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ESTUDOS SOBRE

ORIENTE MÉDIO
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos em Oriente Médio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 97 p.
ISBN: 978-65-00-77512-9
História da Ásia; Oriente Médio; Orientalismo; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

Antiguidade
O EGITO ASIÁTICO DE POMPÔNIO MELA, por Alaide Matias Ribeiro ....................... 7
CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO, por Felipe Daniel
Ruzene ....................................................................................................................... 14
UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE ISRAEL, por Marlon Barcelos
Ferreira ....................................................................................................................... 21
A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A PESCA
NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski........................................................ 27
A ASCENSÃO DA GRANDE PÉRSIA DE CIRO, O GRANDE, por Willian Spengler... 33

Medievo

OS VENTOS SOPRAM DO ORIENTE: OS CONHECIMENTOS ORIENTAIS


ADENTRAM NA EUROPA, por Gabrielle Legnaghi de Almeida e Anelisa Mota
Gregoleti ..................................................................................................................... 41
A 'AṣABĪYAH COMO PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA A PARTIR DE IBN KHALDŪN,
por Luiza Santana Locatel Araujo ............................................................................... 47
O EGITO COMO COSMÓPOLIS DO MUNDO ISLÂMICO A PARTIR DO RELATO DE
IBN BAṬṬŪṬAH [1304-1377], por Pietro Enrico Menegatti de Chiara ......................... 54
O MUNDO DE AL-MA’ARRI: A VISÃO ANTES DO ORIENTE, por Rafael R. M. Ramos
e Rosana Pereira de Freitas ....................................................................................... 62
A LÍNGUA E A RELIGIÃO COMO FATORES DE COESÃO NA IBÉRIA MUÇULMANA
DURANTE A DINASTIA OMÍADA, por Renata Ary ..................................................... 70
ROXELANA, DA SERVIDÃO AO SULTANATO, por Talita Seniuk ............................. 76

Contemporâneo

O IMPÉRIO OTOMANO E OS NACIONALISTAS SÉRVIOS (1804-1878), por Felipe


Alexandre Silva de Souza ........................................................................................... 83
OS CONFLITOS ISRAELO-PALESTINOS NA RELAÇÃO ENTRE O SIONISMO E O
CAPITALISMO, por Christian Souza Pioner ............................................................... 89

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CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO,
por Felipe Daniel Ruzene

Considerações Iniciais
A dietética suscita nas sociedades humanas uma série de hábitos à mesa que,
enquanto relevantes fragmentos das práticas culturais, expressam os variados
desejos humanos, seus rituais, etiquetas, filosofias e religiosidades. Para além
do mero comer ou beber, as práticas alimentares evidenciam um complexo
sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos,
estéticos e econômicos. Dentre os muitos alimentos que consumimos hoje, as
carnes circulam entre os mais protuberantes em nosso imaginário social – são
insumos custosos e parcos que suscitam status sociais, suntuosidade,
realidades de classe e consciências filosófico-religiosas. Todavia, o avanço nas
investigações relativas à História da Alimentação tem demonstrado que, desde
a Antiguidade, as carnes já possuíam lugar destacado na dieta e eram
comumente associadas a mitos, ritos e liturgias sacrificiais, além de veicularem
entre as iguarias mais desejadas no mundo antigo [cf. RUZENE, 2022]. Os
estudos recentes relativos às práticas alimentares, há um crescente interesse
nas investigações em torno da evolução das práticas alimentares ao longo do
período faraónico [TALLET, 2015, p. 319].

De modo semelhante, no Egito faraônico as proteínas de origem animal


(carnes, ovos, leites e seus derivados) eram amplamente valorizadas, desde as
refeições cotidianas até festins e cerimoniais excepcionais, servidas com
pompa às mesas dos egípcios, sobretudo nobres e aristocratas [WILKSON,
1847, p. 19-21]. Segundo Edda Bresciani, egiptóloga italiana [2020, p. 70]: “em
todas as épocas, os habitantes do vale do Nilo tiveram uma alimentação
variada e suficientemente equilibrada em proteínas e vegetais”, pelo menos
dentre as elites locais. Olhar para as dietéticas carnívoras da Antiguidade nos
permite observar diversos modelos de contato entre animais humanos e não-
humanos, de modo que podemos reavaliar e refletir eticamente os contatos e
tratamentos que mantemos com as demais “espécies companheiras”
(emprestando a terminologia de Donna Haraway). Em tempos de indústria da
carne e de novas práticas, por vezes questionáveis, da moderna pecuária
industrializada, buscamos edificar novas formas de relacionamento com o
consumo de produtos de origem animal. Tampouco intento contribuir com
interpretações que refletem o vegetarianismo ou veganismo no mundo antigo,
afinal: “o conceito de vegetariano parece ser ausente da sociedade egípcia, o
que faz com que falar do vegetarianismo nessa sociedade antiga seja algo
anacrônico” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Assim, apresento neste texto uma
breve análise a respeito do consumo animal na sociedade faraônica, visando
compreender melhor a relação dos egípcios com a carne e seus papéis na
sociedade, cultura e religiosidade faraônicas.

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Embora o recorte se dê nas carnes convêm ressaltar que a maior parte dos
alimentos consumidos pelo povo egípcio na antiguidade era constituída por
verduras, legumes, frutas e, sobretudo, grãos, uma vez que a maior parte da
população não possuía acesso diário às proteínas animais. De fato, papiros de
sábios do período faraônico instruem ao povo que: “não se pode encontrar
melhor alimento que os legumes com sal” [BRESCIANE, 2020, p. 68]. A dieta
básica era formada por uma grande variedade de pães, comumente feitos de
cevada ou trigo, além de cerveja – alimentos tão significativos que podem ter
servido como moeda de troca ou forma de pagamento entre os egípcios
[GAMA-ROLLAND, 2019, p. 79]. As abordagens de diversos pesquisadores –
historiadores, arqueólogos e egiptólogos – não visam uma reconstrução
detalhada do cardápio dos egípcios, mas permitem refletir a relevância das
culturas alimentares e expõem uma razoável ideia do que poderia ter aparecido
em suas mesas, levando em consideração a extrema disparidade social
presente. Apesar das diferenças à mesa de ricos e pobres, assegurar uma
quantidade digna de alimentos para todos os cidadãos representava uma
“garantia de ordem social” para o Estado egípcio [BRESCIANE, 2020, p. 69].
Justamente por isso um dos objetivos mais importantes para a administração
faraônica era o armazenamento a longo prazo dos mais variados produtos
alimentícios [TALLET, 2015, p. 323]. A importância das diversas formas de
alimentação no Antigo Egito ainda pode ser observada na existência de
diversas profissões relativas à culinária, tais como: cozinheiros, açougueiros,
cervejeiros, pasteleiros, padeiros, confeiteiros, degustadores de vinho [cf.
RUZENE, 2021] e, inclusive, um curioso cargo de diretor na “casa da gordura
de boi” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 77-78].

As carnes aparecem nas dietéticas egípcias desde a mais tenra idade, estando
presente, inclusive, na mesa das crianças, por vezes dividindo espaço com a
amamentação. Nas XVIII e XIX dinastias (entre 1550 e 1189 AEC) o leite
materno era armazenado em vasos com formas femininas que ninavam bebês
em seus colos, o intuito era preservar o alimento por um determinado período,
evitando desperdícios que poderiam ocorrer a partir da introdução alimentar
dos pequenos [COELHO, 2012, p. 44]. Possivelmente, pelo que apontam
fontes escritas e iconográficas, outros alimentos eram gradualmente
acrescentados à dieta das crianças, somados ao leite materno a partir dos seis
meses aproximadamente [COELHO, 2012, p. 44]. Primeiramente, frutas,
vegetais e cereais, em formas pastosas, como purês e carnes brancas. As
carnes vermelhas aparecem à mesa das crianças um pouco maiores, além de
pães de diversos formatos, bolos e diferentes legumes. É provável que as
carnes não estivessem sempre no cardápio dos mais pequeninos (talvez com
exceção dos pescados) tanto por ser um dos insumos mais escassos na mesa
da maioria, quanto por sua digestão mais lenta e complexa. Observa-se, ainda,
que alguns egípcios possuíam um modelo específico de recipiente para
alimentação das crianças, geralmente confeccionado com argila do Nilo,
adornado com figuras protetoras, tinha as laterais com um estreitamento e um
bico, por onde o líquido poderia ser ingerido [COELHO, 2012, p. 44-45].

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Evidências osteológicas apresentam que os egípcios antigos parecem ter tido
uma grande variedade de espécies de animais disponíveis à sua alimentação,
tanto aqueles provenientes da domesticação, quanto obtidos por meio da caça
[WILKINSON, 1847, p. 188]. Ainda assim, as carnes eram iguarias luxuosas no
Antigo Egito, o que pode ser exemplificado nas inúmeras cenas de abate,
cocção e consumo de animais representadas nas paredes dos túmulos de altos
funcionários, clérigos e nobres [TALLET, 2015, p. 321]. Carnes diversas, bem
como frutas, leite, pão e cerveja, além de flores e perfumes, eram devotados
aos deuses em festivais e festins, principalmente aqueles realizados às custas
do faraó [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 13]. As oferendas dadas
regularmente aos deuses ou aos falecidos eram uma parte importante da vida
dos antigos egípcios e os pães, carnes e frutas colocadas em frente à estátua
do deus e nas mesas de oferendas eram o principal meio de sustento dos
sacerdotes e trabalhadores dos templos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 19].
Para além das carnes, os leites também eram vastamente apreciados,
sobretudo de vacas, cabras e asnas que serviam à alimentação de adultos e
crianças, a bebida ainda era elemento ritualístico em diversas oferendas.
Queijos, manteiga, ovos e gorduras também aparentam ter sido amplamente
consumidos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 83]. Compreendendo a necessidade
de que qualquer tentativa de discutir a dieta egípcia deve ser baseada em um
conjunto heterogêneo de fontes – artísticas, textuais, arqueológicas e
epigráficas – apresento a seguir uma breve análise das investigações acerca
do consumo de carnes vermelhas, brancas e suínas na cozinha egípcia e na
ritualística antiga.

Carnes Vermelhas e Caça


Os egípcios parecem ter nutrido bastante apetite pelas carnes vermelhas que
são, de longe, as mais retratadas pela epigrafia, especialmente a carne de
bovinos [TALLET, 2015, p. 321-322]. Tais proteínas poderiam advir de animais
domésticos ou por meio da caça, sendo que eram utilizados bumerangues para
caça desportiva [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81-82], enquanto redes e
armadilhas (normalmente feitas de madeira, junco ou palmeira) para caça com
finalidade alimentar [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64]. Dentre as espécies
domesticadas, além do gado bovino, criavam cabras, ovelhas, porcos e uma
ampla variedade de aves [TALLET, 2015, p. 322]. A criação doméstica de
animais para consumo foi bastante apontada na obra de Sir John Gardner
Wilkinson [1847, p. 188], contudo, os vestígios materiais nos permitem supor
que criadouros, estábulos e chiqueiros, bem como vinhedos, pomares,
cozinhas complexas e hortas eram mais comuns entre as elites egípcias. Os
mais abastados ocupavam bastante de seu tempo livre na caça, domesticação,
preparo e consumo de carnes, como observado nas motivações artístico-
funerárias do período faraônico [WILKINSON, 1847, p. 187-189]. Por sua vez,
os animais de caça frequentemente retratados nas paredes dos templos eram
touros, veados, vacas, gazelas, carneiros, cabras e coelhos selvagens
[MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 51]. Além desses, estudos arqueológicos
apresentam o consumo de oryx, adax, cabras-selvagens, gazelas, antílopes,
hienas, ouriços, lebres e ratos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81]. Ainda, há
vestígios do consumo de vísceras desde a II dinastia (c. 3700 AEC),

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especialmente baços e fígados, bem como o uso de sangue bovino para
produção de enchidos similares ao chouriço ou morcilha que conhecemos hoje
[BRESCIANI, 2020, p. 70 e 74].

Segundo John Wilkinson [1847, p. 380], em referência aos textos de Heródoto


(c. século V AEC, portanto tardios e que refletem um Egito sob influência
greco-romana), as carnes preferidas dos egípcios eram de vaca e ganso. O
egiptólogo britânico ainda se mostra surpreso com a ausência do carneiro nas
fontes helênicas, afirmando que inexistiam na alimentação egípcia. Todavia,
desviando o olhar para a osteologia zooarqueológica, vemos que uma série de
suínos, caprinos e ovinos eram consumidos (inclusive em maiores
quantidades) do que bovinos e aves [BRESCIANE, 2020, p. 74-75]. Logo, as
teses suscitadas pelas fontes de Sir Wilkinson mostram um recorte bastante
específico do período clássico e não se ratificam ante aos amplos vestígios das
dinastias faraônicas. É possível, ainda, que as carnes de bovinos e gansos
estivessem entre os itens mais desejados, mas a maioria não possuía
condições de pagar uma refeição tão generosa, então, alimentavam-se de
animais menores e mais acessíveis, como caprinos, suínos, aves e pescados –
visto que os animais maiores eram utilizados na lavoura [MEHDAWV;
HUSSEIN, 2010, p. 14 e 51]. Os membros das classes que poderíamos
denominar médias ou trabalhadoras, como profissionais da construção civil,
construtores navais e operários, possuíam maior diversidade à mesa, seus
ofícios lhes davam direito a rações diárias, porções mais recorrentes de carnes
e peixes, maior variedade de verduras, legumes e frutas, além de pães e
cervejas [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 10]. A carne bovina era
profundamente evocada nas representações nas paredes de mastabas, mas a
arqueologia nos leva a crer que figuraram com raridade nos cardápios,
especialmente das populações mais pobres ou mesmo camponeses, que
compunham juntos 90% da população egípcia no período faraônico [GAMA-
ROLLAND, 2019, p. 78].

Segundo as representações artísticas e tumulares, supõem-se que as carnes


vermelhas eram comumente preparadas grelhadas sobre as brasas ou
assadas em fornos, embora haja, em menores quantidades, cenas de
cozimento em caldeirões ou panelas [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 82]. De
acordo com Bresciani [2020, p. 74], é possível que as partes consideradas
mais nobres ou apreciadas, como o lombo, por exemplo, fossem as partes
assadas em fornos ou grelhadas, enquanto partes menos valorizadas eram
cozidas ou fervidas, em ambos os casos as gorduras (especialmente de boi e
ganso) serviam como tempero, para tanto eram armazenadas em contêineres,
às vezes rotulados com precisão. Dada a necessidade de conservar a carne
abatida os egípcios desenvolveram algumas formas bastante eficazes de
conservação. A mais comum para os bovinos era a salga com natrão, também
utilizada nos peixes, secagem ao sol para quaisquer carnes vermelhas,
conservação em jarros de mel ou em gordura animal, normalmente de ganso,
boi ou pato, como uma espécie de confit à egípcia [GAMA-ROLLAND, 2019, p.
82]. As muitas cenas de alimentação compelida de animais que aparecem nas
mastabas do Império Antigo poderiam ter a intenção de facilitar esse tipo de

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preparo, auxiliando a formação de gordura e permitindo, ao contrário da
secagem ou salga, o armazenamento da carne com um valor nutricional mais
alto [TALLET, 2015, p. 323]. Na religião faraônica havia jejuns específicos de
interrupção ao consumo de carne, determinadas classes de pães e vinhos
durante o período de exéquias pela morte do faraó – abstinência que poderia
durar até setenta e dois dias, conforme apontado por Wilkinson [1847, p. 68-69]
em referência à obra de Diodoro Sículo (século I AEC). No interior do contexto
hierático, as carnes vermelhas também eram elementos fundamentais na
oblação aos mortos. Por exemplo, uma refeição completa encontrada em um
túmulo mastaba de Saqqara (datado da II Dinastia) continha pães, mingau de
cevada, peixe cozido, caldo de pombo, codorna cozida, rins, coxas e costelas
de boi, frutas cozidas, possivelmente figos, frutas frescas, tortas com mel,
queijo e uma vasilha de vinho, cuidadosamente depositados ao lado da mulher
ali enterrada [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 23].

Peixes e Aves
O rio Nilo era uma fonte de vida para os antigos habitantes do Egito. Dele
advinha água, animais, rotas comerciais, trabalhos e, toda primavera com as
cheias, permitia um solo rico e fértil para o cultivo de inúmeros gêneros
alimentícios. A diferença nos alimentos consumidos, além de demarcar
condições sociais de ricos e pobres, também se devia às cheias ou secas do
Nilo que podiam representar períodos de abundância ou penúria para a
população [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Não obstante, havia grande
variedade de peixes prosperando em suas águas, dentre os quais conhecemos
barbus, bagres, enguias, siluros, carpas, percas, tilápias e tainhas, cujas ovas
eram usadas no preparo de butarga (espécie de maturação de ovas de peixe
secas e salgadas) [TALLET, 2015, p. 324]. Durante o período romano foram
identificados mais de vinte e cinco tipos de pescados na dieta egípcia. Algumas
dessas espécies – como peixes-elefante (medjed), lepidotes e pargos-
vermelhos (fagri) – eram associados ao mito osiríaco e, por isso, respeitados,
assim havia peixes considerados sagrados e que não podiam ser pescados ou
consumidos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73]. Possivelmente a crença era
de que uma dessas espécies teria engolido o pênis de Osíris quando o deus foi
esquartejado pelo irmão, Seth. Ainda, há variados exemplos de pescados
mumificados em diversos templos egípcios. No papiro Harris constam, dentre
as entregas aos templos efetuadas para as festas de Ramsés III, um total de
441 mil peixes dados aos sacerdotes [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Isso
evidencia que mesmo o tabu relativo aos peixes tinha seus limites e era
heterogêneo no Antigo Egito. Supostamente os peixes constituíam a base
proteica da população egípcia antiga, fossem frescos, secos ou salgados,
alimentavam pobres e ricos, estando tanto na mesa real, quanto na ração dos
soldados [BRESCIANI, 2020, p. 75].

Muitas representações tumulares retratam cenas de pesca, bem como


diferentes métodos de preparação dos pescados, incluindo salga e secagem.
Outras mostram o consumo de variados tipos de peixe, indicando sua
popularidade nos tempos faraônicos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73].
Todavia, a oferta de peixes era rara nas mesas dos mortos, possivelmente por

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tabus olfativos (e não religiosos), como aponta Bresciani [2020, p. 75]. Assim
como no caso da caça, a pesca também era tanto uma profissão, quanto um
hobby no Antigo Egito [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Visando a prática
desportiva os egípcios utilizavam lanças, anzóis e arpões para apanhar os
peixes, enquanto na pesca em grande escala eram utilizadas armadilhas e
gaiolas, em águas rasas, e redes em maiores profundidades [MEHDAWV;
HUSSEIN, 2010, p. 76].

As aves, por sua vez, eram, junto aos peixes, uma das principais fontes de
alimentação dos antigos egípcios, variando desde aves domesticadas até
selvagens [TALLET, 2015, p. 323]. São mencionados e retratados gansos,
grous, pombos, codornas, avestruzes, patos, frangos e galinhas só
ingressaram no cardápio egípcio a partir do período ptolomaico (c. 305 AEC)
[MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 61]. Muitas eram as maneiras de cozinhar os
peixes e aves, sendo a mais comum grelhar em espetos colocados sobre o
lume. Ainda, era possível salgar, defumar, fritar em gordura ou cozer em água
com sal e temperos [TALLET, 2015, p. 323]. A salga era uma maneira
particularmente conveniente de cozinhar o peixe para evitar sua rápida
deterioração, especialmente nos períodos mais quentes, uma vez que
mantinha o peixe comestível por um tempo maior [MEHDAWV; HUSSEIN,
2010, p. 76]. As representações nas paredes das tumbas mostram os métodos
de preparação dos gansos desde o abate, degola, depenagem, corte das asas
e pés até que estejam prontos para a grelha. Em outras ocasiões os gansos
eram salgados e depois armazenados em grandes potes de cerâmica. As aves
também poderiam ser fervidas em caldos ou confitadas, e os pombos eram
amplamente mencionados como parte do banquete funerário, cozidos em um
caldo ou em gordura de ganso [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64-65].

Controvérsia Suína
Fontes tardias apontam para um tabu relacionado ao consumo de porco – os
próprios hebreus, que tiveram contato próximo com o Egito, podem ter criado
diálogos culturais referentes à abstenção de produtos suínos [WILKINSON,
1847, p. 369-373]. Autores gregos como Heródoto (c. séc. V AEC) e Plutarco
(c. séc. II EC), assinalaram a rejeição ao porco. As artes funerárias auxiliam
nessa interpretação dada a ausência de porcos nas representações das
tumbas e sepulturas, os animais eram raramente representados na iconografia
egípcia – menos de uma dezena de cenas os mostram em contexto agrícola
em mais de dois milênios de história [TALLET, 2015, p. 322]. Todavia, como
bem assinalaram Gama-Rolland [2019, p. 85] e Tallet [2015, p. 321-322],
escavações arqueológicas e osteológicas mostram que eram regularmente
consumidos por grupos sociais menos privilegiados, levando a crer que eram
vastamente presentes nos cardápios egípcios. Exemplo disso é um sítio
arqueológico em Amarna, antiga Aquetáton, datado da XVIII Dinastia (1543-
1292 AEC), onde grandes quantidades de ossos de porcos foram encontradas.
Há, portanto, um contraste entre a zooarqueologia que aponta para os porcos,
cabras e carneiros e as representações tumulares, onde predominam os
bovinos. Também há indícios de consumo de carne suína nas festividades que
comemoravam a vitória de Hórus contra Seth ao longo de todo o período

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faraônico [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 85-86]. É possível que a associação de
Seth, deus do caos, com porcos e javalis tenha sido um dos responsáveis pela
aversão aos suínos em determinadas regiões do Egito, levando ao contexto
assinalado pelos gregos que se contrapõem aos vestígios faraônicos. Não
obstante, porém, como já vimos, são textos tardios e abordam um Egito já
sobre influência greco-romana. Isso explica a afirmação de que os porcos
possuíam lugar de destaque na alimentação egípcia, com a possibilidade de
serem vetados em algumas libações religiosas [BRESCIANI, 2020, p. 74].

Referências
Felipe Daniel Ruzene é mestrando no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando
em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.

BRESCIANE, E. “Alimentos e bebidas no antigo Egito” in FLANDRIN, J-L.;


MONTANARI, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade,
2020.

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GAMA-ROLLAND, C. A. “Alimentação e tabus alimentares no Egito Antigo:


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Mediterrâneo Antigo, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 77-91, 2019.

MEHDAWY, M.; HUSSEIN, A. The pharaoh's kitchen: recipes from Ancient


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RUZENE, F. D. “Vinho e vinicultura no Antigo Egito” in BUENO, A. (Org.).


Mundos em Movimento: Próximo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto
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RUZENE, F. D. “O mito de Prometeu, os ritos sacrificiais e o consumo de carne


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John Murray, 1847.

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