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I – Introdução
O candomblé tem raízes nas histórias dos negros vindos dos diversos pontos do
continente africano; entretanto, não há um sistema exclusivo de crenças denominado
candomblé na África, trata-se de um conjunto complexo que ganhou forma específica
no Brasil, com uma cosmologia que explica o universo e traduz saberes (PRANDI, 2001)
(MOTA; TRAD, 2011). Apesar de ter uma dimensão do conhecimento que se apoia nos
elementos da natureza (rios, plantas, árvores, florestas, entre outros) é possível
encontrar terreiros em áreas urbanas e semiurbanas; além disso, embora tenha raízes
africanas, os seus integrantes, participantes ou frequentadores não se limitam as
classes mais pobres e vulneráveis, há pessoas de distintas classes sociais, raças e
idades.
A comida nos terreiros de candomblé marcam as celebrações coletivas, os atos
de consagração, a devoção e a obediência cotidiana aos santos, cujo preparo é coletivo
e os ingredientes são específicos para cada ato. As práticas alimentares marcam
também a rotina e a distribuição de tarefas no grupo; uns colhem flores, folhas, outros
limpam, providenciam bebidas e ainda há outros que cozinham o que todos vão comer.
Como existe um sincretismo religioso (catolicismo e o candomblé), existem datas
simbólicas da religião católica que também serão festivas nos terreiros.
Por isso, o mais novo prostra-se diante do mais velho e lhe pede a
bênção, não lhe dirige a palavra se não for perguntado, pede licença –
Agô ebômi, licença meu mais velho – para falar na sua presença,
oferece-lhe sua comida antes de começar a comer – Ajeum, vamos
comer, servido? –, abaixa a cabeça quando dele se aproxima, curva-
se à sua passagem, inclina-se e o cumprimenta juntando as mãos –
Mojubá, salve! – quando se canta para o orixá a que este mais velho é
devotado. (PRANDI, 2001, p.56)
Um iaô após o processo de consagração ainda está com o corpo vulnerável, por
isso recomenda-se que não durma de barriga para cima, pois pode atrair espíritos ruins;
a um filho de Iemanjá não é recomendável comer frutas ácidas, como limão, nem
derivados do milho. Filho de Oxóssi não come milho vermelho, nem milho verde; Oxalá
tem quizila a todas as comidas preparadas no azeite de dendê, limitando os seus filhos
desse alimento. De acordo com a história narrada nos terreiros, Iansã quase foi morta
por um carneiro que a traiu chamando inimigos de Oyá para que a matassem, e para
fugir destes, Iansã precisou se esconder no meio de uma plantação de abóboras,
disfarçando-se de abóbora; por gratidão de ter escapado da morte jurou nunca mais
comer abóbora, e pela traição não confiou mais em carneiros. As quizilas não matam,
mas causam problemas e adoecem o corpo (BASSI, 2012).
No entanto, os orixás não fazem apenas restrições, também indicam as
preferências, as prescrições para o bom cuidado com o corpo: Iemanjá gosta de uvas
verdes, mamão, pêra, melancia; Oxum prefere melão, pêssego e maçãs; já Iansã
recomenda manga rosa, uvas avermelhadas, ameixas e pitangas.
Os saberes partilhados no terreiro permitem compreender as questões de saúde
atreladas a orientação espiritual de cada orixá. O orixá alinha as questões físicas,
emocionais e espirituais, demarcando um sistema de troca e reciprocidade (MOTA;
TRAD, 2011). Algumas enfermidades que acometem o físico e o emocional podem na
verdade: decorrer da mediunidade não desenvolvida (interrompida) ou dos exercícios
da disciplina religiosa não cumpridos; indicar a necessidade de uma iniciação da prática
religiosa; demostrar um processo orgânico/biológico/fisiológico de adoecimento; ou
indicar um encosto, um espírito ruim que persegue o enfermo, por alguma
vulnerabilidade aberta (MOTA; TRAD, 2011). O acompanhamento e os atendimentos
feitos nos terreiros tem o propósito de entender o que, segundo a cultura do candomblé,
está acontecendo.
IV – Considerações Finais
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar e
cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
INGOLD, Tim. Antropologia não é etnografia. In: INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre
movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
MALUF, Renato Sérgio Jamil. Segurança alimentar e nutricional com valorização da cultura
alimentar In: Cultura e alimentação – saberes alimentares e sabores culturais. S. Paulo: SESC,
2007, p. 143-150.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Ed. Senac, 2008.
MOTA, Clarice Santos; TRAD, Leny Alves. A Gente Vive pra Cuidar da População: estratégias
de cuidado e sentidos para a saúde, doença e cura em terreiros de candomblé. Saúde Soc.
São Paulo, v.20, n.2, p.325-337, 2011.