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Revista Sobre Ontens, 2022, vol.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Sobre Ontens, 2022, v.1


www.revistasobreontens.blogspot.com
ISSN 2176-1876

Editorial
EDITORES
Prof. André Bueno [UERJ]
Prof. Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Prof. Everton Crema [UNESPAR]

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Prof. Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Prof. Gustavo Durão [UFRRJ]
Prof. José Maria Neto [UPE]
Prof. Leandro Hecko [UFMS]
Prof. Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Prof. Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Prof. Maytê R. Vieira [UFPR]
Prof. Nathália Junqueira [UFMS]
Prof. Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Prof. Thiago Zardini [Saberes]
Prof. Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Prof. Washington Santos Nascimento [UERJ]

COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Aristides Leo Pardo [UNESPAR]
Prof. Caroline Antunes Martins Alamino [UFSC]
Prof. Jefferson Lima [UDESC]

Periódico produzido e promovido pelo


LAPHIS - Laboratório de Aprendizagem Histórica

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Sumário

A EXPERIÊNCIA DE UMA ESTUDANTE DE ARQUEOLOGIA NA PRODOCÊNCIA por Vittoria


Sampaio Neto Belizário ................................................................................................................. 4
A EXPERIÊNCIA DO PROJETO ORIENTALISMO PRODOCÊNCIA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA
CHINA ANTIGA: POTENCIALIDADES E HORIZONTES DO MATERIAL DIDÁTICO DO PROJETO SOB
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-DIDÁTICA por Victor Correia....................................................... 9
A PRODOCÊNCIA COMO FORMA DE SE DISTANCIAR DA VISÃO HISTÓRICA EUROCÊNTRICA por
Vivianne Almeida Barbosa .......................................................................................................... 21
MULTIPLICIDADES E (RE)EXISTÊNCIAS DA CULTURA POPULAR por Érica Karina Silva ............... 25
OLHARES DO FUNK: A EXEMPLIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOBRE SUJEITOS PRETOS por Gabriela
Farias Oliveira .............................................................................................................................. 34
GÓTICAS TROPICAIS: CORPOS E DESCOLONIALIDADES EM NOSSA PARTE DE NOITE, DE
MARIANA ENRIQUEZ por Marcos Antonio Leite Junior .............................................................. 46
COLABORAÇÃO DE LEOPOLD VON RANKE: A HISTÓRIA DA TEORIA DA HISTÓRIA REVISITADA
por Patriciane Escórcio da Silva e Alina Silva Sousa de Miranda ................................................ 58
“A VIDA QUE OS SERES CRIARAM SUFOCA O SENTIMENTO E AGRILHOA A CARNE” - SYLVIA
SERAFIM, A ESCRITORA por Bruna Luiza da Silva Matos ............................................................ 74
A CONTRIBUIÇÃO DO PROJETO ORIENTALISMO PARA BOLSISTAS E PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA ESCOLAR por Roberta Soares da Silva......................................................................... 90
ENSINO DE HISTÓRIA E IMAGINÁRIO NOS JOGOS ELETRÔNICOS por Lucas Pinto Soares ......... 95

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A EXPERIÊNCIA DE UMA ESTUDANTE DE ARQUEOLOGIA NA


PRODOCÊNCIA
Vittoria Sampaio Neto Belizário
RESUMO: ‘A Experiência de uma estudante de Arqueologia na Prodocência’ é um
artigo que conta a minha experiência no Projeto Orientalismo e como fui afetada por
ele. Durante as pesquisas e criações de materiais, refleti sobre meu Dào e que tipo de
pessoas e profissional eu quero ser, além de ter minha forma de ver o mundo
totalmente mudada.
Palavras-chave: Dào, confucionismo, prodocência.

ABSTRACT: 'The Experience of an Archaeology Student in the Prodocência' is an article


that tells my experience in the Orientalism Project and how I was affected by it. During
research and material creations, I reflected on my Dào and what kind of people and
professional I want to be, in addition to having my way of seeing the world totally
changed.
Keywords: Dào, confucianism, prodocency.

Introdução
No ano de 2022, o Projeto Orientalismo começou com a mentoria do professor André
Bueno. Entre os alunos, estava eu, uma aluna de bacharelado de Arqueologia, que
ansiava por novos conhecimentos sobre o Oriente, mas que pouco sabia sobre o que é
a prodocência ou como compartilhar conhecimentos com outros seres humanos tão
empolgados por conhecimento quanto.

Enquanto estudava e produzia conhecimento com o professor Bueno e meus colegas


de projeto, eu li muitos textos de grandes pensadores chineses, como Confúcio, Laozi,
Mozi e Sun Tzu, além de aspectos culturais chineses que podem mudar o modo de
enxergar a vida e o conhecimento.

Neste artigo, muito mais pessoal, irei relatar minha experiência em um projeto de
prodocência do Projeto Orientalismo e como o confucionismo e a busca pelo dào

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foram fundamentais para uma mudança de pensamento, principalmente no que tange


ao adquirir conhecimento e compartilha-lo com outras pessoas.

Minha experiência no Projeto Orientalismo e a busca pelo dào


Durante o processo de criação de materiais para o Projeto Orientalismo, muito foi
estudado, revisado e aprendido. Embora espere-se que este tipo de trabalho gere
apenas reflexões sobre o conteúdo em si, não foi apenas o que eu, em minha
experiência pessoal, refleti. Enquanto lia textos confucionistas e estudava a biografia
do mestre Confúcio, eu refleti sobre a busca pelo Dào.
Dào, em chinês, significa caminho, é o caminho, dentro das várias filosofias chinesas, é
a busca pelo seu autoconhecimento, por sua ética e, até mesmo, modo de viver e
enxergar a vida a sua volta. Para ilustras isto, segue, abaixo, trecho do livro O Extremo
Oriente na Antiguidade vol. 1, de André Bueno, sobre o conceito de Dào:

 Representado pelas grafias Dao ou Tao, o ideograma representa a ideia de


caminho ou via. Seu sentido original seria o de um método ou teoria, uma
proposta que conjuga uma ideia original com os meios ou instrumentos
utilizados para sua aplicação e realização. Todas as escolas de pensamento
chinesas tinham seu próprio Dao e apenas os daoístas pregavam que seu
método seria “O Método”, gerando a confusão que existe hoje quando os
leitores iniciantes acreditam que os daoístas teriam sido os criadores do
conceito. (BUENO, 2012, p. 126)

Esta busca pelo Dào acabou não sendo apenas um fascínio dos tantos personagens
históricos que apareciam nos materiais que lia e precisava produzir, mas tornou-se,
também, uma atração minha. Eu acabei ficando tão atraída pela ideia de Dào quanto
Confúcio, Mozi ou Laozi. Portanto, o que é o Dào? Qual o caminho que eu quero
trilhar, tanto como futura arqueóloga e professora, quanto como pessoa? Qual era o
meu Dào? Eram estas as perguntas que viam e acredito que durante o projeto eu
consegui responder algumas.

Durante a prodocência, principalmente minha experiência com o coordenador deste


projeto, o professor André Bueno, passei a entender que conhecimento que não é
transmitido é um conhecimento perdido. O professor, com uma ética muita parecida
com a do velho mestre Confúcio, nunca deixava de querer compartilhar o que
aprendeu para seus alunos. Sua empolgação em ensinar era visível e, em momento
algum, se portava como alguém superior a quem ensinava, pelo contrário, estava ali
para guiar e, acima de tudo, também aprender com seus alunos. Isto me fez entender
que o tipo de pessoa que queria ser, durante minha caminhada, era de ser aquela que
absorve conhecimento e que, acima de tudo, transmite este conhecimento, não
importando quem seja. Este era o Dào de Confúcio, por exemplo, e o velho mestre,
mesmo séculos e milênios depois de sua passagem na Terra, ainda pode iluminar as
nossas mentes. Confúcio nunca negou conhecimento a ninguém, abaixo, trecho do
livro Confúcio: As Lições do Mestre, de André Bueno:

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 O Mestre disse: “Nunca me neguei a ensinar quem quer que fosse, mesmo que
fosse o mais pobre com apenas um pedaço de carne na mão”. [Era costume
oferecer presentes aos professores, e não raro, pagar pelos estudos. Confúcio,
porém, ensinava gratuitamente a quem quisesse aprender, transformando a
questão em mera formalidade.] (BUENO, 2013, p. 47)

Assim sendo, passei a aplicar a ética confucionista na minha maneira de adquirir e


compartilhar este conhecimento. Tudo o que eu produzia eu tentava dividir com o
máximo de pessoas que eu pudesse, sendo elas conhecidas ou desconhecidas. A
internet, por exemplo, foi uma ótima ferramenta para isto.

Claro, fiquei fascinada com toda a variedade cultural no Oriente, mais especificamente
na China. Eu conheci o professor André justamente para adquirir mais conhecimento
sobre China, mas tudo ficou ainda mais espetacular conforme ia aprendendo sua
história e contos pretéritos. Acontecimentos que, antes, em uma visão mais simplista
estavam bem estabelecidos mas que, conforme ia lendo, novas perspectivas iam
aparecendo. Um exemplo disto é a Batalha de Talas que, na visão ocidental, os Tang
teriam perdido, mas a verdade é justamente o contrário. A Dinastia Tang saiu mais
vitoriosa que seus adversários vindos do Oeste, como podemos ver no livro A Arte da
Guerra Chinesa – Uma História de Estratégia na China de Sunzi a Mao Zedong, André
Bueno:

 Vamos olhar para o tempo em que os Tang viviam: apesar de cosmopolitas e


trasnculturais, a dinastia tinha de enfrentar alguns problemas reais. Um deles,
por exemplo, foi a tentativa de invasão árabe, repelida na terrível batalha de
Talas, em 751 d.C. A historiografia ocidental gosta de afirmar que os chineses
foram derrotados nesse grandioso embate, mas isso é, de certo modo,
equivocado; na verdade, trata-se de um complexo de culpa, já que os europeus
passaram séculos com medo do Islã. De fato, a batalha de Talas se tratou de
um encontro magnífico entre forças combinadas do Islã árabe – o que incluía
fiéis provenientes da Espanha, norte da África e da Árabia – contra uma China
multicultural, disposta a aceitar qualquer religião, desde que ela não atentasse
contra a dinastia estabelecida. E qual foi o resultado? Nenhum, senão que os
chineses se dispuseram a reconhecer o Islã como uma religião, contanto que
eles aceitassem a lei básica chinesa – o que os mulçumanos fizeram e sem
ceder nenhum território. Se isso for uma derrota, como alguns autores
ocidentais afirmam, precisamos, então, rever nossos conceitos de vitória e de
sucesso. (BUENO, 2019, p. 75)

Estas quebras de verdades pré-estabelecidas adicionam ainda mais na minha ética


pessoal ou Dào. Devemos sempre olhar por todos os ângulos para encontrar a
verdade, afinal, a verdade não está em um extremo ou outro, mas no meio.

Outro ponto importante, foi exercitar a visão de mundo do outro para entende-lo.
Como uma futura arqueóloga, não posso interpretar os achados pelo meu olhar, mas

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pelo entender do povo estudado em questão. Os chineses são de uma cultura milenar
extremamente diferente da nossa e, portanto, quando tentava entende-los eu
exercitava uma “troca de visão de mundo”. Tentava observa-los pela ótica de um
chinês e não com o olhar de uma brasileira. É um exercício difícil, mas muito
interessante de se pratica, principalmente se procura uma análise não enviesada.

Vi que, apesar de momentos de dificuldade e selvageria, podem surgir grandes


pensadores e importantes formas de pensar. É durante o Período dos Estados
Combatentes, um momento em que a China estava dividida em vários estados que
brigavam entre si pela hegemonia, Cem Escolas de Pensamento surgiram, tentando
não apenas entender o cosmos, mas, também, melhorar a situação que a região estava
passando. Abaixo, ainda no livro de Bueno, podemos ver um pouco sobre as Cem
Escolas de Pensamento:

 A percepção de um conflito eminente e em escala nacional, que poderia pôr


fim à civilização Zhou, foi atentada pelo surgimento de inúmeras escolas
filosóficas que compõem o período chamado Cem Escolas de pensamento.
Surgidas basicamente no século -6, os conteúdos destas escolas baseavam-se
na proposta de recuperar a antiga dignidade e autoridade real Zhou e na
reforma da sociedade e da cultura. A ideia fundamental era, em tempo de
crise, como trazer novamente a estabilidade social, moral e política para a
civilização chinesa? (BUENO, 2012, p. 125-126)

Algo muito emblemático nos estudos sobre pensamento chinês é a busca de uma
harmonia universal. De fato, não existe avanço social em períodos de instabilidade
política e, portanto, em tempos difíceis, devemos sempre buscar a harmonia. Parte
desta busca que guiava os pensadores e estudantes das Cem Escolas de Pensamento.

No período em que entrei para o projeto estávamos (e ainda estamos) vivendo um


período de desarmonia, tanto política quanto social e natural. Portanto, nós, como
acadêmicos e futuros acadêmicos, devemos tentar buscar o que os antigos chineses
tentavam alcançar. O equilíbrio social, a harmonia com o céu e com a natureza, como
dito Zisi, neto de Confúcio, propunha. No livro Cem Textos de História Chinesa, de
André Bueno, podemos ver sobre isto:

 Aquilo que o céu outorgou se chama Natureza. A harmonia com essa natureza
chama-se Caminho do Dever. A ordenação desse caminho chama-se Instrução.
Nem por um instante se pode abandonar o caminho. Se pudesse ser
abandonado, não seria o caminho. A esse respeito, o homem superior, para ser
prudente, não espera até ver as coisas; nem para ser apreensivo espera até
ouvir as coisas. Nada há mais visível do que o secreto. Nada mais manifesto do
que o minúsculo. Portanto, o homem superior cuida de si mesmo quando está
sozinho. Quando não há agitações de prazer, de cólera, de pesar ou de alegria,
pode-se dizer que a mente se encontra em estado de Equilíbrio. Quando esses
sentimentos se agitam e atuam em seu devido grau, produz-se o que se pode

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chamar estado de Harmonia. Esse Equilíbrio é a grande base da qual procedem


todos os atos humanos no mundo e essa Harmonia é o caminho universal que
todos eles devem seguir. Se existem em sua perfeição esses estados de
equilíbrio e da harmonia, prevalecerá uma ordem feliz no Céu e na Terra e
todas as coisas serão estimuladas e florescerão. (BUENO, 2011, p. 40-41)

Portanto, a buscar pelo Dào também deve se concentrar na busca pelo equilíbrio e
pela harmonia, principalmente em tempos de cólera e desarmonia.
Considerações finais
Durante minha jornada no Projeto Orientalismo, pode descobrir mais sobre que tipo
de pessoa eu quero ser, principalmente quando se trata de ética científica e
acadêmica.

Conhecimento que não é compartilhado é um conhecimento perdido e vazio. A


procura pelo saber não deve ser solitária, pelo contrário, quanto mais você busca
pessoas para ensinar, mais você mesmo aprender e é ensinado.

Mesmo não fazendo licenciatura, o projeto prodocência me ajudou a ter novas


perspectivas sobre como eu gostaria de fazer ciência e como eu deveria compartilhar o
saber científico com outras pessoas, de diferentes origens e contextos.

E, principalmente, a busca para tentar melhorar o mundo em que vivemos. Não existe
harmonia quando não buscamos o equilíbrio, ainda mais em tempos de cólera, como o
que vivemos.

Referências
Vittória Belizário é graduanda em Arqueologia pela UERJ.

BUENO, André. Extremo Oriente na Antiguidade vol. 1. Rio de Janeiro, CEDERJ/UAB,


2012.

___________ . A arte da guerra chinesa: uma história da estratégia de Sunzi a


Maozedong. São Paulo, Madras, 2019.

___________ . Confúcio – As Lições do Mestre – 1° ed. São Paulo, Jardim dos Livros,
2013.

___________ . Cem Textos de História Chinesa. União da Vitória: FAFIUV, 2011.

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A EXPERIÊNCIA DO PROJETO ORIENTALISMO PRODOCÊNCIA E O


ENSINO DE HISTÓRIA DA CHINA ANTIGA: POTENCIALIDADES E
HORIZONTES DO MATERIAL DIDÁTICO DO PROJETO SOB UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICO-DIDÁTICA
Victor Correia

Resumo
O presente artigo pretende expor e relatar aspectos da minha experiência enquanto
bolsista dentro do projeto Orientalismo Prodocência da UERJ. Não se pretende apenas
descrever os resultados cultivados e postados no site, mas colocá-los em perspectiva
ao demonstrar as potencialidades para a área do ensino de História que seus
resultados até então produzidos. Para isso, mobilizamos certo arcabouço teórico
através das discussões em Didática da História para demonstrar as possibilidades do
material produzido sobre história asiática. Pretende-se especialmente explorar as
potencialidades para o processo formativo discente, mais especificamente no que
tange à necessidade interventiva na complexa disputa sobre a formação da consciência
histórica, buscando a promoção de identidades razoáveis e humanistas quanto à
consideração do Outro chinês na história.
Palavras chave: Ensino de História; China antiga; Didática da história.

Abstract
This article intends to expose and report aspects of my experience as a scholar within
the Orientalismo-Prodocência project. It is not intended not only to describe the
results cultivated and posted on the site, but to analyze them by demonstrating the
potential for the area of teaching History that its results have produced so far. For this,
we mobilized a certain theoretical framework through discussions in History didatics to
demonstrate the possibilities of the material produced on Asian history. It specially
intends to explore the potentialities for the students' formative process, more
specifically with regard to the need for intervention in the complex dispute over the
formation of historical consciousness, seeking the promotion of reasonable and
humanist identities regarding the consideration of the chinese Other in history.

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Introdução
O projeto Orientalismo Prodocência Da UERJ se institui como um projeto de
construção e inserção de bolsistas acadêmicos na pesquisa sobre a História do Extremo
Oriente, com mais ênfase em China e Índia antigas, visando o objetivo terminal de
converter essa pesquisa numa produção de material didático sobre a temática. Esta
produção intelectual dos integrantes derivadas das atividades e tarefas direcionadas
pelo coordenador do projeto em reuniões ou orientações virtuais é direcionada para
postagem em um espaço virtual confeccionado para este fim. A meta principal é
disponibilizar de forma ampla um material de apoio teórico para professores, alunos
ou mesmo quaisquer curiosos acerca da história asiática.

O projeto, coordenado pelo professor doutor André Bueno, além do autor deste
artigo, tem outros três participantes bolsistas, devidamente escolhidos num processo
de seleção no ano de 2022. No entanto, antes de mais nada, vale realizar um processo
descritivo dos materiais produzidos. Propomos uma tipificação da minha produção que
aqui se resume em: 1) material de preparação: 1.1) resumos de capítulos e partes do
livro-base; e 2) material didático acabado: 2.1) produções textuais - dividido em: 2.1.1)
resumos temáticos; 2.1.2) resenhas sobre produções audio-visuais; 2.1.3) dicionário de
orientalistas brasileiros. Outro subgrupo é o 2.2) conjunto de slides temático.
Falaremos mais especificamente das produções individuais dentro das classificações ao
longo do artigo.

A produção didática até aqui realizada foi construída no esteio de uma pesquisa com
inúmeras fontes. No entanto, a referência que serviu de base direta ou indiretamente
para todas as publicações, é o primeiro volume da série de livros "Extremo Oriente na
Antiguidade", cuja leitura foi a primeira tarefa estabelecida pelo orientador do projeto.
Somado a isso, a produção de resumos sobre determinadas partes do livro foi uma
requisição constante. Visava-se ali criar um exercício de fixação e organização de
informações sobre história do extremo oriente que serviriam como uma base
fundamental para outras atividades à medida que o trabalho científico fosse
avançando. Em relação às outras fontes, ressalta-se uma predominância da pesquisa
em meio digital. Um detalhe importante é que nem todo objeto de pesquisa pôde ser
facilmente trabalhado a partir de endereços digitais vinculados a instituições
educacionais ou científicas consolidadas. No entanto, conforme requisitado no projeto,
referências que foram colocadas ao final das publicações tiveram sua aprovação
imprescindivelmente sujeita à análise do orientador.

Conforme indicado no site do projeto, os materiais produzidos pelo autor deste artigo,
juntamente aos de seus demais colegas, podem ser acessados e baixados por meio da
seção “materiais didáticos”, que se localiza no site "Projeto Orientalismo Prodocência
da UERJ". A única exceção é o dicionário dos orientalistas, que se encontra em outro
site preparado só para sua alocação, mas que também não se furta de ser um material
fundamentalmente voltado ao caráter didático. Tendo em vista a intenção dos
resultados do projeto, não se pretende perder no horizonte essa constatação para
fazer o balanço da minha experiência como produtor do projeto. Considerou-se, desde

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o princípio do projeto, a funcionalidade deste material na chave de sua adaptação para


o ensino de História escolar.

A discussão histórico-didática
Este artigo prepara a exposição da minha experiência no projeto numa forma de
análise que exiba as reflexões sobre suas potencialidades dos resultados como
elementos formadores da cultura histórica discente. Para se discutir essas
potencialidades, usaremos um caminho metodológico, a saber, do campo
teórico/disciplinar da Didática da História. A própria definição elucidada por Cerri
sobre o campo nos permitirá justificar esse uso:

 "a Didática da História lida com resultados da historiografia sobre o mundo


atual, além do resultado de outros focos de emissão de conteúdos, discursos e
juízos históricos sobre o mundo em que vivemos, que se cristalizam na forma
das várias manifestações de cultura histórica” (CERRI, 2017, p. 27)

Nesta leitura, a produção de materiais didáticos com recorte em História da Ásia se


configura como formas particulares de expressão da cultura histórica. Por isso, opera-
se aqui o sentido de compreender pela lente histórico-didática a magnitude da
experiência de produção e pesquisa do projeto pela reflexão sobre a serventia dessa
vertente de manifestação do conhecimento histórico na transmissão docente de
História. Visando o exercício dessa proposta, será crucial entender um conceito caro
no meio da Didática da História, a consciência histórica. Ela não é a simples apreensão
do conhecimento do passado (RÜSEN, 2006), mas deve ser entendida como um
conjunto de operações mentais inerente ao ser humano e que define "a peculiaridade
do pensamento histórico e a função que ele exerce na cultura humana" (RÜSEN, 2006,
p. 14).

A conexão imbricada das três dimensões do tempo na consciência histórica resulta em


“uma combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela
necessidade de entender o presente e de presumir o futuro” (RÜSEN, 2006, p. 14), e é
algo inerente às operações mentais humanas a todo tempo, e por consequência, em
cada passo da produção da cultura humana. A premissa importante para a reflexão do
trabalho sobre os resultados do projeto é de que não há produção de cultura humana,
incluindo a cultura histórica, sem que essa esteja em função da consciência histórica.
Esta categoria representa o meio a ser disputado pela capacidade de intervenção do
tipo do nosso material didático em uma das facetas de expressão e construção da
cultura histórica, que é o ensino e aprendizado de história (CERRI, 2010). Somado a
isso, a formação da cultura histórica se imbrica na formação da identidade humana.
Por isso, Cerri (2010) defende que o entendimento da existência da consciência
histórica leva a a um redimensionamento dos objetivos disciplinares: uma nova
demanda de ensino que requisita atenção ao "conceito da consciência histórica do
aluno, e em função dela, tornar a identidade do discente o centro do debate” (CERRI,
2010, p. 270).

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Pretende-se situar as potencialidades dos documentos didáticos produzidos pelo


projeto a partir do entendimento desse papel e dessa natureza da consciência
histórica, olhando para a sua consequente capacidade formadora da identidade
humana. No entanto, ainda ficamos carentes de respostas: para onde deve apontar a
formação? E o que tal formação pode extrair da temática da história asiática a qual
nos propomos a trabalhar? Para tecer respostas, devemos apontar de volta para a
discussão teórica da disciplina da Didática da História que vínhamos tendo, buscando
compreender suas possíveis contribuições na questão da formação discente de
identidade cultural e histórica. No que tange ao conceito de consciência histórica, que
é central para este trabalho, Cerri nos afirma que esta categoria

 “implica a existência na Didática da História, de um papel para a utopia e um


papel para a alteridade como complemento obrigatório da formação de uma
identidade razoável” (CERRI, 2010, p. 276)

Nesses termos, falamos de um conceito que constitui

 “papel importante naquelas operações mentais que dão forma à identidade


humana, capacitando os seres humanos, por meio da comunicação com os
outros, preservarem a si mesmos" (RÜSEN, 2006, p. 15)

Dito isso, se faz necessário dimensionar concretamente o que são os papéis da


alteridade e da utopia para a consciência histórica discente quando falamos da nossa
contribuição didática. Cerri traz um exemplo relacionado ao ensino de História e que,
embora seja acerca de assuntos completamente distintos dos nossos, descreve um
potencial muito semelhante àquele que interpretamos a partir da nossa proposta que
também se volta para o ensino de História.

No caso, o exemplo atenta para um caso particular da instituição da Lei 10.639/2003,


cuja redação define a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-brasileira
(CERRI, 2010). O fato é que a aplicação da lei no Sul do Brasil, em comunidades que,
sabidamente, possuem uma quantidade expressivamente majoritária de população
branca suscita uma situação fértil para o exercício da alteridade e da utopia. Mais do
que nunca, é nesse local social que se faz necessário trabalhar meios de não deixar que
a distância mais demarcada em relação ao Outro seja um solo fértil para identidades
não-razoáveis, ou seja, preconceituosas e excludentes com o diferente. A alteridade
vem como a característica que

 “ajuda a conceber que é necessário também algum conhecimento de tempos


afastados e povos em espaços distantes, com os quais parece que a nossa
realidade não guarda relação quase nenhuma” (CERRI, 2010)

É essa característica a viatura que serve de transporte no incessante processo de


perseguição da utopia, um lugar no horizonte que supõe a generalizada promoção da

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identidade razoável, que se funda no combate à uma visão etnocêntrica do mundo e


na prevenção de comportamentos excludentes (CERRI, 2010).

Como dito, o projeto tem sua meta voltada à estimulação ao ensino de História
asiática. No entanto, levando em conta que, até então, nosso projeto esteve focado na
temática da China antiga, focaremos na estimulação da História da antiguidade
Chinesa. É aproveitável o fato de que, dentre os preconceitos contra povos asiáticos,
parece ser a sinofobia aquela que tem estado em alta nos discursos e mentalidades no
Brasil. Dessa forma, por questões atuais que refletem o grau intenso de sinofobia, esta
modalidade de ensino histórico, dimensionada no nosso país, atualmente, onde falar
de China é um exercício envolto por perniciosidades, desafios e obscuridades, nos
suscita um terreno particularmente mais propício para se trabalhar os problemas de
alteridade e utopia tão caros à formação da consciência histórica discente e da
identidade razoável.

Falamos de uma nação cuja distância geográfica não pode ser lida como uma razão
única e suficiente para explicar a dificuldade de determinada compreensão e empatia
no Brasil com o Outro chinês. Pelo menos, levando em conta que a "modernização
tende a colocar rapidamente em convívio multicultural as diferentes comunidades"
(CERRI, 2010, p. 276), incluindo a nível virtual do compartilhamento de informações e
conhecimento, parece que se destacam outros fatores para a motivação dos
distanciamentos, como questões políticas e ideológicas. Não se pode esquecer o fato
de que a China, como um polo emergente da geopolítica global no plano econômico,
gera incômodo à unipolaridade estadunidense (INSTITUTO..., 2021).

O exemplo atual mais marcante de sinofobia talvez seja o da pandemia mundial da


Covid-19. Os discursos em torno da culpabilização da China revelaram um grande meio
reverberante de distâncias e preconceitos para com a nação chinesa e seu povo. A
lógica é que faz sentido que um povo e país “exótico”, “comunista”, “estranho a
nossos costumes e valores”, “comedor de morcegos” possa ser um possível vetor de
um problema dessa magnitude no mundo. Há, então, de se mediar o processo que
leva à uma mentalidade geral de desconhecimento do brasileiro comum sobre a China
e sua história: dissecar todo um entorno de forças e instituições com alcance político e
social que garantem a água que rega esse solo mental. Nesse processo, vemos a
formação do que Rüsen definiu como uma identidade não-razoável, que nesse caso, se
fundamenta na exclusão de outras identidades possíveis a partir de um julgamento
preconceituoso. Podemos perceber que a forma com que a China e suas identidades
têm sido posicionadas nas manifestações da cultura histórica do brasileiro, quando há
de se mobilizar um discurso histórico que envolva esses personagens, é problemática.
E por isso, faz-se um forte motivo para a nossa proposta do artigo, que pretende
analisar possibilidades de qualificação do ensino de História sobre a China.

O material didático do site e suas potencialidades


Diante desta exposição argumentativa e teórica, agora, resta materializar a validade
dos pressupostos através da já citada proposta de realizar um exercício analítico com o

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material que temos. Em primeiro lugar, faremos a análise da produção do Dicionário


de Orientalistas Brasileiros. Conforme o nome da obra, essa iniciativa tem a proposta
de ser um repositório de verbetes individuais sobre orientalistas brasileiros; cada
verbete, separadamente, consiste em um breve resumo sobre vida e obra de um
desses indivíduos. Contudo, para o projeto, qual é a definição de orientalista na
pesquisa? O endereço virtual do dicionário guarda o parâmetro que utilizamos:
“‘Orientalista’ é um termo que implica tão simplesmente nos autores brasileiros que se
dedicaram, em algum momento, a estudar uma das expressões culturais dos muitos
orientes possíveis [...]” (BUENO, 2022).

A busca pelo material que constituiria esse dicionário virtual foi fruto da primeira
tarefa passada aos bolsistas. Para cada estudante, foram dados cinco nomes de
orientalistas naturais do nosso país para que cada um fizesse uma pesquisa sobre vida
e obra do conjunto dos nomes de que cada um ficou encarregado. Com base nas
fontes pesquisadas, o bolsista deveria fazer uma síntese das informações achadas que
formariam cada verbete.

Vale indicar que este material didático constitui uma exceção dentro do escopo
definido de conteúdo que foi produzido no projeto até aqui, a saber, a história da
China antiga, tendo sido o único material a fazer uma referência mais ampla da história
e cultura asiática, dado o fato de que os cinco nomes pesquisados eram tributários de
áreas diferentes do conhecimento asiático - um requisito comum a todos os conjuntos
que os bolsistas trabalharam. Dito isso, importa que aqui se apresente os nomes que
foram objetivos de minha pesquisa: Emanuel Bouzon, estudioso de Oriente Próximo;
Hermógenes, um orientalista (no sentido mais orgânico); Huberto Rohden, estudioso
de Índia; Ignácio Raposo, estudioso de China; e José Yamashiro, estudioso de Japão.

Na esteira do exercício de discutir o potencial dessa obra como vetor dos estudos
históricos asiáticos para o ensino de História abalizado pelos termos histórico-didáticos
que apontamos, falemos da especificidade da produção de um dicionário como este.
Em relação ao conjunto dos outros materiais, há uma diferenciação do papel que
podem cumprir. Estes outros materiais, formados enquanto resumos ou sínteses, que
já abordam temáticas, conteúdos e obras que remetem à história da China antiga, eles
podem ser utilizados como meios facilitadores de compreensão e contato com
assuntos e episódios históricos, o que abre certos caminhos potenciais para a
intervenção na consciência histórica de outras formas que serão tratadas
posteriormente.

O dicionário, pelo menos nos verbetes dos autores citados acima, assume um papel
diferente, relacionado ao seu caráter mais biográfico, e engendra potencialidades
outras. Elas podem ser extraídas dentro da proposta de uma apresentação dos autores
e os nomes de suas principais obras que facilite o acesso ao conhecimento sobre a
área dos estudos asiáticos. Facilitar digitalmente o mero reconhecimento da existência
de indivíduos que focalizaram os estudos orientais e produziram obras na nossa língua
já é uma potencialidade primária a ser reconhecida pelo professor de história nos

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

termos de uma atenção à formação da identidade do aluno como centro (CERRI,


2010), visando combater a identidade que flerta com a não-razoabilidade, como por
exemplo, quando a formação identitária do aluno e seu discurso histórico eurocentriza
a percepção sobre a serventia do ensino de História da Ásia.

Essa eurocentrização diz respeito ao pensamento que a área não tem importância em
si, ou a ideia de que nunca mereceu dedicação suficiente de autores ou pesquisadores
no Brasil - e uma corroboração inconsciente e não questionadora dessa realidade, que
se sustenta pela ideia comum de que seria uma história de uma “cultura muito
distante da nossa”, com o Outro asiático distanciado, inferiorizado, vilanizado, ou da
ideia de que não é mesmo uma história possível, ideias contra as quais o material pode
ser a porta de entrada de uma oposição frontal por seu ineditismo.

Passemos agora às possibilidades potenciais do outro conjunto de produções que


guardam a similaridade de abordar temáticas específicas da História sobre a China
antiga. Pretende-se focalizar naquilo que está postado no site do projeto, pois este é o
material que foi realmente publicizado. A partir do subgrupo das produções textuais,
podemos abordar, primeiramente, o resumo temático sobre a escrita chinesa. Esse
texto não pretendeu ser um estudo analítico da evolução das formas da escrita
chinesa, mas sim, fazer um panorama histórico de marcos da escrita chinesa, e trazer
algumas características de sua formatação.

Em primeiro lugar, é preciso dimensionar o fato de que o material proposto trata do


sistema de escrita mais antigo do mundo, e em termos atuais, a língua mais escrita do
planeta (BUENO, 2012). Dito isso, a grandeza desses fatos não se traduz num
reconhecimento generalizado de igual intensidade acerca da importância histórica da
China, seja sobre seu passado ou seu presente. O material introduz a noção de que a
escrita chinesa na antiguidade é um vetor de enormes contribuições na ciência,
filosofia, literatura, na produção de história prática etc. Uma porta de entrada para
que, a partir da perspectiva de um ensino de História da China ciente do seu papel na
formação da consciência histórica discente calcada na alteridade, um material como
esse possa dar brecha para a abertura de uma discussão sobre o desenvolvimento e a
importância da escrita em uma nação/cultura que não seja europeia/ocidental. Um
exemplo do problema é que não existe um amplo conhecimento escolar sobre a
tradição enciclopedista na China, a qual foi muito relevante como base para inspiração
dos escritos de Confúcio. Em contraposição a isso, quando se fala de tradição
enciclopedista dentro do ensino de História, a convenção é remeter unicamente
àquela do iluminismo europeu. Em uma sociedade brasileira que incorporou uma base
gráfona, principalmente por conta do colonialismo europeu e sua forma impositiva,
pode-se abrir discussões sobre a importância da escrita que empodera a evolução
histórica de lugares diferentes aos da Europa.

Outro material didático que podemos extrair potencialidades é aquele acerca da


temática do legismo. Essa corrente de pensamento chinês, surgida na época dos
Estados Combatentes, não inicia como uma escola unificada (posteriormente assim foi

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

classificada pelos Han), e sim como uma corrente mais orgânica de pensadores que
foram cultivando ao longo do tempo uma base em comum de ideias (PINES, 2014). De
acordo com Bueno (2012, p. 130), essa base “representa a ascensão de uma razão de
governo pragmática, dura e violenta. Ela não se dispõe a retornar ao passado ideal,
mas a criar um governo forte e centralizador em torno dos príncipes.” O material
construído em torno do tema tem o objetivo de ser um resumo sobre a exposição de
alguns marcos deste pensamento na antiguidade chinesa, e somado a isso, fragmentos
de seus principais autores, e um conjunto de perguntas didáticas. Vale dizer que este
formato está relacionado à uma tarefa do projeto que requisitou a produção de
documentos nestes parâmetros.

Se o objetivo proposto ao ensino de História da China antiga visa combater a influência


na identidade do aluno que alimente a crescente noção sinofóbica que acusa o chinês
enquanto um povo “estranho”, “irracional nos seus costumes”, ou que parece
socialmente hermético, remetendo à noção de uma civilização que não é dinâmica
historicamente, o material produzido para simplificar a abordagem ao legismo parece
dispor de uma abertura possível para apresentar uma nação com uma grande
profundidade nas formas com que pensa a si mesma, a saber, em seus pensamentos
filosóficos e políticos. Não deveria ser surpresa, dado o fato que, no passado, até as
invasões inglesas do século XIX, a China guardava o posto de nação mais rica do
mundo, e até o século XVI, “teria sido também a sociedade tecnicamente mais
avançada do mundo em vários campos” (BUENO, 2007, p. 2).

Hodiernamente, o gigante asiático se encontra perto de retomar seu posto (A CHINA…,


2022), sob condições e parâmetros diferentes, e ainda sustenta a posição do maior
parceiro comercial do Brasil e da maioria da América Latina (CHINA…, 2022). Como
manter um discurso histórico que insiste em ser tão raso e tão indolente com o
conhecimento sobre os vetores políticos e filosóficos do pensamento de agentes de
uma sociedade que chegou a estes tipos de patamares, tanto no passado quanto no
presente? Certamente, tal postura não contribui para a constituição de uma
identidade razoável. Uma questão interessante a ser desenvolvida, por exemplo, na
questão didática, é ensejar uma compreensão que ultrapasse a presença bipólica do
confucionismo/taoísmo como correntes mais imediatamente reconhecidas quando o
assunto é a filosofia chinesa. Propor o trabalho de uma escola como o legismo ajuda
demonstrar a diversificação e a profundidade do pensamento filosófico e político na
história chinesa.

Passando à outra subdivisão, referente às resenhas sobre produções audiovisuais,


podemos explorar potenciais absolutamente interessantes quando lançamos mão de
uma compreensão da Didática da História que faz a análise de “todas as formas e
funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida cotidiana, prática. Isso inclui o
papel da história na opinião pública e as representações nos meios de comunicação de
massa” (RÜSEN, 2006). Produções audiovisuais são manifestações da cultura histórica
que não devem ser desconsideradas enquanto braço de mobilização da consciência
histórica. Há de se levar em conta a capacidade do filme, enquanto mídia de massas,

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

de ser uma linguagem mais atrativa e apelativa para o senso de urgência dos jovens, o
que define culturas históricas muito facilmente formadas de influências de
representações e raciocínios históricos vindos dessas produções. Isso está atrelado à
tendência de quase todos crescerem “numa espécie de presente contínuo, sem
qualquer relação orgânica com o passado da época em que vivem” (HOBSBAWN, 1995,
p. 13 apud CERRI, 2010. p. 272). Se o ensino que usa este material pretende fazê-lo ir
além dessa perspectiva, deve, primeiramente, levar em conta que isso é uma
característica que terá de ser uma porta de entrada naquela subjetividade identitária.

Dito isso, o material proposto, centrado em fazer um resumo da obra, procura facilitar
o conhecimento do aluno em relação à existência de produções que abordem a China
antiga e seus produtos culturais no passado e no presente, e que contextualizam essas
produções com a sua inspiração histórica real. Quanto ao filme Vingança Branca, filme
com ambientação histórica, a saber, a trajetória de Liu Bang e Xiang Yu na transição
entre a derrocada da dinastia Qin e da origem da dinastia Han, primeiramente, parece
uma proposta incentivadora trazer o conhecimento sobre uma produção
cinematográfica propriamente chinesa como esta. Se o combate às visões
eurocêntricas é central na formação de identidades razoáveis, abre-se um caminho
quando apresentamos uma obra que demonstra que existe cinema sendo produzido
em quantidade e qualidade fora do circuito estadunidense. Este é um filme que tem
outra característica bem potencial em relação a facilitar a atenção do jovem brasileiro,
tendencialmente mais acostumado ao formato estadunidense de cinema, que é o
apelo de uma narrativa construída nos moldes de um filme que apresenta múltiplas
cenas de intensa ação e luta.

Acerca do resumo sobre o episódio Confucionismo e Taoísmo do documentário


Religiões do Mundo, podemos engendrar outras reflexões. Embora seja uma produção
estadunidense, e isso é algo que deve ser considerado pelo professor que quiser
refletir com o material quanto aos limites e possibilidades da obra, atentamos para o
fato de que esta obra estimula a manifestação de adeptos chineses para dissertarem
sobre seus envolvimentos com as expressões filosóficas/religiosas abordadas no
episódio. No material produzido, aborda-se resumidamente as conclusões do
documentário quanto à questão da classificação de um caráter mais filosófico ou
religioso desses sistemas de pensamento. Por meio da construção do conteúdo,
percebemos que o documentário indica um espaço inconclusivo de interpretação e
traz diferentes aspectos e situações às quais tais sistemas se assemelham tanto a uma
doutrina filosófica quanto a um pensamento religioso. Essa inconclusividade enseja um
potencial quanto a um ensino de História comprometido nos termos didático-
históricos nos termos que vínhamos desenvolvendo, principalmente no que tange à
promover a denegação de vícios eurocêntricos sobre o “oriental”.

Fala-se aqui de intervenção na consciência histórica discente que trabalhe aquela


aproximação com povos e culturas que não parecem ter a ver com a nossa realidade
(CERRI, 2010) pela tática de problematização de conceitos e certezas que edificam essa
distância com o Outro chinês. Será que as noções a que estamos acostumados são

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

rigidamente aplicáveis a todos os povos/culturas? Sendo essa uma pergunta potencial


a partir de uma abordagem histórico-didática do material didático, podemos achar um
caminho possível de trabalhar essa pergunta em Bueno (2012). De acordo com o autor,
situações culturais complexas, como o próprio confucionismo, demandam mediações
mais complexas, e não o uso de conceitos fechados que mais detratam do que
esclarecem.

O esclarecimento, então, não depende tanto de se mudar os conceitos (filosofia,


religião), mas depende que o autor medie com clareza sua forma de abordar estes
sistemas culturais asiáticos, evitando dar espaços para as dubiedades perversas
(BUENO, 2012). Essas dubiedades geralmente botam o povo chinês num não-lugar de
sistemas de pensamento que nunca são suficientes para ser o parâmetro de um
sistema “ocidental” pleno; esse argumento geralmente recai nas já citadas
considerações sinófobicas sobre uma suposta insuficiência de racionalidade na cultura
e no pensamento desse povo, sendo essas considerações aquelas que devem ser
combatidas por seu potencial de gerar um caráter não-razoável nas identidades
discentes disputadas através do terreno da consciência histórica.

Por último, resta a análise do único material de conjunto de slides temáticos, que é
aquele referente à seda chinesa. Este material foi produzido no formato de
apresentação de referências textuais e visuais sobre as origens históricas da seda, seus
usos, sua difusão, sua forma de produção e os marcos históricos relacionados a ela -
como a conhecida Rota da Seda. Dos pontos a explorar, vale o fato, apresentado de
que a seda é um elemento simbólico da relevância histórica da China para o mundo.
Faz parte de um conjunto extraordinário das muitas descobertas chinesas no mundo
antigo, tal como a pólvora, os fogos de artifício e a bússola. Esse tipo de reforço é
positivo num sentido de poder operar uma base possível para o exercício de outra
visão sobre a contribuição da civilização chinesa para o mundo, o que engendra o
respeito à capacidade de outras sociedades e suas identidades.

A seda foi um material que, conforme constatado pela própria produção do projeto, se
disseminou para muito além da China, chegando, inclusive, a impressionar as mais
altas elites do Império Romano pelo brilho e a beleza do material. A seda, como
exemplo da capacidade chinesa histórica de abrir pontes e difundir os seus produtos
técnicos e culturais pode abrir margem para outro exercício didático, que é estimular o
aluno a atestar tal capacidade no mundo contemporâneo, ou seja, perceber essas
pontes no presente. Seja a profusão recente de smartphones e gadgets eletrônicos,
como a marca Xiaomi, seja o sucesso de aplicativos, como o TikTok, esses fenômenos e
suas consequências na vida prática dos alunos, principalmente os mais jovens, e
podem ser pontos de atração numa aula que queira conectar a influência grandiosa
tanto da China antiga quanto da China contemporânea na vida dos não-chineses.

Conclusão
Colocando em perspectiva todos os materiais didáticos produzidos pelo autor deste
trabalho, na noção de trabalho didático da história, concluímos reafirmando que

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

qualquer uso potencial deles demanda intervir conscientemente sobre a estrutura


discente da consciência histórica, compreendendo sua articulação automática de
passado, presente e futuro (CERRI, 2010) nas operações mentais humanas. Se
pararmos para delinear mais ou menos um modelo que apresente essa articulação em
função dos temas trabalhados, mas tomando a temática da seda chinesa como
exemplo, estabelecemos a seguinte conexão: dimensão do passado - uso do material
didático do projeto sobre a importância da seda para o mundo; a dimensão do
presente - discussão em torno da importância de tecnologias e aplicações chinesas
próximas à vida prática dos jovens; e por fim, a dimensão do futuro - exercício de
aproximação ao projeto utópico de identidades mais razoáveis, no qual, no mínimo, a
civilização chinesa seja mais alvo de compreensão e menos vítima de
descaracterizações e inferiorizações acríticas baseadas no simplismo eurocêntrico.

O fato é que se tentou introduzir bases de análise para as potencialidades das


temáticas pesquisadas no ensino de História, mas não se pretende que as descobertas
se esgotem por aqui, ou que as possibilidades desenvolvidas não careçam de serem
aprofundadas. Esse trabalho pretendeu ser um pontapé para um debate sobre o
potencial histórico-didático desse projeto que não se encerra na minha experiência de
produção e pesquisa, a qual certamente guarda limites e potenciais de um maior
desenvolvimento. Dito isso, constata-se que existe um potencial brilhante para a
produção de materiais que auxiliem o ensino de História sobre a China se levamos em
conta um contexto mundial em que quanto mais uma civilização como a chinesa se faz
presente nos meandros do nosso presente, mais se faz necessário afastar a postura de
continuar apenas ignorando ou mantendo julgamentos sinofóbicos do Outro chinês.
Por isso, faz-se necessário estimular, imprescindivelmente através da mobilização das
consciências históricas discentes, uma mediação mais complexa e mais sensível dos
impactos e das possibilidades no tempo de uma nação como a chinesa, seja para o
mundo, seja para o Brasil.

Referências
Victor Correia é graduando em História da UERJ.

A CHINA voltou a ser a principal potência econômica do mundo? Fundação Grabois,


São Paulo, 27 abr. 2022. Disponível em: <https://grabois.org.br/2022/04/27/a-china-
voltou-a-ser-a-principal-potencia-economica-do
mundo/#:~:text=Em%20volume%2C%20a%20China%20passou,contra%201%2C4%20m
ilh%C3%A3o>. Acesso em: 05 fev. 2023.

BUENO, André da Silva. História da China antiga. Rio de Janeiro, 2007.

BUENO, André da Silva. O extremo oriente na antiguidade. Rio de Janeiro: Fundação


CECIERJ, 2012.

BUENO, André da Silva. ‘TeoMet’ in BUENO, André [org.]. Orientalistas Brasileiros. Rio
de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2022. Disponível em:

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<https://orientalistasbrasileiros.blogspot.com/p/ricardo-joppert.html>. Acesso em: 06


fev. 2023.

CERRI, Luis Fernando. Didática da História: uma leitura teórica sobre a História na
prática. Revista de História Regional. Ponta Grossa, 2010, p. 264-278.

CERRI, Luis Fernando. Um lugar na História para a Didática da História. História &
Ensino, Londrina, v. 23, n. 1, 2017, p. 11-30.

CHINA ampliou liderança comercial na América Latina durante governo Biden. CNN
Brasil, São Paulo, 08 jun. 2022. Disponível em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/business/china-ampliou-lideranca-comercial-na-
america-latina-durante-governo-biden/>. Acesso em: 05 fev. 2023.

INSTITUTO TRICONTINENTAL DE PESQUISA SOCIAL. Olhando em direção à China.


Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2022. Disponível em:
<https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-51-multipolaridade-china-america-latina/>.
Acesso em 05 fev. 2023.

PINES, Yuri, ‘Legalism in Chinese Philosophy’ in ZALTA, Edward N. [org.]. The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (Winter 2018 Edition). Palo Alto: Stanford University,
2014. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/chinese-
legalism/>. Acesso em: 04 fev. 2023.

RÜSEN, Jorn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso


alemão. Práxis Educativa. Ponta Grossa, 2006, p. 7-16.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

A PRODOCÊNCIA COMO FORMA DE SE DISTANCIAR DA VISÃO


HISTÓRICA EUROCÊNTRICA
Vivianne Almeida Barbosa

Resumo
Este artigo tem por breve intenção explicar os caminhos da prodocência, a visão
histórica eurocêntrica e como as pesquisas nos projetos de prodocência podem abrir
diversos caminhos distantes do eurocentrismo na área da história, trazendo a tona
processos históricos vividos por países não europeus.
Palavras-chave: Prodocência; História; Eurocentrismo

Abstract
This article briefly intends to explain the paths of prodocency, the Eurocentric
historical view and how researchs in prodocency projects can open different paths
away from Eurocentrism in the area of history, bringing to light historical processes
experienced by non-European countries.
Keywords: Prodocency; History; Eurocentrism.

Introdução
Apesar de já haver discussões sobre como o eurocentrismo é hegemônico na História e
que trazer a tona a epistemologia de outras regiões que contribuíram para o que
chamamos de História hoje, ainda há a perpetuação do “herói branco e europeu” que
pensou e agiu diferente das civilizações não europeias “ultrapassadas”. Pouco se sabe
que civilizações, como as Pré-colombianas, Egípcias, Árabes e Chinesas, desenvolveram
teorias, filosofias, técnicas de agriculturas, estrutura social, dentre outros e mesmo
assim, toda a glória ficou para os europeus. Por isso, este artigo abordará como
podemos trazer de volta às salas de aula os diversos protagonistas da História
utilizando os projetos de pesquisa da Prodocência.

Antes de irmos direto ao ponto, cabe destacar, de forma breve, o que significa a
Prodocência. O MEC (2018) define que:

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 “O Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência) visa ampliar a


qualidade das ações voltadas à formação de professores, com prioridade para a
formação inicial desenvolvida nos cursos de licenciaturas das instituições
federais e estaduais de educação superior. Criado em 2006, a Prodocência
financia projetos voltados para a formação e o exercício profissional dos futuros
docentes, além de implementar ações definidas nas diretrizes curriculares da
formação de professores para a educação básica.

Os objetivos do programa são: contribuir para a elevação da qualidade da educação


superior, formular novas estratégias de desenvolvimento e modernização do ensino no
país, dinamizar os cursos de licenciatura das instituições federais de educação superior,
propiciar formação acadêmica, científica e técnica dos docentes e apoiar a
implementação das novas diretrizes curriculares da formação de professores da
educação básica.”

Portanto, os projetos de pesquisa tem por intuito introduzir novas formas de


aprendizado, como também reformular as antigas. É importante que essas formas
sejam de modo a descolonizar e descentralizar o estudo da Historia de uma visão
eurocentrista. Toda História é importante então é mais do que necessário buscarmos a
versão pelo outro lado, não só dos “conquistadores” (ADICHIE, 2019), e mesmo na
academia ainda sendo muito forte essa visão “colonizado x colonizador”, os projetos de
pesquisa podem ser uma porta de escape desse ciclo vicioso.

A Prodocência como forma de afastarmos o Eurocentrismo


Há hoje diversos projetos voltados para a descolonização, trazendo para a luz lutas de
povos que sofreram diversas atrocidades no período colonial, como os Pré-
colombianos, africanos, indígenas brasileiros e etc. A intenção dessas pesquisas é
resgatar a cultura que quase sucumbiu pelo protagonismo do colonizador europeu. Há
muitas criticas à academia por ter poucas disciplinas voltadas ao estudo desses povos,
de sua origem, sua história, seus pensamentos e modo de viver antes do período
colonial e o pouco que é falado, revela um pensamento retrógrado de que eram povos
“atrasados tecnologicamente” e que suas derrotas eram inevitáveis perante o
“grandioso” colonizador. Um grande exemplo disso é a forma como Cortez provocou o
genocídio dos povos Astecas, era um grupo de espanhóis contra centenas de indígenas,
porém muitos dos Astecas já estavam insatisfeitos com as atitudes de seu líder,
Montezuma, e também havia grupos rivais, como os Tlaxcaltecas e os Totonacas que se
aliaram aos espanhóis com o intuito de derrotar os Astecas (TODOROV, 1999). A
História ainda persiste em colocar os espanhóis como protagonistas, por isso que
projetos de pesquisas com visão não-eurocentrista e decolonial se mostram tão
importante, porque a partir da criação de pesquisadores e docentes com uma visão
crítica e trazendo para dentro da sala de aula as diversas perspectivas que foram
apagadas pelo colonialismo europeu e trazer também autores não europeus contando
a História de seu país e povo.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Outro caso a ser citado é o fato do europeu ser o precursor da forma de pensar e
historicizar. A Filosofia veio da Grécia, as navegações de Espanha e Portugal e se
perguntarmos um fato muito importante na História, há grande probabilidade de
ouvirmos sobre a Revolução Francesa. Mas aonde está as outras nações na História?
Será que ao longo de vários séculos nenhuma dessas nações foram precursores de
algo? A resposta é sim, mas foram eclipsados pela Europa. A Grécia teve seu despertar
filosófico por volta do século VI a. C, em qualquer escola de ensino básico é ensinado
isso e na academia ainda perdura-se a imponência da filosofia grega. Mas e os
Upanishads (1000 – 500 a. C) da Índia, As Máximas de Ptahhotep (2375 – 2350 a. C) do
Egito, As Cem Escolas de Pensamento (Séc. 6 – 221 a. C), sobre os pensadores das
civilizações Pré-colombianas e o que sabemos de nossa história antes de sermos
invadidos por Portugal? E as navegações Fenícias? E sobre outras centenas de
revoluções que ocorreram ao redor do mundo e que hoje não são lembradas?
Continuar introduzindo apenas a História vista pelos colonizadores não criará alunos e
futuros professores com senso crítico, perpetuando o apagamento da História do
Outro.

Alguns dos projetos de Prodocência t~em como intuito inserir o aluno no outro lado da
História, mostrando sobre seu povo, sua cultura e seus feitos que por muitas das vezes
há acontecimentos semelhantes aos ocorridos na Europa, mas que aconteceu num
período anterior e que o europeu só chegaria nesse patamar na Modernidade. Um
caso a ser citado é sobre o que vimos no Projeto Orientalismo – UERJ, liderado pelo
Prof. André Bueno, no qual participo. Na primeira parte do projeto, focamos em
pesquisar sobre a China Antiga e há um caso importante sobre dois pensadores
confucionistas: Mengzi, ou Mêncio (– 370 a. C – 289 a. C) e Xunzi (– 312 a. C – 230 a.
C). Mengzi acreditava que o ser humano era bom e puro e a que a falta de educação
poderia afastá-lo dessa bondade; já para Xunzi, a natureza humana era má e a boa
educação trazia para o bom caminho (BUENO, 2012), Já vimos isso na escola e na
academia, porém com os pensadores Rousseau (1712 – 1778) e Hobbes (1588 – 1679)
que desenvolveram ideias semelhantes cerca de 2000 anos depois. Poderíamos
estudar e ensinar sobre os filósofos chineses que foram precursores de pensamentos
que apareceriam na Europa milênios mais tarde, não apagaríamos os pensadores
europeus, porém também introduziríamos outros de diferentes nações que também
pensaram, para afastarmos a ideia de que as outras civilizações não desenvolvem
culturas, ou se desenvolvem, são antiquadas.

Além de pesquisar e conhecer sobre outras culturas e a história delas, também


aprendemos na Prodocência como montar planos de aula que sejam de forma mais
desconstruída, fugindo do modelo engessado da academia. Conhecer autores de
outras nacionalidades que trabalham com a História de modo decolonial. Em nosso
projeto, que é voltado para o Oriente, listamos uma série de pesquisadores brasileiros
voltados para o estudo do Orientalismo e produzimos um dicionário, com suas
biografias e obras, além de produzirmos outros materiais, como apresentações, textos
e resenhas para facilitar com eficiência o uso para alunos e/ou professores.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Considerações Finais
Como já falado no texto, a Prodocência pode ser utilizada como ferramenta de
pesquisa para abrirmos a fronteira eurocêntrica que a academia ainda se encontra
presa. Trazer à tona as diversas culturas e histórias de diferentes civilizações é
necessária para a continuação da construção de uma História descolonizada e que a
partir disso possamos criar pensadores com visão crítica ao protagonismo Europeu. É
importante entendermos também, que com a pesquisa encontraremos aspectos
positivos e negativos dos outros povos, mas que nem por isso eles devem ser
desprezados do ensino, pois a Europa já foi cenário de tantos acontecimentos
lamentáveis, isso não seria diferente em outros povos que passaram por conflitos,
censuras, revoluções e outros demais processos, mas que no meio disso tudo, também
historicizaram e contribuíram muitíssimo para a História mundial. Nosso dever, como
historiadores e pesquisadores, é trazer para a academia o olhar multiperspectivado
para que no futuro, essas demais civilizações tenham sua respectiva parte na História.

Referências
Vivianne Almeida Barbosa é acadêmica de História da UERJ e integrante do Projeto
Orientalismo, sob orientação do Prof. André Bueno.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.

BUENO, André da Silva. O extremo oriente na antiguidade. Rio de Janeiro: Fundação


CECIERJ, 2012.

MEC – Ministério da Educação. Prodocência – Apresentação. 2018. Disponível em


http://portal.mec.gov.br/prodocencia Acesso em 18 jan. 2023.

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – A Questão do Outro. São Paulo:


Martins Fontes, 1999.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

MULTIPLICIDADES E (RE)EXISTÊNCIAS DA CULTURA POPULAR


Érica Karina Silva
Resumo: O presente artigo tem por finalidade apresentar e discutir as disputas de
poder e resistências no que tange a cultura popular. A distinção entre a ‘cultura
erudita’ e ‘cultura das massas’ por muito tempo estabeleceu uma hierarquia no campo
das manifestações culturais moldando a noção do que é cultura. Nesse sentido, ao
discutir a noção de uma cultura plural como as ‘culturas populares’ é possível observá-
la como um campo de manifestação de luta social e política.
Palavras-chave: Cultura Popular; Relações de Poder; Resistências.

Abstract: The purpose of this article is to present and discuss the power struggles and
resistances regarding popular culture. The distinction between 'high culture' and 'mass
culture' for a long time established a hierarchy in the field of cultural manifestations,
shaping the notion of what culture is. In this sense, when discussing the notion of a
plural culture such as 'popular cultures', it is possible to observe it as a field of
manifestation of social and political struggle.
Keywords: Popular Culture; Power relations; Resistances.

Considerações Iniciais
Em primeiro lugar, a identificação cultura popular não é simplesmente um exercício de
definição, mas também proposital e performática. A cultura popular nunca deixa
de ser política nem no seu uso nem nas práticas identificadas como tal. Não é
simplesmente uma expressão da luta política que se desenrola em outros lugares, mas
é uma parte constitutiva fundamental dessa luta (STEIN e SWEDENBURG, 2005).

Para Stuart Hall e Pierre Bourdieu, seu exame forneceu uma chave para entender a
potencial resistência popular às distinções nas quais as hierarquias políticas eram tão
fortemente investidas (HALL, 2008). Mas esse uso levanta a questão da abstração da
região e das realidades da produção cultural. Se, como Johann Gottfried Herder e
outros afirmaram, o povo se torna o árbitro final, então a questão-chave gira em torno
de quem está qualificado para contar como membro do 'povo', por quais critérios,
estabelecidos por quem (CLEEN e CARPENTIER, 2010).

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A fim de evitar algumas das implicações prescritivas e muitas vezes exclusivistas do uso
do termo cultura popular, será sugerido que o termo 'culturas populares' seja mais
apropriado. Este termo plural encoraja o exame de suas variadas condições de
produção, bem como as 'estruturas de sentimento' de classes ou grupos particulares
(WILLIAMS, 1961). Ao fazê-lo, pode avaliar o potencial contingente, mais do que
necessário, das culturas populares para resistir às culturas dominantes e ambições
hegemônicas, fugindo da sugestão de que popular nesse contexto deve sempre ser
equiparado aos oprimidos e excluídos. Pode igualmente abranger os espaços onde tais
culturas se desenvolvem e ajudam a criar, bem como o grau em que estes podem
tornar-se locais de resistência ou mesmo de cooptação num sistema de poder mais
amplo.

Isso levanta a questão da implicação de 'culturas populares' nas relações de poder. As


'culturas populares', sejam como repertórios de resistência, ou como idiomas de
conformidade, não são simplesmente instrumentos que podem ser adotados e
abandonados. Em vez disso, eles próprios são mecanismos produtivos para a geração
de resistência ou conformidade, demonstrando a articulação do pensamento e da ação
política, particularmente as características afetivas e normativas que sustentam o
pensamento político, que tornam as ideias abstratas 'pegajosas' de uma maneira que
de outra forma seria difícil explicar (FREEDEN, 2011).

Nesse sentido, a noção de culturas populares ilustra as ligações entre o político e


o performativo, referindo-se a ideias não apenas de agir, mas também de trazer à
existência ou constituir (BUTLER, 2015). Estudar a performance, em seu sentido mais
amplo, para além do espetacular e do teatral, é um diagnóstico do pensamento
político. Ele destaca processos-chave no pensamento político: aumentar seu poder por
meio de afeto e envolvimento; trazendo à tona as gramáticas e sintaxe da
performance; criando os espaços e a estruturação da performance no contexto de
relações de poder mais amplas.

Em seu potencial, pode também levar a um exame mais atento do processo descrito
por Blaise Pascal e que fascinou Louis Althusser: 'Ajoelhe-se, mova seus lábios em
oração e você acreditará' (ALTHUSSER, 1971).

Essas considerações ajudam a desenvolver o terceiro elemento do argumento. Usar o


termo culturas do(s) público(s) em um sentido performativo (reconhecendo em ambos
os elementos do termo a pluralidade de formas simbólicas e suas fontes) muda a
ênfase do povo como um rótulo estático usado normativamente. Em vez disso,
enfatiza a noção do(s) público(s) – isto é, as pluralidades de cidadãos como portadores
de direitos, cujas práticas, expressões e crenças trazem performativamente as culturas
expressivas não apenas de suas próprias identidades, mas também de suas interações.
e se sobrepõe a outros.

O objetivo é fornecer uma ferramenta de diagnóstico e não um mero dispositivo


classificatório: concentra a atenção nas relações de poder que estimulam o

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

florescimento dessas culturas, protegendo e promovendo os direitos do cidadão, bem


como os efeitos políticos do consumo cultural através do afeto e do poder
performativo; sublinha o fato de que este é um processo fluido e contínuo, repleto de
perigos e conflitos, potencialmente transformador de resultados políticos.

Da cultura popular às 'culturas populares'


Em grande parte dos escritos sobre cultura popular um fio constante enfatiza seus
aspectos de oposição e resistência. Isso decorre de uma distinção comum que é feita
entre culturas de 'elite' e de 'massa' ou 'populares', mapeadas nas hierarquias de
poder e dominação. Também se baseia na crença de que tais desigualdades não
podem deixar de produzir conflito de classes, manifestado por meio de formas
simbólicas e culturais como parte da luta política. Hall via a cultura popular
principalmente como um local onde os oprimidos e excluídos lutam contra os
poderosos, em constante e necessária tensão com a cultura dominante precisamente
por causa da contradição das respectivas posições de classe (HALL, 2007).

Até certo ponto, embora com qualificações significativas, tal compreensão também
informa os escritos de Thompson e de James Scott, com seu foco em formas simbólicas
de resistência, localizadas nos repertórios culturais dos oprimidos, e incorporando em
vários idiomas suas críticas às desigualdades sociais que os colocaram em posições
subordinadas (THOMPSON, 2013).

Essas abordagens foram parcialmente influenciadas pelas ideias de hegemonia de


Antonio Gramsci, que enfatizavam a capacidade do poder estabelecido de usar meios
simbólicos e imaginativos para fazer a desigualdade parecer normal e valiosa para as
classes subalternas (FORGACS, 2000). Mas, igualmente, reconheceu-se que a
hegemonia nunca foi plenamente realizada nem incontestada: sempre esteve sujeita à
contestação e à modificação, como afirmou Foucault (1998). No entanto, a
ambivalência de Foucault sobre a natureza da relação íntima poder-resistência
sublinha a observação de que a “cultura popular”, a cultura do subalterno, não pode
ser o regime dominante.

As culturas populares podem expressar sentimentos e ambições críticas em relação ao


poder estabelecido, mas também podem ser solidárias e/ou completamente
enredadas nele por meio de formas de gosto, expressão, clientelismo e a lógica da
produção cultural.

Os efeitos incompletos, contestados e fluidos de tal ambivalência reforçam a


necessidade de se pensar em 'culturas populares', termo que não reconhece nem um
único eleitorado 'popular', nem uma única direção para as manifestações culturais,
mas se abre a múltiplas formas com efeitos variados sobre as relações de poder. Em
alguns casos, o processo pode parecer induzir às vezes a aceitação entusiástica das
relações de poder existentes.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

A natureza subversiva da produção cultural pode estar em primeiro plano. Nesse


sentido, as visões contrastantes de Walter Benjamin e de Theodor Adorno sobre a
cultura popular de massa e sua capacidade de engajar ou desengajar as pessoas da
esfera do político captam bem as diferenças entre as duas posições. Benjamin era
geralmente otimista sobre o potencial emancipatório da cultura popular, mas de
forma alguma ingenuamente idealista sobre as chances de realização.

Embora favorecesse a remoção da arte de seu status restrito de 'culto' e a abertura de


sua recepção e crítica às massas, ele estava bem ciente da oportunidade que isso
oferecia aos fascistas 'de dar expressão às massas - mas em nenhuma conta que lhes
conceda direitos' (BENJAMIN, 2002). De sua parte, Adorno era bem mais
pessimista. Ele fez uma distinção entre as formas culturais que se envolvem e
provocam a reflexão sobre "o político" em seu sentido mais amplo, e aquelas que não
o fazem (WITKIN, 2003). Adorno claramente menosprezava este último. Isso se deveu
principalmente à sua suspeita do projeto hegemônico mais amplo do qual eles faziam
parte, induzindo a aceitação acrítica do status quo. Para Adorno, a indústria cultural e
o tipo de cultura popular de massa que ela produzia eram os meios da hegemonia para
assegurar a aceitação da própria hegemonia (ADORNO e HORKHEIMER, 2012).

Foi perceptível que Hall também era ambivalente sobre a natureza, as fontes e os
resultados da resistência cultural. Mesmo onde as formas criativas e culturais
emergem das classes subalternas, ele chegou a reconhecer que as linhas de aliança e
as linhas de clivagem entre a cultura popular das pessoas 'fora dos muros' e a
'sociedade' interna sempre existem em múltiplas práticas mutáveis (MCGUIGAN,
1989). Em suma, este é um processo contínuo, uma dialética de luta cultural em que
nunca há vencedores ou vencidos de uma vez por todas. Igualmente, havia aqueles da
Escola de Birmingham que estavam muito atentos às maneiras pelas quais o capital
pode transformar a produção cultural supostamente subversiva em objetos culturais
cujo mero consumo poderia ser apresentado como uma espécie de rebelião
(MCGUIGAN, 1989). A preocupação era, claro, que isso fosse até onde a "resistência"
chegaria, expressa simbolicamente de tal forma que não apenas deixava as estruturas
de poder intactas, mas na verdade as reforçava.

Talvez não seja surpreendente, portanto, que aqueles ativistas políticos que se veem
como artistas cidadãos, usando formas artísticas para desafiar e encorajar a resistência
ao poder estabelecido deva visar inicialmente à ruptura do cotidiano. Eles têm na mira
um público semelhante ao que vem sendo cultivado pelas forças hegemônicas da
produção cultural, mas usam a oportunidade e a forma cultural familiar para
desestabilizar percepções, redirecionar o olhar – em suma, fazer as pessoas olharem
duas vezes, e, portanto, em princípio, pensar duas vezes sobre o que até então
aceitavam como norma.

Tal abordagem – tendo em mente a variedade de grupos envolvidos – pode ser uma
maneira mais produtiva de pensar sobre a relação entre formas culturais e relações de
poder. Precisamente porque nem sempre são de cima para baixo e nem sempre

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

refletem as hierarquias políticas do Estado, uma noção mais ampla de culturas


populares leva em conta as muitas formas de expressão cultural, às vezes antagônicas,
a que elas podem dar origem, mesmo quando fizer causa comum contra, por exemplo,
um regime político opressor. A arte de protesto público muitas vezes espetacular das
revoltas árabes de 2011 pode ter desafiado e subvertido algumas estruturas
opressivas, mas também fortaleceram outras (SALIH e RICHTER-DEVROE, 2014).

O exemplo das encenações culturais da parcela da população representada pelos


torcedores de futebol torna ainda mais importante levar a sério a noção de culturas
populares, em vez de tentar impor e categorizar a cultura popular como tal. Suas
relações mistas com várias estruturas de poder, baseadas no Estado, socialmente
construídas, generificadas e racialmente vinculadas também complicam e estratificam
a natureza política dessas relações, bem como sua relevância em qualquer lugar e
tempo. A esse respeito, essas subculturas e suas ligações com outros agrupamentos
culturais, tanto domésticos quanto transnacionais, lembram a razão pela qual a
identificação da cultura popular e sua associação com uma forma particular de política
é um esforço infrutífero.

A identificação e a cultura popular


A identificação da cultura popular como uma entidade singular é um exercício, ligado à
identificação igualmente preocupante do povo singular. Ambos se prestam muito
prontamente a afirmações prescritivas sobre o que a cultura deve ser e quem as
pessoas devem ser. Uma possível saída para as implicações normativas dessas
formulações seria pensar em cultura(s) popular(es) como cultura(s) do(s) público(s).

Embora mais estranho como termo, ele tem a vantagem de dissociar cultura do povo e
abre um debate sobre o que (e quem) é o público relevante em que contexto e como
parte de que tipo de trajetória. Isso muda o foco analítico para expressões e práticas
culturais que são produzidas e constitutivas de públicos distintos, sublinhando o fato
de que tanto a 'cultura' quanto o 'público' são processos que estão performativamente
ligados (isso será expandido no próximo tópico) (VAN NIEUWKERK et al., 2016).

Pensar neles como processos constitutivos permite pensar na pluralidade de


comunidades e indivíduos que compõem uma determinada região imaginativamente e
na realidade, sem as expectativas normativas de conformidade. Gramsci tinha visto
que a cultura popular poderia ser um espaço no qual uma região poderia ser
politicamente construída e mobilizada através das lutas que ocorriam dentro dele, mas
esse mesmo espaço oferecia oportunidades para fragmentos populares (ou seja,
subculturas de grupos minoritários subordinados), ser construído com capacidade de
mudar ou influenciar a cultura do grupo dominante, majoritário (FORGACS, 2000).

Tal conjunto de observações encoraja a investigação das maneiras pelas quais certos
tipos de prática pública e projeção simbólica se unem para constituir culturas
populares, como elas são usadas e como elas interagem umas com as outras, bem
como os tipos de relações de poder em que podem ser emaranhados. Acima de tudo,

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

obriga a centrar-se no conceito-chave de público e em tudo o que ele compreende em


termos não só dos seus membros, mas também da história da sua formação, da
dinâmica que está no seu cerne e das formas de que veio a existir através da interação
social e através da geração e recepção da performance cultural.

Poder performativo e cultura na constituição do público


No cerne da noção de público está a compreensão de que é um conceito e um
fenômeno que passa a existir por meio da interação discursiva e performativa com
uma variedade de forças, políticas, sociais e culturais (WARNER, 2002). Precisamente
por isso e porque pode ser mais bem entendido como emergindo de diferentes
maneiras no tempo sincrônico e diacrônico, ele pode abranger formas e expressões
plurais, correspondendo à variedade de maneiras pelas quais as pessoas podem ter
sido interpeladas por fenômenos culturais distintos. O desenvolvimento do conceito
não se deu sem tentativas de fixá-lo e generalizá-lo, configurando como modelo uma
instância particular da emergência de um público.

Essa foi uma característica da teorização inicial de Jürgen Habermas, cuja exploração
da emergência da 'esfera pública' a vinculava a um conjunto específico de condições
históricas situadas no noroeste da Europa a partir do século XVII em diante,
provocando assim inúmeras críticas. Estes questionaram a sugestão de que esse
público em particular e suas práticas fossem necessariamente modelos ou exemplares
para uma compreensão mais universal do termo público (HABERMAS, 1989).

No entanto, a investigação de Habermas sobre a emergência da esfera pública, mesmo


que culturalmente específica e historicamente situada, fornece um ponto de partida
útil para pensar o público de forma produtiva, além das características monolíticas da
região e da cultura popular. Seu estudo forneceu uma agenda para aqueles que
buscam expandir o conceito, tornando as práticas de uma esfera pública
verdadeiramente inclusiva. A ideia de uma pluralidade de cidadãos ativos vem dessa
crítica e é ainda associada à noção de públicos distintos trazidos performativamente à
existência por meio da interação social.

Assim, a liberdade de expressão, as normas de civilidade, a igualdade genuína de


acesso, a tolerância à diferença e os espaços para organizar, realizar e decretar essas
qualidades passaram a ser incorporados em reivindicações por parte dos povos de
todo o mundo. Nesse sentido, culturas estavam aparecendo, desenvolvendo-se à
medida que interagiam com outros membros reais ou potenciais desse público, tanto
apoiadores quanto antagônicos em seus pontos de vista. Nesse sentido, o pensamento
político de grandes segmentos do público estava se manifestando, mas também sendo
colocado em prática por meio de suas interações performativas entre si.

A formação das culturas assume, assim, dois sentidos. Por um lado, há a variedade de
formas de expressão cultural que ajudam performativamente a fazer existir públicos
de tipos distintos, com diversidade de valores, linguagens e práticas criativas,
alinhados contingentemente não necessariamente.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

A importância de decretar as novas liberdades tanto para reivindicar o espaço público


quanto para afirmar os direitos dos cidadãos também encontrou expressão nas
atividades de dançarinos e artistas performáticos tunisianos que buscavam ativamente
envolver o público, usar formas culturais para transmitir informações importantes e
muitas vezes contestadas mensagens políticas.

Considerações Finais
Um dos problemas associados ao termo cultura popular tem sido sua implicação em
vários campos de poder, tanto hegemônicos quanto contra hegemônicos. Embora
compreensível, dado o terreno que abrange, tem causado dificuldades em dois
sentidos relacionados: o primeiro é que pode se tornar um termo carregado de
qualquer número de traços simbólicos potencialmente contraditórios; a segunda, é
que muitas vezes foi feito para substituir algum tipo de artefato, ou pelo menos um
conjunto de produções culturais, uma coisa do mundo. Quando esse objeto nominal
de estudo é então validado com referência ao epíteto popular ou à frase do povo, da
região, fica clara sua carga normativa, bem como seu potencial uso como instrumento
de discriminação política.

Tem sido mais produtivo teoricamente mudar a perspectiva de duas maneiras


complementares. A primeira é pensar os dois aspectos do termo – popular e cultura –
de forma plural, correspondendo à multiplicidade de vozes, algumas harmoniosas,
outras discordantes, que podem ser captadas por ele, mas sem sugerir que haja
apenas uma maneira de ser popular, assim como não pode haver apenas um conjunto
de critérios para definir cultura.

Nesse sentido, a pluralidade sugerida pelo termo 'culturas populares' pode evitar o
elemento programático da cultura popular com todas as contradições que se
evidenciaram em seu uso. Isso leva à segunda mudança de perspectiva: a importância
de pensar as culturas populares não como um conjunto fixo de categorias
determinadas, mas sim como um processo fluido de expressão e articulação, com a
mudança das relações entre seus vários elementos.

Isso abre os espaços para a compreensão de como práticas culturais, formas


simbólicas e valores associados podem trabalhar uns sobre os outros ao longo do
tempo, produzindo inúmeras manifestações com diferentes tipos de ressonância e
duração variável.

Em um sentido óbvio, esse processo é paralelo e reproduz as formas como os artistas


criativos trabalham, mas também corresponde às mudanças às vezes menos visíveis e
mais lentas nas culturas ao longo do tempo. Tal perspectiva sublinha as ambiguidades,
as complicadas genealogias e as narrativas fragmentárias associadas às práticas
culturais, produzindo qualquer número de manifestações com diferentes tipos de
ressonância e duração variável.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Como indicadores do pensamento político, as culturas populares são tão ambivalentes


quanto qualquer sistema semiótico. Eles podem fornecer repertórios de resistência,
mas também os roteiros de conformidade. Ao lê-los tendo em conta o contexto e a
fluidez do processo, as culturas populares, em toda a sua variedade, podem fornecer
uma compreensão das relações de poder e do pensamento político em que estão
imbricadas. É precisamente quando um tipo de uniformidade está sendo imposta ou
buscada, e quando múltiplas narrativas de um tipo variado estão sendo marciais em
uma única história dominante que se pode decifrar os propósitos em ação.

Paradoxalmente, isso pode colocar em relevo a natureza diversa e plural do social e do


cultural – a "madeira torta da humanidade" na frase memorável de Immanuel
Kant. Pode igualmente dar uma indicação de narrativas alternativas e expressões
culturais que podem não partilhar a mesma trajetória, no tempo ou no espaço. Esses
aspectos das culturas populares plurais podem fornecer os elementos que, no devido
tempo, constituem um reservatório de resistência, mas isso não é de forma alguma
uma conclusão precipitada. Nesse sentido, pode ser mais útil pensar nas culturas
populares como performances contínuas. Eles são voltados para exibição pública, às
vezes roteirizados, às vezes improvisados, mas também são performativos no sentido
de que têm a capacidade de trazer estados alterados.
O esforço para realizar as culturas do público plural é condição para a formação do eu
público como cidadão. Nisso reside o potencial revolucionário e emancipatório das
culturas populares, se entendidas como as expressões culturais de uma pluralidade de
públicos que existem dentro de uma determinada população.

Referências Bibliográficas
Érica Karina Silva é graduada em História pela Universidade Estadual do Centro-
Oeste/UNICENTRO (2018), mestranda no programa de pós-graduação em História e
Regiões pela mesma universidade. Atualmente desenvolvendo pesquisas relacionadas
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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

OLHARES DO FUNK: A EXEMPLIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOBRE


SUJEITOS PRETOS
Gabriela Farias Oliveira
Resumo
O funk, em sua virtude, foi constituído majoritariamente por pessoas pretas, surgindo
por volta do ano de 1970 - 1990 (Adriana Carvalho, 2011). De acordo com os estudos
de um grupo de pesquisadoras da UNICAMP, em 1980 a população preta brasileira
chegava aos seus 7 milhões, através desses dados, podemos perceber que boa parte
do sistema-mundo brasileiro era constituída e ainda é, por esse povo, que se alocaram
principalmente nas favelas brasileiras, após a abolição da escravatura no Brasil em
1888. Contudo, essa população, sem aparato, sem conseguir emprego e sem
dignidade, foi jogada à mercê da própria sorte e, desde sempre enfrentam o racismo
escancarado de um ambiente violento. Através do funk, é possível fazer uma análise
acerca da violência contra a população preta, pois, esse gênero musical surgiu na
favela e é cantado por esses sujeitos.
Palavras chave: Funk; População Preta e Violência

Abstract
Funk, by virtue of its virtue, was made up mostly of black people, emerging around the
year 1970/80. According to the studies of a group of researchers from UNICAMP, in
1980 the Brazilian black population reached its 7 million, through these data, we can
see that a good part of the population was constituted by this people, who were
allocated mainly in the Brazilian favelas, after the abolition of slavery in Brazil in 1888.
However, this population, without apparatus, without finding employment and dignity,
was thrown at the mercy of the Brazilian world-system, which has always faced the
open racism of a violent environment. Through funk, it is possible to analyze violence
against the black population, as this musical genre emerged in the favela and is sung
by these subjects.
Keywords: Funk; Black Population and Violence

Introdução
Na atual conjuntura brasileira, o diálogo de sancionar um dia específico para a
comemoração do funk ainda é discutido, a dificuldade para o aceite de tornar o gênero

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musical algo reconhecido não é de hoje, a luta acontece há muitos anos, esse estilo de
música inclusive, foi palco de diversas tentativas de criminalização. A pergunta então,
torna-se “Porque o funk ainda sofre constantemente com a marginalização e tentativa
de criminalização?" Bom, o funk surgiu por volta de 1970/80 no Brasil, especificamente
nas favelas cariocas, por sujeitos pretos/as em sua maioria jovens de 15 à 25 anos,
reféns ainda muito novos de um sistema-mundo extremamente racista e violento,
onde ainda lidavam com as miras de horror da ditadura (Gabriela Oliveira, 2022).

O gênero musical funk se alicerça em uma transição entre ditadura e constituição


cidadã, onde a “passividade” do país para/com pretos era definido como “democracia
racial”, que pregava a ideia que o Brasil vivia a harmonia entre raças, sendo um lugar
livre de preconceitos e ideal para moradia de sujeitos não brancos, posteriormente,
esse pensamento foi apresentado como o “mito da democracia racial” (Abdias
Nascimento, 2014-2011).

Contudo, a forma de represália e “contenção” da população negra brasileira, foi a


violência, utilizada para meios de “resolução” de problemas criados pelo imaginário
eurocêntrico brasileiro, essa, utilizada desde o período escravista. Pela violência
sempre estar permeada sobre esses sujeitos, eles começaram também a utilizar-se
desse método para solução de conflitos, sendo perceptível nos primeiros bailes funk 's,
como os bailes de corredor.

O presente texto tem como objetivo dialogar sobre a violência e, como foi utilizada
para forma de resolução sobre sujeitos pretos, para isso, será abordado o gênero
musical funk e principalmente os sujeitos funkeiros, investigando os períodos de
violência brasileiro. A violência intrinsecamente utilizada no sistema-mundo brasileiro
foi cordial para que as minorias começassem de alguma forma a reproduzi-la, para
isso, Grosfoguel (2016) explica que a colonialidade difunde-se no calor da violência e
produz violência, ou seja, esses sujeitos, por viverem constantemente sobre esse
aspecto, começam involuntariamente repeti-lo.

O Funk
O ano era 1970, nesse período o Brasil vivia sob uma ditadura militar, iniciada em 1964
após um golpe militar ao governo de João Goulart, e que duraria até 1985. Durante o
governo militar de Costa e Silva (1967-69) marcado por repressão, tortura e morte, é
intitulado o AI-5 (Ato Institucional N°5) em 13 de dezembro de 1968. Com isso, o
congresso foi fechado e instaurado o estado de sítio, como prevê o art 5° do AI-5:

● Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa,
simultaneamente, em: I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de
função; II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a)
liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio
determinado.

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As medidas antidemocráticas causaram irritação à população, que começou a


responder aos atos cruéis do regime com manifestações, como a Passeata dos Cem
Mil, a maior que teve nesse período. Com a proibição de frequentar determinados
lugares e a censura à arte, à população e principalmente à favela se via sem opções de
lazer.

As formas de resistência trouxeram à tona o cenário musical brasileiro, por volta de


1968 surge o Movimento Tropicalista. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, foram
grandes nomes desse período pós-bossa nova. O tropicalismo em sua virtude
evidenciou uma forma de resistir ao sistema, em suas melodias, as letras denunciavam
o horror vivido durante a ditadura, caracterizando-se como um movimento de
esquerda:

● A música brasileira pós-Bossa Nova e a definição da “qualidade musical” no País


estavam cada vez mais dominadas pelas posições tradicionais ou nacionalistas
de movimentos ligados à esquerda…O movimento, libertário por excelência,
durou pouco mais de um ano e acabou reprimido pelo governo militar. Seu fim
começou com a prisão de Gil e Caetano, em dezembro de 1968. A cultura do
País, porém, já estava marcada para sempre pela descoberta da modernidade e
dos trópicos.

Nesse momento a música ganhou uma nova significação no Brasil, tornando-se uma
forma de resistência ao sistema autoritário, tanto que, até na atualidade, elas são
utilizadas em trends (tendências) de sujeitos esquerdistas para promover sua luta e
tratar de assuntos sobre a ditadura.

No mesmo período nos Estados Unidos, vivia-se a intensa discriminação racial, foi
muito comum o impedimento de sujeitos negros de frequentarem abertamente certos
locais, até os bebedouros eram divididos entre “para brancos” e “para negros”. Com
isso, surgiu um partido político chamado “Black Panther” conhecido no Brasil como
“Pantera Negra”, tinha como foco sua autogestão-social, a comunidade negra devia
autogovernar-se, tendo como principais ideias a realização de projeto sociais para
atender os mais pobres e principalmente combater a discriminação racial contra
sujeitos pretos. (HISTÓRIA DO MUNDO, s/d)

Nesse mesmo período a discografia de James Brown, com seu inconfundível jazz,
estava em alta, sua influência não foi apenas na música, mas na moda, enquanto os
militantes abusavam das cores frias e do preto, James abusava das cores quentes e
brilhos, ambos tinham conceitos em comum, o Black is Beautiful, Black is Power, Proud
to be Black. Juntamente a eles, outros gêneros musicais e pessoas negras produziam
conteúdo, como Soul, Blues e o Funk norte americano.

Como supracitado, o Brasil vivia um cenário completamente conturbado, era quase


impossível entrar com conteúdos artísticos no país, visto que a censura era um projeto

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crucial da ditadura militar, contudo, isso quase não foi um problema, pois, os discos
entraram clandestinamente na terra adorada.

Em uma entrevista, é abordado que, os discos de jazz eram trazidos para cá, porém, o
conteúdo não agradava a alta elite carioca, então, eram vendidos por mascastes pelo
centro da cidade do Rio de Janeiro, tecnicamente foi bom esse processo ter
acontecido, pois a favela achou um grande potencial nesse material, e começou a
promover os primeiros bailes nas zonas periféricas, atraindo uma enorme multidão. O
lema era as músicas serem o mais dançante possível. Os discos de James Brown foram
os mais disputados no período.

A maioria da população que frequentava esses bailes eram sujeitos negros,


influenciados pela voz de Brown, essas pessoas começam a mudar sua estética, usando
calças boca de sino, o cabelo black power e principalmente a valorização e orgulho da
sua cor. Nesse momento também surgem as primeiras equipes de som especializadas
em promover os bailes como a Soul Grand Prix, Black Power e Cash Box.

Acervo data_labe

O movimento ganhou notoriedade da Zona Sul brasileira, mas não foi das melhores, a
visibilidade veio em uma forma demasiadamente negativa. A matéria articulada pela
jornalista Lenas Frias, foi publicada no Jornal do Brasil no dia 17 de julho de 1976,
compondo 4 páginas de informações sobre os bailes, movimento, quantidade de
público, fotos e entrevistas, intitulada “O orgulho (Importado) de ser negro no Brasil”,
e aqui percebemos mais um problemática, pois, mesmo que esses sujeitos pretos
estivessem abrindo suas mentes para entender o racismo e lutar contra ele, essa ideia
ainda era considerada pela imprensa como “importada” porque foi um diálogo
advindo dos Estados Unidos da América.

Contudo, a expressão “Black Rio” foi elaborada pela jornalista para definir os gêneros
musicais funk, soul e a estética dos frequentadores desses bailes, o nome teve alta
repercussão e começou a ser difundido nesse meio, surgindo então o “Movimento
Black Rio”.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Todo o alarde e notoriedade dos bailes acabou atraindo olhares do DOPS


(Departamento de Ordem Política e Social). Um ano antes, em 1975 os investigadores
começaram a focar a repressão em grupos historicamente discriminados, um desses
grupos eram os de sujeitos pretos, e de acordo com a documentação encontrada pela
CEV-RJ (Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro), os militares defendiam a
ideia de que os pretos queriam instaurar uma luta racial no Brasil, com comando de
militantes estadunidenses, como mostra o ex-membro da CEV-RJ;

● Um grupo de jovens negros de nível intelectual acima da média, com


pretensões de criar no Brasil um clima de luta racial. Os militantes seriam
liderados por um negro americano, que receberia dinheiro do exterior, e agiria
na Portela, tradicional escola de samba carioca. O Informe 17/75-B também
mencionava supostas metas do grupo: “Sequestrar filhos de industriais
brancos; criar um bairro só de negros; criar ambiente de aversão aos brancos.
(DORNELLES, João Ricardo, 2015)

Começou então a perseguição a grandes grupos e organizadores como a Soul Grand


Prix, nos arquivos encontrados pela CEV-RJ havia a descrição detalhada de quantas
pessoas participavam, preço de ingressos, locais e a cor da pele dos frequentadores de
bailes, caracterizados como “pessoas de cor”.

Dom Filó, foi um dos maiores influenciadores e organizadores do movimento Black Rio,
e o criador da Soul Grand Prix, conta em entrevista: “[...] nós éramos uma grande
ameaça, você imagina jovens negros dançando. A estimativa era de um milhão
dançando semanalmente.”

Filó também aborda sobre quando foi sequestrado pela DOPS e levado para a sede da
Praça Mauá:

● Quando me pegaram, me botaram lá embaixo no porão da polícia do


exército lá na PF, me perguntaram isso tudo e eu me defendi dizendo
‘se eu sumir, 15 mil vai invadir isso aqui. Se eu não voltar hoje, amanhã
isso aqui vai ser invadido’, blefe né. Aí o que eles pensaram, melhor não
porque qual era o esquema, eles iriam reforçar tudo que eles não
queriam. Seria um tiro no pé no mito da democracia racial porque eles
diziam que não existia racismo. Então resolveram mudar a estratégia,
‘não bate, se bater vai ativar, então vamos desqualificar’. Aí não deu, aí
foi barra pesada mesmo.

Em entrevista ao portal Geledés, Januário Garcia fotógrafo e ex presidente do Instituto


de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) salienta:

● É que o baile estava comendo solto, mas estava comendo solto mesmo, o baile
estava no maior embalo, quando estava no maior embalo, parava tudo. Parava

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

tudo, parava música, parava tudo. Subia um negão, pegava o microfone e fazia
o maior discurso contra o racismo, contra a ditadura, contra a repressão sabe?
E aí todo mundo parava no baile e ficava todo mundo assistindo. E aí: ‘Cai na
caixa!’, e começava tudo de novo. Então, a gente parava o baile três, quatro
vezes para fazer isso, está entendendo? E isso assustava porque a garotada
estava se ligando, se ligando, né. (GARCIA, Januário, 2017)

Ao importar a música negra norte-americana, não apenas estava firmando um


movimento dançante, um ritmo, um estilo, ou resistência, mas, construindo
conhecimento, alicerçando a luta contra o sistema, dialogando sobre o racismo vivido
no Brasil, esses sujeitos estavam escancarando o mito de um sistema-mundo dito
como país da “democracia racial”. Essa música tem memória, tem o passado do povo
preto tirado de seus lares e submetidos a condições desumanas de “trabalho”, ela dá
voz ao oprimido e o ajuda a lutar. Segundo Dj Eugênio Lima:

● E se hoje existem vários gêneros musicais, do Blues ao Funk, do Samba ao Rock,


foi porque existiu a escravidão…Eu prefiro que não tivesse 400 anos de
escravidão, e a gente não tivesse Soul, Jazz, Funk, Samba, que não tivesse nada.
A música é ao mesmo tempo memória da barbárie, e construção social de um
povo.

O primeiro baile da pesada ocorreu no dia 12 de julho de 1970, no extinto Canecão, na


zona sul do Rio de Janeiro, produzido por Dj Big Boy e Dj Ademir Lemos, esse baile é
considerado um dos precursores na cena do funk brasileiro, tanto que, na atualidade,
ocorre a batalha para fazer com que esse seja reconhecido como o dia nacional do
funk, em que toda a efervescência do gênero musical começou (Adriana Carvalho,
2011). É importante salientar que o funk não é uma descendência direta da Black Rio,
mas sim, uma inspiração para os sujeitos favelados criarem o funk.

Nesse momento as músicas que entoavam os bailes, eram derivadas do Miami Bass,
Rickey Vincent (1995, p. 279), os raps desses grupos são um tipo de música eletrônica
resultante da confluência da batida "quente" e "sensual" do funk afro-americano com
a batida também "quente", sendo um subgênero do Hip-Hop que foi popularizado por
volta de 1980/1990 nos EUA. Não havia MC 's nos bailes, apenas os DJ' s que
remixaram as batidas deste subgênero, e como pontuado por Adriana Carvalho (2011):
“O funk torna-se cada vez mais popular entre as camadas mais pobres da população
carioca.”

Logo, na década de 1980, em matéria do Jornal do Brasil do dia 25/04/1980 intitulada


“O movimento funk leva desesperança”, é traçado o perfil do sujeito funkeiro. A
matéria tem caráter tendencioso, tentando de alguma forma apresentar o funk como
gênero musical constituído de sujeitos violentos e malignos para o sistema-mundo
brasileiro.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

RIO DE JANEIRO. Jornal do Brasil. Movimento funk leva a desesperança. 25 de abril de


1980.

Segundo Herschmann (2000, p. 180), o jovem negro da favela ou o funkeiro: “[...] vai
sendo apresentado à opinião pública como um personagem "maligno/endemoniado e,
ao mesmo tempo, paradigmático da juventude da favela, vista como revoltada e
desesperançada."

Outro motivo para a imprensa atrair seus olhares para o funk, foi com o lançamento do
livro Mundo Funk Carioca do antropólogo Hermano Vianna, sendo o primeiro livro a
abordar a história do funk nacional, em 1987.

Contudo, o funk passa por um cenário conflituoso e declinante ao ser palco da intensa
violência entre sujeitos favelados, os bailes ficaram conhecidos como Bailes Lado A
Lado B.

Os bailes de corredor, geralmente, eram organizados por equipes de som, ao final da


década de 1980 e praticamente toda a década de 1990, no estado do Rio de Janeiro.
Denominados como “Festival de Galeras”, esses eventos apresentavam temas sociais
midiáticos, funcionando como um desfile. Cada bonde usava sua criatividade, para
fazer o seu “grito” (rap do tema estabelecido), bolas coloridas e roupas, cada “galera”
exibia sua produção desfilando.

Nesses bailes, já existia uma pré-definição imaginária, onde cada galera iria ficar
localizada, conceito esse explicado através da territorialidade:

● O território “[...] é uma objetivação multidimensional da apropriação social do


espaço. A territorialidade, a qualidade subjetiva do grupo social ou do indivíduo
que lhe permite, com base em imagens, representações e projetos, tomar
consciência de seu espaço de vida” (CARA, 1998, p. 262). Logo, à medida que os
espaços e seus desdobramentos são permeados pela identidade, eles se

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

convertem em territórios e em realidade que se constrói (SARAIVA, CARRIERI e


SOARES, 2014 apud PICHETH, Sara; CHAGAS, PRISCILLA, 2018, p. 792)

Mas, algo que poderia acontecer, era que no momento do desfile, um bonde invadia o
espaço do outro, gerando rivalidade entre galeras, e a “porradaria” comia solta. Uma
galera, não poderia desfilar no lugar que não a “pertencia” (MAGALHÃES, 2021).

Ao final de cada festival, a galera que fosse mais forte e criativa, recebia o prêmio. Em
pesquisa, não é possível localizar quais eram esses prêmios, mas, há alguns elementos
que significavam vitórias para esses sujeitos:

● Levantar o nome do meu bairro ou comunidade, e ganhar fama de um dos


melhores! (...) Participar para mim era a oportunidade de representar a minha
galera através das minhas composições musicais. (...) Defender o nome da
minha galera. (Funk de Raiz, 2010)

Aparentemente a maior recompensa em questão, seria o prestígio e reconhecimento


que o bonde ganhador conseguiria trazer para a sua comunidade, e mesmo que
ocorresse os episódios com violência, os rap’s promoviam, principalmente, a paz nos
bailes:

● F de força/ U de união/ R de rainha do movimento que é bom/ A de amizade/ C


de coração/ A de autoridade/ o O de organização/ O 2 não está sozinho/ Está
com os 000 em união/ Campeões é o lindo parque/ Boa Vista/ Camarão

Durante esse período, os bailes ficaram conhecidos por diferentes nomes, como Baile
de Corredor, Baile Lado A e Lado B e Baile Country. Existem muitas denominações do
que eram os bailes de corredor, em algumas fontes é abordado que essas festas
ocorriam paralelamente ao festival das galeras:

● Curti muito isso, cara... baile de festival de galeras ERA SIM contemporâneo e
paralelo ao baile de corredor. Eram os mesmos bailes e um era sinônimo do
outro. E posso te dizer. Foi a melhor época da minha vida…(Funk de Raiz, 2010)

Mas, com o grande sucesso das equipes organizadoras, a violência se tornou


frequente:

● Com tantas equipes aderindo aos festivais, eles tomaram uma proporção muito
grande e com isso vieram os problemas. A violência gratuita e o excesso de
rivalidade por parte daqueles irresponsáveis que não sabiam honrar o espírito
do funk.(Funk de Raiz, 2010)

A rivalidade, foi aos poucos tornando-se algo muito frequente nesse ambiente, e
juntamente dela, a violência. Em alguns relatos que encontrei na internet, os

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

integrantes de determinada galera, eram perseguidos pelos adversários, ocorrendo


brigas e morte em alguns casos.

A violência era vista quase como uma forma de diversão entre as “Galeras”:

● Lado A Lado B, época do baile de corredor, isso chamou atenção no exterior,


falaram “The Brazilian Fight Club”, a porrada era um negócio até recreativo, né.
O negócio é que as coisas às vezes extrapolava né, e gente morria. (Essinger,
2005)

Mas dentro desse enorme contexto violento, há uma análise a ser feita, porque esses
sujeitos tornaram-se violentos?

Levando em consideração o atual contexto histórico brasileiro, estamos vivendo sobre


uma era de colapsos, em nome de um homem, que intitula-se como “salvador da
pátria, pelo bem da família com deus” há inúmeros atritos violentos acontecendo
contra uma população, em suma, marginalizada e subalternizada.

O atual presidente em questão, por diversas vezes reforçou em suas falas o ódio pelas
minorias, onde, de certa forma, compadeceu outros sujeitos componentes do sistema-
mundo com o ideal de que poderiam cometer vários atentados à essas minorias, que,
ainda sim, não teriam consequências.

Algumas falas: "Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Já que gosta tanto da
Venezuela, essa turma tem de ir para lá" (2018). "Jamais ia estrupar [violar] você [a
deputada Maria do Rosário] porque você não merece" (2003). "O afrodescendente
mais leve lá pesava sete arrobas" (2017).

Após essa personalidade perder seu mandato nas eleições presidenciais de 2022 , a
população revoltou-se, montados em rebanhos, vão às ruas pedindo novamente a
intervenção militar, atestando, através de fake news, a fraude nas urnas, percebe-se
que essas pessoas não mais são massas de manobras, mas sim, o fascismo
escancarado diante de nossos olhos.

Mas o que isso tem haver com o funk? Bom, isso não apenas tem haver com o funk,
mas num contexto em geral. Remeter-ei-me aos “primeiros anos” do Brasil, ao passo
que os portugueses chegam à essas terras no século XV, é iniciado um processo
violento de invasão, em nome de um Deus católico, escravizaram, mataram, e
estupraram povos que aqui já viviam, os indígenas, e mais que isso, traficaram uma
enorme quantidade de sujeitos negros africanos, que são escravizados, torturados e
brutalmente assassinados, por homens, brancos e eurocêntricos.

Outro episódio foi a ditadura civil-militar de 1964, homens, em sua maioria brancos e
militares, não mediram esforços para criar formas de torturas, para atacar uma
população que aos seus olhos, era uma ameaça comunista.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Desde o “início” do Brasil, estabeleceu-se a violência como forma de resolução


para/com sujeitos não-brancos, é claro que, por viver-se anos e anos em um sistema
conflituoso e violento, os sujeitos deixam de se defender, para atacar, ou seja, esses
sujeitos que por anos foram atacados, começaram a reproduzir uma forma de
violência que não especificamente concordavam, mas, necessitavam para sobreviver
em um sistema majoritariamente branco. (Gabriela Oliveira, 2022)

Para Grosfoguel:

● A modernidade/colonialidade é um projeto civilizatório, que se produz no calor


da violência e difunde com a violência em uma escala planetária que gerou a
expansão colonial europeia para produzir vida (embora sejam vidas medíocres)
nas zonas do ser e morte prematura nas zonas do não ser (CÉSAIRE, 1950;
FANON, 1952; GROSFOGUEL, 2012). Não existe "civilização ocidental" antes da
expansão colonial europeia. (GROSFOGUEL, 2016, p. 61)

Conclusão
As matérias de jornais estampavam a barbárie no funk, a violência, o seu declínio e,
esses sujeitos, nada mais reproduziram, o que há tempos já estavam vivendo. O que a
pesquisa aponta aqui, não é descaracterizar que a violência sim existiu no funk, mas
apresentar um outro olhar pela qual essa violência acontecia.

Portanto, a própria maneira de resolução de conflitos no sistema-mundo brasileiro


sempre foi através da violência, desde a invasão ao território do Brasil pelos
portugueses, período escravista, ditadura civil militar e acontecimentos da atualidade.
Os/as sujeitos/as favelados/as, por viverem tantos anos sob um sistema conflituoso e
violento, acabam aprendendo que a melhor forma para sobreviver, é reproduzindo
esse comportamento (Gabriela Oliveira, 2022). O mal que foi tão estampado nas
matérias de jornais, culpabilizando esses sujeitos/as pretos/as favelados/as por serem
“violentos” nada mais é que o reflexo de um sistema-mundo brasileiro falido que
insiste em utilizar-se de resoluções violentas e agressivas.

A presente pesquisa dialoga brevemente sobre a minha pesquisa de TCC intitulada “O


funk sensual do Rio de Janeiro e a importância da saúde sexual da mulher favelada",
especificamente sobre o capítulo 1 intitulado “ SURGIMENTO DO FUNK: A BLACK RIO
SOBRES AS MIRAS DE HORROR DA DITADURA CIVIL MILITAR BRASILEIRA” e o
subcapítulo intitulado “Mas afinal, o que eram os bailes de Lado A Lado B?” nesses
apresento o surgimento do funk e os bailes de corredor, discutindo especificamente
sobre a violência e em como ela afetou os sujeitos favelados, trazendo o “olhar do
outro” sobre o sistema-mundo brasileiro e suas violências.

Referências
Gabriela Oliveira é graduada em História pela UFMS.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

OLIVEIRA, Flávia. DITADURA PERSEGUIU ATÉ BAILES BLACK NO RIO DE JANEIRO. São
Paulo, 13 de julho de 2015. Disponível em: https://vladimirherzog.org/ditadura-
perseguiu-ate-bailes-black-no-rio-de-janeiro-2/ Acesso em: 20/11/2022

BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.


(org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed.; 3. reimp. Belo Horizonte.
Autêntica, 2020. (Coleção Cultura Negra e Identidades).

BERQUÓ, Elza. Estudo da dinâmica demográfica da população negra no Brasil /Elza


Berquó, Alicia M. Bercovich, Estela Maria Garcia. Campinas. NEPO UNICAMP, 1986.

DUARCHA, Claudia. Fim do festival de galeras. (comentários dos usuários do site). 07


de outubro de 2010. Disponível em: <http://www.funkderaiz.com.br/2010/04/fim-do-
festival-de-galeras.html> Acesso em: 20/11/2022.

LOPES, Adriana de Carvalho. Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade


carioca. Rio de Janeiro. Bom Texto: [FAPERJ], 2011. 224p.

MAGALHÃES, Norma. Comunidade, território e bailes funk de corredor: Rio de


Janeiro, década de 1990. Trabalho de Conclusão de Curso (Sociologia). Rio de Janeiro:
Universidade Federal Fluminense, 2021. Disponível em:
<https://wikifavelas.com.br/index.php/Comunidade,_territ%C3%B3rio_e_bailes_funk_
de_corredor:_Rio_de_Janeiro,_d%C3%A9cada_de_1990> Acesso em: 20/11/2022.

OLIVEIRA, G. F. O funk sensual do Rio de Janeiro e a importância da saúde sexual da


mulher favelada. TCC (Graduação em História) - Faculdade de História, Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Nova Andradina, p. 66. 2022.

ROZA, Gabriele. Criminalização do funk: O que o funk pode aprender com o


Movimento Black Rio. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2019. Disponível em:
<https://datalabe.org/o-que-o-funk-pode-aprender-com-o-movimento-black-rio/>
Acesso em: 20/11/2022.

SALVADOR, Susana. Mulheres, ditadura, gays: 10 frases polêmicas de Bolsonaro.


Lisboa, 08 de outubro de 2018. Disponível em: https://www.dn.pt/mundo/mulheres-
ditadura-gays-10-frases-polemicas-de-bolsonaro-9968430.html Acesso em:
20/11/2022.

TROPICÁLIA. O movimento. Disponível em:


<http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/movimento.php> Acesso em: 20/11/2022.

“Bolsonarista invade festa de aniversário e mata petista no Paraná” (Notícias Uol - 10


de julho de 2022)

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

“Em Goiás, bolsonaristas atacam apoiadores de Lula em lanchonete” (Metrópoles -


17 de outubro de 2022)

“Violência: Mulheres são atacadas por bolsonaristas no Rio e em Brasília” (Mídia


Ninja - 28 de setembro de 2022)

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

GÓTICAS TROPICAIS: CORPOS E DESCOLONIALIDADES EM


NOSSA PARTE DE NOITE, DE MARIANA ENRIQUEZ
Marcos Antonio Leite Junior
Resumo
Este trabalho visa apresentar uma análise do livro “Nossa parte de noite” de Mariana
Enriquez, por uma perspectiva descolonial. Por meio da revisão bibliográfica,
constatou-se que o livro vem sendo objeto de pesquisa no exterior, onde se deu maior
ênfase à ditadura, terror e sobrenatural. Sem ignorar tais temas, o principal interesse é
pensar nos diferentes tipos de violência que os corpos podem sofrer, pois o corpo
pode violar e ser violado, ser considerado bonito, feio, grotesco, estranho,
transgressor, entre outros. Assim, “Nossa parte de noite”, uma produção latino-
americana, abre espaço para pensarmos em formas plurais de se estar no mundo.
Palavras-chave: Nossa parte de noite; Descolonialidade; Corpos.

Resumen
Este trabajo tiene como objetivo un análisis del libro “Nuestra parte de noche”, de
Mariana Enriquez, desde una perspectiva descolonial. A través del análisis
bibliográfico, se constató que el libro ha sido objeto de investigación en el extrajero,
donde se dio mayor énfasis a la dictadura, al terror y a lo sobrenatural. Sin desconocer
tales temas, el principal interés es pensar en los diferentes tipos de violencia que
pueden sufrir los cuerpos, porque el cuerpo puede violar y ser violado, ser considerado
bello, feo, grotesco, extraño, transgresor, entre otros. Nuestra parte de noche, una
producción latinoamericana, abre espacio para pensar en las formas plurales de estar
en el mundo.
Palabras clave: Nuestra parte de Noche; Descolonialidad; Cuerpos.

Introdução
Filho do médium da Ordem, Gaspar desconhece a origem de sua família materna:
colonialista, perversa e que cultua um deus antigo, a escuridão. É desta realidade que
Juan, o pai, procura proteger seu filho, Gaspar. O clima ditatorial e sobrenatural
caminha lado a lado e apresenta aos/às leitores/as tensão, medo e mistério no
Universo de “Nossa parte de noite”, da escritora e jornalista argentina Mariana
Enriquez. Aqui apresento a vocês o recorte do segundo capítulo da minha monografia

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

(2022). Foi realizada no estudo original, uma revisão de literatura que constatou maior
foco de análise em: ditadura, terror e medo real versus sobrenatural. Logo, apresento
uma investigação por uma perspectiva descolonial. Busco compreender como os
corpos, mas também as línguas, os saberes e os territórios da América Latina são
marcados pela violência da modernidade colonial, no entanto, resistem à
colonialidade. Neste recorte, me centralizo nas personagens: Rosario, Tali e Marcelina.

Mulheres plurais
Rosario Reyes Bradford é doutora em antropologia pela Universidade de Cambridge
(Reino Unido), professora, pesquisadora, mulher argentina, filha de Mercedes
Bradford e Adolfo Reyes, irmã de Tali, mãe de Gaspar e companheira de Juan.
Desde a juventude, Rosário enfrentava problemas com a autoestima:

 “Tenho os cabelos escuros e os olhos castanhos do meu pai, mas me faltam sua
elegância, o corpo esbelto e a beleza. Ele me disse, quando eu era muito
pequena, que, se eu quisesse ser uma mulher bonita, deveria fazer um esforço.
Isso me fez chorar, mas o agradeci” (ENRIQUEZ, 2021, p. 295).”

A personagem diz que faltava para ela aspectos físicos que em sua concepção a
tornaria mais bonita, seu pai iniciou uma questão que a acompanharia por toda sua
vida: para ser uma mulher bonita, deveria “se esforçar”.

A intenção não é iniciar um discurso que desautorize o/a sujeito/a, por meio da moda
e de outras estratégias visuais, se expressar, passar uma identidade, mensagem,
conceito, entre outros casos. O ponto chave é entender que os adereços e as roupas
escolhidas por Rosario tinham o objetivo de compensação. Ela passou a se esforçar
para ser uma mulher bonita, seguindo os conselhos de seu pai. Em Londres, a moda
continua sendo sua companheira:

 “[...] uma estilista me explicou qual era a melhor opção para meu corpo e meu
estilo: saias longas ou calças boca de sino com saltos altos, boás, argolas de
bronze, os cabelos armados com laquê, se não fosse possível mantê-los lisos
por conta da umidade” (ENRIQUEZ, 2021, p. 326).

O trecho conta o momento que uma profissional indica quais estratégias combinam
mais com seu corpo e com seu estilo, os conselhos foram bem-sucedidos de um ponto
de vista, uma vez que foi avaliado por uma profissional, que segue procedimentos de
estudos da moda, visando inseri-los aos seus consumidores e às suas consumidoras.
Vale destacar aqui dois pontos: o primeiro, a estilista segue referenciais de moda que
não são universalistas e totalizantes, e em segundo, embora Rosario siga os conselhos,
não sabemos até que ponto as estratégias compartilhadas foram coerentes ao seu
gosto pessoal e estilo, uma vez que, novamente, a antropóloga não conseguiu
construir uma autoestima na juventude que valorizasse sua beleza própria. Dito isto,
percebe-se que sua autoconfiança e beleza foram construídas por influências
mercadológicas.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Heloisa Helena de Oliveira Santos (2020) reavalia a premissa da moda como


exclusividade ocidental, onde a Europa cria e os países não ocidentais copiam
(SANTOS, 2020). Defendo que a moda europeia não seja entendida como
universalista/totalizante, mas Santos (2020) vai muito além, pois enfatiza que a moda
é percebida como uma exclusividade do ocidente, mas especificamente da Europa:

 “[...] não importa o modo como a moda é entendida: seu surgimento e


desenvolvimento são sempre próprios e singulares à sociedade ocidental
moderna.” (SANTOS, 2020, p. 171). Assim, Rosario pode ser observada como
uma mulher da América do Sul que busca no Norte Global referências de
vestuário, excluindo as criações e tendências de outros espaços.

O/a leitor/a pode defender que Rosario pareça se sentir bem ou ter aderido com
felicidade tais códigos e estratégias, ou ainda, compensações. Mesmo que este seja o
caso, podemos pensar nos resultados violentos da Colonialidade. Santos (2020)
apresenta dois pontos importantes para a reflexão: não reconhecer a inspiração e a
cópia da moda não ocidental presente nas criações europeias, e não levar em
consideração as contribuições das colônias no surgimento e crescimento da indústria
têxtil, por exemplo, a extração de matérias primas. Posto isto, a autora reforça a
necessidade de provincializar a Europa, e colocá-la como um dos atores e não como o
centro das criações.

Além disso, há infinitas possibilidades que Rosario, enquanto mulher rica, pode
acessar. Não é apenas comprar uma roupa cara, é comprá-la e trocá-la quantas vezes
necessário, é comprar brincos de esmeralda, é escolher países para viajar e consumir
seus produtos, é acessar profissionais do ramo, como estilistas e designers, entre
outros exemplos. Privilégios que não são permitidos para outras pessoas, por isso,
grande parte da população que se sente feia ou é motivada a se sentir feia, constrói a
imagem da autoestima e do autocuidado ligadas ao consumo. Sustento a ideia de que
o uso da moda foi bem-sucedido de um ponto de vista, afinal ela seguiu as técnicas de
uma profissional, que não são universais/totalizantes, mas que são estudos pensados e
direcionados à Rosario. No entanto, foi uma escolha malsucedida por ligar o
autocuidado e autoestima às lógicas capitalistas de mercado, que excluem inúmeras
pessoas, das quais associam a moda e o cuidado de si ao consumo. É preciso citar que
tenho conhecimento dos/as diferentes profissionais da moda que operam por
estratégias diferentes, por concepções múltiplas, e com diferentes posicionamentos
políticos, afinal, não é sobre homogeneizar o campo, e sim entender como se pode
abrir novas discussões sobre o tema, e romper com o imaginário que liga o cuidado e a
beleza ao consumo desenfreado e compensatório. Se queremos compensar algo, é
porque sentimos falta, a suposta ausência de beleza age assim: o/a sujeito/a sente que
pode e deve melhorar a aparência, este impulso o coloca no lugar de consumidor/a,
para “melhorar” sua aparência. Do mesmo modo, poderíamos refletir sobre os
cosméticos de beleza e cirurgias plásticas, e seus usos compulsórios em busca de um
corpo magro, bonito e “perfeito”. A criadora de conteúdo digital e estudante de
educação física Ellen Valias, responsável pela conta do Instagram: @atleta_de_peso,

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procura despertar para seus/suas ouvintes a consciência da imagem equivocada do


corpo magro como saudável. Repete em diversos vídeos “o corpo gordo sempre foi
capaz”, indicando que outros corpos podem realizar esportes e outras atividades
físicas, passando a humanizar as pessoas gordas e a respeitar as diferenças. Já Ivan
Baron, @ivanbaron, além de alertar e criticar o uso de palavras, comportamentos e
ações capacitistas, usa o seu Instagram para enfatizar a beleza de corpos com
deficiência, denunciando a exclusão do grupo e mostrando aos seus seguidores e às
suas seguidoras um caminho diferente — que é político — que não diminui, exclui e
segrega o corpo com deficiência. Ellen Valias e Ivan Baron são dois dentre tantas
outras pessoas comprometidas com a diversidade e inclusão, e em denunciar um
modelo único de existência.

O exemplo de Rosario, ao lado da luta política pelos corpos plurais realizadas por Ellen
Valias e Ivan Baron, entre outras pessoas, nos ajudam a refletir sobre a epistemologia
sul-corpórea:

 “A epistemologia sul-corpórea reelabora uma reflexão corporal e interfaces de


comunicação que prescindem à uma crítica sobre os corpos subalternos. Nos
remete a refletir sobre às modificações corporais possibilitadas por cirurgias
plásticas, implantes, transplantes de órgãos, até os redutos de corpos
escravizados e excluídos, discriminados e negados no modelo de sociedade
moderna vigente. Uma epistemologia que supera os modelos ditatoriais
contemporâneos sobre o corpo, numa despossessão sobre ele. (PEREIRA;
GOMES; CARMO, 2017, p. 109).”

Pereira, Gomes e Carmo (2017) atribuem à educação, e principalmente à educação


física, o papel de construir outras relações com o corpo, deixando de lado referenciais
do Norte Global para tratar os corpos. O autor e as autoras seguem dizendo que a
educação física se esqueceu dos aspectos culturais e da construção das emoções, que
também, correspondem ao corpo.

Em Londres, Rosario relata sua ida a Biba (Kensington) e sobre suas modelos: “Suas
modelos davam voltas pelos salões: a própria Biba dizia que elas tinham ficado
desnutridas no pós-guerra e por isso agora eram belas e magras” (ENRIQUEZ, 2021, p.
337). Elas eram consideradas belas por serem magras, não apenas isto, estavam
desnutridas. A antropóloga continua: “Eu tinha sido criada como uma milionária da
América Latina do Sul, pura proteína e laticínios [...]” (ENRIQUEZ, 2021, p. 337).
Rosario reflete a respeito do seu próprio estilo de vida, uma milionária da América
Latina e com uma dieta diferente da consumida do outro lado do globo. Anos depois,
filmando festas de debutantes, Gaspar se deparou com garotas magérrimas, que
também buscavam um corpo ideal. Entender a mentalidade construída ao redor do
corpo magro como “o melhor”, faz com que compreendamos as pessoas que se
sentem fora de um padrão, que na realidade não existe. Retomando as imposições de
um corpo belo, magro e que recorre a inúmeras cirurgias plásticas.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Agora que vimos a partir de Pereira, Gomes, Carmo (2017) como a educação pode
atuar para quebrar este colonialismo presente nos corpos, não posso limitar a história
de Rosario ao seu corpo, pois entendo como importante as reflexões levantadas, mas
não como definidoras, em outros termos, não estou definindo, de modo conclusivo, as
personagens, pelo contrário, procuro usar os recursos literários para compreender a
pluralidade do ser, cabe a pessoa leitora escolher caminhos para observação, que
também são plurais e carregados de intencionalidades. A seguir veremos um pouco
mais sobre suas escolhas epistêmicas e áreas de atuação.

Na infância, a futura doutora em antropologia, estava cercada pelas histórias, lendas e


costumes das populações locais, aprendeu um pouco de guarani com Marcelina, uma
das funcionárias da família, e queria escrever livros sobre mitos locais: “Eu sonhava em
fazer livros sobre os mitos locais, iguais aos que eu lia em inglês sobre os seres das
ilhas britânicas” (ENRIQUEZ, 2021, p. 314). Possivelmente ela e tantas outras crianças
não leram livros sobre a sua história, seus mitos, saberes e costumes. Salta aos olhos
as marcas do colonialismo e dos referenciais eurocêntricos acessados pelas crianças.
Considero como escolhas linguísticas a opção de aprender guarani e outras línguas
como: línguas de sinais, galego, catalão, línguas indígenas, entre outras. Um/a
estudante pode ser questionado/a por querer aprender uma língua que é vista como
trabalhosa e de pouca utilidade, e nos esquecemos que muitas dessas línguas sofrem
com o imperialismo interno ou com o peso da modernidade colonial, e aprendê-las é
um posicionamento político, construindo saberes outros. No caso das línguas de sinais,
ainda possibilita acessibilidade e inclusão. Não é à toa que vemos o predomínio do
português e da exclusão de outros idiomas, entretanto, estas línguas existem, são
faladas, devem ser preservadas e são línguas de resistência. Rosario, para além de uma
escolha linguística, faz uma escolha epistêmica pelos saberes latino-americanos, ao
aprender guarani e as histórias de grupos que não estavam nos livros infantis.

Aprender guarani, aymara ou uma língua de sinais é também se afastar de saberes


ocidentais vistos como superiores e essencialistas. Optar pelo guarani é uma escolha
epistêmica que desloca o/a sujeito/a das seis línguas da modernidade europeia: inglês,
alemão, francês, italiano, espanhol e português (MIGNOLO, 2008). A respeito disso, o
objetivo não é ignorar os saberes ocidentais, e sim ressaltar que eles não podem se
vincular em nós como dominantes (MIGNOLO, 2008; PEREIRA, 2018).

Aos 18 anos, Rosário deixa o país para estudar na “[...] melhor Universidade do
mundo” (ENRIQUEZ, 2021, p. 35). Ler a afirmação anterior é se questionar sobre “ser
melhor para quem?”, uma vez que a constatação é olhar os saberes, os referenciais e
as instituições por uma perspectiva do norte global. Sabe-se que existe um ranking
baseado em alguns critérios que visam classificar as “melhores” Universidades do
mundo. Ainda que o levemos em consideração, as Universidades do norte global ainda
ocupam os primeiros lugares, e quais são os motivos que impedem maior apoio ao
fomento das pesquisas e das Universidades do sul?

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

 “Em muitas dessas contribuições, uma parte importante do processo é um


desembaralhamento crítico da literatura hegemônica em um campo de prática
– livros didáticos, paradigmas estabelecidos e bibliografias – revelando o
domínio do discurso do norte e a extroversão no sul global. Além de mostrar
algo importante sobre a história de um campo prático específico, isso ajuda a
explicar a persistência do padrão norte-centrado de produção de
conhecimento global discutido no início deste ensaio. A hegemonia intelectual
da metrópole tem um amplo apoio institucional, incluindo universidades, mas
que se estende muito além delas em profissões, governos, corporações e
comunidades de prática, criando nessas instituições um senso comum segundo
o qual outras lógicas de conhecimento parecem exóticas, censuráveis ou
francamente loucas (CONNELL, 2017, p. 101).”

Ainda cabe ressaltar que outras dinâmicas, saberes e formas de se relacionar com as
pessoas e o meio estão sendo desenvolvidas no Sul, como o exemplo susodito, as
línguas. As histórias que optamos por aprender, ensinar/contar para as crianças,
questionar como se vê os saberes, quais são os referenciais teóricos, o que, como e
para quem se escreve, são alguns pontos de reflexão.

Aqui é preciso tomar cuidado para não romantizar o papel de Rosario e sua
contribuição para os estudos das histórias locais. Quanto a sua relevância não nos
restam dúvidas, mas não se pode esquecer que ela pertence a uma família poderosa
no país, colonizadora, violadora de inúmeros direitos humanos, e uma das fundadoras
da Ordem. Em uma descrição, notamos melhor os aspectos ditos:

 “Agradeço por ter nascido nesta família, mas não a idealizado. Ao menos não
tento. Todas as fortunas são construídas sobre o sofrimento alheio, e a
construção da nossa, apesar de características únicas e insólitas, não é uma
exceção” (ENRIQUEZ, 2021, p. 295).

Ela, filha de Mercedes, tinha grande ambição por assumir o controle e reger de um
modo diferente. Fazer algo diferente carece de uma explicação mais detalhada, visto
que não significa tomar uma postura humanizada e não colonialista, apenas assumir o
poder e tomar medidas por uma outra perspectiva. Ainda que, digamos, Rosario fosse
a próxima líder, e rompesse com as jaulas de sua mãe, e distribuísse terras, ainda
estaria, de outros modos, estabelecendo relações de poder e violência. A Ordem é, por
si só, um ato de violência, porque suas dinâmicas explicitam profundamente as
relações de poder: concentração de rendas, exploração de corpos, infiltração de seus
membros em instituições públicas, entre outros casos. O próprio desejo de
imortalidade, ou seja, reter a consciência neste plano, nada mais é do que um ato de
violência com alguém, pois toma um corpo alheio para si, pelo desejo de continuar no
mundo, mantendo as regras de domínio e violência e decidindo o/a sujeito/a que
merece viver ou morrer, uma vez que seria possibilitado viver pela eternidade. A
escolha numérica das consciências que viverão para sempre também demonstra uma
relação hierárquica, veja bem, seguindo os direcionamentos dados pela Escuridão,

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Juan deveria ser o primeiro a usar o corpo de seu filho como incipiente, após isso, as
líderes do culto teriam o mesmo privilégio, em seguida, os mais provável seria seus
companheiros e filhos/as, depois pessoas que ocupam posições importantes na
Ordem, como estudiosos/as e os/as escribas — que escutam a voz da Escuridão e são
os/as responsáveis por escrever as informações dadas — posteriormente, outros
crentes ao culto, e assim sucessivamente. Podemos considerar que alguns e algumas
não terão direito à imortalidade? Quem serão os/as escolhidos/as? E se apenas a
linhagem obter acesso à imortalidade? não seria algo inédito na história, já que o
dinheiro, o sobrenome e o "sangue azul" são formas de preservar, não a consciência,
mas o poder entre as gerações, dito de outro modo, um grupo deixa explícito que
historicamente ele controla, tem o capital, as terras, e portanto, sobrevivem como
dominantes. Estas são algumas reflexões que culminam nas relações de poder, as
escolhas são diversas, mas sabe-se de sua existência, de sua violência e hierarquia.
É preciso não romantizar Rosario, porque tiramos dela uma obrigação de ser perfeita,
incrível, salvadora, tudo que, ao menos em certa medida, ela pode, mas não é
obrigada a ser. No mesmo sentido, seu papel materno pode ser pensado da mesma
forma, ela não sentiu, ao nascimento, um amor incondicional por Gaspar, ela hesitou
sobre entregar ou não seu filho como incipiente para reter a consciência de Juan e
sentiu-se a verdadeira sacerdotisa por ter gerado o filho do médium. Ela estava em
disputa para chegar ao poder, pois gostava deste universo, não queria acabar com a
Ordem e sim dominá-la. É necessário tomar partido de cada ponto para entender que
o amor é construído, com seu filho não seria diferente. Além de não corresponder com
as expectativas de maternidade criadas pela sociedade, ela pode não corresponder
com as expectativas do leitor e da leitora, ora vista como vítima, por ter sido
assassinada, ora vista como ambiciosa. Um exercício possível é desenvolver um olhar
plural, para enxergá-la na multiplicidade, entendendo que há elementos
desconhecidos, pois aquilo que não é apresentado na obra literária, podemos, se
quisermos, supor. E quando eu suponho, posso carregar modelos únicos ou
dicotômicos para mãe, mulher, homem, entre outros, ou seja, Rosario é uma péssima
mãe por agir de um modo, é uma excelente pesquisadora porque se comportou de tal
modo, e assim sucessivamente. Observando deste local, não me permito analisar as
particularidades da personagem, de seu mundo, nem ao menos entender questões
históricas e sociais. Se nas entrelinhas me cabe supor, então que eu leve em
consideração os aspectos não universalistas e de ordem plural que constituem as
personagens. Embora eu tenha a apresentado do modo mais amplo possível, ainda há
diversas outras identidades que nós não sabemos como leitores/as.

Por fim, seu trabalho e a questão de gênero são de grande relevância para o nosso
debate. Observando um dos fascículos que estava em sua casa, Gaspar observa a foto
de sua mãe, vemos que a antropóloga se sentia incomodada e cansada de trabalhar
apenas com homens.

Quando Rosario encontra Juan em seu local de poder, no dia da revelação, ela tem
uma responsabilidade, torna-se a guardiã do médium, posição de destaque e
importância dentro da Ordem, no entanto, isto também a aprisiona numa vida, e sua

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

história teria pouco protagonismo se estivesse ligada apenas ao médium. Seu novo
desafio de existência foi estar longe de Juan por algum tempo. Ir para Londres, tornar-
se uma doutora, desenvolver diversas pesquisas, ser professora em uma Universidade
de Buenos Aires, quebra a sequência “ideal” para sua vida. Ao descobrir que iria partir,
Juan agiu negativamente, — com ódio e agressão — uma dependência que Rosario
não poderia suprimir, dado que não dependia dela. A dependência aprisiona e coloca
o/a outro/a num lugar determinado. Mesmo que fosse aconselhado que os membros
da Ordem mantivessem relações sexuais com diferentes pessoas, chamados de
Andróginos mágicos, para ajudar nos rituais, vê-se que Rosario, no início da vida
adulta, sentia-se presa em Juan, num estilo de vida que se aproximava do modelo
conjugal monogâmico e heterossexual, aos 18 anos, essa não era sua escolha. Se é
necessário repensar os nossos referenciais epistêmicos e as instituições produtoras
destes conhecimentos, é preciso igualmente repensar em quem é permitido falar
sobre, circular nos espaços acadêmicos e da mídia em geral, debatendo os mais
diversos temas. O destaque acadêmico de Rosario não significava um protagonismo
feminino coletivo, ainda que estivesse nas produções e debates acadêmicos, havia a
ausência de mulheres e o predomínio masculino em sua área de atuação.

Mulheres outras e resistência indígena


Maria Regina Celestino de Almeida (2017) convoca todos/as os/as historiadores/as a
reescreverem a história do Brasil, ao menos situando os/as indígenas, visto que
estes/as foram retratados/as de modo generalizado.

Neste sentido, vale lembrar que Almeida (2017) não está se referindo apenas aos
recortes e linhas de pesquisa, ela não chama exclusivamente os/as historiadores/as da
história indígena, é um compromisso de todas as pesquisas da história: situar,
problematizar, questionar e falar das pessoas indígenas, que estavam e estão
ocupando o território nacional. Zapata Betancur (2021) em seu trabalho sobre as
viagens em “Nossa parte de noite”, enfatiza que Mariana Enriquez escreve sobre as
populações locais e indígenas que foram violadas e oprimidas durante a ditadura e que
ainda hoje não são vistas, observadas e valorizadas por seus saberes, lendas e
histórias. Logo, vejo que a reflexão de Maria Regina Celestino de Almeida (2017)
“Nossa parte de noite” não se restringe ao território brasileiro, podemos e devemos
reescrever a história da América, situando as populações indígenas. Neste trabalho
não é possível falar das relações de poder, os corpos, as belezas latino-americanas,
sem falar das populações locais e indígenas presentes na narrativa. Inicio a reflexão
com a personagem Tali.

Catalina, mais conhecida como Tali, é filha de Adolfo Bradford e Leandra, uma mulher
indígena de Corrientes. Catalina possui papel relevante dentro da narrativa, ela e
Esteban foram os responsáveis por manter bloqueada a mediunidade de Gaspar e
protegê-lo das cobiças da Ordem.

Tali e Leandra apresentam muita resistência e nos demonstram um pouco da


diversidade cultural da região. Leandra fundou um templo para São morte e ficou

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

famosa na região. Leandra morreu jovem, vítima da violência e impiedade de


Mercedes. Após a morte da mãe, Tali continuou a cuidar do templo, manteve suas
crenças e ajudou Rosario com a exposição dedicada à São Morte em Assunção,
Paraguai. Durante os anos de ditadura, a intolerância religiosa se fazia presente,
mesmo sendo filha de Adolfo Reyes, um homem poderoso no país, tomava certo
cuidado.

A resistência de Tali é evidente na vida adulta, no entanto, inicia-se na infância.


Quando ela rejeitou o estilo de vida da família Reyes Bradford em Buenos Aires. Tali
rejeitou tudo que a afastava de seu mundo e de sua realidade: o seu modo de vida que
inclui a escola, as crenças, seus hábitos, entre outros. Não há nenhum indicativo que
comprove a cidade e a escola de prestígio como benefícios reais para Tali, uma vez que
estes poderiam funcionar como ferramentas de silenciamento e apagamento de sua
subjetividade. Mais uma vez vale ressaltar que determinados referenciais são
colocados como melhores e essenciais, contudo, a lógica atuou por séculos — e ainda
atua — para o genocídio epistêmico de diversos povos.

Tali era considerada uma mulher muito bonita, no entanto, não estava isenta da
pressão social pela busca da beleza:

 “Tali olhou de soslaio para seu reflexo no vidro da janela. Tinha completado
trinta anos. Quando diziam que ela era linda, preferiam-se a seus cabelos
pesados, a seu corpo acostumado a caminhadas e ao brilho de seus olhos
escuros. Mas ela nunca se maquiava, não se preocupava com pele, não gostava
de anéis e pulseiras; quando a elogiavam havia sempre reticências 'mas seria
muito mais bonita se… Sentia que estava ficando velha, que precisava fazer
algo a respeito das linhas de expressão em torno da boca, ou das estrias nos
quadris, consequência de seus verões em bicicleta, que haviam afinado
bastante suas pernas. (ENRIQUEZ, 2021, p. 113).”

Ao comparar a situação de Tali e de Rosario, é possível ver um quadro semelhante no


que diz respeito às definições do belo e do aceitável. Ambas passam, antes de tudo,
por sistemas de controle e de aprovação. Rosario de seu pai, a qual se prendeu às
lógicas de consumo, e Tali que mesmo sendo considerada bonita, recebia
constantemente “sugestões” para ficar mais bonita. Este esquema que parece
inofensivo, oprime e insere os/as sujeitos/as no mapa colonial capitalista que impõe
processos inalcançáveis de beleza. Além disso, a dita necessidade por melhorias na
aparência, oferece uma satisfação passageira, desencadeando um ciclo vicioso.

Ser filha de um homem rico, no caso de Tali, não significa que tenha um status de vida
favorável, e mesmo que tenha, ela jamais foi tratada e reconhecida socialmente. Ainda
que Rosario se sentisse excluída e às vezes irrelevante, a exclusão de Tali está
associada a questões raciais e de origem, ela é socialmente excluída. O médico
Bradford, irmão de Mercedes, também a rejeitava: “Bradford a tratou com desprezo,
como sempre. Para Bradford, ela era o fruto das indiscrições de Adolfo com uma bruxa

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

do povoado.” (ENRIQUEZ, 2021, p. 113). Bruxa do povoado, além de, neste caso,
homogeneizar as diferentes crenças e práticas religiosas de alguém, também
desconsidera o direito de a pessoa ser nomeada. Jorge Bradford na posição de
“doutor”, rico, intelectual, a olha de modo vertical e nega sua existência, e portanto,
não a acha digna de ser chamada pelo nome: Leandra. A morte de Leandra está
associada a mesma situação, Mercedes ao olhar para os/as demais de modo
hierárquico, despotencializa Leandra, e a coloca numa posição de “coisa”. No final da
narrativa, quando Tali finge sua morte, Mercedes diz: “finalmente aquela índia foi para
o inferno [...]”. A fala marca o seu ódio e desprezo por Tali, o uso do termo “índia”
apaga a riqueza étnica dos diversos povos indígenas da América, e, semelhante ao caso
de sua mãe, a retira o direito de ser nomeada: Catalina é o seu nome, Tali é como a
chamavam e “aquela índia” é a verdadeira morte da personagem.

Procurei mostrar a resistência de Leandra, Tali e a importância de suas histórias.


Outras personagens também possuem papéis importantes para a reflexão. É o caso de
Marcelina, que ensinou guarani para Rosario, e era considerada uma funcionária de
confiança. Por outro lado, este é o local da Marcelina dentro da narrativa: uma
funcionária. É preciso que os/as leitores/as se questionem sobre o papel de Marcelina,
a sua relevância e a sua exclusão. Por qual motivo Juan confiava nela? Talvez porque
fosse:

 “[...] discreta, eficiente e tinha uma capacidade enorme de fingir que não
entendia o que acontecia na casa, de fazer parecer que ela ignorava os
assuntos dos patrões e de falar somente em guarani com os outros
empregados.” (ENRIQUEZ, 2021, p. 100).

Em um primeiro momento esta análise pode ser incoerente já que nas linhas
seguintes, Juan vai se sentir incomodado com Marcelina o tratando por senhor, pois a
sós ela o tratava por você. Os pronomes de tratamento estabelecem respeito,
formalidade e/ou graus de hierarquia. Entretanto, o uso de “senhor” por Marcelina
demanda um grau de hierarquia imposto pela dona da casa, já que em outros
momentos ela não o chamava assim. Juan não precisa interpretar da mesma maneira,
pode considerar o seu uso como desnecessário. O que ressalto com a citação acima é a
confiança no “empregado/a silencioso/a”, que está próximo para escutar, servir,
executar e antes de tudo ser silencioso/a, ponto central para a criação da confiança,
mas não de um vínculo. Caso exista um vínculo entre Rosario e Marcelina e/ou Juan e
Marcelina, não significa que ele e elas tenham saído do seu local e quebrado barreiras
impostas verticalmente. Aqui são suposições a partir da escrita de Enriquez, pontos de
reflexões possíveis, que não serão finalizadas neste trabalho. É relevante dizer mais
uma vez que aprender guarani ou pesquisar a história local são escolhas epistêmicas
importantes que não estão sendo desconsideradas, mas conhecer o/a outro/a
profundamente vai além de pesquisas acadêmicas ou dizer, no caso de Juan, que
confia na funcionária da família milionária de sua companheira. Também não se trata
exclusivamente da origem social, o fato de Juan ser de uma família pobre, não impede
que os graus de hierarquia sejam reproduzidos em certas relações sociais.

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Ao olhar para essas personagens, surgem novos pontos de incômodos, de interesses e


de questionamentos. Aliás, Jorge Bradford podia se considerar um grande médico para
o cenário Internacional, no entanto, deixou de aprender muito ao desconsiderar a
existência de Tali, Leandra ou Marcelina. Marcelina falava somente em guaraní com
os/as demais trabalhadores/as da casa, enfatizando o predomínio do espanhol como a
língua dos/as senhores/as e o guaraní como a língua local. Porém, a família Bradford
perde ao ignorar a língua e seus/suas falantes. Para finalizar, falar guaraní é
resistência. Juan podia falar em segredo com Tali e Esteban (recurso que impedia que
as pessoas ao redor compreendessem o diálogo), esses/as trabalhadores/as podiam
falar em segredo usando a sua primeira língua, o guarani.

Considerações finais
Mariana Enriquez ganhou projeção internacional no meio literário, considerada um
dos principais nomes de sua geração. Este trabalho procurou contribuir para os
estudos de História, literatura e descolonialidade. Na obra, defendo que a violência
pode ser entendida para além da violência de estado e do ocultismo, uma vez que as
distintas personagens estão vinculadas a um ideal de beleza, sendo ele mais próximo
ou distante do socialmente aceitável. O capítulo também procurou ressaltar as
resistências, as escolhas epistêmicas de Rosario, Tali e Marcelina, bem como as
relações de poder e os graus de hierarquia, estas questões e outras foram analisadas
como parte de uma violência da modernidade colonial, onde encontramos as
resistências e a subversão, um exemplo é o Guarani e seus falantes, Tali e suas
escolhas de como e onde viver.

Referências
Marcos Antonio Leite Junior é formado em História pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, campus de Nova Andradina (UFMS/CPNA). Este artigo é parte de sua
monografia: Gotiques Tropicais: corpos e descolonialidades em Nossa parte de noite,
de Mariana Enriquez, orientada pelo professor Dr. Fábio da Silva Sousa.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil:
revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, São Paulo, V. 37, n. 75, p. 17-
38, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-02. Acesso
em: 30 de agosto de 2022.

CONNELL, Rawyen. Usando a teoria do sul: descolonizando o pensamento social na


teoria, na pesquisa e na prática. Epistemologia do Sul, Foz do Iguaçu. v. 1, n.1, p. 87-
109, 2017.

ENRIQUEZ, MARIANA. Nossa parte de noite. 1 ed. Rio de Janeiro: intrínseca, 2021.

MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: opção descolonial e o significado de


identidade em política. Cadernos de letras da UFF — dossiê: literatura, língua e
identidade, n. 34, p. 287-324, 2008.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre o lugar epistêmico na teoria
da História. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 88-114, abr./jun. 2018.

PEREIRA, Arliene Stephanie Menezes; GOMES, Daniel Pinto; CARMO, Klertianny


Teixeira do. Epistemologia sul-corpórea: por uma pedagogia decolonial em educação
física. Revista Cocar, Belém, n. 4, p. 93-117, jul./dez. 2017.

SANTOS, Heloisa Helena de Oliveira. Uma análise teórico-política decolonial sobre o


conceito de moda e seus usos. ModaPalavra, Florianópolis, v. 13, n. 28, p. 164-190,
abr./jun. 2020.

ZAPATA BETANCUR, Andrés Felipe. Recorriendo el litoral argentino: un análisis sobre


el viaje en Nuestra parte de noche (2019) de Mariana Enriquez. Monografia (Estudos
literários) – Facultad de Teología, Filosofía y Humanidades, Universidad Pontificia
Bolivariana. Medellín, p. 86, 2021.

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COLABORAÇÃO DE LEOPOLD VON RANKE: A HISTÓRIA DA


TEORIA DA HISTÓRIA REVISITADA
Patriciane Escórcio da Silva e Alina Silva Sousa de Miranda

Resumo:Neste artigo temos como principal objetivo indicar aspectos da caricatura


lançada sobre o historiador Leopold von Ranke, reafirmando a importância de estudar
a base teórica e metodológica da disciplina História. Os movimentos nessa área de
estudo são indicadores das mudanças na prática disciplinar, mas também são
reveladores das compreensões que podem ser lançadas sobre aqueles que passam a
representar o contraponto dessas mesmas mudanças. Ao fazer esse estudo, pois,
observamos a chegada do movimento dos Annales, no início do século XX, a despeito
das importantes inovações, lançou sombra sobre essa figura tão importante para o
nascimento da história científica no século XIX.
Palavras-chave: Teoria da história. Ranke. Annales.

Abstract: In this article we have as main objective to indicate aspects of the caricature
launched on the historian Leopold von Ranke, reaffirming the importance of studying
the theoretical and methodological basis of the discipline History. By studying this
area, we can see the change in disciplinary practice and the misunderstanding cast on
important contributors to it. This is the case of Ranke, whose shadow over his figure is
largely cast by the Annales School, in the beginning of the 20th century, despite his
importance for the birth of scientific history in the 19th century.
Keywords: Theory of history. Ranke. Annales.

Introdução
Quem foi Leopold Von Ranke? Qual sua colaboração para com a historiografia? Qual o
contexto do seu trabalho e proposições para a atividade do historiador?

Essas são questões que normalmente são apresentadas a um estudante de História


logo no início, nas primeiras aproximações com a pesquisa acadêmica. Afinal, um dos
papéis que esse autor desempenha é de ter colaborado na construção de uma

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produção historiográfica respaldada pelo caráter científico, com toda a credibilidade


que esse discurso fornece a qualquer empreendimento de estudo.

De qualquer forma, além de apresentar esse autor, nosso interesse é revitalizar o olhar
sobre ele e suas colaborações, uma vez que um possível excesso de crítica e uma
necessidade de adaptação da disciplina História às demandas do seu tempo, acabaram
por negativizar a imagem desse historiador, associando-o a um tipo de procedimento
que é obsoleto e precisa, pois, ser ultrapassado:

 “Para aqueles que iniciaram seus estudos de história na década de 1980, o


século XIX começava com Hegel e terminava com Marx. Para tudo o mais
lançava-se mão de um Kampfbegriff: “positivismo”. Não obstante o
entendimento geral a respeito de conceitos como positivismo e historicismo no
Brasil estivessem então contaminados por toda sorte de interferência extra-
teórica, elegeu-se um nome para simbolizar tudo aquilo que a historiografia do
século XX pretendia ter deixado para trás: Leopold von Ranke. (DA MATA, 2011,
p. 248)”

Nesse sentido, faremos uma apresentação desse autor, seu contexto e, em seguida,
uma apresentação dos acontecimentos dentro da disciplina História que levaram a
uma crítica do seu trabalho. E faremos isso por perceber que a crítica, muitas vezes,
ganhou mais visibilidade que seu trabalho, apesar de ele representar o início de como
essa disciplina é pensada até hoje:

 “Desnecessário insistir no fato de que oito dentre dez dos seus críticos nada
sabem a seu respeito, e menos ainda sobre sua obra. Para aquele que está
minimamente familiarizado com o que este erudito escreveu, por mais que
dele se afaste em mais de um aspecto, é inevitável a sensação de se estar
diante de uma personagem intelectual de primeira grandeza. A beleza da
composição, a despretensão e a concisão do estilo, e, diria mais, o equilíbrio de
julgamento e a extraordinária capacidade de identificar e construir conexões
históricas, tudo isso tinha-o Ranke no mais alto grau. Quem buscar “teorias”
em suas obras, decerto não as encontrará, mas apenas: um gênio em ação.
Nesta nossa época, temente a superlativos, há de se ter a coragem de dizê-lo.
Outros contemporâneos seus, como Carlyle, certamente mereceriam o mesmo
tratamento e a mesma adjetivação. Mas é tão somente de Ranke que se trata
aqui. (DA MATA, 2011, p. 248)”

É com vistas, pois, à história da historiografia e o entendimento da dinâmica que o


próprio fazer histórico sofre que propomos essa reflexão.

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A ambiguidade lançada sobre Ranke


Ranke foi um historiador alemão nascido na Turíngia, em 21 de dezembro de 1795,
tendo falecido em 23 de maio de 1886, na Alemanha (na realidade fora em um estado
pertencente à antiga Prússia). É importante falar dele dada a sua colaboração à
historiografia, justo quando ela procurava se tornar uma ciência e ter a credibilidade
de uma disciplina científica. Ele apresentou propostas metodológicas que
reformularam e deram um novo caráter ao estudo historiográfico, tanto para
compreender a singularidade dos acontecimentos históricos, quando para destacar o
papel que a história desempenha na vida.

Um estudo sobre Ranke envolve pensar a teoria da história e, quando nos


aprofundamos no tempo, reconhecermos a grande relevância dele: trata-se do
fundamento da História como disciplina e das regras do trabalho do historiador, bem
como do lugar de pesquisa no qual Ranke se baseava – principalmente nos
documentos históricos, que relatam a história do Estado e das relações exteriores.
Segundo seu método de pesquisa, essas relações diplomáticas determinavam as
principais ações na História.

Representante da historiografia alemã, um dos países que, junto com a França, se


revezava na dianteira do pensamento histórico, Ranke foi significativo para a Teoria da
História. Ranke geralmente era caracterizado como um empirista:

 “o empirismo entende que conhecimento só pode ser obtido através de um


dado racional e das deduções a partir dele. Contudo, Ranke entendia o
fenômeno é visto como uma expressão de forças metafísicas, e para desvendar
o que aconteceu, ele sabia que precisava recorrer à intuição. Ele acreditava
que, por trás dos eventos ocorridos, havia uma realidade, uma totalidade
espiritual. Para conhecer a história para Ranke não contava apenas com sua
criteriosa análise das fontes documentais. Ao invés disso, sua narrativa sempre
recorreu à noção de que a história é uma arte, e, enquanto tal, ela só existiria
por meio do ser humano. (GAIO Apud IGGERS, 2007, p. 89)”

Ainda que tenha prezado por essas questões, Ranke acabou por ser visto como um
historiador preso à documentação, refém dos ídolos político, cronológico e individual,
como mais tarde irá acusar Simiand, na esteira do desejo de submeter a disciplina
história à sociologia.

Ranke traçou uma carreira mensurando as ideologias, para adaptar seus métodos
científicos, o qual inovou e institucionalizou no ambiente acadêmico. Para
compreender a intensidade de um historiador como ele, bem como à ambiguidade à
qual ele foi lançado, Caldas (2008, p. 42) afirma:

 “Se Ranke, de um lado não é de fato o “positivista” tão execrado por quase
todos os historiadores no século XX, por outro lado é inegável que sua visão de
história universal e de hermenêutica é historicamente circunscrita: se suas

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

considerações apresentadas como “exigências ao trabalho do historiador”, em


alguma medida, desnaturalizam a concepção do processo histórico, por outro
lado, ele não questiona o pressuposto (teológico) que viabiliza toda a sua
concepção de conhecimento. Mas não resta dúvida de que sua obra é muito
mais complexa do que supõe a nossa vã historiografia.”

Com base nesta perspectiva, é importante lembrar que o historiador teve uma
influência na historiografia francesa. Autores como Langlois, Seignobos, Lavisse, entre
outros, foram leitores e em muito se aproveitaram das colaborações rankeanas, sem
deixar de traduzi-las para o espírito francês. Essa questão gera parte da divergência de
que Ranke era um “positivista”, apesar de em sua metodologia não buscar leis para
História, já que estava voltado ao Historicismo. Historicismo é uma corrente contraria
ao positivismo. Nela, o sujeito (historiador) tem um contato direto com seu objeto de
estudo, não se afastando do mesmo, ou seja, eles se refletem em si. Chegou para
tornar oficial a História como disciplina com a participação do personagem mais
importante Leopold von Ranke. Foi por meio do Ranke que foi padronizado o ofício do
historiador, sua normatização e academia. Apesar de ter carregado uma influência do
Positivismo, algumas divergências surgiram em sua metodologia por não buscar leis
para história já que estava voltado ao historicismo:

 “Para Ranke, a História é feita da diversidade, de forças, de costumes, de


épocas, de soluções, de arte, de tradições, de povos etc. E a observação da
variedade é o verdadeiro ofício do historiador, o que implica, para nossa
discussão acerca da ciência histórica, na abertura possível que a teoria da
história rankeana dá para a formulação de leis históricas. Ao ler as obras de
Ranke, não são encontradas leis propriamente ditas e sim tendências: ele
entende progresso no sentido de “que “em cada período um certo movimento
do espírito humano é revelado, pelo qual pela primeira vez uma ou outra
tendência torna-se proeminente e mantem-se em sua própria forma” o que ele
chama de “ideias guia”. (RANKE Apud MOREIRA, 2012, p. 5)”

Para Ranke, o historiador deveria manter sempre um contato direto com o objeto de
estudo, mantendo a priori a busca da objetividade, sem se afastar do seu objetivo de
pesquisa (e de suas fontes) ou seja, compreender minuciosamente a verdade ou
chegar mais próximo da realidade dos fatos obtido. Porém, para os positivistas, o
historiador deveria manter-se imparcial diante do objeto de estudo, sendo sempre
neutro para obter uma verdade histórica sólida de fato, contudo ele não estava dentro
da objetividade tão rígida, quanto dos positivistas.

Contudo, Ranke defendia a ideia de que cada momento na história era único, e que
deveria ser compreendido em seu próprio contexto, e que cada evento histórico que
ocorreu naquele período, o historiador pesquisador deveria ser fiel as suas fontes. Por
isso, os documentos que eram obtidos durante a pesquisa são dignos de credibilidade,
principalmente as fontes primárias, no caso, a documentação oficial.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Nesse sentido, como foi possível que Ranke fosse considerado um positivista? Também
é importante lembrar que, ao invés de Comte, nosso ilustre historiador Ranke
evidenciava que havia uma assimetria metodológica e epistemológica entre ciências
humanas, ciências sociais e naturais. Para ele, o objeto de estudo não era o mesmo,
dificultando uma análise exata, com os mesmos métodos, o conhecimento e a
pesquisa não poderiam ser neutros, pois o historiador faz parte desta pesquisa. E essa
análise deve estar inserida no percurso do processo histórico historiográfico.

Segundo Barros (2011), Ranke é o “pai da História científica moderna”, pois


apresentou um novo modelo de estudar e pensar história, com base em métodos
científicos. Portanto, o método rankeano veio com o mesmo sentido de observar os
aspectos históricos, sociais, antropológicos, dentre outros, para o entendimento do
fato histórico. E toda a sua disposição era trabalhar com os documentos escritos,
sendo sua história considerada “positiva”, não necessariamente positivista.

Embora Ranke tenha sido visto como um positivista, sua ligação com o positivismo
estava diretamente ligada com o modelo historiográfico que buscava a compreensão
do passado, observando-a sem fazer nenhum tipo de julgamento, e beneficiando-se da
crítica erudita das fontes:

 “O trabalho do historiador para Ranke seria o de “recuperar os eventos, suas


interconexões e suas tendências através da documentação e fazer-lhe a
narrativa”, sendo que “a história se limitaria a documentos escritos e oficiais de
eventos políticos”. Ranke argumentava que os fatos a serem narrados pelo
historiador “eram os eventos políticos, administrativos, diplomáticos,
religiosos, considerados o centro do processo histórico, dos quais todas as
outras atividades eram derivadas. (REIS, 1996, p. 12-14)”

Portanto, é as demais interconexões que o historiador poderia absorver durante uma


pesquisa devem ser dispensadas. Segundo Ranke, desta forma se poderia estabelecer
uma narrativa segura e confiável, além de recuperar a credibilidade dos eventos
ocorridos. A história feita precisa estar fora de julgamento, sendo ela passada ou
presente e só assim se poderia beneficiar as futuras gerações. A história deveria
somente mostrar e narrar o que exatamente aconteceu.

Positivismo e historicismo
Duas formas de conceber o processo histórico e a escrita dele rivalizavam à época do
pensamento de Ranke: positivismo e historicismo:

 “Positivismo e historicismo são dois paradigmas que se contrapões como dois


modelos antagônicos, e praticamente espelham-se (invertem), no que tange a
questão da objetividade/ subjetividade em história. O positivismo já estava
praticamente formado até as primeiras décadas do século XIX, a partir das
ideias de Augusto Comte, que postulada uma proximidade das ciências sociais
em relação as ciências naturais tanto no que concerne a sua “objetividade”,

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

encarada como absoluta, como no que se refere as buscas de Leis Gerais para o
desenvolvimento. (GIANNATTASIO, 2011, p. 152-153).”

Com relação ao positivismo, a herança iluminista era visível. Noções de objetividade


científica (neutralidade), de que o objeto de estudo já está na natureza e o cientista
dele se apropria, separado, pois, de seu objeto de estudo, era corrente. O historiador,
nessa perspectiva, deveria ser neutro e imparcial, sua identidade se baseava nos
mesmos moldes dos métodos das ciências naturais: entre Ciências Humanas, também
ocorreriam leis gerais a partir das quais a sociedade humana seria regulada. Essas
seriam leis naturais, invariáveis, independentes de ação humana.

Já os historicistas levaram a crítica documental em alta consideração, atribuem à


documentação um lugar específico, essencial para a análise histórica. Com uma
metodologia que permite abordar com maior precisão essa fonte, os historicistas
sempre insistiram que a atenção às fontes deve ser acompanhada pela consciência de
que qualquer documento ou texto foi um dia produzido por seres humanos, sujeitos a
contextos e interesses específicos.

De fato, o processo metodológico das fontes, com relação a análise historiográfica, se


instalou na disciplina de história, causando então, uma necessidade de compreensão
das concepções teóricos-metodológicos do historiador profissional. Por sua vez, é
possível destacar a grande colaboração do Ranke, com base a enorme atenção que ele
dava às fontes históricas e ao domínio que ele tinha sobre elas.

Assim, poderemos compreender, o quanto esta atenção minuciosa dos documentos é


de suma importância para a pesquisa da disciplina de História, por estabelecer um
novo olhar para a historiografia e para o profissional pesquisador. Portanto, é
importante mencionar que não se tratava apenas de obter técnicas de precisão e
crítica, mas também usar de maneira meticulosa um tratamento especial com os
documentos, desta maneira, recuperar e trazer a fonte histórica para um novo tempo
na História: não a tratando somente como ilustrativa, mas demonstrativa. Entre todos
os historicistas, Ranke, com este olhar metodológico, foi essencialmente importante.

Segundo Barros (2011) a objetividade e a imparcialidade do historiador, na reprodução


do passado histórico, e o valor do documento oficial para a produção da história
verdadeira representam, de fato, as maiores contribuições de Ranke para a ciência
positiva. Entretanto, a importância destes acontecimentos históricos era realizada
pelos grandes líderes nacionais: chefes de Estado, reis, príncipes etc. Contudo pode-se
afirmar:

 “É comumente aceito que Ranke fala dos indivíduos fora de seu contexto.
Embora não seja, de fato, um autor de história social, um exame mais acurado
pode ser recompensador. Não entendemos por individualidade somente o
autor de uma fonte, mas, sobretudo, um tema histórico (Lutero, os papas, os
reis etc.), os ditos “grandes nomes”. (CALDAS, 2013 p. 15)”

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Portanto, como resultado, o progresso da História obteve várias transformações com a


chegada do estudo metodológico de fazer História, sobretudo, representou para a
História escolar o modelo de ensino, que existe por várias gerações, e que perpassou
por inúmeros de estudantes e, pode-se afirmar, que é possível observar a elaboração
dos livros didáticos, bem como a elaboração de aulas dada a quantidade de dados, e
pela facilidade de exposição, e manuseio nos currículos escolares. Segundo a
historiadora Circe Bittencourt (2004, p. 140-144), a reconstituição do passado da nação
por intermédio de grandes personagens serviu como fundamento para a História
escolar, privilegiando-se estudos das ações políticas, militares e das guerras, e a forma
natural de apresentar a história da nação era por intermédio de uma narrativa.

O fundamento do historicismo, porém, está relacionado com a subjetividade do


historiador, no qual ele não se separa da história. De certo modo, o historicismo sofreu
várias modificações, sobre o que, afirma Barros:

 “O historicismo ainda precisará construir a si mesmo, estendendo contribuições


diversas em um arco que irá de Ranke – ainda preocupado em “narrar os fatos
tal como eles aconteceram” – até Droysen e Dilthey, historicistas relativistas
que já se ocupam em trazer a historiografia uma reflexão sobre a subjetividade
do próprio sujeito que constrói a história, bem como sobre a singularidade do
padrão metodológico a ser encaminhado pela Historiografia: um padrão
“compreensivo” e não “explicado” como nas ciências naturais. (BARROS, 2011,
p. 67)”

O historicismo, nesse contexto, passa a ser pensado em todos esses aspectos, mas, por
meio da apreciação do historiador, ele não considerou a sociedade tal como no
modelo do positivismo, igualando-a aos métodos das ciências naturais. Sobreveio o
pensamento por aumentar o campo sobre o universo historicista, considerando a ideia
de que o historiador fala de um lugar, e como a verdade dos eventos pode ser obtida,
não permite que esses dois modelos possam ser confundidos. Compreender a junção
do modelo historiográfico alemão, vale ressaltar:

 “Com este elemento característico fundamental, Ranke e os primeiros


historicistas conseguiram impor o estatuto científico ao novo tipo de
historiografia profissional que pretendiam apresentar como um modelo a ser
seguido, sempre lembrando que estamos aqui nas primeiras décadas do século
XIX, este fundo metodológico em comum, por assim dizer, será fundamental
em todos os historiadores que ajudam a fundar o Historicismo, particularmente
os ligados à Escola Histórica. (BARROS 2013, p. 978-979).”

O historicismo alemão apresenta, de início, de fato posturas do conservadorismo,


especialmente em virtude dos serviços aos estados nacionais. E é, nesse aspecto que
Ranke pensava e defendia que se pode contar os fatos tal como elas se deram, sendo
fiéis às fontes oficiais e escritas.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Assim, Ranke não estava voltado a nenhuma história universal humana. Por tanto,
estava voltado na defesa das histórias nacionais particulares, de maneira que já se
pode ver a inclinação e aceitação da própria relatividade historiográfica que, neste
caso, chegou ao nível do objeto de estudo. Fundamentalmente, o historicismo obteve
momentos que produziu outros desdobramentos, nos quais ele apresenta uma nova
concepção de olhar o homem, de forma extremamente distinta da perspectiva
anterior, apresentada pelo pensamento ilustrado, dado pelo positivismo.

Por um longo tempo, o historicismo e o positivismo tiveram debates, principalmente a


respeito do estudo historiográfico. Por sua vez, a visão do homem pelos iluministas e
pelos positivistas estavam essencialmente voltados em exercer uma universalidade, ou
seja, enxergar a natureza imutável; já para os historicistas, havia uma diferença: o
homem se movimenta, se desloca, muda e provoca uma historicidade própria,
particular, que sempre deve ser destacada. Em suma, sua defesa é a de apreender a
radical historicidade em toda e qualquer realidade, de modo que nada no universo
estaria estático.

O olhar da mutabilidade no historicismo se constituiu e a relatividade do objeto


histórico proposto pelo historicismo tende a ser problematizado e examinado, de
maneira que a sociedade humana, o homem em particular, são movimentos e devem
ser compreendidos: nunca são inertes. Ao invés de se limitar apenas buscar o
universal, a presença historicista movimentou esse pensamento no sentido de tratar a
diferença, a singularidade, o específico, o particular, ao contrário do positivismo, que
buscava a descoberta da natureza imutável do homem.

Com base nessas postulações do historicismo, teve-se várias transformações e quanto


a construção dos métodos pode afirmar que:

 “O historicismo correspondia a uma época incerta dela própria, a Alemanha


pré-revolucionária, que recusava o futuro que vislumbrava e oscilava entre o
fatalismo lucido e a revolta utópica. Ele afirmava o que historicamente veio as
ser, em qualquer tempo, o valor sagrado da tradição. Ele negava a mudança.
Era conservador, tradicionalista, antirrevolucionário. (REIS, 2006, p. 212).”

O historicismo, por ser polissêmico, diversos autores evitaram esse termo. Por isso, se
nossa intenção é compreender a caricatura e a rejeição de fato de Ranke, que fora
forjada em torno desse historiador, a respeito de suas colaborações, devemos lembrar
que o mesmo estava voltado ao historicismo, especificamente no que diz respeito à
noção de individualidade dos povos. E se ele foi, muitas vezes, considerado positivista,
o que permitiu a criação de uma caricatura sobre ele? Indo nessa direção,
encontraremos o próprio movimento de mudança das bases que definem a prática de
trabalho do historiador: as mudanças dentro da disciplina, consideradas necessárias
para a manutenção de sua indispensabilidade diante da nova atmosfera do século XX,
tem enorme papel nessa questão. O ataque à Ranke, veremos, não é um ataque
apenas externo, das demais disciplinas e seus interesses, mas um ataque de dentro do

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

próprio corpo da História em busca de sua sobrevivência. Para compreender a


complexidade do historicismo, segundo Barros (2011, p. 120) afirma:

 “A prática historiográfica do “olhar sobre si” apenas casual e esporádica até


meados do século XVIII iria se tornar uma exigência da própria “matriz
disciplinar” da história. Em vista de sua predisposição relativista, o
Historicismo, mais do que o Positivismo, sempre mostrou maior afinidade em
relação a esta necessidade de reelaborar constantemente um “olhar sobre si”
que é constituinte da própria Teoria da História.”

O papel dos Annales na formulação da caricatura de Ranke


É suficientemente reconhecido o lugar que França ocupa na produção historiográfica a
partir do século XIX. Da Escola Metódica à revolução dos Annales, com seus
desdobramentos até os anos 1980, a produção francesa foi uma referência para os
estudos históricos em vários países, marcou o discurso historiográfico na
contemporaneidade.

Surgido na França, em 1929, por meio da revista fundada por Lucien Febvre e Marc
Bloch, o movimento dos Annales foi um movimento historiográfico que marcou a
chegada dos métodos das ciências sociais na História, método este que buscava
desfazer a visão “positivista” da escrita da história, que havia dominado no final do
séc. XIX e início do XX.

Tendo como proposta um novo modelo de se pensar e fazer história, olhando por um
ângulo da chegada das ciências sociais, esse movimento atacou e criticou a
historiografia anterior, especialmente a contribuição da Escola Metódica e a
contribuição de Leopold von Ranke para a estruturação dela. A versão da escola
metódica que surgiu na França ocorreu em finais do século XIX em um contexto de
forte sentimento patriótico e de formação da unidade nacional. Portanto, pretendiam
consagrar a história sob status de ciência, com a utilização de métodos científicos que
a distanciassem da literatura. Com o avanço historiográfico, esse movimento
reafirmou possibilidades de análises históricas, levando em conta a história de maneira
mais global. Com isso, elaborou uma nova forma de pensar a construção e crescimento
histórico partir de um problema, a chamada problemática, dando importância para a
historiografia contemporânea, que se estabeleceu por uma proposta de revisão do
próprio método tradicional da história. Para reafirmar a proposta estabelecida no novo
modelo de se fazer história:

 “Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era, portanto,
menos redescobrir o homem do que, enfim descobri-lo na plenitude de suas
virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas.
Abre-se, em consequência, o leque de possibilidade do fazer historiográfico, da
mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

outras ciências do homem os conceitos e os instrumentos que permitiram ao


historiador ampliar sua visão do homem. (BURKE, 2010, p. 8).”

Para compreendemos os motivos que levaram os historiadores franceses a se unirem


para criar uma revista de história – Os Annales d’Histoire Économique et Sociale,
periódico fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929 – a fim de publicar as
novas ideias e as novas proposta teóricas, é necessário conhecer o contexto cultural
histórico e a cultura historiográfica vigentes na França, exatamente no final do século
XX, observar os aspectos que marcaram o desenvolvimento teórico e metodológico.
Isso nos ajudará a entender as caricaturas lançadas sobre Ranke.

Portanto, o estudo da escola dos Annales tende a confrontar, com a chamada “história
problema”, com a história tradicional, por não concordar com a maneira que essa
historiografia procedia: ela estava presa a um único âmbito – a narrativa – que era
meramente descritiva, pois relatava apenas como as coisas realmente ocorreram,
narrando um evento histórico ou políticos, sem questioná-los. Atentando aos
documentos recolhidos, em seu determinado tempo, como tal ocorreram. Este tipo de
“história narrativa” – coirmã e talvez gêmea siamesa daquilo que Febvre chamou de
“história factual” – é a segunda entidade da tríade visada pelo historiador francês nos
seus combates pela história: a “história factual”, a “história narrativa”, a “história [da]
política”. (BARROS, 2012, p. 312)

 “Na “história-problema”, o historiador escolhe seus objetos no passado a partir


de interrogações do presente. Para obter tal êxito, os Annales inovaram de
várias maneiras: a noção de “fato histórico” como construção, em oposição ao
“fato dado” nos documentos (escola metódica); a ampliação e a variedade do
uso das fontes históricas; e a ambição de uma história total e global. Unindo-se
a tais propostas, os annalistes propuseram o uso da interdisciplinaridade.
(SALGUEIRO, 2014, p. 412).”

Contudo, por longo tempo ainda é feito um estudo historiográfico, com base narrativa,
mas com os novos eventos ocorrendo no século XX e uma nova Escola surgindo, a
narrativa não é o único meio de conhecimento e muitos menos de contar história.
Uma contribuição que marcou a escola do Annales é:

 “O grupo ampliou o território da história abrangendo áreas inesperadas do


comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores
tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à
descoberta de novas fontes e do desenvolvimento de novos métodos para
explorá-los. Estão também associados à colaboração com outras ciências
ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à linguística, da economia é
psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta
anos, um fenômeno sem precedentes das ciências sociais. (BURKE Apud
FARIAS; FONSECA; ROIZ, 2006, p.123-124)”

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Portanto, a corrente contemporânea negligencia o acontecimento e insiste na longa


duração; move sua atenção da vida política para a atividade econômica, as
organizações sociais, e a psicologia coletiva: se esforçando para aproximar a história
das outras Ciências Humanas.

Em outras palavras, Febvre recomenda, por um lado, não isolar patamares da


realidade social, pôr em evidência suas interações; por outro lado, inverter a
hierarquia das instâncias; em vez de ir do político para o econômico, remontar do
econômico ao político.

Bloch (2001), por exemplo, defendia o abandono de sequências pouco úteis de nomes
e datas e estimulou um maior questionamento sobre a relação entre homem,
sociedade e tempo na construção da história. Alguns historiadores passaram a utilizar
as teorias de Ranke, ou seja, o apoiavam em seus métodos, particularmente no campo
da história política, sendo que sua metodologia e técnicas permanecem em uso por
quase esses historiadores, isso devia se encerrar.

Passaram a observar que as fontes históricas são um meio investigativo fundamental


que o historiador, por sua vez, passa a realizar um trabalho entre o presente, passado
e um olhar futuro do ser humano. Analisando que tudo que ocorre durante a evolução
humana é baseada na própria produção humana, o homem próprio homem é uma
fonte histórica. Enfim, não é apenas um texto escrito que deve ser entendido como tal,
como defendia o Ranke, preso a uma história do Estado.

Renovar para permanecer


 “A sociologia teve uma grande influência do discurso dos Annales ao ponto que
trouxe para a história ‘a estratégia de tudo absorver’”. (DOSSE, 2003, p. 44).
Essas influências da sociologia, tanto com Durkheim, como com Simiand,
auxiliaram no pensamento dos Annales, escola cujas influências repercute até
hoje na escrita historiográfica. Pode-se, portanto, afirmar que os Annales foram
muito bem-sucedidos ao agrupar as ciências humanas por detrás de sua
bandeira, a História (DOSSE, 2003, p. 90).

Essa é uma importante característica, visto que a partir do início do século se teve a
necessidade de se fugir dos ídolos mencionados por Simiand, pois eles não traduziam
mais a realidade de uma Europa em crise. Os Annales vão traçar seus estudos em cima
da economia e da sociedade, abandonando os ídolos da tribo dos historiadores.

 “O atraso da História para Simiand se localizava, de modo especial, na


inoportuna presença de “três ídolos da tribo dos historiadores, que são: a
política, o individual e o cronológico”, em alguns mitos por ele apontados: o
ídolo político, o ídolo individual e ídolo cronológico. Em sua percepção, a
atenção exagerada conferida à história política deveria ser ponderada sem,
contudo, serem abandonados os fatos políticos, estes deveriam apenas perder
sua centralidade na análise da História. Outro mal hábito dos historiadores era

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entender a história como história dos indivíduos, o que muito recorrentemente


os fazia organizar as pessoas em torno de determinados sujeitos, tais como
reis, diplomatas e generais, secundarizando o que deveria observar de modo
mais acurado: as instituições e os fatos sociais. A crítica à narrativa do político,
das guerras e batalhas e do ídolo individual, formuladas por François Simiand
deve, segundo Nobert Elias ser situada na mudança pela qual os sentidos de
social e sociedade passam ao longo de processo que tem a Revolução Francesa
como momento culminante. (SANTOS, 2019 p. 5)”

Nesse aspecto, Bloch, parceiro de Febvre na revolução historiográfica, chega a se


reconhecer devedor de Durkheim, afirmando que ele os ensinou a analisar mais
profundamente, a cingir mais de perto os problemas, a pensar menos ligeiramente.
(DOSSE, 2003).

Nota-se que na análise feita por Febvre havia em sua obra a oposição à tradição da
escola metódica, atribuindo novas formas de história: a dos Annales. Para ele, a
história para permanecer com alguma importância e lugar definido entre as ciências,
ela precisa se transformar radicalmente.

Na tentativa de renovar a História e de absorver as críticas da sociologia nascente – em


vez de ser absorvida por ela – eles conseguiram unir diversas áreas de conhecimento
contra um adversário em comum: a própria história, mas aquela dita positivista que
era preciso abandonar sem que fosse perdido o papel e a influência da História. Por
isso, afirma Barros:

 “São tão antagônicas como o são a velha e popular frase de Seignobos – “sem
documento não há história” – e a réplica de Lucien Febvre, “sem problema não
há história”, ela sim escrita, neste caso, em provocação direta contra o velho
historiador metódico. (BARROS, 2012, p.310).”

Essa característica, por sua vez, permite assegurar a continuidade e a coesão do


movimento, permitindo afirmar que os Annales por toda sua extensão e camadas, já
que se trata mais de um movimento que de uma escola com tendências uniformes,
continuam herdeiros dos métodos de seus pais fundadores.

A escola dos Annales surge com o objetivo de avançar universalmente o trabalho


científico do historiador, ela extrairá seu caráter inovador da história-problema, da
promoção de pesquisas coletivas. Se a Escola Metódica contribuiu com cientificidade
da história, esse movimento propôs também uma cientificidade no método histórico,
agora próximo das ciências sociais, em particular da sociologia.

 “À força de repetir com a escola moderna que a história é uma representação


do passado, exata, imparcial, sem fins tendenciosos nem moralizadores, sem
intenções literárias, romanescas, anedóticas- o que constitui, come feito, uma
concepções e ás praticas historiográficas anteriores – esquecendo-se de

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sublinhar que “exato” não quer dizer integral que “ imparcial” não quer dizer “
automático”, que sem fins tendenciosos, sem preocupações literárias não
querem dizer “ sem preconceito, sem escolhas. (SIMIAND Apud FARIAS;
FONSECA; ROIZ, 2006, p.121-126.)

Assim, se houve essa necessidade de renovar, é importante não esquecermos não


apenas as contribuições de Ranke, mas a necessidade de estudá-lo sem o filtro das
críticas dos Annales. O peso dessa crítica precisa ser compreendido para que
libertemos Ranke da estereotipia que foi lançada sobre ele.

Apesar das críticas levantadas à concepção narrativista da história ou mesmo


historicismo, afirmou-se ingenuamente que Ranke defendia que a história estava
literalmente nos documentos, e que esteve diretamente e indiretamente representado
em cada escola, pois, com certeza, ele foi um grandioso arquiteto dessa disciplina e de
sua construção mediante o paradigma da ciência.

 “De um lado, pretendemos demonstrar que o processo histórico, em Ranke,


não é um mosaico de fragmentos e tampouco um curso evolutivo. (...) ele é
uma dotado de um sentido costurado pelo fio da contingência; de outro lado,
apresentamos ao leitor a ideia de que, em Ranke, há uma prática hermenêutica
capaz de nos levar a retocar sua imagem de um mero reprodutor de fatos.
(MARTINS, 2008 p. 14).”

Portanto, essa reflexão é um convite para revisitar esse autor descolado das críticas
dos Annales. Embora tenha sofrido uma caricatura, Ranke ainda está por ser visto
como um colaborador na ideia de relatividade do objeto histórico, muito mais em voga
atualmente, pois já para ele o fenômeno social, cultural ou mesmo político só poderia
ser rigorosamente compreendido dentro da história, dentro do movimento da história
tendo em vista suas particularidades.

Conclusão
Embora, a imagem de Ranke pareça negativa mediante a críticas levantadas, podemos
mensurar que não era apenas um mero reprodutor das informações contidas na fonte
e, por sua vez, se foi considerado o pai da história científica, fez por merecer isso,
obtendo mérito por realmente impactar a formação dessa disciplina em sua época.
Além disso, ainda hoje, mesmo pouco lendo sobre ele, qualquer primeira visita aos
problemas teóricos dessa disciplina leva a Ranke. Se a história tem uma identidade,
ainda que não uniforme, certamente devemos essa questão a Ranke e seu esforço de
fazer, ele mesmo, a história do seu tempo.

Há um movimento significativa nos departamentos de teoria da história para resgatar


a figura de Ranke e reabilitá-lo aos olhos da prática historiográfica. Hoje termos a
oportunidade de resgatar um pouco do que se perdeu, fazendo releitura sobre ele e
como se fundamenta sua metodologia para Teoria da História e sua significação

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historiográfica, sem esquecer seu próprio contexto e a importância para seu período
de vida e pensamento, da história considerada tradicional.

É claro que a análise feita durante a pesquisa é bastante metódica, na qual pudermos
aqui compreender o pensamento e a elaboração feita por Ranke, com as demandas
ocasionado com a escola historicista que obteve um papel importante na metodologia
e na teoria, que colheu frutos no desenvolvimento histórico. De maneia que o próprio
Ranke, com toda a sua bagagem historiográfica e suas especificidades, sendo ele
religioso, embora não devocional a ponto de interferir na sua perspectiva
historiográfica, vemos seu empenho em trazer um grau cognoscível de cientificidade
ao seu ofício.

Enfim, a caricaturização sobre esse historiador é algo evidente. Quando acontecem


mudanças e inovações é sempre preciso rever com cautela sobre quem ou o que essas
mudanças estão se contrapondo, evitando, dessa forma, a sobrevida do estereótipo
que eventualmente se forja. Nesse sentido, uma revisita a esse historiador alemão é
muito necessária.

Referências
Patriciane Escorcio é discente do curso de Licenciatura em Ciências
Humanas/Sociologia – UFMA e se dedica ao estudo da teoria da história. Alina Miranda
é a orientadora, professora associada da Universidade Federal do Maranhão – UFMA,
Mestre e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

“A VIDA QUE OS SERES CRIARAM SUFOCA O SENTIMENTO E


AGRILHOA A CARNE” - SYLVIA SERAFIM, A ESCRITORA
Bruna Luiza da Silva Matos
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o caso de Sylvia Serafim, que
teve sua vida mudada completamente após o jornal carioca Crítica publicar uma
matéria extremamente difamatória a respeito de seu divócio com o médico Ernesto
Thibau Júnior, insinuando uma suposta traição por parte de Sylvia. A escritora que se
destaca por sua produção intelectual e sua postura transgressora perante a sociedade
da época, teve sua história apagada após tirar a vida de Roberto Rodrigues,
responsável pelas ilustrações do periódico, com um tiro na barriga. Seu julgamento foi
considerado histórico, uma vez que foi o primeiro a ser transmitido ao vivo pelo rádio,
no ano de 1930. O trabalho também tem por objetivo evidenciar a relações de poderes
profundamente assimétricas entre os sexos.
Palavras-chave: Criminalidade feminina; Jornalismo; Sylvia Serafim; Crime passional.

Abstract
The present work aims to analyze the extraordinary case of Sylvia Serafim, who had
her life completely changed after the Rio de Janeiro newspaper Crítica published an
extremely defamatory article about her divorce with the doctor Ernesto Thibau Júnior,
insinuating an alleged betrayal by Sylvia . The writer who stands out for her intellectual
production and her transgressive attitude towards the society of the time, had her
story erased after taking the life of Roberto Rodrigues, responsible for the illustrations
of the periodical, with a shot in the belly. His judgment was considered historic, since it
was the first to be broadcast live on the radio, in 1930. The work also aims to highlight
the profoundly asymmetric power relations between the sexes.
Keywords: Female criminality; Journalism; Sylvia Seraphim; Passional crime.

Sylvia Serafim Thibau (1902-1936) era filha do médico sanitarista Augusto Serafim,
auxiliar de Oswaldo Cruz e foi uma mulher que nos dias de hoje, podemos considerar
progressista para o período em que viveu. Logo cedo deixou o jugo de seu pai, e
conforme percebemos pelas notas de jornais contendo dados biográficos sobre ela,
era uma intelectual com posicionamento libertário.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Ela queria expressar suas ideias, transpor barreiras e padrões, não conformando-se
com o que o destino reservava às mulheres de sua época. Sylvia publicou crônicas,
poemas e textos jornalísticos estes eram majoritariamente voltados para o público
feminino e colaborou para grupos importantes de comunicação da época Assis
Chateaubriand e Casper Libero.

Sob o pseudônimo de “Petite Source” para textos relacionados ao comportamento


feminino, condições das mulheres e sobre a intelectualidade das mulheres de sua
época e “Cinderela” para as publicações mais triviais referentes a moda, casamento ou
maternidade. Sylvia era integrante da alta sociedade, ela narrava com um olhar
bastante crítico e erudito sempre, publicando em uma época em que não era
considerado “de bom tom” mulheres falarem sobre assuntos diversos ou ousarem
expor suas opiniões de modo público.

Fonte: RIO DE JANEIRO. Fon-Fon. 07 de março de 1931, edição 10, p. 42.

Ao analisarmos a imagem é possível perceber que Sylvia é a única mulher presente no


evento de jornalistas.

Muitos de seus poemas revelam uma forte carga biográfica, seus escritos jornalísticos
expressavam toda a sua ideologia possuindo assim uma intensa carga autobiográfica
chegando a ser congratulada com o famoso Prêmio Literário noticiado pelo Jornal A
Noite, no ano de 1929 na edição de Agosto. Dentre as produções da escritora e
jornalista Sylvia Serafim, destaco a crônica nomeada de “Uma ruptura” também no
ano de 1929. Neste texto, uma esposa descontente e entediada com seu matrimônio
toma a decisão de romper o casamento fracassado em nome de um amor por outro
homem mais jovem.

Mostrando toda a sua coragem, Sylvia reunia em seus temas praticamente todos os
tabus de sua época, deixando explícito seu desejo de liberdade e ruptura com tudo o
que era incutido e “esperado” das mulheres que teriam que escolher entre um
casamento infeliz ou sua marginalização e estigmatização da sociedade devido à
separação.

No mesmo ano a autora também publica a crônica “Achas que Devo Hesitar?”, onde
narra um interessante diálogo entre duas amigas denominadas Lélia e Gilda em que a

75
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

primeira se vê num grande dilema amoroso entre um amor que considera verdadeiro
de um homem pobre e aquele que a sociedade considera o marido ideal, capaz de lhe
trazer segurança. Sua amiga e conselheira Gilda tem uma visão bastante crítica a
respeito da amiga “vender” sua felicidade como pode ser observado a seguir:

 “– Já vens tu com paradoxos... – Não, minha amiga, falo seriamente. Considero


o verdadeiro, o primitivo sentido da ideia de venda. (A venda) É a troca daquilo
que temos em excesso, pelo que necessitamos. – Pois seja tudo troca ou venda,
segundo dizes. Não faço questão de palavras; não estou em aula de retórica,
porém, angustia-me o teu destino, que prevejo infeliz. Seja todo ato humano
uma venda, tu, que eu sei sincera e apaixonada, não deverias antes trocar o teu
futuro pela felicidade do amor, do que pelo dinheiro? – O amor ... o dinheiro,
francamente, Gilda, nunca te julguei assim ingênua e inexperiente. Como
lanças esses dois termos, também já irreconhecíveis pelo gastar do uso e do
abuso? Mas, enfim, já chegaste ao meu ponto de vista, e isso, é alguma coisa.
Disseste bem, minha amiga, trata-se de trocar o meu futuro, esta liberdade a
quem já me habituei, por alguma coisa que julgo dever completar minha vida.
(...)” (THIBAU, 1929)

Como anteriormente mencionado, Sylvia tem uma forte carga autobiográfica e seus
escritos refletem o que ela passava em sua vida pessoal, além de manter sua carreira,
na época era casada com o respeitado médico Ernesto Thibau Júnior, com quem
também tinha filhos. Em 1929, com 26 anos de idade, Sylvia opta pela separação e
começa então o seu calvário.

O início do fim
No dia 26 de dezembro de 1929 o jornal Crítica, de Mário Rodrigues, pai do escritor,
dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, publicou um artigo, em que não somente
expôs todo o processo de separação de Sylvia e Ernesto, mas também, fazendo graves
insinuações sugerindo a possibilidade de adultério com os nomes completos de todos
os envolvidos.

A espantosa e indiscreta manchete em letras garrafais dizia: “Entra Hoje em Juízo


Nesta Capital Um Rumoroso Pedido de Desquite”, logo abaixo uma ilustração de
Roberto Rodrigues que mostra uma representação misógina, vulgar e machista de
Sylvia com as pernas entreabertas e expostas, deixando ser tocada pelo médico
radiologista Manoel de Abreu podemos observar que sua vestimenta é muito mais
curta do que seria considerado adequado para época, propositalmente a imagem
passa a idéia de Sylvia como alguém “indecente”. Como sabemos a imagem é um
elemento bastante importante na construção de uma narrativa:

 “[...] as imagens que acompanham invariavelmente os textos é que fazem com


que outras sensações sejam contempladas pela descrição da notícia. Ao lado da
imaginação criadora, colocada em evidência com a descrição da cena, assiste-

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

se à reconstrução da tragédia ao visualizar a cena. A imagem induz a sensação


do olhar.” ( BARBOSA, 2007 p. 67)

RIO DE JANEIRO. Crítica. Ha Uma Grande Ansiedade Publica em Conhecer os Motivos


da Separação do Casal Doutor Tibau Junior. Rio, 26 de dezembro de 1929, Anno 2,
número 346. (editado pela autora)

Conforme apontado no próprio título da matéria, havia uma ânsia social em desvendar
os mistérios envoltos no caso de separação entre Sylvia e João Thibau Júnior. O próprio
jornal afirmou que os relatos coletados pela Caravana da Crítica são
“comprometedores da honra da escritora, além de balançarem os méritos do grande
radiologista Dr Manoel de Abreu”.

Nesta mesma edição difamatória, a qual devo salientar, era um aspecto jornalístico da
Crítica, consta a seguinte passagem:

 “Há uma grande ansiedade pública em conhecer os motivos da separação do


casal Doutor Thibau Júnior. Será o conhecido Radiologista Dr. João de Abreu o
causador directo da dissolução do lar daquele seu ilustre colega? Madame
Sylvia Thibau, que subscreve suas crônicas em jornais e revistas com
pseudônimo de Petite Source, esteve em nossa redação.” ( RIO DE JANEIRO.
Crítica. Ha Uma Grande Ansiedade Publica em Conhecer os Motivos da
Separação do Casal Doutor Tibau Junior. Rio, 26 de dezembro de 1929, Anno 2,
número 346.)

A acusação de um possível romance com o médico Manuel de Abreu Júnior, é


simplesmente devastadora a fazendo perder completamente os sentidos. Os atributos
de ser uma profissional e mulher desquitada, eram fatores que carregavam muitos
estigmas a Sylvia. A acusação de adultério era um desastroso agravante para a sua
situação, desesperada a escritora teria em um rompante, tentado suicidar-se ao ser
impedida acabou por escolher destruir aquele que compreendeu como o responsável
pela sua deplorável situação: Mário Rodrigues, o editor chefe do jornal Crítica.

Sylvia vai até a redação do Crítica à procura do editor chefe e é recebida pelo seu filho
Roberto Rodrigues com quem trava uma discussão, conforme é relatado no seu
depoimento perante o júri. Ao sentir-se humilhada e afrontada novamente, armou-se

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

de um pequeno revólver que trazia em sua bolsa, disparando apenas um único tiro em
Roberto, no dia 26 de dezembro de 1929. O ilustrador, devido à gravidade do
ferimento, faleceu alguns dias após o atentado.

No entanto, no Crítica este fato é narrado de maneira bastante peculiar, pois ao


noticiar os eventos ocorridos, o jornal salientou de maneira deveras emocional a
brutalidade que se abateu sobre a redação do jornal com o atentado sofrido por
Roberto Rodrigues. O ilustrador, tornou-se gradualmente, um espectro de bondade e
honradez, sendo um personagem descrito com riqueza de detalhes tornando-se um
sujeito conhecido dos leitores. O jornal divulgou amplamente, logo após o crime, a
imagem do homem honrado, trabalhador e pai de família que foi vítima de uma
“tresloucada”:

 “Apesar de sua pouca idade, Roberto Rodrigues não tem na sua vida de artista
e de homem um fato desses que a adolescência explica absolve. Austero nos
seus costumes íntimos, já chefe de família, sua vida é um exemplo de
circunspeção.” (RIO DE JANEIRO. Crítica, 27 de dezembro de 1929, p. 08).

O/a leitor/a tem uma reconstrução detalhada do acontecimento como pode ser
observado:

 “Como era dos seus hábitos, já às 15 horas da tarde de ontem, Roberto


Rodrigues encontrava-se na redação palestrando com vários companheiros. Em
dado momento sem fazer-se anunciar, de maneira insólita e criminosa, útero
dos apaziguados de Assis Chateaubriand, penetra na redação e, dirigindo-se ao
primeiro que lhe veio ao encontro indaga, em desembaraço e polidez, se o
nosso diretor Mario Rodrigues estava presente.” (RIO DE JANEIRO. Crítica, 27
de dezembro de 1929, p. 08).

E segue:

 “Obtendo resposta negativa, isso não a impediu, contudo, de ir até a porta do


gabinete da chefia de redação cuja porta empurrou, examinando o interior do
aposento inteiramente vazio e propicio, pois, ao seu plano sanguinário. Ato
contínuo dirigiu-se ao nosso companheiro Roberto e, sem alteração nenhuma
de voz, gesto ou fisionomia, disse-lhe desejar falhar-lhe.” (RIO DE JANEIRO.
Crítica, 27 de dezembro de 1929, p. 08)

Podemos perceber que tamanha presença de detalhes coloca o leitor na redação de


Crítica, o texto informa que Roberto “cortesmente indicou-lhe uma cadeira” dispondo-
se a ouvir Sylvia, no entanto ela preferiu encaminhar-se ao gabinete ao lado, uma vez
que o assunto era de natureza reservada. O texto cria um efeito de suspense no leitor
e apela para todos os sentidos:

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

 “Minutos após, do gabinete da chefia da redação, para onde os dois se haviam


retirado, partiam uma detonação, seguido de um apelo de socorro clamado
pelo nosso Roberto. Imediatamente, ao estampido, ao grito e ao baque do
corpo, os que se achavam na sala de redação lançaram-se ao local de onde
viera a denotação, indo encontrar a criminosa, em cinismo sorridente, de arma
fumegando á mão e, ao solo, estorcendo-se com o ventre perfurado, Roberto
vítima da emboscada e da vilania da amante de todos os filasteiros da imprensa
da terra.” RIO DE JANEIRO. Crítica, 27 de dezembro de 1929, p. 08

A narrativa provoca a interação do/a leitor/a com aquele mundo, daí a necessidade de
detalhar o acontecimento, especificando tudo aquilo que chama atenção dos sentidos,
para que dessa forma, os sons ecoem na imaginação de quem está lendo. A cena é
construída pelos sentidos, especialmente o auditivo, primeiro o estampido, mais tarde
o grito e, por fim, o baque do corpo caindo no chão. Quem está descrevendo a cena
presenciou aquele momento por meio dos sons que ecoaram na redação do jornal,
assim como o/a leitor/a. Assim como o repórter, o leitor consegue reconstituir a cena
pelas sensações que a notícia traz.

A matéria então passa a ter um narrador onipresente que se faz capaz de visualizar os
acontecimentos do cômodo onde estavam apenas Sylvia e Roberto presentes, o
redator descreve detalhes, fantasiando uma cena para que o/a leitor/a também o faça:
“Sylvia Thibau a sós com Roberto Rodrigues verberou asperamente a reportagem que
ontem foi publicada sobre seu desquite, Gentleman Roberto Rodrigues procurou, com
a mesma delicadeza explicar a atitude do jornal, mas a meretriz não deu tempo, trazia
o crime premeditado. Queria matar. Roberto estava sentado a uma mesa, cuja a
cabeceira também se encontrava sentada a criminosa. Disfarçadamente abriu a bolsa
onde trazia um revólver Galant, tipo pequeno e de lá retirou a arma.” (RIO DE
JANEIRO. Crítica, 27 de dezembro de 1929, p. 08)

A visualização dos detalhes que o jornalista possibilita, se mistura com opiniões


veladas, que colocaram os envolvidos em campos opostos mal e bem, vilão e vítima. A
delicadeza do ilustrador destaca-se em contraposição a das falas acerca da
premeditação do crime e a dissimulação de Sylvia:

 “Roberto nada percebera. De repente, erguendo-se a prostituta fez a pontaria


e deu ao gatilho. A bala foi atingir em pleno o ventre. Roberto ergue-se da
cadeira, soltando um grito de dor para cair, ensanguentado no assoalho. Sylvia
arma em punho ainda tenta alvejar Roberto, quando foi presa em flagrante
pelo o inspector Garcia.” (RIO DE JANEIRO. Crítica, 27 de dezembro de 1929, p.
08)

Por mais quatro dias os leitores de Crítica acompanharam a desastrosa trama, os


últimos momentos de Roberto Rodrigues agonizando no hospital, as manifestações de
solidariedade, a prisão de Sylvia e a morte e o enterro de Roberto Rodrigues. Essas

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

narrativas emocionadas geraram a criação de um mundo imaginado, fazendo com que


o público se sentisse parte da realidade mitificada do escritor.

Sylvia foi conduzida sem nenhuma resistência por um policial ao 1º Distrito de Polícia,
na Praça Mauá. O acontecimento fez com que não só a alta sociedade carioca como
também o meio jornalístico da época ficasse em polvorosa. Uma verdadeira guerra
editorial começou utilizando-se do drama de Sylvia. De um lado, o grupo comandado
por Mário Rodrigues, e, de outro, o grupo comandado por Assis Chateaubriand a favor
de Sylvia. O segundo grupo publicou matérias enaltecendo a carreira de Sylvia, sua
condição de mulher, mãe, batalhadora e as humilhações que o jornal Critica a fizeram
passar.

Por parte dos Rodrigues, Sylvia é acusada em manchetes de meretriz, criminosa,


“cadela das pernas felpudas”, sanguinária, traiçoeira, “literata do mangue”,
emboscadeira, entre outros xingamentos. Já Chateaubriand, buscava construir uma
boa imagem pública de Sylvia.

O Diário Carioca do grupo Chateaubriand considerou que não foi nenhuma grande
surpresa o acontecimento, uma vez que o periódico era sensacionalista e
frequentemente publicava figuras ultrajantes. De acordo com Carla Karloni, o jornal
considera o caso como um ato “em defronta da honra pessoal”.

Em uma de suas publicações o jornal realizou uma entrevista com Sylvia na delegacia e
a jornalista relata:

 “Fui à redação da Crítica para falar pessoalmente com o seu diretor [...]. Eu
desejava retificação de uns certos comentários que aquele matutino publicara
hoje. Roberto falou que não teria tempo para ‘rameiras’. Não tinha a intenção
de matá-lo. Comprei arma para me defender de alguma agressão.” (RIO DE
JANEIRO. Diário Carioca, 27 de dezembro de 1929, p. 9)

Sylvia logo em seguida é internada em uma casa de repouso particular, diante de seu
estado de saúde debilitado, ela também sofria de uma condição denominada
“radiodermite” devido às sucessivas sessões de raio x que fez em seus membros
inferiores com o intuito de eliminar os pelos corporais.

Enquanto isso, a guerra editorial jornalística seguia com todas as forças. Segundo é
apontado no Diário Carioca, o Critica estaria novamente buscando ofender a honra e a
honestidade de Sylvia através da afirmação de que ela estaria fazendo passeios
noturnos de automóvel em companhia íntima.

O advogado de Sylvia então, abre um inquérito para verificar a autenticidade da


informação, onde foi descoberto que nenhuma das fontes do jornal tinham sequer
visto Sylvia, se não pelas fotos nos jornais e as notícias foram consideradas falsas.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

A vilã
Para o pesquisador e bisneto de Sylvia Serafim o autor Sérgio Schargel, o maniqueísmo
em sua vida, inicia-se logo após o assassinato e se mantém até a atualidade (SCHARGE,
2021, p. 63).

Uma vez que o julgamento de Sylvia também serviu de palco para uma disputa entre
os progressistas e o conservadorismo, em que o primeiro grupo defendeu que Sylvia
teve sua privacidade exposta e devido à gravidade da situação não viu outra
alternativa a não ser tomar medidas trágicas.

Já o segundo grupo, afirmou que Sylvia é uma vergonha para toda a sociedade,
principalmente para as mães brasileiras, tanto que o jornal Crítica chegou a afirmar em
uma de suas inúmeras publicações acerca do tema que o fato dos grupos progressistas
e feministas a defenderem, representava um “ultraje à família brasileira. Os amigos da
assassina Sylvia Serafim tentam equipará-la às virtuosas damas de nossa sociedade!
[...] A família brasileira paira muito acima de todas essas indignidades.”

Para Schargel (2021, p. 63) Sylvia foi:

 “Tomada como bode expiatório e no cerne dessa disputa político-ideológica,


Sylvia sofreu um processo de desumanização, interpretada de forma
maniqueísta por ambos os lados, ora sacralizada, ora demonizada. Uma
desumanização cuja herança se percebe ainda hoje, considerando a dificuldade
de encontrar sua obra literária e jornalística, embora seu crime ainda esteja
bastante presente na memória coletiva e na cultura popular [...]”

As percepções e os apontamentos elaborados pelos jornais que noticiaram o caso de


Sylvia eram feitos de acordo com os seus respectivos interesses e objetivos e esse
processo só se intensificou com o passar do tempo, uma vez que grandes
personalidades da época começaram a se posicionar a respeito do caso.

Para além de Chateaubriand e todo o domínio midiático que possuía, grupos


feministas, progressistas e a ilustre Bertha Lutz, se posicionaram a favor de Sylvia.
Porém a imagem propositalmente divulgada pelo Critica de Sylvia como sendo uma
assassina fria, adúltera, mãe sórdida, ora era tratada pelo o jornal como psicopata, ora
como psicótica. Evidenciando a necessidade do vilão, e do herói, esse traço
maniqueísta unilateral, faz com que todas as narrativas se mostrem incapazes de se
aprofundarem na situação de Sylvia.

Na matéria de 24 de agosto de 1930 na edição número 557 isso fica bastante evidente
quando, logo após a morte de Mário Rodrigues, em uma montagem Sylvia é posta
rindo de maneira debochada de seu caixão.

81
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

RIO DE JANEIRO. Crítica. 24 de agosto de 1930, edição n. 557. (editada pela autora)

A imagem acima, serve para reafirmar a perspectiva desumanizada e insensata com a


qual Sylvia era tratada, em contrapartida Roberto Rodrigues é descrito como uma
espécie de mártir, um artista detentor de grande genialidade e virtudes inacreditáveis.

O que não é tratado no Crítica, mas é lembrado pelo biógrafo e escritor brasileiro Ruy
Castro, autor da biografia Anjo Pornográfico de Nelson Rodrigues, tanto Roberto
quanto seu pai Mário eram abertamente adúlteros como pode ser percebido nos
trechos a seguir:

 “ [...] Elsa (esposa de Roberto) foi morar com Roberto no palacete da rua
Joaquim Nabuco. Os dois construíram o seu ninho no porão, mas - ponha nisso
uma característica de temperamento ou apenas uma circunstância - o ateliê de
Roberto no largo do Machado continuou a todo pano. Sua nova condição de
casado parecia torná-lo ainda mais magnético e nem as amigas mais sirigaitas
de Elsa se continham. Uma delas suspirou: “Os olhos de Roberto me fazem
cócegas”. O casamento não o tomara impermeável às paixões fora de casa, e
pelo menos uma dessas foi febril: a que teve com Anita, irmã do poeta Augusto
Frederico Schmidt.” (CASTRO, 2007, p. 75).

Em relação a Mário Rodrigues, este momento se evidencia após a morte de Roberto


onde Maria Esther sua esposa e mãe de Roberto faz a seguinte afirmação:

 “ O tiro fora para ele, Mário Rodrigues, mas quem o recebera foi Roberto.
Maria Esther não o poupava enquanto espremia o lencinho: “Eu te perdôo
tudo, menos isto”. Por “tudo” queria dizer os velhos sumiços de Mário, as
carraspanas, os ataques de ciúmes, as brigas entre os dois e as cartas e
telefonemas anônimos de mulheres contra ela. Mas Mário não queria perdão,
queria Roberto (CASTRO, 2007, p. 94).”

Enquanto isso Sylvia era tida como adúltera, apesar de o ex marido de Sylvia, Ernesto
Thibau confirmar que os motivos que os levaram ao divórcio nunca estiveram
relacionados a adultério e sim à vontade de Sylvia em se dedicar de maneira mais

82
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

intensa a sua carreira de jornalista e escritora. Como pode ser visualizado no


fragmento a seguir:

RIO DE JANEIRO. O Jornal. 28 de dezembro de 1929.

Apesar disso, sua reputação foi profundamente afetada, mesmo atualmente, na maior
parte das obras acadêmicas ou literárias, Sylvia ainda é tratada com inferioridade,
apenas a ''mulher rodrigueana” ou a assassina.

Fonte: RIO DE JANEIRO. Crítica. 25 de fevereiro de 1930.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

O fim
No dia 22 de agosto de 1930 foi realizado o julgamento de Sylvia por homicídio.

.Fonte: RIO DE JANEIRO. O jornal. 23 de agosto de 1930, ano XII, n. 3613, p. 01.

“A acusação utilizou de argumentos relacionados à ausência de atributos femininos em


Sylvia, que de acordo com eles: Desde cedo mostrou o seu gráo de inaptabilidade
social, de revolta às normas sociais. Refere-se à vida conjugal da acusada, dizendo que
ela não se conformara com a situação de anjo do lar e preferiu a posição de jornalista
para satisfazer a sua vaidade. O seu desquite é a prova de sua inadaptabilidade à vida
conjugal. O fato do abandono do lar pelo jornalismo caracteriza sua vaidade imensa.
Estão descritos os protagonistas do drama de um lado um bom, um honrado como
Roberto Rodrigues, sacrificado pela mão homicida e do outro a pessoa acusada que
acaba de traçar. E volta a falar da “gigantesca personalidade moral da vítima”. (RIO DE
JANEIRO. O jornal. 23 de agosto de 1930, ano XII, n. 3613, p. 01)

Novamente é observado o discurso machista que a família Rodrigues já vinha


reverberando em seu jornal desde o início do caso. Apesar disso, a imagem de
criminosa fria não impera mais. Prevalece no julgamento, a imagem de que Sylvia foi
uma mulher que agiu sob forte emoção após ver sua privacidade exposta, graças às
publicações difamatórias do jornal de Mário Rodrigues.

Por isso Sylvia foi absolvida no júri por 5 votos contra 2, sob o pretexto de crime
passional, foi considerado que a privação momentânea da razão que a levou a cometer
tal delito de natureza tão violenta, a legítima defesa da honra.

Ou seja, Sylvia curiosamente foi absolvida pelo mesmo fundamento que legitimou
inúmeros casos de feminicídios em nosso país. Ela foi submetida a um exame
psiquiátrico, o qual concluiu:

 “Num organismo e num temperamento assim definido, a natureza, a qualidade


e a intensidade do estímulo provocador ( publicação de uma notícia julgada
fortemente offensiva a sua honra pessoal) poderia lhe haver determinado uma

84
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

reacção psíquica de carácter mórbido semelhante às que caracterizam os


paroxysmos passionais – capaz de lhe haver prejudicado a normal utilização de
seu raciocínio e de sua vontade.” RIO DE JANEIRO. Diário Carioca. 1930, p. 03.

Entretanto Sylvia carregou para sempre os estigmas e preconceitos gerados pelo o


crime e as publicações extremamente vexatórias a seu respeito. Sylvia nunca mais
conseguiu se manter no meio jornalístico como tanto sonhava e sua produção
intelectual é deixada de lado e ela acaba caindo no ostracismo, no final a sociedade da
época a enxerga exatamente como a acusação dos Rodrigues a descreveram.

 “[...] a sua atitude arrogante e independente, desfazendo o matrimônio, que


lhe dera dois filhinho e a série de desastres que, desde então, marcaram a sua
existência, evidenciam que um destino descarregar sobre a frágil cabeça
sonhadora de golpes terríveis, que somente uma mulher de rara envergadura
moral conseguiria suportar dignamente.” (RIO DE JANEIRO. Fon-Fon. 17 de abril
de 1937)

A reportagem publicada pela periódico Fon-Fon, em que Sylvia costumava fazer suas
publicações e um dos jornais que colaboraram no combate às infames publicações de
Crítica, evidencia de maneira bastante assertiva o que boa parte da sociedade pensava
a respeito de Sylvia: uma mulher ingrata e rebelde cujo fim trágico ela fez por
merecer.

Sylvia então se apaixona por um militar da força aérea denominado Armando Serra
Menezes, com ele teve um filho e algum tempo depois é presa acusada de falsificar
documentos. No jornal Diário da Noite, Sylvia cedeu uma entrevista contando os
rumos trágicos que sua vida tomou.

Em letras garrafais a matéria é intitulada de “Na Cadeia com os Pulsos Golpeados


Sylvia Seraphin narra para o Diário da Noite a odysséa de sua vida agitada, Um
casamento no Uruguay e mais uma desilusão atroz”:

Fonte: RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 24 de abril de 1936, n. 2603, ano VIII.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Os pulsos cortados, são decorrentes dos golpes de navalha que Sylvia aplicou no local,
sendo visível sua fisionomia bastante magra, bem diferente de suas fotos tiradas antes
da tragédia naquele 26 de dezembro de 1929. Ela estava sendo mantida em cárcere
privado desde 23 de abril do ano de 1936, uma vez que foi acusada de supostamente
apresentar documentos falsos para entrar na faculdade de Direito da cidade de
Niterói.

Sylvia iniciou sua entrevista desmentindo a acusação de que ela teria viajado para o
Uruguai em busca de uma reconciliação com Armando, na verdade ela estava tratando
de seu casamento:

 “Os jornais — Iniciou a sua palestra conosco — não foram justos quando
disseram que eu havia viajado até Curityba para forçar uma reconciliação com
o tenente, Armando Serra Menezes. Conforme já declarei, vivemos durante
quatro anos juntos e, realmente, os sentimentos que nos ligara tinham de ser
forçosamente inteusos. Isso, entretanto, já passou. Não me Interessa mais. O
ruído feito em tomo do meu nome, neste momento, tem por origem a situação
do meu filho, que, afinal de contas não é culpado do desvario da mãe. somente
me preocupo com o futuro dele [...]” ( RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 24 de
abril de 1936, n. 2603, ano VIII.)

Afirmou na mesma entrevista:

 “Depois do último escândalo ocorrido com o meu nome, a minha única


preocupação era levar uma vida tranquila, de forma a evitar qualquer
publicidade prejudicial. Deixei de escrever nos Jornais. Abandonei a minha
carreira literária, tão auspiciosamente começada. Fugi dos amigos que
pudessem me lembrar do drama passado.' Fechando a tragédia da rainha vida
dentro de mim mesma, procurei me esquecer para reviver. O meu isolamento
era um caminho para a ressurreição.” (RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 24 de
abril de 1936, n. 2603, ano VIII)

Fonte: RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 24 de abril de 1936, n. 2603, ano VIII.

86
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Sylvia também explicou que sentiu a necessidade de um companheiro, pois “era


mulher e como tal, não conseguiria realizar sozinha essa obra de reabilitação moral”,
viveu durante quatro anos como esposa do tenente que convenceu Sylvia a se casar
com ele de maneira a acobertar seu filho Ronald de qualquer equívoco, mas como as
leis do Brasil não permitiam o divórcio, optaram por se casar no Uruguai. Estando
naquele país, Sylvia descobriu que seu futuro marido estava noivo no Brasil, fazendo
com que ela voltasse imediatamente para o Rio de Janeiro.

Pouco tempo depois da realização dessa entrevista, no dia 27 de abril de 1936, Sylvia
se suicidou aos 33 anos. Segundo o jornal, Sylvia fez uso de uma dose letal de soníferos
para atingir seu objetivo. Podemos perceber nas imagens a seguir que a jornalista teve
seu corpo violado mesmo após sua morte, as fotografias mórbidas publicadas pelo
jornal, ocupam o maior espaço nas páginas do periódico. Além disso, segundo a autora
Karla Carloni (2020, p. 78):

 “Além de explorar a imagem do corpo em várias edições, o periódico sinaliza


ter sido a beleza a “culpa maior” da jornalista que, mesmo depois de morta,
não teria a perdido. Nem depois de ter tirado a própria vida Sylvia deixou de
ser objetificada e desrespeitada em sua humanidade. Seu filho igualmente teve
sua imagem exposta na cena do acontecimento. Além da beleza, os jornais
indicavam ter sido a fraqueza diante da condição de mulher abandonada pelo
pai da criança o motivo do suicídio. Tratava-se de uma bela e frágil alma
infeliz.”

RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 27 de abril de 1936, ano VIII, n. 2605.

Considerações finais
Ao analisarmos o caso de Sylvia Serafim, conseguimos compreender que a violência de
gênero é um dos aspectos característico de inúmeros ambientes sociais, nas relações
amorosas, na imprensa, nas instituições públicas e nos relacionamentos profissionais.
O caso de Sylvia apresenta sucessivas violações sobre o corpo feminino, que era

87
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

compreendido como sendo privado (propriedade do marido) e ao mesmo tempo


público.

Sua situação é considerada pela imprensa como sendo escolha da própria Sylvia. Sua
vida foi estampada em jornais que lucravam com os seus infortúnios, ao mesmo tempo
em que promoviam um discurso de caráter quase que pedagógico a respeito de violar
as normas sociais impostas nas relações de gênero. Segundo Friedan:

 “[...] a normalidade é a maior excelência de que somos capazes. [...] O que


descrevem como autodestruição invisível no homem é, creio, igualmente
destrutivo na mulher que se adapta à mística feminina e espera viver por
intermédio do marido e dos filhos; que só deseja ser amada, sentir-se segura,
ser aceita pelos outros e nunca tomar um compromisso com a sociedade ou
com o futuro, nunca realizam seu potencial humano. As ajustadas, ou curadas,
que vivem sem conflitos ou ansiedade num mundo limitado do lar,
renunciaram à própria personalidade; as outras, as infelizes, frustradas, ainda
têm alguma esperança.” (FRIEDAN, 1971)

Sylvia foi transgressora e lutou até o fim, mesmo que de forma contraditória, para
controlar seu corpo e viver intensamente seus desejos e subjetividades. Jamais aceitou
sua condição limitada às mulheres. Por meio de suas publicações buscou tratar do
feminismo e questionar as normas da sociedade. Assim como Sylvia, ainda muitas
mulheres sofrem ao buscarem transgredir as normas sociais.

Assim como Malala, Frida Kahlo ou o conto de Madame Bovary, de alguma maneira
mulheres que se revoltam contra o cenário social vigente sempre acabam pagando um
preço bastante alto por isso. Em diferentes cenários e situações a história de Sylvia
ainda se faz muito presente em nossa sociedade.

Referências
Bruna Matos ingressou na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul em 2019 e no
ano de 2022 sob a orientação da professora Dra. Ana Meira iniciou seus estudos a
cerca da vida e obra da escritora Sylvia Serafim.

Fontes:
RIO DE JANEIRO. Fon-Fon. 07 de março de 1931, edição 10, p. 42.

RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 27 de abril de 1936, ano VIII, n. 2605.

RIO DE JANEIRO. Diário da Noite. 24 de abril de 1936, n. 2603, ano VIII.

RIO DE JANEIRO. Fon-Fon. 17 de abril de 1937.

RIO DE JANEIRO. O jornal. 23 de agosto de 1930, ano XII, n. 3613, p. 01.

88
Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

RIO DE JANEIRO. Crítica. 25 de fevereiro de 1930.

RIO DE JANEIRO. O Jornal. 28 de dezembro de 1929.

RIO DE JANEIRO. Crítica. Ha Uma Grande Ansiedade Publica em Conhecer os Motivos


da Separação do Casal Doutor Tibau Junior. Rio, 26 de dezembro de 1929, Anno 2,
número 346.

GOMES, Glaucia Alves. ‘Petite Source’ ou ‘Cinderela’ num Mundo Masculino. Amatra 1,
2022. Disponível em: <https://www.amatra1.org.br/noticias/?sylvia-queria-romper-o-
padrao-expressar-suas-ideias-em-vez-de-seguir-a-manada> Acesso em: 20 de
novembro de 2022.

ALMEIDA, Carla Cristine Souza de. O Pecado Contemporâneo na Obra de Nelson


Rodrigues: uma análise das peças Álbum de família, Otto Lara Resende ou Bonitinha,
mas ordinária e Toda nudez será castigada. São Paulo, 2018.

BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa – Brasil – 1900- 2000. Rio de


Janeiro: Mauad X, 2007.

CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico. São Paulo: Companhia Das Letras, 2007.

FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina, Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1971.

KARLONI, Carla. Mulheres Tecendo o Tempo: experiência e experimentos femininos


no medievo e na contemporaneidade. 1 ed. Curitiba, Editora CRV, 2020.

MEIRA, Ana Paula Galvão de. Me quiseram rosa, subjugaram meus espinhos:
mulheres rés e relações de gênero na Comarca de Castro, Paraná (1840-1890). Tese
(Doutorado em História). Marechal Cândido Rondon: Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, 2021.

SCHARGEL, Sérgio. O anjo pornográfico original: a desumanização de Sylvia Serafim.


Anais do VII Seminário do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. FFLCH-
USP, São Paulo, junho de 2021.

SCHARGEL, Sérgio. Sylvia Serafim, Serafim ou Sylvia. Rio de Janeiro. Intransitiva. v. 5,


n. 2, 2021.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

A CONTRIBUIÇÃO DO PROJETO ORIENTALISMO PARA


BOLSISTAS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA ESCOLAR
Roberta Soares da Silva

Resumo: Esse artigo tem como objetivo apresentar um relato de experiência


acadêmica na qual participo por meio do Projeto Orientalismo pela Bolsa Procedência,
oferecido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Diante disso, o leitor
será contemplado com a breve trajetória da minha experiência e da importância da
construção de atividades para a formação dos graduandos em História e
principalmente para o ensino de História sob a minha perspectiva desde o início do
projeto até o presente momento. O projeto está se desenvolvendo como uma
experiência fundamental para graduandos que através do conhecimento científico
desejam conhecer as Culturas Asiáticas, em especial, a China Antiga, bem como para o
Ensino de História.
Palavras-chave: experiência; formação de bolsistas; ensino de história

Abstract: This article aims to present an academic experience report in which I


participate through the Orientalism Project by Bolsa Procedência, offered by the State
University of Rio de Janeiro (UERJ). In view of this, the reader will be contemplated
with the brief trajectory of the importance of building activities for the formation of
undergraduates in History and mainly for the teaching of History from my perspective
from the beginning of the project to the present moment. The project is developing as
a fundamental experience for undergraduates who, through scientific knowledge, wish
to learn about Asian Cultures, in particular, Ancient China, as well as for Teaching
History.
Keywords: experience; training of fellows; history teaching

Introdução
O Projeto Orientalismo é um projeto de Extensão da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, coordenado pelo Prof. Dr. André Bueno. As pesquisas possuem a temática
sobre as Histórias Asiáticas, com ênfase em China e Índia no período da antiguidade,
sobretudo. Os estudos propostos visam demonstrar as particularidades,
especificidades e as diferenças em torno das perspectivas eurocêntricas que dominam

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

o conhecimento acerca desses povos tanto na academia quanto pelos discursos do


senso comum. Dessa maneira, o projeto tem o objetivo de estimular a pesquisa e
difundir conhecimentos para combater estereótipos e narrativas distorcidas sobre
esses povos. O projeto disponibiliza os materiais produzidos ao logo das atividades e
estudos desenvolvidos gratuitamente por meio eletrônico. A publicação de artigos,
ensaios, livros entre outros, contribui para uma construção historiográfica intercultural
que estude as Histórias Asiáticas considerando o saber vindo desses povos e não os
construídos pelo Ocidente. Os estudos desenvolvidos podem ser encontrados no site
do projeto de forma acessível e didática para todos que se interessam pelo tema.

Experiência pessoal
Iniciei no Projeto em maio de 2022, e considero que o projeto me permitiu analisar
como as escolas priorizam mais os estudos de Ocidente e quando mencionam o
Oriente tratam de maneira breve, apenas falando do desenvolvimento das primeiras
civilizações ou história dos Egípcios e suas pirâmides superficialmente, por exemplo.
Sendo os outros povos minimizados ao longo da construção do seu saber escolar e
posteriormente acadêmico. Ao refletimos sobre essa exclusão, cabe destacar, a
seguinte análise do professor André Bueno:

 “os cursos de História, nesse sentido, apresentam uma situação vexatória:


dispostos a formar especialistas em Ciências Humanas, seus currículos deixam
de fora dois terços do restante do planeta –incluso aí a China, simplesmente a
civilização mais extensa e duradoura na existência do planeta.” (BUENO, 2017,
p. 57).

Assim, ao longo da minha experiência com o projeto, pude perceber mudanças na


minha graduação em História, que passou por muitas transformações e ao obter
contato com o projeto e espero assim, poder contribuir para a difusão e construção de
novos conhecimentos historiográficos que não deixem de fora as Histórias Asiáticas. O
projeto nos permite refletir sobre a importância das Histórias Asiáticas nas
Universidades e para a construção do conhecimento historiográfico. Percebo assim,
que os currículos dentro das universidades precisam a ser repensados e reformulados
de maneira urgente.

Selva Guimarães Fonseca em seu livro Didática e prática de ensino de história, aponta
que para se construir um projeto educacional a figura do professor é a mais
importante dentro do processo e destaca: “este domina um conjunto de saberes e a
educação realiza-se por meio de seu trabalho de planejamento e desenvolvimento do
processo de ensino aprendizagem, sendo investido de autoridade acadêmica e
institucional.” (FONSECA, 2003, p.19)

Ao considerar que a figura do processo é uma peça fundamental no processo de


ensino-aprendizagem, realçamos a importância de refletir sobre os processos que
envolvem a construção do saber docente e de futuros professores em relação ao
ensino de história. Dessa forma, considero que o projeto permite difundir

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

conhecimentos que visem uma construção historiográfica intercultural, retratando a


importância da História Asiática para formação docente.

As reuniões, que em sua maior parte foram remotas e as presencias ao longo do


projeto, nos possibilitou contanto com uma variedade de referências bibliográficas e
aprendizados sobre formas de produção acadêmicas diversas sobre as Histórias
Asiáticas. Para além disso, nos permitiu contribuir para difusão dos estudos acerca
cultura asiática, o que considero uma experiência essencial para formação em História
e para o ensino de história em diferentes etapas, seja na formação do professor ou na
trajetória escolar.

Formação de bolsistas e ensino de história


Infelizmente, a ausência das Histórias Asiáticas se reflete dentro do ambiente escolar,
em virtude dos currículos escolares ou da negligência na formação de professores.
Devido a esse fato, professores que estão trabalhando nessas áreas dentro da
Academia acabam correndo atrás para que esse quadro seja revertido. Dentro dessa
realidade, viso demonstrar como o projeto vem contribuindo e impactando de forma
muito positiva na vida dos bolsistas e especialmente para o ensino de história.

O projeto tem característica interdisciplinar, permitindo dessa forma, a participação de


graduandos de outras áreas além de História. O que acaba proporcionando uma troca
bastante enriquecedora, como exemplo, da Arqueologia. Os temas apresentados e
debatidos durante as reuniões entre os bolsistas e o coordenador, contribuem para
uma troca entre diferentes áreas do saber e permite refletir sobre um ensino de
história intercultural na formação docente e escolar. A cada reunião, encerramos com
um novo conhecimento de nomes renomados, livros, documentários e outros.
Outro ponto, a se destacar é o incentivo à produção de material didático, o que é um
recuso importante para desenvolver as referências teóricas nas pesquisas dos bolsistas
e como também para difundir os estudos realizados sobre as Histórias Asiáticas.
Quando o grupo tratava sobre as dinastias chinesas foram produzidos trabalhos para
alunos em formato de questões com textos e imagens, confesso que por não ter tido
contato de redigir questões antes do projeto, senti mais dificuldades, mas o
coordenador André Bueno sempre corrigia e dava a sua opinião e as possibilidades
para melhorar e aperfeiçoar a produção.

Os conteúdos produzidos acabam aproximando os alunos junto com o campo


universitário, consequentemente, acaba rompendo a ideia de que eles não
compreendem temas mais complexos e não são capazes de desenvolver senso crítico
frente a novos debates. A construção do conhecimento sobre a cultura asiática no
projeto é incentiva por meio de uma formação que preza pela autonomia do
graduando o incentivando a refletir e analisar criticamente o conteúdo aprendido.
Posteriormente, por meio das atividades é motivado produzir materiais permitindo
que se expresse os processos de suas pesquisas e saber adquirido por meio de artigos,
por resenhas, apresentações, resumos entre outros.

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

Ademais, no processo de formação bolsista, podemos analisar que a História deve ser
ensinada para além dos livros didáticos. Sendo fundamental, questionar esses livros
escolares, desse modo, de acordo com Alexandre Galvão Carvalho:

 “A escolha do material didático, em especial do livro didático, é uma opção de


um enfoque histórico específico pelo docente, que precisa ser
permanentemente questionada a fim de se repensar o papel privilegiado no
processo pedagógico de determinado livro.” (CARVALHO, 2020, p.19)

Existem assim, outros instrumentos pedagógicos atualizados que nos permitem uma
aula mais lúdica, seja por meio de jogos, mangás, filmes, quadrinhos, entre outros.
Dentro desse ponto de ensino aprendizagem, um recurso bastante usado no projeto
foram os documentários, dentre eles intitulado “Construindo um Império: China”,
apresentado pelo History Channel e disponível em plataforma eletrônica. Merece
destaque, pois o recurso audiovisual nos permite apresentar ao aluno um panorama
geral sobre a História da China através de uma linguagem bem acessível, diante disso,
as imagens apresentadas de grandes construções, como exemplo a Grande Muralha,
que tiveram um peso significativo servem para aproximar os alunos daquele momento
o máximo possível.

Somado a isso, o documentário de curta duração que é um ponto muito positivo, já


que não se torna monótono para os alunos. A narrativa audiovisual, consegue
apresentar a trajetória das dinastias chinesas e suas principais características até a
atualidade da Chinesa. Desse modo, é preciso que o professor procure outras
possibilidades nesse processo de ensino e aprendizagem de história. Podemos analisar
assim, que o documentário permite interação entre os alunos, levando a
apontamentos e perguntas que bem conduzidas incentiva o processo de
desenvolvimento do senso crítico educandos. Cabe destacar que todo material
escolhido deve ser analisando criticamente também, pois são narrativas produzidas em
uma outra época. Sendo assim, podem ser usadas em sala permitindo que os alunos
percebam anacronismos, generalizações exacerbadas entre outros aspectos.

Considerações finais
Desse modo, as reflexões aqui colocadas, são frutos do processo de formação como
bolsistas. Esses apontamentos acerca dos outros instrumentos pedagógicos que
possam ser usados no ensino de história são parte do que debatemos no projeto para
além dos estudos e conhecimento científico produzido sobre cultura asiática. O Projeto
Orientalismo assim, não permite apenas um outro olhar sobre a formação acadêmica
do bolsista como também proporciona novas formas de conceber o ensino de história
a fim de dar base significativa para os futuros professores ministrarem aulas sobre as
infinitas Histórias Asiáticas que existem fora da concepção eurocêntrica. Nós,
infelizmente, estamos vivenciando a era dos preconceitos, frente a um momento de
pandemia do covid-19, onde os chineses são culpados pelo mundo de propagaram o
vírus, não estimular o estudo sobre o oriente acaba impulsionando estereótipos e

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visões erradas sobre muitos povos. Somente a educação tem o papel de reverter essa
situação de fazer com que tais preconceito sejam amenizados.

Referências
Roberta Soares da Silva, graduanda em História e bolsista no Projeto Orientalismo pela
UERJ-Rio.

BUENO, André. Ensinando a história da China: como fazer? Teaching history of China:
how to make? Irati, Revista Tel Tempo, Espaço e Linguagem, v.8, n.2, p. 56-67, 2017.

CARVALHO, Alexandre Galvão. Diálogos entre História Antiga e o ensino de História.


Perspectivas e Diálogos: Revista de História Social e Práticas de Ensino, v.2, n.6, 2020.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. São Paulo:


Papirus Editora, 2003.

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ENSINO DE HISTÓRIA E IMAGINÁRIO NOS JOGOS ELETRÔNICOS


Lucas Pinto Soares
Resumo:Através deste artigo objetivamos ampliar o debate a respeito do uso de jogos
eletrônicos, que têm como base acontecimentos históricos, como ferramenta de mídia
alternativa para o ensino de história. Apontamos o imaginário que esses jogos criam
nos alunos por meio de suas narrativas e cenários, dessa maneira, ao inserí-los no
plano de aula devemos ter consciência dos benefícios e desafios para que seja efetiva
as competências adquiridas pelos estudantes, sendo necessário o pleno domínio do
docente no conteúdo do jogo e da aula e na utilização desse recurso didático.
Exemplificamos dois jogos como amostra dessa mídia, The Elder Scrolls V:Skyrim e
Assassins Creed Valhalla, que relatam suas histórias sob ambientações medievais,
misturando acontecimentos históricos e mitológicos, criando uma experiência imersiva
e didática a respeito de determinados períodos e lendas.
Palavras-chave: Ensino de história; Jogos eletrônicos; Educação.

Abstract: Through this article we aim to broaden the debate about the use of video
games, which are based on historical events, as an alternative media tool for the
teaching of history. We point out the imaginary that these games create in the
students through their narratives and scenarios, so, by inserting them in the lesson
plan, we must be aware of the benefits and challenges in order to be effective the
competencies acquired by the students, being necessary the full mastery of the
teacher in the content of the game and the class and in the use of this didactic
resource. We exemplify two games as a sample of this media, The Elder Scrolls
V:Skyrim and Assassin's Creed Valhalla, which relate their stories under medieval
settings, mixing historical and mythological events, creating an immersive and didactic
experience about certain periods and legends.
Keywords: History teaching; Video games; Education.

Introdução
Ao passar dos anos, os jogos eletrônicos, famosos videogames, evoluíram de forma
considerável em múltiplos aspectos, tomando dimensões que provavelmente não
foram previstas por seus criadores, desde gráficos extremamente realistas a feiras
enormes com temáticas de jogos e estádios lotados em uma final de campeonato de
League of Legends (2009). Nos dias atuais, essa forma de entretenimento diverte

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pessoas que jogam e pessoas que assistem por sites de streaming, além de ser fonte
de renda para os que trabalham de forma direta e indireta, desde os programadores
de jogos e roteiristas aos criadores de conteúdo para internet e jogadores que atuam
profissionalmente nos cenários competitivos. Desse modo, o que antes era uma
simples forma de diversão, hoje, nos apresenta um mundo imaginário capaz de
transformar vidas e proporcionar viagens fantasiosas no tempo ou narrar histórias
reais, como guerras ou cotidiano de povos que existiram no passado.

O presente texto busca criar um breve diálogo entre a importância do ensino de


história medieval e o olhar que o professor de história pode dar para os videogames,
que trazem acontecimentos históricos para suas temáticas, nas perspectivas das
narrativas, da ambientação e do imaginário que estes introduzem aos alunos.
Analisaremos aqui as ambientações criadas pelos jogos Assassins Creed Valhalla
(2020), que conta a história de um guerreiro viking durante as invasões da Grã-
Bretanha no século IX, este que busca narrar acontecimentos fictícios com
personagens históricos reais, e The Elder Scrolls V: Skyrim (2011), que narra a história
de uma pessoa que possui ligação com as almas dos dragões, de caráter mais
fantasioso e mitológico. Ambos os jogos possuem grandes histórias, mas sem o
objetivo de ensinar o que de fato aconteceu na Idade Média, porém, os cenários e
construções que o jogador encontra ao chegar, por exemplo, de cavalo em uma nova
cidade, cria um imaginário, mesmo que extraordinário, do ambiente do período.

Dessa forma, esses jogos eletrônicos, apresentados com os devidos cuidados de


pesquisa e plano de aula pelo professor, tornam-se recursos didáticos que podem
favorecer o aprendizado de estudantes da Idade Média. Seja em apresentações em
feiras culturais, com imagens e/ou vídeos, trabalhos para casa, em que os alunos
devem anotar o que percebem de características históricas enquanto jogam ou, em
casos no qual os alunos não possuem acesso a esses jogos, o professor pode levar seu
notebook para uma aula participativa, com os alunos jogando, e explicativa, a partir do
que vai acontecendo no jogo. O importante é a aproximação do professor com seus
alunos através de instrumentos já compartilhados e admirados por eles, com enorme
potencial de ensino, utilizando como ferramenta de aulas para formação do
pensamento e saber histórico.

Ensino de História e videogames


Há uma década o estudioso dinamarquês Egenfeldt-Nielsen (2010) afirmava que,
mesmo com a expansão dos debates e publicações sobre a utilização de jogos
eletrônicos no ensino durante as décadas de 90 e 2000, o uso desse meio de
aprendizagem na educação formal era observado por diversos professores como algo
de natureza exótica e difícil, pois envolvia problemas pela complexidade nos processos
de avaliação e observação dos resultados. Ressaltamos, portanto, que já faz algumas
décadas que a Historiografia reconheceu que, enquanto discurso, a história perdeu o
monopólio da produção descritiva legítima do passado, dando espaço para a
valorização de outras formas discursivas e ensino, como exemplo, a memória (TELLES;
ALVES, 2016). Além disso, em dez anos muitas são as mudanças no paradigma dos

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Revista Sobre Ontens, 2022, vol. 1

videogames em questão de acessibilidade e dinamismo, possibilitando uma releitura


da problemática de Nielsen a respeito do exótico e difícil nos processos de avaliação e
observação de resultados.

Temos em vista que, a princípio, não há motivo para supor que as representações do
passado presentes em um jogo eletrônico originam-se, obrigatoriamente, de uma
forma de discurso histórico, a partir do momento em que são inúmeras as maneiras de
conhecer o passado (LOWENTHAL, 1998), ou seja, se faz necessário evitar,
aprioristicamente, adjetivar tais jogos como históricos. Reconhecendo, ao mesmo
tempo, que a problematização e a busca pela identificação da fonte dessas
representações deve ser uma etapa característica do processo de avaliação desses
jogos.

Nessa abordagem, segundo Vianna Telles (2016), um jogo designado como histórico, é
compreendido como um produto qualificado para desempenhar um papel mediador.
Juntamente com esse processo, a discussão a respeito da caracterização histórica de
um videogame é preocupação frequente na literatura que os historiadores têm
produzido sobre o tema, principalmente quando a intenção é avaliar a possibilidade da
utilização dele para mediar processos de ensino e aprendizagem de História.

Vale destacar, aqui, que o desenvolvimento de jogos, sendo eletrônico, tabuleiro ou


cartas, exige projetos que permitem a sistematização do conhecimento sobre
determinado tema. Tais jogos podem ou não ser desenvolvidos com finalidade
educativa, mas o mais importante são as competências e conhecimentos adquiridas
pelos desenvolvedores e posteriormente, pelos jogadores. Dessa maneira, o
desenvolvimento de pesquisas sobre jogos eletrônicos e avaliações de jogos, pode
auxiliar no processo de disseminação da aprendizagem baseada em videogames, visto
que sistematização de atributos adquiridos com aprendizado com jogos oriente o
desenvolvimento de áreas específicas adequadas a atender demandas dos sistemas
educacionais.

Ainda, estudos sobre avaliações de jogos podem contribuir na orientação de


professores interessados em aderir a inovações e possibilidades de ensino e
aprendizagem com possibilidades concretas de interações com jogos digitais. Nesse
âmbito, precisamos levar em consideração nos estudos sobre avaliações de jogos
eletrônicos, uma definição ou discussão sobre as características desses videogames,
mencionando o suporte do jogo, sendo em console ou computador, e o desempenho
que este tem no processo de aprendizagem. Nessas análises devemos nos atentar aos
elementos culturais e o processo de interação entre os jogadores, considerando os
problemas e condições específicas do ensino de cada disciplina.

No ensino de história, podemos tratar os jogos como textos, observando e


descrevendo quatro níveis, sendo eles; o conhecimento dos alunos sobre os jogos; o
mundo em torno do jogo, contextos locais e globais amplos, espaços físicos e virtuais,
informações e experiências compartilhadas etc.; a auto reflexividade sobre o

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posicionamento do jogador em relação ao jogo, visando questões como ideologias,


valores, identidade, gênero e raça; por fim, possibilidades inerentes ao jogo no sentido
de estimular aprendizados e disseminar informações (TELLES; ALVES, 2016)

Em um primeiro momento, imaginaríamos que a relação da historiografia com


simulações digitais e jogos pudessem ficar de fora, visto que a razão histórica deveria
direcionar-se para produzir uma reconstituição precisa do passado, a partir de análises
de fontes concretas e documentações. No segundo momento, temos em mente que os
videogames são comerciais, como observa Kusiak (2002), produzidos para atender a
busca por entretenimento de consumidores da indústria cultural e suas demandas.
Logo, para esse mercado de jogos eletrônicos a diversão e a jogabilidade seriam mais
importantes do que a precisão e a objetividade histórica.

No entanto, com o desenvolvimento da crítica pós-moderna surge um


reposicionamento da História com relação as características do imaginário e a face
poética. O trabalho do historiador, segundo Ginzburg (1991), integra um tipo de
“ficção controlada”, no sentido de que o pesquisador realiza uma criação, produzida
com análises de suas fontes. Portanto, a ficção é reconduzida pelo caminho do
verossímil, em contrapartida do significado de simular ou mentir, ou seja, não se
opondo ao verdadeiro, pois a oposição deste seria o falso. O ficcional, nesta
perspectiva, referencia-se nos parâmetros do real. O professor literário Wolfang Iser
(2002) propõe deixar de lado a oposição do real e fictício em prol da tríade imaginário,
real e fictício.

 “A reabilitação da ficção face o conhecimento histórico estimulou os


historiadores a se interessarem pelo emprego de modelos narrativos oriundos
da literatura em seus textos, além de buscarem a aproximação com outras
formas de narrativa sobre o passado”, dessa maneira, a “historiografia também
se tornou mais modesta em suas pretensões de apreender o passado” (TELLES;
ALVES, 2016)

Com as ideias expostas, compreendemos que o efeito no campo historiográfico foi dar
um importante papel epistemológico aos aspectos literários para o historiador,
possibilitando a análise da função de elementos figurativos no discurso histórico,
problematizando a ideia de que sua lógica interna era somente orientada pelos fatos.
Com a História sendo pensada a partir da linguagem, foi estabelecido um estatuto
positivo a outras formas de expressões do conhecimento sobre o passado, como no
teatro, literatura, cinema, quadrinho e, atualmente, em jogos eletrônicos, estimulando
pesquisas a respeito de suas utilizações no ensino de história.

Quando o fictício foi compreendido como originado pelo real, orbitando a verdade, o
entendimento de que ficção poderia estimular a aprendizagem de História cresceu. No
fim da década de 1980, Bergman (1989) afirmou que a educação histórica passou a ser
compreendida como algo que se dá dentro, mas também fora da instituição de ensino,
tendo contribuições da memória, do imaginário e da mídia.

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No momento em que nos questionamos sobre o conteúdo histórico ou natureza de um


jogo eletrônico, devemos almejar saber se o jogo é efetivo para estimular reflexões
sobre a História. Há diversas concepções de história, assim como são diversos os
entendimentos que podemos obter, por exemplo, ao jogarmos um videogame
ambientado no período medieval da Era Viking ou da Segunda Guerra Mundial. Esses
jogos podem estabelecer, portanto, uma sinergia com o imaginário de estudantes de
instituições regulares de ensino, possibilitando a utilização desses como ferramenta de
aprendizagem. Assim, o real, o fictício e o imaginário estão presentes dentro de um
jogo com determinado tema, oferecendo formas específicas de experiências com
representações sobre o passado.

Até mesmo antes do advento tecnológico da modelagem 3D, a característica mais


notável dos videogames era o atributo de simular espaços. Os dois jogos aqui citados
fazem isso de forma imersiva aos jogadores, ambos possuem gráficos que
surpreendem e detalham, por exemplo, plantas locais, construções por dentro e por
fora, cidades etc. Esses espaços modelados abrigam vastas possibilidades de interação,
possuindo grande potencial lúdico, desde jogos simples e antigos como Tetris (1984)
até jogos com mundos enormes e gerados proceduralmente como Minecraft (2010).

Vale ressaltar que os jogos eletrônicos não precisam ser incluídos na categoria de
“narrativa” da mesma forma que filmes, livros e séries, pois são incompatíveis com
definições de narrativa dadas pela narratologia (FRASCA, 2003). O que podemos
compreender é que narrativas e jogos têm similaridades e campos de encontros, como
abrigar sequencias de eventos e construções de mundos (MUSSA, 2011). De certa
forma, jogos eletrônicos se trata de simulações interativas e o tempo da história é
‘revivido’ no momento em que o jogador faz suas ações, por isso é ‘contada’ no agora
e o tempo em que é ‘assistida’ também é o agora. No entanto, nos jogos em que os
eventos são históricos a narrativa estabelece um contato com o passado, sendo uma
‘recontação’, significando que não pode ter interatividade e narração ao mesmo
tempo (JUUL, 2001).

Mesmo Juul estando correto com relação a definição de narrativa, podemos


reconhecer, também, que o processo de narração é um meio pelo qual o espectador
ou leitor tem a experiência da história, ou seja, ainda que durante as ações de um
jogador o processo narrativo não possa ocorrer, isso não significa que os elementos da
história como eventos, ações e personagens também não possam.

Quando um estudante de 7º ano do ensino fundamental tem contato com um desses


videogames, sua experiência pode ser preenchida de diversas maneiras, criando um
imaginário que seja positivo na construção de atividades em sala de aula sob
explicações e orientações do professor. O espaço em um jogo não é estático, contendo
informações, transmitindo emoções e causando mudanças na sensação do jogador. As
formas arquitetônicas das casas presentes nas cidades virtuais, edifícios, animais,
plantas, veículos, falas das personagens, transmitem informações o tempo todo,

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fazendo parte da criação do imaginário e experiência de ambientação em qualquer


período da história.

O imaginário da ambientação histórica nos videogames pode ser concebido como


prolongamento dos recursos da natureza, que possibilita o poder criador a partir de
sua derivação do mundo real. O imaginário não seria um ponto de convergência ou um
mundo de crenças, mas uma forma de energia que transforma e vem do mundo
material, essa imaginação emerge como toda ação humana, traçando um diálogo
entre as partes e o todo (BACHELARD, 1988). Nessa perspectiva o imaginário partilha
de uma linguagem, uma atmosfera, ideia de mundo, visão das coisas e de
acontecimentos, através de um paralelo entre o real e o fictício (GASI, 2011), nos casos
dos videogames, filmes, séries e livros.

Uma questão principal, aqui, é afirmar a efetividade na aprendizagem a partir da


interação com o imaginário dos alunos, em nosso caso particular, no ensino de história
medieval dos piratas nórdicos, mas que no final das contas poderia ser de qualquer
período histórico e qualquer disciplina, tendo em vista que os jogos eletrônicos
possibilitam a discussão entre múltiplos temas do mundo real sem quaisquer
limitações entre indivíduos.

The Elder Scrolls V: Skyrim e Assassins Creed Valhalla


Podemos, agora, expor brevemente sobre dois jogos citados anteriormente, que
dentro de suas paisagens trazem imersão histórica para suas narrativas, provocando
um debate sobre a ambientação criada por eles e o que a academia considera dos
ambientes medievais escandinavos através de achados arqueológicos e descritos pelas
principais fontes escritas do período, as sagas islandesas.

As 5 cidades de The Elder Scrolls V: Skyrim distribuídas em 37 quilômetros quadrados


de mapa apresentam ao jogador imersão especial de como seriam as cidades
medievais nórdicas, mostrando desde pequenos detalhes às casas luxuosas dos nobres
– Jarls. Além disso, essas cidades possuem personagens únicos e por eles ganham vida
durante dia e noite, o clima frio é registrado pelos nevoeiros, vestimentas e materiais
que as casas foram construídas.

O jogo, atualmente considerado antigo, ainda possui fãs fiéis e é um exemplo


pertinente do que podemos explorar com o imaginário nesses videogames. A história
do jogo é completamente fictícia, mas a ambientação dentro e fora das cidades,
dentro das casas, castelos, tavernas, cavernas entre outros locais, tornam a
experiência cativante, com o objetivo de mergulhar o jogador no que seria o cotidiano
desses povos lidando com figuras mitológicas como elementais de gelo e dragões.

Os desenvolvedores buscaram uma ambientação com habitações que se


aproximassem com as do período. As características dos aldeamentos da Era Viking
remetem a povoações rurais, em que a agricultura e a criação de gado deviam ser os
principais meios de subsistência, por isso as aldeias eram compostas por uma casa

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longa, provavelmente com celeiros e oficinas sob o mesmo teto. Essas casas de forma
retangular possuíam corredor central com largura variável, resguardado por telhados
esconsos de duas águas cobertos por um grosso amarrado de palha (PORTO JUNIOR,
2017).

Assim como em Skyrim, a ambientação de Assassins Creed: Valhalla é extremamente


imersiva, com um diferencial gráfico relevante, tendo em vista que foi produzido com
quase 10 anos de diferença do primeiro. Gráficos não definem imersão ou qualidade
de jogos eletrônicos, mas Assassins Creed: Valhalla traz mecânicas interessantes que
possivelmente acrescentam para o imaginário desse período, como expedições e
saques com famosos barcos ‘vikings’, construção de assentamentos e invasões com
grupos de guerreiros que você selecionou como chefe de guerra.

As cidades possuem construções que inserem o jogador tanto na Noruega quanto na


Grã-Bretanha do século IX, possuindo habitações que chamam a atenção do lado de
fora e de dentro. O jogador pode caminhar ou cavalgar por todas as cidades do
enorme mapa do jogo, que possui 140 quilômetros quadrados, no qual é perceptível as
mudanças de localidades e seus climas, pois na Noruega observamos montanhas
cobertas por neve e na Grã-Bretanha planícies com flores coloridas e matas verdes. O
jogo também possui história fictícia, mas inserida no contexto das grandes invasões
vikings nos países ingleses.

Vemos dentro do jogo grandes salões em que personagens elaboram seus planos de
invasão ou diplomacia com cidades vizinhas, podemos notar colunas com cabeças de
dragões, duas mesas grandes com alimentos locais e uma fogueira no centro. Ao longo
da Era Vikings as construções em sua maioria eram simples, com materiais obtidos no
local e de técnicas rudimentares, pois eram provavelmente feitas pelos próprios
moradores, com exceções das mansões de aristocratas e chefes escandinavos, que
possuíam dimensões que chegavam a alcançar de 50 até 86 metros de comprimento.
O interior da maioria das casas tinha o chão de terra batida coberto por juncos ou
alguma outra folhagem e como possuíam poucas aberturas, na penumbra nebulosa do
seu interior destacava-se o local destinado a fogueira, que ocupava a parte central da
habitação. Entre os motivos da localização dessas fogueiras estava o aquecimento,
iluminação e era onde os alimentos eram cozidos (PORTO JUNIOR, 2017).

Considerações finais
Através dessas análises, mesmo que de maneira sucinta, buscamos expandir o debate
sobre os jogos de temáticas relacionadas a história e suas ambientações, que podem
agregar valores pertinentes para o imaginário de seus jogadores. Após jogar um dos
jogos aqui mencionados, uma pessoa sem qualquer conhecimento prévio dos nórdicos
do medievo cria uma ótica do ambiente em que viviam. Compreendemos, portanto,
que o ensino de história pode abranger recursos midiáticas em seu prol, pois
reconhecemos que são diversos os meios de estímulos para a aprendizagem de
história. Além do mais, se há pouco tempo atrás era difícil inserir esses recursos por

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questões didáticas ou avaliativas, hoje o difícil é ignorar a influência que videogames,


filmes e séries têm nos estudantes da Educação Básica.

Portanto, o videogame sendo um recurso de simulação digital e inserido no processo


educacional, pode contribuir para a discussão sobre o passado em uma aula de
História da Idade Média. Compreendemos que pelo estudo atual da historiografia e
seus desdobramentos para ensino de História, houve uma aproximação do historiador
professor com a experiência do passado construídas pela ficção, tanto no cinema,
literatura ou videogames. No âmbito do ensino, esses recursos podem ser vistos como
aliados efetivos do processo didático, logo, a perspectiva da história falsa, e mentirosa
dentro antes compreendida pela ficção, agora dá lugar ao imaginário e que orbita na
“esfera do verossímil” (TELLES; ALVES, 2015), podendo assim ser analisada, citada,
entendida e apresentadas em uma aula de história.

 “Trata-se de instigar a pesquisa sobre o conhecimento e os significados


atribuídos ao passado e de como esses significados variam em função de
diferentes comunidades interpretativas como a dos historiadores, a dos
designers e a dos próprios estudantes. É possível, por exemplo, que, em
determinado jogo, os personagens apresentem aderência ao discurso
historiográfico, mas o cenário seja fictício. Alternativamente, um personagem
ficcional pode se mover através de uma simulação que apresente uma rica
representação de um contexto histórico.” (TELLES; ALVES, 2015)

A pretensão desse texto é expor que jogos eletrônicos são, para além do
entretenimento e ficção, ferramentas e mídias interativas dotadas de conteúdos que
podem adicionar significado para os mais diversos assuntos históricos. Sob todas as
orientações da ótica do professor historiador, uma aula com estas representações
pode apresentar maior interesse dos alunos e os instigar a produtividade. Trabalhos
em que os estudantes irão escrever sobre seus entendimentos a respeito das casas ou
vestimentas e objetos de um determinado período podem se tornar divertidos, sendo
benéfico para seu desenvolvimento e aprendizagem. Pensamos que os ‘receptores’
das salas de aula, os alunos, quando não têm relação com a realidade do conteúdo ou
o conteúdo não possui relação com sua realidade, tendem a apresentar dificuldades de
aprendizagem e interesse. Isso ocorre pela falta de significado de certos conteúdos e a
relação distante que provas, testes e outras avaliações tem com o que lhes é atrativo.

Cabe reforçar, por fim, que o professor deve sempre ter conhecimento da
acessibilidade de seus alunos quando for elaborar suas exposições e atividades
relacionadas aos jogos mais caros, o que não impossibilita que o docente, com
responsabilidade, leve os recursos necessários para a instituição de ensino a fim de
obter êxito no plano de aula. A utilização de uma mídia como os jogos eletrônicos no
processo de aprendizagem pode ser uma fonte eficaz e válida junto as demais
alternativas didáticas para o ensino de história, entretanto, sabemos que não é uma
resposta para problemas na educação. Se faz necessário que o docente possua

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reflexão e estudos aprofundados a respeito do seu papel como historiador e professor,


também, conhecer a realidade de suas turmas e alunos.

Referências
Lucas Pinto Soares, mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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