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Os conflitos sociais e as ocupações urbanas no

processo de produção da cidade

O processo de urbanização mundial atingiu ritmo e escala sem precedentes


nos últimos cem anos. De fato, pela primeira vez na história da humanidade, a
população urbana na Terra é superior à rural (DAVIS, 2006, p.13). Esse fato pode
parecer não ter maiores efeitos práticos na vida cotidiana, porém é um marco
histórico que representa uma mudança social irreversível e leva-nos à reflexão de
como esse processo ocorreu, ou, mais do que isso, por que e para que(m).
Ao fazermos esses questionamentos aparentemente simples, o olhar sobre o
processo de urbanização ganha novos contornos. O que antes era estático e
tecnocrático passa a ser dinâmico e pessoal. Toda a sociedade é levada ao centro
do debate. Nas palavras do geógrafo David Harvey,
(...) a questão sobre qual tipo de cidade queremos não pode estar
divorciada da questão sobre qual tipo de pessoas desejamos ser,
quais tipos de relações sociais buscamos, qual relação nutrimos com
a natureza, qual modo de vida desejamos. (HARVEY, 2009. p.9).
A urbanização é, portanto, essencialmente, o resultado da ação política
humana, de indivíduos e grupos sociais politicamente constituídos, entrelaçados por
complexas relações de poder. Na sociedade capitalista moderna, a cidade é vista,

então, como mercadoria. É o ​locus onde se realiza o ciclo do capital, bem como a
plataforma para efetivação dos capitais financeiro e imobiliário, por meio do
consumo, dentre outras coisas, da moradia (MORADO NASCIMENTO, 2016. p.
160). Assim, os interesses diversos dos agentes sociais são sempre vistos pela
lógica da negociação, tendo o mercado como intermediário (VAINER, 2007. p. 5).
Nesse contexto, o “direito à cidade” é um conceito chave que se coloca como
contraponto ao processo urbano atual na sociedade de democracia liberal, o qual
está além do direito ao acesso àquilo que já existe: é um direito de mudar a cidade
mais de acordo com o nosso desejo íntimo, ou seja, o direito de se decidir sobre a
cidade à frente do direito de se consumir a cidade (HARVEY, 2009. p. 9).
Por esse olhar, o papel do conflito social toma maior importância. Passa a ser
entendido não como uma forma de protesto ou de provocação, mas como uma
prática política pela qual os envolvidos tornam-se agentes ativos no campo de
forças e de interesses. Entende-se que “um sistema é tanto mais pujante e dinâmico
quanto mais capaz de gerar e produzir conflitos” (VAINER, 2007. p. 1), pois esses
viabilizam e operam o permanente aperfeiçoamento do sistema, ou até mesmo sua
superação.
A sociedade (e a cidade), campo de conflitos diversos, não pode mais ser
vista como empresa, mercadoria ou pátria, mas como campo de luta política de
sujeitos e grupos com diferentes interesses, que não são equipotentes, e muitas
vezes tampouco constituídos como sujeitos coletivos no espaço público (VAINER,
2007. p. 1). Vainer argumenta que:
(...) é a luta social, o conflito aberto o principal, senão o único,
caminho através do qual grupos sociais dominados constituem-se
enquanto sujeitos coletivos no espaço público – isto é, enquanto
sujeitos políticos. Sem conflito, não podem os grupos e classes
sociais dominados gerarem identidades, projetos coletivos, práticas
coletivas, AÇÃO POLÍTICA. (VAINER, 2007. p. 6, grifo do autor)
Os sujeitos socialmente marginalizados são também aqueles que vão sofrer
as mazelas sociais e ambientais de maneira mais intensa. A racionalidade
econômica do capitalismo, que visa a obtenção de ganhos de produtividade,
fatalmente leva a situações de desigualdade e vulnerabilidade socioambiental e é
responsável pela atual crise urbana vivida nos países periféricos. Ademais, a ordem
dominante é branca e masculina e, se o espaço é ​locus das relações sociais de
produção (LEFEBVRE, 1993 apud SOUZA, RATTS, 2008), os agentes sociais que
não estão incluídos nessa visão de mundo patriarcal, sexista e racista predominante
não são contemplados e não participam das decisões políticas, econômicas e
culturais. Bondi (1992, ​apud SILVA, 2007) elucida que o planejamento urbano
funcionalista e racionalista reflete a dominância da perspectiva masculina sobre o
espaço, ao passo que aprisiona as mulheres em determinados lugares ao separar
as áreas comerciais, industriais e residenciais, acentuando a divisão do trabalho
entre os sexos.
Frente a essa situação de intensificação das desigualdades no espaço, de
gentrificação e remoção de grupos sociais de baixa renda, o poder público se coloca
como único protagonista apto a enfrentar o problema. Cala o cidadão no processo
de tomada de decisões políticas, pois o tomam por incapaz de garantir a sua
reprodução física e moral, de gerir seu próprio futuro (LIMA, 2009. p.6). São postos
em prática modelos tecnocráticos, mercadológicos de planejamento competitivo das
cidades, que excluem completamente os cidadãos, e em especial aqueles
marginalizados socialmente, das tomadas de decisão do ambiente no qual vivem
VAINER, 2007. p. 2).
Apesar de a legislação brasileira instituir o direito à moradia, e até elencar
mecanismos legais para garantí-lo, tanto na Carta Magna quanto em outros
instrumentos legais, como o Estatuto das Cidades, a distância entre o que é
regulado por leis, tratados e políticas e o que é realmente aplicado cotidianamente
indica a complexidade da questão que, atualmente tem muito mais a ver com a
imposição de interesses econômicos do que com parâmetros legais, em grande
parte associados aos parâmetros técnicos. Nesse cenário, ocupar uma terra ou um
edifício que não cumpra sua função social é um direito, não um crime. Ocupar não é
uma escolha, é uma necessidade (MORADO NASCIMENTO, 2015, p.58).
As ocupações urbanas se propagam nas cidades como movimentos de
resistência à lógica hegemônica. São a materialização dos conflitos — pela terra e
pela cidade — decorrentes da crise do desenvolvimentismo urbano intensivo e
segregador no âmbito do capitalismo financeiro. A conflituosidade entre atores
sociais antagônicos – aqueles que detêm e produzem moradias e a cidade, como
ativo para o mercado financeiro, os agentes do Estado e a população marginalizada
– é explicitada nos processos de autoconstrução de bairros inteiros e na resistência
civil frente aos vazios urbanos que não cumprem sua função social.
As ocupações são uma realidade cabal e só não enxerga quem não
quer ver. São tão intensas quanto necessárias, pois são a política
habitacional mais efetiva no Brasil de hoje e ainda serão até que a
reforma urbana seja feita e as cidades deixem de ser planejadas
para a minoria rica, passem a privilegiar os outros 99% que a
constroem todos os dias (NEPOMUCENO, C. A., in MORADO
NASCIMENTO, 2015, p.104).
Portanto, fica claro que o espaço e a cidade não são apenas produzidos em
função da reprodução do capital, mas também em função das condições de
reprodução da vida humana . O espaço urbano traz a marca da sociedade que o
produz e, na lógica do capital, esse espaço é contraditório e desigual, pois, numa
sociedade de classes, a acumulação ocorre às custas do trabalhador e da
sociedade como um todo. Assim, o homem produz um espaço com o qual parece
não se identificar (CARLOS, 2013. p. 83-84). Todavia, os conflitos de interesse no
campo político levam a conflitos sociais que se espacializam nas cidades e as
ocupações urbanas são nada além de reflexo e resistência frente a essa realidade.
Ao nos questionarmos sobre o processo de produção urbana e para que(m)
ela ocorre, sob uma perspectiva que luta por justiça espacial urbana e pelo direito à
cidade, tomamos consciência do papel central dos conflitos sociais e das ocupações
urbanas nesse processo, pois:
São os conflitos, e os sujeitos coletivos que eles constituem e
instituem, que podem gerar novos direitos urbanos. (...) Certamente,
os movimentos sociais urbanos, os movimentos de classes e grupos
sociais dominados estão longe de serem lineares, seguindo uma
certeira e segura trajetória sempre ascensional. Certamente passam
por idas e vindas, avanços e recuos.
A questão que se coloca não é essa. A questão que se coloca é que:
sem conflitos estes sujeitos não se constituem. E se eles não se
constituem, só nos resta assistir à reprodução da cidade injusta e
desigual que herdamos de 50 anos de desenvolvimentismo.
Recuperar o sentido virtuoso do conflito e da política, entendida
como ação coletiva no espaço público que diz respeito ao exercício
do poder, é o único caminho, acredito, para desafiar esta cidade
(VAINER, 2007. p. 8).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, Ana Nábila Lima. ​(Des) Construindo os paradigmas de gênero, raça e


sexualidade no espaço geográfico. ​XVIII Encontro Nacional de Geógrafos, 2016.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. ​A cidade​. São Paulo: Contexto, 2013.

DAVIS, Mike.​ Planeta Favela​ .São Paulo: Boitempo, 2006

HARVEY, David. ​A Liberdade da Cidade​. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo,


Nº 26, pp. 09 - 17, 2009.

LIMA, Rosirene Martins. ​CATADORES E CARRINHEIROS: estratégias de


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Internacional de Políticas Públicas, 2009.

MORADO NASCIMENTO, Denise. ​As políticas habitacionais e as ocupações


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MORADO NASCIMENTO, Denise. (org.) ​Saberes [auto]construídos​. Belo


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SILVA, Joseli Maria. "​Gênero e sexualidade na análise do espaço urbano.​"


Geosul 22.44 (2007): 117-134.

SOUZA, L. F. ; RATTS, Alecsandro J P . ​Raça e gênero sob uma perspectiva


geográfica: espaço e representação​. Boletim Goiano de Geografia , v. 28, p.
143-156, 2008.

VAINER, Carlos. Expositor na Mesa “​Visão do Movimento Social, da


Universidade e do Governo Federal sobre Prevenção e Mediação dos Conflitos
Fundiários Urbanos​” em palestra proferida no Seminário Nacional de Prevenção e
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ZHOURI, Andréa. ​Conflitos sociais e meio ambiente urbano​. Comunidades, Meio


Ambiente, n. 17, 2005.

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