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Recebido em 31 de Março de 2016 Aceito em 05 de Setembro de 2016 Autor para contato: helisa_nut@hotmail.com
R o d r i g o Ar a ú j o M a c i e l
Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRP – Recife – Pernambuco – Brasil
Abstract: The gastronomy field, beyond the study discipline and growing cultural event
in Brazil aspects, brings strongly associated identity and social issues. In this article,
we look beyond the state of art in the national context, we intend to study the
possibilities in this field, deployed its possibilities and stressing its peculiarities. Here
we outline the issues that we consider relevant in the development of research on not
only on gastronomy, but in the food studies.
Ágora [ISSN 1982-6737]. Santa Cruz do Sul, v. 18, n. 1, p. 18-27, jan./jun. 2016.
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em questão seu lugar no universo, sua Freitas (2003) argumenta ser em torno da
essência e sua natureza, em uma palavra,
sua própria identidade”... (Fischler 1995 p. mesa – e do alimento – que identidades e, portanto,
66). as diferenças com relação aos demais são
expressam. Ao seu redor, se definem práticas, estilos,
Nessa lógica identitária Freitas (2007) de forma
relações e subjetividades que se estabelecem a partir
bastante próxima a Fischler também sustenta que ao
da intermediação entre alimento/comida e os sujeitos
comer convertemos a realidade externa em
que ali estão envolvidos. Para a autora comer junto é
subjetividade interna. Dessa maneira a comida acaba
“um meio de prazer e de desejo, através dos quais
por transformar-se em quem somos. Para além de
mergulhamos nos recônditos das subjetividades
nossa estrutura física, a autora sugere que a comida
alheias” (FREITAS, 2003, p.56). Torna-se, talvez,
transforma-se em certa medida em nossas
mais fácil compreender – a partir destas construções
habilidades psíquicas e culturais. Nesse sentido
– o destaque conferido à refeição, como organizadora
nossos corpos podem ser considerados o resultado, o
e mobilizadora de forças que orientam a vida em
produto, de nosso caráter que, por sua vez, é
comunidade.
revelado pelo que comemos e de que maneira.
Assim de um modo geral, nas ciências sociais,
Adepto da mesma lógica da incorporação
as discussões têm permitido o entendimento da
Mintz (2001) considera que a comida “entra” em cada
gastronomia não apenas como um fenômeno
ser humano. A intuição de que se é de alguma
relacionado a grandes chefs e a restaurantes
maneira substanciado – “encarnado” – a partir da
sofisticados. No campo social, a gastronomia se
comida que se ingere pode, portanto, carregar
configura como um espaço privilegiado para se
consigo uma espécie de carga moral, além da carga
perceber os processos relacionados à formação das
simbólica. Segundo o autor:
culturas e sociedades em suas heterogeneidades e,
em particular, aos aspectos relacionados às
O comportamento relativo à comida liga-se
identidades sociais, suas subsequentes distinções e
diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa
conformações tomando diferentes contextos de
identidade social, e isso parece valer para todos os
produção e consumo.
seres humanos. Reagimos aos hábitos alimentares
de outras pessoas, quem quer que sejam elas, da
2 A Gastronomia e suas múltiplas conexões
mesma forma que elas reagem aos nossos (MINTZ,
2001, p. 31).
Em 1825, o francês Jean Anthelme Brillat-
Savarin publicou sua mais importante obra e que se
Ao ato de comer associa-se também a noção
tornou um marco na história como o primeiro tratado
comensalidade, ao fenômeno de comer junto, em
teórico sobre gastronomia, o livro A Fisiologia do
grupo, o que remete ao fenômeno da sociabilidade.
Gosto, reeditado até hoje e traduzido para os mais
De fato, sobre o “comer junto”, Fishler comenta que
diversos idiomas.
um dos aspectos mais marcantes da sociabilidade
Segundo Brillat-Savarin (1995) a gastronomia,
humana é dado pela comensalidade (FISHLER, 2012
de uma forma geral, pode ser compreendida como o
p. 271).
conhecimento fundamentado de tudo o que se refere
Ainda que a sociabilidade não esteja restrita à
ao homem (ao humano) à medida que ele se
mesa, a comensalidade, implicando em comer com
alimenta. O autor lembra que a gastronomia está
outras pessoas é uma ocasião marcante nas relações
condicionada por valores culturais e códigos sociais,
sociais. Mesmo em se tratando de um refinado
estando ligados a processos identitários de
manjar, o comer solitário perde seu sabor (ISHIGE,
conhecimento e reconhecimento, expressos,
1987), ou poder-se-ia dizer que teria um “sabor de
solidão”.
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inclusive, por sua célebre frase “diga-me o que comes Relativizar a gastronomia implica assim em vê-la
e te direi quem és”. enquanto fenômeno envolvente que traz em si
Algumas das ideias do autor tornaram-se diferenciações e particularidade, mas que se
aforismas até hoje bem conhecidos, a começar pela manifesta na ampla sociedade contemporânea.
ideia de que da relação vida e universo onde tudo Nesse caminho faz-se importante pontuar
precisa se nutrir. Um de seus princípios mais famosos nosso entendimento sobre a gastronomia
propõe que os animais se saciam; o homem come; só aproximando-se das ideias da historiadora Julia
o homem de espírito sabe comer, introduzindo aqui a Csergo (2011), que diz:
figura do gourmet.
Brillat-Savarin não foi o primeiro a usar o termo Se nos referimos à definição primeira, a
gastronomia é uma prática social de mesa,
“gastronomia”, tendo este sido criado anteriormente uma cultura. Ela integra dados imateriais
por Joseph de Berchoux no poema La Gastronomie como saberes, práticas – savoir-faire e
rituais - ligação social e a partilha –
de 1801. Mas é com Savarin que o tema é objeto de resumidos pela fórmula “humanismo de
uma reflexão e sistematização fazendo com que mesa” onde de diz a abertura ao outro e
ao exterior -, discursos e representações.
alguns estudiosos considerem seu livro um marco Imaterialidade que se encarna na
materialidade dos instrumentos técnicos,
para o campo da gastronomia.
dos produtos, dos pratos, dos livros de
A gastronomia, geralmente, nos remete a receita, dos lugares como os restaurantes,
dos objetos da cozinha e da mesa.
uma dimensão sensorial continuamente associada ao (Csergo, 2011 p. 15),
prazer de comer e ao gosto pela comida. Embora a
etimologia da palavra remeta a uma ideia de que esta Assim longe de configurar-se como um
trate das leis (nomia) do estômago (gastro), há uma estágio mais sofisticado da culinária ou espécie de
série de concepções sobre o que é gastronomia que ápice da experiência gustativa, verificamos que o
devem ser melhores exploradas. seu valor operativo, enquanto conceito-ferramenta
Em que pese à gastronomia e à culinária de pesquisa, a gastronomia abarca também (senão
estarem em evidência, parte dos pesquisadores do principalmente) os fazeres cotidianos e as receitas
campo da alimentação (e mesmo além dele), ainda prosaicas: “que tendemos a considerar comuns, (e
observa com certo desdém o que aqui chamamos de
que) escondem histórias sociais e econômicas
gastronomia. Nesse entendimento, a mesma é
complexas” (MINTZ, 2001, p. 39).
associada a algo fútil, superficial, muitas vezes vista
Nesse caminho argumentamos que pensar
como um tema secundário em um país como o Brasil
a gastronomia implica incorporar a dimensão do
marcado por desigualdades sociais que se refletem
gosto, do prazer de comer, a dimensão da
também na alimentação.
comensalidade que envolve sociabilidade e que
Dentro desta visão, a gastronomia é
nos remete a ritualização do comer e todo um
percebida como um campo técnico, relacionado à
repertório de significados. Nesse sentido faz-
sofisticação e ao luxo, às publicações especializadas
e os rankings nacionais e internacionais em sumo, se interessante atentar que o gosto é construído
estabelecendo uma distinção (BOURDIEU, 1983) culturalmente através das relações sociais (dos
estando muito ligada às ideias de “alta gastronomia”, grupos entre si e com a natureza) e dentro de
como será visto mais adiante. Porém, esta é uma determinados contextos históricos. Nascemos
visão estática e muito limitada. dentro de um contexto o qual não é estático e
Se pensarmos em gastronomia enquanto um permanente e a partir desse entendimento, a
fenômeno ligado ao prazer decorrente do ato comida pode ser analisada como um dos
alimentar, ela se estende a todos os grupos e classes elementos onde podemos ver mais diretamente as
sociais independente de sua situação social. transformações das sociedades e,
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um segmento ou classe social. Nesse sentido expressão “Baixa Gastronomia”, como resposta -
pensemos na assim chamada “alta gastronomia”. ou mesmo sátira. Nesse cenário, foi iniciada, uma
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Jean-Pierre Poulain (2003) defende que o aulas e projetos. Trata-se de uma nova
forma de praticar a gastronomia, uma
interesse contemporâneo pelas gastronomias gastronomia sustentável no sentido mais
locais é um sentimento de nostalgia por um espaço amplo da palavra que valorize os produtos
2
na nossa terra .
social onde o comedor vivia sem angústia,
A acentuada internacionalização do
abrigado por uma cultura culinária claramente
comércio e da cultura alcança a gastronomia
“identificada e identificadora”.
através da diversificação dos produtos consumidos
Já no livro Le manger comme culture,
e das formas sociais desse consumo. É o caso de
Montanari (2010) afirma que a celebração da
preparações como “frango caipira ao molho curry”
diversidade que normalmente acompanha o
ou “brownie com sorvete de pitanga”: pratos que
discurso da cultura gastronômica não é uma
congregam elementos típicos ou nativos com
nostalgia do passado, mas se trata, sobretudo, das
preparações ou temperos de fora do país.
preocupações do presente e do futuro.
Essa lógica nos ajuda a analisar a intensa
Ainda para Montanari, a ideia de uma
criação de receitas que incorporam em um mesmo
gastronomia que privilegie produtos locais só
prato elementos tidos como “tradicionais” com
alcançou status cultural forte a partir do século XIX
elementos “inovadores”; ou pratos que reúnem
ao passar pelo processo de globalização alimentar
ingredientes típicos de duas culturas diferentes.
que aparentemente levaria a consequências
Cabe ainda comentar sobre o uso de tecnologias
opostas:
que contemplam desde o uso de fogão à lenha,
uso de tachos e utensílios de madeira com a
(...) em um mundo realmente dividido
como o medieval, aspirava-se a construir utilização de maçaricos sofisticados para flambar,
um modelo de consumo universal no qual
todos (aqueles que tinham condições) nitrogênio líquido e panelas elétricas que
poderiam se reconhecer. Ao contrário, na dispensam o fogo. Um bom exemplo foi retirado do
aldeia global da nossa época, vemos se
afirmarem os valores das particularidades cardápio de um famoso restaurante carioca:
locais. (MONTANARI, 2010, p. 103)
caldinho de feijão com espuma de couve.
“local”, o renomado chef brasileiro, Alex Atalla, permitem refletir sobre uma identidade nacional,
associou-se a essa questão. Segundo Atalla, a que tem caráter, segundo Ortiz (1985), de
gastronomia deve estar vinculada a uma visão apropriação de elementos simbólicos e, portanto,
muito particular que evoca a noções de cidadania e virtuais, que perpassam no imaginário do indivíduo
responsabilidade social. É nesse sentido que Atalla como algo que os fazem sentir parte de uma
propõe que “É preciso cozinhar e comer como nação, como por exemplo, o sentimento de ser
cidadão”. Para o chef, mais que uma filosofia, essa brasileiro ao comer feijão com arroz ainda que este
frase traduz uma forma de ver e desenvolver a prato possa ser adaptado através das mais
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