KOWARIK, L. Espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Cap.2)
___________. Espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Cap. 5) MACHADO DA SILVA, L. A. Habitación popular en Rio de Janeiro: políticas y realidad. In. MACHADO DA SILVA, L.A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. TELLES, V. Pobreza e cidadania: dilema do Brasil contemporâneo. Cadernos CRH, n.19, 1993.
As considerações apresentadas nos textos referenciados buscam uma reflexão
sobre a formação socioespacial brasileira. Nos textos são expostos aspectos da desigualdade na organização e ocupação urbana, bem como, os fatores que propulsionam tais desigualdades para a conformação vigente, sendo justificadas as assertivas através de exemplos. Telles (1993) destaca, inicialmente, o crescimento da pobreza no Brasil. Segundo a autora, na sociedade brasileira há uma profunda contradição, vez que, verifica-se o desenvolvimento industrial, o crescimento urbano e a modernização institucional, no entanto, a pobreza não foi superada. Pelo contrário, a pobreza transbordou os contornos de definição outrora antepostos na composição das franjas do mercado de trabalho, no submundo do mercado informal, nos confins das áreas rurais e do nordeste hierárquico, atingindo também os trabalhadores urbanos, integrados aos centros econômicos mais dinâmicos. Essas contradições possuem relação com as crises econômicas, que produzem efeitos que reverberam em distintas escalas, com a precariedade dos serviços públicos e, além disso, com a formulação de programas de governo que mantém a tradição conservadora e autoritária, perpetuando os mesmos entraves para a superação da pobreza. Para Teles (1993) a pobreza sempre foi objeto do discurso político, porém a justiça social e a igualdade nunca estiveram nas pautas dos discursos, tampouco da vontade política. Vê-se assim, a pobreza como efeito indesejado, sem autores ou responsáveis indicados, exposta como resíduo que escapou à potência civilizadora da modernização, fixando no futuro a capacidade de redenção ainda não alcançada. A pobreza implica em marca e fixação da inferioridade e na inacessibilidade de direitos sociais. Na análise de Teles (1993) um exemplo pragmático dessas relações hierarquizadas são as relações de trabalho. O trabalho formal regulamentado pelo Estado estabelece um modelo de cidadania e proteção social. Nessas relações, há um escalonamento do acesso aos direitos, pois considera que nem todos são iguais perante a lei e que os direitos são para aqueles que mantém a respeitabilidade. Desse modo, Teles (1993) chama a atenção para a formulação da concepção de cidadania desatrelada dos direitos civis-políticos e o acesso aos direitos sociais como recompensa do cumprimento do dever do trabalho. Mesmo com as lutas sindicais, reinvindicações e conquistas trabalhistas, essa tradição na perspectiva de acesso a direitos não foi superada; não foi possível democratizar o espaço fabril, o que incorre na pauperização da parcela majoritária dos trabalhadores, na instabilidade e despreparo destes. A estrutura social descrita em Teles (1993) tem a carteira de trabalho como um rito simbólico de formação da identidade social, reforçando a compreensão de que os direitos sociais só poderiam ser acessados por meio da obtenção desta identidade. Outro aspecto suscitado é a organização familiar; torna-se imperativo estar inserido em um núcleo familiar que garanta a estabilidade e sobrevivência dos seus membros. O acesso aos direitos sociais estaria centrado nesse binômio, trabalho-família, cuja integração é perversa, pois alheio às relações formais de trabalho não há possibilidade de obtenção de cidadania e a inexistência de núcleo familiar, que garanta dignidade e moralidade, também influirá nas regras culturais que organizam os modos de vida. O grande atrativo da cidade é o trabalho “seguro” e assalariado, que absorve fundamentalmente homens. As mulheres, neste novo cenário de inserção social, têm a autoridade e autonomia familiar reduzida. E, tanto homens quanto mulheres, necessitam incorporar novos hábitos na vida citadina e no ambiente de trabalho. Conforme Kowarick (1979), identifica-se a migração para inserção no mercado de trabalho, no circuito campo – metrópole. A divisão e distinção laboral em decorrência da diferença de sexo influi no tratamento desigual. A hierarquização da pobreza também pode ser analisada a partir do gênero; até hoje, a inserção de homens e mulheres no mercado de trabalho obedece a essa ordem de inferiorização das mulheres, inserindo-as em atividades com menor reconhecimento e baixa remuneração. Machado (2016) apresenta as discussões sobre habitabilidade no Rio de Janeiro, enquanto Kowarick (1979) expõe dados sobre a organização espacial na região metropolitana de São Paulo. Ambos ratificam as análises de Teles (1993) sobre a pobreza e a inacessibilidade de direitos sociais, aplicando as considerações no tocante à moradia urbana. As políticas públicas de moradia, que vigoraram e ainda vigoram, mantêm o acesso a habitação na lógica segregatória a partir dos rendimentos econômicos. A comprovação de renda mediante o trabalho formalizado é a principal via de acesso aos créditos habitacionais. Ademais, os primeiros programas de moradia estavam amparados em categorias profissionais, ou seja, o direito à moradia vinculado ao trabalho. A análise feita por Machado (2016) revela a evolução demográfica e espacial no Rio de Janeiro entre o século XIX e XX. Desde a Lei de Terras, a explosão demográfica, o crescimento e crise da economia cafeeira, a abolição da escravidão, a expansão industrial até a expulsão da população pobre das áreas centrais, nas políticas de remoção dos cortiços, todos esses processos provocaram uma profunda transformação na dinâmica urbana do Rio de Janeiro, sobretudo aprofundaram a desigualdade social na ocupação do espaço urbano. Os subúrbios, isto é, as ocupações periféricas levando em conta o centro comercial e econômico, expandiram estabelecendo como padrão de estruturação grandes loteamentos, ocupados irregularmente, produzindo vazios urbanos, gerando a autoconstrução e a ocupação irregular dos morros. Machado (2016) expõe dados, quantificando percentualmente os tipos de residência e a localização no Rio de Janeiro, indicando a precariedade de acesso aos serviços, infraestrutura e a espacialização da pobreza. A política higienista e sanitarista tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo no início do século XX, removeu as habitações populares das áreas centrais. Os cortiços foram combatidos com veemência por representarem riscos à saúde pública, quando na verdade foram justificativas do poder público para a retirada da população pobre e valoração de áreas privilegiadas (MACHADO, 2016). Prover a habitação é um cálculo demasiadamente complexo, pois as áreas centrais de melhor infraestrutura são as que possuem maior valoração e não se encontram nas possibilidades financeiras dos trabalhadores comuns. As áreas mais longínquas são as mais acessíveis financeiramente, e são estas as áreas para as quais a população de baixa renda recorre. A respeito desta estratificação espacial, Kowarick (1979) é provocativo até mesmo quanto ao título da sua obra. Espoliar é privar alguém de obter ou usufruir algo; neste sentido, a espoliação urbana é o cerceamento, de uma considerável parcela da população, do usufruto dos serviços e infraestrutura que possibilite qualidade de vida na cidade. São Paulo, segundo Kowarick (1979) consiste no centro urbano mais dinâmico do país, onde os aspectos de análise e abordagem são relevantes quanto aos indicadores como ocupação territorial, trabalho, migração, renda, entre outros. Entretanto, esta pujança socioeconômica não significa necessariamente qualidade de vida, por isso, Kowarick (1979) propõe uma análise das condições de vida urbana através da expansão urbana, o oferecimento de serviços e o acesso à infraestrutura. O espaço urbano reflete a condição desigual da vida em sociedade; a concentração da pobreza revela-se no surgimento e expansão dos bairros periféricos, sem infraestrutura adequada influindo na baixa qualidade de vida. Convém ressaltar que Kowarick (1979) analisa a organização socioespacial tomando por base as políticas públicas habitacionais em seu tempo (década de 1970), perfazendo brevemente a história da desigualdade da moradia até então. Kowarick (1979) apresenta quais eram os mecanismos de provisão habitacional no início da industrialização brasileira; as vilas operárias, por exemplo, com unidades habitacionais vendidas, alugadas ou cedidas aos trabalhadores fabris eram soluções eficazes, para um pequeno contingente de mão de obra. Contudo, com o crescimento das indústrias não havia como oferecer moradia suficiente, sendo assim, o custo para a provisão habitacional transferiu-se para os trabalhadores. Equilibrar todos os custos da vida na cidade incorre na procura por moradia que possibilite abrigo adequado, que se adeque à renda e que possibilite a mobilidade entre as áreas de exercício laboral. O preço do crescimento econômico e progresso industrial sobrecarregou o trabalhador, e o mercado imobiliário passou a regular as questões referentes à moradia. A população pobre, que não consegue obter unidade habitacional nos valores de mercado, passou a ocupar áreas cada vez mais distantes do espaço de produção e afastados, também, do acesso aos serviços e infraestrutura urbana. Na lógica do mercado imobiliário, identificada por Kowarick (1979), a classe média obtém a unidade habitacional financiada por meio dos créditos bancários, enquanto a classe trabalhadora fixa-se nas áreas periféricas com unidades habitacionais construídas por eles mesmos, com a ajuda de vizinhos e amigos. Outro elemento relevante suscitado por Kowarick (1979) é o deslocamento dos trabalhadores utilizando o transporte de massa. Problemas relacionados ao trânsito, tais como, congestionamento, filas, atrasos, superlotação compõem o cotidiano do trabalhador urbano. As horas de espera do transporte e o trajeto ao local de produção antecipa e amplia a jornada de trabalho, que reverbera na diminuição do tempo de descanso e redução da qualidade de vida. Contudo, a estrutura de transporte coletivo também influi no preço da terra. De acordo com Kowarick (1979), as melhorias nas vias, a ampliação de linhas de acesso, o surgimento de rodovias, vias expressas ou a canalização de um córrego repercute imediatamente nos valores de compra dos terrenos. A cidade é constituída de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas, que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência. Seccionar ou estratificar a cidade em virtude da renda tem sido a tendência verificada em diversas localidades; cidades pequenas, médias e grandes, globais ou não, externam sua discrepância social, produzindo um território desigual. A experiência do último programa habitacional, como política nacional, o Minha Casa Minha Vida, evidenciou esse caráter segregatório. A habitação de interesse social do programa apresenta falta de integração dos empreendimentos com o tecido urbano local, além do que, as unidades são construídas com baixa qualidade na concepção arquitetônica e urbanística, e ainda, localizadas em áreas periféricas de difícil acesso. Uma maneira de “empurrar” a população pobre para áreas ainda mais distantes e valorar áreas de interesse do mercado imobiliário. Sob a campanha de viabilização habitacional para os desprovidos de moradia ou de meios de provê-la, os vazios urbanos aumentaram e a especulação imobiliária em todo o país atingiu patamares, até então não experimentados. A pobreza e as geografias da pobreza devem ainda ser compreendidas como efeitos do Estado, na medida em que envolvem tanto a exclusão territorial quanto a estigmatização territorial. A compreensão desta nova geografia reproduzindo, em parte, a desigualdade existente é resultado de uma dinâmica específica das formas de crescimento econômico.