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ANDRÉ BUENO
[Org.]

MUNDOS EM MOVIMENTO:
EXTREMO ORIENTE

2021
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino

Projeto Orientalismo
Coordenador: André Bueno
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica:
Bueno, André [org.] Mundos em Movimento: Extremo
Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ,
2021.
ISBN: 978-65-00-31924-8
Sumário
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 7

EXTREMO ORIENTE: CULTURAS


A DIFÍCIL ARTE DA SÍNTESE NA HISTORIOGRAFIA CHINESA ANTIGA
por André Bueno ................................................................................................... 10
YU BOYA E ZHONG ZIQI: O CULTIVO DA AMIZADE NA INTERSEÇÃO
COM A MÚSICA CHINESA ANTIGA PARA GUQIN por André Ribeiro ....... 18
LUÍS GONZAGA GOMES E AS CHINESICES DE MACAU por Bettina Pinheiro
Martins ................................................................................................................... 26
PERSPECTIVAS DE CIÊNCIA E CIENTISTA NO MANGÁ ASTRO BOY por
Bruna Navarone Santos ......................................................................................... 31
REPRESENTAÇÕES DOS SENTIDOS DE IKIGAI NO ANIMÊ CELLS AT
WORK! por Bruna Navarone Santos..................................................................... 46
O PAPEL DA LÍNGUA PORTUGUESA NA DIFUSÃO DA FÉ REFORMADA
por Carlos Aldlen Torres de Souza ........................................................................ 54
OS RELATOS DOS JESUÍTAS E AS TAPEÇARIAS DE BEAUVAIS:
APORTES PARA A CONSTRUÇÃO DA SINOFILIA EUROPEIA por Carmen
Lícia Palazzo .......................................................................................................... 62
OS BOMBARDEIOS ATÔMICOS DE 1945 E A HISTORIOGRAFIA EM
DISPUTA por Douglas Pastrello ........................................................................... 71
IMPERIALISMO JAPONÊS NA PENÍNSULA COREANA NA ÓTICA DOS K-
DRAMAS MR. SUNSHINE: UM RAIO DE SOL E CHICAGO TYPEWRITER
por Eduarda Christine Souza Pucci ....................................................................... 78
MÚMIAS ORIENTAIS: UMA BREVE DISCUSSÃO DE
EMBALSAMAMENTO, TANATOLOGIA E RITOS FÚNEBRES EM
CIVILIZAÇÕES DO EXTREMO ORIENTE por Eduardo Mangolim Brandani da
Silva e Gessica de Brito Bueno.............................................................................. 83
TEATRO NÔ: ARTE PERFORMÁTICA JAPONESA E SUAS RELAÇÕES
COM A TRAGÉDIA GREGA por Felipe Ruzene ................................................ 92
SHÀNZI WǓ 扇子舞 : A DANÇA CHINESA COM LEQUES ORIGINÁRIA NA
DINASTIA HAN por Flavia Lima Corpas ............................................................ 98
MULHERES NO CURDISTÃO: PROTAGONISMO EM TODAS AS
DIMENSÕES DA REVOLUÇÃO por Isabella dos Santos Daiub ..................... 103
MANGÁ E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO HISTÓRICO: UM OLHAR A
PARTIR DO PERSONAGEM JAPÃO EM HETALIA por Janaina de Paula do
Espírito Santo ....................................................................................................... 110
BENTO DE GOES: UM JESUÍTA PORTUGUÊS NA DEMANDA DO CATAIO
[1602-1607] por João Lupi .................................................................................. 117
O PERÍODO SENGOKU, PORTUGUESES [CRISTÃOS] E JAPONESES
[BUDISTAS] EM KIRISHITAN NOBUNAGA, DE OSANAI KAORU por José
Carvalho Vanzelli ................................................................................................ 128
TRÊS BONECAS CHINESAS: A RE-ORIENTALIZAÇÃO DAS MULHERES
CHINESAS NO FILME MULAN [1998] por José Ivson Marques Ferreira de Lima
............................................................................................................................. 135
BREVE ANÁLISE ACERCA DA REPRESENTAÇÃO DO KITSUNE
MITOLÓGICO NO MANGÁ INUYASHA, DE RUMIKO TAKAHASHI por Júlia
da Silva Amaral ................................................................................................... 141
BORDANDO O DIVINO: GUANYIN EM CABELO HUMANO por Julia
Guimarães Alves .................................................................................................. 148
JOSÉ DE AQUINO, O BRASILEIRO QUE ESCREVEU A PRIMEIRA
HISTÓRIA DE MACAU por Kamila Czepula ................................................... 159
DA UTOPIA HERÓICA AO TRAUMA DA GUERRA: MY HERO ACADEMIA E
A POLÊMICA EM TORNO DO TERMO HISTÓRICO MARUTA por Lucas
Marques Vilhena Motta e Luciana de Ávila Freitas ............................................ 167
PERSPECTIVAS ECOCRÍTICAS SOBRE OBRAS ARTÍSTICAS SUL-
COREANAS CONTEMPORÂNEAS por Maria Gabriela Wanderley Pedrosa . 173
A REPRESENTAÇÃO DO BUSHIDO NOS MANGÁS DA ERA HEISEI A
PARTIR DA OBRA ‘BLADE A LÂMINA DO IMORTAL’ por Matheus Eduardo
Rezende Pereira ................................................................................................... 181
BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS NATUREZAS CÍCLICA E LINEAR
DE TEMPO NA CULTURA HINDU por Matheus Landau de Carvalho .......... 188
ANÁLISE DAS TRÊS FALÁCIAS E SEUS NOVE EXEMPLOS NO CAPÍTULO
NOMEAÇÃO CORRETA DO FILÓSOFO XUN por Matheus Oliva da Costa ... 197
A ESTÉTICA WABI-SABI NA CERIMÔNIA DO CHÁ JAPONESA por Narumi
Ito ......................................................................................................................... 206
ESTÉTICA E JOGO DE PODER: O ARQUÉTIPO FEMININO EM TAMAMO-
NO-MAE por Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria.......... 215
O PAPEL DA ESCRITA NO MÉTODO DE EVANGELIZAÇÃO JESUÍTA NA
CHINA por Renan Morim Pastor ........................................................................ 222
A FOTOGRAFIA COMO MEDIADORA DA MODERNIDADE JAPONESA
[1860-1890] por Rogério Akiti Dezem ................................................................ 229
A INFLUÊNCIA ORIENTAL NA CULTURA RUSSA por Talita Seniuk ....... 239
CRIAR O QUE NUNCA FOI FEITO ANTES: GUTAI E AS ARTES
JAPONESAS NO PÓS-GUERRA por Victor Vidal ........................................... 246
EXTREMO ORIENTE: POLÍTICAS
A REFORMA AGRÁRIA COMO MARCO FUNDADOR DO
DESENVOLVIMENTO SUL COREANO por Alexandre Black de Albuquerque
............................................................................................................................. 253
A POLÍTICA DE TRÊS REVOLUÇÕES E A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO
NA REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA DA COREIA por André Felipe
Costa da Luz ........................................................................................................ 260
ALÉM DO GRANDE TIMONEIRO: OUTRAS VOZES NA LIDERANÇA DA
CHINA COMUNISTA ENTRE A REVOLUÇÃO E A MORTE DE MAO TSÉ-
TUNG por Bruno Marques .................................................................................. 267
JIGME NAMGYAL: O ARQUITETO DO REINO DO BUTÃO por Emiliano
Unzer .................................................................................................................... 275
REVISITANDO AS PERIFERIAS DO IMPÉRIO: A HISTÓRIA DO DIREITO
EM MACAU PORTUGUESA [SÉC. XVI-XIX] por Marcus Dorneles ............. 283
A POLÍTICA EXTERNA DA COREIA DO SUL PARA A ÁSIA ORIENTAL
DURANTE O GOVERNO DE PARK GEUN-HYE [2013-2017] por Maurício
Luiz Borges Ramos Dias ..................................................................................... 291

EXTREMO ORIENTE: SOCIEDADES


MATERNIDADE NA COREIA DO SUL: A MULHER E OS PAPÉIS DE
GÊNERO por Amanda de Morais Silva .............................................................. 300
FEMINISMO NA CHINA: HISTÓRIA DO MOVIMENTO SUFRAGISTA
CHINÊS por Caroline Micaela de Souza Greco e Teodora Maicá Soares .......... 308
A HOMOSSEXUALIDADE NA COREIA DO SUL: APONTAMENTOS
HISTÓRICOS por Leonardo Paiva Monte .......................................................... 316
TEATRO NÔ: ARTE PERFORMÁTICA JAPONESA E
SUAS RELAÇÕES COM A TRAGÉDIA GREGA
Felipe Ruzene

Introdução
O presente artigo tem como objetivo promover uma reflexão acerca das
representações e das características de uma das vertentes dos quatros estilos
tradicionais do teatro japonês [Nô, Kyôgen, Kabuki e Bunraku]. Assim
analisaremos estritamente as propriedades do teatro Nô e ponderaremos sobre as
constantes comparações desta arte performática oriental com o teatro ocidental,
denotado pela tragédia grega do período clássico helênico. O interesse na história
do teatro se expressa visto que este é “um dos gêneros que mais se relaciona com o
próprio tempo em que foi composto” [RUZENE, 2020, p. 77]. A arte dramática
muito expressa sobre as preocupações, sentimentos e anseios comuns à sociedade,
de modo que o teatro se desenvolveu ao longo dos tempos como uma importante
ferramenta histórico-educacional que proporciona ao expectador uma elaborada
leitura das realidades históricas e da visão dos autores sobre seu próprio contexto
[CAETANO, 2011, p. 2].

Inicialmente, debateremos a formação da teatralidade Nôgaku no Japão, de modo a


compreender o contexto e caracteres que fundamentam a arte Nô, bem como
assimilar suas tecnicidades e elementos [atuações, dança e música, máscaras,
cenário, etc.]. A posteriori, estabeleceremos uma analogia entre o teatro Nô japonês
e a tragédia clássica do teatro grego antigo, observando aproximações e
distanciamentos entre ambas as manifestações artísticas. Cabe ressaltar que o mito
constitui uma memória de origem no Japão, de modo que o surgimento do teatro,
remonta alegoricamente aos deuses. Seu surgimento faz menção à dança da deusa
Ama-no-Uzume diante da caverna onde Amaterasu-ōmikami, a deusa do Sol, havia
se escondido, afundando todo o mundo em trevas. Com sua performance Uzume
conseguiu atrair Amaterasu, trazendo a luz do sol de volta à Terra [GIROUX, 1991,
p. 109]. Assim, o teatro Nô se constitui como elemento de nobreza na sociedade
nipônica, em virtude de estabelecer uma linhagem direta com a história xintoísta da
deusa da alegria Uzume, que havia descido ao mundo para dar origem à família
imperial e aos primeiros sacerdotes, além de difundir o teatro, com seu canto e
dança, nas mais diversas formas de representação, aos seres humanos [Ibid., p. 110].
À vista disso, entre arte, história e espiritualidade, foi sendo composto, através dos
séculos, o “ideograma teatral” [NAGAI, 2015, p. 177] que é o Nô japonês.
Nôgaku, características do teatro japonês
Ao abordar a história do teatro Nô é indeclinável que se mencione outra arte cênica,
o Kyôgen. Ambas as artes estão tão ligadas que formam uma terceira categoria
performática a partir de sua fusão, o Nôgaku. Além de dividirem sua história, desde
a formação até os desenvolvimentos decorrentes do aperfeiçoamento ao longo de
séculos, compartilham de igual espaço para atuação, um mesmo palco. Apesar
disso, não é possível definir as origens exatas do Nôgaku [SAKAMOTO, 2012,
p.75], mas vários estudos afirmam que ambas as formas teatrais foram
desenvolvidas a partir de Sangaku, um conjunto técnico-artístico-acrobático
introduzido em terras nipônicas pela China durante a Idade Monárquica, por volta
do século VIII [GIROUX, 1984, p. 69]. Kyôgen e Nô se desenvolveram adjuntos,
todavia salvaguardaram sua natureza distinta. Enquanto o Nô está ligado a temas
históricos e sobrenaturais, não raramente tratando de conceitos espirituais e da
morte, o Kyôgen se preocupa em abordar temáticas quotidianas da vida comum e,
ocasionalmente, dialoga com o cômico [SAKAMOTO, 2012, p.76]. Além de
divergências na forma, o Nô é um teatro de máscaras, centrado no canto e dança, a
história se desenvolve em torno de um personagem e suas figuras são histórico-
espirituais, enquanto o Kyôgen é baseado em diálogos, não faz uso de máscaras,
traz múltiplas personagens e se apoia nos acontecimentos cômicos e em figuras
rotineiras, como já citado [GIROUX, 1984, p. 70]. Portanto, Donald Keene [1990,
p.19] define o teatro Nô como sendo “um poema dramático baseado em eventos
remotos ou sobrenaturais, realizado por um dançarino”. Este ator-dançarino pode
fazer uso de máscara [apenas o protagonista], contracena com poucas personagens
no palco e faz uso da musicalidade de um coro e da recitação de poesias para contar
a história à plateia.

O teatro Nôgaku apresenta uma rígida hierarquia cênica, definindo uma clara
divisão das funções em palco. O protagonista [Shite] só pode ser interpretado por
um ator que seja especializado em personagens principais, normalmente representa
uma figura sobrenatural, deus, demônio, fantasma ou espírito. Não obstante, porém,
há peças em que pode atuar como um ser humano vivo. O uso de máscara e o
artifício da dança são exclusividades do Shite que convencionalmente veste
brocado, um tecido de seda com pomposos adornos bordados em relevo, e realiza
sua coreografia durante o clímax da história. A divisão tradicional de um espetáculo
Nô se dá em dois atos, no primeiro temos o Maejite [Shite anterior] e no segundo o
Atojite [Shite posterior] [SAKAMOTO, 2012, p.80]. Durante o primeiro ato a
personagem se apresenta em sua forma no mundo dos vivos e por isso pode ser
completamente diferente no segundo ato, quando assume sua forma verdadeira, do
mundo espiritual – daí a divisão entre o Shite anterior e o posterior. Ademais, há o
Waki, personagem coadjuvante e parceiro do protagonista, é sempre um ser humano
vivo a quem o Shite recorre para encontrar a salvação de sua alma. O Waki é
bastante representado como um monge, visto que é a personagem de ligação entre
o mundo real e o espiritual, por isso comumente usa vestimentas monásticas pretas.
Há ainda o Tsure, ator que auxilia os personagens, o Ai-kyôgen, ator responsável
pela ligação entre o primeiro e o segundo ato da peça, o Kokata, um ator mirim que
interpreta adultos e crianças, homens e mulheres, com o intuito de evitar na peça
qualquer teor romântico ou voluptuoso [o que seria um desrespeito a essa arte com
caracteres sacros]. Citamos ainda o Jiutai, um coro formado por algo entorno de
seis a dez homens que vestem quimonos tradicionais e ocupam um lugar específico
à direita do palco e os Hayashi, os músicos, ambos muito importantes para o
desenvolvimento da peça, visto que o “espetáculo do Nô está centrado no canto e
no bailado; as palavras são geralmente explicativas da ação” [GIROUX, 1984, p.
70], sendo justamente o coro o encarregado da narração lírica. Por fim, há o Kokên,
um ator experiente que assegura o sucesso da peça zelando por todo o necessário e,
em casos fortuitos, substitui o ator principal como Shite [SAKAMOTO, 2012, p.
82]. A exceção dos atores, os elementos utilizados no Nô são poucos, não há
cenários e o palco não passa de “um tablado, uma ponte, um telhado e um pinheiro
pintado ao fundo” [NAGAI, 2015, p. 176]. Esta arte, muito afeita à metafísica,
prefere legar vasão à imaginação do público e à espiritualidade de sua poética,
expressa em música e dança. Os acessórios adicionais, Tsukurimono, são bastante
simples, não passam de um esboço ou croqui daquilo que devem representar.
Segundo Keene [1990, p. 75] há três principais razões para a simplicidade dos
elementos de palco no Nô. Primeiro, a facilidade de lhes colocar e retirar do palco
conforme necessário; segundo, sendo simples não irão interferir no limitado lugar
de atuação do palco; terceiro, evita-se interferir na atenção do público. Os
Tsukurinomo são tão modestos e frágeis que exigem atenção dos atores para que
não sejam destruídos em cena [SAKAMOTO, 2012, p. 92].

A classificação das obras Nô podem ser duas, variando de acordo com a natureza
assumida pela peça – se acessam o mundo real ou o mundo espiritual, dos mortos
[KEENE, 1990, p. 20]. São denominadas Genzai Nô aquelas cuja estrutura se
assemelha ao do teatro ocidental, onde o tempo verbal das falas é presente, como
se os acontecimentos ocorressem simultaneamente para personagens e plateia.
Neste caso a peça faz referência ao mundo real, dos seres vivos. Também, há o
Mugen Nô, sendo este o mais comum. Normalmente a narrativa se passa da seguinte
forma, um viajante [Waki] chega a determinado local onde há uma intrigante
história sobre alguém, o Shite lhe aparece em forma humana para lhe contar o
episódio. A posteriori, o Shite revela ser ele próprio a pessoa da história e some do
palco. O viajante, para pacificar a alma que encontrara, dedica preces e se recolhe
em sono. Em seus sonhos o Shite retorna, agora em sua verdadeira forma, esta
personagem do mundo espiritual revela a perspectiva dos mortos, expondo as
motivações pela inquietação de sua alma. Derrota em batalha, ódio, vingança,
ciúme, traição, amor não correspondido, dor de um filho morto, entre outros
motivos que, quando aquietados pelo Waki, purga suas emoções mundanas e
permite ao espírito alcançar a iluminação [KUSANO, 2013, p. 6]. Uma vez
apaziguado o espírito dança em agradecimento ao monge errante e desaparece
definitivamente. Segundo Mamiko Sakamoto [2012, p. 85], “sua estrutura,
apresentada como um morto dentro do sonho do monge é raramente vista nas outras
formas teatrais, fazendo com que o Nô seja um teatro único”. De fato, este elemento
apaziguador faz do Nô uma forma singular de arte, a partir da qual se anseia
sossegar as vítimas do passado japonês, ainda que suas vidas tenham sido
esquecidas. Por este motivo dizem alguns autores que o Nô é um drama cujo foco
concerne à salvação da alma [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 15].
Isto não de forma missionária ou evangelizadora, como no teatro cristão jesuíta,
mas de maneira a acalmar a alma daqueles que se foram para que, de semelhante
maneira, houvesse paz no mundo dos vivos. Afinal, a saúde e bem-estar da
sociedade estava anexada à salvação das almas infelizes [Ibid., p. 276]. Não à toa,
o teatro Nô e a religião [tanto Xintoísmo, quanto Budismo Zen] estavam
intimamente relacionados no Japão [NAGAI, 2015, p. 176]. Exemplo disso é o fato
das companhias teatrais [Za] da época estarem sempre associadas a um dos grandes
templos ou santuários [KUSANO, 2013, p. 5].

Relações com a tragédia grega


Por suas características, não é atípico que relacionem o teatro Nô japonês com
manifestações dramatúrgicas do Ocidente, como a tragédia helênica e até mesmo a
ópera moderna [SAKAMOTO, 2012, p. 77]. É inequívoco que, de fato, há
aproximações principalmente entre o Nô e o teatro grego trágico. Arthur Sadler
[2010, p. 15] enumera e versa sobre cada uma destas afinidades. A saber, 1] a
existência do coro; 2] poucos atores contracenando em palco; 3] a não identificação
do protagonista; 4] exclusividade masculina dentre os atores; 5] temática histórica
ou trágica; 6] ausência de cenário e destaque dos gestos; 7] uso de máscaras. Apesar
destas semelhanças o autor defende que não há relações entre os gêneros, visto que
cada um deles é conceituado por diferentes características, visão esta que é
ratificada por Donald Keene [1990, p. 9]. Quanto o que concerne ao coro, este não
assume na teatralidade Nô nenhuma ação na peça, sua função primordial é recitar
aos atores durante a execução da dança. Divergindo, portanto, do teatro grego onde
o coro se caracteriza pelo diálogo e pela oferta de informações ao público
[SANTOS, 2005, p. 43], o coro Nô não tece nenhum comentário sobre a narrativa,
não tem voz ativa no enredo, nem possui identificação [SAKAMOTO, 2012, p. 82].
A presença de personagens históricos é comum a ambas as teatralidades, todavia o
protagonista do Nô não pertence ao mundo real, aparecendo como fantasma ou
demônio dentro do sonho que partilha com o coadjuvante [TAKAHASHI;
MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 23-24]. Enquanto, via de regra, a personagem
trágica grega vai de encontro ao seu destino, cujo ápice da tragicidade está na morte
[SANTOS, 2005, p. 48], o Shite do Nô começa a peça finado e caminha rumo à
libertação de sua alma. Fato pelo qual o dramaturgo Yukio Mishima, radicalmente,
considera o Nô uma “arte necrófila”, sendo uma teatralidade única, em razão de só
começar quando tudo já está findo [KUSANO, 2013, p. 6]. Também, os heróis
helênicos são reconhecidamente humanos, enquanto os Shite são abstrações, uma
vez que “não são mais do que sombras belas e encarnações momentâneas de
grandes emoções” [SAKAMOTO, 2012, p. 79]. Sobre o uso de máscaras as
perspectivas parecem divergir novamente, na tragédia grega as máscaras funcionam
para que o público possa reconhecer o papel interpretado [SANTOS, 2005, p. 44],
enquanto o Nô faz uso de máscaras para permitir ao ator a identificação com a
personagem a ser representado [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p.
23]. Ou seja, ao que parece as máscaras são uma ferramenta para identificação do
público na tragédia dos helenos e uma ferramenta para identificação do ator no
teatro Nô japonês. Por fim, o que diz respeito ao pequeno número de atores
contracenando e a simplicidade do cenário, isto parece ser um elemento de escolha
dentro do Nô para que se mantenha a física diminuta e se sobressaia a metafísica da
poética e espiritualidade do enredo [SAKAMOTO, 2012, p. 91-92], enquanto na
Antiga Hélade estes elementos variavam de acordo com os recursos do
dramaturgo/diretor. Autores famosos quando encenavam em grandes festivais,
como as Leneias ou nas grandes Dionisías [RUZENE, 2020, p. 78], investiam mais
na participação de seus atores e na composição dos cenários, uma vez que contavam
com o patrocínio do Estado [SANTOS, 2005, p. 44]. Levando-se em consideração
todos estes fatores, Mamiko Sakamoto [2012, p. 79] conclui que “apesar de existir
uma arte no Ocidente com alguns aspetos semelhantes, o Nô é uma arte totalmente
distinta e apresenta perspectivas teatrais únicas no mundo”. Adicionaria que, de
igual maneira, a tragédia grega era uma arte singular, a despeito de sua interpretação
e reinterpretação em todo mundo Ocidental. Assim, não obstante as aproximações
observadas, devemos compreender a singularidade de cada uma destas formas de
arte. É profícuo que se teçam tais reflexões, mas não de modo a desmerecer as
particularidades do teatro Nô, nem as peculiaridades da tragédia grega. O que
observamos, portanto, são aproximações e distanciamentos em duas manifestações
artísticas bastante apartadas temporal e geograficamente.

Considerações Finais
Isto posto, comparações entre as formas de teatro no oriente e ocidente, sobretudo
aquelas com formas bem definidas, como o Nô japonês e a tragédia grega, são
deveras interessantes. Todavia devemos zelar para não impormos as noções de uma
cultura sobre a outra, pois assim estaríamos menosprezando uma destas
manifestações artísticas, caracterizando-a unicamente em detrimento de um
elemento externo, além de incorrermos em anacronismos. Portanto, aproximações
e distanciamentos à parte, a análise do teatro Nô é um opimo meio de compreensão
da cultura nipônica, bem como a observação das tragédias é farta referência para o
entendimento da sociedade helênica. Cada qual a seu modo, influenciou e foi
influenciado pelas consciências sociais, religiosas e históricas de seu tempo e
espaço. Até por isso o Nô foi incorporado pela casa imperial e o teatro grego foi
vastamente utilizado como ferramenta política nas póleis da Hélade [SANTOS,
2005, p. 44]. Enfim, por toda a sua filosofia e por sua excelência cênica, o Nô é
contemplado como o núcleo da arte Nôgaku e cerne das teatralidades tradicionais
do Japão [SAKAMOTO, 2012, p. 76], não à toa sua técnica artística permanece
constante nos palcos desde seu princípio no medievo.

Em suma, o Nôgaku se qualifica como esta longeva tradição, com mais de seis
séculos de existência e que encerra grande importância para a compreensão da
cultura japonesa. Dado que a essência do Nô se concentra nesta antiga arte
[Nôgaku], que se manteve sólida ao longo dos tempos, é também uma forma ímpar
e vultosa de alcançar o entendimento do Japão. O palco Nô, embora pequeno em
proporções, possui enorme valor artístico-histórico para a cultura japonesa, uma
vez que nele se reúnem personagens históricas e espirituais, heróis e vilões, deuses
e demônios, imperadores e samurais, vivos e mortos. Seu teatro representa uma
grande alegoria das concepções japonesas de vida e morte, felicidade e sofrimento,
espiritualidade e materialidade, com o suporte das noções xintoístas e budistas
constrói uma intensa metáfora meditativa e sensitiva, revelada pelas imagens, sons
e representações em palco. Por todos estes aspectos diferenciados da teatralidade
Nô, esta arte performática oriental recebe de seus especialistas a designação de ser
uma forma singular de teatro em todo o mundo.

Referências
Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Paraná [UFPR] e no Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário
Claretiano [BAT]. Formado pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da
Universidade Estadual Paulista [CTIG/UNESP] e pela Escola de Especialistas de
Aeronáutica [EEAr], atualmente é Controlador de Tráfego Aéreo. E-mail:
felipe.ruzene@ufpr.br

CAETANO, Erica Antonia. Representação da mulher na dramaturgia, 2011.


Disponível em: http://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4007
GIROUX, Sakae Murakami. “O kyôgen: seu universo e sua evolução” in Estudos
Japoneses, vol. 4, 1984, p. 69-82.
GIROUX, Sakae Murakami. “A formação do teatro Kabuki” in Estudos
Japoneses, n. 11, 1991, p. 109-120.
KEENE, Donald. Nō and Bunraku: two forms of Japanese theatre. Nova Iorque:
Columbia University Press, 1990.
KUSANO, Darci. Teatro tradicional japonês, 2013. Disponível em:
https://fjsp.org.br/site/wp-content/uploads/2013/03/teatro_tradicional_japones.pdf
NAGAI, Ângela Mayumi. “Olhos, ouvidos e ossos: percepções da luz e do som
no teatro Nô” in Revista Preta, vol. 15, n. 2, 2015, p. 176-187.
RUZENE, Felipe D. Panorama do perfil feminino ateniense e sua representação
em Lisístrata, de Aristófanes. In: ESTEVES, Anderson; BUENO, André;
CAMPOS, Carlos Eduardo [Org.]. Scholae: Estudos interdisciplinares da
antiguidade. São João de Meriti: Desalinho, 2020. p. 77-88.
SADLER, Arthur Lindsay. Japanese Plays: Classic Noh, Kyogen and Kabuki
Works. Vermont: Tuttle Publishing, 2010.
SANTOS, Adilson dos. “A tragédia grega: um estudo teórico” in Revista
Investigações - Linguística e Teoria Literária, vol. 18, n. 1, 2005, p. 41-67.
SAKAMOTO, Mamiko. As máscaras do teatro tradicional japonês Nô: a tradução
em contexto de intercâmbio cultural e patrimonial. Dissertação: [Mestrado
em Tradução e Comunicação Multilingue] – Instituto de Letras e Ciências
Humanas, Universidade do Minho. Braga, 134 p. 2012.
TAKAHASHI, Mutsuo.; MORITA, Toshiro; TAKAOKA, Kazuya. Noh:
Classical Japanese Performing Art. Tóquio: PIE Books, 2010.

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