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André Bueno
A Segunda Geração de Liderança do Part ido Comunist a Chinês: A Turbulent a chegada ao poder de De…
Daniele Prozczinski
MUNDOS EM MOVIMENTO:
EXTREMO ORIENTE
2021
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino
Projeto Orientalismo
Coordenador: André Bueno
www.orientalismo.blogspot.com
Ficha Catalográfica:
Bueno, André [org.] Mundos em Movimento: Extremo
Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ,
2021.
ISBN: 978-65-00-31924-8
Sumário
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 7
André Bueno
EXTREMO ORIENTE:
CULTURAS
A DIFÍCIL ARTE DA SÍNTESE NA HISTORIOGRAFIA
CHINESA ANTIGA
André Bueno
Disse Mêncio: “Ao estudar extensamente, e ao discutir minuciosamente
o que estuda, o objetivo do Educado é capacitar-se para resumir e
explicar com brevidade o essencial”.
A questão
Todo estudante preguiçoso, quando começa a escrever seus primeiros trabalhos,
costuma afirmar que seus sucintos e rudimentares ensaios são curtos porque são
‘muito sintéticos’. A ideia da síntese é usada como desculpa para um trabalho fraco
e malfeito. Quando há pouco para dizer, também há pouco para escrever. Os
estudantes com mais vontade, que se desenvolvem e aprofundam seus estudos,
trocam a síntese pela loquacidade e pelo prolixismo. Gostam de redigir grandes
volumes, parágrafos intermináveis, períodos longos. No desejo de esmiuçar,
desdobram-se em aspectos diversos, que muitas vezes escapam do tema central.
Com o intuito de afirmar uma ideia, repetem-na constantemente no texto, e
reproduzem um nome ou uma assertiva que a complete tantas vezes quanto for
necessário. É a vontade de estar certo e de provar um ponto de vista que justifica,
assim, a produção de um extenso escrito, cujo peso supostamente manifesta, de
forma física e palpável, uma pretensa quantidade de estudo.
Contudo, todo esse processo leva, por fim, à síntese. No ajuste ideal entre a ausência
e o excesso, a medida certa é o uso acertado das palavras – em quantidade e
qualidade. A arte de escrever exige exercício e paixão, e a habilidade de dizer muito
com muito pouco é resultado de anos de treino. Na síntese, se expressa o domínio
das expressões e dos sentidos, e dominá-la denota uma compreensão profunda das
coisas. Liu Zhiji 劉知幾 [661-721ec] dizia que o mais difícil, justamente, é atingir
a síntese. Em seu manual de história, o Shitong 史通, ele comentava sobre a
economia das palavras nas narrativas:
Liu Zhiji buscava retomar a ideia de captar o essencial dos textos, por meio de uma
gramática histórica razoavelmente estabelecida, de acordo com o projeto iniciado
desde o século 6aec por Confúcio 孔夫子 no Chunqiu 春秋 [Primaveras e Outonos]
[Hong, 2001]. Para ele, os escritos dos sábios deveriam ser sucintos, e estimular a
reflexão, dentro de uma tradição consagrada em textos sapienciais [Zhong, 2020].
Confúcio foi austero e econômico nas suas crônicas, e seu modelo foi imitado por
vários outros autores posteriores [Schaberg, 2002: 207-9]. As Conversas [Lunyu 論
語] também são fragmentadas em aforismos breves e curtos; e Laozi 老子 [século
6aec], contemporâneo de Confúcio, fundou o Daoísmo 道家 com apenas oitenta e
um poemas no Daodejing 道德經. Os clássicos antigos [Shijing 詩經, Shujing 書
經, Yijing 易經 e Liji 禮記] eram longos - mas Confúcio não os escreveu, e ainda
os editou, reduzindo seu tamanho; no século 1aec, a revolucionária escrita histórica
do Shiji 史記 de Sima Qian 司馬遷 [Hardy, 1999] estava longe de ser parcimoniosa;
e muitos outros escritores, desejando dar sentido aos sábios, usaram milhares de
palavras para explicar algumas poucas. Portanto, esse é o problema: como escrever
pouco, e dizer muito? Como fazer uma história sintética, moral e profunda, sem
perder em informação e conteúdo?
A história se pretende ser científica, e por isso preza sumamente as fontes. Longas
teias narrativas são baseadas nos documentos, e as citações extraídas dos mesmos
abundam. Isso é importante: afinal, um autor não deveria sair por aí afirmando,
dogmaticamente, que seus livros são válidos, e que se deve acreditar neles, apenas
porque ele 'supostamente' sabe. Por outro lado, quem escolhe as fontes? Quem retira
delas apenas o que lhe interessa? O desejo de referendar uma hipótese com provas
é correto, mas seu uso é sumamente deturpado. Nas humanidades, a manipulação
das fontes é constante. Raro são os escritores que reformam seu espírito após lê-las.
A coletânea de fragmentos que precede a redação do texto histórico é uma recolha
pessoal. Ela é movida tanto pela ciência quanto pela paixão, pela vontade de
comprovar uma hipótese pessoal; e por isso, justamente, muitos dos trabalhos
históricos nascem com vícios de origem, mais dispostos a demonstrar uma
convicção do que necessariamente indicar ou provar uma ideia haurida do estudo.
Liu Zhiji, ao comentar sobre o Shiji de Sima Qian – e as histórias modelos que
começaram a ser feitas a partir dela – fez uma análise [bastante atual ainda] sobre
essa questão:
A visão de Conjunto
A leitura das fontes dá a visão do conjunto a que somente o autor poderá acessar
diretamente. Qualquer redação é a projeção de suas ideias sobre a leitura desse
conjunto. Não há imparcialidade. Por isso, novamente a questão: são necessários
textos enormes para recontar uma história da qual se 'sabe o fim' [ou, sobre a qual
já se criou uma impressão]? O resumo de uma fonte já é, em si, uma apreciação
crítica e sucinta de seu texto.
Isso ocorre porque as crônicas que se utilizam são, em geral, extensas e pesadas. É
uma tradição histórica. Os livros se dedicam a milhares de detalhes, e muitos deles
caem em discussões intermináveis sobre seus sentidos. Podemos perguntar se essa
é uma reflexão importante ou vã. O debate sobre o superficial dificilmente leva ao
profundo.
Quantas ideias?
As ideias, sentidos ou hipóteses da narrativa histórica podem ser reduzidas, quase
sempre, a um número limitado de proposições. Se elas podem resumir o que será
detalhado e analisado, porque a própria análise [o discernimento, o 'dissecamento']
deve ser tão maior que a afirmação inicial? A 'não-análise' torna uma hipótese,
automaticamente, num dogma - o que não é o ideal em história; por outro lado,
muitas vezes o aprofundamento de uma hipótese visa torná-la uma 'verdade' - por
conseguinte, um 'quase-dogma'. Não será função do ensaio histórico ser mais
propositivo do que afirmativo?
Por isso, um ensaio adequado deveria propor as ideias para a reflexão, deixando-as
em aberto, com as indicações de prova, abrindo um caminho para a reflexão. Esse
é um aspecto dicotômico, mas aceito dentro da concepção de oposição
complementar do pensamento chinês [Bueno, 2004] Se a história não for para
refletir, para que servirá ela então? Fechar uma análise histórica é dogmatizá-la
numa versão superficial. Então, talvez, é melhor que a deixe ligeiramente em
aberto, flexível, pronta à crítica. Pois, o ensaio histórico é um olhar sobre um
momento, um evento, sobre algo que foi. Como tal, será sempre passível de
mudança e contestação.
Quantas palavras?
Se as ideias à serem propostas não devem ser muitas, do mesmo modo, as palavras
devem buscar expressá-las do modo mais direto possível. Confúcio falava de
'retificar os nomes' [Lunyu, 13:3], e de atrelar sentidos específicos às palavras. É
claro que Confúcio não apreciava polissemias. Por exemplo: quando evitava
explicar o Ren 仁, talvez não quisesse usar muitas palavras, abrindo margem a
ponderação e a dúvida [Lunyu, 9:1 e 12:1]. Hanyu 韩愈, porém, explicou o Ren em
poucas palavras [Bueno, 2011:20]. Hanyu estaria errado?
Ao fim, todo esse processo mostra que a raiz era Confúcio, que disse muito pouco;
os que se seguiram, tentaram explicá-lo; e hoje, escrevem-se milhares de páginas
para compreendê-los.
Parece-nos, pois, que quanto mais distantes no tempo, mais longe ficamos dos
sentidos – questão já aventada no Wenxin Diaolong 文心雕龍 de Liu Xie 劉勰[?-
522ec]: ‘Mas se passaram muitos anos e é difícil distinguir o que é idêntico e o que
difere da realidade atual; quando os acontecimentos se amontoam é fácil confundir
origem e fim. Precisamente esta é a dificuldade de lograr uma síntese’ [cap.16 in
Bueno, 2012: 27]. O que nos aproximaria deles? A interpretação secundária ou a
leitura direta do original? Talvez, seja a reflexão que nos transporte ao contexto, ou
a ideia central. Esta mesma reflexão é a imaginação, tão cara aos chineses, e tão
necessária à construção da história [como propôs Luji 陸機 [261-303ec] no Wenfu
文賦, nos cap. 2 e 3; Cheng Qianfan [1982] e Cheng Wenbiao [2004] argumentam
que Liu Zhiji se inspirara diretamente em Liu Xie e Luji para escrever o Shitong,
buscando não apenas classificar os conteúdos, mas também os estilos de escrita.].
Tal 'imaginar' só pode advir da reflexão fundada na leitura da fonte; do contrário,
tornamos um hábito emprestar conceitos dos intérpretes, e acabamos repetindo-os,
sem pensar por nós mesmos. Por isso, é crucial ler o original, e tentar captar o
sentido. Assim, fazemos o 'caminho correto', e acessamos os princípios contidos
nos textos. Quando isso ocorre, temos a mesma sensação de quando um jovem
estudante aborda o mestre, ou um filho pequeno aborda os pais, com uma daquelas
perguntas para a qual já sabemos a resposta [É justamente o que representam os
ideogramas Xue 學 [Aprender] e Jiao 教 [Educar]: ambos são construídos pela
imagem de mãos que conduzem uma criança. Ver o dicionário Shuowen jiezi 說文
解字, ref.2065 [xue] e ref.2026 [jiao]. No entanto, foram necessários tantos anos
de experiência para saber as respostas, que precisaríamos de milhares de palavras
para explicá-las - e tal esforço pode redundar inútil. Então, o que fazemos?
Indicamos o caminho, e respondemos com a simplicidade mais direta, sintética e
autêntica possível à questão. Ele deverá seguir o trajeto - o aprendizado, o estudo e
a reflexão - para encontrar-se com a resposta. Não seria esse o mesmo roteiro que
seguimos?
Tomemos os contos e as piadas; o que elas conseguem, que os escritos maiores não
alcançam? O que é extenso torna-se difícil de apreender no todo. Nos contos e
anedotas, os detalhes da narrativa revelam o conjunto, e lançam à compreensão do
sentido. A narrativa curta e as poucas palavras tornam-na de fácil apreensão. Não
serão elas bons modelos, se soubermos utilizá-las?
Liu Xiang 刘向 [77-6aec] escreveu pequenas narrativas sobre sua época e sobre o
período dos Estados Combatentes. Faltou-lhe precisar o contexto, mas essa não era
sua preocupação central, pois as informações cronológicas eram dadas pelas
crônicas. Contudo, ele captou tão bem o sentido dos acontecimentos, que foi
equiparado a Sima Qian. Para alguns, é irritante pensar o quanto se pode contestar
os vastos escritos do Shiji a partir do Shuoyuan 說苑 [Jardim das Histórias] ou do
Zhanguoce 戰國策 [Anedotas dos Estados Combatentes].
O sentido da proposta
Por esta razão, a proposta desse ensaio é, justamente, sobre a arte de escrever
ensaios históricos e filosóficos. A prolixidade parece ser a régua da prova: mas
palavras amontoadas só 'provam' pelo cansaço. Um bom ensaio pode ser sucinto e
direto. Liu Zhiji afirmou que ‘o mundo muda com o tempo, e perdeu-se a
simplicidade original [Qu, 1982:26]; resgatar essa austeridade nas narrativas, e
expressar as ideias com precisão, esse é o ponto.
Referências
André Bueno é prof. Adj. em História Oriental da UERJ.
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YU BOYA E ZHONG ZIQI: O CULTIVO DA AMIZADE
NA INTERSEÇÃO COM A MÚSICA CHINESA ANTIGA
PARA GUQIN
André Ribeiro
Em que pese o fato das crônicas terem sido interpretadas ao longo dos séculos como
a síntese do pensamento político de Confúcio, não seria inexato ler na inscrição dos
personagens Boya e Ziqi nos documentos históricos um caráter prático de instrução
quanto às condutas tidas como virtuosas ao Qin. Confúcio, ele mesmo amante dessa
arte, teria esclarecido a este respeito de que a prática do Qin só atinge a sua
maturidade quando reconhece os seus pares. A exemplo de uma passagem no
Qínshǐ 琴史 [“a história do qin”], Confúcio deu provas dessa conduta, pois ele
mesmo teria insistido por muito tempo no estudo da peça Wén Wáng Cāo 文王操
até conhecer intimamente o seu criador.
Wén Wáng [1112–1050 ac.] é tido como fundador póstumo da Dinastia Zhou
[1046-256 ac.]. Em sua homenagem, foram compostas inúmeras odes, grande parte
delas se encontra no Clássico da Poesia. O testemunho acerca da relação de
Confúcio com a arte do Qin nos chega através dos “Anais de História, Casa
Hereditária de Confúcio” 世紀 ,孔子世 家 四 十七 Shìjì, kǒngzǐ shìjiā sìshíqī,
47; onde se lê:
Diz a lenda, Yu Boya ficou profundamente emocionado por encontrar alguém que
o compreendia. E sentiu-se tão completo que levantou-se e abraçou aquele estranho.
“Meu amigo! Meu verdadeiro amigo! Somos um só coração!”. Separam-se, cada
um seguindo viagem, sob a promessa de um novo encontro. O desfecho desse
encontro é abrupto, se dá quando, a caminho de casa, Boya recebe a notícia da morte
de Ziqi, e modifica o seu itinerário para visitar o local onde fora sepultado. Num
ato final Boya despedaça o seu Qin na pedra do túmulo de Ziqi, jurando nunca mais
voltar a tocá-lo novamente.
É digno de nota o sentido exato dos dois caracteres finais 知音 zhīyīn, cujo
significado “amigo íntimo” ou “alma gêmea”, na decomposição dos termos 知 zhī,
“estar consciente ou desperto”, e yīn 音 “som”, nos revela ainda um sentido musical
pelo que se aproxima de “estar desperto” ou plenamente “ciente da sonoridade” [do
outro], “conhecê-la intimamente”.
Feng Meng Long foi responsável por firmar a narrativa sobre Boya e Ziqi, no que
as subsequentes versões ao longo da Dinastia Qing [1644-1912] viriam a vulgarizá-
la, e com isso reavivar o ideal de liberdade vinculado ao Qin, fora dos ritos e
convenções sociais. Dali em diante a lenda multiplicaria em versões, não raro,
alternando datas, nomes e locais.
Quando Boya despedaça o seu Qin no túmulo de Ziqi o pacto entre eles é selado
com mais força do que em vida. Além de honrar a memória do amigo, confere a
este um ‘poder de animação’ da vida dedicada ao Qin, não obstante, perdida. Por
que, então, seguir tocando Qin se todo o apreço pelo indizível, aquilo do qual nada
se pode dizer, senão sentir e pulsar a dois, foi chancelado pela morte? Essa era toda
a questão dos músicos Ming, no que diz respeito à apreciação do Qin e suas
músicas.
Diante do que não pode ser posto em palavras, a arte do Qin se firma com força
inabalável, cheia de silêncios, cercada de sentidos — e todos os esforços pessoais
se traduzem no encontro com o outro, o amigo que irá completar o sentido [e
caminho] da prática musical. Muito por isso, resta aos dias de hoje a impressão de
que se trata de uma arte que só se pode cultivar verdadeiramente a dois:
“Lendo este livro, eu que estou agora com vinte e sete anos, estive
pensando: Ziqi era um homem virtuoso famoso na antiguidade,
enquanto eu sou apenas um homem rude do presente, então,
naturalmente, não posso ter os encontros maravilhosos dos antigos. Mas
eu também tenho amigos que gostam de minha crueza, de modo que
toda vez que nos encontrarmos, embora não possamos falar sobre ter os
mesmos sentimentos que os antigos, ainda podemos compartilhar as
alegrias da compreensão sincera e o feliz encontro de palavras.” [Wang,
1815]
Tendo em vista a amizade exemplar de Boya e Ziqi como divisa espiritual, o músico
na era Ming reconhecia a necessidade de restabelecer o ‘senso de antiguidade’ que
sempre guiou as gerações de intérpretes. Mas a lógica interpessoal desse
reconhecimento mútuo — de dois amigos nutridos pela ancestralidade — ela
mesma prescinde do saber estruturado no tempo presente, pois refere antes a ‘aura’
que envolve o ‘vínculo amoroso’ do que sua determinação em discurso, a exemplo
de uma passagem do texto de Feng Meng Long:
“‘O Qin dos antigos ainda pode ser tocado; e ser capaz de tocar uma
música antiga [gu 古] é como ouvir as palavras dos antigos.’ Isso
[significa] estar em comunhão com a antiguidade remota, imemorial,
[taigu 太古]. Felizmente, embora o ethos puro tenha desaparecido, o
caminho do Qin [qindao 琴道] ainda existe. Os eruditos e elegantes
estudiosos do passado e do presente [gujin 古今] devem prestar atenção
a isso.” [Yang Biaozheng 楊表正, vol. 4, p. 256].
Considerações breves
O guqin constitui-se como um instrumento de vinculação afetiva e identitária em
relação à história social chinesa, no que visa estabelecer-se como elemento
afirmativo primário de pertencimento ancestral. Enquanto objeto representativo do
cultivo da amizade verdadeira, ao longo da história antiga, proporciona a expressão
de valores e condutas constantemente autenticadas como virtuosas, e ainda
presentes nos dias atuais. Justo por isso, serve de ponte simbólica entre passado e
presente, fazendo crer em uma ligação inextinguível com os ancestrais. Para além
dessas considerações, deve-se destacar ainda o papel da prática musical do guqin
na constituição psico-afetiva dos músicos refletida em sua história social.
Referências
André Ribeiro é professor de musicologia da Universidade de Brasília [UnB],
músico, compositor e etnomusicólogo pela Universidade de São Paulo [USP].
Instrumentista de guqin, sob a orientação de Peiyou Chang 張培 幼 e tem como
mentor o Mestre Yuan Jung-Ping 袁中平 da Taipei Qinhall. Coordenador do grupo
POEM Poéticas Orientais em Música, vinculado ao programa de pós-doutorado do
Departamento de Música da Universidade de São Paulo. É pesquisador do LINE
[Laboratório Interdisciplinar de Estudos do Som] na Universidade de Brasília. Co-
fundador e diretor da Guqin Brazil Association 巴西古琴協會 [2019], e diretor
musical do Gaoshan Liushui Ensemble 高山流水 de música chinesa desde 2012 e
membro da New York Qin Society. É ainda pesquisador na comunidade chinesa em
São Paulo, onde conduz pesquisas etnográficas sobre música budista, seus ritos e
cerimônias, na comunidade do Templo 中觀寺 de Tzong Kwan.
CLEARY, Thomas. Liezi, The Book of Master Lie. Kindle Edition, 2011.
FENG, Meng Long. Stories do Caution the World. University of Washington Press,
Seattle, 2005.
LIEZI. Tratado do Vazio Perfeito. São Paulo: Landy, 1999.
THOMPSON, John. Disponível em:
http://www.silkqin.com/09hist/qinshi/boya.htm Acesso em 10 ago. 2021.
VAN GULIK, Robert. The Lore of Chinese Lute: an essay in the ideology of the
Ch’in. Tokyo: Sophia University, 1969.
WU, Zeyuan. Playing Antiquity: Qin Musiking and Literati Culture in Late Imperial
China. Ohio: Ohio State University, 2015. [tese].
YANG, Biaozheng. Chongxiu zhengwen duiyin jieyao zhenchuan qinpu daquan 重
修 正 文 對 音 捷 要 真 傳 琴 譜 大 全 [Segunda edição do Manual Autêntico e
Completo do Qin: com correção das letras e compilação dos sons e instruções
rápidas], impressão de xilogravura, 1585.
ZHENZHEN Lu, “A Friend of a Lifetime: On Yu Boya smashes his zither to
mourn a dear friend, a youth book”.
Disponível em: < https://www.csmc.uni-hamburg.de/publications/mom/70-
en.html >. Acesso em 02 Out. 2020.
Documentos históricos
SIMA QIAN [109-91 ac.]. Registros do Grande Historiador 太史公書 Taishigong
Shu 史記 Shiji: 109 BC-91 BC. Disponível em: < https://ctext.org/shiji/kong-zi-
shi-jia#n6952 >.
LUÍS GONZAGA GOMES E AS
CHINESICES DE MACAU
Bettina Pinheiro Martins
Luís Gonzaga Gomes, escritor, tradutor e professor, é uma grande referência
macaense no que diz respeito à Sinologia. ‘Filho da terra’ nascido em 1907,
contribuiu de diversas formas ao avanço da sinologia portuguesa, traduzindo textos
do chinês e escrevendo acerca da cultura chinesa e macaense. Profundo conhecedor
de cultura e linguística, foi aluno do preponderante poeta português Camilo
Pessanha no Liceu de Macau, cuja influência é também percebida em nomes como
Fernando Pessoa e Wenceslau de Moraes.
Nesse sentido, os escritos deixados por Luís ‘Inho’ Gonzaga Gomes demonstram
uma clara intenção de enriquecer o diálogo acerca desse intercâmbio cultural.
Ciente desse impasse histórico entre Portugal e China, o autor procurava:
A fonte primária que será usada nesta pesquisa trata-se do livro Chinesices, escrito
por Luís Gonzaga Gomes, com a primeira edição tendo sido publicada em 1952.
Tratam-se de descrições e narrativas da China e de Macau, que têm por intuito
descrever:
Originalmente, os contos eram folhetins inseridos diariamente, por Luís, nos jornais
‘A Voz de Macau’ e ‘Notícias de Macau’, cujo intuito era registrar memórias,
lendas, hábitos e aspectos da vida e da história de Macau. Nesse sentido, pôde-se
observar que os dezoito capítulos fazem referência à oralidade macaense, que
perpetua a tradição através desses contos e lendas populares. Esses aspectos
regionais podem ser observados na escrita de Gonzaga Gomes já que Chinesices,
apesar de ser escrito em português, possui muitas palavras e adjetivos em cantonês
[língua oficial de Macau], na intenção de estabelecer um diálogo cultural e ao
mesmo tempo transmitir a intenção de uma identidade própria através do
vocabulário usado.
Das dezoito crônicas presentes no livro, seis delas levam as palavras ‘China’ ou
‘chineses/as’ já no título, o que evidencia o enraizamento da cultura chinesa
presente em Macau, mesmo com um extenso período de colonização portuguesa.
Ademais, todos os contos tratam de narrativas e lendas sobre a China, não sobre
Portugal, e isso se explica pelo fato de que o destinatário da “mensagem” ainda é o
leitor médio português com algum interesse pela China e, por isso, esse recorte
temático pretende emular um excesso de informação que dê conta de superar o
esperado desconhecimento [SERAFIM, 2018, p.153].
Nesse sentido, é sabido que o uso das palavras ‘chineses/as’ e ‘China’ carregam a
intenção de referir-se ao ‘outro’. Já no capítulo 6, numa rara referência a si mesmo,
Gomes escreve ‘nós, portugueses’ [p.46], dando a entender que ele se considera
mais próximo ao ocidente do que à ancestralidade chinesa. A própria palavra que
dá título ao livro, ‘chinesice’, “espelha algum distanciamento da parte de quem a
usa relativamente ao que a palavra refere, tal como indica o seu sufixo –ice [HAN,
2018, p.200]”. Originalmente, o termo deriva da palavra francesa ‘chinoiserie’, que
significa uma moda orientalista, presente na Europa entre os séculos 18 e 19, e que
evoca ou imita o estilo chinês nas artes. Entretanto, no caso de Luís Gonzaga
Gomes, o emprego da palavra ‘chinesice’ possui outra conotação, possivelmente
em tom pejorativo, referindo-se a uma cultura sino-portuguesa hibridizada e,
sobretudo, orientalista.
“Luís Gonzaga Gomes pertence, portanto, a uma espécie particular de cronistas que
se detêm às “chinesices” daqueles que atravessavam o portão fronteiriço [as Portas
do Cerco] e se instalam em Macau, observando as ruas macaenses, para depois
extrair daí alguma comunicação distante da pura maledicência que marca o discurso
colonialista português sobre o Oriente [SERAFIM, 2018, p.152]”.
Nesse sentido, a presente pesquisa busca explorar essa dualidade entre Oriente e
Ocidente, para então traçar as raízes do discurso macaense de Luís Gonzaga Gomes.
Com isso, a importância de entender e elucidar esse dualismo luso-chinês explica-
se quando lemos os escritos de Gonzaga Gomes, visto que é exatamente essa mescla
cultural que se configura como característica principal da formação da sociedade e
identidade macaense. Han Lili [2018] destaca em sua tese que tais iniciativas de
Gomes, de escrever acerca dessa relação entre Portugal e China, são uma medida
estratégica de conciliação da comunidade macaense com a comunidade chinesa,
além de contribuir para a reflexão e construção da identidade macaense,
especialmente ao longo dos últimos séculos, marcados por essas convulsões sociais
e políticas no território.
Referências
Bettina Pinheiro Martins é mestranda em História Política pela UERJ e
pesquisadora júnior do Real Gabinete Português de Leitura em parceria com o
Instituto Internacional de Macau. A pesquisa aqui apresentada encontra-se em
andamento.
Introdução
Este estudo pretende analisar as concepções de ciência e cientista no mangá, história
em quadrinho japonês, Astro Boy [ 鉄 腕 ア ト ム , Tetsuwan Atomu] escrito e
ilustrado pelo desenhista e graduado em medicina Osamu Tezuka entre os anos
1951-1981. Foram selecionados para essa análise os volumes publicados entre os
anos 1960 e 1970 que fazem referência ao contexto do final dos anos 1940 e 1950,
no que diz respeito às narrativas sobre o investimento dos governos japonês e
americano em desenvolvimento científico e tecnológico na construção de usinas
nucleares, quando a divulgação de produtos literários e midiáticos nesse território
era mediada pela ocupação estadunidense. Essa ocupação era responsável por vetar
representações negativas dos Estados Unidos, como as representações das
consequências humanas e ambientais do uso da energia atômica [Fuller, 2019].
Também se analisa os capítulos que fazem referência à ideia de ciência japonesa
construída com base na concepção ocidental de desenvolvimento e fortemente
divulgada pelos Estados Unidos no Japão [Sasaki, 2010].
Esse autor também apresenta outros estudos que abordam as concepções de ciência
e cientista presentes na literatura e nos filmes da cultura ocidental no século XX.
Dentre esses, Kirby [2017] menciona o estudo da pesquisadora Roslynn Haynes
[2003] que observa nessas produções culturais ocidentais a predominância do
estereótipo de cientista cruel que produz instabilidade na ordem social com seus
conhecimentos e práticas científicas, causando uma condição de vulnerabilidade
nas pessoas quando essas não conseguem interpretar os códigos da linguagem
científica que são necessários para compreender essas práticas científicas e os
impactos de suas produções.
Alguns autores que analisam o enredo de Astro Boy também observam a presença
de símbolos e metáforas referentes aos acontecimentos históricos, como as
consequências do desenvolvimento científico e tecnológico durante o período da
Segunda Guerra Mundial e o Pós-Segunda Guerra no Japão [Gibson, 2012;
Budianto, 2018]. Nesse sentido, a pesquisadora Alicia Gibson [2012] observa que
o personagem Astro Boy, representado como símbolo de modernização do
desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade japonesa, realiza as suas
ações movidas pela energia nuclear. O pesquisador Frank Fuller [2019] também
apresenta como o mangá Astro Boy retrata metaforicamente esse evento do
desenvolvimento científico e tecnológico, comunicando determinadas emoções que
podem representar as reações de alguns japoneses diante dos impactos manifestados
nos ataques atômicos.
No que diz respeito às representações no mangá sobre a energia atômica, com base
em Gibson [2012] é possível entender a palavra átomo [Atomu, アトム] no enredo
de Astro Boy como uma metáfora para se referir ao seu poder e possibilidades de
utilizá-lo mediante a tecnologia científica. Dentre essas possibilidades, Gibson
[2012] e Fuller [2019] reconhecem que essas provocaram o medo quando foram
associadas ao poder da bomba atômica. Nesse sentido, ambos os autores analisam
o mangá como uma produção importante para expor narrativas sobre as possíveis
experiências de japoneses com os impactos dessa tecnologia científica e diante da
censura instaurada pela ocupação estadunidense entre o final dos anos 1940 e 1950
[Gibson, 2012; Fuller, 2019].
O doutor Tenma começa a conviver com o Astro Boy como se esse fosse seu filho,
chamando-o por Tobio, ensinando-o a brincar e estudar como se realmente fosse
uma criança. A ilustração a seguir mostra o momento quando o doutor percebe que
o androide não apresenta as características humanas que desejava, como o
crescimento físico. Nessa situação, ele é vendido para um dono de circo que
pretendia lucrar com as performances do androide lutando com outros robôs
[Tezuka, 2002a]:
Figura 2 – capítulo 1, The Birth of Astro Boy, página 28 [1975]
Nessa investigação, Astro Boy descobre que o médico e cientista responsável por
produzir esses tipos de robôs se chama Junkovitch. Na imagem a seguir, um desses
robôs questiona o fato desse médico ter os programado para atenderem interesses
alheios que comprometem a sua felicidade. Nessa imagem se pode interpretar como
as intenções do cientista se refletem nas atitudes dos robôs, refletindo que as
repercussões da tecnologia científica também estão condicionadas às intenções que
modulam sua utilização na sociedade [Tezuka, 2002a]:
Na imagem a seguir, Astro Boy tenta convencer o androide já programado pelo Uno
para ir ao Ministério da Ciência onde os cientistas podem repará-lo. Ao mesmo
tempo os policiais desconfiam que o Astro Boy está favorecendo os roubos dos
quadros e, por essa razão, não querem contar com a ajuda desse androide para
solucionar este crime [Tezuka, 2002b]:
Astro Boy descobre que ao invés de programar Kino para roubar, o professor-
cientista Noh Uno criou um androide idêntico ao Kino. As duas imagens a seguir
mostram que Astro Boy reencontra o próprio Kino tendo o plano de capturar sua
cópia quando descobre que os truques do ilusionista são baseados em conhecimentos
científicos. Neste sentido, Kino revela que utiliza um gás que afeta os olhos humanos
e dificulta para enxergar, permitindo ao androide pular para o outro lado do muro
sem ser notado pelos policiais [Tezuka, 2002b]:
O fato de Astro Boy e outros androides representarem uma tecnologia científica que
sempre precisa controlar sua força e possíveis impactos, quando interagem com as
pessoas e quando são programados para realizarem interesses humanos, pode
retratar uma crítica quanto a ideia do desenvolvimento que apresenta as tecnologias
científicas apenas como positivas para a sociedade, sem mencionar suas possíveis
consequências. Assim como o personagem Astro Boy pode representar uma forma
de ressignificar as consequências desse desenvolvimento científico e tecnológico,
que impactou as vidas cotidianas nessa sociedade japonesa, quando os androides
retratam uma possibilidade de promover o bem-estar das pessoas [Fuller, 2015].
Referências
Bruna Navarone Santos é Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]. Mestranda em Ensino em
Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz [PPG-
EBS/IOC/Fiocruz]. E-mail: bnavarone@gmail.com.
Esse mielócito que buscou ajudar aquele eritroblasto se torna o glóbulo branco U-
1146, especificamente um neutrófilo capaz de eliminar vírus e bactérias. Esse
glóbulo também consegue tornar mais eficaz e seguro o processo de transporte de
gás oxigênio e gás carbônico realizado pelos glóbulos vermelhos. Além desse papel,
ele também realiza um papel de conselheiro e protetor da AE-3803 quando também
a orienta sobre os caminhos mais acessíveis para que ela realize aquele transporte.
Nesses momentos em que as células mais precisam de proteção e orientação nesse
percurso, o glóbulo branco está sempre disposto a sacrificar sua própria vida para
garantir que cada célula realize sua função especializada e mantenha a homeostase
do corpo humano.
Figura 2: U-1146, Glóbulo Branco/Kenichi Suzuki
De acordo com o neurocientista japonês Ken Mogi, os sentidos de Ikigai podem ter
a ver com experiências cognitivas e comportamentais pelas quais hábitos e valores
são organizados para realização cuidadosa e gradual de determinado objeto de
interesse. Esse objeto de interesse geralmente está relacionado com algum trabalho
que é capaz de imergir as pessoas no momento presente, durante a realização das
atividades desse trabalho, e sem a intenção de receberem reconhecimento imediato.
Assim, esse processo de realização de Ikigai pode proporcionar uma
autoconsciência da contribuição que esse trabalho terá na vida dos outros. Essa
autoconsciência pode ser encontrada durante o desenvolvimento do glóbulo
vermelho, quando ela reconhece que embora tenha dificuldades de realizar o seu
trabalho ainda assim busca aprimorá-lo enquanto valoriza o processo de
experiências que implicam encontros e aprendizados com as células mais
experientes. Nesse caso, o glóbulo vermelho tem consciência que cada um desses
encontros são experiências transitórias pois vivencia constantemente a morte e
desencontro das células.
Essa noção também pode remeter à noção de Caminho [Gonçalves, 2004] enquanto
um processo que, durante a trajetória do indivíduo, pode permitir que aprenda e
desenvolva novos conhecimentos e atitudes de maneira não linear. Nesse sentido,
o Ikigai também se aproxima dessa noção porque valoriza a autoconsciência do
indivíduo nesse processo de experiências que podem aprimorar suas habilidades,
valorizando a interdependência com o outro como parte desse Ikigai, diante de um
propósito a ser alcançado e que se torna o próprio processo da realização desse
percurso [Okano, 2013].
O antropólogo Gordon Mathews acrescenta que esses sentidos de Ikigai podem ser
diferentes de acordo com as vivências de moças e rapazes japoneses, com diferentes
faixas etárias, e os contextos históricos onde estão situados. Como exemplo desse
fenômeno, estudos verificam que as mulheres japonesas tendem a considerar a
família como o seu Ikigai enquanto os homens consideram o trabalho. No entanto,
o aumento da expectativa de vida no Japão também influenciou outros possíveis
sentidos de Ikigai ao mobilizar os aposentados e as aposentadas à construírem um
senso de comprometimento e pertença para além das relações com a família, o
grupo de colegas de trabalho e as empresas, prezando pelo exercício de hobbies
como forma de realizar o seu Ikigai.
Independente dos diferentes sentidos que Ikigai pode apresentar nas diversas
trajetórias dos japoneses, possuem em comum tanto o senso de compromisso do eu
com a sociedade e ambiente onde estão inseridos quanto a responsabilidade com a
escolha individual em dedicar seus esforços ou não nesse compromisso [Gordon,
1996]. Ainda como exemplo desse compromisso e responsabilidade representados
na narrativa de Cells at Work! tem o trabalho realizado coletivamente pelas
plaquetas que, junto com a cooperação das células que exercem suas funções
especializadas, conseguem formar coágulos para retenção de hemorragias.
Referências
Bruna Navarone Santos é Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]. Mestranda em Ensino em
Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz
[PGEBS/IOC/Fiocruz].
E-mail: bnavarone@gmail.com.
“[...] A primeira tradução regular, e que se possa chamar tal, dos livros
sagrados do Testamento Velho em português, de que podemos haver
notícia, foi a que no século XVII trabalhou o erudito português João
Ferreira A. de Almeida. [...] Este homem erudito não estreitou o seu
zelo à só trasladação do Antigo Testamento; empreendeu também a de
todos os sacrossantos livros do Testamento Novo, obra em que pôs
grande trabalho, e todo o cabedal de seu saber”. [Santos, 1806, p. 17].
Pensamos que a linguagem seja um fator chave para a compreensão dos caminhos
desenhados pelo hibridismo cultural presente na sociedade que tomamos como
referência de análise, e a tradução de Almeida permite entender o português
presente na região da Batávia. Quando aborda a construção do português enquanto
idioma, através das diversas ramificações possíveis, o letrado Joaquim Teófilo
Braga aponta que a tradução do missionário é “[...] o maior e mais importante
documento para se estudar o estado da língua portuguesa no século XVII”. [Braga,
1875, p. 350]. Para o autor, Almeida foi responsável por tornar o português vulgar,
de uma maneira que não foi adotada por “nenhum escritor cultista do seu tempo”.
[Ibiden].
Assim, Almeida apresenta uma riqueza de vocabulário mesmo quando não adere à
retórica comum ao período seiscentista, por procurar palavras que sejam
equivalentes às utilizadas usualmente por conta de sua origem comum e o contato
com o povo no ambiente cotidiano. Portanto, a técnica utilizada por João Ferreira
de Almeida é entendida pelo letrado como uma forma de popularizar a língua
portuguesa, com expressões próprias do período e que carregam, contudo, práticas
doutrinárias que deveriam ser acessíveis aos povos. A ideia religiosa é difundida
através dos escritos do missionário português em idioma vulgar, com expressões
corriqueiras que facilitam a internalização por fácil assimilação do conteúdo
religioso. Para além da forma como é escrito, precisamos ressaltar que é uma
literatura religiosa, algo que comove, toca as pessoas e oferece as respostas
necessárias para a vivência diária.
Entre os séculos XVII e XX, a região da Batávia, caracterizou-se como o centro dos
domínios ultramarinos holandeses no oriente. A atual Jakarta, capital da Indonésia,
recebeu muitos oriundos do sul da Índia, Ceilão [hoje Sri Lanka], Malaca e algumas
outras ilhas que fazem parte do sudeste asiático. Como consequência da
concentração de pessoas que tinham o português como idioma nativo e de outras
que faziam a língua de mediador social, a Batávia foi o centro de uma comunidade
de fala portuguesa, sendo referência até para a escrita de documentação estrangeira,
com resquícios que alcançam o século XIX. Conforme a diversidade de povos que
tiveram a região como centro comercial e cultural, inferimos que houve uma
variedade reestruturada do idioma.
Há o uso da língua feita sobretudo para fins comerciais, resultado do contato entre
falantes do inglês, francês, espanhol e português, por exemplo, ocasionando o que
a linguística chama de pidgin, uma adaptação do idioma, mesclando variações
funcionais para os falantes. Notamos, então, segundo Cardoso, uma circulação de
pidgin que tem o português como base comum, embora não necessariamente o
português estruturado de maneira formal, favorecendo um meio de comunicação
intercomunitária. A grande difusão do português na Ásia ocorre, sobretudo, por
conta da possibilidade que o idioma encontrou nas variações linguísticas
proporcionadas pelo contato de falantes de outras línguas, adaptando o idioma
conforme a conveniência, muitas vezes necessária diante do comércio entre os
diferentes povos.
Para além das questões lexicais, é possível perceber como a região foi favorável
para o avanço e consolidação do português como idioma, fazendo com que o
tradutor calvinista João Ferreira de Almeida fosse capaz de usar sua própria língua
nativa como ferramenta para a difusão e afirmação das práticas embasadas pelos
ideais reformadores. Objetivando alcançar os que não conhecem outra língua além
do português, Almeida faz uso do idioma para que seus escritos sejam propagados.
Luís Henrique Menezes, ao fazer uma síntese das traduções do missionário, enfatiza
que houve tentativas falhas de suprimir o português em regiões asiáticas, fazendo
com que não fosse possível ao avanço holandês negligenciar o que já fora
estabelecido pela presença lusitana. De acordo com o historiador:
Conclusão
Propusemos trazer, aqui, um breve relato acerca do avanço protestante na Ásia
Moderna, tendo o idioma português como facilitador do acesso ao conhecimento
particular das Escrituras Sagradas. O calvinista João Ferreira de Almeida, assim,
atua como uma vertente catalisadora do movimento reformador ao aproveitar da
troca entre a população local e usar a língua franca, funcional por conta dos
inúmeros usos cotidianos, para tornar os ensinamentos protestantes acessíveis aos
que detém o português como língua de uso comum.
Referências
Carlos Aldlen Torres de Souza é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [UFRRJ] e bolsista
CAPES.
Fonte:
Differença d’a christandade: em que claramente se manifesta, I. A grande
disconformidade entre a verdadeira e antiga doctrina de Deus [...] traduzido e
acrecentado tudo, agora de novo, pelo P. Ioaõ Ferreira A. d’ Almeida, ministro pregador
d’o S. Evangelho ‘na India Oriental. Nova Batavia: com privilegio d’o supremo
Conselho d’a India, e aprovaçaõ d’o Consistorio ecclesiastico: Por Henrique Brando, e
Joao Bruyningo, 1668. [Universitätsbibliothek Basel, fb 661. Disponível em:
<https://doi.org/10.3931/e- rara-28970>].
Seu relato sobre a China teve uma primeira edição em espanhol em 1642 e não há
nenhuma evidência de outra anterior, em português. Seguiram-se traduções para o
francês, em 1645, e para o inglês, em 1655 [Mungello, 1989, 75], o que evidencia
o interesse que o império chinês despertava na Europa. Acreditamos ser possível
afirmar que tal interesse antecedia o chamado “orientalismo” que viria a se
desenvolver a partir do século XVIII e, com maior intensidade, no decorrer do
século XIX, associado ao expansionismo europeu.
Álvaro Semedo referiu-se aos livros Clássicos chineses que continham textos cujo
conhecimento era exigido nos concursos imperiais. O fato de que os letrados eram
os principais interlocutores dos jesuítas permitia que esses obtivessem informações
bastante fidedignas a respeito dos estudos na China. A escrita chinesa era também
motivo de admiração para os europeus e Semedo não deixou de registrar sua
antiguidade: “as letras que usam parecem ser tão antigas quanto a própria gente,
pois conforme seus monumentos históricos escritos com elas, conhecem-nas há
mais de 3.700 anos [...]”. [Semedo, 1642, p. 34] Sua descrição dos exames imperiais
é detalhada e trata da maneira como se desenvolviam as provas e do prestígio
daqueles que chegavam ao mais elevado patamar de classificação. [Semedo, 1642,
p. 61-69]
Fica bastante claro, em grande parte do relato, que o jesuíta se interessou com certa
profundidade pela escrita chinesa. Suas explicações remontam às formas mais
antigas de algumas palavras e ele as transcreve de maneira muito correta.
[Magaillans, 1688, p. 85-86] O respeito dos chineses pelas pessoas mais velhas e
também por seus antepassados e, mais ainda, por seus pais já falecidos, é um tipo
de comportamento que fez com que os jesuítas os considerassem dignos de
admiração. O culto aos ancestrais, uma prática confucionista que, no século XVIII
criou tantos problemas e deu origem a tantas críticas da parte de outras ordens e até
mesmo do Vaticano, foi entendido pelo padre Magalhães, bem como por outros
jesuítas, como algo digno de ser apreciado:
Nem toda a longa estadia chinesa do padre Magalhães foi, porém, agradável, pois
ele viveu em tempos difíceis do império, em plena conquista manchu, estando em
Chengdu, na companhia do padre italiano Ludovico Buglio, numa época de
insurreições contra os invasores. Com a vitória daqueles que se autodenominariam
dinastia Qing, os dois jesuítas foram presos e conduzidos a Beijing quando o
rebelde Zhang Xianzong foi morto por soldados manchus. Ambos escaparam de
condenações graves por intercessão de outro padre, o alemão Adam Schall von Bell,
que então já havia conquistado o apoio dos novos senhores da China e era
prestigiado como astrônomo imperial. [Patternicò, 2014, p. 65]
Mais adiante, enfrentando denúncias, Magalhães foi mais uma vez preso em virtude
de acusações de alguns mandarins. Era comum que ocorressem tais problemas, pois
nem todos os cientistas da corte gostavam de ter seu prestígio dividido com
estrangeiros de destaque junto ao imperador. A tudo, somou-se uma longa e amarga
disputa com Adam Schall, ainda que esse o tivesse ajudado no período da queda da
dinastia Ming. Schall, porém, muito cuidadoso e bastante apreciado pelo imperador
Shunzhi, para o qual trabalhava, evitava maiores problemas que pudessem colocar
em risco o conjunto das atividades dos jesuítas. No entanto, grande parte dos
desentendimentos, mesmo os mais graves, eram resolvidos dentro do império e
raramente afloravam com muita repercussão na Europa.
De um modo geral a maioria dos mandarins chineses acolhia os jesuítas com grande
interesse por seus conhecimentos científicos, portanto boa parte das imagens
veiculadas pelos padres tinha um caráter positivo e elas mantiveram-se apesar de
alguns raros períodos de perseguições voltadas para as atividades missionárias da
Companhia.
Não é possível avaliar com exatidão quantas vezes foi reproduzida cada peça do
referido conjunto, mas atualmente várias delas podem ser encontradas em museus
e em coleções privadas de diversos países. Há o registro de alguns clientes que as
encomendaram ao ateliê de Beauvais, entre eles o então jovem duque do Maine,
Louis Auguste de Bourbon, filho do rei Luís XIV com Madame de Montespan.
[Marty, 2014, p. 17] As tapeçarias eram realizadas a partir dos chamados cartões
pintados por artistas da época. No caso do conjunto sobre o imperador da China, os
cartões eram obras dos pintores Guy-Louis Vernansal [1648 – 1729], Jean-Baptiste
Monnoyer [1636 – 1699], et Jean-Baptiste Belin de Fontenay [1653 -1715]. [Marty,
2014, p.1]
Foi Luís XIV justamente o monarca que enviou para a China um grupo de jesuítas
diretamente vinculados à Coroa francesa e, pela primeira vez, não submetidos ao
Padroado português. Denominada Missão Francesa, seus integrantes tinham
recebido também o apoio da Academia de Ciências de Paris e chegaram em Beijing
no ano de 1688, sendo muito bem recebidos pelo imperador Kang’xi e por boa parte
do mandarinato. [Palazzo, 2017, p. 38-40]
Os padres Schall e Verbiest, porém, não faziam parte da missão enviada pelo
monarca francês e a antecederam, mas suas importantes funções na China eram
difundidas também na França. Justamente um dos membros da referida Missão, o
padre Jean de Fontaney, escreveu uma carta ao confessor de Luís XIV na qual
descrevia as homenagens que Ferdinand Verbiest havia recebido da parte dos
chineses em seu funeral, realizado em 1688. [Fontaney, 2001, p. 65] Verbiest, que
viveu na China entre 1659 e 1688, havia sucedido Adam Schall na direção do
importante Observatório Astronômico.
Observar a circulação das histórias sobre os contatos dos jesuítas na China, ainda
que recontadas e interpretadas livremente pelos artistas que criaram as cenas, leva-
nos a constatar que os europeus letrados estavam bem informados sobre as
atividades de prestígio que os inacianos exerciam junto à corte de um império
milenar.
Conclusão
Nosso objetivo neste breve artigo foi o de mostrar a importância dos inacianos como
responsáveis pela divulgação, entre os europeus, de imagens de uma China
admirável e, em muitos aspectos, comparável à Europa. A sua civilização milenar,
ainda que não cristã, era por eles considerada como meritória de interlocução,
mesmo que houvesse críticas em meio aos elogios. Tais críticas, porém, nunca
impediram grande proximidade dos padres com o mandarinato, no interesse da
catequese, é claro, mas também pelo contato em si, que inúmeras vezes agradava
ambas as partes
O império chinês, até meados do século XVIII era solidamente centralizado e cioso
de sua importância, o que fazia com que a relação com os missionários ocorresse
entre semelhantes, apesar das divergências e mesmo de disputas acirradas. O fato
de ser estimulado, na Companhia de Jesus, o aprendizado do idioma das sociedades
nas quais os padres exerciam suas atividades facilitou a convivência com os
mandarins, permitindo que ocorresse um intercâmbio cultural. Com todas as
dificuldades enfrentadas e apesar dos momentos críticos, com turbulências na
política interna chinesa, especialmente durante a conquista manchu, a maioria dos
padres manteve um olhar de admiração.
Os manchus, por sua vez, adotando grande parte dos hábitos e o idioma dos chineses
e preservando a valorização dos concursos imperiais, quando subiram ao trono
como a poderosa dinastia Qing [1644–1911] tiveram nos inacianos colaboradores
excepcionais. Com o apoio deles aumentaram seus conhecimentos de matemática,
de mecânica e de astronomia. E o comércio de luxo que levava aos europeus a
porcelana e tantos outros produtos muito apreciados, constituía-se no suporte
material igualmente relevante enquanto se desenvolviam ideias sobre a China que
seduziram também os pensadores Iluministas. [Terrón Barbosa, 2010, p. 267-277]
É possível, então, dizer que mais do que um interesse superficial pelo exótico, o
conhecimento sobre as atividades dos jesuítas no Império do Meio estava integrado
na ampliação da visão de mundo do Ocidente entre os séculos XVI e XVIII.
Referências
Carmen Lícia Palazzo é doutora em História pela Universidade de Brasília, UnB,
pesquisadora convidada do UniCeub e trabalha com a temática de encontros entre
o Ocidente e o Oriente, Relatos de Viajantes e Rota da Seda. Ministrou o módulo
“A Rota da Seda e a Cultura como Vetor das Relações entre a China e o Ocidente”
no curso de pós-graduação lato sensu Análise de Cenários Políticos, Resolução de
Conflitos e Negociações para a Paz, no UniCeub [2020].
[Todas as traduções dos trechos citados no artigo são nossas.]
Fontes escritas:
FONTANEY, J. Carta de 15 de fevereiro de 1703, enviada a R. P. De La Chaise.
Em Vissière & Vissière, I. e J.-L. [ed.]. Lettres Édifiantes e Curieuses des Jésuites
de Chine [1702-1776]. Paris: Desjonquères, 2001: 59-75.
MAGAILLANS, Gabriel de. Nouvelle Relation de la Chine contenant la
description des particularitez les plus considérables de ce grand empire. Paris:
Claude Barbin, 1688.
KIRCHER, Athanasius. La Chine illustrée de plusiers monuments tant Sacrés que
Profanes, et de quantité de Recherches de la Nature & de l’Art. Amsterdam: Jan
Jansson & les heritiers de Elizée Weyerstraet, 1668 e 1670.
SEMEDO, Álvaro. Imperio de la China y cultura evangélica en el. Madri: Juan
Sanchez, 1642.
Fonte iconográfica:
Tapeçaria “Les Astronomes”. Museu Leblanc-Duvernois, em Auxerre, França.
Foto nossa, autorizada pelo referido museu.
Bibliografia:
GOUX, Valentin. “The History of Chinoiseries in France”. Institute of Classical
Architecture & Art. New York, 2020. disponível em
https://www.classicist.org/articles/the-history-of-chinoiseries-in-france/
MARTY, Mélanie. “La tenture de Beauvais: Histoire de l’empéreur de Chine”.
dissertação de Mestrado. Pau: Université de Pau et des Pays de l’Adour, 2014.
MUNGELLO, David E. Curious Land. Jesuit Accomodation and the origin of
Sinology. Honolulu: University of Hawaii Press, 1989.
PATTERNICÒ, Luisa M. “Ludovico Buglio e la sua rocambolesca aventura
cinese”. In Sulla via del Catai, v. 11. Trento: Centro Studi Martino Martini, 2014:
63-74.
PALAZZO, Carmen Lícia. “De Matteo Ricci à Missão Francesa: o encontro entre
os jesuítas europeus e o Império do Meio” in BUENO, André et alii [orgs.],
Vários Orientes, p. 31-45. Rio de Janeiro: Sobre Ontens, 2017.
PERETTI, François-Xavier de. “L’inculturation des Jésuites en Chine. Pascal,
Leibniz, Voltaire et la querele des rites chinois.”, Magazine de Littératures et de
Cultures à l’ère numérique, [Transnationalité. L’expérience de l’ailleurs], n. 7,
[2016]. Centre Interdisciplinaire d’Étude des Littératures d’Aix_Marseille.
TERRÓN BARBOSA, Lourdes. Images de la Chine dans lóeuvre de Voltaire.
Thélème. Revista Complutense de Estudios Franceses, 2010, v. 25, p. 267-277.
OS BOMBARDEIOS ATÔMICOS DE 1945 E A
HISTORIOGRAFIA EM DISPUTA
Douglas Pastrello
O desfecho da Segunda Guerra Mundial tem em seu epicentro a rendição
incondicional do Japão, entretanto os motivos que levaram a rendição se encontram
em uma disputa político-histórica. A historiografia subsequente de 1945 se divide
em dois grandes nichos que sumarizam e discutem o evento: uma historiografia
ortodoxa – também com uma corrente neo-ortodoxa – e outra reconhecida como
“revisionista”.
Sidnei Munhoz [2015. p.12], corrobora com esse argumento ao afirmar que os
próprios japoneses já haviam buscado os soviéticos para discutir uma rendição. O
plano não teria dado certo, pois Stalin desejava a rendição incondicional, não tendo
interesse em discutir termos.
Todavia, tais preceitos encontram percalço em dois fatores. Primeiro, uma única
bomba atômica não teria sido o suficiente para demonstrar poder bélico e levar o
Japão a se render? Segundo, a escolha dos alvos ocorreu de forma arbitrária, não há
grandes indícios que Hiroshima ou Nagasaki tenham sido pontos estratégicos
militares. Nagasaki, inclusive, era uma zona montanhosa e rural, algo que explica
o menor número de baixas na segunda bomba atômica, mesmo que sua potência
tenha sido maior.
Todavia, a narrativa ortodoxa não busca apenas justificar os artefatos atômicos por
sua utilidade prática na guerra, ela faz parte do esforço do governo estadunidense
em se aproximar do Estado japonês no pós-guerra. Transformando a ilha nipônica
em um ponto estratégico na geopolítica da eventual Guerra Fria [PASTRELLO,
2020]. Deste modo, obtêm-se que as bombas atômicas foram utilizadas para
alavancar uma vantagem política no pós-guerra, evitando a partilha japonesa com
os soviéticos.
Em outro caso, Robert James Maddox, de acordo com Munhoz, afirma que
conseguir a rendição do Japão com poucas casualidades sem a bomba atômica seria
um mito. Muito embora suas perspectivas de “200 mil mortes” pareçam otimistas
frente as “500 mil” defendidas pelo governo Truman. Além de criticar esse “mito”,
Maddox aponta que as evidências apontadas por Alperovitz foram desvirtuadas e
descontextualizadas [MUNHOZ, 2015. p.16].
Michael Bess defende a leitura histórica de que a bomba atômica teria salvado
vidas, da mesma maneira que historiadores ortodoxos. Em sua argumentação, Bess
afirma que o Japão possuía um intenso treinamento de milícias, tendo incrementado
o efetivo de defesa da ilha de 150mil para 545 mil em Kyushu, e que uma invasão
direta à ilha resultaria em uma eminente catástrofe de mortes [Ibid. p.18]. Cita,
ainda, os números de baixas ocorridos na tomada das ilhas das Filipinas,
demonstrando altíssimo índice de fatalidades entre civis e soldados nipônicos.
Em seu relato, Nakazawa descreve a perseguição sofrida por sua família, na cidade,
na escola e na vizinhança por conta dos posicionamentos de seu pai que afirmava
que os militares iriam destruir o país. Em uma de suas entrevistas [Ibid], o mangaká
fala sobre seu tio Miyake Yoshio que participou dos ataques a Pearl Harbor e ao
voltar para casa conversou com pai de Nakazawa, afirmando que ele estava certo
em afirmar que o Japão não poderia ganhar a guerra.
Igarashi, ainda, argumenta que o desgaste causado pelo conflito na sociedade era
tão grande que a maior parte dos japoneses almejavam o fim do conflito. O
historiador descreve como casas de banho que abriam em dias intercalados abrem
suas portas, cidades fizeram um “show de luzes” e como japoneses comemoraram
em festas clandestinas portando itens de luxo que eram proibidos ao descobrirem
que a guerra acabara [IGARASHI, 2011. p.134]. Desta forma, percebemos como
há uma clara linha de raciocínio que permite questionar a crença do “fanatismo
generalizado” sobre essa suposta nação formada de milicias fanáticas e altamente
treinadas prontas para lutar até o último suspiro do último homem.
Não é sensato crer que essa disputa será cessada em breve. Sua incorrência no
tempo presente se dá justamente porque há uma memória viva que representam
ambas as correntes históricos que se debruçam a ler o acontecimento.
Por fim, uma pesquisa promovida pela emissora NHK e desenvolvida por
Kobayashi Toshiyuki [2007] revela a diminuição do interesse ao longo do tempo
no assunto. Grande parte dos entrevistados já não leva em consideração a
experiência dos sobreviventes na educação sobre o perigo atômico, e como 1 a cada
4 residentes de Hiroshima não sabe a data do bombardeio atômico, por exemplo.
Referências
Douglas Pastrello é mestre em História Política pela Universidade Estadual de
Maringá, atualmente doutorando no programa de História Política da mesma
universidade, com ênfase em pesquisa no Japão contemporâneo e cinema.
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Último acesso: 24/03/2020.
IMPERIALISMO JAPONÊS NA PENÍNSULA COREANA
NA ÓTICA DOS K-DRAMAS MR. SUNSHINE: UM RAIO
DE SOL E CHICAGO TYPEWRITER
Eduarda Christine Souza Pucci
Com as grandes transformações que o século XIX e XX que aconteceram no
continente Asiático, podemos destacar o fim do Xogunato e a ascensão do período
Meiji [1868–1912], no Japão, momento este que o povo japonês vivenciou
mudanças em seu cotidiano e política. A partir dessa nova forma de organização, o
Japão começa a se desenvolver industrial e militarmente, com o advento da
ocidentalização causada com uma interferência dos Estados Unidos em seu
território. Nesse momento, o governo japonês abre o país para essa nova forma de
vida e começa a planejar técnicas de ascensão do Japão na Ásia. Uma dessas
técnicas de poderio do Japão foi a anexação da Península Coreana, que ocorreu no
século XX, ocasião esta que ficou marcada por muitos conflitos, resistência e
memória, além de um forte sentimento de nacionalismo coreano.
Deste modo, será apresentado um breve resumo sobre o período do Meiji e como
as características que essa revolução causou ao Japão, influenciou na futura posição
imperialista que irá ocorrer e como essas relações vão afetar a Ásia Oriental,
principalmente a Península Coreana, que vivia a Dinastia Joseon. Assim, irá ser
exposto como acontecia essa relação entre Japão-China-Coreia, e como o Império
Japonês conseguiu se tornar tão grande e expressivo em pouco tempo, além de
deixar grandes marcas na vida e na cultura coreana.
Assim, por último, para tentar ilustrar como ocorreu essa prática imperialista
Japonesa na Coreia, os k-dramas sul-coreano “Mr. Sunshine: um raio de sol” [tvN,
2018] e o k-drama “Chicago Typewriter” [tvN, 2017] servem como exemplo esse
momento. A escolha dessas produções audiovisuais se deu, pois, elas apresentam
essa temática da Invasão japonesa na Península Coreana, desde os primeiros
tratados até a tentativa do processo de independência, que ocorrem em consonância
com a Segunda Guerra Mundial [1939–1945].
Uma história coreana sob o olhar audiovisual dos K-dramas, a partir de Mr.
Sunshine e Chicago Typewriter
Para ilustrar os acontecimentos até agora já citados neste ensaio, o K-drama “Mr.
Sunshine”, escrito por Kim Eun Sook, apresenta uma primeira parte de como
ocorreram as tentativas de colonização do Japão na Coreia. Para seguir uma ordem
cronológica, se passa na Dinastia Joseon [1392–1910]. As primeiras cenas do drama
se passam no ano de 1871, ano que marca a expedição norte-americana em Joseon,
que começa a contar a história de Choi Yu-jin [Lee Byung Hun], um escravo
refugiado que, no decorrer do drama, sua vida muda completamente com sua ida
aos Estados Unidos e mudança de seu nome para Eugene Choi. Os primeiros
acontecimentos históricos retratados no drama é o Tratado de Ganghwa [1876], a
Reforma Gabo [1894] e a Guerra Hispano-Americana, com enfoque na Batalha de
Caney [1898]. A utilização desses episódios servem de apoio à história que irá ser
contada e para dar também uma certa legitimidade e ilustrar o acontecimento
histórico que o drama quer transmitir e assim prender a atenção do telespectador,
principalmente para os fãs do gênero.
Já o K-drama “Chicago TypeWriter”, escrito por Jin Su-wan, utiliza uma forma
diferente de abordar o que estava acontecendo na Península Coreana, nos anos 30.
A história se passa no tempo passado e presente, nos anos de 1930 e 2017,
respectivamente, em que Han Se-joo [Yoo Ah In], um dos personagens principais,
é um escritor famoso e ganha uma secreta máquina de escrever e sua vida muda
completamente, com a presença de Jeon Seol [Lim Su-jeong], uma fã que junto com
ele possui um passado desconhecido da outra vida que tivera. O ponto principal do
drama é a presença do fantasma de Yoo-Jin-oh que, ao reencontrar Han Se-joo no
presente, tenta voltar ao passado e descobrir o motivo de sua morte. A partir dessas
voltas que ocorrem no decorrer da trama, é possível observar uma Coreia tomada
pelos Japoneses e sem identidade, onde os três amigos juntos com um grupo de
rebeldes anti-japão, buscam pela independência coreana. A forma como são
retratados os acontecimentos históricos, servem para dar uma introdução para se
fazer entender uma parte da história presente no conteúdo histórico ficcional. O uso
do período de ocupação Japonesa na península coreana desde seu começo com o
neocolonialismo japonês na Ásia no século XIX e a ocupação da Coreia em [1910–
1945], que deixaram uma grande ferida na península, faz com que chame a atenção
do telespectador.
Considerações Finais
Diante do que foi exposto, pode-se notar que o processo de anexação da Península
Coreana, aconteceu em etapas, com tratados, em referência a como os Estados
Unidos chegam pela primeira vez no território Japonês. A partir dessa memória, o
Japão inicia seu processo de desenvolvimento industrial. Com o começo da
revolução Meiji, mudanças ocorrem no cotidiano e na militarização, fazendo com
que ele se torne um gigante asiático em vista da China.
O neocolonialismo na Coreia, fez com que o governo japonês pudesse crescer ainda
mais em vista das potências ocidentais dos séculos XIX-XX. Porém, o que foi uma
coisa boa para o Japão não foi para a Coreia, pois além de transformações impostas
e mudanças de poder, houve um acontecimento que iria ficar marcado na história e
nas relações entre Japão-Coreia, que são as mulheres de conforto, prática que
deixou cicatrizes na memória das vítimas coreanas e mulheres de continente
asiático também.
Desse modo, os fatos e exemplos até aqui mostrados, serviram para demonstrar e
fazer uma breve síntese de como ocorreu o Imperialismo Japonês e como aconteceu
a anexação da Coreia ao Japão. De início foi apresentado uma parte do que foi o
Meiji, parte importante da história de como o Japão conseguiu se desenvolver ao
passo que o ocidente adentrava na Ásia. Logo após, foi expresso como a Península
Coreana e a Dinastia Joseon foi submetida às características que o Japão pretendia
implementar. Por fim, foi demonstrado como os k-dramas do gênero histórico
também ajudam a propagar uma história de luta pela independência do povo
coreano pela sua liberdade diante do Japão.
Referências
Eduarda Christine Souza Pucci é discente do curso de Licenciatura em História,
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.
No caso do Japão a maioria das múmias encontradas são de tipo natural não
intencional [YAMADAL et al, 1996, p. 76]. No entanto os cadáveres do clã
Fujiwara [794-1185] demonstram sinais de possíveis tratamentos preservativos
[FUJITA et al, 2021, p. 7-9]. Esse clã aparenta ser o único a ter produzido múmias
artificiais no Japão, sendo algo não muito comum no país, além do processo de
auto-mumificação [SAKURAI et al, 1998, p. 313]. A metodologia de mumificação
desenvolvida pelos Fujiwara é desconhecida. É possível que houvesse a
evisceração, sendo o corpo dessecado e disposto em solução de mercúrio [FUJITA
et al, 2021, p. 9] [YAMADAL et al, 1996, p. 76].
Essa múmia é chamada de Sokushinbutsu, sendo ela produzida por meio de uma
intensa dieta e ascetismo [FUJITA et al, 2021, p. 3] [HORI, 1962, p. 226]. A dieta
restringia cereais e uma série de alimentos, havendo apenas consumo de sementes,
castanhas, pouca água e um chá de uma árvore chamada Urushi [BECKETT e
CONLOGUE, 2015, p. 48-49]. O baixo consumo de alimentos tornava os níveis
de gordura, massa muscular e hidratação mínimos [FUJITA et al, 2021, p. 4].
Acredita-se que o chá propicie a criação de condições bactericidas internas no corpo
[BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 49].
Como a região era muito úmida e quente, esse procedimento dependia da ação
humana. Logo no falecimento a mumificação era iniciada. Uma solução de água e
sal era deglutida pelo recém falecido. O corpo era lavado com água fria, sendo todo
enrolado num lenço fúnebre, com a cabeça recebendo um cachecol do mesmo
tecido. O cadáver era disposto em uma cadeira fúnebre, amarrado com cipós e
disposto numa cabana de defumação. Embaixo da cadeira uma chama era acendida
para que ocorresse a desidratação. Os líquidos iam extravasando do corpo devido
ao calor, além de que, um processo manual e a gravidade auxiliavam os fluídos
corporais a caírem num jarro, além de serem absorvidos pelo lenço fúnebre
[BECKETT et al, 2015, p. 128; BECKETT et al, 2017, p. 28-29; BECKETT, 2021,
p. 17].
O corpo era exposto ao sol, tinha sua pele descamada e depois retornava à cadeira.
Uma loção composta do extrato de plantas como Psidium guajava, Ficus septica,
Phaseolus lunatus, Dolichos lablab, Embelia philippinensis era ministrada sobre a
pele. A múmia ficava entre 40 e 60 dias na cabana defumando. Além da defumação
corporal, fumaça de tabaco seria introduzida na boca da múmia. A fumaça e a
solução salina provavelmente não tinham os respectivos efeitos de proteção e
desidratação interna esperados. A composição fenólica e a presença de formaldeído
da fumaça da madeira, adiavam a putrefação. O calor intenso do fogo promovia a
desidratação. Por fim, as loções provavelmente geravam uma camada externa
alcalina ou ácida com ação bactericida [BECKETT et al, 2017, p. 29-30;
BECKETT, 2021, p. 17-19].
Considerações finais
No início deste material foi informado que o primeiro período de embalsamamento
foi até 650 D.C., momento em que o segundo período surgiu [BRENNER, 2014, p.
316]. Posto isso, as técnicas que pretendiam o pós-vida não desapareceram a partir
de 650 D.C. e muitas ainda estariam por vir, como ficou evidente no decorrer do
texto. A divisão dos períodos designa novos paradigmas surgindo, e não o
desaparecimento dos prévios [BRENNER, 2014, p. 316].
O modelo do Período das culturas antigas possui longa duração. Por um lado, temos
múmias como as dos Chinchorro, cultura que não foi trabalhada nesse material,
sendo produzidas desde 7000 A.C. [ARRIAZA, 1996, p. 131]. Por outro lado, se
nota que, até o começo dos anos 1900 os Ibaloy ainda realizavam o
embalsamamento com a intenção de alcançar o pós-vida [BECKETT, 2021, p. 4].
Os métodos desenvolvidos revelam uma série de questões que podem ser discutidas
e comparadas. Em alguns grupos apenas líderes, guerreiros e membros da corte
poderiam ser embalsamados, enquanto em outros era algo mais coletivo. No
primeiro caso se incluem os Chineses, Japoneses, Coreanos, as Múmias budistas e
os Ibaloy. No caso do extremo oriente não foi achada nenhuma cultura com
prerrogativas coletivas.
Nos grupos com premissas menos coletivas, a posição hierárquica do indivíduo era
o ponto central. Esse processo era voltado para a elite. A questão de gênero está
envolvida nesse debate, pois em boa parte dos casos, apenas homens ocupavam tal
posição, havendo somente o embalsamamento destes.
A última questão a ser colocada remete às diferentes maneiras que foram propostas
para embalsamar. Os primeiros grupos humanos, por longo tempo fugiram da
morte, geralmente abandonando seus cadáveres pelo terror que ela causava
[MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 4]. Isso mudou apenas com os Chinchorro,
que produziram intencionalmente as primeiras múmias naturais de que se tem
registro [ARRIAZA, 1996, p. 134]. Foi por meio da observação do ambiente
natural, e de outras técnicas, que as civilizações puderam pensar em realizar
dinâmicas de embalsamamento [COLMAN, 2997, p. 48].
Tal comparação não pretende dizer que existem modelos piores ou melhores, mas
sim que um pode ser entendido como mais sofisticado que o outro. No entanto, a
efetividade de um ou de outro método, depende também das condições naturais em
que essas múmias eram preservadas. Todos os métodos apresentados foram capazes
de gerar múmias com partes orgânicas ainda presentes. A comparação de
efetividade só poderia acontecer se elas fossem produzidas em ambientes similares.
Mas uma referência pode ser estabelecida a partir de dados como os procedimentos
de mumificação adotados e com quais recursos foram utilizados [COLMAN, 2997,
p. 48].
Referências Bibliográficas
Eduardo Mangolim Brandani da Silva é mestrando em história na linha de História
Culturas e Narrativas pelo programa de pós-graduação em história da Universidade
Estadual de Maringá [PPH – UEM]. Também é membro do Laboratório de História,
Ciências e Meio ambiente [LHC – UEM].
Gessica de Brito Bueno é graduanda em história pela Universidade Estadual de
Maringá. Também é membro do Laboratório de História, Ciências e Meio ambiente
[LHC – UEM].
Introdução
O presente artigo tem como objetivo promover uma reflexão acerca das
representações e das características de uma das vertentes dos quatros estilos
tradicionais do teatro japonês [Nô, Kyôgen, Kabuki e Bunraku]. Assim
analisaremos estritamente as propriedades do teatro Nô e ponderaremos sobre as
constantes comparações desta arte performática oriental com o teatro ocidental,
denotado pela tragédia grega do período clássico helênico. O interesse na história
do teatro se expressa visto que este é “um dos gêneros que mais se relaciona com o
próprio tempo em que foi composto” [RUZENE, 2020, p. 77]. A arte dramática
muito expressa sobre as preocupações, sentimentos e anseios comuns à sociedade,
de modo que o teatro se desenvolveu ao longo dos tempos como uma importante
ferramenta histórico-educacional que proporciona ao expectador uma elaborada
leitura das realidades históricas e da visão dos autores sobre seu próprio contexto
[CAETANO, 2011, p. 2].
O teatro Nôgaku apresenta uma rígida hierarquia cênica, definindo uma clara
divisão das funções em palco. O protagonista [Shite] só pode ser interpretado por
um ator que seja especializado em personagens principais, normalmente representa
uma figura sobrenatural, deus, demônio, fantasma ou espírito. Não obstante, porém,
há peças em que pode atuar como um ser humano vivo. O uso de máscara e o
artifício da dança são exclusividades do Shite que convencionalmente veste
brocado, um tecido de seda com pomposos adornos bordados em relevo, e realiza
sua coreografia durante o clímax da história. A divisão tradicional de um espetáculo
Nô se dá em dois atos, no primeiro temos o Maejite [Shite anterior] e no segundo o
Atojite [Shite posterior] [SAKAMOTO, 2012, p.80]. Durante o primeiro ato a
personagem se apresenta em sua forma no mundo dos vivos e por isso pode ser
completamente diferente no segundo ato, quando assume sua forma verdadeira, do
mundo espiritual – daí a divisão entre o Shite anterior e o posterior. Ademais, há o
Waki, personagem coadjuvante e parceiro do protagonista, é sempre um ser humano
vivo a quem o Shite recorre para encontrar a salvação de sua alma. O Waki é
bastante representado como um monge, visto que é a personagem de ligação entre
o mundo real e o espiritual, por isso comumente usa vestimentas monásticas pretas.
Há ainda o Tsure, ator que auxilia os personagens, o Ai-kyôgen, ator responsável
pela ligação entre o primeiro e o segundo ato da peça, o Kokata, um ator mirim que
interpreta adultos e crianças, homens e mulheres, com o intuito de evitar na peça
qualquer teor romântico ou voluptuoso [o que seria um desrespeito a essa arte com
caracteres sacros]. Citamos ainda o Jiutai, um coro formado por algo entorno de
seis a dez homens que vestem quimonos tradicionais e ocupam um lugar específico
à direita do palco e os Hayashi, os músicos, ambos muito importantes para o
desenvolvimento da peça, visto que o “espetáculo do Nô está centrado no canto e
no bailado; as palavras são geralmente explicativas da ação” [GIROUX, 1984, p.
70], sendo justamente o coro o encarregado da narração lírica. Por fim, há o Kokên,
um ator experiente que assegura o sucesso da peça zelando por todo o necessário e,
em casos fortuitos, substitui o ator principal como Shite [SAKAMOTO, 2012, p.
82]. A exceção dos atores, os elementos utilizados no Nô são poucos, não há
cenários e o palco não passa de “um tablado, uma ponte, um telhado e um pinheiro
pintado ao fundo” [NAGAI, 2015, p. 176]. Esta arte, muito afeita à metafísica,
prefere legar vasão à imaginação do público e à espiritualidade de sua poética,
expressa em música e dança. Os acessórios adicionais, Tsukurimono, são bastante
simples, não passam de um esboço ou croqui daquilo que devem representar.
Segundo Keene [1990, p. 75] há três principais razões para a simplicidade dos
elementos de palco no Nô. Primeiro, a facilidade de lhes colocar e retirar do palco
conforme necessário; segundo, sendo simples não irão interferir no limitado lugar
de atuação do palco; terceiro, evita-se interferir na atenção do público. Os
Tsukurinomo são tão modestos e frágeis que exigem atenção dos atores para que
não sejam destruídos em cena [SAKAMOTO, 2012, p. 92].
A classificação das obras Nô podem ser duas, variando de acordo com a natureza
assumida pela peça – se acessam o mundo real ou o mundo espiritual, dos mortos
[KEENE, 1990, p. 20]. São denominadas Genzai Nô aquelas cuja estrutura se
assemelha ao do teatro ocidental, onde o tempo verbal das falas é presente, como
se os acontecimentos ocorressem simultaneamente para personagens e plateia.
Neste caso a peça faz referência ao mundo real, dos seres vivos. Também, há o
Mugen Nô, sendo este o mais comum. Normalmente a narrativa se passa da seguinte
forma, um viajante [Waki] chega a determinado local onde há uma intrigante
história sobre alguém, o Shite lhe aparece em forma humana para lhe contar o
episódio. A posteriori, o Shite revela ser ele próprio a pessoa da história e some do
palco. O viajante, para pacificar a alma que encontrara, dedica preces e se recolhe
em sono. Em seus sonhos o Shite retorna, agora em sua verdadeira forma, esta
personagem do mundo espiritual revela a perspectiva dos mortos, expondo as
motivações pela inquietação de sua alma. Derrota em batalha, ódio, vingança,
ciúme, traição, amor não correspondido, dor de um filho morto, entre outros
motivos que, quando aquietados pelo Waki, purga suas emoções mundanas e
permite ao espírito alcançar a iluminação [KUSANO, 2013, p. 6]. Uma vez
apaziguado o espírito dança em agradecimento ao monge errante e desaparece
definitivamente. Segundo Mamiko Sakamoto [2012, p. 85], “sua estrutura,
apresentada como um morto dentro do sonho do monge é raramente vista nas outras
formas teatrais, fazendo com que o Nô seja um teatro único”. De fato, este elemento
apaziguador faz do Nô uma forma singular de arte, a partir da qual se anseia
sossegar as vítimas do passado japonês, ainda que suas vidas tenham sido
esquecidas. Por este motivo dizem alguns autores que o Nô é um drama cujo foco
concerne à salvação da alma [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 15].
Isto não de forma missionária ou evangelizadora, como no teatro cristão jesuíta,
mas de maneira a acalmar a alma daqueles que se foram para que, de semelhante
maneira, houvesse paz no mundo dos vivos. Afinal, a saúde e bem-estar da
sociedade estava anexada à salvação das almas infelizes [Ibid., p. 276]. Não à toa,
o teatro Nô e a religião [tanto Xintoísmo, quanto Budismo Zen] estavam
intimamente relacionados no Japão [NAGAI, 2015, p. 176]. Exemplo disso é o fato
das companhias teatrais [Za] da época estarem sempre associadas a um dos grandes
templos ou santuários [KUSANO, 2013, p. 5].
Considerações Finais
Isto posto, comparações entre as formas de teatro no oriente e ocidente, sobretudo
aquelas com formas bem definidas, como o Nô japonês e a tragédia grega, são
deveras interessantes. Todavia devemos zelar para não impormos as noções de uma
cultura sobre a outra, pois assim estaríamos menosprezando uma destas
manifestações artísticas, caracterizando-a unicamente em detrimento de um
elemento externo, além de incorrermos em anacronismos. Portanto, aproximações
e distanciamentos à parte, a análise do teatro Nô é um opimo meio de compreensão
da cultura nipônica, bem como a observação das tragédias é farta referência para o
entendimento da sociedade helênica. Cada qual a seu modo, influenciou e foi
influenciado pelas consciências sociais, religiosas e históricas de seu tempo e
espaço. Até por isso o Nô foi incorporado pela casa imperial e o teatro grego foi
vastamente utilizado como ferramenta política nas póleis da Hélade [SANTOS,
2005, p. 44]. Enfim, por toda a sua filosofia e por sua excelência cênica, o Nô é
contemplado como o núcleo da arte Nôgaku e cerne das teatralidades tradicionais
do Japão [SAKAMOTO, 2012, p. 76], não à toa sua técnica artística permanece
constante nos palcos desde seu princípio no medievo.
Em suma, o Nôgaku se qualifica como esta longeva tradição, com mais de seis
séculos de existência e que encerra grande importância para a compreensão da
cultura japonesa. Dado que a essência do Nô se concentra nesta antiga arte
[Nôgaku], que se manteve sólida ao longo dos tempos, é também uma forma ímpar
e vultosa de alcançar o entendimento do Japão. O palco Nô, embora pequeno em
proporções, possui enorme valor artístico-histórico para a cultura japonesa, uma
vez que nele se reúnem personagens históricas e espirituais, heróis e vilões, deuses
e demônios, imperadores e samurais, vivos e mortos. Seu teatro representa uma
grande alegoria das concepções japonesas de vida e morte, felicidade e sofrimento,
espiritualidade e materialidade, com o suporte das noções xintoístas e budistas
constrói uma intensa metáfora meditativa e sensitiva, revelada pelas imagens, sons
e representações em palco. Por todos estes aspectos diferenciados da teatralidade
Nô, esta arte performática oriental recebe de seus especialistas a designação de ser
uma forma singular de teatro em todo o mundo.
Referências
Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Paraná [UFPR] e no Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário
Claretiano [BAT]. Formado pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da
Universidade Estadual Paulista [CTIG/UNESP] e pela Escola de Especialistas de
Aeronáutica [EEAr], atualmente é Controlador de Tráfego Aéreo. E-mail:
felipe.ruzene@ufpr.br
Durante a dinastia Shang [1600 - 1046 AEC] um tipo de leque chamado shanhan
era utilizado em carruagens como abrigo contra os raios solares e a chuva de forma
a proteger seus passageiros. Com o passar do tempo, o objeto, que até então se
assemelhava a um guarda-chuva, foi sendo modificado, tornando-se então parte da
guarda imperial e item decorativo. Entre os anos 1046 AEC e 256 AEC, durante o
reinado da dinastia Zhou, os abanadores feitos de plumas tornaram-se altamente
populares entre os membros da nobreza e conforme a História chinesa se
desenrolava, novos tipos de leques foram surgindo com diferentes formatos e
finalidades [TAGGART, 2020]. Escavações arqueológicas em sítios provenientes
do período Han, localizaram lápides e murais contendo referências à utilização de
leques. A primeira delas ocorreu na década de 1950 da era comum na província de
Shandong, quando dezesseis rochas esculpidas com desenhos em formato de leque
foram encontradas em uma tumba [QIAN, 2004, p. 5]. Abanos, adornos,
instrumentos de cena em peças teatrais e danças, e até mesmo armas utilizadas na
prática de artes marciais, estes objetos são atualmente classificados na arte chinesa
em três grupos: leques cerimoniais, leques rígidos e leques dobráveis [WELCH,
2013, p. 1303]. Neste texto procurar-se-á caracterizar a utilização de leques durante
a dinastia Han, que se estendeu entre os anos 206 AEC e 202 EC, e o uso deste item
como instrumento em práticas de dança.
As Danças Folclóricas e Palacianas na Dinastia Han
O valor cultural de um povo do passado, pode ser observado não só através de
material arqueológico recuperado ao longo dos anos. É certo que a cultura material
tem grande importância na construção da compreensão de uma sociedade antiga,
porém, facetas relacionadas aos hábitos de um povo podem ser replicadas a cada
geração, mantendo assim a perpetuação de algum aspecto cultural. Um excelente
exemplo que permite a percepção da conservação dos traços de costumes de uma
população é a sua relação com a música e a dança. Como é de se imaginar, a vasta
história da cultura chinesa desde seus primórdios conta com uma variada gama de
representações de dança. Conforme aponta Maribel Portinari, a dança possuía
grande importância no contexto da corte chinesa imperial durante a antiguidade.
Sua prática era relacionada a dois princípios básicos da cultura: Yue [a música] e
Li [os ritos]. Músicos e dançarinos faziam parte dos festejos palacianos e nos
templos [PORTINARI, 1989, p. 43]. Cada dinastia era detentora de seus próprios
hinos, coreografias e melodias que eram alterados assim que uma nova linhagem
ascendia ao trono. Contudo, até o presente momento é possível identificar em solo
chinês práticas populares originárias em diferentes épocas. Atualmente, existem 56
grupos étnicos reconhecidos em território chinês e cada um possui seu próprio
conceito acerca de danças tanto clássicas quanto folclóricas [WU, 2016, p. 2].
Durante a dinastia Han, consolidou-se um tipo de apresentação que até hoje faz-se
presente representando crenças e costumes populares. Este formato, conhecido
como Baixi [Os Cem Atos], conta com números de dança, acrobacias e mágica e
mantem-se até a presente data, como parte da seleção de obras da Ópera de Pequim
[PORTINARI, 1989, p. 44] . Podendo ser comparadas aos atuais “shows de
variedades”, estas apresentações em particular, caíram no gosto tanto da realeza
quanto dos populares. No âmbito das práticas religiosas e contato com o
sobrenatural, representantes dos deuses em transe, desempenhavam danças com o
intuito de conjurar os mortos, curar doenças e invocar a chuva [LEWIS, 2007, p.
179].
A dinastia Han floresceu por mais de 400 anos e pode ser equiparada ao
mundialmente famoso Império Romano, seja por tempo de duração, número
populacional, força militar e sofisticação cultural [HARDY e KINNEY, 2005, p.
1]. Pesquisadores afirmam que no ano 2 AEC, o total de habitantes já ultrapassava
o número de 59 milhões de pessoas [MCLAUGHLIN, 2016, p. 527]. De extrema
importância para a formação da sociedade chinesa atual, a dinastia Han estabeleceu
o início de império chinês altamente poderoso, que ao longo dos séculos foi
marcado por períodos de união e desunião sob o comando de outras dinastias e se
estendeu até o século XX da era comum. O último imperador chinês, Xuantong, da
dinastia Qing, foi destronado em 1911, após o colapso do sistema imperial.
Atualmente, a maior parte da população chinesa identifica o legado da dinastia Han,
como uma espécie de “marca da nação”. Artistas chineses até hoje comumente
decidem por escolher estilos originários desta época para suas apresentações
internacionais. Esta escolha entra em conformidade não apenas com assimilação
cultural, mas também política que contribui para a formação de uma identidade
chinesa [WU, 2016, p. 10]. De acordo com Zhi Dao: “a dinastia Han foi a era da
prosperidade da dança chinesa” [DAO, 2019, p. 59]. As práticas de dança ao longo
deste período contavam com apresentações elaboradas que abarcavam múltiplas
modalidades, tornando seus espetáculos riquíssimos em todos os seus estilos.
Elementos da natureza eram frequentemente resgatados e representados em cena.
Sabe-se que a produção de leques na China possui uma longa História e esta arte é
altamente sofisticada, garantindo uma extensa variedade de formatos e técnicas
artísticas de pintura e fabricação. Durante os períodos que se seguiram à dinastia
Han, novos métodos de produção foram desenvolvidos e novos modelos foram
importados de países parceiros comerciais, como o Japão. Conta-se que os leques
dobráveis chegaram em solo chinês pela primeira vez em 988 EC, trazidos por um
monge japonês [QIAN, 2004, p. 12]. Nos séculos seguintes, sua produção passou a
ser executada e aperfeiçoada pelos chineses, assim como as produções de outros
tipos de leques para os mais variados fins. Leques pintados a mão com cenas ou
poemas tornaram-se estimados pela população a partir da dinastia Song [960 - 1279
EC] [WELCH, 2013, p. 1302]. Devido à facilidade para manuseio e transporte,
atualmente leques produzidos em papel e seda são os mais populares.
Considerações Finais
De origens milenares, tanto a utilização dos leques para os mais diversos propósitos,
quanto a prática de dança com estes objetos, fazem parte da cultura chinesa desde
a antiguidade até o presente momento e seguem resistindo à globalização. Estes
aspectos são capazes de se conservar mesmo em um planeta conectado. A época
atual permite um intercâmbio de saberes constante e a China é capaz de apresentar
à comunidade internacional, uma parcela do rico conjunto de costumes que formam
seu povo. Diante disto, é notável como a arte atua na perpetuação de uma cultura
tanto material quanto imaterial e contribui para a sua divulgação. Como cita André
Bueno: “a Antiguidade continua viva, e temos a oportunidade de vislumbrar as
permanências dos tempos clássicos no pensamento, na cultura e nos hábitos”
[BUENO, 2012, p. 59]. Estas particularidades preservadas ao longo dos séculos e
transmitidas entre gerações, permitem a perduração cultural de uma sociedade e
preservam traços há muito tempo adquiridos, ajudando a manter de pé a identidade
étnica e o orgulho de uma nação.
Referências
Flavia Lima Corpas é pós-graduanda do curso de História Antiga e Medieval pelo
Instituto Tecnológico e Educacional de Curitiba.
Essas instituições permanentes podem ser vistas sendo construídas ao longo das 4
décadas da história do movimento das mulheres curdas, que se formou das marcas
que envolvem a luta de libertação nacional, desde as assimilações, das dores e do
genocídio até a compreensão da identidade curda, da resistência e do sentimento de
proteger a terra/pátria, a welatparêzî. As atividades das mulheres curdas foram
amplas e contribuíram para a implementação da atual Administração Autônoma do
Norte e Leste da Síria e dentro dela, o desenvolvimento de projetos atentando a
diferentes dimensões das necessidades das mulheres na região.
Por isso é verdade dizer que enquanto os grupos das esquerdas curda e turcas se
formavam durante a segunda metade do século XX, as mulheres curdas estão
presentes em redes de relacionamentos e são diretamente afetadas nos momentos
de censura e rebelião. Redes de relacionamento que se modificam ao longo dos anos
em efeito das políticas de pertencimento, passando por diversas circunstâncias que
as fazem não só se adaptarem, mas a se aprimorarem para determinados momentos,
fornecendo um histórico de experiências útil para a eficiência das atuais
instituições. Então essas redes de relacionamento de mulheres estão presente em
todas essas décadas da luta de libertação, seja dentro dos quadros revolucionários
curdos ou entre os deslocamentos das populações – e tudo que é razão e efeito deles.
A questão curda na contemporaneidade se constrói em torno da demarcação das
fronteiras após a Primeira Guerra Mundial, quando os curdos são excluídos e perde
a oportunidade da criação de seu próprio estado. Nesse momento não se existe a
consciência curda como uma identidade, que é construída ao longo do século XX
muito em resposta aos processos de assimilação que são submetidos em diferentes
políticas de pertencimento entre os Estados que ficaram divididos. A questão da
mulher na construção nacional deve ser considerada especialmente pelo seu papel
como reprodutora biológica e cultural da nação, nesse contexto, a mulher curda,
portanto, é uma ameaça para a perpetuação da nação – turca, iraquiana, iraniana ou
síria, entre as gerações e é o principal alvo da assimilação cultural.
O sábado 1 foi em 27 de maio de 1995 onde cerca de trinta mães protestaram pela
primeira vez no bairro Galatasaray em Istambul denunciando o desaparecimento de
seus filhos presos sob custódia do Estado em um momento de intensificação da
perseguição aos partidos políticos curdos após o golpe militar em 1980. Com o
passar dos sábados a Praça Taksim começou a ser rodeada por centenas de mulheres
e o governo, que não poderia mais ignorar a essas mães respondeu repreendendo
com violência a ponto que em 1999, por decisão das mulheres que organizavam as
reivindicações foi interrompido pelas intervenções policiais sob o pretexto de que
aquele protesto, aquela denúncia e aquelas mulheres são ameaças para a unidade
da identidade nacional turca.
Atualmente o protesto já passou do sábado 800, desde 2018 as mães estão proibidas
de se reunirem na praça e constantemente são alvos de ações policiais e processos
judiciais. Mas isso não impede as mães, filhas e viúvas de continuarem denunciando
os abusos do Estado. A perpetuação da violência contra as minorias étnicas é
ininterrupta a ponto de que nenhuma geração, mesmo em diáspora tenha vivido em
segurança espacial e todas possuem as mesmas feridas constantemente mexidas.
O final do século XX foi cruel com os curdos tanto no Iraque com o regime do
Partido Ba’ath durante os anos de Saddam Hussein quanto na Turquia após o golpe
militar em 1980 e todo o sangue derramado e os corpos enterrados acompanham as
famílias de minorias étnicas ou religiosas seja por novos traumas infligidos ou pelas
cicatrizes deixadas nesses anos de massacres.
Famílias por todo o Curdistão passam décadas em busca de restos mortais de seus
filhos, incluindo corpos de crianças, cobram do governo por pelo menos recurso
para as buscas e fazem suas próprias investigações com o apoio de organizações
criadas para esses fins. Mesmo após mais de vinte anos valas coletivas, poços de
ácido ou corpos jogados de helicópteros nas montanhas são encontrados acendendo
esperança de enfim poder sepultar o parente assassinado ou decepção de mais uma
vez reviver as memórias sem encontrar um conforto.
Halabja, no Iraque passou a ser conhecida como a Cidade dos Mártires após um
dos pelo menos 320 massacres durante a operação Anfal entre 1986 e 1988. Os
mártires do Curdistão são homenageados cotidianamente em cada ação de
resistência, são símbolos nacionais dos curdos. Suas fotos estão sempre presentes
nos protestos e seus nomes nos discursos dos sobreviventes. A luta em boa parte é
por eles.
Mas o aspecto ideológico dessas buscas e do sentimento de resistir não pode ser
considerado homogêneo e universal. E assim como a revolta produz protestos como
as Saturday Mothers de Istambul, outros sentimentos podem produzir
manifestações dentro dos limites estatais, buscando respostas e conforto a quem lhe
impôs o destino de ser outro. No dia 9 de julho [2021] circularam entre os meios de
comunicação turcos imagens do presidente Tayyip Erdoğan em Diyarbakır, centro
histórico e cultural curdo, visitando e elogiando um outro grupo de mães curdas que
protestam aos sábados contra o PKK para que seus filhos, que provavelmente foram
para a guerrilha, voltem para casa.
Fica evidente assim os efeitos e as atitudes que um governo pode tomar enquanto e
por onde perpetua a sua soberania. O encontro com as Mães de Diyarbakır é mais
uma violência contra as mães que se levantam contra as ações militares e a
etnocracia. A visita foi mais um recado para elas não se rebelarem, dessa vez não
proferido por bombas, cassetetes e processos. Se as mães, filhas e viúvas curdas
querem viver em paz devem arcar com a consequências do passado e do presente
de reivindicarem a identidade curda. Pois afinal, nesses limites do Estado, o
Curdistão não existe.
Nascida em uma família alevi em Dersim, os seus pais são filhos do massacre de
1938, então apesar de não terem desde sempre uma consciência curda formada,
como uma orientação, a família de Sakine foi marcada por esse evento como ela
relata no primeiro dos três volumes de suas memórias escritos entre 1996 e 1997.
Durante a sua juventude ela entra em contato com os estudantes da esquerda
revolucionária que seguiam Abdullah Ocalan tendo a sua consciência curda
despertada nos encontros de conversas e debates sobre a cultura e a história do
Curdistão que o grupo de Apo realizava.
Até então ela não havia aderido a nenhum movimento apesar de participar dos
protestos estudantis e durante essas conversas encontrou a ideologia que estava
procurando e seguiu com esses revolucionários fundando o PKK em 1978, onde
passou a reivindicar por espaço de representação e participação para as mulheres,
incentivando-as a entrarem na causa revolucionária, a desafiarem os papéis de
gênero dentro dos partidos políticos, na guerrilha e na vida. Em 2013 foi assassinada
junto a Fidan Dôgan e Leyla Soylemez em Paris, desencadeando protestos no
Curdistão e na Europa, e suas imagens estão sempre presentes nas celebrações e nas
manifestações.
Leyla Zana A mãe do povo curdo é Leyla Zana, que em 1991 foi a primeira
deputada curda eleita para o parlamento turco. É casada com Mehdi Zana, que foi
prefeito de Diyarbakır e preso político durante a década de 1980, durante esse tempo
Leyla se tornou ativa na defesa dos direitos dos presos políticos. Após a vitória
eleitoral e de seus comícios expressivos, tornou-se alvo do governo turco, depois
de uma viagem diplomática perdeu a imunidade parlamentar e então foi condenada
por uma atitude durante o juramento de sua posse, quando incluiu a defesa do povo
curdo em sua fala. A condenação por pena de morte também teve como justificativa
a associação ao PKK, mesmo que fizesse parte do Partido Popular Social-
Democrata, ela e outros deputados recorreram e por mim foi sentenciada há 10 anos
de reclusão, tendo saído em 2004.
Antes desse evento Zehra já havia sido premiada por uma reportagem onde relatou
a situação das yazidis que vivenciaram a invasão do Daesh na região das montanhas
de Sinjar em 2014. Na prisão escreveu muitas cartas e entrou em um processo de
escrita e de criação diferente. Como ficou restrita aos materiais para pintar, passou
a improvisar as telas com jornais, lençóis, caixas de cigarro, fronhas; criava a
pigmentação com restos de alimento, fezes de pássaros, sangue menstrual, frutas
amassadas e com o que mais pudesse tirar cor; e os pincéis eram feitos de penas de
pombos e mechas dos cabelos das companheiras em detenção.
Usando a arte como artifício para dar voz às mulheres enclausuradas faz com que
Zehra mostre pelos mesmos meios ao que se insere a sua própria existência,
permitindo a presença múltiplas faces nos retratos por ela desenhados com materiais
improvisados dentro de sua cela. Entre as histórias contadas pelos olhos arregalados
de quem testemunhou o desumano está a de mãe Sisê, uma idosa de 85 anos de
quem Zehra desenha um retrato segurando um bebê de dois anos, Dersim, filha de
outra prisioneira.
Mãe Sisê foi detida durante as operações de 2016 no município de Muş sob
acusação de associação terrorista ao PKK, tragédia que condena inúmeras vidas de
civis que em nada se envolveram com atividades políticas ou militares pró-curdos,
mas no fim apoiam essas ações a partir do momento em que percebem quem são os
culpados e os motivos de seus infortúnios. A criança do retrato representa a
população de crianças que vivem cercadas pelos muros e o único contato com a
vida e com a natureza são os pássaros que voam no céu acima do presídio. Nunca
viram os campos e as montanhas do Curdistão e sonham junto com suas mães por
uma possibilidade de serem realmente livres. Em entrevista, Zehra conta que ao ser
liberada do presídio em 2019 foi acompanhada até onde pode pelas vozes das
crianças gritando “Zehra, Zehra, você vai ver as árvores, as crianças e os pássaros
agora! Faça seus desenhos e mande-os para nós!”
Jinwar: Mas onde estão essas árvores e os pássaros? Se a política autoritária dos
estados é intensificada, o que essas crianças podem encontrar? Mesmo sob a
constante ameaça do exército turco, das facções fundamentalistas e da hegemonia
masculina capitalista no Curdistão, na Administração Autônoma jardins estão
ganhando vida à espera das crianças do Curdistão.
Um desses lugares é Jinwar, a vila das mulheres livres, que foi inaugurada no Dia
Internacional do Combate a Violência Contra a Mulher, 25 de novembro de 2018
em uma festa “celebrando a vida livre e comunitária das mulheres” onde os
convidados, nas palavras da publicação no facebook sobre e inauguração foram
“curdos, árabes, assírio-sírios, armênios, espanhóis, alemães, franceses, suíços e
outros convidados se reuniram em Jinwar para passar o dia juntos. Pois Jinwar é
uma aldeia da Nação Democrática”. O Comitê da Vila foi formado em 2016 em
uma reunião da KongraStar com o objetivo de criar um lugar para acolher a
capacitar mulheres afetas pela guerra. Esse contexto desses anos também remete ao
momento em que as mulheres estão se empenhando para atender as necessidades
dos sobreviventes da invasão do Daesh com apoio material e psicológico.
O objetivo da vila era então um lugar para as mulheres e crianças que precisaram
ou quiseram sair de casa e proporcionar um ambiente onde fosse possível reverter
as sequelas dos conflitos presenciados e recapacitá-las incentivando o
autoconhecimento e a criação de uma economia comunal e ecológica tratando dos
problemas decorrente da discriminação de gênero como sistemáticos e não como
patologias. A vila tem como principal fonte de resistência e de autodefesa a
educação. Por isso a escola é o seu grande orgulho e é destacada em publicações
seguintes de alguma outra sobre as denúncias sobre bombardeios próximos a cada
avanço do exército turco.
Referências
Isabella dos Santos Daiub – Mestranda pelo PPGHIS/UFRJ e bolsista da CAPES
Referências online
https://bianet.org/biamag/gender/136800-jinha-turkey-s-first-women-s-news-
agency, acesso em 23/09/2021
https://hyperallergic.com/486421/artist-and-journalist-zehra-dogan-released-from-
turkish-jail-after-nearly-three-years/, acesso em 23/09/2021
https://bianet.org/english/freedom-of-expression/205808-journalist-zehra-dogan-
released-sise-bingol-says-i-will-stand-upright-on-my-feet, acesso em 23/09/2021
Publicação da página do facebook Gundê Jinwar do dia 26 de novembro de 2018
em https://www.facebook.com/gundejine/posts/1374077452728028 acesso em
10/08/2021, acesso 23/09/2021
MANGÁ E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO HISTÓRICO:
UM OLHAR A PARTIR DO PERSONAGEM JAPÃO EM
HETALIA
Janaina de Paula do Espírito Santo
O mangá japonês
Mangá, termo usado para definir as histórias em quadrinhos vindas do Japão e do
oriente, em japonês é sinônimo, ao mesmo tempo, de: histórias em quadrinhos,
revista em quadrinhos, caricatura, cartum e desenho animado [LUYTEN, 2000].
Significa literalmente “imagem a partir de si mesma” [MOLINÉ, 2004, p. 218],
tendo sido usada pela primeira vez pelo pintor, cartunista e ilustrador Katsushika
Hokusai no século XIX. Esse artista japonês produziu entre 1814 e 1849 várias
sequências verticais que ficaram conhecidas como “Hokusai Manga”. “Os
desenhos de forma caricatural – exagerando a forma dos seres humanos – tinham
como tema a vida urbana, as classes sociais, a natureza fantástica e a personificação
dos animais” [LUYTEN, 2004, p.246]. Somente depois de alguns anos o mangá
teve seu nome adotado e consagrado, por meio do desenhista Rakuten Kitazawa
[LUYTEN, 2004]. “O ideograma chinês usado por Hokusai pode ser dividido dois:
‘man’, que significa ‘involuntário ’ou ainda ‘a despeito de ’e ga, que significa
‘imagem’” [MOYA, 2003, p. 134]. No idioma japonês, “mangá” significa
“desenhos espontâneos”, “sem sentido” sendo utilizada, no Japão, para referir-se a
quadrinhos em geral. Foi adotada no Ocidente por extensão, com o sentido de
“quadrinho japonês”, ou seja, para definir os quadrinhos produzidos no Oriente,
bem como para caracterizar um estilo gráfico e narrativo próprios, característicos
daquela produção.
Hetalia: o mangá
“Hetalia” foi primeiro mangá no estilo Yon-koma a ser publicado no Brasil – o
Yon-koma, que também chamado de 4koma é o nome das tiras japonesas, que
diferenciam-se das ocidentais por serem verticais. O enredo de “Hetalia” e
construído a partir de uma perspectiva única entre as relações construídas pelos
países do eixo, que são: Itália, Alemanha e Japão e os demais. O mangá não é
construído como uma história linear, mas sim, a partir de uma série de pequenas
histórias, em sua maior parte centradas no período histórico da Segunda Guerra
Mundial. Esse não é o único período abordado, entretanto, já que alguns eventos
que constroem as histórias ocorrem em épocas diferentes, seja sugerindo uma
abordagem explicativa do conflito, ou explorando particularidades dos países. A
leitura é bem parecida com a dos mangás, mas têm uma peculiaridade: na maior
parte das histórias, lê-se em colunas, não em linhas. Estas colunas normalmente
exploram piadas e situações que começam e terminam, podendo ou não ter relação
com o desenrolar da história maior, no caso, no confronto entre países envolvidos
na Segunda Guerra.
Construindo uma narrativa pensada a partir de uma não-linearidade, que foi aliada
a tentativa de relacionar uma série de referências a fatos da história de cada país,
com traços de personalidade dos mesmos, o autor faz uso das fichas de personagens,
em que apresenta e define o espaço de cada um deles na trama, ou no desenrolar de
situações específicas: Como na representação gráfica dos países do eixo, em que o
Itália segura uma bandeira branca e um garfo com macarrão – um dos bordões do
personagem – a palavra “pasta”. O Japão, dificilmente é retratado encarando o leitor
ou seu interlocutor, bem como o Alemanha sempre está sério, de cara fechada e
uniforme. Tais características aparecem também na ficha de personagens que o
autor produz de tempos em tempos quanto nas páginas da revista, reforçando sua
existência enquanto ícone, tomado aqui como um construto estético em torno do
qual muitas das ideias sobre o passado são construídas e reafirmadas.
Para além disso, a sátira em torno da qual a segunda guerra se constitui em Hetalia
também remonta ao processo de ocupação do Japão pelos Estados Unidos e toda a
construção discursiva posterior.
É assim que a “paz alcançada pela Guerra” figura, por exemplo, como uma espécie
de “grande lição” do país em detrimento do ocidente, que continua construindo sua
história através de conflitos e batalhas:
Esta palavra sinaliza a ideia a partir da qual a vida se sustenta por esforços e
sacrifícios e, desta maneira, todo sacrifício é válido. Pela preponderância do
Xintoísmo, a expressão é utilizada como referência a ações em nome do imperador
e da nação, de maneira geral, e está presente no cotidiano japonês, por isso mesmo,
relacionada, muitas vezes, a um sentido inerente ao processo de adaptação que as
vezes é associado ao povo japonês como um todo. Neste sentido, ao escrever sobre
os quadrinhos sinaliza Paul Gravett
O mangá foi um entretenimento de baixo custo e de fácil acesso, para uma nação
fortemente atingida pela guerra, que passava por períodos de carestia e fome. Um
dos efeitos diretos do período da ocupação foi o contato crescente com a cultura
ocidental, notadamente a chamada cultura pop estadunidense. A inserção dos
japoneses na lógica capitalista ocidental vai definir a produção dos quadrinhos
japoneses sequencialmente. A forma de administrar a influência externa e
transformá-la em algo próprio, é, como já levantamos, considerada característica
nipônica. E a influência do discurso estadunidense vai estar bastante presente no
exercício de “pensar a si mesmo” empreendido por Watanabe ao compor um
personagem Japão como tímido e pacífico, sem interesses bélicos, mas com
crescente interesse em aprendizado, mesmo tantos anos depois do pós guerra, o que
indica a importância de conhecer a cultura histórica nos diferentes espaços em que
se apresenta, exercício intentado por esse texto.
Referências
Dr. Janaina de Paula do Espírito Santo é professora no Departamento de História
da Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde atua na coordenação do Curso de
Licenciatura em História e desenvolve pesquisas sobre mangás, cultura histórica e
história do tempo presente.
DALE, Joshua Paul. Axis Powers: Hetalia Cosplay— Another End to History?
Modern Language Association convenção anual de 2012, em Seattle, Washington.
Disponível
em:http://www.academia.edu/2385920/_Axis_Powers_Hetalia_Cosplay_Another
_End_to_History.
FRONZA, Marcelo. As possibilidades investigativas da aprendizagem histórica de
jovens estudantes a partir das histórias em quadrinhos. Educar em Revista, v. 32,
n. 60, p. 43-72, 2016.
GROENSTEEN, Thierry. O sistema os quadrinhos. Rio de Janeiro: Marsupial
Editora, 2015.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano,
2000
IGARASHI, Yoshikumi. Corpos da Memória, Narrativas do Pós-Guerra na
Cultura Japonesa [1945-1970], trad. bras. de Marco Souza e Marcela Canizo. São
Paulo: Annablume, 2011
LUYTEN, Sônia. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Estação
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MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books,
1995.
MOLINÉ, A. O grande livro dos Mangás. São Paulo: JBC, 2006.
MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. Porto Alegre: L&PM,
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RÜSEN, J. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Tradução de
Estevão C. de Rezende Martins. Curitiba: Editora UFPR, 2015.
SATO, Cristiane. Japop – o poder da cultura pop japonesa. São Paulo: Nsp-
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WATANABE, Paulo Daniel. “A reinserção internacional do Japão no pós-
segunda guerra mundial”. 3° Encontro Nacional Abri 2011, São Paulo, vol. 3.,
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http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000
0122011000300033&lng=en&nrm=abn
BENTO DE GOES: UM JESUÍTA PORTUGUÊS NA
DEMANDA DO CATAIO [1602-1607]
João Lupi
Nosso objetivo é percorrer o itinerário do jesuíta português Bento de Goes e sua
caravana, desde 1602 a 1607, partindo do Império do Grão Mogol e chegando à
muralha da China, através dos territórios dos afegãos, tadjiques, quirguizes e
uigures. Mas esse empreendimento é demasiado amplo e precisou ser repartido em
pelo menos três etapas: esta aqui exposta dá atenção ao primeiro trecho [nas terras
do Grão Mogol], e ao final [na China], e uma explicação limitada do percurso pela
Ásia Central; este será, mais tarde, objeto da segunda etapa da pesquisa, e a terceira
será sobre os jesuítas no Tibete.
A identificação dos povoados e cidades por onde a caravana passou é difícil: alguns
são tão pequenos que não aparecem nos mapas comuns; outros, que tinham alguma
visibilidade, diminuíram e perderam população, até quase desaparecer; a maior
parte mudou de nome, ou, não havendo uma ortografia constante, pela mudança de
idiomas devido a invasões e migrações, se alterou a grafia do nome de tal modo que
é duvidoso que o nome indicado num mapa corresponda ao de outro. Outras vezes
o nome mudou, mas a cidade é a mesma, sem que disso possamos ter a certeza. Há,
porém, descrições de viajantes dos séculos XVIII e XIX, como Wood e Wessels,
que conseguiram identificar alguns locais, e propuseram a relação entre os nomes,
que a edição portuguesa de Neves Águas e o correspondente mapa de Diniz
transcrevem. Mas essas identificações não são acompanhadas de descrições do
povoamento e sua história, o que torna tais identificações poucos úteis para
contribuir para a História da Ásia. Por outro lado, dispomos de mapas e atlas dos
séculos XVIII e XIX, que assinalam muitos nomes de povos e cidades e reinos nas
regiões da Ásia Central, mas, quando conseguimos identificar alguns desses nomes,
reparamos que eles parecem colocados ao acaso, distribuídos e misturados sem
corresponder à realidade geográfica. De fato, como disse o próprio Bento de Goes:
“andamos por terras onde éramos gente desconhecida e nunca vista” – e, portanto,
tal como os locais nunca tinham visto europeus, também os ocidentais não sabiam
nada dessas terras, ou muito pouco.
O que estava em causa eram pelo menos três questões: se o reino de Cataio era a
China, se lá havia cristãos, e se esses cristãos eram os que constituíam o Reino do
Preste João. O termo Cataio parece derivar de Kitai, povo de origem manchu, um
ramo dos tungus da Sibéria, e de Kitan, o seu reino, limítrofe com o Noroeste da
China. Assim diz Neves Águas [p.19]: “Cataio era um reino próximo da China, ou
de uma parte dela, a que tinha dado o nome”. E os apontamentos do P. Ricci [ib.
p.25] dizem o mesmo: “Parecia, pois que aquele reino, por ser confinante com o da
China, lhe havia dado também seu nome”. Ou seja: Kitai, Katai, ou Cataio era a
China e ao mesmo tempo não se identificava com a China. “Sabiam os nossos, por
cartas do Padre Mateo Ricci escritas do Reino e Corte da China, que este reino por
outro nome se chamava o Cataio, o que se veio a confirmar por várias razões.”
[p.25]. Mas havia dúvidas: os que viviam com os mogores diziam que o Kitai não
era a China, e que lá havia cristãos; mas os jesuítas da China diziam que lá não
havia cristãos, e com tudo isso o P. Nicolau Pimenta resolveu averiguar a questão,
enviando Bento de Gois:
Faziam parte do grupo de Bento de Goes: um sacerdote grego de nome Leo Griman,
um mercador arménio chamado Demétrio, e quatro criados de outras nações, mas
cristãos. Estes deixaram Bento em Laore, e em troca recebeu o que lhe foi mais fiel,
o arménio Isaac. “Partiu, pois, o nosso irmão de onde estava o seu superior a 6 de
Janeiro de 1603[...]”. O disfarce de arménio, e a convivência com comerciantes
arménios, era muito conveniente: os arménios desde longa data eram conhecidos
em toda a Ásia como mercadores, falavam diversas línguas, e eram cristãos.
De Iarcanda ao Cataio
Hiarcan, identificada como Iarkand ou Jarcanda, era passagem importante da Rota
da Seda. Diz o relato de Bento: “Hiarcan é um famosíssimo mercado, tanto pela
concorrência de mercadores como pela variedade de mercadorias. Nela dá fim à sua
viagem a cáfila dos de Cabul, e daí se organiza outra ao Cataio [...]” [29]. Para a
China a mercadoria de maior preço era o jade, que Bento chama jaspe, e os chineses,
segundo ele, chamam yuxe. Como a viagem era perigosa, e muitos mercadores
ficavam em Iarcanda, foi preciso esperar um ano até reunir o número suficiente de
componentes para formar a caravana. Bento de Goes aproveitou o tempo para fazer
amizades na corte, visitar o rei e dar-lhe presentes. Entretanto voltou Demétrio, que
tinha acompanhado o jesuíta no princípio da viagem. Bento ainda aproveitou para
ir a Cotan cobrar o dinheiro que tinha emprestado à irmã do rei local. Depois de
mais algumas peripécias Bento de Goes comprou dez cavalos, preparou as
mercadorias, e, “quase em meados de Novembro” de 1604, partiu para o Cataio. A
caravana passou pelos seguintes lugares, em território Uighur, hoje província de
Xinjiang, na China, e que Neves Águas identifica deste modo: Hancialix [ Kham
Chalish], Alcegher [Ac cechil], Habagateth [não sabe], Egriar [Egri-yar], Meselelec
[Mejnet ou Merket Daylie], Tallec [Talik], Horma [Curma], Toantac [Tewan Tagh],
Mingieda [Mingyedi], Capetalcol [Captar Kol], Cilan [Chilyan], Sare Guebedal
[Shah Yar], Cambalci [Kumbash], Aconterzec [Sak Sak], Ciacor [Shakyar].Em
Acsu [Aksu] o governador, de doze anos, era neto do rei; a ele Bento deu presentes,
incluindo brinquedos. Houve um baile, e o irmão Bento foi convidado a dançar ao
modo da sua terra, e ele bailou, “para não parecer que lhe negava uma coisa tão
pequena” [32]. Tendo passado pelo deserto de Gobi, foram a outras cidades:
Oitograc [Oi Tograk ou Oitoghraq], Grasso e Casciani [não identificadas], Dellai
[Daulat], Saregabedal [de novo Sha Yar], Ugan [Ugan ou Ugen], Cucia [Kutcha]
lugar pequeno, mas onde havia mesquita, e onde ficaram um mês para descanso dos
cavalos, que estavam sem forças, devido ao mau caminho, ao peso do mármore, e
à falta de cevada. Daí, depois de 25 dias de caminho, chagaram a Cialis – Kara-
Shah, ou Chiglik, ou Korla. A cidade, no reino de Kashgar, era pequena, mas bem
fortificada. Em Cialis Bento foi convidado, pelo príncipe governador, para disputar
sobre a sua Lei [islamismo] com os seus “cacizes e letrados”; Bento achou que iriam
matá-lo, mas na realidade o governador só queria discutir, porque “seus
antepassados tinham guardado aquela Lei”, isto é, a Lei de Bento, ou seja, eram
cristãos. A nota a esse respeito [nota 60] diz que já Marco Polo tinha encontrado
cristãos nestorianos no reino de Kashgar, “os quais têm próprias igrejas”. Aí
ficaram três meses, porque o chefe da caravana não queria partir, alegando que o
grupo era pequeno para se defender dos assaltantes, até que Bento decidiu-se a ir
sozinho, contra vontade dos companheiros, mas com autorização do príncipe.
Na China: As cartas
Um motivo especial estimulava Bento a viajar: é que entretanto voltaram a Cialis
os mercadores da caravana do ano anterior; eles tinham estado em Pequim, onde
encontraram o Padre Mateo Ricci, de quem deram novas ao irmão Bento, que com
isso muito se alegrou, e por terem confirmado que a China era o Cataio, “e dali em
diante não tiveram dúvida alguma de que o Cataio só de nome se diferenciava da
China, e de que a própria Corte, que os mouros chamavam Cambalu, era Pequim”
[34], coisa que, ao partirem da Índia, sabiam mas da qual não tinham a certeza.
Prosseguiram então o caminho, e levando cartas de apresentação foram bem
recebidos em Puchan [Patchan, ou Pidjan], e em Turfan [Tourfan], cidade
fortificada; daí para Aramuth [Karakhoja] e Camul [Hami, ou Chamil], o último
lugar do reino de Cialis, onde ficaram um mês. Nove dias depois chegaram a
Chiaicuan [Kiajiikwan], junto às muralhas da China; aí esperaram autorização para
passar a muralha, e em finais de 1605 Bento chegou a Shoh-chow [Soceu]. Todo o
caminho de Cialis até às muralhas estava devastado “com os assaltos e correrias dos
tártaros”, que só comem carne, e vivem muito tempo,” ultrapassando os cem anos”.
Bento de Goes chegou a Soceu acompanhado de Isaac, ambos de boa saúde, e rico:
“trazia treze cavalos, cinco criados a quem pagava salários, dois rapazes escravos
que tinha comprado e mármore mais precioso que todos os outros” [36]. Dali Bento
escreveu ao P. Ricci, pedindo, entre outras coisas, que conseguisse para ele
autorização para sair da cidade e voltar à Índia por mar. Ao receberem as cartas dele
os jesuítas de Pequim ficaram muito contentes, mas acharam que não era
conveniente, pela etiqueta chinesa, enviar um estrangeiro para encontrar outro
estrangeiro, porque nessas questões o governo imperial era muito suscetível e
desconfiado. Enviaram, pois, João Fernandes, um criado – pelo desenrolar da
narrativa percebe-se que era um candidato a entrar na Companhia de Jesus -
“mancebo de singular prudência e virtude” que ainda não tinha entrado no
noviciado. João Fernandes recebeu do P. Mateo Ricci e dos padres Pantoje e De
Ursis cartas para o Irmão Bento de Goes. Bento esperou em Soceu durante um ano,
que foi para ele muito difícil: faltavam mantimentos, teve que vender mercadorias
abaixo do preço, viveu de empréstimos. E a ajuda demorava a chegar: a carta do P.
Ricci dizia que “João Fernandes saiu desta Corte em onze de Dezembro do mesmo
ano” e considerando que chegou a Soceu “no fim do mês de Março de 607” o mesmo
ano citado acima é o de 1606, durante o qual Bento estava esperando por ajuda,
sem poder sair da cidade, e, o que é pior, adoeceu e ficou muito mal. Mas quando
João Fernandes lá chegou, e, por indicações de “não sei quem” encontrou o armênio
Isaac, que o levou à casa onde Bento de Goes estava, conversaram em português;
ao receber as cartas dos jesuítas de Pequim Bento ficou muito feliz e entoou o
cântico evangélico: “Agora, Senhor, podeis deixar partir o vosso servo” [Lc 2, 29],
como quem diz: cumpri minha missão, posso morrer – “porque lhe parecia que tinha
cumprido o que se lhe mandara, e dado fim à sua peregrinação” [p.38]. E assim foi,
pois não havendo médico na cidade, Bento de Goes morreu onze dias depois, em
10 de abril de 1607. Os mercadores apossaram-se de tudo o que Bento levava, e
destruíram o diário de viagem. A questão foi a tribunal, e o juiz mandou entregar a
João Fernandes e a Isaac os bens que sobraram do espólio de Bento de Goes.
Conseguiram assim dinheiro para a viagem de retorno, e a 28 de outubro de 1607
chegaram a Pequim. Foi então que, tomando alguns documentos do Irmão Bento,
as cartas, alguns pedaços do diário de Bento que Isaac e João Fernandes
recuperaram, e os relatos de Isaac, o Padre Ricci conseguiu reconstituir a viagem
de Bento de Goes.
Bibliografia e referências
João Lupi é professor do Departamento de Filosofia da UFSC.
Textos
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Companhia de Jesus nas suas missões, 1603-1611. Coimbra, Imprensa da
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O PERÍODO SENGOKU, PORTUGUESES [CRISTÃOS] E
JAPONESES [BUDISTAS] EM KIRISHITAN NOBUNAGA,
DE OSANAI KAORU
José Carvalho Vanzelli
O período da história japonesa conhecido como sengoku jidai [era dos estados
beligerantes, em tradução livre] [1467-1615] é, sem dúvida, o mais recordado em
adaptações artísticas. O preeminente papel dos célebres samurais, as complexas
tramas políticas e os vários elementos culturais que hoje são vistos como
“tradicionais” fazem com que essa época seja um “prato cheio” para recriações e
adaptações literárias, teatrais, fílmicas, em mangá e anime, ou até mesmo
videogames. Assim, há mais de um século, abundam referências, tanto no Japão
como no exterior, a este período nas mais diferentes linguagens artísticas.
Antes, no entanto, é preciso destacar que o diálogo levado aos palcos por Osanai
não se trata de um encontro fictício, imaginado pelo autor, mas um evento real
registrado na Historia de Japam, de Luís Fróis [Cf. Fróis, 1981, p. 282-290].
Portanto, o que o dramaturgo faz é colocar como personagem a pessoa que não só
vivenciou, mas também registrou o fato histórico. Não nos é possível afirmar que o
texto de Fróis tenha sido a fonte a qual o dramaturgo recorreu para montar sua obra.
Entretanto, a existência do relato do sacerdote português acerca do encontro nos
abre caminhos de estudos comparativos entre os textos. Sendo, ainda, os textos
jesuítas fontes importantes para se entender a história do Japão, uma vez que, para
Boxer [1951, p. 50, tradução minha], esses religiosos eram “agudos e inteligentes
observadores da vida mundana que os rodeava” e “os principais historiadores
japoneses [Anesaki, Murakami, Koda, entre outros] avaliam muito bem a
correspondência [das descrições dos jesuítas com a dos japoneses]”, é válido
averiguar até que ponto os relatos do jesuíta e a peça de Osanai dialogam.
Vejamos mais uma rápida comparação entre o relato de Fróis com a peça. Há, na
descrição do debate com Nichijō feita pelo português, uma passagem em que são
detalhados os argumentos dados pelo jesuíta sobre a existência da alma. Em
determinado momento, é dito pelo padre:
“E a prova que ao prezente disto vos podia dar era necessário ser
fundada nos termos e proposições das nossas sciencias a que chamamos
logica e filozofia, porém como as vós ignorais, usaremos como de
remédio para o entenderdes de alguma comparação que não vá muito
alongada desta sensibilidade a que mostrais estar tão apegado” [Fróis,
1981, p. 288]
Por fim, gostaria de levantar hipóteses acerca da razão pela qual Osanai decide
resgatar este encontro do Quinhentos e adaptá-lo para os palcos japoneses em pleno
século XX. Para além da possibilidade da clara discussão em torno da
espiritualidade, conforme propõe Kumagai [2015], penso que o dramaturgo opta
por recuperar o período sengoku por este poder ser visto em paralelo com os
períodos Meiji e Taishō, vividos pelo escritor. Afinal, tanto o período sengoku
quanto as eras Meiji e Taishō foram períodos marcados por guerras constantes e
choques culturais entre um Japão “tradicional” e o Ocidente – no caso do século
XVI, com portugueses e jesuítas; nos séculos XIX e XX, com os Estados Unidos,
Inglaterra e outras nações europeias. Ainda, a cultura militar japonesa desses dois
períodos foi diretamente influenciada por estes contatos com o mundo ocidental,
uma vez que, no Quinhentos, as armas de fogo portuguesas ofereceram novos
recursos para as guerras internas do Japão, enquanto a partir das últimas décadas do
Oitocentos, a modernização do exército e das estratégias militares japonesas foram
inspiradas nos modelos euro-americanos. Afinal, esta foi a forma que o governo
japonês entendeu como caminho de sobrevivência em um momento que o
imperialismo ocidental avançava sobre diversas nações asiáticas. Nas palavras de
Iriye Akira [2008, p. 265, tradução minha]:
Referências
José Carvalho Vanzelli realiza pós-doutorado [Estudos Literários] na Universidade
Federal do Paraná [UFPR]. É mestre e doutor em Letras [Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa] pela USP. Graduado em Letras [Português-
Japonês] pela USP. Autor do livro Portugal e o Oriente: Antero de Quental –
Camilo Castelo Branco – Eça de Queirós - Pinheiro Chagas [2021].
O presente artigo tem como objetivo discutir – a partir de três elementos retirados
do filme: três bonecas que estão presentes seja na pré-produção [a chinesa que não
possuía nome], no filme [a boneca de pano da passagem de Tung Shao] e nos
produtos derivados [a personagem Mulan, um outro elemento do filme mas que
aqui será trabalhado para além do mesmo] – a re-orientalização, ou seja, uma
reinvenção estereotipada das mulheres chinesas no filme que incorre de uma
objetificação sobre as mulheres que auxiliaram os produtores a significar ainda mais
as suas representações orientalistas sobre a China, e de como podemos perceber isto
no filme ou até mesmo em produtos licenciados [brinquedos, por exemplo] que
parece cumprir uma finalidade semelhante nas mensagens que os produtores
querem passar sobre a China para uma audiência global.
Foi o autor de livros infantis Robert D. San Souci quem indicou para o Thomas
Schumacher, o então vice-presidente executivo da Walt Disney Feature Animation,
o poema chinês. Foi a partir dessa indicação que foi abandonada a ideia do curto e,
no final do ano de 1992 a início de 1993, o longa metragem adaptando A Balada de
Hua Mulan foi tomando forma. Porém, a ideia de uma boneca chinesa
representando a fragilidade feminina estava longe de ser abandonada.
A boneca de pano serve não somente como uma alegoria acerca da luta da qual a
protagonista vinha travando até então, a luta por uma mulher que quer reconhecer-
se e poder afirmar sobre quem é; como também a da condição das mulheres chinesas
enquanto frágeis e indefesas, assim como aquela boneca.
A heroína, Fa Mulan
A protagonista título da história, Fa Mulan é um caso especial a ser analisado.
Desde os primeiros momentos do filme acompanhamos a sua falha: a falha em
conseguir ser uma dama “honrada” digna de arranjar um bom casamento e de
“honrar” os seus pais e suas semelhantes, resultando em uma plena insatisfação de
si própria, sendo incapaz de reconhecer a si mesma. É através das experiências de
Fa Mulan em sua jornada no mundo masculino que ela demonstra quebrar esse
estereótipo de boneca chinesa que lhe é imposto. Além disso, ela rompe até mesmo
com os padrões das princesas Disney anteriores. Ela não é submissa e nem precisa
ser salva. Mulan é a única a pensar diferente na sociedade da qual ela está inserida,
sociedade essa que é apresentada como homogênea em atitudes e ideias. Mulan é
vista como uma chinesa que carrega ideais de uma estadunidense pós-feminista do
final do século XX.
Para dar significado aos papéis de gênero presentes no filme, foi necessário antes
de tudo a ambientação em uma China extremamente orientalizada: um reino
autoritário, misógino, despótico e incapaz de produzir um ser que pense de maneira
diferente ao que é apresentado como um consenso. Os papéis de gênero, a forma
como estão representados são de acordo aos comportamentos e ideias que
acompanhamos no mundo ocidental. Ou seja, a China representada no filme é um
misto dos problemas que são da sociedade estadunidense com o que os produtores
do filme acreditam que foi a mulher na História da China. Parte da equipe, de fato,
viajou para a China em busca de compreender melhor a sua cultura e História
[KURTTI, 1998, p. 46-65], mas tal viagem não foi suficiente para desmontar as
percepções orientalistas sobre a sociedade chinesa.
Em resumo, a atitude da Disney com o filme Mulan [1998] pode ser compreendida
como um esforço por parte do estúdio para adaptar uma história de uma sociedade
da qual eles não compreendiam por “não serem chineses” [Ibidem, p. 24]. Mas que,
porém, não os impediu de ter percepções orientalistas sobre os chineses. Apesar da
tentativa da equipe de compreender, ainda sobressai no filme o que eles acham
sobre o que de fato a sociedade chinesa é e foi.
Essa autoridade de dizer sobre o que a China é ou foi está presente no filme seja
nas suas representações e em seus discursos [canções e falas de personagem, por
exemplo]. Essa atitude é o que demarca o Orientalismo, pois como o próprio Said
argumenta, o Orientalismo surge enquanto “um estilo ocidental para dominar,
reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”. [SAID, op. cit., p. 29]
O Ocidente, em geral, é extremamente ignorante a respeito dos chineses. Filmes
como Mulan operam como uma ponte transcultural da qual uma audiência pode
aprender mais sobre a História, costumes e culturas de outras sociedades. A Disney,
através do filme e de seu estudo sobre a China, reclama para si a autoridade de falar
sobre o que é a China, mais ainda, sobre o que é ser mulher na China.
A personagem Fa Mulan, então, é vista como alguém que só é diferente por possuir
esses ideais que são próprios de uma sociedade que – supostamente – possui
convenções superiores no que diz respeito às mulheres. E mesmo no filme, só
passam a pensar diferente aqueles que possuem algum tipo de relação com a
personagem principal.
Lan Dong [2011] discorre sobre diversos autores que discutem a respeito da
natureza transcultural do filme Mulan [1998], enfatizando que o debate acerca das
representações da China está além do debate entre “real” e “invenção” [debate
semelhante temos em Said]. Fato, devemos levar em consideração que as
representações orientalistas presentes no filme não surgiram com o mesmo, estas
são resultado de processos históricos que dizem respeito ao colonialismo e ao
imperialismo que moldaram a imagem da China e das mulheres chinesas.
Dito isto, há uma dupla consideração a ser feita através dos estereótipos orientalistas
sobre as mulheres chinesas: em primeiro plano há a reafirmação de velhos
estereótipos ocidentais sobre as mesmas, como o próprio estereótipo da boneca
chinesa; em segundo plano, há uma orientalização no que diz respeito ao consumo
das mídias e produtos que irão derivar do filme, há aqui uma sobreposição de
valores e problemas ocidentais em uma roupagem oriental. Essa noção de re-
orientalização para consumo no filme Mulan [1998] é discutida por Sheng-mei Ma
[2000].
Considerações finais
A animação Mulan [1998] conta uma história que é vista como revolucionária por
parte de seus realizadores. Mulan representa um espírito feminino quase que
atemporal que luta por sua emancipação perante a opressão que lhe é imposta. A
partir de três exemplos tirados do projeto que resultou no filme: as bonecas chinesas
e a Mulan, acompanhamos a construção do discurso sobre as mulheres na China de
modo que acaba por re-orientalizá-las, isto é, a partir de estereótipos presentes há
uma reafirmação de alguns elementos e até mesmo uma quebra deles para então
comercializá-lo, como é o caso da personagem título.
Referências
José Ivson Marques é discente do curso de História - Bacharelado da UFPE,
membro do LEOM – Laboratório de Estudos de Outros Medievos e faz parte da
curadoria de História da China do CEÁSIA – Coordenadoria de Estudos da Ásia.
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BREVE ANÁLISE ACERCA DA REPRESENTAÇÃO DO
KITSUNE MITOLÓGICO NO MANGÁ INUYASHA, DE
RUMIKO TAKAHASHI
Júlia da Silva Amaral
Introdução
O presente artigo está vinculado à pesquisa de iniciação científica, intitulada: “Do
folclore à cultura pop: a representação do kitsune mitológico no mangá InuYasha,
de Rumiko Takahashi” já finalizada. O objetivo foi empreender um estudo a
respeito dos paralelos entre a mítica raposa, em japonês, kitsune, e a personagem
Shippō, um filhote de yōkai raposa, que protagoniza o mangá InuYasha [1996],
observando como os mangás podem resgatar contos e tradições antigas para a
cultura pop nipônica.
A história em quadrinhos passou a ganhar destaque a partir dos séculos XIX e XX.
Will Eisner [1995, p. 5 apud CARLOS, 2009, p. 4] define-as como “arte
sequencial”, ou seja, “um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta,
uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e
palavras para narrar uma história ou dramatizar uma idéia”. Sua linguagem é
formada a partir de dois elementos básicos: a imagem e a linguagem. No Japão, as
histórias em quadrinhos, tanto orientais quanto ocidentais, são chamadas de mangás
[漫画]. A palavra é dada pela união dos ideogramas man 漫 [humor, algo que não
é levado a sério] e ga 画 [imagem, desenho].
Esse termo foi adotado e reconhecido por meio do desenhista Rakuten Kitazawa,
que pertenceu à geração de artistas pós abertura dos portos do Japão, em 1853, após
200 anos de isolamento do país do resto do mundo, determinado pelo shogunato
Tokugawa, em 1640. O novo período, denominado Meiji [1867-1912], trouxe
diversas inovações para o país em várias áreas, inclusive nas artísticas e
jornalísticas. Com a entrada do estrangeiro, principalmente o europeu, iniciaram-se
os primeiros contatos dos japoneses com as revistas de humor de moldes ingleses e
franceses [LUYTEN, 2003].
De acordo com o autor Victor Jabouille [1986 apud MEIRELES, 2001], “mesmo
racionalizado, a leitura do mito apela para o sensível, para aquilo que é perceptível
intuitiva e inconscientemente. Daí, talvez, a popularidade do mito, a dimensão e a
facilidade de sua implantação, o seu dinamismo e perenidade”. O que o habilita tão
bem, para ser empregado em manifestações artísticas e em mídia de massa, é o seu
apelo à intuição e a arquétipos universais, que prescindem da racionalização para
atingir o público e passar a mensagem.
A autora trabalha com a ideia de que provavelmente a noção mais difundida de mito
e de mitologia é aquela de um grupo hierarquizado de deuses, semideuses, heróis,
demônios e criaturas sobre-humanas, com as narrativas de seus feitos e eventuais
relações com os seres humanos, como na mitologia grega, egípcia, nórdica, indiana,
etc. No Japão antigo, a religião original xintoísta era politeísta e animista, ou seja,
havia vários deuses superiores e espíritos para as forças da natureza, bem como
demônios e outros seres maléficos. Todo esse fundamento de lendas e mitos
permanece no imaginário japonês e é amplamente utilizado em mangás
[MEIRELES, 2001].
Segundo Wanderley [2013], yōkai nomeia seres sobrenaturais gerados pelo homem
em uma tentativa de apontar a causa de fenômenos desconhecidos, eventos da
natureza ou doenças que em uma época distante não contavam com explicações
científicas.
Os yōkai seriam seres sobrenaturais que se acredita terem sido criados quando o
homem sentiu medo, diante de situações além dos seus entendimentos, como
doenças, desastres naturais e experiência de morte [WANDERLEY, 2013].
Também devemos desvincular a ideia de que o yōkai é a mesma coisa que um
“monstro” japonês. A forma mais genérica utilizada para traduzir o termo yōkai é
“espírito”.
InuYasha
A história inicia-se com a colegial Kagome, que é puxada por um yōkai centopeia
para dentro de um poço e por esse motivo acaba se transportando para o Sengoku
Jidai [1467-1568], marcado por intensas guerras e conflitos políticos.
Curiosamente, aparece uma joia dentro do seu corpo, que é muito cobiçada nesse
mundo. Os yōkai, por sua vez, são os mais interessados no objeto e dentre várias
tentativas para obter a joia, ela acaba se partindo em vários fragmentos, que se
espalham por todo território japonês. A partir disso, Kagome se torna responsável
por reunir todos esses fragmentos ao lado de um “meio-yōkai” [na obra, han’yō],
chamado InuYasha.
Shippō tem uma boa relação com Kagome, mas vive em conflito com InuYasha.
Ele tem costume de pregar peças no meio-yōkai, e sua sinceridade nos diálogos
acabam gerando discussões cômicas entre os protagonistas.
A relação amigável entre Shippō -e outros yōkai- com os seres humanos nos leva à
comunicação de Meireles [2001, p. 4] no qual a autora ressalta que nas histórias
sobre yōkai, seres sobrenaturais nem sempre são benignos. Esse tipo de mangá
geralmente se foca menos nos feitos dos yōkai em si, mas sim em suas relações,
amistosas ou não, com os seres humanos.
Por fim, como é possível notar na imagem abaixo, Shippō é ilustrado com traços
humanos e sutis, ele tem uma única cauda e patas de raposa; aparenta ter entre sete
e oito anos de idade, e apesar de InuYasha ser um mangá do gênero shōnen
[categoria de mangás direcionados ao público masculino], o filhote de raposa tem
traços que se assemelham aos de mangá shōjo [categoria de mangás direcionados
ao público feminino], atribuindo-lhe um aspecto “fofo” e dócil.
Figura 1: Shippō
Fonte:Takahashi, 1997
Nesta coletânea, nos deparamos com a narrativa 1:2 sobre “Tomando a raposa como
esposa e produzindo uma criança”, na qual apresenta o aspecto metamorfósico das
raposas, sendo capazes de se transformarem em belas mulheres humanas. No mangá
InuYasha, o personagem Shippō também consegue se transformar em humanos,
tanto homem quanto mulher, para despistar os inimigos que encontram. No capítulo
três, do volume quatro do mangá, Shippō consegue assumir a forma de Kagome
para ajudá-la a escapar dos Irmãos Relâmpago que a haviam sequestrado. Ele
também consegue se transformar em um balão e em quase qualquer objeto existente
para se proteger, colocando uma pequena folha sobre sua cabeça.
O autor Kiyoshi Nozaki, em sua obra intitulada Kitsune Japan's Fox of Mystery,
Romance & Humo [1961], reserva um capítulo inteiro para expor alguns contos e
relatos encontrados no Japão a respeito do kitsune-bi ou fogo de raposa. Por
exemplo, o conto “O menino vê raposas emitindo fogo pela boca”, publicado em
1811, na qual um homem disse que tinha visto um kitsune-bi com seus próprios
olhos em sua infância nas montanhas. Em uma madrugada ele encontrou cerca de
20 ou 30 raposas, grandes e pequenas, brincando juntas no quintal de um pequeno
santuário de Inari erguido lá. E ele também descobriu que o fogo que pensara serem
suas tochas era na verdade a sua respiração.
Considerações finais
InuYasha, sem dúvida, é um mangá muito rico em folclore japonês. São diversos
os yōkai que aparecem ao decorrer de toda história. Para o leitor desatento pode
parecer apenas uma história genérica, com aventura, lutas e romance, mas quando
realizamos uma análise mais profunda, percebemos o quanto Rumiko Takahashi
construiu uma obra amplamente detalhada, bastante rica nas histórias e no passado
de sua nação. Analisar as características de Shippō trouxe à luz o quanto as raposas
foram importantes para o passado nipônico, a maneira como enganavam pessoas se
passando por belas mulheres; sua malandragem com seres humanos; e sua
habilidade de emitir fogo pela boca.
Além disso, é possível perceber o quanto o mito se faz necessário a todo ser humano
e como os mangás podem ajudar sua disseminação e fixação. Para nós, brasileiros,
é excêntrica a leitura sobre um folclore tão distinto, assim como seria para um
japonês ler sobre “Saci-Pererê” e “Boto-cor-de-rosa”. Portanto, ter acesso ao
folclore japonês por meio de suas histórias em quadrinhos é instigante para os
orientais, ao mesmo tempo em que é uma alternativa de conservação de costumes
e tradições para o povo nipônico.
Referências
Júlia da Silva Amaral - Graduanda do Curso de História – Licenciatura pela
Universidade Federal do Espírito Santo [Ufes].
Email: juliaamaral.ufes@gmail.com
Assim, ainda que por extensão suas ações repercutissem social e economicamente
na China, notamos que a influência exercida pelas mulheres na prática de seus
trabalhos se encontrava circunscrita ao âmbito domiciliar e cotidiano.
Contudo, é válido ressaltar que o lar na China Imperial tardia não se configura
apenas como um sítio de reforço dos papeis de gênero pautados pela ortodoxia
confuciana, mas também um espaço de agência artístico-criativa. Por meio da
crença de que a feitura própria de ícones religiosos seria uma atitude meritória,
mulheres eram estimuladas a utilizar seus próprios recursos e habilidades para a
produção dos ícones que viriam a adorar. Tal crença abria espaço para negociações
de ordem subjetiva, onde mulheres reivindicavam conhecimento e autoridade
artísticos [Fong, 2004; Li, 2012].
Xiu [bordar]
Voltando-nos aos escritos sobre bordado, competem duas visadas distintas: as
representações masculinas e as femininas. Homens, poetas em sua maioria,
usualmente revestem o ato de bordar em uma aura romântica, beirando o erótico. O
imaginário da jovem lânguida que borda em silêncio, incitando o interesse
masculino, tamanho o seu magnetismo, apresenta-se frequentemente em sua
literatura. Mulheres, em geral esposas e mães, descrevem o bordado como um
afazer rotineiro e polissêmico, assumindo significados educativos, afetivos,
intelectuais e espirituais.
Sua visão encontra-se documentada em poesias, autobiografias e manuais, os quais
podem ser compreendidos como auto-representações de virtuosidade feminina
[Fong, 2004, p. 6]. À medida que objetivamos compreender suas motivações e
intenções ao bordar imagens religiosas a partir de seus próprios cabelos,
privilegiaremos os escritos femininos.
Passado de mães para filhas, de avós para netas, de tias para sobrinhas, exercido
junto a amigas e irmãs, o bordado guardava forte significado afetivo para as
mulheres que o praticavam, proporcionando-lhes um espaço intimista de troca não
apenas técnica, mas de vivências e ensinamentos morais. Na poesia, longas tardes
de prazer passadas com outras mulheres a bordar são descritas como momentos de
criação ou fortalecimento de vínculos: “How wonderful that we know each other’s
interests, / Laughing we talk until the last drip of the water clock / Opening the
dressing case, together we look at the almost finished embroidery, […] / In the
moonlight before the lamp we bind our thoughts and dreams together” [Yunjin
apud Fong, 2004, p. 22].
Ressaltemos entretanto, que bordar é um processo que não se inicia quando a linha
passa pela agulha. Assim como calígrafos e pintores, em geral homens, deve-se
preparar o ambiente, tanto interna como externamente. Ding Pei e Zhang Shuying,
autora de outro manual, descrevem o quarto de bordado ideal como calmo, limpo,
silencioso, bem iluminado, ornado com arranjos de flores, incensos queimando e,
reforçando seu caráter elitista, mesas laqueadas e tecidos finos. Similarmente, o
estado de espírito ideal para bordar seria um de despreocupação e serenidade, aparte
das perturbações mundanas.
Decerto, tais manuais são escritos a partir dos moldes ortodoxos de virtuosidade
feminina. Ding Pei [apud Fong, 2004, p. 40] chega a dizer que a prática do bordado
seria capaz de transformar características indesejáveis nas mulheres, como a
loquacidade e a preguiça, em qualidades positivas, como a quietude e a
produtividade. Contudo, é interessante notar que a autora vai além desse arquétipo,
ressaltando que o bordado estimularia o discernimento e o julgamento
independentes, incentivando aquelas que a leem a se colocarem no mundo enquanto
sujeitos de ideologia e prática.
Xiu Guanyin [bordar Guanyin]
Conforme expomos anteriormente, a confecção própria de imagens para veneração
guardava um sentido meritório, podendo ser compreendido por meio do conceito
de ganying. Robert Sharf [apud Li, 2012, p. 137] explica esse aspecto da
cosmologia Chinesa antiga, assimilado pelo Budismo, como um princípio que
fundamenta a relação entre o devoto e o divino. Podendo ser traduzido como uma
“resposta piedosa”, o suplicante deveria estimular ou afetar [gan] o Buda, por meio
de uma ação que elicie uma resposta compassiva [ying] desse. Nesse sentido,
quando as devotas utilizavam o bordado, um labor que demanda tempo, evidência
da sinceridade de suas preces, para criar uma imagem, seria uma forma de
experimentar ganying.
As lendas variam, mas há um consenso de que Miao Shan seria filha do rei laico
Miaozhuangyan, que almejava que sua filha levasse uma vida costumeira para uma
mulher de sua classe, casando-se com um nobre abastado e dedicando-se ao lar.
Contudo, a jovem, influenciada pelos preceitos do Dharma, queria para si uma
existência simples, de devoção e celibato monástico, implorando a seu pai que
permitisse sua ordenação. Enfastiado, Miaozhuangyan concorda que Miao Shan se
junte a um monastério, esperançoso de que esta desistisse.
Vendo sua filha cada vez mais determinada, o rei manda que incendeiem o
monastério. Miao Shan apaga o fogo com suas próprias mãos. É, então, que
Miaozhuangya decide executá-la – algumas versões da história contam sobre a
contratação de um carrasco, outras, que seu próprio pai se encarregou da tarefa.
Também variam os desfechos dessa execução, ora contando que Miao Shan teria
sido executada e mandada de volta por Iama, aquela responsável pelo juízo final
dos falecidos, ora contando que a mesma teria escapado da morte com o auxílio de
entidades sobrenaturais. Mas é de comum acordo que Miao Shan passa a viver
isoladamente na Montanha Fragrante.
Algum tempo depois, Miaozhuangya adoece com icterícia. Nenhum médico é capaz
de curá-lo. Já desesperançoso, o rei recebe a visita de um monge, o qual afirma que
a convalescença só seria possível por meio de um remédio cujos dois principais
ingredientes eram um par de olhos e um par de mãos de alguém incapaz de sentir
raiva. Sugere, também, que havia um indivíduo assim nas redondezas, morando na
Montanha Fragrante. Sem saber que se tratava de sua filha, Miaozhuangya aceita
que o monge interpele a jovem, que prontamente cede suas mãos e olhos para a
feitura do remédio.
Da lenda, podemos extrair algumas conclusões que podem nos auxiliar a esclarecer
a predominância de Guanyin nos bordados femininos, tanto com linha, quanto com
cabelo:
I] Miao Shan, incapaz de se ordenar, leva uma existência que, ainda que siga os
ensinamentos do Dharma, é secular: tal como aquelas que a bordam, Miao Shan é
uma mulher asceta;
II] Ao oferecer seus olhos e mãos para a operação de um milagre, a princesa realiza
uma automutilação, assim como virão a fazer as mulheres que extraem seus fios de
cabelo, utilizando seu próprio corpo, para produção de seus bordados;
III] Seu sacrifício tem como fim a convalescença de seu pai. Conforme veremos, a
maioria dos relatos acerca da prática do faxiu, nos contam de mulheres a pedir à
Guanyin o bem-estar de seus familiares;
IV] Por fim, Miao Shan é uma figura dúbia. Ainda que extremamente devota,
estamos diante de uma mulher que desobedece seu pai para exercitar a fé, tomando
suas próprias decisões de acordo com o que considera melhor para sua jornada
espiritual. Encontramos, pois, ecos da noção supracitada das mulheres como
sujeitos de ideologia e prática, que tomam decisões e realizam julgamentos críticos,
conforme estimulado por bordadeiras como Ding Pei.
Segundo relatos, o processo que precede o bordar, demandava alguns cuidados com
os fios de cabelo, possuindo de três a quatro etapas: I] recolher; II] limpar; III]
amaciar; IV] dividir [ou não].
Após o recolhimento dos fios os mesmos serão lavados, amaciados e, por fim,
poderão ser ou não divididos em espessura.
I] O primeiro método de bordar seria passar múltiplos fios pela agulha. No bordado
abaixo, atribuído à reconhecida pintora da dinastia Yuan [1271-1368], Guan
Daosheng [1262-1319], utiliza múltiplos fios para bordar os cabelos, as
sobrancelhas e os cílios de Guanyin, enquanto seu rosto, manto e corpo são feitos
em linha de seda, produzindo um hipernaturalismo.
Guanyin, Guan Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda,
bordado, 105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53.
Guanyin, Guan Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda,
bordado, 105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53
III] No terceiro método, os fios de cabelo são divididos em espessura antes se ser
utilizados para bordar. Tal prática é análoga àquela de dividir os fios de seda,
produzindo várias linhas extremamente finas. Não se sabe ao certo como essas
mulheres realizavam a divisão, mas um dos relatos, dessa vez por Ye Pingxiang
[apud Li, p. 132], uma garota de 14 anos a qual bordou uma imagem de Buda com
fios de cabelo para resgatar seu pai encarcerado por um crime que não cometeu,
conta: “[I] used a metal blade, which was as sharp as the tip of the awn of an ear
of rice, to split hair into four strands”.
Uma técnica notável, dividir os fios de cabelos não deve ser considerado como uma
mera etapa para alcançar determinado aspecto estético. O refinamento técnico não
deve ser pensado a parte de seu encantamento religioso: “We could also say that
there is a triple enchantment at work here, one related to the technical process of
splitting the hair, one in the process of making the embroidery, and finally in the
religious relation to Guanyin” [Li, 2012, p. 150, grifo nosso].
Considerações finais
Ding Pei, em seu manual Xiupu, apontou a escassez de estudos voltados para a
prática do bordado, atribuindo-a à sua desimportância. Mas rebate: se ele é tão
supérfluo, por que orna mantos imperiais? De forma assertiva, reclamando
autoridade sobre o assunto, evidencia o potencial criativo do bordar, capaz de
alcançar “similar wonders as the calligraphy of talented men and the paintings of
famous masters” [apud Fong, 2004, p. 39]. Conforme pontuamos no correr de nossa
argumentação, as aproximações com as práticas de caligrafia e pintura se estendem
também ao caráter ritualístico, intelectual e estético do bordado, seja esse realizado
a partir de fios de seda ou de cabelo.
Referências
Julia Guimarães Alves é bacharelanda em História da Arte pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro [UFRJ].
Após sua formação militar no Brasil, e tendo servido algum tempo em Angola,
Freitas fora designado para o batalhão de Macau, aportando na cidade em 1815,
como informa António Marques Pereira: “Chegou [o coronel José de Aquino] a
Macau pelos anos de 1815, e serviu no batalhão do príncipe regente, sob as ordens
do brigadeiro Francisco de Mello da Gama Araújo, que mais tarde foi governador
de Diu” [Pereira, 1868, p.34].
Freitas aportou numa época conturbada para Macau. Poucos anos antes, a cidade
fora ameaçada pela ocupação britânica em 1808, a pretexto de protegê-la contra as
forças napoleônicas. Nesse cenário complexo, foi a habilidade dos portugueses em
jogar chineses contra ingleses que terminou por salvar a cidade, fazendo com que
os segundos fossem embora pacificamente naquele momento [Wakeman, 2004, p.
27-34]. Era de entendimento geral entre os lusitanos que a Inglaterra desejava
absorver Macau, ou fazê-la servir aos seus propósitos; e não tendo conseguido, os
britânicos voltariam anos depois para tomar Hong Kong à força e criar seus próprios
entrepostos.
Não podemos precisar se foi por uma motivação estratégica, por uma admiração
sincera, ou se simplesmente Freitas era um áulico e bajulador, em todo caso, ele se
tornou um apoiador destacado de Miguel de Arriaga. Obviamente, a sobrevivência
de Macau dependia de um cuidadoso equilíbrio nas relações com a dinastia Qing [e
naquele momento, com os ingleses também] mas sejam quais forem as críticas à
atuação do Ouvidor, não dava para negar que ele fora bem sucedido em lidar com
as principais questões envolvendo a soberania da colônia portuguesa. Portanto, se
Freitas desejava subir na vida, era uma opção inteligente apoiar Arriaga, evitando
se indispor com ele, como fizera Alvarenga.
Russell-Wood comenta que era uma prática comum entre os servidores da coroa
atuar nas colônias em busca de promoção, visando um cargo mais relevante na
administração imperial ou mesmo, na metrópole portuguesa [2016, p.100-115].
José de Aquino Guimarães e Freitas foi bem sucedido em conduzir-se de maneira
discreta e harmonizada com os interesses dos Macaenses. Segundo Marques
Pereira,
A obra Memória sobre Macao é, antes de tudo, uma obra voltada para entender o
papel do império português e sua dinâmica na Ásia. Curiosamente, ele foi publicado
em 1828, mesmo ano que Alvarenga publica a sua Memória... no Rio de Janeiro.
Os capítulos do livro de Freitas são sucintos. O primeiro, por exemplo, informa tão
somente as coordenadas geográficas da cidade. Seguem-se nos outros capítulos
informações sobre topografia, solo, rios, mar, quantitativos populacionais, e
descrições bem peculiares, em que destaca as construções europeias:
A partir do capítulo 13, o autor analisa o perfil étnico, cultural e religioso da cidade,
delineando uma investigação mais profunda sobre Macau. As descrições sobre os
perfis físicos e morais de portugueses, macaenses e chineses permeiam algumas
linhas consideráveis da obra. É interessante notar como Freitas descreve os
chineses, segundo ele:
“Há boas e más feições, bem como em toda a parte; mas geralmente
falando, o macaense é espirituoso, sóbrio, ortodoxo, e, conseguinte-
mente, ótimo cidadão. — A terceira classe [os chineses] conserva ainda
bastantes ressaibos do caráter moral Sinico, o que perfeitamente se
compagina com o físico. A instrução em todas ainda é menos que
medíocre, por falta de escolas. Ser-me-ia fácil citar exceções; mas elas
não servem senão de confirmar a regra [p.16]; Quanto ao moral: — O
Chim é laborioso e sóbrio; não lhe deu a natureza grande propensão
para as ciências; mas toda a aptidão para as Artes e Comércio, não
obstante ser desprezado este interessante veículo da prosperidade
publica pelas suas tão gabadas Instituições Políticas. Jamais se desvia
do respeito filial [respeito, ou antes adoração, que por morte do pai
passa incólume para o filho mais velho]; mas não deixa de ser
orgulhoso, ainda que dissimulado e condescendente: cruel em a
prosperidade, e não menos pusilânime, quando desgraçado,
desprezando soberanamente os Estrangeiros, seus usos e costumes, que,
não sei até que ponto com razão, apelida bárbaros... O seu deus mais
acatado é o interesse, a quem sacrifica tudo. [Nesta qualidade emula
admiravelmente os Povos, que dizemos civilizados]. Assim é que só
deixa de furtar, quando cessa de existir. Debaixo de um exterior grave,
e em excesso polido, encobre bastantes vícios. Salvem-se as aparências!
— parece ser a voz geral do Império. É porém certo que tem eco em
quase todos os ângulos do Mundo” [Freitas, 1828, p. 18].
Dois elementos são notáveis nessa descrição: o primeiro, de como ela contrasta
antagonicamente com o fenômeno da Chinoiserie - o fascínio europeu pela cultura
chinesa, que atravessou o século 18 -, indo em franca oposição às descrições
favoráveis da China feitas pelos iluministas franceses, tais como Voltaire. Freitas
se revela uma manifestação personalizada do orientalismo europeu denunciado por
Edward Said [1998], cuja vertente portuguesa, porém, guarda as especificidades
derivadas da construção de um império multiétnico e referto de hibridismos
[Hespanha, 1999, p.15-40]. Mesmo assim, esse orientalismo é eivado de
prejulgamentos em relação aos asiáticos, e o trabalho do autor estava conectado a
essa tendência. A segunda colocação importante acerca desses apontamentos é a
herança, pois a repetição dessas ideias que colocavam o ‘outro’ como diferente,
logo inferior, influenciariam profundamente o imaginário da sociedade portuguesa
e brasileira. Tanto, que após cinquenta anos, nos debates a respeito da possibilidade
de contratar trabalhadores chineses para o Brasil, veremos alguns intelectuais
descreverem os chineses do mesmo modo, mostrando aversão sem nenhuma
reflexão mais apurada em torno da cultura daquela sociedade e de seus processos
históricos.
Após uma série de notas, que fecham a primeira parte do livro [contendo igualmente
outro elogio a Arriaga e sua administração], Freitas passa à análise da questão das
possessões portuguesas na Ásia. Como é comum em trabalhos da época, ele tenta
fazer um diagnóstico dos problemas enfrentados pelas colônias [p.58-63], e aponta
uma possível solução: a criação de uma companhia, aos moldes das Companhias
Inglesa e Holandesa [p.64-72]. Um detalhe importante é o reincidente discurso de
abandono e decadência que afetava as colônias do império português, como
podemos observar no seguinte fragmento:
Memória sobre Macao foi, enfim, o primeiro livro sobre a história de Macau a ser
feito. No entanto, ele demorou a ser notado pelo público português. Como Sousa
[2007, p.620-1] nos informa, o trabalho de Freitas foi totalmente eclipsado pelo
trabalho do historiador sueco Anders Ljungsted, publicado em 1836, e que foi
divulgado como a “primeira história de Macau e dos portugueses na China”. Apenas
em um período recente sua obra foi retomada, recuperando uma primazia
importante na literatura lusófona. Aparentemente, a prática de demonstrar erudição
ignorando os pares lusófonos tornou-se também uma negativa tradição em Portugal,
Macau e Brasil.
José de Aquino Guimarães e Freitas foi tenente para Macau, e de lá saiu Coronel;
conseguiu alçar o posto que desejava na antiga metrópole, e viu seu país de
nascença tornar-se independente. Seu olhar percuciente atentou a necessidade de
dar notícia sobre a distante colônia asiática, em que se misturavam integrantes de
todo o mundo articulado pelo império português. Memória sobre Macao foi
importante para fazer Portugal acordar para as premências de sua antiga possessão,
mesmo que depois o livro tenha sido suplantado pelo trabalho de Ljungstedt, entre
outros autores. O mais importante de tudo, porém, estava em como ele revelou o
rico trânsito de pessoas que conectava Ásia, América, Europa e África. Freitas
engendrou a análise que consubstanciava o projeto português, cujo trânsito interno
mudava a face das culturas locais. Gilberto Freyre [2003] afirmou que não seria
possível entender o Brasil sem as vastas influências orientais que estavam aqui
presentes. Muitos antes disso, José de Aquino Guimarães e Freitas, o mineiro que
escreveu a primeira história de Macau, já estava ciente de que um mundo novo se
avizinhava, e era urgente estar pronto para ele.
Referências
Kamila Czepula é doutoranda do programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista FAPERJ ALUNA NOTA
10.
Memória e trauma
Nossa seleção de pesquisar fontes midiáticas parte de uma discussão proposta por
Morris-Suzuki [2005], a qual apresenta algumas questões pertinentes para
compreender a relação entre mídia e memória. Para a autora existe uma dissociação
entre o saber acadêmico e o obtido através das mídias, sendo este último mais
divulgado e com maior acessibilidade ao grande público. Assim, obras midiáticas
possuem maior potencial para influenciar e construir visões de passado em seu
público consumidor; tornando estas fontes um campo de disputa relevante. Outro
autor que corrobora com as reflexões de Morris-Suzuki é Otmazgin, o qual
apresenta um debate acerca das possibilidades de pesquisa histórica dos mangás e,
durante suas ponderações, recorre ao conceito de “memória banal”. Este conceito,
na definição de Otmazgin é:
Tanto Otmazgin quanto Morris-Suzuki nos alertam das potencialidades das mídias
e suas possíveis influências no campo da memória. Os autores, indiretamente,
colocam em evidência outro fator presente nas produções midiáticas que podem
gerar estas preocupações, sendo ele o de não seguimento do princípio da realidade.
Ou seja, obras da mídia não necessariamente devem acatar fatos históricos. Tal
característica permite que narrativas negacionistas e revisionistas ganhem espaço
dentro do espaço público e até se consolida como “verdades” no lugar dos fatos,
conforme apontado por Chartier “no mundo contemporâneo, a necessidade de
afirmação ou de justificação de identidades construídas ou reconstruídas, e que não
são todas nacionais, costuma inspirar uma reescrita do passado que deforma,
esquece ou oculta as contribuições do saber histórico controlado” [CHARTIER,
2009, p. 30].
A partir destas breves ponderações sobre as potencialidades das mídias, nos resta
comentar sobre o conceito de memória. Primeiramente, devemos demarcar que toda
memória, por mais singular que seja, é coletiva. Para Halbwachs “[...] nossas
lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo
que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos [...]. É
porque, na realidade, nunca estamos sós” [HALBWACHS, 1990, p. 26]. Em suma,
a memória não é construída num processo individual, mas sim coletivo; o que
implica em estabelecimentos de cânones e tabus estando sempre em
desenvolvimento [POLLAK, 2002].
Atualmente, o cenário vem se tornando cada vez mais complicado para estas
disputas. Visto que o Japão continua sua movimentação política de revisar sua
constituição, o que possibilitaria ao país se [re] militarizar. Mesmo sem a revisão,
o país vem aumentando as verbas da JSDF [Japan Self-Defense Forces] que em
2020, mesmo com uma pandemia, alcançou seu recorde de orçamento. Esta
movimentação é bastante criticada por China e Coréia do Sul que vêem o retorno
de um Japão militarizado com muito receio, visto todas as atrocidades que a
ocupação japonesa realizou. É neste cenário conturbado que analisamos o exemplo
de My Hero Academia.
A internet não fez ouvidos moucos para a escolha criativa de Horikoshi, criticando-
o em inúmeras redes sociais, como o Weibo. Em reação, às plataformas chinesas
Tencent e Bilibili removeram o mangá dos seus catálogos, incluindo alguns
episódios da animação. O fato de não terem removido tudo, provocou uma resposta
negativa dos chineses e coreanos descontentes, assim a escolha definitiva das
plataformas foi de tirarem do ar completamente o anime. Quanto ao autor de Boku
no Hero, este veio a público através do Twitter afirmar que não teve intenção de
associar o novo vilão a fatos históricos. A revista semanal, onde os capítulos do
mangá são publicados semanalmente, também se pronunciou, alegando que tanto
Horikoshi quanto a revista não tinham nenhuma intencionalidade por trás do nome
Maruta. A decisão final foi a renomeação do personagem que passou a chamar-se
Kyudai Garaki.
O caso que envolve a polêmica de Boku no Hero não é isolado, sendo uma tendência
maior que vem se repetindo. Nos últimos anos, inúmeros produtos culturais
japoneses pertencentes à cultura pop vêm sendo acusados de fazerem apologia aos
crimes de guerra — este foi o caso de Kimetsu no Yaiba [2016-2020], Shingeki no
Kyojin [2009-2021] e Youjo Senki [2013-]. Nessas ocasiões, normalmente as
consequências se apresentam de duas formas. O mais comum é haver censura de
determinados elementos acusados de fazerem apologia; outras vezes os produtos
nas plataformas chinesas e coreanas são inteiramente retirados do ar.
Esses casos evidenciam a sensibilidade com que os países lesados pelo Japão
encaram as representações que se remetem ao passado. Visto que “projetadas como
ideologias que criam novos interesses ideais, as narrativas traumáticas podem
desencadear reparos significativos na sociedade. Eles também podem instigar novas
rodadas de sofrimento social” [ALEXANDER, 2012. p. 2, tradução nossa]. As
reações coletivas sobre o passado, evidenciam ainda um trauma coletivo:
Considerações Finais
“Em qualquer momento e lugar é impossível encontrar uma memória, uma visão e
uma interpretação única sobre o passado, compartilhada por toda uma sociedade”
[JELIN, 2002, p. 5]. Esta questão aponta para o fato de que as memórias podem ser
disputadas e seu conflito sinaliza uma presença que se coloca no presente. Uma
presença que pode “[...] irromper, penetrar, invadir o presente sem sentido, como
marcas de memória [RICOEUR, 2000 apud JELIN, 2002, p. 14, tradução nossa]
como silêncios, como compulsões ou repetições” [IBIDEM]. Especialmente em
situações traumáticas, “[...] podem implicar em uma fixação, um permanente
retorno” [IBIDEM]. Sendo assim, compreende-se as razões pelas quais os países
lesados pelo Japão não cessam de reivindicar por justiça, uma vez que o passado
entre perpetrador e vítimas ainda é uma questão em aberto para estas.
Referências
Lucas Marques Vilhena Motta é doutorando em História pela Universidade Federal
de Pelotas.
Luciana de Ávila Freitas é mestranda em História pela Universidade Federal de
Pelotas
Essa perspectiva, em particular, foi escolhida em razão dos processos históricos, sociais e
econômicos pelos quais a Coreia do Sul enfrentou. A abertura de novos mercados culturais
no Leste Asiático nas décadas de 80 e 90 caminharam junto à negociações políticas. Essa
abertura leva aos discursos levantados sobre a globalização e mudanças expressivas nas
economias nacionais, mas, enfaticamente nas relações diplomáticas internacionais
[OSWELL, 2006].
Olhos imperiais
Suzy Lee é uma autora sul-coreana que começou a publicar livros no começo da
década de 2000. A artista trabalha com o que se chama de livro-imagem [o livro
sem palavras]. Em 2007, a autora lança O zoológico no qual retrata uma garotinha
que vislumbra um pavão colorido no meio de um zoológico insípido e o segue até
um espaço colorido – algo semelhante ao que acontece com Alice, no país das
maravilhas, seguindo o coelho –, onde todos os animais, que deveriam estar
enjaulados, estão livres como podemos observar na Figura 1.
A primeira página do livro é um gorila saindo de uma jaula em direção aos outros
animais, em um espaço que explode cores. A paisagem se duplica: um pertence ao
plano da imaginação e outro da representação de uma realidade. No primeiro plano,
os animais são livres; já no segundo são aprisionados. De acordo com Garrard [p.
211], “os animais dos jardins zoológicos cruzam a mesma fronteira que os animais
ferais [...], eles são objeto do olhar imperial que dirigimos aos animais selvagens,
no qual nossa distância alienada é proporcional a nosso poder”.
O zoológico de Suzy Lee pretende romper com essa construção de selvagem x dócil,
da representação cultural que se alimentou do espaço do zoológico, fazendo isso
através das cores: o cinzento é o apagamento desses animais, colocando-os na
posição do Outro; as múltiplas cores, no entanto, mostram esses animais se
rebelando, como eles realmente são, livres e amáveis. No entanto, como podemos
ver, também na Figura 1, o espaço cinzento está sem animais, e o outro está repleto
deles; é como se a história estivesse invertida a fim de refletir sobre essa natureza
animal e humana e seus locais de pertencimento.
Figura 1: página da tradução francesa de O zoológico, de Suzy Lee.
Em 2017, Bong Joon-ho lança Okja, uma história fabular sobre a relação amigável
entre uma garota e um superporco – um animal modificado geneticamente. Esse
filme pode ser lido como parte de uma trilogia, que aqui chamarei de “trilogia
ecológica”, do diretor, começando por O hospedeiro [2006], Expresso do amanhã
[2013] e terminando em Okja [2017]. Os dois primeiros filmes, cada um com sua
especificidade, giram em torno de tropos como o habitar na terra, apocalipse e
futuros da Terra, temas pertencentes ao escopo ecocrítico. Okja se alinha à minha
proposta mais fortemente, mas considero relevante pontuar que esses outros filmes
versam sobre essa preocupação, além de pertencer a um mesmo autor.
Mesmo que, tanto aqui quanto lá, se compartilhem questões similares, o estilo de
Kim Ki-taek permite uma vocalização única de seres não-humanos, trazendo uma
crueza mordaz, provocando no leitor um incômodo lamurioso. A poesia do autor
sul-coreano é tida como uma anti-poesia, talvez porque venha do âmago de questões
geracionais vividas por ele: um homem que tem em média 60 anos e observou a
convulsiva transformação pela qual passou a Coreia do Sul principalmente na
metade do século XX.
Desde os anos 80, especialmente no ano de 1988, com os Jogos Olímpicos em Seul,
uma data que marca uma das novas eras vivenciadas pela Coreia do Sul, traz
consigo um alto nível de consumo. Conforme os pensamentos de Sanggum Li
[2016], esse quadro irá impregnar os temas discutidos pelos artistas que começam
suas produções na década de 2000.
Havia uma tendência crescente por uma vida material mais fina, diversificada e
complexa, a fim de atender a necessidade desses consumidores, mudando a própria
Coreia do Sul. Por causa desse consumo excessivo, Nelson Ascher [2018, p. 11]
reflete que sociedades, como a sul-coreana, que “já deixaram para trás o pior dos
flagelos ancestrais, a fome, e que padecem antes do excesso de comida”, começam
a fazer nascer no seio da sua sociedade pessoas com asco dessa exacerbação.
Se em Okja Bong Joon-ho usa uma luva de película, aqui, nos poemas de Chiclete,
é tudo muito sinistro, como, a título de exemplo, em Panceta de porco, o eu-lírico
volta para casa depois de um churrasco, mas “o cheiro da carne não sai do corpo” e
esse cheiro evolui para um odor “nauseante de onde ainda restam gritos e
esperneios” [2018, p.14]. Já no poema que dá título ao livro, temos um objeto
comestível que lembra uma “memória da carnificina” inerente aos acontecimentos
da vida humana.
Considerações finais
Os animais tomados como monstros se tornam dóceis por meio das palavras e lentes
desses autores sul-coreanos. Os animais que fogem da jaula para alhures; o eu-
lírico, que como um pseudo “narrador ausente” [GARRARD, 2006], como faz Kim
Ki-Taek, mostra de forma quase documental as mortes dos minipolvos, peixes,
galinhas e bois, como se a ele nada importasse, como se só estivesse mostrando a
realidade, mas, na verdade, os versos carregam mananciais críticos às indústrias e
ao modo de vida que as pessoas vêm levando, principalmente na sociedade sul-
coreana.
Já em 1989, Félix Guattari [2012, p. 17] pensa que se não houver um rearranjo no
que ele chama de “três ecologias”, pode-se começar a observar uma “escalada de
todos os perigos: os do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários
caindo em fechamentos reacionários, ou da exploração do trabalho das crianças, da
opressão das mulheres...”. Octavio Paz [2013] vai dar contribuições nessa esteira
de pensamento, refletindo que o futuro não mais é um depositário de perfeição, mas
sim de uma paisagem de horror, assim vimos em Okja e Chiclete, principalmente.
Além disso, Paz diz que “a rebelião do corpo é também a rebelião da imaginação”,
vimos isso em O zoológico, de Suzy Lee.
Essas obras mostram, por fim, que “se um ser sofre, não pode haver justificativa
moral para nos recusarmos a levar em conta esse sofrimento” [SINGER, 1983 apud
GARRARD, 2006, p. 193]. A rebelião deve vir pelo Outro, mas também pelo Eu.
Vilém Fussler [s.p., s.d.] diz que “a humanidade representa apenas uma das milhões
de espécies de animais e plantas que povoam a Terra, e compartilha com elas não
apenas a matéria da qual são compostas [...] senão também uma história e um
destino comuns. Todas essas espécies se formaram [...] do mesmo caldo
primordial”. O que fica parece ser que independente da forma de rebelião, o
importante é jamais tapar os olhos como aponta Guattari.
Referências
Maria Gabriela Pedrosa é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras, na
área de Teoria da Literatura e bolsista do programa Capes. Atualmente é
pesquisadora associada do CEÁSIA [Centro de Estudos Asiáticos] e membro do
NELI [Núcleo de Estudos em Literatura e Intersemiose], ambos localizados na
UFPE [Universidade Federal de Pernambuco]. E-mail: mariagpedrosa@gmail.com.
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A REPRESENTAÇÃO DO BUSHIDO NOS MANGÁS
DA ERA HEISEI A PARTIR DA OBRA
‘BLADE A LÂMINA DO IMORTAL’
Matheus Eduardo Rezende Pereira
No final do século 19 com as reformas realizadas no Japão a partir da Era Meiji,
houve uma visível inserção da cultura ocidental dentro da sociedade japonesa. Além
disso, também podemos observar um debate entre a formação da identidade
japonesa, e a maneira como o Japão iria se portar perante o mundo, ou seja, como
iria construir a sua imagem. Tais questões ainda existem, mesmo que de maneira
diferente, e se desdobraram em outras discussões e debates na sociedade nipônica.
Nesse texto, veremos como aparecem e são tratados nos mangás, especificamente
na obra Mugen no Juunin [em tradução literal, Habitante do Infinito, no Brasil,
Blade a Lâmina do Imortal] do mangaka [autor de mangás] Hiroaki Samura, na
década de 1990 recorte espaço-temporal deste texto.
No final do século 19, surgiram, então, os autores do bushido, com destaque para
Ozaki Yukio. Após viajar para o ocidente, Yukio voltou para o Japão admirado com
a imagem do “lorde” inglês, pela sua etiqueta, educação, e que suas origens
poderiam ser traçadas desde o período medieval, oferecendo legitimidade histórica.
Isto é, o cavalheiro britânico serviu de inspiração para a criação do bushido, que
buscava se respaldar em uma figura do samurai historicamente construída
[BENESCH, 2014, p. 45 - 56].
Porém, ao mesmo tempo Akira Kurosawa foi responsável por obras onde o samurai
e o ronin são personificados na idealização do bushido, como no filme Os Sete
Samurais de 1954, A Fortaleza Escondida de 1958, ambas histórias que se baseiam
na figura de um samurai/ronin, e que servem de modelo e inspiração para outros
personagens. No caso de Os Sete Samurais, os guerreiros lideram uma vila contra
um ataque de bandidos, e no caso de A Fortaleza Escondida, dois protagonistas,
que são soldados rasos, são guiados pelo samurai, que está sendo um herói ao salvar
uma princesa. Conseguimos observar nesses exemplos de filmes, a imagem do
cidadão exemplar confucionista, uma das bases do bushido, em que ele lidera e
protege as pessoas hierarquicamente abaixo dele na sociedade a partir da
marcialidade, como também os guia de maneira ética. No caso de Harakiri e
Yojimbo, nota-se uma visão contestadora dessa imagem, ao retratar os protagonistas
e antagonistas sendo hipócritas, ou não se comportando da maneira idealizada
presente no bushido.
Mugen No Juunin, é uma obra do mangaká Hiroaki Samura, sendo seriada no Japão
pela editora Kodansha, de junho de 1993 até dezembro de 2012, do gênero seinen
[mangás para jovens adultos]. No Brasil, a obra foi publicada sob o título Blade, a
Lâmina do Imortal, primeira pela editora Conrad em 2004, e segundamente sendo
publicada no país com o selo da editora JBC desde 2015. O mangá teve uma
recepção muito boa no Japão e no ocidente, no país de origem recebendo um prêmio
de excelência no Festival de Mídias Artísticas do Japão de 1997, e no ocidente
sendo premiado com o Will Eisner Comic Industry em 2000, de melhor quadrinho
estrangeiro.
Manji possui essas questões pois matou seu senhor ao descobrir que os camponeses
que ele matava a mando de seu senhor, eram apenas pessoas que não queriam pagar
impostos abusivos. Assim, ele se revolta ao constatar que matava inocentes e
comete seu crime. Manji acaba verbalizando toda essa situação ao ser confrontado
por um samurai que ele estava duelando. Seu adversário diz que não é dever dos
samurais questionar, e sim servir.
Concluindo, a partir dessa obra podemos analisar uma visão crítica da representação
dos samurais, do bushido, e também podemos levantar discussões sobre a década
de 90 no Japão, uma vez que a obra representa discussões da sua
contemporaneidade, mesmo que buscando representar um momento histórico, pois
as representações dizem mais sobre sua própria época, do que a época que buscam
representar.
Referências
Estudante de História na Universidade Estadual de Londrina, e participante do
Laboratório de Pesquisa Sobre Culturas Orientais - LAPECO
Fontes:
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BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS NATUREZAS
CÍCLICA E LINEAR DE TEMPO NA CULTURA HINDU
Matheus Landau de Carvalho
Pesquisas e estudos acadêmicos sobre a natureza do tempo segundo as tradições
hindus recorrentemente destacam dois ritmos diferentes entre si, o cíclico e o linear.
Por tempo cíclico entende-se uma eterna repetição do tempo em ciclos periódicos,
sem início nem fim, de modo que cada ciclo sempre retorne com regularidade e
forma imutáveis, reproduzindo em todos os seus detalhes acontecimentais fatos
ocorridos em ciclos anteriores, garantindo sempre a mesma fisiologia factual em
todos os períodos previstos.
Importante ressaltar aqui a questão de que nem o espectro semântico do termo kāla
no idioma sânscrito, nem as maneiras pelas quais as tradições hindus abordam a
eternidade segundo seus próprios paradigmas culturais, serão abordados nesta
Comunicação, ficando para uma outra oportunidade fazê-los.
“Na Índia [...] essa abertura para o Grande Tempo, obtida por meio da
recitação periódica dos mitos, permite prolongar indefinidamente certa
ordem ao mesmo tempo metafísica, ética e social, ordem que não leva
absolutamente à idolatria da história, pois a perspectiva do Tempo
mítico torna ilusório qualquer fragmento do tempo histórico.” [Eliade,
1991, p. 66]
Estudos recentes têm apontado para vários exemplos na cultura hindu de linearidade
temporal. Witzel [1990, p. 5] afirma que, desde o sânscrito védico, a estrutura de
vários idiomas indianos, com sistemas bastante complexos de expressão de vários
estágios no passado, inclusive com vários tempos verbais literalmente no passado
– enquanto um referencial qualitativamente distinto do momento presente, e,
portanto, com o qual estabelece um raciocínio de linearidade –, mostram que a ideia
da passagem de tempo nunca esteve ausente das tradições indianas, inclusive as
hindus.
Na esteira desta percepção, Lynn Thomas [1997, p. 87] destaca alguns detalhes
importantes para a compreensão de certos momentos de ineditismo acontecimental
que apontem para um ritmo temporal linear que negue uma reversibilidade absoluta
do tempo [“O ciclo é repetido, mas não replicado”, cf. Sharma, 2003, p. 115, n. 19,
itálico do autor], constituindo-se numa continuidade imbuída de mudança sobre
todos os aspectos viventes, pois embora Brahmā nasça no início de cada ciclo e
desempenhe as mesmas funções neste mesmo momento da criação, os detalhes de
seu nascimento são diferentes em cada kalpa, assim como cada manvantara é
habitado não apenas por um Manu único, diferente dos demais, mas também por
saptarṣis e devas distintos entre si de acordo com seu momento cósmico:
Por sua vez, para além da linhagem real lunar [Candravaṃśa], à qual pertencem os
heróis do épico Mahābhārata, a linhagem solar [Sūryavaṃśa] da Casa Real dos
Ikṣvākus, à qual pertence Rāma – um dos avatāras de Viṣṇu, de acordo com o
Ayodhyākāṇḍa, segundo livro do Rāmāyaṇa de Vālmīki –, é outro nítido exemplo
de temporalidade linear segundo a cultura hindu: Brahmā → Marīci → Kaśyapa →
Vivasvan → Manu → Ikṣvāku → Kukṣi → Vikukṣi → Bāṇa → Anaraṇya → Pṛthu
→ Triśaṅku → Dhundhumāra → Yuvanāśva → Māndhātṛ → Susandhi →
Dhruvasandhi → Bharata → Asita → Sagara → Asmañja → Aṃśumant → Dilīpa
→ Bhagīratha → Kakutstha → Raghu → Kalmāṣapāda Saudāsa → Śaṅkhaṇa →
Sudarśana → Agnivarṇa → Śīghraga → Maru → Praśuśruka → Ambarīṣa →
Nahuṣa → Nābhāga → Aja → Daśaratha → Rāma [Ayodhyākāṇḍa CII, cf. Pollock,
2007, pp. 303-305].
Uma última questão merece destaque aqui. Para Sharma [2003, p. 95], “não é o
conceito de tempo, mas de cosmologia, que é cíclico no pensamento hindu, e, além
disso, este próprio conceito aparece em sua forma completa apenas por volta do
primeiro século.”. Neste caso, é necessário salientar que experiências humanas
sobre o tempo são, irrevogavelmente, construções culturais que refletem diferentes
contextos naturais, históricos ou sociais [Malinar, 2007, p. 1], de modo que uma
distinção radical entre cosmologia [religiosa] e história [secular] se torna irrelevante
para a compreensão da natureza do tempo nas tradições hindus: “Esses ritmos de
ordem social se manifestam em narrativas tanto mitológicas quanto históricas,
assim como em práticas rituais e artísticas ou métodos de cura.” [Idem, p. 2].
Como última reflexão, ainda resta uma pergunta no ar: a partir da conclusão de que
a cultura hindu possui não apenas a noção de tempo cíclico, mas também a de tempo
linear, é possível visualizar a existência de uma dinâmica espiralada na noção de
tempo hindu que conjugue ambas as diretrizes? Autoras como Malinar [2007, p. 2]
e Thapar [2004, p. 8; 2007, p. 29] aludem apenas genericamente ao tempo enquanto
uma espiral ou uma ondulação [oscilação], sem entrar no mérito de sua fisiologia,
nem se lançar à prova de sua aplicabilidade na cultura hindu. Seria possível
identificar nos ritmos temporais hindus a recorrência de dinâmicas paradigmáticas
nos próprios acontecimentos em contextos objetivos diferentes sem reproduzi-los
literalmente em sua forma, de modo que os recortes temporais acabariam servindo
como plataformas que, regularmente, disponibilizam possibilidades de experiências
pontuais que, em último caso, guardariam semelhanças genéricas com outros
períodos, sem repeti-los mecanicamente, não se reduzindo totalmente nem à
previsibilidade dos ritmos cíclicos, nem ao constante ineditismo dos ritmos lineares
de tempo?
Referências
Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação
em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009.
Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro
do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR
[Associação Brasileira de História das Religiões].
O filósofo Xun foi o terceiro maior defensor da Escola dos Eruditos, Rujia 儒家,
depois de Mêncio [372-289 AEC] e de Confúcio [551-479 AEC] – que, devido ao
seu impacto nessa tradição, fez estrangeiros a chamarem de “Confucionismo”
[Costa, 2021]. Xun é conhecido justamente pelas críticas que fez às outras correntes
filosóficas existentes durante sua vida. Destas, destacamos aqui os Moístas [Mojia
墨家], a Escola dos Nomes [Mingjia 名家] e a corrente Song-Yin Xuepai 宋尹學
派 [Theobald, 2011].
No capítulo Nomeação Correta ele estabeleceu uma crítica severa e direta a nove
frases ou proposições dos seus oponentes intelectuais. Por sua vez, cada frase foi
classificada em pelo menos uma de três falácias, ou seja, em tipos de discursos
enganosos ou falsos. Para ele, mais do que apenas discursos contraditórios, falácias
tem impactos sociais que não devem ser subestimados. O presente texto tem o
objetivo de analisar a crítica do filósofo Xun a essas três falácias e seus nove
exemplos. Após uma contextualização histórica-filosófica do problema que
buscamos resolver, vamos analisar as posições filosóficas presentes nos argumentos
criticados e os respectivos contra-argumentos de Xun.
O que fazer caso essa desordem na linguagem e nos atos ocorra? Realizar
nomeações corretas implementadas por pessoas virtuosas, Educadas [Junzi 君子],
que, além de se comunicar bem, também suas ações são coerentes com o que dizem,
conforme os trechos 12.10, 12.11 e 13.3 dos Analectos [Confúcio, 2012]. Contudo,
o projeto confuciano não se realizou até a época do filósofo Xun. Ao contrário,
discursos perversos ganharam força, sendo que “não há nenhum deles que não
possam ser classificados entre as três falácias [San huo 三惑]” [Xunzi, 2006, 22.11,
nossa tradução]. Já que os Educados não estavam mais no poder – logo, não tinham
posição política suficiente para conter tais discursos maléficos –, o filósofo Xun
defendeu a necessidade de realizar argumentações e explicações [Bian Shuo 辨說]
contra as falácias.
É essa defesa e uso da argumentação e o ataque ás falácias que tornou a sua teoria
da nomeação correta tão influente na história da filosofia chinesa. Mas não apenas
isso. Curiosamente, para defender o Caminho dos Reis Sábios, o Dao 道 confuciano,
ele se nutriu do que havia de melhor no mundo intelectual à sua volta, em especial,
do método argumentativo da Escola dos Nomes e dos moístas, sendo um reflexo da
diversidade intelectual do seu tempo. No entanto, criticou as teses dessas escolas
filosóficas.
Da Escola dos Nomes, o filósofo Gongsun Long 公孫龍 [Gongsun, s. d.] apresenta
dois pontos que devem ser considerados. O primeiro é que Gongsun defendeu uma
perspectiva que leva leitores, como nós, a entender que havia uma realidade
intrínseca aos nomes, ou seja, há uma correlação natural entre um nome e uma
realidade. Segundo, esse autor estava preocupado com as consequências
epistemológicas dessa correlação nome-realidade, ou seja, de como estabelecer
distinções adequadas que nos possibilitam conhecer [zhi 知] objetos [shi 实 / 實]
do mundo de forma mais segura [Lai, 2009, p. 147]. Dos moístas, segundo Nivison
[1999, p. 798]:
Pela separação das proposições e pela visualização do quadro é possível notar que
se trata, antes de tudo, de um problema de linguagem. Mais precisamente, trata-se
da falta de clareza e exatidão, e até de uso antiético da linguagem. A primeira delas,
a falácia ilocucionária, mostra que há ações mesmo dentro dos limites da
linguagem e da comunicação. Ou seja, falas podem ser, em si mesmas, ações ou
incitar ações – adiantando parcialmente as ideias de Austin [1990] sobre atos de
fala, especialmente os atos ilocucionários. Para Xun, se forem falácias, tais atos
serão socialmente danosos.
A relação com a referência aos objetos da realidade é estabelecida nas duas falácias
seguintes. A falácia da distorção da realidade começa com uma linguagem que
busca distorcer a nossa percepção dos dados dos sentidos para confundir e
obscurecer a nossa linguagem. Já a falácia da distração vai na direção contrária,
confundindo os discursos para embaçar a nossa visão da realidade, e, enfim, gerar
uma distração na percepção do mundo no interlocutor. Todas as três falácias visam
como objetivo final causar algum tipo de confusão que acabe por beneficiar os
autores das falácias. Essas ações egoístas claramente prejudicam a curto ou longo
prazo a comunidade em que se convive. No próximo tópico vamos analisar os
exemplos históricos de proposições da China antiga que foram criticados pelo
filósofo Xun no trecho traduzido.
[2] “O sábio não ama a si mesmo” é uma versão resumida de uma ideia do Mozi
墨 子 [2006], fundador do moísmo, presente no capítulo Daqu 大 取 , Grande
Seleção, parte 11. Há uma obra, o Mozi Xiangu 墨子閒詁 [Comentários ao filósofo
Mo], publicado por Sun Yi-Rang [2006] em 1893, que comenta que a obra Xunzi
está se referindo especificamente aos trechos 8, 9, e 10 do referido capítulo do Mozi
[2006]. Selecionamos o que se destaca nesses trechos, amparados livremente na
tradução inglesa de Johnston [2009, p. 586-589, que enumerou a mesma passagem
como 44.8]: “Mozi, 11.9: O sábio teme a doença e a decadência, mas não teme o
perigo e a dificuldade. Ele mantém a integridade de seu corpo e a determinação de
seu coração. Ele deseja o benefício do povo, ele não desgosta do amor do povo;
Mozi, 11,10: O sábio não considera sua própria morada [...]. Xun está
questionando a ética consequencialista dos moístas. Nesses trechos, os moístas
defendem que o sábio [Sheng ren 聖人], já que ama a todos [P], deveria se
sacrificar, se for preciso [Q]. Assim, essa é uma falácia ilocucionária por afirmar
que, se P, então Q, mas não havendo nada que levaria a tal conclusão, o que a faz
soar falsa. Além disso, Q é uma ação social destrutiva, tanto para o sacrificante
quanto para a sociedade que vai perder um sábio.
Já a famosa sentença [3] “matar ladrões não é matar pessoas” aparece nos livros
moístas Xiaoqu 小取, Pequena Seleção, trecho 11.5 [Mozi, 2006; Johnston, 2009,
p. 627]. Para Xunzi se trata de uma falácia ilocucionária porque, através de uma
confusão da linguagem, leva a ações comunicativas violentas contra outras pessoas.
No caso, leva as pessoas X a uma narrativa de desumanização de outras pessoas Y,
para X legitimamente poderem assassinar Y. Uma versão brasileira atual desse tipo
de falácia são as sentenças como “bandido bom é bandido morto” e “direitos
humanos para humanos direitos”, expressos pela atual direita cristã conservadora,
atualmente no poder. Falas que, além de serem em si violentas, após conquistarem
a opinião pública, geram ações físicas violentas.
Os dois próximos exemplos podem ser vistos como apontando para um mesmo tipo
de problema. [6] “[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas” é
atribuída ao filósofo Song Xing. Já a sentença [7] “grandes sinos não são [mais]
divertidos”, conforme Valenzuela Alonso [2019], talvez seja uma menção a ideias
de Mozi, e ambas reaparecem como alvo de críticas no capítulo 18 no Xunzi. O que
Xun está criticando aqui, em ambos os dois casos, é a possibilidade de embaçar as
distinções dos nossos sentidos [paladar e audição]. Se a falácia ter sucesso em
distorcer a percepção da realidade do interlocutor, este terá problemas em
estabelecer distinções, logo, terá problemas em reconhecer as diferenças dos
objetos da realidade [shi] com clareza. Esse é o tipo de confusão que um agente
político mal-intencionado quer causar. Por isso, assim como nos outros casos, deve-
se sempre averiguar a coerência interna na sentença em relação a ela mesma [a
proposição já supõe que há sinos pequenos, já que há os grandes, assim, há
diferenças devido ao tamanho, desmentindo ela mesma]. Também a própria
coerência entre o nome e realidade de ser averiguado empiricamente, daí o motivo
de Nivison [1999] conectar com a noção de “ciência” moísta. E este é um exemplo
explícito de quando o filósofo Xun usa as armas intelectuais dos seus oponentes
para criticá-los.
[8] “[A flecha] não encontrou a pilastra”: provavelmente faz menção a ideia que
julga ser confusa no Mozi [2006], capítulo 10, trecho 51: “O parar: Não parando
quando não há duração corresponde a ‘boi não é cavalo’ e é como ‘uma flecha
passando por um pilar’. Não parar quando há duração corresponde a ‘cavalo não
é cavalo’ e é como ‘um homem passando por uma ponte” [Johnston, 2009. p. 416-
417]. Trata-se, no entanto, de um trecho confuso [Hutton, 2014], talvez fruto de
erros de copistas [Valenzuela Alonso, 2019]. O que talvez o filósofo Xun vê como
falácia é o fato de que não é possível uma flecha ultrapassar um pilar, já que o pilar
seria uma barreira física, vendo aqui uma clara confusão na metáfora em relação à
linguagem socialmente estabelecida.
No último exemplo de falácia, [9a] “ter bois e cavalos não é ter cavalos”, primeiro,
trata-se de uma sentença do Mozi [2006], livro 10, trecho 168 [ver Johnston, 2009,
p. 552-553]. Mas é amplamente comentado que é também uma crítica a frase de
Gongsun Long [9b] “cavalo branco não é cavalo” [cf. Valenzuela Alonso, 2019].
O filósofo Xun claramente vê um problema nessas distinções: percebe uma
tentativa de diferenciar objetos [shi] que são convencionalmente vistos como sendo
de uma mesma grande categoria [cavalos, independentemente da cor, são, antes de
tudo, cavalos]. Com essa tentativa, visa confundir as convenções sociais da
linguagem [como a acordo de que cavalo branco é, sim, cavalo], e, assim, o agente
que usa a falácia pode usá-las para adquirir vantagens pessoais em detrimento do
bem comum.
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A ESTÉTICA WABI-SABI NA CERIMÔNIA
DO CHÁ JAPONESA
Narumi Ito
Introdução
A cerimônia de chá, também conhecida como chadō ou chanoyu, é provavelmente
uma das últimas artes tradicionais japonesas que foram vislumbradas e conhecidas
pelo ocidente. Talvez porque outras artes, como a ikebana [arranjos florais], o sumi-
ê [técnica de pintura], as artes marciais, a arquitetura e a culinária japonesa possuem
um produto final, um significado material [ROCHA, 1996]. No que se refere a
cerimônia de chá, podemos dizer que ela nutre propósitos filosóficos e espirituais
em sua essência. Após um ritual, o participante não percebe alguma mudança
considerável em si próprio, pois o caminho do chá faz parte de um processo
paulatino e duradouro.
Na tentativa de traduzir algo tão complexo de se definir, não existe certo ou errado,
mas sim diversas informações pertinentes que se completam em sentidos. Em um
documentário chamado In Search of Wabi-sabi [Em buscca do Wabi-Sabi],
produzido pela BBC4 e disponível no Youtube, Marcel Theroux vai até o Japão e
pergunta para diversas pessoas [jovens, adultos e idosos] o que significa wabi-sabi.
Ele encontra respostas inusitadas como “é o coração japonês” ou “você não pode
simplesmente encontrar isso”, mas também percebe que vários cidadãos, mesmo
sendo japoneses, não são capazes de responder de modo claro e objetivo, pois se
trata de algo maior e muitas vezes inexplicável em poucas palavras.
Uma outra forma de descrever o conceito, nas palavras de David Chacobo [1997]
seria: “Wabi-Sabi é a beleza de coisas imperfeitas, mutáveis e incompletas. É a
beleza das coisas modestas e humildes. É a beleza das coisas não convencionais. A
extinção da beleza” [CHACOBO, 1997, p. 02, tradução nossa]. Dessa forma, o
wabi-sabi pode ser compreendido e visto de inúmeras maneiras, isso também
dependerá do contexto em que o termo se aplica e a sua funcionalidade.
O conceito de wabi [侘び] remete ao verbo wabiru, ou seja, declinar para um estado
de tristeza e abandono, sentir-se solitário, miserável, desapontado. Também pode
ser entendido como uma apreciação da vida tranquila e longe das coisas mundanas,
e por último pedir desculpas. Para exemplificar, pode ser visto na primeira antologia
poética japonesa Man’yōshū, de 759 d.C, também na peça de teatro Nō, denominada
Matsukaze, de Kan’ami Kiyotsugu [1333-1384] e em alguns poemas waka, de
autoria de Fujiwara no Teika [1162-1241] [ROCHA, 2015].
De acordo com Chacobo [1997], podemos perceber que há muito mais diferenças
do que semelhanças entre o wabi-sabi e a modernidade. No entanto, wabi-sabi é
um conceito que, apesar de não agradar ou fazer parte dos fundamentos da
modernidade, consegue sobreviver no mundo moderno e está presente em quase
todas as artes japonesas. Além disso, são ideais muito usados na arquitetura de todo
o mundo, pois contém valores que impressionam e inquietam as pessoas que
contemplam. Nas palavras de Lauren Prusinski [2012]:
Segundo Prusinski [2012], outra peculiaridade sobre wabi-sabi que deve ser levada
em consideração é a naturalidade, uma vez que a beleza se encontra em arrumar um
jardim que possa alcançar a mesma imagem da natureza intocada por mãos
humanas. Apesar de ser um jardim feito pelo homem, o desafio é ser capaz de
organizar as flores e as pedras de um modo que não fique artificial, mas sim natural
e aleatório. Neste contexto, nosso objetivo neste tópico foi trazer a visão de diversos
especialistas em torno da estética japonesa e que se debruçam sobre o estudo do
wabi-sabi, que pode ser entendida como valiosa para cultura japonesa e que contém
uma definição intraduzível para ser explanada em poucas palavras.
Neste contexto, podemos observar alguns princípios que foram citados por
Hisamatsu [1970], como a assimetria, a irregularidade e a perecibilidade. Sorte-
Junior [2018] acrescenta que não apenas as cerâmicas usadas em cerimônias de chá
contêm padrões assimétricos, mas todos os utensílios de maneira geral. O belo para
a cultura chanoyu está no desgaste das coisas, no oxidado pelo tempo, no velho,
rachado, uma possível explicação é que as artes japonesas foram influenciadas pela
doutrina de impermanência, originada do Budismo. Valorizar objetos enferrujados,
quebrados e velhos significa apreciar a efemeridade da vida e evidenciar que as
cerâmicas estão desgastadas porque foram usadas e tiveram alguma utilidade, nada
mais natural do que se quebrarem e envelhecerem.
Considerações finais
Este trabalho teve a intenção de apresentar o conceito de wabi-sabi e sua relação
com a cerimônia de chá, dois símbolos importantes e tradicionais da cultura e arte
japonesa. Apesar de serem desenvolvidos de modo separados no tempo, os dois
termos se conectaram em um determinado período na história e até a modernidade
podemos observar essa ligação. A estética wabi-sabi na cerimônia de chá pode nos
levar a pensar na presença da estética do evanescente, pois dentre tantos princípios
e fundamentos que regem esses dois termos, a efemeridade merece bastante
destaque. Ser consciente de que temos um tempo limitado para viver, para
experimentar o que o mundo pode nos oferecer, nos faz refletir que devemos
aproveitar cada momento, valorizando as pequenas coisas e nos desligando de
futilidades materiais, para que possamos focar em coisas que irão acrescentar e
provocar melhorias em nós mesmos. Portanto, talvez o conceito de perecível se
torne tão essencial para que o wabi-sabi e a cerimônia de chá alcancem suas
finalidades.
Referências
Narumi Ito é mestranda do programa de pós-graduação em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa pela FFLCH-USP e bolsista da FAPESP. Com licenciatura em
Letras – Inglês pela Universidade do Estado do Mato Grosso [UNEMAT].
Em sua tese de mestrado, Rebekah Hunter faz uma profunda análise das regras,
normas sociais e de beleza que regem as mulheres durante o período Heian no
Japão. Através dos diários das damas da corte, a autora relata o jogo político
presente nesses escritos e no julgamento dos padrões de beleza estabelecidos por
essas mesmas damas.
A forte presença do jogo de poder nas ações de Tamamo-no-mae, bem como seu
status hierárquico e os relatos de sua extrema beleza e sabedoria, podem ser
interpretados em referência ao jogo político e regras sociais vistos nos relatos das
damas de corte analisados por Hunter através de seus diários. Sendo assim,
investiguemos mais profundamente a presença de um possível arquétipo de
feminilidade no conto.
Ainda questionados quanto à sua real utilidade e utilização, os diários dessas damas,
conhecidos como nikki, começam a reunir seus relatos e opiniões quanto aos
acontecimentos da corte, ao comportamento de atendentes e outras damas, e poesias
e descrições de natureza e beleza. Ao mesmo tempo, nesses diários, é possível notar
o surgimento de padrões impostos a tais damas: como se vestir, tipos de
maquiagem, o que seria vergonhoso ou virtuoso para uma dama da corte.
Quase que em oposição, os diários também relatam as opiniões dessas damas
quanto à sua apresentação: “[...] o mérito das damas de companhia estava muito
ligado ao seu conhecimento de etiqueta social e charme. [...] E, no entanto, os
escritos dessas mulheres revelam que também era importante não chamar muita
atenção para as próprias habilidades e talentos ou parecer deliberadamente
manipuladora de seus patronos [...]” [Hunter, cap.2, 2014]. Portanto, devem ser
belas, porém devem agir de forma a reunir patronos, necessários para seu
envolvimento na corte. A manipulação desses patronos é algo aprovado e
incentivado, não passando dos limites impostos social e politicamente.
Sei Shonagon
Dentre todas as damas analisadas por Hunter, a mais famosa e referenciada dentro
dos estudos japoneses seria Sei Shonagon. Em seu “Livro do Travesseiro” –
Makura no Soshi – suas fortes opiniões e inteligência, invejadas, aprovadas e
repreendidas por tantas outras damas, apresentam uma visão única quanto ao
período, os acontecimentos internos da corte e às vidas de seus integrantes. Sua
preocupação com decoro e compostura, com a estética a ser apresentada, com a
dicção e comportamento revelam um aspecto político da feminilidade como
observado na época. Seus escritos podem ser interpretados como uma construção
de um arquétipo de feminilidade para a era Heian.
Porém, Hunter faz também uma observação: “Sei Shōnagon parece ter se orgulhado
de sua inteligência e sagacidade [...] e não tinha medo de dar voz aos seus próprios
interesses.” [Hunter, cap.2, 2014]; algo que descontentava outras damas da corte.
Em seus escritos, fica claro que ela se sente superior a outras damas, e mesmo outros
homens de alta patente. Sua figura é relativamente contraditória, pois suas críticas
a outras damas podem ser facilmente revertidas a si mesma. Uma mulher orgulhosa,
inteligente e astuta, que nos aproxima de uma comparação com a figura de
Tamamo-no-Mae.
Arquétipo de Feminilidade
Prosseguimos então para uma formulação mais direta desse possível arquétipo
presente nos escritos das damas da corte. Inteligência, sabedoria, beleza, bons
modos, decoro, compostura e visão política. Essas características eram esperadas
de todas as mulheres que fossem parte da corte, em especial de mulheres da alta
aristocracia, como imperatrizes, princesas e filhas de nobres, e de suas damas de
companhia, as damas da corte.
Tamamo-no-Mae
Tamamo-no-mae foi, de acordo com o conto presente no Otogi-zoshi, uma dama de
corte que serviu ao imperador enclausurado Toba, durante o reinado do imperador
Konoe. Sua extrema beleza e inteligência eram incomparáveis, e o conto narra
como seu corpo exalava um aroma extremamente agradável e suas vestimentas
permaneciam impecáveis durante todo o dia.
Ela era tida como a dama mais bela e inteligente de todo o país. Tão bela que ganhou
o favor do imperador Toba, que a mantinha ao seu lado em todos os momentos, e a
estimava como se fosse sua imperatriz. Seu nome vem do ocorrido durante uma
apresentação de música e poesia:
Portanto, deu-se seu nome como Tamamo-no-mae, a dama das jóias - que também
se refere à origem chinesa do conto - por seu brilho.
Ao ser novamente chamado, Yasunari hesitou antes de anunciar que o mal que
afetara o imperador era Tamamo-no-mae, revelando então sua natureza como uma
kitsune. Ao ser ordenada a fazer oferendas aos deuses, por achar essa uma tarefa
desprezível, teve de ser persuadida a realizá-la. Ao se cansar de tal farsa, Tamamo
se vestiu com suas melhores roupas e, durante a cerimônia, desapareceu, provando
a todos que Yasunari estava correto em suas afirmações.
O fim do conto apresenta uma grande batalha, seguida pela morte de Tamamo-no-
mae, porém, o objetivo desta análise está alcançado. A partir dos relatos
apresentados pelos diários das damas da corte, podemos perceber todas as
semelhanças entre Tamamo e tantas outras, sendo ela também uma dama da corte.
Mas como encaixar o arquétipo de feminilidade neste conto?
Jogos de Poder
Tamamo-no-mae é um conto de excessos. Sua beleza, inteligência, sabedoria e
ardilosidade, todos esses traços em excesso, contam a história dos exageros aos
quais as damas da corte devem exercer um firme controle. A beleza excessiva traz
a inveja de outras damas, imperatrizes, princesas e mesmo outros homens, por
inveja também ao poder que essa beleza demonstra. O mesmo é válido para todos
os outros traços, e o fato de Tamamo não demonstrar grande humildade, nos remete
ao que Hunter afirma sobre Sei Shonagon: seu orgulho quanto às suas qualidades.
O texto Tsuma Kagami, Mirror for Woman, de Muju Ichien, afirma que todas as
mulheres possuem sete principais pecados, segundo os ensinamentos budistas
chineses:
“Em primeiro lugar, [...] elas não têm escrúpulos em despertar o desejo
sexual nos homens. Em segundo lugar, sua disposição ciumenta nunca
é ociosa. [...] Em terceiro lugar [...] uma disposição propensa à
enganação [...] Em quarto lugar, negligenciando suas práticas religiosas
[...] elas não pensam em nada além de sua aparência e desejam as
atenções sensuais de outros. [...] Em quinto lugar, [...] muitas vezes elas
levam o mal aos outros sem temer que estejam acumulando pecados
para si mesmas. Em sexto lugar, queimando-se no fogo dos desejos,
elas não têm vergonha [...] Em sétimo lugar, seus corpos estão para
sempre imundos, com frequentes descargas menstruais.” [Muju Ichien,
1980].
Entretanto, ao mesmo tempo que esses ‘pecados’ são algo a se manter distantes,
eles são intrínsecos à sociedade de corte. Inveja, intriga e manipulação, além de
presentes e pontos principais de diversos acontecimentos históricos, são também
comportamentos levemente autorizados e incentivados. A existência dos jogos de
poder depende da existência desses comportamentos, que, mesmo vistos como
exclusivamente inerentes às mulheres, estão presentes em todos que fazem parte da
corte.
Performances de Feminilidade
A partir de todas as análises feitas até este ponto, percebemos os diferentes tipos de
performance de feminilidade retratadas durante o período Heian. Em especial: “as
implicações que essa estética tem com respeito à avaliação da posição das mulheres
na sociedade.” [Hunter, introdução, 2014]. Os dois principais tipos seriam, com
ênfase na intenção deste texto, a mulher correta e a mulher raposa.
O tipo de performance exigida para ser considerada uma mulher correta, enquanto
dama da corte, seria o exercício do controle. Atos comedidos, visibilidade
controlada, demonstrações de qualidades de forma não excessiva, seguir limites de
acordo com a hierarquia e posição social. Ela deve ser bela, inteligente, possuir
astúcia para situações políticas, seguir padrões estéticos de acordo com sua função
e exercer autocontrole. Já a mulher raposa, identificada em alguns textos e anedotas
como kitsune-onna ou oni-onna - mulher-demônio - não se preocupa com os limites
impostos. Ela é exigente, ambiciosa, orgulhosa de si mesma e de suas habilidades,
sua manipulação ultrapassa os limites sociais, é mentirosa e possessiva. E, muitas
vezes, como no conto de Tamamo-no-mae, sequer é humana, uma kitsune
disfarçada de dama, sedenta por poder.
Conclusão
Anteriormente, em um outro artigo, cito a dualidade do ser raposa, sua
representação e sua dualidade. Divino e demoníaco, masculino e feminino, real e
fantástico, em diferentes culturas. Na cultura japonesa, a predominância da
representação da raposa é feminina: “[...] é um ser emocional de profunda
sabedoria, porém igualmente astuta. Amoral por não compreender a noção de moral
humana, é um ser dúbio, transitando entre o bem e o mal, entre crueldade, travessura
e piedade, em comportamentos considerados então femininos.” [Sâmsara, pg. 409-
413, 2017]. Uma distribuição mais equilibrada de contos em que ela é demoníaca
ou divina, assim como uma terceira vertente em que ela é ambas as coisas ou
nenhuma delas, apenas um agente do caos.
Por fim, como muito bem descrito no conto, Tamamo-no-mae aparenta começar
sua jornada na escala hierárquica da corte do imperador recluso Toba da mesma
forma que Sei Shonagon e tantas outras damas. Entretanto, enquanto algumas se
esforçam para se encaixar perfeitamente dentro do arquétipo de feminilidade criado
por seus próprios diários, Tamamo se utiliza do arquétipo e o transforma, criando
uma outra interpretação para a forma como certas mulheres são julgadas por seus
atos e excessos.
Nem todas as mulheres, sejam elas damas da corte, damas de companhia, princesas
ou imperatrizes, se encaixam perfeitamente dentro das expectativas da corte e da
sociedade. O arquétipo aqui abordado representa a dualidade presente em todas
essas mulheres. Afinal, definir limites de comportamento em uma sociedade
patriarcal é delimitar a própria existência feminina em seu meio.
Referências
Raphaella Ânanda Sâmsara é graduada em Licenciatura em História pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.
Fonte:
Tamamo-no-mae. In: Enjoying Otogi Zoshi with the help of synopsis and
illustrations. Online. Disponível em: <https://rmda.kulib.kyoto-
u.ac.jp/en/item/rb00013524/explanation/otogi_09>. Acesso em: 19 de Julho de
2021.
Uma das características das escolas de pensamento letrado [ou ru, como eram
conhecidos na China e mais tarde generalizado como confucionismo pelo mundo
Ocidental] era a sua relação com a leitura e a escrita. Toda doutrina de Confúcio e
outros filósofos estavam presentes em livros, que eram por sua vez comentados por
outros filósofos ao longo dos séculos em suas próprias obras, criando assim uma
cultura de comentários. Neste contexto os livros que os missionários passariam a
publicar na China acabaram por se tornar uma importante ferramenta no método de
evangelização jesuíta. Os missionários produziram uma série de livros e traduções
em chinês de obras europeias e produções inéditas, com o intuito de atrair a atenção
dos letrados chineses e apresentar-lhes a cultura, ciência, filosofia e a religião
europeia. Os jesuítas também produziram várias obras destinadas ao público
europeu, entre traduções e versões dos clássicos de Confúcio, como relatórios de
viagens publicados em forma de livros que descreviam as características,
curiosidades e mistérios da China para a Europa.
Nosso objetivo aqui será destacar o papel dos livros e textos escritos na missão
jesuíta na China, seja na forma de obras originais ou de traduções e adaptações
linguísticas. Iremos abordar a produção textual jesuíta na China e seus temas, assim
como destacar algumas obras importantes produzidas pelos missionários, tendo
como alvo tanto o público chinês, quanto o europeu.
Ainda trabalhando com este número total de 450, cerca de 50 destes eram traduções
no sentido literal da palavra, onde os jesuítas copiavam e adaptavam
linguisticamente os livros europeus sem muitas modificações, trabalhando com os
caracteres chineses que fossem mais próximos das palavras originais. Todavia, por
vezes os missionários traduziam os livros de uma forma mais adaptada,
parafraseando, compilando, sumarizando e até mesmo modificando o sentido das
frases, para que pudessem cativar, ou por vezes até mesmo possibilitar o
entendimento, de seu leitor chinês. O mesmo também foi feito no processo de
tradução do chinês para o latim, visando um público europeu. A maior parte dos
temas abordados nos livros jesuítas tinham a ver com religião, humanismo e
ciências. Os textos relacionados à religião incluíam rezas, textos litúrgicos [como
missas], trabalhos teológicos, hagiografias, catecismos e textos devocionais. Os
livros científicos tinham como assuntos a astronomia, geometria, aritmética, armas,
anatomia, ótica e até mesmo falcoaria e musicologia. Por fim, os textos humanistas
tinham como tema os clássicos da filosofia grega e romana. [BURKE, HSIA, 2007,
pp.39-42].
Começando pelos textos de cunho religioso, alguns deles eram traduções utilizadas
pelos missionários durante a manutenção de suas obrigações religiosas para com os
cristãos chineses, como o Missale romanum, de 1670 e o Breviarium romanum de
1674, ambos traduzidos por Ludovico Buglio. Um dos motivos destes livros serem
traduzidos para o chinês repousava no fato de que alguns missionários acreditavam
que os chineses tinham muita dificuldade em aprender o latim e que a existência de
textos na língua nativa diminuía o tempo e melhorava a qualidade da conversão.
Um dos defensores desta ideia foi o próprio Buglio [BROCKEY, 2007, pp. 145-
146]. Um outro tópico importante nas obras religiosas publicadas pelos jesuítas na
China eram as hagiografias. Durante a missão da China, os jesuítas produziam
textos que derivavam diretamente dos originais europeus, contando as vidas de
importantes figuras como a Virgem Maria e José [que foi escolhido como Santo
Patrono da China], Francisco de Borja e Francisco Xavier [BURKE, HSIA, 2007,
p.41].
Com relação aos textos científicos, as traduções eram o tipo de trabalho mais
comum. Os temas mais explorados eram astronomia e matemática, que receberam
um foco maior de atenção na primeira geração das missões, da década de 1580 até
1620. Algumas das mais importantes traduções feitas no campo da ciência pelos
jesuítas na China incluía o Euclides elementorum libri XV, Epitome arithmeticae
practicae e o Geometria practica, todos do matemático Cristovão Clávio,
traduzidos por Matteo Ricci com a ajuda dos chineses conversos Xu Guangqi e Li
Zizhao [FONTANA, 2011, pp.213-214]. Além das obras de Clávio, foram
traduzidos outros importantes tratados matemáticos da época, como o Le operazioni
del compasso geometrico e militare, de Galileu Galilei por Giacomo Rho e Adam
Schall e o Trigonometriae de Bartholomaeus Pitiscus por Johan Schreck. Além das
traduções, os missionários também produziram obras científicas próprias, a maioria
delas manuais e compilações para ensinar os chineses a matemática e astronomia
europeia. Um exemplo deste tipo de livro foi o Ts’e tien yueh shuo [Teoria
Abreviada Sobre as Medidas do Céu], escrito por Schreck em 1628, que tratava
sobre astronomia, posicionamento orbital e instruções para o uso do telescópio
[LACH, 1993, p.189].
Dos textos de cunho filosófico, as traduções jesuítas envolveram livros que eram
parte do currículo humanista do Ratio Studiorum, o programa de estudos da
Companhia de Jesus, que eram familiares a todos os jesuítas. O filósofo mais
trabalhado pelos jesuítas na China foi Aristóteles, que teve traduzidos os textos: De
coelo, Universa dialectica Aristotelis, Isagoge Porphrii, Categoriae e Analytica
priora por Francisco Furtado, Alfonso Vagnone, Giulio Aleni e Francesco
Sambiasi. Além destes textos na integra, o time de jesuítas também traduziu
parcialmente o De coelo et mundo, Meteorologica, De anima, Parva naturalia e
Ethica Nicomachea [BURKE, HSIA, 2007, p.43]. Matteo Ricci também foi
responsável por algumas compilações adaptadas, como o seu famoso Jiaoyun lun
[Da Amizade], o primeiro livro de Ricci escrito em chinês. A obra era composta por
citações de vários autores clássicos que escreviam sobre a natureza da amizade,
como Horácio, Cícero, Santo Agostinho, Aristóteles, Marcial, Erasmo de Roterdã,
Sêneca e outros, que incluíam reflexões sobre afeto, afeição, solidariedade e
compreensão. A compilação era baseada na obra Sententiae et exempla de Andrea
Eborensis [SPENCE, 1989, p.157]. Na China Ming, a amizade era uma das relações
mais valorizadas entre os homens, e o livro de Ricci fez um sucesso considerável,
alavancando ainda mais a popularidade dos jesuítas.
O exemplo mais importante neste tipo de obra, escrita pelos jesuítas com seu
público chinês em mente foi o Tianzhu Shiyi [Verdadeiro Significado do Lorde do
Paraíso], a Magnum Opus de Ricci, produto de dez anos de estudos do missionário
da língua chinesa e dos livros de Confúcio, além das observações e reflexões de
Ricci sobre a cultura letrada chinesa. O livro foi a principal ferramenta de
evangelização de Ricci, proposta como uma obra de estudo para não-cristãos e feita
sob os conformes da acomodação cultural proposta pelo Visitador Valignano. O
Tianzhu Shiyi começou a ser escrito durante os primeiros anos da década de 1590 e
finalmente impresso em 1603. O livro também tinha o objetivo de substituir o
primeiro catecismo produzido na China, por Michele Ruggieri, que se encontrava
ultrapassado na época, pois recorria a terminologias budistas para explicar
conceitos cristãos, não continha praticamente nenhuma menção sobre Confúcio e
sua filosofia e ainda se referia aos jesuítas como “bonzos” [nome pelo qual eram
chamados os monges budistas] do Oeste.
Embora o Tianzhu Shiyi seja considerado como um catecismo, sua estrutura textual
era de um diálogo retórico, uma disputa argumentativa entre duas pessoas. Este tipo
de recurso retórico era comum na China desde o período dos Reinos Combatentes
e era conhecido como “persuasão” [shui] e foi a parte principal da formação da
oratória chinesa clássica [JENSEN, 1997, p.97]. Na Europa, os jesuítas tinham
familiaridade como este modelo de texto retórico e autores como Horácio, Virgílio,
Cícero, Aristóteles e outros eram parte do currículo humanista dos colégios da
Companhia de Jesus. Dessa forma, Ricci conseguiu encontrar um ponto em comum
entre as culturas chinesa e europeia para basear sua obra.
O livro de Ricci tinha como objetivo principal o de convencer seu leitor chinês de
que o cristianismo seria a única religião que complementaria os ensinamentos de
Confúcio, antes que sua filosofia fosse contaminada pela chegada do budismo na
China. Para chegar a este objetivo, Ricci centralizou o foco de seus argumentos em
características que percebeu semelhantes entre a filosofia confuciana e o
cristianismo, utilizando diversas citações dos clássicos chineses para demonstrar
que muitos dos temas presentes nestes clássicos – como a fé em um único deus, a
noção de recompensas e punições por parte do Paraíso, a existência da alma imortal
– não eram novidade na China, pois teriam sido mencionados por todos os sábios
antigos, principalmente por Confúcio, porém, a influência do budismo na sociedade
chinesa teria feito com que essas práticas fossem modificadas ou esquecidas. Dessa
forma, o cristianismo seria a chave para uma restauração dos ensinamentos de
Confúcio [RULE, 1972, p.139].
Conclusão
Ao passarem dos portões do Império, em sua busca por um estabelecimento na
capital Pequim, os jesuítas se viram em uma sociedade com muitas ressalvas em
relação aos estrangeiros e onde não se encontravam em uma posição social alta ou
relevante. Para alcançar os chineses e ter alguma chance de êxito no processo de
conversões, os jesuítas precisaram desenvolver um processo de acomodação à
sociedade chinesa, mudando suas vestes, hábitos alimentares e aprendendo a língua
nativa. Após anos de estudos e graças às ações principalmente de Valignano e Ricci,
o método de acomodação adicionou uma outra característica importante para seu
funcionamento: de passar a mensagem cristã a partir de termos familiares aos
letrados chineses. Neste contexto, os livros tornaram-se uma importante ferramenta
na abordagem evangelizadora dos jesuítas.
Referências
Renan Morim Pastor, doutorando em história - UFRRJ. Bolsista CAPES
E-mail: renanp8989@gmail.com
BROCKEY, Liam Matthew. Journey to the East: The Jesuit Mission to China,
1579-1724. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2007.
BURKE, Peter; HSIA, Ronnie Po-chia. Cultural Translation in Early Modern
Europe. Cambridge, Cambridge University Press, 2007.
CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Ed.UNESP,
2014.
DIFFIE, Bailey.; WINIUS, George D. Foundations of the Portuguese Empire
1415-1580. Minnesota: University of Minessota Press, 1977.
EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno:
Encontros Culturais, Aventuras Teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
FONTANA, Michela. Matteo Ricci: A Jesuit in the Ming Court. Maryland.
Laham: Rowan & Littlefield Publishers, Inc., 2011.
JENSEN, Lionel M. Manufacturing Confucianism: Chinese Traditions &
Universal Civilization. Durham: Duke University Press, 1997.
LACH, Donald F. Asia in the Making of Europe, Volume III: A Century of
Advance. Book Two. Chicago/London. University of Chicago Press. 1993.
RULE, Paul A. K’ung Tzu or Confucius? The Jesuit Interpretation of
Confucionism. 1972. 498f. Tese [Doutorado em Filosofia] Australian National
University, Camberra. 1972.
SPENCE, Jonathan D. O palácio da memória de Matteo Ricci. A história de uma
viagem: Da Europa da Contra-Reforma à China da Dinastia Ming. Trad.port. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
A FOTOGRAFIA COMO MEDIADORA DA
MODERNIDADE JAPONESA [1860-1890]
Rogério Akiti Dezem
Nas últimas décadas do século XIX, o que denominamos comumente de “Ocidente”
interpretou o Japão através de um caleidoscópio no qual se fundiam o encanto da
recriação literária, a admiração estética do Japonismo e olhares cheios de surpresa,
admiração e temor acerca do vertiginoso processo de modernização japonês.
Produto material desses olhares sobre o “outro” asiático podem ser notados em
imagens [iconografia e fotografia] e nos discursos positivos e outros nem tanto,
acerca do Japão e dos seus “pequenos habitantes”. Neste contexto histórico de
rápidas transformações [1860-1890], a literatura de viagem e a fotografia irão se
justapor, e às vezes se fundir, alimentando o ávido imaginário europeu pelo
diferente, misterioso e “exótico” Japão.
Pode-se afirmar que haviam receios por parte do governo Meiji [1868-1912] de que
a jovem nação japonesa fosse retratada pelos europeus e norte-americanos apenas
por seus elementos tradicionais [i.e. “não modernos”], muitas vezes vistos de forma
estereotipada e que sedimentavam um imaginário sobre o país na direção do rol dos
exotismos asiáticos da segunda metade do século 19. Desse modo a aposta das
autoridades japonesas em participar ativamente das grandes Exposições Mundiais,
verdadeiras vitrines do progresso na época, foi uma estratégia que se mostrou
acertada e cumpriu os objetivos do governo japonês a partir de 1873 [Expo de
Viena] que era o de apresentar “a new Japan to the world at that exposition, more
vigorously than at previous expositions” [National Diet Library, 2011].
A jovem nação japonesa desejava ser vista pelo público ocidental a partir de uma
perspectiva que associasse os universos do tradicional [artes, artesanato,
arquitetura], admirado pelos estrangeiros e do moderno [industrialização,
tecnologia], perseguido pelo governo japonês. Sob essa perspectiva o uso da
fotografia pode ser visto como um dos principais instrumentos modernos – como a
ferrovia, o telégrafo entre outros - de mediação da modernidade japonesa perante
ao “outro” não-japonês. Isso pode ser percebido na Exposição Mundial de 1888
[Expo de Barcelona], onde pela primeira vez o Japão apresentou também “uma
coleção de fotografias que possibilitavam os visitantes se aproximar da realidade
do Japão moderno, que naquele momento desenvolvia novas indústrias e investia
em infraestrutura e construções modernas”. [Bru, 2016, p. 48]
Dessa maneira veremos que o aparato fotográfico passa a dialogar também com as
xilogravuras japonesas [esteticamente influenciadas pelo olhar fin d’sieclé
ocidental] enfatizavam aspectos positivos do processo de modernização pari passu
ao “desejo do olhar” britânico, francês e norte-americano, ávidos por consumir as
impressões, muitas vezes estereotipadas da maior “descoberta” ocidental de meados
do século 19: o Japão. Essa estratégia que teve na fotografia um dos seus condutores
pode ser definida como representação de uma “modernidade exibitória” [ingl.
exhibitory modernity] [Shao, 2004. pp.5-6] levada a cabo pelo governo japonês.
No entanto, em seus primeiros anos, essa técnica de “escrever com a luz” foi
descrita como um “espelho de imprimir a sombra” [jap. inei-kyô], “espelho de
impressão direta da sombra” [jap. chokusha-ei-kyô] ou “espelho de imprimir
sombras” [jap. inshô-kyô]. Foi só a partir da década de 1860, com a abertura de
estúdios fotográficos comerciais em Yokohama que o termo shashin se tornou
recorrente [Idem, p. 39].
Visto como uma forma surpreendente de representação do real [mimesis] pela elite
e de acesso para poucos privilegiados devido ao alto custo de um retrato, a
fotografia em terras japonesas teve de superar uma série de obstáculos iniciais.
Como por exemplo, o domínio correto da técnica, o acesso aos materiais
fotográficos [placas de vidro/metal, papel, químicos, lentes, câmeras etc], além de
um misto de desconfiança/estranhamento por parte da população. Desconfiança
acerca dos “efeitos” da mais recente novidade que se popularizava, receava-se de
que após ser fotografado a sombra do retratado desapareceria, a alma ficaria presa
ao retrato ou ainda que alguns dias após ter sido retratado o indivíduo não teria mais
do que três anos de vida [Low, 2006, p.5] Neste contexto de superstições e
transitoriedade histórica, a fotografia se consolidou como um dos principais
instrumentos da modernidade europeia, influenciando o universo das artes, dos
costumes e no domínio de uma tecnologia alienígena que contribuiu de forma
decisiva a maneira de retratar e narrar o Japão da era Meiji.
Imperador Meiji [fig. 1] e Imperatriz Haruko [fig. 2]- Impressões em albumina [c.
1873] de autoria de Uchida Kuichi. Domínio Público. [Fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/Uchida_Kuichi]
A fotografia e o “desejo do olhar” sobre o Japão
Em 1889 um jovem britânico aspirante a escritor, Rudyard Kipling [1865-1936],
em sua coluna “Cartas do Japão” para um periódico indiano, escrevia: “If you buy
nothing else in Japan... you must buy photographs [...]”. [Hight, 2011, p. 66]
Kipling fazia alusão as belas - e exóticas - fotografias no formato de cartões de
visita, um dos principais souvenirs adquiridos por turistas estrangeiros, muitos deles
ávidos colecionadores deste tipo de iconografia. Ou no caso do poeta e escritor
Oscar Wilde [1854-1900] que nunca havia estado no Japão, mas que na época ao
examinar cuidadosamente xilogravuras dos artistas japoneses Hokusai e Hiroshige
expressou uma sensação única de “sentir-se em Tóquio”.[Abou-Joude, 2016, p. 1]
Esses dois exemplos da possibilidade da importância do uso de imagens como
idealizador do “outro” japonês, vem de encontro a afirmação da escritora Susan
Sontag [1933-2004] “[...] sentiment is more likely to crystalize around a
photograph than around a verbal slogan.”[Sontag, 2003, p.85]
Abaixo podemos ver dois exemplos de Yokohama shashin produzidas por Beato.
As figuras 3 e 4 representam dois dos temas muito estimados pelos estrangeiros: as
belezas naturais, como o Monte Fuji e todo o seu simbolismo e a beleza [jap. bijin]
do feminino japonês, visto geralmente como sutil, misterioso e ingênuo. Dessa
forma pode-se notar que em muitos momentos a iconografia dialoga diretamente
com as narrativas presentes na literatura de viagem, que nesse instante é
confrontada por imagens de uma jovem nação distante e em transição.
Figura 3: Vista do Monte Fuji. Autor: Felice Beato. s/d. Domínio Público.
[Fonte: https://www.theitalianeyemagazine.com/en/the-art-of-yokohama-shashin-
milan/]
Figura 4: Sem título. Autor: Felice Beato. s/d. Domínio Público. [Fonte:
https://www.theitalianeyemagazine.com/en/the-art-of-yokohama-shashin-milan/]
Para finalizar, a título de comparação seria importante citar uma outra forma muito
popular e tradicional artística usada para representar a transitoriedade japonesa no
período: a xilogravura [jap. moku hanga]. Como foi mencionado, a maior parte da
população japonesa não tinha condições econômicas ou interesse em adquirir
fotografias avulsas, cartões de visita ou os álbuns luxuosos citados na época.
Provavelmente pelos mesmos retratarem, em grande parte um Japão visto como
‘ultrapassado” e apresentando elementos do cotidiano desinteressantes para os
nativos. No entanto, mesmo com o advento da fotografia, as baratas xilogravuras
exaltando a modernidade japonesa eram consumidas amplamente pela população.
Artistas e governo estiveram em consonância sobre a forma de como muitas dessas
imagens deveriam representadas e divulgadas. Um exemplo desse “Japão Novo” a
ser mostrado, pode ser visto na fig. 5 abaixo. A xilogravura retrata jovens operárias
japonesas vestidas com vistosos quimonos, trabalhando em uma moderna máquina
de fiar seda na primeira exposição industrial nacional realizada em 1877 no parque
de Ueno em Tóquio. Notamos na imagem espectadores japoneses vestindo trajes
mais tradicionais e alguns trajes europeus. Olhares de estupefação do público
presente direcionados a aspectos da tecnologia recém-importada, como também à
destreza das jovens interagindo de forma “natural” com o maquinário.
Figura 5: Máquina de enrolar seda apresentada na Exposição Nacional Industrial
Japonesa, 1877. Autor: Utagawa Kuniaki II. Domínio Público.
[Fonte: https://ukiyo-e.org/image/mfa/sc11160]
Referências
Rogério Akiti Dezem é Historiador e Professor de Cultura e História do Brasil no
Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Osaka [Japão].
A Rússia
A história da Rússia é marcada por ondas migratórias, guerras, invasões, anexações
de territórios entre outros fatores que lhe afetam desde os primórdios da
humanidade. Tudo isso a conferiu um status de melting-pot [local onde se derrete e
funde o metal], emprestando o termo de Marc Ferro [1990], ao agrupar pessoas com
diferentes modos de vida, culturas, religiões e grupos étnicos em oposição ao salad-
bowl [tigela de salada, salada mista] do mesmo teórico, em que as culturas
conservam suas identidades em separado. Como parte de seus limites terrestres
permeiam dois continentes, as origens de seu povo também abarcam influências de
ambos, como exemplo, muitas famílias russas tinham/tem ancestrais asiáticos,
como dissera Napoleão Bonaparte certa vez: “Raspe um russo e encontrará um
tártaro”.
Império Mongol
Temujin como seu nome verdadeiro ou mais conhecido como Genghis Khan foi o
responsável pelo maior império que já existiu [cinco vezes maior que o Império
Romano no seu ápice], fundando-o ao unir todas as tribos mongóis em 1.206
[MASON, 2017]. A extensão territorial conquistada por ele e seu povo atingiu entre
21 milhões de km2 segundo Mason [2017] e 33 milhões de km2 segundo Segrillo
[2012] e abarcava as terras entre a Polônia e a Coreia, da Sibéria ao Vietnã,
incluindo a China também por um século.
Vale a pena ressaltar que apesar de exigirem tributos e soldados por parte de seus
conquistados, além de fidelidade política, no que tange questões socioculturais
como religião, lideranças locais e tradições, os povos tinham plena liberdade de
mantê-las sem sofrer interferências [SEGRILLO, 2012]. Mesmo que não houvesse
essa obrigatoriedade de seguir costumes e hábitos mongóis, essas comunidades
mantiveram sua cultura agregando elementos de seus dominantes.
As influências
Como resultado de relações administrativas amistosas entre os “russos” e os
mongóis temos até hoje o uso das palavras tesoureiro [казначей – kaznachei] e
tesouro [казна – kazna] [SEGRILLO, 2012]. No vocabulário cotidiano há inúmeras
outras, em especial, como cavalo [лошадь – loshad], bazar [Базар – bazar], celeiro
[амбар – âmbar], cofre [сундук - sunduk]; o próprio Gêngis Khan foi chamado de
Gêngis Tzar [царь] durante algum tempo; além desses verbetes, há também
expressões turcomanas como ‘Vamos embora’ [Давай поідим - davai poidem],
‘Vamos sentar’ [Давай посидим - davai possidim] e ‘Vamos embebedar’ [Давай
попим - davai popem] [FIGES, 2017]. Esse uso do verbo “vamos” - em russo
Давай - que cunhou diversas expressões também se percebe na Ucrânia com uma
pequena variação para Давайте, utilizados até hoje.
Entretanto, muitos dos que escolheram viver lá não abandonaram seus costumes
antigos, pois abaixo do sonho europeu ainda se via a velha Rússia [FIGES, 2017].
Para o tzar a Rússia sempre fora vista pelos europeus como um elemento estrangeiro
que não pertencia ao que se denominava como Velho Mundo, sendo reconhecidos
como asiáticos no Ocidente e europeus frente aos asiáticos [FIGES, 2017] e em seu
governo, enquanto o Império Russo se expandia pela Ásia, houve inúmeras
discussões acaloradas sobre as heranças asiáticas entre aqueles que aceitavam com
orgulho sua ascendência oriental e aqueles que a desprezavam, considerando uma
traição tal incitação. Frente a esse embate, o próprio Dostoievski escreve num dos
seus textos:
No que tange a culinária, arroz, macarrão, ricota e seu preparo também remetem ao
Oriente; carne de cavalo e leite de égua remetem as tribos mongóis. Foi só no século
XIX que o Ocidente descobre essas particularidades em relação aos equinos
fazerem parte da dieta dos russos, o que causa estranheza e taxa-lhes de bárbaros
[FIGES, 2017].
Questões culturais são difíceis de isolar e limitar suas fronteiras pela fluidez com
que transitam nas relações sociais, ainda mais num país com território continental
como a Rússia. Apesar de debates acalorados que se iniciaram ainda no reinado de
Pedro I e que se estendem até os dias de hoje sobre as influências orientais na cultura
nacional, valemo-nos das palavras de um pintor russo, Shevchenko, que no governo
do referido tzar afirmava que os diferentes matizes - europeu/russo e
asiático/oriental - eram um neoprimitivismo singular dessa nação [FIGES, 2017]
cuja característica principal era que não se permitia estabelecer um limite:
Considerações
Os inúmeros elementos apresentados que compõe a riqueza do patrimônio cultural
russo em seus mais variados segmentos - vocabulário, indumentária, culinária,
lendas, mitos, folclore, histórias, rituais religiosos, literatura, personagens
históricos, brinquedos, costumes, genealogia, entre outros - são algumas das
influências orientais que essa nação e áreas circundantes receberam há séculos
devido as constantes ondas migratórias e momentos de domínio estrangeiro.
Durante muitos anos emerge o debate e o conflito em torno de um grupo que soma
esforços para se aproximar da Europa em oposição àquele que busca suas raízes
asiáticas; discussão essa iniciada no governo de Pedro I e que se digladiam, pelo
menos no campo intelectual até a contemporaneidade. A lição que fica é que o
modus operandi da cultura russa se utiliza de artefatos orientais.
Referências
Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa,
em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em Filosofia pela
Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em Metodologia do Ensino
de História e Geografia pelo Centro Universitário de Maringá e em Ensino de
Sociologia pela Universidade Cândido Mendes. Coautora do livro As Ucrânias do
Brasil: 130 anos de cultura e tradição ucraniana pela Editora Máquina de Escrever.
Atualmente é Professora de História efetiva na Secretaria de Estado de Educação
de Mato Grosso, colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця e colaboradora do
Blog Exílio-migração política.
De acordo com Ming Tiampo [2007, p. 690], após a Segunda Guerra, a noção de
originalidade no Japão se atrelou à individualidade e foi amplamente explorada na
figura do artista revolucionário. Nas décadas de 1940 e 1950, os artistas japoneses
batalharam para redescobrir sua voz em meio à repressão durante a guerra e, em
seguida, com a presença militar americana. O desejo por uma nova linguagem
artística caracterizou esse período. Os artistas enfrentaram mudanças significativas
em relação à postura ideológica que deveriam assumir entre as artes, a política e a
sociedade, enquanto buscavam entender a conexão entre a estética japonesa e a arte
internacional. A busca por uma nova linguagem artística não compreendeu uma
ruptura completa com a geração anterior de artistas, reflexões em torno dos
significados da guerra eram o que mantinham unidas tanto a nova quanto a antiga
geração. Embora fossem novos demais para participar de maneira ativa na guerra,
esses jovens artistas presenciaram os horrores que ela provocara em seu país,
estimulando-os a direcionar o debate artístico em torno da questão: como os artistas
e as suas obras poderiam participar de maneira efetiva da realidade em que estavam
inseridas? O artista Shunsuke Matsumoto [1912–1948], por exemplo, escreveu em
1946 uma carta aberta à comunidade artística convocando-os a participar de uma
associação que buscasse realizar trabalhos que questionassem o papel da arte no
pós-guerra.
"Criar o que nunca foi feito antes!", bradava Jirō Yoshihara [1905-1972]
constantemente para os artistas do grupo Gutai. Quando fundou a Associação de
Arte Gutai em dezembro de 1954, Yoshihara já havia conquistado reputação
nacional como pintor surrealista. O artista logo percebeu, no entanto, que explorar
a linguagem surrealista não seria o suficiente para descobrir uma nova identidade
artística que fosse tanto japonesa quanto moderna. Em seu papel de agenciador,
Yoshihara investiu financeiramente em jovens artistas, criou uma vasta biblioteca
sobre arte e em diferentes ocasiões atuou como professor. Yoshihara acreditava na
possibilidade de criação de uma comunidade artística formada por diferentes nações
que compartilhassem entre si interesses em comum.
De acordo com Ming Tiampo, podemos dividir a história do grupo Gutai em duas
fases: durante a primeira fase, aproximadamente entre a data de sua criação até
1962, os trabalhos apresentados pelo grupo podem ser caracterizados por sua ênfase
em uma criação livre atrelada à exploração da materialidade; já durante a segunda
fase, entre 1962 e 1972, o grupo experimentou as novas tecnologias que estavam
sendo introduzidas no país, em um esforço para criticar a lógica capitalista e a
desumanização que estaria por trás do rápido crescimento industrial. Apesar dessa
divisão, o Gutai manteve um princípio básico ao longo dos 18 anos de atuação: a
inserção de obras nos ambientes públicos e a aproximação com vida cotidiana da
população.
A liberdade defendida pelo Gutai não dizia respeito apenas aos regimes totalitários
enfrentados pelo Japão nas últimas décadas, mas também a tendência à
desumanização que, segundo eles, as sociedades contemporâneas adquiriram ao
longo dos anos. Shōzō Shimamoto [1928-2013], um dos membros do Gutai,
defendia a ideia de que as pessoas deveriam se preocupar também com aquilo que
era inútil, em um contraste ao destaque dado ao trabalho e a otimização do tempo e
dos vários setores da sociedade na reconstrução do país. “Por mais contraditório
que possa parecer, eu acredito que a coisa mais útil que podemos pensar ou fazer é
aquilo que é convencionalmente considerado inútil, porque é o que provará
verdadeiramente que estamos vivos” [SHIMAMOTO apud. MUNROE; TIAMPO,
2013, p. 278]. No mesmo sentido, o artista Yozo Ukita [1924-2013] defendia que
as pessoas deveriam ser mais estranhas. “Em minha opinião, porém, precisamos ser
‘esquisitos’ até o âmago. Se uma pessoa não é esquisita, ela não tem valor como ser
humano. Se ele não tem gosto como ser humano, equipado com diferentes trabalhos
mentais que falta aos animais, ele não é melhor que uma garrafa de cerveja”
[UKITA apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 278].
No final da década de 1940, antes de fundar o grupo, Yoshihara foi convidado para
realizar uma série de palestras para o jornal Kirin, que destacava em suas páginas
poemas e trabalhos de artes feitos por crianças. Depois dessa experiência,
Yoshihara se mostrou bastante atraído pela criatividade livre de estereótipos das
crianças. O ato de brincar, que permeou quase todas as obras desse evento,
funcionou como um veículo para o fortalecimento da democracia, um meio de
incentivar o público a pensar e agir livremente. A presença das crianças e a
educação infantil, voltada ao desenvolvimento da capacidade de pensar e agir de
maneira livre e independente, ganharam papéis importantes para pensar um futuro
livre do totalitarismo e das manipulações das massas.
Em seu manifesto, Yoshihara afirmava que, ainda que eles se apresentassem como
grupo, não existia imposições de regras no Gutai. “O nosso espaço é um lugar de
criação livre no qual buscamos ativamente diversas experimentações, que vão desde
a arte para ser apreciada com o corpo inteiro até a arte tátil e a música Gutai […]”
[YOSHIHARA apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 19]. Os integrantes do grupo
se orientavam por um desejo em explorar a relação artista e materiais, mas cada um
interpretou esse desejo à sua maneira e escolheu o material que mais o interessava.
Em contraponto às ideias nacionalistas e militares do período da guerra que
exaltavam o coletivismo em favor de uma causa maior, o Gutai procurou
desenvolver as diferentes possibilidades de coletivismo e comunidade sem reprimir
as características e os desejos individuais de cada artista. Nesse sentido, a
heterogeneidade de obras era valorizada e não representava uma desorientação ou
desordem do grupo; representava um desejo em repensar as ideias de comunidade
e homogeneidade exaltada durante o período da guerra.
Após a Expo 70, o grupo atravessou uma profunda crise que levou ao seu
desmembramento depois que Yoshihara sofreu um derrame e faleceu em 1972. Os
preparativos para o evento consumiram tanto financeiramente quanto
intelectualmente e artisticamente o grupo, culminando em desentendimentos e
afastamentos. Um dos legados do Gutai para as artes japonesas se encontra na busca
dos artistas por liberdade criativa ao se expressar. As atividades do grupo
pavimentaram o caminho para uma geração de jovens artistas que na década
seguinte realizou experiências radicais com engajamento político afiado.
Referências
Victor Vidal é doutorando em Artes Visuais pelo PPGAV-UFRJ, na linha de
pesquisa em História e Crítica da Arte. Sua pesquisa aborda as relações entre o
grupo japonês Gutai e o movimento concretista no Brasil.
CHONG, Doryun [ed.]. Tokyo 1955 – 1970: a new avant-garde. New York: The
Museum of Modern Art, 2012.
HAYASHI, Michio; CHONG, Doryun; KAJIYA, Kenji; SUMITOMO, Fumihiko
[ed.]. From Postwar to Postmodern: Art in Japan 1945 - 1989. Primary
Documents. New York: The Museum of Modern Art, 2012.
KARATANI, Kōjin. Origins of Modern Japanese Literature. Durham: Duke
University Press, 1993.
KUNIMOTO, Namiko. "Shiraga Kazuo: the hero and concrete violence". In: Art
History, vol. 36. Londres: Association of Art Historians, 2012.
MEREWETHER, Charles [org.]. Art, anti-art, non-art: experimentations in the
public sphere in postwar Japan, 1950-1970. Los Angeles: Getty Research
Institute, 2007.
MUNROE, Alexandra; TIAMPO, Ming. Gutai, Splendid Playground. New York:
The Solomon Guggenheim Museum, 2013.
SAS, Miryam. Experimental Arts in Postwar Japan: Moments of Encounter,
Engagement and Imagined Return. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
TIAMPO, Ming. "Create what has never been done before!" In: Third Text, vol.
21. 2007.
EXTREMO ORIENTE:
POLÍTICAS
A REFORMA AGRÁRIA COMO MARCO FUNDADOR
DO DESENVOLVIMENTO SUL COREANO
Alexandre Black de Albuquerque
Ao fim da Segundo Guerra Mundial a península da Coreia foi dividida em dois países: A
Coréia do Norte, sob influência soviética, e a Coreia do Sul, sob influência norte-
americana. No norte a União Soviética empreendeu a reforma agrária através do confisco
das propriedades rurais, ao sul, os EUA deu início, em 1947, a redistribuição de terras por
desapropriação mediante pagamento, limitando o tamanho máximo da propriedade a 3 ha
[hectares]. O primeiro governo eleito em 1948 na Coreia do Sul deu prosseguimento à
reforma agrária, concluindo o processo em 1955, tendo, inclusive, continuado a
distribuição de terras durante a Guerra da Coreia [1950-53], que devastou o país e causou
a morte de mais de 2 milhões de sul coreanos. Note-se que Naquele momento o país era
eminentemente rural, tendo em 1949 uma população de cerca de 20,1 milhões de pessoas,
sendo que 14,2 milhões estavam no campo, cerca de 72% do total, 7,82 milhões eram
economicamente ativas [PEA] com 6,27 milhões trabalhando na agricultura, cerca de 80%
do total, e 266 mil pessoas trabalhavam na indústria, 3,4% da PEA, e possuindo apenas 2
milhões de hectares cultiváveis para 2,5 milhões de famílias de agricultores, ou seja, apenas
0,8 ha por família [Economic Statistics YearBook, 1955]. Essa reduzida disponibilidade de
terras por família colocou em dúvida a viabilidade da reforma agrária, dado as dificuldades
de se estabelecer uma agricultura que disponibilizasse excedentes comercializáveis em
propriedades tão pequenas, como demonstra a Tabela 1:
Tabela 1
Tamanho médio da propriedade rural em hectares por anos selecionados
Fonte: Korean Statistical Information Service – KOSIS. <https://kosis.kr/eng/>.
Logo, a questão da escala também está ligada a arranjos institucionais que garantam
acesso a insumos por parte dos pequenos agricultores. A reforma agrária, por
exemplo, ao dividir a terra e garantir a propriedade jurídica sobre esse bem imóvel,
provêm o proprietário de um bem capaz de servir como forte garantia para ter acesso
a crédito para o plantio, no entanto, a atuação estatal não deve ser descartada na
fase de financiamento da produção, pois a agricultura envolve riscos que os bancos
comerciais privados possuem baixa propensão a correr, sobretudo quando se trata
de pequenos agricultores, que não possuem grandes garantias e administram
plantações com baixas taxas de lucro, aumentando o risco dos credores caso ocorra
algum imprevisto, como questões climáticas desfavoráveis em um determinado ano
que acarrete perda de parte da colheita. Por outro lado, a reforma agrária tende a
beneficiar o crescimento e o desenvolvimento econômico e esses dois fatores
tendem a beneficiar a reforma agrária, em um processo de causação circular. No
médio prazo o aumento da renda pode gerar demanda para bens agrícolas de maior
valor agregado, como frutas e legumes, ao invés, por exemplo, de arroz,
aumentando a renda do setor rural. O desenvolvimento da nação também facilitará
a ampliação da infraestrutura rural, como estradas, ferrovias, sistemas de irrigação,
etc., facilitando o escoamento da produção e reduzindo os custos de logística, que
se forem, ao menos em parte, capturados pelos agricultores, significará aumento de
renda para esse segmento da sociedade. A geração de empregos em áreas urbanas
se somará ao aumento de oportunidades de trabalhos nas zonas rurais, diminuindo
a oferta de trabalhadores desempregados e forçando aumento dos salários nos três
setores da economia [primário, secundário e terciário]. Logo, a reforma agrária deve
ser conjugada com políticas de desenvolvimento econômico, ou seja, no bojo de um
Estado desenvolvimentista. No entanto, o maior impasse é a própria reforma
agrária, as forças políticas e sociais contrárias são poderosas e sua realização é
sempre incerta.
Tabela 2
Produtividade por pessoa lotada na agricultura em Dólar
Fonte: Fan & Kang [2005].
Conclusão
A reforma agrária realizada na Coreia do Sul atendeu a dois objetivos, um de ordem
política: o combate à influência da Coreia do Norte e seus ideais na mente do povo
do sul da península, o outro de ordem econômica: promover o desenvolvimento do
país através da industrialização, nesse sentido, a distribuição de ativos e renda, além
da eliminação do poder dos latifundiários, foram elementos de grande importância
na busca desses objetivos e alcançaram o sucesso pretendido.
Referências
Alexandre Black de Albuquerque, Mestre em História pela Universidade Federal
de Pernambuco.
Muito longe de tentar esgotar a discussão, esse artigo, com o objetivo de melhor
entender o desenvolvimento social e econômico da RPDC, se debruça sobre aquilo
que vamos chamar de “Política de Três Revoluções”, com o objetivo de entender
no que consistiu tal bandeira e quais as suas funções para a construção do socialismo
juche na República Democrática Popular da Coreia.
A Política de Três Revoluções é concebida, portanto, não como uma mera abstração
por parte de um grupo de teóricos, mas como uma exigência material do próprio
transcurso da revolução. Corroborando com essa perspectiva, Kim Il Sung,
principal líder do processo nacional-libertador e fundador da RPDC, assinala que:
É possível notar que Kim Il Sung admite que o triunfo da revolução e a construção
do socialismo por si só já presta uma valorosa contribuição no sentido da realização
da independência [que ele vai conceituar como “zazusong”] das massas populares,
porém, esse ainda é um processo de caráter inconcluso e, portanto, surge daí a ideia
das Três Revoluções – ideológica, técnica e cultural – enquanto um processos de
caráter imprescindível para edificar o socialismo e assegurar uma futura transição
bem-sucedida para o estágio comunista.
Revolução Ideológica
Kim Il Sung estabelece que:
Revolução Técnica
A Revolução Técnica constitui outro ponto crucial para a construção do socialismo,
tendo em vista que este é um estágio de desenvolvimento durante o qual as forças
produtivas precisam ser potencializadas no sentido de conseguir prover as
demandas próprias do planejamento econômico central, sendo a industrialização
algo de suma importância também para abolir a divisão do trabalho, ou seja, a
diferença entre trabalho intelectual e trabalho manual, possibilitando um maior grau
de igualdade entre os trabalhadores.
Revolução Cultural
Ao se deparar com tal termo, é quase que automática a ligação que possamos querer
traçar com a Grande Revolução Cultural Proletária levada adiante por parte dos
chineses, porém, cabe ressaltar que, apesar do título, a Revolução Cultural
empreendida pelos comunistas coreanos constitui um processo de natureza distinta.
Conclusão
Após esse breve exame acerca das três revoluções empreendidas pelo governo da
RPDC, é possível concluir que, longe de serem processos isolados, cada uma dessas
transformações atua de forma complementar, revolucionando os três setores de
forma simultânea e complementar uns aos outros.
No inverno de 1952 para 1953, várias dessas autoridades locais, foram convocadas
a Pequim. De acordo com Spence [1990, p. 524, traduções minhas], “[...] havia
problemas perenes embutidos na República Popular. Tensões de autoridades
regionais e centrais, de subversão da burocracia e de ambições individuais e bases
de poder”. Gao Gang e Rao Shushi atacaram Zhou e Liu por suas posturas
cautelosas. Segundo Xiao-Planes [2010, p. 124], Gao viajou pelo interior da China
em busca de aliados. Então, Mao, que divergira de Zhou e Liu em relação à
economia, reconsiderou sua posição e interveio em prol dos dois. Gao e Rao foram
presos, acusados de tentarem tomar o poder.
No que diz respeito à economia, porém, Zhou Enlai e Liu Shaoqi voltariam a
manifestar discordâncias com Mao, por exemplo, em abril de 1956. Segundo
Teiwes [2001, p. 13], eles argumentaram contra os planos de aumentar os fundos
de construção de capital. Apoiado inicialmente por apenas um membro do
Politburo, Mao insistiu até seu ponto de vista ser aceito. Zhou, porém, não se deu
por convencido, aproximou-se de Mao e reabriu o debate. Apesar de contrariado,
Mao cedeu. “Isso mostra que, enquanto Mao foi capaz de impor sua vontade sobre
o coletivo, ele também foi persuadível [...]”, diz Teiwes [Ibid., p. 12, traduções
minhas].
Outras questões cruciais como a coletivização das terras continuariam como foco
de tensões. Em 1957, a produção agrícola foi decepcionante, o volume de grãos
disponível aos consumidores urbanos responsáveis pelo crescimento industrial era
insatisfatório. Contudo, era difícil extrair mais do campesinato sem usar métodos
de coerção. Decisão delicada considerando-se que 70% do partido tinha origem
camponesa. Zhou Enlai e Chen Yun defendiam que os camponeses só produziriam
mais se recebessem incentivos materiais e oportunidades de comprar bens de
consumo [Ibid., p. 574]. Mao ignorou ambos, apelando para incentivos morais e
campanhas de mobilização de massa sob lideranças locais.
Em julho de 1958 começou uma campanha para extinguir os lotes privados. Cerca
de 740 mil cooperativas foram fundidas em 26 mil “comunas populares”. Os autores
dos relatórios de produção, porém, não registravam dados verdadeiros, inferiores
às cotas estipuladas pelo partido, com medo de serem rotulados como direitistas ou
derrotistas. Em dezembro, a maioria dos líderes do PCCh já se recusava a afirmar,
ao contrário de Mao, que as comunas marcavam a transição para o comunismo. No
início de 1959 algumas já retornavam ao formato de cooperativas e em muitas
regiões lotes privados voltaram a ser alocados a famílias.
Mao, então, deixou o comando do Estado. Liu Shaoqi assumiu seu lugar. Mao
conservou outras posições, como de presidente do PCCh e da Comissão de
Julgamentos Militares, mas é significativo que tenha abdicado de um cargo de tal
natureza.
Em julho de 1959, numa conferência, o marechal Peng Dehuai escreveu uma carta
privada, com críticas. Mao tomou-a como um ataque à sua liderança, reagiu
vazando a carta e lançando uma denúncia contra Dehuai, que acabou removido do
posto de Ministro da Defesa. Mao ameaçou ir ao interior da China novamente e
liderar os camponeses na derrubada do Estado, caso se insistisse em enfatizar o lado
negativo das políticas adotadas. Completou dizendo que se o ELP não o seguisse,
organizaria outro Exército de Libertação.
Havia tensão entre PCCh e ELP. “[Os militares] começaram a adquirir novas
habilidades técnicas que os quadros comunistas ainda não haviam dominado [...].
Não estava claro que lado iria predominar”, frisa Spence [Ibid., p. 563, tradução
minha]. Mao chegou a declarar: “Nosso princípio é que o Partido comanda a arma
e a arma jamais poderá comandar o Partido” [Ibid., p. 563]. Sob essa perspectiva, a
vitória sobre Dehuai foi significativa. Ela encorajou Mao a renovar sua confiança
nas comunas. O investimento industrial cresceu. Mas o montante de grãos caiu. O
resultado foi uma fome em escala gigantesca que matou, estima-se, 20 milhões de
pessoas ou mais, entre 1959 e 1962.
Não é claro o quanto seu recuo representou de perda efetiva de poder. Teiwes [2001,
pp. 13-14] argumenta que Mao continuou com a última palavra. Wang [1996, p. 4],
ao contrário, sugere que sua perda de poder não foi apenas aparente: “Deng
Xiaoping não consultou mais Mao a partir de 1959. Mesmo quando tomou decisões
importantes, [Deng] raramente informou [Mao]”. Para Spence [1990, p. 596], a
crença no grande líder revolucionário já não era a mesma: “As opiniões divididas
que surgiram na liderança da República [...] deixaram Mao se sentindo ameaçado.
Liu Shaoqi, Deng Xiaoping, Chen Yun e Zhou Enlai, todos revolucionários
veteranos, pareciam cada vez menos compartilhar sua visão de governança através
da luta contínua. Na verdade, eles mal pareciam precisar de sua presença ou de sua
inspiração”.
De acordo com Lensing [2016, p. 60], Mao foi atacado pela alta cúpula do partido
em 1962 e 1963, quando o Comitê Central já incorporara Deng Xiaoping e o
ministro da defesa Lin Biao. Os ataques mais duros partiram de Liu Shaoqi. “Liu
criticou as políticas do Grande Salto numa conferência com 7 mil partidários, o que,
em essência, era criticar Mao. Mais importante, Mao fez uma autocrítica na
conferência, [...] o que foi um choque para muitos. [...] O discurso de Liu pegou
[Mao] desprevenido e foi apoiado pela maioria dos presentes. [...] A luta interna do
partido escalou rapidamente” [Ibid., pp. 60-61, tradução minha].
Em dezembro de 1964, Xiaoping convocou uma conferência do Comitê Central
para discutir questões da Campanha de Educação Socialista e sugeriu que Mao não
tomasse parte no encontro [WANG, 1996, p. 4]. Mao, no entanto, conduziu
ativamente a discussão. Na ocasião, porém, Liu Shaoqi interrompeu Mao quando
esse começava sua fala. A interrupção enraiveceu Mao. A retomada das rédeas do
partido por Mao viria com o apoio de outras forças: Exército, intelectuais radicais
e massas populares.
A luta por poder no PCCh é uma das explicações da Revolução Cultural [1966-
1976]. Seu estopim se deu no caso de Wu Han, escritor símbolo da “ideologia
burguesa reacionária”, nas palavras de Mao ditas em setembro de 1965. Wang
[1996, p. 5] destaca que Wu Han era também vice-prefeito de Pequim. O ataque,
portanto, tinha dupla motivação, atingindo intelectuais e rivais políticos. Segundo
Lensing [2016, p. 62], Liu, Deng, Peng Zhen e outros se recusaram a criticar Wu
Han. “Isso provou que Mao não tinha controle completo sobre o Partido e precisava
manobrar cuidadosamente para se livrar dos oponentes. Além do mais, nessa
conferência, Peng Zhen fez observações desafiadoras [...]. Disse que ‘todos eram
iguais diante da verdade e mesmo Mao poderia ser criticado’” [LENSING, 2016, p.
62, traduções minhas].
Nesse contexto, revelaram-se mais uma vez limites do poder de Mao em relação à
imprensa. Ele se irritou com a fraca repercussão de suas críticas a Wu Han nos
jornais, os quais eram controlados por seus oponentes de partido [SPENCE, 1996,
p. 601].
Peng Zhen foi acusado de conspirar contra Mao. Wu Han e família foram atacados.
Os protestos se alastraram. Estudantes se filiaram ao PCCh e foram declarados
Guarda Vermelha. Mao inflamou a militância, pediu vigilância contra os que
queriam subverter a revolução, apontando publicamente como um erro a tentativa
de Liu Shaoqi de frear os protestos [SPENCE, 1990, p. 605]. Jovens destruíam
edifícios, templos e objetos de arte. Atacavam professores, diretores, autoridades e
seus próprios pais. Em agosto, vieram os expurgos no alto escalão: Liu Shaoqi
morreria na prisão em 1969; Deng Xiaoping seria redimido em 1973.
A esposa de Mao, Jiang Qing, revelou-se uma das mais radicais, a ponto de
contrariar o marido. Em 1967, ela disse que o título de chefe deveria ser esmagado
[Ibid., p. 609]. Mao respondeu que chefes eram necessários. Buscou-se, enfim, uma
acomodação com uma nova estrutura política baseada em comitês compostos por
militares, massas e “quadros corretos” do PCCh. Jiang Qing, então, passou a
denunciar tendências de “extrema esquerda” e clamar o Exército chefiado por Lin
Biao como “campeão da ditadura do proletariado”. “[...] Aqueles que
convulsionaram o próprio partido buscavam agora assumir o comando e forçar uma
volta à obediência de estudantes e trabalhadores”, resume Spence [Ibid., p. 609].
Em setembro de 1970 Lin Biao pediu a Mao que fosse nomeado Presidente da
República, mas Mao negou: “Foi o primeiro sinal de que Mao se preocupava com
o enorme poder adquirido por Lin” [WITKER BARRA, 2018, p. 81]. Biao morreria
em setembro de 1971 num acidente aéreo, possivelmente abatido enquanto tentava
deixar o país. O governo logo divulgaria a versão de que ele planejava um atentado
contra Mao. Segundo Spence, Biao fora “um homem que ajudou a reconstruir a
autoestima de Mao”, exaltando sua imagem pública como “grande líder”, “Grande
Timoneiro”. Fora um dos artífices da Revolução Cultural e, no fim, deu respaldo
militar para extirpá-la de seus aspectos populares mais inconvenientes. Acabou
acusado como traidor, algo que chocou a população, que o via como herói.
Além de potencial rival, Biao teria caído em desgraça pela sua oposição à
aproximação diplomática com os Estados Unidos [EUA] promovida por Mao e
Zhou Enlai em meio aos conflitos com a URSS [KISSINGER, 2012, p. 175]. O
movimento em direção aos EUA, aliás, continuou como ponto de atrito após a morte
Biao. Duas facções se formaram como possíveis herdeiras de Mao. De um lado, a
Gangue dos Quatro, incluindo Jiang Qing, era avessa à aproximação com os EUA
e dominou parte da imprensa, universidades e esfera cultural, difamando a outra
facção, mais pragmática, composta por Zhou Enlai e Deng Xiaoping, que relutavam
à ideia de “revolução permanente”.
Zhou tivera peso em política externa desde os anos 1950, tendo papel central na
construção de uma imagem respeitável da China na comunidade internacional e
ajudando a forjar o bloco dos países não-alinhados. “O arquiteto dessa nova política
externa [nos anos 1950] foi Zhou Enlai [...]”, afirma Spence [1990, p. 551]. Ele
acabou acusado de “direitismo” por Nancy Tang, intérprete que era próxima de
Jiang Qing, e por Wang Hairong, sobrinha-neta de Mao. “É concebível que Zhou
tenha começado a ver a relação americana como um fato permanente, ao passo que
Mao a tratasse como tática passageira”, sugere Kissinger [2012, p. 195].
Já Deng Xiaoping sobreviveu para fazer história. Seu perdão, em 1973, fora alvo
das objeções da Gangue dos Quatro. Quando Mao morreu, em 1976, quem herdou
de imediato suas posições como presidente do PCCh e da Comissão Militar Central
foi Hua Guofeng, alguém que não tinha apoio político de nenhuma das facções em
conflito, mas logo optou por se aliar aos pragmáticos. Guofeng e Xiaoping tendiam
a concordar sobre política externa, mas a divergir sobre economia. O primeiro
defendia “métodos soviéticos” e investimento na indústria pesada. O segundo,
produção de bens de consumo, menos intervenção estatal e governo mais
descentralizado. “Deng prevaleceu porque havia ao longo das décadas construído
ligações dentro do [Partido] e especialmente no [Exército], e porque operou com
destreza política muito maior”, diz Kissinger, [2012, pp. 212-13].
Por mais que a influência, liderança e ascendência de Mao Tsé-tung sobre o PCCh
e o Estado tenham sido enormes, sua voz, portanto, esteve longe de ser única. Essa
constatação segue importante para entender um país que desde o fim dos anos 1970
ousou adotar uma política econômica peculiar, de um “socialismo com
características chinesas”, justamente sob liderança das vozes dissonantes, o ora
expurgado, ora redimido Deng Xiaoping. O país que hoje ressurge como potência
é provavelmente bastante mais complexo do que sugerem os relatos comuns,
estereotipados, herdeiros de um maoísmo simplista. De alguma forma, o presente
da China é, ainda, um legado das complexidades do “tempo de Mao” – que também
é o tempo de Gao, Rao, Liu, Zhou, Deng e outros – sem cujo reconhecimento será
difícil entendê-la.
Referências
Bruno Marques é graduando em História pela Universidade Federal do Espírito
Santo [Ufes].
Depois de alguns meses em Tang, Jigme mudou-se para o vale de Chhume, onde
conheceu uma pessoa que tinha aparecido em seus sonhos. O Buli Lama abençoou
Jigme Namgyal, deu-lhe abrigo e organizou sua viagem para Trongsa. Lá, o lama
providenciou para que ele fosse apresentado ao Trongsa Poelnop como um
assistente. Nos primeiros anos em Trongsa, Jigme Namgyal foi aceito no serviço
da fortaleza de Trongsa Dzong [construção típica dos reinos budistas do Himalaia,
particularmente do Butão, que tem as funções simultâneas de centro religioso,
militar, burocrático e administrativo de determinada região], e nomeado no nível
mais baixo de servos como um Tozep [Nível mais baixo dos que serviam no
Trongsa Dzong].
Os primeiros anos de sua vida no dzong devem ter contrastado totalmente com o de
sua infância na família aristocrática Chhoeje. Seus deveres diários consistiam em
trabalho duro, como buscar água e lenha, fazer recados, varrer pátios e assim por
diante. Como um Tozep, ele teria direito a comida da cozinha comum do dzong
junto com centenas de outros de categoria semelhante. Mas as diárias servidas ali
estariam longe das expectativas de um jovem aristocrata. Embora o governante do
dzong [poenlop] tenha reconhecido os antecedentes familiares de Jigme Namgyal,
que os tornava parentes distantes, ele não poderia ter comprometido a disciplina do
mosteiro ao mostrar favores especiais ou conceder privilégio.
Em 1843, enquanto Jigme Namgyal ainda era um mero tozep, Ugyen Phuntsho se
aposentou e foi sucedido por Tshokye Dorji - outra família com conexões com a
linhagem de Pema Lingpa [[1450-1521] foi uma figura santa butanesa e siddha da
escola Nyingma do budismo tibetano.]. Diz-se que Tshokye havia aprendido
anteriormente numa profecia religiosa que sua associação com um homem chamado
“Jigme” das regiões leste seria benéfica para todo o país. Talvez tenha sido por esse
motivo, que Jigme Namgyal ficou sob a atenção pessoal e próxima do poenlop e
começou sua rápida ascensão na hierarquia. No primeiro ano do governo do novo
poenlop, Jigme Namgyal foi promovido como um zinggup [atendente]. Logo após
três anos, ocupou os cargos conjuntos de zimmang [camareiro júnior] e darpoen
[chefe dos atendentes] e foi depois promovido ao prestigioso posto de trongsa
tshongpoen, encarregado da província para os negócios com as regiões tibetanas
[Phuntsho, 2013, p. 445]. Com esse influente cargo, Jigme Namgyal viajou
extensivamente pelo Tibete, onde suas negociações com as autoridades tibetanas
ampliaram suas dimensões ao seu treinamento e experiência em assuntos judiciais.
Foi também durante esse período que ele conheceu sua futura esposa, Pema Choeki,
a filha mais nova do ex-poenlop, que estava no Mosteiro Lhalung do Tibete com
seu irmão, sendo ele considerado uma encarnação [ku tulku] de Pema Lingpa.
Um forte trongsa poenlop, como visto nas guerras civis no início do século 19,
sempre foi uma ameaça aos centros de poder no oeste do Butão. É, pois,
compreensível que as autoridades centrais preferissem que tais ameaças fossem
logo suprimidas. No entanto, Jigme Namgyal, um observador atento das intrigas
políticas prevalecentes no oeste do Butão, facilmente percebeu a conspiração e
permaneceu alerta e vigilante. De acordo com uma tradição, ele nunca tirou sua
espada nem dormiu numa cama durante toda a estadia do governador em Punakha.
No momento crucial em que os assassinos deveriam atacar, Jigme teria entrado em
cena e efetuado um resgate dramático do abalado poenlop que já estava cercado e
indefeso. Por essa demonstração de coragem e lealdade, Jigme Namgyal foi
imediatamente recompensado com o posto adicional de lhuntse dzongpoen
[governador do dzong]. Quando eles voltaram para sua sede de governo, o grato
poenlop prometeu a Jigme o cargo de trongsa poenlop quando chegasse a hora
adequada.
Satisfeito com o sucesso de suas recentes campanhas, Jigme Namgyal se viu mais
uma vez liderando as tropas de Trongsa, desta vez contra o governo em Punakha.
Quando ele chegou na região, foi descoberto que o Desi havia mudado sua base
para Norbugang. Jigme evitou atacar o Punakha Dzon [“Palácio da Eterna
Felicidade”, nome dado a uma das fortalezas e mosteiros mais importantes do
Butão, construída no século 17, e serviu de sede administrativa central do país até
1955], mas, numa escaramuça que ocorreu perto de Norbugang, ele matou
Mikthoem, famoso e temido guerreiro da região. Depois disso Jigme Namgyal e
suas tropas recuaram para Trongsa, deixando o 40º Desi ainda no trono. O reinado
deste, contudo, durou pouco pois foi vítima de uma conspiração de assassinato em
1852. A fama de Jingme Nmagyal a partir daquele momento espalhou-se pelas
regiões butanesas. E mais significativamente, Jingme acumulou experiência em
campo e ampliou seus contatos nas regiões ocidentais butanesas e tibetanas.
Em 1853, Jingme Namgyal conseguiu enfim ser nomeado com o influente cargo de
trongsa poenlop. Com essa nova posição, Jingme tinha sob seu poder amplas
regiões a ser comandada para dirigir-se contra os rebeldes no oeste butanês. Ano
seguinte, Jingme interveio diplomaticamente numa disputa em Thimphu
envolvendo as disputas pelo trono do Druk Desi. Eventualmente, haveria de
ascender o 41º Druk Desi, Jamtul Jamyang Tenzin. Isso foi um grande trunfo para
Jingme, ampliando sua influência política. Em agradecimento, o novo Druk Desi
concedeu mais autonomia administrativa nas regiões controladas por Jingme, e a de
nomear governadores de dzongs nas regiões leste da fortaleza de Trongsa Dzong.
Efetivamente, essas medidas tornaram o trongsa poenlop hegemônico nas regiões
centrais e leste do Butão em meados do século 19.
Quando o 41º Druk Desi morreu em 1857, a velha rixa entre os governantes de
Thimphu e Wangdue Phodrang ressurgiu e, mais uma vez, exigiu o envolvimento
do trongsa poenlop, Jngme Namgyal. Como desafio, o governante de Wangdue
Phodrang resolveu tomar o controle de Punakha. Diante disso, Jingme aliou-se ao
governante de Thimphu, nomeando-o como o novo Druk Desi, apenas para ser
morto no mesmo ano por homens ligados ao seu governante rival.
Embora o resultado tenha sido um impasse no final das contas, Jigme Namgyal
emergiu fortalecido, tendo se estabelecido como o indiscutível trongsa poenlop.
Com o acordo de paz com Jakar, Jigme Namgyal voltou sua atenção mais uma vez
para as regiões no oeste. Ansioso por reafirmar sua presença, Jigme Namgyal
liderou as forças combinadas de Trongsa e Jakar contra os rebeldes do Druk Desi,
sofrendo esses em 1863, uma derrota esmagadora em Lungtenphu, em Thimphu.
Como havia se aliado anteriormente a Jigme e a Jakar, o governante de Thimphu
[Thimphu Dzongpoen], foi nomeado e instalado como o novo Druk Desi e um
parente próximo de Jigme Namgyal tornou-se o novo Thimphu Dzongpoen. Jingme
como o Trongsa Poenlop em 1864, ele também ganhou controle total sobre a
nomeação não apenas das fortalezas-mosteiros do Butão ocidental, mas também do
Druk Desi também. Com efeito, Jigme Namgyal tornou a sua posição, de Trongsa
Poenlop, como a mais importante efetivamente do país.
Jigme Namgyal estava ciente das consequências de sua ação. Ele também sabia que
os britânicos tinham planos de longo prazo para o Butão e que, mais cedo ou mais
tarde, haveria uma guerra fatídica. Mas Jingme presumiu que os britânicos, tendo
sofrido uma revolta por nos eventos das revoltas indianas em 1857, não se
aventurariam imediatamente em novas conquistas estrangeiras. Assim, depois de
mais negociações fracassadas, Ashley Eden voltou a relatar o fracasso de seu
objetivo em 12 de novembro de 1864, e assim os britânicos declararam guerra ao
Butão, anexando por proclamação toda a Bengala e Assam, regiões adjacentes ao
Butão. A guerra que se seguiu refletiu a superioridade bélica dos britânicos. Em 11
de novembro de 1865, foi assinado o Tratado de Sinchula, rendendo todos os duars
– as regiões fluviais férteis na região nordeste da Índia no sopé da Cordilheira do
Himalaia - de Assam e Bengala e concordando com o livre comércio com a Índia
britânica em troca de um subsídio anual de 50 mil rúpias [Aris, 1980, pp. 264-5].
Para Jigme Namgyal, a derrota na guerra não significou desgraça. Na verdade, ele
saiu ainda mais forte disso. Ele se levantou contra as demandas feitas pela missão
britânica e inspirou as facções rivais no país a deixarem de lado suas querelas e se
unirem contra um inimigo externo comum. Jingme, nesse sentido, tornou-se no
principal estrategista militar que coordenou as contraofensivas que surpreenderam
os britânicos. A mais famosa de suas vitórias ocorreu em Deothang em 27 de janeiro
de 1865. No primeiro confronto, o lado butanês perdeu Jakar e a maioria de suas
tropas. Jigme Namgyal retirou-se e retomou o ataque com maior força e derrotou a
coluna britânica. Ele infligiu pesadas baixas ao inimigo, fez centenas de prisioneiros
e capturou dois canhões britânicos. Ataques semelhantes, todos coordenados
centralmente por Jigme Namgyal, foram lançados ao longo da fronteira e demorou
um mês até que os britânicos pudessem se recuperar. O Tratado de Sinchula
assinado pelo governo butanês foi condicionado ao retorno seguro dos prisioneiros
britânicos e de dois canhões. Jigme Namgyal, entretanto, recusou-se a aceitar esses
termos [ Phuntshop, 2013, pp. 459-467].
Tendo feito isso, Jigme Namgyal cedeu quando os britânicos começaram a marchar
em direção a Trongsa, ameaçando anexar todo o país. Ele encontrou a coluna
britânica que avançava perto de Yongla Goenpa e devolveu todos os prisioneiros e
os dois canhões. Os britânicos se retiraram e a paz entre o Butão e os britânicos
prevaleceu até 1947, quando a Índia se tornou independente. Jigme Namgyal
ascendeu ao trono como o novo Druk Desi com a conclusão da chamada Guerra de
Duar, após alguns anos, em 1870.
Haveria ainda um segundo período como o Druk Desi na vida de Jingme Namgyal.
Isso ocorreu devido a ressurgência de rivalidades nas revoltas em 1877, sob o novo
governante [poenlop] de Paro. Jingme ao final soube reprimir e impor a autoridade
na região, conquistando o controle do dzong. Por volta da mesma época, outra
rebelião irrompeu no leste butanês, em que um parente do poenlop de Paro se
articulou para entronizar um rival Desi, o jovem Choglye Yeshe Nguedrup. Isso foi
inaceitável aos olhos de Jingme, pois contrariava a tradição butanesa de consulta
aos governantes, regentes e monges sênior das terras butanesas. As revoltas foram
em momento derradeiro derrotadas após a batalha em Lobesa. O poenlop de Paro
conseguiu fugir para a Índia. Logo depois, Jingme reconquistou o dzong de
Punakha das mãos de rebeldes remanescentes em 1878. Esse foi o último
empreendimento militar de Jingme Namgyal.
Conclusão
Jigme Namgyal foi certamente a maior figura nacional a surgir no Butão depois de
Zhabdrung Ngawang Namgyal. A contribuição mais importante de Desi Jigme
Namgyal foi a instauração da paz, através de uma redução das rivalidades locais
entre as lideranças locais, unificando gradualmente o Estado ao longo de três
décadas, dos anos de 1850 a 1870. A redução dos conflitos internos, especialmente
depois de 1878, permitiu lançar os alicerces da monarquia que, por sua vez, trouxe
uma era de ordem consolidada no Butão. Mais do que qualquer outro fator, foi a
liderança de Jigme Namgyal na guerra e a consolidação da autoridade central e do
poder político em suas próprias mãos que lançou as bases de uma nação butanesa
unida.
Jigme Namgyel deixou não somente sua marca na política, mas também nas artes e
arquitetura. Restaurou o dzong de Tongsa, e construiu nele o templo Sangwa
Duepa. Fundou o Palácio Wangducholing, no vale de Choekhor, em 1856. Esse
palácio serviu como residência principal da Família Real desde a época de Jigme
Namgyal até à do Príncipe Herdeiro Jigme Dorji Wangchuck [r. 1929-1972]. Foi o
epicentro político do país durante mais de um século, desde finais da década de
1850 até ao início da década de 1950.
Referências
Emiliano Unzer Macedo é professor associado de História da Ásia do departamento
de História da Ufes.
Mail: prof_emil@hotmail.com
Instagram: https://www.instagram.com/historiadaasia/
Canal no Youtube: www.youtube.com/emilunzer
Nesse panorama, como o último domínio europeu na Ásia, Macau chama a atenção
por sua longevidade no que tange à duração dos impérios ultramarinos modernos.
Do direito à permanência em 1557 à sua devolução para a República Popular da
China em 1999, a cidade foi o último reduto colonial do Império Português, que
fora se reduzindo gradualmente apesar das tentativas de reestabelecer controle por
meio de leis, alvarás e cartas régias.
Grossi salienta que essa concepção iluminista de mundo é tão influente que mesmo
acadêmicos conscientes são capazes de eventualmente contribuir para a
perpetuação do que ele chama de “mitos jurídicos”. O esforço para a desconstrução
dessa mitologia, assim sendo, é constante, já que se trata de um trabalho teórico e
metodológico excepcionalmente complexo, cujas proposições demandam um novo
tipo de abordagem não apenas com as fontes primárias como também com a própria
literatura que se produziu sobre o assunto ao longo de décadas de discussão.
No que se refere à história do direito no Antigo Regime, a aplicação das leis tal qual
a erudição propunha nem sempre era uma realidade; muitas vezes a justiça era feita
com base nas tradições e nos princípios locais. As autoridades que estavam
encarregadas de aplicar e interpretar as leis muitas vezes sequer tinham pleno
domínio da leitura e da escrita, o que abria margem a execuções bastante
particulares e até mesmo conflituosas entre si.
Em seus primeiros anos, o povoamento de Macau não foi reconhecido nem pelo
governo imperial chinês e tampouco pelo Vice-rei do Estado da Índia. Teria sido
apenas no ano de 1586 que Dom Duarte de Meneses, 14.º vice-rei da Índia, emitira
um decreto que dava o direito à Câmara Municipal de escolher seus oficiais
trienalmente. Além disso, naquele mesmo ano um alvará viria a confirmar a posição
de Macau como uma cidade, muito em função dos esforços do bispo Dom Leonardo
de Sá, que em 1583 ou em 1585 teria organizado a formação de um conselho
municipal - o Senado da Câmara - e a eleição de cargos como vereadores, juízes e
magistrados [BOXER, 1968, p. 8]. A partir desse momento, a cidade ficaria
conhecida como “Cidade do Nome de Deos na China”; embora o próprio Rei ainda
escrevesse nas suas cartas sobre a “povoação de Macao” em 1587.
Mas, durante esse período, o Rei não resistiu somente às novas denominações: ele
também rejeitou a ideia de atribuir o governo de Macau a um capitão independente.
A Coroa continuamente contrariou as petições dos habitantes da cidade a elevar
seus privilégios aos níveis daqueles exercidos por Porto, com decretos reais de
1595, 1596 e 1709 que apenas ratificaram as concessões feitas pelo Vice-rei em
1586 [BOXER, 1968, p. 8-9]. No entanto, de forma alguma isso significou que o
âmbito jurídico se manteve inerte ao longo dos séculos: um decreto de 1587 separou
as atribuições dos ouvidores e dos capitães-mores, inclusive proibindo estes de
exercer demasiado controle sobre aqueles. Ele também ordenava que a posição do
Capitão-mor fosse ocupada pelo Ouvidor em conjunto com um Capitão eleito pelos
cidadãos nos casos em que o Capitão-mor deixasse Macau antes da chegada de seu
sucessor.
A organização jurídica da cidade de Macau dessa época não era muito diferente
daquela encontrada em outras cidades importantes do Império Português, a exemplo
de Malaca, de Goa e de Cochim. Ainda assim, os cidadãos macaenses contavam
com uma série de particularidades que os diferenciavam daqueles que viviam nos
centros urbanos citados anteriormente. Um vereador de Goa, por exemplo,
dificilmente iria contrariar os desejos e as ordens do Vice-rei, do Governador ou
ainda das autoridades religiosas. Já em Macau, a atuação do Senado costumava
limitar as tendências despóticas das lideranças locais, e a ausência do Tribunal da
Santa Inquisição contribuía ainda mais para o estabelecimento de uma ordem
relativamente democrática [BOXER, 1968, p. 9] - pelo menos até o estabelecimento
da Monarquia Constitucional.
O conjunto de leis chinesas era muito diferente daquele praticado pelos reinos
europeus, incorporando elementos do Legalismo e do Confucionismo em sua
estrutura. Quando os portugueses chegaram à costa chinesa, os Ming eram
responsáveis pela administração do império, tendo ascendido ao poder em 1368
depois de derrotar a dinastia Yuan, fundada por mongóis que haviam conquistado
o Império do Meio. Nesse contexto, foi promulgada a primeira versão do Grande
Código Ming, que compilava os princípios legais aos moldes dos desejos do
imperador Zhu Yuanzhang. O Grande Código foi fundamental para criar as
condições do estabelecimento de uma hierarquia entre oficiais e administradores do
governo e para dar legitimidade política aos Ming, já que evocava a lei como
instrumento de condução da vontade celestial [JIANG, 2005, p. 41].
Apesar disso, tratou-se de uma vitória pífia, já que Portugal não foi capaz de se
lançar como concorrente à altura das potências ocidentais. Quando em 1864 os
portugueses foram mais uma vez a Pequim para ratificar o tratado, os chineses
retomaram discussões sobre pontos estratégicos e fundamentais para Portugal,
evidenciando que os lados não estavam nem mesmo perto de um consenso em
relação aos impasses envolvendo Macau [SERRÃO, 1997, p. 731]. Foi apenas em
1888 que a resolução chegou a um ponto mais definitivo, e, ainda assim, os
portugueses viram-se obrigados a retroceder, retomando o controle alfandegário da
região aos chineses. Outras questões como os limites geográficos do território
permaneceram sem resolução, já que uma nova reunião nunca chegou a se
concretizar. Do ponto de vista lusitano, pelo menos, garantiu-se uma posição de
igualdade em relação às nações que estavam estabelecendo relações com a China
naquele período.
Considerações Finais
Importantes autores destacaram a natureza heterogênea do direito no Império
Português no campo teórico e metodológico da pesquisa histórica. Empiricamente,
o caso de Macau corrobora as colocações levantadas pelos estudiosos em questão:
existindo às margens de um império fragmentado e desuniforme, a cidade
permaneceu por muito tempo desconexa, usufruindo de certo grau de independência
que caracterizou suas instituições administrativas.
Isso, de forma alguma, quer dizer que não houve conflitos ou tentativas de subverter
a ordem estabelecida. A existência de mais de uma forma de direito em um único
território abria margem para a eclosão de confrontos, e, principalmente no século
XIX, Portugal tentou estabelecer controle mais direto sobre Macau, com graus
questionáveis de sucesso. Nesse sentido, atenta-se às disputas pela soberania sobre
a cidade, que marcaram boa parte de sua história.
Referência
Marcus Dorneles é mestrando em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Deste modo, o objetivo central dessa pesquisa foi compreender como a política
externa de Park Geun-hye se desenvolveu em relação ao Japão, à República Popular
Democrática da Coreia e à República Popular da China presentes na Ásia Oriental,
depreendendo, a título de exemplos, aspectos históricos, geopolíticos, econômicos
e de segurança. Para tanto, a metodologia aplicada foi baseada em uma pesquisa
bibliográfica e documental, composta por artigos, livros e documentos oficiais, em
consonância com a utilização do método hipotético dedutivo.
Vale ressaltar que, quando o CIK ainda não havia sido fechado, a Coreia do Sul e a
China almejavam aumentar o comércio com a Coreia do Norte através do Acordo
de Livre Comércio firmado em 2015 [SNYDER; BYUN, 2015]. Diante disso, além
dos interesses da Trustpolitik e da parceria sino-norte-coreana, pôde-se visualizar
um interesse geoeconômico em relação à Coreia do Norte, que, conforme Geiger
[2019], é um território em que projetos de integração regional possuem importância
econômica, política e securitária. Portanto, era de interesse tanto de Park, quanto de
Xi, que o governo de Kim se mantivesse estável e que as relações diplomáticas e
econômicas progredissem.
Considerações Finais
Diante do exposto, foi possível constatar que os pilares do “Paradoxo Asiático”
contribuíram para diferentes formas de inserção da política externa sul-coreana de
Park Geun-hye na Ásia Oriental, modificando-se, porém, conforme as
transformações nas conjunturas internacional e regional. Nessa perspectiva,
identificou-se que, nos primeiros anos do governo de Park, a relação entre Seul e
Tóquio se iniciou com distanciamentos ocasionados pelo governo de Lee Myung-
bak, pelas características conservadoras, ideológicas e militares de Shinzō Abe e,
também, pelo princípio sul-coreano de que o desenvolvimento bilateral nipô-sul-
coreano aconteceria somente se o passado colonial fosse reconhecido conforme a
interpretação histórica da Coreia do Sul. No entanto, a partir da pressão
estadunidense exercida por Barack Obama em seus aliados asiáticos, as atuações
diplomáticas de Park e de Abe foram modificadas, possibilitando, a partir de 2015,
momentos de cooperação bilaterais e trilaterais dentro do escopo da Ásia Oriental
acompanhados pela resolução efêmera e contestada do Acordo das Mulheres de
Conforto. Ainda assim, o passado colonial, apesar da tentativa bilateral, continuou
como um assunto considerado divergente entre Seul e Tóquio.
No que concerne à Coreia do Norte, percebeu-se que, diante de desentendimentos
intercoreanos causados, principalmente, pela militarização norte-coreana somada à
desarticulação sul-coreana em seguir suas propostas iniciais voltadas à integração
bilateral, a Trustpolitk de Park não foi capaz de promover a solidificação da
confiança necessária para o progresso da relação Seul-Pyongyang. Como reflexo,
de uma política que visava a unificação, a atuação militar norte-coreana e as
decisões de Park, tais como o fechamento do CIK, contribuíram para a emersão de
distanciamentos intercoreanos, em contrapartida, portanto, do segundo pilar do
“Paradoxo Asiático”. Além disso, notou-se que a política externa de Park aplicada
à China governada por Xi Jinping visou expandir as possibilidades de ação da
Coreia do Sul no tocante às potências regionais e à Coreia do Norte. Por
conseguinte, desenvolveram-se aproximações econômicas, securitárias e
diplomáticas entre Seul e Pequim que eram interessantes para a nação sul-coreana,
tendo em vista a sua aproximação com a potência econômica e militar chinesa em
uma espécie de balanceamento estratégico que, com algumas exceções, tais como
o processo de assinatura do THAAD de 2014 a 2016, não causavam intensos
momentos de pressões chinesas e estadunidenses síncronas em virtude de eventuais
posicionamentos da Coreia do Sul. Outrossim, a China era uma importante parceira
sul-coreana que proporcionava diferentes possibilidades de abordagens a serem
aplicadas na integração intercoreana e que poderiam promover maior paz regional.
Por último, então, constatou-se que o terceiro ponto do “Paradoxo Asiático” se
desenvolveu conforme o desejado, perante a maior capacidade regional da ação sul-
coreana em atuar seguindo seus interesses nacionais em sua relação com a China.
Referências
Maurício Luiz Borges Ramos Dias é mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Relações Internacionais San Tiago Dantas [UNESP – UNICAMP – PUC/SP] e
bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa
[UNIPAMPA]. Além disso, é bolsista CAPES. E-mail:
mauriciolbrdias@gmail.com.
Levando em consideração o impacto que tais mudanças nos direitos das mulheres
provocaram na vida social, econômica e política do país, nota-se a importância
em situar a mulher sul-coreana diante das formas de violência de gênero que lhes
são infligidas. Isto é, há de se notar que tais avanços parecem realçar as relações
de poder que giram em torno da ideia de maternidade e do exercício da mulher
na função de mãe e esposa no seio familiar. A instituição familiar e as dimensões
que esta alcançou para o condicionamento da situação social da mulher na Coreia
do Sul carrega interessantes reflexões, feitas, inclusive, no âmbito jurídico e
jurisprudencial no caminho de se ponderar sobre a consolidação de um
movimento feminino e feminista mais acentuado no país.
Transformações da maternidade
Criou-se, segundo determinavam os padrões coreanos permeados pela ideologia
Confucionista, o ideal de ‘boa esposa, mãe sábia’, ou 현모양처 [hyeonmo
yangcho], que passou a consolidar-se como um aspecto peculiar da cultura
coreana, com o que se alega o afrouxamento de um patriarcado tão restrito [YOO,
2008, p. 33]. Por tais lentes, e diante das contradições dos ideais Confucionistas,
a mulher, mesmo submissa ao sistema patriarcal, era também uma figura de forte
influência na vida cotidiana familiar. Afirma-se mesmo o fortalecimento dos
meios de empoderamento da mulher conforme desenvolvia-se o empoderamento
da posição de mãe. Curiosamente, ainda hoje, pesquisas de campo que buscaram
investigar a qualidade de vida da população da Coreia do Sul, de acordo com a
ótica de gênero, evidenciaram que a atribuição subjetiva das mulheres a uma vida
de qualidade pôde ser mais fortemente identificada entre a parcela da população
feminina casada [LEE, 1998, p. 44-47].
Referências
Amanda de Morais Silva é graduanda em Direito na Universidade Federal de
Pernambuco, pesquisadora voluntária PIBIC/CNPq e integrante e pesquisadora
associada da Coordenadoria de Estudos da Ásia da UFPE na Curadoria de Coreia
do Sul e Curadoria de Assuntos do Japão [e-mail: amndmorais@gmail.com]
Os movimentos sufragistas
A história da luta de emancipação das mulheres, não pode dar-se ao luxo de colocar-
se numa linha temporal, cuja qual tenha início, meio e fim, pois, embora date-se a
Primeira Onda Feminista, em meados do século XIX e início do século XX, seria
ilusório datar que os Movimentos Sufragistas, dão início a luta das mulheres.
Contudo, esta ilusão ocorre frequentemente, pois, de fato, a luta em prol das
mulheres somente ganhará força no período dos anos 1900, onde as mulheres saem
às ruas clamando pela sua emancipação, como o direito ao voto, ao estudo e ao
trabalho [JILES, 1952, p. 10].
Enquanto mulheres brancas e de classe alta, no século XIX e XX, buscavam em sua
emancipação, o direito ao trabalho assalariado, as mulheres negras, por muito, ainda
mantinham vínculos de escravização como trabalhadoras. As mulheres brancas
também, vale ressaltar, mantinham-se como acessório fundamental do processo de
industrialização e construção do sistema capitalista. Isto é, elas eram essenciais em
seu trabalho doméstico - o qual não obtinham remuneração - para a reposição da
vida trabalhadora e manutenção da conservação da sociedade [DAVIS, 1944, p.
88].
A segunda onda tem características que hoje podemos adjetivar como feminismo
radical [WHITWORTH, 1994, p. 17], onde abarca-se uma teorização radical das
ideias feministas, principalmente de estudo, onde põe-se a mulher além do objeto
de estudo, elucidando a ótica feminina dos acontecimentos históricos. Essa ótica,
irá fornecer novos ramos para os estudos das feministas e a dialética dos mesmos,
também multiplicando as pautas, como a luta pelos direitos reprodutivos.
É possível analisarmos como o oriente e o feminismo na ásia, não foram citados até
o momento neste capítulo. Há a ocorrência dessa exclusão do oriente na grande
maioria do consenso das teorias feministas acadêmicas, principalmente de relações
internacionais, de que o sufragismo asiático não poderia caracterizar-se como
sufragismo, ora tampouco de que houve um sufragismo chinês.
Primeira onda sufragista chinesa [1900 - 1913]
Para compreendermos as ondas sufragistas feministas chinesas, é necessário,
primeiramente, abrir-se mão da metodologia ocidental de compreensão dos
acontecimentos históricos. Isso ocorre porque, enquanto as sufragistas ocidentais
daquele período, não consideravam válidos a maioria dos movimentos em busca de
direitos em prol das mulheres, que estivessem sob a órbita de regimes políticos
diferentes das esmagadoras democracias burguesas liberais que dominavam o
sistema internacional no século XX.
No início dos anos 1900, surge o que seria a Primeira Onda Sufragista Chinesa.
Todavia, é válido ressaltar que, de acordo com Edwards [2010, p. 5], as mulheres
asiáticas não gostavam da palavra ‘feminista’ pois esta, de origem ocidental, as
remetia a um individualismo, que era agressivo à homens e crianças, e logo, à
construção de família. Para o contexto social e cultural ao qual as chinesas
apoiavam-se, a associação ao feminismo ocidental era de rejeição. Sendo assim, as
chinesas, e também as outras mulheres asiáticas, teriam de fundamentar suas
próprias teorias feministas, baseada em suas vivências e que abraçasse sua cultura,
a qual as chinesas, vale lembrar, não sentiam-se oprimidas, e sim, orgulhosas de
sua origem [EDWARDS, 2010, p. 6].
A primeira onda sufragista feminista da China, pode ser datada logo na virada do
século XIX para o XX, tendo como pano de fundo histórico o fim do período
monárquico e as constantes tentativas de abertura econômica, através do uso da
força, da vasta aliança das potências. As Chinesas fariam parte então, ao longo desta
primeira década, da Aliança Revolucionária que buscava o republicanismo, através
de seu líder Sun Yixian. Em 1911, ocorreu a revolução e instauração da primeira
república chinesa. A instauração desta República seria democrática para homens e
mulheres, a partir de seu Estatuto e da posição midiática dos líderes do partido
republicano em favor da conquista dos direitos das mulheres.
Iniciou-se uma longa campanha, a partir do grupo Aliança pelo Sufrágio Feminino,
contrastando com a retaliação ao novo presidente Yuan Shikai que, teria chegado
ao poder através de interferências externas ao ser bem visto pelas potências
ocidentais. Já em 1913, Yuan Shikai inicia um regime autoritário no território
chinês, o que, segundo Edwards [2000, p. 623], traria um período de conturbações
domésticas e fariam as sufragistas chinesas embarcarem em sua Segunda Onda.
Durante o período que se estende desde o fim da I Guerra Mundial até a metade da
década de 20, a China passou por um momento de questionamento e transformação
cultural e social marcada por momentos como o Movimento 4 de Maio. O
movimento feminista ganhou mais visibilidade através de revistas e jornais que
surgiram naquela altura, assim como o espaço que o tema obteve na grande
imprensa e, também, entre os homens.
A partir de 1920, devido a instabilidade política que vinha desde a morte do ex-
presidente Shikai, algumas províncias chinesas passaram por um processo de
consolidação política e criaram novas constituições provinciais. Nesse momento, o
foco do movimento sufragista voltou-se da esfera nacional para o nível provincial.
Já nos primeiros anos da década de 20, quatro províncias do sul da China [Hunan,
Guangdong, Zhejiang e Sichuan] aprovaram constituições que garantiram a
igualdade de gênero nos direitos políticos [EDWARDS, 2004, p. 64].
As ações das sufragistas foram bem sucedidas, quando a nova constituição foi
promulgada em 1946, a mesma, além do direito ao voto às mulheres, dava a garantia
às mesmas de um mínimo de 10% dos assentos em cada nível dos órgãos
representativos do país [EDWARDS, 2000, p. 626]. A constituição, dez anos após
a sua proposta em 1936, finalmente foi promulgada, e entrou em vigor no começo
do ano seguinte, 1947, garantindo assim o direito de voto para todas as mulheres
chinesas. Apesar de 1947 ser o ano em que a constituição chinesa passou a garantir
o direito das mulheres ao voto, existe um debate acerca do ano do sufrágio feminino
na China, se esse seria 1947, ano em que a constituição entra em vigor, ou 1949,
ano em que o Partido Comunista Chinês ascendeu ao poder. Após o final da Guerra
Civil Chinesa entre o Partido Comunista e o Partido Nacionalista, com a vitória do
primeiro, que assume em 1949 o governo da China continental, o Partido
Nacionalista se retirou para a ilha de Taiwan. O PCC, que participou ativamente
na defesa do movimento sufragista e dos direitos das mulheres, definiu 1949 como
o ano do sufrágio feminino chinês [EDWARDS, 2000, p. 627]. O partido replicou
em nível nacional políticas que já vinha pondo em prática em regiões que estavam
sob sua zona de influência no país anteriormente, como a Lei de Matrimônio que
permitia a escolha pela mulher de seu futuro marido, e as inseriu na constituição de
1954.
Considerações finais
Apesar da pequena abordagem acadêmica por pesquisadores ocidentais sobre o
sufragismo chinês, em comparação com o que se observa com pesquisas sobre o
movimento em outros países, o movimento sufragista na China se mostrou, por suas
distinções, ser de extrema relevância, porém, se vê ainda muitas vezes apagado
quando a história global do movimento sufragista é discutida.
Referências
Caroline Micaela de Souza Greco e Teodora Maicá Soares são graduandas do 5º
semestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa
[UNIPAMPA] e pesquisadoras do Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental
[GEsIAO] da UNIPAMPA, coordenado pela profª drª Anna Carletti.
DAVIS, Angela, 1944 - Mulheres, raça e classe / Angela Davis; tradução Heci
Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.
EDWARDS, Louise e ROCES, Mina. Women’s Movements in Asia: Feminisms
and transnational activism. London: Routledge, 2010.
EDWARDS, Louise. ‘Chinese women’s campaigns for suffrage: nationalism,
Confucianism and political agency’. Women’s Suffrage in Asia Gender,
nationalism and democracy. London: Routledge, 2004, p. 59-78.
EDWARDS, Louise. ‘Women’s Suffrage in China: Challenging Scholarly
Conventions’. Pacific Historical Review, Vol. 69, No. 4, 2000, p. 617-638.
JILES, Elena Caffarena de. Un Capítulo en la Historia del Feminismo / Las
Sufragistas Inglesas. Santiago: Ediciones del Memch, 1952.
QIAOMU, Hu. PO-TA, Chen. História da Revolução Chinesa. Edições Nova
Cultura. 1ª Edição, 2018.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente / Edward
W. Said, tradução Rosaura Eichenberg. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia de Letras,
2007.
SCHMIDT, Brian. The Political Discourse of Anarchy. State University of New
York Press, Albany. 1998.
WHITWORTH, Sandra. Feminism and International Relations / Towards a
Political Economy of Gender in Interstate and Non-Governmental Institutions.
Nova Iorque: San Martin Press, 1994.
A HOMOSSEXUALIDADE NA COREIA DO SUL:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS
Leonardo Paiva Monte
Introdução
Alguns avanços nas questões de direitos LGBT+ têm emergido no Leste Asiático.
O Tribunal Constitucional de Taiwan, por exemplo, solicitou ao governo a
autorização para a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o que
acabou ocorrendo em 2019, pela primeira vez na Ásia. Por sua vez, a Coreia do Sul
[CS], uma democracia liberal com economia capitalista avançada e uma sociedade
heteronormativa, ainda apresenta poucas mudanças no que se refere à vivência e
direitos de pessoas LGBT+. No entanto, avanços jurídicos e sociais para essa
população aumentou nos últimos vinte anos. Grupos LGBT+ são politicamente
ativos, não apenas em Seul [a capital coreana e maior região urbana], mas nas
regiões periféricas, incluindo Busan [a segunda maior área urbana] [Hsu & Yen,
2017; Phillips & Yi, 2019].
Ao contrário de vários outros países do Leste Asiático, como a China, a CS não tem
uma história de atividades e tradições culturais entre pessoas LGBT+ [Martin &
Berry, 2003, p. 91]. Um dos primeiros registros é sobre a vida do rei do Reino de
Silla [57-935], Hyegong, que reinou entre 765 e 780. Subindo ao trono aos oito
anos de idade, afirmava ter nascido como uma mulher, mostrando interesse sexual
no sexo masculino. Acabou sendo assassinado por membros da corte em 780,
supostamente em reação a sua sexualidade assumida [Lee, 2000].
O Rei Mokchong [monarca entre os anos 997 e 1009] era aparentemente bem
conhecido por seus relacionamentos masculinos. O Rei Chungseon [1298 e volta
ao trono de 1308 a 1313] supostamente tinha um relacionamento de longo prazo
com um homem conhecido como Weonchung [Naaranoja, 2016]. Talvez o mais
conhecido entre esses personagens seja o Rei Kongmin [governou entre 1352 a
1374], que se sentia atraído por outros homens, incluindo seus guardas pessoais
com os quais foi dito ter relações sexuais [Kim & Hahn, 2006, p. 62; Lee, 2000, p.
274]
O hwarang [cujo significado seria algo como “jovens flores”, “garotos flores”]
oferece um outro exemplo da homossexualidade antiga na Coreia. Eles eram líderes
de um grupo militar da Dinastia Silla [57 AC - 935 DC.], escolhidos entre os filhos
da nobreza. Seu papel principal era lutar contra inimigos e promover o bem-estar
comum. Além de defender Silla, os hwarang são admirados por sua beleza, assim
como pelo afeto e lealdade que demonstram por seus companheiros. Isso envolve
até elementos de erotismo, o que pode ser observado na poesia da época encontrada
no Samguk Yusa [Kim & Hahn, 2006; Johannemann, 2021].
Como pode-se observar, pessoas LGBT+ têm enfrentado lutas em diferentes frentes
em busca de igualdade. Além do espaço político, outro ponto se torna preocupação
na vida social, a obrigatoriedade militar. Assumir-se gay ainda pode ser um
problema, pois, cada soldado coreano passa por uma avaliação psicológica antes de
entrar no exército. Se o homem for afeminado ou apresentar características que o
avaliador julgue impróprias para o sexo masculino, o indivíduo acaba sendo
qualificado como “deficiente mental”, logo, impróprio para servir [Kim, 2012].
Conclusão
Na Coreia do Sul, a posição de grupos LGBT+ e o status legal da homossexualidade
sofreram mudanças nas últimas décadas. As atitudes se tornaram muito mais
favoráveis. Entretanto, essas atitudes em relação à homossexualidade são uma
combinação paradoxal entre o contemporâneo e o conservador. Publicamente, o
comportamento sexual é regulado por padrões estritos de decoro que legitimam o
sexo apenas em um casamento heterossexual monogâmico.
Como pôde-se observar ao longo deste texto, práticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo deixaram suas marcas ao longo da história coreana, ainda que esse
aspecto histórico seja desprezado propositalmente por opositores das leis
antidiscriminação. Já no final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI,
pessoas LGBT+ têm buscado lutar por igualdade e fim da discriminação. Grupos
religiosos têm agido ativamente contra quaisquer medidas contra o preconceito. São
inimagináveis os danos psicológicos e sociais que viver sob pressão familiar,
cultural e religiosa podem causar na vida de alguém. Que a tradição não seja mais
uma desculpa para defender a desigualdade, mas que seja transformada e comporte
as diferenças.
Referências
Leonardo Paiva Monte é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo
[USP].