o povo continua a se trocar por tão pouco, perder sua riqueza e ao
acrescentar seus próprios versos à canção, mostra a necessidade de
fuga para encontrar sua identidade.
A música de Caetano apresenta ecos, influências do barroco,
como a linguagem culta e a presença de algumas figuras de lingua-
gem como o hipérbato, troca da ordem direta dos termos da oração,
e a antítese, que consiste na exposição de ideias opostas. Na ressig-
nificação de “À cidade da Bahia”, o autor de “Triste Bahia” reforça a
visão pessimista quanto à situação a que se encontra o estado, de-
mostra melancolia e também muita saudade e esperança de que
a mudança ocorresse de alguma maneira. São inseridos no poema
de Caetano elementos que nos remetem a essa saudade e que nos
mostram o quanto o eu-lírico admirava a riqueza cultural do Estado,
a exemplo da sonoridade, a referência a mestre Pastinha, que foi um
grande capoeirista baiano, e o próprio uso do poema de Gregório de
Matos, que é considerado o primeiro poeta brasileiro. Há, ainda, a pre-
sença de vírgulas nos versos de Caetano dão ideia de continuidade
dos acontecimentos, como numa narrativa, onde os fatos são narra-
dos numa sequência, até o desfecho que soa como um pedido de paz
“Bandeira branca enfiada em pau forte”.
A composição foi elaborada no período em que o artista tropica-
lista esteve exilado devido a acidez de suas composições que atin-
giam a ditadura militar, e apesar de não podermos afirmar ser uma
canção autobiográfica, podemos identificar elementos que nos re-
metem ao momento histórico que o Brasil vivenciava.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 137


Considerações finais

Diante do que foi colocado ao longo do nosso trabalho, concluí-


mos que, o barroco consegue permanecer vivo mesmo depois de sé-
culos, tanto através da arquitetura, escultura que são as manifesta-
ções mais visíveis e palpáveis, quanto através da poesia, sua escrita
de características fortes e marcantes, consegue ter uma linguagem
atual, percebemos tal atualidade quando, ao pegarmos o poema “
Triste Bahia” de Caetano Veloso, identificamos não somente a ressig-
nificação de “ À Cidade da Bahia “, poema de Gregório de Matos, mas
traços barrocos representados nos versos próprios do artista tropica-
lista e desse modo concluímos ainda que a poesia pode funcionar
como documento histórico, sendo capaz de registar e eternizar épo-
cas, momentos e movimentos marcantes e importantes.

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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 139


CAPÍTULO 7

O Homem medíocre no mundo


moderno: uma análise sobre “Os
Ratos”, de Dyonelio Machado,
e “A Queda”, de Albert Camus
Marileia de Oliveira Souza

DOI: 10.52788/9786589932369.1-7
Introdução

A era moderna propiciou ao ser humano atingir feitos outrora ini-


magináveis, foi o período das grandes realizações. Descobertas nas
diversas áreas da ciência tornaram possíveis a cura e o tratamento
precoce de doenças, de forma a permitirem o prolongamento da vida.
Invenções em múltiplos âmbitos desfizeram fronteiras, aproximaram
pessoas, expandiram possibilidades, levaram progresso aos recantos
mais longínquos e facilitaram o acesso a entretenimento e educação.
Contudo, no polo inverso ao desenvolvimento, vieram também
as crises que adentraram os mais variados âmbitos sociais; disputas
entre potências mundiais desaguaram em guerras catastróficas res-
ponsáveis por dizimar milhares de inocentes, instalar regimes totali-
tários e ditaduras atrozes. No mesmo bojo, os tentáculos do capitalis-
mo avançaram de forma tenaz acentuando a níveis sem precedentes
os índices de pobreza. Neste sentido, o historiador Lévi-Strauss, em
sua obra “A antropologia diante dos problemas do mundo moderno”,
afirma que:

As ciências e as técnicas estenderam prodigiosamente nosso conhecimento


do mundo físico e biológico. Deram-nos um poder sobre a natureza que nin-
guém poderia suspeitar há apenas um século. Começamos, porém, a calcular
o preço que foi preciso pagar para obtê-lo. De modo crescente, apresenta-se
a questão de saber se essas conquistas não tiveram efeitos deletérios (LEVI-S-
TRAUSS, 2012, p. 10)

Neste terreno impreciso de progresso e miséria, habita o indivíduo


moderno, um ser medíocre e opaco, refém de seus próprios temores
e inquietações. Sujeitos por essência caóticos e fragmentados, estes
carregam nos ombros os fardos da sobrevivência, e, na alma, uma
sequência de angústias e dilemas existenciais. Vivem atormentados
pela realidade terrena, perseguidos pelos próprios pensamentos, cor-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 141


roídos pelas tensões cotidianas, e residem às margens de raivosos
naufrágios psíquicos. Para Schopenhauer, “Em essência viver é sofrer”
([ca 1985], p. 67), ou seja, fatalmente todos estão destinados às in-
tempéries durante o árduo processo de existir.
Diante disso, o presente artigo tem o objetivo de realizar uma re-
flexão acerca das condutas, sofrimentos e crises existenciais que per-
meiam o âmago do sujeito moderno, a partir da análise comparada
entre os romances “Os Ratos”, de Dyonelio Machado, e “A Queda”, de
Albert Camus, tendo como suporte teórico a obra “O mundo como
vontade e representação”, de Arthur Schopenhauer, e “Modernidade
liquida”, de Zygmunt Bauman, entre outros igualmente importantes
para a realização deste estudo.

Modernidade: arcabouço do ser medíocre

O século XX foi palco de grandes feitos, possibilitou ao ser humano


alçar voos em diversos campos da ciência, economia, entretenimen-
to, dentre outros. Contudo, o excesso de avanços e melhorias resvalou
em crises psicossociais. Nesta fresta amorfa, íngreme e desprovida de
contornos sólidos, criada a partir da linha tênue entre desenvolvimen-
to e instabilidade social, nasce o homem medíocre, indivíduo esface-
lado, refém do seus próprios temores e insegurança, mas elemento
essencial para a construção da literatura de matiz contemporâneo.
Gestados nas entranhas do incerto, os personagens modernos
são seres aprisionados pelo próprios medos e pensamentos. Atores
insignificantes de um espetáculo sem plateia. Tramas cotidianas são
esmiuçadas pela literatura trazendo à luz sagas de indivíduos co-
muns, com dramas fúteis gerados no afã do trivial. João Carlos de
Carvalho, afirma no ensaio “O impasse da modernidade a partir de
uma literatura de insignificância” que “O personagem medíocre é o

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 142


grande herói” (2017, p. 80). O protagonismo desses indivíduos se dá
em resquícios de vivências por vezes atormentadas pela realidade ou
por conflitos existenciais que tecem o árduo percurso de viver.

O século XX fez uma clara opção pelo homem medíocre, quem sabe dando
continuidade a um processo vicioso do caráter individual[...]dessa feita, o que
ele foi encontrando, em sua condição de infinda itinerância, seria o irremediá-
vel aprofundamento das próprias marcas do processo vivido no amesquinha-
mento dos seus propósitos originais. A mediocridade, no entanto, nos últimos
cem anos, parece ser o paliativo de uma sociedade esmagada entre sonhos e
competição[...]O indivíduo em formação ensaiava o seu drama na turbulência
de seu cada vez mais mal resolvido drama de humanidade (CARVALHO, 2017, p.
77-78)

Naziazeno Barbosa e Clamence Baptiste, personagens centrais


das obras “Os Ratos”, de Dyonelio Machado, e “A Queda”, de Albert
Camus, respectivamente, compõem com perfeição o esboço do ser
medíocre. Embora estejam em patamares sociais distintos, ambos
estão imersos em conflitos existenciais, formados a partir de retalhos
gerados no decurso de seus trajetos. Um advogado respeitado nas
cortes europeias e aclamado por seus clientes, e um modesto funcio-
nário público desesperado para sanar as dívidas da sobrevivência:
dois seres atravessados pela invisibilidade, vítimas de tragédias ba-
nais, mergulhados em uma sociedade indiferente aos seus dramas.
São estes os protagonistas, que fornecem as tintas para se compre-
ender os impasses típicos da modernidade. Segundo Schopenhauer:

Quanto a vida do indivíduo, cada biografia é uma história de dor: porquanto em


regra, cada existência é uma série continua de grandes e pequenas desven-
turas que cada um, é verdade, esconde o melhor possível, porque sabe que os
outros raramente demonstram interesse ou piedade ([ca 1985], p. 67).

Ambos sobrevivem sob a égide da fluidez, em que nada é sólido


e duradouro, sejam as certezas, concepções, ou até mesmos os con-
ceitos. Tudo se esvai em questões de segundos, viver na era moderna

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 143


é trilhar um caminho arenoso, sem forma delimitada, em que os via-
jantes são peregrinos sem controle de seus destinos. Em “Modernida-
de Liquida”, Bauman explica a metáfora do termo “líquido”, elemento
costumaz nos últimos séculos:

Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verda-


de, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio
“líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se
solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de
substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo
uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e so-
lidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida (BAUMAN,
2001, p. 56)

Conforme explicita o sociólogo, os líquidos não possuem for-


ma determinada, estão sempre em constante transformação. Assim
também são os indivíduos modernos, constituídos de identidades
fragmentadas e sem contornos de solidez. Habitantes de uma época
em que as convicções outrora indiscutíveis já não possuem traços de
verdade.

Análise das obras

Publicada em 1935, a obra “Os Ratos” retrata as mazelas do indi-


víduo moderno. Dyonelio Machado, psicanalista de formação, pene-
tra nos labirintos mais sombrios e expõe sem receio as entranhas do
personagem. Para o crítico literário Alfredo Bosi, “Dyonelio Machado
tem escavado os conflitos do homem em sociedade, cobrindo com
seus contos e romances-de-personagens a gama de sentimentos
que a vida moderna suscita no âmago da pessoa” (1997, p. 388). Na
efervescência frenética das grandes metrópoles, a narrativa imprime
com maestria a sina de um ser invisível perdido no caos do progresso,
produto e vítima do sistema capitalista.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 144


Naziazeno Barbosa representa de forma fidedigna a labuta de
milhares de indivíduos modernos que paulatinamente são devora-
dos pelas necessidades financeiras típicas dos vastos aglomerados
urbanos. “Lhe dou mais um dia” (MACHADO,2000, p. 9): a partir deste
ultimato, revestido em tom de ameaça, Naziazeno, o herói fragilizado,
torna-se um indivíduo impotente diante das exigências capitalistas.
Sobre isso, Schopenhauer afirma: “Não há dor maior do que a própria
fraqueza quando se tem necessidade de ser forte” ([ca 1985], p. 61),
ou seja, reconhecer a própria limitação quando se tem o dever de ser
forte eleva o martírio a um grau sem precedentes.
A narrativa ocorre no lapso temporal de um dia: são vinte e qua-
tro horas de uma busca frenética à procura de conseguir 53 mil reis
para sanar o custeio do leite. A saga de Naziazeno tem início no rom-
per da manhã quando o leiteiro ameaça cortar a entrega do alimen-
to, devido à série de inadimplências:

Os bem vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem à “pega” com o leiteiro. Por


detrás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filho espantado já
de pé àquela hora ouve[...] O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenca-se pela
escadinha que vai do portão até a rua, toma as rédeas do burro sai a galope,
fustigando o animal, furioso, sem olhar para nada. Naziazeno ainda fica um ins-
tante ali sozinho (a mulher havia entrado.) Um ou outro olhar de criança fuzila
através das frestas da cerca. As sombras têm uma frescura que cheira a ervas
úmidas. A luz é doirada e ainda por longe, na copa das árvores, no meio da es-
trada avermelhada (MACHADO, 2000, p. 9).

A odisseia desesperada do personagem para obter o dinheiro


estipulado expõe sua irrelevância enquanto indivíduo. Inserido em
uma sociedade capitalista, o protagonista sobrevive para remediar
as suas despesas, um processo cíclico que nunca terá fim. A obriga-
ção de suprir as necessidades da prole o persegue: “Naziazeno mal
percebe o que diz o motorneiro. Há um estribilho dentro do seu crânio:
Lhe dou mais um dia! Tenho certeza”; quase ritmado: “Lhe dou mais
um dia! Tenho certeza. É que ele está-se fatigando, nem resta dúvida.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 145


A sua cabeça mesmo vem-se enchendo confusamente de coisas es-
tranhas. (MACHADO,2000, p. 19). Percebe-se, que a responsabilidade
que lhe é imposta o encalça de forma a torná-lo um prisioneiro do
sistema; para tanto, é visível a sua posição de subalterno. Sobre isso,
Bauman, afirma:

Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os


parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um orga-
nismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso
sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de
sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência (BAUMAN, 2005, p. 2).

Para evidenciar a situação miserável de Naziazeno, Dyonelio uti-


liza o processo denominado zoomorficação ou animalização, em que
há uma aproximação do comportamento humano ao dos animais, o
que propicia a representação das relações humanas. Segundo o crí-
tico literário Antônio Candido em “De cortiço a cortiço” (1993, p. 129),
a zoomorficação ocorre no momento em que “o que é próprio do ho-
mem se estende ao animal e permite, por simetria que o que é próprio
do animal se estenda ao homem”.
No decurso da narrativa termos como “face” ou “fronte” são subs-
tituídos por “focinho”, o que acentua a insignificância do personagem
ao equipará-lo a um rato, roedor que sobrevive das sobras, referência,
inclusive ao título do romance, como é possível observar nos seguin-
tes exemplos: “Ao seu lado, Naziazeno ergue -lhe um focinho humilde.
(MACHADO,2000, p. 83); “Mas na mesma ocasião o seu ar de pobreza,
aquele focinho quieto e manso, que vem ali a seu lado, tira-lhe qual-
quer ilusão” (2000, p. 84); “O seu focinho é sereno. O dorso meio curvo,
um tanto baixo” (2000, p. 131). Os adjetivos que qualificam a saliência
das mandíbulas tais como “humilde”, “quieto” e “manso” denotam a
submissão e inferioridade do funcionário público diante do meio em
que está inserido.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 146


Naziazeno, simulacro do homem moderno, é um ser invisível pe-
rante a sociedade, pois ninguém o percebe, ou seja, os seus dramas
não possuem relevância para a maioria. De acordo com João Carlos
de Carvalho em “A lâmina do risco e do reconhecimento: Ensaios te-
óricos críticos “: “O homem moderno e ele o é, dentro de das muitas
conjunturas que a história mostrou torna-se o ser exiliado pela com-
plicação do seu potencial de condenado pelo drama do reconheci-
mento de si mesmo”. (2017, p. 78)
Submerso no caos de um grande centro, Naziazeno escoa por en-
tre correntezas de estranhos, indiferentes à sua existência e aos seus
problemas. “Aquela multidão que entra e sai pela enorme porta do
café lhe é mais do que desconhecida: parece-lhe inimiga” (2000, p.
23). No setor onde trabalha, cada funcionário cumpre as obrigações
do ofício, entretanto, não há sensibilidade para o que ocorre atrás das
cortinas do elo profissional. Fato que ocorreu quando o personagem
resolve pedir ajuda ao diretor:

- O sr. pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? (o diretor diz essas coi-
sas a ele, mas olha para todos, como que a dar uma explicação a todos. Todas
as caras sorriem.) Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude.
Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho
as minhas, e é o que me basta...(risos)[...]tudo mais desapareceu da cabeça de
Naziazeno só ficou o diretor, com olhar aceso e a cara de pedra, dizendo-lhe
aquilo. Os risos do Dr. Rist e de outros, as fisionomias enrugadas de prazer, ha-
viam-lhe chegado ao olhar e à compreensão das coisas soltas no espaço, sem
fundo e sem meio ambiente: curvada sobre ele dura e estranha, a pessoa do
diretor enche-lhe toda a visão (MACHADO,2000, p. 38 e 39).

Diante das agruras presentes em seu cotidiano, fadado ao des-


prezo dos que o cercam, além da vergonha em ser reconhecido como
“devedor”, ele prefere as sombras do anonimato: “O bonde leva ‘outra
gente’. Não a que ele está acostumado a ver às nove ou dez horas, a
‘sua’ hora. “-Melhor, melhor. Essa falta de ‘conhecidos’ apazigua-o”
(2000, p. 13). O desejo de ser invisível nos locais que frequenta funcio-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 147


na como um escape para fugir do veredito daqueles que cruzam o
seu caminho diariamente.
Um turbilhão de sentimentos enlaça o personagem do início ao
fim da trama, fator recorrente ao indivíduo moderno, prisioneiro de
suas emoções. Todos os dissabores que afrontam a mente inquieta
de Naziazeno originam-se no temor de não solucionar a dívida. Nes-
se sentido, para Schopenhauer, “Nossa dor é provocada por alguma
circunstância externa bem precisa, que é a que nos perturba e nos
entristece: parece-nos, então, que se existissem meios de se afastar
essa circunstância, grande alegria viria afagar-nos.” ([ca 1985], p. 74).
Observa-se, que a origem das aflições internas que o persegue é fruto
de um fator externo: o déficit com o leiteiro. Assim, as tormentas exis-
tências só teriam fim quando solucionasse o encargo financeiro.
A dor germinada na insegurança do fracasso desagua numa tor-
rente caudalosa de inquietações psíquicas invadindo tanto o corpo
quanto o pensamento do herói: um gelo toma todo o seu corpo. Gelo
que é tristeza e desânimo. Voltam-lhe as cenas da manhã, o arra-
balde, a casa a mulher. Tem medo de desfalecer nos seus propósitos.
Acha-se sozinho (2000, p. 23). A apreensão de falhar no seu propósito
é o que desestabiliza: “Aquela ideia de chegar em casa com as mãos
abanando, Naziazeno sente um gelo, ao mesmo tempo que a sua ca-
beça enche dum turbilhão.” (2000, p. 87)
O sofrimento do personagem ao longo da obra é latente e escoa
pelos poros embevecidos de angústia. Para o protagonista, saldar a
dívida com o leiteiro representa mais que um compromisso financeiro,
simboliza a superioridade de homem enquanto provedor do sustento
da família: “Ele não perder o prestígio de marido que vai, vira e casa”
(2000, p. 25). Em suma, a efetivação da conta é a remissão para o fun-
cionário pois significa reconquistar sua dignidade enquanto sujeito:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 148


Pagar o leiteiro, entregar-lhe a importância, virar-lhes as costas sem dizer mais
nada, sem mesmo querer reparar na sua cara espantada surpresa. Outra vida
ia começar. Iria direto a caminha do filho, criança brincando com criança. 'Se
instalaria' na mesa para tomar o café. Tudo era calmo e ao mesmo tempo vivo
ao seu redor. A manhã voltaria a ter aquele encanto antigo. Seria capaz, borde-
jando daqui e dali, de ir espiar por cima do muro do amanuense e seus galos.
Depois (horas depois!), a viagem de bonde pra cidade, com a fresca baten-
do-lhe na cara, aberta e exposta, teria mesmo o encanto duma viagem... (MA-
CHADO,2000, p. 42-43).

Para tanto, sanar o débito vai além do desencargo financeiro, é


uma questão de honra para Naziazeno: extinguir a conta iria devol-
ver a dignidade perante a sociedade, sobretudo aos olhos do leiteiro.
Conseguinte, percebe-se que o indivíduo contemporâneo carrega a
obrigação de suprir olhares alheios, ou seja, “parecer” torna-se mais
importante do que ser.

Ele quer esperar o seu leiteiro, apresentar-lhe os 53 $000, dizer-lhe:-aqui está o


seu dinheiro”. E nem mais uma palavra. Quando depois de “pagar” o leiteiro no
portão, ao pé da “escadinha”, “entra” de novo em casa, as janelas estão cheias
de luz, a toalha enxovalhada da mesa resplandece, o café com leite tem um
cheiro doméstico, que lhe lembra a infância (MACHADO,2000, p. 29).

O romance “A Queda”, do escritor franco-argelino Albert Camus,


retrata o conflito interior do sujeito moderno, ou seja, aquele trava-
do nos recantos da mente humana. Diferente de Naziazeno Barbosa,
Jean Baptiste Clamence é um rico advogado, possui status social e
uma vida financeira equilibrada, mas, assim como o personagem de
Dyonelio, é vítima do caos contemporâneo.
A obra retrata com maestria e precisão a outra faceta do homem
moderno, aquele cuja inquietações não são germinadas no afã da
sobrevivência, como ocorre com Naziazeno, mas brotam no processo
de ruminação e autoanálise de suas condutas. Diante disso, Camus
traça um esboço contundente dos labirintos mais lamacentos e gro-
tescos deste tipo de sujeito. Clamence, personagem central, não sofre

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 149


os martírios da miséria. Entretanto, semelhante ao funcionário públi-
co, torna-se cativo dos seus conflitos existenciais.
Narrado em primeira pessoa, Jean Baptiste Clamence, o narra-
dor personagem, descreve os pormenores de sua vida a um persona-
gem não identificado, o qual torna-se destinatário primevo dos rela-
tos, embora não tenha participação direta no romance. Nas primeiras
páginas da obra, já é possível perceber alguns traços referentes à
personalidade de Clamence, já que ele esboça um panorama impe-
cável de suas preferências, uma delas era a escolha pelo topo, tudo o
que se referia ao cume o atraía, haja vista que se auto denominava “o
homem das planícies”, nunca dos vales:

Sim, nunca me senti à vontade a não ser nas situações elevadas. Até nos por-
menores da vida eu tinha necessidade de estar por cima. Preferia o ônibus ao
metro, os tílburis aos taxis, os terraços as sobrelojas. Amador de aviões de es-
porte em que se anda com a cabeça em pleno céu, eu representava também,
nos navios, o eterno passageiro errante dos tombadilhos. Nas montanhas, evi-
tava os vales orlados dos dois lados pelas gargantas e planaltos; era o homem
das planícies, pelo menos. Se o destino me houvesse forçado a escolher um
trabalho manual, torneiro ou pedreiro -pode estar certo de que teria escolhido
os telhados feito amizade com as vertigens os paióis, os porões, os subterrâne-
os, as grutas, os abismos, causam-me horror (CAMUS,1956, p. 21).

A partir das metáforas alusivas às altitudes, percebe-se que o ju-


rista tinha uma necessidade latente de sobressair na totalidade das
ações, tanto nas situações mais triviais do dia a dia, como nas suas
condutas de cunho profissional e particular, ou seja, ele nutria a “ne-
cessidade de estar por cima” em tudo o que fizesse. Era vital ser visto,
notado e bajulado por todos ao seu redor, um dos fatores de ter opta-
do pelos encargos das cortes:

A qualquer hora do dia, em mim próprio e entre os outros, eu escalava as altu-


ras, acendia fogueiras bem visíveis e alegres saudações elevavam-se até mim.
Era assim pelo menos, que eu sentia prazer na vida e na minha própria exce-
lência. A minha profissão satisfazia, felizmente, esta vocação das alturas. Ela
me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 150


servia, sem nunca lhe dever nada. Ela me colocava acima do juiz, que, por mi-
nha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. No fim
das contas, viver no alto é ainda a única maneira de ser visto e saudado pela
maioria das pessoas (CAMUS,1956, p. 22-23).

O excesso de segurança quanto às suas virtudes era uma marca


que Clamence tinha prazer em colocar à mostra. Sua existência não
passara de uma vitrine em que expunha aos transeuntes versões de
si, na qual se considerava superior em todos os aspectos. Autoconsi-
derava-se um indivíduo perfeito, sem falhas, um manual de instrução
de boas condutas. Na sua visão egocêntrica da realidade nunca ti-
vera necessidade de aprender a viver, já viera ao universo com todos
os méritos da existência, para tanto, julgava-se como um indivíduo
edênico, isto é, um ser primevo que detinha o controle de tudo.

Eu imperava livremente, numa luz edênica. Na realidade, não seria isso, o Éden,
meu caro senhor: a vida bem engrenada? Foi assim a minha. Nunca tive a ne-
cessidade de aprender a viver. A esse respeito, já sabia de tudo ao nascer. Há
pessoas cujo problema é resguardar-se dos homens ou pelo menos, acomo-
dar-se a eles. Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era
preciso, silencioso se necessário, capaz de tanta desenvoltura quanto de gra-
vidade, estava sempre à altura. Dessa forma, era grande a minha sorte, e os
meus êxitos no mundo eu nem contava mais. Fazia boa figura, revelava-me
simultaneamente incansável dançarino e erudito discreto, chegava a amar ao
mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, praticava espor-
tes e as belas artes; em resumo vou parar para que não me julgue condes-
cendente .Mas imagine, eu lhe peço um homem na força da idade, com saúde
perfeita, generosamente dotado, hábil tanto nos exercícios do corpo quanto da
inteligência, nem pobre nem rico de sono fácil e profundamente satisfeito con-
sigo mesmo, sem demonstra-lo a não ser por uma alegre sociabilidade. Admi-
tirá, então que eu possa falar com toda modéstia, de uma vida bem-sucedida.
Na verdade, à força de ser homem com tanta plenitude e simplicidade, acha-
va-me um pouco super-homem (CAMUS, 1956, p. 24-25).

Clamence nutria o desejo de domínio em tudo o que se dispuses-


se a realizar, os êxitos e conquistas eram a viga mestra que alicerça-
va a sua existência. Aos olhos do protagonista, a conduta equilibrada
tornava-o um ser acima da média, um super-homem. O seu olhar,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 151


sempre unilateral, extinguia tudo que não fosse para além de si pró-
prio: “Tratava-se, repare bem de algo bem diferente da certeza em
que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo” (1956, p. 25).
Jean Baptist sofria do mal da autoconfiança, ou seja, se considerava
um sujeito repleto de virtudes e sempre pronto a ajudar quem neces-
sitava:

Adorava por exemplo ajudar os cegos atravessar as ruas. Por mais longe que
estivesse, ao avistar uma bengala que hesitava na esquina de uma calçada,
eu me precipitava, adiantava-me um segundo, por vezes a mão caridosa que
já se estendia, arrancava o cego a qualquer outra solicitude que não a minha,
e conduzia-o, com mão bondosa e firme, pela faixa de pedestres entre obstá-
culos do trânsito, até o porto seguro da calçada, onde nos separávamos com
uma emoção mutua. Da mesma forma, sempre gostei de dar informações às
pessoas que passavam por mim na rua, dar-lhes fogo, prestar uma ajuda às
carretas pesadas demais, empurrar o automóvel enguiçado, comprar o jornal
à moça do Exército da salvação ou as flores na velha florista, mesmo sabendo
que ela roubava no cemitério de Montparnasse. Gostava também, ah! isso é
mais difícil de dizer, gostava de dar esmolas[...] (CAMUS,1956, p. 19).

A vida perfeita de Clamence, sempre posta no pedestal mais


elevado, se esfacela em tormentas existenciais no momento em que
atravessara uma passagem sobre o rio Sena: “Assim corria eu, sem-
pre pleno jamais saciado, sem saber onde parar, até o dia, ou melhor,
até a noite em que a música parou e as luzes se pagaram. A festa em
que eu fora feliz” (1956, p. 26). A impressão de ter ouvido uma risada
durante a travessia traz à tona um episódio sombrio que ocorrera há
cerca dois anos, quando ao cruzar a ponte Royal omitira socorro a
uma jovem que se afogara:

Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que julguei
ouvir rir às minhas costas, eu voltava para a margem esquerda, para casa, pela
Pont Royal. Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda, mais uma
garoa, que dispersava os raros transeuntes. Na ponte, passei por detrás de uma
forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto,
distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros
e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensi-
bilizou, mas segui meu caminho depois de uma hesitação [...] Já havia percor-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 152


rido uns cinquenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo
que se precipita na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me
pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi
um grito várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguia
bruscamente. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção.
Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza
irresistível invadir-me o corpo. Escutava ainda imóvel. Depois afastei-me sob a
chuva, às pressas. Não avisei ninguém (CAMUS,1956, p. 55 e 56).

A reminiscência da queda da mulher por meio do lapso de cons-


ciência propiciado pela suposta risada, causa no protagonista a que-
da moral, ou seja, a percepção de sua fragilidade enquanto sujeito
transformando-o em juiz penitente de si mesmo. Com isso, o episódio
ocorrido em uma noite de outono o desestabiliza, aquele sujeito apa-
rentemente imaculado transforma-se em tormentas existenciais. Por
anos sua conduta impecável ludibriou a sociedade, amigos e clien-
tes, mas ao passar pela ponte do rio Sena sua consciência virou sua
pior inimiga. Desse modo, a queda moral o torna humano conhecedor
dos seus defeitos e limitações, suas atitudes proativas só aconteciam
onde houvesse plateia, isto é, para ser reconhecido. O egocentrismo
reinava em suas atitudes
As atitudes benévolas, descritas de forma minuciosa pelas tin-
tas do protagonista, eram superficiais, pois não havia a intenção de
prestar auxílio a quem necessitava de amparo. O proceder caridoso
envolto de uma aura afável, camuflava a intenção genuína do ad-
vogado, a de transparecer aos olhos do público como um indivíduo
perfeito: “Quando eu deixava um cego sobre a calçada onde eu tinha
ajudado a aterrissar, saudava-o. Evidentemente, esse cumprimento
não lhe era destinado, ele não o podia ver. A quem, pois, se dirigia?
Ao público.” (1956, p. 39). Torna-se perceptível que todos os gestos
e ações coadunavam para enriquecer o ego desmedido e incansá-
vel de Clamence. Um manancial caudaloso de imodéstia jorrava nos
interstícios de sua existência. Alimentar a vaidade que habitara nos
labirintos de sua alma era vital, assim como respirar:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 153


Devo reconhecê-lo humildemente, meu caro compatriota, fui sempre um poço
de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão de minha preciosa vida, e que se ouvia se ou-
via tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar vangloriando-me, sobretudo se o
fazia com esta ruidosa descrição, cujo segredo eu possuía. É bem verdade que
eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberado em relação
a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Sempre me achei
mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sen-
sível e mais hábil, atirador de elite incomparável ao volante e melhor amante.
Mesmo nos setores em que era fácil verificar a minha inferioridade, como o
tênis, por exemplo, em que eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil
não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores. Só re-
conhecia em mim superioridade, o que explicava minha benevolência e minha
serenidade. Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência,
em plena liberdade e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau
no amor que dedicava a mim mesmo (CAMUS, 1956, p. 39-40).

Uma das marcas que o indivíduo moderno carrega, embora por


vezes camuflado de modéstia, é a necessidade de ser visto e apre-
ciado pelo outro. As atitudes benéficas e proativas escodem, nas pro-
fundezas das intenções, a urgência do enaltecimento de si próprio,
tornando aqueles que participam de seus feitos objetos descartáveis,
adereço apenas de um evento performático e publicitário cuja o cen-
tro é a superexposição do eu.

O sujeito é regulado pela proatividade mediante a qual compõe os gestos vol-


tados para a sedução do outro. Este é apenas um objeto predatório para o
gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As individualidades se transfor-
mam, pois, tendenciosamente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto
vendido nos supermercados e cantando em prosa e verso pela retorica da pu-
blicidade. pode-se depreender, com facilidade que a alteridade e a intersubje-
tividade são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvazia-
mento (BIRMAN, 1999, p. 188).

No entanto, a queda moral o torna refém de seus pensamentos;


“precisava libertar de qualquer maneira o sentimento que me asfixia-
va” (1956, p. 73). O descontrole emocional afetara todos os segmen-
tos, inclusive o profissional: “Eu ainda vivia do meu trabalho, embora
minha reputação tivesse sido arranhada pelos meus deslizes de lin-
guagem, e o exercício regular da minha profissão comprometida pela
desordem da minha vida” (1956, p. 83).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 154


Torna-se nítido, que o grau de conhecimento e o status social
elevado não transformam o indivíduo um ser inatingível, protegido
dos problemas representacionais, pelo contrário. Para Schopenhauer,
ilustre filosofo e profundo conhecedor das mazelas interiores, afirma:
“À medida que o conhecimento se torna mais claro e em que a cons-
ciência aumenta, o sofrimento cresce chegando a um grau supremo
([ca 1985, p. 66). Nota-se, a partir do fragmento supracitado, uma se-
melhança considerável entre Jean Baptist e o homem moderno ins-
truído, pois mesmo com as inúmeras bagagens de conhecimento,
isto não os torna imunes ao sofrimento e sim ainda mais suscetível à
derrocada.

Considerações finais

Conforme exposto, é possível concluir que a modernidade foi um


período de grandes conquistas, já que viabilizou o desenvolvimento
em vários segmentos. Todavia, inclusas na bagagem, vieram as con-
sequências do progresso. Nesse entremeio nasceu o indivíduo medí-
ocre, incompleto e raso nas suas ações. Portanto, as obras “Os Ratos”
e “A Queda” desnudam com ferocidade e precisão as mazelas exis-
tenciais destes sujeitos, a partir de Naziazeno Barbosa e Jean Baptist
Clamence, personagens de universos distintos, mas flagelados por
dramas representacionais, ou seja, sujeitos incapazes de controlar as
trajetórias de suas vidas.
Naziazeno é vítima do presente, a responsabilidade de prover o
sustento familiar o atormenta e o fragiliza. Já Clamence torna-se pri-
sioneiro de seu passado, as ações praticadas nos tempos áureos de
sua existência resultam em uma brusca queda moral, trazendo à luz
a sua verdadeira essência. Torna-se visível, a partir das condutas dos

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 155


personagens centrais, a mediocridade em que o indivíduo moderno
se encontra imerso. Mesmo em patamares sociais díspares, compac-
tuam de dramas que atravessam as entranhas de suas realidades,
seja na labuta frenética do presente ou em fluxos obscuros de remi-
niscências.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo Parasitário. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BIRMAN, Joel. Mal estar na atualidade: A psicanalise e as novas formas de
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1999
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
1997.
CAMUS, Albert. A queda. Rio de Janeiro.Record.1956.
CANDIDO, Antônio. O mundo sem culpa. In: O discurso e a cidade. São Pau-
lo: Duas Cidades, 1993.
CARVALHO, João. A lâmina do risco e do reconhecimento: ensaios teóricos
críticos.in: O impasse da modernidade a partir de uma literatura de insig-
nificância 1ªed.:Appris,2017.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O fim da supremacia cultural do Ocidente – In: A
antropologia diante dos problemas do mundo moderno. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2012.
MACHADO, Dyonelio. Os ratos. São Paulo: Ática. 2000.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. [S.l.].
Ediouro, [ca. 1985]

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 156


CAPÍTULO 8

O Grande Mentecapto:
entre a peregrinação do pícaro e
a deambulação de Dom Quixote,
a crítica social de personagens
itinerantes
Valdirene Rosa da Silva Melo

DOI: 10.52788/9786589932369.1-8
Introdução

Fernando Sabino foi um escritor contemporâneo que fez sua in-


cursão na ficção brasileira em 1941, com Os Grilos Não Cantam Mais.
Desde então, sua brilhante capacidade descritiva nos presenteou
com uma extensa obra que inclui crônicas, contos e romances me-
moráveis, daqueles que nos tocam não só pela leveza de estilo com
que escreve e aborda temas do cotidiano, mas especialmente pela
sensibilidade que delega a seus personagens e que nos conduzem
irremediavelmente a profundas reflexões sobre a condição humana.
Autor de várias obras, tais como O menino no Espelho, O Encontro
Marcado, O Homem Nu, dentre outras, que o consagraram no cená-
rio ficcional brasileiro, não poderia ser diferente com O Grande Men-
tecapto, que igualmente alcançou um grande sucesso literário. Este
romance, lançado em 1979, dá-nos asas para vôos surpreendentes, a
começar pela linguagem que ele trabalha de forma artesanal e em
que se sobressaem os trocadilhos e o jogo com as palavras, dentro
de uma trama que nos deixa quase sem fôlego diante das peripécias
e aventuras do personagem principal: Geraldo Viramundo, uma es-
pécie de herói caricato, que não se deixa abater pelos insucessos ou
infortúnios, sempre disposto a buscar o que há de mais nobre no ser
humano.
O subtítulo – Relatos das aventuras e desventuras de Viramun-
do e de suas inenarráveis peregrinações – nos remete a uma apro-
ximação deste romance de Sabino à linha do romance picaresco,
cuja estrutura central gira em torno de um andarilho que se desloca
por um espaço indefinido em busca de aventuras, e por que não dizer
desventuras, numa sequência de episódios que trazem à tona fatos
cotidianos e corriqueiros do protagonista ao longo de seu itinerário.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 158


É importante ressaltar que a despeito da potencialidade de um
diálogo entre o romance O Grande Mentecapto e a tradição pica-
resca, o dinamismo de Fernando Sabino ao compor sua narrativa, ao
mesmo tempo que aproxima, também distancia o seu herói do pí-
caro. Veremos que o protagonista criado por Sabino não se conecta
totalmente com a descrição do herói pícaro, pois é desprovido dos
principais elementos que caracterizam este último: a picardia, a cor-
rupção, o espírito enganador e a desonra. Viramundo é um herói sem
malícia, ingênuo, e que em seu idealismo, tal qual Dom Quixote, bus-
ca resolver conflitos e injustiças num mundo que não o compreende
ou aceita, que o julga como um louco ou ridículo, pois sua extrema
pureza e ingenuidade bem intencionadas causam estranheza e per-
plexidade a todos aqueles que, diante da extrema materialidade e
maldade presentes no mundo, já não acreditam na simplicidade e na
nobreza de ideais do personagem.
A partir da perspectiva de que O Grande Mentecapto é uma obra
que permite um diálogo tanto com o romance picaresco quanto com
o idealismo utópico do personagem Dom Quixote, o objetivo deste
trabalho é tecer uma possibilidade de leitura para a obra O Grande
Mentecapto (1979) considerando a temática do deslocamento, físi-
co/geográfico das personagens, e a perspectiva da marginalização
das mesmas em função da despadronização de papéis sociais, da
transgressão e da libertação das normas impostas. Neste sentido, a
partir de um estudo comparativo, buscar-se-á perceber pontos de
intersecção entre o romance de Sabino e o romance picaresco, e que
diálogos intertextuais esta obra faz com o Dom Quixote de La Mancha,
de Cervantes, a partir da perspectiva de sujeitos em constante deslo-
camentos e em processo de não pertencimento. A proposta de aná-
lise visa perceber a obra literária como um dialogismo de textos que
interagem no ato da criação literária, de personagens andarilhos que

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 159


através dos seus processos de deambulações satirizam a sociedade
na qual se inserem.

Breves considerações sobre o romance picaresco

O romance picaresco é uma denominação para um subgênero


narrativo, em prosa ficcionista, e que tem sua origem na literatura es-
panhola do século XVI, a partir da publicação do romance Lazarillo de
Tormes em 1554, originalmente intitulada La vida de Lazarillo de Tor-
mes y de sus fortunas y adversidades. A obra, de autoria incerta, rela-
ta de maneira autobiográfica a vida de Lázaro de Tormes, desde seu
nascimento, passando por sua infância, até seu matrimônio na vida
adulta. Esta obra é considerada por muitos como o marco inicial da
novela picaresca e apresenta pela primeira vez na literatura a figura
de um protagonista pobre e miserável, que vive às margens da socie-
dade e que se lança dos mais variados tipos de esperteza para lograr
seus objetivos e conseguir sua sobrevivência. De caráter moralizante,
o pícaro é o retrato da pobreza e corrupção moral que caracterizava
a sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII. Sobre o romance pica-
resco, reflete Alfredo Bosi:

E o romance picaresco, de origem espanhola, desde Lazarillo de Tormes (1554)


à Vida de Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán (1604) e ao Búscon de Que-
vedo (1626), assentava-se inteiramente nas aventuras de um pobre que via
com desencanto e malícia, isto é, de baixo, as mazelas de uma sociedade em
decadência (BOSI, 1999, p. 132-133).

Firmando definitivamente o modelo do romance picaresco, veio


a obra Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán. Esta novela foi publi-
cada em duas partes: a primeira em 1599, em Madri, intitulada Prime-
ra Parte de Guzmán de Alfarache, e a segunda parte, publicada em
Lisboa em 1604, foi intitulada Segunda parte de la vida de Guzmán de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 160


Alfarache, atalaya de la vida humana. A narrativa descreve a vida iti-
nerante do protagonista que sai do seu lar para servir a muitos amos.
Dando seguimento a este tipo de narrativa vieram posteriormente La
Pícara Justina (1605), de F. López de Ubeda, e La Vida del Buscón, pu-
blicada em 1629, dentre outras obras. O romance picaresco desen-
volveu-se também em outros países, tais como Portugal, Alemanha,
França e Inglaterra, passando a ser bastante apreciado e alcançan-
do rápida popularidade.
O romance picaresco tem várias características em comum na
sua estrutura. As principais delas referem-se ao caráter autobiográ-
fico do relato, narrado em primeira pessoa, e o caráter itinerante do
protagonista, que ao servir a vários senhores, trilha um caminho de
aventuras e andanças. Bakhtin (2003), ao descrever uma tipologia
histórica para o romance classifica este tipo de narrativa, em que pre-
valece a deambulação do protagonista como foco central da narrati-
va, como romance de viagem:

A personagem é um ponto que se movimenta no espaço, ponto esse que não


possui características essenciais nem se encontra por si mesmo no centro da
atenção artística do romancista. Seu movimento no espaço são as viagens e,
em parte, as peripécias-aventuras (predominantemente de tipo experimental),
que permitem ao artista desenvolver e mostrar a diversidade espacial e so-
cioestática do mundo (países, cidades, culturas, nacionalidades, os diferentes
grupos sociais e as condições específicas de sua vida). Esse tipo de colocação
da personagem e de construção do romance caracteriza o naturalismo antigo
(Petrônio, Apuleio, as peregrinações de Encólpio, etc., as peregrinações do asno
Lúcio) e o romance picaresco europeu: Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfara-
che, Franción, Gil Blas, etc (BAKHTIN, 2003, p. 205-206).

O romance de viagens para Bakhtin tem uma concepção espa-


cial e estática da diversidade do mundo, com todos seus contrastes
e diferenças. Outro elemento caracterizador do romance picaresco
refere-se ao tom satírico de denúncia social que assume a narrativa.
Ao se deslocar servindo a diferentes senhores, o pícaro mostra o re-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 161


trato da sociedade de sua época, e apresenta uma forte crítica social
à corrupção e falta de valores morais.
A palavra pícaro tem sua origem incerta e aparece geralmente
fazendo referência a pessoas ardilosas, sagazes ou que se utilizam de
má-fé. Segundo Aguiar e Silva (2002), o herói pícaro tem um elemen-
to transgressor, que não aceita ou se rebela contra as normas sociais
impostas, que está em constante conflito com a sociedade e por isso
mesmo acaba por assumir o papel de anti-herói, daquele que rompe
com a mentalidade dominante, que questiona, que se opõe à cons-
ciência de valores que prevalecem como paradigma. Para Aguiar e
Silva (2002) a criação desses anti-heróis, que já é uma presença ve-
rificável nos romances picarescos, se tornou bastante comum na li-
teratura romântica e pós-romântica:

[...] o herói, em vez de se conformar com os paradigmas aceites e exaltados


pela maioria da comunidade, aparece como um indivíduo em ruptura e con-
flito com tais paradigmas, valorizando o que a norma social rejeita e reprime
(homossexualidade, adultério, sadismo, etc.). Nestas condições, o herói assume
o estatuto de um anti-herói quando perspectivado e julgado segundo a óptica
dos códigos sociais majoritariamente prevalecentes (AGUIAR e SILVA, 2002, p.
700).

Bosi (1999), retrata o pícaro como um produto de situações ad-


versas, em que a sobrevivência é o cerne da questão:

O pobre, no seu afã de sobreviver, transforma-se em pícaro, servindo ora um,


ora a outro senhor e provando com o sal da necessidade a comida do pode-
roso. Ao pícaro é dado espiar o avesso das instituições e dos homens: o seu
aparente cinismo não é mais que defesa entre vilões encasacados (BOSI, 1999,
p. 134).

A novela picaresca rompe com a tradição medieval de retratar


heróis cheios de glórias, cavalheiros andantes ou nobres, defensores
da honra e da moral. O que temos com o romance picaresco é um
anti-herói, um pícaro astucioso, que está em conflito com as normas e

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 162


padrões vigentes, de forma voluntária ou não. Fruto de uma socieda-
de excludente, o pícaro é um ser que vive às margens da sociedade,
passando fome, cuja preocupação primordial consiste em sobreviver
e conseguir ascender socialmente, e para conseguir seus intentos irá
mentir, roubar e trapacear. Contrapondo-se ao herói modelar, o pí-
caro não valoriza a lealdade, a bravura, a honestidade e o senso de
justiça, pois como afirma Kothe (1987, p. 24) “o pícaro é um herói cuja
grandeza é não ter grandeza nenhuma. Ele é o reverso dos grandes
heróis épicos e trágicos”.
É sendo este anti-herói que subverte os códigos morais, que o
pícaro irá satirizar a sociedade em que vive. A sátira é um elemento
bastante característico na narrativa picaresca e visa ridicularizar uma
situação ou valor moral por meio do riso e da comicidade. A denúncia
social que se desenha nas narrativas picarescas por meio do cômico,
muitas vezes alcança um tom patético, esta peculiaridade da sátira é
explicada por Trujillo(2007):

Tomamos como exemplo de gênero tragicômico as narrativas picarescas , por


permitirem exemplificar a função crítica da literatura na sociedade. A crítica
que se faz nas obras picarescas, tem o riso como instrumento. Ora, o engraça-
do do pícaro, muitas vezes, mais consegue fazer chorar do que ri. As narrativas
picarescas encontram-se no limiar entre o trágico e o cômico e o fato desta
indefinição, às vezes, joga-as no patético (TRUJILLO, 2007, p. 12).

Em suma, o pícaro é uma inversão do herói clássico, especial-


mente do herói épico e de cavalaria. É um elemento desestabilizador
dos códigos morais, vivendo às margens de uma sociedade exclusiva
e desigual, cuja malandragem é sinônimo de sobrevivência, de luta.
O pícaro, através de situações cômicas, satiriza a sociedade que
o condena. Em meio ao relato jocoso de suas trapaças está implícito
um olhar de denúncia social às grandes misérias humanas, revelando
os contrastes entre as classes sociais e a hipocrisia presente nas rela-
ções humanas, muitas vezes alicerçadas em jogo de interesses par-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 163


ticulares e falta de ética, tão bem caricaturadas na figura do pícaro,
este anti-herói que rompe com o pré-estabelecido. O pícaro acabou
sendo uma antecipação do herói moderno a partir do momento que
desconstrói o modelo fixado para o herói clássico das narrativas me-
dievais.

Traços do romance picaresco em O grande mentecapto

Ao propor uma leitura de O Grande Mentecapto a partir do viés


da estrutura picaresca, em que o protagonista do romance vive em
constante deambulação, a primeira similitude que encontramos é
que a narrativa de O Grande Mentecapto gira em torno das andan-
ças de Geraldo Boaventura por numerosas cidades do Estado de Mi-
nas Gerais. Nascido em Rio Acima, seu itinerário de deslocamentos
inclui cidades como Mariana, Ouro Preto, São João Del Rei, Tiraden-
tes, Uberaba, Cataguases, Belo Horizonte, dentre outras. Conhecido
como Geraldo Viramundo, Sabino esclarece em uma passagem do
texto que a razão de tal alcunha, dentre vários outros cognomes com
que ficou conhecido o protagonista, se deve a seu destino incessante
de peregrinação por Minas Gerais:

Cabe-me, sim, interpretar o significado que a acepção sugere, e, pelo menos


no meu fraco entender, virar o mundo só pode querer dizer largar-se por suas
estradas, entregar-se ao destino errante de percorrê-lo, e neste sentido, Geral-
do se tornou mesmo Viramundo no momento em que saiu de Mariana, ainda
que o mundo que ele percorreu tenha sido apenas o de Minas Gerais (SABINO,
2002, p. 51).

Em nítida ressonância com o caráter andarilho próprio do píca-


ro, haja vista as inúmeras cidades por onde Viramundo perambula,
podemos dizer que a trajetória itinerante do protagonista, por si pró-
pria, já nos dá uma importante pista que indica um dialogismo desta

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 164


narrativa com a tradição picaresca - as cidades percorridas por Vira-
mundo são tantas, que no capítulo sete Sabino começa a citá-las na
páginas 187 e segue até a página 189.
Outra característica do romance picaresco diz respeito ao enredo
que se centra no relato da vida do pícaro, geralmente uma autobio-
grafia, desde o nascimento até o momento atual em que os fatos são
narrados. Embora O Grande Mentecapto não recorra ao modelo de
relato autobiográfico em primeira pessoa, pode-se afirmar que tudo
gira em torno da vida do protagonista, o enredo da narrativa é uma
sucessão linear e cronológica de episódios, fatos e aventuras da vida
de Viramundo. Um relato que vai do nascimento à morte do prota-
gonista, trazendo à tona outra aproximação deste romance com o
universo picaresco.
Ressalte-se, porém, que no caso de O Grande Mentecapto, o nar-
rador, que está na terceira pessoa, se propõe a contar a vida de Vi-
ramundo com base em pesquisas que realizou a cerca da vida do
protagonista. Segundo o relato do narrador as histórias são contadas
com base em: “anotações recolhidas durante minhas pesquisas so-
bre a vida de Geraldo Viramundo” (SABINO, 2002, p. 10). O caráter de
veracidade que o narrador intenta impor ao relato é constante nas
referências e comentários que faz dentro da narrativa:

Propus-me a narrar as aventuras e desventuras de Geraldo Viramundo, e suas


peregrinações, valendo-me dos dados que tenho à mão e jogando-os com a
mesma objetividade com que o jogador maneja os dados propriamente ditos
- o que não inclui as suas meditações (SABINO, 2002, p. 34-35).

Enquanto relato das margens, a figura do pícaro é a de um ele-


mento transgressor das normas sociais, um anti-herói que se utiliza
da malandragem para conseguir vantagens, que para driblar a fome
subverte os códigos sociais e morais.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 165


O pícaro é uma figura de baixa condição, que serve a vários amos, escarnece-
dor, vagabundo, mal vestido, movimentando-se em espaços físicos diversos,
viajando de um lado para o outro em busca de melhores condições de vida,
sendo muitas vezes um folgazão, um vadio, indigente, passando por dificulda-
des econômicas, chegando mesmo a roubar e matar para conseguir atingir os
seus objetivos (MONTEIRO, 2003, p. 133).

Porém, este retrato da marginalidade esconde uma crítica às de-


sigualdades sociais, ao desamparo dos mais pobres, dos desvalidos e
injustiçados. O contexto marginal em que vive Viramundo conecta-o
à marginalidade do pícaro. E é neste mundo de vagabundos, mere-
trizes, pobres, mendigos, miseráveis, desesperançados e injustiçados
que Viramundo vive suas peripécias:

DEBAIXO do Viaduto, do lado que fica entre a Rua da Bahia e o Parque Municipal,
havia um valhacouto de indigentes: eram cegos, coxos, lázaros, bêbados, va-
gabundos e todos mais que costumam ser englobados na categoria de men-
digos (SABINO, 2002, p. 202).

[...]

Com o tempo, começaram também a buscar refúgio sob o Viaduto as levas de


retirantes escaveirados e famintos que os trens despejavam diariamente na
estação ali perto, vindos das zonas mais pobres da Província de Minas Gerais, e
eram praticamente todas.

Pois foi também no Viaduto que, numa noite de chuva, Geraldo Viramundo
acabou buscando abrigo (SABINO 2002, p. 203).

O tom satírico, próprio das narrativas picarescas está presente


em várias situações relatadas em O Grande Mentecapto, situações
cômicas, às vezes trágicas, extremando ao ridículo e provocando o
riso. A própria descrição da figura caricatural do mentecapto já pro-
vocava risos, antes mesmos de suas ações:

Nascida como simples chalaça de um pândego qualquer, a idéia de erigir Ge-


raldo Viramundo em candidato da oposição se alastrou pela cidade, entre risa-
das, e acabou perfilhada por ambas as correntes políticas, que viam na figura
física e mental do mentecapto o modelo ideal para realizar os seus desígnios
de desmoralizar o pleito (SABINO, 2002, p. 98).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 166


Viramundo, tal qual o pícaro, é um herói que foge aos modelos
clássicos de heroicidade, ou seja, é um anti-herói, maltrapilho, mar-
ginalizado, que está sempre metido em confusões. O caráter trans-
gressor, de desestabilizador da ordem pré- estabelecida também é
uma característica constante em Viramundo, que na sua subversão e
insubordinação está sempre em defesa dos mais fracos, dos desam-
parados e excluídos. Porta-voz dos indefesos e renegados da socie-
dade, Viramundo chega a liderar uma legião de mendigos, prostitu-
tas, loucos e retirantes, convocando todos a ser rebelarem contra as
imposições do Governador Ladisbão, a lutarem por sua liberdade e
por condições de vida mais dignas.

O Governador perguntou o que era Canudos e, enfurecido, quis saber o que


aquela gente pretendia. Então lhe apresentaram o ultimato encaminhado por
Viramundo, escrito por ele próprio, a lápis, numa folha de caderneta: Para os
mendigos, para os doidos e para as mulheres, liberdade de ir e vir, ficar ou sair.
Para os retirantes, casa, comida e ocupação condigna (SABINO, 2002, p. 217).

Viramundo visa romper com o modelo social de desigualdades


e na sua loucura ou ingenuidade propõe um novo modelo econômi-
co, onde todos se vejam iguais através da eliminação do dinheiro nas
relações humanas:

Começava por defender a tese de que os grandes males da humanidade ad-


vêm do dinheiro: o vil metal era uma instituição abominável, que deveria ser
para sempre abolida na relação entre os homens (SABINO, 2002, p. 99).

Este representante dos pobre e indefesos ao mesmo tempo que


se aproxima do anti-herói das narrativas picarescas, também se dis-
tancia do pícaro à medida que se acentua em seu caráter a boa-fé e
a ingenuidade. Incapaz de enganar, mentir ou trapacear, Viramundo
é comparado a uma criança, que em tudo crê, que acredita na boa
intenção do próximo e na bondade dos que o cercam.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 167


É neste distanciamento com o caráter vil e falta de valores nobres
que são retratados no pícaro que fazemos uma novo diálogo inter-
textual do romance de Sabino, uma segunda leitura, que projeta na
figura do mentecapto um diálogo com o Dom Quixote, de Cervantes.

O Grande Mentecapto e Dom Quixote de La Mancha:


deambu-lações entre a loucura e a utopia

O Grande Mentecapto possui fortes indícios de um dialogo inter-


textual com a obra Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cer-
vantes. Esta intertextualidade de O Grande Mentecapto com a citada
obra é mais evidente ainda quando o próprio Sabino se refere a uma
ação “quixotesca” do mentecapto e afirma que somente uma descri-
ção em espanhol estaria à altura para narrá-la:

E o fez de maneira tão quixotesca que, para fielmente descrever o que se pas-
sou, teria de fazê-lo em espanhol:

Las cabras huían sin rumbo, ganando el campo, a los berridos y enloqueci-
das, pues el gran mentecato repartía rebencazos a troche y monche como si
pretendiese aniquilar a todo un ejército. Entreverávanse entre las piernas de
los soldados, perturbando su embestida y echando a perder toda la estrate-
gia que el capitán Papitas había planeado en detalle. El mismo, desesperado,
erguíase en la cumbre de la cocina, equilibrando sus anteojos de larga vista.
Barajaba la hipótesis de que una bala imaginaria del enemigo pudiese cogerle
de sorpresa. Y sus gritos estridentes rebotavan en la llanura:

- Sujetad a ese loco! Liquidádlo antes que él me embardurne la guerra!


Extenuado, después de haber dado fuga al rebaño que se desparramaba por
el valle, Viramundo detúvose, jadeando, y alzó la mirada con el aire arrogan-
te, con la certeza de que recogería los laureles de la victoria. Mientras tanto el
Sargento Baldonedo, cumpliendo religiosamente las órdenes del Comandante,
consiguró alcanzarle y aplicóle un tremendo puñetazo, arrojandole al suelo,
desfallecido (SABINO, 2002, p. 123-124).

Além dessas menções explícitas de Sabino, e seguindo nossa ex-


posição de semelhanças, os dois personagens, Viramundo e Quixote,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 168


estão na tênue linha entre razão e loucura. Os dois personagens se
deslocam por longos itinerários guiados por uma loucura que pare-
ce ser um ato de resistência, protesto, delírio e utopia. Perambulam à
cata de conflitos para resolverem de forma heróica e destemida, não
revelam medos, enfrentam corajosamente fantasmas que assom-
bram a cidade ou monstros na figura de moinhos, lutam com inimi-
gos visíveis ou invisíveis, sofrem por serem incompreendidos nas suas
utopias, por serem ingênuos, por acreditarem na amizade, no amor, e
por defenderem os mais fracos.
É uma loucura que ganha ares de lucidez, que se rebela contra os
poderes estabelecidos, que celebra o idealismo contra o racionalismo
materialista de uma sociedade que já não tem espaço para a amiza-
de sincera e o patriotismo dos grandes cavaleiros andantes. Ambos
buscam com senso de justiça defender os mais fracos e esquecidos,
num projeto utópico de igualdade social.
Quixote e Viramundo abordam a temática da loucura. Uma lou-
cura, não de toda insensata, que nos remete a profundas reflexões
sobre o caráter humano e a sociedade em que vivemos. E por serem
tomados como loucos é que estes personagens são livres para se ex-
pressarem, para exporem o que pensam de tudo o que vêem e lhes
acontece. São cultos dentro de suas loucuras, e só os mais sábios po-
dem compreendê-los.
Os protagonistas Viramundo e Dom Quixote, por serem tão in-
compreendidos nos seus idealismos, e por possuírem uma ingenui-
dade pura e livre de maldades, sofrem descaso, são ridicularizados,
e constantemente são motivos de zombaria, de enganações e vio-
lência física. São imolados como cordeiros ao sacrifício, pois sofrem
constantemente agressões morais e maus tratos. Viramundo, à se-
melhança de Dom Quixote, se sacrifica em prol do idealismo de de-
fender todos aqueles que necessitem de ajuda, que iguais a ele, estão

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 169


sozinhos, são seres que a sociedade renega e que ilustramos aqui
com uma passagem de O Grande Mentecapto:

– Matem, matem logo! Mas me matem a mim primeiro! Ninguém encosta a


mão num fio de cabelo dessa mulher sem passar por cima do meu cadáver!
Jesus disse para os fariseus: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o
primeiro que lhe atire uma pedra.” São João, capítulo oito, versículo sete. Pois
atirem a primeira pedra.

[...]

– E atirou uma certeira pedrada, que foi atingir em cheio a testa de Geraldo
Viramundo. Perdendo o equilíbrio, ele tombou ao chão, na rua, sem sentidos.
Ainda assim o moeram de pancadas e pisadelas. E teriam literalmente passado
por cima do seu cadáver, se naquele momento o destacamento policial que o
delegado acabara providenciando não tivesse chegado, botando a multidão
em debandada a golpes de sabre (SABINO, 2002, p. 49-50).

Os deslocamentos geográficos que são mencionados nas narra-


tivas de Cervantes e Sabino são marcados por atos de resistência, de
denúncias sociais, de sátira à sociedade e seus valores corrompidos.
São deslocamentos que levam a uma marginalização dos persona-
gens itinerantes, incluindo-se neste protagonismo o fiel escudeiro de
Dom Quixote, o Sancho Pança. São sujeitos que ao sairem de seus
lugares fixos e assumirem um caráter itinerante, também assumem
a não adequação, o não pertencimento a um mundo que não mais
os acolhe, de uma sociedade que os desloca para as margens e os
trata como expurgo inútil e motivo de risos por não se sujeitarem ou
se ajustarem aos papéis sociais padrões.
Viramundo e Dom Quixote são andarillhos renegados pela socie-
dade. São personagens que vivem em deslocamento porque já não
pertecem a nenhum lugar, um deslocamento que não é apenas físi-
co, mas psicológico, ao se deslocarem do mundo real para o mundo
da fantasia e utopia. Neste sentido, por acreditar nesta semelhança
e no estabelecimento de dialogismos entre as duas obras, tecemos
alguns comentários que julgamos conectá-las. A primeira semelhan-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 170


ça se refere ao fato dos protagonistas de ambos os romances serem
tomados como loucos na narrativa. Mais do que loucos, são visioná-
rios, são idealistas. Um idealismo que não resiste à incompreensão de
uma sociedade corrompida e que, pouco a pouco, vai sendo vencido.
Quando acabam as ilusões, chega ao fim também a história de lutas
e aventuras dos protagonistas. Há um trecho bastante elucidativo so-
bre a ilusão que se vai desfazendo no coração do mentecapto e que
reproduzimos a seguir:

Tentou pensar em sua amada tão distante, a doce e terna Marília de seus olhos,
mas a revelação de que as cartas não eram dela se interpunha, dorida, em sua
mente - viu que ela também ia se esfumando em sua alma, deixando o cora-
ção vazio e se perdendo na lembrança. Não havia mais nada em que se agar-
rar para sobreviver. Fora reduzido à expressão mais simples, e noves fora, zero,
como dizia o Dr. Pantaleão. Se alguma coisa lhe restava no espírito, era apena a
consciência disso (SABINO, 2002, p. 149).

O mesmo desencanto assola o Dom Quixote quando se vê priva-


do de seus ideais, e que pode ser facilmente percebido no trecho a
seguir:

Estes, julgando que o desgosto de se ver vencido e descumprido o seu desejo


de liberdade e desencantamento de Dulcinéia é que o tinham adoentado, de
todos os modos possíveis procuraram alegrá-lo, dizendo-lhe o bacharel que
se animasse e se levantasse, a fim de darem princípios ao seu exercício pasto-
ril, para o qual já compusera uma écloga, que havia de desbancar todas que
Sanazaro compusera; que já comprara, com os seus próprios dinheiros, dois
famosos cães para guardar o gado; um chamado Barcino e outro Butrão, que
lhe vendera um pastor de Quintanar. Mas Dom Quixote continuava a estar triste
(CERVANTES, 2003, p. 674).

A idealização do amor que Viramundo expressa por sua Marí-


lia, nos remete ao amor platônico de Dom Quixote por sua Dulcinéia.
Ambos são peregrinos apaixonados e que vivem por seus ideais, de
amor, de liberdade e de igualdade. Ambos sofrem silenciosamente
por amarem uma dama idealizada como a mais perfeita das criatu-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 171


ras, embora na realidade não o fosse. E, finalmente, este amor pode
ser considerado como uma força motriz em suas vidas, um alento que
os protagonistas carregam, uma razão pela qual sonhar e lutar du-
rante seus deslocamentos e dispersões contínuas.
Viramundo e Dom Quixote são ingênuos como uma criança e
sofrem muitos maus tratos físicos durante suas deambulações por
conta de suas visões ilusionistas sobre o mundo, sobre as pessoas
e acontecimentos. O tema da incompreensão invade as narrativas,
pois o mundo retratado parece já não mais comportar ilusionistas
tão puros e sem malícia, que lutam de forma delirante por justiça e
inclusão social e por isso mesmo, são a todo momento ridicularizados.
E por expressarem tanta pureza e idealismo, sem o devido reconheci-
mento da sociedade da qual fazem parte, é que causam um profundo
sentimento de comoção nos leitores, pois através de suas aventuras
peregrinas são capazes de mostrar as diversas matizes da condição
humana em uma sociedade profundamente decadente.
Tamanha semelhança de fatos envereda-nos para a idéia de in-
tertextualidade ou dialogismo entre as obras. A idéia central a respei-
to de dialogismo foi desenvolvida por Bakhtin (2003) que propõe que
cada discurso dialoga com outros discursos já existentes:

Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mes-


mos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros.Esses
reflexos mútuos lhe determinam o caráter.

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os


quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada
enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados
precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa, ba-
seia-se neles, subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta
(BAKHTIN, 2003, p. 297).

Bakthin utiliza para este processo a denominação de dialogismo.


Entretanto, este conceito foi novamente desenvolvido por Julia Kris-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 172


teva com o nome de intertextualidade, aplicando aqui diretamente a
idéia de textos dialogando com outros textos, ao invés de utilizar o ter-
mo discurso. Segundo Zani (2003), esta nova denominação seria ape-
nas uma nova forma de explicar o dialogismo proposto por Bakhtin:

O termo intertextualidade surgiu e foi reutilizado por Julia Kristeva em 1969 para
explicar o que Mikhail Bakhtin, na década de 20, entendia por dialogismo. Ou
seja, são duas variações de termos para um mesmo significado. Para Bakhtin,
a noção de que um texto não subsiste sem o outro, quer como atração ou re-
jeição, permite que ocorra um diálogo entre duas ou mais vozes, entre dois ou
mais discursos (ZANI, 2003, p. 122).

A intertextualidade, assim como o dialogismo, é o processo que


em que o autor ao criar sua obra faz referências a outros textos, ima-
gens, discursos, presentes anteriormente em outras obras, originadas
por outros escritores que o precederam, ou até mesmo referenciando
a si próprio, dando-nos a ideia de que um texto não existe sem outros
textos. O romance O Grande Mentecapto oferece um rico campo de
estudo para os dialogismos presentes na obra, ressaltando-se que
nesta análise priorizamos dar ênfase ao caráter intertextual com a
obra Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, e com o herói pícaro
da literatura picaresca. Porém, é possível estabelecer inúmeras ou-
tras leituras de dialogismos ou intertextualidade com O Grande Men-
tecapto, não se restringindo apenas a este recorte literário aqui em
análise. Um exemplo mais específico poderia ser a intertextualidade
bíblica contida na obra, com a menção de versículos bíblicos.
A aplicação do dialogismo nos leva a perceber na obra uma mul-
tiplicidade de sentidos. A partir da proposição feita por Bakhtin (2003)
de que cada discurso estabelece um diálogo constante com outros
discursos, é possível estabelecer uma grande diversidade de constru-
ção de significados, pois partimos da idéia de que um conjunto de vo-
zes enunciativas interagem entre si na obra. Esta riqueza de diálogos
intertextuais abre novas possibilidades de reflexão e entendimento,
tornando a obra literária um universo de descobertas e possibilidades.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 173


Considerações finais

Ao perceber em O Grande Mentecapto traços da narrativa pica-


resca, verificamos que Viramundo, tal qual o anti-herói pícaro, foge
das características do herói modelar clássico e épico. Viramundo é
um sujeito vagabundo, pobre, que vive às margens da sociedade, e
dependendo da caridade dos outros para se alimentar. Sempre me-
tido em confusões, a maior parte das vezes involuntariamente, acaba
por se tornar aos olhos dos demais uma espécie de subversor da or-
dem.
Porém, o romance não contempla para Viramundo as caracte-
rísticas vis do pícaro: a enganação, a burla, a trapaça, a vontade de
ascender socialmente, e especialmente, o individualismo que o pícaro
possui ao pensar somente no seu bem-estar. Ao contrário, o mente-
capto Viramundo é um ser coletivo, que pensa nos outros antes de
pensar em si mesmo, que se sacrifica em defesa de quem está em
desvantagem física ou social, que se solidariza, que possui os mais
nobres sentimentos. É corajoso, leal, gentil. Possui a ingenuidade de
uma criança, por isso mesmo sua incapacidade de mentir, enganar
ou roubar.
Incapaz de mentir como o pícaro, porém andarilho incessante como
o anti-herói das narrativas picarescas, contando toda sua trajetória, do
nascimento à morte, ainda que em terceira pessoa, a narrativa toda se
centra nas andanças de Viramundo pelas terras de Minas Gerais. O ro-
mance se assemelha à narrativa picaresca não só por ser um relato que
se caracteriza pelo deslocamento e perambulação incessante do pro-
tagonista, mas também por possuir elementos que a identificam com a
sátira, pois tem um tom de denúncia social , de um olhar que vem das
classes mais baixas e que mostram o descaso das autoridades pelos
marginalizados e a hipocrisia das relações humanas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 174


O Grande Mentecapto comove o leitor convidando-o a uma re-
flexão sobre a condição humana diante do materialismo do mundo,
da insensibilidade dos que só agem em benefício próprio, e da vio-
lência que permeia a nossa sociedade. Esta denúncia, à maneira da
sátira, não é feita em tom grave ou severo, é antes de tudo, feita co-
micamente, provocando o riso, situando-se entre a diversão e a de-
núncia. Embora a narrativa exponha temas e preocupações sociais, a
descrição de cenas, por vezes beirando o ridículo, institui um espírito
crítico através da metáfora do riso.
Por falta de correspondência de Viramundo ao caráter vil do pí-
caro, é que não podemos legitimá-lo como representante do píca-
ro. Apresentando algumas semelhanças com a narrativa picaresca,
mas sem se moldar como tal, é que apontamos para o romance O
Grande Mentecapto uma segunda leitura, que se une à primeira sem
se desfazer dela: a associação de Viramundo ao personagem Dom
Quixote, da homônima obra de Cervantes. É possível pensar, a partir
das análises feitas, que Sabino ao elaborar este magnífico romance
contemporâneo tenha de fato estabelecido um diálogo tanto com a
tradição do romance picaresco como com a obra de Cervantes, Dom
Quixote de La Mancha.
O Grande Mentecapto e Dom Quixote são romances que através
da constante mobilidade de seus protagonistas problematizam e sa-
tirizam a sociedade em que se inserem, tematizando através da co-
micidade ou ridicularização de fatos e situações que os personagens
vivenciam, uma crítica bem construída à uma sociedade falida e cor-
rompida em seus valores morais. É um olhar que vem das margens,
dos desprovidos de autoridade, pois são tomados como loucos ou
desajustados, indivíduos constantemente expulsos dos territórios que
adentram, e que são punidos por ousarem quebrar normas e regras.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 175


Por fim, o romance O Grande Mentecapto, poderia dizer-se é uma
cocha de retalhos discursiva, haja vista a grande gama de possibili-
dades de leituras que se pode fazer para esta obra. Fernando Sabino
soube usar com maestria os recursos estilísticos, lingüísticos e técni-
cas narrativas para dar ao leitor uma diversidade de possibilidades
de construção de significados ao interagir com a obra literária. O ro-
mance é um convite a descobertas, que se multiplicam a cada leitura,
e que permitem ao leitor fazer suas próprias escolhas interpretativas.

Referências

AGUIAR E SILVA, Victor Manuel de. Teoria da Literatura. 8ª edição. Coimbra:


Livraria Almedina, 2002.
BAKTHIN, Mikhail. Tipologia histórica do romance. In Estética da criação ver-
bal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora
Cultrix, 1999.
CERVANTES, Miguel Saavedra. Dom Quixote de La Mancha. Trad.Visconde
de Castilho e Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo: Ática, 1987.
MONTEIRO, Maria Assunção Morais. O Senhor Ventura: um pícaro portu-
guês em terras da China. In: MOREIRA, Fernando Alberto Torres et al. (orgs).
Revista de Letras. Ed. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Série
II, n. 2, dez. 2003, p. 129-139. Acesso em 10 de julho de 2020. Disponível em:
https://www.utad.pt/cel/wp-content/uploads/sites/7/2018/03/Revista-de-
-Letras-nº-2-2003.pdf
SABINO, Fernando. O Grande Mentecapto: Relatos das aventuras e desven-
turas de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações. 62ª edição. Rio
de Janeiro: Record, 2002.
TRUJILLO, Albeiro Mejia. O riso como fator de crítica nas narrativas picares-
cas. In: Revista Trama. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 3, nú-
mero 6 - 2º semestre de 2007. p.11-26. Acesso em 09 de julho de 2020. Dis-
ponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/trama/article/view/1720.
ZANI, Ricardo. Intertextualidade: considerações em torno do dialogismo. In:
Em Questão. Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 121-132, jan./jun, 2003. Acesso em 11 de
julho de 2020. Disponível em: www.seer.ufrgs.br/index.php/EmQuestao/arti-
cle/viewPDFInterstitial/.../25.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 176


CAPÍTULO 9

A identidade nordestina em três


narrativas de ficção científica
Ingrid Vanessa Souza Santos
Rosângela de Melo Rodrigues

DOI: 10.52788/9786589932369.1-9
Introdução

A cultura nordestina por muitas décadas foi renegada a um pa-


pel minoritário nas artes. Na literatura, por séculos, o cânone brasi-
leiro privilegiou a escrita provinda somente do eixo sul-sudeste. Ao
referir-se a participação de minorias sociais (tanto na criação quanto
incluídas nas narrativas) a quantidade torna-se ainda mais inferior.
Mesmo a ficção científica, um gênero que é caracteristicamente con-
testador do status quo de cada período de publicação, a presença
destas minorias ainda são atípicas. Quando estavam presentes, mais
reproduziam estereótipos do que representavam grupos sociais. No
audiovisual, os filmes que se passam em cenários na região do nor-
deste brasileiro têm um predomínio de personagens brancos e cishe-
teronormativos. 
No final da década de 2010, tanto a literatura quanto o cinema
conceberam obras que buscavam não apenas subverter a xenofobia,
como também o racismo e a LGBTfobia. A primeira destas foi o filme
Bacurau (2019), dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
O filme é uma miscelânea de vários gêneros, como ação, faroeste es-
paguete, terror e ficção científica. Bacurau (2019) se passa num futuro
próximo e tem como cenário o povoado homônimo no oeste de Per-
nambuco, onde seus moradores viram alvos de supremacistas bran-
cos estrangeiros. A narrativa dos dois diretores supracitados foi um
sucesso entre crítica e público, se tornando um clássico cult imediato.
Uma das razões do sucesso do filme está justamente no retrato do
nordeste longe dos arquétipos xenofóbicos que o audiovisual ajuda a
disseminar para o público. 
De modo similar, a noveleta “Morte Matada” (2020a) e o conto
prequela “O Sertão Não Virou Mar” (2020b), escritos por G.G. Diniz, re-
tratam um Ceará distópico no qual o coronelismo vira a nova ordem

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 178


política e onde a população é vigiada através de coleiras eletrônicas.
Ambos os trabalhos de Diniz fazem parte do subgênero (e movimen-
to) literário da ficção especulativa, - o sertãopunk -, do qual a autora
divide uma coautoria junto de Alec da Silva e Alan de Sá. Um dos pon-
tos característicos do sertãopunk está justamente em seu protago-
nismo nordestino plural, livre de estereótipos que foram propagados
durante anos na ficção. 
Ao escrever o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Bra-
sileira” (1988), o escritor de ficção científica Ivan Carlos Regina aponta
que deve-se abandonar diversos tropos típicos da ficção científica
anglófona, que mesmo nos dias atuais ainda domina tanto o mer-
cado literário quanto o audiovisual. Contudo, mesmo o manifesto de
Regina tendo sua relevância ao mencionar a hegemonia da cultura
anglófona na ficção científica, no final dos anos 2010 o foco de críti-
ca tornou-se mais amplo. Não somente na ficção científica, mas no
fantástico nacional como um todo, as narrativas ainda tomam como
cenário predominante as cidades do sul e sudeste e retratam ques-
tões culturais de personagens destas regiões. Uma escrita de ficção
científica que aborde a cultura nordestina, dando protagonismo para
personagens negros e/ou pessoas da comunidades LGBTQIA+ sem
cometer de preceitos estereotipados, ainda é algo incomum. 
Tanto o filme Bacurau (2019) quanto “Morte Matada” (2020a) e
“O Sertão Não Virou Mar” (2020b) subvertem não apenas a imposição
dos tropos da ficção científica anglófona, como também abordam o
nordeste brasileiro com a pluralidade identitária que foram esque-
cidas em obras anteriores do gênero. Logo, esta pesquisa tem como
objetivo geral analisar a representação do nordeste brasileiro em
“Morte Matada” (2020a) e “O Sertão Não Virou Mar” (2020b), escritos
por G.G. Diniz, e em Bacurau (2019), com direção de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles. Como objetivos específicos, temos os de in-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 179


vestigar os elementos de ficção científica recorrentes na escrita das
obras sertãopunk de G.G. Diniz e no filme supracitado, além de exami-
nar o arquétipo dos personagens nordestinos nessas três narrativas.

“Ontem eu vi um drone”: elementos de ficção científica em


Bacurau e no sertãopunk

Há registros de escritos de ficção científica no Brasil desde o sécu-


lo XIX, já abordando questões sobre a identidade nacional. Apesar de
sofrer preconceito da crítica especializada, seu atributo contestador e
imaginário fez com que muitos autores tentassem escrever no gênero
mencionado. A oportunidade de imaginar novos mundos (sejam eles
futuristas ou distópicos) fez com que muitos artistas utilizassem a fic-
ção científica como uma forma de crítica sociopolítica, como no caso
dos diretores e roteiristas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
O filme começa com uma visão aérea da Terra, enquanto “Não
Identificado”- música composta por Caetano Veloso, mas interpreta-
da por Gal Costa -, toca ao fundo. A própria escolha da trilha sonora
já é um dos primeiros indícios que o Bacurau (2019) utiliza de alguns
elementos da ficção científica, seja em pequena ou grande escala:

Eu vou fazer uma canção pra ela 


Uma canção singela, brasileira 
Para lançar depois do carnaval 
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico 
Um anti-computador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor 
Para gravar num disco voador 
Eu vou fazer uma canção de amor 
Para gravar num disco voador
Uma canção dizendo tudo a ela 
Que ainda estou sozinho, apaixonado 

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 180


Para lançar no espaço sideral 
Minha paixão há de brilhar na noite 
No céu de uma cidade do interior
(VELOSO, 1969).

A canção cantada por Gal Costa mescla elementos clássicos do


gênero (computador, disco voador, espaço sideral) e signos da cultu-
ra brasileira e regional (“canção singela, brasileira”, carnaval, cidade
do interior). A inclusão da trilha sonora em conjunto com a vista aérea
em que é mostrado o planeta, focando progressivamente na região
em que vai se passar a história, introduz ao telespectador a forma
como a ficção científica será inserida: de forma sutil e, na maioria das
vezes, em segundo plano. A trilha torna-se não diegética, diminuin-
do o volume à medida que a câmera adentra nas proximidades de
Bacurau, até cessar a canção e aparecer a legenda “Daqui a alguns
anos” enquanto apresenta uma das protagonistas: Teresa (interpre-
tada por Bárbara Colen). Teresa é levada para sua cidade-natal atra-
vés de um carro-pipa, onde é introduzido o que pode ser considerado
como o novum do filme. O novum é

[...] o dispositivo, artefato ou premissa ficcionais que põem em foco a diferença


entre o mundo que o leitor habita e o mundo ficcional do texto de FC. Esse no-
vum pode ser algo material, como uma espaçonave, uma máquina do tempo
[...] ou pode ser algo conceitual, como uma nova versão de gênero ou consci-
ência (ROBERTS, 2018, p. 37).

Isto é, por novum entendemos tudo aquilo (seja físico ou subjeti-


vo) que faz com que o leitor (ou neste caso, o telespectador) consiga
distinguir entre o real e o fictício. O estabelecimento do novum em
Bacurau aparece tanto na inserção do fato que a narrativa se passar
“daqui a alguns anos” quanto, pelas tecnologias consideravelmente
avançadas para época e pelo novo cenário político. No carro-pipa
que transporta Teresa, além de haver um painel tecnologicamente

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 181


superior ao próprio carro, é apresentado o contexto social: a tela do
painel reproduz um anúncio com a legenda “Brasil do Sul”, indicando
uma nova divisão geopolítica: 

Figura 1 - Anúncio do “Brasil do Sul”

Fonte: https://tartarugascinefilas.wordpress.com/2019/12/22/bacurau-2019/. 

O sertão nordestino é desvencilhado do Brasil do Sul, passando


por uma série de dificuldades e falta de estruturas como crises hídri-
cas, escassez de comida e corte de vacinas. Não somente isso, como
também é apontado por Wilson Alves-Bezera em seu artigo sobre o
filme para o site da revista Cult (2019), “[a] pena de morte foi instituída
no Brasil do Sul e as execuções são anunciadas na tevê”. Esta nova
divisão social reflete o posicionamento de extrema-direita do sul e
sudeste do Brasil “real”, que muitas vezes propagou a vontade de não
somente se “separar” do resto do país, como também de promover
um extermínio de parte da população num claro desejo de xenofó-
bico e racista de higienização social. Tal parecer reacionário é mui-
tas vezes estimulado pela ficção, com narrativas em que o sertão é
retratado como um cenário completamente devastado pela seca e
ausente de qualquer civilização. Contudo,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 182


[o sertão] é espaço praticado, formado por camadas sobrepostas de histórias
ocorridas ao longo de séculos de acontecimentos, contextos sociais, vivências
entrecruzadas. É também uma espacialidade que precisa ser compreendida a
partir de todo um repertório cultural construído através do agenciamento de
simbologias e discursos, elaborados e apropriados não apenas por seus habi-
tantes, mas também pelo olhar “do outro”, do visitante estrangeiro ou de outras
paragens como o litoral ou mesmo o “sul” do país, que ao longo do tempo, vem
exprimindo, sob diversos formatos de narrativas, suas impressões acerca das
características peculiares, do clima, do ambiente, dos costumes, das religiosi-
dades, das práticas culturais, das manifestações artísticas, da forma de ser e
de viver do sertanejo (PONTIER, 2013, p. 189).

Mesmo antes de apresentar os personagens estrangeiros su-


premacistas brancos que caçarão os moradores da região, Bacurau
(2019) já se coloca como uma distopia - ficção que alguns pesqui-
sadores consideram como um subgênero da ficção científica. A bra-
silianista Elizabeth Ginway considera as distopias como aquelas que
“[...] se concentram em temas políticos e satirizam tendências pre-
sentes na sociedade contemporânea” (2005, p. 93). No filme de Kle-
ber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a política é um tema central,
criticando a subserviência que indivíduos do sul e sudeste tem para
com os estrangeiros brancos advindos dos EUA e da Europa, ajudando
até mesmo a reproduzir concepções xenofóbicas sobre o próprio país.
Não somente isto, Bacurau (2019) também critica o preconceito de
tratar nordestinos como desinformados tanto da política quanto da
tecnologia. Aqui os dispositivos eletrônicos são utilizados como forma
de resistência contra o coronelismo da região e das tentativas de ex-
termínio do Brasil do Sul. De acordo com Tereza Spyer, “[n]esta comu-
nidade todas e todos se conectam – pelos celulares, tablets ou carros
de som. Há uma onipresença da tecnologia, uma das características
mais distintivas das distopias” (2019, p. 99).
A tecnologia também é utilizada pelos turistas caçadores, sendo
utilizada como forma de vigilância e controle da população local. Em
determinado momento do filme o botânico de Bacurau, Damiano (in-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 183


terpretado por Carlos Francisco), é seguido por um drone. A persegui-
ção do drone, comandada por Michael (personagem de Udo Kier) e
pelos outros caçadores, é explicada posteriormente quando Damiano
torna-se um dos primeiros alvos na caçada. 
No entanto, vale ressaltar que a tecnologia aqui não é somente
utilizada para reforçar o novum, mas também para subverter a ideia
de que nordestinos são ingênuos ou ignorantes aos avanços tecno-
lógicos. Isto é, à primeira vista, o drone aparece com um design que
se assemelha aos discos voadores, similares aos que eram vistos nos
filmes da Era de Ouro do cinema de ficção científica estadunidense
(1950-1960). O telespectador é induzido a esperar que Damiano trate
sua perseguição como um prelúdio de uma invasão alienígena, po-
rém, numa conversa com Pacote (interpretado por Thomás Aquino) o
personagem afirma: “Ontem, eu vi um drone. Parecia um disco voador
de filme antigo. Mas era um drone.”. A fala de Damiano também que-
bra as expectativas do público, mostrando um conhecimento prático
tanto da tecnologia avançada quanto da referência anglófona. 

Figura 2 - Damiano perseguido pelo drone

Fonte: https://www.tor.com/2020/08/18/e-quem-nasce-em-bacurau-e-o-que-
-brazilian-resistance-and-identity-in-bacurau/ 

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 184


Assim como em Bacurau (2019), a noveleta “Morte Matada”
(2020a) e o conto “O Sertão Não Virou Mar” (2020b) utilizam a vigilân-
cia tecnológica como parte importante de sua distopia. As três obras
compartilham diversas semelhanças, o que não é um fato aleatório.
Como apontado pela própria autora, o conto mencionado foi publi-
cado primeiramente em seu blog, Usina de Universos, sendo a histó-
ria “[...] inspirada em “Bacurau”, do Kléber Mendonça Filho: portanto
se existe alguma obra de antes do sertãopunk que talvez possa ser
considerada do movimento, seria esse filme” (DINIZ, 2021). O filme pos-
sui alguns dos conceitos que são características-base do movimento
sertãopunk, sendo eles:

• Um Nordeste onde avanços tecnológicos, sobretudo ecológicos proporcio-


naram alta qualidade de vida para os nordestinos; 
• Presença de desordem social por parte de uma elite coronelista emergente
e financiada por poderosos grupos (de outras regiões ou não); 
• Reformulação do processo migratório brasileiro; 
• Nordeste como polo independente de desenvolvimento intelectual, artístico,
tecnológico e cultural;
• Uso da oralidade, de elementos culturais e das diversas lendas e religiões
da região na narrativa (SÁ, 2019, p. 7).

Tanto em “Morte Matada” (2020a) quanto em “O Sertão Não Vi-


rou Mar” (2020b) os avanços tecnológicos são utilizados para meios
distópicos. Também se passando num futuro próximo, na cidade de
Cedrinho, a elite coronelista domina o sertão cearense, implantando
coleiras-eletrônicas nos cidadãos. Somente algumas cidades nordes-
tinas e grupos abastados viviam sem coleira, já que até mesmo para
conseguir emprego esta era necessária: “[e]m cidade grande, porém,
era difícil arranjar um trabalho que não exigisse o uso da coleira para
alguém sem estudo, sem nada” (DINIZ, 2020a, p. 13). Uma das poucas
que conseguiram se livrar do uso da coleira é a médica nomeada pela
região, Heloísa, por salvar o filho do coronel. Ao receber duas fugitivas
em sua casa, a narrativa se desdobra em torno da opressão local.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 185


Devido a ganância das figuras políticas, em “Morte Matada”
(2020a), a cidade de Cedrinho passava por um processo de deca-
dência e crise sanitária por conta do uso desmedido dos agrotóxicos
nas plantações e um mal tratamento da água que era ingerida pelos
moradores locais, provocando doenças como má formações e cân-
cer:

Quantidades copiosas e ilegais de agrotóxicos passaram a ser aplicadas nas


plantações de Cedrinho, até nas hortas familiares e os poucos pés de frutas.
Cedrinho nunca produziu tanto, em tão pouco tempo. Fora isso, a água de be-
ber passou a ter gosto acre, de cloro (DINIZ, 2020a, p. 16). 

A tecnologia nas obras de Diniz foge do estereótipo de uma região


atrasada. Ela é presente na narrativa, mostrando um avanço científi-
co e intelectual. Em suas histórias, o nordeste é igualmente eletrônico
que as demais partes do Brasil, sofrendo não com uma carência tec-
nológica, mas sim com a corrupção dos coronéis e do mau uso reali-
zado por estes. Ao definir o sertãopunk, Alan de Sá elenca o elemento
narrativo do coronelismo como uma parte importante do movimento:

[...] o coronelismo não fica somente no campo da política partidária: ele se


estende para as relações entre patrão e empregado, conflitos familiares,
serviços básicos à população e, até mesmo, relacionamentos amorosos. Mais
do que a seca, o coronelismo é o principal antagonista histórico do Nordeste
(SÁ, 2019, p. 10).

Em Bacurau (2019) vemos um neo-coronelismo através da figura


do prefeito Tony Junior (personagem de Thardelly Lima), já em “Morte
Matada” (2020a), Luís Felipe, o filho do coronel de Cedrinho, represen-
ta esta atualização da repressão e ganância da elite coronelista num
contexto futurista. Ao contrário do filme supracitado, a ficção científica
aqui não aparece para investigar em primeiro plano a xenofobia con-
tra nordestinos, mas sim de servir crítica social contra antigas práti-
cas políticas do nordeste brasileiro. Deste modo, o novum de “Morte

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 186


Matada” (2020a), bem como o de “O Sertão Não Virou Mar” (2020b),
não está somente nos dispositivos eletrônicos avançados, mas tam-
bém no teor distópico da repressão coronelista no sertão. De acordo
com Russel Jacoby, “[...] as distopias buscam o assombro, ao acen-
tuar tendências contemporâneas que ameaçam a liberdade” (apud
ALVES, 2009, p. 25). Não por acaso, nas narrações nordestinas o ele-
mento político do coronelismo se torna o incitador do distópico. 
Em “O Sertão Não Virou Mar” (2020b), a prequela da noveleta
mencionada, assim como em Bacurau (2019), retrata a ocorrência de
uma crise hídrica. Na narrativa é observado que “já não tinha água
encanada em Fortaleza” (DINIZ, 2020b, p. 5), fazendo com que par-
te da população passasse por um novo processo migratório. Contu-
do, ao mesmo tempo da ocorrência de tal crise, as cidades sofrem
com uma inundação iminente causada pelas águas do mar. G.G. Di-
niz busca não reforçar o estereótipo de um nordeste consumido pela
seca. Assim como em sua noveleta antecessora, o conto retrata uma
vegetação diversificada e sofrendo sobretudo com a corrupção da
elite. Ao escrever sobre o sertãopunk, Diniz discorre sobre o problema
da seca na região:

[e]m estados como o Ceará, a maioria dos rios são intermitentes, e até hoje a
seca representa um problema sério para a população e a atividade industrial.
A situação, porém, não é tão caricata, de seca interminável, quanto pensam as
pessoas de outros lugares do Brasil (DINIZ, 2019, p. 13).

O filme Bacurau (2019) também aborda essa dualidade da indús-


tria da seca no nordeste, a narrativa então “[...] destaca a questão da
falta de água, outro elemento-chave das distopias contemporâneas.
Isso nos remete à “indústria da seca” e o descaso do poder público,
bem exemplificado na figura do prefeito, Tony Jr” (SPYER, 2019, p. 99). A
tecnologia invadora é vista não somente no contexto da opressão dos
cidadãos - com coleiras eletrônicas e pistolas modernas -, mas tam-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 187


bém em formas de consumos com veículos avançados, mostrando
um cenário mais futurista até mesmo do que se é visto em Bacurau
(2019): “foi impedida por quatro motos [...]. Antigravitacionais, é claro.
Não faziam barulho algum, deslizando fácil sobre todas as pedras e
buracos do chão” (DINIZ, 2020b, p. 7-8).
Tanto em Bacurau (2019) quanto nas narrativas de G.G. Diniz, vê-se
a união entre alta tecnologia e ícones da cultura nordestina. O avanço
tecnológico se mescla com aspectos tradicionais de cada região das
obras. A distopia, principal elemento de ficção científica nas histórias,
aqui é utilizada resgatando a cultura do sertão e criticando antigas
políticas (GINWAY, 2005). Contudo, as semelhanças entre o filme de
Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles e a escrita de G.G. Diniz per-
passam seu novum e também se refletem na formação dos person-
agens.

“Tu foge comigo?”: representação afro-nordestina


e LGBT nas obras

Os personagens nordestinos nas obras supracitadas subvertem as


expectativas e trazem um novo tipo de representação para a ficção.
Durante décadas a ficção científica foi criticada pela falta de participa-
ção de minorias sociais escrevendo e presente nas narrativas. Ginway
(2005) aponta esse passado racista e machista do gênero em questão
no Brasil. Contudo, com o fim da década de 2010 e em retaliação ao
crescente ultraconservadorismo da nação (impulsionado sobretudo
pelos presidentes Donald Trump, nos EUA e Jair Bolsonaro, no Brasil),
muitos artistas criaram obras condenando tal onda da extrema-direita
política, que se posicionou abertamente contra qualquer minoria so-
cial. O pesquisador Michael Dantas discorre sobre essa ascensão rea-
cionária nos EUA e no Brasil e os seus ataques contra minorias: 

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 188


Isso [eleições de Trump e Bolsonaro] sinaliza para o avanço de um ultracon-
servadorismo essencialmente moralista, regressivo e anticivilizatório como um
movimento mundial, atingindo, consequentemente, o Brasil. Em suas falas pú-
blicas, Trump e Bolsonaro, fizeram e fazem questão de demonstrar seu ódio
contra negros(as), mulheres, imigrantes e LGBT (DANTAS, 2020, p. 14).

No Brasil, outro grupo foi alvo de comentários preconceituosos de


Bolsonaro: os nordestinos. O atual presidente concedeu muitas en-
trevistas reforçando seu posicionamento xenofóbico: “Isso não pode
continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da
mulher, coitado do gay, coitado do nordestino. Vamos acabar com
isso” (apud SPYER, 2019, p. 96). Os ataques xenofóbicos de Bolsonaro
acarretaram na escrita de novas narrativas se passando no nordeste,
tendo como protagonistas os tais grupos sociais mencionados pelo
presidente. 
Bacurau (2019), “Morte Matada” (2020a) e “O Sertão Não Virou
Mar” (2020b), auxiliaram na mudança deste cenário, inserindo per-
sonagens com identidades plurais. Já na concepção do subgênero
sertãopunk, a presença de um nordeste com mais representação ne-
gra, LGBTQIA+ e indígena sempre foi uma intenção. Tratando-se do
sertãopunk, vale ressaltar que este tem grande enfoque no protago-
nismo negro, considerando que este sempre foi apagado, mesmo em
obras que se passam no nordeste, que possui mais de 1900 territórios
remanescentes de quilombos (SÁ, 2019, p. 9). 
Não somente isto, também é importante destacar que este mo-
vimento foi criado por três autores negros. G.G. Diniz traz enfoque do
protagonismo negro e feminino em ambas de suas narrativas, trazen-
do mulheres que fogem do estereótipo de submissão e que não são
reféns de uma violência (seja ela racial ou de gênero). Como aponta
Pontier (2013, p. 191), “[q]uando não são excluídas dos discursos sobre
o sertão, as mulheres sertanejas costumam ser representadas, em di-
versos tipos de tramas narrativas, como meras coadjuvantes dos ho-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 189


mens”. No sertãopunk de Diniz as mulheres sertanejas negras são as
protagonistas, onde engajam em discussões sobre gênero, racismo e
lutas de classe. 
Como pode ser visto nas duas distopias sertãopunk, tanto Heloísa
quanto Juciara assumem posições de resistência diante das adver-
sidades do ambiente e da política. Deste modo, observa-se uma mu-
dança considerável na representação feminina nas obras da ficção
científica do final dos anos 2010. Como aponta Ginway (2005, p. 213),
“[a] mudança sutil de papéis dos personagens femininos na ficção
científica brasileira segue em paralelo à evolução dos papéis femini-
nos na sociedade brasileira”.   
A noveleta e o conto exploram o olhar feminino de forma crua. A
temática do abuso de poder, sobretudo envolvendo estupro de mu-
lheres, é tocada em ambas as narrativas, através da presença mas-
culina hóstil de coroneis e milicianos. No entanto, não há uma violên-
cia direta ou pornográfica contra as personagens femininas. Heloísa
e Juciara reagem a estas posições e assumem o papel contra o pa-
triarcado tradicional da região. As mulheres nas obras de Diniz são
ativas e procuram o apoio feminino diante de tal opressão. De modo
similar ao processo de redemocratização no Brasil (DANTAS, 2020), as
mulheres nordestinas de Diniz engajam na luta contra o cenário dis-
tópico em que são inseridas. 
De modo similar, são tratadas as figuras de Bacurau (2019). Na
comunidade pernambucana, os habitantes são em sua maioria ra-
cializados. As mulheres negras fizeram parte importante de movimen-
tos sociais, como o feminismo e o antifascismo, mas suas participa-
ções foram deliberadamente apagadas da história do Brasil. No filme
em questão as mulheres nordestinas são ativas para a construção da
resistência do extermínio dos estrangeiros e do neo-coronelismo de
Tony Junior. Teresa começa a narrativa trazendo vacinas para os mo-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 190


radores de sua cidade natal, buscando trazer as melhorias que o pre-
feito se negava a promover; Isa (interpretada por Luciana Souza), a
curadora do Museu Histórico de Bacurau, incentiva a revolução atra-
vés do interesse pela história e cultura de seu povo; Darlene (interpre-
tada por Danny Barbosa), que mora na entrada de Bacurau, assume
o papel de avisar aos demais moradores as possíveis invasões que a
comunidade pode sofrer de forasteiros; Carmelita (personagem de
Lia de Itamaracá), é a matriarca que incentivava o pensamento críti-
co de seus conterrâneos. As mulheres negras são parte determinante
para a permanência de Bacurau. 
De acordo com Spyer (2019, p. 97), “Bacurau põe em xeque o ra-
cismo estrutural brasileiro, que impregna a nossa existência”. O ra-
cismo pode ser visto tanto dos brasileiros vindos do eixo sul-sudeste,
quanto dos supremacistas estrangeiros. Um dos argumentos da caça
da região é de enxergar os habitantes da região em questão como
criaturas selvagens. Ao longo do filme, os indivíduos nordestinos sub-
vertem esse preconceito, mostrando um grupo que explora as arte,
história e ciência, enquanto os caçadores tornam-se cada vez mais
animalizados. O único momento de violência desenfreada no núcleo
de Bacurau está justamente na defesa de seus cidadãos, na preser-
vação de sua cultura.

No contexto brasileiro atual, de perseguição aos indígenas, quilombolas, cam-


poneses, LGBTQI+, entre outros, os “involuntários da pátria” seguem lutando por
seu direito a existir (VIVEIROS DE CASTRO, 2016). Os habitantes de Bacurau, cuja
cidade foi deixada de fora do mapa via satélite, resistem à violência usando as
armas do museu comunitário (SPYER, 2019, p. 98). 

Apesar de não haver participação de personagens do eixo sul-


-sudeste ou de outros países, violência também é um elemento re-
corrente nas narrativas de Diniz. O universo construído por esta é mais
hostil aos nordestinos, sobretudo às mulheres. Heloísa, como médica,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 191


assume o papel de cuidadora de todos em Cedrinho, mas se vê obri-
gada a utilizar violência contra as figuras masculinas para a liberta-
ção de seu povo e sua própria sobrevivência:

Ela achou que nunca mataria um homem. 


Não até aquele momento. 
Escondeu-se no meio do mato, destravou-a, fincou os pés no chão. O dedo
pressionou o gatilho sem pensar duas vezes
(DINIZ, 2020a, p. 34)

Por outro lado, tanto Juciara quanto Kátia (namorada de Juciara)


são agentes diretas contra a violência do patriarcado nordestino. Se-
questradas de suas comunidades e inicialmente obrigadas a fazerem
parte deste sistema, rompendo somente através da violência contra
os milicianos e coronéis. No entanto, ao se unirem ao fim do conto, as
duas mulheres corrompem a concepção racista das “mulheres ne-
gras raivosas” e assumem posições de afeto:

A moça retornou, o rosto salpicado de sangue. Nem isso impediu o instinto de


Kátia de beijá-la na boca.
— Qual é teu nome?
— Juciara. 
— Tu foge comigo? 
A resposta foi um aceno positivo
(DINIZ, 2020b, p. 13)

Com isso, vê-se outro elemento característico das obras de Di-


niz e do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: as múlti-
plas identidades LGBTQIA+. “Morte Matada” (2020a) introduz ao leitor
o casal sáfico Juciara e Kátia, assim como a protagonista Heloísa que
apesar de não ter uma descrição aberta sobre sua orientação sexual,
apresenta características claras de uma pessoa assexual. Ao referir-
-se a Luís Felipe, filho do coronel da região, Heloísa discorre: “Se hou-
vesse o mínimo de esforço da parte dele, saberia que ele não fazia o
tipo de Heloísa. Ninguém fazia” (DINIZ, 2020a, p. 11). A assexualidade,
apesar de fazer parte da sigla LGBTQIA+, ainda sofre grande exclusão
de sua própria comunidade e é pouco mencionada em narrativas. 

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 192


A sexualidade nas narrativas de G.G. Diniz, apesar de ser uma
característica importante na construção dos personagens, fica em
segundo plano. Além disso, mesmo se passando num ambiente de
violência patriarcal, as mulheres exercem e percebem as orienta-
ções sexuais. Em “O Sertão Não Virou Mar” (2020b) não somente as
duas protagonistas Juciara e Kátia se envolvem num romance aberto,
como personagens secundárias também são introduzidas tendo re-
lacionamentos sáficos. A orientação sexual e a sexualidade feminina
são tratados sem tabus ou repressão masculina, expondo a diversi-
dade LGBT no universo de Diniz. 
Ginway (2005) aponta uma relação complexa entre sexualidade
e repressão na ficção científica brasileira do século XX. Muitos autores
brasileiros exploram o erotismo como uma forma de revolta contra a
ditadura brasileira. No entanto, até o os primeiros anos do século XXI
poucos autores escreveram personagens que não fossem cishetero-
normativos. Essa mudança se dá sobretudo por mais minorias sociais
escrevendo este gênero, como é o caso da própria G.G. Diniz, mulher
negra que também se identificous como bissexual em suas redes so-
ciais. Estas minorias sociais vigentes cada vez mais criticam o padrão
estabelecido pelo cânone literário brasileiro através de uma escrita
mais diversa e política, se posicionando contra o crescente conser-
vadorismo da década de 2010. Em entrevista ao jornal El País, Silve-
ro Pereira, ator que ajudou a criar a personagem Lunga como sendo
queer, abordou a relação de seu trabalho em relação ao crescente
pensamento heteropatriarcal do governo Bolsonaro:

A arte é um espaço extremamente importante e talvez a arma mais poderosa


que a gente tem pra combater toda e qualquer forma de repressão, ditadura
ou retrocesso. O atual Governo tem feito ataques muito absurdos com relação
aos direitos adquiridos até agora, que foram batalhas muito grandes. [...] Nós,
como artistas, pagamos um preço muito pequeno comparado às gerações
passadas. Eu sei que sempre que abro a boca pra falar alguma coisa, eu posso
virar alvo de uma violência desse Governo. Mas se eu não fizer isso, gerações
futuras não pagarão preços menores que o meu (PEREIRA, 2019).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 193


Apesar de Bacurau (2019) ter dois criadores que se encaixam
num padrão de gênero e étnico normativo, a região pernambucana
homônima traz as variadas identidades de gênero e orientações se-
xuais, sendo um microcosmo do Brasil. Os habitantes nordestinos em
Bacurau são LGBTQIA+ e também tratam de sua sexualidade sem pu-
dor, como é o caso de Isa e de sua esposa, a médica Domingas (inter-
pretada por Sônia Braga), Darlene - uma mulher trans que mantém
uma relação poliamorosa com dois homens -, além de Lunga, perso-
nagem que exerce a não-binariedade, sendo tratade ao longo do fil-
me tanto com pronomes masculinos quanto femininos. Assim aponta
Spyer que em Bacurau (2019)

as personagens LGBTQI+ também são pura potência. Nesta comunidade dis-


tópica existe respeito e confiança mútua entre os habitantes, muito diferente
do Brasil atual, líder em crimes vinculados à homofobia e a transfobia. No filme,
uma mulher trans vive com dois homens e uma das mulheres de um casal de
lésbicas se relaciona com um michê. Lunga, o cangaceiro queer, representa
esta diversidade de Bacurau e do próprio cenário do sertão, um espaço frontei-
riço também para as minorias (2019, p. 98).

Não somente isso, assim como nas narrativas de G.G. Diniz, os per-
sonagens não são definidos apenas por serem da comunidade LGB-
TQIA+. Todos os habitantes de Bacurau são tratados com igualdade e
são reconhecidos pelas funções que desempenham naquela socie-
dade, seja médica, curadora de museu, a guarita, cangaceire. Apesar
do filme trazer elementos da ficção distópica, as relações dos bacu-
renses com sua própria comunidade é mais próxima de uma utopia.
Nas do sertãopunk de Diniz, apesar de haver uma forte presença da
violência masculina, as relações sáficas são naturalizadas e respeita-
das pelas protagonistas e personagens secundários.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 194


Considerações finais

As três obras analisadas foram concebidas por criadores nordes-


tinos, o que corroborou para que a representação do nordeste bra-
sileiro nelas fosse verossímil, mesmo elas pertencendo ao gênero da
ficção científica. A região do nordeste em Bacurau (2019) passa por
problemas reais como a seca, governantes corruptos e uma distribui-
ção desigual de recursos para a população. Na literatura, “Morte Ma-
tada” (2020a) e “O Sertão Não Virou Mar” (2020b) retratam as mesmas
questões, só que num cenário mais tecnologicamente avançado. 
Tais narrativas trazem um cenário nordestino divergente do que
se viu por muitas décadas no cinema e na literatura. Apesar de abor-
dar dificuldades recorrentes desta região, os autores se afastam de
estereótipos xenofóbicos, mostrando a riqueza e a cultura do nordes-
te. O retrato do neo-coronelismo nestas narrativas não apenas reto-
ma a crítica contra um antigo oponente do progresso no sertão, como
também faz menção ao modo de governo do presidente da república
Jair Bolsonaro, que além de ter um maior descaso na administração
do nordeste, também incentiva abertamente ataques contra os que
pertencem a essa região.
A crítica contra a ascensão ultraconservadora é característica
nas histórias de ficção científica concebidas no fim dos anos 2010. Este
gênero, conhecido justamente por analisar temáticas que eram ta-
bus e examinar o pensamento político reacionário, ganhou uma nova
vertente brasileira no final da década, ao trazer autores pertencen-
tes a minorias sociais para criticar as políticas de extrema-direita que
dominavam progressivamente o Brasil. Não por acaso, o subgênero
das distopias se faz presente nessas narrativas, traçando um paralelo
com a intolerância e a violência que ocorrem na realidade.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 195


O elemento mais recorrente da ficção científica Bacurau (2019)
e “Morte Matada” (2020a) e “O Sertão Não Virou Mar” (2020b) é jus-
tamente a distopia. Ela aparece através das tecnologias avançadas,
que são utilizadas para vigilância e repressão dos personagens. Não
somente isso, o neo-coronelismo (componente tipicamente brasilei-
ro) é utilizado tanto no sertãopunk quanto no filme supracitado como
uma vertente brasileira de uma nova ordem administrativa distópica.
Nesta nova ordem, são criadas divisões geopolíticas onde o eixo sul-
-sudeste é privilegiado, enquanto o nordeste sofre com a escassez
de recursos e a violência advinda tanto de fora quanto dos próprios
nordestinos.
Quanto ao papel dos nordestinos nas obras mencionadas, obser-
va-se que elas estimulam uma representação que também subverte
antigos estereótipos xenofóbicos. Nas narrativas, os nordestinos são
descritos como pessoas analíticas e cientes tanto do uso da tecnolo-
gia quanto do cenário sociopolítico em que estão inseridos. A violên-
cia ainda é um elemento recorrente nas histórias, mas os sertanejos
não reforçam a concepção de um povo atroz. Os atos de violências
são utilizados como uma resposta à caçada de estrangeiros ou como
uma consequência ao coronelismo e à corrupção. 
Os personagens nessas histórias também pertencem a grupos
minoritários. Tanto no filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dor-
nelles, quanto na escrita de G.G. Diniz são apresentados protagonistas
negros e pertencentes a comunidade LGBTQIA+. A diversidade é um
fator comum, mostrando identidades plurais que foram deliberada-
mente excluídas da ficção brasileira. Há também uma normalização
desses grupos, apesar de ainda ocorrer resquícios da violência hete-
ropatriarcal vindas tanto do nordeste quanto de outras regiões. Con-
tudo, o leitor experiência cenários onde mulheres, negros e pessoas
LGBTQIA+ são vistas além de estereótipos. 

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 196


Em suma, observa-se que nestas ficções de autoria nordestina foi
recriado uma nova concepção do que é a região do sertão do nordes-
te brasileiro e de quem são os nordestinos. Elas tratam de responder
aos ataques xenofóbicos e as repressões reacionárias estimuladas
pelo eixo sul-sudeste ou até mesmo pelos EUA e Europa ao colocar
como heróis sertanejos de tais grupos minoritários exercendo papéis
de heróis. Apesar de serem distopias, tanto Bacurau (2019) quanto
“Morte Matada” (2020a) e “O Sertão Não Virou Mar” (2020b) trazem
a figura do nordestino como um insubmisso da opressão estrangeira
e heteropatriarcal; anseio endossado pelos artistas que criam essa
nova fase da ficção científica nordestina subversiva.

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são de Curso (Graduação em Comunicação - Habilitação em Produção
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[S.l.]: Philips, 1969. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1. 
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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 197


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JUCÁ, B. Silvero Pereira: Há uma revolução LGBT+ no sertão. El País,
2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/23/cultu-
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POTIER, Robson William. Sertão praticado, sertão representado: a caatinga
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mologias do Sul, v. 3, n. 1, p. 92-109, 2019.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 198


CAPÍTULO 10

Sobre as cartas-ensaio de
José de Alencar: apontamentos
Patrícia Regina Cavaleiro Pereira

DOI: 10.52788/9786589932369.1-10
Missivas oitocentistas

“Depois das visitas e da conversação, o laço social mais extenso e


variado é a comunicação epistolar.”1Com essa assertiva, J. I. Roquette2
define o quadro de relações em voga no século XIX, período que inte-
ressa fundamentalmente à proposta deste ensaio.
Partindo da premissa anterior, é válido ressaltar que, apesar do
conceito comum, a carta não é o simples veículo de comunicação que
pode parecer à primeira vista. Possuidora de diferentes faces, além de
pertencer à esfera pessoal, concernente à intimidade, é também lida
por muitos quando publicada abertamente em periódicos, forma de
manifestação crítica, geradora de polêmicas.
Eliane Vasconcellos,3 em seu artigo “Intimidade das confidên-
cias”, expressa a ideia suscitada em geral quando a palavra “carta”
entra em cena. Segundo a pesquisadora, “espera-se que o conteúdo
[da missiva] traga novidades do cotidiano, da vida política e pesso-
al, reflexões, confidências e expressões de sentimentos”. No entanto,
como já mencionado, pelo menos duas relevantes definições mere-
cem ser melhor consideradas antes de se dar início a apontamentos
relativos à produção epistolar do século oitocentista: trata-se da es-
sencial distinção entre carta pessoal e carta aberta.
Diferentemente do primeiro tipo de missiva, definida como “uni-
dade comunicativa que existe para que sujeitos conhecidos entre si
possam trocar mensagens de caráter privado/pessoal por meio da

1 Este artigo foi publicado, com alterações, nos anais do X Congresso da Associação dos Pesquisadores
em Crítica Genética, em 2012, e em PEREIRA, Patrícia Regina Cavaleiro. “Há muito tempo que não te
escrevo...”: reunião da correspondência alencariana (edição anotada), Dissertação de Mestrado em
Letras. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo – USP, São Paulo,
2012. Disponíveis, respectivamente, em https://editora.pucrs.br/anais/apcg/edicao10/Patricia.Regina.
pdf e http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-31082012-095814/pt-br.php.
2 ROQUETTE, J. I. Código do bom-tom: ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX. Org. de L.
M. Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 266.
3 VASCONCELLOS, E. Intimidade das confidências. In: TERESA revista de literatura brasileira/área de
Literatura Brasileira. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo − n.8/9. São Paulo: Ed. 34, 2008. p.381.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 200


modalidade escrita da língua”,4 as cartas abertas, publicadas, “pro-
vêm de particulares, conhecidos ou não, de grupos mais ou menos
organizados, ou ocultam seu autor pela utilização de pseudônimos ou
pelo anonimato”,5 pois apresentam caráter panfletário, de manifesto,
exposição de ideias críticas e/ou inovadoras, que provocam discus-
são e, muitas vezes, calorosas polêmicas. Nora Bouvet,6 fazendo uma
reflexão mais ampla a respeito do tema, chama de:

“cerradas”, “auténticas”, “verdaderas”, “históricas” o “reales” a las cartas efecti-


vamente enviadas a un destinatario determinado (“privadas”) y “abiertas”, “in-
ventadas”, “ficticias”, “imaginadas” o “apócrifas” a las cartas publicadas (“pú-
blicas”). En principio, se entiende por “auténtica” o “verdadera” la carta privada,
es decir, dirigida y enviada efectivamente a un destinatario determinado, y por
“inventada” o “ficcional” la que no cumpre esos requisitos.

Ambas as faces da carta podem ser encontradas frequentemen-


te quando se analisam obras e/ou documentos do século XIX. Vol-
tando os olhos para a vida e obra de José de Alencar – considerada
a afirmação de que, “na teoria e nos estudos literários, a carta/texto
tanto pode ser ‘material auxiliar’, ajudando a compreender melhor a
obra e a vida literária, quanto escrita que valoriza a função estética/
poética”7 –, é possível assegurar-se que, tanto na correspondência
pessoal quanto na obra efetivamente publicada do escritor, obser-
vam-se os dois referidos aspectos de que as missivas podem ser por-
tadoras.

4 MODELOS de análise linguística. Org. de E. de A. Cardoso, V. G. Condé e B. Daruj. São Paulo: Contexto,
2009. p. 120.
5 Tradução nossa. No original: “émanent des personnes privées, connues ou non, des groupes plus ou
moins organisés [,] ou dissimulent leur auteur par l’utilisation de pseudonymes ou par l’anonymat”.
(LA CORRESPONDANCE: les usages de la lettre au XIXe siècle. Org. de R. Chartier. Paris: Fayard, 1991. p.
427).
6 BOUVET, N. E. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006. p.114-115.
7 MORAES, M. A. de. Sobrescrito. In: TERESA revista de literatura brasileira/área de Literatura Brasileira.
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Universidade de São Paulo – n.8/9. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 9.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 201


Nas cartas verídicas, encontra-se material que contribui para
uma melhor compreensão da biografia do jornalista, escritor e políti-
co cearense. No entanto, ainda que seja esperada a revelação de tra-
ços relativos à gênese da obra alencariana em sua correspondência
privada, é forçoso afirmar que nela não são encontrados vestígios de
criação artística – fragmentos de escritos a serem publicados, pen-
samentos acerca de sua produção literária ou mesmo sobre a arte de
escrever, de modo mais abrangente.
É nas cartas fictícias, publicadas em jornais, que se verifica a ex-
pansão das reflexões de José de Alencar a respeito de literatura, ma-
nifestações que o colocaram, muitas vezes, no papel de crítico e cria-
dor de ideias, ferrenho defensor de suas convicções. Segundo Antonio
Rodrigues:

as polêmicas fixam algumas grandes marcas da produção de Alencar, seja no


que tange à sua formação intelectual ou à sua personalidade. São também
elas os espaços onde ele defendeu com mais radicalidade suas ideias, e, por
isso, a análise dessas polêmicas é decisiva para compreender: as suas ideias e
a sua contribuição para a fundação de uma literatura brasileira; as suas visões
sobre literatura e política; a consistência de seu projeto.8

Conhecendo o significativo legado que Alencar ofereceu à litera-


tura brasileira, torna-se imprescindível trazer aos que se interessam
por sua obra e pela escrita epistolar, ainda que em breves linhas, al-
gumas das cartas abertas nas quais o autor de Iracema mostra, des-
temidamente, sua veia polemista relacionada à literatura do Brasil.

8 RODRIGUES, A. E. M. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
p.131.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 202


Cartas abertas: impressões sobre a produção literário-
epistolar alencariana

Entre 1853 e 1858, José de Alencar trabalhou na imprensa flumi-


nense, especificamente nos jornais Correio Mercantil e Diário do Rio
de Janeiro.9 Esse dado é relevante, pois foi mediante o Diário que, em
1856, o jornalista cearense publicou uma série de oito cartas10 nas
quais criticava duramente A Confederação dos Tamoios (1856) – re-
cente publicação do então conceituado poeta Gonçalves de Maga-
lhães11 –, apresentando a ousadia de um jovem que pretendia lan-
çar-se à produção literária, e comprando briga com os “amigos do
poeta”, dentre eles o imperador D. Pedro II.
Duas são as justificativas para que esse projeto epistolográfico
tenha se concretizado com tamanha voracidade. A primeira estaria
relacionada a uma possível “resposta” de José de Alencar em meio
a uma contenda pessoal. Com as cartas, ele revidaria à “exclusão de
seu nome da relação de convidados para a leitura do poema no Pa-
lácio de São Cristóvão”,12 espaço escolhido em decorrência de o mo-
narca ser o financiador da obra.
A segunda justificativa, literariamente mais interessante, baseia-
-se no fato de que Alencar, com as cartas, procurava demolir o poe-
ma do Visconde do Araguaia e a sua proposta de literatura nacional
para dar início ao processo de criação literária que seria construído
por ele, com a finalidade de estabelecer e, posteriormente, cristalizar

9 No Correio Mercantil, José de Alencar trabalhou de 1853 a 1855; no jornal Diário do Rio de Janeiro,
exerceu a função de redator-chefe de 1855 a 1858. Em ambos os periódicos, foi o responsável pela
elaboração das crônicas intituladas Ao Correr da Pena.
10 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.863-922.
11 Referindo-se a Gonçalves de Magalhães, Antonio Candido afirma que durante “pelo menos dez
anos ele foi a literatura brasileira; a impressão de quem lê artigos e prefácios daquele tempo é que
só se ingressava nela com o seu visto”. (CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira (momentos
decisivos). 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. p.375).
12 ELIAS, R. de C. E. O tísico José de Alencar e as porradas literárias. Revista Insight Inteligência, p. 152,
out.-dez. 2003.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 203


a imagem de escritor responsável pela instituição da genuína nacio-
nalidade na literatura brasileira. Corroboram essa hipótese as pala-
vras de Campato Jr.:13 “ao mesmo tempo em que Ig.14 põe a nu a falsi-
dade ou artificialidade nacionalista de Magalhães, vai apresentando,
nas Cartas, sua receita de ‘epopeia nacional’”.
Formado em Direito, o autor de O guarani dispunha de vasto arse-
nal retórico, que empregou efetivamente nas cartas, aspirando con-
vencer os leitores de Ig. de que o poeta da Confederação dos Tamoios
não poderia ser considerado o mais importante da literatura brasilei-
ra devido, essencialmente, à infeliz abordagem temática associada
aos diversos problemas estilísticos do poema que, consequentemen-
te, não seria exemplar. De acordo com os termos do epistológrafo, na
nova composição do poeta de Suspiros poéticos e saudades havia
“defeitos de estilo e dicção, pobreza de linguagem e de sentimento,
além da falta de harmonia na forma e de elevação na ideia”.15
Para alcançar seu objetivo, duas das estratégias adotadas pelo
missivista foram: o estabelecimento de um destinatário imaginário
(“meu amigo”), a quem Ig. se dirigia de maneira pessoal, cativando o
leitor; e a criação da imagem de um desinteressado escritor de cartas,
que vivia “retirado numa casinha de campo” e, decerto, nada alme-
jaria com a elaboração das missivas, pois não gostaria nem mesmo
que seus textos tivessem o status de artigo, caso fossem publicados. A
seu ver, o “estilo epistolar [prestava-se] pouco à gravidade e erudição
de uma crítica de imprensa”.16
Foi assim que José de Alencar – que, em 1856, já havia apresen-
tado o estilo de sua escrita em publicações realizadas nos jornais em

13 CAMPATO JR., J. A. Retórica e literatura: o Alencar polemista nas cartas sobre a Confederação dos
Tamoios. São Paulo: Scortecci, 2003. p. 17.
14 Segundo o missivista, o pseudônimo “foi tirado das primeiras letras do nome Iguaçu, heroína do
poema”. (ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.863).
15 Id., p. 867, p. 892 e p.896.
16 Id., p. 868.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 204


que trabalhou – projetou-se, definitivamente, no universo dos gran-
des literatos brasileiros do século XIX. Eis, portanto, talvez a maior con-
tribuição da primeira polêmica epistolográfica em que se envolveu o
“nosso [futuro] pequeno Balzac”,17 ainda aspirante a romancista. Nes-
sa controvérsia, já aflorava um de seus principais objetivos: o de mos-
trar-se “mais romântico – e, portanto, na sua visão, mais nacionalista
– do que Magalhães, preparando o terreno para, com o concurso de
sua obra de ficção, tomar as rédeas da literatura nacional”.18
Colocando de lado a publicação de conjuntos epistolares, mas
não abandonando a elaboração de missivas cujos conteúdos man-
tinham a atmosfera polêmica, lembro de uma notável carta aberta –
dirigida ao amigo Francisco Otaviano19 e também publicada no Diário
do Rio de Janeiro, em 14 de novembro de 1857. Nela, Alencar se apre-
senta, pela primeira vez, defendendo-se publicamente de críticas re-
cebidas à sua obra.
Ao ver a comédia O demônio familiar (1857) no alvo dos ataques
do periódico A Marmota,20 o jovem teatrólogo redige a missiva – tam-
bém conhecida como a “Comédia brasileira” ou “Como e por que sou
dramaturgo” –,21 texto que serviu como forma de resguardo “contra as
censuras de Paula Brito”,22 além de espaço no qual é possível encon-
trar os alicerces em que a produção teatral alencariana se estruturou.
Desarmado das estratégias epistolares empregadas na polêmica
com Gonçalves de Magalhães, mas trazendo um estilo não menos rí-
gido em sua nova carta, Alencar posiciona-se ante a acusação de ter

17 CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2007. p. 546.
18 CAMPATO JR., J. A. Retórica e literatura: o Alencar polemista nas cartas sobre a Confederação dos
Tamoios. São Paulo: Scortecci, 2003. p. 35.
19 Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889), jornalista, foi um dos grandes amigos de José de
Alencar.
20 A Marmota (1857-1861/64) tinha como editor Francisco de Paula Brito (1809-1861).
21 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.42-46.
22 ASSIS, M. de. Machado de Assis: do teatro: textos críticos e escritos diversos. Org., estabelecimento
de texto, introd. e notas de J. R. Faria. São Paulo: Perspectiva, 2008. p.45.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 205


plagiado a peça O barbeiro de Sevilha (1775)23 e expõe suas reflexões
a respeito da nacionalidade da arte cênica brasileira, apresentando
uma postura favorável ao realismo teatral, cujas bases estariam na
naturalidade e moralidade. Nas palavras do missivista, “a comédia,
a imagem da vida, deve ter suas cenas frias e calmas [...] preferi ser
natural, a ser dramático [...]”.24
Foi por meio dessa importante carta que o teatrólogo revelou “a
gênese da sua segunda comédia e expôs, de modo mais sistemati-
zado do que nos folhetins da série Ao Correr da Pena, suas ideias a
respeito do teatro brasileiro e do fenômeno teatral”.25 Considerando a
polêmica entre Alencar e Joaquim Nabuco, em 1875, é possível notar
que alguns dos futuros textos controversos do romancista − nos quais
o autor de Iracema expõe o que, a seu ver, seriam “os problemas fun-
damentais para o estabelecimento da literatura brasileira, mormente
no tocante à originalidade”26 − já se esboçavam no início de sua car-
reira literária, especificamente em sua produção epistolar impressa.
Dando um salto de mais de dez anos, encontram-se outras duas
missivas que compõem uma breve correspondência literária estabe-
lecida entre José de Alencar e Machado de Assis: trata-se das memo-
ráveis cartas de 1868, que evidenciam a importância do papel episto-
lar na rede de sociabilidade literária do século XIX.
A missiva destinada a Machado de Assis,27 em 18 de fevereiro, foi
publicada no Correio Mercantil aos 22 do mesmo mês, e tinha como
mote a apresentação de Castro Alves, vate ainda desconhecido na
sociedade literária fluminense, que procurou o renomado romancista

23 Peça do francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799).


24 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p. 45.
25 ASSIS, M. de. Machado de Assis: do teatro: textos críticos e escritos diversos. Org., estabelecimento
de texto, introd. e notas de J. R. Faria. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 16.
26 ABREU, M. M. de. Ao pé da página: a dupla narrativa em José de Alencar. Campinas: Mercado de
Letras, 2011. p.42.
27 ASSIS, M. de. Machado de Assis: do teatro: textos críticos e escritos diversos. Org., estabelecimento
de texto, introd. e notas de J. R. Faria. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 931-935.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 206


para lhe apresentar seu primeiro drama, Gonzaga ou A Revolução de
Minas,28 aguardando uma feliz recepção.
Encantado com o poeta baiano, Alencar assim escreve a Machado:

O Sr. Castro Alves é um discípulo de Vítor Hugo, na arquitetura do drama, como


no colorido da ideia. O poema pertence à mesma escola do ideal; o estilo tem
os mesmos toques brilhantes. Imitar Vítor Hugo só é dado às inteligências de
primor. O Ticiano da literatura possui uma palheta que em mão de colorista
medíocre mal produz borrões.29

Em meio aos elogios a Castro Alves e à romântica descrição da


Tijuca, local escolhido para o descanso das lides urbanas, o roman-
cista cearense também encontrou espaço para enaltecer a imagem
de seu correspondente, afirmando ser Machado de Assis “o único de
nossos modernos escritores que se dedicou sinceramente à cultura
dessa difícil ciência que se chama crítica”,30 e lançar farpas contra os
adversários – políticos e literários.
A carta resposta do crítico carioca, redigida em 29 de fevereiro
de 1868, também foi publicada no Correio Mercantil, em princípios de
março. Nela, Machado aponta alguns dos poucos deslizes de Alves
– fruto da juventude e consequente inexperiência – e agradece as
palavras de incentivo do admirado escritor com os seguintes dize-
res: “É uma boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior
fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exa. com uma carta que vale um
diploma, com uma recomendação que é uma sagração”.31
A derradeira polêmica epistolar publicada pelo escritor de Mes-
sejana, agora já experiente, em dezembro de 1874, foi mais uma vez

28 Elaborado entre 1866 e 1867, publicado em 1875.


29 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.933.
30 Id., p. 935. E essa declaração é acrescida das seguintes palavras, que arrematam a missiva: “[...]
Do senhor, pois, do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com
tanto vigor. Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios que são os três círculos máximos
da divina comédia do talento”.
31 ASSIS, Machado de. Machado de Assis: do teatro: textos críticos e escritos diversos. Org.,
estabelecimento de texto, introd. e notas de J. R. Faria. São Paulo: Perspectiva, 2008. p.473.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 207


resposta aos que julgavam sua obra. Para contextualizar melhor, lem-
bro que, a partir de 1871, o romancista passa a ser

[...] alvo de uma polêmica no periódico fluminense Questões do Dia,32 dirigido


pelo escritor português José Feliciano de Castilho33 e custeado pelo imperador.
O objetivo inicial do periódico, promover um ataque sistemático ao Alencar po-
lítico, é logo desviado para as questões literárias com a entrada em cena de
Franklin Távora. Sob o pseudônimo de Semprônio e Cincinato, Távora e Castilho,
respectivamente, trocam cartas a respeito da obra de Alencar, especialmente
[acerca de] O gaúcho e Iracema.34

Procurando resguardar-se35 das críticas relativas ao emprego da


“língua nacional”36 em seus romances, bem como apresentar uma
breve reflexão sobre a poesia popular do Ceará, José de Alencar re-

32 Segundo Gladstone Chaves de Melo, a Questões do Dia era “uma revista-panfleto que se
editou aqui no Brasil sob a orientação e coordenação de José Feliciano de Castilho [...]. Vários nela
colaboraram, escolhendo cada qual um falso-nome”. Ele acredita que só tenham sido publicados
quarenta números “enfeixados em dois volumes: Questões do Dia – Observações Políticas e Literárias,
escritas por vários e coordenadas por Lúcio Quintino Cincinato” (MELO, G. C. de. Alencar e a “língua
brasileira”. 3.ed. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. p. 15-16).
33 Trata-se de José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha (1810-1879) – irmão do escritor António
Feliciano de Castilho (1800-1875) e amigo de D. Pedro II –, que estava no Brasil desde 1847.
34 ELIAS, R. de C. E. O tísico José de Alencar e as porradas literárias. Revista Insight Inteligência, p. 159,
out.-dez. 2003.
35 Gladstone Chaves de Melo afirma que, para defender-se, além da elaboração das cartas de
O Nosso Cancioneiro, Alencar “expôs o seu ponto de vista com referência à língua e ao estilo no
Pós-Escrito de Diva, 2ª ed., no Prefácio de Sonhos d’Ouro, no Pós-escrito de Iracema, 2ª ed. [e] num
ensaio inacabado que ficou inédito até 1919, quando se publicou na revista América Latina: Questão
Filológica [...]” (MELO, G. C. de. Alencar e a “língua brasileira”. 3.ed. Rio de Janeiro: Conselho Federal
de Cultura, 1972. p.23). Visconde de Taunay relata, em seu livro de memórias, a desavença entre José
de Alencar e José Feliciano de Castilho, que, “levado pelas relações que tinha com membros do
ministério e governistas, espontaneamente encetara, desde os começos da campanha de 1871, uma
série de cartas assinadas Cincinato, em que buscara tomar a frente a José de Alencar. Não tardou
muito e fundou uma como que revista hebdomadária a que deu o nome de Questões do Dia, mas
que, exclusivamente, combatia aquele político, estudando-lhes todas as feições, sem insulto embora,
mas de modo hostil e agressivo, procurando feri-lo nas suas suscetibilidades mais melindrosas. O
que particularmente doeu a Alencar foi ver agremiar-se em torno d’aquele nome símbolo de guerra,
a mocidade brasileira, insurgida contra o mestre, – principiantes na carreira das letras metidos a
críticos desabusados e rancorosos da mais bela e mais bem preenchida vida literária, que tem tido
o país. Tomara então o pseudônimo de Senio e no frontispício do Gaúcho explicara essa assinatura
como representação fiel do seu novo estado d’alma – desânimo absoluto, esmagador. ‘Há duas
velhices, dizia ele; a do corpo, que trazem os anos, e a da alma, que deixam as desilusões.’” (TAUNAY,
A. d’E. Reminiscências. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1908. p.221).
36 Quanto às inovações de linguagem empregadas por Alencar em seus romances, Kátia
Garmes nos lembra que “Gilberto Freyre via no escritor um reformador da língua literária
do país, justamente [pelo seu] nacionalismo linguístico” (GARMES, K. M. O terrível amolador:
romantismo e política em José de Alencar. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira).
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2004. p.190).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 208


digiu cinco missivas que tinham como primeiro interlocutor Joaquim
Serra,37 responsável pelo envio das cartas ao jornal O Globo, onde
foram publicadas. Tratava-se da criação de O nosso cancioneiro,38
mais um espaço epistolar cuja exposição pública propiciou grande
divulgação às reflexões literárias do escritor cearense.
Nesses textos, que segundo o correspondente maranhense, são
de “valor inestimável como lição e como estilo”,39 Alencar manifes-
tou o desejo de examinar “assunto literário de magna importância: a
naturalização de nossa literatura; o estudo da poesia popular”.40 Em
decorrência dessa proposta, na primeira missiva, o romancista apre-
senta o projeto de reunir a poesia sertaneja41 e a intenção de fazer
apenas “comentário e glosa das trovas e cantigas populares”.42 Em
suas palavras:

A razão da singularidade [das canções populares cearenses] provém de não


revestirem as canções cearenses a forma de idílio. Não se inspiram no senti-
mento lírico, têm cunho épico. São expansões, ou episódios da eterna heróida
do homem em luta com a natureza.43

No entanto, ainda no final da primeira carta, no início da segunda


e em toda a quinta missiva, o epistológrafo elabora uma série de ex-
planações concernentes às mudanças por que a língua portuguesa

37 Joaquim Serra (1838-1888), cujo nome completo era Joaquim Maria Serra Sobrinho, foi jornalista,
político e literato brasileiro.
38 As quatro primeiras cartas – de 07, 09, 10 e 17 de dezembro de 1874 – podem ser encontradas
no quarto volume da Obra completa de José de Alencar (Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960.
p.961-983). A publicação integral de O nosso cancioneiro, com a inclusão da quinta missiva – de 30
de dezembro de 1874 –, só foi realizada posteriormente, em 1962, por Manuel Esteves e M. Cavalcanti
Proença.
39 ALENCAR, J. de. O nosso cancioneiro: cartas ao Sr. Joaquim Serra. Org. e notas de Manuel Esteves e
M. Cavalcanti Proença. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962. p.13.
40 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.961.
41 Alencar justifica o nome dado ao seu ensaio epistolar com as seguintes palavras: “Podemos nós
porém casar esses nomes cultos [xácara e romance], que respondem a trovas de outro gênero,
com as inspirações rústicas e aos improvisos incorretos de nossos sertanejos, entre os quais nunca
vogaram aquelas denominações? Entendo eu que não. Por isso adotei por título ou pretexto desta
palestra literária a palavra mais lata de cancioneiro que abrange tudo” (ALENCAR, J. de. Obra
completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.970-971).
42 Id., p. 967.
43 Id., p. 962.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 209


passava no Brasil, o que justificaria o uso da chamada “língua brasi-
leira” em sua obra ficcional. Dessa maneira, não deixava de responder
a seus adversários, que o acusavam de “abastardar a língua e enxo-
valhar a gramática”44. O missivista, então, afirmava:

Não sou filólogo, nem pretendo para mim os foros de gramático, o que, entre-
tanto, se arroga tanta gente. E é a ponto que já se pode bem parodiar aquele
dito chistoso: que todo homem tem por força uma aduela de doudo e outra de
médico.45 [...] Eu desejava que os puristas, ou antes os carranças meditassem a
profunda sentença que a Academia Francesa escreveu em 1704: “Je n’ai pas la
folie de vouloir reglementer et fixer une langue vivante”.46

Ao dar continuidade à segunda carta, contudo, o escritor cearen-


se coloca de lado as questões linguísticas e retoma o romance de va-
queiros, trazendo parte do poema “Boi Espácio”, reminiscência infantil.
Dá início, assim, à outra parte de seu projeto epistolar: a exposição,
ainda que timidamente, da poesia popular de sua província natal.

Em minha infância, passada nas cercanias da lagoa de Mecejana, tão nomea-


da agora pela salubridade de seus ares e virtudes de suas águas, quase todas
as noites, durante os invernos, ouvia eu ao nosso vaqueiro o romance ou poe-
meto do Boi Espácio.47

Lamenta o fato de não se recordar de todos os versos – transcre-


ve apenas duas quadras –, conta ao amigo que muitos esforços fez
para obter uma cópia deste, que supunha ser “não só a mais antiga,
como também a mais curiosa e interessante das rapsódias sertane-
jas”,48 e de outros poemas populares, sem, entretanto, obter sucesso.
A terceira e quarta cartas são destinadas à apresentação e breve
análise de “O Rabicho da Geralda”, poemeto popular cujo eu lírico é
um boi “que veio a tornar-se herói de uma epopeia sertaneja, e das

44 Id., p. 982.
45 Id., p. 967.
46 ALENCAR, J. de. O nosso cancioneiro: cartas ao Sr. Joaquim Serra. Org. e notas de M. E. e M. C.
Proença. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962. p.70.
47 ALENCAR, J. de. Obra completa. v.4. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960. p.968.
48 Id., p. 969.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 210


mais populares”49 –, nas quais o leitor se depara com um número me-
nor de alfinetadas aos críticos.

Não há nessa personificação do animal o mínino laivo de apólogo. Ao contrário;


bem longe de representar o homem por meio do irracional, o trovista sertanejo
conserva ao rei da criação a sua forma e excelência, e assim exalta mais o pro-
tagonista do drama bucólico.50

O romancista narra a anedota sobre a origem do poema e expli-


ca o trabalho de reelaboração do texto poético, uma das razões pelas
quais esteve, anos mais tarde, na mira de Silvio Romero,51 que afirmou:
“apesar de todo o seu merecimento como literato, [Alencar] não tinha
uma preparação científica suficiente para tratar destas matérias”.
A partir desses breves apontamentos – relacionados às cartas de
O nosso cancioneiro e a outros ensaios epistolares alencarianos52 –,
é possível dizer que o escritor mostrou bem o papel que esse tipo de
produção ficcional teve em sua obra.
Veículo adotado para a difusão de ideias – que muito contribuiu
para a construção de sua imagem –, meio de defesa pública e tam-
bém utilizado para a instauração de controvérsias, as cartas publica-
das constituem material merecedor da atenção dos leitores.
Foi por essa razão que procurei, elaborando este breve ensaio,
levantar a questão e relembrar aos interessados por epistolografia e
pela obra de José de Alencar que, em seu vasto currículo, também
encontramos a figura de um grande escritor de cartas.

49 Id., p. 973.
50 Id., p. 977-978.
51 ROMERO, S. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p.104.
52 Ainda como última observação pertinente a este artigo, lembro que o prefácio e o posfácio de
Iracema também foram redigidos em formato epistolar: cartas dirigidas ao primo e amigo Domingos
José Nogueira Jaguaribe (1820-1890), nas quais o epistológrafo versava sobre a criação do romance
em questão e, assim como se deu com as cartas de O nosso cancioneiro, discorria acerca de
aspectos linguísticos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 211


Referências

ABREU, Mirhiane Mendes. de. Ao pé da página: a dupla narrativa em José


de Alencar. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
ALENCAR, José de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960.
ALENCAR, José de. O nosso cancioneiro: cartas ao Sr. Joaquim Serra. Org.
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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 212


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bem viver no século XIX. Org. Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia
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n.8/9. São Paulo: Ed. 34, 2008. p.372-389.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 213


CAPÍTULO 11

Entre intertextualidade e cinema:


Nelson pereira dos Santos
faz a ressignificação do conto
“A terceira margem do rio”,
de Guimarães rosa
Andreza da Silva

DOI: 10.52788/9786589932369.1-11
Considerações Iniciais

A ideia desta pesquisa surgiu a partir da descoberta da narrativa


fílmica “A Terceira Margem do Rio”, de autoria de Nelson Pereira dos
Santos, que além de ser uma adaptação cinematográfica do conto
homônimo de Guimarães Rosa, também é uma releitura da obra, pois
foi construído com feixes de outros contos de autoria do consagrado
escritor brasileiro, aliado a trechos produzidos pelo próprio Nelson Pe-
reira.
Para a compreensão deste trabalho, será feita uma exposição
breve dos feitos artísticos de Nelson Pereira dos Santos e de Guima-
rães Rosa, pois ambos foram nomes marcantes para a cultura e as
artes nacionais. O primeiro no cinema e o segundo na literatura.
Tendo em vista que a análise deste trabalho se dará por viés da
Intertextualidade será apresentada também os conceitos de intertex-
tualidades por alguns teóricos, dentre eles, Mikhaik Bakhtin e Julia Kris-
teva, pois é de fundamental importância conhecer o que exatamente
é intertextualidade para assim compreender o processo de ressignifi-
cação que Nelson Pereira dos Santos realiza em seu texto fílmico.
Em virtude de o Filme ter sido construído a partir de feixes de 5
contos de Guimarães Rosa, “A Terceira Margem do Rio”, “Sequência”
, “ A Menina de Lá, “Fatalidade” e os Irmãos Dagobé”, há um capitulo
destinado a breves exposições sobre os enredos de cada um, bem
como do filme como um todo, para poder seguir para a parte analíti-
ca do trabalho que objetiva-se em mostrar como Nelson Pereira dos
Santos faz a ressignificação do conto por meio da intertextualidade
e assim é capaz de eternizar em imagens e som, além da escrita já
alcançada por Guimarães Rosa.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 215


Um pouco sobre os artistas: Guimarães Rosa e
Nelson Pereira dos Santos

Antes de adentrarmos na parte teórica e analítica desta pesqui-


sa, será retratado um pouco da biografia do escritor Guimarães Rosa
e do Cineasta Nelson Pereira dos Santos, ressaltando a importância
que ambos tiveram para o cenário das letras e do cinema brasileiro.
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, MG, em 27 de ju-
nho de 1908, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 19 de novembro de
1967. Filho Florduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa, foi o ter-
ceiro ocupante da cadeira 02, na Academia Brasileira de Letras eleito
em 06 de agosto de 1963, na sucessão de João Neves da Fontoura e
recebido pelo Acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco em 16 de no-
vembro de 1967.
Apesar do grande destaque na área da Literatura, Guimarães
Rosa era formado em medicina pela Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de Minas Gerais e por meio de concurso, tornou-se capitão
médico da Força Pública do estado de Minas Gerais. Também conse-
guiu, por meio de concurso, ser diplomata, foi cônsul em Hamburgo
(1938-42); secretário de embaixada em Bogotá (1942-44); chefe de
gabinete do ministro João Neves da Fontoura (1946); primeiro-secre-
tário e conselheiro de embaixada em Paris (1948-51); secretário da
Delegação do Brasil à Conferência da Paz, em Paris (1948); represen-
tante do Brasil na Sessão Extraordinária da Conferência da UNESCO,
em Paris (1948); delegado do Brasil à IV Sessão da Conferência Geral
da UNESCO, em Paris (1949). Em 1951, voltou ao Brasil, sendo nomeado
novamente chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura;
depois chefe da Divisão de Orçamento (1953) e promovido a ministro
de primeira classe. Em 1962, assumiu a chefia do Serviço de Demarca-
ção de Fronteiras.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 216


Sua estreia na literatura aconteceu por meio da publicação do
conto “O mistério de Higmore Hall”, que foi publicado na revista “O
cruzeiro”. Este conto não faz parte de nenhum de seus livros. O escritor
João Guimarães Rosa ganhou destaque na literatura brasileira devido
a sua forma de escrever, apresentando uma inovação na linguagem,
um forte simbolismo, além de uma de suas grandes marcas, o regio-
nalismo.
Devido à genialidade de suas obras literária, o autor recebeu vá-
rios prêmios, entre eles, prêmio da Academia Brasileira de Letras, con-
ferido a Magma e Prêmio Filipe d’Oliveira pelo livro “Sagarana” (1946);
“Grande sertão: Vereda” recebeu o Prêmio Machado de Assis, do Ins-
tituto Nacional do Livro, o Prêmio Carmen Dolores Barbosa (1956) e
o Prêmio Paula Brito (1957); “Primeiras Estórias”, obra na qual está o
conto “A terceira margem do rio” e os demais contos utilizados para
produção cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, recebeu o
Prêmio do PEN Clube do Brasil.
Nelson Pereira dos Santos tem origem simples, filho de um alfaiate
e de uma dona de casa de origem italiana, nasceu em São Paulo em
22 de outubro de 1928 no bairro do Brás e foi criado no Bexiga, e fale-
ceu dia 21 de abril de 2018, foi um grande ícone para o cinema brasilei-
ro. Diretor, produtor, roteirista, montador, ator e professor, formado em
direito pela USP, dá início a sua carreira na imprensa, em 1946, como
revisor no Diário da Noite de São Paulo e posteriormente como redator
no Diário Carioca (1956-1958) e no Jornal do Brasil (1958-1969).
Sua paixão por cinema o fez escolher o Rio de Janeiro para morar e
é lá que ele dá início a sua carreira, que mais tarde o tornaria o dos prin-
cipais percussores do Cinema Novo no Brasil. Após sua estadia durante
dois meses em Paris, o cineasta retorna ao Brasil e lança seu primeiro
curta-metragem, um documentário intitulado “Juventude”, no ano se-
guinte foi assistente de direção no filme “O Saci”, de Rodolfo Nanni.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 217


Seu primeiro longa-metragem é lançado em 1955, quando tinha
apenas 27 anos de idade, “Rio 40 Graus” e dois anos depois Rio, Zona
Norte. Em 1958, produziu “O Grande Momento”, de Roberto Santos, em
1961, dirigiu “Mandacaru vermelho”, em 1963, “Boca de Ouro”. Em 1963
faz a adaptação do clássico “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos e seu
filme recebe o prêmio Office Ctholique de cinema (Ocic) no festival de
Cannes em 1964. 1967 roda “El Justicero” e “Fome de Amor”. Em 1984,
mais uma vez, adapta outra obra de Graciliano Ramos, desta vez,
“Memórias do Cárcere”, que recebeu os prêmios de melhor filme da
Crítica Internacional do Festival de Cannes e do Festival do Novo Ci-
nema Latino-Americano de Havana. “Além das adaptações dos dois
livros de Graciliano Ramos, fez também “Azyllo Muito Louco” basea-
do no conto “O Alienista” do escritor Machado de Assis” e “A Terceira
margem do Rio” baseado em contos do livro “Primeiras Estórias” de
Guimarães rosa, que são eles: “Sequencia”, “Fatalidade”, “A Menina
de Lá”, “Os Irmãos Dagobé” e o conto homônimo que dá título ao filme
e que mais adiante serão apresentados, pois é de fundamental im-
portância ter conhecimento destes cinco contos para a compreensão
do corpus de análise desta pesquisa.
Devido à genialidade e grande números de filmes feitos a partir
de adaptações de produções literárias, Nelson Pereira da Silva tor-
nou-se o primeiro cineasta a ser membro da Academia Brasileira de
Letras, no dia 17 de julho de 2006, sua cadeira foi a de número sete, a
qual tem como patrono Castro Alves, que pertencia anteriormente a
Sergio Correia da Costa.

A Intertextualidade

De acordo com Fiorin (1994), o primeiro teórico a abordar a inter-


textualidade foi Mikhaik Bakhtin, porém não usava essa denominação

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 218


e sim a intitulava de “dialogismo”. Segundo o pensador russo, todo
discurso se faz a partir de outro e não sobre si mesmo. No discurso de
qualquer falante, sempre encontramos algo do discurso do outro, pois
é o “outro” que nos completa. Todo discurso é composto de relações
dialógicas, nenhum discurso é livre, pois sempre haverá vozes dialo-
gando em sua construção interna. Essas vozes podem ser sociais ou
individuais.
O termo intertextualidade é recente, foi introduzido por Julia Kris-
teva em 1966, o que Bakhtin chamou de dialogismo, kristeva chamou
de intertextualidade. Nas palavras de Kristeva “todo texto se constrói
como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transforma-
ção de outro texto” (apud Gouvêa 1974, p. 59). A semioticista afirma
ainda que, para a intertextualidade existir é necessário um conheci-
mento prévio e deste modo o leitor consiga identificar a presença de
outros texto ou fragmentos no novo texto.
O termo e conceito de intertextualidade sofreram várias modifi-
cações ao longo dos tempos, segundo Fávero e Koch (1985) o con-
ceito de intertextualidade abrange as várias formas pelas quais a
produção e a recepção de um texto pressupõe o conhecimento de
outros textos, isto é, “Diz respeito aos fatores que tornam a utilização
de um texto dependente de um ou mais textos previamente existen-
tes”. (1997, p. 88).
Koch(1986) sentiu necessidade de ampliar o conceito de intertex-
tualidade, propondo uma divisão da noção de intertextualidade em um
sentido amplo e um sentido restrito. Para ela “em sentido amplo, é lícito
afirmar que a intertextualidade se faz presente em todo e qualquer texto”
(1986, p. 40). A autora afirma ainda que a intertextualidade em sentido
restrito se dá quando há a relação de um texto com outros previamente
e efetivamente produzidos, ou seja, “Quando, em um texto, está inserido
outro texto (intertexto) anteriormente produzido” (KOCH, 1997, p. 108).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 219


A intertextualidade pode ocorrer de maneira explícita e implícita.
Paulino, Walty e Cury (1995, p. 25-42) apresentam oito formas de in-
tertextualidade, “a epigrafe, a citação, a referência, a alusão, paráfra-
se, a paródia, o pastiche e a tradução”. Pelo fato da intertextualidade
ser decorrente do uso da linguagem, ela pode aparecer no texto de
formas variadas.
A primeira manifestação explicita da intertextualidade é a epí-
grafe, o termo vem do grego epigraphe que significa “escrita na posi-
ção superior”, faz uso de uma passagem de um texto já existente para
dar início ao seu próprio texto.
A citação é outro tipo de intertextualidade explícita, nela o leitor
pode identificar que o texto é resultado de outro texto, ou seja, fica
claro que houve uma espécie de empréstimo de um texto para elabo-
ração de outro, a fim de reafirmar uma ideia. A citação vem acompa-
nhada geralmente de aspas e acompanhada da identidade de seu
criador,
A referência é terceiro tipo de intertextualidade explícita, ela é
um intertexto que compara a obra de um autor com a de outro. Ge-
ralmente é utilizado em trabalhos acadêmicos. Temos com primeira
manifestação implícita de intertextualidade a alusão. Segundo Pauli-
no, Walty e Cury (1995, p. 29) a alusão faz uma leve menção a um texto
ou a um de seus componentes em um segundo texto.
Outra forma de se fazer intertextualidade é por meio da paráfra-
se. Ela acontece quando um autor se apropria de um texto já existen-
te, reproduzindo-o, utilizando-o como base pra criar o seu próprio, po-
rém, com outras palavras e sem perder a ideia principal do texto original.
Como exemplo dessa maneira de elaborar intertexto por meio de pará-
frase tem Europa, França e Bahia, de Carlos Drummond de Andrade, no
qual o poeta parafraseou o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias,
que serviu como base para elaboração de muitos outros intertextos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 220


Temos ainda a paródia como outro tipo de recurso utilizado na
elaboração de intertextos. Na maioria das vezes ela confere caráter
cômico, satírico ou irônico ao novo texto elaborado a partir de estru-
turas textuais escritas ou visuais que possam ser modificadas. Main-
gueneau e Graça Paulino (1996, p. 100) afirmam que “a paródia se
manifesta quando o texto que foge às intenções sérias do original e
usa caricatura e a intenção jocosa para com este”. Algumas caracte-
rísticas que fazem referência ao texto original, porém há modificações
de outros elementos, é muito comum usar músicas para elaborar pa-
ródias, neste caso, mantem-se a sonoridade e ritmo e modifica-se
a letra. Para compreender o sentido da paródia é necessário que o
leitor, ouvinte ou espectador tenha conhecimento prévio do texto que
foi parodiado.
O pastiche é mais um tipo de intertexto, ele é uma espécie de
colcha de retalhos textual, o autor faz um recorte de vários textos ou
gêneros. Edwuard Lucie-Smith (1984, p. 141) diz que o pastiche é um
trabalho de arte que toma emprestado o estilo e alguns elementos de
outros trabalhos, mas sem necessariamente produzir. A tradução é
um tipo de intertextualidade que traduz determinado texto de acordo
com o idioma oficial do país em que a obra é traduzida. Por exemplo,
quando um livro em inglês é traduzido para o português.
Diante dos tipos de intertextualidade apresentados e das falas
dos autores em relação à abrangência da intertextualidade, ficamos
cientes que ela nos faz estar em constante movimento textual, pois há
sempre o diálogo de um texto com outros textos.
No segmento análitico deste trabalho, será traçado um paralelo
entre o conto “A Terceira Margem do rio”, de João Guimarães Rosa e
o filme homônimo, de Nelson Pereira dos Santos e que pode ser visto
como um intertexto do conto.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 221


Resumo dos contos do filme

Tendo em vista que o foco deste trabalho consiste no estudo in-


tertextual de duas obras, sendo ela: “A terceira Margem do Rio”, conto
de Guimarães Rosa e o filme homônimo, de Nelson Pereira dos Santos,
que apresenta em seu roteiro feixes de cinco contos, que são eles:
“Sequência”, “A Menina de La”, “Os Irmãos Dagobé”, “Fatalidade” e “A
Terceira Margem do Rio”, que dá nome ao filme, importante ter co-
nhecimento do que as obras retratam para posteriormente serem ex-
postos seus elos, semelhanças e dessemelhanças.

Resumo do conto “A Terceira Margem do Rio”

Este conto, assim como os demais que aqui serão apresentados


brevemente, pertence à coletânea Primeiras Estórias. Ele tem como
personagens o pai, a mãe, um filho, que atua dentro da história como
narrador personagem, outro filho e uma filha, nenhum dos persona-
gens apresenta nome.
A história conta que o pai manda fazer uma canoa e decide dei-
xar a família para viver dentro dela e no rio. Passou o resto da vida a
remar, sem nunca se distanciar da sua casa, mas também sem re-
tornar ao chão firme e ao ceio da família. Fazendo chuva ou sol, sua
morada passou a ser a canoa no meio das águas. Tal atitude do pai
gerou espanto aos familiares, amigos, e conhecidos, além de desper-
tar a curiosidade de todos, ninguém entendia o que ele estava fazen-
do e ficavam tentando decifrar os motivos que o levaram a se mudar
para dentro de uma canoa e se por dentro do rio.
Um dos filhos, que dentro da narrativa também assume o papel
do narrador, ficou levando comida para o pai, as escondidas da mãe,
colocava sempre no mesmo lugar, protegido da sol chuva e a salvo
de bicho comer.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 222


O tempo foi passando, a filha casou, teve um bebê e foi à beira do
rio junto aos demais familiares mostrar a criança ao pai. Chamaram
por ele, incansavelmente esperaram e ele não apareceu, todos cho-
raram.
A vida vai seguindo e o pai continua no rio, a filha acaba se mu-
dando com o marido e o filho, o irmão vai morar na cidade, e após
um tempo, a velhice chega à mãe que vai morar junto da filha, todos
acabam seguindo um rumo, exceto o narrador, que continua na casa,
levando uma vida reclusa e tentando entender os motivos da partida
do pai.
Com a idade chegando para o filho e já sentindo seus efeitos,
além de continuar pensando no pai, ele fica preocupado, pois seu pai
estava muito velho e permanecia na canoa e naquele mesmo trajeto
e rotina. Diante disso, o filho decide substituí-lo na canoa, vai à beira
do rio e propõe ao pai a substituição e o pai aceita e aparece reman-
do em direção a margem do rio, onde o filho se encontrava, ao ver
isso, o filho se apavora e se acovarda, fugindo e pedindo perdão ao
pai.

Resumo dos contos que compõem o filme “A Terceira


Margem do Rio”

“Sequência”

O conto “Sequência” é o décimo conto do livro “Primeiras Estó-


rias’’, de Guimarães Rosa e retrata a história de uma vaca fujona que
acaba levando o filho de seu comprador ao encontro de uma moça
pela qual se apaixona à primeira vista”.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 223


A vaca foge de quem a comprou e tenta retornar a seu local de
origem, seguindo por uma estrada em direção à fazenda “Pãodolhão”,
que pertencia ao Major Quitério. Quando a notícia da fuga da vaca
chega ao dono, Seo Rigério, um de seus filhos se dispõe a recuperar
o animal. O rapaz, para realizar a tarefa de capturar a vaca, entra em
uma perseguição trabalhosa.
O jovem passa um bom tempo cavalgando e o que consegue
são apenas informações do trajeto que o animal percorreu. Cansado,
faz uma pausa e em seguida começa a se questionar sobre a missão
que se propôs a encarar e pensa em desistir, só não desiste por ver-
gonha de retornar a fazenda do pai sem o animal, é nesse momento
que ele a vê de longe subindo um morro e retoma sua empreitada.
Eis então que a vaquinha entra em um rio e o rapaz, agora mais
obstinado, também se põe às águas com seu cavalo na tentativa de
recuperar o animal fugitivo. A luta continua até que a vaca adentra a
fazenda do Major Quitério, e, guiado pelos mugidos da vaca, o jovem
rapaz avista a casa grande e também uma das quatro moças filhas
do dono da casa, por quem se apaixonou.
Toda essa aventura, em busca da vaca fugitiva, fez o rapaz acre-
ditar que o real motivo dessa jornada, a sua persistência e luta era
encontrar a moça e casar-se com ela.

“A Menina De Lá”

Este conto de Guimaraes Rosa retrata a estória de Nininha. Uma


menina que mora com o pai, a quem chama de “Menino Pidão”, a
mãe, a quem Nininha deu o nome de “Menina Grande” e com uma tia:
“Tiantônia”.
A personagem tem quatro anos de idade e se difere muito das
outras crianças de sua idade por falar pouco e o pouco que fala soa

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 224


sem sentido algum para quem ouvia, a garota era muito reclusa e
também não se interessava por brinquedos, o que gerava muito es-
tranhamento aos pais.
Nininha era de fato especial, era capaz de realizar milagres, o pri-
meiro foi presenciado pela tia, as duas estavam sentadas quando Ni-
ninha pediu para que um sapo viesse até ela e logo em seguida sur-
giu uma rã. Depois a criança deseja uma pamonha de goiaba e logo
aparece uma senhora com a comida. A menina continuou a realizar
milagres, sua mãe adoeceu e nenhum medicamento aliviava sua dor,
Nininha por sua vez, curou a mãe tão somente com um abraço.
Diante dos milagres realizados pela garotinha, a família decidiu
manter segredo para evitar curiosos e interesseiros.
A seca chegou e o pai apelou para a menina milagreira, pediu
chuva e a menina fez chover, com a chuva veio um arco-íris e, ao vê-
-lo, a menina se alegrou, pulou e correu pelo quintal, coisa que nunca
fez e também diz algo para a Titônia que, ao ouvir, acaba dando-lhe
uma bronca. Após isso Nininha adoeceu e morreu.
A tristeza assolou a família e durante os preparativos do enterro,
a tia toma coragem para revelar o que Nininha havia dito antes da
bronca: A garota queria uma caixãozinho cor de rosa com enfeites
verdes brilhantes. O pai se recusou conceder o desejo da filha, en-
quanto a mãe consentiu atender ao pedido. Entretanto, eles nada
precisaram fazer, pois a menina mesmo se encarregou de fazer surgir
um caixão como o que ela desejou antes de vir a falecer.

“Os Irmãos Dagobé”

Este conto apresenta como personagens os quatro irmãos Dago-


bé que são eles: Damastor, que é o valentão e acaba sendo assassi-
nado, Dismundo, Doricão e o irmão caçula chamado de Derval, além
dos irmãos, aparece Liojorge, assassino de Damastor.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 225


O enredo desta narrativa começa já no velório do perverso irmão,
Damastor Dagobé, este foi assassinado por Liojorge, um homem tran-
quilo e honesto e que cometeu crime em legítima defesa após ser
ameaçado.
Todo o povo da cidade via aqueles irmãos com maus olhos, ti-
nham o defunto como o mais cruel do quarteto, diante disso, já es-
peravam que houvesse algum plano, por parte dos que restaram na
família, de vingar o assassinato. Para surpresa de todos, durante o ve-
lório, chega um recado de Liojorge, no qual dizia que o rapaz gostaria
de ir ao velório e enterro de Dmastor, e queria fazer isso como forma
de respeito e provar que seu ato não foi desonrado. Para surpresa
maior, os irmãos aceitam a presença de Liojorge, entretanto, ele só
poderia chegar após o fechamento do caixão e assim foi feito.
O rapaz chega e nada de vingança, se oferece para carregar o
caixão e assim acontece. Durante o translado do corpo, Liojorge car-
regando o caixão juntos dos irmãos daquele que ele tirou a vida, tro-
peça e quase derruba o corpo, diante da cena o povo teme a des-
graça. A narrativa alcança um momento de tensão e o narrador leva
o leitor a acreditar que os irmãos planejavam vingar a morte de Da-
mastor após o enterro do corpo, no entanto, mais uma surpresa: Os
irmãos agradecem e se despedem do povo que esteve no velório e
mostram-se piedosos quanto a Liojorge. Doricão fala para que ele se
recolha e reconhece que o irmão é quem era um “Diabo de danado” e
informa a todos o rumo que darão às suas vidas: eles estão de saída
para a cidade grande.

“Fatalidade”

Este conto tem como personagens principais José Centeralfe, um


trabalhador rural que passa a ser atormentado por Herculinão socó,
este por sua vez, tira a paz do trabalhador por estar cobiçando sua

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 226


esposa. E o outro personagem é o delegado, a quem o narrador sem-
pre se dirige como “Meu amigo”, e que no conto aparece como uma
figura que vive a citar intensamente filósofos gregos e que já foi poeta,
professor e ex-sargento de cavalaria.
O casal, para evitar problemas, se muda de um interior para o
outro, mas o perverso homem os segue, diante disso, decidem ir para
a cidade, acreditando que lá encontrão a lei, a paz e a segurança,
no entanto, continuam sendo perseguidos. Com, isso o pobre homem
vai pedir ajuda do delegado da cidade na intenção de obter apoio
da justiça dos homens. José Centeralfe conta ao delegado toda sua
história de fuga, e de sua admiração e vontade de agir dentro da lei.
No entanto, é induzido a outro tipo de justiça, o das próprias mãos, o
delegado o convence, apenas com o olhar a pegar as armas e assim
que saem, se deparam com o facínora Herculinão, que é assassinado
com dois tiro, um no peito e outro na cabeça.

Filme "A Terceira Margem do Rio"

O filme “A Terceira Margem do Rio”, de Nelson Pereira dos Santos,


é um longa-metragem, com duração de 1h 36min, foi lançado em 18
de fevereiro de 1994, tem em seu elenco os atores, Chico Dias, que in-
terpreta “Rigério”, Illya São Paulo, no papel de “Liojorge”, Barbara Bran-
dt, como “Nininha”, Denise Avarez, Lavoisier Albernaz, Andrade Junior,
Gilson Moura, Waldir Onofre, Vanja Orico, Maria Ribeiro e Jofre Soares.
A primeira cena do filme de Nelson Pereira dos Santos acontece
já no rio, o pai se despedindo da família e embarcando na canoa.
Logo após, aparecem os vizinhos e o padre fazendo uma oração e pe-
dindo para que o homem retorne ao ceio de sua família, porém este
não obtém sucesso.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 227


Os dias se seguem, e o filho passa a levar comida diariamente ao
pai que continua no rio, o garoto põe a comida em um local protegido
do sol e sereno e também a salvo dos bichos. Essa rotina e cuidado,
do filho para com o pai, se estendem ao longo dos anos.
Já adultos, a irmã, chamada de Rosário arruma um namorado,
chamado Rigério com quem e vai morar na cidade algum tempo de-
pois. Rigério sugere a que o cunhado, de nome Liojorge, também ar-
rume uma esposa e constitua uma família com ela, o rapaz diz que
não, que nunca arrumará esposa que é para não deixar o pai sozinho.
Entretanto, num dia em que a irmã estava indo viajar com o namora-
do, ela avista uma vaca perdida, uma vaca pitanga fujona, o que leva
Liojorge a conhecer uma moça por quem o rapaz se apaixonou à pri-
meira vista e com quem acaba se casando numa cerimônia de gran-
de festejo, o Rapaz leva sua esposa, Alva, a beira do rio para que o pai
a conheça, o pai não aparece e deixa a mãe de Liojorge aos prantos.
O tempo passa, Liojorge e Alva têm uma filha, Maria, chamada
por eles de Nininha, ela também é levada à beira do rio para que o pai
de Liojorge a conheça. Em uma das cenas, a menina já aparece gran-
dinha e o pai da menina relata a seu avô que ela cresceu, mas ainda
não fala nada e quando começou a falar, ninguém compreendia bem
o que falava, pareciam palavras soltas e frases sem sentido.
Algum tempo depois, Alva engravida novamente, mas tem com-
plicações e sente muitas dores, nesse mesmo período a família des-
cobre que a filha, Nininha, tem poderes mágicos, sendo capaz de re-
alizar desejos e milagres. Seu primeiro feito foi presenciado pela avó
paterna, a garota desejou que aparecesse um sapo e poucos segun-
dos depois, o desejo foi realizado. No mesmo momento, a menina de-
sejou uma pamonha de goiaba, e surgiu uma senhora vendendo. A
mãe de Nininha piora e a família apela para a garota, que conse-
gue curar a mãe com um abraço e após repetir algumas vezes a ex-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 228


pressão “Deixa, deixa”. A família tem certeza dos poderes da menina
quando ela realiza um desejo de sua mãe, que era comer um bolo de
goiaba, o que não era possível, segundo a sogra, devido à escassez
de chuva, só que nininha fez surgir na frente de sua mãe o bolo por ela
desejado. Com medo de julgamentos e também de aproveitadores, a
família decide deixar em segredo os dons da criança.
A seca se torna pior, e compromete a produção da roça da famí-
lia o que leva Alva a sugerir a Liogorje a partida deles para a cidade,
ele por sua vez não concorda, pois não quer deixar o pai, então tem a
ideia de pedir à Nininha que faça chover e promete a esposa que se a
garota não for capaz de realizar este desejo, a família irá partir. A ga-
rotinha, de início, não quis atender ao pedido do pai, mas é convenci-
da por ele com o argumento de que era para o bem de Alva, para ela
não voltasse a adoecer.
Liojorge, no dia em que sua esposa se recuperou, foi todo feliz a
beira do rio depositar comida para seu pai e conta sobre a recupera-
ção de Alva. Durante sua conversa com o pai, viu passar pelo rio uma
pequena embarcação com homens desconhecidos. No dia em que
Nininha fez chover, estes homens reapareceram e enquanto brincava
na chuva, a garota os avistou e assustada correu para casa, com isso
um dos homens a seguiu, ao chegar a casa, se depara com Alva e fica
interessado na moça, o que não agrada a Liorjorge, mas que o atende
e o serve com educação.
Temendo um grande mal a sua esposa, Liojorge deixa a casa
onde morava com sua família vai para a casa dos pais de Alva, não
tarda em os homens aparecerem por lá, diante disso o pai de Alva su-
gere que eles mudem para a cidade grande, e assim eles fazem, vão
morar junto de Rosário e Rogério. Entretanto assim que chegam à ci-
dade, dão de cara com os homens que continuam a cercar a família.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 229


Acontece um crime próximo à casa de Rosário e Nininha senta-se
à porta, sem que ninguém da família perceba, para observar as pes-
soas e as crianças que brincam na rua, enquanto come um bombom,
que fez surgir da televisão após um pedido da sua avó. Um menino se
aproxima dela e pede um pedaço, a pequena entrega ao garoto duas
unidades da guloseima. A avó da menina dormia e quando acordou e
sentiu falta dela, então começou a perguntar a todos por ela, quando
a encontraram, ela estava distribuindo bombom a todas as crianças
da rua, o que chamou atenção de todas as pessoas que se aglome-
raram na frente da casa e inclusive dos homens malvados de quem a
família estava fugindo.
Uma grande confusão se formou, os homens maus atiraram para
cima e deram ordem de prisão a família. Tudo isso fez a avó desejar
estar em sua casa no interior. Nininha, em sua inocência, fez a casa de
sua Tia Rosário se transformar na casa simples da avó, tudo isso dian-
te de todas as pessoas que ali se encontravam e partir daí a menina
foi notícia em todos os jornais e passou a ser chamada de santinha.
É nesta cena que o nome dos homens que atormentam a família
é falado, “Irmãos Dagobé”. Eles haviam sido expulsos da comunidade
por serem homens maus, mas, por decisão judicial, estavam de volta
e “mandavam no pedaço”, entretanto com a descoberta dos poderes
de Nininha eles ficaram intimidados. A família da menina começa a
receber as pessoas que vão fazer pedidos à milagreira, muitas delas
levam presentes para oferecer a menina e os perversos Dagobé se
aproveitam para cobrar dinheiro das pessoas na entrada do assen-
tamento e é também nesse momento que o irmão mais velho, que
quer ficar com Alva, arma um plano contra Liojorge. O facínora es-
conde drogas em um embrulho e pede para um homem entregar a
Liojorge, que poucos passos a diante é parado pela polícia que abre o
embrulho e encontra as drogas e acaba prendendo o mocinho.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 230


Com Liojorge na cadeia, o terrível Dagobé invade a casa da famí-
lia e leva Alva, mesmo com a multidão que esperava para ser aten-
dida por Nininha, ele não se intimida. Na prisão, o pai de Nininha faz
amizade com os outros presos e um deles diz que pode ajudar ele a
dar um jeito no Dagobé, ele tem um amigo que pode resolver a si-
tuação, em troca dessa ajuda, pede ao mocinho que ele pague sua
fiança. Ele aceita e ao conseguir a liberdade fala com Rigério que con-
segue, por meio do advogado, libertar o companheiro de cela, Ao sair
da cadeia, o pai de Nininha descobre que além da esposa estar em
posse do maldoso homem, menina não quer mais fazer milagres.
O marido de Alva vai junto com o homem que conheceu na prisão
até o “amigo” dele, chegando lá encontra um senhor já de meia idade,
que faz algumas perguntas e lhe diz algumas coisas, e diz conhecer
o irmão Dagobé, que agora além de sobrenome, tem nome também:
“Hercilinão Dagobé”. Liojorge diz ao homem que está em busca da
lei e da justiça, esse por sua vez, apenas direciona repetidas vezes o
olhar para algumas armas que tem na parede e em seguida oferece
uma arma e pergunta se ele quer um café ou uma cachacinha. O pai
de santinha, pega a arma e diz que aceita depois.
Liojorge armado vai à casa de Herculinão e chega chamando o
nome da esposa, quem sai é o facínora, também armado, mas eis
que o “amigo” está de tocaia e antes que qualquer um dos dois ati-
rasse ele derruba o tenebroso Dagobé. Com isso Liojorge resgata sua
esposa.
Durante o velório de Herculinão, O protagonista manda um reca-
do aos irmãos, de que matou por respeito e quer se apresentar desar-
mado como declaração de sua falta de culpa e se oferece para car-
regar o caixão, os Dagobé aceitam, mas com a condição de que ele
vá somente após o fechamento do caixão, e assim acontece. O povo,
entretanto, fala pelos cantos que os irmãos vão acabar com a vida de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 231


Liojorge após o caixão ser coberto. Mas, o oposto acontece, os irmãos
dizem para ele ir para casa e concordam que o irmão era um diabo
de danado, surpreendendo a todos ali presente e encerram avisando
a partida deles para longe.
Resolvido o problema de Herculinão, volta-se para o de Nininha
que continua sem fazer os milagres e gera revolta no povo que espera
para ser atendido por ela. A menina começa a chorar diante do alvo-
roço de toda aquela gente e logo uma tempestade de areia dispersa
todos, ela sai a correr e a avó a coloca nos braços e a repreende por
algo que diz em seu ouvido.
Enquanto assistia passar pela rua uma festa que lembra o car-
naval, Nininha morre. Durante os preparativos para o velório, a avó
revela que o caixão deve ser cor de rosa e enfeites verdes brilhantes,
pois foi a garota quem pediu isso, e por isso a avó alguns dias havia
dado uma bronca na pequena. Diante da Revelação, Liojorge diz que
não fará isso, não irá ajudar a menina a morrer, a mãe, por sua vez, diz
que a vontade desse ser atendida e ao voltar o olhar em direção ao
corpo da menina, vê que ela mesma já se encarregou de fazer surgir
o caixão na cor e com os detalhes desejados. O caixão sai da casa da
família e vai passando pelas mãos da multidão que estava do lado
de fora e tudo isso acontece aos sons dos batuques de tambor que
Nininha apreciava quando faleceu.
A cena final do filme retorna ao cenário inicial, Liojorge retorna ao
rio e fala com o pai, pede o lugar do pai na canoa, ao ouvir de longe o
barulho do remo na água, ele entra no rio e avista o pai vindo em sua
direção, isso o assusta, ele entra em desespero e ele foge.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 232


Entre intertextualidade e cinema: Nelson Pereira dos
Santos faz a ressignificação do conto “A Terceira Margem
do Rio”, de Guimarães Rosa

Este capitulo se destina a parte de análise deste trabalho, ele


veio logo após o resumo das obras que serão analisadas, por moti-
vos de que, como dito anteriormente, a compreensão da análise da
relação intertextual entre as obras só é compreendida por completo
tendo conhecimento do que cada uma aborda.
Para entender a ressignificação que Nelson Pereira dos Santos fez
do conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa será exposta
a relação de semelhança e dessemelhança entre as obras, qual tipo
de intertextualidade foi utilizada por ele e a conexão do filme com os
demais contos de Rosa que também aparecem na produção de Nel-
son Pereira dos Santos.
Tanto no conto quanto no filme o pai manda fazer uma canoa
e passa a viver nela dentro do rio, a família fica sem entender e pro-
curando explicações para aquela estranha atitude do patriarca da
família. Assim como no conto, no filme o filho tem uma forte ligação
com o pai, sofre muito por não entender aquela situação e se dedica
a levar comida diariamente à beira do rio e também, depois de um
tempo pede para substituir o pai na canoa e ao ver o pai vindo em
sua direção, se amedronta e foge, entretanto, no conto o filho nunca
sai daquele lugar, enquanto no filme ele vai embora para a cidade
grande e retorna somente no final.
A narrativa fílmica difere em vários aspectos do conto de Guima-
rães, é possível afirmar que há mais dessemelhanças, do que seme-
lhanças entre as obras, por exemplo, no conto os personagens não
apresentam nomes, a família é composta pela mãe, o pai e por 03 fi-
lhos, sendo 02 do sexo masculino e um do feminino. A filha casa e tem

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 233


uma criança e muda para a cidade, o que um tempo depois a mãe
também faz, assim como o filho mais velho, permanecendo apenas
um dos filhos sozinho. Já na adaptação para o cinema, os persona-
gens apresentam nomes, a família é composta por dois filhos apenas.
A filha casa, mas não tem bebê, e quem acaba tendo é o irmão que
além de casar e ter filho acaba mudando pra cidade também.
O motivo pelo qual as duas obras apresentam tantos pontos de
diferença, se deve ao fato de que é comum que as adaptações se
modifiquem quando deixam de ser texto escrito e passa a ser fílmico.
Se tratando especificamente desta adaptação, isso ocorreu porque
o cineasta Nelson Pereira dos Santos propositalmente ressinificou o
enredo fazendo uso da intertextualidade, mais especificamente a de-
nominada “Pastiche”, na qual, para a construção do intertexto, o autor
faz uma espécie de colcha de retalhos, ou seja, ele faz um recorte de
vários textos ou gêneros. No caso do filme, podemos afirmar isso de-
vido ao fato de ter sido encontrado feixes de outros contos de Guima-
rães Rosa, como apresentado no capítulo anterior.
Quem leu o conto de Guimarães “A terceira Margem do Rio” e for
assistir ao filme homônimo de Nelson Pereira sem ter acesso a uma
sinopse, resenha ou resumo, perceberá poucos minutos após o início
do longo que a adaptação é um intertexto, para compreender que
essa intertextualidade acontece por meio da ‘’Pastiche” será neces-
sário conhecer também os outros contos que aparecem difundidos
no enredo do filme, claro que algumas cenas falas e situações dentro
da narrativa, são puramente do cineasta, afinal é necessário a exis-
tência delas para que o texto apresentasse coerência.
Na ressignificação de Nelson Pereira, os personagens e os contos
se misturam. A narrativa começa com o pai se despedindo da família,
mas já se nota a diferença no número de integrantes que a consti-
tuem, ainda nesse trecho, vê-se que a filha tem nome, chama-se Ro-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 234


sário, o marido dela chama-se Rigério, mesmo nome do personagem
do conto “Sequencia”, estes dois personagens aparecem constante-
mente na narrativa fílmica e são importantes para o desenrolar dela.
Representações do conto “Sequencia” é que se sucedem na nar-
rativa fílmica, quando o filho que, no filme se chama Liojorje, mesmo
nome mocinho do conto “Os Irmãos Dagobbé”, persegue a vaca pin-
tada e acaba conhecendo “Alva” e casando com ela e tendo a fi-
lha “Maria” a quem ele chama de “Ninininha”. Neste ponto do filme,
já é perceptível que outro conto se misturou a narrativa “A Menina de
Lá”, que é o conto da garotinha que faz milagres. Mais adiante temos
cenas que nos remetem tanto ao conto “Os irmão Dagobé” quanto
ao conto “Fatalidade”, que é quando os homens começam a cobiçar
Alva e fazem a família mudar de cidade.
Durante boa parte do filme, a narrativa se desenrola a partir da
fusão desses contos: “Irmãos Dagobé” e “A Menina de La” e “Fatalida-
de”, até que Liojorge é preso e na cadeia conhece um moço que tem
um “AMIGO” que ajudará ele a salvar sua esposa, é nesse momento
que na narrativa do cineasta há uma fusão marcante ente “Fatalida-
de” e “ Os irmãos Dagobé”, pois o nome do velentão é a junção dos
nomes do personagem malvado de ambos os contos “Herculinão Da-
gobé” e assim como no conto, no filme a vida do valentão é ceifada
com a ajuda do “Amigo”. A morte do valentão encerra o feixe do conto
“Fatalidade” e faz o filme se voltar para o enredo do conto “Os Irmãos
Dagobé”, pois é nele que acontece uma narrativa cheia de surpre-
sas, na qual há uma tensão muito grande e que todos acham que irá
culminar na morte do mocinho, a partir de um plano de vingança por
parte dos irmãos, mas acontece o oposto, o perdão e a compreensão.
O texto tem seus minutos finais, o enredo de a “Menina de lá”
em foco, a filha de Liojorge morre, mas na cena podemos destacar
que acontece algo que em nenhum dos contos é retratado, ela mor-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 235


re vendo um festeja que lembra o carnaval e seu corpo passa pelas
mãos da multidão ainda ao som do batuque do festejo. Dentre algu-
mas cenas que nos levam a perceber que é puramente criação de
Nelson Pereira, esta é uma das que mais chama atenção, pois ela não
aparenta ter sido colocada para unir os contos, o que leva a algumas
interpretações, e em se tratando do referido cineasta, ela pode repre-
sentar uma das maiores manifestações culturais brasileiras, que é o
carnaval.
O desfecho do filme ocorre com o retorno ao conto “A Terceira
Margem do Rio”. O filho pede para substituir o pai e quando percebe
que ele está a se aproximar o descendente se assusta e foge.
O que pode aqui ser colocado é que, o cineasta Nelson Pereira dos
Santos, fez muito mais que uma adaptação e uma simples ressigni-
ficação do conto, ele foi capaz de fundir outros enredos que constam
no livro “ Primeiras Estórias” e que são distintos do enredo do conto
que dá nome ao filme, de modo coerente e coeso, pois apresenta
uma sequência bem organizada de ideias, e acabou resultando em
um novo conto, mostrando não somente sua capacidade de produ-
ção artística, mas também a de Guimarães Rosa que reuniu os cincos
contos em um mesmo livro.

Considerações finais

Diante do que foi exposto aqui, ficam comprovados os conceitos


de intertextualidade, assim como a capacidade de releitura e recria-
ção artística e adaptação do texto escrito para o filme que, além de
mostrar como as obras literárias são capazes de permanecer vivas por
muito tempo de forma independente, também podem ser eternizadas
e rememoradas por meio das adaptações fílmicas e desse modo tam-
bém conseguem agradar os amantes das outras áreas artísticas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 236


Referências

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mia.org.br/academicos/joao-guimaraes-rosa/biografia. Acesso em 30
jun. 2018.
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País. Disponível em: httpss://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/23/cultu-
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BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: proble-
mas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tra-
dução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, com a colaboração de Lucia
Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 3ª ed. São Paulo: Hucitec,
1986.
FIORIN, José Luiz (Orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno
de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. (Coleção Ensaios de Cultura).
JENNY, Laurent. “A estratégia da forma”. In: Intertextualidades. Coimbra:
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LIMA, J. D. 7 produções essenciais para entender o cinema de Nelson Pe-
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MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de Linguística Para o Texto Literário.
São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 100; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY,
Maria Zilda, Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 34-36.
Nelson Pereira dos Santos. Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: ht-
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-santos. Acesso em 30 jun. 2018.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 237


CAPÍTULO 12

A monumentalização da literatura:
a crônica e a memória como
ferramenta literária no debate
entre história e ficção
May Fran Selares Facundes

DOI: 10.52788/9786589932369.1-12
Introdução

A proposta deste capítulo é mostrar como a literatura pode se


enquadrar na construção da pesquisa e narrativa histórica, sendo um
desafio descrever sobre esse eixo temático, em uma projeção da lite-
ratura comparada.
Assim sendo, a partir do momento que busco relacionar a inter-
-relação da história com a literatura, proponho aprofundar tais dis-
cussões: a cientificidade da narrativa histórica pelo viés da literatura,
a veracidade do historiador em construir as suas pesquisas, apresen-
tando os embates dentro do campo literário.
O que elenco na temática do capítulo como “monumentaliza-
ção da literatura”, partindo do pressuposto que assim como os monu-
mentos tem a funcionalidade de operacionalizar signos e sentidos e
deve ser analisado intrinsecamente para além da sua materialidade,
a literatura assumi a categoria de documento, passando a ser carac-
terizada como “espelhos deformantes, despertando novos olhares e
ampliar a perspectiva historiográfica.” (GINZBURG 2002, p. 44).
Logo após entendermos qual o papel da literatura e sua relevân-
cia para o oficio do historiador, abordarei a crônica na perspectiva
documental, sendo que desde o momento que os historiadores do An-
nales ampliaram a perspectiva de fazer, entender e produzir história
teve-se a necessidade de selecionar, criar novos métodos e arranjos
no manejo das pesquisas. Associando a crônica a essa nova perspec-
tiva de pesquisa em que Le Goff (1990) denomina como monumento
/documento, “um artefato que uma sociedade o fabricou, tendo em
vista as relações de forças que detinham o poder”. Destarte, Ginzburg
corrobora tais questionamentos para a construção da história, tendo
a retórica como figura de linguagem em uma aproximação com a
prova na urdidura da historiografia, sabendo que “nem todas as cul-
turas dispõe do mesmo poder” (GINZBURG 2002, p. 134).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 239


Diante de tal afirmação, também abordarei a memória como
produção do conhecimento histórico, uma vez que está do meu obje-
to de estudo, por se tratar de sujeitos que vivenciaram determinados
acontecimentos.
Partindo do pressuposto de que a memória é subjetiva e coletiva,
a pesquisa em andamento busca transcrever sobre o que os sujeitos
“rememoraram” / “ressignificam” sobre a construção da ponte São
Francisco ou José Sarney, então estaremos produzindo uma narrativa
histórica verossímil ou ficcionista? Uma vez que a construção da so-
ciedade grega, os próprios historiadores se debruçaram na memória,
quando Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: ao
contar os acontecimentos passados, conserva a memória, resgatan-
do o passado (GAGNEBIN 1997, p. 17 apud SMOLKA, 2000, p. 178).
Nesse sentido o próprio Heródoto e Tucídides aperfeiçoaram téc-
nicas ao escrever a história pelo viés da memória, enriquecendo o
campo literário, sendo assim estariam produzindo ficção?

Da historiografia a interconexão entre história e literatura


na construção contemporânea: cientificidade ou ficção?

O historiador em seu oficio, constrói em sua narrativa histórica


tendo em seu bojo, a objetividade, em que a história enquanto ciên-
cia no século XIX, assumia a funcionalidade da legitimidade com os
acontecimentos históricos tal qual ocorreram, dando evidencia aos
grandes homens e vencedores. Sendo assim, o historiador não tinha
a possibilidade em ampliar seu horizonte de analise para além dos
indícios documentais, incorrendo em produzir uma narrativa fictícia.
A Priore com a escola dos Annales, na segunda metade do sé-
culo XX, ampliou-se o leque de possibilidades em analisar, construir
e entender o contexto histórico, através da história problema, aproxi-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 240


mando o historiador às várias maneiras de entender a relação entre
os sujeitos, o tempo e o espaço.
A historiografia no que concerne a seus métodos e técnicas na
construção da pesquisa histórica, no decorrer dos anos, buscou en-
quadrar-se a novas possibilidades, mudanças de perspectivas, atra-
vés de abordagens interdisciplinar.
Nessa perspectiva, a inserção da literatura como ferramenta nos
estudos históricos também passou por vários embates teóricos no
campo de atuação, pois pensava-se que a utilização de poemas, crô-
nicas e outras fontes literárias estariam carregadas de subjetividade,
ótica de ilusão, porém, como veremos mais a frente, o imaginário que
é construído em determinado período serve como “objeto interpre-
tativo” para o historiador, não sendo uma tarefa simplista”, conforme
nos diz (DARTON, 1986 apud MARTINS, 2015, p. 226), que “as fontes lite-
rárias, são objetos de estudo complexos para o trabalho historiográfi-
co”, porém o historiador no decorrer de seus desafios , deve olhar para
a fonte literária, considerando a pluralidade linguística, a subjetivida-
de dos sujeitos que aparecem nas fontes, porém, a literatura passa
ser a representação da realidade.
Diante disso, podemos nos perguntar: qual o contexto sócio-his-
tórico apresentado nas fontes literárias? Será que o historiador deixa
de exercer o seu oficio diante de tais imbricações tendo a literatura
como fonte? Eis a questão: não devemos expor resoluções simplistas
aos questionamentos levantados acima, pois há aqueles que comun-
gam que o trabalho do historiador deve assumir uma sistematização
cientifica, outros utilizam-se dos elementos literários para produzir a
narrativa histórica sem perder a sua legitimidade , porque “toda fonte
pode ser legitima na medida que contribua para o entendimento do
objeto específico”, lembrando que para essa definição sobre as fon-
tes ocorreram vários paradigmas, embates na configuração teórica
da historiografia (FERREIRA 2013, p. 80).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 241


De acordo com Peter Burke (1992, p. 340 apud MARTINS, 2015),

Os historiadores podem, então, aprender algo com as técnicas narrativas de ro-


mancistas, mas não o suficiente para resolver todos os seus “problemas literá-
rios”, já que os historiadores não são livres para inventar ações e pensamentos
para personagens ou ainda, não são sequer livres para inventar personagens,
“[...] além de ser improvável que sejam capazes de condensar os problemas de
uma época na narrativa sobre uma família, como frequentemente o fizeram os
romancistas” (BURKE, 1992, p. 340).

O autor elenca que o uso do romance dentro da narrativa histó-


rica, apesar de seus limites, pode se enquadrar como mecanismo
no universo de pesquisa do historiador, uma vez que a história deve
assumir o seu compromisso de “veracidade histórica”, como nos diz
Ferreira (2013,p.74) “o historiador não deve se deixar seduzir facilmen-
te por tais rótulos". Nessa perspectiva, é necessário interrogar a inten-
cionalidade da fonte literária, o contexto de sua produção e a quem
se destina.
Conforme Ferreira (2013, p. 70), “a literatura não é apenas uma
questão de gosto: é uma questão política". Isso nos propõe analisar
qual a funcionalidade e o valor que a literatura assume em contextos
socioculturais diversos, como também a escolha dos pesquisadores
ou instituições.
Tendo como base o fragmento acima, o trabalho literário, em
seus diferentes estilos parte da subjetividade do historiador, uma vez
que alguns selecionam somente pelo seu valor estético, sem levar
em consideração o objeto de análise, métodos, e problematizar o que
deve ser investigado, não tendo uma aplicabilidade conceitual ou
sistemática politicamente correta, como critério de enquadramento
na escrita da história. Sendo assim, a narrativa literária está constan-
temente buscando seu espaço na historiografia respeitando as suas
particularidades. Pois, de acordo com Ferreira (2013, p. 80), pressupõe
algumas categorias a serem levadas em consideração:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 242


quem eram os escritores selecionados para a pesquisa, como se relacionavam
com entre os letrados e com outros segmentos sociais da época? Que papeis a
arte a literatura então desempenhavam? Em que realidade social, econômica,
politica e cultural eles viviam, como e porque se lançaram a criação ficcional
.Dentre as disponíveis em seu tempo, a que formas de construção narrativa
recorrem e por que ?que significados atribuíram a literatura e que significados
históricos podem ser lidos em suas obras ? (...) etc ( FERREIRA 2013, p. 80).

Como foi comentado anteriormente, não existe receita homogê-


nea para que os pesquisadores possam inserir a literatura em suas
dissertações, porém tal reflexão os ajudará perceber como o trabalho
literário, a rigor, assume panorama de responsabilidade na produção
bibliográfica, alcançando a todos os sujeitos da sociedade.
O desafio do historiador, ao se debruçar a partir da literatura, par-
te de um questionamento maior: “qual relação entre história e litera-
tura?", sendo um grande desafio tomar essa escolha, não meramente
inconstante ou inflexível, mas sim utiliza-se das fontes literárias sa-
bendo que “todos os textos, discursos e linguagens, assemelham-se
no passado ou equivalem ao presente” (FERREIRA, 2013, p. 66-80).
No que tange ao historiador e suas fontes, é um trabalho com-
plexo e árduo, pois quando operacionaliza as fontes rompe com a
conjuntura tradicional, porém as fontes no trabalho do historiador são
“espelhos deformantes, com a capacidade de ter novos olhares, além
do que está exposto, tendo a necessidade de ser reconstruído para
ampliar a perspectiva historiográfica” (GINZBURG 2002, p. 44).
Nessa perspectiva, Sapiro (2016, p. 47), em sua obra “a sociologia
da literatura”, diz-nos que os estudos ou “paradigmas de rede” propõe
romper com a singularidade do criador”. Nesse sentido, a literatura
busca se ampliar nos meandros do social, na perspectiva simbólica,
interacionista e dinâmica. Isso nos ajuda a pensar qual a intenciona-
lidade ou controle político, institucional e ideológico que condiciona o
fazer literário, uma vez que a produção e circulação das obras devem
alcançar o mundo dos leitores no geral, sem priorizar categorias eli-
tistas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 243


Diante disso, temos a necessidade de enquadrar a literatura ao
universo social, de forma dialógica, pois “o fazer literário e o fazer so-
cial” contribuem para o que a autora vai denominar “sociologia da
literatura”. O autor constrói sua narrativa, partindo de influências po-
líticas e também subjetivas; a circulação da sua produção, e por úl-
timo a recepção, o efeito que a obra terá a partir dos habitus que
são “princípios geradores de práticas distintas e distintivas” e cam-
po, criando uma fenomenologia social, na lógica da” interiorização do
espaço dos possíveis sendo uma das condições de possibilidade do
conhecimento das regras do jogo e da dimensão reflexiva, o que ca-
racteriza a autonomia relativa do campo” (BOURDIEU 1996 p. 22).
Em relação ao teor de criticidade que a obra terá na instancias
social, dependerá da variedade linguística, para a apropriação no
mundo dos leitores, dependendo do público e da acessibilidade e ca-
pacidade interpretativa em decifrar signos e os elementos da lingua-
gem, sendo fácil para alguns. Em contrapartida, Chartier (1991, p. 180)
nos esclarece que:

A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpre-
tações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas
específicas que as produzem. Assim, voltar à atenção para as condições e os
processos que, muito concretamente, sustentam as operações de produção
do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também) é reconhe-
cer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as ideias
são desencarnadas, e, contra os pensamentos do universal, que as categorias
dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser
construídas na descontinuidade das trajetórias históricas (CHARTIER 1991, p. 180).

O autor supracitado explica que as operações que produzem sen-


tido abarcam uma dimensão mais ampla, pois devem ser levados em
consideração os diferentes lugares, públicos, internalização e a realida-
de cultural dos indivíduos, desprendendo-se de modelos universalizas-
tes e os significados que são atribuídos diante do que denominamos
de “capacidade crítica e hermenêutica a partir da releitura de mundo”.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 244


Em contrapartida, existe uma relação sincrônica e diacrônica, en-
tre as obras engendrada no mundo dos leitores, frente aos desafios
dos que produzem literatura, tendo a necessidade de serem reconhe-
cidos enquanto produtores artísticos. Pois, os “paradigmas metodoló-
gico das teorias da história” não obstante, entra na disputa de inte-
resses em dar relevância a literatura, até no campo dos historiadores
pós-modernos.
Conforme saliente Bernard Lahire (2018), em sua obra “o jogo li-
terário e a condição de escritor em regime de mercado” percebemos
que o escritor se debruça pra ter reconhecimento e valorização no
campo dos leitores e as condições necessárias para a circulação do
que é produzindo, diante das disputas de poder que controla, prioriza
e seleciona o modo de produção.
Nessa perspectiva, esse tópico vem discutindo sobre o espaço
que a crônica enquanto literatura tem nas narrativas da história e o
olhar que o historiador deve ter em enveredar dentro de um campo
de produção da literatura, não inviabilizando de utilizá-la como fer-
ramenta de análise no contexto social, cultural, político e econômico.
Pois, “a crônica é acusada injustamente como um desdobramento
marginal ou periférico do fazer literário, dentro da operacionalização
do fazer literário” (PORTELLA 1985, p. 156-157).

A crônica na perspectiva documento/monumento

No contexto do século XXI, ainda existe a necessidade de enqua-


drar o uso de tipologias literárias nas pesquisas, mas não de qualquer
maneira, sendo necessário utilizar técnicas e metodologias sem criar
posicionamentos díspares, ou seja, através de documentos literários,
poesias, romances ou crônicas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 245


Na tentativa de usar a literatura, dentre as suas tipologias, espe-
cificamente a crônica, para perceber como a narrativa pode ter um
teor histórico, tendo como referência o uso dessa fonte importantís-
sima no itinerário da pesquisa. Conforme o Jornal Imparcial do dia 01
de janeiro de 1971:

O meu ano 70– José Sarney

1970 marcou a minha vida


Tenho uma cisma com os anos terminado em zero. Eles são sempre difíceis.
Afinal, nasci em ano terminado em zero, os anos trinta. Mas, nada na vida é fá-
cil e estes anos, embora amargados, encerraram vitórias acentuadas. Não foi
fácil que o meu companheiro de 30 anos, nascido também neste signo, James
Lowell pisou pela primeira vez a superfície da lua?
1970 também não foi fácil. Cheguei aos quarenta anos. Conheci o travo dos
ressentimentos, ingratidões, caracteres, sórdido, a alma humana em profun-
deza que eu nunca imaginara. Vi a mão que 'afaga e apedreja' e senti profun-
damente, em todo o seu simbolismo, aquela pergunta do profeta Jeremias:

- Que vês tu?

- Um galho de amendoeira.

É o fim da era biológica começada com o fulgor da juventude. É a morte desse


sol quente da mocidade, das tempestades de energia, para o início do calor
permanente do amadurecimento total e do domínio absoluto de mim mesmo.
Conheci o poder e “o prover”, como dizia Summer Wells. Sei hoje olha-lo dos
dois lados do Rio. Senti e agradeci a Deus, como verdade, daquele poder que
Ele deu de
dizer:

'- Faça-se a Ponte de São Francisco': E ela se fez caminhões e gentes,


constroem novas moradas e nova vida. E ela se fez.

A TV Educativa foi inaugurada. É um marco pioneiro no Brasil. Vi as luzes da


Boa Esperança, que brilharam nos meus olhos em noites que eu não dormia,
serem acesas. Senti que no seu calor havia um pouco do meu suor. (...) ( Jor-
nal Imparcial 01/01/1971).

A crônica acima faz referência ao contexto histórico do Mara-


nhão, que remete o fim do governo de José Sarney, relatando sobre as
obras e programas que foram executados, dentre esses, a construção
da Ponte titulada popularmente como ponte São Francisco.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 246


É pertinente entendermos a crônica narrada por José Sarney, que
faz alusão ao cotidiano, à sensação de lutas, angustias e vitórias. Não
obstante, a crônica também retrata informações do contexto narrado,
que assume sentido estereotipado no mundo da produção e dos lei-
tores. Conforme (PORTELLA, 1985, p. 156-157 apud DUTRA 2012, p. 2814).

O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobra-


mento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quan-
do não o é, não é por culpa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aque-
le que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do
cotidiano, este se perde no dia a dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os
outros, esses transcendem e permanecem (PORTELLA, 1985, p. 156-157).

Diante de tal dicotomia, poderemos inferir a intencionalidade que


o governador José Sarney, através da crônica, ao narrar os reflexos do
período em que estava no governo, pois percebemos que o sentido
da produção se enquadra nos padrões de pessoas letradas majori-
tariamente ao público elitista da época. Porém, existiam pessoas que
não tinham as informações dos jornais, pois não sabiam ler.
A crônica também está inserida no contexto da modernidade, foi
ganhando força e expressividade, não obstante, a outros gêneros li-
terários. De acordo com (PORTELLA, 1985, p. 156-157 apud DUTRA 2012,
p. 2815).

Qualquer historiador da fase contemporânea da literatura brasileira que des-


conheça a crônica como um fato literário peculiar desse período, estará sujeito
a nos apresentar apenas uma visão mutilada ou incompleta. A crônica, que
invadiu ou foi invadida pela poesia, e se instalou no coloquial modernista, mul-
tiplicando a sua força expressiva, que, mais do que tudo, desenhou o seu pró-
prio perfil autônomo, é, em face mesmo daquela ambiguidade congênita, uma
manifestação superlativa de literatura (PORTELLA, 1985, p. 156-157 apud DUTRA
2012, p. 2815).

É importante esclarecer que, ao utilizar a crônica como fonte, a


mesma não será analisada sem estar associada aos campos teó-
ricos, pois, como nos salienta Chartier (2009, p. 29) sobre as “forças

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 247


das representações do passado proposta pelo viés da literatura”, com
base nessa afirmação, a crônica é uma ferramenta que está imbuída
de significados, onde o historiador tem a funcionalidade de inferir o
que está por trás da narrativa”.
Nessa perspectiva, Ginzburg (2002), em sua obra "Relações de
força: história, retórica e prova", diz respeito à veracidade da do-
cumentação, quando faz alusão sobre “Lorenzo Valla e a doação a
Constantino”, questionando a autenticidade da carta de doação de
Constantino a Igreja romana após sua conversão ao cristianismo, po-
rém, de acordo com Quintiliano, o documento carece de verossimi-
lhança; é contrariado por outros documentos, inclui dados cronológi-
cos contraditórios”,
A partir dessas considerações, proponho tais discussões: a crô-
nica como documento/Monumento, uma vez que essa monumen-
talização deve ser analisada pelo sentido simbólico, assumindo uma
“alegoria dentro da literatura”, atrelado à ponte do São Francisco que,
pela perspectiva simbólica, é o referencial para a construção de dis-
curso, experiências dos sujeitos.
Le Goff (1990, p. 545) nos diz que o documento como monumento
é “produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força
que o detinham. Sendo assim, a crônica de José Sarney deve ser mo-
numentalizada no sentido de o historiador analisar categoricamente
a intenção de quem o produziu, pois “as fontes históricas não falam
sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada.”
O historiador em relação as suas fontes, que nesse caso é a crô-
nica amplia a possibilidade em descrever o que está além, fazendo a
inferência das relações de forças que encadeiam o que é produzido e
extraído, que deve ser sistematizado, reorganizado em todo processo
da pesquisa, pois já salientava Marc Bloch, que “devemos ler a história
para trás com cautela” (GINZBURG 2002, p. 115).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 248


O estudo da memória no campo literário

Tendo como base a memória no campo literário, tomarei como


referência a obra de Ginzburg (2002), especificamente o capítulo titu-
lado “As vozes do outro: uma revolta indígena nas ilhas de Marianas",
traz em discussão sobre como o discurso de Le Gobien se apropria
do discurso do indígena Hurão, mesmo diante do choque de culturas
apresentados pelo autor. O que nos chama atenção é que as experi-
ências dos sujeitos também devem ser analisadas, pois o discurso1, a
retórica, assume a funcionalidade histórica através da narrativa.
Dessa maneira, é perceptível que os sujeitos que participaram da
inauguração da ponte construíram em sua memória2 cada detalhe
dos acontecimentos, porém de maneira diversa e apreendendo da-
quele acontecimento histórico diversos significados, onde (SILVA, 2015,
p. 14) associa a memória e a fantasia.
Mediante o Jornal Imparcial, no 14/02/1970, é perceptível perce-
bermos diversas relações sociais na inauguração da ponte São Fran-
cisco/José Sarney:

Toda a população de São Luís deverá estar presente a este acontecimento im-
portante do Governo Estadual, prevendo-se ainda, acontecer outra grande ba-
talha de confete, com a presença de todas as escolas samba, blocos, tribos e
maracatus. O Rei Momo e sua corte real bem como os cronistas carnavalescos
se farão presentes” (IMPARCIAL, 14 de fevereiro de 1970).

A partir dessa projeção, referenciada pela obra de Smolka, é va-


lido ressaltar que a autora analisa como a memória passa a ser in-
terpretada e construída a partir de várias áreas do conhecimento,

1 A palavra discurso nesse contexto está associada como ornamentos da retórica, tendo a
funcionalidade de captar a realidade, pois o historiador parte de várias perspectivas de analise, pois
para Cícero a retórica não possui autenticidade. (GINZBURG 2002,74-75,86-87).
2 Salienta que as representações que o imaginário social estrutura e organiza pode ser “distorcido
ou oculto ou até mesmo manipuladas”, sendo um grande desafio do historiador analisar de forma
crítica o que a memória dos sujeitos sociais resguarda. (CHARTIER, 2011, p. 15).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 249


tais como: históricas, filosóficas e psicológicas, objetivando entender
como a memória pode ser estudada e analisada de forma diversa,
configurando-se através da linguagem através da apropriação em
sua funcionalidade como prática social (SMOLKA, 2000, p. 166).
Então, vamos encontrar por meio do contexto histórico, propria-
mente da antiguidade clássica, a perpetuação da memória por meio
da formação histórico-cultural pela vertente poética. A poesia abaixo
é emblemática no sentido de entender a perpetuação e significação
sobre a memória.

Dos muitos modos de pensar e de falar sobre a memória.


Um pouco do que herdamos.

A memória em questão
São muitos os modos de pensar e de falar sobre memória.
Memória faculdade, função, atividade;
Memória local, arquivo;
Memória acúmulo, estocagem, armazenagem;
Memória ordem, organização,
Memória técnica, techné, arte;
Memória duração...
Memória ritmo, vestígio;
Memória marca registro;
Memória documento, história...
Memória como aprendizagem- processo, processamento;
Memória como narração-linguagem, texto.
Memória como instituição...
Invenção da memória...
(poesia de Homero apud SMOLKA, 2000, p. 168)

É relevante e significativo quando Smolka (2000, p. 168) faz re-


ferência ao contexto histórico da antiguidade clássica, referenciada
pelo poeta Homero, com finalidade de conservar, registrar e perpetu-
ar os efeitos heroicos da história, haja vista que a mesma possibilita
e ajuda por meio do não esquecimento e sustentar da tradição. Con-
firmando tal proposição (GINZBURG 2002, p. 63) associa “o papel do
historiador ao juiz ao reavaliar a riqueza intelectual da tradição desde

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 250


Aristóteles, sendo as provas, longe de serem incompatíveis com a re-
tórica, constituem o núcleo fundamental”
Seguindo essa linha de pensamento, é importante levar em con-
sideração que essa maneira ideológica de analisar e entender a me-
mória e suas prospecções passa por várias linhas interpretativas e
discursivas dentro da corrente filosófica, possibilitando embates teó-
ricos e interpretativos pelas argumentações de Platão, onde, susten-
tada pela teoria do conhecimento, privilegiando a verdade e a sabe-
doria pelo caráter racionalista, Platão desprende-se da poesia, pois “é
amante da verdade”, em que os indivíduos passam a ter autonomia
em sua maneira de pensar. Outro questionamento é que a “escrita é
vista como simulacro e sedutora”, podendo ser forjada. Esses questio-
namentos servem apenas para nortear os variados questionamentos
sobre essa definição na construção e valorização da memória.
Vale mencionar que a palavra memória assume variadas formas
de ser conceituada e interpretada a partir do contexto que é empre-
gada, pois esses embates epistemológicos de conceituação, de certa
forma, são propostos a partir do que se pretende construir e organizar,
tornando-se bastante comuns dentro da História.
Reportando-se a essa questão vale mencionar que a memória,
dentro dos primórdios da História, já era utilizada como “objeto in-
terpretativo” pelos historiadores Heródoto3 e Tucídides4. Portanto, isso
desperta no historiador o interesse na construção e formação ideoló-
gica em interpretar, reconstruir e analisar determinado contexto his-
tórico elaborado pela historiografia.

3 “Investigação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com
o passar o tempo, e para que os efeitos admiráveis dos helenos e dos bárbaros não caiam no
esquecimento...”.
Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados,
conservar a memória, como mecanismo do presente, para lutar contra o esquecimento (GAGNEBIN
1997, p. 17 apud SMOLKA, 2000, p. 178).
4 As testemunhas de cada fato apresentam versões que variam segundo sua simpatia com relação
a um ou outro lado e segundo sua memória (TUCÍDEDES, I, 22,3, apud DETIENNE 1998, p. 105, apud
SMOLKA, 2000, p. 179).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 251


A partir dessa perspectiva, é pertinente delinearmos que a me-
mória em sua complexidade permite compreender o contexto his-
tórico, cultural, político e econômico no qual estamos inseridos de
acordo com o tempo e o espaço. Segundo Villela (1995), em relação à
perspectiva do oficio do historiador5e sua relação com a memória na
construção no contexto histórico:

É importante salientar que quando falamos em memória, pressupomos que


deve partir de duas relações: a subjetividade e a coletiva, haja vista, que es-
ses dois aspectos de certa forma, dará subsidio para construí-la e reinterpretar
em relação aos acontecimentos históricos, com isso, tendo efeitos direto com
aquilo que pretende-se conservar, pondo-se em detrimento o que achamos
desnecessário.“ A memória individual existe, mas ela está enraizada em cir-
cunstancias sociais que nos permite falar de uma memória coletiva, muito em-
bora a apropriação desta seja individual.[...] (VIVELA, 1995).

Conforme ressalta o autor, é importante percebermos as rela-


ções envolvidas nesse processo na construção da memória e seus
desdobramentos por meio do contexto social e suas influências, sain-
do-se de uma perspectiva individual, através das relações coercitivas
socioculturais.
É necessário destacar, ainda, que Vilela é extremamente enfático
quando aponta que o historiador tem a capacidade de reconstruir a
memória, colocando em questionamento o posicionamento do histo-
riador como “assassino da memória” por meio daquilo que constrói,
reorganiza e legitima, embora percebamos que, quando falamos em
construção histórica, a memória sempre passa por disputas (VILLELA,
1995).
A memória está associada, portanto, à concepção de tempo,
permitindo também ser conservada através da memória individual

5O oficio do historiador, segundo Marc Bloch analisa o papel do historiador em relação a sua
prática historiográfica, buscando-se uma legitimidade para a História como ciência, que através de
mecanismos, e ações dos homens em relação ao tempo e o espaço, haja vista, que a história ao longo
do tempo, passou por períodos de mudanças e permanências possibilitando novas interpretações e
diversificando as técnicas de pesquisas do historiador (BLOCH, 2002).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 252


e coletiva. Diante dessa dicotomia, a tarefa dos historiadores é bus-
car de forma crítica os diversos relatos dos acontecimentos, tentando
buscar aquilo que seja mais próximo do fazer historiográfico como
uma suposta “verdade” a ser perscrutada. Para Le Goff (1924, p. 526):

[...], a memória coletiva é não somente uma conquista é também um instru-


mento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é sobre
tudo oral ou que estão em vias de construir uma memória coletiva escrita que
melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da
tradição, esta manifestação da memória.

Le Goff (1924), no fragmento acima, ratifica o pensamento quando


escreve sobre a memória, quando diz que a mesma pode ser definida
por dois vieses, onde existe uma relação entre a memória expressada
de forma individual e coletiva, não ocorrendo memórias isoladas so-
bre um fato e sim uma conjuntura de informações, por mais divergen-
tes que sejam sobre qualquer período histórico. (LE GOFF, 1924, p. 526).
Tendo a memória como é necessário perceber que a tradição
tem grande importância em determinado grupo social, construin-
do uma representatividade, ou seja, uma expressão cultural de for-
ma que venha a se consolidar e perpetuar em diferentes momentos
históricos, por meio da concepção temporal. Conforme o fragmento
abaixo expresso:

[...] Uma ponte é assim lançada entre passado histórico e memória, pela nar-
rativa ancestral, que opera como um intermediário da memória em direção do
passado histórico, concebido como tempo dos mortos e tempo anterior a seu
nascimento (RICOEUR, 1985, p. 429, apud SILVA, 2002).

Desse modo, ao adentrar nesse processo, tem-se uma grande ne-


cessidade de perpetuar costumes, valores e tradições, tendo em pers-
pectiva construir e buscar uma identidade, seja ela de interesse de deter-
minado grupo social, ou objetivando construir um ideário nacionalista por
meio da ressignificação da memória (RICOEUR, 1985 apud SILVA, 2002).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 253


Como dito anteriormente, a pesquisa desenvolvida é caracteriza-
da por estar associada ao contexto da história cultural, e é fundamen-
tal perceber a sua associação em relação à memória como estando
presente no imaginário dos indivíduos envolvidos no manejo histórico,
em uma conjuntura interpretativa e construtivista em relação ao uni-
verso da história.

As formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecen-


do como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos
sentidos. “Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do
processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador
da cultura, àquele objeto a capturar no passado, à própria energia da vida”
(PESAVENTO, 2005, p. 57).

Percebe-se que a memória como objeto de análise está presen-


te na organização cognitiva dos indivíduos de forma subjetiva, em-
bora a mesma esteja de certa forma representada de forma coletiva,
no sentido de legitimar um fato histórico como construção imagética.
A rememoração dos fatos é importante para que sejam construídas
várias interpretações sobre o que se propõe mostrar, desprendendo-
-se de uma história única e rescrevendo uma história plural (PESA-
VENTO, 2005, p. 57).

Considerações finais

Todas as discussões trazidas até aqui possibilitou perceber que


é possível o estudo sobre a projeção da literatura, tendo a crônica
como fio condutor na interseçção nos moldades da história e literatu-
ra, sem inviabilizar o sentido e a relevância no ofício do historiador no
que tange a sua narrativa historiográfica.
O presente capítulo teve por objetivo fazer uma abordagem en-
tre a história e literatura, tendo como perspectiva, a interconexão en-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 254


tre ambas, apesar dos desafios e mudanças, vem se readequando
e sendo utilizada através de abordagens interdisciplinar no universo
das pesquisas
Nesse sentido, aproximamos a literatura a condição de Monu-
mento, referenciado pelos autores em sua análise sobre monumen-
to/documento, na tentativa de dar legitimidade à narrativa histórica,
tendo a Crônica característica da tipologia literária, que servirá como
escopo na estrutura de outras produções literárias.
O grande desafio no oficio do historiador é criar métodos inter-
pretativos independente da natureza da documentação, contextua-
lizando-as, de maneira minuciosa dando sentido de cientificidade à
narrativa histórica, sem refutar as obras literárias.
Nessa perspectiva, abordarmos também a relação da memória
com a literatura, através de construções simbólicas que os sujeitos
expressam através de lembranças, signos e linguagens, a partir do
momento que o historiador transcreve o enredo6, pondo em caráter
de prova as experiências dos indivíduos. Porém, o discurso/retórica
também entra nessa teia de relações, sendo ferramenta na produção
de textos literários.

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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 257


capítulo 13

Como que cifrado entre


as feridas do luto
Gustavo Augusto de Abreu Clevelares

DOI: 10.52788/9786589932369.1-13
“Viesse
viesse um homem
viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
Patriarcas: ele poderia
se falasse ele poderia
apenas balbuciar e balbuciar
sempre –, sempre–,
continuamente.

(“Pallaksch, Pallaksch.”)”

(CELAN apud DANZIGER, 2013, p. 41)

Parto do estranhamento sonoro provocado em mim em meio às


experiências investigativas acerca do luto, como uma pista a ser es-
cutada com atenção e astúcia. Duas palavras incompreensíveis dão
nome à mais conhecida instalação da artista plástica Leila Danziger.
A insólita expressão “Pallaksch, Pallaksch”, encontrada nos versos der-
radeiros do poema “Tübingen, Janeiro”, escrito por Paul Celan em ho-
menagem ao poeta Hölderlin, trata-se de uma glossolalia a qual pro-
duz uma sonoridade insólita ao ser proferida. Longo tempo separou a
peculiar existência de Hölderlin, autor dessa curiosa palavra, da vida
coletiva: durante quase quatro décadas, o artista permaneceu total-
mente recluso no alto de sua torre em Tübingen, entre bucólica pai-
sagem à beira do Rio Neckar, no sul da Alemanha, onde, no século XIX,
em meio às traduções das tragédias de Sófocles, acabou desenvol-
vendo uma língua própria, inteiramente particular, na qual a palavra
duplicada que dá título ao trabalho de Leila apresenta um paradoxo
de singularidade intensiva, pois, nessa língua inventada, esse termo
“pallaksch”, marcado por uma percepção de estranheza, “poderia
significar ao mesmo tempo sim e não” (DANZIGER, 2012a, n.p.).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 259


Empreendida por Leila, a tradução para o português dos versos
do poema de Celan exibe a ideia de que, para além de qualquer en-
contro com um sentido único e fechado, a fala gaguejante tornou-
-se, na atualidade, um contínuo “lallen und lallen”, um modo sensível
de expressão a se contrapor ao excesso referencial da linguagem in-
formativa, a expurgar da arte a fala produtiva e violenta dos jornais.
Haveria, pois, na pronúncia gaguejante do signo, em seu impossível,
uma ambivalente extensão/esvaziamento de sentido que, a sua ma-
neira, parece sugerir o exercício de acúmulo, desdobramento e re-
configuração da língua e dos sentidos possíveis de serem articulados
à experiência poética do luto. Segue a artista em suas obras, então,
com bastante delicadeza, o chamado dessa experiência provocada
pela intensidade difusa do termo inventado por Hölderlin. Leila Dan-
ziger, na instalação citada, em confronto com a violação em massa
provocada mediante a palavra informativa no tempo presente, ope-
racionaliza o apagamento voraz das palavras nas páginas de jornais.
Insistindo no que resiste enquanto ruína, ela empreende o gesto de
opacizar escritos na grossa crosta da matéria-jornal – elimina, então,
as frases longas, apaga os discursos extenuados, o excessivo latente
nas falas da informação instantânea. Considerando o jornal intacto
como objeto bruto, a artista, sobre a nova superfície desgastada do
papel, escancara de uma só vez, com a justaposição de seus carim-
bos aplicados ao papel, o espaço abissal de esvaziamento do vocá-
bulo “pallaksch”, em repetição firme e contínua.
Pensando nesse processo estético a partir dos estudos de Giorgio
Agamben, cujo compromisso teórico de questionamento da lingua-
gem mostra-se imperativo, interesso-me aqui, particularmente, nas
aporias que surgem a partir da incidência da palavra “pallaksch” na
obra de Leila Danziger. Nesse ínterim, a repetição estalada da língua
em “Pallaksch, Pallaksch” é reapropriada pela artista na produção de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 260


uma “escritura de residos e ruídos” (DANZIGER, 2013, p. 42). Proponho
aqui, nesta direção, uma brevíssima interpretação para o uso desta
espécie de balbucio ou grunhido que escapa à referencialidade da
produção de sentido de uma língua reconhecida. Este intangível e im-
possível que abarca a constituição do termo inventado por Hölderlin
e utilizado por Celan e Leila permite traçar uma linha até a própria ex-
periência de transbordamento da linguagem que se sustém na poe-
sia enlutada, experiência mesma de transformação da linguagem em
obra artística, isto é, em algo para além da nomeação, porque já não
poderia ser concebida de outra forma. O que se dá nessa dinâmica,
como nos sugere Giorgio Agamben, nada mais é do que a captura de
outros sentidos pelas possibilidades de exterioridade que ultrapas-
sam a articulação dos problemas dos limites da linguagem.
Por essa perspectiva, o filósofo nos fala que “aquele que realiza
o experimentum linguae deve, portanto, arriscar-se em uma dimen-
são perfeitamente vazia [...] na qual não encontra diante de si senão
a pura exterioridade da língua” (AGAMBEN, 2005, p. 13). Se a condição
particular da poesia, ao que me parece, é a inusitada articulação com
uma forma de expropriação da linguagem referencial do homem, o
que o filósofo chama de infância vem a ser, em tal caso, essa expe-
riência originária e inaugural do homem com a linguagem, aquilo que
ultrapassa a experimentação do que por ela é insuficientemente no-
meado, que não coincide com o objeto referenciado. Uma experiência
na linguagem, tal qual me parece ocorrer com a língua inventada por
Hölderlin, que se dobra em relação autorreferencial, em apontamen-
to para si mesma. Não é certamente por acaso que Leila Danziger,
como técnica artística empregada vastamente em sua obra, insista
no apagamento da linguagem incansável da informação para efe-
tivar a produção poético-visual com a vacuidade e a hesitação ga-
guejante do “pallaksch” apropriado por Paul Celan em seu destacado

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 261


poema. Silenciar a palavra referencial excessiva e fazer brilhar uma
temporalidade outra são os caminhos para permitir irromper a poesia
prenhe nas coisas.
Palavra e imagem, agora, mesmo, revestidas da potencialidade
interativa do verbo no sistema das visualidades, destacam a plura-
lidade dos modos de manuseio da matéria na obra de Leila Danzi-
ger. Esse princípio de experiência entre linguagens conduz, até aqui,
a meditação da palavra poética que se inscreve nos gestos visuais
de Leila Danziger. Se, no curso do pensamento crítico do século XX, a
linguagem ganhou proeminência nas artes visuais, sobretudo com o
advento da linguística de Saussure, da antropologia de Levi-Strauss
e da psicanálise de Freud, as relações entre visualidade e linguagem
verbal ganham tensionamentos cada vez mais fortes na arte contem-
porânea. Nessa direção, a relação plástico-discursiva que se monta
em “Palaksch, Palaksch” chama atenção não só pelo procedimento
repetitivo que se opera nos significantes – com a duplicação da insó-
lita expressão de Hölderlin –, mas sobretudo pela interferência na ma-
téria física do papel-jornal ao ter a informação estampada na página
subtraída e ao ter arrastado até elas os versos enlutados de Celan.
Sem dúvidas, trata-se de um processo de extração paradoxal, radical
e sensível – um ritual para expulsar a palavra referencial impressa e
sugerir poéticas dinâmicas de leitura daquela mídia.
Colar a fita na superfície do jornal, arrancar a primeira cama-
da da “pele” do papel – esse é o gesto repetido por Leila Danziger
no vídeo projetado ao fundo da mesa, que, junto à superfície do pa-
pel arrancada, aos carimbos forçados e às fitas extrativas, compõe
a instalação que integra a série “Diários Públicos”1, desenvolvida com
jornais diversos acumulados em seu arquivo desde 2001. Seu ritual de

1 O projeto “Diários públicos”, de Leila Danziger, foi constituído de peças elaboradas pela manipulação
de jornais nacionais e internacionais acumulados ao longo da carreira da artista. Esses trabalhos
plástico-discursivos foram reunidos numa série maior após o apoio financeiro concedido em 2001
pelo Programa de Bolsas RioArte, vinculado ao Instituto Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 262


corrosão/apagamento da materialidade superficial da folha de jor-
nal, ação em repetição apresentada no exercício que expõe no vídeo,
ilustra um intensivo processo de leitura extrativa, delicado movimento
das mãos que parece disputar pela estética um ou outro meio de se
contrapor à obsolescência do discurso midiático, como se buscasse
encontrar mensagens nas camadas inferiores de papel, feito palimp-
sestos escondidos. O que não deixa de ser revelador, por outro lado, é
que a artista cria uma perversão total ao dispositivo jornalístico, colo-
cando em questão a forma como o discurso excessivo contemporâ-
neo dos noticiários irrompe uma operação pobre e rasa de legibilida-
de das informações, que não oferece tempo para elaboração do luto
pelas tragédias anunciadas diariamente. Como os carros fazem com
a atmosfera, os jornais poluem o olhar do homem com superposições
de temporalidades vorazes, as quais homogeneízam os episódios
apresentados, destituem o luto natural e, por conseguinte, impedem
o olhar mais lento. Evidencia a crítica sobre o processamento manual
do luto empreendido por Leila Danziger:

Neles, a artista constrói um plano em que tenciona a linguagem jornalística ou


midiática e a linguagem artística e poética, pelo seu processo de apagamento
da função informativa para fazer aparecer uma função estética. Seu apuro per-
ceptivo está em evidenciar o caráter indiciário da imagem quando desmancha
o visível deixando restos e produzindo rastros. Uma operação em que o visual
(aspecto, aparência) da imagem afora do visível (aquele evidente) na super-
fície que recebe o carimbo como sinal de um gesto preciso, que apaga para
exceder (MÓL, 2015, p. 61).

Como gosto muito de imaginar, essa espécie de vingança de ar-


ranque da superfície da página oblitera a matéria jornalística empe-
nhada na exposição de uma verdade construída como suposta ob-
jetivação do presente. O devir no tempo das notícias, as palavras do
informativo, as imagens em exposição, tudo isso aduz certa acelera-
ção para o intensivo do jornal; contudo, a devolução de certo caráter

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 263


estético para as imagens – revelado após a extração do excesso de
dados pela artista – aponta para uma temporalidade exterior, com o
caráter indiciário da fotografia evidenciado mediante o arrancar das
palavras pelo verso da fita crepe para um espaço fora de um supor-
te que, em sua técnica comercial de reprodução acelerada, empurra
o presente para o esquecimento, impedindo escutas mais atentas,
lutos processados em seu tempo próprio, o que, em termos de rigor
técnico da mídia, oblitera o pensamento crítico-reflexivo.
Chama atenção, na exposição que culminou no livo intitulado
“Diários públicos”, a constituição do vídeo, referido aqui anteriormente,
o qual acompanha as imagens. Numa análise panorâmica da obra,
com o olhar sempre atento ao vetor específico do gesto de extração
da informação com fita crepe, as sonoridades trazidas à tona na pelí-
cula, com as nuances e os tons das imagens, provocam uma polifonia
explícita entre leitura do poema “Tübingen, Janeiro”, pela voz de Paul
Celan, e a voz jornalística estrangeira expondo notícias israelenses de
mortes. Em Leila Danziger, mediante o rastreamento dos exercícios
artísticos, vê-se que a ação manual com o papel e a consequente
produção sonora dos ruídos decorrentes dos gestos de leitura/apa-
gamento dos jornais ganham proeminência na exposição do audiovi-
sual, porque, além de exibir o working in process do seu atelier, realçam
a potência enlutada do trabalho plástico-material não só de leitura,
mas também de escrita e performance, a qual ocorre pelo pressionar
rítmico do carimbo marcado de citações intertextuais:

Em destaque nesta instalação, montada pela primeira vez em 2010 no Museu de


Arte Contemporânea (MAC) de Niterói, projeta-se um vídeo cheio de camadas
visuais e sonoras. Inicialmente o que se pode ver é uma pedra com uma inscri-
ção em hebraico, depois labaredas, folhas de jornais boiando no mar, carrega-
das lentamente pelas ondas, ao fundo; mais à frente as manchetes e fotos em
destaque nos tabloides, rasuradas sem descanso por uma fita adesiva, sub-
metidas a uma operação paradoxal, agressiva (como ação corrosiva) e deli-
cada (como método cirúrgico). Da linha sonora, chegam-nos sobrepostas as
notícias de um telejornal israelense e a voz de Paul Celan (1920-1970) lendo com

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 264


seu timbre peculiar o poema “Tübingen, Janeiro”. Ao meio e ao fim do vídeo res-
tam apenas a voz de Celan repetindo monotonamente as palavras “Pallaksch,
Pallaksch” e os jornais que continuam sendo, de forma igualmente repetitiva,
apagados e apagados, Kschschschs... kschschschs... (o som se assemelha ao
de papel rasgando) (MELLO, 2019, p. 89).

É claro que a videoarte, desde a década de 1960, tem ganhado


centralidade na sua inclusão em trabalhos plásticos, principalmente
no escopo temático memorialístico e arquivístico. Nas camadas do
vídeo exibido por Leila Danziger não predomina a ausência de uma
cadeia polifônica para além das sonoridades dos poemas lidos ao
fundo. Do gesto excessivo de desgaste da camada superficial do
jornal, reconhece-se que o diálogo artístico e afetivo com Paul Ce-
lan – e com toda sua história marcada pela catástrofe – está para
além da insistência em carimbar a palavra escrita “pallaksch” na ma-
téria-jornal. Como presença audível do som gaguejante, do balbucio
dos termos de Hölderlin outrora recuperados, os ruídos do arrancar do
papel resistem ao silêncio e, assim, se acoplam a outras vozes. Na se-
quência desse movimento contínuo de corrosão, do jornal resta ape-
nas uma fina e sensível camada, como uma pele puída pelo tempo;
das palavras extraídas, fulgurações de um passado arrancado como
forma de elaboração enlutada frente ao discurso de funcionalidade
imediata do jornalismo. Porque, sob a guarda das tragédias históri-
cas e contemporâneas, todo o processo artístico não só assinala um
modo de resistência a voracidade dos discursos informativos, mas
também dá a ver, no verso da página à mostra, uma certa lentidão
firme, maculada pela contaminação visual com outros dizeres, agora
reposicionados e reconfigurados pragmaticamente, desconfiguran-
do o dispositivo informacional programado para o esquecimento.
Danziger, então, expõe o processo: “Desfaço os jornais. As infor-
mações são transformadas num emaranhado sem fim e suspeito que
seja essa a sua forma mais verdadeira” (DANZIGER, op. cit., p. 26). Aí,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 265


portanto, os frames do vídeo reverberam a sensível intervenção da
artista nos jornais frente à produção de um emaranhado de fita ade-
siva que se constitui de partes arrancadas do jornal no processo. Para
ela, a artista, a exposição fílmica da gestualidade de apagar os jornais
torna-se fundamental para sua obra, à medida que “revela certo ca-
ráter performativo da experiência realizada e que procura dar forma
à uma narrativa composta de gestos e ruídos, uma modalidade de
escritura elaborada a partir do excesso e da entropia de informações”
(DANZIGER, 2017, p. 209). Após o desconstruir dos discursos e a criação
de uma nova superfície para o jornal, os novos versos carimbados nas
folhas assinalam uma escrita estrangeira infiltrada, tatuagens sobre-
postas às cicatrizes da pele, não como forma de esconder o passado,
mas como resistência da palavra poética agenciada em meio à ruína
da materialidade informativa.
Com a integridade da página mantida, percebe Leila Danziger, “o
que permanece é uma pele fina e transparente, uma matéria frágil,
fugaz, sensível à ação da luz, desafiadoramente mundana”, insistin-
do na ideia de porosidade que, pela ação da linguagem artística, “o
jornal – superfície sensível do mundo – está à espera da operação
poética, que, se não o regenerar, ao menos lhe confira algum sentido”
(DANZIGER, op. cit., p. 26-27). Entre uma página e outra, no tempo com
o qual Leila manuseia em sua investida técnica de extração da ca-
mada superficial do papel em “Diários públicos”, abre-se um espaço
ativo de subjetivação no branco da página, fora da imagem e da pa-
lavra da informação diária. Nesse sentido, o procedimento realizado
pela artista no seu inventário de jornais constitui-se não só um modo
de elaboração do luto, como proporia Freud, mas sobremaneira de
um gesto melancólico de confronto com a cultura de massa, com a
lógica de manipulação banal dos dramas humanos, com a violenta
inflação imagética, com o excesso de rumores e ruídos da informa-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 266


ção. Afinal de contas, o que se firma no final da obra é um embate
com tudo aquilo que sobra entre tantas artificialidades percebidas
como dinâmicas do presente, as quais conduzem ao apagamento ou
à dispersão.
De alguma maneira, os rastros deixados pelo extravio da superfície
das coisas fornecem caminhos que revelam o diálogo possível com a
toada conceitual investida por Freud nas noções de luto e melanco-
lia. O escalavrar da superfície atribui alguma forma de inteligibilidade
outra à latente aceleração vertiginosa do tempo, que faz com que
ambos Leila insista na emancipação da imagem e da palavra para
potencializá-las com algum futuro, o qual ainda pode ser impresso
nelas, quando o luto pelas perdas constantes puder ser processa-
mento. No encontro entre psicanálise e arte, atravessam-se gestos de
leitura crítica e produção inventiva que operacionalizam sobre a vida.
Essas formas de processamento do luto e compreensão da melanco-
lia permeia toda a obra Leila, o que se constata, de fato, antes mesmo
da rasgadura que extravia e desvia a materialidade da superfície do
papel dos noticiários impressos na série “Diários públicos”:

Passei alguns anos perfurando papéis, verso e reverso. Queria penetrar em sua
substância opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso, buscar a área ínfima en-
tre as camadas da pele. Acho que buscava a interioridade da superfície. Perfu-
rar o papel era uma forma de escrita: constelações de signos construídos pelos
vazios que iam aparecendo no papel. A escrita era pensada não como depo-
sição de tinta sobre uma superfície, mas como falta, subtração de matéria, ou
como reação do tecido (lesão, cicatriz) (DANZIGER, op. cit., p. 26-27).

Quase tudo que se encontra no centro e nas margens do suporte


do jornal não impede a continuidade da prática artística de Leila Dan-
ziger em intensificar sua agudeza de atravessar a página corroen-
do violentamente as construções imagético-verbais que, no curso
da contemporaneidade, através de dispositivos informacionais, car-
regam de acúmulo e pressa o olhar, atrofiam a memória humana,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 267


controlam a relação do homem com os afetos os quais se constitui.
Essa extensa prática artística elege a impermanência do tempo como
forma de ativação de uma melancolia outra, um afeto ativo, centrado
no agrupamento de peças artísticas produzidas num gesto de leitura
corpórea, uma leitura com as mãos que apagam. A esse propósito,
fundamental se torna mencionar aqui o conjunto de objetos mani-
pulados e o vídeo feito por Leila Danziger em Tel Aviv, em 2011, que
compõem a série “Vanitas”. Esse projeto, o qual posteriormente irá se
inserir na publicação dos seus diários públicos, integra sua investi-
gação poética acerca da banalidade com a qual as informações e
as imagens midiáticas são consumidas e descartadas com rapidez,
constituindo o espetáculo de pequenas e grandes barbáries huma-
nas expostas indefinidamente em noticiário.
A bem da verdade, o que aglutina as sensíveis operações estéti-
cas realizadas por Leila Danziger em sua carreira é o procedimento
melancólico de criação de ruínas como resistência ao tempo efêmero,
equacionado pela lógica da violência e por sua naturalização cotidiana,
assim o monumento (antimonumental) se constrói dos destroços, dos
restos, das ruínas. Constitui, por assim dizer, como fio condutor de sua
obra, um repositório de resistências que se formam pela aparição intan-
gível do passado pela virtualidade latente em jornais esvaziados. Diante
desse contexto de manipulação de tempos de posturas conflitantes, no-
ta-se que, nas peças artísticas de “Vanitas” – 68 páginas encadernadas
com jornais apagados – a artista já transformava o suporte do noticiário
numa espécie de cemitério de imagens alegóricas – esqueletos, crânios
e inscrições intertextuais de indivíduos sentados, com a mão esquerda
apoiando o rosto, todos eles parados na posição melancólica do anjo
caído de Dürer2, extraídos de pedaços da história da arte.

2 Entre as gravuras inscritas na matéria-jornal, destacam-se os contornos da baiana retratada


originalmente na pintura “Negra tatuada vendendo caju”, datada de 1827, feita por Jean-Batiste
Debret (1768-1848). Essa obra subjaz a produção artística e intelectual de Leila Danziger ao refletir
acerca do banzo como melancolia dos negros submetidos ao trânsito. De fato, a pose com a cabeça
sustentada pelas mãos percorre à história da humanidade seja para simbolizar sentimento de
angústia, seja para expor o pensamento criador. Pensando assim, talvez a referência mais direta

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 268


Inúmeras intervenções críticas sobre as aporias que rondam os
procedimentos estéticos de Leila Danziger são modulados pelos im-
passes a respeito da força e dos efeitos gerados nos seus proces-
sos experimentais com a imagem. Enquanto vai se tornando cada vez
mais claro que os procedimentos estéticos de apagamento promo-
vidos insistentemente por Leila se operam pela via do esvaziamen-
to, pelo contraste com a saturação informativa, acabam-se crian-
do novas aporias em tornos da seguinte questão a ser desconfiada:
como produzir o efeito de memória, tão caro para a artista, pelo gesto
inusitado de apagamento? Como poderia o investimento em apa-
gar jornais ser uma estratégia para iluminar a memória e elaborar o
luto? Nada disso parece pacífico, mas justamente aí repousa sua pro-
posta estética em diálogo com Freud, transformador do pensamen-
to ocidental; ao corroer as informações que avançam sobre nós em
acúmulo, com sua força deformadora e esmagadora do olhar para o
mundo, a erosão meticulosa das informações parece querer produzir
uma consciência dos excessos que configuram a leitura intensiva do
mundo, interditam a memória e sobrepõem o luto.
Na leitura crítica exercitada pelo pesquisador e curador Márcio
Seligmann-Silva, atribui-se um caráter iconoclasta ao gesto de apa-
gamento e corrosão exercitado por Leila Danziger, justamente por seu
procedimento estético se contrapor à expressão contemporânea de
excesso de representações imagéticas as quais reivindicam, cada vez
mais, uma dimensão da realidade, pois, como acredita, “à iconofilia
doentia da nossa era, Danziger opõe uma saudável e bem-vinda ico-
noclastia” (SELIGMANN-SILVA apud DANZIGER, 2012b, p. 94). Por seu tur-
no, em direção contrário, o crítico de arte Pedro Hussak, no seu ensaio
sobre as formas da memória da ditadura brasileira nas artes visuais,
argumenta a favor de uma noção contrária à de Seligmann-Silva, da

para essa representação corporal seja a gravura “Melancolia I”, feita por Albercth Dürer, em 1514.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 269


qual poeticamente derivaria a disjunção do gesto de apagar como
inscrição da memória. De alguma maneira, Pedro Hussak defende que,
em face da corrosão do papel-jornal que emancipa as fotografias do
seu papel puramente informativo, Leila Danziger venha a operar um
gesto de leitura/escrita sensível para que a imagem artística retorne
ao centro estético, efetuando certos reparos semânticos capazes de
resistir melancolicamente à produtividade da imagem informativa,
porque, como “bem afirma Marie José-Mondzain, nosso mundo não é,
como écomum considerar-se, rico, mas pobre em imagens” (HUSSAK,
2018, p. 48).
Na dialética entre o visível e o invisível que constitui os dispositi-
vos de imagem no contemporâneo, sem negar a perspectiva de Se-
ligmann-Silva, vejo-me, neste ensaio, muito mais próximo do ponto
de vista de Hussak em relação às imagens. Como este, acredito que
a desqualificação da estética da imagem ocorra hoje muito possi-
velmente devido ao excesso de imagens saturadas de informação,
acúmulo expositivo, tendo em vista que a produção imagética e in-
formativa parece estar a serviço de um desejo cada vez mais violento
de depuração e apreensão mimética do real. Por outro lado, percebo
também uma guinada recente do que pode vir a ser uma manobra
de impulso a uma certa estetização da imagem informativa, marcada
pela construção de artifícios artísticos e pela ativação de experimen-
tações na linguagem fotográfica na construção do audiovisual con-
temporâneo, sobremaneira no que se refere às recentes práticas de
produção e circulação do fotojornalismo. Cito, por exemplo, Sebastião
Salgado e Maurício Lima como expoentes brasileiros de uma captura
fotodocumental estética, capaz de alterar as dinâmicas de percepção
e produção de sentidos a partir dos valores artísticos insurgentes no
meio jornalístico mediante narrativas fotográficas de tragédias huma-
nitárias em ascensão nos suportes da mídia e nos circuitos da arte.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 270


Daí está a aposta deste ensaio num terceiro caminho de leitura
– entre Seligmann-Silva e Hussak – a propósito dos processos estéti-
cos elaborados por Leila Danziger com o deslocamento das imagens
na matéria-jornal. Nesse intermédio, o destaque dado às fotografias
após o apagamento da página por Leila Danziger faz insurgir uma es-
pécie de imagem-ilha em meio à informação, ou seja, ícones tributá-
rios à condução/conversão da objetividade jornalística em subjetivi-
dade enlutada, pois, nas negociações entre imagem e representação,
o visível da fotografia destacada pela artista está para além da sim-
ples remissão ao referente da imagem, ou, também, para além da
negociação ilustrativa do texto informativo, aspectos fundamentais
para o pensamento de que, no contexto de efemeridade do tempo
na contemporaneidade, fica sempre algo que o olhar não consegue
capturar num primeiro relance.
Desse excesso de visibilidade proliferante, sobretudo a partir da
era da tecnologia avançada, podemos observar, partindo da pers-
pectiva crítica de Hussak, certa reconfiguração das práticas de arqui-
vo a partir do uso de dispositivos físicos (os pen-drives) e virtuais (as
nuvens) que salvaguardam memórias digitais somado às fotografias
incontáveis ao alcance do dedo, principalmente nos últimos anos,
marcados pelo avanço das configurações digitais dos aparelhos te-
lefônicos móveis ao alcance das mãos de todos. Como já apontado
recentemente pela crítica de humanidades, os novos dispositivos de
armazenamento da memória pessoal ou coletiva, além de provocar
uma alteração radical no paradigma da reflexão sobre essas ima-
gens jornalísticas, permitem a banalização da leitura das fotografias
capturadas e divulgadas, principalmente das relacionadas às catás-
trofes, no contexto de uma comunicação desinvestida de afetos, teo-
ricamente superando o processamento enlutado fundamental apon-
tado por Freud.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 271


Tudo isso aparece na resistência exercitada por Leila Danziger na
densa série “Diários públicos”, nas peças artísticas de “Vanitas”, e em
tantos outros trabalhos da artista, conjurados com vigor inventivo e
conceitual de ressignificar o olhar para a linguagem da comunicação,
como se ensejasse a uma lentidão na leitura dessas imagens, des-
ses rastros da história contemporânea do mundo, procedendo uma
insubordinação à hiperaceleração do tempo. Por intermédio de uma
força enlutada de arquivo, cuja crítica de arte contemporânea parece
estar cada vez mais interessada em repensar, Leila se envolve com
sua coleção de periódicos antigos – não só brasileiros, mas princi-
palmente alemães – reivindicando ultrapassagens e reconfigurações
de outros circuitos do lembrar humano, mas um lembrar ativo, aden-
sando certa camada mais devagar do tempo à construção de um
exercício linguístico - visual que alcance, no descascar contínuo dos
jornais, em sua beleza plástica manipulada, intensidades ainda mais
agudas, geradas pela inscrição poética intertextual como um meio de
apelo à experiência do luto:

Empregando método extrativo, Leila Danziger apaga as palavras do noticiário,


porém mantém algumas imagens. Com carimbos, ela grava outras palavras:
“Para-ninguém-e-nada-estar”, de um poema de Paul Celan; “Pensar em algo
que será esquecido para sempre”, de Nós, os mortos, de Denilson Lopes; “Vens
abaixo em chamas”, de um poema do Hölderlin; e “Todos os nomes da melan-
colia”, fragmento da própria artista, estimulam a errância, a demora, o esque-
cimento do tempo linear dos instantes velozes (COSTA apud DANZIGER, 2013, p.
159).

Exercícios de produção plástica experimental, com a transferên-


cia quase total da superfície verbal dos jornais para a fita adesiva em
“Diários públicos” e em “Vanitas”, ativam a focalização de fotografias e
de palavras que capturam uma visão menos fugaz. De maneira seme-
lhante, essa estratégia ocorre nas coleções visuais “Resistir-por-nin-
guém-e-nada” (2010) e “Para-ninguém-e-nada-estar” (2006 – 2010),

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 272


homônimas à tradução de versos da poesia testemunhal de Paul Ce-
lan. Em quase todas as séries, senão em todas, destacam-se imagens
trágicas das histórias menos visíveis da humanidade – fomes, diás-
poras, desumanizações. Imagens das quais diariamente desviamos
os olhos para não enxergar e não encarar as catástrofes cotidianas,
postura com a qual optamos por uma espécie de amnésia da histó-
ria. Então, essas imagens passam a ser vistas de outro ponto: a maté-
ria-jornal manipulada pela artista obriga-nos a parar por um instante
e encarar essas fotografias destacadas, uma vez o emolduramento
artificial e violento pelo vazio provoca outra dinâmica de leitura das
imagens, isto é, obriga uma percepção maior dos fluxos trágicos do
passado que radicalmente interferem no presente. De mesmo modo
que as citações carimbadas carregam certa dimensão afetiva para a
artista nos seus trabalhos, elas permanecem como rastros da história
embebidos por duas outras palavras, também inscritas por carimbos
nas páginas corroídas, resistentes ao atrito com a fragilidade da me-
mória: lembrar e esquecer.
Desconstrução e reconstrução da superfície de jornais para lem-
brar e esquecer. É esse o processo formal de Leila Danziger o qual dei-
xa invisível a aceleração vertiginosa a qual consome o ato de olhar as
imagens pela rede de afetos que a circunscrevem, o que vem a ser
uma questão sintomática dos tempos contemporâneos. Entre me-
moração e sensorialidade, o descascar da superfície redimensiona os
modos de ver do espectador e reafirma implicitamente que as ima-
gens nos olham, mas para isso é preciso resistir à hiperaceleração
que o tempo nos impõe, rechaçar a banalização e a obsolescência
que a esfera jornalístico-informativa atribui as imagens publicadas
em seus suportes materiais e imateriais. Produzir arte, nessa perspec-
tiva enlutada, vincula-se à tarefa de reorganizar a linguagem das coi-
sas, é evidente, reconfigurar as dinâmicas de criação e legibilidade

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 273


que envolvem as imagens para produzir novas formas de percepção
do real.
Mesmo que possa ter soado em algum momento destes pen-
samentos, não se trata aqui de sobrepor a dimensão formal ou es-
trutural das peças inventivas de Leila Danziger ao conteúdo de suas
obras. Contudo, é a própria manipulação estilística exercitada em
seus gestos plástico-discursivos que irá proporcionar ampliações e
reconfigurações semânticas como um lembrar ativo3 operacionali-
zado na linguagem: “um trabalho de elaboração e de luto em relação
ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de
esclarecimento — do passado e, também, do presente. Um trabalho
que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas
também por amor e atenção aos vivos” (GAGNEBIN, 2006, p. 105). Sem
ceder ao apelo de responder todas as interrogações que ainda sur-
gem a respeito dos significados latentes nos trabalhos da artista, o
que mais me impulsiona a escrever estes pensamentos é, enfim, a
possibilidade de estancar a hemorragia do tempo e se incluir no fluxo
de linguagens que atravessa, de uma ponta a outra, todos os projetos
artístico-poéticos assinados por Danziger. A inquietante sonoridade
da expressão “Pallaksch, Pallaksch”, apropriada pela artista carioca,
não cessa de instigar outras leituras, apontando inegavelmente para
o acúmulo de forças do passado que aparece, como que cifrado en-
tre as feridas do luto, no estro plástico-discursivo de Leila Danziger.

3 Quando a filósofa Jeanne-Marie Gagnebin, em ““Lembrar escrever esquecer” (2006), se questiona a


respeito do que significa reelaborar o passado, aponta para a propriedade do ativamento do lembrar,
operação aparece descrita no seu pensamento como uma energia de rememoração que não está a
serviço apenas da iluminação da lembrança, mas, antes, à disposição de um esforço interpretativo
do outrora e do agora, contra gestos mnemônicos solenes, queixosos, piedosos e empobrecidos, tal
como os investimentos melancólicos, os quais não desvencilham o sujeito de uma culpa do passado
e não os impulsiona a enfrentar os embates temporais entre passado e presente. Nesse sentido, o
“lembrar ativo” de Gagnebin alude aos modos afirmativos com os quais Nietzsche, Freud, Adorno e
Ricoeur defenderam o imperativo trabalho da memória.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 274


Referências

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5, n. 9, mai./2015.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Uma arca para a memória. DANZIGER, Leila. To-
dos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012b.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 275


CAPÍTULO 14

Da lírica provençal à languidez


florbeliana: o cruzamento de vozes
em Soneto, de Gilka Machado
Luiz Felipe Verçosa da Silva

DOI: 10.52788/9786589932369.1-14
Introdução1

Oriunda de um berço amplamente artístico, desde muito cedo


Gilka Machado (1893-1980) já despertava uma sensibilidade em en-
xergar o imperceptível das coisas. Foi uma das primeiras escritoras a
criar o Partido Republicano Feminino2 em 1910 e a reivindicar o direito
de as mulheres poderem ocupar um espaço digno na sociedade bra-
sileira do século XX.
A partir daí, todas essas lutas foram internalizadas na poética de
Gilka Machado e viabilizaram um campo mais amplo para a expres-
são de seus questionamentos pessoais e das suas militâncias políti-
cas, na exclusiva intenção de desfarelar os tabus pré-estabelecidos
sobre a figura da mulher e a sua conjuntura existencial dentro da so-
ciedade e no âmbito da produção literária brasileira, que majoritaria-
mente e, por razões histórico-culturais, eram representadas pelo sexo
masculino.
Já que até os tempos coloniais no Brasil, como Gotlib (2003) dis-
cute, a mulher nada escreveu ou se escreveu, os seus textos aparece-
ram como uma exceção entre uma maioria quase absoluta de textos
masculinos, como foi o caso da potiguar Nísia Floresta Brasileira Au-
gusta 3, considerada a primeira mulher escritora feminista brasileira a
ser aceita pelo cânone literário.
Então, somando essas privações sociais com o fato de que ape-
nas os homens podiam ter acesso à educação formal, que era for-

1 Este artigo é um recorte da minha monografia, defendida em 2019 na Universidade Estadual de


Alagoas (UNEAL).
2 Partido político fundado no Rio de Janeiro em dezembro de 1910 com o objetivo de representar e
integrar as mulheres na sociedade política. Foi presidido por Leolinda de Figueiredo Daltro (c.1860 –
1935).
3 Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto (1810 - 1885) foi uma
educadora, escritora e poetisa brasileira. Primeira na educação feminista no Brasil, com protagonismo
nas letras, no jornalismo e nos movimentos sociais. Defensora de ideais abolicionistas, republicanos
e principalmente feministas, de consciência antecipadora para sua época, influenciou a prática
educacional brasileira, rompendo limites do lugar social destinado à mulher.

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necida por seminários de várias ordens religiosas, isso inviabilizou
drasticamente na aceitação das mulheres nesses espaços culturais,
pois na concepção da época, era preciso obter certo nível intelectual
para poder estabelecer raízes nesses ambientes e a mulher, frequen-
temente era anulada das atividades acadêmicas, pois as suas ações
eram ligadas ao espaço doméstico.
Por isso, Gilka Machado, entre outras escritoras notáveis da Lite-
ratura Brasileira, buscaram, através de seus poemas, “[...] desafiar os
preceitos e a conduta moral da época, deixando em pânico os falsos
moralistas de então” (DUARTE, 2012, p. 337).
E por causa desse engajamento nas lutas sociais de inclusão da
mulher na literatura e dentro da sociedade de modo geral, a escritora
fluminense deve ser considerada como uma das mais importantes
personalidades femininas na Literatura Brasileira, pois a sua obra re-
úne uma rica poética de enlace simbolista, que ao reunir a palavra
à música, dialoga com a introspecção intimista das Cantigas Trova-
dorescas e da poética de Florbela Espanca, assim como em alguns
poemas também dialoga com a estilística rígida das escolas parna-
sianas brasileiras, que estabelecendo uma afinidade poética com es-
sas estéticas seculares, conseguiu ressignificar e potencializar todas
essas perspectivas literárias em uma poesia plasticamente volúvel
e organizada, como é observado na merecida reunião dos melhores
poemas escritos por Gilka Machado, livro intitulado de Gilka Macha-
do Poesia Completa, que publicado originalmente em 1979, teve uma
nova reedição em 2017.
Dada a possibilidade de uma absorção mais ampla por parte dos
leitores, que diante dessa poética liricamente maleável, a qual dialoga
tanto com os clássicos quanto com os modernos, consegue penetrar
no âmago desse universo imagético de Gilka Machado, transfigurado
em versos, rimas e estrofes que perpassam pelos mais variados fa-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 278


zeres poéticos, que discursiva e reflexivamente englobam temáticas
sentimentais, que se propõem em projetar de forma atemporal, o que
há de mais simples e complexo sobre o inconsciente da mulher: o re-
flexo das suas vivências e da sua maneira de enxergar o mundo a sua
volta. Perspectiva que para Paz está no âmago da criação literária, já
que:

Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tem-


po e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa em
um tempo anterior a toda história, no princípio do princípio. Antes da história,
mas não fora dela. Antes, por ser realidade arquetípica, impossível de datar,
começo absoluto, tempo total e autossuficiente (PAZ, 1972, p. 53).

Durante toda a sua difícil trajetória de vida, Gilka Machado foi


marginalizada por expor o mais límpido que há nas entranhas dos
sentimentos femininos, sendo posteriormente denominada “matro-
na imoral” por alguns artistas da época, que atravessados por um
machismo transvestido de um falso moralismo, associavam à autora
aquilo de mais repugnante que havia na produção literária brasileira.
Assim como Zolin aborda ao falar sobre a trajetória da literatura de
autoria feminina no Brasil:

As vozes femininas, assim como as vozes das minorias étnicas e sexuais, esti-
veram por tanto tempo silenciados no âmbito social e, consequentemente, na
literatura, e o final do século XX assistiu a uma considerável reviravolta nesses
domínios: o conhecimento institucional da existência da literatura escrita por
mulheres como objeto legitimo de pesquisa (ZOLIN, 2009, p. 335).

Não obstante, Gilka Machado teve que enfrentar preconceitos de


classe por ser oriunda de família humilde e por ser uma mulher negra
no meio artístico da época, que controversamente, possuía um dis-
curso progressista no que diz respeito à produção artística do início
do século XX. E por não se preocupar em rever o estatuto linguístico
da criação poética, tão debatido pelos modernistas, que defendiam

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 279


o uso do verso livre, que foi somado ao fato de que a autora abraçou
o Simbolismo como seu alicerce literário e flertou com as estéticas
parnasianas até o final de sua carreira, causando revolta na classe
modernista da época, que movidas pelo desejo de romper com as
antigas escolas literárias e produzir uma literatura autêntica e am-
plamente experimental, descartavam toda e qualquer manifestações
munida de características das escolas simbolistas europeias.
E nessa contramão a autora, que “viu-se de súbito marcada pela
extrema ousadia de sua lira amorosa, pelo seu estro invulgar no qual
cantava a libertação dos sentidos e dos instintos” (MURICY, 1973, p.
1039), pôde incorporar traços que perpassavam por inúmeras verten-
tes, desde perspectivas que se assemelhavam com o Trovadorismo
e a sua natureza lírico-amorosa e satírica até concepções poéticas
que interligavam dialogicamente com a tessitura densa da escritora
simbolista Florbela Espanca.
Esta afinidade também se deu por razões socioculturais, já que
é percebível a presença de conflitos internos e externos que abala-
ram as estruturas do subconsciente de ambas, fato que fez com que
os seus discursos, a partir dos seus processos de maturação social,
moral e psíquicos, tivessem como culminância expelir todas essas in-
tempéries e denunciar, por meio das estruturas que a literatura ofe-
receu, em seus respectivos espaços e tempos, aquilo que não cabia
mais em seus corações, sejam concepções a respeito da vida na so-
ciedade, das relações afetivas estabelecidas entre as pessoas ou dos
estereótipos construídos em torno de falsos moralismos.
Convém destacar que desde o período trovadoresco é tema re-
corrente nas cantigas, alimentadas pelo ímpeto de expressar aquilo
que não cabe mais no peito: indignações, recalques, traumas e senti-
mentos que perpassam a existência mundana.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 280


As relações de Gilka Machado com Florbela Espanca: o
símbolo como instrumento de ligação

“Inimiga do ensinamento, da declamação, da falsa


sensibilidade, da descrição objetiva, a poesia simbolis-
ta procura vestir a ideia duma forma sensível.”

(Jean Moréas)

Mesmo estabelecendo uma relação polifônica com a estrutura


estética e estilística trovadoresca, a poética de Gilka Machado, mais
especialmente personificada nos versos do poema Soneto, não é
apenas a única fonte que constitui a verve intimista e tocante da au-
tora. Percebe-se também pelos sentimentos poéticos de idealização
do eu transfigurados em Soneto, um diálogo pertinente com o liris-
mo telúrico da poetisa portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), que
traz em sua lírica uma simbolização do seu espaço terreno, atribuin-
do-lhe signos que transfigurem os seus sentimentos a elementos ou
forças da natureza, já que se percebe como o eu lírico é apegado aos
sentimentos do mundo e busca dentro dos elementos da natureza,
um refúgio e plenitude espiritual, onde as suas inúmeras indagações
acerca da paradoxal vida são conciliadas aos mistérios fascinantes
que pulsam no mundo, como nota-se nos versos de Desejos vãos,
presente no Livro de Mágoas (1919):

Eu queria ser o Mar de altivo porte


Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
(Florbela Espanca, in: Livro de Mágoas, , 2002, p. 32).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 281


E esse telurismo poético de Florbela Espanca já reflete a uma li-
gação com a lírica de Gilka Machado, já que ambas são atribuídas
ao movimento simbolista, mesmo que as autoras detivessem de po-
éticas que possuíam uma identidade própria e não se enquadravam
em um único movimento literário, pois discursivamente os seus tex-
tos se propuseram a denunciar e afrontar os moralismos, mostrando
as suas frustrações em relação à decadência da sociedade, por isso
os seus eu líricos buscam desenfreadamente um desejo pelo viver e
uma ânsia em explorar tudo aquilo que sensibiliza e humaniza a mu-
lher em seu interior. Como Gonçalves traz, afirmando que:

A obra poética de Florbela Espanca e Gilka Machado corresponde, na literatura


moderna de expressão portuguesa, a um sistema que, além de considerar e
respeitar a tradição pela forma inovou pelo tratamento estilístico e pelas ideias
que se manifestam no conteúdo de seus poemas. Ao dialogarem com a poesia
canônica, preferiram não destruí-la (uso constante de sonetos), mas procura-
ram transformá-la pela audácia de uma escrita feminina que se vê condicio-
nada e denuncia o condicionamento patriarcal que sofrem. Ambas denotam a
identificação com o desejo pela liberdade de expressão artística, cultural e hu-
mana, mostrando que a mulher do século XX anseia pela liberdade das amar-
ras que secularmente foram construídas pelo pensamento e domínio patriarcal
que a emparedam, tanto na esfera sexual quanto na sociocultural (GONÇALVES,
2012, p. 156).

Logo, vê-se por meio dessas observações como as autoras in-


corporaram em seus discursos poéticos uma elasticidade que ora se
confunde como uma afronta às canônicas estruturas de se produzir
um texto, ora se caracteriza como uma transgressão da própria lin-
guagem. Nessa concepção, entende-se que pelo poder libertador da
palavra, o ser pode expressar por meio de versos abstratos ou con-
cretos, tudo aquilo que incomoda eufórica ou angustiadamente a sua
ótica, e necessita transbordar pelo papel para conseguir apaziguar
esses sentimentos.
Defende-se aqui a tese de que tenha sido essa a intencionali-
dade de Gilka e Florbela enquanto poetisas, que conseguiram extrair

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 282


de cada fazer poético (tradicional ou não) a sua essência, capaz de
produzir uma poesia única e que mesmo se alinhando dentro de pa-
drões literários, não foi a única fonte de inspiração para compor as
suas poéticas.
E levando essa análise para a construção dos seus eu-líricos nos
poemas de Florbela Espanca - em especial nos textos presentes no
Livro de Soror Saudade (1923), percebe-se um eu lírico inquieto, con-
formado aparentemente com as suas questões existenciais e que, por
vezes, é controverso e vive em total sintonia com os sentimentos do
mundo, já que ele procura dialogar consigo e com o leitor, às nuances
que o amor provocou dentro de si e comparando de forma simbólica
e antagônica, o amor como a luz e as trevas ou como a aurora e o
crepúsculo, num movimento osciloso que revela a áurea do eu lírico e
conversa consistentemente com o poema Inconstância, do Livro So-
ror Saudade (1923) flertando com as características simbolistas de
expressão do sentido, que para De Nicola vem:

Em consequência desse subjetivismo, dessa valorização do inconsciente e do


subconsciente, dos estados d’alma, da busca do vago, do diáfano, do sonho e
da loucura, o Simbolismo desenvolve uma linguagem carregada de símbolos
(o tropos, isto é, o “desvio”, a mudança de significado de uma palavra ou ex-
pressão), em clara oposição a uma linguagem literária mais seca e impessoal.
(DE NICOLA, 1998, p. 218).

E essa construção do amor em especial no poema citado e que


será apresentado a seguir, se alicerça na frustração, porém ainda as-
sim é notável na composição semântica da voz lírica, uma esperança
remota de uma nova paixão, que aparecerá e causará do mesmo
modo, tudo aquilo que os outros amores causaram nesse eu lírico,
que mesmo consciente se submeterá a esse ciclo afetivo novamente,
já que para ele, isso se caracteriza como o processo natural da vida, e
contra isso, ele nada pode fazer. Se configurando na composição de
um eu lírico melancólico, conformado com a sua condição existencial

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 283


e consciente da sua natureza emociona, que mesmo sofrida não can-
sa de se deixar levar por mais um amor.
De maneira semelhante ao que acontece no poema Soneto, de
Gilka Machado, que associando o sonho ao ideal de beleza que o eu
lírico construiu, narra àquilo que esse vislumbre causou. Pois é no so-
nho que se pode construir todo o ideal de beleza e de amor, um ar-
quétipo perfeito de uma vida amorosa plena, intensa e acima de tudo,
verdadeira.

INCONSTÂNCIA

Procurei o amor, que me mentiu.


Pedi à Vida mais do que ela me dava;
Eterna sonhadora edificada
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,


E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...


Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo


É igual a outro amor, que vai surgindo,
Que há de partir também... nem eu sei quando...
(Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade, 2002, p. 50).

Então, com respaldo desses apontamentos analíticos, pode-se


estabelecer uma relação entre ambas às escritoras por meio da Lite-
ratura Comparada (LC), que nos ajuda na construção de sentido do

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 284


texto poético, já que nos possibilita uma margem para explorar aquilo
que está além do texto, ou como explica Croce (1994, p. 61) “A Lite-
ratura Comparada busca ideias ou temas literários e acompanham
os acontecimentos, as alterações, as agregações, os desenvolvimen-
tos e as influências entre as diferentes literaturas”. Nesse caso, como
acontece com Gilka e Florbela, assim como argumenta Gonçalves:

Ambas sofreram não apenas por serem mulheres, mas, principalmente, por
serem mulheres diferenciadas, por sentirem mais profundamente aquilo que
todas sentem e não percebem ou não querem perceber. Mais: elas sentiram e
expressaram esse sentimento. Hoje, a cada novo estudo, a cada nova aborda-
gem, qualquer que seja o ângulo abordado, verifica-se que um novo brilho é
acrescentado a essas artistas que foram “poeta/mulher”, que souberam ultra-
passar as barreiras de sua condição feminina e transcendentalizaram sua arte.
GONÇALVES (2012, p. 07).

Essas relações/aproximações entre essas duas culturas literárias


se dão pelas referências individuais de cada artista, que empirica-
mente absorvem aquilo que entra em contato com sua percepção
crítica (nesse caso a literatura), mas o contexto histórico de cada
autor também é um fator chave nesse processo, pois cada manifes-
tação literária perpassa por fatores sociais, e como Candido (2006)
diz depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra
em graus diversos de sublimação, produzindo sobre os indivíduos um
efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo,
ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da
própria natureza da obra e independe do grau de consciência que
possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.
E correlacionando Gilka Machado com Florbela Espanca, perce-
be-se que ambas são próximas no que diz respeito a raízes culturais e
vivências de percepção temporal de mundo, já que as escritoras nas-
ceram no final do século XIX, com curiosamente um ano de diferença
de Gilka, que nasceu em 1894, para Florbela que nasceu em 1893.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 285


Convém destacar também o fato de elas serem escritoras mu-
lheres e pioneiras na produção literária de sua época, num cenário
cultural composto histórico e culturalmente em maioria por homens,
que ainda reprimiam a aceitação de escritoras mulheres nesses âm-
bitos artísticos, tanto em Portugal (terra de Espanca) como no Brasil
(terra de Machado).
Além disso, ambas possuíram realidades de vida próximas e ti-
veram que suportar desde o início de suas trajetórias, inúmeras difi-
culdades sociais, que inviabilizaram a ambas poder enxergar o belo
que existia por trás do feio que rodeava as suas vidas, fato esse que
possibilitou a ascensão das duas à escola simbolista, que promovia
uma purificação dessas percepções tão marcadas pelas desgraças.
Observação que Coelho reitera, afirmando que:

Como se vê, são vozes de diferentes continentes e diferentes estágios de cultu-


ra, mas identificadas entre si (mesmo sem se conhecerem umas às outras) por
um denominador comum: a imagem ideal de mulher (pura, submissa ao poder
do homem) que está na base da civilização herdada e cujo modelo foi criado
na Idade Média, durante o grande movimento espiritualizador realizado pela
Igreja (COELHO, 2001, n.p).

Essas informações oferecem profundidade para dizer que Gilka


Machado dialoga ideologicamente com o campo imagético literário
de Florbela Espanca, já que ambas as autoras compartilharam das
mesmas lutas em prol da ascensão da mulher na sociedade e na lite-
ratura. Além disso, foram fatores essenciais porque fizeram com que
os seus discursos poéticos obtivessem o mesmo ponto de ignição e
de intencionalidade, já evidenciam aquilo que Barros (1994) ao anali-
sar os conceitos de Dialogismo e Polifonia realizados por Bakhtin, que
discute entre outras coisas, que o dialogismo é o espaço interacional
entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto.
E que falar do papel do “outro” na constituição do sentido é con-
firmar que nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de
outra voz. E isso se vê muito na produção literária de autoria feminina,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 286


sobretudo em Gilka e Florbela, já que a voz lírica feminina ao questio-
nar o seu local de fala e de estabelecimento social e existencial, torna
plural o seu discurso, que já está corroído por outras vozes ideológicas
que a fizeram refletir sobre essas questões.
Essa temática, levada para o campo da Literatura Comparada
perpassa pelo caráter de influência que diferentes autoras estabele-
cem (mesmo que inconscientemente) umas com as outras, relações
que se dão na maioria das vezes por fatores sociais que contribuíram
para a associação de suas vozes, tornando-as polifônicas e encaixá-
veis nos diferentes contextos que foram veiculados, pois a “influência
é o resultado artístico autônomo de uma relação de contato, enten-
dendo- se por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fon-
te por um autor”. (NITRINI, 2000, p. 127).
BOSI (2014, p. 279) ao explicar as características do simbolismo
explica que “o símbolo, considerado categoria fundante da fala hu-
mana e originariamente preso a contextos religiosos, assume nessas
correntes a função-chave de vincular as partes do Todo universal que,
por sua vez, confere a cada uma o seu verdadeiro sentido”. Por esse
motivo o símbolo liga as duas autoras e possibilita uma percepção
mais plena de suas verves poéticas, onde de um lado encontra-se
Gilka Machado, que enxerga no símbolo a possibilidade de subversão
da realidade, numa transição para além e aquém do eu, que imergi-
do por dogmas e correntes ideológicas que o constrói, não internaliza
proficuamente todos os sentimentos do mundo, desconfigurando a
sua própria natureza perceptível.
Em Castelã de Tristeza de Florbela Espanca, poema presente no
do Livro de Mágoas (1919), vê-se como o eu lírico vislumbra o sím-
bolo como uma espécie de reduto para uma melhor sistematização
dos sentimentos mais intensos que correm em suas entranhas, se
apropriando de metáforas imagéticas e sonoras, que atribuem um

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 287


sinestésico sentido àqueles sentimentos subjetivos, que perdidos no
labirinto da mente, só puderam ter vazão sintática e semântica, por
meio desses recursos estéticos e estilísticos utilizados nos pormeno-
res poéticos da autora, reconfigurando a representatividade do feio,
que transvestido do obscuro e do interdito, agora detém de uma nova
roupagem que não o expurga do cativeiro do não poético, colocando
paradoxalmente uma singela beleza em versos marcadamente crus.

Altiva e couraçada de desdém,


Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor...
E nunca em meu castelo entrou alguém!

E essa reconfiguração dos efeitos estéticos e estilísticos dentro


de uma poética que almejava dar beleza a sentimentos negativos
foi de afronte àquilo que, no início do século XX, tanto em Portugal
quanto (principalmente) no Brasil o Modernismo buscava: criar um
novo fazer poético que não se enquadrasse nas antigas estéticas. E
Florbela Espanca, assim como Gilka Machado não decidiram seguir
por esse caminho, ao invés disso, procuraram dar novos sentidos as
suas composições simbolistas, mesmo que discursivamente as suas
poéticas trouxessem uma nova perspectiva de liberdade da voz femi-
nina, que se enquadravam dentro de um viés mais progressista, que
inegavelmente perpassava por alguns traços do Modernismo. Ainda
nessa perspectiva, Gonçalves diz que:

Florbela Espanca e Gilka Machado ousaram ser diferentes numa época em que
o Modernismo condenava toda e qualquer relação da literatura com aquela
praticada no século XIX, pois preferiram dar continuidade ao Simbolismo, numa
espécie de neossimbolismo, tanto que, nas raras vezes que são referenciadas
pela historiografia, figuram como anacrônicas, principalmente pelo tratamen-
to que dão aos temas, geralmente simbólicos e altamente metafóricos, e pela
forma expressional (GONÇALVES, 2012, p. 5).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 288


Portanto, essas verves e composições literárias são os principais
expoentes de consolidação, aceitação e inclusão de uma poesia fe-
minina, sobretudo de cunho lírico-amoroso ou erótica, dentro de uma
literatura canônica, seja ela no Brasil ou em Portugal no início do sé-
culo XX, fazendo com que as lutas travadas há séculos para desmar-
ginalizar a expressão desses sentimentos e incompreensões do mun-
do, começassem a ter mais espaço dentro do cenário literário das
culturas ocidentais.
Estabelecendo, enfim, mesmo que paulatinamente, um local de
fala para as escritoras mulheres dentro da produção literária de suas
culturas, que, a partir disso, puderam propagar os seus discursos sem
censura ou repressão.

O cruzamento de vozes em Soneto

“Tenho apenas minhas mãos


E um tesão maior que o mundo.”

(Simone Teodoro)

Após constatar por meio de uma análise estrutural e estilística as


relações entre Gilka Machado e Florbela Espanca, faz-se necessária
uma reflexão analítica e histórica sobre os elementos dialógicos que
influenciaram de forma direta ou indireta no processo de criação lite-
rária de Gilka Machado.
Conforme o que foi discutido anteriormente, está amalgamada
em inúmeros discursos e vertentes literárias, fazendo com uma poesia
esteticamente organizada e que não abre mão dos efeitos estéticos
canônicos, fosse colocada a serviço de formas de ressignificação do
signo linguístico, tornando a experiência estética plástica justamen-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 289


te por meio do retorno, que absorve mesmo que involuntariamente,
traços estéticos característicos de outros períodos histórico-literários,
como é o caso do Trovadorismo. Para fundamentar essa observação,
Cara externa que:

Através da criação poética, o poeta vai além do que seria uma simples respos-
ta às doutrinações estéticas e ideológicas de sua época. O que faz a verdadei-
ra poeticidade de um texto é que nunca ele obedece servilmente a quaisquer
diretrizes racionais e teóricas, mas estabelece uma constante tensão com as
mais amplas potencialidades da expressão, fazendo-as vir à tona no discurso.
(CARA, 1989, p. 26).

Desse modo, vê-se por meio das imbricações que a própria na-
tureza do discurso poético estabelece com outras linguagens, como
essas interferências moldam e estão manifestas no âmago de Sone-
to, que recebendo traços característicos da lira provençal torna-se
um texto polifônico, capaz de se enraizar no subconsciente coletivo e
ser atemporal dentro do espaço-tempo, pois seus versos falam da-
quilo que é inerente ao ser humano e próprio de sua natureza biológi-
ca. Sentimentos que perpassavam pelos reclames do amor e/ou ódio,
pela empolgação e/ou decepção e que de alguma forma, estão pre-
sentes dentro do processo de maturação de cada pessoa, indepen-
dente de sexos, raças, épocas, culturas e religiões. Segundo Barros:

Discurso poético, por sua vez, é aquele que instala internamente, graças a uma
série de mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e as contradições
dos conflitos sociais. Observa-se que se considera poético qualquer discurso –
poesia, pintura, dança e outros – que apresente as características polifônicas
mencionadas. (BARROS, 1994, p. 06).

Assim, Soneto se apropria dessa perspectiva e formula, por meio


do discurso universal dos sentimentos afetivos, uma ressignificação
daquilo que estava ou está latente no intrínseco de muitas mulheres,
sejam em sua época ou em séculos passados, servindo também para

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 290


a posteridade, já que essas discussões são atemporais e recorrentes
em cada sujeito exposto a vivência da vida em suas plenitudes e tur-
bulências; sensações diversas, vontades transcendentais, vislumbres
libidinosos e tensões individuais.
Características essas que o Trovadorismo, em suas líricas proven-
çais, se propôs a disseminar e contaminar a sua geração, afrontando
principalmente a religião e o seu poder de estabelecer os padrões
morais de uma sociedade. Este fato que fez com que as liras proven-
çais e as de cunho erótico, (mesmo sendo desenvolvidas inicialmente
pelos nobres do século XII) fossem alocadas nas características das
Cantigas de Escarnio e Maldizer, mais ligadas ao caráter satírico e de-
nunciativo do que lírico amoroso. Assim como Cara (1989) ratifica, ex-
pondo que a linhagem mais erótica e realista da poesia amorosa não
foi considerada lírica, pois retratava a vida social mundana da época.
Ainda segundo Cara, que ao discutir as origens da poesia lírica
provençal tenta traçar um argumento que seja coerente com a ex-
plicação da marginalização dessa categoria trovadorescas, aborda
que:

Os poetas medievais não podiam dar asas à paixão de tons arrebatados e eró-
ticos, pois, de modo geral, a moral cristã tratava de organizar as relações amo-
rosas. Essa, pelo menos, é a visão convencional que se tem da lírica provençal,
entendida como uma lírica de idealização amorosa. (CARA, 1989, p. 20).

Dentro dessa perspectiva, não é estranho de se dizer que a mes-


ma marginalização que a lírica provençal sofreu no auge do Trovado-
rismo na Idade Média se repetiu na carreira de Gilka Machado, pois-
mesmo estando inserida num movimento literário que apreciava as
métricas canônicas e o efeito estético, foi deslocada para uma cate-
goria mais reprimida na Literatura Brasileira, já que seus textos, assim
como as líricas provençais trovadorescas, propuseram-se a expor a
mais límpida representação dos sentimentos internos que agitavam

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 291


a percepção biológica e sexual de uma mulher, indo contra a maré
dos dogmas ideológicos impostos pela sociedade e suas instâncias
de construção de valores.
Como nos versos da última estrofe do poema Ânsia múltipla, do
livro Mulher Nua (1922), que ratificam essas leituras ao trazer o desejo
de um eu lírico pela contemplação máxima de sensações reprimi-
das; sentimentos alimentados em silêncio nos corredores da vida e
que acenderam a chama de muitas outras mulheres, mas não foram
consumados pela repressão criada em cima dos desejos amorosos.

Beija-me mais, põe o mais cálido calor


nos beijos que me deres,
pois viva em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!...

Assim como foi com Florbela Espanca, que com a sua poética
obscuramente lânguida agitou a Literatura Portuguesa do início do
século XX e instaurou uma nova percepção a cerca da produção li-
terária feminina, já que os seus textos eram carregados de imagens
fortes que despersonalizavam a figura doce da mulher, revelando as
cicatrizes que a sociedade em toda a sua conjuntura histórica tinham
deixado no inconsciente de muitas mulheres, marcas de uma ilusão
criada por culturas que alimentavam e cultuavam o arquétipo de
uma vida perfeita, onde o afeto em todas as suas instâncias, era o ali-
cerce que sustentava as relações, como nos versos da última estrofe
do poema Eu, presente em o Livro de Mágoas (1919).

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,


Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 292


Contudo, esse castelo de vidro idealizado por muitas mulheres,
vinha a baixo no momento que as famílias eram estabelecidas e os
abusos físicos, as traições em demasia e o enjaulamento psicoló-
gico começavam a acontecer, revelando fatidicamente a real face
que permeava o convívio da tida família tradicional, que oprimia e
colocava a mulher em posição de submissão perante a sua própria
condição existencial, deixando-a vulnerável à solidão, decepção e há
longo prazo, a predisposições a depressão e ao suicídio.
Para que essas percepções comparativas entre Gilka e Florbela
fiquem mais evidentes, Gonçalves argumenta que:

Ao absorverem o legado tradicional e canônico, Florbela e Gilka introduziram o


erotismo ativo nas imagens que se referem ao relacionamento amoroso entre
homem e mulher, ao desejo feminino jamais satisfeito de uma relação plena, às
perdas constantes que o desejo e a luta pela liberdade produz, à luta contra a
cultura da dominação do macho e suas consequências, ao desejo de reconhe-
cimento numa realidade que não considera, e por isso exclui, mulheres diferen-
tes (GONÇALVES, 2012, p. 156).

Ademais, é notório de se visualizar como a poetisa Florbela Es-


panca levou essa transgressão poética durante toda a sua carrei-
ra literária, instaurando a sua marca na luta por uma liberdade de
expressão que englobasse não só os discursos idealizados sobre a
cosmovisão romântica de um mundo perfeito, mas sim daquilo que
representava o que estava oculto dentro dos estereótipos sociais; a
perversão, a libidinagem e todas as agitações carnais que eram tidas
como profanas e imorais aos olhos da sociedade, mesmo sendo fato-
res biológicos inerentes da natureza humana. Ainda nessa perspecti-
va, Lourenço, Alves e Samyn expõem que:

O erotismo, na poética de Florbela Espanca, é um dos desdobramentos mais


intensos de suas ânsias amorosas; isso ocorre porque, para ela, o amor – ainda
que seja complexo e contraditório – surge associado ao sentido da vida, o que
a faz buscar sua plenitude no Outro, no amado. Essa poetisa dá voz aos senti-
mentos e às frustrações que eles deflagram em seu íntimo, manifestando o que
não era concedido às mulheres de seu tempo – uma vez que a condição da

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 293


mulher, sujeita às opressões impostas pela cultura patriarcal, ainda era restrita
dentro da sociedade, estando-lhe reservadas as expectativas do matrimônio e
da maternidade (LOURENÇO; ALVES; SAMYN, 2017, p. 195).

E essa lânguidez florbeliana é percebida ao modo em que a cons-


trução do eu lírico em Soneto vai tomando rumos mais melancólicos,
associadas à desilusão que esse eu lírico tão frustrado em relação a
esse amor, traz em suas vociferações. Mesmo o poema não contendo
nenhum traço erótico, e sim, trazendo apontamentos sobre as ten-
sões amorosas que esse desejo gera no eu lírico, que dialoga com o
erotismo florbeliano ao modo em vai apresentando as ânsias amoro-
sas dessa voz.
Argumentos que induzem, mesmo que modo fatídico, que esse
sentimento idealizado ainda permanece aceso e incompleto, pois
ainda mexe com o interior desse ser, principalmente na última estrofe,
que mostra o quanto esse eu lírico tem consciência da destrutividade
desse sentimento em sua vida. E essa a razão que o faz clamar por um
afastamento definitivo, que o deixe abandonado ao seu próprio desti-
no e aos danos que a posterioridade venha a causar em seu solitário
e sensível coração, já tão vencido pelos desenganos.

Enfim, vencida pelos desenganos,


como quem nada espera que lhe farte
a alma faminta, exausta de sonhar-te,
abandonei-me do destino aos danos.

(Segunda estrofe)

E, em lágrimas, minha alma conjetura:


uma felicidade retardada
quase sempre se torna desventura.

(Última estrofe).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 294


Portanto, ao perceber essas relações de Soneto, pode-se enten-
der as diferentes formas do desejo feminino inscrito na palavra po-
ética como engajamento social de uma voz reiterada no corpo e na
ação do desejo. Ao enquadrar, assim, esses sentimentos latentes em
ambas as autoras, não em uma postura inadequada de um com-
portamento inadequado, e sim como uma condição inerente do ser
humano, entende-se que essas tensões amorosas se caracterizam
como um sentimento oriundo dos estímulos genéticos, mas que atri-
bui aos mesmos um campo de significação, pelo qual se instaura
uma presença marcadamente libertadora do ser, como se compre-
ende na poética feminina até aqui estudada.
E na poesia de Gilka Machado e Florbela Espanca essa linguagem
apresenta a natureza de um feminino em suas singularidades: expon-
do as suas mais intensas particularidades e turbulências existenciais.
Como se ver em Ser mulher, de Gilka Machado, poema presente no
livro Cristais Partidos (1915) e que traz à luz uma leitura liricamente
crua a cerca de como a mulher vivia e enxergava o seu mundo; cheio
de enclausuros, esperanças, utopias e desilusões, revelando as en-
trelinhas daquilo que incomodava a sua existência e questionando o
que de fato é ser mulher em sua sociedade.

SER MULHER

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada


para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada


para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 295


Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!


ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

(Gilka Machado, In: Cristais partidos, 1915).

Esse poema faz com que todos os tipos de leitores, tracem men-
talmente uma reflexão acerca da sua própria identidade, mesmo es-
ses leitores sendo homens e não tendo nenhuma relação com aquilo
que vive e passa uma mulher. Porém nesse momento, a poesia de
Gilka torna-se uníssona e dá a possibilidade do leitor de se colocar no
lugar da mulher, tomando para si os questionamentos e a sua condi-
ção humana, contrariando assim as premissas das Cantigas de Amor
e viabilizando um contato mais sublime com a realidade implícita no
texto, que para Silva (2017) vem da essência da poesia, pois ela é a
expressão mais singela e crua da alma humana e o poema é apenas
um mecanismo para que tal manifestação seja organizada, tendo em
vista o objetivo da comunicabilidade, já que ali se encontra um orga-
nismo vivo que reflete o seu interior mais puro, sendo nesse caso um
espelho do eu.
Percebe-se também essa vontade de expressar em totalidade
tudo que inflama a alma, nos versos de Amar, presente no livro Char-
neca em Flor (1930) que traz a voz lírica de uma Florbela Espanca livre,
dedicada a viver em sintonia com tudo aquilo que amor proporcionar,
sem distinção ou nada que o subjugue, deixando em evidência, pela
própria colocação sintática do verbo Amar, como título do poema, a
sua intenção de não se apegar a um objeto em especifico, e sim a
tudo e todos que despertarem o seu interesse.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 296


AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente!


Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...


Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:


É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada


Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

(Florbela Espanca, In: Charneca em Flor, 1930, p. 77).

Esse poema é um chamamento para a vida, dentro uma perspec-


tiva que flerta com as premissas da filosofia niilista, que prega, entre
outras coisas, a insignificância do ser humano e a falta de sentido, pro-
pósito ou valor na vida, afirmando que nenhuma postura inadequada,
imoral ou que fuja dos padrões que sociedade impôs mudará rumos
da sua existência, já que no final voltaremos ao pó de que viemos.
Assim, percebe-se por meio das leituras dos poemas e da inten-
cionalidade que eles carregam o revestimento da sentimentalização
em Gilka Machado e do erotismo em Florbela Espanca, que as suas
abordagens temáticas são de um caráter mais humano e desenqua-
drado da linha do banal e do ilícito, como se observa na segunda es-
trofe do poema Frêmito do meu corpo a procurar-te, presente no livro
A Mensageira das Violetas (1999):

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 297


Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

O que dá margem para dizer que tudo isso aplicado na poesia


de Gilka Machado e Florbela Espanca é uma ferramenta contra o pre-
conceito, o machismo e a opressões da sociedade em achar que a
mulher não detém da capacidade de sentir a plenitude da vida em
todas as suas nuances. E as autoras, assíduas em querer quebrar com
esses estereótipos, fazem ao contrário, mostrando como a mulher é li-
vre e pode sentir tudo o que quiser, sendo esta a sua essência e aquilo
que a faz querer viver em sintonia com a liberdade e com a natureza.
Nessa premissa, é por meio desses revestimentos amoroso-eró-
tico que a mulher terá voz toante para denunciar esses enclausuros,
sendo essa voz plural e dialógica, como identificamos nos poemas a
partir de representações distintas das tensões amorosas ou libidinais,
mas interligadas pelo mesmo objeto, o desejo feminino.
Segundo Barros (1994, p. 3), o dialogismo se estabelece a partir
do momento em que “o sujeito perde o papel de centro e é substituí-
do por diferentes (ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um
sujeito histórico e ideológico”.
Gilka Machado e Florbela Espanca exerceram mais do que uma
poesia de cunho intimista, que as possibilitava de retirar, das entra-
nhas do seu interior, tudo aquilo que despertava os seus estímulos, e
sim uma poesia libertária, que instauraria um veículo onde outros se-
res (nesse caso mulheres) pudessem compreender as idiossincrasias
que perpassavam pelo âmago de sua carne, dando-os (as) a possi-
bilidade de transgressão e transcendência por meio do texto poético.
Mesmo escrevendo em épocas ainda tão dependentes de uma
literatura machista, que, em geral, esquivava-se de apresentar a figu-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 298


ra da mulher em sua totalidade, insufla a voz do corpo como marca
de uma existência inscrita, pressupostos estes que as duas autoras
duramente enfrentaram com consistência ao longo de suas carreiras
literárias. Ambas foram marginalizadas por seus escritos subversivos
e tidas para alguns poetas e críticos da época, como “escandalosas
demais”.
Afirmações essas que levavam apenas o alicerce ideológico do
moralismo conservador do início do século XX, que em nada condizia
com a lírica de ambas, que entre outras coisas, buscava resplande-
cer os sentimentos mais abstratos e intensos que povoam a sua exis-
tência, tal vã e reles que só adquiria personificação categórica, pelas
perspectivas simbólicas que transcendiam o significado das palavras.

Conclusão

Através deste trabalho, extrai-se a poética transgressora de ver-


ve simbolista de Gilka Machado, que dialoga pertinentemente com o
lirismo intenso da poetisa portuguesa Florbela Espanca, já que ambas
detêm de um campo de percepção imagética semelhante no que
diz respeito aos sentimentos do mundo, haja vista que além do fato
de terem sido escritoras mulheres, numa época marcada por tran-
sições ideológicas no cenário político, religioso e, principalmente, no
campo das vanguardas literárias que, vislumbradas pela plasticida-
de modernista, menosprezavam as suas composições de estéticas
parnasianistas e simbolistas, as quais autoras carregaram até o final
de suas vidas. A pesquisa mostra que essas inúmeras relações de re-
ferencial poético de Gilka Machado possuem um pulso forte com as
perspectivas dos movimentos e períodos da Literatura Portuguesa.
Para se chegar nesses resultados, foram necessários inúmeros
referenciais bibliográficos sobre a vida e obra de Gilka Machado e

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 299


Florbela Espanca, bem como um estudo sincrônico de todas as ca-
racterísticas do Trovadorismo, do Simbolismo e de outras escolas e
períodos literários, almejando traçar caminhos que liguem a poéti-
ca de Gilka Machado com traços da Literatura Portuguesa presentes
nas Cantigas Trovadorescas do século XII e no simbolismo telúrico de
Florbela Espanca, que resgatam os signos da natureza para refletir as
suas inquietações e indagações a respeito do seu mundo.

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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 301


CAPÍTULO 15

O maravilhoso em “A Bela e a Fera”:


uma análise comparativa
do conto ao cinema
Andressa Rayane de Brito Barbosa Costa

DOI: 10.52788/9786589932369.1-15
Introdução

Histórias de jovens princesas que precisam passar por algumas


desventuras (uma madrasta malvada, irmãs invejosas, encantos fei-
tos por fadas e etc.) para poder encontrar o amor junto ao seu prín-
cipe encantado rompem os limites espaço-temporais e conquistam
crianças e adultos a vários séculos, essas narrativas são os contos de
fadas. Nesse tipo de narrativa, é observável a indissolubilidade das
categorias do tempo e do espaço, visto que o tempo é componente
fulcral para a constituição dos personagens, enquanto o espaço é a
área de desenvolvimento da ação. Nos contos de fadas, “o tempo se
derrama no espaço e flui por ele” Bakhtin (2013, p. 142), isto é, espaço e
tempo agem de forma inseparável, um permeando no outro. Em suas
muitas caracterizações acerca dos cronotopos Bakhtin (2013) elenca
um fundamental para este tipo de narrativa: o cronotopo do encontro.
É por ele que as desventuras vivenciadas pelos personagens dos con-
tos de fadas têm seus caminhos abertos para os nós narrativos que
os levarão ao desfecho.
Em 1757, foi publicado na revisa Le Magasin des Enfants, desti-
nada às jovens francesas, o conto “A Bela e Fera”, pela Madame Je-
anne-Marie LePrince de Beaumont. Nessa história, conhecemos a jo-
vem Bela, filha mais nova de um rico negociante, que vivia junto a ele
e seus seis irmãos, três homens e três mulheres. Por ser tão bonita,
sempre era chamada de bela, o que despertava em suas irmãs mais
velhas muito ciúmes. Em uma viagem de negócios que não deu cer-
to, seu pai encontrou um belo castelo que continha uma roseira, e ao
lembrar-se do pedido de Bela, colheu uma flor para ela. O que ele não
sabia era que ali vivia uma fera que, considerando o ato desrespeito-
so, jurou matá-lo, após pedidos de perdão e súplicas, a Fera permitiu
que ele voltasse para sua casa com a condição de trazer uma outra

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 303


pessoa para morrer em seu lugar. O velho homem voltou para casa e
contou o que havia passado, Bela decidiu que enfrentaria a Fera para
que seu pai continuasse vivo.
Ao chegar no castelo, a moça conhece a Fera que, posteriormen-
te, apaixona-se por ela. Entretanto, Bela não compartilhava do mes-
mo sentimento, pediu-lhe, então, que a deixasse voltar para sua casa,
pela última vez, para rever seu amado pai. A Fera permitiu que ela
partisse, deu-lhe um anel para que assim que estivesse pronta pu-
desse retornar ao palácio apenas colocando-o, mas a avisou que se
não voltasse, morreria de sofrimento. Com felicidade, a jovem moça
foi recebida por seu pai e com inveja por suas irmãs que, agora casa-
das, não compartilhavam da alegria e riqueza as quais Bela detinha
em sua nova casa; por este motivo, elas armaram um plano para que
a doce menina permanecesse na casa do pai por um tempo maior e
assim a Fera ficasse furiosa com ela.
Os dias foram passando até que Bela viu em seus sonhos a sua
querida Fera definhando em seu jardim. Atordoada, ela colocou o anel
e voltou ao palácio. Ao voltar e perceber que seu sonho estava prestes
a se tornar uma realidade, a jovem moça resolveu aceitar os vários
pedidos de casamento e ao pronunciar essas palavras o horrendo
monstro desaparecera e em seu lugar havia um belo jovem que con-
tou ter sido amaldiçoado por uma fada e seu infortúnio só seria que-
brado quando uma linda moça aceitasse desposá-lo.
Em 2019, a Walt Disney Pictures traz essa história já tão consa-
grada em live-action. Com algumas modificações, conhecemos a jo-
vem Bela, que vive numa pequena vila junto ao seu pai, sem irmãos a
moça é tida como “estranha” pelos demais moradores por seu amor
à leitura e todo seu conhecimento. Assim como na história da Ma-
dame de Beaumont, a Bela vai para o palácio da Fera tornar-se uma
prisioneira para livrar seu pai, mas lá conhece objetos com vida que

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 304


atuam como os funcionários do palácio. No fim, o amor entre a Bela e
a Fera quebra o encanto feito por uma feiticeira e a Fera revela-se em
um belo príncipe.
A história do amor entre uma fera e uma bela jovem tem sua ori-
gem nos contos populares, é, portanto, uma narrativa pertencente
a tradição oral, podendo ser relatada por qualquer pessoa até, com
o passar dos tempos (e com várias modificações) ser colocada na
escrita. Esses relatos orais carregam consigo mundos místicos, ele-
mentos que não são possíveis ao real: fadas, bruxas, monstros, en-
tre outros. A essa criação de um mundo particular que naturaliza o
sobrenatural chama-se de maravilhoso, gênero que não apresenta
substâncias da realidade cotidiana, e, tampouco, possui feitos sobre-
naturais que causem estranheza aos personagens.
À vista disto, este trabalho busca compreender as ações do ma-
ravilhoso representado, em principal, pela figura da fada no conto “A
Bela e Fera” e sua construção no filme da Disney. Para isto utilizar-se-
-á como corpus o conto escrito pela Madame LePrince de Beaumont
e o live-action de 2019 produzido pela Walt Disney Pictures.

A construção do maravilhoso

O conto maravilhoso caminha pelos limites do tempo, propagan-


do-se sem que, de fato, haja uma perda na sua formatação básica.
De acordo com os estudos de Tzevan Todorov (1975) o maravilhoso
seria como um acontecimento do qual não se conhece “o maravilho-
so corresponde a um fenômeno desconhecido, ainda não visto, o por
vir: por consequência, a um futuro” (1975, p. 24). Caracterizado pelo
estudioso (1975) como um gênero o Maravilhoso tece particularida-
des se comparado ao real, visto que nele pode-se observar a presen-
ça do sobrenatural sem que haja uma influência nos personagens,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 305


isto é, não uma implicação nas reações vivenciadas nas pessoas que
são relatadas nas histórias tampouco ao leitor implícito delas. Sobre
essa relação Todorov (1975) fala que:

Costuma-se relacionar o gênero do maravilhoso com o do conto de fadas; em


realidade, o conto de fadas não é mais que uma das variedades do maravi-
lhoso e os acontecimentos sobrenaturais não provocam nele surpresa alguma:
nem o sonho que dura cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos
das fadas (para não citar mais que alguns elementos dos contos de Perrault)
(TODOROV, 1975, p. 30).

Propp (2001), em seu livro que dialoga sobre o conto maravilhoso,


afirma que noções espaciais e temporais dos contos maravilhosos se
dissemelham do que nos é comum, “podemos lembrar que no conto
maravilhoso domina um conceito de tempo, de espaço e de número
completamente diferente daquele a que estamos acostumados e que
tendemos a considerar absoluto” (2001, p. 133). Já sobre os persona-
gens, o autor (2001) categoriza sete tipos: antagonista (ou agressor),
mandatário, doador, auxiliar, princesa e seu pai, herói e falso herói. A
partir disso ele enumera trinta e uma ações frequentes dos perso-
nagens as quais ele configura como “partes fundamentais do conto
maravilhoso” (PROPP, 2001, p. 17).
Essas noções que permeiam a construção do maravilhoso não se
fixam apenas nos textos literários, com o passar dos tempos ele pas-
sou a caminhar e conhecer outros meios a exemplo das representa-
ções cinematográficas que passaram a manifestar o aparecimento
do que antes era domínio apenas da literatura e dos mitos.

Entretanto, o maravilhoso, que comparece inicialmente na literatura dos mitos


e tem nela seu berço, foi ganhando complexidade ao longo do tempo e, dessa
maneira, atingiu maior amplitude na medida em que abriu seus tentáculos e
se adequou a outras formas de representação. Podemos notar a presença do
maravilhoso em outros tantos sistemas de linguagem, não só artísticos, como
se vê no teatro, no cinema e na pintura, como também no religioso, além de ter
implicações políticas e econômicas [...] (MARINHO, 2006, p. 4).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 306


O que, anteriormente, era feito de forma primitiva com aparelhos
de projeção ainda muito obsoletos, e com o teatro de sombras chi-
nesas ganhou uma nova forma de atuação com a constituição das
câmeras cinematográficas dos irmãos Lumière:

Antes da invenção do cinematógrafo tínhamos a arte da animação, realiza-


da não só por primitivos aparelhos de projeção, como também pelo teatro de
sombras chinês e outras formas que visavam criar uma ilusão do movimento,
encontrando seu apogeu na Lanterna Mágica, no século XVIII. A partir da câme-
ra cinematográfica pelos irmãos Lumière, desenvolve-se o cinema de anima-
ção propriamente dito, que ocupa o lugar soberano do maravilhoso na moda-
lidade cinematográfica. (MARINHO, 2006, p. 49-50).

É neste espaço fértil que o maravilhoso encontra caminho para


sair da sua versão de contos clássicos e ir para as telas de cinema,
ganhando uma significativa relevância nas animações. Histórias já
bastante conhecidas a alguns séculos que seguem nas lembranças
de crianças e adultos ganharam uma construção visual, com perso-
nagens e animais que conversavam entre si, com músicas que per-
passavam toda a narrativa e com um “felizes para sempre” entre a
princesa e o príncipe.

O maravilhoso se prenuncia nessa modalidade de cinema, encontrando aí um


terreno fértil que possibilitaria mais tarde uma tradução perfeita dos contos,
permitindo adaptações de histórias clássicas, das quais foi precursor o célebre
Walt Disney. É de sua autoria o primeiro longa-metragem animado, Branca de
Neve e os Sete Anões, resultando daí muitos outros, como Cinderela, A Bela e a
Fera, Pinóquio... (MARINHO, 2006, p. 49).

O maravilhoso, assim, encontra no cinema um novo meio de pro-


pagação. Um novo mundo é inventado em que, com a ajuda de efei-
tos especiais, objetos criam vidas, animais podem falar e homens po-
dem se metamorfosear em diversas feras. E, assim, podemos observar
a união entre a linguagem oral e visual, a movimentação imagética,
contribuindo para trazer aos espectadores a impressão de um mun-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 307


do desconhecido e mágico que está sendo representado ao alcance
da sua visão.

“A Bela e a Fera” ao longo do tempo

A Madame Villeneuve apresentou a história da Bela e da Fera que,


posteriormente, serviu para a Madame de Beaumont como um esbo-
ço para o seu trabalho. Ela passou a conhecer esta narrativa quando,
em uma viagem de barco, os passageiros relataram algumas histó-
rias, dentre elas foi contada a versão que, mais tarde, fora retomada
pela Madame de Villeneuve.

Elle a pris connaissance de l’histoire de La Belle et la Bête pendant un voyage en


bateau en direction de Saint-Dominique. Chaque passager énonçait une série
de contes lors de la traversée; celui de La Belle et la Bête est introduit par une
femme de chambre: Mlle de Chon. La version du conte de Mme de Villeneuve
reprend ce conte. Il y a la Belle, la cadette d’une famille de douze enfants com-
posée de six frères et cinq sœurs. Mme de Villeneuve représente son héroïne
comme une jeune fille généreuse, jolie et dotée d’un grand courage (PRINCIVAL-
LE, 2016, p. 35-36)

Nesta construção da estória, a Madame apresenta a Bela como


uma moça generosa e bonita, enquanto a Fera era um monstro que
tinha escamas por todo o seu corpo, tromba que se assemelhava a
de um elefante, e não possuía graça alguma. O castelo continha ele-
mentos peculiares, os manobristas foram transformados em estátuas
e macacos enquanto os papagaios atuavam como empregados a
serviço de Bela.
Toda a história de amor entre a Fera e a Bela é apresentada na
primeira parte, já na segunda conhecemos a rivalidade que existia
entre as fadas. Bela tinha uma tia fada que a levou para a família do
comerciante adotá-la, como um plano para salvá-la da fada má, a
qual transformou o príncipe em Fera, que é, na verdade, o primo de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 308


Bela. No final, o “felizes para sempre”, mostra Bela e Fera livres do feiti-
ço da fada do mal voltando para o reino do príncipe.

Le conte de Mme de Villeneuve peut être décomposé en deux parties. La pre-


mière partie concerne l’histoire d’amour entre la Belle et de la Bête, la deuxiè-
me est dédiée à la rivalité des fées, à leurs bizarres habitudes et aux origines
de la Belle. Celle-ci est en effet la fille d’un roi et d’une fée. La tante de la Belle,
également fée, l’a fait adopter alors qu’elle était encore petite, par la famille du
marchand pour la sauver de la méchante fée qui transforma le prince en Bête.
Celui-ci n’est autre que le cousin de la Belle. Le conte se termine avec la réunion
de la Belle et la Bête, libérée de son sortilège, sur la punition de la méchante fée
et le retour au Royaume du prince (PRINCIVALLE, 2016, 37-38).

A Madame de Beaumont reconta essa história, inspirada por ou-


tras versões. Seu objetivo era ensinar jovens moças a língua francesa,
por esse motivo fazia uso de uma linguagem simples. Com uma ver-
são bem mais enxuta a Madame de Beaumont ignora muitas partes
que havia na versão da Madame de Villeneuve: descrições feitas dos
encantamentos que existiam no palácio, sonhos em que a Bela en-
contra o príncipe, episódios sobre o passado da Fera e o mundo das
fadas. Entretanto, a essência da obra, o amor entre a jovem moça e
um monstro horrendo é mantido.
Como dito o objetivo da Madame de Beaumont era de cunho pe-
dagógico, visto que essas narrativas eram mecanismos para trans-
mitir valores moralizantes das sociedades e, assim, solidificar todo um
conjunto de comportamentos a serem propagados em diferentes ge-
rações. Por este motivo, ela suprimiu todas as passagens que acredi-
tou conter caracteres eróticos, retirando-os da sua versão e deixando
o texto mais leve, sem elementos que poderiam ser “perigosos” para
a educação das jovens moças.

Chez Mme de Villeneuve la Bête demande à la Belle si elle accepte de coucher


avec lui ; Mme de Beaumont, qui écrivait pour de très jeunes enfants a décidé
d’en faire une proposition de mariage. Mme de Beaumont supprime donc l’éro-
tisme contenu dans la version de Mme de Villeneuve. Elle adoucie le conte et éli-
mine tous les éléments qu’elle considère inutiles ou dangereux pour l’éducation

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 309


de ses jeunes filles. Elle exclût toute allusion à l’union sexuelle de la Belle avec la
Bête ainsi que toute allusion à l’érotisme naissant de la Belle qui tombe amou-
reuse d’un bel inconnu qu’elle retrouve toutes les nuits en rêve. Le conte doit être
pur, vertueux et moral du moment qu’il a pour principale fonction d’éduquer de
jeunes enfants (PRINCIVALLE, 2016, 40).

A configuração dos personagens também é alterada, a Madame


de Beaumont, deixam vagas as características do monstro, prezan-
do que o seu leitor construa a imagem da “figura horrenda” como o
menciona. Sobre Bela é enfatizada sua beleza, bondade e coragem,
diferenciando de suas irmãs invejosas e maldosas.
Assim, com tantas diferenças, as duas versões carregam em co-
mum o amor entre a jovem e o monstro que se iniciou de uma for-
ma, no mínimo inusitada. Com um caráter mais moralizante e voltado
para o público mais juvenil, a versão escrita pela Madame de Beau-
mont adquiriu uma maior notoriedade, se comparada a escrita pela
Madame de Villeneuve, tornando-se um clássico da literatura e inspi-
rando tantas outras histórias literárias e produções cinematográficas.
Em 1946, Jean Cocteau, trouxe a adaptação do conto para a tela
do cinema. Inspirado, em sua totalidade, pela versão da Madame de
Beaumont, nota-se, nessa versão que permaneceu e, ainda, perma-
nece no imaginário do povo Europeu, a presença do caráter mora-
lizante, aclamação a virtude e a união entre bondade e beleza que
alcançam, no fim da narrativa, a plena felicidade, como afirma Prin-
civalle (2016):

Si on analyse l’expression des sentiments, on trouve dans le conte une morale


qui unit la bonté et la beauté et qui exalte la vertu comme moyen pour rejoindre
le bonheur parfait. Dans le film, on retrouve les qualités morales symboliques
des personnages et des dialogues constitués d’énoncés courts et précis qui ra-
ppellent la brévité du récit originel (PRINCIVALLE, 2016, 48-49).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 310


A Walt Disney Pictures, com as suas adaptações de “A Bela e a
Fera”, é responsável por, até os dias atuais, fazer adultos e crianças
sonharem com esta narrativa mágica. Enfocando na história da Fera,
conhecemos, desde o início do material fílmico, o destino que ele en-
contraria, isto é, sua transformação de príncipe para monstro, após
este momento que conhecemos Bela e sua família, um caminho di-
ferente do que a Madame de Beaumont traça, já que, no conto, co-
nhecemos a transformação e as razões pelas quais foi transformado
apenas no final da estória.
Os elementos básicos da história: bela jovem que se sacrifica para
viver com um monstro em troca da vida do pai, paixão pelo monstro,
amor que transforma feiura em beleza, monstro a príncipe; não eram
bastantes para a criação do filme, por isso observamos algumas mu-
danças, Bela agora é filha única, vive em uma aldeia simples, não há
indicativos de um passado de riquezas. Seu pai não é um comercian-
te rico que perde sua fortuna, mas um simples inventor.
Seja como uma história contada em meio a uma viagem, como
uma adaptação repleta de fadas boas e más, como uma narrativa
moralizante que demonstram que inveja e maldade não trazem coi-
sas boas, a Bela e a Fera, de conto clássico à construção cinema-
tográfica, segue conquistando novas gerações que vêem , neste
clássico, personagens fortes, virtude, força, um mundo em que tudo é
possível e que o amor e a bondade sempre vencem.

A construção do maravilhoso em “A Bela e a Fera”:


do conto clássico ao live-action

Histórias de príncipes, princesas, fadas, bruxas e feiticeiras cami-


nham pelo imaginário popular, desde os tempos mais remotos até

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 311


os dias atuais, conquistando crianças e adultos a muitas gerações. A
Walt Disney Pictures, com as suas adaptações de “A Bela e a Fera”, é
responsável por, até os dias atuais, fazer adultos e crianças sonharem
com esta narrativa mágica. Enfocando na história da Fera, conhece-
mos, desde o início do material fílmico o destino que ele encontraria,
isto é, sua transformação de príncipe para monstro, após este mo-
mento que conhecemos Bela e sua família, um caminho diferente do
que a Madame de Beaumont traça, já que, no conto, conhecemos a
transformação e as razões pelas quais foi transformado apenas no
final da estória.
Recentemente o conhecido conto de “A Bela e Fera”, no ano de
2019, ganhou sua versão em live-action com os atores já consagra-
dos por Hollywood, Emma Watson e Dan Stevens, nos papéis de Bela e
Fera, respectivamente. Os elementos básicos da história foram man-
tidos: bela jovem que se sacrifica para viver com um monstro em tro-
ca da vida do pai, paixão pelo monstro, amor que transforma feiura
em beleza, monstro a príncipe.
Como já mencionado, o filme se inicia, apresentando a Fera an-
tes da sua transformação: um príncipe soberbo e orgulhoso que, por
isto, é transformado por uma fada em Fera terrível. Este elemento, fun-
damental para a metamorfose do personagem, a fada, comumente
aparece neste tipo de narrativa atuando como figura benfeitora ou
punitiva.
A palavra fada provém de uma palavra latina fata, a qual ca-
racterizava divindades do submundo responsáveis pelo destino dos
homens. Com o passar do tempo, a palavra foi recebendo novas sig-
nificações que sugerem que, nem sempre, elas são personagens do
bem. Caminhando para os textos literários, os contos maravilhosos
possuem a fada como uma figura que se assemelha a uma senhora
portadora de poderes mágicos que os utiliza para beneficiar ou punir
os homens.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 312


Dans un contexte qui mêle croyance populaire et rationalisme, émerge, dans
la tradition littéraire du conte merveilleux, la figure de la fée la plus célèbre: une
dame immortelle douée des pouvoirs surnaturels qu’elle exerce au profit ou au
détriment des hommes. Les fées peuvent donc punir autant que récompenser –
la Bête a subi une métamorphose par une fée. (PRINCIVALLE, 2016, 43).

Esta figura mágica aparece, no primeiro momento, pelas pala-


vras da Fera, no conto da Madame de Beaumont, ao final, quando é
revelado a Bela a face de seu amor por trás da figura bestial a qual
ela convivia.

Uma fada má condenou-me a viver sob esta forma até que uma bela moça
consentisse em me desposar. Proibiu-me também de deixar minha inteligência
aparecer. Você foi a única pessoa no mundo boa o bastante para se deixar to-
car pela bondade do meu caráter. (BEAUMONT, 1757, p. 117).

Como pode-se notar, esta fada a qual é mencionada pela Fera,


após a sua metamorfose, é uma fada má, entretanto ela não é a úni-
ca nesta história. Após a transformação de monstro em homem, uma
fada, desta vez do bem, surge para falar com Bela e castigar a suas
irmãs malvadas.

'Bela', disse-lhe essa dama, que era uma fada, 'venha receber a recompensa
por sua boa escolha: você preferiu a virtude à beleza e à inteligência, portanto
merece encontrar todas essas qualidades reunidas numa mesma pessoa. Vai
se tornar uma grande rainha. Espero que o trono não destrua suas virtudes.
Quanto às senhoritas', disse a fada para as duas irmãs da Bela, “conheço seus
corações, e toda malícia que encerram. Vou transformá-las em duas estátuas.
Mas conservarão toda a sua razão sob a pedra que recobrirá. Permanecerão
na porta do palácio de sua irmã e não lhes imponho outro castigo a não ser
testemunhar a felicidade dela (BEAUMONT, 1757, p. 117-118).

Para além da figura da fada, observa-se, também, outros ele-


mentos que “carregavam magia”, isto é, elementos maravilhosos, em
“A Bela e a Fera”, alguns aparecem em diferentes versões, como é o
caso da rosa, a qual representa o amor, bem como a passagem do
tempo, além dela o próprio castelo da Fera, traz consigo o simbolismo

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 313


do corpo do homem aprisionado no monstro; a própria Fera também
carrega consigo sua alta dose do maravilhoso. Outros, porém, surgem
apenas na versão clássica da Madame de Beaumont: o anel (repre-
sentando a fidelidade), o espelho (vínculo entre a casa da Bela e o
palácio da Fera).
O live-action de 2019 dá ao elemento maravilhoso da rosa uma
importância, afinal é ele que permite o encontro entre os persona-
gens principais. No início do filme uma senhora aparece pedindo ao
príncipe um abrigo da chuva e promete a ele uma rosa em troca. Ele
recusa o pedido e a velha transforma-se em uma jovem e bela fada
que pune-o metamorfoseando em Fera, por fim oferece a ele a rosa
rejeitada, ela torna-se, assim, uma lembrança da falta cometida pelo
príncipe. A marcação temporal acontece a partir da flor, suas pétalas
caídas registram o tempo passando.
A boa fada que surge ao final do conto da Madame de Beaumont
aparece no início do live-action da Walt Disney Pictures atuando no
intuito de punir a Fera, até a sua libertação, com a descoberta da vir-
tude, bondade e o verdadeiro amor. O maravilhoso assim, está intrin-
secamente contido na estória, percorre todos os caminhos trilhados
junto da Bela e a Fera, seja por meio de fadas, rosas, espelhos ou pa-
lácios, a magia desse conto rompe com as barreiras da realidade e
conquista a todos aqueles que passam a conhecê-lo.

Considerações finais

Neste trabalho, que objetivou analisar a presença do elemento


maravilhoso na versão do relato escrito pela Madame de Beaumont,
bem como a produção realizada em 2019 pela Walt Disney Pictures,
foi possível observar que os elementos maravilhosos que compõem
as histórias não são, necessariamente os mesmos, houve uma inser-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 314


ção, no filme, de personagens que corroboravam para a construção
do amor entre os protagonistas da narrativa, os quais não existiam na
versão escrita, tais como: Madame Samovar, Zip, Horloge e Lumière.
Notou-se, também, que o elemento maravilhoso da fada mantém
sua importância ainda que suprimida a sua atuação no texto fílmico.
Inegavelmente a fada é cara ao conto da “Bela e a Fera”, na ver-
são da Madame de Beaumont foi visto que ela tinha uma maior parti-
cipação na história, entretanto, no live-action, ela surge, unicamente,
no início para encantar a Fera. O texto fílmico conservou este elemen-
to maravilhoso apenas na sua essência de divindade do submundo a
qual detinha a responsabilidade pelo destino dos homens e que, não
necessariamente, carregava consigo a bondade em seus atos.
Em todo caso, o elemento maravilhoso da fada surge em ambas
as narrativas como fio detentor da metamorfose que desencadeia
toda a história, ela representa o meio que levará o relato a ser contato
ao público, sem a fada o, até então, príncipe não seria amaldiçoado e
não levaria consigo todo o seu palácio a transformação do inumano
ao humano, e, assim, não haveria a história de amor entre a Bela e a
Fera.

Referências

A BELA E A FERA. Direção: Bill Condon. EUA, 2017. DVD (2h 09min) Walt Disney
Pictures.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética – a teoria do romance.
São Paulo: UNESP, 1998.
BEAUMONT, Jeanne-Marie Leprince. A Bela e a Fera. In: Contos de Fadas. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.
LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Edi-
ções 70, 1983.
MARINHO, C. C. A. Contribuições para uma Poética do Maravilhoso: um es-
tudo comparativo sobre a narratividade literária e cinematográfica [Tese

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 315


de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo, 2006.
PRINCIVALE, Caterina. Il était une fois…: la Belle et la Bête à travers les siè-
cles et les arts. Tese de Láurea, 2016.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. CopyMarket.com, 2001.
TODOROV, Tzevan. Introdução à Literatura Fantástica. TODOROV, Tzvetan.
Tradução de M. Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 316


CAPÍTULO 16

A perda paterna em José Luís Peixoto


e Chimamanda Ngozi Adichie
José Antonio Santos de Oliveira

DOI: 10.52788/9786589932369.1-16
Considerações iniciais

A sensibilidade é um traço marcante e recorrente na literatura de


José Luís Peixoto. O escritor contemporâneo tem angariado espaço no
ambiente literário desde os anos 2000, quando publicou seu primeiro
livro - Morreste-me. A partir de então, o português publicou roman-
ces, peças teatrais e poemas, os quais resultaram em prêmios pelo
teor qualitativo de sua produção. Seu último livro, intitulado Regresso
à casa (2021), encontra sua gênese no momento pandêmico e em
seus desdobramentos na sociedade, como a solidão e a melancolia –
ocasionadas pela quarentena e pela dificuldade de o sujeito respon-
der às incertezas da caoticidade do presente.
Obviamente, a bibliografia de Peixoto apresenta uma evolução
significativa. Inclusive, o próprio autor afirma em algumas entrevistas
que não é mais o mesmo que escreveu Morreste-me, já que os senti-
mentos emergentes – e a forma sintática de costurar a narrativa, no
momento da produção do primeiro livro – eram outros; constitui-se,
portanto, uma narrativa pintada a partir do luto, com frases curtas
para enfatizar alguns dilemas emergentes do momento conturbado.
A relação com o pai, por outro lado, mostra-se presente em outras
obras, agora sem a dimensão desoladora da perda recente.
A transmutação de elementos biográficos para a escala literária
aparece como outro elemento recorrente na escrita de José Luís Pei-
xoto, de modo que o real empírico se concatena com as ressonâncias
ficcionais da escrita: “os textos literários são sempre autobiográficos
e ficcionais ao mesmo tempo. Acredito que esse aparente paradoxo
faz parte da natureza da própria literatura”. (PEIXOTO, 2019). O traço
autobiográfico-ficcional, na escrita do autor, nasce com o livro Mor-
reste-me, já que esta narrativa contempla as vivências do autor com
o pai a partir de suas memórias, colocando-as junto a uma estética
poética e existencial diante do luto.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 318


Este livro é autobiográfico no sentido de revelar como as relações
familiares – mais exatamente entre pai e filho – são rompidas a par-
tir do inevitável, a morte. O amor entre Peixoto e seu pai era real, mas
a escrita transforma esse rompimento amoroso em ficção – logo, o
narrador de Morreste-me não é o autor biológico, é uma entidade fic-
cional pela qual o escritor revela os escombros de sua subjetividade.
Em Galveias (2014) percebe-se uma construção semelhante da reali-
dade na ficção, pois o livro recebe o nome da terra natal de José Luís
Peixoto; nesse caso, memória e fabulação conversam para o desen-
volvimento da trama. Sem esquecer também do livro Autobiografia
(2019). A ligação do biográfico com o ficcional granjeia outro patamar
com esta produção, obra em que o escritor contemporâneo produz –
por meio da metalinguagem – um texto transmutado da vida e obra
de José Saramago.
A escrita de Peixoto, conforme apontado no primeiro parágrafo,
conserva a sensibilidade das relações humanas como pode ser per-
cebido no romance Em teu ventre (2017). Neste livro, o autor elabora,
a partir de uma pesquisa histórica, uma tradução intersemiótica das
possíveis aparições de Nossa Senhora em Fátima. No entanto, a obra
deixa de lado a perspectiva mística para preconizar algo que estava
em segundo plano quando referenciam os eventos, isto é, José Luís
Peixoto usa o fato histórico como pano de fundo para pensar as an-
gústias da mãe de Lúcia1 diante dos ocorridos misteriosos. A narrati-
va, então, embasa-se no amor entre a mãe e sua filha, na maneira
como a maternidade se realiza nos momentos singelos do dia a dia,
no encontro dos relatos com o caráter criativo do autor. Novamente,
memórias e sentimentos são transmutados em Literatura.
Morreste-me, para além de vaticinar esses elementos da obra de
José Luís Peixoto, concentra ainda o surgimento de um novo escri-

1 Lúcia é uma das três crianças que, supostamente, presenciaram as aparições de Nossa Senhora na
cidade de Fátima, em 1917.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 319


tor. O lutuoso usou da escrita para desabafar a tristeza da separação
com o genitor; é um livro embasado no amor, já que este configura
como premissa fulcral do luto. De acordo com Nasio (1997), o sujeito
não sofre a perda de um inimigo, mas a de alguém que tanto amou –
nesse caso, o pai. A morte paterna e o amor do filho apareceram na
literatura de diversas formas, em Hamlet, por exemplo, o falecimen-
to e aparecimento do fantasma do pai leva o protagonista para um
caminho sem volta, de vingança e morte. Augusto dos Anjos e Ma-
nuel Bandeira também transformaram a perda paterna em literatura,
cada qual com sua especificidade.
Nessa perspectiva, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adi-
chie também transformou a morte de seu pai em obra ficcional. O
livro Notas sobre o luto (2021), publicado pela Companhia das Letras
no Brasil, apresenta os sentimentos dilaceradores inerentes ao luto, os
quais ganharam forma na escrita a partir do resgate promovido pela
memória e da reflexão sobre a efemeridade da vida no contexto pan-
dêmico. Adichie, assim como uma miríade de pessoas, perdeu quem
amava para o vírus funesto da Covid-19. A nigeriana encontrou na
literatura uma forma de desnudar as agruras da perda e expor a sen-
sação de incredulidade diante da morte irreversível, já que, por causa
da quarentena praticada em diversos países para combater a disse-
minação do vírus, não pôde se despedir como deveria de seu pai.
A autora já havia publicado outros livros, como No seu pescoço
(2017), Americanah (2014) e Hibisco Roxo (2011). Nesta última obra, o
autobiográfico é imprescindível para construção do traço ficcional, já
que recupera, em seu processo criativo, as próprias vivências de Chi-
mamanda Ngozi Adichie na Nigéria.
Essa pesquisa, portanto, pretende cotejar as obras: Morreste-me,
de José Luís Peixoto, e Notas sobre o luto, de Chimamanda Ngozi Adi-
chie, uma vez que elas possuem proximidades tanto no processo cria-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 320


tivo – são obras que transmutam a realidade em ficção – quanto em
termos semânticos, já que partem de filhos lutuosos com a perda pa-
terna. Além disso, este trabalho pensará as diferenças entre os textos,
as quais se originam dos contextos de produção e, obviamente, do
traço estilístico de cada autor. Por fim, a possibilidade de realizar esse
confronto nasce da pluralidade de métodos fornecidos pela Literatura
Comparada, tendo em vista que esse processo analítico fornece sub-
sídios para que obras afins sejam colocadas em palco, evidenciando
semelhanças, e, sobretudo, diferenças.

Amor, luto e melancolia

A dor do luto se constitui desestabilizadora no sujeito. A ferida re-


cém-aberta no enlutado o corrói por dentro, de modo que os estímu-
los exteriores que, antes tanto o chamavam, parecem não ter senti-
do. Está de luto é, em certa medida, perceber como a vida se mostra
efêmera, como a morte insiste em sobressair diante das meras (in)
certezas da existência. Nesse estado, o sujeito fica entre ir – deixar os
laços no passado – e voltar constantemente ao passo anterior, para
os momentos nos quais gozava da companhia do ser amado. As lem-
branças, nesse caso, são instrumentos de tortura à medida em que
insistem em dizer para quem fica, que o objeto de amor se perdeu
para sempre. É, preciso, pois, desfazer os laços com os quais o indi-
víduo encontra-se ligado, o que se revela como uma tarefa penosa.
Freud (2010) constrói um itinerário interessante sobre o luto e a
melancolia na vida humana; para ele, o luto é um trabalho normal
inerente ao ser humano e se configura como uma reação à perda do
objeto de amor. Nesse caso, o sujeito precisa cortar os laços com ob-
jeto perdido que fomentava sua libido, o que se mostra doloroso, pois
“o eu fica inteiramente marcado em manter viva a imagem mental

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 321


do desaparecido. Como se ele se obstinasse em querer compensar a
ausência real do outro perdido, magnificando sua imagem”. (NASIO,
1997, p. 28). As lembranças inundam a mente do lutuoso, de modo que
torna este processo ainda mais doloroso e dificulta o reinvestimento
da libido, justamente porque o apego ao perdido o inibe de ressigni-
ficar a perda durante um determinado tempo. Ainda de acordo com
Nasio (1997, p. 166): “a dor do luto não é dor de separação, mas dor
de ligação. É esta novidade que desejo trazer-lhes: pensar que o que
dói não é separar-se, mas apegar-se mais do que nunca ao objeto
perdido”. O sujeito que perdeu seu ente querido, por não conseguir
esquecê-lo, revive constantemente os momentos passados com seu
objeto; seu inconsciente se nega deixar partir da imagem que se tem
do objeto perdido.
Além disso, Freud explica que o luto provoca um desinteresse pelo
mundo exterior, quando este não faz referência a memória do falecido.
O enlutado encontra-se ocupado com os processos penosos do seu
interior, já que a memória o faz regressar para os espaços e situações
nos quais estavam seu objeto. Esse retorno em busca do amado pro-
voca, destarte, a falta de interesse pelo que é externo; afinal, o objeto
de amor não pode ser acessado mais lá, mas em suas lembranças.
A melancolia, por outro lado, é oriunda de um luto não simbo-
lizado. Em outras palavras, se o sujeito não fizer a transferência da
libido após a perda do objeto perdido, desencadeará um estado de
arrefecimento típico da melancolia; nesse sentido, mesmo passando
um longo período depois da perda, o indivíduo continua ferido pela
ausência do outro2. Rodrigues ratifica,

Embora luto e melancolia alicercem traços divergentes, é preciso não olvidar


que oprimeiro é condição para o funcionamento do segundo. A disposição me-
lancólica descende de um luto não simbolizável, de uma perda sem substituto,

2 Ressalta-se que o luto ou melancolia podem se originar também da perda de um ideal, sonho,
emprego e não exclusivamente da morte de uma pessoa amada.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 322


de uma ferida há muito conquistada e, contudo, resistente à cicatrização (RO-
DRIGUES, 2017, n.p.).

Isso ocorre porque o sujeito melancólico - diferente do lutuoso -


desconhece o que perdeu no objeto: “ele sabe quem, mas não o que
perdeu nesse alguém” (FREUD, 2010). Tal desconhecimento provoca
no indivíduo um estado de estagnação, a partir do qual vai se afun-
dando em múltiplos pensamentos cada vez mais desastrosos contra
si, de modo que a autoestima do melancólico também é atacada e
vencida. Ele se culpa pela culpa dos outros e pelos acontecimentos de
sua volta; a autodepreciação o corrói por dentro e o deixa confinado
à tristeza. Eis, nesse sentido, outro pormenor que distingue o luto da
melancolia, enquanto patologia, ja que a primeira reação à perda se
mostra normal, dolorosa, mas passageira, a segunda, por sua vez, faz
com que o sujeito se perca dentro de si, deixando-o depressivo por
causa da ausência de autoestima e da perspectiva de futuro.

Morreste-me: a poesia da perda

Ainda que José Luís Peixoto faça algumas objeções sobre o termo
prosa poética, já que, para ele, há poesia também na prosa. É indubi-
tável a presença da sonoridade concatenada com as diversas ana-
logias, a partir das quais o autor recupera os sentimentos de tristeza,
oriundos da perda do pai. A preocupação com o ritmo e a construção
metafórica, comumente, encontram-se inclinadas à produção ima-
gética da poesia, mas, em Peixoto, funcionam como elementos pelos
quais o escritor português consegue expor os dissabores do luto.
O título Morreste-me, aparentemente incongruente no nível gra-
matical, mostra-se poético no sentido em que revela como a perda
do amado (pai) provoca a morte do amante (filho); o uso da primeira
e da segunda pessoa do singular na mesma forma verbal é nevrál-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 323


gico porque, embora juntos em uma mesma colocação pronominal,
estão separados pela atuação do hífen, da morte. A morte do pai
– em uma dimensão real – provoca a morte metafórica do filho, ou
melhor, quando se perde alguém, perde-se uma parte também de si.
O livro é dedicado à memória de José João Serrano Peixoto, pai do
autor, e enceta pelo retorno à casa após o falecimento do ente que-
rido. Já nas primeiras descrições, há uma relação significativa entre o
que o sujeito sente e o espaço no qual está inserido – assim como fa-
ziam alguns escritores românticos, que mostravam a natureza como
reverberação das suas angústias existenciais: “regressei hoje a esta
terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Dian-
te de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas,
a branquear a cal; e o tempo entristecido e muito mais entristecido”.
(PEIXOTO, 2015, p. 7). Esse trecho configura-se pertinente também por
demarcar a falta de interesse pelo mundo durante o luto, uma vez
que, após a morte do amado, a terra onde ele habitava tornou-se
cruel. Ademais, por meio do artificio da memória, o livro narra os últi-
mos momentos da vida do pai de José Luís Peixoto; inclusive pontua o
processo doloroso do tratamento enfrentado.
A angústia sofrida pela família em ver alguém amado como mo-
ribundo encontra seu ápice na imagem desoladora da perda – aque-
le que cuidou da família, levou o filho para escola, o auxiliou nos desa-
fios da vida, brincava com a neta, agora deixava de existir fisicamente
para adornar apenas as imagens inconscientes do ambiente familiar,
assim como aponta Nasio “o que esse objeto que dizemos amado e
perdido? Vamos responder imediatamente: não se trata da pessoa do
morto, mas da sua representação ou da sua imagem no meu incons-
ciente”. (NASIO, 1997, p. 162). A representação inconsciente do ama-
do faz com que o amante – no caso, o narrador do texto – o mostre
como alguém provido de qualidades, as quais são reconhecidas por

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 324


quem as descreve: “o ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o
seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés
da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. (PEIXOTO, 2015, p. 9). O
modo como o enlutado lembra do objeto perdido é revestido de uma
certa idealização, já que este nutria sua libido e o invade cada vez
mais, sobretudo nos primeiros dias do luto. No fragmento acima, per-
cebe-se como a imagem do pai é análoga a uma presença heroica
– o pai lutou bravamente durante todo o processo da enfermidade.
Isso é interessante, porque Morreste-me apresenta uma hibridi-
zação das formas na escrita literária. À primeira vista, devido ao ta-
manho da narrativa, trata-se de uma novela onde o narrador expõe
as relações com o pai nos últimos momentos de sua vida, ao mesmo
tempo em que recupera lembranças de um passado nostálgico, onde
o genitor o provia das necessidades. Por outro lado, a obra se utiliza
de recursos inerentes ao gênero diário, uma vez que se verifica relatos
e desabafos em virtude do momento consternador: “As pessoas pas-
savam por mim como se a dor que me enchesse não fosse oceânica
e não as abarcasse também”. (PEIXOTO, 2015, p. 8). . Há ainda em Mor-
reste-me um formato epistolar, pois o narrador conversa – como se
estivesse escrevendo uma carta, com o pai falecido: “Pai, tudo o que
te sobreviveu me agride. Pai. Nunca te esquecerei”. (PEIXOTO, 2015, p.
19). O poema Primeira lição, da poetisa Ana Cristina Cesar, também
oferece uma chave de leitura para o livro de Peixoto, uma vez que
Morreste-me se constitui como uma espécie de nênia, isto é, uma po-
esia na qual se homenageia uma pessoa morta. Essas concatena-
ções possíveis de leitura são originadas da estética do livro, que, por
sua vez, utiliza-se do recurso fragmentário da memória.
A presença da família durante o tratamento é retomada para
pensar em como o narrador já padecia diante do final fatídico e pró-
ximo do pai: “viam-te ir ao tratamento e doía-me a vida, doía-me a

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 325


vida que em ti se negava, a vida a gastar-te, ainda que a amasses.
[...] enchíamos de uma amargura indelével, definitivamente marcada
vincada na nossa pele interior”. O sofrimento do pai se desdobrava no
de sua família, já que o amado se tornava um com os seus, fazendo
com que esses também comungassem das agruras da dor, ocasio-
nadas pela doença. As dores dos parentes davam-se, portanto, no ní-
vel psíquico. Em outras palavras, enquanto o pai agonizava diante das
dores físicas, o narrador e os demais sofriam internamente, já que o
sentimento de impotência mediante à enfermidade – somado a pre-
sença viva da morte – anunciavam, para a família, que o anfitrião da
casa estava próximo de morrer, ainda que mentissem para ele, fingin-
do acreditar em uma possível recuperação: “e menti-te. Disse aquilo
em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo
serias e seríamos de novo” (PEIXOTO, 2015, p. 9). O desejo de confortar
o amado gera um sentimento de culpa durante o trabalho do luto;
o enlutado, além de apresentar dificuldade de digerir o turbilhão de
emoções típico da dor inerente à perda, ao retornar aos momentos
nos quais tentava apaziguar o moribundo, lamenta sua incredibilida-
de diante do inevitável: o pai estava próximo de vir a óbito.
O regresso à casa na ausência paterna conduz o sujeito a um re-
torno simbólico: ao tempo em que a família lograva da presença do
pai sem os temores da morte, sobretudo para o período da infância,
no qual a imagem paterna angaria ainda mais espaço no imaginá-
rio pueril. Esse retorno à infância, para os momentos felizes, é comum
também na literatura brasileira, ainda quando esta não se embasa
nos matizes do luto, mas nos da melancolia – Manuel Bandeira e Ca-
simiro de Abreu são exemplos de autores que retornam poeticamente
ao passado para combater os infortúnios do presente. Essa antítese
mostra-se relevante à medida em que sugere à busca pelo objeto
perdido e, por conseguinte, de realização plena do amor:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 326


A minha irmã andava no liceu, e as notas eram só satisfazes muitos e bastantes,
e ainda era esperta, e sorria por isso. Eu andava no primeiro ano da telescola, e
não pensava nas notas, e tinha jogado à bola, e tinha ganho, e se tivesse perdi-
do perdido seria igual. A minha mãe, mãe verdadeira de todos nós, olhava-nos
e assim sorria por isso. Felizes. Distantes da chuva grossa deste inverno negro,
distantes do teu corpo gelado (PEIXOTO, 2015, 15).

A disparidade entre tempos se marca, implicitamente, pela perda


paterna. Enquanto o pai estava vivo na infância, a família era feliz. A
irmã gozava de notas significativas no colégio, o narrador vivenciava
uma infância enérgica, a partir da qual brincava sem se importar com
as responsabilidades e possíveis dissabores da existência, e a mãe
coroava esses momentos de júbilo. Em contrapartida, o luto presente
– na expressão “chuva grossa deste inverno negro” – assume as cores
do arrefecimento, do qual toda a família padece.
A metáfora da chuva, para pensar as lágrimas do luto, aparece
também durante o velório do falecido. A escuridão da noite – ao que
parece também metafórica – aponta para os sentimentos obnubi-
lados do sujeito no cortejo fúnebre: “O homem da agência funerária
falava sem nos ver e falava como se pudéssemos ouvir. É o teu corpo,
lavado com um pano húmido e vestido sem vontade, tão direito. Só
chuva e noite, pai”. (PEIXOTO, 2015, p. 28). A representação do corpo
se configura real e crua; o morto encontrou-se desprovido de vonta-
de de vestir, porque um desconhecido o vestiu. Além disso, o agente
funerário não via como a família estava dilacerada por dentro e, por
essa razão, o narrador, sua mãe e irmã encontravam-se confinados
nas lembranças com aquele para o qual dedicaram amor concreto
nos últimos tempos. Com efeito, o enlutado recobra demasiado as
vivências com o amado, de modo que deixa de corresponder aos es-
tímulos exteriores, como apontam Nasio (1997) e Freud (2010).
Outro momento em que a infância se encontra em contraste com
a vida adulta é quando o narrador coloca em dois planos: a declara-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 327


ção de amor para o pai em um fragmento de cartolina e o sentimento
de solidão durante o luto, resultado da ausência da figura paterna. A
criança, outrora protegida, está agora em um vasto mundo sem os
cuidados da imagem protetora:

E, entre facturas, entre somas e multiplicações calculadas com os teus núme-


ros, descobri um quadrado pequeno de cartolina com o coração redondo de
papel lustro. Abri-o e, com as minhas letras infantis, sobre linhas feita com uma
régua, li: amo o meu pai/ amo o meu, / não tenho mais para te dar/ dou-te o
meu carinho. E chorei[...] Encontraste na morte e já não podes voltar para me
proteger. Passei a noite sozinho, sentado ao lume, a esperar-te. E já não podes
voltar para mim, que te espero, que te amo (PEIXOTO, 2015, p. 43-44).

Além disso, esse fragmento se configura pertinente, porque ocor-


re em recorrência da procura dos objetos do pai. O enlutado, ao me-
xer nos espaços do genitor, verifica que ele havia guardado sua sin-
gela demonstração de afeto no passado, que inclusive se aplica na
atualidade, pois o sujeito continua amando quem um dia perdeu. E,
em outra perspectiva, revela-se como prova de reciprocidade: o pai
guardou durante anos a demonstração de carinho do filho, porque
também o amava.
O processo de identificação com objeto de amor revela-se na
novela de Peixoto, quando o amante e o amado se confundem a par-
tir das reminiscências daquele. O autor descreve uma situação corri-
queira, mas que agora agrega implicações na relação entre pai-filho,
uma vez que, semelhante ao que aconteceu no passado, no momen-
to em que o pai ensinava o filho a dirigir, agora o narrador também se
enxerga nos gestos e nos caminhos trilhados pelo pai:

Ensinavas-me. Grave, porque grava era a lição, apontavas-me cada passo


com o olhar e dizias mete a primeira, segura bem o volante, vai largando a em-
braiagem. Os teus gestos, a forma das tuas mãos a segurar o volante; a forma
das minhas mãos, o volante, os meus gestos. As coisas e eu mexem-se, deslo-
cam-se todas. Vou. Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que
foste. Parto de ti, viajo nos teus caminhos, corro e perco-me e desencontro-me
no enredo de ti, nasço, morro, parto de ri, viajo no escuro que deixaste e chego,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 328


chego finalmente em ti (PEIXOTO, 2015, p. 24-25).

Nesse sentido, após a perda paterna, a busca pelo objeto perdido


faz com que o enlutado se encontre em um estado circular, já que,
por mais que o sujeito avance, ao tentar desinvestir sua libido, há nos
primeiros momentos do luto um movimento contrário, isto é, a pessoa
recebe um superinvestimento na imagem inconsciente que se tem do
outro. Só depois de um sobejo tempo, o sujeito se encontra preparado
para transferir a energia destinada, outrora, ao objeto deixado. Isso é
perceptível no excerto da acima, extraído de Morreste-me, visto que
o avanço do filho em deixar os laços com o pai o faz, quase parado-
xalmente, retornar ao ente querido. Nesse ponto, “a pessoa amada
deixou de ser apenas uma instância exterior, para viver também no
interior de nós”. (NASIO, 1997, p. 40). Por conseguinte, a imagem que o
enlutado reflete é a de seu objeto, com o qual inconscientemente se
atrela:

Olhei-me no espelho sobre cómoda. No reflexo, encontrei-te, vi-te passar a mão


pelo cabelo rapidamente e alisar a roupa no corpo e acertar o colarinho da ca-
misa. Pai, olhaste-me fixamente nos teus contornos de rapaz[...] vi-me igual a ti,
nas tuas feições firmes. É-me difícil descrever o teu rosto (PEIXOTO, 2015, p. 40).

O sujeito, ao olhar-se no espelho, acaba refletindo sobre sua se-


melhança física com aquele que perdera depois de uma longa ba-
talha. O interessante é que os olhos do pai se misturam aos do filho,
fazendo com que aquele assuma por alguns instantes a fisionomia
desse; na verdade, a imagem refletida do espelho mostra-se incapaz
de revelar a dor profunda do enlutado, e por essa razão, o narrador
explica ser difícil esmiuçar como observa o rosto refletido de seu pai.
Essa cena de identificação no espelho configura-se demasiado simi-
lar a descrita por Mário Quintana em o Espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho:


Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 329


Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
“O que fizeste de mim?” Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste...”

No entanto, no poema de Quintana, a imagem do espelho serve


como propulsor imagético da melancolia. Em outras palavras, a re-
lação estabelecida com o pai serve para referendar o processo de
velhice no qual o eu lírico encontra-se inserido, uma vez que o agora
idoso – triste por causa dessa condição – é a voz manifesta na poesia.
A construção de imagens poéticas na prosa de Peixoto se torna
cada vez mais evidente à medida que o leitor acompanha a chegada
do pai ao cemitério onde foi sepultado. Nesse momento, o narrador
coloca em contraste com suas chegadas na escola – trazendo nova-
mente a ideia de felicidade na infância, quando possuía a presença
do amado. Agora, não é o pai quem leva o filho e volta a fazer suas
atividades, mas o filho consternado que deixa o corpo imóvel de seu
parente nas paredes brancas do lugar:

Passei a escola, e à entrada, à saída da nossa terra, parei. Diante do portão de


ferro que se fecha todos os dias a separar-nos, diante dos muros caiados gros-
sos altos, ouvi o toque dos sinos, leve, numa brisa, no silêncio. O cemitério bran-
co[...]segurei o portão, frio com todas as coisas que existem e nos separam,
de um ferro muito mais forte que a nossa carne esforçada, a nossa carne sem
forças para vencer e a lutar sempre. Entrei (PEIXOTO, 2015, p. 52, grifo nosso). 

O portão, símbolo de divisão entre o interno e o exterior, que se-


parava pai e filho no passado, separa-os definitivamente no presente.
O ferro da separação, banhado pela frieza da morte, mostra-se mais
forte que o de outrora, justamente porque o do cemitério traz consigo

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 330


a ideia de um para sempre, contra o qual o narrador está impossibi-
litado de lutar. O que resta para o sujeito enlutado, portanto, é tentar
manter viva a memória do amado em seu inconsciente, objetivando
não o esquecer:

Pai, ter a tua memória dentro da minha é como carregar uma vingança, é como
carregar uma saca às costas com uma vingança guardada para este mundo
que nos castiga, cruel, este mundo que pisa aquele outro que pudemos viver
juntos, de que sempre nos orgulharemos, que amamos para nunca esquecer.
(PEIXOTO, 2015, p. 60).

O trecho acima encontra-se em uma das últimas páginas do li-


vro, o qual condensa a síntese do luto vivenciado pelo narrador. A re-
volta contra o mundo exterior – por ter levado o amado pai – encontra
espaço na intenção de cultivar as lembranças do objeto perdido. A
vingança do não esquecer é, na verdade, uma maneira de continuar
amando o pai, visto que o “enlutado entrega-se a uma demanda de
desamor, com o intento, apenas, de amar o morto de outra forma, de
ressignificá-lo nas memórias, de não esquecê-lo”. (RODRIGUES, 2017).
O trabalho do luto, para além de cortar os laços com o objeto de sua
libido, é de fazer com que o sujeito ressignifique a perda, colocando-a
nas suas lembranças, para que, no futuro, a pessoa consiga contrair
novos relacionamentos saudáveis.

Notas sobre o luto: desabafos do presente

Em termos de estilística, Notas sobre o luto apresenta uma nar-


rativa enxuta no sentido em que se verifica a objetividade dos even-
tos narrados. Com efeito, não há uma preocupação com a cadência
das palavras – como observado em Morreste-me, nem um número
excessivo de expressões metafóricas. Por ser um texto embasado em
memórias, obviamente percebe-se que inexiste uma linearidade da

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 331


história; ele divaga entre o presente (momento de luto no qual a nar-
radora expõe sua indignação diante da vida e do mundo) e passado,
ao retornar as situações em que o pai protagonizava a história.
Por outro lado, assim como José Luís Peixoto, Adichie dedicou seu
livro à memória do pai falecido: James Nwoye Adichie. O antigo pro-
fessor de estatística de uma universidade da Nigéria faleceu devido às
complicações de uma insuficiência renal. Embora a autora não deixe
claro sobre o que, de fato, causou essa doença no pai, ela sugere que
ocorreu porque seu pai contraiu a Covid-19 depois de uma visita de
jornalistas, pois apresentou alguns sintomas – como falta de ar – nas
semanas seguintes, o que culminou em sua morte.

foram complicações de falência renal. Uma infeção, segundo o médico, tinha


exacerbado a doença renal que o afligia havia muito tempo. Mas que infec-
ção? Penso no coronavírus, claro. Alguns jornalistas tinham ido à nossa casa
entrevistá-lo poucas semanas antes sobre o caso de um bilionário que queria
confiscar as terras do nosso vilarejo natal, disputa que consumiu meu pai nos
últimos dois anos (ADICHIE, 2021, p. 28).

Esse retrato fatídico, infelizmente, tem sido comum no período


atual. Inúmeras pessoas perderam as pessoas que amavam para
essa doença nefasta, causando nesses seres lacunas desastrosas.
Um dos motivos para o terror diante dessas vivências do luto durante
à quarentena nasce da falta de contato com o doente antes do fale-
cimento; os indivíduos não têm direito a um último abraço e, até mes-
mo, a verem o corpo de seu parente pela última vez. Como foi o caso
de Adichie, ela estava nos Estados Unidos, quando o pai foi internado
e, destarte, veio a óbito, resultando em um misto de indignação e des-
crença diante do ocorrido: “foi extrema a forma como desejei deses-
peradamente que os aeroportos nigerianos estivessem abertos para
poder pegar um voo até Lagos, depois até Asaba, e viajar uma hora
de carro até minha cidade natal para ver meu pai com meus próprios
olhos”. (ADICHIE, 2021, p. 31). Observa-se, nessa perspectiva, uma des-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 332


crição esmiuçada dos fatos ocorridos durante o processo de morte e
luto, ainda que a narradora se utilize da memória para comentar so-
bre os acontecimentos.
Nesse sentido, o contexto de produção do texto de Adichie e o
processo anterior à perda paterna apresenta uma significativa dife-
rença, se equiparado ao de José Luís Peixoto. Isso porque, em Notas
sobre o luto, verifica-se que a narradora não conseguiu acompanhar
os últimos momentos de vida com o genitor, o que a conduz para
um sentimento de revolta e desamparado mais corrosivo que o do
narrador de Peixoto. Para além da perda, há a existência de um corte
abrupto entre o amante e seu objeto, como os que acontecem com
as famílias que perdem um membro em um acidente de trânsito, de
forma repentina, por exemplo. O trauma se enfatiza à medida em que
a narradora revela precisar tomar remédios para dormir e, além disso,
diz ter a sensação de que a todo momento perderá alguém amado:

Passo semanas com o estômago embrulhado, tenso e contraído de apreensão,


com a certeza sempre presente de que alguém mais irá morrer, de que mais
coisas irão se perder. Uma manhã, Okey me liga um pouco mais cedo do que
de costume e eu penso: Diga logo, me diga de uma vez quem morreu agora. Foi
a mamãe? (ADICHIE, 2021, p. 15).

Por outro lado, Adichie conflui com Peixoto ao recobrarem seus


pais como figuras heroicas dos seus passados – o caráter heroico
não no sentido das epopeias, mas em como esses homens possuíam
qualidades que os distinguiam da maioria. Principalmente, quando a
narradora referencia alguns momentos significativos durante o ensi-
no médio, sempre conferindo à imagem do genitor traços de idonei-
dade e ética, inclusive quando este a admoestava:

No ensino médio, meus amigos e eu um dia levamos um problema para o tími-


do professor de matemática novo, o sr. O., que, ao olhar para o problema espi-
nhoso, foi logo dizendo que precisava ir pegar sua tábua de logaritmos, embora
o problema não exigisse uma tábua de logaritmos. Saímos da sua sala urrando

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 333


de tanto rir, com a maldade típica dos adolescentes. Contei isso ao meu pai
imaginando que ele fosse rir também. Só que ele não riu. “Esse homem não é
um bom professor. Não por não ter sabido resolver o problema, mas por não ter
dito que não sabia.” (ADICHIE, 2021, p. 52).

A disparidade entre pai e filha logo é deixada de lado na narrativa


para que o exemplo paterno a faça querer se assemelhar ao ama-
do, gerando, destarte, um processo gradativo de identificação que
se evidencia à medida que a história avança. Vê-se, ademais, como
a narradora procura nos objetos deixados pelo amado, elementos
que apontem para sua existência. O mesmo procedimento de busca
dos rastros do ente querido também foi detectado em Morreste-me,
quando o narrador retorna à casa após o enterro de seu pai: “AS ROU-
PAS DE FRIO dos meus pais estão penduradas no armário do quarto de
hóspedes que minha filha chama de “quarto do vovô e da vovó”. Toco
o casaco de gominhos verde-oliva do meu pai”. (ADICHIE, 2021, p. 45).
É como se encostando no utensilio deixado, a enlutada consiga tocar
naquele que, durante o luto, emerge com pungência em seu incons-
ciente. A partir desse superinvestimento da libido, a pessoa procura
cada vez mais as ressonâncias do objeto amado – e agora perdido:

Olho fotos antigas, e de tempos em tempos meu corpo inteiro se infla num solu-
ço. Meu pai muitas vezes aparecia rígido nas fotos, pois cresceu considerando a
fotografia um acontecimento raro e formal, para o qual era preciso se arrumar
e ficar sentado numa posição desconfortável na frente de um homem com um
tripé. (ADICHIE, 2021, p. 49).

Esse fragmento acima é interessante, porque junta uma imagem


inerente ao luto com o comportamento do pai: em primeiro lugar, a
fotografia enquanto representação daquilo que um dia o pai foi; em
segundo, porque revela como o pai mostrava uma certa ingenuidade
diante da evolução tecnológica e social – inclusive, em um trecho o
pai sofre demasiado por não compreender uma mensagem encami-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 334


nhada do WhatsApp.
Embora a morte seja inevitável para todo ser vivente, o ser huma-
no, ao se deparar com sua ação, desaba diante das inúmeras incer-
tezas que a cercam. Somado a isto, a falta do outro provoca uma falta
de si; pois, por meio do amor, amado e amante tornam-se apenas
um. Em Notas sobre o luto, assim como em Morreste-me, o enluta-
do declara o seu amor para com o objeto perdido; na obra de Adi-
chie, a declaração é acompanhada pelo sentimento de medo, sem
regressar aos momentos pueris: “COMO EU AMAVA MUITO o meu pai,
um amor arrebatador e terno, no fundo sempre temi esse dia. Apesar
disso, embalada pela sua relativa boa saúde, pensei que tivéssemos
tempo. Achei que ainda não fosse a hora. (ADICHIE, 2021, p. 30). O tom
confessional revela como, por traz de uma falsa sensação de estabili-
dade, o sujeito teme perder as pessoas caras a si; o problema, no en-
tanto, é que a morte do amado não avisa quando chegará, pode ser
de forma repentina, como nos casos oriundos da Covid-19. Por outro
lado, o amor ofertado ao amado em Notas sobre o luto não se dá de
maneira idealizada ao ponto de a narradora olvidar de suas convic-
ções em relação às tradições patriarcais da Nigéria:

Minha mãe diz que algumas viúvas foram lhe dizer qual é o costume. Primeiro
a viúva deve ter a cabeça raspada — e antes de ela conseguir continuar, meus
irmãos vão logo dizendo que isso é ridículo e não vai acontecer. Eu digo que
ninguém raspa a cabeça dos homens quando suas esposas morrem; ninguém
nunca faz os homens passarem dias comendo comidas insossas; ninguém es-
pera que o corpo dos homens exiba a marca da sua perda. (ADICHIE, 2021, p.
84).

Esse costume dado às viúvas nigerianas mostra como a socie-


dade impõe atitudes diferentes e opressoras em relação às mulheres,
ao ponto em que estas precisam ficar marcadas, quando perdem os
homens com os quais conviveram. O interessante é que tanto a nar-
radora quanto seus irmãos refutam essa prática tradicional no mo-
mento em que explicam para mãe que esse comportamento não é

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 335


aplicado aos homens do mesmo contexto social.
Outra situação em que Adichei exibe sua indignação diante do
luto – e das práticas vivenciadas durante esse processo – é quando
a autora problematiza a superficialidade de algumas mensagens de
terceiros aos enlutados; afinal, é fácil tentar consolar o outro, dizendo-
-lhe frases prontas, eufêmicas. Isso ocorre no texto, porque a autora
pensa o luto a partir da realidade, deixando de lado possíveis divaga-
ções filosóficas ou metafísicas sobre a morte:

'Ele foi para um lugar melhor' é de uma presunção espantosa e tem um quê de
inepto. Como é que você poderia saber? E por acaso eu, que estou de luto por
ele, não deveria ter acesso primeiro a essa informação? Será que eu deveria
mesmo estar ouvindo isso de você? “Ele estava com oitenta e oito anos” causa
uma irritação profunda, porque a idade no luto é irrelevante: não importa quan-
tos anos ele tinha, mas o quanto ele era amado. Sim, ele tinha oitenta e oito
anos, mas um buraco de proporções cataclísmicas agora de repente se abriu
na sua vida, e uma parte de você foi levada embora para sempre (ADICHIE, 2021,
p. 37).

Nesse sentido, as mensagens de condolências nem sempre con-


seguem chegar no cerne do enlutado. O buraco cataclísmico em seu
âmago é responsável pelo distanciamento do sujeito com a exterio-
ridade do mundo; inclusive a narradora fala, em outro momento, que
apenas manteve contato com os familiares; estes que, de certa for-
ma, faziam com que ela regressasse à imagem inconsciente do pai
perdido. Novamente, Notas sobre o Luto conversa com Morreste-me,
pois, no livro português, as palavras de terceiros não conseguiam pe-
netrar o coração do jovem enlutado, já que seu interior encontrava-
-se enraizado nas lembranças que o inundavam. A diferença, nesse
sentido, nasce do contexto de produção de cada obra, pois a mais
recente aconteceu em um cenário pandêmico e as mensagens de
pêsames deram-se a partir das redes sociais.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 336


Considerações finais

Ambas as obras partem de traços autobiográficos, por estarem


diretamente ligadas às perdas paternas. José Luís Peixoto possui um
traço lírico em sua escrita, a partir do qual relaciona os sentimentos
fúnebres do luto aos espaços pelos quais percorre em momentos ne-
vrálgicos de sua vida com o genitor, isto é, desde os cenários banha-
dos pelas memórias infantis aos sombrios vividos após o sentimento
de perda. O sentimento de identificação com o pai mostra-se em-
blemático na imagem do espelho, cuja função é sugerir como pai e
filho estão imiscuídos a partir do laço afetivo. Laço este que precisa
ser rompido durante o luto, a fim de que o amante possa erigir outros
objetos de amor.
Chimamanda Ngozi Adichie assemelha-se a José Luís Peixoto em
diversos aspectos: transmutação do real (biográfico) em ficção lite-
rária; representação da perda da figura paterna; a imagem do pai
enquanto ser possuidor de qualidades indeléveis; perda de interesse
pelo mundo exterior, seguida de uma sutil revolta contra aquilo que
não está dentro de si; uso da memória para trazer a palco lembran-
ças com o objeto de amor e presença de filhos apegados aos pais. Em
contrapartida, a construção da narrativa de Adichei se constitui mais
explícita, de modo que se percebe que a narradora está apenas con-
tando os fatos decorrentes do luto. No livro, a narradora conversa com
o seu interlocutor – leitor –, falando-lhe de sua angústia e vazio. Em
Morreste-me, a hibridização da narrativa possibilita que o narrador
não somente invoque a imagem paterna, mas, quase de forma epis-
tolar, dialogue com o leitor (pai) que jamais lerá as páginas escritas.
Além de tudo isso, a escritora nigeriana aborda um contexto de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 337


perda caótico, o qual se origina da pandemia da Covid-19. A narrado-
ra de Notas sobre o luto sofre um luto duplo: o primeiro é inerente ao
falecimento da figura paterna e o outro subjaz na perda de liberdade
e de perspectivas futuras durante um tempo distópico, que tem cei-
fado a vida de inúmeras pessoas. A morte de seu pai conversa com a
de centenas de milhares de pessoas desconhecidas pelas letras da
literatura. Ler essa obra, portanto, configura-se como uma forma de
prestar solidariedade aos filhos, filhas, pais, mães, irmãos, esposos e
amigos que perderam partes importantes de suas vidas para o mal-
dito vírus.

Referências

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Paulo, Companhia das Letras, 2021.
FREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros
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Entrevista concedida à Tag curadoria. Disponível em: https://www.taglivros.
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ponível em: http://www.gelne.com.br/arquivos/anais/gelne-2014/ane-
xos/102.pdf. Acesso: 26 de jun. 2021.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 338


CAPÍTULO 17

A poesia diaspórica de
Solano Trindade e Elisa Lucinda
Elaine Morais Lourenço
Amanda Ramalho de Freitas Brito

DOI: 10.52788/9786589932369.1-17
Introdução

A literatura afro-brasileira nos guia para um mundo repleto de


elementos que caracterizam a vida de homens e mulheres que es-
tão inseridos em um plano estrategicamente estruturado pelos fun-
damentos da colonialidade. Segundo o professor Nelson Maldonado-
-Torres1, “a colonialidade pode ser compreendida como uma lógica
de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de
colônias formais” (TORRES, 2019, p. 36). A literatura afro-brasileira além
de nos guiar para esse plano, evidencia os seres anônimos e margi-
nalizados através de uma poética condizente com cada realidade.
O objetivo do racismo é destruir a humanidade, porém, através
de estudos que desmascaram as desigualdades instauradas na so-
ciedade de forma estruturada, podemos perceber que a possibilida-
de de reparação diante dessa problemática, é possível. Como diz a
escritora Neusa Santos Souza, “ser negro é tornar-se negro2”. Porém,
tornar-se negro em um ambiente onde o mesmo é estigmatizado,
é uma constante luta. Afirmar sua identidade nesse caso é um dos
meios que o tornará um ser em harmonia com o seu meio.
Reconhecer hoje a existência de uma perspectiva negra na lite-
ratura brasileira, é entender que a colonialidade como uma episte-
mologia segregacional infindável que prevaleceu nos meios sociais
e acadêmicos, bloqueou estrategicamente a visibilidade de obras de
autoria negra que exploram a vivência dos negros e negras na di-
áspora. Todo esse processo foi elaborado a partir da perspectiva da
“violência colonial que serviu para impor limites à expressão dos es-
cravizados. Esse silêncio impositivo atravessou o tempo, naturalizou-

1 Professor do departamento de estudos latinos e caribenhos e do programa de literatura comparada


da Rutgers University (New Brunswick, EUA).
2 SOUZA. Neusa Santos. Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de janeiro: Edições Graal, 1983.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 340


-se” (CUTI, 2017, p. 25). Então, adquirir o conhecimento a respeito do
poderio advindo da riqueza cultural e estética das culturas africanas
e de seu alongamento na diáspora, influência na aniquilação dos
estereótipos e estigmas sofridos. O negro e a negra, historicamente
abalados, devem “poder tomar consciência de uma nova possibilida-
de de existir” (FANON, 2008, p.95).
Francisco Solano Trindade (1908-1974) foi um multiartista conhe-
cido como griot afro-recifense pelo escritor Elio Ferreira no livro Poesia
Negra (2017). Solano, além de ser fundador do Teatro Popular Brasileiro
(TPB), foi o grande responsável por promover a cultura afro-brasileira
para vários lugares do mundo com suas apresentações de dança,
compostas pelos integrantes de sua companhia de teatro formada
por operários, empregadas domésticas, estudantes e comerciários.
Sua poesia busca transpassar suas vivências como homem negro em
uma sociedade racista e transcender um discurso que objetiva eli-
minar o pensamento do colonizador como superior que degenera o
colonizado, mesmo com o avançar dos anos.
Elisa Lucinda é uma multiartista negra brasileira natural de Vitória
do Espírito do Santo, é atriz, cantora, jornalista, professora, poetisa, re-
aliza um ativismo incisivo em suas redes sociais a respeito da causa
antirracista no Brasil, publicou várias obras significativas ao longo da
sua carreira, além de apresentar seus espetáculos teatrais pelo Brasil
afora. A presente linha de pesquisa busca analisar os poemas de Sola-
no Trindade e Elisa Lucinda com o intuito de alinhar as vozes ancestrais
que se mesclam com a voz de cada eu-lírico ao glorificar a resistência
e a bravura dos indivíduos inseridos em uma estrutura colonial, ecoan-
do através das histórias transmitidas pelo corpo poético. Todos esses
fatores se concentram na memória coletiva da cultura afro-brasileira,
nos fazendo entender que o processo por inteiro se transfigura em um
embate por meio das palavras declamadas de Elisa e Solano.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 341


Podemos perceber que a escrita de Elisa Lucinda e Solano Trinda-
de carregam os aspectos que exaltam os elementos da ramificação
literária que busca concretizar o realce abrangente da “subjetividade
construída, experimentada, vivenciada a partir da condição de ho-
mens e mulheres negras na sociedade brasileira” (EVARISTO, 2009, p.
17), podendo se considerar características da construção identitária
afro-brasileira na literatura.
Solano Trindade enquanto homem negro e Elisa Lucinda enquan-
to mulher negra transmitem suas existências através da poesia que
emana várias divisões, em nome de um único propósito ao buscar
impulsionar a visibilidade da vida de afrodescendentes que carregam
o peso do espectro do racismo. Os dois autores se cruzam no imagi-
nário negro ao retomarem os mesmos aspectos em épocas distintas,
a partir de cada corpo e de cada espaço, através de condições ex-
cepcionais.

A afirmação negra feminina na poesia de Elisa Lucinda

O poema “O que dizem os tambores” da escritora Elisa Lucinda


enaltece a imagem do tambor com a obstinação que advém da cul-
tura africana, sendo propício para o acompanhamento das canções,
entoadas e poemas oralizados que constituem os rituais festivos e sa-
grados. O tambor além de ser um símbolo que integraliza em si todo o
constitutivo essencial da cultura africana, é considerado “a metáfora
universal da poesia negra, a encruzilhada das vozes dos antepassa-
dos africanos e da diáspora” (FERREIRA, 2017, p. 113).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 342


O que dizem os tambores

Todos os tambores ecoam


Todos os tambores soam
Todos os tambores voam
seus ritmos em sua direção
Todos os tambores dizem sim
Todos os tambores vencem o não
Os tambores trazem a glória
quando o seu tocador
escreve a própria história.
(Vozes Guardadas, 1994, p. 231)

A literatura diaspórica é caracterizada pelo resgate desses res-


quícios da cultura africana, nos fazendo remeter à caracterização da
essência identitária negra brasileira. Especificando o poema acima,
o tambor como uma metáfora universal da poesia negra, representa
uma ponte de conexão entre a matriz e a diáspora ao consolidar os
elementos simbólicos que constituem a cultura africana e afro-bra-
sileira. A ancestralidade, por exemplo, podemos sentir com facilidade
com a representação do próprio símbolo do tambor por ser um ins-
trumento secular da tradição africana. A memória coletiva nesse caso
se debruça sobre as ligações emotivas que constroem os caminhos
individuais e coletivos de uma cultura. O indivíduo que cultua sua ori-
gem respeita os trilhos pelos quais foram transmitidos os elementos
pertencentes às suas raízes históricas, fazendo o mesmo externalizar
através das manifestações culturais pertencentes a sua identidade.
Nessa perspectiva, a poesia afro-brasileira é vista como um re-
construtor e ressignificador dos elementos que compõem uma re-
sistência cultural que culmina na identidade de um povo. A individu-
alidade também marca a literatura de autoria negra com aspectos
inerentes da introspecção, dos sentimentos e das emoções. O poema
“Versos ao vento” nos embala com a simbiose entre a imaginação e

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 343


o desejo da mulher que anseia por uma liberdade sem transgressão.
Segundo Cuti, “um escritor negro é livre como qualquer outro para
tocar nesse ou naquele ponto da realidade como tema, incluindo aí
a sua subjetividade” (CUTI, 2010, p. 25). Nesse caso, o eu-lírico permite
o lugar do encantamento que brota através de estímulos imaginários
quando o mesmo menciona seus sentidos, sentimentos, sua nudez
e a êxtase referente ao desejo permitido. Esses dois poemas citados
exemplificam a amplificação que podemos resgatar da poesia de Eli-
sa Lucinda, no que se refere à subjetividade negra feminina e as refe-
rências que tangem sua origem.

Versos ao Vento
Tarde muito azul.
Repouso nua na horizontal paisagem.
Quem saberá, ao esta moça morena avistar,
onde andará seu pensamento?
O transparente macho visita com delicadeza a cena.
Mudo, me beija as costa, agrada meus sentidos,
percorre meus sentimentos.
Na varanda da memória estou deitada e posta
na lira do tempo
entre a janela aberta e a porta
na linha do vento.
(Vozes Guardadas, 1994, p. 352)

O encantar-se com a imagem cotidiana, a liberdade feminina da


imaginação, o desejo e o erotismo constituem o poema com a su-
til familiarização do ser com os aspectos presentes no cenário que
constitui a cena. A mulher antes vista como a musa idealizada, prota-
goniza os versos poéticos. Outro ponto é a ressignificação da imagem
do homem como um “macho que visita com delicadeza a cena”. Ele
sendo invisível e mudo, viabiliza apenas a função de satisfazer os de-
sejos do eu-lírico no imaginário.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 344


O poema “Versos ao vento” é porta-voz da exaltação do desejo
feminino oprimido milenarmente. Poetisas como Elisa Lucinda emer-
gem com a intenção de obliterar esse espectro avassalador que é
responsável pela diminuição da mulher historicamente estigmati-
zada. Falar dos seus sentimentos, ser poeticamente livre e explanar
seus impulsos são atos revolucionários diante de um cânone espe-
cificamente branco e elitista o qual caracteriza a literatura clássica
brasileira. Falar do seu desejo ao invés de ser unicamente o objeto
desejado sem fala é reverter as marcas da história do colonialismo
que transformam a imagem da mulher negra em um símbolo cultural
sem essência.

Provocação

Na intenção de acender o vulcão,


procuro suas lavas.
Procuro onde provocar dentro delas
a deliciosa combustão.
Mas, o que quer a pequena menina?
Pergunta a tarde que a tudo assiste cintilante.
Quero acordar o gigante,
despertar labaredas, provocar o poeta,
chamá-lo à consciência
revolucionária da própria força,
insuflar nele a paixão...
Quero o fogo,
a ardente chama da emoção.
Futuco então suas lavas.
Quero acordar o vulcão
(Vozes Guardadas, 1994, p. 37)

O poema “Provocação” parte da mesma premissa ao contem-


plar as íntimas inquietações do eu-lírico feminino. A voz que emana
do poema transfere através de ações semânticas como “provocar”,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 345


“quero”, “procuro”, a noção de imperatividade do impulsionamento
coercivo feminino. O realiza um processo de naturalização do desejo
feminino através do imaginário poético, rompendo com a barreira da
censura ao libertar o corpo proibido.

Entre o sofrer secular e a vontade de existência na poesia


de Solano Trindade

A poesia é um corpo transmissor de emoções. A poesia negra,


no caso, manifesta várias alegorias que nos permitem vislumbrar um
cenário onde aspectos culturais vinculam-se aos individuais. A escrita
de Solano é um ambiente propício para o florescer das inquietações
mais profundas, juntamente com o encantamento do ser perante aos
elementos em sua volta que contribui com a construção identitária.
“Essa poesia é a voz do negro que fala e crê na sua própria história”
(FERREIRA, 2017, p. 54), é transferência de sentimentos, é honrar os po-
vos da diáspora, valorizar suas histórias, suas jornadas, suas liberda-
des. É dançar no chão que antes era edificada uma casa grande ou
engenho, é lamentar as mortes e festejar as batalhas vencidas, é con-
templar a beleza negra sem a mácula do colonialismo, é reverberar o
amor que sobreviveu ao sofrer secular.
A poesia de Solano Trindade permeia entre os caminhos da histó-
ria através de sua forte conexão com a ancestralidade. A maior parte
de seus poemas traz essa ligação ancestral, nos fazendo perceber
que o seu reconhecimento afirmativo identitário é uma das maiores
características do seu corpo poético. A busca pela valorização do dis-
curso literário que não constitui o cânone é um dos grandes objetivos
do presente capítulo, juntamente com a exaltação da questão iden-
titária. Além de poemas e romances, “histórias orais, ditados, provér-
bios, assim como uma gama de personagens do folclore brasileiro,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 346


são heranças das várias culturas africanas e podem ser entendidas
como ícones de resistência das memórias africanas incorporadas à
cultura brasileira [...]” (EVARISTO, 2009, p. 19).
O poema “Canto” representa em si o hábito que prevalece na cul-
tura afro-brasileira, que são os aspectos da oralidade ao ser transmi-
tida a partir de uma musicalidade. O entoar e o lamento transpassam
as dimensões terrenas para juntar-se aos lamentos dos antepassa-
dos que simboliza a união entre gerações.

Canto

Canto de negro dói


Canto de negro mata
Canto de negro
faz bem e faz mal.
Negro é como couro de tambor
Quanto mais quente mais toca
quanto mais velho
mais zuada faz.
(O poeta do povo, 2008 p. 44)

A segunda estrofe nos remete ao embate que irá se transformar


em resistência. Quando o eu-lírico menciona que o “negro é como
couro de tambor”, refere-se às atrocidades e aos violentos embalos
suportados pela experiência vivida em uma sociedade brancocên-
trica. Ao finalizar com “Quanto mais quente mais toca/ quanto mais
velho mais zuada faz”, o eu-lírico solidifica a batalha através de uma
resistência que percorre os séculos. O símbolo do tambor surge com
poder simbiótico, o homem negro mescla-se ao instrumento e acaba
se tornando um só elemento. O corpo negro em batalha se transfor-
ma no tambor ao expandir sua voz. Seu corpo pode receber a violên-
cia externa, mas a sua voz ecoada como as batidas de um tambor
anuncia a vida que não caiu por terra.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 347


A contação de histórias é uma constante na poesia de Solano
Trindade, um traço nítido que facilmente podemos reconhecer na li-
teratura diaspórica. Seus poemas trazem as lembranças associadas
a sua história e aos caminhos trilhados pelos seus ancestrais que o fez
chegar a certo lugar. Segundo Ferreira, “o escritor da diáspora rastreia
a memória adormecida” (FERREIRA, 2017, p. 61), fazendo ressurgir nas
contações de histórias o que se perdeu no meio do caminho.
Ao realizarmos uma articulação com o eu-lírico do poema “Sou
Negro” do poeta Solano Trindade, podemos perceber que a figura do
“ouvinte” surge como ser que se sensibiliza e ocupa o lugar do mestre
griot ao contar as histórias que antes ouviu a respeito de seus ances-
trais, reproduzindo as práticas das contações de histórias naturali-
zadas no seu cotidiano, carregando a necessidade de reiterar a sua
memória identitária através da oralidade.

Sou Negro
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh`alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu. [...]

A primeira estrofe do poema, que possui uma característi-


ca autobiográfica, realiza uma autoafirmação do homem negro que
resgata sua descendência. Os símbolos da cultura africana são va-
lorizados na sua identidade, traduzindo como herança estabelecida
pelos instrumentos que acompanham as práticas das canções ento-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 348


adas, transferindo a tradição musical africana dos seus avós para sua
realidade. O maracatu como símbolo cultural é uma manifestação a
qual se interliga a ancestralidade histórica dos negros em diáspora,
“são denominações para um bailado popular que reconstitui antigos
rituais de coroação de reis e rainhas celebrados na África”. (D’AMO-
RIM, 2003 p.64)

[...]
Depois meu avô brigou como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
(O poeta do povo, 2008, p. 42)

Os acontecimentos protagonizados pelos seus ancestrais no


Brasil colônia realizam uma quebra de estereótipos criados pelos co-
lonizadores, ao afirmar que o escravo africano não consistia em “um
ser humano dotado de cultura e inteligência, mas um animal abaixo
da linhagem humana” (FERREIRA 2017, p. 57). Dessa forma, Solano ao
transmitir a sua ancestralidade carregada de heroísmo e resistência,
busca ressurgir o embate e mirar para os conflitos sociais presentes
na sociedade brasileira, objetivando a extinção do preconceito racial
e potencializando a valorização da sua identidade afro-brasileira.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 349


O eu-lírico resgata as imagens oscilantes das pessoas que es-
tão na memória coletiva, resgata as histórias que contribuíram com
os aspectos culturais e resgata os cantos dos rituais religiosos que
propagam a força vital da cultura africana que desemboca na afro-
-brasileira. Esse resgate acaba sendo consolidado no corpo do pró-
prio indivíduo que conta a história ao realizar uma imersão no próprio
ser, sendo lançada para o mundo toda a sua experiência.
Pela perspectiva da poesia de autoria negra feminina, entende-
mos que a exaltação do seu desejo equivale ao processo de natu-
ralização do corpo antes estereotipado. Pelo viés da autoria negra
masculina, a exaltação da beleza feminina negra é voltada para o
campo do endeusamento e deslumbre. O “Poema à mulher negra”
apropria-se do encantamento perante a imagem da mulher negra
como inspiração poética. Exaltar os seus traços ao invés de lançá-los
ao imaginário estigmatizado, é ressignificar a sua identidade. A exal-
tação negra feminina transfere a imagem da mulher para o campo
do deslumbramento, elevando seu semblante ao etéreo divino.

Poema à mulher negra

Ela é negra - que graça esplêndida


no seu colorido
Seus olhos - magnéticos no seu puro sentido!
Sua voz - é um lundu tocado à madrugada!
Seu corpo - ó grande esculturada
Seis estéticos em formas provocantes!
Sua alma - ó céus! - como expressar-me?
é grande como o Nilo
é quente como o sol
é boa como o amor!...
Quando ela passa - ó artes -
eu me inspiro
pois seu hálito é bom e prazenteiro...

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 350


Seu andar - caramba! - é um bailado.
Seus pés e suas mãos
combinam com a cabeça
como as estrofes
que formam este poema...
(O poeta do povo, 2008 p. 51)

Comparar o corpo da mulher negra à estrutura visual do poema


no qual seus traços são vangloriados é exceder o ápice da inspiração
poética. Solano entrelaça os aspectos da cultura africana ao corpo
endeusado, com a obstinação de volver o corpo negro à própria Áfri-
ca. O lundu, o rio Nilo e o bailado se personificam na mulher negra que
encanta o eu-lírico.

Considerações finais

Através da poesia negra brasileira de Elisa Lucinda e Solano Trin-


dade, resgatamos questões que convivem com seres que comparti-
lham diariamente com dilemas que os fazem sentir inferiorizados e às
margens dos padrões ditados pela cultura do brancocentrismo. Des-
sa forma, desbravar a floresta da literatura afro-brasileira é um dos
caminhos que facilita a ressignificação identitária negra estigmati-
zada pelos olhares que depreciam. Segundo Ferreira, “a identidade
afro-brasileira se caracteriza pela pluralidade, pelas diversidades his-
tórica, cultural e linguística das diferentes etnias africanas, que foram
decisivas na formação das estruturas socioeconômicas e culturais do
país” (FERREIRA, 2017 p.98). O Brasil insiste em negar as suas raízes, o
que comprova esse caso é perceber que a literatura africana e afro-
-brasileira é rara nas salas de aula.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 351


A poesia negra é um discurso que se propõe a recuperar a me-
mória histórica e transmitir para o mundo a riqueza dos aspectos cul-
turais e intelectuais. Através da literatura afro-brasileira, essa ponte
de conexão pode ser erguida com a colaboração de artes omissas.
A contribuição que a presente pesquisa oferece plana pelo viés do
compartilhamento de poesias desconhecidas e populares de ambos
os poetas escolhidos, através de uma análise que consolida os as-
pectos inerentes à identidade afro-brasileira.
A identidade é uma construção individual que se consolida pelo
meio social, em convivência. Quando os indivíduos não buscam o re-
conhecimento de uma origem que se interliga com a sua origem, ex-
periências e vivências, o indivíduo oscila pelos meios com uma lacu-
na subjetiva. Tendo em vista a problemática, consolidar a identidade
negra brasileira a partir de análises dos poemas escolhidos, trouxe
enriquecimento e clareza em relação aos aspectos da identidade.
A poesia de Elisa Lucinda nos desestabiliza diante do feminino
negro em sua plena liberdade. Exaltar o desejo feminino é ressignifi-
car a identidade negra através da afirmação de uma imagem antes
estigmatizada. Combater os abusos que foram historicamente dire-
cionados à mulher é um avanço que pode anteceder uma humani-
dade equilibrada, o embate presente na sua poesia ocorre por meio
da palavra. Lucinda resgata das entranhas da memória a história de
mulheres que carregaram os julgamentos alheios construídos secu-
larmente. Sua poesia vocaliza uma ancestralidade presente em sua
vivência e musicaliza para que muitos possam se envolver aos seus
versos estridentes.
A literatura elisiana ordena reparação e valorização. Dessa for-
ma, é possível dizer que a poesia negra de Solano e Elisa nos con-
templa com a afirmação negra da identidade a partir dos aspectos
das categorias: oralidade, musicalidade, contação de histórias, em-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 352


bate, exaltação da beleza e do desejo, ancestralidade e memória co-
letiva. Identidade negra brasileira é sinônimo de afro-brasilidade. Os
aspectos da literatura negra de Solano Trindade se interligam com
a essência construtiva de cada categoria, intercruzam-se e ressigni-
ficam a identidade afro-brasileira ao ser valorizada as suas origens.
Seus versos se transformam em teias que ligam seu ser ao dos seus
ancestrais. As histórias são contadas com o intuito de prevalecer no
plano terrestre independente da matéria física, dessa forma, o ato da
resistência se concretiza.
O fluir rítmico acompanha sua poética com naturalidade, a voz
permeia entre os homens negros e mulheres negras, com o intuito de
traçar os caminhos que foram perdidos na diáspora. Solano Trindade
e Elisa Lucinda possuem uma essência poética em comum. A partir
da poesia de Solano, a poesia nos convoca para nos direcionarmos
ao nosso interior, nos fazendo extrair das camadas que envolvem o
nosso ser, o lugar de pertencimento. A partir da poesia de Elisa Lu-
cinda, entendemos que esse lugar de pertencimento permanece, por
mais que o decorrer do tempo tenha a intencionalidade de apagar as
trilhas que dão base à ancestralidade afro-brasileira.

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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 353


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POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 354


CAPÍTULO 18

Permanências e continuidades da
estética hegeliana na crítica poética
de Octávio Paz [1914-1998]
Maycon da Silva Tannis

DOI: 10.52788/9786589932369.1-18
Introdução

História a descoberta de sua situação in media res com o fic-


cional e o conceitual, abre as portas para um renascimento – ou as-
sim deveria ser – e para uma compreensão da natureza do discurso
histórico. No outro lado não há chance de dar certo. Paz evidencia
essa impossibilidade tomando partido contra a entrada da poesia
nos conformes de uma dialética que permite a re-invenção do real.
Para o poeta o discurso poético não pode ser dialético por si só é um
elemento que existe e produz sentido no mundo, isto é, tem ou se liga
à efetividade (Wirklich) sem a necessidade de aderir ao pressuposto
da não-contradição, onde seus termos apresentariam uma acalmia
em relação às suas existências dentro do objeto poemático. Isto se-
ria uma adequação sem a tensão, sem a produção de um vazio. Dito
de outra forma, tomar a poesia, ou mesmo qualquer objeto estético
(mímema) não se adequa à lógica dialética pois é uma finalidade
sem fim (conforme já fora apresentado acima), como sua base é de
conceito segundo a fins, as forças que o compõe não são anuladas
em sua contradição, elas são a própria contradição, a própria tensão,
como afirma Paz:

Não é necessário recorrer a uma impossível enumeração de imagens para per-


ceber que a dialética não abrange todas. Algumas vezes o primeiro termo de-
vora o segundo. Outras, o segundo anula o primeiro. Ou então, não se produz o
terceiro termo e os dois elementos aparecem frente a frente, irredutíveis, hostis.1

Essa condição não muda, não se estabiliza. Dizer isso é mais uma
real condenação ao paradigma da imitação e seus correlatos. Qual-
quer traço de imitação do real, seja como Ideia (Platônica) ou mesmo
Representação, não se seguram diante da impossibilidade de ter no

1 PAZ, 2012. Op. Cit. p. 104.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 356


objeto estético uma recriação do real ou mesmo uma confiança nos
dados de realidade que esse objeto traz consigo. Não à toa, Paz es-
pecifica as imagens de Humor como as que se fecham mais nessa
forma de produção: “As imagens de humor pertencem geralmente a
esse último tipo: a contradição só serve para afirmar o caráter irrepa-
ravelmente absurdo da realidade, ou da linguagem”2. Uma vez que
o humor é a mais alta forma de produção de vazio. Se pudéssemos
falar em uma dialética do humor, ela seria sempre vazia e com a for-
matividade sempre prenhe de um Ser-aí possuidor de uma autentici-
dade momentânea, que sempre retorna à inautenticidade do mundo
da vida, sempre, no entanto, arrasando a sua efetividade. Paz retira
assim o objeto mimético de um sistema que se desdobre a partir do
conceito:

Enfim, embora muitas imagens se desdobrem segundo a ordem hegeliana,


quase sempre se trata mais de uma semelhança que de uma verdadeira iden-
tidade. No processo dialético pedras e penas desaparecem em favor de uma
terceira realidade, que não é mais pedra nem pena, e sim outra coisa. Mas em
algumas imagens – precisamente as mais elevadas – as pedras e as penas
continuam sendo o que são: isto é isto e aquilo é aquilo; e, ao mesmo tempo,
isto é aquilo: as pedras são penas sem deixar de ser pedras. O pesado é o leve.
Não se dá a transmutação qualitativa que a lógica de Hegel pede, como não
houve a redução quantitativa da ciência. Em suma, também para a dialética a
imagem constitui um escândalo e um desafio, também viola as leis do pensa-
mento.3

E ao tomar uma postura defina pela oposição a Hegel, Paz traz à


tona seu grande espantalho, o qual vai desenvolver uma crítica pro-
funda. Mas aqui neste trabalho cabe a pergunta: que Hegel é esse
contra qual Paz se levanta. Na passagem acima, Paz é bastante pon-
tual e econômico – o que não retira a profundidade e a força de suas
palavras – a respeito da sua própria compreensão do sistema He-
geliano. Considerando o que o ator fez e não o que ele deixou de fa-

2 PAZ, 2012. Op. Cit. p. 104.


3 PAZ, 2012. Op. Cit. p. 105.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 357


zer, é importante tomarmos a centralidade de sua crítica que está na
impossibilidade de a poesia ser localizada na Aufheben/Aufhebung.
Na sequência, Paz ainda aponta outro aspecto vital para a sua teori-
zação:

A razão dessa insuficiência – porque é uma insuficiência não poder explicar


algo que está aí, diante de nossos olhos, tão real quanto o resto da chamada
realidade – talvez consista que a dialética é uma tentativa de salvar os princí-
pios lógicos – especialmente o da contradição – ameaçados por sua incapaci-
dade cada vez mais visível de digerir o caráter contraditório da realidade. A tese
não se dá ao mesmo tempo que a antítese; e ambas se dão como realidades
simultâneas, e ambas desaparecem para dar lugar a uma nova afirmação que,
ao englobá-las, as transmuta. Em cada um dos três momentos reina o princípio
da contradição. Afirmação e negação nunca se dão como realidades simultâ-
neas, pois isso implicaria suprimir a própria ideia de processo. Ao deixar intacto
o princípio da contradição, a lógica dialética condena a imagem, que faz pouco
caso desse princípio.4

O argumento paziano é breve, porém eficaz. Por um lado, deve-


-se tentar enxergar o ganho que essa compreensão sobre a dialéti-
ca hegeliana tem, bem como seu enquadramento funcional dentro
da fundamentação epistêmica que silencia o pensamento a respeito
da mímesis para além da sua versão incompleta, ineficaz e omissa:
a imitação e seus correlatos. Por se dirigir ao conceito (tendendo ao
conceito puro) o tratamento que se pauta na lógica dialética de He-
gel, como podemos observar em Auerbach e sua monumental obra
Mímesis (1941), não se abre para uma instância que privilegie a teori-
zação do objeto mimético e suas estruturas fundamentais. Cito aqui
Auerbach como um exemplo de como a proximidade com o – no caso
do filólogo, uma imersão no – sistema hegeliano produz uma resposta
para o mundo, mas não para a teorização. Se o ganho do pensamento
de Auerbach está no contraste que seu pensamento sobre a mimesis
tem em relação à Aristóteles, a força e a teleologia (centrada no real
e para o real) reafirma a imitação como um valor da arte (ainda que

4 PAZ, 2012. Op. Cit. p. 106.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 358


em outros correlatos). Em Auerbach a mímesis é tomada como um
elemento de representação direta da realidade pois os conformes do
sistema hegeliano exigem que o objeto estético estabeleça uma rela-
ção com o mundo da vida, uma relação de toque sensível:

Imitação da realidade é a imitação da experiência sensível na vida terrena, a


cujas características essenciais parecem pertencer a sua historicidade, a sua
mutação e o seu desenvolvimento; por mais liberdade que se queira dar ao po-
eta imitativo para a sua criação, esta qualidade, que é a sua própria essência,
ele não deve tirar da realidade.5

A adesão ao sistema hegeliano é bastante ampla na obra de


Auerbach, a sua concepção de literatura está colada na efetividade
do real (Wirklich), essa junção dialética com o mundo da vida reduz
a compreensão da literatura tanto quanto do fenômeno mimético
à base da imitação. Não necessariamente a imitatio propriamente
dita, mas, toda a compreensão se satisfará com o reconhecimento de
estruturas de representação do real da obra. A discussão ampla, no
campo historiográfico sobre representação – e de quando em quan-
do passando por outros termos que sem deixar de se remeter ao re-
alismo típico de nossa cultura intelectual, fazem as vezes de análises
disruptivas a respeito da natureza do mímesis6 – parece ser o limite
que a restrição ontológica do pensamento e do consequente emude-
cimento teórico tem como efeito.

5 AUERBACH, Erich. Farina e Cavalcante. In Mímesis: A representação da realidade na literatura


ocidental. Editora Perspectiva: São Paulo, 2016. Como a presente (e única edição Brasileira) me
parece ter mudado muito do sentido original exposto por Auerbach, faço questão de ofertar ao
leitor deste trabalho a tradução em língua inglesa: “Imitation of reality is imitation of the sensory
experience of life on earth – among the most essential characteristics of which would seem to be its
possessing a history, its changing and developing. Whatever degree of freedom the imitating artist
may be granted in his work, he cannot be allowed to deprive reality of this characteristic, which is its
very essence.” (AUERBACH, Erich. Mimesis: The Representation of Reality in Western Literature. 1946.
Princeton: Princeton UP, 2003.)
6 Dentro dos conjuntos teóricos que atravessam a experiência brasileira, destaco ainda a tentativa
de uma definição do sentido imitativo e anti- teórico da mímesis, cuja tentativa de tradução se dá
como Mimese se comporta como a mera representação do real no objeto estético.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 359


Retomando o pensamento paziano, o ganho é a verificação que
a insuficiência que representa o pensamento pautado pela dialética.
Se a dialética aplicada ao objeto estético precisa necessariamente
deslocar a sua natureza do terreno “conforme a fins” para uma con-
ceitualidade que permita dar conta da obra e fixar em suas origens
no real, o seu sentido (um sentido específico), ainda que haja um di-
recionamento fluido que “imprime sentido à marcha ziguezagueante
do poema.”7.
Essa estrutura de pensamento é complexa e permite respostas
relacionais com o contexto, ao mesmo tempo que a complexidade
dada se torna externa à obra (ficção externa) e partimos nesta tese
da compreensão paziana de que a criação poética “assume sempre
a forma de intrusão”8 o que nos remete à possibilidade de termos na
poesia uma criação que não seja a fixa expressão de uma subjeti-
vidade, mas considerando a composição formal do poema, Paz nos
aponta um caminho mais completo e menos visível: “A voz do poeta é
e não é dele.”9 E ao afirmarmos isso começamos a questionar as ba-
ses do pensamento cuja a linhagem comete o duplo engano segundo
Paz: “Uns afirmam que a poesia vem do mundo externo; outros que o
poeta é autossuficiente.”10, onde os dois reafirmam a possibilidade de
explicar o poema e explicar tomando em consideração a sua ambi-
ência sócio-histórica.
O contexto impõe um realismo analítico que encerra a possi-
bilidade de teorização e de abertura constante da obra. Quando se
considera a obra nessa estrutura de pensamento, os seus valores se
tornam fixos e a obra deixa de fazer parte do seu tempo e vira mera
representação deste. A força mimética da obra se fecha sobre o do-

7 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 166.


8 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 164.
9 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 164.
10 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 64.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 360


mínio da semelhança. A diferença, por sua vez, é tomada como fator
estilístico ou como desenvolvimento interno da obra. A insuficiência,
em Paz, é também uma crítica às tentativas mais exemplares de re-
sumir a obra a qualquer elemento, mesmo ela própria. A obra de arte
é sempre dotada de um vazio sobre o qual não se pode falar, apenas
esperar seu preenchimento e realização em quem experimenta.
Por outro lado, a consideração paziana se pauta, como muitas
outras, em uma crítica a um hegelianismo que se resume à dialética.
Ora, o elemento da dialética é o ponto deveras importante no sistema
de Hegel, mas não é seu ponto final, tampouco, seu objetivo. O siste-
ma hegeliano percorre por caminhos necessariamente próximos a da
dialética, mas ela representa, em um plano macro estrutural desse
sistema uma parcela muito curta e localizada em um movimento es-
pecífico do encaminhamento para a efetividade (Wirkclich). Em ter-
mos mais claro, já no Prefácio de 1812 da Ciência da Lógica ele indica
resumidamente a base trinitária de seu sistema, a mesma base que é
possível estender um arco de pensamento que vai da Fenomenologia
do Espírito (1807) até as Lições sobre Estética (1838) cuja organicidade
da lógica (sistema do pensamento) é um elemento que se mantém. A
sua base trinitária é formada pelo Entendimento, pela Razão Negativa
e pela Razão Positiva:

O Entendimento determina e mantém as determinações; a razão é negativa e


dialética porque ela dissolve as determinações do entendimento em nada; ela
é positiva porque produz o universal e compreende o particular inserido nele.
Assim como o entendimento costuma ser tomado como algo separado da ra-
zão em geral, assim também a razão dialética costuma ser tomada enquanto
separada da razão positiva. Mas em sua verdade a razão é o espírito, que é
mais elevado do que ambos, a razão entendedora ou entendimento racional.11

11 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Prefácio à Ciência da Lógica (1812). In Ciência da lógica. Tomo I:
Doutrina do Ser. Editora Vozes: Petrópolis, 2016, p. 28.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 361


O que ainda nos levaria a pensar que mesmo em Hegel há uma
divisão de tarefas bastante contundente em relação às 3 etapas do
pensamento. Se por um lado, em diferença a Kant, Hegel permite a in-
teração às coisas do mundo e a sua interiorização no homem a partir
da linguagem12, isto é, tudo o que o homem compreende do mundo é
feito a partir da linguagem, todo o seu conhecimento está nela:

A linguagem se inseriu em tudo aquilo que se torna para ele [o seu humano]
em geral um interior, uma representação, em tudo aquilo de que ele se apro-
pria, e o que ele torna linguagem e exprime nela contém de modo mais enco-
berto, mais misturado e mais elaborado uma categoria; tão natural que lhe é o
lógico, ou, precisamente: o mesmo é a sua natureza peculiar.13

A consideração de Paz se omite a respeito da totalidade da obra


hegeliana, ao mesmo tempo em que está muito próximo do seu sis-
tema de pensamento. Hegel já considera a linguagem como o ele-
mento e intermediação entre o homem e o mundo. Ela perpassa todo
o seu sistema, bem como toda a experiência humana. Lembrando o
ainda pouco citado, Auerbach, a imitação é a imitação da experiên-
cia sensorial da vida, sendo assim, tudo o que nos é perceptível pelos
sentidos é elaborado a partir de uma razão; Em Hegel a razão primeira
é o entendimento, o primeiro contato entre o mundo da vida e uma
estrutura que nos permite interpretá-lo. Claro, em termos hegelianos
a razão, mesmo na imediatez do cotidiano, é juma razão que age por
si só. Não há na compreensão de sensível, sensorial ou linguagem,
elementos que extrapolem. Essa separação é problemática pois ra-
cionaliza em excesso e joga para fora tudo o que não pode ser elabo-
rado de forma radicalmente racional, como por exemplo as emoções,
a metáfora absoluta. De modo que a sua compreensão é sempre res-
trita às suas possíveis representações, respaldadas no conjunto de

12 HEGEL, G.W.F. Prefácio à Ciência da Lógica (1831). Op. Cit. p. 32.


13 HEGEL, 2016. Op. Cit. p. 32.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 362


estruturas racionalmente dispostas a partir dos conjuntos universais,
isto é, as categorias.
Com isso Hegel faz uma importante passagem, se o entendimen-
to é, ainda que a instância mais próxima ao acontecimento, um ele-
mento mediado e formado pela linguagem (a mesma que formulará
os outros 3 termos) ao mesmo tempo que ele não é suficiente, pois a
sua proximidade com o objeto o torna incapaz de pensar sobre ele.
Para tal movimento é necessário que haja um afastamento. A razão
é quem opera esse afastamento, tanto do si mesmo, quanto deste
para o objeto do mundo. Hegel afirmar categoricamente que “a Ra-
zão é Espírito, que é mais elevado que ambos, a razão entendendora
ou o entendimento racional.”14 E por sua vez, “O Espírito é o negativo,
aquilo que constitui a qualidade tanto da razão dialética como do
entendimento; - ele nega o simples, e assim ele põe a diferença de-
terminada do entendimento; ele também assim a dissolve, assim ele
é dialético.”15, a passagem de uma modalidade do pensamento para
a outra – interiorização do elemento do mundo da vida (Res/Ding
na Sich) – se dá pelas possibilidades de rompimento que a dialética
traz. A dialética apresenta uma possibilidade de ganho, em termos de
pensamento, pois ela cria o terceiro, o terceiro termo capaz de pro-
duzir uma acalmia das duas forças que ela põe em jogo, ou seja, sua
capacidade de suprassumir tese e antítese e dar lugar a um termo
que se abra para além do contingenciamento de ambas as forças.
Mas esse movimento não se encerra na mera dialética, para o próprio
Hegel a dialética é um movimento de anulação de forças, mas não da
contradição motora que a forma. O Espírito é um lugar de movimento,
a partir do momento em que se forma o termo suprassumido, agora
é possível o reestabelecimento de uma nova forma simples, como no
entendimento, mas que se abre a uma univocidade, a univocidade do

14 HEGEL, 2016. Op. Cit. p. 28.


15 HEGEL, 2016. Op. Cit. p. 28.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 363


conceito, que é, essa sim, a mais alta instância que o sistema hegelia-
no toma como fundamentos radicais do pensamento. O Espírito,

Contudo, ele não conserva em nada deste resultado, mas é nisso igualmente
positivo e, com isso, é concreto em si; sob este universal não é subsumido um
particular dado, mas naquele determinar e na sua respectiva dissolução o par-
ticular já se co-determinou. Esse movimento espiritual que em sua simplicidade
fornece a si a sua determinidade e, nessa última, sua igualdade consigo mes-
mo, movimento este que, com isso, é o desenvolvimento imanente do conceito,
é o método absoluto do conhecer e, ao mesmo tempo a alma imanente do
próprio conteúdo.16

A determinação proposta por Hegel se encaminha para seu pro-


jeto de estabelecer uma lógica que estivesse unida a um projeto me-
tafísico, a autoconsciência do espírito se forma em um ambiente me-
tafísico. Esses dois vetores são parte de seu enfrentamento à ontologia
anterior, isto é, à ontologia kantiana que reduziu o papel da metafísica
no pensamento: “A doutrina exotérica da filosofia kantiana – de que
o entendimento poderia ultrapassar a experiência, caso contrário, a
faculdade do conhecimento tornar-se-ia razão teórica, que para si,
daria à luz nada a mais que quimeras – justificou pelo lado científico,
a renúncia ao pensar especulativo.”17, e Hegel se lamenta por isso,
sua resposta, claro, é um rearranjo das faculdades de conhecimento
que permitam a reintegração da metafísica no sistema de pensa-
mento. Ainda que o corte de validez de um conhecimento não seja a
metafísica, mas a capacidade da razão não ser anulada por nenhu-
ma outra força.
Uma vez que seja no homem, em sua relação de externalidade
com o mundo, onde se realiza o pensamento em sua mais alta forma,
o especulativo. Isto é, a doutrina exotérica de Hegel é uma interpre-
tação da doutrina kantiana com preocupações metafísicas. Tornan-

16 HEGEL, 2016. Op. Cit. p. 28.


17 HEGEL, 2016. Op. Cit. p. 25.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 364


do todo o sistema móvel. A mobilidade com a qual conta o sistema
hegeliano é imensa, uma vez que o objeto também tem a capaci-
dade de interagir com o observador. Em comparação com Kant que
tinha no objeto (Gegenstand) um elemento imóvel, afetado somente
pela razão e mesmo assim sob a forma de compreensão. Assim, a
projeção de uma metafísica no sistema hegeliano não é um recuo,
mas uma extrapolação da metafísica kantiana visando tão somente
a unificação entre sujeito e objeto, entre lógica e metafísica. Sem, no
entanto, se tornar transcendental. A salvaguarda da metafísica fei-
ta por Hegel pretende-se como a formulação de uma extensibilidade
que permita a não-exclusão da razão da relação homem-mundo. A
metafísica é a salvaguarda da razão pois ela unifica todo o processo
do pensamento.
A lógica de Hegel então se encaminha do Entendimento, cuja in-
tenção é abstrata e interiorizante:

El pensamiento en cuanto entendimiento se queda parado en la determinidad


fija y en la distintividad de ella frente a otra; un tal abstracto [así] delimitado
vale para el entendimiento como siendo de suyo y como subsistente.18

É refinada pela dialética ou pelo que ele chama de razão negati-


va, onde as forças são anuladas – ou como prefiro, entram em acal-
mia – em nome da suprassunção e se mantém negativas, existe a
contradição, mas o que se forma é um desenrolar que se abre como
possibilidade para o conceito: “El momento dialéctico es el propio su-
perar de tales determinaciones finitas y su pasar a sus opuestas.”19
Esse encaminhamento para a suprassunção não se separa e se torna
uma derivação científica nele mesmo, do contrário, se tornaria ape-
nas uma mera negação e um dos termos. Essa confusão é comum

18 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopedia de las ciências filosóficas en compendio. Alianza
Editorial: Madrid,1997. §80 p. 184.
19 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §81 p. 84.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 365


em circuitos de pensamento que tomam a dialética hegeliana como
sendo formada por tese, antítese e síntese. A síntese é um conceito
que parte de um princípio de exclusão da contraditoriedade, não da
manutenção acalmada desta. A dialética, na concepção de Hegel:

se considera habitualmente como una habilidad extrínseca que puede producir


arbitrariamente una confusión en determinados conceptos y una mera apa-
riencia de contradicción en ellos, de modo que [según este modo de ver] lo
nulo no serían aquellas determinaciones, sino la apariencia [de contradicción],
y lo que el entendimiento capta, por el contrario, sería más bien lo verdadero.
Frecuentemente la dialéctica se considera como algo que no va más allá de un
sistema subjetivo para columpiar raciocinios que van de acá para allá y de allá
para acá.20

A esta diferença se soma que o próprio autor toma a dialética


como a mais confiável ou verdadeira das determinações, frente ao
entendimento a dialética já é um movimento de superação: “Pero en
su determinidad propia, la dialéctica es más bien la propia y ver-
dadera naturaleza de las determinaciones del entendimiento, de las
cosas y de lo finito en general.”21 O que nos faz questionar, mas de
que forma a dialética se comporta estando no meio da grandiosida-
de que é o entendimento para a linguagem e do salto posterior que
é o Especulativo? Hegel, sem entrar na determinação de sua doutrina
do Ser estabelece um paradigma que sustenta a sua compreensão
da necessidade dialética para o pensamento:

La dialéctica, por el contrario, es este rebasar inmanente en el cual se expone la


unilateralidad y limitación de las determinaciones del entendimiento tal como
es, a saber, como su propia negación. Todo lo finito es este superarse a sí mis-
mo. Por ello, lo dialéctico constituye el alma móvil del proceder científico hacia
adelante y es el único principio que confiere conexión inmanente y necesidad
al contenido de la ciencia, del mismo modo que en él reside en general la ver-
dadera y no extrínseca elevación sobre lo finito.22

20 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §81 p. 184.


21 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §81 p. 184.
22 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §81 p. 184.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 366


E ainda:

La dialéctica tiene un resultado positivo porque tiene un contenido determinado


o [lo que es lo mismo], porque su resultado no es verdaderamente la nada abs-
tracta y vacía, sino la negación de determinaciones [sabidas como] ciertas, las
cuales se conservan en el resultado, precisamente porque éste no es una nada
inmediata, sino un resultado.23

Por fim, e contra o que Paz realmente se levanta, o Racional-posi-


tivo, ou simplemente, especulativo. Onde Hegel afirma que “Lo espe-
culativo o racional-positivo aprehende la unidad de las determina-
ciones en su oposición, lo afirmativo que se contiene en la disolución.
de ellas y en su pasar.”24 Se no momento anterior a suprassunção
concebe uma acalmia, mas mantendo a ordem de sua negativida-
de, a dialética da negatividade que ocasiona a continuidade do pen-
samento; o momento positivo, o especulativo que é instância mais
ampla do pensamento hegeliano, pois consegue arregimentar todas
as categorias que foram formuladas a partir do movimento dialético
e as subsumir sobre um particular, sobre um conceito. A partir daí o
observador, quem realiza o pensamento especulativo se torna aberto
ao ganho real em termos de consciência de si para si, tampouco para
o absoluto, que é a instância superior e meta do pensamento hege-
liano:

Este [resultado] racional, por consiguiente, aunque sea algo pensado e incluso
abstracto, es a la vez algo concreto porque no es una unidad simple, formal,
sino unidad de determinaciones distintas. Con meras abstracciones o pensa-
mientos formales la filosofía nada tiene que ver en absoluto, sino solamente con
pensamientos concretos.

De onde podemos retirar a compreensão de que mesmo estando


enraizado no procedimento dialético, a lógica de Hegel não é plena-
mente dialética, pois ela não se pretendo como pragmática ou dog-

23 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §82 p. 184.


24 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §82 p. 184.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 367


mática a fim de resolver como se daria a relação do homem com seu
entorno (como fizera Kant). Hegel estabelece dois parâmetros, Espírito
e Pensamento, ambos vetores se encaminham para o absoluto, mas
o que é essa absoluto senão a reunião de todas as coisas possíveis e
coesas pela metafísica. Se Hegel rompe com a estática das coisas, se
ele as tornas objetos dinâmicos na relação de si para si, ele não tende
à dispersão, pois o julgo da metafísica ainda lhe é válido e edificador
de seu sistema, para ele, em contraposição de Kant, existe a possi-
bilidade de manter a existência da metafísica sem que ela incorra
no transcendental, mas, ao fazer isso Hegel renova os acordos com a
ontologia, não mais a ontologia anterior, mas uma ontologia própria
que se torna passível de ser escrutinada com a lógica. A lógica para
Hegel é a compreensão absoluta da efetividade/realidade (Wirklich).
De modo que o que resta a ser feito é percorrer o longo caminho do
pensamento em suas divisões. Assim:

Estos tres lados no constituyen tres partes de la lógica, sino que son tres mo-
mentos de todo lo lógico-real, es decir, de todo concepto o de todo lo verda-
dero en general. Pueden ponerse en conjunto bajo el primer momento, es decir,
bajo el entendimiento, y así mantenerlos separados, pero de este modo no son
tratados con [arreglo a] su verdad propia é.—La indicación que aquí se hace
sobre las determinaciones de lo lógico, como también sobre su división, debe
tomarse en cualquier caso como una indicación de carácter histórico y como
anticipo.25

Assim compreendemos que ao tentar dar conta da unificação


entre metafísica e lógica, Hegel elabora um sistema tripartido que
corresponde a ascensão do pensamento ao especulativo. Ascensão,
pois ao se retirar do contato imediato com os elementos que formam
o costumeiramente chamado real, as coisas, sem abrir mão das in-
teriorizações destas, ele, o pensamento, se abre para um ganho, a
compreensão dessas coisas em relação à sua posição na ontologia,

25 HEGEL, G. W. F., 1997. Op. Cit. §79 p. 183.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 368


na efetividade, no real: três palavras distintas, com naturezas afasta-
das para definir a elevação do pensamento (Entendimento, Dialético
e Especulativo) para a sua forma capaz de pensar autenticamente. A
dialética em Hegel é então um elemento que não ocupa o lugar mais
amplo. Antes de tudo ele é um movimento que dota de mobilidade as
forças que formaram o pensamento. A dialética, como pensada por
Hegel é uma força motriz do fenomenicidade do outro, que ocasiona
a sua extrusão para além de si mesmo e a interiorização do outro em
si. Mas ela não resume todo a escalada proposta por Hegel.
Ao tomar a dialética como contraponto a sua teoria Paz cria, à
sombra de Hegel, um espantalho muito eficiente. Como crítico e fre-
quentador de círculos muito influenciados pelo marxismo – com o
qual vai romper oficialmente anos mais tarde – e mesmo o tradicio-
nalismo hegeliano que já havia desembarcado nos EUA a partir da
entrada e penetração das obras de Erich Auerbach e Leo Spitzer, po-
demos compreender melhor contra o que se debate Paz, uma vez que
a sua imagem sobre o sistema hegeliano é incompleta e específica
demais para tomarmos como uma oposição verdadeira. A princípio
me pareceu que Paz trata a compreensão sobre a ênfase do conceito
e posteriormente ao que ele chama de transmutação qualitativa – de
modo muito genial, uma vez que Paz sai da simples vulgarização da
tradução de Aufhebung como Síntese. O que venho chamando, ao
modo de Frei Henrique Vaz (Vozes, 1992) em sua tradução como Su-
prassumir – a fim de erguer seu próprio programa intelectual, inega-
velmente influenciado por seu contato com a obra de Martin Heideg-
ger. Mas se sua crítica não se completa por conta de uma insuficiência
em relação à consideração ao sistema hegeliano o que pretende o
projeto intelectual de Paz no Arco e a Lira?
A falta de rigor filosófico em relação ao sistema hegeliano quando
desviamos o foco da empreitada de Paz. Primeiramente, a escrita do
Arco e a Lira é ensaística e o grau de invenção compensa a essa insu-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 369


ficiência. Não é uma discussão sobre o sistema hegeliano e seus efei-
tos sobre o panorama crítico ocidental, mas é um ensaio sobre algo
que impede a abertura para o pensamento poético. Ora, se conside-
rarmos esse salto como uma possibilidade analítica nossa, enquanto
leitores guiados por Paz, temos um ganho possível: que a crítica de
Paz está se referindo a uma insuficiência do ocidente que é anterior
ao próprio pensamento hegeliano. Essa insuficiência é definida por
Paz a partir de um movimento de invenção (não do espantalho, mas
ficcional): A escolha pelo sistema hegeliano é um dado muito claro
da ausência de questionamento a respeito do terreno que ele chama
como poético, mas em ampla visão e tomando os parâmetros de Luiz
Costa Lima e Hans Blumenberg, a ausência crítica é a mesma que
produz o ostracismo da teorização da mímesis fora dos parâmetros
de mera imitação, cópia ou representação do real, tanto quanto faz
com que a metáfora seja jogada como mera figura retórica.
Ora, os escritos de Paz indicam que há um ostracismo e uma re-
dução ao conceitual para um elemento que não tem sua natureza
fixada em conceitos – e em adição a isso complemento com a lau-
datória kantiana que não se fixa em conceitos senão em conceitos
segundo a fins – a crítica paziano , portanto, se move de modo ensa-
ístico em seu diagnóstico do problema da poesia e da deformidade
gravitacional que esta forma em relação ao pensamento, bem como
se ergue no ocidente uma forma insuficiente para dar conta desse
elemento deformador. Mas seu segundo movimento é mais precioso:
munido da abertura que a filosofia heideggeriana traz para o seu pró-
prio pensamento, Paz, elabora o lugar e a natureza desse elemento
poético. A ficção poemática em Paz desafia a apreensão crítica pois
ela, se considerarmos o sistema hegeliano, passa no teste de imedia-
tez do entendimento, desmonta a acalmia proposta pela dialética e
não se contenta com as estruturas categóricas de funcionamento do
pensamento especulativo. O que é um triunfo para Hegel e para todos

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 370


nós (principalmente nós historiadores) que ambicionamos uma con-
tente e eficaz saída do pensamento e do sistema hegeliano, para Paz
é a miséria do pensamento a respeito do fenômeno poético.
Essa insuficiência decorre da mesma natureza da linguagem crí-
tica que torna a questão mimética ostracizada. Se pensarmos que a
ficção, tanto quanto as áreas que se equilibram em parte do terreno
ficcional, como a História. O sentido da crítica de Paz se clarifica quan-
do pensamos analiticamente nos termos que fundam o seu pensa-
mento. A poesia, segundo ele, (1) não se desenvolve dialeticamente,
(2) não se limita aos conceitos, poderíamos pensar junto a isso pa-
râmetros exteriores. Considerando o sistema da lógica hegeliana, o
entendimento (3) reage à poesia da mesma maneira que os objetos
do real. De modo que a corrente da Lógica de Hegel não a filtra logo
no início. A tomada de postura do pensamento hegeliano é unificar
esse corpo estranho à efetividade (Wirklichkeit), daí que o paradigma
da imitação é renovado no trato ontológico da literatura.
Paz se preocupa, a despeito da pretensão ensaística do conjunto
de suas obras, em dar uma saída. O que nos parece um certo tra-
to místico ou estritamente poético incorre em uma possibilidade de
desdobramento teórico, se o poema rompe com as amarras que a
ontologia dispõe sobre ele (para a autoproteção dela), restam ainda
duas questões sobre esse profundo questionamento feito por Paz: Se
o objeto poemático se impõe contra a ontologia, como ele ainda é
compreensível pelo homem? E ainda, o que esse homem, que segun-
do Hannah Arendt (A condição humana 1958), zela pela sua auto-
-proteção e pela preservação do mundo público, vê na ficção e prin-
cipalmente na ficção poemática?

Pois bem, o poema não apenas proclama a coexistência dinâmica necessária


dos opostos, mas sua identidade final. Essa reconciliação que não implica re-
denção, nem transmutação da singularidade de cada termo, é u muro que até
agora o pensamento ocidental se recusou a pular.26

26 PAZ, 2012. Op.cit. p. 7.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 371


A imagem a que Paz se refere não é somente a capacidade epis-
têmica que a metáfora possui, mas fica evidenciado o teto, ou to-
mando a expressão de Paz, o muro que o ocidente não se atreve a
ultrapassar: a restrição que a sua ontologia têm em termos do pen-
samento. Se em Hannah Arendt a autoproteção é a base de sobre-
vivência do homem, em Paz é um convite a experimentar esse mun-
do além-mundo. Em Cassirer, com quem Paz estabelece um diálogo
mais amplo, existe ainda a possibilidade de que essa restrição seja
positiva, uma vez que a restrição serviria como base para a condição
carente do homem, que poderia incorrer em uma acusação de que
Paz seria contrário ao pensamento científico, como foi Heidegger, no
entanto, a preocupação de Paz é a a elação que se estabelece entre
Ser e Poema, como esta se realiza na poesia e quais são as possibili-
dades que disto decorrem.
As duas questões são o ponto chave para a compreensão do que
venho tratando por “abordagem deontológica”. Paz desloca a com-
preensão sobre o poema de um terreno puramente conceitual, cuja
apreensão é falha por se realiza a partir do domínio da representação.
A dimensão da diferença e a produção do vazio, que formam a expe-
riência poética não são vistas nesse movimento de identificação com
o real ou com elementos deste, representados pelo poema. No caso
da escrita da História, considerando a sua existência espremida entre
a unidade metafísica que a verdade impõe sob a forma do realismo
crítico, tanto quanto pela exigência científica de operar por conceitos
que tendam ao conceito puto, há uma apreensão ainda mais limi-
tada a respeito do objeto mimético e um distanciamento do núcleo
nervoso da poesia. Tudo isso em prol da satisfação de um realismo
meramente empírico. Tomando em conta um historiador de grande
penetração em minha geração, Roger Chartier, a limitação que me
refiro fica ainda mais clara:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 372


A relação de representação – entendida como relação entre uma imagem pre-
sente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga -
traça toda a teoria do signo do pensamento clássico, elaborada em sua maior
complexidade pelos lógicos de Port Royal. Por um lado, são essas modalidades
variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou
prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é re-
presentado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos.
Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma tal
relação seja inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu
desvio em relação à coisa significada, e a existência de convenções regulando
a relação do signo com a coisa)27

E ainda:

a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre
o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma
presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primei-
ra acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento mediato
que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma “imagem” capaz de repô-
-lo em memória e de “pintá-lo” tal como é.28

Ora, se considerarmos que esse mesmo padrão vai ser a base


das considerações sobre arte de toda uma geração29. A compreen-
são de Chartier exemplifica o que tenho me referido como realismo
historiográfico. Onde a efetividade do objeto estético se encerra em
sua representação do real. A passagem de um elemento a outro e a
compreensão posterior pelo analista funciona na estrutura da qual
Paz se afasta: Há uma anulação entre o real e a representação. Nada
mais que isto. Há uma correspondência entre representação e repre-

27 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av., São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, Abr. 1991.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141991000100010&lng
=en&nrm=iso. Acesso em 04 out. 2020.
28 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av., São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, Abr. 1991.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141991000100010&lng
=en&nrm=iso. Acesso em 04 out. 2020.
29 Aqui faço questão de manter o tom acusatório. Uma vez que em levantamento feito por mim no
ano de 2019 e em 2020, nas ementas das Universidades Públicas do Rio de Janeiro referentes aos
seus programas dos cursos de Teoria da História que em todos eles constavam discussões sobre
o problema da representação e seu devido tratamento dado por Roger Chartier. Curiosamente, A
História Cultural: entre práticas e representações (Trad. de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão
Editora, 1988) permeia todas as ementas.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 373


sentado, entre mímesis e realidade que se expressa na anulação dos
sentidos que se colocam para além do real “apresentado”. Essa anu-
lação permite ainda a entrada do imaginário, como mero suplemento
mediador entre o objeto e a sua representação. Estranhamente, os
historiadores estão mais próximos de Hegel que sua teorização acei-
ta. Uma vez que a ação de compreensão teórica da história se res-
palde em uma estrutura realista e que vise uma efetividade do real,
basta que a literatura (nesse caso em estrito senso) seja submetida a
um método que ambicione demonstrar o quão próxima do real ela é.
Por hora, apenas indico a discussão que será tema dos capítulos que
se seguem. A curva que me permite incluir Chartier aqui faz parte do
arco que pretendo demonstrar com o presente texto. O deslocamen-
to proposto por Paz para se livrar da estrutura que, sendo próxima do
hegelianismo, se conforma com o realismo, desde que ele dê respal-
do às representações interiores (Conceitos).
Frente a isso, o que se ergue? Paz faz brevemente um encami-
nhamento a respeito de sua relação com as críticas que envereda-
ram por um caminho não muito distante, e até mesmo concordante
ao da lógica. Seu breve comentário sobre Stéphane Lupasco (1900-
1988) demonstram que mesmo dentre aqueles que tentaram contor-
nar o sistema hegeliano e partiram para um rompimento mais pro-
fundo com Aristóteles, de quem Hegel sempre esteve muito próximo,
não conseguiram dar conta de uma nova sistemática da lógica que
permita englobar, para Paz “O sistema da lógica complementar ab-
solve algumas imagens, mas não todas. O mesmo se pode dizer de
outros sistemas lógicos.”30 Como propus acima, compreender a obra
de Paz como um elemento deontológico significa também perceber
que Paz executa um verdadeiro tatear no escuro em relação à restri-
ção ontológica. Saber-se dela pode parecer-nos hoje uma facilidade,

30 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 107.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 374


isso por dispormos de elementos e ferramentas críticas. Sem muitos
contornos, é fácil para nós pensarmos uma deontologia pois somos o
resultado de todo o processo pós-Heidegger.
Paz era, como fica claro em seu texto, leitor de Heidegger e não
são poucas as entradas que fazem referência direta ou indireta a
ele. De modo que há uma unificação entre o que o poeta considera
a montagem de um sistema de pensamento que torna o poema um
elemento definitivamente periférico por não estar completamente em
um domínio conceitual:

Pois bem, o poema não apenas proclama apenas a coexistência dinâmica e


necessária dos apostos, mas sua identidade final. E essa reconciliação, que não
implica na redução nem transmutação da singularidade de cada termo, é um
muro que até agora recusou a pular ou a perfurar.31

E se essa limitação que, segundo Paz, é também um elemento


formal da cultura intelectual do ocidente, restringe o poema – e de
modo mais amplo, o objeto mimético – a uma determina formali-
dade. E para Paz uma verdadeira doutrina erigida no pressuposto da
clareza de definição das coisas e da “distinção nítida entre o que é e o
que não é. O ser não é o não ser.”32 Uma modalidade de pensamento
excludente e que promove o ostracismo da mímesis, porém efetiva
nos conformes de sua verificação crítica do pensamento. O poema se
dispõe como uma peça de ligação entre a estrutura ontológica que o
forma, tanto quanto a possibilidade deontológica de sobreolhar aci-
ma de toda a grossa camada nebulosa que nos envolve. Essa mira-
da é instantânea e breve. Ironicamente a diferenciação que se ergue
desde Parmênides, tomando forma em Platão e Aristóteles (quem
junta esse pensamento à necessidade de uma correspondência com
a ontologia) que segue incólume até a modernidade. Esse arco de

31 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 107.


32 PAZ, 2012. Op. CIt. p. 107.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 375


pensamento e auto-justificação/Auto proteção ontológica é vencido
em cada uma das imagens miméticas que foram escritas, pintadas e
esculpidas ao longo de séculos de tradição realista. Mas sempre em
um instante.
O homem precisa, da estabilidade do mundo da vida, então
sua existência cotidiana não se encaminha para uma autenticida-
de, mas antes a correspondência ideológica que lhe permite a sua
auto-preservação dentro da estrutura ontológica que omite o Dasein
mas, como se não bastasse, a mímesis é o Pharmakon do mundo da
vida. Ao mesmo tempo que permite um desenvolvimento das estru-
turas simbólicas que são próprias do homem, e somente dele, elas
também rompem a cada instante com essa conformidade. Phar-
makon(Φαρμακών), veneno e remédio em uma só palavra. Se no caso
do vocábulo grego se necessita da correta dosagem para que não
se envenene o paciente, no caso do objeto estético se dosa não a
sua quantidade, mas a quantidade de controle (negativo) que há de
se por sobre ele. Platão era poeta, seus trabalhos filosóficos passam
por uma determinada estrutura mimética, considerando o exemplo
de Íon para pensarmos nisso, mas seu esforço teórico a respeito da
ontologia do mundo grego é A República, onde ele subssume as ne-
cessidades da Pólis no discurso ficcional e inaugura uma forma de
controle voltada à pedagogia cidadã. E para cada momento histórico,
uma forma maior ou menor, mas sempre presente de controle.
O que Paz nos abre a possibilidade de compreender é justamente
o retorno que a poesia nos propicia em sua realização. Retorno, pois
sua estrutura aponta a constante necessidade de um recomeço:

Seja qual for o desenlace da sua aventura, a verdade é que, desse ângulo, a his-
tória do Ocidente pode ser vista como a história de um engano, um extravio, no
duplo sentido da palavra: é que nos afastamos de nós mesmos ao perder-nos
no mundo. Precisamos começar de novo.33

33 PAZ, 2012. Op. CIt. Página 107-108.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 376


Limitação, insuficiência e engano. Todas as palavras que circun-
dam o sistema da lógica ocidental quando esta se debruça sobre o
objeto mimético. A verificação desta problemática nos indica ainda
um outro aspecto da problemática do poema: A sua forma, do poe-
ma, necessita de um pensamento que suporte o constante aconte-
cer. Isto é, uma forma de pensamento que acompanhe o instante.

Referências

PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Cosac-Nayfi: São Paulo, 2012.


AUERBACH, Erich. Farinata e Cavalcante. In Mímesis: A representação da
realidade na literatura ocidental. Editora Perspectiva: São Paulo, 2016.
AUERBACH, Erich. Mimesis: The Representation of Reality in Western Literatu-
re. 1946. Princeton: Princeton UP, 2003.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Prefácio à Ciência da Lógica (1812). In Ciên-
cia da lógica. Tomo I: Doutrina do Ser. Editora Vozes: Petrópolis, 2016.
HEGEL, G.W.F. Prefácio à Ciência da Lógica (1831) In Ciência da lógica. Tomo
I: Doutrina do Ser. Editora Vozes: Petrópolis, 2016.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopedia de las ciências filosóficas en
compendio. Alianza Editorial: Madrid,1997.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 377


CAPÍTULO 19

Poetnografias do Gozo:
O Voyeurismo catártico na poética
decolonial de Elisa Lucinda

Pedro Henrique Sales Pereira


Amanda Ramalho Freitas Britto

DOI: 10.52788/9786589932369.1-19
Introdução

Iniciamos a nossa discussão aludindo a Bataille (2014), em seu


conceito do erotismo como uma transgressão que se origina do de-
sejo não suprimido de encontro com outro como mecanismo de con-
tinuidade da própria vida. O erotismo começa quando o desejo não
é satisfeito, dando lugar à fantasia. O erotismo e a poesia constroem
há séculos um conjunto de ressignificações sobre o que é imposto a
muitos prazeres, medos e dores da natureza humana, visto que sua
origem e existência percorreram um caminho de repressão, censura
e higienização. Assim procurou, com base no que era sagrado e pro-
fano, permitir o proibido de cada época. Podemos dizer com isso, em
primeiro momento, que o erotismo e a poesia possuem uma relação
estreita.
Octavio Paz (1993), em seus estudos sobre amor e erotismo, nos
convida a pensar o poema como um rompimento de barreiras entre
o ver e o crer, justificando-se com o fato de ser o poema em sua na-
tureza uma metáfora da realidade. Para Paz, a realidade do poema
não é a realidade propriamente escrita, e sim o sentido, a percepção
da mesma. No Poema, a realidade, o dito, ganha pluralidades, certa
amplitude, visto que não é a comunicação crua, meramente narra-
da, ou o simples descrever do sentir. Para o autor o poema é o sentir
em sua materialidade. Sendo assim, a metáfora, a comunicação e a
linguagem são transgredidas e isso não é diferente quando o poema
aspira a ser erótico.
Ao delimitar a origem do erotismo, Paz (1993) atenta sobre a linha
que difere a sexualidade animal e o erotismo humano, na primeira por
ser instinto, cuja única funcionalidade é procriar, há limitações muito
claras: o desejo é impulso, involuntário e, sobretudo, funcional. Na se-
gunda, porém, o desejo é invenção, é a base da fantasia, nela a pro-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 379


criação é descartável ou até mesmo negada. A sexualidade animal
desperta o sexo em momentos de excitação, na sexualidade humana
alinhada ao erotismo, o sexo é insaciável, desejo constante e inter-
rompido, o que converge com Bataille, na ideia da origem do erotismo
nessa infinita e oprimida jornada do desejo.
Há uma perspicácia nesse sentido trazido por Paz, pois com isso,
o autor vai afirmar que como o poema interrompe a comunicação, o
erotismo interrompe a reprodução e assim como o poema é metáfo-
ra do real, o erotismo é metáfora da sexualidade e isso os faz trans-
gressores. Através desse diálogo entre o erótico e o poético, podemos
iniciar nossa análise das cartografias do gozo de Elisa Lucinda, em
Jardim das cartas, livro primeiro da coletânea poética Vozes Guarda-
das (2016). Primordialmente ao entender que o poema e o erotismo
são inibidores de cerceamentos impostos pela sociedade, o dizer eró-
tico de autoria feminina e negra, implica dizer que essa poesia é du-
plamente transgressora, pois interrompe as signifcações e espaços
impostos historicamente ao prazer, escrita e existência de mulheres
negras.
Em diálogo á isso, adentramos na poética do erotismo episto-
lar, propondo entender como por meio do poema epistolar, a autora
convida o leitor a torna-se íntimo e voyeur do sujeito poético, detentor
da enunciação, posto na obra lucindiana como destinatário. Recorre-
mos aos estudos de Marisa Lajolo (2012) sobre a literatura epistolar e
as reflexões e ensaios freudianos sobre o voyeurismo. O poema para
Lucinda é uma carta íntima e espetáculo para o leitor, pois como diz
a poetisa: “todo poema é um bilhete, uma carta, uma seta” (LUCINDA,
2012 p.17).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 380


Enunciação poética e decolonial nos
textos de Elisa Lucinda

Para pensar a poesia de Elisa Lucinda precisamos entender não


apenas as relações entre o eros e a psiquê presentes em seu univer-
so poético, mas pensar também quais violências simbólicas e co-
loniais a autora rompe ao ficcionalizar seu desejo em poesia. Leda
Maria Martins (1996), em seu artigo O Feminino Corpo da Negrura,
estabelece três modelos de ficcionalização de personagens femini-
nas negras, vistos como padrões nas narrativas literárias durante e
posteriores à escravidão.
O primeiro arquétipo é o da “mãe preta”, mãe de leite dos fi-
lhos dos senhores de escravos, mulher dócil e amável, oposta ao
estereótipo da “mulher negra raivosa” ou da “mulher negra promís-
cua”. O segundo, o da “empregada doméstica”, modelo descrito por
Martins (1996) como “uma espécie de força bruta assexuada”, um
rosto indiferenciado que tem a funcionalidade de ser objeto do lar.
Por último, o modelo da “mulata” que representa um corpo exces-
sivamente erotizado e objeto de desejo oculto dos homens bran-
cos. Essas formas de ficção são heranças de um passado colonial,
que traz a marca violenta da invisibilidade dos corpos negros, o que
apaga suas histórias e identidades ao retratá-los como caricaturas
no imaginário popular, e essas caricaturas são estereótipos que fo-
ram levados e reforçados na literatura como uma violência satírica
e repetitiva.
Martins (1996) enfatiza que grandes autores, até próximos da
contemporaneidade foram perpetuadores desses modelos ficcio-
nais de mulheres negras e assim também pactuantes de uma lite-
ratura ideologicamente colonial, como o baiano Jorge Amado, autor
de grandes obras que denunciam o Brasil racista, mas que reforça

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 381


os esteriótipos ao hipersexualizarna sua escrita sobre personagens
negras, como em Gabriela, Cravo e Canela (1956), em que a per-
sonagem protagonista “Gabriela” é descrita como uma mulher de
pele miscigenada que tem a natureza livre e de desejo insaciável, o
que se assemelha ao conceito do estereótipo da ``mulata´´. Martins
vai se referir a Josefina Ludner (1992), ao apontar a permanência de
narrativas coloniais mesmo após o período colonial como “ficções
de exclusão”, o que tem como tendência apagar a diferença e esta-
belecer um padrão.
No artigo Expressões do Erotismo e sexualidade na poesia fe-
minina afro-brasileira, Cristian Souza Sales (2008) discute o fenótipo
caricaturado de personagens negras, comumente atrelado a uma
narrativa de sofrimento, de vida sexual promíscua e doação infinita
ao homem branco. A partir dessas narrativas de autoria masculina
e branca, Sales (2008) afirma que o corpo da mulher negra foi eter-
nizado como um corpo possuidor de uma sexualidade insaciável e
pervertida, tratado como um “corpo-produto” e um “corpo-objeto”.
Citando a autora Miriam Alves, Sales vai nos apresentar uma nova
perspectiva sobre corpos negros na literatura, ressignificados na
prosa e na poesia. Miriam Alves rompe uma sina ficcional desde a
literatura colonial e mata a “mulata” objetificada para dar lugar a
mulher negra que fala de seu próprio prazer no desenvolvimento
de suas personagens, ou seja, se por séculos, a literatura brasileira
foi cúmplice da perpetuação de um imaginário sobre os corpos de
mulheres negras e pelo seu apagamento identitário, somente com
a escrita decolonial e de autoria negra, esse imaginário será exone-
rado.
Em retorno aos estudos de Leda Maria Martins (1996), ao se re-
ferir a autoras como Conceição Evaristo que utiliza técnicas de nar-
ração capazes de persuadir o leitor sobre o que é presente e o que

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 382


é memória, aludindo também a Esmeralda Ribeiro, que em sua obra
“Guarde Segredo”, reelabora uma narrativa antes racista e supér-
flua, transforma-a em um romance inventivo e anômalo com uma
personagem feminina negra multifacetada. Martins deixa claro que
o próprio olhar de autoras negras vai alcançar a libertação de um
olhar falido e artificial de autores brancos, e por fim dar facetas à
quem antes só tinha uma cara, o prazer das personagens negras
desenvolvidas pela autoria afro-brasileira, agora fala do seu próprio
prazer, de sua própria alegria e sua própria dor.
Não é só pela mudança de olhar ou de perspectiva de escrita
que a literatura colonial está sendo posto em tensão, enfraquecida,
ademais pela engenhosidade de recursos estilísticos revolucioná-
rios na poética e na prosa que Conceição Evaristo, Miriam Alves, Es-
meralda Ribeiro, Elisa Lucinda e tantas outras autoras de literatura
afro-brasileira vão construir uma pluralidade catártica de persona-
gens e de narrativas que não estão apenas desmontando um sis-
tema literário eurocêntrico, mas transgredindo e dando subalterni-
dade a vícios e clichês literários que ainda perduram e constituem
o cânone da prosa e da poética brasileira. Somado a isso, insere-se
a poética de Jardins de cartas de Elisa Lucinda, que convoca o leitor
ao erotismo das palavras como força comunicativa de si.

O sentimento e os sentidos do voyeurismo na leitura de


Jardim das Cartas

A poesia em sua essência é uma escrita de identificação, ao mes-


mo tempo em que debita uma mensagem ao leitor, pode ter apelo de
denúncia, de narrativa fantástica, de registro, mas o poema nunca é
apático à percepção de quem fala, é quase sempre desabafo ou grito
da voz lírica, seja de revolta, de amor ou de prazer, é da formulação

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 383


poética transmitir o sentimento do real ou da experiência pela qual
atravessa a linguagem ao seu leitor ou que no mínimo apele a sua
sensibilidade.
Com isso, os poemas de Elisa Lucinda em Jardim das Cartas, tra-
zem uma identificação fascinante ao leitor, pois o mesmo torna-se
receptor ativo de sua cartografia. Lajolo (2002), explica que talvez
essa dualidade de identificação que fez com que a literatura epistolar
ganhasse notoriedade, pois sendo desenvolvidos em forma de car-
tas desencadearam um envolvimento afetivo aos seus leitores que se
relacionavam com o processo de envio e recebimento daquela co-
municação, pois a uma dialógica que vivemos até hoje de diferentes
formas.
Lajolo (2002), nos atenta que a função da metalinguagem é res-
taurada através do tempo e com a literatura epistolar, ela se instaura
como uma ferramenta de linguagem que passa a ser, segundo a au-
tora, mimetizadora, pois se os meios de contar histórias mudam, logo
a escrita e as criações literárias também se adaptam ao seu tempo
de uma maneira muito atrativa ao seu público leitor.
Ao utilizar como exemplo o romance Lettres d’une peruvienne de
Mme de Grafigny, obra que aborda a violência da colonização euro-
peia sobre o povo Inca, Lajolo enfatiza que através das cartas remeti-
das pela protagonista personagem inca``Zília´´, o leitor sente a veros-
similhança e se sensibiliza pelas dores da narradora. A autora reflete
que o fato de serem escritos em primeira pessoa é primordial para
que os romances de epístola causem um tom de familiaridade e ve-
rossimilhança. Serem escritos em primeira pessoa, no entanto, não é
o suficiente para causar a identificação entre personagem/leitor, aqui
remetente/receptor.
Lajolo fomenta que a intimidade transmitida pela linguagem do
gênero entrega ao leitor não somente o papel de receptor das cartas,
mas também de “voyeur/euse”, pois ao se ver envolvido (a) com o

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 384


texto, se transforma em espectador da percepção do personagem ou
do eu (no caso da poesia) sobre os fatos e sentindo seus sentimentos
e desejos, inclusive seu prazer no caso da epístola erótica.
Para Freud o Voyeurismo é entendido como uma nuance sexual
que advém de um desejo de possuir o outro através da visão, em seus
estudos, o termo é substituído por escopofilia cuja etimologia remete
a uma visão que ordena desejo. Na escopofilia o olhar é a fonte prin-
cipal da fantasia e da excitação e o voyeurismo nada mais é do que
uma pulsão de objetificar o outro através de um olhar. Lacan (1985)
vai enfatizar a estreita relação entre a pulsão e o olhar ao dizer que:

O objeto do desejo é a causa do desejo, é esse objeto causa do desejo é o


objeto da pulsão- quer dizer, o objeto em torno do qual gira a pulsão. […] Mas
nem todo o desejo está forçosamente em jogo na pulsão. Há também desejos
vazios, desejos loucos, que partem justamente do seguinte- trata-se apenas
do desejo de que, por exemplo, alguém lhe proibiu de alguma coisa. Pelo fato
de lhe terem proibido, você não pode fazer outra coisa, durante algum tempo,
senão pensar naquilo. É desejo ainda. LACAN (1985, p. 229).

Na primeira parte de Jardim das cartas, intitulado “Carta guar-


dada no decote”, a autora vai abrir a intimidade da voz lírica de seus
poemas, cuja estrutura faz uma alusão às ``cantigas de amigo´´ da
lírica medieval portuguesa, na qual uma mulher apaixonada escreve
ao seu amado, transformando o poema em uma espécie de epístola
lírica, na poética lucindiana essa tradição vai ser revertida, visto que
é uma voz feminina detentora da enunciação. No poema “carta no
decote” a autora escreve:

Vítor voltou a me escrever!


Hoje recebi mais uma de suas
cartas, sempre escritas durante as
manhãs.
Estavam lá, como ele mesmo prometera na véspera (1-4).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 385


No início do poema, a voz lírica nos deixa saber que há uma re-
lação de troca de cartas entre ela e pseudônimo “Vítor”, o que insere
o leitor na intimidade da escrita do remetente ao entender que o po-
ema é uma carta aberta simbolicamente como uma carta secreta e
própria entre dois amantes. Em outro momento a voz lírica diz:

Descreve o nosso amor em detalhes e de modo tão


íntimo, que nem posso contar aqui.
Ele escreve o sentimento de um homem (9-11)

A intimidade é reforçada e o leitor é induzido a acreditar que faz


parte daquele universo particular dos amantes, ou que o está obser-
vando de perto, despertando o sentimento de voyeur/euse que des-
creve Lajolo (2002). A delimitação do homem e o fetiche da masculi-
nidade é retratado com sutileza nas palavras do poema, a voz lírica,
nos permite adentrar em suas fantasias, ao dizer:

Trata-se da subjetividade daquele que mete,


e muda a manobra de Eva.
Ai, ai... o pensamento romântico masculino me deixa muito
[molinha,
Chapeuzinho acreditando nas palavras lindas,
nas instruções do lobo (18-22).

Até esse momento, há uma romanização da masculinidade e dos


estereótipos que ela acarreta. O homem é colocado no lugar de se-
dutor bruto na força e sorrateiro nas palavras, entretanto a voz lírica
em seguida nos surpreende ao dizer no outro verso:

Nada disso. Não há lobo nem garotinhas perdidas em florestas.


Há, sim, o parque dos namorados se estabelecendo no meu peito.
Iluminando a cena.
Eu, com a carta dele impressa na mão, guardo-a entre os seios.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 386


Aqui, a voz lírica criada por Elisa Lucinda não vai apenas quebrar
um estigma de mulher fragilizada à espera do homem pelo próprio
desejo, ela é tão atuante de seu gozo quanto o próprio amante mas-
culino. Não vemos isso, geralmente, em autorias masculinas, na inter-
pretação de vozes líricas femininas. Grandes intérpretes como Chico
Buarque de Holanda e Caetano Veloso ao darem voz lírica a repre-
sentações de mulheres apaixonadas não submetem a elas o poder
de seu próprio gozo, sempre são representadas como sofredoras e
passivas ao prazer masculino que quando são distanciados e o dese-
jo não consumado, é limitado a angústia de um desejo não suprimido.
Em diálogo com Leda Maria Martins (1996) e Cristian Souza Sales
(2008), divergir das narrativas eurocêntricas e patriarcais também é
outro fator revolucionário na poética de Elisa Lucinda. No cenário mu-
sical contemporâneo, cantoras como Luedji Luna e Mc Thá interpre-
tam canções que traçam uma linha sublime entre o prazer feminino,
a solidão da mulher negra e as religiões de matriz africana, algo bas-
tante íntimo à poética de Lucinda, entendem e retratam o corpo e a
sexualidade feminina de uma maneira distante da narrativa branca
e patriarcal presente na música e na poesia canônica brasileira. Em
retorno ao poema “Cartas no decote”, o eu lírico termina sua declara-
ção ao dizer:

Fala mais, meu amante!30


Grita seu macaco pensante,
prega em mim a palavra fecunda!
Sou tua, está posto.
Fala mais, quero ouvir a voz de teus belos olhos,
o som de tua mirada, aqui,
quero aqui.
Assim, rente ao cangote,
ao pé do meu ouvido.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 387


Fala. Enche o meu decote!
Esparrama sua narrativa sobre o nosso combinado.
Vem, são palavras queimando, ardendo no tacho.
Ler-te faz esquentar meu ventre.
Ai, que o verbo é macho!

A fantasia erótica da masculinidade se mistura com a entrega


da voz lírica ao seu remetente. A autora cria mecanismos estilísticos
para que a palavra se agregue ao ato erótico. Quando o eu lírico fala,
“prega em mim a palavra fecunda”, e em outro momento pede ao re-
metente: “Fala. Enche o meu decote”, não há distinção entre palavra e
corpo, a palavra vira agente material do prazer tanto quanto o corpo,
aqui poema e ato sexual se confundem. Por último ao dizer “Ler-te faz
esquentar meu ventre/ Ai que o verbo é macho”. No primeiro verso o
eu lírico declara que a carta/poema/palavra do remetente também
é fruto de sua excitação, denotando a função metafórica do erótico
ressaltada por Paz (1994), na qual afirma que o erotismo é uma poéti-
ca corporal e a poesia torna-se uma erótica verbal, ou seja, segundo
Paz, ambos se complementam na sua função metafísica do desejo.
No segundo verso, a fantasia pelo estereótipo da masculinida-
de não enfraquece nem inferioriza a posição voluptuosa do eu lírico
feminino a uma posição subalterna ao masculino, mas subverte as
posições de poder patriarcal que existe dentro da sexualidade, nesse
sentido o poder está nas mãos de quem escreve, que é uma autoria e
voz lírica feminina fantasiando livremente o masculino como o deseja.
Elisa Lucinda constrói uma lírica feminina que domina e impõe
seu desejo através da fantasia do outro, não há uma busca pelo pra-
zer do pseudônimo masculino e sim uma troca de interesses como
Paz vai chamar de cortesia. No capítulo intitulado como “O livro dos
bilhetes”, poemas curtos como de fato são os bilhetes, reúnem poe-
mas que agregam em sua lírica a liberdade da palavra e consequen-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 388


te da palavra que fala sobre o sexo. No poema cujo título é “Espiritual”
do capítulo em questão, diz:

O homem
o pau do homem
o pensamento dele.
Nada sai de minha cabeça. Minha paixão tão intensa.
É pelo corpo que a alma pensa. (1-6)

Há um entrelaço claro entre o eros e a psiquê nos versos do po-


ema ,enfatizando que a voz lírica fala do corpo que a atrai em sua
totalidade. É importante ressaltar que esta liberdade da palavra na
parte intitulada “O livro dos bilhetes” não ocorre apenas referentes ao
corpo/sexo, são diretas e livres também para falar de amor, revolta
e tristeza. Outros poemas do jardim de Elisa Lucinda abrangem esse
universo de palavras que se convergem com ato. No poema “A doce
angústia” há um verso que diz:

Que achava um jogo peri-gozo embora cheio


de emoções. (4-5)

A palavra ``perigoso´´ se converte em ``peri-gozo´´ nos trazendo


a ideia de uma dualidade dos sentimentos e do formato maleável
da palavra na poética de Lucinda. O pseudônimo Vítor é utilizado em
vários outros poemas da obra, como uma troca de cartas que deixa
o leitor cada vez mais íntimo do desejo do eu lírico. Não temos uma
permissão ou entendimento das respostas do remetente, o sentimen-
to de Voyeurismo está altamente ligado aos desejos nos quais a voz
lírica nos permite saber, elucidando que há uma participação ativa
dela nesse processo sedutor do qual a leitor faz parte.
Para Freud nem sempre o voyeur/euse atua sozinho em seu de-
sejo, o chamado exibicionista encontra sua própria pulsão no olhar

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 389


do voyeur transformando-o em seu objeto e revertendo os papéis na
movimentação dos impulsos.

A finalidade ativa (olhar) é substituída pela finalidade passiva (ser olhado). […].
A essência do processo é, assim, a mudança do objeto, ao passo que a finali-
dade permanece inalterada[..] a transformação da atividade em passividade
convergemou coincidem. (FREUD, 1996, p. 132).

Ao abrir as portas e conceder ao leitor o direito de observar o seu


jardim de cartas, e permitir que ele saiba dos seus desejos mais ínti-
mos pelo amado quase incubo Vítor , a voz lírica detentora da enun-
ciação se torna a finalidade passiva citada por Freud. O leitor/ Voyeur ,
não tem acesso a intimidade de Vítor, ou a suas cartas- resposta mas
através da narração dos desejos da voz lírica se torna um terceiro ser
desejante no ato, pois a voz lírica o quer ali, observando seus desejos.
“Quem quer que seja um exibicionista, em seu inconsciente, é ao mes-
mo tempo um voyeur” (FREUD, 1969, p. 170). A palavra/ linguagem tem
muito poder na poetnografia de Lucinda, a voz lírica remetente deixa
isso perceptível ao ocultar o verdadeiro nome de seu amante, no po-
ema intitulado ``Socorro´´:

Não Posso ver teu nome escrito.


Futuca meu peito,
materializa-se um apito anunciando pra geral que eu ainda te
amo.
um susto, um grito, um espanto.
Tudo com a força de um impacto, mas pro lado bom.
Teu nome incendeia meus sentidos ,
enche meu desejo de alegria.
O nome aparece portando o homem
símbolo, linguagem, alegoria!

Não é apenas o nome oculto do ser amado, mais tarde batizado


com o pseudônimo de ``Vítor´´ que tem um poder simbólico para a nar-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 390


rativa do desejo, ao dizer: `` o nome aparece portando o homem´´, vai
fomentar que o ser desejado carrega com ele toda a fonte do desejo
do masculino da voz lírica. A palavra na poética lucindiana também
se converte em palavra/ato. Essa palavra disfarçada de palavra/lin-
guagem também se torna uma pulsão parte desse processo do de-
sejo do voyeur/exibicionista , tornando-se atrito e obstáculo para o
despir da voz lírica. Disfarçada, a palavra é atuante da fantasia que no
jogo do erotismo não permite que se diga o que realmente quer dizer
para não fragilizar ou enfraquecer a pulsação do desejo. No poema
“Carta sensação” a voz lírica diz:

Por um lado pergunta,


do outro quer apenas das palavras
a real sensação.
Sabe que o que chamamos
de fala vem revestido
de uma fina camada de ilusão.
Fecho os olhos,
sinto sua resposta
percorrer meu corpo
em forma de mão.

No poema intitulado “Na boca da palavra”, poema posterior à


“carta no decote”, Elisa Lucinda irá novamente enfatizar a função da
palavra/linguagem em sua poética como uma metalinguagem. A
palavra do poema não é mais palavra que fundamenta a comunica-
ção entre dois amantes, mas palavra que por ela mesma materializa
o tato e o prazer erótico, algo parecido com o que faz o voyeur/euse
exibicionista na psicanalise freudiana, pois o prazer visual incorpora o
toque. O olho para Freud e Lacan é um veículo do desejo em uma for-
ma psíquica não apenas como órgão. Quando no poema em ques-
tão, a voz lírica fala:

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 391


prestes a me abraçar, a me envolver
gostoso com sua letra
bem traçada, a me ter com ela [...].
Era o bem de Vítor em mim, suas
palavras de amor
dispostas em ato, compostas em um
gesto
inteiro, em verbo doce e duro pra calar
minha
fome.
Sim.
De longe,
é com palavras que Vítor me come.
(18-23)

A voz lírica nos propõe a ideia de que as trocas de cartas para


ela são tão táteis quanto um encontro físico entre os amantes, sensa-
ção que só é proporcionada graças à fantasia causada pelo erotis-
mo. Em “Carta anônima”, quinta parte da obra, Elisa Lucinda constrói
uma sequência para as cartas trocadas da voz lírica / remetente com
o pseudônimo Vítor, ao entregar ao leitor, no poema “ O nascimento
de Vítor”, a origem do nome, retorna a enfatizar o poder fantasioso
que o nome verdadeiro do amante tem e ao mesmo tempo ressalta
que ``novo´´ nome , pseudônimo Vítor também ganhará poder em seu
jardim de desejo, ao dizer:

Vítor, amante invicto da dama Vitória,


nome misteriosamente entranhado
na minha nova memória, criada na
gaveta estelionatária dos falsos nomes,
só pra lhe proteger.
Estou aqui, ao seu gosto gostosa, morena;
você pau duro, eu moça, eu mulher,
eu senhora,eu serena e você no meio do enredo
protegido pela ficção.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 392


No poema “Carta ao pseudônimo” a voz lírica ressalta como a
dualidade de remeter seus desejos ao nome pseudônimo e do prazer
de saber em segredo o nome verdadeiro:

Sabe, Vítor, eu não esqueço nunca


o seu lindo nome que grita e sussurra
dentro de mim como um segredo.
Digo-o pra mim baixinho, mas
pronunciando em murmúrio o seu
nome verdadeiro; (1-5)

A palavra que camufla, brinca e abrange a fantasia na poética


de Elisa Lucinda se torna obstáculo e pulsão do desejo enfatizando a
natureza metafísica do erotismo na poesia. Na música``I Want a Little
Sugar in My Bowl´´ (1965) interpretada pela cantora americana Nina
Simone, referência no cenário musical negro americano em um perí-
odo sombrio para a pupulação negra nos Estados Unidos, a palavra
``sugar´´ e ``bowl´´ que significa respectivamente ``açúcar´´ e`` tigela´´ ,
ganham uma pluralidade nos desejos da voz lírica algo que é possível
graças aos desdobramentos do erotismo na linguagem e que pode-
mos observar com bastante densidade na poetnografia Lucindiana.

Considerações finais

Por fim, O presente artigo buscou investigar as mediações entre


a escrita decolonial e a poétnografia erótica da autora e poetisa Elisa
Lucinda em sua obra Jardim das Cartas presente na antologia Vozes
guardadas (2016) , de modo que se faça entender a verossimilhança
e o sentimento de voyeurismo causada no leitor que se torna recep-
tor ativo de seus poemas em formato epistolar, tomando como base

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 393


referencial os estudos de Marisa Lajolo (2002), em seu texto Romance
Epistolar: O voyeurismo e a sedução dos leitores e os ensaios freudia-
nos sobre a sexualidade no campo da visão. Concluímos que a po-
ética epistolar dialogando com o erotismo provoca um duplo senti-
mento de verossimilhança ao leitor que se torna íntimo e um segundo
remetente da voz lírica. Na escrita de Elisa Lucinda, linguagem e ato se
misturam e o imaginário sexual-afetuoso feminino é transgredido na
medida em que a autora questiona os locais de poder ao criar vozes
líricas femininas que falam abertamente sobre seu desejo.

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Fernando Scheibe (tradução). Belo Horizon-


te: Autêntica Editora, 2014.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: FREUD, S.
Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros
trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1969. p. 123-250. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).
LACAN, Jaques. Seminário 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psica-
nálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985a. 413 p.
LUCINDA, Elisa. Vozes guardadas. Rio de Janeiro: Record, 2016.
PAZ, Octavio. A dupla chama. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Sici-
liano, 1994.
MARTINS, L.M. O feminino corpo da negrura. Revista de Estudos de Literatu-
ra. Belo Horizonte, 1996.
SALES, Cristian Souza. Expressões do erotismo e sexualidade na poesia fe-
minina afro-brasileira contemporânea. Revista Ártemis, v. 14, p. 22-36, 2012.
LAJOLO, Marisa. Romance epistolar: o voyeurismo e a sedução do leitor.
Matraga, Rio de Janeiro, 2002.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 394


CAPÍTULO 20

Vozes insólitas da literatura brasileira:


pessimismo e melancolia em
Augusto dos Anjos e Machado de Assis
Aline Ferreira Pereira
Amanda Ramalho de Freitas Brito

DOI: 10.52788/9786589932369.1-20
Considerações iniciais

“Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho


Destes meus olhos apagou!...”
(Vozes de um túmulo - Augusto dos Anjos)

Esta produção surge da observação e análise estética das obras


de Machado de Assis e Augusto do Anjos, dois escritores brasileiros de
inegável importância para nossa literatura. Embora possuam estilos
bastante distintos, há algo que une ambos os autores: a visão pes-
simista sobre o mundo. Compreende-se que tal relação se dá, tam-
bém, pela crítica que fazem ao cientificismo1, que esteve em grande
evidência no Brasil entre os séculos XIX e XX. Tal aspecto foi bastante
evidenciado nos romances realistas, e é retomado na poesia de Au-
gusto dos Anjos, que apresenta a discussão cientificista na lingua-
gem, utilizando-se de termos científicos em sua construção poética
com muita naturalidade.
A morte é um dos temas mais explorados da literatura, mas para
a ciência ela nada mais é do que o processo natural de decompo-
sição do corpo. Nesse sentido, o verme é o principal agente desse
processo. No final do século XIX, Machado de Assis transpõe o verme
para um lugar de honra, quando dedica a ele sua obra: “Ao verme que
primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa
lembrança estas Memórias Póstumas.” (ASSIS, 2017). Dessa maneira,
o autor ironiza e inova na sua dedicatória, uma vez que se entende
que dedicar algo a alguém parte de um sentimento de gratidão e
reconhecimento. O verme, sendo aquele que geralmente causa re-
pulsa e simboliza a destruição, ocupa a partir de agora um lugar de

1 O termo se refere à crença na superioridade da ciência sobre as outras formas de conhecimento.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 396


significância, agente de transformação, podendo até ser comparado
a uma divindade.
Em consonância a isso, Schopenhauer (1850) compreende a
morte como a musa da filosofia, de modo que esta não existiria sem
aquela. Ele também aponta a morte como um meio de conter a arro-
gância da humanidade, que está fadada ao fracasso moral e a de-
composição física. Para Schopenhauer, alles Leben Leiden ist (toda
vida é sofrimento), e a ele atribui-se o título de filósofo do pessimismo.
Sua principal obra, O mundo como vontade e representação (1818),
apresenta uma filosofia que não recorre a deuses nem tipo algum de
providência divina, antes é construída a partir da ideia de uma von-
tade cega e insaciável do ser humano, sendo esta a maior causa de
sua dor.
O romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Ma-
chado de Assis, é comumente apontado como principal obra literária
brasileira a retratar o pessimismo sobre o qual teoriza Schopenhauer.
Foi publicado primeiramente em folhetim, de março a dezembro de
1881, na Revista Brasileira (atualmente Revista da Academia Brasilei-
ra de Letras), e em seguida editado pela Tipografia Nacional. Com
uma narração não-linear, repleto de digressões filosóficas, ironia e
um marcante pessimismo frente à sociedade e à vida, a obra passa a
ocupar o posto de primeiro romance realista do Brasil.
Nesta obra de Machado de Assis, temos um defunto-autor, um
narrador que conta sua história a partir da sepultura. Para nossa aná-
lise, teremos como ponto de partida a epígrafe que dedica a obra “ao
verme que primeiro roeu as frias carnes” do narrador, o prólogo “Ao
leitor” e os seguintes capítulos: “Óbito do autor” (I), “O delírio” (VII) e
“Das negativas” (CLX).
Quanto a Augusto dos Anjos, professor e poeta paraibano, pu-
blicou apenas um livro de poesias em vida, o Eu (1912), que veio a ser

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 397


editado postumamente em 1920, publicado como Eu e outras poesias,
acrescido de poemas inéditos não incluídos na primeira edição. Na
história da literatura brasileira, o poeta ocupa o posto de pré-moder-
nista – havendo discordâncias, uma vez que sua poética apresenta
elementos de diversas escolas literárias. Elementos como o cientificis-
mo, a linguagem erudita, e a construção de uma estética da putrefa-
ção, são aspectos que remetem ao pessimismo e à melancolia.
Portanto, na sua lírica a morte também é um lugar de subjetivi-
dade, de onde ecoa seu lembrete da miséria da humanidade. O ver-
me se faz presente em muitos dos seus versos, de modo que não se-
ria exagero afirmar que ocupam o lugar das musas, como ocorria na
poesia clássica. Trazemos para análise os poemas “O Deus-verme”,
“Budismo moderno”, “Eterna mágoa”, “Homo infimus” e “O poeta do
hediondo”.
Dessa forma, as obras escolhidas apresentam uma estética da
decomposição, a partir da figura do verme, e uma concepção pessi-
mista da vida, seja a partir da ironia, no caso de Machado de Assis, ou
da melancolia, no caso de Augusto dos Anjos.

O pessimismo à luz de Schopenhauer

Na filosofia, o pessimismo parte da descrença total de progresso


moral e material dos seres humanos. Para Schopenhauer (2014, p. 31),
a vida é sofrimento, de modo que toda felicidade é efêmera e ilusória.
A dor, todavia, se faz necessária para limitar o excesso de arrogância
dos seres humanos frente à vida. Ele também se utiliza de metáforas
da religião para defender sua visão: “O mundo é o inferno, e os ho-
mens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormenta-
dores.” (2014, p. 28).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 398


Segundo ele, a desgraça geral é a regra, sendo a humanidade
uma grande lástima, destinada à dor e à morte. Ele defende que a
origem de todo o sofrimento é a “vontade”, e esta é a essência do ser
humano. É a vontade que nos move, e ela é a própria vontade de viver,
de ser eterno e pleno. Essa vontade seria, supostamente, saciada na
reprodução e perpetuação da espécie, que começa na atração se-
xual dos indivíduos. Todavia, essa vontade é imperecível e, portanto,
insatisfeita, causando assim todo o sofrimento do mundo.
Dessa maneira, ele nos responsabiliza pelo sofrimento em vida, e
afirma que este é consequência do querer-viver: “A mais eficaz con-
solação em toda desgraça, em todo sofrimento, é voltar os olhos para
aqueles que são ainda mais desgraçados do que nós: esse remédio
encontra-se ao alcance de todos.” (2014, p. 25).
Ele também nega a ideia de um Deus criador, uma vez que ele
constata que o mundo é mau, o que é contraditório para a concep-
ção de um Deus bom. “Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de
ser esse Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração.” (Ibid,
2014, p. 38). E conclui:

A miséria que alastra por este mundo, protesta demasiado alto contra a hi-
pótese de uma obra perfeita devida a um ser absolutamente sábio, absoluta-
mente bom, e também todo poderoso; [...] a miséria do mundo torna-se uma
acusação amarga contra o criador e dá margem aos sarcasmos [...] (SCHOPE-
NHAUER, 2014, p. 29).

Apesar de rejeitar a cosmovisão bíblica de um Deus criador e


absolutamente bom, Schopenhauer acredita na ideia de um pecado
original narrada no antigo testamento, mesmo que alegoricamente,
e este como gerador de todo o sofrimento do mundo, de modo que
temos uma culpa a expiar em toda nossa existência. Tal sofrimento
estaria, sobretudo, no campo metafísico – embora possa ser perce-
bido também no físico e empírico. Ele compara o mundo a um lugar

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 399


de penitência ou uma colônia penitenciária – como outros filósofos
apontaram antes na história.
A culpa e a vontade, dessa maneira, coabitam os seres humanos,
e os movem por toda a existência, por causa da queda e do pecado
original, e cada um sofre a pena da sua existência a seu modo. Então,
“a nossa existência assemelha-se perfeitamente à consequência de
uma falta e de um desejo culpado...” (2014, p. 29). Essa falta e desejo
culpado pode ser compreendida a partir do conceito de melancolia,
elaborado por Freud (1917), como o afeto que corresponde ao luto, o
desejo de recuperar algo que foi perdido. É este conceito que utilizare-
mos para compreender a relação entre pessimismo e melancolia nas
obras analisadas.

A negação do sofrimento de Brás Cubas

Desde a dedicatória de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o


narrador deixa explícito o teor pessimista da história que está por vir,
uma vez que a dedica ao verme que primeiro lhe roeu as frias carnes
do cadáver. O narrador ironiza que, se muito tiver, será entre dez e
cinco leitores, comparando suas memórias a outras obras da literatu-
ra mundial, tendo, porém, um diferencial: suas memórias constituem
uma “obra de finado”.
Filho abastado, nascido numa família da elite carioca, Brás Cubas
nunca precisou trabalhar, mesmo tendo exercido alguns ofícios em
vida e cursado Direito em Coimbra. Viajou por muitos lugares e se
relacionou com diversas mulheres. Ainda na juventude, viveu uma
paixão com Marcela, amiga de rapazes e dinheiro, a qual lhe custou
muito caro, literalmente. Mas foi com Virgília que Brás Cubas passou
grande parte da vida, sua relação mais duradoura, apesar de nunca
ter se casado com ela. É por volta dos sessenta anos que Brás Cubas é

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 400


acometido da grandiosa ideia que, de certa maneira, causa sua mor-
te: o emplasto Brás Cubas, um suposto remédio para a melancolia. O
que ocorre é que, ao desflorar da ideia, ele resolve abrir as janelas de
casa e adquire uma súbita pneumonia, que o leva à morte.
No prólogo “Ao leitor”, Brás Cubas esclarece: estamos diante da
obra de um finado. Todavia, não qualquer finado: “Escrevi-a com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que
poderá sair desse conúbio.” (ASSIS, 2017, p. 8). Essa descrição começa
por dar o tom ao que logo mais será narrado: a vida e morte insignifi-
cantes de um homem que ironiza a própria desgraça e ruína por nada
ter conquistado. As memórias póstumas parecem ser a tentativa de
fazê-lo importante, mesmo que após a morte, o que se coaduna com
a vontade de eternidade da qual aponta Schopenhauer.
Em “Óbito do autor” (I), Brás Cubas continua explicando que não
se trata de um autor defunto, mas um defunto autor, sendo a sepul-
tura seu berço; um lugar, portanto, de renascimento. Ele descreve o
ambiente, local e hora de sua morte, e rememora o notável discurso
feito no seu sepultamento por uma das pessoas que acompanha seu
velório – discurso esse que adquire um tom melancólico e, ao mes-
mo tempo, irônico, à medida que conhecemos quem foi, de fato, Brás
Cubas.
A melancolia, acompanhada sempre do pessimismo, manifes-
ta-se efetivamente quando ele descreve o sentimento de quando a
morte lhe apareceu, como se esse fosse o único momento em que
sentiu-se completo e, ao mesmo tempo, “coisa nenhuma”.

Agora quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das


damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de ti-
nhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está
afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte
foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou
a ser deliciosa. A vida estrebucha-me no peito, com uns ímpetos de vaga ma-
rinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o
corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma (ASSIS, 2017, p. 10).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 401


Segundo Schopenhauer (2014, p. 84), a morte é um alívio para o
sofrimento da vida, de maneira que a descrição feita por Brás Cubas
pode ser compreendida como tal. O filósofo associa a expressão fa-
cial dos cadáveres à sensação de consolo que a morte proporciona
ao indivíduo: “Parece que o fim de toda atividade vital é um maravi-
lhoso alívio para a força que a mantém: é o que explica, talvez, essa
expressão de doce serenidade espalhada sobre o rosto da maioria
dos mortos.”
Em “O delírio” (VII), Brás Cubas narra o delírio que precedeu sua
morte. Ele conta que foi arrebatado por um hipopótamo à origem dos
séculos, num regresso acompanhado do frio e do silêncio sepulcral.
Até que encontra Pandora, a Natureza, que afirma ser mãe e inimiga
do narrador, chamando-o de “verme” e garantindo que ainda prova-
ria da dor da existência por algumas horas.

Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devo-
rado depois? Não estás farto do espetáculo e luta? Conheces de sobejo tudo o
que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia; a melancolia
da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior be-
nefício das minhas mãos (ASSIS, 2017, p. 19).

Pandora alerta que tomará de volta a vida que lhe emprestou,


o que causa espanto em Brás Cubas e este suplica-lhe mais alguns
anos de vida. Ela, contudo, finda com qualquer esperança, trazendo
à tona o inevitável fim da humanidade: devorar e ser devorado. Logo
adiante, ela fala-lhe também sobre o tempo. “O minuto que vem é
forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece
como o outro, mas o tempo subsiste. [...] egoísmo, não tenho outra lei.
Egoísmo e conservação.” (ASSIS, 2017, p. 19). Esta fala assemelha-se ao
que Schopenhauer (2014, p. 32) elabora sobre o tempo:

Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 402


pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes
roedores que devastam tudo o que é grande e ousado... Nada se toma a sério
na vida humana; o pó não vale esse trabalho.

Dessa maneira, os minutos são comparados aos vermes que a


tudo devoram, trazendo-nos, mais uma vez, a perspectiva de des-
truição e decomposição de tudo que é vivo. Pandora convence Brás
Cubas do seu fim irremediável, que logo se aproxima, demonstrando
que o homem é devorado tanto pelo tempo quanto pelos vermes e,
portanto, há nos seres humanos uma vontade também de devorar.
Por fim, Brás Cubas finda suas memórias de maneira pouco sau-
dosa, no capítulo “Das negativas” (CLX). De tudo o que viveu, o que
considerou realmente promissor foi a invenção do emplasto Brás
Cubas, a suposta cura para a melancolia. “Divino emplastro, tu me
darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da rique-
za, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu.” (ASSIS, 2017, p.
178). Todavia, sua glória foi também sua ruína. Ele, porém, não perde
a oportunidade de ironizar, ao lamentar não pela morte, mas pelos
seres humanos que ficaram “eternamente hipocondríacos” sem a sua
notável invenção.
Brás Cubas não alcançou a celebridade do emplasto, não foi mi-
nistro, não foi califa, não conheceu o casamento. Seu único saldo po-
sitivo, ele afirma: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria.” Ele busca suprimir o querer-viver, e assim
nega o sofrimento da existência, sobre o qual Schopenhauer (2014, p.
67) diz:

Para todo ser vivo, o sofrimento e a morte são tão certos como existência. Po-
dem livrar-se, todavia, dos sofrimentos e da morte pela negação da vontade de
viver, que tem por efeito desligar a vontade do indivíduo do ramo da espécie, e
de suprimir a existência na espécie.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 403


A reprodução da espécie, segundo Schopenhauer, é o único ob-
jetivo das relações humanas, bem como uma maneira de se perpe-
tuar na Terra, de modo que somente a espécie tem uma vida sem
fim, então ela é capaz de satisfações e de dores infinitas. Brás Cubas
transgride e nega sua natureza humana, podendo-se supor que o faz
numa tentativa de negar também o seu sofrimento. O narrador en-
cerra suas memórias com o mesmo pessimismo com que inicia, mor-
rendo com suas ideias, amores e faltas. Todavia, ironiza sua própria
desgraça e dá-se por feliz.

O pessimismo e a estética putrefata de Augusto dos Anjos

No lirismo de Augusto dos Anjos, temos o pessimismo transfigu-


rado no verme, que é evocado constantemente em seus versos. São
recorrentes as descrições de cadáveres em decomposição e o verme
como único ser ativo, o operário das ruínas. Tal concepção da morte
está ancorada no cientificismo e corrobora com a perspectiva de de-
gradação humana defendida por Schopenhauer.
Vejamos o poema “O Deus-verme”, uma espécie de ode, com ad-
jetivações e descrições do ofício transformista e funéreo do verme:

Fator universal do transformismo


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo


Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 404


Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
(ANJOS, 2014, p. 33)

Nos dois primeiros quartetos, observamos que o verme é o agen-


te que transforma a matéria e que não falha no serviço que emprega
em decompô-la, como num verdadeiro exorcismo. No último verso da
segunda estrofe, o eu lírico afirma que o Deus-Verme não precisa se
antropomorfizar para realizar seu trabalho, algo que o coloca em ou-
tro patamar em comparação com os deuses da Mitologia Grega, por
exemplo. Os tercetos finais colaboram na construção da imagem de
um deus que se alimenta das desgraças humanas.
Como já mencionado, Schopenhauer descarta a ideia de um
Deus criador e bom, dada a miséria do mundo. Sendo assim, o poeta
paraibano, ao atribuir ao verme um caráter divino, reforça a visão de
que o mundo degradado é o reflexo da sua destruição, sua imagem e
semelhança. Se em Machado de Assis o verme foi elevado a um lugar
de honra, ao ter recebido a dedicatória das memórias de Brás Cubas,
em Augusto dos Anjos essa elevação se concretiza, dada essa atribui-
ção divina ao verme.
Em “Budismo Moderno”, percebemos a conformação do eu líri-
co diante da morte e da sua consequente decomposição. Para tanto,
nas duas primeiras estrofes do poema, ele traz não apenas o verme,
mas o seu coletivo (a bicharia), e a figura do urubu, animal que tam-
bém nos remete ao apodrecimento da carne e à toda a estética da
putrefação que é construída na sua poética.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 405


Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, a minha vida


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo.

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo.
(ANJOS, 2014, p. 52)

O título do poema é bastante sugestivo no que se refere à filo-


sofia budista, uma vez que é pautada na renúncia da vontade como
solução para o problema do mal. Schopenhauer (2014, p. 67) afirma
que somente é possível escapar do sofrimento a partir da negação da
vontade de viver, o que se aproxima do ideal budista, e assim, o poe-
ma de Augusto dos Anjos concretiza tal sentimento.
A autopercepção apresentada nesse poema é a de alguém que
se compara em juízo de valor a outros elementos da natureza, como
os organismos unicelulares (diatomáceas) e as plantas infrutíferas,
sem sementes, flores e frutos (criptógama); alguém que nada tem,
sem motivo algum de temer a morte. Pode-se dizer, portanto, que o
uso de termos científicos também é um recurso do qual o poeta se
utiliza para transmitir o teor pessimista da sua visão em relação ao
mundo e aos seres humanos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 406


Nos dois tercetos finais, observamos a vontade de perpetuação
da vida, a vontade de significância do indivíduo de maneira que não
seja esquecido após a morte. Nesse sentido, é possível estabelecer
uma relação direta entre a vontade de Brás Cubas e a do eu lírico do
poema: a vontade de ser lembrado, perpetuada na escrita - mesmo
que os que escrevem sejam considerados ínfimos para o mundo.
Retomando o conceito de melancolia freudiano, a qual é enten-
dida como um sentimento de falta profundo e constante, e a con-
cepção de Schopenhauer que aponta para um sofrimento universal
que assola toda a humanidade, vejamos o soneto “Eterna Mágoa”, de
Augusto dos Anjos:

O homem por sobre quem caiu a praga


Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga


Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe


É que sua mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;


E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
(ANJOS, 2014, p. 125)

Neste poema, observamos a perspectiva de uma mágoa infinda,


uma vez que não é fruto dos erros de apenas um ser, mas de todos
os seres humanos. A tristeza do mundo, da qual ele fala, pode ser en-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 407


tendida como a melancolia, esse pesar que nunca se apaga. Não há
deus algum que traga consolo à essa mágoa, antes, até mesmo após
a morte, é o verme que o lembra o ser humano de sua condição de-
generada. O homo sapiens sapiens torna-se, então, no homo infimus
– trocadilho feito em outro poema de Augusto que veremos a seguir:

Homem, carne sem luz, criatura cega,


Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega


Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentro os frutos,


Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,


Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!
(ANJOS, 2014, p. 171)

Ao batizar, digamos assim, a espécie humana com um novo


nome científico (homo infimus), o eu lírico submete a humanidade
à condição de animal, sem racionalidade e nenhum motivo para se
alegrar. Em consonância a isso, Schopenhauer (2014, p. 34) afirma que
o homem é o mais necessitado de todos os seres, pois não possui
mais do que vontade, desejos encarnados e um composto de mil ne-
cessidades, o que resulta numa vida abandonada a si próprio, incerto
de tudo que não seja a miséria e a necessidade que o oprime. Logo, é
evidente como ambas as visões sobre a humanidade dialogam nes-
sa perspectiva pessimista.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 408


O último poema de nossa análise é uma espécie de manifesto do
autor, que o intitula de “O poeta do hediondo”:

Sofro aceleradíssimas pancadas


No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultrainquisitorial clarividência
Des todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!


Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho


Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
(ANJOS, 2014, p. 169)

Neste soneto, o eu lírico narra, com riqueza de detalhes, a chega-


da da morte – provavelmente, de um cardíaco -, mas tal descrição
também pode ser compreendida como o processo de escrita desse
poeta solitário “de tudo quanto é morto”.
Portanto, é como se nesse poema o próprio poeta – e não mais o
eu lírico – justificasse sua escolha em falar das “desgraças humanas
congregadas”. Na verdade, não nos parece bem uma escolha, uma
vez que, do ponto de vista pessimista, a vida é atravessada o tempo
todo pela morte e pelo sofrimento.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 409


Considerações finais

Nos textos literários escolhidos, seja na prosa ou no verso, o verme


se faz presente. Ele perpassa a humanidade e a literatura, simbolizan-
do a destruição e efemeridade das coisas. Com base no pensamen-
to de Schopenhauer, foi possível estabelecer conexões entre a visão
pessimista do mundo e as poéticas de Machado de Assis e Augusto
dos Anjos, que recorrem à estilização do verme para a consolidação
de uma estética insólita e putrefata.
Todavia, a melancolia é o ponto em que a poesia de Augusto dos
Anjos destoa do romance de Machado de Assis: enquanto que o pri-
meiro a cultua, o segundo busca sua supressão. Brás Cubas é aquele
que rejeita o sentimento de melancolia, uma vez que pretende a cria-
ção de um remédio que a elimine. Esse comportamento do persona-
gem representa a fuga do sofrimento pela negação do querer-viver,
do qual fala Schopenhauer. Em contrapartida, Augusto dos Anjos cul-
tua a melancolia e a utiliza para construção de uma subjetividade
pessimista e universal sobre a humanidade.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 1. ed. João Pessoa: MVC Editora,
2014.
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ciranda Cultural: São
Paulo, 2017.
FREUD, Sigmund. (1917 [1915]). Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras
Completas. v. 14. Rio de Janeiro: imago Editora, 1969.
SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo: o amor - a morte - a arte - a
moral - a religião - a política - o homem e a sociedade. Tradução de José
Souza de Oliveira - São Paulo: Edipro, 2014.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 410


CAPÍTULO 21

Narrativas da diversidade:
identidade diaspórica nos contos
de Conceição Evaristo e Paulina
Chiziane
Ronaldo Gomes dos Santos

DOI: 10.52788/9786589932369.1-21
Considerações Iniciais

Infelizmente, há tempos as mulheres são vistas como objeto de


submissão e inferioridade. Durante séculos, ser submissa fez parte da
imposição de conduta às mulheres e, portanto, influenciou as mulhe-
res em seus modos de relacionar-se com os homens. A mulher, opri-
mida pela dominação masculina, tornou-se um ser fechado para si
e para o mundo violentamente falocêntrico, isso nos tempos iniciais,
sem as discussões de gênero. Com o passar dos tempos, a mulher vai
quebrando barreiras antes inimagináveis, como escrever em um am-
biente cercado pelos homens e ter o reconhecimento de uma autoria
feminina centrada nas próprias lutas e vivências das mulheres.
As mulheres, sem dúvida, participaram/participam da produção
histórica e literária, mas pela “porta dos fundos”, assim como em todos
os setores da vida produtiva e ativa das sociedades. Não só na escrita
como no mercado profissional em geral, a mulher, a partir de então,
teve as portas abertas para si, notoriamente no século XIX, quando
passou a ser “intrigante”, do ponto de vista social, que a mulher tra-
balhasse e o modo como ela conciliaria o trabalho externo (fora de
casa) e o trabalho interno que seria seu “por natureza”.
A inferioridade da mulher não é nada mais que um rótulo imposto
socialmente. De certa forma, elas “cresceram” ouvindo que sua infe-
rioridade vem da “natureza”. Então, entende-se que não era assim na
sociedade primitiva, não havia mulheres santificadas ou degradas. As
sociedades antigas eram um matriarcado, o que significa, como indi-
ca a própria palavra, um sistema no qual quem organizava e dirigia a
vida social não eram os homens, mas as mulheres.
A mulher, ao longo dos séculos, vem tomando espaços cada vez
maiores, assumindo mais papéis que outrora eram apenas direcio-
nados para sexo masculino. O exercício do trabalho significa para a

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 412


mulher muito mais do que a simples entrada num domínio masculino,
ela pode fazer escolhas e, principalmente, não ser reconhecida ape-
nas por sua situação conjugal, isto é, possibilita a mulher ser reconhe-
cida como indivíduo.
Diante desse cenário, ascendem duas escritoras negras, Concei-
ção Evaristo e Paulina Chiziane, que perpassam esse espaço de res-
trições e criam uma identidade feminina de resistência e de obtenção
dos espaços antes reservados apenas para homens.
Podemos perceber que o fato de as duas escritoras serem de es-
paços culturais e contextos sócio-históricos diferentes não as eximiu
de pensar a condição feminina, considerando as especificidades e
subjetividades de cada uma delas, por meio da literatura. Em seus
textos, é possível perceber o conflito vivido pelos sujeitos femininos ao
lidarem com as suas condições de mulher. Nos textos de Conceição
Evaristo, por exemplo, lê-se que há sofrimento na existência feminina,
mas esse sofrimento ao mesmo tempo impulsiona a insubordinação e
a resistência, “A noite não adormece nos olhos das mulheres, há mais
olhos que sono onde lágrimas suspensas virgulam o lapso das nossas
molhadas lembranças” (EVARISTO, 2008, p. 21). Por outro lado, Paulina
Chiziane aponta que “[...] nós, mulheres, somos oprimidas pela con-
dição humana do nosso sexo, pelo meio social, pelas ideias fatalistas
que regem as áreas mais conservadoras da sociedade” (CHIZIANE,
1994, p. 13). O empenho das escritoras é pela busca da emancipação
feminina.
Diante disso, pensamos ser crucial enveredar sobre os concei-
tos e as tensões que envolvem as relações de gênero no Brasil e em
Moçambique. No caso do Brasil, embora seja bastante familiar para
o movimento de mulheres negras, estudiosos e especialistas que tra-
tam dessa questão, tanto na sociedade civil quanto no âmbito das
políticas públicas, o termo gênero é relativamente novo para a maio-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 413


ria das pessoas. Foi só a partir da década de 1980 que os trabalhos
acadêmicos passaram a abordar essa questão de forma sistemati-
zada. Para tanto, contou com as contribuições de diferentes áreas do
conhecimento humano e também do próprio movimento feminista.
É importante ressaltar como ambas escritoras abordam o papel
da mulher e suas relações com o tempo e o espaço nas narrativas
de As Andorinhas, de Paulina Chiziane, e Olhos d’água, de Conceição
Evaristo. Esses aspectos são analisados nos livros sob a lente que não
foca apenas na determinação de superioridade de um trabalho em
relação ao outro, mas antes busca examinar como os textos dialo-
gam entre si e como se complementam, mesmo tendo sido escritos
em dois países tão distantes geograficamente: Moçambique, na Áfri-
ca Austral, e Brasil, na América do Sul.
A encenação literária e a escrita sociológica de Conceição Eva-
risto e Paulina Chiziane, nos textos em estudos, representam a vida de
pessoas que não têm, costumeiramente, a oportunidade de expres-
sarem a sua vivência. Sobretudo as mulheres negras. Assim como
narra Paulina Chiziane em seu artigo, “Se as próprias mulheres não
gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sen-
tem, ninguém mais o fará da forma como elas desejam” (CHIZIANE,
1994, p.16).
Este trabalho é a prova de que é possível considerar as escritas/
vivências das duas escritoras no lugar de interseção e ainda, que es-
sas escritas estejam inseridas no cerne da memória histórica delas,
passando para o campo da subjetividade. Cada uma, ao seu modo,
propícia ao leitor compreender os embates que permeiam as rela-
ções raciais e sociais imbricadas nas sociedades em que vivem.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 414


Traços Identitários da Literatura Negra

Sabe-se que o período mais desumano da nossa história foi o


das expansões territoriais, pois com o avanço dos homens “civiliza-
dos”, todos aqueles que não tinham o nível de civilização idêntico aos
deles eram tidos como seres inferiores e que não mereciam lugar de
destaque nas sociedades puras e cristalizadas. Esse foi o ponto inicial
que acarretou uma escravidão em longa escala dos povos que vi-
viam em terras descobertas e que tinham culturas próprias que não
dialogavam com o cristianismo. A partir de então, temos identidades
em crises nessas sociedades que não foram privilegiadas com as ex-
plorações.
Diante desse contexto de escravidão, surge algo que fere a identi-
dade dos indivíduos e de suas culturas, uma vez que as suas identida-
des não dependiam de um olhar do “outro” com descriminação. Esse
“outro” surge de uma cultura de supremacia de raças e de ideologias,
que forçam a uma nova construção de identidade do colonizado, res-
tringindo as formas de lidar desse indivíduo com a sociedade.
Sabendo que não é possível construir uma identidade de forma
individual, os sujeitos se formam a partir de constantes ligações e de
trocas com o “outro”, uma dependência, seja entre homens e mu-
lheres, brancos e negros ou outros, que podem criar uma relação de
identidade através do discurso proveniente de uma cultura.
No que se refere à ideia de identidade, Stuart Hall (1999) afirma
ainda que os sujeitos são seres fragmentados, compostos não de uma
única identidade, mas de várias formações identitárias, que são con-
traditórias e complexas. Segundo esse autor, os indivíduos assumem
identidades diferentes a cada momento, sendo essas continuamente
deslocadas. A partir disso, surgem vários exemplos de identidades: a
sexual, a religiosa, a profissional, a étnica, a cultural etc, que são incor-
poradas de modo a formar o sujeito.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 415


A representação da identidade africana foi criada a partir desse
processo de apropriação durante esse período escravocrata, servin-
do para criar uma identidade depreciativa e de subordinação nesses
sujeitos, que não conheciam a rotulação imposta pelas sociedades
dominantes. Nesse caso, a realidade foi compartilhada por todos que
viviam em continentes antes não conhecidos. Desse modo, a escra-
vidão surge como uma forma de subordinação e de desvalorização
das identidades dos povos negros, impondo uma forma de religião,
valores e comportamentos que seriam de seres civilizados e idênticos.
A escravidão é considerada como uma desigualdade social, im-
plicando uma negação de liberdade que fere a identidade do sujeito
no que se refere ao seu meio social. A rotulação, nesse caso, é uma
forma que o dominador impõe, correspondendo a uma forma de se
diferenciar. Em todo caso, “negro” é uma construção “branca” para
sentir-se superior e uma forma de rotulação, criando uma identidade
negra e desconstruindo o que eles pensavam de si mesmo, uma im-
posição de identidade que causou uma descriminação racial e étnica
até os dias atuais. Essa é uma construção de ideia que sustenta de
certa forma, uma identidade de superioridade e de supremacia bran-
ca, formulando a ideia de “posse” sobre o “outro”.
De acordo com Hall (1992, p. 39), a identidade não é algo acabado,
e sim, um processo que está sempre em andamento, surgindo de um
preenchimento a partir de nosso exterior pela forma como nós pen-
samos ser vistos ou reconhecidos pelo “outro”. Com isso, a partir de
todas as investigações abordadas em nosso trabalho, pode-se com-
provar, com o respaldo teórico alicerçado na pesquisa, que dentro do
processo de construção da identidade houve interferências do meio
social que modularam todo o perfil identitário dos “negros”. Em meio
às lacunas existenciais que os circundavam, não conseguiam reco-
nhecer-se enquanto um ser racional, tornando-se reféns das suas

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 416


próprias limitações. Essas limitações forçaram os negros a buscar um
referencial de percepção de mundo, nas representações do mundo
“aceitável”. Todo esse conjunto de fatores tem exercido um papel di-
fusor nesse processo de construção de identidade dessas pessoas.
Com relação à identidade negra, Oliveira (1996) afirma que os
afrodescendentes negam sua identidade negra, respondendo posi-
tivamente ou submetendo-se passivamente à violência racista, que
é constante; essa circunstância, segundo Oliveira, chega a ser dota-
da de crueldade, porque o negro deseja o corpo branco e rejeita o
próprio corpo negro, tornando-se vulnerável a sentimentos negativos
como o ressentimento e a baixa autoestima.
Propomos, então, uma leitura crítica da construção das feições de
resistência feminina frente aos fatores externos (históricos e sociais)
que perpetuaram um calar de vozes da mulher negra, observando
como a poesia constrói um espaço de empoderamento dessa voz ou
dessas vozes, dentro de uma sociedade que insiste em se manter iner-
te acerca de uma realidade cultural que tem menosprezado e até for-
jado a identidade feminina. Pensaremos essa relação de resistência
e resiliência através da literatura de Conceição Evaristo e de Paulina
Chiziane, com os livros As Andorinhas e Olhos d’água, considerando
a representação identitária e a construção do discurso feminino. Bus-
camos entender como essa construção de resistência é configurada
como uma possibilidade de leitura de mundo e de representação da
identidade feminina na sociedade contemporânea. Com efeito, ana-
lisaremos, nesse processo poético de inserção das vozes silenciadas,
como a recordação pode fazer com que se crie a resiliência e uma
ruptura utópica do conceito de vivência e sobrevivência feminina de
uma voz Silenciada, abordada pelos textos.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 417


Identidade e a Literatura Diaspórica

A cultura original, no contexto diaspórico, está em constante


transformação, de maneira que novos costumes acabam sendo as-
similados e interferem não apenas na identidade pessoal como na
identidade coletiva que, por sua vez, reflete a identidade cultural de
determinado grupo.

A experiência da diáspora, como aqui a pretendo, não é definida por pure-


za ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heterogenei-
dade necessárias; por uma concepção ‘identidade’ que vive com e através,
não a despeito, da diferença; por hibridização. Identidades de diáspora são as
que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da
transformação e da diferença (HALL, 1996, p. 75).

Stuart Hall (2003) fala desse processo como sendo um núcleo


imutável e atemporal, que liga o passado ao futuro e ao presente
numa linha ininterrupta. Em outras palavras, a fidelidade às origens
pode ser encarada naquilo que se diz acerca da tradição. Não
apenas na História a diáspora está presente, como efeito da zona de
contato, mas na literatura ela também aparece interferindo nas per-
sonagens e na narrativa, muitas vezes como força propulsora da his-
tória contada.
Thomas Bonnici (2005), em Conceitos-chave da teoria pós-colo-
nial, expõe a origem epistemológica do termo. Do grego, diasporein, a
palavra significa semear, a dispersão das pessoas. As pessoas dias-
póricas são aquelas que vivem longe de sua terra natal, real ou ima-
ginária, mas a origem se mostra ainda enraizada pela língua falada,
religião adotada, ou culturas produzidas. Gayatri C. Spivak distingue
entre duas possibilidades: a diáspora pré- transnacional e a diáspo-
ra transnacional. Elas seguem, como explicaremos, as tendências já

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 418


mencionadas anteriormente: A primeira aconteceu quando aproxi-
madamente onze milhões de escravos entre os séculos 15 e 19 foram
deslocados de suas terras e colocados nas Américas para trabalhar
nas fazendas do Novo Mundo.
Na perspectiva de Stuart Hall (2003), dentro dos estudos cultu-
rais, o termo se presta a dar conta especialmente dos fenômenos re-
lativos às migrações humanas dos ex-países coloniais para as an-
tigas metrópoles. Para o teórico, “o conceito fechado de diáspora se
apoia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre
a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção
de um “outro” e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora.”
O autor estuda os mitos fundadores do conceito de diáspora e apro-
funda- se na questão do hibridismo, das reconfigurações e da cultura
africana. Essa é impelida por uma estética diaspórica.
Hall (2003) em, Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais,
fala um pouco sobre a globalização, tema ao qual recorre novamen-
te em sua conclusão. É a partir da noção de identidade cultural dos
migrantes caribenhos que Stuart Hall introduz seu texto. Trabalhar a
questão da diáspora ocorrida com os assentamentos de negros ca-
ribenhos no Reino Unido, relacionada com as complexidades de se
imaginar a nação e a identidade caribenhas, numa era de globaliza-
ção crescente.
O autor ressalta a importância das questões geradas pela diás-
pora, por serem centrais não apenas para seus povos, mas para as
artes e culturas que produzem, já que um certo sujeito imaginado
está sempre em jogo. Cita a obra de Mary Chamberlain, o livro Narra-
tives ofExile and Return, que enfatiza como os elos permanecem for-
tes, apesar do distanciamento da terra natal quadro confirmado por
pesquisas com os migrantes caribenhos residentes no Reino Unido.
Na obra, os entrevistados de Chamberlain falam também sobre a di-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 419


ficuldade dos que retornam em se religar a sua sociedade de origem.
Na situação da diáspora, as identidades tornam-se múltiplas.
Essa interpretação do conceito de diáspora (termo modelado na
história moderna do povo judeu) é a mais familiar entre os povos do
Caribe. Porém, segundo Hall (2003), para eles é mais significante a
versão da história no Velho Testamento, muito mais potente para o
imaginário dos povos negros do que a estória do Natal. Nessa metá-
fora, a história circula de volta à restauração de seu momento origi-
nário, cura toda ruptura, repara cada fenda através desse retorno. É
um cordão umbilical que chamamos de tradição, cujo teste é a fide-
lidade às origens, sua autenticidade.
O conceito de diáspora se apoia sobre uma concepção binária
de diferença, por um lado está fundado em uma ideia que depende
da construção de um “Outro”, e de uma oposição rígida entre o dentro
e o fora. Sabendo que o significado é crucial à cultura, temos a noção
moderna pós-saussuriana que insiste que o significado não pode ser
fixado definitivamente, pois está sempre em movimento. O autor re-
força que a distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado
do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial,
de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus.
Hall (2003) fala que a cultura caribenha é irremediavelmente im-
pura, essencialmente impelida por uma estética diaspórica e cita o
Caribe como um dos cenários chave do início da globalização. Sobre
a globalização pós-1970, afirma que é uma fase transnacional do sis-
tema, o qual tem seu centro cultural em todo lugar e lugar nenhum.
Está se tornando descentrada. Assim, a perspectiva diaspórica da
cultura pode ser vista como uma subversão dos modelos culturais
tradicionais orientados para a nação. Como outros processos globa-
lizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos.
Suas compreensões espaço- temporais, impulsionadas pelas novas

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 420


tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o lugar.
A diáspora é um fator que interfere de forma mais abrangente,
uma vez que toda relação de cultura e moral é moldada a partir de
novas perspectivas estabelecidas por diversos fatores, como o mo-
delo de vida e as relações sociais.
Para o autor, as culturas sempre se recusaram a ser perfeitamen-
te encurraladas dentro das fronteiras nacionais. Elas transgridem os
limites políticos.

A literatura afro-brasileira e moçambicana

A literatura comparada (que é uma das bases de nossa pesqui-


sa) pode ser considerada o estudo de qualquer fenômeno literário,
sob a perspectiva de mais de uma literatura nacional, ou em conjun-
ção com outra disciplina intelectual, ou mesmo com várias.
Atualmente, já é superada a comparação no sentido de verificar
qual literatura, ou qual obra, é melhor. Nesse aspecto, a análise com-
parativa torna-se ainda mais interessante quando se evidenciam as
diferenças, e não apenas as semelhanças entre as obras analisadas,
que devem ser consideradas sob uma perspectiva prospectiva.
A literatura comparada não deve ser somente uma mera com-
paração entre culturas feita de maneira isolada, visto que implica
analisar estruturas de dominação e complexos de inferioridade his-
toricamente gerados, entre outros elementos. A produção da área de
literatura comparada destaca o estudo de aspectos que envolvem
as relações com a sociedade, aspectos teóricos da história literária,
estudos das fontes e estudo dos autores.
No entanto, quando começamos a tomar contato com trabalhos
classificados como “estudos literários comparados”, percebemos que
essa denominação acaba por rotular investigações bem variadas,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 421


que adotam diferentes metodologias e que, pela diversificação dos
objetos de análise, concedem à literatura comparada um vasto cam-
po de atuação.
Desde os primórdios da literatura comparada, esta prática tem
demonstrado grande atenção ao diálogo de calibre internacional. O
comparatismo nutre-se do estudo das relações entre si de diferentes
literaturas, considerando aspectos como aquelas ligadas à inspira-
ção, ou ao conteúdo.
No caso de Evaristo e Chiziane, ao comparar uma obra brasileira
com uma moçambicana, pode-se observar com destaque, entre ou-
tros aspectos, a realidade da cor de pele, e de outros fatores na aná-
lise em questão, sobretudo devido à influência de fatores históricos,
como é o caso da escravidão.
Ao comparar As Andorinhas e Olhos d’água, como observado por
Gomes (2015), verifica-se que, assim como em Moçambique, o Bra-
sil apresenta estrutura social com forte característica patriarcal que,
mesmo apresentando modificações com o passar dos anos, ainda
continua limitando a possibilidade de a mulher superar a posição que
este tipo de situação a impõe. Comparar o trabalho das duas autoras
é evidenciar o ativismo feminino delas.
Resquícios do período colonial escravocrata são percebidos nos
textos, o que, por si só, já seria um interessante ponto em comum a
ser analisado. Chiziane e Evaristo têm compromisso com a denúncia
contra as relações de poder, sexismo e racismo. Escrever como for-
ma de amplificar a voz da mulher negra, com crítica social e racial,
pode ser entendido como forma de insubordinação, permitindo que a
negra saia do papel de objeto, ato feito com maestria por Chiziane e
Evaristo, relacionando história e literatura. Ao romancista, cabe “cons-
truir a narrativa histórica através da imaginação (GOMES, 2015, p. 71)”.
Apenas para reforçar o fator histórico, no Brasil, a produção literária,

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 422


por anos, foi atividade predominantemente de homens, membros
das classes abastadas, refletindo em visões estereotipadas do negro,
da mulher, do índio. Com isso, o ato de uma negra produzir literatura
toma ainda mais importância como meio de sua inserção no mundo,
na história.
Assim como Evaristo, Chiziane utiliza a escrita artística para toni-
ficar a memória da cultura, com registro da oralidade encontrada nas
histórias colhidas no dia a dia.

A partir dessas escritas oriundas do ponto de vista das mulheres negras, de


sua arte, estratégia e visão política, tornou-se possível enxergar a experiência
feminina negra por uma perspectiva diversa da submissão ou da cristalização
do estereótipo (GOMES, 2015, p. 89).

É fundamental considerar a tensão racial, existente tanto no Bra-


sil quanto em Moçambique, para o pleno entendimento da escrita de
Chiziane e de Evaristo. Para elas, sexismo e racismo são sistemas que
se sustentam mutuamente, ressaltando que, pela escrita, procura
uma maneira para que as mulheres conquistem ampla compreensão
e liberdade. A interseção entre as duas escritoras é possível, mesmo
com a distância geográfica entre elas, ao considerar as suas vivên-
cias, observando que o principal, nesse contexto, é a escrita da me-
mória histórica.

A poética de Evaristo move a identificação 'mulher' em direção a múltiplos lo-


cais de redefinição contextual e cria um espaço de resistência para a reorien-
tação das diversas subjetividades e das vozes de sujeitos femininos margina-
lizados e oprimidos pelos mecanismos de poder patriarcal e racista presentes
nas sociedades brasileira e moçambicana (DIOGO, 2010, p. 5).

A escrita de Chiziane, por seu turno, também aponta o destaque


para a discussão sobre o lugar da mulher em Moçambique, lugar este
que proporciona uma condição libertária.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 423


Paulina Chiziane inaugura a publicação do romance de autoria feminina em
Moçambique, ocupando, na atualidade, um lugar desconfortável, que é o de
escritora em uma sociedade que insiste em manter um distanciamento entre o
lugar que compete à mulher e ao homem. A escritora utiliza-se da encenação
literária para falar sobre as relações históricas e sociológicas estabelecidas
que permeiam a sociedade moçambicana (DIOGO, 2010, p. 6).

Mesmo com a grande distância geográfica entre Brasil e Moçam-


bique, com espaços bem distintos e personagens que nem sempre
são contemporâneos, ambas autoras trazem um importante diálogo
entre si. Ao retratar um imperador machista no primeiro conto, um
herói resiliente no segundo, e uma heroína no final. Chiziane mostra
características que são relatadas também por Evaristo em seu livro
Olhos d’água, assim como no livro As Andorinhas, de Chiziane, que
mostra um retrato marginalizado da mulher.
Os textos abordam fortemente questões femininas e raciais. As
duas autoras também compartilham outras semelhanças. Tomaram
gosto pela escrita por meio da tradição oral: Chiziane ouvia histórias
da avó, e Evaristo escutava os “causos” de uma tia. Outra semelhança
é que as duas autoras trazem histórias colhidas na vida real, além de
“terem nascido muito pobres, negras e, principalmente, de terem von-
tade de transformar as coisas e dar voz aos que não tem, usando, em
suas escritas, palavras mais ou menos comuns”. (GOMES, 2015, p. 78).
A trajetória de luta das escritoras se reflete em seus personagens.
Pode-se ressaltar também que seus textos favorecem as trocas cul-
turais, sendo eles uma espécie de mediadores dessas trocas.
A escritora moçambicana e a brasileira “tomam para si a neces-
sidade de engajamento em prol da mulher como possibilidade de
embate, de resistência e insubordinação”. (DIOGO, 2010, p. 7). No en-
tanto, não abrem mão da ternura, possibilitando profundas reflexões
acerca de questões de gênero.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 424


Análise crítica do livro Olhos d’água

Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa fa-


vela no alto da Avenida Afonso Pena. Formou-se professora no antigo
curso Normal, em 1971, e depois mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
foi aprovada em um concurso municipal para magistério e, posterior-
mente, no curso de Letras na Universidade Federal daquele Estado.
Na década de 90, Evaristo ingressa no curso de Mestrado em Letras
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, defendendo, em
1996, a dissertação intitulada Literatura Negra: uma poética de nossa
afro-brasilidade. Desenvolve pesquisa de Doutorado na Universidade
Federal Fluminense cuja temática são as relações entre a literatura
afro-brasileira e as literaturas africanas de Língua Portuguesa. A au-
tora publica poemas e contos na coletânea Cadernos Negros desde
1990, e é chamada para palestras e congressos em todo o Brasil e no
exterior, nos quais aborda as questões de gênero e etnia na literatura
brasileira.
Conceição Evaristo é uma das vozes mais importantes dentro do
cenário literário da contemporaneidade brasileira, pois traz e apre-
senta em suas produções, a real face que permeia a vida do cida-
dão pobre, negro e marginalizado na sociedade, incorporando em
sua narrativa, uma ótica que personifica sinestesicamente todas as
angústias e conflitos que circundam o exterior e interior desses perso-
nagens-pessoas. Estes são escravos de sua própria realidade, e que
por conta dessa condição, lutam freneticamente consigo e contra si
mesmos, para encontrar um “norte” de vida. Tudo é alicerçado pela
utilização das mais singelas reminiscências do passado, que possibi-
litam esses seres a conseguirem ter uma percepção mais ampla da
sua própria identidade, que está em guerra e obriga que a todo custo,
haja por esses personagens, uma busca dentro e fora de si, na ânsia

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 425


de que possam se encontrar enquanto seres com identidades múl-
tiplas, perspectiva essa que Satre (2013) discute e é pertinente para
este trabalho, remetemos a reflexões acerca da feminilidade e resis-
tência ancestral.
Evaristo instiga a pensar acerca da condição da mulher de ma-
neira lírica, mas não menos crítica. “A noite não adormece nos olhos
das mulheres, vaginas abertas retêm e expulsam vida” (EVARISTO,
2008, p.21), é uma metáfora que remete ao entendimento de poder
feminino de conceber ou não vidas, ou seja, semear possibilidades
de existência humana e consequentemente da vitalidade que move
as sociedades planetárias. É essa compreensão, aliada ao fato de a
escritora falar do lugar de mulher negra, que fortalece a importância
da sua escrita em uma sociedade machista e racista, como é o caso
da brasileira.
A escritora continua a instigar-nos na direção desses pensamen-
tos ao escrever que “A noite não adormece nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono”. Podemos perceber nesse verso o quão é
marcada a insubordinação e resistência nessa escrita de um sujeito
negro ao demarcar a vigília de sujeitos femininos na sociedade que
insiste em excluí-las. Acreditamos que a poética de Evaristo move a
identificação “mulher” em direção a múltiplos locais de redefinição
contextual e cria um espaço de resistência para a reorientação das
diversas subjetividades e das vozes de sujeitos femininos margina-
lizados e oprimidos pelos mecanismos de poder patriarcal e racista
presentes nas sociedades brasileira e Moçambicana.
Nascida em meio às palavras, como ela gosta de citar em suas
entrevistas, Conceição Evaristo tem, no início da vida, forte contato
com a literatura oral sobre escravidão, entre outros referentes ao pas-
sado de sua família e imaginação de sua mãe. “Depois, na escola,
aos poucos eu vou ganhando a referência escrita”, cita ela para uma

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 426


entrevista à Carta Capital. A autora de Olhos d’água acredita que o
que ela conseguiu realizar foi uma construção, foi a exceção de uma
regra, regra essa implantada para violar o espaço da mulher negra
ou do homem negro. Diante de tantos empecilhos as pessoas menos
visíveis socialmente não conseguem emergir e soltar seu grito.
Pela ótica da alteridade e da diferença, muitos historiadores lite-
rários começaram a resgatar e a reinterpretar a produção literária de
autoria feminina e negra, numa atitude de historização que se cons-
tituiu como resistência à ideologia da superestrutura que vinha regu-
lando o saber sobre a literatura.
Para a mulher inserir-se nesse universo, foram precisos uma rup-
tura e o anúncio de uma alteridade em relação a essa visão de mun-
do centrada no logocentrismo e no falocentrismo.
A intenção é promover a visibilidade da mulher como produtora
de um discurso que se quer novo, um discurso dissonante em relação
àquele arraigado milenarmente na consciência e nos inconscientes
coletivos, inserindo-a na historiografia literária, que tem em vista um
vigor estético por uma atualidade surpreendente, inserida nesse con-
texto de mudanças.
A literatura brasileira de autoria feminina agrega a si “outras” vo-
zes, desfrutando da construção de uma identidade puramente femi-
nina. Torna-se claro, portanto, que a literatura afro-brasileira refle-
te-se na busca da identidade negra no Brasil e seu fortalecimento,
demostrando as representações identitárias, a partir da análise da
construção do discurso da diferença no qual se expressam as vozes
dessas mulheres negras.
A identidade diaspórica construída, experimentada e reivindica-
da por Conceição Evaristo remete imediatamente à sua descendên-
cia negro-africana, já que a obra literária, sendo um produto da cul-
tura, é tanto política e economicamente, como social e historicamen-
te fundamentada.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 427


Uma tomada de posição inserida na dinâmica das relações so-
ciais e raciais próprias do Brasil, porém resgatada constantemente
como sinal de resistência, pois a escritora formula um conceito de
terra de origem, recuperada a partir de sua afro-descendência.
Quando se está longe da terra conhecida, às vezes, basta agu-
çar certos sentidos para experimentar o gozo da invenção do retorno.
Quando a terra desejada é desconhecida pode-se perder nos incóg-
nitos caminhos, mas nunca deixar esmorecer o desejo da viagem.
A obra poética de Conceição Evaristo, pratica uma escrita inseri-
da na objetividade social e histórica e ao mesmo tempo critica a ela,
contudo é realizada a partir do relato íntimo, de um lugar de enun-
ciação específico que se ancora em pontos de intersecção das dife-
renças, de raça, de orientação sexual, de gênero, etc., elementos que
formam entrelaçamentos de sentidos em seu discurso. Desse modo,
a autoconstrução se dá por um processo de positivação da identi-
dade de mulher negra, espelhada numa coletividade e na memória
de seu grupo étnico, característica que inaugura uma nova forma de
representação da mulher negra.
A autora retrata uma personagem feminina que consegue des-
fazer os nós de sua existência e encontrar uma saída que lhe confere
a tão sonhada plenitude existencial. Relativizando ainda mais a ideia
de que a literatura de autoria feminina se debruça exclusivamente
sobre temáticas memorialistas, autobiográfica, com ênfase no uni-
verso doméstico e no “eu”, com ênfase nas relações de gênero e na
opressão da mulher. Desconstrói, dessa forma, a ideia de que as mu-
lheres devem silenciar-se diante das adversidades e opressões sofri-
das diariamente, e não busquem uma luta social para que suas vozes
não sejam silenciadas.
Há alguns critérios geralmente usados na tentativa de conceituar
a literatura afro- brasileira, a saber: o critério étnico (ligação da obra

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 428


à origem negra ou mestiça do autor); o critério temático (conteúdo
literário relacionado aos temas referentes à cultura afro-brasileira); e
o que chamaremos de critério de transgressão (o texto como forma
de reivindicação e resistência).

Análise crítica do livro As Andorinhas

Paulina Chiziane nasceu em 1944, em Manjacaze, província de


Gaza, sul de Moçambique. Escreveu alguns contos e estreou no ro-
mance com a obra Balada de amor ao vento (1990). Publicou ainda
Ventos do Apocalipse (1995), O Sétimo Juramento (1999), Niketche:
uma história de poligamia (2004), e recentemente, O alegre canto
da perdiz (2008). Foi a primeira mulher moçambicana a publicar um
romance. Dessa forma, a escritora desafiou e desafia críticas e resis-
tências sociais e culturais no seu país, no continente africano e, por
que não, no mundo?
Sobre o conjunto da escrita de Chiziane ancoro ainda em Mata
(2006), para quem,

Desde o seu primeiro romance, Balada de amor ao vento, que a autora vem
desvelando a responsabilidade da mulher no estado de sua condição. Neste
contexto, a obra de Paulina Chiziane atualiza um discurso que inclui o questio-
namento e a denúncia, dando voz e criando espaço de reflexão ao sujeito que
é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma
mudança consciencializada. Esta estratégia, que começa a ser formatada em
Ventos do Apocalipse, adquire dimensão actancial em O Sétimo juramento,
quando as mulheres (mulher, amante e mãe de David) se aliam para se sal-
varem e à família; ou pelas mulheres de Tony, em Niketche, que apanhadas na
voragem de uma relação poligâmica feita à medida do polígamo, o obrigam
a respeitar a instituição. Para tal, há recorrência à diversidade do legado cultu-
ral moçambicano, actualizado em fórmulas, rituais, hábitos, gestos, comporta-
mentos. Por este esquema se elabora um percurso pelas diferenças, semelhan-
ças, desejos, sentimentos e aspirações de diferentes mulheres moçambicanas,
nos diferentes âmbitos de intervenção quotidiana, como em Niketche, romance
feito de polarizações (MATA, 2006, p. 437-438, grifos da autora).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 429


Paulina Chiziane inaugura a publicação do romance de autoria
feminina em Moçambique, ocupando, na atualidade, um lugar des-
confortável, que é o de escritora em uma sociedade que insiste em
manter um distanciamento entre o lugar que compete à mulher e ao
que compete ao homem. A escritora utiliza-se da encenação literária
para falar sobre as relações históricas e sociológicas estabelecidas,
que permeiam a sociedade moçambicana. É essa posição ideológica
da escritora que nos impulsiona a tentar compreender melhor o lugar
ocupado pela mulher em sua cultura. E é a própria escritora que pa-
rece justificar a nossa recolha do seu processo de escrita que é mar-
cado pelo embate com as formas estruturais de opressão em relação
à mulher em seu país,

Olhei para mim e para outras mulheres. .Percorri a trajectória do nosso ser, pro-
curando o erro da nossa existência. Não encontrei nenhum. Reencontrei na es-
crita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha volta.
A condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no
papel as aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as veja,
as conheça e reflita sobre elas (MATA, 2006, p. 8, grifos da autora).

Nota-se que a escritora moçambicana, assim como Conceição


Evaristo, toma para si a necessidade de engajamento em prol da mu-
lher, como possibilidade de embate, de resistência e insubordinação,
sem perder de vista a ternura que caracteriza o ser feminino, em pro-
porção sobejamente reconhecida, no que se refere ao ser masculino,
permitindo-nos reflexões acerca de gênero nos termos que apresen-
tamos acima.
As Andorinhas é o livro da autora que será alvo de nossa análise,
com a primeira edição em 2009, que traz três contos surpreendentes.
O primeiro, intitulado Quem manda aqui?, narra a história de um gor-
do imperador que detinha o poder supremo em seu território. Todos
lhe obedeciam, eram obstinados em servi-lo. No entanto, certo dia,
uma andorinha soltou em seus olhos, o que a autora chama de “ca-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 430


ganita”, equivalente a cocô no português do Brasil. O imperador não
podia tolerar tal ultraje. Além do ato desrespeitoso do pássaro, o im-
perador supunha que as andorinhas (que não lhe obedeciam) faziam
parte de um plano do povo inimigo para desmoralizá-lo. Assim, man-
dou seu exército em uma missão de calar as andorinhas. Foi o início
da sua derrocada. Os soldados, ao saírem para cumprir a ordem do
imperador, em determinado instante chegam ao reino das andori-
nhas. Esse instante marca a entrada em outro espaço, um espaço
paradisíaco, uma espécie de Jardim do Éden, local de renascimento
e fecundidade, bem diferente da terra do soberano. O conto descreve
um lugar físico, real, citando inclusive os nomes reais dos rios que os
soldados cruzam para chegarem até lá. Mas, embora o espaço físico
concreto tenha localização real, a narrativa trata de um lugar ideali-
zado, um paraíso.
Nesse ponto da narrativa, misturam-se o espaço físico real e o
local mítico. O império é decadente, onde se destaca a seca, que
juntamente com a guerra e as doenças, banaliza a morte. Neste es-
paço, há galinhas, cavalos e hipopótamos. É o retrato da sociedade
tribal moçambicana androcêntrica, repleta de imagens da natureza
e do universo masculino. O conto é baseado na história de Gaza, hoje
Moçambique, no reinado de Frederico Gungunhana, o Leão de Gaza,
da Dinastia Nguni. Seu reinado durou 47 anos, de 1855 a 1902. Embora
fosse uma figura controversa, Gungunhana pode ser visto como herói
nacional pela resistência ao colonialismo português. Esse herói, assim
como outros, tem história que dialoga com outras realidades tempo-
rais e espaciais. Nesta narrativa, observa-se com destaque o tempo
cíclico da natureza, tempo em que o humano está sujeito aos ciclos
naturais. Por vezes, evocam-se os espíritos dos antepassados. Por sua
vez, o espaço é um lugar repleto de mitos e símbolos, com um pro-
fundo entrelaçamento entre natureza e homem. O verbo do título da

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 431


narrativa, Quem manda aqui? está no presente. Isso demonstra um
recurso típico das tradições orais que, por meio desse “truque”, traz a
história para o presente na tentativa de reavivar o acontecimento.
Já no segundo conto, Mondlane, o criador, a autora conta poe-
ticamente a história do herói nacional Eduardo Chivambo Mondlane,
um dos principais nomes da história de resistência e luta de Moçam-
bique contra a dominação portuguesa. Sua avó conta a história de
um passado ancestral como forma de profetizar as lutas e vitórias
das quais Mondlane participaria. A principal figura dessa narrativa é
Eduardo Chivambo Mondlane, que viveu entre os anos de 1920 e 1969.
Ele foi um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique
(Frelimo), da qual Paulina Chiziane também fez parte. Mondlane mo-
rou nos Estados Unidos da América, teve atuação na Organização
das Nações Unidas e foi o primeiro presidente da Frelimo. Fez dou-
toramento em Sociologia. Em 1961, em visita a Moçambique, teve a
convicção que era chegada a hora de intensificar as ações de luta
pela independência. Assim, em 1962, fundou a Frelimo, após articu-
lação para unir outros grupos que começavam a se organizar com
a mesma finalidade. Morreu assassinado em 3 de fevereiro de 1969,
após abrir uma encomenda-bomba. Moçambique viria a se tornar
independente de Portugal em 1975.
O tempo real desse conto é aquele que se passa em Moçambi-
que sob o domínio português. Assim como Gungunhana (o imperador
do primeiro conto), Mondlane também tem história que dialoga com
outras realidades temporais e espaciais. O recurso do “era uma vez”
é utilizado neste conto. É uma ferramenta da avó de Eduardo (que
conta uma história para ele) para entrar no mundo da ficção e, além
disso, estabelecer a ligação entre o passado e o presente. É por meio
da história que a avó conta, de um tempo em que ele não viveu, que
Eduardo se prepara para a luta em que ele seria o protagonista, a luta

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 432


pela liberdade de Moçambique frente ao domínio português. O tem-
po, neste conto, tem como linha a história de Moçambique. Na déca-
da em que Eduardo nasceu, Moçambique passava por um tenso pe-
ríodo social. Em Portugal, um golpe colocara Salazar como presidente
do Conselho de Ministros. Com isso, há uma nova ordem em relação
às colônias africanas, de modo que elas fossem “civilizadas”. Foi ins-
tituído um sistema de ensino em que o objetivo, obviamente, não era
educar, mas servir como aparelho ideológico do Estado Português. O
conto também traz as galinhas, mas Eduardo, nesse lugar, faz-se de
águia. O cenário do conto é de opressão em Moçambique sob o co-
lonialismo português. Na composição do espaço, a autora cita tam-
bém a escravidão do africano, num local com história corrompida e
transformada pelos interesses do capitalismo europeu. Após a morte
de Eduardo, a autora cria um espaço, para onde ele vai, que se asse-
melha em conceito ao reino das andorinhas, do primeiro conto.
Por sua vez, o terceiro conto traz mais uma figura de herói mo-
çambicano. Para ser mais exato, uma heroína. Mutola, a ungida é o
título da terceira narrativa. Maria de Lurdes Mutola foi a primeira me-
dalhista olímpica de Moçambique. A autora utiliza a trajetória dessa
notável atleta para retratar as situações pelas quais passam as mu-
lheres em uma sociedade androcêntrica. A terceira narrativa é o texto
menos extenso do livro. O tempo desse conto são os dias atuais. Mu-
tola foi medalhista de ouro na corrida de 800 metros em Sydney, na
Austrália, no ano 2000, sendo a primeira moçambicana a conseguir
uma medalha olímpica. É uma figura da atualidade moçambicana,
nascida em 27 de outubro de 1972, no subúrbio da capital Maputo. O
conto, em que ela é comparada a uma águia, passa-se no período
pós- independência moçambicana.
O espaço neste conto é bem peculiar, diferentemente dos outros
dois contos, não há um invasor, ou uma figura política a se combater.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 433


O espaço é de luta pelos direitos individuais dentro da vida social, no
lugar em que a mulher é objeto e que o máximo que se deve espe-
rar para ela é cuidar da casa, do marido e dos filhos. Esse é o retrato
do espaço no conto Mutola, a ungida. A autora, assim como fez com
Mondlane, chama a primeira medalhista em olimpíadas de Moçam-
bique de águia em meio às galinhas.

Considerações finais

A leitura dos dois livros leva à percepção de igualdades bem de-


finidas nas duas obras. Em As Andorinhas, os contos trazem um im-
perador que acredita no caráter ‘feminino’ da natureza no que é re-
lativo à submissão, um herói que resiste à opressão do colonizador e
uma heroína, que vence mesmo com todas as dificuldades. É possível
fazer uma analogia com Olhos d’água, uma vez que a realidade de
opressão, exclusão e resquícios do período de escravidão, trazem em
comum com o livro da moçambicana um cenário de constante luta e
resistência.
É possível notar ainda que, embora os espaços sejam física e
temporalmente bem distintos, as realidades que retratam têm seme-
lhanças inequívocas. Em As Andorinhas, a descrição de um estado
social que marginaliza a mulher faz com que as histórias se transpor-
tem para o cenário de Olhos d’água, mesmo que sejam geografica-
mente bem típicos do Brasil, quando representam a visão de pessoas
que passam por situações de opressão, luta e resistência, como é o
caso dos considerados excluídos, prestes a perder o pouco que têm
(em termos materiais) devido ao plano de desfavelamento.
Comparar as obras de Paulina Chiziane e de Conceição Evaristo
evidencia os marcantes pontos em comum que elas trazem. Escrito-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 434


ras negras de países colonizados por portugueses, as duas utilizam-
-se da escrita com forte sensibilidade feminina como ponto de parti-
da para uma apurada crítica social, que não se resume apenas à dis-
criminação contra a mulher ou o negro, mas contra outros grupos que
são considerados excluídos, destacando o caráter de engajamento
nos textos analisados. Literatura e história caminham juntas nas duas
obras, seja na suavidade da escrita feminina, seja na denúncia social
contra o racismo, sexismo ou outra forma de discriminação, como
verificado nos textos de Evaristo e de Chiziane.
O que é comum às obras de autoria feminina da época é o con-
flito interior pelo qual passam as personagens femininas, ou seja, há,
nessas mulheres, uma busca pela identidade própria, por sua auto-
nomia frente aos valores conservadores ditados pelos homens deten-
tores do poder. Em outras palavras, podemos dizer que há, nas per-
sonagens de seus romances, uma busca pela felicidade através da
satisfação pessoal, e essa realização não apenas se dará por meio do
casamento ou da maternidade (que seriam os destinos tradicionais
das mulheres representadas na literatura canônica), mas também
no desenvolvimento profissional, na satisfação de sua sexualidade,
no reconhecimento de seus direitos de mulher. A literatura de autoria
feminina do período estava voltada primordialmente para questões
políticas relativas à emancipação feminina.
É a partir da luta e das bandeiras defendidas pelo movimento fe-
minista que as mulheres passam a contestar as barreiras que sempre
lhes foram impostas e passam a ter consciência e voz no que se refere
a seus direitos enquanto cidadãs em vários campos sociais. Esse pro-
cesso de libertação das mulheres, portanto, só se dá a partir de suas
próprias reivindicações, por isso é tão importante a conscientização
operada pelas feministas nas suas mais diversas formas de atuação,
seja através das organizações políticas, seja atuando nos movimen-

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 435


tos sociais, nos palanques, através da literatura ou na crítica literária.
O que interessa às mulheres é discutir o que vem sendo cerceado
com base na diferença sexual e buscar modificar tal situação, ou pelo
menos questionar suas bases.

Referências

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ciação dos Escritores Moçambicanos: 1994.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. Lisboa: Editorial Ca-
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CHIZIANE, Paulina. As andorinhas. Belo horizonte: Nandyala, 2013.
DIOGO, Rosalia Estelita. Paulina Chiziane e Conceição Evaristo: escritas
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EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo
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EVARISTO, Conceição. Questão de pele para além da pele. In.: RUFFATO,
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de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Re-
presentações performáticas brasileiras. Belo Horizonte: Mazza, 2007.
GOMES, Vera Tatiana dos Reis Monteiro. Questões Femininas e Raciais
em Moçambique e no Brasil Através dos Olhares de Paulina Chiziane
e Conceição Evaristo. Escrita, Rio de Janeiro, n.20, p. 70-90, 2015.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 436


HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
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HALL, Stuart. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitu-
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Tomaz T. (org.), HALL, Stuart, WOODWARD, Kathryn. – Petrópolis, RJ: Vozes,
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HALL, Stuart. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In:
Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Ade-
laine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Represen-
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OLIVEIRA, Iolanda de. Desigualdades Raciais: construção da infância e da
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SATRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; apresentação e no-
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RJ: Vozes, 2014. – (Vozes de Bolso).
SILVA, Tomaz Tadeu (org); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 437


Sobre os organizadores

Amanda Ramalho de Freitas Brito


Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade
Federal de Campina Grande (2010), mestrado (2013) e doutorado (2017)
em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na
área de Literatura Comparada, Literatura, Cultura e Crítica, com ênfase
nos estudos de poesia contemporânea e narrativa cinematográfica.
Professora Adjunta de Literaturas de Língua Portuguesa no curso de
Letras, campus I da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde
coordena o Grupo de Estudos em Literatura, Intersermiose e Cinema
(GELIC).

Luiz Felipe Verçosa da Silva


Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE). Possui Graduação em Letras-Português
e Especialização em Ensino, Linguagem e Pluriletramento pela
Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL). É membro do Grupo de
Estudos em Literatura, Intersemiose e Cinema (GELIC), da Universidade
Federal de Paraíba (UFPB). E-mail: felipevercosa@outlook.com.

José Antonio Santos de Oliveira


Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL).
Especialista em Ensino, Linguagem e Pluriletramento pela UNEAL.
Atualmente, é bolsista de mestrado em Teoria da Literatura no
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco (PPGL/UFPE/CNPq).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 438


Sobre os autores e autoras

Aline Ferreira Pereira


Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), desenvolve estudos nas áreas da Literatura, do Cinema e das
Artes Visuais. Compõe o Grupo de Estudos em Literatura, Inter-semio-
se e Cinema (GELIC – UFPB) e foi bolsista do PET/Conexões de Saberes
“Acesso e permanência de jovens de origem popular à universidade:
Diálogos universidade-comunidade”, onde atuou nas áreas da Edu-
cação Popular, Educação de Jovens e Adultos e dos Direitos Humanos.
Atualmente desenvolve trabalhos de Comunicação Social com a Se-
mente – Escola de Educação Audiovisual.

Andressa Rayane de Brito Barbosa Costa


Graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal
da Paraíba no ano de 2019. É mestranda pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Letras e Literatura (PPGL/UFPB), de-senvolvendo trabalhos
na área de Literatura, Teoria e Crítica. Reside, atualmente, na Paraíba,
e leciona no Instituto Educacional Polaris, como professora titular de
Literatura.

Andreza da Silva
Graduada em Letras-Português pela Universidade Estadual de Ala-
goas, é natural de Campo Ale-gre- Alagoas. Apaixonada pela leitu-
ra desde criança, sempre almejou ser professora, atualmente leciona
Língua Portuguesa em turmas de EJA, em sua cidade natal, além de
atuar em turmas de ensino médio da rede privada com aula de Lín-
gua Portuguesa, redação e literatura. Andreza acredita que é Educa-
ção é o caminho para construir uma sociedade mais justa.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 439


Claudia Lopes dos Santos
Possui graduação em Letras-Português pela Universidade Estadual
de Alagoas e é natural de Campo Alegre-Alagoas.Encantada pelo
universo das letras desde cedo, aprendeu a ler antes dos 5 anos de
idade. Sua tia Maria de Lourdes, professora, apaixonada pela educação,
sempre a motivou e foi sua grande inspiração do fazer pedagógico.
Atualmente, Claudia coordena o grupo de professores de linguagens
da EMEB JOÃO FERNANDES VIEIRA FILHO, localizado no Povoado Chão
da Imbira, em sua cidade Natal.

Elaine Morais Lourenço


Graduanda em letras português, pesquisadora da área de literatura
afro-brasileira e integrante do grupo de estudos Gelic (grupo de
estudos em literatura, intersemiose e cinema).

Gustavo Augusto de Abreu Clevelares


Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Obteve o título de mestre em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), como bolsista CNPq. Possui licenciatura em Letras,
com ênfase em Literaturas de Lín-gua Portuguesa, pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Durante a graduação em Letras,
atuou como bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UERJ) e como
bolsista de Estágio Interno Complementar (EIC/UERJ). Atualmente,
cursa bacharelado em Psicologia na UFF. Dedicou-se, no mestrado
e no doutorado, aos estudos dos novos cenários da escrita
contemporânea, atuando principalmente nos temas que envolvem a
potência e a operacionalização do pensamento teórico-crítico através
de textos ficcionais e poéticos. Possui grande interesse nas áreas de
teoria e crítica literária, ficção contemporânea e produção ensaística,
sobretudo no que tange ao diálogo plástico-discursivo entre literatura
e visualidades no contexto contemporâneo.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 440


Ingrid Vanessa Souza Santos
Graduanda do curso de licenciatura em Letras - Língua Portuguesa
e Língua Francesa pela Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). Email: ingrid_vanessa12@hotmail.com.

João Goulart de Souza Gome


Tem graduação em Administração de Empresas (UCSAL) e História
(UFBA), pós-graduação em Comunicação Integrada (ESPM-RJ) e
Literatura Brasileira (UCSAL) e mestrado em Museologia (UFBA).

Marileia de Oliveira Souza


Graduada em Letras português pela Universidade Federal do Acre
(2018), atualmente cursa a Especialização Lato Sensu em estudos
Literários, pela Universidade Federal do Acre-UFAC. Participou como
colaboradora no Programa Institucional de Voluntários em Iniciação
Cientifica (PIVIC-UFAC) e como bolsista no Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à docência (PIBID-UFAC). Atualmente é professora
do quadro efetivo da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e
Esportes do estado do Acre.

May Fran Selares Facundes.


Mestrando do curso de Pós-graduação (PPGHIS) da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA); na área de concentração conexões
Atlânticas: Culturas e Poderes e Poderes e tem seus estudos na área
de modernidade, monumento e Patrimônio é orientando do Prof. João
Batista Bittencourt. E-mail: mayhistoriador@outlook.com.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 441


Maycon da Silva Tannis
Doutorando (FAPERJ Nota 10) no programa de pós-graduação em
História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Sob orientação de Luiz Costa Lima. Atualmente coordena
a Revista Anima (Revista Discente dos alunos do PPGHSC-PUC-Rio)
e o Grupo de trabalho e pesquisa História & Lin-guagens (https://
www.facebook.com/Historiaelinguagens). Desenvolveu pesquisas no
campo da idade Média e no campo da Teoria da História. Atualmente
desenvolve pesquisa referente a escrita ensaística e historiográfica
de Octavio Paz.

Patrícia Regina Cavaleiro Pereira


Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, é
bacharel licenciada em Letras (Português/Francês) pela mesma
instituição. Tem experiência docente na área de língua portuguesa
e literatura; academicamente, trabalha com os seguintes temas:
epistolografia e historiografia literária com ênfase no século XIX.
Contato: prcpereira@hotmail.com.

Pedro Cardoso
Tem graduação em Economia (UnB), graduação em Contabilidade
(UNICEUB) e pós-graduação em Análise Contábil (UNICEUB).

Pedro Henrique Sales Pereira


Aluno graduando de Licenciatura em Letras Português pela
Universidade Federal da Paraíba. É pesquisador da poética decolonial
de Elisa Lucinda através do projeto de pesquisa ``A escrita do Erotismo
e da Poevivência na Literatura Negra: As vozes guardadas de Elisa
Lucinda”, coordenado pela professora Dra. Amanda Ramalho Freitas
Brito, realizado no campus I da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 442


Ronaldo Gomes dos Santos
graduado e pós-graduando em Letras pela UNEAL, campus IV;
graduando em Ciências Social pela UFAL, campus I.

Roney Jesus Ribeiro


Doutorando em História (História Social das Relações Políticas) e
mestre em Artes (Teoria, Crítica e História da Arte) pela Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes) e, mestre em Educação (Currículo,
Cultura e Linguagens) pela Universidad Americana (UA/PY). Licenciado
em Letras, História e Artes Visuais. Integra os grupos de pesquisa
Crítica e Experiência Estética em Gerd Bornheim (PPGA/Ufes), Teoria e
História da Arte Mo-derna e Contemporânea (PPGA/Ufes) e Literatura
e Educação (PPGL/PPGE/Ufes). E-mail: roney-ribeiro@hotmail.com.
Rosângela de Melo Rodrigues. Professora de Literatura Brasileira e de
Teorias da Literatura na Universidade Fede-ral de Campina Grande
(UFCG). Doutora em Literatura e Interculturalidade. Mestre em
Literatura e Cultura.

Sirley da Silva Rojas Oliveira


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Grande
Dourados (2007) e mestrado em Estudos de Linguagens pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2011), atualmente cursa
o Doutorado em Estudos de Linguagens pela UFMS. É professora do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecno-logia de Mato Grosso
do Sul e no momento atua como Diretora Geral do campus IFMS
campus Jardim. Tem expe-riência na área de Letras, com ênfase em
Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas:
Waly Salomão, Sérgio Medeiros, literatura, ensino, leitura, tropicalismo,
canção e poesia.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 443


Valdirene Rosa da Silva Melo
Mestre em letras pela Universidade Federal do Piauí, é professora
da rede estadual de ensino do Piauí. Possui graduação em Letras
Português-Inglês(UFPI) e graduação em Letras-Espanhol (UESPI). Tem
como área de interesse estudos literários voltados para a literatura
fantástica e seus subgêneros, realismo maravilhoso, bem como
literatura latino-americana, de modo geral.

Yélnya Pereira dos santos Costa


Graduanda em Língua Inglesa e suas respectivas literaturas desde
2019 pela Uni-versidade Estadual de Alagoas – UNEAL, é integrante do
grupo de pesquisa Literatura, Intersemiose e Cultura – GELIC desde
2017, atua como corretora de redações online da plataforma Imaginie
desde 2017, graduada em Lín-gua Portuguesa e suas Respectivas
Literaturas em 2018 pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL e é
Espe-cialista em Linguística Aplicada e o Ensino de línguas estrangeira
e materna desde 2020 também pela Universidade Estadual de Alagoas
- UNEAL.

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 444


Índice remissivo

A
Afeto 10, 61, 192, 268, 292, 328, 400
C
Cultura 8, 28, 41, 57, 77, 80, 88, 91, 95, 96, 98, 99, 100, 112, 123, 124, 125, 127, 178,
179, 181, 188, 191, 195, 198, 207, 215, 237, 254, 266, 286, 293, 294, 341, 342, 343,
347, 348, 349, 350, 351, 359, 375
D
Dialogismo 8, 49, 55, 59, 78, 129, 159, 164, 172, 173, 176, 219, 286, 298
H
História 6, 8, 13, 19, 21, 40, 43, 45, 50, 61, 80, 81, 92, 99, 109, 110, 113, 138, 143, 147,
171, 181, 185, 190, 191, 222, 223, 227, 238, 239, 240, 242, 243, 244, 245, 248, 250,
252, 254, 255, 256, 265, 268, 272, 273, 275, 279, 301, 303, 304, 305, 308, 309, 311,
312, 313, 315, 332, 334, 343, 345, 346, 348, 350, 352, 374, 376, 397, 398, 400
I
Identidade 6, 12, 121, 125, 137, 172, 177, 180, 220, 253, 282, 296, 340, 343, 348,
349, 350, 351, 352, 353, 357, 371, 375
Intersecção 2, 4, 9, 159
Intersemiótica 10, 17, 37, 319
Intertextualidade 6, 8, 11, 12, 17, 24, 40, 45, 49, 50, 52, 55, 56, 57, 58, 59, 116, 129,
130, 131, 136, 138, 139, 168, 172, 173, 214, 215, 218, 219, 220, 221, 233, 234, 236, 237

L
Leitura 8, 9, 11, 12, 13, 14, 69, 74, 81, 100, 116, 133, 159, 164, 168, 175, 176, 203, 244,
256, 262, 263, 264, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273, 295, 300, 304, 325, 383,
439, 443
Literatura Comparada 8, 36, 41, 52, 284, 285, 287, 321, 438
Literaturas 9, 41, 285, 444

M
Memória 5, 6, 8, 9, 10, 13, 14, 31, 93, 95, 96, 97, 98, 102, 103, 238, 240, 249, 250,
251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 267, 269, 270, 271, 273, 274, 275, 319, 320, 322,
324, 325, 331, 332, 333, 337, 341, 343, 344, 348, 350, 352, 353, 373, 383, 392
Modernidade 10, 11, 12, 83, 142, 143, 144, 155, 156, 247, 375, 441
Monumento 13, 248, 255

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 445


N
Narrativas 6, 12, 13, 14, 99, 163, 164, 166, 167, 170, 172, 174, 176, 177, 178, 179, 180,
182, 183, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 242, 245, 270, 303, 309, 315, 381,
382, 383, 387
Novela 5, 10, 38, 39, 41, 42, 43, 51, 160, 162, 255, 325, 328

O
Oralidade 10, 185, 347, 348, 352
P
Pertencimento 12, 159, 170, 353
Poema 5, 11, 13, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 55, 61, 67, 71, 74, 82, 83, 84, 85, 86, 87,
88, 89, 93, 94, 95, 103, 108, 115, 116, 119, 120, 121, 131, 132, 133, 134, 136, 137, 138, 203,
204, 207, 210, 211, 220, 259, 260, 262, 264, 265, 272, 279, 281, 283, 284, 287, 292,
294, 295, 296, 297, 300, 325, 330, 342, 343, 344, 345, 347, 348, 351, 360, 371, 372,
375, 377, 379, 380, 383, 385, 386, 387, 388, 389, 390, 391, 392, 393, 404, 405,
406, 407, 408, 409
Poetrix 5, 10, 54

R
Romance 11, 15, 42, 48, 51, 52, 146, 149, 150, 158, 159, 160, 161, 162, 164, 165, 168,
173, 174, 175, 176, 193, 209, 210, 211, 242, 315, 319, 383, 384, 397, 410
S
Significação 10, 25, 80, 83, 85, 88, 92, 93, 250, 295
Sociedade 9, 11, 23, 41, 49, 57, 80, 82, 88, 93, 133, 143, 144, 145, 147, 149, 153, 160,
162, 163, 167, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 183, 190, 194, 206, 239, 240, 243, 248, 277,
278, 280, 282, 286, 291, 292, 293, 294, 295, 297, 298, 318, 335, 340, 341, 342, 347,
349, 380, 397, 410, 439
Subjetividade 13, 44, 118, 241, 242, 252, 271, 319, 342, 344, 360, 386, 398, 410

T
Texto literário 9, 13, 21, 41, 131
Tragédia 5, 10, 38, 39, 40, 42, 51, 52, 86

POÉTICAS DA INTERSECÇÃO: ENSAIOS DE LITERATURA COMPARADA 446


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