Você está na página 1de 10

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Disciplina: Sociedade e Meio Ambiente


Docente: Leonardo B. de Almeida
Discentes: Gustavo Surita
Julia Dias
Kauã Rosanezi
Leticia Di Beo
Mayara Prates
Priscila Barboza
Raquel Gomes Valadares

Ecologia Política:
uma perspectiva latino-americana

1- Introdução

O conceito de ecologia política pode ser circunscrito a um campo de estudo com


teorias e práticas que buscam alternativas de vida sustentável a partir da análise das relações
de poder entre sociedade e natureza no contexto da hegemonia política, econômica e
tecnológica do capitalismo; tendo como foco analítico as relações de poder entre a natureza
e a sociedade capitalista, partindo do pressuposto da apropriação e modificação das bases
naturais, da hierarquia de classes, das instituições, dos conflitos sociais, da diversidade
cultural, entre outros. A partir das discussões em Leff (2013) serão apresentados os objetivos
deste campo de estudo, os precursores, as discussões e críticas da disciplina e um estudo
de caso, demonstrando os impactos das relações hierárquicas de poder na fruição e gestão
dos recursos naturais.

2- Fundamentos da Ecologia Política

A Ecologia Política se destaca enquanto um campo do estudo e do conhecimento que


possui suas teorias e práticas voltadas para o desenvolvimento de uma vida sustentável,
analisando as relações de poder entre a natureza e a sociedade no contexto capitalista, como
apresenta o autor Enrique Leff, “[…] a ecologia política se refere às relações de poder nas
interações humano-ambientais, em estruturas hierárquicas e de classe no processo de
produção e apropriação social da natureza.” (LEFF, 2013, p. 12).
Apesar do termo Ecologia Política ter sido citado pela primeira vez por Frank Thorn
no ano de 1935, em um artigo na revista The Science Newsletter, ele se desenvolveu com
maior solidez enquanto área do conhecimento a partir dos anos 60. Nesse sentido, é
importante trazer para o centro do debate, elementos do contexto histórico global que
influenciaram essa consolidação.
O mundo estava vendo a Terceira Revolução Industrial (Revolução Técnico-
Científica-Informacional) acontecer, onde o aprimoramento do campo tecnológico passou a
abranger cada vez mais o campo da ciência e do conhecimento, integrando-os ao sistema
produtivo do capitalismo. Portanto, ao mesmo tempo que esse avanço tecnológico foi se
consolidando, a exploração da natureza foi ganhando cada vez mais corpo, de forma rápida
e agressiva; diante desse cenário, organizações, movimentos, figuras diplomáticas e a própria
sociedade civil, passaram a questionar e denunciar de forma mais intensa e vigilante essa
nova etapa de exploração dos recursos naturais. E foi a partir da intensificação das denúncias
mencionadas acima, que passaram-se a realizar conferências nacionais e internacionais e
surgiram novas organizações, que estimularam o avanço dos debates acerca do meio
ambiente. Um exemplo político-cultural foi o movimento hippie, um movimento de
contracultura que, para além das roupas coloridas, das músicas e do estilo de vida, possuía
uma base política - ainda que pouco consolidada - pois trazia para o centro do debate
questões como a mercantilização da vida humana, a sociedade do consumo, a cultura do
conservadorismo, e principalmente, a conservação da natureza em prol de uma vida
comunitária e sustentável.
É interessante localizar o movimento hippie no contexto histórico pois ele conversa
com os pilares da Ecologia Política, que Leff (2013) apresenta como: a construção de uma
racionalidade ambiental alternativa a partir da ética política e do pensamento emancipatório,
ou seja, a necessidade de romper com as bases tradicionais do pensamento para construir
uma nova relação com a natureza; o reconhecimento da diversidade cultural, em um sentido
de descolonizar o pensamento, seja no campo teórico-acadêmico ou no campo cultural-
comportamental; e promover uma desconstrução teórica na arena política, fazendo uma
crítica radical dos fundamentos metafísicos da epistemologia moderna, contestando a
centralidade do mercado nas relações sociais e naturais do sistema capitalista nessa fase de
dominação econômica e tecnológica hegemônicas.

A ecologia política emergiu como um campo de investigação teórico e de


ação política em resposta à crise ambiental: à destruição das condições de
sustentabilidade da civilização humana causada pelo processo econômico e
a tecnologização da vida. (LEFF, 2013, p. 15).

Para toda área de pesquisa científica existe uma metodologia que orienta a base das
discussões, Leff (2013) vai trazer então o Anarquismo Cooperativo Dialético, de Peter
Kropotkin, e o Materialismo Histórico Dialético, de Marx e Engels, enquanto a dupla
metodológica possui esse papel de orientação. Do Anarquismo Cooperativo Dialético será
apropriada a crítica ao Darwinismo Social enquanto ferramenta para justificar a estrutura
social e a distribuição de riquezas vigentes; por sua vez, o Materialismo Histórico Dialético
será usado em sua essência para a formulação do campo da Ecologia Política.
O Materialismo Histórico Dialético foi usado por Marx e Engels para analisar a
sociedade capitalista partindo da investigação do campo concreto para atingir o campo
abstrato, contrapondo uma Tese (afirmação concreta) à uma Antítese a fim de chegar em
uma nova tese, a Síntese. Para compreender com maior clareza como o método de Marx e
Engels é usado na Ecologia Política, é interessante destrinchar o termo, esclarecendo seu
significado e aplicando-o na área do conhecimento em questão. Dito isso, o Materialismo
apresenta-se - de acordo com os estudos do sociólogo brasileiro Octavio Ianni - enquanto
uma linha de pensamento que identifica na matéria e em seu movimento, a realidade
fundamental do universo, ou seja, a utilização das bases reais enquanto objetos de análise
será peça fundamental para compreender a sociedade e suas mutações, tanto no campo
concreto, quanto no campo abstrato; no caso da Ecologia Política, as bases naturais de
análise correspondem à exploração da natureza, as lutas sociais, a diversidade cultural, a
geopolítica, entre outras. O termo Histórico, por sua vez e também segundo Ianni, é quase
auto-explicativo, pois se fundamenta no tempo histórico e nas mudanças que ele sofre a partir
das modificações humanas das bases naturais; na Ecologia Política é o tempo histórico da
exploração da natureza e da submissão de culturas ao capitalismo. Por último, mas não
menos importante, o conceito Dialético irá operar pela elaboração - como já citado
anteriormente - de uma síntese a partir da contraposição entre duas ideias, sendo, na
Ecologia Política, as controvérsias sobre as formas de compreender as relações entre
humanidade e natureza no sistema capitalista.
Leff (2013) dá ênfase também à importância da multidisciplinaridade da Ecologia
Política, que abrange áreas como, geografia, ecologia cultural, etnobiologia, economia
política, sociologia ambiental, entre outras; contudo, por essa pluralidade de temas, a área
sempre foi acompanhada de debates acerca do seu status científico enquanto disciplina, e
por este motivo, ainda passa por processos de delimitação de abordagens e de investigação
- como fronteiras e alianças com outras disciplinas, genealogias teóricas, contornos
epistemológicos, estratégias práticas, entre outros - para sua plena consolidação.

3- Autores precursores da Ecologia Política

No início dos anos sessenta e setenta, os escritores Murray Bookchin, Hans Magnus
Enzensberger e André Gorz, contribuíram para o pioneirismo da abordagem temática acerca
da ecologia política. Foram os precursores a dedicar-se a esse novo campo de investigação
e conflito social, gerado pela crise ambiental, onde usufruíram do neo-marxismo para
considerar a interação da pessoa humana com a natureza (LEEF, 2013).
Considerado o autor mais abrangente, radical e polêmico, Murray Bookchin, foi
fundador do movimento da ecologia social baseado no socialismo libertário, ecológico e no
anarquismo, no início da década de 70. Para Bookchin, a ecologia tem naturalmente poder
crítico e político, que estabelece o equilíbrio entre natureza e potencialidades da humanidade,
libertando as pessoas de limitações para uma sociedade libertária. Portanto a ecologia
política é uma ciência integradora e reconstrutiva (LEEF, 2013).
Na década de 70, mais precisamente em 1974, Hans Magnus Enzensberger ressaltou
em suas obras, o modo de produção capitalista como responsável pela crise ambiental.
Enfatizou a ecologia política como ferramenta a ser utilizada, para perceber o quanto alguns
discursos ecológicos escondem intenções, que visam objetivos capitalistas classistas (LEEF,
2013).
Para o autor André Gorz, em meados da década de 90, a origem da ecologia política
é a crítica ao pensamento econômico, ou seja, toda a destruição e devastação do meio
natural, que é a fonte para toda a vida na Terra, incluindo a humana, é resultado dos meios
de produção que visam apenas o maior lucro possível. Para Gorz, as "tecnologias de
parafuso" devem ser substituídas pelas “tecnologias abertas”, que incentivam a comunicação,
cooperação e interação (LEEF, 2013). Portanto, estes autores foram os primeiros a apontar
o quanto o desenvolvimento humano tecnológico capitalista devasta a natureza e,
consequentemente prejudica todo equilíbrio na Terra, incluindo a própria humanidade.

4- Ética, emancipação, sustentabilidade. Rumo a um diálogo do conhecimento

A teoria da ecologia política se constrói com identidade a partir da concepção de um


mundo em transformação juntamente com uma crise ambiental, ou seja, o nosso ser-no-
mundo-vivo. Apesar da ordem mundial já estabelecida, os conceitos e concepções se
deturparam e perderam a capacidade de sustentar a vida, isto é, a transformação mundana
ocorreu de um jeito insustentável e sem perspectiva de melhora e nesse panorama de caos
e incertezas a ecologia política emerge para debater essas questões, sendo considerada
como algo novo ao que vivemos e a necessidade de uma emancipação individual e coletiva
no mundo. Apesar de todos os tipos de linguagem que circundam as esferas desse panorama
mundano atual e inevitavelmente curto, eles também servem para observar e ter visões de
mundos futuros diferentes desse que estamos acostumados, como a quebra do pensamento
capitalista.
A crise ambiental emerge nas margens do crescimento insustentável da racionalidade
econômica, isto é, esse pensamento se dá nos valores das coisas e das ordens ontológicas
terem sido recodificadas em materiais monetários e apenas com o valor econômico se
sobressaindo perante forças imensuráveis na calculadora do capitalismo, logo o mercado
universal se faz como um guia de supervisão onde o lucro é o mais importante, fazendo com
que a produção sempre aconteça de modo desenfreado e sem medir precedentes. A lei do
valor econômico ditando as regras do consumo e o pensamento sustentável são duas forças
opostas que não conseguem coexistir no mesmo espaço-tempo, tendo o capitalismo se
debruçado em um mundo fictício e insustentável das relações de poder e consumo. Porém
esse sistema também serve para enxergar um futuro “utópico” onde conseguimos
redirecionar o curso da vida e por consequência o do planeta. Visto que se isso não acontecer,
ficaremos à mercê das estratégias de poder levando ao nosso fim. Mas o princípio básico
para que isso aconteça é entender que a quebra do pensamento totalitário é fundamental
para as tentativas de ações, porque não se faz as lutas apenas no pensamento.
Com isso a emancipação humana se faz tão necessária no nosso dia-a-dia. Ela surge
a partir da quebra do pensamento totalitário e abertura da janela da prisão do pensamento
racional moderno. Ela só é alcançada quando houver uma quebra de ciclo desse pensamento
moderno que acabaram sendo apropriados pelo liberalismo econômico e pela privatização
dos direitos individuais e a transformação de valores humanos em valores econômicos dando
novos significados para o conceito da modernidade que são os conceitos de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. Seguido de uma ética política diversa podendo assim legitimar as
diferenças e conviver na diversidade com culturas de vários lugares em busca dos direitos
coletivos.
Para que a ecologia política ser soberana, visando o pensamento emancipatório e a
ética política para que eles consigam em comunidade criar um ambiente satisfatório de
sustentabilidade é imprescindível que haja uma desconstrução do pensamento totalizador,
para a harmonização da diversidade cultural juntamente com a racionalidade ambiental para
uma conjuntura de sustentabilidade social e de poder emancipatório individual. A lógica
totalitária coloca o planeta em um declínio desenfreado para o descarrilamento dos ideais da
ecologia política, apesar da descredibilização das formas sustentáveis de se viver, o mundo
que conhecemos está em perigo e pode eventualmente deixar de existir, por isso a ecologia
política e seus meios de diversificação cultural deve ser seguidas e respeitadas.
5- Diversificação cultural

A ecologia política é baseada na diversidade cultural, e é a partir desse pensamento


de diversidade que se irá desconstruir a lógica unitária e universal do mercado, ou seja, o
caminho para uma ecologia política sustentável, há de ser viável através da soberania de
grupos etno-eco-cultural, abordando uma política da diferença, que advém de uma agenda
política abolicionista que tem como pauta estabelecer uma relação de trabalho espontânea,
visando uma civilização da diversidade e reinventando valores, sempre respeitando a
heterogeneidade cultural de um planeta tão diversificado.
Para que isso ocorra e a ecologia política seja de fato a forma que pensamos o mundo,
primeiro é necessário repensar o pensamento emancipatório e a ética política para que esses
possam alcançar seus apogeus de sustentabilidade, isso se faz pertinente pois é
imprescritível que haja uma desconstrução do pensamento totalizador, afim de abrir novos
caminhos para uma racionalidade ambiental, respeitando a natureza, a diversidade cultural e
visando o poder emancipatório para a sustentabilidade da vida, a lógica totalitária vigente põe
o planeta em um declínio desenfreado para o fim de tudo que a ecologia política se propõe a
defender, pode parecer utópico pensar que esse pensamento possam chegar ao fim, mas o
planeta se encontra em um estado que a ecologia política não é apenas um lógica que pode,
eventualmente, ser seguida e respeitada, é uma necessidade.
É importante destacar que quando pensamos na diversidade humana e nas diversas
formas de conhecimento, não nos referimos o fato de que a base teórica não é importante,
ela de fato tem sua importância, mas o conhecimento popular, particular e regional é bem
mais capaz de entender as particularidades que o cerca do que um discurso científico
organizador, isso fica muito claro quando pensamos que o regime dominante de racionalidade
moderna que marginalizou e marginaliza diversas culturas e abordagens diferentes, o que
impediu que muitos outros mundos e culturas pudessem vir a ser algo. É exatamente por isso
que descolonizar o pensamento moderno, particularmente, já é algo árduo, mas
coletivamente, vivendo sobre o mesmo véu do conhecimento científico e totalitário se torna
mais difícil ainda, a ecologia política reconhece essa luta, que é muito mais ampla do que
somente a sustentabilidade, é também pela legitimação da realidade, da natureza, de vida
humanas a partir de uma ótica distinta de reconhecer o mundo.
Ainda no que diz respeito sobre o pensamento totalitário, a ética emancipatória do
ambientalismo coloca em jogo a legitimação dos diversos conhecimentos populares quando
se encontram com o erudito e formal preservado pelo pensamento totalitário, abrangendo
toda a sua luta histórica e suas estratégias presentes de poder, envolvendo a genealogia do
conhecimento ambiental, atendendo não só os embates envolvidos na geopolítica do
desenvolvimento, mas também nas estratégias de poder envolvidas nos processos de
hibridização do conhecimento científico e tradicional, a ecologia não só opera essa
desconstrução na teoria, mas também por meio das práticas de emancipação dos povos nas
suas lutas pela reivindicação de suas identidades e pela reapropriação de seus territórios
bioculturais, a racionalidade ambiental desconstrói continuamente a racionalidade econômica
dominante, as condições de vida de diferentes culturas, reemergem hoje na ressignificação
e na reafirmação de suas identidades culturais, em suas lutas pela reapropriação da natureza
e pela reterritorialização de seus modos de vida.

5.1 Sustentabilidade

Outra pauta presente dentro da ecologia política é a da sustentabilidade, que é vista


como o resultado histórico da emancipação do conhecimento subjugado, para a construção
de sociedades equilibradas, que internalizam as condições de desordem da vida, o que
acarreta uma racionalidade econômica diferente, que visa um consumo sustentável. A
ecologia política vai muito além da segurança ontológica do ego, não é apenas sobre
assegurar a redução do trabalho alienado ou a geração de mais tempo livre, a emancipação
ecológica implica na afirmação de novas identidades e de novos conhecimentos, que se
desvinculam da constritiva racionalidade hegemônica, a ecologia política vai abrir novos
caminhos para a sustentabilidade através do diálogo do conhecimento, a fim de construir
diversas formas de ser, viver e coexistir, apoiadas por uma política da diferença e uma ética
da diversidade.
Há uma séries de diversidades que a ecologia política enfrenta e impossibilita sua
implementação, uma delas é a da emancipação do mundo insustentável, porque essa não há
de vir de uma escolha racional e individual, mas sim da desconstrução da racionalidade tecno-
econômica moderna, ela implica em repensar todo o modelo vigente de organização
ecológica da vida no planeta. A construção de um mundo sustentável exige o controle social
da degradação ambiental, e é aí que se encontra o problema, quem mais degrada o planeta
é quem mais possui poder econômico e político, desacelerar as tendências rumo à morte por
entropia do planeta e fortalecer os princípios da vida aparenta ser impossível, é por isso que
a luta coletiva é tão importante.
A sustentabilidade só será possível através de um diálogo do conhecimento no campo
técnico-científico-econômico e suas estratégias para a apropriação capitalista do planeta, é
através da ecologia política que isso pode ser implementado, para um futuro sustentável não
basta pensar apenas na sustentabilidade liberal, dentro de empresas que propõe fazer o
mínimo com um discurso acerca da ecologia e do planeta enquanto ainda produzem outros
diversos materiais que são nocivos, a mudança só será viável através da reinvenção do
pensamento vigente, nada vale a mudança individual quando o verdadeiro problema está em
escalas bem maiores, a conservação do meio ambiente deve estar inserida em uma política
de desenvolvimento do país, e apesar de ser um problema de todos, é importante salientar
quais setores estão de fato impedindo o caminho para a sustentabilidade e quais trâmites a
ecologia política deve seguir para alcançar seus objetivos.

6 - Estudo de caso: A guerra da Água na Bolívia

A ecologia política refere-se às investigações das relações de poder nas interações


humano-ambientais, analisando a partir das raízes das estruturas hierárquicas, processos
emancipatórios; ou seja, trata-se dos estudos das relações de poder e conflitos políticos sobre
a distribuição dos recursos ecológicos e as lutas sociais para a apropriação da natureza
(LEFF, 2013). Para ilustrar como essas questões estão alocadas no cenário global, busca-se
pontuar sobre a disputa dos recursos hídricos na América Latina, mais especificamente, sobre
a Guerra da Água, em Cochabamba, na Bolívia, em 2000 (DRUMOND, 2015). O caso tornou-
se relevante para este assunto, pois não se tratou de uma pauta circunstancial, mas uma
relação paulatinamente preparada para um processo de apropriação social e financeira dos
recursos naturais.
Desde o final da década de 1980, com o fim da ditadura militar, a Bolívia estava sendo
preparada para a experimentação das medidas neoliberais para países subdesenvolvidos.
As mudanças na Constituição Boliviana e nas leis infraconstitucionais (Lei da Água nº 2.029)
demonstravam a articulação da elite política, empresas estrangeiras e instituições
internacionais, como Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e
Fundo Monetário Internacional (FMI), no monopólio para extração e tratamento dos recursos
hídricos.
A água foi privatizada e as cláusulas do contrato garantiam a empresa americana
Berthel, majoritária no Consórcio Aguas del Tunari, o direito de explorar o recurso; era
assegurado ao consórcio o confisco da infraestrutura de irrigação em áreas com mais de 10
mil habitantes e o confisco ou interdição dos poços particulares ou coletivos (DRUMOND,
2015).
Os moradores de Cochabamba foram vítimas do descuido e do descaso público; a
elite local pouco se importava com o atendimento dos mais pobres, e tampouco os consultou
sobre a privatização. A possibilidade de acesso à água era a problemática central e diante da
articulação explícita de favorecimento de empresas estrangeiras e abuso econômico, a
população se articulou e manifestou contrariamente.
As tarifas cobradas aumentaram cerca de 300%, impossibilitando os mais pobres de
custear o recurso (DRUMOND, 2015). O consórcio argumentou que as cobranças foram
majoradas para quitar débitos antigos da superintendência local de gestão da água. A
população do campo e da cidade se uniu para contestar as ações do consórcio e a
privatização como um todo. Não era simplesmente uma divergência de interesses políticos
postos em xeque, mas a ação popular movida pelo descontentamento, corrupção e abusos
de poder das instituições em Cochabamba.
As mobilizações populares tornaram-se crescentes e foram organizadas pela
Coordinadora de Defensa del Agua y la Vida, articuladas a partir da necessidade de diversos
setores, descontentes com a nova Lei de Águas. A nova organização popular liderou ações
contra o Consórcio e contra a Lei 2.029 no início dos anos 2000, com o fechamento de
rodovias, estradas e aeroportos, interrompendo a circulação de pessoa
Na tentativa de coibir e acabar com os esforços dos movimentos sociais, o poder
público chamou os manifestantes para negociação, a fim de retomar o controle dos locais
bloqueados. A Coordinadora reivindicava a anulação da Lei de serviços de água potável e
esgoto; anulação da concessão do serviço; a nulidade do contrato com o Consórcio Aguas
del Tuari; destituição da superintendência de saneamento; e a discussão com todos os
setores sobre a Lei de recursos de água (DRUMOND, 2015). Houve, por parte do governo,
má-fé e extrema corrupção, visíveis no completo desinteresse em discutir com a população
as condições do uso da água, contexto que acirrou as manifestações. Como resultado, o
poder público cochabambino respondeu com repressão violenta
Tornou-se, de fato, uma guerra pela água, com confronto direto entre a população e
as forças policiais em Cochabamba; a morte de um jovem manifestante e inúmeros feridos
nas ruas foi o ápice das violências cometidas (DRUMOND, 2015). Os manifestantes não se
intimidaram diante disso; novos protestos foram articulados e uma consulta pública foi
realizada, a fim de entender a dimensão da insatisfação popular. A população local era
contrária aos abusos das tarifas e ao modo como ocorreu a privatização. A consulta pública
foi organizada pela Coordinadora, que, por meio deste ato, demonstrou à elite política
boliviana o tipo de participação política popular que buscavam construir.
Os manifestantes tomaram a sede do consórcio e da superintendência e expulsaram
os sócios do local de controle; tornou-se insustentável a permanência do contrato. Diante
disso, a privatização foi revogada (desprivatização), o consórcio exigiu o pagamento
indenizatório por causa da quebra contratual, mas não foi efetuado. O conflito trouxe para o
centro do debate a ação política coletiva e a gestão comunitária dos recursos naturais, vez
que, o controle e a gestão da água passaram a ser exercidos pela população.
As crises cíclicas do capitalismo têm se apropriado de questões que antes eram
garantias e direitos consolidados como universais; tudo se faz em nome do capital financeiro,
e a apropriação e comercialização de recursos naturais, retirando direitos, removendo
populações inteiras dos seus locais tradicionais de moradia ou deixando à mercê do descaso
são os efeitos práticos dessa acumulação por espoliação.
A expulsão dos acionistas do consórcio e a quebra contratual da privatização da água
possibilitou a construção de uma nova forma de fazer política na Bolívia, retomando e
reafirmando o respeito aos usos e costumes tradicionais que o consórcio e a privatização
invalidaram. A guerra da Água na Bolívia possibilitou compreender no cenário global que a
água não pode ser tratada como mercadoria. A segurança da vida no planeta passa pela
água ser um bem acessível a qualquer ser humano; no entanto, há uma elite mundial que
coloca o lucro acima da vida e é capaz de comercializar um bem vital, se isso significar mais
dinheiro (DRUMOND, 2015). Essa compreensão desenfreada sobre a possibilidade de lucro
só pode mudar através da unidade do movimento popular em defesa de seus direitos; e
quanto a isso, Cochabamba mostrou que é possível vencer e construir formas alternativas de
gestão dos recursos naturais.

Referências

CASTELLA, Paulo. Cronologia Histórica Meio Ambiente. Gov.br. Disponível em:


http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/educacao_ambiental/evolucao_histori
ca_ambiental.pdf

DRUMOND, Nathalie. A guerra da água na Bolívia: a luta do movimento popular contra a


privatização de um recurso natural. Revista Nera, ano 18, 2015.

GRUBACIC, David. Kropotkin, 100 anos. Outras Palavras, 2021. Disponível em:
https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/kropotkin-100-anos/

IANNI, Octávio. Karl Marx: Sociologia. 4 ed. São Paulo: Ática, 1984.

LEFF, E. Ecologia política: uma perspectiva latino-americana. Desenvolvimento e Meio


Ambiente, Paraná, v. 27, p. 11-20, jan./jun. 2013.

STOODI. Movimento Hippie: entenda tudo sobre a contracultura de 1960. Stoodi, 2021.
Disponível em: https://www.stoodi.com.br/blog/historia/movimento-hippie/

Você também pode gostar