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CHINESES
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos Chineses. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/ UERJ,
2023. 87 p.
ISBN: 978-65-00-74871-0
História da Ásia; Orientalismo; China; Diálogos Interculturais.
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Apresentação
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
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Sumário
UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno .. 7
A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINO-SOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA
REVISTA CHINA RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves ............................. 10
O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C), por Gabriel Requia Gabbardo.................... 18
O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU XUN: MARCO HISTÓRICO NA
TRADIÇÃO LITERÁRIA CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks ................................ 26
A TRAGÉDIA DE YU XUANJI: PERSEGUIDA POR SER UMA MULHER LIVRE, por Marcela Langer e
Otávio Luiz Vieira Pinto................................................................................................................ 33
A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS
DECISÕES DAS AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO IMPERADOR, por Maria
Teresa Lopes da Silva ................................................................................................................... 40
CHINA T’ANG: COSMOPOLITA E ETNOCÊNTRICA, por Matheus Mazurkievicz Sekikawa ........... 49
O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN, por Matheus Oliva da Costa ............. 57
O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG, por Renata Ary .............................................. 66
PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINO-
SASSÂNIDAS AO LONGO DA HISTÓRIA, porSamantha Alves de Oliveira..................................... 73
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UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS
DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno
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O que Sklar deixa claro é que, no início do mundo grego, a Filosofia
significava Ciência, e o afastamento dos campos ainda embrionava.
Ignorando qualquer raiz ancestral do Egito ou do Oriente próximo, e
considerando a separação como evolução, o autor demarca o surgimento da
ciência racional ali. Milênios depois, buscamos superar esse abismo, por
meio da interdisciplinaridade e da transversalidade. O conceito, este ainda
está em debate. Nesse sentido, o historiador das ciências Colin Ronan
[1996], falando sobre a gênese da ciência chinesa, afirmava que:
Boaventura de Sousa Santos [2009] nos mostrou que visão de uma única
via epistemológica possível pode se transformar em um grande problema
interpretativo. As civilizações humanas, em suas multifacetadas expressões,
são capazes de construir sistemas epistemológicos cujas bases e fatores
variam de forma ampla. Como Boaventura propõe:
1
nas experiências sociais sobretudo quando, como é normalmente o caso,
estas são constituídas por diferentes tipos de relações sociais. No seu
sentido mais amplo, as relações sociais são sempre culturais [intraculturais
ou interculturais] e políticas [representam distribuições desiguais de poder].
Assim sendo, qualquer conhecimento válido é sempre contextual, tanto em
termos de diferença cultural como em termos de diferença política. Para
além de certos patamares de diferença cultural e política, as experiências
sociais são constituídas por vários conhecimentos, cada um com os seus
critérios de validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos rivais. Em
face desta reflexão levantam-se três perguntas. Por que razão, nos dois
últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão
epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do
conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal
descontextualização? Haverá epistemologias alternativas? [Santos, 2009]
Com essa ideia em mente, podemos então compreender que uma nova
abordagem sobre as narrativas históricas chinesas requisitam uma
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perspectiva epistemológica diferenciada e mais aberta do que a usual.
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No campo do pensamento, essas raízes são igualmente antigas, porém,
dinâmicas. Em torno do século -6, a cultura chinesa estruturava-se em torno
de um corpo literário bem definido, que respondia a diversas demandas
intelectuais: o Shujing contava a história; o Shijing trazia as poesias, que
ilustravam a vida cotidiana; o Yuejing preservava as músicas e cânticos
sagrados e profanos; o Liji trazia os rituais, costumes e regras sociológicas;
e o Yijing era o manual de ciências [e também fazia o papel de oráculo],
compondo assim o quadro que ilustrava uma pessoa ‘Educada’ - o Junzi de
que Confúcio falava. Depois, o mesmo Confúcio iria inserir o Chunqiu, as
crônicas históricas de sua terra natal, entre esses livros clássicos. O século -
6 traria uma reviravolta nesse quadro; premida por uma profunda
instabilidade política, a China seria lançada num longo e doloroso processo
de conflito interno, que se arrastaria por quase três séculos. Diferente dos
filósofos gregos, que reimaginaram seu mundo no melhor momento da
história de sua civilização, a virada ética no pensamento chinês se dá diante
da iminência de uma crise devastadora. Os pensadores se puseram a
pensar em como resgatar a harmonia social e política, em como superar a
crise e trazer a razão para iluminar os caminhos [o Dao]. As escolas de
pensamento chinesa que hoje conhecemos surgiram nesse período, e
desenvolveram-se ao longo da história, disseminando-se, se entrecruzando,
criando sínteses criativas. Um modelo como esse não tem paralelo direto no
Ocidente, exceto pelas religiosidades; e por isso, nossos referenciais de
comparação precisam ser readaptados.
O choque moderno
A China não foi infensa a influências externas [como no caso do Budismo],
mas as absorveu e transformou em formas chinesas, dando-lhes um caráter
novo. O impacto das teorias ocidentais, após o século 19, não foi diferente –
embora a presença colonial tenha sido muito mais agressiva e exigente do
que a gradual entrada de ideias ao longo do período imperial chinês. O
despertar para o mundo contemporâneo foi lido por reformadores como
Kang Youwei ou Liang Qichao, que buscaram preservar o Estado
tradicional. O advento da república – um modelo político importado –
disseminou a presença das teorias estrangeiras entre os intelectuais, e uma
sequencia de episódios desastrosos, que culminaram com a vitória do
marxismo em 1949, lançaram novas bases sobre o pensamento chinês e a
escrita da história. Mesmo assim, esse processo foi permeado pela força
das tradições adaptativas, que incluíram a maneira como os chineses
sinizaram as teorias socialistas. Arif Dirlik [1985] mostrou como a
historiografia chinesa modificou substancialmente as ideias marxistas, de tal
forma que muitas delas são interpretações praticamente inovadoras e
bastante diferentes sobre os conceitos originais.
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interpretativo de nossa parte – implicando na busca da alternativa
epistêmica. Para concluirmos, queremos citar três autores recentes, de
relevo no cenário intelectual chinês, que podem exemplificar o que
afirmamos ao longo de nosso texto: Wang Hui, Gao Mobo e Jiang Qing.
Wang Hui e Gao Mobo fazem parte de uma chamada ‘nova esquerda’, que
tem buscado reinterpretar o passado recente chinês à luz de discursos
originais e pluriteóricos. Nesse sentido, suas abordagens são bem distintas.
Wang Hui defende que a efetiva modernização da China começou após o
governo de Deng Xiaoping, recolocando o país em um novo contexto
mundial. Em sua visão, as adaptações das teorias marxistas ao novo
contexto contemporâneo, a flexibilidade em relação às dinâmicas globais e o
abandono das posturas radicais da época da Revolução Cultural permitiram
ao país superar suas dificuldades internas, o atraso tecnológico e econômico
[Wang, 2010]. Nesse sentido, Hui propõe uma abordagem que dialoga com
as teorias e ideias ocidentais de mercado, liberdade e governança, mas
defende uma originalidade do pensamento chinês frente à esses valores. A
flexibilidade do comunismo chinês garantiu-lhe sua sobrevivência e
características próprias. O desafio seria descolonizar o pensamento chinês
sem oscilar do eurocentrismo a um asiocentrismo: ‘A crítica ao
eurocentrismo não deveria tentar confirmar o asiacentrismo, mas eliminar a
lógica egocêntrica, exclusiva e expansionista da dominação. [...] Por isso, as
novas representações da Ásia devem ultrapassar os objetivos e os projetos
dos movimentos socialistas e de libertação nacional do século 20. Nas
circunstâncias históricas atuais, elas devem refletir sobre os projetos
históricos não realizados desses movimentos’ [Wang, 2005].
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resultado lógico das bases lançadas justamente na época de Mao, que
incluem uma capacidade industrial orgânica graças à qual a China é capaz
de produzir qualquer coisa [...] Mas a importância das bases estabelecidas
na época de Mao, tanto em termos de hardware industrial e agrícola quanto
da perspectiva de software, nunca pode ser enfatizada o suficiente: o
progresso humano” [Gao, 2019].
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Político" é justamente resolver esses dois grandes problemas, isto é,
resolver os problemas "chineses e ocidentais" e os problemas "antigos e
modernos" [Jiang, 2017].
Como podemos observar, nesses três casos, o uso das teorias políticas e
intelectuais importadas são utilizada – e lidas – de acordo com o resgate de
um discurso ‘essencialista’ da cultura chinesa. Hui entende que a
modernidade ajudou a mudar a China, mas a sociedade mantém uma leitura
própria dessas transformações; Gao acredita que o substrato de todas
essas mudanças é uma sinidade autêntica, que transformou o marxismo e o
renovou para o país e o seu futuro; por fim, Jiang retoma claramente o
passado para a construção de um novo projeto de futuro, prevendo uma
renovação das tradições [numa postura classificada como ‘conservadora’;
mas o que ele quereria conservar com essas mudanças?]. Nos três casos, a
autenticidade da mentalidade chinesa é a chave para a flexibilização,
adaptação, mudança e sucesso; e todas elas recorrem, igualmente, a uma
releitura da história para embasarem suas propostas. Contra as previsões
teóricas da racionalidade ocidental, a eficácia do pensamento sínico reside,
justamente, no emprego dos elementos de sua cultura em alternativa ao
pensamento dominante eurocentrado. A ‘biculturalidade’ chinesa, como
Jullien bem apontou, deixa claro que uma renovada consciência sobre o
papel da cultura tradicional tem sido o caminho para a reestruturação do
país, de sua cultura e história. Para isso, por fim, é necessário então buscar
compreender os elementos conceituais que nos desviam de nossa
episteme, para embarcar no mundo das mentalidades chinesas – e esse
desvio, crucial, pode nos levar a uma nova concepção de escrita histórica e
reinterpretação do passado.
Referências
André Bueno é Professor de História Oriental da UERJ e diretor do Projeto
Orientalismo, atuando na área da Sinologia, pensamento clássico chinês e
Confucionismo.
7
Chinese Marxist historiography’ in Journal of Peasant Studies, 1985, p.197-
227.
Gao, Mobo. ‘La forma della Storia e il ruolo ignorato del popolo cinese’ in Il
Manifestto, 25 de setembro de 2019.
Gao, Mobo. The Battle of China’s Past: Mao and the Cultural Revolution,
London: Pluto Press, 2008.
Joppert, Ricardo. China: Esboço sobre uma civilização de acordo com sua
própria filosofia da História. Cehvet, 1998.
8
Wang, Hui. 亞洲視野:中國歷史的敘述. Oxford: Oup, 2010a.
Wang, Hui. The End of Revolution: China and the Limits of Modernity. London:
Verso, 2010b.
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A RECONSTRUÇÃO DA CHINA E A AMIZADE SINO-
SOVIÉTICA ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA REVISTA CHINA
RECONSTRUCTS NOS ANOS 1950, por Anna Maria L. Neves
Introdução
Esse artigo é uma breve análise da revista bimestral China Reconstructs
durante os anos 1950, que aqui é utilizada como uma fonte para compreender
os primeiros anos da República Popular da China [RPC], evidenciando também
quem estava por trás de suas páginas e como a valorização da amizade Sino-
Soviética é retratada a partir de um periódico de alcance internacional. A China
Reconstructs foi uma revista que nasceu em um período específico do pós
revolução, período esse no qual o país precisava se reinventar para sobreviver.
Suas páginas foram uma porta para que as pessoas de outros países
conhecessem a China através das imagens e das histórias dos trabalhadores
chineses, que eram os principais protagonistas dos artigos escritos por
pessoas importantes no Partido.
Chen Jian [JIAN, 2001] destaca que o suporte contínuo dos Estados Unidos ao
Guomindang de Chiang Kaishek [Jiang Jieshi], tanto durante a guerra quanto
após a fuga dos nacionalistas para Taiwan, somado ao receio de uma nova
invasão imperialista que poderia ameaçar a soberania do povo chinês,
contribuiu para o alinhamento dos comunistas chineses com a União Soviética.
Esse movimento foi batizado por Mao Zedong de "lean-to-one-side" [一边倒].
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Dessa forma, qualquer possibilidade de aproximação imediata com os Estados
Unidos não avançou, ao menos até os anos 1970. Com a Guerra da Coreia,
inclusive, as hostilidades entre os EUA e a RPC progressivamente se
acirraram, e o discurso anti-imperialista chinês frequentemente tinha os
Estados Unidos como um dos alvos. Após a deterioração das relações com a
URSS, em meados dos anos 1960, esse discurso passou a incluir a própria
União Soviética como uma potência "revisionista" e "imperialista". No entanto,
esse cisma, bem como suas causas e consequências, não serão analisados
neste estudo, uma vez que nosso foco é no período anterior.
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Soong Ching Ling, personagem importante tanto na história anterior à
revolução quanto depois dela.
Soong Ching Ling foi casada com Sun Yatsen, motivo pelo qual ficou
conhecida como “Mme. Sun Yatsen”, e defendeu, dentro até mesmo do
Guomindang, as ideias do falecido esposo e a causa revolucionária como
solução para os problemas que assolavam a China. Ching Ling era uma mulher
culta e, apesar de ser cunhada de Chiang Kaishek, não apenas apoiou a
revolução, como se tornou uma das fiéis divulgadoras dos progressos obtidos
desde a chegada dos comunistas ao poder. Isso lhe custou o afastamento dos
seus dois irmãos [T.V. Soong e Song Meiling, também conhecida como “Mme.
Chiang Kaishek”]. Segundo Christine Dabat:
“A independência de espírito de Song Qingling, sua coragem na defesa dos
princípios defendidos junto com seu finado marido a levaram a enfrentar as
forças reacionárias que reivindicavam a mesma herança política de Sun
Yatsen. Chiang Kaishek [seu cunhado] empregou, em vão, contra ela todos os
meios: sedução, intimidação, calúnia, isolamento [fazendo desaparecer
colaboradores e amigos].” [DABAT, 2017, p. 40]
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Imagem de uma cooperativa agrícola na província de Zhejiang, mostrando
camponesas em trabalho coletivo
Fonte: [CHINA RECONSTRUCTS, 1954, p.09]
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Relação essa que, aliás, data de anos anteriores à concretização da revolução,
quando ela fugiu secretamente para a URSS em 1927, por ocasião do início da
guerra civil entre comunistas e nacionalistas decorrente do Massacre de
Xangai [1927].
Soong Ching Ling foi uma grande entusiasta das relações da China com a
URSS, sendo considerada por Epstein como “[...] a cabeça no corpo da
amizade Sino-soviética em toda China” e uma voz constante na defesa dessa
parceria [EPSTEIN, 1995, p. 483, tradução da autora]. No discurso de
inauguração da “Associação da Amizade Sino-Soviética”, em 1949, ela definiu
a parceria como a realização de um sonho de mais de 24 anos [sonho este que
teria sido iniciado com Sun Yatsen], desejando a construção de um novo
mundo baseado na cooperação entre os povos dos dois países em benefício
mútuo das nações mais fracas, tecendo críticas à OTAN e ao Plano Marshall.
[SOONG, 1953, p. 195-196]
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esfera da indústria básica, a única base sólida para a independência nacional e
progresso contínuo no bem-estar do povo. Na agricultura: dezenas de milhões
de pequenos camponeses, livres das extorsões de latifundiários e cobradores
de impostos, entraram em equipes de ajuda mútua, o primeiro passo em
direção às cooperativas agrícolas.” [CHINA IN TRANSITION, 1957, p.04,
tradução da autora]
Apesar do destaque dado à ajuda soviética, não podemos perder de vista que
o foco das matérias estava muito mais nos milagres que o povo chinês
conseguia fazer com tal ajuda, do que na simples ajuda em si. Isso tornava a
revista um meio eficiente de divulgação da capacidade de cada trabalhador de
construir uma “nova china”, seja no campo ou nos centros industriais. Dentro
desse contexto, o modelo soviético pareceu o ideal para alçar um país pobre,
que havia acabado de sair do “século da humilhação”, ao patamar de uma
nação industrializada, assim como a URSS, que funcionava como um espelho
a ser seguido.
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mais voltado para a resolução de problemas internos do que nas questões
externas.
Considerações finais
A República Popular da China, de início, se viu imersa em dificuldades sociais
e econômicas, com pouca possibilidade de ajuda internacional. Enquanto os
EUA voltaram seus olhos para o Japão e a Europa Ocidental, a RPC sequer
teve reconhecimento internacional, mesmo tendo participado do esforço de
guerra dos aliados. O pós Segunda Guerra Mundial deixou a China arrasada,
tendo a URSS como único parceiro nesse processo de reconstrução.
Referências
Anna Maria Litwak Neves é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Pernambuco e curadora auxiliar da
Curadoria de História da Coordenadoria de Estudos da Ásia da UFPE. E-mail:
anna.litwak@ufpe.br
EPSTEIN, Israel. Woman In World History: Life and Times of Soong Ching Ling
[Mme. Sun Yatsen]. Beijing: New World Press, 1995.
JIAN, Cheng. Mao 's China and the Cold War. North Carolina: The University of
North Carolina Press, 2001.
LUCA, Tania Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos.” in
PINSKY, Carla Bassanezi [Org]. Fontes Históricas. 2.ed. São Paulo: Contexto,
2008. p.111-153.
16
MITTER, Rana. China's War With Japan 1937-1945: the struggle for survival.
London: Penguin Books, 2013.
SOONG, Ching Ling. Struggle for New China. Peking: Foreign Languages
Press, 1953.
SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. New York: Norton &
Company, 1990.
17
O DECLÍNIO DO IMPÉRIO HAN (206 A.C – 220 D.C),
por Gabriel Requia Gabbardo
Pretendo aqui discorrer brevemente sobre o declínio do Império Han (206 a.C –
220 d.C) sob uma perspectiva comparativa com a crise enfrentada pelo Império
Romano desde o reinado de Marco Aurélio (161-180 d.C). Assumo, da leitora,
algum conhecimento sobre a crise do século III em Roma: o tempo é breve, e a
China urge. Assumo, ainda, que a leitora concordará que houve uma crise no
século III em Roma: o que quer que se pense dos impérios romanos de Marco
Aurélio de um lado e de Diocleciano, do outro, há de se convir que ocorreram
importantes mutações nesse interregno. Assumirei, também, um completo
desconhecimento da história do Império Han; peço da leitora que conheça um
pouco desta história um mínimo de tolerância. Após considerações
comparativas iniciais entre as crises que os impérios romano e Han sofreram
no final do séc. II D.C, passarei a relatar as razões estruturais que percebi
como decisivas para o colapso final do último em 220 d.C.
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entre o Império Romano e o Império Han deve destacar as diferenças para
então realçar – e, idealmente, iluminar – as particularidades de cada
sociedade.
Não tenho espaço, aqui, para fazer uma grande exposição cronológica da
Dinastia Han (Como introdução ao período, ao primeiro volume da Cambridge
History of China – TWITCHETT, D., e LOEWE, M., eds, 1986 – podem ser
acrescidos a obra introdutória de Mark Edward Lewis - LEWIS, 2010 – e, em
francês, o volume de Bujard e Pirazzoli-T’serstevens – BUJARD e PIRAZZOLI-
T’SERSTEVENS, 2017. CRESPIGNY, 2016, é uma obra tão erudita quanto,
por vezes, irritantemente retrógrada em sua metodologia). Estabelecida em 206
a.C., é dividida em dois grandes períodos: a Han Ocidental (até 9 d.C) e a Han
Oriental (de 25 até 220 d.C – o espaço é preenchido pela dinastia Xin, um
período de profundo conflito civil que não nos interessa aqui). “Ocidental” e
“Oriental” são denominações derivadas da localização relativa da capital das
respectivas dinastias, Chang’an e Luoyang. Se, como se vê, o Império Han era
mais antigo que o Império Romano em c. 160 d.C., enfrentaria, de maneira
parecida, uma grande crise na segunda metade do séc. II; em marcante
contraste com o Império Romano, não sobreviveria a essa grande crise. Por
quê? Os fatores que pretendo apresentar aqui não são “as” respostas, mas
acredito que sejam pontos importantes para essa divergência.
O primeiro: o papel social diverso do Exército nos dois impérios. Estes impérios
foram constituídos por processos semelhantes de expansionismo belicista.
Contudo, se durante a República Romana o exército se profissionalizou, se
institucionalizou, a imensa máquina militar da Dinastia Qin e do início da
Dinastia Han foi, em larga medida, dissolvida – exceto nas fronteiras
setentrionais, onde um exército profissional chinês ainda existia, sendo
direcionado contra os povos nômades dos atuais Xinjiang e Mongólia. O
cuidado com a estabilidade interna, em Roma, era feito por tropas profissionais
pagas; salvo em situações de extrema necessidade, sob os Han essa tarefa
era destinada a recrutas (forçados ou não). À diminuição do recrutamento
militar sob os Han seguiu-se um aumento do que historiadores ocidentais
chamam de “corveia”, trabalho obrigatório em grandes obras públicas.
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apenas 5% do campesinato era arrendatário, em 180 d.C. essa percentagem
estava entre 30 e 70%.
A crise final foi detonada durante a década de 180. De um auge cerca de 100
d.C., o Império Han vinha perdendo, lentamente, terreno nas suas fronteiras
setentrionais; os filhos e netos do exército imperial daquela época tinham ou
migrado para o sul, ou abandonado as fileiras para se juntar aos nômades da
região, ou perdido lentamente sua lealdade para com o distante imperador
Han.
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popular” de movimentos como os Bandanas Amarelas e do Caminho dos
Mestres Celestiais.
Todo o sistema fronteiriço setentrional Han colapsou com essa rebelião. Partes
importantes do império foram perdidas imediatamente, como a província de
Liang; os generais que comandavam a fronteira se ressentiam, algo
justificadamente, do abandono que sofriam por parte do governo central.
O golpe de morte foi dado quando o imperador Ling faleceu, em 189 d.C. O
genro do falecido imperador teve a ideia de chamar um desses generais
fronteiriços, Dong Zhuo, para a capital, de maneira a reforçar a sua posição.
Esse genro foi morto por seus rivais, mas mesmo assim Dong Zhuo veio.
Seguiu-se mais um massacre palaciano, com um imperador mirim agindo sob
as ordens de Dong. Revoltados com a situação, diversos governantes de
província, grandes donos de terra e membros da burocracia imperial
denunciaram Dong Zhuo como traidor, e passaram a organizar um exército
próprio de maneira a tomar a capital Luoyang. Temendo por sua situação, e
carente de recursos, Dong Zhuo queimou a capital, deportou a população para
a antiga capital Han, Chang’an, e saqueou as tumbas imperiais em busca de
ouro e bronze. A coalizão montada contra ele logo se dissolveu em rivalidades
fratricidas, e o próprio Dong Zhuo seria morto por soldados amotinados dois
anos depois. A autoridade do imperador era inexistente. Cada grande oligarca
estava jogado à própria sorte, com seu exército de arrendatários à disposição.
Ainda havia um imperador Han, mas o seu Império havia morrido, brutal e
incontestavelmente assassinado.
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anterior, era relativamente simples. Aqui, que o imperador romano fosse um
esquisito retalho constitucional de um mambembe regime republicano era
perigoso para a vida dos indivíduos imperadores, mas servia como outro fator
de estabilidade. Vespasiano ou Sétimo Severo poderiam muito bem (como, de
fato, conseguiram) se tornar imperator, mas a tomada de poder manu militari
por Dong Zhuo não o possibilitava a se tornar o huangdi Han, um indivíduo que
se equiparava ao Céu e à Terra. Ao fazer o que Vespasiano fez, Dong Zhuo se
transformou em um monstro quase proverbial na cultura chinesa – e o senhor
da guerra mais bem-sucedido no período que se seguiu à morte de Dong Zhuo,
Cao Cao, literalmente virou um provérbio, fazendo as vezes do Demônio no
equivalente chinês do nosso ditado “falando no diabo”: 说曹操,曹操到, shuō
Cáo Cāo, Cáo Cāo dào.
Outro ponto de destaque: o amplo leque de ação dado aos grandes senhores
rurais chineses. É difícil imaginar que os mais ricos proprietários de terra Han
pudessem alcançar a imensa riqueza da oligarquia senatorial romana. No
entanto, o fato do exército “interior” Han ser basicamente uma milícia amadora
possibilitava a esses senhores de terra montar a sua própria milícia amadora,
composta por vastas multidões de arrendatários (e, eventual e
catastroficamente, profissionalizá-la). À uma rica família senatorial romana,
muito era possível, inclusive se desfazer de todas as suas possessões e doá-
las para a Igreja, como fez Melânia, a Jovem; mas nem mesmo a riqueza de
Melânia financiaria uma tomada violenta do poder. Em situações de vácuo de
poder, em Roma, as guerras civis eram disputadas pelos grandes líderes do
Exército; após a queima de Luoyang, o império Han foi dividido em cerca de 30
unidades territoriais, lideradas por todo tipo de oligarca.
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Destaco três pontos interessantes aqui: primeiramente, o território de Zhang
Lu, o regime “teocrático” taoísta dos Mestres Celestiais. Em segundo lugar, que
os vários “Liu” que governavam territórios eram reputadamente membros da
burocracia imperial, que face ao caos de 189 se tornaram funcionalmente
independentes.
Terceiro, que mesmo este território pulverizado já havia passado por uma certa
racionalização, e nenhuma racionalização foi maior do que a ocorrida no
território de Cao Cao. Cao Cao é um personagem fascinante, mesmo se nos
limitarmos às fontes históricas: maior senhor da guerra do período, ele só não é
o maior poeta dele porque foi superado por seu filho Cao Zhi (Sobre Cao Cao,
ver a brilhante biografia escrita por De Crespigny: DE CRESPIGNY, 2010). As
planícies centrais da China eram o território mais pulverizado de todos em 189:
o indivíduo que conseguisse massacrar o considerável número de oponentes
existentes nesse território e unificá-lo se tornaria, por dura experiência, um
gênio militar. Cao Cao conseguiu, em um lance ousado, capturar o antigo
imperador títere e usá-lo para seus próprios fins; após uma série de batalhas
ainda mais ousadas, chegaria a dominar todo o norte da China a partir de 208
(chegou, inclusive, a anexar o território de Zhang Lu em 215, após uma solução
negociada).
O outro: Cao Cao, como todo e qualquer senhor da guerra no período, possuía
uma inerente falta de autoridade. Como já colocado acima, a possibilidade de
uma tomada de poder manu militari localizada era muito mais aberta do que no
Império Romano, mas a esses senhores da guerra Han era muito mais
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complicado se tornar imperador. Um imperador romano, e mesmo um
usurpador com alguns recursos, podia se dirigir ao campo de batalha com uma
segurança contra o dissenso interno com a qual Cao Cao jamais dispôs.
O terceiro ponto é que a guerra civil Han se tornou uma guerra entre Estados.
Em 215, a divisão tripartite do antigo Império Han já estava, em essência,
completada: foi o período dos Três Reinos.
A Cao Cao (Wei), Liu Bei (Shu) ou Sun Quan (Wu) não restava mais a
oportunidade de vencer uma batalha e ganhar a guerra: uma vitória total era
necessária. Na década de 220 (o filho de Cao Cao, Cao Pi, depôs finalmente o
último imperador Han no início da década), os três Estados teriam, cada um,
seu próprio imperador: no maior esforço de guerra antes de 260, o general de
Shu Zhuge Liang lançaria cinco campanhas contra os descendentes de Cao
Cao durante o final da década de 220. Obteve inúmeras vitórias conjunturais,
que estruturalmente de nada lhe valeram. A derrota mais impactante de Cao
Cao (apesar da mitologia em volta de outra, ocorrida em 208) ocorreu em 219,
quando o território de Hanzhong foi conquistado por Liu Bei: a derrota de Cao
Cao foi tão grande quanto a de qualquer um de seus antigos rivais na planície
central chinesa quase trinta anos antes, mas Cao Cao já era bem mais que um
senhor da guerra.
Se Cao Cao obteve grande sucesso contra inimigos externos, seus sucessores
sucumbiriam a inimigos internos: um golpe palaciano, liderado por Sima Yi (o
general que se opôs a Zhuge Liang), levaria com que os Caos se tornassem
títeres dos Sima em 249. Seriam os Simas que reunificariam o território Han
entre 263 e 280; contudo, a unificação aqui (em marcante contraste com o
24
Império Romano) seria bastante efêmera. Povos nômades setentrionais
acabariam por romper com essa unidade em 311; a reunificação duradoura do
império Han só se daria quatrocentos anos depois da tomada de poder por
Dong Zhuo, em 589. Mas este é tema para outro artigo.
Referências
Gabriel Requia Gabbardo é Doutor em Classics pela University of St Andrews.
CRESPIGNY, R. Fire Over Luoyang: A History of the Latter Han Dynasty, 23-
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Princeton: Princeton University Press, 2017.
TWITCHETT, D., e LOEWE, M (eds). The Ch’in and Han Empires (Cambridge
History of China, vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
25
O CENTENÁRIO DE PUBLICAÇÃO D’O GRITO” (1923), DE LU
XUN: MARCO HISTÓRICO NA TRADIÇÃO LITERÁRIA
CHINESA MODERNA, por Luiz Gabriel Ribeiro Locks
Introdução
O ano de 2023 marca uma ocasião momentânea – o centésimo aniversário da
publicação de um influente livro, “O Grito”. Autoria de Lu Xun, 鲁迅 com nome
de Zhou Shuren. Ele foi um proeminente escritor chinês e intelectual que teve
um papel fundamental no desenvolvimento da literatura chinesa moderna e do
pensamento sociopolítico contemporâneo. O livro, “O Grito”, escrito entre o fim
da segunda década e início da terceira do século XX é uma coleção de contos,
no estilo de prosa, que contam a dura realidade da sociedade chinesa no
período inicial do século XX e tornou-se um catalisador para mudanças
culturais e políticas no país. Esse trabalho tem como seu objetivo explorar a
significância literária, por mais, histórico-cultural e política deste trabalho do
autor Lu Xun, encarando seu legado de forte impacto para o quadro da
situação político-social chinesa no período; e mais, na passagem do centenário
de sua publicação.
“O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo sacerdócio. Antes,
compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz.” (Neruda, 2016, p.
309) Talvez resida na citação superior o que, quilômetros de distância que
separam a porção Sudamericana do mundo, com a mais longeva reinante
ordem dinástica celestial e civilização do mundo; Chile e China, haja outras
máximas dificuldades em encontrar nestes demais pontos em comum entre os
dois países, ou mesmo, que na anterior obra do poeta-cônsul chileno
encontremos outras similitudes com as vidas e produções que encaramos.
Além, de compartilharem simultaneamente um similar tempo histórico global.
Onde reside o objetivo empreendido nessa tarefa que tem o presente trabalho
é tratar e dissertar a respeito de uma corrente político-literária, e mais,
linguística-social que também envolveu uma e demais correntes de um
movimento modernizador muito mais amplo, Movimento da Nova Cultura e o
Incidente do 4 de Maio (Chow, 1960), especialmente no Império do Meio - a
China.
26
Ainda que Neruda, posteriormente, tenha conhecido algumas das figuras que,
décadas atrás, empreenderam tais ferramentas político-literárias no seu país -
digo, principalmente a escritora de nome Ding Ling, ou, em pseudônimo Jiang
Binzhi, a qual Neruda confessou grande admiração e amizade enquanto fazia
parte do corpo editorial literário do prêmio Lenin (antigo prêmio Stalin) presente
nas passagens de sua respectiva obra de memórias aqui citada. (2016)
Além do mais, esse trabalho comprime um esforço que vem a colaborar com
recentes publicações literárias que se iniciaram no Brasil acerca da figura que
trataremos.
Enquanto isso, a obra que ocuparemos é “O grito”, em tradução livre feita por
Pontes Motta (2017), ou, a obra de língua inglesa (Lu Xun; Li, 2009) que
consultamos, demonstrando demais colaboração em estudos e obras que
passaram a tratar dessa figura que, também, despendemos aqui, uma
atribuição criticamente de breves reflexões sobre a obra e a figura do escritor
situada em um momento histórico determinado.
27
tipo de obra; demonstra a importância que os escritos do autor têm - a luz dos
acontecimentos que seu país passava nos idos do início do século XX.
Escreveu, contou, deixou registrado, inscreveu para a história onde os seus
textos que reverberam tanto o tempo em que foi gestado quanto em seu
lançamento há um século, ou no presente, possibilita a história de acessá-lo
criticamente com os olhos do presente assistindo o passado que não passa,
virando a quadra centenária.
O décimo quinto conto foi pessoalmente retirado pelo autor, após as primeiras
tiragens ainda em 1923, enquadrando a obra dentre 14 capítulos, enlatando-a
em padrões de forma e extensão que casasse com demais obras ocidentais.
(Wang, 2012)
28
da obras tanto como suas implicações no contexto histórico, bem como, para
examinar o impacto da obra de Lu Xun na apropriação do ser moderno chines,
seja no campo literário, mas também no campo sociopolítico.
O país vivia uma crescente ingerência por parte das potencias estrangeiras,
onde, ao cabo dessa despactuação social houve também a queda da Dinastia
Qing pela Revolução Xinhai, iniciada com a Revolta de Wuchang, em Wuhan
(2022a, p. 62) que levou ao fim da China propriamente unificada e
propriamente dinástica, ao cabo levando-nos a República da China. Além
disso, as beligerâncias internas foram percebidas de forma perspicaz por Lu
Xun e seu afiado poder de observação e ríspido poder crítico-intelectual,
reconhecendo a urgência de uma mudança social daquele paradigma e de um
rejuvenescimento cultural, como ferramenta que paramentasse essa mudança
possível.
The deepest evil. That is inertia. Inertness is the public poison of the people of
our country. That is, the public enemy of our people. Our surrender to this
enemy is far and wide. Nothing else is the poison of inertness. For thousands of
years, this public enemy cannot be overcome. Now my age will be wiped
out. Don't be afraid. (Gao, 1916)
29
O estilo de escrita de Lu Xun, caracterizado por descrições vívidas, imagens
pungentes e sátiras mórbidas da realidade, cativou os leitores e deixou uma
marca indelével na literatura chinesa moderna e contemporânea. Postulante a
servir como marco inaugural também de um novo período para produção de
wénxué 文学, ou, literatura em chinês, tradição milenar presente no país nas
distintas formas de prosa, tratados políticos, compilações, traduções e relatos
de emissários estrangeiros por milênios.
Como dito na introdução, o reconhecimento que não só essa obra tem mesmo
no ocidente, hoje, se destaca chegando em língua portuguesa portanto salienta
que seja um destaque global que a literatura de Lu Xun pode conquistar. Esse
significado que o “O Grito” trouxe foi além das fronteiras chinesas, como dito,
alçando além de figura de extrema relevância nacional, pondo-o no hall de
grandes escritores internacionais – pois certamente, Lu Xun rompeu –
escrevendo - todas as barreiras em quaisquer parâmetros. Servindo-o assim de
uma ponte para o intercambio de culturas num plano de uma sociedade global
mais harmoniosa e multipolar. Trabalhos como "Lu Xun's Revolution: Writing in
a Time of Violence" de Gloria Davies (ibid) e de Kowallis (2006), destacam o
reconhecimento global e os impactos internacionais da sua obra.
Encaminhamentos finais
Ainda sobre essa relevância duradoura de Lu Xun nos reflexos da sociedade
contemporânea, pois, os temas tratados na obra “O Grito” continuam
relevantes e atuais. A crítica penetrante do poder das estruturas, da injustiça
social, e a luta pela individualidade numa sociedade massificada. Onde, de
forma populacional densa desde tempos pregressos e massificada pela
harmonia celeste, a herança da dita tradição chinesa seja o alvo de todos os
canhões apontados por Lu Xun. Por isso, seus trabalhos continuam
ressonantes no público contemporâneo e através da sua crítica altiva e
narrativa a altura tão poderosa, esta obra seminal nos lembra do poder
duradouro da literatura em afeiçoar o mundo ao redor de nós.
30
vida político-social do país. Como também, cristaliza esse movimento com uma
obra-prima literária a brindar tais esforços juvenis.
Essa sua inspiração para as gerações futuras já estava contida nos escritos,
pois o espírito crítico e inflexivelmente reflexivo de Lu Xun serviu e serve para
as gerações futuras. À medida que tanto o mundo globalizado – globalização,
do ponto de vista de História Global, encarado por Sachsenmaier (2012) -
enfrenta novos desafios, seus trabalhos nos lembram da importância do
espírito crítico, da empatia e do cometimento pela luta do progresso social.
Portanto, o centenário da obra é uma ocasião que nos convida a celebração,
mas antes de tudo, a refletir acerca das obras-primas literárias que Lu Xun
produziu, em especial, esta que tanto se relaciona com seu espaço-tempo
vivido. Um marco, definitivamente, dentro da literatura contemporânea da
China e sagra o movimento sociopolítico literário a qual fazia parte.
Referências
Luiz Gabriel Ribeiro Locks. Lic. em História pela Universidade do Estado de
Santa Catarina e realiza estudos a nível de mestrado na Universidade Federal
do Paraná dentro das áreas de: história moderna e contemporânea da China,
acerca de movimentos modernizantes chineses e a fundação e
desenvolvimento inicial do Partido Comunista Chinês, utilizando-se da
metodologia de investigação sobre impressos no século XX. Membro do Grupo
de Estudos sobre China do Grupo de Pesquisa em Ásia, América Latina e
Caribe (ASIALAC), do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília (IREL-UnB). Bolsista do Fumdes-SED-SC. e-mail:
lgabriellocks@gmail.com. https://lattes.cnpq.br/7596722949537188
Bibliografia
DAVIES, Gloria. Lu xun’s revolution: Writing in a time of violence. London,
England: Harvard University Press, 2013.
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California Press, 1985.
31
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Pernambuco, Recife, 2017.
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi: memórias. Rio de Janeiro: Bertrand,
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University of California, 2006.
Obras
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LU, Xun; GUERRA, Calebe (Trad.). Ervas Daninhas. São Paulo: Aboio, 2022.
LU, Xun; HENRIQUES, Beatriz (Trad et. al.). O diário de um louco: contos
completos de Lu Xun. São Paulo: Carambaia, 2022a.
LU, Xun; LI, Yiyun (Trad.). The Real Story of Ah-Q and other tales of China:
The complete fiction of Lu Xun: Penguin UK, 2009.
LU, Xun; YU, Pin Fang (Trad.). Flores matinais colhidas ao entardecer.
Campinas: Editora da Unicamp, 2021.
32
A TRAGÉDIA DE YU XUANJI: PERSEGUIDA POR SER UMA
MULHER LIVRE, por Marcela Langer e Otávio Luiz Vieira Pinto
Introdução
Perseguida pela sua reputação mesmo após a morte, a poetisa chinesa da
Dinastia Tang [618-907 E.C.] Yu Xuanji [843-868] teve uma vida curta, de
aproximadamente 25 anos, marcada por sucessivas difamações de uma
sociedade que não a aceitava. Tida como prostituta e cortesã, Yu foi plebeia,
esposa e sacerdotisa daoísta, mas desempenhou uma constante função ao
longo da vida, a de poeta. Por ter sido alvo de críticas duras por estudiosos
homens da época, sua escrita brilhante foi posta em segundo plano, deixando-
a ser ofuscada pelos escândalos da sua vida pessoal.
Desse modo, o objetivo do artigo é elucidar como Yu Xuanji foi vítima de uma
ótica negativa, perpetuada em grande parte pelo olhar masculino, impedindo
que sua obra tenha sido reconhecida enquanto um importante ponto de
inflexão na poesia chinesa. Além disso, também se pretende, a partir do
trabalho de autoras que vem realizando o processo de ressignificar o legado de
Yu, pautar a vida da poeta a partir dos seus próprios poemas, e questionar
como sua obra era lida pelas mulheres de sua época, perguntando se a poeta
seria uma figura de admiração ou um mal exemplo. Tido como a tragédia de
Yu, o ponto central do trabalho é elucidar como a poeta foi perseguida em vida
e após a morte, ao passo que tentava encontrar equilíbrio, amor verdadeiro e
liberdade a partir da sua escrita.
Enquanto esteve viva e mesmo após a morte, Yu Xuanji foi alvo de críticas
negativas, com estudiosos inserindo novas narrativas em torno da sua vida, a
chamando de cortesã e reprovando seus poemas de amor, os taxando de
licenciosos. Dessa forma, a poesia de Yu acabou sendo depreciada por uma
visão moral equivocada, que não correspondia com a vida da poeta. A
33
realidade é que Yu foi uma ilustre sacerdotisa daoísta que optou por uma vida
diferente, muito distinta da maioria das mulheres que viveram na mesma época
[Jia, 2016: 27]. Dessa forma, optar por reconhecer a sua obra como sua
biografia mais sincera é a opção mais sensata, já que parte de um princípio de
acreditar no caráter e nas escolhas de vida da poeta a partir das suas próprias
palavras, entrando de acordo com a observação de Suzanne Cahill, que se
queremos saber alguma coisa sobre Yu, sejam os seus pensamentos ou suas
conquistas, é preciso estudar o que ela de fato escreveu, no contexto em que
ela estava inserida [Liu, 2011: 53].
Ainda de acordo com Liu, mesmo Sānshuǐ Xiǎodú sendo uma obra da sua
época, que agrupa um conjunto de fofocas e lendas que circulavam na
sociedade do período, e sua autenticidade seja bastante questionável, é o
primeiro livro que descreve em detalhes sobre Yu Xuanji, incluindo informações
sobre sua origem, seus pais, sua identidade daoísta, versos de seus poemas e
informações de sua morte. Dessa forma, tendo em vista o grande número de
leitores que Huang-fu conquistou não apenas no seu tempo, mas também na
posterioridade, ele foi um dos grandes responsáveis por divulgar e perpetuar a
má fama de Yu.
Além dele, Sun Guangxiang, outro famoso articulador do Período das Cinco
Dinastias [907-960], expressou sua opinião desfavorável em relação à Yu
Xuanji no livro Běimèng suǒyán (北夢瑣言), Histórias triviais de Sonhos no
Norte, que conta com notas biográficas não autorizadas. Segundo Liu, Sun
descreveu de forma breve acerca da vida de Yu, descrevendo a poeta como
alguém que, pela sua natureza, se entregava ao prazer e vivia como uma
prostituta. Por outro lado, num parecer mais favorável, outro estudioso, Xin
Wenfang, descreveu Yu de forma elogiosa, afirmando que, por meio de seus
versos, se podia perceber sua postura ambiciosa, e que se ela fosse um
homem, com certeza seu talento seria muito apreciado [Liu, 2011: 27].
34
Para entender um pouco melhor o contexto em que Yu Xuanji viveu, e para
compreender o motivo dos seus poemas serem tão significativos e singulares
para a sociedade da época, partimos de uma contextualização sobre como era
a vivência de uma mulher ao longo da Dinastia Tang. Num primeiro momento,
por meio da obra O Livro de Artigos e Explicação de Palavras, expõe-se que a
palavra ‘mulher’ no vocabulário chinês deriva da palavra ‘submissão’,
apresentando portanto a perspectiva de subordinação que foi perpetuada e
internalizada entre as mulheres da China. Além disso, a sua conduta moral era
regida a partir das chamadas Três Obediências: “O pai é o deus aos olhos do
filho, assim é o marido aos olhos da esposa”; “Uma mulher trata seu pai como
um deus quando solteira e trata seu marido como um deus quando casada” e
“Seja obediente a seu pai antes do casamento, seu marido depois do
casamento e seu filho quando o marido morrer” [LEE, 2006: 346].
Numa sociedade onde a mulher era criada para casar e se tornar mãe, desde a
infância se recebia a preparação, seja por meio de aulas com tutoras ou com
suas próprias mães, que ensinavam afazeres domésticos, como cozinhar, e
alguns conhecimentos básicos de leitura, escrita e matemática. Assim, mesmo
as mulheres de camadas mais simples, como cortesãs, prostitutas e escravas,
conseguiam redigir cartas e escrever poemas. Porém, não possuíam escolas
próprias, como as que os meninos tinham, além do impedimento de realizarem
os exames nacionais para o serviço público, que só homens podiam participar
[Hinsch, 2020: 91-93]. Entre as mulheres, o estrato que mais viajou ao longo do
período Tang foram as sacerdotisas daoístas, que possuíam maior posição
social que as mulheres comuns. Por meio do daoísmo, as sacerdotisas não
estavam presas às obrigações de uma mulher média da sociedade chinesa.
Em sua maioria, elas eram intelectuais, e possuíam maior tempo livre para ler,
escrever, viajar e cultivar relações sociais com colegas letrados. Dentre outros
motivos, um dos principais que levou diversas mulheres a se tornarem
sacerdotisas foi o desprendimento das obrigações que uma mulher comum se
sentia pressionada a cumprir na China [Fan; Wang, 2021: 7].
35
independência, podendo focar na sua escrita por meio da poesia. É importante
destacar que Yu como daoísta foi sua última fase antes de falecer, e essa
decisão veio após ter sido abandonada pelo seu marido, Li Yi. A partir da
leitura dos seus poemas, percebe-se como Yu foi mudando de opinião ao longo
do tempo, seja sobre o amor ou sobre si mesma [Liu, 2011: 29].
36
Em um dos meus poemas preferidos, Vendendo peônias murchas, Yu escolhe
trabalhar com uma das flores mais famosas na escrita chinesa, porém
adicionando seu próprio toque especial ao se comparar com sua versão seca.
Nele, a poeta fantasia sobre um dia morar num nobre jardim, no qual os
homens iriam enfim perceber que se arrependeram por tê-la rejeitado. Na
interpretação de Yang Liu, Yu teria acreditado enquanto jovem que pelo seu
talento e beleza ela iria acabar atraindo um homem extraordinário. Agora mais
velha, a poeta percebe que isso não aconteceu [Liu, 2011: 70-71]. Em um dos
versos, Yu descreve: “Pétalas rubras, só crescessem em palácios” [Portugal;
Xiao, 2011: 35], revelando o modo como a poeta se considerava valiosa e rara.
No que condiz a sua vida enquanto monja daoísta, escolhe-se o poema
Vivendo nas montanhas no verão, no qual, de acordo com Liu, Yu narra sobre
não ter preocupações financeiras, e sua vida parece estar regada aos
privilégios e prazeres, por meio de vinho, vestidos de seda e barcos pintados.
No primeiro verso, Yu expressa: “Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha
morada” [Portugal; Xiao, 2011: 103]. Além disso, a rotina da poeta parece
consistir em leituras, escrita e viagens de barco, apresentando um cotidiano
bastante pacífico.
Por último, mas longe de ser menos importante, cita-se talvez o poema mais
famoso de Yu, Visitando o pavilhão sul do Templo Chongzhen - onde são
divulgados os resultados dos exames para o serviço público. De acordo com
Yang Liu, esse pode ser considerado um dos primeiros exemplos de uma
mulher chinesa reivindicando pelos mesmos direitos que os homens. Ao longo
dos versos, Yu percebe que o motivo dela não poder participar dos exames
nacionais para se tornar funcionária pública é por conta do seu gênero,
culpando o robe de seda que está usando: “Pena: os robes em seda me
cobrem a poesia” [Portugal; Xiao, 2011: 65]. De acordo com a autora Liu, é a
roupa que está usando que impede Yu de atingir o sucesso que ela poderia ter
potencial para alcançar [Liu, 2011: 73].
37
Já a partir dos estudos de Yang Liu, a autora baseia seus apontamentos a
partir de Beata Grant, no qual apresenta que o que é escrito sobre mulheres e
gênero em textos, sejam eles de cunho religioso, literário ou histórico, se trata
de um reflexo da prática social daquela época, principalmente pelo fato de que
são majoritariamente textos escritos, editados e compilados por homens, e
estes, por sua vez, de forma consciente ou não, partem de uma perspectiva
androcêntrica. Segundo Liu, a verdadeira tragédia de Yu não é o fato de que
ela foi abandonada ao longo da vida, seja pelo marido, ou pelos amantes, mas
que ela foi frequentemente censurada por homens escritores, seja estando viva
ou mesmo após a sua morte. De acordo com a autora, Yu não poderia ser
aceita por críticos confucionistas, e que a desaprovação em relação a ela era
tão generalizada que o seu nome era tido como um sinônimo para prostituta
[Liu, 2011: 53].
Conclusão
Como foi exposto, percebeu-se como os poemas de Yu Xuanji partiam de uma
narrativa de uma mulher confiante, que vivia sob suas próprias condutas e
dificilmente deixava de se expressar por medo de constrangimentos morais que
poderiam prejudicá-la. Com temas fortes envolvendo o amor e reflexões de si
mesma e do daoísmo, Yu foi constantemente atacada pelo seu modo de viver,
não apenas enquanto estava viva, mas também após a sua morte.
Referências
Marcela Langer é graduanda em História pela Universidade Federal do Paraná,
pesquisadora do programa de Iniciação Científica voltada aos estudos de
História da China Antiga.
38
Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto é professor de História da África pela Universidade
Federal do Paraná.
Hinsch, B. Women in Tang China. Reino Unido: Rowman & Littlefield, 2020.
Jia, Jinhua. Unsold Peony: The Life and Poetry of Daoist Priestess-Poet Yu
Xuanji of Tang China. Project Muse, Tulsa Studies in Women’s Literature, vol.
35, n. 1, 2016, p. 25-57. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/621722>
Acessado em: 29 jul. 2023.
Lee, W. Y. Women 's education in traditional and modern China. Women 's
History Review, v.4, 1995 (publicado online em 2006), p. 345-367. Dispoível
em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09612029500200092>
Acessado em: 29 jul. 2023.
Liu, Yang. Imagery of Female Daoists in Tang and Song Poetry. 2011. Tese
(doutorado) - Curso de Filosofia, The University of British Columbia, Vancouver,
Abril 2011.
39
A POLÍTICA CHINESA SOBRE A EMIGRAÇÃO COM
CONTRATO (1845-1859): AS PRIMEIRAS DECISÕES DAS
AUTORIDADES DO GUANGDONG E OS PARECERES DO
IMPERADOR, por Maria Teresa Lopes da Silva
No entanto, esta proibição só passou a ser fiscalizada com maior rigor desde a
segunda metade do século XVII, quando a dinastia Ch’ing chegou ao poder. Se
excetuarmos o Sudeste da China, esta política do governo chinês impediu a
emigração em larga escala até à primeira guerra do ópio (1839-1842), mas a
abertura dos portos chineses e a passagem de Hong Kong para a soberania
inglesa veio alterar a situação. Com efeito, a partir desta altura verificou-se um
fluxo crescente de emigração livre ou voluntária que, a partir de Hong Kong, se
dirigiu principalmente para a Califórnia e para a Austrália. Desde o início da
segunda metade do século XIX, o território de Macau começou também a ser
usado como plataforma de apoio à emigração contratada ou forçada, que teve
como destinos principais Cuba e o Peru.
A emigração com contrato durou cerca de trina anos e, neste âmbito, a política
das autoridades chinesas passou por duas fases distintas. A primeira decorreu
entre 1845 e 1859 e a segunda entre 1860 e 1874. Na primeira fase foram
escassos os relatos que chegaram ao imperador sobre o volume e as
características desta emigração [Irick, 1982, p.391]. No segundo período, entre
1860 e 1874, que não iremos abordar neste artigo, o governo de Pequim foi
obrigado pelas potências ocidentais a reconhecer o direito à emigração, a
distinguir a emigração livre da contratada, e a regulamentar esta última até à
sua extinção, no ano de 1874.
40
proporções, resolviam-nos com a ajuda dos seus superiores hierárquicos mais
próximos, evitando assim dar conhecimento ao imperador.
Por todos estes motivos, nos primeiros anos os mandarins não fecharam os
estabelecimentos de emigração, também designados por barracões, nem
prenderam nenhum comerciante de cules. A sua ação limitou-se a proibir a
afixação de cartazes contra os ocidentais, a acalmar a indignação pública e a
prevenir tumultos em larga escala, com receio de que os movimentos contra os
raptos de chineses se transformassem em revoltas contra os ocidentais.
41
Numa tentativa de legalizar e introduzir alguma ordem neste negócio, que
afetava a sua imagem, o governo de Londres autorizou em 1854 Lord
Clarendon, secretário dos negócios estrangeiros, a regulamentar dentro do
possível a emigração chinesa. No entanto, as várias tentativas deste político
britânico para conseguir uma entrevista com Yeh Ming-ch’en, governador-geral
do Guangdong e Quangsi, não foram bem sucedidas, e o mesmo aconteceu
com as suas diligências para ir a Xangai ou ao Peiho fazer a revisão do tratado
sino-britânico. A tentativa seguinte que a Grã-Bretanha desencadeou para
conquistar o direito de emigrar para a população chinesa foi feita por Lord
Elguin, em 1857. Todavia, as relações tensas que existiam nesta altura entre a
China e o Ocidente acabaram por relegar este assunto para um plano
secundário.
42
negociações entre as autoridades imperiais e as potências ocidentais estavam
num impasse e o comércio continuava paralisado. Estes motins foram usados
como estratégia, durante esta fase negocial, pelo enviado britânico, para
pressionar o comissário imperial Ho Kuei-ch’ing a ceder às exigências
ocidentais.
Por estes motivos, foi apenas durante a ocupação de Cantão, que teve lugar
entre 1858 e 1861, que as potências ocidentais fizeram o primeiro grande
esforço conjunto para regulamentar a emigração chinesa. Nesta altura existia
grande alarme entre a população, havia muitos desempregados e malfeitores,
e tanto os dirigentes chineses como os ocidentais pretendiam resolver o
43
assunto. Os funcionários chineses ao nível local também estavam dispostos a
colaborar, apesar dos riscos de serem punidos por estarem a negociar com o
inimigo.
44
Dois dias após a assinatura do regulamento, Lao Ch’ung-Kuang enviou
também uma frota para o ancoradouro de Huangpu, composta por juncos de
guerra, para evitar ações concertadas entre os engajadores e os responsáveis
pelos navios estrangeiros. Na sequência destas diligências, 36 raptores de
cules foram presos, 18 decapitados, 11 severamente punidos e 41 libertados
[Campbell, 1971, pp.125]. Pretendia-se que os barracões existentes na China
fossem abertos e os cules libertados. No entanto, Lao estava consciente de
que esta regulamentação só poderia ter sucesso se fosse aplicada e fiscalizada
pelas potências ocidentais com interesses no negócio. Foi por este motivo que
o governador enviou o regulamento às autoridades francesas e americanas na
região. Todavia, este apelo de Lao Ch’ung-Kuang surtiu pouco efeito porque os
navios de cules com bandeira holandesa, americana e peruana continuaram
ancorados em Huangpu, com centenas de cules a bordo, ignorando assim as
disposições do regulamento, nomeadamente em relação à vigilância das
autoridades locais. A vistoria a bordo e o regresso a Cantão eram recusados e
a mudança de navio e a passagem por Macau emergiam cada vez mais como
a principal alternativa. Ainda assim, por determinação do governador, o
regulamento foi alargado a Swatow (Shantou), na província do Guangdong,
outro porto que também estava sob a sua jurisdição.
45
investigação às denúncias feitas contra os mandarins do Guangdong [Édito
imperial de 22 de Abril de 1860, in Yen Ching-Hwang, 1985, p.9].
Biografia
Maria Teresa Lopes da Silva é professora, mestre em História do séc. XIX pela
FCSH da Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre o tema «A
Transição de Macau para a Modernidade, 1841-1853. Ferreira do Amaral e a
construção da soberania portuguesa». Doutoranda em História na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, prepara uma dissertação sobre a
emigração chinesa através de Macau para Cuba e Peru, 1851-1874. Participou
em vários congressos e tem várias publicações sobre Macau no século XIX. E-
mail: teresasilva333@gmail.com
Biblografia
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Direito, Bispos, Junta da Fazenda, etc.)
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meados do século XIX» in BUENO, André, Novos Estudos em Extremo-
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________ The search for modern China, Nova Iorque, W.W. Norton
Company,1991.
48
CHINA T’ANG: COSMOPOLITA E ETNOCÊNTRICA,
por Matheus Mazurkievicz Sekikawa
Que a dinastia T’ang foi uma “Era de Ouro” é uma noção compartilhada tanto
por chineses quanto por sinologistas ocidentais. O missionário Charles Gutzlaff
relata durante sua missão à China em 1833 que das dinastias após o século III
EC: “The most celebrated among them doubtless is that of the Tang, which
ruled from 618 to 906. The chinese to the present time occasionaly style
themselves Tang jin, “men of Tang” [GUTZLAFF, 1833, p.133]. Max Weber
ecoa este mesmo sentimento ao escrever no século XX: “Even today the T'ang
dynasty irradiates the glory of having been the actual creator of China's
greatness and culture” [WEBER, 1951, p.117].
49
histórico. Aqui argumenta-se que um próximo passo se faz necessário, a
historização do termo e a superação dele enquanto um elogio.
50
argumento do progresso natural da humanidade para uma sociedade
cosmopolita de nações. O cosmopolitismo ainda é presente no marxismo tanto
de forma negativa, a exploração burguesa é global, quanto positiva, vide o
lema “trabalhadores do mundo uni-vos”. [BEROŠ, 2016; BOBBIO, 2004;
BUSSETO, 2017]
Cosmopolita e Etnocêntrico
A cosmologia chinesa, isto é, como os chineses apreendem e organizam o
mundo que habitam, apresenta contornos particulares de etnocentrismo. Desde
o período da Dinastia Zhou [1045-256 AEC] uma gama de conceitos, entre eles
tianxia [Tudo sob o Céu] e zhongguo [Reino do Meio] convergiram para fundar
uma disposição de mundo que colocava o Filho do Céu, o Imperador, no centro
do mundo e, em cinco círculos concêntricas do centro zonas de maior ou
menor intensidade da influência civilizatória chinesa. Nos limites deste sistema
estavam os bárbaros [MINGMING, 2012. p.345]. No período pré-Imperial [?-
221AEC], tinha-se o ritual como o elemento que definia a alteridade chinês-
bárbaro [PINES, 2004]. A partir do reconhecimento de que quem seguia os
rituais como compilados no período Zhou era superior àqueles que não o
faziam, e da associação à cosmologia descrita acima, tem-se uma cosmologia
voltada ao etnocentrismo.
51
períodos Primavera e Outono [770-476 AEC] e Estados Combatentes [475-221
AEC], em que se teria esquecido o legado de Zhou. Nos Analectos, Confúcio
declara que “Zhou contempla as duas dinastias. Quão exuberantes são suas
tradições escritas! Eu sigo Zhou” [CONFÚCIO, 2012, p.83] e “Transmito, mas
não crio. Confio e amo a Antiguidade. Em segredo, comparo-me a meu velho
[amigo] Peng” [CONFÚCIO, 2012, p.212]. Dentre aquelas duas outras
doutrinas, a confucionista é aquela que se associa a herança do período Zhou.
Faz-se importante esta contextualização a fim de entender a identidade no
período T’ang, visto que o Confucionismo não era a doutrina prioritária como
seria em períodos posteriores.
52
são significativos para mostrar que a definição de identidade era um campo
conflituoso [ABRAMSON, 2008, pp.52-82].
53
possibilidade trai, antes de tudo, a relação do leitor com a história como algo
predicado em expectativas específicas, próximas daquele breve histórico sobre
o conceito de cosmopolitismo associado ao pensamento ocidental. Outro
aspectos é o cosmopolitismo como valor. Em Cosmopolitanism and Empire
Universal Rulers, Local Elites, and Cultural Integration in the Ancient Near East
and Mediterranean [LAVAN, Myles; PAYNE, Richard E.; WEISWEILER, John,
2016], os historiadores argumentam que o termo cosmopolitismo, usado para
caracterizar uma abertura para as ideias e produtos estrangeiros, possui pouca
utilidade analítica, geralmente resultando em um elogio anacrônico de como as
sociedades do passado parecem com o mundo globalizado do presente. A fim
de adicionar complexidade à outra proposta, a que o período T’ang pode ser
cosmopolita e etnocêntrica, introduz-se a visão imperialista de Cromer, para
quem:
Referências
Matheus Mazurkievicz Sekikawa é graduando em História pela Universidade
Federal do Paraná
54
BUSETTO, Anna. The Idea of Cosmopolitanism from Its Origins to the 21st
Century. In: WEES, Hans van [ed.]. Citizens in the Graeco-Roman World:
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Historical Difference. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2000
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Tradition & Transformation. Boston: Houghton Mifflin Company, 1989
DITTER, Alexei Kamran [ed.]. Tales from the Tang Dynasty China: Selections
from the Taiping Guangji. Cambridge: Hackket Publising Company, 2017
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from the Exchange of Goods to the Transmission of Ideas. Journal of the Royal
Asiatic Society, v.25, n.2, 2015, pp.1-46
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from the dynasty of Tsin, A.D. 280, to the commencement of the Yuen Dynasty,
1279. In: Chinese Repository.v.2, n.3, 1833, pp.111-128
HOURANI, George Fadlo. Arab Sailing in the Indian Ocean in Ancient and Early
Medieval Times. New York: Octagon Books, 1975
55
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Vernacularization, and the Question of Ideology. In: HOUBEN, Jan E. M. [ed].
Ideology and Status in Sanskrit: Contributions to the History of the Sanskrit
Language. Leiden: Brill, 1996. pp.196-247
WEBER, Max. The Religion of China: Confucianism and Taoism. Illinos: The
Free Press, 1951
56
O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO DO FILÓSOFO XUN,
por Matheus Oliva da Costa
57
de filosofar sobre o conhecimento que limitam-se a investigar este mundo, no
sentido dado pelas ciências naturais (de sua época), que abrem mão de
explicações sobrenaturais, e que entendem que não há teleologia ou valor
moral intrínseco nesse mundo natural.
58
pode saber que sua distinção é correta e funcional? Vamos entender a
descrição dele sobre como nosso organismo processa o conhecimento no
trecho 17.4:
Xun entende que os humanos são seres naturais como outros, e que o nosso
organismo é fruto de processos naturais. Assim, o que nos é inato, como a
condição de produzir emoções, são também processos naturais. Nossa
percepção do ambiente se dá também via nossos órgãos naturais, ou sentidos
físicos. E, mais importante, há um aspecto do nosso organismo que é um
“soberano”, que está no controle de tudo que é nosso naturalmente, que, na
China antiga, foi identificado como sendo o coração, xīn 心, o que faz muitos
traduzirem como “coração-mente”. Voltaremos nesse ponto depois.
Ainda sobre a citação, o raciocínio é que somos seres naturais, mas a natureza
em geral, de que somos um dos frutos, continua seus processos impessoais
apesar de nós, logo, cabe-nos adequarmos a ela. Essa adequação, no entanto,
não deve ser passiva e nem cega às singularidades próprias da cultura
humana, como ele acusa de ser o caso dos daoístas Lǎozǐ 老子, nesse mesmo
capítulo 17, e do Zhuāngzǐ 莊子, no capítulo 21. Xun defende que devemos
conhecer ativamente e profundamente os processos naturais para usar esse
conhecimento a favor da humanidade, para nos nutrir.
Outro aspecto da sua posição naturalista era a de que a forma mais adequada
de entender os fenômenos naturais era vendo-os como processos de
transformações continuas e impessoais. No trecho 17.11 ele defende que os
eventos naturais que causam temor na maioria das pessoas são apenas
59
“transformações do Yin e do Yang”, e que não haveria o que temer nisso
(Costa, 2021b). Depois, de forma ainda mais assertiva, ele diz:
“Fizeram um sacrifício ritual para chover e choveu, por que isso ocorreu? Digo:
não há relação nisso, é como se não fizessem o sacrifício ritual para chover e
chovesse [mesmo assim]. Ao pedir ajuda para salvar o sol e a lua do eclipse,
ao fazer um sacrifício ritual para chover quando há seca, ao realizar
adivinhações para decidir grandes assuntos, não se trata de agir para obter o
que se [parece] buscar, [mas sim para] fazer o uso cultural daquilo. Então o
Educado considera isso cultura, mas as cem famílias consideram ser algo
espiritual. Ao considerar como cultura, será afortunado, ao considerar como
espiritual, serão temerosos!” (Xunzi, 17.13 In: Costa, 2021b, p. 220).
Assim, ele crítica que a população em geral tende a ver os ritos mágico-
religiosos como de fato tendo a eficácia que prometem ter, o que pode causar
medos injustificados nas pessoas, e, por consequência, prejuízos (como ele diz
no trecho 21.13). Pensem, por exemplo, em recursos limitados gastos com
rituais mágicos ou amuletos da sorte, ou até no uso de supostos remédios
milagrosos que podem destruir a saúde de alguém desesperado. Xun faz uma
distinção entre atos culturais e fenômenos naturais: entende que supostas
interferências mágicas não procedem, mas que há, na verdade, um sentido
cultural para esses ritos, pois nutrem as emoções humanas (por exemplo,
apaziguando ou animando a comunidade), e podem ser formas de memória
coletiva. Entendidas assim, a cultura é justificada, mas é abandonada a
ingenuidade de crer nos aspectos que não são justificáveis naquelas práticas.
Já sabemos então, os limites epistêmicos propostos por Xun, seguindo os
passos de Confúcio: o mundo natural em geral, e mais especificamente as
sociedades (feitas de humanos, que também são organismos naturais), são o
que realmente importa conhecer. Mais exatamente, é o que estamos
justificados a buscar conhecer, pois temos condições de observar os processos
naturais e entender os significados das ações culturais. Porém, é sugerido
como imprudente aceitar explicações sobrenaturais para entender a realidade.
Do ponto de vista da Escola dos Eruditos (Rú Jiā儒家), mais conhecida como
“confucionistas”, o conhecimento relaciona-se com estar ciente de que sabe ou
não de algo (Harbsmeier, 1993). Segundo Confúcio (2012), nos Analectos 2.17:
“[...] Se você sabe, então sabe; se você não sabe, então não sabe. Nisso
consiste o saber” (zhī 知). Na mesma obra no trecho 9.8, Confúcio (2012; 2007)
diz que não tem conhecimento por não saber responder um camponês, mas
60
disse que se esforçou para responder mesmo assim. Ou seja, o primeiro
esboço epistemológico dessa tradição atribuiu o saber ao estar consciente de X
a ponto de saber expressar o conhecimento sobre X verbalmente.
Para Xun, conhecimento é apresentado no trecho 2.3 em uma referência direta
à Confúcio: “Por conhecimento designo saber o que é e o que não é; Por
ignorância designo [acreditar que] o que não é, é, e o que é, não é” (Xunzi,
2006, tradução minha). Nesse caso, o sentido de “ignorância” é de um
conhecimento falso, errado, equivocado, que não corresponde, em realidade,
com o que é afirmado. Avançando além dessa distinção inicial Xun realizou
várias definições, descrições e argumentações que formam sua teoria do
conhecimento no trecho 2 do capítulo 22, Nomeação Correta (Zhèng Míng
正名):
61
natureza “bruta”, usando de funções executivas como planejamento, memória
de trabalho ou deliberações.
62
Para Xun, nesse capítulo 21 (Costa, 2023), a melhor forma de não se dividir
cognitivamente e ainda equilibrar essas emoções é ter a habilidade de unificar
ou sintetizar o conhecimento, contra a tendência dualista natural da mente que
nos leva a distração. No programa epistemológico de Xun é necessário ser
habilidoso não só com nossas funções cognitivas geralmente chamadas de
“racionais”, mas também com as próprias emoções, que são parte do processo
de produção do conhecimento pelo agente epistêmico. Dessa forma, sua
epistemologia é naturalizada tanto por se deter no conhecimento do ambiente
natural e das ações culturais humanas, quanto por focar em entender como
nosso organismo processa o conhecimento por meio de suas ferramentas
naturais que são desenvolvidas e aperfeiçoadas pelo agente epistêmico.
Sobre o autor
Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da
USP, é doutor e mestre em Ciência das religiões pela PUC-SP, é graduado em
Filosofia pelo Centro Universitário Internacional e em Ciência das religiões pela
UNIMONTES-MG.
Referências
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Sinedino. São Paulo: Editora UNESP, 2012.
COSTA, M. O.; LI, P. Nomeação correta (Zheng Ming 正名) – Xunzi. Prajna:
Revista de Culturas Orientais, v. 2, n. 3, p. 113-139, 2021. Disponível em
<https://revistaprajna.com/ojs3/index.php/prajna/article/view/35>. Acesso em:
27 mai. 2023.
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The Stanford Encyclopedia of Philosophy (First Edition). Online: Stanford,
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<https://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/epistemology-naturalized/>.
Acesso em 03 jul. 2023.
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Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
XUNZI. Xunzi: The complete text. Translated and with an introduction by Eric L.
Hutton. Princeton: Princeton University Press, 2014.
XUNZI. Xunzi. In: STURGEON, Donald. Chinese Text Project. Online: 2006.
Disponível em <https://ctext.org/xunzi>. Acesso em: 27 mai. 2023.
WU, Chun. Filosofia chinesa. Rio de Janeiro: Batel, Go East Brasil, 2018.
65
O PAPEL DAS CONCUBINAS NA DINASTIA SONG,
por Renata Ary
Foi no ano de 960 que a dinastia anterior, os Tang, num período denominado
de as “cinco dinastias e dez reinos” caiu. Os últimos anos que antecederam a
queda, foi marcado por desordens e guerras que culminaram na proclamação,
pelas tropas de guarda do palácio, de seu comandante como o novo
imperador, dando início a era dos Song. Ao ascender ao poder, Zhao Kuangyin
fundou a dinastia Song e foi proclamado imperador sob o nome de Sung Tai
Tsu. Ele e seu sucessor [Taizong, seu irmão mais novo - 976-997]
aposentaram os generais e preencheram os cargos com funcionários públicos.
Reuniram as melhores tropas para cercar o palácio, criaram um sistema
burocrático de centralização das receitas fiscais, mapearam as cidades e
províncias e com isso garantiram o controle da força militar e estabeleceram
um novo poder civil.
66
no século VIII. Em quatro séculos, a China metamorfoseou-se. A um mundo
rude, guerreiro, um tanto artificial e hierático substituindo-se uma China
animada, comerciante, ávida de prazeres e corrupta. Entrevê-se sempre em
plano recuado a vida miserável e precária dos camponeses, e essa miséria
aumentou mesmo, relativamente. Mas a atmosfera é completamente diferente”.
Era uma sociedade mais aberta que as dinastias anteriores, permitia-se que a
pessoas se movimentassem com maior facilidade. Com o desenvolvimento
naval, houve o avanço do comércio maritimo e surgiram novas atividades como
barqueiro, almocreves, marinheiros e mercadores. Além dos comerciantes,
haviam os letrados e o populares. A economia agrária deu lugar a economia
mercantil. Os oficiais acadêmicos aumentaram seu status social e eram
responsáveis pela administração local. As mudanças de fortunas eram
frequentes e davam ensejo a novos grupos sociais e novas relações. [Gernet,
1974, p. 300].
Em 1126 a Dinastia Jin, sob a liderança dos Ruzhen, invadiu o norte da China
e tomou o controle de Kaifeng, forçando os Song a estabelecerem sua capital
no Sul, em Hangzhou [ao sul do rio Yangtze]. No entanto “o Sul, para muitos,
não é a terra dos seus antepassados: lá, tem a sensação de estar no exílio. [...]
As grandes dinastias chinesas sempre tiveram as suas capitais no Norte, na
região do atual Si-an ou mais a leste” [Gernet, p. 9].
Os Song do Sul alcançaram seu apogeu no século XIII. Para Fairbank [1991,
p. 67] “Durante o seu apogeu, no início dos anos 1200, a grande capital da
Song do Sul estendeu-se ao longo do estuário do rio Qiantang por mais de
trinta quilômetros do subúrbio do sul - com aproximadamente quatrocentos mil
habitantes - atravessando a cidade imperial murada, na qual viviam meio
milhão de pessoas, até o subúrbio ao norte, onde residiam mais duzentos mil
pessoas. Hangzhou tinha algumas semelhanças com Veneza, como apontou
67
Marco Polo. A água clara do grande Lago Oeste corria pela cidade em duas ou
mais dezenas de canais que levavam os resíduos em direção ao marés no
estuário do rio. A cidade cobria cerca de 18 quilômetros quadrados dentro suas
paredes e a ampla via Imperial, que corria de sul a norte, dividiam-na em duas.
Antes conquistada pelos mongóis em 1279, Hangzhou tinha uma população de
mais de um milhão de habitantes [algumas estimativas chegam a 2,5 milhões],
o que a tornou a maior do mundo. A Veneza de Marco Polo tinha talvez
cinqüenta mil habitantes: daí seu grande espanto com a vida urbana na China”.
“Com o decorrer dos séculos, o peso da China do Sul fez-se sentir cada vez
mais: ela povoou-se, enriqueceu-se, desenvolveu as suas relações marítimas e
fluviais, inaugurou um gênero de vida especificamente urbano, que era quase
desconhecido na China do Norte, deu origem a grandes famílias letradas, enfim
tomou consciência de si própria e do seu dinamismo”. [Gernet, p.9]
De acordo com o código legal da Dinastia Tang [618-960], que em grande parte
foi copiado pela sucessora Song, as regras de exogamia e incesto eram as
mesmas para esposas e concubinas: caso alguém tivesse relações sexuais
com elas era considerado crime de adultério. Era ofensa grave transformar
uma esposa em concubina ou uma concubina em esposa, pois violava a ética
social.
68
delas ocupavam um alto escalão no império e raramente eram chamadas de
qie. [Ebrey, 2013, p. 50]
69
No entender de Ebrey [2013, p. 48], haviam os “corretores de pessoas”
[shengkou ya]. Alguns deles eram honestos, outros sequestravam as meninas
para serem vendidas. “Eles diziam às famílias que uma menina era necessária
como esposa ou filha adotiva, seduzindo-os a entregar uma filha ou empregada
doméstica. A menina ou mulher então ficaria escondida por alguns dias, e após
seria despachada para algum lugar distante para ser vendida. Mesmo se a
família trouxesse uma acusação, quando o governo descobrisse o truque, uma
busca seria malsucedida e eles nunca saberiam o paradeiro da garota ou
mesmo se ela estava viva ou morta. O sequestro direto também é mencionado
com frequência. É claro que era completamente ilegal, em oposição à sedução”
[muitos pais eram seduzidos com a promessa de que a filha seria concubina de
um homem rico e teria uma vida boa].
70
não foram consideradas de status equivalentes pelos membros da família, uma
administrava assuntos domésticos durante a vida de seu mestre, a outra [mãe
do filho de seu mestre] era desprezada como uma concubina [qieying]. No
entanto, uma vez que nenhuma das duas havia se casado ritualmente [fei li
hun], nenhuma delas poderia ser considerada uma esposa”. [Ebrey, 2013, p.56]
A esposa era obrigada a receber em sua família, na maioria das vezes, uma
mulher mais jovem [concubina] e suprimir qualquer sentimento de ciúme ou
aversão. “De fato, o número de mulheres secundárias que um nobre deveria ter
foi prescrito da mesma forma como carruagens ou roupas”. As concubinas
tinham status mais elevados que seus filhos, no entanto, muitos deles, quando
crianças, as viam como ama de leite: uma mulher servil com quem tinham uma
intimidade especial, mas que não tinha importância para outras pessoas da
sociedade, sobretudo porque o seu pai, provavelmente, havia olhado para sua
mãe como uma cortesã. [Ebrey, 2013, p. 48-55]
Referências
Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos
e pósgraduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
EBREY, Patrícia Buckley. Concubines in Song China in Women and the Family
in Chinese History. London and New York: Routledge. 2003.
FAIRBANK, John King. China, Uma Nova História. Editorial Andres Bello. 1991.
71
GERNET, Jacques. O mundo Chinês: uma civilização e uma história. Lisboa:
Editora. 1974. Cosmos.
72
PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA
ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINO-SASSÂNIDAS AO LONGO DA
HISTÓRIA, porSamantha Alves de Oliveira
73
sociedades asiáticas” [Pinto, 2023: 8]. A posição geográfica do Irã colocou
rapidamente a região no papel de intermediadora das relações econômicas e
culturais entre a China, a Índia e o Mediterrâneo [Tashakori, 1974: 1], exercido
primeiro pelo Império Parto [247 AEC-224 EC], contemporâneo à Dinastia Han,
e, posteriormente, pelos sassânidas.
74
cometido por Kawad II [r. 628-630]. A segunda foi o período de sectarismo e
divisão, quando vários concorrentes políticos se autoproclamaram imperadores
em diversas províncias do império entre 630 e 636, demonstrando a fraqueza
do poder central. A terceira e última corresponde ao reinado errante de
Yazdgerd III [632-651], que tentou restabelecer um governo legítimo, mas
precisava se manter continuamente em movimento para se fazer presente
entre as elites locais do império, o que impediu uma organização política e
militar capaz de frear os avanços árabes sobre o Irã, forçando o deslocamento
contínuo de Yazdgerd III para as províncias a leste do império.
É neste contexto que, em 647, Yazdgerd III envia uma embaixada à corte
chinesa em Chang’an, poucos anos antes de seu assassinato em Merv, em
651. Essa informação está presente no Jiu Tang Shu [Forte, 1996: 361], e é
reforçada pelo historiador árabe al-Tabari na obra Tarikh al-Rusul wa al-Muluk
[História dos Profetas e Reis], que diz que Yazdgerd enviou mensageiros aos
líderes dos turcos, dos sogdianos e da China pedindo auxílio contra os árabes
[Smith, 1994: 54]. Como vimos, a busca por ajuda chinesa contra inimigos pode
ter um precedente na história sassânida [nos casos de Yazdgerd II e Peroz I],
mas “provavelmente a grande distância e […] a presença dos Turcos
Ocidentais no meio do caminho, tornariam qualquer tentativa de intervenção
militar insustentável e arriscada demais para os chineses” [Oliveira, 2021: 42].
75
Área [dudufu 都督府] e respondiam aos Protetorados [duhufu 都護府],
jurisdições comandadas por oficiais Tang que interferiam nas questões locais
apenas quando necessário [Skaff, 2012: 247-249].
Segundo o Jiu Tang Shu e o Xin Tang Shu, após a morte de Yazdgerd III, seu
filho Peroz fugiu para o Tocarestão e, em 661, enviou um memorial à corte
chinesa, informando sobre os ataques árabes ao seu território e pedindo auxílio
militar. Em resposta, Gaozong enviou o magistrado Wang Mingyuan para
estabelecer dezesseis Comandos de Área naquela região, recém-integrada ao
sistema de governo indireto chinês após a queda dos Turcos Ocidentais, que
responderiam ao Protetorado do Oeste Pacificado [Anxi duhufu 安西都護府].
Entre eles, o Comando de Área Persa [Bosi dudufu 波斯都督府] foi
estabelecido na cidade de Jiling [疾陵城], identificada com a atual Zaranj, no
Sistão, na fronteira entre o Afeganistão e o Irã [Harmatta, 1971: 140-141], e
Peroz foi nomeado o seu comandante-chefe [dudu 都督]. Esse seria o mais
longe que os braços do Império Tang chegariam no interior da Ásia e o
controle, precário devido à distância e à ameaça árabe constante, também não
duraria muito tempo: em 673, os árabes conseguem ocupar o Sistão e Peroz
vai para Chang’an, sem nunca retornar ao Irã. Após sua morte, seu filho
Narseh também tentou reestabelecer o controle sobre a região com o apoio
militar do Tocarestão, retornando sem sucesso para a corte chinesa em 708
[Oliveira, 2021: 45-49].
76
inscrições apagadas pelo tempo, mas algumas delas foram registradas na obra
Chang’an Zhitu [Registro Ilustrado de Chang’an], escrita por Li Haowen durante
a Dinastia Yuan [1279-1368], que inclui o nome de Peroz na lista de emissários
estrangeiros [Pashazanous e Sangari, 2018: 502-503].
Referências
Samantha Alves de Oliveira é licenciada e mestranda em História pela
Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Leandro Duarte Rust.
Dedica-se, desde 2018, ao estudo das relações entre a China Tang e o Império
Sassânida, utilizando como fonte principal o Jiu Tang Shu. E-mail:
samanthaadeo@outlook.com
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Vienna, 18-22 September 2007. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2010. p. 43-
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77
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Chinese Literary Sources: Recently Identified Statue Head of a Sasanian Prince
at the Qianling Mausoleum”, in Iranian Studies, Volume 51, Issue 4, 2018. p.
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Period From The Arab Invasion to the Saljuqs. Cambridge: Cambridge
University Press, 1975, p. 1-56.
78
79