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Universidade Federal de São Carlos- UFSCar

Giovanna Miorim Teodoro – 770938 e Raquel Gomes Valadares – 772237

Você é o que você come! Considerações sobre alimentação, cultura e políticas públicas

O objetivo desta análise é discorrer brevemente sobre a alimentação como elemento cultural e
objeto de políticas públicas, apresentando a relação entre eles. O alimento será aqui pensado, para
além do seu caráter nutricional, como um elemento cultural e simbólico importante e indispensável
para a perpetuação de ideias e costumes. Inicialmente, o conceito de cultura será exposto, logo a
seguir, propõe-se evidenciar como a alimentação se insere dentro de ações governamentais em
políticas públicas de promoção da saúde, especialmente na população indígena brasileira.
O que é cultura e quais os elementos que a compõem é uma discussão ampla e que não pode
ser simplificada em constatações reducionistas e generalistas. A terminologia cultura é a
designação das particularidades das populações, em que é estabelecida uma fronteira entre um
grupo e outro por meio de traços maleáveis e flexíveis (CONH, 2001)1; é a maneira de viver de uma
sociedade, que existe e funciona num mundo em constante mudança (LINTON, 1970)2. Segundo
Ingold3 (2015) os elementos não tem valor e sentido em si mesmo apartado do contexto, por isso
os componentes, que estabelecem conexão cultural em cada grupo, podem ser variáveis, como
também, podem assumir posições distintas nas diversas estruturas sociais.
Apesar da existência de incontáveis elementos da cultura, sempre há entre os grupos fatores
em comum. Em todas as sociedades os indivíduos se alimentam; em quase todas, pelo menos três
vezes por dia os indivíduos realizam refeições (LINTON, 1970). Além disso, os grupos sociais
interagem com o meio natural em que estão inseridos, desenvolvendo técnicas de exploração e
domesticação do ambiente. Nota-se que há um ajustamento entre o espaço habitável e o
desenvolvimento de hábitos alimentares, embora os indivíduos também detenham a capacidade de
transformação deste ambiente de acordo com as habilidades inventiva e de adaptação (LINTON,
1970).
A comida tem um caráter ambíguo, pois remete a naturalidade da conformação do grupo ao
espaço e na ordem artificial e produtiva da sociedade (MONTANARI, 2008)4. A comida é cultura
quando é produzida, preparada e consumida; de acordo com Montanari (2008), o indivíduo não se
alimenta apenas do que encontra na natureza, mas cria sua própria comida (capacidade produtiva);
os elementos para a alimentação são transformados com uso de técnicas (capacidade de preparo);

1
COHN, Clarice. Culturas em Transformação: os índios e a civilização. In: São Paulo em Perspectiva, 15(2), 2001. p.36-
42.
2
LINTON, Ralph. O indivíduo, a cultura e a sociedade. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octavio. Homem e
Sociedade. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1970.
3
INGOLD, Tim. Antropologia não é etnografia. In: INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e
descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
4
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Ed. Senac, 2008.
e os critérios para esta atividade, materializada em gestos, valores simbólicos, organização e
identidade social, também serão escolhidos (capacidade de consumo).
O preparo, a escolha e a combinação dos alimentos, as cores, os sabores e os aromas, os
horários e os ritos para cada refeição podem variar de acordo com o grupo social. Há uma
acomodação da rotina dos hábitos alimentares ao cotidiano tão imperceptível que os indivíduos
podem ser convencidos (por si mesmos) que em todo lugar todos se alimentam do mesmo modo.
No entanto, existem diferenças quanto às escalas de compatibilidade (doce, salgado, adocicado
etc.) e a permissividade do que é ou não comestível, repugnante ou delicioso (CERTEAU et al,
1996)5. Os alimentos podem ainda estar situados na dimensão das relações religiosas. Sob
algumas circunstâncias, a esfera religiosa regula hábitos alimentares com a determinação da
ingestão ou a proibição de alimentos, adquirindo dimensões simbólicas que não se encontram no
âmbito puramente nutricional.
A alimentação é um importante componente cultural e está tutelada no ordenamento pátrio
como um elemento de proteção jurídica. A Constituição Federal consagrou no artigo 6º a
alimentação como direito social; trata-se de uma diretriz constitucional que determina à
administração pública, nas esferas federal, estadual e municipal, a função de desenvolver
programas e políticas sociais que versem sobre este tema. O direito à alimentação foi incluído ao
texto por meio de emenda constitucional em 2010, após intensa mobilização de entidades sociais
no combate à fome e desnutrição, amparados pelas recomendações da Organização das Nações
Unidas – ONU e do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que determina que
todo ser humano tem o direito à alimentação. A inclusão tardia deste direito social não minimiza sua
importância.
A extensão territorial continental e a diversidade presente no país fazem com que não exista
somente uma única cultura alimentar (MALUF, 2007)6. Assim, a compreensão dessa diversidade
étnica advinda da extensão territorial e populacional brasileira se faz fundamental para compreender
que propostas de intervenção na área da saúde e nutrição devem considerar as especificidades de
cada região, etnia e dos recursos à disposição (GUGELMIN et al, 2007)7.
Segundo Gugelmin (2007), o conceito de intervenção que mais se aproxima da realidade dos
serviços prestados pelo Estado é o de ser, estar presente e assistir, compondo assim, um conjunto
de ações que se organizam num contexto específico visando solucionar um dado problema ou
situação. A escolha da intervenção é conduzida pela identificação da situação problema, assim

5
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar e cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes,
1996.
6
MALUF, Renato Sérgio Jamil. Segurança alimentar e nutricional com valorização da cultura alimentar In: Cultura e
alimentação – saberes alimentares e sabores culturais. S. Paulo: SESC, 2007, p. 143-150.

7
GUGELMIN, Silvia Ângela; BARROS, Denise Cavalcante; SILVA, Denise Oliveira e; (orgs.) Vigilância alimentar e
nutricional para a saúde Indígena [online]. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007.
como dos recursos disponíveis, atores sociais e políticos envolvidos, factibilidade técnica, adesão,
entre outros (GUGELMIN et al, 2007).
De acordo com Gugelmin (2007), no início do século XX foi criado no Brasil um órgão de
proteção aos povos indígenas, o Serviço de Proteção aos Índios - SPI, entretanto, o atendimento
sistemático de serviços de saúde para estes povos só ocorreu décadas depois. As primeiras
constatações sobre os problemas de saúde dos povos indígenas atestaram que estavam
intimamente relacionados com as condições gerais de pobreza, a falta de acompanhamento médico
e as dificuldades de acesso a medicamentos reinantes nas áreas rurais do país. A pobreza geraria
debilidades na alimentação, o que desencadearia a desnutrição, consequentemente, baixa
imunidade e infecções, incorrendo no surgimento de outras doenças e no aumento da mortalidade.
Considerando o desenvolvimento de políticas alimentares no combate à desnutrição e
acompanhamento da saúde das populações indígenas é preciso considerar que existe uma
diversidade de sociedades indígenas; nem todos os grupos possuem os mesmos hábitos, “para
muitos povos indígenas a farinha de mandioca aparece como “comida de branco”, ao contrário do
que afirma o senso comum” (GUGELMIN et al, 2007, p.183). Ademais, as aquisições comerciais de
alimentos é um fato recorrente entre os povos indígenas; diante disto, as políticas públicas que
versam sobre saúde e nutrição indígena precisam ser sensíveis na incorporação de recursos, não
apenas para o plantio, mas também para a obtenção desses alimentos, possibilitada pelos
programas de transferência de renda.
Segundo Gugelmin (2007), as políticas públicas na área de saúde e nutrição destinadas à
população indígena que se mostraram de fato eficientes foram aquelas em que houve a participação
efetiva do grupo indígena. Abrir caminhos e espaços para a participação indígena não se trata
apenas de uma atitude de inclusão social, dado que atinge níveis muito mais profundos de
valorização da sabedoria e cultura local, permitindo que o grupo seja um agente ativo nas tomadas
de decisões que interferem direta ou indiretamente sua vida como um todo.

Para retomar a pergunta formulada no começo desse artigo, parece que resta
apenas a saída de deixá-los em paz para seguirem seu próprio caminho, ou seja,
assumi-los como sujeitos de sua própria história, capazes de conduzir e negociar
suas mudanças. [...] Porém, não somos nós quem deve decidir qual a “cultura” que
eles devem seguir, e muito menos como irão manter suas tradições. Afinal,
parafraseando Goody, as culturas continuam mais que perduram (COHN, 2001,
p.41)

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