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ምስራቅ

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Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino

Projeto Orientalismo
Coordenador: André Bueno
www.orientalismo.blogspot.com

Ficha Catalográfica:
Bueno, André [org.] Mundos em Movimento: Próximo
Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ,
2021.
ISBN: 978-65-00-31926-2

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 6

PRÓXIMO ORIENTE: CULTURAS


REPRESENTAÇÕES DE RELAÇÕES HOMOAFETIVAS ENTRE MULHERES
EM TRATADOS MÉDICOS E LITERÁRIOS MUÇULMANOS DOS SÉCULOS
XII E XIII por Andrei Marcelo da Rosa e Clara Aguiar Costa Bauer ..................... 8
O EGITO DOS PRIMEIROS FARAÓS: UM TESTEMUNHO DO CEMITÉRIO
DE UMM EL-QAAB por Eduardo Sodré Farias................................................... 16
VINHO E VINICULTURA NO ANTIGO EGITO por Felipe Ruzene ................ 24
BREVES NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DO IMPÉRIO OTOMANO DURANTE
O REINADO DE SOLIMÃO, O MAGNÍFICO por George Araújo .................... 31
A POLÍTICA DOS FARAÓS PTOLOMEUS EM ALEXANDRIA, EGITO por
Jéssica Kotrik Reis Franco ..................................................................................... 38
AVERRÓIS: DE AL-ANDALUZ PARA TODA A EUROPA MEDIEVAL por
Junior Benedito Pleis e Talita Seniuk .................................................................... 46
UM OLHAR SOBRE A ARQUEOLOGIA DA MESOPOTÂMIA por Marlon
Barcelos Ferreira .................................................................................................... 53
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O EGITO FARÂONICO E SEU
PODERIO E REPRESENTATIVIDADE HISTÓRICA por Maykon Albuquerque
Lacerda e Kecianny Araújo Santos ........................................................................ 60
ENTRE CAURIS, JINNS E CASAMENTOS: AS MALDIVAS POR IBN
BATTUTA [1304 - 1377] por Pietro Enrico Menegatti de Chiara........................ 66
D. CRISTÓVÃO DA GAMA, MÁRTIR DA ETIÓPIA por Ricardo Hiroyuki
Shibata ................................................................................................................... 74
ASPECTOS RELIGIOSOS NA MESOPOTÂMIA: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES por Simone Aparecida Dupla............................................... 81
ZARATHUSHTRA COMO HOMEM DO FINAL DA IDADE DO BRONZE:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORIGEM DO ZOROASTRISMO por
Vicente Dobroruka ................................................................................................. 88

PRÓXIMO ORIENTE: POLÍTICA


O DESTINO DA ANATÓLIA SERÁ DECIDIDO A FOGO E SANGUE E NADA
SERÁ POUPADO: A GUERRA GRECO-TURCA (1919-1922) por Felipe
Alexandre Silva de Souza ...................................................................................... 97
A VISITA PAPAL AO IRAQUE E O ESFORÇO DE DIÁLOGO COM O ISLÃ
EM FUNÇÃO DA HISTÓRICA PRESENÇA CRISTÃ NA REGIÃO por Felipe
Vidal Benvenuto Alberto ..................................................................................... 104
QUANDO OS FARAÓS DESFILAM NO PRESENTE: A MARCHA DOURADA
DOS FARAÓS NO EGITO CONTEMPORÂNEO (2021) por Francismara de
Oliveira Lelis ....................................................................................................... 111
HANDALA, NA LUTA CONTRA A OCUPAÇÃO: O PROJETO COLONIAL E
A LUTA PELA LIBERTAÇÃO ATRAVÉS DO CARTUM POLÍTICO
PALESTINO por Israel Zayed ............................................................................ 119
AO DEUS-DARÁ: A DIZIMAÇÃO DA CRUZADA POPULAR NA ÁSIA
MENOR por Jeferson Dalfior Costalonga ........................................................... 128

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A “LEI DA PROPRIEDADE DO AUSENTE” E O APAGAMENTO DOS
PALESTINOS EM ISRAEL por Nina Galvão .................................................... 135

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VINHO E VINICULTURA NO ANTIGO EGITO
Felipe Ruzene
Introdução
O Egito é uma nação do Norte de África com caracteres profundamente
mediterrâneos [Cf. BAKOS, 2001, p. 11-16]. Um exemplo bastante notável desta
relação entre egípcios e mediterrânicos é a paixão pelo vinho, algo ainda pouco
disseminado, visto que o Egito é conhecidamente a nação da cerveja. De fato, o
fermentado de cevada parece ter sido a bebida mais consumida entre os egípcios
[PETRUSKI, 2015, p. 154], mas a antiga nação faraônica se mostrou fundamental
para a difusão e consolidação da viticultura e enologia na antiguidade. Suas práticas
e métodos foram tão relevantes que sobrevivem até a atualidade e permanecem
ativos entre alguns dos principais produtores de vinho do mundo contemporâneo
[CARLAN, 2012, p. 86]. Embora o vinho já existisse na Mesopotâmia e no Oriente,
a vinicultura se desenvolveu, em termos tecnológicos e práticos, mais
profundamente no Egito [AMUI, 2007, p. 12] e, posteriormente, na Hélade e em
Roma (que muito usufruíram dos conhecimentos enológicos desenvolvidos pelos
egípcios). Este texto tem por finalidade introduzir as temáticas do consumo e
fabrico do vinho no Egito Antigo, observando a complexidade e pluralidade dos
mecanismos utilizados pelos produtores egípcios e compreendendo a importância
da vinicultura nesta sociedade. Assim, evidenciar-se-á que: “O vinho era parte
integrante da cultura dos antigos egípcios que podem ser considerados por esse
motivo, a primeira civilização vinícola da história” [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM,
2012, p. 142].

Origens e consumos no Egito


Abordar as origens da viticultura é expor incógnitas, afinal muitos pesquisadores
afirmam a impossibilidade de sabermos quais os primórdios das vinhas [BAKOS,
1994, p. 66]. Há autores que defendem a ideia de que o vinho pode ter sido a
primeira bebida alcóolica conhecida pelo ser humano [GUARINELLO, 1997, p.
275], porém, outros atribuem este título à cerveja ou ao hidromel [REGINA, 2017,
p. 94]. Luísa Valduga [2016] assegura que o mais presumível é que a descoberta do
vinho tenha ocorrido em diversos momentos e lugares, ainda (como ratificam
diversos historiadores), crê na possibilidade de que as primeiras taças de vinho
tenham surgido ao acaso [REGINA, 2017, p. 94]. Os paleontólogos descrevem que
a espécie vitis vinífera (cepas responsáveis pela produção dos chamados vinhos
finos) desenvolveu-se ainda na Era Cenozoica, durante o período terciário (algo
entre 65 milhões e 2,6 milhões de anos atrás), e a partir deste momento se dissipou
por todo o hemisfério norte [CARLAN, 2012, p. 86]. Mu-Chou Poo [1995, p. 5]

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sugere em sua tese que a domesticação da uva tenha ocorrido por volta de 8000
AEC na região que hoje se estende do Turquestão, ao sul do Cáucaso na Ásia
Menor, até o interior da Trácia. Justamente desta região, afirma o autor, teriam saído
as práticas de viticultura que ingressaram no Egito ainda durante o pré-dinástico
[BAKOS, 1994, p. 66]. As uvas têm sua presença marcada em solo egípcio entre
4000 e 3500 AEC, em sítios arqueológicos como o Tell Ibrahim Awad e Tell el-
Fara’in, os dois no Delta do rio Nilo [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p. 142].
Convém ressaltar o fato de que as uvas não são nativas do Egito, mas já eram
cultivadas por lá desde o pré-dinástico, o que comprova o quão antigo é o
conhecimento a respeito do vinho e do plantio das bagas [GUARINELLO, 1997, p.
276]. Ao longo do período faraônico definiu-se a palavra “irp” para designar o
vinho. Segundo Poo [1995, p. 21], não existe uma explicação etimológica definitiva
para o termo, mas parece ter sido gerada a partir de uma concatenação com a palavra
“rp” que significa podre. O que demonstra satisfatório nexo, afinal o vinho é
produto de uvas “podres”, ou (para fazer uso de termo mais enológico) bagas
fermentadas. No período ptolomaico novos termos surgiram como forma de se
referir ao vinho, vocábulos que conhecemos a partir das liturgias de oferendas e
cenas de oblações inscritas nas paredes dos templos [POO, 1995, p. 21-22]. Ainda
sim o termo “irp” (representado por duas ânforas, como aquelas utilizadas para o
armazenamento da bebida) permaneceu presente, inclusive no Demótico e no
Cópita [BAKOS, 1994, p. 66].

Não obstante, o vinho no Egito se limitou, quase exclusivamente, a ser consumido:


“pelas classes elevadas da sociedade e pela família real, tal como ficou plasmado
na decoração das sepulturas privadas do Reino Novo, como a de Nebamun em
Tebas” [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p. 141]. De fato, como já é bem
difundido, a cerveja foi a bebida mais disseminada na antiga sociedade egípcia.
Sobretudo porque, ainda que desejassem, os grupos sociais menos abastados
dificilmente obtinham acesso aos vinhos, seu preço circulava entre cinco e dez
vezes superior ao da cerveja [PETRUSKI, 2015, p. 154]. Assim, sacerdotes e
soldados até poderiam receber vinhos como pagamentos, mas raramente tal produto
chegaria aos trabalhadores civis, agricultores, pastores, artesãos e serviçais
domésticos. Heródoto [1985, p. 112 apud BAKOS, 1994, p. 66], quando no Egito,
ratificou que o hábito mais comum era o de se consumir um: “vinho de cevada”,
pois o vinho de uvas era direito limitado a alguns. Contudo, os gregos e romanos
não apreciavam a cerveja que consideravam, como enunciou Tácito, uma bebida de
bárbaros [REGINA, 2017, p. 95]. Assim sendo, o vinho era artigo de luxo no Antigo
Egito, onde se estratificava, não muito diferente do modelo contemporâneo, as
bebidas que cabiam aos indivíduos de posses e não aos trabalhadores [CARLAN,
2012, p. 86]. Ao que tudo indica, um dos poucos momentos em que esse padrão se
alternava era durante as festividades de Bastet, nas quais os vinhos eram liberados
a todos os integrantes - aproximadamente setecentas mil pessoas de ambos os sexos,
sem contar as crianças, em contagem de Heródoto [PETRUSKI, 2015, p. 154].
Ainda, segundo Heródoto: “É consumido mais vinho neste festival do que no resto
do ano inteiro” [1993, p. 60 apud GIESTA, 2019, p. 123]. Isto porque, segundo a
religião egípcia, Bastet (a versão mais mansa da deusa felina Sekhmet) havido sido

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domada pelo poder milagroso e embriagador do vinho. Sekhmet foi induzida a
beber vinho, segundo o mito os deuses transformaram cerveja em vinho para que
sua coloração fosse feita semelhante ao sangue humano e confundisse a felídea
deusa. Amansada e ébria a grande leoa sanguinária se recolheu às margens do Nilo,
e, ronronando e espreguiçando, transformou-se na dócil gata Bastet [GIESTA,
2019, p. 68]. Por este motivo, apesar do deus egípcio do vinho ser Osíris, a bebida
era elemento fundamental nas festas de Bubástis (dedicadas a Bastet), uma vez que
a deusa passou a congregar elementos de soberana: “dos festivais, da embriaguez,
da maternidade, da sensualidade e das artes em geral” [PETRUSKI, 2015, p. 150],
tornando-se a: “senhora do vinho” da antiga religião faraônica [GIESTA, 2019, p.
128]. Notável que os egípcios já abordavam, com extrema seriedade, a ebriedade e
os problemas que poderiam decorrer do consumo excessivo de vinho (aliás, tais
preocupações parecem recorrentes em quase todas as culturas humanas) [AMUI,
2007, p. 66].

A bebida era oferecida pelos sacerdotes, ou mesmo pelo próprio Faraó. Em rituais
nos templos e em certas festividades, como a coroação ou o ano novo, era cedida
como representação do poder da família real [POO, 1995, p. 51-54]. O vinho, acima
de tudo, possuía caracteres metafísicos e estava fortemente relacionado com a
religiosidade egípcia [CARLAN, 2012, p. 86], por este motivo era ofertado aos
mortos para consumo além-vida e, a partir da 5ª Dinastia (2450-2325 AEC), passa
a compor a lista de ofertas funerárias descritas nos Textos das Pirâmides, além de
ser a mais notável bebida do Faraó no pós-morte [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM,
2012, p. 141]. A íntima relação entre vinho e religião se dava pela crença egípcia
de que a transformação do mosto de uva em bebida alcóolica era inspirada pelo
deus Osíris, que havia regalado o vinho aos homens. A posteriori, os helenos
atribuíram tal bênção a Dioniso, e os romanos, a Baco [QUEIROZ, 2010]. Em 1860,
o microbiólogo Louis Pasteur demonstrou cientificamente que a fermentação era
promovida pelas células de levedura, não por divinas ações [PANEK, 2003, p. 62].
É importante destacar que o conhecimento que temos hoje a respeito da alimentação
dos egípcios na Antiguidade se deve muito pelo significativo acervo de textos e
imagens gravadas nas paredes dos templos e tumbas, e pelas evidências
arqueológicas sobreviventes das oferendas cedidas aos mortos [GRALHA, 2012, p.
97]. Há vestígios de vinho dadivado aos finados, mesmo no período Pré-Dinástico,
em túmulos como os encontrados nas necrópoles reais de Abidos e Saqqara, as
bebidas eram dispostas em jarras de cerâmica com até um metro de altura, tampadas
com barro e com estampa do selo real [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p.
142]. Cenas cotidianas representando a viticultura e enologia egípcias foram
retratadas em paredes de sepulturas privadas desde o Reino Antigo (2575-2150
a.C.) até o período Greco-Romano e tardo-antigo (332 a.C.-395). Assim, a arte
evidencia como o processo de elaboração do vinho no Antigo Egito era bastante
similar ao célebre método tradicional europeu, utilizado até os dias atuais
[AJZENBERG, 2013, p. 81]. Emprestando noções do estudo empreendido por
Francis Joannes [1998] sobre a alimentação na Antiga Mesopotâmia, podemos
afirmar que, no Egito, a cerveja se destacava no banquete particular (ainda que se
fizesse acompanhada do vinho, caso os anfitriões pudessem arcar com tal despesa),

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enquanto o vinho possuía papel fundamental no banquete real e no banquete
religioso [Cf. GRALHA, 2012, p. 98]. Outro uso primordial que os egípcios tinham
para o vinho era a aplicação médica. Aliás, o primeiro escrito que trata do uso
medicinal do vinho vem da cidade de Nippur, cerca de 2000 AEC, fazendo
referência a unguentos fabricados na Suméria (à base de vinho), para o tratamento
de dermatoses [FERREIRA, 2004, p. 49]. A bebida foi utilizada para uma série de
terapêuticas, buscando o combate à asma, icterícia, obstipação intestinal, e
epilepsia. Para tanto era misturado com um preparado nomeado kyphi - um
composto de resinas, ervas, especiarias e até pelo de burro e excrementos de
pássaro. Segundo o médico José Ferreira [2004, p. 49-50], isso se devia a crença de
que muitos males físicos advinham de forças funestas que possuíam o paciente e
que poderiam ser expulsas caso o corpo se tornasse inabitável, por isso utilizavam
tão asquerosas substâncias.

Vinicultura: o fabrico do vinho egípcio


Segundo os métodos enológicos a produção de um bom vinho está condicionada a
caracteres geográficos, como terroir (solo), índice pluviométrico, incidência solar
e temperaturas adequadas [AJZENBERG, 2013, p. 81]. Segundo Cláudio Carlan
[2012, p. 83], no hemisfério Norte as uvas podem madurar naturalmente, entre os
paralelos 30º e 50º, o que coincide com uma região entre Marrocos e Egito, pelo
sul, até a França, pelo norte. Nas condições adequadas o mosto da uva entra em
fermentação, produzida pelas leveduras, que transmutam os açúcares das bagas em
álcool etílico e anidrido carbônico. Quando corretamente composto o vinho terá
equilíbrio entre acidez, açúcar e taninos [AJZENBERG, 2013, p. 82]. Em vista do
delicado processo de produção do vinho, e sendo uma bebida destinada à nobreza,
era preparado com extremo cuidado pelos produtores egípcios que, por vezes,
demoravam mais de um mês em seu fabrico [CARLAN, 2012, p. 83]. Portanto,
apesar do vinho não ser um produto oriundo do Egito, a viticultura e a vinicultura
foram amplamente desenvolvidas pelos antigos egípcios, tanto em termos práticos
quanto tecnológicos [AMUI, 2007, p. 12]. Graças aos vestígios arqueológicos, em
especial aqueles encontrados por Howard Carter na tumba de Tutankhamon
[REGINA, 2017, p. 95], sabemos que a antiguidade produziu uma grande
diversidade de vinhos: tintos e brancos, baratos e caros, abundantes e escassos em
qualidade, doces e secos, tratados e até adulterados [GUARINELLO, 1997, p. 277].
Das oito ânforas encontradas na sepultura do faraó, duas continham resíduos de
vinho tinto, cinco de vinho branco e uma de Shedeh (uma qualidade distinta de
vinho que se pensava ser feito com romãs, mas os estudos provaram ser, na
realidade, produzidos com uvas tintas) [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p.
147-148]. Assim, concluímos que no mínimo três variedades de vinhos eram
produzidas no Egito: tinto, branco e shedeh. Interessante notar que, a partir do Reino
Novo, as jarras e ânforas de vinho passaram a ter inscrições bastante detalhadas,
como o ano de produção, tipo de produto (irp ou shedeh), origem geográfica,
propriedade produtora e o nome do enólogo responsável pelo fabrico [FONSECA;
JANÉ; IBRAHIM, 2012, p. 144]. Por vezes ainda trazia comentários do produtor a
respeito daquela bebida, como propaganda, ou o selo de indicação da família real
para aqueles rótulos que compunham a “adega” do faraó [REGINA, 2017, p. 95].

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Estes padrões de rotulação das embalagens de vinho se mostram bastante
semelhantes às normativas atuais impostas por legislações da União Europeia.

As vinhas egípcias eram cultivadas, originalmente, avizinhadas ao Nilo, em área


protegida da inundação anual do rio. Posteriormente passaram para os Oásis do
deserto ocidental e para o Vale do Nilo [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p.
145]. O processo de vindima (colheita das uvas) começava nos finais do mês de
julho, época de cheia do Nilo, na qual o rio ganhava tons avermelhado devido à
grande concentração de sedimentos ferruginosos oriundos da região de Atbara. Para
os egípcios este fenômeno possuía relação mitológica com o sangue do deus Osíris,
que havia sido lançado morto ao Nilo [QUEIROZ, 2010]. Este fato, atrelado à
iconografia que representa uvas negras, levou diversos pesquisadores a imaginarem
que o vinho produzido no Egito era, tão somente, tinto [FONSECA; JANÉ;
IBRAHIM, 2012, p. 146]. Ainda sim, a imagética egípcia é a principal fonte para
compreendermos as etapas de preparação da bebida, conforme vislumbramos a
seguir:

Fig. 1 – Iconografia das etapas de produção do vinho representadas na tumba de


Amenemhat II em Beni Hassan, 3º faraó da XII Dinastia (1938-1775 AEC).
Fonte: FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p. 144.

Após a colheita das uvas, representada no primeiro quadro à esquerda, efetuavam a


prensa inicial, realizada a pés descalços. Um exemplo da engenhosidade dos antigos
é a barra horizontal utilizada para auxiliar os trabalhadores a manter o equilíbrio
enquanto pisavam as suculentas bagas [QUEIROZ, 2010]. Em um terceiro
momento havia a extração do sumo de uva utilizando uma lona de linho retesada
sobre uma armação de madeira, seguida por uma nova prensagem feita à mão
[VALDUGA, 2016]. À direita, na parte superior da imagem, um escriba registra a
contagem dos cestos de uva que, a posteriori, é disposta em ânforas e tampados com
barro para evitar a oxidação – convém ressaltar que o uso de ânforas de barro vem
sendo reutilizado por diversos vinicultores atuais, especialmente na região do
Alentejo, em Portugal, onde são chamados “vinhos da talha” [REGINA, 2017, p.
95]. No último quadro à direita, cabras se alimentam e simultaneamente limpam as
vinhas, reiniciando o ciclo [FONSECA; JANÉ; IBRAHIM, 2012, p. 144]. Assim,
podemos observar que a sistemática utilizada pelos egípcios para a produção de

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vinho na antiguidade inaugurou as bases dos métodos que os enólogos usam ainda
na atualidade. Um bom exemplo do conhecimento avançado dos antigos é quanto
ao potencial de guarda dos vinhos. Os vinhos mais leves eram guardados para
fermentar por um curto período, enquanto os mais alcoólicos passavam por longos
intervalos de fermentação, podendo ser aquecidos para aceleração deste processo
[VALDUGA, 2016]. Também, os egípcios costumavam produzir fermentados com
outras frutas, como figos ou tâmaras. Reza a lenda que Cleópatra era uma grande
fã dos vinhos feitos com tâmaras. Atualmente, por lei, vinho é unicamente a bebida
proveniente da fermentação de uvas, aquelas originadas por quaisquer outras frutas
devem receber nomes específicos [PANEK, 2003, p. 63].

Considerações finais
Em síntese, o vinho faz parte das culturas humanas desde os primeiros registros
históricos das mais antigas comunidades [AJZENBERG, 2013, p. 80]. Esteve
associado com a religião, status e hierarquia social, medicina e economia, sendo
elemento basilar do estilo de vida mediterrâneo. Esta bebida deixou profundas
marcas em todas as dimensões da antiguidade [GUARINELLO, 1997, p. 277].
Heródoto, em 445 AEC, descreveu certos vinhos egípcios como: “narcóticos,
brancos, excelentes, agradáveis, fragrantes, delicados, e que não chegavam à
cabeça” [REGINA, 2017, p. 94]. Sem sombra de dúvidas resenha digna de um
sommelier contemporâneo. Assim, o Antigo Egito, além de um povo de célebre
história, tornou-se uma sociedade de complexa vinicultura e grandes vinhos. Graças
às técnicas da antiguidade, aperfeiçoadas, por monges, sobretudo os beneditinos,
durante a Idade Média e, posteriormente, com assimilação das tecnologias
modernas, é que possuímos as várias técnicas enológicas da atualidade. Deste
modo, contemplamos que o vinho ia muito além do beber na sociedade egípcia,
deixando de ser mero alimento de subsistência e aderindo ao papel de elemento
sócio-cultural para todo o Mediterrâneo Antigo.

Referências bibliográficas
Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário
Claretiano (BAT). Formado pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da
Universidade Estadual Paulista (CTIG/UNESP) e pela Escola de Especialistas de
Aeronáutica (EEAr), atualmente é Controlador de Tráfego Aéreo. E-mail:
felipe.ruzene@ufpr.br

AJZENBERG, Elza. “A arte e o vinho” in Revista USP, n. 96, Dez-Fev, 2013, p.


79-88.
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em Psicologia clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 128 p., 2007.
BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre:
EdiPUC-RS, 1994.

29
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GIESTA, Eugénio José Castro. Bastet e Sekhmet: aspectos de natureza dual.
Dissertação: (Mestrado em História Antiga) – Faculdade de Letras, Universidade
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GRALHA, Julio Cesar. “Abordagem Sócio-Cultural da Alimentação no Egito
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VALDUGA, Luisa. A história do vinho no mundo: entenda como esta bebida
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https://blog.famigliavalduga.com.br/a-historia-do-vinho-no-mundo-entenda-
como-esta-bebida-colonizou-os-continentes/

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