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ANTOLOGIA DE

VIDAS CÉLEBRES
A N T O L O G I A DE V I D A S C É L E B R E S

HERMES
O R F EU
T E SEU
RÔMULO
Seleção, organização, tradução e notas de
Y olanda L. dos Santos e Cláudia Santos

L ivraria e E ditôra LOGOS L tda.


Rua 15 de Novembro, 137 - 8.° andar - Tel.: 35-6080
SÃ O P A U L O
1.a edição, Junho de 1960
2.a edição, Maio de 1961

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


ÍNDICE

Prefácio .......................... 7
Origens do E g ito ..................................................................... 11
Hermes .................................................................................... 19
Notícia ...................................................................................... 23
A Esfinge ................................................................................ 27
A Grécia e o Egito nos séculos VI e V I I ................ 63
Que se entende por orfism o................................................ 71
Orfeu ........................................................................................ 77
Teseu ........................................................................................ 112
A Época Homérica................................................................. 113
Teseu, de Plutarco ................................................................. 121
Rômulo .................................................................................... 149
As Origens de R om a............................................................. 151
Rômulo, de Plutarco............................................................... 169
PREFÁCIO

Orientou-se sempre a Livraria e Editôra LOGOS Ltda. por


um programa traçado, que se dirige a uma finalidade: a de
contribuir, de modo efetivo, ao progresso cultural do povo bra­
sileiro. Por essa razão, jamais tendeu para a publicação de
obras de êxito momentâneo, de autores dissolventes, que explo­
ram os baixos sentimentos e paixões humanas, ou para a publi­
cação de obras de ficção, intencionalmente dirigidas a explorar
as fraquezas do leitor e não a sua grandeza e força.
Tende, assim, a Logos para a publicação dos clássicos sau­
dáveis e das obras de filosofia sã, bem como dos autores que
realizaram obras edificantes do caráter, dos sentimentos e do
saber.
Com a publicação desta ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLE­
BRES, o intuito principal é o de permitir ao leitor brasileiro
ter uma visão da história humana, tomando como ponto de
referência os grandes homens, construtores de idéias e de po­
vos, que tiveram um papel saliente e extraordinário no pro­
cesso histórico. Aproveitando famosas biografias, dos mais
categorizados autores de todos os tempos, situa essas vidas,
examinando-as com bases e referências históricas, capazes de
oferecer ao leitor um panorama claro do momento em que vi­
veram e das influências que exerceram em seus vindouros.
Assim, cada biografia é acompanhada de notícias históri­
cas e de rápidos estudos realizados por famosos historiadores,
que facilitam a visão e a vivência do clima histórico em que
viveram homens de tal valor, favorecendo ao leitor um conhe­
cimento mais vasto em extensão e em profundidade.
Dêsse modo, esta ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES
é também uma visão da história humana, porque, ao lado da
história individual, coloca a do povo e das épocas em que vi­
veram.
Está cônscia a Livraria e Editora LOGOS Ltda., que, com
esta edição, contribui para fortalecer as bases de nossa cultu­
ra. E agradece o apoio nunca desmentido dos inúmeros clien­
tes em todo o país, que a têm honrado com a sua preferência.
Livraria e Editora LOGOS Ltda.
ORIGENS DO EGITO

José Pijoan

O Egito teve um passado pré-histórico. No vale d© Nilo,


o homem primitivo viveu errante, como os modernos austra­
lianos, com grosseiros utensílios de pedra, que hoje se encon­
tram debaixo do limo acumulado pelas inundações. É difícil
calcular a idade dêstes restos humanos, sílex e fragmentos de
vasilhas, porque não sabemos com que rapidez se formou o ter­
reno sedimentário que os cobre. Agora o Nilo deixa, anual­
mente, uma camada de cêrca de meio centímetro de espessura,
mas, em tempos mais remotos, devia ter um clima diferente
do atual; isto é, confirmado ao encontrar-se, de cada lado do
vale do Nilo, uadis ou torrentes sêcas, com sinais de terem sido
rios caudalosos. Encontram-se, também, grandes árvores pe­
trificadas em lugares onde não caiu nenhuma gota de água há
milhares de anos. O deserto, que se estende de cada lado do
vale, absorve de tal forma a umidade que se evapora do Nilo,
que já na época dos faraós a chuva era um fenômeno muito
raro no Egito.
Não sabemos com exatidão se os primeiros povoadores do
vale do Nilo eram ainda mediterrâneos ou pertenciam já a uma
raça hamítica, apesar dêste nome somente asseverar que não
eram semitas. Nos tempos históricos, a raça dos antigos egíp­
cios estava muito misturada, mas o tipo primitivo reaparecerá
no fellah, ou camponês egípcio de nossos dias, sem manifestar
muitas mudanças desde o tempo das pirâmides.
Por volta do oitavo milênio a. C., o vale do Nilo devia ter
entrado no regime atual de país sem chuva, fecundado pela
inundação, que anualmente umedece o solo e fertiliza os cam­
pos, deixando sobre êles uma camada de limo. Esta inunda­
ção, cuja causa era desconhecida dos antigos egípcios, é devida
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ao fato do Nilo crescer durante o verão com as chuvas tropicais


e com a fusão das neves das montanhas do centro da África.
Quando a inundação cessa, no nono mês do ano, o fellah, para
procurar água, tem que tirá-la do rio com odres de couro e
artefatos muito primitivos, chamados chadufs e, na Andaluzia,
cigonales, anteriores às nórias, que os árabes importaram.
Por volta do sexto milênio a. C., deviam ter chegado
ao Egito povos de raça já seguramente africana, possuindo
utensílios de pedra polida e cerâmica. Deviam já conhecer,
também, os metais, porque, nas mais antigas inscrições dos
egípcios, fala-se dêstes invasores pré-históricos como ferreiros.
Eram chamados também servidores de Horus, e conta-se que
se fizeram fortes primeiramente em Edfu, no alto Egito. Sa­
bendo que os seus inimigos se tinham reunido perto de Telas,
os invasores, armados de lança e providos de cadeias, subju­
garam-nos e escravizaram os antigos aborígenes do vale.
Esclarece-se, nesta tradição, que a superioridade dos re-
cém-chegados devia basear-se nas armas de cobre que possuíam,
metal que não existia no Egito e se encontra no Sudão. Além
disto, até nos tempos faraônicos, enviavam-se expedições a um
país do Sul, que os egípcios chamavam "País do Punt”, para
proverem-se de certas especiarias e perfumes, que eram de uso
litúrgico nos templos. Nos tempos históricos, a viagem ao país
do Punt se fazia por mar, mas as caravanas traziam também
por terra os produtos do centro da África, que eram muito
apreciados pelos egípcios. Aos ferreiros invasores atribui-se
a primeira cerâmica pintada do Egito. Seus vasos estão feitos
à mão, sem torno, mas com massas finas, e sobre a cor parda
da argila pintaram figuras e desenhos ornamentais com outra
cor mais escura. Nos desenhos dos animais, vemos o elefante,
o avestruz, que nunca existiram no vale do Nilo. Isto corro­
boraria a origem africana dos invasores, como também as si­
lhuetas de montanhas, que aparecem desenhadas como triân­
gulos negros.
Assim teríamos, no Egito, duas raças primitivas, os aborí­
genes, talvez mediterrâneos, e os invasores, já africanos. Mas
Flinders Petrie faz notar que já nas mais antigas representa­
ções dos relevos dos túmulos aparecem até seis tipos de habi­
tantes do vale do Nilo, e que, por seu aspecto, alguns deviam
ser líbios e outros sírios ou asiáticos. Tal mistura e cruzamen­
to de raças deve ter sido favorável para a produção de um
novo tipo humano. Não se encontram em nenhum documento
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 13
do Egito restrições ou iabus que impeçam o cruzamento: fre­
qüentemente, os faraós se casavam com estrangeiras, e o mes­
mo acontecia com os cidadãos comuns. Os estrangeiros não
encontravam, tampouco, dificuldades para conseguir cargos pú­
blicos, o que é provado pela história de José na Bíblia, e outros
casos parecidos, como testemunham os epitáfios dos túmulos.
Provàvelmente, devido à variedade de população, desde a época
pré-dinástica, o Egito aparece dividido num sistema de vinte
províncias ou nomos, que conservaram certa autonomia até à
época romana. Cada nomos tinha um animal patronímico, que
começara sendo o totem de um clã e; depois, foi um dos deuses
do panteão egípcio.
A história dos primeiros tempos pré-dinásticos, quando os
nomos eram ainda independentes, é conhecida vagamente por
uma série de baixos relevos gravados em pequenas placas de
pedra, que chamamos paletas (palhêtas). A razão dêste nome
deriva do fato de supor que, a princípio, serviram verdadeira­
mente de palhetas para diluir as cores com que pintavam o
corpo os habitantes do vale do Nilo. Às vêzes, as palhêtas têm
relevos nos quais, evidentemente, se trata de comemorar datas
históricas. Numa se vê uma quadratura com torres, que deve
indicar cidades muradas, capitais representativas dos nomos.
Dentro há um totem animal e, acima dêle, outro, que parece
dominá-la ou possuí-la. Noutra palhêta, vemos o Leão aliado
com os Corvos, perseguindo inimigos nus, de cabelo eriçado e
com barba. E ainda, numa terceira, o Leão aparece- vencido
pelos mesmos guerreiros, que levam grandes arcos.
Apesar da informação que nos trazem as palhêtas pré-
-dinásticas do Egito ser muito incoerente e confusa, nada se­
melhante encontramos na Europa pré-histórica. E se a isto
ajunta-se que alguns dos animais ali representados são os mes­
mos que se mantiveram com caráter sagrado até os tempos
históricos, seu estudo deixa entrever que pode aclarar-se o pro­
blema da pré-história do Egito nos seus primórdios. O pri­
meiro faraó, da primeira dinastia, chamava-se Menes ou Mena.
Mas antes de Menes devia ter havido dinastias "pré-dinásti-
cas”, que distinguimos com números negativos; a dinastia me­
nos um, a dinastia menos dois, etc. Restabelecemos as suas
séries, valendo-nos de meros selos reais, pois os cronistas egíp­
cios não se interessaram pelas dinastias anteriores a Menes;
provàvelmente porque foi êste o primeiro faraó que unificou
o Egito. Ainda que seja quase certo que antes os nomos in­
14 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

dependentes se juntaram em duas alianças ou confederações,


uma no Alto Egito, ou seja, a parte sul do vale até a primeira
catarata, e outra no Baixo Egito, no Delta. Até Menes, rei
do Delta, ninguém tinha levado as duas coroas. A dos mo­
narcas do Baixo Egito era uma espécie de tiara alta; a do
Alto Egito, um barrete circular.
A partir de Menes, a cronologia do Egito baseia-se na
série das dinastias compiladas por Mâneton, por encargo de
Ptolomeu II, em princípios do século III antes de Cristo. Mâ­
neton era um sacerdote do templo de Sebenitos, no Delta, que
conhecia muito bem a história antiga de sua pátria e escreveu
um livro cheio de erudição e exatidão. Mas o seu texto desa­
pareceu, e somente o conhecemos por extratos de escritores
cristãos que não concordam entre si, porque todos pretendem
harmonizar a cronologia de Mâneton com a da Bíblia, e para
consegui-lo, refundiram dinastias, intentando conseguir um
número de anos igual ao que, segundo êles, assinala a Bíblia
para a criação do mundo. Por sorte, o cômputo de Mâneton
se suplementa com papiros e inscrições, sendo assim, ficam
somente algumas dúvidas acêrca da ordem e duração das di­
nastias.
Ao se chegar à décima-oitava dinastia já não há dificulda­
des; começa o ano 1530 a. C., e desde esta data, reinado por
reinado, ano por ano, sabemos o que ocorre no Egito. Além
disto, a cronologia do Egito pode ser aclarada com ajuda do seu
calendário, Os egípcios contavam o ano como de 365 dias, quan­
do na realidade tem 365 dias e 6 horas, razão pela qual ajun­
tamos, de quatro em quatro anos, um dia no mês de fevereiro.
Esta perda anual de um quarto de dia fêz mudar, com o tempo,
as estações e até os meses, porque os egípcios dividiam o ano
exatamente em doze meses. Assim é que, por exemplo, o mês
em que as águas do Nilo se retiravam, que corresponde ao
nosso mês de dezembro, segundo uma inscrição, era o terceiro
mês, quando um tal Uni, servidor do rei Meruere, da sexta di­
nastia, foi buscar pedras para a pirâmide do faraó. Segundo
outra inscrição do ano 2050 a. C., a colheita do cânhamo, que
agora se faz no Egito durante o mês de abril, foi, naquele ano,
no mês décimo-primeiro. Por dados deste tipo, como cada ano
os meses se retardavam um quarto de dia, sabemos que são
precisos exatamente 1460 anos para que voltem a coincidir as
estações, dia por dia ou, melhor dizendo: para se perder 365
dias necessita-se de 1460 anos.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 15
Até pouco tempo, todos os egiptólogos estavam conformes
que a XVIII dinastia começara no ano 1580 a. C., mas para as
dinastias anteriores havia duas cronologias que divergiam
precisamente numa média de 1460 anos. Para os alemães, a
primeira dinastia começaria 3500 a. C., enquanto que, para os
ingleses, começava antes, no ano 4960. Mas, descobrimentos
inesperados na Palestina, deram razão aos alemães, e já nin­
guém contradiz o que chamamos curta cronologia.
Menes realizou, pois, a unificação do Egito até a metade
do quarto milênio a. C.. Já, então, os egípcios tinham conse­
guido grandes progressos culturais; tinham já hieróglifos bem
legíveis. Braceletes de ouro admiràvelmente entalhados com
figuras de flores, vasos de pedra e objetos de marfim se en­
contram também nos túmulos da primeira dinastia. Tábuas
mortuárias dão o nome dos seguintes funcionários: camarista
do rei, regulador da inundação, copeiro ou encarregado das
adegas, arquiteto real, arquivista e mestre de cerimônias; per-
fumista real e sapateiro, o que faz as sandálias. Menes e seus
sucessores mais diretos gorvernavam, pois, um Estado civil
perfeitamente organizado.
Durante os reinados dos faraós das três primeiras dinas­
tias, a religião egípcia, que no princípio devia ser um conjunto
de cultos totêmicos, unificou-se, tomando caráter nacional o
culto de Osíris. A lenda de Osíris, como todos os mitos reli­
giosos, passou por diversos estados de elaboração. É quase
seguro que contém um fundamento histórico. Numa época
remota, quando o Egito ainda não estava unificado, houve no
Delta um princípio de consolidação com dois reinos separados
pelo Nilo. Um era o Reino da Abelha, e o outro o Reino do
Junco, talvez porque na região oriental, mais desértica, o que
predominava eram abelhas e mel, enquanto que, na região oci­
dental, mais úmida, as pessoas utilizavam juncos para tecer e
comerciar em cestaria. Naquela região, assim dividida, reina­
vam dois irmãos: Osíris e Set, casados com duas irmãs: ísis
e Nefer. Set sentiu inveja de Osíris, porque era engenhoso,
inventor das artes e da agricultura; os egípcios chamavam-no
o Onufler, que quer dizer o "Benfeitor”. Devorado pela inve­
ja, Set matou Osíris, encerrou-o num cofre-ataúde e lançou-o
ao Nilo. O cofre com o cadáver de Osíris foi visto flutuando
pelo rio e pelo mar, até que chegou a Biblos, na Fenícia. Ali
foi recolhido por sua esposa Isis, que usando de conjurações
e artes mágicas, chegou a devolver-lhe a vida. ísis e Osíris
16 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

regressaram ao Egito, mas, pela segunda vez, Set matou o Ben­


feitor, e para evitar outra ressurreição, despedaçou-o, distri­
buindo suas partes por todas as regiões do vale. ísis as foi
reunindo uma por uma com a esperança de devolver-lhe nova­
mente a vida, mas não pôde conseguir um órgão importante
do corpo, que Set tinha atirado ao rio e tinha sido devorado
por um peixe. ísis conseguiu recompor o corpo de Osíris e
com outras magias e conjurações, infundiu-lhe uma vida su­
perior, depois de envolvê-lo como uma múmia. Por isto Osíris,
deus amortalhado, é o que julga as almas e as admite no reino
do além, se as considera justas.
As almas chegam ao julgamento de Osíris depois de su­
perar provas pelo caminho; para tal os cadáveres são providos
de rolos do Livro dos Mortos, onde estão escritas as conjura­
ções e os exorcismos que ísis ditou. A reputação de ísis, como
deusa da magia, durou até à época romana, e ainda hoje os
extraviados, que se entregam às ciências ocultas, acreditam
possuir textos de ísis. No dia do julgamento, ísis está junto
às almas, quando Anubis as coloca na balança; o deus notário,
Tot, aponta o pêso, e Amit, o crocodilo devorador, está junto
das grades do trono de Osíris, disposto a tragar os mortos, cuja
alma pesa mais que uma leve pluma. Estes participantes do
julgamento, Tot, Anubis e Amit, têm aspecto de animal, ou
pelo menos, conservam as cabeças dos totens zoomórficos. Sua
presença no tribunal de Osíris é resultado de um processo de
sincretização. Os deuses locais, ou, melhor, os animais sagra­
dos dos diferentes nomos, que se associaram ao mito nacional
de Osíris e ísis, atuam como acessórios.
O mais interessante caso de adoção é o de Horus que, como
já dissemos, foi o deus ou totem dos invasores do Sul quando
chegaram em época antiga ao vale do Nilo. O centro da de­
voção de Horus estava no Alto Egito, num local chamado de­
pois pelos gregos Hierakómpolis, que quer dizer Cidade do Fal­
cão, porque Horus se venerava sob o aspecto daquela ave. Para
incluir Horus no mito de Osíris, supôs-se que ísis foi ao Alto
Egito e, numa ilha do Nilo, deu à luz a um filho póstumo de
Osíris, que era nada mais nada menos do que Horus. Apenas
nasceu, tratou de vingar o pai e lutou em descomunal batalha
com Set, a quem conseguiu somente mutilar. Horus perdeu
um olho na luta, que, arrancado por Set, é o disco solar. Assim
a religião reconciliou as duas regiões: Horus, o deus dos "fer­
reiros”, o grande deus do Alto Egito, o deus africano, conser-
0 Faraó Kefren
Alio relêvo egípcio
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 17
vou sua fisionomia de falcão, mas se associou com ísis e Osíris,
deuses do Delta, mediterrâneos, para constituir uma primeira
trindade egípcia. Em volta destas figuras centrais: Osíris, o
herói cultural, a consorte Ísis, senhora da magia, e o filho pós­
tumo Horus, que combatia sem cessar o infecundo e árido Set,
senhor da sêca e do deserto, agruparam-se todos os outros
deuses tribais do Egito pré-dinástico para funções especializa­
das pelo rito funerário.
Somente um grande deus do Delta permaneceu alheio ao
sincretismo. Solitário, inconfundível, manteve-se por cima da
mitologia que se formou em volta de Osíris, ísis e Horus. Êste
é Rá, o deus do templo de On, que os gregos chamaram Helió-
polis, ou cidade do Sol. Heliópolis está coberta pelo aluvião
do Nilo, e sua excavação é mais difícil porque se edificou ali
o bairro elegante do Cairo. Não sabemos exatamente em que
consistia a religião de ttá, em On, mas suspeitamos, que con­
tinha algo muito mais universal e eterno que a fábula de Osí­
ris. Heiiópolis foi o lugar onde foram para aprender os gre­
gos que iniciaram o pensamento europeu: Taies, Platão, Jtle-
ródoto, Sóion e Pitágoras; destes consta a viagem ao Egito, e
por conseguinte, a Heliópolis; mas de muitos outros "sofistas”
e filosoíos gregos se tem somente referencias de que visita­
ram o vale do Nilo. E se foram ao Egito, não foram para
informar-se de genealogias de deuses pré-históricos, e sim para
aprender a ciência que se escondia detras das muralhas bran­
cas cto templo de On-Heiiópolis. Aii navia um símbolo, num
pátio circular, a céu aberto, com a íorma de obelisco, cnapar-
reiro, que era imagem-deíinição do universo. Tudo pode redu-
zir-se a fórmula matemática ou geométrica, e a mais simpies
— que deve ser a que contém todas as coisas — é o volume
triangular da pirâmide obelisco. A ponta representa o zênite,
onde caem os raios solares que animam e sustentam tôdas as
coisas. Nada há que não possa reduzir-se à medida, nada há
incomensurável para a inteligência de Rá. Às vezes fará falta
uma fórmula longa para definir um ser ou uma coisa; outras
vêzes será necessário defini-los com uma relação de valores,
como uma série de notas musicais formando harmonia, mas
sempre haverá uma definição matemática, que é a essência, a
idéia, a alma do ser ou objeto.
Assim, enquanto o culto de Rá favorecia o progresso das
ciências exatas, a prática de embalsamento, que derivava do
eulto de Osíris, devia proporcionar informação sôbre anatomia
18 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

e originar uma classe de cirurgiões. Os antigos egípcios vene­


ravam como deus a um tal Imhotep, que foi vizir do último
faraó da terceira dinastia. Imhotep escreveu muitos tratados
de medicina e irrigação, que se perderam, mas dêles se encon­
tra eco nos escritos posteriores. Demonstram um grande sen­
tido de observação dos fenômenos naturais, especialmente da
enchente do Nilo. Diagnosticam-se casos de feridas, fraturas
do crânio, febres e os resultados são prognosticados com uma
visão certa. Imhotep foi considerado herói cultural, digno de
reverência e culto, até à época romana. Os gregos, sem sabei'
exatamente quem era, identificaram-no com Esculápio, seu
deus da Medicina. No famoso papiro Ebers vêem-se receitas;
com o emprêgo de plantas medicinais para doenças do coração.
É de época tardia, do ano 1500 a. C., mas justamente deriva
de um original anterior.
Os edifícios ao pé das pirâmides revelam o princípio dos
estilos de arquitetura que predominaram no Egito durante as
dinastias posteriores. Em retratos, relevos e esculturas dos
túmulos, vemos faraós e seus altos dignitários representados
com uma vida que não conseguimos hoje, apesar dos nossos
adiantamentos e educação artística. Mas observaremos que o
grande mistério do Egito não é a sua perfeição e sim a sua
formação. Tudo de importante da cultura e religião egípcias
remonta à época das primeiras dinastias, e muito do mais an
tigo do Egito deve ser da época pré-dinástica.
HERMES

Segundo Henri Durville

Henri Durville, referindo-se a Hermes Trismegisto diz:


"Foi sua doutrina que inspirou toda a iniciação mediterrânea;
é a ela que nós devemos os mistérios de Orfeu, os ensinamen­
tos de Pitágoras, os diálogos de Platão”.
Clemente de Alexandria cita 42 livros de Hermes Tris­
megisto; por infelicidade nem todos nos vieram às mãos.
O mais célebre daqueles que nos restam é o Poimmder ou
Pimandro e com êle Asclépios ou o "Discurso de Iniciacão” e
a Tábua de Esmeralda, um dos textos primordiais das inicia­
ções ocultas e muitas vêzes comentado.
Jâmblico atribui a Hermes Trismegisto um número de li­
vros que não poderiam ser escritos durante a vida de um só
homem, o que confirma que o nome do autor é o símbolo de
um centro iniciático.
Jâmblico diz que Hermes escreveu 20.000 obras, das quais,
aliás, êle não dá os nomes.
Luís Ménard, a quem devemos uma das melhores tradu­
ções das obras de Hermes Trismegisto, testemunha que esta
opinião é também a sua, quando diz, a propósito de Jâmblico:
"Hermes, que preside à palavra, é, segundo a tradição an­
tiga, comum a todos os sacerdotes; é êle que conduz à ciência
verdadeira; está em tudo.
Eis por que os nossos antepassados lhe atribuíam todas
as descobertas e subordinavam todas as obras ao nome’ de
Hermes”.
20 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Pimandro, Asclépios e Tábua de Esmeralda são obras de


um mesmo homem, de uma mesma escola? Pouco importa.
Sob o ponto de vista em que nos colocamos, o autor ficar-
-nos-á sempre desconhecido, e a doutrina, que é só o que está
em questão, no que concerne aos trabalhos iniciáticos, apre­
senta uma maravilhosa unidade.
Qualquer que seja a época de sua produção respectiva,
qualquer que seja o escritor que as formula, estas três obras
são consideráveis pelo seu ensinamento, e revelam todas três
a mesma iniciação.
Lancemos um golpe de vista sobre o Pimandro e Asclépios,
segundo a excelente tradução de Luís Méiard.
No Pimandro, Hermes, ainda discípulo, recebe os ensina­
mentos de Pimandro, que é a consciência superior, diretora
do homem, quando êle se coloca sob as ordens da inteligência
soberana ou divina, da qual todos os universos não são ma^b
do que uma fraca imagem.
Que ensina a seu discípulo esta inteligência suprema?
Nada que não possa e não deva realizar um adepto do
nosso tempo, pois os meios de evolução são os mesmos através
das idades, para chegar ao mesmo fim : a evolução na luz.
O discípulo deve primeiramente abrir os olhos ao espetá­
culo do mundo criado, do qual cada ser é a imagem de uma
realidade superior.
Deve adquirir a ciência para possuir mais meios de se
aproximar da inteligência infinita e de se aperfeiçoar no co­
nhecimento.
Deve colocar êste saber tão necessário acima de todas as
alegrias materiais, e é por isso que deve ser sóbrio, ter aver­
são ou piedade pelos prazeres materiais que nos dão apenas
gozos passageiros e vãos, pagos de um modo muito caro pelo
rebaixamento da inteligência.
Ao contrário, o conhecimento nos conduz, por alegrias se­
renas, aos cumes cheios de luzes, onde o vulgo não atinge.
Quando as paixões são dominadas e quando não resta mais
senão a sensibilidade necessária para compadecer-se dos males
dos outros, o adepto deve abrir o seu coração, procurar no alto
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 21
um piloto, um diretor, que seja o mestre de sua inteligência
mais apurada, mais educada, porque o homem atinge muito
dificilmente, por si mesmo e por seus únicos esforços, esta luz
brilhante e pura, que o conduz por caminhos secretos para
Deus, desconhecido da multidão, mas que, para o iniciado, faz
sentir a sua presença em todas as coisas.
Nada poderíamos fazer melhor do que citarmos o texto
em que Ménard, tão subtil filósofo quão profundo helenista,
soube guardar todo o valor iniciático:
"Para onde correis, homens ébrios? Bebestes o vinho da
ignorância e, não podendo suportá-lo, já o rejeitais. Tornai-
-vos sóbrios e abri os olhos de vosso coração, senão todos, ao
menos aquêles que puderdes. O flagelo da ignorância inunda
toda a terra, corrompe a alma encerrada no corpo e a impede
de entrar no porto da salvação.
Não vos deixeis levar pela corrente; voltai, se puderdes,
ao porto da salvação! Procurai um piloto para vos conduzir
às portas da Gnose, onde brilha a luz admirável, livrando das
trevas, onde ninguém se embriaga, onde todos são sóbrios e
volvem os olhos do coração para Aquêle que quer ser contem­
plado, o inaudito, o inefável, invisível aos olhos, visível à in­
teligência e ao coração” (Hermes Trismegisto).
HERMES

Notícia

Hermes é o nome que os gregos davam ao deus egípcio


Toth, que foi, de início, adorado no Egito Médio, onde os gre­
gos construíram a chamada cidade de Hermes, Hermópolis, a
grande, para distingui-la de outra Hermópolis, que se achava
no Delta. Os egípcios simbolizavam Toth pelo Cinocéfalo e
pelo íbis. Também foi identificado com a Lua, Ioh, e essa é
a razão por que foi êle considerado o inventor da Cronografia,
cabendo-lhe contar os dias, os meses, os anos, medir o tempo
e até a duração da existência. Toth é, nos mitos, o escriba de
Osíris, e também considerado o inventor da escrita e, conse­
qüentemente, de todas as ciências e artes dependentes da
escrita.
É tido como o criador da medicina, da astronomia, da
astrologia, etc.; é também mágico, e lhe cabia, após a morte,
julgar os homens. Quando os gregos tomaram contacto com
o Egito, desejosos de conhecer sua religião e buscar compreen­
der a equivalência entre as divindades egípcias e os próprios
deuses, assim como identificaram Neith com Atena, Osíris com
Dioniso, Horos com Apoio, Toth foi identificado com Hermes.
Não é de admirar que no tempo de Ptolomeu I surgisse o deus
com o nome de Toth-Hermes.
Como Hermes era o intérprete dos textos sagrados, daí
veio a palavra hermenêutica, a arte da interpretação dos textos.
Figura mítica, em torno de Hermes, como em torno de
Toth, correm muitas lendas, que permitem que sobre o mesmo
se construam diversas interpretações sobre o seu valor histó­
rico, atribuindo-lhe alguns essa realidade, e outros, apenas, a
de um mero mito dos povos de então.
HERMES

(Os Mistérios do Egito)


de Edouard Schuré *

Ó alma cega! arma-te com o facho dos Mistérios e tu des-


cobrirás na noite terrena o teu Duplo luminoso, a tua Alma
celeste. Segue esse guia divino e que êle seja o teu Gênio: —
Porque êle contém a chave das tuas existências passadas e
futuras.
APÊLO AOS INICIADOS
(Do Livro dos Mortos)
Escutai-o em vós mesmos e vêde-o no infinito do Espaço
e do Tempo. Ali reboa o canto dos Astros, a voz dos Números,
a harmonia das Esferas.
É cada sol um pensamento de Deus e cada planêta um
modo dêsse pensamento. É para conhecer o pensamento de
Deus, ó almas!, que desceis e subis penosamente o caminho dos
sete planêtas e dos seus sete céus.
Que fazem os Astros? Que dizem os Números? Que ro­
lam as Esferas? — Ò almas perdidas ou salvas, eles dizem, eles
cantam, elas rolam, — os vossos destinos!
Fragmento (De Hermes)

(*) Êste trabalho de Edouard Schuré é verdadeiramente valioso


pela síntese que oferece sobre as iniciações herméticas do antigo Egito,
razão pela qual não nos poderíamos furtar de publicá-lo.
A ESFINGE

0 Egito foi no mundo antigo, em face da Babilônia, essa


metrópole tenebrosa do despotismo, uma verdadeira cidadela
da ciência sagrada, uma escola para os seus profetas mais ilus­
tres, um refúgio e um laboratório das mais nobres tradições
da humanidade. Devido a imensas escavações, a trabalhos ad­
miráveis, nós conhecemos hoje êsse povo melhor que nenhuma
das civilizações que precederam a Grécia, porquanto êle nos
reabre a sua história escrita em páginas de pedra (1).
Desenterram-se os seus monumentos, decifram-se os seus
hieróglifos; e, todavia, resta-nos ainda penetrar o arcano mais
profundo do seu pensamento. Êsse arcano é a doutrina oculta
dos seus sacerdotes, e tal doutrina, cientificamente cultivada
nos templos, prudentemente velada pelos mistérios, mostra-nos
ao mesmo tempo a alma do Egito, o segrêdo da sua política e
seu papel capital na história do universo.
Os nossos historiadores falam dos faraós no mesmo tom
em que se referem aos déspotas de Nínive e da Babilônia.
O Egito é para êles uma monarquia absoluta e conquistadora
como a da Assíria, e não difere desta senão por ter durado
alguns milhares de anos mais. Aperceber-se-ão êles de que na
Assíria a realeza esmagou o sacerdócio, para o tornar em ins­
trumento seu, enquanto que no Egito é o sacerdócio que dis­
ciplina a realeza, não abdicando nunca, mesmo nas piores épo­
cas, impondo-se aos reis, inutilizando os déspotas, governando
sempre a nação: e tudo isso devido a uma superioridade in­
telectual, a uma sabedoria profunda e oculta que nenhuma ins­
tituição de ensino há jamais igualado em país algum e em
qualquer tempo? Custa-me a crê-lo, porque bem longe de ex-
(1) C h a m p o llio n , UEgypte sons les Pharaons; B u n se n , Aegyp-
tische Alterthümer; L e p isu s, Denkmaeler; P a u l P ie r r e t, Le livre des
Morte; F ra n ç o is L e n o rm a n t, Histoire des peuples de VOrient; M a s-
p ero, Histoire ancienne des peuples de VOrient, etc.
28 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

traírem as conseqüências inumeráveis que derivam dêsse fato


essencial, os nossos historiadores têm-no apenas entrevisto, pa­
recendo não lhe dar a mínima importância.
Não é, todavia, necessário ser-se arqueólogo ou filólogo
para se compreender que o rancor implacável existente entre
a Assíria e o Egito provinha do fato de êsses dois povos repre­
sentarem no mundo dois princípios opostos, e o povo egípcio
dever a sua longa duração a uma ossatura religiosa e cien­
tífica mais forte que todas as revoluções.
Desde a época ariana, através do período tôrvo que seguiu
os tempos védicos até à conquista persa e à época alexandrina,
quer dizer durante um lapso de tempo superior a cinco mil anos,
o Egito foi como que a fortaleza das mais altas doutrinas, cujo
conjunto constitui a ciência dos princípios e que poderá cha-
mar-se a ortodoxia esotérica da antigüidade. Cinqüenta dinas­
tias se puderam suceder, o Nilo alastrar sobre cidades inteiras
as suas aluviões, a invasão fenícia inundar o país e ser de lá
expulsa, e, entre todos os fluxos e refluxos da história, sobre
a idolatria aparente do seu politeísmo exterior, o Egito conser­
vou o velho fundo da sua teogonia oculta e a sua organização
sacerdotal. Ela tem resistido aos séculos como a pirâmide de
Gizé, semi-soterrada na areia, mas intacta. Graças a essa imo­
bilidade de esfinge, guardando o seu segrêdo, à sua resistência
de granito, o Egito tornou-se o eixo em torno do qual o pensa­
mento religioso da humanidade evolui, indo da Ásia à Europa.
A Judéia, a Grécia, a Etrúria, tantos centros de vida que for­
maram outras tantas civilizações diversas, onde foram buscar
as suas idéias mães, senão à reserva orgânica do velho Egito?
Moisés e Orfeu criaram duas religiões opostas e prodi­
giosas, uma pelo seu monoteísmo árido, a outra pelo seu poli­
teísmo deslumbrante. Mas em que molde é que o seu gênio
se forma? Onde é que um encontra a força, a energia, a audá­
cia de refundir um povo semi-selvagem, como o bronze numa
fornalha, e o outro a magia de fazer falar os deuses, como uma
lira afinada, à alma dêsses bárbaros encantados?
Nos templos de Osíris, na antiga Tebas, que os iniciados
chamavam a cidade do sol, ou a Arca solar, — porque ela
continha a síntese da ciência divina e todos os segredos da
iniciação.
Todos os anos, pelo solstício do estio, quando tombam as
chuvas torrenciais da Abissínia, o Nilo muda de cor e toma
êsse tom de sangue de que fala a Bíblia. O rio cresce até ao
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 29

©quinócio do outono, escondendo sob as suas vagas o horizonte


das margens.
Mas, erectos sobre os seus planaltos de granito sob o sol
enceguecedor, os templos talhados na rocha, as necrópoles, os
pilões, as pirâmides refletem a majestade das suas ruínas no
Nilo, tornado um mar.
Assim o sacerdócio egípcio tem atravessado os séculos com
a sua organização e os seus símbolos, arcanos longo tempo im­
penetráveis da sua ciência. É nesses templos, nessas criptas
e nessas pirâmides que se elabora a famosa doutrina do Verbo-
-Luz, da Palavra universal que Moisés concentrará mais tarde
na sua arca de ouro e da qual Cristo será, por assim dizer, a
chama viva.
A verdade é imutável em si mesma: só ela sobrevive a
tudo; porém muda de moradas como de formas e as suas reve­
lações são intermitentes. "A luz de Osíris”, que outrora alum-
brava aos iniciados as profundezas da natureza e os arcanos
celestes, extinguiu-se para sempre nas criptas abandonadas.
Reaiizou-se a palavra de Hermes a Asclépio: "Ó Egito! ó
Egito! Não se conservarão de ti senão fábulas, incríveis para
as gerações futuras, e de ti ünicamente perdurarão as palavras
talhadas em pedras”.
É, todavia, um raio dêsse misterioso sol dos santuários que
nós vamos fazer reviver, seguindo a estrada secreta da antiga
iniciação egípcia, tanto quanto o permita a intuição esotérica
e fugente retração das idades.
Antes de penetrar no templo, lancemos, porém, um breve
olhar sobre as grandes fases atravessadas pelo Egito, antes do
tempo dos hicscs.
Quase tão velha como a carcaça dos nossos continentes,
a primeira civilização egípcia remonta à antiga raça verme­
lha (2). A esfinge colossal de Gizé, cêrca da grande pirâmide,
é obra sua. No tempo em que o Delta (formado mais tarde
pelas aluviões do Nilo) ainda não existia, já o animal mons­
truoso e simbólico estava deitado sobre a sua colina de granito,
(2) Em uma inscrição da quarta dinastia, falava-se da esfinge
como de um monumento, cuja origem se perdia na noite dos tempos,
que fora fortuitamente encontrada no reinado dêsse príncipe, soterrada
pelas areias do deserto, sob as quais estava esquecida desde dilatadas
gerações (Fr. L e n o rm a n t, Hist. peupl. d'Orient, II 53). Ora a gran­
de dinastia reporta-nos a 4.000 antes de J. C. Pode ajuizar-se por aí
a antiguidade da esfinge.
80 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

freteando a cadeia dos montes líbicos e vendo o mar encres-


par-se a seus pés, lá onde se alonga a areia do deserto.
A esfinge, essa criação primitiva do Egito, tornou-se o seu
símbolo principal, o seu sinal distintivo. O mais antigo sacer­
dócio a esculpiu — a essa imagem da natureza calma e formi­
dável no seu mistério. Uma cabeça de homem sai dum corpo
de touro com garras de leão, fechando duas asas de águia sobre
os flancos. É a ísis terrestre, a natureza na unidade viva dos
três reinos: — porque já nesses tempos imemoriais os sacer­
dotes ensinavam que, na sua grande evolução, a natureza hu­
mana emerge da natureza animal. Nesse composto de touro,
de leão, de águia e de homem, estão também encerradas as qua­
tro visões de Ezequiel, representando os quatro elementos cons­
titutivos do microcosmo e do macrocosmo: a água, a terra, ®
ar e o fogo, base da ciência oculta.
E aí está por que, quando nos séculos posteriores, os ini­
ciados vendo o animal sagrado, deitado sobre a soleira dos tem­
plos ou ao fundo das criptas, sentiam reviver em si mesmos
êsse mistério e fechavam em silêncio as asas do seu espírito
sobre a verdade interior. Porque, antes de Édipo, êles sabiam
que a chave do enigma da esfinge é o homem, o microcosmo,
o agente divino, que resume todos os elementos e todas as ener­
gias da natureza.
A raça vermelha não nos legou, pois, outro testemunho
senão o da esfinge de Gizé, prova irrecusável de que ela pu­
sera e resolvera à sua maneira o grande problema.
HERMES
A raça negra, que sucedeu na dominação do mundo à raça
austral, a seu modo fêz do Alto Egito o seu santuário. O nome
de Hermes-Tote, êsse misterioso e primeiro iniciador do Egito
nas doutrinas sagradas, reporta-se com certeza a uma primi­
tiva e pacífica mistura da raça branca e da raça negra nas
regiões da Etiópia e do Alto Egito, muito antes da raça ariana.
Hermes é um nome genérico como os de Mânu e Buda.
Designa simultâneamente um homem, uma casta e um deus.
Homem, Hermes, é o primeiro e grande iniciador do Egito;
casta é o sacerdócio, depositário das tradições ocultas; deus é
o planêta Mercúrio, comparado com a sua esfera a uma cate­
goria de espíritos, de iniciadores divinos; — em uma palavra,
Hermes preside às regiões supraterrestres da iniciação celestial.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 31
Na economia espiritual do mundo, todas estas coisas estão
ligadas por afinidades secretas, que as unem como um fio in­
visível. O nome de Hermes é um talismã que as resume, um
som magnífico que as evoca. Daí o seu prestígio.
Os gregos, discípulos dos egípcios, chamaram-no Hermes
Trismegisto, ou três vêzes grande, pois que o consideravam
como rei, como legislador e como sacerdote. Tipifica, por
assim dizer, uma época em que o sacerdócio, a magistratura
e a realeza se encontravam reunidos num só corpo governan­
te. A cronologia egípcia de Mâneton chama à sua época o
reino dos deuses. Ainda não existia então nem o papiro nem
a escrita fonética; mas existia, já, a ideografia sagrada, a
ciência do sacerdócio estava escrita em hieróglifos nas colunas
e nas paredes das criptas. Só mais tarde é que ela passa para
as bibliotecas dos templos, consideravelmente aumentada. Os
egípcios atribuíam a Hermes quarenta e dois livros, tratando
a ciência oculta. O livro grego, conhecido sob o nome de
Hermes Trismegisto, encerra certamente os restos alterados,
mas infinitamente preciosos, da antiga teogonia, que é como
que o fiat lux de que Moisés e Orfeu receberam os primeiros
raios. A doutrina do Príncipe-Fogo e do Verbo-Luz, encerra­
da na Visão de Hermes, é como que o vértice e o centro da
iniciação egípcia.
Tentaremos, muito de fugida, encontrar essa visão dos
mestres, essa rosa mística que só na noite do santuário e nos
arcanos das grandes religiões floresce.
Certas palavras de Hermes, prenhes de sabedoria antiga,
são excelentes para nos iniciarem nela: "Nenhum dos nossos
pensamentos, dizia êle ao seu discípulo Asclépios, saberá con­
ceber Deus, nem nenhuma língua defini-lo. O que é incorpó-
reo, invisível, informe, não pode ser apreendido pelos nossos
sentidos: o que é eterno não pode ser medido pela curta regra
do tempo; Deus é, pois, inefável. Deus pode, isso é verdade,
comunicar a alguns eleitos a faculdade de se elevarem acima
das coisas naturais, para perceberem algum raio da sua per­
feição suprema; — mas êsses iniciados náo encontram em lin­
guagem vulgar palavras que possam exprimir a visão imate-
rial que os fêz estremecer. Poderão explicar à humanidade as
causas secundárias das criações que passam sob seus olhos,
como imagens da vida universal; mas, a causa primária con-
servar-se-á sempre vendada, e nós não chegaremos a com­
preendê-la, senão ultrapassando a morte”. Era assim que, no
32 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

umbral das criptas, Hermes falava do Deus desconhecido. Os


discípulos que penetravam com êle as suas profundezas apren­
diam a conhecê-lo como um ser vivo (1).
O livro fala da sua morte como da partida dum Deus:
"Hermes viu o conjunto das coisas, e, tendo visto, com­
preendeu, e tendo compreendido, teve o poder de o revelar e
manifestar. O que êle pensou, êle o escreveu; o que êle escre­
veu, êle o ocultou em grande parte, calando com sabedoria e
falando só quando devia, a fim de que todas as gerações futu­
ras procurassem o que o seu pensamento descobrira. E assim,
tendo ordenado aos deuses seus irmãos que lhe servissem de
cortejo, — êle ascendeu às estréias”.
Pode, em rigor, isolar-se a história política dos povos, o
que se náo pode, porém, é separar a sua história religiosa. As
religiões da Assíria, do Egito, da Judéia, da Grécia não se
compreendem desde que se não discirna bem o seu ponto de
contacto com a antiga religião indo-ariana. Tomadas só por
Sx, isoladamente, não passam de enigmas e charadas; vistas
em conjunto e do alto, constituem uma soberba evolução, onde
tudo se mantém e se explica reciprocamente. Em uma pala­
vra: a história duma religião será sempre estreita, supersti­
ciosa e falsa; só é verdadeira a história religiosa da humani­
dade. Observando-as dêste ponto de vista elevado, não se
sentem senão as correntes que fazem a volta ao mundo. O
povo egípcio, o mais independente e o mais cerrado a todas
as influencias exteriores, não se pode subtrair a essa lei uni­
versal. Cinco mil anos antes da nossa era, a luz de Rama,
acesa no Irã, irradia sobre o Egito e torna-se a lei de Ámon-
(1) A teologia sábia, esotérica, diz Maspero, é monoteísta, desde
os tempos do antigo Império. A aiirmação da unidade fundamental do
ser divino lê-se, expressa em têrmos formais e duma grande energia,
nos textos que remontam a essa época. Deus é Um só, Aquêle que
existe por essência, o único que vive em substância, o único gerador no
céu e na terra que não foi gerado. Ao mesmo tempo, Pai, Mãe e Fi­
lho, êle origina, êle gera, e existe perpètuamente; essas três pessoas,
longe de dividirem a unidade da natureza divina, concorrem pelo con­
trario para a sua infinita perfeição. São seus atributos a imensidade,
a eternidade, a independência, a vontade tôda-poderosa, a bondade sem
limites. “Êle cria os seus próprios membros, que são os deuses”, di­
zem os velhos textos. Cada um dêsses deuses secundários, considerados
como idênticos ao Deus único, pode formar um tipo novo, de que por
seu turno e pela mesma forma emanam outros tipos inferiores. — His-
toire ancienne des peuples de VOrient.
Residência egípcia
Karnak — Templo de Amon — Ò Lago Sagrado
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 33
-Rá, o deus solar de Tebas. A sua constituição permite-lhe
arrostar com imensas revoluções. Menes foi o primeiro rei
justo, o primeiro faraó executor da lei.
Em vez de despojar o Egito da sua teologia tradicional,
não fêz, pelo contrário, senão confirmá-la e desdobrá-la, adi-
cionando-lhe uma organização social nova: o sacerdócio quer
dizer a realeza concebida como delegação sua, e submetida à
sua fiscalização: a independência relativa dos nomos ou co­
munas, como base da sociedade. É, enfim, o que nós podemos
chamar o govêrno dos iniciados. Essa instituição tinha por
chave de abóbada uma síntese das ciências conhecidas sob o
nome de Osíris (O-Sir-Is), o senhor intelectual, de que a gran­
de pirâmide é o símbolo e o gnomo matemático. O faraó que
recebia o seu nome de iniciação no templo, que exercia no tro­
no a arte sacerdotal e real, era, pois, uma individualidade bem
diferente que a do déspota assírio, cujo poder arbitrário assen­
tava sobre o crime e o sangue. O faraó era o iniciado coroado,
ou, pelo menos, o discípulo e o instrumento dos iniciados. Os
faraós defenderam durante séculos, contra o despotismo da
Ásia e a anarquia da Europa, a lei do Carneiro que representa­
va então os direitos da justiça e da arbitragem internacional.
Pelo ano de 2200, antes de Jesus Cristo, o Egito sofreu
a crise mais temerosa que um povo pode atravessar: a da in­
vasão estrangeira e a duma meia conquista. A própria invasão
fenícia foi a seqüência do grande cisma religioso da Ásia, que
havia sublevado as massas populares, semeando a dissensão nos
templos. Conduzida pelos reis-pastôres, chamados hicsos, essa
invasão despenha o seu dilúvio sobre o Delta e o Egito médio.
Os reis cismáticos traziam consigo uma civilização cor­
rupta, a indolência jônia, o luxo da Ásia, os costumes do harém,
uma idolatria grosseira. A existência nacional do Egito estava
comprometida, a sua intelectualidade decadente, a sua missão
universal ameaçada. Possuía, porém, um centro de vida, quer
dizer, um corpo organizado de iniciados da antiga ciência de
Hermes e de Ámon-Rá. Que faz êsse centro? Refugia-se no
fundo dos santuários, dobra-se sobre si mesmo para melhor
resistir ao inimigo. Aparentemente, o sacerdócio curva-se ante
a invasão e reconhece os usurpadores que arvoraram a lei do
Touro e o culto do boi Ápis. Porém, ocultas nos templos, as
duas congregações guardam, como um depósito sagrado, a sua
ciência* as suas tradições, a antiga e pura religião, e, com ela,
a esperança duma restauração da dinastia nacional.
84 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Foi por essa época que os sacerdotes propagaram pelo


povo a lenda de ísis e de Osíris, o desmembramento dêste úl­
timo e o da sua ressurreição próxima realizada em seu filho
Horus, que encontraria, na corrente do Nilo, os seus membros
esparsos.
Excita-se a imaginação das multidões pela pompa das ce­
rimônias públicas. Alimenta-se o seu amor à velha religião,
representando-lhe as desventuras da deusa, as suas lamentações
sobre a perda do esposo e a esperança que depositava em seu
filho Horus, o divino mediador. Ao mesmo tempo, porém, os
iniciados julgaram necessário tornar a verdade esotérica ina­
tacável, cobrindo-a dum triplo véu, e fizeram corresponder à
difusão popular do culto de Ísis e de Osíris a organização in­
terior e sábia dos pequenos e grandes Mistérios, que, por assim
dizer, rodearam de barreiras intransponíveis, de obstáculos te­
míveis. Inventaram-se as provas morais, exigiu-se o juramen­
to do silêncio, e a pena de morte foi rigorosamente aplicada
aos iniciados que divulgaram o menor detalhe dos Mistérios.
Graças a essa organização severa, a iniciação egípcia tornou-
-se não só o refúgio da doutrina esotérica, mas, ainda, o crisol
duma ressurreição nacional e a escola das religiões futuras.
Enquanto os usurpadores coroados reinavam em Mênfis,
Tebas preparou lentamente a regeneração do país. Do seu
templo, da sua arca solar, foi que saiu o salvador do Egito,
Amés, que expulsa os hicsos depois de nove séculos de domi­
nação, restaura os direitos da ciência egípcia e a religião ex­
pressiva de Osíris. Foi assim que, para bem da humanidade,
os mistérios salvaram a alma do Egito da tirania estrangeira.
A força da sua disciplina, o poder da sua iniciação era tão
grande, que representavam, então, a maior força moral, a mais
alta seleção intelectual.
A iniciação antiga repousava sobre uma concepção do ho­
mem ao mesmo tempo mais elevada e mais sã que a nossa.
Nós dissociamos a educação do corpo da da alma e da do espí­
rito. As nossas ciências físicas e naturais, muito avançadas,
abstraem do princípio da alma e da sua difusão no universo;
a nossa religião não satisfaz às exigências da inteligência; a
nossa medicina não procura nem quer saber da alma e do
espírito. O homem contemporâneo busca o prazer sem a
felicidade, a felicidade sem a consciência e a ciência sem a
sabedoria. A antigüidade não admitia que essas coisas se
pudessem separar, tomando em conta, em todos os domínios,
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 35

a tríplice natureza do homem. A iniciação era uma elevação


gradual de todo o ser humano para as cumeadas vertiginosas
do espírito, donde se pode dominar a vida. 'Tara atingir o
mestrado, diziam os sábios de então, o homem precisa de refun-
dir totalmente o seu ser físico, moral e intelectual”.
Ora, essa refundição só é possível pelo exercício simul­
tâneo da vontade, da intuição e do raciocínio. Pela completa
concordância dêsses três elementos, o homem pode desenvolver
as suas faculdades até limites incalculáveis. Existem na alma
sentidos dormentes: a iniciação acorda-os. Gom um estudo
profundo, uma aplicação constante, o homem consegue pôr-se
em relação consciente com as forças ocultas do universo. Por
um esforço prodigioso, pode atingir a percepção espiritual di­
reta, devassar os caminhos do Além, e tornar-se capaz de se­
guir por êles. Só então pode dizer que venceu o seu destino
e conquistou desde cá de baixo a sua liberdade divina. Só
então de iniciado pode tornar-se iniciador, profeta e teurgo,
quer dizer, vidente e criador de almas. Porque só aquêle que
se governa a si próprio, pode governar os outros: só aquêle
que é livre pode libertar.
Assim pensavam os iniciados antigos. Os maiores, dentre
êles, viviam e agiam de harmonia com os seus pensamentos.
A verdadeira iniciação era, pois, alguma coisa bem diferente
de um sonho vazio, e bem mais que um simples ensino cientí­
fico: era a criação duma alma por si mesma, a sua eclosão em
um plano superior, a sua eflorescência em um mundo divino.
Reportemo-nos ao tempo dos Ramsés, à época de Moisés
e de Orfeu, ao ano de 1300 antes da nossa era e procuremos
penetrar no coração da iniciação egípcia. Os monumentos fi­
gurados, os livros de Hermes, a tradição judaica e grega (1)
permitem-nos fazer reviver as suas fases ascendentes e formu­
larmos uma idéia da sua mais alta revelação.
ÍSIS — A INICIAÇÃO — AS PROVAS
Pelo tempo dos Ramsés, a civilização egípcia resplandecia
no apogeu da sua glória. Os faraós da 20.a dinastia, discípu­
los e portagládios dos santuários, sustentavam como verda­
deiros heróis a luta com Babilônia. Os archeiros egípcios
rechaçavam os líbios, os bodonos, os númidas até ao centro da
(1) Iâmblico.
ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

África. Uma frota de quatrocentas velas perseguia a liga dós


cismáticos até às bocas do índus. Para melhor resistirem aos
ataques da Assíria e dos seus aliados, os Ramsés construíram
estradas estratégicas até defronte do Líbano, e edificaram uma
cadeia de fortes até Magedo e Carquemixe. De Radasie a Ele-
fantina, afluíam pelo deserto caravanas inumeráveis.
Os trabalhos de arquitetura prosseguiam sem descanso,
ocupando obreiros de três continentes. A sala hipostila de
Carnaque, da qual cada pilar atingia a altura da coluna Ven-
dôme, era reparada; o templo de Abidos enriquecia-se de ma­
ravilhas esculturais e o Vale dos Reis de monumentos gran­
diosos. Edificava-se em Bubasta, em Luqsor, em Speos, em
Ibsambul. Em Tebas construía-se um troféu monumental, que
evocava a tomada de Cadsque. Em Mênfis, erguia-se o Ra-
messeum, cercado duma floresta de obeliscos, de estátuas, de
monólitos gigantescos. Em meio dessa atividade febril, dessa
vida efervescente, era freqüente surgirem estrangeiros que
aspiravam a conhecer os mistérios, atraídos das plagas lon­
gínquas da Ásia menor ou das montanhas da Trácia, ao Egito
pela fama dos seus templos! Chegados que eram a Mênfis,
sentiam-se empolgados de espanto. Os monumentos, os espe­
táculos, as festas públicas, tudo lhes dava a impressão da opu­
lência, e da grandeza.
Depois da cerimônia da consagração real, que se fazia no
segrêdo do santuário, viam o faraó sair do templo à frente da
multidão, sob o pálio sustentado por doze oficiais flabelíferos
do seu estado-maior. Na sua frente, doze levitas moços, con­
duziam em coxins bordados a ouro as insígnias reais; o cetro
dos árbitros, encima por uma cabeça de carneiro, a espada,
o arco e a massa de armas. Detrás dêle, seguiam a casa do
rei e os colégios sacerdotais, acaudados pelos iniciados nos
grandes e nos pequenos mistérios. Os pontífices ostentavam a
tiara branca, e os seus peitorais fulgiam com o fogo das pedras
simbólicas, enquanto os dignitários da coroa exibiam as con­
decorações do Cordeiro, do Carneiro, do Leão, do Lis, da Abe­
lha, suspensas de cadeias maciças dum trabalho admirável.
Fechavam o cortejo as diversas corporações, com os seus em­
blemas e os seus estandartes desfraldados (1). À noite, bar­
cos magnificamente empavesados, passeavam sobre lagos arfci-
(1) Vejam-se as pinturas murais dos túmulos dos reis, reprodu­
zidas no livro de François Lenormant e o cap. sobre o Egito na Mission
des Juifs de Saint-Yves d’Alveydre.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 37
ficiais as orquestras reais, ao meio das quais, se desenhavam
em posturas hieráticas as bailarinas e as tocadoras de tiorba.
O que, porém, os estrangeiros procuravam, não era essa
pompa esmagadora. O desejo de penetrar o segrêdo das coisas,
a sêde de saber, eis o que ali os trazia de tão longe. Haviam-
-Ihes dito que nos santuários egípcios viviam magos, hierofan-
tes que possuíam a ciência divina: pois também êles queriam
entrar no segrêdo dos deuses. Tinham ouvido falar a um sa­
cerdote do seu país do Livro dos Mortos, cujo rolo misterioso
se colocava sobre as cabeças das múmias como um viático, e
que narrava sob uma forma simbólica, a viagem da alma aiém-
-túmulo, segundo os sacerdotes de Ámon-Rá. Êles haviam se­
guido com uma curiosidade ávida e uma certa perturbação
interior, misturada de dúvida, essa longa jornada para além
da vida: a sua expiação numa região de chamas; a purificação
do seu invólucro sideral; o seu recontro com o mau piloto,
cuja cabeça se voltava para trás, e com o bom piloto, que
olhava para frente; a sua comparência ante os quarenta e dois
juizes terrestres; a sua justificação por Tote; finalmente, a
sua entrada e a sua transfiguração na luz de Osíris.
Nós podemos ajuizar do poder dêsse livro e da revolução
total que a iniciação egípcia operava por vêzes nos espíritos,
pela seguinte passagem do Livro dos Mortos: "Êste capítulo
foi topado em Hermópolis, escrito a azul sobre uma pedra de
alabastro, aos pés do deus Tote (Hermes) no templo do rei
Mencara, pelo príncipe Hastatefe, quando andava de viagem
na inspeção dos templos. Tal pedra foi por êle conduzida para
o templo real. Oh! o grande segrêdo! O príncipe, desde que
leu êste capítulo puro e sagrado, não quis ver nem ouvir mais
nada e nunca mais se acercou de mulher alguma, e nunca mais
comeu carne ou peixe” (1).
Mas o que havia de verdadeiro nessas narrativas pertur-
bantes, nessas imagens hieráticas por detrás das quais cinti-
lava o terrível mistério de além-túmulo? — ísis e Osíris o
sabem — dizia-se. Porém, quem eram êsses deuses de que
nunca se.falava senão com um dedo sobre os lábios?
Era exatamente para o saber que o estrangeiro batia à
porta do grande templo de Tebas ou de Mênfis.
Conduziam-no os servos ao pórtico duma galeria interior,
cujas pilastras semelhavam lótus gigantescos sustentando com
a sua força e a sua pureza a Arca solar, o templo de Osíris.
(1) Livro dos Mortos, cap. LXIV,
38 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

O hierofante acercava-se do recém-chegado: a majestade da


sua figura, a tranqüilidade da sua fisionomia, o mistério dos
seus olhos negros, impenetráveis mas repletos de luz interior,
bastavam para perturbar o postulante. O seu olhar perfurava
como um estilete. O estrangeiro sentia-se face a face com um
homem a quem seria impossível ocultar coisa alguma. O sa­
cerdote de Osíris, interrogava-o a seguir sobre a sua terra na­
tal, sobre a sua família e sobre o templo onde se instruíra. Se,
durante êsse curto mas penetrante exame, o recém-chegado era
julgado indigno de conhecer os mistérios, um gesto silencioso,
mas irrevogável, indicava-lhe a porta. Se, porém, o hierofante
descobria nêle o desejo sincero da verdade, rogava-lhe que o
seguisse.
Atravessavam, então, pórticos, galerias interiores, chegan­
do por fim, após o percurso duma espécie de avenida talhada
na rocha sob um teto de estréias e de esfinges, a uma pequena
capela, que servia de entrada às criptas subterrâneas. Uma
estátua de ísis, em tamanho natural, encobria e disfarçava a
porta. Assentada, a deusa, tinha sobre os joelhos um livro
fechado, numa atitude de meditação e recolhimento. O seu
rosto estava vendado, e lia-se sob a estátua:
NENHUM MORTAL LEVANTOU O VÉU QUE ME
ESCONDE
— Esta é a porta do santuário oculto, — dizia o hiero­
fante. Olha estas duas colunas. A vermelha representa a
ascensão do espírito para a luz de Osíris; a negra significa sua
sujeição à matéria, pecado êsse que pode ir até ao aniquila­
mento. Quem quer que procure a nossa ciência e a nossa dou­
trina, joga a vida. A loucura ou a morte, eis o que o fraco
ou malévolo aí encontra: só os fortes e os bons encontram nela
a vida e a imortalidade. Por esta porta, tem entrado muito
imprudente; mas nenhum dêles saiu vivo por ela. Isto é como
um sorvedouro; dos que aqui caírem só os intrépidos volverão
a ver a luz do dia. Reflete, pois, e reflete bem, no que vais
fazer, nos perigos que te esperam, e, se a tua coragem não está
à prova de tudo, renuncia ao teu empreendimento. Porque,
uma vez que esta porta se tenha cerrado sobre ti, tu não po-
derás recuar.
Se o estrangeiro persistia na sua vontade, o hierofante
introduzia-o por um corredor exterior, recomendando-o aos
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 39
servidores dos templos, com quem devia passar uma semana,
obrigado aos trabalhos mais humilhantes, escutando os hinos
e fazendo abluções. Era-lhe imposto o mais absoluto silêncio.
Chegada a noite das provas, dois neócoros (1), ou assis­
tentes, reconduziam o aspirante aos mistérios até à porta do
santuário oculto. Penetravam num vestíbulo escuro, sem saída
aparente. Aos dois lados dessa sala lúgubre, o estrangeiro via,
ao clarão de archotes, uma coleção de estátuas, com corpos de
homens e cabeças de animais: leões, touros, aves de rapina,
serpentes que pareciam fitá-lo escarnecedoramente à sua pas­
sagem. Ao fim dessa sinistra avenida, que era atravessada
sem se dizer uma única palavra, deparava-se com uma múmia
e um esqueleto humano, de pé, um ante o outro. Num gesto
mudo, os dois neócoros mostravam então ao noviço um buraco
que havia na parede, defronte de si; era a entrada dum cor­
redor tão apertado, que se não poderia penetrar nêie, senão
de rastos.
— Tu podes, ainda, volver sobre os teus passos, dizia-ihe
um dos assistentes. Não se cerrou por enquanto a porta do
santuário. Jáe o não quiseres, terás que seguir o teu caminho
por aii, e sem esperança de regresso.
— Eu fico, respondia o novato, chamando a si toda a sua
coragem.
Entregavam-lhe então uma pequena lâmpada acesa.
Os neócoros retrocediam fechando com fragor a porta do
santuário. Não havia que hesitar; era necessário penetrar no
estranho corredor.
Apenas começava a deslizar por êle, rastejando sobre os
joelhos, com a lâmpada na mão, ouvia uma voz dizer no fundo
do subterrâneo: "Aqui perecem os loucos que apetecerem a
ciência e o poder”, beviaa a um maravilhoso efeito de acústi­
ca, aquela írase era repetida sete vezes por ecos distanciados.
Urgia, porém, avançar; o corredor alargava-se gradual­
mente, mas descia em rampa, cujo declive se tornava cada
vez mais precipitòso. Finalmente, o temerário caminheiro en­
contrava-se em face de uma espécie de funil terminado por um
buraco, em que se prendia uma escada de ferro a que o noviço
se agarrava.
Chegado ao último degrau da escada o seu olhar terrifi-
cado mergulhava num precipício horroroso.
£1) Adotamos aqui, como mais inteligível, a tradução grega doa
vocábulos egípcios.
40 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

A luz frouxa da lâmpada de nafta, que êle apertava na


sua mão trêmula, projetava nas trevas sem fundo o seu clarão
vago.
Que fazer?
Para cima, era impossível retroceder; em baixo, era a
queda na escuridão, na noite medonha.
No meio de tal angústia, percebia que à sua esquerda se
abria uma fenda. Aferrado com uma mão à escada, estenden­
do com a outra a sua lâmpada, sondava-a. Uma escadaria!
Era a salvação. Precipitava-se para ela, subia-a, escapava
ao sorvedouro! A escadaria, furando a rocha com uma ver-
ruma, subia em espiral. Finalmente, o aspirante encontrava-se
diante de uma grade de bronze, dando para uma larga galeria
sustentada por enormes cariátides. Nos intervalos, pelos mu­
ros, viam-se duas fiadas de frescos simbólicos. Eram onze de
cada lado, docemente iluminados por lâmpadas de cristal, que
as belas cariátides suspendiam das suas mãos de pedra.
Um mago, denominado pastóforo (guardião dos símbolos
sagrados) abria ante o noviço a grade de bronze, acolhendo-o
com um sorriso benévolo. Felicitava-o por ter atravessado com
felicidade a primeira prova, depois do que o conduzia ao longo
da galeria e lhe explicava as pinturas sagradas. Havia, por
debaixo de cada uma dessas pinturas, uma letra e um número.
Os vinte e dois símbolos representavam os vinte e dois
primeiros mistérios e constituíam o alfabeto da ciência oculta,
quer dizer, os princípios absolutos, as chaves universais, que,
aplicadas pela vontade, se transformam na fonte de toda a sa­
bedoria e de todo o poder. Êsses princípios fixavam-se na
memória, pela sua correspondência com as letras da língua sa­
grada, e com os números que se liam junto dèssas letras. Cada
letra, e cada número exprime nessa língua uma lei tríplice, com
repercussão no mundo divino, no mundo intelectual e no mundo
físico. Pela mesma forma por que o dedo que tange uma corda
da lira faz ressoar uma nota da escala e vibrar todos os sons
harmônicos, o espírito que contempla todas as virtualidades
dum número, a voz que pronuncia uma letra com consciência
do seu valor, evocam um poder que se repercute nos três
mundos.
É assim que a letra A, que corresponde ao número 1, ex->
prime no mundo divino: o Ser absoluto, de que emanam todos
os sêres; no mundo intelectual: a unidade, origem, e síntese
dcs números; no mundo físico: o homem, vértice dos sêres re­
lativos, que, pela expansão das suas faculdades, se eleva às
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 41
esferas concêntricas do infinito. O arcano 1 era figurado en­
tre os egípcios, por um mago de túnica branca, de cetro na
mão, a fronte cingida por uma coroa de ouro. A túnica branca
significava a pureza, o cetro o poder, a coroa de ouro a luz
universal.
O noviço estava muito longe de compreender tudo o que
sentia de estranho e de novo; diante de si, porém, abriam-se
perspectivas desconhecidas, às palavras do pastóforo e em face
dessas belas pinturas que o olhavam com a impassível gravi­
dade dos deuses. Entrevia, por detrás da cada um dêles uma
multidão de pensamentos e de imagens, evocadas de súbito como
relâmpagos, cruzando-lhe o cérebro. Pressentia, pela primeira
vez, o interior do mundo, pela cadeia misteriosa das causas. E,
assim, de letra em letra, de número em número, o mestre ia
explicando ao discípulo o sentido dos arcanos, conduzindo de
ísis Urânia ao carro de Osíris, da torre derribadu à estrela fia>-
mejante, e por fim à coroa dos magos. "E aprende bem, dizia
o pastóforo, o que quer dizer esta coroa: toda a vontade que
se une a Deus, para manifestar a verdade e realizar a justiça,
entra desde esta vida em participação do poder divino sobre
os sêres e sobre as coisas, recompensa eterna dos espíritos li­
bertos”.
Escutando as palavras do mestre, o neófito experimentava
um misto de surpresa, de crença e de arrebatamento. Aquêles
eram os primeiros esplendores do santuário, e a verdade entre­
vista parecia-lhe a alvorada duma divina recordação.
As provas não haviam, porém, terminado ainda. Acaban­
do de falar, o pastóforo abria uma porta que dava acesso para
sob uma nova abóbada estreita e longa, na extremidade da qual
crepitava uma fornalha ardente. "Mas isto é a morte!” —
exclamava o noviço: e punha-se a olhar o seu guia, num estre­
mecimento.
— "Meu filho, respondia-lhe o mago, a morte só apavora
as naturezas defeituosas. Eu atravessei outrora essas labare­
das, como quem atravessa um campo de rosas”. E a grade da
galeria dos mistérios, cerrava-se sobre o postulante.
Acercando-se da barreira de fogo, percebia que a fornalha
se reduzia a uma ilusão de ótica, criada por madeiras resinosas
entrelaçadas em quincôncio sobre grelhas. Uma vereda, aber­
ta ao meio das chamas, permitia-lhe passar com rapidez.
À prova do fogo sucedia-se a prova da água. O aspirante
via-se forçado a atravessar uma água morta e negra, ao clarão
42 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

de um incêndio de nafta, aceso por detrás dêle na câmara do


fogo. Após essa prova, dois assistentes conduziam-no, ainda
todo arrepiado, a uma gruta escura, onde se não divisava mais
do que um leito macio, misteriosamente iluminado pela meia-
-luz duma lâmpada de bronze, suspensa da abóbada. Enxuga­
vam-no, friccionavam o seu corpo com essências raras, reves­
tiam-no de fino linho e deixavam-no só, depois de lhe terem
dito: "Repousa, e espera o hierofante”.
O noviço distendia os membros fatigados sobre a cobertu­
ra suntuosa do seu leito. Após as emoções tão diversas por
que passara, aquêles momentos de calma eram deliciosos. As
pinturas sagradas que vira, todas essas figuras estranhas,
esfinges, cariátides, lhe perpassavam pela imaginação. Havia,
porém, uma dessas pinturas que sobrelevava as outras na obs­
tinada insistência com que lhe surgia à mente, teimosa, repas­
sando-lhe o espírito como uma alucinação. Era a do arcano X,
representado por uma roda, suspensa do seu eixo, entre duas
colunas. Dum lado subia Hermanúbis, o gênio do Bem, for­
moso, como um jovem efebo; do outro, Tifon, o gênio do Mal,
a cabeça baixa, precipitava-se no abismo. Entre os dois, em
cima da roda, uma esfinge sustentava nas garras uma espada...
O zumbido vago duma música lasciva, que parecia partir
do fundo da gruta, afugentava essa imagem. Eram sons leves
e indefiníveis, dum langor triste e incisivo. Roçava-lhe pelo
ouvido um tinir de metais, que lhe dava uma sensação de ca­
rícia, misturado de harpa, que fugiam, sons de flauta, suspiros
arfantes como hálito cálido.
Como que envolvido em um sonho de fogo, o noviço cer­
rava os olhos. Quando os abria de novo, divisava a alguns
passos do seu leito uma aparição perturbadoramente infernal
de vida e de sedução.
Uma mulher da Núbia, envolta numa gaze de púrpura
transparente, um colar de amuletos pendendo-lhe sobre o colo,
semelhante às sacerdotisas dos mistérios de Mélita, estava ali,
de pé, na sua frente, olhando-o com uma ternura sôfrega, e
sustentando na mão uma taça engrinaldada de rosas. Ela
tinha êsse tipo nubiano, em que a sensualidade intensa e ca-
pitosa concentra todos os poderes do animal feminino: seios
salientes, narinas dilatadas, lábios grossos como um fruto ver­
melho e saboroso: Os seus olhos negros faiscavam na penum­
bra. O noviço estremunhava num sobressalto, e surprêso, não
sabendo se havia de tremer, se regozijar-se, cruzava instinti­
vamente as mãos sobre o peito.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 43
A escrava acercava-se, porém, a passos lentos e macios,
baixava os olhos, murmurava em voz doce: — "Tens mêdo de
mim, ó belo estrangeiro? Eu trago-te a recompensa dos ven­
cedores, o esquecimento das penas, a taça da ventura. . . ” O
neófito hesitava: e então, como tomada de lascívia, a núbia
assentava-se sobre o tálamo e envolvia o estrangeiro em um
olhar suplicante, como uma longa e envolvente labareda úmida.
Desgraçado dele, se ousava cingi-la, se se inclinava sobre essa
boca, se se embebedava com os perfumes pesados que brota­
vam das suas espadas cor de bronze. Uma vez que êle tocasse
aquela mão, e colasse os lábios ao rebordos daquela taça, esta­
va perdido. . . Rolaria sobre o tálamo, enlaçado num abraço
ardente: passado, porém, o cêvo selvagem do desejo, o líquido
que bebera, mergulhava-o num sono pesado. Ao acordar en­
contrava-se só e angustiado. A lâmpada derramava um clarão
fúnebre sobre o seu ieito em desordem. Diante dêle estava um
homem: era o hierofante, que lhe dizia:
— Tu soubeste sair vencedor das primeiras provações.
Triunfaste da morte, do fogo e da água; mas não soubeste ven­
cer-te a ti mesmo. Tu, que aspiras às alturas do espírito e
do conhecimento, sucumbiste à primeira tentação dos sentidos,
e caíste no abismo aa matéria. Quem vive escravo dos senti­
dos, vive nas trevas. Preferiste a escuridade à luz; fica-te,
pois na eseundade! Eu precavi-te contra os perigos a que te
expunhas. jlU salvaste a tua vida; mas perdeste a tua liber­
dade e ficarás, sobe pena de morte, escravo do templo.
Se, ao contrário, o aspirante entornava a taça e repelia
a tentadora, vinham então doze neócoros armados de fachos
que o rodeavam e o conduziam triunfalmente ao santuário de
ísis, onde os magos, colocados em hemiciclo e vestidos de bran­
co, o esperavam em assembléia plenária.
Ao fundo do templo, esplêndidamente iluminado, erguia-se
a estátua colossal de ísis em metal fundido — uma rosa de
ouro no colo, um diadema de sete raios na cabeça e tendo seu
filho de Horus nos braços.
Diante da deusa, o hierofante, vestido de púrpura, recebia
o recém-chegado e obrigava-o a prestar, sob as mais temíveis
ameaças, o juramento do silêncio e da submissão. Em seguida
saudava-o em nome de toda a assembléia como a um irmão e
como a um futuro iniciado. O discípulo de ísis, ao ver-se em
face de seus augustos mestres, julgava-se na presença dos deu­
ses. Elevado acima de si mesmo, penetrava pela primeira vez
na esfera da verdade.
ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

OSÍRIS — A MORTE E A RESSURREIÇÃO


E, contudo, o noviço não havia ultrapassado ainda mais
do que os umbrais da iniciação. Começavam agora os longos
anos de estudo e de aprendizagem. Antes de se elevar a ísis
Urânia, deveria conhecer a ísis terrestre, instruir-se nas ciên­
cias físicas e androgônicas. O seu tempo repartia-se entre as
meditações da sua cela, o estudo dos hieroglifos nas salas e ga­
lerias do templo, tão vasto como uma cidade, e as lições dos
mestres. Aprendia a ciência dos minerais e das plantas, a his­
tória do homem e dos povos, a medicina, a arquitetura e a mú­
sica sagrada.
Nessa longa aprendizagem não devia, apenas, conhecer,
mas adivinhcur, conquistar a força pelo poder da ciência.
Os sábios antigos criam em que o homem não possuía a
verdade senão quando esta se tornava uma parte do seu ser
íntimo, um ato espontâneo da sua alma.
Porém, nesse trabalho profundo de assimilação, os mes­
tres deixavam o discípulo completamente entregue a si mesmo.
Não o auxiliavam em coisa alguma e, a maior parte das vezes,"
êle próprio se espantava da sua indiferença. Vigiavam-no com
atenção; sujeitavam-no a regras inflexíveis; exigia-se-lhe uma
obediência absoluta; mas nada lhe revelavam além de certos
limites.
Às suas inquietações, às suas perguntas, respondiam-lhe
apenas: "Espera e trabalha!”
Vinham-lhe, então, revoltas súbitas, arrependimentos amar­
gos, suspeitas horrorosas. Ter-se-ia êle tornado o escravo de
impostores audaciosos ou de mágicos negros que subjugavam
a sua vontade com fins infames? A verdade fugia-lhe; os
deuses abandonavam-no; sentia-se só e prisioneiro do templo.
A verdade surgira-lhe sob a figura duma esfinge. Entre­
tanto, a esfinge dizia-lhe: "Eu sou a Dúvida!” E a bêsta
alada, com a sua cabeça de mulher impassível e as suas garras
de leão, arrebatava-o para o dilacerar sobre a areia ardente
do deserto.
Mas aos seus pesadelos sucediam-se a calma e os pressen­
timentos divinos. Compreendia, então, o sentido simbólico das
provações que atravessara, ao entrar no templo. Ai! o poço
sombrio onde êle supusera ir cair, era, em verdade, menos ne­
gro que o sorvedouro da verdade insondável; o fogo que atra­
vessara era menos temível que as paixões que queimavam ainda
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 45
a sua carne; a água gelada e tenebrosa em que devera ter mer­
gulhado, era menos fria do que a dúvida em que o seu espírito
se afundava no naufrágio das horas más.
Em uma das salas do templo viam-se as mesmas pinturas
sagradas que lhe haviam sido explicadas na cripta, durante a
noite das provas e que representavam os vinte e dois arcanos.
Êsses arcanos, que lhe tinham deixado entrever nos umbrais
da ciência oculta, constituíam propriamente as colunas da teo­
logia; mas, para os compitaender, era mister atravessar toda
a iniciação. Desde então nenhum mestre lhe tornara a falar
dêles; apenas lhe permitiam que passeasse na referida sala, e
que meditasse sobre êsses símbolos. E ali passava longas horas
solitárias.
Essas figuras castas como a luz, graves como a Eternida­
de, pareciam infiltrar-lhe no coração, lentamente, a verdade
indivisível e impalpável. Na muda intimidade das divindades
silenciosas e sem nome, cada uma das quais parecia presidir
a uma esfera da vida, começava a experimentar qualquer coisa
de novo: ao princípio, como que uma descida às funduras do
seu ser; depois, uma espécie de desagregação do mundo que o
fazia pairar acima das coisas. Uma ou outra vez, inquiria
de algum dos magos: — "Ser-me-á um dia permitido aspirar
a rosa de ísis e ver a luz de Osíris?” — Respondiam-lhe: —
"Isso não depende de nós. A verdade não se dá. Ou nós a
encontramos em nós mesmos, ou nunca a encontramos. Nós
não podemos fazer de ti um adepto; é necessário que tu o con­
sigas por ti mesmo. O lótus pousa longo tempo sobre o rio,
antes de desabrochar. Não apresses a eclosão da flor divina.
Se ela tem de vir, ela virá na sua hora própria. Trabalha
e ora”.
E o discípulo voltava aos seus estudos, às suas meditações
penetrado dum prazer triste, amando o encanto austero e suave
dessa solidão em que passava como que um sopro do ser dos
sêres. Decorriam assim os meses, os anos. Pouco a pouco,
sentia que em si mesmo se ia operando uma transformação gra­
dual, uma metamorfose completa. As paixões, que haviam
assediado a sua juventude, afastavam-se como sombras enquan­
to os pensamentos que se lhe abriam no cérebro lhe sorriam
como amigos imortais. O que êle experimentava, por momen­
tos, era a aniquilação do seu ser terrestre e o nascimento dum
ser mais puro e mais etéreo. Tomado dêsse sentimento, che­
gava a prostrar-se ante as portas do santuário cerrado. E não
46 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

havia então, dentro de si, mais revoltas, mais desejos, mais


arrependimentos. Todo êle era um perfeito abandono da alma
aos deuses, uma completa oblação à verdade, "ó ísis, dizia nas
suas orações, pois que a minha alma não é mais do que uma
lágrima dos teus olhos, que ela caia em orvalho sobre as outras
almas e que, morrendo, eu sinta o seu perfume ascendendo para
vós; eis~me pronto para o sacrifício”.
Após uma dessas orações mudas, o discípulo em êxtase via
perto de si, de pé, como uma visão que surgisse do solo, o hie­
rofante envolvido nos quentes clarões do poente. O mestre pa­
recia ler todos os pensamentos do seu discípulo, penetrar todo
o drama da sua vida interior.
— Meu filho, dizia-lhe, aproxima-se a hora em que a
verdade te será revelada, visto tu já a teres pressentido des­
cendo ao fundo de ti mesmo e encontrando aí a vida divina.
Tu vais entrar na grande, na inefável comunhão dos Iniciados,
pois que disso és digno, pela pureza do coração, pelo amor da
verdade e pelo poder da renúncia. Mas ninguém franqueia o
limiar de Osíris sem passar pela morte e pela ressurreição.
Vamos portanto acompanhar-te à cripta. Não tenhas receio,
porque tu és já um dcs nossos irmãos.
E pelo crepúsculo, os sacerdotes de Osíris, acompanhavam
entre brandões acesos, o novo adepto a uma cripta baixa sus­
tentada por quatro pilastras cujas bases eram formadas por
esfinges. A um dos seus cantos encontrava-se um sarcófago
aberto em mármore (1).
— Nenhum homem, dizia o hierofante, escapa à morte e
toda a alma vivente está destinada à ressurreição. O adepto
passa vivo para o túmulo para entrar noutra vida, na luz de
Osíris. Deita-te pois nesse túmulo e espera a luz divina. Tu
franquearás esta noite a porta do Terror e atingirás os um­
brais do mestrado.
(1) Os arqueólogos viram durante muito tempo no sarcófago da
grande pirâmide de Gizé o túmulo do rei Sesóstris, crentes em Heró-
doto, que não foi iniciado, e a quem os sacerdotes egípcios só confiaram
anedotas e contos populares. Os reis do Egito tinham as suas sepul­
turas noutras partes. A estrutura interior e extravagante da pirâmide
prova que ela devia servir para as cerimônias da iniciação, para as
práticas secretas dos sacerdotes de Osíris. Encontrava-se ali o Poço
da Verdade, que já descrevemos, a escadaria subindo à sala dos arca-
nos. .. A Câmara chamada do Rei, que encerra o sarcófago, era aquela
aonde o neófito era conduzido na noite da sua grande iniciação. Essas
mesmas disposições achavam-se reproduzidas nos grandes templos de
todo o Egito.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 47
O adepto deitava-se no sarcófago aberto, o hierofante es­
palmava sobre êle a mão, em bênção, e o cortejo dos iniciados
afastava-se em silêncio da sepultura.
Uma pequena lâmpada, posta no chão, esclarecia com o
seu clarão dúbio as quatro esfinges que suportavam as colunas
grossas da cripta. Sentia-se, como que ao longe, um coro de
vozes profundas, baixo e velado. Donde vinha êle? O canto
dos funerais! ... E o canto expira, e a lâmpada lança um der­
radeiro clarão, e extingue-se completamente. O adepto está
só nas trevas, cai sobre êle o frio do sepulcro, que lhe gela
todos os membros. Gradualmente experimenta todas as sen­
sações dolorosas da morte, até que tomba em letargia. A sua
vida desfila-lhe então diante dos olhos em quadros sucessivos
como qualquer coisa de irreal, e a sua consciência terrestre
torna-se cada vez mais vaga e difusa. Mas à medida que sente
dissolver-se-lhe o corpo, a parte etérea, fluida do seu ser, vai
se desembaraçando. . . Cai em êxtase. . . O que é aquêle ponto
brilhante que se acende ao longe, quase imperceptível sobre o
fundo negro das trevas? Ei-lo que se aproxima, aumenta,
transforma-se em uma estrêla de cinco pontas, cujos raios têm
todas as cores do arco-íris e lançam na escuridão descargas de
luz magnéticas. Oh! aquilo é um sol que o atrai à brancura
do seu centro incandescente. — É a magia dos mestres que
produz essa visão? É o invisível que se torna visível? É o
presságio da verdade celeste, a estrêla flamejante da esperança
e da imortaliade? — Enfim, desaparece; e em seu lugar um
botão vem desabrochar na noite uma flor imaterial, mas sen­
sível e dotada duma alma. Ela abre-se na sua frente, como
uma rosa branca; desdobra as suas folhas e êle vê formarem-
-se as suas pétalas vivas, purpurear-se o seu cálice inflamado.
É a flor de ísis, a rosa mística, que encerra em seu coração o
amor? — Mas eis que se evapora, como uma nuvem de perfu­
mes. Então, o iniciado sente-se bafejado por um sopro quente
e acariciador. Depois de haver hesitado em formas capricho­
sas, a nuvem condensa-se e assume uma figura humana. É
a duma mulher, a ísis do santuário oculto, porém mais moça,
sorridente e luminosa. Envolve-se à roda do seu corpo, em
aspirai, um véu, através do qual a sua carne brilha. Traz na
mão um rolo de papiro. Acerca-se docemente, dobra-se para
o iniciado deitado na sua tumba, e diz-lhe: "Eu sou a tua irmã
invisível, eu sou a tua alma divina e êste é o livro da tua vida.
Êle encerra as páginas cheias das tuas vidas pretéritas e as
páginas brancas das tuas vidas futuras. Desenrolá-las-ei tô-
48 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

das, um dia, diante de ti. Ficas-me, entretanto, conhecendo.


Chama-me e eu virei!”
E enquanto ela fala, — ó presença dum dom angélico, pro­
messa inefável do divino, fusão maravilhosa do impalpável
além! — um raio de ternura brota dos seus olhos.
Mas tudo se desfaz, a visão desvanece-se numa sensação
horrorosa de ailaceramento. O adepto senté-se precipitado em
seu próprio corpo como em um cadáver. Cai num estado de
letargia consciente. Círculos de ferro prendem-lhe os mem­
bros; um pêso terrível pesa sobre o seu cérebro; êle desperta,
enfim. . . e, de pé, na sua frente vê o hierofante acompanhado
de magos. Rodeiam-no, fazem-lhe beber um cordial, e êle le-
vanta-se:
— Eis-te ressuscitado, diz então o profeta, vais celebrar
conosco o ágape dos iniciados e narrar-nos a tua viagem na
luz de Osíris. Porque tu és, de hoje em diante, um dos nossos.
Em seguida é transportado, com o hierofante, ao observa­
tório do templo, sob o calmo esplendor duma dessas aveludadas
noites egípcias. Era ali que o chefe do templo fazia ao novo
iniciado a grande revelação, recontando-lhe a visão de Hermes.
Essa visão não estava escrita em papiro algum, apenas existia
marcada em sinais simbólicos nas esteias da cripta secreta e
só era conhecida do profeta. A sua explicação era transmitida
oralmente de pontífice para pontífice.
— Escuta bem, dizia o hierofante, esta visão encerra a
história eterna do mundo e o círculo das coisas.
A VISÃO DE HERMES (1)
"Em certo dia, Hermes adormeceu, após ter meditado a
origem das coisas. Um pesado torpor tomou o seu corpo: mas,
à medida que o corpo entorpecia, o seu espírito alava-se nos
espaços.
Então, afigura-se-lhe que um ser imenso, sem forma deter­
minada, o chamava pelo seu nome. — Quem és tu? — pergun­
ta-lhe aterrorizado. — Eu sou Osíris, a Inteligência suprema,
(1) A Visão de Hermes encontra-se no comêço dos livros de Her­
mes Trismegisto sob o nome de Poimandres. A antiga tradição egípcia
não chegou até nós senão sob uma forma alexandrina ligeiramente
alterada. Tentei reconstituir êsse fragmento capital da doutrina her­
mética no sentido da alta iniciação e da síntese esotérica que ela re­
presenta.
Salão de colunas no vestíbulo de Kefren
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 49
que tudo posso desvendar. — Que desejas? — Descobrir a
origem dos sêres, ó divino Osíris, e conhecer Deus. — Serás
satisfeito.
Hermes sentiu-se imediatamente inundado duma luz des-
lumbradora. Nas suas ondas diáfanas perpassavam as formas
arrebatadoras de todos os sêres. Mas, de súbito, uma treva
horrível e de forma sísmica baixou sobre êle. Hermes foi sub­
mergido num caos úmido cheio de fumo e dum rumor lúgubre.
Uma voz se levantou então do abismo. Era o grito da luz.
Sübitamente, um fogo sutil se ateia nas profundezas úmidas do
abismo e ganha as alturas etéreas. Hermes sobe com êle, e
sente-se nos espaços. O caos define-se: coros de astros reboam
sobre a sua cabeça; e a voz da luz enche o infinito.
— Compreendes o que acabas de ver?, diz Osíris a Her­
mes, prêso ao seu sonho e suspenso entre a terra e o céu.
— Não, diz Hermes. — Pois bem: vais compreendê-lo. Tu
acabas de ver o que constitui a eternidade. A luz que existia
no princípio é a inteligência divina, que contém, em potência,
todas as coisas e encerra as formas de todos os sêres. As tre­
vas, em que a seguir te engolfaste, é o mundo material em que
os homens da terra vivem. Mas o fogo, que viste irromper das
profundezas é o Verbo divino. Deus é o Pai, o Verbo é o Filho;
a sua união é a Vida. — Que sentidos maravilhosos são êstes
que despertam em mim?, pergunta Hermes. Eu não vejo já
com os olhos do corpo, mas sim com os do espírito. Como se
fêz isto?
— Filho do pó, responde Osíris, é porque o Verbo está
em ti. O que em ti entende, vê, aciona, é o Verbo, êle próprio,
o fogo sagrado, a palavra criadora!
— Por ser êle assim, faz-me ver a vida dos mundos, o
caminho das almas, donde vem o homem e para onde vai.
— Que tudo se faça, segundo o teu desejo,
Hermes torna-se mais pesado que uma pedra e rola através
dos espaços como um aerólito. Finalmente, vê-se no cimo duma
montanha. Era noite: a terra estava sombria e nua; os seus
membros pareciam pesar-lhe como se fossem de ferro.
— Ergue os olhos e olha!, diz a voz de Osíris.
Então o iniciado viu um espetáculo maravilhoso passado
no espaço infinito, no céu estrelado, que o envolvia em sete
esferas luminosas.
50 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Dum só olhar Hermes abrangeu os sete céus, dispostos


sobre a sua cabeça como sete globos transparentes e concên­
tricos, de que êle ocupava o centro sideral.
O último era cingido pela Via-láctea. Rolava, em cada
uma dessas esferas, um planêta acompanhado dum gênio de
forma, sinais e luz semelhantes. Enquanto Hermes, deslum­
brado, contemplava a sua floração esparsa e os seus movimen­
tos majestosos, a Voz dizia-lhe:
— Olha, escuta e compreende. Tu vês as sete esferas de
toda a vida. Realiza-se através delas a queda das almas e a
sua ascensão. Os sete Gênios são os sete raios do Verbo-Luz.
Cada um dêles mantém uma esfera do Espírito, uma fase da
vida das almas. O mais próximo de ti e o Gênio da Lua, de
sorriso inquietante e coroado por uma foice de prata. Preside
aos nascimentos e às mortes. Êle desagrega as almas dos cor­
pos, e atrai-as com os seus raios. Acima dêle o pálido Mer­
cúrio indica o caminho às almas descendentes e ascendentes
com o seu caduceu, que encerra a Ciência. Mais acima, é a
brilhante Vênus, que guarda o espelho do Amor, em que as
almas por sua vez se esquecem e reconhecem. Mais alto, o
gênio do Sol ostenta o facho triunfal da eterna Beleza. Mais
alto, ainda, Marte brande o gládio da Justiça. Entronizado
sobre a esfera azulada, Júpiter empunha o cetro do poder su­
premo, que é a inteligência divina. Nos confins do mundo,
sob os signos do Zodíaco, Saturno sustém o globo da sabedoria
universal (1).
— Eu vejo, disse Hermes, as sete regiões que compõem
o mundo visível e invisível: vejo os sete raios do Verbo-Luz,
do Deus único, que as atravessa e por êles as governa. Mas,
ó meu mestre, como se realiza a viagem dos homens através
de^todos os mundos?
— Vês, disse Osíris, uma semente luminosa cair das re­
giões da Via-láctea na sétima esfera? São germens de almas.
Elas vivem como vapores ligeiros na região de Saturno, felizes,
sem cuidados e não tendo consciência da sua felicidade. Mas,
caindo de esfera em esfera, revestem envSlucros cada vez mais
pesados. Em cada encarnação adquirem um novo sentido cor-
(1) É conveniente explicar que êstes deuses tinham nomes dife­
rentes na língua egípcia. Mas os sete deuses cosmogônicos correspon­
dem-se em tôdas as mitologias, pelos seus sentidos e pelos seus atribu­
tos. Têm todos a mesma raiz comum, na tradição esotérica. Tendo a
tradição ocidental adotado os nomes latinos, nós os conservamos para
maior clareza.
/
HERMES - ORPEU - TESEU - RÔMULO 51
poral, conforme o meio em que habitam. A sua energia vital
aumenta; porém, à medida que entram em corpos mais espessos,
vão perdendo a recordação da sua origem celeste. Assim se
realiza a queda das almas, que vêm do divino Éter. Cada vez
mais cativas da matéria, cada vez mais embriagadas pela vida,
elas precipitam-se como uma chuva de fogo, com estremeci­
mentos de volúpia, através das regiões da Dor, do Amor e da
Morte até à sua prisão terrestre, onde tu próprio gemes retido
pelo centro ígneo da terra, e onde a vida divina te parece um
sonho vão.
— As almas podem morrer?, perguntou Hermes.
— Sim, respondeu a voz de Osíris, muitas morrem na des­
cida falta. A alma é filha do céu e a sua viagem é uma prova.
Se, no seu frenético amor pela matéria, perde a recordação da
sua origem, a centelha divina que nela residia e que teria po­
dido tornar-se mais brilhante do que uma estrêla, volta à re­
gião etérea, como átomo sem vida — e a alma dissolve-se no
turbilhão dos elementos grosseiros.
A estas palavras de Osíris, Hermes tremeu. Uma tempes­
tade bramidora envolveu-o numa nuvem negra; as sete esferas
desapareceram sob espessos véus e êle viu espectros humanos
dando gritos medonhos, arrastados e dilacerados por animais
monstruosos e fantásticos, por entre gemidos e blasfêmias sem
nome.
— Tal é, disse Osíris, o destino das almas inferiores e
más. O seu tormento não acaba com a sua destruição, que é
a inteira perda da consciência. Mas, repara: os vapores dis­
sipam-se, as sete esferas reaparecem no firmamento. Olha
dêste lado. Vês êsse enxame de almas que tenta subir para
a região lunar? Umas são escorraçadas para a terra como
turbilhões de aves esmagadas pela tempestade; outras atingem
a grandes vôos a esfera superior que, na sua rotação, as arras­
ta, e, uma vez lá chegadas, recobram a vista das coisas celestes.
Agora, porém, não se satisfazem com o refleti-las no sonho
duma felicidade impotente, mas impregnam-se delas com a lu­
cidez da consciência esclarecida pela dor, com a energia da
vontade adquirida na luta. Elas tornam-se luminosas porque
possuem em si mesmas a divindade e a refletem luminosamente
nos seus atos.
Fortalece, pois, a tua alma. ó Hermes, sossega o teu espí­
rito atemorizado, contemplando êsses longínquos vôos de almas,
que tornam a subir as sete esferas e lá se espalham como numa
52 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

chuva de cintilas. Porque tu podes segui-las também, pois


basta querer para te elevar es. Vê como elas ensaiam e deli­
neiam coros divinos e como cada qual se coloca sob o seu gênio
preferido. As mais belas vivem na região solar, as mais po­
derosas elevam-se até Saturno; alguns ascendem até ao Pai —
agora entre as potências celestes, potências são elas também.
Porque lá onde tudo acaba, tudo eternamente começa e as es­
feras dizem em uníssono: "Sabedoria! Amor! Beleza! Es­
plendor ! Ciência! Imortalidade!”
"Eis aí, dizia o hierofante, o que o antigo Hermes viu e
o que os seus sucessores nos transmitiram. As palavras do
sábio são como as sete notas da lira, que contêm toda a música,
com os números e as leis do universo. A visão de Hermes asse-
melha-se ao céu estrelado, cujas insondáveies profundezas são
semeadas de constelações e que para a criança não passa duma
abóbada com pregos de ouro, enquanto que para o sábio é o
espaço sem limites onde volteiam os mundos com os seus ritmos
e as suas maravilhosas cadências. Esta visão encerra os núme­
ros eternos, os sinais evocadores e as chaves mágicas. Quanto
mais tu aprenderes a contemplá-la e a compreendê-la, melhor
atingirás a sua grandeza e extensão, por isso que a mesma lei
orgânica governa todos os mundos”. E o profeta do templo
comentava o texto sagrado explicando que a doutrina do Verbo-
-Luz representa a divindade em estado estático, no seu equilí­
brio perfeito, e demonstrando a sua natureza tríplice, que é ao
mesmo tempo inteligência, força e matéria; espírito, alma e
corpo; luz, verbo e vida. A essência, a manifestação e a subs­
tância são três têrmos que reciprocamente se supõem e a sua
união constitui o princípio divino e intelectual por excelência,
a lei da unidade ternária, que domina de alto a baixo a criação.
Tendo, por esta forma, conduzido o seu discípulo ao centro
ideal do universo, ao princípio gerador do Ser, o mestre inicia-
va-o na segunda parte da visão, que representa a divindade em
estado dinâmico, isto é, em evolução ativa, ou, por outros têr­
mos, o universo visível e invisível, o céu vivo. As sete esferas
ligadas aos sete planêtas, simbolizavam sete princípios, sete
estados diferentes da matéria e do espírito, sete mundos diver­
sos que cada homem e cada humanidade são forçados a atra­
vessar na sua evolução através dum sistema solar. Os sete
gênios ou os sete deuses cosmogônicos significavam os espí­
ritos superiores e dirigentes de todas as esferas, êles próprios
saidos da iniludível evolução. Para um antigo iniciado, cada
grande deus era, portanto, o símbolo e o protetor de legiões
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 53

de espíritos que reproduziam o seu tipo sob mil variantes e


que, da sua esfera, podiam exercer uma ação sobre o homem
e sobre as coisas terrestres. Os sete gênios da visão de Hermes
são os sete devas da índia, os sete Amexaspentas da Pérsia,
os sete grandes Anjos da Caldéia, os sete Sefirotes (1) da Ca­
bala, os sete arcanjos do Apocalipse cristão. E o grande sete-
nário que abraça o universo, não vibra ünicamente nas sete
cores do arco-íris, nas sete notas da gama, mas manifesta-se
também na constituição do homem, que é triplo por essência,
mas sétuplo por sua evolução (1).
"Assim, dizia o hierofante ao terminar, tu penetraste até
ao limiar do grande arcano. A vida divina apareceu-te sob os
fantasmas da realidade. Hermes fêz-te conhecer o céu invi­
sível, a luz de Osíris, o Deus oculto do universo, que respira
por milhões de almas e anima os globos errantes e os corpos
em trabalho. Doravante compete a ti o dirigires-te e o esco­
lher o caminho para ascender ao Espírito puro, porque tu per­
tences, desde agora, aos ressuscitados vivos. Lembra-te que
há duas chaves principais da ciência. Eis a primeira: "O
exterior é como o interior das coisas; o pequeno é como o gran­
de ; não há senão uma só lei e aquêle que trabalha é Um. Nada
é pequeno, nada é grande na economia divina”. Eis a segun­
da: "Os homens são deuses mortais e os deuses são homens
imortais”. Feliz daquele que compreende estas palavras, porque
êle possui a chave de todas as coisas. Recorda-te que a lei do
mistério cobre a grande verdade. A ciência integral não pode
ser revelada senão aos nossos irmãos, aos que atravessaram
as mesmas provas que nós. É necessário medir a verdade, se­
gundo as inteligências, velá-la aos fracos que ela tornaria lou­
cos, ocultá-la aos maus que dela não poderiam aprender senão
fragmentos, dos quais se serviriam como armas de destruição.
Encerra-a no teu coração e que ela fale por tua obra. A ciên­
cia será a tua força, a lei a tua espada e o silêncio a tua
armadura invencível”.
(1) Na Cabala há dez Sefirotes, representando os três primeiros
o ternário divino, e os outros sete a evolução do universo.
(1) Vamos dar aqui os têrmos egípcios desta constituição setená-
ria do homem que se encontram na Cabala: Chat, corpo material; Anch,
força vital; Ka, duplo etéreo ou corpo astral; Haiti, alma animal; Baí,
alma racional; Cheibi, alma espiritual; Ku, espírito divino. Encontrar-
-se-á o desenvolvimento destas idéias fundamentais da doutrina esoté­
rica mais adiante no livro de Orfeu, e sobretudo, no de Pitágoras.
54 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

As revelações do profeta de Ámon-Rá, que abriam ao ini­


ciado tão vastos horizontes sobre si mesmo e sobre o universo,
produziam, sem dúvida, uma impressão profunda quando eram
feitas sobre o observatório de um templo de Tebas, no sossêgo
lúcido de uma noite egípcia. As pilastras, os tetos e os ter­
raços brancos dos templos dormiam a seus pés, entre os ma­
ciços negros dos cactus e dos tamarindos. Ao longe, grandes
monólitos, estátuas colossais dos deuses pousavam como juizes
incorruptíveis sobre o lago silencioso. Três pirâmides, figuras
geométricas do tetragrama e do setenário sagrado perdiam-se
no horizonte, espaçando os seus triúngulos no cinzento leve do
ar. No firmamento insondável formigavam as estréias. Com
que olhos novos êle olhava êsses astros que lhe descreviam
como futuras moradas!
Quando, enfim, o esquife dourado da lua emergia do espe­
lho sombrio do Nilo, que se perdia no horizonte como uma ser­
pente azulada, o neófito julgava ver a barca de ísis que na­
vega sobre o rio das almas e as transporta para o sol de Osíris.
Recordava-se do Livro dos Mortos, e o sentido de todos os sím­
bolos revelava-se então ao seu espírito. Depois do que tinha
visto e aprendido, podia crer-se no reino crepuscular do
Amenti, interregno misterioso entre a vida terrestre e a vida
celeste, onde os defuntos, primeiro sem olhos e sem palavra,
readquirem pouco a pouco o olhar e a voz.
Também êle ia empreender a grande viagem, a viagem do
infinito, através dos mundos e das existências. Já Hermes o
tinha absolvido e julgado digno, já lhe havia dito a palavra
do grande enigma: "Uma alma única, a grande alma do Todo,
criou, partilhando-se, todas as almas que se movem no univer­
so”. Armado do grande segredo subia para a barca de ísis.
Ela partia. Levantada nos espaços etéreos, flutuava nas re­
giões intersiderais. Já os clarões brilhantes duma aurora
imensa rasgavam as velas azuladas dos horizontes celestes, já
o coro dos espíritos gloriosos dos Aquimu-Secu, que lograram
o repouso eterno, cantava: "Levanta-te, Rá Hermacuti! Sol
dos espíritos! Aquêles que vão na tua barca, na barca dos
milhões de anos, exaltados, soltam exclamações. O grande ci­
clo divino, transbordando de alegria, giorifica a grande barca
sagrada. Na capela misteriosa celebram-se festas. Levanta-
-te, pois, Ámon-Rá Hermacuti! Sol que a si mesmo se criou!”
E o iniciado respondia por estas palavras orgulhosas: "Atingi
o país da verdade e da justiça. Ressuscito como um deus vivo
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 55
e brilho no coro dos deuses que habitam o céu, porque sou da
sua raça”.
Tão altivos pensamentos, tão audaciosas esperanças po­
diam visitar o espírito do adepto, na noite que seguia a ceri­
mônia mística da ressurreição. No dia imediato, nas avenidas
do templo, sob a luz cegante, essa noite não lhe parecia mais
do que um sonho. . . Mas que sonho inolvidável não era essa
primeira viagem ao impalpável e ao invisível! Novamente êle
lia a inscrição da estátua de ísis: "Nenhum mortal ergueu o
meu véu”. Todavia uma ponta dêsse véu se havia levantado,
mas para de novo cair, e êle havia acordado sobre a terra dos
túmulos. Ah!, como estava longe do têrmo sonhado e quanto
é longa a viagem na barca dos milhões de anos! Ao menos
havia entrevisto o destino final. Se a visão do outro mundo
não passara dum sonho, um esboço infantil da sua imaginação,
ainda adensada pelas exalações da terra, poderia duvidar dessa
outra consciência que tinha sentido despertar em si, dêsse du­
plo mistério, dêsse ser celeste que lhe aparecia na sua beleza
astral como uma forma viva, e que lhe tinha falado no seu
sono? Seria uma alma irmã, seria o seu gênio, ou não seria
senão o reflexo do seu espírito íntimo, um pressentimento do
seu ser futuro? Maravilha e mistério. Seguramente era uma
realidade, e, se essa alma não era senão a sua, era a verda­
deira. Para tornar a encontrá-la que não faria êle? Vivesse
embora milhões de anos que nunca mais esqueceria essa hora
divina em que vira o seu outro eu puro e resplandecente! (1)
A iniciação terminara. O adepto estava consagrado sa­
cerdote de Osíris. Se era egípcio, ficava adido ao templo, se
era estrangeiro permitiam-lhe às vezes regressar ao seu país
para ali fundar um culto ou cumprir a sua missão. Mas, antes
de partir, prometia solenemente, por um juramento temível,
guardar um absoluto silêncio acêrca dos segredos do templo.
Nunca êle poderia dizer a ninguém o que tinha visto e ouvido,
nem revelar a doutrina de Osíris senão sob o tríplice véu dos
símbolos mitológicos ou dos mistérios. Se traísse êste jura­
mento, uma morte forte o atingiria cedo ou tarde, por longe
que estivesse. Mas o silêncio tornava-se o escudo da sua fôrça.
(1) Na doutrina egípcia, o homem era considerado como não ten­
do consciência nesta vida senão da alma animal e da alma racional
chamada haiti e bai. A parte superior do seu ser, a alma espiritual
e o espírito divino, cheibi e ku existem em si em estado de gérmen in­
consciente e desenvolvem-se após esta vida, quando êle próprio se toma
um Osíris.
56 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Regressado às plagas da Jônia, à sua turbulenta cidade,


sob o choque das paixões furiosas, no meio duma multidão de
homens que viviam como insensatos, ignorando-se a si mesmos
— quantas vêzes recordava o Egito, as pirâmides, o templo de
Ámon-Rá. Então o sonho da cripta voltava. E, assim como,
lá em baixo, o lótus ondej a sobre as vagas do Nilo, assim tam­
bém sempre essa branca visão sobrenadava por sobre o rio
lodoso e turbado desta vida. Às horas escolhidas êle ouvia a
suxl voz, e era a voz da luz, despertando 110 seu ser uma música
íntima, que lhe dizia: "A alma é uma luz velada. Quando não
cuidamos dela, escurece e extingue-se, mas quando lhe deita­
mos o santo óleo do amor, ela brilha como uma lâmpada
imortal!”
ORFEÜ
A GRÉCIA
Jacques Pirenne

No momento em que o Império Assírio unificava a Ásia


Anterior pela conquista, o Mediterrâneo tomava uma impor­
tância econômica e cultural crescente.
Desde o século XII a. C., a vaga de invasões já passara,
o contato se tinha restabelecido, nas costas da Ásia Menor,
entre as populações asiáticas e os aqueus, uma infiltração con­
tínua se dava na Eólida e na futura Jônia.
Entre os séculos XII e o VIII, na Eólida, na antiga Tróade,
uma cultura se formava, semi-aqueana, semi-asiática. Ela se
reflete na mitologia grega. Formada sobre um fundo de idéias
cretenses de influência egípcia, que os aqueus tinham trazido
com êles, assimilara na Ásia Menor as idéias frígias e lídias,
estas mesmas formadas sob a ação determinante da cosmogonia
babilônica. Afrodite, deusa Mãe de Cnosso, confundia-se com
a Artêmis asiática, esta análoga à babilônica Ishtar; Zeus, de
origem cretense, deus fecundante, veio a tornar-se deus solar,
e aparenta-se ao Apoio troiano; Têmis, a deusa da Justiça, é
filha de Ouranos, o deus do céu dos gregos, como Mâat, no
Egito, é filho de Rá; e Atlas sustenta "o vasto céu, de pé, em
sua cabeça e em seus braços infatigáveis”, separando-o da
Terra, sua esposa, como no Egito Chu, o deus do ar, mantém
a deusa Céu, separada de seu esposo, o deus Terra.
Sobre êstes elementos, vindos de todas as partes, uma teo­
logia grega se constituiu, que lembra muito à da religião su-
mério-babilônica. Da mesma forma que, na cosmogonia sumé-
ria, Anshar, o céu, e Kishar, a terra, procriam uma tríade de
deuses masculinos (Anubis, o rei do céu, Enlil, o rei da terra,
Ea, rei do oceano), assim como, na mitologia grega, Ouranos,
o céu, e Gaia, a terra, deram nascimento a Cronos, o tempo,
pai de Zeus, rei do céu, Posêidon, rei do oceano, e Hades, deus
60 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

do mundo subterrâneo; a única diferença da tradição babilô-


nica é que a terra, no sistema grego, considera-se um bem
comum aos três deuses.
Como sua cosmogonia, a grande epopéia nacional dos gre­
gos, a epopéia homérica, toma sua forma clássica no Eólida,
pela confusão, numa única obra, das antigas tradições aquéias
e troianas. Dêste contato surgiu uma concepção inteiramente
nova na literatura. A evocação da vida atinge, na Ilíada e na
Odisséia, uma riqueza, um encanto, um valor de arte que não
foram expressos nem pelos babilônicos, nem pelos egípcios. Ho­
mero pinta com palavras, como o egípcio com o pincel ou o
cinzel. A arte literária nasce, ou pelo menos nos aparece pela
primeira vez, nestas duas imortais obras de arte que se ligam
certamente a uma literatura anterior, aquéia e cretense, intei­
ramente perdida. A epopéia homérica não é, com efeito, um
fato isolado. Ela se desenvolve, paralelamente, a uma produ­
ção de hinos chamados "homéricos”, que, escritos sob a influên­
cia da Ásia à glória das grandes deusas Mães, pertencem à
mesma tradição que os hinos babilônicos e que os magníficos
poemas escritos no Egito para celebrar o deus solar.
Ao mesmo tempo que aparecem, na Eólida, a religião e a
literatura grega, produto dum sincretismo aqueu-asiático, a
imigração jônica, que não cessava de se produzir da Ática e de
Eubéia em direção aos antigos centros cretenses e micênios da
Ásia Menor, reanimava, por volta do século X, a antiga civili­
zação urbana e marítima, que o mar Egeu tinha antes conhe­
cido. As cidades formaram-se com populações cárias, fenícias,
aquéias, onde logo dominou a aristocracia jônica.
Mileto, Priene, Éfeso, Samos, Cólofon, Teos, Clazomene,
Eritréia se constituíram numa federação jônica que, desde o
século IX, retomou o papel que os cretenses tinham. Os jôni-
cos e os cários asseguraram bem cedo a hegemonia no mar
Egeu e mar Negro. E paralelamente a êste renovamento da
navegação, a vida econômica retomou, na Ásia Menor, favore­
cida pela paz que fazia reinar o Império assírio. Mileto, donde
parte o caminho, que, através de Lídia e de Capadócia, liga o
Eufrates, veio a ser uma grande metrópole comercial. Sua
marinha dominou o mar Negro, onde, desde o século VIII, pos­
suíam oitenta armazéns, entre os quais Sinope e Trebizonda,
muito cedo célebres, a primeira como cidade de armadores, e
a segunda como principal entreposto de ferro do Cáucaso. Os
trabalhadores milésios fundaram, na Criméia Querson (Seba§-
topol), Teodósia, Penticapé (Kertch), e, na desembocadura dos
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 61
grande-s rios russos, Ólbia (Odessa), Tanais (Azov), donde se
exportava o trigo da Cítia e o peixe seco.
Mileto, no século VIII, desenvolveu-se como o grande porto
da Ásia Menor. Éfeso tornou-se um centro financeiro. Do
mesmo modo que em Babilônia, o templo dedicado a Afrodite
fêz o papel de banco, e os banqueiros efésios, formados na
tradição babilônica, tornaram-se tão poderosos, que tiveram na
vida internacional um papel político de primeira plana.
Eubéia, que possuía importantes minas de cobre, atraiu
a navegação milésia. Retomando o papel da Creta, Eubéia tor­
nou-se um grande mercado de metais, procurando assegurar o
monopólio das minas de ferro da Trácia, donde ela retirava
também o ouro, a prata, a resina, a madeira, o vinho e o trigo.
Muito cedo, um caminho marítimo se criou de Mileto pela
ilha Eubéia, em direção à Itália e à Sicília. Ela deu nasci­
mento a Corinto, Mégara, Sicione, Egina, onde se instalou uma
indústria de exportação de quinquilharias e de cerâmica. Co­
rinto, orientado para o Ocidente, atirando-se por sua vez no
caminho da colonização, fundou Siracusa, em 743. Na Itália
do Sul, Síbaris, Crotona, Metaponto, fundadas pelos aqueus
emigrados da Grécia, formaram uma liga para assegurar o do­
mínio econômico na Grande Grécia. E a navegação grega, des­
de o século VII, tornou-se rival à de Cartago, no Mediterrâneo
central.
Naturalmente, Mileto renovou com as cidades do Delta
egípcio as relações comerciais. Ela instalou um armazém
numa desembocadura do Nilo, onde os gregos iam se tornar
fabricantes de tecidos, e Sais, passou a ser um dos principais
portos do Egito.
Mileto tornou-se, assim, um dos pontos essenciais do co­
mércio internacional. Três rotas de importância capital se li­
gavam, e ganhavam o mar Negro pelo Helesponto, o Egito por
Rodes e Chipre, o Ocidente pela Eubéia e Corinto.
Os povos, que participavam dêste grande movimento ma­
rítimo, egípcios, fenícios, etrusocs, jônios, aqueus e cários, de-
senvolviam-se, paralelamente, sob a influência das mesmas
condições econômicas. Suas civilizações naturalmente, se in­
terpretavam. Suas religiões agrárias sofreram a influência
dominante do culto osírio; e as relações marítimas, que os
unia, sem ser sempre amigáveis, é verdadè — uma rivalidade
que não desapareceu nunca, criou-se entre os gregos e os fe-
62 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

nícios — levaram-nos a praticar os mesmos costumes comer­


ciais.
A classe mercadora, pelas imensas riquezas móveis que
acumulara, tomava uma importância considerável. Em Éfeso,
a família dos banqueiros Meias iria ter, na história da Ásia
Menor, um papel de primeira plana, abrindo aos reis da Lídia
créditos necessários à sua política monárquica. Em Mileto,
os armadores inaugurariam uma nova forma de moeda, pondo
em circulação lingotes de prata, marcados com os seus nomes.
Assim, depois do século IX, desenvolveram-se dois movi­
mentos econômicos, políticos e sociais, que se opunham clara­
mente: no continente, os assírios ligavam um grande império
baseado no absolutismo e no poderio militar; em todas as cos­
tas do Mediterrâneo oriental e central, contràriamente, uma
quantidade de cidades autônomas, orientadas essencialmente
ao comércio, davam nascimento a uma população urbana, no
seio da qual uma surda fermentação social fazia já prever sua
evolução democrática.
O Império assírio unificava politicamente o continente,
sem lhe dar nenhuma unidade de civilização. O comércio in­
ternacional criava à volta do mar uma unidade de civilização
no meio dum círculo político.
Até o século XII, a economia antiga tinha sido determi­
nada pelas relações continentais^a Mesopotâmia era o centro;
as grandes capitais, Babilônia, Mênfis, Tebas, Ninive, Hatu,
eram cidades continentais; a navegação tinha por fim reunir
entre elas as costas do mesmo continente. No século XV, a
talassocracia cretense tinha introduzido o mar Egeu na esfera
da economia oriental; e após isto, o mar tinha tido um papel
cada vez mais importante na vida comercial internacional. O
Egito, com as vistas lançadas ao mar, tinha criado o porto de
Faros, para ali receber os cretenses, depois Ramsés II fêz da
cidade marítima de Tânis a capital do seu império. A invasão
dos Povos do Mar parara bruscamente este desenvolvimento da
navegação. Mas retomou com maior amplidão no século II,
quando os fenícios se lançaram à descoberta do Ocidente.
Os fenícios, logo seguidos pelos gregos, criaram, assim,
uma economia marítima inteiramente nova, que ligava entre
êles mundos até então ainda desconhecidos um do outro. Desde
aí o mar, em lugar de ser um limite do mundo conhecido, tor­
nava-se um centro de atração. Uma nova fase se abria na
história do mundo antigo.
A GRÉCIA E 0 EGITO NOS SÉCULOS VI E VII

O império babilônico é unificado territorialmente; o indi­


vidualismo se desenvolve dentro do aspecto de um absolutismo
igualitário.
As populações marítimas do Mediterrâneo oriental, con-
tràriamente, vivem sob um regime urbano, descentralizado, e
são tomadas por um movimento democrático. Êste se mani­
festa, no início, no Egito, pelas reformas de Bocóris, por volta
de 715. Depois, em Sardes, onde, sob o reinado de Giges, a
burguesia rica tomou a hegemonia. Em Mileto a família real
dos Neleidas foi obrigada a passar o poder à poderosa corpo­
ração dos armadores. Em Éfeso, é a oligarquia financeira,
dominada pela família dos Meias, que tomou a direção dos
negócios. Na Jônia, em Cólofon e Samos, na Grande Grécia,
em Síbaris, nas cidades do Ponto, as oligarquias de burgueses
ricos governam.
Na Grécia, onde a aristocracia dórica tinha mantido até
o século VII um sistema senhorial antinômico com o desenvol­
vimento urbano, um movimento popular leva ao poder tiranos
que destroem os grandes domínios e depõem o govêrno da
nobreza. Em 670, em Cício, Ortágoras exclui a aristocracia
da cidade, emancipa os rendeiros, abolindo as diferenças de
classes. Em Corinto, Cipselos em 657, expropria as proprie­
dades dos nobres, que transforma em cidades dotadas de uma
organização municipal, inaugura uma política mercantil e de­
mocrática, promulga leis contra os desocupados. Periandro,
em 627, inicia grandes trabalhos públicos para reabsorver os
desempregados, dota a cidade de água potável, constrói um
porto. Em Mégara, no ano 640, Teagene confisca as grandes
propriedades e as distribui ao povo.
Na Magna Grécia, nas colônias novas, onde não existe no­
breza, as cidades encarregam os legisladores de lhes darem
constituições. Em 663, Zaleucos, em Locres, introduz a igual­
64 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

dade do direito civil, confiando o govêrno a uma oligarquia


rica; trinta anos mais tarde, Carondas, em Catânia, dá o poder
à assembléia do povo, substitui pela jurisdição popular a jus­
tiça de classe, e quebra a solidariedade familial. Em Atenas,
o código de Drácon, em 621, coloca um têrmo aos privilégios
da nobreza, e Sólon, em 594, inspirando-se no código de Bocó-
ris, que tinha conhecido no Egito, onde viajara para vender
azeite, instaura a democracia temperada e a igualdade civil,
abolindo a violência sobre o corpo, libera os devedores por dí­
vidas, devolve aos seus antigos proprietários as terras que
tinham sido confiscadas pelos credores e põe fim ao regime
aristocrático. A riqueza, e não mais o nascimento, vem a ser
a base da hierarquia social. A direção dos negócios públicos
passa para a oligarquia rica, a única apta a ocupar os cargos
de arcontes e tesoureiros. Mas todos os atenienses tomam par­
te no govêrno, elegendo à assembléia do povo os cem candida­
tos, entre os quais são escolhidos os nove arcontes, constituindo
os tribunais populares, elegendo os membros do conselho dos
Quatrocentos, que, com o areópago, formado pelos arcontes,
saídos dessa fundação, exercem o poder soberano.
Assim aparece o princípio da representação do povo pelas
assembléias eleitas — aplicada pela primeira vez em Quios na
Jônia — que constitui, na história do Direito público, uma ino­
vação essencial.
A constituição de Sólon, gromulgada no meio de lutas so­
ciais, de uma extrema violência, não satisfez ninguém. O par­
tido aristocrático acusava-o de ter deixado a cidade ao govêrno
do povo; o partido popular, de não ter expropriado as terras
da nobreza. O conflito social, por um momento apaziguado,
retomou, então, com uma violência crescida, até que Pisístrato,
em 561, levado ao poder pela rebelião, instaura em Atenas
uma tirania que devia levar o triunfo integral da democracia
e orientar, definitivamente, a cidade no caminho do comércio
marítimo.
Em todas as costas do Mediterrâneo oriental, no Egito,
na Lídia, na Jônia, na Grécia, na Magna Grécia e na Sicília,
um grande movimento de emancipação social acompanha o de­
senvolvimento econômico.
Mas, enquanto no Egito as reformas são realizadas pelo
rei, apoiado na opinião pública das cidades, nas cidades gregas
autônomas, elas são devidas ao partido democrático, que luta
pela conquista do poder.
Alto relêvo egípcio
Luxor — O Templo — Colunas de Amenófis III
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 65
São as cidades egípcias, que representam o mais alto grau
de civilização, o que explica a influência que teriam sôbre o
mundo grego as reformas realizadas em Sais por Bocóris.
Entre as cidades gregas, as mais ricas, as mais cultivadas, as
maiores são, de muito longe, as cidades jônicas da Ásia Menor.
É preciso não esquecer que o dideicomisso existia em Mileto,
quando o testamento não estava ainda em uso em Atenas, e
que Éfeso era um centro de banqueiros internacionais, bas­
tante poderosos para consentir nos empreendimentos do rei da
Lídia, quando as cidades da Grécia propriamente ditas igno­
ravam então os primeiros elementos do banco.
Mais avançada no Egito e na Jônia, que na Grécia, a ci­
vilização, que se desenvolve nos séculos VI e VII em tôdas as
regiões costeiras do Mediterrâneo oriental, possui caracteres
comuns que estabelecem entre o Egito, a Lídia, a Grécia e as
cidades fenícias, um contato intelectual, religioso e moral, tan­
to quanto econômico. A tal ensinamento, que os grandes san­
tuários asiáticos de Dídimo em Mileto, do Clárion em Cólofon,
do Artemisio em Éfeso, como o santuário grego de Delfos e
o templo egípcio de Bouto, gozam dum prestígio universal en­
tre todos os povos marítimos. E ntre todos êstes também o
culto agrário toma uma forma semelhante. Desde a época do
antigo Império, o culto osírio, nascido no Egito, combinou-se
com o culto de Adônis nas costas da Síria a ponto de se con­
fundir com êle. Os Mistérios, que penetram na Grécia após
o orfismo, e do qual Elêusis se tornaria o mais célebre santuá­
rio, são diretamente influenciados, êles também, pelas idéias
osíricas. A cosmogonia grega é penetrada por elementos ba­
bilônicos, cretenses, egípcios. A epopéia homérica representa
um fundo de tradições aquéias e troianas misturadas.
A idéia da imortalidade da alma, a da redenção do mundo
pela morte do deus — Osíris, Anúbis ou Dioniso —, a crença
numa moral, da qual depende o destino dos homens no outro
mundo, representam a maior contribuição feita pelo pensamen­
to egípcio ao pensamento grego. Êle anima a corrente místi­
ca, que acompanha por todos os lados o movimento democrático
e prepara, seis séculos antes o nascimento de Cristo, a vinda
do cristianismo.
A evolução comercial, democrática, cosmopolita, atirou o
Egito numa crise profunda. O clero, prêso à tradição e a gran­
de propriedade terrena, defendeu seus privilégios, que a popu­
lação urbana combate. No mesmo tempo, um sentimento de
66 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

hostilidade se espalha no Egito contra os gregos, que penetram


por todos os lados para fazer concorrência aos egípcios até em
suas próprias cidades. O rei Ápris, apoiado nos mercenários
gregos, resiste contra as reivindicações sociais que se manifes­
tam entre a população urbana. Uma revolta explode contra êle
entre as milícias egípcias enviadas para a conquista de Cire-
ne; Amásis, um general saído do povo, é proclamado rei pelas
tropas; Ápris é massacrado pela multidão no curso de desor­
dens populares; uma era de grandes reformas sociais vai nascer.
Sob o reinado de Amásis (568-525), o Egito conheceu uma
enorme proáperidade. Êste, entronizado pela revolução, foi ao
mesmo tempo um grande reformador social e um hábil polí­
tico. A primeira questão a abordar é a das relações entre gre­
gos e egípcios. Amásis reuniu todos os gregos na cidade de
Náucratis, perto do porto de Faros, outrora criado pelos egeus
e onde os milésios tinham já instalado um mercado. Os gre­
gos, entre os quais dominavam os jônios, obtiveram o direito
de governarem-se a si próprios, segundo as instituições nacio­
nais, pagando, entretanto, um imposto ao Faraó. Náucratis
tornou-se ràpidamente um dos principais portos do Mediter­
râneo. Os gregos entraram em contato com o comércio da
Arábia e da índia. Cidade grega de negócios e prazer, situada
em pleno Egito, Náucratis foi um dos pontos de encontro dos
mais importantes das duas grandes civilizações mediterrâneas.
Por Náucratis, Amásis integrava o Egito na economia grega.
Êle se firmava, por outro lado como amigo dos gregos; en­
viava sua estátua à Esparta, por intermédio de Rodes; despo-
sava uma princesa grega de Cirene, tomava, posse de Chipre,
onde se elegia como protetor dos pequenos régulos gregos con­
tra as colônias fenícias, suas rivais. No fim do seu reinado,
tentaria realizar a hegemonia marítima, aliando-se com o tira­
no Policrates de Samos, que dispunha de uma das mais fortes
frotas do tempo. Mas, ao mesmo tempo, unia-se com uma
estreita aliança com Creso, que acabava de subir ao trono de
Sardes (561), e que, êle também, encontrava-se cada vez mais
interessado pela Grécia pela sua política mercantil. Como
Amásis dispunha do grande porto grego de Náucratis, Creso
incorporou ao seu reino, conservando a autonomia, as cidades
jônicas. Um e outro faziam valiosos presentes a Delfos.
Entre a Grécia e as cortes de Sais e de Sardes, as relações
são constantes. O célebre filósofo milésio Tales entra como
engenheiro militar ao serviço de Creso, que atrai à sua corte
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 67
o filósofo Bias, dá uma pensão a Esopo, encomenda jóias a
Teodoro de Samos, cobre de ouro Alcméon de Atenas, leva
socorro a Milcíades, prêso pelos habitantes do Ponto, subscreve
auxílios aos banqueiros de Éfeso, e inaugura o cunho da moeda
real, que vai ser imitada por todas as cidades gregas.
O contacto entre o Egito e os gregos não é menor. Sólon,
Tales, Pitágoras fazem viagens de estudo ao Egito. Os gregos
se iniciam em Náucratis, como em Sardes, na prática dos ne­
gócios internacionais, e mercenários, mercadores ou marinhei­
ros ali tomam contato com as grandes reformas democráticas,
que realiza, neste momento, Amásis.
Êste, levado ao trono pela revolta, foi mais um tirano de
tipo grego do que um faraó. Seu reino inaugura, na história
do Egito, um regime novo. Transportando sobre o plano na­
cional as concepções políticas das cidades gregas, convoca uma
assembléia de pessoas notáveis, entre as quais não figura, coisa
paradoxal no Egito, um sacerdote sequer. Com o concurso
desta assembléia, realiza uma verdadeira reforma das institui­
ções egípcias. Os privilégios do sacerdócio são suprimidos, os
templos são colocados sob a administração real, os últimos ves­
tígios do regime senhorial, que subsistiam no Alto Egito, são
abolidos; todas as rendas que os templos recebiam do povo,
como uma espécie de dízimo, são suprimidas. As rendas dos
domínios sagrados são atribuídas ao Estado, que instaura, em
troca, um orçamento do culto.
Esta reforma, comparável por sua amplidão e seus prin­
cípios, à realizada pela Assembléia Nacional em 1789, na Fran­
ça, foi acompanhada de uma reorganização fiscal; o cadastro
restabelecido, constitui o assento do imposto, muitas vêzes ex­
clusivamente avaliado em dinheiro, e calculado sobre a renda
dos contribuintes.
Mobilizando a propriedade, as reformas de Amásis tive­
ram, por efeito, aumentar a economia capitalista. Os templos,
onde os bens são administrados pelo Estado, organizam nos
seus domínios oficinas industriais que trabalham para vender
seus produtos. O arrendamento estende-se por todos os lados,
substitui a dependência de um feudo, e a taxa do aluguel não
cessa de subir por conseqüência da alta dos produtos agrícolas.
A terra torna-se objeto de especulações comerciais. O indivi­
dualismo, que se afirma no direito privado, favorece o desen­
volvimento dos negócios. A economia liberal triunfa, e, com
ela, o trabalho livre. Porque, contràriamente ao que se vê na
68 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Grécia, onde a mão-de-obra industrial é na maior parte for­


mada de escravos, no Egito ela é recrutada exclusivamente,
na população livre. O próprio Estado não utiliza escravos, a
política pacífica dos reis saítas não coloca à sua disposição
prisioneiros de guerra.
Na Grécia, o desenvolvimento da democracia social é acom­
panhado do triunfo da democracia política. No Egito, ao con­
trário, êle coincide com o reforçamento do poder monárquico.
As cidades estão a ponto de perder a sua autonomia. Mas a
igualdade social triunfa em todo o país. Na Grécia, cada ci­
dade domocrática vive da exploração de um numeroso prole­
tariado de escravos; no Egito, não há escravos. As cidades
gregas não reconhecem os direitos a não ser dos seus próprios
cidadãos; indo de uma à outra, o grego torna-se um estran­
geiro incapaz de possuir imóveis; no Egito, através de todo o
reino, só há egípcios iguais em direitos. Na Grécia, cada ci­
dade é um pequeno Estado, estreitamente agrupado à volta de
um culto estritamente nacional; no Egito, a religião une todos
os habitantes numa mesma fé mística e no respeito de uma
mesma moral.
O Egito, em plena renascença artística e espiritual, exer­
ceu uma influência considerável, na época saíta, sobre o pen­
samento grego, do qual as grandes cidades jônicas, tão estrei­
tamente em relação com as cidades do Delta, foram o berço.
Após o século VII, um extraordinário movimento intelec­
tual acompanha o progresso econômico e social das populações
gregas da Ásia Menor. No domínio religioso, a antiga tradi­
ção, representada pelos hinos homéricos, toma um novo cará­
ter; sobre a influência do misticismo osírico desenvolve-se a
literatura órfica, que acompanha a migração triunfal na Gré­
cia dos grandes deuses jônicos, Apoio e Deméter, onde Elêusis
e Delfos vão tornar-se os santuários clássicos. Hesíodo tenta
um sincretismo das diferentes cosmogonias e dá à teogonia
grega sua forma definitiva, apresentando a gênese, segundo
a tradição oriental, como concretizada numa genealogia de
deuses.
A grande extensão que tomam os cultos dos mistérios
espalha, na Grécia, a arte musical frigia, e dá um magnífico
desenvolvimento à poesia coral na Jônia e na Magna Grécia.
A ameaça das invasões cimérias e a luta das cidades jô­
nicas contra Giges, fizeram aparecer os poemas políticos de
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 69
Calinos de Éfeso e de Mimnermo de Cólofon. Assim como a
vida rica e fácil, penetrada da moleza voluptuosa da Ásia, a
prosperidade comercial espalha nas cidades mercantes, dá nas­
cimento à poesia amorosa que cantam as odes de Mimnermo,.
de Alceu de Mitilene, de Safo de Lesbos.
Mas, ao lado da classe rica, o povo se agita; as lutas so­
ciais degeneram em guerra civil; Aquíloco de Paros faz-se, nos
seus Iambos satíricos, o insultador dos aristocratas; assim como
Mimnermo e Alceu exalam seu ódio à democracia, e Xenófa-
nes ridiculariza os jovens afeminados da classe rica, que pas­
seiam com os cabelos eriçados, empoados, e pintados como mu­
lheres. Tôda a vida ardente da Grécia se traduz num sopro
poético inteiramente novo.
Mas, por interessante que seja, o movimento literário jô-
nico empalidece diante da amplidão que conhece, repentinamen­
te, no século VII, o pensamento humano, na filosofia jônica,
iniciada em Sardes e em Náucratis, em relação à civilização
milenar da antigüidade oriental.
É em Mileto, que ela toma força, no momento em que de-
sabrocha o individualismo, no redemoinho das lutas sociais e
econômicas, no meio dos quais aparecem, ao mesmo tempo, a
riqueza material e um extraordinário desenvolvimento da per­
sonalidade humana.
A Escola Jônica, fundada por Tales, homem de negócios,
de espírito enciclopédico, devia iniciar a Grécia no pensamen­
to egípcio e asiático, permitindo-lhe assimilar os resultados
adquiridos por trinta séculos de civilização oriental.
O pensamento de Tales é diretamente inspirado pela cos­
mogonia solar do Egito, da qual toma a noção do universo
formado do espírito e da matéria, mas transpondo-a do plano
religioso ao plano filosófico e físico.
QUE SE ENTENDE POR ORFISMO?

W. K. C. Guthrie

A religião grega é muito complexa. A quem deseja estu-


dá-la, ela lhe aparece mais como uma mistura de religiões, e
para compreendê-la, é preciso separar os diversos elementos
e segui-los até à sua origem; e esta é uma maneira normal
e racional de agir. No que respeita à Grécia dos tempos his­
tóricos, a distinção mais elementar a estabelecer é aquela que
separa as religiões olímpicas e as ctônicas (1); os cultos do ar
puro desenvolvem seus rituais nos cumes das montanhas sagra­
das e são caracterizadas pela alegria de viver, o amor a tudo
que é são, a franqueza; elas se opõem aos cultos da terra e das
regiões subterrâneas, que são muitas vêzes marcadas pela obs­
curidade, o terror e um desejo místico de se unir com o deus.
Podemos, também, dar as diferenças mais subtis e complexas
às quais somente a perspicácia do estudioso pode dar os limites.
A percepção destas divisões é uma necessidade para quem
quer que seja, desejoso de compreender os gregos e a sua reli­
gião. Entretanto, é fácil cair em erros, se não se tiver cuida­
do. Com efeito, examinando as diversas crenças religiosas e
os variados ritos que nos oferece o mundo grego, falamos, co-
mumente, de "religião” olímpica, de "religião” ctônica. de "re­
ligião” dionisíaca, e assim por diante; ora, esta é uma ma­
neira que pode nos conduzir a esquecer um fato importante.
Um observador neutro falará igualmente da religião cristã ou
da religião muçulmana, mas êle não é o único a fazê-lo. Os
povos, aos quais êle alude, sabem, também, que pertencem a
mundos religiosos diferentes; é esta uma parte importante de
(1) Khthonikós, em grego, refere-se à terra, ao terrestre. Reli­
giões ctônicas são aquelas cujos ritos e adorações se dirigem às coisas
terrestres.
72 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

sua religião e êles estão prontos, não só para matarem como


para serem mortos por sua fé; estas duas religiões podem
admitir que o Judaísmo é seu antepassado comum, os Muçul­
manos podem dar a Jesus um lugar entre seus profetas, mas
suas crenças se excluem mutuamente; pois não se concebe um
cristo que seja ao mesmo tempo muçulmano ou um muçulma­
no que se diga cristão. Seria possível escrever uma obra sobre
a natureza, a origem e a difusão do Islão sem falar dos Cris­
tãos, a não ser para mostrá-los como inimigos de Maomé, onde
a oposição militante fêz muito para retardar os progressos da
religião islâmica. Nós temos tendência a imaginar que nos
prendemos a divergências bastante destacadas quando compa­
ramos duas religiões antigas; e é totalmente injustificado ser-
vir-se do têrmo "religião” para designar as crenças como as
da Grécia clássica ou as do paganismo greco-romano; é porque
eu apelo à prudência, mas retenho a palavra "religião”, por­
que não é comprometedor, se compreendemos, uma vez por
todas, a sua significação.
As diferenças entre o culto de Zeus Olímpico e os mistérios
de Deméter parecem tão profundos como aquêles que existem
entre duas das mais modernas religiões. Entretanto, estas di­
ferenças jamais engendraram perseguições nem guerras, e era
possível, para um mesmo homem, ser um fervoroso seguidor
dêstes dois cultos ao mesmo tempo. Mais ainda, os mistérios
se desenvolviam em honra de Koré, filha de Deméter, tanto
quanto em honra desta; Koré tinha o próprio Zeus por pai, e
Zeus era invocado sob o nome de Chthônios, assim como pelo
de Olímpicos. Era um deus totalmente diferente, poderíamos
retorquir. Felizmente, não temos de tratar desta questão tão
complicada. Não podia ser também totalmente diferente para
um ateniense do V século a. C. E êste é um dos numerosos
exemplos que ilustram bem, quão pouco exato é aplicar às cren­
ças antigas pontos de vista que são válidos para as religiões
modernas. Isto não é uma questão de tolerância. A maior
parte do mundo civilizado conhece hoje a tolerância religiosa,
mas as demarcações que existem entre as religiões cristã, mu­
çulmana e hindu não foram tornadas inexistentes por isto. E
o próprio espírito do adepto desta ou de outra crença, que é
inconsciente da diferença, aparece muito claramente para aquê-
le que a julga de fora. Podemos até traçar um paralelo no
interior do Cristianismo: as divergências que êle abriga não
foram sempre ignorados pelos Cristãos, a longa história das
perseguições é um testemunho disso. Mas encontramos hoje*
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 73
orando, lado a lado, na mesma igreja e com aparente unanimi­
dade, pessoas cujas disposições espirituais são muito variadas,
sendo função de suas capacidades mentais e de sua instrução,
que os levam a crer seja num Deus bom e paternal, seja num
Soberano justo mas despótico, seja num Ser que é apenas um
homem mais perfeito e com o que a união espiritual comple­
ta não é impossível de atingir. A imortalidade concebe-se, ora
como uma forma da justiça divina, com os tormentos do in­
ferno para os endemoninhados, ora são considerados êstes sofri­
mentos como indignos da Divindade, ora uma prolongação rea­
lista da personalidade, ora uma forma quase neopiatônica de
união com o Espírito soberano, onde a sobrevivência pessoal
não é claramente definida. Pode-se, em sumaL encontrar, sob
uma mesma denominação, todos os matizes da crença, matizes
que temos tanta dificuldade em separá-los quando se trata da
religião grega, e encontramos também no Cristianismo, que a
concepção das relações entre Deus e os nomens é muitas vezes
variável, podendo ser também teórica, como a de Homero, ou
elevando-se até o misticismo mais puro. Em definitivo, a reli­
gião ê um assunto individual e não existe dois homens que
tenham exatamente a mesma concepção religiosa. Todos aquê-
ies que têm as mesmas disposições, procuram reunir-se, e é esta
tendência que engendrou codas as diferentes religiões da Gré­
cia clássica. Certos gregos tinham uma devoção particular por
tal ou tal deus, o que nos pode fazer crer, à primeira vista, que
cada um dêstes deuses encarnava um tipo especial de religião,
aqui os Olímpicos, ali os adeptos de Dioniso, e também os de
Deméter e Koré. Na realidade, vemos que os fiéis podem in­
vocar o mesmo deus num espírito totalmente diferente (daí a
troca do epíteto do deus), e que as divindades que nos pare­
cem inspirar sentimentos incompatíveis podem ser muitas vê-
zes, com vontade calma, aproximadas numa mesma influência.
A confusão veio pelo fato de tentarmos descobrir uma ordem
de coisas que não existia, e uma causa racional a fatòs que se
explicariam simplesmente por uma serena inconsciência de
fantasias do comportamento religioso, o qual se pode ver ainda
hoje, não importando em que confissão religiosa.
Que relação tem tudo isto com Orfeu? No momento, con-
tentemo-nos em saber que Orfeu era considerado pelos gregos
como o fundador de uma certa religião e muito se escreveu
sobre esta religião órfica, chamada atualmente Orfismo; êste
momento é oportuno para que nos lembremos de que êste têr-
74 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

mo "religião” não deve ser empregado senão no sentido res­


trito do qual já falamos anteriormente.
Orfeu, qualquer que tenha sido a sua origem, aparece na
história como um profeta cuja doutrina está contida anuma
série de escritos. Êle não tinha uma religião muito nova e
original a oferecer, apresentava somente a religião sob uma
forma particular que a modificava. Aquêles que o compreen­
diam podiam ver nêle o seu profeta, podiam adotar a vida
órfica e denominar a si mesmos de Órficos. Seus ritos toma­
vam, então, o nome de "Órfica”, e um novo espírito penetrava
na religião, mas não tratavam os órficos nem de levar suas
homenagens a um novo deus, nem de adorar o seu deus de
modo diferente. É por isto muito difícil determinar se tal ou
tal crença, se tal ou tal prática religiosa, pode ser qualificada
ou não de órfica. Aqui, tocamos no ponto que tanto aborre­
ceu os historiadores; ou seja, a insuficiência de documentação
direta concernente ao Orfismo. É uma desgraça da qual não
cessam os eruditos de deplorar, mas poucos entre êles demo-
raram-se em considerar sèriamente se esta mesma carência não
constituía, justamente, a documentação tão procurada. É, en­
tretanto, extraordinário que se tenha tão poucos testemunhos
diretos sobre o Orfismo. Se devemos dar-lhe verdadeiramente
o lugar de uma religião bem definida, como muitas vêzes se
fêz, ou se, como já sugeri, o Orfismo é talvez mais uma filo­
sofia adaptável a toda religião (isto, ainda necessita ser pro­
vado), a raridade relativa dos textos mencionando o Orfismo,
ou citando Orfeu como fundador de uma religião, é fàcilmente
explicável e muito normal.
O período no qual Orfeu viveu supunha-se, geralmente,
ser o que se chamava heróico, isto é, muitas gerações antes de
Homero, e, tendo êle a reputação de Pai dos Cantos, não é
surpreendente que certos historiadores gregos façam dêle o
antepassado de Homero. Se perguntarmos que tipos de conhe­
cimentos os Antigos tinham oportunidade de ter, concernentes
à história de Orfeu, podemos situar esta história, quanto ao
tempo, no mesmo plano que a de Héracles (Hércules); era êste
um período suficientemente longínquo para deixar o campo
livre às especulações. Heródoto diz que, segundo sua opinião,
Hesíodo e Homero, que viveram por volta de quatrocentos
anos antes dêle, foram os primeiros a dotar os gregos de uma
teogonia.
HERMES ' ORFEU - TESEU - RÔMULO 75
Orfeu era filho de uma Musa; Calíope é considerada mais
comumente como sua mãe. Seu pai podia ter sido Apoio ou
talvez Oeagre, deus de um rio da Trácia. Sobre o seu nasci­
mento não há nada escrito, salvo uma alusão que se encontra
no fim dos Argonáuticos órficos, relativos à união da mãe de
Orfeu com Oeagre, união que teria tido lugar numa caverna
da Trácia: . . . "Daí eu me apressei em voltar para a Trácia
nevada, ao país de Libetra, meu lugar de nascimento, e entrei
nesta célebre caverna, onde minha mãe me concebeu com Oea­
gre de grande coração”.
Sabemos abundantemente sobre o personagem e a influên­
cia de Orfeu, mas muito pouco sobre os acontecimentos que se
ligam a êle. Os únicos escritos dêste gênero são a morte de
Euridice e a viagem de Orfeu aos Infernos para lá procurá-la,
a tradição incerta duma permanência no Egito, a viagem dos
Argonautas, e os diversos textos de circunstâncias que o leva­
ram à morte, assim como os acontecimentos que a seguiram.
A partir de Homero e de Hesíodo, a literatura grega abun­
da em referências concernentes à expedição de Jasão e dos
Argonautas à procura do Velo de Ouro. Entretanto, são alu­
sões isoladas e pouco concludentes; é preciso esperar Píndaro
para ter um primeiro esquema do texto coordenado, que men­
ciona, incidentalmente, Orfeu como tendo participado desta
expedição. Datando um pouco antes de Píndaro (do VI sécu­
lo), possuímos a escultura que se encontra em Delfos, e que
representa Orfeu com o navio dos Argonautas. Exceto o texto
lírico de Píndaro, que traz somente um episódio dum poema
escrito à glorificação do triunfador dos Jogos píticos, não há
mais, para nos ajudar, que poemas épicos duma data posterior:
os Argonautas de Apolônio de Rhodes (por volta do ano 240
a. C.), uma imitação de Valerius Flaccus (por volta do ano 80
d. C.), e Orfeu, poema anônimo, escrito, talvez, tardiamente,
no século IV a. C., e que conta, na primeira pessoa, as aven­
turas de Orfeu e dos heróis. Sobre o papel que Orfeu teve
durante a viagem, encontramos apenas algumas referências de
prosadores posteriores.
O papel de Orfeu era na realidade o de um céleustès, o
cantor que ajudava o ritmo dos remeiros, mas sua música,
como vimos, tinha um maior poder. Diz-se, em certa passa­
gem, que êle acalmava o mar em fúria graças às suas melodias.
Pelo efeito do mesmo poder, quando a Cólquida foi atingida,
76 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Orfeu fêz baixar o sono aos olhos do dragão, que guardava


o Velo de Ouro.
A história da esposa de Orfeu está ligada à descida ao
Hades, e permite-nos vê-lo sob um dos aspectos mais interes­
santes e mais importantes. Os segredos do Hades estavam
às suas mãos, êle podia revelar aos adeptos qual seria o destino
de suas almas, e como deveriam se conduzir para que êste des­
tino fosse o melhor possível. Êle se tinha mostrado capaz de
tocar as divindades infernais, e podia-se esperar que interce­
desse ainda em favor dos discípulos, se eles levassem a vida
pura que os preceitos recomendavam; era êste o ponto impor­
tante; a razão que, desde o início, tinha-o levado aos Infernos
tornava-se secundária.
Nossa documentação, concernente a tudo quanto se refere
a Orfeu, é de tal forma restrita, que é difícil julgar com cer­
teza se ela foi verdadeira, na origem. Se é um espírito de
regiões subterrâneas ao qual mais tarde foi ligada a história
romanesca da procura da esposa bem amada; ou talvez, foi
um discípulo e um imitador de Apoio, que tomou uma ninfa
por esposa e para quem a viagem realizada ao Hades era uma
procura aventurosa nas regiões desconhecidas? Mais tarde,
entretanto, Orfeu tornou-se o fundador duma religião que dava
uma grande importância à vida póstuma, e que transfigurava
esta procura puramente pessoal numa razão de penetrar nos
mistérios do reino dos mortos e adquirir um poder particular
como conselheiro e intercessor. Esta maneira de visualizar a
descida de Orfeu aos Infernos nos sugere até uma outra pos­
sibilidade: toda história desta viagem subterrânea pode ter
sido atribuída a um personagem que era, no início, da seita
de Apoio e, logo depois, adotado como fundador pelas seitas
místicas.
Pode-se ver que entre os poetas latinos, tais como Virgílio
e Ovídio, encontramos êste tema elaborado num texto completo
e pormenorizado. Êste texto parece ter sido constituído muito
bruscamente, porque há numerosos poetas alexandrinos, mode­
los de autores mais tardios, cujas obras não chegaram até nós;
Gruppe, para explicar êste fato, supõe que um certo poema da
última época alexandrina, poema atualmente perdido, fixou a
lenda sob uma forma que se desenvolveu depois nos tempos
romanos”.
ORFEU
(Os Mistérios de Dioniso)
de Edouard Schuré *
Como se agitam no universo imenso, como num turbilhão,
se buscam, essas almas inúmeras que brotam da grande alma
do Mundo!
Caem de planeta em planeta e choram no abismo a pátria
esquecida...
São as tuas lágrimas, Dioniso. . . Ó grande Espirito! Ó
divino Libertador!, toma a recolher as tuas filhas no teu seio
de luz.
Fragmento Órfico.
Euridice! ó Luz divina! exclama Orfeu ao morrer. Euri-
dice! gemem, quebrando-se, as sete cordas da sua Lira. E a sua
cabeça que rola, levada para sempre sobre o rio dos tempos,
clama ainda: Euridice! Euridice!
Lenda de Orfeu.
A GRÉCIA PRÉ-HISTÓRICA — AS BACANTES —
A APARIÇÃO DE ORFEU
Nos santuários de Apoio, que possuía a tradição órfica,
celebrava-se uma festa misteriosa no equinócio da primavera.
Era quando os narcisos refloriam junto à fonte de Castália,
as trípodes e as liras do templo vibravam por si mesmas e o
(*) Reproduzindo êste trabalho de Edouard Schuré, que é famo­
so, sobre Orfeu, desejamos apenas situá-lo do ângulo esotérico, sem que
excluamos outras maneiras de visualizá-lo, favorecendo, dêste modo, ao
leitor, o conhecimento de um dos modos de concebê-lo.
78 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

deus invisível voltava, sobre um carro puxado por cisnes, do


país dos hiperbóreos. Então, a grande sacerdotisa, vestida de
Musa, coroada de louros, com a fronte cingida pelas faixas
sagradas, cantava diante dos iniciados o nascimento de Orfeu,
filho de Apoio e de uma sacerdotisa do deus. Ela invocava a
alma de Orfeu, pai dos iniciados, salvador melodioso dos ho­
mens; do Orfeu soberano, imortal e três vêzes coroado, nos
infernos, na terra e no céu, caminhando, com uma estrêla na
fronte, entre os astros e os deuses.
O canto místico da sacerdotisa de Delfos aludia a um dos
numerosos segredos guardados pelos sacerdotes de Apoio e que
eram ignorados pela multidão. Orfeu foi o gênio vivificador
da Grécia sagrada, o despertador da sua alma divina, cuja lira
de sete cordas, cada uma das quais correspondia a uma feição
da alma humana e continha a lei de uma ciência e de uma arte,
que abraçava o universo. Nós perdemos a chave da sua har­
monia plena, mas os seus tons diversos não deixaram ainda
de vibrar aos nossos ouvidos. Foi por essa lira maravilhosa
que se transmitiu a toda a Europa a impulsão teúrgica e dio-
nísica, que Orfeu soube comunicar à Grécia. Se, o nosso tem­
po, conquanto não acredite já na beleza da vida, ainda, com
uma secreta e universal esperança, que é como que uma pro­
funda recordação dos tempos idos, a ela aspira, deve-o a êsse
sublime Inspirado. Saudemos, por isso, nêle, não só o grande
iniciador da Grécia, como também o Avô da Poesia e da Mú­
sica, concebidas como reveladoras da eterna Verdade.
Porém, antes de reconstituirmos, segundo a tradição dos
santuários, a história de Orfeu, esbocemos a situação da Gré­
cia à sua aparição.
Era no tempo de Moisés, cinco séculos antes de Homero,
treze séculos antes de Cristo. A índia mergulhada no seu
Káli-Yuga, na sua idade de treva, não oferecia já a sombra
do seu antigo esplendor. A Assíria, que, pela tirania de Ba­
bilônia, tinha desencadeado pelo mundo o flagelo da anarquia,
continuava a esmagar a Ásia. O Egito, muito grande ainda
pela ciência dos seus sacerdotes e faraós, resistia com toda a
energia a essa decomposição universal, mas a sua ação não
passa além do Eufrates e do Mediterrâneo. Israel ia restabe­
lecer no deserto o princípio do Deus másculo e da unidade di­
vina, porém, a voz retumbante de Moisés, ainda não ecoara
pela terra. A Grécia estava profundamente dividida pela re­
ligião e pela política.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 79
Há milhares de anos que a península montanhosa, cerca­
da por uma grinalda de ilhas, ostentando os seus finos recor­
tes no Mediterrâneo, era povoada por um ramo da raça branca,
vizinhas dos getas, dos citas e dos celtas primitivos. Essa raça
sofreu os cruzamentos e os impulsos de todas as civilizações
anteriores. Colônias da índia, do Egito e da Fenícia tinham
enxameado sobre as suas praias, povoado os seus promontórios
e os seus vales de raças, de costumes e de divindades múltiplas.
Por debaixo das pernas do colosso de Rodes, colocado sobre os
dois molhes do seu porto, passavam, com velas desdobradas,
numerosas frotas. O mar das Cíclades, onde em dias claros
o navegador sempre vê no horizonte alguma ilha ou alguma
praia, era sulcado pelas proas vermelhas dos fenícios e pelas
proas negras dos piratas da Lídia que, na suas naus profun­
das, transportavam todas as riquezas da Ásia e da África: o
marfim, as louças pintadas, os estofos da Síria, a púrpura, as
pérolas, os vasos de ouro e, freqüentemente também, mulheres
roubadas em algumas costas selvagens.
Em conseqüência dêsses cruzamentos de raças tinha-se
formado um idioma harmonioso e fácil, mistura do celta pri­
mitivo, do zende, do sânscrito e do fenício. Esta língua que
tinha a palavra Poseidôn para pintar a majestade do oceano,
e a de Uranós para exprimir a serenidade do céu, imitava todas
as vozes da natureza desde o gorjeio dos pássaros até ao tinir
das espadas e ao fragor da tempestade. Ela era multicor como
o seu mar de um azul intenso mas mutável, multissonante como
as vagas que murmuram nos seus golfos ou que estrondeiam
sobre os seus inumeráveis recifes — polyphoisbos Thálassa,
como diz Homero.
Com êsses mercantes ou êsses piratas vinham muitas vêzes
sacerdotes que, como senhores, os dirigiam e os mandavam,
ocultando preciosamente na sua barca a imagem de madeira
de uma divindade qualquer. Por certo que as imagens eram
grosseiramente esculpidas, e que os marinheiros de então não
tinham por elas o culto apaixonado que mijitos dos seus cole­
gas de hoje votam às suas madonas. Mas também era um
fato êsses sacerdotes conhecerem certas ciências, e a divindade,
que do seu templo traziam para um país estrangeiro, repre­
sentar para êles uma concepção da natureza, um conjunto de
leis, uma organização civil e religiosa, visto como nesses tem­
pos toda a vida intelectual derivava dos santuários.
Enquanto em Argos se adorava Juno, a Arcádia prestava
culto a Artemisa, e em Pafos e em Corinto a Astartéia fení-
80 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

cia transformava-se na Afrodite, nascida da espuma das vagas.


Na Ática tinham aparecido vários iniciadores, e uma colônia
egípcia trouxera para Elêusis o culto de ísis sob a forma de
Deméter (Ceres), mãe dos deuses. Erecteu estabelecera en­
tre o monte Himeto e o Pantélico o culto duma deusa virgem,
filha do céu azul, amiga da oliveira e da sabedoria, é, durante
as invasões, ao primeiro sinal de alarme, a população corria
a refugiar-se na Acrópole e apertava-se em volta da deusa
como em volta de uma vitória viva.
Acima das divindades locais, reinavam, é certo, alguns
deuses masculinos e cosmogônicos; porém, relegados para as
altas montanhas, eclipsados pelo cortejo brilhante das divinda­
des femininas, tinham pequena influência. O deus solar, o
Apoio délfico (1), já existia, mas não representava ainda se­
não um papel apagado. Junto dos cimos nevados do Ida, nas
alturas da Arcádia e sob os carvalhos do Dodona, havia já sa­
cerdotes de Zeus, o Muito-Alto, mas o povo preferia a êsse deus
misterioso e universal, as deusas que representavam a nature­
za nos seus poderes ou sedutores ou terríveis. Os rios subter­
râneos da Arcádia, as cavernas das montanhas que descem até
às entranhas da terra, as erupções vulcânicas do mar Egeu,
impressionando fortemente os gregos, tinham-nos disposto para
aceitarem bem cedo o culto das forças misteriosas da terra.
Assim, quer nas suas alturas, quer nas suas profundezas
era pressentida, temida e venerada. Todavia, como todas essas
divindades não tinham nem centro social, nem síntese religiosa,
faziam entre si uma guerra obstinada.
Os templos inimigos, as cidades rivais, os povos divididos
pelos ritos, pela ambição dos sacerdotes e dos reis, odiavam-se,
invejavam-se e combatiam-se em lutas sangrentas.
(1) Segundo a antiga tradição dos trácios, a poesia tinha sido
inventada por Olen.
Ora, êste nome quer dizer em fenício o Ser Universal. Apoio tem
igual raiz. Ap Olen ou Ap Wholon significa Pai universal. Primiti­
vamente o Ser Universal era adorado em Delfos com o nome de Olen.
O culto de Apoio foi introduzido por um sacerdote inovador, impulsio­
nado pela doutrina do verbo solar que percorria então os santuários
da índia e do Egito. Êsse reformador identificou o Pai universal com
a sua dupla manifestação: a luz hiperfísica e o sol visível. Mas essa
reforma não saiu nunca das profundezas do santuário. Foi Orfeu que
deu um poder novo ao verbo solar de Apoio, reanimando-o e eletrizan-
do-o pelos mistérios de Dioniso. (Ver Fabre d’01ivet, Les vers dorés
ãe Pythagore).
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 81
Mas, por detrás da Grécia, havia a Trácia, rude e selva­
gem. Para o Norte fileiras de montanhas, cobertas de car­
valhos gigantescos e coroadas de rochedos, sucediam-se em
ondulosos cimos, desenrolavam-se em circos enormes ou enre­
davam-se em maciços nodosos;
Os ventos do setentrião aravam os seus flancos e as nuvens
dum céu quase sempre tempestuoso varriam os seus cimos.
Pastores dos vales e guerreiros das planícies pertenciam a essa
forte raça branca, que constituía a grande reserva dos dóricos
da Grécia, raça masculina por excelência* cuja beleza consistia
na acentuação dos traços e na decisão do caráter e cuja fealda­
de era marcada por aquêle horrendo quão grandioso que en­
contramos na máscara das Medusas e das antigas Górgonas.
Como todos os povos antigos que receberam a sua organi­
zação dos Mistérios, como o Egito, como Israel e como a Etrú-
ria, a Grécia também teve a sua geografia sagrada, onde cada
província era o símbolo duma região puramente intelectual e
supraterrestre do espírito. Por que motivo foi a Trácia con­
siderada (1) sempre pelos gregos como o país santo por exce­
lência, o país da luz e a verdadeira pátria das Musas? Porque
nessas altas montanhas existiam os mais velhos santuários de
Cronos, de Zeus e de Uranos, donde tinham descido em ritmos
eumólpicos a Poesia, as Leis e as Artes sagradas, como o pro­
vam os poetas fabulosos da Trácia. Os nomes de Tâmiris, de
Lino e de Anfião correspondem, talvez, a personagens reais,
mas personificam principalmente, segundo a linguagem dos
(1) Trakia, segundo Fabre cTOlivet, deriva do fenícfo Rakhiwa:
o espaço etéreo ou o firmamento. O que é fora de dúvida é que, para
os poetas e os iniciados da Grécia como Píndaro, Ésquilo ou Platão, o
nome de Trácia tinha um sentido simbólico e significava o país da dou­
trina pura e da poesia sagrada, que dela procede. Essa palavra tinha,
pois, para êles uma significação filosófica e histórica. Filosoficamente,
designava uma região intelectual: o conjunto das doutrinas e das tra­
dições que fazem proceder o mundo duma inteligência divina. Histo­
ricamente, êsse nome recordava o país e a raça onde a doutrina e a
poesia dórica, êsse rebento vigoroso do antigo espírito ariano, tinha
primeiro brotado, para em seguida reflorir na Grécia pelo santuário
de Apoio. O uso dêsse gênero de simbolismo prova-se pela história
posterior. Em Delfos havia uma classe de sacerdotes trácios, que eram
os guardas da alta doutrina. O tribunal dos AnfictiÕes era antiga­
mente defendido por uma guarda trácia, isto é, por uma guarda de ini­
ciados. A tirania de Esparta suprimiu essa falange incorrutível, subs­
tituindo-a por mercenários de força brutal.
Mais tarde o verbo traciar foi aplicado ironicamente aos devotos
das antigas doutrinas.
82 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

templos, outros tantos gêneros de poesia. Cada um dêles é a


consagração da vitória duma teologia sobre outra.
Nesses tempos, em que o indivíduo era nada e a doutrina
e a obra tudo, a história só se escrevia alegòricamente. Tâ-
miris, que cantou a guerra dos Titãs e que as Musas encegue-
ceram, anuncia a derrota da poesia cosmogônica por metros
novos.
Lino, que introduziu na Grécia os cantos melancólicos da
Ásia e foi morto por Hércules, significa a invasão da Trácia
por uma poesia emocional, elegíaca e voluptuosa, que o espí­
rito viril dos dóricos do norte primeiro repeliu, e, ao mesmo
tempo, exprime a vitória dum culto lunar sobre um culto solar.
Pelo contrário, Anfião, que, segundo a lenda alegórica, fazia
com os seus cantos mover as pedras e construía templos ao
som da sua lira, representa a força plástica que a doutrina
solar e a poesia dórica ortodoxa exerceram sobre as artes e
sobre toda a civilização helênica (1).
Bem diferente é a luz que Orfeu irradia! Êle brilha atra­
vés das idades com o cunho pessoal dum gênio criador, cuja
alma vibra amorosamente nas suas másculas profundezas pelo
Eterno-Feminino, êsse Etemo-Feminino que vive e palpita, sob
uma forma tríplice, na Natureza, na Humanidade e no Céu.
A adoração dos santuários, a tradição dos iniciados, o grito
dos poetas, a voz dos filósofos — e, mais do que tudo isto, a
sua obra, a Grécia orgânica — testemunham eficazmente a sua
realidade viva!
Nesses tempos, a Trácia vivia numa luta encarniçada e
constante. Os cultos solares e os cultos lunares disputavam
a supremacia, e essa guerra entre os adoradores do sol e da
lua não era, como se poderia crer, uma disputa fútil entre duas
cosmogonias, duas religiões e duas organizações sociais absolu-
(1) Estrabão afirma positivamente não ser a poesia antiga senão
a língua da alegoria. Dionísio de Halicamassô confirma-o e confessa
que um véu cobria os mistérios da natureza e as mais sublimes con­
cepções morais. Não é, pois, por uma simples metáfora que a poesia
se chama a língua dos deuses. Êsse sentido secreto e mágico, que cons­
titui a sua fôrça e o seu encanto, contém-se no seu próprio nome. A
maior parte dos filólogos deriva a palavra poesia do verbo grego poiein,
fazer, criar. Etimologia simples e aparentemente muito natural, ela é,
no entanto, pouco conforme com a língua sagrada dos templos, donde
saiu a poesia primitiva. É mais lógico admitir, como o quer Fabre
d’01ivet, que poiésis venha do íenício phobe (boca, voz, linguagem, dis­
curso) e de ish (ser superior, ser princípio, ou figuradamente: Deus).
O etrusco Aes ou Aesar, o gálico Aes, o escandinavo Aes, o copta Os
(Senhor), o egípcio Osíris, tem a mesma raiz.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 88
tamente opostas. Os cultos uranianos e solares tinham os seus
templos sôbre as alturas, nas montanhas, sacerdotes masculi­
nos, e leis severas. Os cultos lunares reinavam nas florestas,
em vales profundos; e tinham por sacerdotisas mulheres, ritos
voluptuosos, o exercício desregrado das artes ocultas e o gosto
da excitação orgiástica. Entre os sacerdotes do Sol e as sacer­
dotisas da Lua havia uma guerra de morte, a luta dos sexos,
luta antiga, inevitável, aberta ou oculta, mas eterna, entre o
princípio masculino e o princípio feminino, entre o homem e
a mulher, que enche a história com as suas alternativas e na
qual se representa o segredo dos mundos. Assim como a fusfto
perfeita do masculino e do feminino constitui a própria essên­
cia e o mistério da divindade, assim também só o equilíbrio
dêsses dois princípios poderá produzir as grandes civilizações.
Porém, por toda a parte, tanto na Trácia como na Gré­
cia, os deuses masculinos, cosmogônicos e solares tinham sido
relegados para as altas montanhas, para os sítios desertos. O
povo preferia o cortejo inquietador das divindades femininas,
que evocavam as paixões perigosas e as forças cegas da natu­
reza. Êsses cultos davam à divindade o sexo feminino.
Daí começaram a resultar terríveis abusos. Entre os trá-
cios, as sacerdotisas da Lua, da tríplice Hécate, tinham garan­
tido a sua supremacia apropriando-se do velho culto de Baco,
imprimindo-lhe um caráter sangrento e tf/mível e tomando, em
sinal da sua vitória, o nome de bacantes, como para marcar
o reinado soberano da mulher, o seu domínio sôbre o homem.
A um tempo mágicas, sedutoras e sacrificadoras sangren­
tas de vítimas humanas, elas tinham os seus santuários em
vales afastados e selvagens. Por que sombrio encanto, por
que curiosidade ardente, mulheres e homens eram atraídos a
essas solidões duma vegetação luxuriante e grandiosa?
Formas nuas, danças lascivas no fundo dum bosque, de­
pois risos, um grande grito — e cem bacantes se lançavam
sôbre o estrangeiro para o derrubar. Êste devia jurar sub­
meter-se aos seus ritos, ou morrer. Elas domesticavam pan­
teras e leões, que faziam figurar nas suas festas. À noite,
com serpentes enroladas nos braços, prostravam-se diante da
tríplice Hécate; depois, em rondas frenéticas, cercavam Baco
subterrâneo, de sexo duplo e de cabeça de touro (1). Mas,
(1) O Baco com cara de touro encontra-se no XXIX hino órfica.
É uma recordação do antigo culto, que de modo algum pertence à pura
tradição de Orfeu, visto que êste depurou e transfigurou inteiramente
o Baco popular no Dioniso celeste, símbolo do espírito divino que evo-
84 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

desgraçado do sacerdote de Júpiter e de Apoio, que as viesse


espiar. Era logo feito em postas.
As bacantes primitivas foram, pois, as druidisas da Gré­
cia. Muitos chefes trácios permaneceram fiéis aos cultos mas­
culinos. Mas as bacantes tinham-se sabido insinuar de tal
modo no ânimo de alguns dos seus reis, que aos luxos e aos
refinamentos da Ásia uniam os costumes mais selvagens, que
haviam acabado por seduzi-los com a sua volúpia e por do­
miná-los pelo terror. Assim os deuses tinham dividido a Trá­
cia em dois campos inimigos. Porém, enquanto os sacerdotes
de Júpiter e de Apoio, sobre os cumes das suas montanhas
desertas, visitadas pelo raio, se viam impotentes para lutar
contra Hécate, esta triunfava nos vales ardentes e, cá de baixo,
começava a ameaçar os altares dos filhos da luz.
Por êsse tempo aparecera na Trácia um jovem de raça
real e de uma sedução maravilhosa. Diziam-no filho duma sa­
cerdotisa de Apoio. Numa voz melodiosa, que tinha um estra­
nho encanto, êle falava dos deuses em um ritmo novo. Parecia
inspirado. A sua cabeleira loura, que era o orgulho dos dóri-
cos, caía-lhe em ondas douradas sobre os ombros; a música que
corria dos seus lábios prestava um triste e suave contorno aos
cantos de sua boca; os seus olhos, dum azul profundo, resplan­
deciam cheios de força, de magia e de doçura. Invejosos, os
trácios selvagens evitavam contemplá-lo; mas as mulheres,
consumadas na arte dos encantos, diziam que êsses olhos mis­
turavam no seu filtro azul as flechas do sol às carícias da lua.
As próprias bacantes, curiosas da sua beleza, rodavam fre­
qüentemente à sua volta como panteras amorosas, vaidosas
pelas suas peles mosqueadas, sorrindo às palavras incompreen­
síveis do moço.
De repente êsse rapaz esbelto, a quem chamavam o filho
de Apoio, desapareceu. Uns diziam que morrera, outros que
tinha descido aos infernos. A verdade é que êle fugira secre­
tamente para Samotrácia, e daí seguira para o Egito, onde
fora pedir asilo aos sacerdotes de Mênfis. Depois, ao cabo de
vinte anos, tendo atravessado os seus Mistérios, regressou com
um nome de iniciação, que conquistara pelas provas do seu no­
viciado e que recebera dos seus mestres como um sinal da
lui através de todos os reinos da natureza. Coisa curiosa: nós vamos
encontrar o Baco infernal das bacantes no Satã com cara de touro dos
noturnos sabates das feiticeiras da Idade Média. É o famoso Bapho-
m et, do qual a Igreja acusou os templários de serem sequazes com o
fim de os desacreditar.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 85

sua missão. Chamava-se agora Orfeu ou Arfa (1), o que sig-*


nifica: Aquêle que cura pela luz.
No alto do monte Caucaion elevava-se o mais antigo dos
santuários de Júpiter. Outrora os seus hierofantes tinham
sido grandes pontífices, e, do cimo dessa montanha, ao abrigo
das surprêsas e dos ataques, haviam reinado sobre toda a
Trácia. Porém, desde que dominavam as divindades de baixo,
os seus aderentes eram em número muito reduzido e o templo
estava quase abandonado. Por isso, Orfeu foi acolhido pelos
seus sacerdotes como um salvador, e o iniciado do Egito soube,
pela sua ciência e pelo seu entusiasmo, arrastar a maior parte
dos trácios, transformando completamente o culto de Baco e
dominando as bacantes.
Bem depressa a sua influência foi tamanha que penetrou
em todos os santuários da Grécia. Foi êle que consagrou a
realeza de Zeus na Trácia, e de Apoio em Delfos, onde tam­
bém lançou as bases do tribunal dos Anfictiões, de que provém
a unidade social da Grécia. Finalmente, pela criação dos Mis­
térios, formou a alma religiosa da sua pátria, fundindo, no
ácume da iniciação, a religião de Zeus com a de Dioniso em
um pensamento universal. Os iniciados recebiam, pelo seu en­
sino, a pura luz das verdades sublimes, e esta luz chegava ao
povo mais tamisada, mas não menos benéfica, sob o véu da
poesia e das festas encantadoras.
Foi por esta forma que Orfeu se tornou o pontífice da
Trácia, grande sacerdote de Zeus Olímpico, e, para os inicia­
dos, o revelador do Dioniso celeste.
O TEMPLO DE JÚPITER
O monte Caucaion, que se ergue junto às nascentes do
Ebro, cingido por espêssas florestas de carvalhos e coroado
por uma itara de rochedos e de pedras ciclópicas, era consi­
derado há milhares de anos como uma montanha sagrada. Os
pelasgos, os celtas, os citas e os getas, que se guerreavam uns
aos outros, ali vieram, cada um por sua vez, adorar deuses
diferentes. Mas não será sempre o mesmo Deus que o homem
busca, quando sobe tão alto? E, se assim não é, por que razão
então o edificar-lhe com tanto trabalho uma habitação numa
região em que só vivem os ventos e o raio?
Agora, ao centro do recinto sagrado, ergue-se, maciço,
inabortável como uma fortaleza, o templo de Júpiter, cujo pe-
(1) Palavra fenícia composta de aour, luz e de rophae, cura.
86 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

ristilo de quatro colunas dóricas destaca os seus fustes enor­


mes sôbre um pórtico sombrio.
Ao zênite o céu está sereno, mas o trovão ribomba ainda
sôbre as montanhas da Trácia, que, como um negro oceano con-
vulsionado pela tempestade e zebrado de luz, desdobra ao longe
os seus vales e os seus píncaros.
É a hora do sacrifício, mas os sacerdotes do Caucaion só
praticam o do fogo. Por isso, descendo as escadas do templo,
êles vêm acender com um facho do santuário a oferenda de
madeira aromática. Depois, o pontífice aparece trazendo os
símbolos de uma realeza misteriosa. Vestido como os outros
de linho branco, pousa-lhe na cabeça uma coroa de mirto e
cipreste; na mão empunha um cetro de ébano com cabeça de
marfim e cinge-lhe os rins um cinto de ouro e de cristais,
que lançam clarões ardentes. É Orfeu.
Êle conduz pela mão um discípulo, filho de Delfos, que,
pálido, trêmulo e maravilhado, aguarda, com arrepio dos mis­
térios, as palavras do grande Inspirado. Orfeu compreende a
comoção do misto eleito da sua alma, e, para o tranqüilizar,
cinge-o a si com o seu braço. Os seus olhos, que sorriam,
flamejam agora. E enquanto que a seus pés os sacerdotes
giram em volta do altar cantando o hino do fogo, Orfeu sole­
nemente diz ao misto bem amado as palavras de iniciação, que
caem no fundo da sua alma como um licor divino.
Eis aqui as palavras aladas de Orfeu ao jovem discípulo:
"Dobra-te sôbre ti mesmo para te elevares ao Princípio
das coisas, à grande Tríade que flameja no Éter imaculado.
Consome o teu corpo com o fogo do teu pensamento; desliga-te
da matéria como a chama da madeira que devora. Então, o
teu espírito se elevará ao éter puro das Causas eternas, como
a águia ao trono de Júpiter.
"Eu vou revelar-te o segrêdo dos mundos, a alma da na­
tureza, a essência de Deus. Ouve primeiro o grande arcano.
Um ser único reina no céu profundo e no abismo da terra,
Zeus tonante, Zeus etéreo. Êle é o conselho profundo, o cas­
tigo poderoso e o amor dulcíssimo. Reina nas profundezas da
terra e nas alturas dos céus estrelados: sopro das coisas, fogo
indomado, macho e fêmea, um Rei, um Poder, um Deus, um
grande Senhor.
"Júpiter é o esposo e a esposa divina. Homem e Mulher,
Pai e Mãe. Do seu casamento sagrado, das suas bodas eter­
nas sai incessantemente o Fogo e a Água, a Terra e o Éter,
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 87
a Noite e o Dia, os Titãs altivos, os deuses imutáveis e a se­
mente ondeante dos homens.
"Os amores do Céu e da Terra não são conhecidos dos pro­
fanos. Os mistérios do Esposo e da Esposa só aos homens
divinos são revelados. Porém, eu quero declarar o que é ver­
dadeiro. Ainda agora o trovão abalava êsses rochedos; o raio
caia sobre êles como um fogo vivo, uma chama ondulante; e
os ecos da montanha berravam de alegria. Porém tu, tu tre-
mias não sabendo donde vem êsse fogo nem onde êle cai. É
o fogo masculino, semente de Zeus, o fogo criador. Êle sai
do coração e do cérebro de Júpiter; êle move-se em todos os
sêres. Quando tomba o raio, êle brota da sua mão direita.
Mas nós, os seus sacerdotes, nós conhecemos a sua essência, nós
evitamos e, a reveses, dirigimos as suas flechas.
"E, agora, contempla o firmamento. Vê êsse círculo bri­
lhante de constelações sobre as quais pousa a mantilha leve
da Yia-láctea, poeira de sóis e de mundos. Vê flamejar
Oríon, cintilar os Gêmeos, e resplandecer a Lira. É o corpo
da Esposa divina que, aos cantos do Esposo, volteia num trans­
porte luminoso. Olha, com os olhos do espírito, e tu verás a
sua cabeça derrubada, os seus braços estendidos e poderás le­
vantar o seu véu semeado de estréias.
"Júpiter é o Esposo e a Esposa divina. Eis o primeiro
mistério.
"Mas, agora, filho de Delfos, prepara-te para a segunda
iniciação. Estremece, chora, goza, adorai Porque o teu espí­
rito vai mergulhar na zona ardente onde o grande Demiurgo
faz a mistura da alma e do corpo na taça da vida. Tocando
nessa taça embriagadora, todos os sêres esquecem a morada
divina e descem ao abismo doloroso das gerações.
"Zeus é o grande Demiurgo. Dioniso é o seu filho, o seu
Verbo revelado. Dioniso, espírito radioso, inteligência viva,
resplandecia na casa de seu pai, no palácio do Éter imutável.
Um dia em que, debruçado, contemplava os abismos do céu
através das constelações, viu refletido no azul profundo a sua
própria imagem, que lhe estendia os braços. Apaixonado por
êsse belo fantasma, amoroso do seu duplo, precipitou-se para
o alcançar. Mas a imagem fugia, fugia sempre e atraía-o para
o fundo do vórtice. Finalmente, encontrou-se em um vale as-
sombreado e perfumado, gozando com as brisas voluptuosas
que lhe acariciavam o corpo. Em uma gruta descobre Per-
88 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

séfona (1). Maia, a bela tecedeira, tecia um véu, onde se viam


ondular as figuras de todos os sêres. Diante da virgem divina
êle ficou mudo de espanto. Nesse instante, os Titãs altivos,
e as livres Titânides viram-no.
"Os primeiros, ciumentos da sua beleza, as últimas, toma­
das dum amor louco, lançaram-se sôbre êle como os elementos
furiosos e fizeram-no em postas. Depois, distribuindo entre
si os seus membros, fizeram-no ferver em água e enterraram
o seu coração. Júpiter fulminou os Titãs e Minerva levou
para o Éter o coração de Dioniso, e, ali, êle tornou-se um sol
ardente. Porém, da exalação do corpo de Dioniso, saíram as
almas dos homens que sobem para o céu. Quando as pálidas
sombras atingirem o coração flamejante do deus, elas ilumi-
nar-se-ão como chamas, e Dioniso, inteiro, ressuscitará mais
vivo do que nunca, nas alturas do Empíreo.
"Eis o mistério da morte de Dioniso. Agora ouve o da
sua ressurreição. Os homens são a carne e o sangue de Dio­
niso: os homens desgraçados são os seus membros esparsos,
que se buscam, torcendo-se no ciúme e no ódio, na dor e no
amor, através de milhares de existências. O calor ígneo da
terra, o abismo das forças inferiores, atrai-os sempre, cada vez
mais, para o báratro, perdendo-os.
"Porém, nós, os iniciados, nós que sabemos o que existe
no alto e o que existe em baixo, nós somos os salvadores das
almas, os Hermes dos homens. Como ímãs atraímo-los a nós,
atraídos nós próprios por Deus. Assim, por celestes encanta­
mentos, reconstituímos o corpo vivo da divindade. Nós faze­
mos chorar o céu e alegrar-se a terra; e, como jóias preciosas,
trazemos no coração as lágrimas de todos os sêres para as
transformar em sorrisos. Deus morre em nós; em nós renasce”.
Assim falou Orfeu. O discípulo de Delfos ajoelhava-se.
diante do seu mestre, com os braços erguidos, num gesto de
súplica. E o pontífice de Júpiter, estendendo a mão sôbre a
sua cabeça, pronunciou estas palavras de consagração:
"Que Zeus inefável e Dioniso três vêzes revelador, nos
infernos, na terra e no céu, seja propício à tua mocidade e
que êle verta no teu coração a ciência dos deuses”.
Então, o iniciado, abandonando o peristilo do templo ia
deitar o estoraque e invocar por três vêzes o Zeus tonante,
enquanto os sacerdotes giravam em torno dêle cantando um
(1) Mais tarde, nacionalizada já no panteão clássico de Roma,
Perséfona torna-se Prosérpina.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 89

hino. O pontífice rei, êsse conservava-se pensativo sob o pór­


tico com o braço apoiado sobre uma esteia.
O discípulo, dirigindo-se-lhe, dizia:
— "Melodioso Orfeu, filho amado dos Imortais e doce
médico das almas, desde o dia em que na festa de Apoio dél-
fico te ouvi cantar os hinos dos deuses, maravilhaste o meu
coração e eu segui-te por toda a parte. Os teus cantos são
como um vinho que embriaga, as tuas doutrinas como um
remédio amargo que alivia o corpo abatido e espelha nos seus
membros uma força nova.
— "É áspero o caminho que conduz daqui de baixo aos
deuses, diz Orfeu, que antes parecia responder a vozes interio­
res do que ao seu discípulo. Uma vereda florida, uma ladeira
escarpada e, depois, rochedos visitados pelo raio com o espaço
imenso à volta — eis o destino do Vidente e do Profeta sobre
a terra. Meu filho, fica na vereda florida da planície e não
procures saber o que há para além.
— A minha sêde aumenta à medida que tu a desalteras,
responde o moço iniciado. Fizeste-me conhecer a essência dos
deuses. Mas, dize-me agora, ó grande mestre dos mistérios,
inspirado do divino Eros, poderei eu vê-los algum dia?
— "Com os olhos do espírito, sim, diz o pontífice de Jú­
piter, mas não com os do corpo. Ora, tu ainda não sabes ver
senão com êstes. É necessário um longo trabalho ou grandes
dores para abrir os olhos de dentro.
— "Só tu no-los sabes abrir, Orfeu! Contigo que pode­
rei recear?
— "É então bem verdade que assim o queres? Escuta,
pois. Na Tessália, no vale encantado do Tempe, eleva-se um
templo místico, que está cerrado aos profanos. É lá que Dio­
niso se manifesta aos mistos e aos videntes. Convido-te para
ali assistires à festa do ano próximo. Então, mergulhando-te
num sono mágico, abrir-te-ei os olhos para que vejas o mundo
divino. Que, até lá, a tua vida seja casta e branca a tua alma.
Porque é preciso que saibas que a luz de Deus apavora os
fracos e mata os profanadores.
— "Mas, vem à minha casa. Dar-te-ei o livro necessário
para a tua preparação”.
O mestre, acompanhado do discípulo, recolheu-se ao templo
conduzindo o iniciado délfico à grande cela que lhe estava re­
servada. Uma lâmpada egípcia, que -estava sempre acesa e
tinha um gênio alado de metal forjado, iluminava cofres de
cheiroso cedro onde estavam dispostos numerosos rolos de pa­
90 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

piro cobertos de hieróglifos egípcios e de caracteres fenícios,


assim como vários livros escritos em língua grega por Orfeu,
que encerravam a sua ciência mágica e a sua doutrina se­
creta (1).
Mestre e discípulo entretiveram-se na cela durante uma
parte da noite.
FESTA DIONISÍACA NO VALE DO TEMPE (2)
Era na Tessália, no fresco vale do Tempe, pela noite san­
ta, consagrada por Orfeu aos mistérios de Dioniso.
Conduzido por um servo do templo, o discípulo de Delfos
caminhava por uma garganta estreita e profunda, bordada de
rochedos a pique, ouvindo apenas no negror da noite o mur­
múrio do rio, que corria entre as suas ribas de verdura.
Por fim a lua cheia mostrou-se por detrás duma monta­
nha: o seu disco amarelo surgiu da cabeleira negra dos roche­
dos; a sua luz sutil e magnética deslizou nas profundezas; e,
de súbito, o vale encantador apareceu em uma claridade elísia.
Maravilha suprema! Num instante toda a paisagem eterizada
se revelou com os seus fundos de fresca relva, os seus bosque-
zinhos de freixos e choupos, as suas fontes cristalinas, as suas
grutas cobertas de heras pendentes, o seu rio sinuoso abraçan­
do ilhas de árvores ou rolando por sôbre berços de verdura.
Um vapor louro, um sono voluptuoso, envolvia as plantas.
Sorrisos de ninfas pareciam fazer palpitar o espelho das fon­
tes, enquanto dos canaviais imóveis se escapavam sons vagos
de flautas. E, sôbre todas as coisas, pairava o silencioso en­
cantamento de Diana.
(1) Entre os numerosos livros perdidos que os escritores órficos
da Grécia atribuíam a Orfeu, havia as Argonáuticas, que tratavam da
grande obra hermética; uma Demetreida, um poema sôbre a mãe dos
deuses, ao qual correspondia uma Cosmogonia; Os cantos sagrados de
Baco ou o Espírito puro, que tinham por complemento uma Teogonia,
isto sem falar de outras obras como o Véu ou o laço das almas, a arte
dos mistérios e dos ritos; O Livro das Transformações, química e al­
quimia; As Coribantes, ou os mistérios terrestres e os tremores de
terra; O Anemoscópio, ciência da atmosfera; uma botânica natural e
mágica, etc...
(2) Pausânias conta que, todos os anos, uma teoria se dirigia de
Delfos ao vale do Tempe, para ali colhêr o loureiro sagrado. Êste
costume significativo servia para recordar aos discípulos de Apoio que
se encontravam ligados à iniciação órfica e que a inspiração inicial de
Orfeu era o tronco antigo e vigoroso do qual o templo de Delfos colhia
os ramos sempre frescos e vivos.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 91
O discípulo de Delfos caminhava como em um sonho. Por
vêzes parava para respirar um delicioso perfume de madressil-
va ou de loureiro amargo. Mas a claridade mágica do luar só
durou um instante. Uma nuvem negra ocultou a lua, e, de
novo, tudo se tornou escuro. Os rochedos retomaram as suas
formas ameaçadoras, e luzes errantes começaram a brilhar de
todos os lados sòb a espessura dos arvoredos, nas margens do
rio e nas profundezas do vale.
— São os mistas, informa o velho guia do templo, que se
põem a caminho. Cada cortejo tem o seu guia, que é o porta­
dor do facho. Vamos segui-los.
Ao se porem a caminho, ouviam coros que saíam dos
arvoredos.
Primeiro, viram passar os mistas do moço Baco, adoles­
centes vestidos com longas túnicas de fino linho, coroados de
hera, e que levavam taças de madeira cinzelada, símbolos da
taça da vida. A êstes seguiam-se moços altivos e vigorosos,
vestindo túnicas curtas, as pernas nuas, uma pele de leão co­
brindo-lhe as espáduas e os rins, e com coroas de oliveira na
cabeça. Eram os mistas de Hércules Lutador. Por último vi­
nham os inspirados, os mistas de Baco Lacerado, com peles ze­
bradas, de panteras, cingindo-lhes o corpo, faixas de púrpura
nos cabelos e empunhando tirsos.
Quando passavam junto duma caverna, viram prostrados
por terra os mistas de Aidoneu e de Eros subterrâneo, que,
chorando os parentes ou os amigos mortos, cantavam em voz
baixa: "Aidoneu! Aidoneu! restitui-nos aquêles que nos levas-
te, ou faze-nos descer ao teu reino”. O vento, engolfando-se
na caverna, parecia prolongar por debaixo da terra os risos
e os soluços íúnebres.
De repente, um mista, voltando-se para o discípulo de Del­
fos, diz-lhe: "Tu passaste o limiar de Aidoneu e não tornarás
a ver a luz dos vivos”. Um outro, roçando-o ao passar, segre­
da-lhe estas palavras: "Sombra, tu serás a prêsa da sombra;
tu, que vens da Noite, volta para Érebo!” E fugiu, correndo.
Esta fusão entre a tradição apolínea e a tradição órfica marca-se
ainda por outra forma na história dos templos. Com efeito, a célebre
disputa entre Apoio e Baco por causa da trípode do templo não tem
outro sentido. Baco, diz a lenda, cedeu a trípode a seu irmão e retirou-
-se para o Parnaso. Isto quer dizer que Dioniso e a iniciação órfica
eram privilégio dos iniciados, ao passo que Apoio oferecia os seus
oráculos ao público.
92 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Sentindo-se gelar de terror, o discípulo de Delfos interroga


o seu guia: "Que quer isso dizer?” Mas o servo, parecendo
não ter ouvido nada, limitou-se a responder: "É necessário
passar a ponte. Ninguém evita o fim”. E, em seguida, atra­
vessaram ambos uma ponte de madeira lançada sobre o Peneu.
— De onde vêm, pergunta o neófito, estas vozes soluçan-
tes e esta melopéia triste? Que são essas sombras brancas,
que caminham em longas filas por debaixo dos álamos?
— São as mulheres que se vão iniciar nos mistérios de
Dioniso.
— Sabes os seus nomes?
— Aqui nenhuma pessoa conhece o nome de outra, e cada
um procura esquecer o seu, porque, assim como à entrada do
domínio sagrado, os mistas deixam os seus vestuários mancha­
dos, para depois de se banharem no rio, envergar vestidos pu­
ros de linho, assim também cada um abandona o seu nome para
receber um outro.
Todos, durante sete dias e sete noites, se transformam,
passando a uma outra vida. Olha para todas essas teorias de
mulheres e verás que elas não se agrupam segundo as suas
famílias ou as suas pátrias, mas segundo o deus que as inspira.
Então, viram desfilar raparigas coroadas de narciso, com
peplos azulados, levando, castamente enlaçados nos seus bra­
ços, cofres, urnas e vasos votivos, às quais o guia chamava as
ninfas companheiras de Perséfo7ia.
Em seguida, vinham, com os peplos vermelhos, as amantes
místicas, as esposas ardentes, as adoradoras de Afrodite. Estas
meteram-se por bosque escuro, de onde se ouviam sair apelos
violentos misturados a soluços lânguidos, que, pouco a pouco,
se foram apagando. Depois, elevou-se do bosque sombrio de
mirtos um coro apaixonado, que subiu ao céu em lentas pal­
pitações. "Eros! tu nos feriste! Afrodite! tu quebraste os
nossos membros! Nós cobrimos o seio com a pele do corçozi-
nho, porém trazemos no peito a púrpura sangrenta das nossas
feridas. O nosso coração é um braseiro devorador. Outras
morrem de pobreza: a nós consome-nos o amor. Devora-nos,
Eros! ou liberta-nos, Dioniso! Dioniso!”
Uma outra teoria avançou. Era composta de mulheres
completamente vestidas de negro, com longos, lutuosos véus de
lã a arrastar pelo chão e que choravam a morte de esposos que­
ridos. O guia chamou-lhes: as dolorosas de Perséfona. Nesse
local havia um grande mausoléu de mármore revestido de he­
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 93
ras; As viúvas ajoelhavam*se em volta, desatavam os cabelos,
e, lançando grandes gritos, respondiam à estrofe do desejo com
a antístrofe da dor.
"Perséfona, diziam, tu morreste arrebatada por Aidoneu
e com êle desceste ao império dos mortos. Porém, nós, que
choramos o bem-amado, somos como mortas-vivas. Que para
nós o dia nunca mais nasça. Que a terra que te cobre, ó gran­
de deusa! nos dê o sono eterno e que a nossa sombra erre en­
laçada na sombra adorada! Perséfona! Perséfona, tem pie­
dade de nós!”
Diante dessas cenas estranhas, sob o delírio contagioso
dessas dores profundas, o discípulo de Delfos sentia-se inva­
dido por mil sensações contrárias e torturantes. Já não se
julgava êle: os desejos, os pensamentos, as agonias de todos
êsses sêres tornavam-se os seus próprios desejos e as suas pró­
prias agonias. A sua alma dividia-se para viver em mil cor­
pos. Uma angústia mortal o penetrava e já não sabia se era
homem ou sombra.
Então, um iniciado de estatura avantajada, que passava,
parou e disse: "Paz às sombras aflitas! Mulheres que so-
freis, aspirai à luz de Dioniso. Orfeu espera-vos!” Silen­
ciosas, desfolhando as suas coroas de asfódelos, rodearam-no
todas, e, com o seu tirso, êle mostrou-lhes o caminho. De novo
as teorias se formaram, e o cortejo, depois das mulheres te­
rem bebido pelas suas taças de madeira a água duma fonte,
pôs-se em marcha. Porém, agora, eram as donzelas que se­
guiam à frente cantando um treno cujo refrém era êste: "Agi­
tai as papoulas! Bebei a água dos Letes! Dai-nos a flor dese­
jada e que para nossas irmãs refloresça o narciso! Perséfona!
Perséfona!”
O discípulo caminhou muito tempo ainda acompanhado
pelo seu guia; ora atravessando prados onde crescia o asfódelo,
ora seguindo sob a sombra dos choupos, que murmuravam tris­
temente. Aos seus ouvidos chegavam cantos lúgubres, que
pairavam no ar e vinham sem se saber de onde; os seus olhos
topavam com máscaras horríveis e com figurinhas de crianças
feitas de cêra, enfaixadas, suspensas nas árvores. Aqui e ali,
barcas atravessavam o rio transportando vultos silenciosos
como mortos.
Por fim o vale alargou-se, o céu tornou-se claro por cima
das altas montanhas e a aurora surgiu. Ao longe percebiam-
-se as sombrias gargantas do Ossa, sulcadas de abismos onde
se amontoam os rochedos desabados. Mais perto, no meio dum
94 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

círculo de montanhas, brilhava sôbre uma colina assoalhada o


templo de Delfos.
O sol começava a dourar os cimos dos montes e, à medida
que se aproximavam do templo, viam chegar de toda a parte
cortejos de mistas, teorias de mulheres e grupos de iniciados.
Esta multidão, aparentemente grave, mas interiormente agita­
da por uma ansiedade tumultuosa, encontrou-se ao pé da coli­
na e, agitando os ramos e os tirsos e saudando-se mutuamente
como a amigos, subiu para as proximidades do santuário,
O guia desaparecera. O discípulo de Delfos encontrou-se
sem saber como, em um grupo de iniciados com os cabelos lu-
zidios entrelaçados de coroas e de faixas de várias cores. Êle
nunca os vira e, no entanto, julgava reconhecê-los, e essa recor­
dação enchia-o de felicidade e alegria. Também êles pareciam
esperá-lo, porque o saudavam como a um irmão felicitando-o
pela sua feliz chegada. Arrastado no seu grupo, e como levado
sôbre asas, subiu até os degraus mais altos do templo quando
uma onda de luz cegante lhe bateu nos olhos. Era o sol nas­
cente que lançava a sua primeira seta no vale e circundava
com os seus raios brilhantes essa multidão de mistas e de ini­
ciados, agrupados sôbre as escadarias do templo e pela colina
afora.
De repente um coro de vozes entoou o peão, as portas do
templo abriram-se por si mesmas e o profeta, o hierofante,
Orfeu surgiu, acompanhado do hermes e do porta-facho. O
discípulo de Delfos, reconhecendo-o, teve um frêmito de ale­
gria. Vestido de púrpura, com a lira de ouro e marfim na
mão, Orfeu, que resplandecia duma juventude eterna, disse:
"Saúde a todos que viestes para renascer após as dores
da terra e que renasceis neste instante. Vinde beber a luz do
templo, vós todos que saístes da noite, mistas, mulheres, ini­
ciados. Vinde alegrar-vos, vós que sofrestes; vinde repousar,
vós que lutastes. O sol, que eu evoco sôbre as vossas cabeças
e que vai brilhar nas vossas almas, não é sol dos mortais; é
a luz pura de Dioniso, o grande sol dos iniciados. Pelos vossos
sofrimentos passados, pelo esforço que vos traz, vós vencereis,
e, se acreditais nas palavras divinas, então, já sois vencedores.
"Porque, após o longo circuito das existências tenebrosas,
vós saireis finalmente do círculo doloroso das gerações, e todos
vos encontrareis, como um só corpo, como uma só alma, na luz
de Dioniso!
"A centelha divina, que nos guia sôbre a terra existe em
nós: ela torna-se facho no templo, estrêla no céu. Assim en­
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 95
grandece a luz da Verdade! Escutai vibrar a Lira das sete
cordas, a Lira de D eus... Ela faz mover os mundos. Ouvi
bem! que o som vos atravesse. . . e abrir-se-ão as profundezas
dos céus!
"Socorro aos fracos, consolação aos que sofrem, esperança
a todos! Mas desgraça aos maus, aos profanos! Êles serão
confundidos, porque no êxtase dos Mistérios, cada um vê até
ao fundo da alma do outro. Ali os maus são feridos pelo ter­
ror e os profanadores pela morte.
"E, agora que Dioniso luziu sôbre vós, eu invoco Eros ce­
leste e todo-poderoso. Que êle seja em vossos amores, em vossos
choros, nas vossas alegrias. Amai; porque tudo ama, os de­
mônios do abismo e os deuses do Éter. Amai; porque tudo
ama. Mas amai a luz e não as trevas. Lembrai-vos do fim
durante a viagem. Quando as almas volteiam na luz, elas tra­
zem como manchas sujas, sôbre o seu corpo sideral, tôdãs as
faltas da sua vid a... E, para as apagar, é necessário que
expiem e que regressem à terra. . . Mas os puros, mas os for­
tes, vão para o sol de Dioniso.
"E, agora, cantai o Evoé!” (1)
(1) õg rito de Evoé! que na realidade se pronuncia: Hé Vau-Hé,
era o grito sagrado de todos os iniciados do Egito, da índia e da Fe-
nícia, da Ásia Menor e da Grécia. As quatro letras sagradas pronun­
ciadas como se segue: Iod-Hê, Vau-Hé, representavam Deus na sua
fusão eterna com a Natureza; abraçavam a totalidade do Ser, o Uni­
verso vivo. Iod (Osíris) significava a divindade propriamente dita, o
intelecto criador, o Etemo-Masculino que está em tudo, nor toda a parte
e acima de tudo. Hé Vau-Hé representava o Eterno-Feminino. Era,
ísis, a Natureza, sob todas as suas formas visíveis e invisíveis fecun­
dadas por êle. A mais alta iniciação, e das ciências teogônicas e das
artes teúrgicas correspondia à letra iod. Uma outra ordem de ciên­
cias corresponde a cada uma das letras de Evoé. Tal como Moisés,
Orfeu, reservou as ciências que correspondem à letra iod (Iove, Zeus,
Júpiter) e a idéia da unidade de Deus aos iniciados de primeiro grau,
procurando mesmo interessar nele o povo pela poesia, pelas artes e
pelos seus símbolos vivos. É por isso que o grito de evoé! era aberta­
mente proclamado nas festas de Dioniso, onde eram admitidós, além
dos iniciados, os simples aspirantes aos Mistérios.
Nisto se vê toda a diferença que havia entre a obra de Moisés e a
obra de Orfeu. Ambos partem da iniciação egípcia e possuem a mesma
verdade, mas aplicam-na num sentido oposto. Moisés àsperamente,
ciosamente, glorifica o Pai, o Deus masculino, confiando a sua guarda
a um sacerdócio fechado e submetendo o pôvo a uma disciplina impla­
cável, sem revelação. Orfeu, divinamente apaixonado do Etemo-Femi-
nino, da Natureza, glorifica-a em nome de Deus que a penetra e que
êle deseja fazer brotar na humanidade divina. E eis aí por que em
todos os Mistérios da Grécia, o grito de evoé! se torna o grito sagrado
por excelência.
ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Evoé! gritam os arautos aos quatro cantos do templo.


Evoé! repetem os címbalos. Evoé! responde a assembléia en­
tusiasta agrupada sobre as escadas do santuário. E o grito
de Dioniso, o apêlo sagrado à renascença, à vida, rolou no vale,
repetido por mil peitos, repercutido por todos os ecos das mon­
tanhas. Até os pastores selvagens do Ossa, suspensos com os
seus rebanhos ao longo das florestas, perto das nuvens, res­
ponderam: Evoé!

EVOCAÇÃO
A festa acabara como um sonho. Chegara a noite. Quan­
do as danças, os cânticos e as orações se apagavam numa bru­
ma côr-de-rosa, Orfeu e o seu discípulo desciam por uma ga­
leria subterrânea até à cripta sagrada, que se prolongava no
coração da montanha e cujo acesso só era permitido ao hie­
rofante.
Era ali que o inspirado dos deuses se entregava às suas
meditações, ou realizava, com os seus adeptos, as elevadas obras
da magia e da teurgia.
Em volta dêles estendia-se um espaço vasto e cavernoso,
do qual os dois brandões colocados no chão não iluminavam
senão vagamente as paredes rachadas e as profundezas tene­
brosas. A alguns passos abria-se no chão uma fenda hiante,
de onde saía um vento quente — e êsse abismo parecia descer
até às entranhas da terra. Mais afastado, sobre um altar
pequenino, onde ardia um fogo de loureiro sêco, perfilava-se
uma esfinge de pórfiro. No alto, a uma altura incomensurá-
vel, rasgava-se uma abertura oblíqua, pela qual se descobria
um retalho de céu estrelado. E o raio de luz azulada, que por
ela entrava, dir-se-ia ser o olho do firmamento mergulhando
naquele báratro.
— "Tu bebeste na fonte da luz eterna, diz Orfeu, entraste
de alma pura no coração dos mistérios. Chegou, agora, a hora
solene de te fazer penetrar até às fontes da vida e da luz.
Aquêles que não levantaram o véu espêsso que, aos olhos dos
homens, oculta as maravilhas invisíveis, não se tornam filhos
dos deuses.
"Escuta, pois, a verdade que é necessário ocultar à mul­
tidão e que constituem a força dos santuários.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 97
"Deus é um, sempre igual a si mesmo e em tudo reina.
Mas os deuses são inumeráveis e diversos, porque a divindade
é eterna e infinita. Os maiores são as almas dos astros. Sóis,
estréias, terras e luas, cada astro tem a sua, e todas brotaram
do fogo celeste de Zeus e da luz primitiva. Semiconscientes,
inacessíveis, imutáveis, elas dirigem com os seus movimentos
regulares o grande todo. Ora, cada astro, rolando, arrasta na
sua esfera eterizada, falange de semideuses ou de almas res­
plandecentes, que foram outrora almas de homens, e que, de­
pois de terem descido a escala dos reinos, subiram de novo glo­
riosamente os ciclos, para enfim saírem do círculo das gerações.
É por êsses espíritos divinos que Deus respira, obra, aparece.
Que digo? Êles são o sopro da sua alma viva, os raios da sua
consciência eterna, e, comandando os exércitos dos espíritos
inferiores que excitam os elementos, dirigem os mundos. De
perto e de longe êles nos cercam e, conquanto de essência imor­
tal, revestem formas sempre mutáveis, conforme os povos, os
tempos e as regiões. O ímpio nega-os, mas teme-os: o homem
piedoso adora-os sem os conhecer; só o iniciado os conhece, os
atrai e os vê. Se eu lutei para os encontrar, se afrontei a
morte, se, como dizem, desci aos infernos, foi para domar os
demônios do báratro, para chamar os deuses do alto sôbre a
minha Grécia bem-amada, para que o séu profundo se case com
a terra e que a terra encantada escute as vozes divinas. A
beleza celeste encarnar-se-á na carne das mulheres, o fogo de
Zeus no sangue dos heróis; e, muito antes de remontarem aos
astros, os filhos dos deuses resplandecerão como imortais.
"Sabes o que é a lira de Orfeu? Ê o som dos templos
inspirados. Êles têm por cordas os deuses. À sua música a
Grécia se afinará como uma lira e o próprio mármore cantará
em cadências brilhantes, em harmonias celestes.
"E, agora, eu evocarei os meus deuses, a fim de que êles
te apareçam vivos e que te mostrem, numa visão profética, o
místico himeneu que eu preparo ao mundo e que os iniciados
hão de ver.
"Deita-te ao abrigo desta rocha e não temas nada. Um
sono mágico vai cerrar as tuas pálpebras; tu primeiro treme-
rás e verás coisas terríveis; mas depois, uma luz deliciosa, uma
felicidade desconhecida, inundará os teus sentidos e o teu ser”.
Já o discípulo se tinha deitado no nicho, cavado, em for­
ma de leito, na rocha. Orfeu lançou alguns perfumes sôbre
o fogo do altar, e, depois, tomando o cetro de ébano coroado
98 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

por um cristal flamejante, colocando-se junto à esfinge e cha­


mando com uma voz profunda, começou a evocação:
"Cibele! Cibele! Grande mãe, ouve-me! Luz original, cha­
ma ágil, etérea e sempre movente através dos espaços; que
encerras os ecos e as imagens de todas as coisas! Eu chamo
os teus corcéis fulgurantes de luz. Ó alma universal, criado­
ra dos abismos, semeadora dos sóis, que deixas arrastar no
Éter o teu manto estrelado; luz sutil, oculta, invisível aos olhos
da carne; grande mãe dos mundos e dos deuses, tu, que encer­
ras os tipos eternos, antiga Cibele, a mim! a mim! Por meu
cetro mágico, por meu pacto com as Potências, pela alma de
Eurídice! ... Evoco-te, Esposa multiforme, dócil e vibrante
sob o fogo do Varão eterno. Do mais alto dos espaços, do mais
profundo dos abismos, de toda a parte, vem, aflui, enche esta
caverna com os seus eflúvios. Cerca o filho dos Mistérios de
uma muralha de diamante e faze-o ver no teu seio profundo
os Espíritos do Inferno, da Terra e dos Céus”.
A estas palavras, um trovão subterrâneo abalou as pro­
fundezas do abismo e a montanha toda tremeu.
Um suor frio gelou o corpo do discípulo, que já não via
Orfeu senão através duma fumarada engrandecente. Por um
instante êle procurou lutar contra um poder formidável que o
esmagava, mas o seu cérebro foi vencido, a sua vontade ani­
quilada. Então, sentiu os pavores dum afogado que engole
água até ao pescoço e cuja convulsão horrível termina nas tre­
vas da inconsciência.
Quando voltou a si, a noite reinava em volta dêle, uma
noite atravessada por um crepúsculo rastejante, amarelado e
lodoso. Olhou por muito tempo sem ver nada. De quando a
quando, sentia roçar pela sua pele como que invisíveis morce­
gos. Por fim, vagamente, julgou ver moverem-se nas trevas
formas monstruosas de centauros, de hidras, de górgonas. Mas
a primeira coisa que apercebeu distintamente foi uma grande
figura de mulher, assentada sobre um trono. Envolvia-a um
comprido véu, com pregas fúnebres, semeado de estréias páli­
das e tinha sobre a cabeça uma coroa de papoulas.
Os seus olhos imensos, abertos, velavam imóveis. À sua
volta, moviam-se, como aves cansadas, massas de sombras hu­
manas, que segredavam a meia voz: "Rainha dos mortos, alma
da terra, ó Perséfona! nós somos filhas do céu. Por que esta­
mos exiladas no teu reino sombrio? ó ceifeira do céu, por que
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 99
é que ceifaste as nossas almas, que outrora voavam felizes na
luz, entre as suas irmãs, nos campos do éter?
Perséfona respondia: "Eu colhi o narciso, eu entrei no
leito nupcial. Bebi a morte com a vida. Como vós, também,
eu gemo nas trevas”.
— "Quando seremos libertadas? — disseram, gemendo,
as almas.
— "Quando vier meu esposo celeste, o divino libertador,
— respondeu Perséfona.
Então, apareceram mulheres terríveis. Os seus olhos es­
tavam injetados de sangue, as suas cabeças coroadas por plan­
tas venenosas. Em derredor dos seus braços, dos seus flancos
seminus, torciam-se serpentes, que elas manejavam em guisa
de chicotes:
"Almas, espectros, larvas! diziam elas com as suas vozes
sibilantes, não acrediteis na rainha insensata dos mortos. Nós
somos as sacerdotisas da vida tenebrosa, servas dos elementos
e dos monstros cá de baixo, Bacantes sôbre a terra, Fúrias
no Tártaro. Nós é que somos as vossas rainhas eternas, ó al­
mas infelizes, que não saireis do círculo maldito das gerações,
porque nêle vos faremos tornar a entrar com os nossos chi­
cotes. Torcei-vos para sempre entre os anéis sibilantes das
nossas serpentes, nos nós do desejo, do ódio e do remorso”.
E elas precipitavam-se, desgrenhadas, sôbre o rebanho das
almas desvairadas que se punham a voltear nos ares, sob as
suas chicotadas, como um turbilhão de folhas secas, dando
grandes gemidos.
Ao ver isto, Perséfona empalideceu; não parecia já senão
um fantasma lunar. E murmurou: "O céu... a luz. . . os
deuses... um sonho!... Sono, sono eterno”. A sua coroa de
papoulas murchou; os seus olhos fecharam-se de angústia. A
rainha dos mortos caiu em letargia sôbre o seu trono — e de­
pois tudo desapareceu nas trevas.
A visão mudou. O discípulo de Delfos viu-se num vale
esplêndido e verdejante.
Ao fundo ficava o monte Olimpo. Diante de um antro
negro, dormitando sôbre um leito de flores, estava a bela Per­
séfona. Uma coroa de narcisos substituía nos seus cabelos a
coroa de papoulas fúnebres e a aurora duma vida renascente
espalhava nas faces uma cor ambrosiana. As suas tran-
ças escuras caíam-lhe sôbre as espáduas duma brancura des­
100 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

lumbrante, e as rosas dos seus seios, docemente levantados,


pareciam chamar os beijos dos ventos. Ninfas dançavam num
prado. Nuvenzinhas brancas volteavam no azul. Uma lira
ressoava num templo...
À sua voz de ouro, aos seus ritmos sagrados, o discípulo
ouviu a música íntima das coisas, porque das folhas, das ondas,
das cavernas, saía uma melodia incorpórea e terna: e as vozes
longínquas das mulheres iniciadas, que soltavam os seus coros
nas montanhas, chegavam aos seus ouvidos em cadências que­
bradas. Umas, apaixonadas, chamavam pelo deus; outras jul­
gavam vê-lo ao caírem semimortas de fadiga nas margens da
floresta.
Finalmente, o azul abriu-se ao zênite para gerar do seu
ventre uma nuvem deslumbrante. Como uma ave que paira
um instante no ar e depois abate sôbre a terra, o deus que
empunhava o tirso desceu e veio colocar-se diante de Perséfona.
Tinha um ar radioso, os cabelos desmanchados, e nos seus olhos
rolava o delírio sagrado dos mundos a nascer. Por muito tem­
po contemplou-a com ternura, depois estendeu sôbre ela o seu
tirso. O tirso roçou-lhe o seio, — ela sorriu. Depois tocou-lhe
a fronte, — ela abriu os olhos, ergueu-se lentamente e contem­
plou o seu esposo. Êsses olhos, ainda cheios de sono de Érebo,
brilharam como duas estréias. "Reconheces-me? pergunta o
deus. — Ó Dioniso! exclama Perséfona, Espírito divino, Verbo
de Júpiter, Luz celeste que resplandece sob a forma do homem!
cada vez que tu me despertas, eu julgo viver pela primeira
vez; os mundos renascem na minha memória: o passado, o fu­
turo tornam-se o imortal presente; e eu sinto no meu coração
resplandecer o universo”.
Ao mesmo tempo, por de cima das montanhas, numa cla­
reira de nuvens prateadas, apareceram os deuses curiosos, in­
clinados para a terra.
Em baixo, grupos de homens, de mulheres e de crianças,
saídos dos vales, e das cavernas, olhavam, num arroubamento
celeste, os Imortais; dos templos subiam, com ondas de incenso,
hinos abrasados; entre o céu e a terra preparava-se um dêsses
casamentos que fazem com que as mães concebam os heróis
e os deuses. Já uma tinta rósea se espalhava sôbre a paisa­
gem; já a rainha dos mortos, tornada de novo a ceifeira divina,
subia ao céu levada nos braços do esposo.
Depois, uma nuvem cor de púrpura envolveu-os, e os lábios
de Dioniso uniram-se à boca de Perséfona. . . Então, um
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 101
imenso grito de amor partiu do céu e da terra, como se o
estremecimento sagrado dos deuses passando sobre a grande
lira quisesse romper-lhe todas as cordas, espalhar os seus sons
a todos os ventos. Ao mesmo tempo brotou do par divino uma
fulguração, um furacão de luz cegante. . . E tudo desapareceu.
Por um momento, o discípulo de Orfeu se sentiu como que
absorvido na fonte de todas as vidas, submerso no sol do Ser.
Mas, mergulhando no seu braseiro incandescente, dêle rompeu
com as suas asas celestes e, como um relâmpago, atravessou os
mundos para atingir em suas fronteiras o sono extático do
Infinito.
Quando readquiriu os seus sentidos corpóreos, encontrou­
-se mergulhado no negror da noite. Nas trevas profundas só
uma lira luminosa brilhava. Mas ela fugia, fugia e transfor-
mava-se numa estrêla.
Só então é que o discípulo compreendeu que estava na
cripta das evocações, e que êsse ponto luminoso era a fenda
longínqua da caverna abrindo para o firmamento.
Uma grande sombra se mantinha de pé, junto dêle. Er^
Orfeu, que êle reconheceu por causa do seu cabelo em anéis
e do seu cetro de cristal flamejante.
— Filho de Delfos, donde vens?, diz-lhe o hierofante.
— Ó mestre dos iniciados, celeste encantador, maravilhoso
Orfeu, tive um sonho divino. Seria um encanto da magia, um
dom dos deuses? Que se passou? O mundo ter-se-ia trans­
formado? Onde é que me encontro?
— Tu conquistaste a coroa da iniciação e viveste o meu
sonho: a Grécia imortal! Mas saiamos daqui, porque, para
que tudo se cumpra, é necessário que eu morra e que tu viva§.
A MORTE DE ORFEU
À hora em que nos flancos do monte Caucaion as flores­
tas de carvalho mugiam chicoteadas pela tempestade e que sô-
bre as rochas nuas o raio estalava violentamente e o trovão
ribombando fazia tremer até às bases do templo de Júpiter,
em uma cripta abobadada do santuário, os sacerdotes de Zeus,
assentados sobre as suas poltronas de bronze, formavam um
semicírculo. No meio dêles, de pé, como um acusado, Orfeu,
mais pálido que nunca, tinha nos olhos calmos uma chama
profunda. *
102 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Então, o mais velho dos sacerdotes, elevando a sua voz,


grave como a dum juiz, disse:
— Orfeu, a ti, que dizem filho de Apoio, nós demos o
cetro místico dos filhos de Deus e tu reinas sôbre a Trácia
pela arte sacerdotal e real. Tu restauraste nesta região os
templos de Júpiter e de Apoio, e fizeste reluzir na noite dos
mistérios o divino sol de Dioniso. Mas sabes, porventura, o
que nos ameaça? Tu que conheces os segredos terríveis, tu
que por mais de uma vez nos tens adivinhado o futuro e que
de longe falas aos teus discípulos aparecendo-lhes em sonhos,
tu ignoras o que se passa à tua volta. Na tua ausência, as
bacantes selvagens, as sacerdotisas malditas, reuniram-se no
valezinho de Hécate, e conduzidas por Aglaonice, a mágica de
Tessália, persuadiram os chefes das margens do Ebro a resta­
belecer o culto da sombria Hécate e ameaçam destruir os tem­
plos dos deuses varonis e todos os altares do Altíssimo. Exci­
tados pelas suas bocas ardentes, alumiados pelos seus archotes
incendiários, mil guerreiros trácios acampam junto a esta mon­
tanha, e amanhã, excitados pelo hálito dessas mulheres vestidas
de peles de pantera, ávidos de sangue masculino, darão o assal­
to ao templo. Condu-los Aglaonice, a grande sacerdotisa da
tenebrosa Hécate, a mais terrível das mágicas, implacável e
obstinada como uma Fúria. Tu deves conhecê-la! Que dizes,
pois, a isto?
— Eu sabia tudo o que me contas, respondeu Orfeu, e tudo
isso devia realizar-se.
— Então por que não tens feito alguma coisa para nos
defender? Aglaonice jurou degolar-nos sôbre os nossos alta­
res, em face do céu vivo que adoramos. Mas que vai suceder
a êste templo, aos seus tesouros, à tua ciência e ao próprio Zeus,
se tu o abandonas?
— Não estou eu convosco?, replicou docemente Orfeu.
— Sim, vieste, mas muito tarde, disse o velho. Aglaonice
domina as bacantes e as bacantes dominam os trácios. É com
o raio de Júpiter e com as flechas de Apoio que os repelirás?
Por que não chamaste tu a êste recinto os chefes trácios fiéis
a Zeus para com êles esmagar a revolta?
— Não é pelas armas, mas pela palavra, que se defendem
os deuses. Não são os chefes, mas sim as bacantes, que é ne­
cessário ferir. Eu irei, eu só. Ficai tranqüilos. Nenhum pro­
fano transporá êste recinto. Amanhã acabará o reinado das
sacerdotisas sangüinárias. E sabei-o bem, vós que tremeis
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 103

diante da horda de Hécate, os deuses celestes e solares vence­


rão. A ti, velho, que duvidavas de mim, deixo o cetro de pon­
tífice e a coroa de hierofante.
— Que vais fazer? exclama o velho aterrorizado.
— Vou juntar-me aos deuses... A vós todos, até à vista!
Orfeu saiu deixando os sacerdotes mudos nas suas cadei­
ras. No templo encontrou o discípulo de Delfos e, tomando-lhe
com força a mão, disse:
— Vou ao campo dos trácios: segue-me.
Marcharam por algum tempo debaixo dos carvalhos; a
trovoada já estava longe; por entre os ramos espessos brilha­
vam as estréias.
— Para mim bateu a hora suprema, diz Orfeu. Os ou­
tros compreenderam-me; tu, porém, amaste-me. Eros é o mais
antigo dos deuses, dizem os iniciados; é êle que tem a chave
de todos os sêres. Também te fiz penetrar no fundo dos Mis­
térios: os deuses falaram-te, tu os viste! Agora, longe dos
homens, a sós contigo, à hora da sua morte, Orfeu deve deixar
ao seu discípulo amado a palavra do seu destino, a herança
imortal, o facho puro da sua alma.
— Mestre! eu ouço e obedeço, diz o discípulo de Delfos.
— Caminhemos sempre, diz Orfeu, sôbre esta vereda que
desce. A hora aperta, pois quero surpreender os meus inimi­
gos. Mas, seguindo-me, escuta e grava as minhas palavras na
memória, guardando-as, porém, como um segrêdo.
— Elas ficam impressas em letras de fogo no meu coração
e os séculos não as apagarão jamais.
— Tu sabes, já, que a alma é filha do céu. Tu contem-
plaste a tua origem e o teu fim, e começas a recordar-te. Quan­
do ela desce à carne, continua, embora fracamente, a receber
o influxo do alto. É por nossas mães que primeiro nos chega
êsse sopro poderoso. O leite de seus peitos nutre o nosso cor­
po; mas é da sua alma que se alimenta o nosso ser, angustiado
pela sufocante prisão do corpo. Minha mãe era sacerdotisa de
Apoio, e as minhas primeiras recordações mostram-me um bos­
que sagrado, um templo solene, uma mulher trazendo-me nos
leus braços, envolvendo-me na sua cabeleira doce como num
quente vestuário. Os objetivos terrestres, as visões huma­
nas, enchiam-me dum espantoso terror. Porém, logo que mi­
nha mãe me apertava nos seus braços, eu encontrava o seu
104 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

olhar e êle inundava-me duma recordação divina do céu. Mas


êsse raio luminoso morreu no cinzento sombrio da terra: um
dia minha mãe desapareceu: tinha morrido. Privado do seu
olhar, desviado das suas carícias, eu fiquei espantado com a
minha solidão. Depois, uma vez tendo visto correr o sangue
num sacrifício, tomei horror ao templo e desci aos vales te­
nebrosos.
"As bacantes surpreenderam a minha mocidade. Já então
Aglaonice reinava sobre as mulheres voluptuosas e cruéis, e
todos, homens e mulheres, a temiam. Essa tessaliana, que
inspirava um sombrio desejo e dominava pelo terror, exercia
sobre todos aquêles que dela se aproximavam uma atração fa­
tal. Pelas artes da infernal Hécate, atraía as donzelas ao seu
vale e instruía-as no seu culto. Por êsse tempo tinha ela lan­
çado as suas vistas sobre uma donzela — Eurídice, por quem
sentia a um tempo um amor furioso, maléfico e uma inveja
perversa. Ela queria arrastar essa virgem ao culto das ba­
cantes, dominá-la, entregá-la aos gênios infernais, depois de
ter maculado a sua inocência. E, para isso, começara por
envolvê-la nas suas promessas sedutoras, nas suas encantações
noturnas.
"Atraído por não sei que pressentimento ao valezinho do
Tempe, eu caminhava um dia sobre a erva crescida dum prado
cheio de plantas venenosas. À minha volta reinava o horror
dos bosques sombrios habitados pelas bacantes. Sentiam-se
baforadas de perfumes, como um hálito quente de desejo. En­
tão, descobri à minha frente Eurídice que caminhava lenta­
mente, sem me ver, para um antro, como que fascinada por
um destino invencível. Do bosque das bacantes saía por vêzes
um riso ligeiro, por outras um estranho suspiro. Eurídice de-
tinha-se fremente, indecisa; depois, punha-se de novo a ca­
minhar, como que atraída por um poder mágico. Os anéis de
ouro dos seus cabelos voavam sobre as suas brancas espáduas*
os seus olhos de narciso nadavam em embriaguez, enquanto
ela marchava para a boca do Inferno. Mas eu contemplara
o céu dormente do seu olhar. — Eurídice! gritei tomando-lhe
a mão, onde vais? — Como acordada dum sonho, ela deu um
grito de horror e de libertação, e depois caiu sobre o meu peito.
Foi então que o divino Eros nos dominou, e, com um olhar,
Eurídice-Orfeu foram esposos para sempre.
"Todavia, Eurídice, que no seu terror me conservava en­
laçado, com um gesto de mêdo mostrou-me a gruta. Aproxi­
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 105

mei-me e vi uma mulher assentada. Era Aglaonice. Perto


dela uma estàtuazinha de Hécate, feita de cêra e pintada de
vermelho, de branco e de negro, tinha nas mãos um chicote.
Aglaonice fazendo girar a sua roda mágica murmurava pala­
vras de encantamento enquanto seus olhos fixos no vácuo pa­
reciam devorar a sua prêsa. Quebrei a roda, calquei aos pés
a imagem de Hécate e trespassando a mágica com um olhar,
gritei-lhe:
— Por Júpiter! proibo-te, sob pena de morte, que tornes
a pensar em Euridice! E ficarás sabendo que os filhos de
Apoio te não temem.
"Aglaonice, interdita, torceu-se como uma serpente sob o
meu gesto, e, ao desaparecer na sua caverna, lançou-me um
olhar de ódio mortal.
"Conduzi Euridice aos arredores do meu templo. As vir­
gens do Ebro, coroadas de jacinto, cantavam em derredor de
nós: Himeneu! Himeneu! — e eu conheci a felicidade!
"A lua ainda não mudara por três vêzes, quando uma
bacante mandada pela tessaliana, apresentou a Euridice uma
taça de vinho que, no dizer dela, lhe daria a ciência dos filtros
e das ervas mágicas. Euridice, curiosa, bebeu e caiu fulmi­
nada. A taça encerrava um veneno mortal.
"Quando eu vi a fogueira consumir Euridice, quando eu
vi o túmulo devorar as suas cinzas, quando a última recorda­
ção da sua forma viva desapareceu, então eu gritei: "Onde
está a sua alma?” e parti desesperado. Depois, errei por toda
a Grécia. Debalde, aos sacerdotes de Sarnotrácia supliquei que
a evocassem; debalde a fui procurar às entranhas da terra,
ao cabo Ténaro. Finalmente, cheguei ao antro de Trofônio,
onde certos sacerdotes conduzem os visitantes temerários por
uma fenda até aos lagos de fogo que ferviam no interior da
terra, fazendo-lhes ver o que lá se passa. Durante o caminho
o visitante entra em êxtase e sente que se lhe abre a dupla
vista. Respira com custo, a voz estrangula-se na garganta e
só por sinais se pode comunicar. Uns recuam a meio do ca­
minho, outros persistem e morrem asfixiados, e, dos poucos
que de lá saem vivos, a maior parte fica louca. Depois de ter
visto o que boca alguma deve repetir, eu regressei à gruta e
caí numa letargia profunda. Durante êsse sono de morte apa­
receu-me Euridice. Ela flutuava num limbo, pálida como um
raio de luar, e disse-me: "Por mim tu afrontaste o inferno
depois de me ter buscado entre os mortos. Eis-me aqui, acor­
106 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

rendo ao teu apêlo. Eu não habito o seio da Terra, mas a


região do Érebo, o cone de sombra que há entre a Terra e a
Lua. É nesse limbo que eu turbilhono a chorar como tu. Se
queres libertar-me, salva a Grécia, outorgando-lhe a luz. En­
tão, eu, readquirindo as minhas asas, subirei para os astros,
e tu encontrar-me-ás na luz dos deuses. Até que isso acon­
teça, é meu destino errar na esfera turva e dolorosa. . . ” Por
três vêzes eu quis abraçá-la; por três vêzes ela se dissipou nos
meus braços como uma sombra. Ouvi apenas como que um
som de corda que quebra; depois, uma voz fraca como um
sopro, triste como um beijo de adeus, murmurou: — Orfeu!
"Ao som dessa voz acordei. Êsse nome, proferido por
uma alma, transformou o meu ser. Senti passar em mim o
estremecimento sagrado dum desejo imenso e o poder dum
sobre-humano amor. Eurídice viva ter-me-ia dado a embria­
guez da felicidade; Eurídice morta fêz-me achar a Verdade.
Foi por amor que eu enverguei a veste de linho, votando-me
à grande iniciação e à vida ascética; foi por amor que pene­
trei a magia e busquei a ciência divina; foi por amor que atra­
vessei as cavernas de Samotrácia, os poços das Pirâmides e os
túmulos do Egito. Sondei a morte para nela encontrar a vida,
e, para além da vida os limbos, as almas, as esferas transpa­
rentes, o Éter dos deuses. A terra abriu-me os seus abismos,
o céu os seus templos rutilantes. Apoderei-me da ciência,
oculta sob as múmias. Os sacerdotes de ísis e de Osíris entre-
garam-me os seus segredos. Mas êles só tinham êsses deuses,
e eu tinha Eros! Por êle falei, cantei, venci. Por êle, soletrei
o verbo de Hermes e o verbo de Zoroastro; por êle aprendi o
de Júpiter e o de Apoio.
Porém a hora de confirmar a minha missão pela minha
morte chegou. Ainda uma vez é-me preciso descer ao inferno
para subir ao céu. Escuta, filho querido do meu verbo: Tu
levarás a minha doutrina ao templo de Delfos e a minha lei ao
tribunal dos Anfictiões. Dioniso é o sol dos iniciados: Apoio
será a luz da Grécia: os Anfictiões, os guardas da sua justiça”.
O hierofante e o seu discípulo tinham atingido o fundo
do vale. Na sua frente encontrava-se uma clareira e viam-se,
sob os grandes maciços de sombrias árvores, tendas e homens
deitados por terra. Ao fundo, na floresta, havia fogueiras
quase apagadas; archotes vacilantes passavam.
Orfeu caminhava tranqüilamente pelo meio dos trácios
adormecidos e fatigados por uma orgia noturna. Uma senti­
nela, que ainda velava, perguntou-lhe o nome.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 107

— Sou um mensageiro de Júpiter. Chama os teus chefes,


respondeu Orfeu.
"Um sacerdote do templo! ... ” Êsse grito soltado pela
sentinela espalhou-se, como um sinal de alarme, por todo o
acampamento. Os homens chamam-se uns aos outros, armam-
-se à pressa, e, quando os chefes surpreendidos acorrem cer­
cando o pontífice, já as espadas brilham.
— Quem és tu? Que vens aqui fazer?
— Sou um enviado do templo, que vos vem dizer a vós
todos, reis, chefes, guerreiros da Trácia, que renuncieis a lutar
com os filhos da luz e reconheçais a divindade de Júpiter e de
Apoio. Os deuses do alto falam-vos pela minha boca. Eu
venho como amigo, se vós me escutais: como juiz, se vos re­
cusais a ouvir-me.
— Fala, disseram os chefes.
De pé, sob um grande olmo, Orfeu falou. Êle falou das
graças dos deuses, do encanto da luz celeste, dessa vida pura
que levava lá em cima, com seus irmãos iniciados, sob o olhar
do grande Urano, e que queria comunicar a todos os homens:
falou prometendo apaziguar as discórdias, sarar os doentes,
ensinar as sementes que produzem os mais belos frutos da
terra, e aquelas, mais graciosas ainda, que produzem os frutos
divinos da vida: a alegria, o amor, a beleza. E enquanto êle
falava, a sua voz grave e doce vibrava como as cordas duma
lira e penetrava cada vez mais fundo nos corações dos trácios,
abalados.
Do fundo dos bosques, as bacantes curiosas, empunhando
archotes, tinham acorrido também, atraídas pela música dessa
voz humana. Vestidas simplesmente com a pele das panteras,
elas mostravam os seus seios morenos e os seus flancos sober­
bos. À claridade dos archotes, os seus olhos brilhavam de
crueldade e luxúria. Porém, pouco a pouco, acalmadas pela
voz de Orfeu, elas agruparam-se à volta dêle ou aninharam-se
a seus pés como bêstas feras domadas. Umas, tomadas de re-
ínorsos, fixavam na terra um olhar sombrio; outras escutavam
arrebatadas. E os trácios, comovidos, murmuravam entre si:
"É um deus que fala; é o próprio Apoio que encanta as ba­
cantes!”
No entanto, Aglaonice espiava do fundo do bosque. A
grande sacerdotisa de Hécate, vendo os trácios imóveis e as
bacantes arrastadas por uma magia mais forte do que a sua,
108 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

sentiu que o céu vencia o inferno e que o seu poder maldito


se afundava nas trevas donde tinha saído, por causa da pa­
lavra do divino sedutor. Então, rugindo de cólera, lançou-se
com um esforço violento, diante de Orfeu.
— Um deus, dizeis? E eu digo-vos que é Orfeu um ho­
mem como vós, um mago que vos engana, um tirano que se
apodera das vossas coroas. Um deus, dizeis? O filho de Apo-
lo? Êle? o sacerdote? o pontífice orgulhoso?
Que se lancem sobre êle! Se é deus, que se defenda. . .
e se eu minto, que me desfaçam!
Aglaonice vinha acompanhada por alguns chefes, excita­
dos pelos seus malefícios e inflamados pelo seu ódio. Êles
atiraram-se ao hierofante. Orfeu soltou um grito lancinante
e caiu varado pelas suas espadas. Mas, antes de soltar o der­
radeiro suspiro, estendeu a mão ao seu discípulo e disse:
— Eu morro, mas os deuses vivem!
Depois expirou. Inclinada sobre o seu cadáver, a mágica
da Tessália, cuja visagem nesse momento se assemelhava à dè
Tisífona, espiava com uma alegria selvagem o último suspirb
do profeta e preparava-se para tirar um oráculo da sua vítima.
Porém, qual não foi o pavor da tessaliana vendo, ao clarão
flutuante do archote, essa cabeça cadavérica reanimar-se, um
pálido rubor espalhar-se sobre a face do morto, os seus olhos
reabrirem-se, imensos, e um olhar profundo, doce e terrível ir
fixar-se nela. .. enquanto que uma voz estranha — a voz de
Orfeu — se escapava mais uma vez dos seus lábios palpitantes
para pronunciar distintamente estas sílabas melodiosas e vin­
gadoras :
— Eurídice!
Diante dêsse olhar, e essa voz, a sacerdotisa, horrorizada,
recuou gritando: — "Êle não está morto! Êle vai perseguir-
-me para sempre! O rfeu... Eurídice!” E, pronunciando
estas palavras, Aglaonice desapareceu como chicoteada por cem
fúrias. As bacantes apavoradas e os trácios tomados de horror
pelo seu crime, fugiram na noite soltando gritos de dor.
O discípulo ficou só junto ao corpo do mestre. Quando
um raio sinistro de Hécate veio iluminar o linho ensangüen­
tado e a face pálida do grande iniciador, pareceu-lhe que o
vale, o rio, as montanhas e as florestas profundas gemiam
como uma grande lira.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 109

O corpo de Orfeu foi queimado pelos seus sacerdotes e as


suas cinzas, levadas para um longínquo santuário de Apoio,
foram veneradas como as de deus. Nenhum dos revoltosos se
atreveu a subir ao templo de Caucaion, no qual a tradição de
Orfeu, a sua ciência e os seus mistérios se perpetuaram, espa-
lhando-se daí para todos os templos de Júpiter e de Apoio.
Os poetas gregos diziam que Apoio se tornara ciumento de
Orfeu, porque êste era invocado mais freqüentemente do que
êle. A verdade é que quando os poetas cantavam Apoio, os
grandes iniciados invocavam a alma de Orfeu, salvador e adi-
vinhador.
Mais tarde, os trácios, convertidos à religião de Orfeu,
contaram que êle descera ao inferno para lá procurar a alma
da esposa, e que as bacantes, ciosas do seu amor eterno, o
tinham feito em bocados; mas que a sua cabeça, lançada no
Érebo e levada pelas suas ondas tumultuosas, clamava ainda
e sempre:
"Eurídice! Eurídice!99
Assim, os trácios louvaram como um profeta aquêle que
tinham morto como um criminoso e que, pela sua morte, os
convertera. Assim o verbo órfico, se infiltrou misteriosamen­
te nas veias da Grécia pelas vias secretas dos santuários e da
iniciação.
À sua voz os deuses conciliaram-se, como no templo, ao
som duma lira invisível, se ajustavam num coro apaixonado
as vozes dos iniciados — e a alma de Orfeu tornou-se a alma
da Grécia.
A ÉPOCA HOMÉRICA
Carlos JMio Belloch (1)

O fim do antigo período cultural egeu se caracteriza exte­


riormente pela vinda de um novo estilo decorativo, o estilo
geométrico ou estilo Dipilón, como também costuma^ chamar-se
segundo o nome de um dos principais lugares onde se deram
grandes descobertas. As origens dêste estilo retrocedem a
tempos muito remotos, tendo sido logo sobrepujado pelo estilo
cretense, para reaparecer em primeiro plano após a queda
dêste, e dominar a arte grega até o fim do século VIII. Co­
nhecemos êste estilo principalmente pela pintura cerâmica.
Nêle se manifesta um progresso em relação à época cretense,
pois começam a aparecer representações tiradas da vida huma­
na, que faltavam por completo nos vasos de Creta. Sem dú­
vida, estas representações são muito toscas, e as figuras s*í
oferecem freqüentemente retorcidas de maneira muitas vêzes
grotescas. O trabalho artístico, ademais, principalmente o dos
metais, conservou-se neste período a uma grande altura de per­
feição técnica, como demonstram as descrições da epopéia, e
é injustificado por completo, falar de uma decadência da cul­
tura grega ao término do período cretense-miceniano, como
costuma fazer-se.
É mais certo que, nesta época, por volta do segundo ao pri­
meiro milênio, verifica-se um progresso técnico transcendental
no canal régio do mar Egeu. A cultura antiga egéia não tinha
conhecido nada mais do que as armas e os utensílios de bronze.
Agora já conhece a fundição do ferro e sabe trabalhar neste
metal, daí a espada de ferro substituir a antiga espada de
(1) O estudo escolhido sôbre as origens dos gregos, de Carlos Júlio
Beloch, tem a finalidade de mostrar a nianeira de considerar os fatos,
para os quais não há suficientes assentamentos históricos, sob o ângulo
mítico, reduzidos aos mitos solares e lunares.
114 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

bronze. A maior força da arma ofensiva tornou necessário um


robustecimento da arma defensiva, e no lugar do escudo de ma­
deira de altura humana e recoberto de couro, aparece um escu­
do ovalado de couro, com aplicações de bronze, que, em virtude
de ser relativamente pesado tinha de ter tamanho menor, dei­
xando sem proteção as pernas, cobertas, então, por polainas de
couro, e logo protegidas também por placas de bronze; para
maior proteção, usava o guerreiro sob o escudo, um arreio de
couro com aplicações de bronze, e um avental semelhante, à
volta do ventre. A cabeça era protegida por um casco de
bronze. Os guerreiros assim vestidos não estavam, natural e
normalmente, em condições de realizar longas marchas; por­
tanto, o carro de combate logo começou a ser um meio de trans­
porte, até que a pouco e pouco se introduziu o costume de ir à
batalha montado a cavalo. Como arma ofensiva principal em­
pregava-se a lança, que regularmente se utilizava como projé­
til, e somente quandp" o golpe falhava, acudia-se à espada para
resolver a luta. Êste armamento dava aos habitantes do mar
Egeu notória superioridade sôbre os outros povos. A estas
circunstâncias, devem em/grande parte os gregos o domínio
sôbre o Mediterrâneo/qüe conseguiram no decorrer dos séculos
seguintes.
Com armas na mão, os gregos conquistaram, no fim da
época miceniana, as ilhas do mar Egeu e a costa ocidental da
Ásia Menor. O espírito guerreiro continuou dando alento ao
povo. Esta raça era verdadeiramente, como diz o poeta, uma
"raça de ferro”. Para o homem livre, a mais honrosa maneira
de ganhar e adquirir fama consistia em arrebatar os rebanhos
da tribo vizinha, ou sulcar o mar em rápidas naves, para sa­
quear as costas estrangeiras. O ócio da paz era preenchido
por jogos de luta e toda espécie de exercícios corporais; e nada
era mais honroso do que sobressair-se nestes certames. Em
ocasiões de festas, organizavam-se certames desta índole, com
ricos prêmios para o vencedor, sobretudo durante o sepulta-
mento dos reis. Dêste costume originaram-se, posteriormente,
os jogos ginásticos durante as festas, para maior honra dos
deuses.
Êste tipo de vida cavalheiresca só podia levar naturalmen­
te, aquêle que, por si mesmo ou por seus antepassados, adqui­
rira um bem-estar através de felizes expedições de pilhagem;
pois, não existia quase nenhum outro meio de obter riquezas.
Aquêle que pertencia a esta classe' olhava com desprêzo a massa
do povo, cuja atividade se consumia no ganha-pão diário. Êste
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 115

povo se compunha de trabalhadores manuais ("demiurgos”),


pequenos lavradores e trabalhadores por diária ("tetes”) ; o
nobre não se considerava, portanto, inferior ao próprio rei, e,
como êste, vangloriava-se de ascendência divina. Os reis não
puderam, portanto, estabelecer o poder absoluto que, segundo
testemunhavam os monumentos, deviam ter desfrutado no pe­
ríodo miceniano. Conservou-se, entretanto, a realeza. Mas o
rei, no círculo da nobreza, não era mais do que o primeiro en­
tre seus iguais, e em todas as resoluções importantes do govêr-
no, estava prêso à aprovação outorgada pelo conselho dos che­
fes, conselho cujos membros atribuíam também a si mesmos
o título de rei. E como tudo se decidia nos debates, conseqüen­
temente, o domínio da palavra veio a ser, para um homem de
elevada posição, tão indispensável quanto o exercício das ar­
mas; o ideal que aspirava o grego dêste tempo, consistia, pois,
em reunir a excelência da oratória à valentia militar.
Na época miceniana, não tinha havido na Grécia, grandes
Estados. Inclusive na planície de Argos, que constitui, geo-
gràficamente, uma região completa, tão pequena, que um pe­
destre ativo pode em poucas horas percorrê-la, encontramos
naquele tempo, os dois reis de Micenas e de Tirinto, que flo­
resceram conjuntamente, e, além disto, os castelos de Midéia,
Nauplia e Larisa, assim como a acrópole da posterior Argos,
que, sem dúvida alguma, eram também sedes principescas. É
possível que Micenas tivesse uma espécie de hegemonia sôbre
toda a comarca, como o santuário de Hera, ao pé da montanha.
Euboion, a uma hora a leste da cidade, continuou sendo du­
rante toda a antigüidade o centro religioso de toda a Argólida.
Mas o laço que unia as cidades devia ser muito frouxo, e Mi­
cenas não pôde manter sua posição predominante. Já havia
tempo que a cultura miceniana tinha decaído, quando se viu
Micenas superada por Argos, cidade que se desenvolvera ao pé
do castelo de Larisa. Não demorou muito para Micenas não
conseguir sustentar a competição desta jovem rival, converten­
do-se numa insignificante aldeia. A direção do santuário de
Hera passou para Argos, a cuja autoridade tiveram de subme­
ter-se as demais cidades da região, convertendo-se desta forma
na cidade mais importante do Peloponeso.
Do mesmo modo, Esparta estendeu seu domínio sôbre todo
o vale do Eurotas. As pequenks localidades vizinhas foram
destruídas; suas terras foram repartidas entre os vencedores;
seus habitantes converteram-se em servos (ilotas), que daí em
diante teriam de lavrar a terra para os novos senhores, o mes­
116 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

mo que sucedera durante a conquista grega de Creta. Assim


como em Creta, os espartanos realizaram uma rígida organiza­
ção militar, na qual as crianças eram educadas para a guerra,
e os homens se reuniam nas horas de comer, todos em comum
(syssitias), como os soldados em campanha. Foi esta organi­
zação que permitiu a Esparta mais tarde conseguir a hege­
monia sobre o Peloponeso e toda a Grécia. As cidades mais
distantes de Esparta ficaram reduzidas a uma relação de su­
bordinação, e seus habitantes, chamados periecos (ou seja,
"habitantes da redondeza”), conservavam desde o início sua
liberdade e suas propriedades, e inclusive certa autonomia co­
munal, mas tiveram de reconhecer a soberania dos reis espar­
tanos, e estar sempre dispostos a marchar em campanha, sob
o comando dêstes.
Nas demais localidades do Peloponeso, cada distrito era
ainda independente, e a população vivia, salvo poucas exceções,
disseminadas em aldeias. Em troca, na Ática, verificou-se logo
a unificação da comarca. Existira anteriormente nesta região
uma série de Estados indepeádentes, cujos castelos régios se
podem em parte identificar \ je; o mais importante
dêstes Estados, compreendia central do rio Cefiso,
entre o Himeto e o Egaleu, até onde vai assentar-se o Parnês.
Os príncipes dêste Estado, cujo castelo era a acrópole de Ate­
nas, submetera, no transcorrer do tempo, os outros Estados
sobre a base de uma completa igualdade de direitos, de forma
que, desde então, toda a Ática constituiu um Estado unitário.
A lenda atribui êste desenvolvimento chamado "inequismo” —
que mais tarde foi a base da grandeza de Atenas — ao rei
Teseu, figura mítica, que não é outra coisa que uma das inume­
ráveis hipóstases do deus do sol. Na realidade, êste processo
verificou-se lentamente, e em particular Elêusis conservou sua
independência ante Atenas, até uma época relativamente avan­
çada, talvez até o século VII ou VIII.
Na vizinha Beócia não se deu uma fusão tão completa dos
diferentes locais regionais. O motivo de tal fato é que desde
a época miceniana existiam já três grandes centros: Tebas,
Orcomenos e a cidade situada na ilha de Ola, no lago Copais,
e de cuja importância são testemunhas atuais os restos do
amplo recinto amuralhado e do palácio real, apesar de haver
desaparecido seu antigo nome, que talvez fosse Arne. Esta
última cidade foi destruída, sem dúvida, cedo, ou talvez aban­
donada por suas condições insalubres. Mas Orcomenos con­
servou sua importância até à época clássica, apesar de ter que
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 117
retroceder aquém de Tebas. Assim, a unificação da comarca
não foi possível, a não ser na forma de uma federação, no
princípio bastante frouxa, com Tebas na frente, conservando
cada cidade uma independência relativamente ampla. Nas ou­
tras comarcas gregas, as cidades ou os distritos conviviam in­
dependentes uns dos outros, unindo-se ao mais alto por asso­
ciações de caráter religioso.
Em geral, a religião era o laço principal, que reunia toda
a nação. As epopéias homéricas, nos apresentam o quadro dos
deuses nacionais, essencialmente no mesmo estado, em que os
encontramos mais tarde durante o período clássico.
Daí em diante, os deuses são imaginados como tendo uma
figura totalmente humana. Os animais, que antes, na época
miceniana, uniam-se com o resto da figura divina, em formas
mistas grotescas, convertem-se agora em atributos da divinda­
de. Atenas, por exemplo, já não foi imaginada com cabeça de
coruja, e teve ao seu lado êste animal como ave sagrada. O
deus, imaginado como homem, tinha que possuir sua moradia
onde se colocaria uma imagem, diante da qual se rendia culto,
e depositavam-se oferendas dos fiéis. Sem dúvida alguma, o
templo desenvolveu-se partindo da capela doméstica, encontra­
da nos palácios da época cretense, e, mais tarde, nas ruínas
dos antigos palácios. Não demorou muito para serem ergui­
dos templos em honra aos deuses nos bosquezinhos sagrados.
A cada um dêstes lugares religiosos se aderiam lendas sa­
gradas. Estas constituíam o conteúdo dos hinos, que se can­
tavam na festa do deus em louvor da divindade. Quanto mais
os grandes deuses nacionais conquistavam o primeiro plano da
fé popular, tanto mais decaíam os inumeráveis deuses locais,
não tendo culto e, despojados de sua essência divina, conver-
teram-se em "heróis”, que se supunha terem existido em tempos
remotíssimos, possuidores de forças infinitamente superiores
à raça humana atual. O próprio Hércules não pôde evitar êste
destino.
Os hinos, que celebravam suas façanhas, perderam, pois,
seu caráter religioso; os cenários dos acontecimentos mudou-se
do céu para a terra, e o hino se converteu em canto heróico.
A fantasia dos poetas encontrou amplo campo à sua disposição;
os diferentes cantos foram relacionados entre si nas formas
mais variadas, em grandes ciclos de lendas, dando entrada tam­
bém a canções que celebravam acontecimentos históricos. A
quantidade do material não encontrou lugar para esgotar-se a
118 ANTOLOGIA DF VIDAS CÉLEBRES

não ser nas amplas composições, e assim do canto heróico, de­


rivou-se a epopéia heróica.
O ciclo de lendas épicas mais famoso, refere-se à destrui­
ção de ílio, que, como demonstram as ruínas conservadas, foi
no período pré-miceniano, e, sobretudo, no miceniano, uma das
cidades mais importantes do Helesponto. O lugar permaneceu
durante séculos pouco mais que um deserto, até que Lisímaco,
por volta do ano 300 a. C., fundou uma nova ílio. A destrui­
ção da cidade é, pois, um fato histórico; tampouco pode duvi­
dar-se de que os gregos sejam os autores dela, uma vez que
a expansão dos gregos pelas costas do mar Egeu, se verifica
justamente nos últimos séculos da época miceniana. Mas as
lendas, que constituem o núcleo dos cantos acêrca das lutas
em ílio, são muito mais antigas e não têm nada a ver com a
destruição da cidade. A baáe primordiaj^é um mito antiquís-
simo da luta entre os espírito^da lu^flícios) e os espíritos
das trevas (dánaos) ; a isto se uírero mito do rapto da deusa
lunar Helena pelo deus sol, e a recuperação da deusa roubada,
pela parelha de irmãos deuses, parentes próximos da raptada,
mito êste que se narrava de diferentes maneiras. Segundo a
lenda ática, Helena foi roubada por Teseu e retomada por seus
irmãos, os Dióscuros, que a levaram de novo para a sua pá­
tria, Esparta. Segundo a epopéia homérica, o troiano Alexan­
dre foi o raptor, e Menelau, seu esposo, com Agamenon, irmão
dêste, retomaram-na de novo. Em torno dêstes dois mitos,
agregou-se com o decorrer do tempo, uma série de outros mi­
tos e figuras lendárias, que, originàriamente, estavam muito
separados do círculo troiano. Assim, principalmente, a lenda
do herói solar Ulisses (Odisseo), que desce ao Hades e logo,
volta à casa, mata com suas flechas infalíveis os importunos
que durante a sua ausência acossavam sua esposa.
A segunda das mais famosas lendas gregas, refere-se à
narração tebana de Édipo, que mata seu pai e se casa com sua
mãe sem conhecer a identidade de ambos, e assim que o duplo
crime se torna manifesto, cega-se a si próprio, como penitên­
cia, e acompanhado pela filha, engendrada por sua própria
mãe, foge. Tal fato semeia a discórdia entre os filhos, que se
matam entre si em lutas fratricidas. A esta lenda se uniu a
da expedição de Tebas, dos sete heróis de Argos, os quais en­
contram a morte às portas da cidade, mas logo vingados pelos
filhos, que se apoderam de Tebas.
As epopéias, em que êste e outro ciclo de lendas eram nar­
radas, nasceram na Jônia e encontraram aí sua formação per­
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 119
feita. De tal fato, o dialeto da Ilíada e da Odisséia não deixa
a menor dúvida, assim como os fragmentos de outras epopéias
perdidas; mas, ao mesmo tempo, numerosos eolismos, que se
introduziram no dialeto jônico, permitem supor que à epopéia
jônica antecedeu uma epopéia eólica, que, por sua vez, se ori­
gina da epopéia da época miceniana. Como cada uma destas
capas descansa na precedente, devendo-lhe muito, tanto no con­
teúdo como na forma, é ocioso perguntar pelo autor das epo­
péias : inumeráveis poetas colaboraram direta ou indiretamente
na Ilíada e na Odisséia. Mas, justamente, esta continuidade
dos cantos épicos nos demonstra que êstes foram cultivados
por cantores profissionais, como se deduz claramente das pró­
prias descrições da Odisséia. A arte de cantar heróica, her-
dava-se de pai a filho, de mestre a discípulo, como, em geral,
toda atividade artística nestes tempos de estreita vinculação.
Uma destas estirpes de cantores foi a dos homéridas, em Quios,
os quais provàvelmente se ramificaram em outras cidades jô-
nicas, e em cujo círculo encontrou sua perfeita redação o canto
do ciclo troiano; e assim sucedeu que o epônimo da estirpe,
Homero, fosse considerado como autor destas epopéias, quando
se começou a perguntar pelo nome de quem as tinha redatado.
Em realidade, a Ilíada e a Odisséia foram formadas a pouco
e pouco, a partir de núcleos relativamente pequenos, até chegar
a constituir as extensas epopéias que hoje conhecemos. As di­
ferentes capas podem ser discernidas com a mesma segurança
com que o geólogo determina a idade relativa dos terrenos ter­
restres. Mas, cada uma das capas mais jovens, destruiu, em
muitos pontos, as capas mais velhas, de tal forma que o resta­
belecimento do núcleo primitivo que se tentou fazer, deve con-
siderar-se como impossível; somente fragmentos restaram das
capas mais antigas. As epopéias chegam à sua forma defini­
tiva no decorrer dos séculos VII e VIII, apesar de algumas
adições procederem do século VI.
Cantores ambulantes, que iam de cidade em cidade, pro­
pagaram os poemas até os limites extremos do idioma grego.
O mundo da lenda, que se refletia nas epopéias, veio, a ser,
desta forma, bem comum de toda a nação, e êste vínculo espi­
ritual contribuiu, poderosamente, para dar aos gregos cons­
ciência da sua unidade. Assim como a Ilíada descreve a guer­
ra de Tróia como uma expedição nacional, da qual todas as
tribos gregas participaram, a própria Ilíada, e os demais poe­
mas homéricos, constituem a fonte onde se embebe a poesia
grega posterior, e também logo começa a arte plástica a buscar
120 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

seus temas na epopéia. Depois da Bíblia, não há outra criação


literária, que tenha tido, como a epopéia grega, uma influência
tão profunda na evolução da cultura humana.
Não é por mera casualidade que até esta época, em que a
epopéia estendia-se por todo o mundo grego, que aparece, pela
primeira vez, o uso de um nome comum para designar toda
a nação, o nome de helenos. Homero não conhece ainda êste
nome, em todo caso aparece em algumas passagens mais re­
centes. O exército de Agamenon era composto de contingentes
enviados por todas as tribos gregas; mas Homero não lhe apli­
ca nenhum nome comum, e emprega as designações de danaus,
aqueus ou argivos, que procedem das epopéias mais antigaC
O3 "helenos” foram primitivamente uma tribo que estêve/as-
sentada na Tessália meridional, logo desapareceíido. Ppr que
justamente 0 nome desta tribo converteu-se em noíneae toda
a nação? Isto é algo que se apresenta tão obscuro como cos­
tuma acontecer com a origem dos nomes étnicos. Mas o fato
dêste nome ter chegado a ter um sentido geral, precisamente
agora, no século VII, nos demonstra que a nação tinha conse­
guido, finalmente, obter consciência de sua conexão interna.
TESEU
de Plutarco
(Supõe-se ter vivido entre 2249 e 1199 a. C.)

I — Era costume dos historiadores, oh! Sósio Senecião


(1), quando se nos faziam a descrição de países, onde houvesse
lugares que porventura ainda não conheciam, suprimi-los do
mapa, pondo à margem esta advertência: "daqui por diante
não há senão areias sem água e agrestes, ou pântanos impene­
tráveis, ou gelos como os da Cítia, ou um mar gelado”. Pois,
dêste modo, tendo de escrever estas vidas comparadas, nas
quais se situam épocas, que a ponderada crítica e a história
não alcançam, deverei advertir, a seu respeito, o seguinte: da­
qui por diante, não há nada mais do que acontecimentos pro­
digiosos e trágicos, matéria própria de poetas e mitólogos, na
qual não se encontram firmeza ou segurança. E havendo es­
crito sôbre o legislador Licurgo e sôbre o rei Numa, parece-
-me que não ficará desconforme ir até Rômulo, já que nos
aproximamos de seu tempo; mas, examinando, para dizer como
Ésquilo
Com quem pode ser comparado? Quem o iguala?
Quem fará companhia a êsse iluminado? (2)
Julguei que aquêle que ilustrou a brilhante e celebrada Atenas
poderia, perfeitamente, comparar-se e seguir ladeando o fun­
dador da invicta e esclarecida Roma. Farei com que o fabu­
loso, purificado na minha narração, tome forma de história;
(1) Cônsul com Nero e Trajano, sôbre quem Plutarco dedicou
também outras obras.
(2) Versos dos “Sete contra Tebas”.
122 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

mas se houve alguma parte obscura e que impeça a probabi­


lidade, e se esta não puder unir-se ao verossímil, deixemo-la
com os leitores benignos, os que não desprezam, entretanto, o
estudo dos temas pertencentes à antigüidade.
II — Parece-me pois, que Teseu pode-se comparar a Rô-
mulo por muitas notas de semelhança: por serem ambos de
origem ilegítima e obscura, ambos conhecidos como filhos de
deuses,
Invictos ambos: todos o sabem"; (3)
e à coragem, juntavam a prudência. Das duas mais célebres
cidades, um fundou Roma e outro deu um govêrno a Atenas;
deu-se também com ambos o rapto das mulheres; nem um nem
outro evitaram, no entanto, o infortúnio e os desgostos domés­
ticos, incorrendo, por fim, segundo se diz, no ódio de seus con­
cidadãos, se as relações que se dão fora das tragédias podem
servir de algum apoio à verdade.
III — A linhagem de Teseu, pelo lado paterno, chega até
a Ereteu e aos primeiros autóctones (4), e pelo lado mater­
no era a dos Pelópidas, porque Pélope, não tanto pela riqueza,
mas por numerosa prole, foi famoso, entre os reis do Pelopo-
neso, tendo casado muitas filhas com varões ilustres e espa­
lhado muitos filhos para reger diversos povos. Piteu, avô de
Teseu, foi um dêles, embora, que se não lhe coubesse uma cida­
de tão populosa como Tresena (5), teve, contudo, maior fama,
por ser entendido e mais sábio que os demais em relação à
idade. Ao que se conjetura à classe e à importância de seu co­
nhecimento, provinham de certas analogias com o saber senten-
cioso que a Hesíodo dera fama por seu poema "Obras e Dias”.
Diz-se pertencer a Piteu uma das sentenças dêste poema:
Paga ao amigo o preço conveniente,
o que se refere, também, o filósofo Aristóteles e Eurípedes,
chamando a Hipólito, aluno do respeitável Piteu, manifesta
claro a concepção que dêle faziam.
(3) Ilíada VII.
(4) É como dizer homens brotados espontâneamente da terra.
(5) Cidade de Argólida, no Peloponeso.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 123

Achava-se, pois, Egeu sem filhos, e diz-se que Pítia (6)


lhe anunciou aquêle tão difundido oráculo, no qual lhe preve­
nia que antes de sua ida para Atenas não se unisse com mu­
lher, embora se não nos pareça, expressou-o com muita clareza.
Sendo assim, indo dali a Tresena, confiou a Piteu o presságio
do deus:
Não desates do odre o pé que sai,
oh!, magno vencedor das nações!
sem que antes tenhas ido ao povo de Atenvas.
Ignora-se o que Piteu aconselhbu a Egeu, ou como o persuadiu
a ir ao encontro de Eetra. Uniu-ke^-percebendo ser a filha de
Piteu com quem estivera, e, após, desconfiado de que a deixara
grávida, confiou-lhe uma espada e uns coturnos, escondendo-os
debaixo de enorme pedra que tinha um vão feito em propor­
ções exatas para escondê-los. Só a ela revelou e preveniu de
que se porventura desse à luz varão, que, quando adulto tivesse
necessária força à remoção da pedra, recolhesse as preciosida­
des ali conservadas, partisse com elas sem comunicar a nin­
guém, e ainda, ocultando de todos o quanto pudesse, pois re­
ceava os Palântidas (7), cinqüenta irmãos gerados pelo mesmo
pai, que, com freqüência, lhe preparavam armadilhas e o des­
prezavam por não ter filhos — após esta recomendação partiu.
IV — Foi, pois, o filho que Eetra deu à luz, que segundo
alguns foi dado o nome de Teseu, devido àqueles indícios, que,
em grego, é Tesis; que outros afirmam ser Atenas, onde lhe
deram o nome por ter sido adotado por Egeu. Educado ao
lado de Piteu, teve aí o mestre Cônidas, a quem, até nosso
tempo, os atenienses oferecem um carneiro, num dos dias das
festas de Teseu, reverenciando-lhe a memória com mais razão
do que a Silanião e Parrásio, pintor e escultor dos retratos de
Teseu (8).
V — Era então costume os jovens irem a Delfos e consa­
grarem a Apoio, em primicias, sua cabeleira; Teseu passou por
Delfos, e consta que o lugar da cerimônia, onde fêz a oferenda,
até hoje chama-se Teséia. Cortou somente o cabelo da parte
anterior da cabeça, assim como os Abântidas (9), como conta
(6) Sacerdotiza que pronunciava os oráculos em Delfos.
(7) Filhos de Palante, irmão de Egeu, que aspiravam, como se
verá, ao trono de seu tio.
(8) Ambos viveram no tempo de Alexandre.
(9) Antigo povoado da ilha Eubéia.
124 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Homero, e êste modo de pentear-se foi cognominado, por êle,


de Teseide. Foram os Abantes os primeiros que assim se
pentearam, não porque aprenderam dos árabes, como julgam
alguns, nem por imitação aos de Mísia (10), mas porque eram
guerreiros que combatiam de perto, e inclinados, mais que
outros, a combater corpo-a-corpo, com os inimigos, segundo o
testemunho de Arquíloco (11) nestes versos:
Não no arremêsso do arco, ou das fundas,
no ranger freqüente, distinguem-se;
mas no campo, quando o cruel Marte
para ferir com o ferro mais se enfurece;
que nesta luta os gloriosos filhos
da Eubéia o apreço alcançam:
cortam os cabelos, portanto, para não deixar os inimigos agar­
rá-los pelos cabelos. E por esta mesma razão, afirma-se que
Alexandre da Macedônia deu ordem aos generais, para que
fizessem raspar as barbas dos macedônios, por serem aos ini­
migos presa fácil ao sabor da mão.
V I — Etra sempre ocultou a verdadeira origem de Teseu,
e Piteu dizia que Netuno a fizera mãe, por que os Tresenienses
rendem particular culto a Netuno, sendo êste seu deus tutelar,
a quem oferecem as primícias dos frutos; tendo o tridente por
principal insígnia de suas moedas. Como desde pequeno de­
monstrasse reunir à força e robustez do corpo o juízo e a pru­
dência, Etra, levando-o ao lugar da pedra, narrou-lhe a ver­
dade sôbre sua origem, mandou-o recolher os objetos paternos
e dirigir-se para Atenas. Levantou a pedra com grande faci­
lidade; mas não puderam dissuadi-lo de embarcar para Atenas,
apesar da seguridade do caminho, pois a mãe e o avô rogavam-
-lhe não ir, por estar exposto a facínoras e ladrões, durante
toda a viagem.
Pois, aquela época era fecunda em homens de indescritível
força nos trabalhos de mão e de rapidíssima leveza de pés.
Todavia, em nada moderado ou proveitoso empregavam tais
dotes, pelo contrário, compraziam-se na violência, abusavam
com crueldade e aspereza de seu poder, e se aspiravam domínio
era para subjugar e destruir tudo o que lhes fizesse afronta,
parecendo-lhes que a modéstia, a justiça, a igualdade e a hu­
manidade não se lhes assentavam, de forma alguma, sôbre
(10) Comarca da Ásia Menor.
(11) Célebre poeta grego do século VII a. C.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 125

aquêles que mais podiam, pois se os homens as elogiavam, fal­


tava-lhes coragem ou atrevimento ou mêdo de sofrer injúrias.
Dêstes, Hércules havia destruído a alguns nos lugares por onde
passara; e outros, pondo-se em fuga à sua presença, se ha­
viam salvo na obscuridade; mas depois que Hércules caiu na
desgraça, havendo dado morte a Ifto (12), foi para Lídia (13)
e ali por muito tempo estêve servindo à Onfale (14) pagando,
dêste modo, a pena daquele homicídio. Na Lídia desfrutou-se
de muita paz e tranqüilidade; mas na Grécia, novamente, apa­
receram os que proliferavam as iniqüidades, não havendo nin­
guém que os aniquilasse ou contivesse; era assim arriscada a
viagem para os que, por terra, seguiam do Peloponeso para
Atenas, e Piteu, contando quem era cada um daqueles ladrões
e foragidos, quais seus ardis para com os viajantes, persuadia
Teseu que fosse por mar. Mas, êste já tinha, há muito, admi^
ração pelas virtudes de Hércules; falava freqüentemente dele
€ ouvia ansioso aos que relatavam suas façanhas, mormente
aos que haviam visto e haviam estado presentes a seus disK
cursos e feitos. Aconteceu-lhe, então, muito claramente, o que
longo tempo após sucedeu, o que dizia de si Temístocles: "que
o troféu de Milcíades não o deixava dormir, pois da mesma
maneira, admirado êste da virtude de Hércules, à noite sonha­
va com suas ações, e de dia agitava-se e alimentava o desejo
de igualá-lo, o que sempre revolvia seu ânimo”.
VII — Concorreu, também, porque participava da mesma
genealogia, sendo filhos de primas, porque Etra era filha de
Piteu, e Alcmena, de Lusídica; e esta e Piteu, irmãos, como
filhos de Pélope e Hipodâmia; parecia-lhe, portanto, coisa re­
pugnante e insofrível, que aquêle, andando por toda parte, lim­
passe a terra e o mar e que êle se esquivasse das contendas, que
ante os pés se lhe ofereciam, para fugir por mar, afrontando
dêste modo, a quem por voz e fama era seu pai, e a quem o
era na verdade, a fim de lhe levar, como sinais para ser reco­
nhecido, os coturnos e uma espada não tinta de sangue, em
vez de tornar bem claro com obras a excelência de seu legíti­
mo nascimento. Com êste espírito e estas considerações pôs-se
a caminho, resolvido a não ofender por sua parte a ninguém;
mas sim a castigar as violências que se lhe apresentassem.
(12) Hei de Ecália, morto por Hércules num arrebatamento de
fúria.
(13) Comarca da Ásia Menor.
(14) Rainha da Lídia, a cujo serviço estêve Hércules três anoa
como escravo em expiação do crime cometido.
126 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

VIII — Em primeiro lugar, no Epidauro (15), a Periletes,


que usava por arma uma maça, e por isto, apelidado Corinetes
(16), porque lhe embargara os passos, matou-o com ela; e sa­
tisfeito com a maça, fê-la também sua arma, que sempre o
acompanhava, do mesmo modo que Hércules, com a pele de
leão; e assim como neste, era além de adorno uma demons­
tração de qual era o tipo de fera que fora abatida, da mesma
maneira a maça significava, em Teseu, que a havia vencido,
e que em sua mão era invencível. No Istmo (17), tirou a vida
a Sínis Pitnocampte (18), da mesma maneira, como êle a mui­
tos exterminava, embora a isso não tivesse aprendido ou pro­
cedido, demonstrando, assim, que a virtude natural se avantaja
a todo estudo e arte. Tinha Sínis uma filha já moça e for­
mosa, chamada Periguna, em busca da qual foi Teseu, porque
havia fugido após a morte do pai. Havia se retirado para um
campo inculto de capim e espargueiras e ali tola e puerilmente,
como se estas coisas tivessem sentido, prometia-lhes, em jura­
mento, que nunca as cortaria ou queimaria se a salvassem e
escondessem; mas, sendo descoberta por Teseu, quando êste
prometendo cuidá-la, e que em nada a ofenderia, saiu dali e
unindo-se a Teseu, foi mãe de Melanipo; todavia, depois, casou-
-se com Diôneo, o de Eurito Ecaliense, por disposição do pró­
prio Teseu. De Melanipo, o de Teseu, foi filho Ioxo, que com
Ornito concorreu para o estabelecimento da colônia que passou
para a Cária, de onde os habitantes passaram a chamar-se Ió-
xidas, e conservaram o costume pátrio de não queimar as ma­
tas de espargos mas sim, conservá-las e venerá-las.
IX — Havia a javalina Cromiônia (19), chamada Faia
(20), que não era uma fera pouco temível, mas furiosa e difícil
de vencer. Contudo, saindo do caminho, para que não pare-
cesse que tudo fazia por ver-se constrangido, procurou-a e ma­
tou-a, porque, além disso, era de opinião que o varão virtuoso,
a respeito dos homens maus, deveria esperar ser acometido,
para então vingar-se; mas com as feras, os varões generosos
(15) Cidade de Argólida, famosa pelo templo de Esculápio.
(16) Como se dissesse o maceiro ou o da maça.
(17) De Corinto.
(18) O que dobra os pinheiros ou dobra pinheiros. Para acabar
com suas vítimas, dobrava duas árvores desta espécie; atava a cada
uma delas um braço e uma perna do infeliz; soltava depois as árvores
de uma só vez e, dêste modo, as esquartejava.
(19) Ou de Cromion, aldeia situada entre Mégara e Corinto.
(20) Ou negrusca.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 127

deveriam antecipar-se e correr o risco de combatê-las dêste


modo. Contudo, outros dizem que a chamada Faia era mulher
má, ladra e assassina, residente em Crômion, a quem se dava
a denominação de Javalina por seus costumes e vida, e que
esta foi a que morreu nas mãos de Teseu.
X — Nos confins de Mégara matou, atirando contra as
pedras, a Esciron, que, segundo alguns, roubava os viajantes;
mas outros dizem que por maldade e capricho enganava os
viajantes que eram obrigados a lavar seus pés e que após re­
ceberem pontapés eram lançados ao mar. Mas os escritores
megarenses, lutando com o tempo antigo, segundo expressão
de Simônides (21), empenham-se em contradizer esta má fama
e sustentam que Esciron, longe de ser ladrão e malfeitor, foi
o melhor açoite de ladrões e amigo dos homens justos e bons.
Por êste motivo, Éaco é reputado como o mais justo dosí
gregos; a Cícreas, o de Salamina, tributam em Atenas honras
divinas, e não há ninguém que desconheça a virtude de Peleu ^
e Telamon, pois Esciron foi genro de Cícreas, sogro de Éaco,
avô de Peleu e Telamon, nascidos de Endeida, filha de Esciron
e Caricléia, e parece incrível que com homem tão perverso ha­
viam de querer contrair parentesco uns varões tão virtuosos,
dando e recebendo as prendas que mais se querem e estimam.
Dizem, portanto, que não foi em sua primeira viagem a Atenas,
porém mais tarde, quando Teseu tomou Elêusis, conquistada
pelos de Mégara, subjugando Diocles, que a regia, e matando
Esciron; tal é a diversidade de opiniões que há neste ponto.
XI — Em Elêusis, matou em contenda Cércion, e pouco
mais tarde, em Hermiona (22), a Damasta ou Procrustes, fa-
zendo-o, como costumava fazer com seus hóspedes, a medir o
seu célebre leito (23). Fazia tudo isto, imitando Hércules,
porque, também êste, defendendo-se pelos mesmos meios com
que se lhe armavam os outros, sacrificou Busíris (24), venceu,
(21) Poeta lírico grego do século V a. C.
(22) Antiga cidade de Peloponeso.
(23) O gigante Damasta obrigava os viajantes, que caíam em
suas mãos, a deitarem-se em uma cama: se eram demasiado longos,
cortava a parte do corpo que sobrava; se demasiado curtos, espicha-
va-os, puxando-lhes os pés.
(24) Rei lendário do Egito. Para terminar com uma fome que
havia durado nove anos, sacrificava todos os anos um estrangeiro sô­
bre o altar de Zeus.
128 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

lutando, Anteu (25), deu fim, em um combate singular, a


Cicno (26), e matou de uma cabeçada a Termério; de onde vem
o nome de mal de Termério (27), porque costumava matar
aos que encontrava, chocando a cabeça contra a dêles. Desta
mesma maneira resolveu Teseu castigar os malvados, fazendo-
-lhes sofrer as mesmas violências que praticavam, e a justa
pena de suas injustiças pelos mesmos meios de que se valiam.
XII — Seguindo seu caminho, e chegando às margens do
Céfiso, saíram a seu encontro alguns da linhagem dos fitálidas
(28) e o saudaram os primeiros, pedindo-lhes que os purificas­
sem e havendo expiado, segundo seus ritos, e feito aos deuses
propiciatório sacrifício, acolheram-no em casa — não fora re­
cebido humanamente por nenhum outro em todo o caminho;
e diz-se que chegou a Atenas no oitavo dia do mês Crônio, que
agora chamam Hecatombeon (29). Entrando nela achou as
coisas públicas em confusão e desordem, e as particulares de
Egeu e sua casa também em mau estado; porque Médèa (30),
refugiada ali, vindo de Corinto, havia oferecido a Egeu tra-
tá-io com ervas para ter filhos, e ajuntara-se com êle. Des­
confiou ela de Teseu, e Egeu que não o conhecia, que contur­
bado pela velhice e a sedição, de tudo agora se assustava, foi
persuadido por ela a que convidasse Teseu para um banquete
e com um veneno se desfizesse dêle.
Aceitou Teseu o convite, e não lhe pareceu oportuno dizer
logo quem era, mas esperar a oportunidade de se fazer reco­
nhecer e como houvessem serviao carnes na mesa, puxou da
espada, como se fosse cortá-las; assim foi como se fêz reco­
nhecer. Egeu advertiu-o, e êle arrojou ao solo a taça de ve­
neno, e, certo de que era seu filho, saudou-o como tal, congre­
gou os cidadãos e deu-se a conhecer, sendo recebido por todos,
de muito boa vontade, pelo seu valor. Há tradição de que der-
(25) Gigante, filho de Netuno e da Terra, que obrigava a lutar
com éle a todos quantos chegavam a seu país. Hércules, para matá-lo,
teve que sufocá-lo entre os braços, evitando que, ao contacto com sua
mãe, a Terra, recobrasse suas forças como costumava.
(26) Cicno matava os viajantes que iam de Tempe às Termópilas,
para, com seus crânios, construir um templo dedicado a seu pai.
(27) Dizia-se de uma dor muito grande.
(28) Eram descendentes de Fitolo, herói legendário, que ensinou
aos atenienses o cultivo da figueira. Os fitólidas tinham a seu cargo
o culto de Elêusis.
(29) Julho-agôsto.
(30) A famosa feiticeira, filha do rei de Cólquida, que seguiu
Jason na expedição de “Os Argonautas”.
I

0 Peloponeso
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 129

rubara a taça, onde está agora a grade no Delfino (31), por­


que a casa de Egeu estava ali; e o Hermes, que está no Oriente
do Templo, diz-se ser o das portas de Egeu.
XIII — Até agora os Palântidas acalentaram a esperança
de erguer-se com o reino, morrendo Egeu sem filhos; mas de­
clarado Teseu sucessor, desgostosos de que antes já houvesse
reinado Egeu, que foi adotado por Pandíon (32) e nenhum
parentesco tinha com os Erecteidas, e em seguida fôsse reinar
Teseu, sendo forasteiro e adventício, fizeram-lhe guerra; pois
dividindo-se, encaminharam-se a descoberto desde Esfeta, a ci­
dade, enquanto os outros, ocultando-se em Gargueto, punham-
-se em cilada para acometer, por duas partes, àqueles que se
lhe opunham ao mando. Tinham consigo um mensageiro cha­
mado Leos, que era de Agnúsia, e êste deu parte a Teseu do
que os Palântidas se dispunham fazer; êste atacou subitamen­
te os que lhe armaram cilada, a todos os destruiu, e os que
estavam com Palante, ao saber o que se dava, dispersaram-se.
É fama que, desde então, não há enlaces entre os do bairro
dos Polênios e o dos Agnúsios, nem entre êles fazem seus pro­
clamas os mensageiros com a fórmula usual: "escuta, Leos”,
isto é, povo; porque desprezam o nome de quem foi veículo da
traição.
XIV — Querendo, Teseu, estar exercitado e também fa­
zer-se popular, foi-se em busca do touro Maratônio, que fazia
grandes males aos habitantes de Tetrápolis (33), e tendo-o
agarrado, apresentou-o vivo, levando pela cidade; depois o sa­
crificou a Apoio Delfino. Quanto a Hécale, sua hospedagem
e acolhimento, e o que dela se referem vulgarmente, parece
que não carece de todo da verdade, porque os povos dos arre­
dores, reunidos, ofereciam sacrifício hecalésio a Júpiter Hecá-
lio, e veneravam a Hécale, chamando-a carinhosamente, Heca-
lita, em comemoração de que, sendo Teseu ainda muito jovem,
havia sido seu hóspede e tendo sido saudado, delicadamente,
como costumam fazer os anciãos com os jovens, e ao sair Teseu
para o combate houvesse feito votos a Júpiter de oferecer-lhe
sacrifício se saísse vivo, e ela, entretanto, tivesse falecido an-
(31) Tribunal de justiça.
(32) Rei legendário de Atenas.
(33) Tetrápolis, era uma comarca da África, chamada assim por
estar composta de quatro cidades: Zenoe, Maratona, Probâlinto e Trin-
corito.
130 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

tes de sua volta, recebeu a paga de sua boa hospedagem poi


ordem de Teseu, segundo o refere Filócoro (34).
XV — Pouco tempo depois, vieram pela terceira vez de
Creta os que cobravam o tributo. Aconteceu que julgaram que
Andrógeo havia sido morto à traição, na Ática. Minos (35),
por sua parte, havia causado graves males aos habitantes, fa-
zendo-lhes guerra, e além disso uma força superior havia asso­
lado aquela comarca, caiAdo sôbre ela esterilidade e peste; até
os rios secaram. Ordenou-lhes o oráculo que aplacassem Mi­
nos e se reconciliassem com êle, que com isto se acalmaria a
cólera divina e se livrariam dos males; enviaram-lhe, pois,
mensageiros, rogaram-lhe e pactuaram, segundo convém a
maioria dos escritores, que por nove anos lhe enviariam, em
tributo, sete mancebos e outras tantas donzelas. Chegados à
Creta, êstes jovens, as fábulas trágicas dão-nos a entender que
eram no Labirinto despedaçados pelo Minotauro, ou que, per­
didos, dando voltas e não podendo acertar com a saída, ali
pereciam, e que o Minotauro era, como o expressa Eurípides,
Monstruoso corpo de biforme aspecto;
e que havia nascido
De touro e homem com misturados membros (36).
XVI — Mas Filócoro diz que os cretenses não admitem
esta narração, e que falam sôbre o Labirinto, que era um tipo
de fortaleza, sem ter outro inconveniente senão o de não po­
derem os presos fugir dela. Como Minos celebrasse combates
solenes em memória de Andrógeo, aos vencedores, entregava-
-lhes, por prêmio, aqueles jovens, custodiados até aquêle ponto
do Labirinto. Nos primeiros combates ficou vencedor um cre-
tense, que era considerado por Minos e era seu general, cha­
mado Tauro, homem nada suave, nada brando de caráter, que
tratava com arrogância e crueldade os jovens atenienses. O
próprio Aristóteles, falando do govêrno dos Boteos (37), ma­
nifesta bem claro não haver crido jamais que Minos houvesse
dado morte àqueles jovens, mas que, até à velhice, ficaram em
(34) Filócoro de Atenas. Viveu no século II a. C. É autor de
vários livros de história.
(35) Rei legendário de Creta, pai de Androgeu.
(36) Versos de uma tragédia perdida.
(37) Só chegou até nós alguns fragmentos da obra de Aristóteles
da qual aqui se refere Plutarco.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 131

Creta, como servidores. Aconteceu depois que, cumprindo os


cretenses um voto antigo, enviaram a Delfos as primícias dos
varões, e então tornaram-se também miscegenados os descen­
dentes daqueles; mas como não lhes fôsse possível ali ganhar
a vida, primeiro se transladaram à Itália e foram até Iapígia;
mas logd se encaminharam à Trácia, e tomaram o nome de
Boteos, de onde provém que as donzelas botéias, celebrando
certo sacrifício, entoam êste canto: "Vamos a Atenas”. Na
verdade seria expor ao perigo ficar mal com uma cidade que
cultivava sobretudo as letras; assim é que Minos sempre foi
desacreditado e maltratado nos teatros áticos, quando não se
detiveram em cognominá-lo, Hesíodo, de muito régio e Homero
de familiar do próprio Júpiter; mas concebendo-o, por conta
própria, os compositores de tragédias, dos palcos lhe cobri­
ram de ignomínia, como homem cruel e violento, tanto assim
que, por outro lado, é comumente sabido que Minos foi rei e
legislador, e Radamanto, juiz e conservador das retas deter­
minações daquele.
XVII — Chegado, pois, o tempo do terceiro tributo, tendo
de apresentar-se para a sorte, os pais que tinham filhos man-
cebos, suscitou-se contra Egeu grande rumor entre os cida­
dãos; queixando-se êstes, lamentaram-se de que, sendo a causa
de tudo, somente êle em nada participava do castigo, e havendo
trazido ao mundo um jovem bastardo e estrangeiro, nenhuma
importância dava a que lhes tirassem os filhos legítimos.
Isto aborreceu a Teseu e não querendo deixar de partici­
par no que era justo para não ficar à parte, como cidadão,
naquele infortúnio, voluntàriamente, apresentou-se sem ser
sorteado.
Maravilhosa pareceu esta resolução que mereceu aplausos
de todos; e Egeu, quando viu que nem por rogos nem por pe­
didos pôde dissuadi-lo ou afastá-lo daquele propósito, sorteou
os demais mancebos. Mas Helâncio (38) é de opinião que não
eram sorteados os jovens e as jovens que a cidade entregava,
mas sim, o próprio Minos passava por lá e os elegia; que pri­
meiro elegera Teseu conforme o convênio; sendo combinado
que os atenienses dariam a nave; que, embarcando os mance­
bos com Minos, não levariam consigo arma alguma de guerra,
e, que morto o Minotauro, terminaria a pena.
No princípio não havia qualquer esperança de retorno;
portanto, como numa calamidade, punham na nave a vela pre-
(38) Historiador grego do século V a. C.
182 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

ta; mas Teseu animou muito seu pai, glorificando-se de que


havia de subjugar o Minotauro. Deu o pai ao comandànte da
a a v e uma vela branca, prevenindo-lhe que, na volta, se Teseu
regressasse vivo, a alçasse no mastro, do contrário, a preta,
como indício de sua desgraça.
Simônides diz que a vela entregue por Egeu não foi
branca, mas púrpura, "tinta com o sumo de azinheiro, quando
estava no seu maior esplendor”, e que esta foi dada como sinal
do regresso feliz. Foi governador da embarcação Amarsyada
Féreclo, segundo Simônides; mas Folócoro diz que Teseu to­
mou por capitão em Salamina, por conselho de Esciro, a Nau-
aitoo; e, por comandante na proa, a Féaco, porque ainda os
atenienses não se haviam dado o equipamento do mar, e acon­
tecia ser um dos mancebos neto de Esciro, chamado Menestes.
Concorda com isto, haver-se posto por Teseu no porto Faiero,
no templo de Esciro, os monumentos de Nausitoo e Féaco; e
diz-se também que a festa chamada Gubernésia (39) é a êstes
a quem se dedica.
XVIII — Feito o sorteio, tomando Teseu consigo, no Pri-
tâneo (40) os sorteados, e passando pelo Deifínio, íéz por êieá
a oferenda a Apoio; sendo esta um ramo de oliveira sagrada,
eoroado com uma bandeira de lã branca, com o que, feitas m
preces, baixou ao mar no dia 6 do més JViuniquíon (41), o mes­
mo em que ainda vão ao Deifínio fazer mvocaçóes as donzeias.
Refere-se também que de Delfos pelo oráculo lhe ordena­
ram chamar Vênus para guiá-lo e acompanhá-lo na viagem;
e que verificando-se no mar o sortilégio de uma cabra trans-
íormar-se em bode, por êsse fato passou a chamar-se a deusa
de Epitrágia (42).
XIX — Chegando a Creta, segundo se escreve e se canta,
recebendo de Ariadna, que dêie se enamorou, o no, e instruído
de como podia sair das reviravoltas ao L»aDirmto, deu morte
ao Minotauro, e regressou, trazendo consigo Ariadna e os man-
eebos. Ferécides (43), por vez, acrescenta que Teseu afundou
as naves cretenses para impedir a perseguição; e Demon (44)
afirma que foi morto Tauro, o general de Mmos, no porto, com-
(39) Festa dos pilotos, instituída por Teseu.
(40) Edifício onde se celebram as assembléias de magistrados.
(41) Abril-maio.
(42) Ou do macho caprino.
(43) Historiador grego do século V a. C.
(44) Démon de Cirene. Ignora-se a época em que viveu.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 188
batendo por mar com Teseu, na sua chegada. Mas Filócoro no»
deixou escrito que, celebrando Minos combate solene* olhava
com precaução a crença de que Tauro havia de vencê-los a to­
dos, porque a êste era odioso seu poder, por causa de seu ca­
ráter, e dizia-se que tinha amores com Pasífaa, pelo que, de­
sejando, ardentemente, lutar, Teseu veio a ter com êle, Minos.
Era costume em Creta as mulheres presenciarem os combates,
e assistindo a êste, Ariadna, enamorou-se logo de Teseu e fi­
cou encantada ao ver como vencia a todos. Contando, também»
Minos com que tivera vencido e humilhado a Tauros, entregou
a Teseu os mancebos e aboliu o tributo da cidade de Atenas.
Mas êstes fatos são referidos de um modo particular e com
maior extensão por Cleidemo (45); que aceitando a origem de
cima, diz que era estatuto comum dos gregos que nenhuma nave
se fizesse ao mar, em nenhum caso, com mais de cinco homens;;
e somente Jason (46), que mandava a nave Argos, podia na­
vegar fora desta regra para acabar com os piratas. Fugiu
Dédalo (47) de Creta para Atenas num barco; e vendo Mino»
em seu encalço, com naves maiores, em contravenção dos esta­
tutos, foi por uma tempestade arrojado à Sicília, e ali termi­
nou seus dias. Seu filho Deucalião, que não estava bem com
os atenienses, mandou pedir-lhes que lhe entregassem Dédalo*
ameaçando matar os jovens que Minos havia recebido como
reféns. Teseu respondeu-lhe brandamente, escusando-se que
Dédalo era seu primo e de sua própria linhagem, por ser sua
mãe Mérope a de Erecteu; mas tratou de equipamento arma­
do, parte no bairro dos tumátidas, longe do caminho público*
e parte ém Trecene, por meio de Piteu, porque queria que não
se descobrisse. Assim, quando estava pronto, levantou velae
levando Dédalo e os outros desterrados de Creta por caudilhos,
sem que ninguém tivesse dêle notícias, imaginando os cretenses*
que eram naves amigas. Apoderou-se do porto e passou, pron­
tamente, à cidade de Cnoso, onde, travando luta às portas do
Labirinto, deu morte a Deucalião e seus guardas. Ariadna en­
carregou-se das negociações, e fêz um tratado, pelo qual rece­
beu os jovens e se estabeleceu amizade entre os de Creta e
Atenas, com juramento de não tornarem à guerra.
(45) Trata-se, ao que parece, de um escritor muito antigo que
escreveu sôbre as plantas, a quem Plutarco cita também noutra obra
sua.
(46) Chefe da expedição dos Argonautas, de quem se falou já
anteriormente.
(47) Arquiteto grego, construtor do Labirinto.
134 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

XX — A respeito dêsses acontecimentos e de Ariadna cor­


rem outras versões, nas quais nada há de certo, nem averigua­
do, porque uns dizem que com um laço se suicidou, vendo-se
abandonada por Teseu; outros que, conduzida a Naxos pelos
marinheiros, ajuntou-se com Onaro, sacerdote de Baco, depois
que Teseu a deixou por outro amor.
De Egle Panopeide
O amor intolerável o entristecia.
Isto se dizia num verso de Hesíodo, o que Heréias Megarense
(48) afirma haver sido suprimido por Pisístrato, assim como,
pelo contrário, acrescenta na Nekya, o epicédio de Homero:
Teseu e Piritoo,
ínclitos filhos dos sacros deuses (49).
um e outro para lisonjear os atenienses. Outros querem que
de Teseu fossem filhos Enópio e Estáfilo; e dêste número é
íon de Quios (50), o qual diz de sua pátria:
Fundou-a Enópio, filho de Teseu.
O que nesta matéria referem como mais corrente os mitó-
logos anda, como costuma dizer-se, na boca de todos; mas Péon
de Amatúsio (51) fêz um tratado particular, no qual consta
que Teseu foi arrojado pela tempestade em Chipre, quando le­
vava consigo Ariadna, que estava grávida, a qual chegou muito
desgostosa, porque ficou em terra só (pois Teseu se fêz nova­
mente ao mar em socorro à nave); que as mulheres da terra
encarregaram-se dela e a assistiram, estando muito desanimada
por ver-se sozinha; tanto que escreveram cartas como se fos­
sem de Teseu, acompanhando-a em seus sofrimentos e dando-
-lhe todo auxílio; mas por fim morreu, e lhe deram sepultura,
sem que houvesse dado nascimento; voltando Teseu, sentiu pro­
fundamente, e, entregando uma quantia aos habitantes, orde-
nou-lhes que sacrificassem algo em honra de Ariadna, e enco­
mendou a escultura de dois pequenos ídolos, um de prata e
(48) Heréias, ou melhor Herágones. Escritor grego do século
III a. C.
(49) Odisséia. XI. 630.
(50) Trágico grego. Viveu no tempo de Péricles.
(51) Autor, ao que parece, de umas aventuras galantes da cida­
de de Amatonta (Chipre).
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 135

outro de bronze; que no sacrifício, que é no dia 2 do mês Gor-


pieo (52), um dos mancebos, deitado, grita e imita as mulheres
que estão com dores de parto; e, finalmente, que os amatúsios,
no lugar que mostram sua sepultura, chamam a selva de Vênus
Ariadna. Alguns, de Naxos, fazem também sua particular his­
tória. Dizem que houve dois Minos, duas Ariadnas, das quais
uma casou com Baco de Naxos, e dela nasceu Estáfilo; a outra,
mais moderna, roubada por Teseu, abandonada por êle, veio de­
pois para Naxos e com ela sua ama, chamada Corcina, cujo
sepulcro ainda se mostra; que também Ariadna morreu ali e
que se lhe festeja com alegria e com jogos, e os sacrifícios que
se fazem à segunda vão misturados com pranto e com soluços.
XXI — Saindo de Creta, navegou para Delos; fazendo sa­
crifício ao deus e pendurando em seu templo a relíquia ama-
tória, que recebeu de Ariadna, dançou com os outros mancebos
uma dança, a qual se diz que ainda conservam os Délios, que
representa as reviravoltas e saídas do Labirinto, que se executa
a um certo som com enlaces e desenlaces, por aquela forma. A
êste gênero de dança, segundo Dicearco (52), chamam "grou”.
Dançou-a Teseu ao redor do altar, chamando Querafona, por
haver-se formado de cornos, todos do lado esquerdo (54). Di­
zem que também celebrou combates em Delos, e que, pela pri­
meira vez, deram-se, então, palmas aos vencedores.
XXII — Chegados, à vista de Ática, esqueceu-se o próprio
Teseu e também o comandante, de arvorar a vela branca, com
a qual anunciariam a Egeu que regressavam salvos. Êste, de­
sesperado, arrojou-se de um precipício ao mar e acabou assim
com a vida. Ao chegar ao porto, Teseu ofereceu aos deuses,
em Falero, os sacrifícios que lhes havia votado ao embarcar-se,
e enviou à cidade um mensageiro com a nova de seu feliz re­
torno. Encontrou êste a muitos de luto pela morte do rei;
mas, outros, como era justo, muito alegres e dispostos a rego­
zijar-se com êles, a oferecer-lhes coroas por sua volta. Rece­
bendo, pois, as coroas, adornou com elas seu caduceu, e vol­
tando ao mar, quando ainda Teseu não havia terminado as li-
bações, ficou na parte de fora, não querendo impedir o sacri­
fício; mas, acabado êste, deu a notícia da morte de Egeu. Com
pranto e aflição se apressaram a subir para a cidade. Daqui
(52) Corresponde a Setembro.
(53) Nasceu em Messina. Foi discípulo de Aristóteles e escreveu
várias obras que gozaram de grande popularidade.
(54) Êste altar era considerado como uma das sete maravilhas do
mundo.
186 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

vem a origem de que, nas festas oscofórias (55), adorna-se com


coroa, não o mensageiro, mas o caduceu, e que os circunstantes
exclamam: ea! ea! ai! ai!, durante as libações; os primeiros
são os que cantam vitória e os outros manifestam pasmo e afli­
ção. Depois de sepultar o pai, cumpriu Teseu seu voto a Apoio,
no dia 7 do mês Paunepsion (56), porque neste, subiram salvos
do mar à cidade. O costume de cozinhar os legumes neste dia
dizem que se faz porque, salvos, recolheram o que lhes restava
dos víveres e cozeram tudo numa vasilha, e comeram juntos;
e leva-se também a Eiresíone (isto é, o ramo de oliveira ador­
nado de pedaços de lã), como se fêz com a oferenda, pendu­
rando nêle as primícias de diversos frutos, em sinal de haver
cessado, na Ática, a esterilidade, cantando êstes versos:
Levas figos, ó ramo! e macias tortas;
em escudela mel, azeite rico;
e para que embriagado teu sono durmas,
em funda taça transbordante vinho.
Ainda alguns afirmam que estas cerimônias se fazem em me­
mória dos heráclitas, e foram dêste modo mantidas pelos ate­
nienses.
XXIII — A nave de trinta remos, na qual, com os mance-
bos, navegou Teseu, voltando a salvo, conservaram-na os ate­
nienses, até o tempo de Demétrio Faléreo (57), substituindo-
-lhe a madeira gasta por outra. Êste fato deu temaao argu­
mento chamado pelos filósofos aumentatur, que serve para os
campos opostos, quando negam ou procuram provar a troca ou
não da nave, provando uns que é a mesma, e, outros, que não
é a mesma. Foram celebradas as festas, por ordem de Teseu,
na ocasião em que não levava consigo as donzelas sorteadas.
Dentre os jovens seus amigos, havia dois demasiado ternos, de
aspecto feminino, embora de ânimo valente e arrojados. Com
banhos quentes, vida caseira, adornos e enfeites como usam as
mulheres no cabelo e delgados de corpo, fê-los tomar outra for­
ma. Ensinando-lhes, também, a voz, o procedimento e o an­
dar das mulheres, ocultando-lhes a identidade, que a ninguém
revelara, juntou-os ao grupo das donzelas. À volta, andou em
pompa pela cidade, levando consigo os mancebos. Com o mes-
(55) Veja-se explicação destas festas pelo próprio Plutarco mais
adiante.
(56) Outubro-novembro.
(57) Governou os atenienses durante dez anos no século III a. C.
IIERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 137
mo trajo agora se vestem os que carregam os ramos com fru­
tos, e os conduzem em veneração a Baco e Ariadna, para se­
guir a fábula, ou, talvez, pelo fato de verificar-se o retorno,
na entrada do outono; e as dipnófaras, ou serventes do ban­
quete, aproximam-se e participam do sacrifício, imitando as
mães dos sorteados, que iam e voltavam, trazendo-lhes pesca­
dos e variedades de pratos. Conta-se, do mesmo modo, fábu­
las, por que se diz que aquelas mais conversavam e animavam
com conselhos os filhos, o que também é referido por Démon.
Erigiu-se, além disso, um pequeno templo, e determinou-se
que, pelas casas, sujeitas ao tributo, se lhe pagassem os gas­
tos de um sacrifício em sua honra. Os fitálidas obtiveram o
encargo do sacrifício, em recompensa da hospitalidade que lhe
haviam dado.
XXIV — Depois da morte de Egeu, concebeu Teseu um
grande e admirável empreendimento, que foi o de reunir em
uma só cidade a todos os que habitavam a Ática, fazendo pa­
recer um só povo. Apesar da grande discórdia que os separava
e das guerras que entre si faziam, indo êle de uns a outros,
persuadiu-os, tanto os particulares como os pobres, os quais
cederam fàcilmente às suas exortações. A outros, porém, foi-
-lhe preciso propor um govêrno não monárquico, mas popular,
no qual não lhe coubesse mais do que o mandato da guerra e
a custódia das leis, comprometendo-se a manter a igualdade,
em tudo o mais. Uns concordaram por persuasão, enquanto
outros, temendo seu poder, que era grande, e sua resolução,
tiveram por melhor partido ceder, como convencidos, do que
serem obrigados pela força a aceitar.
Dissolvendo, pois, as presidências e os senados particula­
res, instituindo uma presidência e um senado para todos, como
agora se pratica, à cidade, chamou-a Atenas, e estabeleceu,
também, o sacrifício comum, chamado panatenéia (58). Fêz
do mesmo modo o sacrifício da reunião chamada metécias (59)
no dia 10 do mês Hecatombeon (60), que ainda se celebra.
Renunciando, portanto, a autoridade real, como se havia de­
cidido, ia ordenando o govêrno, principiando pelos deuses; por-
(58) Esta festa se celebrava, primeiro em Atenas, com o nome de
Atenéias, tratando-se sòmente de uma festa particular. Teseu tomou-a
comum a todos os habitantes da Grécia, pelo que, desde então, se cha­
mou Panatenéias.
(59) Reunião ou habitação comum.
(60) Julho-agôsto.
138 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

que lhe veio de Delfos, consultando o deus, êste oráculo a


respeito da cidade:
Egeide Teseu, procriado
Da Piteide Etra! Meu alto pai
à tua cidade a sorte vinculou
e à prosperidade de mü cidades.
De ânimo nos trabalhos não descaias,
que, qual odre flutuante,
inteiro e são sulcarás os mares.
Que vem a ser o mesmo que, segundo se diz, profetizou,
mais adiante, a Sibila para a cidade, dizendo:
De odre a semelhança
te molharás; afundar-te não é possível.
XXV — Desejando ampliar todavia as lindes da cidade,
admitia a todos na participação dos mesmos direitos, e aquêle
pregão solene: "Vinde a nós, todos, ó povo!” diz-se que é de
Teseu, que se propunha estabelecer uma junta geral de todos.
Contudo, não deixou de considerar que da reunião e mistura
da multidão, sem discernimento, resultaria uma democracia de­
sordenada. Assim foi o primeiro que formou a distinção de
patrícios, lavradores e artesãos, concedendo, então, aos patrí­
cios o ministério das coisas divinas, e que dêles se escolhessem
os Arcontes, os mestres das leis e intérpretes das coisas san­
tas e sagradas. Nos outros, pareceu-lhe quese mantinha a
igualdade proposta, pois se os patrícios sobressaíam em razão
da utilidade, e os artesãos, em razão do número. De que foi
o primeiro que tendeu para a multidão, como expõe Aristó­
teles, e desistiu de reinar, parece que também Homero nos
dá testemunho, nomeando no catálogo das naves, pelo nome de
Atenas, apenas o povo (61). Cunhou também moeda, gravan­
do nela a figura de um boi, ou devido ao touro Maratônio, ou
pelo general de Minos, ou com o intuito de fazer os cidadãos
voltarem-se para a agricultura, provindo daí o dito de: "vale
cem bois”, "vale dez bois”. Havendo acrescentado à Ática,
com toda segurança, o território de Mégara, levantou no istmo
aquela celebrada coluna, pondo nos dois trímetros as inscrições
em que notavam a divisão dos limites, das quais a da parte
do oriente dizia:
(61) Ilíada, II, 547.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 139
Não é já Peloponeso, mas Jônia;
e a do ocidente:
Isto é Peloponeso, não Jônia.
Instituiu o primeiro, combates solenes, por imitação de Hér­
cules; aspirando à honra, de que assim como por aquêle ce­
lebravam os gregos os jogos olímpicos, em honra de Júpiter,
celebrassem por êle os ístmicos, em honra a Neptuno, pois a
solenidade estabelecida ali anteriormente, em honra de Meli-
certe (62), se celebrava à noite, e assim parecia mais preli­
minares que espetáculo ou concurso geral. Alguns afirmam
que os jogos ístmicos se estabeleceram em memória de Escí-
ron, pois, vendo-se Teseu obrigado a purificar-se de sua morte
por causa do parentesco, porque Escíron era filho de Caneto
e Heníoca, filha de Piteu; mas outros dizem ser Sínis, e não
êste, e que por Sínis, e não por êle, instituiu Teseu os jogos.
Dispôs igualmente, e combinou com os de Corinto, que
aos atenienses que concorressem aos jogos tivessem lugares,
tantos que igualassem em extensão a vela da nave da Teoria
(63), segundo é referido por Helânico e Andrônio de Halicar-
nasso (64).
XXVI — Viajou para Ponto Euxino e outros lugares, se­
gundo Filócolo, militando com Hércules contra as Amazonas;
recebeu Antíope, sua rainha, como prêmio de sua coragem;
mas, outros, entre êles Ferécides, Helânico e Herodoro (65)
dizem que foi além, quando Teseu fêz esta navegação, com
tropas sob seu comando, e tomou como cativa a Antíope, o que
é mais verossímil, porque não consta de nenhum outro que le­
vasse cativa uma Amazona. Bion (66) diz que, ardilosamente,
apoderou-se desta, e logo se afastou, porque sendo as Amazo­
nas, por índole, não desafectas aos varões, não fugiram, quan-
(62) Estas cerimônias fúnebres, em honra de Melicerte, foram
instituídas em Corinto por Sísifo. Chamaram-se ístmicas, do istmo de
Peloponeso, onde se celebravam.
(63) Assim se chamava em particular a nave que os atenienses
enviavam todos os anos a Delos, coroada de ramos de oliveira sagra­
da, e na qual ia a representação oficial da festa.
(64) Escritor grego, nascido em Helicamasso. Viveu atá o século
IV a. C.
(65) Escritor contemporâneo de Heródoto.
(66) Autor de uma História de Etiópia.
140 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLE3RE3

do Teseu se apresentou no país, mas que lhe enviaram presen­


tes. Chamando êste e atraindo à nave aquela que òs condu­
zira, logo que a recebeu a bordo, levantou vela. Certo Mene-
crates, que escreveu uma história da cidade de Nicéia em
Bitínia, narra que Teseu, tendo já em seu poder Antíope, de-
teve-se naquela comarca; e como se desse a casualidade, que
servissem com êle, três jovens de Atenas, irmãos, chamados
Euneo, Toante e Soloonte, êste último se enamorou de Antíope,
o que não revelou aos outros, mas somente a um dos amigos.
Confessou-o a Antíope, que repeliu, resolutamente, semelhante
proposta, mas a guardou com prudência, sem contar nada a
Teseu; mas Soloonte, quando se desesperou, lançou-se num rio
e pereceu, e Teseu ao tomar conhecimento do ocorrido com
aquêle jovem, ficou profundamente abatido. Meditando nesse
fato, veic-lhe à memória certo oráculo de Pítia de Delfos, que
lhe ordenava quando, em certa expedição, estivesse demasiado
triste e angustiado, fundasse ali uma cidade, deixando nela por
prefeitos alguns dos que o acompanhassem. De onde resultou
que à cidade fundada deu o nome de Pitópolis, do nome do deus,
e do rio próximo o de Soloonte, em homenagem àquele man-
cebo. A seus irmãos deixou-os como prefeitos e legisladores,
e com êles, também, a Hermo, da classe dos patrícios, em Ate­
nas; daí chamarem a certo lugar casa de Hermes ou Mercúrio
pelos Pitopólitas, que abreviam a segunda sílaba e transferem
ao deus a homenagem feita ao herói.
XXVII — Nesta ocasião, teve lugar a guerra das Amazo­
nas, a qual foi difícil emprêsa, e mais do que de mulheres, por­
que não estariam dentro dos muros, nem a batalha se haveria
dado entre o Pnix ou Foro e o Museu, se para entrar na ci­
dade não tivessem antes subjugado o país. Que atravessassem
o Bósforo lúgubre, no tempo que estava gelado, é difícil de se
acreditar; porém, que tivessem dentro da cidade se confirma
com os próprios nomes dos lugares e sepulturas das que mor­
reram. Por muito tempo, não deram combate os dois exérci­
tos; mas, finalmente, Teseu, tendo oferecido vítimas a Medo,
em obediência a um oráculo, atacou-as, e a batalha se realizou
no mês Roedromion (67), no qual ainda os atenienses fazem
os sacrifícios chamados boedrômios. Cleidemo, querendo dar
conta de tudo, narra que, à esquerda das Amazonas, dirigiu-se
para o lugar que ainda se chama Amazônio, porquanto pela
direita se encaminharam a Pnix, pela parte de Crisa; que os
(.67) Setembro-outubro.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 141

atenienses vieram para o combate do Museu, havendo sepulcros


das que morreram nas imediações da praça, que além do mo­
numento de Calcodonte vêem-se portas chamadas agora Pirai-
cas; de onde foram estas repelidas até as Eumênides, cedendo
o campo de combate às mulheres, mas que, sobrevindo depois
pelo Palácio, o Ardeto e o Liceu, repeliram, à direita, com mor­
tes para grande número delas; e que no quarto mês fêz-se um
tratado, por mediação de Hipólita, porque Cleidemo chama Hi-
pólita àquela com quem havia casado Teseu, e não Antíope.
Outros dizem que esta Amazona havia perecido lutando em
companhia de Teseu, transpassada por outra Amazona, cha­
mada Molpádia, com uma seta; que a coluna que há junto ao
templo da Terra Olímpica (68) foi feita em memória desta,
não sendo de estranhar que a respeito de coisas tão antigas,
a história vacile, porque também comenta que as Amazonas
feridas foram enviadas, ocultamente, por Antíope ou Cálcis,
onde tiveram auxílio, e que algumas foram ali sepultadas no
lugar que ainda hoje se chama Amazônio. De que a guerra
acabou com um tratado, dão testemunho à denominação de um
lugar junto ao Teséon, que pelo juramento, recebeu o nome de
Horcomósio, como também o sacrifício que, desde a antigüi­
dade, antes das festas de Teseu, se faz às Amazonas. Os de
Mégara apresentam também um sepulcro das Amazonas, no
seu território, que vai da praça ao lugar chamado Rous (70) ;
é um edifício em forma de losango. Diz-se que, em Querônea,
morreram outras e foram sepultadas, junto ao rio, que antes
se chamava Termodonte e agora Aimon, do que tratamos na
Vida de Demóstenes. Também, pela Tessália, vê-se que não
passaram sem combate as Amazonas, pois se mostram também
sepulcros de algumas até Escotúsia e as Cinocéfalas.
XXVIII — Sobre as Amazonas é o que há digno de me­
mória, pois o que escreveu o poeta autor da Teseida (71) so­
bre a sublevação daquelas, fazendo que Antíope se voltasse con­
tra Teseu, porque desposava Fedra, que as Amazonas a vin­
gassem e Hércules as vencesse, manifestamente, parece fábula.
Morta Antíope, casou com Fedra, tendo tido de Antíope um
filho, Hipólito, ou, como disse Píndaro, Demofonte. E os in­
fortúnios que por ela e pelo filho se lhe sobrevieram, como a
(68) Assim chama Plutarco a Lua.
(69) Quer dizer, juramento de aliança.
(70) A “corrente” de água que noutro tempo baixava da monta­
nha para a cidade.
(71) Poema de autor desconhecido, que contém a vida de Teseu.
142 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

história em nada contradiz as tragédias, temos de supor que


sucederam como todos os poetas o narram.
XXIX — Correm ainda outras narrações, que não apare­
cem acêrca de outros casamentos de Teseu, que nem tiveram
justos princípios nem felizes fins, porque se conta que roubou
uma donzela chamada Anajo, de Trecene, e que, tendo dado
morte a Sínis e a Cércion, ajuntou-se com as filhas destes; que
se casou com Peribéia, mãe de Ajax, além de Ferebéia e Iopa,
de íficles. Por outro lado, o haver-se enamorado de Egle, de
Panopeo, é a causa que dão, como já dissemos, para o abandono
de Ariadna, tão feio e injusto. Finalmente, fala-se do rapto
de Helena, que atraiu a guerra em Ática, que, para o próprio
Teseu terminou em destêrro e perdição, sôbre o que falaremos
depois. No tempo em que os varões tiveram oportunidades
várias de dar provas de seu esforço, é de opinião Herodoro
de que em nenhuma tomou parte Teseu, mas tão-sòmente com
os Lápitas, na guerra contra os Centauros; mas, para isso, ou­
tros afirmam que ainda com Jasão passou a Colcos; e com
Meleagro, tomou parte na perseguição e morte do javali; daí
o provérbio: Nada sem Teseu; que êste, sem necessitar de
ninguém que o auxiliasse, havia acabado muitos e assinalados
combates, e a expressão outro Hércules teria assim adquirido
propriedade. Auxiliou, também, a Adrasto a recobrar os ca­
dáveres dos que morreram sob o castelo Cadmeu (72), não
como o narra Eurípides em sua tragédia (73), vencendo na
batalha aos Tebanos, mas por meio da persuasão e um tratado,
porque assim é como o contam muitos, dizendo Filócoro que
êste foi o primeiro exemplar de tratado feito para recolher os
cadáveres. Contudo, na vida de Hércules está escrito haver
sido êste o primeiro que entregou os mortos a seus inimigos.
Mostram-se os sepulcros de outros, em Eleutérias, e de chefes,
em Eleusina, prestando nisto Teseu um obséquio a Adrasto.
Concorda com estas afirmações a tragédia "As suplicantes”,
de Eurípedes; a dos "Eleusínios” (74), de Ésquilo, na que se
introduz Teseu realizando tais atos.
XXX — Quanto à sua amizade com Pirotôo, diz-se que se
conciliou desta maneira: tinha Teseu grande renome de força
e de valor; querendo, pois, Pirotôo tomar disso conhecimento
(72) Diante de Tebas.
(73) Na sua tragédia “As Suplicantes”.
(74) Não se conserva.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 143
e provar-lhe, levou de Maratona os bois que ali havia, e saben­
do que alguém o perseguia armado, não fugiu, mas, ao contrá­
rio, retrocedeu, e foi-lhe ao encontro. Logo que se avistaram,
ambos admiraram a beleza e resolução simultâneas, e travaram
combate; mas Pirotôo, estendendo primeiro a mão, colocou-a
na de Teseu, pedindo que fosse juiz daquele roubo, porque, de
boa vontade, se sujeitaria à pena que êle determinasse. Teseu
dispensou-lhe a pena, e convidou-o para ser amigo e aliado, e
juraram amizade um ao outro. Casou-se logo depois Pirotôo
com Deidâmia, e convidou Teseu para assistir ao casamento,
reconhecer aquêle povo e se unir aos Lápitas. Aconteceu que,
também, foram convidados ao banquete os Centauros, os quais,
tornaram-se insolentes e, depois, embriagados, quiseram tomar
as mulheres; os Lápitas vingaram-se, dando-lhes morte, ven-
cendo-os em combate, arrojaram-nos para fora do país, auxi­
liados por Teseu.
Heródoto atesta que isto não se passou assim, mas que,
declarada a guerra, Teseu correu a auxiliar os Lápitas; e, en­
tão, pela primeira vez, conheceu de vista a Hércules, tendo-o
convidado a ir encontrar-se com êle em Traquina (75), quando
já repousava de suas peregrinações e trabalhos, tendo se reali­
zado o encontro com muita honra e aprêço, com grandes elo­
gios de ambas as partes. Contudo, maior atenção deve-se dar
aos que afirmam que se haviam encontrado outras vêzes, e que
a iniciação de Hércules fêz-se por pedido de Teseu, também
a purificação que a precedeu, que foi necessária, devido a al­
gumas ações praticadas acidentalmente.
XXXI — Tendo já cinqüenta anos, como diz Helênico,
raptou Helena ainda muito jovem; por isso alguns afirmam
ser a mais grave de todas, mas alguns dizem não ter sido Teseu
quem raptou Helena, mas, sim, Idas e Lyoceu, que a entrega­
ram a Teseu, para guardá-la. Êle a reteve e não quis resti-
tuí-la aos Dióscuros, que a reclamavam; ou de outro modo, que
entregando-a Tíndaro, por temer Enársforo de Hipocoonte, que
a queria à força, entregou Helena, ainda menina. Todavia,
o mais verossímil e confirmado com mais testemunho é o se­
guinte: Passaram Teseu e Pirotôo por Esparta, e raptando
esta donzela, quando executava uma dança no templo de Diana
Ortia, fugiram; e como, os que foram enviados em sua perse-
(75) Cidade da Trácia.
(76) Castor e Pólux, irmãos de Helena.
144 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

guição, só tivessem alcançado pouco além de Tegéia, livres já


do Medo e do Peloponeso, fizeram um pacto de que ao que lhe
tocasse a sorte receberia Helena por mulher.
Lançada a sorte, coube a Teseu, que, aguardando que ela
estivesse em idade de casar-se, levou-a a Afidnas (77), onde,
deixando-a com sua mãe Etra, entregou-a a um afidnense, seu
amigo, encarregando-o que a mantivesse em segurança e a
guardasse de todos os outros. Dando, depois, sua ajuda a Pi-
rotôo, dirigiu-se com êle ao Épiro, em busca da filha de Aidô-
neo, rei dos Molossos, o qual, dando à sua mulher o nome de
Prosérpina, e à sua filha, o de Coré, e o de Cérbero a seu
cão, havia decretado que os pretendentes de sua filha comba­
tessem com êste e recebê-la-ia quem o vencesse. Entretanto,
ao tomar conhecimento de que êstes não vinham como preten­
dentes, e sim, como raptores, prendeu-os; Pirotôo foi despeda­
çado pelo cão; e Teseu foi feito prisioneiro.
XXXII — Nesta ocasião, Menesteu, filho de Peteu, que o
foi de Orneu, e êste de Erecteu, sendo, segundo se conta, o
primeiro que concebeu o plano de fazer-se inteiramente popu­
lar, e falar, segundo o gosto da multidão, sublevou e irritou os
principais, que já não se acomodavam ao comando de Teseu,
dizendo que, em reuni-los todos numa cidade, só havia tirado
de cada um dos patrícios a independência e a autoridade pró­
pria, para sujeitá-los e escravizá-los a todos; indispôs, tam­
bém, e alvoroçou aos outros, ao dizer-lhes que lhes havia posto
ante os oihos, como um sonho, a liberdade, enquanto, realmente,
havia privado todos de suas pátrias e tempios, para que, no
lugar de muitos justos e legítimos soberanos, só acatassem por
senhor a um estrangeiro. Enquanto fazia essas intrigas, che­
gou a notícia da guerra, com a vinda dos Tindáridas, fato que
o auxiliou bastante, havendo quem dissesse que vieram, preci­
samente, por instigação dêle. A princípio, nenhuma hostilida­
de cometeram; somente reclamavam a sua irmã Helena; mas,
respondendo-lhes, em nome de todos da cidade, que nem a ti­
nham nem sabiam onde estava, trataram de recorrer às armas;
então, Academo revelou-lhes que estava oculta, em Afidnas,
cuja informação não se sabe como a obteve. Por isso sempre
íhe prestaram honras os Tindáricos, e após, em muitas ocasiões
em que os Lacedemônios fizeram incursão na Ática, arruinando
(77) Perto de Atenas.
Ruínas de um templo grego
Ânfora grega
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 145
o solo estrangeiro, rçspeitando, porém, a Academia (78), em
honra de Academo; mas Dicearco narra que de Arcádia vieram
no exército, com os Tindáridas, Equedemo e Marato, e que, do
primeiro, tomou o nome a Academia e o povo de Maraton do
segundo, que, voluntàriamente, se entregou à morte, conforme
certo oráculo. Dirigindo-se, pois, a Afidnas, e tomando-a pelas
armas, destruíram-na. Afirmam que ali pereceu Alico, filho
de Escirão, que combatia com os Dióscuros, pelo que, em ter­
ras de Mégara, chamou-se Alico certo lugar, no qual, foi en­
terrado o cadáver; porém Héreas refere que Alico foi morto
em Afidnas, em mãos do próprio Teseu, dando por prova aquê-
les versos relativos ao próprio Alico.
Ao de Afidnas no extenso campo,
Teseu, por causa da loura Helena,
em renhido combate deu a morte;
pois não é razoável que, estando presente Teseu, se escravi­
zasse sua mãe e se tomasse Afidnas.
XXXIII — Tomada, portanto, Afidnas, e achando-se re­
ceosos os cidadãos de Atenas, persuadiu Menesteu o povo para
que admitisse na cidade e obsequiasse os Tindáridas, tomados
como benfeitores e redentores dos outros; o que está de acordo
com a conduta que tiveram, porque sempre senhores de tudo,
nenhuma outra coisa exigiram, senão que recebessem honras
como as prestadas a Hércules, do que tinham direito. Tribu-
tando-se-mes honras como a deuses, sendo saudados como se­
nhores com a palavra "Anaces”, ou pela moderação com que
procederam, ou pelo seu cuidado e esmero que ninguém pade­
cesse, por manter dentro dos muros tão grande exército; por­
que êsxe têrmo designa os que cuidam e protegem, ou talvez,
por isso, se aplica aos reis, embora haja os que denominam
“Anaces* aos Dióscuros, pelo aparecimento de seu signo ce­
leste, de onde derivam as palavras que os atenienses empregam
para indicar tudo o que se situa no alto.
XXXIV — Referem que Etra, a mãe de Teseu, como es­
crava, foi levada à Lacedemônia, e dali a Tróia com Helena
A Piteide Etra, com Climene,
a dos belos e rasgados olhos (79).
(78) Famoso hôrto e jardim consagrado a Atenas. Por suas ave­
nidas costumava passear Platão com seus discípulos.
(79) lixada, III, 144.
146 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Porém, outros, não obstante, não aceitam o verso, ou a fábula


de Munico, e dizem haver tido Laodice, ocultamente, de Demo-
fonte, e haver sido criado por Etra, em Tróia. De outra par­
te, Istro (80), no livro décimo-terceiro das "Coisas Áticas”,
faz uma narração particular e bem diversa desta, fundado no
que afirmavam alguns que Alexandre, o que em Tessália se
chama Páris, havia sido vencido por Aquiles e Pátroclo, perto
de Esparqueu, em Tessália; e que Heitor, tendo tomado a ci­
dade dos Trecênios, havia-a destruído e levado consigo Etra,
que ali fora escravizada; mas tudo encerra bastante obscu­
ridade.
XXXV — Hospedando, depois, o rei dos Molossos, Aidôneu,
a Hércules, e conversando, casualmente, do ocorrido com Teseu e
Pirotôo, assim como do que haviam vindo executar, fazendo-lhe
menção do castigo que padeceram, Hércules desgostou-se por
ter sido um dêles morto, ignominiosamente, e estar o outro no
mesmo caminho; a respeito de Pirotôo nada podia, contudo,
fazer; mas quanto a Teseu, pediu-lhe, rogou-lhe, como graça
especial, que lhe desse liberdade. Concedeu-a, Aidôneu, e solto
Teseu retornou a Atenas, onde não haviam sido de todo sub­
jugados seus amigos; e todos os templos que haviam sido le­
vantados em sua honra, todos os consagrou a Hércules, e os
chamou Hércules em vez de Teseu, com exceção somente de
quatro, segundo o testemunho de Dilócoro. Querendo voltar
novamente a mandar e pôr-se à frente do govêrno, como antes,
fêz grandes revoltas, porque aquêles que o odiavam, agora,
além do ódio antigo não mais o temiam, enquanto que a maior
parte do povo, encontrou-a corrompida, querendo que se lhe
adulassem, em vez de executar submissamente o que era pres­
crito. Intentou, pois, usar da força; porém a multidão se opôs
e se sublevou; finalmente, desesperado de sair vencedor, en­
viou os filhos a Eubéia, para Elefenor, de Calcodonte, e êle
próprio, fazendo solenes imprecações, desde o Gargueto contra
os atenienses, no lugar, onde está agora o Aratério (81), par­
tiu para Esciro, onde julgava ter amigos e certos bens de fa­
mília. Reinava, então, em Esciro, Lacomedes; dirigiu-se, pois,
a êle, e tratou de reaver seus terrenos, porque queria estabe-
lecer-se ali, embora digam que lhes rogou lhe dessem ajuda
contra os atenienses.
(80) Historiador grego da segunda metade do século III a, C.
(81) O lugar das imprecações.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 147
Mas, Licômedes, temendo a grande fama de tal varão, ou
querendo agradar Menesteu, levou-o para o lugar mais alto com
o pretexto de mostrar-lhe os terrenos e, de lá de cima, empur­
rou-o, precipitando-o no abismo. Também há quem diga que
resvalou e caiu ao dar um passeio, após comer, como era seu
costume. Ninguém procurou saber do real sucedido e após sua
morte, ficou reinando em Atenas, Menesteu; e os filhos de
Teseu, educados por outras pessoas, foram com Elefenor na
expedição de Tróia; mas, tendo falecido Menesteu, quando vol­
taram, recobraram o reino. Mais tarde, entre outras causas
que levaram os atenienses a venerar Teseu como um herói, con­
correu o fato de que, muitos dos que em Maraton lutaram con­
tra os Medos, lhes pareceu verem a sombra de Teseu, que, ar­
mada diante dêles, perseguia os bárbaros.
XXXVI — Depois da guerra Médica, sendo arconte Fédon,
consultaram os atenienses o oráculo, e respondeu a Pítia que
recolhessem os ossos de Teseu, que os conservassem e guardas­
sem com veneração. Havia dificuldade em reconhecê-los e, mais
ainda em descobrir um sepulcro, dada a insociabilidade e aspe­
reza dos Dólopos, habitantes da ilha. Porém, Cimon, após con-
quistá-la, como relata em sua Vida? e alimentando o desejo de
fazer tal achado, aconteceu que uma águia começou a escavar
com o bico e revolver com as unhas um terreno um tanto eleva-
diço, e cogitando nisso, como por divino impulso, caiu no mes­
mo lugar. Encontrou a sepultura de um corpo maior do que
o comum, e, a seu lado, uma lança de bronze e uma espada.
Levadas estas por Cimon em sua nave, satisfeitos os atenienses,
receberam-no com grandes pompas e sacrifícios, como se o pró­
prio Teseu entrasse na cidade, sendo depositado perto do Gi­
násio; e seu sepulcro converte-se em asilo para os escravos e
miseráveis, que se recolhem a êle, por temor dos poderosos, em
memória de Teseu que se constitui um protetor e atendendo
com humanidade aos rogos dos que pediam auxílio. Celebram
os atenienses o grande sacrifício no dia 8, do mês Puanepsion
(82), porque foi a data em que voltou de Creta com os man­
cebos ; e,' ainda, nos outros dias 8, rendem-lhe culto, ou porque
de Trecene chegou, a primeira vez em 8 do mês Hecatombeon

(82) Outubro -novembro.


ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

(83), segundo conta Diódoro, o Geógrafo (84); ou julgando


que êste número convém, mais que qualquer outro, a quem era
considerado filho de Netuno, porque também veneram a êste
nos dias 8; e* sendo êste iiúmero, o primeiro cubo do primeiro
par, e o duplo do primeiro quadrado, tem, em si, como própria,
a permanência e a imobilidade daquele deus, que tem os nomes
de Asfálio e Gaieuco (85).

(83) Julho-agôsto.
(84) Autor de uma obra sôbre os monumentos fúnebres, citada
na vida de Temístocles.
(85) Estas duas palavras significam “que segura e firma a Terra”.
EÔMULO

r
AS ORIGENS DE ROMA

José Pijoan

Enquanto na Itália Meridional e na Sicília principiavam


as colônias gregas, dando a impressão de que toda a Itália
estivesse destinada a ser uma Magna Grécia, no centro da pe­
nínsula, ocorria um fato, em aparência, insignificante, mas que,
por certo, iria ter conseqüências enormes para a história do
mundo. Era o dia 21 de abril do ano 752 a. C., segundo os
cálculos de Catão, ou o 753, segundo os cálculos de Varrão,
quando um viajante, seguido por um bando de emigrados ou
fugitivos, procedia à fundação de uma cidade, — Roma — na
colina onde após se levantou o bairro Palatino. Temos de ima­
ginar, iluminado pelo sol esplendente da primavera do Lácio,
o grupo de caminhantes (em andrajos), homens, mulheres e
crianças, que em silêncio seguiam o fundador, quando êste can­
tando, abria com o arado o sulco que assinalava o pomoerium
ou contorno da nova cidade, cujos gloriosos destinos ninguém
poderia, então, predizer. O lugar entretanto não favorecia.
Pois desde a colina, onde ia estender-se o bairro de cabanas da
primitiva Roma, via-se a planície solitária, onde a população
sofria de impaludismo, de tal maneira que fazia do Lácio
um deserto verde, viam-se as azuis silhuetas dos montes Alba-
nos; o preguiçoso rio torcer seu curso para chegar ao mar e
ao Norte, os cumes nevados, em pleno mês de abril, dos Ape-
ninos. . . tudo, muito belo, magnificente, contudo nada que pu­
desse ter um caráter promissor.
Ali não havia nem minas ou bosques; nem uma popula­
ção nativa, com a qual pudesse traficar; não era aquêle lugar
um vau único no rio, onde se encontrasse um lugar único, que
pudesse dar guarida às embarcações. . . E, não obstante, o
fundador, fiel a um rito que revela uma antiga cultura, prin-
152 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

cipiava abrindo o sulco sagrado do perímetro da Roma an­


tiga, com um arado que tinha sua ponta de cobre, relíquia de
tempos longínquos. Ia puxado por um boi e uma vaca, intei­
ramente brancos, e se detinha, para indicar os lugares onde
havia de estar cada porta, ou porta da cidade. Além de assi­
nalar o perímetro da cidade, o fundador e seus companheiros,
abriram no centro da meseta da colina o famoso mundus ou
lugar sagrado, onde se depositou a gleba que tinham trazido
da terra natal e vários objetos, de uso diário. Depois, a festa,
os cantos e danças duraram, provàvelmente, toda a noite; pela
menos, os romanos comemoravam cada ano a purificação do
solo da primitiva Roma com as chamadas festas lupercales, ou
dos lobos, por ir os confrades vestidos com peles de lobo, como
nas danças totêmicas pré-históricas, e cada ano se efetuavam
as danças saltantes, nas quais outros confrades repetiam os sal­
tos do fogo, do dia da fundaqão, feitos para aplacar, portanto,
o gênio ou divindade Pala, que habitava o monte Palatino, an­
tes de estabelecer-se ali uma cidade.
A tradição destas festas e a lembrança conservadas até à
época histórica dos detalhes que acompanharam a cerimônia,
apenas permitem duvidar da afirmativa de que Roma foi fun­
dada por Rômulo, seguido de um pequeno grupo de foragidos.
Contudo, estêve em voga há cinqüenta anos duvidar da exis­
tência de Rômulo e da data da fundação de Roma, desprezando
como pura farsa poética as lendas sôbre o fundador e reis que
o sucederam no govêrno. Não vemos razão alguma, atualmen­
te, para contradizer o que consignaram os antigos escritores
do tempo da República, que distavam cêrca de dois ou três sé­
culos do período dos reis.
Rômulo ao morrer, a cidade só ocupava a plataforma da
colina do Palatino, chamada Roma quadrada, pela forma apro­
ximadamente retangular, que tinha o seu perímetro. Restam
ainda relíquias de suas muralhas de pedra, e segundo Tácito
conta, no seu tempo, podia-se ver o recinto quase completo. A
Roma quadrada de Rômulo tinha pelo menos duas portas, pelas
quais, ainda hoje, se sobe ao Palatino: uma é a chamada Porta
mugônia, no lugar onde a vertente não é tão escarpada e por
onde os rebanhos deviam descer para ir ao vale do Forum; e
a outra é a chamada Porta romúlea, num pendente do rochedo*
que é quase vertical naquele lado.
Além disto, já em tempo de Rômulo, segundo a tradição*
urbanizou-se o Capitólio, a colina imediata a do Palatino pelo
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 153

lado do rio, que apresentava duas pequenas eminências favo­


ráveis para a construção de um templo e uma fortaleza. Rô-
mulo, também, começou a ditar justiça sentado no seu carro
de guerra, que depois foi a cadeira curul ou currul, e estabele­
ceu o cerimonial para as assembléias e os augúrios. O primeiro
que se pode perguntar, depois desta explicação preliminar, é
quem era aquêle Rômulo e a que raça pertenciam os compa­
nheiros que se estabeleceram com êle no Palatino, em meados
do século VIII a. C. Três respostas se deram já a esta per­
gunta. A primeira é a tradicional, que encontramos nos auto­
res latinos sem exceção. Para os antigos romanos, unânime-
mente, Rômulo era, pois, um príncipe de sangue real, da antiga
estirpe latina, cuja capital era Alba-longa,, nos vizinhos montes
Albanos. E êstes latinos dos montes Albanos, em tempos re­
motos, tinham vindo da Arcádia, na Grécia pré-helênica. Mais
tarde, outro novo grupo de pessoas pré-helênicas tinham vindo
para a Itália com Enéias, depois da guerra de Tróia. Esta
primeira explicação satisfazia, naturalmente, o desejo dos ro­
manos de não serem estranhos aos do Lácio, os quais queria
absorver, e além de ser parentes dos gregos e troianos, e ter­
-se originado sua raça nada menos do que na própria Arcádia.
Assim, pois, a gleba que Rômulo colocou no mundus do Pala­
tino, era de terra de Alba-longa, a que, por sua vez, tinha por
terra mãe a Arcádia do Peloponeso.
A segunda explicação do rápido florescimento da nova ci­
dade e seu conflito, ao começar, com as antigas povoações do
Lácio, é a de supor que Rômulo e seus companheiros eram nór-
dicos, invasores, como os galos ou celtas, que, por aquela mes­
ma época, tinham se instalado no vale do Pó. Sua invasão
pelos Alpes seria um fenômeno paralelo ao da invasão dórica
na Grécia, sòmente que os grupos nórdicos, que desde o ano mil
penetram na Itália, tantos os galos como os latinos e os romanos,
não demonstram a intrepidez do ataque dos dórios, não chegam
até o extremo sul e se resignam a uma vida de agricultores.
Instalam suas vivendas em plataformas de madeira, construí­
das sobre troncos fincados no solo. Estas plataformas, de tipo
retangular ou trapezoidal, estavam rodeadas de um fosso, re-
miniscência, talvez, de outros tempos, quando, para melhor de­
fender-se, levantavam-se sobre pilotes no lago ou num pântano.
A forma trapezoidal destas plataformas pré-históricas do norte
da Itália, chamadas terramares, é muito parecida à da Roma
do Palatino. Lembremos também que o monte Palatino tinha
154 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

pântanos, por dois dos seus lados, e o Tibre lhe servia de fosso
por outro lado. Além disto, a planta das terramares indica que,
para suas ruas terem orientação perfeita, devia marcar-se-lhes
a diretriz e, portanto, fundar-se a cidade em direção do equi­
nócio, que é a época em que se fixa também a fundação de
Roma. E se a isto ajuntarmos que a forma das cidades roma­
nas conservou em tudo o possível, como quase uma necessidade
religiosa, o recinto quadrilátero e as ruas, cruzando-se em ân­
gulo reto, que encontramos nas terramares, acreditamos que é
justificação suficiente para que alguns arqueólogos sustentem
que os fundadores de Roma foram pessoas recém-chegadas da
alta Itália, que se aventuraram até o Lácio e escolheram o Pa-
latino, porque a forma daquela colina lembrava-lhes muito suas
terramares.
Por fim, uma terceira solução para o problema da origem
de Roma é a que acredita que Rômulo era um fugitivo da Etrú-
ria por motivos políticos e que Roma, no princípio, era uma
simples cidade-refúgio dos etruscos. Parece comprová-lo o fato
que sejam etruscos os nomes de alguns dos sete reis de Roma e
que muitos ritos e costumes romanos se mantivessem etruscos
até à Era cristã. Os romanos ilustrados, do tempo da Repú­
blica, estudavam o etrusco, como mais tarde, durante o Impé­
rio, estudaram o grego. Não aceitando, porém, esta última
teoria da origem etrusca de Roma, avançamos muito mais na
solução do enigma, porque os etruscos resistiram à curiosidade
moderna de uma maneira desesperante; não conhecemos nada
de sua origem, nem da época de sua chegada à Itália, nem o
caminho de sua emigração, ou tampouco podemos afirmar se
eram, ou não, de raça indo-européia. Não se encontram ins­
crições etruscas em Roma, nem no território circunvizinho. O
tipo étnico dos etruscos resulta, pois, muito claro, pelos retra­
tos funerários das necrópoles e não é idêntico ao dos romanos.
Ademais, nos primeiros séculos da história de Roma, as
guerras mais sangrentas dos romanos foram contra os etruscos.
Êstes vizinhos inimigos de Roma ocupavam a Itália central,
desde o Tibre até Florença, e desciam os Apeninos, chegando
ao Adriático pelo lado de Bolonha. Algumas de suas cidades
importantes e populosas, como Cere, Veia, Tarquínia e Faléria,
cujo território tinha fronteira com o de Roma, olhavam com
receio a nova competidora e tratavam de afogá-la, antes que se
engrandecesse. Na Etrúria se refugiavam para conspirar os
políticos romanos descontentes; por sua vez, chegava a Roma,
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 155
n

desde a Etrúria, não somente idéias, costumes e mercadorias,


mas também emigrantes de alta categoria, como os Tarquínios.
Quaisquer que fossem os primeiros povoadores de Roma,
vieram novos emigrantes para estabelecer-se à sombra de suas
muralhas. Rômulo parece ter estimulado esta imigração, re­
servando lugar para feiras no vale pantanoso, entre o Capitólio
e o Palatino, chamado o For um. A tradição ajunta que os pri­
meiros romanos não tinham mulheres e que, para consegui-las,
Rômulo valeu-se de um estratagema, o de convidar para uma
festa os habitantes das montanhas sabinas, roubando-lhes as
esposas e filhas, quando se encontravam os hóspedes ao inteiro
descuido. O resultado foi uma guerra entre romanos e sabinos,
que terminou instalando os ofendidos em Roma, e reinando
com iguais direitos o fundador Rômulo e o rei dos sabinos, cha­
mado Tácio. O reinado de Rômulo e Tácio, juntos, durou pou­
co ; Tácio foi assassinado em Lavínia e Rômulo continuou
reinando sozinho. Isto parece indicar que não se reconheceu
nos recém-chegados o direito de eleger um sucessor de seu chefe
assassinado; por sua vez, a Assembléia dos Anciães de Roma
romúlea, ou Senatus, que constava de cem membros, dobrou
seu número devido à chegada dos sabinos.
Eis aqui, pois, Roma, já com três grupos diferentes: os
primeiros, os companheiros de Rômulo; os segundos, os refu­
giados que se instalaram depois no vale do Forum, e os ter­
ceiros, os sabinos, que de inimigos converteram-se em cidadãos.
Não sabemos que relação podem ter êstes três grupos com a
antiquíssima divisão dos romanos nas três tribos de Ramnes,
Títies e Lúceres; talvez os primeiros fossem os primitivos se­
guidores de Rômulo, e os segundos e terceiros, os novos asso­
ciados latinos e sabinos, que entraram já em tempo de Rômulo
a formar parte da comunidade. Tampouco sabemos se os sa­
binos se instalaram no Palatino ou formaram um grupo à parte
no Quirinal. Até à época histórica conservou-se certo dualis­
mo em Roma; os habitantes do Quirinal eram chamados de
habitantes da colina; possuíam festas e danças análogas às dos
do Palatino, ainda que fossem celebradas noutras datas, como
se quisessem comemorar a fundação de uma segunda cidade.
Mas tanto os cantos dos confrades das festas lupercales do Pa­
latino como os do Quirinal deviam ser antiquíssimos; eram
repetidos numa linguagem quase incompreensível ainda para
os gramáticos como Quintiliano.
156 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Rômulo desapareceu dentre os homens de uma forma so­


brenatural. Segundo uma tradição, o céu se cobriu de espêssas
trevas, e com aparato de trovões e relâmpagos, o fundador de
Roma foi arrebatado pelos deuses. Apesar desta "ascensão”,
Rômulo nunca foi um deus para os romanos, nem gozou de
grande popularidade. Desde muito tempo, níostrava-se no Fó­
rum Romano o lugar de sua sepultura, coberto com uma pedra
negra. Recentemente se excavou com cuidado e debaixo do
lapis niger apareceu um venerável monumento funerário, com­
posto de dois leões que guardam uma esteia com caracteres
arcaicos, que bem poderiam ser do século VIII.
Não obstante, o caráter guerreiro de Rômulo, e de ter que­
rido convertê-lo mais tarde no organizador da milícia romana,
durante seu govêrno, a cidade parece crescer mais por absor­
ção de elementos forasteiros que por conquistas. Na morte do
fundador, as colinas vizinhas ao Palatino, isto é, o Capitólio
e o Quirinal, e ainda o Célio e o Aventino, deviam estar po­
voadas por cabanas disseminadas, que davam impressão maior
de acampamentos separados do que uma cidade compacta, eri­
gida segundo um plano regular.
Ao imediato sucessor de Rômulo corresponde o trabalho
de consolidar e unificar a nova povoação. E como a cidade era
principalmente uma organização religiosa, o sucessor de Rômu­
lo é o rei-sacerdote Numa Pompílio, quem conversava sozinho
com as ninfas, que lhe inspiravam mudanças acertadas na le­
gislação e costumes. Ainda que o nome de Numa Pompílio
pareça ser etrusco, a tradição assegura que representava o ele­
mento sabino de Roma; êle fixou as cerimônias dos funerais,
dividiu os dias em fastos e nefastos, o que teve grande conse­
qüência para o regime do Estado.
Com a morte de Numa, o Senado, ou Assembléia dos An­
ciãos, elegeu por rei um romano, chamado Túlio Hostílio, des­
cendente de um dos companheiros de Rômulo, que tinha lutado
com êle contra os sabinos. Túlio Hostílio é o típico rei guer­
reiro ao que se atribui a campanha contra Alba-longa, a supos­
ta cidade-mãe de Roma. Com a conquista de Alba, completar-
-se-ia a conquista do Lácio pelos romanos. Alba, um centro
religioso, era de grande importância, cuja queda deve ter cau­
sado profunda impressão entre os habitantes das redondezas
de Roma.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 157

O quarto rei de Roma, chamado Anco Márcio, era neto de


Numa Pompílio e manifestou o mesmo interêsse pelas coisas
religiosas que tinha demonstrado seu avô. A Anco Márcio se
atribui a construção da primeira ponte sôbre o Tibre, para co­
municar a cidade com o bairro que começava a formar-se na
colina do outro lado do rio, chamado o Janículo. A ponte de­
via, por certo, de ser obra sagrada, porque fora ela construída
inteiriça de madeira — reminiscência dos dias da Idade da Pe­
dra, quando, em lugar de pregos de metal, se usavam cavilha
— e mantinham sacerdotes ou 'pontífices, restaurando-a com
cuidado a estritos ritos religiosos.
Assim, Roma floresceu durante todo o século VII, esten­
deu-se a cada lado do Tibre e até absorveu os seus vizinhos;
mas, apesar do seu aumento, não mudou muito o seu típico
caráter de acumulação desordenada de casas. Foram os três
últimos reis de Koma os que urbanizaram aquela agregação,
dando-lhe o aspecto de verdadeira urbe, com muralhas e edi­
fícios monumentais. Êstes três últimos reis de Roma já são
decididamente etruscos e representam a influência indubitável
da Etrúria em Roma, durante seus três reinados, que encnem
um pouco mais que um século, desde o ano bl6 até o 509 a. C.
A história do primeiro dêstes reis etruscos e quinto de Roma
é muito característica do seu tempo. Era de origem grega;
seu pai, que se chamava Demarato, foi um nobre de Corinto,
que, descontente da tirania dos Cisélidas na sua pátria, tinha
emigrado primeiro para Esparta e depois para a longínqua
Etruria, onde fêz fortuna e contraiu matrimônio. O filho de
Demarato, chamado Lucumão, vivia do comércio na cidade
etrusca de Tarquínia; todavia, adivinhando o futuro de Roma,
passou a morar nela, acompanhado de sua esposa Tanaquii,
que era de nobre estirpe etrusca. Encontrando-se Lucumão a
caminho de Roma, uma águia passou voando sôbre a cabeça
do negociante etrusco-coríntio, e lhe tirou, com grandes gras­
nidos, o gorro da cabeça. Isto foi interpretado como augúrio
muito favorável por Tanaquii, e sob tão bons auspícios, os dois
esposos se instalaram em Roma. O nome de Lucumão foi pro­
nunciado pelos romanos como Lúcio, ajuntando-se-lhe o sobre­
nome de Tarquínio.
A reputação do rico estrangeiro fêz que o rei Anco Márcio
«e interessasse por Lúcio Tarquínio, e com a influência conse­
guida em vida do velho monarca e a habilidade com que se
358 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

manejou na eleição, por razão da morte de Anco Márcio, foi


eleito o etrusco semigrego, seu sucessor.
O primeiro dos Tarquínios, ou Lúcio Tarquínio, como os
romanos o chamavam, caiu ferido de morte numa revolução
palaciana; não obstante, a viúva Tanaquil conseguiu outra vez
impor sua vontade ao Senado. O candidato, que ela propôs, era
o filho de um escravo que tinha servido como mordomo de Tar­
quínio, e êste homem, de origem obscura, e ademais estrangeiro,
foi o mais querido rei depois de Rômulo. Chamava-se Sérvio
Túlio, e seu nome é pronunciado ainda modernamente pelos
romanos com respeito; a êle se atribuem as formidáveis mu­
ralhas de blocos quadrados, das que ainda restam despojos im­
portantes em várias partes da cidade. Mas sobretudo, Sérvio
Túlio é famoso por suas reformas políticas, com as quais pre­
tendeu fazer justiça aos burgueses e ao povo romano, embora
não com tanta habilidade como boa intenção. A maior parte
das lutas civis renhidas em Roma foram sustentadas por esta
causa. É de supor que Sérvio Túlio se propôs tão-sòmente fa­
zer estrita justiça, mas como, para conseguir isto, pensou ser
necessário modificar em sentido antidemocrático, o que hoje
chamaríamos a lei eleitoral, o resultado foi infrutífero, e uma
injustiça maior verificar-se-ia, quando procurava remediá-la.
O assunto é tão importante que requererá voltarmos a ocupar-
-nos dêle mais adiante; por agora somente ajuntaremos que,
segundo fama, Sérvio Túlio fêz o primeiro recenseamento de
Roma e morreu assassinado pelos filhos de Lúcio Tarquínio.
Um dêles, chamado Tarquínio como o pai, e por sobrenome
o Soberbo, foi eleito ou aceito como rei pelo Senado. Foi o
último rei de Roma. A tradição o acusa dos mesmos crimes
que fizeram odiosos os tiranos gregos; isto é, de rodear-se de
uma guarda pessoal, de exercer a justiça, arbitràriamente, de
desprezar o Senado, sem ocupar os lugares vagos nem consul­
tá-lo para nada. Como todos os tiranos, teve que absorver o
povo com aventuras militares e empreendendo construções de
caráter monumental, para que não se desse conta da perda de
sua liberdade. Atribuem-se aos Tarquínios os primitivos esgo­
tos da cidade; o templo do Capitólio, para substituir o rústico
santuário levantado por Rômulo, e a finalização das muralhas,
que tinha Sérvio Túlio começado a construir. As principais
ruas foram calçadas com blocos poligonais de granito.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 159
Contudo, Tarquínio "O Soberbo” não se descuidou de con­
solidar o prestígio de Roma com triunfos militares e diplomá­
ticos. Seu filho Sexto, pretextando uma querela com o pai,
refugiou-se na vizinha cidade de Gabii, e adquiriu nela tal pres­
tígio que pôde abrir suas portas aos romanos. Tarquínio ata­
cou a Sígnia, no Sul, no caminho de Nápoles; entretanto, du­
rante o reinado dos dois Tarquínios e o de Sérvio Túlio, tudo
revela paz no Norte, como assegurado houvessem uma aliança
com a Etrúria, de onde êles procediam.
A queda da monarquia foi motivada pela torpe violência
cometida na pessoa de Lucrécia, por Sexto, o já mencionado
filho de Tarquínio, embora, talvez nesta lenda se esconda uma
desculpa para justificar a revolta do Senado, cansado dos
abusos e ilegalidades dos últimos reis de Roma. Parece, em
verdade, que os Tarquínios desprezaram, sistemàticamente, os
costumes mais venerados dos velhos romanos. O fato de que
um servo lhes fosse imposto por rei, constituía para os patrí­
cios romanos, além de um abuso, um sacrilégio. A conduta
posterior de Sérvio Túlio, tão admirada pelo povo não podia
justificar sua eleição. Como bons etruscos, os Tarquínios, com
seu luxo e licenciosos costumes, ofendiam os aristocratas ro­
manos, impondo o perigo de que a plebe e os jovens patrícios
se deixassem seduzir.
A revolução rebentou no ano 509, antes de Jesus Cristo,
quando Tarquínio, O Soberbo, estava sitiando outra cidade do
Sul, a antiga Árdea, na costa do Lácio. O Senado, convocado
por Bruto, declarou abolida a monarquia e dispôs que o rei e
sua família fossem desterrados de Roma, para sempre. Um
exército organizado por Bruto, conseguiu reunir-se com as mi­
lícias romanas, acampadas diante de Árdea, que foi entregue
a Tarquínio, sem combate. Tarquínio, com seus filhos e gen­
ros, com os povos dos arredores de Roma e ajudados, também,
pelos etruscos, pretenderam reconquistar o poder. Até dentro
de Roma tinham partidários. Bruto teve que condenar à morte
os seus dois filhos, que conspiravam para o restabelecimento
da monarquia.
Mas estas mesmas lutas tiveram por efeito consolidar a
revolução. Durante vários séculos, a única suspeita de querer
proclamar-se rei foi considerada como o maior crime que po­
deria cometer um ambicioso. Tarquínio morreu na Itália me­
160 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

ridional, e ali deveria levar uma vida de grande senhor, porque


se descobriu um sepulcro em Cumas, com sarcófagos de mem­
bros de sua família.
Os sete reis de Roma, desde Rômulo a Tarquínio, gover­
naram quase dois séculos, desde 735 a 510 a. C., pouco mais ou
menos o mesmo tempo que duraram os reinados dos sete Plan-
tagenet na Inglaterra, desde Henrique II a Eduardo III, e o que
duraram os reinados dos oito Bourbons na Espanha, desde Fi­
lipe V a Afonso XIII. A obra dos reis de Roma foi, sistemà-
ticamente, mal interpretada, durante o tempo da República,
acrescentando-se à história tantos episódios poéticos, que se
chegou a duvidar até da própria existência dos monarcas.
Lívio, escrevendo no tempo de Augusto, acaba seu prefácio da
História de Roma dizendo que não quer preocupar-se muito em
distinguir o que há de verdade ou mentira em toda esta parte
de sua história. "Não é minha intenção — diz Lívio — o
afirmar ou refutar estas poéticas lendas. . . ”
Mas o positivo é que sôbre aquelas colinas, que encontra­
ram desertas, os sucessores de Rômulo levantaram uma grande
cidade murada. Nenhuma outra cidade, nem no Lácio nem na
Etrúria, podia impedir a futura grandeza de Roma. Pelo Sul
tinha aperto o caminho de sua penetração na Itália meridio­
nal, e o porto de Roma, na desembocadura do rio, chamado
Óstia (que quer dizer boca), devia ser um lugar de grande
tráfico, já no tempo dos reis, porque o ano 509, o primeiro da
República, Roma e Cartago regularam num tratado de comér­
cio os direitos de suas respectivas marinhas no Mediterrâneo.
Políbio conservou-nos o texto dêste extraordinário documento,
que reflete bem o prestígio que havia conseguido Roma no tem­
po dos reis do que o da flamante República romana, que con­
tava somente meses de existência. Eis aqui o texto do tratado,
tal como o leu Políbio, já com dificuldade, nos arquivos do
Capitólio:
"Os romanos e seus aliados não navegam além do cabo
Farina, salvo se são obrigados a isso por tempestades ou por
inim igos... Se chegam a nossos portos (cartagineses), não
compram, nem tomam nada, salvo o que necessitam para re­
parar seus navios e para fazer os sacrifícios a seus deuses, e
seguirem antes de passar cinco dias. Os navios romanos que
chegam para traficar na costa da África, ou na Sardénha, não
deverão pagar impostos, exceto os salários do pregoeiro e do
notário, e em todas as vendas que se realizem com o auxílio
Esteia funerária ática de Vegeso
Ânfora çorintiana
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 161
n

dêsses oficiais, o Estado garantirá o pagamento ao vendedor.


JE o mesmo se verifica se alguma nave romana chegar a Sicí-
lia, submetida aos cartagineses. Em troca, os cartagineses se
comprometem a respeitar as cidades do Lácio, submetidas a
Roma, e até aquelas outras cidades latinas que não dependam
diretamente dos romanos. Se alguma vez os cartagineses se
virem obrigados a ocupar uma dessas cidades, comprometem-se
a restaurá-la, sem nenhum dano para os romanos, e por ne­
nhum conceito construirão uma fortaleza em território latino,
Se por alguma razão os cartagineses entrarem no Lácio arma­
dos, não deverão permanecer além do entardecer. . . ”
O texto dêste tratado fala claro. Cartago trata já Roma,
de potência à potência. Roma manifesta-se à cabeça do Lácio;
interessa-se, não só pelas cidades que dela dependem, mas tam­
bém por aquelas que ainda são independentes. É uma política do
Lácio para os latinos, que quer dizer o Lácio para os romanos.
Roma não consentirá que os cartagineses estabeleçam colônias,
nem fortalezas, nem ainda nos lugares que não são seus, desde
& fronteira de Etrúria até às terras dos gregos na Itália me-
ridonal. Apesar das restrições que impõem aos cartagineses,
Roma revela, neste tratado, o mesmo sentido político, que a
tornará mais tarde capaz para governar o mundo.
A que se deve, pois, esta força de Roma, que enquanto as
outras cidades do Lácio não passaram de pequenas povoações
amuradas, Roma cresceu e conquistou-as e com elas de reboque
foi conquistar o mundo? Difícil explicar-se a razão dêste fe­
nômeno, por vermos que a situação de Roma não era, em ex­
tremo, favorável. Cícero, pensando, seguramente, em sua man­
são do Palatino, chama Roma a cidade de ''saudáveis colinas
jrodeadas de pestilentos campos”. Em mais de uma ocasião,
jpensou-se em mudar o local de Roma por outro que fosse mais
saudável. Isto quanto ao lugar; quanto aos habitantes, com
sua variedade de origens, os povos romanos teriam podido des­
truir-se com querelas internas. Desde suas origens, teve Roma
representantes de duas raças de costumes ancestrais que con­
servaram seus ritos com muito zêlo. Junto ao sepulcro de Rô­
mulo havia duas necrópoles: uns enterravam os ossos descar­
nados dentro de uma cova em forma de cabana, outros empre­
gavam o sistema da incineração do cadáver inteiro numa caixa
de pedra cerâmica. As maneiras de praticar o rito do casa­
mento eram diversas, entre os chamados patrícios e plebeus.
Isto explica que, desde as origens, os romanos eram de duas
162 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

classes; contudo ignoramos se realmente tinham a mesma ori­


gem. Tampouco sabemos como os patrícios conseguiram im­
por sua supremacia com uma assembléia de anciãos — vetus
— ou Senado. No tempo da monarquia, o rei era eleito pelo
Senado, na dependência da confirmação da plebe, reunida em
assembléia tumultuária, e que os auspícios fossem favoráveis
ao candidato. O cargo de rei era vitalício, com poder absoluto
como juiz, sem apelação, e como general em chefe, com direito
para declarar a guerra e fazer a paz sem consentimento de
quem. quer que fosse. O Senado limitava-se a aconselhá-lo, mas,
tão-sòmente, quando o rei a êle recorria.
Ao cair a monarquia então se criaram dois novos magis­
trados, chamados cônsules, que receberam todas as faculdades
dos antigos reis. Só que, como eram dois em lugar de um, po­
diam mütuamente corrigir-se e vigiar-se. Além disso, exer­
cendo o cargo durante curto período de um ano, os cônsules
não teriam tempo de cometer grandes abusos de poder. To­
davia, os cônsules, por haver herdado o caráter sagrado dos
reis, eram inamovíveis, e, ao terminar o ano de suas funções,
aparentavam abdicar e eram êles os que proclamavam seus su­
cessores, eleitos ou propostos pelos comícios. Conservando to­
das as atribuições religiosas dos reis, os cônsules tinham o
poder de augurar ou discernir os auspícios favoráveis ou ne^-
fastos. Tudo isso determinava que os cônsules tivessem direito
ao chamado imperium, ou poder absoluto, em casos excepcio­
nais de grande perigo para o Estado ou em tempo de guerra.
Já vimos que o Senado era um Conselho composto primeiro
de cem membros, mais tarde de duzentos e, finalmente, de tre­
zentos, todos êles, chefes de família. Mas, de conformidade
com a tradição, no tempo de Sérvio Túlio, o censo de Roma
dava 80.000 homens, aptos para a guerra, onde se compreenderá
que, também, houve, nos primeiros anos da República, mais de
trezentas famílias, e daqui o natural descontentamento das que
não estavam representadas no Senado.
Além disso, o Senado, elegia-se a si próprio, porque elegia
o rei, ou os cônsules, e êstes elegiam, por vez, os senadores
para cobrir as vacantes, de maneira que não restava ao povo
a esperança de modificar, gradualmente, a constituição do Se­
nado com a entrada paulatina no mesmo, de elementos popu­
lares. Noutro país, isto teria provocado uma revolução, e o
povo ou o Senado teriam sido vítimas de uma guerra civil; e,
na verdade, revoluções e também guerras civis sofreu Roma,
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 163

mas com resultados muito menos desastrosos do que noutros


países.
O povo pediu direitos e os obteve sem enfraquecer tam­
pouco o Senado. Pára conseguir seus triunfos, com um depu­
rado instinto social, recorreu ao obstrucionismo, à disserção,
ao que hoje chamaríamos greve política, mas só quando o
Estado tinha necessidade do povo. Em nossos dias muitas vê­
zes vemos os políticos mais famosos fracassar em suas campa­
nhas de oposição, e as retiradas teatrais do Parlamento acabam
com o sainete do regresso, porque os deputados vão se cansan­
do da abstenção. Raramente se consegue, pois, o poder do des-
têrro; nunca são convidados os fuoriusciti a impor seus prin­
cípios. Õ~pòvo romano soube escolher a hora oportuna de suas
greves políticas: retirou-se, quando a pátria estava em perigo
e necessitava o auxílio da multidão, e por isto triunfou em to­
das suas retiradas.
Em circunstâncias difíceis, o povo emigrou em massa de
Roma e foi instalar-se num lugar chamado o Sacro Monte,
perto do rio Aniene, com o propósito de fundar ali uma nova
cidade. Para conseguir o regresso do povo, criaram-se os car­
gos de dois novos magistrados, chamados tribunos da plebe,
cuja missão era velar para que o povo não sofresse abusos de
autoridade por parte dos cônsules, ou que era o mesmo, do
Senado. O poder dos tribunos não era senão um direito de
veto à autoridade consular, mas esta arma de obstrução foi
empregada com grande eficácia para obter novas concessões.
O número dos tribunos, que, no início, foram dois, como os
cônsules, aumentou logo para cinco, e como se requeria unani­
midade em suas decisões, esta nova autoridade da plebe somen­
te pôde impor-se em casos de extrema importância.
Assim como os cônsules tinham dois oficiais, chamados
questores, encarregados de inquirir em casos de crimes ou de­
litos da plebe, que eram a quem chamaríamos hoje acusadores
(promotores) públicos ou fiscais, associaram-se aos tribunos
dois novos oficiais chamados ediles, para ensinar a plebe a in­
terpretar a lei, defendê-la em negócios difíceis, esclarecer dú­
vidas, etc. Pelo que dissemos, até aqui se vê, por conseguinte,
que aos poucos anos de luta com os patrícios, ou Senado, a ple­
be tinha seus tribunos para pôr o veto aos cônsules, e tinha
seus ediles, para que a defendessem dos questores. Mas lhe
faltava ainda conseguir o mais importante, e isto era os direi­
tos eleitorais. De que serviam ao povo os magistrados, se êstes
164 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

eram eleitos por um sistema com o qual podiam os senadores


manipular a eleição à sua livre vontade?
Dissemos que a lei eleitoral havia sido reformada com boa
intenção, mas com desastrosos resultados, por Sérvio Túlio. No
início o povo de Roma aparece dividido em três tribos, a saber:
Ramnes, Títies e Lúceres; e cada tribo em dez cúrias, e o povo
por cúrias, isto é, primeiro se decidia o assunto em cada cúria
e depois estas votavam, com um voto coletivo, nos comícios, isto
é a assembléia popular. Mas, ao prosperar Roma, as três tri­
bos não cresceram em proporção, ou tampouco as dez cúrias
de que* constava cada tribo... , e, como a principal contribui­
ção que o povo de Roma levava ao Estado era seu serviço obri­
gatório no exército, resultava, evidentemente, uma injustiça
assinalar, fixar o mesmo voto a uma cúria, que proporcionava
poucos soldados, do que as cúrias que traziam fortes contin­
gentes militares.
Esta parece ser a razão preponderante da reforma eleito­
ral que se levou a cabo, no tempo de Sérvio Túlio. 0 bom rei
plebeu dividiu as cúrias em centúrias, que eram as unidades
militares do exército romano, e assim resultou que as cúrias,
onde havia mais cidadãos, tiveram mais centúrias do que aque­
las que não podiam prestar tanta ajuda nas campanhas... E
eomo é de justiça, e razão, Sérvio Túlio julgou que o povo, nos
comícios, devia votar por centúrias e não por cúrias. Note-se
bem que centúrias não se entendia por número de cidadãos,
mas uma unidade militar, e os ricos podiam e deviam recrutar
mais centúrias do que os pobres. E como os plebeus ricos ti­
nham interêsses muito parecidos com os dos patrícios, era, na
realidade, o Senado que dispunha também a eleição dos tribu­
nos e dos edis.
Por isto no ano 471 a. C. o povo obteve que os tribunos
fossem eleitos por uma terceira forma de votação, chamada por
eomícios tribunados, a qual dava maiores garantias de que os
fcribunos representariam a genuína vontade popular. Sempre
a mesma dificuldade: a lei eleitoral!
Restavam ainda em pé os onipotentes direitos dos cônsu­
les, como juizes que podiam falar quase, com discreção, nos
easos de justiça. O primeiro esforço para limitar êste poder
dos cônsules, herdado dos reis, foi o direito de apelação, cha­
mado provocatio. Alguns dizem que êste direito existia por
tradição já desde o tempo de Túlio Hostílio, mas outros asse­
HERMES - ORFEU
»
- TESEU - RÔMULO 165

guram que jsòmente em 008 foi reconhecido, oficialmente, pelo


cônsul pValério como uma nova lei.
Êste exemplo, de ambigüidade e dúvidas em matérias ju­
rídicas, indica quão necessário se fazia o trabalho de compilar
a jurisprudência de Roma, se queriam prevenir abusos dos
cônsules.
O que se passava com a provocatio, ou direito de apelação,
deveria ocorrer com todos os costumes dos romanos.
Por isso em meados do século V, cinqüenta anos depois da
queda da monarquia, a necessidade de uma legislação escrita
se fêz tão imperiosa, que o Senado teve de ceder aos desejos
da‘plebe e mandou uma comissão à Grécia para estudar todas
as leis de Atenas. Péricles governava então, e Atenas se acha­
va no apogeu de sua prosperidade. Os escritores gregos não
falam da chegada dos romanos a Atenas; mas as recordações
de Roma parecem indicar que os comissionados regressaram
com um hábil jurista chamado Hermógenes, de Éfeso, que de-
yia de contribuir para a codificação das leis de Roma.
O regresso dos comissionados deu-se no outono de 452, e
para que a obra dos legisladores pudesse levar-se a cabo com
inteira liberdade, concederam-lhes poderes ditatoriais. Os en­
carregados da codificação foram dez, por isto se chamaram
decênviros, e todos eram patrícios: os dois cônsules, os três co­
missionados que foram à Grécia e mais cinco patrícios. O tra­
balho dos decênviros durante o primeiro ano foi sem dúvida
excelente: administraram justiça com inteira eqüidade e res­
peitaram os direitos da plebe. No fim de poucos meses haviam
compilado em dez tábuas as leis romanas, e depois de haver
sido expostas ao exame dos cidadãos, foram votadas por acla­
mação nos comícios centuriados. O trabalho dos primeiros
decênviros foi, contudo, considerado insuficiente, e outro ano
de decenvirato produziu, depois de muitos abusos e desordens,
duas tábuas mais de leis. No conjunto, pois, a obra dos decên­
viros foram doze tábuas de leis, base da jurisprudência roma­
na, da que derivam muitos de nossos códigos civis.
É inexplicável que, sendo as leis das Doze Tábuas o que
os romanos consideravam mais sacrossanto, tenham desapare­
cido no naufrágio da maioria dos textos da antigüidade clássica.
Parece um sarcasmo que, enquanto conhecemos, ponto por pon­
to, todos os artigos do Código de Hamurábi, de Babilônia, do
ano 2.000 a. C., carecemos do texto das leis de Roma dos primei­
166 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

ros anos da República. Os fragmentos citados por Cícero cau­


sam ainda mais pena por seu estilo primitivo e por seu espírito,
mais primitivo ainda. Adverte-se que os decênviros, mais do
que redigir leis novas, quiseram codificar antigos costumes ro­
manos, alguns já fora de uso. Na página seguinte podem ver,
por exemplo, alguns dos artigos das Doze Tábuas.
"Se alguém acusa a um homem, êste deve comparecer
diante do juiz. Se não atende, o demandante tem direito de
chamar aos que estão perto e levá-los à força. Se o acusado
não quer seguir, ou se escapa, pode atacá-lo sem reserva. Se
está doente ou é velho, o demandante deve procurar um veículo
para levá-lo ante o juiz. . . 99
"Se os querelantes concordam numa transação, o juiz anun­
ciará em público. Se não combinam, cada um exporá seus di­
reitos em assembléia pública, no Forum, pela manhã. Durante
o meio-dia serão deixados a sós para que falem, e pela tarde,
se um dêles não comparece, o juiz se pronunciará favorável ao
que está presente, e se ambos insistem em seus direitos, o juiz
continuará até o pôr do Sol, mas não mais tarde”.
Êstes são os chamados trâmites legais ou procedimento
fixados pela Lei das Doze Tábuas.
Parecem-nos rudimentares hoje em dia, mas ainda mais
selvagens parecem as penas. Assim, na terceira tábua havia
êste artigo para os litígios por dívidas:
"Se um homem confessou sua dívida, ou foi condenado por
dívida pelo juiz, terá trinta dias para pagar a seus credores.
Depois dêste prazo, o credor pode se apoderar de sua pessoa
e levá-la ante o juiz. Se não paga e não apresenta ninguém
para garantir o pagamento, o credor levará o devedor para sua
casa e mantê-lo-á amarrado com correntes, que não pesem mais
de quinze libras, mantendo-o, pelo menos, com uma libra de
farinha diária, embora possa dar-lhe mais se quiser”.
"Se há vários credores, êstes, num dia de mercado, divi­
dirão o corpo do devedor, repartindo os pedaços em partes pro­
porcionais às respectivas dívidas. Cortar-se mais ou menos
a carne do corpo do devedor ao que lhes corresponde, não
será considerado como um crim e... ”
As Leis das Doze Tábuas fixam com um mínimo de hu­
manidade as tarifas para indenizar com dinheiro o prejudica­
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO
i
167
do. Um osso quebrado de um cidadão, segundo a Lei das Doze
Tábuas, pagar-se-á com outro osso quebrado ou com trezentos
pesos. O osso de um escravo vale somente cento e cinqüenta,
e assim sucessivamente. Um ladrão noturno pode ser morto
sem julgamento, com impunidade absoluta de quem o matou.
E apesar do tom inumano quase pré-histórico das Leis das
Doze Tábuas, Cícero elogiava-as nestes termos: "Embora todo
o mundo se levantasse contra mim, diria o que penso: que o
livro das Leis das Doze Tábuas supera em utilidade e autori­
dade a todos os outros livros dos filósofos. . . ”
Talvez se fôssemos todos advogados, como Cícero, e tivés­
semos o Código completo, como êle o tinha em seu tempo, cer­
tamente admiraríamos o trabalho de compilação da comissão
codíficadora, que representavam os decênviros, e a parte do re­
dator, que muito provàvelmente seria o já citado Hermógenes,
de Éfeso. Mas tal como chegaram até nós mutilados e sem con-
cêrto, os fragmentos das Leis das Doze Tábuas surpreendem
por sua barbárie. E, contudo, apesar da tão primitiva legis­
lação, Roma soube organizar-se para governar o mundo com
um sentido de justiça que nós não somente admiramos, mas
procuramos imitar.
A jurisprudência romana é a base complementária de jus­
tiça para todos os povos civilizados.
RÔMULO
de Plutarce
(753-715 a. C.)
I — Nem todos os escritores estão de acordo com a origem
do nome Roma, nem com o fato de terem dado êste à cidade,
cuja fama a distingue entre outras (86). Alguns dizem que
os Pelasgos, que andaram por diferentes partes da Terra e sub-
fugiram, fizeram-se ao mar e, impelidos pelo vento, foram dar
grande potência em armas, deram o nome de Roma à cidade.
Outros dizem que, depois da queda de Tróia, alguns dos que
fugiram fizeram-se ao mar e, impelidos pelo vento, foram dar
às costas de Tirreno, Toscana e ancoraram próximo ao Tibre.
Ali, as mulheres, cansadas, e não desejando mais viajar, che­
fiadas por uma delas, de nome Roma, que se salientava pela
sua linhagem e prudência, puseram fogo às naves. Os homens
a princípio aborreceram-se com elas, mas acabaram confor-
mando-se e estabeleceram-se perto do monte Palatino, e como,
pouco tempo depois vira que tudo corria melhor do que espe­
ravam, por ser excelente o país, e por haverem sido muito bem
recebidos pelos habitantes, dispensaram a Roma, entre outras
homenagens, a de darem o nome dela à cidade. Daí vem o
costume que ainda hoje perdura: as mulheres saúdam com um
ósculo os parentes e seus próprios maridos, porque também
asim elas saudavam os homens, depois do incêndio das naves,
por temor, e para acalmá-los da má disposição em que estavam.
II — Alguns dizem que Roma era filha de ítalo e de Leu-
cária, ou, segundo outra tradição, de Télefo, filho de Hércules,
e casada com Enéias (87) foi quem deu nome à cidade; e outros,
que foi uma filha de Ascânio, filho de Enéias. Segundo uma
(86) Roma,* em grego, significa fôrça.
(87) Príncipe troiano, herói da Eneida, de Virgílio.
170 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

sentença, foi Romano, filho de Ulisses e de Circe, quem fundou


Roma; segundo outra, Remo, filho de Ematidão, enviado por
Diomedes à Tróia, e ainda segundo outra, Rômis, tirano dos
latinos, que arrojou dali os Tirrenos, que da Tessália haviam
passado à Lídia e da Lídia à Itália. E mais, aquêies que, com
mais fundada razão, designam Rômulo como denominador da­
quela cidade, não concordam entre si acêrca de sua origem,
porque uns sustentam que foi filho de Enéias e Dexítea de
Forbante, e que, ainda criança, foi trazido à Itália com seu *
irmão Remo, mas, perdendo-se o barco no rio, devido a uma
enchente, os outros barcos naufragaram, e êles foram salvos
inesperadamente; o lugar, onde o barco se deteve, foi chamado
Roma. Outros dizem que Roma, filha da Troiana, a qual casou
com Latino, filho de Telêmaco, deu à luz a Rômulo; e outros
que foi Emília, filha de Enéias e Lavínia, engravidada por
Marte. Finalmente, outros fazem, dêste ponto, relações real­
mente fabulosas, pois dizem que Tarqüício, rei dos Albanos,
homem muito injusto e cruel, teve dentro de seu palácio uma
visãò terrível: um falo (membro viril) apareceu saindo do
fogo e permaneceu ali por muitos dias. Havia um oráculo de
Tétis, do qual Tarqüício teve a resposta, predizendo que uma
virgem se uniria com o fantasma, para que nascesse um filho,
que seria famoso por seu valor, por sua virtude e fortuna.
Tarqüício relatou o oráculo a uma de suas filhas, ordenando-
-lhe que estivesse com o fantasma; mas esta achou o fato abo­
minável, e enviou uma de suas criadas.
Quando Tarqüício soube do ocorrido, encolerizou-se e
mandou prender a ambas para matá-las. Mas apareceu-lhe
Vesta, em sonho, desaprovando aquêle rigor; em virtude disso,
Tarqüício deu-lhes uma tela para tecer, e quando a houvessem
terminado, haveriam de casar-se. Teciam elas de dia, mas à
noite, por ordem dêle, vinham outras escravas e desfaziam
tudo o que elas faziam de dia. A criada deu à luz a dois gê­
meos, e Tarqüício entregou-os a um tal Terácio, com ordem de
os matar. Êste, porém, colocou-os à margem do rio, onde uma
loba os acudiu, amamentando-os, e diversas aves trouxe­
ram-lhes comida e punham-lhas na boca, até que um pastor ao
vê-los, ficou de tal forma maravilhado com o fato, que se apro­
ximou, e levou-os consigo. Tendo sido salvos por êsse meio,
quando adultos, atacaram Tarqüício e o venceram. Assim con­
ta um historiador chamado Promátion, que escreveu uma his­
tória da Itália (88).
(88) Autor desconhecido.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 171

III — Mas, a narração, que passa por ser a mais verídica,


e tem maior número de testemunhas a seu favor, foi publicada
primeiro entre os gregos, em suas mais assinaladas circunstân­
cias, por Díocles Perarétio (89), a quem, na maioria das coisas,
segue Fábio Pictor (90). E ainda há outras versões acêrca dês-
tes mesmos propósitos, a mais admitida, todavia, é a seguinte: a
sucessão dos reis de Alba, descendentes de Enéias, veio a recair
em dois irmãos, Numitor e Amúlio; e havendo Amúlio feito
duas partes do todo, pondo o reino de um lado, e no outro, em
contraposição, as riquezas e todo o ouro trazido de Tróia, Numi­
tor escolheu o reino. Mas sucedeu que Amúlio, senhor da ri­
queza, usurpou-lhe também o reino com a maior facilidade; e,
temendo que sua filha tivesse descendentes, fê-la sacerdotisa
de Vesta, para que permanecesse virgem e sem casar-se por
toda a vida; chamava-se ília, segundo alguns, Réia segundo
outros, e, segundo outros, Sílvia.
No fim de pouco tempo, foi denunciada grávida, contra
a lei prescrita às vestais, e teria sofrido terrível pena se não
fosse Anto, a filha do rei, ter intercedido por ela junto ao pai,
mas, não obstante isso, foi prêsa e separada de todos, para que
não desse à luz sem o conhecimento de Amúlio (91).
Nasceram dois meninos muito robustos e belos, com o que,
mais temor sentiu Amúlio, e deu ordem a um de seus ministros
que se apoderasse dêles e os levasse dali. Dizem alguns que
êste ministro se chamava Fáustulo; mas outros pensam que
êste era o nome de quem os recolheu. Colocou, pois, os meni­
nos numa cesta, desceu à margem do rio para arrojá-los, mas
achando o rio muito volumoso, e correndo com muita violência,
deixou-os longe da margem, e as águas, crescendo, levaram a
cesta suavemente, colocando-a num lugar que se chama Cer-
mano e antigamente Germano, porque aos filhos dos mesmos
pais os Latinos chamam-nos germanos.
IV — Havia ali perto uma figueira, a qual chamaram Ru-
minal, ou por Rômulo, como julgam alguns, ou pelo gado que,
ao meio-dia, fazia sesta à sua sombra, ou ainda pelo aleitamento
dos meninos, porque os antigos chamavam a mama de ruma, e
(89) Apenas se tem referências dêste escritor.
(90) O mais antigo dos historiadores romanos, autor de uns Anais
de Roma, dos quais nada restou.
(91) O castigo consistia em enterrá-las vivas. Veja-se na Vida
de Numa (cap. X) os impressionantes pormenores que dá Plutarco sô­
bre a aplicação dêste castigo.
172 ANTOLOGIA DE YIDAS CÉLEBRES

a certa deusa, que acreditam presidir ao aleitamento das crian­


ças, chamam Rumília, e lhe fazem sacrifícios abstêmios, ofere­
cendo-lhe leite.
Ficando ali expostos os meninos, contam que uma lôba lhes
dava de mamar, e que uma ave também os alimentava e defen­
dia. Esta ave se considera consagrada a Marte, e os Latinos
tem-na em grande veneração e honra, pelo que a mãe dos me­
ninos, que dizia havê-los concebido de Marte, mereceu muita
fé; embora se diga ter acreditado nisso, diz-se que o próprio
Amúlio, em trajo de guerreiro, violentou-a.
Outros suspeitam que o nume da nutriz, por ambigüidade
de significação, deu origem a esta lenda, porque os Latinos
chamam lobas, as fêmeas dos lobos e também as mulheres que
entregavam o corpo a qualquer um, e assim parece que era a
mulher de Fáustolo, chamada Ana Larência, quem criou as
duas crianças.
Fazem-lhe os romanos sacrifícios e o sacerdote de Marte
libações no mês de abril, dando-se à festa o nome de Larên­
cia (92).
V — Ainda festejam a outra Larência nesta ocasião. O
guarda do templo de Hércules, estando um dia ocioso, pro­
pôs ao deus que jogassem dados, estipulando que quem ga­
nhasse havia de dar alguma coisa de valor, oferecendo, assim,
ao outro uma mesa opípara e uma mulher. Atirado os dados
por Hércules e depois por si, viu que havia perdido, e querendo
pagar bem o estipulado, como era justo, conforme o convênio,
preparou, para Hércules, um banquete, e reservadamente con­
vidou Larência, que era muito bonita, e no templo, preparou-
-lhe um leito, deixando-a com o deus.
Conta-se que êste lhe disse que de madrugada saísse e cum­
primentasse o primeiro que encontrasse e se tornasse seu amigo.
Encontrou-se com ela um dos cidadãos, homem de idade avan­
çada, a quem a sorte havia favorecido com um bom pecúlio,
e ao mesmo tempo sem filhos, pois nunca havia tido mulher;
seu nome era Tarrúcio. Ligou-se a ela, e sempre a estimou,
deixando-a quando faleceu, herdeira de muitos bens, dos quais
a maior parte ela deixou para o povo, em seu testamento. Con-
ta-se que, sendo muito notável, tendo fama de ser favorecida
por um deus, desapareceu no mesmo lugar onde fora sepultada
(92) Na realidade, Larentália, corno a chama o próprio Plutareo
em outro lugar.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 173

a outra Larência, o qual se chama agora Velabro, porque, nas


freqüentes enchentes do rio, se vai de barco ao Foro por aquêle
lado, e a esta espécie de navegação chamam Velatura.
Outros são do parecer que os que dão espetáculos xobrem
com véus a rua que vai da praça ao Hipódromo, começando por
aquêle lugar; e em latim êstes véus se chamam velas.. .Êste
é o motivo por que a segunda Larência é tida com veneração
entre os romanos.
VI — Fáustolo, um dos pastores do rei, recolheu as crian­
ças, sem que ninguém o soubesse, ou, segundo a opinião dos
que parecem estar mais com a verdade, sabendo-o Numitor, e
dando-lhe reservadamente auxílios para a educação das crian­
ças. Diz-se que, levados a Gábios (93), foram educados nas le­
tras e em todas as habilidades, próprias das pessoas de posição
elevada, da nobreza, e que, por tê-los visto mamar na loba, pôs-
-lhes o nome de Rômulo e Remo. E a boa disposição de seus
corpos, embora ainda meninos, tanto na estatura como na bele-
xa, demonstrava já forte caráter. Quando adultos, afigurava-se
que ambos eram resolutos, corajosos, de ânimo forte ante os
perigos e de uma ousadia que ninguém os igualava; mas Rô­
mulo demonstrava maior predisposição para manejar com pru­
dência e certo tino político; assim, nos encontros que com os
vizinhos se ofereciam na caça e nas pastagens, percebia-se logo
que nascera para ser chefe e não súdito. Com seus seme­
lhantes, e com os infelizes eram muito amáveis; mas, com os
superintendentes e com os pastores dos rebanhos do rei, não
reconheciam nenhuma superioridade; eram altivos, não se in­
timidando com as ameaças. Seus exercícios e ocupações eram
as de pessoas nobres; não se entregavam a viver na ociosidade,
mas sim, na luta, na caça, nas corridas, em perseguir os la­
drões, em proteger os que necessitavam de proteção e, por isso,
se tornaram famosos e adquiriram um grande renome.
VII — Suscitou-se um desentendimento entre os pastores de
Amúlio e os de Numitor, roubando os dêste algum gado; e não
podendo prová-lo os de Amúlio, fizeram-nos afastar-se e lhes
arrebataram gra.nde parte do gado; embora Numitor ficasse
irritado com isso, não pararam aí e reunindo muitos escravos,
começaram seus delitos ousados e sediciosos. Um dia, enquan­
to Rômulo se ausentara para um sacrifício, porque era religioso
e dado à ciência natural, os pastores de Numitor travaram luta
com Remo, a quem encontraram com pouca gente, e, havendo
(93) Cidade dos Latinos e colônia de Alba, a doze milhas de Roma.
174 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

de um lado e outro contusos e feridos, venceram, todavia, os


de Numitor e prenderam Remo vivo. Apresentado a Numitor,
êste não quis castigá-lo, temendo Amúlio; dirigiu-se a êle é
pediu-lhe que fizesse justiça, não permitindo que, sendo seu
irmão, fosse ultrajado por seus servos, com o que, tomando par­
te por êle os de Alba, sentiam que não o tratavam segundo
merecia sua dignidade. Conseguiu de Amúlio que lhe entre­
gasse Remo para fazer dêle o que quisesse. Chamou-o logo
que chegou à sua casa e admirado da galhardia de tal mancebo,
porque em estatura e força se salientava entre todos, lendo-lhe
no semblante a ousadia e a determinação de ânimo, porque sua
conduta era nobre e inalterável até naquela situação, ouvindo,
além disso, que suas obras correspondiam com o que se via,
ou o mais certo, ordenando-lhe, assim, algum deus, que lançava
as bases de grandes coisas, começou, muito afortunadamente,
a desconfiar da verdade, e lhe perguntou quem era e qual sua
origem, com palavras tão brandas e fisionomia tão afável, que
lhe infundiram esperança: "Nada te ocultarei — respondeu-
-lhe — porque me pareces mais justo do que Amúlio, pois tu
ouves e perguntas antes de julgar, e êle nos entregou antes de
nos ouvir. Primeiramente nos consideramos filhos de Fáus-
tulo e Larência* servos do rei, porque somos gêmeos: postos
já em juízo e caluniados ante ti, neste risco da vida contaram-
-nos coisas extraordinárias acêrca de nós mesmos; se são ve­
rídicas, serão esclarecidas. Nosso nascimento, dizem, é um
segrêdo, e nossa sobrevivência é maravilhosa: fomos sustenta­
dos pelas próprias aves e feras, as quais nos arrojaram, dan-
do-nos de mamar uma loba e uma ave nos alimentando com o
bico, expostos como nos encontrávamos numa cesta às margens
do grande rio. Ainda existe a cesta com arcos de bronze, na
qual estão gravados caracteres enigmáticos: indícios que talvez
seriam inúteis para nossos pais, se morrêssemos”.
Numitor, com esta narração, e conjeturando além disso o
tempo e a idade do jovem, afagou uma esperança e pensou no
modo como poderia secretamente falar destas coisas com a filha,
que ainda estava aprisionada.
VIII — Fáustulo, ao tomar conhecimento da prisão de
Remo, pediu a Rômulo para lhe dar ajuda, relatando-lhe cla­
ramente a sua origem, pois anteriormente só lhe fazia vagas
referências, dando-lhe a entender que eram de origem elevada
e, levando a cesta, encaminhou-se para ver Numitor, agitado
e receoso, como era natural ante tal situação. Mas caiu na
suspeita dos guardas do rei que o interrogaram e descobriram
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 175

que ocultava debaixo da capa a cesta. Achando-se presente


entre êles um dos que presenciaram o rapto dos recém-nascidos,
e sabedor de tudo que ocorrera acêrca do fato, vendo a cesta e
reconhecendo-a pelo seu adorno e pelos caracteres gravados,
veio em seu auxílio e contou ao rei o que estava se passando.
Levado à presença de Numitor, Fáustulo não se conservou intei- ,
ramente tranqüilo, mas tampouco se perturbou, e confessou que
os meninos tinham sido salvos, mas estavam longe de Alba e
eram pastores; o cêsto êle o levaria à ília, porque muitas vêzes
esta havia desejado vê-lo e tocá-lo para alimentar a esperança
de um dia ver os filhos.
Sucedeu, nesta ocasião, a Amúlio, o que comumente acon­
tece aos que obram perturbados pelo temor ou pela ira: man­
dou um homem bom, mas muito amigo de Numitor, para
inqüirir dêste, que notícias lhe haviam chegado dos meninos,
e de como se haviam salvo. Estando êste em casa de Numitor,
observando que Remo quase gozava de toda a sua confiança e
seu amor, fêz-lhe conceber grandes esperanças e lhe pediu que
se adiantasse quanto pudesse, pois êle próprio combateria a seu
lado. Nem o estado da situação teria lhe permitido deter-se,
embora assim o houvesse desejado, porque Rômulo estava ali
junto, e passaram para seu lado muitos cidadãos por ódio e
temor a Amúlio. Trazia, também, muitas tropas formadas por
centúrias, chefiada cada uma por um caudilho, que ostentava
a lança coroada por um feixe de ervas e ramos; a êstes feixes,
os Latinos chamam manipulos9 e daí vem o que ainda hoje nos
exércitos chama-se a êstes caudilhos de rnanipuiares. Assim
é que Remo, chefiando os de dentro e Rômulo os de fora, Amú­
lio assustado deixou-se prender e pereceu. Tal vem a ser a re­
lação que Fábio e Díocles Peparétio, que parece ser o primeiro
que escreveu sôbre a fundação de Roma, fazem, acêrca destas
coisas, suspeitosa para muitos, sendo considerada fafcPulosa e
inventada; mas não se deve deixar de crer, em vista das gran­
des façanhas de que cada dia é artífice a fortuna; e conside­
ra-se que a grandeza de Roma não teria chegado tão alto, se
não tivesse um princípio, de alguma maneira divino, no qual
nada parece demasiado grande ou extraordinário.
IX — Morto Amúlio e restabelecida a ordem, Rômulo e
Remo não julgaram conveniente permanecer em Alba, não ten­
do o mando, nem tampouco ainda vivendo o avô materno; en­
tregando, pois, a êste a autoridade e colocando a mãe no lugar
que lhe correspondia, determinaram viver, fundando uma cida­
de na região onde receberam o primeiro alimento, e que é, entre
176 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

todos, o motivo mais plausível. .Era preciso, havendo reunido


tantos escravos e homens fugidos, ou ficar sem forças com a
dispersão desta gente, ou formar uma cidade à parte. A prova
de que os de Alba não queriam comunicação com os rebeldes
era o fato de não tê-los por cidadãos, logo se vê na resolução
que tiveram de tomar para ter mulheres (94), pois não foi
fruto de insolência, mas por necessidade, por não poder obter
casamentos voluntários, pois trataram as mulheres raptadas
com a maior estima. Lançadas as bases da cidade, levantaram
um templo de refúgio para os que o necessitassem, para ali se
acolherem, chamando-lhe de deus Asilo (95). Todos eram aco­
lhidos nêle, não retornando os escravos para seus senhores, nem
entregue o devedor ao seu credor, nem o homicida à justiça:
assegurava a todos a impunidade, como apoiada em certo orá­
culo de Pítia, com o que tornou logo a cidade muito populosa,
sendo, assim, que as primeiras casas, segundo se diz, não pas­
savam de mil; mas disto falarei mais adiante. No início da
fundação, houve já discordância entre os irmãos a respeito do
local: Rômulo queria fazer a cidade de Roma quadrada (96),
como dizem; isto é, de quatro ângulos, e fundá-la onde está,
e Remu preferia um local no monte Aventino, que se chamou
Remônio e agora Rignário. Concordaram em aceitar um au-
gúrio, decidindo a divergência pelo vôo dos pássaros; tendo-se
colocado em diferentes lugares, dizem que apareceram seis
abutres para Remo, e doze apareceram para Rômulo, mas há
quem diga que Remo os via realmente; mas Rômulo não. Quan-
ao Remo se retirava, então foi quando a Rômulo apareceram
os doze, e que, por esta razão, os romanos, ainda agora, fazem
grande uso do abutre em seus augurios. Heródoto Pôntico
narra que Hércules tinha também por bom sinal, ao entrar
em alguma emprêsa, o aparecimento de um abutre, porque de
todos os animais, é o menos daninho, não tocando em nada do
que os homens semeiam, plantam ou apascentam, alimentando-
-se sòmente de corpos mortos, porque diz que não mata nem
ofende a nada que tenha alento; e das aves, pela conformidade
do gênero, nem estando mortas se aproximam; ao passo que

(94) Refere-se ao rapto das Sabinas, de que fala mais adiante.


(95) Trata-se, ao que parece, do nome do templo.
(06) Compreende unicamente o Palatino.
Estado atual do Foro de Roma

Túmulo de Rômulo sob a "Lapis N iger no Fôro Romano
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 177

as águias, as corujas e os gaviões acometem e matam as aves


de sua própria espécie, conforme o que disse Esquilo:
"Como pode ser pura
uma ave que se alimenta de outra ave?”
Fora disto, as outras se revolvem continuamente à nossa vista,
por assim dizer, e sempre as estamos vendo; mas o abutre não
se encontra facilmente e é muito raro encontrar seus filhotes,
e há quem tenha formulado a opinião de que os abutres vêm
de terras longínquas, como dizem os adivinhos, que não apare­
cem, naturalmente, mas que são enviados por uma divindade.
X — Quando Remo compreendeu o engano, enfureceu-se
e, como Rômulo, abrindo ao redor um fôsso, onde êle queria
levantar um muro, começou a insultá-lo e a perturbar a obra,
ao saltar por cima dela, ferido segundo alguns, pelo próprio
Rômulo, e, segundo outros, por Céler, um de seus amigos, caiu
morto no próprio local. Morreram, também, na revolta, Fáus-
tulo e Plistino, que, sendo irmão de Fáustulo, dizem, contribuiu
para a criação de Rômulo e seu irmão.
Céler foi para o país de Tirreno Toscana, e daí os roma­
nos chamarem aos rápidos e ligeiros de Céleres, e a Quinto
Metelo, o qual, após a morte de seu pai, deu um combate de
gladiadores, e admirados da prontidão com que procedeu, cha­
maram-lhe de Célere ou Ligeiro.
XI — Deu Rômulo sepultura a Remo e aos que lhe haviam
dado o sustento, no lugar chamado Remõnia, e dedicou-se logo
à fundação da cidade, fazendo vir da Etrúria ou Tirrênia cer­
tos varões, que, com ritos e cerimônias, faziam e ensinavam
a fazer cada coisa à maneira de uma iniciação. Abriu-se um
fôsso circular no lugar que hoje se chama Comício, no qual se
colocaram as primícias de tôdas as coisas que, por lei, nos ser­
vem como proveitosas ou que por natureza usamos como ne­
cessárias; lançaram ali um punhado da terra de onde cada um
tinha vindo, e misturaram tudo. Dá-se a êsse fôsso o mesmo
nome do universo, mundo. Depois, fazendo um círculo, colo­
cam a cidade no seu centro; e o fundador da cidade toma um
arado ao qual liga uma relha de bronze, e jungindo-lhe um
touro e uma vaca, êle mesmo o leva e abre pelas linhas mar­
cadas um sulco profundo, e os que o acompanham, vão colo­
cando para dentro os torrões que vão sendo retirados, sem
deixar que nenhum saia para fora. Na outra parte desta linha
178 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

levantam um muro, o qual, por encurtamento de sílabas, cha­


mam pomério, como post murum. Onde pretendem fazer uma
porta, tirando a orelha e levantando o arado, deixam um espa­
ço sem lavrar; assim os romanos têm por sagrado todo o muro,
com exceção das portas, porque se estas se reputassem sagra­
das, seria sacrilégio entrar e também sair por elas muitas
coisas embora necessárias, mas não puras.
XII — Tem-se como certo que a primeira fundação de
Roma se verificou no dia 11, antes das calendas de maio (97),
o que solenizam os romanos como dia natal de sua pátria; e
diz-se que, nos primeiros tempos, não se sacrificava nada que
fosse animado, porque se julgava que a festa, consagrada ao
nascimento da pátria, deviam conservá-la pura.
Celebrava-se no mesmo dia uma festa pastoril, que cha­
mavam Palília (98). Observe-se que as neomênias, ou prin­
cípios dos meses romanos, não coincidem com os dos gregos:
mas êste dia, em que Rômulo fundou sua cidade, afirmam que
foi o dia 30 do mês grego, e que, nêle, deu-se uma conjunção
eclíptica da Lua com o Sol, eclipse que foi observado pelo
poeta Antímaco de Téio (99), e aconteceu no ano terceiro da
sexta olimpíada. Na época do filósofo Varrão, o homem de
mais leitura entre os romanos, vivia Tarrúcio, seu amigo, fi­
lósofo também e matemático, e dado, também, pelo desejo de
saber, à astrologia judiciária, na qual era tido por excelente.
Propôs-lhe, pois, Varrão, o problema de que marcasse o dia
e a hora do nascimento de Rômulo, fazendo a comparação pe­
las façanhas que dêle se contam, pelo método, segundo o qual,
se resolvem os problemas geométricos, pois do mesmo modo
que pertencia à sua ciência, dada a época do nascimento do
homem, prognosticar sua vida, lhe correspondia, dada a vida,
averiguar o tempo.
Cumpriu Tarrúcio com o cargo, e inteirado das ações e
sucessos de Rômulo, do tempo que viveu e do modo como ocor­
reu sua morte, manifestou com a maior confiança que sua
concepção se verificou no primeiro ano da segunda olimpíada,
no dia 23 do mês Coiac (100) dos Egípcios, na hora terceira,
(97) A opinião mais admitida é que a' fundação de Roma sucedeu
pelo ano de 753 a. C.
(98) De Pales, deusa dos rebanhos.
(99) Segundo outros, Antímaco era de Colofon ou de Claros. Vi­
via no tempo de Platão.
(100) Novembro-dezembro.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 179

até que o Sol se eclipsou completamente, e sua saída à luz, no


mês Thot (101), e dia 21, ao sair o Sol; e que a fundação de
Roma, feita por êle, teve princípio no dia 9 do mês Farmuti
(102), entre as duas e as três, pois dizem que a sorte das ci­
dades há de ter, como a dos homens, seu tempo dominante,
o que se há de deduzir pelas conjunções dos astros na ocasião
de seu nascimento. Estas coisas e outras do mesmo estilo é
provável que, por sua novidade e curiosidade, sejam gratas
àqueles que as lêem, como desagradáveis e aborrecidas para
os que as têm por fabulosas.
XIII — Fundada a cidade, a primeira coisa que se fêz foi
distribuir quem era aproveitável para as armas, em batalhões
militares: cada batalhão tinha três mil homens a pé, e trezen­
tos a cavalo, o qual se chamou legião, porque para êle, se esco­
lhiam dentre todos, os mais belicosos.
Em geral, à decisão dos negócios concorria a multidão, a
qual se deu o nome de populus, povo; mas dentre todos, cêrca
de cem, os de maior mérito, foram escolhidos para conselhei­
ros, e a êles lhes deu o nome de patrícios, e à corporação, que
formavam, o de Senado. Sem dúvida alguma, esta palavra
significa ancianidade; mas, a respeito do nome de patrícios,
dado aos conselheiros, uns dizem que veio do fato de serem
pais de filhos livres; outros, que eram filhos de pais conheci­
dos, vantagem de que gozavam poucos dos que à cidade se ha­
viam recolhido, e outros, finalmente, do direito de patronato,
porque assim se chamava, e se chama ainda hoje a proteção
que àqueles dispensam; julgando-se que de um daqueles que vie­
ram com Evandro, chamado Patrão, de caráter benéfico e cari­
doso para com os miseráveis, originou-se aquela denominação.
Contudo, parece-me que se aproximará mais da verdade o
que diga que Rômulo, querendo por um lado estimular os pri­
meiros e mais poderosos a usar de uma proteção e cuidado pa­
ternal para com os humildes, e por outro, ensinar a êstes a
não temer nem ter ódio à autoridade e às honrarias dos prin­
cipais, mas olhá-los com benevolência, considerando-os como
pais e saudando-os dêsse modo, com êsse sentido lhes deu aquê­
le nome. Assim é que ainda agora, àqueles que são do Senado,
estrangeiros, chamam próceres; mas os romanos chamam pais
conscritos, usando o nome que entre todos tem mais dignidade
(101) Agosto-setembro.
(102) Março-abril.
180 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

e honra, sem nenhum sentimento odioso. No princípio, pois,


somente os chamavam pais; mas, mais tarde, tendo aumentado
o número, chamaram-lhes pais conscritos. Êste nome foi o que
lhes pareceu mais respeitoso para significar a diferença entre
o conselho e a plebe; mas, ainda distinguiu de outro modo os
principais a respeito desta, chamando-os patronos, isto é, pro­
tetores; e aos plebeus, clientes, como dependentes ou colonos,
estabelecendo, ao mesmo tempo, entre uns e outros, uma admi­
rável benevolência, fecunda em recíprocos benefícios; porque
aquêles se constituíam advogados e protetores dêstes em seus
pleitos, e seus conselheiros e tutores em todos os negócios; e
êstes os reverenciavam, não somente obsequiando-lhes, mas do­
tando as filhas dos que não podiam, e pagando suas dívidas.
E a testemunhar não eram obrigados, nem por lei nem pelos
magistrados, ou o patrão contra o cliente ou o cliente contra o
patrão. E agora, para finalizar, como uns e outros tinham as
mesmas obrigações, considerou-se ignominioso e torpe o fato
de que os poderosos recebessem retribuição pecuniária dos
clientes. Mas basta, por ora, o que dissemos de tais coisas.
XIV — No quarto mês, após a fundação, se verificou, como
Fábio narra, o rapto das mulheres. Dizem alguns que o pró­
prio Rômulo, sendo belicoso por índole, e excitado com certos
rumores de que Roma tinha o destino de tornar-se grande,
criada e mantida pela guerra, resolveu usar de violência con­
tra os sabinos. Não era só o rapto das trinta donzelas, era
como se procurasse mais guerra do que casamentos; mas isto
não parece verídico, porque vendo que a cidade em pouco tem­
po se tornara populosa, e poucos os habitantes casados, sendo
a maioria dêles adventícios, gente pobre e obscura, não ofe­
recendo nenhuma segurança de permanência; e contando com
que, para os próprios sabinos, êste insulto se havia de conver­
ter em um princípio de afinidade e reunião por meio das mu­
lheres, cujos favores ganhariam, realizou o que planejara na
ordem seguinte: fêz antes correr o boato de que havia encon­
trado o altar de um deus, que estava escondido debaixo da ter­
ra: ao deus chamavam Cônsulo, ou por presidir ao Conselho,
pois ao Corpo de conselheiros ainda chamam Concilio, e côn­
sules aos primeiros magistrados, como previsores; ou por ser
congregação eqüestre a Netuno, porque seu altar no Circo Má­
ximo está sempre coberto, e só aparece nos jogos eqüestres.
Porém, outros querem que tal se dá, precisamente, porque sen­
do seu Conselho secreto e incomunicável, não sem justa razão,
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 181
se supôs ser dêste deus um altar que estava escondido debaixo
da terra. Logo que o encontrou, prepararam um solene sacri­
fício, combates e espetáculos com geral convocação; concorreu
grande gentio, e Rômulo estava sentado com os principais,
adornado com um manto. Era sinal para o momento da exe­
cução, levantar-se, abrir o manto, e voltar a cobrir-se; e havia
muitos armados que aguardavam o sinal. Dado êste, desnu­
daram as costas e, acometendo com gritaria, raptaram as don­
zelas dos sabinos; e como êstes fugissem, deixaram-nos ir sem
segui-los. Quanto ao número das raptadas, uns dizem que não
passava de trinta, o que deu nome às cúrias; Valério de Âncio
(103) diz que foi setecentas e vinte e sete; Juba (104), que
foram seiscentas e oitenta e três donzelas. A melhor apologia
de Rômulo foi a de não ser raptada nenhuma casada, mas
sòmente Ercília, por engano; provando-se com isto que, não
por afronta ou injúria, cometeram o rapto, mas com a inten­
ção de misturar os povos, amenizando, assim, a maior de todas
as faltas. Dizem alguns que Ercília se casou com Hostílio,
varão muito distinto entre os romanos; e, outros, que se casou
com o próprio Rômulo, a quem deu filhos: uma só filha, cha­
mada Prima pela ordem do nascimento, e um filho só, a quem
deu o nome de Aólio (105), em alusão a muitos cidadãos que
se haviam congregado sob seu mandato; mas, depois, lhe cha­
maram Abílio. É esta narrativa de Zenódoto de Trezena
(106); mas há muitos que a contradizem.
XV — Por ocasião do rapto, contam que alguns da plebe
traziam uma donzela de extraordinária beleza. Encontrando-
-se com os outros patrícios, êstes quiseram agarrá-la, mas êles
diziam a gritos que a levavam para Talássio, homem muito
jovem, na verdade, mas muito bem visto e de excelente con­
duta; o que foi recebido com aplausos por todos e, alguns
dizem, que seguiram juntos com alegria e regozijo, pronun­
ciando, em altas vozes, o nome de Talássio. Desde então, aos
casamentos, como os gregos chamam Himeneu, chamam os ro­
manos Talássio, porque afirmam que Talássio foi muito feliz
com aquela esposa.
(103) Autor de uns Anais Romanos.
(104) Filho do Rei de Mauritânia. Trazido em criança para
Roma como prisioneiro, ali foi educado, alcançando, com o templo, al­
guma fama como historiador.
(105) De uma palavra grega que significa assembléia.
(106) Autor de uma História dos Homens.
182 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Séxtio Sila, o cartaginês, a quem não faltavam cultura e


graça, disse-me que Rômulo deu por senha do rapto esta pa­
lavra, "Talássio”, a qual todos gritavam ao arrebatar as don­
zelas, e ficou nas bodas êste costume. Mas há outros, de cujo
número faz parte Juba, que são de opinião que não é nada
mais do que uma exortação e excitação à vida laboriosa e ma­
nejo da lã, não havendo, então, ainda confusão entre os nomes
gregos e latinos.
Mas se isso não tem fundamento e os romanos usavam
como nós da palavra Talássio, poder-se-ia conjeturar outra
causa mais provável daquele uso, porque, depois que os sabi-
nos, feita a guerra, se reconciliaram com os romanos, fêz-se
um tratado acêrca das mulheres para que não fossem obriga­
das a fazer em casa outro trabalho a não ser os relativos à lã;
e também há ainda o costume de, nos casamentos, os convida­
dos, assim como todos que se encontram presentes, exclamarem
"Talássio” (107), como dando a entender que a mulher não
tem outro encargo em casa senão o de fiar a lã. Daí vem tam­
bém o costume de não atravessar a noiva por si própria a so­
leira da porta, senão carregada, porque as sabinas não entra­
ram e, sim, foram levadas à força. Dizem, também, que o
costume de repartir o cabelo da noiva com a ponta da lança,
vem daí, porque as primeiras bodas se fizeram por intermédio
da guerra; mas destas coisas tratamos amplamente nas ''Ques­
tões romanas”. Sucederam-se êstes fatos no dia 18 do mês
que então se chamava Sextil, agora agosto, no mesmo dia em
que se celebravam as festas consulares (108).
XVI — Eram os sabinos numerosos, muito guerreiros e
habitavam povoados sem fortificações, pois eram valentes e
resistentes, o que é próprio de homens que descendiam dos la~
cedemônios. Mas, vendo que os romanos se atreviam a gran­
des emprêsas, e temendo por suas filhas, enviaram embaixa­
dores a Rômulo com propostas eqüitativas e moderadas; que
devolvendo as donzelas, e dando-lhes satisfação pelo ato de vio­
lência, depois, pacificamente, e com justas condições, estabe­
leceriam para ambos os povos amizade e comunicação. Não
aceitando a proposta de entregar as donzelas, Rômulo, embora
convidasse também à aliança os sabinos, todos os outros apro-
(107) Neste caso a palavra viria, segundo um comentador, de ta-
lássios, ou talaros, do grego, com a que se chama a cesta onde as
mulheres põem seus trabalhos de lã.
(108) Celebram-se no dia 13 do mês de agosto.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 183

veitaram o tempo para prepararem-se e deliberar; mas Ácron,


rei dos ceninetes (109), homem valente e aguerrido, suspeitou
de Rômulo, e julgando, depois, que o fato do rapto das mu­
lheres, deixou a todos temerosos, e que não era para ficar
sem castigo, declarou guerra, e com numerosas tropas marchou
contra Rômulo, e êste contra êle. Logo que se avistaram, pro-
vocaram-se mutuamente para combate singular, permanecendo
os exércitos tranqüilos sôbre as armas. Fêz votos Rômulo que,
se vencesse e derrubasse o seu contrário, levaria em oferenda
a Júpiter suas armas; venceu-o realmente, e derrubou-o, dis­
persando, depois, num combate, os seus exércitos. Tomou tam­
bém a cidade, e nenhuma outra condição impôs aos vencidos
senão que destruíssem suas casas e o acompanhassem a Roma,
onde seriam recebidos com inteira igualdade de direitos. Nada
houve, pois, que mais contribuísse para o aumento de Roma,
do que essa política de incorporar em seu seio os povos sub­
jugados.
Rômulo, para fazer seu voto mais grato a Júpiter e mais
majestoso aos olhos de seus cidadãos, afortunadamente, no lu­
gar onde estava, encontrou uma grande carvalheira, que cor­
tou e dando-lhe a forma de um troféu, pendurou, nela, orde­
nadamente, cada uma das armas de Ácron; cingiu a túnica e
colocou uma coroa sôbre a vasta cabeleira; segurou com a
esquerda o troféu, e apoiando-o ao ombro, levou-o, marchando
à frente da tropa, em direção à cidade, entoando um canto de
vitória (110), na qual foi recebido pelos cidadãos com admi­
ração e regozijo. Esta pompa deu origem ao ensejo de pró­
ximos triunfos, e o troféu foi dedicado a Júpiter Ferétrio, por­
que os romanos ao ferir os inimigos chamam ferire, e Rômulo
havia pedido a Júpiter que ferisse e matasse o inimigo; diz
Varrão, e chamam ópimos os despojos, porque também à rique­
za chamam opem; melhor, porém, seria meu conceito de ação,
porque ao que se faz com trabalho chama-se opus. E foi obra
de grande valor, para o general que por sua pessoa deu morte
a outro general, o oferecimento dos despojos; sorte que só ti­
veram três generais romanos, sendo o primeiro Rômulo, que
derrubou a Ácron; o segundo, Cornélio Coso, que deu morte
a Tolúmnio, o Tirreno, e o último, Cláudio Marcelo, que venceu
Britomarto, rei dos gauleses. Dêstes, Coso e Marcelo fizeram
já sua entrada em carrêtas, levando, êles próprios os troféus;
(109) Povo do antigo Lácio.
(110) Epinício era o canto da vitória.
184 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

mas de Rômulo não tem razão Dionísio Halicarnaso em dizer


que usou da carrêta, pois a opinião mais aceita é que foi Tar-
qüínio, filho de Demarato, o primeiro dos reis que introduziu
nos triunfos aquêle aparato e pompa, embora outros digam que
foi Publícola o primeiro que triunfou em carrêta; mas quanto
à Rômulo, todas as estátuas suas, que se vêem em Roma, em
atitude de triunfo, são pedestres.
XVII — Depois da derrota dos ceninetes, quando ainda os
outros sabinos faziam preparativos, declararam-se contra os
romanos os de Fidenas, de Crustumino e Ântemo, e dada a
batalha, sendo da mesma maneira derrotados, tiveram de dei­
xar que, pelos romanos, fossem tomadas as suas cidades, seus
campos repartidos, e êles próprios transladados para Roma.
Rômulo, então, repartiu a terra aos cidadãos; mas, os pais das
donzelas raptadas, ficaram com suas terras. Não satisfeitos
os outros sabinos, e nomeando Tácio seu general, marcharam
para Roma. Não era fácil aproximar-se dela, tendo por muro
o que agora é o Capitólio, onde se havia construído um forte,
no qual mandava Tarpéio, e não a donzela Tarpéia, como pre­
tendem alguns, dando uma má idéia do talento de Rômulo.
Era, contudo, Tarpéia filha do governador, a qual entregou,
por traição, o forte aos sabinos, deslumbrada com os braceletes
de ouro com que êles se adornavam. Assim, pediu por prêmio
de sua traição todos os que levavam no braço esquerdo. Tácio
aceitou a proposta e, à noite, ela abriu uma porta deixando
entrar os sabinos. Não foi Antígono, segundo parece, o único
que disse que gostava dos traidores enquanto o eram, mas os
abominava logo depois; ou César Augusto, a quem se atribui
o haver dito de Rumetacles, que gostava da traição, mas abor-
recia-o o traidor, esta é antes uma aversão geral até para os
maus, de todos os que têm aversão de valer-se dêles, como su­
cede quando se necessita o veneno ou o fel de algumas feras,
porque gozando do benefício quando se recebe, odeia-se a mal­
dade depois de desfrutá-lo.
Assim sucedeu a Tácio em relação a Tarpéia, porque man­
dou a todos os sabinos que tivessem na memória o que havia
combinado com ela, e que lhe entregassem tudo o que traziam
sôbre o braço esquerdo, e foi o primeiro que, ao deixar cair
o bracelete, deixou cair também o escudo, e fazendo o mesmo
todos, com o amontoamento do ouro e dos escudos, com êste
pêso, por cima, Tarpéia morreu sufocada. Também Tarpéio
sofreu a pena da traição, foi perseguido por Rômulo, segundo
Juba, como escreveu Galba Sulpício.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 185

Muitas coisas se contam de Tarpéia; mas entre as que


não merecem crédito estão a que se conta de Antígona (111),
que era filha de Tácio, a qual, forçada violentamente por Rô­
mulo, traiu o pai, mas foi punida por êste. Mas o que intei­
ramente delira é o poeta Símilo (112), pensando que foi aos
celtas, e não aos sabinos a quem, enamorada de seu rei, entre­
gou Tarpéia o Capitólio. Disse, pois, assim:
Ocv/pava Tarpéia o alto castelo
Capitolino em Roma mal segura,
e inflamada pelo celta de fútil amor
foi guarda infiel dos paternos lares;
e no fim de pouco tempo a respeito de sua morte:
Não os Bóios ou mil outras nações
de celtas no Pó a submergiram;
mas oprimida de marciais armas,
estas foram sua digna sepultura.
XVIII — Por Tarpéia, que ali ficou sepultada, o local se
chamou Tarpéia até o tempo do rei Tarqüínio, o qual, dedican­
do aquêle lugar a Júpiter, mudou dali os restos e tirou o nome
de Tarpéia. Só ficou uma rocha, a que ainda agora chamam
Tarpéia, da qual são precipitados os malfèitores. Ocupado
pelos sabinos o castelo, Rômulo, ardendo de ira, provoca-os
para a luta, e Tácio mostrava-se confiado numa retirada sem
risco. Era o local, onde se havia de combater, cercado de
montes, o que, para uns e outros, tornaria a luta difícil, mas
tornaria rápida a fuga e a perseguição, devido à estreiteza
das saídas.
Por casualidade, poucos dias antes houve enchente do rio,
deixando um lodo profundo nos lugares mais baixos, onde está
agora o Foro; assim não era fácil evitar o atoleiro, pois for­
mava uma camada que afundava logo. Dirigindo-se sem cau­
tela para ali, os sabinos foram vencidos por um acaso, porque
Cúrcio, homem valente e altivo, que ia a cavalo e havia se
adiantado dos outros, entrou no lodaçal e por mais que pro­
curasse tirar o cavalo não lhe foi possível; por fim, teve de
abandoná-lo e salvar-se. O lugar ainda até hoje tem o nome
(111) Antígono Carístio, autor de uma História de Itália.
(112) Poeta grego, autor de uma História de Itália, em verso.
186 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

de lago Cúrcio (113). Precavendo-se, pois, daquele perigo,


sustentaram os sabinos um combate, que permanecia indeciso,
por ser muitos os que morriam, e, entre êles, Hostílio, que se
diz haver sido marido de Ercília e avô de Hostílio, o que reinou
depois de Numa. Houve depois, como era natural, vários com­
bates em curto espaço. Faz-se menção de um, o último dêles,
no qual, ferido Rômulo com uma pedra — ferimento que quase
o deitou por terra — e não podendo resistir aos sabinos, recua­
ram os romanos, e fugindo se retiraram para o Palatino, ex­
pulsos da planície. Rômulo, refazendo-se do gclpe, pôs-se à
frente dos que fugiam, procurando fazê-los voltar ao combate,
e a grandes gritos os exortava que se detivessem e lutassem;
mas crescendo, apesar disso, o número dos que fugiam, e não
havendo quem ousasse voltar o rosto, levantando as mãos ao
céu, fêz uma prece a Júpiter para que contivesse o exército e
não os abandonasse, e que voltassem, para honra e glória de
Roma. Concluída a prece, muitos se envergonharam e sobre­
veio a ousadia àqueles que fugiam. Detiveram-se, primeira­
mente, onde está agora o templo de Júpiter Estátor, que não
se interpretaria mal chamando-o de detentor. Refazendo-se,
pois, novamente, fizeram os sabinos se retirarem para o local
que agora se chama Régia até ao templo de Vesta.
XIX — Dispunham-se para continuar a luta, quando lhes
conteve um espetáculo muito terno, e um encontro que nem se
pode descrever com palavras. De repente, as filhas dos sabi­
nos, que haviam sido raptadas, apareceram umas por um lado
e outras por outro com grande algazarra, por entre os feridos
e mortos, como levadas por um divino impulso, procurando os
maridos e os pais, umas levando os filhos pequenos nos braços,
outras com os cabelos desgrenhados, e todas chamando pelos
nomes mais ternos, ora os sabinos, ora os romanos. Detive-
ram-se uns e outros, deixando-as chegarem ao meio do campo;
por toda parte ouviam-se prantos e tudo era aflição, quer pelo
espetáculo, quer pelas razões, que, começando pela reconven-
ção, terminaram em súplicas e rogos. Porque diziam: "No
que vos ofendemos, que desgostos vos causamos para nos fa­
zerem sofrer êsses males, além dos que padecemos e os que
nos restam padecer? Fomos raptadas, violenta e injustamen­
te, por aquêles que nos mantêm em seu poder, e depois dessa
desgraça não se importaram conosco no tempo que foi necessá-
(113) Tito Lívio e Varro atribuem a outras tradições a causa de
haver-se chamado assim êste lago.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 187

rio para que, obrigadas por necessidade às coisas mais odiosas,


tenhamos agora que temer e que chorar pelos mesmos que nos
trouxeram e injuriaram, se combatem ou se morrem.
Não viestes por umas donzelas tomar satisfação dos que
as ofenderam, mas vindes para privar as casadas de seus ma­
ridos e a mãe de seus filhos, tornando mais cruel para nós,
desditosas, êste auxílio, que foi vosso abandono e aleivosia.
Estas prendas de amor nos deram aquêles, e assim se compa­
deceram de nós. Embora lutásseis por qualquer outra causa,
deveríeis, por nós, conter-vos; sois sogros, avós e parentes;
mas se por nós é a guerra, levai-nos com vossos genros e
vossos netos, restituindo-nos nossos pais e parentes; não nos
priveis, vos pedimos, de nossos filhos e maridos, para não nos
vermos, outra vez reduzidas à sorte de escravas”.
Ditas por Ercília estas e outras muitas razões, e interpon­
do as outras também seus rogos, fizeram-se tréguas e os ge­
nerais reuniram-se para conferenciar. Entrementes, as mu­
lheres apresentavam às mães os maridos e os filhos; davam
de comer e de beber aos que pediam; cuidavam dos feridos,
levando-os para as suas casas, e procuravam demonstrar que
as governavam e que assim o faziam por seus maridos, por
isso eram tratadas com a maior consideração. Fêz-se um tra­
tado, pelo qual as mulheres, que quisessem, ficariam com aquê­
les que as mantinham consigo, não mais sujeitas, como já se
disse, a outra ocupação que a de fiar a lã; que morariam na
cidade romanos e sabinos; que esta, de Rômulo, chamar-se-ia
Roma; mas todos os romanos chamar-se-iam Quírites, em me­
mória da pátria de Tácio, e que ambos reinariam também uni­
dos e comandariam as tropas. O lugar, onde se firmou êste
tratado, ainda se chama Comício, porque os romanos, ao reuni­
rem-se, dizem comire.
XX — Aumentada a cidade, elegeram-se outros cem pa­
trícios dos sabinos, e as legiões constaram de seis mil homens
a pé e seiscentos a cavalo. Dividiram em três legiões: os de
Rômulo chamaram-se Ramnenses, os de Tácio Tacienses, e os
outros, Lucenses, porque se refugiaram na selva para gozar
de asilo e serem admitidos nos direitos de cidadãos, e porque
à selva chamavam-na lucus. Eram estas três divisões, e ainda
se chamavam tribos, e tribunos aos presidentes delas. Cada
tribo teve dez cúrias, as que alguns dizem haver tomado o nome
daquelas mulheres; mas isto parece falso, porque muitas to­
maram a denominação de certos territórios. Contudo, muitas
188 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

outras concessões se fizeram para as mulheres, entre elas as


seguintes: ceder-lhes a calçada quando vão pela rua; não poder
proferir palavras indecentes na presença de uma mulher; não
despir-se na sua presença; não serem obrigadas a dar teste­
munho ante os juízos de causas capitais; que seus filhos levem
ao pescoço um lenço de púrpura, e de adorno, o que, por sua
forma, imitando as bolhas d’água, chama-se bula. Tinham os
reis seu Conselho, não em união, mas primeiramente, cada um,
com seus cem patrícios, e depois se reuniam todos.
Tácio habitava onde agora está o templo de Moneta, e
Rômulo, junto aos degraus chamados de Riva formosa, que
estão na baixada do Palatino ao Circo Máximo. Ali mesmo,
dizem que esteve o Sanguinho sagrado, do qual contam esta
lenda: exercitando-se Rômulo, arrojou do Aventino sua lança,
que tinha a haste do sanguinho; cravou-se a ponta tão profun­
damente, que não houve quem a pudesse tirar, embora muitos
o tentassem; e a haste, prêsa na terra fecunda, brotou, e cres­
ceu um tronco muito robusto de sanguinho. Depois de Rômulo
o conservaram e o veneraram como coisa sagrada, e fizeram
uma cerca ao redor. Quando alguém, ao passar perto lhe pa­
recia que não estava viçoso e com bom aspecto, mas que mur­
chava, chamava, em altos brados, aos outros, e êstes, assim
como é costume se auxiliar para apagar os incêndios, pediam,
em altas vozes, água, e de todos os lados acorriam levando cân­
taros cheios d’água. Mas, segundo dizem. Caio César mandou
os operários fazer concertos nos degraus e êles, sem serem ad­
vertidos, ao excavarem, destruíram as raízes e a árvore secou.
XXI — Aceitaram também os sabinos os meses dos ro­
manos — a êsse respeito dissemos na "Vida de Numa” o que
nos parece oportuno. Rômulo, por sua vez, adotou o escudo
dos sabinos, mudando êle próprio sua armadura e também os
romanos, que antes usavam os escudos dos argivos.
Festas e sacrifícios foram adotados, tanto de uns como de
outros, e entre outras, as festas Matronais (114), concedidas
às mulheres, em memória de terem feito cessar a guerra e
também as Carmentais (115). Julgam alguns que Carmenta
é uma divindade que preside ao nascimento dos homens, e por
isso as mães a veneram: outros, que é a mulher de Evandro
de Arcádia, profetisa e pitonisa, que transmitia os oráculos em
(114) Quer dizer, festa das mulheres romanas. Celebram-se nos
primeiros dias de abril e maio.
(115) Celebram-se em 11 de janeiro.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 189
verso, e, por isso, se chamou Carmenta, porque os versos cha­
mam Carmina, sendo Nicóstrata seu nome próprio; e tal é o
comumente aceito. Contudo, outros, com mais probabilidade,
dão a êste nome de Carmenta a interpretação de mulher que
pedera o juízo por causa do alienamento em que ficam quando
estão inspiradas ou dominadas pelo entusiasmo, porque à pri­
vação chamam carere e mentem à razão. Quanto às festas de
Palílias já fizemos menção acima. As Lupercais (116), pela
época em que se realizam, poderiam reputar-se purificatórias,
porque se celebram nos dias nefastos do mês de fevereiro, que
pode muito bem interpretar-se purificativo, e o próprio dia,
os antigos o denominavam februato. O nome da festa para os
gregos sugere coisas de lobos, e poderia parecer que era antiga
dos árcades, que vieram com Evandro; mas, pelo nome, tanto
pode ser de uns como de outros, podendo ter vindo da loba,
pois soubemos que os lupercos marcam o ponto de partida de
suas carreiras, no próprio local onde se diz que Rômulo foi
exposto. Pelas cerimônias não é fácil se interpretar o motivo
da instituição. Começa-se por matar algumas cabras; depois
dois jovenzinhos ingênuos se colocam diante delas e alguns
mancham-lhes a fronte com a faca ensangüentada, outros os
limpam no mesmo instante, com lã embebida em leite; e os jo­
venzinhos, logo que estiverem limpos, devem rir. Feito isto,
cortam as correias das peles das cabras, e enrolando nelas, cor­
rem desnudos, batendo em todos que encontram; e as mulheres
não se esquivam de serem feridas, julgando que isto favorece
para que concebam e tenham um feliz parto. É também ceri­
mônia singular desta festa, que os lupercos sacrifiquem um
cão, Um poeta, chamado Butas (117), que escreveu em verso
elegíaco fabulosas origens de coisas romanas, diz que, vencido
Amúlio por Rômulo e Remo, vieram êstes, correndo e fazendo
algazarra, ao lugar onde, quando crianças, lhes deu de mamar
a loba; a festa é uma imitação daquela corrida, e os jovens
nobres vão por todas as partes
Ferindo aos que no caminho se apresentam,
como então correram desde Alba
Rômulo e Remo com espada Tia mão;
e que, o levarem a espada ensangüentada, é símbolo da carni­
ficina e perigo por que passaram; o limpar a mancha com lei-
(116) Celebram-se em 13 de fevereiro.
(117) Poeta grego pouco conhecido.
190 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

te, lembra como foram criados. Mas Caio Acílio (118) narra
que antes da fundação, aconteceu que o rebanho de Rômulo e
Remo desapareceu e fazendo preces a Fauno, correram em
busca dêles, despidos, para que o suor não lhes molestasse;
e por causa disto correm nus os lupercos.
Quanto ao sacrifício do cão, poder-se-ia dizer, se é de pu­
rificação, que o empregam como vítima expiatória, porque tam­
bém os gregos, nas que chamam expiatórias, oferecem cãezi-
nhos, e em muitas ocasiões usam o rito que toma dêstes a
denominação de perisculaquismo (119). Se, por outro lado,
isto se faz em memória de Rômulo, não é êrro matar um cão,
como inimigo que é dos lobos; a não ser que, por acaso, seja
castigo que se dá a êste animal, porque costuma atrapalhar os
lupercos na corrida.
XXII — Diz-se, também, haver sido Rômulo quem primei­
ro instituiu o fogo sagrado, criando as sacerdotisas, as virgens
que se chamaram Vestais; mas outros o atribuem a Numa, sem
que, por isso, deixe de assegurar-se que Rômulo foi muito reli­
gioso. E ainda acrescentam que se dedicava à ciência augural,
e que, para seu exercício, usava do chamado lituus. Era uma
varinha curvada nas extremidades, com a qual, sentados, os
adivinhos descreviam os pontos cardeais para os augúrios:
guardava-se no Palácio; mas na invasão dos gauleses, quando
a cidade foi tomada, dizem que desapareceu, e que arrojados
depois aquêles bárbaros, foi achada entre os montes de cinza,
saindo ilesa do fogo, quando tudo o mais havia sido queimado.
Promulgou também algumas leis, das quais muito severa é a
que permite ao marido repudiar a mulher, concedendo a êste,
o direito de abandonar a mulher por envenenar os filhos, por
falsificar as chaves e por cometer adultério; se por outra causa
qualquer a repudiava, ordenava-se que a metade de sua renda
fosse para a mulher e a outra metade para o templo de Ceres,
e que aquêle que assim a repudiasse teria de aplacar os deuses
infernais. Foi, também, resolução sua não haver dado pena
contra os parricidas, e ter chamado parricídio a todo homicídio,
como sendo possível êste, mas impossível aquêle; e por muito
tempo pareceu que, com razão de sobra, se teve por desconhe­
cida semelhante maldade, porque não houve ninguém em Roma
que a cometesse num período de seiscentos anos; sendo o pri-
(118) Autor de uns Anais escritos em grego e traduzidos por
Clódios em latim.
(119) Quer dizer, sacrifício de cãezinhos.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 191
meiro, de quem se conta ter sido parricida, depcis da guerra
de Aníbal, Lúcio Hóstio; mas basta destas coisas.
XXIII — No quinto ano do reinado de Tácio, alguns fa­
miliares e parentes seus, encontrando-se com certos embaixa­
dores que de Laurento vinham à Roma, combinaram despojá-
-los violentamente de seus bens, no caminho, e como êles se
defendessem, e não permitissem, mataram-nos. Cometida tão
abominável ação, Rômulo foi de opinião que deviam ser cas­
tigados seus autores; mas Tácio deixava-os soltos e não os
perseguia, sendo êste o único motivo conhecido de dissenção
que houve entre êles, pois em tudo o mais concordavam sempre.
Entretanto, os parentes dos que haviam sido assassinados, sem
esperanças de que se fizesse justiça por causa de Tácio, encon­
trando-o em Lavínio, no momento de um sacrifício, mataram-
-no; e a Rômulo louvaram, chamando-o de homem justo. Tra­
tou êste de que se transladasse o cadáver de Tácio e que lhe
dessem sepultura, o qual jaz junto ao chamado Armilústrio
(120), no Aventino; mas não pensou em vingar sua morte, e
alguns historiadores narram que a cidade dos laurentanos, por
temor, entregou os agressores; porém, que Rômulo lhes deu
liberdade, dizendo que morte com morte se compensava; o que
deu motivo para pensar e suspeitar que não havia sido desa­
gradável que o tivessem deixado sem colega no mundo. Nem
por isso, quanto aos negócios, se inquietaram os sabinos, mas
uns, por amor a Rômulo, outros por mêdo de seu poder e ainda
outros, olhando-o como divino, todos lhe prestavam homena­
gens com admiração e benevolência. Muitos dos estrangeiros
olhavam com veneração a Rômulo; e os mais antigos habitan­
tes do Lácio se adiantaram em solicitar sua amizade e aliança.
Mas, a cidade de Fidenas, vizinha de Roma, tomou-a pelas ar­
mas, segundo dizem alguns, mandando na frente a cavalaria,
com ordem de romper os gonzos das portas e aparecendo, dêste
modo, ali, quando menos se esperava; mas outros asseguram
que os fidenates foram os primeiros a fazer prisioneiros e de­
vastar os arrabaldes de Roma, e que Rômulo, preparando-lhes
ciladas, e fazendo-lhes perder muita gente, tomou a cidade.
Contudo, não a incendiou, ou devastou, porém, tornou-a colô­
nia de romanos, fazendo passar para ela dois mil e quinhentos
habitantes nos idos (121)^ de abril.
(120) Chamava-se assim porque nêle se celebrava a purificação
das tropas.
(121) O dia 13.
192 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

XXIV — Sobreveio, naquela época, uma peste tão.violenta


que causava morte repentina e juntamente com ela, o gado
tornou-se estéril e a terra infecunaa; na cidade, além disso,
caiu chuva de sangue; e a êstes males, que tinham de sofrer,
acrescentava-se ainda uma superstição. Principalmente quan­
do os habitantes de Laurento experimentaram a mesma coisa,
parecia que a ira divina caíra sôbre as duas cidades, devido ao
abandono da justiça na morte de Tácio e na dos embaixadores.
Entregues reciprocamente e castigados os delinqüentes, cessa­
ram logo as pragas; e Rômulo purificou ambas as cidades com
expiações, que se diz praticaram ainda junto à porta ferentina.
Antes de desaparecer a peste, os camérios (122) atacaram os
romanos e devastaram suas terras, julgando que não estariam
em situação de defender-se devido àquela calamidade; mas Rô­
mulo marchou contra êles e venceu-os em combate, no qual
morreram seis mil dêles; e tomando a cidade, a metade dos
que íutaram os levou para Roma, e de Roma mandou para Ca-
méria, o dobro da outra metade, nas calendas sextiles (123).
De tal maneira havia crescido o número dos cidadãos em de­
zesseis anos que habitavam Roma! Entre os demais despojos,
trouxe de Caméria uma carrêta com quatro cavalos de bronze;
consagrou-o no templo de Vulcão, pondo nêle sua estátua, co­
roada pela Vitória.
XXV — Dêste modo, tomava Roma consistência e os vi­
zinhos fracos cediam, e por não terem o que temer, já se davam
por satisfeitos; mas os mais fortes, parte por mêdo e parte
por inveja, julgavam que não deviam ficar quietos, mas opor-
-se a tanto incremento e conter Rômulo. Entre os tirrenos,
foram os vetianos os primeiros que, tendo um extenso terri­
tório, e habitando uma cidade populosa, tomaram, por pretexto
e princípio de guerra, o reclamar Fidenas, porque pertencia a
êles. Isto não só era injusto, mas ridículo, porque depois de
não a haverem defendido, quando estava em perigo, deixando
perecer seus habitantes, vinham agora reclamar as casas e o
território, quando já haviam passado a outro poder. Tendo,
pois, recebido de Rômulo violenta resposta, dividindo-se em
dois corpos, opuseram-se: um às forças que havia em Fidenas,
e com o outro foram à procura de Rômulo; e vencedores sôbre
Fidenas, deram cabo de dois mil romanos; mas, vencidos por
Rômulo, perderam mais de oito mil homens. Foram outra vez
(122) Habitantes de Caméria, cidade do Lácio.
(123) Calendas de agosto. O primeiro dia do mês.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 193

contra Fidenas, e todos concordam que Rômulo teve, nesta


ação, a principal parte, reunindo ousadia e prontidão com pe­
rícia, e usando de uma coragem, ao que parece, sobre-humana;
é, todavia, inteiramente fabuloso, ou, para melhor dizer, de
nenhum modo possível, o que contam alguns, de que sendo os
que pereceram catorze mil, mais da metade foram mortos pelo
próprio Rômulo; quando ainda parece que estão exagerando
os messenianos com seu Aristômenes, dizendo que sacrificou
trezentas vítimas por outros tantos lacedemônios a quem deu
morte. Estando em retirada, Rômulo deixou correr os que
assim fugiam e encaminhou-se à cidade de Veios, onde, não
podendo resistir a tanta calamidade, fizeram um tratado de
paz e amizade por cem anos, cedendo aos romanos seu terri­
tório, chamado Septempagium, como se disséssemos sete par­
tes (124), desistindo das fontes de água salgada que possuíam
junto ao rio, e entregando, como reféns, cinqüenta dos princi­
pais. Triunfou Rômulo sôbre êles nos idos de outubro (125),
conduzindo muitos escravos, e entre êles o general dos veianos,
homem ancião, que não se conduziu na ação com juízo e in­
teligência correspondentes àquela idade; por isso, ainda agora,
quando se fazem sacrifícios sôbre a vitória conseguida, guar­
da-se o rito de levar da praça ao Capitólio um ancião, o qual
vestem de púrpura e põem-no ao pescoço a bula infantil, e
grita o arauto: "Sardos à venda”.
Isto porque os tirrenos passam por colônia perto de Sar­
das, na Lídia, e Veios era cidade do país Tirreno.
XXVI — Esta foi a última guerra em que Rômulo inter­
veio. Daí por diante não ficou livre de incorrer no que acon­
tece a muitos, ou, para melhor dizer, excetuando muito poucos,
a todos os que, com grande e extraordinária prosperidade, são
elevados em poder e fausto; porque, engrandecido com as vi­
tórias, com ânimo altaneiro, trocou a popularidade por um
modo de reinar desagradável e enfadonho, até pelo ornato, pois
começou a vestir uma túnica sobressalente, adornou com púr­
pura a toga e despachava os negócios públicos reclinado sob
dossel. Acompanhavam-no alguns jovens, chamados céleres
pela sua prontidão em servir, e lhe precediam outros que, com
varas, afastavam a multidão, e levavam correias para atar a
(124) Tradução errônea devida, ao que parece, ao imperfeito co­
nhecimento que tinha Plutarco da língua latina. Septem pagi significa
sete lugares ou aldeias.
(125) O 15 de outubro.
194 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

quem êle ordenasse; e ao atar, os latinos antigamente diziam


ligare, e agora alligare, e por isso os que iam com as varas se
chamaram lictores, e os outros báculos, porque então usavam
de varas. Mas, por acaso se dizem lictores, interposta a letra c,
e antes litores, a grega, como liturgos ou ministros públicos;
porque ainda agora os gregos chamam leitos ao povo e laos à
plebe.
XXVII — Quando, por morte de seu avô Numitor, em
Alba, coube-lhe o reino, para se tornar popular, cada ano elegia
um governador para os albanos. Instruiu com isto os princi­
pais entre os romanos, para que procurassem estabelecer uma
autoridade diferente da régia, e o govêrno propriamente das
leis, mandando em parte e sendo mandados, pois nem os pa­
trícios tomavam parte na administração e só gozavam de certó
aparato e nome honorífico, reunidos no Concilio ou no Senado,
mais por formalidade do que realmente por interêsse de sua
opinião. Eram mandados e, calando, obedeciam ; não tendo
outra vantagem sobre os outros, senão a de estarem inteirados,
em primeiro lugar, do que se havia decidido. E tudo passava,
mas tendo Rômulo repartido pelos soldados as terras conquis­
tadas pelas armas, e restituindo aos veianos os rebanhos, sem
falár-lhes e consultá-los, julgaram que isso era já zombar in­
teiramente do Senado. Por isso, quando pouco tempo depois,
Rômulo desapareceu imprevistamente, as suspeitas recaíram
sobre os senadores. Foi, pois, seu desaparecimento nas nonas
Quintiles (126), como se dizia então, ou de julho, como se diz
agora, sem que nada certo e seguro tenha ficado sobre a sua
morte, senão a época, como se disse; porque ainda se executam,
naquele dia, muitos ritos e atos de imitação do que se passou.
E não é para estranhar esta incerteza, quando, havendo sido
encontrado morto, após a ceia, Cipião, o Africano, nada há a
respeito de sua morte que mereça algum crédito ou leve a algu­
ma certeza, dizendo uns que, andando já doente, naturalmente
faleceu; outros, que êle próprio comeu umas ervas para êste
efeito, e outros, que seus inimigos, lançando-se sobre êle na­
quela noite, sufocarãm-no. E, finalmente, Cipião estêve de
corpo presente para que todos pudessem tomar conhecimento.
Porém, Rômulo desapareceu repentinamente, sem que se visse
nem um membro de seu corpo nem um pedaço de suas vestes,
havendo alguns conjeturado que os senadores caindo sobre êle
no templo de Vulcão, despedaçaram-no e repartiram entre si
(126) 7 de julho.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 195
ò corpo, levando, cada qual, um pedaço. Outros opinam que
não foi no templo de Vulcão nem se achavam a sós os senado­
res quando Rômulo foi arrebatado, mas que ocorreu fora, junto
ao lago chamado de Cabra ou Cerva, onde estava falando ao
povo, e que, de repente aconteceram fenômenos maravilhosos,
superiores a tudo quanto se possa pensar, transformações in­
críveis; que a luz do Sol se eclipsou, e sobreveio uma noite em
nada serena ou tranqüila, mas com terríveis trovoadas, fura­
cões violentos e, em toda parte, grandes tempestades. Então
a plebe se dispersou e fugiu, e os patrícios se reuniram, e des­
vanecida a tormenta e restituída a luz, tornou a reunir-se no­
vamente o povo; todos procuraram e desejavam ver o rei; mas
os patrícios não lhes permitiam, nem lhes davam o lugar para
falar dêle, posto que os exortavam a venerar a Rômulo como
arrebatado da mansão dos deuses e convertido, de bom rei que
havia sido, num deus benéfico para êles. A maior parte acre­
ditou e se retirou satisfeita, venerando-o com as mais lison­
jeiras esperanças; mas houve alguns que recriminaram com
aspereza os patrícios sôbre êste fato, deixando-os inquietos e
acusando-os de que queriam fazer o povo acreditar nos maiores
absurdos, depois de terem sido os assassinos do rei.
XXVIII — No meio dessa confusão, dizem que um cidadão
da classe dos patrícios, muito ilustre em linhagem, muito res­
peitado quanto à sua conduta, além disso, amigo de confiança
de Rômulo, entre os que vieram de Alba, chamado Júlio Pro-
cles, apresentou-se na praça, e aproximando-se e jurando pelas
coisas mais sagradas, relatou em público que, indo pela rua,
apareceu-lhe Rômulo, com aparência mais bela e bem maior do
que o havia sido, adornado com armas brilhantes e resplande­
centes. Deslumbrado com a sua presença, êle lhe perguntara:
— Que te fizemos, ó rei, por que nos deixaste entre suspeitas
injustas e criminosas e todo o povo na orfandade e desconsolo?
E êle lhe respondera: "Os deuses dispuseram, ó Procles,
que só permanecêssemos entre os homens êsse tempo, porque
não somos daqui; e que, havendo fundado um império glorioso,
voltemos a habitar o Céu; regozija-te, pois, e diz aos romanos
que se exercitem na temperança e na fortaleza e chegarão ao
mais alto poder humano; e eu, sob o nome de Quirino (127),
serei sempre para vós um gênio tutelar”.
(127) Ver explicação no capítulo XXIX.
196 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

Pareceu esta narrativa, para os romanos, digna de crédito


pela consideração que êle merecia e pelo juramento que fizera;
e, além disso, despertou o entusiasmo, porque ninguém fêz ob-
jeções, e, afastando-se todos de suspeitas e perseguições, fize­
ram preces a Quirino e o invocaram como deus. Parece-se isto
com as lendas que os gregos nos contam sobre o ocorrido com
Afísteas Proconésio e Cleômedes Astupaleu, porque dizem que,
tendo morrido Arísteas numa oficina de pisoeiro, ao desejarem
seus parentes recolher seu cadáver, não o encontraram, e logo
depois disseram alguns, que vinham de viagem, que haviam
se encontrado com Arísteas, que ia a caminho de Crotona.
Cleômedes era um homem de uma corpulência e força extraor­
dinárias, mas era irascível e insensato; fazia mil violências, e
estando um dia, numa escola, dando um murro numa coluna,
que sustentava o teto, partiu-a, e o teto veio abaixo, perecendo
todas as crianças e, sendo perseguido, encerrou-se numa gran­
de arca e fechou a tampa por dentro e sustentou-a com tanta
força que todos juntos não conseguiram abri-la, e tiveram que
fazer em pedaços a arca, mas não o encontraram nem vivo nem
morto; admirados com o fato, dirigiram-se a Delfos, e a Pítia
lhes disse:
Sabeis que dos heróis o último
é Astupaleu Cleômedes.
Também se conta que o cadáver de Alcmena (128), ao ser le­
vado à sepultura, desapareceu, e no seu lugar encontrou-se
uma pedra; e assim outras lendas, querendo deificar, contra
a razão, a sêres por natureza mortais, igualando-os com os
deuses. E como desconhecer a divindade da virtude é abomi­
nável e feio, assim o mais irracional de tudo é misturar o céu
com a terra. Deixemo-lo, pois, assim como dizia Píndaro, o
certo é: que o corpo de todos está sujeito à caduca morte; mas
fica viva uma imagem da eternidade, porque ela somente é dos
deuses; de lá vem e para lá torna, não com o corpo, mas quanto
mais se afasta e distingue dêle, tornando-se totalmente pura,
incorpórea e inocente, porque a alma sêca é a melhor, segundo
Heráclito (129), lançando-se fora do corpo, como o raio da
nuvem. A que se liga ao corpo, e como que se abraça com êle,
é como um vapor pesado e nebuloso, que não se pode inflamar
(128) Mãe de Hércules.
(129) Heráclito de Éfeso, célebre filósofo grego do século V a. C.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 197

nem elevar. Portanto, não é coisa de que enviemos também


ao céu os corpos dos bons, mas que acreditemos que as virtu­
des e as almas, por uma natureza e justiça divina, dos homens
se transladam aos heróis, dos heróis aos gênios, e dêstes, como
numa iniciação, se purificam e santificam inteiramente, livran­
do-se de todo mortal, não por lei da cidade, mas por uma razão
prudente: transladam-se aos deuses, havendo conseguido o fim
mais glorioso e bem-aventurado.
XXIX — Quanto à denominação de Quirino, dada a Rô­
mulo, uns crêem que eqüivale a Marcial; outros que se deu
porque aos cidadãos se chamavam Quírites; outros, porque os
antigos chamavam a ponta de uma lança de quiris, e havia
uma estátua que se dizia de Juno Quírite, porque estava sôbre
a ponta de uma lança; e na Régia ou palácio a lança ali con­
sagrada chamava-se Marte, e com lança se costumava premiar,
na guerra, aos mais valentes, assim que a Rômulo, como a
muito marcial ou invicto, chamou-se Quirino; e há um templo
no monte que se chamou Quirinal. O dia em que desapareceu
se chama a fuga do povo, ou melhor, as nonas Capratinas,
porque descem para sacrificar, junto ao lago das Cabras, e a
esta chamam capra. Quando descem para o sacrifício, pro­
nunciam em altos gritos muitos dos nomes usados no país, como
Marco, Lúcio, Caio, representando a dispersão de então, e o
chamarem-se uns aos outros no meio do pavor e da confusão.
Outros dizem que esta representação não é de fuga, mas
de pressa e agitação, referindo-se à seguinte causa: quando
depois da ocupação de Roma pelos gauleses foram êstes repe­
lidos por Camilo, a cidade custou muito a recuperar-se e então
muitos latinos marcharam contra ela, levando por chefe Lívio
Postúmio. Acampou êste não muito distante de Roma, e en­
viou um arauto com a mensagem de que os latinos desejavam
renovar o parentesco, que já estava desaparecendo, com novos
casamentos, que se realizassem entre ambas as nações; portan­
to, que lhes enviando donzelas e outras mulheres não casadas,
teriam paz e amizade, como tiveram com os sabinos pelo mes­
mo motivo. Os romanos, ouvindo tais notícias, sabiam que, de
um lado, teriam a guerra e de outro, caso entregassem as mu­
lheres, seria mais do que uma submissão. Estavam discutindo,
sem encontrarem uma solução, quando uma escrava, chamada
Filótis, ou, como querem outros, Tutola, sugeriu que não fi­
zessem nem uma coisa nem outra, mas que, com certo ardil,
poderiam evitar a guerra, como também a entrega das mulhe­
198 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

res. Consistia o ardil em que a própria Filótis e outras escra­


vas se vestiriam como se fossem livres, e assim iriam se apre­
sentar ao exército inimigo; e que à noite, ela poria uma tocha
num lugar alto para que os romanos avançassem e surpreen­
dessem os inimigos dormindo.
Assim foi feito e caíram no ardil os inimigos; Filótis le­
vantou a tocha no alto de uma figueira, tendo colocado de um
lado roupas e cobertas para que os inimigos não percebessem
a luz, de modo que só os romanos a pudessem ver. Logo que
êstes a viram, saíram precipitadamente, chamando-se uns aos
outros, às portas da cidade, com o fim de animar-se reciproca­
mente; surpreenderam desprevenidos os inimigos, vencendo-os,
e em comemoração daquela vitória, celebram esta festa; e as
nonas se dizem Capratinas pela figueira a que chamam os ro­
manos caprífico. Convidam, nesta festa, as mulheres para
comer à sombra de ramos de figueira; e as escravas se con­
gregam também, e andam em volta, e por último simulam lutas
umas com as outras, e atiram pedras, simulando combate. Mas
isto poucos historiadores o admitem; na verdade, o usar na­
quele dia o rito de pronunciar, gritando, os nomes e o descer
para o sacrifício ao lago da Cabra, tem mais semelhança com
a primeira relação, e não que ambos acontecimentos tivessem
tido lugar no mesmo dia em épocas diferentes. Diz-se, final­
mente, que Rômulo desapareceu dentre os homens aos cinqüen­
ta e quatro anos de idade e aos trinta e oito de seu reinado.
COMPARAÇÃO DE TESEU COM RÔMULO

I — Isto é tudo quanto é digno de memória, que pudemos


recolher a respeito de Teseu e de Rômulo. Parece, pois, em
primeiro lugar, que Teseu, por escolha própria, sem precisar
de ninguém, e podendo reinar sossegadamente em Trezena, on­
de herdaria uma autoridade sem constrangimento, consagrou-
-se espontâneamente, a grandes emprêsas; enquanto Rômulo,
colocado entre o temor da escravidão presente e do castigo que
o ameaçava, fazendo-se corajoso por mêdo, segundo Platão
(130), viu-se obrigado, para evitar o perigo extremo, a arro­
jar-se a grandes coisas.
Em segundo lugar, a maior façanha de Rômulo é ter des7
truído a um só tirano em Alba; e para Teseu foram coisas de
menos importância, Escirão, Sínis, Procustes e Corunetes, cujo
extermínio libertou a Grécia de cruéis tiranos. Era-lhe per­
mitido fazer sua viagem por mar sem se incomodar com nin­
guém, pois daqueles bandidos nenhuma ofensa havia recebido;
mas Rômulo não lhe era dado não temer contendas, enquanto
Amúlio vivesse. Mas, a maior prova da superioridade de Teseu
consiste em que êste, sem haver sido agravado, em vingança
alheia se arrojou sôbre os facínoras; e Rômulo e Remo, en­
quanto em nada foram incomodados pelo tirano, deixaram-no
oprimisse os outros. E se foram gloriosas façanhas ser ferido
lutando com os sabinos, dar morte a Ácron e haver vencido,
em batalha, a muitos inimigos, bem podem entrar em paralelo
com elas a guerra com os centauros e a das amazonas. Pois,
para o arrojo de Teseu, por ocasião do tributo de Creta, ofere-
cendo-se êle próprio, quer fosse para pasto de uma fera, quer
para vítima sôbre a sepultura de Androgeu, ou, então, que era
o mais leve de quanto se diz na matéria, para sofrer uma ser­
vidão obscura e ignominiosa, sob o poder de homens injustos
(130) No Fédon.
200 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

e cruéis, fazendo, voluntàriamente, aquela viagem com as don­


zelas e os jovens, não será fácil dizer quanto necessitou de
ousadia e magnanimidade, ou de justificação nas coisas públi­
cas, ou de desejo de glória e de virtude. A mim, não me pare­
ce que os filósofos definem mal o amor, tendo-o por emprêsa de>
deuses para tutela e socorro de homens jovens (131), porque
o amor de Ariadna, mais do que por outra coisa, parece ter
sido obra e disposição de algum deus para salvação de Teseu.
E não há motivo, tampouco, para culpar aquela que dêle se
enamorou, mas antes admirar que todos, homens e mulheres,
não se lhe afeiçoassem do mesmo modo. E se ela só teve aquela
paixão, eu por mim diria que foi também de algum deus, por
ver que era amante do honesto, do bom e dos varões de valor.
II — Tiveram um e outro por natureza dotes políticos r
mas nenhum dos dois guardou a índole da autoridade régiar
ao contrário, mudaram-na: um para a democracia e outro para'
a tirania, pecando igualmente por caminhos opostos, porque
aauêle que tem autoridade deve guardar primeiramente a pró­
pria autoridade obtida; e, igualmente, contribui para isto não-
exceder-se, indo além do que é conveniente; nem ceder, nem
ultrapassar, porque assim já não permanece rei ou imperador,
mas degenera em demagogo ou em déspota, engendra nos sú­
ditos desprêzo ou ódio, embora no primeiro caso, por excesso
de eqüidade e humanidade, e no segundo, de arrogância e-
orgulho.
III — Pelo que toca aos infortúnios, não se deve atribuir tu­
do ao poder dos Gênios, mas buscar também as diferenças que*
induzem aos costumes e às afeições, pois ninguém absolverá de
uma cólera inconsiderada e de uma precipitação que participa
da irreflexão e de ira, a um, pelo cometido com o irmão, e a
outro, pelo cometido com o filho; mas a origem, que moveu a
ira, faz que se desculpe mais aquêle que foi de maior causa,
como também de mais terrível golpe arrebatado. Pois, a res­
peito de Rômulo, porque deliberando sobre as coisas públicas
se suscitasse alguma diferença, ninguém teria isto' por suficien­
te motivo para tal acaloramento; mas Teseu delinqüiu contra
o filho, coisas de que muitos poucos se livram: o amor, os ciú-

(131) Platão em “O Banquete”.


HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 201
mes, e as calúnias de sua mulher. E, o que é mais decisivo
ainda: em Rômulo, a cólera se propagou a obras e a uma ação
que teve fim nefasto; e a ira de Teseu chegou, sim, a expres­
sões, a blasfêmias e a imprecações próprias de um ancião;
quanto ao mais, parece que aquêle jovem sucumbiu à sua sorte.
Portanto, qualquer um votaria a favor de Teseu.
IV — A grandeza de Rômulo resplandece, antes de tudo,
em haver tido um comêço tão humilde para realizar coisas tão
grandes, porque uns homens, que se diziam serventes e filhos
de porqueiros, antes de terem êles próprios liberdade, tornaram
livres a quase todos os latinos, e adquiriram, de um só golpe,
os gloriosos nomes de destruidores de inimigos, salvadores dos
seus, reis de povos e fundadores de cidades, não removedores,
como o foi Teseu, juntando e formando, de várias, uma povoa-
ção, e fazendo desaparecer muitas cidades, que levavam os no­
mes de reis e heróis da antigüidade. O mesmo executou-o
também Rômulo, obrigando os inimigos vencidos a abandona­
rem as casas e irem habitar com os vencedores. Sua ação não
consistiu em remover ou acrescentar o que já existia, mas, em
fundar, onde nada havia, e adquirir para si, de uma só vez,
terra, pátria, reino, casamentos e amigos. A ninguém perdeu
ou destruiu, mas fêz um grande benefício aos que, não tendo
antes casa nem lar, aspiravam a formar um povo e ser cida­
dãos. Não executou ladrões e foragidos; mas subjugou nações
com suas armas, tomou cidades e levou como escravos, em
triunfo, reis e generais.
V — No que sucedeu com Remo, há muita obscuridade a
respeito de quem o matou; e a maior parte dos autores o atri­
buem a outros: no que não há dúvida, porém, é que salvou
a mãe, cruelmente perseguida, e a seu avô, que estava em
obscura e vergonhosa escravidão, colocando-o no trono, pres­
tando-lhe, deliberadamente, grandes serviços, e não lhe cau­
sando males. Quanto ao esquecimento e descuido de Teseu no
caso da vela, nem com a mais estudada defesa se livraria de
ser acusado de parricida, ainda que por sentença de juizes pou­
co esclarecidos. Assim é que, convencido um ateniense do di­
fícil que era neste ponto a apologia, por mais que desejasse,
imagina que Egeu, ao tomar conhecimento da volta da nave,
subiu apressadamente ao castelo para vê-la chegar, e escor­
regando, caiu, como se não tivesse servos que o acompanhas­
sem, quando se dirigiu apressadamente em direção ao mar.
202 ANTOLOGIA DE VIDAS CÉLEBRES

VI — O rapto de mulheres, no caso de Teseu, carece de


todo pretexto decente; em primeiro lugar, para muitos, porque
roubou Ariadna, Antíope, Anaxo de Trezene, e depois Helena,
sendo esta muito jovem, ainda não em idade para casar; e,
em segundo lugar, não se há de pensar que as donzelas trezê-
nias, lacedemônias ou amazonas, não desposadas, haviam de
ser, em Atenas, melhores mães de família do que as erecteidas
e cecópridas. Assim é de suspeitar que nisto não houve mais
do que injúria e leviandade.
Rômulo, em primeiro lugar, fazendo roubar oitocentas ou
pouco menos, não as tomou todas para si, mas somente Ercília,
segundo se diz, e as outras distribuiu aos principais cidadãos;
além disto, tratando depois com amizade, amor e igualdade as
mulheres, fêz ver que aquela violência e injúria se tinha con­
vertido numa ação honesta e num meio muito político de união.
Tão intimamente enlaçou e estreitou as duas nações entre si,
e tão bela origem deu de benevolência e poder à República!
Pois de reverência, amor e consistência que imprimiu aos ca­
samentos, o próprio tempo é testemunha; porque perto de du­
zentos e trinta anos não houve homem que resolvesse se separar
da companhia de sua mulher, nem mulher da de seu marido;
e assim como os mais eruditos dentre os gregos levam em con­
ta quem foi o primeiro parricida e o primeiro matricida, da
mesma maneira não há romano que não saiba que foi Carvílio
Espúrio, o primeiro que repudiou a mulher por causa de este­
rilidade.
E com êste longo tempo concordam também as obras, por­
que os próprios reis fizeram união e comunidade daqueles
primeiros casamentos. Mas, das bodas de Teseu, nenhuma
vantagem amistosa e social resultou para os atenienses, senão
inimizades, somente provocou guerras e mortes dos cidadãos,
e, finalmente, a perda de Afidnas; e se não fosse por compai­
xão dos inimigos, aos que reverenciaram como deuses, dando-
-lhes êste nome, não escapariam de experimentar o mesmo que
sucedeu a Tróia por causa de Alexandre (132). A mãe de
Teseu não só estêve em risco de perder a vida, como sofreu

(132) Páris como se chama comumente o célebre raptor de He­


lena, cujo rapto foi a causa da guerra de Tróia.
HERMES - ORFEU - TESEU - RÔMULO 203

o mesmo que Hécuba, sendo abandonada pelo filho, a não ser


que não passe de lenda o que se diz de sua escravidão. Oxalá
seja falso e também muitas outras coisas! Finalmente, nas
lendas sobre a assistência divina, há diferença entre êles, por­
que o modo de salvar-se Rômulo prova grande benevolência da
parte dos deuses; e o oráculo dado a Egeu, que não se unisse
a nenhuma mulher em terra estranha, parece indicar que não
foi segundo a vontade dos deuses o nascimento de Teseu.
Êste livro foi composto e impresso para
a Livraria e Editôra LOGOS Ltda., na
Gráfica e Editôra MINOX Ltda., à Rua
Mazzini n.° 167, em maio de 1961 —
SÃO PAULO

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