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ORIENTALISMOS

MÍDIAS E ARTE
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Orientalismos: Mídias e Arte. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 148p.
ISBN: 978-65-00-77514-3
História da Ásia; Orientalismo; Comunicação; Mídias; Arte; Diálogos
Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

Mídias
OS K-DRAMAS E A HALLYU NO BRASIL: UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO, por Amanda
Mesquita ....................................................................................................................................... 7
AS “MULHERES DE CONFORTO” COREANAS: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA GRAPHIC NOVEL
GRAMA DE KEUM SUK GENDRY-KIM, por Camilly Evelyn Oliveira Maciel.................................. 13
ÉTICA ALIMENTAR E SIMBOLOGIAS DIETÉTICAS EM “A VIAGEM DE CHIHIRO” (2001), por Felipe
Daniel Ruzene.............................................................................................................................. 19
REPRESENTAÇÕES ALUSIVAS À SEGUNDA GUERRA MUNDIAL PRESENTE NOS MANGÁS E
ANIMES, por Francisco Kelvin Moreira de Sousa e Jakson dos Santos Ribeiro ........................... 26
O POSICIONAMENTO ANTIGUERRA EM NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO [1984] DE HAYAO
MIYAZAKI, por Gabriel Lacerda de Souza .................................................................................... 36
COMPARAÇÃO INTERMÍDIAS DE KOE NO KATACHI, por Giorgia Vittori Pires ............................ 44
EMBATES DISCURSIVOS QUE PASSAM ÀS TELAS: IMPACTOS DAS DISCUSSÕES ORIENTALISTAS
ITALIANAS EM SEU CINEMA, POR OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPEIA (1913), por Heloisa
Motelewski .................................................................................................................................. 52
A “CHINATOWN IMAGINÁRIA”: A REPRESENTAÇÃO DO LUGAR DO IMIGRANTE CHINÊS NOS
ESTADOS UNIDOS A PARTIR DA SÉRIE TELEVISIVA “WARRIOR”, por Krishna Luchetti ............... 62
GEN, O TRIGO VERDE DE HIROSHIMA: MEMÓRIAS DO PÓS-GUERRA ENTRE REPRESENTAÇÕES E
NARRATIVAS (1973 – 1985), por Lucas Ciamariconi Munhóz ..................................................... 69
CONVERGÊNCIA DA ESTÉTICA DOS MANGÁS EM AUTORIAS AFRICANAS: UM BREVE EXAME DO
UNIVERSO HÍBRIDO DE JUNI BA, por Márcio dos Santos Rodrigues........................................... 74
A EXPANSÃO DO ESTILO MUSICAL K-POP E O ORIENTALISMO CRESCENTE, por Maria Carolina
Stelzer Campos ............................................................................................................................ 85
EM LOUVOR A “JAPONIZAÇÃO”: O ADVENTO DAS ANIMAÇÕES COMO INSTRUMENTO DE
INFLUÊNCIA NA CULTURA JUVENIL BRASILEIRA, por Paulo Augusto Balbi de Oliveira .............. 91
CULTURA E DINÂMICA SOCIAL, A PARTIR DA DISCUSSÃO DO FILME: RAN (1985), DE AKIRA
KUROSAWA, por Rafael Egidio Leal e Silva.................................................................................. 98
A PARATOPIA CRIADORA NO DRAMA BL HAPPY ENDING ROMANCE e Vitória Ferreira Doretto e
Júlio Cézar de Souza .................................................................................................................. 104
A INFLUÊNCIA DOS MANGÁS E ANIMES NO UNIVERSO JUVENIL BRASILEIRO DE LEITURA, por
Wagner Pereira de Souza e Rosete Lopes França Maciel ......................................................... 113

Arte

UMA SIMULAÇÃO À EGÍPCIA: ANÁLISE DO DESFILE DOURADO À LUZ DE BAUDRILLARD, por


Allyson Afonso dos Santos Silva e Hannah Cabral Dantas de Barros Teixeira .......................... 120

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A SERPENTE ORIENTAL: HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO NA DANÇA DO VENTRE, por Tanya
Mayara Kruger........................................................................................................................... 129
SERPENTES ALADAS, DRAGÕES E OUTRAS DIVINDADES: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS
DEUSES MESOAMERICANOS E OS DRAGÕES NA MITOLOGIA CHINESA, por Luiz Vinicius
Rodrigues dos Santos ................................................................................................................ 135

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OS K-DRAMAS E A HALLYU NO BRASIL: UM BREVE
PANORAMA HISTÓRICO, por Amanda Mesquita

A Onda Coreana, ou Hallyu, é o nome dado ao fenômeno transnacional de


exportações de produtos culturais sul-coreanos iniciado no fim da década de
1990 [Mazur, 2021]. A Hallyu engloba artefatos culturais sul-coreanos como a
música, a culinária, a literatura e o cinema. Graças aos investimentos contínuos
tanto do setor público quanto privado, à internet e ao engajamento de fãs, nos
últimos dez anos foi possível observar um boom da Hallyu por todo mundo,
atingindo mercados globais além-Ásia. Apesar de suas diversas fases e dos
múltiplos produtos exportados, defende-se que um dos pilares da expansão da
Hallyu, sobretudo na América Latina e no Brasil, é os dramas de TV.

Dramas de TV é um termo genérico para caracterizar um formato audiovisual


surgido no Japão e popularizado na década de 1980, quando passa a ser
exportado aos demais países da região do leste e sudeste asiático. A partir da
apropriação do formato televisivo japonês, países como China, Hong Kong,
Tailândia e Coreia do Sul criam suas próprias narrativas seriadas com
características particulares às suas respectivas culturas, “[...] já que a forma de
se pensar as narrativas e o que funciona ou não para uma audiência é
estruturada especialmente pelas demandas culturais de um país” [Mazur, 2021
p.177]. Entre tantos dramas de TV, destaca-se aqui o caso sul-coreano que
nas últimas décadas se consolidou como um dos maiores exportadores de
conteúdo audiovisual da Ásia [Mazur, 2021, p. 174].

A popularização dos dramas de TV na Coreia do Sul se iniciou nos anos de


1980, quando o volume de produções sul-coreanas começou a superar as
importações de conteúdos estrangeiros, especialmente os dramas japoneses,
ou J-dramas, e os dramas locais foram ocupando os horários nobres nas
grades televisivas. Já na década de 1990, pôde-se perceber uma mudança: a
influência dos K-dramas, dramas de TV produzidos na Coreia do Sul,
ultrapassou os limites das emissoras de televisão nacionais e passaram a ser
exportados para outros países da região do leste asiático. Esse fluxo crescente
de exportação ficou conhecido como “Onda Coreana” ou Hallyu [한료]. O
termo, cunhado pela imprensa chinesa no final dos anos de 1990, é um
neologismo com as raízes han [한; 韓], que significa “coreano”, e ryu [류; 流 ],
que significa “onda”, “tendência” ou “fluxo, e era empregado justamente para
indicar a progressiva popularidade dos K-dramas na China [Kim, 2015, p. 156].

É nesse momento de crescente exportação de produtos audiovisuais sul-


coreanos nos anos 90 que nasce a primeira fase da Hallyu, ou Hallyu 1.0. Essa
fase é marcada pela difusão de K-dramas e do cinema sul-coreano nos

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mercados regionais do leste asiático, sobretudo na China, em Hong Kong e no
Japão [Kim, 2015, p. 158]. É interessante pontuar que o consumo e a
distribuição desses produtos estavam atrelados a meios de distribuição oficiais,
como as emissoras de TV regionais, as redes de cinema e DVDs. Assim, os K-
dramas marcam os primeiros passos da Hallyu que, ao longo das décadas
seguintes, se consolida como um fenômeno transnacional de exportação
cultural.

A segunda fase da Hallyu, ou Hallyu 2.0, iniciada em meados dos anos 2000, é
marcada pela expansão para Europa, América do Norte e outros mercados da
Ásia. Neste momento, a internet assumiu um papel importante na distribuição
dos produtos culturais sul-coreanos por possibilitar que pessoas de diversas
partes do mundo acessassem esses conteúdos sem a necessidade da
mediação dos meios de comunicação tradicionais. Assim, diferentemente da
primeira fase, na Hallyu 2.0, o consumidor não depende mais da transmissão
oficial desses produtos audiovisuais via emissoras de televisão ou DVDs. Aliás,
neste momento, a música pop coreana, o K-pop, passa a ser protagonista e se
junta aos dramas de TV como produto de exportação cultural [Jun, 2017, p.
155]. É também nesta fase que os formatos televisivos passam a ser
exportados a outros países. Neste momento, são licenciados formatos de
reality shows e programas de variedade, assim como alguns K-dramas também
passam a ser licenciados e adaptados para audiências estrangeiras, como é o
caso da série norte-americana The Good Doctor [2017].

A característica principal da terceira fase da Hallyu, ou Hallyu 3.0, é a


expansão do fenômeno e a sua globalização. Os produtos sul-coreanos
chegam a outros mercados distantes cultural e geograficamente que não
haviam atingido antes, como a América Latina, e se consolidam em outras
regiões como na Ásia e na América do Norte. Se a internet já tinha papel
importante na segunda fase, agora, as plataformas digitais são os principais
meios de propagação da Hallyu, com as redes sociais servindo de alavanca
para impulsionar ainda mais o fenômeno. Destacam-se nesta fase produtos
culturais como o K-pop e os webtoons, quadrinhos online. Atrelados ao
audiovisual, outras indústrias também ganham força e passam a fazer parte do
fenômeno como, por exemplo, a indústria dos cosméticos, com os produtos de
K-beauty, da culinária e da tecnologia [Jun, 2017, p. 156]. Argumenta-se que
na Hallyu 3.0 os produtos não são promovidos isoladamente: ao exportar um K-
drama, por exemplo, exporta-se também o K-pop, por meio da trilha sonora ou
ainda produtos de beleza e eletrônicos, a partir de cenas que envolvam
propagandas diretas ou indiretas. Os programas de televisão passam a
promover não só produtos, mas também um estilo de vida, como afirma Mazur:
“[a] Hallyu hoje não só comercializa produtos culturais, mas também um estilo
de vida, e esses programas são mais uma forma de circular essa estratégia.”
[Mazur, 2021, 185].

É importante pontuar que a divisão da Hallyu em fases é interessante para a


análise da sua progressão, bem como das mudanças graduais no fenômeno
que envolvem os produtos exportados e os mercados atingidos. Entretanto,

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isso não implica dizer que produtos que se destacaram em uma fase, perdem
sua influência na fase seguinte. Ao contrário, essa divisão nos permite verificar
que há uma expansão na variedade de produtos culturais exportados à medida
em que indústrias de diferentes setores passam a fazer parte da Hallyu e
potencializam seu crescimento em âmbito global.

Tendo em vista o rápido panorama histórico apresentado, é possível entender


que a Onda Coreana como fenômeno de exportação cultural engloba diversas
indústrias e produtos que vão desde a música, literatura e cinema, até bens
duráveis como eletrônicos. Entretanto, a Hallyu tem sua maior potência em
duas vertentes: na música, com o K-pop, e no audiovisual, com os K-dramas. A
importância e a influência dos dramas de TV para o fenômeno data sua própria
origem e é central até hoje, sendo importante para sua expansão para outros
mercados. A popularidade dos K-dramas nos ocidente tem crescido nos últimos
anos, sobretudo na América Latina, e, hoje, já é comum que empresas
multinacionais do ramo do entretenimento, como a Netflix, invistam em dramas
de TV.

O interesse, sobretudo de plataformas de streaming em produções sul-


coreanas, pode ser observado a partir do caso da Netflix. No Brasil, o catálogo
de K-dramas da plataforma inclui títulos originais, co-produzidos com empresas
locais e licenciados. No fim dos anos de 2010, “o catálogo brasileiro contava
com “6 co-produções originais e quase uma centena de dramas licenciados”
[Urbano; Araujo, 2017, p. 2599]. Desde então, o investimento ficou cada vez
maior: foram anunciadas somente para o ano de 2023 mais 34 produções sul-
coreanas no catálogo da Netflix Brasil, que cresce a cada ano [BARATA, 2023].
A progressiva inclusão dessas obras no catálogo brasileiro reflete o interesse
do público pela indústria audiovisual sul-coreana, o que pode resultar em uma
maior divulgação desses produtos no país.

A popularidade dos dramas de TV na América Latina também pode ser


percebida não só pela maior oferta desses produtos nos catálogos de serviços
de streaming, como também pelos números de audiência. Exemplos de
sucesso são os dramas Round 6 [2021] e Uma Advogada Extraordinária [2022]
que atingiram o topo do ranking global da Netflix por semanas e cativaram
audiência no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Segundo o site da empresa,
Round 6 [2021] contabilizou 20 semanas no ranking das dez séries mais
assistidas em língua não-inglesa e atingiu o Top 10 de séries mais assistidas
em 94 países. No Brasil, o drama esteve no Top 10 por 10 semanas, de
setembro a novembro de 2021, dado que se repetiu em outros países da
América Latina como no Chile, no Peru e na Venezuela. Já Uma Advogada
Extraordinária [2022], ocupou o ranking global de séries em língua não-inglesa
por 21 semanas e atingiu o Top 10 em 57 países. Segundo a Netflix, no Brasil,
o drama se manteve no Top 10 séries mais assistidas por 13 semanas. Esse
número é ainda maior em localidades como Bolívia, Chile e México, onde Uma
Advogada Extraordinária [2022] ocupou o Top 10 por 14 semanas, e no Peru,
por 16. Esses números mostram que há um crescente interesse do público

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latino-americano por produções sul-coreanas e apontam a América Latina
como um forte mercado consumidor desses produtos.

O interesse da audiência latino-americana nesse formato audiovisual tão


distinto cultural e geograficamente deve-se, segundo Mazur [2021], a uma
característica inerente dessas narrativas seriadas que é a sua matriz
melodramática. Apesar das características locais próprias de cada produção e
das questões culturais que perpassam as narrativas, o caráter melodramático
supera os traços específicos da cultura coreana e dão às narrativas um
potencial transnacional. Assim, estudos como os de Urbano e Araujo [2017],
Santos e dos Santos [2018], e Mazur [2021] sugerem que o teor melodramático
das produções sul-coreanas se assemelha ao melodrama típico das populares
telenovelas latino-americanas.

“O interesse desse mercado regional [América Latina] em conteúdo de raízes


melodramáticas dialogou diretamente com o conceito inerente ao formato dos
dramas de TV, o que reitera que a matriz melodramática é de potencial
inerentemente transnacional, superando os traços culturalmente específicos
dos K-dramas e fortalecendo seu apelo transcultural [MAZUR, 2021, p.185].”

Esse potencial transcultural da matriz melodramática, aliado à internet e aos


fãs, fez com que o interesse pelas produções televisivas e também pela cultura
coreana crescesse [SANTOS e DOS SANTOS, 2018, p. 2]. Dessa forma,
apesar do formato diferente das telenovelas lationa-americanas e da distância
geográfica e cultural, o público tem certa familiaridade com as narrativas dos
dramas de TV graças ao teor melodramático, que cativa a audiência e torna a
América Latina um mercado promissor para os dramas de TV.

Segundo Urbano e Araujo [2017], já foram transmitidos na grade televisiva


brasileira os J-dramas Oshin [1983], na década de 1980; Haru e Natsu [2005],
em 2008; Dear Sister [2014], em 2017, além dos títulos sul-coreanos Happy
Ending [2012], em 2015; A Lenda - Um luxo de sonhar [2013], em 2016. O
tímido número de títulos transmitidos e a significativa diferença entre o ano de
transmissão no país de origem e a transmissão brasileira indicam que, sob uma
perspectiva das mídias antigas, não há interesse em transmitir, no Brasil,
produtos audiovisuais fora do padrão de produções ocidentais. Dessa forma, a
circulação dos dramas de TV sul-coreanos no país está estreitamente
vinculada à popularização da internet.

Diferentemente de países como China e Japão, a circulação dos K-dramas no


Brasil está diretamente associada à internet e à mediação dos fãs em redes
sociais por meio de fansubs [Urbano e Araujo, 2017, p. 2592], já que não existe
uma circulação sistemática de dramas de TV na mídia tradicional, como pode
ser notado a partir dos casos supracitados. Assim, os fansubs, grupos de fãs
que traduzem de forma gratuita e amadora, foram os responsáveis por
apresentar e popularizar os K-dramas no Brasil, antes dos serviços de
streaming se popularizarem no país e investirem em produções do Extremo
Oriente. Mesmo sendo uma forma de tradução estigmatizada, sobretudo por

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conta de seu caráter amador e, não raramente, ilegal, os fansubs foram, por
algum tempo, praticamente o único meio disponível para que o público
brasileiro pudesse ter contato com conteúdo audiovisual sul-coreano em língua
portuguesa. Esse caso dos K-dramas no Brasil é um exemplo de como as
traduções de fãs são, não raramente, a única forma de um grupo linguístico ter
acesso a produções audiovisuais que não são consideradas rentáveis para
determinado mercado e, assim, não são importadas, nem traduzidas
oficialmente [Evans, 2020, p. 178].

A partir de um breve panorama histórico da Hallyu, foi possível perceber que


apesar de alguns produtos terem mais ou menos protagonismo em suas
diferentes fases, os K-dramas tiveram e ainda têm papel central no fenômeno.
A Coreia do Sul tem expandido, a partir da Onda Coreana, sua influência na
indústria audiovisual não só para países do leste e sudeste asiático, mas
também para outras regiões do globo [Mazur, 2021, p. 174]. Os K-dramas, com
seu caráter inerentemente melodramático, têm um potencial transnacional e
transcultural pois supera os traços específicos da cultura coreana, o que
permite que mesmo audiências distantes culturalmente, como o público latino-
americano, tenham interesse nessas narrativas. Apesar dos K-dramas terem
chegado a mercados como a América Latina, no Brasil, ainda não há uma
tentativa sistemática por parte da mídia tradicional em promover a indústria
audiovisual sul-coreana. Assim, a presença de K-dramas no país está
diretamente ligada à popularização da internet e dos fansubs, que, antes dos
investimentos de plataformas de streaming como a Netflix, traduziam títulos
sul-coreanos como uma forma de atingir os demais fãs brasileiros e divulgarem
essas obras em língua portuguesa. Hoje, os fansubs, aliados ao crescente
investimento dos serviços de streaming, proporcionam uma maior divulgação
de produções audiovisuais sul-coreanas que antes não chegavam a países
como o Brasil [Urbano e Araujo, 2017, p. 2586]. Dessa forma, podemos
concluir que os K-dramas foram e continuam sendo fundamentais para a
expansão da Hallyu no Brasil e a mediação dos fansubs e das plataformas de
streaming, como a Netflix, são fundamentais para a divulgação dessas obras
no país.

Referências
Amanda Mesquita é graduanda do curso de Letras pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro [UFRJ].

BARATA, Giselly Correa. Dorama: “Netflix terá mais 34 séries e programas


coreanos em 2023”. O Povo. Disponível em:
https://www.opovo.com.br/vidaearte/2023/01/17/dorama-netflix-tera-mais-34-
series-e-programas-coreanos-em-2023.html

EVANS, Johnathan. “Fan translation” in: BAKER, Mona e SALDANHA, Gabriela


[ed.]. Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London and New York:
Routledge, 2020. p. 177-181.

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JUN, Hannah. “Hallyu at a Crossroads: The Clash of Korea’s Soft Power
Success and China’s Hard Power Threat in Light of Terminal High Altitude Area
Defense [THAAD] System Deployment” in: Asian International Studies Review,
vol. 18, n.1, Jun, 2017, p. 153-169.

KIM, Bok-rae. “Past, Present and Future of Hallyu [Korean Wave]” in: American
International Journal of Contemporary Research, vol. 5, n. 5, Out, 2015, p. 154-
160.

MAZUR, Daniela. “A Indústria Televisiva Sul-Coreana no Contexto Global” in:


AÇÃO MIDIÁTICA, n.22, Jul-Dez, 2021, p. 172-191.

Netflix. Dados de Audiência. Disponível em:


https://www.netflix.com/tudum/top10/.

SANTOS, Andressa de Souza; DOS SANTOS, Aline de Caldas Costas.


“AUDIOVISUAL NAS NOVAS MÍDIAS – DRAMAS SUL-COREANOS NO
BRASIL” in: III Jornada Internacional GEMInIS [JIG 2018]. Disponível em:
https://www.doity.com.br/anais/jig2018/trabalho/82227.

URBANO, Krystral; ARAUJO, M. “OS NOVOS MODELOS DE DISTRIBUIÇÃO


E CONSUMO DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL ASIÁTICO NAS REDES
DIGITAIS: OS CASOS DOS DRAMAS DE TV NA NETFLIX BR” in: X Simpósio
Nacional da ABCiber Conectividade, Hibridização e Ecologia das Redes
Digitais - São Paulo-SP, 2017. p. 2586 a 2603. Disponível em:
<https://abciber.org.br/anais-abciber-2017.pdf>.

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AS “MULHERES DE CONFORTO” COREANAS: UMA ANÁLISE
ATRAVÉS DA GRAPHIC NOVEL GRAMA DE KEUM SUK
GENDRY-KIM, por Camilly Evelyn Oliveira Maciel

Introdução: As "mulheres de conforto"


As “mulheres de conforto” referem-se às mulheres que foram submetidas à
escravidão sexual pelo Império Japonês. Não se sabe com exatidão quantas
mulheres foram levadas pelo sistema a servir como escravas sexuais, porém,
estima-se que esse número esteja entre 80 mil a 200 mil, entretanto, para
alguns estudiosos esses números não chegam perto da realidade, muitos
acreditam que o dobro foi mobilizado pelo Império Japonês (MIN, 2003).

É importante citar que cerca de 80% das mulheres que serviram eram
coreanas — a Coréia, na época, era colônia do Japão — enquanto os outros
20% dividiram-se entre chinesas, japonesas, filipinas, tailandesas, entre
outras (MIN 2003). Essas mulheres eram sequestradas, recrutadas à força ou
enganadas por meio de falsas promessas de trabalho (SOH, 1996). Uma vez
capturadas, eram mantidas em bordéis militares, nomeados de "casas de
conforto", onde eram obrigadas a fornecer serviços sexuais aos soldados
japoneses.

O “sistema de conforto” já era utilizado pelos soldados japoneses desde 1932


— antes da Segunda Guerra Mundial eclodir. Entretanto, esse sistema foi
expandido após um episódio que aconteceu durante a Segunda Guerra Sino-
Japonesa que ficou conhecido como Estupro de Nanquim, no qual os
soldados japoneses massacraram de forma brutal os habitantes dessa cidade
chinesa, estuprando e assassinando de 20 mil a 80 mil mulheres (LADINO,
2009).

Esse ataque repercutiu mundialmente e afetou a imagem do Japão, devido a


esse episódio e aos outros inúmeros casos de estupros cometidos pelos
soldados japoneses, o Imperador ordenou a formalização das "estações de
conforto" que deveriam recrutar meninas de baixa renda — em sua maioria
de origem coreana, tendo em vista que após longas disputas o Japão
conseguiu ocupar a Coréia em 1910, a fazendo sua colônia (SOH, 1996) —
para evitar que a imagem do Império Japones denegrisse devido a
escândalos do tipo. Desse modo, os soldados teriam jovens meninas a sua
disposição para os "confortarem" — por esse motivo o sistema de escravidão
sexual japonês ficou conhecido como sistema de conforto. (HOWARD, 1995).

A Graphic Novel Grama


Grama é uma graphic novel, escrita por Keum Suk Gendry-Kim, que conta a
história de Ok-Sun Lee, uma coreana que foi vítima do “sistema de conforto”

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japonês. A HQ foi lançada no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim. Neste
livro, Ok-Sun Lee narra maior parte da sua vida: desde a infância, mostrando
as dificuldades que ela e sua família passaram devido ao colonialismo
japonês; o momento em que ela foi raptada; como foi sua vivência como
“mulher de conforto” e sua vida no pós-guerra — quando ela e outras
“mulheres de conforto” decidiram expor toda a violência que elas sofreram
como escravas sexuais dos soldados japoneses, lutar pelo reconhecimento e
por um pedido de desculpa decente do Japão. Assim, a história intercala
entre passado (a história de Ok-Sun Lee quando criança e adulta) com
presente (Ok-Sun Lee já na terceira idade narrando suas vivências para a
autora).

No final da graphic novel é trazido um texto, com autoria de Myung-Sook Yun,


que contextualiza a história das “mulheres de conforto” apresentando a
realidade de várias meninas que viviam em colônias japonesas e que foram
tiradas de suas casas e obrigadas a servirem como escravas sexuais,
deixando para trás suas famílias e seus sonhos para passar por uma
experiência bastante traumática. A HQ trata com o máximo de leveza
possível um assunto tão impactante, a história nos faz refletir sobre
colonização, guerra e sobre como as mulheres, nessas situações, estão mais
suscetíveis à violência — principalmente à violência sexual.

As “Mulheres De Confortos” através da Graphic Novel Grama


A Graphic Novel expõe em seus primeiros capítulos a situação econômica da
família da protagonista, Ok-Sun Lee, em 1916. Essa situação representa a
realidade de miséria que diversas famílias coreanas estavam enfrentando
devido à colonização japonesa que teve início em 1910 e durou até o fim da
Segunda Guerra Mundial, em 1945 — a colonização afetou drasticamente a
vida econômica e social dos coreanos, que foram obrigados a mudar
radicalmente a estrutura de sua nação devido à imposição de ordens e
costumes japoneses.

Vivendo na dificuldade, a protagonista precisa ajudar seus pais em casa,


principalmente na criação de seus irmãos pequenos enquanto os pais
trabalham e, por esse motivo, não pôde frequentar a escola, um sonho que ela
tanto almejava. No decorrer da história, a situação econômica de Ok-Sun Lee e
sua família continua a piorar, principalmente porque em 1937 o Japão ataca a
China e se inicia a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Com a situação econômica
instável, os pais de Ok-Sun Lee "doam" a filha para trabalhar em um
restaurante e, após sofrer continuamente em diversos trabalhos e longe da
família, a vida de Ok-Sun Lee piora quando, em 1942, com apenas 15 anos de
idade, ela é raptada e levada para fazer parte do "Sistema de Conforto".

Os próximos capítulos apresentam a história de muitas meninas, todas


aproximadamente com a mesma idade de Ok-Sun Lee, que foram, assim como
ela, sequestradas ou enganadas e colocadas em trens para serem enviadas
para as diversas "casas de conforto" espalhadas pelo Extremo Oriente.
Segundo Okamoto (2013), a maioria das “mulheres de conforto” estava na faixa
dos 14 aos 18 anos de idade, algumas tinham até mesmo 12 ou 13 anos, o

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motivo se devia ao fato de que o Exército Imperial Japonês preferia mulheres
mais jovens, pois acreditava que estas, provavelmente virgens, não iriam
passar IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis) para os soldados.

Ao chegarem nas "casas de conforto", as meninas eram obrigadas a utilizar um


nome japonês — no caso de Ok-Sun Lee, Tomiko — e forçadas a trabalharem
em condições insalubres, sofrendo constantes maus tratos e recebendo pouca
alimentação. Ok-Sun Lee narra que ela e outras garotas, ao perceberem as
condições de vida naquele local, até mesmo fazem um plano de fuga, porém
logo percebem a impossibilidade de tal ato: eram vigiadas e monitoradas todo
tempo, situação semelhante às outras “casas de conforto” (SIKKA, 2009).

O capítulo 7 conta da maneira mais sensível possível, porém sem esconder o


horror da situação, como ocorreu a primeira vez em que Ok-Sun Lee foi
estuprada por um soldado, a protagonista diz que para ela e para muitas outras
meninas foi a primeira vez tendo relação sexual e comenta que após a
experiência traumática, sentiu vontade de morrer. Ao continuar contando sobre
esse dia, Ok-Sun Lee relata que logo após o primeiro, outros soldados
continuavam adentrando os quartos e violentando as meninas. Segundo Pyong
Gap Min, em seu artigo "'Comfort Women' the intersection of colonial power,
gender, and class” (2003), as mulheres de conforto eram obrigadas a "atender"
de 10 a 30 soldados por dia, número que aumentava nos fins de semana.

Durante os capítulos 8, 9 e 10 a protagonista narra a sua primeira menstruação


e como mesmo durante esse período ainda precisava atender aos soldados,
conta também como os finais de semana eram os piores uma vez que o
número de soldados tendia a aumentar. No capítulo 9, há uma ilustração da
parede de uma "casa de conforto" com o nome das meninas (escritos em
japonês) em placas de madeira, Ok-Sun conta que os soldados apenas
escolhiam um nome e entravam.

Mesmo que essas mulheres fossem submetidas a exames para prevenir


gestações e IST’s e que fosse recomendado aos soldados o uso de
preservativos (SIKKA, 2009), muitas mulheres contraiam alguma doença
venérea. Ok-Sun Lee, ainda no capítulo 9, conta que ao descobrir que está
com sífilis é obrigada a passar por um tratamento com mercúrio para curar a
doença, devido a esse tratamento com metal pesado ela se torna infértil.

No capítulo 11, a protagonista continua narrando sobre alguns maus tratos que
eram cometidos: algumas mulheres morriam por doenças, outras devido a
espancamentos, elas também eram punidas por qualquer desrespeito, desde
falar sua língua nativa a responder aos soldados ou desobedecer qualquer
ordem. De acordo com Okamoto (2013), as “mulheres de conforto” sofriam
diversos tipos de violências, como espancamento, tortura e esfaqueamento.

O capítulo 12 relata a tão sonhada liberdade: com a derrota do Japão e o fim


da Segunda Guerra Mundial, a maioria das "casas de conforto" foi abandonada
(YUN, 1997). No caso da "casa de conforto" onde Ok-Sun Lee vivia, os
soldados fugiram e as mulheres passaram um dia sem saber que estavam

15
livres, entretanto a vida dessas mulheres infelizmente não melhora, sem
dinheiro e em um país diferente, Ok-Sun Lee e as outras jovens são obrigadas
a se separar para tentar sobreviver. Mesmo livres, as “mulheres de conforto”
tiveram que lutar sozinhas para reingressar na sociedade.

Segundo Pyong Gap Min (2003), embora algumas vítimas tenham voltado para
casa após o fim da guerra, muitas decidiram não viver mais com os seus pais,
e, devido à vergonha dos acontecimentos do passado, elas mantiveram em
segredo a sua situação como “mulheres de conforto” de familiares e amigos.
Essas mulheres tampouco podiam viver uma “vida normal”, visto que muitas
traziam consigo doenças físicas e/ou psicológicas devido à escravidão sexual
ao qual foram submetidas.

Os últimos capítulos vão narrar a vida da protagonista após o fim da guerra: o


matrimônio, a vida conturbada com seu cônjuge, o amor pelo seu filho adotivo,
a realização do sonho de ir para a escola, a busca pela família e a rejeição. Ok-
Sun Lee, após a morte do marido, recuperou sua nacionalidade e foi morar na
"Casa se Partilha" — essa casa, também conhecida como "House of Sharing",
faz parte de um projeto do "Korean Council for the women drafted for military
sexual slavery by Japan" e foi fundada em 1991, a casa possui, entre outros
objetivos, dar apoio às vítimas da escravidão sexual do Império Japonês,
servindo como alojamento para as vítimas e também auxiliando com apoio
médico e social (MIN, 2003).

A Casa de Partilha foi a casa onde a autora da HQ, Keum Suk Gendry-Kim,
entrevistou a halmonie para fazer a obra. O capítulo final também apresenta
aos leitores as Manifestações de Quarta-feira — protesto que ocorre desde
2011, todas as quartas-feiras, em frente à Embaixada japonesa em Seul,
capital da Coréia. Nesses protestos as vítimas e apoiadores lutam por
reconhecimento e por justiça ao caso das "mulheres de conforto" (AZENHA,
2018).

Conclusão
As “mulheres de conforto" foram vítimas do brutal regime de escravidão sexual
do Império Japonês. Enganadas ou sequestradas pelo sistema, eram mantidas
em bordéis militares, conhecidos como "casas de conforto", onde eram
exploradas sexualmente pelos soldados japoneses. Elas sofriam não somente
abusos físicos e emocionais, como também negligência em termos de cuidados
de saúde e direitos humanos básicos: estavam suscetíveis a infecções
sexualmente transmissíveis, gestações indesejadas e viviam em condições
precárias, sem suporte e sem poder voltar para casa (Yun, 1997).

Após a guerra, as mulheres de conforto enfrentaram estigmatização e


marginalização na sociedade coreana. Muitas sofreram com problemas de
saúde física e mental decorrentes de suas experiências traumáticas, De acordo
com Pyong Gap Min (2003): “Todas as vítimas sofreram de vários problemas
de saúde e traumas psicológicos causados por suas experiências de
escravidão sexual. Muitas vítimas continuaram a sofrer de doenças venéreas e
algumas tiveram histerectomias. Elas regularmente tinham pesadelos nos quais

16
soldados japoneses as perseguiam, mas tiveram que esconder suas
experiências horríveis por mais de 50 anos” [texto traduzido]. Assim, grande
parte delas evitava mencionar o passado devido à vergonha e ao estigma
sofrido.

Desse modo, somente na década de 1990 o caso das “mulheres de conforto”


começou a ser amplamente reconhecido e discutido, graças às denúncias de
vítimas do sistema de conforto, apoiado por movimentos feministas, que
decidiram contar suas histórias e pedir por justiça. A primeira mulher a dar seu
depoimento foi Kim Hak-Sol, a partir do seu testemunho outras mulheres,
incluindo Ok-Sun Lee, foram capazes de falar sobre suas experiências mesmo
em um país bastante patriarcalista como a Coréia do Sul. (PARRILHA, 2022).

Atualmente, sobreviventes, ativistas pelos direitos da mulher, estudiosos e


defensores dos direitos humanos esforçam-se pelo reconhecimento da história
das “mulheres de conforto”, lutam também por desculpas oficiais do governo
japonês, compensação financeira e divulgação completa dos detalhes
históricos sobre o sistema de escravidão sexual durante a guerra — com o
intuito de combater a negação e a distorção dos fatos históricos por parte do
Japão (SOH, 1996).

As vivências e as violências praticadas contra as “Mulheres de Conforto” pelo


Império Japonês durante a Segunda Guerra Mundial é um crime de guerra
pouco conhecido e debatido no Brasil. Estudar sobre a história dessas
mulheres é importante não somente para a preservação da memória, mas
também para contribuir com a luta por uma justiça que ainda não foi feita —
uma vez que o Japão se recusa a fornecer as demandas exigidas pelas
vítimas. (PARRILHA, 2022).

Assim, faz-se necessário que haja mais estudos sobre esse crime de guerra
que afetou a vida de milhares de mulheres e uma forma bastante interessante
de fazer isso é através da literatura, ao estudar a história por meio de livros,
conseguimos nos conectar com os personagens e suas vivências. Grama é
uma graphic novel que traz a história em primeira mão de uma mulher que
vivenciou esse sistema de escravidão sexual do Império Japonês e que na
atualidade luta por uma justiça que demora a chegar, fazendo com que quem
leia essa HQ sinta o impacto de uma das diversas violências que aconteceu
durante o período da Segunda Guerra Mundial.

Referências
Camilly Evelyn Oliveira Maciel é graduanda em Licenciatura em História pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

AZENHA, Tatiana Sofia Fonseca. Para além do silêncio: o sistema de


conforto e o papel dos movimentos feministas na questão das Mulheres de
Conforto na Coreia do Sul: 1905-2015. 2018. Tese de Doutorado.

GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. 1ª ed. São Paulo: Editora Pipoca e


Nanquim, 2020.

17
HOWARD, Keith. True stories of the Korean comfort women. 1995.

LADINO, James. “Ianfu: No comfort yet for Korean comfort women and the
impact of house resolution 121”. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 15, 2009,
pp. 338-339
MIN, Pyong Gap. Korean “Comfort Women” the intersection of colonial power,
gender, and class”. Gender & Society, v. 17, n. 6, p. 938-957, 2003

OKAMOTO, Julia Yuri. As Mulheres de Conforto na Guerra do Pacífico. Revista


de Iniciação Científica de Relações Internacionais, v. 1, n. 1, 2013.

PARRILHA, Ariel da Silva. As “mulheres de conforto” coreanas e a violência


sexual
estratégica: uma análise. Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2022.
Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/236504>.

SIKKA, Nisha. The official marginalization of comfort women. Honours Thesis.


Communications 498. Simon Fraser University. December 11, 2009. (33 fls.)

SOH, Chunghee Sarah. “The Korean ‘comfort women’: Movement for redress”.
Asian Survey, v. 36, n. 12, dec. 1996, pp. 1226-1240.

SOUSA, Vivian Simões de. Estupro enquanto crime de guerra: uma análise
sobre as “mulheres de conforto”. 2023.
YUN, Myung-Sook . As mulheres de conforto do Exército Japonês, segundo a
HQ Grama. In: GENDRY-KIM, Keum Suk. Grama. 1ª ed. São Paulo: Editora
Pipoca e Nanquim, 2020.

18
ÉTICA ALIMENTAR E SIMBOLOGIAS DIETÉTICAS EM “A
VIAGEM DE CHIHIRO” (2001), por Felipe Daniel Ruzene

Considerações iniciais
Em 2003, A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi,
(千と千尋の神隠し) tornou-se a primeira animação japonesa a angariar
dezenas de prêmios em festivais ocidentais (entre eles o ovacionado Oscar de
melhor filme de animação) elevando os Studios Ghibli, sua produtora, ao status
de cult em meio à cultura pop. Aclamado pela crítica e pelo público, o anime
que narra as desventuras da jovem Chihiro Ogino logo superou a barreira do
“exótico”, conquistou o imaginário social e se tornou um profícuo objeto para as
mais diversas análises nas artes e humanidades.

Dentre as inúmeras temáticas abordadas nas películas do estúdio – como


xintoísmo, meio ambiente, guerra, família, capitalismo, história do Japão e
relações ocidente/oriente, por exemplo – observa-se a recorrente aparição das
práticas alimentares e comensalidades em cena [BAPTISTA et al, 2022, p. 6-7].
O cuidado da direção na representação dos preparos, consumos e relações
com a comida é notório e permite contemplar como a alimentação é refletida
para além de sua funcionalidade biológica de manutenção da vida. Assim, de
modo mais abrangente que simplesmente “comer” ou “beber”, ultrapassando a
mera potência nutricional, os roteiristas e animadores do estúdio deixam:
“muito nítido em suas obras as múltiplas dimensões da comida e da
alimentação” [BAPTISTA et al, 2022, p. 7]. O objetivo deste ensaio, portanto, é
apresentar a representação e importância dos alimentos e da alimentação, bem
como suas projeções ético-filosóficas nas personagens da animação,
entendendo a dietética como uma troca entre a matéria animada e inanimada
[cf. SUNNERSTAM, 2013, p. 5]. A partir de uma leitura pós-modernista das
relações alimentares, considero as trocas e saberes relacionados ao alimento
com outras práticas de existência estética, distanciando-me da leitura na qual o
corpo que come simplesmente absorve uma matéria extracorpórea que passa
a integrar sua entidade autônoma. De fato, as exposições dos modelos
dietéticos expressam os variados desejos humanos, seus rituais, etiquetas,
histórias e filosofias, perpassando simbologias sociais, sexuais, políticas,
religiosas, éticas, estéticas etc. [CARNEIRO, 2003, p. 1]. À vista disso, utilizo-
me do termo “dietética”, conforme apresentado por Michel Foucault [1998, p.
87], entendendo-o como mais abrangente para designar não apenas as
comidas e bebidas, mas também as variadas práticas alimentares suscitadas
pela alimentação dos corpos.

As práticas alimentares são evocadas na filmografia dos Studios Ghibli através


de belas cenas que mesclam os alimentos com as alegorias dos enredos e das
personagens, representando-os a partir da estética peculiar dos animes

19
japoneses e combinandos à musicalidade e fotografia. A alimentação se torna
tão vívida que o público é tomado pelo anseio de saltar à tela para
experimentar os pratos e participar das comensalidades expostas. De fato, a
comensalidade e as práticas alimentares são constantes em diversos trabalhos
e, como exemplo de algumas dessas simbologias evocadas pelos animes do
estúdio, podemos citar: a alimentação enquanto nostalgia, familiaridade e
memória em Da colina Kokuriko (2011); comida de conforto em Ponyo (2008);
comensalidade e hospitalidade em O castelo animado (2004); o afeto através
da cozinha e a autonomia em O serviço de entregas da Kiki (1998); o alimento
enquanto cuidado, capaz de promover vínculos e recompor a saúde em Meu
amigo Totoro (1988); ou, a excruciante experiência da fome durante a guerra
em O túmulo dos vagalumes (1988). Apesar dessas muitas possibilidades,
talvez seja justamente em A viagem de Chihiro (2001) que encontramos um
maior corpus de referências dietéticas, utilizadas para pensar as éticas
alimentares, bem como as alegorias do mundo fantástico que se desenham ao
longo do roteiro e suas metáforas da realidade.

Sinopse
Escrito e dirigido por Hayao Miyazaki (1941-), o filme narra a história de Chihiro
Ogino, uma pequena menina de dez anos que está de mudança com seus
pais. Durante o caminho à nova cidade, seu pai decide recorrer a um atalho
para economizarem tempo, todavia, eles acabam se perdendo e parando em
um túnel que guarda um misterioso e aparentemente inóspito vilarejo. A família
decide explorar o lugar e, apesar dos protestos de Chihiro, param para comer
em um restaurante desguarnecido. Enquanto seus pais comem, a menina os
abandona para continuar a perambular no local, mas logo se depara com Haku,
um jovem que a alerta para saírem dali antes de anoitecer. Haku é um ser
híbrido que transita entre a forma humana e a de dragão, assim, pode ser visto
como um dos: “corpos pós-humanos no imaginário animado” [SUNNERSTAM,
2013, p. 8]. Conforme escurece, diversos espíritos começam a surgir e os pais
de Chihiro são transformados em porcos. Presos naquela realidade, a menina
tem de recorrer à casa de banho termais da bruxa Yubaba para poder
sobreviver e encontrar uma cura para o feitiço que transformou seus pais.
Assim, em meio a um mundo desconhecido, repleto de espíritos, criaturas e
magias, a pequena Chihiro passa por uma série de aventuras em busca do
caminho de volta a sua família e ao mundo dos vivos.

Ao longo de todo o enredo há uma série de trechos com referências


alimentares que vão desde simples momentos de contemplação,
acompanhados de alguns poucos aperitivos, até banquetes completos e
ilimitados, servidos com vultosa pompa e abastança. A comida rouba a cena e
se torna, simultaneamente, um motor para os acontecimentos da história e um
elemento alegórico para o subtexto do roteiro. Nesta análise, argumentar-se-á
que as simbologias dietéticas apresentadas em A viagem de Chihiro promovem
reflexões sobre a ética alimentar que evocam as percepções, críticas e
simbologias presentes no filme, apresentando os modos de vida de suas
personagens e as alegorias à memória e cultura japonesas. Assim sendo, a
comida e a bebida escapam aos domínios da cozinha e tornam-se objetos

20
históricos complexos, capazes de manterem relações com as visões do diretor
a respeito do capitalismo, ambientalismo, tradição, modernidade, relações com
o ocidente etc.

Ética alimentar e simbologias dietéticas


O início de todas as desventuras de Chihiro advém, justamente, de uma
violação dietética. Após ela e seus pais, Akio e Yüko Ogino, adentrarem ao
mundo dos espíritos, são nitidamente tentados pelos aromas de alimentos e
pelo sentimento de fome que lhes invade. Guiados pelos perfumes das
iguarias, são levados até um restaurante desprotegido, porém abastecido com
as mais diversas delícias – aparecem numerosas carnes (aves, peixes,
salsichas e embutidos variados), massas, pastéis, legumes, cogumelos e uma
série de outras comidas indecifráveis. Chihiro se preocupa, mas os adultos se
servem e degustam, sem aflições, o banquete ali exposto. Akio, pai de Chihiro,
tranquiliza a filha dizendo que possuíam cartões e dinheiro para pagar pela
refeição. Chihiro se abstém do festim e opta por continuar a investigar o lugar.
Ao anoitecer ela retorna para encontrar seus pais, mas, ao chegar no
restaurante, descobre que se tornaram enormes porcos.

Percebo na transmutação dos pais de Chihiro em porcos certas relações com


histórias bastante difundidas no ocidente – como o feitiço de Circe contra os
nautas de Ulisses (transformando-os também em porcos, após um banquete)
nos versos do décimo canto da Odisseia ou a condenação de Adão e Eva pelo
pecado original (comer do fruto proibido) na doutrina agostiniana. Portanto, na
literatura e nas artes a alimentação é, desde a Antiguidade, um bom caminho
para a desvirtuação, bem como um instrumento para camuflar maldições, uma
vez que evoca um dos mais instintivos desejos humanos – o desejo pela
comida e bebida [FOUCAULT, 1998, p. 90]. Para além da difundida leitura de
que os pais de Chihiro haviam sido punidos por sua gula [SEKINE, 2017, p. 2-
3], proponho que Miyazaki aponta ainda para a desvirtuação da ética alimentar
pela lógica de consumo, como convém a essa fase violenta do capital. A crítica
estaria, portanto, não na mera quantidade de comida ou nos modos de
consumi-la, mas também no fato das personagens se apropriarem de algo que
não lhes pertencia, simplesmente por possuírem recursos financeiros
[SUNNERSTAM, 2013, p. 17]. A própria responsável pelo feitiço, Yubaba, diz a
Chihiro que seus pais foram muito corajosos comendo a comida dos
convidados, como se fossem porcos e por isso foram amaldiçoados. Como
expressou Miyazaki durante uma entrevista realizada em Paris, a
transformação dos pais atua como uma crítica aguda ao consumo excessivo na
sociedade japonesa contemporânea e ao solipsismo instituído pela lógica
capitalista [SEKINE, 2017, p. 3]. Assim, impõem-se uma questão não de
deslegitimar desejos, mas observar sob quais condições é conveniente praticá-
los [FOUCAULT, 1998, p. 52].

Podemos observar isso na mãe de Chihiro, Yüko, que é retratada comendo


com delicadeza e em módicas quantidades (aparentemente), mas é igualmente
transmutada em suíno. O casal não controla os seus impulsos ante à comida,
pois sabe que seu dinheiro e cartões lhes dariam direito sobre o alimento.

21
Embora deva ser reconhecido que o filme evoca o alimento em muitos
momentos celebrativos e, até certo ponto, aborde a glutonaria, a maioria de
suas representações implicam um diálogo mais complexo com a ética, relações
de consumo e alienação [SEKINE, 2017, p. 3]. As pesquisas de Hanna
Sunnerstam [2013, p. 17] nos permite tal leitura, mostrando que: “o dinheiro é
obviamente a resposta e a solução para pelo menos a maioria dos problemas,
mas este não é o mundo humano e a moeda humana provavelmente não tem
valor aqui”. Logo, quando os pais da protagonista consomem as iguarias
destinadas aos espíritos, inadequadas ao consumo humano, eles sequer
cogitam a possibilidade antiética de suas ações. Este é um dos primeiros
embates entre a religiosidade e tradição japonesas com o capitalismo e
hegemonia ocidentais no enredo dessa animação, que constantemente articula
a internacionalização e o autóctone [REIDER, 2005, p. 5].

Em outra cena, há novamente a afirmação do alimento como espaço simbólico


que distingue a realidade dos humanos do mundo dos espíritos. Após a
transmutação de seus pais, Chihiro começa a desaparecer do reino dos
espíritos. Nesse momento outro personagem, Haku, vem em socorro e dá à
menina um pouco de comida daquele lugar, evitando que ela desapareça. O
motivo de consumir comida de outro mundo para ali se manter nos remete ao
mito de Perséfone no Hades. As sementes de romã ofertadas à deusa grega
por Ascálafo – assim como o alimento dado a Chihiro por Haku – são
simbolismos alimentares que representam o pertencimento a partir da dietética.
Isso faz lembrar, também, a história mitológica japonesa de Izanami (イザナミ)
– deusa-criadora do Japão que morreu dando à luz ao deus-fogo e tentou
convencer seu esposo-irmão, Izanagi (イザナギ), que não poderia voltar ao
mundo dos vivos por ter consumido alimentos do mundo subterrâneo [REIDER,
2005, p. 5-6]. O alimento enquanto espaço de pertencimento fica evidente
quando Haku diz aos trabalhadores que, após três dias comendo da comida do
reino espiritual, Chihiro perderia o cheiro de humana, podendo ser confundida
com qualquer outro daquele mundo. Assim, quem de um lugar come, nele
permanece. A comida nessa animação, portanto, é uma ferramenta capaz de
evocar cultura, espaço, identidade, fantasia e virtude [SEKINE, 2017, p. 8].

As variações alimentares em A Viagem de Chihiro abarcam desde comidas


tradicionalmente japonesa: Onigiri (bolos de arroz que datam do período Heian,
794-1185 EC), Kompeitō (confeitos coloridos de açúcar com origem
portuguesa), Yaki-Imo (batata-doce assada), Ikameshi (lulas recheadas com
arroz), Anpan (pão recheado com feijão doce), Castella (pão de ló japonês,
também proveniente da culinária portuguesa) e Sushis (especialmente niguiri e
makizushi), por exemplo; até um grande número de alimentos estrangeiros:
pãezinhos chineses cozidos no vapor, pratos mais “ocidentais” à base de ovos
e queijo, guloseimas taiwanesas, tais como salsichas, bolos de arroz (doces e
salgados) com inhame ou feijão, bolinhos de carne translúcidos e sorvete de
amendoim [SEKINE, 2017, p. 3]. Além desses pratos, surgem em cena uma
série de alimentos ou insumos isolados, como carnes diversas, peixes, frutos
do mar, legumes, frutas, verduras, grãos (sobretudo arroz), pães, bolos, doces,
biscoitos, sopas e chás. A ampla gama de comidas e sabores apresentados na

22
animação destaca a dualidade da alimentação japonesa, entre a singularidade
e o multiculturalismo. De modo semelhante, este é o marcador entre o mundo
espiritual da casa de banho e a realidade dos viventes fora da vila [cf. REIDER,
2005, p. 4-5].

É perceptível que o Japão pseudo-tradicional é simbolizado pelo mundo dos


espíritos e pela casa de banho de Yubaba e, portanto, um contraponto ao
capitalismo e pós-modernidade representados pelos externos, humanos. Sua
arquitetura em estilo clássico japonês e os muitos cenários que evocam o
tradicional teatro Nō reforçam esse contraponto. Interessante notar que figuras
de sapos (ou seres similares a anfíbios) são muito presentes na casa de banho
[SUNNERSTAM, 2013, p. 21], o que pode ser mais uma referência à ideia de
retorno à tradição, ao local de origem – uma vez que, em japonês, a palavra
“sapo” (kaeru, カエル) é homófona do verbo “retornar” (kaeru, 帰る). Tampouco
isso deve ser lido como um saudosismo por parte de Miyazaki, afinal ele
próprio critica as realidades e discursos apresentados pelos seres do reino
espiritual [REIDER, 2005, p. 11]. Seus habitantes são tão gananciosos e dados
ao capital quanto os pais de Chihiro, há apenas uma mudança conceitual – o
ouro para os espíritos tradicionais, o cartão de crédito para os humanos pós-
modernos. Assim sendo, oponho-me às várias análises que apontam para o
objetivo do enredo residir no resgate à identidade cultural japonesa, em
verdade creio que Miyazaki expõe a complexidade ética nas formas de vida de
um Japão contemporâneo [SUNNERSTAM, 2013, p. 9].

O reino espiritual e a casa de banho, além de evocarem a tradicionalidade


nipônica, representam um mundo outro, marcado pela agência não-humana e
habitado por diversos corpos, onde a corporeidade humana é a não-normativa -
ainda que em muitos casos haja elementos antropomórficos [SUNNERSTAM,
2013, p. 21]. Entre espíritos, animais, seres míticos, criaturas, humanos e
outros tipos de matéria (como os próprios alimentos) observamos uma
realidade marcada pela pluralidade, pelo pós-humano e pelos laços de
coabitação entre "espécies companheiras" – emprestando o termo de Donna
Haraway [2008] – marcados pela interdependência interespécies por meio da
qual atuam enquanto “companheiros de confusão no jogo mortal” [HARAWAY,
2008, p. 19]. Contudo, renovo que não há utopia na construção dessa realidade
dissímil, embora os corpos e formas sejam outros, a conjuntura e os conflitos
são bastante familiares e as espécies companheiras que ali coexistem não o
fazem sempre de forma pacífica e harmônica [SUNNERSTAM, 2013, p. 5].
Vemos em cena, portanto, um contato entre sujeitos que se dá a partir das
mesmas relações de poder evocadas na filosofia de Foucault [1998, p. 9].

Quando Chihiro é levada por Lin até a bruxa Yubaba, dona da casa de banho
sediada no reino espiritual e responsável pelos trabalhadores, ela é aceita para
o cargo de atendente naquele local. Para tanto, porém, a bruxa lhe rouba
magicamente o nome no intuito de impedir que ela possa deixar o local e
tornando-a, assim, dependente como os demais trabalhadores
[SUNNERSTAM, 2013, p. 4]. Considero que haja referências à apropriação
cultural do capitalismo ocidental: roubar o nome, a identidade, estabelecer uma

23
nova cultura baseada no trabalho e exploração. Isso é ratificado no início do
filme, quando Haku diz a Chihiro que ela precisa de um emprego, pois, do
contrário, seria transformada em um animal. De fato, todos os seres que ali
vivem têm alguma função operária, mesmo as fuligens. Assim, a exploração
capitalista dá-se mesmo dentro das casas termais de Yubaba, o que evidencia
uma referência à história do Japão: resistir ao projeto colonial de assimilação
cultural do ocidente e, simultaneamente, ser um estado imperialista no oriente.
A importância dos nomes é, provavelmente, uma menção à obra da autora
estadunidense Ursula K. Le Guin (1929-2018) [REIDER, 2005, p. 10],
sobretudo ao seu O feiticeiro de Terramar (1968) no qual ela narra um mundo
fantástico onde magos são capazes de controlar as coisas a partir de seus
verdadeiros nomes – “quem sabe o nome de alguém tem a vida desse
indivíduo sob sua guarda” [LE GUIN, 2022, p. 96]. A animação Contos de
Terramar (2006) de Gorō Miyazaki, por exemplo, é uma adaptação direta desse
livro, de modo que não soa insólito sugerir tal aproximação com Le Guin, uma
inspiração constante aos produtores do estúdio.

Retornando à casa de banho, dentre os muitos seres que circulam neste


mundo pós-humanista, destaca-se Kaonashi, um espírito sem face, sem voz e
sem características identitárias próprias que através do consumo (alimentar) de
outros seres vai aderindo aspectos de suas vítimas. A personagem é instigada
pelo contexto cobiçoso da casa de banho e, ao oferecer ouro aos
trabalhadores, conquista serviços, luxos e, sobretudo, comidas [REIDER, 2005,
p. 20]. O consumismo torna Kaonashi cada vez mais monstruoso. De maneira
análoga, Haku é amaldiçoado a partir de uma situação alimentar. O rapaz-
dragão consome uma praga enviada por Zeniba, irmã-gêmea de Yubaba. Ante
a tais vícios alimentares, o vômito é evocado como contraponto, uma forma de
expurgar as corrupções provenientes do consumo alimentar. Esse é o caso de
Haku e Kaonashi, ambos precisaram regurgitar os males dos quais se
alimentaram para recobrar a homeostase de seus corpos que foram
perturbados por uma desvirtuação da prática dietética. Como afirma Foucault
[1998, p. 92]: “as evacuações – purgações e vômitos – vêm corrigir a prática
alimentar e seus excessos”.

Em suma, o esforço de Miyazaki com as representações dietéticas de A


Viagem de Chihiro parece residir nas possibilidades de relações éticas,
intentando apresentar formas de existências capazes de dialogar com a
tradicionalidade e contemporaneidade nos modos de vida e desejos do Japão
pós-moderno. O sucesso de Chihiro em recuperar seu verdadeiro nome e
salvar seus pais da maldição, sem sequer olhar para trás, pode ser visto como
uma metáfora para a possibilidade de novas formas de vida, relações
interespécie e éticas alimentares em um momento histórico de crise
econômica, cultural, social e política.

Referências
Felipe Daniel Ruzene é mestrando do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando
em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.

24
A VIAGEM de Chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Studio Ghibli.
Tóquio: Toho Co. Ltd., 2001. 1 DVD (125 min.).

BAPTISTA, A. et al. “Comensalidade no Studio Ghibli: um paralelo com os


temas contemporâneos transversais de saúde e educação alimentar e
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REIDER, N. “Spirited Away: film of the fantastic and evolving japanese folk
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SEKINE, A. Food in Spirited Away: consuming with Intent. Dissertação


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materialist reading of the anime film Spirited Away. Dissertação (Mestrado em
Estudos de Gênero) – Gender Studies Department of Thematic Studies,
Linköping University. Linköping, p. 33. 2013.

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REPRESENTAÇÕES ALUSIVAS À SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL PRESENTE NOS MANGÁS E ANIMES, por Francisco
Kelvin Moreira de Sousa e Jakson dos Santos Ribeiro

O presente texto busca apresentar produções japonesas que apresentam


durante seu desenvolvimento o uso de símbolos que remetem a primeira
metade do século XX, tendo muita das vezes o uso errado devido ao passado
atrelado a eles. Nesse sentido, o texto reflete sobre o uso passado desses
símbolos e explica a carga negativa que eles carregam e como os animes
podem influenciar na propagação das idéias que sustentam o uso dessas
simbologias. A base teórica, desse trabalho se estabelece a partir dos autores
Kenneth Henshall, Tatsuo Kawai e Edward Russel. Para o desenvolvimento da
pesquisa, foram utilizadas as obras dos autores já citados, além de pesquisas
em sites e acervos digitais.

Os resquícios de simbologias que remetem à Segunda Guerra Mundial ainda


estão presentes, mesmo que de forma sutil e maquiada, nos tempos atuais.
Diversas são as formas de utilizar o fascismo midiático, onde nota-se sua
frequente presença nos animes, ressaltando o nacionalismo que ainda impera
no Japão e é disseminado pelo Oriente e o Ocidente.

Primeiramente é necessário recordar os acontecimentos na primeira metade do


século XX pelo Japão no extremo Oriente e também no Havaí, para melhor
compreensão do peso desses símbolos. Segundo Kenneth Henshall, a era do
imperialismo japonês teve início em no ano de 1867, quando o último Xogun
abdicou em favor do imperador Meiji. Teve início a Era Meiji, com mudanças
econômicas, políticas e sociais no Japão. No final do século XIX, o Japão era o
país mais desenvolvido do Oriente, com uma economia dinâmica, porém com
necessidades para ampliar sua expansão. (HENSHALL, cap. 4, 1999)

Em busca de novos mercados consumidores e matérias-primas, o Japão


adotou, assim como Inglaterra, França, EUA e Alemanha, uma política
imperialista. As guerras foram o meio que os japoneses encontraram para
conquistar territórios de outros países do Oriente, e a força militar tornou-se o
meio necessário para alcançar o desenvolvimento nacional e a estabilidade.
(HENSHALL, cap. 4, 1999)

Antes de sua participação na Segunda Guerra Mundial, o Império do Japão


travou duas grandes guerras depois do estabelecimento da Revolução Meiji. A
primeira foi a Primeira Guerra Sino-Japonesa, que ocorreu em 1894 e 1895, e
a segunda foi a Guerra Russo-Japonesa, que foi um conflito para controlar a
Coreia e partes da Manchúria entre o Império Russo e o Império do Japão, que
ocorreu entre 1904 e 1905. (HENSHALL, cap. 4, 1999)

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A dominação japonesa foi oficializada na Coréia em 1910, marcando um
domínio que durou por mais 35 anos, onde se tinha exploração econômica
desse território e milhares de coreanos sendo submetidos a trabalhos forçados
para ajudar na expansão japonesa. Em 1914 o Japão entrou na Primeira
Guerra Mundial, onde expande sua esfera de influência na China e no Pacífico.

O período Showa foi o mais longo período de todos os reinados dos


Imperadores japoneses anteriores. Durante o período pré-1945, o Japão foi
tomado pelo totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar,
culminando na invasão japonesa da China em 1937. Com essa era houve a
ascensão da ideologia Kokka Gushi, que juntava elementos raciais, nacionais e
imperialistas, onde os mesmos acreditavam ser a raça suprema na Ásia, sendo
assim os demais orientais inferiores, além disso a ideologia foi consolidada por
uma radicalização e pela aliança anticomunista com a Alemanha nazista. Como
resultado dessa política imperialista e uma ideologia similar ao nazifascismo,
de 1931 a 1945, cerca de 8 milhões de pessoas foram mortas.

O governo japonês tentou apagar as demais culturas asiáticas e substituí-la


pela Japonesa. Proibiu nomes e criminalizou até o uso da língua nativa dos
territórios conquistados em espaço público (KAWAI, 1938). Além também do
trabalho escravo, muitos túneis ferroviários do Japão foram construídos por
prisioneiros de guerra coreanos, como por exemplo o Túnel Kiyotaki.

Entre os massacres documentados desse período podem ser citados o


massacre de Nanking, na China, onde a cidade foi pilhada e destruída de
maneira generalizada e cerca de 200 mil chineses foram massacrados. As
“marchas da morte” de Bataan, que foi uma marcha forçada de prisioneiros de
guerra americanos e filipinos durante a Segunda Guerra Mundial, com destino
a campos de concentração sem água ou comida. O massacre de Manilla,
quando os japoneses destruíram a cidade e mataram a maior parte da
população filipina, somando cerca de 300 mil mortos.

Outros eventos graves são a escravização sexual de mulheres nos territórios


ocupados, o uso de armas químicas e biológicas, desenvolvidas com o uso de
chineses e coreanos como cobaias humanas, assim como em experimentos
médicos. Tais crimes nunca de fato foram solucionados e os culpados
devidamente punidos, pois no fim da Segunda Guerra grande parte dos
responsáveis foram inocentados.

Todos esses crimes cometidos estão marcados pela bandeira do Império do


Japão, a bandeira do sol nascente que contém um círculo vermelho, muito
similar com a atual, com a diferença de ter 16 raios saindo dele. Durante o
século 19, o símbolo do sol nascente se tornou a bandeira militar do país. E,
por esse motivo, foi hasteada durante a expansão imperialista do Japão,
quando o país ocupou a Coreia e parte da China.

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FIGURA 1: Bandeira do Japão Imperial (1889-1945): FONTE: Disponível em:
<https://abagond.files.wordpress.com/2015/04/the_imperial_japanese_navy__s
everal_resolutions__by_jpviktorjokinen-d5rvyo9.jpg>. Acesso em: jul. 2023.

Após a Segunda Guerra Mundial que o Japão passou a receber mais influência
das técnicas de cinema ocidentais e passou a produzir seus desenhos
animados, os chamados animes, que tem também inspiração nos mangás,
tanto na arte como na adaptação de obras originais (CLEMENTS, 2017). Hoje
o mercado de anime está em constante crescimento, com a exportação de
séries e filmes longa metragem por todo o globo, difundindo ideologias de seus
autores. O anime, como qualquer outra forma de arte, pode influenciar o mundo
interior e a psique de todas as pessoas, em especial dos mais novos.

Algumas vezes símbolos alusivos ao Japão imperial foram usados nos animes,
mesmo que de forma sutil. Recentemente 02 casos ganharam notoriedade,
sendo a primeira no anime “Demon Slayer”, pois houve problema por conta de
uma característica importante do design de Tanjiro Kamado que pode trazer
lembranças de um momento sombrio da história do Japão, justamente pelo
objeto possuir algumas semelhanças com a Bandeira do Sol Nascente.

FIGURA 2: personagem Tanjiro Kamado e seus brincos de hanafuda (2019)


FONTE: Disponível em: <https://themitm.files.wordpress.com/2021/07/tanjiro-
hanafuda.jpg>. Acesso em: jul. 2023.

A polêmica começou há bastante tempo, e voltou à tona porque a Netflix


comprou, em 2021, os direitos do anime para exibi-lo ao redor do mundo inteiro
e os habitantes da Coréia do Sul, na Ásia, retomaram o debate. A discussão já
havia sido levantada anteriormente, mas tomou força em 2021 devido a
exibição de Demon Slayer na Netflix. Com a entrada do anime no catálogo, os
usuários perceberam que a plataforma de streaming não promoveu nenhuma

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censura aos brincos, mesmo depois de toda a compreensão do peso da
simbologia.

Outro caso está presente no anime Tokyo Revengers, que no mangá consta a
bandeira do Japão imperial em roupas de personagens. Neste caso os
produtores optaram pela censura quando houve a animação da obra, pois ao
contrário da primeira, este símbolo estava explícito.

FIGURA 3: Censura aplicada no anime Tokyo Revengers


FONTE: Disponível em:
<https://preview.redd.it/3uci1fllqbe81.jpg?width=1080&crop=smart&auto=webp&s=d90
06c533d687fac9382acb91e5a4160d118e9a8>. Acesso em: 30 jul. 2023.

No entanto, mesmo que a bandeira do sol nascente tenha uma história mais
antiga, "ninguém no Japão usa a bandeira do sol nascente para qualquer outro
propósito que não seja romantizar e reescrever os horríveis abusos de direitos
humanos cometidos sob o império japonês", argumenta Koichi Nakano,
professor de ciência política na Sophia University, em entrevista à BBC.

Outra situação se dá pelo uso de suásticas em diversas obras, onde se


encontra um impasse entre o passado e a religião. Também conhecida como
Cruz Gamada, a suástica é um símbolo encontrado em muitas culturas,
algumas das quais sequer tiveram contato entre si. Existem, inclusive, muitas
representações gráficas da suástica. Foi usado também por bizantinos na
Europa, maias e astecas na América Central e índios navajos na América do
Norte. Para todos esses povos, a suástica era uma representação de boa
sorte, tanto que a palavra vem do sânscrito svastika, que quer dizer “condutora
do bem-estar”.

No Japão, a suástica budista é chamada de manji, onde o sinal continua sendo


um dos importantes símbolos religiosos para a representação do Budismo. A
suástica é uma representação do bem há muitos anos, para muitos povos. No
entanto, a partir da Segunda Guerra Mundial, uma conotação negativa foi
associada ao símbolo graças aos nazistas.

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A suástica representava o próprio ato de criação da raça ariana e foi adotada
como efígie do Partido Nazista e símbolo mais eloquente de seu governo. Hitler
apropriou-se da suástica para representar o partido, subvertendo a sua
simbologia original (RUSSEL, 1954). A suástica nazista é representada em
preto, virada para a direita e girada a 45º deixando os cantos apontados para
cima. Devido as atrocidades cometidas pela Alemanha nazista durante a 2º
Guerra Mundial e os princípios defendidos por Hitler, a suástica passou a
representar o ódio, a destruição e o racismo.

Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, o símbolo foi oficialmente extinto,


mas continua sendo usado por grupos neonazistas. E, como resultado de todas
as coisas horríveis feitas pelos nazistas, o símbolo da suástica é, até hoje,
fortemente associado à negatividade, ao ódio, à intolerância, ao nazismo e às
ideologias relacionadas com o fascismo e a supremacia branca. O emblema
ficou tão associado às atrocidades cometidas por Hitler e seus seguidores que
hoje é proibido por lei em dezenas de países.

Porém as duas suásticas apresentam algumas diferenças. Começando pelo


ângulo, com a adotadas pelos nazistas estando em 45°, outra discrepância é o
lado das pontas. No Budismo, a suástica orientada para a representa o amor e
a misericórdia. Já, a orientada para a direita caracteriza a força e a inteligência.
Ambos os símbolos podem ser empregados, embora, o sinal virado para a
esquerda seja o mais predominante no Japão.

FIGURA 4: diferenças entre as suásticas budista e nazista


FONTE: Disponível em:
<https://cdn.ome.lt/w6w6JniNMxdamXuwyqahlWJ26P8=/fit-
in/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/diferencas-suasticas.jpg>. Acesso
em: jul. 2023.

O uso das suásticas nos animes acontece com frequência, sofrendo censura
na maioria das vezes, principalmente no Ocidente. Por fazer parte da cultura
japonesa e por ser compreendido pelo público local, a suástica budista já
apareceu em várias produções de sucesso, como Naruto e One Piece, assim
como em quadrinhos ou em desenhos animados, frequentemente relacionado
a personagens com elementos religiosos.

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Um dos exemplos está no anime Yu Yu Hakusho, onde um lutador está
disputando o torneio da Mestra Genkai logo no começo da trama, chamado de
Kazemaru, um ninja. Embora use uma armadura por baixo de sua roupa, ele
usa vestes parecidas com as de monges budistas, mantém o cabelo raspado e
ostenta em sua testa a suástica do manji. Isso não foi um problema quando o
mangá e o anime estavam restritos ao Japão e a países orientais, pois é um
símbolo amplamente conhecido, mas ao sair dali a situação complicou.

FIGURA 5: Kazemaru com um manji na testa


FONTE: Disponível em: <https://cdn.ome.lt/eMX79v0X8qDI3j4ZLLlULhZPQ-
s=/fit-in/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/kazemaru-yu-yu-hakusho.jpg>.
Acesso em: jul. 2023.

Quando a série de luta criada por Yoshihiro Togashi foi exportada, o símbolo
na testa de Kazemaru passou a ser um problema por causa do risco do
personagem ser confundido com um Nazista. A Rede Manchete, responsável
pela exibição do anime no Brasil em meados dos anos 1990, precisou editar o
anime para apagar o manji na testa de Kazemaru, afinal seria impossível
explicar o significado positivo de uma suástica quase idêntica à que se estuda
nas aulas de História.

Com a popularização dos animes e mangás no ocidente, e com os japoneses


lucrando bastante com isso, começou uma preocupação maior com a presença
da suástica nas obras japonesas, afinal isso poderia colocar em risco alguma
chance de exportação e consumo de suas obras. Os próprios japoneses
passaram a retirar o manji dos mangás e animes, como aconteceu em One
Piece, com o personagem Ace, que tinha em suas costas uma suástica tatuada
e o símbolo foi trocado pelo autor por uma cruz (que também acabou sendo
censurado no ocidente por fazer alusão ao cristianismo).

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FIGURA 6: Ace e sua tatuagem com manji antes e depois da censura
FONTE: Disponível em:
<https://cdn.ome.lt/eqg8QIh0ydnh_HMXZuEv_W8Lfz0=/fit-
in/837x500/smart/uploads/conteudo/fotos/ace-tatuagem.jpg>. Acesso em: 30
jul. 2023.

Em Naruto, o personagem Hyuga Neji, muito querido entre os fãs da obra de


Masashi Kishimoto, tem em sua testa um selo que impede que o Ninja ataque
outros membros do clã que pertencem à família principal. Essa segunda
linhagem do clã Hyuuga é marcada por um Manji verde, uma marca que
impede a insurreição e mantém a subserviência da família secundária.

FIGURA 7: personagem Neji Hyuuga com sua marca da maldição em forma de


manji. FONTE: Disponível em: <https://midianinja.org/files/2022/02/naruto.png>.
Acesso em: jul. 2023.

Mesmo na maioria dos casos havendo preocupação em corrigir o símbolo para


o mercado Ocidental, algumas vezes o anime é transmitido sem a censura. A
exemplo novamente será citado o anime Tokyo Revengers. A gangue Toman é
formada por garotos sem futuro, que apesar de serem briguentos, os membros
da Toman possuem ideais e sempre buscam um estilo de vida livre. Todos
conhecem essa gangue por causa do manji que ela usa, mas é exatamente
esse símbolo o precursor da polêmica, que se originou no aplicativo do Twitter.
O manji adotado pela Toman é a cruz suástica, um símbolo que significa paz e
prosperidade em muitas religiões.

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FIGURA 8: bandeira da gangue Toman com a suástica como símbolo
FONTE: Disponível em: <https://skdesu.com/wp-
content/uploads/2021/05/tokyo-manji-kai-revenger.jpg>. Acesso em: jul. 2023.

Sabendo que o símbolo seria mal interpretado pelas pessoas, a Crunchyroll


decidiu censurá-lo fora do Japão, com algumas luzes inesperadas ou cenas
totalmente em branco. Porém a plataforma é paga, então a censura de nada
adiantou, sendo acessada a versão sem censura com bastante facilidade.

Em vista disso é necessário maior atenção das produtoras dessas obras, pois é
de importância a consciência com o mercador Ocidental que consome esses
conteúdos, principalmente crianças e jovens que estão inseridas em um
momento de aumento dramático de células nazistas. Nitidamente o uso de
suásticas ou de símbolos nacionalistas não tem o mesmo intuito que o usado
na primeira metade do século XX, porém estes estão impregnados por um
passado cercado de dor e sofrimento, até hoje sendo gatilho emocional e
motivo de repulsa para muitas populações.

Referências
Francisco Kelvin Moreira de Sousa - graduando em História pela Universidade
Estadual do Maranhão, Campus – Caxias. Bolsista do PIBID 2022 – 2024 e
participante de projetos de pesquisa voltados para área da cultura.
Jakson dos Santos Ribeiro – Professor Adjunto II, na Universidade Estadual do
Maranhão – Campus Caxias. Doutor em História Social da Amazônia (UFPA).
Docente do Professor do Programa de Pós- Graduação em História Mestrado e
Doutorado Profissional (PPGHIST), na Universidade Estadual do Maranhão.
Professor do Programa de Educação Inclusiva – PROFEI/UEMA.

CLEMENTS, J. Anime : a history. London: Palgrave Macmillan On Behalf Of


The British Film Institute, 2017.

Como a suástica virou a marca do nazismo? Disponível em:


<https://super.abril.com.br/historia/como-a-suastica-virou-a-marca-do-
nazismo>. Acesso em: jul. 2023.

Demon Slayer: anime recebe críticas por brincos de Tanjiro;


entenda! Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/217176-

33
demon-slayer-anime-recebe-criticas-brincos-tanjiro-entenda.htm>. Acesso em:
jul. 2023.

FREDERICK, E. The Scourge of the Swastika. [s.l.] Greenhill Books/Lionel


Leventhal, 1954.

HENSHALL, K. A history of Japan From stone age to superpower.


Gordonsville,: Palgrave Macmillan, 1999.

HTTPS://WWW.FACEBOOK.COM/SUKIDESUBR. Manji - The Swastika in


Anime, Manga and Japanese Culture. Disponível em:
<https://skdesu.com/en/manji-suatica-anime-manga-japan/>. Acesso em: jul.
2023.

Lendas: Conheça a história do Túnel Kiyotaki, no Japão. Disponível em:


<https://guarientoportal.com/lendas/tunel-kiyotaki-japao>. Acesso em: jul. 2023.

Manji | Entenda a polêmica envolvendo o símbolo de Tokyo Revengers.


Disponível em: <https://www.omelete.com.br/anime-manga/manji-tokyo-
revengers>. Acesso em: jul. 2023.

O que foi a marcha da morte de Bataan? - Spiegato. Disponível em:


<https://spiegato.com/pt/o-que-foi-a-marcha-da-morte-de-bataan>. Acesso em:
jul. 2023.

Os símbolos nazistas que ainda estão presentes no Japão. BBC News Brasil,
[s.d.].

SANTONI, P. R. Animês e mangas: a identidade dos adolescentes. , maio


2017.

SMITH, J. Horrific Japanese Crimes in WWII That History Forgot - HISTECHO.


Disponível em: <https://www.histecho.com/horrific-japanese-crimes-in-wwii-that-
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forgot/#:~:text=Horrific%20Japanese%20Crimes%20in%20WWII%20That%20H
istory%20Forgot>. Acesso em: 30 jul. 2023.

Statism in Shōwa Japan - Wikipedia. Disponível em:


<https://pt.abcdef.wiki/wiki/Statism_in_Sh%C5%8Dwa_Japan#:~:text=Sh%C5%
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em: jul. 2023.

TATSUO KAWAI. The goal of Japanese expansion. Westport, Conn.:


Greenwood Pr, 1938.

34
Tokyo Revengers e o Manji como camuflagem Neonazista. Disponível em:
<https://midianinja.org/historiaoralpodcast/tokyo-revengers-e-o-manji-como-
camuflagem-neonazista/>. Acesso em: jul. 2023.

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. History of the


Swastika. Disponível em:
<https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/history-of-the-swastika>.

35
O POSICIONAMENTO ANTIGUERRA EM NAUSICAÄ
DO VALE DO VENTO [1984] DE HAYAO MIYAZAKI, por
Gabriel Lacerda de Souza

Introdução
Inicialmente é de suma importância se ter noção de qual é o contexto no qual
Hayao Miyazaki, o diretor da animação analisada, se insere. Ele nasceu em
Tóquio no dia 5 de janeiro de 1941, em meio à Segunda Guerra Mundial e seu
pai era diretor na empresa familiar Miyazaki Airplane, que construía peças de
aviões usados na guerra [CHAVES; TORRES, 2017], o que justifica a paixão
por aeromodelismo de Miyazaki e seu deleite com abordagens sobre voar em
toda sua filmografia.

“Hayao Miyazaki cresceu durante o pós-guerra, as imagens de sua infância


eram de um país dominado pelos Estados-Unidos, cuja ocupação teve
influência no modelo econômico adotado, portanto o Japão, agora inserido em
uma nova economia, utilizou de grande esforço da população para seu
crescimento, a chamada ‘Época do Milagre’.” [NOVAES; VADICO, 2020, p.
149]

Miyazaki é um dos diretores mais proeminentes e fundador do Studio Ghibli


juntamente com Isao Takahata, Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma. Tanto
Miyazaki quanto Takahata cresceram com o cenário presente da Segunda
Guerra Mundial e com o Japão ocupado por tropas estadunidenses até 1952,
eles viveram isso no início de suas formações como indivíduos. Ocupação essa
que tinha por intuito realizar reformas políticas e econômicas no país, assim
como remover as influências militaristas presentes, inclusive no cinema da
época, com muitas animações sendo usadas com a intenção de espalhar
discursos militaristas e políticos [NOVAES; VADICO, 2020].

Nausicaä do Vale do Vento [1984] é o primeiro filme dirigido por Hayao


Miyazaki a ser considerado como parte das produções do Studio Ghibli. Mesmo
que na data em questão o estúdio ainda não tivesse sido devidamente
fundado, as pessoas envolvidas no projeto já eram aquelas que conjuntamente
fundariam o estúdio no ano seguinte. Na narrativa da obra acompanhamos
uma sociedade sobrevivente em um mundo pós-apocalíptico quase totalmente
destruído após uma guerra de escalas colossais. Os pequenos grupos sociais
sobreviventes mantêm uma relação complicada com a natureza, pois devido à
guerra surgiram florestas tóxicas e animais gigantescos protetores desses
habitats que são um risco para a vida humana sobrevivente. E ao longo dessa
história Miyazaki aborda temas como o pacifismo, o ambientalismo e o
protagonismo feminino, que se tornariam fortes características de toda sua
filmografia.

36
Animações japonesas como ferramenta de propaganda
Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o Japão já fazia o uso do cinema
como uma ferramenta de propaganda militar, conforme nos afirma Mônica Lima
de Faria em seu texto História e Narrativa das animações nipônicas: Algumas
características dos animês. No contexto da guerra contra a China, a produção
cinematográfica voltada às animações, em especial, tinha um viés
propagandista. Algo que condicionalmente se desenvolveu ainda mais à
medida que o Japão passou a fazer parte do eixo na Segunda Guerra Mundial.
Segundo Faria esse foi o período no qual a animação japonesa mais evoluiu,
devido ao incentivo por parte do governo para a produção do material de
propaganda contra as nações consideradas inimigas japonesas no momento.

“Na década de 30 o Japão entra em guerra contra a China, e nessa época toda
a produção cinematográfica é voltada à exibição de filmes e animações de
propaganda militar. A influência militarista estendeu-se até a Segunda Guerra,
fincando os meios de comunicação, inclusive estúdios de cinema e animação,
sob controle dos militares. Porém, apesar da censura e falta de liberdade de
expressão, foi no período militar que a animação japonesa mais evoluiu
tecnicamente, graças ao incentivo financeiro do governo para a produção de
seu material.” [SATO, 2005 apud FARIA, 2008, p. 151]

Isso exemplifica de uma forma bem direta como a guerra e seu discurso já
estava presente nas animações japonesas e cinema desde antes da Segunda
Guerra Mundial. O que podemos ver que se estendeu mesmo para depois
disso, nas produções do Studio Ghibli, porém com a intenção contrária. Neste
caso, ao invés de incentivar a guerra, agora o intuito com Hayao Miyazaki é o
de criticá-la e mostrar suas consequências e horrores.

Ainda sobre esse aspecto propagandista do cinema nipônico, no minicurso: Os


cartoons no front: A Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva estadunidense
e japonesa [1936-1955], ministrado por Viktor Danko Perkusich Novaes em
2021 na Universidade Federal do Paraná, em II Diálogos sobre a História, foi
possível constatar que o Japão usou a mesma estratégia nesses dois
momentos do cinema de animação como uma ferramenta popular de cunho
militarista e propagandista. Em primeiro momento, esses filmes faziam uso de
personagens folclóricos e de conhecimento popular japoneses em narrativas
que tinham por intenção mostrar como a nação japonesa era melhor do que
outras nações asiáticas. Mais tarde isso passou a ser utilizado com relação a
nações ocidentais, nesse caso para se representar como superior aos
referenciais culturais norte-americanos.

Porém, tal uso de animações para propagar ideais militares foi censurado após
a ocupação estadunidense em solo japonês, após a rendição do país ao final
da Segunda Guerra Mundial. Visto que a ocupação era proibida de ser criticada
publicamente durante sua vigência.

“Com o fim da Segunda Guerra, o Japão sofreu imediatamente um processo de


desmilitarização, entre suas com seqüências está a censura em relação ao

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material nacionalista ou de propaganda bélica, exatamente o contrário da
realidade anterior.” [LUYTEN, 2005 apud FARIA, 2008, p. 151]

Novaes [2021] também aborda como esses usos cinematográficos japoneses,


somados com a censura estadunidense, acabaram por influenciar o modo de
se fazer animação no Japão, o que acarreta diretamente na carreira de Hayao
Miyazaki quando este começou a atuar na área e por sua vez, influenciando
também suas produções futuras no Studio Ghibli. Pois com a censura
estadunidense, restava aos japoneses fazerem adaptações de livros e histórias
de origem estrangeiras em suas animações, não mais usando seus
personagens folclóricos como antes, que eram usados para expor ideias de
superioridade cultural. O novo cenário das animações japonesas acaba por
refletir em toda a atuação de Miyazaki produzindo e dirigindo filmes muitas
vezes adaptados de obras literárias ou de sua própria autoria.

Vale se salientar para o fato de que a Segunda Guerra Mundial marca a


memória do povo japonês de uma forma que mesmo hoje no século XXI, mais
de sete décadas depois. ainda é muito perceptível. E isso é algo que se torna
fixo no imaginário de sua população, visível através das mais diferentes formas
de representação cultural, como nos ressaltam Viktor Danko Perkusich Novaes
e Luis Antonio Vadico em seu texto A metáfora do comportamento japonês
após a Segunda Guerra Mundial presente no filme “O Serviço de Entregas da
Kiki” [1989] de Hayao Miyazaki.

Alguns exemplos populares desse marco na memória do povo japonês são as


representações famosas do Godzilla em seus produtos culturais, como uma
clara alusão aos efeitos das bombas atômicas na natureza. Então podemos
afirmar que a abordagem antiguerra no cinema e produções culturais
japonesas é um elemento presente mesmo bem antes do Studio Ghibli
começar a sua produção de animações na década de 1980.

Em um último momento, antes de partir para a análise proposta, vale ressaltar


uma característica do cinema de animação realizado por Hayao Miyazaki,
acerca de sua forma de tratar o onírico e o real de forma que essa separação
não é direta, esses dois elementos são presentes nos trabalhos do diretor de
forma muito sutil e sempre se mesclando. Ainda mais pelo fato de serem
animações, como pontua Alcebíades Diniz Miguel em O fluxo imaginário da
memória: A animação como arte de conjurar/construir o passado israelense,
algo que se relaciona diretamente com a forma do diretor abordar as temáticas
da guerra em suas histórias, de uma forma estilizada criticando a violência. E
mesmo que o autor do texto trabalhe outro contexto de produção
cinematográfica, com relação ao passado israelense, o ponto crucial do que
fala pode ser aplicado sobre a mesma lente no contexto japonês, dado o
impacto de seu passado na memória dos dois diretores em seus filmes. Já que
Miguel fala sobre a utilização da animação como um modo de estilização
acerca do real e portadora de ideais em seu discurso, isso é algo que também
se pode correlacionar com o produzido nas narrativas de Hayao Miyazaki.

38
“A arte da animação apresenta, como base de constituição, a estilização radical
do universo que lhe serve de referência. Essa estilização, contudo, não ocorre
a partir de materiais desconectados da realidade referencial, a realidade
referencial, como nas caricaturas, ainda está presente e sua deformação
denuncia um processo ideologicamente formativo.” [MIGUEL, 2010, p. 4]

Análise de Nausicaä do Vale do Vento [1984]


Roteirizado e dirigido por Hayao Miyazaki, Nausicaä do Vale do Vento [1984], é
o primeiro filme do diretor a ser considerado parte do Studio Ghibli que viria a
ser fundado, de fato, no ano seguinte, porém já apresenta todas as
características de destaque do estúdio de animação japonês e de seu
renomado diretor. Tais como, o discurso antiguerra aliado do ambientalismo, o
protagonismo feminino, elementos de paixão pessoal do diretor como
diferentes veículos aéreos: “[...] outra característica autoral de Miyazaki. As
metáforas como forma de transmitir uma mensagem do diretor para o público
que assiste suas obras.” [NOVAES; VADICO, 2020, p. 143], entre outros
aspectos.

“Seu pai era diretor da empresa familiar Miyazaki Airplane, que construía
aviões usados na guerra. Essa ligação com o universo aéreo o levou a
desenhar aviões desde cedo, mesmo antes de aprender a desenhar pessoas
ou outros seres. Sua paixão pelos objetos que voam tornou-se marca
registrada do autor, bem apreciada em Porco Rosso (1992) e em seu último
filme, Vidas ao Vento (2013).” [CHAVES; TORRES, 2017, p. 172]

Ainda sobre esse aspecto ideológico de Miyazaki, na sua forma de transmitir


uma mensagem ao longo de metáforas em suas narrativas, há um trecho do
trabalho de Novaes e Vadico, A influência da Segunda Guerra Mundial nas
animações japonesas: Um Histórico de características e influências que são
observadas até os dias de hoje, que creio ser muito relevante para se ter em
vista quando observamos esse aspecto da direção e argumento de Hayao
Miyazaki:

“[...] Miyazaki evita elogiar qualquer agenda ideológica, liderada por sua própria
desilusão pessoal com a política revolucionária, toma cuidado com qualquer
sistema codificado de pensamento. Profundamente influenciado por teorias
marxistas em sua juventude, como atestado por suas atividades como
presidente da União Animadores na Toei Animation Studios, Miyazaki
desenvolveu gradualmente uma aguda aversão à noção de aderir servilmente a
qualquer doutrina e procurou, ao contrário, princípios pacifistas e igualitários.
Para este efeito, ele afirmou que nos anos 90, ele ‘abandonou totalmente o
marxismo’ como resultado de ter ‘parado de ver as coisas por classe. É uma
mentira que alguém está certo só porque ele é um trabalhador. O público em
geral faz muitas coisas estranhas. Eu não posso confiar em política’. [Miyazaki,
1994].” [CAVALLARO, 2015, p. 33 apud NOVAES; VADICO, 2019, p. 96]

Dando seguimento à animação em questão, o mundo que Hayao Miyazaki nos


apresenta em Nausicaä do Vale do Vento [1984] transcorre 1000 anos após a

39
devastação gerada destrutiva e quimicamente pela guerra, na história intitulada
de Os Sete Dias de Fogo. Conflito este no qual seres humanos criaram
criaturas de aspecto humanoide gigantescas com capacidade de destruição em
massa, chamadas de Deus Guerreiro, um elemento que se pode facilmente ser
comparado com a magnitude e poder de destruição das bombas atômicas.
Visto que tais criaturas causam a destruição no planeta todo, alterando
inclusive as propriedades da própria natureza, resultando em um mundo pós-
apocalíptico. Tal representação dessa figura no filme pode ser vista na imagem
abaixo:

Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio


Ghibli, 1984. [117 min]

“Toda a flora e fauna foram destruídas como resultado dessa guerra, ou seja, o
ecossistema terrestre entrou em degradação. Como consequência, surgiram,
as terríveis e temidas, florestas de gás tóxico chamada de Mar da Podridão ou
Fukai.” [CHAVES; TORRES, 2017, p. 172]

Florestas essas onde apenas habitam seres de aparência insectoide de


proporções gigantescas, que são capazes de viverem dentro do Mar da
Podridão, compartilhando dessa natureza tóxica para com os humanos
sobreviventes. Algo que, com facilidade, remete a imagem perpetuada pela
figura do Godzilla no cinema japonês, uma criatura gigantesca resultado da
radiação, um reflexo direto da utilização das bombas atômicas. No caso de
Nausicaä do Vale do Vento [1984] os insetos enormes são uma resposta da
natureza frente aos danos químicos causados pela de guerra. A seguir uma
cena que demonstra esse local com a protagonista o explorando atrás de
recursos:

Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio


Ghibli, 1984. [117 min]

40
“‘Mar podre’ refere-se ao ecossistema das terras devastadas pela poluição da
antiga cidade industrial. O mundo estava prestes a ser engolido de forma
silenciosa pela floresta gigante, que produz fungos venenosos a que apenas
insetos conseguem sobreviver.” [MIYAZAKI, 2006, p. 20, vol.1 apud CHAVES;
TORRES, 2017, p.172]

Os poucos agrupamentos populacionais de sobreviventes vivem em locais


onde a toxicidade presente no chamado Mar da Podridão tem maior dificuldade
de chegar, como no Vale do Vento que dá título à obra, que se trata de um
povoado localizado na costa marítima e por conta dos ventos vindos do mar
consegue se manter livre das partículas tóxicas. Como podemos ver na
imagem a seguir que explicita de forma visual essa forma de vida com a
proteção dos ventos marítimos que mantém o vale puro:

Fonte: NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio


Ghibli, 1984. [117 min]

Já se faz muito visível o discurso antiguerra de Miyazaki nesta breve


apresentação do cenário no qual se passa a história. Além desse elemento, há
a temática do ambientalismo, que anda lado a lado com o pacifismo nas obras
do diretor. Como também identificam Ravena Amorim Chaves e José
Wanderson Lima Torres em seu artigo Distopia e Animação: O universo
fantástico em Nausicaä do Vale do Vento, de Hayao Miyazaki, a história trata
de uma distopia ambiental e ressaltam como o diretor apresenta em seu
argumento cinematográfico a preocupação ecológica acompanhada do
humanismo [2017, p. 169]. Ou seja, os discursos tanto antiguerra quanto
ambientalista característicos.

Chaves e Torres ainda pontuam conforme sua análise da obra de Miyazaki


que: “desta catástrofe o homem só poderá escapar, segundo entrevemos nas
entrelinhas da obra, se a sua razão não reduzir a Natureza à simples fonte de
matéria-prima. A Natureza não é o Outro do ser humano; é parte dele.” [2017,
p. 175]. O que novamente nos possibilita relacionar com a intencionalidade do
discurso antiguerra presente na história de Hayao Miyazaki, pois os seres
humanos na história só conseguirão viver de forma plena novamente quando
fizerem as pazes com a natureza e não seguirem mais perpetuando a cultura
violenta da guerra.

Um momento, logo no início da história, que nos exemplifica muito bem esse
ideal pacifista e antiguerra presente no roteiro é a forma que Nausicaä lida com

41
os conflitos que cruzam o caminho de si própria e seu povo. Uma nave de um
reino vizinho tenta pousar emergencialmente no Vale do Vento, enquanto está
sendo atacada por insetos da floresta, o que por si só já é um risco para todo o
vale, visto que poderiam contaminar o local e sua forma de subsistência. Mas
ao invés de deixar que matem um grande inseto e acabem por atrair ainda
outros mais, Nausicaä se prontifica a para o ato de violência antes que esse
seja realizado e guia novamente o bicho para dentro de seu habitat natural.
Aliviando companheiros que admitem que não fariam nem ideia do que fazer
depois de matarem aquele indivíduo e atraírem mais ainda para o vale. Com
esse breve momento da narrativa, Miyazaki já nos mostra claramente o
posicionamento de Nausicaä frente conflitos, tomando ação contra o que seria
a lógica de agir com violência e dar continuidade a um comum cenário de
guerra e violência, agindo então num ato de pacifismo e direta relação de
respeito com a natureza.

O que podemos ver ao longo do filme, enquanto a protagonista da história que


dá título à obra, Nausicaä traça um caminho pacifista para enfrentar aqueles
que querem perpetuar a guerra mesmo nesse mundo já devastado em
consequência desta. E ao combater a violência de forma até mesmo
semelhante a um caráter messiânico, Nausicaä consegue ao fim da história
chegar nesse ponto de harmonia entre as partes, da humanidade em relação
ao restante da natureza. Deixando uma mensagem final de Miyazaki muito
clara com relação a suas intenções contra a guerra, vide as consequências que
essa causa, e juntamente com o ambientalismo estruturando tal argumento.

“A animação, ao criar um universo diverso, mas ainda reconhecível, situa-se


como poderosa ferramenta de ressonância, ultrapassando a prosaica
associação com a realidade usual.” [MIGUEL, 2010, p. 5]

Conclusão
Mesmo que de forma breve, acredito que o que foi apresentado até aqui
esclareça a forma na qual se dá o discurso antiguerra em uma obra em
específico de Hayao Miyazaki. Ainda que sendo apenas um filme do início do
Studio Ghibli, tal modo de trabalhar os temas e o discurso está presente em
vários outros trabalhos tanto de Miyazaki quanto de outros diretores do Studio
Ghibli.

Além do que podemos ver como a memória japonesa foi extremamente


marcada pelas consequências civis sofridas durante o processo da Segunda
Guerra Mundial, seja em seu período de ação direta ou em suas inúmeras
consequências à longo prazo. Aquilo que foi causado pela guerra na população
nipônica se mantém constante em suas representações culturais mesmo nos
dias de hoje.

“A Segunda Guerra Mundial teve grande impacto no imaginário japonês e por


consequência em suas representações culturais. Devido a isso podemos
perceber diversas referências aos acontecimentos da Segunda Guerra em
filmes, no entanto o diretor Hayao Miyazaki em ‘Serviço de Entregas da Kiki’

42
[1989] se foca não nos acontecimentos em si, mas em uma consequência
destes.” [NOVAES; VADICO, 2020, p. 149]

Por fim, esta análise é parte de um trabalho de maior escopo em andamento,


com análises de outras obras do Studio Ghibli. Uma proposta de produção
neste campo historiográfico ainda tão abrangente para nós historiadores.
Aberto a críticas construtivas e sugestões após sua leitura.

Referências
Gabriel Lacerda de Souza é graduando do 4º ano do curso de Licenciatura em
História da Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]. Este texto é
resultante de pesquisa desenvolvida no Programa de Iniciação Científica da
UEPG, ao longo de 2021-2022, bem como de TCC em andamento.

CHAVES, Ravena Amorim; TORRES, José Wanderson Lima. Distopia e


animação: O universo fantástico em Nausicaä do Vale do Vento, de Hayao
Miyazaki. In: Revista Desenredos. n. 27. Teresina: Publicação independente,
2017. p. 169-175.

FARIA, Mônica Lima. História e narrativa das animações japonesas: Algumas


características dos animês. In: Actas de Diseño. n. 5. Buenos Aires:
Universidade de Palermo, 2008. p. 150-157.

MIGUEL, Alcebíades Diniz. O fluxo imaginário da memória: A animação como


arte de conjurar/construir o passado israelense. In: Arquivo Maaravi: Revista
Digital de Estudos Judaicos. v. 4. n. 6. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 4-12.

NOVAES, Viktor Danko Perkusich; PAULO, Inajara Barbosa. Os cartoons no


front: A Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva estadunidense e japonesa
(1936-1955). In: II Diálogos sobre História: Ciclo de Minicursos Online da
UFPR. Curitiba: UFPR, 2021.

NOVAES, Viktor Danko Perkusich; VADICO, Luis Antonio. A influência da


Segunda Guerra Mundial nas animações japonesas: Um histórico de
características e influências que são observadas até os dias de hoje. In:
Revista de Debates Insubmissos. v. 2. n. 5. Caruaru: UFPE, 2019. p. 79-106.

NOVAES, Viktor Danko Perkusich; VADICO, Luis Antonio. A metáfora do


comportamento japonês após a Segunda Guerra Mundial presente no filme “O
Serviço de Entregas da Kiki” (1989) de Hayao Miyazaki. In: Revista
Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. v. 19. n. 34. São Paulo:
ALAIC, 2020. P. 140-150.

43
COMPARAÇÃO INTERMÍDIAS DE KOE NO KATACHI,
por Giorgia Vittori Pires

Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise comparativa entre o manga
e o anime da narrativa de Koe No Katachi. A históri trabalha com temas
pesados como suicídio, auto aceitação, redenção e perdão.

O manga, escrito e ilustrado por Yoshitoki Ôima, foi publicado em sete


volumes, no período de 2013 a 2014, pela editora Kodansha. Sua adaptação
foi feita no formato de um filme, no ano de 2016, pela Kyoto Animation sob
direção de Naoko Yamada. Este trabalho se trata de uma comparação
intermídias (quadrinho e animação) onde três pontos serão abordados: o
enredo, a estética e a sonoplastia, e como eles funcionam em cada uma das
mídias. O seu nome original também chamou muita atenção pois, “Koe”
significa “som, voz” e “Katachi” significa “forma”, em uma tradução literal e livre
o título seria “A forma do som”, o que da um caráter intermídias logo no
primeiro contato.

Pretende-se, ao analisar o enredo, verificar a fidelidade com o texto original e


de que maneira a diretora e a roteirista Reiko Yoshida escolheram adaptar a
história. Como o texto original se caracteriza como quadrinhos, e estes contêm
ilustrações, também serão comparadas as imagens do papel com os da
animação, levando em consideração o estilo e peculiaridades de cada um. Por
fim, por se tratar de uma história de uma menina surda, será discutido os
ganhos e perdas no impacto da trama ao trabalhar com uma mídia que não tem
sons e uma que tem.

Enredo e personagens
Primeiramente se faz necessário deixar o leitor deste trabalho a par da história.
Tudo começa com a apresentação do personagem Shouya Ishida, retratando-o
como um aluno do ensino fundamental que costuma fazer brincadeiras como
forma de passar o tempo. A outra personagem principal, Shouko Nishimiya, é
inserida na história em seguida, quando é transferida para escola de Ishida, e
logo em sua primeira apariçãoção é mostrado como ela se diferencia dos
outros alunos, ela é surda.

Nishimiya precisa de alguns cuidados especiais que seus colegas de sala


começam a achar inconvenientes e por isso acaba se tornando o alvo do
bullying. Conforme o tempo passa as brincadeiras da sala aumentam e as de
Ishida vão ficando mais cruéis, chegando a estragar vários aparelhos auditivos
de Nishimiya, fazendo com que sua mãe acabe relatando para a escola os
acontecimentos e tirando-a da escola. Quando os alunos da turma são
confrontados a respeito do incidente, todos apontam Ishida como o único

44
responsável. Ele fica conhecido como um valentão e todos acabam por se
afastar, além de começarem a praticar bullying com o mesmo.

Agora no seu terceiro ano do ensino médio, Ishida ainda continua com uma
fama ruim e completamente isolado, porém verdadeiramente arrependido,
começa uma jornada para se redimir. Seu isolamento não dura muito tempo na
história, pois personagens que eram seus amigos de infância voltam a se
relacionar, mesmo que de forma ainda um pouco conturbada. No decorrer do
enredo Ishida percebe que redenção não é uma tarefa fácil, para isso precisa
encarar pessoas e eventos do seu passado, além de aprender que aceitação
não parte só do outro mas de nós mesmos.

Levando em consideração que essa passagem de um mídia para outra se trata


de um ato de tradução, é interessante pensar em qual foi a perspectiva da
diretora para só então argumentar se ela foi fiel ou não ao texto. A adaptação
de uma historia depende muito do público alvo e qual das mensagens será
repassada, isso acontece porque cada leitor tem uma bagagem cultural, logo
cada um terá um relacionamento diferente com o texto e consequentemente
uma interpretação distinta.

A diretora Yamada comentou em diversas entrevistas que estava tentando


retratar a dificuldade de todos os personagens e não só os principais, assim
como a escritora Ôima fez. Por ser um filme ela não pode se aprofundar nas
tramas de cada um, mas fez questão que os personagens principais dividissem
os holofotes. Ela também comenta sobre o cuidado que teve com uma história
tão delicada e como ela tem um respeito enorme pelo manga.

É interessante perceber que são duas mulheres, em uma área com


pouquíssima representação feminina, relatando uma historia sobre aceitação e
redenção e que as duas concordam em uma coisa: a surdez da personagem
principal não é o foco da história, ele é só mais um dos empecilhos enfrentado
pela Nishimiya, elas acreditam que limitar seus problemas a surdez é limitar a
própria identidade dela. Levando em consideração o quão próximo são os
pensamentos e visões da escritora e da diretora não é surpresa que as cenas
sejam muito parecidas com os capítulos. Aqui deixo claro que estou falando de
semelhança e não fidelidade, pois o filme completamente reestrutura um
manga com muitos flashbacks para algo mais linear, isso acarreta em algumas
“perdas” do material original, porém acredito que estejam condizentes com a
visão e objetivo de Yamada.

Ao fazer a leitura do manga e assistir ao filme foi possível perceber que os


volumes que retratam a infância dos personagens e apresentam os
personagens secundários, foram os que mantiveram a maior riqueza de
detalhes na hora de fazer a adaptação. Poucas cenas foram cortadas e até
mesmo as falas se mantiveram iguais. Acredito que isso aconteça, pois, é o
que explica todos os outros acontecimentos da narrativa, como as dificuldades
dos personagens e a razão para os conflitos.

45
A partir da adolescência dos personagens é um grande exercício de
replanejamento e reajustes. Algum arcos de personagem e algumas cenas
que poderiam ser consideradas importantes foram cortadas da animação. Mas
foram mantidos os momentos mais tensos da história, como a segunda
separação do grupo de amigos e a tentativa de suicido de Nishimiya, que é
impedida de pular do prédio por Ishida, porém este acaba caindo no seu lugar
e entrando em coma. Acredito que o primeiro tenha uma carga dramática maior
no manga, nele o acontecimento é contado de forma mais devagar, tudo vai se
arrastando até que o grupo finalmente se separa, obrigando Nishimiya e Ishida
a passarem suas férias de verão tendo encontros um tanto quanto forçados e
desconfortáveis.

A cena do suicídio, por outro lado, é surpreendentemente mais lenta na


animação do que no manga, extremamente detalhista e te faz perder o ar, é o
clímax da história, o ponto de mudança. No manga, ela é só a cena que te
prepara para o clímax, este acontece quando Ishida acorda do coma e se
reencontra com Nishimiya por meios, aparentemente, mágicos. No meu ponto
de vista, o filme não consegue representar tão bem essa cena do reencontro.
No manga, ela acontece pelo ponto de vista de Nishimiya, correndo pela noite,
sem mais nenhum detalhe, sem interrupções, enquanto na adaptação acaba
ficando muito misturado a perspectiva dos dois personagens.

Já no fim da trama, no manga o foco esta em Nishimiya, como ela faz parte de
um grupo, como ela aprende que pode ser mais do que a menina surda e com
Ishida ficando preocupado, pois talvez ela não precise mais dele. Já na
animação o foco está em Ishida sendo redimido pelos seus colegas e por ele
mesmo, aceitando que ele pertence a algo e não está sozinho. Ao parar para
analisar percebi que as duas versões mantém um ponto em comum: entrar em
acordo com a sua identidade. Apesar da escritora e da diretora terem focos
diferentes, a mensagem de que todos nós podemos fazer parte de algo está ali.

Estética e sonoplastia
Começamos a analise pelo mais óbvio, o manga é preto e branco e a animação
colorida. Isso limita muito o que se pode fazer no papel, pois se colocar
detalhes demais o quadro ficaria poluído, já no filme percebemos que os
cenários são ricos em detalhes, o que é uma característica da Kyoto Animation.
Os traços do manga são bem distintos e os personagens conseguem ter
características marcantes e muito próprias, mesmo sem serem ricos em
detalhes. O anime segue esses traços, porém de forma mais minuciosa,
principalmente se tratando de cores e movimentos.

No manga se tem uma visão em terceira pessoa, eu leitor estou observando a


cena, enquanto no filme a diretora trabalha com diferentes ângulos (imagem
centralizada ou não), tomadas mais abertas ou cenas mais focadas (uma parte
do corpo do personagem, um cenário, etc) e até mesmo em primeira pessoa
(no caso de Ishida). Isso da uma sensação um tanto quanto realista para a
animação.

46
Fonte: ÔIMA, Yoshitoki. Koe no Katachi. Japan: NewPOP, 2013-2014.

KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016.

Essas duas imagens ocorrem no momento em que Nishimiya se apresenta


para a sua sala. Logo após os alunos descobrirem que ela é surda, Ishida se
pronuncia chamando a garota de estranha. Percebe-se que no manga os
traços são mais simples e o foco está no personagem que está falando. No
anime o foco continua no falante, porém de uma perspectiva diferente, o ângulo
utilizado faz sentir como se o público estivesse na cena.

O manga e a animação conseguem, de forma muito interessante, retratar a


surdez também na forma em que apresenta suas imagens, dando bastante
atenção para linguagem corporal e ações. Existem cenas onde os personagens
principais não conversam, mas mesmo assim conseguimos entender a
comunicação entre eles. Isso acontece porque o foco está no que o corpo quer
dizer, seja com a linguagem de sinais ou com a expressão corporal. No manga
existe um cuidado muito grande com o desenho das mãos dos personagens, é
possível entender o sentimento dos personagens só pela forma que a mão esta
desenhada. No anime isso acontece com a representação dos sinais feitos, os
diretores de animação comentaram que analisavam diversas vezes o mesmo
movimento para serem capazes de representar o sinal corretamente, e caso
ele pudesse ser confundido com outro era retirado da cena.

No caso da animação é interessante perceber ainda que eles fazem passagem


de cena com imagens sem sons, mas que permitem que o público reconheça o
som que deveria ter sido produzido como por exemplo uma gota caindo na
água, vemos os círculos que representam o som que aquela ação deveria
fazer.

47
Fonte: KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016

Ao ler o manga percebesse que a falta de qualquer estimulo sonoro gera uma
empatia com a personagem principal e o tema da história em si. A falta de som
é a trilha sonora perfeita para essa trama, todo momento de tentativa de
comunicação se torna mais angustiante, ver Nishimiya tentando se comunicar
com os outros personagens e não conseguir por ser surda e não conseguir
emitir sons direito tem um peso muito maior no manga. O silêncio da obra
enche os ouvidos de qualquer um e acaba por forçar o leitor a usar seus outros
sentidos e sua imaginação.

Porém a animação não fica para trás, a produção criou uma trilha sonora tão
elaborada e tão ligadas as cenas que criam uma nova visão do silêncio de
Nishimiya. Inspirados em fotografias e pinturas, os produtores criaram
sinestesia. Para isso ser possível, a trilha sonora precisava ser minimalista,
dessa forma qualquer mudança, mesmo que sutil causaria um grande impacto.
Na cena em que Nishimiya é apresentada na escola podemos perceber como
isso funciona, cada um de seus movimentos é acompanhado de uma nota
musical até se revelar surda, onde a informação vem com um acorde, deixando
o momento mais intenso. A mudança é singela do ponto de vista musical,
porém muito impactante na questão cinematográfica.

De acordo com Kensuke Ushio, o produtor musical, a trilha sonora do filme


representa aquilo que Nishimiya talvez consiga escutar com seu aparelho
auditivo, por isso é tão sútil. Ela foi gravada dentro de um piano para escutar
todos os sons que se faz ao tocar (o som do pedal, uma tecla batendo, etc.) e
não só a parte musical. Esses “ruídos” representam, não só, os sons externos
que chegam até Nishimiya, mas também os internos, como seu coração, seu
sangue correndo nas veias e todo o seu corpo se comunicando com a
personagem. A diretora e Ushio trabalharam juntos cena por cena para que a
trilha sonora se tornasse um complemento da imagem e vice versa. Por isso,
existem momentos da trilha sonora que não apresenta uma melodia, isso
acontece porque os sons estão relacionados com os sentimentos dos
personagens, seus movimentos e até mesmo a quantidade de luz que tem em
cena.

Apesar de ser inspirado nos possíveis sons que Nishimiya escuta, a


progressão das músicas acontece ao mesmo tempo que a da vida de Ishida. O
produtor diz que se inspirou no modelo musical das invenções do Bach - nas
invenções existe um tema sonoro que é apresentado no início da música, esse
tema se repete de forma similar no decorrer da obra, porém sempre apresenta

48
características novas. É uma reformulação de uma ideia principal. - No caso do
filme, a trilha sonora consiste em três atos, acompanhando os três atos da
progressão histórica [John]. O primeiro ato é o flashback, toda a parte da
infância que se desenrola para o segundo ato, que é o maior, por tratar de todo
desenvolvimento da narrativa, agora no presente. O ato três só começa a partir
do clímax do filme e vai até o seu desfecho. Não importa em que momento do
filme algo na trilha sonora sempre irá remeter outra parte da história, inclusive a
última parte é quase idêntica ao começo, porém com um tom mais de
fechamento.

Os surdos no Japão
Podemos perceber no filme que não existe preparação por parte da escola
para receber Nishimiya. Seu professor falava virado para o quadro, ela sentava
no fundo da sala e a pessoa responsável por inseri-la na escola não tentava
adaptar as situações, mas sim forçar essa inserção. Isso acontece porque a
comunidade surda começou só recentemente a receber atenção. De acordo
com o livro Deaf in Japan [Nakamura, 1970], até 1948 quem tinha deficiência
auditiva nem mesmo precisava receber uma educação formal e fazem alguns
anos que a proibição do uso de linguagem de sinais nas escolas foi retirada.

Existem dois grupos que lutam pelos direitos dos surdos, o Japanese
Federation of the Deaf e o D-PRO. O primeiro foca em inserir o deficiente
auditivo no mundo, de forma que ele consiga se adaptar, já o segundo é
particular e tem o discurso que o mesmo deve conseguir viver bem de maneira
surda. A diferença pode parecer pequena, mas está relacionada com o
deficiente auditivo se identificar primeiramente como japonês e depois como
deficiente ou o contrário.

Além disso existem duas classes de linguagem de sinais, a SimCom, que é a


comunicação simultânea, e a JSL (Japanese Sign Language), que é a língua
de sinais. Na JSL, mais conhecida como Shuwa (手話) não se usa só as mãos
mas também as sobrancelhas, mandíbulas e expressões faciais. É uma
linguagem muito ligada ao sistema de escrita japonês e por isso existem gestos
específicos para soletrar o hiragana e para kanji mais usados, mas também é
possível desenhar o kanji no ar.

No filme, é possível perceber que Nishimiya não é cem por cento surda, ela
usa aparelhos auditivos para que possa ajudar o pouco de audição que lhe
resta. É possível perceber isso em cenas como a que Ishida grita perto de seu
ouvido e ela sente dor, ou quando sua vó aparece conversando com um
médico e na cena seguinte ela aparece sem um dos aparelhos e chorando
sozinha. Essa cena mostra que ela perdeu totalmente a capacidade de ouvir de
um dos lados, enquanto o outro permanece com os ruídos.

Nishimiya consegue fazer leitura labial e usa muito pouco o SimCom, quem usa
mais são os outros personagens quando fazem linguagem de sinal. Se ela se
identifica mais como surda, ou mais como japonesa não é algo que fica claro
no filme, mas em minha opinião ela só quer ser uma pessoa “normal” e por isso

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se vê primeiro como japonesa. Isso me parece diferente da visão de sua mãe,
que fica constantemente lembrando-a de que é deficiente. Os personagens que
estavam a sua volta durante sua infância compartilham da mesma visão, ela é
surda, e por isso é estranha. Mas com o decorrer do filme isso muda, ela é uma
amiga, que também tem deficiência auditiva.

Conclusão
Esse trabalho teve como objetivo comparar as duas obras, não com o intuito de
dizer que uma é melhor que a outra, mas simplesmente entender as mudanças
que foram feitas ao passar de uma mídia para outra. Como discutido, não
existe um certo e errado na adaptação, mas sim um ponto de vista. Acredito
que as mudanças feitas na historia, como a escolha de reproduzir no ponto de
vista do Ishida e mudar o clímax mostra exatamente as intenções da diretora, a
leitura que ela fez de tal história.

Acredito que em questão de narrativa o filme não aprofunda tanto quanto o


manga, mas é compreensível, já que é uma mídia bem mais rápida e sucinta.
Em questão estética por outro lado, o filme tem vantagens, podendo explorar
os detalhes, cores e principalmente movimento em cenas que antes eram
estáticas. Já na questão da sonoplastia acredito que ambas se encaixam
perfeitamente em cada mídia que se encontram.

O fato da animação ter trabalhado com imagem e som a cada cena, para que
os dois fossem um complemento do outro demonstra, para mim, um cuidado
muito grande em contar a história da melhor forma possível em outra mídia.
Também foi possível perceber o respeito dos produtores do filme com o tema e
pela obra original.

Koe no Katachi consegue de forma muito equilibrada mostrar só aquilo que é


necessário para que o seu espectador consiga fazer as conexões e inferências.
A reestruturação da narrativa e a relação bem pensada entre as imagens e
música ajuda a sentir o que os personagens estão pensando e torna o filme
muito mais pessoal.

Referências
Giorgia Vittori Pires é graduada em Língua e Literatura Japonesa da
Universidade Federal do Paraná e autora do livro O Som do Chá
[http://lattes.cnpq.br/5366439494761261]

KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada . [S.l.]: Kyoto Animation, 2016. (130
min).

ÔIMA, Yoshitoki. Koe no Katachi. Japan: NewPOP, 2013-2014.

DOI, Nobuaki. Interview: Director Naoko Yamada On “A Silente Voice. Cartoon


Brew. Disponível em: https://www.cartoonbrew.com/anime/director-naoko-
yamada-silent-voice-now-u-s-theaters-154199.html

50
JOHN. Koe no Katachi (A Silent Voice) Analysis – Music is Perspective. Nerdy
Shenanigans. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0B6U_lfWM5c

KVIN. Koe no Katachi: Director Naoko Yamada Interview. Sakuga Blog.


Disponível em: https://blog.sakugabooru.com/2017/05/30/koe-no-katachi-
director-naoko-yamada-interview/

NAKAMURA, Karen. Deaf in Japan: signing and the politics os identity. New
York: Cornell University Press, 1970

51
EMBATES DISCURSIVOS QUE PASSAM ÀS TELAS: IMPACTOS
DAS DISCUSSÕES ORIENTALISTAS ITALIANAS EM SEU
CINEMA, POR OS ÚLTIMOS DIAS DE POMPEIA (1913), por
Heloisa Motelewski

Tendências de significação de um dito “Oriente” por um contraponto “ocidental”,


os Orientalismos são teórica e metodologicamente encarados pela
historiografia desde a publicação de Said [1991], com as mais distintas
abordagens. No entanto, alguns elementos essenciais, apesar de críticas
ulteriores à sua fundamentação, ainda permanecem fulcrais para a
compreensão dessas criações discursivas ocidentais acerca da existência
oriental.

Ao amalgamar narrativas elaboradas sobre os sentimentos, a história, os


desejos e as necessidades deste “Oriente”, o Orientalismo, em seu cerne,
reuniria um processo de decomposição para uma apreensão fragmentária do
desconhecido. Este “Outro”, segregado, estaria enquadrado pelo viés europeu
e norte-americano como detentor de uma grandiosidade remota, submersa,
porém, em uma decadência atual e passível de ser recuperada. Dessa
maneira, Said [1991] examina criticamente esses discursos ao mirar as
construções normativas e codificadas das sociedades e culturas por eles
engendradas. À consequência disto, emerge o Orientalismo como força
cultural, criadora de “arquivos de saberes” tangentes aos povos dominados
com o intuito de efetivar o domínio e a governança ocidental em seus espaços.

No corolário destes discursos violentos, o autor [1991] igualmente faz uma


alusão direta à criação de imagens sobre este “Oriente”. A isso, o Orientalismo
acaba por cingir a profusão do imaginário, por impor códigos de intepretação
que passam a ser tomados como verdade pura. Códigos esses, portanto, que
podem ser encontrados atingindo a materialidade pelas criações visuais e
artísticas, a título da literatura, da pintura e, em nosso caso de estudo, do
cinema.

Não obstante, devemos sublinhar, como o faz Mackenzie [1995], a


necessidade de se amplificar essa teoria crítica a partir do entendimento da
multiplicidade de formatação e de agência do Orientalismo – constituindo-se,
dessarte, “Orientalismos”, como dito ao início deste texto. Afinal, são discursos
repletos de diversidade quanto às formas representativas, as quais, segundo
este estudioso [1995], devem ser analisadas desde sua produção, invenção,
recepção e historicidade. Variações essas que encaramos nesta comunicação,
cujo objetivo reside em esquadrinhar como os embates discursivos orientalistas
desenvolvidos na Itália do início do século XX impactaram em suas produções

52
cinematográficas a partir do estudo do filme Os Últimos Dias de Pompeia, de
Ambrosio [1913].

Para isso, acrescentamos ao nosso arcabouço teórico e metodológico as


imbricações entre História e Cinema, bem como os Estudos de Recepção. No
que se refere aos primeiros, as produções cinematográficas são por nós
entendidas enquanto formas visuais de significação dos vestígios do passado
desde narrativas complexas e múltiplas, em uma história como visão
[ROSENSTONE, 2010]. Desse modo, nos direcionamos a um tratamento
historiográfico do material fílmico por uma mescla entre os postulados da
semiótica [BUCKLAND, 2004] e da alegoria histórica [XAVIER, 2004].
Acionamos, portanto, uma metodologia que visa a decodificação de uma
sistematização visual de signos variados, determinantes de relações formais
simbólicas e significadoras. Esta é, simultaneamente, tecedora de narrativas
individuais representativas de contextos culturais e históricos grupais, cuja
retomada do passado determina o pensar de dilemas atuais.

Neste aspecto, as teorias dos Estudos de Recepção fornecem ainda


importantes mecanismos para pensar essa associação entre o presente e o
passado fomentada pela cinematografia. Lorna Hardwick [2003], a principal
estudiosa e pesquisadora do campo, fundamenta tal entendimento da recepção
ao referenciá-la como caminho duplo de leituras entre o texto base, o material
antigo, e a cultura de recepção, o panorama moderno. À consequência disso,
as evocações da Antiguidade ascendem como objetos de pesquisa dos
processos culturais que as envolvem, seja na análise da recepção em si, seu
processo, ou seu contexto, seja em suas formas descritivas finais.

Propondo-nos a uma discussão deslocada desde essas teorias e metodologias,


este breve texto se concentrará nos meios pelos quais o passado romano de
Pompeia é recuperado em uma narrativa com intuitos orientalistas e
classicistas. Com tal fim, estabelecemos como recorte os impactos das
discussões italianas direcionadas aos Orientalismos, aos Classicismos e aos
Mediterraneísmos [DE DONNO, 2019] sobre a produção fílmica de Arturo
Ambrosio, intitulada Os Últimos Dias de Pompeia, de 1913. Por esse modo,
nosso objetivo reside em uma análise enfocada nos meios pelos quais a
Antiguidade se funde ao passado oriental para a criação e repercussão
orientalista em criações visuais – codificações repletas de particularidades
alinhadas ao cenário italiano de tensões intelectuais e culturais identitárias de
seu pós-unificação.

Itália, início do século XX: Orientalismo, Mediterraneísmo ou


Classicismo?
Os movimentos de discussão orientalistas encontraram bases em disciplinas já
estruturadas ao século XIX, como a Indologia e a Orientalistica, conquanto
vinculados ao Risorgimento, em seus ideais de independência, nacionalidade,
modernidade, cosmopolitismo e liberdade, tal qual nos demonstra De Donno
[2019]. O Orientalismo, em termos mais gerais, competiu nesse cenário com
outras duas vertentes: o Mediterraneísmo e o Classicismo. As três abordagens

53
seriam respostas, em conformidade com o autor [2019], frente aos amplos
debates a respeito de uma identidade europeia para a nação, congregando as
tensões entre as regiões Norte e Sul, assim como a transformação da Itália na
região do “Outro” da Europa.

Em síntese, essas proposições distinguem-se por seu enfoque ao passado, ao


presente e ao futuro da Itália. O Mediterraneísmo, lançado por Giuseppe Sergi,
postularia o discurso de idealização da população eurafricana, mas negaria o
retorno ao passado como caminho de melhora do futuro nacional [DE DONNO,
2010]. O Classicismo, a sua vez, seria confundido com um olhar à Antiguidade
itálica e grega, logo conflitando com o Romantismo Orientalista, de foco no
passado ariano da península indiana. Isso pois, seguindo a argumentação de
De Donno [2019], a última perspectiva visava um alinhamento mais amplo com
os padrões europeus, assim rompendo com o provincialismo explícito da outra
vertente. Por esse modo, descreve a aquisição de tons negativos às propostas
classicistas, as quais, atreladas a uma tradição patriótica, foram assimiladas
como exageradas e inverossímeis.

São, pois, embates ideológicos deslocados de um mesmo alicerce nacionalista.


Nacionalismo exponenciado, em conformidade com De Donno [2019], no
mundo italiano pós-unificação, preocupado com a definição de uma identidade
racial e com sua expansão colonial, a secularização nacional e a adequação do
país aos parâmetros europeus de modernização. Tais caracteres, facilmente
resumidos no racialismo e no racismo, afiguram-se em produções culturais do
período, adquirindo matizes políticas de determinação de uma identidade
italiana a partir da contraposição com um “Outro” – o “Outro” da alteridade
oriental, orientalista.

O Orientalismo do Cinema Italiano: sob a égide das discussões


identitárias
A forma de criação cultural escolhida para ser examinada aqui, no âmago de
tais discussões orientalistas, se concentra nas produções cinematográficas
históricas da Itália ao início do século XX. Assumindo com expressiva força a
indústria fílmica, o país consolida-se na era do Cinema Silencioso entre os
maiores produtores de dramas históricos, comercializados ao redor de todo o
globo. Todavia, carrega em si alguns pontos que formam um sistema
cinematográfico muito particular, especialmente ao adotar histórias já
conhecidas pelo público e ao manifestar sua preocupação com a demonstração
de suas raízes nacionais [SORLIN, 1996].

Assim nacionalista em suas origens, o drama histórico italiano reúne ainda


outras características que virão a ser interessantes para nossa análise. Ao
adotar técnicas de perspectiva e de posicionamento da câmera segundo linhas
de perspectiva, suas produções situam-se dentro de um contexto de
transformações que, em conformidade com o exposto por Pérez [1990]
acabariam por resultar no naturalismo e no realismo cinematográfico. Ademais,
tal qual também pontuado pelo escritor [1990], lançaria as bases de um
sistema de estrelato próprio, o divismo.

54
Tais métodos de construção de imagens em movimento com intenções
realistas afirmam-se em um momento histórico não apenas nacionalista, mas
igualmente de intenções colonialistas [PÉREZ, 1990]. Com especial foco na
região da Líbia, o neorrealismo cinematográfico transportaria às salas de
cinema os discursos do colonialismo italiano. Sob narrativas propagandísticas,
buscava-se mostrar que “novas audiências saudaram uma nova forma de arte,
enquanto o território líbio foi aprisionado para uma jovem nação” [DALLE
VACCHE, 1992, p. 29, tradução nossa] [1]. Essas imagens discursivas
refletiam, portanto, o extenso contexto de debates identitários esmiuçado
anteriormente. E, como o território visado situava-se em um “Oriente” arábico,
este era lançado a um dos objetos de representação nos cinemas – uma
representação acompanhada, muitas vezes, da figuração do próprio passado
romano.

Por isso, observamos como o filme acaba por situar-se no centro desse
panorama de indústria cinematográfica, igualmente posta no meio de
discussões orientalistas e classicistas. Desse modo, defendemos como essas
produções não podem ser simplesmente qualificadas como adeptas de apenas
uma dessas abordagens. Pelo contrário, devem ser examinadas em sua
mobilização dos distintos aspectos dos Orientalismos, Classicismos e
Mediterraneísmos criados e recriados na Itália desse período. É isso que se
torna, pois, o fio condutor da análise d’Os Últimos Dias de Pompeia, uma
produção de Arturo Ambrosio oficialmente lançada em 1913.

Haveria orientalismos n’Os Últimos Dias de Pompeia?


Fabricada e distribuída pela Società Anonima Ambrosio, a película intitulada no
original italiano Gli ultimi giorni di Pompei (Os Últimos Dias de Pompeia, em
tradução literal) é uma dentre inúmeras outras que evocam o passado
pompeiano narrada pelo romance homônimo de Edward Bulwer-Lytton,
publicado originalmente em 1834. Uma adaptação feita pelo roteirista Mario
Casarini, e dirigida por Eleuterio Rodolfi, o filme foi exibido internacionalmente,
com registros de sua presença no Brasil no mesmo ano de seu lançamento, em
1913. Seus quadros, projetados em 35 mm num total de 107 minutos, relatam a
história de Nídia, uma escravizada grega que, apaixonada por Glauco, seu
amo, recorre ao auxílio de Arbaces para obter seu amor – este um sacerdote
egípcio, devoto ao culto a Ísis, apaixonado por Ione, napolitana que tem um
relacionamento amoroso com o mesmo Glauco. A tragédia, após passar pelas
maléficas ações do egípcio e pelos arrependimentos e devoções da cativa
grega, encerra-se com a erupção do vulcão, levando ao salvamento único do
casal protagonista.

No seu desenrolar narrativo e em sua construção visual, constatamos a


presença de uma variada gama de elementos orientalistas, como já percorrido
em alguns trabalhos anteriores [MOTELEWSKI, 2022a; 2022b]. No entanto,
nos é interessante situar esse discurso orientalista no meio dos debates
anteriormente apresentados, compreendendo como os vieses classicistas e

55
orientalistas trabalham em conjunto para a elaboração do nacionalismo da
película.

Sendo assim, o visualizamos sendo composto no período a que De Donno


[2019] qualifica como sendo o segundo do Orientalismo na Itália. Alimentada
pelo panorama extremista nacionalista do pós-unificação, a produção de
Ambrosio não se distancia das perspectivas colonialistas [DALLE VACCHE,
1992] e do cinema histórico [PÉREZ, 1990], características da época.

Desse modo, com o foco nas representações de indivíduos caracterizados


como “orientais” em sua trama, nos deparamos com uma série de
problemáticas a serem desenvolvidas. Notadamente expressos na figura do
sacerdote Arbaces e no culto isíaco, essas representações passíveis de crítica
advém de um discurso já consolidado no Classicismo italiano [DE DONNO,
2019]: dentre as alternativas para visualizar o desenvolvimento do futuro da
nação, o Oriente não lhe parece um exemplo, e tampouco uma alternativa,
válido. Ao contrário, a Antiguidade romana, cuja virtuosidade e ação histórica
são amalgamadas alegoricamente nos personagens de Glauco e Ione, emerge
como potencial de orientação para a construção da nova nação.

Com o intuito de conferir embasamento a esse posicionamento, ocorre que a


película redunda em uma nova absorção das teorias orientalistas anteriores a
seu momento de criação. Similarmente ao defendido por Leopardi, segundo
indicado por De Donno [2019], suas imagens e sua trama pretendem atestar o
vínculo entre as crenças orientais, aqui representadas sob a égide de Ísis, e as
superstições, tidas como prejudiciais ao serem errôneas e corruptivas para o
caráter humano. A isso, adiciona-se a “humanização” da divindade isíaca, ao
passo de ter sido o processo de antropomorfização religiosa igualmente
considerada decadente pelos pensadores adeptos a essa aproximação
classista/orientalista. Tal ideário assume especial realce na retratação de um
momento de culto isíaco, em que a estátua de Ísis com um sistro é posicionada
centralmente no enquadramento cênico (Imagem 1), ascendendo a sua figura
humana, feminina, em detrimento de qualquer forma abstrata outra.

Imagem 1 – I Sigreti di Iside


Fonte: Gli ultimi giorni di Pompei (1913).

56
Assim sendo, afirmam-se os motivos visuais passíveis de serem atribuídos ao
imaginário do que seria o “oriental” e o “Oriente” para o público do período.
Com especial realce, podemos elencar a presença de um vestuário que reúne
colares e peças de cabeça, como o nemés, com referências a materiais
arqueológicos encontrados em regiões do Antigo Egito. Concomitantemente,
afrescos ao fundo remetem a temas egípcios e nilóticos, em uma similaridade
com aquelas pinturas encontradas no Templo de Ísis pompeiano (Imagem 2).
Para além dessa cena, outras em que os adeptos do culto são retratados,
como o próprio Arbaces e seu discípulo Apoecide, irmão de Ione, carregam em
si elementos codificados como “orientais” (Imagem 3). São signos inerentes às
suas formas de se vestir, com longas túnicas diferentes das vestes mais curtas
dos personagens romanos, bem como com adereços parecidos às joias
achadas junto à cultura material egípcia antiga.

Imagem 2 - Due Sfingi con ali sollevate ai lati di un'idria isiaca


Fonte:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fresco_Isis_N%C3%A1poles_09.JPG

Imagem 3 – Il Sommo Sacerdote avvia il suo discepolo, ai misteri di Iside


Fonte: Gli ultimi giorni di Pompei (1913).

57
Com a reunião dessa totalidade de fatores visuais e narrativos, então, nos
debruçamos sobre o elementar providencialismo que a película almeja
reproduzir. Por sua narrativa, tece um discurso em que o mundo “oriental”,
protegido pela deusa, age como o vilão corruptivo do povo romano, fator a
mover um suposto “expurgo” sobre a cidade de Pompeia com a ação
vesuviana. Dessa forma, os discursos orientalistas e classicistas adquirem uma
expressão material visual ao reproduzirem nas telas o ideal de uma identidade
italiana em termos raciais, racialistas e racistas, negando-lhe sua associação
com o mundo norte-africano.

Tendo isso em vista, a produção mobiliza estrategicamente aspectos da


Antiguidade, com seleções de objetos e de aspectos religiosos que remontam a
um imaginário de conquista do Egito por Roma. Ou também, nos termos de
Swetnam-Burland [2015, p. 1, tradução nossa], “o gosto pelas obras de arte
vindas de longe ou evocadoras de estilos estrangeiros era inerentemente
político, refletor da realidade que uma região (Itália) dominava sobre o Outro
(Egito)” [2].

Sendo assim, nos torna possível observar como a produção do filme retoma
esse mesmo passado romano, com ideais imperiais, com o intuito de adequar
em reproduções visuais os discursos de dominação, racialismo, orientalismo e
imperialismo ecoantes em seu momento histórico. É, ao fim, uma leitura
particular do passado romano cujas adequações formatam-se de modo a criar
uma narrativa que cria e projeta ideais racistas, (re)postulando “diferenças”
supostas entre o indivíduo europeu, italiano, e o indivíduo oriental,
genericamente qualificado e posicionado no norte árabe africano.

Considerações finais
Por esse modo, encontramos n’Os Últimos Dias de Pompeia a emersão de
uma recepção de Pompeia próxima das discussões orientalistas e classicistas
do amplo contexto de debates intelectuais italianos dos fins do século XIX e do
século XX. Em sua trama providencialista, deixa latente o nacionalismo racista
e orientalista presente em muitas das produções cinematográficas (e culturais
em termos mais amplos) italianas da década de 1910. Tal representatividade
de discursos racialistas ecoa, pois, em signos visuais do filme, ao passo de se
apropriar do passado romano e egípcio para elaborar ligações entre os
elementos materiais de um suposto “Oriente” antigo e os modernos “orientais”
na trama, nos trajes de seus personagens e na ambientação espacial de suas
ações. Anos estes perpassados pelas intenções de colonização da região ao
Norte da África, de dominação da Líbia, das sementes de racialização com o
fito de inferiorização para a subordinação violenta.

Em tempos posteriores, de um fascismo já presente e difundido em sua


sociedade e em sua política, encontraremos esses mesmos Orientalismos
intensificando ainda mais seus teores racistas e racialistas. Como demonstra
De Donno [2019], Mussolini e seus adeptos os aglomerariam em propostas de
assimilação e de aliança com outras colônias europeias, desmembrando as

58
teorias raciais de proximidade e/ou de superioridade entre as ditas “raças”
italiana, árabe e indiana.

Esse é um período político e histórico também responsável por concentrar


particularidades de apropriação do passado romano, ao que Fleming [2006]
exorta para uma consideração das particularidades dessa dinâmica. Afinal,
reúne em si uma complexidade de práticas político-culturais e estéticas, as
quais devem ser compreendidas para além de uma ideia de “abuso” do
passado. São, ao fim, práticas e ideais criticados e reprovados pelos
posicionamentos políticos; mas tais críticas e reprovações não devem ser
empecilhos para estudos mais aprofundados de sua essência teórica, de sua
construção e de suas formulações mais básicas.

Enfim, essa necessidade de explorar as recepções do passado romano para


além das críticas políticas e sociais às suas apropriações violentas merece ser
também estendida aos Orientalismos. Tal qual apreendido no caso italiano,
esses discursos possuem uma medida similar de criação de mecanismos
políticos, culturais e estéticos para a afirmação de seus ideais a partir do
passado. Um passado que, mirado sob a ótica “ocidental”, tem orientalizado
tudo aquilo que os europeus de outrora julgaram “inferiores demais” para
serem seus; aquilo “corrupto demais” ou “maldoso demais”, que necessitaria de
um “expurgo” de sua história. História esta que, agora, precisa ser mirada
reflexivamente para ter esse mesmo olhar violento de Orientalismos detectado
e criticado.

Notas
[1] Do inglês, no original: “new audiences saluted a young art form, as the
Lybian territory fell prey to a young nation”.
[2] Do inglês, no original: “the taste for works of art from far-off places or
evoking foreign styles was inherently political, reflective of the reality that one
region (Italy) held sway over the Other (Egypt)”.

Referências
Heloisa Motelewski é estudante de Graduação em História (Licenciatura) e
realiza pesquisa de Iniciação Científica na modalidade voluntária (PIBIC) na
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Currículo lattes:
[http://lattes.cnpq.br/7022532050657480].

Fonte documental:
GLI Ultimi Giorni di Pompei. Direção: Eleuterio Rodolfi. Turim: Società Anonima
Ambrosio, 1913. 1 filme (107 min), mudo, legenda, p&b, 35 mm.

Referências bibliográficas:
BUCKLAND, Warren. Film Semiotics. In: MILLER, Toby; STAM, Robert. (Ed.).
A Companion to Film Theory. Malden: Blackwell, 2004. p. 84-104.

59
CINEMATECA BRASILEIRA. Os últimos dias de Pompeia. In: JORNADA
BRASILEIRA DE CINEMA SILENCIOSO, V, 2011, São Paulo. Catálogo... São
Paulo: Cinemateca Brasileira, 2011. p. 50.

DALLE VACCHE, Angela. The Body in the Mirror: Shapes of History in Italian
Cinema. Princeton: Princeton University Press, 1992.

DE DONNO, Fabrizio. Italian Orientalism: Nationhood, Cosmopolitanism and


the Cultural Politics of Identity. Berna: Peter Lang, 2019.

______. Routes to Modernity: Orientalism and Mediterraneanism in Italian


Culture, 1810-1910. California Italian Studies, v. 1, n. 1, p. 1-23, 2010.

FLEMING, Katie. The Use and Abuse of Antiquity: The Politics and Morality of
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and the Uses of Reception. Malden: Blackwell Publishing, 2006. p. 127-138.

HARDWICK, Lorna. Reception Studies. New York: Cambridge University Press,


2003.

MACKENZIE, John. Orientalism: History, Theory and the Arts. Manchester:


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A mirada contemporânea sobre o passado romano dos cultos orientais sob a
produção de Ambrosio. In: BUENO, André (Org.). Novas Mídias e
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Disponível em:
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______. Orientalismo à Romanidade? A Criação da Vilania Antigo-Oriental na


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Nosferatu, Revista de Cine, n. 4, p. 4-19, out. 1990.

ROSENSTONE, Robert. Tradução de: Marcello Lino. A História nos filmes, os


filmes na História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

60
SAID, Edward W. Tradução de: Tomás Rosa Bueno. Orientalismo: O Oriente
como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SORLIN, Pierre. Italian National Cinema (1896-1996). New York: Routledge,


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SWETNAM-BURLAND, Molly. Egypt in Italy: Versions of Egypt in Roman


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XAVIER, Ismail. Historical Allegory. In: MILLER, Toby; STAM, Robert. (Ed.). A
Companion to Film Theory. Malden: Blackwell, 2004. p. 333-362.

61
A “CHINATOWN IMAGINÁRIA”: A REPRESENTAÇÃO
DO LUGAR DO IMIGRANTE CHINÊS NOS ESTADOS
UNIDOS A PARTIR DA SÉRIE TELEVISIVA “WARRIOR”,
por Krishna Luchetti

Bruce Lee povoou o imaginário e as telas ocidentais como um exímio artista


marcial, um ator talentoso e um diretor criativo. Recentemente sua filha,
Shannon Lee, deu início há uma série televisiva baseada em um romance
histórico escrito por seu pai, nesse, Bruce Lee, mobilizou como espaço literário
a cidade de São Francisco, e como recorte temporal a segunda metade do
século XIX. Até então, esses escritos eram praticamente desconhecidos e
foram redescobertos por Shannon no início dos anos 2000, “em um amontoado
de caixotes” (RAMOS, 2023), o que a motivou a procurar apoiadores para
transformar esses escritos em uma produção midiática. Segundo Shannon,
houve pouco interesse dos produtores estadunidenses em ler o romance de
seu pai, por isso o projeto passou anos em hiato.

Todavia, quase uma década depois quando o diretor taiwanês-estadunidense


Justin Lin, que a pouco tempo tinha dirigido o documentário “Finishing the
Game: The Search for a New Bruce Lee” [2007], entrou em contato com
Shanon a situação mudou. A herdeira de Bruce Lee, e diretora da “Bruce Lee
Foundation”, finalmente tinha um diretor que se entusiasmou com os textos do
pai, assim como conseguiu que outros produtores apoiassem o projeto
(RAMOS, 2023). Dessa forma, a série baseada no romance histórico de Lee e
com o roteiro do norte-americano Jonathan Tropper, ganhou o formato de série
televisiva. Neste ano de 2023, a série “Warrior” chega a sua terceira
temporada, disponível para o público brasileiro no streaming MAX.

Ressalto que Shannon Lee, uma mulher sino-estadunidense, buscou


ativamente divulgar a literatura de seu pai, um homem sino-estadunidense,
sobre um bairro construído e povoado por imigrantes, Chinatown. Na série, o
ponto focal da narrativa é justamente este lugar dos imigrantes chineses que
procuram criar sua própria comunidade dentro da cidade de São Francisco,
EUA, em busca de uma vida melhor. O bairro, que cresce ao longo do século
XIX, denota o caráter significativo deste local para a comunidade de imigrantes,
que se aglutina entre seus semelhantes e recria costumes, arquitetura e outros
aspectos de seu país natal, o que provoca estranhamento e até agressividade
vindos dos estadunidenses, sobretudo brancos (RELPH, 1977). Na série
televisiva esses elementos e conflitos são explorados, de forma que a
representação midiática tanto do romance histórico, como do processo histórico
deste local, é divulgada para o público.

62
Tendo isso em vista, pretendo discutir como a série faz uma representação
desse “lugar do imigrante chinês” nos Estados Unidos da América, e como
essa representação pode ser mobilizada para combater a xenofobia e
estereótipos racistas acerca de imigrantes do leste asiático na atualidade.
Assim, essa “Chinatown imaginária”, ou seja, aquela que é representada na
série torna-se um objeto de estudos interessante para o campo da História. A
série, por mais que seja uma produção midiática estadunidense, é baseada nos
romances de um sino-estadunidense, que morou em Chinatown e que
procurava divulgar a história de outros imigrantes como ele (RAMOS, 2023).
Portanto, mobilizá-la, também é uma forma de valorizar a produção de um
imigrante chinês, de sua prole e da equipe, majoritariamente formada por
descendentes de imigrantes do Leste asiático.

Em “Warrior”, temas como a xenofobia, a perseguição e violência contra a etnia


amarela são recorrentes, seja no cotidiano dos imigrantes que vivem
aglutinados em Chinatown, seja no campo político, em que agentes criam leis
cerceando a liberdade e os direitos desses “outros”. A “São Francisco
imaginária” dos anos finais do século XIX, é constantemente violentada pelas
autoridades do Estado, por grupos extremistas, e por sua própria violência
interna representada pelas gangues [Tongs]; paralelamente a isso, esse se
mostra um espaço de riqueza, tanto cultural quanto material.

O espaço e os homens e mulheres desse espaço representativo, ou seja, de


como Bruce Lee concebeu a São Francisco dos anos finais do século XIX, e de
como Tropper e demais roteiristas adaptaram esses textos é uma interpretação
que cria e recria esse local do passado. Assim, nesse “esforço para descrever
as pessoas, lugares, eventos e assim por diante irá moldá-los inevitavelmente.”
(TALLY, 2019). A série de tv, portanto não é um reflexo dessa espacialidade do
passado, contudo, é um objeto midiático que se baseia neste e o recria.

No que concerne ao autor do romance histórico que é basilar para o roteiro, o


professor Wu da Universidade Nacional de Chengchi, denota que Bruce Lee
por meio de entrevistas e produções cinematográficas procurou subverter a
visão xenofóbica e racista que muitos estadunidenses possuíam acerca dos
imigrantes chineses. Segundo Wu, Lee ia contra as teorias racistas que
criavam uma imagem dos chineses como incapazes de exercícios físicos
vigorosos, capacidades de raciocínio e até higiene semelhante à dos europeus
e caucasianos no geral. Em seus filmes, sobretudo aqueles associados as
equipes de gravação de Hong Kong, o artista procurou retratar a si e outros
chineses, como poderosos lutadores, sábios e em alguns casos quase
indestrutíveis, afinal na visão de Lee o Kung Fu era a arte marcial suprema
(WU, 2016). Na série, a arte marcial também é um elemento constante, e
muitas vezes enfatiza sua eficiência como ferramenta para combater a
opressão dos estadunidenses brancos dentro de Chinatown.

A discussão de Wu corrobora com a construção deste trabalho, pois denota


que desde os “textos de base” que inspiraram a série, há um teor de subverter
a visão racista ocidental quanto aos chineses. Dito isto, farei um breve resumo

63
da narrativa “Warrior”: a série televisiva é um drama com diversas cenas de
ação que se propõe e representar as guerras de gangues chinesas em São
Francisco na segunda metade do século XIX, a chamada “Tong war”. O
protagonista da série, Ah Sahm, é construído como um prodígio do Kung Fu
que imigra da China para os Estados Unidos. Nas américas, o jovem se une a
uma das principais gangues de Chinatown em São Francisco, a Hop Wei
(RAMOS, 2023). Nesse contexto, o bairro é apresentado, tanto pela visão das
gangues, como também de outros núcleos, seja dos comerciantes, das
prostitutas, vendedores e viciados em ópio, policiais, figuras políticas e demais
cidadãos.

Apesar da simplificação feita nesse resumo, ressalto que em meio a sangrenta


guerra de gangues, a série trás a problematização do racismo estrutural, da
discriminação violenta, linchamentos, desigualdade social, machismo e a
política estadunidense do período. Os personagens chineses, fogem tanto dos
estereótipos do “terror amarelo”, quanto dos relacionados a teorias do
darwinismo social, que já vinham sendo criticados pelo próprio Bruce Lee.

Na série, Chinatown também aparece como um lar, um espaço que sofre com
a violência interna e externa, mas que paralelamente se mostra o local mais
seguro para esses imigrantes. São numerosos os personagens que declaram
isso, desde Ah Toy, dona de um prostíbulo e exímia artista marcial, até
figurantes que representam pequenos comerciantes, o medo de sair do bairro
impera. O próprio Ah Sahm rapidamente se apega a este local, e o declara
como “seu lugar”. Segundo, Edward Relph, pessoas que estão imigrando
podem ser “capazes de alcançar muito rapidamente um apego a novos
lugares”, em parte porque as paisagens são semelhantes a outras já
conhecidas (RELPH, 1977), ou seja, por mais que seja diferente, a “Chinatow
imaginária” se mostra semelhante a localidade da China de onde o imigrante
veio originalmente. Na série, essa semelhança pode ser notada a partir da
arquitetura do bairro, da culinária, vestimentas e tantos outros aspectos.

As gangues, ou “Tongs”, tem um papel decisivo na narrativa da série, e


compõem a paisagem dessa “Chinatown imaginária”. Historicamente falando, o
professor Benjamin Chang da Universidade da Carolina do Norte, ressaltou que
essas gangues “compunham um retrato da criminalidade em Chinatown”
(CHANG, 2015). Para esse pesquisador, políticos racistas e grupos anti-
imigrantistas, argumentavam que a criminalidade estava fora de controle nas
“chinatowns” por todo os Estados Unidos devido à ação das “Tongs” e,
portanto, estas deveriam ser eliminadas.

Essa conotação negativa aparece em periódicos norte-americanos e em


discursos políticos desde o início do século XIX, em alguns casos antecedendo
ataques a estes locais de imigrantes. Risser ressalta que a impressa
estadunidense propagava por meio de cartazes e jornais a suposta falta de
higiene, saúde e caráter dos chineses de Chinatown, e espalhavam esse tipo
de anúncio dentro da própria comunidade. Os inspetores de higiene pregavam
avisos nas portas e vidraças de lojas e moradias em Chinatown, alegando que

64
o local era sujo e impróprio para o convívio, expulsando os moradores sem lhe
dar qualquer compensação e usando da força para tal (RISSE, 2012).

Essas manobras racistas, são representadas e problematizadas em “Warrior”,


tanto denotando a comunidade chinesa como vítima, quanto táticas desse
grupo para subverter as estratégias do poder que lhes oprime (CERTEAU,
1994). As gangues, muitas vezes aparecem como agentes dessas táticas,
utilizando o contrabando para burlar fiscalizações e confiscos das autoridades
do Estado. Assim como, impedindo ou minorando a violência policial dentro dos
limites de Chinatown.

Vale ressaltar que as “Tongs” estavam presentes nos Estados Unidos desde os
anos 1800 e eram tanto de etnias chinesas, diversas por sinal, como também
de outros países do leste asiático, como Tailândia e Cingapura (CHANG,
2015). Dessa forma, é possível perceber que essas gangues de fato atuaram
no território da Chinatown histórica, assim como povoam a “Chinatown
imaginária” de “Warrior”. Na série, elas servem tanto para extorquir e violentar
a própria população local, mesmo que sejam representadas como uma
“violência menor”, menos brutal do que a vinda do exterior (polícia
estadunidense, grupos de imigrantes irlandeses de extrema direita, políticos
racistas, etc.), como também para resguardar o bairro.

As ações profundamente racistas também foram representadas na série, de


forma que o expectador possa compreender que foram construções narrativas
e ações políticas para fins específicos de sujeitos que se opunham aos
imigrantes. Assim como, aparecem como impulsos violentos alimentados pela
ideologia racista que circulava nas classes baixas brancas, como no caso dos
imigrantes de irlandeses. Nesse espaço, os imigrantes chineses operavam por
meio do que Certeau denominou de tática, ou seja: “este opera no campo de
um sistema linguístico; coloca em jogo uma apropriação, ou uma reapropriação
da língua por locutores” (CERTEAU, 1994). A dificuldade na aprendizagem da
língua é um ponto trabalhado na série e constantemente mobilizado pelas
entidades racistas para o descrédito de imigrantes chineses, e sino-
estadunidenses que habitavam Chinatown. Paralelamente a isso, é possível
ver em “Warrior”, personagens como o comerciante Chao que fingem não falar
e compreender bem o inglês, para ter vantagens em negociações com os
estadunidenses brancos.

Assim, tanto pela inspiração da obra de Bruce Lee, como pela ação
contemporânea dos roteiristas e produtores, é notável que há uma crítica
contundente as noções racistas para como a etnia amarela. E em nosso
contexto atual, isso é profundamente significativo, uma vez que, ideais racistas
que muito se assemelham ao que era propagado em meados do século XIX
voltam a ser publicadas, sobretudo nas redes sociais.

A título de exemplo, trago a situação do Brasil, que recentemente viu crescer


uma onda de ataques racistas aos povos do leste asiático em decorrência de
Fake News acerca do Corona Vírus. Kahotsu, Saito e Andrade, inclusive,

65
denominam de “reedição do perigo amarelo”, os diversos casos de xenofobia
sofridos por brasileiros de descendência asiática. Segundo os autores a: “Sopa
de Wuhan” e outras produções, inclusive as jornalísticas, remetem que a
xenofobia se tornou mercadoria consumível e aparentemente gratuita
(KAHOTSU, SAITO, ANDRADE, 2021). Memes com essa temática povoam a
internet, alimentando comentários racistas, violentos e xenofóbicos.

Dessa forma, no cenário político e social brasileiro, vê-se uma problemática


que infelizmente se arrasta a séculos e se renova de acordo com os meios
midiáticos disponíveis. Se no passado, o “terror amarelo” era disposto em
cartazes, jornais e tratados pseudocientíficos, atualmente, tanto no Brasil,
quanto nos Estados Unidos, são as redes sociais e a mídia os principais
responsáveis por alimentar o monstro do racismo. Nos Estados Unidos a
situação é ainda mais dramática, segundo o Portal G1, os casos de violência
são numerosos e os principais alvos de ataques são mulheres chinesas. A
título de exemplo, é possível pensar no massacre ocorrido na Georgia em que
seis mulheres do leste asiático foram assassinadas a tiros.

As trajetórias dos personagens sino-americanos e chineses da “Chinatown


imaginária” de “Warrior” contribuem para que estereótipos negativos que ainda
são perpetuados sobre os imigrantes do leste asiático sejam pelo menos
questionados por seus espectadores. A série procura subverter e criticar, ora
de forma velada, ora explícita, o pensamento racista e xenofóbico. Nessa
representação fantasiosa do passado dos imigrantes chineses em Chinatown,
são construídas narrativas que alteram a percepção preconceituosa sobre
essas pessoas, sem necessariamente romantizá-las, ou transformá-las em
“super-heróis”, como fazia Bruce Lee em alguns de seus filmes. Além disso, a
construção do próprio local, perpassa a criação de seus autores, tanto do
próprio Bruce Lee, quanto daqueles que dão vida a série.

Sendo assim, ressalto as palavras de Tally: “conhecer um lugar é realmente


saber pouco sobre o lugar, pois seria impossível conseguir algo remotamente
que se aproximasse de uma representação completa dele” (TALLY, 2019).
Contudo isso não anula o fato de que essas representações do plano midiático
tem um valor representativo para a história, e para nossa sociedade, pois nos
leva a imaginar e problematizar esse passado que já não existe, há não ser por
meio de documentos, pesquisas históricas, ou no caso dos romances de Bruce
Lee, “em um amontoado de caixotes”.

Ao assistir “Warrior”, um estadunidense, ou um brasileiro, pode questionar, por


exemplo, diversos estereótipos debilitantes atribuídos aos chineses, pois sua
percepção é levada a lidar com outra simbologia relativa a este povo. Se no
Brasil, ideias xenofóbicas como a do “vírus chinês”, ou da ideia de que
“chineses comem quaisquer coisas”, e tantos outros disparates propagados
pela mídia e até por figuras políticas, como o ex-presidente da república Jair
Bolsonaro (CHEN, SACRAMENTO, MONARI, 2020), ainda circulam e tem
apoiadores, esses devem ser problematizados e expurgados. Para além das

66
campanhas de conscientização, séries de tv como “Warrior” podem se tornar
aliadas para botar abaixo esse tipo de concepção.

A “Chinatown imaginária” da série não aparece como um local imundo, em que


são consumidos estranhos animais silvestres, ou ainda, costumes “alienígenas”
presentes em cartilhas de “terror amarelo”. Esse é o local dos imigrantes na
série, seu lar, segundo Relph, “um lugar é essencialmente seu povo”, ou seja, a
aparência ou a paisagem são elementos que compõem este quadro, mas cuja
importância é menor diante da identificação entre semelhantes (RELPH, 1977).
Dessa forma, a Chinatown de São Francisco é representada na série como um
lugar para os imigrantes chineses, não de forma romantizada, como uma
espécie de paraíso, mas como um lar, mesmo que repleto de conflitos internos
e permeado pela pobreza.

Assim, “Warrior”, enquanto uma série televisiva pode contribuir para este
debate, seja criticando estereótipos negativos, sem ilusões excessivamente
positivas. Afinal, seus personagens asiáticos aparecem tanto em papéis de
“mocinhos” como de “vilões”, inclusive o protagonista, um gangster, passeia
entre esses extremos. Se pensarmos no passado, no caso do próprio Bruce
Lee em seus filmes, a forma de lutar contra os estereótipos negativos era
justamente construir novos estereótipos de cunho positivo, que na atualidade
também são problematizados pelo público, pesquisadores e críticos.

Em “Warrior” a “Chinatown imaginada” se tornou o lar dos imigrantes chineses,


um espaço de vivência e desafios, que transita entre a segurança e
insegurança. Lá os imigrantes chineses mobilizam táticas para lidar com as
estratégias do sistema do Estado e dos estadunidenses brancos, combatendo
o ódio alimentado pelo racismo e xenofobia, para sobreviver. Essa
representação histórica e espacial, nos serve para problematizar o passado, e
pensar como esse produto midiático pode contribuir no debate atual para
minorar e quebrar pensamentos e ações xenofóbicas e racistas contra a
comunidade sino-brasileira e sino-estadunidense.

Referências
Mestre Krishna Luchetti é professora de História no Ensino Básico, e
pesquisadora na base de pesquisa Teoria da História, Historiografia e História
dos Espaços da UFRN.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. In: As artes de fazer.


Petrópolis: Vozes, 1994.

CHANG, B. Chinatown gangs in the United States. In: J.H.X. Lee (Ed.), Chinese
Americans: The history and culture of a people. Santa Barbara: ABC-CLIO,
2015.

CHEN, XueWu. MONARI, Ana C.P. SACRAMENTO, Igor. O vírus do morcego:


fake News e estereotipagem dos hábitos alimentares chineses no contexto do
covid-19. Comunicação e Inovação, v.21, n°47, São Caetano do Sul, 2020.

67
Dados da violência contra pessoas do Leste Asiático nos EUA. Disponível em <
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/17/estados-unidos-registram-
milhares-de-ataques-a-asiaticos-durante-pandemia.ghtml> acessado em 11 de
julho de 2023.

KOHATSU, Lineu N. SAITO, Gabriel K. ANDRADE, Patrícia F. Imigração, mídia


e xenofobia: a ameaça imaginária em questão. In: Teoria crítica, violência e
resistência. São Paulo: Blucher, 2021.

RAMOS, Dino-Ray. Shannon Lee Talks ‘Warrior’ And How Hollywood Honors
And Exploits Her Father’s Legacy. Disponível em
<https://deadline.com/2019/06/shannon-lee-bruce-lee-warrior-interview-
cinemax-1202622774/> acessado em 06 de julho de 2023.

RELPH, Edward. Place and placelessness. London: Pion Limited, 1977.

RISSE, Guenter B. Plague, fear, and politics in San Francisco’s Chinatown.


Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2012.

TALLY JR. Robert T. Topophrenia: Place, Narrative, and the Spatial


Imagination. Indiana: Indiana University Press, 2019.

WU, Min-Hua. Confronting Orientalism with Cinematic Art: Cultural


Representation in Bruce Lee’s The Way of the Dragon. Intergrams: Studies in
Languages & Literatures, No.16.2, 2016.

68
GEN, O TRIGO VERDE DE HIROSHIMA: MEMÓRIAS DO PÓS-
GUERRA ENTRE REPRESENTAÇÕES E NARRATIVAS (1973 –
1985), por Lucas Ciamariconi Munhóz

A Segunda Guerra Mundial foi encerrada com o lançamento de armas


nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, com a rendição japonesa
oficializada pela Declaração de Postdam em julho de 1945 e pela ocupação
americana em território nipônico. O pós-guerra japonês foi ambientado por um
discurso pacifista e progressista, entretanto, estruturado por uma historiografia
negacionista que silenciava os corpos pulverizados pelas duas bombas
atômicas, assim como ocultava o passado obscuro e recente do imperialismo
japonês. Essa narrativa foi trazida a cabo em comunhão pelos governos
americano e japonês, estruturada não apenas por dispositivos acadêmicos e
políticos, mas também por veículos culturais, de comunicação de massa, pela
imposição da censura e pela construção de uma memória alinhada ao novo
modelo de nação propagado durante o período.

Como consequência desses desdobramentos, observa-se não apenas uma


ruptura com o passado, mas também uma ruptura com a identidade cultural
japonesa predominante naquele momento. A veloz e ríspida transição
alavancada pelo fim da guerra e pelas novas narrativas levou a nação japonesa
a um processo voluntário de esquecimento e ocultação de suas memórias e
perdas, apesar de, como pontua o historiador Yoshikuni Igarashi, elas serem
elementos fundamentais na construção da nova identidade cultural
apresentada pelo pós-guerra. O autor aprofunda:

“O Japão do pós-guerra naturalizou a ausência e o silêncio do passado ao


erradicar sua própria luta para lidar com suas memórias. Pode parecer que a
sociedade do pós-guerra facilmente deixou suas experiências para trás na
busca por sucesso econômico. Entretanto, o progresso atual de esquecimento
da perda não foi fácil: isto envolveu uma luta constante para transformar as
memórias de guerra em uma forma nostálgica e benigna.” [IGARASHI, 2011, p.
40]

A censura e o controle dos meios de comunicação e informação no pós-guerra


imediato buscavam suprimir qualquer discurso que fosse crítico e subversivo
ao novo modelo de nação, e assim, muitas das produções culturais e
acadêmicas que se orientassem nesse sentido, eram rapidamente rejeitadas e
reprimidas. Dessa maneira, a narrativa gerada em cooperação entre Estados
Unidos e Japão, buscava tornar aceitáveis os acontecimentos das bombas
atômicas e a rápida transição de relacionamento entre as duas nações, outrora
inimigas, agora aliadas, num vínculo que inverteu os ideais do imperialismo
japonês, onde o colonizador passa a ter o status de colonizado. A empreitada

69
imperialista japonesa e as vítimas das bombas atômicas foram propositalmente
esquecidas, deixando espaço apenas para as memórias e corpos japoneses
que confirmassem a narrativa oficial construída.

É nesse cenário de disputa pelo passado que o Japão se reestrutura durante o


pós-guerra, gerando consequências refletidas no presente. Os discursos
negacionistas ainda possuem espaço no meio acadêmico, assim como são
operados pela política conservadora predominante no país. No entanto,
produções críticas frente a esse discurso são muito mais presentes e aceitas,
bem como se internacionalizaram e se complexificaram ao longo do tempo.

No ano de 1973, vinte e oito anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, é
iniciada a publicação de はだしのゲン Hadashi no Gen, mangá criado pelo
quadrinista Keiji Nakazawa, sobrevivente e testemunha direta da explosão da
bomba atômica na cidade de Hiroshima. A narrativa sequencial gira em torno
do personagem Gen, um menino de cinco anos que sobrevive a explosão da
bomba, e perde toda sua família, exceto pela sua mãe e dois de seus irmãos
mais velhos. Nakazawa representa com detalhes os meses finais da guerra e
os anos seguintes que denominam o pós-guerra.

A trama se encerra após doze anos de publicação, no ano de 1985, com o


décimo volume, momento em que o personagem Gen se muda para Tóquio,
em busca de se tornar um quadrinista. Apesar da arte sequencial do autor não
ser uma fonte essencialmente acadêmica, é uma contribuição importante para
o debate acerca da construção da memória do pós-guerra, levando em
consideração que representa um evento historicamente relevante, também
fundamentado nas memórias pessoais selecionadas pelo autor. Acima de tudo,
Gen Pés Descalços é o relato de uma testemunha sobrevivente do evento
nuclear em Hiroshima. Para muitos, o mangá é considerado um relato
autobiográfico e um signo da luta contra o negacionismo no Japão. Para a
historiadora Hillary L. Chute, a narrativa sequencial de Nakazawa teria
inaugurado o gênero de mangá-documentário.

Hadashi no Gen fez muito sucesso no Japão, assim como em vários outros
países, incluso o Brasil. Sabe-se que chegou as prateleiras das escolas
japonesas e por lá permanece até o presente. Entretanto, a presença da obra
no meio escolar e cultural, não agrada grupos políticos conservadores atuantes
no país há vários anos. Dos fatos que foram possíveis levantar, vale citar dois
acontecimentos separados geograficamente e temporalmente, mas que
confluem para uma mesma situação: a presença do negacionismo nos meios
políticos e acadêmicos japoneses.

A primeira polêmica envolvendo Gen acontece em Matsue, a sudoeste do


arquipélago, no ano de 2013. O Conselho Escolar Municipal decidiu retirá-lo
das bibliotecas escolares, após uma avalanche de cartas direcionando críticas
ao antimilitarismo promovido pelo autor, e pela sua abordagem perante as
ações imperialistas na Ásia, principalmente na China e Coréia. Contudo, a
medida não durou muito, e em cerca de dois meses a maioria dos diretores

70
escolares da cidade se manifestaram contrários a decisão. A obra permaneceu
onde estavam apesar de ficar a cargo de cada diretor decidir se ia restringir ou
não o seu acesso. Segundo a pesquisadora Janaína de Paula do Espírito
Santo esse evento:

“[...] representa um eco da resistência nacionalista que, por vezes, acompanha


a obra em questão e outros mangás e livros que optam por uma abordagem
questionadora frente ao exército japonês ou a participação nipônica na
Segunda Guerra Mundial, bem como no período anterior a ela. De fato, no
período de publicação, a opção de Nakazawa de apontar o papel central do
militarismo e do nacionalismo japonês ia na contramão de um certo
conservadorismo político, que marcou a explicação mais cara aos historiadores
japoneses, entre as décadas de 1960 e 1980, centrada em uma afirmação do
papel do Japão como uma grande vítima do conflito mundial.” [SANTO, 2016,
p. 55]

Em segundo, é imperativo expor o recente ataque a obra, desta vez ocorrido na


cidade de Hiroshima, no final de março de 2023. A Secretaria de Educação da
Prefeitura anunciou que irá retirar Gen Pés Descalços dos materiais do
Programa de Educação pela Paz, conteúdo voltado para o Ensino
Fundamental. Entre os argumentos, citam a falta de tempo para abordar em
sala e a desconexão entre o evento nuclear e a realidade das crianças. O
mangá também foi acusado de possuir um viés ideológico que privilegia
apenas um lado, e que esses materiais deveriam prezar pela neutralidade
política. O caso revoltou um grupo de japoneses e ganhou atenção da mídia
após uma petição para vetar a ação ter sido assinada por mais de 55 mil
pessoas. Ambos exemplos levantam a suspeita não apenas de um eco
nacionalista, mas a da manutenção do discurso negacionista presente desde o
pós-guerra imediato, que é reinventado e reapresentado de acordo com as
especificidades da temporalidade em que está inserido.

Gen Pés Descalços chegou a ser publicado por diversas revistas, mas
principalmente pela revista 週刊少年ジャンプ Shūkan Shōnen Janpu. Chegou
aos leitores pela primeira vez em formato semanal, e após obter certo alcance,
foi reeditado e publicado em dez volumes comemorativos, os chamados
Tankobon. A fama do mangá de Keiji Nakazawa o levou a ser adaptado em
outros gêneros culturais. Entre 1976 e 1980 foram produzidas três Live Actions
pelo diretor Tengo Yamada. Também foram feitos dois longas-metragens em
formato de animês pelo estúdio 株式会社マッドハウス Kabushiki-gaisha
Maddohausu entre 1983 e 1986. Nakazawa também produziu conteúdo extra
em algumas Light Novels, e o mangá chegou a ser transformado em ópera e
musical.

O mangá de Keiji Nakazawa é o testemunho de um sobrevivente da


devastação nuclear em Hiroshima. O autor não somente sobreviveu a guerra,
mas carregou o peso e o trauma de ser um Hibakusha (sobrevivente da
bomba). Após a morte de sua mãe em 1966, causada por leucemia e pela
longa exposição a radiação no período pós-guerra, Nakazawa decide então

71
expor e relatar suas memórias. Gen é uma obra densa, composta por dez
volumes, totalizando mais de 2 mil páginas. Em seu âmago, encontramos uma
produção cultural, de ficção, mas que se assemelha fortemente com a vida e as
agruras vividas de seu autor, narrando memórias, pensamentos, situações.
Mas que de forma alguma se limita a uma narração rasa de memórias e fatos
históricos. Hadashi no Gen é claramente uma produção que se encontra no
extremo oposto do negacionismo e das narrativas oficiais propagadas durante
o pós-guerra japonês, e que ainda são presentes na historiografia, seja na
temática em análise, seja em outras temporalidades e situações.

O posicionamento de Nakazawa é transparente e direto, de essência


antimilitarista, declaradamente pacifista e contrário as ações perversas tanto
dos Estados Unidos, quanto as do imperialismo japonês. Apesar de sua
narrativa ser focada nos meses finais da guerra, e na sobrevivência do
personagem durante o pós-guerra, descortina um passado e as memórias
ocultadas ativamente durante o período. Apesar de ter sido produzido quase
trinta anos após a guerra, expor os efeitos das bombas de forma explícita, e
tocar em assuntos não cicatrizados como os crimes e as atrocidades cometidas
pelo império japonês em suas empreitadas coloniais era algo inédito e
delicado, afinal, essas mesmas memórias, esses mesmos fatos, já haviam sido
retirados a força da identidade nacional e de seu passado recosturado após a
guerra.

Em síntese, a arte sequencial de Keiji Nakazawa é composta por suas


memórias individuais e coletivas, seus traumas, seus sonhos, sua esperança,
esperança de que o futuro da nação japonesa fosse algo parecido com o
plantio do trigo, que é pisoteado, esmagado, e que, apesar de seu sofrimento,
cresce forte e imponente. Por um lado, o mangá nos desperta sentimentos e
ideais mais subjetivos, como por exemplo o ideal de paz do autor, e a
esperança na nação japonesa e nas futuras gerações, um verdadeiro grito
daqueles que por muito tempo foram silenciados. Por outro, nos faz refletir
acerca dos processos de construção de memória e de representação de
eventos e recortes temporais e históricos relevantes, que como corpos vivos,
entram constantemente em embates e disputas, e que nunca se cristalizam no
tempo. A memória se reinventa, se recicla, é sobreposta, costurada, em
constante transformação, para o bem ou para o mal. Acerca dessa questão, o
historiador Michael Pollak nos esclarece:

“A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações


do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos [...] clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para
manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade,
para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as
oposições irredutíveis.” [POLLAK, 1989, p. 7]

72
Nesse sentido, Gen Pés Descalços, ao meu ver, é uma obra essencialmente
relevante no campo historiográfico, legitimando a necessidade de sua análise
ser feita a partir do método e da lógica da ciência histórica, que em nosso caso,
se liga ao meio da memória e das imagens. A narrativa apresentada pelo autor,
como bem já avisamos, é contrária ao discurso oficial propagado e ao viés
negacionista, que oculta e apaga crimes de guerra de ambos os lados, mas
que também contribuiu para a auto vitimização do povo japonês, apagando por
exemplo, as ações do imperador Hiroito, concentrado a culpa do fiasco colonial
e de guerra apenas aos militares japoneses.

No que diz respeito a construção de memórias, representações e narrativas,


Gen Pés Descalços se torna relevante não só pelo seu conteúdo em si, mas
por ser um signo, um símbolo do passado que a política conservadora
japonesa insiste tanto em ocultar até o presente. A disputa discursiva pelo
passado, tal qual fala Pollak, se faz presente no arquipélago nipônico, e,
apesar dos dias de censura terem cessado, a obra parece longe de alcançar o
ideal de seu autor, e de ser legitimada politica e historicamente como uma
parte do passado imperialista e de guerra do Japão.

Os ataques recentes ao mangá exemplificam o eco nacionalista que Janaína


de Paula nos avisa em seu texto, e que ainda perseguem obras e produções
que buscam dar voz aos corpos e as memórias silenciadas durante o pós-
guerra. A disputa pelo passado é feita de diferentes maneiras, e os ataques a
Gen nos mostra como o mangá é um meio de comunicação solidificado e
extremamente relevante e importante, tanto no Japão, quanto no mundo.
Lutemos com as armas que temos, o negacionismo político e histórico não
deve ser aceito e nem legitimado, para que talvez, num futuro não tão próximo,
os sonhos de paz mais utópicos de Nakazawa, se tornem realidade.

Referências
Lucas Ciamariconi Munhóz é graduado em História e mestrando em História
Social pela Universidade Estadual de Londrina. É membro do Laboratório de
Pesquisa de Culturas Orientais (LAPÉCO), e atua como revisor de provas no
periódico semestral Prajna: Revista de Culturas Orientais.

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na cultura


japonesa (1945 – 1970). São Paulo: Annablume, 2011.

NAKAZAWA, Keiji. Hadashi no Gen. vol. 1 – 10. Tóquio: Chuokoron Shinsha


Chuko Bunko, 2001.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro: Estudos


Históricos, v.2, n. 3, p. 3 – 15, 1989.

SANTO, Janaína. Gen Pés Descalços e o nacionalismo japonês: interseções.


In: PATSCHIKI, Lucas; SMANIOTTO, Marcos; BARBOSA, Jefferson (Orgs.).
Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Goiânia: Edições
Gárgula, p. 53 – 76, 2016.

73
CONVERGÊNCIA DA ESTÉTICA DOS MANGÁS EM AUTORIAS
AFRICANAS: UM BREVE EXAME DO UNIVERSO HÍBRIDO DE
JUNI BA, por Márcio dos Santos Rodrigues

A popularidade dos mangás – ou seja, dos quadrinhos japoneses – tem se


expandido ao redor do mundo nas últimas décadas, em razão de suas
adaptações em outras mídias como animes, games e filmes live-action, além
da disponibilidade cada vez maior de títulos traduzidos e digitalizados para o
consumo internacional. Num cenário cada vez mais globalizado como o
contemporâneo, com seus dispositivos e mecanismos de circulação de
produtos culturais em nível transnacional, os mangás encontraram espaço para
se disseminar. Autores como Frederik L. Schodt, que com seu Manga! Manga!:
The World of Japanese Comics (1983) foi um dos primeiros estudiosos a
explorar em profundidade o fenômeno dos quadrinhos (também chamados de
HQs) fora do Japão, e Marc Steinberg, com sua obra “Anime's Media Mix:
Franchising Toys and Characters in Japan” (2012), já haviam destacado o
papel das produções japonesas na formação de uma estética visual e narrativa
que, embora profundamente enraizada em sua cultura de origem, seriam capaz
de transcender barreiras culturais e linguísticas para encontrar ressonância em
públicos diversos em todo o mundo. Steinberg ressaltou, particularmente, o
papel dos mangás como mercadoria cultural global, situando-os dentro de um
ecossistema maior de media mix que inclui anime, videogames, brinquedos e
outros produtos.

Em diferentes países de África, artistas estão e têm dialogado com esse


ecossistema examinado por Steinberg, criando obras que combinam elementos
estilísticos e narrativos dos mangás com temas e contextos africanos, em um
processo marcado por hibridismos culturais. Quadrinistas que vivem fora do
continente também têm contribuído significativamente para este processo,
trazendo suas experiências pessoais, culturais e diaspóricas para suas obras.
Aqui pode-se evocar Néstor García Canclini, antropólogo e teórico cultural
argentino, que com “Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da
Modernidade” (1990) discutiu os processos de hibridização cultural, similares
aos que podemos ver no caso de produções genericamente chamadas de
“mangafrica” – termo que correlaciona mangá e África. Por culturas híbridas,
Canclini se refere à mistura de diferentes tradições culturais em um novo
produto ou forma cultural, um fenômeno que é amplamente observado em um
mundo globalizado, onde os fluxos culturais não são mais limitados por
fronteiras geográficas. A ideia central é que as culturas não são estáticas e
puras, mas sim dinâmicas e influenciadas por trocas constantes. O mangafrica
é um exemplo perfeito de como culturas podem surgir e se desenvolver em um
contexto de intercâmbio cultural.

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Global Manga: “Japanese” Comics without Japan? (2015), organizado pela
pesquisadora Casey Brienza, é outra obra fundamental que nos ajuda a
entender a dimensão de hibridismos em torno das HQs oriundas do Japão.
Este livro explora como os mangás se transformaram em um produto global,
com artistas e fãs em todo o mundo recriando e reinterpretando este estilo de
arte de modo a expressar seus contextos culturais. Desfilavam nas páginas do
livro organizado por Brienza temas como a influência do manga na cultura
feminina na América do Norte (p.23-44); as negociações de diferenças culturais
em obras como Scott Pilgrim e MANGAMAN; as dimensões híbridas do
“euromanga” (p.75-93), as questões étnico-raciais envolvendo o fandom de
anime e mangás nos Estados Unidos (p.95-113), o movimento da Nouvelle
Manga na França (p.115-132), a moda gótica nos mangás alemães (p.147-
166), as narrativas da apropriação pela Marvel Comics (p.167-184), e o mangá
na indústria de quadrinhos das Filipinas (p.185-199). Há inclusive um capítulo
curtíssimo de pesquisadores do Observatório de Quadrinhos da USP sobre o
estilo e produção de mangá no Brasil (p. 45-54), que, em minha opinião,
careceria de uma abordagem mais aprofundada sobre o impacto dos mangás
na cultura de HQs brasileira, considerando a crescente popularidade, aspectos
de hibridismos e não se deter tanto em ídolos de origem para a criação de
quadrinhos brasileiros em estilo mangá. Nesse livro não há um capítulo
específico dedicado à influência dos mangás na produção de obras em
contextos africanos. As menções sobre o continente na obra são tão-somente
breves, pontuais, e, por vezes, tomam África como se fosse um país. Diante
dessa lacuna, este texto coloca a necessidade de se estudar os processos de
circulação e recepção de mangás entre autores ditos africanos.

Tal fenômeno, acredito, deve ser estudado tendo em conta o caráter


afropolitanista desses artistas, isto é, a predisposição deles de se engajar
ativamente em trocas culturais globais. Ao adotarem e reinterpretarem o estilo
dos mangás estão consumindo referências externas e, simultaneamente,
redefinindo o que significa ser um artista de quadrinhos africano na era
globalizada. Esta perspectiva afropolitanista enfatiza a flexibilidade cultural, a
mobilidade e o hibridismo. Mbembe trata disso, através do conceito de
“afropolitanismo”, formulado inclusive por ele, para defender a ideia de que a
identidade africana moderna é moldada por uma confluência de culturas,
histórias e experiências de vida tanto dentro como fora do continente africano.
O conceito, como Mbembe descreve, surge como uma rejeição do localismo
restrito para afirmar África como parte integrante do mundo contemporâneo,
não isolada ou à margem, mas em constante diálogo e intercâmbio com outras
culturas. Nessa perspectiva, os artistas africanos que incorporam estilos de
mangá em suas obras não estão simplesmente imitando uma forma de arte
estrangeira, mas participando ativamente de um diálogo cultural global,
redefinindo e enriquecendo tanto o campo do mangá quanto das HQs a partir
de uma perspectiva africana.

Problematizando a ideia de mangá africano


Aqui não se defende a ideia de mangá africano, tampouco a ideia de que
autores estariam fazendo uma cópia ou imitação de produções do Japão, mas

75
sim como uma fusão de elementos da cultura africana com repertórios dos
quadrinhos japoneses configura algo novo, híbrido. A própria ideia de mangá
africano deve ser entendida com ressalvas, de forma a não reificar
categorizações estanques ou exotizar essa produção. Deste modo, aciono
novamente aqui as ideias de Cancllini sobre hibridismo cultural e as
contribuições que esse fenômeno traz para a construção de identidades
múltiplas e em constante diálogo. Ao rejeitar o conceito de “mangá africano”,
reafirmo a importância da nuance, do contexto e da individualidade na criação
artística, reconhecendo que os artistas africanos que utilizam elementos do
mangá estão criando obras que são ao mesmo tempo pessoais e universais,
africanas e globais.

Eventualmente, é possível ver tentativas de enquadrar todas as produções em


quadrinhos africanas que se inspiram no mangá japonês sob o rótulo de
“mangafrica”, o que, a meu ver, conduz a uma visão simplista e generalizante.
Se utilizo aqui mangrafrica é justamente como categoria nativa, como um termo
de conveniência, sem, no entanto, me limitar a essa definição e reconhecendo
a singularidade de cada obra e autor.

Para este texto, discutirei o trabalho de um quadrinista que tem navegado


nessa intersecção de influências de maneira particularmente interessante: Juni
Ba, artista senegalês radicado na França. Ba, que nasceu em 1992, vem
ganhando reconhecimento internacional por sua arte que combina uma ampla
variedade de influências, não apenas do mangá japonês, mas dos quadrinhos
em geral. Ele é um dos tantos artistas que tem construído seu estilo narrativo e
visual a partir de uma mistura complexa de influências culturais diversas. Em
virtude de a exigência deste texto ter um número específico de palavras,
precisei fazer um recorte, mas nesse cenário de produções destacam-se
autores como, por exemplo, o nigeriano Huzafya Umar, conhecido
artisticamente como Zayf (autor da série Orisha), Odunze Oguguo, também
nigeriano e que responde pelo apelido Whyt Manga, e Pap Souleye Fall, artista
senegalês autor da série Oblivion Rouge. Os três têm seus trabalhos
publicados na plataforma Saturday AM, uma revista digital de mangá, que
publica trabalhos de artistas de diversas partes do mundo, incluindo trabalhos
de africanos. São autores que serão discutidos em um momento futuro, quem
sabe em outra edição deste simpósio ou mesmo em um artigo mais extenso.
Por enquanto, me concentrarei no estudo de produções de Juni Ba, cujo
trabalho apresenta esse componente de diálogo com diversas influências
artísticas e culturais que atravessam fronteiras geográficas.

A convergência de culturas em obras de Juni Ba


Radicado atualmente em Montpellier, na França, Juni Ba tem se dedicado a
projetos variados, da ilustração para campanhas publicitárias até a criação de
obras seriadas e graphic novels (em português, romances gráficos) de sua
própria autoria, da criação de capas para livros infantis a trabalhos como
ilustrador freelancer para revistas em quadrinhos nos Estados Unidos. A
publicação de Djeliya, seu primeiro romance gráfico, publicado pela TKO
Studios nos Estados Unidos, fez com que Ba se tornasse um dos jovens

76
talentos africanos mais proeminentes no cenário global dos quadrinhos. Aqui
no Brasil Djeliya teve uma versão, editada e traduzida por mim no ano de 2021.

Figura 1: Capa original de Djeliya, lançado pela TKO Studios. Fonte da


imagem: BA, Juni. Djeliya: A West African Fantasy Epic. Los Angeles: TKO
Studios, 2021.

Djeliya é uma história de fantasia épica que se passa em um universo em que


tradições orais dos djeli da África Ocidental – isto é, das figuras que atuam
como contadores de histórias, historiadores e músicos - dialogam com
elementos entendidos como futuristas, embora não se possa pensar em Djeliya
como afrofuturista. É, na verdade, africanofuturista, já que a perspectiva é
intrinsecamente africana, moldada pelas tradições, histórias e culturas do
continente. Portanto, não se limita a retratar um cenário africano influenciado
por tecnologias “avançadas”, mas retrata um futuro que é informado e moldado
pelas complexidades do passado e do presente africanos. Este termo advém
de “africanofuturismo”, cunhado pela autora nigeriana-americana Nnedi
Okorafor (2019) para distinguir a representação da África no afrofuturismo, que
frequentemente é filtrada através de uma perspectiva diaspórica e pode correr
o risco de simplificar ou generalizar as experiências africanas, e aquelas
centradas em realidades africanas contadas e formuladas por ditos africanos.

Djeliya é um exemplo de como os artistas do continente dialogam com


múltiplas referências, desde os quadrinhos estadunidenses ao mangá japonês,

77
dos seriados tokusatsu às animações do Cartoon Network (particularmente,
Samurai Jack). Em Djeliya há uma foto do próprio Ba segurando um robô
gigante de brinquedo, que faz referência ao gênero mecha dos animes
japoneses e dos seriados tokusatsu. Ao mesmo tempo em que ele se apropria
dessas referências estrangeiras, adiciona elementos culturais da África
Ocidental em suas ilustrações, como as máscaras de madeira usadas pelos
personagens. Ba, assim, cria uma história que é, ao mesmo tempo, conectada
com sua própria cultura e tradições, mas também inserida na linguagem global
das HQs. Em um de seus quadrinhos mais recentes, Monkey Meat, lançado
pela Image Comics, vemos referências às produções nipônicas de forma mais
evidente. Trata-se de uma série ambientada em uma ilha transformada em uma
realidade hiper-capitalista pela Monkey Meat Company, uma megacorporação
que fez fortuna vendendo carne processada em todo o mundo. Aqui vemos
uma crítica social aguçada disfarçada de uma história gráfica de aventura, com
cores bastante vibrantes e saturadas, que se contrapõem à narrativa por vezes
sombria.

Figura 2: Capa de Monkey Meat. Fonte da imagem: BA, Juni. Monkey Meat:
The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022.

78
Acompanhamos a vida dos habitantes dessa ilha quando eles se esforçam
para encontrar equilíbrio e felicidade em um mundo dominado não apenas por
essa grande empresa, mas também pelos desafios trazidos pelo choque de
tradições locais e modernidade forçada. Os personagens da série apresentam
características típicas das animações e dos mangás, sendo representados por
linhas expressivas e contornos fortes, além de inseridos em cenas de ação
carregadas de movimento e dinamismo. Juni Ba não é propriamente um autor
de mangafrica, mas incorpora em Monkey Meat elementos e referências diretas
ao universo dos mangás. Um exemplo evidente disso aparece no segundo
número (publicada em uma edição individual e, posteriormente, em um
compilado reunindo os volumes de 1 a 5). Abaixo vemos uma das poucas
passagens sem cor, na qual Harricot, personagem destaque da edição
(apresentado como um aficionado em mangás e vítima de bullying), aparece
segurando uma revista de King Saru:

Figura 3: Cena de Monkey Meat #2 apresentando Haricot e King Saru. Fonte


da imagem: BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image
Comics, 2022.

79
Vemos acima um quadrinho dentro de um quadrinho, um uso bem evidente do
conceito/recurso de metalinguagem, onde uma obra faz referência a outra
dentro dela mesma. Aqui King Saru é um mangá fictício dentro de Monkey
Meat. Vale mencionar que a palavra “saru” é a palavra mais comum em
japonês para “macaco”. Literalmente, o nome do personagem pode ser
traduzido como “Rei Macaco”. Temos aqui a fusão de duas palavras, sendo
uma de origem japonesa e a outra em inglês, do idioma em que a obra é
apresentada, criando um diálogo intercultural dentro da própria narrativa. Não
faria menor sentido algum, acredito, verter literalmente King Saru para o
português ou para qualquer outra língua, pois essa tradução eliminaria a
intenção artística e a dimensão cultural intrínsecas na escolha original do
nome. Uma simples tradução por “Rei Macaco” não consegue transmitir a
essência deste personagem, que é um ponto de convergência de culturas
distintas. Além disso, é comum vermos que no Japão mangás costumam
receber títulos com palavras em inglês (esse fenômeno, conhecido como
“Engrish”, é uma forma também de globalização).

Vale a pena ressaltar que Juni Ba, o autor, se expressa inglês, mas, como
senegalês, é um falante nativo de outros idiomas, como o francês (língua
imposta pelo colonialismo em África) ou algum idioma local do Senegal. Como
estamos diante de uma autoria que transita por diversos idiomas, estando
inserido em uma realidade multilíngue, é possível ver essa passagem e/ou
mesmo a Monkey Meat em sua totalidade como um exemplo de obra marcada
por um processo de hibridização cultural.

Sobre a representação dos macacos na cultura japonesa, cumpre dizer que


eles têm uma forte presença simbólica, associada a diversos significados e
mitologias. São figuras proeminentes na religião, folclore e arte japoneses,
figurando também em expressões idiomáticas. Há um provérbio pictórico
japonês sobre a figura de três macacos sábios: “Não veja o mal, não ouça o
mal, não fale o mal”. Um deles, Mizaru, não vê o mal por preferir cobrir os
olhos; Kikazaru, por sua vez, ouve o mal, mas, imprudente, cobre os ouvidos;
e, por fim, Iwazaru, que não fala o mal, mas cobre a boca. É um provérbio que
ensina que o mal deve ser, em qualquer hipótese, evitado ou mesmo ignorado.
Acredita-se que esse provérbio seja de origem chinesa, tendo chegado ao
Japão a partir de lendas do budismo Tendai do século VIII. A frase também
existe em versões chinesas e possui sentidos semelhantes. No original, se vê
um jogo de palavras entre verbos e o termo “saru” (macaco). Há ainda no
contexto japonês o provérbio “Saru mo ki kara ochiru” (猿も木から落ちる), que
significa literalmente “Até mesmo macacos caem de árvores”, sendo usado
para expressar que até mesmo pessoas habilidosas cometem erros.

Ba, através do King Saru, evoca personagens como Uzumaki Naruto


(うずまきナルト) e o Rei Macaco, personagem de Jornada ao Oeste 西|遊|記,
um romance chinês do século XVI. Comecemos pelo Rei Macaco ou melhor,
por Sun Wukong (孫悟空). Trata-se de um personagem conhecido por sua
astúcia e habilidades mágicas, frequentemente retratado em mangás e animes,
como, por exemplo, Dragon Ball, onde o personagem Son Goku (孫 悟空) é

80
inspirado em Sun Wukong. Inclusive, o protagonista de Dragon Ball tem um
bastão chamado Nyoibō, semelhante ao Ruyi Jingu Bang de Sun Wukong.
Assim como o cajado do Rei Macaco, o Nyoibō também possui propriedades
mágicas e é capaz de se estender e encolher à vontade de Goku. Goku ainda
se transforma na forma oozaru – isto é, um gigantesco macaco - quando a lua
cheia está presente. Nas mãos do King Saru de Monkey Meat vemos também
um bastão, um possível aceno ao objeto mágico de Sun Wukong e Goku,
reforçando a conexão simbólica entre os macacos e esses personagens de
histórias famosas.

Naruto, por sua vez, é o protagonista da série de mangá homônima


escrita e ilustrada por Kishimoto Masashi (岸本 斉史). Se observarmos a
bandana que King Saru usa (Figura 3), a referência ao jovem ninja de Konoha,
a Vila Oculta da Folha, se torna um tanto óbvia. É possível notar uma
semelhança visual com a bandana usada por Naruto (Figura 4). Ao invés do
símbolo de uma folha, encontramos na de King Saru o emblema de uma
nuvem. Na capa da primeira edição de Naruto, nuvens surgem como um
elemento decorativo. Já na representação de Ba elas aludem a um simbolismo
que atravessa diferentes contextos culturais e literários. Na Jornada ao Oeste,
Sun Wukong é muitas vezes retratado voando sobre as nuvens. Por isso, a
nuvem na bandana não é apenas uma simples homenagem a uma obra
contemporânea de mangá, mas também uma referência à clássica literatura
chinesa.

81
Figura 4: Capa da edição #1 de Naruto, publicada originalmente pela Shueisha
no Japão, em 1999. Fonte de imagem: KISHIMOTO, Masashi. Naruto #1.
Tokyo: Shueisha, 1999. (Coleção Weekly Shōnen Jump)

Ba hibridiza esses diferentes personagens para para trazer à tona, mesmo que
de forma não intencional, o impacto de produções japonesas no seu trabalho e
na cultura de entretenimento em geral. A edição #2 é em grande parte em preto
e branco, o que se justifica por ser uma homenagem aos mangás, uma das
principais influências de Ba. A própria capa de Monkey Meat #2 também se
conecta com a estética atribuída aos mangás, apresentando Harricot com as
mãos emanando energia, algo bastante comum em produções shounen
(aqueles entendidos genericamente como destinados “para meninos”).

Figura 5: capa da edição #2 de Monkey Meat. Fonte de imagem: BA, Juni.


Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022.

82
Nessa edição em particular de Monkey Meat, Ba cria uma ponte com o
universo dos mangás, incorporando referências visuais e temáticas de
produções bastante populares. O design tanto de King Saru quanto de Haricot,
por exemplo, não é apenas uma homenagem aos personagens clássicos de
mangás “de lutinha”, com suas poses dinâmicas e expressões exageradas. Ele
evidencia como influências podem se cruzar, se mesclar e se reinventar para
configurar novos templos simbólicos.

Essa conexão com a estética de mangás permite que Ba explore e expanda as


possibilidades de sua arte, oferecendo um elemento visualmente atrativo para
as suas histórias. Muito antes de Djeliya, a mistura de influências culturais é
uma característica que se faz presente em seus trabalhos. É possível ver essa
faceta em Kayin and Abeni - Afro Space Adventures, uma espécie de esboço
para Djeliya, e em trabalhos feitos para a Kugali, uma antologia panafricana
dedicada a contar histórias do continente, e Ndaw, quadrinho que lida com
aspectos comuns aos contos populares africanos, mas em uma estrutura
narrativa e visual que dialoga com influências variadas.
As referências a figuras icônicas do mangá aqui expressam a relevância de
produções do cenário oriental na cultura de entretenimento global e seu
impacto. Em síntese, a obra de Ba exemplifica a intersecção de repertórios
culturais distintos em sua arte, amalgamando elementos da cultura popular
oriental, particularmente a japonesa, com temas africanos. É, portanto, um
testemunho da transcendência das fronteiras culturais, criando uma ponte entre
o Japão e a África Ocidental e reconfigurando simbolismos através da mistura
de influências culturais.

Referências biográficas
Márcio dos Santos Rodrigues é doutorando em História pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA), na
linha de pesquisa Arte, Cultura, Religião e Linguagens. Mestre em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa 'História e
Culturas Políticas' (2011) e licenciado em História pela mesma instituição
federal (2007). Atua também como editor e tradutor de histórias em quadrinhos.
E-mail: marcio.strodrigues@gmail.com

Referências bibliográficas
BA, Juni. Djeliya: A West African Fantasy Epic. Los Angeles: TKO Studios,
2021.

BA, Juni. Djeliya: uma fantasia épica africana. Traduzido por Márcio dos Santos
Rodrigues. Florianópolis: Skript, 2021.

BA, Juni. Monkey Meat: The First Batch. Portland, OR: Image Comics, 2022.

BRIENZA, Casey (Ed.). Global Manga: “Japanese” Comics without Japan? UK:
Ashgate Publishing, Ltd., 2015.

83
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da
Modernidade. São Paulo: EdUSP, 1990.

KISHIMOTO, Masashi. Naruto #1. Tokyo: Shueisha, 1999. (Coleção Weekly


Shōnen Jump)

MBEMBE, Achille. Afropolitanismo. Áskesis-Revista des discentes do Programa


de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, v. 4, n. 2, p. 68-68, 2015.
Disponível em:
https://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/74

OKORAFOR, Nnedi. “Africanfuturism Defined.” Nnedi’s Wahala Zone Blog,


2019. Disponível em: http://nnedi.blogspot.com/2019/10/africanfuturism-
defined.html

SATURDAY-AM: https://www.saturday-am.com/

SCHODT, Frederik L. Manga! Manga!: The World of Japanese Comics. Tokyo:


Kodansha International, 1983.

STEINBERG, Marc. Anime's Media Mix: Franchising Toys and Characters in


Japan. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.

84
A EXPANSÃO DO ESTILO MUSICAL K-
POP E O ORIENTALISMO CRESCENTE, por
Maria Carolina Stelzer Campos

O debate social do orientalismo, conforme analisado por Edward Said, revela-


se de extrema importância ao examinarmos o fenômeno do K-pop e sua
expansão global. O conceito de orientalismo destaca como o Ocidente
construiu e perpetuou estereótipos e representações exóticas do Oriente,
criando uma visão distorcida dessas culturas. No contexto do K-pop, essa
construção orientalista influencia a forma como o gênero musical é percebido
no Ocidente, muitas vezes estigmatizando-o como um mundo obscuro ou
estranho. O debate social sobre o orientalismo é crucial para desafiar esses
estereótipos e promover uma compreensão mais complexa e justa do K-pop
como uma forma cultural genuína e diversificada.

O surgimento do K-Pop e a Hallyu


A expressão Hallyu tem como significado onda coreana [COSTA, 2022], esse
fenômeno possui como característica principal a distribuição pelo mundo dos
produtos culturais coreanos, como o gênero musical, k-pop ou as séries
coreanas. De acordo com o guia sobre a Hallyu, criado pelo Serviço Coreano
de Cultura e Informação “o primeiro produto sul-coreano a ter popularidade nos
países asiáticos vizinhos foram os k-dramas. Os fãs internacionais dos dramas
sul-coreanos começaram a enxergar o povo sul-coreano como educado,
generoso e sofisticado. Assim, a Hallyu passou a ser tratada não somente
como um plano lucrativo, mas também como um instrumento político poderoso
para formação de opinião sobre a Coreia do Sul.” [COSTA, 2022, p. 27]

A década de 1990 foi essencial para o desenvolvimento da “onda coreana”, e


não por coincidência foi nessa mesma década em que o estilo musical K-pop
nasce. O K-pop é um gênero musical que tem origem na Coreia do Sul e se
destaca por sua rica variedade de elementos audiovisuais, e é considerado um
gênero musical composto por vários ritmos musicais [COSTA, 2022].

O surgimento do gênero pode ser atribuído ao grupo Seo Taiji and Boys, um
dos primeiros grupos de K-pop formado em 1992. O seu estilo musical misturou
vários estilos musicais, reformulando a estrutura musical da Coreia do Sul, que
até o momento era voltada para majoritariamente para músicas que possuíam
letras de exaltação do país. O Seo Taiji and Boys trouxe consigo uma das mais
marcantes características do Kpop: o “sistema de ídolos” – que basicamente é
o ato de treinar adolescentes e jovens que desejam ingressar no meio musical
com todo aparato necessário para que eles alcancem o sucesso [CUNHA,
2013].

85
Podemos compreender como as representações do K-pop são moldadas por
discursos e narrativas que têm suas raízes em contextos históricos e culturais
específicos. Essas representações não são fixas ou imutáveis, mas sim
produtos de um processo contínuo de construção e desconstrução cultural
[CHARTIER, 1988]. Ao examinarmos a história cultural do K-pop, podemos
desvendar como as representações ocidentais e orientalistas foram forjadas ao
longo do tempo e, assim, questionar sua validade e impacto na construção da
identidade do K-pop.

Em suma, a importância do debate social do orientalismo no contexto do K-pop


reside na necessidade de questionar e desafiar as representações
estereotipadas e exóticas que podem obscurecer a complexidade e a
diversidade dessa forma cultural. Chartier [1988] nos permite compreender
como essas representações são construídas ao longo do tempo e espaço, e
como as narrativas ocidentais podem moldar nossa percepção do K-pop. Ao
considerarmos o debate social do orientalismo, podemos promover uma
compreensão mais informada e justa do K-pop como uma expressão artística
genuína e significativa que transcende fronteiras culturais.

A Representação do gênero Kpop no Ocidente


De acordo com Silva [2014], a identidade é construída através da relação com
o outro, sendo a diferença um elemento fundamental nesse processo, então
quando pensamos no K-pop e sua identidade formada no ocidente, é possível
perceber que ela acaba sendo construída baseada em uma hipotética diferença
entre a indústria cultural coreana e a indústria cultural ocidental. Construindo-se
então um processo de estigmatização do K-pop no Ocidente.

As percepções ocidentalistas e estereotipadas sobre o K-pop muitas vezes


destacam suas diferenças culturais em relação à música popular ocidental, o
que pode levar à marginalização e à visão do K-pop como um gênero musical
"estranho" ou "exótico", e seus fãs podem ser rotulados como fanáticos ou
marginais. A estigmatização do K-pop no Ocidente está enraizada nesses
preconceitos culturais e ideias estereotipadas sobre a cultura asiática. Essa
estigmatização pode ser atribuída à dinâmica de poder entre os grupos [ELIAS;
SCOTSON, 2000] estabelecidos no Ocidente, que tendem a ser dominantes
culturalmente, e o K-pop, que é visto como um gênero musical outsider em
relação ao cenário musical ocidental.

À medida que o K-pop continua a ultrapassar as fronteiras culturais e a


conquistar um público cada vez maior, sua identidade se torna mais complexa
e multifacetada. A rejeição e estigmatização enfrentadas pelo K-pop no
Ocidente não impedem sua expansão global, mas, em vez disso, tornam-se um
componente importante na formação de sua identidade única e influente na
cena musical mundial.

Essa expansão e a popularidade global do K-pop o levou a ocupar diferentes


espaços em todo o mundo, tornando-se uma força cultural transnacional,
podendo ser vista como uma forma de exercer poder cultural e influência, mas
também pode levar a delimitações e estigmatizações. O espaço, como

86
explorado no livro "História, Espaço e Geografia" de Barros [2017] é muito mais
do que um simples cenário físico; mas sim um lugar de poder e significado,
sendo construído e moldado por relações sociais, políticas e culturais, onde
ocorrem então as dinâmicas de poder.

A forma como o espaço é organizado e utilizado reflete as hierarquias e


desigualdades presentes em uma sociedade, tornando-se uma ferramenta
importante para exercer controle, influência e exclusão. O espaço pode ser
delimitado por fronteiras físicas e simbólicas, criando divisões entre diferentes
grupos sociais. Essas delimitações espaciais podem ser usadas para reforçar
estigmatizações, segregando e marginalizando aqueles que são considerados
diferentes ou desviantes das normas estabelecidas. E no contexto do mundo K-
pop, o espaço também desempenha um papel significativo nas dinâmicas de
poder e estigmatização.

O Orientalismo
O conceito de orientalismo, conforme apresentado por Edward Said, aborda as
representações e construções culturais do "Ocidente" em relação ao "Oriente".
Said argumenta que o orientalismo é uma forma de pensamento que coloca o
Ocidente como superior e o Oriente como inferior, resultando em estereótipos e
visões distorcidas dos povos orientais e de suas culturas. Essa visão
dicotômica cria uma narrativa de poder, na qual o Ocidente se posiciona como
dominante e civilizado, enquanto o Oriente é retratado como exótico e bárbaro
[SAID, 2007]. Essa perspectiva orientalista não só influenciou as relações
coloniais, mas também continua a moldar as percepções e interações entre o
Ocidente e o Oriente atualmente.

Barros [2017] acaba dialogando com o conceito de orientalismo de Said [2007],


ao abordar como o espaço geográfico é uma construção social e cultural, que
reflete relações de poder e dominação. A geografia, como disciplina
acadêmica, muitas vezes perpetuou visões eurocêntricas e ocidentalistas do
mundo, relegando outras culturas e espaços a posições subalternas. Barros
[2017] destaca como o conhecimento geográfico, ao longo da história, tem sido
utilizado para legitimar as ações coloniais e imperialistas do Ocidente,
reforçando a ideia de superioridade ocidental sobre outras culturas e territórios.
Essa geografia eurocêntrica e ocidentalista contribui para a criação de
fronteiras simbólicas e reais, que separam o "Ocidente civilizado" do "Oriente
exótico" e, assim, reforçam a narrativa orientalista de Said [2007].

Além disso, Barros [2017] também explora como o espaço é uma arena de
poder, onde se desenrolam dinâmicas de dominação, exclusão e
estigmatização. Os espaços são delimitados e organizados de acordo com
relações de poder, criando lugares de inclusão e exclusão social. Através do
orientalismo, as culturas e povos orientais são frequentemente estigmatizados
e marginalizados, sendo relegados a espaços subalternos na narrativa global.
O orientalismo contribui para a construção de uma identidade do "Outro", que é
visto como diferente e inferior [SILVA, 2014], e, consequentemente, subjugado
pelos valores e normas do Ocidente. Essa dinâmica de poder no espaço
geográfico perpetua visões distorcidas e estereotipadas das culturas orientais.

87
O sucesso global do K-pop é frequentemente retratado como um fenômeno
exótico e oriental, alinhando-se com as representações orientalistas do "Oriente
misterioso" [SAID, 2007] que fascina o Ocidente. O espaço do K-pop é
delimitado e organizado por relações de poder, onde os fãs e seguidores
ocupam um lugar de inclusão e os críticos podem estigmatizar o gênero
musical e seus artistas, encaixando-os em visões preconceituosas de uma
cultura estrangeira e inferior. A Hallyu, embora seja uma forma de expressão
cultural coreana, também é afetada pelas relações de poder e representa um
espaço onde a identidade e a diferença [SILVA, 2014] são construídas e
negociadas entre o Oriente e o Ocidente.

Em um artigo na revista “El país”, é possível analisar traços do orientalismo


presente em alguns discursos. Abaixo é possível ver alguns trechos onde se
descrevem o universo da indústria do k-pop

“Quase sem contato com o mundo exterior, ensaiavam 14 horas diárias, com
um só dia livre a cada duas semanas. A indústria do k-pop projeta uma imagem
moderna, saudável e positiva da Coreia do Sul, mas seu sistema de fabricação
de estrelas esconde contratos abusivos, a anulação do indivíduo e condições
sub-humanas.O k-pop nasceu com uma formulação quase matemática: bases
musicais sintéticas de hip hop, rock, eurodance, funk, reggae, techno, disco e
country, com sons africanos, árabes e asiáticos. Sua estética de fantasia de
animação se adaptou ao olhar lascivo do erotismo ocidental. O k-pop, um
híbrido de todos os produtos populares do planeta, é a sublimação da
globalização. Nos Estados Unidos, as estrelas nascem; na Coreia do Sul, são
fabricadas. Mas os que conseguem se formar são máquinas perfeitas de fazer
pop, com uma energia e entusiasmo que jamais fraquejam (as câmeras estão
constantemente voltadas para eles) e coreografias sincronizadas que os fazem
parecer clones digitais. ‘Costumamos praticar danças com pesos de 4 quilos
atados aos tornozelos durante dias, para assim nos acostumarmos a esse peso
e depois nossos movimentos ficarem mais leves ‘

A cantora JinE, do Oh My Girl, teve que tirar um período de descanso quando a


anorexia a levou a pesar pouco mais de 30 quilos, com altura de 1m59. Sojung,
do Ladies 'Code, disse que sua dieta diária consistia em uma laranja, 15
tomates-cereja e um pedaço de abóbora, e que fazia um ano que não
menstruava.” [SANGUINO, 2020]

Todos esses discursos trazem aspectos extremamente problemáticos na


indústria do entretenimento musical coreana, entretanto o que chama a
atenção, não são os problemas apresentados, e sim o julgamento que esses
problemas acontecem unicamente no universo do K-pop. Em especial quando
o artigo faz a comparação entre os Estados Unidos e a Coréia do Sul,
apontando que os artistas sul coreanos seriam frutos de uma máquina de
produção, e um dos argumentos seguintes para tal afirmativa, é de que os idols
coreanos participam de treinos exaustivos de canto e dança.

Um exemplo desse treinamento seria o uso de pesos nas pernas enquanto as


artistas executam seus treinamentos de dança, esse fato é apontado como um

88
ponto fora da curva e algo totalmente inesperado e ruim, entretanto é algo
extremamente comum no meio da dança, utilizado por dançarinos profissionais
e até mesmo pelos não profissionais. Nesse pequeno exemplo é possível
perceber o orientalismo e a reafirmação do Oriente como um local exótico, com
problemas exclusivamente de lá.

Em especial, outro exemplo que é interessante a observação, é a descrição de


uma idol com distúrbios alimentares, mais uma vez sendo retratado como um
problema exclusivo do mundo do k-pop, entretanto, esse é mais um problema
extremamente comum no meio do entretenimento mundial. A artista Demi
Lovato, é um exemplo no meio artista ocidental, de vários artistas que falaram
abertamente sobre como a pressão estética é extremamente forte no meio
musical e do entretenimento.

Considerações Finais

O conceito de orientalismo [SAID, 2007] nos alerta sobre a tendência do


Ocidente em construir narrativas de poder e superioridade em relação ao
Oriente, alimentando estereótipos e visões distorcidas. Essa perspectiva
orientalista tem sido historicamente utilizada para justificar a dominação
colonial e imperialista, perpetuando a ideia de que a cultura ocidental é
civilizada e avançada, enquanto a cultura oriental é exótica e inferior. No
contexto do K-pop, essa dinâmica pode ser vista quando o gênero musical é
retratado como uma forma de entretenimento estranha e exótica, reforçando
estereótipos sobre a Coreia do Sul e seus artistas.

O espaço do K-pop também é influenciado por dinâmicas de dominação e


poder, onde o gênero musical ocupa diferentes lugares de poder na narrativa
cultural global. Enquanto alguns fãs encontram identificação e pertencimento
no espaço do K-pop, outros podem estigmatizá-lo, colocando-o em um lugar
subalterno e exótico. Essas delimitações espaciais contribuem para a
perpetuação das desigualdades e injustiças, que afetam não apenas o K-pop,
mas também outras formas de expressão cultural oriundas do Oriente.]

Promover um diálogo intercultural respeitoso e inclusivo é fundamental para


combater a estigmatização e as dinâmicas de poder que afetam o K-pop e
outras formas de cultura oriental no cenário global. É necessário questionar as
representações simplistas e distorcidas, buscando compreender a
complexidade das culturas asiáticas e suas contribuições para a diversidade
cultural do mundo. E isso não significa ignorar as problemáticas e os erros
presentes, mas sim, executar as críticas sem as diferenciá-las e sem colocá-las
em um meio de estereótipos.

Ao fazermos isso, podemos valorizar a autenticidade e a originalidade do K-


pop, respeitando sua identidade e a diversidade de seus fãs em todo o mundo.
A Hallyu e o K-pop são expressões culturais influentes que transcendem
fronteiras, e é através do diálogo, e da abertura que podemos promover uma
apreciação significativa dessas formas de arte.

89
Referências
Maria Carolina Stelzer Campos é mestranda no Programa de Pós-Graduação
em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), e Licenciada em História pela UFES.

BARROS, José D’Assunção. História, espaço, geografia: diálogos


interdisciplinares. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017.

CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações.


Lisboa: Difel, 1988. (Memória e Sociedade).

COSTA, Larissa G. Silva. Mídias sociais e Hallyu: um estudo sobre a projeção


no Twitter do grupo K-pop sul coreano BTS. 2022. 69 f. Monografia (Bacharel
em Gestão da Informação), Faculdade de Informação e Comunicação,
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2022.

CUNHA, Vinícius Ferreira. A ascensão do pop coreano: o boom do K-pop a


trotes de cavalo, o papel da comunicação e as articulações com o modelo pop
ocidental. 2013. 49 f. Monografia (Bacharel em Comunicação Social –
Jornalismo), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de


Janeiro: Jahar, 2000.

SAID, Edwuard W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SANGUINO, Juan. Sob a perfeição do K-pop, contratos leoninos, dietas


radicais e vigilância contínua. El País, 28 out. 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/cultura/2020-10-28/sob-a-perfeicao-do-k-pop-contratos-
leoninos-dietas-radicais-e-vigilancia-continua.html. Acesso em: 20 jul. 2023.

SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos


estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.

90
EM LOUVOR A “JAPONIZAÇÃO”: O ADVENTO
DAS ANIMAÇÕES COMO INSTRUMENTO DE
INFLUÊNCIA NA CULTURA JUVENIL BRASILEIRA,
por Paulo Augusto Balbi de Oliveira

Com o advento das comunicações, em particular a internet, streamings e das


redes televisivas, estamos cada vez mais conectados com diversas pessoas,
países, culturas, produções e conteúdo que circundam o mundo. Entre eles a
cultura Pop, especialmente a japonesa, popular no Brasil e em diferentes
espaços territoriais no planeta, faz cada vez mais parte do dia a dia das
pessoas, especialmente, do público jovem, “compreendida na faixa de 15 a
24 anos” (Dayrell; Gomes, 2009, p. 4).

Podemos entender a ideia de cultura, segundo Roniel Sampaio Silva (2022),


como “o conjunto de valores, normas, crenças, costumes, artefatos e práticas
compartilhados por um determinado grupo social. Esses elementos culturais
são transmitidos de geração em geração e moldam a forma como os
indivíduos percebem e interagem com o mundo” enquanto o Pop se remete
àquilo que é popular. Tendo isso em vista, a cultura pop japonesa pode ser
definida segundo à entrevista de Crtiane A. Sato ao site Cultura Japonesa,
como o “[...] conjunto das manifestações culturais industrializadas produzidas
no Japão. [...] se estende à tevê, ao cinema, à moda e ao comportamento. A
cultura pop japonesa mistura história com modernidade e tradições com
modismos, e é isso que atrai a atenção do mundo para o país”. E, tendo isso
em vista; o Japão, de acordo com Célia Sakurai (2007), passou a influenciar
as pessoas além de suas fronteiras, principalmente no quesito cultural. E a
principal expressão dessa manifestação cultural japonesa, é o advento das
animações, tambéms conhecidos como animes. Esses animes, segundo o
site japonês.net (2011), “são os desenhos animados produzidos no Japão”
onde carregam diversos traços culturais, sociais e políticas.

Essa questão acaba abrindo um “leque” de oportunidades para investigar


acerca desse advento e, principalmente, quais os impactos que isso acaba
por influenciar no outro, considerando uma espécie de “hibridismo cultural”.
Peter Burke (2010) e Ary Batista Neto (2019) pontua que temos de um lado o
enriquecimento cultural, mesmo sabendo que ocorre em detrimento de uma
parte, e de outro lado, uma espécie de estratégia que acaba beneficiando
uma cultura e interferindo em outras. Porém a ideia de “Hibridismo Cultural”
segundo Stuart Hall, acaba nos dando ainda mais formas de se pensar esse
advento da cultura Brasil-Japão, sendo as influências externas na cultura
nacional que corrobora tanto para desvincular as identidades de um lugar, de
uma história e de um arcabouço de tradições, que segundo Tabet; Souza;

91
Baeta (2016), acaba “constituindo uma grande, por assim dizer, fusão de
situações e caracteres díspares, para se produzir novas formas de cultura”.

As identidades culturais, nesse processo de contato com o outro, há uma


fragmentação da identidade do sujeito em função de diluições das fronteiras
culturais, o que no caso do Brasil, tendo em vista o crescente consumo de
cultura pop japonesa, interfere tanto no estilo de roupa a utilizar ou nas
próprias tradições ao se desvincular de uma ideia propagada em seu meio e
se vincular, por contato com outra cultura, à uma outra ideia. Porém isso
acarreta um problema que ainda é muito consolidado, tendo em vista a
experiência de estudantes bolsistas de pesquisa do MEXT, JICA ou de outros
meios, que acabam sofrendo xenofobia durante seu tempo estudando no
Japão, sendo as forças contrárias às fragmentações que tendem a se
fortalecer no intuito de proteger suas tradições, como é o caso do Japão,
onde, apesar da grande influência dos Estados Unidos advindo do pós-
segunda guerra, passam a incorporar elementos de suas tradições,
costumes, moda, e diversas outras características em animações.

Além disso, outra questão que acaba por acarretar no hibridismo, são as
“imagens canônicas” abordadas por Elias Thomé Saliba (2007). Para Saliba,
as “imagens constituem pontos de referência inconscientes, sendo, portanto,
decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva. São
imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as
identificamos rapidamente” (SALIBA, 2007, p. 88). Onde entramos na ideia
de Walter Benjamin (2017), como estes imaginários influenciam no nosso
comportamento, como transmitimos, como vemos a realidade através destes
signos mentais, etc. Essas imagens, muitas vezes produzidas e difundidas
pelo contato com o outro, e, principalmente, pela cultura Pop, acaba por criar
certo imaginário especifico de cada cultura, o que corrobora com o que é
construído e absorvido pelos jovens que, comumente, consomem esses
conteúdos. É claro que dependendo do grau que isso ocorre, tendo em vista
que, segundo Dayrell (2005), é necessário levar em consideração a posição
social dos jovens e suas particularidades em contextos sociais, históricos e
culturais distintos.

Diante dessas questões, podemos pensar ainda mais nas animações, tal
como qualquer produção, contendo certas intencionalidades, afinal, assim
como um fotógrafo tira uma foto de um local especifico que ele quer, também
ocorre isso em quaisquer produções diversas. No caso do Japão, elas não
são diferentes. Segundo Paulo (2019), durante o imperialismo Japonês, sua
expansão e “veiculação de sua ideologia, o Japão investiu tanto no cinema
quanto na animação, tendo em vista seu potencial educacional”, é o período
em que começa a surgir a indústria das animações que traziam temas
referentes à cultura japonesa e construção de uma identidade japonesa.
Essa ideia é percepítivel até os dias atuais, onde temos grande parte das
animações, seja nas próprias histórias e, ou, nas imagens, características
baseadas em mitologias, lendas, histórias e crenças japonesas, como é o
caso do Naruto (2007). Na obra há a utilização da raposa de nove caudas, se

92
referindo às entidades ligadas à mitologia nipônica, como a kitsune (raposa),
as Kyuubi, além de costumes, roupas, termos como “ninja” e diversos outros
fatores, que vão ligar à ideia de imagem canônica no imaginário dos jovens e,
ao mesmo tempo, sustentar a ideia de hibridismo cultural, no qual, parte do
que entra em contato com o indivíduo é absorvido e desvinculado com ideias
prévias advinda de sua própria cultura.

Outra animação, que é possível pensar, é Jujutsu Kaisen (2020), que traz um
tema em sua história e também em sua arte, ligada ao sobrenatural religioso
japonês, o que fortalece ainda mais o imaginário do indivíduo acerca do tema
ou da própria ideia do que é o “Japão”. Além disso, é possível identificar outra
característica comum em todas essas animações, tal como evidencia Neto
(2017, p. 30), “os horrores do nacionalismo na Segunda Grande Guerra
tornam os heróis dos mangás em heróis da humanidade, defensores da paz”.
Há essa característica de heróis e defensores da paz nessas animações
apresentadas, como se fosse um ideal e uma intencionalidade que busca a
se difundir, o que corrobora com a ideia de construção de uma identidade
japonesa e, além disso, acaba propaganda essas ideias para o público
jovem, que acabam sendo influenciadas de modo tão profundos que criam
uma relação entre os consumidores para com o produto, havendo, por
exemplo, a própria idealização dos indivíduos enquanto pertencentes
daquela história, ocorrendo, como uma dessas idealizações, a própria
vontade de customizar-se com a intenção de representar uma personagem
específica, fora a própria influência que esse pensamento acaba
corroborando para a construção do indivíduo em sociedade.

Tendo essas questões em vista, podemos identificar, no Brasil, uma


proporção crescente ao consumo segundo o site Jovem Nerd (2017),
“Durante o Anime Slate 2017, a Netflix divulgou um mapa de calor mostrando
os países que mais assistem animes ao redor do globo”, evidenciando o
Brasil com uma cor em maior destaque em relação à diversos outros países.

Fonte: https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/brasil-esta-entre-os-paises-que-
mais-assistem-anime-no-mundo/

93
O consumo é tão intenso que, segundo a reportagem da AnmTV (2022), cada
vez mais expande a quantidade de animações dubladas para o português,
especialmente realizadas pelos Streamings. Além desta questão, uma
consequência desse aumento de expressão dessas culturas, é a criação de
eventos de cultura pop, como é o caso do recém criado Campo Geek em
Campo Mourão, Paraná, que surgiu em 2019, sendo a primeira edição do
evento em 14 e 15 de março de 2020 ou da Animes Friends, o mais
expressivo festival de cultura pop asiática da América Latina há pelo menos
20 anos segundo o G1 (2023). É claro que, em grande parte, as redes
televisivas e, atualmente, de Streaming, sendo observado até o presente
momento em diversos catálogos, como a do Prime Vídeo e a Netflix, e
também Streamings próprios, como a Crunchyroll, são as responsáveis por
grande parte da difussão dessa cultura no Brasil, contendo inúmeras
animações japonesas.

Além disso, é possível encontrar incontáveis sites ilegais que acabam


publicando essas animações na internet, aumentando ainda mais a difusa do
conteúdo. Este tipo de conteúdo é presente no Brasil, segundo o site Super
Interessante (2018), desde os anos 1960, transmitidos, inicialmente, pela
antiga TV Tupi e a Record, como Speed Racer e Zoran. Segundo NETO
(2017, p. 31), “Os anos 1990 marcam a decadência dos live-actions e o boom
do animê”. Após isso, diversos canais brasileiros, foram palco para essas
animações, como a Globo, a SBT e a Rede TV, onde produções como
Cavaleiros do Zodiaco (1986) e Sailor Moon (1992) eram altamente
populares.

Atualmente, no meio acadêmico, se pegarmos os estudos acerca do Japão


no Brasil, é possível encontrar uma boa quantidade acerca de referências
sobre a questão das animações japonesas. Grande parte dessas pesquisas
buscadas se pautam em sua própria história como é o caso de FARIA (2008),
que evidencia um contexto histórico e um estudo acerca das animações em
geral, o que acaba por corroborar com a ideia das intencionalidades
revelando certas características sobre essa forma de expressão japonesa.
Também podemos ver acerca da presença da cultura pop japonesa no Brasil
de Neto (2017), bem, como também, aspectos referentes a indústria cultural,
onde traça alguns elementos acerca desses produtos culturais, observável
também na pesquisa de Urbano (2013), onde apreciadores mais imersivos da
cultura japonesa acaba por ter atuações práticas na sociedade, como são os
casos dos eventos de animes e os cosplays.

Outro elemento que podemos destacar para o debate acadêmico, é a


identidade que é trazida em questão por Carlos (2010), em que relacionam a
formação de identidade de indivíduos que acabam por consumir essas
produções. Porém, diante a todas essas questões apresentadas, foi
observado que há uma lacuna nessas pesquisas, no que consiste em como
essas animações afetam, ou melhor, influenciam a cultura juvenil no Brasil,
tendo em vista que os maiores consumidores dessas produções são os
jovens e, em grande parte, entram em contato excessivamente pelas mídias.

94
Com essas características evidenciadas, farei uma análise ainda mais
profunda de duas animações escolhidas, Jujutsu Kaisen (2020) e Naturo:
Shippuden (2007) sendo as mais assistidas em 2022 segundo o site Married
Games (2022), e disponíveis no streaming da Crunchyroll, onde pode nos
ajudar a entender e a evidenciar as características culturais japonesas e
práticas que acabam afetando o imaginário, como, por exemplo, no caso das
imagens canônicas, e as suas influências, como é a questão do hibridismo
cultural, além também de evidenciar, no decorrer das análises, outras
questões que nos ajude a entender sobre esse advento das animações
japonesas no Brasil.

Em uma outra parte da pesquisa, será utilizada como fonte, para se tornar
mais evidente essa relação aos impactos , e, também, a proporção dessas
animações no Brasil, será realizado uma pesquisa em algum colégio da rede
básica estadual, em especial, turmas de ensino médio, de preferência, uma
sala de cada ano (1°, 2° e 3º), de Campo Mourão-PR, procurando
compreender como as animações são representadas e consumidas pelos
alunos, em virtude de seu perfil juvenil.

Diante de todas essas questões, evidencio, até o presente momento, que a


justificativa para esta pesquisa se pauta, além de estar vinculado a uma
perspectiva pessoal, na qual me declaro um entusiasta da história e cultura
japonesa, assim também, suas produções, como os quadrinhos japoneses
conhecidos como mangás e as animações, esta pesquisa têm intenção de
corroborar para com os estudos acerca do Japão no Brasil, no qual encontra-
se uma carência tanto de fonte, como visto a questão do idioma, quanto de
um vasto arcabouço historiográfico. E, também, contribuir para com o debate
sobre as influências que produções com viés cultural acaba gerando acerca
do comportamento, no imaginário e nas práticas dos jovens sobre as
animações japonesas no Brasil, o que torna relevante esta pesquisa.

Referências
Paulo Augusto Balbi de Oliveira é graduando do curso de História da
Universidade Estadual do Paraná, campus de Campo Mourão, e, até o
presente momento, residente do programa da Residência Pedagógica.
Contato: pauloaugustobalbi@gmail.com

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2017. https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/brasil-esta-entre-os-paises-que-
mais-assistem-anime-no-mundo/;

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Anônimo. O que são Animes?, 2011. https://www.japones.net.br/o-que-sao-


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BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento. Sobre o haxixe e outras drogas.


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95
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japonesa. Lumina, Revista do Programa de Pós-graduação em comunicação.
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DAYRELL, J.; GOMES, N. L. A juventude no Brasil. Belo Horizonte:


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(1942-1945). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
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96
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SP, G1. 'Anime Friends' comemora 20 anos de festival de cultura asiática com
shows e concursos de cosplay em SP, 2023. https://g1.globo.com/sp/sao-
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Tabet, Ciro José; Souza, Rosalia Beber de; Baeta, Odemir Vieira. Hibridismo
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URBANO, Krystal. Fãs, Cultura Otaku e o “consumo da experiência” dos


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modelos de distribuição e consumo no Brasil. AÇÃO MIDIÁTICA, n. 21, jan./jun.
2021, Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701.

97
CULTURA E DINÂMICA SOCIAL, A PARTIR DA
DISCUSSÃO DO FILME: RAN (1985), DE AKIRA KUROSAWA,
por Rafael Egidio Leal e Silva

Este artigo tem por objetivo analisar e relacionar o tema da cultura e do


comportamento social no filme Ran (1985) de dirigido por Akira Kurosawa
(1910-1998), a partir da historicidade da obra de arte. Tal proposta justifica-se
plenamente, pois, ao nosso ver, a análise de filmes é de grande relevância
tanto ao cientista da área de Ciências Humanas, como ao futuro educador. Os
filmes podem conter elementos válidos para a interpretação/observação de
determinada situação social ou cultural, sob determinada teoria. Serve, por
outro lado à prática do educador pois esses mesmos elementos norteadores da
pesquisa científica poderão servir de apoio pedagógico para debates,
trabalhos, ou mesmo para o despertar de uma visão mais crítica da realidade
social em sala de aula. A formação educativa implica em muito mais que a
apreensão de conteúdos ditos científicos, ou da realidade social (ainda mais
considerando as Ciências Sociais e Humanas) mas também na formação
humana integral e assim, as artes devem servir de subsídios para uma
compreensão de homem mais próxima dessa concepção.

Os filmes como forma de arte guardam uma particularidade bastante


interessante. É considerada uma das últimas formas de arte, já inserida no
contexto de uma indústria de entretenimento. Assim, as produções fílmicas
envolvem centenas de pessoas, entre artistas e técnicos. A tecnologia
envolvida também deve ser considerada, uma vez que como entretenimento,
os filmes procuram atrair o grande público, com a promessa de diversão a
qualquer custo, considerando também que a produção de um filme é
extremamente cara. No entanto, o filme aqui analisado é mais voltado a um
publico específico, e daí ser considerado um filme de “arte” (em contraposição
ao “enlatado”, em referência ao filme industrial, dos grandes públicos. No
entanto, a vida reproduzida no cinema é datada, ou seja é produzida em
contexto histórico, o que corresponde à modernidade capitalista: “Cada época
crea sua arte. Las grandes épocas, las épocas en que la humanidad vive una
vida particularmente elevada e intensa, en que se producen cambios sociales
que ponen en movimiento a masas populares de millones de seres, dan vida a
un gran y elevado arte.” (Korin, [s.d.]: 93).

A análise aqui será pautada pela observação histórica da materialidade


retratada na película. Desta forma, Ran (1985) apresenta a sociedade japonesa
feudal do século XVI, principalmente o momento de destruição do poderoso clã
nobre Ichimonji, e da própria decadência da nobreza japonesa. O filme é
inspirado na peça de teatro de W. Shakespeare, Rei Lear (2016), que conta a
história do Rei que vê a destruição de seu reino após dividi-lo entre suas filhas.

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Desta forma, como relacionar a estória shakesperiana, típica da Inglaterra na
transição do século XVI-XVII, com o Japão Feudal? E ainda devemos
considerar que Ran (1985) é uma obra de arte do fim do século XX, portanto,
guarda ali todas as suas contradições da época e da sociedade que o produziu.

A primeira observação geral que faremos é que a arte, e qualquer outra


produção da sociedade humana, implica na existência de indivíduos humanos
vivos. Assim, acerca de que homens estamos falando? Como poderíamos
apreender esse homem? O homem, nesta visão, não poderia ser um modelo
ideal com validade universal, mas deve ser apreendido historicamente, em sua
realidade humana e material de cada época e espaço em questão. Assim, o
homem passa a ser visto a partir de sua produção material, ou seja a produção
dos meios necessários para sua manutenção no mundo, e não mais como o
produto do mundo.

“A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que


eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o
que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os
indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.”
(Marx & Engels, 2002, p. 11)

O pensamento marxiano conclui, assim, que cada época resulta na


configuração de um determinado tipo de homem. No entanto, a história é
dinâmica, refletida nas necessidades dos homens, que produzem os meios de
satisfazê-las, e na formação de classes sociais, que, pela divergência de
interesses e pela oposição na forma de produzir a realidade, estão em
verdadeira luta – a luta de classes.

Em um processo dinâmico e histórico, em determinado momento a estrutura


econômica desenvolvendo-se em outro sentido (por exemplo, a transformação
do modo feudal para o capitalista) passa a conflitar com a superestrutura
jurídica e política, comprometida com a manutenção da antiga ordem. Desses
entraves, surgem um momento de revolução social, de renovação da
superestrutura, onde ela passará a se adequar à nova realidade. E como a
teoria da materialidade pode ser apreendida em um filme, especificamente,
Ran (1985)?

Ran significa caos em japonês, inicia quando o poderoso Lorde Hidetora


Ichimonji resolve dividir seu feudo entre os três filhos: Taro, Giro e Saburu,
conservando para si o título e os privilégios de grande Lorde, além da guarda
pessoal e a moradia de sua corte em um de seus castelos. Taro e Giro
ambiciosamente concordam com o pai e Saburu, o filho mais novo, discorda
veementemente desta atitude. Há um elemento importante aqui que Hidetora,
senil naquele momento, foi um grande guerreiro no passado que conquistou a
custa de muito sangue os feudos que compunham o vasto território de seu
reino. Hidetora angariou para si uma infinidade de inimigos, inclusive dentro de
sua própria família, já que suas noras Kaede (esposa de Taro) e Sue (esposa
de Giro) tiveram suas famílias massacradas e seus castelos arrasados por ele.

99
Kaede tem em si o desejo de vingança com a destruição completa do clã
Ichimonji. Sue, budista, preferiu o perdão ao sogro. Hidetora, contrariado,
deserda Saburu e divide as terras entre os filhos. Contudo, a previsão de
Saburu se realiza: Taro, influenciado por Kaede, resolve extinguir os privilégios
do pai, fazendo-o assinar um contrato, onde ele abria mão dos privilégios de
Grande Lorde.

É interessante pensarmos aqui que o contrato é uma figura jurídica e que,


portanto, faz parte da superestrutura da sociedade. A história se passa em um
momento de grande transformação social no Japão: “Na segunda metade do
século XVI, uma série de guerras civis massivas entre os principais potentados
daimyo levaram a uma unificação vitoriosa do país por sucessivos
comandantes militares” (Anderson, 2004, p. 348). Assim, a estrutura feudal
estava em profunda crise, e sendo assim, o filme trata de uma sociedade que
estava desaparecendo. Ante a figura do contrato, Hidetora não sabe como agir,
uma vez que em sua sociedade o contrato escrito não tinha a mesma validade
da palavra empenhada com honra. Hidetora assina o contrato como uma
profunda ofensa. É interessante notarmos o choque que o nobre tem com os
atos dos filhos. O Japão é caracteristicamente uma sociedade que preza
fortemente os laços familiares, sendo que isto também era muito forte entre a
nobreza, mais até que a nobreza européia, comparativamente:

“O feudalismo europeu sempre foi abundante em disputas interfamiliares e


caracterizado por extrema litigiosidade; o feudalismo japonês, entretanto, não
só careceu de qualquer tendência legalista, mas seu arranjo quase patriarcal
tornou-o mais autoritário pelos direitos paternos extensivos de adoção e
deserdação, que efetivamente reprimiam a insubordinação filial do tipo comum
na Europa.” (Anderson, 2004, p. 348).

Tanto a indignação de Saburu quanto a audácia de Taro foram uma novidade


para o mundo de Hidetora. No entanto, com a transformação do modo de
produção japonês, a superestrutura política, jurídica e familiar também se
alterava, e essas eram as condições que o ex-guerreiro deveria enfrentar. É
interessante notarmos que Shakespeare também soube mostrar em seus
personagens as transformações que a modernidade trazia, com muita sutileza.
O príncipe Hamlet (2016), por exemplo, ante a corrupção e a podridão que
envolviam a trama que culminou na morte de seu pai o Rei da Dinamarca e que
envolvia até sua mãe pelo jogo de poder sente-se um estranho na corte, mas
obstinado pela vingança. O príncipe, que representa justamente o homem que
vê a transformação do mundo e não se sente parte daquela realidade que lhe
salta aos olhos, em determinado momento, ao fugir para a Inglaterra, encontra
uma tropa de soldados noruegueses que se dirigiam a uma batalha por um
feudo na Polônia. Vejamos alguns trechos do diálogo:

HAMLET: Vão contra toda a terra da Polônia,


Ou para alguma fronteira?
O CAPITÃO: Para falar a verdade, sem rodeios,
Vamos tomar uma pequena terra

100
Que nada vale além do simples nome (...).
HAMLET: A Polônia não há de defendê-la.
O CAPITÃO: Sim, ela já se acha guarnecida.
HAMLET: Duas mil almas, vinte mil ducados,
Não são o preço dessa ninharia!
Esse é o abscesso da paz e da opulência,
Que arrebenta por dentro e não exibe
Qual a causa da morte. (...). (Shakespeare, 2016, p. 463)

Vemos que o valor das coisas já se alterava. Hamlet e o capitão eram homens
do mundo, e sua noção de valor já estava mais ligada ao valor burguês, ao
valor do mercado: se o feudo valesse muito, o sacrifício compensaria. Hamlet
se sentia estranho na corte, onde os valores da nobreza feudal vigiam, e isso o
angustiava profundamente. Com Hidetora acontece o contrário. Seus valores
estavam morrendo junto com ele, e a nova realidade o desesperava. O
momento era, inclusive, de extrema violência. Rejeitado também por Giro (este
mais ambicioso que o irmão Taro), o nobre vai para o terceiro castelo, o que
seria de Saburu. Neste momento, há uma cena tão bela quanto violenta: os
dois exércitos de Taro e Giro se unem para massacrar o que restara ao pai:
seus guardas e suas concubinas, além da morte de Hidetora. Neste momento,
Taro é assassinado por um dos asseclas de Giro, que assume o poder
absoluto do feudo. Hidetora escapa com vida, apenas ele e Koyiomi, o bobo da
corte, mas a insanidade toma conta dele. Um motivo é que seu passado de
carnificina retorna contra ele próprio, e promovida por seus próprios filhos. Este
passado vem na forma dos fantasmas de seus antigos inimigos, que são os
filhos deles, para lhe assombrar, como o irmão cego e mendigo de Sue. Vem
ainda, quando ele se refugia nas ruínas no castelo da família de Sue, que
parece o inferno em sua jornada. Em certo diálogo, diz ao bobo: “Estou
perdido”, e segue a resposta: “É a condição humana”. É interessante notarmos
que em Shakespeare, e que aparece fortemente em Ran (1985), é a loucura
como um desajuste à realidade. Assim como Hidetora, a jovem cortesã Ofélia
de Hamlet (2000), sem conseguir entender as tramas na corte dinamarquesa
que desembocaram na morte de seu pai, Polônio, pelas mãos de seu amado,
Hamlet, enlouquece por não conseguir mais lidar com a transformação social a
que assistia.

Saburu, refugiado com outro Lorde, o Sr. Nobuhiro Fujimaki, retorna ao feudo
Ichimonji com o intuito de salvar seu pai da destruição promovida por seus
irmãos. Giro, também influenciado por Kaede, declara guerra contra um
exército em muito superior ao seu, decretando assim o fim do feudo Ichimonji.
Saburu e Hidetora são assassinados a mando de Giro, destruindo
completamente a família de Hidetora (e finalizando a vingança de Kaede).

O filme irá retratar a violência extrema com que se deu a acumulação primitiva
japonesa. No entanto, no Japão os rumos que essa acumulação tomou foram
totalmente distintos do que o ocidente. Já fizemos referência acerca da
violência que tomou conta do Japão no século XVI. No entanto, vejamos os
resultados dela, segundo a antropóloga cultural Ruth Benedict:

101
“No século XVI a guerra civil tornara-se endêmica. Após décadas de desordem,
o grande Ieyasu obteve vitória sobre todos os rivais e em 1603 passou a ser o
primeiro Xógum da Casa de Tokugawa. O Xogunato conservou-se na linhagem
de Ieyasu por dois séculos e meio e terminou somente em 1868, quando o
‘governo duplo’ de Imperador e Xógum foi abolido no começo do período
moderno. Em muitos sentidos este longo Período Tokugawa constitui-se num
dos mais notáveis da história. Manteve uma paz armada no Japão até a última
geração antes do seu término, pondo em exercício uma administração
centralizada que serviu admiravelmente aos propósitos dos Tokugawa. (...) A
fim de manter este difícil regime, os Tokugawa recorreram à estratégia de
evitar que os senhores feudais, os daimios, acumulassem poder, impedindo
quaisquer combinações entre eles, que viesse a ameaçar o domínio do
Xógum. Os Tokugawa simplesmente não aboliram a organização feudal, como
também, visando manter a paz no Japão e o domínio da Casa de Tokugawa,
tentaram fortalecê-la e torná-la ainda mais rígida.” (Benedict, 2002, p. 56-57).

Desta forma, muito embora seja um regime em decadência, ele foi mantido à
força para garantir a manutenção do poder e da centralidade japonesa.
Conforme esta antropóloga, a Casa de Tokugawa passou a regulamentar
minuciosamente os estratos e a posição social de cada nobre, e também “os
pormenores do comportamento diário de cada casta” (Benedict, 2002, p. 57), e
assim, garantindo a estabilidade necessária ao seu governo. Talvez, antes de
encerrarmos este texto, seja interessante fazermos referência a alguns pontos
levantados por essa antropóloga, acerca da constituição da sociedade
japonesa. Assim ela a caracteriza:

“Tanto a espada quanto o crisântemo fazem parte do quadro geral. Os


japoneses são, no mais alto grau, agressivos e amáveis, militaristas e estetas,
insolentes e corteses, rígidos e maleáveis, submissos e rancorosos, leais e
traiçoeiros, valentes e tímidos, conservadores e abertos aos novos costumes.
Preocupam-se muito com o que os outros possam pensar de sua conduta,
sendo também acometidos de sentimento de culpa quando os demais nada
sabem do seu deslize. Seus soldados são disciplinados ao extremo, porém,
são igualmente insubordinados.” (Benedict, 2002, p. 10-11).

Benedict está mostrando aqui que a cultura japonesa é tão complexa e


contraditória quanto a nossa. O olhar ocidental vê a cultura oriental, e
especialmente a japonesa, como exótica e até mesmo envolta em mistério. A
apreensão da materialidade histórica implica em observarmos a cultura
japonesa como resultante de um processo histórico específico de acordo com a
construção material e social própria dos Japoneses. A antropologia cultural,
iniciada pelos estudos do alemão Franz Boas, considera a apreensão da
cultura o principal aspecto a ser observado pelo pesquisador da antropologia,
cultura esta sempre vista como contraditória, não apenas tomada em si
mesma, mas quando comparada com a cultura de outros povos, e resultante
de desenvolvimento histórico. Não pude, em meus estudos iniciais em
antropologia, apreender a vinculação (ou não) com as teorias marxianas e a

102
antropologia cultural. No entanto, o estudo de Benedict é bastante idôneo, não
só por não ser um estudo etnocêntrico, mas por procurar, através da
materialidade da vida social dos japoneses, definir seu padrão de cultura.
Assim, ela irá definir a cultura japonesa como uma cultura da ordem e da
hierarquia. Os japoneses organizam sua vida dentro desses padrões, de
maneira altamente contraditória, assim como os norte-americanos se
organizaram contraditoriamente dentro do padrão de igualdade e liberdade:
“Qualquer tentativa de entender os japoneses deverá começar com a sua
versão do que significa ‘assumir a posição devida’.” (Benedict, 2002, p. 43).

Quando o lorde Hidetora adentra ao seu palácio e vê Taro em seu trono,


ocupando o lugar de Grande Lorde, fica extremamente contrariado, mas ainda
assim se ajoelha perante o filho e lhe presta respeito. Giro, ao comunicar-lhe
que seus privilégios também acabaram, no palácio sob sua guarnição ajoelha-
se em respeito ao pai. Estes são aspectos que aos olhos ocidentais mostram
um mundo bastante diferenciado do nosso, mas que, no fundo, revela a
condição humana: estamos perdidos em nossa materialidade da história.

Referências
Rafael Egidio Leal e Silva é professor Me. de Sociologia do Instituto Federal do
Paraná Campus Umuarama.

Ran. Direção de Akira Kurosawa. Japão/França: Greenwich Films Productions,


1985. (160 min.)

ANDERSON, P. O feudalismo japonês. In: ____________. Linhagens do


estado absolutista. 3. ed. 2. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BENEDICT, R. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa.


3.ed.São Paulo: Perspectiva, 2002.

KORÍN, P. Pensamientos em torno al arte. In: El realismo socialista em


literatura y el arte. Moscú: Editorial Progreso [s.d.].

MARX & ENGELS. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias


sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1.

SHAKESPEARE, W. Rei Lear. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias


sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1.

103
A PARATOPIA CRIADORA NO DRAMA BL HAPPY ENDING
ROMANCE e Vitória Ferreira Doretto e Júlio Cézar de Souza

Tema dos temas em diversos campos do saber [Salgado, 2020], inclusive (ou
talvez, principalmente) quando tratamos de questões editoriais, a autoria não
poderia não ser problematizada em um K-drama com um recorte singular do
funcionamento do mercado editorial como pano de fundo. Desta forma, neste
texto propomos tecer uma breve análise sobre a autoria dos personagens Cha
Jung Woo e Kim Jung Hyun, dois dos personagens principais no K-drama de
boys love (BL) “Happy Ending Romance” (no original, 펜스 밖은 해피엔딩 e em
tradução livre, Romance com Final Feliz), a partir do conceito de paratopia
criadora [Maingueneau, 2006].

Com oito episódios exibidos entre novembro e dezembro de 2022, “Happy


Ending Romance” traz a história de Cha Jung Woo (interpretado por Karam),
um escritor que, após denunciar a corrupção de um autor já antigo na indústria
do livro, vê sua carreira promissora ser pulverizada por comentários de leitores
e grandes esforços da rede de influência desse escritor poderoso. Sua vida
como escritor parecia estar encerrada, mas seu veterano Kim Jung Hyun
(interpretado por Leo, do grupo de K-pop VIXX) lhe apoia e assim nasce não só
um romance mais complexo entre os dois (em que um é dependente do outro
em níveis diferentes), mas também uma vida nova para Cha Jung Woo, agora
como escritor-fantasma.

Sua sinopse ainda traz algumas outras informações:

“Cha Jung Woo poderia ter um futuro brilhante como escritor, se tivesse
conseguido ficar em silêncio depois de testemunhar a corrupção entre seus
superiores. Infelizmente, ao optar por falar contra o comportamento
inescrupuloso, Jung Woo essencialmente encerrou sua carreira antes mesmo
de começar. Pelo menos é assim que as coisas teriam acontecido, se Kim Jung
Hyun não tivesse escolhido ficar ao lado dele.

Uma das estrelas mais brilhantes do mundo literário, Jung Hyun não se assusta
com a reputação manchada de Jung Woo e oferece a ele um refúgio para
reconsiderar seu futuro. Fortemente protetor de seu jovem amigo, Jung Hyun
fica mais do que um pouco cauteloso quando Jung Woo é abordado pelo jovem
editor empreendedor, Han Tae Young. Acreditando firmemente que Jung Woo
deve voltar a escrever, Tae Young está preparado para arriscar seu futuro ao
fazer isso, e faz a Jung Woo uma oferta que ele não pode recusar. Mas Jung
Hyun não está convencido de que os motivos de Tae Young sejam totalmente
nobres.

104
Alimentado pelo ciúme e desconfiança, Jung Hyun tenta manter Jung Woo
longe do ambicioso editor; mas apesar de todos os seus esforços, Jung Woo
parece incapaz de resistir aos muitos encantos de Tae Young. Dividido entre o
escritor que ele admira e o editor que ele não consegue resistir, onde o coração
vacilante de Jung Woo irá parar?” [MyDramaList, 2022]

Como indicado na sinopse, há dois autores em situações diferentes no drama.


No movimento de sair dos holofotes e desenvolver uma autoria anônima, com o
trabalho como escritor fantasma, as instâncias de autoria constitutivas da
paratopia criadora do protagonista Cha Jung Woo mudam e ao mesmo tempo,
a situação de Kim Jung Hyun como autor também é modificada quando sua
popularidade amplia com as publicações das obras de Cha Jung Woo em seu
nome — e são estas mudanças o foco deste texto.

De partida, é necessário entender que a autoria é um lugar de pertencimento


impossível, uma vez que “a existência social da literatura supõe ao mesmo
tempo a impossibilidade de ela se fechar em si mesma e a de se confundir com
a sociedade ‘comum’, a necessidade de jogar com esse meio-termo e em
seu âmbito” [Maingueneau, 2006, p. 92] e “para produzir enunciados
reconhecidos como literários, é preciso apresentar-se como escritor, definir-
se com relação às representações e aos comportamentos associados a
essa condição” [Maingueneau, 2006, p. 89]. Assim, apenas podemos falar em
paratopia se ela estiver inserida em um processo de criação (por isso, criadora)
e envolve o pertencimento e o não pertencimento verdadeiro do escritor em um
lugar (a sociedade e o campo/espaço literário), numa relação de negociação
entre escritor e obra, escritor e sociedade e obra e sociedade. Desta forma,
Maingueneau propõe que, ao pensarmos na figura de um autor, pensemos
também nas unidades que o compõem, como seus aspectos pessoais,
inscricionais e ligados ao reconhecimento social do pertencimento à
instituição literária — a essas unidades chamamos de instâncias, denominadas
pessoa, inscritor e escritor.

Nessas instâncias estão contidas as características pessoais, sociais e


inscricionais de uma autoria. Assim, a instância inscritor se refere ao sujeito da
enunciação, abarcando os ritos inscricionais, os atos realizados pelo autor para
produzir sua obra e seus comportamentos não escriturísticos. A instância
pessoa se refere ao indivíduo no mundo, com estado civil, partícipe de um
grupo social, de uma família etc. E a instância escritor se refere ao ator que
define sua trajetória na instituição literária, ao modo de circulação de sua obra.

Em resumo, a paratopia criadora é uma proposta de entendimento do


funcionamento da autoria no discurso literário, formulada por Dominique
Maingueneau [2006] e tributária das clássicas discussões sobre autoria na
análise do discurso, em especial da noção de função-autor. Este conceito
pressupõe que há o entrelaçamento de três instâncias indissolúveis que
constituem a autoria: pessoa, escritor e inscritor. Uma autoria é então uma

105
forma de gestão, um funcionamento que pode também ser ficcional — e por
isso podemos tratar da autoria dos protagonistas de “Happy Ending Romance”.

Aliado a esse entendimento de autoria como gestão, na perspectiva dos


estudos editoriais:

“toda autoria se define balizada por duas posições que, extremadas, assim se
apresentam: a glamourização de um gênio absoluto e a dissolução de qualquer
fonte criadora. No primeiro caso, cultiva-se a ideia da inspiração dos eleitos; no
segundo, o trabalho dos comuns. Nas práticas editoriais, o que se passa é a
administração do jogo entre essas posições: a autoria é um ponto nodal numa
rede.” [Salgado, 2020, p. 40]

Assim, uma obra é feita por muitos atores dentro de um longo processo e a
autoria está no início dessa feitura. E, ainda, todo autor precisa responder por o
que escreve, pois:

“a autoria está sempre ligada a uma autorização para dizer, conferida pela
possibilidade de atestar a fonte do dizer. A legitimidade do que se diz está,
assim, atrelada a um entendimento consensuado numa dada comunidade ou
sociedade (a escala de reconhecimento é variável), conforme suas formas de
testificação ou seus sistemas de consagração.” [Salgado, 2020, p. 40]

Ao voltarmos ao drama e seus protagonistas, podemos dizer que é a denúncia


de corrupção contra autores veteranos que faz com que a condição de autor de
Cha Jung Woo seja modificada, pois sua “autorização para dizer” é colocada à
prova pelos leitores e internautas — o que acaba por levá-lo de autor promissor
para autor fantasma. Podemos então, começar a identificar as mudanças em
suas instâncias de autoria. Para melhor visualização, representamos as
instâncias e seu entrelaçamento com o nó borromeu conforme a representação
proposta por Salgado [2010] (Figura 1):

“Pensa-se aqui numa estrutura de nó borromeu; os três anéis deste se


entrelaçam de modo que, se se rompe um dos três, os dois outros se separam.
É-se sempre tentado a reduzir o nó a um de seus anéis: a pessoa, para a
história literária, seja ela sociologizante ou psicologizante; o escritor, para as
pesquisas sobre as instituições literárias; o inscritor, para os adeptos da obra
ou do texto em detrimento de tudo mais.” [Maingueneau, 2006, p. 137]

106
Figura 1 – Nó borromeu representando as instâncias de autoria
Fonte: adaptado de Salgado [2010].

Essa representação é modificada a partir das especificidades existentes em


cada caso analisado, pois a autoria vai se configurando de acordo com o
funcionamento de cada uma das três instâncias, e o funcionamento possui
diferenças ligadas a cada indivíduo ou situação. Como mencionado, é no
rebatimento recíproco das instâncias que se faz uma unidade autoral — os
aspectos sociais, ritualísticos e pessoais que compõem a voz individualizada
do autor não podem ser retiradas para que uma obra seja criada, tudo faz parte
da construção do texto (em escala maior ou menor) e é retrabalhado,
renegociado, afinal:

“A paratopia é o clinamen que torna possível o nó e que esse nó torna possível;


não se trata de alguma separação ‘inaugural’ que mais tarde se desfaria
diante da obra, mas de uma diferença ativa, incessantemente retrabalhada,
renegociada, diferença que o discurso está fadado tanto a conjurar como
a aprofundar.” [Maingueneau, 2006, p. 137]

Se observarmos os poucos traços característicos de Cha Jung Woo como autor


promissor, podemos montar uma representação (Figura 2) de suas instâncias
de autoria em que a instância escritor se sobressai, porque vemos que o
personagem é considerado um novo autor promissor, é contratado por uma
grande editora, teve bons resultados de venda de seu primeiro livro, o que
significa que também ocorreu uma certa circulação de seu nome como autor, e
já tinha um segundo manuscrito em processo de edição. Neste contexto, as
instâncias pessoa e inscritor são menores também porque pouco se sabe
sobre seus costumes e práticas de escrita e suas relações sociais — apenas
sabemos sobre seu senso de justiça e moral porque a história já começa com o
protagonista sofrendo as consequências de ter denunciado o veterano, o que
torna sua instância pessoa um pouco maior que a instância inscritor.

107
Figura 2 – Instâncias de autoria de Cha Jung Woo como autor promissor
Fonte: Elaborado pelos autores.

Temos outra configuração na representação do borromeu quando identificamos


os aspectos constituintes do personagem enquanto autor-fantasma. Nesta
situação, suas instâncias inscritor e pessoa são maiores do que a instância
escritor (Figura 3) porque são justamente os ritos inscricionais e seus aspectos
pessoais que ficam em relevo. Enquanto autor-fantasma, vemos sua rotina de
escrita — sempre sentado em uma cadeira simples, usando uma mesa simples
num canto de um quarto pequeno no térreo da casa de Kim Jung Hyun, seu
amigo e antigo interesse romântico, usando qualquer horário do dia para
escrever, mas principalmente à noite — e suas relações pessoais, seus
sentimentos (ele ficou abatido, triste e desmotivado por escrever mas não
publicar com seu próprio nome); como o que ele escreve é publicado com o
nome de Kim Jung Hyun (e é ele quem vai aos lançamentos e sessões de
autógrafos) e ele não tem mais propriamente uma vida na instituição literária,
sua instância escritor é menor.

Figura 3 – Instâncias de autoria de Cha Jung Woo como autor-fantasma


Fonte: Elaborado pelos autores.

108
Quanto a Kim Jung Hyun, no começo da história temos uma ideia geral de que
sua carreira está consolidada e que além de ter popularidade com os leitores,
também é bem conhecido e reconhecido por seus pares no meio literário e
goza de boa reputação e muitos contatos na indústria literária. Da mesma
forma, enquanto as obras de Cha Jung Woo eram publicadas com seu nome
na capa e era ele quem aparecia nos eventos de lançamento e autógrafo, sua
popularidade aumentou e sua autoridade como escritor também. Sendo assim,
na representação de suas instâncias de autoria (Figura 4), a instância escritor
se sobressai. As instâncias inscritor e pessoa não são abordadas nessa
ocasião, de forma que suas representações são menores em relação à
representação de escritor e são do mesmo tamanho.

Ainda sobre o nome de Kim Jung Hyun em obras de Cha Jung Woo, é
interessante notar que depois da primeira obra publicada a popularidade de
Kim Jung Hyun aumenta, mas o editor que deseja publicar as histórias de Jung
Woo consegue observar, ao "estudar" o texto, diferenças de escrita. Essa é
uma das poucas, senão a única, indicações sobre o “fazer do texto” para este
autor, pois mostra que as marcas de estilo de escrita, mesmo sendo tratadas
ou revisadas, se mantém em uma "versão final" (e neste caso apontaram para
Cha Jung Woo e não Kim Jung Hyun).

Figura 4 – Instâncias de autoria de uma estrela brilhante do mundo literário


Fonte: Elaborado pelos autores.

Aqui é interessante notar que vimos a instância escritor ser proeminente na


representação de autor promissor de Cha Jung Woo (Figura 2) justamente
pelo personagem ter perspectivas que parecem ser boas, mas no caso de Kim
Jung Hyun (Figura 4), ele já tem uma vida literária, já é um ator importante na
indústria — já é considerado uma das estrelas mais brilhantes do mundo
literário —, de forma que são duas representações parecidas, mas são duas
situações quase opostas.

Depois de Cha Jung Woo decidir voltar a escrever e publicar com seu próprio
nome e de Kim Jung Hyun decidir recomeçar sua carreira, sem precisar do

109
peso de ter seu nome em obras que não são suas, e vendo suas relações
pessoais com o próprio Cha Jung Woo e com um professor importante da
universidade em que estudou que se torna editor de uma grande casa
publicadora, suas instâncias são modificadas.

No fim do drama, sua reputação como autor não mudou, de forma que sua
instância escritor ainda é proeminente, mas sua instância pessoa ganha mais
espaço, com suas relações e características de personalidade (como o
desconforto por ter seu nome publicado nos livros de Cha Jung Woo ou a falta
de outros amigos próximos) — entretanto, sua instância inscritor segue menor
em relação às outras instâncias pela falta de informações sobre seus ritos de
escrita.

Figura 5 – Instâncias de autoria de Kim Jung Hyun no final do drama


Fonte: Elaborado pelos autores.

Essas representações nos ajudam ver como as autorias se configuram


conforme cada uma das instâncias funcionam e:

“Numa síntese bastante ligeira, se poderia dizer que o gesto inscricional, isto é,
a tomada de palavra ou a enunciação, se se quiser, dispara a conjugação
dessas três instâncias: justamente porque há um texto ensejando vida pública,
é que todo o aparato de constituição desse lugar de criação ganha uma vida
potencial, que pulsará em dinâmicas conjunturais específicas e, portanto,
nunca modelarmente.” [Salgado, 2016, p. 10]

Com isso, queremos dizer que uma autoria é formada não apenas por uma
ideia de um “gênio escritor”, mas por diversos aspectos que se convergem num
objeto final (as obras) e:

“a perspectiva editorial nos leva a entender a autoria como transitiva, isto é,


exigente de complemento que lhe dê sentido, sendo esse complemento o que
demanda administração. Pode-se dizer, então, que a gestão da obra aponta
para a autoria, configurando-a. Ser autor de x implica que x resulta de todo um
processo levado a cabo pelo funcionamento sistêmico de um campo, de um
entrecampo, de um limiar… Conhecendo x, podemos entender como uma dada

110
autoria se produz, às vezes até apagando seu processo de produção.
Conhecendo x, entendemos de que modo uma obra dá sustentação a uma
autoria e a projeta (ou procura projetar) para este ou aquele panteão” [Salgado,
2020, p. 43-44]

Mesmo que tenhamos tratado de autorias ficcionais, os movimentos mostrados


são possíveis (e até mesmo comuns) em autorias reais e sua representação
ficcional é um recurso interessante para ampliar o conhecimento do público
geral sobre o funcionamento do mundo literário.

Ainda, é importante ressaltar que, ainda que seja uma obra audiovisual de
ficção, “Happy Ending Romance” propõe uma construção de enredo e
ambientação próxima, mimética, da realidade das casas editoriais sul-
coreanas. Desta forma, apesar de ficcional, usá-la como recorte para análise
da gestão de autoria transpassado por relações de poder, seja de
conglomerados ou da opinião pública, nos permite, ao menos, compreender as
dinâmicas e observar as modificações nas instâncias da autoria. Ficcionais ou
reais, estas dinâmicas de autoria se estabelecem da mesma forma.

Dentro do estudo de caso, é preciso considerar as especificidades


socioculturais do recorte analisado. Assim, aqui ainda é necessário atentar
para a força da opinião pública, majoritariamente on-line, e seu peso nas
decisões — de renovação ou não de contrato, de publicação ou não de novo
material, entre outros — dos grandes conglomerados editoriais. Estas, por mais
que não pareçam, influem diretamente na gestão da autoria, como observamos
nas breves análises apresentadas, pois interferem na própria vida do autor —
por exemplo, lembramos que no caso de Cha Jung Woo, sua decisão de “sair
de cena” do mundo literário se dá após o ataque que sua pessoa, enquanto ser
civil, sofre e que destrói sua credibilidade como autor e o interesse de seu
editor em continuar publicando obras com seu nome (e é isso que faz com que
vejamos mudanças na constituição de sua autoria).

Por mais que não apareça de forma alguma, o escritor-fantasma (Cha Jung
Woo) possui uma gestão de autoria que difere de autores que publicam seus
próprios textos sob pseudônimos. Com os segundos, a pessoa que escreve e
publica se mantém a mesma, o que não ocorre no primeiro caso. Neste caso, o
autor, Kim Jung Hyun, que não é o escritor neste momento da narrativa, mas
assina os textos de Cha Jung Woo, possui uma gestão de autoria mais focada
na sua gestão enquanto partícipe ativo do mundo literário. Por fim, este recorte
nos permite compreender como a paratopia criadora é constituída no “nome
final”, ou melhor, o nome que assina o texto.

Referências
Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda e mestra em Estudos de Literatura
pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do Grupo de Pesquisa
COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do Laboratório de
Escritas Profissionais e Processos de Edição e pesquisadora associada à

111
Curadoria de Estudos Coreanos da Coordenadoria de Estudos da Ásia da
Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com.
Júlio Cézar de Souza é graduando em Licenciatura plena em Letras -
Português/Inglês pela pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do
Grupo de Pesquisa COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do
Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição. E-mail:
cezar.julio.a@gmail.com.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

MYDRAMALIST. Happy Ending Romance, 2022. Disponível em:


https://mydramalist.com/720645-happy-ending-outside-the-fence
SALGADO, Luciana Salazar. Escritura e leitura, elementos da autoria. In:
RIBEIRO, Ana Elisa et al. (Org). Leitura e escrita em movimento. São Paulo:
Peirópolis, 2010. p. 252-268.

SALGADO, Luciana Salazar. Grupo de pesquisa “Comunica – Inscrições


linguísticas na comunicação”: Um trabalho no limiar. In: Anais JIG, 2016.
Disponível em: http://www.jig.ufscar.br/?wpfb_dl=33

SALGADO, Luciana Salazar. Autoria. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cléber
Araújo (Org.). Tarefas da Edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas; LED,
2020. Disponível em: http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-
content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-
arquivo-digital-07-10-20.pdf

112
A INFLUÊNCIA DOS MANGÁS E ANIMES NO UNIVERSO
JUVENIL BRASILEIRO DE LEITURA, por Wagner Pereira de
Souza e Rosete Lopes França Maciel

Discussão inicial
Os Mangás são escritos de origem japonesa que se assemelham às Histórias
em Quadrinhos (HQs). Segundo definições, essa representação é considerada
como uma subliteratura ou para-literatura que não chega a constituir totalmente
um "gênero textual" propriamente dito em virtude da pluralidade de
transfiguração dentro de outros gêneros, tanto possível quanto imagináveis, a
exemplo da comédia, do terror, do drama, a ficção científica, entre outros, mas
que fidelizou o gosto de muitos jovens brasileiros que se tornaram potenciais
consumidores desse produto oriundo deste país asiático, o Japão. Configurado
e organizado com características acessíveis, nos mangás a leitura é realizada
da direita para a esquerda e traços comuns nessa produção são os de os
personagens de olhos grandes, às vezes, bochechas avantajadas e com traços
voltados para a expressão oriental.

Segundo um estudioso do assunto,

“Os mangás, por sua vez, são histórias em quadrinhos nipônicas. Eles também
são repletos de características próprias, sendo eles, em sua grande maioria,
pintados com nanquim em preto e branco e impressos em papel jornal. Mesmo
não sendo uma animação, seus quadros sequenciais são repletos de
movimentações e onomatopeias, se comparados ao estilo americano.”
[Santoni, 2017, p. 11] Nesse sentido, observa-se que a acessibilidade à leitura
desse material é um fator que favorece a sua procura e também por se
apresentar num formato que fideliza o gosto dos leitores, inclusive os jovens e
adolescentes. Desse contexto depreende-se que por esse motivo essa
produção se torna tão lida entre a juventude.

Acrescido a essa questão, faz-se importante observar que, uma vez imergido
nesse universo, por menos que pareça, há também um processo de
modificação da realidade produzida por meio dessa leitura em diversos pontos
da vida desses leitores cumprindo assim o papel da literatura que é o de
provocar mudanças na vida daquele que a consome. Por isso mesmo que é
proeminente destacar que,

“Esses [re]significados transformam o modo pelo qual as pessoas enxergam o


mundo a sua volta, com as mudanças atenuantes que ocorrem diariamente
naquilo que as cercam e/ou nelas mesmas. Tais mudanças ocorrem
constantemente na vida das pessoas à medida que passam a conhecer novos
elementos e interagem com pessoas diferentes, seja na escola, no trabalho ou

113
na internet, essas relações descontroem certas ideias pré-estabelecidas e
assim, surgem novas percepções de mundo.” [Santoni, 2017, p. 20]

Do mesmo modo, faz parte desse universo também outras contribuições que,
talvez mesmo de forma implícita fideliza a mente do leitor por aspectos da vida
real como “(...) a influência moral e ética que é passada para o público, pois a
maioria destes produtos possuem em seu enredo, mensagens repletas de bons
valores como amor, persistência, busca por um sonho, amor e vários outros. E
mesmo os mais violentos tem alguma mensagem no contexto.” [Santos, 2020,
p. 14]

Somado ao que já foi mencionado, destaca-se também, em relação aos


Mangás, é o fato deles serem uma “literatura” de fácil leitura e que possuem
uma objetividade muito grande, de certa forma, diante de um público
consumista como o atual, os mangás se encaixam como uma alternativa
excepcional, pois

“Uma das características mais importantes do mangá é a utilização da


linguagem cinematográfica, a qual resulta em uma leitura mais dinâmica do
material impresso e dá ritmo para a história, somando-se à preferência por
enredos cujos sentimentos humanos sejam abordados de forma universal. É
preciso destacar que as comparações feitas aqui correspondem a HQs e
mangás mais comerciais, passíveis de até certo ponto algumas generalizações,
diferenciando-se de obras mais autorais e alternativas.” [Amaral & Carlos,
2013, p. 03]

A força oriental do Mangá na cultura brasileira


Assim como toda escrita se pauta em estrutura específica, o Mangá também
tem as suas características principais, e isso, junto ao que foi dito antes, pode
ser considerada uma grande fonte geradora de consumo inclusive pelo público
jovem pelo o seu dinamismo e processo estrutural. Nesse sentido,

“Em todos os formatos, é comum os desenhos serem monocromáticos. Na


maioria dos casos é em preto e branco, embora existam títulos cujas páginas
são coloridas só de rosa ou só de azul, por exemplo. Há também páginas
especiais totalmente coloridas, e em papel de melhor qualidade, tratando-se de
páginas iniciais do capítulo ou de bônus com desenhos que completam a
página. Além disso, a ordem de leitura dos mangás segue a ordem de leitura
japonesa, que para os ocidentais é ‘ao contrário’, ou seja, abre-se a revista do
que para nós seria a contracapa e lê-se da direita para a esquerda, tanto a
ordem dos quadros da página quanto a ordem dos balões de fala.” [Amaral &
Carlos, 2013, p. 02]

Aprofundando essa discussão, entre tantos fenômenos citados sobre o porquê


de o Mangá ter ocupado uma parcela tão grande no gosto dos leitores
brasileiros, destaca-se também a similaridade de quase realidade que esses
escritos carregam com consigo e nesse sentido ocorre a chamada

114
correspondência intuitiva. Dito de outra maneira, é quando o leitor vê nos
escritos possibilidades reais que se assemelham com as da realidade.

Diante dessa questão, constata-se que

“Após a leitura sobre a força que os quadrinhos japoneses possuem diante dos
jovens no país, é necessário refletir sobre o aspecto principal de seu sucesso
no Brasil. Podemos citar a linguagem atual e jovem, ou o estilo diferenciado no
desenho, na leitura. Ou os temas abordados, políticos, sexuais, românticos,
dramáticos, que abrangem o público em gostos e idades. Como hipótese,
atrevo-me a ressaltar a humanidade de seus personagens, como já citado
anteriormente. O fato de não serem somente super-heróis fortes, bravos, quase
sem pontos fracos, aproximam o personagem de seu leitor. Que pode, por
vezes, se identificar com o herói escolhido. Como um reflexo, um espelho,
tendo em vista que, todo adolescente quer ser como seu herói predileto. O
mangá proporciona isso. Personagens que choram, riem, comentem erros,
brigam, xingam, se iludem, fazem com que essa fase de confusão,
insegurança, na cabeça de um adolescente, não pareça tão assustadora,
exclusiva ou errada. Mostra que todos possuem dúvidas e medo, sem deixar
de ser, obviamente, forte, justo, e corajoso em alguns momentos. As meninas,
que são geralmente excluídas ou objetificadas nos quadrinhos tradicionais,
também possuem referencias positivas no mangá, com histórias exclusivas ou
temas mais apreciados voltados paras as mesmas.” [Brasil Escola, 2018, p. 11]

Mangás x Animes: relação entre a leitura e animação


Como visto acima, os Mangás têm longa tradição no Japão, o seu país de
origem, além de exercer grande influência por lá. Por sua vez de acordo com
[Garcia, 2022, p. 29] “Anime é o nome que se dá às animações japonesas,
geralmente desenhadas à mão, e produzidas como séries”. No entanto, nem
toda animação japonesa é um Anime. Neste sentido, os Animes é uma cultura
asiática e principalmente uma cultura japonesa, retratando diferentes forma de
ficção.

O Anime, traduzido literalmente como animação, segundo [Sato, 2007],


apresenta duas definições distintas, uma dentro e outra fora do território
japonês. Dentro do Japão, é considerado todo e qualquer tipo de desenho
animado. Fora do país, essa palavra foi convencionada a caracterizar,
especificamente, os desenhos animados produzidos no Japão.
Majoritariamente, os Animes são baseados nas narrativas apresentadas nos
mangás de sucesso no Japão. Contudo, a violência e a sensualidade
encontradas nessas narrativas são minimizadas quando transpostas para o
formato de animação, por ter uma maior veiculação, dentro e fora do Japão,
e ser mais atrativa para o público infantil. O anime, no seu país de origem, não
é algo voltado somente para crianças.

Dessa forma, através do sucesso dos Mangás, alguns deles foram deportados
para outro tipo de mídia, a exemplo do áudio visual, sendo o Astro Boy o
primeiro Anime a ser transmitido nas televisões japonesas em 1963, baseado

115
na obra de Osamu Tezuka, que com esse marco, essas animações
começaram a ser uma forma de entretenimento frequente no Japão. Assim,
com o sucesso dos Animes no Japão, os vários já escritos e animados pelos
japoneses, começaram a ser comprados e transmitidos nas televisões:
estadunidenses e europeias a partir do início do século XXI, iniciando a fase de
ouro dos Animes. [Sato, 2007]

O sucesso dos Animes pode ser atribuído pela sua forte carga cultural, pois há
um fascínio pela cultura asiática, um fenômeno que pode ser percebido pelo
crescimento dos Mangás, em que, cada Anime, assim como os Mangás sobre
os quais são baseados, têm seu estilo, o que intensifica sua identidade e, isso
os tornam mais populares. Neste contexto, observa-se que o público dessa
modalidade, costuma gostar tanto dos Mangás como dos Animes, pois ambos
possuem aspectos semelhantes. Como afirma [Nagado, 2007 apud Batistella,
2014, p. 96], quando explica que “a popularidade devastadora e definitiva do
Anime, juntamente com o fanatismo ligado a esse suporte de leitura, permitiu a
veiculação de um número cada vez maior de animações japonesas na
programação das redes de televisão do mundo.” Deste modo os textos de
Dragon Ball, Naruto, Dragon Ball Z, Sailor Moon, Yuyu Hakusho e Pokémon,
fizeram parte dos suportes de leitura mais consumidos na década de 80 e
90.

Acredita-se que isso se deu, devido a veiculação dos Animes em redes de


televisão sendo um fato motivador para a busca dessas narrativas em formato
impresso, contribuindo assim para o fomento da prática da leitura um ato tão
essencial. No Brasil, a década de 1990 é considerada um marco no mercado
dos Animes, dando destaque principalmente para: Cavaleiros do Zodíaco,
Sailor Moon, Dragon Ball e Pokémon, devido aos seus estilos que, graças à
popularização e desenvolvimento da internet, teve espaço para a solidificação
dessa cultura que permanece até os dias atuais, sendo seu consumo mais
frequente por meio de plataformas de streaming, como o Crunchyroll, que é
especializado nestes Animes, e a Netflix, que vem investindo cada vez mais em
conteúdo audiovisual vindo da Ásia.

Apesar de os Animes serem em formatos áudio visual os mesmos contribuem


para o enriquecimento do repertório de leituras, imaginação e
consequentemente desenvolve o aprendizado, pois, as diferentes formas de
ficções trazidas no contexto, faz com que as crianças e simpatizantes
desenvolvam uma personalidade criativa, na área de música e desenhos isso
contribui para o desenvolvimento de habilidades essenciais.

Como destaca [Batistella, 2014, p. 152]

“Ao abarcar aspectos presentes em situações sociais em suas narrativas, o


mangá e o anime contornam barreiras culturais, representam referenciais
composicionais com marcas histórico-geográfica, ideológica e comportamental
intertextualmente infinitas e tornam-se comunicáveis por meio de seus gêneros
e subgêneros.”

116
Isso promove uma reflexão sobre a importância desse tipo de texto incluído
nas diversas culturas de diferentes países, pois como descrito, contribuem
para a construção de aspectos positivos no desenvolvimento humano e nas
suas relações sociais.

De acordo com [Cândido, 1968 apud Batistella, 2014, p. 152], observa-se que,

“Por meio dos processos de apreensão e de inferência da leitura defronta-se


com a representação de seres humanos definidos, definitivos e ‘integrados
em um denso tecido de valores de ordem cognitiva, moral, político-social’ e
que, assim como os que visam a representar, tomam determinadas atitudes em
face desses valores. Nesse identificar entre personagens, narrativa e
realidade, o sujeito leitor subsisti as possibilidades humanas dificilmente
propiciadas por seu desenvolver individual por elementos ficcionais descritos e
ilustrados de modo a aparecer concreto e quase sensível. Logo, é no
vivenciar enleado de ideais e escolhas da personagem e do sujeito leitor que
há adesão afetiva e intelectual, identificação, projeção e transferência.”

Considerações finais
Através das pesquisas realizadas observou-se que tanto os Mangás quanto os
Animes são grandes influenciadores para um grande número de leitores tanto
em solo brasileiro quanto em todo o mundo. De origem asiática, os mesmos
contribuíram e continuam contribuindo para que a prática leitora se torne cada
dia mais constante, principalmente entre os mais jovens, tendo em vista o
gosto deles por histórias de ficção dos mais variados tipos. Em especifico, os
Animes, apesar de ser no formato áudio visual, contribuem para o incentivo à
leitura, pois, sua vinculação em diversas plataformas, contribui para a
disseminação das leituras impressas dos Mangás. Deste modo, pode-se
concluir que, os Mangás e os Animes têm grande influência no universo juvenil
para leituras.

Outrossim, essa pesquisa não teve objetivo de exaurir as discussões em torno


do tema, mas sim, de debater o assunto e produzir algum material relevante
sobre o tema. Sendo assim, sugere-se estudos posteriores que venham somar
a este ou até mesmo que aprofunde a temática em órbita a fim de que a
produção científica continue sendo um canal proficiente, articulador e
verticalizador de pesquisas.

Referências biográficas
Wagner Pereira de Souza é professor efetivo de Língua Portuguesa da
SEDUC/MT, Mestre em Letras pelo PPGLetras/UNEMAT, possui
Especialização em Coordenação Pedagógica e Língua Portuguesa, Oratória e
Redação, ambas pela FAEL – Faculdade Estadual da Lapa, Graduação em
Letras com fulcro em Português e suas respectivas Literaturas pela UNIR –
Universidade Federal de Rondônia.

117
Rosete Lopes França Maciel é Mestranda pelo PROFEI/UNEMAT - Mestrado
Profissional em Educação Inclusiva, Pós-Graduada em Alfabetização e
Letramento pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER, possui
Licenciatura plena em Pedagogia pela Faculdade de Itaituba/PA, é professora
concursada da SEDUC/MT, atuando nas series iniciais do Ensino
Fundamental.

Referências Bibliográficas
AMARAL, Adriana; CARLOS, Giovana Santana. Caracterizando o “estilo
mangá” no contexto brasileiro: hibridização cultural na Turma da Mônica
Jovem. Vozes & Diálogos - Itajaí, v. 12, n.1, jan./jun. 2013 – disponível em:
file:///C:/Users/PC/Downloads/praxedes1974,+04.+Amaral.pdf – Acesso em: 11
de mai. de 2023. [Artigo]

BATISTELLA, Danielly. Palavras e imagens: a transposição do mangá para o


anime no Brasil, 2014. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/102191/000930130.pdf?Sequence
=1&isallowed=y. Acesso em: 12 de mai. de 2023. [Tese de Doutorado]

BRASIL ESCOLA. A utilização do mangá no âmbito da ilustração na cultura


jovem brasileira, 2018. Disponível em:
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/arte-cultura/a-utilizacao-manga-no-
ambito-ilustracao-na-cultura-jovem-brasileira.htm - Acesso em: 11 de mai. de
2023. [Site]

GARCIA, Camila. Anime: entenda o que é, conheça categorias e porque faz


sucesso.Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/vidaearte/2022/06/21/anime-entenda-o-que-e-
conheca-categorias-e-por-que-faz-sucesso.html>. Acesso em: 12 de mai. de
2023. [Artigo]

REVISTA MULTIDISCIPLINAR DE ESTUDOS NERDS/GEEK. Neon Genesis


Evangelion e a ressignificação do tecno-orientalismo pela sociedade japonesa.
Rio Grande, v. 3, n. 5, jan-jul. 2021. Disponível em:
https://revistaestudosnerds.furg.br/images/v3n5/silva_et_al_2021.pdf. Acesso
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ROSA, Sara Carulina Silva da. Anime: do Japão para o mundo, 2017.
Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/artenosul/2017/11/13/anime-do-japao-
para-o-mundo/ - Acesso: 12 de mai. de 2023. [Artigo]

SANTOS, Nilson. Por que mangás e animes fazem tanto sucesso? – 2020.
Disponível em: https://skdesu.com/por-que-animes-fazem-tanto-sucesso/ -
Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Artigo]

SANTONI, Pablo Rodrigo. Animês e Mangás: a identidade dos adolescentes,


2017. Disponível em:

118
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24480/1/2017_PabloRodrigoSantoni.
pdf - Acesso em: 11 de mai. de 2023. [Revista]

SATO, C. A. Japop. O poder da cultura pop japonesa. São Paulo: NSP-


Hakkosha, 2007. [Livro]

119
UMA SIMULAÇÃO À EGÍPCIA: ANÁLISE DO DESFILE
DOURADO À LUZ DE BAUDRILLARD, por Allyson Afonso dos
Santos Silva e Hannah Cabral Dantas de Barros Teixeira

Ato I: Introdução
Os últimos 3 anos foram recheados de eventos, produções e discussões que
movimentaram a área para curiosos e interessados em História Antiga, ou,
mais particularmente, na História do Egito Antigo. Em 2021, tivemos a
Pharaoh’s Golden Parade (Desfile Dourado dos Faraós), em ocasião da
transferência de 22 governantes mumificados dos períodos faraônicos para o
Museu Nacional da Civilização Egípcia; The Grand Opening of the Sphinx
Avenue in Luxor (A Grande Abertura da Avenida das Esfinges em Luxor), em
comemoração à abertura ao público da antiga Avenida das Esfinges, que liga
os templos de Luxor e Karnak; mas também comemorações de datas caras a
Egiptologia, como os 200 anos desse campo de estudos e 100 anos da
descoberta da tumba do faraó Tutancâmon, ambos em 2022.

Tais eventos evocaram elementos do Egito Antigo em nome de uma


revitalização da história do país em um contexto muito específico, que gerou
debate sobre as formas com as quais esse passado foi usado ou apresentado.
Não obstante, desfiles anteriormente citados destacaram-se não apenas pelos
signos utilizados, mas também pela reverberação nas diversas mídias, tendo
sido transmitidos em tempo real em lives, especialmente por canais no
YouTube, com traduções simultâneas em francês, espanhol, inglês e outros.
Há neste contexto a propagação de um discurso não apenas para si (egípcios),
mas também para nações estrangeiras.

Diante deste contexto, nos parece acertada a afirmação de Christian Langer,


segundo o qual: “Em última análise, a herança egípcia é um espaço
contestado, um campo de batalha ideológico entre as diferentes partes [...].
[2021, p.255 – 256]. O Egito, como espaço histórico e ideológico, é, ao que
indica Langer, um território em disputa. Essa, discursiva e narrativa, gera
diferentes versões sobre o Egito real, — por vezes, propostas como mais reais
do que esse — cópias imperfeitas, ou, devemos chamá-las de Simulações?

A discussão em eventos e revistas acadêmicas acerca do Desfile Dourado dos


Faraós no Brasil contou com duas publicações de destaque: Quando os faraós
desfilam no presente: a Marcha Dourada dos Faraós no Egito Contemporâneo
(2021), de Francismara Lelis; e O Desfile Dourado dos Faraós (2021): Múmias,
museus e identidade nacional egípcia, de Nina Paschoal, Naiara de Assunção
e Francismara Lelis. Se a primeira publicação focou numa análise dos
discursos visuais e orais proferidos, por meio do qual pensou-se as
representações elaboradas e o uso do passado faraônico do Egito, o segundo

120
focou em elementos simbólicos do desfile, contextualizando-os em meio a
teoria do orientalismo de Edward Said.

Apesar de estarmos em diálogo com essas publicações, propomos uma


abordagem diferente nesta comunicação. Iremos analisar brevemente o Desfile
Dourado dos Faraós e seu contexto político de produção, buscando interpretá-
lo sob as noções de simulação e simulacro do filósofo francês Jean Baudrillard.
Defendemos que dentre as diversas interpretações em torno da narrativa que
se constituiu o mencionado desfile, resta pensá-lo também sob essa (ou essas)
formas.

Ato II: O Contexto político


O Desfile Dourado dos Faraós foi um momento de mobilização do passado
egípcio pelo presente. Um movimento que, no entanto, não parece ser uma
novidade, mas um fruto da própria cunhagem do campo da Egiptologia, cujo
momento fundante se dá entre o fim do século XVIII e o início do século XIX,
coincidindo com a então invasão e conquista do território egípcio pelos
franceses. Ocorrendo em paralelo com o colonialismo europeu no Oriente
Médio, como aponta Langer [2015, p.245].

O legado de grandiosidade da antiga civilização faraônica foi, então, cooptado


como forma de legitimação da dominação europeia sobre o Oriente e a África.
A aparente posse e aparelhamento do passado pelos europeus serviu naquele
momento para marcar uma dualidade: os conquistadores, se destacam pela
“civilidade” e “esclarecimento”, enquanto seus conquistados, pelo
“obscurantismo” e “barbarismo”.

Se os conquistadores versavam civilidade no presente, nada mais lógico do


que ter as civilizações do passado como seus prenunciadores. A história do
Egito Faraônico foi então concebida enquanto prenunciadora da civilização
ocidental. “No final do século XIX, o Egito faraônico havia se tornado uma tela
de projeção de valores monárquicos e de um senso europeu de superioridade
cultural e racial” [LANGER. 2015, p.249].

Se a produção de uma história Antiga do Egito tem seu início formal


obedecendo a moldes colonialistas e eurocêntricos, no século XX, movimentos
de libertação do colonialismo ocorreram por todo o território africano, com
resultados que incluíram a independência do Estado Egípcio do domínio
britânico. O combate ao domínio colonial foi além dos limites geográficos,
narrativas e interpretações passaram a surgir como modo a permitir as antigas
colônias criarem suas próprias narrativas sobre si e seus passados.

Não abastante, narrativas sobre o passado são evocadas e interpretadas de


modo a justificar e exaltar aspectos do presente, sejam nacionalismos ou
figuras específicas, por exemplo: na busca por corroborar a crença de que o
Egito foi sempre liderado mediante uma figura de autoridade forte, que a
iconografia egípcia antiga é usada publicamente. “As paredes externas dos
quartéis egípcios, por exemplo, são decoradas com relevos que retratam a

121
gloriosa história dos militares egípcios ao longo dos tempos. A sequência
começa com um relevo de batalha ao estilo do Reino Novo, mostrando o
poderoso rei em sua carruagem, descendo e atirando em inimigos estrangeiros
com seu arco”. [LANGER. 2015, p.253]. E é como um passado a serviço do
presente que Pharaoh’s Golden Parade se insere.

Ato III: A Simulação Dourada


O Desfile Dourado dos Faraós (Pharaoh’s Golden Parade) ocorreu no dia 3 de
abril de 2021, na cidade do Cairo, Egito, e, apesar da sua denominação
“desfile”, foi um evento de proporções maiores, contando com um concerto de
orquestra, cantores de ópera egípcios, atores, a presença de delegações de
países estrangeiros, assim como do Ministério do Turismo e Antiguidade
Egípcio [LELIS, 2021, p.111] e diversos voluntários, especialmente estudantes,
que trabalharam nas encenações, danças e logística [LE POINT, 2021]. O
objetivo do Desfile era transportar 22 múmias, 18 faraós e 4 rainhas, do Museu
Egípcio em Tahir ao novo Museu da Civilização Egípcia, localizado em Old
Cairo, um trajeto de cerca de 6 km.

Numa demonstração única de beleza, glorificação, exaltação e uso do passado


do século XXI, o governo egípcio decidiu tornar o transporte um evento e assim
o fez, transformando trechos da cidade do Cairo no cenário de uma grande
festa em que todas as músicas, danças, discursos e encenações entoadas
seriam em honra ao Egito e seus históricos (e porque não também atuais)
governantes.

Realizado numa noite de primavera, as festividades do desfile duraram cerca


de 2h e foi transmitido ao vivo em 18 canais internacionais, assim como contou
com cobertura jornalística do mundo todo [LELIS, 2021, p.111]. O evento
articulou o Egito moderno, por meio dos atores e atrizes, cantores e músicos,
mas também o Egito Faraônico, com o uso de símbolos, objetos, gestos e até
mesmo o idioma antigo repensados e reclamados pelo Egito do presente.

Os faraós e rainhas, que contavam com múmias conhecidas como as de


Amose Nefertari, Ramsés II, Hatshepsut e Tutmés III, foram transportadas em
carros projetados especificamente para o momento. Gravados na parte visível
e externa dos carros estavam em três alfabetos e idiomas (inglês, hieróglifo e
árabe), o nome da múmia que estava sendo transportada. As cores e os
designs em padrões de dourado simulavam a forma da barca solar, emanando
seus feixes de luz. Internamente, uma tecnologia minuciosamente planejada foi
aplicada, contando com câmaras de alta conservação em nitrogênio,
protegidas também por um sofisticado sistema de suspensão que permitisse o
mínimo de movimentos internos, afim de preservar seu valioso conteúdo: os
corpos mumificados de mais de 2000 anos [CARMO, 2021, s/p]. Eram
carruagens dignas de faraós.

Em procissão, ao som de cantoras e da orquestra sinfônica da Opera House do


Cairo, homens e mulheres executavam belas danças, vestidos com uma
indumentária leve (porém com as penas cobertas) de cores

122
predominantemente azuis, os olhos marcados e adereços dourados que em
muito remeteram a ideia popular de uma vestimenta egípcia [O GLOBO, 2023,
s/p]. Bastava uma imagem, e o ideário popular construído por grandes filmes
como Cleópatra [1963], faria o espectador associar aquele momento a um
passado do Egito antigo, agora vivo, pulsante e mais uma vez deslizando pelos
bancos orientais do Nilo estavam egípcios a acompanhar seus faraós e suas
rainhas.

Também estavam no desfile carruagens puxadas por dois cavalos conduzidas


por homens vestidos de túnica branca com adereços dourados. A carruagem
em si, muito semelhante àquela encontrada na iconografia associada a
Ramsés II, mas também naquela encontrada na tumba de Tutankamon. Ao
longo das avenidas, plumas azuis com detalhes dourados e a logo
identificadora so evento no topo, maiores que homens, ladeavam o festejo.
Uma reprodução adaptada da famosa pluma de Maat, princípio do Egito Antigo
ligado à “[...] à justiça, à ordem e ao equilíbrio. Representava a ética segundo a
qual a humanidade deveria agir em concordância com uma consciência
universal.” [BRANCAGLION, 2004, p.139].

Cenas filmadas no Novo Museu Nacional da Cultura Egípcia foram


apresentadas, mostrando sua grandiosidade, assim como as tecnologias
aplicadas no estudo e conservação da cultura material ali guardada
[EXPERIENCE EGYPT, 2021, s/p]. Ademais, dentre os diversos momentos, um
deles também merece ser comentado. O presidente egípcio e muçulmano
recebeu as múmias com cerimônias de Estado ao postar-se diante das
carruagens enquanto estas passavam, recepcionando aqueles faraós e rainhas
[EXPERIENCE EGYPT, 2021, s/p]. O momento capitalizou não apenas uma
reverência aos líderes faraônicos do Egito, mas também associou a figura do
presidente Abdul Fatah Khalil Al-Sisi e do próprio Egito ao seu passado
faraônico, e não apenas islâmico, clamando para si a história de uma das mais
antigas sociedades do mundo. Diante desta breve descrição, o pensemos,
então, sob os ensinamentos de Baudrillard.

Ato IV: A Simulação faz-se Simulacro (?)


Se educacionalmente, nas escolas egípcias o ensino de hieroglifos faz
necessária a tradução da escrita do Egito Antigo para o árabe, politicamente, o
presidente Al Sisi precisa traduzir a História Antiga de seu país para um
constructo que abrace uma gama maior de interlocutores. Equilibrando os
países ocidentais, ainda saudosos do Egito Eterno [PIRES, 2019], com grupos
internos do país, como a maioria de egípcios árabe muçulmana e minorias, de
importância, como os egípcios cristãos, coptas, minoria “construída como
legítima sucessora do Egito faraônico no início do século XX [...] ” [HORDURY,
2003, p. 154 – 158; REID, 2002, p. 258 – 285; REID, 2015, p. 212 – 218; apud
LANGER, 2021, p.255]. Alguns aspectos dessa complexidade ficam evidentes
ao analisar o Desfile Dourado dos Faraós.

Mas, e como Baudrillard nos ajuda a entender esse jogo de equilíbrio, de um


Egito que tenta dialogar, agradar, interlocutores em diferentes frentes,

123
enquanto se afirma como detentor legítimo do legado faraônico? Como o
desfile se encaixa nesse propósito? Para tentar responder a estes
questionamentos, vamos nos apropriar e discutir os conceitos de Simulação e
Simulacro, formulados pelo autor.

É inegavelmente estranho fazer agenciar conceitos que inspiram obras


contemporâneas, como os filmes Matrix, para falar de Egito Antigo e de seus
usos no presente; no entanto, o próprio autor se adiantou ao conversar o
conceito de Simulacro com a múmia de Ramsés II, na segunda parte do
primeiro capítulo de seu livro Simulacro e Simulação. (BAUDRILLARD, 1991,
p.13 – 18). A múmia do faraó, naquela análise, aparece enquanto um
Simulacro de si. Enquanto um corpo, que até há pouco havia sido deixado de
lado em algum museu, mas que na iminência de sua perda faz-se necessário
trazer-lhe de volta à vida. Uma vez que, mesmo desprovida de vida, ela é
Ramsés II. De modo que não importa o homem que uma vez viveu, o Ramsés
do passado, ou se aquele corpo realmente lhe pertenceu. Nós o reconhecemos
como real, de tal modo que: aquele é Ramsés (hiper)real.

De maneira diferente, o Desfile Dourado dos Faraós foge a categoria de


simulacro, adentrando, em contraponto, no conceito de Simulação. “Simular é
fingir ter o que não se tem.[...] uma ausência” [BAUDRILLARD, 1991, p.9-10].
Essa, se tenta preencher no Museu Nacional da Civilização Egípcia, em
verdade, no percurso comemorativo que leva até ele. As bigas e seus
condutores, as Cleópatras, as barcas que levam os corpos mumificados e os
cânticos entoados, todos esses simulam a presença de um passado que já não
é.

Entretanto, dos homens que conduzem as bigas, às mulheres vestidas de


Cleópatra e, até mesmo, nós, contribuímos para que a Simulação não se faça
Simulacro. Se acreditamos piamente que a múmia de Ramsés, é Ramsés II, o
mesmo não acontece com o desfile. Tanto nós, quanto os participantes,
sabemos que aqueles não são guerreiros da antiguidade, que aquelas não são
Cleópatra e que aquele não é um cortejo egípcio antigo. Apesar de buscar se
ancorar em fatos históricos, o desfile, com diferentes níveis de fidelidade, —
que não são ingênuos — apenas os simula. Todavia, o assunto se mostra mais
complexo, “pois simular não é fingir: ‘Aquele que finge uma doença pode
simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que
simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas’”
[BAUDRILLARD, 1991, p.9-10].

E quais são os “sintomas” que o Egito atual determina em si próprio? O evento


de 2021, recorre à história, fatos e artefatos históricos que norteiam, oferecem
referencial e veracidade a tudo aquilo que está ocorrendo. Como aponta
Francismara Lélis [2021, p.114], em momentos do cortejo, assim como em
apresentações, dançarinas performam uma coreografia cujos movimentos
remetem à iconografia do Egito Antigo. Assim, é mantida uma ligação ao Real,
a fonte histórica.

124
Entretanto, assim como a Simulação de Jean Baudrillard não demanda
exatidão e fidelidade, apenas algum vínculo ao Real, a performasse descrita
não propõe a exatidão, mas a referência. Uma vez que “[...] o posicionamento
dos corpos na arte oficial do Reino Novo não objetivava retratar movimentos,
mas deixar visível o máximo dos membros dos corpos representados, sem
sobrepô-los nem os esconder” [LÉLIS, 2021, p.114]. A iconografia não
representa dança, mas torna-se. Um Simulação inexata não necessariamente
ocorre como erro ingênuo, mas como adaptação com fins artísticos, ideológicos
ou, mesmo, políticos. Nos atentemos ao que aponta Lélis:

“O desfile dos faraós utilizou aspectos orientalistas que podem comover a


população egípcia, mas principalmente o público ocidental, se servindo de
símbolos familiares ao imaginário do público estrangeiro, como o cortejo de
mulheres com figurinos que remetem à figura de Cleópatra interpretada por
Elizabeth Taylor no filme de 1963” [2021, p.114].

“Os impérios europeus construíram a concepção do Egito como precursor da


civilização ocidental e, dessa forma, como seu apêndice natural” [LANGER,
2021, p. 247]. A afirmação de Langer torna-se aqui importante para
compreender o invocar de signos que a primeira vista nos parecem estranhos:
um país de maioria árabe invocando imagens orientalizadas, tomando o
conceito de Said, para falar sobre si. O Egito moderno evoca o mito do “Egito
Eterno” (Pires, 2019) para capitalizar o seu passado via turismo, um dos
maiores geradores de receita para o país [LANGER, 2021]. Assim, não seria
estranho nos depararmos com o apontado por Lélis acima sobre a figura da
Cleópatra. Ao retratar a rainha, não se retrata diretamente a original, a qual
nem mesmo conhecemos o rosto, se retrata a Elizabeth Taylor performando
Cleópatra; uma simulação de uma simulação. Uma mescla de signos possíveis
de serem reconhecidos pelos próprios egípcios, pelo ocidente e pelo oriente.

Como essas simulações do Egito lá da História Antiga migram à Simulacro?


Nossa hipótese, amparada em nossa aplicação dos conceitos de Baudrillard, é
que se tenta criar uma realidade no presente, que, apesar de inspirada em
signos do passado “real”, se desconecta dele. Explicamos: o primeiro Egito, o
faraônico, já não existe. Temos acesso a fragmentos dele por meio da história
e arqueologia. Disciplinas geradoras de um segundo Egito, o egiptológico, que
como um quebra-cabeça com peças faltantes, nos oferece vislumbres
incompletos do primeiro, por meio das fontes literárias e materiais. O terceiro
Egito, do discurso, apesar de falar sobre o primeiro, o acessa intermediado
pelo segundo. O que ele cria é filtrado subjetivamente, por interesse, ideologia
ou escolha, exaltando certos aspectos, enquanto deixa outros de lado. O
quarto, é a versão do Egito que se visa criar e do qual o Desfile Dourado
oferece evidências: um Egito mais real que o real. Um Simulacro.

O segundo e o terceiro “Egitos” são Simulações, versões que mimetizam o


primeiro com diferentes graus de fidelidade, mas que mantém sempre o Egito
original, faraônico, enquanto âncora. O Simulacro, por sua vez, não é ancorado
no Egito real, suas referências estão em um Egito idealizado, que não existiu

125
para além da narrativa, discurso ou do mito. E é esse ideal que se tem em vista
materializar, tornar real.

Ato V: Encerramento
Na velocidade da era tecnológica moderna, as transmissões simultâneas em
diferentes línguas, a cobertura jornalística, os turistas, as fotos e as redes
sociais, permitiram ao Desfile Dourado dos Faraós percorrer muito mais que os
7 quilômetros entre museus. Ele percorreu o mundo, mas não sozinho. A
escolha de locais, figurinos, músicas, do que foi dito, assim como das pessoas,
visou criar imagens específicas sobre o Egito, buscou-se criar discursos.
Esses, não apenas como falas sobre a realidade, mas como tentativa de
instituir um real. Uma realidade hiper-real, pois não mais é ancorada no Egito
original, no passado, mas em um discurso sobre esse. Um Simulacro.

A partir desse, o Egito moderno tenta, assim como fez a França quando do
surgimento da ciência egiptológica, parafraseando Langer, inserir-se em uma
tradição da “outrora grande” civilização egípcia. A partir de uma suposta missão
de restaurar o país à grandeza ancestral. [LANGER, 2021, p. 247]. Essa busca
visa fazer encontrar o Egito do presente, com o Egito do passado idealizado.
Visa exaltar o nacionalismo e fazer entender-se, diante dos observadores
externos, herdeiro digno e legítimo do legado faraônico. Cunhar linearidade
entre o passado islâmico e o passado dinástico, passando, entre eles, pelo
passado dos cristãos egípcios, coptas. Cunhar bons termos, políticos e
turísticos com oriente e ocidente para, por fim, transformar o Egito “Eterno”, o
“Orientalizado” e o “Outrora Grande” em um novo Egito “Real”.

Referências
Allyson Silva é mestrando em História e Espaços pelo programa de pós-
graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), bolsista CAPES (2023-2024). Licenciado e bacharelando em História
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Hannah Cabral é mestranda em História e Espaços pelo programa de pós-


graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), bolsista CAPES (2023-2024). Bacharela em História e em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relogio d'Agua,1991.

BRANCAGLION JUNIOR, Antonio. Manual de arte e arqueologia do Egito


Antigo II. Rio de Janeiro: Sociedades dos Amigos do Museu Nacional, 2004.

CARMO, Mayara. Egito nos holofotes do Mundo com o Desfile de Ouro dos
Faraós. Site Vida no Egito. [S.L.], 2021. Disponível em:
https://vidanoegito.com/2021/04/07/egito-nos-holofotes-do-mundo-com-o-
desfile-de-ouro-dos-faraos/. Acesso em: 28 jul. 2023

COSTA, Márcia Jamille. Egito dará aulas de hieróglifos para alunos do ensino
fundamental e médio. Arqueologia Egípcia, 16 Abr. 2021. Disponível em:

126
http://arqueologiaegipcia.com.br/2021/04/16/egito-dara-aulas-de-hieroglifos-
para-alunos-do-ensino-fundamental-e-medio/ . Acesso em: 28 jul. 2023.

EGYPT TODAY. Egypt to introduce hieroglyphs into educational curricula next


year. 05 Abr.. 2021 Disponível em:
https://www.egypttoday.com/Article/4/100553/Egypt-to-introduce-hieroglyphs-
into-educational-curricula-next-year . Acesso em 28 Jul. 2023

EGYPT TODAY. BA organizes hieroglyphics training courses for teachers of


Egypt’s primary schools. Disponível em:
https://www.egypttoday.com/Article/4/100813/BA-organizes-hieroglyphics-
training-courses-for-teachers-of-Egypt%E2%80%99s-primary . Acesso em: 28
jul. 2023

EXPERIENCE EGYPT. Experience Egypt live stream - The Pharaoh’s Golden


Parade. Youtube, 03 abril 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bnlXW7KZl0c&t=541s. Acesso em: 28 jul.
2023.

FOLHA DE S. PAULO. Desfile de múmias no Egito. 3 abr. 2021. Disponível em:


https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1696045505788639-desfile-de-
mumias-no-egito. Acesso em: 28 jul. 2023.

GUBASH. Charlene; CAHILL. Petra, Egypt reopens 3,000-year-old Avenue of


Sphinxes in grand, glitzy Luxor ceremony. NBC News. 25 nov. 2021. Disponível
em: https://www.nbcnews.com/news/world/egypt-reopen-ancient-avenue-
sphinxes-luxor-karnak-parade-rcna6723 Acesso em: 28 jul. 2023

LANGER, C. O colonialismo informal da Egiptologia: da missão francesa ao


Estado de segurança. Mare Nostrum, [S. l.], v. 12, n. 1, p. 243-268, 2021

LELIS, Francismara de Oliveira. Quando os faraós desfilam no presente: a


Marcha Dourada dos Faraós no Egito Contemporâneo. In: BUENO, André [org].
Mundos em movimento: Próximo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto
Orientalismo/UERJ, 2021, p. 111-118.

LE POINT. Spectacle pharaonique et défilé de momies royales au Caire. 03


abr. 2021. Disponível em: https://www.lepoint.fr/monde/ramses-ii-et-
hatchepsout-au-grand-defile-des-momies-royales-au-caire-03-04-2021-
2420562_24.php#11 . Acesso em: 28 jul. 2023.

O GLOBO. Veja como foi o desfile dourado dos faraós pelas ruas do Cairo
capital do Egito. 08 abril 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/boa-
viagem/veja-como-foi-desfile-dourado-dos-faraos-pelas-ruas-do-cairo-capital-
do-egito-24960589. Acesso em: 28 jul. 2023

PASCHOAL, Nina; ASSUNÇÃO, Naiara; LELIS, Francismaria. Desfile Dourado


dos Faraós (2021): Múmias, museus e identidade nacional egípcia. Revista
espacialidades, [online], Natal, v. 18, n. 2, 2022.

127
PIRES, Rafael dos Santos. O mito do Egito Eterno: desenvolvimento
acadêmico, impactos políticos. Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2,
jul./dez.,2019, p. 290-311.

128
A SERPENTE ORIENTAL: HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO
NA DANÇA DO VENTRE, por Tanya Mayara Kruger

Uma breve história sobre a origem da dança do ventre


O termo “Dança do Ventre” origina-se a partir do francês “danse du ventre”,
nomenclatura dado pelos europeus após os primeiros contatos com as formas
de dança observadas, sobretudo, no Norte da África e no Oriente durante os
processos imperialista.

A “dança do ventre” ou também denominada “dança oriental” é uma dança


milenar praticada no Norte Africano e no Oriente Médio Não se sabe ao certo
onde surgiu, sendo a hipótese mais aceita entre os historiadores é que ela
tenha emergido no Antigo Egito, como uma dança ritualística, realizada em
templos, para homenagear as deusas. Contudo, vale ressaltar que alguns
estudiosos acreditam que a dança do ventre tenha surgido durante a pré-
história.

Desse a Antiguidade, é possível através de esculturas, produzidas em argila,


encontrar características presentes na dança do ventre torço curvado para
frente e braços erguidos com as mãos viradas para dentro. Diante disso,
acerca das origens históricas da dança do ventre, segundo o estudioso Relke
(2011, p. 397): “Com o avanço da teoria e técnicas arqueológicas, egiptólogos,
abandonaram esta interpretação como simplista e sem evidências, com
exceção de um grupo de feministas que reviveu a teoria da Deusa Mãe,
reinvestindo estatuetas pré-históricas femininas com status divino”

Segundo Assunção (2021), é extremamente complexo datar e afirmar onde


tenha emergido a dança, haja vista que também há trabalhos históricos que
alegam que essa dança tenha surgido no Oriente Médio, em regiões como a
atual Turquia e Síria. De acordo com a autora, Assunção (2021, p.38): “Essa
multiculturalidade sincrônica e diacrônica dificulta pensar na transmissão de
manifestações culturais – como a dança – que tenham permanecido
inalteradas ao longo de todo esse tempo. Soma-se a isso a dificuldade em
estudar “dança” historicamente por conta da acessibilidade às fontes.”

Desse modo, movimentos ondulatórios, premissa base da dança do ventre e


movimentos de quadril, são encontrados em pinturas na atual Síria, Turquia,
Líbano, dentre outros países, sendo complexo datar e demarcar o local de sua
origem.

De acordo com Wendy Buonaventura (1989), autora do livro “Serpent of the


Nile: Women & Dance in the Arab”, encontra-se vestígios de uma dança pélvica
que ainda pode ser encontrada em algumas regiões do Oriente Médio e do

129
norte da África, e que era usada por mulheres desde a antiguidade. A autora
(1989, p.32) afirma que:” É quase certo que essa dança tinha conexões com
ritos de fertilidade e também com alguns movimentos feitos durante o parto,
para ajudar no nascimento da criança.”

Boaventura (1989) afirma que dança do ventre é uma dança de caráter


feminino, na qual seus movimentos estão muito ligados a região pélvica,
quadris e barriga. Contudo, para Assunção (2021) é importante salientar que a
prática masculina foi sensivelmente apagada e silenciada em detrimento das
representações das danças femininas no Egito Antigo, sobretudo pelo olhar
ocidental, patriarcal, imperial, heteronormativo masculino.

O discurso heteronormativo torna a discussão sobre a dança do ventre ainda


mis complexa, para Sellers-Young ( 2014, p.136) o que causou a ruptura das
tradições locais e levou à criação de uma comunidade global ampliada de
dança do ventre no século XX, durante um período em que um extenso diálogo
sobre a formação da identidade feminina e masculina estava em curso na
Europa Ocidental e na América do Norte.

Além disso, uma outra consequência é que homens até hoje são proibidos de
atuar profissionalmente como dançarinos de dança do ventre, sendo liberados
para atuar nessa profissão apenas como instrutores (ASSUNÇÃO, 2021).

A evolução histórica da dança do ventre


Assunção (2021) chama a atenção para a distinção existente entre ‘awalim’ e
‘ghawazi’. As primeiras, eram um grupo de mulheres eruditas que cantavam e
letras improvisadas para ‘mawal’ ou baladas, um feito pelo qual eram altamente
valorizadas. Já as ‘ghawazi’ dançavam em espaços públicos e muitas vezes
também, por uma questão financeira, acabavam se prostituiam.

Assim, mesmo diante da complexidade do seu surgimento, acreditasse que a


expansão da dança do ventre se deu devido as diversas invasões árabes e
também aos inúmeros processos de colonização.

De acordo com Assunção (2021), quando o Egito foi invadido pelos europeus
no século XIX, o governo de Muhammad ‘Ali Pasha lançou uma lei que impedia
apresentações públicas de dança no Cairo e em Alexandria. Desse modo, a
dança milenar foi estigmatizada. Acerca da dominação no Egito segundo o
estudioso Abel- Malek (2010, 402): “a imitação do Ocidente era vista, com
alegria, como uma operação de superfície – um espelho do ser possível, já que
não podia se tratar de um possível atualizável: a vestimenta; o urbanismo; a
música sob a forma de ópera, mas também de composições militares; o teatro,
sobretudo; esboços de romance.”

Para Malek (2010), o mundo ocidental era o modelo a ser seguido, sua cultura,
sua arte era o paradigma historiográfico a ser seguido. Para o autor (2010,
p.402): “a expressam os ditados, os provérbios e os costumes, era impregnada
por um sentimento de usurpação.” De acordo com a autora, é a partir do
imperialismo europeu que surge a raqs sharqi, que significa “dança oriental”,

130
para assim, se distinguir das danças ocidentais. A raqs sharqi era praticada em
casa de entretenimento no Egito no século XIX.

A evolução da dança do ventre está nitidamente ligado o colonialismo europeu,


que assim como todo o processo de colonização, há uma transculturação, na
qual a cultura do dominar, tende a se sobressair ou mesmo ser imposta ao
dominado. No Egito e nos demais países do Oriente Médio e do Norte Africano
não fogem a regra.

Logo, há uma mudança na dança em seu caráter simbólico e também cultural.


Assunção (2021), alega que foi nesse momento que a dança passa a assumir
um caráter de certa forma “comercial”. Antes, como vimos, a dança era uma
forma ritualística e era dançada só em momentos especiais e festivos.
Contudo, nesse período, a dança assume um caráter comercial e passa a ser
performada como uma atração artística.

Como vimos, vale ressaltar que a proibição da dança do ventre em espaços


públicos nos séculos XVIII e XIX contribuiu para que houvesse uma
transformação dentre do próprio contexto em que a dança estava inserida e
também dentro da sua simbologia

Vale ressaltar que, a dança do ventre ainda é um tema polêmico em termos


históricos, tendo em vista que muitas fontes que temos a respeito da dança do
ventre são de viajantes ocidentais que retrataram através do seu olhar cultural
e identitário, os processos orientais.

Um dos elementos orientais que mais causavam interesses dos europeus era o
harém. Vale frisar que, o harém nada mais é do que o espaço reservado à vida
íntima, familiar, seja num palácio ou numa casa comum, um ambiente
familiar na qual outras pessoas não podiam entrar Assunção (2021).
Entretanto, de acordo com Fernanda de Camargo-Moro (2012), o harén será
visto pelo europeu como um lugar de sexualidade.

É dentro desse contexto que se é propagado de forma errônea a imagem da


Odalisca. O termo odalisca vem do turco uadahlik, que significa criada de
quarto. Sobre as Odalisca, Dib (2018) que dentro da hierarquia que existia nos
palácios, quem estava no patamar mais baixo, eram mulheres escravas
compradas em mercados, ou adquiridas em guerras, vendidas muitas
vezes por sua própria família ou raptadas, que posteriormente eram levadas
para o palácio para serem criadas.

Ainda segundo Dib (2018, p04), sobre as odaliscas, ele afirma que elas
chegam muito novas ao harém e logo, recebem um treinamento. “ Este
treinamento incluía modos, etiqueta, leitura do Alcorão, bordado, tecelagem,
poesia, música, dança. Ao contrário daquelas retratadas reclinadas à espera de
alguém, sabe-se que as odaliscas tinham suas ocupações e também suas
ambições.”

131
Desse modo, a autora defende que a imagem que foi propagada a certa da
figura da Odalisca, nada mais é do que uma visão eurocêntrica distorcida. De
acordo com Metin Nad (1989,p.93), historiador da dança turco, que resume de
forma precisa os desafios e perspectivas de se estudar a dança oriental a partir
de fontes ocidentais, segundo o autor: “Fontes turcas oferecem pouca
informação em relação a dançarinos e dançarinas. Isto porque a dança era
considerada, por muitos escritores do passado, como um esporte impróprio e
imoral, especialmente quando praticado por mulheres e garotos profissionais.

Ainda de acordo com o autor, Ned (1989, p.93):”por outro lado, viajantes
estrangeiros deram muita atenção a este tópico em seus livros e, apesar de
enfatizar a moralidade frouxa e o caráter obsceno da dança, eles não podiam
esconder de suas descrições seu interesse, que lhes tirava o fôlego, em
relação a estas performances.”

Devido a uma visão eurocêntrica e propagada de forma errônea, muitas vezes,


até hoje, a dança do ventre é associada a figura da odalisca, sempre retrata de
forma sexualizada e seduzente. Sobre essa distorção da representação da
dança do ventre Assunção (2021, p.34) alega: “essas representações, portanto,
associam-se diretamente com a ideia fantasiosa que os europeus construíram
sobre o que eles mesmos denominaram “dança do ventre”, a partir do contato
que com as apresentações de três grupos associados ao entretenimento...”

Dessa forma, o Oriente nasce a partir de uma visão eurocêntrica, na qual o


“orientalismo” estaria associado ao “outro”, a algo exótico que diverge da
cultura ocidental. De acordo com Assunção (2021, p.80), a dança do ventre
surge com o imperialismo inglês e nesse contexto eurocentrista. a
apresentação de dançarinas e dançarinos profissionais ocorria em ocasiões
especiais: em festivais de rua, celebrações de casamentos, de batizados ou
uma festa em honra a algum visitante especial no caso de famílias abastadas.”

Assunção (2021), afirma que no século XX, principalmente através da TV, a


dança do ventre terá uma ampla divulgação. A partir disso, surgirão
ramificações da dança do ventre, como a Tribal Fusion, um estilo de dança que
mistura elementos da dança do ventre com os da cultura ocidental. Esse tipo
de dança ganhará bastante destaque principalmente nos Estados Unidos.
Contudo, mesmo havendo variações, de acordo com Assunção (2021, p.56):
“em se tratando de dança, em geral cada grupo tem estilos e movimentos
próprios, mas que não são estáticos e imutáveis, tendo se transformado ao
longo do tempo e são, claro, suscetíveis ao estilo pessoal de cada dançarina”

Vela ressaltar que o cinema também teve grande propagação da cultura árabe
ao ocidente. Programas de Tvs e filmes retratam a imagem das dançarinas de
dança do ventre como figuras sensuais, com roupas que são consideradas
“exóticas” e muitas vezes, até mesmo vulgares.

Sendo assim, como já citado, a dança do ventre e também as dançarinas que a


praticavam, eram vistas como mulheres sedutoras e muitas vezes, como
mulheres “não descentes”, como foi o caso da dançarina brasileira Luz Del

132
Fuego. Mesmo não sendo uma dançarina propriamente dita de dança do
ventre, Luz Del Fuego utilizava serpentes em suas apresentações, na qual
dizia que foi inspirada em sacerdotisas da Macedônia.

Apesar de ser uma ativista política e também ecologistas, devido a “má fama”
criada pela dança que tinha poucas roupas ou mesmo nenhuma, tendo em
vista que Fuego foi a primeira bailarina a se apresentar nua no Brasil, ela
acabou no ostracismo de uma sociedade regida pelo patriarcado, tendo em
mente que nesse contexto, uma mulher dançar com poucas roupas, levava um
processo de estigmatização social, bem como a errônea ideia que essas
mulheres são sedutoras e de certa forma, oferecem perigo pra a ordem
estabelecida. Logo, assim como Luz Del Fuego, muitas dançarinas de dança
do ventre também sofriam as represálias de um sociedade marcada pela
dominação masculina e por padrões sociais altamente demarcados.

Contudo, mesmo diante desse processo de estigmatização e transculturação


que a dança do ventre sofreu ao longo dos séculos, a dança do ventre vem
resistindo e se adaptando a novos estilos e versões a ela introduzida, como
elucida Roberta Salgueiro (2012, p.42) acerca da dança do ventre: “é antes
uma linguagem de sobrevivência, resultado bem-sucedido de uma adaptação
longa e dolorosa”.

A dança do ventre, que possui diversos movimentos relacionados a animais,


principalmente as serpentes, mesmo sofrendo pelo processo de colonização e
sendo perpassada ao longo dos séculos de forma distorcida, como uma dança
de cunho sexualizada e de carater seduzente, a dança do ventre resiste como
uma performance milenar, que retrata a arte, os ritos e os cultos da “cultura do
leste”, a dança vem mostrando a sua resiliência dentro do mundo ocidental.

Referências bibliográficas e biográficas:


Tanya Mayara Kruger é Mestra em História pela Universidade Federal do
Espírito Santo e professor de História pela Prefeitura Municipal de João Neiva-
ES e Secretaria de Estado da Educação (SEDU).

ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Gomes de (2018). Entre Ghawazee, Awalim e


Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. 2018 198 f.
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 2018. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2023

ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Rotta Gomes de. Entre Ghawázee e Awálim: a


dança egípcia a partir da obra de Edward Willian Lane. 2014. 62 f. TCC
(Graduação) - Curso de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível
em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/182762 . Acesso em: 20 mar. 2023

DIB, Marcia. Música Árabe: expressividade e sutileza. São Paulo: Ed. do autor,
2013.

133
MONTEIRO, Maria Conceição. Figuras errantes na Época Vitoriana: A
preceptora, a prostituta e a louca. Revista Fragmentos, Volume 8, nº 1.
Florianópolis: UFSC, juldez / 1998. P. 61 – 71. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/6038/5608

134
SERPENTES ALADAS, DRAGÕES E OUTRAS DIVINDADES: UM
ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS DEUSES
MESOAMERICANOS E OS DRAGÕES NA MITOLOGIA
CHINESA, por Luiz Vinicius Rodrigues dos Santos

Introdução
Apesar de os símbolos serem condicionados ao espaço e à cultura em que
surgiram, as culturas chinesa e mesoamericana possuem muitos atributos
semelhantes na construção iconográfica de algumas divindades. As
similaridades e disparidades entre esses dois extremos permitem compreender
as interseções nas imagens de suas divindades, os motivos por trás dessas
iconografias e o contexto ritualístico em que estão inseridas.

O percurso teórico consiste na análise das imagens, em primeiro lugar, como


símbolos de suas respectivas culturas, com base nas leituras de Eduardo
Natalino, Paul Gendrop e Esther Pasztory. Além disso, será explorado o
emprego místico-religioso desses símbolos, com base no pensamento de
Mircea Eliade em “Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-
religioso”. Nessa obra, além de analisar como determinados símbolos se
desenvolvem de forma particular em cada cultura, o autor estabelece
aproximações entre culturas distintas.

Uma leitura indissociável dos objetos apresentados é a das imagens como


símbolos culturais, porém, também será realizada uma análise contemporânea
dessas obras de arte. Gombrich, ao examinar uma máscara de Taotie, além de
abordar os aspectos mencionados anteriormente, possibilita um estudo
comparativo formal entre a Mesoamérica e a China no âmbito iconográfico e
religioso.

Por fim, o hibridismo presente nessas divindades evidencia a reação genuína


do ser humano em relação à cultura, ao clima e às condições geográficas do
ambiente em que vive, bem como o impacto desses elementos em sua cultura.

Atributos felinos
A Entrada de caverna em Chalcatzingo (Imagem 1) trata-se de uma
representação da divindade felina, esculpida em pedra. A entrada da caverna
apresenta, em baixo-relevo, a representação da boca de um jaguar. Essa
entrada, por si só, carregada diversos simbolismos. Em primeiro lugar, destaca-
se o Culto às Cavernas, pois para os mesoamericanos, as cavernas e grutas
eram considerados lugares sagrados, espaços de transição para o mundo dos
mortos, o que evidencia a importância do culto para sua cultura. As entradas de
grutas e cavernas eram adornadas com relevos de boca de jaguares, sendo a
boca do jaguar um canal simbólico de morte. Isso evidencia a importância do

135
jaguar para as culturas mesoamericanas e seu valor nos ritos do
animismo/xamanismo.

Imagem 1: Entrada de caverna, Boca de jaguar, Chalcatzingo.


Disponível em: <Kerr Portfolio Hi-Resolution (mayavase.com)>.

A divindade felina possui a capacidade de fazer a transição entre o mundo dos


vivos e dos mortos devido às características dos felinos, como a atividade
noturna e a visão apurada durante a noite. Além disso, o fato de habitar em
cavernas e grutas fez com que essa divindade fosse associada a essa
transição no mundo dos mortos. Embora a presença do jaguar seja recorrente
em diversos momentos da cultura mesoamericana, não há relatos específicos
sobre essa divindade. Todo o conhecimento disponível provém de registros
materiais, como máscaras e imagens votivas, em que a forma humana é
representada com características felinas. Com base nessas representações,
antropólogos e estudiosos da cultura Olmeca atribuíram a essas imagens a
condição de deuses ancestrais.

A transição entre mundos é uma constante nos ritos xamânicos. O animismo e


o xamanismo desempenham um papel fundamental na construção das
civilizações arcaicas, abrangendo mitos de origem e a vida do universo. Esses
mitos derivam de uma visão mítico-religiosa perpetuada por indivíduos que
assumem o papel de mentores espirituais nessas culturas, conhecidos como
xamãs (VILLAJOS, S. G. 2009). Nesse contexto, cabe refletir sobre a
associação dos deuses a múltiplos animais, como uma seleção de
características intrínsecas às suas vidas, que podem ser interpretadas como
qualidades na construção dessas figuras divinas (NATALINO, E. 2002).

136
Como é possível observar, é fácil identificar a presença de um felino na
composição. No entanto, sua construção também apresenta elementos que, de
certa forma, remetem a um dragão chinês, como seu bigode, círculos ao redor
dos olhos, presas e "sobrancelhas" (Imagem 2).

Imagem 2: Acrotério, cabeça de Dragão. Dinastia Ming, 1368-1644, louça de


barro vidrada. British Museum
Disponível em: <acroterion | British Museum>.

Assim como o jaguar no xamanismo mesoamericano, o dragão também


desempenha um papel importante na comunicação entre mundos no
xamanismo chinês. Em seu trabalho "Reworlding the ancient Chinese tiger in
the realm of the Asian Anthropocene", Annu Jalais discorre, em diálogo com
Kwang-chih Chang, sobre o papel dos animais nos ritos xamânicos.

“Alguns desses animais, sugere Chang, de alguma forma ajudam os xamãs em


sua comunicação entre o Céu e a Terra, entre a vida e a morte. Esses animais
eram pareados com dragões ou serpentes e acreditavam-se que eles
ajudavam nos ritos xamânicos a fazer a transição entre os mundos como era
apontado nos ossos oraculares.” (JALAIS, A, 2018, Tradução nossa)

Além do dragão, o felino também é característico das culturas do leste asiático


e está presente no xamanismo chinês como uma ponte entre mundos. É
comum encontrar representações de felinos, ou outras bestas, com a boca
aberta e uma cabeça humana dentro, simbolizando a separação entre os
mundos da morte e da vida.

Serpentes e hirbridismos
Fazendo a transição entre mundos, céus e terras, as serpentes também estão
vinculadas às entidades nas culturas mesoamericanas. Na "Pirâmide de
Serpente Emplumada" estão representadas duas divindades importantes:
Quetzalcoatl e Tlaloc.

137
A serpente emplumada, que dá nome à pirâmide, é Quetzalcoatl (Imagem 3).
Essa divindade está associada à movimentação das águas nos céus, como
chuvas, ventos e tempestades, e sua narrativa está em diálogo com Tlaloc,
responsável pelas águas terrestres. Uma forma de entrar em contato ou se
aproximar de Quetzalcoatl era por meio do Culto às Montanhas, que
simbolizavam a ligação com o céu e a importância das chuvas. Considerando
que a agricultura era crucial para a economia e a vida das sociedades
sedentárias, era comum a adoração e o respeito aos deuses ligados às águas
doces (GENDROP, P. 1987).

Imagem 3: Pirâmide de Serpente Emplumada.


Disponível em: <Teotihuacán | Guia México>.

Assim como na iconografia do tigre, detalhes como aros ao redor dos olhos e
“sobrancelhas” proeminentes aproximam as criaturas. Outro detalhe que
chama atenção na escultura de Quetzalcoatl na pirâmide é sua arcada
dentária, em vez de duas presas salientes, apresentando dentes semelhantes
aos de um felino. Além disso, a presença de um nariz “achatado”, que não se
assemelha às narinas de um réptil ou ave, remete ao nariz de Lung, embora o
dragão chinês seja conhecido por ter uma cabeça semelhante à de um camelo,
conforme a iconografia analisada pela revista Macau. (DRAGÃO CHINÊS…,
2013)

Já Tlaloc é representado como uma criatura híbrida entre anfíbio e felino.


Responsável pelas águas terrestres, como rios, lagos, nascentes, e também
pelas águas subterrâneas em cavernas e grutas. Junto com Quetzalcoatl, ele é
responsável pelo ciclo das chuvas. Tlaloc é uma deidade de extrema
importância na sociedade mesoamericana, sendo não apenas o protetor das
águas, mas também associado ao submundo. No mural do Palácio de
Tepantitla, é possível observar a representação desse submundo, intitulado
“Paraíso de Tlaloc” (Imagem 4). Nele, identifica-se a entrada de uma caverna
com um relevo em forma de boca de jaguar e um fluxo de água, além de

138
sacerdotes trajados em homenagem à deidade, lançando sementes ao solo
(Imagem 5).

Imagem 4: Palácio de Tepantitla, detalhe mural, Paraíso de Tlaloc.


Disponível em: <Opera Mundi>.

Imagem 5: Palácio de Tepantitla, detalhe mural, Sacerdotes semeando.


Disponível em: <Palacio de Tepantitla, Teotihuacan>

A figura de Tlaloc, presente nas pirâmides, apresenta atributos que o


aproximam do Taotie (Imagens 6 e 7), assim como Quetzalcoatl. Esses
atributos incluem os aros em volta dos olhos, boca achatada/quadrada e
"sobrancelhas" volumosas. Além disso, os sacerdotes de Tlaloc no Palácio de
Tepantitla utilizam máscaras que lembram um dragão chinês (GOMBRICH, E.
2012).

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Imagem 6: Vaso com relevo de motivo de máscara animal (taotie). Esse vaso
foi encontrado no interior da muralha da China. Datação entre as Dinastias
Shang e Zhou ocidental, 21.4 x 16.4 x 16.2cm.. Brooklyn Museum.
Disponível em: <Brooklyn Museum>.

Imagem 7: Machado de Jade, como motivo de Taotie. Período Neolítico,


cultura de Liangzhu, 29.5cm.
Disponível em: <Kwonglam Museum of Art>.

140
O conhecimento do ciclo da chuva e da interconexão dos elementos da
natureza é comum a ambas as culturas abordadas aqui. Nas lendas chinesas,
atribui-se o nascimento dos quatro rios mais importantes da China aos
dragões: Heilongjian (Rio Negro), Huanghe (Rio Amarelo), Changjiang
(Yangtze, ou Rio Comprido) e Zhujiang (Pérola). Esses quatro dragões, vendo
o sofrimento dos humanos por falta de comida devido a um longo período de
seca, procuraram o Imperador Jade para pedir que ele enviasse chuva para as
pessoas. Apesar de ter prometido aos dragões, o Imperador Jade não cumpriu
com sua promessa .

Ao verem o sofrimento dos humanos, os quatro dragões decidem ir ao oceano,


pegar água em suas bocas e levá-la aos céus para que chovesse. Ao tomar
conhecimento disso, o Imperador Jade decide punir os quatro dragões e pede
ao Deus das Montanhas que lance montanhas sobre eles, mantendo-os
eternamente separados e distantes uns dos outros como forma de castigo. O
Deus das Montanhas atende ao pedido e realiza a punição. Determinados a
continuar beneficiando as pessoas, os quatro dragões se transformam em rios,
fluindo desde as alturas das montanhas até os vales profundos, até finalmente
desembocarem no mar (LEMOS, L. P. 2017).

Outro ponto em comum entre as duas culturas é a adoração às serpentes,


presentes em diversas manifestações artísticas relacionadas aos ritos
xamânicos. As serpentes, tanto na cultura mesoamericana quanto na chinesa,
possuem uma ligação com o mundo dos feitiços. O mosaico peitoral Asteca-
Mixteca (Imagem 8), datado entre 1400 – 1521, representa uma serpente de
duas cabeças. Essa serpente, assim como outras representações
mencionadas anteriormente, possui elementos em sua composição que
remetem ao hibridismo e, mais uma vez, se assemelham à imagem de um
dragão chinês. No contexto das representações de serpentes, temos a
Xiuhcoatl (Imagem 9), uma serpente de fogo que serve como arma para
Huitzilopochtli. A Xiuhcoatl, assim como outras criaturas do panteão mítico
americano, está longe de uma construção visual pura, apresentando braços e
garras, o que a torna ainda mais semelhante a um dragão chinês (Imagem 10).

141
Imagem 8: Peitoral, em forma de serpente de duas cabeças. Cultura Asteca-
Mixteca, 1400-1521, México, turquesa; madeira de cedrela; Concha de ostra;
concha; resina de pinho; copal; cera de abelha; hematita 20.30x43.30x5.90 cm.
Britsh Museum.
Disponível em: <British Museum>.

Imagem 9: Xiuhcoatl. Escultura em pedra da serpente de fogo Asteca,


Xiuhcoatl, com cabeça de serpente, pernas curtas com garras curvadas. Na
extremidade a figura é formada pelo convencional símbolo mexicano, para
marcação de tempo, de xihuitl. Cultura Asteca, 1300-1521. México, Texcoco,
pedra, 77x60 cm. Britsh Museum.
Disponível em: <British Museum>.

142
Imagem 10: Vaso com motivo de lótus e dragão em vidrado azul. Dinastia
Ming, 1403-1424. Porcelana. Alt. 42.9 cm; diâmetro 9.7 cm; diâmetro da base
15.8 cm.
Disponível em: <National Palace Museum>.

Desviando um pouco do contexto Mesoamérica-China, em Chavin, no Peru,


encontramos a imagem de Lanzón (Imagem 11), que compartilha
características com o Taotie (Imagem 12). Embora a criatura chinesa seja um
ser mítico, enquanto o deus andino seja um híbrido. Assim como os deuses
mesoamericanos, a divindade andina também possui atributos do jaguar, como
o focinho e as presas, detalhados no desenho esquemático.

143
Imagem 11: Estela Lanzón. Cultura Chavín 900-200 AEC. Chavín de Huantar,
Peru.
Disponível em: <Lanzón Stela>.

Imagem 12: Adorno para cavalo em forma de máscara de taotie. Dinastia


Shang 1300-1050 AEC, Bronze.
Disponível em: <Asian Art Museum Online Collection>.

144
O hibridismo com anfíbios ou répteis é uma característica comum na
construção iconográfica dessas divindades. Isso ocorre porque as
características dos deuses estão diretamente relacionadas a situações
concretas das sociedades mesoamericanas, conferindo-lhes sentido apenas
dentro daquele contexto. Alguns “símbolos” são facilmente associados, não
sendo surpreendente que o Quetzalcoatl, deus dos céus e controlador de
ventos e tempestades, possua atributos de ave, enquanto a representação da
serpente está ligada à dimensão mística do xamanismo, uma vez que as
serpentes simbolizam a magia e os feitiços.

A presença de elementos característicos de sapos ou outros anfíbios, como no


Tlaloc, está intrinsecamente ligada à sua condição de deus das águas terrenas.
Nas sociedades arcaicas, havia uma forte observação da natureza, e sapos e
rãs são espécies que habitam regiões com presença de água. Portanto, há
uma associação entre esses elementos, considerando também a peregrinação
ou caça, onde a presença dessas criaturas indicaria a proximidade de água.
Além disso, sapos e rãs têm a capacidade de pressentir a chegada das chuvas,
e durante esse período ocorre o acasalamento. O canto dos sapos é uma
forma de comunicação, através do qual eles anunciam uns aos outros a
chegada da chuva e a disponibilidade de locais para o acasalamento
(HAYASAKA, E. Y.; NISHIDA, S. M. 2021).

Com isso, os animais, ou seus atributos, tornam-se símbolos da natureza


devido à sua relação com o ambiente. A observação da natureza e sua
assimilação pelas culturas arcaicas não são meras casualidades. Os anfíbios
tendem a habitar áreas pantanosas ou com grande presença de água, seja na
China, no México ou em qualquer outra parte do globo. Os canídeos têm a
tendência de caçar em grupo, independentemente da região em que estejam,
assim como os felinos têm atividades noturnas. Mircea Eliade abordará essa
relação entre os povos arcaicos e a natureza na construção de seus símbolos.

“Tomemos um só exemplo; sabe-se hoje que certos mitos e símbolos


circularam através do mundo divulgados por determinados tipos de cultura;
quer dizer que estes mitos e estes símbolos nem por isso são descobertas
espontâneas do homem arcaico, mas criações de um complexo cultural bem
delimitado, elaborado e veiculado por certas sociedades humanas; tais
criações foram difundidas muito longe do Seu lugar de origem e foram
assimiladas por povos e sociedades que doutro modo as não teriam
conhecido.” (ELIADE, M. 2002. p. 33 – 34).

Considerações finais
Para além do que a China e a Mesoamérica transformaram em símbolos e de
todo o significado místico-religioso empregado, as histórias por trás desses
símbolos encontram interseções entre as narrativas rituais e iconográficas.

145
As ideias de Eliade atendem aos tensionamentos que as práticas místicas
mesoamericanas fazem com os limites do conceito de xamanismo, uma vez
que as religiões não são conceitos quadrados, sólidos e estáticos.

A partir desses tensionamentos, é possível, por meio do comparativismo


iconográfico, compreender até onde a iconografia americana dialoga com a
chinesa, e como a relação das civilizações antigas com a natureza permitiu o
desenvolvimento de um repertório cultural que vai além das ideias orientalistas
ou exóticas construídas em cima dessas figuras.

Referências
Luiz Vinicius Rodrigues dos Santos é bacharel em História da Arte pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e co-coordenador do Grupo de
Estudos em Arte Asiática (GEAA). [luizvrs21@gmail.com]

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GOMBRICH, E. A Máscara Elusiva. In: O Sentido de Ordem Um Estudo Sobre


a Psicologia da Arte Decorativa. p.267-270. 2012.

HAYASAKA, E. Y.; NISHIDA, S. M. Reprodução dos Anfíbios Anuros.


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