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DOI: http://dx.doi.org/10.20396/san.v26i0.

8650838

Soberania Alimentar e Conselho de Alimentação Escolar. Bosquilia & Pipitone

SEGURANÇA
alimentar e nutricional

A importância da Soberania Alimentar no âmbito do Conselho de


Alimentação Escolar no município de Piracicaba (SP)

Samira Gaiad Cibim de Camargo Bosquilia1 e Maria Angélica Penatti Pipitone2

O conceito de Soberania Alimentar surgiu por volta da década de 1990 e destaca a importância da autonomia
alimentar dos povos, respeitando a cultura e hábitos de cada país, assim como está associado à geração de
emprego e a menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado exterior. Nessa linha de
argumentação este trabalho teve por objetivo principal analisar importância da Soberania Alimentar enquanto
conceito orientador da atuação do Conselho de Alimentação Escolar no município de Piracicaba (SP), frente a
gestão do Programa Nacional de Alimentação Escolar. A metodologia baseou-se em análise de dados primários e
secundários e da Resolução no 26, de 17 de junho de 2013. Também se utilizou de entrevista semiestruturada
com profissional envolvida na gestão do Conselho de Alimentação Escolar. Os resultados obtidos mostraram
que, apesar da Soberania Alimentar ter estreita relação com os objetivos do Conselho de Alimentação Escolar
para que seus princípios e objetivos sejam concretizados, os mesmos dependem de inter-relações dos atores
envolvidos nas práticas e processos do Programa Nacional de Alimentação Escolar e do Conselho de
Alimentação Escolar.

Palavras-chave: agricultura familiar, hábitos alimentares, merenda escolar.

The importance of Food Sovereignty in the School Feeding Council in the city of
Piracicaba (SP)

The concept of Food Sovereignty emerged around the 1990s and emphasizes the importance of the food
autonomy of the peoples, respecting the culture and habits of each country, as well as being associated with the
generation of employment and the less dependence of imports and price fluctuations of the market. In this line
of argument, the main objective of this work was to analyze the importance of Food Sovereignty as a guiding
concept of the School Feeding Council in the city of Piracicaba (SP), as opposed to the management of the
National School Feeding Program. The methodology was based on analysis of primary and secondary data and
Resolution n. 26 of June 17, 2013. A semi-structured interview with a professional involved in the management
of the School Feeding Council was also used. The results show that although Food Sovereignty has a close
relationship with the objectives of the School Feeding Council in order to achieve its principles and objectives,
they depend on the interrelationships of the actors involved in the practices and processes of the National
School Feeding Program and the School Feeding Council.

Keywords: family farming, eating habits, school lunch.


1 Doutoranda em Ecologia Aplicada pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ, Universidade de São Paulo – USP. Endereço para correspondência: Av. Pádua Dias no 11, CEP: 13418-900, Piracicaba,
SP, Brasil. Telefone: +55 (19) 3429-4225. E-mail: samira_gaiad@hotmail.com
2 Professora Livre Docente do Departamento de Economia, Administração e Sociologia, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ, Universidade de São Paulo – USP. E-mail: angelicapenatti@gmail.com

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INTRODUÇÃO E OBJETIVOS como, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e


Políticos de 1992 e o Pacto Internacional sobre os
Nos debates acerca do campo agroalimentar Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. E o direito
o advento do capitalismo e a transformação dos humano à alimentação está incluído no Pacto
alimentos em mercadorias se converteram em uma Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
questão política e econômica nem sempre ética e Culturais e cabe ao Estado respeitar, proteger e zelar
equitativa, colaborando para reações e mudanças nas pela capacidade dos indivíduos, família ou
relações entre produção e consumo. comunidades de produzir sua própria alimentação
e/ou de obter a renda monetária suficiente para
Com isso, a satisfação das necessidades adquirir alimentos adequados.
alimentares está longe de ser concretizada e com isso o
direito dos seres humanos à alimentação adequada e Toda esta motivação deu origem à definição
saudável vem sendo constantemente violado[1]. Ainda de ideias, conceitos e ações públicas que pudessem
que muitas políticas públicas tenham surgido para reforçar a importância e o direito dos seres humanos à
corroborar positivamente este campo do debate em alimentação adequada e/ou saudável e os conceitos de
torno das teorias e práticas agroalimentares, observa-se segurança e soberania alimentar.
que ainda há a necessidade de ações e projetos
interdisciplinares dos atores envolvidos nas políticas Isto posto no âmbito deste artigo será
públicas direcionadas à sustentabilidade. apresentada uma breve análise dos debates acerca
destes conceitos, além de destacar quais são as funções
Neste sentido, o conceito de segurança e e a importância do Conselho de Alimentação Escolar
soberania alimentar se destacam como conceitos como instância integradora do Programa Nacional de
protagonistas no campo agroalimentar no Brasil e no Alimentação Escolar, e principalmente, a importância
mundo. No Brasil, a partir de 1930, foram observados da soberania alimentar enquanto conceito teórico-
os primeiros embates entre especialistas da área, como prático orientador da atuação do Conselho de
por exemplo, Josué de Castro, médico que possuía Alimentação Escolar no município de Piracicaba (SP).
interesse inicial pela psiquiatria, mas resolveu se
dedicar à Nutrição e acabou por se tornar um dos Soberania Alimentar
maiores ativistas brasileiros da área, tendo dedicado
sua vida ao combate à fome e à desnutrição. Seus Antes de se falar no conceito de soberania
estudos, foram de extrema importância para alertar a alimentar e antes mesmo da Declaração Universal dos
sociedade brasileira sobre os problemas alimentares Direitos Humanos é importante destacar o conceito
existentes e muitas vezes desconhecidos, além de ter de segurança alimentar que surgiu a partir da II Guerra
buscado reforçar a responsabilidade do Estado para Mundial no momento em que metade da Europa
com a alimentação pública[2]. estava devastada e não conseguia produzir seus
próprios alimentos[4]. O conceito de segurança
Nos anos que se sucederam, especialmente alimentar tem presente três critérios fundamentais:
em 1948, foi assinada a Declaração Universal dos quantidade, qualidade e regularidade no acesso aos
Direitos Humanos, pelos povos do mundo, por alimentos e tal definição foi de extrema importância
intermédio de seus chefes de estados e governos em para o surgimento do conceito de soberania alimentar
um momento em que a humanidade tomou posteriormente.
consciência da barbárie que representou o Holocausto.
O pacto baseado em princípios éticos e morais visou Neste sentido, com o passar das décadas e
reconhecer que a diversidade é a única coisa que os com a produção de conhecimento na área da
seres humanos têm em comum, e que a mesma deve alimentação, surgiu em 1990 o conceito de soberania
ser respeitada e tratada com equidade[3]. Embora a alimentar, que foi criado a partir de propostas de
Declaração não seja um documento que represente movimentos sociais a fim de direcionar a produção de
obrigatoriedade legal, ela serviu de base para alimentos e agricultura.
construção de outros dois pactos de força legal, tais
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Com objetivo de definir um conceito preciso multifuncionalidade só emerge quando as paisagens


sobre a soberania alimentar, desde a Cúpula Mundial estão dominadas por unidades produtivas pequenas e
de Alimentação, em 1996, veio se destacando uma biodiversificadas, sendo, no fim das contas, mais
crescente e permanente discussão sobre qual seria a produtivas que as grandes monoculturas. Além do
definição mais precisa do conceito de soberania mais, as comunidades rurais diversificadas e ancoradas
alimentar, uma vez que o conceito passou a ganhar na agricultura familiar apresentam economias mais
importância cada vez maior em vista das discussões saudáveis e menores problemas sociais.
sobre o direito à alimentação. Face a tudo isso foi
elaborada provisoriamente a seguinte definição: Função e Importância dos Conselhos de
Alimentação Escolar
O direito dos povos à alimentação
saudável e culturalmente adequada
produzida através de métodos O processo de descentralização enquanto
sustentáveis, e seu direito de definir seus característica da política pública brasileira merece
próprios sistemas agrícolas e alimentares. destaque, pois tal processo modificou a atuação do
Desenvolver um modelo de produção
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
agrícola sustentável, que favorece as
comunidades e seu ambiente. A Desde sua criação em 1954 até meados da década de
Soberania Alimentar coloca as aspirações, 1990, o PNAE foi administrado de forma centralizada
necessidades e estilos de vida daqueles e essa forma de execução resultava em desrespeito aos
que produzem, distribuem e consomem hábitos alimentares regionais, com o oferecimento dos
alimentos no coração dos sistemas
alimentares e políticas alimentares à frente mesmos produtos formulados em todo o país, além de
das demandas dos mercados e favorecer grandes grupos econômicos em detrimento
corporações[5]. de pequenos produtores.

Vale destacar que esse conceito destaca a Deste modo, a partir de 1993 o processo de
importância da autonomia alimentar dos povos, descentralização surgiu como alternativa para
respeitando a cultura e hábitos de cada país, assim fortalecer as economias municipais face ao
como está associado à geração de emprego e à menor determinismo do executivo federal, sendo que a
dependência das importações e flutuações de preços disponibilidade de recursos é essencial para que os
do mercado exterior[6]. governos locais possam limitar as influências do
governo central em suas ações[8].
Neste sentido, é de extrema importância o
reconhecimento de que a soberania alimentar Posto isto, a partir de 1993, o PNAE passou a
representa o direito dos povos de definir suas próprias receber menos interferência do Estado, o que
políticas e estratégias sustentáveis de produção, ocasionou o início da participação popular no
distribuição e consumo de alimentos, que garantam o conjunto das ações de gestão do mesmo. Além disso,
direito à alimentação para toda a sua população, com entre os objetivos da descentralização do PNAE
base na pequena e média produção, respeitando a constavam a busca da regularidade do fornecimento
diversidade de culturas e crenças das comunidades[7]. da merenda, melhoria da qualidade das refeições,
Sendo assim, o livre comércio sem controle social, atendimento dos hábitos alimentares, diversificação da
fundado no poder das multinacionais e em modelos oferta de alimentos, incentivo à economia local e
agroexportadores é o principal mecanismo que expulsa regional, diminuição dos custos operacionais e
os agricultores de suas terras e é o principal obstáculo estímulo à participação da comunidade local na
para alcançar desenvolvimento e segurança alimentar execução e controle do programa[9].
local. A soberania alimentar é apresentada então como
única alternativa viável para o sistema alimentar em A descentralização permitiu, também, a
colapso[1]. racionalização da logística e dos custos de distribuição
e, do ponto de vista da participação da sociedade civil,
Segundo Marques[1], os consumidores devem a descentralização permitiu a participação de pais de
tomar consciência de que sua qualidade de vida está alunos, professores e membros da comunidade nos
intimamente associada aos modelos agrícolas e seus processos decisórios e de acompanhamento da gestão
múltiplos serviços ambientais. Esta
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do PNAE, por meio da criação dos conselhos de contratos de fornecedores, de extratos bancários e
municipais de alimentação escolar. demais documentos que sejam necessários.

Posteriormente foi promulgada a Lei no 8.913 Segundo Pipitone[9], em relação ao PNAE e


de 12 de julho de 1994 (substituída pela Medida ao CAE, é de extrema importância que sempre haja
Provisória no 2.178-36, de 24 de agosto de 2001)[10] uma busca pela correta execução das atividades para
que regulamentou a descentralização do PNAE e que o mesmo possa contribuir para o funcionamento
normatizou os repasses de recursos do programa para pleno do PNAE.
os Estados e municípios. Além deste avanço, houve
também a criação dos Conselhos de Alimentação MATERIAL E MÉTODOS
Escolar (CAE), que tinham por regra geral a
incumbência de fiscalizar e controlar as aplicações dos Tendo em vista o objetivo do artigo de
recursos, bem como controlar a qualidade das analisar a importância da soberania alimentar no
refeições oferecidas. âmbito do Conselho de Alimentação Escolar no
município de Piracicaba (SP), fez-se uso de
No entanto, o CAE se consolidou apenas em metodologias qualitativas com ênfase na coleta de
1998 quando foi estabelecido que os repasses dos dados realizada a partir de pesquisa bibliográfica e de
recursos financeiros federais aos estados, municípios e entrevista semiestruturada.
Distrito Federal só ocorreria mediante a criação do
Conselho de Alimentação Escolar em cada município A entrevista semiestruturada, tem por
brasileiro. característica questionamentos básicos que são
apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao
O CAE deve ser constituído por um tema da pesquisa, foi a metodologia escolhida e
representante do poder executivo, dois representantes empregada por ser considerada a mais adequada ao
das entidades de trabalhadores da educação e tipo de pesquisa desenvolvida[12].
discentes, dois representantes de pais de alunos e dois
representantes de entidades civis, sendo que cada Na ocasião, a entrevista foi realizada com a
membro titular deverá ter um suplente do mesmo presidente da gestão 2015-2018 do Conselho de
segmento. Alimentação Escolar do município de Piracicaba (SP),
a qual forneceu todas as informações pertinentes à
O tempo de mandato dos membros pesquisa sobre o funcionamento do CAE no referente
pertencentes ao CAE é de quatro anos, sendo possível município.
a recondução dos mesmos, apenas uma vez. O
trabalho como membro conselheiro do CAE é A coleta de dados, por sua vez, foi realizada
considerado um serviço público relevante não com base em dados secundários (dados anteriormente
remunerado[11]. coletados, seja pelo governo, por instituições não
governamentais, publicações ou pela própria empresa
Os CAEs devem ter apoio dos Estados, e que estão disponíveis para consulta pública).
Distrito Federal e municípios para que os mesmos Também procedeu-se à análise da Resolução no 26, de
possam garantir, ao Conselho, a infraestrutura 17 de junho de 2013[13] que dispõe sobre o
necessária à execução de suas atividades, tal como um atendimento da alimentação escolar aos alunos da
local apropriado para desenvolvimento de suas educação básica no âmbito do Programa Nacional de
reuniões e atividades, disponibilidade de equipamentos Alimentação Escolar. Ademais, outros dados e
de informática e disponibilidade de recursos para informações foram retirados do sítio eletrônico da
transporte de seus membros ao local de exercício de Secretaria Municipal de Educação de Piracicaba[14].
suas atividades no Conselho. Além disso, a Entidade
Executora tem por obrigação fornecer sempre que
necessário ou solicitado os documentos e informações
referentes à execução do PNAE, em todas as suas
etapas, tais como as cópias de editais de licitação, cópia

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RESULTADOS E DISCUSSÃO definição de seus próprios sistemas agrícolas e


alimentares.
O caso do CAE no município de Piracicaba
(SP) Correspondente a isso, temos o conceito de
soberania alimentar como promotor da produção e
O município de Piracicaba (SP) ocupa uma comercialização de alimentos locais vinculados à
área de 1.378,501 km². No ano de 2010 sua cultura e ao estilo de vida de uma população, e
população foi estimada pelo Instituto Brasileiro de também de alimentos produzidos de forma
Geografia e Estatística (IBGE) em 364.571 sustentável e sempre que possível, livre de
habitantes e está localizado na região sudeste do componentes químicos. Esses ideais têm papel
estado a cerca de 160 km da capital, São Paulo. fundamental na atuação do CAE, uma vez que,
essas concepções estão imbuídas nos princípios
fundamentais do Programa de Alimentação Escolar
Neste município, o Serviço de Alimentação
e devem ser buscadas e reforçadas pelo CAE.
Escolar, abrange 218 escolas de educação básica e
atende cerca de 85.415 escolares. O programa
ganhou novos contornos durante sua trajetória Há também outro ponto importante que
histórica e atualmente encontra-se municipalizado, pode ser desenvolvido na busca pela
sendo responsável pela prestação de serviços, sustentabilidade do Programa e melhoria das
aquisição de gêneros alimentícios, preparo e condições de saúde de crianças e jovens que
distribuição de merenda aos alunos do ensino usufruem do PNAE, como a busca pelo
fundamental das escolas estaduais, municipais e desenvolvimento de um modelo de produção
particulares que oferecem ensino gratuito, vinculado agrícola sustentável, que é de extrema importância
à rede de ensino durante o ano letivo e férias para o desenvolvimento local e da comunidade nele
escolares[14]. inserida.

Já o Conselho de Alimentação Escolar no Frente a isso, a questão do estímulo à


município, foi instituído a partir do ano 2000 e produção local serve de esteio à produção agrícola
desde então vem realizando suas obrigações e sustentável com foco nos agricultores familiares,
deveres em consonância com os objetivos do que por sua vez resulta em inúmeros benefícios, tais
PNAE, buscando assim contribuir positivamente na como: novas organizações e associações, discussão
execução do Programa. de interesses e viabilidades locais, introdução e
reforço da gestão ambiental com foco no meio
ambiente e na melhoria da saúde e segurança das
Os cinco princípios fundamentais do
pessoas envolvidas no processo produtivo, como
PNAE são a universalidade do atendimento, o
também, a melhoria da qualidade de vida da
respeito aos hábitos alimentares, a equidade no
localidade e comunidades vizinhas[1].
atendimento, a descentralização das ações e a
participação da sociedade no controle social.
Relacionado aos benefícios já citados, pode-
se falar também da criação de políticas públicas
Tais princípios são de extrema importância
voltadas ao incentivo da agricultura familiar, como
para o desenvolvimento do conceito da soberania
por exemplo, a criação da Lei no 11.947 de 16 de
alimentar, sendo que para esta discussão destacam-
junho de 2009[15], que determinou que no mínimo
se o respeito aos hábitos alimentares e a
30% do valor repassado a estados, municípios e
participação da sociedade no controle social. Distrito Federal pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o
Ambos são considerados variáveis Programa Nacional de Alimentação Escolar
importantes para o atingimento da soberania (PNAE) deveria ser utilizado na compra de gêneros
alimentar enquanto conceito prático que enaltece a alimentícios diretamente da agricultura familiar e do
importância social da formação de hábitos empreendedor familiar rural ou de suas
alimentares saudáveis e inclusivo ao destacar a organizações, priorizando-se os assentamentos da
importância da produção e participação local na

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reforma agrária, as comunidades tradicionais aos requisitos e especificidades de suas funções.


indígenas e as comunidades quilombolas. Além do mais, o CAE poderá desenvolver suas
atribuições em regime de cooperação com os
Dentro deste contexto, o município de Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional
Piracicaba adquiri atualmente cerca de 41% de estaduais e municipais e demais conselhos afins, o
alimentos oriundos de agricultura familiar, tais que pode proporcionar a troca de informações e
como suco natural de laranja, iogurte, queijo criação de projetos visando o melhoramento do
muçarela, leite integral e hortaliças e ainda que PNAE. Deste modo, destaca-se a importância do
existam muitas dificuldades e entraves a serem CAE exibir ações alinhadas com o conceito de
enfrentados no processo de aquisição destes soberania alimentar para amparar e orientar a
alimentos (problemas de não conformidade do execução de seus trabalhos.
produto, de logística, de gestão de contratos, etc.),
são evidentes os benefícios dessa lei, pois as Em relação à entrevista com a presidente da
crianças e jovens consumirão alimentos de maior gestão 2015-2018 do Conselho de Alimentação
qualidade, os agricultores familiares possuirão maior Escolar do município de Piracicaba (SP) foi possível
certeza de escoamento de seus produtos e a verificar algumas ocorrências relacionadas à gestão
prefeitura poderá gerir com mais autonomia seus pessoal e operacional, como a falta de apoio à
contratos. questão da soberania alimentar exibida a partir da
dificuldade de cooperação entre os diferentes atores
Além desses benefícios gerais é importante envolvidos no PNAE e distribuídos entre as
destacar um aspecto positivo no âmbito do apoio ao diferentes secretarias e seções da administração
agricultor familiar por meio do PNAE, tal como, a municipal. Vale destacar que o PNAE é, em
promoção da produção rural familiar, através da essência, um programa extremamente complexo por
criação de arranjos e parcerias entre a Prefeitura, envolver a União, Estados, Municípios, Conselhos e
órgãos de extensão rural e os agricultores familiares estabelecimentos de ensino, pais e professores.
a fim de promover capacitação organizacional e
técnica para o produtor familiar, seja para Outro ponto citado pela entrevistada se
capacitação específica ou até mesmo orientações referiu às oscilações recorrentes das gestões, uma
sobre as exigências sanitárias dos produtos vez que, percebe-se que os esforços do CAE de ser
comercializados[16]. mais atuante, de promover ações coletivas, interligar
secretarias e fiscalizar mais onde há necessidade
Neste contexto, o CAE alicerçado pelo estão sempre reféns do interesse do gestor da
conceito e pelas dimensões teórico-práticas da ocasião e a falta de visibilidade das ações do CAE
soberania alimentar poderá atuar como órgão nas escolas e entre os pais dos escolares também se
influenciador, orientador e intermediador entre a revelou um problema que deve ser minimizado com
Prefeitura e os agricultores familiares a fim de o intuito de valorizar o CAE e consolidar suas ações
corresponder e/ou aumentar a porcentagem de entre a comunidade escolar.
aquisição de alimentos imposta pela lei.
A diferença existente entre escolas
Quanto à análise da Resolução 26, de 17
no municipais e estaduais também é um obstáculo a ser
de junho de 2013[13] foi possível observar que o superado. A diferença já pode ser notada pelo
CAE é responsável pelo acompanhamento de modelo de gestão adotado em ambas, sendo que as
questões relativas à prestação de contas (financeira) estaduais recebem a alimentação escolar de uma
até as relacionadas à elaboração de cardápios. Deste empresa terceirizada e por conta disso há algumas
modo, evidencia-se a importância e a abrangência objeções sobre a qualidade (qualidade de acordo
do CAE frente à execução do PNAE e o quanto a com a Divisão de Alimentação e Nutrição de
ação dos seus membros pode interferir no Piracicaba) das refeições oferecidas, além de não ser
funcionamento do Programa. possível controlar a procedência dos gêneros
alimentícios adquiridos pela empresa.
Neste sentido, parece recomendável que
tais membros recebam orientações mínimas quanto
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Já as unidades de ensino infantil são se as ações do PNAE estão financeiramente,


municipais e geridas pelo modelo autogestão, que ambientalmente e socialmente em acordo.
caracteriza-se pela inteira responsabilidade da
Prefeitura do município em preparar e distribuir as No entanto, ser influente e possuir relação
refeições pelas unidades de ensino, o que resulta em direta pode não ser suficiente para que tais princípios e
refeições de melhor qualidade. objetivos sejam concretizados, já que os mesmos
dependem de outras inter-relações que muitas vezes
No caso do CAE, a dificuldade frente a essa são negligenciadas por interesses próprios ou coletivos
divisão fica por conta da sua pequena interação com dos atores envolvidos nas práticas e processos do
as escolas estaduais que recebem os serviços da PNAE, CAE, entre outros.
empresa terceirizada, por não conseguirem ter um
maior controle da execução das práticas e processos Sendo assim, a falta de apoio, cooperação e
desenvolvidos pelas empresas contratadas. coesão entre os atores envolvidos no PNAE, CAE e
outras Secretarias do município revela-se como um
CONCLUSÃO grande entrave na difusão dos princípios da soberania
alimentar. Além disso, maior qualificação em torno do
O conceito de soberania alimentar quando tema também é um subsídio crucial para a tomada de
posto em prática pode servir como um alicerce de decisões em torno das ações públicas relacionadas
ações positivas em busca da sustentabilidade, seja qual com a soberania alimentar.
for a dimensão e escopo dos objetivos propostos.
A restrição orçamentária e as dificuldades
A soberania alimentar por si só, pode ser geradas (de acesso, influência, etc.) pela divisão da
considerada uma proposta de transformação que gestão do Programa (autogestão e gestão terceirizada),
busca construir e/ou reconstruir a relação de equilíbrio também se mostraram empecilhos para uma atuação
entre homem e natureza e não se limita apenas às mais abrangente e efetiva do CAE. A exemplo, a
questões alimentares, mas também por questões Prefeitura pode requerer a formulação de um cardápio
energéticas, hídrica e territorial, convergindo em que apenas se enquadre nos gastos previstos, o que
interesses econômicos, culturais e políticos que se acaba por impedir que os conselheiros do CAE
ampliam em busca da sustentabilidade. possam auxiliar as nutricionistas da Divisão de
Alimentação e Nutrição a formularem cardápios que
Como componentes específicos, ressalta-se a respeitem ou agreguem valor cultural aos seus
busca pela produção e comercialização de alimentos beneficiários.
locais vinculados à cultura e ao estilo de vida da
população, a produção de alimentos produzidos de Além disso, é importante destacar o papel do
forma sustentável e o desenvolvimento de modelos de CAE em conjunto com as escolas na formação de
produção agrícola sustentável que favoreça as valores ligados aos hábitos alimentares e à nutrição
comunidades e seu ambiente. para a promoção da saúde a partir do contexto da
soberania alimentar. A abertura e presença do CAE
Tais princípios gerais e específicos norteiam nas escolas municipais e estaduais é de suma
direta e indiretamente a execução do PNAE, uma vez importância para que alunos e pais conheçam a
que, nota-se o incentivo e criação de ações, políticas e relevância e o trabalho do CAE na alimentação escolar
projetos com o intuito de tornar o Programa cada vez e na promoção de hábitos alimentares saudáveis
mais alinhado com as questões ambientais, sociais e através de ações educativas e sociais.
políticas no meio em que está inserido.
Sendo assim, fica evidente a importância da
Quanto à importância da soberania alimentar soberania alimentar enquanto conceito prático e
no âmbito dos Conselhos de Alimentação Escolar, norteador das ações do CAE, visando o
observou-se que o mesmo possui estreita relação com desenvolvimento sustentável do PNAE e dos
os objetivos do CAE no que diz respeito a monitorar agricultores familiares.

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alimentação escolar na gestão do programa nacional de alimentação
escolar. Rev. Nutr. 2003;16(2):143-154.

[10] Brasil. Medida Provisória no 2.178-36, de 24 de agosto de 2001.


Dispõe sobre o repasse de recursos financeiros do Programa
Nacional de Alimentação Escolar, institui o Programa Dinheiro
Direto na Escola, altera a Lei no 9.533, de 10 de dezembro de 1997,
que dispõe sobre programa de garantia de renda mínima, institui
programas de apoio da União às ações dos Estados e Municípios,
voltadas para o atendimento educacional, e dá outras providências.
Brasília: Diário Oficial da União. 25 ago 2001.

[11] FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.


2018. [internet] [acesso em 17 fev 2019]. Brasília, 2018. Disponível
em: http://www.fnde.gov.br

[12] Manzini EJA. Entrevista na pesquisa social. Didática.


1990/1991;26/27:149-158.

[13] Brasil. Resolução no 26, de 17 de junho de 2013. Dispõe sobre


o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação
básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar –
PNAE. Brasília: Diário Oficial da União. 18 jun 2013.

8
Segur. Aliment. Nutr., Campinas, v. 26, p. 1-8. e019009. 2019

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