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ANDRÉ BUENO
[Org.]
MUNDOS EM MOVIMENTO:
EXTREMO ORIENTE
2021
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino
Projeto Orientalismo
Coordenador: André Bueno
www.orientalismo.blogspot.com
Ficha Catalográfica:
Bueno, André [org.] Mundos em Movimento: Extremo
Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ,
2021.
ISBN: 978-65-00-31924-8
Sumário
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 7
Introdução
O presente artigo tem como objetivo promover uma reflexão acerca das
representações e das características de uma das vertentes dos quatros estilos
tradicionais do teatro japonês [Nô, Kyôgen, Kabuki e Bunraku]. Assim
analisaremos estritamente as propriedades do teatro Nô e ponderaremos sobre as
constantes comparações desta arte performática oriental com o teatro ocidental,
denotado pela tragédia grega do período clássico helênico. O interesse na história
do teatro se expressa visto que este é “um dos gêneros que mais se relaciona com o
próprio tempo em que foi composto” [RUZENE, 2020, p. 77]. A arte dramática
muito expressa sobre as preocupações, sentimentos e anseios comuns à sociedade,
de modo que o teatro se desenvolveu ao longo dos tempos como uma importante
ferramenta histórico-educacional que proporciona ao expectador uma elaborada
leitura das realidades históricas e da visão dos autores sobre seu próprio contexto
[CAETANO, 2011, p. 2].
O teatro Nôgaku apresenta uma rígida hierarquia cênica, definindo uma clara
divisão das funções em palco. O protagonista [Shite] só pode ser interpretado por
um ator que seja especializado em personagens principais, normalmente representa
uma figura sobrenatural, deus, demônio, fantasma ou espírito. Não obstante, porém,
há peças em que pode atuar como um ser humano vivo. O uso de máscara e o
artifício da dança são exclusividades do Shite que convencionalmente veste
brocado, um tecido de seda com pomposos adornos bordados em relevo, e realiza
sua coreografia durante o clímax da história. A divisão tradicional de um espetáculo
Nô se dá em dois atos, no primeiro temos o Maejite [Shite anterior] e no segundo o
Atojite [Shite posterior] [SAKAMOTO, 2012, p.80]. Durante o primeiro ato a
personagem se apresenta em sua forma no mundo dos vivos e por isso pode ser
completamente diferente no segundo ato, quando assume sua forma verdadeira, do
mundo espiritual – daí a divisão entre o Shite anterior e o posterior. Ademais, há o
Waki, personagem coadjuvante e parceiro do protagonista, é sempre um ser humano
vivo a quem o Shite recorre para encontrar a salvação de sua alma. O Waki é
bastante representado como um monge, visto que é a personagem de ligação entre
o mundo real e o espiritual, por isso comumente usa vestimentas monásticas pretas.
Há ainda o Tsure, ator que auxilia os personagens, o Ai-kyôgen, ator responsável
pela ligação entre o primeiro e o segundo ato da peça, o Kokata, um ator mirim que
interpreta adultos e crianças, homens e mulheres, com o intuito de evitar na peça
qualquer teor romântico ou voluptuoso [o que seria um desrespeito a essa arte com
caracteres sacros]. Citamos ainda o Jiutai, um coro formado por algo entorno de
seis a dez homens que vestem quimonos tradicionais e ocupam um lugar específico
à direita do palco e os Hayashi, os músicos, ambos muito importantes para o
desenvolvimento da peça, visto que o “espetáculo do Nô está centrado no canto e
no bailado; as palavras são geralmente explicativas da ação” [GIROUX, 1984, p.
70], sendo justamente o coro o encarregado da narração lírica. Por fim, há o Kokên,
um ator experiente que assegura o sucesso da peça zelando por todo o necessário e,
em casos fortuitos, substitui o ator principal como Shite [SAKAMOTO, 2012, p.
82]. A exceção dos atores, os elementos utilizados no Nô são poucos, não há
cenários e o palco não passa de “um tablado, uma ponte, um telhado e um pinheiro
pintado ao fundo” [NAGAI, 2015, p. 176]. Esta arte, muito afeita à metafísica,
prefere legar vasão à imaginação do público e à espiritualidade de sua poética,
expressa em música e dança. Os acessórios adicionais, Tsukurimono, são bastante
simples, não passam de um esboço ou croqui daquilo que devem representar.
Segundo Keene [1990, p. 75] há três principais razões para a simplicidade dos
elementos de palco no Nô. Primeiro, a facilidade de lhes colocar e retirar do palco
conforme necessário; segundo, sendo simples não irão interferir no limitado lugar
de atuação do palco; terceiro, evita-se interferir na atenção do público. Os
Tsukurinomo são tão modestos e frágeis que exigem atenção dos atores para que
não sejam destruídos em cena [SAKAMOTO, 2012, p. 92].
A classificação das obras Nô podem ser duas, variando de acordo com a natureza
assumida pela peça – se acessam o mundo real ou o mundo espiritual, dos mortos
[KEENE, 1990, p. 20]. São denominadas Genzai Nô aquelas cuja estrutura se
assemelha ao do teatro ocidental, onde o tempo verbal das falas é presente, como
se os acontecimentos ocorressem simultaneamente para personagens e plateia.
Neste caso a peça faz referência ao mundo real, dos seres vivos. Também, há o
Mugen Nô, sendo este o mais comum. Normalmente a narrativa se passa da seguinte
forma, um viajante [Waki] chega a determinado local onde há uma intrigante
história sobre alguém, o Shite lhe aparece em forma humana para lhe contar o
episódio. A posteriori, o Shite revela ser ele próprio a pessoa da história e some do
palco. O viajante, para pacificar a alma que encontrara, dedica preces e se recolhe
em sono. Em seus sonhos o Shite retorna, agora em sua verdadeira forma, esta
personagem do mundo espiritual revela a perspectiva dos mortos, expondo as
motivações pela inquietação de sua alma. Derrota em batalha, ódio, vingança,
ciúme, traição, amor não correspondido, dor de um filho morto, entre outros
motivos que, quando aquietados pelo Waki, purga suas emoções mundanas e
permite ao espírito alcançar a iluminação [KUSANO, 2013, p. 6]. Uma vez
apaziguado o espírito dança em agradecimento ao monge errante e desaparece
definitivamente. Segundo Mamiko Sakamoto [2012, p. 85], “sua estrutura,
apresentada como um morto dentro do sonho do monge é raramente vista nas outras
formas teatrais, fazendo com que o Nô seja um teatro único”. De fato, este elemento
apaziguador faz do Nô uma forma singular de arte, a partir da qual se anseia
sossegar as vítimas do passado japonês, ainda que suas vidas tenham sido
esquecidas. Por este motivo dizem alguns autores que o Nô é um drama cujo foco
concerne à salvação da alma [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 15].
Isto não de forma missionária ou evangelizadora, como no teatro cristão jesuíta,
mas de maneira a acalmar a alma daqueles que se foram para que, de semelhante
maneira, houvesse paz no mundo dos vivos. Afinal, a saúde e bem-estar da
sociedade estava anexada à salvação das almas infelizes [Ibid., p. 276]. Não à toa,
o teatro Nô e a religião [tanto Xintoísmo, quanto Budismo Zen] estavam
intimamente relacionados no Japão [NAGAI, 2015, p. 176]. Exemplo disso é o fato
das companhias teatrais [Za] da época estarem sempre associadas a um dos grandes
templos ou santuários [KUSANO, 2013, p. 5].
Considerações Finais
Isto posto, comparações entre as formas de teatro no oriente e ocidente, sobretudo
aquelas com formas bem definidas, como o Nô japonês e a tragédia grega, são
deveras interessantes. Todavia devemos zelar para não impormos as noções de uma
cultura sobre a outra, pois assim estaríamos menosprezando uma destas
manifestações artísticas, caracterizando-a unicamente em detrimento de um
elemento externo, além de incorrermos em anacronismos. Portanto, aproximações
e distanciamentos à parte, a análise do teatro Nô é um opimo meio de compreensão
da cultura nipônica, bem como a observação das tragédias é farta referência para o
entendimento da sociedade helênica. Cada qual a seu modo, influenciou e foi
influenciado pelas consciências sociais, religiosas e históricas de seu tempo e
espaço. Até por isso o Nô foi incorporado pela casa imperial e o teatro grego foi
vastamente utilizado como ferramenta política nas póleis da Hélade [SANTOS,
2005, p. 44]. Enfim, por toda a sua filosofia e por sua excelência cênica, o Nô é
contemplado como o núcleo da arte Nôgaku e cerne das teatralidades tradicionais
do Japão [SAKAMOTO, 2012, p. 76], não à toa sua técnica artística permanece
constante nos palcos desde seu princípio no medievo.
Em suma, o Nôgaku se qualifica como esta longeva tradição, com mais de seis
séculos de existência e que encerra grande importância para a compreensão da
cultura japonesa. Dado que a essência do Nô se concentra nesta antiga arte
[Nôgaku], que se manteve sólida ao longo dos tempos, é também uma forma ímpar
e vultosa de alcançar o entendimento do Japão. O palco Nô, embora pequeno em
proporções, possui enorme valor artístico-histórico para a cultura japonesa, uma
vez que nele se reúnem personagens históricas e espirituais, heróis e vilões, deuses
e demônios, imperadores e samurais, vivos e mortos. Seu teatro representa uma
grande alegoria das concepções japonesas de vida e morte, felicidade e sofrimento,
espiritualidade e materialidade, com o suporte das noções xintoístas e budistas
constrói uma intensa metáfora meditativa e sensitiva, revelada pelas imagens, sons
e representações em palco. Por todos estes aspectos diferenciados da teatralidade
Nô, esta arte performática oriental recebe de seus especialistas a designação de ser
uma forma singular de teatro em todo o mundo.
Referências
Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Paraná [UFPR] e no Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário
Claretiano [BAT]. Formado pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da
Universidade Estadual Paulista [CTIG/UNESP] e pela Escola de Especialistas de
Aeronáutica [EEAr], atualmente é Controlador de Tráfego Aéreo. E-mail:
felipe.ruzene@ufpr.br