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ANDRÉ BUENO

[Org.]

MUNDOS EM MOVIMENTO:
ORIENTALISMOS

2021
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino

Projeto Orientalismo
Coordenador: André Bueno
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica:
Bueno, André [org.] Mundos em Movimento:
Orientalismo. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ,
2021.
ISBN: 978-65-00-31925-5
Sumário
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 6
ORIENTALISMOS E BRASIL
COSPLAY, MANGÁ, ANIME, CULTURA POP E OS DESDOBRAMENTOS DA
CULTURA NIPÔNICA NO BRASIL por Alexia Henning e Vanda Fortuna Serafim ...... 9
SUBVERSIVOS E LABORIOSOS: A IMIGRAÇÃO CHINESA ATRAVÉS DO
JORNAL CORREIO PAULISTANO por Alisson Eric de Souza Simão Pereira e Carlos
Eduardo Martins Torcato .................................................................................................. 17
O VÍRUS CHINÊS E O USO DO ANTICOMUNISMO PELO BOLSONARISMO por
Ariel Cherxes Batista ........................................................................................................ 24
NÓS E OS OUTROS: RAÍZES DA INTOLERÂNCIA HISTÓRICA AOS ASIÁTICOS E
A IMIGRAÇÃO AO BRASIL por Jean Carlo Lima de Moura ........................................ 30
A GUERRA DO ÓPIO A PARTIR DO PERIÓDICO O DESPERTADOR, DIÁRIO
COMERCIAL, POLÍTICO, CIENTÍFICO E LITERÁRIO [RJ] por Lara R. de Souza e
Maia e Carlos E. Martins Torcato ..................................................................................... 41
REAPROPRIAÇÕES DO EGITO ANTIGO NO Vale do Amanhecer EM PLANALTINA
[DF] por Pepita de Souza Afiune ...................................................................................... 48
O PERIGO AMARELO NO ESTADO DO PARANÁ: UMA NOVA FASE DA
IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL por Ronaldo Sobreira de Lima Júnior ............ 55
DESAFIOS E INQUIETAÇÕES NOS DISCURSOS PRECONCEITUOSOS CONTRA
ASIÁTICOS EM SOLO BRASILEIRO E ASSOCIAÇÃO A COVID-19: UM
PANORAMA QUE MERECE DISCUSSÃO! por Wagner Pereira de Souza ................. 63
OS ESCRITOS DE VIAGENS EM SALA DE AULA: JOÃO DE PIAN DEL CARPINI E
A NOÇÃO DO “OUTRO” NO ORIENTE por Jorge Luiz Voloski ................................. 70
ORIENTALISMOS E ENSINO
DISCUTINDO O CONCEITO DE ORIENTALISMO ATRAVÉS DO FILME “O
ÚLTIMO SAMURAI” [2003] por Edelson Geraldo Gonçalves ...................................... 78
HATSHEPSUT: DOS OBELISCOS EM KARNAK PARA AS AULAS DE HISTÓRIA
por Gabriela Maria Teodósio ............................................................................................ 85
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL A PARTIR DAS MEMÓRIAS DA VOVÓ OK-SUN
LEE: HISTÓRIA EM QUADRINHOS “GRAMA” COMO RECURSO DIDÁTICO por
Krishna Luchetti................................................................................................................ 92
O CONHECIDO DESCONHECIDO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMA ORIENTE
NA DISCIPLINA HISTÓRIA por Maria Eugênia Silva e Silva e Alina Silva Sousa de
Miranda ............................................................................................................................. 99
“JOHN RABE”: REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO MASSACRE DE
NANQUIM por Maria Gabriela Moreira ........................................................................ 106
ORIENTALISMOS E TEORIAS
AQUISIÇÃO DE LEITURA/ESCRITA E GURU-ŚIṢYA-PARAMPARĀ: VALORES DO
ESTUDO TRADICIONAL DO SÂNSCRITO NO BRASIL por Alina Miranda .......... 114
MAS HÁ UMA FILOSOFIA NA CHINA? por André Bueno ....................................... 121
A INDIVIDUALIDADE NA MORAL BUDISTA por Arthur D´Elia dos Santos e Yasmin
Ribeiro de Carvalho ........................................................................................................ 128
UM BREVE OLHAR HISTÓRICO DA CHINA: A IMPORTÂNCIA DO
CONHECIMENTO DE SUA CIVILIZAÇÃO NA DESCONSTRUÇÃO DE
ESTEREÓTIPOS por Elois Alexandre de Paula ............................................................ 138
GRIFFIS E A LENDA DO ORIENTAL: UMA DENÚNCIA DO ORIENTALISMO
ANTES DE SAID por Emannuel Henrich Reichert ....................................................... 146
O ORIENTALISMO DE ARNOLD TOYNBEE: A GRÉCIA COMO “ORIENTE
PRÓXIMO” por Felipe Alexandre Silva de Souza ......................................................... 153
ALBERTO FRANCO NOGUEIRA E A DEMOCRACIA JAPONESA por Gustavo Souza
de Deus............................................................................................................................ 161
A CONCEPÇÃO DE TOYO E O CONTRASTE COM O ORIENTE por Levi Yoriyaz 167
O ORIENTALISMO EM TENT LIFE IN SIBERIA, DE GEORGE KENNAN por Nykollas
Gabryel Oroczko Nunes .................................................................................................. 174
REPRESENTAÇÃO FEMININA JAPONESA NO FILME SAYONARA por Renata Sayuri
Sato Nakamine ................................................................................................................ 181
O ORIENTALISMO GRÁFICO DE SOPHIA JOBIM por Rodrigo de Sousa Barreto . 189
DANÇA DO VENTRE E HISTÓRIA: OS VÁRIOS TONS DO ORIENTALISMO por
Vanessa dos Santos Bodstein Bivar ................................................................................ 197
APRESENTAÇÃO
Desde 1978, quando Edward Said lançou seu livro ‘Orientalismo: a invenção do
Oriente pelo Ocidente’, os estudos sobre a Ásia não foram mais os mesmos.
Tornou-se inviável pensar toda e qualquer forma de conhecer as civilizações
orientais a partir da agenda colonial e imperialista que marcou as relações mundiais
nos séculos 19 e 20. A própria epistemologia das ciências humanas e literárias foi
colocada em questão, já que seus paradigmas estavam pautados em projetos de
dominação, que continuavam a impor uma hierarquia cultural imaginária sobre as
várias expressões da Humanidade.

Said conseguiu contestar as formas pelas quais o conhecimento é construído,


mostrando que os estudos sobre os muitos Orientes estavam no cerne da definição
das ideias de Europa e Ocidente. Obviamente, ele foi criticado de maneira enfática
por uma ampla parcela da academia, que tentou preservar sua posição logocêntrica
de predomínio sobre os modos de ler o mundo. É preciso pensar que, de fato, os
estudos sobre Ásia e África foram empreendidos de modo não sistemático até o
século 19, quando a visão estratégica das potências coloniais determinou a
institucionalização dessas áreas, incluindo-as em seus programas universitários de
Letras e Relações Internacionais, e se expandido para outros campos
posteriormente. Contudo, em muitos setores a crítica saidiana não foi bem recebida,
criando um espaço de disputa pelo monopólio dos saberes e sua consequente
projeção sobre os movimentos políticos e educacionais.

No caso do Brasil, fica claro que essa disputa corre solta dentro do mundo
universitário, em que as inciativas sobre estudos orientais/asiáticos ainda enfrentam
os desafios impostos por grupos irredutíveis a realidade do mundo, e que tentam
isolar o pensamento brasileiro numa bolha eurocentrada. Essa prática, dependente
ainda de um superado de projeto de nação branca e ocidentalizada, busca se
respaldar na miragem de um possível conflito de civilizações, como foi tão
propalado por Samuel Huntington, um dos ideólogos do orientalismo
neoconservador e continuamente excludente.

Nesse sentido, como poderemos superar os desafios de construir uma nova episteme
e criar uma abertura intelectual, teórica e metodológica para compreender melhor
os vários Orientes possíveis? Em que medida poderemos acessar nossas heranças
afro-orientais, que alicerçam a existência da cultura brasileira? Longe de criarmos
demarcações do que é ‘oriental’ ou ‘asiático’, de forma homogeneizada, como
podermos contemplar a diversidade e a riqueza das milhares de expressões étnicas
e culturais que compõe a riqueza de nosso mundo?

‘Mundos em movimento: Orientalismos’ é mais uma publicação do Projeto


Orientalismo, que atua desde 1998 trazendo ao mundo acadêmico conteúdos e
materiais que nos permitam repensar as questões intelectuais e educacionais
eurocêntricas. Nossa busca pretende se desvencilhar dos velhos hábitos acadêmicos
e dos fascínios esotéricos, imprimindo uma nova perspectiva teórica, necessária a
formação de nossos pensadores e professores. Não um ‘orientalismo’, mas
‘orientalismos’: formas de ver a diversidade das culturas existentes, que respeitem
suas expressões e riqueza. Mesmo esse termo, no futuro, há de ser superado por
novas criações, que nos permitam suplantar as separações em prol de uma visão
mais ampla e aberta sobre o mundo.

André Bueno
ORIENTALISMOS
E BRASIL
COSPLAY, MANGÁ, ANIME, CULTURA POP E OS
DESDOBRAMENTOS DA CULTURA NIPÔNICA NO
BRASIL
Alexia Henning e Vanda Fortuna Serafim
O presente artigo é fruto da pesquisa de Iniciação Científica, intitulada: “O perfil
de cosplayers brasileiros na contemporaneidade – um estudo de História Cultural.”
já finalizada, cujo objetivo consistiu em conhecer o perfil de cosplayers brasileiros
na contemporaneidade por meio da aplicação de questionário, com a finalidade de
identificar as características destes praticantes, bem como a forma que conheceram
a atividade, motivações, significações e experiências.

Introdução
Ao falarmos do termo “cultura pop”, precisamos mencionarmos a obra organizada
por Luyten [2005]: “Mangá e a cultura pop”, que, de acordo com a autora, a palavra
“pop” tem um maior reconhecimento nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70
devido a sua ligação com o gênero musical mais ouvido pelos jovens. Contudo, o
que Luyten [2005] nos conta é que foi mediante às obras de Roy Lichtenstein [pintor
americano identificado com a Pop Art. Procurou valorizar os clichês das histórias
em quadrinhos como forma de arte.], o qual teve inspiração nas histórias em
quadrinhos produzidas no Oriente, os famosos mangás, que o termo “pop art” passa
a ser conhecido.

Essa influência ocidental pela qual o Japão passou não trouxe apenas modernização
e contribuições para o nascimento dos quadrinhos japoneses, mas também colabora
com a arte narrativa e charges, as quais no início do século XX, eram os meios
utilizados pelos artistas para extravasarem suas decepções com a política de seu
país [ALMEIDA, 2018].

Portanto, as histórias em quadrinhos ganharam o status de arte, visto que a mesma


tem essa tendência a seguir o que é difundido pelos meios de comunicação e
publicidade. Em outras palavras, o termo o qual muitos utilizam e lembram,
“cultura pop”, nada mais é do que um poderoso reflexo da sociedade na qual
vivemos e não se restringe somente ao aspecto estético [LUYTEN, 2005].
No entanto, esse termo diz respeito a um fenômeno recente e totalmente diferente
da cultura popular, uma vez que a mesma se trata de um conjunto de tradições,
lendas e crenças o qual torna-se universal para determinada população, sendo
passada de geração em geração. Dessa forma, “cultura pop”, está relacionado ao
uso da mídia na criação e divulgação de novos ícones e contos, ou seja, falamos do
impacto da industrialização, como também a massificação na geração de referências
comuns a um povo [SATO, 2007].

É importante lembrarmos que o contexto de surgimento da “cultura pop”, se deu


mediante ao período pós segunda guerra mundial, devido a completa derrota do
Japão e a instalação de um governo americano no país dando início a uma abertura
cultural onde a sociedade japonesa tomou para si os valores do “american way of
life” [estilo de vida americano.] sofrendo uma readaptação ao seu estilo oriental.

Sendo assim, o mercado do entretenimento cresceu junto com a reconstrução do


país, pois se fez necessário o uso de algo em que se pudesse trazer uma certa
tranquilidade para população que encarava esse período trágico. Com isso, emerge,
no Japão em 1970 uma indústria de entretenimento massivo produzindo mangás,
animes [refere-se à animação ou desenho animado. As pessoas utilizam o termo
para designar as produções de desenhos do Oriente.], videogames, filmes de ficção
cientifica e de efeitos especiais, estatuetas de animes, etc. [NUNES, 2013].

No cenário geral, com essa indústria de entretenimento crescendo cada vez mais, o
anime ganhou um grande destaque na mídia, que descobriu os desenhos animados,
assim como o mangá, tinham e ainda tem um poder para atrair o público adulto
[NAGADO, 2005]. Segundo Sato [2007], foi por meio de um tipo de seleção natural
pelo consumo do público que houve o destaque dessas produções, pois entre
centenas de indivíduos, grupos e produtos, poucos são os que destacam.

A memória popular e o impacto causado por estes artistas e produtos serviu de filtro
daquilo que ocorreu de extraordinário, pois sempre vemos as mídias qualificarem
algo de boa qualidade como ilustre, renomado ou até mesmo nostálgico, e quando
é ao contrário, algo de qualidade duvidosa, os nomeiam de brega ou trash. Contudo,
Sato [2007] expõe que apesar desses comentários o importante é que isso integra à
cultura pop, pois diz respeito a algo que tem ou teve grande identificação popular
e, permaneceu na memória tornando-se referência comum.

Tanto o mangá quando os animes teve sua entrada tardia nas outras partes do
mundo, como os Estados Unidos e a Europa, mas no que se refere ao Brasil, nosso
local de estudo, desde a década de 1960, há esses traços os quais são marcantes na
estética japonesa, as produções de quadrinhos cuja temática contemplava histórias
de samurais e ninjas e acolheu a produção gráfica e narrativa desses desenhistas,
como aponta Luyten [2005] ao traçar uma historicidade do mangá ou anime no
Brasil.

As considerações de Luyten [2005], nos auxilia a entender esse cenário de expansão


editorial dos mangás e consequentemente das produções audiovisuais, os animes, a
partir dos anos de 1990 no Brasil, década a qual eclodiu a prática cosplay em terras
brasileiras.
Apresentado tais reflexões a respeito do termo “cultura pop” não podemos negar
toda a carga que os produtos desse mercado cultural carregam. Portanto, não há
como desvincularmos a prática cosplay dos mangás e animes, visto que o primeiro
revolucionou o mundo dos quadrinhos devido a suas características, que, até hoje,
depois de mais de 100 anos de história, ainda são os pilares para uma boa história
em quadrinho. Já o segundo também teve uma grande contribuição, já que foram os
grandes divulgadores do traço de mangá, antes mesmo deles serem publicados fora
do Japão, pois os traços característicos já eram conhecidos em vários países, graças
às boas audiências das séries animadas [NAGADO, 2005].

Essa configuração, como produto global, ocorreu por conta dessa diferenciação
estética, aliada é claro, às narrativas que trazem dramas humanos hipoteticamente
universais. A imagem dos olhos grandes e os cabelos espetados que encontramos
nos mangás, se tornou familiar e passou a ser sinônimo da cultura japonesa,
consumido por milhares de pessoas semanalmente, embora esse visual não
corresponda à realidade física deles, mostram uma mudança de ideias políticas e
culturais do oriente para o ocidente [SATO, 2005].

Observa-se que há um apreço e um apoio muito grande pela cultura pop nos dias
atuais, marcada principalmente pelo cosplay. Dessa forma, ressaltamos que o termo
proposto, cosplay, remete a uma cultura lúdica contemporânea construída ao longo
do século XX por pessoas apaixonadas pela literatura ou mídia fantástica e pelo que
veio a ser designado de cultura pop [COSTA, 2019]. A indústria cultural deu origem
a cultura pop, e auxiliou os jovens em seu estilo de vida e conceito de moda,
ajudando assim os consumidores a constituírem uma identidade social, como
também visa um melhor entendimento do grupo [BARBOZA e SILVA, 2013].

À vista disso, esses eventos junto a prática cosplay cresceu de uma forma
excepcional, o que concedeu um espaço muito importante aos cosplayers [adeptos
da prática cosplay.] com a realização de concursos com diversas modalidades,
portanto, a atividade se encontra anexada a cultura brasileira, graças aos vastos
eventos/convenções estabelecidos ao ano.
Aos olhares de pessoas que desconhecem tal prática, o hobby pode parecer um tanto
que incomum, sendo até mesmo retratado como algo infantil. No entanto basta
explorar um pouco mais a fundo esse universo para perceber que os cosplayers
apresentam características normais como qualquer outro.

“É como não ser eu mesma por algumas horas”


Algumas atividades de alta concentração são uma fonte de dissolução de si, um
afastamento que lhes permite abandonar qualquer outro engajamento
[LEBRETON, 2018]. Portanto, quem procura ler um mangá, ou assistir um anime,
busca esquecer um pouco das coisas do cotidiano, pois para quem lê ou assiste, é
cativante, mesmo sabendo que essas características não são imitação do real em sua
forma [ALMEIDA,2018].
Esse objeto de admiração em comum, que condiz com as narrativas, transforma
certos hábitos e costumes destas pessoas, ou melhor fãs, sendo estes desenvolvidos
em novos hobbies [ALMEIDA, 2018]. Dessa forma, o cosplay pode ser inserido
aqui, visto que o engajamento apaixonado em uma atividade opõe à incerteza das
relações sociais uma relação regular que orienta totalmente sua existência, mas que
o indivíduo tem o sentimento de dominar à vontade e eternamente
[LEBRETON,2018].

É notório que, não é suficiente apenas gostar dos mangás e animes, há uma vontade
de se introduzir mais no universo da “cultura pop”. Essa introdução pode ser tanto
como o emprego de palavras e termos pertencentes à cultura japonesa, como
também a adoção até mesmo dos costumes japoneses [ALMEIDA, 2018]. Ou seja,
de forma prazerosa, o indivíduo se encontra em uma espécie de transe a qual, como
LeBreton [2018, p. 77] diz: “[...] se sente apaixonadamente existindo [...]”

E assim, os cosplayers experimentam essa imersão a uma atividade, nos eventos


reencenando a narrativa de onde saem seus cosplays, reunidos com amigos, tecendo
novos vínculos, compartilhando suas preferências e técnicas, tirando fotografias,
participando dos concursos [NUNES, 2013].

Não se trata de considerar essa prática como fugas desproporcionais da vida real,
mas sim um jogo de faz de conta, que alimenta as fantasias dos praticantes e, de
certa forma, lhe dá suporte para significar o mundo, algo que possa ir além de
momentos de pura diversão e entretenimento, sendo também e, principalmente, uma
forma de se comunicar [ALMEIDA, 2017], uma vez que o intuito da formação
destes é fugir dos grupos tradicionais [PAGANI, 2012].

Os cosplayers experimentam histórias cruéis, divertidas, mórbidas que são


socialmente condenadas, pressupondo um distanciamento da realidade pois pegam
a vida desses personagens e usam como passe para recriar suas ações cotidianas
[ALMEIDA, 2017].

Segundo Soares [2015], o cosplay como jogo, faz com que seus praticantes fujam
da realidade, mas não completamente, pois tudo faz parte do jogo: brincar de ser
alguém que você não é, sem deixar de ser você mesmo. Ou seja, a atividade pode
ser vista como uma forma de controle exercido sobre a vida cotidiana diante das
turbulências do mundo [LEBRETON, 2018].

A escolha de vestir um determinado cosplay perpassa também pela sensação de ser


único e, ao mesmo tempo, pela pluralidade ao encontrar nessa prática elementos
que constituí seu campo de identificação [ALMEIDA, 2017]. Visto que, todo
produto dos meios de comunicação de massa, possui esse poder de reunir uma
multidão dispersa, mas que é composta de indivíduos que compartilham de gostos
e preferencias semelhantes [ALMEIDA, 2018].
#RespeiteOCosplayer
A estética e principalmente suas narrativas da referida “cultura pop”, nos faz trazer
à tona um dos métodos usados por Hartog em: “uma retórica da alteridade” [1999].
Seu método condiz com a tentativa de aproximação do outro e, quando dizemos
outro, referimo-nos a alguém diferente de nós, no que concerne a identidade de um
grupo. Assim, Hartog, visa perceber essas diferenças e, traduzi-las para a sua
linguagem, a linguagem do outro.

Porém, é importante ressaltarmos que, a tradução a qual propomos a fazer não diz
respeito a linguagem de um “outro”, ou seja, de um estranhamento, como é o caso
de Heródoto ao chegar à ilha das amazonas, mas sim de um “eu”, por estar inserida
na cultura pop e na subcultura pop, ou seja, ser consumidora dessas narrativas
midiáticas e consequentemente adepta à pratica cosplay.

Contudo, essa retórica pode ser aplicada às pessoas que não são adeptos da prática,
ao notarmos em algumas narrativas dos cosplayers que há um confronto com o
problema de tradução, como é o caso dessas pessoas que julgam devido ao
estranhamento que o pertencente do grupo a, tem ao grupo b. Assim, conforme
Hartog [1999], é levantado a diferença entre os dois, o qual no segundo momento
há a tradução visando transportar o “outro” na tentativa de expor suas
características comparadas as deles, contudo, não de forma positiva o qual é
pode-se notar.

Segundo Hartog [1999], o manejo do thôma pertence apenas ao narrador, mas claro
que, é em função do destinatário que ele processa suas escolhas e, aqui usamos o
método dele para tentarmos entender, como as pessoas que não são adeptas da
prática traduzem suas narrativas diante da cultura de um “outro”.

Portanto, o termo assume uma dupla estrutura, ele pode ser qualitativamente
extraordinário ou quantitativamente notável. Temos que ter em mente que, avaliar,
medir, contar são operações necessárias para a tradução do thôma.

Ao enfatizarmos a tradução de quem vê de fora, podemos ressaltar um caso ocorrido


no dia 28 de fevereiro de 2020, o qual o comunicador, Rafael Menegazzo, durante
o programa “Pretinho Básico”, transmitido na rádio Atlântica em Porto Alegre -
Rio Grande do Sul teve uma fala um tanto que desagradável.

O radialista, ironizou os cosplayers, desrespeitando toda a comunidade ao afirmar


que: “Um nego véio com 30 anos saindo de Super Homem merece um laço”.
Entenda-se por “laço”, no dialeto gaúcho, apanhar; ser violentado. Tal comentário
repercutiu entre toda a comunidade a qual se uniram e criaram a hashtag [as
hashtags, palavra de origem inglesa, são palavras-chaves associadas a um
determinado assunto ou informação utilizados nas mídias sociais digitais. Elas
facilitam na identificação de um tópico específico, geralmente amplamente
divulgado na Internet.] #RepeiteOCosplayer. Fazendo uma breve ressalva ao
trabalho de Oliveira [2018] que, expõe como as hashtags tem um modo de
coordenar e distribuir uma certa discussão, e é através delas que faz a comunidade
ter uma linguagem própria, sendo possível sua identificação.

Diante dessa situação, uma vez que temos o choque com a atualidade, podemos
manter um olhar direcionado, ou seja, estamos atentos aos detalhes. Portanto, o
tempo presente evoca a importância do imprevisto e do fato [RÉMOND, 2006], diz
respeito a uma história inacabada, que está em constante movimento, refletindo as
comoções que se desenvolvem diante de nós tornando-a objeto de uma renovação
sem fim [BEDÁRIDA, 2006].

Diferente do que poucos ainda pensam, os cosplayers são conscientes de que não
são os personagens, que é somente uma brincadeira e uma forma de identificação,
ou melhor, uma empatia com a narrativa dos personagens. E eles sempre deixaram
isso bem esclarecido, pois como podemos perceber para além de rádios há também
o jornalismo sensacionalistas os quais taxam a prática como um distúrbio de
identidade [MELLO, 2017].

Retomando a citação de Le Breton [2018], percebemos que a prática não chega a


ser uma forma de desaparecer de si, mas sim uma forma de ocupar de si. Isto é,
trata-se de um exercício de reapropriação feliz da existência.

Conclusões
Na contemporaneidade, muitos desejam construir identidades cada vez mais
rígidas, portanto, essas memórias plurais, móveis e mutáveis, são mobilizadas para
tentar construir as identidades que alguns desejam sempre mais estáveis e
duradouras, até mesmo essenciais, visto que hoje, muitas memórias são destruídas
ou desaparecem, mas, ao mesmo tempo, outras nascem menos expansivas, mais
particulares, mas frequentemente abundantes, por sua vez elas se transforma em
fundamentos de identidades em recomposição [CANDAU, 2011].

As fontes orais permitiram questionar limites que dividem o que diz respeito à
História e o que não diz, ou seja, refere-se ao significado histórico da experiência
pessoal, assim como ao impacto pessoal das questões históricas visto que, reside
nesse ponto, no qual a história invade as vidas privadas ou são sugadas para dentro
da história [PORTELLI, 2016].

Para presente discussão, procuramos apresentar, mediante as respostas dos


questionários realizado no projeto nomeado no começo do texto, uma série de
apontamentos e possíveis questões que podem ser abordadas com a temática
referida em uma outra ocasião, visto que tivemos que optar por aquilo que
consideramos pertinente expor deixando muitas lacunas abertas. Assim, a proposta
foi de expor tais considerações a partir da perspectiva de História Cultural.

No Brasil podemos perceber que os praticantes da atividade provêm das mais


variadas camadas sociais e com uma diferenciação de idade entre eles. Contudo, a
prática cosplay, diante de todas as questões apresentadas é uma maneira de usar a
criatividade de um jeito divertido, funcional e dentro de um universo o qual o
adepto se interessa, é ultrapassar os limites do quanto se pode criar e inovar, um
processo de autoconhecimento e, também um lugar confortável onde a liberdade
prevalece.

Referências
Alexia Henning graduanda de Licenciatura em História pela Universidade Estadual
de Maringá. Membro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades sob
orientação da professora doutora Vanda Fortuna Serafim. E-mail:
alexiahenning330@gmail.com.

Vanda Fortuna Serafim é professora do Departamento de História e do Programa


de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá e
coordenadora do Grupo de Pesquisa em História das Crenças e das Ideias Religiosas
e do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades. E-mail:
vandaserafim@gmail.com.

ALMEIDA, Cleusa Albilia de. Consumo Cultural nas práticas juvenis. Curitiba:
Appris, 2018.
ALMEIDA, Nadja Rinelle Oliveira de. "Óh! Fui eu que fiz!": a saga de jovens
cosplayers e seus fazeres educativos. 2017. Tese [Pós-Graduação em Educação] -
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.
BARBOZA, Renata Andreoni; SILVA, Rogério Ramalho da. Subcultura Cosplay:
a Extensão do Self em um Grupo de Consumo. Revista Brasileira de Marketing -
REmark , São Paulo, v. 12, n. 2, p. 180-202, jan. 2013
BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA,
Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. [S. l.: s.
n.], 2006.
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2019.
COSTA, CAROLINA BITENCOURT DA. Performance cosplay: mito, rito e
práticas [religiosas] da cultura pop. 2019. Dissertação [Mestrado em Teologia] -
Faculdades EST, [S. l.], 2019.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. São Paulo: Humanitas, 1999.
LE BRETON, David. Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea.
Petrópolis: Editora Vozes, 2018.
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá e a cultura pop: um lugar para pertencer. In:
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Cultura pop japonesa: Mangá e animê. [S. l.: s. n.],
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MELLO, Rafael Rodrigo de. Vestindo o Personagem: A contribuição da
experiência cosplay para o bem-estar do consumidor. 2017. Dissertação
[Mestrado em administração] - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
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NAGADO, Alexandre. O mangá no contexto da cultura pop japonesa e
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NUNES, Monica Rebecca Ferrari. A cena cosplay: vinculações e produções de
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OLIVEIRA, Vitória Barros de. ‘#ATTACK ON TITAN:” Engajamento
transmidiático em comunidades de fãs no Tumblr. 2018. Dissertação [Programa
de Pós-graduação em Comunicação Social] - UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MINAS GERAIS, Belo Horizonte, 2018.
PAGANI, Clarisse Ribeiro. Autoconceito, identidade e consumo cultural: análise
qualitativa do grupo social dos cosplayers. 2012. 10 - 240 p. Dissertação
[Mestrado em Administração] - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e
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RÉMOND, René. Algumas questões de alcance geral à guisa de introdução. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História
Oral. [S. l.: s. n.], 2006.
#RespeiteOCosplayer Disponível em: [disponível em:
https://mundocosplayer.com.br/2020/03/radialista-desrespeita-cosplayers-e-gera-
revolta-na-comunidade/]
SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê. In: LUYTEN, Sonia M.
Bibe. Cultura pop japonesa: Mangá e animê. [S. l.: s. n.], 2005.
SATO, Cristiane A. JAPOP: O poder da Cultura Pop Japonesa. São Paulo: NSP-
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SOARES, Gabriel Theodoro. Cosplay: um lugar para pertencer. In: NUNES,
Mônica Rebecca Ferrari. Cena cosplay: Comunicação, consumo, memória nas
culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015.
SUBVERSIVOS E LABORIOSOS: A IMIGRAÇÃO
CHINESA ATRAVÉS DO JORNAL CORREIO
PAULISTANO
Alisson Eric de Souza Simão Pereira e
Carlos Eduardo Martins Torcato
Introdução
Em meados do século 19, estava em pauta na agenda pública do Brasil a questão
servil, fruto do cenário de crise da escravidão e da alternativa imigratória para
resolver o problema da mão de obra na lavoura [GONÇALVES, 2017]. Nessa época
a economia cafeicultora paulista era a mais pujante do país, o que a levava a atrair
mão de obra escravizada de outras partes do país e também a implementação de
alguns projetos imigracionistas. O fim do tráfico negreiro e a promulgação da Lei
do Ventre Livre tornaram cada vez mais difícil a obtenção de escravizados, o que
consequentemente acaba fortalecendo os projetos em busca por uma nova fonte de
trabalho [LAMOUNIER, 1988].

A falta de trabalhadores levou a províncias como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito
Santo e Minas Gerais a se reunirem no Congresso Agrícola de 1878 para discutir a
adoção do imigrante asiático como substituto para o trabalho escravo [OLIVEIRA,
2018; NASCIMENTO, 2011]. É nesse contexto que a proposta de adoção do
imigrante chinês pode ser explicada, como uma alternativa ao mais desejado
imigrante europeu. Os chineses eram admirados pela sua resignação no trabalho e
os baixos salários, além de algumas experiências de sucesso no Peru e em Cuba
com tal nacionalidade [CZEPULA, 2020; RÉ, 2018]. Conduto, as opiniões sobre a
imigração chinesa não eram homogêneas, pois uma parcela da sociedade brasileira
não enxergava com bons olhos a importação desses indivíduos. Um exemplo disso
foi o caso do escritor Machado de Assis que chegou até mesmo a dizer em suas
crônicas que um chimpanzé seria uma opção melhor do que os chins, pois este não
cruza com as outras raças [RÉ, 2018].

Essa perspectiva deve-se à manifestação de teorias de caráter racial que chegaram


na década de 1870. Essas ideias foram selecionadas, adaptadas e utilizadas para
pensar a realidade brasileira e ao mesmo tempo para garantir os interesses dos
grupos dominantes. Em outras palavras, esse esforço intelectual buscava
basicamente produzir um uma teoria racial que comprovasse a viabilidade do Brasil
como uma nação:
“O desafio de entender a vigência e absorção das teorias raciais no
Brasil não está, portanto, em procurar o uso ingênuo do modelo de fora
e enquanto tal considerá-lo. Mais interessante é refletir sobre a
originalidade do pensamento racial brasileiro que, em seu esforço de
adaptação, atualizou o que combinava e descartou o que de certa forma
era problemático para a construção de um argumento racial no país”
[SCHWARCZ, 1993, p.19].

O presente texto propõe a analisar como a imigração chinesa foi abordada no jornal
Correio Paulistano a partir de uma abordagem qualitativa. Segundo Tânia Regina
de Luca, os periódicos precisam ser analisados do ponto de vista material, levando
em consideração o tamanho do jornal, qualidade do papel, a organização das
notícias, e do ponto de vista social, atentando para a vinculação política e social do
estabelecimento responsável pela sua produção [LUCA, 2005]. Serão consideradas
as questões de raça a partir de três esferas diferentes: científica, política e social
[MAIO e SANTOS, 2010].

O artigo foi dividido em duas partes: 1ª Análise do periódico Correio Paulistano;


2ª. Apresentar a posição do jornal em relação aos chineses no que se refere à opção
chinesa como solução para a questão servil.

Uma hora conservador na outra liberal: o jornal correio paulistano


É objetivo deste tópico discutir a inserção social e política do jornal Correio
Paulistano, identificando informações sobre os proprietários, as pessoas que
trabalhavam nele, as vinculações políticas, linha ideológica e organização [LUCA,
2005].

Fundado na província de São Paulo no dia 26 de junho de 1854 por Joaquim


Roberto de Azevedo Marques, o Correio Paulistano durou até o ano de 1963.
Assim, ao longo desses 109 anos de história, o correio se caracterizou como um
jornal politicamente adaptável, mas que acima de tudo se vinculou na maioria das
vezes ao partido conservador [MENDES, 2018; SCHWARCZ, 1987]. Joaquim
Roberto de Azevedo Marques, seu proprietário, nasceu em 18 de setembro de 1824
na Comarca de Paranaguá e faleceu em São Paulo em 27 de setembro de 1892,
Joaquim Roberto era filho de Joaquim Roberto de Silva Marques com sua prima
Ana Vitorina [THALASSA, 2007]. Após a morte de seu pai, Joaquim Roberto e
sua família se mudam para São Paulo no ano de 1832. Residindo nessa localidade,
o fundador do Correio Paulistano teve uma carreira profissional um tanto quanto
variada, se formou em matemática e foi carreirista do exército, onde teve suas
primeiras experiências com os jornais. Com isso, podemos dizer que mais para
frente Azevedo Marques se tornou dono de dois periódicos, que no caso são o
Correio Paulistano e o Comércio [CORREIO PAULISTANO, 1954].

Uma das características mais marcantes dessa folha de notícias é a sua capacidade
de se adaptar politicamente. Sendo mais claro, ela sempre buscava se aliar ao
partido político que estivesse no poder com o objetivo de garantir sua
sobrevivência. Esse fato nos é comprovado por meio das constantes mudanças
políticas ao longo do tempo, pois ao longo dos anos este foi conciliador,
conservador, liberal, republicano, neutro e conservador. Contudo, mesmo em meio
a essas constantes oscilações de alinhamento político, esse estabelecimento
jornalístico possuía um perfil caracterizado como sendo sensacionalista e
extremamente apegado aos valores conservadores da época. Desse modo, vale
salientar que o Correio Paulistano além de ser uma folha de notícias que sempre
defendeu os interesses de uma aristocracia rural também se manifestava
conservador nas mais variadas questões [SCHWARCZ, 1987]. A análise da
trajetória política do dono do jornal reforça a perspectiva que se trata de um jornal
conservador [THALASSA, 2007].

Em relação à materialidade do jornal, podemos destacar que as primeiras páginas


continham um cabeçalho com diversas informações. Divididos em três blocos,
sucediam-se as seções de política, folhetins, noticiário geral e de assuntos livres. Já
as páginas finais, eram mais voltadas para divulgação de anúncios, como por
exemplo: venda de casas, escravos fugidos e propaganda dos mais variados
produtos [CORREIO PAULISTANO, 1879]. Tratava-se, portanto, de um típico
jornal literário, científico e político de tendência conservadora.

Os rumos da imigração chinesa


A notícia que será analisada foi publicada no dia 16 de dezembro de 1879,
consistindo em uma parte do interior da seção Crônica política, sem título ou
destaque. Trata-se de um texto traduzido e publicado pela Rio News, originalmente
publicado pelo periódico britânico Anti Slavery Reporter. Antes mesmo de entrar
no tema, é importante destacar a circularidade das informações entre países e
jornais. O Anti Slavery Reporter pertencia a British and Foreign Anti-Slavery
Society – BFASS, que traduzindo para o português significa Sociedade
Antiescravista Britânica e Estrangeira. Ao levar em consideração o nome dessa
instituição, somos conduzidos a subentender que essa sociedade tinha como
objetivo combater a escravidão [RÉ, 2018]. A BFASS atuava contra a importação
de imigrantes chineses para o Brasil, pois esses indivíduos provavelmente seriam
explorados aqui, tal como aconteceu em Cuba e no Peru. Ao tomar conhecimento
das pretensões do governo brasileiro, a BFASS logo tratou de alertar as autoridades
chinesas e britânicas para impedir a vinda desses indivíduos para o Brasil, além
disso, ainda denunciou esse esquema no Anti Slavery Reporter [RÉ, 2018].

A notícia abordada encontra-se, portanto, inserida no contexto político de disputa


entre Inglaterra e Brasil sobre as formas de organização do trabalho no Atlântico
Sul. Logo no início, o jornal indicava mais um fiasco na atuação dos Sr. Sinimbu e
Moreira de Barros, em Londres, para a importação de mão de obra chinesa. Depois
de mostrar a posição favorável de Joaquim Nabuco e do conselheiro Sinumbu, o
jornal transcreveu a seguinte correspondência do embaixador chinês:

“British and Foreign Anti-Slavery Society'' dirigiu um segundo protesto


ao ministro da China, em Londres, contra a introdução de trabalhadores
chineses no Brasil. A resposta a esse protesto foi a seguinte: Relação
chinesa em Londres, 6 de novembro de 1879. – Senhores: Em resposta
a comunicação que tão graciosamente dirigiram ao sr. ministro da
China, em 4 do corrente, cabe-me dizer que fui por s. ex. encarregado
de lhes apresentar os seus sinceros agradecimentos e ao mesmo tempo
assegurar-lhes que o governo chinês está inteiramente de acordo com a
comissão a respeito de não tratar de modo algum da questão da
imigração chinesa” [Correio paulistano, 16/12/1879, p.1].

O trecho transcrito parece evidenciar a falência da empreitada brasileira na busca


por imigrantes collies, graças à acolhida da demanda inglesa pelas autoridades
chinesas. A publicação indica que o jornal Correio Paulistano é contra a imigração
de chineses, algo que poderia indicar uma bússula da orientação política dos jornais,
se a gente entender qual era o posicionamento dos partidos da época em relação ao
tema.

Segundo José M. de Carvalho, o partido conservador abrigava principalmente os


fazendeiros da grande agricultura de exportação, além disso, foi responsável pelas
principais leis de reforma social, como as leis abolicionistas. Entretanto, é relevante
salientar que partido conservador de São Paulo liderado por Antônio Prado só veio
a apoiar o fim da escravidão nos momentos finais desse regime [CARVALHO,
2008].

As figuras Visconde de Sinimbu, Conselheiro Moreira de Barros e Joaquim


Nabuco, criticados na notícia, eram conhecidos liberais. Mas não é possível
concluir com isso que a defesa da imigração chinesa seja uma bandeira liberal, pois
a questão servil era uma pauta polêmica. O partido conservador, ao representar os
latifundiários exportadores, era um dos interessados em uma solução para a falta de
fluxo de mão de obra gerada pelos bloqueios ingleses. Um dos argumentos
entendidos como humanistas, logo liberais, era a defesa da escravidão dos coolies,
que seriam os substitutos dos negros na estrutura escravocrata [Ré, 2018]. Quem
articulou a bancarrota do projeto de imigração de trabalhadores chineses na ocasião
foi a BFASS.

O restante da notícia indica que as negociações entre o governo chinês e brasileiro


em relação ao desenvolvimento da importação de coolies está completamente fora
de cogitação:

“A comissão supõe que o governo chinês vai entrar em negociações


com o governo do Brasil acerca da importação de trabalhadores
chineses naquele país. S. Ex. porém ordena-me dizer que tal não há, que
o seu governo em resposta às diligências do governo brasileiro, declina
resolutamente travar discussão sobre aquele assunto debaixo de
qualquer forma que seja” [Correio paulistano, 16/12/1879, p.01].
Após isso, o texto acaba por concluir que o governo chinês optou por não dar
continuidade às negociações de importação desses trabalhadores para qualquer país
estrangeiro. Aparentemente, isso deve-se por dois motivos, uma são constantes
reclamações realizadas pelas comissões e o outro são os inquéritos de trabalho
desses indivíduos. O artigo ainda destaca que as proibições do Império Celeste não
têm eficácia sobre a movimentação dos trabalhadores chineses: “E nem nos parece
que estas convenções são necessárias, uma vez que a experiência tem mostrado que
para qualquer parte onde seus trabalhos são justamente remunerados, os chineses
vão espontaneamente” [Correio paulistano, 16/12/1879, p.01].

Contudo, para a nossa reflexão se tornar completa é indispensável pensar as teorias


raciais dentro desse contexto. Conforme foi falado pela historiadora Lilia M.
Schwarcz, esses modelos de análise buscavam pensar um projeto nacional para o
Brasil por meio da questão racial, em outras palavras, a noção de raça tomava nesse
momento um papel central no destino do país. Com isso, essas ideias foram
adaptadas para justificar o problema da mão de obra e ao mesmo tempo garantir a
conservação de uma estrutura social. Contudo, se por um lado esses modelos de
análise permitiam estabelecer uma estrutura baseada nas diferenças sociais, por
outro, acabava questionando e inviabilizando uma proposta de transformação
nacional que se alicerçava na miscigenação. Assim, essa inviabilização do projeto
nacional acontecia devido a visão negativa que essas teorias raciais possuíam em
relação à miscigenação [SCHWARCZ, 1993].

Em vista disso, vale acrescentar que nessa conjuntura o imigrante ideal seriam
europeus possuidores de determinadas qualidades, que no caso são a noção do
trabalho agrícola, a moralidade e empenho no trabalho, ou seja, estrangeiros de
raças vigorosas. Levando essas características em consideração, percebemos que os
trabalhadores chineses são colocados como inadequados para a lavoura brasileira
Todavia, com a chegada das décadas de 1870 e 1880 foram se manifestando
dificuldades na obtenção de imigrantes, tal fato acabou levando ao surgimento de
uma proposta de imigração de transição. Sendo mais direto, a imigração chinesa
serviria de ponte do trabalho escravo para o livre e ao mesmo tempo criaria as
condições adequadas para a vinda dos imigrantes europeus. Existia um projeto que
em um momento colocava o elemento chinês como racialmente inferior, porém, no
outro, alegava que esses indivíduos poderiam servir temporariamente para o
trabalho na lavoura. Essa proposta se respaldou na percepção de que esse grupo não
se enquadra como um imigrante permanente por ser egoísta, atrasado e incapaz,
todavia, se mostrava uma opção melhor do que o uso de africanos por serem
superiores racialmente [AZEVEDO, 1987].

A ideia de raça estava enraizada em pilares científicos, políticos e sociais. O


primeiro garante a legitimidade da noção de raça, o segundo permite o uso político
desse conceito e o terceiro, está ligado ao impacto concreto que a noção de raça tem
em uma população [MAIO e SANTOS, 2010]. Desse modo, buscaremos enxergar
a importação de chins através da união dessas três esferas.
Logo, vemos que em meio a esse cenário de declínio da escravidão, de preocupação
com a importação de braços para a lavoura e de teorias raciais, surge discretamente
uma proposta de se utilizar os chins como força de trabalho. Esse projeto se insere
dentro dos três domínios apresentados mais acima, pois as teorias raciais que se
apoiavam na ciência tinham o papel de desclassificar os asiáticos como
trabalhadores permanentes; o âmbito político se responsabilizava pelas relações de
importação/diplomáticas e por fim, o lado social é a forma como o Correio
Paulistano compreende toda essa discussão acerca do chinês.

Considerações finais
Em síntese, a partir da análise proposta percebe-se que o Correio Paulistano se
colocou ridicularizando a atuação do partido liberal na viabilização da empresa,
porém não necessariamente era contra a chegada dos braços asiáticos. Ao levarmos
em conta aspectos como a ligação política do jornal, o destaque dado ao artigo, a
conjuntura da notícia, à temática do texto e último parágrafo da publicação,
subentendemos que o Correio implicitamente apoia a imigração de chineses como
uma força de trabalho temporário. A discussão racial permite incluir outros
elementos no cálculo político e a adequação, ou não, da mistura racial com povos
mongólicos.

Referências
Alisson Eric de Souza Simão Pereira é graduado em História e mestrando em
Ciências Sociais e Humanas [PPGCISH] pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte [UERN].
Carlos Eduardo Martins Torcato é doutor em História Social pela Universidade de
São Paulo [USP] e professor do departamento de História e do PPGCISH pela
UERN.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no
imaginário das elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial e
Teatro das sombras: a política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2008.
CZEPULA, Kamila Rosa. A questão dos trabalhadores "chins": salvação ou
degeneração do Brasil? [1860-1877]. Anuario Colombiano de Historia Social y de
la Cultura , v. 47, n. 1, pág. 303-325, 2020.
GONÇALVES, Paulo Cesar. Escravos e imigrantes são o que importam:
fornecimento e controle da mão de obra para a economia agroexportadora
Oitocentista. Almanack, p. 307-361, 2017.
LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre: A lei de locação de
serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988.
LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, p. 111-153, 2005.
MAIO, Marcos Chor. Raça, Doença e Saúde Pública no Brasil: um debate sobre o
movimento higienista do século XIX. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS,
Ricardo Ventura. Raça como Questão: história, ciência e identidades no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 2010, p.51-82.
MENDES, Mirian Lucia Brandao. A construção descritiva do racismo no século
XIX: um estudo dos jornais Correio Paulistano e A Redempção. 2018.
NASCIMENTO, Maria Isabel Moura. Os congressos do Rio de Janeiro: fatores
históricos determinantes da proposta de criação de escolas. 2011.
OLIVEIRA, Maysa Silva. Paralelo Brasil-Cuba: um estudo sobre a imigração
chinesa 1840-1890. 2018.
RÉ, Henrique Antonio. Os esforços dos abolicionistas britânicos contra a
imigração de chineses para o Brasil no final do século XIX. Varia Historia, v. 34,
n. 66, p. 817-848, 2018.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SCHWARCZ, Lilia. Retrato branco e negro: Jornais, escravos e cidadãos em São
Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1987.
THALASSA, Ângela. Correio Paulistano: O primeiro diário de São Paulo e a
cobertura da Semana de Arte Moderna: O jornal que “não ladra, não cacareja e
não morde.PUC, São Paulo, 2007.

Fontes
Correio Paulistano, 26/06/1954, p.07.
Correio Paulistano, 16/12/1879, p.01.
O VÍRUS CHINÊS E O USO DO ANTICOMUNISMO
PELO BOLSONARISMO
Ariel Cherxes Batista
Em 5 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde [OMS] publicou seu
primeiro boletim sobre uma pneumonia de origem desconhecida, identificada na
China em 31 de dezembro de 2019. A doença contava à época, segundo o governo
chinês, com mais de quarenta casos, todos detectados na cidade de Wuhan, na
província de Hubei.

O surto posteriormente transformou Wuhan em epicentro de uma endemia, pois até


então pensava-se que havia o perigo da doença apenas nesta localidade. Após dois
meses, por volta de fevereiro de 2020 o vírus era visto como epidêmico, isto porque
apenas na Ásia havia a chance de uma pessoa se contaminar. Esta situação não
durou muito, visto que em março, o mundo conhecia a pandemia do “Novo Corona
vírus”.

Ressaltamos que as expressões "vírus chinês" ou "vírus de Wuhan" ainda eram


utilizadas, todavia a doença batizada de “Corona Vírus”, popularizou-se com o
nome de “Covid-19”. O nome dado é proveniente do inglês "COrona VIrus
Disease" e do seu já citado, ano de aparição, ou seja, 2019.

Xenofobia, é uma palavra grega que significa medo, aversão ou profunda antipatia
em relação a estrangeiros. Esta prática não justificável ocorre nas sociedades desde
a antiguidade. Os antigos gregos foram os primeiros a demonstrar sua contrariedade
a nações estrangeiras, não os inserindo nas decisões políticas que deveriam tomar,
chegando até mesmo a isolar indivíduos de outras nações em suas cidades. O
sentimento xenofóbico manteve-se no decorrer dos tempos, e ainda hoje ocorre,
causando situações problemáticas ao redor do mundo.

Por exemplo, devido ao aumento dos casos de Covid-19 em todo o mundo, e da


difusão global de notícias sobre a doença, multiplicaram-se os casos de
discriminação e de violência contra populações asiáticas, inclusive contra migrantes
e seus descendentes radicados no Ocidente. Este preconceito contra chineses e
demais povos da Ásia não é uma novidade, contudo se intensificou em alguns
lugares do mundo desde o início da pandemia.

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos entre 2016 e 2021 pode ser
considerado um dos principais difusores de expressões xenofóbicas e
preconceituosas ao referir-se a pandemia, como "vírus chinês" ou "vírus de
Wuhan". Conforme apurado por pesquisadores do site que também é banco de
dados Factobase, o presidente usou a expressão “vírus chinês” mais de 20 vezes
entre 16 de março e 30 de março, nas falas e discursos que proferiu no período
citado.

A condução da pandemia pelo governo Trump destacou-se pelo descaso e


minimização dos impactos causados pelo vírus. Vale lembrar que o ex-presidente
em seus discursos deixava claro ser contrário ao uso de máscaras e da vacinação
em massa, fato que apenas começou a ocorrer nos Estados Unidos, após o início do
governo Biden, que o sucede.

Corona vírus e xenofobia


Desde janeiro de 2019, o poder Executivo brasileiro é chefiado pelo ex-capitão do
exército brasileiro, Jair Messias Bolsonaro. Devido a arroubos autoritários, acenos
antidemocráticos e medidas discutíveis no que se relaciona a condução da
República no Brasil, alguns pesquisadores optaram em nomear o governo
Bolsonaro de bolsonarismo.

Pensando nisso, para discutir a ideia de bolsonarismo utilizamos alguns elementos


trabalhados por Daniel Aarão Reis Filho [2020]. Segundo o autor, esse fenômeno
não é apenas brasileiro, e de certa forma se insere em um contexto internacional de
reações a mutações percebidas como ameaças mortais a tradições, valores e
costumes. Além disso, representa uma espécie de nova força política, que em seus
aspectos é: “[...] descomplexada, ativa e propositiva, de grande ativismo público,
com frequentes incursões nas ruas, explorando as insuficiências e deficiências dos
regimes democráticos, instrumentalizando os quando convém, desfigurando-os
“por dentro” e usando intensamente os mecanismos próprios da revolução digital
[REIS FILHO, 2020, p. 3].

Podemos dizer que esses são os elementos gerais que nos possibilitam identificar o
bolsonarismo, além de seus pares ao redor do mundo, também conhecidos como
Alt-Right.

Este grupamento é considerado uma alternativa de direita ao descrédito


representativo que os governos liberais-democráticos vivem em todo o planeta
desde o crash econômico de 2008. De certa maneira, possui como características
gerais: a rejeição ao conservadorismo “clássico”, bem como o desenvolvimento de
uma militância em favor da supremacia branca e do antissemitismo. Também são
conspiracionistas e, sobretudo na Europa, partidários da anti-imigração, ou seja,
xenófobos.

Além da ligação com o governo Trump, principal representante do chamamos de


Alt-Right, o Executivo brasileiro, liderado por Jair Messias Bolsonaro, também
trata a pandemia de Corona Vírus como algo pífio. Anteriormente mencionamos o
fato de que o bolsonarismo, alcunha dada por pesquisadores de diferentes áreas ao
governo Bolsonaro, possui ligações diretas com o trumpismo, desenvolvendo assim
práticas semelhantes na condução da pandemia.

Sendo assim, endossamos, que a xenofobia também pode ser considerada uma
prática desta direita que atualmente está presente no Brasil com o bolsonarismo. Ao
redor do mundo este grupamento político também possui representantes.
Destacamos: Viktor Orban na Hungria, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Andrzej
Duda na Polônia, Erdogan na Turquia e Putin na Rússia, aqui tratando apenas dos
eleitos. Além desses, figura com destaque na França a líder da Frente Nacional,
Marine Le Pen, que antagoniza a disputa política no país com um empresário, o
presidente Emmanuel Macron.

Ademais, existem também partidos políticos que podem ser considerados ligados a
este grupo. Apontamos entre eles: os Republicanos nos EUA, a Pegida [antissemita]
na Alemanha, o Aurora Dourada na Grécia, o Partido da Liberdade austríaco, o
Partido Lei e Justiça [PiS] polonês, a Liga Norte-italiana, e o espectro bolsonarista
no Brasil que não possui partido político definido, mas que ascendeu ao poder em
2018 pela aliança entre o Partido Social Liberal [PSL], e o Partido Renovador
Trabalhista Brasileiro [PRTB].

A Alt-Right pode ser definida em suas ações ao redor do mundo pela defesa, entre
outros, de um nacionalismo racial, da desigualdade de pessoas e raças, da
manutenção nos papéis tradicionais de gênero, pela necessidade de hierarquia
centrada na figura de um líder, e pelo apreço a ritos antidemocráticos. Além disso,
“[...] A alt-right, ao contrário do que muitos estudiosos do assunto afirmam, não é
antipolítica, mas a expressão da política democrática contemporânea levada ao seu
paroxismo” [AUGUSTO, 2020, p.9].

O anticomunismo bolsonarista e sua ligação com o Corona vírus


Neste artigo, possuímos como ideia geral explanar que a base xenofóbica do
bolsonarismo em relação a China, está associada ao anticomunismo, elemento
presente nesta vertente política em ascensão no Brasil. Desde a primeira metade do
século XX, é possível observar a existência do temor de setores da elite brasileira
ao “perigo vermelho” representado inicialmente por Moscou, que posteriormente
divide esse temor com a China, após a Revolução Cultural de 1948.

Para entendermos como o anticomunismo se faz presente no bolsonarismo,


precisamos recapitular a relação do Brasil com este possível “perigo”. Entre as
décadas de 1930 e 1940, o país foi comandado por Getúlio Vargas. O período
varguista é marcado por conservadorismos de várias ordens, e sendo assim, o
anticomunismo era elemento presente na condução do poder pelo presidente. Vale
mencionar que o dirigente comunista da Aliança Nacional Libertadora [ANL], Luís
Carlos Prestes, foi considerado um dos principais inimigos políticos do regime
Vargas.
O plano Cohen que inicia a ditadura do Estado Novo em 1937, utiliza como
argumento uma suposta invasão comunista no Brasil. Nesta conjuntura a opinião
pública se une ao presidente Vargas e de certa forma autoriza o golpe de Estado que
trouxe a primeira experiência ditatorial ao Brasil. O temor anticomunista ligado a
saídas autoritárias continua presente na política brasileira das décadas seguintes,
pois um dos pretextos para se empreender o golpe civil-militar em abril de 1964 é
o impedimento que o comunismo novamente assole o país, desta vez mediante a
política empreendida pelo presidente João Goulart que foi deposto, mesmo que este
nunca houvesse se declarado um comunista.

O comunismo brasileiro em nenhum momento de nossa história foi superior


politicamente ou mesmo tomou o poder utilizando-se de métodos revolucionários,
mas sempre foi fruto de intensa oposição. Conforme Rodrigo Patto Sá Motta [2002]
a ameaça comunista no Brasil serviu como pretexto para justificar golpes
autoritários, e reprimir movimentos populares que garantiam interesses
imperialistas visando manter inalterado o status quo.

Um fato ocorrido no Congresso Nacional brasileiro em 2017, ilustra bem a ideia do


anticomunismo ainda presente em nossa cultura política. O deputado Eduardo
Bolsonaro do Partido Social Liberal de São Paulo [PSL], criou um projeto de lei
que propunha a criminalização do comunismo. A proposta do deputado possuía
como objetivo modificar as Leis Antirracismo e Antiterrorismo punindo qualquer
indivíduo que fizesse apologia ao Comunismo ou se mostrasse favorável a este
doutrinamento político com reclusão de dois a cinco anos ou multa.

A Constituição Federal de 1988, defende a liberdade de ideias, desse modo, esta


proposta de projeto apresentou incompatibilidade com a carta magna brasileira e
foi arquivado. Caso este projeto fosse aprovado na Câmara dos deputados na
ocasião, os partidos comunistas voltariam a ilegalidade, tal qual ocorreu no final da
década de 1920 e também em 1947. Ou seja, em toda a sua trajetória ambos os
partidos comunistas brasileiros PCB e PC do B, viveram mais tempo na
clandestinidade do que em ação livre.

O uso pejorativo da expressão “vírus chinês” pelo governo Bolsonaro associa-se a


mesma ideia deste projeto lei. Pensando no fato de que a China é um país comunista,
e o governo norteia-se por uma aversão ao “perigo vermelho”, é possível
compreender o uso destes termos ao tratar do “Corona Vírus”.

Em suma, podemos dizer que o imaginário anticomunista no Brasil, esteve presente


em 1937 no Estado Novo, e permaneceu inalterado no período democrático
brasileiro entre 1947 e 1964, pois os comunistas foram mantidos na ilegalidade até
o golpe civil-militar de 1964. Este evento foi orientado pelo anticomunismo, logo,
a ditadura é marcada por expurgos e medidas repressivas que combatiam
impetuosamente os comunistas, considerados opositores ao regime imposto a força
no país. Mesmo após a redemocratização, práticas anticomunistas podem ser
identificadas no país, ainda que de forma mais branda.
Atualmente podemos dizer que o anticomunismo é elemento presente em nossa
sociedade, o projeto de lei referido nas linhas anteriores, ou a visão xenófoba e
preconceituosa com a qual o governo Bolsonaro tratou o Corona Vírus em seu início
provam, por exemplo, a visão do bolsonarismo em relação a China, que ainda
permanece como um dos maiores parceiros econômicos brasileiros, mesmo com
diversos episódios xenofóbicos por parte do presidente, de seus aliados e
correligionários.

Destacamos, por exemplo, a postagem feita pelo ex-ministro da educação do


governo Bolsonaro, Abraham Weintraub a respeito da China, em abril de 2020. A
publicação feita no Twitter ridicularizou o sotaque dos chineses radicados no Brasil
com o personagem Cebolinha, da Turma da Mônica, criação de Mauricio de Souza,
e sugeriu que a China, criou o vírus para propositalmente se fortalecer com a crise
do Corona vírus.

Portanto, observa-se que o bolsonarismo além de anticomunista é um governo que


possui práticas xenofóbicas em seus quadros, e assim, orienta e age tal qual figuras
da direita alternativa mundial mencionada anteriormente.

Em suma, o discurso anticomunista brasileiro conduz o presente reafirmando em


seus aspectos práticas de um passado que não passa. A importância de se estudar
estes períodos históricos gira em torno do fato de que a influência dos mesmos deve
ser analisada como forma de melhor compreender os desdobramentos políticos do
Brasil, e combater a difusão deste tipo de pensamento e ações no país.

Considerações finais
Ao pensarmos sobre passados recompostos e ao imediatismo dos períodos
históricos em que um acontecimento atropela o outro, devemos nos ater a ideia de
que: “O pensamento crítico pode constituir a melhor defesa da democracia, à
maneira de um antídoto às tentações autoritárias, sempre à espreita, prontas a
ressuscitar tão logo reapareçam no horizonte novas crises e outras ameaças a
ordem” [REIS, 2014, p. 172].

Períodos históricos como os analisados neste texto, confirmam a permanência de


reflexos do passado em nossa contemporaneidade. Temos o dever de analisar estes
fatos e compreende-los, mas não devemos justificá-los. Compreender não significa
aceitar as práticas desenvolvidas nestas épocas, de certa maneira elas ainda não
estão ultrapassadas, visto que seguem ainda sendo combatidas. Surge aqui a
importância da história e dos bons usos da memória. A recomposição do passado,
em certo sentido, influencia para o não desenvolvimento de nossa sociedade pois
quando tratamos de temas sensíveis é necessário procurar não a sua novidade, mas
sim o seu enraizamento, ou seja, devemos combater o extremismo e a xenofobia
incansavelmente.
Referências
Ariel Cherxes Batista é mestre em História Social das Relações Políticas, pela
Universidade Federal do Espírito Santo [UFES], membro do Laboratório de
Estudos em História do Tempo Presente [LABTEMPO - UFES], integrante da
gestão da seção Espírito Santo da Anpuh, e professor das redes privada e pública
no estado do Espírito Santo.

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Acácio [org]. Antifa: modos de usar. Rio de Janeiro: Circuito, 2020.
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Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
NÓS E OS OUTROS: RAÍZES DA INTOLERÂNCIA
HISTÓRICA AOS ASIÁTICOS E A IMIGRAÇÃO AO
BRASIL
Jean Carlo Lima de Moura
Forasteiro, estrangeiro, bárbaro, ao longo da história foram inúmeros termos
imputados àqueles de outra cultura, outra língua, originários de outras terras. O
mundo ocidental, tributário das culturas greco-romanas, utilizou-se da noção de
civilização para garantir supremacia. Na Grécia antiga, nota-se o advento das
apoikia na expansão colonial e migrações para diversas regiões mediterrâneas.

Xenofobia foi o termo criado pelos antigos gregos para descrever um sentimento
reflexivo de hostilidade ao estrangeiro. Félix Jácome Neto [2020] relata que: “na
eugeneia ["nascimento nobre"] típica da ideia aristocrática grega, o valor de um
indivíduo era classificado de acordo com a nobreza de sua família”.

A questão racial ganha sua abordagem dogmática a partir da tradição judaico-cristã


e por extensão às demais denominações abraâmicas, trata-se da maldição de Cam:

“Noé, que era agricultor, foi o primeiro a plantar uma vinha. Bebeu do
vinho, embriagou-se e ficou nu dentro da sua tenda. Cam, pai de
Canaã, viu a nudez do pai e foi contar aos dois irmãos que estavam do
lado de fora. Mas Sem e Jafé pegaram a capa, levantaram-na sobre os
ombros e, andando de costas para não verem a nudez do pai, cobriram-
no. Quando Noé acordou do efeito do vinho e descobriu o que seu
filho caçula lhe havia feito, disse: "Maldito seja Canaã! Escravo de
escravos será para os seus irmãos". Disse ainda: "Bendito seja o
Senhor, o Deus de Sem! E seja Canaã seu escravo. Amplie Deus o
território de Jafé; habite ele nas tendas de Sem, e seja Canaã seu
escravo”. [Gênesis 9:20-27]

Para o sacerdote metodista inglês Thomas Coke, “Deus aumentaria Jafé”, no


sentido de glória e poder. Esta é a argumentação sincretizada para a crença já na
Idade Média que os povos dos três continentes conhecidos, Europa, África e Ásia,
seriam respectivamente descendentes de Jafé, Cam e Sem. Conforme defende o
arcebispo Isidoro de Sevilha no século VII:

"eles foram os fundadores de cidades e regiões na Europa, Ásia e


África. Toda a raça humana deve ser descendente deles e eles, Sem,
Cam e Jafé, portanto, dividiram o mundo entre eles. A Europa era a
parte de Jafé e sua numerosa prole e seus descendentes, por sua vez,
foram os ancestrais de todos os grandes povos europeus: Francos,
Latinos, Alemães e Britânicos, para citar apenas alguns". [LEYSER,
1994, p. 5]

Daí todo tipo de justificativa, especulação e defesa de que a maldição de Cam seria
a permissão eterna para o prevalecimento dos europeus, em detrimento aos
africanos em que lhes restaria o papel escravidão. Acima de Sem estaria Jafé, que
habitaria a sua morada, “suas tendas”, chancelando o neocolonialismo na Ásia e
desdobramentos exploratórios subsequentes.

A Revolução Química com Lavoisier no século XVIII, e as posteriores façanhas


durante a Revolução Industrial que alçaram a Inglaterra como a grande potência da
modernidade, trouxeram a impressão de progresso contínuo, a partir disso e do
século XIX em diante, buscou-se empreender a padronização das ciências. George
M. Fredrickson expõe a visão de diferenciação fenotípica entre humanos:

“O pensamento científico do Iluminismo foi uma pré-condição para o


crescimento de um racismo moderno baseado na tipologia física. Em
1735, o grande naturalista sueco Carl Linnaeus incluiu os humanos
como uma espécie dentro do gênero primata e então tentou dividir essa
espécie em variedades. Essa tentativa inicial de classificação científica
dos tipos humanos incluiu algumas criaturas míticas e “monstruosas”;
mas o cerne durável do esquema era a diferenciação que Linnaeus fazia
entre europeus, índios americanos, asiáticos e africanos. Embora ele
não as classifique explicitamente, as descrições de Linnaeus das raças
indicam claramente suas preferências. Europeus que ele descreveu
como "perspicazes, criativos, governados por leis". Os negros, por outro
lado, eram “astutos, indolentes, negligentes, governados por
caprichos””. [FREDRICKSON, 2015, p. 56]

Charles Darwin, naturalista britânico, formulou as teorias de seleção natural e


sexual das espécies, onde a luta pela sobrevivência resulta em consequências
similares às da seleção artificial. Sobre o aperfeiçoamento em humanos havia dito:

“Suponha que todas as raças humanas descendam de uma raça -


suponha que todas as estruturas de cada raça humana fossem
perfeitamente conhecidas - suponha que uma tabela de descendência
perfeita de cada raça fosse perfeitamente conhecida - suponha tudo isso,
e então você não acha que a maioria [das pessoas] iria preferir a de
melhor classificação genealógica, mesmo que ocasionalmente pusesse
uma raça não tão próxima de outra, como teria estado, se disposta
apenas pela estrutura? Geralmente, podemos presumir com segurança
que iriam juntos, a similaridade de raças e seus pedigrees”. [Darwin,
1903, carta 204]
Francis Galton, primo do naturalista, estabeleceu conceitos similares aos de
Darwin, porém a direcionar objetivos ao melhoramento da espécie humana, através
da eugenia – “bem nascido”. Esta ideologia racial se tornou um movimento com
adeptos nos diversos meios sociais e da grande parte de médicos e cientistas. Tim
Mc Inerney explicita o pensamento de Aristóteles na relação, posição social e
nascimento:

“Para Aristóteles, de fato, havia pouca dúvida de que o nobre título


particular de arete convinha-lhe perfeitamente a sua função social –
apenas o seu nascimento já o distinguia da multidão: “Pois os bem
nascidos são cidadãos em um sentido mais verdadeiro do que os de
origem inferior...”, afirma ele na Política, “aqueles que nasceram de
melhores ancestrais provavelmente serão homens melhores, pois bom
nascimento é excelência de raça””. [MC INERNEY, 2014]

Tal pressuposto norteava o imaginário de europeus como Galton, o entendimento


de casamentos seletivos, pureza racial e o medo da miscigenação com raças ditas
inferiores - negros africanos e asiáticos amarelos - Fredrickson relata que:

“O antissemitismo alemão do final do século XIX e do início do século


XX diferia mais obviamente da supremacia branca americana do
mesmo período nas formas contrastantes com que os alvos da agressão
racista eram estereotipados. Os alemães temiam, nas condições
competitivas modernas, que supostamente recompensam os inteligentes
e inescrupulosos, os judeus pudessem ser seus superiores. A
discriminação era justificada, portanto, como meio de autopreservação.
A maioria dos americanos brancos, por outro lado, acreditava que os
negros eram inatamente incompetentes em todas as maneiras que
importavam. O perigo que representavam para os racistas radicais era a
doença, a criminalidade violenta e a contaminação sexual que uma
grande população em processo de degeneração ou “voltando à
selvageria”, poderia apresentar aos seus vizinhos brancos”.
[FREDRICKSON, 2015, p. 90]

Publicações no ramo da eugenia foram de enorme profusão entre os anos de 1870


a 1933. No Brasil o Boletim de Eugenia, periódico criado em 1929 e assinado pelo
médico, Dr. Renato Kehl, discutia o dilema das raças:

“O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente á communidade


exemplares notaveis de intelligencia, de cultura, de valor moral. Por
outro lado as populações offerecem tal fraqueza physica, organismos
tão indefesos contra a doença e os vicios, que é uma interrogação
natural indagar si esse estado de coisas não provém do intenso
cruzamento das raças e sub-raças. Na sua complexidade o problema
estadosunidense não tem solução, dizem os scientistas americanos, a
não ser que se recorra á esterilização do negro. No Brasil si ha mal, este
está feito, irremediavelmente; esperemos, na lentidão do processo
cosmico, a decifração do enigma com a serenidade dos
experimentadores de laboratorio. Bastarão 5 ou 6 gerações para estar
concluida a experiencia" [sic]. [KEHL, ano 1, n. 6-7, p. 4]

A maldição de Cam, um fantasma latente na memória coletiva brasileira, que por


intermédio dos portugueses, defendeu-se o comércio negreiro e a cor da pele sendo
sinal de condenação e fundamento para escravidão. Projetou-se ao Brasil a
necessidade de trazer imigrantes brancos para assim conseguir a redenção da nação
brasileira:

“[...] Está provado que os cruzamentos entre raças superiores dão typos
superiores, e vice-versa. Assim conseguiu melhorar o typo racial a
America do Norte, para onde emigraram, não os peores, mas os mais
selectos, quiça, de varios paizes, em tempos de perseguições politicas e
religiosas. Na Australia e na America do Sul succedeu algo semelhante;
não obstante, os latinos não lograram alcançar o nivel eugenico de que
se orgulham os anglo-saxões. Na America Central os hespanhoes
procrearam sem nenhum criterio selectivo, dando origem a um typo de
mulato inferior, que na luta contra a metropole foram os seus maiores
inimigos. É evidente que podem vir de raças puras elementos melhores,
e cabe uma selecção que redima paulatinamente a humanidade de taras
hereditárias” [sic]. [KEHL, ano 1, n. 4, p. 2]

Buscou-se o imigrante imprescindível para o embranquecimento da dita


“civilização brasileira”, e as características impostas pelo Brasil foram intimamente
ligadas à absorção, deveriam estar interessados a construir suas vidas no país. A
obra de Modesto Brocos y Gómez, pintor galego radicado no Brasil, ‘A Redenção
de Cam’ de 1895, apresentada em Londres pelo médico João Baptista de Lacerda
com a legenda: “Negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do
cruzamento de raças”.

Maria Luiza Tucci Carneiro apresenta as questões do governo brasileiro: “Os judeus
eram acusados de promoverem a guerra, os negros, de contribuírem para o atraso
do Brasil e os japoneses, de serem "inassimiláveis como enxofre", por viverem
enquistados dificultando a assimilação”.

Já na década de 1930 o governo Vargas seguia a eugenia [CONSTITUIÇÃO DE


1934, art. 138, alínea b], esta pseudociência racista. Para a seleção dos imigrantes,
determinados grupos eram indesejáveis pois poderiam "desfigurar" ou
"desnaturalizar" a população brasileira. A partir de 16 de julho de 1934, criou-se a
lei de Cotas de Imigração, estabelecia limites para entrada de estrangeiros no país;
e a lei dos 2/3, com regras para número mínimo de brasileiros contratados pelo
mercado de trabalho, desde fábricas, empresas e instituições públicas:
“Ao analisarmos a documentação referente aos registros de matrícula
dos migrantes internacionais que passaram pela hospedaria no final do
século XIX e início do século XX, constatamos uma enorme quantidade
de italianos, seguidos por português [sic], espanhóis, alemães e outros.
Os japoneses também se apresentaram como os "europeus da Ásia",
também fizeram parte - ao menos nesse momento - do grupo de
migrantes desejáveis”. [CARNEIRO, 2014]

‘A redenção de Cam’
Fonte: https://www.edusp.com.br/wp-content/uploads/2018/08/%E2%80%98A-
Reden%C3%A7%C3%A3o-de-Cam%E2%80%99.jpg

No século XIX a exploração de asiáticos na América era um negócio lucrativo,


denominados coolies, eram recrutados na China para contrato de trabalho de cinco
anos, porém barrados a um projeto de imigração inclusivo. Na lista de passageiros
do navio Kasato Maru, primeiros imigrantes japoneses destinados ao Brasil em
1908, havia instruções do secretário do consulado brasileiro em Kobe, para o
governador do Estado de São Paulo:
“A impressão que tive desses emigrantes não foi totalmente
desfavoravel, sobretudo, tendo-se em vista o typo japonez, que é de
baixa estatura, de apparencia mais fraca do que forte e, em seu
conjuncto, bastante feio. Os homens da ilha Riu-shiu [Okinawa], de
aspecto agradavel, parecerão-me fortes e resistentes. A gente dessa
parte do Japão é muito dada a agricultura, obediente e activa, e estou
certo que em São Paulo esses trabalhadores serão justamente
apreciados. Falam uma especie de 'patois', que os proprios japonezes
teem necessidade de interpretes para se entenderem com elles. Penso
que no fim de uma ou duas colheitas, V.S. poderá facilmente julgar da
força e do caracter desses emigrantes, de quem, seja dito de passagem,
não se deverá exigir mais de 2/3 do trabalho produsido por um
emigrante branco. Os salarios, naturalmente, devem ser pagos nesta
proporção” [sic]. [ARQUIVOESTADO-SP, 1908, p. 4-5]

Após a restauração do poder imperial Meiji em 1869, o Japão aproximou-se do


ocidente, estavam se moldando ao padrão eurocêntrico de civilização, mesclando e
reescrevendo as tradições japonesas. Na literatura promoveu-se amplamente o
caráter de superioridade japonesa frente às outras nações asiáticas. Mark Anderson
[p. 171] expõe as ideias do poeta da época, Haga Yaichi, que: “alega a superioridade
japonesa [em relação] à China por afirmar que enquanto os japoneses estão entre os
povos mais limpos do mundo, os chineses são sujos e foram historicamente
canibais”. Em 1894 o jornalista inglês Sir Henry Norman publicou:

“A Coreia parece um lugar muito pobre para se batalhar. Seu povo


está mergulhado na mais profunda miséria, é o pior de todos do oriente
que encontram-se assolados pela pobreza…O Japão, apesar de todos
seus erros, defende a luz e a civilização; suas instituições são
iluminadas; suas leis, elaboradas pela justiça europeia, são iguais às
melhores que conhecemos, e são administradas com justiça; suas
punições são humanas; seus ideais científicos e sociológicos são os
nossos próprios. A China representa a escuridão e a selvageria. Sua
ciência é superstição ridícula, sua lei é bárbara, suas punições são
terríveis, sua política é corrupção, seus ideais são isolamento e
estagnação”. [PAINE, 2002, p. 21]

A visão do asiático perigoso, violento, saqueador, origina-se da tradição medieval,


primeiro os Hunos, depois os Mongóis: “invadindo o país, cobrindo a face da terra
como gafanhotos, eles devastaram as regiões orientais com lamentável destruição,
espalhando fogo e matança aonde quer que fossem” [Tchen e Yeats, 2014, p. 91].

Final do século XIX, a metáfora racista do “perigo amarelo” sobrepujou-se pela


intimidação: “em uma Europa ansiosamente dividida e militarista, a charge do
Kaiser alemão Guilherme II, defendendo uma política de reação protetora
civilizacional, alastrou-se como incêndio, especialmente depois que os japoneses
derrotaram russos brancos em uma guerra pelo acesso à península coreana em
1904” [Tchen e Yeats, 2014, p. 124]. Um jornalista francês advertiria:

“O ‘perigo amarelo’ já entrou na imaginação do povo, tal como


representado na famosa charge do Imperador Guilherme II: no cenário
de conflagração e carnificina, hordas de japoneses e chineses
espalharam-se por toda a Europa, esmagando sob seus pés as ruínas de
nossas capitais e destruindo nossas civilizações, anêmicas devido ao
prazer da luxúria e corrompidas pela vaidade de espírito. Assim, aos
poucos surge a ideia de que mesmo que chegue um dia [e esse dia não
parece próximo] em que os povos europeus deixarão de ser seus
próprios inimigos e até mesmo rivais econômicos, haverá uma luta pela
frente e surgirá um novo perigo, o homem amarelo. O mundo civilizado
sempre se organizou ante e contra um adversário comum: para o mundo
romano, era o bárbaro; para o mundo cristão, era o Islã; para o mundo
de amanhã, pode muito bem ser o ‘homem amarelo’. E assim reaparece
este conceito necessário, sem o qual os povos não se conhecem, assim
como o ‘Eu’ só toma consciência de si mesmo em oposição ao ‘não-
Eu’: o inimigo”. [Tchen e Yeats, 2014, p. 124]

Esta coalizão repressiva contra asiáticos, principalmente chineses, relaciona-se aos


interesses colonialistas europeus, em especial da Alemanha recém unificada, no
território chinês. Reinterpretar as parábolas bíblicas mirando os fiéis mais simples
da esfera social tanto na Europa quanto América foi fundamental para conquistar a
opinião pública:

“O ‘perigo amarelo’ destruiria o Cristianismo e o Judaísmo, ao


estabelecer uma religião pagã do materialismo. O materialismo é a base
do bolchevismo. Deus não existe, disse Karl Marx. Coisas materiais e
forças materiais controlam o destino do mundo. O exército de 200
milhões de homens, descrito no Apocalipse, flui do império do ‘perigo
amarelo’, que consiste em pessoas que ‘ADORAM OS DIABOS E
ÍDOLOS DE OURO, E PRATA, E LATÃO, E PEDRA E DE
MADEIRA: QUE NEM PODE VER, NEM OUVIR, NEM ANDAR’.
Esta é a religião do ‘panteísmo’ - que nega um Deus pessoal. O
panteísmo adora coisas, coisas materiais, ao invés de um Deus vivo”.
[Tchen e Yeats, 2014, p. 300]

A campanha difamatória de periódicos sensacionalistas estigmatizando asiáticos de


forma odiosa e estereotipada, esteve em voga no Ocidente desde as últimas décadas
do século XIX até a década de 1930. A revista ilustrada Jolly Giant de Thistleton,
apresentou em seu número 19 de 1874 a charge satirizando a evolução das espécies
de forma racista a imagem do chinês:
TCHEN, John Kuo Wei; YEATS, Dylan [Ed.]. Yellow Peril!: An archive of anti-
Asian fear. Verso, 2014.

Nos EUA, uma série de atos legais repressivos, culminaram nas leis de restrição de
imigração de 1921, Asian Exclusion Act, National Origins Act e o Johnson-Reed
Act de 1924. Destinava-se limitar drasticamente imigração de grupos considerados
pela eugenia "socialmente inadequados", pelo governo do republicano Calvin
Coolidge, e dizia que a “América deve permanecer americana”, eram
principalmente italianos e judeus.

“Imigrantes negros e chineses [e às vezes até recém-chegados morenos


do sul e do leste da Europa que pareciam bastante brancos] eram
considerados geneticamente incapazes de solidariedade de classe e,
portanto, potenciais ferramentas de patrões exploradores. No sul rural,
os muitos fazendeiros brancos que estavam perdendo terras e autonomia
durante a longa depressão do algodão no final do século XIX se
agarraram mais desesperadamente do que nunca ao status social
automático que era inerente a suas peles brancas”. [FREDRICKSON,
2002, p.86]

O sentimento antichinês ecoou em protestos das massas contra trabalhadores


coolies. Estes, muito mais baratos, substituíam o operário branco que aderia às
greves. Esta modalidade foi combatida e encarada como a nova escravidão. Eram
sequestrados, ludibriados e subjugados a terríveis travessias oceânicas: “o navio
Dea del Mare deixou Macau em outubro de 1865 em direção a Callao, no Peru,
aproximando-se do Taiti havia somente 162 emigrantes chineses vivos de um total
de 550”. [THOMSON, 1873. Vol.1. Macao]
Considerações Finais
Mais de um século separam o imperador alemão Guilherme II e diversos chefes de
Estado da atualidade, mas o discurso racista disfarçado de “proteção da civilização
ocidental”, ainda é o mesmo. Protestos em diversas cidades pedindo “Stop asian
hate!”, traz à tona um problema antigo, porém de verniz contemporâneo.

O racismo pode ser nocivo ao ponto de gestar teorias e ideologias como o fascismo
italiano, alemão e japonês; a eugenia em suas raízes de exclusão, racismo e extremo
preconceito ao diferente; e leis segregacionistas como o Apartheid, Jimmy Crow e
Australia Branca; têm por resultados episódios brutais e devastadores, como
limpeza étnica, esterilização em massa e o Holocausto.

Deve-se trabalhar incansavelmente pela defesa da igualdade entre os indivíduos,


atenuando os abismos sociais e entre as nações. Assegurar possibilidades reais de
participação e desenvolvimento, combater bipolarizações ideológicas e
intolerantes, reparar as arestas históricas do racismo estrutural brasileiro na
memória coletiva e cultivar a paz.

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação
uns aos outros com espírito de fraternidade”. [Declaração Universal dos
Direitos Humanos].

Referências
Jean Carlo Lima de Moura, graduado em história pela Universidade Norte do
Paraná, pós-graduando em história social e contemporânea pela Universidade
Cândido Mendes.

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A GUERRA DO ÓPIO A PARTIR DO PERIÓDICO O
DESPERTADOR, DIÁRIO COMERCIAL, POLÍTICO,
CIENTÍFICO E LITERÁRIO [RJ]
Lara Raquel de Souza e Maia e
Carlos Eduardo Martins Torcato
Introdução
A China, país influenciado pelas ideias do filósofo Confúcio, era um território
extremamente fechado em relação a comércio e negociações com outros países
desde a ascensão dos Manchus ao poder. De modo geral, havia uma crença de que
a China era um reino superior em relação aos demais, sendo assim, os chineses de
não demonstravam interesse em conhecer ou se abrir para outras culturas ou praticar
relações e intercâmbios comerciais ou culturais com outros países:

“Na raiz delas estava a presunção de que a China era o reino "central"
e que os demais países, por definição, eram periféricos, afastados do
centro cultural do mundo. Os chineses, portanto, mostravam pouco
interesse por informações precisas ou estudos detalhados acerca de
outros países. [...] As descrições chinesas de países estrangeiros
continuavam sendo uma mistura exótica de contos místicos e fantasia,
em que os estrangeiros eram muitas vezes associados a animais ou
pássaros e descritos com uma linguagem condescendente ou
deliberadamente depreciativa.” [SPENCER, 1996, p. 131]

A burocracia comercial chinesa causava obstáculos com os outros países que


tinham interesse em fazer comércio com a China, como potências européias que
estavam iniciando suas atividades ultramar [SPENCER, 1996, p. 131] , e em
particular, a relação com a Inglaterra e a Companhia das Índias Orientais. A partir
de 1770, as tensões comerciais entre os ingleses e chineses aumentaram devido à
maior demanda de produtos chineses [chá e porcelana, principalmente], que eram
vendidos por prata. Os comerciantes britânicos começaram a trocar o ópio, que era
produzido na Índia, por produtos manufaturados chineses [SPENCER, 1996, p.
133].

A proibição do uso do ópio foi acompanhada de vários debates e polêmicas, dentre


estes, questões filosóficas e um discurso sobre a deformação que o consumo do ópio
poderia acarretar. A Guerra do Ópio teve início no ano de 1839 devido à
desentendimentos entre a China e a Inglaterra, quando o comissário Lin Zexu
mandou confiscar a mercadoria de ópio de comerciantes estrangeiros:
“Tinha agora diante de si o formidável desafio de destruir quase 1400
toneladas de ópio bruto. A solução que encontrou foi mandar abrir três
enormes valas de 2,5 metros de profundidade por cinquenta metros de
comprimento. Mais tarde, quinhentos trabalhadores, supervisionados
por sessenta funcionários, esmigalharam as grandes bolas de ópio
bruto e misturaram nas com água, sal e cal, até que o ópio se
dissolvesse.” [SPENCER, 1996, p. 168].

Os conflitos seguem através de confrontos diplomáticos e militares, e tem sua


resolução em 1842 através do Tratado de Nanquim, que se compreende que não foi
em si a representação da vitória dos ocidentais, mas sim o que ele inspirou. O
tratado estipulava a paz entre as duas nações, o pertencimento da ilha de Hong Kong
à rainha Vitória, o pagamento pelo ópio perdido no episódio de Cantão [SPENCER,
1996, p. 169]. A partir desse tratado, que foi acordado entre Inglaterra e China,
outros países como os Estados Unidos da América e a França [SPENCER, 1996, p.
171-172] também formularam seus tratados, marcando assim a vitória do Ocidente
em relação ao Império Celestial.

A pesquisa foi realizada no âmbito do Programa Institucional de Iniciação


Científica [PIBIC] e utilizou como fundo documental os periódicos disponíveis pela
Fundação Biblioteca Nacional através do projeto da Hemeroteca Digital Brasileira.
Para a realização dessa pesquisa, foi utilizado um periódico carioca, no qual suas
publicações coincidiram com o período da Guerra do Ópio. O periódico O
Despertador: Diário comercial, político, científico e literário foi um jornal do Rio
de Janeiro, que circulou entre os anos de 1838 a 1841:

“O jornal O Despertador teve sua primeira edição publicada em 27 de


março de 1838 e na sua primeira página vemos os princípios
norteadores deste periódico. No alto de sua página, temos o subtítulo:
Diário Commercial, Político, Scientífico e Litterario, e a partir disto
verifica-se a ordem de importância que cada assunto teve nas
próximas edições deste noticiário.” [ARAÚJO, S. C., 2014, p. 26-27].

O grupo responsável pela redação do jornal se intitulava de “Typ. da assoc. do


Despertador”. O jornal é dividido em várias seções, porém o nome dos autores das
referidas não são mencionadas. Dois nomes são destacados ao longo das
publicações do periódico, sendo eles Francisco de Sales Torres Homem [F. de S.
Torres Homem] e José Marcelino da Rocha Cabral [J. M. da Rocha Cabral].

O jornal não especifica o seu público alvo porém, na seção de advertências, o texto
nos indica brevemente quais os principais assuntos que serão tratados:

“O DESPERTADOR, sendo especialmente dedicado ao commercio e


aos outros ramos da indústria, tratará com preferência os assuntos
relativos a estas profissões; mas publicará as sessões das Câmaras, e
compreenderá todos os objectos tendentes a consolidação da ordem e
a [palavra ilegível] e conservação das riquezas o seu fim geral e o
progresso moral e o melhoramento material do país.”
[ADVERTÊNCIA, O Despertador: Diário Comercial, Político,
Científico e Literário, 08/08/1838, p. 1]

A partir dessa breve descrição, podemos concluir que o periódico trata


principalmente de questões sociopolíticas e culturais, e que durante seu tempo de
circulação [1838-1841] teve suas edições lançadas entre 4 e 6 páginas. A divisão
do jornal era feita em seções que tratavam de política e nas demais, questões
econômicas e literárias, indo em oposição à configuração da maioria dos jornais do
século, que abordavam com mais enfoque as questões políticas. Portanto, por ser
um jornal oriundo de onde, na época, era a capital do Brasil, bem como por abranger
a maior parte da duração da Guerra do Ópio, escolhemos trabalhar com o periódico
O Despertador. Portanto, objetivou-se com essa pesquisa, estudar as menções ao
conflito do ópio no referido periódico, a fim de compreender como o jornal noticiou
a questão da Guerra do Ópio.

Metodologia
A utilização de periódicos como fonte de pesquisa nem sempre foi uma prática
comum ou apreciada. Na verdade, o uso de periódicos como fonte histórica era
descartado pois, como afirma Tânia Regina de Luca:

“[...] os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do


passado, uma vez que ‘essas enciclopédias do cotidiano’ continham
registros fragmentados do presente, realizados sob o influxo de
interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem captar o
ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.”
[LUCA, 2008, p. 112]

Todavia, essa concepção sobre a utilização dos periódicos para o ofício


historiográfico mudou na década de 1970: “[...] ao lado da História da imprensa e
por meio da imprensa, o próprio jornal tornou-se objeto da pesquisa histórica.”
[LUCA, 2008, p. 118].

Para realizar a análise das menções do periódico à Guerra do Ópio, utilizou-se a


Hemeroteca Digital e suas ferramentas de busca. O termo pesquisado foi “China
ópio”, no qual obteve-se como resultado 20 ocorrências, que são encontrados no
período de 1839 a 1841, no qual a maior parte das ocorrências ocorreu no ano de
1840.

Tratando da materialidade da fonte, o jornal se constitui por quatro páginas e que


quase na totalidade se debruçam sobre a temática da política, em âmbitos nacionais
e internacionais, dividindo seu conteúdo com questões econômicas e divulgações
literárias. As matérias referentes à Primeira Guerra do Ópio estão localizadas na
primeira página ou segunda do periódico, na seção “Parte Política”, que tratava
sobre questões políticas em contextos nacionais e internacionais. É importante
notarmos em qual local essa publicação está visto que “é muito diverso o peso do
que figura na capa de uma revista semanal ou na principal manchete de um grande
matutino e o que fica relegado às páginas internas.” [LUCA, 2008, p. 140]. O
Despertador tinha a periodicidade diária de suas publicações.

Existem poucos trabalhos acadêmicos referentes ao jornal O Despertador, e por


consequência, as informações sobre seu corpo editorial, colaboradores e questões
que são citadas pela historiadora Tânia Regina Luca, em seu artigo História dos,
nos e por meio dos periódicos requereram uma pesquisa mais detalhada.

José Marcelino da Rocha Cabral foi um português, formado em Direito em


Coimbra, que saiu de Portugal por divergências políticas. Quando veio ao Brasil,
primeiro se instalou na província do Rio de Janeiro, e depois para a província do
Rio Grande do Sul, onde exerceu diversos cargos ligados à questão administrativa,
dentre estes, secretário da Caixa Econômica. Durante sua estadia na província do
Rio Grande do Sul, foi redator do jornal Propagador da Indústria Rio-Grandense.
Porém, novamente por motivos de divergências políticas, deixou a referida
província no contexto da Revolta Farroupilha. Sendo assim, ele regressa ao Rio de
Janeiro: “De volta ao Rio de Janeiro, foi sócio, diretor e redator de outro periódico,
o Despertador, membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e
da primeira comissão de redação da revista do IHGB.” [KLAFKE, 2006, p. 35].

Francisco de Sales foi um carioca, com formação em medicina, mas que por
influência e admiração de Evaristo da Veiga, adentrou-se às questões jornalísticas.
Também foi homem ligado à gestão da nação, principalmente nas questões
financeiras. Cursou a faculdade de Direito na Faculdade de Paris, e retorna ao Brasil
no ano de 1837 [ano da morte de Evaristo da Veiga], para dar continuação ao
trabalho do seu mestre. Durante esse regresso, Francisco de Sales trabalhou em
alguns periódicos, o Jornal dos Debates Políticos e Literários, O Despertador, O
Maiorista e O Atlante. O jornal que conferiu maior destaque na sua carreira foi o
periódico intitulado O Libelo do Povo, panfleto que direcionou duras críticas ao
regime monarquistas, onde Francisco de Sales publicava sob o pseudônimo de
Timandro.

Resultados e discussão
Para realizar a análise das menções do periódico à Guerra do Ópio, utilizou-se a
Hemeroteca Digital e suas ferramentas de busca. O termo pesquisado foi “China
ópio”, no qual obteve-se como resultado 20 ocorrências, que são encontrados no
período de 1839 a 1841, no qual a maior parte das ocorrências se encontram no ano
de 1840. No gráfico a seguir, detalhamos a distribuição das ocorrências no período
analisado:
Gráfico de ocorrências à pesquisa “China ópio” [1839-1841]

O tema aparece inicialmente repercutindo o duro tratamento dado pelos chineses


aos comerciantes ilegais de ópio na região. Na edição de número 229, com a data
de 07/01/1839, na primeira página e na subseção “China”, que está contida na seção
“Notícias estrangeiras”. Na referida matéria menciona-se: “Os rigores exercidos
contra os vendedores, corretores e negociantes de ópio tem feito fugir uma imensa
quantidade de indivíduos devedores e negociantes estrangeiros” [O
DESPERTADOR, 07/01/1839, ed. 229, p.1]. Também identificou-se outra alusão
ao problema, no mesmo ano. “É horrível a maneira com que os vendedores de ópio
estão sendo tratados atualmente na China.” [O DESPERTADOR, 09/01/1839, ed.
231, p. 1], no qual discorre sobre uma punição aplicada a um comerciante de ópio,
detalhando que:

"...Hum quarto d'hora depois chegou o tsotang [magistrado chin] de


Macao, acompanhado de 60 oficiais de políticia, e vários outros
emprehados [sic]. Então apareceu o infeliz acusado conduzido por dois
algozes numa gaiola de bambú, e escoltado por cem homens de infataria
imperial. Ergueram uma cruz de madeira de 9 palmos de altura, cujo
braço verticalera furado um pouco acima da sua intersecção com o
transversal. Três tiros foram o sinal da execução. Tiraram o infeliz da
sua gaiola com os braços e pernas carregados de enormes massas de
ferro, e tão magro e sujo que o vê-lo cortava o coração. Os algozes
estenderam o padecente de costas sobre a cruz, passaram-lhe cordas em
roda das pernas, dos braços e do pescoço, e tendo-as introduzido pelo
buraco da cruz, arroxaram-as com violência. O supliciado expirou sem
fazer o menor movimento. Este homem chamava-se Kowk- Pung, o seu
crime era ter vendido algumas caixas de ópio. Deixa três mulheres e
muitos filhos."
Os episódios que levaram ao conflito entre ingleses e chineses foram acompanhados
com interesse pelo periódico. Na edição de número 472, de 2 de novembro de 1839,
que tem como título e subtítulo “China: curiosissimos pormenores sobre a
interrupção do comércio do ópio em Cantão” [O DESPERTADOR 02/11/1839, ed.
472, p. 1], bem como a edição número 688, que traz um texto sobre a questão da
Inglaterra e da China abordando o histórico de relações, a questão do ópio e a
guerra. [O DESPERTADOR, 28/06/1840, ed. 668, p. 1].

Em seis edições, podemos encontrar a transcrição de cartas e documentos sobre o


conflito, como por exemplo a transcrição de um edicto de autoria do comissário
chinês Lin, um dos principais nomes do combate ao Ópio na China: "Quanto a mim,
alto comissário, enquanto o comércio de ópio não for exterminado, ficarei aqui.
Juro que prosseguirei este negócio do princípio até ao fim, e que nem um minuto
terei a ideia de ficar em meio caminho." [O DESPERTADOR, 02/11/1939, ed. 472,
p. 1]. Podemos destacar também uma carta endereçada à rainha Vitória da
Inglaterra: "Os comissários chins [sic] dirigiram há pouco à rainha da Inglaterra um
documento em que o orgulho dos Chins para com os estrangeiros se espraia à
vontade." [O DESPERTADOR, 14/02/1840. ed. 564, p. 1]. A edição número 615,
do dia 8 de abril de 1840 [O DESPERTADOR, 08/04/1840, ed. 615, p. 2] traz
também a transcrição de um documento, desta vez, referente ao “pronunciamento
do almirante Kwan”.

Em 8 edições [contabilizando 20 % das ocorrências encontradas no jornal] é


possível encontrarmos menções a matérias vindas de jornais estrangeiros, como
por exemplo Liverpool Journal, Free Press, Morning Chronicle, Le Temps e
Canton Register, o que denota a circularidade que as notícias publicadas na Europa
tinham na corte brasileira do mesmo período.

Conclusão
A partir da análise das ocorrências sobre a Guerra do Ópio no periódico O
Despertador: Diário comercial, político, científico e literário, verifiquei que é
possível compreendermos o conflito envolvendo a China e a Inglaterra. O jornal
não só cobria as informações e atualizações sobre a questão da guerra, como
também dava destaque a essas informações, colocando-as nas primeiras páginas,
atendo-se não só a noticiar o que ocorria, como também contextualizando os leitores
acerca dos antecedentes e contextualizações sobre o conflito, bem como trazia a
transcrição de documentos e cartas referentes ao desenrolar da Guerra do Ópio.

Referência
Lara Raquel de Souza e Maia é graduanda em História pela Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte [UERN]. E-mail: lararsm2012@gmail.com /
laramaia@alu.uern.br
Carlos Eduardo Martins Torcato é doutor em História Social pela Universidade de
São Paulo [USP] e professor do Departamento de História, do PROFHistória e do
PPGCISH pela UERN., E-mail: carlostorcato@uern.br.
Fontes
ADVERTÊNCIA, O Despertador: Diário Comercial, Político, Científico e
Literário, ed, 107, p. 1, 8 de agosto de 1838.
A INGLATERRA E A CHINA. O Despertador: Diário Comercial, Político,
Científico e Literário, Rio de Janeiro, ed. 688, p. 1, 28 jun. 1840.
CHINA. O Despertador: Diário Comercial, Político, Científico e Literário, Rio de
Janeiro, ed. 229, p. 1, 7 jan. 1839.
CHINA. O Despertador: Diário Comercial, Político, Científico e Literário, Rio de
Janeiro, ed. 231, p. 1, 9 jan. 1839.
Parte Política, CHINA, Curiosissimos pormenores sobre a interrupção do
comércio de ópio em Cantão. O Despertador: Diário Comercial, Político,
Científico e Literário, Rio de Janeiro, ed. 472, p. 1, 2 nov, 1839.
CHINA. O Despertador Comercial, Político, Científico e Literário. , Rio de
Janeiro, ed. 564, p. 1, 14 fev. 1840.
CHINA. O Despertador Comercial, Político, Científico e Literário. Rio de
Janeiro, ed. 615, p. 2, 8 abr. 1840.
PARTE POLÍTICA. CHINA. CURIOSISSIMOS PORMENORES SOBRE A
INTERRUPÇÃO DO COMÉRCIO DO ÓPIO EM CANTÃO. O Despertador:
Diário Comercial, Político, Científico e Literário., Rio de Janeiro, ed. 472, p. 1, 2
nov. 1839.

Referências bibliográficas
ARAUJO, Suelane Camelo de. A união faz a força: sociedades mutuais no
silêncio d’o despertador [1838-1841]. 2014. 42 f. Trabalho de Conclusão de Curso
[Licenciatura em História]– Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, 2014.
KLAFKE, Álvaro Antonio. O Império na província: construção do Estado
nacional nas páginas de O Propagador da Indústria Rio- Grandense- 1833-1834.
Porto Alegre. Dissertação [Dissertação em História]- UFRGS. 2006.
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In:
PINSKY, Carla Bassanezi [org]. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008,
p.111-155.
SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna: quatro séculos de história.
Companhia das Letras, 1996, p.129-174.
REAPROPRIAÇÕES DO EGITO ANTIGO NO VALE DO
AMANHECER EM PLANALTINA [DF]
Pepita de Souza Afiune
Neiva Chaves Zelaya, conhecida como Tia Neiva, era uma mulher batalhadora,
ficou viúva e cuidou de seus quatro filhos, se dedicando à profissão de
caminhoneira. A partir dos seus 33 anos de idade demonstrou habilidades para lidar
com fenômenos paranormais, com uma percepção extra-sensorial, encontrando no
espiritismo o alento para suas inquietações. Convenceu muitas pessoas sobre suas
habilidades mediúnicas e sobre ter vindo ao mundo como a reencarnação de
Cleópatra. Acreditava-se também que ela podia ver espíritos, seres de outras
dimensões e prever o futuro. Começou a atender pacientes em uma região próxima
a Alexânia [GO] e fundou a Ordem Espiritualista Cristã em Taguatinga, até que no
ano de 1969 fundou o Vale do Amanhecer em Planaltina [GO]. Tia Neiva também
relatava ter contatos com seres de um planeta chamado Capela. Capela seria um
planeta de outra dimensão e seus espíritos encarnam e desencarnam na Terra. A
médium também relatava viagens em naves espaciais. Realizei uma entrevista com
um membro da comunidade que sintetizou a respeito da doutrina:

“O Vale do amanhecer é uma doutrina não tirada de nenhum


seguimento, religião, seitas ou livros filosóficos. Tem o seu sistema
próprio e uma doutrina cristã, porém ligado a ciência. Nossa tônica é
a técnica de manipulação de energia. Tudo aconteceu através de
mantras, gestos e rituais. É um processo de técnica doutrinário. Tudo
trazido dos planos espirituais através da clarividente que nós
chamamos carinhosamente de Tia Neiva. Ela através de sua
clarividência, recebia as orientações de pai Seta Branca ou de seus
enviados e transportando para o plano físico, através das técnicas de
transporte e desdobramentos, técnica estas na qual foi preparada pela
espiritualidade maior. Ela tinha o poder de ir em outro plano seja luz
ou ‘inluz’ conversar com espíritos voltava ao corpo com mesma
clareza” [Entrevista com J.S., 2019].

No dia 16 de novembro de 1985 Tia Neiva faleceu deixando uma organização bem
estruturada funcionando normalmente sem a necessidade de sua presença. O Vale
do Amanhecer é quase uma cidade, possui linha de ônibus, lojas de souvenir,
lanchonetes, livrarias, cursos e um orfanato. A comunidade se mantém através de
doações, frutos de seu comércio e agricultura. Realizei as visitas e passei alguns
dias conhecendo todo o complexo, percebendo tanto as suas práticas religiosas,
quanto algumas de suas características socioeconômicas. Na questão religiosa, o
que mais me chamou a atenção foi o hibridismo religioso presente na doutrina,
assim como confirma o pesquisador Dioclécio Luz:

“A verdade é que o papel do Vale, como aglutinador de religiões ou,


mais exatamente, de essências religiosas, e como formador de médiuns,
transcende qualquer redução do fenômeno a velhas fórmulas
escatológicas – psicanalíticas. No contexto de Brasília [uma cidade
projetada para o futuro] é extraordinário que ao seu redor se instale um
movimento de caráter messiânico, preocupado em desenvolver o
potencial humanístico e sensorial do homem – algo absolutamente
incompatível com o pragmatismo racional” [LUZ, 1986, p. 78].

A comunidade do Vale do Amanhecer chegou a ter mais de 800 mil fiéis. Atrai
milhares de visitantes seja pelo turismo ou pelos atendimentos espirituais. A
estatística é de cerca de 5 mil visitantes semanalmente [CIPRIANO, 2013]. O Vale
do Amanhecer possui mais de 617 templos por todo o Brasil, Alemanha, Portugal,
Estados Unidos, Uruguai e Equador.

O Vale do Amanhecer é concebido por seus membros como um lugar sagrado. O


sagrado está presente no cotidiano das sociedades, marcando as estruturas das
subjetividades humanas, constituindo-se como algo inato ao ethos e à visão de
mundo. Assim, a ocupação do espaço pelas edificações se consagra pela
manifestação do sagrado.

A sacralização do lugar não se restringe aos templos. Percebi a sacralização de todo


o espaço da comunidade através das ações cotidianas dos membros, que transitam
pelas ruas, realizando suas atividades cotidianas, como ir ao supermercado, trajando
as suas indumentárias que marcam as hierarquias ritualísticas. Também vi muitas
lojas de artigos esotéricos e lojas especializadas nestas indumentárias.
Eventualmente ocorrem determinadas práticas religiosas nos espaços públicos,
como nas ruas.

Mircea Eliade [1992] nos mostra que os templos, quando inseridos em cidades
modernas, tornam-se o limiar entre o espaço sagrado e o profano. São ao mesmo
tempo o local no qual os dois mundos se comunicam [profano e sagrado], mas nele
se pode efetuar a passagem do primeiro para o segundo. “O limiar, a porta, mostra
de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua
grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo,
de um veículo de passagem” [p. 19]. A própria comunidade do Vale do Amanhecer
se torna um espaço sagrado. O templo apenas define que aquele é um local no qual
se manifesta o transcendental, pois é considerada uma zona telúrica.

Diversos símbolos estão presentes por todo o complexo, símbolos estes,


provenientes de antigas culturas, formando um rico mosaico, com elementos maias,
incas, astecas, egípcios, dentre outros. Estes símbolos se comunicam organicamente
com elementos do cristianismo, mais propriamente de sua vertente Espírita, com
elementos das religiosidades afro-brasileiras, tradições esotéricas e ufologia.

Nas suas dependências destaca-se a Pirâmide [Figura 1], edifício de seis metros de
altura, foi inaugurada no ano de 1979. É aberta à visitação pública, destinada a
meditação. A pirâmide representa um local de recepção, manipulação e difusão de
energias [IPHAN, 2010, p. 143]. Os médiuns disponibilizam aos visitantes a água
fluidificada [água normal, na qual são acrescentados fluidos curativos espirituais].
São realizados rituais que objetivam a magnetização da água através da força de
espíritos através de um cristal que se localiza no cume da pirâmide. No seu interior,
há imagens das várias entidades cultuadas pela Doutrina, como o Pai Seta Branca.
No revestimento da pirâmide, podemos encontrar as esculturas do faraó Akhenaton,
sua esposa Nefertiti, e o filho do casal, Tutancâmon.

Figura 1 - Pirâmide da Estrela Candente


Fonte: Autoria própria [2019].

De acordo com o estudioso de ocultismo e arquiteto Marcelo del Debbio [2008], a


pirâmide no Egito Antigo possibilitava a abertura dos chakras despertando poderes
de projeção astral, telepatia, clarividência, dentre outros e que também serviam de
observatório espacial. Por gerar um campo energético ao seu redor, as pirâmides
despertavam nos sacerdotes altas habilidades matemáticas e astronômicas. Existem
outras crenças que afirmam que a Grande Pirâmide emite uma radiação energética
para a galáxia, servindo como um ponto de comunicação com os viajantes espaciais.

De acordo Mário Sassi [2000], esposo de Tia Neiva, em sua obra A conjunção de
dois planos, Tia Neiva realizou uma viagem astral pelo Egito, sobrevoando as
pirâmides, sob os ensinamentos do Capelino Stuart a respeito dos segredos da
sabedoria cósmica contida dentro destes edifícios. Sassi relata a conversa entre Tia
Neiva e Stuart que a explica a respeito da função das pirâmides:
“As pirâmides, Neiva, eram centros de manipulação de energias,
verdadeiras usinas de força. Ali se concentravam os grandes cientistas
para a conjugação de suas forças psíquicas, como hoje se reúnem os
médiuns nos templos iniciáticos. Ali se concentravam os
conhecimentos e a documentação dos planos planetários, os
instrumentos básicos e os meios de comunicação. O grande Jaguar era
um especialista na construção de pirâmides. Ao perceber que o fim de
Omeyocan se aproximava, ele deslocou-se para o Egito e lá emprestou
sua colaboração aos Orixás responsáveis por aquela área. Com sua
química, eles decompunham as rochas e as moldavam de acordo com
as necessidades. Possuíam prensas com as quais moldavam grandes
blocos e tijolos. Por processos eletromagnéticos, eles vitrificavam as
superfícies e movimentavam os blocos gigantescos, com a mesma
facilidade como os pedreiros atuais movimentam tijolos” [p. 51].

O espírito revela a respeito da importância destes locais:

“Neiva, – disse ele – observe aquelas pirâmides. No seu interior estão


encerrados preciosos ensinamentos, suja revelação poderia modificar
toda a trajetória humana. Elas ocultam tesouros da sabedoria cósmica,
representados por documentos, máquinas e provas vivas desse
conhecimento. Além deste, existem mais três pontos da Terra em que
essa herança está guardada. Uma situa-se entre as ruínas do império
incaico, o outro está no Brasil Central, e o quarto num ponto que ainda
não pode ser revelado. Esses segredos virão à tona, mas creio que tarde
demais para serem aproveitados pela humanidade atual” [ibidem, p. 35].

Stuart havia dito à Tia Neiva que os formatos piramidais presentes no Egito e na
América não existiriam ao acaso. Haviam trocas de informações e experiências
entre estes locais, e os próprios pontos distribuídos no planeta faziam parte de um
plano global. Esses pontos energéticos nos quais foram construídas essas
edificações existiriam pela necessidade de se defender dos ataques de falanges das
sombras; “espíritos tenebrosos, acrisolados, há milênios, nas sombras. Vão sendo
desalojados e lançados na Terra física. É por isso, que o mundo se apresenta tão
cheio de contradições, de indivíduos enlouquecidos e de obsessores tão terríveis”
[p. 60].

A falange missionária Dharman-Oxinto tem sua origem no Egito Antigo, a partir


dos cultos a Hórus e Amon-Rá na cidade de Karnak. A princesa Aline teria
reencarnado em uma suma sacerdotisa de Hórus, chamada Horibe. Com o apoio da
esposa de Ramsés II, Nefertari, a sacerdotisa realizava grandes fenômenos
sobrenaturais em público, como curas físicas. A princesa Aline tornou-se então
mentora da falange no plano espiritual, enquanto, Nefertari, a mentora do plano
físico [SILVA, 1996, p. 06]. A indumentária utilizada pela falange apresenta traços
semelhantes às representações de Nefertari nos papiros, como podemos perceber
nas figuras 2 e 3.
Figura 2 - Indumentária da Falange Figura 3 - Papiro: Hórus e Nefertari
Dharman-Oxinto

Fonte: SILVA (1996). Fonte: SILVA (1996).

Entre as várias representações de Nefertari se destaca essa, que apresenta a rainha


com um vestido preto longo, amarrado por uma faixa vermelha na cintura, uma
coroa com duas plumas e um abutre, e um colar usekh. Esse papiro foi colocado no
Manual das Dharman-Oxinto [1996] escrito pela 1ª Dharman Oxinto, Dinah da
Silva. As ninfas da falange Dharman-Oxinto também utilizam um longo vestido
preto, com um cinto, por sua vez, dourado ou prateado, para representar o sol e a
lua. Sob eles caem algumas correntes, que também lembra alguns detalhes da
vestimenta de Nefertari. Outro ponto em comum é a utilização do colar usekh. De
acordo Silva [1996, p. 08], a indumentária é uma réplica do que é usado nos planos
espirituais, dentro de nossas limitações materiais e protege o indivíduo de forças
negativas.

“Indumentária é, por definição, o vestuário usado em função a épocas


ou povos e, por isso, todas as roupas que usamos para nossos trabalhos
espirituais, no Vale do Amanhecer, podem ser consideradas como
indumentárias, pois buscam representar, de maneira rude, porque
nossas limitações materiais são enormes, o mostrado nas visões de
nossa Mãe Clarividente dos povos dos planos espirituais [...] A
indumentária busca levar o padrão vibratório não apenas do médium
que a usa, mas, sim, também, as dos pacientes e demais pessoas que o
cercam. O uniforme nivela todos, evitando que, se usássemos roupas
comuns, houvesse aqueles que estivessem melhor vestidos do que
outros, provocando, por isso, vibrações favoráveis para uns e
desfavoráveis para outros [...]” [ibidem, p. 27].

Todas as cores, formas e elementos nas indumentárias se relacionam com as


energias manipuladas nos rituais. Elas protegem os seus portadores de cargas
negativas. Silva [1996, p. 30 – 35] descreve minuciosamente cada item, como por
exemplo a utilização da cor preta, que é utilizada por ser verdadeiro ímã magnético,
para realizar trabalhos desobsessivos. As luvas deixam livres os chakras das palmas
do usuário, concentrando energias. O adereço sobre a cabeça, chamado de Pente,
representa um feixe de energia que flui do chakra coronário, que protege e ioniza a
cabeça da ninfa. O conjunto formado pela gola, correntes e cinto é chamado de
Arma, que protege os plexos das ninfas. As golas funcionam como espelhos
refletores de energias que fluem das ninfas para os pacientes. Os cintos criam um
campo magnético energizando os plexos. As duas correntes atuam como descargas
do campo magnético.

Como podemos perceber, vários elementos presentes na estética e nas práticas


ritualísticas dos adeptos do Vale do Amanhecer retomam elementos do Egito
Antigo além de outras culturas antigas para atribuir ao seu espaço sagrado uma certa
legitimidade. Faz parte do seu discurso a ideia de que uma doutrina descendente do
Egito Antigo se instalou na capital do Brasil para realizar uma importante missão,
a de atuar positivamente em prol deste povo em uma guerra espiritual. Então é
necessário que toda a magia e poder do Egito Antigo seja evocada para que a árdua
missão tenha sucesso.

O Vale do Amanhecer não é a única doutrina que realiza esse tipo de retomada do
Egito Antigo, como podemos perceber nas práticas de outros grupos como a Ordem
Rosa-Cruz, a Eubiose, a Legião da Boa Vontade, dentre outros. O Egito Antigo tem
encantado as sociedades ao longo da História. Comumente, suas reapropriações são
carregadas de elementos místicos, fenômeno este, justificado em parte pelas
diversas lacunas ainda existentes na ciência, que tem realizado investigações de
seus mistérios até os dias de hoje. O Egito ainda intriga arqueólogos, historiadores
e outros pesquisadores, e por outro lado, fascina a todos pelos seus legados
monumentalistas e perenes.

Referências
Pepita de Souza Afiune é doutoranda em História pela Universidade Federal de
Goiás. Bolsista CAPES / FAPEG. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades
[UEG]. Graduada em História e Pedagogia.

CIPRIANO, Leandro. Vale do Amanhecer, símbolo de sincretismo religioso, atrai


milhares de visitantes. Agência Brasília. Brasília: Secretaria de Estado de
Comunicação do DF, 2013. Disponível em:
https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2013/12/06/vale-do-amanhecer-simbolo-
do-sincretismo-religioso-atrai-milhares-de-visitantes/. Acesso em 14 de abril de
2019.
DEL DEBBIO, Marcelo. Energia telúrica, Linha de Ley, Pirâmides e Círculos.
2008. Disponível em: https://www.deldebbio.com.br/energia-telurica-linha-de-
ley-piramides-e-circulos/. Acesso em 13 de janeiro de 2019.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
IPHAN, Superintendência do Distrito Federal. Vale do Amanhecer: Inventário
Nacional de Referências Culturais / Deis Siqueira, Marcelo Reis, Jairo Zelaya
Leite, Rodrigo M. Ramassote. – Brasília, DF: Superintendência do Iphan no
Distrito Federal, 2010.
J.S. Entrevista IV. [abr. 2019]. Entrevistador: Pepita de Souza Afiune. Anápolis,
26 de abril de 2019. 1 arquivo .mp3 [30 min.].
LUZ, Dioclécio. Roteiro Mágico de Brasília. Ilustração de Antônio José. Brasília:
CODEPLAN, 1986.
SASSI, Mário. A conjunção de dois planos. Planaltina: Ed. Vale do Amanhecer,
2000.
SILVA, Dinah da. Manual das Dharman Oxinto. Casa do Jaguar. Vale do
Amanhecer, 1996. Disponível em:
http://casadojaguar.blogspot.com/2017/04/manual-dharman-oxinto-pdf.html.
Acesso em 03 de setembro de 2020.
O PERIGO AMARELO NO ESTADO DO PARANÁ: UMA
NOVA FASE DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior
Os imigrantes japoneses buscaram alternativas para se desvencilhar do trabalho nas
fazendas monocultoras, principalmente aquele relacionado à cultura do café. Dentro
destas saídas, estava a compra de terras para o cultivo de gêneros que atendessem
mais às suas necessidades e interesses, mas muitos não conseguiram concretizar
este plano devido aos vários empecilhos impostos por suas condições de vida nos
latifúndios paulistas. Porém, havia uma questão que provavelmente muitos deles
não sabiam: esta possibilidade de trabalho reservado aos nipônicos em pequenas
unidades de produção familiar já estava prevista desde o primeiro contrato de
imigração, assinado em 1907 entre o governo paulista [na figura do presidente do
estado, Jorge Tibiriçá, e do secretário de agricultura, Carlos Botelho] e a
Companhia Imperial de Emigração [representada por seu presidente, Ryo Mizuno,
considerado uma espécie de “patrono da imigração japonesa no Brasil”]
[NOGUEIRA, 1984, p. 97]. Segundo Nogueira, mais especificamente:

• “O contrato previa, igualmente, a localização de japoneses em núcleos coloniais


e, nesse sentido, o governo incumbir-se-ia de criar tantos núcleos quantos fossem
necessários às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil.
• Os lotes variariam entre dez e quinze hectares, de acordo com o número de
membros de cada família. O preço estabelecido foi de quarenta mil réis o hectare
pagos, no máximo, em três prestações e dentro de, no mínimo, cinco e, no máximo,
dez anos.
• O primeiro ano de alojamento correria por conta do governo.
• Para que o imigrante pudesse adquirir um lote era exigido que tivesse concluído,
pelo menos, uma colheita de café e que não tivesse dívidas.” [NOGUEIRA, 1984,
p. 98]

Desta forma, percebemos que o imigrante seria obrigado por força contratual a
passar um período mínimo na lavoura cafeeira assim que chegasse ao Brasil.
Mesmo com as exigências expostas por Nogueira, a contrapartida do
estabelecimento destes trabalhadores nos chamados “núcleos coloniais” e a venda
das terras para os mesmos não parecia ser uma prioridade por parte do governo do
estado de São Paulo, pois isto aumentaria a mobilidade dos japoneses e desfalcaria
a força de trabalho nos cafezais. Quando os fluxos de deslocamento nipônico
interno se intensificaram nesta região em direção a outras, houve descontentamento
por parte dos fazendeiros e autoridades paulistas, como no momento em que “Paulo
de Morais Barros, Secretário da Agricultura, foi taxativo ao declarar que o alto grau
de mobilidade dos japoneses, calculada em 40% antes do término do contrato, levou
o governo paulista a desistir de continuar subsidiando a vinda de asiáticos.”
[NOGUEIRA, 1984, p. 105].

Ou seja, se de um lado temos a falta de suporte e acompanhamento adequados nesta


etapa inicial do fenômeno imigratório japonês no Brasil por parte do governo
nipônico, e do outro a falta de interesse das autoridades brasileiras em fazer valer
os termos específicos do contrato de imigração já citados [a cobrança de sua
execução era uma das atribuições a se esperar do governo japonês como forma de
resguardar seus cidadãos] por não ser vantajoso para si mesmas, percebemos que o
japonês era [assim como os demais imigrantes], dentro desta perspectiva, um
aventureiro que buscava sua própria sobrevivência frente a muitas dificuldades
encontradas neste contexto.

No momento em que discutimos o fenômeno imigratório japonês em seu momento


inicial, também lançamos mão do conceito de “imigração tutelada” proposto por
Célia Sakurai, que ela define da seguinte forma:

“A imigração tutelada, conceito que propus [Sakurai, 1999],


caracterizou a imigração japonesa no Brasil e em outras partes da
América Latina como no México, Colômbia, Paraguai, Bolívia até o
início da Segunda Guerra Mundial. Ela é definida como aquela que
oferece amparo, orientação, ajuda e gerenciamento aos imigrantes,
estruturando-se numa “cadeia de relações montada a partir do topo da
estrutura estatal japonesa até chegar aos imigrantes no Brasil. O
governo japonês, por intermédio de seus diferentes ramos e agentes,
participou explicitamente no processo de fixação destes imigrantes…”
[Sakurai, op. cit.: 202].” [SAKURAI, 2000, p. 85]

Quando Sakurai fala de imigração tutelada, devemos ter em mente um projeto


elaborado pelas autoridades japonesas a fim de atender as necessidades elementares
dos trabalhadores nipônicos que deixaram seu país em busca de melhores condições
de vida em outro completamente diferente do seu. Apesar deste projeto de
imigração tutelada por parte do governo japonês não ter sido praticado de forma
contundente nos primeiros anos do fenômeno imigratório nipônico, é dele que vem
a dinâmica encontrada nos anos seguintes em vários aspectos nas vidas destes
trabalhadores.

Foi mediante a execução deste projeto de imigração tutelada que os trabalhadores


japoneses se reuniram em moldes de ocupação como os núcleos coloniais e
colônias, fortalecendo os laços entre si e se isolando, em certa medida, das outras
comunidades imigrantes e dos brasileiros. Com o aumento da existência destes
formatos de moradia e sociabilidade, os críticos a respeito da não-assimilação
cultural dos japoneses com os outros povos enxergaram aí argumentos que
reforçavam o seu ponto de vista, sendo um combustível para a escalada xenófoba
que já havia dado as caras anteriormente e ainda veria a sua pior face durante o
conflito mundial subsequente.

A implementação do projeto de imigração tutelada configura-se também como um


trunfo para incrementar a economia da potência imperialista japonesa em ascensão.
A retomada da imigração nipônica no Brasil [após um período de suspensão devido
às más condições enfrentadas pelos japoneses] acontece permeada também com
estes interesses que, assim como a problemática da assimilação cultural, passa aos
poucos a preocupar as elites brasileiras com tamanha influência do governo japonês
em atividades econômicas aqui desenvolvidas e da ocupação de territórios
estratégicos com as tais colônias. Sakurai corrobora com isso quando diz que:

“São as colônias administradas por companhias de colonização


orientadas pelo Ministério do Interior e das Relações Exteriores do
Japão que são o alvo das inquietações das elites brasileiras na década
de 1930. Isto porque estão localizadas no estado de São Paulo, já na
época, o centro econômico do país, e na Amazônia, região desde sempre
considerada estratégica no mapa geopolítico do país. Os japoneses se
instalam em áreas que chamam a atenção, e mais, adquirem visibilidade
também por introduzir novos produtos na pauta de exportações do
país.” [SAKURAI, 2000, p. 86]

Temos aqui mais dois aspectos que ajudariam a configurar posteriormente, aos
olhos das elites e das autoridades brasileiras, os trabalhadores japoneses como
ameaças aos interesses de seu país: a ocupação de territórios considerados como
estratégicos e a participação mais efetiva na economia do país com a introdução de
novos gêneros alimentícios e outros produtos. Podemos, neste momento, somar a
estes dois elementos a questão da assimilação cultural e a da diminuição da mão de
obra barata nas fazendas para fecharmos neste momento uma espécie de “pacote
nipônico ameaçador”, que veremos posteriormente ganhar força com o termo
“perigo amarelo”.
A manifestação mais antiga desta expressão que se tem registro é a do Kaiser
Guilherme II, líder do II Reich alemão que, em 1894, mencionou o “perigo
amarelo” [gelbe Gefahr] como uma ameaça aos planos do czar Nicolau II da Rússia.
Este tinha interesses na China, assim como o Japão, por isso Guilherme II
manifestou sua repulsa aos nipônicos como forma de obter uma aliança com o líder
russo. [DEZEM, 2005, p. 147-149]. Nos Estados Unidos, este termo ganhou força
graças aos esforços do magnata da imprensa William Randolph Hearst, dono de
vários jornais como o San Francisco Examiner. Foi neste periódico que, em 1905,
uma caricatura de um soldado japonês como um elemento ameaçador foi publicada,
abrindo espaço para uma série de obras veiculadas no mesmo jornal entre 1906 e
1909 que ajudaram a consolidar a ideia de “yellow peril” [como o perigo amarelo
era conhecido nos EUA], com destaque para “The Yellow Peril in action: A possible
chapter in History [Dedicated to the man who train and direct the man behind the
guns]”, de Marsdon Manson em 1907. Estas publicações dariam o combustível
necessário para a elaboração de leis antinipônicas nos Estados Unidos e para a
difusão desta ideia por todo o continente americano. [DEZEM, 2005, p. 187-190];
[TAKEUCHI, 2016, p. 186-188].

Na América Latina de uma forma geral, vemos este sentimento de antiniponismo


também se materializar através da imprensa: “Os jornais El Tiempo, de Montevidéu,
e La Mañana, de Buenos Aires, publicaram matéria, em 1914, sob o título: El
Peligro Amarillo em Sud-America, alertando para a presença de japoneses em
numerosas colônias em vários pontos da costa americana do Pacífico e dos
problemas que poderiam daí advir.” [NOGUEIRA, 1984, p. 105]. No Brasil, este
termo aparece pela primeira vez em comentários de uma enquete da revista ilustrada
“O Malho”, realizada em março de 1904, sobre o conflito entre Rússia e Japão. Os
leitores que eram contrários aos japoneses neste confronto bélico citaram várias
vezes tal expressão em suas justificativas, relembrando o discurso do Kaiser
Guilherme II. [DEZEM, 2005, p. 243-248]. Estas ideias estavam presentes no
imaginário brasileiro apenas quatro anos antes do início oficial do fenômeno
imigratório japonês neste país.

A expressão “perigo amarelo” possui várias nuances ao longo dos anos e é utilizada
com propósitos e em contextos diferentes, mas de uma forma geral encontramos em
sua composição um forte sentimento xenófobo e racista para com as várias etnias
asiáticas, com destaque para os japoneses na primeira metade do século XX. É neste
momento que o Japão se consolida como uma nação imperialista e um dos
principais personagens da Segunda Guerra Mundial, ficando do lado oposto ao
Brasil neste conflito. A ideia de “perigo amarelo” alcança a sua maior dimensão
durante este confronto, consolidando uma escalada de décadas de sentimento
antinipônico alimentado por diversas frentes e se apresentando como um projeto
oficial de repressão a estes imigrantes.

Durante este momento mais crítico, entre as décadas de 1930 e 1940, por exemplo,
um dos maiores pontos alardeados pelos antinipônicos e defensores deste conceito
de “perigo amarelo” era o da “grande extensão das terras concedidas às empresas
nipônicas” que viriam a “criar no Brasil um ‘Estado independente japonês’”
[TAKEUCHI, 2016, p. 210]. Isto corrobora com a fala de Sakurai que citamos
anteriormente sobre a ocupação nipônica em áreas estratégicas nos formatos sólidos
de colônias administradas por companhias japonesas públicas ou privadas. Este
exemplo de imigração japonesa tutelada se tornou mais frequente no período
anterior à Segunda Guerra. Mas, antes de adentrarmos nos exemplos mais
representativos destas colônias, se faz necessário definir aqui o conceito a ser
utilizado quando formos nos referir a este modelo de ocupação. Para Odair da Cruz
Paiva:

“O termo “Núcleo Colonial” designa as iniciativas oficiais de


colonização. O termo “Colônia” é mais ambíguo na medida em que
pode identificar tanto as áreas de colonização da iniciativa privada
quanto o conjunto de moradias e áreas anexas nas quais residiam os
trabalhadores [colonos] no interior das grandes propriedades.”
[PAIVA, 2013, p. 52]

Dentro desta perspectiva, podemos entender como “núcleo colonial” as iniciativas


feitas por parte das autoridades japonesas em parceria com as brasileiras no intuito
de ocupar áreas previamente adquiridas e estimular o desenvolvimento de
atividades propícias para os nipônicos que lá se instalassem. Por sua vez, o termo
“colônia” em seu primeiro grande significado consistia em uma iniciativa,
sobretudo privada, que loteava áreas extensas e vendia pequenos lotes para
imigrantes que estivessem interessados em se tornar pequenos proprietários e
produtores. Por conta do baixo preço destas terras, tal atividade foi embebida de
grande especulação fundiária por parte das empresas responsáveis [PAIVA, 2013,
p. 52-53].

Havia também a interpretação, vista na citação acima, do termo “colônia” como o


conjunto de habitações dos imigrantes que se localizavam no interior da
propriedade cafeicultora. Estes trabalhadores, em alguns casos, recebiam a
permissão de produzir gêneros alimentícios dentro deste contexto somente para a
produção familiar.

Foi na esteira de tais transformações no fenômeno imigratório japonês no Brasil


que este chegou ao norte do estado do Paraná. Os trabalhadores nipônicos que
adentraram esta região buscavam alternativas ao trabalho nos latifúndios cafeeiros
paulistas e vislumbraram algumas na possibilidade de compra de lotes de terras
nesta nova região. Havia, neste ínterim, a presença mais forte das “empresas de
colonização japonesas, subvencionadas pelo governo japonês” [In: CARNEIRO,
M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 44]. Sobre isso, Takeuchi diz:

“Essas iniciativas foram monitoradas pela diplomacia no Japão, que


fornecia subsídios ao Ministério das Relações Exteriores, que se
encarregava, por sua vez, de informar ao governo federal os estados que
sinalizavam interesse em contar com o braço nipônico.” [In:
CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 45]

Podemos perceber, dentro da definição feita aqui anteriormente a respeito das


naturezas dos empreendimentos imigratórios japoneses no Brasil, que esta
iniciativa se enquadra na categoria de colônia em seu primeiro sentido abordado, o
do grande loteamento de terras para posterior revenda a trabalhadores japoneses
interessados em morar e trabalhar na região. Há uma quantidade crescente, neste
momento, de colônias surgindo no norte do estado do Paraná, tanto de japoneses
que migravam de outras localidades do Brasil quanto vindos diretamente do Japão
por comprar a ideia de prosperidade ainda vendida pelo governo nipônico e
agências de imigração que “investiram vigorosamente na propaganda do Eldorado
cafeeiro paranaense.” [MAESIMA, 2011, p. 9]. Vale salientar que, apesar de muitos
japoneses se deslocarem ao Paraná para ainda trabalharem com o cultivo do café,
vários outros passaram a lidar com tipos de cultura diferentes.
Neste momento inicial da imigração japonesa no estado do Paraná, vemos o
governo japonês agindo através das empresas de emigração, já mencionadas,
fornecendo apoio aos trabalhadores nipônicos que se dirigiam ao referido estado.
Porém, com o fim do subsídio paulista, que prejudicou imensamente a continuidade
dos fluxos japoneses, o governo do Japão passou a financiar a “viagem dos colonos,
convertendo a emigração numa política de Estado” [In: CARNEIRO, M. L. T.;
TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 47]. Esta interrupção do subsídio feito pelo
estado de São Paulo afetou o fluxo de nipônicos ao Paraná e a outras regiões pelo
fato de que o governo japonês não pensou em um projeto imigratório para o Sul do
Brasil no mesmo formato do encontrado na Região Sudeste. Sobre isso, Maesima
diz:

“O não incremento de entrada de imigrantes japoneses pelo sul do


Estado pode ser explicado pela inexistência de um projeto de imigração
oficial para o Estado, tal como ocorrera em São Paulo, Minas Gerais,
Pará e Rio de Janeiro. Isto explica a razão pela qual nunca
desembarcaram imigrantes japoneses pelo Porto de Paranaguá, que
recebeu, por sua vez, milhares de outros imigrantes, de diferentes etnias
[SETO; UYEDA, 2009, p. 9].” [MAESIMA, 2011, p. 11].

Quando Maesima diz que não havia um “projeto de imigração oficial para o
Estado”, se referia ao fato de que a política feita pelo governo japonês não
considerou uma entrada maciça de nipônicos diretamente pelos portos paranaenses
[nos moldes do que era praticado em São Paulo via porto de Santos] com a
finalidade de criar uma dinâmica própria no fenômeno imigratório nesta região.
Havia um projeto estatal japonês de imigração para o Paraná, mas não da mesma
forma que o de São Paulo. Isso causou características diferentes, como a presença
quase insignificante de japoneses em regiões mais ao sul do estado do Paraná na
época do Censo utilizado na pesquisa de Maesima. Este foi feito em 1958 no âmbito
das comemorações do cinquentenário da imigração japonesa ao Brasil e idealizado
pela Comissão de Festejos, formada pela própria comunidade nipônica, que criou a
Comissão de Recenseamento da Colônia Japonesa para colocar o projeto em prática
[MAESIMA, 2011, p. 1].

Para que esta política de Estado feita pelo governo japonês acontecesse de maneira
mais eficaz, este subsidiou em 1927 a criação das “sociedades Cooperativas de
Províncias para a Emigração Ultramarina, empresas agrupadas em uma única
federação, que estabeleceu no Brasil uma subsidiária, a Brasil Takushoku Kumiai
[Sociedade Colonizadora do Brasil Ltda.], mais conhecida como a sigla Bratac.”
[In: CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 47]. Daí em diante,
a Bratac tomou a frente de várias negociações e ações para fomentar a presença
japonesa no Brasil, como seleção de colonos, embarque e desembarque dos
japoneses no seu destino, seguindo o modelo de outra empresa do gênero, a Kaigai
Kogyo Kabushiki Kaisha [Companhia de Desenvolvimento Exterior de Kaiko],
conhecida como K.K.K.K. [In: CARNEIRO, M. L. T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs.,
2010, p. 47].

Em 1929, com o objetivo de fundar novas colônias, a Bratac comprou quatro glebas
[três no estado de São Paulo e uma no estado do Paraná], dividiu-as em lotes de 25
hectares cada e vendeu-os a colonos ainda no Japão mediante um adiantamento. A
passagem era paga pelo governo japonês e o resto do valor dos lotes seria pago
através dos rendimentos dos colonos já no Brasil. As colônias que se formaram
desta iniciativa foram as de Bastos, Aliança e Tietê [São Paulo] e a de Três Barras
[Paraná], todas com infraestrutura interna providenciada pela Bratac, que também
atendia algumas condições para a aquisição destas terras, como a garantia da
fertilidade do solo e proximidade de estações ferroviárias [In: CARNEIRO, M. L.
T.; TAKEUCHI, M. Y., orgs., 2010, p. 48].

Neste mesmo ano de 1929, outro roteiro foi pensado para canalizar o fenômeno
imigratório japonês no Brasil, assim como aconteceu com o norte do estado do
Paraná: era a Região Norte do país, mais especificamente o estado do Pará,
inaugurando outra face da trajetória nipônica no nosso país.

Referências
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior é professor efetivo de História e História da
Cultura na Rede Municipal de Ensino da Vitória de Santo Antão-PE, graduado em
Licenciatura e em Bacharelado em História [UFPE], especialista em História do
Nordeste do Brasil [UNICAP] e mestrando em História Social da Cultura Regional
[UFRPE], além de Pesquisador Associado da Coordenadoria de Estudos da Ásia
[CEASIA – UFPE] e membro da Rede de Pesquisadores Visões da Ásia.
E-mail: ronijr07@hotmail.com

DEZEM, R. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no


Brasil [1878-1908]. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
MAESIMA, C. Números da imigração japonesa no norte do Paraná: 1958. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI., 2011, São Paulo. Anais do […].
São Paulo: ANPUH, 2011. Tema: “ANPUH: 50 anos”. Eixo temático:
E/Imigrações: histórias, culturas, trajetórias. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308188321_ARQUIVO_Cacil
daMaesima_Numerosdaimigracaojaponesa.pdf. Acesso em: 26 junho 2021.
NOGUEIRA, A. R. Imigração Japonesa na História Contemporânea do Brasil. 1.
ed. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1984.
PAIVA, O. C. Histórias da [I]migração: imigrantes e migrantes em São Paulo
entre o final do século XIX e o início do século XX. São Paulo: Arquivo Público
do Estado, 2013.
SAKURAI, C. Imigração tutelada: os japoneses no Brasil. 2000. Tese [Doutorado
em Antropologia] – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
TAKEUCHI, M. Y. Imigração Japonesa nas Revistas Ilustradas: Preconceito e
Imaginário Social [1897-1945]. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo:
Fapesp, 2016.
TAKEUCHI, M. Y. O Império do Sol Nascente no Brasil: Entre a Idealização e a
Realidade. In: CARNEIRO, M. L. T. & TAKEUCHI, M. Y. [orgs.]. Imigrantes
Japoneses no Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2010. p. 25-62.
DESAFIOS E INQUIETAÇÕES NOS DISCURSOS
PRECONCEITUOSOS CONTRA ASIÁTICOS EM SOLO
BRASILEIRO E ASSOCIAÇÃO A COVID-19: UM
PANORAMA QUE MERECE DISCUSSÃO!
Wagner Pereira de Souza
Este artigo tem a função de analisar alguns fatores que permeiam os discursos
preconceituosos contra os asiáticos em solo brasileiro. Sabe-se que mal se propagou
em todo o planeta, porém esse trabalho se ateve ao recorte Brasil. No decorrer desta
análise, será tematizado e exemplificado a luz de teorias que estudam o caso,
ocorrências em que muitos asiáticos foram vitimizados em decorrência da
associação do vírus que desenvolve a Covid-19 a pessoa oriunda desse local.
Também faz parte deste escopo esclarecer que existe lei que pune esses crimes e
que os praticantes uma vez identificados são punidos no rigor em que a lei exige.
Somado a isso, outras instituições também estão desenvolvendo atividades que
ajudam a identificar os criminosos e também desencorajar outros a fazer a mesma
prática. Para tanto, organizaram um disque-denúncia e também uma central de e-
mail para que as pessoas possam encaminhar suas denúncias.

Discussões preliminares
A assolação em que o mundo vive atualmente e que já evoluiu para um biênio
oriunda do coronavírus tem provocado inúmeras atrocidades que vão desde ao que
talvez se poderia nominar de “pequenos atos” até o grau máximo que é o óbito.
Nesse contexto, percebe-se que devido ao fato de o vírus mencionado anteriormente
ter se manifestado primeiramente em solo chinês, muitas pessoas e até mesmo
autoridades constituídas, findaram por responsabilizar e disseminar que a China
fosse responsável por toda a mazela que mundo inteiro viveu e ainda vive em razão
desta doença, a Covid-19.

Em virtude do que foi tematizado, muitos civis radicalizaram essa ideologia e em


função dela promovendo atitudes preconceituosas contra seus semelhantes que,
fosse ou que pelo menos, tivesse traços que pudessem os caracterizar como
oriundos dos países asiáticos. Nesse interim, muitas vítimas sofreram e ainda
sofrem com desmandes infundados e balizados radicalmente no preconceito.
Em análise a essa questão, pode-se notar que o conceito da teórica a seguir
apresentado, soma-se ao que foi tematizado anteriormente e ainda mais, porque
segundo ela essas ações “normalizam” publicamente atos indecorosos. Neste
sentido, as estatísticas mostram que
“No último ano, ataques racistas contra pessoas amarelas aumentaram
em uma escala assustadora. Com a irresponsabilidade de chefes de
Estado e pessoas influentes associando o vírus da Covid-19 a asiáticos,
o racismo contra este grupo foi ainda mais banalizado e, infelizmente,
normalizado. Os ataques verbais se tornaram físicos e, agora mais do
que nunca, precisamos levar o assunto a sério.” [RAVIZZINI, 2021, p.
01]

Essa prática fica evidente no registro a seguir explicando que autoridades


constituídas fizeram falas que de certa forma incentivam àqueles que já possuem
uma predisposição para este tipo de prática e muitas até desvirtuando o que foi dito
em benefício de causa própria. Sendo assim,

“Postagens ofensivas nas redes sociais, agressões a chineses no metrô,


nas ruas e em espaços públicos, proibição da entrada de asiáticos em
determinados lugares. A isso se somam declarações de autoridades do
governo brasileiro, como a do ministro da Educação, Abraham
Weintraub, que afirmou, simulando um sotaque de um oriental falando
português, que os chineses sairiam fortalecidos na geopolítica mundial
após a crise decorrente da pandemia.” [TORRES, 2021, p. 01]

Contextualização dos fatos


Como pode ser percebido, a atitude de uma autoridade pode ter desfechos bem mais
densos do que talvez o esperado. Isso de certa forma, culmina por incentivar as
outras pessoas menos esclarecidas a cometerem amargos atos indesejados. Segundo
o que relata a pesquisadora é que a intolerância contra os chineses datata-se desde
as primeiras tentativas de imigração deles para a terra brasileira. Acrescenta ainda
a pesquisadora, que os chineses, conforme registra a história, sempre foram
recebidos de maneira intolerante nessa terra varonil. Sendo assim, ela explica que

“A imigração chinesa, também foi um tema bastante controverso no


Brasil. Na época, havia um grande debate sobre a formação do povo
brasileiro. Muitos políticos, intelectuais e jornalistas contrários à essa
imigração apresentavam argumentos ancorados em teorias racistas, em
voga na época. Eles diziam temer que a introdução de um grande
número de chineses no Brasil fosse uma ameaça para as instituições
econômico-sociais. Desse modo, a imigração chinesa não se
caracterizou como um grande fluxo migratório, e apenas atingiu
números expressivos a partir do final da década de 1990.” [TORRES,
2021, p. 04]

Conforme dito antes, o preconceito contra os asiáticos sempre foi manifestado


implícitos ou explicitamente e que esse fator é uma agravante que precisa ser
debatido. Em análise semelhante, percebe-se que
“A combinação dessa crença popular com a diluição dos asiáticos como
brancos no Brasil acaba contribuindo com um dos pilares do
preconceito amarelo: a invisibilidade. O asiático acaba ficando sem
lugar na sociedade brasileira, fazendo com que sua existência fique
presa a certas associações e conviva de forma pacífica, mas não
integrada. Na primeira oportunidade conveniente, isso é trazido à tona.
E foi o que aconteceu com a covid-19.” [DIAS, 2021, p. 08]

Imergindo nesta ceara, observa-se que o advento dessa doença provocou um


agravamento da ferida não cicatrizada que segundo esse mesmo pesquisador essas
ações tomaram proporções exacerbadamente populares constrangendo jovens
estudantes de maneira brutal. Segundo ele, com

“O começo da pandemia do coronavírus escancarou essa ferida discreta,


mas aberta. Quando o vírus foi encontrado na cidade de Wuhan, na
China, em dezembro de 2019, os olhos do mundo ocidental se viraram
para os imigrantes asiáticos. A ideia de que aquela população era a
responsável pela existência do vírus se propagou pelo mundo e não
demorou muito para os ataques preconceituosos começarem no Brasil.”
[DIAS, 2021, p. 09]

Como extensão dessa explicação, na visão de outro teórico, percebe-se que os


olhares analíticos convergem para uma mesma fonte, pois ambos veem essa prática
abusiva preconceituosa como um ato que desmerece o asiático, e além do mais,
promove desrespeito com sua cultura, usos e costumes em nome de um “legalismo”
infundado. Explica o pesquisador que

“É nessa noção de desumanizar o oriental que consiste o termo Perigo


Amarelo. Tratar esse imigrante ou esse descendente como alguém
responsável por disseminar o novo coronavírus, citando hábitos
alimentares ou a própria cultura em si, e, consequentemente, afetar o
funcionamento do mundo ocidental é um exemplo disso.” [ZACARI,
2021, p. 10]

Segundo dados colhidos por esse mesmo pesquisador, há uma convergência


fortíssima entre os asiáticos entrevistados em decorrência de já ter sido vítima de
alguma desse tipo de preconceito. Isso demonstra que os casos podem ser bem mais
numerosos do que os registros mostram, pois há uma possibilidade de que nem
todos os que sofrem tal atrocidade as registram. Dessa forma, esclarece que

“Entre os entrevistados, é quase um consenso o cenário brasileiro em


relação à essa violência contra as comunidades asiáticas. Ao analisar
pelo lado histórico, a situação de ações físicas é extremamente
improvável que aconteça – apesar de agressões verbais já terem
acontecido, por vezes até encaradas sem o teor alarmante necessário.
No entanto, existe um cenário atual de nacionalismo exacerbado entre
uma parcela da sociedade que pode alterar essa situação.” [ZACARI,
2021, p. 12]

Somado a isso, em entrevista dada a revista “IstoéGente”, a atriz Dannieli Suzuki,


expõe seu ponto de vista em relação a esses desmandes e demonstra-se
inconformada com a situação do atual cenário e explica que é importante que cada
um faça a sua parte a fim de que se erradique essas atrocidades infundadas contra
os asiáticos. Por isso,

“Acompanho com profunda tristeza essa associação de pessoas


asiáticas ao vírus da Covid-19. Por causa disso, as agressões contra
pessoas asiáticas – que sempre existiram, mas de forma mais velada –
estão crescendo muito. Isso é um absurdo e, por isso, fiz questão de
também falar publicamente sobre o movimento #StopAsianHate nas
minhas redes.” [...] “Esse nível de ódio e de culpabilização dos asiáticos
pelo que está acontecendo no mundo é um absurdo sem tamanho. É
importante sim falar sobre isso, instigar as pessoas que estão ao meu
redor a pensarem sobre isso e a falarem sobre também. Eu posso não
fazer uma grande revolução no mundo, mas posso mudar o meu
entorno, posso conversar com as pessoas que me acompanham, que são
próximas a mim. Isso faz diferença.” [ISTOÉ GENTE, 2021, p. 01]

A dificuldade de se identificar os criminosos, mas o Brasil não cruzou os braços


Como pode ser percebido, inúmeras são as atrocidades criminosas praticadas contra
os descendentes asiáticos e que alcançam todos os níveis de deploração em relação
a essa situação. Faz-se importante mencionar que a internet é um tremendo veículo
multifuncional, mas é através dela que, muitos criminosos aproveitam para
disseminar suas ofensas. Essa evidência fica explicita na seguinte explanação da
teórica e estudiosa do assunto. Para ela,

“Os ataques - principalmente aos chineses - e as intermináveis teorias


conspiratórias se tornaram ainda mais viáveis em razão da facilidade
gerada pela internet e pelas redes sociais. Na maioria das vezes, a falta
de um rosto ou de um registro verdadeiro, faz com que indivíduos
propaguem o ódio em razão de raça, cor, etnia, religião ou
nacionalidade.” [CARVALHAIS, 2020, p. 01]

Nesse sentido, percebe que as vítimas nem sempre conseguem saber de onde
realmente vêm os ataques devido a possibilidade de mascaração que através da
internet se permite fazer. Outro fator que agrava essa questão é a dificuldade de se
chegar até a pessoa para que ela seja punida. Mas o Brasil possui leis que prevê
punições para quem comete tais atos como é o caso da menção realizada pela teórica
a seguir. Ela chama atenção e explica que

“É bom destacar que a Lei n.º 7.716, de 5 de janeiro de 1989,


criminaliza o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, às
penas de um a três anos de reclusão e multa. Assim, mesmo com todas
as dificuldades inerentes aos crimes praticados no âmbito da rede
mundial de computadores, é necessário denunciar conteúdo
discriminatório nos termos da citada lei.” [CARVALHAIS, 2020, p. 03]

Neste sentido, observa-se que não estão imunes os praticantes desses crimes, mas a
dificuldade reside em até chegar aos praticantes desses atos. Junto a isso, convém
destacar que outras instituições judiciárias estão somando forças para que sejam
erradicadas ações dessa natureza e que os praticantes sejam identificados e punidos
no rigor da lei. Sob esse prisma, é importante frisar o trabalho que vem sendo
realizado em prol dessa causa. Por isso é que o

“O Judiciário tem somado esforços com o Ministério Público e Polícias


para tentar minimizar os efeitos desse mal, que possui consequências
quase tão graves quanto os de uma pandemia. Os administradores das
redes sociais também têm auxiliado nesse combate, ao excluir as
páginas e postagens denunciadas pelos próprios usuários. Enfim,
mesmo diante de tantos problemas decorrentes da pandemia da Covid-
19, a sociedade, ainda, é obrigada a enfrentar o triste vírus do
preconceito, contra o qual, infelizmente, não será possível produzir
nenhuma vacina.” [CARVALHAIS, 2020, p. 05]

Somado a isso, há outras instituições empenhadas em combater essa prática


preconceituosa através de ações que visam facilitar a identificação dos envolvidos.
Está nesse patamar o instituto Ibrachina que desenvolveu ações para ajudar as
autoridades a erradicar esse problema e que também a justiça seja feita em prol
daqueles que são oriundos ou descendentes de asiáticos. Sendo assim,

“O Instituto Sociocultural Brasil-China - Ibrachina criou uma central de


denúncias para reunir relatos, que serão entregues às autoridades
brasileiras. Discriminar alguém por sua etnia é racismo e, na letra da
lei, racismo e injúria racial são crimes. "Não é o coronavírus que traz
estigma a pessoas asiáticas, é nosso tratamento a elas que revela o
estigma e o racismo que sempre tivemos. O coronavírus é só uma
maneira débil e bizarra que usamos para tentar legitimar nossos
preconceitos", escreveu a jornalista Flávia Gasi, colunista do TAB.”
[SAYURI, 2020, p. 14]

Considerações finais
Como pôde ser observado, essa análise procurou evidenciar alguns pontos cruciais
em que os asiáticos são vítimas de ataques de discursos preconceituosos em relação
a origem da Covid-19. Para fortalecer essa discussão, foram apresentados
depoimentos, embasamento teórico de estudiosos do assunto e ainda mais notícias
que circulam nas mídias alentando sobre o problema. Cabe salientar que não se trata
de uma resolução fácil, mas que também se calar diante dela não contribui em nada
para que o problema seja resolvido.

Sendo assim mesmo com todos os entraves e as dificuldades existentes, o Brasil


tem tentado desencorajar pessoas a cometerem crimes dessa natureza, pois sabe-se
que atitudes como essas não devem ser praticadas. Esse trabalho também trouxe
para o seu escopo referências atuais que abordam o tema mostrando que essa, não
é uma realidade distante, mas sim, que pode estar mais presente do que realmente
se imagina.

Referências
Wagner Pereira de Souza é licenciado em Letras [Português/Literatura] pela
Universidade Federal de Rondônia/UNIR; Especialista em Coordenação
Pedagógica pela Faculdade Estadual da Lapa/FAEL. Mestrando pelo PPGLETRAS
da UNEMAT, Campus de Sinop. Atualmente, professor efetivo de Língua
Portuguesa da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso/SEDUC MT.
CARVALHAIS, Mariana Almeida Lopes. O racismo contra asiáticos em tempos
de pandemia, 2020. Disponível em:
https://domtotal.com/noticia/1455050/2020/06/o-racismo-contra-asiaticos-em-
tempos-de-pandemia/ - acesso em: 07 de jul. de 2021. [Artigo]
DIAS, Luccas. Preconceito amarelo: o que é e por que aumenta durante os
vestibulares, 2021. Disponível em:
https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/preconceito-amarelo-o-que-e-e-
por-que-aumenta-durante-os-vestibulares/ - acesso em: 06 de jul. de 2021.
[Artigo]
RAVIZZINI Izabella. Precisamos levar o racismo contra pessoas amarelas a sério,
2021. Disponível em: https://www.purebreak.com.br/noticias/precisamos-levar-o-
racismo-contra-pessoas-amarelas-a-serio/97596 - acesso em 07 de jul. de 2021.
[Artigo]
REVISTA ISTOÉ GENTE. Agressões estão crescendo muito’, diz Danni Suzuki
sobre preconceito contra asiáticos, 2021. Disponível em:
https://istoe.com.br/agressoes-estao-crescendo-muito-diz-danni-suzuki-sobre-
preconceito-contra-asiaticos/ - acesso em: 07 de jul. de 2021. [Revista online]
SAYURI. Juliana. #EuNãoSouUmVírus: epidemia do covid-19 dispara racismo
contra asiáticos, 2020. Disponível em:
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/02/12/eunaosouumvirus-ameaca-de-
pandemia-dispara-racismo-contra-amarelos.htm?cmpid=copiaecola.- acesso em:
07 de jul. 2020. [Artigo]
TORRES, Raquel. pandemia revela outras faces da xenofobia, 2021. Disponível
em: https://www.comciencia.br/pandemia-revela-outras-faces-da-xenofobia/ -
acesso em 06 de jul. de 2021. [Artigo]
ZACARI, Lucas. A comunidade asiática é atacada e discriminada por uma
suposta culpabilidade pelo coronavírus, 2021. Disponível em:
http://jornalismojunior.com.br/stop-asian-hate-preconceito-contra-asiaticos/ -
acesso em: 06 de jul. de 2021. [Artigo]
OS ESCRITOS DE VIAGENS EM SALA DE AULA: JOÃO
DE PIAN DEL CARPINI E A NOÇÃO DO “OUTRO” NO
ORIENTE
Jorge Luiz Voloski
Introdução
Os historiadores há tempos têm discutido acerca da importância das fontes para a
construção do conhecimento histórico. Henri-Ireneé Marrou, por exemplo, em sua
obra Sobre o conhecimento histórico [1978], afirma que é impossível ao historiador
invocar os acontecimentos passados mediante processos “encantatórios”. A única
possibilidade é através dos traços legados à contemporaneidade, ou seja, por
intermédio dos documentos e de sua intepretação [MARROU, 1978, p. 55-56].
Charles Victor Langlois e Charles Seignobos, no mesmo sentido, entendem o
processo de construção do saber histórico dependente dos vestígios e,
consequentemente, todos os atos e fatos que não legaram ao presente rastros se
perderam na História [LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1972].

Dentre as diferentes preocupações com as fontes, as quais são variadas tanto


segundo os objetivos da pesquisa, quanto aos contextos históricos, interessa ao
presente texto o processo de renovação iniciada pelos Annales, com autores, por
exemplo, Marc Bloch, para o qual “a diversidade dos testemunhos históricos é
quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo que fábrica, tudo que toca
pode e deve informar sobre ele” [BLOCH, 2001, p. 79]. Igualmente, a chamada
Terceira Geração dos Annales possui grande relevância, principalmente em relação
as Novas abordagens, Novos Objetos e os Novos problemas, dedicados aos estudos
históricos, o que favoreceu os historiadores a fazerem reformulados
questionamentos sobre o passado.

Esta renovação historiográfica possibilitou um aumento das pesquisas atualmente.


Investigações, por exemplo, ligadas à história das mulheres, das sensibilidades e do
corpo, entre outras, à medida que aumentam nas universidades, cresce também no
ambiente escolar. Em paralelo, se exige cada vez mais dos professores, seja no
Ensino Fundamental, seja no Ensino Médio, o uso das fontes como recurso didático.

Nesta direção, objetivamos nesta comunicação apresentar a possibilidade do uso


didático em sala de aula dos escritos de viagens produzidos em fins do medievo,
para pensar o “Outro” no Oriente. Devido ao espaço limitado para a discussão,
focaremos na obra de João de Pian del Carpini, escrita em meados do século XIII,
a qual expõe os primeiros contatos entre a Cristandade e o Império Mongol.
Apresentaremos, entre outras coisas, uma breve discussão acerca da situação
contextual da Europa, a especificidade da obra e de seu autor, bem como algumas
possibilidades de debates possíveis de serem realizados em sala de aula em relação
a ideia do “Outro”, “Eu” e “Nós”.

Os recursos didáticos e o uso dos documentos no ensino de História


Segundo Jaime Estevão dos Reis, Liliane Grubel Nogueira e Augusto João Moretti
Júnior, a nova Base Nacional Comum Curricular [BNCC] está voltada ao
desenvolvimento, nos alunos, de habilidades e competências ligadas à resolução de
problemas cotidianos e reais. Os discentes, então, postos no centro da relação
“ensino-aprendizado” levam os professores a uma nova função: antes, detentores
das informações, agora, mediadores do conhecimento. Desta forma, podemos
colocar que, exige-se atualmente dos docentes, que estes sejam profissionais
habilitados para guiar os “[...] os discentes no processo de aprendizagem, tendo em
vista os perigos e confusões que a internet e as novas tecnologias podem ocasionar”
[REIS; NOGUEIRA; JUNIOR, 2021, p. 233-234].

De fato, dentro da referida exigência do ensino atual de História, há diferentes


possibilidades didáticas. Vinicius Tivo Soares, por exemplo, considerando o uso de
jogos digitais em sala de aula, conclui que, o professor, assumindo o papel de
intercessor entre as “temáticas históricas”, as historicidades presentes nos jogos e o
conhecimento cientifico histórico, pode desenvolver as ferramentas necessárias nos
discentes para o “[...] pensamento crítico-histórico tão importante destacado no
ensino de história” [SOARES, 2021, p. 254]. Já Edlene Oliveira Silva, tendo em
conta o cinema, sobretudo o filme Cruzada [Kingdom of Heaven], dirigido por
Riddley Scott, em 2005, constata a possibilidade de os discentes estimularem “[...]
seus alunos [a pensarem] como o passado e o presente são construídos na narrativa
fílmica” [SILVA, 2012, p. 234]. Para além dos recursos modernos e midiáticos, as
fontes e documentos possuem igual importância pedagógica.

Como esclarece Guimarães Fonseca [2003], o uso das fontes em sala de aula
circundou as principais discussões metodológicas do ensino de história nos últimos
20 anos. Resultado da crítica ao exclusivo emprego dos livros didáticos, do avanço
da tecnologia da indústria cultural e da ampliação historiográfica dos documentos,
o debate propõe a aplicação das diversas linguagens para a formação do
“aluno/cidadão”. Assim, a utilização das fontes mediante a perspectiva dialógica
tem como pressuposto tanto à formação do espírito crítico e inventivo, quanto à
pesquisa [FONSECA, 2003].

Em seu estudo, para além, Guimarães Fonseca destaca três pontos fundamentais
relacionada a didática dos documentos:

“[primeiro], situar o documento no contexto em que foi produzido, por


meio de perguntas como: quem produziu? Quando? Onde? Em que
condições? Onde está publicado? [segundo], criar diversas atividades
de leitura e compreensão dos textos, possibilitando ao aluno questionar
as fontes, confrontá-las, estabelecer diálogos críticos entre as
concepções prévias, os conhecimentos históricos anteriormente
adquiridos, as indagações e os textos; [terceiro], orientar a produção do
conhecimento sugerindo formas, linguagens, construções discursivas
que favoreçam o desenvolvimento da aprendizagem e a compreensão
da histórica como construção” [FONSECA, 2003, p. 218].

Diante da possibilidade do uso didático das fontes em sala de aula, sem dúvida os
diferentes momentos históricos carregam especificidades no que se refere a
contextualização. Os escritos de viagens produzidos em finais do medievo e que
narram deslocamentos pelo Oriente carregam a necessidade da apresentação do
crescimento externo europeu e, também, o esboço das motivações dos viajantes,
isso porque cada qual viajou por um motivo, o que certamente influenciou no
conteúdo das obras. No tópico a seguir, debateremos ao momento histórico que
viveu João Pian del Carpini.

A situação contextual de João de Pian del Carpini


Certamente, a utilização dos recursos didáticos, como as mídias atuais e as fontes,
não devem objetivar a exclusão dos livros didáticos, mas, ao contrário, como
esclarece Semíramis Corsi Silva [2010], devem colaborar na eficácia do
aprendizado. A autora, analisando o ensino de História Antiga, destaca, por
exemplo, o emprego dos mapas, filmes e imagens, ao invés de apenas “embelezar”
as aulas, destinados ao estudo do passado, sempre levando em consideração o
período de produção dos documentos e ressaltando quando forem releituras. Para
mais, compete ao professor a necessidade de esboçar a simultaneidade dos
acontecimentos, pois os livros abrem novos capítulos sem mostrar paralelos e
interações entre os acontecimentos [SILVA, 2010, p. 153].

Nesta direção, é de grande importância não tirar os escritos de viagens redigidos


entre os séculos XII-XIII, com base em um deslocamento ao oriente, de seu
contexto histórico. Resultado da multiplicação dos deslocamentos, tais obras, seja
produzido por mercadores, peregrinos, mendicantes ou cruzados, ilustram o avanço
europeu em direção à Ásia. Algumas questões internas, como, por exemplo, o
aumento na produção agrícola, desenvolvimento econômico e o crescimento
populacional, certamente favorecem a intensificação do interesse dos indivíduos
em viajarem a localidades até então pouco conhecidas. De igual modo, assuntos
externos foram relevantes, dos quais destacamos, entre outros, a expansão mongol
e o enfraquecimento islâmico no Oriente Próximo.

A consequência de referido aumento nos deslocamentos por terras orientais foi o


contato de europeus com povos pouco conhecidos. A noção do “Nós”, diferente de
um “Outro”, reflete nos escritos de viagens de múltiplas maneiras, dependendo, por
exemplo, dos motivos que fizeram o itinerante viajar e as motivações de escrever a
obra. Sem dúvida, neste sentido, o enriquecimento da discussão em sala de aula
ocorre casso haja a disponibilidade do professor levar diferentes fontes produzidas
no contexto, realizando em seguida uma comparação, junto aos alunos, dos
múltiplos posicionamentos frente a alteridade. Todavia, somos cientes tanto do
limitado tempo disponível para ministrar as aulas, quanto do pouco tempo destinado
nos currículos escolares a tal debate. Por esta razão, assim como ocorreu no estágio
docência realizado no ano de 2019, recomendamos o uso de apenas uma fonte, no
caso seria a obra de João de Pian del Carpini de nome História dos Mongóis.

A especificidade do escrito de João de Pian del Carpini, o qual foi redigido em


meados do século XIII, recai sobretudo no ponto de apresentar um dos primeiros
contatos entre a Cristandade e os povos oriundos das estepes asiáticas. Como
esclarece Vladmir Acosta, após os violentos ataques dos mongóis e o súbito
desaparecimentos dos invasores, surgiu a necessidade de conhecer os agressores
para evitar futuras novas invasões. Dentre os três grupos de embaixadores enviados,
apenas a do franciscano João de Pian del Carpini obteve sucesso levando a carta do
papa ao Grande Cã. Ao regressar, o itinerante escreve um texto apresentando
importantes características, relacionadas, por exemplo, a cultura, religião,
sociedade, geografia e possíveis formas de ataque aos mongóis [ACOSTA, 1992].

No próximo tópico, apresentaremos o conteúdo da obra escrita por João de Pian Del
Carpini e apresentaremos as possibilidades didáticas relacionadas sobretudo a
percepção do “Outro”.

História dos mongóis e a noção do “Outro” em sala de aula


Certamente, no que se refere ao conteúdo ministrado na Área das Ciências Humanas
e Ciências Sociais Aplicadas a noção do “Outro” oferece ímpar importância,
sobretudo se olharmos as diretrizes da BNCC, a qual coloca que:

“No Ensino Fundamental, a BNCC se concentra no processo de tomada


de consciência do Eu, do Outro e do Nós, das diferenças em relação ao
Outro e das diversas formas de organização da família e da sociedade
em diferentes espações e épocas históricas. Tais relações são pautadas
pelas noções de indivíduos e de sociedade, categorias tributarias da
noção de philia, amizade, cooperação, de um conhecimento de si
mesmo e do Outro com vistas a um saber agir conjunto e ético”
[BRASIL, 2018, p. 547].

No Ensino Médio, ocorre apenas o aprofundamento e ampliação das questões


trabalhadas no Ensino Fundamental, isso porque sucede não unicamente o
crescimento “[...] significativo na capacidade cognitiva dos jovens, como também
de seu repertório conceitual e de sua capacidade de articular informações e
conhecimentos” [BRASIL, 2018, p. 547]. Assim, diante a importância das noções
do “Eu”, “Outro” e “Nós” nas diferentes temporalidades e fronteiras, percebemos a
relevância dos escritos de viagens como recurso didático em sala de aula, sobretudo
no desenvolvimento das habilidades da Competência Específica 1, na qual:

“[...] pretende-se ampliar as capacidades dos estudantes de elaborar


hipóteses e compor argumentos com base na sistematização de dados
[de natureza quantitativa e qualitativa]; compreender e utilizar
determinados procedimentos metodológicos para discutir
circunstâncias históricas favoráveis à emergência de matrizes
conceituais [modernidade, Ocidente/Oriente, civilização/barbárie,
nomadismo/sedentarismo, tipologias evolutivas, oposições dicotômicas
etc.] e operacionalizar conceitos como temporalidade, memória,
identidade, sociedade, territorialidade, espacialidade, etc. e diferentes
linguagens e narrativas que expressem conhecimentos, crenças, valores
e práticas que permitem acessar informações, resolver problemas e,
especialmente, favorecer o protagonismo necessário tanto em nível
individual como coletivo” [BRASIL, 2018, p. 559].

Nesta direção, como apontado anteriormente, a obra de João de Pian Del Carpini
recebe singular importância. Redigida por um franciscano, ilustra a percepção
dualista do mundo e os julgamentos de valores baseados no cristianismo. O receio
perante o diferente, que repercute em todo o livro, no começo já pode ser observado.
Diante a exaltação do cristianismo e da alegação da futura vitória sobre os inimigos,
o viajante apresenta os motivos da viagem, confessando o anterior medo da morte,
aprisionamento, trabalho forçado, das tormentas da sede, fome, calor e frio, sendo
que tudo isso o ocorreu, menos a morte. As adversidades são superadas devido ao
desejo de Deus, segundo o mandato do Papa, do conhecimento da intenção e
vontade dos Tártaros, “[...] para que não acontecesse que, irrompendo de repente,
encontrassem [os cristãos] despreparados, como sucedeu outra vez em
consequência dos pecados dos homens, e causassem grande estragos ao povo
cristão” [CARPINI, 2005, p. 30].

Frente aos pontos expostos no parágrafo anterior, os alunos devem ser levados ao
questionamento relacionado ao contexto histórico, a intencionalidade do
deslocamento e da escrita do livro e quem seria o público leitor. Perguntas, como,
por exemplo, “Quem?”, “Quando?”, “Onde?” e “Por que?” desenvolvidas,
certamente colaboram no senso crítico, dentre outras direções, direcionado ao recuo
de ter todas as informações como verdade, e ao encaminhamento de compreender
as diferentes intencionalidades. O conteúdo do livro não representa a realidade dos
mongóis, mas aquilo que o franciscano entendia e buscou reproduzir sobre uma
sociedade diferente e pouco conhecida. Assim, o discente deve ter nítido a noção
do documento apresentar mais as características do seu produtor do que do produto.

Outras narrações presentes na obra podem ser destacadas neste sentido, como, por
exemplo, as relacionadas as crenças dos mongóis. Descrevendo a aplicação da
justiça no mesmo momento da religião, o franciscano João de Pian del Carpini
observa a ausência de leis, sendo apenas algumas tradições seguidas, as quais os
Tártaros dizem “pecado”, tal qual o fato de cravar a faca no fogo, o apoio no chicote
que batem no cavalo e a condenação à morte de quem pisa no limiar da porta.
Contudo, “[...] para eles não é nenhum pecado matar homens e mulheres, invadir
terras dos outros, apossar-se das coisas de outros por qualquer modo injusto,
fornicar, injuriar os outros homens, agir contra as proibições e os preceitos de Deus
[CARPINI, 2005, p. 38].

Em suma, João de Pian del Carpini, ao descrever o “Outro” apresenta mais


características próprias do que ligadas aos mongóis. Desta forma, seu uso em sala
de aula colabora no questionamento de termos dicotômicos, como, por exemplo, de
“civilizados” e “bárbaros”, “cristãos” e “pagãos”, entre outros, os quais estão mais
associados com aquele que vê e julga de acordo com suas categorias morais. A
habilidade 105 da BNCC pode ser desenvolvida mediante o emprego do
documento, isso porque ela objetiva:

“Identificar, contextualizar e criticar as tipologias evolutivas [como


populações nômades e sedentárias, entre outras] e as oposições
dicotômicas [cidade/campo, cultura/natureza, civilizados/bárbaros,
razão/sensibilidade, material/virtual etc.], explicitando as ambiguidades
e a complexidade dos conceitos e dos sujeitos envolvidos em diferentes
circunstância e processos” [BRASIL, 2018, p. 560].

Por fim, em vias de conclusão, salientamos mais uma vez o fato de as fontes como
material didático exigir a contextualização. Assim, os diferentes temas de outros
períodos históricos ou fontes que não sejam os escritos de viagens produzidos em
finais do medievo com destino ao Extremo Oriente, os quais foram o centro do
debate do presente texto, necessitarem de outras problemáticas. Nada impede,
entretanto, a associação do conteúdo com a atualidade e o questionamento crítico,
por exemplo, dos preconceitos individuais e coletivos contemporâneos operantes
no Ocidente em relação ao Oriente.

Assim, diante as especificidades e o debatido, utilizar João de Pian del Carpini em


sala de aula como documento, na mesma direção do esclarecido por Suzana Lopes
Salgado Ribeiro, Rachel Duarte Abdala e Ana Cláudia Moreira Rodrigues, não
objetivaria apenas o “narrar” histórico, mas o guiar dos alunos em análises e
compreensões racionais do mundo social, sobretudo no que se refere ao senso
críticos dos discentes, visto eles constituírem usuários e telespectadores de imagens.
“Nesse sentido, os professore podem levar o aluno a se relacionarem com o passado,
desenvolvendo habilidades de observação, contextualização e interpretação acerca
do conteúdo estudado” [RIBEIRO; ABDALA; RODRIGUES, 2019, p. 78].

Referências
Jorge Luiz Voloski é formando em História pela Universidade Estadual de Maringá.
Atualmente cursa o mestrado no Programa de Pós-Graduação em História na
Universidade Estadual de Maringá [UEM], sendo membro do Laboratório de
Estudos Medievais [LEM]

ACOSTA, Vladmir. Viajeros y maravillas. Tomo III. Caracas, Venezuela: Monte


Ávila Editores Latinoamericana, 1992.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:
MEC, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/historico/BNCC_EnsinoMedio_em
baixa_site_110518.pdf. Acessado em 04/09/2021.
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o oficio do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001..
CARPINI, João de Pian del. História dos mongóis. In: SILVEIRA, Ildefonso;
PINTARELLI, Ary E. [Ed.]. Crônicas de viagem: franciscanos no Extremo
Oriente antes de Marco Polo [1245-1330], pp. 9-98, 2005.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história:
experiencias, reflexões e aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2003.
LANGLOIS, Charles Victor; SEIGNOBOS, Charles. Introcucción a los estudios
históricos. Buenos Aires: Pleyade, 1972.
MARROU, Henri-Irénée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro, RJ:
Zahar editores, 1978.
REIS, Jaime Estevão dos Reis; NOGUEIRA, Liliane Grubel; MORETTI
JÚNIOR, Augusto João. O mercador medieval: uma proposta de estudo na
formação de professores. In: VIANA, Luciano José. [Orgs.]. A história Medieval
entre a formação de professores e o ensino da Educação Básica no século XXI:
experiencias nacionais e internacionais. Rio de Janeiro, RJ: Autobiografia, pp.
233-249, 2021.
RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado; ABDALA, Rachel Duarte; RODRIGUES, Ana
Cláudia Moreira. Documentos históricos no ensino de história: Idade Média e
imagens no 6° ano do Ensino Fundamental. Cadernos de Pós-Graduação, São
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SILVA, Edlene Oliveira. O cinema na sala de aula: imagens da Idade Média no
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SOARES, Vinicius Tivo. Discussão sobre o uso de jogos modernos para o ensino
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metodológico-epistemológico da educação no fomento da questão política da
atualidade 2. Ponta Grossa, PR: Atena, pp. 248-255, 2021.
ORIENTALISMOS
E ENSINO
DISCUTINDO O CONCEITO DE ORIENTALISMO
ATRAVÉS DO FILME “O ÚLTIMO SAMURAI” [2003]
Edelson Geraldo Gonçalves
Introdução
Como afirmou Bruce Mazlish, a modernização do mundo foi iniciada pelo
Ocidente, mas a globalização está sendo feita por toda a humanidade, “criando uma
nova civilização” [1998, p. 392], e, com isso, desde o século XX, é notória a
importância dos países asiáticos na política, economia e cultura globais, havendo a
perspectiva de que o atual século será um “século asiático”, um horizonte que já
vinha sendo imaginado à algumas décadas, quando se projetou inicialmente o Japão
como primeira potência [Henshall, 2008, p. 228], e no início do século XXI esta
expectativa está colocada sobre a China.

Neste cenário torna-se importante o conhecimento, cultivado desde os níveis


fundamental e médio, das histórias das culturas asiáticas, e notadamente o
reconhecimento das noções orientalistas [segundo o conceito de Edward Said] que
ainda perpassam o imaginário ocidental sobre estes povos, inclusive levando a
manifestações preconceituosas da opinião pública ocidental em relação a estes
povos.

Tais manifestações, que mudam seu alvo segundo o momento histórico, se voltam
principalmente contra povos colocados como antagonistas dos EUA ao longo dos
séculos XX e XXI [japoneses, norte-coreanos, vietnamitas, iranianos, árabes, e
atualmente, os chineses], e que são considerados inimigos por grande parte das
populações do Ocidente em função do peso da hegemonia cultural e político-
econômica estadunidense, em outras palavras, devido ao “soft power” e o “hard
power” deste país, segundo os termos de Joseph Nye Jr [2004].

Contudo, os materiais didáticos formais disponíveis para a abordagem da Ásia e do


conceito de orientalismo são ainda incipientes, o que demanda que outros recusos
sejam utilizados. Logo, para isso, o cinema é uma boa opção como material de
referência.

Na qualidade de uma vertente da “história pública”, ou seja, uma das modalidades


pelas quais o conhecimento histórico pode ser franqueado a todos [Albieri, 2011, p.
19], o cinema de ficção histórica é uma excelente referência para ser abordada e
analisada.
Com isso em mente, sugerimos aqui o uso do filme “O Último Samurai” [“The Last
Samurai”], de 2003, dirigido por Edward Zwick [1952], e estrelado por Tom Cruise
[1962], embora o personagem a que se refere o título da produção seja interpretado
por Ken Watanabe [1959]. Através deste filme é possível a abordagem de temas
históricos do Japão da Era Meiji, assim como o trabalho com os elementos
orientalistas contidos na obra.

A Era Meiji
A Era Meiji, contexto histórico no qual o filme “O Último Samurai” é ambientado,
se inicia com a Restauração Meiji, em 1868, quando foi finalizado o Xogunato
Tokugawa, e o poder político sobre o Japão foi formalmente devolvido ao
Imperador após séculos de domínio dos xoguns [mais precisamente desde 1192].
Com isso, o Japão iniciou seu processo de modernização, com a industrialização e
reformas políticas, econômicas e sociais.

Neste momento o Japão buscou mostrar que estava se “civilizando”, segundo o


ponto de vista das potências do Ocidente, adotando práticas ocidentalizantes, tanto
para a suprimir os costumes tradicionais do país, quanto para conformar suas
estruturas econômicas e de governo aos padrões considerados respeitáveis pelas
grandes potências daquele momento [Gluck, 2015, p. 570, Sansom, 1951, p. 378].

Para tanto, o país investiu fortemente na educação de seus jovens e na capacitação


de seus profissionais, e para isso, não apenas enviou estudantes e profissionais
nipônicos para se aperfeiçoarem na Europa e EUA, como também contratou muitos
especialistas ocidentais das mais variadas áreas para instruir os japoneses e ajudar
no processo de modernização do país [Gordon, 2003, p. 73].

A reabertura do Japão, em 1853, e seu processo de modernização, sobretudo após


a restauração Meiji, também atraíram muitos estudiosos ocidentais, dispostos a
compreender a cultura japonesa. Estes orientalistas, também conhecidos como
japonologistas, podem ser exemplificados por indivíduos como A.B. Mitford
[1837-1916], Basil Hall Chamberlain [1850-1935] e Lafcadio Hearn [1850-1904]
[Gonçalves, 2017, p. 116-117].

Esta foi a primeira fase da modernização Meiji, guiada pelo lema “Bunmei-Kaika”
[“Civilização e Iluminismo”], e que foi hegemônica até a década de 1880 [Pyle,
2008, p. 674-681], período não alcançado pelo contexto histórico do filme que aqui
abordamos.

Neste cenário, um ponto relevante para os temas aqui abordados, é o processo de


dessamuraização feito no país, com a abolição dos antigos estamentos sociais do
período Tokugawa [guerreiros, camponeses, artesãos, comerciantes e párias], e a
consequente retirada do poder dos samurais. Juntamente a isso ocorreu a adoção do
sistema de conscrição para a formação das modernas forças armadas do país,
incorporando sobretudo o campesinato em suas fileiras [Benesch, 2014, p. 37-38;
Gordon, 2003, p. 66].
Dessa forma, os samurais [ou agora mais precisamente shizoku, ex-samurais]
perderam seu monopólio sobre a atividade militar, e, nos muitos casos em que não
conseguiram se adaptar à nova sociedade, ou se decepcionaram com ela, se
revoltaram contra o governo [Gordon, 2003, p. 65]. A maior e mais famosa das
revoltas promovidas pelos ex-samurais foi a “Revolta de Satsuma”, também
conhecida como “Guerra Seinan” [“Guerra do Sudoeste”], ocorrida em 1877, e
liderada por Saigo Takamori. Este conflito se iniciou após Saigo renunciar a seu
cargo no governo Meiji, em 1873, por razão da recusa por parte dos outros oligarcas
de seu plano de invadir a Coréia, o que ele imaginava poder criar um objetivo capaz
de conter a revolta da explosiva camada dos ex-samurais [Gordon, 2003, p. 74].

Após sua demissão, Saigo se retirou para sua terra natal, Satsuma, onde se dedicou
a oferecer uma educação samurai tradicional à sua população, e em 1877 decidiu
marchar com seus combatentes até Tóquio, com o objetivo de depor os oligarcas
que cercavam o Imperador e estabelecer um governo que ele julgava representar os
verdadeiros interesses do povo japonês. Contudo suas tropas foram interceptadas e
derrotadas pelo moderno Exército Imperial [Gordon, 2003, p. 86-87].

O Último Samurai
O enredo do filme “O Último Samurai”, ambientado nos anos de 1876 e 1877, se
inicia quando o Capitão Nathan Algren [Tom Cruise], um veterano das Guerras
Indígenas nos Estados Unidos [1609-1924], é convidado pelo governo japonês, por
intermédio do político e industrialista Omura Matsue [Harada Masato], a ir ao país
atuar como conselheiro no treinamento do exército moderno que estava em
formação, além de ter a missão de liderar a repressão da rebelião iniciada pelo líder
samurai Katsumoto Moritsugu [Ken Watanabe], um professor do Imperador Meiji,
descontente com os rumos da modernização no Japão.

Após ser enviado para combater o exército de Katsumoto mesmo com tropas ainda
despreparadas, Algren é capturado pelos samurais, e levado como refém às terras
dominadas pelo líder guerreiro. Lá o soldado estadunidense conhece de perto a
cultura tradicional do Japão, e desenvolve um forte laço de amizade e amor com
Katsumoto e seus seguidores, lutando ao lado deles na batalha final contra o agora
preparado Exército Imperial moderno. Apesar da bravura que demonstraram em
combate, a batalha termina em derrota para os samurais e o suicídio de Katsumoto,
por seppuku.

Ao final, frente a Algren, e comovido pelo sacrifício de seu professor, o Imperador


Meiji diz aos membros de sua corte, e representantes estrangeiros: “Eu tenho
sonhado com um Japão unificado, com um país forte, independente e moderno. E
agora, nós temos ferrovias, canhões e roupas ocidentais. Mas, nós não podemos
esquecer quem somos, ou de onde nós viemos”. Com isso o Imperador expressa o
ideal de que apesar da modernização, o Japão deveria preservar a sua essência.
Podemos ver que a trama do filme gira em torno da modernização promovida pelo
governo Meiji e os atritos que este cenário gerou. Dessa forma, o filme apresenta
os elementos básicos das mudanças ocorridas no Japão com a modernização, como
a dessamuraização [representada principalmente pelo sistema de conscrição], e
também a forte presença ocidental durante esse processo, com a representação dos
especialistas estrangeiros, dos quais Algren é um exemplo, e os japonologistas, aqui
representados pelo personagem Simon Graham [Timothy Spall], o estudioso,
tradutor e fotógrafo que trabalhou junto a Algren.

Ainda nesse ponto, outro tema levantado é o próprio processo de modernização,


colocada no filme em uma dicotomia de tradição contra modernidade, ou nas
palavras do japonologista Simon Graham, quando recebeu o Capitão Algren quando
chegou ao Japão: “O Imperador adora tudo que é ocidental, e os samurais acreditam
que tudo está mudando rápido demais. É como se o antigo e o moderno lutassem
pela alma do Japão”.

O outro tema do filme, a rebelião de Katsumoto, é uma representação que sintetiza


o choque entre a modernização Meiji e os ex-samurais insatisfeitos, inspirada
principalmente na Revolta de Satsuma, sendo o personagem Katsumoto baseado
em Saigo Takamori, o histórico líder desse levante.

A Presença do Orientalismo
Trabalhamos aqui com o conceito de orientalismo de Edward Said [2008] em seu
aspecto essencial da representação do Oriente como uma criação do Ocidente, ou
no caso do orientalismo presente no filme de Edward Zwick, a partir da apropriação
de um antigo imaginário idealizado do passado samurai, especificamente a forma
como estes guerreiros foram retratados no período do Japão Imperial [Chun, 2011],
mais precisamente entre a década de 1890 e o ano de 1945.

Esta visão romantizada dos samurais, como seguidores de um código de honra [o


“bushido” ou “caminho do guerreiro”] que guiaria todo este estamento social [com
base em sete virtudes: justiça, coragem, benevolência, polidez, sinceridade, honra
e lealdade] [Nitobe, 2005, p. 22-67] desde o seu surgimento, foi cristalizada a partir
da publicação do livro “Bushido”, de Nitobe Inazo [1862-1933], em 1899
[Turnbull, 2006b, p. 154].

Este livro foi escrito e publicado originalmente em inglês, nos EUA, visando
apresentar uma imagem positiva da cultura japonesa para um público ocidental,
sendo repleto de tradições inventadas, que foram convincentes não apenas para o
público estadunidense, mas também para os japoneses.

Estas tradições inventadas, práticas pretensamente baseadas no passado e


continuamente empregadas com o objetivo de inculcar valores e normas, segundo
a definição de Eric Hobsbawm [2002, p. 9], criadas no Japão Imperial, e presentes
no filme de Zwick, geraram o que Jayson Chun [2011, p. 19, 28] considera uma
curiosa forma de orientalismo, na qual uma produção ocidental se apoderou de uma
visão idealizada dos samurais criada pelos próprios japoneses, e que seus próprios
cineastas hesitam em empregar atualmente.

Dessa forma, podemos constatar, na trama do filme, a influência de uma concepção


orientalista; ou mais especificamente auto-orientalista, pois produzida
originalmente no Ocidente e para o Ocidente, apesar da autoria de um japonês,
como define Harumi Befu [apud Morais, 2019, p. 94], ao se referir ao orientalismo
que passa a influenciar os próprios orientais em suas auto-representações. Esta
concepção sobre os samurais, que teve extrema influência sobre o imaginário
ocidental, e foi por sua vez representada em um filme hollywoodiano de ampla
audiência global, o que certamente contribui para a perpetuação de tais mitos.

Feitas estas considerações, nos concentraremos agora em dois mitos orientalistas


sobre os samurais [embora outras representações orientalistas dos samurais e do
próprio Japão certamente possam ser encontradas na obra], desenvolvidos no
período imperial, importantes na imagem destes guerreiros apresentada no filme de
Zwick. O primeiro é o próprio bushido, não meramente na concepção original de
Nitobe, mas em seu aspecto de culto à morte honrada, desenvolvido posteriormente.
Por sua vez, o segundo, é o repúdio tradicional dos samurais às armas de fogo.
O primeiro mito, no filme expresso por Katsumoto em momentos como o de seu
comentário a Algren sobre o massacre que ceifou a vida do Tenente-coronel George
Armstong Custer [1839-1876], em Little Bighorn [1876], no qual afirma que ele
teve “uma morte muito boa”, e principalmente em sua investida final contra o
Exército Imperial. Em seu diálogo com o personagem de Tom Cruise, observando
as flores de cerejeira nos jardins de seu castelo, Katsumoto faz uma definição do
bushido neste sentido, ao dizer: “Assim como estas flores, todos nós estamos
morrendo. Viver a vida em cada respiração, em cada xícara de chá, em cada vida
que tiramos. O caminho do guerreiro”.

Estes ideais, de viver cada momento como se fosse o último, ou mais precisamente
“dia após dia, preparar-se para a morte” [Yamamoto, 2004, p. 98] e da busca de
uma boa morte em combate foram inseridos no imaginário japonês sobre o passado
samurai na década de 1930, quando o livro “Hagakure”, escrito por Yamamoto
Tsunetomo no século XVIII, foi propagandeado pelas autoridade japonesas, e
popularizado, como uma legítima fonte para o código de conduta dos samurais, e
que conteria valores por eles praticados desde sua origem. Contudo, historicamente,
o conteúdo desse livro era meramente um aconselhamento voltado para os samurais
do domínio de Nabeshima, no sul do Japão, jamais ganhando notoriedade além de
suas fronteiras antes da modernidade [Benesch, 2014, p. 16-17, 199].

Juntamente à ideia de que o ethos dos samurais seria historicamente a moral dos
japoneses, com o argumento de que, “o sistema ético que primeiro iluminou a
ordem militar, arrastou, com o tempo, seguidores entre as massas” [Nitobe, 2005,
p. 106], propagada desde a Era Meiji com base na obra de Nitobe, somou-se então
esta ideia da disposição à morte a qualquer momento como um ideal que todo
japonês deveria observar. Um artifício de um governo que se militarizava, para
implantar na população a disposição ao sacrifício pela nação nas guerras que se
iniciavam.

O segundo mito, do repúdio ao uso de armas de fogo por parte dos samurais, aqui
representado na escolha de Katsumoto de não empregar tais armas em seu exército,
nas palavras de um dos personagens do filme, o japonologista Simon Graham,
“Katsumoto não se desonra mais usando armas de fogo” e “Para aqueles que
honram os velhos costumes, Katsumoto é um herói”. Esta é uma romantização
extrema do repúdio dos samurais pela modernidade, considerando tais armas como
componentes da ocidentalização que a acompanharia.

Atitude semelhante não se observou na Revolta de Satsuma, evento histórico que


inspirou a rebelião de Katsumoto, apresentada no filme. Em 1877 os guerreiros de
Saigo empregaram armas de fogo contra as tropas imperiais [Turnbull, 2006, p.
193] [assim como os samurais em geral o faziam desde o século XVI] [Keegan,
2006, p. 70-72], embora desde pouco depois da revolta, tal mito já fosse cultivado
[Turnbull, 2006, p. 192-193].

Uma atitude semelhante à de Katsumoto historicamente pode ser encontrada em um


evento bem menor, a “Revolta dos Shinpuren” em 1876, na qual seus poucos
membros atacaram uma guarnição do Exército Imperial, apenas com armas
tradicionais dos samurais [Keene, 2002, p. 264-266]. Logo, o filme retrata a atitude
no máximo admitida por uma ínfima minoria extremista, como um comportamento
razoável para o estamento dos samurais como um todo.

Conclusão
Podemos concluir que o filme “O Último Samurai” de Edward Zwick, traz uma
representação orientalista dos samurais, baseada em um amplo resgate de tradições
inventadas cultivadas pelo Japão Imperial, várias décadas antes da estréia do filme.
Através de mitos como o do bushido como um culto à morte honrada, e o repúdio
dos samurais pelas armas de fogo, o filme apresenta um Oriente construído pelo
Ocidente [ou poderíamos dizer reconstruído], com base em velhos mitos, de origem
política ou auto-orientalista, certamente contribuindo para a perpetuação desta
visão orientalista.

Referências
Edelson Geraldo Gonçalves é Doutor em História Social das Relações Políticas pela
UFES e atualmente Pós-Doutorando pela mesma instituição, bolsista
PROFIX/FAPES.
Mail: edelsongeraldo@yahoo.com.br

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2004.
HATSHEPSUT: DOS OBELISCOS EM KARNAK PARA
AS AULAS DE HISTÓRIA
Gabriela Maria Teodósio
Um dos desafios para o Ensino de História Antiga é a falta de familiaridade
das/es/os discentes com as fontes e o distanciamento espaço-temporal com o
período estudado. Tendo em vista esses problemas, nas aulas que abordam o Egito
Antigo, com o objetivo de chamar a atenção do alunado, realizamos a adaptação da
tradução do discurso de Hatshepsut nos obeliscos em Karnak, utilizando a tradução
feita por Bakos [2012, p. 30-32]. Para a execução da adaptação aderi como base às
três etapas metodológicas “focar, simplificar e apresentar” [WINEBURG, Sam;
MARTIN, Daisy. 2009]

No Egito Antigo a realeza estava diretamente ligada ao sagrado, as e os governantes


dedicavam parte do seu governo a ordenar a edificação de monumentos de diversas
funcionalidades e era corriqueiro que esses monumentos possuíssem inscritos
narrando os feitos da pessoa que ocupasse o trono.

Por já desenvolvermos uma pesquisa que analisa o governo de Hatshepsut, faraona


[termo criado para se referir a Hatshepsut, por ter sido a primeira mulher a governar
com plenos poderes o Egito] da XVIII° dinastia, escolhemos trabalhar com as
inscrições presentes nos obeliscos erguidos em Karnak. Através dessa fonte é
possível trabalhar várias questões acerca do Egito Antigo, entre elas: o politeísmo,
a relação rei-sagrado, preocupação com a posteridade, a religiosidade como
ditadora de comportamentos, relações com os estrangeiros e etc.

Adaptação da fonte
Passei a desenvolver a prática de adaptação de fontes históricas após cursar o
componente curricular de Prática V, ministrada pelo o Prof. Dr. Renan Birro, que
nos instigou durante a disciplina a facilitar o acesso das/es/os estudantes as várias
fontes históricas, instigando o alunado a interagir com a História, com o intuito de
romper com a visão que a História seria apenas uma disciplina estática, que estuda
o passado e que deve ser decorada pelas/es/os estudantes.

A fonte escolhida para a adaptação foi traduzida para o português no capítulo “O


Obelisco de Hatshepsut: suporte e imagens de poder” [Bakos, 2012, p. 30-32]

“Eu fiz essa doação com um coração cheio de amor por meu pai Amun;
Iniciada em seus ocultos começos,
Informada com seu benéfico poder,
Eu não esqueci qualquer coisa que ele ordenou.
Minha majestade conhece sua divindade,
Eu ajo segundo o seu comando;
É ele quem me guia,
Eu não planejo nenhum trabalho sem sua execução.
É ele quem me dá todas as direções,
Eu não dormi por causa de seu templo,
Eu não extraviei do que ele comandou,
Meu coração era Sia [a personificação do conhecimento] diante dele.
Eu entrei nos planos de seu coração.
Eu não dei as costas para a cidade do Senhor de Tudo
Melhor eu voltei minha face para ela.
Eu sei que Ipet-Sut é o lugar de luz na terra,
A montanha majestosa dos inícios.
O olho sagrado do Senhor de Tudo,
O seu lugar favorito que gera a sua beleza,
Que reúne os seus seguidores.

E é o rei ele mesmo quem diz:


Eu declaro perante o povo quem serei no futuro,
Quem observará o monumento eu fiz para o meu pai,
Quem participar na discussão,
Quem olhar para a posteridade –
Isto foi quando sentei no meu palácio,
E pensei em meu criador,
Que meu coração me levou a fazer para ele
Dois obeliscos de eletro,
Cujo cume atingiria o céu,
Em majestoso hall de colunas,
Entre dois grandes portais do rei,
O Touro forte, Rei Aakherkare, o Horus triunfante.
Agora me coração volta-se para cá e para lá,
Pensando o que o povo dirá,
Aqueles que verão o meu monumento depois de anos,
E falarão sobre o que eu fiz.
Acautelem-se de dizer, “Eu nada sei, Eu nada sei:
Porque isto foi feito?
Para moldar uma montanha de ouro,
Como alguma coisa que merecidamente aconteceu”
Eu juro, como eu sou amada de Re,
Como Amun, meu pai, me favoreceu,
Como minhas narinas estão refrescadas com vida e domínio,
Como eu uso a coroa branca,
Como apareço com a coroa vermelha;
Como os dois senhores repartiram suas porções para mim,
Como eu governo esta terra como o filho de Isis.
Como eu sou poderosa como filho de Isis,
Como eu sou poderosa como filho de Nut,
Como Ra descansa no barco noturno,
Como ele predomina no barco matinal,
Como ele associa suas duas mães no barco divino,
Como o céu suporta, e sua criação perdura,
Eu serei eterna como uma imperecível estrela,
Eu descansarei na vida como Atum –
Assim como em relação a esses dois grandes obeliscos,
Feitos com eletro por minha majestade por meu pai, Amun,
Em ordem que meu nome possa durar neste templo,
Para eternidade e para sempre.

Que alguém que ouça possa dizer, ‘É uma basófia, “O que eu disse”;
Pelo contrário dizer, “Isto é próprio dela,
Ela é devotada a seu pai!”
Veja, o deus me conhece bem,
Amun, Senhor do Trono das Duas Terras;
Ele me fez governar a Terra Preta e Terra Vermelha como recompensa,
Ninguém se rebela contra mim em todas as terras.
Todas as terras estrangeiras são submetidas a mim.
Ele colocou minhas fronteiras nos limites do céu.
O que Aton cinge trabalha para mim.
Ele deu-lhe isto que veio dele,
Sabendo disso eu vou governar por ele.
Eu sou sua filha na verdadeira verdade.
Aquele que serve ele, que sabe o que ele ordena.
Minha recompensa de meu pai é vida-estabilidade-lei.
No trono de Horus sobre todos os que vivem, eternamente, como Ra.”
[LICHTEIM, v.II, APUD BAKOS, 2012, p. 27-29]

Texto esse que relata alguns dos feitos de Hatshepsut enquanto faraó, seu vínculo
com os deuses e sua preocupação em deixar para posteridade o registro do que fez.
Para que esse escrito pudesse ser utilizado em sala de aula foi necessário que essa
tradução fosse adaptada para uma linguagem mais acessível para as/es/os discentes.

Como proposto na metodologia de Wineburg e Martin [2009] a adaptação deve ser


precedida de um breve resumo sobre a fonte. Devido à extensão da fonte realizamos
inicialmente a redução do texto de 666 palavras para 269, pois quanto mais breve o
trecho selecionado mais fácil será a leitura das/es/os estudantes. Essa etapa nos
possibilitou focar na fonte e em seguida nos dedicamos a simplificar o trecho
selecionado, adaptando a linguagem para a realidade das/es/os discentes, auxiliando
assim no processo de compreensão do texto.
A última etapa do processo de adaptação da fonte é a apresentação, deve ser
disponibilizada para o alunado em uma folha única, com “fontes largas [ao menos
tamanho 16] com espaços branco amplos no topo da página” [WINEBURG, Sam;
MARTIN, Daisy. 2009, p. 214]. Nesta etapa Sam Wineburg e Daisy Martin nos
orientam a:

“1] o uso de itálicos para assinalar palavras chave e, 2] um vocabulário no final da


página. Nós usamos o itálico de modo disperso, porém estratégico, para focar a
atenção nas palavras que os leitores podem pular ou negligenciar.” [WINEBURG,
Sam; MARTIN, Daisy. 2009, P. 215] Após seguir os processos detalhados acima
segue a adaptação realizada:

Inscrição do obelisco de Hatshepsut em Karnak do ano 15/16 do Reino Novo

Hatshepsut reinou durante a XVIIIª dinastia do Reino Novo, foi a primeira mulher
faraó a governar o Egito com plenos poderes. Ela conseguiu executar várias
atividades que até então não haviam sido exercidas por mulheres e preocupou-se
em eternizar seus feitos: Hatshepsut espalhou pelo Egito vários monumentos com
inscrições de seus atos mais grandiosos. Abaixo vemos como era comum no Egito
Antigo a preocupação em deixar uma mensagem para posteridade, além de oferecer
uma forte ligação com os deuses.

Fonte adaptada

Fiz essa doação por amor a meu pai, Amon. Eu sou guiada por ele, faço
tudo que ele manda. Eu não dormi para cuidar de seu templo, eu não
esqueci a cidade do Senhor de Tudo, eu dei toda atenção para a cidade
de Amon, pois sei que é nela o lugar de luz na terra, local do sagrado
do deus Amon: esse é seu lugar favorito, é aqui que se reúnem seus
seguidores.
Eu, enquanto rei, digo para o povo o que serei no futuro: quem olhar
para esse monumento saberá que mandei erguer dois obeliscos
decorados com ouro para o meu pai, com o topo deles alçando o céu.
Agora penso no que as pessoas irão falar: elas verão meu monumento
depois de anos e falarão sobre o que eu fiz. Porque isto foi feito? Para
criar uma montanha em ouro, algo que aconteceu do jeito que deveria.
Eu juro quesou amada por Rá e como meu pai, o deus Amon, ajudou-
me. Eu uso a coroa branca e a coroa vermelha. Sou poderosa como o
filho de Ísis e como o filho de Nut; eu serei eterna como uma estrela,
eu vou descansar na vida como o deus criador; que meu nome possa
durar neste templo e para sempre.
Que as pessoas falem que isso é digno de mim, pois sou dedicada a meu
pai: o deus me conhece e Amon me fez governar as Duas Terras.
Ninguém se revolta contra mim, os estrangeiros obedecem a mim. Eu
sou a verdadeira filha do deus sol; eu trabalho para ele e, como
recompensa, tenho vida, estabilidade e poder.
Obelisco: Monumento de base quadrada e no topo possui forma de
pirâmide
Rá: Uma das formas de se chamar o deus Sol no Egito Antigo
Amon: nome diferente para o deus Sol
Isis: deusa da fertilidade e da maternidade
Nut: deusa do céu
Duas Terras: formada pelo Alto Egito [região do vale do Nilo] e Baixo
Egito [região delta do Nilo].

A adaptação em sala de aula


Em meio ao cenário de pandemia, o ensino remoto foi utilizado pelas escolas a fim
de diminuir os impactos da Covid-19 na educação, o que possibilitou várias
participações de convidadas/es/os nas aulas de uma forma mais simples, já que
através da internet é possível falar para várias pessoas, mesmo que estejam a longas
distâncias.

Diante dessa realidade fui convidada pelo prof. João Lemos a ministrar uma aula
sobre as mulheres no Egito Antigo para a turma de 1° ano do Ensino Médio ano do
Ensino Médio, dos cursos de Administração, Agropecuária, Informática e Redes de
Computadores na EEEP Paulo Barbosa Leite - Caririaçu, localizada no Ceará.
Aproveitei a oportunidade para apresentar incialmente uma foto do obelisco de
Hatshepsut em Karnak.
Fonte:https://www.voyagevirtuel.com/egypt/bigphotos/luxor-karnak-802.jpg

Na imagem podemos verificar a fonte já em estado de degradação imposto por


milênios, ao apresentar os hieróglifos as/es/os estudantes foram questionadas/es/os
se “havia a possibilidade de trabalharmos com aqueles inscritos durante a aula?” A
resposta geral foi que não, pois, não sabiam o que estava escrito.

Diante dessa resposta projetei no slide à adaptação descrita anteriormente, li a


adaptação para a turma e após essa apresentação as/es/os discentes passaram a
participar de forma mais ativa na sala. De forma geral a turma ficou mais
interessada em conhecer mais da vida de Hatshepsut, dialogamos sobre como a
faraona descreveu seu governo como uma bênção divina e como ela se preocupou
em passar uma imagem de líder poderosa.

Um dos aspectos abordados através da figura de Hatshepsut foi como a sociedade


egípcia permeava o mito e a realidade, o rei é legitimado por sua origem divina “o
rei não tem apenas origem divina, ele é a expressão do próprio deus. Mais do que
senhor dos exércitos ou supremo juiz, o faraó é o símbolo vivo da divindade”
[PINSKY, 2020, p. 95]. Como defende Frizzo [2016] a onipresença do monarca se
dava através das várias representações, a figura do rei como responsável por manter
o cosmo organizado e também portador da herança divina. Essa onipresença do
faraó na vida dos egípcios estava ligada ao aos feixes representativos detalhados
como:

“O primeiro feixe de representações identificava o rei como único


responsável por direito ao culto dos deuses e, portanto, dono do
monopólio do contato com o sobrenatural. O segundo buscava
representar o faraó como líder militar e chefe, massacrando os inimigos
associados ao caos. O terceiro, claramente correlacionado aos
primeiros, colocava o faraó como chefe de governo e encarregado da
administração do país.” [FRIZZO, 2016, p. 21-22]

Além disso, debatemos como era uma realidade comum no Egito Antigo à
preocupação da eternização dos feitos do faraó através da dos textos-imagens
presentes nos monumentos e a relação extremamente forte que ligava o faraó aos
deuses.

Após a oportunidade de elaborar essa adaptação e de ministrar uma aula sobre o


Egito Antigo através de aspectos do governo de Hatshepsut, percebemos como a
adaptação de fontes históricas pode chamar a atenção do alunado e tornar o tema
debatido em sala algo curioso para as/es/os alunos, gerando assim um debate
enriquecedor entre discentes-docente.

Referências
Gabriela Maria Teodósio, graduanda em Licenciatura em História na UPE,
pesquisadora do Leitorado Antigüo: grupo de ensino, pesquisa e extensão em
História Antiga, e bolsista da Residência Pedagógica. Contato:
gabriela.teodosio@upe.br

BAKOS, Margaret. O obelisco de Hatshepsut: suporte e imagens de poder. In:


SOUZA Neto, José Maria Gomes de [Org.]. Antigas Leituras: diálogos entre a
história e a literatura. Recife: EDUPE, 2012.
FRIZZO, Fábio. Estado, império e exploração econômica no Egito do Reino
Novo. Tese [Doutorado] – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia. Departamento de História, Niterói, p. 401, 2016.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. 25. Ed., 8° reimpressão. – São Paulo:
Contexto, 2020.
WINEBURG, Sam; MARTIN, Daisy. Tampering with History: adapting primary
sources for struggling readers. TrSocial Education 73[5], p.212-216, 2009. Trad.
Renan Marques Birro [UPE].
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL A PARTIR DAS
MEMÓRIAS DA VOVÓ OK-SUN LEE: HISTÓRIA EM
QUADRINHOS “GRAMA” COMO RECURSO DIDÁTICO
Krishna Luchetti
“Mesmo derrubada pelo vento e pisoteada por muitos, a grama sempre se reergue.
Pode ser que ela te cumprimente de forma tímida, passando de raspão pelas suas
pernas. O inverno está indo, a primavera chegando. O calor da primavera estará
aqui em breve, derretendo o frio que parece não ter fim.” [GENDRY-KIM, 2020,
p.478-479]. É com essas palavras que a quadrinista coreana Keum Suk Gendry-
Kim encerra “Grama”, a história em quadrinhos na qual ela passou anos trabalhando
para contar a história da “vovó” Ok-Sun Lee. Ao comparar a senhora Lee à grama,
Kim denota a persistência dessa mulher que seguiu forte, mesmo diante de tantos
sofrimentos vivenciados desde a mais tenra infância até a velhice.

Mediante a narrativa criada por Gendry-Kim, acerca da vida da “vovó” Ok-Sun


Lee, é possível olhar para a História sob uma ótica sensível e emocionante, por meio
de suas memórias. Em “Grama” voltamos ao passado coreano, partindo da década
de 1930 até os tempos atuais, sob o olhar da senhora Lee, junto ao pincel e árdua
pesquisa de Kim. Nessa história, vê-se a pobreza e fome sob o domínio colonial
japonês, as experiências de Lee Ok-Sun durante a guerra, sequestrada para ser uma
“mulher de conforto” [escrava sexual do Império japonês], o fim da guerra e a
retomada de sua própria liberdade.

Sendo assim, essa HQ forjada a partir das memórias da senhora Lee, em cotejo com
a documentação oficial dos governos japonês e coreano, assim como de fotografias
e dos depoimentos de outras mulheres, se apresenta como um valioso recurso
didático a ser mobilizado por nós professores-historiadores. Tanto no que concerne
a questão do conteúdo da Segunda Guerra Mundial, quanto ao fato de se tratar de
uma obra feita por uma mulher coreana, sobre outra mulher coreana. Afinal,
acredito que “uma educação multicultural exige dos professores um consistente
trabalho de problematização sobre a formação da sociedade brasileira e uma
consequente desconstrução de categorias para que temas e atividades escolares em
torno da pluralidade cultural sejam efetivamente trabalhados nas aulas de História
em prol da destruição de discriminações e preconceitos vinculados tanto por meio
de discursos quanto de ações.” [AZEVEDO, 2011, p.182].

Ou seja, ao mobilizar “Grama” enquanto recurso didático, é possível aproximar o


alunado dessas realidades que muitas vezes lhe parecem tão distantes. Mas, que
também integram a formação do Brasil, visto que a comunidade do Leste Asiático
é numerosa e de grande importância para nossa formação cultural e nacional. Além
disso, muitos jovens brasileiros têm contato com uma miríade de produtos culturais
coreanos, desde a música, com o popular k-pop, até dramas televisivos, filmes,
roupas, produtos de beleza etc. De forma que, ao mobilizar a obra de uma artista
coreana, o professor pode despertar ainda mais interesse por parte de uma
porcentagem significativa do alunado.

Tendo tudo isso em vista, decidi propor uma sequência didática para aulas de
História, mobilizando a HQ “Grama” enquanto recurso didático. Pois, enquanto
professores “existe o problema de escolher documentos que sejam atrativos e não
oponham muitos obstáculos para serem compreendidos, tais como vocabulários
complexo [...], grande extensão, considerando o tempo pedagógico das aulas [...] e
a inadequação à idade dos alunos.” [BITTENCOURT, 2011, p.330]. Ao fazer uso
de uma história em quadrinhos, penso justamente nesses aspectos, pois ela possui
uma leitura fluída, sem vocabulários complexos, e na qual a discussão caberia no
tempo pedagógico de quatro aulas.

Quanto ao recorte de faixa etária indicado para o uso desse recurso didático, sugiro
aos pares que pensem nos nonos anos do Ensino Fundamental Regular, ou para os
anos do Ensino Médio, visto que alguns temas trabalhados podem ser muito
sensíveis para idades mais jovens. Também é possível trabalhar com esse tipo de
literatura na Educação de Jovens e Adultos, acredito que se dará uma experiência
muito enriquecedora. Vale lembrar que, fazer uso de uma HQ torna o documento
atrativo, tanto por seu apelo imagético, quanto por sua forma de leitura, que traz
imagens e textos curtos.

Afinal, aqui levo em consideração que as HQs são um recurso atrativo, porque “são
o espaço do lúdico e sua narrativa, tal como o cinema, envolve uma estrutura
diferente dos livros de História tradicionais. Não obstante, [...] reforça a
necessidade de o professor atuar como mediador no trabalho com tal linguagem,
problematizando o discurso histórico presente na HQ.” [LIMA, p.164, 2017]. Desse
modo, ao trabalhar com “Grama” pretendo fazer referência a trabalhos científicos
acerca dos acontecimentos abordados na HQ. Dessa forma, instigo os pares a ler
bibliografia acerca da Segunda Guerra Mundial no Pacífico e acerca do domínio
imperialista japonês no leste asiático.

Quanto ao conceito de “mulheres de conforto”, para além da própria HQ, sugiro a


leitura da dissertação da coreana Sun Young Nam. Esse conceito pode ser explicado
e discutido com os alunos, por exemplo, criticando os termos “eufemistas” para se
referir a escravidão sexual que essas mulheres sofreram. A autora pontua que, “Em
1990, os japoneses colocaram “candidatas [종군]” à frente da expressão ‘Mulheres
de Conforto’ para se referirem a estas mulheres, a fim de distorcer a história, como
se fosse a violação sexual ou tortura tivesse sido exercida de modo voluntário [Kim,
2016]. Pela primeira vez na comunidade internacional, foi utilizado o termo
“Mulheres de Conforto [Comfort Women]” neste caso, para descrever as mulheres
vítimas de escravatura sexual, pelos exércitos japoneses. Hoje em dia,
especialmente na ONU, os crimes relatados neste caso são descritos como
escravatura sexual dos exércitos ou escravidão sexual. Conforme foi apresentado
no relatório de Radhika Coomaraswamy, [Park, 2015] no Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas, este ato foi considerado por esta Relatora
Internacional das Nações Unidas, como um ‘military sexual slavery in wartime’.”
[NAM, 2018, p.19].

Tendo isso em vista, se faz pertinente discutir a questão da disputa historiográfica


entre o Japão e a Coréia do Sul acerca desse acontecimento histórico. Visto que há
uma negação das autoridades japonesas diante desse acontecimento, enquanto
autoridades sul-coreanas e chinesas, principalmente ligadas a organização dos
direitos humanos e partidos de esquerda, lutam para a validade historiográfica da
exploração sexual dessas mulheres pelo Império nipônico. Em “Grama” ao final da
HQ, Kim também aborda esse debate, e do quanto a vovó Ok-Sun Lee e outras
senhoras que sofreram como “mulheres de conforto” permanecem em luta
constante para validarem sua história. A própria Gendry-Kim, junto com outras
pesquisadoras, conseguiu, por meio da pesquisa de campo e aos arquivos, confirmar
vários dos depoimentos da senhora Lee.

Além disso, voltando a questão do formato do objeto escolhido, “Compreende-se


que as HQs, além de um importante meio de comunicação, são uma manifestação
artística das artes visuais que ensinam, carregam saberes, instruem e colaboram com
a construção de conhecimentos. É um gênero que permite que a arte se faça saber.”
[TAMANINI, COSTA, p.6, 2020]. Portanto, é preciso que o professor trabalhe as
imagens da obra enquanto signos daquilo que está sendo narrado, e estimule aos
alunos que analisem tanto os textos escritos presentes no objeto, quanto os textos
iconográficos.

Outro ponto a ser levado em consideração quanto a este tipo de recurso é que “as
HQs constituem linguagem singular através da qual fatos, épocas e ideias são
vividos por personagens, dando escala textual e imagética a tais elementos. Além
disso, os quadrinhos promovem a leitura, a interpretação e a imaginação, aspectos
diretamente relacionados às aulas de Linguagens, mas também fundamentais para
as Humanidades e, especificamente, para a História.” [LIMA, p.168, 2017]. Dessa
forma, a partir das HQs também pode ser proposto uma sequência didática
interdisciplinar, com as disciplinas de Artes e Língua Portuguesa, explorando esse
gênero artístico e textual.

Também é importante pontuar que o próprio tema das relações étnico-raciais


constitui um tema transversal entre as disciplinas escolares, segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais. Dessa forma, é importante levar em consideração que, “O
trabalho articulado de maneira transversal faz com que as atitudes desenvolvidas
em diferentes atividades sejam complementares entre as áreas. Os temas
transversais como questões sociais urgentes são norteados pela construção da
cidadania e pela democracia.” [LIMA; AZEVEDO, 2013, p.137]. Como é o caso
da etnia “amarela” que infelizmente sofre com discriminações diárias, ataques
racistas e extremamente xenofóbicos, até mesmo por indivíduos em cargos oficiais
no Brasil. Portanto, abordando a obra de uma mulher coreana, também é possível
discutir a questão dos preconceitos que muitas vezes os alunos trazem de casa, na
sala de aula, e desconstruí-los.

Ora, para começar esta sequência didática, então, sugiro ao professor que selecione
capítulos de “Grama” e os disponibilize para que os alunos [visto que nem todos os
estudantes terão poder aquisitivo para adquirirem a obra, assim como muitas
escolas não podem adquirir o material]. Porém, caso a escola possa fornecer a obra
completa aos estudantes, essa experiência se mostrará ainda mais enriquecedora.
Visto que a história da vovó Ok-Sun aborda diversas temáticas importantes de
serem trabalhadas em sala de aula, tais como violência contra a mulher, pobreza,
racismo, guerra, acesso à educação etc.

Tendo em vista uma aula que trate da Segunda Guerra Mundial, ou até que trate de
eixos temáticos como da violência contra a mulher, e afins, sugiro a seleção dos
seguintes capítulos:

1 – “A garota que queria ir para a escola”: trata da infância pobre de Ok-Sun Lee
durante o regime japonês, passando fome, cuidando dos irmãos e sem acesso à
escola. Ao abordar esse capítulo o professor pode primeiro frisar a diferença entre
os povos asiáticos [visto que, infelizmente ainda é uma noção difundida em nossa
país que a Ásia é composta por um “povo só”]. Assim como a questão da pobreza,
e o acesso limitado a educação.

2 – “Caqui e cebolinha”: nesse temos o desenrolar da infância da senhora Lee com


a família pobre;
3- “Filha adotiva”: quando ela é “adotada” por uma família coreana e tem de
trabalhar como uma escrava para eles. Nesses dois pontos, sugiro o trabalho
novamente com a questão da pobreza, relacionada ao trabalho infantil, as punições
e a relação familiar narrada na história.

5 - “Bar de Ulsan”: mostra mais uma faceta do trabalho escravo infantil e de como
Gendry-Kim conheceu a vovó Ok-Sun. Nesse capítulo será extremamente
pertinente instigar os alunos a perceberem como foi construída a narrativa a partir
das memórias e depoimentos da senhora Lee em conversas com Kim, assim como
as pesquisas de campo e nos arquivos realizadas pela autora.

6 – “Aeroporto Leste de Yanji”: o rapto e o cativeiro de Ok-Sun ao ser levada para


ser uma “mulher de conforto” do exército japonês;

7 – “Virgindade”: cenas fortes e sensíveis que dizem respeito aos estupros sofridos
pela senhora Lee quando ainda era menina nos campos de concentração em que
ficou presa; e
10 – “A mana Yuna”: a história trágica de Seo Yuna como “mulher de conforto”.
Ao trabalhar esses três capítulos, vê-se a faceta mais cruel e violenta da invasão
japonesa e da Segunda Guerra Mundial. Sugiro o trabalho com o conceito de
“mulheres de conforto”, assim como com a questão da violência de gênero.

Após essa seleção prévia, acredito que o professor deva explanar para as turmas seu
plano ao trabalhar tal HQ, ou seja, quais são seus objetivos. Pois, a “aprendizagem
passa por aquilo que nos toca, que nos faz sentir. Assim, o primeiro desafio de um
professor de História, parece ser “atribuir sentido” para o aluno.” [SOARES JR.
2018, p.3].

Acredito que objetivos relacionados a desnaturalizar certos preconceitos acerca da


história asiática, como aqueles relacionados as relações de gênero possam guiar esta
discussão. Nesse ponto, acredito que o professor deva atentar para as carências de
orientação no tempo dos estudantes para guiar suas práxis diária, a fim de tornar
essa sequência didática ainda mais proveitosa [RUSSEN, 2001].

Novamente enfatizo a importância de frisar que o Leste asiático é composto por


uma multiplicidade de nações, e que neste caso se está trabalhando com uma obra
coreana, que aborda países como Japão e China. Afinal, “na verdade, a idéia da
Ásia não é uma noção asiática, mas européia.” [HUI, 2005], tal noção inclusive
contribuiu para muitos dos estereótipos e atitudes preconceituosas que tendem a
generalizar todos os povos do lesta asiático como um só.
Acredito que no momento inicial, seja importante ouvir o que os alunos sabem
sobre o país e o período estudado, o que sabem previamente sobre o imperialismo
japonês, a Segunda Guerra no Pacífico e outros pontos acerca dos povos e conteúdo,
dessa temporalidade e localidade. Pois, “a possibilidade [do aluno] de efetivar suas
próprias idéias sobre os fenômenos e objetos do mundo social, em vez de ser um
mero receptor passivo das informações do professor” [SCHIMIDT, 2004, p.62] é
de grande importância para essa sequência didática.

Partindo dos conhecimentos prévios do alunado, o próximo passo é trazer para a


turma os conhecimentos científicos acerca do tema, e acredito que uma fala muito
pertinente é aquela proposta por Said, sobre o orientalismo. Esse autor considera
que esse fenômeno gera muitas das atitudes discriminatórias ocidentais para com o
Oriente Médio, mas também com outras regiões asiáticas, apontando que: “um é a
absoluta e sistemática diferença entre o Ocidente, que é racional, desenvolvido,
humanitário e superior, e o Oriente, que é aberrante, subdesenvolvido e inferior.
Outro é que as abstrações sobre o Oriente, particularmente as que se baseiam em
textos que representam uma civilização oriental “clássica”, são sempre preferíveis
às evidências diretas extraídas das realidades orientais modernas. Um terceiro
dogma é que o Oriente é eterno, uniforme e incapaz de definir a si mesmo; presume-
se, portanto, que um vocabulário altamente generalizado e sistemático para
descrever o Oriente de um ponto de vista ocidental é inevitável e até cientificamente
“objetivo”. Um quarto dogma é que o Oriente, no fundo, ou é algo a ser temido [o
Perigo Amarelo, as hordas mongóis, os domínios pardos] ou a ser controlado [por
meio da pacificação, pesquisa e desenvolvimento, ou a ocupação pura e simples
sempre que possível].” [SAID, 1990, 305].

Portanto, o ato de se mobilizar uma obra coreana deve ser trabalhado com os
estudantes, a fim de contribuir para a erradicação de preconceitos e discriminações,
que muitos deles acabam aprendendo nas mídias, redes sociais e afins. Aos pares,
indico que tratem a análise de “Grama” levando em conta que “Os alunos e
professores em sala de aula devem perceber as imagens e os objetos visuais como
portadores de significados. Tomando essa compreensão como base, passam a
ressignificar seus símbolos, releem suas expectativas e aprendem a constituírem-se
como pessoas de relação plural. E isso ocorre à medida que eles interagirem numa
dinâmica de reflexão e argumentação a partir de suas próprias histórias de vida e
experiências humanas.” [TAMANINI, COSTA, p.7, 2020].

Acredito que ao analisar as páginas dessa HQ o professor instigue os alunos a


expressarem o que estão aprendendo com a leitura, assim como se sentem diante
dela. Por conseguinte, sugiro como atividade, que ao longo das quatro aulas
propostas, o professor leia junto com os alunos os trechos selecionados, ou a obra
integralmente, e peça a eles que elaborem tópicos com os pontos que conseguem
ligar a obra ao conteúdo. Além desse viés mais conteudista, é importante fazer os
alunos refletirem sobre os eixos temáticos que permeia a obra, como a violência
contra a mulher, o trabalho infantil, ou outro que o docente considere pertinente
para esta análise. Tendo isso em vista, sugiro aos pares pedirem pequenos textos
aos seus alunos como atividade final da sequência didática em que eles
desenvolvam o que aprenderam e sentiram a partir da leitura da HQ.

Vale lembrar, que este trabalho se dedicou a uma sugestão de sequência didática
aos colegas professores, e não necessariamente um plano específico. Aqui, tenho a
intenção de lançar ideias de como trabalhar um recurso didático que a meu ver tem
grande potencial para a educação, trabalhando com diversas questões pertinentes,
como já foi elencado até então, e tantas outras que podem surgir de experiências
futuras. Acredito que as memórias da vovó Ok-Sun Lee, que ganharam vida sob o
pincel de Keum Suk Gendry-Kim, são fontes valiosas para nossos estudos
históricos, por isso faço-lhes o convite de mobilizar “Grama”.

Referências
Mestranda no Programa de Pós-graduação em História e Espaços da UFRN.
Graduada em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.

AZEVEDO, Crislane Barbosa. Educação para as relações étnico-raciais e Ensino


de História na Educação Básica. SABERES, Natal, v.2, 2011, p.174-194.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2011.
GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2020.
HUI, Wang. A reinvenção da Ásia. Le monde diplomatique Brasil. 2005.
LIMA, Aline Cristina da Silva. AZEVEDO, Crislane Barbosa de. A
interdisciplinaridade no Brasil e o Ensino de História: um diálogo possível.
Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão, v.2, n.3, jul./dez. 2013.
LIMA, Douglas Mota Xavier de. História em quadrinhos e ensino de História.
Revista História Hoje, v.6, n.11, p.147-171, 2017.
NAM, Sun Young. As relações diplomáticas entre a Coreia do Sul e o Japão: o
caso das ‘Mulheres de Conforto’ da Coreia. Dissertação de Mestrado em Relações
Internacionais. Universidade de Lisboa, 2018.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS - Ensino Médio. Disponível
em <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf> Acessado em 06 de
março de 2021.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São
Paulo: Scipione, 2004.
SOARES JÚNIOR, A.S. .Ensino de História e sensibilidade: o ver, o ouvir e o
imaginar nas aulas de História. Disponível em
<https://drive.google.com/open?id=18okWO5Ztz-tZjdamZgkANcc0sbstlecT>
Acessado em 21 de março de 2021.
TAMANINI, Paulo Augusto. COSTA, Jonathan Diogenes. As histórias em
quadrinhos [hqs] e o ensino de História: Canudos entre textos e imagens. Revista
HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v.20, p.1-25, 2020.
O CONHECIDO DESCONHECIDO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE O TEMA ORIENTE NA DISCIPLINA HISTÓRIA
Maria Eugênia Silva e Silva e Alina Silva Sousa de Miranda
De onde provém os termos “Oriente” e “Ocidente”? O que sabemos sobre o
Oriente? Qual a sua importância para a história ocidental? Como as aulas de
História podem influenciar no fortalecimento de uma visão estereotipada e
negacionista dos povos denominados “orientais”? Essa e outras questões são
importantes de serem refletidas no ambiente educacional, de modo que só assim
pode-se saber qual a natureza dos conhecimentos que estão sendo ensinados àqueles
que serão os futuros profissionais da educação ou não de nossa sociedade.

É certo que o conhecimento que a maioria das pessoas possui sobre a história das
civilizações, dos vários povos que já habitam todo o globo terrestre, das revoluções
e das guerras que aconteceram em diferentes períodos da história etc., é construído
apenas no ambiente escolar, desde o ensino fundamental até o ensino médio. Assim,
a forma como um professor ministra suas aulas e ensina os conteúdos presentes no
livro didático da disciplina de História, que é nosso foco de observação, acaba por
influenciar significativamente na maneira como os alunos constroem o seu
conhecimento sobre o passado e na maneira como ambos irão entender ou
interpretar a sociedade e o mundo ao seu redor.

Diante disso, algo que é notável e que não se pode deixado de lado é o fato de, nas
aulas de História na educação básica, ser pouco trabalhado o conteúdo relacionado
aos povos orientais. Menos ainda [ou talvez de maneira nenhuma] é abordado o
quanto estes foram fundamentais para a história ocidental, a qual, durante muito
tempo, tem sido colocada em várias pesquisas como ponto referência na produção
de diferentes tipos de conhecimentos. Por que um povo evita de ressaltar as
influências que recebeu? Por que não reconhecer e deixar claro as trocas no nível
material e espiritual, de conhecimento? Qual o limite entre a realidade vivida e a
realidade contada?

Com base nessas questões e reconhecendo a importância e a influência que os


conhecimentos historiográficos ensinados no ambiente escolar podem ter na vida
de uma pessoa, o presente texto tem por objetivo discutir a ausência do ensino de
conteúdos referentes à história das civilizações orientais e suas contribuições para
a formação da chamada cultura ocidental nas aulas da disciplina de história no
ensino fundamental e médio a partir de revisão bibliográfica.
Como referência teórica foram utilizadas Febvre [2004], Goody [2008], Said
[1990], principalmente, e outros que discutem a abordagem de temas relacionados
à história oriental em sala de aula. No primeiro momento do texto, uma reflexão
sobre as origens dos termos “Oriente” e “Ocidente” foi feita e a influência das
narrativas históricas europeias sobre isso. Em seguida, discorremos sobre a
ausência do ensino da história dos povos orientais nas aulas da disciplina de história
na educação básica e como isso pode fortalecer a visão estereotipada que se tem em
relação aos mesmos. Por fim, discutimos sobre a importância das constituições
orientais para formação da cultura ocidental e a ausência dessa perspectiva nas
narrativas historiográficas.

Europeização da história e da História


“Oriente” e “Ocidente” são termos que vemos comumente em vários textos, livros,
lugares etc., o que consequentemente resulta na acomodação da maioria das
pessoas, não havendo o interesse destas em entender a origem dos mesmos e com
qual propósito se deu as suas formulações, pois o que realmente importa no
momento que são utilizados é a significância que lhes são atribuídas e a intenção
com qual são empregados. É mais do que necessário entender que “Oriente” e
“Ocidente”, na maioria das vezes, são utilizados em dois sentidos: de um lado, para
designar a divisão geográfica estabelecida pelo Meridiano de Greenwich [onde 90%
da Europa está a Leste, o que corresponde geograficamente a parte Oriente]; e de
outro, para se referir às diferenças dos aspectos socioculturais entre europeus e
asiáticos. A radicalização dessas diferenças sob o solo da superioridade cultural é o
que nos interessa ressaltar.

A disciplina História tem um enorme papel na radicalização da separação entre


esses termos. Afinal, quem conta a história tende a contar a partir dos seus valores
e pontos de vistas. O contexto e as intenções pelas quais isso teria se dado é que
não podem ser entendidas como algo inofensivo ou sem intenções de
[des]caracterizar “o outro”, o que de acordo com Said [1990] seria desonesto, pois
sempre há interesses e ambições envolvidos:

“Achar que o Oriente foi criado – ou, como eu digo, “orientalizado” –


e acreditar que tais coisas acontecem simplesmente como uma
necessidade da imaginação é agir de má-fé. A relação entre o Ocidente
e o Oriente é uma relação de poder, de dominação de graus variados de
uma complexa hegemonia [...].” [SAID, 1990, p. 17]
A história do mundo desde o século XIX [momento em que houve a intensa busca
pela escrita de uma história universal, mas que na verdade era uma história da
Europa], tem sido narrada apenas a partir de uma perspectiva europeia, deixando
perceptível o seu olhar etnocêntrico em relação à história dos demais povos e,
quando isso não acontece, estes são sufocados e jogados na gaiola do esquecimento.
Vale destacar, porém, que o etnocentrismo não pode ser entendido como algo que
tem suas origens ou que seja exclusivo dos europeus, pois segundo Goody essa
atitude de um povo tomar como referência os seus próprios conhecimentos e a sua
cultura no momento de entender a alteridade é algo que “[...] caracterizou gregos e
romanos, assim como de resto todas as comunidades. Todas as sociedades humanas
exibem um certo etnocentrismo que, em parte, é um requisito de identidade pessoal
e social de seus membros” [GOODY, 2008, p. 11]. Não cabe, pois, demonizar os
europeus, mas compreender essas relações de poder e ajudar a desfazê-las.

Assim, pode-se dizer que a visibilidade em relação ao etnocentrismo europeu em


comparação aos das demais sociedades é resultado da intensidade e da forma como
as suas compreensões do outro são compartilhadas, onde a escrita ocupa o lugar de
destaque nesse processo. A escrita embora pareça algo simples, ela pode destruir
ou mesmo construir o que se sabe em relação a algo ou à história de um povo. Isso
fica evidente quando se reflete sobre as narrativas eurocêntricas que influenciaram
a visão orientalista que se tem sobre aos povos da Ásia, os quais são entendidos
pela maioria das pessoas [que constroem os seus conhecimentos somente através
das narrativas que partem de referências europeias ou melhor ocidentais] como
exóticos, estranhos e que os aspectos de suas culturas não têm nenhuma ligação
com a dos ocidentais, algo que não é verdadeiro.

Portanto, podemos dizer o Oriente foi orientalizado ao longo da história a partir das
representações que lhes foram atribuídas, em especial, pelas narrativas históricas
europeias produzidas desde o período da expansão imperialista e da colonização,
fornecendo, assim, os artifícios de superioridade dos ocidentais em relação aos
orientais [e a outros como os do continente africano], onde os povos ocidentais são
apresentados com civilizados e os orientais como os bárbaros.

“Oriente” nas aulas de História da educação básica


O ensino dos conteúdos da disciplina de história é muitas vezes entendido como
insignificante e desnecessário [assim como de outras áreas], resultado do
desconhecimento das pessoas em relação ao tipo de arma poderosa que essa
disciplina possui. Como mencionado anteriormente, a visão europeia em relação
aos acontecimentos e aos diferentes povos influenciou significativamente o modo
como as narrativas históricas são escritas, as quais ao longo de vários séculos foram
utilizadas como um instrumento de dominação, pois estas ajudavam no processo de
conquista não só de territórios e das riquezas de outros povos, como também de
suas almas.

Sendo assim, não importava conhecer o outro, mas dominá-los. A escrita da


História é uma fonte, ela mesma, de dominação.

Diante disso, entende-se um dos motivos pelos quais, no Brasil, demorou tanto
tempo para que o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena se tornasse
obrigatório em todos os níveis de ensino [o que só foi possível a partir da lei
11.645/08] é esse: uma vez que a herança eurocêntrica ainda se faz muito presente
em tudo que apreendemos, em especial, no ambiente escolar, a invisibilidade das
demais culturas ou o demérito delas sobrevive. Consequentemente, isso também
explica a ausência do ensino da história oriental na educação básica e, sobretudo,
dos conteúdos que falam do quanto estes foram fundamentais para a história
ocidental. Tudo isso fortalece, mesmo que indiretamente, o conhecimento
estereotipado e negacionista que persiste e é divulgado.

É certo que houve o aumento dos estudos e pesquisas orientalistas nas


universidades, porém, isso é ainda muito vago no ambiente escolar, visto que,
muitos professores da disciplina de História estão mais preocupados em oferecer
aos seus alunos o estudo dos conteúdos programáticos presentes nos currículos
escolares. Para que seria útil conhecer a Ásia além da curiosidade cultural? Além
disso, apenas o livro didático auxilia esse processo e eles mesmos são muito
limitados.

Essa ausência, porém, deve ser desfeita porque “[...] o[a] professor[a] será a
referência para o[a] estudante e muito do que ele[a] irá conhecer ou ter acesso está
pautado pelas escolhas feitas pelo[a] profissional diante dele[a]” [FILATOW, 2019,
p.66]. Nesse sentido, se o professor se ativer a trabalhar somente os conteúdos
presentes no livro didático, muitas questões serão deixadas de lado, principalmente
acerca dos povos orientais, já que há muito eles têm ocupado pouquíssimo espaço
nesses livros. Priorizando os conteúdos da história europeia, é comum que nesses
livros as contribuições e conhecimentos das civilizações asiáticas sejam “ignorados,
aparecendo apenas em situações em que a história de alguma região da Ásia tinha
relação com algum país europeu, por exemplo, durante o imperialismo sobre vastas
regiões desse continente, conteúdos que só são abordados no livro do 3º ano do
Ensino Médio”. [SILVA, 2019a, p. 219]

Com resultado dessa forma de ensino, se por um acaso fosse perguntado a um aluno
ou a uma pessoa de fora do cenário educacional o que eles sabem sobre o Oriente
ou fosse perguntado o nome dos países considerados orientais, sem buscar
informações no Google, certamente as respostas seriam vagas e bem próximas das
que Silva [2019] obteve em sua pesquisa:

“onde se localiza a China, Japão e Índia”; “é uma região com


desenvolvimento elevado”; “tem a religião do Buda, as castas”. Acerca
dos países, foram citados principalmente a China, o Japão, a Índia e a
Coréia do Sul. A referência dada a este último é que “eles comem peixes
crus e insetos”. O Japão foi citado como “um país bastante diversificado
e desenvolvido, com grande população”, e como o “país que fez parte
da segunda guerra mundial. As pessoas que habitam lá são parecidas”;
a China foi caracterizada como “o país do kung fu”, além de ser onde
se localiza “a Muralha da China e a disputa econômica contra os
Estados Unidos”. [...]A primeira imagem trazia o mapa da Índia, que
pareceu ser algo bem familiar a todos os alunos. Apenas um não soube
responder que país representava o mapa. Quando solicitados para
citarem algo sobre este país, todos deixaram a reposta “em branco”. Na
sequência, foram dispostas três imagens [Muralha da China, Taj Mahal
e o Taiji [Yin Yang] e pedido que escrevessem a que países eram
comumente associadas e sobre a sua história. Todos souberam
identificar a Muralha da China e o Taj Mahal, mas não escreveram nada
sobre a história desses lugares, embora tenham identificado em que
países se localizam.” [SILVA, 2019b, p. 115-116]

Essas respostas são o reflexo do quanto é escasso o conteúdo que discute sobre a
cultura, os conhecimentos, a política e entre outros aspectos desses “orientes”.
Mesmo quando uniformizado, esse tema é o “conhecido desconhecido”.

Orientais versus ocidentais


A história dos conhecimentos das diversas esferas [seja elas econômica, social,
cultural e entre outras] que estão presentes em documentos, livros, artigos, site etc.,
em sua grande maioria, partem do pressuposto de que tudo que os ocidentais
possuem [de um modo geral] provém de seus próprios méritos e artifícios
intelectuais, deixado de lado todos os esforços e contribuições de civilizações
passadas e de outros povos que são seus contemporâneos. Febvre, ao tratar da
gênese da civilização europeia, aborda esse assunto esquecido sobre a relação entre
europeus [ocidentais] e asiáticos [orientais] durante esse processo: “[...] a Europa
se fez contra a Ásia. Ela se afirmou resistindo à Ásia. Eu digo: foi a própria Ásia
que armou a Europa contra si. E acrescento: a Europa se fez com a Ásia, graças à
Ásia, pela Ásia.” [FEBVRE, 2004, p. 121]

Mas porque a “Ásia que armou a Europa contra si”? Ou mesmo porque “a Europa
se fez com a Ásia, graças à Ásia, pela Ásia”? Se pegarmos um mapa que represente
a divisão do grande Império Romano, em Império Romano do Ocidente e Império
Romano do Oriente, veremos que o território europeu está localizado na parte que
corresponde ao Império Romano do Ocidente, o qual, segundo a historiografia, foi
o primeiro a desmoronar. Consequentemente, vários fatores contribuíram para que
desmoronamento acontecesse, dentre eles [embora não seja muito mencionado nos
livros de histórias] foi o fato do desconhecimento desse território, visto que, esse
era formado por terras novas que foram anexadas ao Império Romano, enquanto o
que estava sob o domínio do Império Romano do Oriente já havia passado pelo
processo de conhecimento e exploração de suas riquezas e espaços. Ou seja, o
Império do Ocidente pode ser caracterizado como rural em quanto que o do Oriente
como citadino.

Diante disso, pode-se concluir para onde os comerciantes ocidentais avançavam na


busca por produtos finos e sofisticados para vender em seus mercados, uma vez que
o Ocidente tinha:

“[...] apenas produtos naturais maciços, matérias primas brutas a


exportar nos séculos 9º, 10º e 11. Desses produtos o Oriente não tem
nem necessidade nem vontade. O Ocidente, durante muito tempo, não
tem produtos finos, produtos industriais, produtos manufaturados a
oferecer ao Oriente, ao contrário. [...] Nessa época o Oriente continua
a produzir produtos de luxo, extremamente procurados pelos
ocidentais [...].” [FEBVRE, 2004, p. 154]
Assim, nota-se que os orientais estavam culturalmente à frente dos ocidentais. Vale
destacar que os ocidentais não se beneficiaram somente dos produtos de origem
oriental e ganharam forças para conquista diversas coisas em outros territórios mais
distantes, como também de suas invenções, técnicas, conhecimentos e formas de
governo. Apesar de não reconhecerem esse fato, o qual Goody chamou de “roubo
da história”, ele é uma realidade:

“[...] o passado é conceituado e apresentado de acordo com o que


aconteceu na escala provincial da Europa, frequentemente da Europa
ocidental, e então imposto ao resto do mundo. Esse continente
pretendeu ter inventado uma série de instituições-chave como
“democracia”, “capitalismo” mercantil, liberdade e individualismo.
Entretanto, essas instituições são encontradas em muitas outras
sociedades.” [GOODY, 2008, p. 8]

Porém, embora o autor critique aquilo que considera um viés ocidentalizado e


etnocêntrico, difundido pela historiografia ocidental e o consequente “roubo”
perpetrado pelo Ocidente das conquistas das outras culturas, o mesmo não
desconsidera por completo o fato dos ocidentais terem também tido suas próprias
conquistas ao longo dos tempos. Infelizmente o que predomina e se faz presente no
meio acadêmico e no cenário social, porém, é a versão da história em que os
ocidentais são superestimados enquanto os orientais são deixados de lado, sendo
usados apenas como figurantes da história.

Considerações finais
Mediante o que foi exposto no presente artigo, nota-se também que é importante e
necessário refletirmos não somente no que diz respeito à ausência dos conteúdos
que abordam assuntos acerca da história oriental e das suas contribuições para a
formação da cultura ocidental nas aulas da disciplina de História no ensino
fundamental e médio, mas também sobre a formação e qualificação dos professores
que ministram as aulas dessa disciplina. Os conhecimentos dos novos temas, que
estão sendo discutidos e analisados no campo das pesquisas historiográficas, devem
chegar ao ambiente escolar, ainda há desconhecimento por parte desses professores
e, definitivamente, o livro didático de História não pode ser a única fonte de
conhecimento. Há muito trabalho de pesquisa sobre os orientes a ser feito, como há
que se inteirar dos que já estão disponíveis e acessíveis. Finalmente, há que se
questionar as narrativas historiográficas que, por ser a única perspectiva disponível
e por repetição, se estabelecem como verdade absoluta.

Referências
Maria Eugênia é graduanda do segundo período do curso de Licenciatura em
Ciências Humanas [Sociologia] pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
É membro do grupo de pesquisa Advaita e História.
Alina Silva Sousa de Miranda é doutora em História Social pela USP e professora
de História da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, coordena o grupo de
pesquisa Advaita e História. É autora do livro Fiar poético [em dois volumes, I –
Cenário do estudo tradicional e II – Meditações sobre o estudo tradicional],
lançados em 2021, resultado do projeto de pesquisa de editoração e produção de
documentação da tradição oral védica em língua portuguesa, projeto esse apoiado
pelo Consulado da Índia do Rio de Janeiro.

FEBVRE, Lucien. A Europa: Gênese de uma Civilização. Trad. Ilka Stern Cohen.
Bauru, SP: EDUSC, 2004. Aulas I – XIII.
FILATOW, Fabian. O Oriente na Sala de aula através das histórias em
quadrinhos: possibilidades e diálogos possíveis. In: BUENO, André;
ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria de Sousa [Orgs.]
Orientalismo Conectado. Rio de Janeiro: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019.
Disponivel em:
GOODY, Jack. O Roubo da História: Como os europeus se apropriaram das ideias
e invenções do Oriente. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SILVA, Márcio Douglas de Carvalho e. A “descoberta” da História da Ásia pelos
autores de livros didáticos: a abordagem das civilizações orientais no ensino
médio. In: SILVA, Cleide M. de Carvalho; SILVA, Márcio Douglas de C. e
Ronyere Ferreira [Orgs.]. História, memória e práticas de ensino. Teresina:
EDUFPI, 2019a.
SILVA, Márcio Douglas de Carvalho e. A História do Oriente na educação
básica: aprendizagem sobre civilizações orientais no ensino médio. In: BUENO,
André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria de Sousa
[Orgs.] Orientalismo Conectado. Rio de Janeiro: Edições Especiais Sobre Ontens,
2019b.
“JOHN RABE”: REPRESENTAÇÃO
CINEMATOGRÁFICA DO MASSACRE DE NANQUIM
Maria Gabriela Moreira
Introdução
Percebe-se, hoje, um interesse crescente na cultura de países como China, Japão e
Coreia do Sul. Essa última, desde o final dos anos 2000, vem atraindo olhares por
conta da indústria da música pop coreana [K-pop] - parte do fenômeno maior da
Korean Wave [Hallyu] -, esse gênero musical se tornou um embaixador cultural do
país, ocasionando um sucesso internacional sem precedentes. Além da música,
cogita-se o impacto das produções televisivas e cinematográficas desses países que
chegam, cada vez em maior número, ao ocidente. Graças a plataformas de
streaming como a Netflix e a própria Internet que permite um acesso fácil a essas
produções, o contato com a cultura desses países por pessoas não nativas,
especialmente geograficamente distantes, intensifica-se.

A exótica imagem oriental é o resultado do "outro" na visão ocidental [antes de tudo


na Europa]. Nesta visão, através da relação dialética, cria-se a singularidade dos
dois polos. O que quero demonstrar com isso é que jovens, principalmente em
período escolar, estão sendo bombardeados por essa expansão cultural – uma
mercantilização - da China, Japão e Coreia do Sul, mas o que de fatos eles
conhecem sobre a população e a história desses países? Muito pouco ou nada se
estuda sobre eles na escola, constata-se uma presença tímida dos temas de história
asiática no material didático, deixando-os com uma noção extremamente limitada
dessas nações, o que pode gerar preconceitos e discursos equivocados.

Em razão do exposto, e entre outras causas, a proposta deste artigo vem ao encontro
de somar a grade escolar, pensando as histórias asiáticas - julgo necessário o termo,
visto a ampla diferença numérica de civilizações ali remanescentes - e como essa
pode ser trabalhada em sala dentro de temáticas já visitadas. Ciente de que trabalhar
a história desse modo, numa perspectiva episódica, pode contribuir para uma visão
exclusiva e hierárquica da história, servindo ao eurocentrismo presente na
historiografia brasileira, busco pensar a temática, não partindo do ocidente para
pensar o oriente, mas sim do contexto global, neste caso a Segunda Guerra Mundial.
Apresenta-se aqui o cenário histórico a ser analisado e também uma sugestão de
como o filme “John Rabe” poderá ser trabalhado em aula.
A Segunda Guerra Mundial e o conflito sino-japonês
A historiografia oficial que temos contato marca o início da Segunda Guerra
Mundial com a invasão da Polônia pelos alemães no dia 1 de setembro de 1939.
Quanto ao confronto generalizado, foi depois de Pearl Harbor, em 1941, que a
guerra sino-japonesa se fundiu no cenário mundial, neste mesmo ano a declaração
oficial da guerra entre a República da China e o Japão imperial se concretizou.
Verifica-se, contudo, que operações de grande porte tiveram início em 1937 entre
estes dois países da Ásia.

Jean-Louis Margolin [2015] vê duas razões para este quase esquecimento pelo
ocidente desta parte do conflito desde 1945, apontando como primeiro motivo o
fato de ter permanecido como uma guerra “sem data e sem nome”, tornando mais
difícil gerar compaixão pela mesma. O segundo fator é, segundo o historiador
mencionado, a inexistência de um acordo sobre o número de vítimas e a natureza
do comportamento cruel.

No que concerne ao primeiro ponto, a rendição do Japão na guerra marca o fim do


embate sino-japonês, porém seu início é controverso. De fato, operou-se ações
colossais no que data pós 1937, mas no Japão muitos declaram uma “Guerra de
Quinze anos”, começando com a invasão da Manchúria chinesa pelos japoneses em
setembro de 1931, porém seria viável retroceder até 1928 com a abertura da
movimentação do exército japonês. Quanto ao nome desta guerra, além da menção
feita, “Guerra da Grande Ásia Oriental” foi usado pelo governo imperial, enquanto
os americanos chamaram de “Guerra do Pacífico”, os chineses de “Guerra de
Resistencia à Agressão Japonesa” e muitos historiadores preferem falar de uma
“Guerra da Ásia-Pacífico” desde os anos de 1980 [MARGOLIN, 2015].

Em contrapartida ao Memorial de Nanquim que traz a cifra de 300 mil mortos,


alguns, no Japão, reduziram o problema a um grande golpe e alguns milhares de
vítimas. O Massacre de Nanquim reflete vividamente a discordância entre Japão e
China no número de vítimas, desavença já expressa por Margolin, pois se por um
lado temos o revisionismo japonês, de outro vemos a influência do maximalismo
chinês, ambos dificultam a busca pela verdade, logo, a segunda razão explicitada
pelo historiador para o esquecimento desse conflito pelo ocidente.

Sobre esta guerra, o estopim para o seu início em julho de 1937 foi um pequeno
incidente no subúrbio de Pequim. Nos grandes eixos de comunicação, dos quais os
soldados japoneses tinham controle, criou-se imensas zonas de guerrilha,
comunistas ou nacionalistas, que fugiam ao controle dos japoneses. Os primeiros
meses de confronto, marcados pelos piores acontecimentos, correspondem a um
grande otimismo nipônico quanto a uma saída rápida e vitoriosa. Os massacres
foram impulsionados por um sentimento de onipotência, tratava-se de aterrorizar a
China para ela capitular mais depressa e quebrar qualquer possibilidade de
resistência.
Wenfan Chen, ao estudar as questões histórias nas relações sino-japonesas, verifica
que obstáculos persistentes entre a China e o Japão se justificam na reconciliação
incompleta entre o Japão e a China durante a Segunda Guerra Mundial, dado o
período de invasão japonesa na China de 1937 a 1945. Teorias de relações
internacionais falham em explicar completamente por que a história e a memória
continuam a influenciar as relações sino-japonesas tão fortemente. Simbolizado
pelo Massacre de Nanquim, a questão histórica ou as atrocidades do tempo de
guerra japonesas e o fracasso contínuo do Japão em desculpar-se continuam a
impactar as relações sino-japonesas [CHEN, 2013].

O Massacre de Nanquim: uma perspectiva cinematográfica


Julga-se significativo para este escrito expor, inicialmente, a ficha técnica do filme,
além de outros elementos que compuseram seu entorno. John Rabe [2009] é uma
produção biográfica germânica-sino-francesa do diretor e roteirista alemão Florian
Gallenberger [1972]. Enquanto um filme biográfico, baseado nos diários de John
Heinrich Detlef Rabe, abrange a história de vida deste, apresentando os anos
considerados historicamente significativos, logo acompanhamos a trajetória de um
homem alemão, membro do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães, que salvou a vida de mais de milhares de chineses em um dos eventos
mais violentos da Segunda Guerra Mundial, o Estupro ou Massacre de Nanquim
em 1937.

Sob a luz da dramaticidade do cinema, os horrores do Massacre de Nanquim


cometidos pelos japoneses na guerra são narrados no filme. Após seu lançamento,
a produção cinematográfica não recebeu distribuição nos cinemas do Japão e foi
contestado ferozmente por ultranacionalistas japoneses que negaram a ocorrência
dos incidentes. Conforme evidenciado pela sua não-recepção, os discursos de
perpetração e vitimização são consideravelmente diferentes dependendo do público
e de sua memória coletiva.

O Massacre de Nanquim não adentrou as mentes humanas ao redor do globo na


mesma amplitude e impacto que o holocausto ou Hiroshima, nem perto disso. John
Rabe não ganhou a fama de Oskar Schindler, e, apesar da publicação de seus diários
por Erwin Wickert em 1997 e a publicação de Iris Chang, “O Estupro de Nanquim:
O Holocausto Esquecido da Segunda Guerra Mundial”, neste mesmo ano, no qual
Chang compartilhou sua descoberta dos diários de Rabe, ele permaneceu
praticamente desconhecido fora da China.

Seria interessante discutir com os alunos se já assistiram a filmes que retratam a


Segunda Guerra Mundial, quais seriam esses filmes e quais lembranças teriam
deles. Questiona-los também sobre produções como “A lista de Schindler” ou “O
menino do pijama listrado”, obras cinematográficas que caminham no sentido
próximo do filme de John Rabe, de dramatização de atrocidades históricas e
apresentação de um “salvador”. O cinema - o filme - serve como instrumento de
perpetuação de memória, bem como um museu ou uma pintura – de exemplo temos
a Guernica de Pablo Picasso -, as imagens possuem forte apelo ao espectador.
Voltando ao filme, esse tem início com a partida de John, ele está se preparando
para deixar a China e entregar seu cargo na Siemns, uma empresa de telefonia, após
vinte e sete anos morando no país com sua esposa, Dora. Falemos primeiramente
da construção do personagem de Rabe, ele é o “bom nazista”, Gallenberger partiu
de uma leitura mais simpática e positiva de Rabe como um homem bom, ingênuo e
mal informado sobre o Partido Nazista ao qual aderiu, mas que usa do seu status
nazista-alemão para salvar vidas inocentes.

O antagonista de Rabe, mesmo sem ter importância para história e aparecendo por
poucos minutos no início, o típico nazista dogmático e cheio de cicatrizes, é
colocado para contrastar com o “nosso herói”. O pacto da Alemanha com o Japão
e o fato de Rabe morar há tanto tempo na China o torna perfeito para assumir o
cargo de presidente da zona de segurança em Nanquim. Os estrangeiros, ali na
capital chinesa, decidem por estruturar essa zona quando começam a presenciar os
horrores da guerra. Historicamente, foi criado o Comité Internacional de Segurança
de Nanquim para estabelecer essa zona a fim de proteger os refugiados.

Os responsáveis pela zona de segurança vão discutir incansavelmente sobre a


construção dela para os civis chineses, principalmente mulheres e crianças,
trajetória que não foi fácil, estabelecer uma zona de segurança demandou imenso
esforço. O filme retrata a dificuldade da aceitação da criação da zona pelos
japoneses e depois as várias vezes que tentaram cancelá-la. Entretanto, vamos nos
ater aqui a poucas cenas, pois o tempo de um filme é muito longo para uma aula e,
além disso, precisa-se cercar quais debates serão feitos, pois não cabe em apenas
uma aula a diversidades de discursões que nos sugere o filme. Opta-se, portanto,
por explorar a narração fotográfica de determinados episódios da obra investigada.

A primeira dessas cenas é logo no primeiro ataque dos japoneses, quando ocorre
um bombardeamento da cidade, assistimos a algumas dezenas de chineses correndo
para debaixo de uma bandeira nazista enorme, expressando sucintamente o impulso
temático geral do filme. Sob a personalidade de um empresário nazista, revela-se
uma vontade de proteger os fracos da barbárie desumana. É uma ironia histórica
que transforma o símbolo do genocídio em um dispositivo de resgate. O Japão foi
o primeiro país a recorrer em tão grande escala aos bombardeios aéreos sobre
cidades para aterrorizar civis [MARGOLIN, 2015]. Os “massacres de batalhas”,
como pode ser chamado a violência do Japão, são bem marcados durante o filme
todo.

Outra cena notável é quando, ainda antes da batalha, no acampamento, o alto


escalão do exército nipônico discuti estratégias para o ataque, um dos generais diz
ao outro que assim como numa caça a um elefante você não o cerca “ou você mata
ou você mata”, fazendo referência aos chineses, e esse é só o começo das cenas de
horrores protagonizadas por soldados do Japão. Em outra, os prisioneiros chineses,
todos enfileirados, são mortos um por um por soldados japoneses num caminhão,
enquanto o automóvel se desloca, os corpos caem ao chão. O massacre é
constantemente reforçado pela pilha de corpos chineses mostrado ao longo do
filme, seja com soldados japoneses tirando foto em frente à corpos decapitados,
enquanto as cabeças estão enfileiradas lado a lado, ou, corpos mortos pela batalha
que foram se acumulando na cidade de Nanquim.

No interior da zona de segurança estava a Universidade de Nanquim, o Hospital


Universitário de Nanquim, a Escola Universitária para Mulheres de Ginling, a
Embaixada dos EUA e uma série de edifícios do governo chinês. No filme, retratam
um colégio para meninas, onde em uma das cenas três jovens mulheres chinesas
estão sentadas em cadeiras tendo seus cabelos cortados numa sala em que outras
jovens esperam pelo mesmo fim. No diálogo, a supervisora do colégio pede que
umas delas “não chore” quando nota que ela está visivelmente emotiva. Esta é uma
medida preventiva contra o estupro, torna-las um pouco menos “femininas”.

Svetlana Aleksiévitch ao recolher testemunhos de mulheres que lutaram pela URSS


na Segunda Guerra Mundial, traz a história “da alma”, assim apresenta ao se
denominar ser uma historiadora da alma, tornando a guerra muito mais sensível,
permitindo a ela um espaço sentimental que apenas as mulheres são capazes de
colocar, pois estas não contam a “história da Vitória”. Nos testemunhos que
compõem o livro da escritora mencionada, há passagens que transmitem esse lado
da guerra, como quando um marido ordena a sua mulher que relate a guerra como
ele a tinha ensinado, “sem chorar e sem essas ninharias de mulher; que queria ser
bonita, que chorou quando cortaram a trança” [ALEKSIÉVTCH, 2016, p. 22].
Habitualmente, faz-se leituras “frias” e sistemáticas da guerra, lendo-se sobre
acordos, conquistas, número de baixas, esquecendo desta multiplicidade da
realidade histórica. A cena das jovens tendo seus cabelos cortados ou quando são
obrigadas a ficarem nuas em frente a um soldado japonês que faz a inspeção em
busca de um fugitivo, essas e outras cenas do filme remetem a essa guerra narrada
por Aleksiévtch, de uma perspectiva mais humana, ainda que brutal, dos processos
e eventos nos conflitos armados.

É mencionado, diversas vezes, pelos agentes nipônicos do filme, a superioridade


japonesa e de mostra-la através da guerra. Margolin [2015] entende que os
qualitativos para definir as violências japonesas não são evidentes, seria
militarismo, fascismo, colonialismo, imperialismo ou racismo? Concorda-se, até
mesmo na China, sobre a ausência de uma política plenamente genocida. A forte
marca do segundo quarto do século XX, do culto ao Estado e ao chefe, com o
ultranacionalismo em alta, encontra no Japão o pan-asiatismo, pervertido numa
visão de uma Ásia que tem Tóquio como centro, seu imperador como senhor e seu
exército como escudo, aqueles “que não aceitavam serem “libertados” da
dominação ocidental eram acusados de traição à sua própria identidade, daí a
severidade extrema com eles” [MARGOLIN, 2015, p. 58].

No caso chinês, o ódio era porque estes se recusavam a aceitar que o Japão fosse o
filho pródigo da Ásia, legitimado a dirigi-los e reeduca-los. Acontece que o Japão
foi o único a sofrer com o fogo nuclear, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945 as bombas
foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, uma decisão eminentemente política
dos líderes americanos que sublinhou o fim da Segunda Guerra Mundial
[GONÇALVES, 2000]. Essa peripécia levou muitos do país a se considerarem,
antes de tudo, vítimas, essa foi a memória escolhida, em vez de se lembrarem
também como agressores durante a guerra.

Os nuances das “verdades históricas” ficam bem evidente pelo Massacre de


Nanquim. Os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em curso em
relação a esse momento histórico para as nações envolvidas. O conceito de passado
sensível, marcado por violência traumática, destaca-se. É necessário existir o
diálogo sobre estes lados da história, tanto as histórias asiáticas, quando os temas
mais sensíveis.

Considerações finais
As possibilidades de estudo e análise acerca da representação exposta acima não se
anulam neste artigo, outros olhares, perspectivas e visões podem ser trabalhadas.
Propomos assim que a finalidade de se trabalhar com imagens, sejam fílmicas ou
não, em uma aula de História, não possuem apenas um olhar e uma interpretação,
há toda uma junção de sinais e narrativas a serem decodificados. Vale ressaltar, por
fim que:

“Trazer filmes, textos ficcionais e outros produtos artísticos para a cena


da Pesquisa e do Ensino de história, portanto, é fazê-los dialogarem com
o trabalho dos historiadores, ao invés de os tratar como parceiros
menores e ignorantes, a serem corrigidos pela ciência. E descobrir que
muitas são as vozes com direito à fala reflexiva [no plano do conceito
ou no plano do sensível] sobre história. Uma delas é a voz dos filmes.”
[SILVA, 2009, p.156]

Referências
Maria Gabriela Moreira, graduada de Licenciatura em História pela Universidade
Estadual de Maringá [UEM]. E-mail:mariagabrielamoreira15@gmail.com

John Rabe. Direção de Florian Gallenberger. Alemanha: Majestic Filmproduction,


2009. [134 min.], son., color. Legendado. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1pmZBBCrvyk&t=2021s. Acesso em: 1 abr.
2021. [internet]
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016. [livro]
CHEN, Wenfan. The History Question in Sino-Japanese Relations. 2013. 71 f.
Tese - Williamsburg: College of William and Mary. Disponível em:
https://scholarworks.wm.edu/honorstheses/609 Acesso em: 10 abr. 2021.
[internet]
GONÇALVES, Willians da Silva. A segunda guerra mundial. In: REIS FILHO,
Daniel Aarão et. All. O Século XX. V.3: O tempo das dúvidas: Do declínio das
utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [livro]
MARGOLIN, Jean-Louis. A guerra sino-japonesa. In: Emmanuel Hecht e Pierre
Servent [orgs.] O século de sangue: 1914 – 2014 – as vinte guerras que mudaram
o mundo. São Paulo: Contexto, 2015. [livro]
SILVA, Marcos. História, filmes e ensino: desavir-se, reaver-se. In: Jorge Nóvoa,
Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson [orgs.] Cinematógrafo: um olhar
sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. [livro]
ORIENTALISMOS
E TEORIAS
AQUISIÇÃO DE LEITURA/ESCRITA E GURU-ŚIṢYA-
PARAMPARĀ: VALORES DO ESTUDO TRADICIONAL
DO SÂNSCRITO NO BRASIL
Alina Miranda
Quem quer que se aproxime do tema alfabetização para estudo ou, mais desafiador
ainda, proponha-se a facilitar o acesso de outrem a um determinado código
linguístico, enfrenta um território extenso, controverso, repleto de dados
interessantes e, às vezes, com rivalidades injustificáveis. Afinal, a linguagem, o
pensamento, a expressão de um ser humano é algo tão complexo quanto o é ele
mesmo. O homem é linguagem e a alfabetização é só a primeira etapa para explorar
essa dimensão tão fundamental e inata a todos nós.

Enquanto primeira etapa que pode conduzir ao letramento, isto é, à alfabetização na


perspectiva do uso social e fluido da língua, alfabetizar não é uma tarefa apenas
visual, técnica, mecânica. Não é suficiente conhecer como são escritas as letras e
memorizá-las para que a soletração, e depois a leitura e o entendimento, aconteça
como consequência orgânica. Se à primeira vista alfabetizar pode sugerir ser uma
empreitada natural sempre que haja contato entre o falante e a língua, ela não é fácil
de ser posta em prática, tampouco é simples de ser executada dentro de um
programa que tenha prazos definidos e que, dele, a colheita seja a eficiência nos
objetivos propostos, quais sejam: a reflexão sobre a relação entre a fala e a escrita,
a introdução à consciência fonológica, a experimentação do ato de escrever, ou seja,
de como grafar os fonemas [sons] em grafemas [letras, diacríticos] em um
determinado alfabeto e, por fim, uma mínima autonomia no processo de leitura. E,
se para a língua portuguesa, nossa língua pátria, esse é um assunto denso e
discutível, o que poderíamos dizer do desafio de promover a aprendizagem do
sânscrito entre falantes da língua portuguesa? Além disso, por que e para que
aprender sânscrito? Qual a situação atual dessa questão no Brasil, inclusive para
além dos muros universitários, que, em parte, ajuda a diversificar os estudos sobre
Extremo Oriente, em particular sobre a Índia e sua literatura védica?

De fato, dada a complexidade da atividade de alfabetizar, por princípio, não é


razoável qualquer afirmação de que há um único meio de efetivá-la, tampouco a
afirmação de que haveria o “melhor” método – se soletração, fônico, silábico,
palavração, sentenciação etc. [FREITAS, 2003]. O que pode e deve existir é a
definição de experiências educacionais com base no contexto e nos objetivos – qual
resultado é esperado ao finalizar o processo de aquisição e domínio de um código
linguístico? – e estar sempre aberto às adaptações, reorganizações e inovações.
Flexibilidade e organização devem andar juntas quando o assunto é alfabetizar, em
qualquer língua. E, se o princípio de tudo é, pois, a linguagem oral – a língua baseia-
se e origina-se na oralidade – alfabetizar é, justamente, fazer compreender e
dominar as regras de funcionamento do código linguístico oral no escrito e essa
relação não pode ser perdida. Todo alfabeto é um código arbitrário e posterior à
oralidade.

Sendo assim, queremos destacar com esse texto a ação pedagógica – a estruturação
de uma metodologia tradicional de aquisição de leitura e escrita do sânscrito no
Brasil – cuja realização ocorre desde 2015 pelo Instituto Vishva Vidya, sediado em
Petrópolis, no Rio de Janeiro – sua fundação é de 2014 e, atualmente, conta com
mais de mil alunos regularmente matriculados, majoritariamente brasileiros, dos
quais muitos adquiriram acesso ao sânscrito por meio das modalidades de
aprendizagem dessa instituição. Por estar engajada na proteção da tradição oral
védica, no ensino tradicional de Vedānta a partir de uma metodologia eficiente e
própria – cujo recente reconhecimento do governo indiano ajuda a vislumbrar o
impacto desse trabalho na própria tradição védica, a qual se abre em sua real
natureza transcultural –, a aprendizagem do devanāgari constitui-se como uma
sādhana muito importante. É nosso interesse, pois, divulgar essa iniciativa,
socializar essa ação pedagógica a partir de um histórico dela e da apresentação de
suas bases, já que seus resultados são bastante férteis, seja individualmente, seja
para o estado dessa arte em nosso país. E pela modéstia do empreendimento e
público-alvo, daremos preferência ao termo “aquisição de leitura e escrita”, ainda
que eventualmente o uso do termo alfabetização possa ser usado dada a larga
compreensão do seu sentido.

Histórico dos modelos de aquisição de leitura/escrita


É muito importante conhecer as ações pedagógicas brasileiras relacionadas ao que
se atribui ao Extremo Oriente [Índia, no caso] e compreender que as pesquisas
acadêmicas têm muito ainda a registrar e conhecer. É comum a visão estereotipada
ou de desprestígio e mesmo a ausência do tema “orientes” em nosso sistema
educacional, da escola básica ao nível acadêmico. Porém, certamente há que
reconhecer as alternativas a essa via entendida como oficial e, disponibilizando-se
a aprender com elas e sobre elas, apreciar o fato: não são ações pedagógicas
espontaneístas, nem assistemáticas, tampouco isoladas. Temos muito a aprender
com essas ações fincadas no solo tradicional e, neste caso, profundamente
enraizadas na cultura védica ancestral. Identificar não apenas o que não é
organizado, mas cuja direção não é definida pelas nossas pesquisas, cursos
universitários ou instituições pode oxigenar, inclusive, os problemas vivenciados
diariamente e historicamente em experiências educacionais de todos os tipos. Dito
isso, foquemos no histórico, destacando o contorno e a fundamentação dessa prática
pedagógica do referido instituto.

Ainda em 2015, como um projeto de extensão ao programa central de estudos dessa


instituição foram elaborados e disponibilizadas em plataformas virtuais onze
videoaulas nas quais o alfabeto da língua sânscrita é ensinado com breves alusões
ao seu contexto: a cultura védica. Trata-se de um curso ainda hoje disponível e
acessível e como se trata de algo aberto não é possível medir ou rastrear o impacto
real em termos de pessoas alfabetizadas. Apesar dessa impossibilidade de medição,
certamente é possível afirmar 1] quão benéfico e útil tem sido ao longo desses anos
para os alunos lusófonos de Vedānta, que é o público-alvo para a oferta desse
material; e, sobretudo 2] quão amplo tem sido seu alcance para além desse público,
atingindo muitos interessados e servindo de base para propor familiaridade com o
devanāgarī, a porta de entrada para o acesso aos textos no original dessa tradição.
Além das aulas, um material didático elaborado para acompanhar esse processo é
disponibilizado, garantindo algum suporte e solidez ao processo.

Concomitante a essa oportunidade, sempre foi possível alfabetizar-se na parte


presencial e intensiva do ciclo de estudo proposto por essa instituição,
particularmente nas atividades denominadas camps de estudo. Com duração de
quinze dias, a oficina de aquisição de leitura e escrita sempre constou como uma
ação obrigatória, constituída de aulas teóricas e exercícios práticos, para grupos
que, às vezes, atingiam mais de cinquenta pessoas. Porém, devido ao tempo
disponível, nelas, a aquisição da leitura e escrita limitava-se à apresentação do som
de cada fonema, com identificação do seu respectivo grafema, facilitando a
repetição delas no material didático e a sedimentação da primeira associação da fala
com a escrita. Dado o tempo exíguo, a oficina de leitura, de canto tradicional ou de
gramática funcionavam de forma separada e não como continuidade direta desse
primeiro ciclo, embora ele fosse pré-requisito para elas. No mesmo camp de estudo
não era possível ir além do reconhecimento das letras e nutrir a prática de leitura,
por exemplo, mas uma vez alfabetizado, um aluno era deslocado para as oficinas
mais avançadas. A despeito disso, e apesar de ter sido sempre muito exitoso todo o
processo e vários alunos já terem se beneficiado dele, muitas vezes a aquisição da
escrita encerrava-se ali.

Atualmente, porém, o programa de estudos em sânscrito dessa instituição tem


sofrido alterações. Mais extenso, constando de oito semanas, com ciclo anual e
ainda totalmente gratuito para os alunos da instituição, a iniciativa pedagógica
torna-se cada vez mais encorpada e mais sistemática que as anteriores: além da
inclusão de atividades de leitura, vem sendo ricamente elaborado um conjunto
diverso de materiais e objetos educacionais que recorrem ao grande potencial que
a tecnologia tem no processo de ensino-aprendizagem. Além disso, como os
módulos posteriores estão mais estruturados, a aquisição da escrita não se esgota
nela mesma.

Oralidade e escrita como sādhana


Todas as vezes que falamos de alfabeto estamos falando, entre outras coisas, de
autonomia, de um grau de liberdade no processo de formação ou de aquisição de
conhecimento em uma determinada língua. Dominar um alfabeto, de fato, é um
meio, o primeiro, diga-se, para atingir a própria independência que o ato de ler e
escrever nesse código linguístico garante. Mas quando o assunto é a aprendizagem
tradicional da língua sânscrita, esse domínio do alfabeto, e todas as suas
consequências de letramento, não deve remeter ao autodidatismo, embora essa seja
uma via tangível. O que está em questão é a possibilidade real e sempre muito mais
promissora dessa aprendizagem se configurar como sādhana. A motivação maior
da oferta do programa de língua sânscrita dessa instituição é, justamente, Vedānta.

Mas o que é sādhana? Que quer dizer estudar sânscrito como sādhana? Sādhana
significa ‘instrumento por meio do qual se atinge algo’. O foco, porém, não é no
objeto – no caso, o devanāgarī, a aquisição da leitura e da escrita e a transformação
que o processo de aprender algo sempre promove –, mas no caminho e na
contemplação da pessoa nele que a aproximação com esse objeto provoca. Daí a
melhor tradução para a palavra sādhana ser ‘caminho’.

Na verdade, o valor da aquisição da leitura e escrita do sânscrito nesse modelo está


relacionado à oralidade e à importância das vedāṅgas, disciplinas auxiliares ao tema
central da tradição védica: Vedānta. Sobre isso, o verso da segunda sessão da
Taittirya Upaniṣad afirma: “śīkṣāṃ vyākhyāsyāmaḥ | varṇaḥ svaraḥ | mātrā balam
| sāma santānaḥ | ityuktaḥ śīkṣādhyāyaḥ”. [DAYANANDA, 2016, p. 87]. Ora, é
śikṣā, o estudo da fonética e da fonologia, que evidencia os sons do devanāgarī em
todas as zonas de articulação das letras – sons guturais, palatais, cerebrais, dentais,
labiais, sibilantes, bilabiais etc. – bem como a duração, a força, a cadência e a junção
deles. É ela que precisa ser conhecida se o intuito é esse enlace do som com sua
grafia. Śikṣā é também a base para as demais vedāṅgas [chanda, a métrica;
vyākaraṇa, a gramática; nirukta, a etimologia; jyotiṣa, a astrologia e kalpa, o ritual]
e a porta de acesso à toda tradição: do aspecto cultural-literário ao ontológico-
espiritual.

Inúmeras pesquisas investigam a relação entre consciência fonológica e a aquisição


da escrita, evidenciando a interdependência entre elas. Observando essa ação
pedagógica do estudo do sânscrito de forma tradicional, identificamos que a
consciência fonológica é muito importante para o reconhecimento dos sons da fala
e para a manipulação da estrutura sonora das palavras, daí ele ser considerado,
majoritariamente, como um método fônico, no qual o auditivo é anterior ao visual.
Mas, sobretudo, é preciso destacar que o método estimula uma percepção corporal
do som: a consciência da região onde o som é produzido no aparelho fonador torna
tangível todo o aprendizado, reduzindo a abstração e mesmo o dualismo corpo-
mente ao tempo que também reinsere acordos colaborativos no já histórico dissenso
entre o visual e o auditivo. Se a escrita é uma representação de algo; se é simbólica;
se ela tem uma relação fonêmica com a fala, não sendo precisamente uma
transcrição fonética dela e se dominá-la exige um afastamento do concreto e um
trabalho abstrato, o estudo tradicional do sânscrito enfatiza justamente essa relação
corporal, fazendo com que, junto ao desafio de associar as combinações de unidades
visuais [letras, grafemas] às unidades sonoras da palavra [fonemas], a consciência
corporal possa intervir, facilitando, o processo de aquisição da leitura e da escrita e
levando o aluno para além dela. Uma sādhana é precisamente isso: um meio para
atingir um fim, sādya, e o fim último é vencer a dualidade da compreensão da
natureza humana [a relação entre Deus-Mundo/Indivíduo] por meio do exercício de
viveka, discriminação. O exercício de discriminar os sons, precisar sua zona de
articulação e se tornar íntimo da organicidade da pronúncia e inteiro ao executá-la
é apenas uma desculpa para a condução da mente a um lugar de apreciação que
extrapola o próprio método de alfabetização. O corpo passa a ser um filtro para
interiorizar a mente, não o contrário. E o propósito último é, como dissemos, um
aprofundamento não da leitura e da escrita em si, mas da contemplação de si mesmo
promovida pelo esforço exigido para aprender śikṣā e posteriormente também pelo
entendimento dos textos tradicionais da cultura védica.

Além disso, no caso dessa experiência que estamos destacando, como é um


processo que ocorre com adultos, que já passaram pelo processo de alfabetização
do português e, majoritariamente, são estudantes de Vedānta, o processo ganha
contornos mais amplos e densos e trabalha, além das habilidades linguísticas,
fonológicas e intelectuais, valores, como a disciplina, a resiliência e a solidariedade
em qualquer nível, seja daquele que está aprendendo, seja daquele que está
colaborando com o processo todo. A base do estudo tradicional é a interação entre
professor, alunos mais velhos e alunos mais novos. Nem o professor ensina sozinho,
nem todos só aprendem. Colaborar na aprendizagem dos novatos é parte da
aprendizagem de quem já vivenciou aquela etapa do processo, evidenciando que é
a energia da gratidão e do estar pronto para servir que move as ações. A própria
proposta de ensino como um todo não é apenas irrealizável sem isso – dada a
extensão dela e seu alcance, envolvendo muitos alunos ao mesmo tempo –, ela
perde o fundamental: esse valor de retribuição que a sustenta, retribuição não
porque é preciso, mas porque o que de fato move o ser humano é a pertença, é a
entrega a algo que é maior que ele e o desejo de retribuir o que foi recebido. No
fundo, nesse sistema colaborativo, o papel central daquele que operacionaliza e faz
esse módulo de aprendizagem ocorrer – o professor – desfaz-se frente ao
engajamento e esforço coletivo de todos que se voluntariam para humanizar a
aprendizagem, sem que com isso seja perdida a visão de metas pré-definidas e prazo
a serem cumpridos. Tudo que sobra é apenas o que existe desde o início: a tradição,
a perenidade do ensino tradicional e a energia viva de pessoas que a preservam ao
longo do tempo.

De forma mais específica, especialmente em relação ao último formato pedagógico


da oferta de aquisição de leitura e escrita, podemos destacar os valores da estrutura
pedagógica e sua estratégia de ação: 1] ir sempre do mais simples ao mais
complexo; 2] estabelecer etapas de curto alcance, com visão concreta dos resultados
e prazos definidos; 3] garantir o acompanhamento diário, com conferência das
atividades por tutores voluntários, encorajando, com isso, o contato próximo e
humano; 4] incentivar e manter a energia do grupo, usando-a como estímulo para a
conclusão da aquisição da leitura e escrita; 5] fomentar a aprendizagem com o uso
de materiais de apoio, explorando o recurso da ludicidade e/ou da tecnologia
sempre que possível; 6] favorecer a integração dos módulos de estudo do sânscrito
[aquisição da leitura e escrita, canto tradicional e gramática]; 7] promover uma
vivência intensiva e cotidiana ao longo do prazo de aquisição da leitura e escrita,
sempre coletiva e sempre sustentada no calor humano. Mas, o mais importante é
que todos esses itens estão sustentados em uma visão ainda maior, que é o
diferencial dessa metodologia: a sedimentação dos valores da tradição guru-śiṣya-
paramparā na aprendizagem do sânscrito e a aprendizagem como ferramenta para
contemplar o conhecimento [de Vedānta, da plenitude do Eu]. Uma sādhana é
justamente deixar de ver um objeto ou uma ação como tendo fim nela mesma, mas
como plataforma para se refinar, polir a si mesmo, o que aliás, é o significado da
palavra saṃskṛta: o que foi ‘bem-feito’, aquilo que é ‘perfeito’. A aprendizagem do
sânscrito é um exercício de discriminação e polimento da pronúncia, da mente e,
acima de tudo, da pessoa.

Seja, então, pelo desejo de compreender os textos tradicionais no original, de se


envolver com a tradição védica ou de promover aquilo que é central nela, o
conhecimento da natureza humana, o que distingue e valoriza a iniciativa que
estamos destacando é o estudo ser uma sādhana e ele estar fincado no solo do
estudo tradicional e seu paramparā, ou seja, a linhagem oral de professores da
tradição védica. Aprender sânscrito nesse contexto não se limita a dominar um novo
idioma, a conquistar uma formação técnico-literária ou uma fluência linguística e
de compreensão no diálogo com a tradição escrita sobre essa cultura. A leitura e a
escrita não estão independentes da oralidade, nem desvinculadas da sabedoria que
as tradições orais ainda vivas demonstram que foram capazes de sustentar e
proteger.

Na aprendizagem da língua sânscrita via estudo tradicional, pois, esse entendimento


– de que não se trata de dominar mais um código linguístico por puro preciosismo
ou com fins materiais e profissionais – é mais primário que o próprio domínio do
alfabeto: não é uma recomendação, se o objetivo é acessar a real fertilidade da
tradição védica, prescindir da relação guru-śiṣya-saṃvāda, o estudo mediado pela
tradição oral milenar de professores e alunos, por meio de um professor vivo,
presente, próximo. Apesar de ser possível aprender sânscrito em um curso não-
tradicional, acadêmico ou não, com ou sem o respaldo de inúmeras instituições, o
objetivo dessa metodologia de aquisição de leitura e escrita em sânscrito sempre
está baseado e motivado por essa característica: há um outro paradigma que é não
apenas “educacional”, mas de formação integral da pessoa humana, ou seja, de
autoconhecimento. Sem compreender a natureza do ensino tradicional oral, que
aliás pode ser confundido com muitas coisas, não tem disponível essa visão do
processo e precisa interessar-se e buscar mais sobre esse modelo, evitando que
incompreensões e estereótipos sejam mais uma vez formulados por uma tradição
escrita/acadêmica que é incapaz de entender e se dispor a aprender com a oralidade.
[MIRANDA, 2021].

Não cabe, pois, nesse processo desenvolvido até o momento a querela internacional:
se a aquisição da leitura e escrita ocorre fundamentalmente pelo meio auditivo ou
visual, pois não se trata de uma atividade técnica, de uma aquisição motora. E, por
mais que haja um trabalho com a linguagem e a consciência meta-fonológica dos
envolvidos, o que está realmente em jogo é o um processo de autoconhecimento,
de crescimento de todos os envolvidos. Se boa parte da querela entre métodos de
alfabetização é disputar a eficiência de um meio ou outro nos inúmeros entraves e
desafios do processo de alfabetização, pois trata-se de uma preocupação da
formação da criança, bem como se é a intimidade com o fonema ou com o
significado da palavra que garante um bom processo de alfabetização, esse
rompimento não tem mostrado nenhum sentido na prática de facilitar a aquisição
da escrita em sânscrito no contexto do estudo tradicional para adultos. De fato,
alfabetizar significa dominar as regras de funcionamento do código alfabético e,
progressivamente, do código ortográfico. Porém, nesse formato de estudo e
aquisição do código escrito, ela não é encarada apenas como uma tarefa técnica de
reconhecimento do alfabeto, nem com as relações deste com a linguagem: ela
tangencia com valores que sustentam uma vida saudável e equilibrada, que é a visão
da sabedoria.

Referências
Alina Silva Sousa de Miranda é doutora em História Social pela USP e professora
de História da Universidade Federal do Maranhão, coordena o grupo de pesquisa
Advaita e História. É autora do livro Fiar poético [em dois volumes, I – Cenário
do estudo tradicional e II – Meditações sobre o estudo tradicional], lançados em
2021, resultado do projeto de pesquisa de editoração e produção de documentação
da tradição oral védica em língua portuguesa, projeto esse apoiado pelo Consulado
da Índia do Rio de Janeiro.

DAYANANDA SARASWATI, Swami. Taittirīya upaniṣad. Volume 1, 1ª edição.


Arsha Vidya Research and Publication Trust. Chennai, 2016. [livro]
FREITAS, Gabriela Castro Menezes de. Consciência fonológica e aquisição da
escrita: um estudo longitudinal. Tese [Doutorado em Linguística Aplicada] – Pós-
graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003.
[tese/internet]
MIRANDA, Alina Silva Sousa de. Fiar poético: cenário do estudo tradicional. Vol
1 e II. EDUFMA, 2021. [livro]
MAS HÁ UMA FILOSOFIA NA CHINA?
André Bueno
Já tratei deste tema antes [Bueno, 2004], mas infelizmente ele continua recorrente:
há uma Filosofia Chinesa? Podemos doravante utilizar o termo "Filosofia" para os
sistemas de pensamento chinês?

A insistência na pergunta tem sua razão de ser: o público acadêmico brasileiro já


notou a clara partição, no campo da Filosofia, entre uma pretensa genealogia do
saber ocidentalista, que exclui toda e qualquer forma de pensar classificada como
‘Não Ocidental’, ou seja, africanas, asiáticas, indígenas, entre outras; doutro lado,
aqueles que postulam a abertura do campo filosófico a novas formas de pensar, e
da construção de epistemologias alternativas. Não é preciso se aprofundar muito
para notar que, por trás desse conflito, persiste a oposição entre imperialismo e uma
visão pós-colonial, em suas várias vertentes [descolonial e decolonial]. O caso da
China deixa mais que evidente o problema, pois não se pode mais ignorá-la como
uma grande nação, cujas contribuições materiais e intelectuais para a história
mundial estão em questão.

Até recentemente, o pensamento chinês podia ficar circunscrito ao domínio da


Sinologia, sendo objeto de especialistas. Contudo, as novas dimensões de um
diálogo intercultural necessário não suportam mais as restrições impostas a esse
conhecimento; impedimentos esses, diga-se de passagem, impostos numa fase
recente da história, já que houve momentos nas narrativas das interações Oriente-
Ocidente em que a denominação ‘Filosofia Chinesa’ não era um problema, mas
simplesmente uma variante.

Entre os sinólogos anglófonos, a questão não foi devidamente discutida, e o pensar


chinês pode ou não ser chamado de Filosofia porque ele não precisa ser
necessariamente definido - ou seja, a ideia de multiculturalidade [à moda
americana, principalmente] torna desnecessária a classificação do pensamento
chinês como algo intercambiável [e a atitude comparar a Filosofia chinesa com o
pensamento ocidental é algo isolado entre esta linha de sinológos] - assim, o
pensamento chinês é o que é, e podemos chamá-lo do que quisermos; e nesse
sentido, vários autores usam o termo ‘Filosofia Chinesa’ sem ter que fornecer
explicações complementares. Chan Wing-Tsit 陳榮捷 [1979], um dos grandes
representantes dessa linha, produz um vasto material no qual empregou o termo
‘Filosofia’ sem receio; mais recentemente, Bryan Van Norden [2018] realizou sua
introdução a Filosofia chinesa clássica dispensando uma discussão mais profunda
sobre o termo, e Michael Puett realizou um bem sucedido curso em Harvard no qual
empregou a ‘Filosofia Chinesa’ na discussão de caminhos para uma melhor
qualidade de vida, resultando um livro de grande sucesso nos Estados Unidos
[Puett, 2016].

Entre os francófonos, associar o pensamento chinês à filosofia implica, justamente,


numa necessidade de diálogo entre ambos, para saber se há algo de conceitualmente
comum ou não - o que seria uma postura filosófica extremamente interessante se
não fosse a primazia do pensar clássico ocidental sobre qualquer início de
discussão, o que torna impraticável, muitas vezes, o processo de associação ou
analise conceitual - e enquanto buscarmos no pensamento chinês a existência de
"nossos" conceitos ocidentais, estaremos sempre correndo o risco de perder de foco
precisamente o que a China pode nos oferecer de novo. Anne Cheng [2005]
alinhavou alguns autores que poderiam nos oferecer uma resposta para essa
questão, mas o problema central parece ser a própria tentativa de definição da
‘Filosofia’ em oposição a outros sistemas, num processo de reconstrução e
autoafirmação que tem gerado incômodos e conflitos.

Enquanto isso, os próprios chineses tem ocasionalmente deixado de lado sua


tendência natural a síntese, recorrendo ao termo Zhexue 哲学 como identificador
daquilo que significa o ‘pensamento ocidental’ ou ‘Filosofia’ [embora eles
costumem estar bem mais cientes da multiplicidade de escolas de pensar no
ocidente do que nós estamos sobre o desenvolvimento histórico do pensamento
chinês]; este deficiente processo de comunicação tem dado margem a banalização
recorrente de um entendimento filosófico mais profundo [tanto do pensar ocidental
e chinês], cedendo um espaço precioso para as aventuras intelectuais
inconsequentes do esoteristas e especialistas de última hora. O pensador chinês Min
OuYang [2012] chegou a considerar que não havia necessidade de estabelecer uma
associação entre o pensamento chinês e a Filosofia, mas de estabelecer um novo
paradigma, a ‘Sinosofia’.

Como sinólogo, não posso afirmar em absoluto que minha opinião será levada em
conta, mas assim mesmo gostaria de explicitá-la - e neste caso, a minha situação
como brasileiro, um tipo tradicionalmente excluído da intelectualidade mundial -
me concede uma posição favorável, já que não sinto a obrigação de filiar-me
especificamente a nenhuma das linhas de trabalho anteriormente citadas. Não
preciso, pois, aceitar a imposição de nenhum pacote completo de ideias, e não
preciso salvaguardar nenhuma suposta ‘superioridade cultural’ [embora os
brasileiros, erradamente, se considerem muitas vezes mais capazes do que qualquer
outra civilização no mundo]. A posição do qual busco partir visa unicamente tentar
compreender por que razões posso considerar o pensamento chinês uma Filosofia,
e se há vantagens em aceitar esta atitude.

Por conseguinte, busquemos entender primeiramente a relação conturbada entre a


Sinologia - área de estudo que dedica-se a estudar especificamente a cultura e
história chinesa - e a Filosofia, que clama para si a primazia do entendimento do
pensar ocidental [se é que existe algum, também, que possamos considerar de modo
global]. Os filósofos, desde Hegel, têm uma má vontade generalizada em aceitar as
formas de pensamento asiáticas como filosoficamente válidas. Exceções como
Nietzsche, Schopenhauer e Voltaire são lidos em outros aspectos que costumam
minimizar a importância das suas influências ‘orientais’, e mesmo autores mais
recentes como Deleuze, Derrida e Heidegger tiveram uma atitude discriminatória e
preconceituosa com China e Índia. Este último, em um verdadeiro libelo racista,
afirmou que ‘a verdadeira liberdade histórica dos povos da Europa é a condição
prévia para que o Ocidente venha uma vez mais a si próprio de maneira histórico-
espiritual, para assegurar o seu destino na grande decisão da Terra contra o Asiático’
[apud Faye, 2015: 2017] No caso do Brasil, os filósofos têm repetido
insistentemente a atitude destes últimos, reproduzindo como papagaios os bordões
e palavras de ordem contra o pensamento asiático, engajando-se de modo ignorante
num velho solipsismo recalcitrante. O esoterismo surge aí, novamente, como aquilo
que não deveria ser - uma opção - para aqueles que buscam saber algo mais sobre
o "pensamento oriental", reincidindo numa série de velhos erros e achismos que
serão difíceis de desconstruir quando o trabalho sério começar a surgir.

Assim sendo, a relação entre a Sinologia e a Filosofia não poderia ser das melhores.
Enquanto a primeira tem por fundamento estudar o outro, a segunda tem buscado,
como um adolescente afligindo pelas dúvidas da imaturidade, negar a existência de
qualquer coisa fora de si - como se a afirmação do outro negasse e destruísse a sua
própria existência. Disto resulta um constante desconhecimento por parte dos
filósofos sobre o material que é produzido pela Sinologia, e isto mantém a sua
pretensa originalidade e superioridade firmes. A inequívoca decepção aparece
quando um ou outro sinólogo, com uma formação mais profunda em Filosofia, é
capaz de apresentar ao Ocidente alguma descoberta conceitual ou intelectual que
inverte estas relações de poder, colocando a China numa primazia temporal,
histórica ou filosófica que causa desconforto e espanto, como é o caso de François
Jullien [2010].

Obviamente, estes acontecimentos não tornam a China uma civilização ‘superior’


num sentindo completo da palavra, mas temos que admitir que em alguns casos ela
alcançou avanços relevantes. Não raro, quando tenho a oportunidade de lecionar
sobre a cultura chinesa, observo a relutância dos alunos [e também, de modo mais
discreto, dos professores] em aceitar as conquistas chinesas no campo intelectual e
tecnológico, como se estas os inferiorizassem como seres humanos. É uma das
poucas oportunidades em que os vejo clamarem por uma ‘igualdade’ cultural e
histórica [ainda que a China seja uma entidade milenar], posto que a ideia de sua
pretensa superioridade não pode mais se manter.

A postura dos pensadores não tem sido, justamente, ‘filosófica’. Ao negarem as


contribuições que a Sinologia pode dar [e por consequência, do que o pensamento
chinês pode vir a oferecer], duas condições fatais se criam e engendram-se
mutuamente: a primeira, de constatar que a China absolutamente não precisou do
termo ‘Filosofia’ para existir como civilização até os dias de hoje, e tal predicado
não pode ser deixado de lado [lembremos, estamos a falar de uma cultura altamente
sofisticada, complexa e antiga]; a segunda, é que é a Filosofia, precisamente, que
necessita da China para crescer conceitualmente, historicamente e intelectualmente
- o estudo do pensamento chinês [e podemos estender isso para a Índia ou Japão]
pode ajudar a reformular a história das ideias, a enriquecer por completo as
metodologias e visões de mundo, a quebrar as barreiras antropológicas que separam
a distância dos discursos. Sendo a Filosofia uma área acadêmica, e um lócus
epistêmico do qual se parte para investigar o mundo, cabe a ela dar esse passo no
sentido da Ásia. Mas ao ignorar este lado, o estudo filosófico emperra-se, e torna-
se um eterno retorno às suas fontes fundadoras, abrindo poucos espaços realmente
novos e originais. Em 1939, o resultado de um simpósio realizado no Havaí, sobre
as questões concernentes as dimensões do encontro Oriente-Ocidente, resultou em
algumas conclusões bastante significativas, como a de W. Hocking:

“Mas a Filosofia é, basicamente, uma questão de o que uma pessoa vê,


e, em seguida, da sua capacidade de fazer uma conexão racional entre
o que vê e o que, de alguma outra maneira, sabe; suas premissas são
suas observações originais sobre o mundo. Assim, as pessoas que
possam acrescentar alguma coisa à nossa visão são o apoio mais
importante para o progresso em Filosofia. O próprio fato de o Oriente
ter modos diferentes de intuição - o que às vezes se coloca sob a forma
enganosa de que há um abismo entre as mentalidades do Oriente e do
Ocidente - é o que torna tão importantes para nós suas contribuições à
Filosofia e as nossas para eles. É uma felicidade, sob este aspecto, que
as Filosofias oriental e ocidental tenham-se desenvolvido
separadamente durante tanto tempo. Elas ficaram consolidadas em sua
maneira de ver as coisas. Cada uma se tornou a carta régia de uma
civilização mais ou menos duradoura. Se a prova de uma filosofia fosse
a durabilidade da civilização nela baseada, o Oriente sem dúvida teria
muito mais autoridade” [Hocking, 1979, p.21].

Podemos afirmar de forma direta e enfática, porém resoluta: a China talvez não
precise da chancela ‘Filosofia’, mas a área da Filosofia precisa da China. No
entanto, o paradoxo se estabelece: os asiáticos têm estudado a filosofia ocidental
com afinco, pois a entendem [corretamente ou não] como parte integrante de sua
ciência; enquanto isso, a contextual preeminência do ocidente no panorama mundial
lhe dá a enganosa sensação de superioridade cultural absoluta, que trata todas as
culturas ‘orientais’ e africanas como absolutamente inferiores [verdade bastante
relativa, cujo tempo de existência remonta apenas a segunda metade do século 19
até agora].

No entanto, toda esta argumentação será puramente panfletária se aquele que a lê


não dispor-se a estudar algum material realmente sério sobre o pensamento chinês.
Outrossim, alguns avisos breves são necessários para que aquele que se aventurar
realmente a encarar o desafio de ler a China e não cometer algum dos erros clássicos
dos comentaristas de primeira viagem.
Em primeiro lugar, tomar cuidado com o solipsismo: o aviso não é inútil, apesar de
óbvio. Grande parte daqueles que começaram a ler alguma coisa sobre Filosofia
Chinesa partiram da tradicional postura de interrogá-la segundo seus próprios
referenciais [ditos ocidentais] o que, inevitavelmente, costuma afastar qualquer
possibilidade de descobrir algo novo. Claro, não podemos fazer uma leitura
absolutamente isenta ou imparcial do pensamento chinês [e acreditar nisso seria um
absurdo], mas podemos tentar fazê-la apenas por experimentação - ou seja, deixar
somente que uma boa tradução de um texto chinês nos atraia, contanto que
estejamos dispostos a absorvê-lo por inteiro e a dialogar com ele. O passo seguinte
pode ser estudar chinês para ler no original - e esta é uma língua viva, o que torna
excitante a possibilidade de discutir uma filosofia em seu idioma original. Um
cuidado especial, pois, é necessário neste tocante:

“A questão é que os termos da linguagem comum são perfeitamente


adequados, quando desenvolvidos minuciosa e sistematicamente em
vários contextos, para transmitir a doutrina técnica de um só filósofo ou
teoria filosófica, mas são completamente inadequados para servir de
denominador comum em que se possam traduzir sistemas filosóficos
diversos para fins de comparação. É o que se dá com vários sistemas
ocidentais e orientais. Quando a Filosofia se torna comparada, o caráter
do seu simbolismo impede a introdução de uma terminologia técnica.
[...] Uma teoria de qualquer espécie, seja científica seja filosófica, é um
corpo de proposições, e um corpo de proposições, e um conjunto de
conceitos. Os conceitos se classificam em vários tipos de acordo com
as diferentes fontes do seu significado. Consequentemente, a
designação dos diversos possíveis tipos principais de conceitos devem
proporcionar uma terminologia técnica com a generalidade suficiente
para incluir como caso especial qualquer possível teoria filosófica”
[Northrop, 1979, p.191].

Tomando por base uma iniciativa aberta - o que e o mais difícil em todo processo
de experiência - a etapa seguinte é aceitar o fato de que a China [e toda sua cultura]
não funcionam em nossas linhas gerais de entendimento, e suas expressões lógicas
podem ser relativamente diferentes da ‘ocidental’ - mas não significam que são
necessariamente ‘lógicas diferentes’, como Júlio Sameiro [2015] apontou. Posto
isso, as classificações que usualmente utilizamos - científico, religioso, filosófico,
sociológico – podem não funcionar tão bem no caso chinês, pois estes aspectos
amplamente se sobrepõem, mas são nosso ponto de partida para uma investigação.
O caso da ciência tradicional chinesa é claro: ela utiliza um sistema que tem certa
eficácia comprovada [como no caso da medicina, e dentro de parâmetros
ocidentais], mas que é empregado também por astrólogos e monges daoístas. O que
isso significa? Analogamente, é como se alguém modificasse a astrologia ocidental
por causa da descoberta de um novo planeta; temos entre nós uma clara noção de
como ambas [astrologia e astronomia] se diferenciam, mas não buscamos ver se o
mesmo acontece no caso chinês [e ainda, como acontece]. Essa ignorância
despropositada tem sido razão de uma relutância tremenda para a aceitação do
pensar filosófico chinês como algo "filosofável", mas trata-se puramente tanto de
desconhecimento como de preconceito [porque afinal, toda a Filosofia - desde
Platão até a época de Galileu - não é refutada, em absoluto, por pautar-se em
critérios que hoje não são mais tidos como válidos].

Há que se ter em mente, por fim, que a China é uma civilização milenar, e que o
modelo do exemplo tem seu valor. Qual o sistema responsável por sua continuidade
histórica? Que conjunto de valores e/ou conceitos foram responsáveis pela coesão
interna desta sociedade? A impossibilidade de encontrar qualquer resposta no
âmbito do pensamento ocidental remete-nos, inequivocamente, a necessidade de
estudá-la; por conseguinte, de descobrir se há algo que podemos aprender com ela
e que nos ajude a preservar nossa própria existência.

O pensamento chinês possui uma coerência singular, que podemos considerar um


desafio filosófico. Por qual razão, pois, não o encarar? A experiência gratificante
da Sinologia apresenta-se como uma inevitável vivência de interculturalidade, que
muito poderia contribuir no processo de formação intelectual e humano dos alunos,
estudiosos e professores.

Referências
André é prof. Adj. de História Oriental da UERJ.

BUENO, André. ‘O problema do pensamento asiático: Filosofia ou não?’ Crítica


na Rede, 22/09/2004. Disponível em:
https://criticanarede.com/his_filosofiaasiatica.html
BUENO, André. ‘O que é a Filosofia Chinesa?’ Crítica na Rede, 20/08/2004.
Disponível em: https://criticanarede.com/fil_china.html
CHAN, Wing-tsit. História da Filosofia Chinesa. in MOORE, Charles [org.]
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CHENG, Anne. 'Y a-t-il un philosophie chinoise?' Extreme Orient-Extreme
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MIN, OuYang. 'There is No Need for Zhongguo Zhexue to be Philosophy'. Asian
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NORDEN, Bryan Van. Introdução a filosofia clássica chinesa. Petrópolis: Vozes,
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NORTHROP, Filmer. 'As Ênfases Complementares da Filosofia Intuitiva Oriental
e da Filosofia Científica Ocidental' in MOORE, Charles [org.] Filosofia: Oriente-
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PUETT, Michael e GROSS-LOH, Christine. O caminho da vida comum. Lisboa:
Lua de Papel, 2016.
SAMEIRO, Júlio. 'Tocar a campanhia aqui e na China'. Crítica na Rede,
15/06/2015. Disponível em:
https://criticanarede.com/jsameirotocaracampainha.html
A INDIVIDUALIDADE NA MORAL BUDISTA
Arthur D´Elia dos Santos e Yasmin Ribeiro de Carvalho
O presente texto buscará refletir sobre o modo como comparece a individualidade
na moral budista. Para tanto, cabem aqui algumas perguntas. Qual a resposta dada
pelo budismo para os dilemas impostos pela sociedade indiana dividida em castas
de sua época? Como pode o ser humano atingir maior desenvolvimento espiritual
para além das perturbações advindas da ignorância ou do Ego?

Antes de iniciar propriamente, é preciso aqui expor brevemente as características


essenciais do hinduísmo e como este se conecta a sociedade dividida em castas. A
importância de partir destes aspectos no presente trabalho está no fato de que é
impossível entender o budismo sem antes demonstrar seu rompimento com certos
elementos presentes no hinduísmo.

O hinduísmo e a civilização indiana


Uma teoria evolucionista sugere, acerca da origem da civilização indiana, que por
volta do ano 2500 a.c. um grupo de nômades conhecidos como “árias”, oriundo do
norte do Irã, ao abandonar o deserto emigrou em seis direções [ANDRADE, 2020].
Os que foram ao Ocidente espalharam-se por toda a Europa, sendo eles ancestrais
dos povos gregos, romanos, celtas, germânicos e eslavos. Os que foram ao Oriente
tornaram-se ancestrais dos indianos [ANDRADE, 2020]

Por conseguinte, ao invadirem a Índia, esbarram com um grupo nativo chamado


“drávidas”, grupo este conhecido também como povo da agricultura. Os nômades,
com seu caráter guerreiro, conseguem subjugar os nativos [ANDRADE, 2020]. Esta
subjugação dos nativos indianos [pele escura] por parte arianos [pele clara] foi o
que possivelmente originou o sistema de castas [ANDRADE, 2020]. O fruto
proveniente do encontro entre estas duas culturas foi a complexa religião ritualística
conhecida como védica. Posteriormente ela viria assumir diversos nomes como
brahmanismo, sanatana dharma e, então, hinduísmo [ANDRADE, 2020].

Inicialmente o hinduísmo tinha como base a preservação da ordem rta, que engloba
a interconexão entre o universo de cima com a realidade de baixo. Tal realidade de
cima correspondia ao mundo dos deuses, para os quais eram necessários sacrifícios
ao redor do fogo [chama subia até os deuses] [ANDRADE, 2020]. Já o mundo de
baixo era aquele no qual estavam os seres humanos. Para a sobrevivência neste
mundo humano era de suma importância tais sacrifícios aos deuses para que eles
enviassem chuvas para a boa agricultura [ANDRADE, 2020]. Esta dependência
mútua era o que mantinha o universo em ordem [ANDRADE, 2020]. A casta
brâmane era responsável pelo controle dos sacrifícios e, neste sentido, a que
comandava o mundo védico [ANDRADE, 2020].

O encontro entre estas duas culturas resultou em transformações como: afirmação


de uma visão cíclica e congrega as divindades em um único conjunto, a tríade
Brahma, Vishnu e Shiva [ANDRADE, 2020]. Os dois primeiros seriam a síntese
das divindades trazidas do deserto ao mundo dos nômades, enquanto o último é
incorporado dos nativos [ANDRADE, 2020]. O processo cíclico aqui já citado
poderia ser encontrado na agricultura com a preparação da terra, semeadura,
crescimento da planta, sua colheita e morte [ANDRADE, 2020]. O caráter cíclico
até então encontrado na práxis humana deste momento foi elevado a um aspecto
que caracteriza não só a vida humana, mas também às divindades [ANDRADE,
2020].

No livro Bhagavad Gita encontra-se a centralidade da noção de dharma [lei e


ordem]. As crenças que permeiam a vida espiritual devem estar de acordo com a
natureza e leis que regem o mundo [ANDRADE, 2020]. Um dos objetivos destas
crenças era o de fornecer aportes para que o homem pudesse chegar à harmonia
com o cosmos. O que é deixado de lado para a realização da experiência com o
divino é a ignorância [ANDRADE, 2020]. Maya é o termo usado pelos indianos
para denominar o que se conhece como ilusão. Esta última é adquirida quando os
humanos perdem a visão do Divino ao penetrarem no mundo fenomênico
[ANDRADE, 2020].

Conectado a essa problemática envolvendo Maya está a teoria do Karma. Este


conceito pode ser entendido com a ideia de causa e efeito ou ação e reação que,
segundo os indianos, estaria presente na consciência humana [ANDRADE, 2020].
O Karma, então, se refere às ações humanas e suas consequências nesta vida
presente ou na anterior, capaz de determinar a vida futura [ANDRADE, 2020]. A
ontologia religiosa hinduísta descreve esta questão da seguinte maneira: “o carma
é produzido em quatro formas: com pensamentos, palavras, as nossas ações e as
ações dos outros, guiadas por nossas instruções” [ANDRADE, 2019, p.39]. Não se
pode escapar do Karma, pois é uma necessidade do cosmos para a manutenção de
seu equilíbrio [ANDRADE, 2020].

No entanto, não se pode confundir esse caráter necessário do Karma com algo como
um determinismo absoluto no qual não há lugar para a liberdade humana. Trata-se
de uma teia elaborada pelos próprios humanos ao redor de si mesmos que se
articulam com escolhas de uma vida passada, presente e que condiciona o futuro
[ANDRADE, 2020]. Para que se possa compreender esta articulação entre a vida
passada, presente, futura e como evitar uma reprodução mecânica do processo
reencarnatório, é imprescindível a noção de samsara. Esta é entendida como um
permanecer preso ao ciclo de causas e efeitos e de reencarnações; ou seja, refere-se
à série sucessiva de nascimentos [ANDRADE, 2020]. Somente com a natureza
espiritual, fruto da prática da ética, poderá o sujeito agente fugir desta reprodução
mecânica e repetitiva [ANDRADE, 2020]. Não obstante, três são os caminhos para
o desenvolvimento da natureza espiritual: do conhecimento, do serviço e da
devoção [ANDRADE, 2020].

Compreendendo a reencarnação
Neste tópico será explicado brevemente o processo de reencarnação. Cabendo aqui
realizar algumas perguntas. Como se originou o cosmos? Como é possível
conseguir a salvação? Qual a importância da moral ou da ética para a obtenção da
salvação?

Bem, segundo a tradição hinduísta, a criação do universo ocorre devido à


desintegração do corpo Divino [ANDRADE, 2020]. A salvação nada mais é do que
o retorno a este corpo [ANDRADE, 2020]. Este retorno, na sociedade hindu, pode
ser conseguido através da prática ética. Podendo alguns indivíduos conseguir em
uma única existência, enquanto outros necessitam passar por várias reencarnações
e por vários estágios. Seja na forma de semideuses, seja na de humanos, animais,
vegetais e seres inanimados [ANDRADE, 2020].

A possibilidade de libertação do indivíduo provém da moralidade de uma existência


correta segundo o dharma, princípios postos pela tradição [ANDRADE, 2020].
Moksha é o termo para caracterizar esta libertação do samsara. Porém, sendo toda
a criação uma extensão de Deus, pouco importa se é um ser inanimado, um
semideus, um animal ou um humano. Cada um destes elementos pode retornar ao
Divino. É por isso que os hindus consideram a totalidade do universo como marcada
pela vibração constante de Deus [ANDRADE, 2020].

Seguindo o pensamento hindu, nada que o indivíduo recebe é por acaso. O que
mantém o ser humano à samsara é a ignorância proveniente do desejo e do prazer
[ANDRADE, 2020]. Para se libertar destas correntes, é preciso compreender por si
só sua condição e se libertar [ANDRADE, 2020]. Pode-se concluir este tópico
afirmando que no hinduísmo cada indivíduo é responsável por sua vida. Ele recebe
princípios para sua conduta de modo a conseguir se libertar [ANDRADE, 2020].

O sistema de castas
O sistema de castas indiano remonta a mais ou menos 800 a.C [ANDRADE, 2020].
Ainda sobre esta forma de organização no ceio da sociedade: “As castas são, antes
de tudo, realidades sociais: famílias, língua, ofício, profissão, território. São uma
ideologia: uma religião, uma mitologia, uma ética, um sistema de parentesco e uma
dietética. São um fenômeno: não é explicável a não ser dentro e a partir da visão
hindu do mundo e dos homens” [PAZ, 1995, p.58]. Neste sentido, as castas
representam uma organização social e religiosa hierárquicas.

Para um melhor aprofundamento e explicitação das principais castas: “a] Brâmane:


possui como origem a emanação a partir da cabeça de Brahma; sua função social é
sacerdotal. b] Ksatriya: possui como origem a emanação a partir dos braços de
Brahma; sua função social é nobreza e guerra. c] Vaiysia: sua emanação decorre
das pernas de Brahma e, por isso, sua função diante da sociedade é o trabalho
liberal. d] Sudra: possui como origem a emanação a partir dos pés de Brahma; sua
função social é a execução do trabalho manual” [PAZ, 1995, p.58].

Esta divisão de castas era extremamente rígida e complexa [ANDRADE, 2020]. O


pertencimento a certa casta ou, pode-se dizer, classe social, era definido já no
nascimento [BOSIO, 2010]. Para o indivíduo conseguir a purificação de sua alma
e seu retorno ao Brahma ou até mesmo aparecer numa casta ou classe superior,
precisava cumprir suas obrigações em vida e aguardar a próxima reencarnação
[ANDRADE, 2020]. Desta forma é que se justifica ideologicamente a rígida
organização social com um aceno aos indivíduos pertencentes às classes baixas
responsáveis pelo trabalho manual com a possibilidade de uma melhor condição
material ou espiritual somente em outra vida. Fundamentalmente ao subdividir esta
sociedade poderia se encontrar a classe nobre composta por sacerdotes e guerreiros
e as classes baixas pelo povo em geral [ANDRADE, 2020].

Princípios éticos hinduístas


Os princípios éticos podem ser resumidos quatro: artha, kama, dharma e moksha
[ANDRADE, 2020]. Cada um com sua própria dinâmica e sempre sustentando o
outro [ANDRADE, 2020]. O primeiro deles, respectivamente, refere-se à práxis
social em geral; aos ganhos e perdas ou êxitos e fracassos [PAZ, 1995]. Já o
segundo remete ao domínio do prazer, da vida sexual e não está regido pelo
interesse, mas pelo desejo [PAZ, 2020]. O terceiro aborda a moral, o dever,
princípios que regem a conduta diante da família, casta ou sociedade [PAZ, 1995].
Por fim, o quarto consiste na libertação das amarras da existência [PAZ, 1995].
Todos os quatro possuem sua legitimidade, todavia, em termos de valores, o prazer
é superior ao trabalho, o dever ao prazer e a libertação dos demais [PAZ, 1995].

Ainda sobre o dharma, é importante notar que ele “[...] designa a tradicional ordem
estabelecida, que inclui todos os deveres, sejam eles individuais, sociais ou
religiosos” [ANDRADE, 2020. p.96]. Na Índia há um destaque dado a vivência
moral visando prevenir de três inimigos: kama [desejo], lobha [egoísmo] e krodha
[raiva]. Cultivam-se oito virtudes: compaixão por todos os seres vivos, paciência,
contentamento, pureza, seriedade, pensamento positivo, libertação da avareza e
inveja [ANDRADE, 2020]. Com isso, ao passo que a lei do karma remete ao
indivíduo enquanto singularidade, o dharma ressalta os deveres sociais de cada
hindu [ANDRADE, 2020].

Conforme o que foi dito até aqui, pode-se afirmar que a grande finalidade a ser
buscada no hinduísmo é o retorno ao Brahma, a libertação do espírito, do atman [ou
de certo modo, alma.] da realidade aparente e ilusória [maya] [BOSIO, 2010]. Ou
seja, a libertação tanto da hierarquia social quanto da imperfeição individual
[ANDRADE, 2020]. O mediador deste processo é o dharma ao requisitar do
indivíduo seu correto cumprimento dos deveres sociais de acordo com sua casta na
hierarquia da sociedade. O que certamente é um banho de água fria sobre as classes
mais baixas da sociedade. Após esta breve exposição de aspectos que caracterizam
o hinduísmo, é possível agora tratar do budismo.
Conjuntura histórica da origem do budismo na sociedade indiana
Por volta dos séculos VI e V a.C., sessenta e duas seitas de tipo religioso veem a
luz. Cada uma delas propondo uma série de formas inovadoras de lidar com a
realidade mundana e isso tanto a nível pessoal quanto social. Buscando também
compreender a relação entre humanos e deuses através de diversos ritos e mitos
[BOSIO, 2010]. E é neste contexto em que aparece o budismo; mais
especificamente, por volta de 563 a.C. no que hoje corresponde ao Nepal [BOSIO,
2010]. No entanto, para uma melhor explicação sobre este aparecimento de diversas
seitas, é necessária a exposição da conjuntura histórica.

Entre os séculos VIII e VI a.C. começava um desenvolvimento de pequenas


repúblicas, uma expansão do comércio, a aparição do ferro, a instauração de novas
formas de produção econômica e um explosivo aumento da vida urbana [BOSIO,
2010]. As monarquias tradicionais mantiveram sua presença nos territórios
próximos à planície do rio Ganges, enquanto ao redor delas nas encostas do
Himalaia se estabeleceram as nascentes repúblicas [BOSIO, 2010].

Muitas destas repúblicas, em especial à da zona norte, começaram a desenvolver


um forte intercâmbio comercial com os vizinhos ocidentais, sobretudo com o
Império Persa governado pela dinastia Arquemênida, além de aumentar o comércio
interno [BOSIO, 2010]. Em segundo lugar, a introdução, massificação do ferro veio
a complementar e finalmente substituir a utilização do cobre e do bronze como
matérias primas exclusivas. Graças ao uso deste novo material é que tornou possível
a fabricação de ferramentas muito mais resistentes e eficientes. Situação que em
larga escala redundou em um aumento produtivo e numa melhora da qualidade de
vida [BOSIO, 2010].

O incremento da demanda exterior por bens de consumo, como especiarias e


tecidos, ativou a economia interna indiana. Isto deu origem a verdadeiros
empreendimentos de bens de consumo, além de outras intermediárias no processo
de produção, encarregadas do transporte e da segurança das remessas [BOSIO,
2010]. A fim de satisfazer com prontidão e excelência a demanda, foi-se necessário
construir estradas, estalagens e centros de abastecimento. O que paulatinamente foi
originando grandes e poderosas cidades comandadas por ricos cada vez mais
orgulhosos e influentes comerciantes [BOSIO, 2010].

A forte necessidade por obter matérias primas, tanto para o desenvolvimento


produtivo de bens finais de consumo, como de obras viárias e construção de cidades
ocasionou o desflorestamento de boa parte da vasta selva que cobria o território
septentrional do subcontinente indiano [BOSIO, 2010]. Tal trabalho demandou
pouco tempo graças à utilização de novos utensílios cortantes feitos de metal, mas
sem que a natureza pudesse recuperar suas próprias forças [BOSIO, 2010].

Esta drástica mudança ecológica privou uma importante quantidade de grupos


sociais do único habitat que conheciam. Neste contexto, o amparo e isolamento
fornecido pela selva haviam desenvolvido durante séculos as formas sociais,
práticas e costumes de muitos indivíduos, famílias e povos que agora se viam
obrigados a receber os forasteiros ou até mesmo emigrar até os centros urbanos de
recente aparição [BOSIO, 2010].

Estas mudanças sociais aqui explicadas exigiram dos brâmanes uma necessidade de
repensar suas práticas e, ao mesmo tempo, propiciaram o surgimento de diversas
seitas [BOSIO, 2010]. É aqui perceptível como o desenvolvimento das forças
produtivas e do processo de urbanização requisitou, no plano ideológico, alguma
explicação sobre o lugar do indivíduo no cosmos e nesta sociedade. Trata-se agora
de refletir sobre a práxis humana numa sociedade que está num iminente progresso
em termos de capacidade produtiva e comercial. Tem-se com isto um intenso
desenvolvimento das individualidades, algo que o budismo buscou explorar.

O budismo diante da sociedade indiana em progresso


O budismo veio a realizar uma revolução na cultura bramânica. O desafio era o de
romper com o monopólio cultural da classe sacerdotal bramânica, a qual era a única
autorizada a interpretar e difundir a palavra sagrada [BOSIO, 2010]. O discurso
budista não tinha nenhum preceito alusivo à divisão de classes; algo que já era
diferente para os brâmanes que partiam do princípio de que o ordenamento social é
primordial, ancestral e divino [BOSIO, 2010].

Neste contexto de intenso desenvolvimento comercial e das cidades começa a


aparecer também reclamações da parte dos prósperos comerciantes que ganhavam
força visando maior participação nas questões políticas [BOSIO, 2010]. Algo que
tradicionalmente esteve apenas disponível para os guerreiros ou cavaleiros. Pouco
a pouco se foi criando também uma insatisfação com o monopólio brâmane dos
textos védicos [BOSIO, 2010].

A classe sudra ou dos servos não tinha direito de conhecer e nem recitar os textos
sagrados do bramanismo, algo que mudou com o budismo. Visto que a doutrina
budista não reconhecia como limitação a posição de classe no que tange a
participação na comunidade [BOSIO, 2010]. Buda viria a usar a linguagem vulgar,
comum, para transmitir seus ensinamentos, ao contrário da classe sacerdotal
brâmane que privilegiava o uso do complexo idioma sânscrito [BOSIO, 2010]. A
mensagem de Buda se fazia mais sensível de assimilar por parte da sociedade, em
especial, das classes mais baixas [BOSIO, 2010].

De modo geral o budismo abriu a oportunidade para aqueles que antes eram
ignorados pelo sistema bramânico [BOSIO, 2010]. Com relação a isto, Durant
[1995, p.293] comenta que “[...] Buda não perdoa aos sacerdotes do seu tempo;
despreza-lhes a admissão de serem os Vedas inspirados pelos deuses, e escandaliza
a orgulhosa casta bramânica aceitando em sua ordem membros de qualquer casta”.
Além disto, Buda manifestava seu repúdio para com o sacrifício aos deuses que
custava a vida de inúmeros animais, rejeitava o culto de entidades sobrenaturais ou
qualquer ascetismo [DURANT, 1995].
Trata-se de uma postura que de encontro do sacerdócio, demonstrando um caminho
de libertação possível para fiéis e infiéis. [DURANT, 1995]. O budismo é, assim,
uma religião proselitista, universalista e não mais nacionalista como o hinduísmo.
Esta postura mais aberta do budismo caiu como uma luva para as demandas
materiais e espirituais das classes mais baixas, dando-lhes agora o devido consolo.
O universalismo e proselitismo surgem neste contexto já explicado de maior
intensidade das trocas comerciais e desenvolvimento urbano. Melhor ambiente para
pregar a todos indistintamente? Impossível!

Budismo e desenvolvimento espiritual


Para iniciar esta investigação acerca dos postulados budistas envolvendo a relação
do indivíduo com sua espiritualidade, é preciso antes explicar alguns conceitos
fundamentais. Buda, segundo Watts [1999], foi o primeiro psicólogo da história,
descobrindo a doutrina, denominada por ele de o meio caminho, afirmando que a
pessoa que foge da dor é uma pessoa que teme a dor, e coloca o caminho cético e o
hedonismo como não solucionável para tal assunto.

Segundo Watts, a doutrina o meio caminho, é resumida em quatro nobres verdades,


são elas: Dukkha, a nobre verdade da dor: nascimento é dor; doença, tristeza,
lamentação, mágoa, velhice e desespero são dores. Trishna, a nobre verdade sobre
a causa da dor: o desejo. Nirvana, nobre verdade da cessação da dor: supressão
completa do desejo, desinteresse e desapego. Por fim, Marga, a nobre verdade sobre
o caminho que leva à cessação da dor: intenção justa, falar justo, atenção justa, viver
justo e concentração justa [DURANT, 1995]. Esta última nobre verdade é composta
por oito métodos ou práticas e estão subdivididos em três fases [WATTS, 1999].

A primeira fase desse caminho óctuplo das quatro nobres verdades é composta de
três elementos, são eles: a visão correta, a decisão correta e a fala correta. Para o
budismo, tudo o que existe no universo é interdependente. A segunda fase se liga a
ação e inclui mais três caminhos, são eles: o caminho da ação concreta, o modo de
vida correto e o esforço correto. Portanto, a ideia da ética para o budismo se baseia
em oportunidade [WATTS, 1999]. Por fim, a última fase do caminho óctuplo trata
das mentes e dos estados da consciência e está relacionada com a meditação e vai
incluir os dois últimos aspectos do caminho, são eles: samyak smriti e samyak
samadhi. A palavra smriti significa recordar. Já samyak samadhi quer dizer
consciência integrada, afirmando a não existência de distinção entre sujeito e
objeto/conhecedor e conhecido. O estado de samadhi se alcança mediante
meditação [WATTS, 1999].

Sendo assim, percebe-se que o meio caminho carrega em segredo que não podemos
apenas nos salvar, pois somos interligados, somos um universo inteiro e para sentir
esta interligação é necessário penetrar no estado do nirvana e assistir a emergência
do Karuna, que seria a sensação de interligação entre nós, ou seja, todos sofrem o
que nós fazemos [WATTS, 1999]. Liga-se a isto que a essência da ética budista
reside em atuar e pensar em função dos demais, de suas necessidades e sofrimentos
[MONTAÑO, 2009]. Já as ações negativas, carregam sementes de sofrimento e dor
[MONTAÑO, 2009].

As cinco regras morais são também importantes para o budismo, além do


conhecimento das quatro nobres verdades. A saber: não matar nenhum ser vivo, não
tomar o que não for oferecido, não mentir, não beber e ser casto [DURANT, 1995].

Mente, emoções e imagem da realidade


São duas as emoções de onde decorrem as demais: amor e medo [MONTAÑO,
2009]. A mente, na concepção budista, é criadora do mundo que experimentamos
[MONTAÑO, 2009]. Ela abarca emoções, sentimentos e sensações [MONTAÑO,
2009]. Toda experiência que se vive, seja agradável, desagradável ou neutra, é fruto
do modo como reage a mente aos estímulos internos e externos [MONTAÑO,
2009].

Ainda sobre as experiências, nelas se tem que a raiz fundamental de toda dor e
sofrimento é a ignorância [MONTAÑO, 2009]. Ignorância aqui significa ver de
modo equivocado os fenômenos e as experiências vividas devido às respostas
imediatas dadas pelas emoções e pensamentos aos estímulos do mundo
[MONTAÑO, 2009]. Tem-se aqui então uma crítica da vida cotidiana, a qual passa
uma imagem estática da realidade por conta de sua imediaticidade [MONTAÑO.
2009]. Com relação a tal imagem estática, é importante levar em conta que “[...] o
mais perigoso aspecto da ignorância — o verdadeiro pecado original — é aquele
que nos faz acreditar que "nós mesmos" somos verdadeiramente isto ou aquilo, e
que podemos sobreviver numa espécie de identidade, de um instante ao instante
seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra” [COOMARASWAMY, 1965,
p.34]. Contra esta visão estática da realidade o budismo afirma que tudo é devir
[MONTAÑO, 2009].

Ademais, as perturbações mentais e as aflições emocionais surgem quando se vê o


mundo a partir da perspectiva do Ego e do Eu [MONTAÑO, 2009]. Uma mente que
se imiscui a impulsionar e defender os desejos do Ego é uma mente escravizada ao
campo de seus interesses [MONTAÑO, 2009]. Será por meio da meditação que se
alcançará um domínio dos processos mentais e até mesmo a libertação [CONZE,
1997].

Negação da individualidade?
A partir do que foi dito até aqui, pode-se aferir que vida é sofrimento [CONZE,
1997]. A crença num “Eu” é condição indispensável para que surja o sofrimento
[CONZE, 1997]. Este mundo imbuído de sofrimento e incessante devir deve ser
rechaçado visando o nirvana [CONZE, 1997].

Buda tomou como certos a lei do karma e o círculo de reencarnações hinduísta. Mas
seu pensamento caminhava no sentido de buscar um modo de escapar deste círculo,
realizar o Nirvana na terra e depois a aniquilação [DURANT, 1995]. O nirvana é
efeito da extinção do desejo individual, egoísta ou aniquilação moral do Ego
[DURANT, 1995]. Todavia a grande recompensa está em não renascer, ao quebrar
o ciclo de reencarnações [DURANT, 1995]. A finalidade aqui é a de alcançar a
imortalidade [CONZE, 1997]. A imortalidade não é um desejo de perpetuar uma
individualidade que se compra ao preço da decadência inevitável, mas sim uma
transcendência desta individualidade [CONZE, 1997].

Diante disso, tem-se aqui posto um horizonte abstraído de toda a práxis social, um
“além”. O despertar obtido com nirvana é desprovido de si, de individualidade e
vida. Outro ponto fundamental, contraditoriamente, é que este despertar, esta
salvação ou libertação, só pode ser conseguida por parte do indivíduo a partir dele
mesmo [COOMARASWAMY, 1965]. No entanto, como já foi dito antes, a moral
budista possui uma preocupação com a comunidade: deve-se atuar em prol dos
demais. Trata-se de uma mediação necessária para o pleno desenvolvimento
espiritual do indivíduo. Se antes o hinduísmo embasava ideologicamente a rígida
sociedade dividida em castas a partir da noção de reencarnação; o budismo o faz
indiretamente partindo da ideia de que vida é sofrimento, o eterno devir
reencarnatório do mundo precisa ser quebrado e para isso o indivíduo deve ser
capaz de atingir um estado para além desta realidade marcada pelo Ego.

Dessa maneira, a saída é espiritualmente individualizada. Nega-se a individualidade


marcada e recém desenvolvida pelo contínuo fluxo das trocas comerciais,
urbanização, do desejo de enriquecer, em prol de uma individualidade agora
espiritualmente liberta do ciclo de renascimentos, da inconstância de um mundo em
desenvolvimento das forças produtivas e do desejo egoísta. Pode-se afirmar, então,
que há sim uma negação da individualidade, mas é de uma individualidade marcada
pela supressão do ser genérico do ser humano em busca do que se pode obter por
meio do dinheiro. É um completo desprendimento para com a generidade em-si
alienada, esta última não medeia o caminho em direção à generidade humana para-
si ou consciente.

Para as classes dominadas esses ensinamentos lhes fornecem o consolo necessário


para sua situação de subjugação, mas longe de fazê-las rebelar-se contra a ordem
social vigente. Pelo contrário, tenta-se resolver os problemas advindos das
alienações postas pela práxis humana, espiritualmente.

Conclusão
Considerando toda a reflexão realizada no presente texto, pode-se dizer que no
budismo ocorre a negação da individualidade marcada pelas alienações de um
contexto histórico marcado pelas incessantes trocas comerciais, desenvolvimento
das cidades, desmatamento e desenvolvimento das forças produtivas em prol de
uma individualidade que melhor exprima a generidade humana.

O budismo na presente abordagem é tratado como uma seita. A doutrina de Buda


cumpriu importante papel ideológico em sua época, rompendo com o monopólio
espiritual brâmane, adotando uma postura proselitista e refletindo sobre os
problemas cotidianos existentes.
Por fim, por uma questão de precisão, por “ideologia” se entende uma imagem de
mundo capaz de orientar a práxis humana, podendo dirimir conflitos sociais como
entre classes [LUKÁCS, 2018]. No caso do budismo, sua transformação em uma
ideologia se deu a partir do momento em que as profundas transformações sociais
não eram mais já explicadas satisfatoriamente pelo bramanismo, havendo
insatisfação dos prósperos comerciantes buscando mais reconhecimento e também
a falta de atenção para com as classes mais baixas. Exigindo assim uma imagem de
mundo capaz de explicar o cotidiano social que passava por mudanças. Já a
“alienação” refere-se a um obstáculo ao devir humano do ser humano posto por sua
própria práxis [LUKÁCS, 2018].

Referências
Arthur D’Elia é mestrando em Filosofia da UERJ; Yasmin Ribeiro é graduanda em
História da UERJ.

ANDRADE, J. Teoria do karma, sistema das castas e conceito da reencarnação e


seu impacto na sociedade indiana: uma leitura antropo-filosófica. Basilíade –
Revista de Filosofia, Curitiba, v.2, n.4, p.85-98, jul./dez. 2020.
____________. Índia, lar dos deuses e terra das multidões: uma aproximação às
religiões indianas. Curitiba: Intersaberes, 2019.
BOSIO, Francisco Ocaranza. El nascimiento del budismo em el mundo Índio
antiguo analizado desde una perspectiva histórico-social. Revista Académica de la
Universidad Bernardo O´Higgins, a.7, n.7, p.133-142, Ago. 2010.
COOMARASWAMY, A. O pensamento vivo de Buda. São Paulo: Martins, 1965.
CONZE, E. El budismo: su esencia y su desarrollo. México: Fondo de Cultura
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DURANT, W. Nossa herança Oriental. Ed. 4. Rio de Janeiro: Record, 1995.
LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.
MONTAÑO, Jorge García. Budismo y ética: ¿Qué hacemos con nuestros
sentimientos? En-claves del Pensamiento, a.III, n.5, p.101-113, Jun.2009.
PAZ, O. Vislumbres da Índia: um diálogo com a condição humana. São Paulo:
Mandarim, 1995.
WATTS, A. Budismo. La religión de la no-religión. Barcelona: Kairós, 1999.
UM BREVE OLHAR HISTÓRICO DA CHINA: A
IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO DE SUA
CIVILIZAÇÃO NA DESCONSTRUÇÃO DE
ESTEREÓTIPOS
Elois Alexandre de Paula
A China Além do Obscurantismo
Lembrando uma frase do Historiador Peter Burke [1991], “A função do historiador
é de lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”, de certa forma bem
apropriada pela realidade que estamos vivendo, em um período do negacionismo
da ciência e também pela própria História de modo geral. A China não foge à essa
visão negativa construída pela desinformação, da sua História e também do próprio
contexto atual e a relação com a pandemia do novo coronavírus.

Neste processo do obscurantismo em que vivemos um detalhe importante para


desconstruir narrativas distorcidas sobre a realidade da China, se dá exclusivamente
pela compreensão de sua História e da sua civilização. Outrossim, o contexto
Histórico quando ampliado para além do ambiente das academias reflete em um
objetivo da desconstrução de estereótipos, principalmente no Brasil que vive uma
avalanche de fakes sobre aspectos relacionados a China e o próprio Covid 19.

Destaco a importância da discussão dos temas atuais relacionados a China, mas


também discutir sobre o contexto Histórico, cientifico e porque não abordar
brevemente, o contexto da construção do conhecimento histórico desde a academia
até ao modelo de ensino do Brasil. Notadamente no momento atual, a própria
estruturação do ensino da História e o projeto do atual governo do revisionismo
com relação à educação vêm prejudicando a disciplina de História, e as propostas
metodológicas que abordam discussões e a consciência histórica. Esse contexto
educacional não foge a essa realidade sobre a História Chinesa, que por longo
período foi rejeitada como se demonstra abaixo:

“A China esteve ausente dos livros didáticos até meados dos anos 80, e
mesmo agora, ocupa apenas pequenos trechos dos novos de história e
geografia. Já as obras de natureza paradidática publicadas sobre a China
muitas vezes estão distanciadas da realidade concreta do ensino
fundamental e médio e tendem a dar um tratamento por demais abstrato
do tema, sem associar a China atual à realidade que vivemos aqui no
Brasil, como o Afluxo de mercadorias Chinesas concorrendo com os
produtos nacionais.” [Mao Junior, Jose, 1998, p.10]
Esse vácuo causado por modelo metodológico e didático de ensino da História é
ainda a ponta do iceberg da desinformação da Historiografia Chinesa. Mas apesar
dessa problemática partimos de uma reflexão para demonstrar a experiência
historiográfica Chinesa, e de ampliar discussões sobre esta civilização. Nesta
temática ampliar a busca do conhecimento é uma possibilidade da evolução, como
cita Carl Sagan: “O crescimento individual reflete o avanço da espécie”.

Com relação a China a compreensão da sua história e de sua sociedade é complexa,


diversificada, mas não tão distante como a distância geográfica que nos separa os
continentes. A academia e as mais diversas pesquisas e biografias estão acessíveis
a quem tenha a simples curiosidade e até mesmo pesquisas mais detalhadas. O
conhecimento crítico é um contraponto das chamadas “fakes” e da desinformação
que é tão recorrente e que infesta as redes sociais. A China se apresenta em uma
visão bem mais ampla e diversificada do que somos acostumados a entender e ver
com bases ao cinema com os filmes de Kung Fu, até a ideia da culinária exótica que
causa espanta e horror para os que se atentam a apenas essas informações.

Em reflexão à História da China e seu atual contexto apresentam outras realidades


diferentes das narrativas preconceituosas e mentirosas que se construiu, a
Historiografia Chinesa oferece a acessibilidade para quem interessa. Lógico, a
China diante de mais de 4 mil anos de História, nem mesma a academia consegue
englobar tantas informações e fontes, por isso é fundamental novas descobertas e
amplo acesso tanto no campo da História como em outras áreas.

Desconstruindo Estereótipos
Dentre muitos séculos a China tinha sido vista pelo ocidente por uma visão
preconceituosa, racista e discriminatória com relação ao seu povo, tradições
culturas e pelo seu modo de vida. Atualmente essas visões obscuras, irracionais
vieram a tona com a atual Crise da Covid-19, com as mais absurdas narrativas na
qual o Brasil, ou melhor, dizendo seus representantes foram protagonistas das
inverdades sobre a China e uma relação com a pandemia.

Em abril de 2020, logo no início da pandemia no Brasil e com já surgindo as


primeiras vítimas do Covid 19, o Ministro das relações exteriores Ernesto Araújo
fez uma das declarações equivocadas e sem fundamento com relação a China
afirmando que o mundo enfrenta o “comunavírus” como cita a reportagem do
Correio Brasiliense: “Não bastasse o Coronavírus, precisamos enfrentar também o
Comunavírus, e seu projeto de usar a pandemia para instaurar o comunismo, o
mundo sem nações nem liberdade, um sistema feito para vigiar e punir; escreveu o
ministro no Twitter.” [SOARES. Correio Brasiliense, 2020]

Não é de hoje que o fantasma desse “pseudo comunismo” tem assombrado o Brasil,
em que desde aos anos 60 com o golpe militar de 1964 foi baseado na tese de tentar
o derrubar o comunismo no Brasil. [Vieira 1985]. Essas narrativas do temor e da
falsa ideia do comunismo no Brasil ganharam força nos últimos anos no Brasil, pela
grande propagação de Fakes nas redes sociais construindo um panorama desastroso
da desinformação e de um revisionismo sobre a História do Brasil obscuro e sem
parâmetro teórico.

Ainda o Ministro fez referências desastrosas a China com a questão climática, a


falsa ideia da questão da ideologia de gênero, além dos ataques a OMS
[Organização mundial de saúde]. [SOARES, Correio Brasiliense 2020]. Esta
declaração provocou uma crise entre China e Brasil, que tem causado danos não
somente na diplomacia, mas também na questão econômica e também na tecnologia
de produção de insumos de vacina, aliás é fato que a China é uma das grandes
parceiras nessas questões.

Não obstante, com os mais diversos pronunciamentos negativos por parte das
autoridades brasileiras, surgiram as mais estapafúrdias teorias de conspiração sobre
a vacina Chinesa, baseadas de um senso comum sobre a questão da pandemia. Um
exemplo era de que a vacina Chinesa era feita de rato, ou morcego, ou que eram
produzidas com fetos humanos, ou que a vacina Chinesa continha em seu conteúdo
um “Chip” para controlar quem a tomasse. Essas informações insanas criadas pelos
conspiradores contra a ciência, se espalharam rapidamente, principalmente nas
mídias sociais, gerando confusão, principalmente entre os mais leigos e
desinformados e que causou uma redução da procura das vacinas até mesmo nas
demais vacinas aplicadas nas crianças.

Ora, é fato que tais discursos não condizem com a realidade, e no que se diz respeito
ao desenvolvimento cientifico, incluindo as pesquisas no campo da saúde, a China
tem desenvolvido inúmeras pesquisas pela experiência em outras situações de
flagelos com a sua população. A síndrome respiratória aguda grave [SARS] foi
uma das doenças que os cientistas Chineses se aplicaram nas pesquisas e
desenvolveram as vacinas, como exemplo a Coronavac. Historicamente os
Chineses estão a léguas na pesquisa e no desenvolvimento de técnicas médicas que
vem se aplicando a séculos, como a ideia de isolamento social, que foi a estratégia
mais correta para a pandemia da Covid 19, e que segundo o livro Hou Hanshu, essa
estratégia era a base para um tratamento adequado. [BUENO, 2020]

Sem dúvidas a China vem saindo-se muito bem nas pesquisas relacionadas a esta
pandemia, a sua tradição na pesquisa cultiva uma larga experiência para lidar nos
momentos de Crise sanitária como as demais crises que assolaram a sua civilização
na história. Assim os chineses mostram a força e habilidade exemplar para resolver
as suas dificuldades. Infelizmente o ocidente, mais precisamente o Brasil, pela sua
situação política atual do negacionismo, não consegue identificar a realidade da
civilização Chinesa. Entretanto se faz necessário rever a importância dos conceitos
e do conhecimento das tradições e experiências da História desta civilização.

A China pelas Experiências Históricas


Talvez em um primeiro momento neste tópico, é notável aqui uma discussão de
possibilidades metodológicas dentro do contexto do ensino de História do oriente,
pois esse modelo de ensino de História desde o período do ensino fundamental ate
o ensino médio, não contempla de forma mais ampla a História Chinesa. De certa
forma, até atentamos a essa proposta de uma discussão desse modelo de ensino,
mas a ideia aqui é de apresentar temas que abordem as experiências históricas da
China, desconstruindo as distorções e estereótipos sobre a Historiografia Chinesa.

Primeiramente pelas experiências de aprendizado na vida acadêmica é importante


fazer algumas distinções sobre a historiografia Chinesa, que dentro do mundo das
ideias de “achismos” por um longo tempo a China sempre foi uma incógnita para o
ocidente, principalmente para os europeus. Basicamente a visão sobre a China
diante do olhar do ocidente durante séculos causou essas distorções sobre a
realidade dessa nação e de civilização e das demais outras civilizações do oriente
como afirma Said [1990], dentro de uma análise do pensamento Ocidental sobre o
Oriente:

“Em resumo, desde o início de sua História moderna até o presente, o


orientalismo como urna forma de pensamento para tratar o que o
estrangeiro demonstrou tipicamente tendência inteiramente lamentável
ao tipo de conhecimento baseado em distinções rígidas como "Leste" e
"Oeste": para canalizar o pensamento para um compartimento do Oeste
ou do Leste. Como essa tendência está exatamente no centro da teoria,
da prática e dos valores ocidentais do orientalismo, o sentido do poder
do Ocidente sobre o Oriente tem como certa a sua condição de verdade
científica”. [SAID, 1990]

Essa distinção muitas vezes recorrente é uma prova de que o Ocidente não teve um
interesse em atentar a existência da China. [CASTRO, 1969]. Não obstante, o
interesse do Ocidente em determinados períodos da História sempre foi a
dominação e o controle do território Chinês, principalmente no Século XIX, onde
se construiu a ideia de um lugar comum para a China cercado de aberrações.
Tragicamente esses foram um dos fatores que consolidou a ignorância sobre a sua
civilização e que ainda se perdura, apesar dos avanços ao acesso a informação e a
pesquisa.

A Historiografia dentro, de uma visão ocidental por vários séculos, mostra três
realidades distintas sobre a China, a primeira é sobre a visão acadêmica baseadas
em uma perspectiva que esta Civilização é inferior e que através do racismo o
oriente é uma identidade homogênea. Surge assim a ideia a construção de um
complexo de inferioridade sobre a China.

A segunda visão multicultural, e á ideia de culturas diferentes vivendo em um


mesmo espaço, tentando ter modos de convivência para ratificar o racismo
[HUNTINGTON, 1997]. Já a visão intercultural é a ideia de uma posição
privilegiada e externa da Civilização chinesa e a tradução e o entendimento
cientifico e histórico da cultura para o interesse público.
Diante dessas visões ainda é notório que a História da China tende muitas vezes a
ser incompreendida ou mesmo menosprezada, porém, essa ideia cai por terra diante
da Historiografia apresentada. Como fontes de conhecimento básico desses mais de
quatro mil anos de História da civilização Chinesa estão desde os vestígios de
cerâmicas das diversas dinastias, de grandes engenharias como a Muralha da China,
ou das diversas invenções como a da imprensa, ou da pólvora, são ainda
informações e fontes básicas para a experiência histórica Chinesa:

“IMPÉRIO DO CENTRO: existem registros precisos acerca de mais de


4 mil anos de História da China, país que cuja a cultura foi, por um
longo período, muito mais avançada do que o ocidente. Os chineses
inventaram a Pólvora, a bússola, o astrolábio, o sismógrafo, o papel e
também a imprensa, séculos antes de Gutemberg”. [Mao Junior, Jose,
1998, p.10]

Os avanços da civilização Chinesa vão muito além sobre a questão da Cultura, pela
religiosidade com práticas pela divinização do mundo natural e pelo pensamento
filosófico e de certa forma educacional Confúcio [551-479 A.C] que apresentou
regras de harmonia social, condutas de uma sociedade correta em um período que
a China estava mergulhada na corrupção. Por esse motivo a educação Confucionista
teve importância fundamental na sociedade Chinesa, ou seja, uma filosofia
educacional que resiste ainda por séculos [Bueno, 2011].

Um dos grandes legados deixados por Confúcio foi de que ele se preocupou em
preservar os livros históricos para regularização moral e religiosa, mas também para
conservar a memória dos antepassados. Aqui se mostra o exemplo de uma
civilização preocupada com sua História e a memória de seus antepassados.

Já no contexto organizacional do estado Chinês também é notável o avanço desde


a antiguidade. Historicamente a administração e a estabilidade do estado Chinês
sempre foram creditadas a uma ideia de um concurso público, buscando servidores
do estado com capacidades intelectuais e de caráter para salvaguardar os serviços
públicos do estado, sendo esses servidores públicos da elite. [Morton, 1986].

Um dos pilares da experiência Chinesa e a questão comercial com a Rota da Seda


que desde o século I A.C, desenvolveu uma extensa e organizada rede mercantilista
entre a Ásia e o Império romano, realizando o comércio da seda entre outros
produtos. [Bueno, 2002]. Ainda nesta tradição a China projetou nos últimos anos
uma nova rota da seda em que o presidente Chinês, Xi Jinping pensa em investir
bilhões de dólares para um desenvolvimento de projeto global de telecomunicações
em países da Europa. [Fonte Made for Minds, 2008]. Não esqueçamos neste
contexto comercial que o Brasil, apesar de seus problemas diplomáticos com a
China, é ainda um dos seus parceiros comerciais.

Com essa perspectiva de crescimento econômico a China vem surpreendendo no


desenvolvimento tecnológico por séculos. Desde a descoberta da pólvora e a
invenção da imprensa e do papel, nos anos finais do século XX, a China iniciou o
“plano 863”, com o objetivo de formar cientistas nas áreas de bioengenharia,
astronáutica, informática, automação e energia. [Mao Junior, Jose, 1998]. Não
deixamos de citar na área aeroespacial em que a China tem desenvolvidos
atualmente foguetes e sondas espaciais para exploração no nosso sistema solar.

A experiência da História Chinesa em Sala de aula


No contexto político, a China vem sendo observada ou criticada pela manutenção
no poder do PCCH [Partido Comunista Chinês]. É fato que desde o ano de 1949
um modelo de democracia com participação popular não se estabeleceu na China,
mas apesar dos pesares, a China tem tido e se mantido pelas diversas adaptações no
campo político, principalmente quando seu modelo Marxista se afastou do modelo
do marxismo de Stalin. Dessa forma a China, desde Mao Tse-tung, projetou dentro
de suas discordâncias com o socialismo soviético um governo com um movimento
comunista diferenciado, que moldou também o novo contexto de crescimento
econômico Chinês [Mao Junior, José, 1998].

Ainda sobre o socialismo Chinês, muitas teorias ou comentários da impressa sobre


a perseguição política e de supressão de direitos dos cidadãos. Mas não desprezando
a imprensa e a liberdade de expressão, é importante lembrar que uma das principais
notícias é referente o “Massacre da Praça da Paz Celestial”, que continua sendo
lembrado e comentado no mundo inteiro. Um detalhe sobre o Jovem que enfrentou
as linhas de tanques e teria sido morto, mas que na realidade os blindados desviaram
do Jovem estudante e que teve uma História muito diferente apresentada pela
imprensa.

A China por milênios tem obtido muitas experiências no seu contexto social,
político, econômico e cultural. Por todos esses anos têm enfrentado guerras,
invasões, desastres naturais, doenças e pandemias como vivenciamos agora. Mas
de certo modo a sua civilização renasce a cada queda e desastre. Como é de sua
cultura os chineses usam de seus problemas e tragédias como uma forma de
experiência de se levantar e de se reconstruir.

A historiografia Chinesa apresenta um campo fértil de pesquisa, e ainda tem muito


a ser explorado, assim o meio acadêmico tem sua importância em desbravar a
trajetória dessa rica civilização. Neste contexto de pesquisa Historiográfica com
relação a China, talvez no atual contexto exista poucos adeptos, mas apesar dessa
redução existe inúmeros trabalhos e pesquisas sobre a China. Nesta dinâmica da
experiência sobre as vertentes históricas da sinologia, a academia tem importância
fundamental em apresentar os seus resultados e experiências sobre o Oriente e a
China, essas experiências devem ser levadas aos bancos escolares, dentro de novas
metodologias de ensino de História que discutam os temas orientais com maior
amplitude.

Sabe-se que no atual contexto da educação no Brasil a Disciplina de História está


passando por uma crise de valorização, pois nem mesmo a própria História do
Brasil não está sendo levada a sério. Toda essa crise de conhecimento que vivemos
é perceptível nos discursos sem sentido sobre o Brasil e a China, e assim visível de
uma parte da sociedade brasileira tem intelectualidade anacrônica do Século XX,
que vive ainda no pensamento da guerra fria e no temor do fantasma do socialismo.

Portanto essas questões e experiências sobre a China e a sua História são


imprescindíveis para derrubar os muros da intolerância, preconceito e a
desinformação, assim a distância entre o Brasil e a China não pode ser comparada
pelo distanciamento do conhecimento. E a Ciência, assim como a importância da
História da civilização, não pode se negada no atual contexto, ou continuamos a
seguir o caminho tortuosos do preconceito e da construção de estereótipos,
seguindo um pensamento de uma velha frase: “Se achas a educação cara, fique com
a ignorância, pois ela é gratuita”.... Então, vale aqui uma reflexão sobre essa
máxima.

Referências
Elois Alexandre de Paula. História Fafi-UV, Especialista em História, cultura e arte
UEPG, Ponta Grossa.

BUENO, André. Rotas do Mundo Antigo. Versão da Dissertação de Mestrado em


História intitulada “Roma, China e o Sistema Mundial entre os séculos I ao III d.C.”
UFF: Niterói, 2002
BUENO, André. Educarte: A Educação Chinesa na Visão Confucionista. Rio de
Janeiro, 2011.
BUENO, André. Tradições Médicas Chinesas e o Desafio Da Escrita da História
na Contemporaneidade. Falas na Rede, 2020.
BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales
1929-1989. Tradução Nilo Odália, São Paulo: Editora Universidade Estadual
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CASTRO, José. O Ocidente Contra a China. Le Monde Diplomatique, 1969
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SAID. Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução
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VIEIRA, Evaldo. A república brasileira: 1964-1984. 1ed, São Paulo: Editora
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NOTÍCIAS MADE FOR MINDS:EM:http://www.dw.com/pt-br/china-promete-
bilh%C3%B5es-para-nova-rota-da-seda/a-38837510-noticia
GRIFFIS E A LENDA DO ORIENTAL: UMA DENÚNCIA
DO ORIENTALISMO ANTES DE SAID
Emannuel Henrich Reichert
O termo orientalismo hoje possui dois significados, ao mesmo tempo distintos e
interconectados. Isso ocorre devido a uma narrativa histórica bem conhecida dos
pesquisadores de culturas asiáticas e que pode ser descrita rapidamente graças a
essa familiaridade.

Antes de 1978, entendia-se por orientalismo ou estudos orientais uma disciplina


acadêmica, em certos aspectos semelhante aos area studies atuais. O objeto de
estudo do orientalismo abrangia um “Oriente” definido de forma vaga, que
englobava aproximadamente toda a Ásia e Norte da África, ou seja, o rótulo de
orientalista se aplicava igualmente a historiadores do Antigo Egito, etnógrafos dos
povos árabes, linguistas interessados no sânscrito e na literatura religiosa hindu ou
tradutores de textos confucionistas. Nesta acepção original, o termo era considerado
neutro e descritivo: era-se um orientalista como hoje se é um pesquisador de história
das religiões no Brasil ou de literatura japonesa moderna.

Tudo mudou em 1978, quando foi publicada a primeira edição do Orientalismo de


Edward Said, obra que revolucionou o entendimento do termo. Said denuncia o
orientalismo, pelo que entende um sistema de saber-poder foucaultiano em que: 1]
se cria por uma rede de discursos um lugar chamado Oriente a partir da
homogeneização de povos e culturas diversos; 2] o Oriente é sempre entendido em
referência a um Ocidente onde se situam os orientalistas e seu público; 3] a
característica fundamental do Oriente é ser exótico, estranho ou inferior segundo as
concepções ocidentais, em suma, ser diferente do Ocidente em sentido negativo
[estático em oposição a dinâmico, emotivo em oposição a racional, despótico em
oposição a livre e assim por diante]; 4] a disseminação dos estereótipos do Oriente
e do oriental cumpre a função de facilitar e legitimar a dominação imperialista, seja
na forma dos impérios europeus ou das ações militares contemporâneas no Oriente
Médio. Uma distinção fundamental feita por Said é que seu conceito de
orientalismo extrapola o âmbito acadêmico:

“Desta forma, uma imensa quantidade de escritores, entre os quais


poetas, romancistas, filósofos, teóricos da política, economistas e
administradores de impérios, aceitou a distinção básica entre Oriente e
Ocidente como ponto de partida para teorias sofisticadas, epopeias,
romances, descrições sociais e relatos políticos acerca do oriente, seu
povo, costumes, “mente”, destino e assim por diante”. [Said, 1979, p.
2-3]

Desde então o pensamento de Said ocupa lugar central na compreensão do


imaginário ocidental a respeito da Ásia e mesmo os críticos orbitam em torno de
sua concepção do orientalismo. Alguns apontam exceções problemáticas à teoria,
em particular o caso da tradição orientalista alemã, intelectualmente profícua sem,
no entanto, estar conectada a um império colonial [Irwin, 2006]. Outros discutem
se o orientalismo saidiano se aplica a este ou aquele país; por exemplo, Orlando
Figes sugere que a Rússia é uma exceção aos argumentos de Said porque os russos
nutriam uma ambivalência diante da Ásia, sentindo-se europeus frente aos asiáticos,
mas asiáticos frente aos europeus [o que, a meu ver, apenas reforça a tese de Said
em vez de abrir uma exceção a ela, porque a mentalidade apontada por Figes
pressupunha a distinção fundamental entre asiáticos e europeus, embora os russos
mesmos se considerassem em uma espécie de posição liminar] [Figes, 2002, p.
380]. Há ainda tentativas de combinar o conceito de orientalismo com outras
perspectivas, como a decolonialidade e as categorias de gênero, raça e classe
[Assunção, 2020]. Em todo caso, apesar de poderem ser apontados defeitos na obra
de Said, como em qualquer outra, a carga de ignorância, preconceito e projeções
facilmente constatada nos discursos e estereótipos predominantes acerca do suposto
Oriente leva a crer que ele apontou na direção de um problema real.

Assim o orientalismo passou de uma pretensa inocência vinculada ao imperialismo


à experiência crítica e reflexiva das ligações entre saber e poder. Ou, ao menos, essa
é a narrativa habitual. Pretendo aqui complicá-la um pouco através da análise de
uma fonte que já em 1912 antecipa algumas das principais críticas de Said ao
orientalismo. Trata-se de um breve artigo de cinco páginas escrito por William
Elliot Griffis, intitulado “A literary legend: “The oriental”” [“Uma lenda literária:
“O oriental””] e publicado no Journal of Race Development [Revista de
Desenvolvimento Racial].

O Journal of Race Development era uma publicação acadêmica americana dedicada


a relações internacionais. A introdução ao primeiro número expressa um
posicionamento paternalista e condescendente, fundamentado na aceitação de uma
hierarquia entre as raças humanas, se bem que algo progressista para os padrões da
época ao pensar no bem dos explorados. Embora tivesse por objetivo “a discussão
de problemas relacionados ao progresso de raças e Estados em geral considerados
atrasados em seus padrões civilizatórios”, a meta da revista era “buscar descobrir
não como as raças mais fracas podem ser melhor exploradas, mas como podem ser
melhor auxiliadas pelas mais fortes” [Blakeslee, 1910, p. 1]. Por sua vez, William
Elliot Griffis era um religioso americano e orientalista renomado, que morou no
Japão Meiji por anos dando aulas e produziu uma vasta obra mostrando a cultura
japonesa ao público anglófono, com destaque para a história do Japão chamada The
Mikado’s empire [O império do micado]. Griffis abre o artigo em tom acusatório:
“Foi desenvolvida uma lenda literária que põe em oposição distinta o
dito Oriente e o afetuosamente chamado Ocidente. Poetas,
dramaturgos, escritores sentimentais, romancistas e criadores de
aparatos sensacionais para os palcos, filmes e jornais de vendagem
rápida criaram o “oriental” da imaginação, fantasia, preconceito e
intolerância, que não tem contraparte real nem jamais existiu. Tornou-
se um “interesse”, um artigo comercial de primeira necessidade, uma
especulação permanente e sempre promissora representar “o oriental”
como um ser de forma humana cuja natureza é fundamentalmente
diferente daquela do “ocidental”. Esse delineamento e contraste tem
valor mercantil. Ele compensa naquilo que o americano tanto ama –
dinheiro. Aumenta a venda de ingressos nas bilheterias. Faz a alegria
da multidão. O político em busca de votos aprova como se fosse a
melhor ortodoxia. Foi até usado por certos tipos de pregadores e
propaganda missionária para apoiar dogmas de suposta origem cristã”
[Griffis, 1912, p. 65].

Uma comparação entre esta passagem e o trecho de Said citado anteriormente


mostra algumas semelhanças nítidas e diferenças não menos importantes, sendo
especialmente dignas de nota as questões de saber e de poder. Griffis percebe
claramente que o oriental é uma criação discursiva sem correspondente na
realidade. A invenção retórica dessa figura desumanizada ocorre de forma difusa
nas artes, meios de comunicação e na política, prosperando na falta de
conhecimentos capazes de combater a ignorância e que fujam aos estereótipos
predominantes. Griffis lamenta a situação em termos que, ao menos no Brasil,
continuam verdadeiros um século mais tarde:

“Compare as montanhas de literatura caricata e de apelo às paixões e


motivos egoístas com a escassez de verdade, conhecimento e
informações exatas. Na maioria das histórias “do mundo” populares ou
que mais vendem, um quarto do mundo e da raça humana costumam
receber uma fraçãozinha do último volume em séries de doze ou mais.
Nossos atlas, que devotam dezenas de páginas a condados, estados e
países, em geral dão um cantinho à China e Japão e uma única página
para toda a Ásia” [Griffis, 1912, p. 66].

Essa passagem sugere que o autor crê na necessidade de mais conhecimento sobre
a Ásia para superar as noções equivocadas acerca do Oriente e do oriental, o que,
por sua vez, pressupõe a existência de um saber confiável sendo produzido. De fato,
Griffis não culpa os orientalistas pela situação de ignorância, não os menciona em
sua lista de responsáveis que vai dos poetas aos jornais. Eis um ponto central em
que ele e Said seguem em direções opostas. Griffis separa os “homens de ciência”
sérios e capazes de enxergar além dos preconceitos populares, como ele próprio,
dos escritores românticos que falseiam a verdade com exageros:
“Eu, por exemplo, após conhecer o povo japonês por quarenta e seis
anos e conhecer jovens e adultos chineses por quase quarenta anos, não
reconheço “o oriental” da imaginação popular. Não se deve confundir
um espantalho com um homem vivo, nem a versão de um bajulador
com uma verdadeira tradução. Para quem viveu entre os japoneses e
sabe algo de sua história, literatura e arte é impossível concordar com o
impressionista Hearn, ou com os caluniadores vis cujo motivo, direta
ou indiretamente, é fama ou dinheiro” [Griffis, 1912, p. 68-69].

Griffis menciona dois exemplos de escritores propagadores do mito do oriental:


Lafcadio Hearn, autor de tendência romântica e idealizadora do Japão tradicional e
possivelmente o maior divulgador do país na época, e Edwin Arnold, autor do então
famosíssimo poema A luz da Ásia, sobre a vida do Buda. Enquanto Said denuncia
a distorção inerente a um saber posto a serviço do poder, Griffis luta a velha batalha
entre pesquisadores sérios e vulgarizadores de grande sucesso comercial, mas
desprovidos de maior rigor analítico. Ele percebe o problema real da invenção do
oriental e aponta corretamente diversos responsáveis; entretanto, deixa de
questionar se há alguma relação com a diplomacia das canhoneiras que abriu o
“Oriente” ao comércio e evangelização, sem a qual ele mesmo e os demais “homens
de ciência” não poderiam ter mantido contatos por décadas com japoneses e
chineses. O saber produzido pelos orientalistas parece neutro, ocultando a relação
com o imperialismo ocidental, que com frequência foi necessário para os
pesquisadores terem acesso a seu objeto de estudo, além de colocar as partes
envolvidas em uma clara disparidade de forças.

Não que Griffis esteja cego ao vínculo entre orientalismo e relações de poder, tanto
que inclui os políticos entre os disseminadores do mito do oriental. Contudo, mais
uma vez silencia quanto ao imperialismo; o alvo de seu ataque é o mito do perigo
amarelo. Segundo essa teoria da conspiração então em voga, os povos asiáticos
representavam uma ameaça à civilização ocidental, especialmente os japoneses, que
haviam demonstrado capacidade militar nas guerras contra a China [1894-1895] e
Rússia [1904-1905]. A histeria racista produziu efeitos práticos em diversos países
na forma de restrições à entrada de emigrantes asiáticos, considerados impossíveis
de assimilar às culturas locais. O Brasil fez parte da onda anti-asiática, visto que a
Constituinte de 1934 aprovou limitações imigratórias voltadas à contenção do fluxo
crescente de japoneses ao país [Leão Neto, 1989]. Nos Estados Unidos, onde estava
o público-alvo do artigo, também houve consequências: o Chinese Exclusion Act
de 1882 restringiu a entrada e naturalização de chineses [Ruskola, 2013, p. 141-
148]. Em 1907, o governo japonês foi persuadido a limitar voluntariamente a
emigração para os Estados Unidos antes que o Congresso criasse barreiras
discriminatórias [Atkinson, 2016, p. 96]. Ao atacar a alterização dos “orientais” que
embasava o suposto perigo amarelo, Griffis assume posição contra o preconceito.
O texto condena a paranoia e os interesses econômicos e militares associados a ela:

“Na busca por fama, dólares, votos e verbas do Congresso para uma
marinha colossal, o que nossos jornais não permitem? No que nossos
concidadãos não acreditam? Consulte os arquivos dos nossos
periódicos desde a guerra entre Rússia e Japão. Contemple o
indescritível chinês, que com “astúcia” e “ardis” mantém um harém
secreto de mulheres brancas. Observe a horda incontável vinda da
China que está prestes a nos sobrepujar. Preste atenção naqueles
regimentos de ex-soldados japoneses treinando no Havaí! Veja as
numerosas fotos que os espiões japoneses estão tirando dos nossos
fortes. Veja a Baía Madalena [na costa pacífica do México] sendo
sondada para as fortificações do Micado. Será que a ignorância pode ir
mais longe que em alguns filmes baratos quando mostram a
determinação resoluta dos estadistas de Tóquio em reduzir os Estados
Unidos a uma colônia do Japão. Quase se pode ver [o almirante japonês]
Togo e sua frota se aproximando da costa enquanto alguns talvez
esperem, na agonia do alarme, ouvir o rangido das correntes que baixam
as âncoras de seus navios de guerra na Baía de São Francisco” [Griffis,
1912, p. 68].

Pode-se observar que Griffis denuncia com veemência um problema real, embora
não leve seus argumentos às conclusões lógicas; ele se preocupa mais com o efeito
doméstico da hostilidade ao oriental que com as ações imperialistas que tal forma
de pensar legitimava no exterior, exceto pela menção vaga à marinha. A mesma
percepção parcial acontece no tocante a questões de gênero. Ele estava ciente da
idealização e sexualização das mulheres e demonização dos homens “orientais”,
pelo que culpa os escritores sensacionalistas para quem “é claro que as japonesas
superam Eva, Vênus, Martha Washington e a Rainha Vitória, mas os homens são
feios, traiçoeiros e capazes de toda espécie de mesquinharia e maldade” [Griffis,
1912, p. 68].

A afirmação parece exagero retórico, mas é um resumo confiável do que se encontra


em numerosos relatos contemporâneos. Sirvam por todas esta passagem do
impressionista português Wenceslau de Moraes, parte de uma divagação extensa e
erótica sobre os fascínios da mulher japonesa seguida de uma descrição sucinta da
feiura do homem:

“Mas quando a mulher japonesa está prestes a despir-se dos seus


feitiços, passados os vinte anos, é então, na pujança dos primores, como
um pomo maduro, que a sua gentileza se torna, por um dia, doidamente
fascinadora. Alva a ponto de deslumbrar, na plena graciosidade das
formas, no pleno jogo dos gestos, banhada no negro das pupilas por
uma ternura de quem se despede, alcança seduções de visão, auréolas
de sacerdotisa de um culto, que fosse todo magia e todo amor. Como a
gente desejaria adorá-la no enlevo de uma casinha de madeira, na paz
solene da paisagem, e beber nos seus lábios os últimos sorrisos, e
escutar-lhe as últimas quimeras, e servi-la nos últimos caprichos! […]
“Deixando a musumê e passando ao homem, a diversão é desoladora; é
transitar de um sorriso para uma careta, de um nimbo róseo de alvorada
para um negrume carrancudo de borrasca. São realmente muito feios os
japoneses, nas suas figurinhas de quase pigmeus, nas suas frontezinhas
baças coroadas pela trunfa hirta, nos seus pelos espetados de barbichas
rudimentares, nos seus olhinhos piscos e matreiros” [Moraes, 1897, p.
154, 160].

O exemplo acima, ao qual muitos outros podem ser acrescentados, demonstra a


existência de fato da relação entre orientalismo e gênero percebida por Griffis. Mas
conceder crédito demais a uma observação en passant pode ser tão equivocado
quanto ignorá-la; aí, como nos demais tópicos, o autor faz um comentário perspicaz
e segue adiante, sem se preocupar em aprofundá-lo – por exemplo, mediante
análises de como os estereótipos promovem uma visão do Oriente ao mesmo tempo
grotesco e sedutor, repugnante e merecedor de conquista [seja a amorosa da mulher
ou a conquista literal pelas armas].

Desnecessário dizer que o breve artigo de Griffis não substitui a obra de Said. Sejam
quais forem as falhas de Orientalismo, trata-se de uma obra de considerável vigor
teórico e analítico. Griffis antecipa alguns pontos centrais desenvolvidos por Said,
mas não os desenvolve, o que se percebe mais claramente em seu pouco interesse
pelo imperialismo. Não obstante, o valor testemunhal do texto é grande: comprova
a possibilidade de, em plena Era dos Impérios, um pensador mergulhado na tradição
orientalista ser crítico dela. Terá ele sido uma exceção solitária, vox clamantis in
deserto, ou será que o orientalismo era diversificado o bastante para conter uma
corrente contra-hegemônica? Só teremos certeza após mergulhar mais uma vez
nessas fontes, hoje tão controversas, em busca de sinais de dissidência e investigar
não o que diziam do “Oriente”, mas dos demais orientalistas.

Referências
Emannuel Henrich Reichert é Doutor em História pela Universidade de Passo
Fundo. Atualmente trabalha na Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão
do Estado do Rio Grande do Sul.

ASSUNÇÃO, Naiara. “Orientalismo”: O conceito de Edward Said e suas críticas.


In BUENO, André [org.]. Estudos em história asiática e orientalismo no Brasil.
Rio de Janeiro: SobreOntens/UERJ, 2020, p. 138-143.
ATKINSON, David C. The burden of white supremacy: Containing Asian
migration in the British Empire and the United States. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 2016.
BLAKESLEE, George H. “Introduction” in JOURNAL OF RACE
DEVELOPMENT, v. 1, n. 1, jul. 1910, p. 1-4.
FIGES, Orlando. Natasha’s dance: A cultural history of Russia. New York:
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GRIFFIS, William Elliot. “A literary legend: “The Oriental”” in JOURNAL OF
RACE DEVELOPMENT, v. 3, n. 1, 1912, p. 65-69.
IRWIN, Robert. For lust of knowing: The Orientalists and their enemies. London:
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LEÃO NETO, Valdemar Carneiro. A crise da imigração japonesa no Brasil
[1930-1934]: Contornos diplomáticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
1989.
MORAES, Wenceslau de. Dai-Nippon: O grande Japão. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1897.
RUSKOLA, Teemu. Legal Orientalism: China, the United States, and modern
law. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
SAID, Edward W. Orientalism. London: Penguin Books, 2003.
O ORIENTALISMO DE ARNOLD TOYNBEE: A GRÉCIA
COMO “ORIENTE PRÓXIMO”
Felipe Alexandre Silva de Souza
Introdução
Com base nos estudos do crítico literário Edward Said [2003] sobre o fenômeno do
orientalismo, este breve texto pretende discutir o “Oriente” como uma construção
intelectiva fundamentalmente histórica e, portanto, passível de transformações. Ou
seja: a rigor não existe um Oriente em si mesmo, mas sim indivíduos e grupos
específicos que, de acordo com seus objetivos políticos e bagagem cultural,
constroem representações de povos e lugares que caracterizam como “orientais”.
Portanto, o que se considera oriental ou ocidental pode mudar no decorrer do tempo.
Para ilustrar essa questão, abordaremos como o historiador britânico Arnold Joseph
Toynbee caracteriza a Grécia em seu livro “The Western Question in Greece and
Turkey”, publicado em 1922.

Uma vez que a Grécia é normalmente considerada o berço da chamada cultura


ocidental, pouquíssimos de nós pensaríamos em caracterizá-la como oriental. Por
isso é surpreendente o fato de que Toynbee, no livro citado, aloca a Grécia não no
Ocidente, mas sim no Oriente — mais especificamente, em uma região que ele
denomina “Oriente Próximo”. Sendo assim, a referida obra é uma pertinente
ilustração da historicidade do Oriente enquanto representação social que pode
mudar de acordo com as circunstâncias.

Antes de adentrarmos as ideias de Toynbee, cumpre fazer algumas considerações


sobre a questão do orientalismo, conceituado por Said como

“um estilo de pensamento baseado no estabelecimento de uma distinção


ontológica e metodológica entre ‘o Oriente’ e [na maioria das vezes] ‘o
Ocidente’. Dessa forma, um número muito grande de escritores, entre
eles poetas, novelistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e
administradores imperiais, aceitou a distinção básica entre Oriente e
Ocidente como o ponto de partida para teorias complexas, épicos,
romances, descrições sociais e análises políticas concernentes ao
Oriente, seu povo, seus costumes, sua ‘mente’, destino e assim por
diante.” [Said, 2003, pp.2/3, tradução nossa]
]
Esse complexo de reflexões e representações não se forma em um espaço vazio. Ao
contrário, é uma dimensão ativa e importante da História e, portanto, integra lutas
políticas e disputas de poder. Nesse sentido, orientalismo também pode ser
considerado um conjunto de discursos criados e mobilizados pelos mais diversos
agentes para estudar e produzir teorias sobre o Oriente de forma a colocá-lo sob
controle e em posição subalterna. “Resumidamente, Orientalismo é um estilo
ocidental de dominar, reestruturar e colocar autoridade sobre o Oriente” [Said,
2003, p.3]. Não é coincidência que as representações orientalistas tenham
começado a tomar corpo consistente em fins do século XVIII e ao longo do século
XIX, acompanhando a expansão colonial europeia. Entre 1815 e 1914, os principais
países europeus aumentaram suas áreas de controle direto de 35% para 85% da
superfície terrestre, e os continentes mais afetados foram a África e a Ásia [Said,
2003].

“Os maiores impérios eram o britânico e o francês; aliados e parceiros


em algumas coisas, em outras eram rivais hostis. No Oriente, das costas
orientais do Mediterrâneo à Indochina e à Malaia, suas posses coloniais
e esferas de influência imperiais eram adjacentes, frequentemente
sobrepostas e não raro disputadas. Mas foi no Oriente Próximo, nas
terras do oriente próximo árabe, onde o Islã supostamente definia
características culturais e raciais, que os britânicos e franceses
encontraram um ao outro e ‘o Oriente’ com maior intensidade,
familiaridade e complexidade.” [Said, 2003, p.41, tradução nossa]

Essa expansão foi em parte justificada pelas formulações orientalistas, que por sua
vez eram incentivadas na medida em que os homens europeus travavam contatos
mais intensos com africanos e asiáticos. Tais contatos serviam como base para
novas teorias que, mesmo que de forma indireta, forneciam justificativas e
racionalizações culturais e morais para a dominação e a violência que os europeus
impingiam a outros povos. A justificação de dava pela criação de representações
dos homens do chamado Oriente como seres intrinsecamente diversos dos
habitantes do dito Ocidente. Tratava-se de representações distorcidas, que
caracterizavam os “orientais” como inerentemente inferiores aos ocidentais e
desprovidos da maioria das características nobres destes. A figura do homem
oriental era invariavelmente exótica, atrasada e pouco inteligente, incapaz de
racionalidade, e por isso sua dominação pelos europeus seria não apenas justificada,
mas natural. Via de regra, a dominação colonial europeia era tida como benéfica
para os povos subjugados que, na melhor das hipóteses, seriam colocados em um
caminho de relativa evolução graças aos ocidentais. “Existem Ocidentais, e existem
Orientais. Os últimos dominam; os primeiros devem ser dominados, o que
normalmente significa ter sua terra ocupada, seus assuntos internos rigidamente
controlados, seu sangue e tesouro colocados ao dispor de uma ou outra potência
ocidental.” [Said, 2003, p.36]

Em suma, o orientalismo cria representações fundamentalmente opostas — o


oriental e o ocidental — que funcionam de forma imbricada: uma não pode existir
sem a outra. “O Oriental é irracional, depravado [caído], infantil, ‘diferente’;
portanto, o Europeu é racional, virtuoso, maduro, ‘normal’.” [Said, 2003, p.40].
Ora, os ocidentais só podem se dar conta da positividade de sua racionalidade e
virtuosidade se forem comparados a outros povos considerados irracionais e
viciosos. Ao criar a figura de um “Outro” oriental, os chamados ocidentais acabam
definindo a si mesmos por contraste. A suposta retidão do Ocidente se aclara a partir
do destaque de deformidades inventadas do Oriente [Said, 2003].

Ao problematizar o orientalismo, devemos levar em conta que “o Oriente não é um


fato inerente da natureza” [Said, 2003, p.4]. Como entidades culturais, históricas e
geográficas, todos os locais, regiões e setores geográficos são considerados
orientais ou ocidentais por iniciativa humana. “Portanto, tanto como o próprio
Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de
pensamento, imagética e vocabulário que lhe conferem realidade e presença [...].”
[Said, 2003, p.5, tradução nossa]. E, se Oriente é uma criação humana — e,
portanto, histórica —, faz sentido afirmarmos que o que se considera “oriental”
pode variar na medida em que as circunstâncias se alteram.

Toynbee: a Grécia é Oriente?


Arnold Toynbee [1889-1975] iniciou sua trajetória de historiador como um
estudioso da Grécia na Antiguidade e no período bizantino, mas os conflitos que
marcaram a Europa na primeira metade do século XX o inspiraram a dedicar boa
parte de sua carreira à História das Civilizações em perspectiva comparativa. A
Grande Guerra fez com que muitos intelectuais questionassem a legitimidade dos
nacionalismos exacerbados que haviam resultado em tamanha brutalidade. Para
Toynbee, o nacionalismo foi um dos desencadeadores da guerra de 1914-1918, e
para problematizá-lo, propôs um estudo de história que focasse não nos estados
nacionais individuais, como era praxe da História Política Tradicional, mas sim em
entes mais abrangentes: as civilizações. Para esse autor, “seria preciso sempre partir
do todo – a História das Civilizações – para somente depois atingir as suas partes,
representadas pelas histórias dos povos e nações” [Barros, 2009, pp.223].

Em 1921, ao mesmo tempo em que nutria essas reflexões, Toynbee, então professor
de história grega na Universidade de Londres, teve a oportunidade de passar uma
temporada na Grécia e na Turquia [então Império Otomano] fazendo pesquisas. Na
ocasião, o mundo assistia aos momentos finais da chamada “questão oriental” que
deixara a Europa suspensa durante décadas — o Império Otomano, há muito
decadente, amargava derrota na Grande Guerra: seus antigos domínios foram
repartidos entre as potências europeias vitoriosas e Constantinopla se encontrava
ocupada por uma força conjunta internacional liderada pelos britânicos. Na porção
ocidental de seu império, os otomanos travavam cruenta guerra contra os gregos,
que almejavam tomar a Anatólia e fundar uma Grande Grécia baseada em uma
visão mítica de um Império Bizantino redivivo. Como historiador e bom
observador, Toynbee buscou examinar a questão de forma ampla: “Eu vi tudo o que
pude a respeito da situação, tanto do ponto de vista grego quanto do turco, em várias
partes dos dois países” [Toynbee, 1922, p.13]. Suas reflexões foram publicadas no
livro “The Western Question in Greece and Turkey: a study in the contact of
civilisations” [1922].
O que nos interessa nesse livro é o que Toynbee considera Ocidente e Oriente.
Comecemos por sua ideia de “civilização”. Barros [2009] constata que o conceito
de civilização em Toynbee define “um estágio superior que determinada cultura
conseguiu atingir” [p.224] e que sua postura rompia “com o uso etnocêntrico que
vinha sendo impingido a esse conceito por intelectuais europeus que costumavam
aplicar a palavra ‘civilização’ apenas à Cultura Ocidental” [p.224]. No entanto, o
livro deixa claro que, embora Toynbee admita a existência de civilizações não-
ocidentais, sua argumentação confere superioridade hierárquica à civilização
ocidental — devida em grande parte, sem dúvida ao seu poderio econômico, militar
e político:

“A civilização ocidental joga sombra sobre o resto da humanidade, mas


é difícil [...] compreender toda a situação. As outras sociedades
humanas, ou as pessoas civilizadas e educadas [dessas sociedades] são
muito conscientes do efeito penetrante e acachapante do Ocidente sobre
suas vidas públicas e privadas [...].” [Toynbee, 1922, p.15, tradução
nossa]

A força do Ocidente seria particularmente evidente, para Toynbee, nas regiões que
ele chama de Oriente Médio e Oriente Próximo, onde, por conta da proximidade,

“a vitalidade superior da nossa influência tem aumentado durante os


últimos dois séculos e meio até se tornar suprema, enquanto
permanecemos praticamente inconscientes de um processo que agora
se força sobre as populações locais a cada momento. A combinação de
máximo efeito real com consciência mínima [por parte dos cidadãos
ocidentais] transformou o fator Ocidental no Oriente Próximo e no
Oriente Médio em geral em uma força anárquica e destrutiva [...]”.
[Toynbee, 1922, p.19]

No entanto, ainda que reconheça o poder destruidor do Ocidente sobre o Oriente


Médio e Próximo, Toynbee avalia que esse poder talvez seja quase o único vetor
positivo naquela região:

“Sempre que se analisa um movimento contemporâneo — político,


econômico, religioso ou intelectual — nessas sociedades, quase sempre
esses movimentos são uma resposta ou uma reação diante de algum
estímulo ocidental. De alguma forma, o estímulo ocidental está quase
invariavelmente presente, e uma iniciativa puramente interna é
raramente constatável, talvez até mesmo não existente, porque antes da
penetração ocidental começar, as civilizações autóctones dessas regiões
tinham de desintegrado parcial ou totalmente. [Toynbee, 1922,
pp.19/20]”
Desse trecho depreende-se que Toynbee reconhece a existência de civilizações não-
ocidentais. Todavia, em sua concepção, os homens de tais sociedades teriam
perdido a capacidade de atuação autônoma, reduzindo-se a meros reagentes do
Ocidente — esse sim, lançado à condição de ente que provoca mudanças, de
demiurgo da História. Toynbee não diz que as sociedades do Oriente sempre foram
estagnadas, mas defende que nos últimos séculos chegaram a tal nível de paralisia
interna que o Ocidente se tornou a força motriz que causa mudança nos orientais.
Ou seja: o Oriente muda graças ao Ocidente. Mais do que isso: o Ocidente parece
se colocar como modelo que o Oriente talvez um dia siga:

“Pode-se pensar que civilizações ocidentais, próximo-orientais e


médio-orientais têm identidades imutáveis [...]. É mais difícil ter em
mente que nenhuma dessas três é estacionária, e enquanto o Oriente
Próximo e Médio estão se aproximando do Ocidente, em intensidades,
intervalos e ângulos diferentes, o Ocidente está se movendo em um
curso próprio.” [Toynbee, 1922, p.30, tradução nossa]

Contraposições desse tipo são abordadas por Said [2003] como tipicamente
orientalistas: é muito comum caracterizar os chamados orientais como estacionários
e heterônomos, ao passo que os ocidentais são vistos como dinâmicos e
progressistas. Uma vez que constatamos traços de orientalismo no pensamento de
Toynbee, seria de se esperar que, em um livro abordando a Grécia e a Turquia, ele
denominasse o império do sultão islâmico como oriental e colocasse a Grécia no
perímetro do Ocidente. Afinal, trata-se do suposto berço da civilização ocidental,
especialmente devido às suas contribuições para a filosofia e para a política. Atenas
é vista como local de surgimento de dois atributos considerados tipicamente
ocidentais: a racionalidade e a democracia. Segundo o antropólogo britânico Jack
Goody [2006], a ideia artificial de “Antiguidade Clássica”, composta
fundamentalmente por Grécia e Roma — geralmente considerada de forma
apartada de outras sociedades antigas “orientais”, como Egito e Fenícia —, é
tomada como ponto inicial de uma progressão histórica que resultaria no mundo
europeu atual, cujas características políticas e sistemas de valores seriam
descendentes diretos da ágora ateniense e da república romana. Nesse sentido, o
filósofo ganense Kwame Anthony Appiah [2016] afirma que, para embasar a ideia
de “civilização ocidental”,

“Nós forjamos uma grande narrativa sobre a democracia ateniense, a


Magna Carta, a Revolução Copernicana, e assim por diante. [...] A
cultura ocidental era, em sua essência, [supostamente] individualista,
democrática, liberal, tolerante, progressiva, racional e científica. Não é
importante [para a narrativa] que a Europa pré-moderna não tenha sido
nada dessas coisas, e que até o século passado democracia era exceção
na Europa [...].” [Appiah, 2016, sp.]
No entanto, Toynbee surpreendentemente não considera a Grécia como ocidental.
Isso pode ser percebido já nas primeiras páginas, quando ele diz, a propósito das
tensões legadas pela Grande Guerra, que

“Os destinos de Inglaterra, França, Alemanha e até dos Estados Unidos


foram obviamente afetados pela política dos governos gregos,
otomanos, entre outros orientais, e centenas de milhares de soldados
ingleses, a muitos milhares de soldados franceses, alemães e austríacos,
servindo no Oriente, estavam constantemente nos pensamentos de suas
famílias em casa.” [Toynbee, 1922, p.16, tradução nossa]

Nessa pequena passagem, fica claro que Toynbee concebe o Ocidente como algo
externo à Grécia, e conseguimos apreender o sentido do título e do livro: trata-se da
relação do Ocidente com algo não-ocidental: a Grécia e a Turquia. Mais adiante,
afirma que há perigos na “relação trilateral entre a civilização ocidental, a Turquia
e a Grécia” [Toynbee, 1922, p.49]. Para o historiador, a Grécia se interpõe entre
Ocidente e Turquia, e os estadistas ocidentais não podem se dar ao luxo de deixar
as relações entre Grécia e Turquia se deteriorarem. Fica claro que, embora Toynbee
reconheça o peso da Grécia no imaginário ocidental, ele não considera a Grécia
ocidente, mas sim, oriente. Mais especificamente, Oriente Próximo, ou seja: uma
região geograficamente mais próxima do Ocidente, mais permeável e mais
influenciável por este, mas ainda assim sem deixar de ser Oriente. Sua definição é
clara:

“O termo “Oriente Próximo” é utilizado neste livro para denotar a


civilização que cresceu das ruínas da antiga civilização helênica ou
greco-romana na Anatólia e em Constantinopla, simultaneamente ao
crescimento da nossa civilização no Oeste. As duas sociedades tinham
um pai comum, eram da mesma idade e mostraram incialmente o
mesmo poder de expansão, mas os paralelos acabam aqui. A civilização
ocidental [quaisquer que sejam suas limitações] tem até agora
continuado a progredir e a se expandir, enquanto o a civilização
próximo-oriental, após um início mais brilhante, inesperadamente
desmoronou no décimo primeiro século depois de Cristo, e caiu em um
incurável declínio [...]”. [Toynbee, 1922, p.20, tradução nossa]

Desse trecho, depreende-se que Toynbee considera de maneira preeminente não a


chamada Grécia clássica da pólis ateniense, mas sim a época do Império Romano
oriental, [comumente conhecido como Império Bizantino], que teria dado as bases
para a chamada civilização próximo-ocidental. Dessa forma, tanto o Império
Otomano quanto a Grécia moderna seriam partes distintas do Oriente Próximo na
acepção de Toynbee. Note-se também que o Império helênico de Constantinopla
foi tomado pelos otomanos muçulmanos a 29 de maio de 1453; Atenas foi capturada
em 1458 e em 1460 todo o Peloponeso estava sob a égide islâmica. Por quase 400
anos o território da atual Grécia foi parte do Império Otomano, e o moderno estado
helênico nasceu de uma guerra de independência contra o sultanato [1821-1830].
Para Toynbee, os gregos devem sua vitória nessa guerra ao Ocidente:

“[...] a sobrevivência de comunidades do Oriente Próximo e do Oriente


Médio após a queda de suas próprias formas de vida e diante da
expansão ocidental tem sido possível apenas pela adoção de certos
elementos ocidentais. O atual estado nacional grego jamais poderia ter
sido construído, como o fez desde 1821, se durante o século anterior
numerosos gregos não tivessem adquirido métodos comerciais e
educacionais ocidentais.” [Toynbee, 1921, p.31]

Considerações finais
Como fica claro, para Toynbee, a atual Grécia é Oriente. É Oriente porque em seu
passado há a trajetória da porção oriental do Império Romano e, depois disso, quase
quatro séculos de domínio turco, que os gregos conhecem como “tourkokratia”
[Clogg, 2017]. E o desenvolvimento grego dos últimos tempos teria se dado
principalmente pela permeabilidade da Grécia ao Ocidente — um Ocidente que o
autor considera claramente externo aos gregos modernos:

“[...] a Grécia está em contato mais próximo com o Ocidente do que


seus vizinhos próximos-orientais estão. Ela é mais permeada do que
eles pela educação ocidental e mais dependente de comércio com países
ocidentais. Nas capitais comerciais e sociais da Europa Ocidental e dos
Estados Unidos — Londres, Paris, Viena, Manchester, Liverpool,
Marselha, Trieste, Nova York, Chicago, São Francisco —, existem
colônias gregas. Muitas famílias viveram no Ocidente por muitas
gerações consecutivas, contraíram matrimônio em famílias ocidentais,
se naturalizaram como cidadãos de estados ocidentais, enviaram seus
filhos às melhores escolas de seus países adotivos, e se tornaram
ingleses, franceses, austríacos ou americanos em tudo exceto pela
tradicional lealdade à pátria mãe. [Toynbee, 1922, p.47].”

A ideia de uma Grécia oriental contemporânea oriental que se desenvolve na


medida em que adere a padrões de um Ocidente externo a ela — na medida em que
se ocidentaliza — é uma concepção incomum, dada a imagem, em grande parte
mítica, da Grécia como berço da civilização ocidental. O Próximo Oriente grego de
Toynbee ilustra, portanto, uma das ideias centrais de Edward Said: não existem um
Ocidente e um Oriente concretos, verificáveis no processo histórico, e sim
representações, carregadas de questões políticas e culturais, de sociedades que
podemos encaixar como ocidentais e orientais. Como essas representações são elas
mesmas históricas, mudam ao longo do tempo. Consequentemente, as definições
de Oriente e Ocidente estão sempre transitando.
Referências
Felipe Alexandre Silva de Souza é doutorando em História Social pela
Universidade Federal Fluminense [UFF], bolsista CNPq e integrante do Núcleo de
Estudos Contemporâneos [NEC/UFF].

APPIAH, Kwame Anthony. There is no such thing as western civilisation.


Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2016/nov/09/western-
civilisation-appiah-reith-lecture.
CLOGG, Richard. História concisa da Grécia. São Paulo: Edipro, 2017.
GOODY, Jack. The theft of History; Cambridge: Cambridge University Press,
2007.
SAID, Edward. Orientalism. New York: Vintage, 2003.
TOYNBEE, Arnold J. The Western Question in Greece and Turkey: a study in the
contact of civilisations. London: Constable, 1922.
ALBERTO FRANCO NOGUEIRA E A DEMOCRACIA
JAPONESA
Gustavo Souza de Deus
O sociólogo português Manuel de Lucena, em texto biográfico sobre Alberto
Franco Nogueira, último Ministro dos Negócios Estrangeiros de António Salazar,
alude a uma guinada do personagem à extrema-direita, quando da transição do
controle do Estado Novo para Marcelo Caetano. O autor escreve que:

“[E]m política interna, [Franco Nogueira] advogou o reforço da luta


ideológica e da ordem pública, adoptando, em face do ensaio marcelista
de “renovação na continuidade”, uma atitude de permanente alerta e
freqüente censura – frontal ou velada – muito temerosa dos passos
renovadores. Assim, foi caindo nas boas graças de sectores de direita e
de extrema-direita – aos quais não pertencia e que se tinham mostrado
hostis à sua entrada para o governo – acabando por ser considerado,
com alguma justiça, um dos maiores expoentes da ala conservadora do
regime.” [Lucena, 2015, p. 139]

Contudo, a publicação recente do diário do Ministro, escrito enquanto ainda um


delegado do serviço exterior, contém possíveis evidências de que suas predileções
estariam neste espectro bem antes de sua participação na política nacional. Por um
lado, sua narrativa sobre a história japonesa se aproxima do que se poderia
considerar um elogio ao regime fascista que guiara o país durante a Segunda Guerra
Mundial. De outro, é marcante o modo como o autor deprecia a experiência liberal
dos japoneses, ao destacar matérias jornalísticas que lhe comprovariam os
contornos jocosos da autodeterminação popular.

Em 1946, ainda recém-empossado no serviço público, Franco Nogueira foi


designado para um posto em Tóquio. Poucas semanas após desembarcar, no dia 1
de fevereiro, o jovem diplomata dedicou seu tempo livre de uma sexta-feira para
entender a mentalidade japonesa de antes da Segunda Guerra Mundial. Os termos
com que anotara suas impressões iniciais no diário são reveladores de desapreço à
corrupção dos democratas nipônicos e o que aparenta ser uma admiração pela
guinada autoritária que, durante a guerra, conduziria ao regime do general Hideki
Tojo:

“Da resma de jornais que devorei uma impressão me ficou: o japonês


jogou o todo pelo todo, em pleno. Tudo foi subordinado ao propósito
da vitória: considerações e interesses pessoais não existiram e os
sacrifícios fizeram-se por bitola grande, logo de início. Dum liberalismo
mais ou menos anódino, formal na essência e praticado apenas como
decalque do Ocidente, passou-se ao autoritarismo que faz agir e pensar
como um só. Dantes, partidos havia vários, democráticos ou socialistas
por rótulo; as eleições tinham aspecto de liberdade, muito embora mais
ainda do que na Europa a corrupção fosse de rigor; e a Dieta era o
parlamento onde discutiam com cerimônia e fleuma os representantes
dos antigos clãs feudais do Japão Velho.” [Nogueira, 2019, p. 62]

Se ainda não era acusada por todos os crimes de lesa humanidade cometidos durante
a Segunda Guerra Mundial, a política externa japonesa já havia sido formalmente
responsabilizada por seu extremo belicismo, desde, pelo menos, 1931, com a
publicação do Lytton Report. Ainda no contexto da Liga das Nações, Tóquio
recebera mal as conclusões do relatório, revelador de que seriam os nipônicos os
agressores na Questão da Manchúria, e retirara-se da organização, acentuando um
ciclo de isolamento e ocupação ilegal de territórios. Uma vez que estes fatos tiveram
ampla evidência em ambientes diplomáticos, os comentários de Franco Nogueira
sobre a expansão colonial do Japão permitem entrever uma notável complacência
para com a experiência autoritária daquele país:

“Então principiaram os sonhos e a nação meteu-se à forja a temperar o


gládio. Quando decidiu a grande aventura, não hesitou mais: preparou
corpo e alma para o que desse e viesse. E fê-lo com espírito de jogador:
arriscou em cheio numa carta.” [Nogueira, 2019, p. 63]

O elogio de Franco Nogueira à grande aventura japonesa continua, denotando que


a clivagem entre regimes autoritários e liberais seria, naquele instante, mais
evidente para o diplomata do que uma contraposição cultural entre Oriente e
Ocidente. Sua narrativa chegaria ao ponto de representar a expansão nipônica em
direção à China e aos mares do sul como uma “cruzada” para libertar a Ásia:

“O povo sentia o orgulho das raças patrícias e a nação ficou possessa


da mística que leva à cruzada. Expandiu-se, irradiou e ficou cega pela
perspectiva. Não era já apenas a ânsia dum Japão maior; foi a crença na
responsabilidade de libertar a Ásia do escalracho ocidental. Para isso
invadiu a China e seguiu para o Sul.” [Nogueira, 2019, p. 64]

Chegariam dias em que aquela mesma mística levaria os portugueses à luta por suas
colônias africanas. Por ora, cabia ao futuro Ministro do Estado Novo notar nos
nipônicos um traço que viria a recomendar aos lusitanos, anos mais tarde:

“No material e mecânico, reuniu quanto pôde. Armou-se durante anos,


e à refrega utilizou tudo duma assentada, sem guardar reservas e em luta
sem quartel. Externamente, enfileirou com os que na altura pareciam
futuros triunfadores: alemães e italianos. Mas foi no moral,
principalmente, que se construiu mais sólida armadura. Neste
particular, não deixa dúvidas a crônica da vida japonesa antes e durante
a guerra, mesmo censurada como foi. No noticiário do dia-a-dia se
descobre o esforço para fazer da nação um todo homogêneo e inteiriço,
duma só fé.” [Nogueira, 2019, p. 63]

Os termos com que descreve a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial


evidenciam que o diplomata já manifestava predileções autoritárias, antes mesmo
de seu Ministério e de sua atuação parlamentar. A violência da expansão colonial
nipônica ficou em segundo plano e suas anotações dedicaram-se à construção de
imagens de grandeza e unidade que teriam movido o passado recente do país.
Quanto à democracia, que após a guerra retornara, Franco Nogueira reservava a
comparação metafórica de um trem sequestrado por passageiros na linha de Tóquio
a Atami, notícia nos jornais da terça-feira, dia 18 de junho de 1946:

“O outro sucesso [curioso] pertence à mesma bitola democrática. Ao


que refere a notícia, passou-se na linha férrea de Tóquio a Atami. Todas
as manhãs, pelo cedo, corre um comboio para o sul e regressa pelo
lusco-fusco. Pois bem: numa estação intermédia, quatro energúmenos
invadiam a locomotiva, amarravam fogueiro e maquinista e manejavam
eles próprios a aparelhagem até o comboio atingir o destino; à chegada
soltavam os dois tripulantes. E na viagem de retorno voltavam a
manietá-los e de novo dirigiam a máquina até à mesma estação. Durou
a brincadeira uma semana e apurou-se que os quatro desaustinados nada
sabiam de locomotivas e caminhos de ferro. Os dois presos nunca se
queixaram; nem o público nem o pessoal ferroviário deram fé de coisa
alguma de anormal; e não houve desastres ou acidentes. Quanto ao
motivo invocado pelos quatro sujeitos para a proeza, era este: que a
autoridade agora pertence ao povo, a este competindo mandar em tudo,
na condução dos comboios inclusivamente. Estavam, portanto, no
exercício pleno dos seus direitos cívicos. O Governo meteu-os na
cadeia. Mas o jornal protesta e afirma que se pretende coarctar a
liberdade de quatro democratas!” [Nogueira, 2019, pp. 86 e 87]

A passagem escolhida por Franco Nogueira demonstra uma visão oligárquica da


política, caricaturando o crivo popular de modo que, como sua trajetória
demonstrará, não estaria restrito ao Japão. Ao rir-se do fato de que populares não
estavam preparados para conduzir comboios, o jovem diplomata também evidencia
a falta de consonância entre preceitos liberais e a experiência da sociedade japonesa.
Ademais, além do preparo, faltariam também o direito e a autoridade para decidir a
execução prática dos princípios democráticos. De tal representação pode-se
concluir que o personagem alimentava um caráter restrito e autoritário da
democracia, que não deveria ser universal e participativa, mas exercida pelos
capacitados em nome da ordem social; este sim, o verdadeiro interesse da
população. Tanto quanto o controle dos trens estava nas mãos dos maquinistas, o
poder deveria ser organizado e gerido em cada nação pelos seus mandarins.
Neste sentido, a filosofia política de Alberto Franco Nogueira parece constituir a
defesa de uma clássica imagem de despotismo oriental. Seus fins, contudo, não
eram os de construir, pela contraposição, uma identidade europeia ilustrada e
distante do tradicionalismo japonês, como seria o caso do orientalismo habitual. Na
verdade, a trajetória do personagem permite entender que já havia profundo e
íntimo apreço às formas autoritárias de governo, a partir do qual devem ser
compreendidas suas alusões jocosas aos democratas de Tóquio. Entretanto, seu
discurso não se qualifica por isso como um orientalismo menor. Edward Said
assevera que “falar de orientalismo é falar de um arranjo complexo de idéias
“orientais” [o despotismo oriental, o esplendor oriental, a crueldade, a
sensualidade.]” [Said, 1996, p. 30].

Ressalta-se, portanto, que a tendência a ver o nipônico como um povo mais afeito
a regimes autoritários segue sendo, no mínimo, o reflexo de uma longa tradição de
orientalismos, a despeito do objetivo conjuntural e cognoscível de Franco Nogueira.
Quanto mais não fosse pela intenção manifesta de criar um discurso sobre o modus
operandi da política japonesa e de determiná-la com a autoridade de um observador
que domina o assunto, sê-lo-ia devido ao fato de que, como disse Said, “o
orientalismo não só cria, mas igualmente mantém.” [Said, 1996, p. 41] E há
passagens em abundância no diário do diplomata que fazem manutenção das
definições do que pensaria o japonês, como o que escreveu no dia 6 de dezembro
de 1946:

“O japonês tem perfeita consciência de que o Imperador é um ser


humano, que nasce, dorme, come, bebe, faz a barba e espirra como o
vizinho da esquina. Simplesmente, esse ser humano é um símbolo: e
este é sagrado porque é o símbolo da pátria, do próprio Japão, dessa
mesma nacionalidade que se mantém íntegra há dois mil anos. [...] Ele
concentra a presença dos vivos e a presença dos mortos, a cadeia dos
antepassados. É a tradição viva.” [Nogueira, 2019, p. 129]

O diplomata havia constatado, em meio aos escombros do pós-guerra, que o


nipônico não tinha uma essência democrática, tipo de doutrina política natural ao
mundo anglo-saxão, e que as vozes estridentes de seu novo regime eram tão
desarmônicas com seu verdadeiro interesse que não causaram mais que torturas:

“No fundo, ajudam à confusão geral e não atiram para a arena uma idéia
construtiva que auxilie a solução dos problemas imediatos. Num ponto,
todavia, se congregam as facções díspares: no desejo de paz,
proclamada em vozes tão estridentes que mais se diriam gritos de
guerra. Entrementes, a massa anônima, a que paga o imposto e cultiva
o arroz, vai padecendo com estoicismo as torturas da democracia nova:
inflação que atira os preços às alturas; comércio exterior proibido;
mercado negro; desorganização administrativa; corrupção; e,
sobretudo, eleições de quarto em quarto de hora, visto que hoje tudo
aqui se escolhe por sufrágio do povo soberano, desde o contínuo da
regedoria local até ao Primeiro-Ministro. Para onde irá o Japão?”
[Nogueira, 2019, p. 102]

Destarte, no foro pessoal de um diário, Franco Nogueira parece ter escolhido


digladiar-se pela causa imperial, cujos inimigos eram tanto os comunistas quanto
os democratas, termos que prenunciavam o que viria a ser também sua vocação
pública:

“Agora desviaram-se as atenções para o Imperador. O mais cordatos


limitam-se a falar dele como de um indivíduo privado. Devassam-lhe a
vida, os passatempos e o vestuário; exigem que o Trono esteja a dieta
como todo o japonês, com o mesmo arroz e nem um bago a mais; e
criticam-lhe o salário máximo estabelecido pelo parlamento. Uma
escassa minoria de energúmenos [em que avultam os comunistas] vai
mais longe. Para estes, Sua Majestade é simplesmente um criminoso
nato. Foi ele que fez a guerra, usando de ardis e de processos ínvios; é
também culpado de ter perdido a guerra, por frouxidão na sua conduta;
e agora mesmo está cometendo o pecado hediondo de não aceitar o
evangelho novo, convertendo-se, como lhe compete, à democracia
benfazeja. É um inimigo fidagal do povo e deve por isso ser julgado,
em público, aplicando-se-lhe a pena máxima. Se isso não é possível
então que saia do palácio, e ande a pé, e abanque num restaurante de
Ginza, com amigos, para uma rodada de cerveja, com o chapéu para a
nuca. Que se mostre, em suma, um autêntico democrata, exemplo e
guia. Só assim os seus crimes serão arquivados.” [Nogueira, 2019, p.
127]

Nas observações que compõem seu diário, o diplomata parece fazer exercícios de
tolerância e compreensão que, na prática, seriam uma velada autorreferência ao
regime português; um elogio às formas autoritárias e tradicionalistas da política. No
contexto do pós-guerra, sua visão de mundo reflete amplamente o discurso
salazarista de equidistância declarada aos “cezarismos pagãos” e às democracias,
como descrito por Reis Torgal [Torgal, 2001, p. 318]. Segundo o próprio Franco
Nogueira, sua hipótese seria confirmada após ser reconhecida até pelos norte-
americanos:

“[Os americanos] cedo compreenderam que o Trono é instituição-base,


e que por seu intermédio podem mais facilmente operar. Além disso,
representa estabilidade, solidez, garantia de união. Nunca desejaram,
portanto, que o Imperador fosse incluído na extensa lista dos criminosos
de guerra. Sem o Trono, com efeito, o Japão de lés a lés seria fornalha
de paixões convulsivas e desencontradas.” [Nogueira, 2019, p. 130]

Desta experiência de Franco Nogueira em Tóquio, conclui-se, em primeiro lugar,


que o diplomata já punha, muito tempo antes de seu ministério, a preservação da
ordem social como primeiro objetivo da política. Sua perspectiva não deixava de
fortalecer-se diante do que entendia ser uma comunhão de perspectivas com
Washington; a política moderada desenvolvida pelos norte-americanos para o
Japão, poupando o Imperador Shōwa de cortes marciais e privilegiando a
reconstrução da ordem no país.

Mas o Japão de Franco Nogueira existia com propósitos alheios a Washington e sua
geopolítica. O conhecimento ostentado sobre a história do país lhe era útil como
acusação à democracia pela falta de propósito nacional. As observações de sua
experiência na capital nipônica lhe convenciam da pessoalidade natural do poder e
do fundamento cultural das sociedades estamentais. Em última instância, as
imagens orientais construídas pelo futuro ministro reforçavam a postura oficial do
Estado Novo de censura às inclinações democráticas. Sua leitura do Japão produzia
justificativas para um regime reacionário e oligárquico em Portugal.

Referências
Gustavo Souza de Deus da Silva é doutorando em História pelo PPGHIS-UFRJ, e
pesquisa temas ligados à política externa portuguesa e à descolonização.

LUCENA, Manuel de. Os lugares-tenente de Salazar. Lisboa: Alétheia Editores,


2015.
NOGUEIRA, Franco. Tóquio Diário, 1946. Lisboa: Tinta da China, 2019.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de
Tomás Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
TORGAL, Luís Reis. O Estado Novo. Fascismo, Salazarismo e Europa. In.
TENGARRINHA, José [Org.]. História de Portugal. 2. Ed. São Paulo: UNESP,
2001.
A CONCEPÇÃO DE TOYO E O CONTRASTE
COM O ORIENTE
Levi Yoriyaz
O Oriente e o Ocidente imaginado pelo Japão
A presença europeia no Extremo Oriente e os seus avanços imperialistas nas nações
como a China e Índia, levaram a elite japonesa lidar num dilema de definir o que é
‘ser civilizado’, levando em conta com as concepções de ‘progresso e
desenvolvimento’, como referência para estabelecer um ideal de uma nação forte e
próspera. O problema desta discussão é que o governo japonês no final da gestão
Tokugawa [1603-1869] e no início de Meiji [1868-1912] testemunhou o potencial
das indústrias europeias, assim como a execução de seu poderio bélico nas nações
vizinhas do Japão. Desse modo, questões como civilização, modernização, tradição,
ciência e razão se tornam tópicos de discussão entre os pensadores e intelectuais
japoneses, ao comparar a sua cultura com a europeia, com o intuito de resolver um
problema emergente, que consiste em responder ‘o que de fato é civilização?’

Este movimento pode ser caracterizado mais como uma reação, pois os estadistas
japoneses assistiram a nações como China e Índia serem submetidos pela
administração europeia através dos movimentos de expansão imperialista vindos
do ocidente à Ásia. Tanto os chineses e indianos acabaram perdendo grande parte
de sua autonomia administrativa, tanto na sua soberania de gerir seu território
quanto no controle de exportação e importação de mercadorias no âmbito
internacional. A Índia era administrada pelo Raj britânico em Calcutá desde 1858,
enquanto a China sofria com crises sanitárias e econômicas devido ao ópio nos
intervalos de 1830 a 1860. Além disso, este período foi marcado pelas Guerras do
Ópio e os chamados Tratados Desiguais, como os tratados de Nanjing [1842] e de
Tientsin [1858], em que cidades portuárias chinesas passaram a ficar sob controle
da jurisdição britânico. Tais circunstâncias fizeram com que o governo japonês
tomasse um posicionamento e medidas para preservar a soberania de sua nação,
temendo a possibilidade das potências ocidentais subjugarem o Japão da mesma
forma como fizeram nos governos vizinhos. Para isso, foi necessário que os
estadistas reformulassem a composição e estrutura de governo, assim como haveria
de mudar a referência a respeito do saber tecnológico, atualização do conhecimento
científico.
Segundo Stefan Tanaka, em Japan’s Orient: rendering pasts into history [1993], o
Japão se encontrava num processo de mudança epistemológica e etimológica em
relação a sua própria identidade, assim como de seu relacionamento com os demais
países vizinhos. Por exemplo: antes a China era considerada referência central para
os japoneses. A sua fundamentação de sociedade era e institucional baseada nos
princípios confucionistas chineses. Este modo de administração tem sido adotado
como modelo durante séculos, não apenas no Japão, mas também nos reinos
coreanos [WATANABE, 2010, pg. 70]. Porém, com o advento das Guerras do Ópio
e a fragilização do império chinês perante a expansão imperialista britânica, a China
deixou de ser referência de uma nação modelo para os japoneses, e as nações
ocidentais passaram a ser vistas como uma modelo alternativo, no sentido de
desejarem obter a mesma superioridade bélica que os europeus. Desse modo,
estadistas e pensadores japoneses como Enoki Kazuo [1913-1989], passaram a
alterar sua perspectiva sobre a concepção de ‘civilização’, ‘modelo de nação’ e
mudar a sua postura e até mesmo a forma de tratamento dos demais países vizinhos.
Podemos observar esta situação no caso da China, com a proposta de alterar o termo
chugoku, forma utilizada pelos japoneses para se referir a China, para shina:

“Shina is the Japanese appellation for China most commonly used


during the first half of the twentieth century. After the World War II the
name for China reverted to chugoku [Middle Kingdom], a common
name from before the Meiji Restoration [1868]. Throughout much of
Japan’s modern period various groups used shina to emphasize
difference: nativist [kokugaku] scholars, for example, used shina to
separate Japan from barbarian/civilized or outer/inner implication for
the term chugoku; and in the early twentieth century Japan, shina
emerged as a word that signified China as a troubled place mired in its
past, in contrast to Japan, a modern Asian nation.” [TANAKA, 1993,
pg. 3-4]

É interessante a alteração da nomenclatura de chugoku para shina considerando a


relação China-Japão que compartilham o mesmo prisma linguístico, e que via
razões políticas, ocorresse a implementação de um termo ocidental “China”, no
lugar. Pois a constituição da palavra “china” advém das impressões dos viajantes
europeus, no caso, de Marco Polo. E é importante frisar que este termo não exprime
a identidade ou a realidade interna dos chineses ou dos japoneses. A expressão
chugoku [中国], por sua vez, é compartilhado tanto na língua chinesa quanto
japonesa, no caso, o termo tem o sentido de reino central, ou reino do meio
[GARNET, 1996]. Esse termo expressa a ideia de que a China seria representada
como o centro do mundo, no sentido geopolítico, sugerindo uma posição da cultura
chinesa como um modelo de civilização que se difundia às regiões da Indochina,
Coreia e Japão.

A menção de kokugaku [国学 – “estudo do país”] na arguição de Tanaka consiste


em citar uma vertente de intelectuais, durante a Era Meiji [1868-1912], que
propõem a rejeição dos ensinamentos budistas e confucionistas. Segundo este
grupo, os valores da fé xintoísta como deveria ser a base do Estado japonês, onde a
figura do imperador seria legitimada via um discurso religioso, implementando a
visão de história de que os imperadores detêm o poder legitimo de governar
[NAGAHARA, 1998, pg. 53].
Assim, o deslocamento da utilização do termo shina [支那] em vez de chugoku foi
um movimento de considerar a China como uma nação vizinha num patamar de
igualdade. Logo, a menção do império chinês não seria mais vista como uma
referência de uma ‘civilização-modelo’. A adoção da expressão shina é a mesma
que os europeus utilizam para mencionar ‘China’, o que significaria uma alteração
da relação política entre o Japão-China. Isso quer dizer que a nação chinesa seria
tratada apenas como um país estrangeiro, da mesma forma que qualquer outra nação
vizinha. Todo este deslocamento se deu devido a contribuição dos eventos das
Guerras do Ópio [1839-1860] e dos Tratados Desiguais que a China teve de assinar
com as nações europeias. Isto provocou uma reação da parte dos estadistas e
pensadores japoneses a terem de mudar a sua postura internacional em relação as
nações vizinhas e as potências europeias.

A concepção de Toyo – um contraponto de ‘oriente’


Sobre a relação do Japão com as nações vizinhas e o Ocidente, considerando a
conjuntura da China enfrentando os Tratados Desiguais e a ocupação inglesa nas
suas cidades portuárias, estadistas e pensadores como Sakuma Shozan [1811-1864]
desenvolveram a concepção de toyo [‘Leste’ ou ‘Oriente’] [TANAKA, 1993, pg.
5]. Nela se estabelece uma imagem de definir o ‘oriente’ segundo a perspectiva
japonesa, enquanto seiyo [‘Oeste’ ou ‘Ocidente’] trataria de assuntos relacionados
a cultura ocidental.

A concepção de toyo [東洋] teve como função estabelecer uma identidade para o
Japão, no sentido de que o governo japonês assumiu uma postura como nação
moderna. Este movimento estabelece uma distinção com países vizinhos como a
China, Índia e Coreia, no quesito geopolítico, onde o Japão representaria a figura
de uma nação asiática moderna, tomando uma posição central, enquanto as demais
nações apresentariam um papel secundário. A proposição de toyo também
correspondeu a um englobar a cultura do leste asiático, tomando como referência a
sua filosofia e ética com a finalidade de se diferenciar do Ocidente. O conceito de
toyo, no entanto, se distingue da concepção de oriente estabelecido pelas
instituições europeias, que procuraram caracterizar as culturas asiáticas na categoria
de oriental. O foco de desenvolver a ideia de toyo se dava em estabelecer uma
distinção entre a Europa e a Ásia [entende-se ‘Ásia’, nesta discussão, como o Japão,
China, Coreia, e as culturas da Indochina], mas também servia de referência para
diferenciar a cultura japonesa da Ásia, com a busca de encontrar uma identidade
própria sem nenhum vínculo externo.

A discussão e o desenvolvimento da concepção de toyo, no entanto, não foi


formalizada no meio acadêmico, o desdobramento deste tema foi via trabalhos e
escritos e reflexões de estadistas japoneses como Honda Toshiaki [1744-1821] em
Contos do Ocidente de 1798 e de Sakuma Shozan ao ter articulado a frase, “ética
asiática e aprendizado da técnica ocidental” [tōyō dōtoku, seiyō gakugei - 東洋道
徳西洋学芸]. Ambos tiveram participação durante os períodos finais da
administração Tokugawa na década de 50 do século XIX e eram apoiadores da
política de que o governo japonês deveria reabrir os seus portos e iniciar atividades
comerciais com as nações do Ocidente. Desse modo, foi via a estes estadistas que
se desenvolveu a imagem do “Ocidente” como sinônimo de aperfeiçoamento
técnico e de modernização, enquanto o ‘oriente asiático’ remeteria os princípios
éticos e morais.

Okakura Kakuzo – ‘A Ásia como contraponto ao Ocidente’


A base que sustentou o conceito de toyo partiu das reflexões de Okakura Kakuzo
[1862-1913] na obra Ideals of East, de 1903. A sua proposta consistiu em incorporar
a imagem do Japão como a manifestação de toda a cultura asiática, alegando que a
arte japonesa é fruto da junção da filosofia, religião e da estética chinesa e indiana.
Sendo assim, o Japão seria a síntese do que pode ser afirmado o como ‘cultura
asiática’ ou o representante da Ásia. Nesse sentido, a imagem do Japão passou a
apresentar um perfil centralizador, o qual, segundo Okakura, apresentaria um papel
de protagonismo, de modo que o Japão receberia o papel de ‘reviver a unidade
asiática’ e defender a cultura oriental da ocidentalização na Ásia [TANAKA, 1993,
pg. 14].

O posicionamento de Okakura consistia em contrapor o avanço imperialista


europeu no contexto japonês no recorte da gestão Meiji, criticando o processo de
‘ocidentalização’. Nesse ponto, Okakura estabelece uma imagem de ‘Ásia’ que se
distingue da Europa, argumentando que os povos asiáticos já apresentam uma
concepção de ‘arte’, ‘cultura’, ‘civilização’ e ‘história’. Assim, para Okakura, não
haveria a necessidade do Japão, por exemplo, em adotar ou se espelhar num modelo
europeu para complementar as práticas sociais e culturais que fundamentassem a
identidade de uma nação asiática:

“Asia is one. The Himalayas divide, only to accentuate, two mighty


civilizations, the Chinese with its communism of Confucius, and the
Indian with its individualism of the Vedas. But not even the snowy
barriers can interrupt for one moment that broad expanse of love for the
Ultimate and Universal, which is the common thought-inheritance of
every Asiatic race, enabling them to produce all the great religions of
the world, and distinguishing them from those maritime peoples of the
Mediterranean and the Baltic, who love to dwell on the Particular, and
to search out the means, not the end, of life.” [OKAKURA, 1920, pg.
1]

A obra de Okakura, Ideals of East de 1903, apresentada acima, teve como função
estabelecer um manifesto de que a “Ásia” é uma junção de culturas que apresentam
‘elementos’ de ‘civilidade’ que seguem a definição europeia, assim como é uma
forma de defesa, alegando que os povos orientais também possuem filosofia,
história, e conhecimento científico do mundo natural. Para isso, Okakura toma
emprestado expressões como ‘civilização’, ‘indivíduo’, ‘universal’ como forma de
apresentar tanto o Ocidente e o Oriente numa relação de equivalência, contestando
o argumento de que a cultura europeia é superior à asiática [RACEL, 2011, pg. 71].
Assim, a argumentação de Okakura serviu como base para a conceituação de toyo,
dando corpo a uma representação de oriente que contraponha com os valores do
ocidente.

A formalização de Toyo na Academia Japonesa


O desenvolvimento da concepção de toyo foi formalizado no meio acadêmico a
partir de Shiratori Kurakishi [1865-1942] propondo a expressão toyoshi que
significa ‘História Oriental’. O objetivo era extrair características culturais e sociais
das nações como a China e Índia que indicassem pontos que colaboraram para a
formação da cultura japonesa, tais como a escrita e as artes. Este procedimento
atentava à análise e coleta de fontes escritas [documentos, crônicas e relatórios
oficiais] via uma abordagem indutiva, atentando à descrição minuciosa e da
precisão dos fatos [TANAKA, 1993, pg. 10-11].

A proposta de toyoshi [東史], para Shiratori consiste em fazer uma história da Ásia,
separando-a, assim, dos eventos da Europa. Para os estudos concernentes a
narrativas e acontecimentos históricos europeus, haveria o seiyoshi [西史]. Assim,
apresentaria duas histórias a serem narradas e estudadas de maneira separada.
Toyoshi teria o papel de desdobrar as bases que moldaram a formação cultural e
social dos povos orientais, traçando uma narrativa que elabore propostas de
identidade nacional para o Japão, enquanto seiyoshi estaria encarregado de
desenvolver estudos de como os reinos europeus apreenderam as técnicas e modelos
institucionais ou, em outras palavras, ‘como se deu o processo de modernização na
Europa’. O objetivo dos estudos em seiyoshi era buscar possibilidades de aplicar ou
adequar estes ‘modelos’ e ‘técnicas’ estrangeiras nas instituições japonesas como
sinal de modernizar o país.

Um grande exemplo de intelectuais japoneses que se inspiraram em ideais europeus


como proposta de governo foi Fukuzawa Yukichi [1834-1901]. A sua proposta se
dava em desenvolver estudos sobre a história e a cultura europeia, no intuito de
otimizar o ensino a respeito do conhecimento das ciências naturais, históricas e
políticas no contexto japonês. Segundo Yukichi, o Japão, durante a Era Meiji [1868-
1912], era uma nação semi-civilizada e incompleta, que necessitava do
‘complemento do conhecimento científico europeu’ para se tornar moderna
[RACEL, 2011, pg. 72-73]. Nesse sentido, Yukichi publicou a série Seiyo Jiyo [西
洋事情 - Condições do Ocidente] de 1866-1870 e Seiyo tabi na’nai [西洋旅案内-
Guia de Viagem para o Ocidente] de 1867, como materiais e referência sobre as
sociedades europeias, apresentando a descrição dos hábitos e costumes, mais o
detalhamento dos modos de governo e conhecimento tecnológico utilizado na
Europa.

A disseminação de materiais e ensino de técnicas e informações relacionadas a


cultura europeia ficou conhecido como bunmei kaika [文明開化- civilização
iluminada], movimento que motivou pela divulgação de ideias referentes ao
Iluminismo europeu [EHALT, 2013, pg. 121]. Além disso, Yukichi também foi
responsável por fundar a Universidade de Keio, em 1858, uma das primeiras
instituições de ensino superior, cuja especialidade foi em tratar de estudos sobre o
Ocidente [MACFARLANE, 2013, pg. 22]. Nela, foram divulgados os
ensinamentos de bunmei kaika, que se tornou uma vertente historiográfica
conhecida como ‘história civilizatória’, cujo lema era inserir a história do Japão
como parte da narrativa da história universal proposta pelos europeus. Acreditava-
se que realizando este tipo de adoção poder-se-ia desenvolver uma narrativa em que
o processo de modernização seria um fenômeno natural que devesse ocorrer em
todo tipo de sociedade, uma vez quando for dada as circunstâncias adequadas para
a determinada cultura se modernizar. O diálogo com essas ideias permitiu a Yukichi
a escrita do livro An Outline of a Theory of Civilization de 1875. Nela, o autor
argumenta da necessidade do governo japonês tomar medidas, adotando a ciência
europeia como modelo de conhecimento e referência de civilização como um
padrão a ser seguido, alegando que a Europa é um exemplo de uma cultura
desenvolvida e avançada, em contraste ao saber ‘oriental’, que Yukichi considera
como obsoleto e supersticioso [FUKUZAWA, 1875, pg. 99].

Conclusão
Pudemos ver que dentro da conjuntura intelectual japonesa, durante o final do
século XVIII e no decorrer do XIX, se faziam presentes discussões e propostas de
definir e representar concepções de ‘oriente’ e ‘Ásia’. O conceito de toyo é um
exemplo em que se tem a tentativa de afirmar a cultura asiática, procurando
distingui-la do ‘ocidente’ por meio do apontamento de trajetórias históricas e
culturais que englobam uma noção de identidade compartilhada entre as
comunidades asiáticas [lembrando que estas interações foram focadas mais na
conjuntura Japão, China e Índia]. Enxergamos essa tentativa por meio dos
argumentos de Okakura Kakuzo e Shiratori Kurakichi, nos quais a ‘Ásia’ é
apresentada como o palco de compartilhamento de culturas, religiões e filosofias,
onde há formalização de uma possível identidade para o Japão. Enquanto para
Fukuzawa Yukichi, Japão necessitava de uma nova referência de conhecimento,
onde a sua metodologia fosse mais precisa, experimental, que superasse os saberes
da ciência chinesa. Para isso, Yukichi propôs a construção de escolas, cujo o ensino
se voltasse a estudos sobre a cultura europeia, sua ciência e filosofia, acreditando
que apenas dessa forma, seria possível da sociedade japonesa obter a condição de
uma cultura vista como ‘civilizada’ e ‘moderna’.

Referências
Levi Yoriyaz é mestrando em História na área de História Cultural do Programa de
Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na Unicamp, sob a
orientação da Prof.ª Dr.ͣ Raquel Gryszczenko Gomes Alves. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5526528700450072. Dr.ͣ Raquel Gryszczenko Gomes Alves é
professora na área de História Contemporânea Unicamp, e coordena o grupo de
pesquisa Mulheres de Letras: escritoras do século XIX e XX, Brasil, Europa e África.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1311323568131529.
EHALT, Rômulo Silva. Notas sobre o nascimento da historiografia moderna no
Japão. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 12. Agosto, 2013. pg. 121.
GARNET, Jacques. A history of Chinese civilization. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996.
MACFARLANE, Alan. Fukuzawa Yukichi and the making of the modern world.
Scots Valley: Create Space Independent. 2013.
NAGAHARA, Keiji. History and State in the Nineteenth-Century Japan. Tóquio:
Ypshikawa Kobunkan, 2003.
OKAKURA, Kakuzo. Ideals of the East: with the special reference to the art of
Japan. New York: E. P Dutton, 1920.
RACEL, Masako N. Finding their place in the world: Meiji intellectuals and the
Japanese construction of east-west binary, 1868-1912. Georgia: Georgia State
University, 2011.
TANAKA, Stefan. Japan’s Orient: rendering pasts into History. California:
University of California Press, 1993.
WATANABE, Hiroshi. História do pensamento político no Japão. Tóquio:
University of Tokyo Press, 2010.
YUKICHI, Fukuzawa. An outline of a theory of civilization, 1875. Tokyo:
Columbia University Press, 2008.
O ORIENTALISMO EM ‘TENT LIFE IN SIBERIA’, DE
GEORGE KENNAN
Nykollas Gabryel Oroczko Nunes
Introdução
O livro ‘Tent Life in Siberia’, do estadunidense George Kennan [1845-1922], é um
relato de viagem lançado originalmente em 1870. Nele, o autor faz uso de uma série
de tradições intelectuais para representar o ambiente e o povo do nordeste siberiano
para seu público leitor, assim como para construir sua narrativa. Este trabalho busca
apresentar uma análise do orientalismo como um dos pilares da escrita de Kennan.

O conceito de orientalismo utilizado se baseará na formulação clássica de Edward


Said. Compreende-se tanto a obra de Kennan como o conjunto de outras
textualidades das quais ele faz uso como parte do orientalismo no “sentido mais ou
menos imaginativo” descrito por Said [2012, p. 26] para se referir ao conjunto de
representações orientalistas não-acadêmicas. Por outro lado, ao longo da narrativa
o autor descreve situações e atua em papéis que conformam o orientalismo em seu
caráter mais institucional, como estrutura de dominação, no significado “histórico
e material” [SAID, 2012, p. 26] do termo. Para prosseguir com a análise, entretanto,
é necessário primeiro contextualizar o livro de Kennan e seu objeto.

O relato de Kennan foi escrito nos anos que se seguiram à expedição da qual o autor
participou, objeto da narrativa. Esta expedição, chamada de Russo-American
Telegraph [Telégrafo Russo-Americano] ocorreu entre 1865 e 1867. Seu objetivo
era conectar as linhas telegráficas dos Estados Unidos, partindo da costa oeste, até
as linhas siberianas que estavam sendo estendidas até o outro lado do Oceano
Pacífico pelo Império Russo. Feito isto, estaria estabelecida uma conexão entre os
EUA e a Europa ocidental por via majoritariamente terrestre, o que parecia uma boa
ideia, tendo em vista as falhas recentes do Cabo Atlântico, que ainda não havia
conseguido conectar permanentemente a costa leste estadunidense ao Reino Unido.

Kennan participou da primeira fase da expedição, sendo um dos responsáveis pela


prospecção da porção siberiana do terreno previsto para a linha. Uma vez lá, ele fez
parte de uma equipe que avaliou qual seria a rota mais viável e eventualmente
começou a contratar mão-de-obra nativa para cortar madeira para os postes e
preparar as estradas, cabines e toda infraestrutura que fosse necessária. Com esta
finalidade, ele percorreu diversos cenários do nordeste siberiano, e conviveu com
várias populações nativas ou colonizadoras do local, como os “kamtchadais” [nos
termos de Kennan, hoje esta população é mais conhecida como itelmen], os
coriacos, os tchuktchis e os tungues no primeiro grupo, e os russos no segundo. A
empreitada do Telégrafo Russo-Americano, contudo, teve um fim prematuro em
1867, quando chegaram à Sibéria as notícias de que seu adversário, o Cabo
Atlântico, havia finalmente obtido sucesso no ano anterior, tornando a rota siberiana
obsoleta. Sem o retorno esperado pelo seu investimento, Kennan regressou aos
Estados Unidos, onde conseguiu usar a experiência para ministrar diversas palestras
[TRAVIS, 1990], escrever artigos para revistas, e eventualmente seu livro, ‘‘Tent
Life in Siberia’’.

O orientalismo em ‘Tent Life in Siberia’


Nesta narrativa de viagem siberiana, há diferentes maneiras em que surge o
orientalismo. No âmbito “imaginativo”, é possível analisar como a narrativa de
Kennan faz uso de um imaginário que circulava no século XIX para tentar explicar,
ou exemplificar, o que está sendo narrado. Neste caso, o orientalismo aparece como
um conjunto de referências que o autor usa em seu texto, indicando a percepção de
que são compartilhadas com seu público, e consideradas úteis para o seu
entendimento do outro e da narrativa.

Outros conjuntos de representações também são similarmente mobilizados ao longo


da narrativa. Foi possível identificar, por exemplo, as matrizes romântica e greco-
romana como importantes fontes de referência intertextual na escrita de Kennan
[OROCZKO NUNES, 2020]. Avaliar como orientalismos surgem no texto
possibilita considerar a posição ocupada por este discurso em meio aos outros
presentes no texto de ‘Tent Life in Siberia’.

Enquanto reclamava da monotonia da vida entre os coriacos nômades, causada em


grande parte pelo isolamento, Kennan descreve como acreditava ser a vida do típico
membro deste grupo: "Um ocasional nascimento ou casamento, o sacrifício de um
cão, ou, em rara ocasião, de um homem ao Arimã Coriaco, e as visitas infrequentes
de um mercador russo, são os mais proeminentes eventos em sua história, do berço
ao túmulo." [KENNAN, 1870, p. 205, tradução minha] O autor permanece ao longo
de todo o seu livro se referindo aos objetos das crenças dos grupos não-russificados
como "espíritos malignos”, mas no trecho referido utiliza esta referência ao
zoroastrismo para caracterizar esta entidade a quem eram dirigidos sacrifícios,
percebida como diabólica. Em outro momento, o autor traduz uma expressão nativa
como “o Diabo” [KENNAN, 1870, p. 385, tradução minha], então a opção pelo uso
de “Arimã” é uma escolha deliberada: para Kennan, a noção de diabo existia entre
as populações, a entidade adversária do zoroastrismo é apenas a aproximação da
qual ele se utiliza para inserir as religiões nativas em um imaginário particular, sem
em momento algum confundi-las com a religião indo-iraniana.

Na análise de Kennan, tanto grupos por ele caracterizados como originalmente


chineses como outros de origem turca haviam desenvolvido exatamente as mesmas
crenças religiosas, o “xamanismo”. Tal convergência se explicaria pela natureza
siberiana, capaz de exercer tamanha pressão sobre um grupo que invariavelmente
ele se converteria a tal credo. Para ilustrar seu argumento, o autor traz a hipótese de
que “[s]e um bando de ignorantes, bárbaros maometanos fossem transportados para
o nordeste siberiano” [KENNAN, 1870, p. 211, tradução minha] e expostos à
natureza da região, eles quase certamente deixariam sua religião para trás e também
se tornariam xamanistas. Nesta circunstância, o islã é trazido para ilustrar a força
desta natureza para moldar a cultura: compreende-se que o argumento é de que a fé
de “bárbaros ignorantes”, que não havia se alterado pelos séculos de contato com a
civilização Ocidental, desaparecia frente à realidade ambiental siberiana.

Fora do contexto religioso, outras questões pontuais também são trazidas por
Kennan ao longo de todo o seu texto. Montanhas “rivalizam em beleza pitoresca, e
em singularidade de forma, o mais selvagem sonho de um arquiteto do Leste”
[KENNAN, 1870, p. 79, tradução minha]. O chefe de um vilarejo se curvava
repetidamente “com a persistência impressionante de um mandarim chinês”
[KENNAN, 1870, p. 93, tradução minha]. O autor sugere que o leitor imagine os
vilarejos como assentamentos de fronteira estadunidenses organizados ao redor de
“uma mesquita turca de cores alegres” [KENNAN, 1870, p. 63, tradução minha],
referindo-se a igrejas do cristianismo ortodoxo.

A disponibilidade de versões traduzidas de obras como As Mil e Uma Noites entre


o público leitor falante de língua inglesa significava que estas também podiam ser
mobilizadas como parte do imaginário sobre o oriente, transportado para a Sibéria.
O autor inclusive mescla diferentes referências, trazendo simultaneamente As Mil
e Uma Noites e a Odisseia [ou um poema de Tennyson]. Uma tarde anormalmente
agradável, quente e que induzia sonolência foi descrita por Kennan como tendo-o
levado a se perguntar se ele não teria sido transportado “para o clima dos
Comedores de Lótus por um artifício mágico das mil e uma noites” [KENNAN,
1870, p. 72, tradução minha].

Ainda no aspecto das representações, o orientalismo também surge no texto de


Kennan quando ele mesmo reproduz discursos orientalistas. Isto se aplica ao espaço
siberiano e às populações que o habitavam, mas também ao falar de si mesmo, da
civilização ocidental e do estadunidense como categorias contrastantes com aqueles
sujeitos e locais descritos. O orientalismo emerge aqui como retórica da alteridade.
A aplicabilidade do conceito de orientalismo especificamente como retórica da
alteridade no contexto siberiano talvez mereça breve comentário.

Edward Said desenvolveu seu conceito de orientalismo sobre a região do Oriente


Médio. Contudo, aquilo que se encaixa na definição de oriente de Said não é
geograficamente atado ao local da formulação original. A retórica de alteridade
chamada de orientalismo surgiu incontáveis vezes em discursos sobre os lugares
pelos quais hoje nos referimos como Oriente [seja Próximo, Médio, ou Extremo],
mas igualmente surgiu em outros lugares, mesmo que estes na verdade estivessem
geograficamente mais ao Ocidente do que a Europa. Onde surge o discurso sobre o
“outro” estabelecido nas lógicas observadas por Said, nascem simultaneamente um
orientalismo, um oriente e um ocidente para lhe servir de contraste. É o que permite
que Mendes e Queirós, por exemplo, afirmem que a Amazônia é o oriente brasileiro
[MENDES; QUEIRÓS, 2014].

Desta maneira, o caso siberiano pode ser abordado sem suscitar discussão, afinal é
um espaço onde – no mínimo no texto de Kennan – este discurso surgiu. Contudo,
acredito que um aprofundamento a respeito da Sibéria como oriente construído seja
proveitoso. No processo da expansão da Rússia imperial em direção ao
Pacífico, criou-se no imaginário russo uma visão geográfica do espaço siberiano
que muito compartilhava com o discurso orientalista produzido por sujeitos
imperiais da Europa Ocidental sobre o oriente [BASSIN, 2004].

Alguns aspectos da expansão russa, no entanto, como a contiguidade territorial do


império e a distância da própria russa com relação ao ocidente europeu, traziam
questões identitárias à sociedade russa que se faziam menos presentes em outros
contextos coloniais. A saber, havia um grande debate a respeito do que seria, em
essência, a Rússia, com dois pólos representados pela posição “ocidentalizante” e a
chamada “eslavófila”. Os intelectuais ocidentalizantes, como o termo sugere,
buscavam estabelecer a Rússia como parte do ocidente, enquanto os eslavófilos
afirmavam que a Rússia era uma entidade cultural, social e política diferente do
ocidente, que não devia forçar uma aproximação com aquele. A ocupação da
Sibéria teve grande importância para os eslavófilos, que passaram a se perguntar o
quanto a essência russa não estaria lá, e não nos centros imperiais como Moscou e
São Petersburgo. Surge assim uma dúvida identitária no Império Russo que esteve
ausente do discurso dos impérios do ocidente europeu: seriam eles mesmos oriente?
[BASSIN, 1991]

O rio Amur, no território explorado por companheiros de equipe de Kennan, vinha


há pouco mais de duas décadas tendo um papel central na discussão sobre a
“orientalidade russa”. Via-se no Amur um “Mississipi siberiano” e a possibilidade
de grande desenvolvimento econômico como o ocorrido nos Estados Unidos, o que
deveria ser acompanhado pelo desenvolvimento de um novo centro siberiano para
o Império e um reconhecimento da posição e da identidade russas como império
asiático [BASSIN, 2004]. Com o abandono deste projeto para a Rússia, a Sibéria
permanece como território colonizado pelo centro do Império, como o outro, o
oriente russo.

Esta percepção da Sibéria como oriente russo aparece nas maneiras pelas quais
Kennan reproduz lógicas orientalistas, especialmente com relação à figura do Major
Sergei Abasa, oficial russo companheiro de equipe do autor. Ao longo da narrativa,
o “Major” [como Kennan em geral se refere] continuamente trata as populações
siberianas, de origem russa ou nativas da região, como súditos coloniais, dando
ordens, ameaçando guias e condutores de trenós de cães, se referindo a eles como
bárbaros e selvagens. “O Major declarou que quando nossa linha estivesse em
processo de construção e ele tivesse força o bastante para fazê-lo, ele ensinaria aos
coriacos de Kamenoi uma lição que tão cedo eles não esqueceriam” [KENNAN,
1870, p. 231, tradução minha], o autor narra, ilustrando as relações citadas.
O próprio Kennan também se refere às populações siberianas encontradas como
selvagens e bárbaros, assim como os caracteriza como feios e estúpidos com
frequência. Com o intuito de classificar as pessoas quanto a características
biológicas, ele divide as populações nativas em três categorias: os do tipo indígena-
americano, os do tipo chinês, e os do tipo turco. Na segunda edição do seu livro, de
1910, Kennan trocou “chinês” por “mongol” no caso desta classificação
[KENNAN, 1910, cap. XXIX]. Não cabe entrar no mérito da precisão filogenética
do olhar do autor, mas a maneira como ele opta por classificar estes grupos é
reveladora das especificidades do discurso orientalista de Kennan, que encontra e
comenta estas raízes.

Kennan também reproduz bastante este discurso de alteridade ao se comparar com


os nativos. Em um trecho de sua narrativa, ele descreve como teria tentado provar
que conseguia conduzir os trenós de cães melhor que os nativos, e justifica esta sua
crença da seguinte forma:

"eu estava determinado a demonstrar, mesmo para suas compreensões


enegrecidas, que o conhecimento da civilização era universal em sua
aplicação, e que o homem branco, apesar de sua desvantagem de cor,
podia conduzir cães melhor por intuição do que eles podiam pela
sabedoria agregada ao longo de séculos; que na verdade ele podia, se
necessário, "evoluir os princípios de condução de cães a partir das
profundezas de sua consciência moral."" [KENNAN, 1870, p. 235,
tradução minha]

A tentativa do autor, previsivelmente, foi um completo fracasso, que ele não deixou
de relatar, mas que não abalou sua fé em sua superioridade. As maneiras como as
populações tradicionais não compreendiam tecnologias e mistificariam com
fósforos, bússolas e lunetas, ou a condescendência com a qual Kennan teria tentado
ensiná-los astronomia, são outros exemplos deste discurso de superioridade
ocidental que também representam esta retórica de alteridade.

Há ainda uma terceira forma assumida pelo orientalismo na narrativa de Kennan,


atrelada ao seu aspecto “histórico e material”. Esta surge quando o autor narra certos
tipos de relações de dominação com as populações locais siberianas, ou quando
descreve os planos da companhia para o futuro destas populações, ou ainda quando
prescreve o que julga ser o melhor curso de ação para a região, agora que o Cabo
Atlântico havia sido completado. A importância da análise simultânea deste tipo de
manifestação material do orientalismo àquelas anteriores, da alçada da cultura e da
representação, é destacada por Assunção:

“Desta forma, a partir de uma perspectiva decolonial, se busca evitar os


“desastres” tanto do reducionismo econômico quanto do reducionismo
culturalista ao perceber que a cultura está sempre entrelaçada e não
derivada, dos processos econômicos e políticos. Ao se tratar do
colonialismo, este entrelaçamento é significativo quando se analisa a
maneira como os discursos raciais organizam a população do mundo
em uma divisão internacional do trabalho que tem implicações
econômicas diretas.” [ASSUNÇÃO, 2020, p. 141]

Kennan era um agente diretamente envolvido nesta divisão internacional do


trabalho. Seus investimentos pessoais na companhia do Telégrafo Russo-
Americano [TRAVIS, 1990] significavam que ele tinha interesse econômico direto
na conclusão da linha telegráfica e no emprego de mão-de-obra nativa. Desta forma,
o próprio ‘Tent Life in Siberia’ torna-se espaço para o autor divulgar suas ideias de
como aproveitar o trabalho já feito e dar seguimento ao projeto, em passagens
prescritivas sobre a região.

Nestas, Kennan fala sobre o quanto [e por quanto] as populações siberianas


poderiam ser convencidas a trabalhar em um regime de contratação mais inserido
nas lógicas do capitalismo internacional do que nas lógicas de trabalho praticadas
por estes grupos populacionais, o quão pouco elas atrapalhariam a linha, e o que
precisaria ser trazido dos Estados Unidos. E tudo isto baseando-se nas suas
experiências pessoais contratando estas pessoas ao longo dos dois anos em que lá
esteve atuando em prol da empresa. “Vendendo seu peixe”, Kennan comenta
inclusive que acredita que a região percorrida seja a rota mais prática para uma
conexão telegráfica com a China do que a proposta que estava então sendo cogitada
– passando pelo Japão. [KENNAN, 1870, cap. XXXV] Do ponto de vista material,
o nordeste siberiano despontava para Kennan como uma zona que podia articular
conexões com o “Extremo Oriente”, se não fazia parte deste.

Considerações Finais
Apesar das constatações tecidas a partir dos estudos de Bassin citados, acredito que
a Sibéria frequentemente não é pensada como uma região parte de um “oriente”. O
caso de ‘Tent Life in Siberia’ e de George Kennan demonstra que o nordeste
siberiano foi enxergado como oriente, sujeito a retóricas de alteridade como aquelas
que se aplicaram em diversos outros contextos que reconhecemos pelo termo.
Espera-se que outros estudos no futuro sigam se perguntando o quanto o
orientalismo afetou as populações e o cenário siberianos, bem como as
representações destes, em diferentes contextos e mídias.

Referências
Nykollas Gabryel Oroczko Nunes é doutorando no programa de pós-graduação em
história da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [PUCRS] e
bolsista do CNPq.

ASSUNÇÃO, Naiara M. R. G. “Orientalismo”: o conceito de Edward Said e suas


críticas. In: BUENO, André [org.] Estudos em História Asiática e Orientalismo no
Brasil. 1a Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UERJ, 2020, 219 pp. Disponível em:
http://revistasobreontens.blogspot.com/p/livros.html. Acesso em: 17 set. 2021.
BASSIN, Mark. “Russia between Europe and Asia: The Ideological Construction
of Geographical Space.” Slavic Review, v. 50, n. 1, 1991, pp. 1–17. Disponível
em: www.jstor.org/stable/2500595. Acesso em: 17 set. 2021.
BASSIN, Mark. Imperial Visions: Nationalist Imagination and Geographical
Expansion in the Russian Far East, 1840–1865. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004.
KENNAN, George. Tent Life in Siberia: or adventures among the koraks and
other tribes of Northern Siberia. New York, Putnam and Sons, 1870.
KENNAN, George. Tent Life in Siberia: A New Account of an Old Undertaking.
New York: G. P. Putnam’s Sons, 1910.
MENDES, F. M. M; QUEIRÓS, F. A. T.. Do inferno ao paraíso: narrativas sobre
a Amazônia brasileira. Revista Igarapé, v. 3, n. 2 [2014]. Disponível em:
https://periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/849. Acesso em: 17 set.
2021.
OROCZKO NUNES, Nykollas Gabryel. George Kennan e a escrita do distante
em Tent Life in Siberia [1870]. Dissertação [Mestrado em História] – Escola de
Humanidades, PUCRS. Porto Alegre, p. 179, 2020. Disponível em:
http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9144. Acesso em 17 set. 2021.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
TRAVIS, Frederick F. George Kennan and the American-Russian relationship,
1865-1924. Athens: Ohio University Press, 1990.
REPRESENTAÇÃO FEMININA JAPONESA
NO FILME SAYONARA
Renata Sayuri Sato Nakamine
Introdução
É fácil observar a grande atração e paixão que Hollywood tem pela Ásia, basta
analisar a grande quantidade de filmes lançados sobre os países desta região. Este
interesse ainda se faz mais evidente quando se trata da cultura japonesa, onde
somente na década de 50 estrearam dez títulos com esta temática: Geisha Girl
[1952]; Oriental Evil [1952]; The Japanese War Bride [1952]; House of Bamboo
[1955]; The Teahouse of the August Moon [1956]; Sayonara [1957]; The Barbarian
and the Geisha [1958]; The Geisha Boy [1958], The Wind Cannot Read [1958] e
The Crimson Kimono [1959].

Seduzido pelas figuras do samurai e da gueixa, as produções norte-americanas


acabaram por se utilizar de conceitos marcados por estereótipos, idealizações,
romantizações e perspectivas euro-americacêntricas para retratar suas
representações, abarcando estas concepções generalistas e coloniais, sobretudo, na
caracterização da mulher japonesa, elencando-a como principal componente em
suas narrativas.

Ao pensar em representações femininas nipônicas no cinema hollywoodiano,


facilmente vem a memória a cena emblemática da protagonista Hana Ogi ao lado
do major Gruver no filme Sayonara, onde esta cede às investidas românticas do
oficial dizendo “I will never fall in love again, but I will love you, if that is your
desire...”.

Este discurso apelativo de perjúrio das próprias vontades diante da demanda


masculina, claramente associa a imagem de sujeição à personagem feminina,
despertando a necessidade de entender melhor a dinâmica do gênero na sétima arte,
assim como, entender as questões étnicas abordadas no filme. Para isto, propõe se
neste trabalho desenvolver um estudo, a fim de compreender como o cinema atua
na representação das mulheres japonesas, utilizando como objeto de análise, a
figura fictícia de Hana Ogi do longa-metragem Sayonara.

Filme Sayonara
Sayonara é um filme norte-americano, de cunho dramático, dirigido por Joshua
Logan. Roteirizado por Paul Osborn e baseado no romance de James Michener foi
lançado internacionalmente em 1957. Esta produção foi amplamente premiada,
levando quatro estatuetas do Oscars e um a prêmio do Globo de Ouro, recebendo
também indicações no BAFTA Awards, Directors Guild of America [DGA] e entre
outros no ano de 1958 [SAYONARA, [s.d.]].

O enredo gira em torno do major Lloyd Gruver [Marlon Brando], um piloto norte-
americano recém-realocado no Japão no ano de 1951. Comprometido com Eillen,
filha de seu superior, condena veementemente o casamento de seu amigo Joe Kelly
com Katsumi, uma mulher japonesa. Contrário a relacionamentos interétnicos entre
americanos e japoneses, tem seus valores e preconceitos confrontados ao se
apaixonar por Hana Ogi [Miiko Taka], uma atriz de uma companhia de teatro
feminina. O casal apaixonado mergulha em conflitos com a Força Aérea dos EUA,
enfrentando, discriminações e os próprios tabus culturais ocidentais e japoneses
[SAYONARA, 1957].

O cinema norte-americano e as representações femininas


O filme como produto cultural, tem uma alta capacidade de persuasão do
espectador, levando-o muitas vezes a acreditar que o que é expresso em tela reflete
a realidade. Entretanto, a produção cinematográfica, como qualquer criação
humana é calcada de subjetividade, expressa o contexto sócio-econômico, político
e cultural em que foi concebido, assim como, aponta as características de
individualidade do autor. Além de sua singularidade, este sustenta também sua
finalidade e propósito, revelando aquilo que o criador deseja. Conforme Betton
[1987, p.17-69] para dar a sensação de factualidade e convencimento a sua obra, o
cinema se utiliza de artifícios da linguagem cinematográfica para oferecer uma
maior verossimilhança a narrativa, manipulando a escala do tempo, valendo-se do
controle e do domínio espacial, fazendo uso das palavras, sons e trilhas sonoras,
bem como, utilizando outros elementos [específicos e não específicos] do sistema
fílmico, por meio da atmosfera do cenário; do efeito da iluminação; da composição
do guarda roupa [figurino]; do emprego expressivo da cor; do uso de tela larga; da
profundidade de campo e da representação desempenhada pelos atores que dão ao
discurso narrativo a impressão de realidade ao espectador.

Neste sentido, devido ao seu efeito simulacro do real, a sétima arte, adquire uma
grande relevância tanto na forma como a sociedade compreende determinadas
figuras, atitudes, comportamentos, ações e representações, como também revela a
forma como esta explora estes mesmos elementos. Com tal característica, este
artefato cultural e suas produções de imagens acabam por influenciar também na
constituição das concepções de gênero na vida cotidiana dos sujeitos
[ANACLETO; FILHO, 2013].

Como indícios de “construções culturais”, o gênero, se estabelece como uma


criação social de ideias que normatizam os papéis, funções e comportamentos
adequados aos homens e às mulheres. Em outras palavras, uma organização social
da diferença sexual definida por meio de símbolos e significados e determinada por
meio da hierarquização e relações de poder [SCOTT, 1995]. Segundo Teresa de
Lauretis [1994, p.228], a criação do gênero ocorre através de várias tecnologias do
gênero que possuem o poder de controlar o campo do significado social e assim,
conceber, articular e “implantar” as representações de gênero. Portanto, essas
tecnologias, são aparatos que operam mediante a procedimentos, técnicas, práticas
e discursos para compor sujeitos que se identifiquem como homens e mulheres.

Isto posto, é perceptível a profunda dependência do cinema com a questão de


gênero, assim como a evidente classificação deste como uma tecnologia de gênero.
Pois como pertencente ao manifesto das artes, logo, produto cultural, expõe assim,
as apreciações dos valores, comportamentos e práticas culturais de uma época,
como também, se demonstra afetado por estes. As obras cinematográficas, como
fonte de entretenimento popular, tornam-se um instrumento poderoso na educação
e doutrinação, um espaço oportuno para estabelecer discursos de dominação, bem
como, propagar os modelos e atribuições sociais entre os sujeitos. “O cinema, ao
produzir imagens, marca posições e papéis sociais, exprimindo e impondo crenças
em um quadro imaginário da coletividade” [ANACLETO; FILHO, 2013].

Na interação deste sistema sexo-gênero com o cinema, evidencia uma clara


desigualdade quanto a presença e a construção da figura feminina. A projeção da
mulher foi delineada pelo cinema americano, como uma mercadoria. Baseada no
sistema falocêntrico e submetida a tecnologia de gênero, seu significado social se
desenvolve a partir do prisma masculino para representar a realidade, atribuindo a
esta, concepções de submissão, catividade, objetificação, sexualização,
fetichização, colocando a como ocupante de um papel secundário nas tramas
[GUBERNIKOFF, 2016, p.8-128].

Sujeitas a hegemonia e dominação do discurso patriarcal, tornam-se objetos do


voyeurismo masculino, estimuladas ao narcisismo e consideradas como uma
espécie de “vitrine” ou “mulher-objeto” que remetem a idealização tirânica do
corpo feminino, manifestam modelos de comportamento e consumo e são vistas
como difusoras de estilos de vida, estimulando a dialética do espectador de ver e
ser [Idem, 2016, p.119-121].
Devido ao seu amplo alcance de audiência, o seu acesso às máquinas de controle
da sociedade e também pela capacidade de modificar a maneira dos sujeitos
perceberem o mundo, a arte cinemática, em poder dos agentes patriarcais exerce o
monopólio civilizado de compreensão do mundo, principalmente, sobre o gênero,
onde coloca a mulher nas películas sempre a partir de suas perspectivas e seus
interesses. Ao tomar a exclusividade do discurso, o cinema reforça o surgimento de
atitudes estereotipadas da mulher e fortalece a hierarquia sexual, desvalorizando o
feminino e mitificando o masculino [Idem, 2016, p.35-36].

Mulheres leste asiáticas no cinema hollywoodiano e a figura de Hana Ogi em


Sayonara
As dinâmicas de poder androcentristas na cinematografia norte-americana se
desenvolvem com outras particularidades quando se trata das representações
femininas do leste asiático. Estas se manifestam nitidamente influenciadas pela
perspectiva orientalista, que segundo Said [2007] são marcadas pela ideia de
supremacia racial-cultural euro-americana, disseminando conceitos colonizadores
e que legitimam o Ocidente como detentor da autoridade sobre o Oriente. Por meio
deste pensamento a narrativa fílmica, assim como suas representações que se
desenvolvem a partir dela, escoram-se em preconceitos, homogeneizações, imagens
distorcidas e fantasias do imaginário ocidental. O Orientalismo, somado ao recorte
de gênero, especificamente sobre as mulheres amarelas, evidencia as relações de
poder que se estabelecem a partir da concupiscência ocidental de dominação sobre
a Ásia e que, por seguinte, se estendem as mulheres asiáticas. Atraídos pela ideia
de subserviência e submissão destes corpos, estas são apresentadas como objetos
de consumo e de satisfação dos desejos masculinos brancos [WOAN, 2008], sendo
estas orientalizações femininas representadas por meio da fetichização e
exotificação no plano on-screen, e incorporadas mediante a papéis sexualizados e
conceitos generalizados [ISOLA, 2015]. Quando não eram reproduzidas a partir de
figuras passivas, obedientes, dóceis, sintetizadas pelo modelo ideado da Gueixa ou
da China Doll, e associadas constantemente a dependência do homem com quem
se relacionavam [normalmente branco], o White Savior, eram concebidas como
Dragon Ladies, carregadas de mistério, de caráter promíscuo e alienígena, e
apresentadas na maioria das vezes de modo ameaçador e vilanesco nas películas
[ISHIDA; BRAGA, 2019].

Este exercício do senhorio de branquitude androcêntrica pode ser percebido no


filme Sayonara, que embora apresente intenções relevantes para o contexto social
da época, como amenizar a atmosfera paranoica do Perigo Amarelo, evento
motivado pela desconfiança e medo dos povos asiáticos, concepções muito
fortalecidas durante a Segunda Guerra Mundial e tenha proposto o combate das
discriminações raciais e da xenofobia contra a comunidade japonesa no pós-
conflito, este também tonificou ainda mais alguns estereótipos preexistentes sobre
a mulher japonesa.

A peça central desta discussão sobre o filme gira em torno de Hana Ogi, a
protagonista da obra. Retratada como uma mulher nipônica, atriz de beleza
extraordinária, ícone artístico da nação e o grande destaque da companhia feminina
de teatro Matsubayashi, esta encanta e desperta os sentimentos do major Lloyd
Gruver, homem conservador que reprovava os relacionamentos interétnicos nipo-
americanos. Ainda que inicialmente seja delineada como uma agente ativa e gerente
de sua própria vida, ao longo da obra a construção da heroína adquire dualidade e
ambiguidade, variando entre a representação de uma mulher independente e
reconhecida por seu trabalho à projeção feminina submissa e resignada aos desejos
do amante americano.

Esta interpretação de hegemonia não é percebida somente no campo do gênero, ela


se estende para outras vias. Neste sentido, o caso de Hana Ogi e Gruver, o domínio
vai além da opressão masculina sobre a feminina. Esta reflete também em um
subjugo rácico, portanto, o relacionamento entre os personagens se configura
também devido a uma demanda racial e interétnica, entre um homem branco anglo-
americano e uma mulher japonesa. Este fato permite uma associação metafórica da
atuação paternalista dos Estados Unidos sobre o Japão por meio dos personagens.
Portanto, também espelha um imperialismo nacional sobre o povo subalterno
[MARCHETTI, 1994, p.135].

A ideia de dominação se reflete também claramente por meio da indumentária. Nas


cenas iniciais, Hana Ogi se apresenta caracterizada por figurinos “tipicamente
masculinos”, pois devido a sua atuação como atriz, lhe era permitido travestir-se
para mudar gênero em suas apresentações. E era arroupada com esta estética
andrógena em momentos que constantemente rejeitava e resistia a conhecer Gruver.
Contudo, quando esta aceita se relacionar com o major, passa a se vestir somente
com quimonos. A renúncia das vestes e acessórios masculinos, é um elemento
muito simbólico, pois exprime tanto o rompimento da protagonista com a liberdade
de expressão engendrada, abrandando sua sexualidade transgênero, considerada
imprevisivelmente perigosa por Gruver [LEE, 1999, p.167], como também
expressa o abandono de sua independência social e autonomia cultural, adequando-
se ao conservadorismo, posto que, o quimono traduz no filme a incorporação e a
idealização patriarcal da mulher japonesa, legando a protagonista uma postura
subserviente ao se envolver romanticamente com o major. Desta maneira, a
protagonista “[...] imediatamente e incondicionalmente aceita-se a uma posição de
subordinação orientalizada” [LEE, 1999, p.161, tradução nossa].

Fonte: Sayonara [LOGAN, 1957]

Fonte: Sayonara [LOGAN, 1957]


A relação com a indumentária continua até o prenúncio da conquista de Gruver que
se dá ao final do filme, onde este aborda Hana Ogi vestida com um quimono
matrimonial utilizado em uma apresentação e a pede em casamento. Esta
novamente reluta em aceitar a proposta, todavia, o faz. E ao fazê-lo sela o seu
destino, abdicando de sua carreira no Matsubayashi por seu marido e sua futura
família. Ao fazer a sua amada cumprir seus desejos, esta não somente o agrada,
como também é colocada no posto intrínseco à sua natureza: doméstico, servil e
tradicional, a salvo das perversidades do mundo e protegida pelo homem branco.
Para tanto, de acordo com Marchetti [1994, p.135], Gruver resgata a protagonista
nativa dos excessos de sua própria cultura, devolvendo a ela a sua verdadeira
condição, transformando-a em uma “mulher de verdade”. Além disso, em virtude
do oficial, Hana Ogi se afasta da implausível transgressão sexual e tem domado o
ressentimento contra o inimigo de guerra que havia pesado em seu coração.

No que envolve a mulher nipônica, Sayonara ainda reforça diversos estereótipos


ocidentais. Além da ideia de submissão e beleza exótica vulgarizada pela obra, o
filme reforça a sexualização da mulher japonesa. Em um diálogo, a protagonista
revela sobre sua origem, que ser pobre de berço teria sido vendida por sua família
a um bordel, local que permaneceu por um tempo até conseguir se estabelecer no
Matsubayashi.

Este discurso torna-se muito problemático no contexto sociocultural, pois há uma


visível articulação entre o ser feminino com a mulher pública [prostituta] na
representação da mulher japonesa pela narrativa. Esta concepção foi muito
fomentada pela literatura antijapônica, que a considerava como uma criatura
explorada pela sociedade nipônica e utilizada como moeda de troca para os
interesses das classes dirigentes japonesas. Onde “[...] o papel da mulher
subserviente se deslocava entre a geração de mão de obra barata e ela própria fonte
de sustento ilegítimo e imoral [...]”. Desta forma, a servidão aos elementos
masculinos de raça era inerente à mulher nipônica, principalmente, como objeto de
prazer [TAKEUCHI, 2016, p.308-310]. Logo, o enredo ao vincular Hana Ogi à
prostituição, estigmatiza as mulheres japonesas, naturalizando-as como
mercadorias sexuais.

Nota-se assim, que os estereótipos das mulheres asiáticas propagados anteriormente


pelo cinema hollywoodiano, passam a ser correspondidos em Sayonara. Este atribui
a protagonista, não somente um, mas todos os arquétipos preconceituosos. Observa-
se a sexualização, a ideia do mistério sedutor, do exotismo, da libertinagem e da
promiscuidade presentes na Dragon Lady, aspecto que se modifica com o avanço
da relação amorosa do casal, onde a personagem principal adquire uma postura
subalterna e passiva similar a imagem rotulada da Gueixa e por fim, esta aceita a
sua condição objeto de satisfação dos desejos do homem/herói branco, submetendo-
se a dominação e a conquista.

A propagação de ideais preconcebidos e universais das mulheres no cinema são


questões muito controversas, pois devido a sua ampla cobertura, a categorização
por meio de generalizações leva a eliminação da subjetividade feminina pela massa.
No entanto, estes elementos não espelham fielmente a realidade, pois tratam-se de
discursos que na maioria das vezes são produzidos por homens, ignorando quase
sempre os pensamentos, sentimentos e percepções das mulheres, expressando
muito mais os desejos e medos masculinos do que retratando mulheres reais
[PERROT, 2007, p.17-22].

Para a sistemática cinematográfica, a tecnologia de gênero, torna-se um instrumento


potencial para a conformação de conceitos de gênero, assim como, a introjeção de
ideias estereotipadas. No caso do filme Sayonara, a dominação se estabelece não
somente através de uma perspectiva falocêntrica, mas também por meio da
idealização orientalista, cimentando as relações de poder do homem dominando a
mulher e o do Ocidente subjugando o Oriente.
Considerações Finais
Portanto, o cinema exerce um importante influxo social. Por décadas, a imagem
divulgada por esta indústria cultural reforçou o aparecimento de atitudes
estereotipadas da mulher e corroborou com a hierarquia sexual, havendo a
desvalorização do feminino em prol do masculino [GUBERNIKOFF, 2016, p.36-
37]. A supervalorização do pensamento falocêntrico, é percebida na narrativa de
Sayonara, ainda que este tivesse a intenção de romper com os preconceitos,
estimular a paz entre as nações e a tolerância étnica e cultural, este caiu nas mesmas
conveniências de senso comum quanto as ideias de gênero.

Estas marcações raciais e universalizações de gênero refletem até os dias atuais na


forma como grande parte dos ocidentais compreendem o Japão ou mesmo como
estes se relacionam com os nipônicos ou com as gerações diaspóricas desta
nacionalidade. Associação das mulheres japonesas à subalternidade, sexualização
e objetificação ainda são recorrentes no cenário social do tempo presente, expondo
as mulheres amarelas a constrangimentos, a assédios e a violência.

De modo algum propõe-se neste trabalho invalidar a relevância do longa-metragem


como arte, todavia, é importante observar as questões que este levanta, entendendo
seu contexto histórico, compreendendo a articulação de seu discurso e a
subjetividade que carrega, evitando assim, reproduzir ideias generalistas e
preconcebidas. Compreendendo que não se esgota aqui, as questões que permeiam
as presentes reflexões. Esta pesquisa apresenta uma sistematização analítica inicial
das representações da mulher nipônica no cinema, possibilitando a ampliação dos
estudos subsequentes e novas abordagens.

Referência biográfica
Renata Sayuri Sato Nakamine. Graduada em História pela Universidade Estadual
de Maringá. E-mail: [renatanakamine@gmail.com].

ANACLETO, Aline Ariana Alcântara; FILHO, Fernando Silva Teixeira. A


Questão do Feminino e o Cinema Brasileiro. In: Seminário Internacional Fazendo
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BETTON, Gérard. Os signos de uma escrita. Os elementos de uma linguagem.
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WOAN, Sunny. White Sexual Imperialism: A Theory of Asian Feminist
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O ORIENTALISMO GRÁFICO DE SOPHIA JOBIM
Rodrigo de Sousa Barreto
Introdução
A representação exótica de elementos da cultura asiática se deu, por muito tempo,
em vigor das construções sociais e políticas de “Ocidente” e “Oriente” provenientes
da hegemonia europeia, a priori. “O Oriente não está apenas adjacente à Europa:
também é onde estão localizadas as maiores, mais ricas e mais antigas colônias
européias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma
das suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro.” [SAID, 1996, p. 13].
Logo, a relação exercida pelo dito Ocidente para com o dito Oriente é uma relação
de poder: poder se definir superior ao outro, julgar seus códigos éticos e porquê
esses são inaceitáveis dentro de suas relações socioculturais. Não houve, por muito
mais tempo, um verdadeiro interesse em entender as complexas disposições étnico-
sociais e sistemas simbólicos do continente asiático, mas ainda há um interesse
recorrente em mistificar e meramente adaptar elementos muito bem desenvolvidos
da cultura de seus diversos países.

Como a grande precursora dos estudos de moda e indumentária no Brasil durante o


século XX, Maria Sophia Jobim Magno de Carvalho [1904-1968] atuava como
educadora desde a década de 20 graças a suas múltiplas formações nacionais [e, a
posteriori, internacionais] e sede pelo aperfeiçoamento contínuo: foi professora de
História na Escola Normal Santos Dumont em Minas Gerais, deu aulas de
indumentária em diferentes instituições teatrais pelo Rio de Janeiro, além de atuar
como figurinista em algumas montagens de peças e filmes, fora professora e
diretora por vinte e dois anos em sua escola de artes profissionalizantes para moças,
o Liceu Império, na década de 30 e posteriormente introduziu a disciplina de
Indumentária Histórica no curso de Artes Decorativas da respeitada Escola
Nacional de Belas Artes entre as décadas de 40 e 60 [VOLPI; OLIVEIRA, 2017, p.
216].

Sophia defendia o estudo do vestuário histórico como uma “ciência artística”, e


julgava que o apuro teórico deveria andar ao lado do primor gráfico. Sua visão era
fortemente influenciada por seus conhecimentos artísticos e seu cunho colecionador
adquirido com o passar dos anos com as excedentes investigações sobre vestimentas
das mais variadas partes do mundo, nos mais renomados antros educadores das artes
do Ocidente. Como professora da ENBA, Jobim utilizou muitas de suas habilidades
e pesquisa para transmitir da forma mais palatável possível os conteúdos adquiridos
com os anos aos seus alunos. Entretanto, seriam esses conteúdos verossimilhantes
às características reais dos itens por ela introduzidos? Logo, o presente texto
procura analisar um dos croquis de Sophia Jobim inspirado em uma das culturas
mais influentes do Extremo Oriente, investigando a presença das façanhas em suas
retratações ou esvaziamentos simbólicos no resultado final de sua interpretação
gráfica.

O Projeto Japonês
Foi junto ao Museu Histórico Nacional [MHN] que Sophia pode se inteirar dos mais
variados aspectos da museologia. Retomando sua energia de historiadora, com o
passar do tempo e de inúmeras viagens ao lado de seu marido, Waldemar Magno
de Carvalho [1894-1967], ela pôde inaugurar em sua própria casa o Museu da
Indumentária no ano de 1960 [LUZ, 2016, p. 49]. Lá ela exibia trajes variados de
seu acervo pessoal, alinhando-os aos desenhos que também utilizava como material
em suas aulas da ENBA. Sophia Jobim também era uma exímia ilustradora. Não
restam dúvidas de que havia certeza do caminho que estava percorrendo em seu
traçado. Após sua morte, as vestimentas e adereços de seu museu, desenhos,
pinturas e documentos textuais foram totalmente doados ao MHN. Atualmente o
museu conta com boa parte da “Coleção Sophia Jobim” disponível online, sendo
seus desenhos ainda hoje referenciados por membros da atual Escola de Belas Artes
como um resultado ambicionado em termos de representação gráfica de trajes
históricos e regionais.

É daí que surge a necessidade de análise de um desses croquis sob as óticas


disciplinares da indumentarista que tem seus métodos de ensino parametrizados até
os dias atuais. Seria o croqui da srª Magno de Carvalho histórica e etnicamente
preciso em retratar uma figura feminina utilizando um quimono? Seus símbolos lhe
apetecem? E seus acessórios? O que as anotações de Sophia nos dizem sobre a peça
desenhada e seus métodos de pesquisa vestimentar? O que Sophia sabia sobre os
códigos nipônicos de vestir?

Imagem 1: Traje típico: Japão [Esboço]. Sofia J. Magno de Carvalho. Meados do


século XX. Lápis sobre papel; 63 x 49 cm.
Fonte: Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Imagem 2: Traje típico: Japão. Sofia J. Magno de Carvalho. Meados do século
XX. Guache, nanquim e purpurina sobre papel; 63 x 49 cm.
Fonte: Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

As imagens acima retratam respectivamente o esboço e arte final de um traje típico


japonês: o kimono [着 物] [[着], ki, do verbo "vestir [nos ombros]" e [物], mono,
substantivo "coisa"], que significa literalmente “coisa de vestir” [YAMANAKA,
1982, p. 9]. Sophia Jobim também retrata paralelamente ao croqui da vestimenta
dez estilos de mon [“emblemas”, em tradução literal], símbolos familiares produtos
dos embates entre os clãs do Japão feudal. As informações que temos na folha
carimbada da arte em esboço é de que o croqui será utilizado em suas aulas de
Indumentária; um pequeno inventário na parte superior direita com algumas
classificações de acessórios, símbolos e do penteado, além de categorizações dos
mon e uma modelagem em escala com informações de corte e largura de tecido na
parte inferior da folha, que será o único item não explorado nesta análise por se
tratar de um estudo completamente técnico referente a ordem da reprodutibilidade
de uma vestimenta do que a questões simbólicas e originárias.

Uma Heráldica Orientalista


Tratando primeiramente dos elementos que atuam fora do figurino na Imagem 1:
abaixo do título temos o primeiro mon, representando o “Selo Imperial do
Crisântemo” [Kiku no Gomon, em japonês]. Temos as informações de que tal selo
representa o estandarte imperial e suas cores são dourado com um fundo carmesim
[onde a cor do fundo pode variar, na verdade]. Aqui temos anotações claras e
precisas, porventura pela alta disseminação do brasão imperial.

Ao lado do crisântemo, temos a estampa circular chamada de “Olho da Serpente”


[janome]. O nome consta na arte final com sílabas separadas e um acento agudo;
também não há um histórico preciso de sua origem e uso nas anotações de Sophia.
Entretanto, há registros de que tal símbolo era originalmente chamado de “carretel
de corda de arco” pela sua semelhança com os carretéis de corda que os guerreiros
carregavam afim de realizar reparos em seus arcos quando danificados [DOWER,
1971, p. 134].

Abaixo do crisântemo, temos um brasão de “Bambu Rasteiro” [sasa rindou]. Com


a nomenclatura correta especificada apenas na Imagem 2 [“aportuguesada” com
acento circunflexo] temos aqui mais um caso de falta de descrição oriunda: esse
mon é conhecido como o brasão do clã Minamoto, ou clã Genji, nome dado a seus
membros pelos imperadores do Japão do período Heian [794-1185] a seus filhos
que não fossem considerados para o trono [JANSEN M. B., 1995, p. 11]. Logo, o
símbolo é altamente reconhecido por se tratar de uma das ramificações da dinastia
imperial japonesa.

Ao lado de nosso bambu vemos um “Ganso” [karigane]. Sophia o classifica como


“pato bravo”, o que encaixaria bem como sinônimo de ganso, e faz da sílaba final,
tônica. Originado durante o período Heian em um escopo criativo que retratou seu
voo ao longe e depois adicionou sua cabeça ao rápido traçado em forma de “V”
com as ideologias chinesas de ser “um pássaro que carrega boas notícias”
[DOWER, 1971, p. 94], é muito conhecido por ser o símbolo carregado por Katsuie
Shibata [1522-1583] ou Gonroku, um grande samurai e comandante militar durante
o período Sengoku [1467-1615], com o adendo de que o brasão dos Shibata possuía
dois gansos representados em um círculo.

Abaixo do símbolo do bambu rasteiro, temos o “Crisântemo Flutuante” [kikusui].


A indumentarista não traduz o termo, e não coloca distinções tônicas aqui, nem
deixa mais informações sobre o brasão em nenhuma das duas folhas; entretanto,
este é o caracterizado brasão do samurai Kusunoki Masashige [1294-1336] do
período Kamakura [1185-1333]. Ele foi uma figura principal para o imperador Go-
Daigo [1288-1339] realizar a Restauração Kenmu [1333-1336], o entre-períodos
Kamakura e Muramochi [1336-1573].

Ao lado do crisântemo flutuante consta uma “Boquilha” [kutsuwa]. A dúvida que


paira sobre a anotação de Sophia é em relação ao nome atribuído ao símbolo: “hana
kutsuwa”. Enquanto “hana” em tradução literal seria “flor”, a segunda palavra
“kutsuwa” remete aos protetores laterais de freios para cavalos, que também eram
construídos com o motivo de cruz, o que nos leva a conclusão de que houve um
mal-entendido em relação a sua classificação vide que não temos nenhum motivo
floral aparente em conjunto com a “boquilha” apresentada. Com uma anotação que
cita o português Francisco Xavier [1506-1552], pode-se imaginar que a srª Magno
de Carvalho estava inteirada das características cristãs que seriam atribuídas
posteriormente ao brasão, até mesmo assumindo sua nomenclatura de “cruz”
[kurusu]: o clã Shimazu dominava a região de Kyushu, a grande ilha ao sul onde
Xavier desembarcou, mais precisamente em 15 de agosto de 1549. A conversão ao
cristianismo por um número considerável de membros da família é um fato e a
adoção de um dos seus mais marcantes símbolos como brasão familiar por diversas
famílias japonesas também [López-Gay, 2003, p. 93].
Abaixo do crisântemo flutuante, dispõe-se dois símbolos de “Vírgula” [tomoe]. É
defendido que sua representação gráfica é remanescente do formato das
magatamas, pedras de cunho decorativo a priori, posteriormente sendo
reconhecidas como objetos religiosos e cerimoniais. Yorisuke Numata, a maior
autoridade do Japão em design heráldico, mantém a palavra de que a forma básica
de “vírgula” emergiu independentemente no Japão, sendo a imagem [e] de uma
guarda de couro utilizada pelos arqueiros no pulso esquerdo com o intuito de
diminuir o impacto da ação do arco; essa guarda era chamada de tomo, e seu
desenho tomo-e [DOWER, 1971, p. 145]. Mesmo que não haja uma precisão no
significado originário do tomoe, ele assumiu uma existência independente no Japão
nos meios decorativos, da moda e religiosos. Sophia escreve equivocadamente na
folha do esboço, “Yomoé”. Entretanto, na folha da arte final temos um mais acertado
“Tomoé”, mesmo que com o excesso de acentuação; ela também escreve na mesma
folha “hitotsu [direito]”, contudo o significado de hitotsu é “um”, em tradução
literal, alegando a única vírgula do brasão. O tomoe seguinte possui a classificação
“mitsu tomoé” na Imagem 2, que nos leva para o número de vírgulas em sua
representação: três. Todavia, a grafia correta seria “mittsu”. A classificação correta
para este símbolo em sentido horário é “migi mittsu tomoe”, sendo “direita”
tradução literal de “migi”.

Abaixo das vírgulas, temos o brasão de “Três Leques Redondos” [mittsu uchiwa].
Principalmente empregados em rituais xintoístas, os leques redondos
ocasionalmente eram colocados na ponta de dispositivos heráldicos como o
sashimono e umajirushi, estandartes utilizados para identificação durante batalhas
[DOWER, 1971, p. 110]. No período Edo, os leques também eram utilizados como
forma de divulgar atores kabuki famosos: modelos de leques gravados dos atores
eram vendidas as grandes massas. Este brasão possui muitas variantes. Quanto a
classificação de Sophia, “mitsu uchiwa”, temos uma pequena imprecisão na grafia
do “mittsu”, grafia correta.

Do outro lado do croqui da Imagem 1, temos a representação de uma “Suástica


Budista” [manji]. Transmitido ao Japão pela Índia através da China, as anotações
de Sophia nos deixam clara sua ciência da origem do mesmo. Muito disposto na
arquitetura de templos budistas do país, o símbolo não causou uma febre de
utilização como, por exemplo, o caso dos tomoe, entretanto sempre foi interpretado
como boa sorte, longevidade e multiplicidade. O clã Hachisuka é um dos
utilizadores mais famosos desse brasão, sendo eles uma ramificação do clã
Ashikaga, instauradores do xogunato Muramochi. Quanto a classificação do
símbolo pela professora Jobim, temos um completo acerto na folha de arte final:
“hidari manji [esquerda]”; corrigindo seu erro na folha de esboço onde ela escreve:
“mangi”.

Um Apêndice
Atentando-nos agora ao inventário na parte superior direita da folha de esboço, a
primeira constatação é uma pequena lista de elementos que Sophia viria a,
supostamente, utilizar na estamparia do quimono: bamboo, chrysanthemun, orchid,
plum [bambu, crisântemo, orquídea e ameixeira, respectivamente, em tradução
literal]. Vemos abaixo desta uma outra lista, que consiste nas seguintes
informações: “Gethá de cortiça sola alta; Kemban – síndicado; Shimada penteado
de casada.”

Geta [下 駄] é um dos estilos tradicionais de calçados japoneses que se assemelha


ao chinelo. É preferivelmente utilizado com um estilo mais informal de vestimenta,
o que claramente não é o caso da indumentária representada, sendo preferível a esta
última um par de zōri [草履]. Seu solado é caracterizadamente alto, e elas poderiam
ser revestidas de diferentes materiais [a cortiça, inclusive], porém seu corpo é
essencialmente feito de madeira [DALBY, 2001, p 190].

O Kemban referido pela srª Magno de Carvalho pode estar relacionado às agências
de gueixa [[芸者] gei [芸], significando “arte” e sha [者], significando “pessoa]
organizadas durante o período Meiji [1867-1912], umas das remanescentes no
presente intítulada de Nagasaki Kenban. Os escritórios funcionavam como uma
ponte entre o Okiya [estabelecimento ao qual uma gueixa ou maiko é afiliada
durante sua carreira] e aos restaurantes e casas contratantes dos serviços das geiko.
Este poderia ser o indicativo de que Sophia estaria retratando uma gueixa.

O shimada é um dos estilos de penteado japonês [nihongami] originado no período


Edo [1603-1868], comumente usado por meninas ao final da adolescência na época.
Fato que descarta a classificação de Sophia deste ser um penteado de mulheres
casadas, aliando-se ao fato de que se ela almejava representar uma gueixa, essas
também não eram mulheres casadas. Entretanto, o desenho está bem fidedigno ao
que seria o penteado.

Abaixo desta curta lista, temos a representação em maior escala das flores
kuchinashi [梔] ou gardênias, que Sophia utiliza como alguns dos kanzashi
[literalmente “ornamentos de cabeça”] de seu croqui. Ela escreve “nashi no kiri
kuchi”, onde kiri [literalmente “cortar”] refere-se a crença popular de que uma
árvore cresce melhor ao ser cortada.

O Kimono de Sophia
Sophia apresenta seu croqui apenas como “kimono”, sem especificar maiores
características desse variado código indumentarístico. Pelo formato a nós
apresentado podemos defini-lo como um furisode [振袖, literalmente “mangas
dançantes”] pelo longo comprimento de suas mangas, cores vibrantes empregadas
e a estamparia carregada. A cor rosácea que Sophia escolhe para a vestimenta é
bastante verossímil, visto que há registros de robes do período Meiji com essa
coloração rosa-escarlate tingidos com cártamo, um tingimento natural luxuoso
[PRESTEL, 2019, p. 152]. Quanto a estamparia, temos motivos de flor de
ameixeira, em grande parte, e algumas flores de cerejeira. Também vemos aqui um
pássaro, que pelo estilo de sua penagem e cauda poderia ser classficada como um
pavão ou uma fênix. A falta de uma coloração mais específica aqui dificulta sua
classificação, entretanto, levando em consideração os motivos florais anteriores,
fiquemos com o pavão, vide que o motivo de fênix é utilizado em quimonos de
inverno, e desde cor até estampas nos indicam que este seja um quimono de
primavera. Há resquícios de um mon não finalizado abaixo da linha dos ombros.
Vemos também seu nagajuban [literalmente "juban longo"], o robe interior,
estampado com pequenas flores cor-de-rosa não identificáveis.

Imagem 2: Traje típico: Japão. [detalhe]. – Flor de ameixeira e Flor de Cerejeira.


Fonte: Museu Histórico Nacional, RJ.

Partindo agora às partes mais controversas do croqui, atentemo-nos a seu obi [帯,
literalmente “faixa”] e obijime [帯 締 め, fina corda que vai sobre o obi]: mesmo
que sua disposição no croqui esteja correta, ambos são coloridos com a cor preta; o
que se mostra uma inexatidão visto que um obi e obijime chapados e pretos indicam
que o conjunto é um visual de luto [DALBY, 2001, p. 181], caso não aplicável
devida a grande extravagância do quimono.

Por parte dos acessórios, encontramos um uchiwa com a mesma estamparia do


furisode e uma série de kanzashi que nos atentam a mais uma imprecisão ao
juntarmos todas as peças entre as anotações de Sophia: as flores em seu penteado
se encontram de forma bastante razoável, entretanto os oito kanzashi que
encontram-se espetados na parte superior de seu coque nos indicam que a figura
representada não seria uma gueixa, como antes presumido com suas anotações, e
sim uma oiran [[花魁] "花" significando "flor", e "魁" significando "líder"]. Oiran
eram cortesãs de alto nível que se originaram durante o período Edo. Esperava-se
que as mesmas tivessem um alto grau de conhecimento artístico, e a mais alta das
classes [as tayū] eram requeridas pelos homens mais poderosos apenas pelo prazer
de sua companhia, não tendo obrigações sexuais envolvidas [onde elas poderiam
escolher estar em sua presença ou não]. As vestes das oiran eram sempre
esdruxulamente luxuosas, um sobre-robe pomposo, ricamente bordado, era sempre
carregado por essas figuras; o que nos leva a retrair o pressuposto de que o croqui
representado fosse de uma oiran.

Não se deve confundir oiran com as gueixas, figuras posteriormente formadas que
se vestiam de forma mais sutil e jamais se envolviam sexualmente com seus
contratantes, mesmo que também fossem artistas. Com isso, pode-se concluir que
alguns conflitos representativos surgiram entre Sophia Jobim e alguns símbolos
nipônicos.
Conclusão
A professora Sophia poderia ser parabenizada por seus logros em recolher inúmeras
informações precisas acerca da indumentária e símbolos nipônicos diversos.
Entretanto, algumas inexatidões sobre do tema afetam drasticamente a percepção
final sobre a construção desse múltiplo código vestimentar. O orientalismo de
Sophia fica então atrelado a sub-representação dos objetos por ela estudados, onde
uma “quase” especialização não é suficiente para sustentar seus padrões defendidos
de apuro teórico na construção de trajes históricos e regionais até hoje adotado pelos
docentes da Escola de Belas Artes. E não será o primor gráfico que colocará de lado
as problemáticas de uma caracterização deficitária, ação demasiadamente repetida
por representantes exímios do ocidente.

Referências
Rodrigo de Sousa Barreto é graduando de Artes Cênicas – Indumentária pela
EBA/UFRJ, artista visual e atual coordenador do GEAA [Grupo de Estudos em
Arte Asiática]. [barreto_rodrigo@yahoo.com.br]

DALBY, Liza. Kimono: Fashioning Culture. University of Washington Press,


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Portugal. 2003, p. 93-106.
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PRESTEL Publishing Ltd. Textiles of Japan: The Thomas Murray Collection at
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SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São
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VOLPI, Maria Cristina; OLIVEIRA, M. L. G. Sophia Jobim e a origem do Curso
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trajetória. 2ed.Rio de Janeiro: Nau Ed., 2017, v. 1, p. 211-220.
YAMANAKA, Norio. The Book of Kimono. New York and San Francisco:
Kodansha International, 1982.
DANÇA DO VENTRE E HISTÓRIA: OS VÁRIOS TONS
DO ORIENTALISMO
Vanessa dos Santos Bodstein Bivar
Pensar em dança do ventre é também estabelecer contato com a ideia de arte, corpo
e suas inter-relações. O mundo da arte é concreto, vivo e pode ser observado e
compreendido. Assim, o mesmo só faz sentido com a existência de três elementos:
o artista, o espectador e a obra de arte em si. O primeiro produz, cria e corporifica
o produto final. E o segundo, por sua vez, se apropria e ressignifica a arte, tendo
papel ativo e até mesmo transformador no processo.

É notório que essas manifestações variam de acordo com as épocas, lugares,


contextos e pessoas que dela fizeram parte, sendo, portanto, dotada de historicidade
– a história influencia e é influenciada pelas criações artísticas. Não obstante, não
há uma perspectiva de “evolução” da arte ou da existência de obras “melhores” em
detrimento de outras – cada qual tem seus valores e concepções próprias, assim
como são repletas de significados e de intencionalidades passíveis das mais diversas
interpretações, dependendo do indivíduo ou do grupo social que a analisa.

A dança é uma forma de arte que, com linguagem não verbal, revela uma maneira
de ser e estar no mundo [SARAIVA, 2005] e é “reflexo consciente e inconsciente
da sociedade e de seu imaginário [SIQUEIRA, 2006, p. 207] – o que significa que
é histórica e culturalmente produzida. Nela o corpo é o instrumento de comunicação
e adquire papel relevante como “suporte de identidades ao mesmo tempo em que
matriz de significados” [SIQUEIRA, 2006, p. 39].

A história da dança no Brasil pauta-se por uma grande lacuna e, em geral, é reflexo
dos escritos europeus e norte-americanos. Relegada a segundo plano por
historiadores, se debruçam ao estudo dessa área ex-bailarinos, jornalistas e músicos
que formulam obras totalizantes – em um mesmo volume abarcam da antiguidade
à contemporaneidade. Assim, percebe-se que “a insistência em reproduzir os
mesmos padrões da escrita fez com que a História da Dança se tornasse repetitiva
[de certa forma obsoleta, por não acrescentar novas/outras trajetórias/histórias]”
[SILVA, 2012, p. 29].

A dança do ventre insere-se igualmente nesse contexto como um hiato de pesquisa.


Marginalizado nos meios acadêmicos, o assunto permanece relacionado à
resistências, preconceitos e ideias cristalizadas, como a de que deve somente ser
relegado “a boates, casas de shows e cabarés” [XAVIER, 2006, p. 02]. A escassez
de bibliografia ainda propicia a existência de informações contraditórias e confusas,
grosso modo, encontradas na internet, de modo a cristalizar imagens
ocidentalizadas e em especial sexualizadas – “nenhuma arte é vítima maior de mal-
entendidos, juízos sentimentais e interpretações místicas do que a arte da dança”
[LANGER apud SARAIVA, 2005, p. 177].

Não há consenso sobre as origens da dança do ventre ou qualquer tipo de precisão


cronológica. Teorias díspares e sem sustentação concreta de fontes sugerem versões
sumérias, paleolíticas, egípcias ou ligações com a bíblia [XAVIER, 2006], mas
sempre tendentes à ideia de ritos de fertilidade e maternidade, portanto, ligadas
eminentemente à mulher [SILVEIRA, 2017].

Mesmo sem embasamento, vários são os escritos sobre as suas origens que
aparecem com uma aura de verdade absoluta. E é a partir desse horizonte caótico
sobre os mitos de criação que também se justifica a necessidade de pautar a dança
do ventre como manifestação cultural e artística capaz de estimular reflexões e ser
objeto de investigação.

Relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX, mesmo carregados de visões


ocidentais, colocam que o baladi [denominação pela qual também é conhecida da
dança do ventre] fazia parte do universo cotidiano e familiar do Egito. Tinha
relevância em aniversários, casamentos, circuncisões, noivados e comemorações
das cheias do Nilo [SALGEIRO, 2012]. A dança era aprendida no interior da
família e a prática dava-se tanto por homens, como por mulheres sem a necessidade
de professores.

O caráter de festejo, no entanto, foi aos poucos sendo suplantado por uma dança
urbana e voltada ao entretenimento. No Egito, lugar de altos impostos, conflitos
populares e empobrecimento, o baladi passou a ser visto como uma alternativa de
sobrevivência para a população. Com incursões francesas e inglesas, por tratar-se
de uma região estratégico-militar e com potencial de mercado, a dança funcionava
como diversão de soldados e residentes estrangeiros, além de fonte de renda para
dançarinas de rua já nos séculos XVIII e XIX.

Em busca de novos mercados para o consumo de seus produtos, fornecimento de


matérias-primas e investimento de capitais excedentes, França, Inglaterra e Estados
Unidos precisavam criar justificativas ideológicas de dominação a partir de
representações sobre o outro.

No oitocentismo, o neocolonialismo britânico, com base etnocêntrica, propunha


ideias sobre “o atraso, a indolência e a negligencia moral dos egípcios e sobre a
necessidade de adotar a moral inglesa” [XAVIER, 2006, p. 47]. Sob esse
estereótipo de dominação que acentua o binômio “civilização” x barbárie, os
ingleses queriam moldar os costumes egípcios.
A representação é uma maneira de dividir/ classificar as apreensões de mundo a
partir dos interesses dos grupos que as forjam [CHARTIER, 1990]. Assim, fazia-se
necessário expandir o “processo civilizador” [ELIAS, 1994], sem o qual, nessa
perspectiva, o homem teria atitudes primárias e agiria por instinto baseado em suas
vontades. Consequentemente só seria aceito quem participasse das regras
civilizatórias. Fora disso, haveria a marginalização. O “eu” e o “outro”, ocidente e
oriente, aparecem aí sempre tencionados, na medida em que identificar-se como
grupo é diferenciar-se em relação ao outro [BAUMAN, 2005].

No imperialismo arquitetou-se a ideia de que as nações adiantadas tinham uma


missão civilizadora [“fardo do homem branco”] diante de homens “rústicos e
atrasados” na escala de evolução humana e sócio- econômica - tudo articulado a
uma capa de legitimidade científica e ideológica.

O comportamento feminino e a dança estavam nos contornos do que deveria ser


moralizado de acordo com a ótica europeia. Dançar fora da família era visto como
algo negativo e também atacado pelas autoridades religiosas locais, as quais
voltaram-se contra a exposição da mulher egípcia à não muçulmanos [SALGEIRO,
2012].

De toda forma, mesmo diante desse contexto histórico, é notório que a dança do
ventre já estava sedimentada na estrutura social e cultural egípcia. Porém, grupos
de dançarinos que moravam em um mesmo bairro e casavam-se entre si, o que
denota essa sedimentação, começaram a se tornar incômodos às novas elites e às
lideranças religiosas, tanto que, em meio ao discurso europeu de controle sanitário
e de urbanização, as danças foram contidas em espaços fechados como cabarés e
cafés.

É necessário acentuar que o neocolonialismo foi mais incisivo em seu olhar


negativo sobre a dança do ventre do que a religião muçulmana. Se em alguns locais
ela foi banida pelo conservadorismo religioso, em outros era sinônimo de alegria
nas festas familiares. “Ao contrário do que se poderia supor, a censura do islamismo
à dança do ventre não é tão ostensiva quanto foi a moralidade cristã europeia que
se instalou durante a colonização britânica em países árabes” [XAVIER, 2006, p.
106].

Modos de representar e de formar identidades mesclam-se nesse contexto. Para


Bourdieu “o campo das representações é uma instância do jogo de poder e da
manifestação de lutas sociais. A representação do outro se daria em função de uma
necessidade que nós mesmos temos em nos definir. As ‘fronteiras mágicas’ que
separam o eu do outro, o nós e os outros, teriam como objetivo principal impedir
aqueles que se encontram no lado mais favorecido da linha imaginária a
ultrapassarem e perderem seu valor” [BOURDIEU, 1998 apud XAVIER, 2006, p.
34].
Ao caracterizar o ser oriental, especialmente franceses, britânicos e norte-
americanos forjaram, por contraposição, o que era ser europeu ou proveniente dos
EUA. De um lado o ocidental, civilizado, branco e racional e, de outro oriental,
selvagem, de cor e emotivo.

A noção de identidade não é estática ou atemporal, mas construída e negociada a


partir das necessidades criadas por grupos ao longo da história e, no caso do século
XIX, a questão era a da afirmativa de dominação sobre outros povos.

A identidade em si não tem existência concreta até que se lhe atribua significado.
Dessa maneira construiu-se o orientalismo – conjunto de saberes literários,
“eruditos” e com tom de cientificidade sobre o oriente. Delineia-se uma geografia
imaginativa representada pelo ocidente que coloca as fronteiras entre o “eu” e o
“outro”. Essa visão aloca o oriental como um ser exótico, misterioso, inferior,
enfim, aquele que precisa ser dominado [SAID, 2007] e erige estereótipos e
dicotomias com projeções sobre a realidade oriental que sedimentam uma “fantasia
simplista e distorcida” [XAVIER, 2006, p. 27].

O termo dança do ventre também vem carregado de neocolonialismo e perspectivas


orientalistas. Nas Exposições Universais esses traços foram ainda mais acentuados
e o baladi divulgado, tornando-se mais conhecido no ocidente.

A segunda metade do século XIX apresentava uma conjuntura de ampliação e


aceleração do industrialismo – era a II Revolução Industrial. Fazia-se, nesse meio,
necessária a representação material do projeto capitalista assim como vislumbrada
pela filosofia dominante, só que construída de modo palpável e visível [BARBUY,
1996]. Um mundo de novas experiências e sensações abria-se em especial às elites.

Nas Exposições Universais, tipificação concreta do capitalismo industrial,


novidades tecnológicas de cada país eram expostas de maneira a evidenciar a
eficiência das indústrias europeia e norte-americana. Ao redor da “grande”
produção ocidental vinha, em menor escala, a de países orientais com estéticas
“exóticas” que ratificavam a dualidade centro x periferia e consolidavam um
imaginário sobre o oriente; “Entendemos as Exposições [Universais] como
modelos de mundo materialmente construídos e visualmente apreensíveis. Trata-se
de um veículo para instruir [ou industriar] as massas sobre os novos padrões da
sociedade industrial [um dever-se de ordem social]”. [BARBUY, 1995, p.1-2]

A dança do ventre apareceu nas feiras mundiais como circuito de entretenimento.


Os lucros aumentavam à medida em que o frequentador percebesse os diferentes
modos de vida relativos ao pitoresco e ao exótico. Na Exposição Universal de 1889
passeava-se em lombo de burro, observava-se o camelo e aproximadamente 2.000
pessoas assistiram a um espetáculo de dança do ventre. Era clara a ressignificação.
Não mais no veio original da esfera familiar, a dança passou a ser
encenada/coreografada no palco do teatro e com apelo erótico. Começava a se
massificar um imaginário oriental – em que estava inclusa a dança do ventre – que
representava as sociedades de acordo com os interesses ocidentais, de modo a
reforçar as relações de poder [SALGUEIRO, 2012].

Em 1893 ocorreu o The Chicago World´s Columbian Exposition, com o intuito de


propagar os produtos frutos da industrialização, mas também refletir e celebrar a
cultura norte-americana. Solomon Bloom, presente na Exposição de 1889,
negociou com um produtor francês para levar um grupo de dançarinas para essa
feira como parte das estratégias para atrair patrocinadores. Esse capitalista norte-
americano nomeou a dança com o termo belly dance que, traduzido para o
português, significa dança do ventre. Portanto, o nome como a conhecemos, e
mesmo sua forma de apresentação é produto do imaginário ocidental. Nem mesmo
a música de acompanhamento [debarke] continuou a original, mas passou a ser
manipulada e feita ao som do piano. Em 1900, os europeus rotulavam as músicas
orientais como bizarras, selvagens e irritantes aos ouvidos [SALGUEIRO, 2012].

A belly dance entrou assim para o circuito de consumo. No oriente, visões que a
colocavam como forma de ganhar dinheiro tomavam força e influenciavam pessoas
a entrar nessa ótica comercial de sobrevivência. Então, “à medida que cresce o
interesse dos olhares externos ou existem chances de comercialização dessas
manifestações, muitos de seus conteúdos e significados são alterados” [XAVIER,
2006, p. 48].

O século XX foi repleto dessas apropriações através do cinema. Hollywood, sob


influência do orientalismo, propulsionou mudanças nos costumes das dançarinas
retratadas, reforçando o binômio civilização x barbárie. Nos filmes foram
acentuados papéis negativos acerca dos árabes e as proposições da dança do ventre
como algo vulgar, sensual. Dado ser mensagem repetida maciçamente ao longo do
tempo, tende a ficar na cabeça do público como verdade.

“Estamos cercados por um dilúvio de imagens. Seu número é tão


grande, estão presentes tão ‘naturalmente’, são tão fáceis de consumir
que nos esquecemos que são produtos de múltiplas manipulações,
complexas, às vezes muito elaboradas. O desafio da análise talvez seja
reforçar o deslumbramento do espectador, tornando, porém, esse
deslumbramento participante’ [VANOYE e GOLIOT-LETÉ, 2011, p.
13].

Em um filme a sociedade não é propriamente mostrada, mas é encenada. A película


“faz escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário, constrói
um mundo possível que mantem relações com o mundo real” [PEREIRA, 2012, p.
33]. Trata-se de uma elaboração pensada com sequências de cenas e dados
sensoriais que envolvem o espectador, além de massificar ligações de marketing e
ganhos comerciais.

O desenho “Pato Donald e diversões de um centavo” é exemplo das representações


feitas sobre a dança do ventre. Nela a pata Margarida performa a dança “dos sete
véus”, o que deixa Donald alterado em seus comportamentos [a partir de uma
pretensa sensualidade]. Enquanto ela dança há a sombra de um demônio projetada
na parede, o que sugere que a visão demoníaca da dança tenha provocado as
alterações em Donald.

Em “Aladim e a Lâmpada Mágica” aparece o típico estereótipo do harém, ademais


de uma escrava negra cuidando da princesa e as dançarinas do ventre ao som de um
músico sentado ao chão. Trata-se de uma representação típica das pinturas
orientalistas dos séculos XVIII e XIX e realocada em contextos da produção
cinematográfica.

As películas, assim, articulam significados às bailarinas especialmente entre as


décadas de 1930 e 1950, cristalizando a produção de uma imagem em que a mulher
se destina à apreciação do olhar do outro [REIS, 2007]. A conotação sensualizada
gera fortes contornos e adquire viés único ao ser generalizada no imaginário.

O ponto maior é que a dança do ventre se tornou uma arte híbrida, pois não há mais
qualquer relação de autenticidade ou pureza. Diante da lógica do mercado e do
consumo, constituiu-se em um bem fluido e transnacional, incorporando elementos
dos diferentes espaços em que foi praticada: “essa dança, ao ser deslocada de seu
contexto original, adquire novos sentidos e usos, resultando em novas linguagens”
[SALGUEIRO, 2012, p. 16].

No Brasil não foi diferente. A mescla e a visão mercadológica imperaram através


das músicas e das cantoras, respectivamente colombiana e norte-americana, Shakira
e Britney Spears. Os movimentos pélvicos propagam um estilo de dança. Em
reportagem de 2019, Shakira, filha de libanês, comenta:

“a dança do ventre me representa. Tenho tentado incorporá-la de


maneiras diferentes à música moderna. Algumas vezes me irrita um
pouco ouvir pessoas dizendo que mexo o traseiro com absurda dose de
sensualidade ao invés de entender a dança como um movimento que,
sim, é repleto de sensualidade, mas também é parte de uma expressão
artística” [SHAKIRA apud GONÇALVES, 2020].

Percebe-se nesse trecho o quanto são enraizadas as visões orientalistas como parte
da colonialidade - legado cultural e material do neocolonialismo que permanece até
os dias de hoje – ao enxergar a dança do ventre como sexualizada.

A novela O Clone, como inserção cultural, perpetrou a imagem da dança do ventre


e incitou a procura de estúdios para a sua aprendizagem. Transmitida em 2001 pela
Rede Globo de Televisão, em meio a um momento de tensão internacional por conta
dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, deu maior visibilidade ao Islã.
Enquanto o noticiário se detinha à questão do terrorismo, a novela colocava outro
olhar, mais aberto e não violento.
Era patente a disseminação de um ideário que aliava o mundo muçulmano às
concepções como violência, pobreza, atraso, fanatismo e terrorismo. Logo, o Islã
era vinculado exclusivamente à intolerância e isso se tornou senso comum. Não
obstante, os personagens da novela não tinham esses signos negativos. Tio Ali,
símbolo da religiosidade muçulmana tradicional na trama, salientou em diálogo: “o
Alcorão diz que quem tira a vida de um homem, tira a vida da humanidade inteira
[...] Deus amaldiçoa o assassino, o assassino está condenado a cozinhar no mármore
do inferno” [QUEIROZ PORTO, 2014, p. 904].

A televisão como setor industrial de grande alcance, atingindo as massas, foi um


poderoso meio de difusão e construção do imaginário sobre o Islã. Por meio das
telas, e não por leitura ou ensino [aliás História do Oriente enquanto disciplina
pouco se vê no âmbito universitário], foi que o grande púbico teve acesso a essa
religião. As construções de cena e o enredo tratavam-se de representações que
produziam um sentido sobre o real e, ao mesmo tempo, serviam de estímulo para a
discussão de temas variados relacionados ao oriente.

Uma das formas de aguçar os sentidos e envolver o espectador foi utilizar o recurso
da sonoridade e de visualidade da dança. Recorrente entre outras personagens, mas
principalmente na protagonista Jade, estava a performance da dança do ventre que
caiu nas graças do público e fez girar o mercado de ensino de belly dance, o qual
engloba hoje aulas, feiras, apresentações, venda de roupas, encontros, dentre outros
dispositivos comerciais. Assim, o baladi tornou-se híbrido, não mais pertencente a
um local ou cultura específica. As suas significações variaram e se adaptaram à
medida das demandas dos grupos e papeis socioeconômicos ao longo dos séculos.

“Toda prática cultural reflete seu ambiente social e político e é a partir


desse entendimento que [...] a dança do ventre hoje se pratica não é
apenas milenar e sagrada como querem crer boa parte das defensoras
contemporâneas: é antes uma linguagem de sobrevivência, resultado
bem-sucedido de uma adaptação longa e dolorosa” [SALGUEIRO,
2012, p. 43].

Percebe-se que a dança do ventre não permaneceu estanque, mas passou por
mutações e sobreviveu aos contextos históricos. E é justamente por conta dessa
ampla trajetória que permeia oriente e ocidente e suas inter-relações a partir da
construção de um conjunto de representações, assim como por agregar a vida
efetiva de variados agentes e suas composições de identidade, que o baladi é dotado
de historicidade. Lacuna nos trabalhos acadêmicos, merece fazer parte do rol de
temas relevantes a serem investigados.

Referências
Vanessa dos Santos Bodstein Bivar é doutora em História Econômica pela
Universidade de São Paulo e docente do curso de licenciatura em História da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul [FACH/UFMS].
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Artes] – Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília.
Por um futuro melhor!
Mais amor e menos ignorância.
Mais inclusão e menos preconceito.
Mais diversidade e espiritualidade.

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